Ideologia e utopia
 1001040616

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~ KARL

Mann

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© Esse livro encerra a ca

Cometome octtes

Birmingham. DE nessa coletanea, os seguintes artigos: O InPca CRUealee meleeReem elcol Fon eM)esete-] Cn) Consciéneia: Lukdcs (Roisin orene Polftica e tdeologja: Gramsci (Stuart Hall, Bob Lumley e Gregor McLen-

nan); A Teoria de Althusser sobre Ideologia (Gregor McLennan, Victor

ERCNM esCOREGCutieeM SarCrk:Ce lst)itEe M(tbeer) no Poder Politi¢o e nas Classes Sociais (John Clarke, lan Connell e Roisin McDonough); Democracia Social, Educagao e a Crise (Dan Finn, Neil Grant e Richard Johnson); Ideologia, Subjetividade e o Texto Lite-

rario (Steve Burniston eChris Weedon). :

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A CIENCIA COMO PNieeUY.

rHeaantc)

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O autor analisa minuciasamente a Ciéncia eea ars co, revelando a natureza do desenvolvimento cientifico 4 medida que eltraeae ons ry DeeTC) Cert MP 43)ae &xaminaos cientistas Madd seres humanos, como CL LL ag BUCCRLn Fedd CeeCC PeLc)

Fonde exercem sua atividade. Num capitulo especialmente importan’

CeERMCEts 11.

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7

DE

CIENCIAS

Sociologia ¢ 4. Tope

SOCIAIS

KARL MANNHEIM

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IDEOLOGIA E UTOPIA "OL 16

BIBLIOTECA

Tradugio ae Séxcio MAGALHASS SANTELRO & Seca Feo. |ki

Reviséo Técnica do

Pror. César GUuIMARAES

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CIP-Brasil. Catalogagdo-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

M2466i 4ed

Mannheun, Karl Idcotogia ¢ utopia / Karl Mannheim, tra~ dugdo de Sérgio Magalhdes Santerro — 4 ed — Run de Janeiro: Guanabara, 1996 T

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tode Ideology and utopna §-703U-236-3

1. Utopia 2 Ideologia 1 Titulo 86-0945

INDICE

CDD — 321 07 CDU — 167 $

Jose 3B. Guaimarics "ance « ME

_LIVREIRO» LIV’ 9S UNIVERSITARIOS

Nota Prertosinar (pA EDICAG INGLES; Preracio, I,

ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA

29

1. Concnrro Sociorécico pre PENSAMENTO

363 « Teal, (O16) 722.4166 Rua Itirepc FRANCA.SP — CEP 14,.405.067 Titulo origiv |: {deology an. Jtopia — An Introduction to the Sociology of Knowledge Traduzido da edigéo publicada em 1960 por Routledge & Kegan Paul Ltd., de Londres, Inglaterra

Louis Wiarik

2. Os

ConpicionaMENtos

MENTO

CoNnTEMpoRANEOS

29 pO PENSsA-

occ ee ee eee ee ee et tee

3. Onicem pos Pontos-pe-Vista Epistemoiécico, Psico-

LOGICO E SOcIOLéGICO MovERNOS 20.0... eee

4, O Conrrétz po Inconscrm:nrz CoLETIvo COMO UM

PROBLEMA DE Nossa EPOCA oo... eee se essen eee eee

Il.

IDEOLOGIA E UTOPIA

3. Da Concerpgio Particutan A Concergio Tora. DE

IpEOLocia ... se. 4, Objetivmade £ SUBJETIVISMO

5. A PassaceM pa Trorta pA Ingorocia A SocroLocta 30

ConHECIMENTO 6. A Concergéo NAo-Vaorativa pe IDEOLOGIA 7. A PassaceM pa Concergao N&o-Vatoratrya A Con-

Reservados jos 0s direitos. E proibido a duplicagdo ou reprodugdo ucste volume, ou de partes do mesmo.

sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrénico mecamico, gravagdo, fotocdpia, ou outros).

sem permis

9 expressa da Editora

CEPGAO VALORATIVA DE Ip1 OLOGIA

..

8. Juizos ON10LécIcos IMpLiciros Na Corcergdo NAo-Va-, LORATIVA

DE

IDEOLOGIA

9. O PropieMa va Faisa Consciincia 10. A Procuna pa Rgatwapr ATRAVES DA ANALISE DA Ibrotocia E vA Utopia TI.

4L 60 81

1. Dermigdo DE Concerros 2. 0 Coneriro pg Ingorocia NA Prrspsctrya Histénica

: Dircitos ex vos para a lingua portuguesa ‘Copyright ‘5 EDITORA “UANABARA S.A. ‘Travessa de Ouvidor, 11 Rio de Jano 06, RI — CEP 20040

33

PANORAMA DE UMA POLITICA CIENTIFICA: A RELAGAO ENTRE A TEO. POLITICA

1. Por Que N&o Existe uma Cnincrsa Poittica?

81 85

to

Iprotocia & UTOPIA . Os Dereaminantes Poriricos uz Socrais po Conim-

ARH RA

oo

CIMENTO

....--

143

A Sintese pas Diversas PEnsrectrvas como uM PnoBLEMA DE SocioLocia Potitica O Propiema Socio.écico pa “INTELLIGENTSIA”

172

A NarurezA po CoNHECIMENTO PoLitico .......... A COMUNICABILIDADE DO CONHECIMENTO PoviTico ....

189 196

TrEs VARIEDADES DE SocioLocra DQ CONIECIMENTO ..

209

II, HI e IV compoem a edigao original de Ideologie und Utopie (F. Coben, Bonn, 1929; atualmente Schulte-Bulmke, Frankfurt). A Parte V é 0 artigo “Sociologia do Conbecimento’’, originalmente publicado no Diciondrio de Sociologia de Alfred Vierkandt (Handworterbuch der Soziologie, F. Enke, Stuttgart, 1931). Finalmentc, a Parte I foi especialmente escrita, por

1. Uropra, Ipzo.ocia © 0 PROBLEMA DA REALIDADE ....

. Reaurzsgdo pe Desgyos & MENTALIDADE UTdépica .. . Mupangas na Conricuragaio DA MENTALIDange UTérica: seus EstAcios Nos TEMPOs MODERNOS ............

a) A Primeira Forma da Mentalidade Utépica: O Qui-

Mannheim, para a edicio inglésa,

liasma Orgidstico dos Anabatistag .............. b) A Segunda Forma da Mentalidade Utépica: A Idéia Liberal-Humanitdria eee cee c) A Terceirg Forma da Mentalidade Utépica: Conservadora

4, V.

A Idéia

d) A Quarta Forma da Mentalidade Utépica: A Utopia Socialista-Comunista

A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO 1. Narurnza E& ALCANCE DA

SocroLocjA po

Enquanto as Partes II, III e IV tratam dos problemas

253 263 271 286

ConnEcI-

MENTO

a) Definigéo ¢ Subdivisées da Sociologia do Conhecimento

b) A Sociologia do Conhecimento e a Teoria da ‘Ideologia

286 286

287 . As Dwuas Drvisdzs DA SoctaLociaA po ConBECIMENTO 288 a) A Teoria da Determinagdo Social do Conhecimento: 288

b) As Consegiéncias Epistemoldgicas da Sociologia do Conhecimento

.

308

. A Demonstaagdo pa NATUREZA PanclaL pa Episte-

MOLOGIA TRADICIONAL .

- O Pare. Postrivo pa SocioLociA po CoNnHEcrMEeNTO . ProsteMas ve Técnica pz Pesquisa Histénico-SocioLogica No CAMpo DA Socio.aciA po ConrcimenTo . Breve Espdco pa Histérnta pa Socro.oecia po CoNHeCIMENTO

A

E STE VOLUME contém diversos trabalbos do Autor, As Partes

IV. A MENTALIDADE UTOPICA

Rt

NOTA PRELIMINAR (DA EDIGAO INGLESA)

178

Sil 312

centrais da Sociologia da Conbecimento, e aplicando seu método as fases mais sianificativas da vida social contempordnea, o texto final procura formular um esbbgo conciso desta nova dis-

ciplina cultural. Estilisticamente, as quatro primeiras partes séo bastante diferentes da ultima. Naquelas, os temas plenamente desenvolvidos, enquanto esta, originalmente um verbéte para uma Enciclopédia, € pouco mais que um resumo esquemitico. Nao obstante as dificuldades do original, os tradutores procuraram manter-se o mais préximo posstvel do texto alemio. Mesmo quando foram necessérias algumas alteracées, para fins de inteligibilidade, intentou-se manter sempre, acuradamente,

o sentido desejado pelo Autor. Agradecemos ao Prof. Robert Cooley Angell, da Universidade de Michigan, por ter lido secdes das Partes If e V, e ao Sr. Arthur Bergholz, da Universidade de Chicago, que leu as secdes 1 e 9 da Parte II. Agradecemos também a Sr* E,

Ginsberg (M. A., Oxon) e a Jean McDonald (B. Se. (Econ.),

Londres), pela ajuda e pelas sugest6es quanto & presente edigao,

O manuscrito foi datilograjado pelo Social Science Research

Committee da Universidade de Chicago.

Louis WirtH

Epwarp A. SHILS

PREFACIO Louis WirtH

A EDIGAO original alema de Ideologia e Utopia surgiu em uma atmosfera de acentuada tensao intelectual, marcada pela discussio generalizada, que sdmente se extinguiu com o exilio ou o siléncio forgado dos pensadores que buscavam uma solucio honesta ¢ sustentdvel para os problemas levantados. Desde entflo, os conflitos que, na Alemanha, levaram a destruicio da Republica liberal de Weimar se fizeram sentir em varios paises por todo o mundo, especialmente na Europa ocidental e nos Estados Unidos. Os problemas intelectuais que, em determinada época, eram considerados preocupacaio exclusiva dos es-

critores alem&es passatam a envolver praticamente o mundginteiro. O que, em uma época, se havia encarado como o Inte-

”"

résse esotérico de uns poucos intelectuais de um tnico pais veio a se tornar condigéo comum do homem moderno.

Em resposta a esta situacao, surgiu uma extensa literatura

que fala do “fim”, do “‘declinio”, da “crise”, da “decadéncia” oa da “morte” da civilizagio ocidental. Mas, a despeito do alarme estampado em tais titulos, procura-se em vaéo em quase toda essa literatura uma andlise dos fatéres ¢ processos basicos subjacentes a nosso caos intelectual e social. Em contraste com tais obras, o trabalho do Professor Mannheim se destaca como uma andlise sébria, critica e bem fundada das correntes e situa-

cdes sociais de nosso tempo no referente ao pensamento, a erenga e€ a acao. Parece ser caracteristico de nossa época o fato de que as

normas e as verdades antigamente tidas como absolutas, universais ¢ eternas ou accitas com uma feliz ignorancia de suas implicagdes estejam sendo questionadas. A luz do pensamento

IpEOLoGIA E Utopia

PREFACIO

e da investigacio modetnos, para muito do que antes se accitava como incomteste passou-se a exigir demonstragfo e com-

a tentativa de transferir a tradigfio e todo o aparato de trabaIho cientifico do dominio fisico para o social tem muitas vézes resultado em confus&o, incompreensio e esterilidade. O pensamento cientifico sébre questdes sociais teve de sustentar até agora uma guerra contra, sobretudo, a intolerincia estabelecida e a repressio institucionalizada. Vem lutando por se estabelecer contra seus inimigos externos, o interésse autoritdrio da Igreja, do Estado e da tribo. No decorrer dos ultimos séculos, contudo, logrou-se uma vitéria, pelo menos parcial, sdbre estas

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provagio. Os préprios critérios da prova tornaram-se objeto de controvérsia. Estamos presenciando uma desctenca geral nfo apenas na validade das idéias, mas também nos motivos dos que as sustentam. Esta situacdo é agravada pela guerra de cada um contra os demais na arena intelectual, onde, mais do que a verdade, o auto-engrandecimento se tornon o prémio almejado. A crescente secularizacdo da vida. o agravamento dos

antagonismos sociais e a acentuacdo do espfrito de competi¢zo pessoal ocuparam regides que anteriormente se acreditava per-

tencerem totalmente ao dominio da busca objetiva ¢ desinte-

ressada da verdade.

Por mais inquietante que possa parecer, esta mudanca vem também exercendo influéncias benéficas. Dentre estas, po-

deriamos mencionar a tendéncia para um auto-exame mais profundo € para uma consciéncia mais ampla das interconexdes — das quais anteriormente se suspeitava — entre as idéias e as situagdes.

Embora venha a parecer de um humor inoportuno

falar-se das influ€ncias benéficas resultantes de um cataclismo que abalou os fundamentos de nossa ordem intelectual e social, deve-se reconhecer que o espetéculo de mudanca e confusio, com que a ciéncia social depara, proporciona ao mesmo tempo oportunidades sem precedente pata um névo e fecundo desenvolyimento.

Tal ndvo desenvolvimento. no entanto, depende

de que se tenha pleno conhecimento dos obstdculos antepostos ao pensamento social. Isto nfo implica que @ste esclareci-

mento seja a tinica condicfo para o posterior desenvolvimento da ciéncia social, como se verd adiante, mas apenas que se trata

de uma precondico necessdria para o desenvolvimento ulterior.

I O progresso do conhecimento social se acha impedido, se nao paralisado, por dois fatéres fundamentais: um déles, exterior,

e€ opondo-se ao conhecimento, o outro atuando dentro do préprio dominio da ciéncia. De um lado, as fSrcas que bloquearam e retardaram o avanco do conhecimento no passado ainda nao se convenceram de que o avanco do conhecimento social é compativel com o que consideram seus interésses, e, de outro lado,

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fércas externas, do que resultou uma certa tolerancia ao livre exame € mesmo um encorajamento ao pensamento livre. Por

um breve interregno entre as épocas do obscurantismo espiritualizado medieval e do aparecimento das modernas ditaduras secularizadas, o mundo ocidental deu promessas de realizar a esperanca de tddas as mentes esclarecidas de tédas as épocas: a de que, pelo exercicio pleno da inteligéncia, os homens poderiam triunfar sObre as adversidades da natureza e sdbre as perversidades da cultura. Entretanto, como tantas vézes no pas-

sado, esta esperanca parece agora frustrada.

Nacdes inteiras

entregaram-se oficial e orgulhosamente ao culto da irracionalidade, e mesmo o mundo anglo-saxfo que, por tanto tempo, tinha sido o refigio da liberdade e da razio, ptoporcionou recentemente o ressurgimento das cagadas As bruxas intelectuais Com o desenvolvimento do espfrito ocidental, a busca do conhecimento do mundo fisico resultou, apds as duras penas da perseguicfo teolégica, na concessio de um dominio auténomo para as Ciéncias Naturais, Desde o século XVI, afora algumas

excegSes notdveis, o dogmatismo teoldgico veio abandonando um apds outro todos os campos de investigacio até que se re-

conheceu amplamente a autoridade das Ciéncias Naturais. Face ao progresso da investigacdo cientifica, a Igreja tem abandonado e periddicamente reajustado suas interpretacdes doutrinais de modo que a divergéncia destas com relacio As descobertas

cientificas nfo scja por demais evidente.

Finalmente, a voz da ciéncia era escutada com um respeito

préximo 4 reveréncia antes somente concedida aos pronunciamentos autoritdrios, religiosos. As revolucdes que a estrutura

tedrica da ciéncia sofreram nas ultimas décadas deixaram inacabado o prestigio da busca cientifica da verdade. Apesar de nos ultimos cinco anos se haver ocasionalmente levantado o alarme de que a ciéncia exercia um efeito violentador da or-

IpEoLocia E Urorta

PreFACIO

ganizacao econémica, devendo sua atividade ser limitada, qualquer refteamento que possa ter-se verificado neste perfodo no progresso da pesquisa da ciéncia natural serd provavelmente mais o tesultado da procura econémica decrescente dos produtos da ciéncia do que uma tentativa deliberada de retardar o avango cientifico com o intuito de estabilizar a ordem exis-

legitimavam a ordem polftica existente, tanto mais precdria se tornava a posigao da ciéncia social emergente.

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tente.

A vitéria da ciéncia natural sdbre o dogma teoldgico e metafisico contrasta violentamente com o desenvolvimento dos estudos da vida social. Ao passo que o procedimento empirico efetuava profundas incisdes nos antigos dogmas referentes & nature-

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© Japao contempordneo fornece um exemplo dramédtico da diferenca entre os conhecimentos tecnoldgico e social, quer quanto a seus respectivos efeitos, quer quanto as atitudes em relagfo a um e a outro. Desde que o pais se abrira as correntes de influéncia ocidental, os produtos e os métodos técnicos do Ocidente toram avidamente aceitos. Nao obstante as influén-

clas politicas, econdmicas e sociais vindas do exterior, séo ainda

hoje encaradas com suspeita e a elas obstinadamente se resiste.

za, as doutrinas sociais cldssicas se mostraram mais impenetrdveis

O entusiasmo com que se recebem no Japao os resultados da ciéncia fisica e bioldgica contrasta vivamente com o cultivo cauteloso e limitado da investigacéo econémica, politica e social.

de teorias no que toca a questGes snciais estavam muito mais

jeitos ao que os japonéscs chamam &Askenshiso ou “pensamentos pcrigosos”. As autoridades encaram como perigosa a dis-

a investida do espfrito secular e empirico. Isto pode ser em parte devido a que, entre os antigos, o conhecimento ¢ a ¢laboracdo adiantados do que as noc6es relativas & Fisica ¢ A Biologia. Ainda nao havia chegado a oportunide de demonstrat a utilida-

de prdtica da nova ciéncia natural, e a inutilidade das doutrinas sociais existentes nado padia ser convincentemente comprovada. Ao passo que a Logica, a Etica, a Estética, a Politica e a Psicolo-

gia de Aristételes impunham sua autoridade as épocas subseqiientes, suas noc6es de Astronomia, Ffsica ¢ Biologia se viam progressivamente relegadas ao museu das supersticdes antigas. Até o coméco do século XVIII a teoria politica e social ainda se encontrava sob o dominio das categotias de pensamento elaboradas pelos filésofos medievais e antigos, sendo em grande parte utilizadas em bases teoldgicas. O ramo da ciéncia social que tinha alguma utilidade prdtica se relacionava, otigi-

nalmente. com assuntos administrativos. O cameralismo e a aritmeética politica, que representavam esta corrente, limitavam-se aos

fatos rotineiros da vida cotidiana, raramente se alcando A teoria. Em conseqtiéncia, o ramo do conhecimento social que se preo-

cupava com questdes mais suieitas A controvérsia dificilmente po-

dia aspirar ao valor prdtico alcancado pelas Ciéncias Naturais depois de um certo estd4gio de seu desenvolvimento. Nem tampouco podiam os pensadores sociais, de quem dependia o progresso dessas ciéncias, esperar o amparo da Igreja ou do istado, onde os mais ortodoxos buscavam o seu sustento moral ¢ financeiro. Quanto mais secularizada a teoria politica e social se tornava e quanto mais completamente destrufa os mitos santificados que

Listes Ultimos assuntos ainda estao, em sua maior parte, su-

cusséo da democracia, do constitucionalismo, do imperador, do

socialismo e de uma série de outros assuntos porque o conhecimento déstes tépicos poderia subverter as crengas sancionadas e minar a ordem existente.

Para que n&o pensemos, porém, que esta situagaéo seja peculiar ao Japao, deve-se frisar que muitos dos tépicos que 14 se reinem sob o titulo de “pensamento perigoso” era igualmente, até hé pouco, considerados tabu na sociedade ocidental. Ainda hoje em dia, uma investigagao clara, franca e “‘objetiva”

nas instituigSes mais sagradas e queridas se vé mais ou menos

striamente limitada em qualquer pais do mundo. I praticamente impossivel, por exemplo, mesmo na Inglaterra e nos Estados Unidos, inquirir sébre a realidade dos fatos referentes ao comunismo, nao importa quao desinteressadamente, sem correr 0 risco de ser tachado de comunista. Que em tédas as sociedades exista, pois, uma d4rea de ‘‘pensamento perigoso” parece ser assunto praticamente indiscutivel. Embora reconhecamos que o que € petigoso de se pensar pode vatiat de pais a pais e de época a época, os assuntos em geral marcados com o sinal de perigo séo os que a sociedade ou os seus elemer.tos controladores acreditam ser de tal forma vitais, e dai sagrados, que nao tolerariam sua profanacdo pelo fato de discuti-los. © que, entretanto, nfo é tao facilmente reconhecivel € 0 fato de que o pensamento mesmo na auséncia de uma

14

Iogoroeia E Uropia

censura oficial € perturbador e, em determinadas condigdes, perigoso e subversivo. Pois o pensamento é um agente catalisador capaz de perturbar rotinas, desorganizar habitos, romper costumes, solapar crencas e gerar o ceticismo.

© aspecto peculiar ao enunciado da ciéncia social deve

ser buscado no fato de que téda afirmativa, néo importa quaéo wbjetiva possa ser, possui ramificagSes que se estendem para além dos limites da ciéncia prdpriamente dita. Uma vez que toda a afirmativa de um “fato” a respeito do mundo social afeta os interésses de algum individuo ou grupo, nfo se pode nem ao menos chamar a atencio para a existéncia de determinados “fatos’’ sem provocar as objecsdes daqueles cuja prdépria raison d’étre na sociedade repousa em uma interpretacio divergente da situacio “fatual”.

It A discussio em térno déste tema tem sido conhecida tradicionalmente como o problema da objetividade na ciéncia. Na linguagem do mundo anglo-saxZo ser objetivo tem como significado ser imparcial, nao ter preferéncias, predilecdes ou preconceitos, tendéncias, valéres ou juizos preconcebidos diante dos fatos. Esta nogéo era uma expressdo da antiga concepcio da lei natural de acérdo com a qual a contemplacio dos fatos da natureza, ao invés de estar imptegnada pelas normas de conduta do contemplador, fornecia automaticamente estas normas.! Depois de haver decafdo a abordagem da lei natural ao problema da objetividade, tal modo nao-pessoal de encarar os fatos foi

novamente encontrar suporte, por algum tempo, por estar o

positivismo em voga. A ciéncia social do século XIX é prddiga em adverténcias contra as destorcivas influéncias da paixéo, do interésse politico, do nacionalismo ¢ do sentimento de classe, bem como em exortacdes de autopurificacdo.

1 E justamente a corrente de pensamento que em seguida evoluiu para a Sociologia do Conhecimento, que constitui o tema central déste livro, que devemos a nogio de que as normas ético-puliticas nao s6 nfo podem ser derivadas da contemplagio direta dos fatos, mas exercem elas mesmas uma influéncia modeladora sébre os préprios modos de perceber og fatos, Cf., entre outros, os trabalhos de Thorstein Veblen, John Dewey, Otto Bauer e Maurice Halbwachs,

PrerAcio

15

De tato, grande parte da histéria da filosofia e da ciéncia modernas revela uma inclinagio, se nfo uma clara orientagao

para éste tipo de objetividade. Isto, admite-se, implica, negativamente, a procura do conhecimento valido por meio da elimi-

nagio da percepgao tendenciosa e do raciocinio vicioso, e, positivamente, ma fornulagéo derum ponto de vista criticamente autoconsctinte e no desenvolvimento de sdlidos métodos de observagio e de andlise. Se, a primeira vista, pode parecer que ao claborar trabalhos de légica e metodologia da ciéncia os pensadoies de outras nagdes tenham sido mais ativos do que os ingléses c os amcricanos, esla nogio bem poderia ser corrigida chamando-se a atengao para o grande numero de pensadores do

mundo de lingua inglésa que se preocuparam exatamente com éstes mesmos problemas sem os titular especificamente de me-

todologia. IE certo que a preocupagio com os problemas e perigos implicados ui busca do conhecimento vilido constituiu porgao cm nada desprezivel das obras de uma grande série de brilhantes pensadores de Locke, Hume, Bentham, Mill e Spencer a autores contemporaneos. Nem sempre consideramos estas

abordagens dos processos de conhecimento como tentativas sérias de formular as premissas epistemoldgicas, ldgicas e psicoldgicas de uma sociclogia do conhecimento, quer por estarem investidas do titulo explicito, quer por nao terem deliberadamente visado a tal fim. Nao obstante nenhuma atividade cientifica ter sido desenvolvida de maneira organizada e autoconsciente, éstes problemas sempre receberam considerdvel atengao. Na ver-

dade, em trabalhos tais como o System of Logic de J. 8. Mill e o brilhante e bastante desprezado Study of Sociology de Herbert Spencer, o problema do conhecimento social objetivo mereceu tratamento sincero e amplo. No perfodo que se seguiu a Spen-

cer, o interésse pela objetividade do conhecimento social foi algo desviado pelo predominio das técnicas estatisticas desen-

volvidas por Francis Galton e Karl Pearson, Contudo, em nossos dias, os trabalhos de Graham Wallas e John A. Hobson, entre outros, assinalam o retéreo destz.preoc pacao, Os Estados Unidos, apesar do quadro infecundo de seu panorama intelectual, ao menos segundo descrigdes correntes nos escritos europeus, tém produzido varios pensadores que se interessam por éste tema. Neste sentido, é de se destacar o trabalho de William Graham Sumner que, apesar de ter: abordado o nrokizma igo vbliquamenie avravés da andlise da in-

16

ToroLocia E Urops

PREFACIO

fluéncia dos folkways e dos mores sObre. as rorme: sociai: 20 invés de, diretamente, através da critica epistemoldgica, colocou o problema da objetividade num contexto caracteristicamente sociolégico concreto dado o modo vigoroso com que encarou

cial, particularmente, a verdade no € meramente uma questio de simples correspondéncia entre pensamento e existéncia, mas é permeada pelo interésse do investigador na questHo, por seu ponto-de-vista, por suas valoracdes, em suma, pela definicio de seu objeto de atengZo, Entretanto, esta concepgio de objetividade nao implica que daqui por diante nao mais se possa distinguir entre verdade e érro. Naosignifica que o que quer que as pessoas imaginem serem suas percepcdes, atitudes e idéias —- ou o que as pessoas desejem que os outros acreditem

a destorciva influéncia do etnocentrismo sébre o conhecimento.

Infelizmente seus discipulos nao detam prosseguimento a explorago das ricas potencialidades de sua abordagem, interessando-se mais em elaborar outros aspectos de seu pensamento. De forma bastante similar no tratamento do problema, Thorstein Veblen, em uma serie de ensaios brilhantes e penetrantes, explorou as intrincadas relagdes entre os valdres culturais e as atividades intelectuais. Uma discussio posterior e realista déste mesmo problema encontra-se em The Mind in the Along, de james Harvey Kobinson, em que éste renomado historiador toca em muitos dos pontos analisados em detalhe pelo presente

volume. Ainda mais recentemente, em Lhe Nalure of the Social Sctences, o Protessor Charles A. Beard estudou as possibilidades do conhecimento social objetivo, do ponto-de-vista pe-

dagogico, revelando alguns tragos de influéncia da obra do Professor Mannheim. Muito embora tenha sido necessdria e salutar a enfase na

destorciva influéncia dos valéres e interésses culturats, éste aspecto negativo da critica cultural do conhecumento chegou a um ponto em que tinha que ser reconhecida a relevancia posiliva e construtiva, para o pensamento, dos elementos valorativos, En-

quanto o siterior modo de encarar a objetividade acertu:va a euminacao da subyetividade pessoal ¢ coletiva, a abordagem moderna acer 2a a importancia cognitiva positiva de tal subjetividade. Encuanto anteriormente a busca da objetividade tendia a propor vm “objeto” oposto ao “‘sujeito”, enfatiza-se atualmente uma intima relacio entre o objeto e o sujeito que o percebe. ‘Com efeito, a mais recente colocacgo sustenta que o objeto emerge para o sujeito quando, no decorrer da vivéncia, o in-

terésse do sujeito visa aquele especifico aspecto do mundo.

Assim, a cbjetividade aparece sob duplo aspecto: um, em que 0 objeto e ajeito so entidades distintas e separadas, o outro em que se enfatiza o intercurso dos deis. Se no ptimeiro sentido a obj-tividade refere-se 4 fidedignidade de ‘ assos dados

ea validade de nossas conclusdes, no segundo sentido ela concet-

ne relevancemente aos nossos int’~ésses. No dominio do so-

17

que elas sio — corresponda aos tatos. Mesmo nesta concepcao

da objetividade devemos considerar a distor¢ao produzida nao

apenas pela percepcZo inadequada ou pelo incorreto conheci-

mento de si mesmo, mas também pela dificuldade ou falta de

boa vontade, em certas circunstancias, para expor as prdprias percepgdes ¢ idéias com honestidade. Esta concepgio de objetividade subjacente ao trabalho do Professor Mannheim n&o parecer4 totalmente estranha aqueles que estejam familiarizados com a corrente de filosofia americana representada por James, Peirce, Mead e Dewey. Embora a abordagem do Professor Mannheim seja o produto de uma diferente heranca intelectual, em que Kant, Marx e Max Weber desempenham os papéis principais, suas conclusdes sobre vatios temas centrais séo idénticas is dos pragmatistas americanos, Essa convergéncia se verifica, entretanto, sdmente até os limites do

campo da Psicologia Social. Entre os socidlogos americanos, ste ponto de vista foi explicitamente enunciado pelo falecido Charles 11. Cooley « por R. M. Maclver, e, implicitamente, por W. 1. Thomas e Robert E. Park. Um motivo para nfo ligarmos imediatamente os trabalhos déstes escritores ao complexo de problemas do presente volume é que nos Estados Unidos o assunto que a Sociologia do Conhecimento trata sistematica-

mente ¢ explicitamente ou nao foi abordado senfo ocasional-

mente dentro do quadro da disciplina especial da Psicologia So-

cial ou tem sido um inexplorado subproduto da pesquisa empirica. A busca da objetividade faz surgir dificeis problemas para a tentativa de estabelecer um método cientifico rigoroso para o estudo da vida social. Enquanto ao lidar com os objetos do mundo ffsico o cientista pode perfeitamente se limitar as uniformidades e regularidades externas que se apfesentam, sem buscar penetrar no significado interno dos fendmenos, no mun-

PREFACIO

IpE*rocia & Uropra

do social a pesquisa existe fundamentalmente para uma com-

preensdo déstes significados e conexdes internos. Pode ser que existam alguns fendmenos sociais e, talvez, alguns aspectos de todos os acontecimentos sociais que se possam observar externamente como se féssem coisas. Mas isso nao deve levar a inferir que sOmente sdo reais as manifestagdes da vida social que encontrem expresséo em colsas materiais. Seria uma concepgao bastante estreita da ciéncia social limitd-la aos objetos concretos externamente perceptiveis e mensurdveis. A literatura da ciéncia social demonstra amplamente que existem esferas amplas e bastante definidas de existéncia social em que € possivel se obter conhecimento cientifico no sémente fidedigno, mas que tem significativa relagfo com a politica @ a acéo sociais. O fato de que os séres humanos sejam diferentes dos demais objetos da natureza nfo implica que nada exista de determinado a seu respeito. Apesar de que os séres

humanos demonstrem em suas agdes um tipo de acusagao que

ngo se verifica em quaisquer outros objetos da natureza, qual seja a motivacdo, deve-se, ndo obstante, reconhecer que seqiiéncias causais determinadas podem ser inferidas no dominio do social, do mesmo modo como o séo no fisico,

Claro que se

poderia objetar que o conhecimento preciso que temos das seqiiéncias causais nos outros dominios ainda nao foi estabelecido no dominio social. Mas se h4 de existir algum conhecimento para além da sensata@o dos acontecimentos singulares e transitérios do momento, deve-se postular igualmente para o mundo

social a possibilidade de se descobrit tendéncias gerais e séries

previsiveis de acontecimentos, tais como as que se encontram no mundo fisico. Contudo, o determinismo pressuposto pela ciéncia social, de que neste volume o Professor Mannheim trata t@o penetrantemente, € de uma espécie diferente do implicado na

mecdnica celeste de Newton.

Seguramente existem alguns cientistas sociais que pretendem que a ciéncia se deve restringir 4 causacdo dos fendmenos teais, que a ciéncia nada tem a ver com o que seria feito, ou com o que deve ser feito, mas com o que podeser feito e qual a maneira de fazé-lo. De acdrdo com esta nogio a ciéncia social seria uma disciplina exclusivamente instrumental e nado uma disciplina postuladora de objetivos. Mas, ao estudar o que é, nfo podemas eliminar totalmente o que deveria ser. Na vida humana, os motivas ¢ os objetivos da agdo fazem parte do pro-

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cesso pelo qual se realiza a agéo e sao essenciais par: que se observe a relacdo das partes com o todo. Sem objetivo a maiotia dos atos nao teria qualquer significado ou interésse para nds.

No obstante, existe uma diferenca entre considerar e

postular objetivos. Qualquer que seja a possibilidade do desvinculamento completo ao lidar com os objetos ffsicos, ndo nos podemos permitir na vida social nao considerar os valéres e os objetivos dos atos sem perdermos a significagdo de muitos dos fatos em questo. Em nossa escolha de dreas de pesquisa, em nossa vilecio de dadcs, em nosso método de investigagio, em nossa organizacio de material, para ndo falar da formulasdo de nossas hipéteses e conclusdes, existe sempre manifesto alguma suposi¢fo ou esquema de valorago mais cu menos claro, explicito ov implicito. De acérdo com isso, cabe uma distingdo bem fundada entre fatos subjctivos ¢ objetivos, resultante da diferenca entre observagado externa ¢ interna, ou, para usar os térmos de William James, “conhecimento de” e “familiaridade com”. Se existe uma diferenga entre os processos fisicos e mentais —- e nfo parece haver muita tazdo para se’ suprimir esta importante distincio — ela sugete uma diferenciagio correspondente nos modos de se conhecer ésses dois tipos de fendmenos. Os objetos ffsicos podem ser conhecidos (e a ciéncia natural ocupa-se déles exclusivamente porque podem ser conhecidos) puramente do exterior, enquanto os processos mentais e sociais sémente podem ser conhecidos do interior, a nfo ser na medida em que também se mostram externamente através de indicios fisicos, nos quais, por seu turno, captamos significados, Daf se poder considerar a introspeccao (“Unsrghé”’) como o cerne do conhecimento social,

Chega-se a isto, estando-se no interior do fenémeno a ser observado, co.» como ¢ exprossa Charles H. Cooley por introspeccio simpdtica, IE a participagio em uma atividade que gera o interésse, o propdsito, o ponto-de-vista, a valor, o significado e a intcligibilidade assim como a parcialidade. Ja que as Ciéncias Sociais se ocupam de objctos possuidores de valor e significado, o observador que busca entendé-los precisa necessariamente fazé-lo por meio de categorias que, por sua vez, dependem de seus prdprios valéres e significados. Esta nogéo foi repetidamente enunciada na controvérsia pot muitos anos mantida entre os behavioristas, os cientistas socials que lidavam com a vida social exclusivamente como o cientista na-

wo

18

20

IpgoLocia E UToria

PREFACIO

tural lida com o mundo fisico, e os que adotaram a posigfo de introspeccionismo simpdatico e compreensio seguindo a orientacao tragada por umautor da importancia de Max Weber.

ciéncia moral ocorrem caracteristicamente em situacdes marcadas por conflito. O Professor Mannheim esta, portanto, de

No conjunto, todavia, enquanto o elemento valorativo do

ao invés de postularem um intelecto puro, se preocupam com as condigGes sociais efetivas em que emergem a inteligéncia e o pensamento. Se, como parece ser verdade, nao somos mera-

conhecimento social recebia um reconhecimento formal, tem-se

dado relativamente pouca atengSo, principalmente entre os socidlogos americanos e ingléses, 4 andlise concreta do papel dos interésses e valdres efetivos tal como apareceram em doutrinas e movimentos histéricos especificos. Uma excecdo deve ser feita quanto ao caso do marxismo que, apesar de ter elevado €ste tema a uma posicao central, ainda nao formulou um enunciado sistematico satisfatério do problema. E neste ponto que a contribuicio do Professor Mannheim

assinala um nitido avanco sdébre o trabalho até entdo realizado na Europa e na América. Ao invés de se contentar em chamar

a atencao para o fato de que o interésse se reflete inevitavelmente em todo o pensamento, inclusive naquele scu aspecto a

que se d4 o nome de ciéncia, o Professor Mannheim procurou reconstituir a especffica conexdo entre os cfetivos grupos de interésse na sociedade e as idéias e modos de pensamento que éles defendem. Conseguiu demonstrar que as ideologias, isto é, os complexes de idéias que dirigem a atividade com vista a manutengao da ordem existente, e as utopias —- os complexos de idéias que tendem a gerar atividades com vista a mudancas na ordem prevalecente — nZo apenas desviam o pensamento do objeto da observacéo, mas também servem para fixar a atencio sObre aspectos da situacdo que de outra forma permaneceriam obscuros ou passariam despercebidos. Dessa maneira, éle elaborou, a partir de uma formulacSo tedrica geral, um efetivo instrumento para uma fecunda pesquisa empfrica. © cardter significativo da conduta, entretanto, nao garante a inferéncia de que esta conduta seja invariavelmente o produto da reflexdo e raciocinio conscientes. Nossa busca de compreenséo surge da aco e até pode ser conscientemente preparatéria para mais acdo, mas precisamos reconhecer que a reflexfo consciente ou o ensaio imaginativo da situacZo, a que chamamos de “pensamento”, nao constitui parte indispensdével de cada ato. De fato, parece haver acérdo geral entre os psicdlogos sociais sdbre os fatos de que as iddias nao se geram espontaneamente e de que, a despcito do que afirma uma psicologia antiquada, o ato antecede o pensamento. A razao, a consciéncia de e a cons-

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acérdo com o ctescente nuimero de pensadores modetnos que,

mente condicionados pelos acontecimentos que ocorrem em nosso mundo, mas somos ao mesmo tempo um instrumento que os modeia, segue-se que os objetivos da aco nunca sfio comple. tamente enuncidveis e determinados até que o ato esteja terminado ou que se o relegue téo completamente a rotinas autométicas que éle nao mais requeira consciéncia e atencio.

O fato de que, no domfnio do social, o observador faca

parte do observado e tenha isso um interésse pessoal no objeto da observacio é um dos fatéres principais da gravidade do problema da objetividade nas Ciéncias Sociais.

Além disso, deve.

mos considerar que a vida social ¢ portanto a ciéncia social se acha em larga medida ligada as crencas relativas aos objetivos da acio. Quando advogamos algo, niio o fazemos como totais exteriores ao que é e ao que aconteceté.

Seria ingénuo

supot que nossas idéias féssem inteiramente conformadas pelos objetos de nossa contemplacio que se acham fora de nds. ou que nossos desejos e nossos receios nada tém a ver com o que percebemos ou com o que ira acontecer. Seria mais préximo da vetdade admitir que os impulsos bdsicos geralmente denominados “interésses’” sao na realidade as fOrcas que ao mesmo tempo getam os objetivos de nossa atividade prética e despertam nossa atencdo intelectual, Enquanto em determinadas esferas da vida, especialmente em Economia e num grau menor em Politica, @stes “‘interésses” se fizeram explicitos e articulados, na maioria das demais esferas éles se colocam sob a superficie, disfarcando-se em modos de tal forma convencionais que nem sempte os reconhecemos, mesmo se nos forem apontados.

Por con-

seguinte, a coisa mais importante que podemos saber de um homem é o que éle tem por dado, ¢ os mais bdsicos e importantes fatos sébre a sociedade sfo os que raramente se debatem

e que se encaram geralmente como assentados.

Em vao, porém, procuramos no mundo moderno setreni-

dade e a calma que pareciam caracterizar a atmosfera em que viveram alguns pensadores das eras passadas. © mundo nao possui mais uma fé comum e nossa professada “‘comunidade de

22

IpzoLosia £ Uroria

PrerAciu

interésse”’ pouco mais é do que umafigura de retérica. Com a perda de um propdsito comum e de interésses comuns nos vimos igualmente privados de normas, modos de pensamento e concepcdes do mundo comuns. Até a opinido publica transformou;se num conjunto de puiblicos “fantasmas”. Os homens do passddo podem ter habitado mundos menores e mais paroquiais, mas os mundos em que viviam eram aparentemente mais estdveis e integrados para todos os membros da comunidade do que

nosso largo universo de pensamento, acio e crenca veio a ser,

Uma sociedade 6, em tltima andlise, possivel porque os

individuos que nela vivem sdo portadores de algum tipo de

imagem mental desta sociedade. Contudo, nossa sociedade, nesta época de rigorosa divisio do trabalho, de extrema heterogeneidade e profundo conflito de interésses, atingiu um momento em que estas imagens sfo nubladas e incongruentes. Daf nao

mais percebermos como reais as mesmas coisas, e, ao lado de nosso amorfo sentido de uma realidade comum, estamos per-

dendo nosso meio comum de expressar e comunicar nossas experiéncias. O mundo foi estilhacado em incontdveis fragmentos de‘individuos e grupos atomizados. A ruptura da integridade da experiéncia individual corresponde A desintegraco da cultuta e da solidariedade de grupo Quando as bases da aco cole-

tiva unificada comecam a se enfraquecer, a estrutura social tende

a se partir e a produzir um estado que Emile Durkheim denominou anomie, com o qual se refere a uma situacHo que poderia ser descrita como uma espécie de vazio ou vacuo sociais. Em tais condicdes o suicidio, o crime e a desordem sio fendmenos

correntes porque a existéncia individual nao se vé mais enrai-

zada em um ambiente social estdvel e integrado e 7 narte da atividade da vida perde inteirameme o sentido. Que a atividade intelectual nfio seja isenta de tais influén-

cias € 0 que o presente volume documenta efetivamente.

E,

se é que se pode dizer que possua um objetivo prdtico, afora a acumulacio e a ordenacio de nowas percepcSes sébre as precondicées, os processos e os problemas da vida intelectual, @ste serd o de questionar as possibilidades da racionalidade e da mtitua

compreensao em uma época como a nossa, que parece to fre-

qlientemente premiar a irracionalidade, e de onde parecem ter desaparecido as possibilidades de um mituo entendimento. Enquanto em perfodos mais remotos o mundo intelectual possufa pelo menos um universo comum de referéncia, oferecendo uma

23

medida de certeza aos participantes daquele mundo, e impri-

mindo-lhes um sentido de respeito e confianca mUtuos, o mun-

do intelectual contemporfineo nao 6 mais um cosmos senio que apresenta o espetdculo de um campo de batalha de partidos em guerra e doutrinas em conflito, Cada faccio conflitante nao sé possui seu préprio conjunto de interésses e propdsitos, como cada uma possui sua imagem do mundo com a qual se atribui aos mesmos objetos significados ¢ valéres radicalmente diversos. Em um mundo déstes, as possibilidades de comunicagio inteligivel e a fortiori de acérdo se reduzem a um minimo. A

auséncia de uma massa comum de apercepcdo prejudica a possi-

bilidade de se recorrer aos mesmos critérios de relevancia e verdade, e uma vez que o mundo se mantém unido em ampla medida por palavras, quando estas palavras deixam de significar

a mesma coisa para os que as usam, segue-se que os homens

irao necessatiamente se desentender e falar sem se escutar. ; Afora esta inerente incapacidade de se compreender entre

si, existe outro obstdculo para a obtencdo de um consenso, qual

seja a obstinac&o absoluta dos partiddrios em negar-se a consi-

derar ou a encarar striamente as teorias de scus oponentes sim-

plesmente porque pertencem a outro campo politico ou intelectual. Este deprimente estado de coisas é agravado pelo fato de © mundointelectual nfo se achar liberto das lutas pela projesao pessoal e pelo poder. Isto levou & introducdo da asticia comercial no reirn das idéias e deu origem a uma situacio em que MESMO vs Cdiistas plefemisam estar a direita do que com o direito.

Ill Se nos sentimos mais profundamente atemorizados, peia ameacadora perda de nossa heranca intelectual, do que nas cri-

ses culturais anteriores, é porque nos tornamos vitimas de evpectativas mais grandiosas. Pois em tempo algum anterior ao

nosso tantos homens se viram levados a se abandonar a tio sublimes sonhos sdbre os beneficios que a ciéncia podia trazer a espécie humana. A dissolucdio dos supostamente sdélidos fundamentos do conhecimento e o desencanto que se seguiu levacam alguns dos de “espirito delicado” a0 anseio romantico pelo retérno de uma época que jd passou e por uma certeza irremediavelmente perdits Prtcas da perplexidade ce do atordoamento,

24

.

InzoLocia E Uroria

outros procuraram ignorar ou contornar as ambigilidades, os conflitos e as incertezas do mundo intelectual por meio do humor, do cinismo ou da negacao cabal dos fatos da vida. Em uma época da histéria humana como a nossa, quando em todo o mundo as pessoas nado est&o apenas se sextindo inquietas, mas questionando as bases da existéncia so~ al, a validade de suas verdades e a sustentacio de suas normas, dever-se-ia tornar claro que nio existe valor «%o-vinculado a interésse e nem objetividade independente de acdrdo. Em tais condigées, é diffcil se apegar tenazmente ao que se acredita scr a verdade face A dissensdo, tendendo-se a questionar a prdpria possibilidade de uma vida intelectual. A despeito do fato de que o mundo ocidental tenha sido nutrido por uma tradigao de liberdade e integridade intelectuais conseguidas durante cérea

PreFACIO

25

eram situados fora do dominio da Ciencia Social visto nao serem

considerados processos sociais. Embora algumas das idéias apre-

sentadas pelo Professor Mannheim sejam o resultado de um gtadativo desenvolvimento da andlise critica dos processos de

pensamento e constituam parte integrante da heranga cientifica do mundo ocidental, a contribuicéo especial do presente volume parece ser o reconhecimento explicito de que o pensamento, além de ser um objeto prdéprio da Légica e da Psicologia, sdmente se torna totalmente compreensivel quando encarado socioldgicamente, Isto envolve a referéncia das bases dos jufzos sociais a suas especificas raizes na sociedade, vinculadas a interésses, por meio das quais a particularidade, e portanto as limitagdes, de cada visfo se tormam evidentes. Nao se deve pressupor que a mera revelac#o déstes Angulos de visio diver-

gentes levard automaticamente os antagonistas a adotar as con-

de dois mil anos, os homens comecam a se perguntar se a

cepgdes uns dos outros ou de que isto resultaré imediatamente em

aceitam complacentemente a ameaca de exterminio do que se

ferengas parece ser precondic¢éo para qualquer tipo de petcepgio, por parte de cada observador, das limitagdes de sua prdéptia visZo e, pelo menos, da validade parcial das visdes dos outros. Embota isto nao implique necessariamente que os interésses de cada um sejam postos de lado, pelo menos totna possivel uma concordancia operacional sdbre o que sejam os fatos de uma quest%o e sdbre um conjunto limitado de conclusdes a se tirar déles. E com tentativa semelhante que os cientistas sociais, mesmo apesar de estarem em desacérdo quanto aos valdres tiltimos, podem hoje em dia erigir um universo de discurso dentro do qual podem ver os objetos a partir de perpectivas similares e podem comunicar uns aos outros seus resultados com um minimo de ambigiiidade.

luta para conscgui-las valeu a pena, quando hoje em dia tantos

aleancou de racionalidade e de objetividade nos assuntos humanos. De um lado, a generalizada depreciacio do valor do pensamento, e, de outro, a sua repressiio sio indicios ncfastos do crescente creptisculo da cultura moderna. Sdmente por medidas as mais resolutas ¢ csclarecidas se poderd evitar tal catastrofe, Ideologia e Utopia é em 1 mesma o produto déste perfodo de caos e instabilidade. Uma das contribuicées que faz para a solucio de nossa diffcil situacio é a andlise das fércas que the deram origem. F duvidoso que um livro como éste pudesse ter sido escrito em qualquer outra época, pois os problemas de que trata, fundamentais como saa, s6 poderiam ter surgido em uma sociedade e em uma época marcadas por uma profunda crise social ¢ intelectual. Nao apresenta nenhuma soluc&o simples para as

dificuldades que deparamos, mas realmente formula os problemas basicos de tal mado a tornd-los suscetiveis de abordagem ¢ faz

avancgar a andlise de nossa crise intelectual mais do que até

entho se conseguira. Face a perda de uma concepgio comum dos

problemas ¢ na auséncia de critérios de verdade undnimemente aceitos, procurou o Professor Mannheim indicar as linhas segundo as quais se pudesse construir uma nova base para a investigacio objetiva dos temas controvertides da vida social. Até hé pouco, o conhecimento e o pensar, por isso que considerados como o objeto préprio da Légica e da Psicologia,

harmonia universal. Mas o esclarecimento das fontes destas di-

Iv Haver levantado, nitida e lucidamente, os problemas impli-

cados nas relacSes entre a atividadeintelectual e a exist@ncia social

constitui em si mesmo uma importante tealizacio. Mas o Professor Mannheim nfo ficou af. Reconheceu que os fatdres que atuam na mente humana, impulsionando e perturbando a razio, s#o os mesmos fatéres dinamicos que constituem as fontes de téda a

atividade humana. Ao invés de postular um hipotético intelectO puto que produzisse e ministrasse a verdade, sem conta-

mind-la com os chamados fatéres nao-légicos, éle procedeu efe-

26

InEoLocia E Uturta

PREFACIO

tivamente a uma andlise das situagdes sociais concretas em que © pensamento ocorre e em que a vida intelectual se desenvolve.

Um campo de imerésse estreitamente ligado 4 Sociologia do Conhecimento é 0 da reelaboragdo dos dados da histéria in-

As quatro primeiras partes do presente volume demonstram concretamente a fecundidade desta abordagem socioldgica e fornecem uma exemplificagio dos métodos desta nova disciplina, cujos fundamentos formais so esbocados na Parte V, sob o titulo de “A Suciologia do Conhecimento”. Esta nova disciplina se situa historica e ldgicamente no A4mbito da Sociologia Geral concebida como a ciéncia social bdsica. Se os temas tratados pelo Professor Mannheim fdéssem desenvolvidos sistematicamente, a Sociologia do Conhecimento se converteria em um esf6rco especializado de lidar, de modo integrado, sob um ponto de vista unificador e por meio de técnicas apropriadas, com uma série de questdes até aqui apenas discreta ¢ superficialmente encaradas, Seria prematuro definir a exata oricntacio a ser eventualmente tomada por esta nova disciplina Os trabalhos do falecido Max Scheler e os do préprio Professor

Mannheim se adiantaram, entretanto, suficientemente para per-

mitir que se tente apresentar os temas bdsicos de que cla se deve ocupar. O primeiro, e bdsico, déstes temas é a elaboracdo psico-sociolégica da prépria teoria do conhecimento, que até entio tinha seu lugar na Filosofia sob a forma da epistemologia. Por téda a histéria do pensamento, aste assunto obcecou os grandes pensadores, Apesar do esfdrco jé antigo para resolver a relac#o entre experiéncia e reflexdo, crenca e verdade, o problema da interconexfo entre ser e conhecer permanece ainda como um desafio para o pensador moderno, Mas nao é mais um problema de interésse exclusivo do fildsofo profissional. Passou a ser um tema central nfo apenas na ciéncia, mas igualmente na educagio e na politica. A Sociologia do Conhecimento aspira a dar uma contribuicfo pata um maior entendimento.déste antigo enigma. ‘Tal tarefa requer mais do que a aplicacHo de regras Idgicas bem estabelecidas ao material existente, pois as préprias regras de Légica até aqui aceitas sdo colocadas em questio e€ vistas, juntamente com o restante de nossos instru-

mentos intelectuais, como partes e produtos do conjunto de nossa vida social. Isto implica a investigagio dos motivos subjacentes 4 atividade intelectual e uma andlise do modo e da medida em que os préprios processos de pensamento sao influenciados pela participacdo do pensador na vida da sociedade.

27

telectual, com vista 4 descoberta dos estilos e métodos de pen-

samento dominantes em determinados tipos de situagio histé-

rico-sociais. A éste respeito, é essencial pesquisar as variacdes

do interésse e da atengio intelectuais que acompanham as mudangas em outros planos da estrutura social. E aqui que a distingfo entre ideologias e¢ utopias proposta pelo Professor Mannheim oferece diretivas promissoras para a pesquisa. Ao analisar a mentalidade de uma época ou de um dado estrato da sociedade, a Sociologia do Conhecimento se interessa nao apenas pelas idéias e os modos de pensar que se revelam,

mas por todo o contexto social em que ocorrem.

Vale dizer

que se devem necessiriamente levar em conta os fatéres responséveis pela aceitacdo ou rejeicio de determinadas idéias por certos grupos da sociedade, r os motivos e interésses que impelem determinados grupos a enunciar conscientemente e a disseminar

estas idéias em setores mais amplos. Além disso, a Sociologia do Conhecimento procura Jancar

luz sdbre a questio de como os interésses e os propédsitos de determinados grupos sociais vém a encontrar expressdéo em certas teorias doutrinas 2 movimentos intelectuais. De fundamen-

tal importancia para a compreensio de qualquer sociedade é 0 reconhecimento concedido aos varios tipos de conhecimento e a correspondente parcela dos recursos da sociedade consagrada ao cultivo de cada um déles. De igual significacio é a andlise das variacSes nas relacdes sociais, ocasionadas pelos progressos de determinados ramos do conhecimento, tais como o conhecimento técnico e o crescente dominio sdbre a natureza e a sociedade possibilitados pela aplicacio déste conhecimento. De modo semelhante, a Sociologia do Conhecimento, em virtude de seu interésse pelo papel do conhecimento e das idéias na manutengao ou na mudaneca da ordem social, deve dedicar uma atenco considerdvel aos instrumentos ou recursos através dos quais se difundem as idéias, e ao grau de liberdade de indagacdo e expresso prevalecente. De forma conexa, deve-se atentar para os tipos de sistema educacional existentes e o modo segundo o qual refletem e modelam a sociedade em que operam. A esta altura, o problema da doutrinacdo que tanta discussdo tem recentemente provocado na literatura educacional encontra um lu-

ger proeminente. Da mesma forma, as fungGes da imprensa, da

28

IpgEoLocia E£ Uroria

popularizagio do conhecimento e da propaganda recebem um

tratamento apropriado. Uma compreensdo adequada de tais fenémenos contribuird para uma concepsio mais precisa do papel das idéias nos movimentos sociais e politicos e do valor do conhecimento como um instrumento de contrdle da realidade social. A despeito do grande niimero de estudos especializados das instituigdes sociais, cuja funcdo principal gravita em térno das atividades intelectuais da sociedade, nZo existe nenhum tratamento tedrico adequado da organizacio social da vida intelectual. Uma das principais obrigacSes da Sociologia do Conhecimento consiste, portanto, em uma andlise sistemdtica da organizacdo institucional em cujo quadro se pratica a atividade intelectual. Isto implica, entre outros aspectos, o estudo das escoJas, universidades, academias. sociedades culturais, museus, bibliotecas. institutos de pesquisa e laboratérios, fundacdes e edi-

téras. E importante sabet-se como e por quem sao sustentadas

estas instituic3es, os tipos de atividade a que se dedicam, sua

polftica, sua organizacio interna e inter-relacdes, ¢ seu lugar

no todo da organizacio social.

Finalmente, ¢ em todos os sev aspectos, a Sociologia do Conhecimento se preocupa com as pessoas a quem incumbe a atividadesintelectual, ou seja, os intelectuais. TEm cada sociedade existem individuos cuja funefo especifica é acumular, preservar, reformular e disseminar a heranca intelectual do grupo. A composic&o déste grupo, sua otigem social e o modo pelo qual sao recrutados, sua organizacio, sua filiacio de classe, as recompensas ¢ o prestigio que obtém, sua participacdo em outtas

esferas da vida social, constituem algumas das mais cruciais questdes que a Sociologia do Conhecimento busca responder. A maneira segundo a qual &stes fatéres se expressam nos ptodutos da atividade intelectual proporciona o tema central de todos 03 estudos encetados sob o nome de Sociologia do Conhecimento. Em Ideologia e Utopia, o Professor Mannheim apresenta nao sé o esbéco de uma nova disciplina que promete dar uma compreensfio nova e mais profunda da vida social, mas igual-

mente oferece um esclarecimento bastante necessdrio de alguns dos maiores temas morais de nossos dias.

Foi na esperanca de

que dard alguma contribuicdo para a soluco dos problemas com que depara o homem inteligente que se traduziu o presente volume.

I. ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA 1. CONCEITO SOCIOLOGICO DE PENSAMENTO A

Esre Livro se dedica ao problema de como os homens realmente pensam. A finalidade déstes estudos é investigar nao como o pensamento aparece nos tratados de Légica, mas como éle realmente funciona na vida publica e na politica como instrumento de acio coletiva. Os filédsofos dedicaram tempo em demasia preocupando-se

com o seu proprio pensamento,

Quando escreviam sdbre o pen-

samento, tinham em mente sobretudo a sua histéria pessoal, a histéria da Filosofia, ou campos muito especiais do conhecimento como a Matematica ou a Fisica.

Este tipo de pensamen-

to sdmente pode ser aplicado em citcunstdncias bastante especlais, co que sc pode aprender com sua andlise nfo é diretamente transferivel a outras esferas de vida. Mesmo quando se pode aplicé-lo, refere-se apenas a uma dimensdo especifica da existéncia, que nfo basta para séres humanos que busquem compreen-

der e¢ moldar o seu mundo.

Enquanto isso, os homens de acdo haviam, em todo caso, comegado a desenvolver uma variedade de métodos para a penetragao intelectual ou vivencial do mundo em que vivem, métodos éstes jamais analisados com a mesma preciséo que os modos de conhecimento chamados exatos. Quando, porém, qualquer atividade humana permanece por um longo periodo sem set submetida ao exame ou A critica intelectuais, a tendéncia é que ela se torne incontrolavel. Em consegiiéncia, deve-se considerar como uma das ano-

malias de nossa época o fato de que os métodos de pensat através dos quais chegamos a nossas decisdes mais cruciais, e com que buscamos diagnosticar e orientar nosso destino politico e social, tenham permanecido sem reconhecimento, inacess{veis

30

Iogotocia & Uroria

portanto ao contrdle intelectual e 4 autocritica. Esta anomalia se torna ainda mais monstruosa quando nos apercebemos de que, nos tempos modernos, dependemos muito mais da inter-

pretaco correta de uma situacdo do que acontecia no caso das

sociedades mais antigas. A importancia do conhecimento social cres¢e na razdo da crescenté necessidade de intervencdo regula

dora no processo social,

Entretanto, nao se deve comprecnder

éste modo de pensamento chamadoinexato ou pré-cientifico (paradoxalmente também usado por filésofos e estudiosos de Légica quando tém de tomar decisdes prdticas) tnicamente pela utilizacZo da andlise légica, Constitul um complexo que nao pode ser prontamente destacado seja das raizes psicoldgicas dos impulsos emocionais e vitais, seja da situaggo de que emerge e que busca resolver, A mais essencial tarefa déste livro é elaborar um método conveniente para a descricio e para a andlise déste tipo de pensamento e de suas mudancas, bem como formular os problemas a éle ligados, ambos fazendo justica ao seu caréter vinico e preparando o caminho para sua compreensao critica. O método que intentaremos apresentar € o da Sociologia do Conhecimento. ‘A principal tese da Sociologia do Conhecimento é que existem modos de pensamento que nao podem ser compreendidos adequadamente enquanto se mantiverem obscuras suas origens sociais. Realmente, é verdade que sé o individuo é capaz de pensar. Nao ha entidade metafisica alguma tal como uma mente de grupo que pense acima das cabecas dos individuos, ou cujas idéias o individuo meramente reproduza. Nao obstante, seria falso dai deduzir que t6das as idéias e sentimentos que motivam o individuo tenham origem apenas néle, e que possam ser adequadamente explicados tomando-se tinicamente por base sua experiéncia de vida. ‘Da mesma forma, como seria incorreto tentar derivar uma linguagem apenas da observacio de um s6_ individuo, que fala uma linguagem que nao é sdmente déle, mas, antes, é a de seus contemporaneos e_ predecessores que para éle prepararam o caminho, € também incorreto explicar-se a totalidade de uma perspectiva com a referéncia exclusiva A sua génese na mente do individuo. Sdmente num sentido muito limitado o individuo cria por si

mesmo um modo de falar e de pensar que lhe atribuimos. Bile fala a linguagem de seu gruro; pensa do modo que.seu gru-

ABORDAGLM . RELIMiNAR DO PROBLEM

bk

po pensa. Encontra & sua disposigao sdmente certas palavras ¢ seus significados. Estas naio apenas determinam em um sentido amplo os caminhos de abordagem ao mundo que o envol-

ve, mas igualmente mostram, ¢ ao mesmo tempo, de «'e Angulo

€ em que contexto de atividades os objetos foram anteriormente perceptiveis ¢ acpssivwis ao grupo ou a0 individuo, © primeiro ponto a ser por nés enfatizado é que, intencionalmente, a abordagem da Sociologia do Conhecimento nao parte do individuo isolado e de seu pensar a fim de, 4 maneira do fildsofo, pros-eguir entio diretamente até as alturas abstratas do “DSensamento em si’. Ao contrério, a Sociologia do Conheci-

mento busca compreender o pensamento no contexto concreto

de uma situacaéo histdrico-social, de onde sé muito gradativamente emerge o pensamento individualmente diferenciado, Assim, quem pensa ndo s4o os homens em geral, nem tampouco individuos isolados, mas os homens em certos grupos que tenham

desenvolvido um estilo de pensamento particular em uma inter-

mindvel série de respostas a certas situacdes tipicas caracteristi-

cas de sua posigéo comurn. Estritamente falando, é incorreto dizer-lhe que um individuo isolado pensa. Antes, ¢ mais correto insistir em que éle participa no pensar acrescentando-se ao que outros homens pensaram antes déle. O individuo se encontra em uma situacao herdada, com padrdcs de pensamento a ela apropriados, tentando

reelaborar os modos de reacio herdados, ou substituindo-os por outros, a fim de lidar mais adequadamente com os novos desa-

fios surgidos das variagées ¢ mudangas em sua situacéo. Cada individuo &, dessa forma, predeterminado em um duplo sentido pelo fato de crescer em uma sociedade: encontra, por um lado, uma situagao definida e, por outro, descobre em tal situagao padrdes de pensamento e de conduta préviamente formados. A segunda caracterfstica do método da Sociologia do Conhecimento € nao separar os modos de pensamento concretamente existentes do contexto de acdo coletiva por meio do qual, em um sentido intelectual, descobrimos inicialmente o mundo.

Homens vivendo em grupos nfo apenas coexistem fisicamente

enquanto individuos distintos. Nao se confrontam os objetos do mundo a partir de niveis abstratos de uma mente contemplativa em si, nem tampouco o fazem exclusivamente enquanto séres solitarios.

Pelo contrdrio, agem com ou contra os outros, em

grupos diversamente organizados, e, enquanto agem, pensam com

32

IproLociA © Uroria

ou contra os outros.

[Estas pessoas, reunidas em grupos, ou

bem se empenham, de acérdo com o cardter ¢ a posigio dos grupos a que pertencem, em transformar 0 mundo da natureza e da

sociedade a sua volta, ou, entdo, tentam manté-lo em uma dada

situacdo. A direcgio dessa vontade da atividade coletiva de trans-

formar ou manter é que produz o fio orientador pata a emetr-

géncia de seus problemas, seus conceitos ¢ suas formas de pensamento. De acdrdo com o contexto particular da atividade

coletiva de que participam, os homens tendem sempre a ver di-

ferentemente o mundo que os circunda. Exatamente da mesma forma pela qual apartou o pensamento individual de sua situagéo de grupo, a andlise Idgica pura separou o pensamento da acio.

E assim o féz na suposigdo tdcita de que aquelas conexdes

inerentes que sempre existem na realidade entre, de um lado, o pensamento e, do outro, a atividade ¢ o giupo, ou fossem insignificantes para o pensar “‘correto”, ou pudessem ser destacadas déstes fundamentos sem que dai resultassem quaisquer dificuldades. Mas o fato de se ignorar algo no elimina, de forma

alguma, sua existéncia. Nem é possivel, a quem antes nado se tenha

totalmente entregue A observago exata da riqueza de formas pelas quais os homens realmente pensam, decidir a priori se éste secionamento da situacio social e do contexto de atividade pode ser realizado em todos os casos. Tampouco se pode determinar de antemZo que uma dicotomia tao completa seja plenamente desejavel, justamente no interésse do conhecimento objetivo dos fatos. Pode ser que, em certas esferas do conhecimento, seja o impulso para a acdo que inicialmente torne os objetos do mundo acessiveis ao sujeito que age, e pode ser, além disso, que seja éste fator que determine a selegdo daqueles elementos da realidade que participam do pensamento. E nao é inconcebivel que, se se excluisse inteiramente éste fator volitivo (na medida em

que isto fésse possivel), 0 contetido concreto desaparecesse completamente dos conceitos, ¢ se perdesse o principio organizador que possibilita uma colocagao compreensivel do problema. Tal nao quer dizer, porém, que nos dominios onde a ade-

so ao grupo € a orientacao para aco parecem ser um elemento

essencial & situacto, seja va qualquer possibilidade de autocontrdle critico e intelectual. Talvez precisamente quando se tornem visiveis a dependéncia oculta do pensamento a existéncia do grupo e scu enraizamento na agio, € que seja realmente pos| I' i

i

ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA

33

sivel, pela primeira vez, obter-se um névo modo de contréle sébre fatéres do pensamento anterlormente incontrolados. Isto nos remete ao problema central déste livro. Estas

observagdes devem tornar claro que uma preocupaco com éstes

problemas e sua solugdo fornecerao um fundamento para as Ciéncias Sociais, e responderao 4 pergunta quanto a possibilidade de orientacao cientifica para a vida politica. E evidentemente verdade que nas Ciéncias Sociais, como em qualquer pat-

te, vai encontrar-se o Ultimo critério de verdade ou de falsida-

de na investigacdo do objeto, e a Sociologia do Conhecimento nao é um substituto para tal critétio. Mas o exame do objeto

nao é um ato isolado; ocorre num ‘contexto permeado por va-

léres e impulsos volitivos do inconsciente coletivo. Nas Ciéncias Sociais é @ste interésse intelectual, orientado por uma matriz de atividade coletiva, que proporciona nfo apenas as questOes gerais, mas as hipdtese de pesquisa concretas e os modelos de pensamento para a ordenacao da experiéncia. Sdmente na medida em que conseguimos trazer 4 érea de observacao conseiente e explicita os varios pontos de partida e de abordagem dos

fatos correntes tanto na discuss4o cientifica, como na popular,

€ que podemos esperar, no correr do tempo, controlar as motivagdes € pressupostos inconscientes que, em ultima andlise, deram existéncia a @sses modelos de pensamento. Um névo tipo de objetividade pode ser obtido nas Ci€ncias Sociais, mas nao por meio da exclusdo de valoragdes, e sim através da percepcao e do contrdéle critico destas.

2. OS CONDICIONAMENTOS CONTEMPORANEGOS

DO PENSAMENTO

Nao se trata absolutamente de um acaso que o problema das taizes sociais e ativistas do pensar tenha emergido em nossa geracdo. Nem € por acidente que o inconsciente, que até aqui motivava nosso pensamento e nossa atividade, venha sendo gradativamente elevado ao nivel da consciéncia, tornando-se dessa forma acessivel ao contréle. Seria erréneo reconhecer sua relevancia pata nossa condicéo se n&o observdssemos que foi uma situagéo social especifica que nos induziu a tefletir sdbre as taizes sociais de nosso conhecimento. E uma das intuicgSes fundamentais da Sociologia do Conhecimento que o processo pelo

34

IpgoLocia E Utopia

ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA

qual se tornam conscientes as motivacdes coletivas inconscientes

emerja como tema para reflexao. Assim, é principalmente a intensificagao da mobilidade social que destrdi a ilus§o anterior, prevalecente numa sociedade estdtica, de que tGdas as coisas podem mudar, mas o pensamento permanece eternamente o mesmo. Eo que é mais, as duas formas de mobilidade social, hotizontal e vertical, operam de forma diferente para revelar essa multiplicidade de estilos de pensamento, A mobilidade horizontal (movimento de uma posic¢Zo para outra ou de um pais para outro, sem mudanga do status social) nos mostra que povos diferentes pensam diferentemente. Enquanto, contudo, as tradigdes do grupo local ou nacional a que uma dada pessoa perten-

nao pode operar em tédas as épocas, mas apenas em umasituacio bastante especifica. Esta situacfo pode ser socioldgicamente determinada. Pode-se indicar com relativa precisio os fatdres que esto inevitavelmente forcando um nimero cada vez maior de pessoas a tefletir no apenas sébre as coisas no mundo, mas também sdbre seu prdprio pensamento e, neste caso, n&o tanto sObre a verdade em si mesma, mas sdbre o alarmante fato de que o mesmo mundo possa se mostrar diferentemente a observadores diferentes. E claro que tais problemas sdmente podem tornar-se gerais numa época em que a discordancia predomina sébre a concordancia. As pessoas se voltam da observacdo direta de coisas para a consideracio dos modos de pensar sdmente quando fracassa a possibilidade de elaboragZo continua e direta de conceitos relativos a coisas e situagdes frente a uma multiplicidade de definigdes fundamentalmente divergentes. Estamos agora capacitados a apontar, de forma mais precisa do que uma andlise geral e formal o possibilitaria, exatamente em que situag&o social e intelectual uma tal transferéncia de ateng&o das coisas para opinides divergentes, e daf para as motivacdes inconscientes do pensamento, deve necessariamente ocorrer,

Desejamos indicar

adiante apenas alguns dos fatéres sociais mais relevantes que esto operando nessa ditecdo. Antes de mais nada, a multiplicidade de modos de pensar nao se pode tornar um problema em perfodos em que a estabilidade social fundamenta e garante a unidade interna de uma visao do mundo. Enquanto os mesmos significados das palavras, as mesmas maneiras de se deduzir idéias, sao desde a infancia inculeados em cada membro do grupo, nao podem existir nesta sociedade processos de pensamento divergentes. Mesmo uma modificag#o gradativa nas maneiras de pensar (onde por acaso surja) nfo se torna perceptivel aos membros de um grupo que vivam em uma situagfo estdvel, enquanto o tempo nas adaptagdes de maneiras de pensar a novos problemas seja tao lento que se estende por varias geragdes. Neste caso, uma mesma geracao dificilmente pode, no decorrer de sua vida, se tornar consciente da mudanga que ocorre. Em acréscimo, todavia, 4 dinamica geral do processo histérico, fatéres de tipo bastante diverso devem intervir antes que a multiplicidade de modos de pensar se torne perceptivel e

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Ga permanecem intactas, essa pessoa persiste tio apegada a sua

maneira de pensar costumeira que as maneiras de pensar percebidas nos demais grupos sao encaradas como curiosidades, erros, ambigtiidades ou heresias. Neste estdgio ninguém duvida seja da coricgéo de suas prdéprias tradicSes de pensamento, seja da unidade ¢ uniformidade do pensamento em geral, Sdmente quando a mobilidade horizontal se faz acompa-

nhar de uma intensa mobilidade vertical, isto é, do movimento

rapido entre estratos no sentido de ascensdo ou de descenso social, é que a crenga de alguém na validade geral e eterna das

préprias formas de pensamento é abalada. A mobilidade vertical € © fator decisivo para tornar as pessoas incertas e céticas de suas visdes de mundo tradicionais. EE evidentemente verdade que, mesmo nas sociedades estaticas com baixa mobilidade vertical, os diferentes estratos de uma mesma sociedade experimentatam 0 mundo de modo diferente, Devemos a Max Weber? o ter demonstrado claramente, em sua sociologia da religido, como é

comum que a mesma religiio seja diversamente experimentada por camponeses, artesdos, mercadores, nobres e intelectuais.

Em uma sociedade organizada segundo linhas de castas ou grupos fechados, a auséncia relativa de mobilidade vertical serviu ou para isolar entre si as divergentes visdes de mundo ou no caso, por exemplo, de professarem uma religiaéo comum, para a interpretarem de maneira diferente, de acérdo com seus diferentes contextos de vida. Isto explica o fato de a diversidade de modos de pensamento das diferentes castas nfo convergir em 1 Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, vol, 1, cap. IV, § 7, Religionssoziologie: Stinde, Klassen und Religion (Tubingen, 1925)

pags. 267-256.

36

Tpzo.ocia E Utopia

ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA

uma mesma mente — o que seria um problema. Do ponto de vista

fatidica, mas igualmente tio fundamental, na histéria do pensamento, qual seja a de como é possfvel que idénticos processos de pensamento humano, referidos ao mesmo mundo, produzam concepcées divergentes déste mundo, E basta apenas mais um

sociolégico, a mudanga decisiva ocorre quando se atinge aquéle estagio de descnvolvimento histérico em que os estratos ante-

riormente isolados comecam a se comunicar uns com os outros e se estabelece uma certa circulagdo social. O mais relevante

estdgio dessa comunicagéo é atingido quando as formas de pensamento e de experiéncia, que até entdéo desenvolviam independentemente, penetram em uma mesma consciéncia compelindo a mente a descobrir a itreconciliabilidade das concepgdes conflitantes do mundo. Em uma sociedade bastante estabilizada, a mera infiltrag30 dos modos de pensamento dos estratos mais baixos nos es-

tratos superiores nao teria maior importdncia, uma vez que a

simples percepgdéo pelo grupo dominante de possiveis variacdes no pensamento nao os abalaria intelectualmente. Enquanto a sociedade mantém-se estdvel com base na autoridade e se concede prestigio social somente as realizacdes do estrato superior, esta classe tem poucos motivos para colocar em questo sua propria existéncia e o valor de suas realizagdes. Além de uma considerdvel ascensao social, ndo é sendo quando temos uma democratizagao geral que a clevagao dos estratus inferiores permite a seu pensamento adquirir uma relevancia publica.* iste pro-

cesso de democratizagdo possibilita, pela primeira vez, as maneiras de pensar dos estratos inferiores, antigamente sem validade piblica alguma, adquirir validade ¢ prestigio. Quando atingido o estigio de democratizagio, as técnicas de pensar e as idéias dos estratos inferiores esto pela primeira vez em condigGes de se confrontarem com as idéias dos estratos dominantes

em um mesmo nivel de validade.

E, ent&éo, também pela pri-

meira vez, estas idéias e éstes modos de pensamento sfo capazes

de impelir a pessoa que pensa dentro de tais parametros a submeter os objetos de seu mundo a um questionamento fundamental. E é com €ste confronto de modos de pensamento, cada

um com os mesmos reclamos de validade de representacéo, que

37

passo pata que se indague: é possivel que os processos de pen-

samento aqui referidos nfo sejam idénticos? Nao se descobrird que, uma vez examinadas tddas as possibilidades do pensamento humano, existem numerosos caminhos alternativos que podem ser seguidos? Nao foi tal processo de ascens#o social que, na democtracia ateniense, dea margem ao primeiro grande surto de ceticis-

mo na histéria do pensamento ocidental?

Nao foram os sofis-

tas do Tluminismo grego a expresso de uma atitude de divida que emergiu essencialmente do fato de que, quando pensayam em cada objeto, dois modos de explicacao colidiam? De um lado havia a mitologia que era a maneira de pensar da nobreza dominante, jd condenada ao declinio; de outro, estava

o hdbito de pensamento mais analitico de um inferior estrato urbano artesio, em processo de ascensio. Na medida em que estas duas formas de interpretar o mundo convergiram no pen-

samento dos sofistas, e visto que para cada deciséo moral havia a disposicia pelo menos dois padrdes, e para cada acontecimento césmico e social pelo menos duas explicacdes, nao é de estra-

nhar éles que tivessem uma nocao cética do valor do pensamento humano. Torna-se portanto sem sentido censurd-los. 4 maneira de mestre-escola, por terem sido céticos em seus trabahos epistemoldgicos.

Tinham, simplesmente, a coragem de ex-

ptimir o que téda pessoa realmente caracterfstica da época sentia, ow seja. que a inambigtiidade de normas e de interpretagdes fora destruida, e que a solucdo satisfatéria sémente seria encontrada por meio de um profundo questionamento e da meditacio sébre as contradicdes.

Essa incerteza generalizada nao

era absolutamente um sintoma de um mundo destinado 4 deca-

déncia global, sendo, antes, o ponto de pattida de ura proces-

se torna pela primeira vez possivel a emergéncia da questao tio

so salutar que caracterizava uma crise que conduzia A te-

2 Assim, por exemplo, em nossos dias, o pragmatismo, como se verd mais adiante, quando visto sociolégicamente, constitui a legitimaGo de uma técnica do pensamento e de uma Epistemologia que elevou os. critérios da experiéncia cotidiana ao nivel de discussio académica.

Nise constituiu na grande virtude de Sdcrates o ter tido a cotagem de descer ao Amago désse ceticismo? Nio tinha também éle sido originalmente um sofista que adotou a técnica de levantar questdes e mais questdes, fazendo-a sua? E nfo conseguiu éle superar a crise questionando mais radicalmente do

cuperacdo.

38

IpeoLocIa & Urorra

Anorpacro

PreLIMIN’ x po

PrRopii MA

39

que os prdéprios sofistas, alcangando dessa forma um nivel de firmeza intelectual que, pelo menos para a mentalidade da época, se demonstrou um fundamento seguro? E interessante observar que, com tal procedimento, o mundo de normas e do ser veio a ocupar o ponto central de sua indagacio. Sdcrates

igualmente advir da possibilidade de a concentracdo de poder dentro da estrutura social se tornar tao pronunciada que se possa impor a uniformidade de pensamento e de experiéncia,

telativa a como os individuos so capazes de pensar e julgar os mesmos fatos de maneiras diferentes quanto nos fatos mesmos.

A segunda caracteristica déste, tipo monopolistico de pensamento reside em seu relativo afastamento dos conflitos manifestos da vida cotidiana; assim, também neste sentido, é “escoldstico’”’, isto é, académico e sem vida. Este tipo de pensamento nfo surge primariamente do embate com os problemas

estava, além do mais, pelo menos téo interessado na questio

Mesmo neste estd4gio da histéria do pensamento, torna-se evi-

dente que, em varios periodos, os problemas do pensar no poderiam ser resolvidos tnicamente pela preocupacgio com o objeto, mas, pelo contrario, shmente por meio da descoberta do porqué as opinides referentes a éles realmente diferiam. Além déstes fatéres sociais que respondem pela unidade

inicial e pela subseqiiente multiplicidade das formas de pensamento dominantes, devemos mencionar outro fator importante.

Em cada sociedade, ha grupos sociais cuja tarefa especifica con-

siste em dotar aquela sociedade de uma interpretagio do mundo. Chamamos tais grupos de intelligentsia. Tanto mais estdtica uma sociedade, tanto mais tende @sse estrato a adquirir, nessa socie-

dade, um status bem definido ou a posicfo de uma casta. Assim os magicos, os brémanes ¢ o clero medieval devem ser encarados como estratos intelectuais, cada um gozando em sua sociedade de um contréle monopolistico sébre a formacdo da visio de mundo dessa sociedade, bem como sdbre a reordenacdo, ou a reconciliagao, das diferencas das visdes de mundo dos demais

estratos, ing&nuamente formadas. Nesse sentido, o setmao, a confissao e a li¢fo constituem meios pelos quais ocorre a recon-

ciliagdo das diferentes concepcdes do mundo, em niveis menos sofisticados de desenvelvimento social.

Este estrato intelectual, organizado como casta e monopolizando o direito de pregar, ensinar e interpretar 0 mundo, est4 condicionado pela aco de dois fatéres sociais. ‘Tanto mais éle se torna o intérprete de uma coletividade globalmente organizada (por exemplo, a Igreja), tanto mais seu pensamento tende aum “escolasticismo”.

Tem que conceder uma férca dogmati-

camente coercitiva aos modos de pensamento vdlidos anteriormente apenas para uma seita, sancionando dessa forma a ontologia e a epistemologia implicitas neste modo de pensamento. A necessidade de se ter de apresentar uma frente unificada aos de fora compele a uma tal transigiio. O mesmo resultado pode

pelo menos aos membros da prépria casta a que se pertenca, com maior sucesso do que até entio.

concretos da vida, nem da tentativa e érro, nem de experiéncias de dominio sdbre a natureza e a sociedade, mas, pelo contrério,

de sua prépria necessidade de sistematizagao, que sempre remete os fatos emergentes na esfera religiosa e nas demais esferas de vida a dcterminadas premissas tradicionais e intelectualmente nao-controladas. Os antagonismos que emergem de tais discussGes nao espelham o conflito dos vérios modos de experiéncia e,

sim, as varias posicdes de poder dentro de uma mesma estrutu-

ra social, posicSes estas que, na ocasifo, se haviam identificado com as diferentes interpretagées possiveis da “verdade” dogmatica tradicional. O conteido dogmatico das premissas de que partiam tais grupos divergentes ¢ que, sob formas diversas, tal pensamento buscava justificar, revela-se, na maioria dos casos, uma questio de acidente, se julgado pelos critérios de evidéncia fatual Tal contevide é completamente arbitrdrio, na medida em que depende de qual seita consegue ter sucesso, de acérdo com o destino politico-histérico, em fazer de suas tradigdes intelec-

tuais ¢ de experiénria as tradigdes de tSda a casta clerical da igre}a

Do ponto-de-vista sociolégico, o fato decisivo dos tempos mo-

dernos, em contraste com a situacao vigente na Idade Média, é o

de ter sido quebrado éste monopdlio da interpretacao eclesidstica do mundo, mantido pela casta sacerdotal, tendo surgido, nolugar de um estrato de intelectuais fechado e inteiramente organizado, uma intelligentsia livre. Sua caracteristica principal é a de ser recrutada, de modo cada vez mais freqiente, em estratos e situacdes de vida constantemente varidveis, e de seu

modo de pensamento n&o mais estar sujeito a ser regulado por uma organizacio do tipo casta. Devido A auséncia de uma orga-

Nizagéu social prépr., co watelectuals permitizar que os diversos

40

IpzoLocia E UTOPIA

ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA

modos de pensamento e de experiéncia chegassem a competir

abeitamente entre si, no mundo mais amplo dos demais estratos. Quando, além disso, se considera que, com a rentincia aos privilégios de uma existéncia do tipo casta, a livre competicao comecou a dominar os modos de producdo intelectual, compreende-se porque, na medida em que estavam em competicao, os intelectuais adotaram, de forma cada vez mais pronunciada, os mais vatiados modos de pensamento e de experiéncia 4 disposic&o na sociedade, e os jogaram uns contra os outros. E assim fizeram porque tinham de competir pelos favores de um publico que, diferentemente do publico do clero, nao mais seria-Ihes acessivel sem esfarco.

Tal competicao pelos favores dos

varios grupos de ptblico foi acentuaca porque os modos de experiéncia e pensamento de cada grupo obtiveram progressivamente expressio publica ¢ validade. Desaparece, nesse processo, a ilusdo do intelectual de que haja apenas uma forma de pensar. © intelectual nao é mais, como antigamente, um membro de uma casta ou grupo, cuja maneira escoldstica de pensar aparece como o pensamento em Si.

Deve-se procurar, nesse processo relativamente simples, a expli-

cago para o fato de que o questionamento fundamental do pen-

samento nos tempos modernos sé teve inicio depois do colapso do monopélio intelectual mantido pelo clero. A visio de mun-

do quase unanimemente accita, mantida artificialmente, foi des-

trufda a partir do momento em que se destruiu a posicio socialmente monopolista de seus produtores. Com a liberacdo dos intelectuais da rigorosa organizacao da igreja, foram sendo cada vez mais reconhecidas outras formas de interpretar o mundo. A ruptura do monopdlio intelectual da igreja acarretou a répida efervescéncia de uma riqueza intelectual sem precedente.

Mas, ao mesmo tempo, devemos atribuir 4 desintegragao orga-

nizacional da igreja unitdria o fato de ser novamente abalada a

crenca na unidade e na natureza eterna do pensmento, que persistia desde a antiguidade cldssica.

As origens da profunda in-

razio, intentaremos mostrat, nas paginas seguintes, e em pelo

menos suas linhas gerais, como desta situagZo social unitaria surgiram as muitas formas de questionamento e de investigagao

de que dispomos. * 3.

novos modos de pensamento ¢ de investigacdo, o episternoldgico, 0 psicoldgico e o sociolégico, sem os quais nao nos seria possi-

vel atualmente sequer formular nossa problematica.

Por esta

ORIGEM DOS PONTOS-DE-VISTA EPISTEMOLOGICO, PSICOLOGICO E SOCIOLGGICO MODERNOS

A epistemologia foi o primeito produto filosdfico relevan te da dertocada da visio de mundo unitdria com a qual se inaugurou-a era moderna.

Nesta ocasido, como nos tempos antigos,

foi o primeiro reflexo da inquietag%o resultante do fato de estarem os pensadores que haviam penetrado até os fundamen tos do pensamento descobrindo nZo sé numerosas visées de mundo, mas, igualmente, numerosas ordens ontoldgicas. A epistemologia buscou climinar essa incerteza fundando seu ponto de partida no em uma teoria de existéncia dogmaticamente cnsinada, nem em uma ordenagio de mundo que fédsse validada por um tipo de conhecimento superior, mas em uma anélise do sujeito conhecedor. Téda a especulacdo epistemoldgica esté orientada dentro da polaridade de sujeito e objeto.* Ou patte do mundo de objetos, que, de uma forma ou de outra, pressupde dogmatica-

mnte como familiar a todos, e com base nisto explica a posigao do sujeito nesta ordenacio do mundo, derivando dai seus podéres cognitivos; ou, ent&o, parte do sujeito como o dado imediato e indiscutivel buscando detivar déle a possibilidade de conhecimento valido. Em perfodos em que a visio de mundo objetiva permanece mais ou menos inabalada, e nas épocas que conseguem apresentar uma otdenacio de mundo inambiguamente perceptivel, existe a tendéncia a basear nos fatéres objetivos a existéncia do sujeito humano conhecedor e de suas capacidades intelectuais.

quietacdo nos dias de hoje remontam a éste periodo, apesar de

nos tiltimos tempos haverem interferido no processo causas adicionais de natureza inteiramente diferente. Desta primeira aparigfio da profunda inquietude do homem moderno emergiram os

Al

3

Sdbre a naturcza do pensamento monopolista, cf. K. Mannheim,

“Die Bedeutung der Konkurrenz im Geblete des Geistigen”.

Relatério

apresentado ao VI Coneresso da Sociedade Socioldégica Alema em

Zurique (Schriften der deutschen Gesellschaft fiir Soziologie, vol. VI, Tubingen, 1929).

4

Cf, K. Mannheim, “Die Strukturanalyse der Erkenntnistheorie”,

Ergénzungsband der Kant-Studien, N.° 57 (Berlim, 1922).

42

Tozotosia # Utrera

Assim, na Idade Média, que nao sémente acreditava numa ordenagao do mundo inambfgua, mas que, igualmente, julgava conhecer um “valor existencial” a ser atribuido a cada objeto da hierarquia das coisas, pravelecen uma explicacéo do valor das capacidades e do pensamento humanos que se baseava no mundo dos objetos. Entretanto, depois da derrocada que des-

crevemos,'a concepgao de ordem no mundo dos objetos, que ha-

via sido garantida pela predominancia da igreja, se tornou problemdtica, nfo restando outra alternativa que a reviravolta e 4 tomada do caminho oposto, tomando-se o sujeito como ponto de pattida, para se determinar a natureza e o valor do ato humano de cognic&o, tentando-se dessa maneira encantrar, no sujeito conhecedor, um ancoradouro para a existéncia objetiva. Apesar de se poder encontrar seus precursores j4 no pensamento medieval, essa tendéncia emerge completamente pela primeira vez na corrente racionalista da filosofia francesa ¢ alema de Descartes a Leibnitz até Kant por um lado e, por outro, pela epistemologia mais psicoldgicamente orientada de Hobbes, Locke, Berkeley e Hume. Era sobretudo ésse o significado do expetimento intelectual de Descartes, do conflito exemplar por

meio do qual procurou pdr em duivida tédas as teorias tradicio-

nais, pata atingir finalmente o cogito ergo sum nao mais questiondvel, Era @ste o tinico ponto a partir do qual @le poderia novamente intentar a nova colocagdo dos fundamentos de uma visio de mundo, Tédas essas tentativas pressupGem a consideracio mais ou

menos explicita de que o sujeito nos é mais imediatamente acessivel que o objeto que, como resultado das muitas interpretagdes divergentes a que foi submetido, passou a ser por demais ambiguo. Por esta razio devemos, sempre que possivel, reconstruir empiricamente a génese do pensamento no individuo, que é mais acessivel a nosso contréle. Na mera preferéncia pelas observacdes empiricas e pelos critérios genéticos que se tornatam gradativamente supremos, revelou-se em acdo a vontade de destruir o prinefpio autoritdrio. Representa uma tendéncia centrifuga em oposicéio & Igreja como o intérprete oficial do universo. Sdmente tem validade o que eu puder controlar na minha prépria percepc4o, 0 que f6r corroborado pela minha propria atividade experimental, on que eu mesmo posso produzir ou, pelo menos, construir conceptualmente como possivel de produzir,

ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA

43

Conseqiientemente, no lugar de uma histéria tradicional

da criagdo, garantida eclesidsticamente, emergiu uma concep-

cio da formagio do mundo, estando suas varias partes sujeitas ao contréle intelectual. Este modélo conceptual de produtibi-

lidade da viséo de mundo pelo ato cognitivo conduziu a solugdo do problema

epistemoldgico.

Esperava-se que se pudesse, por

meio da inquiricio das origens da representagao cognitiva, atin-

gir alguma nocio do papel e da relevancia do sujcito no ato de conhecer ¢ do valor de verdade do conhecimento humano em geral. Considerava-se, ndo obstante, que esta tortuosa abordagem através do sujcito cra um substitutivo e um expediente, 4 falta de melhor solucto. Uma solugao completa do problema sdmente scria possivel se uma mente extra-humana e infalivel pudesse emitir um juizo sébre o valor de nosso pensar. Tal

método, perém, era o que precisamente fracassara no passado, porque quanto mais se progredia na critica das teorias anterio-

res, tanto mais claro se tornava que as filosofias que haviam feito as reivindicacdes mais absolutas eram as que mais cafam em autodecepcdes facilmente perceptiveis. Dai vir a ser preferido o método que, entrementes, se tinha demonstrado o mais

apropriado para a orientacgae natural frente ao mundo e para

as Ciéncias Naturais, qual seja, o método empirico, Quando no curso de tal desenvolvimento, se elaboraram as Ciéncias Tilolégicas ¢ Histéricas, surgiu também, para a andlise do pensamento, a possibilidade de recorrer as concepgdes do mundo histdricamente emergentes e de compreender esta riqueza de visdes filosdficas ¢ religiosas do mundo em térmos Assim, 0 do processo genético pelo qual vieram a existir. pensamento passou a scr examinado em varios niveis diversos de seu desenvolvimento e em situacdes histdricas bastante dife-

rentes. Tornou-se evidente que se podia dizer muito mais sébre

a maneira pela qual a estrutura do sujeito influencia sua visdo do mundo quando se fazia uso da psicologia animal, da psicologia infantil, da psicologia da linguagem, da psicologia dos povos primitivos e da psicologia da histéria intelectual do que quando s¢ utilizava uma andlise puramente especulativa das realizagdes de um sujeito transcendente.

© recurso epistemoldégico ao sujeito tornou possivel, neste

sentido, a emergéncia de uma psicologia que se tornou cada vez mal: precisa, inci “sls uma psicologia do pensamento que, co-

44

Ingotocra E Uropia

ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA

mo indicam~s acima, se dividiu em numerosos campos de especializagio. Entretanto, quanto mais precisa se tornou essa psicologia empirica e quanto maior o reconhecimento da ampli. tude da obs-rvag%o empirica, tanto mais evidente se fé que o sujeito nfo era de forma alguma — como se havia pretendido anteriormente — um ponto de partida tao seguro pata a obtenAo de uma nova concepefo do mundo. E de fato verdade, em

curso ao sujeito quanto a estas questdes nado proporcionou nenhum auxilio real. Sdmente aquéle que mergulha em si mesmo sem, no entanto, destruir quaisquer elementos de significado ede valor pessoais tem condicécs de encontrar tespostas para as quest6es que implicam significado, Entretanto, neste meio tempo, como resultado desta formalizagdo radical, a cientifica obseivacio psiquica interna assume novas formas. Fundamen-

certo sentide, que a experiéncia interna é dada mais imediata-

mente que a experiéncia externa, e que a conexdo interna entre experiéncias pode ser mais seguramente compreendida se, entre coisas, se fr capaz de ter uma compreensdo simpdtica das motivagSes que produzem certas acdes. Nao obstante, é evidente que nfo se pode evitar inteiramente os tiscos implicados em

uma ontolc-ia.

Também a psique, com tédas as suas “expe

riéncias” ir eriorizadas imediatamente perceptiveis, é um segmento da zalidade. E o conhecimento dessas experiéncias, adquirido pvr ela, pressupde uma teoria da realidade, uma on-

tologia. Entretanto, exatamente como tal ontologia se tornara mais ambiga com relacio ao mundo exterior, assim se tornou

nado menos «mbigua com relacHo a realidade psiquica. O tipo de psicologia que ligou a Idade Média com os tempos modernos e que extraiu seus contetidos da auto-observacaio

do homem treligioso permanece ainda de fato operando com

certos conceitos ricos em contetido, que evidenciam a conti-

nuada influcncia de uma ontologia religiosa da alma. Nesse sentido, reportamo-nos & psicologia sutgida do conflito interno pela escolha entre o bem e o mal, agora concebida como ocortendo i.9 sujeito, Tal psicologia se desenvolveu nos conflitos de ccasciéncia e no ceticismo de homens como Pascal

e Montaigne até Kirkegaard. Encontramos ainda neste, cheios de significado, certos conceitos orientadores de um tipo onto-

ldgico tal como desespéro, pecado, salvacio e¢ solidio, que coniém uma certa riqueza da experiéncia, pois téda experiéncia, que desde inicio se oriente para um objetivo religioso, tem contetido c nereto. Nao obstante, também estas experiéncias se tornam, -om o passar do tempo, mais desprovidas de conteddo, mais té-ues ¢ mais formais, na medida em que seu quadro

de teferéncia, sua ontologia religiosa, vio-se enfraquecendo. Uma sociecade em que os diversos grupos nao podem mais concordar sGbre o significado de Deus, da Vida e do Homem, sera igualmente incapaz de decidir undnimemente o que se deve compreender por pecado, desespéro, salvagio ou solidio, © te-

45

talmente, esta observacio psiquica interna envolvia o mesmo

processo que caracterizava a experimentagZo com objetos no

mundo externo e o pensar sdbie éles. Tais interpretacdes atribuidoras de significado, com contetidos qualitativamente ricos (tais como, por exemplo, pecado, desespéro, solidio, amor ctristao) foram substituidas por entidades formalizadas teis como o sentimento de ansiedade, a percepcao do conflito interior, a

experi€ncia do isolamento e a libido.

Estas Gltimas buscavam

aplicar, & experiéncia interna do homem, esquemas interpreta-

tivos derivados da mecanica. O objetivo ndo era tanto compreender com o maximo de precisdo a riqueza conceptual interna das experiéncias, tal como coexistem no individuo e operam juntas pata a consecugao de um fim significativo; a tentativa antes se destinava a excluir do conteido da experléncia todes os elementos distintivos, a fim de, sempre que possivel, aproximar a concepsao dos acontecimentos psiquicos do esquema simples da mecdnica (posicido, movimento, causa e efeito). © problema passa a ser nao o de como uma pessoa se compreende em térmos de seus prdprios ideais e normas e como, tendo tais normas como antecedentes, seus feitos e suas rentn-

cias recebem significados, mas, antes, o de como pode uma situagéo externa, com um gtau verificdvel de probabilidade, requerer mecinicamente uma reagaio interna.

A categoria de

causalidade eterna era crescentemente utilizada, operando-se com a idéia de uma sucessfo regular de dois acontecimentos formalmente simplificados, como se exemplifica no seguinte esquema: “Surge o médo quando ocorre algo inusitado”, no qual se negligenciou propositadamente o fato de que cada tipo de médo muda completamente de acédrdo com seu contetido (médo em face da incerteza e médo em face de um animal),

ce de que também o inusitado varia totalmente de acérdo com © contexto em que as coisas séo usuais. O que se buscava era

precisamente a abstracao formal das caracteristicas comuns a

éstes fendmenos qualitativamente diferenciados.

46

TreoLocta # Uropia Seno se empregava a categoria de fungdo, no sentido de

que os fendmenos simples eram interpretados a partir de sea

papel no funcionamento formal do mecanismo psiquico total, como por exemplo no caso em que se interpretam os conflitos mentais como, basicamente, o resultado de duas tendéncias con-

traditérias nao-integradas na esfera psiquica, como expressdes do

desajustamento do sujeito. Sua fungio é compelir o sujeito a reorganizar seu processo de adaptacao e alcancar um névo equilibrio, Seria reaciondrio, frente ao fecundo desenvolvimento da ciéncia, negar valor cognitivo aos procedimentos simplificadores tais como &stes, que sao facilmente controlaveis e aplicdveis, com um alto grau de probabilidade, a grandes massas de fendmenos. A fecundidade destas ciéncias formalizadoras que trabalham em térmos de causas e fungdes estd ainda longe de se exaurir; e seria danoso impedir seu desenvolvimento. Uma coisa é testar uma liuha fecunda de investigac#o e outra é encaré-la como o tnico caminho para o tratamento cientifico de um objeto. Na medida em que a Ultima é 0 ponto em questio, j4 esté claro hoje em dia que a abordagem formal isolada nao exaure o que pode ser conhecido do mundo, e especialmente da vida psiquica dos séres humanos. As interconexGes de significado, que por meio désse pro-

cedimento foram heuristicamente excluidas (io interésse da sim-

plificagfo cientifica), para que se pudesse chegar a entidades

formais e facilmente definfveis, nai so recapturadas pelo mero

apetfeicoamento de formalizagio através da descoberta de cor-

relagdes e fungdes. Pode ser realmente necessdrio, com vista A precisa observacio da sequéncia formal de experiéncias, rejeitar os contetidos concretos de experiéncia e valéres. Constituir-se-ia,

entretanto, num tipo fetichismo cientifico acreditar-se que tal purificatiio metédica substituisse efetivamente a riqueza original da experiéncia. E ainda mais errado pensar-se que uma extrapolagdo cientffica e uma enfatizaco abstrata de um aspecto de um fendmeno, pela tnica razfo de se o haver concebido dessa forma, sejam capazes de enriquecer a exveriéncia original da vida. Apesar de podermos conhecer bastante acérca das condigOes nas quais surgem os conflitos, podemos nada conhecer a respeito da situac%o interior dos séres humanos e de como, ao se abalarem seus valores, éles se perdem ¢ buscam se reencontrar, Assim como a mais exata tcoria de causa e func¢ao nao

pode responder 4 questo relativa a quem sou eu efetivamente,

ABcC?S GEM DRELIMINAR pO P29BLEI

47

que sou eu efetivamente, ou o que significa ser um ser humano, da mesma forma nao pode surgir desta teoria a interpretagao do si mesmo e do mundo requerida mesmo pela mais simples acao bascada em qualquer decisdo avaliativa. A tecoria mecanicista e funcionalista é altamente valiosa como umacorrente, na pesquisa psicoldgica, Falha, entretanto,

quando ‘se réfere ad coAtésto ‘total da experiéncia vital, porque

nada diz sdbre o fim significativo da conduta, sendo, assim, incapaz de interpretar os elementos da conduta com referéncia a éle. O modo mecanicista de pensamento somente é util quando o objetivo ou o valor sao indicados por outra fonte, e somente os

“tmeios” sio considerados. O mais importante papel do pensamento na vida consiste, entretanto, em proporcionar orientac&o para a conduta quando se tem de tomar decisdes. Téda deciséo real (tal como uma avaliacgio de outras pessoas ou de como se deve organizar a sociedade) implica um juizo relativo ao bem e¢ ao mal, concernente ao sentido da vida e da mente.

Encontramo-nos a esta altura frente ao paradoxo de que esta extiapolagio dos elementos formalizados, por meio da mecinica geral ¢ da tcoria da funcao, surgiu originalmente para auxiliar os homens, em suas atividades, a alcangar seus objetiyoo mais ficilmente.

© mundo das coisas © da mente foi exa-

minado mecanicistiamente ¢ funcionalmente para se chegar, através de uma andlise comparativa, a seus Ultimos elementos constituintes, rcagrupando-se-os entéo, de acdido com o obje tivo da atividade. Quando se usou pela primeira vez o procedimento anal{tico, o fim ou objetivo prescrito pela atividade ainda existia (geralmente composto por fragmentos de um mundo anterior religiosamente compreendido). Os homens buscavam conhecer o mundo de forma que pudessem molda-lo em conformidade com seu objetivo Ultimo; analisava-se a sociedade de modo a se alcancar uma forma de vida social mais justa ou mais agraddvel a Deus; os homens se preocupavam com a alma a fim de controlar o caminho da salvagéo. Mas quanto mais os homens se adiantavam na andlise, tanto mais o objetivo desaparecia de seu campo de visao, de tal forma que hoje em dia um pesquisador poderia dizer com Nietzsche: “Esqueci por que comecei” (Ich habe meine Griinde vergessen). Caso alguém indague hoje em dia sdbre os fins a que serviu a andlise, a questao nao pode ser respondida com referéncia 4 natureza, a

alma ou a sociedade, seniio estarfamos formalmente colocando uma condigéo étima puramente técnica, psfquica ou social co-

48

IpgoLocta £ Urop1a

ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA

mo, por exemplo, um maximo de “funcionamento sem fricc&o’’. 5 Este objetivo aparece como tinico quando, por exemplo, nao levando em conta tédas as suas observacdes e hipdteses complicadas, pergunta-se a um psicanalista qual o seu objetivo em curar os pacientes. Na maioria dos casos nao terd outra resposta que a mnogo de um dtimo de adaptacao. Quanto ao que seja éste étimo, éle nada poderd dizer tomando tnicamente como base sua ciéncia, uma vez que todo fim significativo ultimo foi, desde o inicio, eliminado dela. Revela-se, assim, outro aspecto do problema. Sem con-

Vemos cada vez mais claramente que qualquer que seja a fonte de onde extraimos nossos significados, sejam elas falsas ou verdadeiras, todas tém uma certa fung&o psicoldgico-sociolégica, que € a de fixar a atengio dos homens que desejam fazer alguma coisa em comum sébre uma certa “definicgfo da situagio”. Uma situag&o se constitui como tal quando é definida da mesma maneira pelos membros do grupo. Pode ser verdadeiro ou falso quando um grupo chama outro de herege, e como tal luta com éste, mas é apenas por esta definic&o que a luta é uma situagdo social. Pode ser verdadeiro ou falso que um grupo lute somente por realizar uma sociedade fascista ou comunista, mas € s6 por essa definicéo, doadora de significado e avaliativa, que os acontecimentos produzem uma situac&o onde a atividade e a contta-atividade sHo passiveis de distincdo, e a totalidade de acontecimentos € articulada em um processo, A justaposic&o ex post facto de elementos esvaziados de contetido significativo nao produz unidade de conduta. Como resultado da exclusao extensiva de elementos significativos da teoria psicolégica, torna-se mais e mais evidente que também na psicologia as situagdes psiquicas, para nao se falar das histérias de vida interior, nao podem ser percebidas fora de um contexto significativo.

cepgdes valorativas, sem um minimo de objetivo significativo,

nada podemos fazer seja na esfera do social, seja na esfera do psiquico. Com isto queremos dizer que, mesmo quando se adota um ponto de vista puramente causal ou funcional, somente mais tarde é que se vai descobrir o sentido originalmente oculto na ontologia de que s¢ partiu. al senudo preservou a experiéncia da atomizagao em observagdes isoladas, isto 6, ato-

mizagao sob o ponto de vista da atividade. Expressos nos térmos da moderna teoria da gestalt, os significados que nos dé nossa ontologia servem para integrar as unidades de conduta e nos capacita a ver os elementos de observagao individuais em um contexto configurativo, elementos que de outra forma tenderiam a permanccer separados. Mesmo que todo o significado veiculado pela visdo de

mundo miagico-religiosa fésse ‘‘falso”, @le ainda serviria —

quando visto sob um ponto-de-vista puramente funcional — para tormar coerentes os fragmentos da realidade tanto da experiéncia psfquica interior quanto da cxperiéncia exterior, e

para situd-los com referencia a um certo complexo de conduta. & Isto pode explicar a grande verdade contida na regulamentag%0 segundo a qual, nos regimes parlamentares, os chefes de gabinete devam ser escolhidos nao dentre os efetivos do pessoal administrativo,

mas, pelo contrario, dentre os lideres politicos.

O burocrata adminis-

trativo, como todo especialista ¢ pete, inchna-se a perder de vista o

contexto e o objetivo tinal de sua agéo. Presume-se aqui que a pessoa que encarna a integragdo livremente formada da vontade coletiva na vida publica ~ o lider politico — pode integrar os meio, disponiveis necessdrios as referidas agées de mancira mais orgdnica que o perito administrative dcliberadamente neutralizado em questus de politica.

Cf, a segfo sébre a sociologia do pensamento buocratico, pigs, 143 ¢ segs., Parte ILL.

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Além disso, de um ponto de vista puramente funcionalista, a derivacio de nossos significados, quer sejam falsos ou verdadeiros, desempenha um papel indispensdvel, que é 0 de sociali-

zar os acontecimentos para um grupo. Pertencemos a um grupo n&o apenas porque néle nascemos, ndo porque professamos

a éle pertencer, nem finalmente porque a éle prestamos nossa lealdade e obediéncia, mas, principalmente, porque vemos o mundo e certas coisas no mundo do mesmo modo quc o grupo os vé (isto é, em térmos dos significados do grupo em quest8o). Em cada conceito, em cada significado concreto, est4 contida uma cristalizagio das experiéncias de um certo grupo. Quando alguém diz “reinado”, o térmo esté sendo usado no sentido em que tenha significado para um certo grupo. Outra pessoa, para quem reinado é apenas uma organizacdo, como,

por exemplo, uma organizacao administrativa tal como a que se dé em um sistema postal, nao participa das acdes coletivas do grupo no qual se toma como dado o significado anterior. Entretanto, nao existe em cada conceito sdmente uma fixacg3o dos individuos com referéncia a um grupo de um certo tipo e:,A sua ago, mas toda fonte de onde derivamos o significado e a interptetacio atual igualmente como um fator estabilizador das

IpEOLOGIA E UTOPIA

Aporpacem Prritiminar po Propiema

possibilidades de experimentar e conhecer objetos com referéntia ao objetivo central de acdo que nos orienta. O mundo dos objetos externos e da experiéncia psiquica parece estar em um fluxo continuo. Para esta situacdo os ver bos sic simbolos mais adequados do que os substantives. O fato de darmos names a coisas que estéo em fluxo implica inevitavelmente uma certa estabilizagdo, orientada segundo as linhas da atividade coletiva. A derivacio de nossos significados enfatiza e estabiliza o aspecto das coisas que é relevante para a atividade e encobre, no interésse da acao coletiva, o processo perpétuamente fluido, subjacente a téda as coisas. Exclui as outras organizagdes configuracionais que tendem a diregdes di-

ser resolvida através do recurso e da concentragio no sujeito, nao foi dessa forma contornada. E verdade que grande parte do que é névo foi descoberta dos novos métodos empiricos. Eles nos habilitaram a penetrar na génese psiquica de muitos fendmenos culturais, mas as respostas adiantadas desviaram nossa atengao da questao fudamental, concernente a existéncia da mente na ordéem da realidade. Em particular, perdeu-se, pela funcionalizagéo e mecanizagao dos fenédmenos psiquicos, a unidade da mente bem como a da pessoa, Uma Psicologia sem uma psique nao pode tomar o lugar de uma Ontologia. Tal Psicolo-

50

ferentes.

Cada conceito representa uma espécie de tabu con-

tta outras possiveis fontes de significado — simplificando e unificando, em beneficio da agHo, a multiplicidade da vida. Nao é improvdvel que a visio das coisas formalizadora e¢ funcionalizadora sOmente se tenha tarnado possivel, cm nossos

dias, por jd estarem os tabus anteriormente dominantes, que

fizeram o homem impermedvel a significados derivados de outras fontes, perdendo sua fOrca apdés a derrocada do monopdlio intelectual da igreja. Nestas circunstancias, veio gradativamen-' te surgindo, para cada grupo opositor, a oportunidade de revelar abettamente ao mundo os significados contraditdrios que correspondiam A sua compreenséo do mundo peculiarmente concebida, O que era rei para um, era titano para outro. Jé se tinhaassinalado, entretanto, que um ntimero demasiado de fontes conflitan.es, de onde derivem, numa mesma sociedade, os significados referentes a um dado objetivo, conduz, afinal 4 dissoluc%o de todos os sistemas de significado. Em tal sociedade, dividida internamente quanto a todo sistema concreto de significado, somente se pode estabelecer um consenso quanto aos elementos formalizados do objeto (por exemplo, a definigdo de monarca que teza: “O monarca € aquéle que, aos olhos de uma maioria de pessoas em um pais, possui legalmente o direito de exercer o poder absoluto”). Em definigdes déste e de tipo si-

milares tudo que ha de substancial, t6da avaliac&o para a qual

nao mais se encontra um consenso, é reinterpretada em térmos

funcionais.

Voltando entéo 4 nossa discussfo das origens da Psicclogia moderna, que toma o sujeito como o ponto de partida, vemos agora claramente que a dificuldade original, que deveria

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gia era ela prépria o resultado do fato de que os homens estives-

sem tentando pensar em térmos de um quadro de categorias gue procurava negar téda avaliagZo, todo trago de significado comum, on de configuracgao total. O que pode ser valioso como uma hipdrese de pesquisa para uma disciplina especializada pode, entretanto, ser fatal para a conduta dos séres humanos, A incerteza quanto a se contar com a Psicologia cientifica na vida pratica se torna dbvia Uio logo um pedagego ou um lider politico nela busque orientagio. A impressfo a que se chega, neste momento, é que a Psicologia existe noutro mundo, registrando suas obseryagdcs de cidadaos que vivem em alguma outra sociedade que nfo a nossa. Esta forma de experiéncia do homem moderno, que, devido a uma diviséo do trabalho altamente diferenciada, tende a falta de direcHo, encontra sua contrapartida na falta de rafzes de uma Psicologia cujas categorias

n&o nos permitem, sequer, meditar sdbre os mais simples pro-

cessos vitais. Que esta Psicologia constitua efetivamente uma incapacidade treinada para lidar com os problemas da mente responde pelo fato de que nfo forneca um esteio para os séres humanos em sua weda didria. Assim, duas tendéncias fundamentalmente. diferentes caracterizam a Psicologia moderna. Ambas tornaram-se possiveis devido ao mundo medieval —- que concedia um Unico conjunto de significados aos homens do mundo ocidental — estar em processo de dissolucdo. A primeira é a tendéncia de buscar por trés de cada significado e de compreendé-lo em térmos de sua génese no sujeito (o ponto-de-vista genético). A segunda tendéncia consiste na tentativa de construir uma espécie de ciéncia mecanica dos elementos formalizados e despidos de sentido da experiéncia psiquica (mecfinica psiquica). Torna-se aqui evidente que o modélo de pensamente mecanicista nfo se confina, como se supunha ofiginalmente, ao mundo dos objetos meca-

52

IpeoLocia E Uropia

nicos. O modélo de pensamento mecanicista represcata bisicamente uma espécie de primeira aproximagdo aos objetos em geral. Aqui, o objetivo néo é uma compreensio exata das peculiaridades qualitativas ¢ das cons'«lagdes unicas, mas antes, a detetminagao das mais dSbvias regularidades ¢ princfpios de ordenago, obridos dentre elementos simplificados e formalizados. Reconstituimos em detalhe o método por ultimo mencionado e vimos como o método mecanicista, apesar das realizagdes concretas de que lhe somos devedures, tem, sob o ponto-de-vista da orientagio e da conduta de vida, contribuido em muito para a geral inseguranca do homem moderno. O homem atuante precisa saber quem é, e a ontologia da vida psiquica preenche uma certa funcdo quanto a agio. Na medida em que a Psicologia Mecanicista e secu paralclo na vida eletiva, o impe-

to social em direciio & mecanizacdo onienvolvente, negavam éstes valéres ontolégicos, destrufam um clemento importante na auto-orientacio dos séres humanos em sua vida cotidiana.

Gostarfamos agora de nos dedicar A abordagem genética. Devemos indicar aqui, inicialmente, que o ponto-de-vista gendtico, que se liga 4 abordagem psicoldégica, tem contribufdo de muitas maneiras para uma compreensao mais profunda da vida no sentido acima indicado. Os expoentes dogmaticos da Légica ¢ da Filosofia cldssicas se acostumaram a sustentar gue a génese de uma idéia nada tem a dizer com relacio a sua validade ou significado. Evocam sempre o repetido exemplo a propdsito de que nosso conhecimento da vida de Pitdgoras e de scus conflitos internos, etc., é de pouco valor para a compreensio das pro-

posigdes pitagéricas. Nao acredito, entretanto, que se possa man-

ter éste raciocinio para t6das as realizagdes intelectuais, Acredito que, do ponto-de-vista da interpretag%o estrita, somos infinitamente enriquecidos quando tentamos compreender a sentenca biblica, “Os uiltimos seréo os primeiros’, como a expresso psiquica da revolta dos estratos oprimidos. Acredito que a compreendetemos melhor se, como Nietzsche ¢ outros nos indica-

ram de varias formas, considerarmos ¢ tomarmos conhecimen-

to da significacio do ressentimento na formagio de juizos morais. Neste caso, por exemplo, se poderia dizer, quanto ao cristianismo, que foi o ressentimento que deu coragem aos estratos inferiores para se emanciparem, pelo menos fisicamente, da dominacio de um sistema de valéres injusto e para estabelecerem os seus em oposigio a éstes. Nao pretendemos aqui levantar a questao relativa a se podemos, com o auxilio desta andli-

ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA

53

se psicogenética, que ‘trata da funcSo geradora de valor do res-

sentimento, decidir se os cristfos ou as classes dominantes ro-

manas estavam com a razio. Em todo caso, tal andlise nos da mais profundamente compreensao do significado da sentenca. Nao é irrelevante para o seu-entendimento saber que a frase nao foi lancada por qualquer pessoa em geral, nem era enderecada aos homens em geral, mas, pelo contrdrio, tinha um real apélo somente para aquéles que, como os cristéos, eram de alguma forma oprimidos e que, ao mesmo tempo, sob o impulso do ressentimento, desejavam libertar-se das injusticas vigentes. A in-

terconexiio entre a génese psfquica, a motivacdo que conduz ao significado, e o préprio significado, difere, no caso citado, da

que se d& nas proposicdes pitagdéricas. Os exemplos especialmente elaborados, que os Idgicos aduzem, podem, sob certas

circunsténcias, fazer que as pessoas se totnem niao-receptiveis

as diferencas mais profundas entre um e outto significados, podendo levar a generalizagSes que obscurecem relagdes relevantes. A abordagem psicogenética pode portanto contribuir na

grande maioria dos casos para um mais ptofundo entendimento

do significado, sempre que nos preocupamos nao com as in-

ter-rclagdes mais abstratas e formais, mas, antes, com os signi-

ficados, cuja motivacio pode ser simpaticamente experimentada, ou com um complexo de conduta significativa, que pode ser compreendida em térmos de sua estrutura motivacional ou de scu contexto de experiéncia. Assim, por exemplo, quando eu souber o que um homem foi quando crianga, quais os conflitos sérios que experimentou, em que situacSes ocorreram e como os resolveu, saberei mais a seu respeito do que se tivesse

meramente uns poucos detalhes estéreis de sua histéria de vida exterior. Saberei em que contexto ® se produziu néle a inovacao, & luz do qual se terd de interpretar cada detalhe de sua experiéncia. O grande mérito do método psicogenético é ter destrufdo a concepgao mecdnica anterior que tratava as normas e valdres culturais como coisas materiais. Quando confrontado com um texto sacro, o método genético substituiu a obediéncia

formalmente aquiescente a uma norma pela apreciagio viva do processo pelo qual os valéres e normas culturais surgem inicial-

mente, e com o qual éles devem manter-se em contato continuo &

Deve-se notar que o ponto-de-vista genético enfatiza a inter-

dependéncia em contraste com a abordagem mecanicista que se preocupa com a atomizagio dos elementos da experiéncia,

54

To LOu-A EB UTU'LA

AboRb liL: L'RELIMINAR DO T20aLEM’

a fim de que sempre possam ser renovadamente interpretados e dominados. Assim, demonstrou-se que a vida .de um fenédmeno psiguico € o préprio fendmeno. © significado da histdéria e da vida esté contido em seu vir-a-ser e em seu fluxo. Estas intuicgSes foram inicialmente formuladas pelos rom4nticos e por Hegel, mas, desde entao, tiveram de ser repetidamcnte redescobertas. Havia, entretanto, desde o inicio, uma dupla limitacio a éste conceito de génese psiquica na medida em que gradualmente se desenvolveu, penetrando nas Ciéncias Culturais (tais como a histéria das religides, a histéria literdria, a histdria da

mutacgéo acima indicada tem suas raizes basicamente em uma situagao de grupo, na qual centenas e milhares de pessoas participam, cada uma 4 sua maneira, na subversio da sociedade exisrente. Cada uma destas pessoas prepara e executa esta trans-

arte, etc.); e esta limitacdo ameacava tormar-se com o tempo

uma restrigfo definitiva quanto ao valor desta abordagem. A limitagio mais essencial da abordagem psicogenética é a importante observacio de que se tem de compreender cada significado 4 luz de sua génese e no contexto original da experiéncia de vida que forma seu background. Mas esta observacfo contém em si a danosa-restricdo de que esta abordagem sé

se aplica em térmos individuais. Na maioria dos casos, tem-se buscado a génese de um significado no contexto individual de

vivéncia ao invés de em seu contexto coletivo, Assim, por exem-

plo, quem tivesse alguma idéia a considerar (vamos tomar o caso mencionado acima da transformacéo de uma hierarquia de valéres morais como vem expressa na frase: “Os tltimos serio os primeiras”} e quisesse explicd-la gentticamente, iria apegar-se 4 biografia individual do autor e tentaria compreender

tal idéia tomando tnicamente como base os acontecimentos ¢

motivagSes especificos da histéria pessoal do autor. FE claro que muito se pode fazer com @sse método, pois assim como as experiéncias que verdadeiramente me motivam encontram sua fonte e local originais em minha prépria histéria de vida, assim também a histéria de vida do autor é o local de suas experiéncias. Mas é igualmente claro que, embora possa ser suficiente

para a explicacfo genética de um modo de comportamento bas-

55

mutagdo, no sentido de que atua de uma manecira nova em um

complexo, total de situagdes de vida que lhe vio de encontro. O método genético de explicagio, ainda que atinja suficiente profundidade, nfo pode, a longo prazo, limitar-se A historia de

vida individual, mas deve unir elementos até atingir finalmente

a interdependéncia da histéria de vida e da siruacio de grupo mais inclusiva. Pois a histéria de vida individual é apenas um dos componentes de uma sétie de historias de vida mituamente interligadas, que tém seu tema comum na citada subversio;

a nova motivacao particular de um sé individuo é parte de um

complexo motivacional do qual, de varias maneiras, muitas pessoas participam, Constituin mérito, do ponto-de-vista socioldgico, estabelecer, ao lado da génese individual do significado, a génese do contexto da vida de grupo. Os dois métodos de se estudar fenémenos culturais aqui considerados, o epistemoldgico e o psicolégico, tinham em comum uma tentativa de explicar o significado a partir de sua gé hese no sujeito. O que importa neste caso nfo é tanto se pensavam no individuo concreta ou em uma mente genérica em si, mas que, em ambos os casos, se concebia a mente individual como separada do grupo. Dessa forma fizeram, sem que o quisessem, falsas assumpc¢des quanto aos problemas fundamentais da Epistemologia ¢ da Psicu.ogia, assumpcdes que a abordagem socioldgica teve de corrigir. O mais importante a respeito desta Ultima € qu. pde um fim A ficc%o do desligamento do individuo do grupo, dentro de cuja matriz o individuo pensa e tem experiéncias.

A ficgéo do individuo isolado e auto-suficiente est4 subjacente, em varias formas, A Epistemologia individualista e a

Psicologia genética.

A Epistemologia trabalhou com éste indi-

tante especifico o retornar ao perfodo anterior da histéria de

viduo isolado e auto-suficiente como se, desde o inicio, éle pos-

tindo das experiéncias da infancia, explica os sintomas de posteriores desenvolvimentos do carater), nfo basta para um modo de comportamento de relevancia social — tal como a transmutagfo de valéres que transforma todo o sistema de vida de uma sociedade em tddas as suas ramificagdes — a preocupacao com

humanos, inclusive a do conhecimento puro, e como se éle produzisse seu conhecimento do mundo a partir apenas de si mesmo, através de mera justaposicdo ao mundo exterior. Similarmente, na Psicologia evolutiva individualista, o individuo passa

um individuo (a exemplo do que fatia a Psicandlise que, par-

a histéria de vida puramente individual, e sua andlise.

A trans-

suisse em esséncia tédas as capacidades caracteristicas aos séres

necessariamente por certos estdégios de desenvolvimento no de-

correr dos quais o ambiente fisico e social externo nao tem ou-

ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA

57

tra fung&o senfo a de liberar estas capacidades preformadas.

tentemente, de acérdo com os seus interésses vitais.

O grau

deria produzir-se em uma situagdo social em que se tivesse per-

da, de 2.000 operdrios, fSssem considerados como se cada um

56

IpgoLocia E Uropia

Ambas as teorias cresceram do solo de um individualismo tedtico exacerbado (tal como o que se pode encontrar no perfodo da Renascenca e do liberalismo individualista) que sémente po-

dido de vista a conex&o original entre o individuo e o giupo. Em tais situagdes sociais, freqiientemente acontece que o observador perca de vista o papel da sociedade na formagao do individuo, a ponto de derivar a maioria dos tracos, que evidentemente sOmente sAo possiveis como resultado da vida em comum e da interacdo entre os individuos, da natureza original do individuo ou do embrido gerador. (Opomo-nos a esta ficcio no a partir de algum ponto-de-vista filoséfico Ultimo, mas simplesmente porque ela introduz dados incorretos no quadro da génese do conhecimento e da experiéncia.) Realmente, longe estd de ser correto pretender-se que um individuo de capacidades absolutas mais ou menos rigidas confronte 0 mundo ¢ que, buscando a verdade, construa uma visdo

de mundo a partir dos dados de sua expetiéncia. Tampouco podemos acreditar que éle entHio compare sua visio de mundo com a de outros individuos, que adquiriram as suas de uma forma similarmente independente, e, numa espécie de discussio, a vi-

sao de mundo verdadeira venha a luz e seja aceita pelos demais. Ao contrério, € muito mais correto dizer-se que o conhecimento é, desde o primeiro momento, um processo cooperative de vida de grupo, no qual cada pessoa desdobra seu conhecimento no interior do quadro de um destino comum, de uma atividade comum e da superacao de dificuldades comuns (em que, entretanto, cada um enfrenta-se com uma parte diferente),

Em

conformidade com isso, os produtos do process cognitivo jé est4o, pelo menos em parte, diferenciados, porque nem todos os aspectos possiveis do mundo se acham ao alcance dos membros de um grupo, mas apenas aquéles de que surgem dificuldades e problemas para o grupo. E mesmo ésse mundo comum (nao partilhado da mesma forma por quaisquer outros grupos estranhos) aparece diferentemente aos grupos subordinados dentro de um grupo maior. Aparece diferentemente porque os gru-

gos e estratos subordinados numa sociedade funcionalmente di-

ferenciada tém uma abordagem experimental diferente em relaGao aos contetidos comuns dos objetos de seu mundo. No do-

minio intelectual sdbre os problemas da vida, cabem a cada um

segmentos diferentes, com os quais cada um lida bastante dife-

em que a concep¢io individualista do problema do conhecimento fornece uma descricao falsa do conhecimento coletivo corresponde ao que ocorreria se a técnica, modo de trabalho e a produtividade de uma fabrica internamente altamente especializados 2.000 operdrios trabalhasse em um cubiculo separado, exe-

cutasse por si sé as mesmas operacGes, e por si sé elaborasse

cada produto individual, do infcio ao fim.

Na realidade, é cla-

TO, os operarios nao fazem as mesmas coisas de forma paralela,

mas, pelo contrério, através de uma divisdo de funcdes, coletivamente elaboram o produto total.

Vamo-nos indagar por um momento o que estd faltando,

na teoria antiga, quanto ao caso desta reinterpretacdo indivi-

dualista de um processo de trabalho e realizaco coletivos. Em ptimeiro lugat, nfo se considerou o quadro que, em uma divisao real do trabalho, determina o cardter do trabalho de cada individuo, desde o presidente do conselho diretor até o menos importante aprendiz e que integra em uma maneira inteligente a natureza de cada produto parcial elaborado pelo operdtio individual. A omissfo em observar o cardter social do conhecedor e do experimentar nfo era devida, principalmente, como muitos acreditam, a que nfo se considerava o papel da “‘massa” @ superestimava o do grande homem. Antes, deve-se buscar sua eaplicagio no fato de que jamais se analisou ¢ apreciou o nexo social original, onde cada experiéncia e percepcaio individuais, no grupo, se nutre e se desenvolve.?

Esta interdependéncia

original dos elementos do processo vital, que é andloga mas nfo idéntica a divisio do trabalho, difere, em uma sociedade agraria, do que é no mundo urbano, Além disso, no interior déste Ultimo, os diferentes grupos participantes da vida urba7 Nada é mais futil que supor que o contraste entre os pontos-de-vista individualista e sociolégico seja o mesmo que o existente en-

tre a “grande personalidade” e a “massa”.

Nada existe na abordagem

sociolégica que exclua sua preocupagio com a descrigio do significado da grande personalidade no processamento social. A distingio real é que o ponto-de-vista individualista, na maioria dos casos, estd incapacitado para ver o significado das varias formas de vida social para o

desenvolsimento das capacidades individuais, enquanto o ponto-de-vista

sociolégico busca, desde o inicio, interpretar a atividade individual em tédas as esferas do contexto da experiéncia grupal.

38

Iprorocia E Uropra

ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA

na tém, em qualquer tempo, problemas cognitivos diferentes e

aquéles que se preocupavam com tais problemas, os intelectuais e as pessoas educadas na sociedade burguesa, achavam-se em circunstancias em que o cardter original de interconexfo da ordem social devia necessariamente estar amplamente invisivel para

chegam a suas experiéncias através de caminhos diferentes, mesmo comrelagao a exatamente os mesmos objetos. Somente quando se introduz na abordagem genética, e isso desde o inicio, o ponto-de-vista segundo o qual um grupo de 2.000 pessoas nao

percebe a mesma coisa 2.000 vézes, mas que, de acérdo com

a atticulacio interna da vida grupal e com as varias fungdes ¢ interésses, surgem subgrupos que agem e pensam coletivamente um com ou contta outro — sdmente quando vemos as coisas sob éste Angulo é que podemos atingir uma compreensao de como, tia mesma ‘sociédade inclusiva, podem sutgir significados diversos devidos as divergentes origens sociais dos diferentes membros da sociedade como um todo.

59

éles. Podiam, pois, e com téda a boa-fé, apresentar o conheci-

mento ¢ a experiéncia como fenémenos tipicamente individuais. Tanto mais que sdmente tinham em mente o segmento dareali-

dade que se referia As minorias dominantes e que se caracterizava pela competicao entre os individuos, os acontecimentos sociais podiam aparecer como se os irdividuos auténomos tivessem em

si mesmbsa iniciativa para agik é conhecer. Vista déste segmen-

to social, a sociedade aparecia como se fésse apenas uma multiplicidade complexa e incalculdvel de atos individuais esponta-

neos de fazer ¢ conhecer.

Este cardter extremamente indivi-

Uma distorg%o inconsciente adicional, cometida pela Epistemologia cl4ssica em sua caracterizacio da génese do processo cognitivo, consiste em que ela procede como se o conhecimento surgisse de um ato de contemplacdo puramente teédrica. Neste caso, ela parece elevar um caso marginal ao nivel de prin-

dualista nao se d4 nem mesmo na assim chamada estrutura social liberal, encarada como um todo, na medida em que também aqui a iniciativa relativamente livre da lideranca dos in-

por um impulso contemplativo, uma vez que requer uma cor-

terconex&o social velada, subjacente 4 iniciativa individual.)

cipio central. Em regra, 0 pensamento humano nao é motivado

rente subterranea volitiva e emocional inconsciente que assegu-

re, na vida grupal, uma orientagdo continua em direc&o ao conhecimento. Precisamente porque o conhecer é fundamentalmente um conhecer coletivo (o pensamento do individuo isolado € apenas um momento especifico e um desenvolvimento recente}, pressupde uma comunidade de conhecer, que cresce a partir de uma comunidade de experiéncia formada no subconsciente Entretanto, uma vez percebido o fato de que a maior parte do pensamento € erigida sébre uma base de acGes coletivas, somos levados a reconhecet a férca do inconsciente coletivo, A plena emergéncia do ponto-de-vista socioldgico referente ao conhecimento traz consigo, inevitavelmente, o desccbrimento gtadativo do fundamento irracional do conhecimento racional. Encontramos a explicacio para que as andlises epistemoldgicas e psicoldgicas da génese das idéias sé tardiamente deparassem com o fator social no conhecimento do fato de que ambas as disciplinas surgiram na época da forma individualista de sociedade. Elas adquiriram o quadro de referéncia de seus problemas em periodos de individualismo e subjetivismo bastante radicais, na €poca da ordem social medieval em desintegracdo, e nos primérdios liberais da era capitalista burguesa, Nestes perfodos,

dividuos, tanto na aco como no conhecimento, é dirigida e

guiada pelas circunstancias da vida social e pelas tarefas por elas apresentadas. (Assim, também aqui vamos encontrar uma in-

Por

outro lado, € indubitavelmente verdadeiro que h4 estruturas so-

ciais nas quais existe a possibilidade, para certos estratos (devido A d4rea maior de atuac&o da livre competigao), de possuir um maior grau de individualizacio em seu pensamento e conduta.

Seria, entretanto, incorreto definir a natureza do pensamento

em geral com base nesta situacdo histérica especial em que se permitiu a um modo de pensar relativamente individualizado

deser volver-se em condigSes excepcionais. Seria forcar os fatos

histéricos encarar-se esta condicfo excepcional como se fésse a caracteristica axiomdtica da Psicologia do Pensamento e da Epistemologia. Nao conseguiremos atingir uma Psicologia e uma teoria do conhecimento inteiramente adequadas, enquanto nossa Epistemologia deixar, desde 0 inicio, de reconhecer o carater

social do conhecer e nfo encarar o pensar individualizado como apenas um momento excepcional. Também neste caso nfo se trata, dbviamente, de acidente, que o ponto-de-vista sociolédgico somente em data relativamente recente se tenha somada aos demais. Nem é por acaso que a

perspectiva que realiza a uniao das esferas social e cognitiva ve-

nha emergir em uma época em que o empenho maximo da humenijade mais ur+ 2 consiste na tentativa de se contrapor

60

Ipgorocia E Uropia

ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA

a tendéncia de uma sociedade individualista nio-dirigida, que

lectual e social que, no fundo, abarcava a sociedade inteira. A derrocada da visio de mundo objetiva, garantida na Idade Média pela Igreja, refletiu-se até nas mentes mais simples. O que os fildsofos disputavam com uma terminologia racional era experimentado pelas massas na forma de conflito religioso.

se aptoxima da anarquia, com um tipo mais orgdnico de ordem social, Em tal situacio, deve surgir um senso generslizado de interdependéncia —- da interdependéncia que liga a experiéncia isolada ao caudal de experiéncia dos individuos isolauos, e estas, por sua vez, 4 contextura da comunidade mais ampla de experiéncia e de atividade. Assim, também a teoria do conhecimen-

to recentemente surgida é uma tentativa de se tomar em con-

sideracdo o enraizamento do conhecimento na textura social. Nela

pde-se em atuacao uma nova espécie de orientac&o de vida, buscando sustar a alicnacio c a desorganizado que emergiram do exagéro da atitude individualista ¢ mecanicista.

Os modos cpis-

temoldgico, psicoldgico e sacioldgico de enunciar problemas sao as tr€s mais importantes formas de investigar c levantar questdes sébre a natureza do processo cognitivo. Procuramos apresenta-los de tal forma que parecessem como pattes de uma situacao unitdria, emergindo, uma apés outta, em uma seqiiéncia necess4ria, e se interpenetrando mtituamente. Dessa forma, pro-

porcionam a base das reflexdes do presente livro.

4. O CONTROLE DO INCONSCIFNTE COTETIVO COMO UM PROBLEMA DE NOSSA EPOCA

A emergéncia do problema da multiplicidade de estilas de pensamento suraida no decorrer do desenvolvimento cientifico

e a perceptibilidade de motivacSes do inconsciente coletivo, an: teriormente veladas, é apenas um dos aspectos da preponderan-

cia da inquietacao intelectual que caracteriza nossa época. Apesar da difusdo democrdtica do conhecimento, os problemas filoséficos, psicoldgicos e sociolégicos por nds apresentados tém sido confinados a uma minoria intelectual relativamente pequena. Esta inquietacHo intelectual veio gradativamente sendo encarada, por tal minoria, como um seu privilégio profissional, e seria considerada como preocupacio privada déstes grupos se todas os esttatos no tivessem, com o crescimento da democracia, sido atrafdos a discussdo politica e filosdfica.

A exposigao precedente j4 demonstrou, entretanto, que as

raizes da discusstio encetada pelos intelectuais se introduziram profundamente na situacio da sociedade como um todo. Em muitos aspectos, seus problemas nada mais eram que a intensificagéo sublimada e o refinamento racional de uma crise inte-

61

Quando muitas igrejas substituiram o sistema doutrinal tnico, garantido pcla revelacdo, com o auxflio da qual se podiam

explicar tédas as coisas essenciais em um mundo agratio esté-

tico —- quando surgiram varios setores pequenos onde havia anteriormente uma teligido mundial, as mentes dos homens simples se viram atetadas por tensdes similares as que os intelectuais expcrimentavam no nivel filosdfico em térmos da coexisténcia de numerosas teorias de realidade e de conhecimento. Nos primérdios dos tempos modernos, 0 movimento ptotestante estabeleceu, no lugar da salvagZo revelada, garantida pela instituigfo objetiva da Igreja, a nogio da certeza subjetiva da salvacio. A luz desta doutrina, acreditava-se que cada pessoa deveria, de acérdo com a sua prdpria consciancia subjetiva, decidir se sua conduta era agraddvel a Deuse se levava A salvaco. Assim, 0 protestantismo tornou subjetivo um critério que até entio tinha sido objetivo, atitude paralela ao que fazia a Epistemologia moderna ao abandonar uma ordem de existéncia objetivamente garantida pelo sujeito individual. Na&o hd que percorrer grande distancia da doutrina da certeza subjetiva de salvagaéo até av ponto-de-vista psicoldgico, em que a observagio do processo psiquico, transformada em verdadeira curiosidade, se torna gradativamente mais importante do que o apégo aos critétrios de salvacgdo que os homens antigamente buscavam descobrir em suas prdéprias almas.

Tampouco conduzia 4 crenga ptblica em uma ordenagio de mundo objetiva, quando a maioria dos Estados politicos tentavam, na época do absolutismo esclarecido, enfraquecer a Igteja por meios que haviam tomado & prdépria Igreja, isto é, através da tentativa de substituir a interpretago objetiva do mundo garantida pela Igreja por outra, garantida pelo Estado. Assim fazendo, fortalecia a causa do Iluminismo que era, ao mesmo tem-

po, uma das armas da burguesia ascendente.

Tanto o Estado

moderno quanto a burguesia lograram sucesso, A medida em que

a viséo de mundo naturalista e racionalista ia cada vez mais des-

locando a religiosa.

N&o obstante, isto ocorreu sem que os es-

tratos mais largos féssem atingidos por aquela plenitude de

“rerana ys Yeu

ABOFDAGEM I” ZLIMINAR DO PRetLema

conhecimento requerida pelo pensamento racional. Além do mais, esta difuséo da visio de mundo racionalista era realizada, sem que se trouxesse os estratos nela implicados a uma posigao social que permitisse uma individualizacéo das formas de viver e€ pensar.

vez que a religiio, mesmo considerada enfraquecida, ainda permaneceu sob a forma de modos de experiéncia de rito, culto, devogfio e éxtase, seu impacto foi, nao obstante, suficientemente forte para abalar grandemente a visao de mundoreligiosa, As formas de pensamento caracteristicas da sociedade industrial gradativamente penetraram naquelas dreas que tinham qualquer contato com a industria, eliminando, mais cedo ou mais tarde, um apés outro, os elementos da explicac%o religiosa do mundo, my |

62

Entretanto, sem uma situacio social de vida impelindo e

tendendo para a individualizacdo, um modo de vida despido de mitos coletivos se totna dificilmente suportével. O cometciante, © empresdrio, o intelectual, cada um a seu modo ocupa uma posigfo que requer decisdes racionais relativas as tarefas ditadas

pela vida cotidiana. Para tomar tais decisdes, sempre é necessd-

tio que o individuo liberte seus juizos dos juizos dos outros e

medite certas possibilidades de uma maneira racional, do ponto-

-de-vista de seus prdprios interésses. Isto nfo acontece com os camponeses do tipo antigo, nem com a massa recentemente surgida de subordinados trabalhadores white-collars, que detém posicdes que requerem pouca iniciativa e nenhuma previsibilidade de tipo especulativo. Seus modos de comportamento sfo em certa medida regulados com base em mitos, tradicSes ou obediéncia massiva ao lider. Homens que no sHo treinados em sua vida cotidiana por ocupagdes que os conduzam a individualizagio, no tomar suas préprias decisdes, a saber, de seu ponto-de-vista pessoal, © que é certo e o que é errado, que jamais tém ocasiao de analisat as situagGes em seus elementos e que, ainda, nao desenvolvem uma autoconsciéncia que se manterd firme mesmo quando o individuo é separado do modo de juizo peculiar a seu grupo, e precisa pensar por si mesmo — tais individuos nao estarao em condicdes, mesmo na esfera religiosa, de suportar crises internas tio graves quanto o ceticismo. Vida em térmos de equiIfbrio interno a ser sempre conquistado de ndvo é o elemento essencialmente original que o homem moderno precisa, ao nivel da individualizagio, elaborar para si mesmo, se pretende viver com base na tacionalidade do Iluminismo. Umasociedade que, na sua divisdo do trabalho e diferenciagdo funcional, nao possa oferecer a cada individuo um conjunto de problemas e campo de atuac4o em que sé possa exercitar plena iniciativa e discernimento individual) nfo pode igualmente realizar uma Wel-

tanschauung individualista e racionalista penetrante, que possa aspirar a se tornar uma realidade social efetiva,

Embora fésse falso acreditar — como os intelectuais ten-

dem facilmente a fazer — que os séculos do Uuminismo realmente tivessem fundamentalmente transformado a plebe, uma

63

O Estado absoluto, tendo como uma de suas prerrogativas

a consecucdo de sua prépria interpretacgio do mundo, deu um passo que, com a democratizacgéo da sociedade, posteriormente tendeu, cada vez mais, para a abertura de um precedente, Mostrou que a politica era capaz de usar sua concepgdo do mundo

como uma arma e que a politica ndo era apenas uma luta pelo

poder, mas veio realmente a se tornar pela primeira vez significativa quando, enfim, infundiu em seus objetivos uma espécie de {rlosofia politica com uma concepsio politica do mundo. Bem podemos dispensar o delineamento detalhado do quadro de como, com a demoeratizacio progressiva, nado sé o Tstado, mas também os partidos politicos buscaram dotar seus conflitos de fundamentos e sistematizacan filosdficos. Primeiro, o liberalismo, depois, seguindo hesitantemente o seu exemplo, o conservadorismo, e, finalmente, o socialismo, todos fizeram de seus objetivos politicos um credo filoséfico, uma viséo de mundo com métodos de pensamento bem fundados e conclusdes prescritas. Assim, a ruptura da viséo de mundo religiosa velo somar-se o fracionamento das visdes polfticas. Mas enquanto as Igrejas e seitas conduzi in suas batalhas com artigos de fé irracionais distintos ¢ sOmente desenvolviam o elemento racional, em ultima andlise, para os membros do clero e do pequeno estrato de intelectuais leigos, os partidos politicos emergentes incorporavam argumentos racionais e, se possivel, cientificos em seus sistemas de pensamento em um grau muito maior, atribuindo-lhes muito mais importancia. Isto era em parte devido ao posterior aparecimento déstes na histéria, em uma época em que a ciéncia como tal contava com a maior estima social, e, em parte, ao método pelo qual recrutavam seus funciondrios, uma vez que, desde seus primérdios, eram amplamente escolhidos dentre os intelectuais emancipados que anteriormente mencionamos. Es-

tava de acdrdo com as necessidades de umasociedade industrial e com as déstes estratos intelectuais que éles baseassem suas

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IpEOLoGIA E Uroela

agdes coletivas ndo em um enunciado sincera de seu credo, mas, antes, em am sistema de idéias racionalmente justificdvel. O resultado déste amdlgama de pensamentos politico e cientifico foi-se aplicar gradativamente, a cada tipo de politica, pelo menos nas formas em que se oferecia A aceitagiio, uma tintura cientifica, vindo cada tipo de atitude cientifica a ser, por seu turno, dotado de uma coloragdo politica. Este amdlgama teve efeitos negativos e positivos. Facilitou de tal forma a difusag de idéigs cientificas que estratos cada vez mais amplos, no donjunto! de sua exigténgia politica, tinham de buscar justificativas tedricas para suas posicdes. Aprenderam dessa forma —- muito embora freqiientemente de maneira bastante propagandistica — a pensar sdbre a sociedade - a politica com as categorias da andlise cientifica. Tal amdlgama foi igualmente de valia para a ciéncia social e polftica, por ganhar maior acesso a realidade, sendo assim dotado de um tema para o enunciado de seus problemas, o qual forneceu um vinculo continuo entre esta ciéncia e o campo de realidade com o gual tem de operar, que é a sociedade. As crises ¢ as exigéncias da vida social ofereceram a matéria empirica, as interpretagdes sociais e

politicas e as hipdteses por meio des quais os acontccimentos

se tornaram analisdveis. As teorias de Adam Smith, bem como

as de Marx — para se mencionar apenas éstes dois — foram elaboradas e desenvolvidas com suas tentativas de interpretar e analisar eventos coletivamente experimentados.

O principal risco, no entanto, desta conexdo direta entre a teoria e a politica reside no fato de que, enquanto o conhecimento tem de manter sempre seu cardter experimental, se deseja fazer justiga a um névo conjunto de fatos, o pensemento dominado pela atitude politica nao se pode dispor a ser cont}nuamente readaptado a novas experiéncias. Os partidos politicos, pelo prdéprio fato de serem organizados, nfo podem manter elasticidade em seus métodos de pensamento, nem estar preparados para aceitar qualquer resposta que venha a surgir de suas indagacdes. Estruturalmente, tratase de corporacGes ptblicas e organizagdes de luta. Por si mesmo, isto j4 os forca a uma orientagao dogmética. Quanto mais os intelectuals se tor-

nam os funciondrios de partido, tanto mais perdem a virtude de receptividade e de elasticidade que trouxeram consigc de sua flexivel situagZo anterior.

ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA

65

© outro perigo que surge desta alianca entre a ciéncia e a

politica € 0 de que uma crise que afete o pensamento politico venha também a se tornar uma ctise do pensamento cientifico. Déste complexo vamo-nos concentrar em apenas um fato que, entretanto, se reveste de significagdo para a situacdo contempotinea. A politica € um conflito e tende cada vez mais a se tornar uma luta de vida e morte.

Quanto mais violento se tornou éste

conflito, tanto mais firmemente captou as correntes subterra-

neas emocionais que anteriormente operavam inconscientemen-

te, e com extrema intensidade, e as torgou ao dominjoyabertg.”,

do consciente. *

1

ee Ty

A discussao politica possui um cardter fundamentalmente diterente do da discussao académica. Busca nao apenas estar

com o direito mas, igualmente, demolir a base de existéncia social ¢ intelectual de seu oponente. Portanto, a discussio polt-

tica penetra mais profundamente no fundamento existencial do

pensamento do que o tipo de discussio que somente pensa em

térmos de uns poucos “pontos-de-vista” selecionados te considera a “relevdncia teédrica” de um atgumento. flito politico, uma vez que é desde o inicio uma forma zada da luta pela predominancia social, ataca o status opositor, seu prestigio ptiblico ¢ sua autocontianca.

e somenO conracionalisocial do E dificil

decidir, nesse caso, se a sublimacdo ou a substituigao da discus-

sao, em lugar das armas mais antigas de conflito, e o uso dire-

to da térga e da opresséo constituitam realmente um progres-

so fundamental da vida humana. A repressio fisica é, na verdade, mais dura de se suportar extetnamente, mas a vontade de aniquilamento psiquico, que em muitas ocasides tomou o seu lugar, é talvez ainda mais insuportdvel. Por conseguinie, nfo é de admirar que, especialmente nesta esfera, cada refutacio tedrica seja gradativamente transformada em um ataque muito mais fundamental ao todo da situacdo de vida do opositor, esperando-se, com a destruig&io de suas teorias, solapar igualmente sua posigao social. Também nada ha de surpreendente em que éste conflito, onde, desde o infcio, ndo somente se leva em conta o que a pessoa disse, como também o grupo de que é porta-voz, e a que ac4o tinha em vista quando expés seus argumentos, se visualizasse o pensamento em conex4o com o modo de existéncia a que estava ligado, E verdade que o pensamento’ sempre tem sido a expresséo da vida e da acan gripais (exceto quanto ao pensamento altamente académico, que em dada época era capaz de se isolar da vida ativa).

Mas a diferenca estava em

66

Togcotocia £ Utopia

ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA

que, nos conflitos religiosos, as possibilidades tedricas no eram de relevancia primordial; ou em que, ao analisar seus adversdtrios, néo se chegava a uma andlise dos grupos a que seus adver-

sdrios pertenciam porque, como j4 vimos, os elementos sociais

dos fenémenos intelectuais nZo se tinham tornado visiveis aos pensadores de uma época individualista. Na discuss%0 politica nas democracias modernas, onde as idéias sfo mais claramente representativas de certos giupos, 4 determinacfo social e existencial do pensamento tornou-se mais facilmente perceptivel. Em principio, foi a politica que primeito descobriu o método socioldgico no estudo dos fendmenos intelectuais. Foi basicamente nas lutas polfticas que os homens

pela primeira vez tomaram consciéncia das motivagGes coletivas inconscientes que sempre guiaram a direcio do pensamento. A

discussdo politica é, desde o inicio, mais do que argumentagao teérica; ela é o desfazer-se de disfarces —_ 0 desmascaramento

dos motivos inconscientes que ligam a existéncia em grupo a suas aspiracgSes culturais « a seus argumentos tedricos. Contu-

do, a medida que a politica moderna empregava em suas ba-

talhas armas tedricas, o processo de desmascaramento penetrava as raizes sociais da teoria.

A descoberta de raizes social-situacionais do pensamento

adotou, pois, a principio, a forma de desmascaramento,

Em

acréscimo A dissolugdo gradativa da visio de mundo objetiva unitéria, que para o homem comum tomou a forma de uma plutalidade de concepgdes do mundo divergentes, e para os intelectuais se apresentou como a irreconcilidvel pluralidade de estilos de pensamento, penetrou na mente publica a tendéncia para desmascarar as motivagGes situacionais inconscientes do

pensamento grupal. Esta intensificacdo final da crise intelectual podeser caracterizada pelos dois conceitos do tipo slogan “‘ideologia e utopia” que devido 4 sua importancia simbélica foram escolhidos para titulo déste livro. © conceito de “ideologia” reflete uma das descobertas

emergentes do conflito politico, que é a de que os grupos do-

minantes podem, em seu pensar, tornar-se tao intensamente li-

gados por interésse a uma situacdo que simplesmente nao sao mais capazes de ver certos fatos que iriam solapar seu senso de dominacdéo, Est4 implicita na palavra “ideologia” a nocgfo de

que, em certas situagGes, o inconsciente coletivo de certos gru-

pos obscurece a condig&o real da sociedade, tanto para si como para os demais, estabilizando-a portanto.

67

© conceito de pensar wtdpico reflete a descoberta oposta 4

primeira, que é a de que certos grupos oprimidos estado intelec-

tualmente téo firmemente interessados na destruicdo e na transformagao de uma dada condig&o da sociedade que, mesmo in-

voluntariamente, sOmente véem na situacio os elementos que

tendem a negd-la.

Seu pensamento é incapaz de diagnosticar

corretamente uma situagio existente da sociedade.

Eles nao

esto absolutamente preocupados com o que realmente existe;

antes, em seu pensamento, buscam logo mudar a situacio existente. Seu pensamento nunca é um diagnéstico da situagdo;

somente pode ser usado como uma orientagio para a acéo. Na mentalidade utépica, o inconsciente colctivo, guado pela repre-

stntagdo tendencial ¢ pelo desejo de agdo, occulta deverminados

aspectos da realidade. Volta as costas a tudo o que pudesse abalar sua crenga ou paralisar seu desejo de mudar as coisas. O inconsciente calctivo © a atividade por éle smpelida servem para ocultar —em duas dicgdcs —~ certos aspectos da realidade social. E pos .vel, ademas, como ja foi visto, determinar especifi-

camente a fonte e a direcao da distorcio. E a tarcfa déste livro alinhar ——- nas duas diresSes indicadas — as fases mats significativas na cmergéncia desta descobeita do papel do inconscicn-

te como aparece na histéma da idcologia e da utopia. A esta altura, estamos apenas preocupados em delinear o estado mental que decorre destas nocgdes, uma vez que é caracteristico da situagaéo em que éste livro se produziu. A principio, os partidos que possufam as novas ‘armas intelectuais”, o desmascaramento do inconsciente, tinham uma vantagem formiddvel sdbre os seus adversdrios. Os ultimostornavam-se aterrorizados quando se demonstrava que suas idéias eram, meramente, ,reflexos destorcidos de sua situagao vital, antecipagdes de seus interésses inconscientes. © mero fato de que pudesse ser convincentemente demonstrado ao adversdrio que motivagGes, até entio ocultas para éle, estayam atuando, deve té-lo enchido de terror e despertado, na pessoa que utilizava a arma, um sentimento de maravilhosa superioridade. Era, ao mesmo tempo, a aurora de um nivel de consciéncia que anteriormente a humanidade havia sempre ocultado de si mesma com a méxima tenacidade. Nem foi por acaso que sdmente o atacante ousasse esta invasdo do inconsciente, enquanto o atacado se via

duplamente abatido —- primeiro, pelo desnudamento do incons-

ciente em si, e depois, c cm acréscimo, pelo fato de que o inconscicnte era desnudade ¢ evidenciado num espirito de int

68

Ipgotocia E Uroria

ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA

mizade. Pois claro esté que se trata de uma considerdvel diferenga se se lida com o inconsciente com propdésitos de ajuda e cura ou com propdésitos de desmascarar. Hoje em dia, entretanto, j4 atingimos um estdgio em que esta arma de desmascaramento e desnudamento reciprocos das fontes inconscientes da existéncia intelectual se tornou propriedade nado de um grupo entre muitos, mas de todos os grupos Mas, na medida em que varios grupos buscavam destruir a confianga de seus adversdrios em seu proprio pens r, com esta arma intelectual mais moderna de desmuscaramento radical, destrufam igualmente, visto que térlas as posicdes foram sendo gradativamente submetidas a andlise, a confianca do homem no pensamento humano em geral. O processo de expor os elementos probleméticos do pensamento, latente desde 0 colapso da Idade Média, culminou finalmente no colapso da confianca no pensamento em getal. Nada existe de acidental, mas, pelo contrdtio, mais que inevitdvel é 0 fato de que cada vez maior numero de pessoas se abriga no ceticismo ou no irracionalismo. Duas correntes poderosas seguem aqui juntas, reforcando“se uma 4 outra com forte pressio. uma, a desaparicio de um

plexidade basica de nossos dias, que pode ser resumida na sintomatica questio: “Como é possivel que o homem continue a pensat e a viver em uma época em que os problemas da ideologia e da utopia vém sendo radicalmente levantados e meditados em tédas as suas implicacdes?”

mundo intelectual unitdrio com normas e valdres tixos; e, outra, © surgimento repentino do inconsciente, anteriormente oculto,

4 radiosa luz do dia da consciéncia,

© pensamento do homem

havia-lhe, desde tempos imemoriais, aparccido como um seg-

mento de sua cxisténcia espiritual ¢ no como, meramente, um fato objetivo distinto. A reorientaclo havia freqiientemente significado, no passado, uma mudanga no prdéprio homem. Nestes perfodos mais remotos, trataya-se, na maiuria das vézes, de

um caso de lenta alteracdo nos valéres e normas, de uma transformagao gradativa no quadro de referéncia de onde as acdes humanas derivavam sua orientagGo Ultima. Mas nos tempos modernos, trata-se de algo muito mais profundamente desorganizador. O recurso ao inconsciente tende a escavar o solo de que

emergiam os

varios

pontos-de-vista,

Tornam-se

expostas

as

taizes, onde até aqui o pensamento humanose alimentava. Comega a ficar claro para todos nés que nZo podemos continuar vivendo da mesma maneira, j4 que conhecemos de nossos motivos inconscientes, da mesma forma que viviamos quando os ignordvamos. O que experimentamos agora é mais do que uma nova idéia, e as questGes que levantamos constituem mais do que um névo problema. O que nos preocupa, neste instante, ¢ a per-

69

E possivel, decerto, escapar a esta situacfo em que a plu-

talidade de estilos de pensamento se faz visivel, e a existéncia de motivagdes coletivas inconscientes é reconhecida, bastando simplesmente que nos furtemos a éstes processos. Pode-se buscar abrigo em uma ldgica supratemporal, afirmando que a verdade como tal é imaculada, ndo tendo uma pluralidade de formas nem qualquer conexfio com motivacdes inconscientes. Mas em am mundo em que o problema nao é apenas um interessante tema de discussio, mas, antes, uma perplexidade interna, logo surgird alguém, para sustentar contra estas nogSes que “nosso problema nao é o da verdade em si, mas 0 nosso pensamento, tal como o enconttamos com seu enraizamento na acao na situacaéo

social em motivagdes inconscientes. Mostre-nos como podemos avancar, partindo de nossas percepgSes concretas a suas defini-

cSes absolutas. Nao nos fale da verdade em si, mostre-nos o caminho pelo qual o que enunciamos ao impulso de nossa existéncia social possa alcar-se A esfera em que se transcenda o partidarismo, a fragmentariedade da visio humana, em que a origem social ¢ o predominio do inconsciente no pensamento conduzam a observagSes controladas ao invés de ao caos”. Né&o se atinge o absoluto do pensamento afiancgando-se, por meio de um principio geral, possuf-lo nem comecando a anunciar algum ponto de-vista particular limitado (geralmente o prdéprio) como suprapartiddrio e dotado de autoridade. Tampouco temos saida

quando somos dirigidos para umas poucas proposigSes em que

o contetido ¢ tio formal ¢ abstrato (como na Matematica, na Geo-

metria e na Economia pura) que patecem estar totalmente des-

vinculados do individuo social pensante. Nao € a respeito destas proposigdes que se dé a luta, mas quanto a extensdéo maior de determinacdes fatuais, nas quais o homem diagnostica concreta-

mente sua situagio individual e social, percebe as interdependéncias concretas da vida e quando os acontecimentos exterhos

sio, pela primeira vez, compreendidos corretamente. A bataIlha se aviva na referéncia As proposigSes para as quais desde o infcio se orienta significativamente cada conceito, em que usa-

mos palavras tais como conflito, crise, alienacio, insurreicao,

ressentimento — palavras que nao reduzem situacdes complexas

70

ABORDAG

LeoLcutaA EB Uioria

P.eLu4inszr

po Propiriaa

74

a uma descricgéo formal, externalizante, que nao sdo capazes de reconstruf-las de névo, e que perderiam seu contetido caso se

exemplo, sob o aspecto da cducagio das criangas) caso suas normas mudem? Se quisermos compreender um [enémeno concre-

Ja dentonstramos em outra passagem que o desenvolvimento da ciéncia moderna conduziu ao crescimento de uma técnica de pensamento, por meio da qual se exclufa tudo o que fésse apenas significativamente inteligivel. O behaviorismo levou ao

te, jamais serd suficiente o esquema puramente mecanicista de

to tal como a situacdo ou o contetido normative de um ambien-

as despisse de sua orientacdo e de seus clementos valorativos,

abordagem, tendo que ser introduzido, em acréscimo, concei-

tos adequados para o entendimento de clementos significativos

e incomensuréveis.

Seria falso, porém, pretender que as relagSes entre éstes elementos se revelariam menos claras e menos perceptiveis do que as que se! encontram ‘entrel fendmenos puramente mensuréveis. Muito pelo contrdrio, a interdependéncia recfproca dos elementos que constituem um acontecimento € muito mais in-

primeiro plano esta tendéncia A concentracio em reacdes inteitamente perceptiveis do exterior, e procurou construir um mun-

do de fatos onde sdmente existem dados mensurdveis e correlages entre séries de fatéres, com as quais se poderd prever o grau de probabilidade dos modos de comportamento em dadas condigdes. E possivel, e mesmo provavel, que a Sociologia te-

timamente compreensivel do que a de elementos externos estri-

‘amente formalizados Aqui, assume sua dimensdo prépria a abordagem que, seguindo Dilthey, eu gostaria de designar como compreensio da interdependéncia primdria da experiéncia (das verstebende Erfassen des “urspriinglichen Lebenszusammenban-

nha de passar por éste estigio em que seus conteidos sofrerao

uma desumanizagao e formalizacdo, mecanicistas, exatamente co-

mento reclprocamente relacionados, mas somente visiveis exter-

namente? Por outro lado, é claro que uma situagéo humana sdmente pode ser caracterizada quando se leva em consideraco as concepgSes que dela tém os participantes, como experimentam nesta situagéo suas tensOes e como reagem As tensdes assim sur-

gidas. Ora, tomemos um ambiente; por exemplo, o ambiente em que existe uma determinada famflia. Nao fazem as normas prevalecentes nesta familia e sdmente inteligiveis por meio de uma interpretagao significativa parte do ambiente, pelo menos tanto quanto a vista ou a mobjilia da residéncia? Ainda mais, nao se deve considerar esta familia, as outras coisas permanecendo iguais, como um ambiente completamente diferente (por

~N

mo aconteceu com a Psicologia, de modo que, na devogio a um

ideal de estreita exatidao, nada reste a nao ser dados estatisticos, testes, levantamentosetc., e, ao fim de tudo, sera excluida toda formulacio significativa de um problema. Tudo o que se pode dizer aqui é que esta reducio de tudo a uma descritibilidade mensurdvel ou inventorial é significante como uma tentativa séria de determinar o que seja inambiguamente averigudvel e, ainda, de meditar o que acontece com o nosso mundo psiquico social, quando se o restringe a relagSes comensurdveis puramente extetiores. Nao pode mais restar dtivida alguma de cue nenhuma real penetragao na realidade social seja possivel através desta abordagem. Tomamos como exemplo o fendmeno relativamente simples denotado pelo térmo “situacdo”. O que resta déste térmo? Seré éle de algum modointeligivel quando f6r reduzido a uma constelacao externa de padrdes variados de comporta-

ges®), Nesta abordagem pela utilizacdo da técnica da compreenso, a interpenctracio funcional reciproca entre as experiéncias psiquicas ¢ as situacSes sociais torna-se imediatamente inteligivel. Aqui nos confrontamos com um dominio de existéncia no qual a emergéncia das reacSes psfquicas interiores se torna ne-

cessariamente evidente, ¢ nic ¢ compreensivel meramente como o € uma causalidade externa, em térmos de gran de probabilidade de sua ~ eqiiéncia. Tomervs algumas das observacées elaboradas pela Socio-

logia com a utilizacio do método de compreensio, consideran-

do a natureza de sua evidéncia cientifica.

Quando ao se referir

a ética das comunidades cristas primitivas, alguém declarou

que esta seria principalmente inteligivel em térmos de ressentimento dos estratos oprimidos, e quando outros acrescentaram

que esta perspectiva ética era totalmente nao-polftica porque correspondia & mentalidade de um estrato que ainda nao possufa reais aspiragdes de dominio (‘Dai a César o que é de César’’), e quando se disse também que esta ética nao é uma ética tribal, mas uma ética mundial, uma vez que cresceu do solo da j4 entdo desintegrada estrutura tribal do Império Romano, claro est4 que estas interconexGes entre as situacdes sociais, de um lado, e, 8

Utilizo aqui a expresséo de Dilthey, deixando em aberto a

questio de como seu uso do térmo difere da utilizagio acima,

72

Ibrotocia gE Utopia

ABORDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA

do outro, os modos de comportamento ético-psiquicos nao sao verdadeiramente mensurdveis, mas, nao obstante, podem ser mui-

primitivo, estatia inteiramente inacessivel para éle. Assim, também aqui, a vontade orientada para um objetivo € a fonte de compreensao da situacdo. Para trabalhar nas Ciéncias Sociais ¢ preciso participar do processo social, mas esta participagdo na luta do inconsciente coletivo de forma algumasignifica que as pessoas dela partici-

to mais intensamente penetradas de seu cardter essencial do que

se fdssem estabelecidos coeficientes de correlagdo entre os vé

tios fatéres. As interconexdes sdo evidentes porque utilizamos

uma abordagem compreensiva das interdependéncias priméarias da experiéncia de que surgiram estas normas. Tornou-se claro que as proposigGes principais das Ciéncias Sociais no sAo mecanicisticamente externas nem formais, nem

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pantes falsificam os fatos ou os véem incorretamente, Na ver-

representam correlagSes puramente quantitativas, mas, pelo contrério, diagndsticos situacionais, em que geralmente utilizamos

dade, pelo contrério, a participagdo no contexto da vida social é um pressuposto para a compreensio da natureza interna déste contexto de vida. © tipo de participagdo do pensador determina como éste ira formular seus problemas. A nao-considera-

vador, ¢ que a autoclarificagio erftica das Ciéncias Sociais esti intimamente vinculada A autoclarifieagio critica cde nossa orientagdo na mundo cotidiana. Um observador que niio esteja fun-

nfo constitui objetividade, mas, ao invés disso, é a negacdo da qualidade essencial do objeto. Mas, ao mesmo tempo, o raciocinio invetso de que quanto maior a subjetividade tanto maior a objetividade nfo € verdadeiro, Nesta esfera se obtém uma singular dinamica interna dos modos de comportamento em que, pela retengio do élan

os mesmos conceitos e modelos de pensamento concretos que foram criados para fins de atividade na vida real. Claro esrd, além disso, que cada diagndstico da ciéncia social se acha estreitamente ligado as avaliag&es ¢ oricntagdes inconscientes do obs

damentalmente interessado nas rafzcs

sociais das éticas cambian-

tes do periods em que vive, que nico medite os problemas da vida social em térmos das tenses entre os cstratos sociais, ¢

que nao tenha descoberto também o fecundo papel do ressen-

timento em sua prdpria experiéncia, jamais estard em condicdes de observar a fase das éticas cristds acima descritas, sem se

falar de sua capacidade de compreendé-la. Justamente na medida em que participa avaliativamente (simpdtica ou antagdnicamente) na Juta pela ascensdo dos estratos inferiores, na medida em que valora o ressentimento positiva ou negativamente, € que se torna consciente da significacio dindmica da tensdo e tessentimento sociais. ‘Classe inferior”, “‘ascensao social” e “ressentimento”, ao invés de serem conceitos formais, sao conceitos significativamente orientados. Se féssem formalizados, e as valorag6es lhe féssem retiradas, 0 modélo de pensamento caracteristico da situagio, no qual é justamente o ressentimento

que produz novas ¢ fecundas normas, seria totalmente inconcebivel. Quanto mais detidamente se analisa a palavra ‘“‘ressen-

timento”’, tanto mais claro se torna que éste térmo aparente-

mente nao-valorador e descritivo de uma atitude esta repleto de valoragdes. Se estas valoracdes fdssem deixadas de lado, a idéia perderia sua concretude. Mais ainda, se o pensador nao

tivesse interésse em reconstruir o sentimento de ressentimento, a tensdo, que permeia a situagfo acima descrita do cristianismo

cio dos elementos qualitativos e da contenc&o total da vontade

politique, éste Elan se sujcita ao controle intelectual. Tixiste um

ponto em que o élan politique colide com algo, apés o que Tetorna a xi ¢ passa a submetet-se ao contréle critico. Existe um ponto em que o préprio movimento da vida, principalmente em suas maiores crises, se eleva por sObre si mesmo e se torna consciente de seus prdprios limites. E neste ponto que o complexo de problemas da ideologia e utopia se torma o campo de interésse da Sociologia do Conhecimento, ¢ em que o céticismo eo trelativismo, surgidos da destruigdo e da desvalorizacao dos objetivos politicos divergentes, se tornam um meio de salvagao. Pois o relativismo e 0 ceticismo acatretam 9 autocontréle e a autocritica, levando a uma nova concepoio de objetividade. O que patece ser téo insuportavel na vida invididual — continuat a viver com o inconsciente A mostra — é 0 pré-requisito histérico da autoconsciéncia critica cientifica. Também na vida pessoal, o autocontréle e a autocorrec%o somente se desenvolvem quando em nosso impulso vital, otiginalmente cego, nos defrontamos com um obstéculo que nos faca voltar sébre nés mesmos. No curso desta colisio com as outras formas de existéncia possiveis, a peculiaridade de nosso prdprio modo de vida se nos mostra aparente. Mesmo em nossa vida pessoal somente nos tornamos senhores de nés mesmos quando as motivagdes inconscientes, de que anteriormente nao nos ddévamos conta, adentram repentinamente nosso campo de visio, tornando-se assim aces-

74

Ipzotecia © Uroria

siveis ao contréle consciente, Nao é desistindo de sua vontade de acio e colocando suas avaliagSes em suspenso, mas no confronto e no exame de si mesmo, que o homem consegue objetividade e conquista um self com referéncia A sua concepcia de seu mundo. O critério para éste auto-esclarecimento é 0 de que nad sé o objeto, mas nds mesmos entramos totalmente em nosso campo de viséo. Tornamo-nos visiveis para nds mesmos, nao apenas vagamente, como um sujeito conhecedor em si, mas

em um determinado papel até entao escondido, em una situaao até entéo impenetrdvel e com motivacBes de que nao tinhamos até ent&o consciéncia. Em tais momentos, a conexao in-

terna entre nosso papel, nossas motivacSes e nossos tipos e maneita de experimentar o mundo aparecem-nos repentinamente. Daf o patadoxo subjacente a estas experiéncias, que é o de que a oportunidade para a relativa emancipacio de determinacio social aumenta proporcionalmente A percepcao desta determinacio. As pessoas que mais falam de liberdade humana sdo as que, na realidade, se encontram mais cegamente sujeitas a determinacio

social, na medida em que, na maioria dos casos, nao suspeitam

do profundo grau em que sua conduta é determinada por seus interésses. Ao contrério, é de se notar que exatamente as que insistem na influéncia inconsciente dos determinantes sociais sdbre a conduta é que lutam por superar éstes determinantes

tanto quanto possivel. Elas revelam as motivacdes incons-

cientes a fim de fazer daqueles fércas que anteriormente as do-

minayam cada vez mais objetos de decisio racional consciente.

Esta ilustracio de como a extensiio de nosso conhecimento do mundo se acha intimamente relacionada com o crescente autoconhecimento e autocontrdle pessoais nao é acidental nem periférica, © processo de auto-extensio do individuo representa um exemplo tipico do desdobramento de cada tipo de conhecimento situacionalmente determinado, isto é, de cada tipo de conhecimento que nfo seja meramente a simples acumulacio

objetiva de informacao sdbre os fatos e suas conexdes causais,

mas que se interesse pela compreensio de uma interdependéncia interna do processo vital.

A interdependéncia interna sé

pode ser captada pelo método compreensivo de interpretacao, e os estdgios desta compreensaio do mundo estio ligados, a cada passo, ao processo de autoclarificacdo.

Esta estrutura, de acér-

do com a qual o auto-esclarecimento possibilita a extensio de

nosso conhecimento do mundo que nos todeia, obtém nao sé

autoconhecimento individual, mas é igualmente o critério de au-

ABC L4GE°" FL SLIIN.LR DO Prog’

4A

75

to-esclarecimento do grupo. Embora aqui se deva novamente en-

fatizar que sdmente os individuos sao capazes de auto-esclare-

cimento (nada existe de semelhante a uma “mente do povo e os grupos como um todo so tao incapazes de auto-esclarecimento como 0 sao de pensar), ha grande diferenca entre o individuo se tornar conscjente das motivagGes inconscientes bastan-

te especfficas que caracterizavam particularmente seu pensa-

mento e atuacdo anteriores ou tomar conseiéncia daqueles elementos de suas motivagdes ¢ ponto-de-vista que o ligavam aos membros de um grupo particular. Constitui-se também em problema a prépria questao de se a seqtiéncia dos estdgios de auto-esclarecimento é integralmente uma questao de chance, Estamos inclinados a acreditar que o auto-esclarecimento individual ocupa uma posicfo em um fluxo de auto-esclarecimento, cuja fonte social é uma situagio comum a diferentes individuos. Mas estejamos aqui preocupados quer com o auto-esclarecimento de

individuos, quer com o de grupos, uma coisa é comum a ambos, que é a sua estrutura. A dimensio basicamente fundamental desta estrutura reside em que, na medida em que o mundo se torna um problema, nao o faz como um objeto desligado do sujeito, mas, pelo contrdrio, vai ao encontro da contextura das experiéncias déste. A realidade & descoberta pelo modo em que aparece ao sujcito no decorrer de sua auto-extens&o (quan:

do se estende sua capacidade de experiéncia e scu horizonte). O que até entio ocultévamos de nds mesmos e nao inte-

grdvamos em nossa Epistemologia & o fato de que o conhecimento difere, nas Citncies Sociais e Polfticas, a partir de determinado ponto, do conhecimento formal mecanicista, difere a

partir do ponto cm que transcende a mera enumeragao ¢ corre-

Jago de fatos, e se aproxima do modélo do conhecimento- si-

tuacionalmente determinado a que nos iremos referir varias vézes

no presente trabalho. . Uma vez tornada evidente a inter-relagio entre a ciéncia

social e o pensamento situacionalmente vinculado, como o que se pode encontrar, por exemplo, na orjentagao politica, temos

Tazo em investigar as potencialidades positivas bem como as limitagSes e os perigos déste tipo de pensar. Além disso, € importante que tomemos como ponto de partida o estado de crise e incerteza em que se revelaram os perigos déste tipo de pensar, bem como as novas possibilidades de autocritica, por meio da qua) se esperava encontrar uma solu¢io.

76

Se abordamos o problema déste poato d. vista, a incertesa que se havia tornado umaafligfo cada vez mais insuportdvel na

vida ptiblica passa a ser o solo de onde a ciéncia social moderna

retira intuigdes inteiramente novas. Estas se agrupam em trés tendéncias principais: a primeira, a tendéncia para a autoctitica das motivagdes inconscientes coletivas, na medida em que determinam o pensamento social moderno; a segunda, a tendéncia para o estabelecimento de um névo tipo de histéria intelectual, que seja capaz de interpretar as mudancas de idéiar relacionando-as As mudangas histdrico-sdciais; e' a terceira, a tendén cia para a revisio de nossa Epistemologia que até agora no levou suficientemente em conta a natuteza social do pensamento. Neste sentido, a Sociologia do Conhecimento é uma sistematizacio da divida que é encontrada, na vida social, 7b a forma de inseguranca e incerteza vagas. O objetivo déste livro é, por um lado, a formulacio teérica wais clara Jo uy ro csma problema sob varios Angulos, e, do outro, a elaporagio az um método que, com base em critérios cada ver mais precisos. nos habilite a distinguir e isolar diferentes est.cs ac pensar . fe: laciond-los aos grupos de onde surgem. Nada é mais simples do que sustentar que um certo tipo de pensamento € feudal, burgués ou proletdrio, liberal, socialista ou conservador, enquanto nao existir método analftico algum para demonstré io e nao se tiver deduzido nenhum critério que proporcione um contréle sébre a demonstracio. Por conseguin te, a principal tarefa, no atual estagio de pesquisa, é elaborat e concretizar as hipdteses implicadas, de modo a se fazer delas a base de estudos indutivos. Ao mesmo temno. os segmentos da realidade com que lidamos precisars set J. .3ripostos Cin La tOres de forma bem mais exata do que a anteriormente realizada. Assim, nosso objetivo é o de, primeiro, refinar a andlise do significado na esfera do pensamento tio profundamente que se possa superat térmos e conceitos fortemente indiferenciados por catacterizagdes cada vez mais detalhadas e exatas dos varios estilos de pensamento; e, segundo, aperfeicoar a técnica de reconstrugao da histéria social ao ponto de se ser capaz de percebet, ao invés de fatos isolados e distantes, a estrutura social como um todo, isto é, a réde das fércas sociais em interacdo de onde surgiram os varios modos de observar e pensar sdbre «as realidades existentes, que apareceram em diferentes épovas.

Existem possibilidades tA0 amplas de preciso na combina-

ga0 entre a andlise do significado ¢ o diagndstico sociolégico si-

77

ABORDAGEM P2ELIMINAR DO PROBLEMA

IpgoLocia E Utcria

tuacional que com o tempo seré possivel compard-los com os

métodos das Ciéncias Naturais.

Este método teré em acrésci-

mo a vantagem de nfo se deixar de lado o dominio do significado, pot incontrolavel, mas, pelo contrétio, fard da interpre-

taco do significado um veiculo de precisdo.?

Se a técnica in-

terpretativa da Sociologia do Conhecimento conseguisse obter @ste grau de exatidfio, e se, com seu auxilio, a importancia da vida social para a atividade intelectual pudesse tornar-se demonstrivel através de uma cortelagéo cada vez mais precisa,

ela traria igualmente consigo a vantagem de no ser ‘mais preciso, nas Ciéncias Sociais, renunciar ao tratamento dos problemas mais importantes, com o intuito de ser exato. Porque nao se deve negar que o transplante dos métodos da Ciéncia Nataral para as Ciéncias Sociais conduz gradativamente a uma situa-

cio em que nfo se indaga mais o que se gostaria de saber ¢ 0

que seria de importncia decisiva para o proximo pas:o do de-

senvolvimento social, mas em que apenas se tenta lidar com

complexos de fatos que sao mensuraveis, de acérdo com um certo método jd existente. Ao invés de tentar-se descobrir o ®

© autor tentou elaborar éste mécodo de anilise sociolgica de

significados em seu estudo, “Das Konservative Denken: Soziologische Beitrage zum Werden des politisch-historischen Denkens in Deustschland”, Archiv fiir Sozialwissenschaft und Sozialpolitik (1927), vol. 57.

todos Neste trabalho tentou analisar tio precisamente quanto possivel

os pensadores importantes de uma tinica corrente politica, quanto a seu estilo de pensamento, mostrando como usavam cada conceito de modg diverso do utilizado pelos outros grupos e como, com a mudanga Ende sua base social, também mudavam seu estilo de pensamento. quanto naquele estudo trabalhamos por assim dizer _“microsebpicamente”, no sentido de qu. realizamos uma investigacao precisa de um

no sctor restrito da histéria social e intelectual, nos estudos contidos

presente volume usamos uma abordagem que poderia ser denominada es “macroscapica”. Procuramos diagnosticar os passos mals important espalavsas, outras em ou, utopia; ideologiana histéna do compleso clarecer

os

pontos-chave

certa dittiacia,

que

pareciam

eriticos

quando

vistos

de

uma

A abortag m macroscépica 6 a mais fecunda de tédas

os fundaquando, como no caso déste livro, alguém tenta estabelecer

mentos de um amplo complexo de problemas; a microscépica, quande as alguém prccura verifiear detalhes de alcance restrito. Basicamente, o alternativ modo de aplicadas ser sempre devem duas se completam ¢ ce complementar,

© leitor que deseje obter uma visdo completa da

apheabildits da Socal. a do Conhecimento na pesquisa hustérica deve buscar referencias neste estudo,

78

79

IpgoLocia E Utopia

AporDAGEM PRELIMINAR DO PROBLEMA

que é mais relevante com o mais elevado grau de precisdo pos-

pressio a fim de se poder verdadeiramente apteciar 0 ambito da exposicio. 18 Ainda é sua convicgio que {reqientemente, em nosso tempo, varias nogdes derivadas de estilos de pensamento contraditérios atuam sébre um mesmo pensador, Somenre ndo as notamos, contudy, porque o pensador sistemético oculta

sivel nag circunst&ncias existentes, tende-se em atribuir importancia ac que é mensurdvel meramente porque ocorre ser men-

suravel.

No atual estégio de desenvolvimento ainda estamos Jonge de ter formulado sem ambigiiidades os problemas ligados 4 teo-

tia da Sociologia do Conhecimento, nem ainda retinamos, até

o nivel necessdrio, a andlise socioldgica do significado.

Este

sentimento de se estar no inicio de um movimento, e nao no

fim, condiciona o modo pelo qual o livro é apresentado. Existem problemas a respeito dos quais nao se pode escrever livros-texto ou sistemas perfeitamente consistentes. Sao as quesides por enquanto ainda nfo inteiramente percebidas nem totalmente meditadas por uma época. Para tais problemas, os séculos

anteriores, sacudidos pelas repercussdes da revolugio no pensamento ¢ na experiéncia que se estendeu do século XVI ao século XVIII, inventaram a fdrmula do cnsarwo ceniifico, A

técnica dos pensadores daquele perfodo consistia em abordar qualquer problema imediato, que estivesse conscientemente a disposicdo, e observé-lo por tanto tempo ¢ sob tantos Angulos que, finalmente, por meio de um caso individual acidental, se revelava e se iluminava algum problema marginal do pensamen-

to e da exist€ncia,

Esta forma de apresentagio, uma vez [re-

qlientemente comprovada sua val, serviu de piotdtipo ao autor

quando no presente volume, com excecdo da ultima parte, preferiu empregar a forma de emsaio e no o estilo sistemdtico de tratamento. Estes estudos constituem tentativas de aplicar uma nova

forma de ver as coisas ¢ um névo método de interpietacaio a

vérios problemas e conjuntos de fatos. Foram escritos em épocas diferentes e independentemente um do outro e, apesar de se centralizarem em térno de um problema unitério, cada um déles possui seu prdptio objetivo sntelectual. Esta forma ensaistico-experimental de pensamento explica igualmente por que nao se eliminou as repetigdes ¢ as contradicgdes nfo foram resolvidas. O motivo pelo qual nao se eliminam as repeticdes fol que a mesma iddia se apresentava em um ndvo contexto, revelando-se, portanto, sob uma nova luz.

As contra-

dicées nado foram eliminadas por ser convicciio do autor que um dado esbéco tedrico pode freqiientemente possuir latentes possibilidades variadas, as quais se dcve permitir que encontrem ex-

cuidadosamente suas contradigdes, tanto para si mesmo como

para seus leitores. Enquanto para o sistematizador as contradigdcs constituem uma fonte de desconstrto, o pensador experimental nelas percebe pontos de partida, em que o cardter fundamentalmente polémico de nossa situacio atual se torna pela primeira vez realmente aberto ao diagndstico c i investigagao. Umbreve sumdrio do contetido dos capitulos seguintes de-

yerd proporcionar uma base para que se os analise. A Parte II examina as mudancas mais importantes na concepefio de fdeologia, indicande, por um Jado, como estas mudangas ho significado estio vineuladas as mucangas histdricas © soetis, ¢ tentande, por outta lade, demonstrar com excmplos conctelas como o mesmo conceito, em diferentes fases de sua

histéria, pode significar, em um momento, uma atitude valo-

rativa €, em outro, unm atitude nfo-valorativa, ¢ como a pré-

pria ontologia do conceito se vé implicada em suas mudangas husigiicas, que quase passam despercebidas.

A Parte LiL tata do problema da polftica cientifica: como & possivel uma ciéncia da politica face ao cardter inerentemente

Neste sentido, serd feita ideolégico de todo o pensamento? uma tentativa de se claborar empiricamente um importante exem-

plo de uma andlise do significado de um conccito, de acérdo com as linhas da Sociologia da Conhecimenta. Serf, por exemple, Neste sentido, deve-sc obsersar como, na segunda parte do possiihdlades relabvastas das mesmas presente havo, a chamadas idéias, como, na quarta parte, os elementos utépico-ativistas, ¢, na uloma, a tendéncia para uma sclugio harmoniosa ¢ sintética das mesmas Na medida em que o método expepossibilidades, sio apresentaday

hinental de pensamente so dedica & cxplaragia das vduaus possibilidadex contday nas adéns veradoras, o ponte acima iustrado se. torna manicstoy., que os mesmos

‘fatos’, sal a mbluéncia da vontade e do

ponto-de-vista eambiante, podem com frequcnera conduzir a concepgbes divcaizentes da siluagio total

Entretante, enquanta uma conexao

Cutre addaas permanccer em processo de creseamenty e@ de transforma-

glo, ao mds de se acnllar as posinidades nela ainda latentes, devesse submeté-las, em ldday ay tty wirlagdcs, ao juiza do lestor.

80

Tpnoroata nm Uroria

demonstrado que os conceitos de ‘l'eoria ¢ Prética diferem nog

vocabuldtios de grupos diferentes, e¢ como estas diferencas na

utilizagio de palavras surgem das posigdes dos diferentes grupos e podem ser compreendidas por uma consideracdo de suas situagdes diferentes. A Parte TV trata da “Mentalidade Utopica” e se entrega a uma andlise do elemento utdépico em nosso pensamento e em nossa experiéncia. Faz-se uma tentativa de indicar, com respeito a apenas uns poucos casos crucidis, quiio extensamente as mudancas do elemento utépico em nosso pensamento influenciam o quadto de referéncia que utilizamos para a ordenacio e a avaliagfio de nossas experiéncias, e como tais mudancas podem ser referidas aos movimentos sociais. A Parte V oferece um sumifrio sistemdtico e as perspectivas da nova disciplina da Sociologia do Conhecimento.

II. IDEOLOGIA E UTOPIA 1. DEFINIGAO DE CONCEITOS A FIM DE SE COMPREENDER a situacdo atual do pensamento, torna-se necess4rio comegar com os problemas da “‘ideologia”. Para a maioria das pessoas o térmo “ideologia” se acha intimamente ligado a marxismo, associacio esta que determina em ampla medida as suas reagdes ao térmo. Sendo assim, precisamos desde logo declarar que, apesar de o marxismo haver contribut do em muito para a colocac&o inicial do problema, tanto a palavra quanto seu significado se situam na histéria bem mais remotamente do que o marxismo, e, desde que éste surgiu, novos significados da palavra tém emergido, tomando forma independentemente déle. Nio existe melhor introdugéo para o problema do que a andlise do significado do térmo “ideologia”: temos primeiramente que isolar todos os diferentes matizes de significado aqui combinados em uma pseudo-unidade, e um estabelecimento mais preciso das variacdes dos significados do conceito, como € usado hoje em dia, preparar4é o caminho para sua andlise sociold-

gica ¢ histérica. Tal andlise mostraré que em geral existem dois

significados distintos e separdveis do térmo “ideologia” -- 0 particular e o total. A concepsao particular de ideologia é implicada quando o térmo denota estarmos céticos das idéias e representagdes apresentadas por nosso opositor. Estas séo encaradas como disfarces mais ou menos conscientes da real natureza de uma situa-

G40, cujo reconhecimento n&o estaria de acérdo com seus inte-

résses.

Essas distorgGes variam numa escala que vai desde as

mentiras conscientes até os disfarces semiconscientes e dissimulados. Esta concepc&o de ideologia, que veio gradativamente sendo diferenciada ca nogio de mentira, encontrada no senso comum, é particular em varios sentidos. Sua particularidade se

82

Ipgorocia E UTOPIA

Intonoaia £ Utopia

totna evidente quando é contrastada com a concepe%o total,

mais inclusiva, da ideologia. Referimo-nos aqui 4 ideologia de uma époce ou de um grupo histérico-social concreto, por exem-

plo, a de uma classe, ocasido em que nos preocupamos com as

caractetisticas e a composicaéo da estrutura total da mente desta

época ou déste grupo, Os elementos comuns bem como os especfficos a @stes dois conceitos sio de imediato evidentes. O elemento comum a estas duas concep¢des parece consistir no fato de que nenhuma delas depende exclusivamente do que foi efetivamente dito pelo opositoripara atingir uma compreensao de seu significado real e intengio,+_ Ambas se voltam para o sujeito, seja individuo ou grupo, procedendo a um entendimento do que foi dito pelo método indireto de analisar as condicdes sociais do individuo ou de seu grupo. As idéias expressadas pelo individuo sido dessa forma encaradas como funcdes de sua existéncia. Isto significa que opinides, declaracdes, proposicdes e sistemas de idéias nao séo tomados por seu valor aparente, mas sdo interpretados

4 luz da situaco de vida dé quem os expressa. Significa, ainda mais, que o cardter e a situacdo de vida especificos do sujeito influenciam suas opini3es, percepcdes e interpretacdcs.

Conseqiientemente, ambas as concepgdes da ideologia fa-

zem das chamadas “‘idéias” uma fungao de quem as mantém, e de sua posigio em seu meio social. Apesar de terem algo em comum, existem igualmente entre elas diferencas relevantes. Destas ultimas, mencionaremos apenas as mais importantes: @) Enquanto a concepcdo particular de ideologia designa como ideologias apenas uma parte dos enunciados do opositor — e isto somente com referéncia ao seu contetido — a concep-

cao total poe em questio a Welranschauung total do opositor (inclusive seu aparato conceptual), tentando compreender éstes 1

Se a interpretagio repousa dnicamente no que efetivamente

foi dito, falaremos de uma “tnterpretagdéo imanente”; se transcender éstes dados, imphcando por isso uma analise da situacio de vida

do sujeito, falaremos de wma “interpretagio transcendental’, Uma #pologia destas varias formas de interpretagia poderA ser encontrada ro trabalho do autor “Ideologische und soziologische Interpretation der geistigen Gebilde”, Jahrbuch fiir Soziologie, vol. 11 (Karlsruhe, 1926), pags, 424 e segs. ,

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conceitos como decorrentes da vida coletiva de que o opositor partilha. &) A concepgio particular da ideologia realiza suas andlises de idéias em um nivel puramente psicolégico. Se, por exemplo, pretende-se que um adversdrio esteja mentindo ou que esteja ocultando ou destorcendo uma dada situagao de fato, pressupde-se, no obstante, que ambos partilham critérios comuns de validade; pressupée-se, também, que é possivel refutar mentiras e desfazer fontes de érro tendo por referéncia critérios aceitos de validade objetiva comuns a ambos os lados, A suspeita de que ym opositor seja vitima de uma ideologia nao vai

tao longe a pbnto de excluf-lo‘da’ discussao com base em um

quadro de referéncia tedrica comum. Com a concepgio total da ideologia, a questio é diferente. Quando a uma época histérica atribuimos um mundo intelectual e a nés mesmos atribuimos outro, ou quando um certo estrato social, histdricamente determinado, pensa com categorias diferentes das nossas, nao nos estamos referindo a casos isolados de contetido de pensamento,

mas a modos de experiéncia e interpretacio amplamente dife-

rentes e a sistemas de pensamento fundamentalmente divergentes.

Atingimos a um nivel teérico ou noaldégico sempre que

consideramos nao apenas o contetido, mas igualmente a forma,

e, mesmo, a estrutura conceptual de um modo de pensamento,

como uma funcio da situagio de vida de um pensador. “As categorias econdmicas nada mais sao do que as expressdes ted-

ricas, as abstragdes, das relacSes sociais de produgio... Os mesmos homens que estabelecem relacdes sociais em conformidade com sua produtividade material produzem os princfpios, as idéias e as categorias igualmente em conformidade com suas

relagdes sociais.” (Karl Marx, The Poverty of Philosophy, tra-

dugio para o inglés da Misére de la Philosophie, com um prefacio de Frederick Engels, traduzido por H. Quelch, Chicago,

1910, pag. 119.) Sao estas as duas formas de se analisar as afirmacdes como fungdes de sua base social; a primeira opera apenas no nivel psicolégico, a segunda, no nivel nooldgico. c) Correspondendo a esta diferenca, a concepgao particular da ideologia opera principalmente com uma psicologia de inter€sses, enquanto a concepgao total utiliza uma anélise funcional mais formal, sem quaisquer referéncias a motivagdes, confinando-se a uma descricao objetiva das diferengas estruturais das mentes operando emcontextos sociais diferentes. A primei-

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IpEoLocia E Uroria

IpgoLocia £ Uropra

ra pretende que éste ou aquéle interésse scja a causa de uma dada mentira ou ilusio. A ultima pressupde simplesmente que existe uma correspondéncia entre uma dada situagao social e uma dada perspectiva, ponto-de-vista ou massa aperceptiva. Neste caso, embora uma andlise das constelagdes de interésses possa, com freqii€ncia, ser necessdria, ela nunca o sera para estabelecer conexdes causais, mas para caracterizar a situacdo total, Assim, a psicologia de interésses tende a ser substitufda por uma andlise da correspondéncia entre a situacdo por conhecer e as

damos com aquela concepgio de ideologia que, por definigao, s¢ prende mais aos contetidos isolados do que A estrututa global de pensamento, encobrindo modos falsos de pensamento ¢ expondo mentiras. Quando utilizamos a concepgo total de ideologia, procuramos reconstruir todo o modo de ver de um grupo social, e, neste caso, nem os individuos concretos nem o seu somatério abstrato podem ser legitimamente considerados como portadores d@ste sistema ideoldgico de pensamento como um todo. © objetivo da anélise neste nivel é a reconstrucio da base teérica sistematica subjacente aos jufzos isolados do individuo. As anélises de ideologias, no sentido particular, que fazem o contetido do pensamento individual depender amplamente dos interésses do sujeito, jamais podem realizar esta reconstrucao bdsica do modo de ver total de um grupo social. Podem, no maximo, revelar os aspectos psicoldgicos coletivos da ideologia, ou conduzir a alguma evolucado da psicologia de massa, tratando seja do comportamento diferente do individuo na multidao, seja dos resultados da integracdo na massa das experiéncia psiquicas de varios individuos. E, apesar de que muitas vézes o aspecto psicoldgico coletivo possa aptoximar-se dos problemas da ané-

formas de conhecimento.

Uma vez que a concepcdo particular jamais realmente se afasta do nivel psicoldgico, o ponto de referéncia em tais andlises é sempre o individuo, Isto ocorre mesmo quanJo estamos lidando com grupos, uma vez que todos os fenédm aos psiquicos devem ser finalmente referidos As mentes dos individuos. E verdade que o térmo “ideologia le grupo” aparece freqtientemente na linguagem popular. Neste sentido, existéncia de grupo sdmente pode significar que um gtupo de pessoas, seja por suas reagdcs imediatas a uma mesma situacHo, seja como

resultado de uma interagdo psiquica directa, reage de forma similas. Em conseqiiéncia, condicionadas pela mesma situacio social eslo sujcitas As mesmas ilusdes.

Se limitarimos nossas

observagGes aos processos mentais que se produzem no individuo, encarando-o como o tinico portador possivel de ideclogias, jamais conseguiremos captar, em sua totalidade, a estrutura do mundo intelectual de um grupo social, em uma dada situacio histérica. Apesar de que éste mundo mental como um todo

jamais pudesse ter existido sem as experiéncias c as reagdes produtivas dos diferentes individuos, nao se encontrard a estrutu-

ra interna de tal mundo em uma mera integragio destas experiéneias individuais. Os membros individuais da classe operdtia, por exemplo, no experimentam todos os elementos de um horizonte que se poderia chamar de Weltanschauung proletaria. Cada individuo participa apenas em determinados fragmentos déste sistema de pensamento, cuja totalidade nao é de forma alguma a simples soma destas expcriéncias individuais fragmentdtias. Sendo uma totalidade, o sistema de pensamento é integrado sistematicamente, e nao € um mero ajuntamento casual de experiéncias fragmentdrias dos membros isolados de um grupo. Segue-se, assim, que sOmente se pode considerar o individuo como o portador de uma ideologia, na medida em que li-

85

lise ideoldgica total, éle no responde com exatidfio a suas ques-

toes. Uma coisa é saber até que nonto minhas atitudes e meus juizos sdo influenciados ¢ altctados pela coexisténcia de outros séres humanos, mas j4 é outra coisa saber quais sejam as implicages tedricas do meu modo de pensamento idénticas as de meus semelhantes, membros do grupo ou doestrato social. Contentamo-nos, aqui, em meramente colocar a questdo sem tentar uma andlise integral dos dificeis problemas metodoldgicos que ela levanta. 2. O CONCEITO DE IDEOLOGIA NA PERSPECTIVA HISTORICA

Assim como as concepgdes total e particular de ideologia podem ser distinguidas uma da outra com base em suas diferencas de significado, assim também as origens histéricas déstes dois conceitos podem ser igualmente diferenciadas apesar de que na realidade estejam sempre interligadas. Por enquanto, ainda nfo possufmos um tratamento histdrico adequado do desenvolvimento do conceito de ideologia, para nao falar de uma histé-

86

IpgoLocia £ Uroria

Tae ogra E Uropry

ria sociolégica das muitas variacgdes? de seu significado. Mesmo que estivéssemos em condicdes de empreendé-la, nao seria

logia. Nosso objetivo é simplesmente apresentar tais fatos a partir das evidéncias dispersas, de tal forma que exibam mais

ver uma histéria dos significados cambiantes do conceito de ideo-

terior; e delinear o processo que conduziu gradativamente ao significado refinado e especializado que os térmos vieram a possuit. Cor-espondendo ao duplo significado do térmo ideologia,

nossa tarefa, devido aos propdésitos que temos em mente, escre-

Como uma biografia parcial do problema, o autor indica os se-

guintes dentre seus trabalhos:

Mannheim, K., “Das Problem einer Soziologic des Wassens”, Archiv ftir Soztalwissenschaft und Sozialpolitik, 1925, vol. 54. Mannheim, K., “Ideologische und soziologische Interpretation der geistigen Gebilde”, Jahrbuch fur Soziologie, compilacgo de Gottfried Salomon, II (Karlsruhe, 1926), pags. 424 e¢ segs. Outros estudos de interésse serdio encontrados em: Krug, W. T., Allgemeines Handwérterbuch der philosophischen Wissenschaften nebst ihrer Literatur und Geschichte, 2.* ed., Leipzig, 1833. Eisler, Philasaphisches Worterbuch. Lalande, Vocabulaire de la philosophie (Paris, 1926).

Salomon, G., “Historscher Materialismus und Idcologienlehre”, Jahrbuch fiir Soziologie, Il, pags. 386 e segs. Ziegler,

H.

o. “Tdeollogienlehre”, Archiv fir

und Sozalpolitik, vol. 57, pags. 657 e segs.

Sozialwissenschaft

A maioria doy estudes de ideologia jamais atinge o plano da ten-

tativa de uma analise sistemAatica, limitando-se, via de regra, a referéncias histéricas ou consideragdes mais gerais. Citamos a titulo de exem-

plo os conhecidos trabalhos de Max Weber, Georg Lukdcs, Carl Schmitt, e mais recentemente:

Kelsen, Hans, “Die philosophischen Grundlagen der Naturrechsts-

lehre und der Rechtspositivismus”, nimero 31 dos Vortrage der Kant

Gesellschaft, 1928. As eminentes obras de W, Sombart, Max Scheler e Franz Oppenhei-

mer si9 por demais conhecidas para necessitar uma icferéncia deta-

Thada. Em um sentido mais amplo os seguintes estudos sao de especial interésse: Riezler, K., “Idee und Interesse in der politischen Geschichte”, Die Dioskuren, vol, UL (Munique, 1924).

Szende, Paul, Verhiillung und Enthiillung (Leipzig, 1922), Adler, Georg, Die Bedeutung der Ilusionen fiir Poltik und soziales

Leben (Iena, 1904).

Jankelevitch, “Du réle des idées dans Vévohition des sociétés”, Revue philosophique, vol. 66, 1908, pdgs. 256 o segs. Milliond, M., “La formation de Vidéal’, ibid., pigs. 138 e segs. Dietrich, A., “Kritik der politischen Ideologien”, Archiv fiir Geschichte und Politik, 1923,

87

claramente a distincdo entre os dois térmos feita no capitulo an-

por nds aqui designado como cancepcées particular e total, existem respectivamente ‘duas correntes distintas de desenvolvimen-

to histérico.

A descrenca e a suspeita que em téda parte os homensevidenciam por seus adversdrios, em todos os estigios de desenvolvimento histérico, podem

ser encaradas

como

precursoras

imediatas da nocdo de ideologia. Mas sémente quando a descrenca do homem para com « homem, mais ou menos evidente em cada estégio da histGria humana, se torna explicita e reconhecida met® jicamente, é que podemos falar prdpriamente de uma coloracio ideolégica nas afirmacdes dos outros. Atingimos aste nivel quando nao mais fazemos os individuos pessoalmente responsdveis pelos equfvocos que detectamos em suas afirma-

ges, ¢ quando nao mais atribufmos o mal que fazem a sua astticia. maliciosa. SoOmente quando buscamos, mais ou menos conscientemente, descobrir a fonte de sua inverdade em um fator social é que estamos prdpriamente fazendo uma interpretacio ideolégica. Comecamos a tratar as nocdes de nossos adversdérios como ideologias sémente quando nao mais as consideramos como mentiras calculadas e quando sentimos em seu com-

pottamento total uma inseguranga que encatamos como uma

funcao social em que se encontra. A concepcdo particular de ideologia é, portanto, um fenémeno intermedidrio entre, num pdlo, a simples mentira e, no outro, o érro, que é o resultado de um aparato conceptual destorcido e defeituoso. Refere-se a uma esfera de erros de natureza psicolégica que, ao invés do en-

gano deliberado, nao s&o intencionais, mas decorrem inevitavel

e involuntariamente de certos determinantes causais.

De acdrdo com esta interpretacio, a teoria dos idola de Bacon pode ser encarada, até certo ponto, como precursora da concepcao moderna de ideologia. Os “fdolos” eram “fantasmas” ou “preconcepgdes”, e, como sabemos, havia os fdolos da tribo, da caverna, do mercado e do teatro. Todos eram fontes de

érro, aleumas vézes derivados da propria natureza humana, ou-

2s 2 individuos particulares.

Também podem ser atribuidos

Inzotocia E Uropia

InEoLocis E UTopra

4 sociedade ou a tradigao. Em qualquer caso, constituem obstéculos no caminho do conhecimento verdadeiro.3 Existe, com certeza, alguma ligagdo entre o moderno térmo “ideologia” e 0

E extremamente prov4vel que tenha sido o trato cotidiano com assuntos polfticos que, pela primeira vez, deu consciéncia e senso critico ao homem face ao elemento ideoldgico de seu pensamento. Durante a Renascenca, entre os concidadaos de Maquiavel, emergiu um névo addgio chamando a atengao para uma observacio comum na época — que era a de que o pensamento do paldcio é uma coisa, e o da praca publica € outra.®

88

térmo que Bacon utilizava, significando uma fonte de érto.

Ademais, a compreensao de que a sociedade e a tradicio podem tornar-se fontes de érro é uma antecipacio direta do ponto-de-vista sociolégico. + Nao obstante, nao se pode afirmar que exis-

ta uma relac&o efetiva, que se pudesse acompanhar diretamente

através da histéria do pensamento, ens esta cor cepcao e a : concepcao moderna de ideologia. 3

Eis aqui uma passagem caracteristie. do Netum Organum de

Bacon, § 38. “Os {dolos e as noc6es falsas que jé proocuparam a :om-

preensio humana, « que nela estio profundamente enraizados, nig sdmente assaltam o espirito humano de tal form, que The dificulta o aces-

so, Mas mesmo Mando se consiga acesso novamente se antepiem e nos perturbam na instauragin das cidncias, a menos que a humanidade, estanda prevenida a sen respcito, se proteja com todo a cuidada possivel”, The Physical and Metaphysical Works of Lord Burton (ine. B The Advancement of Learning and Novum Organum), Organizadi Q

por Joseph Devey, pag. 389, GC. Bell and Sons (T.ondres, 1891). 4 “HA também {dolos formados pelo miituo relacionamento e

pela seciedade da homem com op homem, a que chamamos idolos do merenada, devide an comércia ¢ A associneiq doy homens uny com os

outros; pois os homens conversam por meio da linguagem, mas as palavras se formam segundo a vontade da generalidade, surgindo da formagig ma ¢ inepta de palavras uma formiddvel ¢‘strugio & mente.” Bacon, op. cit. pag 390, § 43. Cf. também § 59, “idolo da tradig&c” diz Bacon: Sdbre “A compreensio humana, quando se tenha apresentado uma_proposigdo (soja pela admissio e crenga gerais, seja pelo prazer que proporciona), forca tudo o mais a She acrescentar um ndvo apoio e uma nova confirmacio: ec, existinda embora os mais abundantes e convin-

centes clementos em contrario, ainda prefere au nao observé-los ou desprezi-los ou se livrar déles e rejeité-los por qualquer distincSo, com um violento ¢ injusto preconccito, a sacrificar a autoridade de sua primeira conclusio.” Op. cit., § 48, pag. 392.

Que nos encontremos aqui face a uma fonte de érro 6 0 que a se-

guinte passagem evidencia:

“A comprecnsig humana se assemelha 129 a uma luz céce, po admite uma tintura de vontade e de paixdes que, em conseqiéncia, feram seu proprio sistema, pois o homem sempre acredita mais prontamente no \jue prifere.” Op, cit., § 49, pags. 393-4.

Cf. também § 52.

89

Isto era uma expressio do crescente gtau em que o publico

ganhava acesso aos segredos da pol{tica. Podemos aqui observat o inicio do processo no decotrer do qual o que antes havia sido apenas uma eclosio ocasional de suspeita e ceticismo, face aos pronunciainentos publicos, evoluiu para uma procura metédica do elemento ideoldégico em todos éles. A diversidade de formas de pensamento entre os homens é ainda, neste estdgio,

atribuida a um fator que, sem exagerar o térmo indevidamente,

poderia ser denominado sociolédgico. Maquiavel, em sua profunda racionalidade, tomou como tarefa especffica relacionar as

variacées das opinides dos homens 4s variagdes correspondentes cm seus interésses. De acérdo com sua prescricdo de medi-

cina forte para téda subjetividade das partes interessadas em uma controvérsia,® Maquiavel parecia estar explicitando e estabelecendo como regra geral do pensamento o que estava implicito no addgio de seu tempo, \ Parece haver uma lipacdo direta que déste ponto da orientaco intelectual do mundo ocidental conduz ao modo racional e caleulado de pensamento caracterfstico ao periodo do Ilumi-

nismo. A psicologia de interésses parece nascer da mesma fon-

te.

Uma das principais caracteristicas do método de andlise ra-

cional do comportamento humano, de que é exemplo a History

of England de Hume, eta a suposicio de que os homens eram dados a “fingir’ 7 ¢ a enganar seus semelhantes. Encontra-se a mesma caracterfstica nos historiadores contemporaneos que operam com a concepcao patticular de ideologia. Este modo de

pensamento se esforcard sempre, em concordancia com a psico-

5 Machiavelli, Discors, vol. I, pag. 47, Citado por Meinecke, Die Idee der Staatsrdson (Munique e Berlim, 1925), pag. 40. 6

Ff Meinecke, ibid.

7

Meusel, Fr, Edmund Burke und die franzdsische Revolution

(Berlim, 1913, pag. 102, nota 3,

90

IpEoLocia E Uropia

IpEOLocia E UTOPIA

logia de interésses, por Iancar a diivida sobre a integridade do adversério e denunciar seus motivos. Tal procedimento possui, n&o obstante, um valor positivo ma medida em que estamos interessados, em um caso dado, em descobrir o significado auténtico de uma afirmacdo que se oculta por trés de uma camuflagem de palavras. Esta tendéncia “desmistificadora” do pensamento de nossos dias vem-se acentuando bastante,® muito

Enquanto as partes ronflitantes vivessem num mesmo mundo e tentassein representd-lo, ainda que ocupassem pdlos opostos déste mundo, ou enquanto uma facc&o feudal combatesse contra outra, seria inconcebfvel tal destruigéo mutua mais profunda. Esta profunda desintegracio da unidade intelectual sé é possivel quando os valdres bdsicos dos grupos contendores constituem mundos 4 parte. A principio, no decorrer desta de-

digno e desrespeitoso (e de fato a critica se verifica enquanto

transforma em uma no¢io particular ¢ sistemdtica de ideologia, que, entretanto, permanece no plano psicolégico. Mas, na seqiiéncia do processo, ela se estende 4 esfera nooldgico-epistemolégicea. A burguesia ascendente, trazendo consigo um névo con-

embora em circulos mais amplos éste trago seja considerado in-

a “desmistificacfo” seja um fim em si mesma), somos forcados

a tal posig&o intelectual em uma época de transi¢fo como a nossa, que torna necessdério romper com muitas das tradicdes e for mas antiquadas, 3. DA CONCEPCAO PARTICULAR A

TOTAL DE IDEOLOGIA

CONCEPCKO

E preciso lembrar que o desmascaramento que ocorre no nivel psicoldgico nao deve ser confundido com o ceticismo mais radical e com a andlise critica mais penetrante e destruidora que se vetificam nos niveis ontoldgico e nooldgico. Mas nito se pode separd-las completamente. As mesmas fércas histéricas que ocasionam continuas transformacSes em uma esfera atuam igualmente sdbre a outra. Na primeira, as ilusdes psicoldgicas s4o constantemente solapadas; na ultima, as formulacdes ontoIégica e Idgica surgidas de visdes do mundo e modos de pensamento dados se dissolvem em um conflito entre as partes interessadas. Sdmente em um mundo em transformagao, em que se estejam criando valéres novos fundamentais e destruindo os antigos, pode o conflito intelectual chegar ao ponto em que os

antagonistas busquem aniquilar nZo sé as crencas e atitudes es-

91

sintegragio cada vez mais penetrante, a descrenca ingénua se

junto de valéres, nao se contentava em lhe atribuir um lugar

circunscrito dentro da antiga ordem feudal.

Ela representava

um névo “sistema econdémico” (no sentido de Sombart), acompanhado de um névo estilo de pensamento, que finalmente des-

locou os modos existentes de interpretar e explicar o mundo. A mesma coisa parece verificar-se igualmente com o proletariado de hoje em dia. Também aqui notamos um conflito entre duas visdes econdmicas divergentes, entre dois sistemas sociais e, correspondentemente, entre dois estilos de pensamento, Quais foram as etapas na histéria das idéias que prepararam o caminho para a concepcao total da idcologia? Certamente ela nao surgiu simplesmente da atitude de descrenga que gradativamente deu origem 4 concepcio particular de ideologia. Etapas mais fundamentais tiveram de ser atingidas antes que as numerosas tendéncias de pensamento, movimentando-se na

mesma diregao geral, pudessem ser sintetizadas em uma con-

cepcio total de ideologia. A Filosofia desempenhou uma parte no processo, mas nao a Filosofia em um sentido estreito (como normalmente é concebida), como uma disciplina divorciada do

pecificas um do outro, mas igualmente os fundamentos intelectuais sSbre os quais estas crengas e atitudes repousam.

contexto efetivo de vida. Seu papel foi antes o de intérprete ultimo e fundamental do fluxo do mundo contemporaneo. Este

§ Carl Schmitt analisou muito bem éste modg de pensamentg contemporaneo caracteristico quando disse que estamos continuamente com médo de nos desencaminhar. Em consequéncia nos encontramos perpétuamente em guarda contra os disfarces, as sublimagdes ¢ as refragdes. Assinala que a palavra simulacra, aparecida na Hteratura politica

a estrutura continuamente cambiante do mundo.

do século XVII, pode ser tida como a precursora da atitude atual (Po-

litische Romantik, 2.* ed, [Munique e Leipzig, 1925], p4g. 19)

cosmo em fluxo deve, por sua vez, ser visto como umasérie de conflitos que surgem da natureza da mente e de suas respostas

Indicaremos

aqui apenas os estdgios principais da emergéncia da concepgao

total de ideologia nos nfveis noolégico e ontoldgico.

© primeiro passo significante nesta direcZo consistiu no desenvolvimento de uma filosofia da consciéncia. A tese de que a consciéncia seja uma unidade constituida por elementos

92

IpgoLocia & Uroria

IpeoLocia & Uropta

coerentes levanta um problema de investigacio que, principal. mente na Alemanha, tem sido a base de monamentais tentativas de andlise. A filosofia da consciéncia, no lugar de um mundo infinitamente variado e confuso, colocou uma organiza¢cao da experiéncia cuja unidade é garantida pela unidade do sujeito que percebe. Isto nao implica que o sujeito meramente re-

decisivo — a saber, o de que esta unidade esté em um processo de continua transformacio histérica e tende a uma constante restauracao de seu equilfbrio em niveis sempre mais elevados, Durante o Iluminismo, o sujeito, enquanto portador da unidade de consciéncia, era visto como uma entidade totalmente abstrata, supratemporal e supra-social: “‘a consciéncia em si” Durante éste periodo, o Volksgeist, o “folk spirit’ vem a representar os elementos histdricamente diferenciados da consciéncia, que Hegel integra em um “espirito do mundo”. E evidente qua a crescente conctecio déste tipo de Filosofia resulta da preocupacdo mais imediata com as idéjas surgidas dd interagdo social e da incorporacao de correntes histdrico-polf-

flita o padréo estrutural do mundo externo, mas antes que, no

decorrer de sua experiéncia com o mundo, elabore espontaneamente os principios de organizagdo que o habilitam a compreendélo. Depois de demolida 4 unidade, ontplégica ,objetiva do mundo, féz-se a tentativa de substitu{-la por uma' unidade imposta pelo sujeito que percebe. Em lugar da unidade ontclégica e medieval-ctista objetiva do mundo, emergiu a unidade subjetiva do sujeito absoluto do Huminismo — “a consciéncia em si”,

Desde entdo, 0 mundo enquanto “mundo” sdmente existe

com referéncia § merte que conhece, ¢ a atividads mental do

sujeito detezmina a forma pela qual o mundo aparece. Isto constitui, dz fato, a concepcio total embriondria de ideologia, ainda que esteja, por enquanto, despida de suas implicacSes his-

téricas e socioldgicas.

Neste estdgio, concebe-se 0 mundo como uma unidade estrutural, e no mais como a pluralidade de acontecimentos esparsos, tal como aparecia durante o perfodo intermediério, quando a ruptura da ordem objetiva parecia trazer o caos. Acha-se

telacionado em sua integridade a um sujeito, mas, neste caso,

© sujeito nao é um individuo concreto. Antes se trata de uma ficticia “consciéncia em si”. Neste ponto-de-vista, particular. mente acentuado em Kant, o nivel nooldégico se diferencia nitidamente do psicolégico. Este é o primeiro estdgio na dissolugao de um dogmatismo ontoldégico que encarava ¢ undo como existindo independentemente de nés, de uma torma fixa e de-

finitiva.

Atinge-se o segundo estégio no d-senvolyvmento da concep¢io total de ideologia quando se vé na perspectiva histérica a nogao total, mas supratemporal, de idcologia. Esta é prin. cipalmente uma realizagao de Hegel e da escola histérica. Esta Ultima, e Hegel em um grau ainda maior, partem da suposic¢ao

de que o 1. :ndo é uma unidade e & sdmente concebivel com re-

feréncia a um sujeito conhecedor. E neste ponto se acrescenta & concepcZ o que, para nds, constitui um elemento original

ticas de pensamento ao dominio da Filosofia.

93

Desde ent&o, no

entanto, as experiéncias da vida cotidiana nao mais s&o aceitas por seu valor aparente, sendo meditadas em tédas as suas implicagdes e referidas a seus pressupostos. Deve-se, contudo, notar que a natureza histdricamente cambiante da mente foi descoberta nao tanto pela Filosofia, mas pela penetragéo da intui-

cdo politica na vida cotidiana da época.

A reagio que se seguiu ao pensamento nio-histérico do perfodo da Revolugo Francesa revitalizou e deu ndvo impeto A perspectiva histérica. Em Ultima andlise, a transic#o do sujeito genérico, abstrato, unificador do mundo {a “consciéncia em si”) para o sujeito mais concreto (o “folk spirit’ acids mente diferenciado) constituiu nfo tanto uma realizagio filosofica, mas a expresso de uma transformacéo na maneira* de se reagir ao mundo em todos os campos de experiéncia. Esta mudanca pode ser referida & revolugdo no sentimento popular durante e apés as Guerras Napolednicas, quando realmente nas-

ceu o sentimento de nacionalidade. O fato de se poder encontrar antecedentes mais remotos tanto para a perspectiva histé-

tica quanto para o Volksgeist nfo compromete a validade desta observacao. ®

A ultima e a mais importante etapa da criacio da concep-

gf0 total de ideologia surgiu igualmente do processo histdérico® Para posteriores referéncias, postulamos aqui que a Sociologia do Conhecimento, diversamente da hist6zia ortodoxa das idéias, nao

objetiva reconstituir as idéias até seus protétipos histéricos no passado

remoto. Ser4 sempre possivel, a quem estiver inclinado a reconstituir motifs similares até suas primeiras origens, encontrar “precursores” para

94

IpEoLociA E UTOPIA

IpbEoLocra © Uropra

~social. Quando a “classe” tomou o lugar do “folk” ou da na40, como portadora da consciéncia histdricamente em evolucao, aquela mesma tradigao tedrica, a que j4 nos referimos, absorveu a nocao que, entrementes, crescia através do processo social, a saber — a de que a estrutura da sociedade e suas formasin. telectuais correspondentes variam com as relagdes entre as clas-

ses sociais.

; Assim como em uma época anterior, o “folk spirit” historicamente diferenciado tomou o lugar da “consciéncia em si”, assim, agora, o conceito de Volksgeist, ainda mais inclusivo, é substituido pelo conceito de consciéncia de classe, ou mais cor. retamente ideologia de classe. Dessa forma, o desenvolvimento destas idéias segue um curso dtplice: de um lado, existe um processo de sintese e de integragdo, pelo qual o conceito de consciéncia vem a fornecer um centro unitério em um mundo infinitamente variavel; do outro, existe uma tentativa de tornar a concep¢ao unitéria mais maledvel ¢ {lexivel, tentativa por

demais rigida ¢ esquematicamente formulada no decorrer do processo de sintese. oO resultado desta tendéncia diéplice foi que, ao invés de uma uma |unidade ficticia de uma “consciéncia em si’ intemporal e imutdvel ( que jamais foi efetivamente demonstrada), obtive-

mos umla concepgao que varia de acérdo com periodos histdri-

cos, nagdes e classes sociais. No decotrer desta transigd o, continuamos a nos apegar a unidade de consciéncia, mas esta uni-

95

néo podem ser compreendidos pelo isolamento de seus elementos. Cada fato e cada acontecimento de um perfodo histérico somente pode ser explicado em térmos de significado, e, por seu turno, o significado se refere sempre a outro significado. Assim, a concepcao da unidade e da interdependéncia dos sig-

nificados de um periodo estd sempre subjacente a interpretagao

daquele perfodo. Em segundo lugar, éste sistema interdependente de significados varia tanto em cada uma de suas partes como -em sua totalidade de um periodo histdérico para outro. Assim, a reinterpretagaéo da continua e coerente mudanga de

significados torna-se a principal preocupacaio de nossas Ciéncias

Histéricas modernas.

Embora tenha provavelmente feito mais

do que ninguém, ao ‘enfatizar a necessidade de integragao dos varios clementos do significado de uma dada experiéncia histérica, Hegel procedeu de uma maneira especulativa, ao passo que atingimos um estdgio de desenvolvimento que nos possibi-

lita traduzir esta nogio construtiva, que nos foi dada pelos fiIdsofas, em pesquisa empfrica,

O que tem importancia para nés é que, se bem que as separamos cm nossa andlise, as duas correntes que levaram respectivamente As concepgdes total ¢ particular de idcologia, e¢ que tinham aproximadamente a mesma origem histérica, comecam agora a se aproximar mais estreitamente uma da outra.

concep¢io particular de ideologia se liga 4 total.

A

Isto se torna

claro para o observador da seguinte maneira: a principio, um

adversdrio, representando uma determinada posigao politico-so-

dade é agora dinamica e em constante processo de transfo rma. gao. Isto responde pelo fato de que, apesar do abando no da

cial, era

massa incoerente e descontinua de acontecimentos isolados, Esta

mos capaz de pensar corretamente. Esta simples observacHo significa, a luz de uma andlise estrutural do pensamento, que

concep¢do estdtica de consciéncia, o crescente corpo de mate riais descobertos pela pesquisa histérica nao perman ece uma

Ultima concepcio de consciéncia proporciona uma_pe rspectiva

mais adequada para a compreensao da realidade histdric a. ; Duas conseqliéncias decotrem desta concepeo de consciéncla: primeira, percebemos claramente que os assunt os humanos qualquer idéia.

Nada se disse que ja no se houvesse

dity antes (Nullum est iam dictum, quod non sit dictum prius). O tema especifico de nosso estudo consiste em observar como e sob que forma a vida in-

telectual em um dado momento histérico se relaciona com as féreas

politicas ¢ sociais existentes. CE. meu trabalho, “Das konser vative Denken”, loc. cit., pig. 103, nota 57.

acusado

de falsificagdo,

consciente

ou

inconsciente.

Agora, a critica é mais penetrante pelo fato de que, desacreditada a estrutura total de sua consciéncia, néo mais o considera-

nas anteriores tentativas de descobrir as fontes de érro, ao se

indicar as raizes pessoais de propensao intelectual, desvendava-se a distor¢io somente no plano psicolégico. A aniquilacio é agora mais penetrante visto que a ofensiva se dd no nivel nooldégico, solapando-se a valitade das teorias do adversdrio pela demonstracg&o de que so apenas uma funcdo da situacao social geral prevalec-nte. Neste ponto se atinge um névo e, talvez, 9 mais decistvo estagio da histéria dos modos de pensamento. Contudo, torna-se diffcil lidar com @ste desenvolvimento, sem

antes analisar algumas de suas implicagdes fundamentais,

A

concepgio total de idcologia levanta um problema, freqtiente-

96

Inzotocia E Uropis

Iprotocia © Uropia

mente vislumbrado anteriormente, mas que, pela primeira vez, adquire significagdo mais ampla, vale dizer, a problema de como pode vir surgir algo como a “‘falsa consciéncia” (falsches

Bewusstsein) — o problema da mente totalmente destorcida que

falsifica tudo 0 que se exponha ao sev alcance. O entendimento de que nosso horizonte total, distinto de seus detalhes, pode set destorcido empresta 4 concepcSo total de ideologia uma significacio e uma relevancia especiais para a compreensdo de nos-

sa vida social.

Déste reconhecimento nasce a profunda inquie-

taco que sentimos em nossa presente situacdo intelectual, mas déle também nasce tudo queela tem de f¢cundoie estimulante. 4.

OBJETIVIDADE E SUBJETIVISMO

A suspeita Ge gue pudesse existir algo como a “falsa consciéncia”, téda a sua cognicao sendo necessariamente ertada, e de que a mentira habita a alma, remonta a antiguidade. E de origem religiosa e chegou até nds como parte de nossa antiga hetanga intelectual. Aparece como problema sempre que a autenticidade de uma inspiracdéo ou visio de um profeta fésse questionada quer por seu povo, quer pelo prdprio profeta. 1° Tudo indica que encontramos aqui uma ilustragao de que

uma concepcao antiga se encontre subjacente a un 1 nocdo epis-

temoldgica moderna, existindo a tentagio de se dizer que a esséncia da observacdo ja se achava presente na formulacdo antiga; o que ha de névo é€ apenas sua forma. Mas também aqui,

como em vutros pontos, devemos sustentar, em oposig#o aos que tentam derivar tudo do passado, que a tada pela idéia € muito mais importante Enquanto, antigamente, a suspeita de que como a “falsa consciéncia” era apenas uma

forma moderna adodo que sua origem. pudesse existir algo constatacio de fatos

observados, hoje em dia, trabalhando com métodos analiticos

claramente definidos, fomos capazes de realizar uma ofensiva

mais fundamental aos problemas da consciéncia.

O que antes

era um meto andtema tradicional tr.nsformouse em nossos

dias em um procedimento metdédico baseado em demonstracio cientifica.

saber se os espiritos sfo de Deus, pois muitos falsos profetas andam por éste mundo,” I Joo, IV, 1.

97

De importancia ainda maior é a mudanga que passaremos

a discutir. Desde que o problema se liberou de seu contexto puramente religioso, nao sé mudaram os métodos de comprovacio, de demonstracao da falsidade ou da verdade de uma noGo, como também se transformou profundamente inclusive a escala de valéres pela qual aferimos a verdade e a falsidade, a realidade e a nao-realidade. Quando o profeta duvidava da au- | tenticidade de sua visio era porque se sentia abandonado por Deus, e sua inquietagao se baseava em uma fonte transcendental

de referéncia. Quando, ao contrario, nds, hoje em dia, nos namos céticos sébte nossas idéias, é porque tememos que no satisfacam a algum critério mais secular. Para determinar a natureza exata do névo critério de lidade que substituiu o critério transcendental, precisamos

torelas

reasub-

meter o significado da palavra “ideologia”, também sob éste aspecto, a uma andlise histérica mais precisa,

Se, no decorrer

desta andlise, formos levados a tratar da linguagem da vida cotidiana, isto indica simplesmente que a histéria do pensamento nao estd confinada apenas aos livros, mas obtém seu significado principal das experiéncias da vida cotidiana, e mesmo as principais mudancas nas avaliagdes de esferas diferentes de realidade, tais como aparecem na Filosofia, podem ser eventualmente referidas aos valéres cambiantes do mundo cotidiano. A prépria palayra “ideologia” nZo possufa de inicio nenhuma significagio ontolégica; nao inclufa nenhuma decisio quanto ao valor das esferas diferentes de realidade, uma vez que originalmente denotava apenas a teoria das idéias. Os idedlogos, 1! etam, como se sabe, os membros de um grupo Filosofico V1 CE, Rivavet, Les idéologues, essai sur [histoire des idées et des théories scentifiques, philosophiques, réligieuses en France depuis

1789 (Paris

Alcan, 1891).

Destutt de Tracy, fundador da escola mencionada acima, define a viéncia das idéins como se segue: “A ciéncia pode ser chamada ideologia, caso sc considere apenas seu objeto; gramatica geral, caso se considere apenas scus métodos; ¢ légica, caso se considere apenas seu objetivo, Qualque: que seja o nome, contém necessariamente trés subdivises, JA que nfo se pode tratar adequadamente de uma sem tratar igualmente das duas outras, Ideologia me parece ser o térmo genérico porque a ciéncia das idéias compreende tanto a de sua expresso quanto a de sua derivacio.”

Les éléments de Videologie, 1.* ed. (Paris,

1801), citado segundo a 3% ed., a dnica que se encontra A minha dis-

posicfo (Paris, 1817), pag. 4, nota.

98

IpgoLocia E Uroria

IpEOLOGIA E UToria

na Franga que, seguindo a tradicao de Condillac, rejeitavam a

alguma original; contudo, o fato de que esta questao viesse a

metafisica e buscavam basear as Ciéncias Culturais em fundamentos antropoldgicos e psicoldgicos. A concepgio moderna de ideologia nasceu quando Napolcio, achando que éste grupo de fildsofos se opunha a suas ambicdes imperialistas, os rotulou desdenhosamente de “‘idedlogos’”’. A partir dai, a palavra tomou um significado pejorativo que, assim como a palavra “doutrindrio”, reteve até o dia de hoje. Entretanto, investigadas as implicag3es teéricas déste desdém, iremos descobrir que a atitude depreciativa existente é, no fundo, de natureza epistemolégica e ontoldgica. O que se deprecia é a validade do pensamento do adversd4rio porque € considerado irrealistico. Mas, se indagamos, irrealista com relagao a qué? — a tesposta seria, irrealista com relacio 4 pratica, irrealista quando contrastada com as questées em pauta na arena politica, A partir de entdo, todo pensamento rotulado de ‘“ideologia” é considerado fitil quando vem a prdtica, devendo-se buscar na atividade prdtica o tinico acesso a realidade digno de confianga. Quando aferido por padrdes de conduta prdética, o mero pensa-

mento ou a reflexdo sébre uma dada situacdo tornam-se tri-

viais. Claro estd4, portanto, que o névo significado do térmo ideclogia traz a marca da posig&o e do ponto-de-vista daqueles que o cunharam, a saber, os homens de acao politica. A nova palavra sanciona a experiéncia especifica do politico com a realidade, 12. ¢ empresta sustentacao A irracionalidade prdtica, que tem tAo pouco apréco pelo pensamento como um snstrumento para captar a realidade. Durante o século XIX, o térmo ideologia, utilizado neste sentido, passou a ter aceitacio corrente. Isto significa que o senso de realidade do politico passou a preceder e a deslocar os modos escoldsticos de pensamento e de vida, Dai em diante o problema implicito no térmo ideologia — 0 que é verdadeiramente real? — jamais desapareceu do horizonte. Mas esta transicdo precisa ser corretamente entendida. A pergunta relativa ao que constitui a realidade nao é de forma

surgir na area de discussio publica (e nado apenas em circulos académicos isolados) parece indicay importante moditicagio.

cutindo, pois nem todo politico se acha préso a esta ontologia irra-

cional.

Cf. pags, 159 e segs.

A

nova conotacgio adquirida pela palavra ideologia, ao ser redefinida pelo politico em térmos de suas experiéncias, parece evidenciar mudanga decisiva na formulagao do problema da na-

tureza da realidade. Se, por conseguinte, quisermos fazer frente as demandas decorrentes da necessidade de andlise do pensamento moderno, devemos cuidar que uma histéria socioldégica das idéias se preocupe com o pensamento real da sociedade, ¢ nao apenas com os sistemas de iddéias pretensamente auto-suficientes ¢ que se autoperpetuam, elaborados numa rigida tradicao académica.

Se, antigamente, o conhecimento erréneo era

aferido pelo recurso a sangdo divina, que revelava infalivelmente o verdadeiro e o real, ou pela contemplagdo pura em que se

supunha descobrir as idéias verdadeiras, atualmente vai-se bus-

car o critério de realidade, em primeiro lugar, em uma ontologia derivada da experiéncia politica. A histéria do conceito de ideologia de Napoledo ao marxismo, a despcito de suas modificagdes em contetido, retém o mesmo critério politico de rea-

lidade. Este exemplo histérico evidencia, ao mesmo tempo, que © ponto-de-vista pragmdtico j4 estava implicito na acusacdo langada por Napoledo_a seus adversdrios. De fato, podemos dizer que, para o homem moderno, o piagmatismo se tornou, por

assim dizer, em alguns aspectos, o modo de ver apropriado e inevitdvel, ¢ que, neste caso, a Filosofia simplesmente adotou éste modo de ver ¢ a partir déle féz decorrer conclusdo Idgica. Chamamos a atengao para a nuance de significado dada por Napole&o a palavra ideologia a fim de mostrar, claramente, que o discurso comum contém freqiientes vézes mais filosofia e é de maior significagao, para a posterior colocagéo de problemas, do que as controvérsias académicas que tendem a se tornar estéreis por cleixarem de tomar conhecimento do mundo externo aos muros académicos. 14 13

12 Partindo das conclusdes da Parte III seria possivel definir com maior exatidio, de acérdo com a posig¢éo social que ocupe, o tipo de politico, cuja concepgio do mundo e cuja ontologia estamos aqui dis-

99

A respeito da estrutura e das peculiaridades do pensamento

escolastico e, neste caso, de todos os tipos de pensamento beneficiando-se de uma posigio monopolista, cf. o artigo do autor apresentado

em Zurique ao Sexto Congresso da Deutsch Gesellschaft fur Soziologie, “Die Bedeutung der Konkurrenz im Gebiete des Geistigen”, Verhandlun-

gen des sechsten deutschen Soziologentages in Zurich (J. C. B. Mohr, Tubingen, 1929)

IpzoLocia u Uroria

IpgoLocia 2 Uropia

J4 nos adiantamos um passo em nossa andlise; em condigdes de suscitar outro aspecto déste problema, referindo-nos ao exemplo hd pouco citado, em outre sentido. No conflito com seus criticos, Napoledo era capaz de, como foi visto, em tazao de sua posigio dominante, desacreditd-los, indicando a natureza ideoldgica de seu pensamento. Nos estdgios mais recentes de seu desenvolvimento a palavra ideologia é usada pelo proletariado como uma arma contra o grupe dominante. Em

mentos do pensamento mais relevantes para a realidade. Em conseqiiéncia, nfo é de admirar que a concepcSo de ideologia seja geralmente encarada como integrando, e até identificada com, o movimento proletdrio marxista, Mas no decurso de desenvolvimentos sociais e intelectuais mais recentes éste estdgio j4 foi ultrapassado. Nao é mais um privilégio exclusivo dos pensadores socialistas referir o pensamento burgués aos fundamentos ideoldgicos, desacreditando-o dessa forma. Atualmente, grupos com quaisquer pontos-de-yisth usam esta ‘arma contra todos os demais. Como resultadb, estamos ingressando em uma nova época do desenvolvimento intelectual e social. Na Alemanha, os primeiros passos nesta direcdo foram

100

suma, uma intuigfo tao revcladora séb.c a Le do pensarnento,

como a que oferece a nogio de ideologia, hio pole permaneter por muito tempo comoprivilégio exclusiva ¢d . “classe Mics é precisamente esta expansdo e difusio da avordagem .decidgica que levam, finalmente, a um ponto em que no é mais nocsfvel para um ponto-de-vista e para uma inteipretacio refutar os demais por serem ideoldégicos, sem ter que en{rentar essa acusacio. Atingimos assim, inadvertidamente, um n6vo est4gio mets luidgico na andlise do pensamento em geral. Houve de fato épocas em que utilizar ¢ andlise ideol+gica para desmascarar as motivagdes ocultas de seus aaversarios parecia uma prerrogativa do proletariado militantc. O publico esquecia rapidamente a origem histdrica do térmo que acabamos de indicar. Mas nao totalmente semjustificacdo, pois apesar de reconhecida anteriormente esta abordagem critica ao pensamento foi pela primeira vez enfatizada ¢ desc voly.da Sdicamente pelo marxismo.

Foi a teoria marxista que por primeiro

concretizou a fusio das concepgSes particular e total de ideologia. Foi esta teoria a que primeiro concedeu a devida énfase ao papel da posicdo ¢ dos interésses de classe no pensamento. Devido, em grande parte, ao fato de se hz er originado no hecelianismo, 0 mataismo eta capaz de ultrapassar o nivel de andlise meramente psicolégico e de colocar o problema nim quadrofilosdfico mais amplo. A nogio de uma “‘talsa WUasuéncia’ #4 adquiriu assim um névo significado. O pensamento marxista atribufa 4 prdtica politica, junta-

mente com a interpretagao econdmica dos acontecimentos, uma

significacgfo t&o decisiva que estas duas se tornaram os critérios definitivos para separar o que nao passasse de ideologia dos ele14

A expressio “falsa consciéncia”

(falsches Bewusstscin) é ela

mesma de origem marxista. Cf. Mehring, Franz, Geschichte der deutschen Sozialdemokratie, 1, 386; cf. também Salomon, op. cit., pag. 147,

7

101

.

ad

:

dados por Max Weber, Sombart e Troeltsch — para se mencio-

nar apenas os mais proeminentes representantes déste movimen-

to. A verdade das palavras de Max Weber se torna cada vez mais clara A medida que o tempo passa: “A concepcao materialista da histéria nao pode ser comparada a um fiacre em que se pudesse entrar e sair & vontade, pois uma vez ingressando

nem mesmo os tevoluciondrios estariam livres para deixd-lo.” 15 A anédlise do pensamento em térmos de ideologia é por demais

ampla em sua aplicagdo e uma arma importante demais para se

tornar 0 monopdlio permanente de uma das partes, qualquer

que esta seja. Nada impedia que os opositores do marxismo se

apossassem da arma e a utilizassem contra o ptdéprio marxismo,

5.

A PASSAGEM DA TEORIA DA IDEOLOGIA A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO

© capitulo anterior delineou um processo de que se pode encontrar numerosos exemplos na histdéria intelectual e social. No desenvolvimento de um ponto-de-vista, enquanto uma das partes desempenha o papel pioneito as demais precisam necessatiamente fazer uso déste ponto-de-vista, a fim de corresponder & vantagem de seu adversdrio na disputa competitiva. Tal é 0 caso com a nogao de ideologia. O marxismo nada mais féz que descobrir a chave pata o entendimento e um modo de pen15 Cf, Weber, Max, “Politik als Beruf”, em Gesammelte Politische Schriften (Munique, 1921), pag. 446.

IpEoLocia £ Utopia

IDEOLOGIA E UTOPIA

samento de cuja elaboracdo progressiva participou, entretanto, todo o século XIX. A formulacdo acabada desta idéia nao é realizacdo exclusiva de um nico grupo nem se acha vinculada com exclusividade a nenhuma posic&o intelectual e social. O papel desempenhado pelo maxismo merece um elevado pédsto na histéria, nfo devendo ser minimizado. Contudo, o processo

Enquanto nao sc tiver pdésto em questo a prdpria posigao, encarando-a como absoluta, ao passo que se interpretam as idéias

ral desenrola-se ante nossos préprios olhos, estando por conse-

tacar meramente umas poucas proposicoes isoladas.

102

103

dos opositores como meras funcdes da posigao social que ocupam,

ainda nao se terad dado o decisivo passo adiante. E verdade, claro esta, que neste caso se estard usando a concepsao total de ideologia, uma vez que s¢ esta interessado em analisar a es-

pelo qual a abordagem ideolégica vem-se estendendo ao uso ge-

trutura da mente do opositor em sua totalidade, e nao em des-

guinte sujeito 4 observacéo empirica.

de gue,

E interessante observar que, como resultado da expansio do conceito ideolégico, um nédvo modo de compreensio vem gradativamente se impondo. Este névo ponto de apoio intelectual constitui no apenas uma mudanca de grau de um fendmeno j4 em atuagio.

Temos aqui um exemplo do processo real-

mente dialético, com freqiiéncia mal interpretado para finalidades académicas — pois aqui vemos, de fato, uma questiio de diferenca de grau se tornar uma quest&o de diferenca de natuteza. Pois to logo tédas as partes estejam aptas a analisar as idéias de seus opositores em térmos ideolégicos, todos os elementos de significado estarfo qualitativamente transformados, adquirindo a palavra ideclogia um significado totalmente névo. No decorrer disso, todos os fatéres com que lidamos em nossa andlise histérica do significado do térmo estario, correspondentemente, também mudados. Os problemas da ‘‘falsa consciéncia” e da natureza da realidade assumem a partir de entéo uma significagao diversa. Este ponto-de-vista nos forca em definiti-

vo a teconhecer que nossos axiomas, nossa ontologia e nossa epistemologia sofreram uma profunda transformacao. Vamo-

-nos limitar, no que se segue, a indicar as variacdes de significado por que passou o conceito de ideologia no decorrer desta transformacio. Jé delineamos a evoluc&o da concepc%o particular para a total. Esta tendéncia vem-se intensificando constantemente. Ao

invés de se contentar em demonstrar que o adversdrio sofre de

ilusdes ou distorcdes em um plano psicoldgico ou vivencial, a tendéncia agora é submeter sua estrutura total de consciéncia € pensamento a uma andlise socioldgica profunda. 16

Mas des-

neste exemplo, se esté apenas intercssado em

uma

anilise sociolégica das idéias do opositor, jamais se ultrapassa

uma formulagio da tcoria altamente restritiva ou que eu gos-

taria de chamar de restrita.

Em contraste com esta formula-

cio restrita, a forma genérica 7 da concepcao total de ideologia serf usada pelo analista quando éste tiver a coragem de submeter mio sd 0 ponto-de-vista do adversdiio, mas todos os pontos-de-vista, inclusive o seu, A andlise ideoldgica.

No presente estigio de nossa entendimento dificilmente € possivel cvitar esta formulacio genérica da concep¢io total de ideologia, de acdrdo com a qual o pensamento de todas as partes em tddas as épocas ¢ de cardter ideoldgico. Praticamente nfo existe uma sé posic¢do intelectual, e o marxismo nao constitul uma excecio a esta regra, que nao se tenha transformado durante a histéria e¢ que, mesmo atualmente, nfo apareca sob

muitas formas. Também o ..arxismo assumiu varias aparéncias diversas. No deveria ser muito dificil para um marxista reconhecer a bar. social delas. Com . emergéncia da formulacio genérica da concepcio total de ideologia, a tecria simples da ideologia evolui para a Sociologia do Conhecimento. O que anteriormente constitufa o arsenal '§ intelectual de uma das partes se transformou em 17 Acrescentamos aqui outra distingio a nossa disting&o precedente de “particular ¢ total”, que é a de “restrita e genénea”, Enquanto a primeira distingao diz respeito 4 questéo de saber se as idéias isoladas ou se a mentalidade inteira devam ser consideradas ideolégicas, e se a situagie social condiciona somente ay manifestagdes psicolégicas

de conceitos ou se penetra alé nos significados nooldgicos, na distingado entre restrita e genérica a questo decisiva & saber se o pensamento

de todos os grupos (inclusive 9 nosso) ou apenas a de nossos adversdrios & reconhecida como sendo socialmente determinado.

16 Isto n&o implica que a concepeSo particular de ideologia seja inaplicdvel quanto a certos aspectos dos conflitos da vida cotidiana,:

18 Cf. a expressig marxista; “forjar ay armas itelectuais do proletariado”.

105

Ipronocra B Ureria

IpgoLocia E UTOPIA

um método de pesquisa da histéria intelectual e soci il em geral, A principio, um dado grupo social cescobre a “‘determinag4o situacional” (Seinsgebundenheit) das idéias de seus opositores. A seguir, elabora-se o reconhecimento déste fato em um principio inclusivo, de acdrdo com o qual o pensamento de cada grupo é visto como emergindo de suas condigdes de vida. 19 Assim, torna-se a tarefa da histéria sociolégica do pensamento analisar, sem considerar tendéncias par.iddrias, todos os faté-

mento, ¢ que modelava seu conhecimento a partir de protdétipos estéticos semelhantes ao que se poderia exemplificar pela proposisfio 2 XK 2 = 4. Este velho tipo de pensamento, que encarava exemplos como éste como o modélo de todo o pensamento, seria necessirjamente levado A rejeigdo de tddas as formas de conhecimento que dependessem do ponto-de-vista subjetivo ¢ da situacio social do conhecedor e que, por isso, eram meramente “relativos”. © relativismo, portanto, deve sua existén-

ciar o pensamento. Esta histéria das iddias socioldgicamente otientada destina-se a dotar os homens modernos de uma visao retrospectiva de todo o processo histérico. ; Clato estd, ent&o, que, neste caso, a concepsio de ideologia assume um névo significado. Partindo daste significado, surgem duas abordagens alternativas pata a investigacao ideoldgica. A primeira se limita a indicar, em todas as ocasides, as inter-relacdcs entre o ponto-de-vista intelectual sustentado e€ a posigfo social ocupada. Isto implica a rentincia a qualquer ini tengfio de expor ou desmascarar as visdes com que se esta em desacdrdo. Ao tentar expor as visdes de outro, o individuo esforca-se por fazer sua prdpria visio parecer infalivel ¢ absoluta, o que € um procedimento a ser totalmente evitado caso se esteja fazendo uma investigagaéo especificamente nao-valorativa. A segunda abordagem possivel, no entanto, é se combinar esta andlise ndo-valorativa com uma epistemologia definida, Do Angulo desta segunda abordagem, existem duas solucdes distintas e separadas para o problema referente ao que consiste um conhe-

da nos piocessos cfetivos de pensamento e uma teoria do conhecimento que até entio nfo tinha levado em conta esta nova

104

res da situacdo social efetivamente existente que possam influen-

cimento fidedigno — uma das solugSes pode ser denominada relacionismo, ¢ a outra relativisino.

___O telativismo é um produto do procedimento histérico-socioldgico moderno que se bascia no reconhecimento de que todo 9 pensamento histérico se acha ligado 4 posic&o concreta na vida do pensador (Standortsgebundenbeit des Denkers).

Mas

o telativismo combina esta insergio histdrico-sociolégica com uma teoria do conhecimento antiga que desconhecia ainda o intercutso entre as condicSes de existéncia e os modos de pensa19 Com o térmo “determinagio situacional do conhecimento”, procuro diferenciar o contetdo propagandistico do contetido socioldgico cientifico no conceit ideoldgico.

cia A discrepancia entre esta introspeccéo recentemente atingijntrospecgdo.

'

Se desejamos cmancipar-nos déste relativismo, devemus procurar entender, com o ausilio da Sociologia do Conhecimento, que nao é a Epistemologia em um sentido absoluto, mas, antes, um determinado tpo historicamente transitério de Epistemologia que s¢ acha em conflito com o tipo de pensamento orientado para a situagio social, De fato. a Epistemologia estd lo intimamente imersa no processo social quanto a totalidade de nosso pensamento, ¢ progrediré na medida em que possa dominar os problemas que surgem da estrutura cambiante do pensamento. Uma teoria moderna do conhecimento que considere o caréter relacional como distinto do caréter meramente telativo de todo o conhecimento histérico deve partir da suposicéo de que r existem esferas de pensamento em que seja impossivel concebe posigao da e uma verdade absoluta, independente dos valéres do sujeito, e sem relagdes com 0 contexto social, Nem mesmo um deus poderia formulas uma proposigao sdbre questdes histéticas semelhante a2 X 2 = 4, pois o que é inteligivel na histéria somente pode ser formulado com referéncia a problemas @ construgdes conceptuais que emergem no fluxo da experiéncia histérica. Desde que reconhegamos que todo o conhecimento histéado tico € um conhecimento relacional, e sd pode ser formul mais os tamo-n com referéncia A posicéio do observador, defron uma vez com a tatcfa de discriminar o que neste conhecimento seja verdadeiro ou falso, Surge entio a questdo: que fundaidamento social vis-d-vrs da histéria oferece a melhor oportun éste a caso, todo Em e? verdad de étimo um atingir se de de a ir descobr se de grau, ter-se-A que desistir da va esperanga

Ipzotocia £ Uropta

IpEo-octa E UTOPIA

verdade sob uma forma que independa de um conjunto de sig-

uma visio de conjunto dos problemas, caso o observacor ou 0

esta concluséo, mas pelo menos estaremos em melhor posicdo

lista de ideologia evoluir por si mesma até a Sociolo,. do Co

106

nificados social e histdricamente determinado. © problema nao esté de forma alguma resolvido quando tivermos chegado a para constatar os problemas efetivos que surgem, de forma menos resttita, A seguir, distinguiremes dois tipos de abordagem Al investibacio ideoldgica que surgem no nivel da‘concepcio total genérica de ideologia: primeiro, a abordagem caracterizada pela liberdade de jufzos de valor, e, segundo, a abordagem normativa orientada epistemoldégica e metafisicamente. Por enquanto, nao abordaremos a questdo referente a se estarcmos, na tltima abordagem, lidando com o relativismo ou com o relacionismo. A concepgio nio-valorativa genérica total de ser encontrada, originalmente, nas investigacSes gue, provisdriamenté, e visando a simplificacio n&o se pronunciem juizos quanto a corresfo das

ideologia pode histéricas em do problema, idéias a screm

tratadas. Esta abordagem se limita a descobrir as relacSes entre determinadas estruturas mentais ¢ as situagdes de vida em que se dao. Devemos indagar constantemente como pode acontecer que um dado tipo de situacao social dé origem a uma dada

interpretagéo. Dessa forma o elemento ideoldgico do pensamento humano, visto a éste nivel, acha-se sempre ligado & situacho de vida do pensador. De acércdo com esta visio, 0 pensamento humano surge e opera néo em um védcuo social, mas em um melo social definido.

Nao precisamos encarar como fonte de érro o fato de todo © pensamento se achar enraizado desta forma Assim como o individuo, participando de um complexo de relacdes sociais vitais com outros homens, goza, por isso, da oportunidade de obter mais preciso e penetranic conhecimento de seus compaoheiros, assim um dado ponto-de-vista e conjunto de corceitos, por se acharem ligados e emergirem de uma determinada realidade social, oferecem pelo contato intimo com esta realidade maior oportunidade de revelar seu significado. (© exemplo anteriormente citado demonstrou que o ponto-de-vista proletdrio-socialista se encontrava em uma posicio particularmente favo-

ravel para descobrir os elementos ideolégicos do pensamento de seus adversdrios.) Entretanto, o fato de que o pensamento es-

teja ligado a situagio de vida e social em que surge cria tanto problemas quanto vantagens. Claro que é impossivel obter-se

107

pensador se ache confinado a um dado lugar na socicdade. Por exemplo, como j4& se assinalou, nao foi possivel a i's‘a socianhecimento. Parece inerente ao processo histdrico o fato de que a estreiteza e as limitacSes que restringem um ponto-de-vista tendam a der dorrigidas pelo! entrethoque com os pontos-de-vista opostos. A tarefa de um estudo da ideologia, que tenta ser

livre de jufzos de valor, consiste em compreendera lin tagio de

cada ponto-de-vista individual e o intercurso entre «- as atitudes distintas no processo social total. Aqui nos dcfrontamos com um tema inesgotdvel. O problema é mostrar como, em téda a histéria do pensamento, certos suportes intelectuais acham-se vinculados a certas formas de experiéncia, «i ‘lineando a intima interagao entre as duas no curso da mudanga . telectual ¢ sacial No dominio da moral, por exemplo, & preci.» descre-

ver iio apenas as continuas mudancas da conduta hensina, mas também as normas em constante alteragio pelas quis se julga

esta conduta. Captaremos mais profundamente o problema se estivermos aptos a demonstrar que mesmo a moralidade e a ética so condicionadas por certas situagdes definidas, c que conceitos fndamentais tails coma dever, transgressio e pecado nao

existiram sempre, mas surgiram em correlacio com situagdes

sociais distintas.?" A vis&o filoséfica prevalecente, que cautelosamente admite que o conteido da conduta tenha s:do deter-

minado histdricamente, mas que ao mesmo tempo insiste na

manutencio de formas etern’s de valor e de um conjunto formal de categorias, nfo é mais sustentavel.

O fato de se haver

efetuado e re onhecido « distingdo entre o contetido ¢ as formas de conduta constitui uma importante concessao 4 abordagem histérico-sociolégica, que torna cada vez mais dificil q'> os valéres contemporaneos sejam tidos por absolutos Atingido ésse reconhecimento, torna-se igualmei te necessdrio relembrar que o fato de se falar a respeito da vida cultural e social em térmos de valér constitui uma atitude peculiar ao nosso tempo. A nocdo de “valor” surgiu ¢ se difendiu através da Economia, onde a escolha consciente entre .- vres era 0 20°

Cf, Weber, Max, Wirtschaft und Gesellschaft,

Grundriss der

Sozialukonomik, parle IIT, pig. 794, que Urata das condigc:s sociais requendas para a génese da moral,

Ipeorocia E Uropra

IpEoLocia E Uropia

ponto de partida da teoria. Esta idéia de valor foi mais tarde transferida para as esferas ética, estética e religiosa, o que ocasionou uma distorgfo na descrigao do comportamento real do ser humano em tais esferas. Nada podia ser mais errado do que descrever a atitude real do individuo ao contemplar uma obra de arte, bastante irrefletidamente, ou ao agir de acdrdo com padrées éticos néle inculcados desde a infancia, em térmos de uma escolha consciente entre valéres.

cas, se desintegra ou se transforma, sob o impacto da mudanga social.

108

A nocgio que sustenta que téda a vida cultural constitui uma orientagéo para valétes objetivos néo passa de mais uma ilustragio de uma tipicamente moderna desatencio racionalista pelos mecanismos irracionais bdsicos que governam a relacio do homem com seu mundo. Longe de ser permanentemente valida, a interpretagao da cultura em térmos de valdres objetivos constitui na verdade uma caracteristica peculiar ao pensamento de nossos dias. Mas apesar de que se conceda, por enquanto, que esta concepcao tenha algum mérito, a existéncia de determinadas esferas formais de valéres e sua estrutura especifica ssmente poderia ser entendida se referida as situagdes concretas para as quais tenham relevancia e nas quais sejam validas.2! Nao

existe, portanto, nenhuma norma que possa pretender uma va-

lidade formal ¢ que, na qualidade de clemento formal universal ¢ constante, pudesse ser abstraida de seu conteddo histdricamente cambiante. Chegamos atualmente ao ponto em que podemos obsetvar com clareza que existem diferencas nos modos de pensamento,

n#o apenas em perfodos histéricos diferentes, mas também em culturas diferentes. Vai-se tornando progressivamente claro, para nds, que nao apenas o contetido do pensamento se modifica, mas também sua estrutura categdrica. S6é muito recentemen-

te tornou-se possivel investigar a hipdtese de que, no passado

assim como no presente, os modos de pensamento dominantes féssem suplantados por novas categorias, quando a base social do grupo, de que estas formas de pensamento sio caracteristi21 Cf. Lask, E., Die Logik der Plulosophic und die KategorienIchre (Tiibingen, 1911). Lask usa o térino hingelten para explicar que as formas categéricas nfo siio \alidas em si, mas apenas com referén-

cia a seu contetido sempre cambiante, que inevitavelmente reage a

sua natureza,

109

A pesquisa na Sociologia do Conhecimento promete alcangar um estagio de exatidfo, quando nao porque, em nenhuma outra esfera do dominio da cultura, a interdependéncia nas modificagdes de significado e de énfase se mostram tao claramente evidentes e passiveis de determinacZo téo precisa quanto o proprio pensamento.

Pois o pensamento é indice particular

mente sensivel da mudanca cultural e social. A variagZo no significado das palavras e as multiplas conotagdes de cada conceito refletem polaridades de esquemas de vida mbtuamente antagénicos, implicitos nestas nuances de significado. 2* Entretanto, em nenhuma outta parte no dominio da vida social, encontraremos de modo tio nitidamente discernivel a inierdependéncia e sensibilidade para mudanga e uma énfase varidvel quanto ao significado das palavras. A palavra e o significado a ela ligado constituem verdadeiramente umarealidade coletiva. A mais leve wance no sistema total de pensamento repercute na palavra individual e nos matizes de significado que comporta. A palavra nos liga ao todo da histéria passada e, a0 mesmo tempo, espelha a totalidade do presente. Quando, ao

nos comunicarmos com os outros, buscamos um nivel comum

de entendimento, a palayra pode ser usada pata aplainar as di-

‘ferengas individuais de significado.

Quando necessdrio, porém,

a palavra pode-se tornar um instrumento para enfatizar as diferencas de sentido ¢ as experiéncias singulares de cada individuo.

Pode entéo servir de meio para detectar as aquisig6es no-

vas € originais que se produzem no decorrer da histéria da

cultura, icrescentando, assim, valdres anteriormente impercepti-

veis A escala da experiéncia humana. Em tédas estas investigaGes serd utilizada a concepsao total e genérica de ideologia em seu sentido nio-valorativo.

ae Por esta razéo, a andlise sociolégica dos significados viré a desempenhar um papel importante nos estudos que se seguem. Pode-

mos suger aqui que esta anélise poderia ser desenvolvida numa sin-

tomatologia baseada no princfpio de que, no dominio social, se pudermos aprender a observar cuidadosamente, chegaremos a ver que cada

elemento da situacdo analisada contém e lanca uma luz sdébre o conjunto.

110

IpEoLocia E Utupia

6. A CONCEPGAD NYO-VALORATIV( DE IDEOLI: 1a

© investigador que empreenda os estudos histéricos sugetidos acima nfo necessita preocupar-se com o problema do que seja a verdade ultima. Tornam-se agora evidentes, tanto para a passado quanto para o presente, inter-relagSes que jamais podetiam antigamente ser analisadas de forma téo completa. O reconhecimento déste fato em tédas as suas ramificagSes concede ao investigador moderno uma enorme vantagem. Este nfo mais se sentird inclinado a perguntar qual das partes em litigio detém a verdade, mas, antes, dirigird sua atencio para descobrir a verdade aproximada que emerge do complexo processo social, no curso do desenvolvimento histérico. O investigador moderno pode, se acusado de fugir ao problema do que seja a verdade, responder que a abordagem indireta a verdade, através da historia social, seré afinal mais fecunda do que uma investida légica direta. Ainda que nao descubra a ‘“‘verdade em si”, ird descobrir a situagdo cultural e muitas “circunstancias” anteriormente desconhecidas, relevantes para a descoberta da verdade. Na realidade, se acreditamos j4 possuirmos a verdade, perdere-

mos 0 interésse em descobrir as prdprias intuigSes que nos conduziriam a uma compreensio aproximada da situacéo. Nossa

incerteza é que exatamente nos leva bem mais perto da realidade, mais do que foi possivel nos periodos anterinics, ¢ zando se tinha f€ no absoluto.

Torna-se agora bastante claro que sSmente em um mundo intelectual rapida e profundamente cambiante se poderiam sub-

meter as idéias, anteriormente consideradas fixas, a uma critica

aprofundada. Em nenhuma outra situacio poderiam os homens estar suficientemente alertas para descobrir o elemento ideoldgico em todo o pensar.

E verdade, claro, que os homens com-

batiam as idéias de seus adversdrios, mas, no passado, na maior

parte dos casos, assim o fizeram apenas para agarrarem-se aos

seus préprios absolutos mais obstinadamente. Hoje em dia, existem varios pontos-de-vista de igual valor e prestigio, cada um demonstrando a relatividade do outro, para que nos seja permitido tomar qualquer situacéo e encard-la como absorvente e absoluta. Sd&mente tal situacdo intelectual socialmente desorganizada possibilita que se perceba o que até agora era obscurecido por uma estratura social geralmente estdvel e¢ pela prdtica

IDEULOGIA E UTOPIA

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de certas normas tradicionais — que qualquer ponto-de-vista é peculiar a uma situacio social. 28 Pode ser realmente verdade que, para agir, precisermos de uma certa dose de autoconfianga e de certa seguranca intelectual, Pode igualmente ser verdade que a propria forma de expressio, com a qual revestimos nossos pensamentos, tenda a lhes impor uma tonalidade absoluta. Em

nossa época, entretanto, constitui justamente a funcao da investigagio histérica (e como veremos dos grupos sociais de que séo recrutados os estudiosos) analisar os elementos que conformam nossa autoconfianga, tao indispensdveis para a acdo em situagGes concretas ¢ imediatas e para contrabalangar o subje-

tivismo que pudesse surgir daquilo que nés, enquanto individuos, aceitamos sem contestagéo, Isto sdmente € possivel por meio de incessante cuidado e pela determinacdo de reduzir ao minimo a tendéncia de superestimacdo pessoal. Por &ste esf6rgo, a unilateralidade de nosso ponto-de-vista é contrabalancada, e as posigdes intelectuais conflitantes podem realmente vir a s€ complementar umas as outras. Torna-se imperative, no atual perfodo de transigao, fazer uso do creptsculo intelectual que domina nossa época e no qual todos os valéres ¢ pontos-de-vista aparecem em sua relatividade original. Devemos compreender, de uma vez por tédas, que

os signilicados de que nosso mundo se compdc nada mais sao do que uma cstrutura historicamente determinada ¢ continua-

mente cvolui a estrutura em que o homem se desenvolve, nao sendo absolutos em nenhum sentido. Neste ponto da histéria, em que tudo o que cancerne ao

homem, bem como a estrutura e os elementos da prdpria histd-

tia se nos revelam stbitamente sob uma nova luz, cabe a nés, em nosso pensamento cientifico, nos assenhorearmos da situa-

a0, pois nio & inconcebivel que mais cedo do que possamos suspeitar, como muitas vézes tem sido o caso na histéria, esta visio possa desaparecer, a oportunidade possa perder-se e o mundo mais uma vez venha a apresentar uma aparéncia estdtica, uniforme e inflexfvel. 23° Por estabildade social nfo entendemos a auséncia de acontecimentos ou a segurancga pessoal dos individuos, may a relativa fixidez

da estrulura social total esistente, que garante a cstabilidade dos vaIdres & day idéis domimantes

112

IpgoLocia zr Uropia

Ipgotocia EB Uropia

Esta primeira penetragio nfo-valorativa na histéria nio

conduz inevitivelmente ao telativismo, mas antes ao relacionis-

mo. © conhecimento, visto & luz da concepgio total de ideologia, nfo constitui de forma alguma uma experiéncia ilusdria, pois que a ideologia em seu conceito relacional nao se identifica absolutamente com a iluséo. O conhecimento, surgindo de nossa experiéncia das situagdes efetivas de vida, embora nao absoluto, é, nfo obstante, conhecimento. As normas surgidas de tais situagdes de vida se dao em um vacuo social, mas sao efe

tivas como sangdes reais da conduta.

elacionismo signilica

apenas que todos os elementos de significado em uma situa-

ga0 mantém referéncia um ao outro e derivam sua significagaéo desta reciproca inter-relagao em um dado quadro de pensamento., Tal sistema de signiticados somente é possivel e vdlido em um dado tipo de existéncia histérica, ao qual fornece por um certo tempo sua expresséo apropriada,

Quando a situag&o so-

cial muda, o sistema de normas a que havia anteriormente dado origem deixa de estar cm harmonia com ela. O mesmo afasta-

mento se opera com referéncia ao conhecimento e a perspectiva

histérica. ‘Lodo conhecimento esti orientado para algum objeto e é influenciado em sua aproximagdo pela natureza do objeto a que tende. Mas o modo de aproximacfo ao objcto a ser conhecido depende da natureza do conhecedor. I 9 se verifica, antes de mais nada, quanto a profundidade qualitativa de nosso conhecimento (especialmente quedo estamos buscando alcangar uma ‘“‘compreensao” de alguma coisa em que o grau de penetracio a ser obtido pressupde um parentesco mental ou intelectual entre aquéle que compreende e o que é compreendido).

Verifica-se, em segundo lugar, com relagio A possibilidade de formular intelectualmente nosso conhecimento, principalmente desde que, para que se-transmude em conhecimento, cada percepgao deve e é ordenada e¢ organizada em categorias.

Entre-

tanto, a extensdo em que podemos organizar ¢ exprimir nossa experiéncia em tais formas conceptuais depende, por seu turno, dos quadros de referéncia que se encontrem a disposic#o em um dado momento histérico. Os conceitos que possuimos e 0 universo de discurso em que nos movemos, bem como com as diregdes em que tendem a se elaborar, dependem amplamente da situagao histdrico-social dos membros do grupo intelectualmente ativos e tesponsdveis. ‘Tcmos, entio, como tema déste estudo ndo-valorativo da ideclogia, o relacionamento de todo conhecimento parcial e sets elementos componentes ao corpo desig-

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nificagio mais amplo e, finalmente, A estrutura da realidade histérica. Se, ao invés de admitirmos plenamente esta intuigao e suas implicagdes, nés as desconsiderdssemos, estariamos desistindo de uma avancada posicio de realizagZo intelectual penosamente conquistada. Tornou-se, assim, exttemamente questiondvel, no correr da vida, se constitui um problema intelectual realmente valido procurar descobrir absolutos ou idéias fixas e imutdveis. Talvez se tratasse de tarefa intelectual mais valiosa aprender a pensar

Em dindmica e telacionalmente, mais do que estaticamente. nosso estado intelectual e social contemporaneo nao é chocante

descobrir que as pessoas que pretendem ter descoberto um absoluto sfo geralmente as mesmas que também pretendem ser superiores 4s demais.

Encontrar pessoas em nossos dias tentando

disseminar pelo mundo e recomendando aos outros algum elixir do absoluto, que apregoam haver descoberto, nao passa de um ‘indicio da perda e da certeza intelectual ¢ moral, e da necessidade delas, sentidas por amplos setores da populacao, incapazes de encarar a vida de frente, Sera possivelmente verdade que, ,para continuar a viver ¢ agir em um mundo semelhante ao nosso, seja vitalmente necessdrio procurar uma saida para essa incerteza frente a alternativas miltiplas; e, em conseqtiéncia, as pessoas podem ser levadas a abracar algum objetive imediato como se fdsse absoluto, pelo que esperam fazer que seus problemas parecamconcretos e reais. Mas nao é inicialmente o homem de acao que busca o absoluto e o imutdvel, mas antes aquéle que deseja induzit os demais a se apegar ao Status quo por se sentir confortével e satisfeito com as condigdes em que estio. Os que estio satisfeitos com a ordem de coisas existente estario provavelmente tendentes a erigir a situacdo casual do mundo como absoluta e eterna, de modo a possuir algo de estdvel em que se apegar e a minimizar os acasos da vida.

Entre-

tanto, isto nao pode ser feito sem que se recorra a todo tipo de mitos e nogdes romanticas.

Defrontamo-nos, assim, com a ten

déncia curiosamente espantosa do pensamento moderno, em que o absoluto que, em outra época, constitula um meio de se entrar em comunhao com o divino, tenha passado a ser agora

um instrumento usado por aquéles que déle se beneficiam para

destorcer, perverter e ocultar a significagao do presente.

IpEoLocia E UTOPIA

IbEOLOGIA = Utopia

7. A PASSAGEM DA CONCEPGAQ NAO-VALORATIVA A CONCEPCAO VALORATIVA DE IDEOLOGIA Parece entdo que, comecando com a concepcao nao-valo-

rativa de ideologia, por nés inicialmente usada para captar o fluxo das realidades em continua mudanga, vimo-nos involun-

tarjamente levados a uma, abordagem epistemoldgica valorativa: e, finalmente, a uma abordagem ontolégica metafisica. Em nosSa argumentagao, até aqui, o ponto-de-vista dindmico ndo-valorativo tornou-se, inadvertidamente, uma arma contra uma certa

posic&o intelectual.

O que originalmente nada mais era do que

uma técnica metodoldgica revelou-se, em seguida, uma Weltanschauung e um instrumento de cuja utilizagio emergiu a visdo néo-valorativa do mundo. Aqui, como em tantos outros casos,

sdmente ao término de nossa atividade podemos finalmente nos tornar conscientes dos motivos que a principio nos impeliram a colocar em movimento todos os valéres estabelecidos, considerando-os parte de um movimento histérico geral. Vemos emfio que empregamos juizos de valor metaf{sicos e ontoldgicos dos quais n&o estdvamos conscientes.2! Mas sdmente irdo alarmat-se com éste reconbecimento os que séo présa dos preconceitos positivistas da geracdo passada, e que

ainda acreditam na possibilidade de ser compleramente emancipados em seu pensamento das pressuposicdes éticas, metafisi-

24 Naturalmente, o tipo de juizos de valor e da ontologia que empregamos, em parte inconsciente e em parte deliheradamente, representa um juizo de nivel inteiramente diferente, sendy uma ontologia bastante diferente da ontologia de que falivamos ao criticar a tendén~cla ao absolutismo que tenta reconstruir (no espirito da escola romantica alem&) os escombros da histéria, A ontologia que implicita ¢ inevitivelmente constitui a base de nossas agocs, Mesmo quando niio desejamos acreditar nisto, nfo é algo a que se chegue por um anseio yomantico e que impomos arbitrariamente 4 realidade, Marca o ho

rizonte dentro do qual se situa o nosso mundo de realidade @ que n&o pode ser afastado simplesmente com o rétulo de ideologia. Neste ponto vislumbramos uma “solucdo” para 9 nosso problema, muito embora em nenhuma outra parte déste livro procuremos oferecer uma solugao.

A exposicéo dos elementos ideoldgicos ¢ utépicos do pensamento sé tem eficiéncia em destruir as idéias com as qual, ng nos identifiquemos muito intimamente, Pode-se entio perguntar sc, em determinadas circunstincias, enquanto destrufmos a validade de certas id’.a0 -ne-

115

cas e ontoldgicas.*5 Na verdade, quanto mais conscientes nos tornamos das pressuposigdes subjacentes a nosso pensamento,

no interésse de uma pesquisa verdadeiramente empirica, tanto

mais se evidencia que éste procedimento empirico (pelo menos nas Ciéncias Sociais) somente pade ser executado com base em

certos juizos metafisicos, onto! “zicos e meta-empiricos e nas ex-

pectativas e hipdéteses que déles decorrem. cisées no, ter)

Quem nao toma de-

quest6es a levaptar e nem mesmo é capaz de

formular uma hipdtese a testar que lhe permita colocar um problema e pesquisar a histéria em busca da resposta, Felizmente,

© positivismo se permitiu certos jufzos metaffsicos e ontoldgi-

cos, a despeito de seus preconceitos antimetafisicos e de suas pretensdcs em contrario. Sua fé no progresso ¢ seu realismo ingénuo constituem exemplos de tais jufzos ontoldgicos. Foram exatamente estas pressuposi¢des que possibilitaram ao positivismo efetuar tantas contribuigdes significativas, algumas das quais terfo de ser admitidas ainda por algum tempo. O perigo das pressuposicdes nao reside meramente no fato de existirem ou de serem anteriores ao conhecimento empirico.28 Reside, antes, no fato de que uma ontologia transmitida pela tradigfo obstrui novos desenvolvimentos, particularmente nos modos bdsicos de pensamento, e de que, enquanto a particularidade do quadro tedrico convencional permanece inquestionada, continuaremos na penosa lida com um modo estdtico de pensamento, inadequado ao presente estdgio de desenvolvimento in-

telectual e histérico.

Portanto, o que se precisa é de um alerta

diante uma andlise idcolégica, nao estaremos ao mesmo tempo erguendo uma nova construcio, ¢ se a mancira pela qual colocamos em ques-

tho erengas antigas nflo se acha inconscientemente envolvida na nova

decisio. Como certa vez dizia o sébio, “Frequentemente, quando alguém vem a mim em busca de canselho, fico sabendo, 4 medida que o escuto, de que moda @le se aconselha a si préprio.” 22 Um positivismo um tanta mais critica era mais modesto © estava disposto a admitir somenle um “minimo de pressupostos indis-

pensdveis”. Poderiamos levantar a questéo se éste “minimo de pressupostos indispensiveis” nfin acabaria por equivaler a irredutivel ontologia eiementar contida em nossas condigdes de existéncia.

26 Se o conhecimento ontologia seria inteiramente trair significados objetivados que somos capazcs de fazer

empirico nfo fésse precedido por uma inconcebivel, pois sdmente podemos exde uma dada realidade na medida em perguntas inteligentes ¢ reveladoras,

2 ee

114

116

TpzoLocia & Utopia

continuo em reconhecer que cada ponto-de-vista é particular a uma determinada situagdo definida, ¢ descob:i-se, pela andlise, em que consiste esta particularidade. Uma admissa- clara e explicita das suposigées metafisicas subjaccntes ao conhecimento empirico, e que o tornam possivel, ‘ard mais pelo esclarecimento e progresso da pesquisa do que uma negativa verbal da existéncia de tais pressuposicSes, acompanhada de sua admissdo sub-repticia quase clandestina.

IpgoLocia E Uropia

117

efetiva apenas imperfeitamente reflete. Os que sfio versados em

histéria intelectual reconheceréo que tal ponto-de-vista € diretamente derivado do misticismo. Os misticos jé sustentaram que existem verdades e valdres além do tempo e do espaco, e que o tempo e€ 0 espaco, e tudo o que dentro déles ocorra, nada mais sio do que aparéncias ilusdrias, quando compatados com a tealidade da experiancia extatica do mistico. Mas ma sua época os misticos nfo eram capazes de demonstrar a verdade de suas afirmagdes. O curso didrio dos acontecimentos eta aceito como uma

8. Juizos ONTOLOGICOS IMPLiCiros NA CONCEPCRKO

NAO-VALORATIVA DI IDEOLOGIA

Empreendemos esta incursdo nos campos da ontologia 27 ¢ do positivismo porque nos pareceu cssencial chegar a um enten-

dimento correto dus movimentos de pensamento nesta fase mais recenie da histdéria intelectual. O que descievemos como uma transigao imperceptivel da abordagem nao-valorativa A valorativa nado caracteriza apenas o nosso pensamento pessoal: ¢ tipico

de todo o desenvolvimento do pensamenty convemporaneo Nos sa conclusao, resultante desta andlise, é que a investigacdo histérica ce socioldgica déste perfoda foi originalmente dominada pelo ponto-de-vista nao-valorativo, de onde evoluvram duas orien. tagdes metaffsicas, significativas e alternativas. A escolha entre estas duas alternativas resolve-se, na presente situacho, da se-

guinte forma: por um lado, é possfvel accitar como um fato o

cardter transitério do evento histérico quando se tem a conviccio

de que o que realmente importa nao reside na propria mudaaga nem nos fatos que constituem esta mudanca. Segundo &ste ponto-de-vista, tudo o que seja temporal, tude o que seja social, todos os mitos coletivos, e todo o contetido das significagdes e das interpretacdes habitualmente atribufdos aos acontecimentos histéricos, pode ser ignorado, porque se pressente que, para além da abundancia e da multiplicidade de detalhes de que emerge a seqiiéncia histérica ordenada, residem as verdades uiltimas ¢ per manentes que transcendem a histéria ¢ para as quais o detathe histérico é irrelevante. Em conseqiiéncia, pensa-se existir uma fonte intuitiva e inspirada da histéria que a prépria histéria 27

Cf. do autor: “Die Strukturanalyse der Erkenntnistheorie”,

Ergénzungsband der Kant-Studien, N° 57

n° 1; pag. 52, n° 1.

(Berlim, 1922), pag. 37,

questo de fato, estdvel e concreta, e o incidente inusitado era encarado como a vontade arbitrdtia de Deus. © tradicionalismo tinha supremacia num mundo que, apesar de animado pelos acontecimentos, admitia sOmente uma forma, estdvel, de interpretalos. Além do mais, 0 tradicionalismo nao aceitava as teve-

lacSes do misticismo cm sua forma pura; antes as interpretava a luz de sua relacio com o sobrenatural, uma vez que esta experiéncia extdtica era considerada uma comunhao com Deus. A interdependéncia geral de todos os elementos de significado e sua rclatividade histdérica se tornou, entrementes, tao claramente reconhecida que quase passou a constituir uma verdade de senso

comum,

peralmente aceita

sem contestacao.

Oo

que em

uma €poca constitufa o conhecimento esotérico de uns poucos iniciados pode ser hoje em dia demonstrado a todo o munda metddicamente. Tao popular se tornou esta abordagem que a interpretacfo sociolégica, nao diversamente da interprctacao histérica, sera utilizada em certas circunstanclas para negat a realidade da experiéncia quotidiana e da histéria por aquéles que véem a realidade como existente fora da histéria, no dominio da experiéncia mistica e extatica. Por outro lado, hé um modoalternativo de abordagem que pode igualmente conduzir & pesquisa histérica e sociolégica. Surge da nocio de que as mudancas nas relagdes entre os acontecimentos e as idéias nao constituem o tesultado do designio atbitrario e voluntdrio, mas que estas relagSes, tanto em sua si-

multaneidade quanto em sua sucéssfo histérica, devem ser en-

caradas como se dando em uma determinada regularidade necessdtia que. apesar de nfo ser evidente na superficie, existe e pode ser compreendida. Desde que compreendamos o significado interno da histdétia e percebamos que nenhum de seus estdgios é permanente e

absoluto, mas pelo contrério que a natureza do processo histé-

rico apresenta um problema n4o-resolvido e desafiante, nao nos

123

ToEOLOGIA £ Uropia

Ipeotocia E UToPIa

contentaremos por muito tempo com o desinterésse orgulhoso do mistico pela histéria como “mera histéria”, Pode-se admitir que a vida humana sempre seja algo mais do que se descobriu ser em qualquer perfodo histérico ou em qualquer conjunto de condig6es sociais dado, e, mesmo ‘que depois de se haver levado

-vista que deprecia a importdncia da realidade histérica uma real compreensato da histéria. Um exame mais sério dos fatos ird mostrar que, apesar de nenhuma cristalizagio definitiva emergir do processo histérico, algo de profunda significacio transpira no dominio do histérico. O préprio fato de cada acontecimento ¢ cada elemento significativo da histéria estar ligado a

éstes fatéres em conta, restard ainda um dominio espiritual e

eterno além da histéria, jamais completamente subordinado a propria histéria e que confere uma significacio A histéria e a experiéncia social. Néao devemos concluir disto que a funcio

da histéria consista em fornecer um registro do que o homem nfo é, mas que, antes, devemos consider4-la a matriz pela qual

se €xpressa a natureza essencial do homem. A ascensdo dos séres humanos de meras peas da histdéria & estatura de homens decorre e se torna inteligivel no curso da vatiacio nas normas, formas e obtas da humanidade, no curso da mudanca nas instituigdes e objetivos coletivos, no curso de seus pressupostos € pontos-de-vista em transformacSo, em cujos térmos cada sujeito histérico-social toma consciéncia de si mesmo e faz uma apreciagaéo de seu passado. Existe, é claro, a disposicio de cada vez mais se encarar todos éstes fendmenos como sintomas e de se integré-los em um sistema, cuja unidade e significagdo torna-se nossa tarefa compreender. E mesmo que se conceda que 4 experiéncia mistica constitui o nico meio adequado de se revelar ao homem sua natureza ultima, ainda seria preciso admitir-se que o elemento inefével almejado pelos misticos deve necessitiamente manter alguma relacZo com a realidade histérica e social. Em Ultima andlise, os fatéres que moldam a realidade histdrica e social determinam também, de alguma forma, o préprio destino do homem, Talvez nao seja possivel que o elemento extatico da experiéncia humana, que na natureza do evento jamais se tevela ou se expressa diretamente, e cujo significado jamais podetia set plenamente comunicado, possa ser descoberto através dos vestigios que deixa na senda da histéria, dessa forma se revelando para nds. Este ponto-de-vista, que sem diiwida se baseia em uma atitude particular face 4 realidade histérica e social, revela tanto as

possibilidades quanto os limites a ela inerentes no que concer-

ne 4 compreensio da histéria e da vida social. Devido a seu desprézo pela histéria, uma visio mistica, que considera a histétia a partir de um fundamento em um outro mundo, corre 9 risco de nfo se aperceber de quaisquer das importantes licdes que a histéria oferece. Nao se pode esperar de um ponto-de-

119

uma posicdo situacional, espacial e temporal, e de que, por con-

seguinte, 0 que acontece uma vez ndo pode acontecer sempre, o fato de os acontecimentos e os significados na histéria nao

serem reversiveis, 2 suvia, a circunstancia de nao encontrar-

mos na histéria situagdes absolutas, indicam que a histéria sdmente € muda e sem significado para aquéle que nio espera dela aprender coisa alguma, ¢ que, no caso da histéria, mais do que em qualquer outra disciplina, 0 ponto-de-vista que encara a histéria como “rrzra bistérie”, como o fazem os mftticos, esta fadado a esterilidade. O estudo da histéria intelectual pode e deve ser realizado de tal forma que veré, na seqliéncia e na coexisténcia de fend-

menos, mais do que meras relagdes acidentais, e buscard desco-

brir, na totalidade do complexo histérico, o papel, a importancla e 0 sipnificado de cada elemento componente, E com éste tipo de abordagem socioldgica da histéria que nos identificamos, Se esta penctracio fér progressivamente efetuada em de-

talhes concretos, ao invés de se permitir permanecer em uma

base puramente especulativa, e se cada avanco fr realizado com

base em material concreto acessivel, alcancaremos finalmente uma

disciplina que colocaré 4 nossa disposigdo uma técnica socioldgica para diagnosticar a cultura de uma época. Procuramo-nos aproximar déste objetivo nos capitulos anteriores que tentavam mostrar o valor da concepcdo de ideologia para a andlise da situacdo intelectual contemporanea. Ao analisar os diferentes tipos de ideologia, nao pretendiamos simplesmente alinhar casos diferentes de significado do térmo, mas objectivavamos pelo contrério apresentar, na seqiiéncia de seus significados cambiantes, um corte transversal da situagao intelectual e social total de nossos dias. Um tal método de diagnosticar uma época, embora possa iniciar-se ndo-valorativamente, nao permanecerd dessa forma por longo tempo. Seremos eventualmente forcados a assumir uma posicio valorativa.

A passagem a um ponto-de-vista

valorativo é exigida desde o inicio pelo fato de a histéria enquanto histéria ser ininteligivel a menos que se enfatize alguns de seus aspectos em contraste com outros. Esta selecdo e énfase

120

Tozotocta & UToria

IpEoLociA E Utopia

de determinados aspectos da totalidade histérica podem ser encaradas como o primeiro passo na diresio que, em Ultima anélise, conduz a um procedimento valorativo ¢ a juizos ontoldgicos.

121

Em conseqiténcia, em nosso ponto-de-vista, uma atitude ética nao seria valida se estivesse orientada para normas com as quais a acéo, em um dado ambiente histérico, ainda que com as melhotes intencdes, ndo pudesse concordar. Seria entdo in-

vélida quando nZo se pudesse mais conceber a ago nfo Etica-

9.

O

PROBLEMA DA FALSA CONSCIENCIA

Através do processo dialético da histéria ocorre inevitavelmente a gradativa passagem da concepgao de ideologia njo-valorativa, total ¢ genérica & concepcao valorativa (cf. anterior-

mente). A valoracéo a que agora aludimos, entretanto, difere bastante da que encaramos e descrevemos anteriormente. Nao mais aceitamos os valéres de um dado perfodo como absolutos, e j& no podemos, daqui por diante, desconhecer a compreensao de que as normas e os valéres se achem histdrica e socialmente determinados. A énfase ontoldgica se transfere agora para outro conjunto de problemas. Sua finalidade ser4 a de distinguir o verdadeiro do nio-verdadeiro, 0 auténtico do espirio dentre as normas, modos de pensamento e padrées de comportamento existentes lado a lado em um dado periodo histérico, O perigo

da ‘“‘falsa consciéncia” n@o estd, em nossos dias, no fato de esta

nao poder captar uma realidade absoluta imutavel, mas, a ites, no de obstruir a compreensao de uma realidade que é 0 resulta-

do da constante reorganizacéo dos processos mentais que compoem os mundos em gue vivemos, Torna-se portanto compreen-

sivel porque, impelidos pelos processos dialéticos do pensamento, seja necessério concenttarmos com maior intensidade nossa

atengiio sébre a tarefa de determinar quais, de todas as idéias em curso, sao as realmente vdlidas cm uma dada situacio. A luz dos problemas com que nos defrontamos na atual crise do

pensamento, vai-sc encontrar a questo da ‘‘falsa consciéncia” em um ndvo contexto. A nociio da “falsa consciéncia’ j4 apare-

cera em uma de suas mais modernas formas quando, deixando de se referir aos fatéres religiosos transcendentais, transferiu sua procura do critério da realidade para o campo da pratica e, em especial, para a da pratica politica, de uma maneira que evocava O pragmatismo. Mas em oposicio 4 sua formulacdo moderna, faltalhe ainda um sentido do histérico. Ainda se encaravam o pensamento e a existéncia como pdélos fixos ¢ sepa-

rados, mantendo uma relacdo estética um coin o outro em um

universo imutdvel.

Sdmente agora ¢ que o névo sentido his-

térico comeca a ter penetragao e que se pode conceber um conceito dinamico de ideologia e realidade.

mente aceita do individuo como devida a sua transgtessdo pessoal, devendo-se antes atribuila A compulsio de um conjunto de axiomas morais de bases erradas. A interpretagdo moral de uma de nossas préprias acdes é invdlida quando, por férga dos modos de pensamento e concepcdes da vida tradicionais, nao permita a adaptacdo da acko e do pensamento a uma situacao nova e cambiante e, afinal, obscureca e entrave tealmente éste ajustamento e esta transformagio do homem. Uma teoria serd

portanto errada se, em uma dada situacdo pratica, usar concei-

tos ¢ categorias que, utilizados, impediriam o homem de se adaptar aquele estdgio histérico. Normas, modos de pensamento e teorias antiquados e inaplicdveis tendem a degenerar em ideologias, cuja func&o consiste em ocultar o teal significado da conduta, a0 invés de reveld-lo. Nos pardgrafos seguintes citamos uns poucos exemplos caracteristicos dos mais importantes tipos de pensamento que acabamos de descrever. A histéria do tabu levantado contra a cobranca de juros de empréstimos ?* pode servir como exemplo da evolucio de uma ética antiga para uma ideologia. O regulamento de que o empréstimo se efetuasse sem juros sdmente poderia ser pdsto em pratica em uma sociedade que se baseasse econdmica e socialmente em relacées de intimidade e boa vizinhanga. Neste mundo social, o “empréstimo sem juros” € um costume que impde observancia sem dificuldade, porque constitui uma forma de comportamento que corresponde fundamentalmente 4 estrututa social. Surgindo em um mundo derelagdes de intimidade e boa

vizinhanea, éste preceito foi assimilado e formalizado pela Igre-

ja em seu sistema ético, Quanto mais, porém, mudava a real estrutura da sociedade, tanto mais éste preceito ético assumia um carater ideolégico ¢ se tornava incapaz de aceitacao pratica.

Sua arbitrariedade e irrealidade se tornaram ainda mais eviden-

tes quando, no petiodo do capitalismo ascendente, tendo muda28

Para a documentacio histérica déste caso, cf. Max Weber,

Wirtschaft und Gesellschaft. Grondriss der Sozialékonomik, Parte 1,

pags, 801 e segs.

122

$+

Ipecrocia © Uroprs

SIA gc UL its

do sua func&o, poderia ser usado como uma arma nas maos da Igreja contra a emergente férca econdmica do capitalismo, No decurso da emergéncia do capitalismo, a natureza ideoldgica desta norma, que se exprimia no fato de que, quando muito ela era contornada, mas jamais obedecida, tornou-se t&o patente que

até a Igreja a abandonou.

Como exemplos da “falsa consciéncia”, assumindo a forma de uma interpretacZo incorreta de si mesmo e seu papel, podemoscitar aquéles casos em que as pessoas tentam encobrir suas relagSes ‘“‘reais’ consigo mesmas € com o mundo, e falseiam

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Esta concepgio de ideologia (o conceito de utopia sera tratado na Parte IV) ® pode ser caracterizada como valorativa e dinamica. Valorativa porque pressupde determinados juizos con-

cernentes a realidade das idéias e das estruturas de consciéncia,

e dindmica porque tais jufzos so sempre medides por uma realidade em constante fluxo. *} Embora estas distingSes possam parecer 4 primeira vista

bastante complicadas, acreditamos nao serem nada artificiais,

para si mesmas os fatos bdsicos da existéncia humana, deifican-

porque nada mais sio do que uma formulacdo precisa de implicacées j4 contidas na linguagem cotidiana de nosso mundo moderno e uma tentativa explicita de enquadrd-las logicamente.

“mitos”, adoramos ‘a grandeza em si”, invocamos submissio

varios tipos deformados de estrutura mental interna, uns por

do-os, romantizando-os ou idealizando-os, recorrendo, em suma, ao artificio de fugirem de si mesmas e do mundo, dando margem a falsas interpretacdes da experiéncia. Temos, portanto, um caso de distorg%0 ideolégica quando tentamos resolver conflitos e ansiedades recorrendo a absolutos, se bem que j4 nao é mais possivel viver de acérdo com astes. ‘Tal se dd quando criamos

a “ddeais”, ao passo que em nossa conduta efetiva seguimos outros interésses, que tentamos mascarar simulando uma retidao inconsciente, que € por demais transparente. Encontramos, finalmente, um exemplo do terceiro tipo de distorcéo ideoldgica

quando esta ideologia como uma forma de conhecimento niio ¢

mais adequada para a compreensio da mundo atual. O que poderfamos exemplificar com o proprietério de terras, cujos bens j& se tivessem tornado uma emprésa capitalista, mas que ainda tenta explicar suas relagSes com os seus lavradores ¢ sua prépria funcSo na emprésa por meio de categorias remanescentes da otdem patriarcal. Se tomarmos uma visdéo de conjunto de todos

Esta concepcéo de ideologia (e de utopia) sustenta que, para além das fontes de érro comumente reconhecidas, devemos admitir igualmente os efeitos de uma estrutura mental deformada. Reconhece o fato de que a “realidade” que nao conseguimos compreender pode ser uma realidade dinamica; e de que, na mesma época histérica ¢ na mesma sociedade, possam existir

ainda nfo haverem chegado ao presente, outros por ja se en-

contrarem além do presente. Em qualquer dos casos, entretanto, a realidade a ser compreendida se acha deformada e dissimulada, pois esta concepcao da ideologia e da utopia trata de uma realidade que se desenroa sdmente na prdtica efetiva. Em todo caso, tédas as suposicdes contidas na concep¢do valorativa e dinamica de ideologia repousam sébre experiéncias que, no mé-

ximo, poderiam ser entendidas de uma maneira diferente da

aqui desenvolvida, mas que em nenhuma hipétese poderiam ser deixadas 4 margem.

éstes casos individuais, vemos a nocdo de “falsa consciancia”

assumindo um névo significado. Visto déste ponto-de-vista, 0 conhecimento é destorcido e ideolégico quando deixa de levar

em conta as novas realidades ao se aplicar uma situacio, e quando tenta ocultd-las ao refleti-las com categorias impréprias. 29

29 Uma pereepe&io pode ser errénea ou inadequada a situagio, por estar mais avangada com relagdo a esta, bem como por ser demasiadamente antiquada. Investigaremos esta questio com maior precisio na Parte IV, em que tratamos da mentalidade utépica. Por enquanto basta observar que estas formas de percepcio podem também antecipar-se 4 situagao, bem como se limitar a segui-la,

Esperamos demonstrar, ao tratarmos da mentalidade ut6pica,

que a visio utépica, que transcende o presente e se orienta para o futuro, néo constitui um mero caso negativo da perspectiva ideoldégica, que oculta o presente procurando compreendé-lo em térmos do passado. 31

Esta concepgio de ideologia somente 6 concebivel no nivel

do tipo genérico e total de ideologia, constituindo o segundo tipo valorativo de ideologia que distinguimos anteriormente do primeira conceito, ou conceito néo-valorativo, Cf, pags, 105 e segs; pag. 103, nota 17; pag. 114, nota 24; pags. 119 e segs., da Parte Il.

124

10. A PROCURA DA REALIDADE ATRAVES DA ANALISE

DA IDEOLOGIA E DA UTOPIA

A tentativa de escapar as deformacdes ideoldgicas e utdpicas constitui, em Ultima andlise, a procura da realidade. Estas duas concepgdes fornecem-nos uma base para um ceticismo firme, e podem ser utilizadas positivamente para evitar as armadilhas a que 0 nosso pensamento nos poderia levat. LEspecificamente, podem ser usadas para combater a tendéncla a separarmos, em

nossa vida intelectual, o pensamento do mundo da realidade, a dissimular a realidade ou a exceder seus limites. O pensamento deveria conter nem mais nem menos do que a realidade em cujo meio opera. Assim como a verdadeira beleza de um estilo literdrio forte consiste em exprimir exatamente o que se pretende — em comunicar nem de mais, nem de menos — assim

o elemento valido de nosso conhecimento se determina mais pela aproxiiagao do que pelo afastamento da situacio efetiva a ser compreendida. Ao considerar as nocdes de ideologia e de utopia, a questao da natureza da realidade entra novamente em cena. Ambos os conceitos contém o imperativo de que cada idéia deva ser julgada por sua congruéncia com a tealidade. Contudo, enquanto isso, mesmo a nossa concepsSo de realidade foi revista e posta em questao. Todos os grupos e classes conflitantes da sociedade buscam esta realidade em seus pensamentos e em seus atos, nao sendo por conseguinte de estranhar que esta paresa ser di-

ferente pata cada um déles.82

Se o problema da natureza da

Com relacio A diferenciag&o de ontologia de acérdo com as posigdes sociais, cf. meu trabalho “Das konservative Denken”, loc. cit.,

parte Il.

Cf. ainda Eppstein, P., “Dic Fragestcllung nach der Wirklich-

keit im historischen Materialismus”, em Archiv ftir Sozialtorssenschaft und Sozialpolitik, 1x (1928), pags, 449 ¢ segs.

O leitor cuidadoso notarA talvez que a partir déste ponto a con-

cepeao valoraliva de ideologia tende mais uma vez a assumir a forma da concepeao nfo-valorativa, o que, no entanto, 6 devido & nossa intenc&o de descobrir uma solucfo valorativa. A mstabilidade na definigdo do conceito faz parte da técnica de pesquisa que, podcriamos dizer, teria atingido a maturidade, recusando-se, por isso, a se escravi+

zar a qualquer ponto-de-vista particular que possa restringir scu campo de viséo.

ste rclacionismo dimimico constitui a nica saida possi-

vel para a situacgdo no mundo em que nos encontramos, onde vemno-nas

125

IpgoLocra E UToPia

IpEoLocia E Uropia

especulativo da imagirealidade nado passasse de mero produto a medida que nos nacio, poderfamos facilmente ignoré-lo. Mas, amente a

€ exat adiantamos, torna-se cada vez mais evidente que uz a multi-

prod multiplicidade das concepgdes de realidade que cada juizo onque ¢ to, amen pens de s plicidade de nossos modo a mais extensas tolégico que fagamos conduz inevitavelmente conseqiiéncias.

ontoSc examinarmos os varlos t1pOs de juizos

apresentam, comelégicos com que os diferentes grupos se nos um mun-

em camos a suspeitar que cada grupo parece mover-se

conflitantes, cadaum diante de uma multiplicidade de pontos-de-vista os oportuni age tivem como , embora a, absolut de déles a requerer valida lar, sendo particu o posica uma a de demonstrar, estejam relacionados a que esto relacionaoe S& o posigi esta a te ivamen exclus ados adequ e pontos-de-¥ ta ore mente apos haver assimilado tédas as motivagSes msao p atual nossa por ndem ciais, cujas contradigdes internas respo

de chegar a uma Mtica ¢ social, estard o investigador em condigdes Se 0 investigar, a0 vida. de ao adequada a nossa atual situac

posig&io definitiva, optar por incor invés de assumir de imediato uma posicao ria conflitante, seu pensaadité contr porar A sua visio cada corrente de rigido e dogms co. invés ao co, dialéti e l flexive rd mento resulta to de queexistam. muiecimen reconh franco 0 e Esta elasticidade conceptual

liaveis niio deverao, entrctantes tas contradigSes até aqui ainda inconci , oediedes apesar

de

que isto

ocorra

a visio do investigador.

com

grande freqiiéncia nha

pratica

Na verdade, a descoberta de con dices

constituir um esting ainda nfo solucionadas dever4, pelo contrario, , comevee requer &o situag ao tipo de pensamento que a atual 0 jetivo ee er tee por temos e, orment anteri r indica de oportunidade & os na vida intelec © que exista de ambiguo e de questiondvel i ndo busea e, contrél do e sos dias ao nivel da consciéncia desperta bel os te ntemen freqie sos engano tos elemen os esta finalidade assinalar procedimento com estas oe e dissimulados em nosso pensamento, Um co que deve rejeitar dindmi onismo relaci um em racteristicas resulta s ge jamasistema atraye do efetua qualquer sistema fechado, ja que foi

icos, cujas limi acesFie tizacdlo de elementos distintos ¢ especif lee : podemos indagar se a Poss ‘

naram aparentes, Além disso, um sistema fechado nfo va necessidade de um sistema aberto ou de com as posigoes sociais. acérdo de e épocas as riam de acérdo com cer o leitor no 8 nto esclare a Mesmo estas poucas observagées visam pensamen' °, sejam nosso em usados agéao formul de de que os tipos a mais ov meios sim e rias, quais forem, nap sao criagdes arbitra de exis éncia e. ° formas das o domini e o ecnsa compr de adequados se exprimem nos v' 8 po pensamento cm constante mudanga que tes & implicag&o socio! ogica de formulacéo. Alguns comentarios referen em ‘Das konservative Denram-se encont mento pensa dos “sistemas” de ken”, op. cit., pags. 86 e segs.

124

do de idéias separado e distinto, e que éstes diferentes sistemas de pensamento, freqiientemente em conflito um com o outro, podem ser em iltima andlise reduzidos a diferentes modos de experimentat a “mesma” realidade. Claro que poderfamos ignorar esta crise de nossa vida intelectual, como geralmente se faz na vida prdtica cotidiana, em

cujo decurso nos contentamos com encafar as coisas e suas te lagSes como se féssem acontecimentos isolados cada um testrito a seu contexto particular imediato, 93

Enquanto encararmos

os objetos de nossa experiéncia de um ponto de apoio particular e na medida exata em que nossos recursos conceptuais bastem pata lidar com uma esfera de vida altamente restrita jamais tomaremos consciéncia da necessidade de inquiricfo sébre o inter-relacionamento total dos fendmenos. Quando muito, em tais circunstancias, iriamos ocasionalmente encontrar alguma obscuridade que, entretanto, somos normalmente capazes de superar na pratica. Dessa forma, a experiéncia cotidiana tem por longo tempo operado com sistemas mdgicos de explicacio; e até a um certo est4gio de desenvolvimento histérico tais sistemas eram 33

127

ipec -Gia £ UloPIA

. SOLOGIA E Urop1a

Nada seria mais sem sentido ou incorreto do que argumentar

déste modo: “Desde que cada forma de pensamento politico e histético esté baseada até certo ponto em afirmagdes metatedricas, segue-se que nao podemos confiar em nenhuma idéia ou forma de pensamento, sendo portanto absolutamente indiferente quais os argumentos teéricos empregados em um caso especifico. Cada um deve, por conseguinte,

fiar-se em suas intuigdes pessoais e particulares, ou em seus interésses

privados, o que melhor lhe convier, Se assim fizéssemos, ¢ nao importa o partidarismo da visio de cada um, poderiamos manter nossos pontos-de-vista em boa consciéncia, e até sentirmo-nos satisfeitos a éste respeito”. Em defesa de nossa andlise contra a tentativa de utiliza-la para fins propagandisticos do tipo das que se caemphficou aci-

ma, é preciso mostrar que existe uma diferenca fundamental entre, de um lado, um partidatismo cego e« o irracionahsmo naseidos de mera

indoléncia mental, que na atividade intelectual enxerga apenas juizos e propaganda pessoais e arbitrarios, e, do outro, o tipo de inquirigéo voltado para uma andlise objetiva que, depois de eliminar téda a valoragdo consciente, percebe a existéncia de um irredutivel residuo de

valoragio inerente A estrutura de todo o pensamento.

(Para uma ex-

posigao mais detalhada cf. as formulacGes finais da discussio contida

em meu artigo, “Die Bedeutung der Konkurrenz im Gebicte des Geistigen”, e minhas observacdes ao artigo de W. Sombart sdbre metodologia apresentado na mesma ocasiao, Verhandlungen des seohsten deutschen Soziologentages, loc. cit.)

as situacoes de * oda priadequades para lidar empiricamente com cpocas muis rem0para mitiva encontradas. © problema tanto maneira seguinda o ulad form ser tas quanto para a nossa pode o campo de cxperiénte: em que condigdes podemos dizer que fundamentalmente gue te cia de um grupo tenha mudado tao ia entre modo tradicionha se tornado aparente a discrepanc de experiencia (a serem nal de pensamento e€ os novos objetos uma o amento)? compreendidos por éste modo de pens

Serla

enderse que as e¢xp) & plicagdo por demais intelectualistica pret das por quaisquer ee nacdes antigas tenham sido abandona

, porém, ¢ra uma muc ange tedricas. Nestes periodes anteriores acarretava a eliminagao € efetiva nas experiéncias sociais que estivessem

que nfo cettas atitudes ¢ esquemas de interpretagdo s fundamentais. nova as ruéneia com certas experiénci em cong

-de-vista de sua As Ciéncias Culturais especiais, do ponto ecimento. empl conh ° que do mais particularidade, nao valem visualizam os objetos do co cotidiano. ‘Também estas disciplinas s de maneira abstrata, conhecimento ¢ formulam seus problema Ocorre, As vezes, que destacando-os de seus quadros concretos. com a

se faca de acérdo a formulacéo coerente dos problemas apresentam, ¢ nab merase que com efetiva conexdo organica enquadrados pela discimente no sentido em que possam ser iz um certo estagio, esta plina. Mas freqientemente, ao se ating

perdida. As quest6es ordem organica e coerente € subisamente do a maneira limidevi seja , histéricas sio sempre monograficas do a especializadevi seja to, assun o tada pela qual se concebe é de fato necessizic, cao do traramento. Para a histéria, isso lho impde certas miuma vez que a divisao académica do traba se auto-clogia por tagdes. Mas quando © pesquisador empirico ializada ditada pelas sua recusa em ir além da observacao espec que sejam, éle sivas inclu tradicSes de sua disciplina, por mais protege contra o que a defes esté utilizando um mecanismo de os. upost © questionamento de seus press jamais transcende Mesmo aquéle tipo de investigagao que e

os mats dados os limites de sua especalidade pode fornecer-n o verdade. que seja mesm enriquecer nossa experiéncia. Talvez -de-vista apropriado. ponto o seria éste que em época houve uma devem questioNaturais Mas assim como também as Ciéncias

logo uma discrepannar suas hipéteses ¢ seus pressupostos, tio e assim comoums cia surja a partir dos fatos que abordam, possivel quando os pesquisa empirica ulterior sdmente se torna

128

IpgoLocia © Uroria

IpzoLocia E Uropia

cinones gerais de explicacdo tenham sido revistos, assim nas Ciéncias Culturais atingimos atualmente um ponto em que os nossos dados empiricos nos levam a levantar determinadas ques-

nambula com referéncia ao problema da verdade, durante os petiodos de estabilidade da histéria, torna-se dessa maneira inteligivel. Contudo, uma vez quebrada a unanimidade, *4 as ca-

tOes a respeito de nossos pressupostos.

A pesquisa empirica que se limite a uma esfera particular

Ocupa por um longo tempo a mesma posicio do senso comum,

vale dizer, a natureza problemdtica ¢ a incucicncia de sua base tedrica permanecem ocultas porque a situacdo total jamais é levada em consideragdo. Sustentava-se com justiga que a mente hu-

mana pode realizar as mais hicidas observagdes com os conceito s

mais inconsistentes. Mas atinge-se uma crise quando se intenta refletir sObre estas observagdes e definir os conceitos fundamentais das disciplinas em questdo. A exatidao desta afitmativa se manifesta pelo fato de que, em determinadas disciplinas, as investigagGes empiricas sio conduzidas tao trangiiilamente como de costume, enquanto se observa uma verdadeira guerra a res-

peito dos conceitos tundamentais e dos problemas da ciéncia. Mesmo esta afitmativa, entretanto, é limitada, porque & guisa de uma proposigfo cientiiica destinada a deter uma significagao geral, formula uma situacio da ciéncia que sdmente caracteriza um dado periodo.

Quando, no inicio do século atual,

estas idéias comecaram a ser formuladas, os sintomas da crise sémente eram visiveis na periferia da pesquisa, em discuss6es re-

lativas a principios ¢ definicées. Tloje em dia, a situagio mudou

~— a crise pencirou até 0 prdprio coracio da pesquisa empifrica. A multiplicidade de possiveis pontos de partida e definigdes a competigao entre os varios pontos-de-vista influem até na per cepgao do que antes parecia ser uma relacio tinica e sem complicagdes. Ninguém nega a possibilidade da pesquisa empirica e nin-

guém sustenta que os fatos niéio existem. (Nada nos parece mais incorreto do que uma teoria ilusionista do conhecimento.) Também recorremos a “fatos” para nossa comprovacéo, mas a

quest4o da natureza dos fatos constitui em si mesma um problema a ser considerado. Eles existem para a mente sempre dentro de um contexto intelectual e social. O fato de poderem ser compreendidos e formulados j4 implica a existéncia de um aparato conceptual. E, se éste aparato conceptual é 0 mesmo para todos os membros de um grupo, as pressuposicées (isto é, os possiveis valéres intelectuais e sociais), subjacentes aos conceitos individuais, jamais se tornam perceptiveis.- A certeza so-

129

tegorias fixas que serviam para dar a experiéncia o seu cardter

seguro € coerente softem uma desintegracao inevitdvel.

Surgem

modos de pensamento divergentes e conflitantes que (sem 0 co-

nhecimento do sujeito pensante) ordenam os mesmos fatos da

experiéncia em diferentes sistemas de pensamento, fazendo-os setem percebidos através de diferentes categorias ldgicas. Isto resulta na peculiar perspectiva a nés imposta por nossos conceitor, e que fazem que o mesmo objeto apareca diferentemente, de acdrdo com o conjunto de conceitos com que o ve-

mos.

Em conseqiiéncia, nosso conhecimento da “realidade”, na

medida em que vai assimilando cada vez mais tais perspectivas

divergentes, se tornard mais amplo. O que antes aparentava ser meramente uma matgem deininteligibilidade, que nao podia ser abarcada por um dado conceito, deu origem, hoje em dia, a um conceito complementar e as vézes oposto, por meio do qual se pode obter um conhecimento mais inclusivo do objeto. Mesmo na pesquisa empirica, reconnecemos cada vez mais

claramente a grande importancia do problema da identidade ou da falta de identidade de nossos pontos-de-vista fundamentais. Para os que se preocuparam sériamente sdbre isto, ° problema apresentado pela multiplicidade de pontos-de-vista é claramente indicado pela limitacdo particular a téda definigio. Esta limitacao foi reconhecida ror Max Weber, por exemplo, mas Weber justificava um ponto-de-vista particularista fundado em que 9 interésse particular que motiva a investigagdo determina a definicdo especifica a ser usada. Nossa definigfo de conceitos depende de nossa posic&o €

ponto-de-vista influenciados, por seu turho, por um bom ndmeto de passos inconscientes de nosso taciocinio. A primeira reacao do pensador, ao se ver confrontado com a natureza limitada

e com a ambigiidade de suas nogdes, é bloquear por quanto‘ tempo seja possivel o caminho para uma formulacio total e sistemdtica do problema. O positivismo, por exemplo, esforcou-se

enormemente para ocultar a si mesmo o gbismo existente por 34

Para maiores detalhes no que respeita & causa sociolégica desta

desintegracio, cf, 0 artigo do autor, “Die Bedeutung der Konkurrenz im Gebiete des Geistigen”, > loc. cit.

130

IproLocia E Urorta

trds de todo o pensamento particularista.

IproLocia & Uropra

Por um lado, isto cra

necessdrio para promover o seguro prosscguimento de sua pes-

quisa dos problema dade com Dois

fatos, mas, por outro lado, a sua recusa de tratar do conduziu repetidas vézes A obscuridade ¢ A ambiguirelagZo a questGes referentes ao ‘“‘todo”. dogmas tipicos impediam particularmente que se le-

vantassem temas fundamentais. O primeiro déles era a teoria que simplesmente considerava irrelevantes as questdes metaffsi-

cas, filos6ficas e assemelhadas. De acdrdo com esta teoria, apenas as formas especializadas de conhecimento empirico possufam qualquer direito & validade. Até a Filosofia eta considerada uma disciplina especial cuja preocupa¢aéo primorial e legitima era 16gica. O segundo déstes dogmas, que bloqueavam oa caminho para uma perspectiva do todo, tentava uma conciliagdo, dividindo o campo em duas dreas muituamente exclusivas a serem ocupa-

das respectivamente pela ciéncia empirica e pela Filosofia — para

as questées particulares e imediatas a primeira fornecia respostas certas e itrecusdveis, 40 passo que para as questdes gerais e para os problemas do “‘todo” se recorria a especulagdes filosdficas “mais elevadas”. Isto implicava, quanto A Filosofia, o abandono da pretensdo de que suas conclusées estivessem basea-

das em uma evidéncia universalmente vélida.

Uma solugfo destas se assemclha estranhamente ao distico dos tedricos da monarquia constitucional, que proclama: “O rei

reina, mas nao governa”. Dessa forma, concedem-se tddas as honras 4 Filosofia. -A especulacdo e a intuig&o sfo, em deter-

minadas circunst4ncias, consideradas instrumentos mais elevados do conhecimento, mas apenas sob a condicdo de que nao se

imiscuam na investigagio empfrica positiva, democratica e universalmente vélida. E assim, mais uma vez, evita-se o problema

do “todo”. A ciéncia empirica pés de lado @ste problema, e nao st pode inctiminar a Filosofia, que sdmente é responsdvel perante Deus. Sua evidéncia somente é valida no dominio da especulag&éo e sémente é confirmada pela intuigdo pura. A conseqiiéncia de uma tal dicotomia € que a Filosofia, que deveria ter a tarefa vital de esclarecer o espirito do observador dentro da situacao total, néo se acha em condigdes de fazé-lo, uma vez que perdeu contato com o todo, limitando-se a um dominio

“mais elevado”, Ao mesmo tempo, o especialista, com seu ponto-de-vista tradicional (particularista), acha impossivel alcancar esta visio mais ampla, que se faz tio necessdria na atual

condicgao da investigacdéo empirica.

Para o dominio de cada si-

131

tuacio histérica, requer-se uina determinada cstrutura de pen-

samento que surgird em resposta ds demandas dos problemas reais ¢ efetivos encontrados, capaz de integrar o que haja de relevante nos varios pontos-de-vista em conflito.

‘Também neste caso

& necessitio descobri um ponto de partida axiomitico mais fundamental, uma posicio de onde seja possivel sintetizar a situacho total,

Uma dissimulagio temerosa ¢ incerta das contra

digdes ¢ omissGes nao nos tard san da crise, da mesma forma gue nio o farao os métodos da extrema direita ¢ da extrema esquerda, que a exploram na propaganda para a glorificagio do

passado Ou do

futuro,

esquecendy se

momentaneamente

que sua

propria posiclo est4 sujeita & mesma critica, lampouco sera de grande valia interpretar a unilateralidade ¢ o cardter limitado

da perspectiva do adversdrio como sendo meramente outra proIsto sbmente pode ser feito quando va da crise neste campo

um método nao esté scado quesuonado por nenhum outro, c, em conseqiéncia, somente rs medida cm que mio se tenha cons-

ciéncia das limitagdes de scu préprio ponto-de-vista. Somer . quando estivermos completamente conscientes do ambito limitado de cada ponto-de-wista, estaremos a caminho da almejada compreensio do todo. A crise no pensamento nao é uma crise que simplesmente afete uma tinica posigdo intelectual,

mas uma crise de todo um mundo que tenha atingido um certo estdgio de desenvolvimento intelectual. Ver mais claramente a conlusdo em que a nossa vida intelectual e social caiu representa

mais um entiquecimento do que uma perda. Que a raz&o possa penctrar mais profundamente em sua propria estrutura nado cons-

titui um indicio de faléncia intelectual. Nem se deve encarar como incompeténcia intelectual de nossa parte que um extraordingrio alargamenta de perspectiva necessite de uma revisio aprofundada de nossas, concepgdes fundamentais. O pensamento é um processo determinado por férgas sociais efetivas, continuamente questionando suas descobertas e corrigindo seu procedimento,

(Por esta razfio seria fatal recusar-se a reconhecer, de-

vido A puta timidez, o que jA se tornou claro.) Entretanto, o aspecto mais promissor da atual situagio é que jamais podere-

mos estar satisfeitos com perspectivas estreitas, e constantemente procuraremos compreender ¢ interpretar intuigSes particulares em um contexto sempre mais inclusivo. Até Ranke, em sua Politische Gesprach, colocou as seguin-

tes palavras na béca de Frederick: ‘‘Jamais serés capaz de alcancar a verdade meramente escutando afirmagdes extremas. A ver-

132

IpEoLocia & Uropra

Ipzorocia E Uropia

dade reside sempre fora do dominio onde se encontra o érro. Mesmo de tédas as formas de érro tomadas cm conjunto seria impossivel extrair a verdade. A verdade tera de ser buscada e encontrada por seu préprio beneficio e em seu préprio domini o. Tédas as heresias do mundo nfo irdo te ensinar o que seja o ctistlanismo —~ que sOmente pode ser aprendido no Evange Iho.” 85 Idéias tao simples e modestas, em sua puteza e ingenuidade, sao remanescentes de algum Eden que nada sabe do reerguimento do conhecimento depois da Queda. Descob re-se com demasiada freqiiéncia, que a sintese, apresentada com a cer. teza de que abarca o mundo, resulta set, afinal, ex; ressio do mais estreito provincianismo e que a adocdo sem critica de

suas prdéprias atividades no contexto do todo. E verdade que sua perspectiva pode permanecer tdo limitada quanto o permita seu estreito Ambito de experiéncia; talvez a dimensio em que analisasse sua situag&o nao transcendesse o 4mbito da pequena cidade ou do circulo social limitado em que se movesse. Nao obstante, ttatar acontecimentos e séres humanos como partes de situagGes similares as situacdSes em que ela prdépria se encontra representa algo bastante diferente do que meramente reagir imediatamente a um estimulo ou a uma impressao direta. Tendo

qualquer ponto-de-vista que esteja 4 mao vonstitui uma das mais

certas maneiras de se impedir o atingimento da compreensZo cada vez mais ampla e mais compreensiva possivel, hoje em dia. A totalidade, no sentido em que a concebemos, nao é uma viséo da realidade imediata e eternamente vélida, sOmente atri-

buivel a olhos divinos.

€ autodelimitado,

Nao se trata de um horizonte estdvel

Pelo contrdrio, uma visio total implica tanto

a assimilagiio quanto a transcendéncia das limitagdes dos pontos-

-de-vista particulares. Representa o continuo processo de expansio do conhecimento, possuindo como objetivo nao atingir uma conelusao vdlida supratemporalmente, mas a extensio mais ampla possivel de nosso horizonte de vis QO, . Tirando da experiéneia cotidiana uma ilustragao simples déste esfarco em direcio a uma visio total, podemos tomar o

caso de um individuo em uma dada posigio na vida, que se ocupa dos problemas concretos individuais que encontra e sibitamente desperta e descobre as condicdes fundamentais que determinam a sua existéncia intelectual e social. Neste caso, uma

pessoa que se ocupa continua e exclusivamente com suas tarefas diarias nfo assumiria uma atitude inquisidora com relacio a si

mesma e sua posicao, €, no entanto, esta pessoa, a despeit o de

Sua seguranca, seria présa de um ponto-de-vista patticularista e parcial até que atingisse a crise que lhe trouxesse a perda das ilus6es. No setia senio no momento em que pela primeira vez concebesse a si mesmo como sendo parte de uma situacdo concreta mais ampla, que iria nela despertar o impulso de ver 35 Ranke, Das politische Gespriich, ed. Rothacker (Halle, 1925), pag. 13,

133

o individuo captado o método de se orientar no mundo, ser4

inevitavelmente levado para além do estreito horizonte de sua propria cidade, aprendendo a se compreender como parte de uma situagdo nacional e, mais tarde, de uma situacao mundial. Da mesma maneira, seré capaz de compreender a posigio de sua propria geracdo, sua situacao imediata dentro da época em que vive, e éste perfodo, por sex turno, como parte do processo hiv térico total. Em seus contornos estruturais, éste tipo de orientacdo para a situagéo pessoal representa em miniatura o fenédmeno de que falamos como o impulso cada vez mais amplo em direcdo a uma concepgao total Embora o material implicado nesta reorienta-

Gio seja o mesmo das observacSes individuais que constituem a

investigagao empirica, a finalidade aqui é bastante diferente. A andlise situacional € 0 modo de pensamento em tédas as formas de experiéncia que se erguem acima do nivel do lugar-comum. As possibilidades desta abordagem nao s§o utilizadas plenamente pelas disciplinas especiais porque, de ordindrio, seus objetos de estudo sio delimitados por pontos-de-vista altamente especializados. Contudo, a Sociologia do Conhecimento pro-

cura encarar até mesmo a crise em nosso pensamento como uma

situagao que devemos visualizar como parte de um todo maior, Se em uma situa¢do tao complicada como a nossa, precedida por um desenvolvimento intelectual tio diferenciado como foi o nosso, surgirem novos problemas do pensamento, os homens ptecisario aprender a pensar novamente, porque o homem é um tipo de criatura que precisa continuamente se readaptar a sua histéria em mudanca. Até hoje, nossas atitudes face aos nossos processos intelectuais (apesar de tédas as pretensdes 16gicas) nao foram muito diferentes das de uma pessoa ingénua.

Isto é, os homens estavam acostumados a agir em situagdSes que

nao compreendiam claramente. Mas assim como houve um momento na histéria politica em que as dificuldades de acio se tor-

134

IpgoLocia £ Uropia

naram tio grandes que nao podiamser ultrapassadas dirctamente sem se refletir sdbre a prdpria situagio, e assim como o ho-

mem foi forcado a aprender cada vez mais a agir, inicialmente com base nas impressdes externas da situacio e mais tarde analisando-a estruturalmente, exatamente assim podemos encarat como a natural evolucio de uma tendéncia o fato de que o homem esteja atualmente em combate com a situacio critica surgida em seu pensamento, buscando apreender mais claramente a natureza desta crise.

As crises nao sdéo superadas por umas poucas, nervosas ¢ apressadas tentativas de suprimir os problemas incdmodos rtecentemente surgidos nem pelo refiigio seguro num passado morto. A saida serd encontrada pela gradativa ampliacdo e aprofundamento de intuicSes recentemente conquistadas e attayés de cautelosos avancos em direcXo ao contréle.

Ill. PANORAMA DE UMA POLITICA CIENTIFICA: A RELACAO ENTRE A TEORIA SOCIAL E A PRATICA POLITICA 1. Por Qui NAO FXISTE UMA CIENCIA POLITICA?

A EMERC *NCIA ¢ o desapatecimento de problemas em nosso horizonte intelectual sio governados por um principio do qual nfo temos plena consciéncia.

Mesmo a ascensao e o desapare-

cimento de sistemas iuteiros de conhecimento podem ser reduvidos cm ultima andlise a determinados fatéres, tornando-se dessa forma explicdveis. Ja se registraram na histéria da arte algumas tentativas para se descobrir por que e em que periodos as artes pldsticas como a escultura, o relévo ou outras surgiram

© se tornaram as formas artisticas dominantes de um dado pe-

tiodo, Da mesma forma, a Sociologia do Conhecimento devetia piocurar investigar as condigdes em que os problemas e as disciplinas se formam ec desaparecem. Em térmos mais amplos, o socidlogo deve ser capaz de fazer mais do que atribuir a emergéncia e a solucio de problemas 4 mera existéncia de certos individuos talentosos. A existéncia e a complexa inter-rela37 “>. problemas de uma dada época e de um dado lugar de-

vem ser vistos e compreendidos em confronto com a estrutura ¢

«ciadade © > ate ocorram, muito embara isto nem sempre

r.s possa dar o entendimento de cada detalhe. O pensador iso-

» pode ter c impressio de que suas idéias cruciais lhe ocorm pessie’ 1. ., independentemente de seu contexto social. E facil para quem vive em um mundo social provinciano e Circunscrito pensar qué os acontecimentos que lhe dizem res-

peito constituem fatos isolados pelos quais soémente o destino seria responsdvel A Sociologia no pode, entretanto, conten-

tar-se com a compreensio de problemas e acontecimentos imediatos emergentes desta perspectiva mfope que obscurece toda

136

IpEoLocia E Utopia

Teoria SociaL E Pratica Po.frica

relacdo relevante. Estes fatos aparentemente isolados e distintos precisam ser compreendidos nas configuracées de experiénCla, sempre presentés, mas em constante mudanga, em que sio efetivamente vividos. Sdmente neste contexto é que éles adquitem um significado. Se a Sociologia alcancasse algum sucesso neste tipo de andlise, muitos dos problemas até aqui sem solu40, pelo menos no que se refere a suas origens, seziam esclarecidos. Tal desenvolvimento nos possibilitaria ain a observar por que a Sociologia e a Economia sao ciéncias tho recentes e por que em alguns paises progredir--ny ‘enquanto din ‘outros se viram impedidas por diversos dbstdculos. De forma semelhante, sera possivel pér térmo a um problema que tem permanecido sempre sem resposta: a saber, por que ainda nfo presenciamos o desenvolvimento de uma ciéncia politica, Em um mun-

do permeado por um ethos racionalista como o nosso, éste fato

significa uma anomalia impressionante, Dificilmente h4 uma esfera de vida a respcito da qual nao tenhamos qualquer conhecimento cientifico, bem como taétodos

comprovados de comunicacéo déste conkecimento

Pois tem,

€ possivel que a esfera da atividade humana, no contréle da qual repousa nosso destino, seja de tal modo intransponivel que a investigacdo cientifica nado consiga explord-la no sentido de extrair seus segredos? As dimens6es inquietantes e confusas déste problema podem ser deixadas de lado. Muitos ja deveriam ter-se colocado esta questo se se tratasse apenas de uma condigao temporaria, a ser solucionada mais tarde, ou, se ja tivéssemos

alcangado, nesta esfera, o limite supremo de conhecimento que

nunca pode ser ultrapassado? ‘ _. Em favor da primeira possibilidade, pode-se dizer que as Ciéncias Sociais ainda esto em sua infancia. Seria possivel concluir que a imaturidade das Ciéncias Socials bésicas explique o atraso desta ciéncia “aplicada”.

Se fdsse assim, seria sOmente

uma questao de tempo até que o atraso fésse superado, e uma

investigacdo posterior poderia assegurar um contréle sObre a sociedade, comparvel ac que nao possujmos .uslmentc sobre o mundo fisico. O ponte-de-vista oposto sc fundamenta na vcrrente a favor de que o comportamento politico é qualitativamente diferente de qualquer outro tipo de experiéncia humana, e que os obstdculos no sentido de sua compreensdo racional sdo ainda mais intransponiveis do que em outros campos do conhecimento. Dai,

137

é de supor que tédas as tentativas de submeter astes fendmenos A andlise cientifica esto predestinadas ao fracasso, devido A natureza peculiar dos fendmenos a serem analisados. Mesmo uma exposicéo correta do problema constituiria uma concluséo de valor. Tomar consciéncia de nossa ignor4n-

cia seria da maior importancia, pois, a partir dai, saberiamos entao por que o conhecimento real e a comunicacéo nfo sao pos-

siveis neste caso. Logo, a primeira tarefa deve ser uma defini-

cao precisa do problema: O que se quer dizer quando. perguntamos: E possfvel uma ciéncia polftica> ‘ Ha determinados aspectos da politica imediatamehte ‘inteligiveis e comunicdve Um lider politico experiente e treinado deveria saber a histéria de seu prdéprio pais e a histéria dos

paises Intimamente ligados ao seu e que constituem o mundo

politico circundante. Em conseqiléncia, pelo menos um conhecimento de histéria e dos dados estatisticos relevantes é util para sua prépria conduta politica) Além disso, o lider politico deveria saber algo a respeito das instituigdes politicas dos paises com os quais est4 relacionado. E essencial que seu treinamento nao seja apenas juridico, mas inclua também um conhecimento das relagSes sociais que sfo subjacentes a estrutura institucional e através das quais esta funciona. Ele deve igualmente estar a par das idéias polfticas formadoras da tradicfo em que éle vive. Da mesma forma, nao se pode permitir ignorar as idéias politicas de seus oponentes. Ainda existem questdes mais

importantes se bem que menos imediatas, que, em nosso tempo,

tém sofrido continua elaboracdo, como, por exemplo, a técnica de manipulagio das multiddes, sem a qual é impossivel vencer em democracias de massa. Histéria, Estatistica, Teoria Politica, Sociologia, Histéria das Idéias e Psicologia Social, entre outras disciplinas, apresentam importantes campos de conhecimento ao lider polftico. Caso estivéssemos interessados em estabelecer um curriculo para a educacio do lider polftico, os estudos acima estariam sem divida incluidos. Entretanto, as disciplinas mencionadas acima oferecem apenas conhecimento prdtico, de utilidade para um lider politico. No entanto, mesmo t6das estas disciplinas em conjunto nao criam uma ciéncia polftica.

No

maximo, poderio ser como disciplinas auxiliares para tal ciéncia. Se entendéssemos por politicos apenas a soma de todos éstes pedacos de conhecimento pratico, tteis 4 conduta politica, entao nao haveria problema quanto ao fato de ja existir uma ciéncia politica nesse sentido, e de que esta ciéncia poderia ser ensina-

138

IpzoLocia = Utopia

TEoRIA SOCIAL E PrAtica PoLirica

da. Entao, o unico problema pedagégico consistiria na selecdo, num estoque infinito de fatos existentes, daqueles mais relevantes para os objetivos da conduta politica. Entretanto, é provavelmente evidente que desta algo exagerada afirmac&o, as questdes “Sob que condicdes é possivel uma ciéncia polftica e de que forma deverd ser ensinada?” nao se

cuidar de cada caso névo sob uma forma prescrita, temos nao a politica, mas o aspecto estabelecido e recorrente da vida social. Schaffle faz uso de uma expressio esclarecedoia, encontrada no proprio campo da administragdo, para reforgar sua distingdo. Para os casos que possaser resolvides pela simples consulta a uma regra estabelecida, isto é, de acdrdo com um precedente,

Entéo em que consiste 0 problema? As disciplinas acima alinhadas estéo estrututalmente relacionadas somente na medida em que se reforem A sociedade ¢ ao

nificando que o caso em pauta pode ser resolvido de uma maneira similar a precedentes que j4 existem. Estamos no campo da politica quando enviados a paises estrangeiros concluem tratados anteriormente nunca celebrados; quando representantes parlamentares discutem novas medidas tributdrias; quando se lan¢a uma campanha eleitoral; quando certos grupos oposicionis-

referem ao corpo de informacSes prdticas mencionado acima.

Estado, como se féssem os produtos finais da histéria passada,

Todavia, a conduta politica est4 relacionada ao Estado ¢ A sociedade na medida em que esto ainda em processo de transformagao. A conduta politica tem pela frente um processo no qual cada momento cria uma situacio singular ¢ procura extrair desta

permanente corrente de fércas alyo de cardter duradouro.

TEn-

tao, a questdo é: “Ha uma ciéncia desta transformagio, uma

ciéncia da atividade criadora?”’ O primciro estdgio no delincamento do problema esté assim

alcancado. Qual (no campo dosocial) é a importancia déste contraste entre o que jd se transformou ¢ o que est4 em processo de transformacdo?

O socidlogo e estadista austriaco Albert Schaffle? assinalou que, em qualquer momento da vida sécio-politica, dois aspectos sao discerniveis — primeiro, uma série de fatos sociais que adquiriram um padrao definido, e ocotrem regularmente: e, em segundo lugar, aquéles fatos que ainda esto em processo de transformagio, nos quais, em casos individuais, as decisdes

deverdo ser tomadas, dando origem a situacdes novas e singulares. A ptimeira éle denominou “negécios rotineiros de Estado”’, laufendes Staatsleben; & segunda, “a politica’. O significado desta distingZo serd esclarecido por umas poucas ilustracées,

139

usa a palavia alem& Schinrmel,* derivada do latim simile, sig-

tas preparam uma revolta ou organizam greves -- ou quando

estas séo reprimidas.

Deve-se admitir que a frontcira entre csias duas classes é na realidade muito flexivel. Por exemplo, o efcito cumulativo de uma modificagio gradativa em uma extensa série de casos concietos na conduta administrativa: pode realmente originar um

névo principio Ou, tomanda o exemplo aposta, algo tio singular quanto um névo movimento social pode-se achar profun-

damente permeado por elementos “estereotipados” e rotinizantes,

Nao obstante, o contraste entre os ‘“assuntos de rotina do

Estado” e¢ a “politica” oferece uma certa polaridade que pode servir de fecunde ponto de partida. Concehendo a dicotomia em térmos mais tedricos, podemos dizer que: todo processo so-

cial pode ser dividido em uma esfera racionalizada, que consiste em procedimentos estabelecidos e rotinizados para lidar com situacdes que se repetem de uma mancira ordenada, e a “irracional”, que a circunscreve.* Estamos portanto distinguin-

Quando, na vida rotineira de um funciondrio, as ocupacdes correntes sdo resolvidas de acérdo com as regras e regulamentos

2 © térmo alemio Schimmel significa mofdc (“mould” — nota do tradutor inglés),

nistracio” do que no da “politica”, A administracdo é 0 domt-

vagho: a expressio “elementos rotinizados estabelecidos” deve ser considerada em sentido figurativo, Mesmo os tragos mais formalizados e

existentes, estamos, segundo Schaffle, mais no campo da “admi-

nio onde podemos observar exemplos do que Schaffle quer dizer com “assuntos de rotina do Estado”. Sempre que podemos 1

Cf.

Schaffle,

A.

“Uber

den

wissenschaftlichen

Beenff

der

Politik”, Zeitschrift fur die gesamte Staatswissenschaften, vol, 53 (1897),

3

Para maior precisio, devet-se-ia acrescentar a seguinte obser-

ossificadas da sociedade nip podem ser considerados como algo guardado num s6tio, a ser utilizado quando necessirio, As leis, os regu-

lamentos e os costumes estalclecido, somente ttm uma eaisténcia na medida em que ay experiéncias vivas as fazem existir, Tal estabilidade significa Wo-s6 que a vida socal, ag renovar-se constantemente, conforma-sc as regras ¢ processos formais que Ihe sio inerentes ¢ isso

IpEoLociA E Uroria

Teorta SociaL E Prdrica Porfrtca

do entre estrutura “racionalizada” da sociedade e matriz “irracional”. A esta altura apresenta-se uma nova questdo. A caracteristica basica da cultura moderna é a tendéncia a absorver o maximo possfvel na esfera do racional, submetendo-o ao contrdle administrativo — e, por outro lado, a reduzit o elemento “Srracional” a insignificdncia. Um simples exemplo esclarecer4 o significado desta afirmativa. O viajante de hd 150 anos expunha-se a mil acidentes. Hoje em dia tudo corre dentro de um programa. A tarifa é calculada com exatidao, e toda uma série de medidas administrativas féz da viagem um empreendimento racionalmente controlado. A percepcdo da distingdo entre o esquema racionaliza-

nao penetrada pela racionalizagfo, onde somos forcados a tomar decisdes em situagdes até entio nao submetidas 4 regulamentagao. HE nessas situagdes que surge todo o problema das relagdes entre a teoria e a pratica. A respeito déste problema, com base nas andlises até aqui realizadas, podemos, mesmo a esta altura, arriscar mais algumas observacGes. Nao ha duvida de que possuimos algum conhecimento relativo A esfera da vida social em que tudo e a prépria vida j4 tenham sido racionalizados e ordenados. Aqui, o conflito entre a teoria e a prdtica nao se converte em problema porque, na verdade, o mero tratamento de um caso isolado, subordinando-o a umalei generalizada existente, dificilmente poderia ser designado de prdtica politica. Por mais racionalizada que nossa vida possa parecer ter-se tornado, tédas as racionalizacSes que até aqui se de-

140

do e © contexto irracional em que opera proporciona a possibi-

lidade de uma definig&o do conceito de “conduta’”. A agao do funciondrio nao-graduado que encaminha uma sétie de documentos segundo a maneira prescrita, ou a de um juiz que acredita que um caso cabe dentro das provisées de um certo pardgrafo da lei e o encaminha de acdrdo com @ste, ou, por ultimo, a de um operdrio fabril que produz um parafuso se-

guindo a técnica prescrita, nao corresponderia & nossa definicao

de “conduta”. Nem tampouco a acio de um técnico que, para obter um determinado fim, combinasse certas leis g 1ais da natureza, Todos éstes modos de comportainento setiam considerados meramente “reprodutivos” po. jue sao executados dentro de um guadro racional, de acérdo com uma prescricio definida nado exigindo nenhuma decisdio pessoal. A conduta, no sentido utilizado por nés, sdmente comeca ao atingitmos a 4rea ainda esté em reprodugao constante, de forma recorrente.

Da mesma for-

ma o uso da expression “esfera racionalizada” deve yer tomade em Pode significar quer uma abodagem tedrica oc racional, tido amplo. como no caso de uma técnica racionalmente caleulada e determinada;

141

ram sio meramente parciais, uma vez que as mais importantes es-

fcras de nossa vida social se acham ainda agora présas ao irra-

cional.

Nossa vida econdmica, embora extensivamente raciona-

lizada cm sua parte técnica, e, em alguns aspectos, calculdvel, nao constitui em conjunto uma economia planificada. A despeito de tédas as tendéncias para a monopolizag#o e organizacao, a livre concorréncia ainda desempenha um papel decisivo. Nossa estrutura social estd construida segundo principios de classe, o que significa que nao so os fatéres objetivos, mas as fércas irracionais, que decidem o lugar e a funcio do individuo na sociedade. © predominio na vida nacional e na internacio-

nal se consegue com luta, em si mesma irracional, em que o

acaso desempenha um papel importante. Estas fércas irracionais da socicdade formam aquela esfera da vida social que nao é or-

ganizada nem racionalizada, e em que se tornam necessdrias a

politica e a conduta.

As duas principais fontes de irracionalis-

mo na estrutura social (a compcetigéo sem contréle a a dominago pela fdrca) constituem a esfeta da vida social ainda n@o-

reétipo”, tal como 0 utilizou Max Weber, tanto em sentido amplo,

-organizada onde a politica se torna necessdria. Em volta déstes dois centros, acumulam-se os outros elementos irracionais mais profundos, a que geralmente chamamos de emogdes. Quanto ao aspecto socioldgico, existe uma conexfio entre a extensdo da esfera ndo-organizada da sociedade, em que prevalecem a competicéo sem contréle e a dominacSo pela férca, e a integracado

trutura racionalizada” no sentido mais abrangente cm que Max Weber emprega a nog&o geral de estereotipar,

O problema deve entSo ser colocado nos seguintes térmos: Que conhecimento é possfvel ou qual o que possuimos com relag&o a &ste campo da vida social e ao tipo de conduta que nela

quer, também, no sentido de “racionalizagiio", na qual uma seqiiéncia

de acontecimentos segue um curso regular, esperado (provavel), como no caso da convengiio, dos sos ¢ costumes, em que a sequiénela dos

acontecimentos mio & plenamente entendida, may sua estrutura parece ter um certo cardter determinado.

Pode-se usar aqui o térmo “este-

quanto em sua dislingig das duay subclasses da tendéncia de estereotipar: a) tradicionalismo; b) racionalismo. Nao obstante tal distingdo nao seja relevante para nossos propdsitos, usaremos 9 conceito de “es-

social das reag6es emocionais.

142

IpgoLogia EB Urorsa

‘ Veo. Sc crab © Praticea Port .ca

se verifica? * Mas agora o nosso problemaoriginal foi colocado em sua forma mais altamente desenvolvida, em que parece se prestar 4 elucidagdo. Tendo determinado onde a esfera do po-

ticipante da Juta, a base de seu pensamento, Isto €, o seu apa-

litico realmente comeca, ¢ onde é possivel a conduta no seu ver-

dadeiro sentido, podemos indicar as dificuldades existentes na relagdo entre a teoria e a pratica,

rato observacional © a

145

cu método de estabelccer as diferengas

intelectuais, deve estar acima do conflito. Nao se pode resolver um problema obscurecendo-lhe as dificuldades, mas soémenle definindo-as tio nitida ¢ pronunciadamente quanto possivel,

Por isso, nossa taicfa consiste em estabclecer de maneira defi-

“As grandes dificuldades com que o conhecimento cientifico se defronta neste campo surgem do fato de que nao estamoslidando com entidades objetivas e rfgidas, mas com tendéncias e anseios em constante fluxo, Outra dificuldade é que a constelagio das fércas em interagéo muda continuamente. Onde quer que as mesmas fércas, cada uma imutdvel em cardter, interajam, e onde a sua interacdo siga um curso regular, é possivel formular leis gerais. O que nao é tao facil quando novas férgas estao penetrando incessantemente no sistema e formando combinacdes imprevisiveis. Ainda outra dificuldade ¢ que o observador nZo esté fora do dominio do irracional, mas participa no conflito de férgas. Esta participagio o vincula inevitavelmente

nida a tese de que'na politiwa a'formulagdo de um problema e as técnicas ldgicas envo'vidas variam com a posigio politica do observador.

lém disso, e da maior importancia, existe o fato de que o tedtico politico ndo sé é um participante do confliro, em razZo de

que mesmo éste problema, o mais geral e fundamental de uma

seus valéres e interésses, mas a maneira pela qual o problema

se apresenta a éle, seu modo de pensamento mais geral, incluindo até suas categorias, se vincula as correntes politicas e sociais gerais. Tanto quanto isso se dé, na esfera do pensamento poltico © social, devemos, a meu ver, reconhecer diferengas reais

nos estilos de pensamento — diferencas que se estendem mesmo ao campo da Légica. Nisto, sem diivida, reside 0 maior obstaculo a uma ciéncia da politica, pois, de acérdo com as expectativas normais, uma ciéncia da conduta sdmente seria possivel quando a estrutura fundamental do pensamento independesse das diferentes formas de conduta em estudo. Apesar de que o observador é um par4 Deve-se aqui frisar que o conceito de “politico”, usado em conjungZo com os conceitos correlativos de estrutura racionalizada e campo irracional, é apenas um dos muitos conceitos possiveis de “pol{tico”. Embora particularmente apropriado para a compreensio de cer-

tas relacdes, éle niio deve ser tido, absolutamente, como o unico. Para uma nogdo oposta de “politico”, cf. C. Schmitt, “Der Begriff des

Politischen”, Archiv fur Soztalwissenschaft und Sozxialpolitik, yol, 58 (1928),

OS DLYLRMINANTES

POLITICOS L SUCIAIS DO

CONHECIMENTO

Procuraremos demonstrar agora, por meio de um exemplo

conereto, que © pensamento politico-histdérico assume formas

varias, de acérdo com correntes polifticas diversas, A fim de nao

nos distanciarmos em demasia do assunto, concentrar-nos-emos principalmente na relacdo entre a teoria e a pratica. Veremos

ciéncia da conduta politica, é diversamente concebido pelas diferentes correntes historico politicas.

Isto pode ser facilmente constatado por um levantamento das varias correntes politicas e sociais dos séculos XIX e XX.

Como tipos ideals repre.entativos mais importantes, teremos os seguintes: bBwWh be

a uma visio partiddria, através de suas valoragdes ¢ interésses.

2.

O O © A

conscrvantisno burocratico. historicismo conservador. pensamento liberal-democrdtico burgués. concepedo socialista-comunista.

5. O fascismo. Consideraremos inicialmente 0 modo de pensamento do conservantismo burocrdtico, A tendéncia fundamental de todo pensamento burocratico é converter todos os problemas de politica em problemas de administragio. Como resultado, a maioria dos livros sobre polftica, na histéria da ciéncia politica alema, sao de fato tratados de administragiv. Se considerarmos o papel sempre desempenhado pela burocracia, em especial no Estado prussiano, e em que medida a infelligentsia cra amplamente re-

144

IbEoLocia & Uropia

Tror1a Socta & Pratica Potfrica

crutada na burocracia, esta unilateralidade na histéria da ciéncia politica na Alemanha torna-se facilmente comprcensivel. A tentativa de ocultar todos os problemas da politica sob a cobertura da administracéo pode ser explicada pelo fato de que a esfera de atividade do funciondrio dése apenas nos limites de leis ja formuladas. Portanto, a génese e a evolucdo dalei se situam fora do Ambito de sua atividade. Como resultado de seu horizonte socialmente limitado, o funciondrio deixa de ver que, por tras de cada lei promulgada, s encontram os intergsses socialmente articulados e as Weltanschauungen de um gtupo social especifico. Aceita de antemao que a ordem especifica prescrita pela lei vigente equivale 4 ordem em geial. No compreende que cada ordemracionalizada constitui apenas uma das muitas formas pela quais as fdrcas irracionais socialmente conflitantes

Cada burocracia, portanto, conforme a peculiar anfase que atribui a prépria posicdo, tende a generalizar sua experiéncia e 4 desconsiderat o fato de que o campo da administracio e da ot-

se conciliam.

A mentalidade legalistica administrativa possui seu tipo peculiar de racionalidade. Ao se defrontar com um conjunto de férgas até entdo nav-controladas como, po. exemplo, a erupgio de energias coletivas em uma revolucio, somente pode concebé-las como disturbios momentaneos. Wortanto, nfo é de admirar que, diante de qualquer revolugéo, a burocracia busque encontrar um remédio por meio de decretos arbitrdrios, ao invés de enirentar a situacao politica nos seus préprios térmos. Considera a revoluggo um acontecimento sinistre dentro de um sistema de outra torma ordenado, e ndo a expressfo viva de fOrgas sociais fundamentais de que dependem a existéncia, a preservacgaio e o desenvolvimento da sociedade. A mentalidade juridica administrativa sd sabe construir sistemas de pcnsamento estaticos e fechados, deparando sempre com a tarefa paradoxal de ter que incorporar em seu sistema novas leis, que emergem da interagZo ndo-sistematizada de fOrcgas vivas, como se fdssem ape-

nas uma elaborag&o ulterior do sistema original. Um exemplo tipico da mentalidade militar-burocrdtica se encontra em cada variante da lenda da “‘punhalada pelas costas” (Dolchstosslegende) que interpreta uma erupcSo revolucionéria simplesmente como uma interfer&.ua o .a 1 sua estratégia cuidadosamente planejada. A unica preocupacéo do burocrata militar € a ac3o militar e, se esta se desenrola de acérdo com o plano, ent#o tudo o mais na vida est4é também em ordem.

Essa

mentalidade faz lembrar a anedota do médico especialista, a quem se atribui o dito: “A operacio foi um sucesso, Infelizmente o paciente morreu.”

145

dem em funcionamento regular representa apenas uma parte da

realidade politica total. O pensamento burocrético nao mega a possibilidade de uma ciéncia da politica, mas a considera idéntica A ciéncia da administracio. Desta forma, descuida dos fatéres irracionais e quando, apesar de tudo, éstes fatOres afloram & superficie considera-os “‘assuntos de rotina do Estado”. Uma expresso cldssica desta atitude vem contida em unr ditado originétio de tais circulos: “Uma boa administracéo vale mais do que a melhor constituicao.” > Além do conservantismo burocratico, que governou a Alemanha e especialmente a Prissia em larga medida, houve um segundo tipo de conservantismo que se desenvolveu paralelamente ao primeiro e que se pode chamar conservantismo histérico. Era peculiar ao grupo social da nobreza e aos estratas burgueses entre os intelectuais que eram os dirigentes intelectuais

e efetivos do pais, existindo, entretanto, entre astes ultimos e

os consetvadores burocratas uma certa tenséo. Este modo de pensamento trazia a marca das universidade alemas, e, em especial, do grupo dominante de historiadores. Ainda hoje: em dia, esta mentalidade encontra apoio principalmente negtes circulos. O conservantismo histérico se caracteriza pelo fato de estar ciente do campoirracional na vida do Estado, que nao pode, ser controlado pela administracao. Reconhece a existéncia de um campo nao-organizado e imprevisivel que constitui a esfera .pré-

pria da polftica, De fato, focaliza quase que exclusivamente sua atencao nos fatéres irracionais e impulsivos que propiciam a base real para o desenvolvimento posterior do Estado e da sociedade. Considera tais fércas como inteiramente superiores 4 compreen-

sao, inferindo que, em si, a razio humana é impotente para

entendé-las e controld-las. Nesta esfera, ssmente um instinto tradicionalmente herdado, fércas espirituais “‘operando silenciosamente”, o “folk spirit”, Volksgeist, derivando sua férca das profundezas do inconsciente, poderdo contribuir para moldar o futuro. 5 Necroiugio de Bohiaa pelo jurista Bekker. Zeitschrift der Savigny-Stiftung, Germanist. Abtlg., vol. VIII, pags. VI e segs.

146

TrEoRIA SociAL E PrAtica Poritica

IpgoLocia E Uropia Jé no fim do século XVIII esta atitude era enunciada por

Burke, que serviu de modélo 4 maioria dos conservadores ale-

mes, através das seguintes palavras impressionantes: “A ciéncia

de construir ou renovar ou reformar uma comunidade nao pode, como qualquer outra ciéncia experimental, ser ensinada a priori.

Tampouco seré uma experiéncia breve que nos poderd fazer

aprender nesta ciéncia prética”.% As raizes socioldgicas desta tese séo evidentes de imediato. Ela exprimia a ideologia da nobreza dominante na Inglaterra e na Alemanha, e servia para legitimar suas pretensdes a lideranca do Estado. O je ne sats |

quoi (o elemento de imprecis’o) da politica, que sé pode ser- «

adquirido através de uma longa experiéncia, e que em geral sdmente se revelava aos que por muitas geracdes vinham partici-

pando da lideranca politica, visava a justificar 0 Govérno por

uma classe aristocrdtica.

Isto esclarece a mancira pela qual os

147

coisas’. * Nao basta ao lider politico meramente possuir o conhecimento correto e o dominio de determinadas leis e normas. Além déstes, precisa possuir o instinto inato, agucado mediante longa experiéncia, que o conduza a resposta correta. Dois tipos de irracionalismo foram conjugados para produzir esta forma irracional de pensamento: por um lado, irracionalismo tradicionalista pré-capitalistico (que considera o pensamento legal, por exemplo, como uma forma de sentir e nao

como um célculo mecdnico), e, por outro lado, o irracionalismo

romantico, Dessa forma, criou-se um modo de pensamento que concebe a histéria como sendo o dominio de fércas pré-racionais e supra-racionais.

Mesmo Ranke, o mais eminente representan-

te da escola histdrica, se colocava neste ponto-de-vista intelectual ao definir as relacées entre a teoria e a pratica,®

De acdrdo

inter¢sses sociais de um dado grupo tornam os membros do

com Cle, a politica niio constitui uma ciéncia independente que possa ser cnsinada, O estadista realmente pode estudar a his-

suas preconcepcdes administrativas, a nobreza, desde o inicio,

conduta, e, sum, porque ela serve para agugar o seu instinto politico, Pode-se designar éste modo de pensamento como a ideologia de grupos politicos que tenham tradicionalmente ocupado

grupo sensiveis a determinados aspectoys da vida social, a que os situados em outra posigdo nao reagem. Lnquanto a burocracia é cega ao aspecto politico de uma situagho, em razio de

sente-se totalmente A vontade nesta esfera. Desde o principio, esta Ultima tem os olhos voltados para a arena em que as esfetas de poder dentro e entre os Estados se entrechocam. Nesta esfera, a pequena sabedoria livresca nfo nos ajuda, e a solucéo dos problemas nao pode ser deduzida mecdnicamente das premissas. Dai nao ser a inteligéncia individual que decide as quest@es; cada acontecimento € a resultante de fércas politicas

efetivas.

A teoria histérica conservadora, que é essencialmente a

expressio de uma tradig&io feudal? que toma consciéncia de si, acha-se basicamente preocupada com problemas que transcen-

dem a esfera da administracao. A esfera é considerada completamente irracional, nao podendo ser elaborada por métodos mecanicos, mas se desenvolvendo por si. Esta visio refere tudo & dicotomia decisiva entre “a construcéo de acdrdo com um plano caleulado” e a “ndo-interferéncia no desenvolvimento das 8 Burke, Reflections on the Revolution in France, ed. por F. CG. Selby (Londres: MacMillan and Co., 1890), pag. 67. 7

segs.

Cf, “Das konservative Denken”, op. cit, pags. 89, 105, 133 ¢

tdtla com proveito, mas nfio de modo a derivar dela regras de

uma posicéo dominante, mas que raramente participaram da bu-

rocracia administrativa. Se confrontarmos as duas solugSes até aqui apresentadas, tornar-se-4 claro que o burocrata tende a dissimular a esfera poIftica, enquanto o historicista a considera mais forte e exclusivamente como irracional, muito embora destaque os fatéres tra-

dicionais nos acontecimentos histéricos e nos sujeéitos atuantes. A esta altura cncontramos o principal adversdrio desta teoria que, conforme assinalamos, surgiu originalmente da mentalidade aristocr4tica feudal, a saber, a burguesia liberal-democrdtica e suas teorias.?° A ascensio da burguesia foi acompanhada de um intelectualismo extremo. Intclectualismo, no sentido aqui 8

Ibidem, pag. 472, n.° 129,

9 Cf. Ranke, Das politische Gesprach (1836), organizado por Rothicker (Halle a. d., Saale, 1925), pags, 21 e segs. Outros ensaios s6bre o mesmo tema; “Reflexionen” (1832), “Vom Einfluss der Theorio”, “Uber die Verwandtschaft und den Unterschied der Historie und der Politik”, 19 Para simplificar, nio distinguimos liberalismo de demoeracia, muito embora scjam inteiramente diferentes, social ¢ historicamente.

148

IpgoLogia E Uropia

TEoRIA SOCIAL E PrAtica Poritica

empregado, se refete a um modo de pensamento que ndo considera os elementos da vida e do pensamento que se fundam na vontade, no interésse, na emogio e na Weltanschauung — ou, caso reconheca a existéncia déles, trata-os como se equivalessem

ao intelecto, acreditando que possam ser dominados e subordinados 4 razio. Este intelectualismo burgués reclamava expres-

samente uma politica cientifica e procurava efctivamente fundar essa disciplina. Assiin como a burguesia descobriu as primeiras instituigdes em que se podia canalizar a luta politica (primeiro o parlamento e sistema eleitoral, e mais tardeia Liga das Nagdes), também criou um lugar sistemdtico para a nova disciplina da Polftica. A anomalia organizacional da sociedade burguesa aparece também na sua teoria socio], A tentativa burguesa no sentido de uma ampla e penetrante racionalizagéo do

mundo vé-se, no entanto, paralisada quando encontra cettos fe-

némenos, Ao sancionar a livre concorréncia e a luta de classes, chega mesmo a criar uma nova esfera irracional. Do mesmo modo, neste tipo de pensamento, o residuo irracional da reali-

dade permanece, sem se dissolver. Ademais, assim como o par-

lamento é uma otganizacéo formal —- uma racionalizacaéo formal do conflito politico, mas nfo sua solucdéo — a teoria burguesa alcanga apenas umaintelectualizagdo formal e aparente dos , sentiu quando, no: dultimos dias de vide .clembrava 9 penettante impacto das grandes idéias do perfodo revolucionatio

Em contraste com as sombtias profundeza: da

agitagfo quilidstica, os elementos centrais da mentalidade intelectualista se achavam abertos A luz clara do dia O Animo dominante do “’ minismo, a esperanca de que enfim as luzes taiatiam sdbre o mundo sobreviveu o bastante para dar a estas idéias, mesmo neste Ultimo estdgio, seu poder de conducio /

Entrete

em acréscimo a ésia prc nessa que estin

x

a imaginacay 2 mirava um horizonte distante, as mais plolun-

das férgas o.:nsivas das idéias do Tluminismo residem no [ato

de que apelavim 4 vontade livre e mantinham vivo o sentimengia a que se

253

to de ser indeterminado e incondicionado, © cardter distintivo da mentalidade conservadora consistia, entretanto, no fato de que cegava o fio desta experiéncia. E, se alguém deseja formular em uma sé sentenga a realizacio mdxima do conservadorismo, poder-se-ia dizer que em consciente oposicao a visdo liberal, deu énfase positiva 4 nogao de determinagao de nossas visdes e de nosso comportamento.

c)

A Terceira Forma da Mentalidade Usdpica: A Idéta Conservadora

A mentalidade consetvadora, como tal, wAo possui predisposic¢ao alguma a teorizar. O que se acha de acérdo com fato de que os séres humanos nao teorizam sdbre as condigSes con-

cretas cm que vivem enquanto a estas se encontram bem ajus-

tados. Tendem, em tais condicdes de existéncs., a encarar o am-

biente como fazendo parte de uma ordenagic watural do mundo, que, em conseqiiéncia, no apresenta problema algum. A men-

talidady conservadora, como tal, néo detém nenhuma utopia. Em

ve.

Mostra que, quando as pessoas instrufdas

.

1

vam os concer’ - de Miinzer, ndo eram capazes de elabord-las e em nada de fundamen . contribuiam para a doutrina, Recornam muiti, sus

aos livros @ extitas doy misticos germanicos, partcularmente a Iheologia deutsch, Im com a Agostinho, do que & sua piopria eaperiincia interlor imed, ') Niio trouseram qualquer Onigueciments da lic gem. Defon moo que era singularmente imfslico om pontos decuisie yos ¢ fizeran um inédcuo amdlgama dos ensinamentoy dos mit licos medievais e d.. loutrina da cruz de Miinzer, {Tudo iste so arguinen-

térmos ideais, acha-se por sua propria estrutura completamente em haimonia com a realidade sébre a qual, por hora, mantém dominio. Faltam-lhe todos os reflexos e aclaramentos do processo histérico que advenbam de tm impulso progressista. O tlpo conservador de conhecimento consiste originalmente no género de conhecimento que formece um contréle praético, Com-

poe-se das orientagdes habituais e, freqiientemente, também re-

Tamente que o préprio Lutero; que, em seguida a éste afastamentn de

flexivas, face aos fatdres imanentes 4 situagZo, Existem elementos ideais em sobrevivéncia no presente como vestigios da tensao em perfodos anteriores, quando o mundo ainda nao se encontrava estabilizado e que, agora, somente atuam ideoldgicamente como fés, religides e¢ mitos, que se viram banidos para um mundo além da histéria, Neste estagio, o pensamento, como assinalamos, se inclina a aceitar o ambiente total na concretude acidental com que se dd, como se fésse a ordem adequada do

em lugar da

blema. Sdmente o contra-ataque de classes oponentes e a sua tendéncia a romper com os limites da ordem existente ird moti: var a mentalidade conservadora para questionar as bases de seu

tos diretos err a determinabil do um estrat)

‘avor da teoria sociolégica acima referida, concernente

ade do “Angulo de refragho” intelectual, que se dé rpransume as idéias de outro. )

Além d. Holl conta-nos que og intclectuais, entre outros. ae vés de seus keg ja mencionados, se afastaram mais ¢ mais do movimento, a mec’ que éste avangava e se radicalizava; que, entice untias, Franck, em su. Chronika, condena a guerra camponesa ainda mais du-

Miinzer, sua cltanschauung sofrea wma transformagiio radical, que, apds tal afas onto, a concepgao de mundo dos intelectuais adquiria tragos misantr: ,:cos; como perdeu suas “caracteristicas sociais’; @ como

'ransigéncia _quilidstica, emergiu a idéia mais tol nte,

quase sineréli. , da “Iyreja invis{vel” (ibid., pags. 459 ¢ segs.)

Aqui, muita coisa pode ser entendida socioldgicamente, bastando que se coloquem as questées apropriadas 2 se u ‘ize 9 > 1arate cone 1 que delas pre >

mundo, a ser aceita de antema@o e sem aptesentar nenhum pro-

dominio, ocasionando necessiriamente, entre os conservadores,

as reflexdes histérico-filoséficas concernentes a éles mesmos. Sur-

ge, dessa forma, uma cont - vtop'a que serv: como um melo de

auto-ortentagio e de defes

254

A MentTaLipaDe Utdpica

TDEOLOGTA & Uropra Se as classes socialmente ascendentes nao tivessem, na rea-

lidade, levantado éstes problemas e se nao Ihes tivessem dado expressio em suas respectivas contta-ideologias, a tendéncia do conservadorismo a se tornar consciente de si teria permanecido latente, e o horizonte conservador teria permanecido em um nivel de comportamento inconsciente. Mas o ataque ideolégico de um grupo socialmente ascendente, representando uma nova época, ocasiona de fato uma certa consciéncia das atitudes e idéias que tnicamente se afirmavam na vida e na acto. Evoluindo agui-

Thoada por teorias oponentes, a mentalidade conservadora sd-

mente descobre sua idéia ex post facto. Nao € por acaso que, enquanto todos os grupos progressistas encaram a idéia anterior

ao ato, para o conservador Hegel a idéia de uma realidade his-

térica somente se torna visivel posteriormente, quando o mundo ja tenha assumido uma forma interna fixa: “Apenas mais uma palavra concernente ao desejo de ensinar ao mundo o que deveria ser. Para tanto, a Filosofia, pelo menos, chepa sempre demasiado tarde.

A Filosofia, como o pensamento do mundo,

nao aparece até que a realidade tenha completado seu pracesso

de formacZo e se tenha dado por acabada. A histdria, portanto, corrobora os ensinamentos da concepcio de que sémente na ma-

turidade da realidade vem a aparecer o ideal como uma contrapartida do real, apreende o mundo real em sua substancia e 0 conforma como um reino intelectual. Quando a Filosofia pinta seu cinza sObre cinza, uma forma de vida envelheceu, e por meia

do cinza ela nao pode ser rejuvenescida, mas sSmente conhecida.

82 Devemos considerar também a ideologia do absolvtrme sob aste aspecto, muito embora nfo possamos aborda-la em detalhes. Ela também mostra uma concepedo originalmente voltada para o dominio de uma situagio vital, © que adquire a tendéncia a refletir friamente sdbre a técnica de dominagio ~ da mesma forma que o chamado maquiavelismo. Sdmente mais tarde (em grande parte compelida por seus adversdrios) aparece a necessidade de uma justificagio mais intelectual e elaborada da ocupacgdo do poder. Para a confirmacdo desta

proposigio mais geral, citamos a seguinte passagem de Meinecke que observa o processo referido: “Assim surgiu 0 ideal do Estado modemo que aspira nfo apenas

a ser um Estado politico (Machtstaat), mas também um Estado cultuzal, e a raison d'état quanto a meros problemas de manutengao imediata

do poder, que ocupon largamente a atenclo dos tedricos do século XVII, foi ultrapassada”, Isto se refere particularmente 4 época de Fre-

derico, 0 Grande, Meinecke, Fr., Die Idee der Staatsriison in der neueren

Geschichte (Munique, Berlim, 1925), pag. 353.

255

© mécho de Minerva sdmente alca seu vdo quando chega o creptisculo,” #3

Na mentalidade conservadora, o “macho de Mi-

nerva” realmente sé inicia seu vOo com a escuriddo que se apro-

xima.

Em sua forma original, a mentalidade conservadora nao se achava, como mencionamos, preocspada com idéias. Foi o seu opositor liberal quem, por assim dizer, veio a forgar sua entra-

da no campo de conflito.

A particular caracteristica do desen-

volvimento intelectual parece residir exatamente no fato de que © mais recente antagonista é que dita o ritmo e a forma da luta. Seguramente pouca verdade existe na chamada idéia progressista de que somente o ndvo detém os horizontes da existéncia futura, enquanto tudo o mais gradativamente evanesce. Pelo con-

trério, deve o mais velho, guiado pelo mais névo, transformar-se

continuamente, acomodando-se ao nivel do mais recente ope::tor. Assim, em nossos dias, os que tenham utilizado modos de

pensamento remotos, ao depararem com argumentos socioldgi-

cos, devem igualmente recorrer a éstes mesmos métodos. Da mesma forma, no principio do século XIX, o modo de pensamento intelectualista liberal leyou os conservadores a se interpretarem por meios intelectualistas FE interessante observar que as classes sociais originalmente

conservadoras, que haviam anteriormente adquirido estabilidade pelo apégo a terra (Moser, v. d. Marwitz) nao conseguiram uma interpretac&o tedérica de sua prépria posic&o, e que a des-

coberta da idéia conservadora se tornou o trabalho de um corpo de idedlogos que se vincularam aos conservadores. A cealizayao nesta direcio, dos romanticos ccnservadores, e especialmente de Hegel, consistia em sua andlise intelectual do significado da existéncia .onservadora. Tendo af um port. de partida, forneceram uma interpretacdo intelectual de uma atitude face ar mundo que ja se encontrava implicita na conduta 2 auva, mes que nfo se havia ainda explicitado. Dai, no caso dos conservadotes, o que corresponde & idéia é, em esséncia, algo bastante diferente da idéia liberal. Constituiu a grande realizacio de Hegel estabelecer, em oposi¢ao & idéia liberal, uma contrapartida conservadora, nao no sentido de criar, por uma comLunacgay artificial, uma atitude e um modo de comportamento, 32 Famoso pardgrafo final do prefacio da Filosofia do Direito, de Hegel.

256

IpEOLOGIA E Uroria

mas, antes, elevando um modo de experiéncia ja existente a um nivel intelectual e enfatizando as caracteristicas distintivas que o destacassem da atitude liberal face ao mundo. Os conservadores encaravam a idéia liberal que caracteri-

zou o periodo do Iluminismo como algo fluido e carente de

concretude. E foi déste angulo que a atacaram, depreciando-a. Hegel a considerava nada mais do que uma mera “opinido” — uma simples imagem — uma possibilidade apenas por trds da qual as pessoas se refugiam, escapam, fugindo 4s demandas do

momento.

Em oposi¢io a esta mera “opinido”’, esta imagem puramente subjetiva, os conservadores conceberam a idéia como enraizada e se expressando concretamente na realidade viva do aqui e agora. Significado e realidade, norma e existéncia, ndo estao aqui sepatados, porque o utépico, a “idéia concretizada”’, acha-se, em um sentido vital, presente neste mundo. O que noliberalismo nao passa de ums norma formal adquire, no conservadorismo, um conteddo concreto nas leis prevalentes do Estado. Nas objetivagdes da cultura, na arte e na ciéncia, a espiritualidace se desdobra, ¢ a iddéia se expressa em uma plenitude tangivel. Ja tivemos ocasiaéo de observar que, na utopia liberal, na idéia humanitdria, em oposigao ao éxtase quilidstico, existe uma relativa aproximacgao ao “‘aqui e agora”. LEncontramos no conservadorismo completado o processo de aproximacg%o ao “aqui e agora”, A utopia se encontra neste caso, desde os momentos iniciais, implantada na realidade existente. A isto corresponde, evidentemente, o fato de que a realidade, o ‘aqui e agora”, néo venha mais a ser vivenciada como uma realidade “maligna”, mas como a corporificagio dos mais elevados valdres e significados. Embora se verifique que a utopia, ou a idéia, tenha-se tornado completamente congruente com a realidade concretamente existente, isto é, tenha sido assimilada a esta, éste modo de experiéncia — pelo menos no mais elevade ponto do periodo

ctlador desta corrente —- nado conduz, todavia, a uma climina-

Gao das tensdes e a uma aceitacao inerte e passiva da situacio

como esta se apresenta.

Um certo grau de tensio entre a idéia

e a existéncia surge do fato de que nem todo clemento desta existéncia encarna significacdo e de ser sempre necessério distinguir entre c que é essencial e o que é rio-essencial, c, ainde, de

A Menrraripape Urdépica

257

que o presente nos defronta continuamente com tarefas e problemas novos que nfo tenham ainda sido dominados. No intuito de atingir alzuma norma de orientagao, nao deveriamos confiar em impulsos subjetivos, mas recorrer as fércas e idéias que em nds, ou em nosso passado, tenham adquirido objetivacéo; ao espirito que, até agora, tenha atuado dentro de nds para a cria¢So daquclas, que séo nossas obras. Mas esta idéia, éste espirito, nado foi racionalmente conclamado nem arbitrariamente es-

colhido o melhor dentre um nimero de possibilidades. Ou se acha em nds, como uma “férca atuando silenciosamente” (Savigny}. percebida subjetivamente, ou se trata de algo como uma enteléquia que se desdobra nas criagdes coletivas da comunidade, do povo, da nagdo ou do Estado, como uma forma interna a ser, em sua maior parte, morfoldgicamente percebida. A perspectiva mo.foldgica, dirigida para a linguagem, para a arte e para o Estado se desenvolve a partir déste ponto. Praticamente no mesmo momento em que a idéia liberal colocou a ordem

existente cm movimento, estimulando a especulagdo construtiva,

Goethe se voltou desta abordagem ativistica para a contemplacio — para a morfologia.

Dispds-sc a usar a apercepgdo intui-

tiva como um instrumento de ciéncia. A abordagem da escola histérica é em alguns aspectos andloga 4 de Goethe. Seguem a emanacio de “idéias” através da observacdo da linguagem, dos costumes, da lei, etc., fazendo uso nao de generalizacdes abstra-

tas, mas, antes, de intuicdo simpatica e descricao morfoldgica.

Também neste caso, a idéia que assume uma posic¢ao central

na experténcia polftica (isto é, a forma de utopia correspondente a esta posicio social) auxiliou na conformacéo do segmento da vida intelecttal que se achava vinculado 4 politica. Em tédas as variacdes destas buscas pela “forma interna”, persistia a mesma atitude conservadora de determinacZo e, quando se projetar exteriormente, irdé igualmente encontrar expressdo na énfase sobre a determinacdo histérica. De acérdo com esta nogio, ¢ segundo o ponto-de-vista desta atitude face ao mundo, o homem nao é de forma alguma absolutamente livre. Nem tédas ay coisas em geral, e cada coisa em particular, séo possiveis a todo momento e em tédas as comunidades histéricas. A forma interna de individualidade histérica existente em qualquer época dada, seja a de uma personalidade isolada, seja a de um espirito de povo, ¢ as condigées externas que, juntamente com o passa-

do, se encontram por tras dela, todas determinam a conformagio das coisas por existir. E por esta razéo que a configuracio his-

258

IDECLOGIA 2 UTOPIA

w\ MSNTALIDADE Urdépica

torica existente em uma dada época nao pode ser construida ar-

a importancia do passado, na descoberta do tempo como um criador de valor. A duragio absolutamente nao existia para a mentalidade quilidstica, “ somente existindo para o liberalismo na medida em que, desde entdo, possibilita o progresso. Con-

tificialmente, mas cresce como uma planta, a partir da semente, #4

Mesmo a forma conservadora de utopia, a nogio de uma idéia implantada e expressa na realidade, sdmente pode ser entendida, em ultima andlise, A luz de seus conflitos com as demais formas coexistentes de utopia. Seu antagonista imediato é a idéia liberal, que foi traduzida em térmos racionalistas. Enquanto nesta ultima acentuase a experiéncia do normativo, o

“deveria”, no conservadorismo a énfase se desloca para a realidade existente, o “é”. © fato da mera existéncia de uma coisa

dota-a de um valor mais eleyada, seja isto devide, como no caso

de Hegel, ao teor de racionalidade mais elevado por ela encarnado, ou, como no caso de Stahl, devido aos efeitos fascinantes

e mistificadores exatamente de sua irracionalidade, “Existe algo de maravilhoso em experimentar aquilo de que se pode dizer que é -— ‘Este é 0 teu pai, éste é o teu amigo, e, através déles,

atingistes esta posic&o.’: ‘Por que exatamente a esta?’ ‘Por que és exatamente a pessoa que és? Esta incompreensibilidade consiste no fato de que a exist€ncia jamais pode ser plenamente

absorvida no pensamento, e de que a existéncia ndo ¢ uma ne-

cessidade légica, mas tem suas bases em um poder auténomo mais elevado.” #* Aqui, o fecundo antagonismo entre, de um lado, a idéia encarnada e expressa na realidade e, do outro, a que meramente existe (derivada dos dias sossegados do conservadorismo) ameaca transformar-se em uma congruéncia total,

tendendo o quietismo conservador a justificar, por meios irracionais, simplesmente tudo o que exista. O sentido de tempo déste modo de experiéncia e de pensamento se opde completamente ao do liberalismo, Enquanto, para o liberalismo, o futuro constitufa tudo ¢ o passado nada, o modo conservador de experimentar o tempo encontrou a mehor corroboragio de seu sentido de determinagio ao descobrir 34

“A constituigao dos Estados nfo pode ser inventada; os mais

esclarecidos célculas nesta matéria sfio tho ineficazes como a total ignorincia, N&o ha substitutvo para o espirito do povo, para a forga ¢ ordem que déle dimanam, que néo podem ser encontrados mesmo nay mentes mais brilhantes dos grandes génios’, (Muller, Adam, Uber Konig

Friedrich Ho und die Natur, Wurde, und Bestimmung der preussischen Monarchie (Berlim, 1810), p4g. 49), Este idda, derivada 1 -ermantis-

mo, tornou-sc o tema central de téda a tradig&o vonscrsadora, 25°

Stahl, Fr. J, Die Philosophie des Rechts, 4, pag 272.

259

tudo, para o conservadorismo, tudo o que existe possui um va-

lor positivo e nominal, simplesmente porque veio lenta dativamente a existir. Em conseqiiéncia, nado sd se volta cdo para o passado, fazendo-se um esf6rco para salvd-lo quecimento, como também a presenca e a imediagao de passado se torna uma experiéncia concreta.

e graa atendo estodo o

Nesta visio, nao

se pode mais pensar a histéria como uma mera extensdo unilinear de tempo, nem tampouco ela consiste em simplesment: unir a linha que, do presente, conduz ao futuro, Aquela que, do passado, conduziu ao presente. A concepgio de tempo ora em~ questio possui uma imagindria terceira dimenséo que deriva do fato de o passado ser experimentado como virtualmente presente. “A vida do espfrito contemporaneo constitui um ciclo de es- , tdgios, que, por um lado, ainda contém uma coexisténcia sincrénica, ¢ sOmente por outro prisma aparece como uma seqiién-

cia no tempo jd passado. As experiéncias que o espirito parece ter atraés de si existem igualmente nas profundidades de seu ser presente.” (Hegel.) 97 36° Miinzer diz, além disso: “Os intelectuais ¢ eruditos nado sabem por que as Santas Escrituras devem ser aceitas ou rejeitadas, mas s0mente que vém sendo transmitidas desde um passado remoto... os judeus, os turcos e todos os outros povos tém também tal forma simiesca, ‘mitativa, de justificar suas crengas”, (Holl, pag, 432, nota 2.)

8T

Hegel,

Vorlesungen uber

die

(Leipzg, Reclam, 1907), ef. pags, 123-5,

ser encontradas em minha obra segs. onde tentei, pela primeira do histérico do tempo” 4 luz da em determinado momento. Para

Philosophie

der

Geschichte

Maiores referéncias poderio

Das konservative Denken, pigs. 98 e vez, compreender as formas de “sentiestrutura da consciéncia politica dada, outras referéncias, cf. o seguinte: Stahl

procura caracterizar 9 sentimento de tempo e da vida de Schelling,

Goethe e¢ Savigny com as seguintes palavras: “nestes escritores acontece o mesmo que em tédas as fases ¢ nuancas da vidar parece que o que é, sempre foi assim. Mas quando olhamos para tras, descobrimos o que mudou, Mas nao é tho dbvio para nés descobrir onde e como a qrunsigdo de um estdgio a outro ocorreu.

No curso do mesmo desen-

volvimento invisivel, as situagdes e circunstincias préximas emergem e mudam,

Da mesma forma que nas situagdes de nossa vida, @ no seu

260

IproLogia E Urot A

A Menrratiwape Urérica

A experiéncia quilidstica localiza-se fora do dominio do tempo, mas, nas ocasides em que irrompeu no dominio temporal, santificava 0 momento incidental. A experiéncia liberal estabeleceu uma conex4o entre a existéncia e a utopia, ao reportar ao futuro a idéia, enquanto objetivo pleno de significado e permitindo, através do progresso, que as promessas da utopia venham, pelo menos em alguns aspectos, gradativamente a ser realizadas em nosso prdéprio meio. A experiéncia conservadora se funde ao espirito que, em um dado momento, surgiu sdbre nés vindo de fora, e ao qual damos expressio, com o que jd existe, permitindo que se tornasse objetivo, sc expandisse em

Mesmo quando introvertida, a experiéncia extdtica representa um perigo para a ordem existente, pois se acha constan-

tédas as dimensdes, dotando, assim, cada acontecimento de um valor intrinseco e imanente.

O modo conservador de experiéncia, afora seu conflito com a idéia liberal, teve que manter seu combate particular com a

concepcdo quilidstica, a que sempre encarara como um inimigo interno. A mesma experiéncia quilidstica, que comecou na épo-

ca dos anabatistas a desempenhar um papel ativo no mundo, tinha outro destino a esperd-la, algo diverso dos ate agora mencionados. Vimos ja trés tendéncias alternativas na experiéncia quilidstica. Ou bem permanece inultcrada, persistindo em sua forma emergente original, freqtientemente vinculada a ideologias as mais fundamentalmente divergentes — como, por exem-

261

temente tentada a se expressar exteriormente, e sdmente a prolongada disciplina e a repress%o transformam-na em quietismo. A ortodoxia, por isso, manteve um combate constante contra o pietismo, sémente entrando em uma unido aberta com éste quando a ofensiva revoluciondria necessitou da conclamagio de t6das as fércas disponiveis pata a espiritualizacdo dos podéres dominantes. Sob pressdes externas e devido 4s situacdes estrututais socioldgicamente inligiveis, a experi€ncia quilidstica, através justamente desta introversdo, naturalmente sofre uma mudanga de cardter. Neste, como em outros casos, a interpenetta-

cao estrutural dos fatéres socialmente “internos” e dos fatéres

“externos” pode ser acompanhada em detalhe. Enquanto originalmente a experiéncia quilidstica manifestava um impulso

corpéreo e robusto, ao se ver reprimida tornou-se, pelo con-

trério, docemente indcua e fluida, liquefez-se em meto entu-

siasmo, somente vindo o elemento extdtico a reviver novamen-

te, embora de uma forma suavemente mitigada, na “experiéncia do despertar’” pietista. O que, entretanto, é mais importante para as conexdes que

desejamos assinalar é que, através da perda de contato com o

plo, no anarquismo extremista — e1 reflui, desaparccencdo, ou, ainda, se ‘‘sublima’ em uma idéia, Sep ie outra caminhe, dis-

mundo no processo efetiva de vir a set (éste contato, observado

déncia supratemporal ¢ extdtica introvertendo-se, e¢, neste caso,

interna

tanciando-se dos acima mencionados, quando mantém sua ten-

nfo mais ousando aventurarse no mundy, perdendo seu contato com os evertos mundanos. Impelido por circunstancias externas, o modo quilidstico-extético de experiéncia seguiu na Alemanha, em uma extensdo bastante ampla, éste caminho de introversao. As subcorrentes pietistas, que podem ser acompanha-

das durante longos periodos nos paises germénicos, represen-

tam esta introversio do que f6ra o é.tase quilidstico.

sepundo o ponto-cde-vista do conjunto, ocorre na esfera polftica e nfo na esfera privada), esta atitude desenvolve uma incerteza

Surge no Jugar do tom pontificante da profecia quilids-

tica a vacilacdio insegura. a indecisdo pietista frente A acio.

Sd-

mente se poderd entender adequadamente a “escola histérica”’ na Alemanha, com seu quietismo e sua auséncia de padrdes, quando se tiver levado em conta sua continuidade com o pietismo. Tudo o que uma pessoa ativa expressa espontaneamente, sendo desde logo aceito, se acha aqui destacado de seu contexto erigido em problema. A “deciso” se torna uma fase inde-

pendente de aco, sobrecarregada de problemas, e esta separa-

decurso, aqui também percchemos o sentimento de existéncia cterna e necessdria e, ao mesmo tempo, o da emergéncia ¢ mudanga tcmporais. Este descnvolhimento sem fim, éste processo vivo de vir-a-ser, tam-

bém domina a visio de Schelling e seu sistema representa uma luta sem trégua para expressd-lo. Savigny, em seu dominio, apresenta a mesma caracteristica.” (Die Philoshophie des Rechts, 14, pags. 394 e segs. )

cdo conceptual entre o ato e a decisdo tinicamente aumenta a incerteza, ao invés de elimind-la. O esclarecimento interno propiciado pelo pietismo nao oferece solucdo alguma para a maiotia dos problemas da vida cotidiana, e se, de stitbito, se tornar necessdtio atuar no processo histérico, procuta-se interpretar os acontecimentos da histéria como se fdssem indicagSes da vontade de Deus. Neste momento, instala-se 0 movimento das in-

262

IDECLOGIA E JJTOPIA

A MENTALIDADE UTOPIca

263

terpretacdes religiosas da histéria, 3° através do qual se esperava eliminar a indecisdo interna na atividade politica.

Mas, ao invés

de encontrar uma solucdo para os problemas da conduta correta e ao invés de a histéria fornecer orientacdo divina, esta incerte-

za interna foi projetada no mundo. E importante para o modo de experiéncia conservadora, ativo, subjugar igualmente esta forma de utopia e¢ harmonizar a seu proprio espirito as energias vitais latentes af presentes, O que se precisa aqui controlar é 0 conceito de “‘liberdade inter-

na’, que ameaca constantemente transformar-se em anarquismo

(ja que uma vez se transformou em uma revolta contra a Igreja), Também aqui a idéia conservadora, implantada na realidade, desenvolve uma influéncia repressiva sébre a utopia esposada pelos inimigos internos. De acérdo com a teoria dominante do conservadorismo, a “liberdade interna”, em seu objetivo temporal indefinido, deve subordinar-se ao cdédigo moral, cddigo éste j4 definido. Ao invés de “‘liberdade interna’, temos “liberdade objetiva’, a que a primeira deve ajustar-se. Isto poderia ser interpretado em térmos metafisicos como uma harmonia

preestabilizada entre a liberdade internamente subjetivizada e a liberdade externamente objetivizada. Que esta corrente do movimento, caracterizada por atitudes pietistas introspectivas, se

conforme 4 interpretagdo acima, somente se explica por sua fatal

impoténcia frente aos problemas do mundo. Desta forma, passa as rédeas ao dominio do grupo conservador realista quer sujeitando-se inteiramente, quer retirando-se para algum canto obscuro. Mesmo hoje em dia encontra-se grupos arquiconservadores que nada querem ouvir sobre politica de farca da época de Bismarck, e que, na orientacdo de introversio da corrente que se erigiu em oposicfo a Bismarck, véem os elementos ver-

dadeiramente valicsc:

da tradig&o. °°

d)

A Quarta Forma da Mentalidade Utépica: A Utopia Soctalista-Comunista

Mesmo o modo de pensamento e de experiéncia socialista-comunista que, no concernente a suas origens, pode ser tratado como uma unidade, seré melhor entendido em sua estru-

tura utépica se fér observado por trés Angulos. O socialismo precisou, por um lado, radicalizar a utopia

liberal, a idéia, ¢, por outro, precisou tornar impotente ou, em um dado caso, superar completamente a oposicio interna do anarguismo em sua forma mais extrema. Seu antagonista conservador é considerado apenas secundariamente, assim como na

vida polftica geralmente se procede mais firmemente contra o Opositor proximamente relacionados do que contra o distante, porque é maior a tendéncia a resvalar para o seu ponto-de-vista, sendo conseqiientemente necessdrio se exercer uma vigilancia es-

pecial contra esta tentacdo interna. O comunismo, por exemplo, luta com maior energia contra o revisionismo do que o faz contra o conservadorismo. Isto nos auxilia a compreender por que a tcorja socialista-comunista ostenta uma disposicao a apren-

der muito com o conservadorismo. © clemento utépro do socialismo, devido a esta situacdo multifacetada e a sua tardia origem, apresenta uma face de Jano. Representa nao apenas um compromisso, mas também uma nova criacio, baseada em uma sintese interna das varias formas de utopia até ent@o surgidas ¢ ~ue se vém combatendo mituamente na soriedsde

O soci: "smo concurda com a utopia liberal no sentido de

que ambos acreditam que o dominio da liberdade e da igualde-

de sdmente vird a existir no futuro remoto. ‘1? E, contudo, caracteristico que o socialismo localize éste futuro em um ponto

muito mais especificamente determinado, que é o periodo da dericvuca da culiura capitalista. Esta solidariedade do socia38 Alguns dos aspectos mais importantes desta tendéncia foram bem estudados por meu aluno Requadt, P., Johannes v. Muller und der Friihhistorismus (Munique, 1929). 39 Cf, por exemplo, a ultima secdo de ensaio de v. Martin, “Weltanschauliche Motive xm altkonservativen Denken”, Deutscher Staat und deutsche Parteien: in Festschrift, Fr, Mcineck zum 60. Geburtstag dargebracht (Munique, Berlim, 1922)

Usta asserclic nao se Apica ao socialismo antes do sécula XIX.

© socialismo utépico do Uuminisma do século XVII, num periodo em que oy fisioeratas inteipretavam a histéria A luz da idéia de progresso, tinha sua utopia localizada na passado, carrespondendo a mentalidade pequeno-burguesa rcaciondna de seus defensores. essa volta

ao passado

tem suas raizes, em parte,

Socioldgicamente,

na persisténcia

de

certos remanescentes do antigo sistema de terra “comum’”, que de al-

264

Iprotocta & Urorra

A Minraripape Urérica

lismo com a idéia liberal, em sua orientagfo para um objetivo localizado no futuro, encontra explicagdo em sua comum oposi¢&o a aceitacio e afirmacio conservadoristas diretas e imediatas da ordem existente. A ampla indefinicao ¢ espiritualidade do objetivo distante corresponde, igualmente, A rejeigéo liberal e socialista da excitaco quilidstica e ao seu comum reconhecimento de que as energias extdticas latentes devam ser sublimadas através de ideais culturais. Contudo, na medida em que a questio seja a da penetragio da idéia no processo de evolucio e no desenvolvimento gradativo dela, a mentalidade socialista nao a experimenta nesta forma espiritualmente sublimada. Defrontamo-nos aqui com a idéia sob a forma de uma nova substancia, quase 4 semelhanca de um organismo vivo que tenha condicées definidas “e existéncia, cujo conhecimento pode tornar-se 0 objeto de investigacdo cientifica. Neste contexto, as idéias nfo -Jo sonhos nem desejos, imperativos imaginatios baixados de alguma esfera absoluta; antes, possuem uma vida concteta prépria e uma func&o definida no processo total. Arrefecem quando se tornam antiquadas e po-

vestigado, de modo a serem identificadas as fércas do processo contemporineo, cujo cardter dinamico e imanente, sob nossa diregio, conduza passo a passo 4 realizagao da idéia. Enquanto o conservadorismo depreciava a idéia liberal como uma mera opinide, o socialismo, em sua andlise da ideologia, elaborou um

dem ser realizadas quando o processo social atinge uma dada

situagdo estrutural. Destituidas desta relevancia para a realidade, tornam-se meras ‘“‘ideologias” obscurizantes. Ao se analisar a posigio liberal, descobre-se, de uma perspectiva bastante diversa da empregada pelo conservador, 0 carater abstrato ¢ puramente formal de sua idéa. A “mera opinifo”, a mera imagem da idéia que sdmente se realiza na atitude

subjetiva, é também aqui reconhecida como inadequada, estando sujeita A critica sob outro Angulo, que nao o da oposicio conservadora, No basta ter boas intencSes em abstrato ¢ postular no futuro remoto um dominio realizado de liberdade,

cujos elementos n@o se acham sujeitos a contréle,

Seria antes

necessdtio tomar consciéncia das condigdes reais (neste caso eco-

ndmicas e sociais) sob as quais esta tealizaciio de desejos possa tornar-se de alguma forma operante. © caminho que, do presente, conduz a ste objetivo distante deve ser igualmente in-

gum modo mantinha viva a meméria das instituigdes “comunistas” do passado, Quanto a esta relagio, muitos detalhes podem ser encontrados em Girberger, H., Der utopische Sozialismus des 18. Jahihunderts

in Frankreich und seine philosophischen und matericllen Grundlagen: Ziircher Volkswirtschaftliche Forschungen, eft 1, of. esp. pags. 94 e@ segs.

265

método critico coerente, que, na verdade, constitufa uma ten-

tativa de anular a utopia dos antagonistas, ao demonstrar que tinham suas rafzes na situagdo existente.

Desde entio. vem ocorrendo um conflito desesperado visando a desintegracio fundamental das crengas do adversério. Cada uma das formas de mentalidade utépica até o momento tratadas por nds, voltando-se contra as demais, exige que cotrespondam & realidade, e, em cada caso, apresenta ao adversdrio, como “realidade’”, uma forma de existéncia diversamente constituida. A estrutura econdmica e social da sociedade torna-se para o socialista a realidade absoluta. Transforma-se na portadora da totalidade cultural que os conservadores j4 haviam percebido como uma unidade. A concepgio conservadora de espirita de povo (Volbsgeist) foi a primeira tentativa relevante de compreender os fatos aparentemente isclados da vida intelec-

tual ¢ psiquica, como emanacdes de um unico centro de energia criadora, Para os liberais, tanto quanto para os conservadores, esta

farea propulsora constitufa algo de espiritual,

Na mentalidade

socialista, pelo contririo, emerge, da secular afinidade dos es-

iratos optimidos por uma oricntacao materialista, uma glorifi-

cacio

dos

aspectos

materiais da existéncia, anteriormente ex-

perimeniados apenas como fatéres negatives e obstrutivos.

Mesmo na valoracio ontolégica dos fatéres que constituem o mundo — sempre o mais caracteristico de qualquer estrutura de consciéncia — uma hierarquia de valéres, inversa A empre-

gada por outros mados de pensamento, vai aos poucos atin-

gindo predaminio As condicdes ‘‘materiais”’, anteriormente encatadas tao-s6 como obstéculos malignos no caminho da idéia, sio aqui hipostasiadas em farca motota dos assuntos do mundo, sob a forma de um determinismo econémico reinterpretado em térmos materialistas. A utopia que aleanca a mais préxima relagio com a situa-

co histérica ¢ social déste mundo evidencia esta aproximacao nfo apenas ao localizar seu objetivo cada vez mais no interior do quadro da histéria, mas ao elevar e espiritualizar a estrutu-

YDEOLOGIA E UTOPIA

A MENTALIDADE Urdépica

ta econdmica e social imediatamente acessivel. O que acontece aqui é, essencialmente, uma particular assimilacfo do sentido conservador de determinismo A utopia progressista que busca

Na histéria da moderna experiéncia quilidstica foi decisivo #! 0 conflito entre Marx e Bakunin, Foi no desenrolar déste conflito que veio a ter fim o utepismo quilidstico.

ser determinado, glorificava o passado, a despeito ou mesmo devido 4 sua funcio determinante e, ao mesmo tempo, dava, de uma vez por tédas, uma indicasio adequada da importincia do passado pata o desenvolvimento histérico. Entretanto, para os socialistas, € a estrutura social que se totna a férba mais, influenté no momento histérico, encarando-se seus podéres conformadores (em uma forma glorificada} como os fatéres deterrninantes de todo o desenvolvimento.

der busca tornar-se um partido, tanto menos ird tolerar um

266

refazer o mundo.

O conservador, devido a sua consciéncia de

O fenédmeno névo que aqui encontramos, o sentimento de determinismo, é perfeitamente compativel, entretanto, com uma utopia localizada no futuro. Enquanto a mentalidade conserva-

dora estabelecia naturalmente a conexao do sentimento de de-

terminac¢#o com a afirmagao do presente, o socialismo combina uma f6rca social progressista com as restricSes que a aco revoluciondria automaticamente se impde ao perceber as fércas determinantes da histéria. Estes dois fatéres, a principio imediatamente interligados, divergem no decorrer do tempo para formar duas faccdes opo-

nentes, mas em interagfo miuitua no movimento socialista-comu-

nista.

Os grupos que chegaram recentemente ao poder e que,

ao participar e ao partilhar da responsabilidade pela ordem existente,

se

comprometam

com

as

coisas

como

sao,

exercem uma

influéncia de retardamento, ao esposarem a mudanca através de uma evolugdo ordenada. Por outro lado, os estratos que ainda nao possuiam nenhum interésse investido nas coisas tais quais séo tornatam-se os portadores daquela teoria comunista (e também da sindicalista} que enfatiza a suprema importancia da revolugio. ,

No entanto, antes da cisdo, que corresponde a um posterior estégio no processo, esta mentalidade progressista tinha antes de mais nada de se estabelecer face 4 oposig&o dos demais partidos. Dois obstd4culos tinham que ser ultrapassados: o sentido de indeterminacao histérica contido no quiliasma, que assumiu

uma forma moderna no anarquismo radical, e esta mesma ce-

gueira quanto as férgas determinantes da histéria que acompanha o sentido de indeterminacio da ‘“idéia” liberal.

267

Quanto mais um grupo que se prepara para assumir 0 po-

movimento que, de uma forma sectdria e jrruptiva, visa, em

algum momento indeterminado, a tomar de assalto as fortalezas da historia, Também aqui, a desaparicio de uma atitude fun-

damental —1 pelo menas sob.a forma de que faldvamos — se

acha Intimamente ligada & desintegracdo da realidade econémi-

ca e social que constitui seu embasamento (como Brupbacher

teve ocasifo de demonstrar #2). A vanguarda de Bakunin, os anarquistas da Federacao de Jura, desintegrou-se quando o sistema doméstico de manufatura relojoeira, em que se achavam aplicados e que Shes possibilitava uma atitude sectaria, foi superada pelo sistema industrial de producdo. No lugar de uma experiéncia oscilante ¢ nae rganizada da utopia extdtica, surge o bem organizado movimento revoluciondrio marxista. Podemos nova vente notar aqui que a maneira de o grupo conceber © tempo manifesta mais claramente o tipo de utopia em consonancia com o qual a consciéncia do grupo se organiza. Aqui se experimenta o tempo como uma série de pontos estratégicos.

Esta desintegracio da utopia extética anarquista foi brusca e brutal, tendo sido contudo ditada, como fatal, uma necessidade pelo préprio pracesso histérico. Uma visio de apaixonada profundidade desapareceu do primeiro plano da cena politica eo sentido de determinismo velo a se impor sdbre uma esfera mals wupla, © pensamento liberal se relaciona ao pensamento anarquistambém possufa um sentido de indeterminismo, muiporque ta to embora (coma j4 foi visto) chegasse, através da idéia de +1 S8bre Bakunin, ver as obras de Nettlau, Ricarda Huch ¢ Fr. Brupbacher. A obra déste ultimo, Marr und Bakunin (Berlim-Wil-

mersdorf, 1922), olerece uma exposigio concisa de muitos problemas

importantes.

As obras completas de Bakunin foram editadas na Ale-

manha por “Der Syndikalse’,

Cf, também a confissio de Bakunin ao

Czar Nicolau I, descoherta nes arquivos secretos do chefe da terceira segio da Chancelaria do titimo Czar, e traduzida por K. Kersten, Ber-

lim, 1926. 12

Brupbacher, op. cif, pags. ov e segs., 204 @ segs,

IpgoLocia E Uroria

A MeEnraLtpapE Urdérica

progtesso, a uma relativa proximidade com o processo histdérico concreto. ‘) sentido liberal de indeterminismo se baseava na

Aqui, novamente, existe uma diferenca na maneira de se expetimentar o tempo histérico: enquanto o liberal concebia o tempo futuro como sendo uma linha reta conduzindo diretamente a um objetivo, surge agora uma distincdo entre o prdximo e€ o remoto, uma distingdo cujos primérdios j4 se encontravam em Condorcet e que é de importancia tanto para o pensa-

268

fé em um relacionamento imediato com uma esfera absoluta de impetativos éticos —- A prépria idéia. Esta esfera de imperativos éticos nado derivava sua validade da histdria; nao obstante, para o liberal, a idéia podia, nela, tornar-se uma f6rca impulsora. Nio é que o processo histérico produza as idéias, mas sdmente a descoberta das idéias, sua expansio ¢ o “esclarecimento” a seu tespeito é que as torna fércas histéricas. Uma verdadeira revolug&o copernicana ocorreu quando o homem comecou a considerar nZo apenas a si préprio, néo sé 0 homem, mas também a existéncia, a validade e a influéncia destas idéias como fatéres condicionados, encarando o desenvolvimento das idéias

como vinculado A existéncia e integrante do processo histérico-social. O que antes de mais nada importava ao socialismo nao era combater esta mentalidade absolutista entre seus opositores, mas, antes, estabelecer, em seu prdprio campo, a nova atitude em oposigio ao idealismo ainda dominante. Bem cedo, portanto, ocorreu éste afastamento das utopias da “alta burguesia”, cuja melhor andlise pode ainda ser encontrada em E igels. Saint-Simon, Fourier e Owen ainda sonhavam suas utopias

no estilo intelectualista antigo, embora j4 trouxessem a matca

de idéias socialistas.

A situagdo déles & margem da sociedade

se exprimia em descobertas gue alargavam as perspectivas so-

ciais e ecordmicas; entretanto, retinham em seu método o as-

pecto de indeterminacgio caracteristico do Iluminismo. “Para todos éles, o socialismo é a expressdo da verdade, da razdo e da justiga absolutas, precisando apenas ser descoberto pata conquistar o mundo através de seu prdprio poder.’ 43 ~Também aqui, tinha que se vencer uma idéia e, em conseqiiéncia, o sentido de dezerminagao histérica deslocou a outra forma competidora de utopia. A mentalidade socialista, em um sentido bem mais fundamental do que a idéia liberal, representa uma redefinigo da utopia em térmos de realidade. Serd sdmente ao tétmino do processo que a idéia se estabelece em sua indefinicio e indeterminag&o proféticas, mas o caminho que, das coisas tais sao, conduz A tealizacto da idéia ja se encontra claramente demarcado histérica ¢ socialmente. 48°

Engels, Ft., Die Entwicklung des § zidlismis von der Ulopic

zur Wissenschaft, 4.* ed., Berlim, 1894,

mento quanto para a aco,

269

O conservadorismo ja diferenciava

o passado desta maneira, mas desde que sua utopia ia tendendo cada vez mais para uma completa harmonia com o estégio de realidade jd atingido na época, o futuro permanecia, pata o conservador, completamente indiferenciado. Sdmente através da unifio de um sentido de determinagao com uma concep¢fo viva do futuro, seria possivel criar um sentido histérico de tempo com mais de uma dimensio, Mas esta perspectiva mais complexa de tempo histdrico, que o conservadorismo j4 havia criado para o passado, possui, aqui, uma estrutura completamente diferente. Nao é somente através da virtual presenca de cada acontecimento passado que cada experiéncia presente encarna uma

terccira dimensdo apontando de volta ao passado, mas igualmente porque o futuro estd4 sendo nela preparado. Nao é apenas o passado. mas igualmente o futuro, que tem uma existéncia virtual no presente. Uma pondetacdo de cada um dos fatéres existentes no presente e uma intuicdo das tendéncias latentes nestas {Orcas sOmente podem ser obtidas se se compreender o presente & luz de sua concreta realizagdo no futuro. ** Enguanto a concepcao liberal do futuro era inteiramente

formal, cstamos aqui lidando com um processo de concretizacio gradativa. 44

Embora esta conclusiio do presente pelo fututo

Uma confirmacfio da andlise acima e uma quase matematica-

mente c\ata confrmagio de nossa teoria sébre os modos diferenciais,

social e politicamente, de experimentar o tempo histérico, 6 dada pelo seguinte excerto de um artigo do comunista J. Révai: “O presente s6 existe realmente cm virtude da existéncia do passado e do futuro — 0 presente é a forma do passado desnecessario e do futuro irreal. A

tdtica 6 9 futuro manifestando-se como presente.” (“Das Problem der

Taktik”, em Kommuunismus: Zeitschrift der Kommunistischen Internationale, 1920, 11, pag. 1676. A presenga virtual do fulura no presente é af claramente expressada, Esta em completo contraste com a citagio de Hegel, anteriormente feita.)

Dever-se-ia comparar csta frase com

outras citagGes dispersas no presuute texto.

270

IpeoLocia co Utopia

A Mentaripape Urdépica

seja, de inicio, imposta pela vontade e por imagens desiderativas, @ste esférgo orientado para um objetivo atua como um fator heuristicamente seletivo, tanto na pesquisa quanto na a¢do. De acérdo com éste ponto-de-vista, o futuro esté continuamente se testando no presente. Ao mesmo tempo, a idéia, que a principio era apenas uma vaga profecia, esté sendo constantemente corrigida ¢ tornada mais concreta 4 medida que o presente se adianta para o futuro, A “idéia” socialista, em sua interagdo com os acontecimentos “reais”, opera néo como um principio transcendente e puramente formal, que do exterior regula o

cia-chave, cuja perspectiva permeia tédas as Ciéncias Histéricas especiais que tenham alcangado um estado similar de desenvolvimento. Uma confianga e uma seguranga, autorizadas pelo sentimento de determinacio, fazem surgir ao mesmo tempo um ceticismo criador e um élan disciplinado. Um tipo especial de “realismo” permeia o dominio da arte. O idealismo do filisteu burgués de meados do século XIX dissipou-se e, enquanto persistir uma tensao fecunda entre o ideal e a existéncia, os valéres transcendentes, concebidos a partir de agora como encarnados na existéncia efetiva, serio buscados no préximo e no imediato.

acontecimento, mas, antes, como uma “tendéncia” no interior

da matriz desta realidade, contlnuamente se corrigindo com referéncia a éste contexto, A investigagZo concreta da interdependéncia de téda a gama de acontecimentos, dos econdmicos aos psiquicos e aos intelectuais, deve reunir as observacdes isola-

das em uma unidade funcional, contra o embasamento de um

todo em desenvolvimento.

Dessa forma, nossa visio da histéria vai adquirindo um quadro de referéncia cada vez mais concreto, diferenciado, mas ao mesmo tempo mais flexivel.

Examinamos cada aconteci-

mento com vista a descobrit o que significa e qual a sua posicio na estrutura total em desenvolvimento.

Seguramente, a drea de livre escolha se torna, assim, mais restrita; descobre-se um numero maior de determinantes, pois nao s6 o passado constitui um fator de determinacdo, mas a s!tuagéo econdmica e social do presente também condiciona 0 acontecimento possivel, O propdsito orientador nao consiste mais, aqui, em uma atividade com base em impulsos fortuitos em direcio a algum aqui e agora arbitrariamente escolhido, mas, antes, em fixar a atencfo sdbre um ponto de ataque favordvel no todo estrutural em que vivemos. Torna-se tarefa do Ifder polftico reforcar deliberadamente as fércas cuja dindmica parega adiantar-se na direcio por éle desejada, e orientar em sua préptia diregdo, ou pela menos tornar impotentes as que parecam opor-se a éle. A experiéncia histérica se torna, dessa forma, um verdadeiro plano estratégico. Tudo o que existe na histéria pode ser agora experimentado como um fenémenointelectual e

volitivamente controlével.

Também neste caso, 0 ponto-de-vista inicialmente formulado na drea politica penetra téda a vida cultural: da investigacao sébre a determinaco social da histdéria surge a Sociologia que, por seu turno, se transforma gradativamente em uma cién-

271

4. A UTOPIA NA SITUAGAO CONTEMPORANEA

Na momento atual o problema assumiu sua forma prdépria ¢ singu'tr. © oo: ‘prea processo histérico nos mostra uma utopia que, em uma dada época, transcendia completamente a historia, vir gradativamente descendo em uma aproximacio cada vez mais chegada 4 vida real, Ao se tornar mais préxima da rea-' lidade histérica, sua forma sofre mudangas tanto em fungado

quanto em substancia. O que de origem se colocava em absoluta oposigao & realidade histérica tende agora, seguindo o modélo do conservantismo, a perder seu cardter de oposigao, Claro esta que nenhuma das formas destas fércas dindmicas que emergem em uma seqiiéncia histérica jamais desaparece por completo, e tampouco em época alguma qualquer delas é incontestavelmente dominante. A coexisténcia destas forcgas, sua oposigéo reciproca, bem como sua constante interpenetracao mitua, dao existéncia a formas cuja riqueza de experiéncia histérica aparece pela primeira vez.

A fim de nado obscurecer com umexcesso de detalhes o que € decisivo, sémente ressaltamos as mais importantes ten; déncias em téda esta variedade, emprestando-lhes uma énf2.2 maior ao retratd-las como tipos-ideais. Muito embora, no decotter da histéria, jamais se perca realmente nada desta multiplicidade de coisas ¢ de acontecimentos, é possfvel mostrar com crescente clareza diversos graus cle predominio e de alinhamento das fOrgas em atuacHo na sociedade. Iddias, formas de pensamento é energias psfquicas persistem e sao transformadas em estrcita conexiio com as férgas seciais.

Nunca é por acaso que

aparecem ent determinades momentos do processo social.

272 ral

IpgoLocia E Urovia

A Menrauipape Urdépica

A éste propdsito, estd a vista um determinante estrutu-

especifico

que,

pelo

menos,

merece

indicacéo.

Quanto

maior a classe que adquire um certo dominio sébre as condicdes concretas de existéncia, e tanto maiores as possibilidades de uma vitéria por meio de uma evolucdo pacifica, tanto mais tenderd esta classe a seguir o caminho do conservadorismo. Isso significa, porém, que os diversos movimentos terio renunciado aos

elementos utdpicos em seus modos de vida. Isso se demonstra de uma maneira mais nitida pelo 1.10, j4 mencionado, de que a forma relativamente mais pura da mentalidade quilidstica moderna, tal como ss acha encarnada no anarquismo radical, desaparece quase que por completo da cena politica, resultando dai que se elimina um elemento de tensio das formas remanescentes de utopia politica. E verdade, certamente, que muitos dos elementos que constitufam a atitude quilidstica foram transmutados e se refugiatam no sindicalismo e no bolchevismo, sendo assimilados e incorporados a atividade déstes movimentos. Dessa forma, transferese para éles, ¢ particularmente para o bolchevismo, a fun-

cao de acelerar c de catalisar a agdo revolucioniria, ao invés de deificd-la.

» © abrandamento generalizado da intensidade utépica se vetifica ainda noutro sentido importante: cada utopia que se forma em um estdgio posterior de desenvolvimento, manifesta uma aproximacio -naior ao processo histérico-social. Quanto a éste aspecto, a idéia liberal, a socialista e a conservadora nada mais sféo do que estdgios diversos e, na verdade, formas de oposicao no processo ~1e vai continuamente se distanciando do quiliasma e se apivxims..to cada vez mais dos acontecimentos déste mundo. Tédas estas fornias de oposic&o A utopia quuidstica Nao acusamos o adversdrio de adorar falsos deuses; destruimos a intensidade de sua idéia demonstrando que ela é histérica € socialmente determinada. © pensamento socialista, que até aqui vem desmascarando as utopias de todos os seus adversdrios como ideologias, jamais levantou o problema da determinacZo com respeito 4 sua prdépria posicic.

Jamais aplicou o método a si mesmo e nunca re-

freou scu préprio desejo de ser absolute. No entanto, é inevitavel que também aqui o elemento utdépico desaparega, com o 45 A mudanga de significado de conceito de ideologia, que apresentamos na Parte IH, ¢ simplesmente uma fase déste processo mais geral.

274

ENTALIDADE UtT6pIica

IpEoLociaA E Uioria

aumento do sentido de determinacgio. Aproximamo-nos, assim, de uma situagdo em que o elemento utépico, através de suas muitas formas divergentes, ter-se-4 (pelo menos na politica) aniquilado completamente. Ao se tentar seguir as tendéncias que ja se ddo, projetando-as no futuro, a profecia de Gottfried Keller — “O triunfo final da liberade serd estéril” 4" —- passa a assumir, pelo menos para nés, um alarmante significado. Sintomas desta “‘esterilidade” se revelam em muitos fendmenos contemporaneos, podendo ser claramente entendidos como radiagdes da situacio politica e social nas esferas mais remotas da vida cultural.

Com efeito, quanto mais ativamente um

partido em ascenséo colabora em uma coalizio parlamentar,

tanto mais abandona seus impulsos utépicos originais ¢, com

éles, sua perspectiva ampla, tanto mais seu poder para transformar a sociedade tenderd a ser absorvido por seu interésse em detalhes isolados e concretos. Em térmos bastante paralclos 4

mudanga que pode ser observada no dominio politico, cfetua-se uma mudanga na visio cientifica que se conforma as demandas politicas: o que constituira meramente um esquema formal ¢

uma visio total e abstrata tende a se dissolver em uma investigacdo de problemas especificos e distintos. O esfdrco utdpico visando a um objetivo e a possibilidade, intimamente relacionada a éle, de uma perspectiva ampla desintegram-se, no conselho

consultivo parlamentar e no movimento sindical, em mero con-

junto de orientagdes para dominar um vasto nimero de detalhes

concretos, com vista a assumir posigio politica quanto a éles. Da mesma forma, no campo da pesquisa, o que anteriormente

constitula uma Weltanschauung unificada e sistematizada converte-se, no intento de lidar com problemas individuais, em uma mera perspectiva orientadora e em um principio heurfstico.

Mas

desde que tédas as formas miituamente conflitantes de utopia

atravessam o mesmo ciclo de vida, tornam-se, tanto no dominio

da céncia quanto no da prdtica parlamentar, cada vez menos artigos de fé mttuamente conflitantes, e cada vez mais partidos

275

A viséo sociolégica das classes que ascendem ao poder sofre transformagdes segundo linhas particulares. Estas teorias sociolésicas, 4 semelhanca de nossa atual concepcio cotidiana do mundo, encarna os “‘pontos-de-vista possfveis” conflitantes que nada mais séo do que transformagdes gradativas de utopias anteriores. O que esta situagao tem de peculiar é que, nesta luta competitiva pela correta perspectiva social, todas estas abordagens e pontos-de-vista conflitantes de forma alguma se ‘‘desacreditam” a si préprios, isto é, nao se revelam fiteis ou incorretos. Antes, demonstram com uma clareza crescente ser possivel pensar pro-‘itosamente, de qualquer ponto-de-vista, embora o grau de provcito a ser atingido varie de posigdo a posicao. Cada um déstes pontos-de-vista revela, de um Angulo diverso, as inter-relagdes no complexo total de acontecimentos, crescendo dessa forma a suspeita de que o processo histérico seja algo mais abrangente que todos os pontos-de-vista individuais existentes, ¢ de que nossa base de pensamento nio alcance, no presente estado de atomizagao, uma visio compreensiva

dos acontecimentos. A massa de fatos e de pontos-de-vista é muito maior do que o atual estado de nosso aparato tedérico e de nossa capacidade de sistematizagio pode comportar. Teto, porém, lanca uma nova luz sdbre a necessidade de nos achirmos continuamente preparados para uma sintese, em um mundo que vai atingindo um dos altos pontos de sua existéncia. QO que anteriormente se desenvolvera aleatoriamente, a partic das particulares necessidades intelectuais de classes e circulos sociais restritos se torna de stibito perceptivel como um todo, ¢ a profusio de acontecimentos e de idéias produz um quacdia bastante Cofluse,

mad

Nao € por fiaqucza que um povo, chegado a um estdgio o de d.sensal- riento histZrico e social, se submete do

diferentes possibilidades de visualizar o mundo, tentando encontrar um quadio tedrico que as abranja todas, Essa submissao surge antes da is uigtc de que cada uma das certezas intelectuais

em competic#o ou possiveis hipdéteses de pesquisa. Enquanto em

antecedentes repousava sdbre pontos-de-vista parciais tornados

social ¢ intelectual, hoje em dia a condig&o interna das situacdes intelectuais e sociais se reflete mais claramente nas diversas for-

evidentes.

uma poca de ideais liberais a Filosofia refletia melhor a situacao mas de Sociologia. 16

“Der Fretheit letzter Sieg ward tecken sc”.

absolutos. Constitui uma caracteristica de nassos dias o fato de que se limi. accics puntos-de-vista parciais se tenham revelado Neste estdgio maduro e adiantado de desenvolvimento, a perpectiva total tende a desaparecer em proporcio ao desaparecimento da utopia. Sdmente os grupos da cxtrema esquerda e de do grapo intermedidrio procura ignorar inteiramente o ¢ “lema da totalidade a fim de, com base nesti renincia, ser capaz de concentrar mais plenamente sua atencado na abundancia de problemas particulares. Téda vez que a utopia desaparece, a histéria deixa de ser um processo que conduz a um fim ultimo. O quadro de referéncia de acérdo com o qual avaliamos os fatos deixa de existir, restando-nos uma série de acontecimentos, todos idénticos no que se refere a sua significacio interna.

Desaparece o conceito de tempo histérico, que

conduzia a épocas qualitativamente diferentes, e a histdéria se torna cada vez mais semelhante ao espaco nio-diferenciado. Todos os elementos de pensamento enraizados nas utopias sao agora vistos de um ponto-de-vista cético e relativista. Ao invés da concepcao de progresso e da dialética, adotamos a busca de

277

tipos e de generalizacdes vdlidas eternamente, e a realidade se torna apenas uma combinagiio especial déstes fatéres gerais (cf. a Sociologia Geral de Max Weber). O quadro conceptual da Filosofia Social que fundamentava os trabalhos dos uiltimos séculos parece desaparecer com a fé nas utopias como alvos coletivos dos esforcos humanos, Esta atitude cética, fecunda em muitos sentidos, corresponde primatiamente A posigéo social de uma burguesia j4 no podet, cujo futuro se coiverteu gradativamente em seu presente. Os demais estratos da sociedade manifestam tendéncias idénticas, 2 medida que também se aproximam da tealizacio de seus objetivos.

Nao obstante, a evoluc&o concreta de seu modo de pensamento

atual também se acha até cetto ponto socioldgicamente determinada pela situac&o histérica em que tiveram origem. Caso se retire do método sociolégico marxista a concepcio dindmica de tempo, também aqui teremos uma teoria generalizante da ideologia que, sendo cega as diferenciagdes histdéricas, iria vincular as idéias exclusivamente as posicSes sociais dos gue as mantém, sem considerar a sociedade em que ocotrem nem a funcdo particular que ali possam exercer. Os contornos de uma Sociologia indiferente A nocio histdtica de tempo j4 cram perceptiveis na América, onde o tipo do-

minante de mentalidade tornou-se mais completo e rapidamente congrucnte com a realidade da socicdade capitalista do que

ecorreu no pensamento alemao.

Na América, a Sociologia de-

tivada da Filosofia da Histéria foi bem mais cedo posta de lado. A Sociologia, ao invés de constituit um retrato adequado da estrutura do conjunto da sociedade, esfacelou-se em uma série de problemas técnicos distintos de reajustamento social. “Realismo”

tem

diferentes

significacSes

em

contextos

diferentes. Na Europa, significava que a Sociologia tinha de focar sua atengio na tensdo bastante acentuada entre as

classes, enquanto na América, onde havia maior liberdade de ag&o no campo econdmico, néo eta tanto o problema das classes que se consideraya o centro “real” da sociedade, mas os problemas de técnica e de organizacko sociais. Pata as for-

mas de pensamento europeu que se encontravam em oposicio ao

status quo, Sociologia significava a solugio do problema das relagdes de classe — de um modo mais getal, um diagnéstico cientifico da época atual, Para o ameticano, pelo contrério, significava a solugio dos problemas técnicos e imediatos da vida social. Isto ajuda a explicar por que, na formulacdo eu-

278

A MENTALIDADE Urépica

IpEoLoaia E Utorta

ropéia de problemas socioldgicos, sempre se faz a desconcertante pergunta sSbre o que nos guarda o futuro e, de maneira semelhante, se lanca a luz sdbre o impulso, estreitamente correlato, para uma perspectiva total. Do mesmo modo é possivel explicar, com base nesta diferenca,’o tipo de pensamento envolvido na formulagio americana do problema, representado da seguinte forma: Como é que faco isso? Como € que resolvo éste problema concreto isolado? E em tddas estas indagacdes sentimos o eco otimista: n&o preciso preocupar-me com o todo, o todo toma conta de si prdprio. Na Europa, contudo, o desaparecimento completo de tédas

as doutrinas que transcendem a realidade —- as utdpicas bem como as ideoldgicas — ocorreu nfo apenas pelo fato de se mos-

trar que todas estas nacdes eram relativas A situac%o econdmico-

-social, mas também por outros meios. A esfera da realidade wltima repousava na esfera econdémica e social, pois era a ¢sta que

o marxismo vinculava, em Ultima andlise, todas as idéias ¢ valéres; estava ainda historica e intelectualmente diferenciada, isto

é, ainda continha algum fragmento da perspectiva histérica (devido amplamente A sua derivagdo hegeliana).

© materalismo

histérico era materialista apenas no nome; a esfera econdmica era, em Ultima andlise, apesar de ocasionais negativas déste fato, um inter-relacionamento estrutural de atitudes mentais © sis-

tema econdmico existente era exatamente um “sistema”, isto é,

algo que se forma na esfera do espirito (0 espirito objetivo, como o entendida Hegel). © processo que de inicio comecou por solapar a validade dos elementos espirituais na histéria passou, mais tarde, a perturbar esta esfera do espirito, reduzindo

todos os acontecimentos a fungSes de impulsos humanos, completamente desligados dos elementos histéricos e espirituais.

Isto também possibilitou uma teoria generalizante; os elementos que transcendem A realidade, as ideologias, as utopias, etc. — jé n&¥o se achavam em relacdo com situagSes sociais de grupo, mas com impulsos — com formas eternas da estrutura dos impulsos humanos (Pareto, Freud, etc ), Esta teoria generalizante dos impulsos ja féra prenunciada na Vilosofia Social e na Psicologia Social inglésas dos séculos XVIT ¢ XVUT Assim, por exemplo, em seu Enquiry concerning Human Understanding, dizia Hume: “Reconhece-s¢ universalmente que haja uma grande uniformidade entre as acdes dos homens, cm tédas as nagdes ¢ em

tédas as épocas, ¢ que a natureza humana permancca sempre a

mesma, em seus principios e manifestagdes.

vos produzem sempre as mesmas acdes.

279 Os mesmos moti-

Os mesmos aconteci-

mentos decorrem sempre das mesmas causas. A ambicio, a avareza, O egoismo, a vaidade, a amizade, a generosidade, o es-

pirito puiblico: estas paixdes, combinadas em varios graus e dis: tribuidas pela sociedade, tém sido desde o inicio do mundo, e ainda o sao, a fonte de tédas as agdes ¢ iniciativas que se tém sempre observado na humanidade.” 47 Este processo de completa destruigdo de todos os elementos espirituais, os utépicos bem como os ideoldgicos, encontra um pwalelo nas mais recentes tendéncias da vida moderna, e nas tendéncias correspondentes no dominio da arte. Nio devemos ¢ncarar o desaparecimento na arte do humanitarismo, 4 emergéncia de um “constatagio de fato” (Suchlichkeit) na viaa sexual, na arte ¢ na arquitetura ¢ a expressio dos impulsos naturais no esporte — niio se deveria interpretar tudo isso como

sintomitico do crescente recesso dos elementos utépicos e “du: Idgicos da mentalidade dos estratos que virio a dominar a situacéo atual? Nao deveriam a gradativa redugio da Politica a Economia, em cuja direcio existe pelo menos uma tendéncia

perceptivel, a rejcicfo consciente do passado e da nocgao de tempo histérico, o abandono consciente de qualquer “ideal cyl>ura, $cc inter: taces como um desaparecimento, tambér wa

arena politica, de qualquer forma de utopismo? Aqui, uma certa tendéncia para agir sobre 0 mundo promove uma ativucle para a qual tédas as idéias se acham desacretitadas e tédas as utopias, destruidas. Esta atitude ptosaica que vem surgindo atualmente deve ser em grande parte bem receoiaa como o unico instrumento de dominio sébre a situacHo

atual, como a transformac&o do utopismo em ciéncia ¢ como a’

detruicio $13 id.clogi-s enganadoras que se acham em incongruéncia com a realidade de nossa presente situacZo, Seria ne-

cessdrio ou bem uma insensibilidade que nossa peracdo provavelmente jf nfo poderia adguirir ou, entao, a crédula ingenuidade de uma geracHo recentemente nascida para o mundo, para

se poder viver em inteira congruéncia com as realidades déste mundo, totalmente despidas de qualquer elemento transeendente, quer sob a forma de uma utopia, quer sob a de uma ideologia. 'T ume, Enquiries concerning the Human Understanding and prning the Principle. af Alveals, Ws. pa L. A. Selby-Digge, 2.7 ed.

on, 1927), aig. os

280

Ipro.ocia © Uroria

A MeEnTaLipapn Urérica

Em nosso atual estagio de autoconsciéncia, esta setia talvez a

lativo bem-estar, ou que éste capitalismo seja antes transforma: do em comunismo.) Se aste estdégio posterior do desenvolvimento industrial somente puder ser obtido através da revolucio, os elementos utépicos e ideolégicos do pensamento voltarfo a flotescer, com renovado vigor, por téda parte. Seja como fér, seri no podersocial desta ala da oposico & ordem existente que se ird encontrar um dos determinantes de que depende o destino dos conceitos que transcendem a realidade,

Unica forma de existéncia real possivel em um mundo que j4 nao se acha em formacao. E possivel que o melhor que nossos ptincipios éticos tém a oferecer seja a “‘autenticidade” e a “franqueza”, no lugar dos antigos ideais. A “autenticidade” (Echtheitskategorie) e a franqueza aparentam nao ser mais do que a

ptojecao da ‘“‘constatacao de fato” ou do “realismo” gerais de

nossos dias, no campo da Etica. Talvez um mundo que nao esteja mais cm formacg&o possa permitir-se isso. Mas acaso teremos atingido um est4gio em que possamos dispensar o esfSrco? Nao itia esta eliminacio de tddas as tensdes significar igualmente a eliminacdo da atividade politica, do cuidado cientifico ~- numa palavra, do préprio contetido da vida? :

Assim, se néo nos quisermos contentar com esta “cou

tagiio de fato”, devemos levar avante nossa pesquisa ¢ indagar se nao existiriam outras fércas em atividade no campo social, além dos estratos sociais que, pela sua atitude satisfcita, promovem éste relaxamento da tensdo psicoldgica. Caso a petgunta 'seja colocada desta maneira, contudo, a tesposta deverd ser a

seguinte:

i

A aparente auséncia de tens&o no mundo de hoje esta sen-

ido solapada por dois lados. De um lado, acham-se os estratos

cujas aspiracdes ainda nfo se realizaram e que se incunam para

0 comunismo e para o socialismo. utopia, do ponto-de-vista e da acao é manegam 4 margem do mundo atua. dade implica a ininterrupta exist€ncia

Para éles, a inidade da inconteste enquanto rerA sua presenga na sociede, pelo menos, uma for-

ma de utopia, e, assim, até certo ponto, sempre fard que tornem

a se acender e a se conflagrar contra-utopias, pelo menos tédas as vézes que esta ala de extrema esquerda entre em acto. Se isto ira ou sao de fato acontecer, depende amplamente da forma estrutural do processo de desenvolvimento com que atualmente nos defrontemos. Se formos capazes de, através de uma evolucio pacifica, alcangar, em um estdgio postctior, uma forma algo superior de industrialismo que seja suficientemente cldstica e que proporcione aos estratos mais baixos um gtau de relativo bem-estar, entio também elas sofrerdo o tipo de trans-

formacia que jd se evidenciou nas classes detentoras do poder. (Déste ponto-de-vista, pouco importa que esta forma supcrior de organizagio social do industrialismo, através do acesso dos estratos mais baixos a uma posicao de poder, redunde em um capitalismo suficicntemente eldstico para assegurar-lhes um re-

281

Mas a forma futura da mentalidade utdpica e da intelectualidade n&o desende apenas das vicissitudes déste estrato social extremo,

Em acréscimo a éste fator socioldgico, ainda existe

outro a ser considerado neste sentido: um estrato médio social e intelectual distinto que, apesar de manter uma telacdo defi-

nida com a atividade intelectual, ndo foi considetado em nossa

andlisc anterior.

Até agora tédas as classes abrangeram, além

dos que efetivamente representavam seus interésses diretos, ou-

tro estrato mais otientado para o que se pode chamar de teino do espfrite, Sociolagicamente, podetiam ser denominados “intelectuais”, mas, para nossas finalidades, precisamos ser mais precisos.

No nos referimos aqui aos que portam as insignias

exteriores da instrucéo, mas aos poucos dentre @stes que, consciente ou inconsclentemente, se acham interessados em algo mais do que o sucesso no esquema de competicao que visa a desalojat o atual Por maior que seja a serenidade com que se encare a questaéo, néo se poderd negar que éste pequeno grupo quase sempre existiu. Sua posicdo nao aptesentava nenhum problema enquanto seus interésses intelectuais e espirituais estivessem em congruéncia com os da classe em luta pela supremacia social. Experimentava e conhecia o mundo segundo a mesma perspectiva utépica do grupo ou esttato social com cujos inter€sses se identificava. Isto se aplica tanto a Thomas Mtinzer quanto aos combatentes burgueses da Revolucio Francesa, tanto a Hegel quanto a Karl Marx. A situagio déles se torna, no entanto, questiondvel sempre

que o stupa a que se identificam aleanca uma posicio de poder. quando, em decorréncia desta obtencdo de poder, a utopia se desliga da politica. Conseqtientemente, o estrato que era identificado com tal grupo, com base nesta utopia, é igualmente desligado. Os intelectuais serio também desligados déstes vinculos socinis tio logo o estrato mais oprimido da sociedade venha a partilhar do dominio da ordem social. Os intelectuais social-

TpEOLOGIA £ UTopia

A MENTALIDADE Utdérica

mente desvinculados serfo, ainda mais do que hoje em dia, re-

ma déste fato, por exemplo, na arte moderna expressionista, em

282

crutados em proporgSes crescentes dentre todos os cstratos so ciais ¢ nado simplesmente dentre os mais privilegiados. Rote

setor intelectual, que sc vem tornando cada vez mats scparado

do resto da sociedade ¢ se vé entregue a seus prdéprios recursos,

defronta-se, sob outro aspecto, com o que acabamos de caracte-

tizar como uma situacdo total que tende para o completo desaparecimento de tensao social. Mas uma vez que os intelectuais nfio se encontram de forma alguma em concordancia com a situacdo existente, e que ela nao deixa de lhes aparecer como problema, também éles se esforcam por ultrapassar esta situagao desprovida de tensao. As seguintes quatro alternativas se apresentam aos intclec-

tuais que dessa forma se viram rejeitados pelo processo social: 0 primeiro grupo de intelectuais que se filiam a ala radical do proletariado socialista-comunista em absoluto nos intercssa aqui. Para éle, pelo menos sob @ste aspecto, n@o existem problemas, o conflito entre a lealdade social e a intelectual ainds nao existe O segundo grupo, que se viu rejeitado pelo processo social ao mesmo tempo que sua utopia era afastada, torna-se cético e passa, em nome da integridade intelectual, a destruir os clementos ideolégicos da ciéncia pela manecira acima descrita (Max

Weber, Pareto). O terceiro grupo se refugia no passado e¢ tenta encontrar

283

que os objetos perderam seu significado original, parecendo

servir simplesmente como um meio para a comunicacgéo do extdtico De modo semelhante, no campo da Filosofia, varios pen-

sadores niic-académicos, como Kierkegaard, rejeitaram, na busca de fé, todos os elementos histéricos concretos da religifo, e tendem, em tiltima andlise, para uma pura e extdtica “existén-

cia em si”. Tal afastamento do elemento quilidstico do meio da

cultura ¢ da politica talvez preservasse a pureza do espirito extdtico, mas dcixaria o mundo sem significacio nem vida, Este afastamento acabard sendo fatal também ao éxtase quilidstico,

desde que, como jd vimos, ao se interiorizar e abandonar scu conihto com o mundo concreto imediato, éle tende a se tornar

manso ¢ inécuo, ou a se perder em um pura auto-edificacao,

Terminada esta andlise, é inevitdvel que nos indagassem

© que o futuro nos guardu, e a dificuldade desta questo pde a nu a estrutura da compreensio histérica. Predizer é tarefa de profetas, cada profecia transforma necessiriamente a histéria em um sistema puramente determinado, privando-nos, dessa forma, da possibilidade da escolha e decisio. Como um resul: tado posterior, desfaz-se o impulso a pesar e a refletir com relacio a esta esfera constantemente emergente de novas possibilidades.

reconstrugfo romantica, tenta espiritualizar o presente. A mesma fungio, déste ponto-de-vista, € desempenhada pelas tenta-

A iinica forma em que o futura se nos apresenta € a da possibilidade, ao passo que o imperativo, o “deveria”, nos diz qual destas possibilidades devemos escolher. No que se refere ao conhecimento, o futuro —~ enquanto nado estamos interessados na parte puramente organizada e racionalizada — se apre-

bolos e os mitos. © quarto grupo se isola do mundo e renuncia conscientemente 4 participagdo direta no processo histérico. Tornam-se extéticos como os quiliastas, mas com a diferenca de que j4 nao

E, quando nossas tentativas de devassd-los sio repelidas, comegamos a tomar consciéncia da necessidade de escolher resolutamente o nosso caminho, e, em estreita conexdo, da necessidade de um imperativo (uma utopia) que nos leve avante. Sdmen-

te no grande processo histérico do desengano, em que todo significado concreto das coisas, bem como os mitos e as crencas vio sendo Ientamente postos de lado, Diferem, entretanto, dos

é que estamos em posicao de questionar as possibilidades da si-

pirou tanto o mfstico quanto o quiliasta, se bem que de maneiras diferentes, se encontra agora colocado, em tdda a sua crueza, no préprio centro da experiéncia. Vamos encontrar um sinto-

conflito no mundo moderno — as correntes utdépicas em luta

af uma época ou uma socicdade em que uma forma extinta de

transcendéncia 4 realidade dominasse o mundo, e, através desta

tivas de reanimar o sentimento religioso, o idealismo, os sfm-

senta coma um meio impenetrdvel, um muro intransponfvel.

Tomam par

te quando sabemos quais os interésses e impcrativos envolvidos,

romanticos, que visam essencialmente a conservar as crencas antigas em uma época moderna. Este éxtase a-histérico que ins-

tuagaéo presente ¢. assim, de obter nosso primciro “insight” da histéria. Aqui, finalmente, vemos por que sé pode existir uma interpretagao da histéria na medida em que esta se oriente pelo interésse e pelo esfdrco intencional, Das duas tendéncias em

Se preocupam com movimentos politicos radicais.

contra uma tendéncia complacente a aceitar o presente — é di-

ficil dizer de antem&o qual acabaré por vencer, pois o curso da

284

IpEzoLocIA E UTOPIA

A MENTALIDADE Urépica

tealidade histo :ca que determinard esta vitéria repousa ainda no futuro. Poderfamos mudar téda a sociedade amanhia, caso

do-o em condigdes de realmente escolher. Entdo, e sdmente entdo, suas decisGes realmente procederao déle. Tudo o que foi dito até aqui, neste livro, destina-se a auxiliar o individuo a penetrar nestes motivos ocultos e a revelar as implicagSes de sua escolha, Enttetauto, para o nosso propdsito analitico mais resttito, que podemos designar como uma histéria sociolégica dos modos de pensamento, torna-se clato que as mudancas mais importantes da estrutura intelectual da época de que nos ocupamos devem ser compreendidas a luz das transformacdes do elemento utépico. E possivel, portanto, que no futuro, em um mundo em que nunca haja nada de névo, em que tudo esteja terminado, sendo cada momento uma repeticzo do passado, venha a existir uma condiggo em que o pensamento seja completamente despido de quaisquer elementos ideoldgicos e utdépicos. Mas a completa eliminagdo de elementos transcendentes & realidade, em nosso mundo, nos levaria a uma “constatagao de fato” que significaria, em Ultima andlise, a decomposig¢fo da vontade humana. Neste aspecto reside a mais essencial diferenga entre éstes dois tipos de transcendéncia A realidade: enquanto o declinio da ideologia representa uma crise apenas para certos estratos, e a objetividade que nasce do desmascaramento das ideologias sempre assume a forma de um auto-esclarecimento para a sociedade como um todo, a completa desaparicao do elemento utdépico do pensamento e da acao humanos significaria que a natureza e o desenvolvimento humanos iriam assumir um caréter totalmente névo. A desaparicio da utopia ocasiona um estado de coisas estético em que o ptd-

todos concordassem.

O verdadeiro obstaculo € que cada indi-

viduo se acha préso a um sistema de relagGes estabelecidas que, em grande parte, entrava a sua vontade.*® Mas estas “relaces estabelecidas” repousam, em Ultima andlise, sdbre decisdes

n@o-controladas dos individuos. A tarefa consiste, pottanto, em remover esta fonte de dificuldade, revelando os motivos ocultos subjacentes as decisdes do individuo, e dessa forma colocan,

48

Aqui, t mbém, em quest6es tao decisivas quanto estas,

“oO

reveladas as dif. engay mais fundamentais nos modos de experiment. . a lrealidade. © anarquista Landauer pode ser citado, representando

um extreme:

“QO que entendeis entéo pelos fatos duros e objetivos da histéria humana? , Nao, certamente, o solo, as casas, as mAquinas, as estradas de ferro, as linhas telegrdficas e coisas semelhantes. Sc, porém, vos referis assim a tradicdo, ao costume e ao compleso de relagdes, ob,ctos

de pia reveréncia, tais como 0 Estado ¢ organizagées, condigses ¢ situagdes similares, entio n&o é possivel desfazermo-nos déles, dizcendo que sio simples 2paréncias. A possibilidade e a necessidade do processo social, tal como da estabilidade 4 decadéncia, e dai para a recons-

trucio, baseia-se no fato de que n&o ha organismo desenvolvido que

esteja acima do individuo, mas uma complexa rclagio de razio, amor e,autoridade. Assim, sempre novamente, ocorrem, na histéria de uma estrutura social, que é uma estrutura tho-sé6 enquanto os individuos a alimentam com sua vitalidade, ocasies em que os Vivos se envergonham dela, como um fantasma estranho do rassado, ¢@ eriam noves agrupamentos. Por isso afastel meu amor, razio, obediéncia e vontac2

daquilo que chrmo ‘Estado’, pende da minl

vontade,

Que eu seja capaz de fazer isso de-

O nfo serdes capazes de fazer isto né

tera o fato decisivo de que esta incapacidade particular est4 insepa. velmente ligada com vossa propria personalidade e nao com a natureza

do Estado.” (De uma carta de Gustav Landauer a Margarete Susmann,

transcrita em Landauer, G., sein Lebensgang in Bricfen, ed, por Martin Buber (1929), vol. II, pag. 122.) !

No outro estremo, eis a seguinte citacio de Hegel:

“Visto que as fases do sistema ético sio a concepgae da liberdade,

elas sfo a substaneia da esséncia universal doy jndividuos,

Fxistam

ou n&o os individuos, isto 6 indiferente para a ordem ética objetiva, que se basta a si mesma. Ela é a fOrca que goverma a vida dos individuos, Tem Jo repiesentada pelas nagdes como a cterna justica, ou como deidades :bsolutas em confronto com as quais a luta dos indi{duos 6 um jég> vazio, como o barulho das ondas.” Hegel, Philosophy of Right, trad. 2or J. W. Dyde (Londres, 1896), pag. 156, § 145, em 2

ptio homem se transforma em coisa.

285

Irlamos, entdo, nos de-

frontar com o maior paradoxo imagindvel, ou seja o do homem que, tendo alcancado o mais alto grau de dominio racional da existéncia, se vé deixado sem nenhum ideal, totnando-se um mero produto de impulsos. Assim, ao término de um longo ¢ tortuoso, mas herdico desenvolvimento, justamente no mais elevado estdgio de consciéncia, quando a histéria vai deixando de set um destino cego e se tornando cada vez mais uma criacZo do ptéprtio homem, o homem perderia, com o abandono das uto-

pias, a vontade de plasmar a histdria e, com ela, a capacidade

de compreendéla.

A SocloLtociA Do CONHECIMENTO

287

verdades mais sustentd4veis e, dessa forma, aproximar-se mais do dominio metodoldgico sébre os problemas em questo, b)

v. 1.

A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO

NaTUREZA E ALCANCE DA SOCIOLOGIA DO

CONHECIMENTO

a) Definigazo e Subdiwisdes da Sociologia do Conhecimento A SocIoLoGIA DO CONHECIMENTO € um dos mais novos ramos da Sociologia; enquanto teoria, procura analisar a relago entre conhecimento e existéncia; enquanto pesquisa histdrico-socioIdgica, busca tracar as formas tomadas por esta relagdo no desenvolvimento intelectual da humanidade. Surgiu ela no esf6rgo de desenvolver, como seu campo péculiar de pesquisa, aquelas miltiplas interconexdes que s¢ tor Maram aparentes na cfise do pensamento moderno, ¢ princi-

palmente os lacos sociais entre teorias e modos de pensamento.

Busca, por um lado, descobtir critérios capazes de determinar as inter-relacSes entre pensamento e agao.

Por outro lado, consi-

derando @ste problema do inicio ao fim, de maneira radical e sem preconceitos, espera desenvolver uma teotia, apropriada a situagdo contemporanea, envolvendo a relevancia dos fatéres condicionantes nao-tedsicos sébre o pensamento. Somente desta maneira podemos esperar superar a vaga, mal definida e estéril forma de relativismo face ao conhecimento cientifico, 0 qual prevalece cada vez mais hoje em dia. Esta condico desencorajadora continuard a existir enquanto a ciéncia nao

lidar adequadamente com os fatéres que condicionam cada produto do pensamento — fatéres mais claramente evidenciados pelo proprio desenvolvimento mais recente da ciéncia. Em vista disso, a Sociologia do Conhecimento se atribuiu a tarefa de resolver o problema do .condicionamento social do pensamento, reconhecendo ousadamente estas relacdes, trazendo-as pata o horizonte

da propria ciéncia e usando-as pata verificar as conclus6es de nos-

sa pesquisa. Enquanto as antecipagdes concernentes a influéncia do “background” social permaneceram vagas, inexatas € cxageradas, a Sociologia busca reduzir as conclusGes tiradas a suas

A Soeiolagia do Coubecimento ¢ a Teoria da Ideologia A Sociologia do Conhecimento esta intimamente relaciona-

da, mas se distingue cada vez mais da teoria da ideologia, que também surgiu ¢ se desenvolveu em nossos dias. O estudo das ideologias se atribuiu a tarefa de desvendar os enganos e disfarces mals ou menos conscientes dos grupos de interésse humanos, especialmente os dos partidos politicos. A Sociologia do Co-

nhecimento nao estA tao interessada nas distorcdes devidas ao

esférco deliberado de iludir, mas nos modos varidveis segundo os quais os objetos se apresentam ao sujeito, de acérdo com as © diferencas das conformacdes sociais, Assim, as estruturas me*tais so inevitavelmente formadas diferentemente em conformagGes sociais ¢ histdricas diferentes. De ac6rdo comesta distingdo, deixaremos a teoria da ideo- , logia apenas as primciras formas do “‘incorreto” ¢ do nao-verdadei50, enquanto a unilateralidade de observacao, que nao é devida 4 intengéo mais ou menos consciente, serd separada da teoria da

ideologia, ¢ tratada como objeto especifico do estudo da Sociologia do Conhecimento. Na antiga teoria da ideologia, nao se fazia distingao entre éstes dois tipos de observaciio e enunciado falsos. Floje em dia, contudo, é aconselhdvel separar mais acentuadamente éstes dois tipos —- ambos anteriormente descritos como ideologias. Dai falarmos de uma concepcio particular e de uma concepgZo total de ideologia. Inclufmos na primeira t6das as expressSes cuja falsidade € devida 4 ilus#o de si mesmo

ou de outros, irtencional ou nao, consciente, semiconsciente ou

inconsciente, que ocorre em um nivel psicoldgico ¢ se assemelha es truturalmente A mentira .

Chamamos de particular a esta concepgda de ideclogia porque ela se refere sOmente a afirmativas especificas gue podem ser consideradas como dissimulagdes, falsificagdes ou mentiras, sem que com isso se atinja a integridade da estrutura mental total do sujeito que as enuncia, A Sociologia do Conhecimento, por outro lado, foma como seu problema exatamente esta estrutura mental ev sua totalidade, tal como ela aparece nas diferentes correntes de pensamento e grupos hist6rico-sociais. A Sociologia do Comwciments ic crinca © peasamento ao 2°, 1 das prdéprias

288

IproLoaia © Uroria

A SocioLocia Do CONHECIMENTO

afirmativas, que podem envolver enganos e disfarces, mas as examina ao nivel estrutural ou nooldgico, que vé nao como sen-

do conhecimento” (“Seinsverbundenheit + des Wissens’’), Como um fato concreto, éle pode ser melhor abordado por meio de uma ilustragdo. A determinagio existencial do pensamento pode scr encarada como um fato demonstrado naqueles dominios de pensamento em que podemos demonstrar: 4) que o processo de conhecer de fato nao se desenvolve histdricamente de acdrdo com leis imanentes; que n&o ptocede da “‘natuteza das coisas” ou das “possibilidades puramente ldgicas”, e que nao é dirigido por uma ‘“‘dialética interna”. Pelo contratio, a emergéncia e a cristalizagio do pensamentoefetivo sao influenciadas em muitos pontos decisivos por fatéres extratedricos dos mais diversos tipos. Tais fatéres podem ser chamados fatéres existenciais, em contraposicfo aos fatéres puramente tedéricos. Tal determinacio existencial do pensamento também terd de ser encarada como um fato: 6) se a influéncia désses fatéres existenciais sébre o contetido concreto do conhecimento fér de importancia nZo apenas periférica, se éles forem relevantes nfo sé pata a génese de

do necessariamente o mesmo para todos os homens, mas, ao con-

trétio, como petmitindo que um mesmo objeto assuma diferentes formas e aspectos no decurso do desenvolvimento social. Uma vez que a suspeita de falsificagéo nao se inclui na concepgao total de ideologia, o uso do térmo “ideologia” na Sociologia do Conhecimento nao possui intengZo moral ou denunciadora. Antes, indica um interésse de pesquisa que leva a se colocar a questo de quando e onde as estruturas sociais vém expressar-se na

estrutura de assercdes, e em que sentido as primeiras determinam

concretamente as Ultimas. No dominio da Sociologia do Conhecimentos, iremos, pois, na medida do possivel, evitar o uso do téemo “ideologia”, devido 4 sua conotac’o moral, e, ao invés déle, falaremos da “perspectiva” de um pensador. Com éste tér-

mo queremosreferir-nos ao modo global de o sujeito conceber

as coisas, tal como determinado por seu contexto histérico e social. 2. AS DUS DIVISOES DA SOCIOLOGIA DO CONHEC' 1ENTO :

a)

A Teoria da Determinagéo & cial do Conbecimento

A Sociologia do Conhecimento é, por um lado, uma teotia, e€, por outro, um método histérico-sociolégico de pesquisa. Enquanto teoria, pode assumir duas formas. E, em primeiro lugar, umainvestigaséo puramente empirica, atrayds da desc:igdo e andlise estrutural das maneiras pelas quais as relagdes sociais influenciam, de fato, o pensamento. O que pode levar, em segundo lugar, a uma inquiricéo epistemoldégica voltada para o significado desta inter-relacio para o problema da validade. E importante notar que éstes dois tipos de indagacdo nao estdo necessariamente ligados, podendo-se aceitar os resultados empiricos sem

se tirar as conclusdes epistemoldgicas.

O Aspecto Puramente Empirico da Investigacéo da Determinagio Social do Conhecimento. De acérdo com esta classificagéo e nao levando em consideracéo, na medida do possivel, as implicagdes epistemoldgicas, apresentaremos a Sociologia do Conhecimento como uma teoria da determinacao social ou existencial do pensamento efetivo. Setia bom comegar pela explicagao do que significa o térmo mais amplo “determinago existencial

289

idéias, mas penetrarem em suas formas e contetido e se, além

disso, determinarem decisivamente o alcance e a intensidade de nossa experiéncia e de nossa observacao, isto é, aquilo a que nos referimos anteriormente como a “perspectiva” do sujeito. Os Processos Sociais gue Influenciam o Processo de Conbecimento. Considerando agora o primeiro conjunto de critétlos para a detcrininagio das conexdes existenciais do conhecimento, isto é, o papel cfclivamente desempenhado pelos fatéres extratedricos na histéria do pensamento, descobrimos que as mais

rectntes investigagées, empreendidas no espirito da histéria socio-

logicamente orientada do pensamento, proporcionam um crescen-

te actimulo de evidéncias comprobatérias. Em nossos dias, j4 parece estar perfeiramente claro o fato que o antigo método de

histéria intelectual, orientado para a concepsfo @ priori de que

as mudangas de idéias devessem ser entendidas ao nivel das idéias (histétia intelectual imanemic), bloqueava o reconhecimento da penetracio do processo social na esfera intelectual. Com a am-

1 Por “determinagio” nfo nos referimos aqui a uma seqiiéncia mecinica de causa-efeito: deixamos em aberto o significado de “determinago”, e somente a investigacio empfrica nos poderA mostrar até que ponto 6 estrita a correlagfo entre situagao de vida e processo de pensamento, ou qual a gama de variagdes existente na correlagio, (A expressio alem&i “Seinsverbundenes Wissens” proporciona um_ significadg que deixa em aberto a natureza exata do determinismo.)

290

IpEoLoGia EF Utopia

A Socto.octa po CoNHECIMENTO

pliagio das provas das falhas de tal assumpcao apriorfstica, umniimero crescente de casos concretos torna evidente que a) téda formulagéo de um problema sdmente é possibilitada por uma experiéncia humana propria efetiva que envolve tal problema; b) a selegfo da multiplicidade de dados implica um ato de vontade do sujeito cognoscente; e c) as forcas que emergem da ¢xperiéncia vivida sao significativas para a diregio que o tratamento do problema tomard. Em conexdo com estas investigagdes, tornar-se-d cada vez mais claro que as férgas vivas e as atitudes efetivas subjacentes As atitudes tedricas nao sfo, de maneira alguma, meiamente de natureza individual, vale dizer, néo tém sua origem, em primel-

to lugar, na tomada de consciéncia de seus interésses pelo individuo, no decurso de seu pensar. Antes, emergem dos propdésitos coletivos do grupo, subjacentes ao pensamento do individuo, e de cuja visio prescrita éle apenas participa.

Neste sentido, tor-

na-se mais claro que nao se pode compreender corretamente uma grande parte do pensar e do saber, enquanto nao se levar em consideragZo suas conexdes com a existéncia ou com as implica-

ges: sociais da vida humana. Seria impossivel relacionar todos os miultiplos processos sociais que, no sentido acima, condicionam e conformamnossas teorias, e nos confinaremos, portanto, a uns poucos exemplos. Podemos encarar a competic¢#o como um dos casos represen-

tativos em que os processos extratedricos afetam a emergéncia

e a diregio do desenvolvimento do conhecimento. A competic%o 2 controla nao apenas a atividade econémica através do mecanismo do mercado, nem sdmente o curso dos acontecimentos

politicos e sociais, mas, igualmente, fornece o impulso motor de diversas interpretagdes do mundo que, quando se vem a descobrir seu fundamento social, se revelam como expressdes intelectuais de grupos conflitantes em luta pelo poder. Na medida em que vemos éstes fundamentos sociais emergirem e se tornarem reconheciveis como fércas invisfveis subyacentes ao conhecimento, compreendemos que pensamentos e idéias nao resultam da inspiracdo isolada de grandes génios Mesmo A profunda intuigo do génio estio subjacentes as experiénclas coletivas histéricas de um grupo, as quais o individuo toma

291

como dadas, mas que nio devem, em condicio alguma, ser hipostasiadas como “mente de grupo”. Ha que observar, numa inspesio mais prdxima, que nado hd apenas um complexo de expenénea

coletiva

com

wma

tendéncia

exclusiva,

como

sustenta-

va a teorta do folk sprit. Conhece-se o mundo através de muitas orlentagdes diferentes, porque existem muitas tendéneias de pensamento simultanea ¢ mituamente contiaditérias (de modo

algum de valor igual), lutande entre si, com suas diferentes interpretagdes da caperiéncia “comum’’. Nao se ha de encontrar, pertanto, a chave déste con{lito no “objeto em si mesmo” (se

assim lOsse, scria impossivel compreender por que o objeto aparece cm lantas ieliagdes diferentes), mas nas vdrias ¢ diversas expectativas, propdsitos ¢ impulsos que nascem da experiéncia.

Se, na nossa explicagio, tivermos que nos reportar ao desempenho ¢ contradesempenho 'os diferentes impulsos na esfera socal, uma andlise mais canta mostrard que a causa déste conflito entre os imp ‘sos cyneictos deve ser procurada nfio na propria teotia, mas nesics impulsos variados opostos, enraizados, por seu turno, na matriz global dos interésses coletivos, Estas divergénclas, na aparéncia “‘puramente tedricas”, podem, a luz de uma

andlise sociolégica (que descobre os ocultos passos intermediétios entre os impulsos originais a observar e a conclusdo puramente tedrica), ser reduzidas, em sua maior parte, a diferencas

filoséficas mais fundamentais. Mas estas Wltimas esto, por sua vez, invisivelmente guiadas pelo antagonismo e pela competicao entre grupos conflitantes concretos. Para mencionar apenas uma das muitas outras bases pos-

sfveis de existéncia coletiva, das quais podem surgir diferentes interpretacdes do mundo e diferentes formas de conhecimento, podemos indicar o papel desempenhado pela relacio entre geragGes diferentemente situadas. Em muitos casos, tal fator influencia os principios de selegdo, organizacao e polarizagao das teorias e pontos-de-vista predominantes em uma dada sociedade, num determinado momento.

(A éste ponto é dada uma aten¢ao

mais detalhada no ensaio do autor, “Das Problem der Genera-

tionen”.3) Do conhecimento advindo de nossos estudos sdbre competigao e geragdes, concluimos que o que parece ser, do ponto-de-vista da histéria intelectual imanente, a “dialética in-

terna” no desenvolvimento das idéias, torna-se, do ponto-de-vista da Sociologia do Conhecimento, o movimento ritmico na his-

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Para exemplos concretos, cf, 9 artigo do aulor “Wig Bedeutung

der Konkurrenz im Cebicte des Geistigen”, op, cit.

IvgoLocia E Uropra

A SociolocIa po CONHECIMENTO

téria das idéias enquanto afetadas pela competicao e pela sucesséo das geragdes. Ao considerar a relagao entre formas de pensamento e for mas de sociedade, lembraremos a observacdo de Max Weber 4 de que o interésse na sistematizagao pode ser em grande patte atribuido a um “background” escoldstico, que o interésse pelo pensamento ‘“‘sistemdtico” é correlato ao das escolas cientiticas e juridicas de pensamento, e que a origem desta forma orgunizadora de pensamento repousa na continuidade das instituicdes pedagdgicas. A esta altura deveriamos também mencionar o relevante empreendimento de Max Scheler,* visando a estabelecer

tas (embota, hoje em dia, a noc&o da estabilidade da estrutura categérica das Ciéncias Exatas esteja, em comparacZo com a 1égica da Fisica classica, consideravelmente abalada). Para a histétia das Ciéncias Culturais, entretanto, os estégios anteriores nfo sdo tio simplesmente suplantados pelos estdgios posteriotes, e nao é téo facilmente demonstrdvel que erros anteriores tenham sido subseqtientemente corrigidos. Cada época tem sua abordagem fundamentalmente nova e seu ponto-de-vista carac-

grupos que sfio os tinicos em que elas podem surgir e ser elaboradas.

nhecimento tem apoio no fato de que podemos observar, quan-

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teristico, e, consegiientemente, vé o “mesmo” objeto de uma

perspectiva nova.

a telag&o entre as varias formas de pensamento ¢ certos tipos de

Por conseguinte, a tese de que o processo histérico-social é de essencial importincia para a maioria dos dominios do co-

Isto deve bastar para indicar o que se quer dizer com a

to A maioria das afirmacées concretas dos séres humanos, quando e onde surgiram, quando e onde foram formuladas. A histd-

correlagao entre, por um lado, tipos de conhecimento e de idéias

€, por outro, os grupos e processos sociais de que sao caracte-

tisticos, A Penetragéo Essencial do Processo Social na ‘‘Perspectiva’ do Pensamento. Os fatdres existenciais so de importancia meramente periférica no processo social, devem ser encarados, meramente, como condicionando a origem ou o desenvolyimento fatual de idéias (isto é, sdo éles de relevdncia meramente genética), ou penetram na “‘perspectiva” de afirmacdes particulares concretas? Esta é a questao que ota tentaremos responder. A génese histdérica e social de uma idéia sdmente seria irrelevante para sua validade ultima se as condicdes temporais e sociais de sua emer: 4ncia nao tivessem efeito algum sdbre seu contetdo e forma. Sendo éste o caso, sé se distinguiriam dos perfodos quaisquer da histéria do conhecimento humano pelo fato de, no

petfodo mais remoto, ainda se desconhecerem certas coisas e ain-

da existirem certos erros, que foram totalmente corrigidos pelo conhecimentc posterior.

Esta relagdo simples entre um perfodo

de conhecimento anterior incompleto ¢ um posterior completo pode ser, em larga medida, apropriada quanto 4s Ciéncias Exa-

4° Cf, Mix Weber, Wirtschaft und Cesellschaft, op. cit., especialmente a parte referente 4 Sociologia do Dircito. 5

Cf. principalmente scus trabalhos, Die Wissensformem und de

Gesellschaft, Leipzig, 1926, e Die Formen des Wissens und der Bildung, I, Bonn, 1925.

tia da arte tem mosttado, bastante conclusivamente, que se pode definitivamente datar as formas artisticas de acérdo com seu estilo, uma vez que cada forma sé é possivel em condicdes histéricas dadas e revela as caracter{sticas de tal época. O que € verdadeito quanto A arte petmanece vdlido, mutatis mutandis, quanto ao conhecimento. Assim como na arte podemos datar formas particulares com base na sua associacao definida com um perfodo particular da histéria, podemos, no caso do conhecimen-

to, detectar, com crescente exatidao, a perspectiva devida a um

contexto histérico particular. Mais ainda, podemos determinar, pela utilizagfo da pura anélise da estrutura de pensamento, onde e quando o mundo se apresentou de tal modo, e somente déste,

ao sujeito que féz a afirmacdo, e freqiientemente a andlise pode prosseguir até que se responda A quest%o mais inclusiva: por que o mundo se apresentou precisamente de tal modo? Enquanto a afirmativa (pata se citar o caso mais simples) de que duas vézes dois sfo quatro nfo indica quando, onde e por quem foi formulada. sempre é possivel, no caso de uma obra de Ciéncias Sociais, dizer se foi inspirada pela “escola histérica”’, pelo “positivismo” ou pelo “‘marxismo”, e de que estdgio, no desenvolvimento de cada um déstes, ela data. Em afirmativas déste tipo, podemos falar de uma “‘infiltracdo da posicéo social”

do investigador nos resultados de seu estudo e da “‘relatividadesituacional” (‘“Sitwations-gebundenheit”), ou a relacdo destas

afirmativas com a tealidade subjacente. Neste sentido, “perspectiva” significa a maneira pela qual se vé um objeto, o que se percebe néle, e como alguém o cons-

IpEOLOGIA E UTOPIA

A Sociotocia po CoNHECIMENTO

tréi em pensamento. A perspectiva é, portanto, algo mais do que a determinagdo meramente formal do pensamento. Refere-se, também, a elementos qualitativos da estrutura de pensamento,

litdria, externa e legal Por outro lado, a idéia conservadora de liberdade cra a de um estrato que nao desejava ver quaisquer mudangas na ordem externa das coisas, espeiando que os acontecimentos continuassem em sua singularidade tradicional; a fim de sustentar as coisas como ¢stavam, tinham igualmente que desviar ay questées referentes A liberdade do campa politico externo para o campo nio-politico interno. O fato de que o liberal visse apenas um, ¢ o conseryador visse apenas outro lado do coneeito e do problema, esté clara e comprovadamente ligado a suas respectivas posigSes na estrutura politica e social.© Em suma, mesmo na formulagao dos conceitos, o Angulo de visio é guiado pelos interésses do observador. Isto ¢, 0 pensamento é dirigido de acérdo com as expectativas de um grupo social especffico.

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elementos que devem ser necessariamente negligenciados por uma

Idgica puramente formal. Sao precisamente tais fatéres os responsaveis pelo fato de que duas pessoas possam — ainda que apliquem de forma idéntita as mesmas regras légico-forntais, como, por exemplo, a lei da contradic&o ou a fdrmula do silogismo —~ julgar o mesmo objeto de forma bastante difcrente. Dentre os tragos pelos quais se pode caracterizar a perspec-

tiva de uma afirmagSo, e dentre os critérios que nos auxiliarao

a atribui-la a uma dada épaca ou situac&o, exporemos apenas uns poucos exemplos: a andlise do significado dos conceitos utiliza-

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dos; o fendmeno do contraconceito; a auséncia de certos conceltos; a estrutura do aparato categérico; os modelos duminantes

Assim, entre os possiveis dados da experiéncia, cada conceito

res na andlise da perspectiva.

sista de “espirito da época” (Zeitgeist). A prépria andlise dos conceitos em um dado esquema conceptual proporciona a mais

de pensamento; o nivel de abstracdo; ¢ a ontologia pressuposta. Por meio de uns poucos exemplos, pretendemos mostrar, no que se segue, a aplicabilidade déstes tragos e critérios identificado-

Serd4 mostrado, ao mesmo tempo,

até que ponto a posico social do observador afeta seu modo de ver.

Comecaremos com o fato de que a mesma palavra, ou na

maioria dos casos o mesmo conceito, significa coisas muito diferentes quando usados por pessoas diferentemente situadas. Quando, nos primeiros anos do século XIX, um conserva-

dor alem&o do estilo antigo falava de “‘liberdade”, quetia com

isto dizer o direito de cada Estado viver de acérdo com seus privilégios (liberdades). Se pertencesse ao movimento protestante

e romdntico-conservador, compreenderia a expressio como “‘li-

berdade interna’, isto &, 0 direito de cada individuo viver de acérdo com sua personalidade individual. Ambos os grupos pensavam em térmos do “conceito qualitativo de liberdade”’ porque entendiam que liberdade significava o direito de manter