História, como se faz?: exercícios de metodologia da história sobre escravidão e liberdade. [1, 1 ed.] 9788580545715


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História, como se faz?: exercícios de metodologia da história sobre escravidão e liberdade. [1, 1 ed.]
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História,como se faz? Exercícios de metodologia da história sobre escravidão e liberdade

(org.) María Verónica Secreto Jonis Freire

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História,como se faz? Exercícios de metodologia da história sobre escravidão e liberdade

(org.) María Verónica Secreto Jonis Freire

Todos os direitos reservados à Fino Traço Editora Ltda. © María Verónica Secreto e Jonis Freire. Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem a autorização da editora. As ideias contidas neste livro são de responsabilidade de seus organizadores e autores e não expressam necessariamente a posição da editora.

CIP-Brasil. Catalogação na Publicação | Sindicato Nacional dos Editores de Livros, rj

H58 História, como se faz?: exercícios de metodologia da história sobre escravidão e liberdade. vol. 1 / organização María Verónica Secreto, Jonis Freire. – Ebook – Belo Horizonte: Fino Traço, 2022. 263 p. ; 23 cm. Inclui bibliografia ISBN 978-85-8054-571-5 1. História – Metodologia. 2. Pesquisa – Metodologia. 3. Prática de ensino. I. Secreto, María Verónica. II. Freire, Jonis. 22-78658

CDD: 901

CDU: 001.8:82-94

Gabriela Faray Ferreira Lopes – Bibliotecária – CRB-7/6643

30/06/2022

05/07/2022

Coleção História Conselho Editorial Alexandre Mansur Barata | UFJF Andréa Lisly Gonçalves | UFOP Gabriela Pellegrino | USP Iris Kantor | USP Junia Ferreira Furtado | UFMG Marcelo Badaró Mattos | UFF Paulo Miceli | UniCamp Rosângela Patriota Ramos | UFU

Fino Traço Editora ltda. finotracoeditora.com.br

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Sumário

História, como se faz?..........................................................................7 María Verónica Secreto e Jonis Freire

Registros portuários e comércio atlântico: entre o local e o global, entre o lícito e o ilícito................................................................................. 19 Fabricio Prado

Negros herdeiros na zona da Mata Mineira: os irmãos Costa Lima.. 45 Elione Silva Guimarães

A escravidão em números: estudo da demografia escrava entre 1851-1872............................................................................................ 73 Maísa Faleiros da Cunha

Batismos, casamentos e óbitos: fontes para os estudos sobre a escravidão..........................................................................................99 Jonis Freire

Desenhando corpos, construindo liberdades: uma prosopografia das fugas no Rio de Janeiro.................................................................... 127 Tânia Pimenta, Layla Silva e Flavio Gomes

Jornais no tempo da escravidão .......................................................155 Karoline Carula

Onde estão os arquivos do abolicionismo negro?..............................175 Isadora Moura Mota

As sociedades mutualistas e os seus registros escritos: análise formal e social das atas de suas reuniões ordinárias e extraordinárias......... 199 Marcelo Mac Cord

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Perante os tribunais. As fontes judiciais e a historiografia da escravidão.........................................................................................217 María Verónica Secreto

Metodologia de ensino em história do Brasil colonial com base em fontes primárias: uma proposta para a formação de professores à luz da lei 10.639/ 2003..................................................................................... 237 Aldair Rodrigues

Sobre os autores............................................................................... 265

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História, como se faz?

María Verónica Secreto | Universidade Federal Fluminense Jonis Freire | Universidade Federal Fluminense

Este livro está destinado, principalmente, a aqueles que se perguntam como se faz e, ainda, para aqueles que, sabendo como se faz, buscam instrumentos para ensinar a fazer história. Quando na área de história realizamos uma busca bibliográfica sobre o tema “projeto de pesquisa” logo descobrimos que é um gênero menor e que nossa busca será quase infrutuosa. Enquanto nas ciências sociais os manuais de metodologia são um gênero consagrado e cultivado pelos grandes nomes das disciplinas (MAUSS, 1972, BOURDIEU, CHAMBOREDON, PASSERON, 1999, CHAMPAGNE, 1996, OLIVEIRA, 2006), na história é um campo marginal da produção acadêmica. Sim, o Mauss que escreveu o Ensaio sobre a dádiva (2003) também escreveu Manual de etnografia (1972). Trata-se, este último, de uma recopilação de aulas, o que não é um dado supérfluo. A necessidade de explicitar as metodologias da pesquisa está relacionada com a prática do ensino. Os currículos universitários têm disciplinas específicas que tratam da pesquisa. Umas com formato mais empírico, como Métodos e técnicas de pesquisa em história, que em geral conduzem o aluno nas etapas de elaboração de um projeto, e outras com formatos mais teóricos, como Teoria e Métodos da história. Apesar da pesquisa estar presente de modo transversal na maioria

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dos currículos universitários, o certo é que a explicitação dos métodos não responde às necessidades dos estudantes. Enquanto as técnicas e estratégias docentes são explícitas, as técnicas e estratégias de pesquisa ficam ocultas na apresentação do produto acabado, seja nos livros, artigos ou em outras produções. Nos títulos que circulam nas redes bibliográficas globais percebe-se uma excisão entre teoria e prática. Evidenciada em uma “dispersão” metodológica, como se heurística e hermenêutica operassem de forma diferente se se faz história social, econômica, da cultura, serial ou qualitativa. Em história impera o particularismo. É difícil que alguém se anime a escrever um manual de história, assim como os manuais de etnografia ou de sociologia. Na década de 1970 Ciro Flamarion Cardoso e Perez Brignoli publicaram um livro com o título Os métodos da história: introdução aos problemas, métodos e técnicas de história demográfica, econômica e social (tradução do livro publicado pouco antes em espanhol). Por mais de 500 páginas os autores buscavam dar conta dos instrumentos de conhecimento que o campo da história dispunha naquele momento. Tempo depois, Ciro Flamarion Cardoso publicou Introducción al trabajo de la investigación histórica (1981). Nesse, o autor advertia sobre o perfil do livro, e esclarecia que em 1976 tinha publicado, junto com Pérez Brignoli, Los métodos como manual universitário. Ambos os livros tinham nascido da experiência docente e das observações realizadas por alunos do México, Costa Rica e do Brasil. Dizia o goianiense que, alguns alunos sugeriram maior detalhamento dos problemas teóricos e epistemológicos enquanto outros solicitavam o aprofundamento do primeiro anexo eminentemente prático do livro Os métodos, que levava por título “como organizar e levar a cabo uma pesquisa histórica.” (CARDOSO, 1981:9). Enquanto nas últimas décadas vimos crescer a lista de livros na primeira demanda: análises teóricas e epistemológicas (incluindo as dos diversos giros epistémicos) a segunda, a dos métodos de forma estrita, vinculados aos procedimentos, tem recebido menos atenção. Não viemos a preencher o enorme vazio do manual de metodologia, que está além de nossas possibilidades – continuaremos como diz Pierre Vilar a sonhar com um “tratado de história” (VILAR, 1981:7). Propomos atender uma demanda genuína de nossos alunos, a de mostrar a cozinha da 7

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história. Junto com eles nos perguntamos por que os historiadores se sentem confortáveis para escrever ensaios teóricos, historiográficos e empíricos enquanto “escapam” de escrever sobre como fazem história. O “fazer” às vezes aparece no relato íntimo, junto às turmas, em que o professor/pesquisador relata alguma experiência de “arquivo”. Na década de 1980 e 1990 vimos no Brasil o predomínio das abordagens qualitativas e um diálogo profícuo entre escolas solidárias: a micro história italiana com a história social inglesa e a história da cultura francesa. A combinação era possível e frequente. A “cozinha” ficou bastante evidente já que essas correntes se definiram pelo método, por uma forma de trabalhar as fontes e de privilegiar alguns tipos, embora a explicitação metodológica várias vezes foi reduzida a uma introdução, a uma citação do “método indiciário” (GINZBURG, 1990). A primeira década do presente século trouxe a escala global às análises históricas, houve um alargamento dos espaços estudados acompanhado de uma ênfase na teoria. O espectro teórico é muito variado já que a perspectiva “globalista” abrange dos estudos da antiguidade à contemporaneidade. Importante sinalizar que nessas abordagens as questões teóricas têm grande peso nas delimitações dos problemas e objetos, como é o caso da perspectiva decolonial que acompanha o espectro temporal mencionado: da antiguidade ao presente. Em uma perspectiva ou outra, continua a ser difícil para os jovens que se iniciam na pesquisa fazer as primeiras escolhas -tema, problema, fontes –, começar uma pesquisa e comunicar os resultados. Podemos dizer que esse livro nasce em sala de aula, da demanda de acompanhar os historiadores pelos bastidores de um fazer que se evidencia pouco, quando não fica marginado às notas de rodapé, só inteligível para leitores mais experientes. Nos últimos anos presenciamos o crescimento da produção historiográfica em torno da escravidão: tráfico, práticas, demografia escrava, legislação, fugas, resistências, cotidiano, representações etc., e, em torno a temas nas fronteiras da escravidão. Por sermos pesquisadores desse campo de estudos decidimos convidar um grupo de autores (professores/pesquisadores) que sobressaem por sua produção nessa área para que nos narrassem um pouco sobre suas pesquisas. Pedimos que nos contassem sobre os problemas que 8

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abordam e suas fontes. Convidamo-los a vestirem suas pesquisas com as costuras para fora. O resultado desse exercício é o que oferecemos a seguir. Fabricio Prado escreveu o capítulo “Registros portuários e comércio atlântico: entre o local e o global, entre o lícito e o ilícito”. Neste, o autor analisa registros portuários para revelar o qualitativo e quantitativo das trocas comerciais do Rio da Prata em finais do século XVIII. As guerras na Europa e no Atlântico golpearam a economia espanhola e, com isso, a capacidade de controle nos seus territórios ultramarinos. As rotas comerciais que ligavam a Península e as colônias se tornaram perigosas, o que levou a Espanha a permitir a participação de nações neutrais e amigas. A partir da análise dos registros portuários produzidos por autoridades locais do Rio da Prata e do Rio de Janeiro, o autor revela que não houve uma interrupção das rotas comerciais entre as colônias do Rio da Prata com a Espanha. Examina as questões teórico-metodológicas e procedimentais da utilização de livros de registros de chegada e saída de embarcações e autos de embarcações produzidos em portos das Américas. Mostra como a utilização de fontes portuárias permite enxergar as conexões regionais e globais de uma comunidade. Se bem os registros foram produzidos com uma preocupação eminentemente fiscal, também oferecem excelentes informações sobre o comércio clandestino, ou de contrabando. No início do século XIX, os de uso de portos, navios, e intermediários portugueses tornou-se comum nas operações dos comerciantes do Rio da Prata. Ademais dos “volumes” Fabricio demonstra como pode ser utilizada essa documentação para compreender as trajetórias e estratégias de alguns comerciantes, como o caso de Francisco de Necochea, que em 1802 peticionou ante as autoridades em Brasil e em Portugal com o objetivo de remover as taxas portuárias e de transbordo no Brasil e em Portugal. E embora não seja o objetivo do autor, Prado nos chama a atenção para o fato de que as características seriais das fontes portuárias oferecem oportunidades para o uso de técnicas de humanidades digitais, especialmente no que tange à criação de planilhas e base de dados, como a famosa Slave Voyages: The Trans-Atlantic Slave Trade Database.1 1. https://www.slavevoyages.org/

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Elione da Silva Guimarães, em “Negros herdeiros na zona da Mata Mineira”, define a região como umas das mais escravocratas do país. Área onde as relações entre senhores e escravizados eram complexas ao ponto de envolver violência, afeto e contratos. Nesse contexto encontramos escravizados que se converteram em legatários ou herdeiros de seus senhores. Baseando-se em testamentos e em inventários post mortem, a autora analisa as heranças e os legados deixados para os ex-cativos ou libertos. A pesquisa tem como fonte principal os testamentos anexados aos inventários post mortem. A historiadora explica o funcionamento das práticas testamentárias e da organização legal das sucessões. Responde às perguntas: quem testava, como testava, que tipo de testamentos existiam, qual o valor legal dos testamentos e onde podem ser encontrados. Também descreve a função social dos inventários post mortem e sua ocorrência arquivística. Para o presente artigo Elione Guimarães selecionou testamentos em que cativos e libertos aparecem como herdeiros. Para esses casos também localizou os inventários correspondentes. Mas, pesquisadora incansável como é, identificou outros documentos em que apareceram os envolvidos, como livros de notas (compra e venda de bens, hipotecas, procurações etc.) e processos civis e criminais diversos. Buscando, com isso, reconstruir suas trajetórias, conhecer as famílias negras, e acompanhá-los nos conflitos em que se viram envolvidos por possuir alguma coisa. Analisou testamentos de 631 pessoas, (290 em Mar de Espanha e 341 em Juiz de Fora). Destas,17,4%, deixaram legados para cativos e/ou libertos. A pesquisa permite conhecer parte do processo de formação da identidade camponesa dos egressos do cativeiro e as limitações do projeto “proprietário” desse grupo. Maísa Faleiros da Cunha é autora de “A escravidão em números: estudo da demografia escrava entre 1851-1872”, no que apresenta o campo da história demográfica. Analisa as origens do método de reconstituição de família, fundamental para o estudo das sociedades pré-estatísticas. Como diz a autora, através dessa metodologia foi possível conhecer as histórias de indivíduos até então “silenciados”. Compara os dados populacionais referidos a um momento específico (1872) com as informações coletadas em inventários post mortem para o período prévio: 1851-1871. Seu objetivo é o de apontar as semelhanças e 10

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diferenças encontradas na demografia escrava a partir de fontes distintas. A primeira, o recenseamento de 1872, o primeiro censo nacional e o único a recensear a população escravizada no Brasil. A segunda fonte que utiliza são os inventários post mortem – já apresentados no artigo de Elione Guimarães -abundantes nos arquivos e fóruns das cidades. Neles é possível verificar o tamanho da escravaria. O artigo faz uma análise sociodemográfica da população escravizada em Franca, na província de São Paulo, entre 1851 e 1872. Ao mapear as famílias escravas no recenseamento (estado conjugal) e nos inventários Maísa busca salientar como o casamento atuou como instituição que possibilitou o estabelecimento de laços de parentesco, afetivos e sociais. Ainda na perspectiva da história demográfica Jonis Freire escreveu “Batismos, casamentos e óbitos: fontes para os estudos sobre a escravidão.” Esse artigo nos apresenta os registros paroquiais e a potencialidade das informações contidas neles a partir das anotações da administração dos sagrados sacramentos da Igreja Católica. Se bem os sacramentos católicos são sete, para a história demográfica são três os que trazem informações sociais mais relevantes: batismo, casamento e óbitos. Antes da criação do registro civil todo o movimento populacional era assentado somente pela igreja, única instituição com presença territorial em toda a colônia ou o Império. “Tomar os sacramentos” era um momento importante na vida espiritual e social das pessoas. Jonis Freire parte do parecer dado ao Conselho de Estado, pela “Seção de Negócios Estrangeiros”, em 1863, no qual se apontava a ausência de laços entre os cativos devido à ausência de relações familiares duradouras. “Imperava, pela leitura do parecer, a devassidão”. Mas ao analisar os batismos, os casamentos e os óbitos de escravos, Freire se depara com outra realidade: aparecem inúmeras relações familiares com a nomeação de mães, pais e/ou avós. O compadrio, a sociabilidade e solidariedade também estão presentes. Redes e laços tecidos pelos cativos para dentro da comunidade escrava e para fora dela. Além de mostrar a potencialidade da documentação paroquial quanto a hipóteses de trabalho o autor recomenda a montagem de um banco de dados, já que se trata de uma documentação de caráter serial. Essa ferramenta é útil independentemente se a documentação receberá um tratamento qualitativo 11

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ou quantitativo, pois permite cruzar as variáveis entre si ou com outros documentos, localizar indivíduos, apontar padrões/tendências. Tânia Pimenta, Layla Silva e Flavio Gomes em “Desenhando corpos, construindo liberdades: uma prosopografia das fugas no Rio de Janeiro” apresentam o potencial dos anúncios publicados nos jornais e os registros prisionais para o estudo das fugas e seus significados. Consideram que apesar dos milhares de microinformações contidas nesses registros ainda sabemos pouco sobre as intenções e expectativas dos fugados. Lembram os autores que os anúncios de fuga são redigidos sob um olhar senhorial, mas como muitos registros das classes dominantes devem ser lidos criticamente para obter informações que permitam reconstruir uma história social. Os autores escolheram dois tópicos para apresentar aos leitores: o dos corpos e o das experiências. No tópico “desenhando corpos” abordam uma bibliografia, na qual eles são autores, que vem utilizando as descrições físicas dos fugados para se aproximar das condições da saúde/doença dos escravizados e as condições materiais de vida, lidas a partir das condições e aspectos dos corpos em fuga. Essas descrições não eram “completas” nem neutras, nos anúncios os senhores escolhiam fazer referência a informações que permitissem identificar o indivíduo, para sua possível captura, sonegando outras. O interesse no corpo dos escravizados é um ponto de convergência entre as historiografias da escravidão e da saúde. No segundo tópico, intitulado “traduzindo experiências”, os autores destacam a importância da utilização de anúncios para nos aproximar da dimensão africana da escravidão urbana no Rio de Janeiro. As estratégias discursivas impressas nos jornais sobre os corpos, marcas, perfis, estratégias, formas de falar e de vestir permitem recompor as primeiras visões sobre e dos africanos. Os autores trazem para análise uma amostra de 780 anúncios de fuga (somente consideramos os africanos) publicados no Diário do Rio de Janeiro nos anos de 1822, 1823, 1840, 1841, 1842 e 1843. “As primeiras traduções aparecem nas descrições do corpo dos (transformados em) africanos. Para ajudar na captura e reconhecimento – tanto de pedestres como daqueles que podiam denunciar os fugidos – surgem visões senhoriais.”

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Karoline Carula também aborda a imprensa como fonte para a história da escravidão. Em “Jornais no tempo da escravidão” analisa o potencial dessa fonte. Nos alerta para a importância da descrição externa da fonte e para a metodologia de busca. Afirma que a disponibilização digital da Biblioteca Nacional, através do portal Hemeroteca Digital, tem facilitado e incentivado a pesquisa.2 Quem folheia um jornal do século XIX logo percebe que compras, vendas, aluguel e fugas de escravos eram anunciados diariamente. A elaboração de séries a partir dessas informações periódicas é uma das possibilidades de abordagem. A quantificação pode ser combinada ou não com uma abordagem qualitativa. A esse respeito os anúncios sobre fugas são muito ricos. Traços físicos, roupas, marcas de nação, cicatrizes, idade aproximada, comportamentos cotidianos, como modos de andar e falar, cacoetes etc., eram publicadas com o intuito de recuperar o prófugo. Assim, diz Karoline, por meio dessa fonte, além da ação de rebeldia contida na fuga, é possível apreender aspectos da vida cotidiana dos cativos. O artigo ainda se detém sobre os anúncios de aluguel, lembrando que o aluguel de escravizados era bastante frequente e rendável para os senhores de escravos. Entre as profissões dos escravizados alugados Karoline destaca as amas de leite. Grupo e atividade sobre os quais ela tem pesquisado e produzido interessantíssimos resultados (CARULA, 2012, 2021). Ademais de atentar para os elementos textuais dos jornais, o artigo também chama a atenção para a pesquisa nos formatos ilustrados. Como o tom da imprensa ilustrada da segunda metade do século XIX era satírico, a autora alerta sobre a necessidade de compreender o que era risível nesse contexto. Marcelo Mac Cord é autor de “As sociedades mutualistas e os seus registros escritos: análise formal e social das atas de suas reuniões ordinárias e extraordinárias”; inscreve sua pesquisa na história social. Na interseção de empiria a classe, Mac Cord apresenta uma forma de trabalhar com as atas das reuniões ordinárias e extraordinárias da Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais (1850 e 1880). Ele nos conta que a legislação brasileira exigia que as sociedades desse tipo mantivessem seus livros de registros administrativos 2. http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/

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e seus livros contábeis. Mac Cord escolheu para nos apresentar o corpus da Sociedade das Artes Mecânicas, que existiu na cidade do Recife entre os anos 1840 e 1950. Nessa também se ministravam aulas noturnas. Em 1871, alguns artesãos pretos e pardos vinculados à associação fundaram o Liceu de Artes e Ofícios do Recife. Como salienta o autor, neste e em outros trabalhos, nas últimas duas décadas a historiografia social da educação tem demonstrado como grupos de africanos e seus descendentes construíram e conquistaram espaços para seu letramento (MAC CORD, ARAÚJO e GOMES, 2017). Atento ao público a que se destina este livro, Mac Cord evidencia o potencial dessa associação e de sua documentação para a história social da educação. Isadora Moura Mota, em “Onde estão os arquivos do abolicionismo negro?”, aborda a resistência escrava em Atibaia, em 1863, a partir dos planos para uma rebelião de escravizados. O abolicionismo do título e do artigo é um movimento amplo, de longa duração e com múltiplas origens, e não aquele balizado pelas datas 1871-1888. Como diz a autora, as rebeliões fizeram parte do cotidiano brasileiro ao longo do século XIX. No artigo é salientada a dimensão atlântica, presente em todo o século, mas que a partir da guerra de secessão americana ganhou novos significados nos territórios mais escravistas das Américas. Mota convida a uma leitura crítica das fontes. Salienta a “negação” ao protagonismo negro presente na documentação que tratou sobre os eventos de 1863 em Atibaia. A luta antiescravista aparece nos escritos das autoridades ou da imprensa imperial como ameaça estrangeira ou fruto da influência britânica. Isadora Moura Mota toma como fonte articuladora de sua análise um ofício escrito por Vicente Ferreira da Silva Bueno (1815-1873) em fevereiro de 1863. Esse documento integra um dossiê guardado no Arquivo Nacional, como parte da “Série Justiça – Gabinete do Ministro”. Apesar de ser um documento “tipificado” que reitera fórmulas técnicas de comunicação e outras informações classificadas pelo prisma senhorial: estratégias de insurgentes, seus nomes, idades, origem e fragmentos dos depoimentos e acareações, pode também ser desconstruído e contextualizado para constituir arquivos do abolicionismo negro no Brasil. A autora fornece valiosíssima indicação para os jovens pesquisadores: a de desconstruir as fontes do ponto de vista das intencionalidades dos 14

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autores e do contexto sócio-histórico de sua produção. Nessa desconstrução é fundamental realizar uma análise textual que conceda às epistemologias negras a mesma dignidade e legitimidade que é outorgada às narrativas dominantes. María Verónica Secreto, em “Perante os tribunais. As fontes judiciais e a historiografia da escravidão”, apresenta, a partir do caso do Rio da Prata, a potencialidade da documentação jurídica e das demandas de escravos ante as autoridades. Esse corpus documental permite compreender parte do cotidiano dos escravizados e da escravidão na sociedade hispana colonial. A autora diferencia a história social que faz uso dessa documentação da história do direito. Se bem esta é importantíssima para quem pesquisa nos processos judiciais e administrativos, é fundamental conhecer quais eram os corpos legais e como era administrada a justiça. Por exemplo, saber que os escravizados contavam com um “defensor público”, o chamado defensor de pobres. Traz à tona uma afirmação de Tamar Herzog, a de que a aplicação de justiça alimentava novas práticas e novas interpretações, sempre visando a resolução dos conflitos que aquela sociedade demandava (HERZOG, 1995). A história social recorre à documentação dos “tribunais” porque a partir desses documentos é possível se aproximar do cotidiano de grupos silenciados em outros tipos de fontes, como é o caso dos escravos, índios, mulheres, camponeses etc. O artigo analisa alguns casos que nos permitem familiarizar no tipo de demanda encontrada nesse corpus. Os mais frequentes na Buenos Aires do final do século XVIII e início do XIX são os pedidos de liberdade, os pedidos para obrigar o senhor a receber o valor do escravo, as solicitações para mudar de senhor. A partir desses é possível nos aproximarmos do cotidiano escravo. Como dissemos no início, a presente coletânea surgiu da detecção de uma carência, muitas vezes evidenciada em sala de aula. O artigo de Aldair Rodrigues, permite compartilhar uma experiência áulica. “Metodologia de ensino em história do Brasil colonial com base em fontes primárias: uma proposta para a formação de professores à luz da lei 10.639/ 2003” reflete sobre práticas e metodologias de ensino em História do Brasil colonial centradas no uso de fontes primárias que contêm evidências sobre a experiência histórica 15

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dos africanos na diáspora. Aldair traz a experiência desenvolvida no âmbito de duas disciplinas de graduação do curso de História da UNICAMP: “HH188 Laboratório de História”, oferecida a alunos de primeiro semestre, e “HH384 Brasil 1”, ministrada a alunos do segundo ano. Nesse caso também a pesquisa documental ganha protagonismo, só que compartilhado com a experiência de ensino. Esperamos que depois de ler esses capítulos o jovem pesquisador se sinta mais acompanhado no caminho que começou a percorrer.

Referências bibliográficas BOURDIEU, P.; CHAMBOREDON, J.; PASSERON, J. Ofício de Sociólogo: Metodologia da pesquisa na sociologia. 8ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. CARDOSO, Ciro Flamarion e PÉREZ BRINOLI, Hector. Os métodos da história: introdução aos problemas, métodos e técnicas de história demográfica, econômica e social. Rio de Janeiro: Graal, 1979. CARDOSO, Ciro Flamarion. Iniciación al trabajo de la investigación histórica. Barcelona: Crítica, 1981. CARULA, Karoline. O mercado de trabalho de amas de leite na Gazeta de Notícias, 10º Encontro Escravidão e liberdade no Brasil Meridional. 2021. Disponível em: http://www.escravidaoeliberdade.com.br/site/ images/10encontro/karoline_carula.pdf CARULA, Karoline. Perigosas amas de leite: aleitamento materno, ciência e escravidão em A Mãi de Família. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.19, supl., dez. 2012, [197-214]. CHAMPAGNE, P. et al. Iniciação à Prática Sociológica. Rio de Janeiro: Vozes, 1996. GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes do paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas e sinais, São Paulo, Companhia das Letras, 1990. HERZOG, Tamar. Sobre la cultura jurídica en la América Colonial. Anuario de Historia del Derecho Español, 1995, [903-912]. MAC CORD, Marcelo, ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira e GOMES, Flávio. Rascunhos Cativos. Educação, Escolas e Ensino no Brasil Escravista. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2017. 16

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MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. São Paulo: Cosac Naify, 2003. MAUSS, Marcel. Manual de etnografia. Lisboa: Editora Pórtico, 1972. OLIVEIRA, Roberto Cardoso. O Trabalho do Antropólogo. Brasília: Paralelo 15; São Paulo: Ed. Unesp, 2006. VILAR, Pierre. Iniciación al vocabulario de la investigación histórica. Barcelona: Crítica, 1980.

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Registros portuários e comércio atlântico: entre o local e o global, entre o lícito e o ilícito

Fabricio Prado College of William & Mary

O final do século XVIII trouxe profundas mudanças ao mundo Atlântico. A crescente rivalidade entre impérios europeus, as guerras e revoluções, assim como um aumento geral do comércio transatlântico alteraram o equilíbrio de forças entre as potências coloniais e os seus territórios ultramarinos. O império espanhol, em particular, enfrentou múltiplos desafios, especialmente guerras intermitentes e crises econômicas, que muitos historiadores consideram ter preparado o caminho para os movimentos de independência hispano-americanas após 1808. As guerras na Europa e no Atlântico enfraqueceram a economia espanhola e a capacidade de controle do comércio e da administração nos seus territórios ultramarinos. Os conflitos militares nas décadas de 1790 e 1800 tornaram perigosas as rotas comerciais que ligavam a península e as colônias, forçando a abertura das economias coloniais a agentes estrangeiros. Devido aos perigos da travessia atlântica para os navios espanhóis, a monarquia permitiu aos seus súditos nas Américas comerciar com nações “amigas ou neutras”, nessas condições o comércio de contrabando também floresceu. Historiadores consideraram estes processos, especialmente a virtual paralisação do comércio transatlântico espanhol, como fatores cruciais para o colapso do sistema colonial espanhol (STEIN

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e STEIN, 2009:207, FISHER, 1998:459-479, LYNCH, 1994, GRAHAM, 2013, ELLIOT, 2006). Entretanto, a análise dos registos portuários – comerciais e administrativos produzidos por autoridades locais do Rio da Prata e do Rio de Janeiro revela que o volume, rotas, e o tipo de interação comercial direta entre os espanhóis rio-platenses e os comerciantes de países estrangeiros (especialmente luso-brasileiros) não significou a interrupção das rotas comerciais entre as colônias do Rio da Prata com a Espanha. Na verdade, o comércio com nações estrangeiras, especialmente entre territórios espanhóis no Rio da Prata e luso-brasileiros, permitiu que os comerciantes espanhóis americanos mantivessem não só a atividade comercial regional, mas também se utilizassem-se de navios e portos estrangeiros (neste caso os portos do Brasil) para manter o fluxo de mercadorias, pessoas, capitais e informação entre a Espanha e os seus territórios americanos, assim como entre diferente colônias nas Américas durante períodos de guerra. Neste período, comerciantes rio-platenses realizavam reenvio e reembarque de mercadorias em navios portugueses, ou em outras embarcações de nações neutras. Dessa forma, é imperativo reconsiderar a noção de “paralisação do comércio entre a colônias e a península” (FISHER, 1985:35-78). Tal argumento é resultado do estudo das fontes portuárias produzidas nas colônias iberoamericanas, especificamente os registros de chegada e saída de embarcações. Este capítulo examina as questões teórico-metodológicas e técnicas relativas à utilização de livros de registros de chegada e saída e autos de embarcações produzidos em portos das Américas. Baseado na análise de registros de movimento naval de Montevidéu e Rio de Janeiro no final do século XVIII e princípios do século XIX. Explora como os livros de portos, autos de embarcação, e em menor medida os registros portuários publicados em jornais locais podem ser utilizados como fontes para história comercial, história da globalização, história social, e para história da economiapolítica de cidades-portos (incluindo o comércio de contrabando). Além de examinar as particularidades destas fontes, esse texto também reflete sobre as possibilidades de cruzamento de fontes produzidas em diferentes impérios/países. O cruzamento de fontes portuárias de diferente cidadesportos e diferente impérios permite a identificação de rotas comerciais, assim como perceber as práticas de comércio direto entre súditos de diferentes 19

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impérios. Visando apresentar aspectos analíticos, mas também oferecer um exemplo da utilização dos registros de chegada e saída de embarcações do porto de Montevidéu na escritura da história, começamos por oferecer uma análise dos livros de porto enquanto fonte; suas características, informações disponíveis, questões metodológicas e possibilidades técnicas sobre como trabalhar com este arquivo. Na segunda parte apresentamos um breve exemplo da possibilidade de utilização dessas fontes como cerne documental de um argumento histórico: a manutenção da rota Rio da Prata – Rio de Janeiro no final do período colonial, e como tal rota “ilegal” serviu aos interesses da monarquia espanhola. Na parte final apresentamos algumas breves conclusões e apresentamos algumas referências historiográficas para o pesquisador interessado que queira avançar neste campo de investigação. A utilização de fontes portuárias produzidas nas Américas oportuniza uma perspectiva local das conexões regionais e globais de uma comunidade, seja em padrões migratórios por via marítima, pelo tráfico de escravizados, ou pelas rotas marítimas conectadas ao comércio global nas quais os portos podiam estar inseridos. Os livros de registro do movimento de embarcações dos portos, ou os autos de embarcações avulsos produzidos nos portos coloniais americanos permitem reavaliar a direção, volume e rotas de comércio a partir de outra perspectiva, que não apenas vinculada às metrópoles (Espanha, ou Portugal). Especificamente, os livros de registro de chegada e saída de embarcações, ou os autos de embarcações de portos coloniais americanos revelam as inserções de cidades portuárias das Américas em rotas regionais, atlânticas, e globais, assim como os intercâmbios entre territórios de distintos países e impérios. Concomitantemente, estes mesmos registros revelam informações sobre a sociedade local, sobre sua comunidade mercantil, sobre sua comunidade política, sobre os padrões migratórios e de consumo das cidades-portos e seus hinterlands. As fontes portuárias aqui examinadas – livros de chegada e saída de navios, ou autos de chegada de embarcações (avulsos) – proporcionam uma série documental com regularidade de informações que permite a análise serial do corpo documental, mas ao mesmo tempo proporciona riqueza qualitativa, oferecendo em cada caso de chegada ou de saída de embarcações, detalhes e informações particulares sobre o evento, incluindo as 20

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pessoas envolvidas (livres e escravizadas), produtos, itinerários, entre outras variáveis. No caso de embarcações implicadas em comércio de contrabando, ou com necessidade de quarentena, os registros de porto proporcionam uma perspectiva ainda mais detalhada. As fontes de registros portuários, sejam os autos de embarcação avulsos ou em parte de um livro mestre de entrada e/ou saídas oferecem certas informações básicas sobre a viagem. Nome do capitão, tipo, nome e bandeira (país de registro) da embarcação sempre aparecem, assim como número de tripulantes, porto de origem/destino, número de dias de viagem, informação sobre a carga e passageiros e sobre as autoridades executando o registro e/ ou inspeção. Em registros mais detalhados, pode-se encontrar também informações sobre os de portos de escala, contatos com outras embarcações em alto-mar, assim como listas nominais de passageiros, lista de pessoas escravizadas, relações detalhadas das cargas e produtos de comércio, nome dos donos e consignatários dos produtos. Estas “variáveis” que orientavam o registro documental das autoridades tinham por finalidade o controle do movimento de pessoas, bens, serviços e capitais na América Ibérica, mas, para o historiador, oferecem uma janela para o comércio e a sociedade dos séculos XVIII e XIX. Das informações constantes de registros de embarcações, as que identificam o nome de embarcações, nome de capitães, proprietários de cargas, consignatário de mercadorias, e autoridades portuárias permite ao historiador seguir a trajetória de indivíduos e suas inserções nas sociedades locais e/ou além-mar. Pela característica serial deste tipo de documentação, pode-se verificar a frequência do envolvimento de comerciantes, e casas mercantis no comércio atlântico, suas inter-relações políticas e comerciais nos portos, e como tais relações na comunidade portuária variam com o tempo. Tais informações são valiosas não apenas na investigação de trajetórias individuais, mas também na oferta de subsídios para análises de redes sociais, comerciais e políticas. Outras informações que aparecem nos registros de portos, como tipo de embarcação, bandeira, porto de origem e/ou destino, portos de escala, e contatos em alto-mar oferecem ao historiador informações sobre rotas comerciais, itinerários detalhados (incluindo portos de escala em viagens de 21

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longa distância), conexões entre cidades portos, volume de comércio, e as rotas migratórias (seja de pessoas livres ou escravizadas). A informação sobre o tipo de embarcação permite ao historiador compreender o volume das trocas entre portos, o tipo de logística, número de tripulação, e mesmo as escalas das viagens – por exemplo: bergantins e fragatas tinham capacidade entre 100-500 toneladas em geral, e normalmente eram empregados em viagens transoceânicas e/ou em média e longa distâncias. Porto outro lado, embarcações como sumacas e chalupas indicavam navegação costeira ou regional, têm menor capacidade de carga. As informações sobre porto de origem e os portos de escala permitem ao historiador identificar as complexidades do comércio atlântico, assim como revelam a porosidade de rotas “imperiais”. Por exemplo, pode-se perceber como embarcações “espanholas” operando na rota Rio da Prata – Espanha em diversas oportunidades paravam em porto lusitanos nas Américas ou nas ilhas atlânticas, revelando uma maior complexidade e a importância de conexões trans-imperiais para a manutenção de rotas “intra-imperiais”. Para historiadores interessados na questão da comunicação no período moderno, os registros de porto também incluem referências sobre os contatos durante navegação, troca de informações, transmissão de valores, reenvio de cartas e documentos que ocorriam em alto-mar. Dessa forma, registros de porto proporcionam uma mirada distinta e mais abrangente sobre a geografia do comércio, migrações, rotas marítimas e a respeito da logística marítima do período. Os registros portuários foram produzidos com uma preocupação eminentemente fiscal: garantir a cobrança de tarifas alfandegárias, regular o fluxo de mercadorias permitidas para importação e exportação de acordo com as regulações mercantilistas, assim como garantir o embarque, desembarque e quarentena, quando necessária, para embarcações vinculadas ao tráfico negreiro. Desta forma, os registros portuários oferecem uma perspectiva privilegiada para examinar os fluxos do comércio atlântico. Os livros de porto, em sua maioria, indicam a quantidade de produtos importados, incluindo gêneros manufaturados europeus (de Espanha, França, Inglaterra etc.), gêneros de outras colônias do Atlântico (açúcar e tabaco do Brasil, cobre do Chile), assim como registram o número de africanos escravizados trazidos a força para as Américas. As fontes portuárias oferecem informações sobre 22

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consumo, volume de comércio, geografia dos bens comercializados, além de informações sobre preços e casas comerciais envolvidas no comércio transatlântico. Os registros portuários oferecem, ainda, informações sobre os produtos exportados pelos territórios coloniais e permitem ao historiador perceber a geografia comercial dos territórios interiores. Os portos platinos, por exemplo, exportavam, além dos couros e sebo produzidos localmente, cobre do Chile, quinino do Peru, e cacau do Equador. Desta forma, a partir dos registros portuários, o historiador pode obter informações sobre as rotas comerciais conectando portos aos territórios interiores. Em outras palavras: os registros portuários revelam rotas intra-imperiais assim como trans-imperiais, e podem oferecer informações sobre as rotas externas/ atlânticas e as rotas interiores. Registros portuários, enquanto fonte para o historiador, apresentam tanto possibilidades para análises seriais, como apresentam informações particulares sobre casos, embarcações, pessoas e produtos específicos. Para o historiador interessado no movimento comercial ao longo de um período mais largo, os registros de porto permitem ver que produtos aparecem ou deixam de aparecer no comércio, assim como permite traçar o aumento de exportações ou importações. No caso do comércio de couros, o final do século XVIII apresenta um aumento claro na exportação desse artigo, ao passo que demonstra também a aparição de forma mais comum do café como uma commodity importada de portos brasileiros. Os registros também demonstram as mudanças nas rotas portuárias, por exemplo, a inserção de porto estadunidenses nas rotas do Rio da Prata a partir da década de 1790, assim como o registro de novas rotas entre Rio da Prata e Moçambique. Ainda que as conexões com a África portuguesa existissem desde o século XVI no Rio da Prata, estas não foram estáticas. Os registros portuários, portanto, constituem uma fonte serial extremamente importante para a percepção das variações no comércio. Ao passo que tais registros apresentam, de forma serial, informações sobre indivíduos e viagens específicas, servem também a historiadores interessados em temas micro-históricos, trajetória de indivíduos, ou mesmo na procura de movimento de pessoas – através das

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listas de passageiros, podendo-se descobrir quando um indivíduo deixou ou chegou ao porto em questão. Esses documentos também oferecem excelentes informações para o historiador interessado no comércio clandestino ou de contrabando. Os registros de chegada e saída bem como os autos de embarcação produzidos quando da entrada dos barcos nos portos indicam as condições de chegada. Especialmente indicativo da possibilidade de contrabando são as chamadas “arribadas forçosas,” quando a embarcação solicita entrada no porto devido à emergência sanitária, necessidade de adquirir suprimentos ou efetivar reparos. As arribadas foram sempre uma estratégia comum que permitia embarcações sem autorizações prévias ou mesmo embarcações estrangeiras teoricamente não autorizadas, a solicitarem ingresso no porto e mesmo desembarcar mercadorias para venda (em geral, baixo pretexto de obter fundo para pagar por reparos). Além de indicar a chegada via “arribada”, os registros portuários incluem informações sobre as inspeções dos fiscais de porto. Em caso de operações suspeitas, os registros de porto contêm tais informações e indicam a criação de outros processos (criminais, cíveis etc.), os quais o historiador pode seguir na trilha dos arquivos. Outra forma pela qual os registros de porto podem oferecer subsídios para uma história do contrabando é através do cruzamento de registros de dois ou mais portos. Dessa forma, pode-se detectar discrepâncias entre os destinos oficiais declarados pelos capitães nos portos de saída e o destino final e os itinerários realmente trilhados pelas embarcações. Por exemplo, na rota Rio da Prata – Rio de Janeiro, oficialmente proibida, dezenas de embarcações saíam de Montevidéu rumo a Cádis, mas entravam no porto do Rio de Janeiro – com cargas preparadas para o comércio fluminense, ou mesmo consignada a mercadores luso-brasileiros. Outro exemplo, embarcações brasileiras saíam do Rio de Janeiro com destino declarado para o porto de Rio Grande, no extremo sul do Brasil, mas na verdade tinham cargas preparadas para comerciantes de Montevidéu e Buenos Aires. Dessa forma, o cruzamento de informações obtidas nos registros portuários pode revelar estratégias, rotas, produtos, e comerciantes e capitães envolvidos nas operações de contrabando. Além dos indícios presentes nos registros portuários, algumas dessas informações podem servir como pistas para identificar agentes, embarcações, e autoridades 24

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envolvidas em contrabando para continuar a busca em outros tipos de acervos documentais. As características seriais das fontes portuárias oferecem oportunidades ímpares para o uso de técnicas de humanidades digitais, especialmente no que tange à criação de planilhas e base de dados, assim como de mapas utilizando GIS. A criação de planilhas e base de dados, a partir dos registros portuários, permite a quantificação total do volume de embarcações, as rotas envolvidas, o volume total de produtos comercializados, assim como a quantificação do número de imigrantes e africanos escravizados desembarcados em um determinado porto. Mais ainda, o processamento de informações em tabelas e base de dados permite estabelecer relações entre datas, lugares, pessoas e produtos, oferecendo uma visão geral das mudanças e continuidades nos padrões de comércio de um determinado porto. Permite ao historiador ver como as mudanças no Atlântico impactam a realidade regional, e vice-versa. A utilização de recursos digitais no tratamento de dados geográficos contidos nos registros portuários permite mapear as conexões globais do porto em questão e identificar as mudanças nos portos de contato de um porto durante um determinado período. Por exemplo, ao passo que Montevidéu expandiu suas conexões com Europa, Brasil, África, e América do Norte a partir de 1778, entre 1816 e 1822, perdeu conexões diretas com Espanha, e África, ao passo que as interações com o Rio de Janeiro e outros portos brasileiro cresceram exponencialmente. Tal transformação no comércio ocorreu em parte por motivos políticos (a anexação por parte do Império Lusobrasileiro da Banda Oriental/Estado Cisplatino), mas os registros portuários apresentam as consequências econômicas e sociais derivadas do processo político, oferecendo assim uma perspectiva econômica sobre o mesmo. As fontes portuárias oferecem dados privilegiados para o mapeamento de rotas comerciais, migratórias ou apenas os contatos de um porto com diferentes regiões do além-mar ou do interior. As fontes de registros portuários oferecem uma gama de informações e possibilidades analíticas, especialmente se cotejadas com outras fontes qualitativas ou quantitativas, assim como em conexão com os trabalhos historiográficos já existentes. Nas páginas que seguem, o presente capítulo apresenta, a título de exemplo, uma breve análise das transformações do 25

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porto de Montevidéu, especialmente em relação as conexões entre o Rio da Prata e portos luso-brasileiros nas Américas. O texto se baseia na análise dos livros de portos e autos de embarcação tanto do Rio da Prata (Montevidéu) como do Rio de Janeiro. Além da análise dos dados portuários, as páginas que seguem demonstram algumas possibilidades de cruzamento de fontes e diálogo com fontes secundárias.

Comércio trans-imperial em tempos de guerra: o caso do Rio da Prata Após a fundação do vice-reino do Rio da Prata (1776), e a expulsão dos portugueses da região (1777), os comerciantes do Rio da Prata reorganizaram as suas rotas comerciais anteriormente ilegais que ligavam a região ao Brasil. Durante o último trimestre do século XVIII, comerciantes do Rio da Prata, especialmente de Montevidéu, dedicaram-se ao comércio transimperial com nações neutras e utilizaram navios portugueses em rotas comerciais para transportar mercadorias, pessoas, e para enviar informações do Rio da Prata para Cádis. Na virada do século XIX, comerciantes rio-platenses pagavam fretes em naus portuguesas para reembarcar suas mercadorias, ou mesmo, utilizavam a bandeira neutra portuguesa e a proteção do comboios portugueses para cruzar o Atlântico. Como resultado, os comerciantes hispano-americanos envolvidos em tais trocas não só puderam se beneficiar do comércio com estrangeiros, como utilizaram essas redes informais com o Brasil para apoiar a manutenção do domínio espanhol no Rio da Prata. Os comerciantes do Rio da Prata desenvolveram níveis de autonomia mais elevados nas suas interações com estrangeiros. No entanto, tais ligações extra-imperiais em vez de enfraqueceram o império, foram na verdade responsáveis pela manutenção dos elos debilitados que ligam a península ao Atlântico Sul em tempos de guerra. Em resposta ao aumento dos riscos para os navios espanhóis que atravessam o Atlântico, a Espanha permitiu uma série de regras excepcionais para flexibilizar as regulamentações comerciais, permitindo aos súditos espanhóis americanos o comércio de comerciantes estrangeiros de nações neutras e outros territórios ibero-americanos. Regulamentações comerciais

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neutras posibilitaram que os comerciantes espanhóis negociassem com sujeitos de outros impérios nas Américas, efetivamente legalizando e incorporando, no sistema comercial hispano-americano, rotas anteriormente existentes de comércio trans-imperial. Os comerciantes hispano-americanos efetivamente ganharam maior autonomia em assuntos comerciais. Apesar dos efeitos prejudiciais da crise comercial do final do século XVIII para a Espanha, as colônias hispano-americanas não experimentaram os mesmos efeitos econômicos debilitantes. Nas últimas duas décadas, estudiosos que trabalham dentro do quadro atlântico produziram uma riqueza de pesquisa baseada em fontes produzidas nos territórios coloniais, bem como na metrópole. Historiadores das américas espanhola e portuguesa demonstraram que o comércio com estrangeiros, em vez de uma exceção, tinha sido uma variável integral para as economias coloniais, mesmo antes da promulgação de regulamentações comerciais neutras. De Cartagena a Vera Cruz, do Rio de Janeiro e da Bahia ao Rio da Prata, o comércio transimperial (legal e ilegal) era parte integrante das sociedades coloniais. No Caribe, regulamentações comerciais neutras permitiram um crescimento acentuado no comércio (legal e ilegal) entre colônias espanholas e britânicas, Estados Unidos e colônias francesas (CROMWELL, 2018, BASSI, 2016, VIDAL ORTEGA, 2002:100-15; 159-61, GRAHN, 1985). Na região circuncaribenha os sujeitos estavam envolvidos em todos os tipos de interações comerciais, como produtos agrícolas, alimentos, têxteis, outros bens do Atlântico e escravos. Para a região do Prata, o comércio neutro tornou-se a válvula de segurança que permitiu aos territórios coloniais espanhóis exportarem suas produções agrícolas e obterem produtos do Atlântico e escravos através de interações comerciais com luso-brasileiros e anglo-americanos. Desta forma, o aumento das interações trans-imperiais teve um impacto negativo para os comerciantes peninsulares e hispano-americanos que dependiam das rotas monopolísticas, ao passo que para comerciantes e comunidades estabelecidas nas américas, o aumento das interações trans-imperiais foi uma força dinamizadora e de crescimento econômico. A ascensão das rotas comerciais trans-imperiais forneceu canais alternativos para as comunidades hispano-americanas não apenas para manter suas atividades econômicas em tempos de guerra, mas para manter o 27

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fluxo de bens, capital e informações entre a América espanhola e a Espanha durante períodos de guerra. No final do século XVIII, os comerciantes hispano-americanos desenvolveram formas alternativas de assegurar a travessia do Atlântico utilizando portos estrangeiros, bandeiras estrangeiras e navios estrangeiros para reduzir o risco e aumentar a segurança da travessia transatlântica para navios espanhóis. No Atlântico Sul, rotas comerciais neutras ligando o Rio da Prata a agentes e portos luso-brasileiros permitiram a manutenção da comunicação e o fluxo de bens e pessoas entre Cádiz e os territórios do Rio da Prata. Como resultado, os comerciantes hispanoamericanos usaram regulamentos de comércio com nações neutras e transimperial para a manutenção do comércio e comunicação com a Espanha. O comércio trans-imperial e a autonomia comercial dos súditos coloniais constituíram uma força principal na formação das políticas imperiais e da cultura política do Atlântico Sul Ibérico nas últimas décadas críticas do século XVIII. O comércio trans-imperial e a autonomia comercial dos súditos coloniais constituíram uma força principal na formação das políticas imperiais e da cultura política do Atlântico Sul ibérico nas últimas décadas críticas do século XVIII.

Comércio trans-imperial e o porto de Montevidéu no século XVIII no Rio da Prata Até o final do século XVIII, Buenos Aires tornou-se um próspero centro comercial Atlântico, parcialmente, devido à facilidade com que os comerciantes coloniais poderiam adquirir bens estrangeiros de comerciantes estrangeiros. Desde a segunda fundação de Buenos Aires (1580), a cidade deveria ser abastecida com mercadorias dentro do sistema comercial espanhol via Lima. No entanto, o comércio direto e extrajudicial com comerciantes de outros impérios do Atlântico provou ser mais lucrativo, e logo se tornou uma característica do comércio da região. Entre 1580 e 1640, os comerciantes portugueses detinham o asiento (contrato para a introdução de escravos em domínios espanhóis), e eram jogadores proeminentes na comunidade comercial de Buenos Aires. Durante o século XVII, comerciantes holandeses, britânicos, franceses e portugueses chegaram regularmente ao Rio da Prata

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usando diferentes desculpas para o comércio. Depois de 1680 até o final do século XVII, a Colônia Portuguesa ofereceu um entreposto de longa data para o que as autoridades espanholas consideravam o comércio de contrabando. A presença regular de comerciantes estrangeiros na região contrastou com a falta de navios oficiais espanhóis chegando em Buenos Aires, média de menos de dois por década no século XVIII. Em Buenos Aires, uma poderosa comunidade mercante surgiu, que derivou sua riqueza da aquisição de bens europeus e americanos baratos, bem como escravos de comerciantes portugueses e outros europeus. Em meados da década de 1750, os comerciantes de Buenos Aires controlavam redes comerciais que atravessavam o interior da região até o Alto Peru. Como resultado, os comerciantes de Buenos Aires forneceram um vasto mercado, muitas vezes contando com bens estrangeiros, e foram capazes de aproveitar enormes quantidades de prata do Alto Peru e das províncias espanholas no interior. O acesso à prata foi uma das principais atrações do comércio da região para estrangeiros. Colônia não era apenas um centro para os portugueses, mas também para os comerciantes anglo-saxões. A presença de longa data da colônia portuguesa significou fácil acesso a bens baratos do Atlântico fornecidos por potências estrangeiras. A criação do vice-reinado (1776) e posterior expulsão dos portugueses da região (1777) implicaram um rearranjo dos portos e logística do comércio dentro do estuário. Quando a proclamação do livre comércio do império espanhol incluiu o Rio de Prata em 1778, Montevidéu juntou-se a Buenos Aires como um porto atlântico autorizado. Dotado de um excelente porto natural na entrada do rio da Prata, Montevidéu transformou-se em base naval espanhola da região. Além disso, o porto do Banco do Norte converteu-se em porto de escala obrigatório para os navios comerciais do Atlântico e a sede administrativa do Resguardo, o escritório responsável pela repressão do comércio de contrabando. Praticamente, Montevidéu tornou-se porto de Buenos Aires e a sede das autoridades responsáveis pela logística naval, aduaneira e portuária adicional. Apesar da conquista da Colônia Portuguesa, Buenos Aires permaneceu dependente de um porto atlântico. Nas décadas seguintes, Montevidéu fez-se o principal porto atlântico na região, e substituiu

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Colônia do Sacramento como o local de comércio trans-imperial para as elites mercantes de Buenos Aires e da América Portuguesa. No último quarto do século XVIII, a região do Rio da Prata foi a área de maior crescimento na América espanhola. A reforma burocrática que criou o Vice-Reino e a política econômica que abriu Buenos Aires e Montevidéu ao comércio atlântico contribuíram para o desenvolvimento demográfico e econômico da região. Embora Buenos Aires tenha se tornado a sede do vice-reinado e da Audiência e fosse o lar dos mercadores mais ricos que controlavam as redes comerciais para o interior, o status de Montevidéu concretizou-se como o porto regional designado de escala para todos os navios transatlânticos, bem como o único autorizado a desembarcar escravos garantindo, assim, vantagens relativas em relação à capital. A comunidade mercante emergente de Montevidéu obteve grandes benefícios econômicos e políticos de ser o porto atlântico para o comércio de Buenos Aires. Depois de 1778, Montevidéu tornou-se o principal exportador de couros na região. O historiador argentino Juan Carlos Garavaglia mostrou que, entre 1779 e 1784, Montevidéu foi responsável por 53% de todas as exportações de peles do Rio da Prata. Em 1790, a participação de Montevidéu nas exportações totais de peles era de 56%, em comparação com os 46% de Buenos Aires, no Rio da Prata. Garavaglia também demonstra, com base em registros de impostos, que as duas cidades tiveram um crescimento econômico acelerado, com a riqueza total arrecadada pela Coroa saltando de 3.000 pesos e 16.000 pesos em 1761-1765, para 21.000 pesos e 35.000 pesos em 1798 para Montevidéu e Buenos Aires, respectivamente (GARAVAGLIA, 1985:54-57). Os habitantes de Montevidéu se beneficiaram amplamente do armamento de navios no porto. Comerciantes da cidade serviram como procuradores para garantir a logística, pagamento de taxas legais e agências comerciais adicionais necessárias para os comerciantes de Buenos Aires realizarem o comércio de longa distância. Eles confiaram em seus agentes de Montevidéu para todos os procedimentos logísticos e legais envolvidos no envio e recebimento de mercadorias, porque o porto de águas profundas de Montevidéu hospedava suas próprias autoridades aduaneiras e portuárias independentes. Os apoderados locais (advogados) eram responsáveis por pagar alfândegas, pagar fianças para navios, agir sobre disputas legais, anunciar 30

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preços e outras informações comerciais, armazenar e mover a mercadoria e outros organismos informais, incluindo o comércio de contrabando. Em 1803, o porto de Montevidéu era responsável por 73% de todo o movimento naval transatlântico no estuário do Rio da Prata, efetivamente funcionando como o principal porto de Buenos Aires.1 As guerras intermitentes no Atlântico, no entanto, forçaram os comerciantes da região a adaptar suas estratégias comerciais, a fim de manter o comércio (legal e ilegal) viável durante períodos de conflito bélico no Atlântico. Nas décadas de 1780 e 1790, comerciantes e capitães adotaram interpretações específicas das leis coloniais para justificarem seu envolvimento no comércio trans-imperial: obtendo licenças para o comércio com nações neutrais e usando o direito de desembarque de emergência (arribadas) para conduzir o comércio com agentes estrangeiros. Estas transações permitiram, em última análise, que o comércio trans-imperial adquirisse o estatuto semilegal dentro do império espanhol. Em vez de paralisar o comércio colonial, a guerra fomentou a participação dos súditos coloniais no comércio trans-imperial e facilitou o uso de desculpas legais fornecidas pela nova conjuntura atlântica. Entre 1778 e 1806, um mínimo de 231 navios estiveram envolvidos no comércio trans-imperial com o Rio da Prata (Montevidéu).2 Destes, 116 eram navios portugueses (48,1%), 81 espanhóis (33,6%), catorze anglo-americanos 1. Semanario de Agricultura. Industria e Comércio. 1803-1804. 2. Os números apresentado aqui foram baseados no seguintes documentos: AN Cx 492 Pct 02, AGNU EHG Cj 34, AGNU EHG Cj 18, AGNU EHG Cj 40, AGNU EHG Cj 2, AGNU EHG Cj 24, AGNU AHG Cj 15, AGNU EHG Cj 23, AGNU EHG Cj 27, AGNU EHG Cj 28, AGNU EHG Cj 31, AGNU EHG Cj 32, AGNU EHG Cj 34, EGNU EHG Cj 41, AGNU EHG Cj 56, AGNU EHG Cj 55, AGNU EHG Cj 54, AGNU EHG Cj 48, AGNU EHG Cj 45, AGNU EGH Cj 28, AGNU Ex-Museo Historico Cj 4, AHU RJ D. 10056, AHU RJ D 10215, AHU RJ D. 10215, AHU RJ D. 10532, AHU RJ D.10607, AHU RJ D.11714, AHU RJ D.13396, AHU RJ D. 13397, AHURJ D.13398, AHU RJ D. 13399, AHU RJ D.13406, AHU RJ D. 13405, AHU-RJ 13407, AHU RJ D.13408, AHU-RJ D. 13412, AHU RJ D. 13408, AHU RJ D. 13413, AHU RJ D.13415, AHU RJ D. 13418, AHU RJ D. 13419, AHU RJ D. 13421, AHU RJ D. 13422, AHU RJ D. 13436. AHU RJ D.13437, AHU RJ D.13438, AHU RJ D. 13437, AHU RJ D. 13441, AHU RJ D.13437, AHU RJ D.13446, AHU RJ D.13452, AHU RJ D. 13458. AHU RJ D. 13462,AHU RJ D. 13470, AHU RJ D. 14058, AHU RJ D. 14121, AHU RJ D. 14099, AHU RJ D. 14500, AHU RJ D. 14506, AHU RJ, D. 14500, AHU RJ D. 14511, AHU RJ D. 15946, AHU RJ D. 15946, AHU RJ D. 15953, AHU RJ D. 15958, AHU RJ D. 15959, AHU RJ 16130, AHU RJ D. 16233, AHU RJ D. 16268, AHU RJ D. 16341, AHU RJ D. 16541, AHU RJ D. 16824, AHU RJ D. 18013, AHU RJ D. 9567, AHU RJ D. 9028, AHU RJ D 9326, AHU RJ D. 9772, AHU RJ D. 9859, AHU

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(5,8%), oito britânicos (3,6%), três franceses (1,2%) e um dinamarquês. Em alguns casos, não havia informações e, em outros, os documentos eram mutilados de forma que a bandeira de origem não era legível em 18 registros (7,1%). Esses navios chegaram aos portos de Montevidéu (85), Rio de Janeiro (47), Santa Catarina (3) e Lisboa (4). Tal padrão mostra a força da conexão entre Montevidéu e as elites mercantis do Rio de Janeiro durante esse período. Entre os oitenta e um navios espanhóis, trinta e dois chegaram a Montevidéu, tendo passado por portos portugueses, e quarenta e quatro outros declararam o Rio de Janeiro como porto de escala ao deixar o porto. Três navios chegaram a Santa Catarina e apenas um deles tocou o porto de Lisboa na sua passagem para Montevidéu. Como demonstra a distribuição dos portos de origem e das bandeiras dos navios, o comércio trans-imperial não foi realizado apenas por navios espanhóis que navegavam para portos estrangeiros, mas foi também fortemente concentrado no porto de Montevidéu, onde um número considerável de navios mercantes portugueses transportava cargas pertencentes a comerciantes espanhóis e portugueses tanto em Montevidéu como em Buenos Aires. Os registros portuários demonstram que a maioria dos navios espanhóis que chegavam a Montevidéu fez escala em portos portugueses antes de entrar no porto. Assim, os dados mostram o papel central de Montevidéu como o principal centro do comércio trans-imperial no Rio da Prata. Os itinerários dos navios eram extremamente variados e envolviam navegação através de portos sul-americanos, europeus, norte-americanos, caribenhos, do Pacífico, da África Ocidental e Oriental e das Ilhas do Atlântico. De Montevidéu, os navios espanhóis mais frequentemente declararam Cádis ou outros portos na Espanha (Santander) como seu destino, mas estes navios comumente atracavam no Rio de Janeiro. Outros destinos regulares incluíam portos espanhóis nas Américas, como Havana e Callao, ou portos estrangeiros, como Ilhas Mauricio, Manila, a costa da África, Cayena, Providence, Boston, ou simplesmente “colônias estrangeiras”. Um número significativo de embarcações navegou oficialmente de Montevidéu RJ D. 9772; AHU RJ D. 9932, AHU RJ D.10052. AGI Buenos Aires Gobierno Leg.: 141. Declaración de Entrada de Puerto;

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para o Rio de Janeiro usando as prerrogativas formais de comércio neutro, embora às vezes sua mercadoria fosse transbordada para navios portugueses ou os barcos iriam para a Europa em comboio português. As discrepâncias entre os destinos oficiais e as rotas reais em que estes navios navegaram revelam que os súditos do Rio da Prata gozavam de um nível de autonomia e confiança na condução do comércio trans-imperial no Atlântico Sul. Os súditos coloniais tanto do império espanhol quanto do império português exploraram as oportunidades apresentadas pelo novo status legal do comércio trans-imperial e do transbordo de mercadorias nos portos brasileiros. As autoridades espanholas em Sevilha estavam cientes de que o envio de informações, pessoas e mercadorias através da rota portuguesa era a via mais segura do Atlântico e, relutantemente, ainda assim, aceitavam frequentemente o uso da rota portuguesa por comerciantes coloniais. Inversamente, as autoridades portuguesas viram, neste sistema de cooperação, a possibilidade de obter prata e couros espanhóis, que não tinham chegado regularmente desde a queda da Colônia do Sacramento. No entanto, apesar de uma série de restrições legais aplicadas a esse comércio, os períodos de guerra criaram oportunidades para as autoridades locais. Como resultado, os súditos coloniais adotaram a lei imperial de acordo com a interpretação das autoridades locais e dos comerciantes de uma forma que se adequava ao interesse das elites locais Embora o comércio trans-imperial entre os mercadores do Rio da Prata e do Rio de Janeiro tenha sido rapidamente restabelecido após 1777, o número de embarcações espanholas que chegavam ao Rio de Janeiro aumentou durante a turbulenta década de 1790. No período entre 1778 e 1792, as autoridades portuárias de Montevidéu registraram 67 chegadas de navios portugueses no Rio da Prata. No mesmo período, os funcionários portugueses da alfândega inspecionaram quinze navios espanhóis que entraram no porto do Rio de Janeiro. De 1793 a 1802, a situação mudou, com um total de 53 embarcações portuguesas tendo chegado em Montevidéu (e um total de 64 contando as chegadas aos portos de Buenos Aires), e 57 embarcações espanholas entrando no Rio de Janeiro. O historiador Ernst Pijning estima que o comércio costeiro entre o Rio de Janeiro e o Rio da Prata, no início

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do século XIX, envolveu de 30 a 40 embarcações de tamanhos variados anualmente (PIJNING, 1997:163).

A década de 1790 foi um ponto de virada, um momento em que os padrões de comércio entre os portos luso-americanos e o Rio da Prata mudaram substancialmente. Desde a década de 1790 e o aumento dos perigos da travessia do Atlântico derivados da guerra, navios espanhóis que entram em portos brasileiros tornaram-se mais comuns do que os navios lusobrasileiros que entram nos portos do Rio da Prata. O número de embarcações espanholas que chegou ao Rio de Janeiro atingiu o seu pico durante a década de 1790, especialmente de 1797 a 1799. Os registros portuários relativos a este período mostram, no entanto, que os portos europeus, e não o Rio de Janeiro, foram o último destino de muitos dessas embarcações e/ou das suas cargas. Durante este período, pelo menos quarenta embarcações platinas utilizaram as rotas portuguesas para chegar aos portos espanhóis. Em outros casos, navios do Rio da Prata tinham o rio como seu porto de escala final, mas transportavam mercadorias para transbordo para a península em navios portugueses. Assim, a noção de que o Atlântico estaria fechado ao comércio espanhol deve ser reconsiderada à luz dessas redes de cooperação transimperiais. O transporte marítimo estrangeiro permitiu a manutenção de

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20%-40% do movimento naval transatlântico espanhol comparando com períodos de paz no Atlântico.3

Reconectando o Rio de Janeiro ao Rio da Prata Em janeiro de 1780, o navio espanhol San Juan e San Jose atracou no Rio de Janeiro sob o pretexto de uma arribada. Embora nunca desembarcassem sua carga oficial, o vice-rei brasileiro Vasconcelos relatou ao Conselho Ultramarino, em Lisboa, que os oficiais desse navio vinham preparados com prata para adquirir do Brasil fumo, ferro, açúcar e, também escravos. O vice-rei afirmou ainda que era do seu interesse assegurar a retenção do máximo de prata possível no Rio de Janeiro. Portanto, ele fez arranjos para fornecer à tripulação espanhola todas as mercadorias que eles demandassem, incluindo escravos. O valor total da operação ultrapassou 22: 000 $ 000 réis (28.947 pesos), e poderia ter sido ainda maior. De acordo com o Vice-rei Vasconcellos, a quantidade de prata retida no Rio poderia ter sido muito maior, se eu pudesse providenciar mais fumo. [...] Eles também levaram muita madeira, ferramentas de ourives, um pouco de vinho, trinta arrobas de doces, têxteis, ferro, arame e, finalmente, 93 escravos. Em relação à transação de escravos, em primeiro lugar tentei criar dificuldades, mas acabei permitindo tal transação como um grande favor. Resolução semelhante, na verdade, ia contra a proibição de venda de escravos para áreas que não estão sob o domínio de Vossa Majestade, aprovada em 14 de outubro de 1751. No entanto, após a publicação desta resolução, práticas em contrário passaram a ser comuns, desde Colônia e outras localidades deste Governo, escravos sempre foram exportados para domínios espanhóis sem qualquer ação contra esse comércio por parte das autoridades, e isso se deve ao fato de tais regulamentos terem sido criados apenas para satisfazer estrangeiros que reclamassem do comércio de contrabando de escravos.4 3. Semanario de Agriculura Industria y Comercio. Junta de Historia Numismatica Americana: Buenos Aires. 1928-1937. AGN, Montevideo, AGA – Libros de Aduana 95, 96, 99. 4. AHU RJ D 9294. 30 de Marco 1780.

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Nesta carta, Vasconcelos revela os métodos empregados por capitães e oficiais espanhóis para adquirir mercadorias sem tocar na carga oficial, a fim de evitar acusações de contrabando. Além disso, o esquema descrito mostra que tais práticas não foram criadas recentemente. Ao contrário, foram uma adaptação de métodos já testados em experiências anteriores, começando com as arribadas forçadas usando os direitos de proteção e ajuda estabelecidos na lei natural. Embora o destino original do navio fosse outro porto do Império espanhol, os capitães chegaram ao Rio de Janeiro sob o pretexto de desembarques de emergência “preparados” com prata para adquirir mercadorias e comprar escravos. Todos esses sinais sugerem que, em 1780, antigas redes de comércio estavam sendo restabelecidas. O portfólio de produtos adquiridos também revela o claro conhecimento dos comerciantes espanhóis sobre o que precisavam adquirir no Rio de Janeiro: fumo, madeira, ferro e escravos. Todos esses produtos estavam normalmente disponíveis no Rio da Prata, via Colônia do Sacramento, antes de 1777. A aquisição de escravos pelos mercadores platinos no Rio de Janeiro revelou a continuidade das redes de comércio trans-imperiais entre o Rio da Prata e o Brasil, uma prática antiga empregada desde os dias de Sacramento. A comunicação do vice-rei Vasconcelos, do Brasil, mostra o interesse português em reter a prata e o alto nível de autonomia de que gozavam as autoridades locais e os comerciantes. O vice-rei afirmou com ousadia que seu principal objetivo ao receber as arribadas espanholas era obter o máximo de prata possível dessas transações, embora a transação pudesse contradizer as leis imperiais. A venda de quantidades significativas de fumo, madeira, ferro e ferramentas não eram suprimentos estritamente necessários para que a embarcação continuasse sua viagem ou retornasse ao porto de origem. O mais notável, porém, foi a venda de 93 escravos aos espanhóis. Embora fosse contra um decreto real de 1751, a correspondência do vice-rei mostra que esta lei não foi observada, e muitas autoridades portuguesas pensavam que tal decreto se destinava a desviar a atenção de potências estrangeiras. Além disso, Vasconcelos citou o exemplo do papel de Colônia como fonte de escravos para o Rio da Prata e como, na prática, esse comércio sempre foi realizado sem impedimentos oficiais. Na avaliação dos benefícios do comércio, Vasconcelos destacou a retomada do fluxo de 36

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prata, a incorporação do mercado espanhol às rotas econômicas do Rio de Janeiro e o aumento da arrecadação tributária que resultaria para a Coroa. Embora o comércio com estrangeiros fosse especificamente regulamentado, as autoridades e comerciantes do Rio de Janeiro e seus sócios no Rio da Prata gozavam de um nível relativo de autonomia em suas transações. Com o apoio formal das autoridades locais, não foram necessárias autorizações anteriores das potências metropolitanas. Pelo contrário, o vice-rei apenas informou as autoridades de Lisboa a posteriori. Os súditos coloniais estavam, de fato, decidindo sobre o comércio com estrangeiros no espaço colonial. Menos de um ano depois, quando o mesmo assunto voltou a ser levado ao conhecimento do Concelho Ultramarino de Lisboa, o vice-rei relatou com mais pormenores o crescimento do comércio com o Rio da Prata. Neste relatório de 1781, Vasconcelos revelou que o número de navios espanhóis que chegavam ao Rio de Janeiro havia aumentado consideravelmente com a guerra entre Espanha e Inglaterra. O sucesso do restabelecimento da rota Rio da Prata – Rio de Janeiro levou ao aprofundamento desses contatos comerciais. Comerciantes e capitães de navios de Montevidéu afirmavam que as autoridades do porto platino estavam dispostas a abrigar embarcações portuguesas no estuário. Especificamente, as autoridades a cargo do tráfico portuário do Rio da Prata queriam deixar claro aos mercadores do Rio que as embarcações portuguesas seriam bemvindas em Montevidéu. No porto, as autoridades permitiriam a entrada de embarcações portuguesas no porto baixo a pretexto de arribada, – mas na verdade vinham para comerciar. Para enfatizar o interesse dos comerciantes montevideanos, um dos representantes da classe na cidade trouxe mais de cem mil pesos para mostrar que estavam dispostos a despender essa quantia no comércio, o que convenceu alguns armadores a enviarem seus navios oficialmente para Santa Catarina, Rio Grande e outros portos do Sul, mas as embarcações zarpariam para Montevidéu, onde entrariam com pretexto de arribada. Além disso, o enviado espanhol garantiu que tais navios voltariam “carregados com abundância de couros e prata, já que os espanhóis facilitariam isso”.5 5. AHU RJ D 9561 – 12 Julho 1781.

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A importância da rota que liga Rio de Janeiro e Rio da Prata cresceu a tal ponto que, em 1799, uma petição de comerciantes e agricultores da “estrada para Minas Gerais” apresentou uma lista de mais de duzentos produtos para exportar para o Rio da Prata, com informações sobre preços e taxas de rentabilidade. A lista incluía produtos luso-brasileiros e europeus. Assim, pode-se perceber a integração do comércio do Rio da Prata no circuito mercantil do Rio de Janeiro via contrabando e/ou operações semilegais. As autoridades locais e os comerciantes interpretaram as leis imperiais de acordo com seus melhores interesses. Sob regras ambíguas, as elites mercantis regionais que estavam conectadas com autoridades locais utilizavam estratagemas legais numa interpretação vantajosa das leis para exerceram controle de facto sobre o comércio trans-imperial.6 No início do século XIX, o do uso de portos, navios, e intermediários portugueses tornou-se comum para comerciantes rio-platenses operando no comércio Atlântico. Em 1802, o comerciante de Buenos Aires, Francisco de Necochea, apresentou uma petição no Brasil e em Lisboa para impedir que os comerciantes espanhóis pagassem duas vezes as taxas portuárias e de transbordo no Brasil e em Portugal. Necochea pediu um regulamento padrão para os todos barcos espanhóis que utilizassem as rotas portuguesas, e mencionou que isso beneficiaria os seus associados portugueses do Rio e de Lisboa. A principal reclamação de Necochea era o pagamento obrigatório de duas taxas portuárias de três por cento. Em vez de pagar as duas taxas portuárias e a taxa obrigatória de quatro por cento para o transbordo, Necochea propôs uma taxa total de sete por cento, argumentando que essas taxas tornavam os custos de tais transações muito altas. Embora não saibamos o desfecho deste caso, este episódio revela a importância e a utilização regular da rota portuguesa pelos comerciantes espanhóis. Ainda que os comerciantes do Rio da Prata estivessem oficialmente usando sua prerrogativa de comércio neutro, suas transações não terminaram no Rio de Janeiro ou em outros portos brasileiros. Eles usaram seus conhecimentos e redes no

6. “RELAÇÃO dos GENEROS e Fazendas proprioas do consumo da Colonia do Rio da Prata, Reyno do Perú e Prezidencia do Chili: os preços que permitem na prz. guerra, e os que demosntrão mayor utilidade.” 04 de Abril 1799. AHU RJ Cx. 171 doc. 12655

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Brasil para manter o fluxo de mercadorias e informações entre o Rio da Prata e a Península Ibérica durante a década de 1790 e início do século XIX. Durante a década de 1790 e início de 1800, o pretexto mais utilizado pelos capitães espanhóis para entrar nos portos luso-brasileiros era alegar que precisavam de reparos devido às tempestades encontradas no Atlântico Sul. Mesmo durante os períodos de guerra, tal desculpa foi usada por muitos capitães.7 Em 1796, por exemplo, um navio espanhol de propriedade de um influente comerciante de Buenos Aires, Tomás Antonio Romero, enfrentou problemas ao tentar entrar no Rio de Janeiro. As autoridades locais inicialmente consideraram a chegada de seu navio Jesus Maria José, ilegítima. O capitão José Antonio Sarzetea estava originalmente com destino ao Cabo da Boa Esperança, mas entrou no Rio de Janeiro em busca de proteção. A entrada no porto do Rio de Janeiro foi permitida depois que o capitão e os altos oficiais – que eram luso-brasileiros – explicaram a necessidade de reparos nas velas e no cordame do navio. Essa desculpa concedeu-lhes não apenas permissão para abrigar, mas também o potencial de vender parte de sua carga.8 Vale ressaltar que os navios portugueses usavam os mesmos pretextos quando atracavam nos portos do Rio da Prata. Como os capitães dos navios usavam o clima como pretexto para entrar em portos estrangeiros, isso também lhes permitia o realizar comércio com as nações neutras baseado em princípios do Direito Natural ou de Gentes. Assim, as tempestades eram um pretexto que nunca saía de moda (ao passo que licenças para comércio com neutros dependiam dos ritmos dos conflitos Atlânticos), e permitiam que autoridades locais usassem seus próprios critérios para admitir navios estrangeiros nos portos. De 1800 a 1806, 70% dos navios espanhóis que chegaram ao Rio de Janeiro alegaram necessitar de reparos por conta dos danos causados ​​pelas tempestades que enfrentaram no Atlântico Sul. A década que se seguiu à queda de Colônia (1777), consistiu num período de tensões diplomáticas entre Espanha e Portugal. No entanto, foi durante esses anos que a rota comercial Rio da Prata – Rio de Janeiro foi 7. AHU-RJ 10215, AHU-RJ 10532, AHU-RJ 10607, AHU-RJ 13396, AHU-RJ 13397, AHU-RJ 13398, AHU-RJ 13399, AHU-RJ 13407, AHU-RJ 13412, AHU-RJ 13408. 8. “Com prerrogativas que lhe guardam as leis do Estado.” AN-RJ – Cx 492 Pct. 02. 10 de Out de 1796.

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reativada dentro de novos arranjos políticos e comerciais. Mais ainda, os registros de chegada e saída de embarcações em portos coloniais permitem reavaliar as conexões locais e globais dos portos americanos. Ainda que as regulações mercantilistas prescrevessem o rígido exclusivo comercial peninsular, a realidade comercial do fim do século XVIII refletida nos registros portuários indica a importância das rotas trans-imperiais, não apenas como rotas de “contrabando,” mas como rotas fundamentais para a manutenção do próprio império espanhol em tempos de guerra. Assim sendo, fontes portuárias das Américas revelam perspectivas outras, não centradas desde a península, e não raras vezes acabam por demonstrar o dinamismo dos súditos americanos, bem como a centralidade de portos coloniais, ou a centralidade das periferias. No caso do Rio da Prata e do Rio de Janeiro, os registros portuários indicam a interconexão das economias das duas cidades portos, assim como oferecem pistas, indícios, e detalhes sobre os agentes envolvidos nessas rotas, seus métodos de comércio, estratégias legais, bem como oferecem um panorama das conexões atlânticas e globais de Montevidéu e Rio de Janeiro, mas também brindam informações sobre as rotas comerciais desde os portos rumo ao interior.

Leituras para aprofundar o estudo dos registros de portos A análise de fontes portuárias possui uma longa tradição na historiografia ocidental. Dentre as obras de destaque que se utilizaram de registros portuários, os historiadores vinculados à tradição dos Annales merecem destaque. Historiares como Frederic Moreau, Huggette e Pierre Chaunu, e mais tarde, seguindo a tradição dos Annales, Michel Marineau, Vitorino de Magalhães Godinho, e Antonio Baquero Gonzales contribuíram de forma fundamental na sistematização e análise serial de fontes portuárias peninsulares. Estes trabalhos ofertaram pela primeira vez uma visão geral do comércio a partir de registros portuários desde diversas regiões do império em relação a suas interações com Espanha. Entretanto, devido às características das fontes peninsulares, as relações entre portos americanos com outros portos coloniais, ou com portos de outros impérios não aparecem de forma efetiva nestes trabalhos.

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A utilização de registros portuários como corpus documental para a elaboração de base de dados pode ser evidenciada a partir do trabalho principiado por David Eltis, David Richardson e Manolo Florentino, e continuado por seus estudantes, na base de dados sobre o tráfico de escravos, a já famosa Slave Voyages: The Trans-Atlantic Slave Trade Database. Slave Voyages representa um excelente exemplo de como fontes seriais e de caráter fiscal e econômico podem oferecer subsídio para histórias sociais, demográficas e culturais do Atlântico. Finalmente, uma recente historiografia dedicada a temas econômicos, políticos e sociais produziu importantes análises cruzando registros de embarcações de diferentes portos nas américas, Europa e África, assim como cotejando registros individuais de comerciantes e produtos com fontes administrativas – efetivamente explorando processos macro e micro-históricos. Tais trabalhos identificaram a importância das rotas de contrabando e os mecanismos do comércio trans-imperial para a economia do Atlântico no período tardo colonial. Especificamente, os trabalhos de Jesse Cromwell, The Smugglers’ World, Ernesto Bassi, An Aqueus Territory, além de meu próprio livro Edge of Empire.

Referências bibliográficas BASSI, Ernesto. An Aqueous Territory: Sailor Geographies and New Granada’s Transimperial Greater Caribbean World. Durham: Duke University Press, 2016. BORUCKI, Alex. From Shipmates to Soldiers: Emerging Black Identities in the Río da Prata. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2015. CHAUNU, Huguette and Pierre CHAUNU. Seville et l’Atlantique (1504–1650). Paris: S.E.V.P.E.N., 1956. CHAUNU, Pierre and Huguette CHAUNU. Sevilla y América, siglos XVI y XVII. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1983. CROMWELL, Jesse. The Smugglers’ World: Illicit Trade and Atlantic Communities in Eighteenth-Century Venezuela. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2018.

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Negros herdeiros na zona da Mata Mineira: os irmãos Costa Lima

Elione Silva Guimarães Archivo Histórico de Juiz de Fora

Entre os anos 1850 e 1920, a zona da Mata Mineira destacou-se economicamente como um dos principais centros cafeeiros do Brasil. Nesta região, no período escravista, a mão de obra primordial foi a dos escravizados, concentrando Juiz de Fora e Mar de Espanha, respectivamente, o primeiro e o terceiro lugar em número de cativos.1 Em uma das regiões mais escravocratas do país, as relações estabelecidas entre senhores e escravizados eram complexas e foram muito além da violência que caracterizou as sociedades escravistas. Algumas vezes, senhores e cativos estabeleceram vínculos afetivos e contratuais que tornaram ex-escravizados em legatários ou herdeiros de seus senhores; ainda que estas possibilidades tenham atingido a uma pequena parcela das pessoas que um dia viveram em situação de cativeiro. Com base na apreciação de testamentos e de inventários post mortem proponho 1. De acordo com dados do Censo de 1872 a população de escravizados de Leopoldina era de 15.253 a de Juiz de Fora somava 14.368 e a de Mar de Espanha era de 12.658. Todavia, o Censo não computou a população da Freguesia de Simão Pereira, pertencente ao município de Juiz de Fora. O Relatório do Presidente de Província de Minas Gerais, de 1873 nos informa que a população de cativos de Juiz de Fora era de 19.351 indivíduos, é esse quantitativo que estou considerando. Para maiores considerações sobre a população de Juiz de Fora e Mar de Espanha nesse período Ver: Guimarães, 2006; Guimarães, Saraiva e Saraiva, 2020.

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analisar as heranças e os legados deixados para os ex-cativos ou libertos.2 Para acompanhar estas histórias, recorri à microanálise (ou à busca exaustiva das fontes disponíveis), tendo como principal guia condutor os nomes desses indivíduos que foram indicados herdeiros ou legatários de seus antigos proprietários (GINZBURG, 1991; LEVI 2000). O texto foi organizado em três seções. A primeira apresenta as fontes e a metodologia utilizada para o estudo do tema. A segunda apresenta os dados quantitativos levantados sobre os testadores, os legatários e os legados deixados para herdeiros negros nos municípios de Juiz de Fora e de Mar de Espanha. A última parte apresenta um estudo de caso, qual seja, a análise do testamento e do inventário do Comendador José Anastácio da Costa Lima, que deixou seus bens para quatro pardos, filhos da liberta Luiza. As duas últimas seções dialogam com a primeira, uma vez que demonstram como as fontes e a metodologia foram utilizadas para se atingir os objetivos propostos.

Fontes e Metodologia de Pesquisa A pesquisa proposta teve como fonte inicial, e só por esta razão a considero a principal, os testamentos anexados aos inventários post mortem. Os inventários úteis ao estudo foram definidos pela leitura e seleção dos testamentos, pelos quais começaremos a discussão. Afinal, o que são testamentos? São um instrumento público através do qual um indivíduo manifesta as suas últimas vontades e disposições materiais e simbólicas, de acordo com a legislação em vigor.3As disposições testamentárias só se tornam definitivas após a morte do testador. No período Imperial, eles eram regulamentados pelas Ordenações Filipinas (1603), Livro Quatro, que vigoraram no Brasil até a aprovação do Código Civil Brasileiro (1916). Podiam testar as pessoas do sexo masculino maiores de 14 anos e as do sexo feminino acima de doze. O ato era vetado aos alienados, aos indivíduos condenados à morte, aos hereges, ao pródigo, ao surdo e ao mudo de nascença, 2. Estou considerando “ex-cativos” aqueles que foram alforriados nos testamentos ou inventário em apreço e libertos são aqueles que já estavam emancipados anteriormente e foram agraciados com legados e/ou herança. 3. Esta seção é uma junção de dois textos escritos por mim anteriormente, com ligeiras modificações: Guimarães, 2011:71-74; Guimarães, 2012: 85-108.

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ao escravizado e ao religioso professo. Os testadores que possuíam herdeiros forçados (pais ou avós) e/ou descendentes (filhos) somente podiam legar um terço de seus bens, o que era chamado de terça. Os testamentos podiam ser ordinários, os quais dividiam-se em 1) públicos, aberto pelo tabelião e 2) cerrados, que eram escritos pelo testador ou por terceiros a pedido e eram entregues a um tabelião na presença de cinco testemunhas. Havia ainda o nuncupativo, que era feito oralmente pelo testador que estava à beira da morte e deveria ser invalidado caso ele se recuperasse. Outros eram chamados de testamento de mão comum, isto é, aqueles que possuíam mais de um testador. Permitia-se a realização de acréscimos de última vontade, desde que não implicasse na destituição ou ampliação de herdeiros, o qual era chamado de Codicilo e era validado pela presença de quatro testemunhas. As disposições de última vontade são documentos jurídicos que podem ser encontrados em: 1) copiados nos livros de registros de testamentos, 2) juntados aos inventários post mortem de seus titulares – quase sempre –, 3) copiados nos processos de prestação de contas testamentárias; 4) em algumas localidades podemos encontrá-los nas Cúrias, copiados nos livros de registros junto aos óbitos dos testadores; 5) ocasionalmente os encontramos nos livros de notas dos juízes de paz ou nos livros de notas dos cartórios. Os livros de registro de testamento e os livros de notas dos juízes de paz estão sob a guarda dos cartórios ou dos fóruns, sendo que os livros do juiz de paz podem ser localizados, também, nos acervos das Câmaras. Os processos de inventários post mortem, os testamentos originais e/ou suas cópias e as prestações de contas testamentárias encontram-se nos arquivos dos fóruns ou em instituições culturais que sejam detentoras da guarda desses acervos. Também é possível localizar todas estas peças documentais em arquivos públicos (Judiciais, Arquivo Nacional, Arquivos Estaduais e Municipais) desde que possuam a guarda deles, o que depende da localidade. No oitocentos, o objetivo do testador, ao elaborar este documento de últimas vontades, era preparar-se para “uma boa morte”, mas ao fazê-lo, o testador formalizava a distribuição de parte de seus bens, dentre os quais os domínios rurais (propriedade, benfeitorias, cativos e outros). Em geral

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os testamentos do século XIX contêm um preâmbulo, no qual o testador declara sua profissão de fé; em seguida ele se qualifica – nome, naturalidade, filiação, estado civil, nome do(s) cônjuge(s) (quando for o caso, incluindo-se o número de vezes que se casou), filhos (podendo perfilhar os naturais, desde que havidos em estado de solteiro ou viuvez, sem que houvesse impedimento para o casamento entre as partes) e a condição de saúde no momento em que testou. Na sequência vêm as disposições e legados espirituais – encomenda da alma, local e forma do funeral e enterro, número de missas para si e de outros (familiares, escravizados, pessoas com as quais teve negócios). Em alguns, segue-se um resumo dos bens móveis e imóveis, as declarações de dívidas passivas e ativas, as alforrias, doações de legados – aos pobres, às instituições, aos cativos e/ou libertos e a outros. Por fim, constam as disposições gerais e as autenticações, tais como a nomeação e a ordem dos testamenteiros (em geral indicando entre três e quatro pessoas), o tempo para se cumprir as disposições testamentárias; o local e a data da elaboração do documento; assinaturas ou sinal do testador, das testemunhas e do escrivão; aprovação e abertura do testamento; aceitação do testamenteiro. Note-se que estes documentos se apresentam como fontes complexas e riquíssimas para os estudos relacionados ao cotidiano, ao patrimônio, às relações familiares (formais e informais), ao estudo sobre as práticas das alforrias, o perfil dos libertos e dos testamenteiros e o acesso dos emancipados aos bens materiais (KICH, 2001; PEREIRA, 2004; REIS 1997). Após o conhecimento da estrutura e do padrão dos testamentos elaborei um banco de dados no Acess, que pudesse responder às perguntas que propus à fonte, arroladas no quadro a seguir:

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Quadro 1 – Estrutura da base de dados NÚMERO

INFORMAÇÃO

1

Instituição de Guarda

2

Série (Livro de Testamento, Testamento, Testamentária, Inventário e etc.)

3

Caixa (ou outro recipiente de armazenamento)

4

Referência (número do livro ou referência do inventário ao qual está juntado),

5

Numeração das folhas em que se encontra

6

Ano da elaboração

7

Ano da Abertura

8

Ano da Abertura

9

Estado civil do testador

10

Cônjuge do testador (quando o tiver)

11

Sexo do testador

12

Naturalidade do Testador

13

Idade do testador

14

Domicílio (no caso, o local onde fez o testamento – a propriedade mais especificamente)

15

Localidade onde fez o testamento (o distrito/freguesia onde o documento foi elaborado)

16

Nome do pai do testador

17

Nome da mãe do testador

18

Estava doente ao fazer o testamento (sim ou não)

19

Alforriou (sim ou não). No caso de sim, quantos.

20

Deixou legados para cativos/libertos (sim ou não). No caso de sim, quantos.

21

Qual o legado deixado?

22

Tinha herdeiros necessários? (sim ou não)

23

O inventário foi localizado? (sim ou não)

24

Quantos Cativos Possuía?

25

OBS

Cabe lembrar que, como foram pesquisados os livros de testamentos, as prestações de contas testamentárias e os inventários post-mortem, encontrei duplicidade de informações, que naturalmente foram descartadas. Em outras palavras é possível encontrar o registro de testamento para uma determinada

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pessoa no Livro de Registro dos mesmos e, também encontrá-lo copiado no Inventário e na Prestação de Contas testamentárias. Outras vezes, contudo, o encontramos registrado no Livro, mas não localizamos o inventário e nem a prestação de contas testamentárias do seu titular, que podem ter se perdido com o tempo. Ou, temos o testamento copiado no inventário e/ ou na Prestação de Contas, mas não o encontramos no Livro apropriado. Os cinco primeiros campos, acima relacionados, são relativos às referências do documento. Os campos de 9, 11, 12, 13, 17, 21 e 22 permitem estabelecer os padrões dos testadores. Os campos relacionados aos nomes do(s) cônjuge(s) e dos pais podem ser necessários em alguns casos, se precisarmos consultar os inventários dos mesmos para melhor compreender as heranças deixadas aos testadores por seus pais (e que estão transmitindo a seus sucessores) ou as relações familiares dos cativos estabelecidos pelos escravizados e/ou libertos que estão recebendo os legados. Os campos 20 e 21 são essenciais para identificarmos com quais testadores necessitamos trabalhar mais detalhadamente a fim de conhecermos os bens transmitidos. O item 23 é o que nos revela quais inventários teremos à disposição para a pesquisa. O campo 24, normalmente, só pode ser preenchido com base nos inventários, e é ele que nos permite conhecer o porte do testador (pequeno, médio ou grande). No campo 25 anotamos as observações que, por suas especificidades, escapam ao que é padrão, como, por exemplo: os cativos beneficiados com heranças e/ou legados foram reconhecidos como filhos? O testador impôs alguma cláusula para que o legatário possa usufruir do benefício? Naturalmente a pesquisa documental é precedida pela visita às instituições de guarda, que nos permitem saber onde as fontes documentais estão custodiadas. No caso específico das minhas pesquisas consultei acervos sob a guarda das seguintes instituições: 1 Arquivo Histórico de Juiz de Fora (AHJF- Prefeitura de Juiz de Fora) – que possui a custódia de alguns processos civis, como inventários e prestação de contas testamentária;

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2 Arquivo da Universidade Federal de Juiz de Fora (AHUFJF), que detém a guarda de processos civis, dentre outros de inventários, testamentos e prestação de contas testamentárias; 3 Arquivo do Fórum Dr. Geraldo Aragão Ferreira (em Mar de Espanha), à época da pesquisa guardião dos processos civis – incluindo inventários, testamentos e testamentárias – e, também dos livros de testamentos– da Comarca de Mar de Espanha. Atualmente esse acervo está recolhido ao Arquivo Permanente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (Belo Horizonte-MG). Identificados os testadores que deixaram legados para cativos (que também são alforriados nos testamentos) e libertos (pessoas que já haviam sido emancipadas), o passo seguinte foi analisar os inventários e as prestações de contas testamentárias desses indivíduos. Nestes dois tipos de documentos mencionados verificamos o cumprimento ou não das disposições do testador e os possíveis conflitos surgidos a partir do testamento, tais como a contestação pelos herdeiros, o cumprimento ou não dos legados destinados aos forros – principalmente em relação às doações de parcelas de terra – e os questionamentos em torno da legitimidade dos legados. São eles que nos permitem, no caso de legados de propriedades agrícolas e de cativos, saber o tamanho do domínio recebido, sua localização – se o doador era um proprietário de porte pequeno, médio ou grande – aqui considerando a posse de escravizados e a extensão de suas terras. Também são eles que nos informam sobre os herdeiros libertos ou ex-cativos (cor, idade, naturalidade, estado civil). As Prestações de Contas Testamentárias são processos civis compostos de recibos e outros documentos que comprovam o cumprimento das disposições do testamento (recibos dos padres que rezaram as missas, comprovantes de alforrias e de entrega de cativos e terras). No geral, o testador estipulava de um a dois anos para que o testamenteiro cumprisse suas determinações e prestasse as contas da testamentária e, quase sempre, determinava um prêmio para quem aceitasse o encargo. E o que são Inventários? São “(...) processos judiciais destinados à apuração dos bens de uma pessoa falecida (no caso o inventariado) e a sua

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distribuição entre os herdeiros ou legatários” (NUNES, 2011:57-59). Portanto, eles arrolam os herdeiros, relacionam e avaliam os bens materiais móveis, semoventes (animais e cativos), ações e apólices e os bens de raiz (terras e benfeitorias). “Nesta documentação é ainda apresentada (...), dívidas deixadas pelo inventariado, termos de curadoria, petições de várias naturezas, despachos de juízes, mandados, precatória, certidões, notificações, custas do processo e ainda o plano de partilha” (NUNES, 2011:57-59) Segundo Saraiva et al., eles nos permitem “... ter uma percepção de indivíduos, conjunto de indivíduos por categorias sociais, ou mesmo o perfil de determinada sociedade” (SARAIVA, CURY, GEBARA NETO, GUIMARÃES, 2021). Para além das análises econômicas, os inventários são reveladores dos muitos conflitos que ocorrem no momento da morte do indivíduo, envolvendo seus bens e seus herdeiros, dentre os quais os cativos e os libertos. Os inventários, muitas vezes revelam os nomes que os ex-escravizados e os libertos, que foram nomeados herdeiros ou legatários, adotaram na condição de pessoas livres. Detentores de um “apelido” podemos, com menos dificuldades, acompanhá-los por fontes múltiplas. Amiúde eles tomavam os nomes de família dos ex-senhores ou conjugavam o nome de um antepassado com o sobrenome do ex-proprietário. Por exemplo, os libertos e herdeiros de Cassimiro Lúcio Ferreira de Carvalho (Mar de Espanha) passaram a chamar-se Pedro Ferreira de Carvalho ou Leopoldo Ferreira de Carvalho (GUIMARÃES, 2009). Os herdeiros de Francisco Garcia de Mattos, e filhos do cativo Balbino (Juiz de Fora), conjugaram o sobrenome do ex-senhor com o nome do pai – a exemplo de Manuel Balbino de Mattos (GUIMARÃES, 2006). Conforme notou Ginzburg, o nome nos dá o “fio de Ariana” – “O fio de Ariana que guia o investigador no labirinto documental é aquilo que distingue um indivíduo de um outro em todas as sociedades conhecidas: o nome” (GINZBURG, 1991). Giovanni Levi observou que as informações que encontramos sobre cada indivíduo dependem de sua relevância pública, todavia, com paciência e metodologia, não é inviável encontrar informações sobre os mais diversos personagens, indiferente de sua condição social, nas fontes preservadas (LEVI, 2000).

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Identificados os sobrenomes dos libertos que receberam legados ou heranças de seus ex-senhores, torna-se viável procurá-los por fontes variadas e até mesmo encontrar seus inventários e testamentos, além de localizá-los em processos civis e criminais diversos e em livros de notas (compra e venda de bens, hipotecas, procurações etc.). E cada documento localizado sobre eles nos fornecem novas informações, que possibilitam reconstruir suas trajetórias, conhecer as famílias negras, e acompanhá-los em conflitos, na formação de patrimônio, nos crimes em que se envolveram – enfim, seus rastros, sucessos e infortúnios. Para os casos em que estes nomes não emergem dos inventários e prestação de contas dos testadores, ainda podemos tentar outra estratégia: levantar os inventários e outros documentos de pessoas que tenham os mesmos nomes dos contemplados associados aos sobrenomes dos ex-senhores. Esta tática me permitiu encontrar muitos documentos para os libertos e herdeiros de Pedro Marçal da Costa e sua esposa Porcina Angélica de Jesus (Mar de Espanha/MG), que não apareceram com sobrenomes nos inventários dos ex-proprietários (GUIMARÃES, 2009). Sugiro que, caso a busca tenha que ser realizada desta última forma – uma busca ao acaso –, que seja considerado também o nome da esposa. Por exemplo, os libertos de d. Theodora Maria de Souza, que foi casada com Francisco Garcia de Mattos, adotaram alguns o sobrenome dele e outros o nome e sobrenome dela – a exemplo de Marcolino Garcia de Mattos e de Manuel Theodoro de Souza. Conforme observado, a perseguição nominativa, a partir dos sobrenomes adotados por libertos, pode nos conduzir a processos civis os mais variados, incluindo os de divisão e demarcação de terras, os processos de manutenção de posse e os de execução de dívidas, além de processos criminais. Também nos permite encontrá-los nas escrituras de notas e, naturalmente, nos registros civis de casamento, nascimento e morte posteriores a 1889. Embora os documentos de toda natureza sejam relevantes para o conhecimento e a compreensão da trajetória dos libertos, os citados, em sua maioria, os processos civis possessórios denunciam os conflitos por eles vivenciados e os esforços pela manutenção da propriedade da terra. E aqui é importante ressaltar que a perseguição nominativa é válida não somente acompanhando os nomes dos libertos, mas, também, o da propriedade ou sítio que eles receberam de legado. Por exemplo, os libertos de Theodora Maria de Souza 52

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e Francisco Garcia de Mattos estavam assentados nas fazendas Boa Vista e Boa Esperança, então verifiquei todos os processos de divisão e demarcação de terras destas propriedades, com o objetivo de acompanhar o cotidiano e as disputas que vivenciaram em defesa de seu patrimônio rural (GUIMARÃES, 2006). Pelo inventário e Prestação de Contas do testador temos a informação do nome da propriedade legada, a qual muitas vezes está em comum com outros proprietários (terra pró-indivisas) e, em determinado momento, algum deles pode pedir a divisão e demarcação da terra. São “terra pró-indiviso” ou “terra no comum”, isto é, propriedades sem demarcação judicial dos limites – possuídas por vários donos, aparentados ou não. São propriedades que, ao longo dos anos, partindo de transações de compra e venda, heranças, permutas e partilhas, passaram a ter vários senhores, perdendo as divisas originais e configurando novas fronteiras, demandando a realização de divisas legais. É comum que na capa do processo somente conste o nome do autor da ação e o da propriedade. Por isso é importante a perseguição nominativa também pelo nome da situação. Na petição inicial o requerente se identifica, se qualifica, nomeia os demais coproprietários e os confrontantes, solicitando que sejam citados por editais os que se encontram em lugares distantes e não sabidos, e requer a divisão e a demarcação da propriedade. Os documentos juntados ao processo revelam que muitas vezes os condôminos eram tantos que alguns eram desconhecidos dos demais coproprietários. Nos casos das propriedades em que libertos figuram como condôminos, eles são citados e os documentos que comprovam o seu direito sobre a porção de terra que receberam são anexados aos autos – como, por exemplo, a transcrição do testamento do doador, as partes do inventário dele, relativas aos legados a que o liberto teve direito. Naturalmente a aplicação da metodologia de perseguição nominativa por fontes múltiplas se torna mais viável quando as instituições de guarda da documentação possuem bases de dados disponíveis para consulta elaboradas com informações básicas, como os nomes de pessoas e/ou das propriedades. Caso não haja base de dados ou inventários onomásticos, resta-nos os catálogos e inventários sumários, que embora sejam muito variáveis (de uma

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instituição para outra), em termos de qualidade das informações constantes, são um excelente indicativo para o levantamento prévio dos documentos a serem pesquisados. Os jornais, muitos hoje disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional,4 são outras fontes importantíssimas para a perseguição nominativa.

Legados para cativos e libertos: Juiz de Fora e Mar de Espanha (1839-1904) Analisei os testamentos de 631 pessoas, (290 em Mar de Espanha e 341 em Juiz de Fora) das quais 110 (58 em Mar de Espanha e 52 em Juiz de Fora), ou 17,4%, deixaram legados para cativos e/ou libertos, distribuídos conforme a tabela 1. As datas limites (1839-1904) correspondem à do documento mais antigo localizado com esta informação e à do último testamento em que encontrei legados explícito para ex-cativos. Embora a fonte não permita quantificações precisas, é fato que uma parcela de libertos, em tese, teve acesso à propriedade formal da terra através de legados e heranças deixados por ex-senhores. Isto é, para além daqueles que receberam nominalmente porções de terras, tanto em Juiz de Fora quanto em Mar de Espanha, os que foram indicados herdeiros dos bens ou das terças também podem ter recebido propriedades fundiárias. Dos testadores analisados, apenas seis reconheceram e legitimaram os filhos tidos com cativas, os quais receberam legados ou foram habilitados para herdeiros. Destes, cinco nunca se casaram e o outro, casado duas vezes, teve os filhos com escravizadas no intervalo entre o primeiro e o segundo casamento. É provável que muitos outros senhores tenham tido filhos com cativas na vigência de seus casamentos, todavia, a legislação não permitia a perfilhação. Nesses casos, poderiam deixar para eles algum legado, mas na maioria das vezes não mencionavam a existência de laços consanguíneos entre eles.5

4. http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/ /Acessado em 18 de agosto de 2021/. 5. Para mais informações sobre perfilhação de filhos ilegítimos e heranças para escravos e libertos, cf. Herança, legados e o acesso de libertos à terra, In: Guimarães, 2009:53-88.

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Tabela 1 – Legados para Libertos (Juiz de Fora e Mar de Espanha, 1839-1904) Total de contemplados em Juiz de Fora

Total de contemplados em Mar de Espanha

total

Dinheiro ou apólice

44

11

55

Herdeiro dos bens

42

44

86

Sucessores da terça

36

01

37

Porção de terras

55

74

129

Outros (esmola, animais, instrumentos de trabalho etc.)

14

35

49

Total de pessoas contempladas

191

165

356

Legado

Fontes: Arquivo Histórico de Juiz de Fora, testamentos juntados aos processos de inventários post-mortem e testamentárias, 1850-1904; Fórum de Mar de Espanha. Livros de Testamento, 1839-1904; Arquivo Histórico da Universidade Federal de Juiz de Fora, testamentos juntados aos processos de inventários post-mortem e testamentárias, 1832-1904.

Dentre as histórias recuperadas houve casos, ainda que raros —, e geralmente quando envolveu filhos naturais, perfilhados ou que apenas as evidências e os atos falhos contidos nos documentos permitem considerar a existência de relação de parentesco — em que a terra herdada foi de muitos alqueires. Algumas vezes foi possível a ampliação significativa da propriedade, a exemplo da história do liberto Manuel Balbino de Mattos, que foi objeto de minhas pesquisas no livro Múltiplo viveres de afrodescendentes (2006). Devido às muitas dificuldades com as quais se depararam, alguns forros tiveram suas terras griladas pelos fazendeiros vizinhos e outros enfrentaram longas batalhas jurídicas na defesa de seus direitos e pela permanência na propriedade herdada. Portanto, são pesquisas que nos dão a conhecer o processo de formação da identidade camponesa dos egressos do cativeiro e as limitações das práticas jurídicas em relação às terras de pretos. Dos testamentos, contemplando doações para ex-cativos, 96 ocorreram no período escravista (45 em Juiz de Fora e 51 em Mar de Espanha), embora nove testamenteiros tenham falecido no pós-abolição. Os outros 14 foram elaborados depois de terminada oficialmente a escravidão no Brasil, sendo sete em Juiz de Fora e sete em Mar de Espanha. Quanto ao estado civil

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dos testadores, 59 eram casados (sendo 27 em Juiz de Fora e 32 em Mar de Espanha), 29 eram viúvos (16 em Juiz de Fora e em Mar de Espanha, 13), 18 se declararam solteiros (6 em Juiz de Fora e 12, Mar de Espanha), um padre em cada uma das localidades analisadas, e três não informaram a condição civil (um em Mar de Espanha e dois em Juiz de Fora). Quanto ao gênero, 68 testadores eram homens (28, Juiz de Fora e 40, Mar de Espanha) e 40 eram mulheres (22 em Juiz de Fora e 18 em Mar de Espanha); dois casais de Juiz de Fora prepararam o testamento em conjunto (testamento de mão comum). Em dois casos, ambos de Juiz de Fora, embora os testamentos dos cônjuges tenham sido elaborados em separado, as disposições, no que diz respeito aos afrodescendentes, eram idênticas e, por esta razão, foi eliminado o testamento de uma das partes para fins de análise. Os legados distribuídos nos documentos analisados incidiram sobre pouco mais de 191 pessoas em Juiz de Fora e 165 em Mar de Espanha. No que concerne aos agraciados em testamento, fica difícil realizar precisões, pois me deparei com algumas dificuldades operacionais: não localizei os inventários de todos os testadores, o que ampliaria as possibilidades de análise; houve inventários em que os cativos alforriados/ beneficiados foram inicialmente avaliados (e, portanto, qualificados) e depois seu valor descontado; em outros documentos os escravizados nomeados em testamento para as manumissões/legados não entraram no rol dos bens, e portanto, não foram qualificados. Nestes casos, quando o testador manifestou a intenção de deixar uma esmola para todos os seus escravizados, mas não os nomeou em testamento, a ausência do inventário tornou impossível precisar quantos foram os agraciados. Este foi o caso de Maria Dorothéia de Queiroz; viúva, sem filhos vivos, e com os pais já falecidos, ela doou dois cativos para uma irmã e manumitiu outros nove. Cinco deles foram libertados incondicionalmente e outros quatro após servirem ao primeiro testamenteiro e herdeiro constituído por prazos variáveis. Por fim, ela declarou “...que o meu herdeiro e testamenteiro, logo que eu falecer dará a cada um de meus escravos, quatro mil réis em dinheiro, os quais serão dados antes de se dar o meu corpo a sepultura” (AHJF, livro de testamentos nº 01: 3v-5v).

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Os valores doados foram variáveis. Encontrei esmolas na importância de 4$000, 6$000 e 10$000. Alguns testadores mais generosos e/ou talvez mais abastados, ou que estivessem beneficiando parentes ilegítimos, legaram valores maiores — alguns mil réis e mesmo contos de réis. Januária, parda, filha liberta da escravizada Maria, recebeu do senhor de sua mãe 100$000 (1868); os cinco filhos da cativa Eva receberam 4:000$000 cada um (1861); os dois filhos de Maria Cândida e as três crianças de Inocência Clara foram contemplados, cada um deles, com 5:000$000, já no pós-abolição (1891). As circunstâncias e as condições em que estes e outros legados foram conferidos, bem como as oportunidades apresentadas a cada um destes indivíduos foram diversas.6 Neste artigo, para uma melhor compreensão das fontes utilizadas e da metodologia aplicada ao tema proposto, elegi analisar a trajetória dos herdeiros que o Comendador José Anastácio da Costa Lima nomeou em seu testamento. Ao falecer, em 05 de dezembro de 1876, com solene testamento, o Comendador nomeou para herdeiros de todos os seus bens quatro crianças pardas. A complexidade das situações presentes nos documentos recuperados, creio, apresentam-se como um bom exercício para o estudo das heranças deixadas para afrodescendentes no período imperial e nos anos que se seguiram à abolição. No Arquivo Histórico da Universidade Federal de Juiz de Fora (AHUFJF) há dois processos arquivados como “inventário” do Comendador José Anastácio da Costa Lima. Em um deles faltam as folhas iniciais, estando preservadas a partir da de número 70.7 Inexistem, portanto, as formalidades iniciais, nas quais, em geral, consta o juramento do/a inventariante, o dia da morte, se o indivíduo faleceu com testamento ou não, se há herdeiros; se os tiver, segue a relação deles (com informações sobre idades, estado civil, parentesco com o inventariado); quando há menores ou incapazes são nomeados os tutores e os curadores; há uma cópia do testamento; consta a lista de bens acompanhada da avaliação dos mesmos e, após setembro de 6. Para uma melhor apreciação dessas possibilidades: Guimarães, 2006 e 2009. 7. AHUFJF. Fundo Benjamin Colucci. Processo de Inventário. Inventariado: Comendador José Anastácio da Costa Lima. Inventariante: Maria Cândida Perpétua. 1878. Cx. 146/20º processo.

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1872, quase sempre, está inclusa a lista de matrículas de cativos (após a Lei do Ventre Livre, Lei 2040, de 28 de setembro de 1871). Na sequência, apresentamse os requerimentos, as contestações, as dívidas ativas e passivas, alforrias, petição de preferência sobre determinados bens etc. Nos inventários em que há menores ou incapazes, em geral está juntada a assinatura dos termos de tutela e a prestação de contas de tutelas apresentadas periodicamente (comumente de dois em dois anos), até que ocorra a emancipação (por idade, judicial ou por casamento). O segundo processo arquivado como inventário do Comendador, é, na verdade, o traslado de uma ação de perfilhação, petição de herança e nulidade de testamento.8 Dentre os muitos documentos juntados para embasar o requerimento, está o testamento do Comendador José Anastácio da Costa Lima, que por ter nomeado para seus herdeiros quatro menores pardos, interessa à pesquisa e será o ponto de partida de minha análise. Essa ação, portanto, foi usada para iniciar e complementar as informações pertinentes às pesquisas. Começaremos pelo Testamento a ele anexado. No preâmbulo do testamento, o testador declarou sua profissão de fé, católico praticante, e sua qualificação: natural do distrito de Nossa Senhora do Quilombo (atual Bias Fortes), da Freguesia de Santa Rita do Ibitipoca, então município de Barbacena; morador do distrito de São Francisco de Paula (atual Torreões, distrito de Juiz de Fora), município de Juiz de Fora; filho legítimo do Capitão Marcelino Gonçalves da Costa e de sua esposa d. Gertrudes Theodora de Lima; casado com Maria Cândida Perpétua,9 sem filhos e com pais já falecidos; portanto, sem herdeiros legais. José Anastácio da Costa Lima, nascido em 11 de maio de 1815, foi vereador, pelo distrito de São Francisco de Paula (atual Torreões), na primeira Legislatura da Câmara Municipal de Juiz de 8. AHUFJF. Fundo Benjamin Colucci. Processo de Inventário. Inventariado: Comendador José Anastácio da Costa Lima. Inventariante: Juvencio Bernardes da Silveira. 1878. Cx. 147/21º processo. O processo foi arquivado equivocadamente na série de inventários. 9. Maria Cândida Perpétua Rodrigues, segunda filha legítima de José Rodrigues Gomes e Marianna Lucia Perpétua. Eram seus irmãos: Francisco Cândido Rodrigues, Porcina Cândida Perpétua, Antônio José Rodrigues Gomes, Guilhermina Cândida Perpétua, Cezário José Rodrigues, Carlota Cândida Perpétua, Mariana Cândida Perpétua, Joaquina Cândida Perpétua, José Theodoro Rodrigues, Ana Cândida Perpétua, Manoel José Rodrigues Gomes, Francisca Cândida Ferreira, José e Joaquim Calisto Rodrigues. http://www. projetocompartilhar.org/Familia/FranciscoRodriguesGuimaraes.htm /Acessado em 09 de julho de 2021/.

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Fora (1853-1856). Seu pai, Marcelino Gonçalves da Costa, teve sua fortuna estimada entre uma das maiores do Brasil na primeira metade do século XIX. Fica evidente aqui a posição social do Comendador, membro da elite juizdeforana.10

Herança e Conflito: Os irmãos Costa Lima Recapitulando, o testador declarou não ter tido filhos de seu consórcio e que seus pais já eram falecidos quanto elaborou seu testamento. Não existindo um contrato antenupcial, sua esposa, ainda viva, era a meeira de seus bens. Da outra metade, não possuindo herdeiros legítimos, ascendentes ou descendentes, podia partilhar seu patrimônio de acordo com sua livre vontade. Dispôs de sua terça da forma seguinte: primeiramente cuidou de sua alma, requerendo ser sepultado envolto no hábito de São Francisco, solicitou missas de corpo presente, além de mais 200 por sua alma; também se lembrou de pedir celebrações pelas almas de seus pais, irmãos e escravizados; na sequência libertou condicionalmente o cativo Silvestre, cabra, que deveria servir aos seus herdeiros por sete anos após sua morte, sendo libertado posteriormente a este prazo. Após essas deixas, nomeou para herdeiros de todos os seus bens aos menores Cândido, Cesário, José e Marcelino, todos filhos da parda livre de nome Luiza. ... todos quatro atualmente residentes na minha Fazenda do Monte Verde, com o ônus de alimentarem os ditos meus herdeiros a sua mãe Luiza enquanto for ela viva, com toda a decência. Declaro que se morrer alguns dos meus quatro herdeiros construídos sem deixar filhos, o que de mim houver herdado, passará para os outros meus herdeiros, que vivos forem, de sorte que haja entre os mesmos instituídos herdeiros 10. Informações obtidas no site da Câmara Municipal de Juiz de Fora, https://www.camarajf. mg.gov.br/geral.php?tipo=HISTHINO&c=4. / Acessado em 06 de julho de 2021/. Marcelino Gonçalves da Costa faleceu em 1866, deixando esposa e os seguintes filhos: Major José Anastácio da Costa Lima, D. Carlota Theodora de Magalhães (casada co o Dr. João Delphino Pereira da Cruz), D. Carolina, casada com o Tenente Coronel Jacintho Alves Barbosa e quatro netos, filhos da finada filha d. Maria Theodora. De acordo com seu inventário, seu monte partilhável foi estimado em 1:345:362$900. AHUFJF. Fundo Benjamin Colucci. Processo de Inventário. Inventariado Marcelino Gonçalves da Costa. Inventariante: Gertrudes Theodora de Lima. 1866., 37-B.

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testamentários, digo, testamentários por feita e recíproca substituição no que de mim herdarem. Deixo ao meu herdeiro Cesário os escravos – Sebastião, crioulo, carreiro, e Antonio, crioulo, pajem; ao meu herdeiro Marcellino, o escravo Firmino, crioulo, pajem, cujos valores serão deduzidos de minha terça. Recomendo e peço muito que dê preferência a outros quaisquer bens sejam dados em provento dos herdeiros por mim instituídos, de minha meação, o resto da terça, digo, instituição, digo instituição das terças partes de minha meação, e remanescentes de minha terça, os escravos que herdei dos meus finados pais, e os que houve por compra de meus co-herdeiros, herdados por estes dos ditos meus finados pais, escravos que atualmente existem na minha fazenda do Monte Verde, incluindo-se Francisco Caboclo, e Felippe Rio Preto. É também minha vontade que aos mesmos meus herdeiros testamentários sejam dados em pagamento a minha fazenda do Monte Verde, com todas as suas terras e benfeitorias, culturas e criações nela existentes ao tempo de minha morte.11

Como foi dito, o testamento está juntado a uma ação de pedido de anulação de testamento, perfilhação e petição de herança, o que por si só já enuncia a existência de conflitos em relação ao espólio deixado por José Anastácio da Costa Lima. Esta ação interessa à pesquisa proposta porque nela encontramos o testamento – que só foi localizado nesta ação – e porque ela nos traz algumas informações essenciais, como a existência de disputas em torno dos bens deixados. O processo em tela foi movido por Juvêncio Bernardes da Silveira, na condição de cabeça de casal de D. Guilhermina Cândida da Silveira. Segundo os autores, dona Guilhermina era filha natural de José Anastácio da Costa Lima com d. Rita Thereza de Jesus. A mãe de d. Rita, d. Emerenciana, sendo viúva e pobre, foi agregada na Fazenda do Monte Verde, à época pertencente ao pai de José Anastácio. Nessas circunstâncias, dona Rita havia sido seduzida por José Anastácio, que durante alguns anos, manteve com ela uma relação amorosa e a conservou sob “sua proteção”. 11. AHUFJF. Fundo Benjamin Colucci. Processo de Inventário. Inventariado: Comendador José Anastácio da Costa Lima. Inventariante: Juvencio Bernardes da Silveira. 1878. Cx. 147/21º processo. Testamento juntado. O testamento foi transcrito tal como está, com os equívocos da transcrição original.

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Diante do ocorrido, d. Emerenciana achou por bem deixar a fazenda e mudou-se com a filha para Santa Bárbara do Monte Verde (localidade próxima à fazenda em questão), continuando ambas a viverem sob os cuidados de José Anastácio. Dona Guilhermina nasceu em 1839 e alguns anos depois, por volta de 1844 ou 1845, dona Rita se casou, segundo relatos, um consórcio arranjado por José Anastácio. Em 1845 José Anastácio também contraiu matrimônio com dona Maria Perpétua, filha de um fazendeiro vizinho à propriedade de seu pai. Narram as testemunhas que era voz pública em Santa Bárbara que pouco tempo após se casar, José Anastácio pediu a dona Rita que lhe entregasse a filha, e algumas até alegaram que assim o fez a pedido da própria esposa, dona Maria Cândida, que se propôs a educá-la. Não concordando dona Rita em entregar a filha, José Anastácio tentou raptá-la e, por fim, passou procuração a um conhecido para requerer na Justiça a guarda dela. Desde então, dona Guilhermina foi criada na casa paterna e “tratada como filha”, sendo educada por sua legítima esposa, que teve apenas um filho, falecido pouco após o nascimento. Em 1863, José Anastácio promoveu o casamento de d. Guilhermina com Juvêncio Bernardes da Silveira. Juvêncio informou que após o consórcio com dona Guilhermina, José Anastácio se desentendeu com ele – segundo testemunhas, por considerá-lo vadio e perdulário. Na mesma ocasião, o Comendador se envolveu com a parda Luiza, então casada com um dos cativos de sua propriedade, e com ela teve quatro filhos, os quais nomeou, em testamento, seus únicos herdeiros. Após o desentendimento com o marido de sua filha, José Anastácio teria encarregado um de seus empregados para dar fim aos documentos que estavam no cartório de Santa Bárbara e que comprovavam a ação movida contra dona Rita para conseguir a guarda da filha, e que, portanto, poderiam ser utilizadas como provas da paternidade. Alegando que sua esposa nasceu antes do casamento de José Anastácio com dona Maria Cândida Perpétua, não possuindo José Anastácio à época títulos ou postos, e não tendo impedimento para se casar com dona Rita; que sendo Luiza, a mãe dos quatro herdeiros nomeados por José Anastácio, casada, seus filhos com o Comendador eram duplamente adulterinos e, portanto, não poderiam ser instituídos seus legítimos herdeiros. Com base nestas e outras questões, 61

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requereu a nulidade do testamento e que os bens fossem entregues à sua esposa, condenando os réus nas custas do processo. Não há informações e nem indícios nos relatos a respeito de ser d. Guilhermina descendente de escravizados, portanto, as questões relativas à sua paternidade não são relevantes para a pesquisa proposta, mas seu resultado sim, porque dele depende sabermos se os pardos, filhos da liberta Luiza, tiveram ou não acesso à herança. A ação de perfilhação, nulidade de testamento e requerimento de entrega de herança que está sendo analisada é um traslado. Nela acompanhamos os resultados até a sentença, que a considerou improcedente e absolveu os réus (os herdeiros testamentários), e que foi apelada para segunda instância (em junho de 1880). Não tendo localizado o processo original, não conheço a sentença final, mas o que inferi da leitura do inventário de José Anastácio (ou o que ficou dele preservado) é que a justiça manteve o ganho de causa para os quatro herdeiros nomeados no testamento. Chamo a atenção para a seguinte questão: embora filhos adulterinos, eles não foram nomeados herdeiros de José Anastácio em momento algum. Mas, não tendo o Comendador herdeiros legais, pôde dispor de seus bens como bem entendeu. Antes de irmos ao inventário para conhecermos o patrimônio dos herdeiros do Comendador, é interessante comentar alguns trechos de dois livros que mencionam José Anastácio da Costa Lima. O primeiro deles é “Uma Freguesia nas Montanhas”, de autoria do Padre Henrique Oswaldo, historiador de Torreões (antigo São Francisco de Paula). O outro, é o livro de J. Procópio Filho, “Aspectos da Vida Rural de Juiz de Fora”. Em algumas passagens da obra de Henrique Oswaldo, ele se refere a José Anastácio, comentando que ele era acusado, na localidade, de haver mandado matar o padre Antonio Francisco de Paula Dias, e que: Não era sem jaça a pessoa do Comendador Costa Lima, déspota distrital, possuidor da fazenda de Monte Verde, uma das maiores da região e mais bem servida por braço escravo (...). Tendo se imposto pela força como ‘onipotente senhor’(...). Com a mulher legítima não teve filhos, e, deixando-a no Claro /Fazenda do Claro/, passou a coabitar, na Fazenda do Monte Verde, com outra mulher da qual teve a descendência

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dos Costa Lima, isto é: José Anastácio (Zezinho do Monte Verde), Marcelininho, Candido e Cesário; e destes, a descendência de toda a geração atual dos Costa Lima. (AZEVEDO, 1878:104 e 179).12

No livro de Procópio consta que o Comendador José Anastácio e sua esposa, Maria Cândida Rodrigues, foram proprietários, em Torreões, das Fazendas Monte Verde e do Claro e que: “A primeira passou depois aos descendentes do Comendador: José Anastácio, Marcelino, Cândido e Cesário da Costa Lima e a segunda, aos sobrinhos de Maria Cândida” (PROCÓPIO FILHO, 1973:187). Note-se que os dois autores citados omitem – por ignorar, por não ser para eles relevante ou por intencional omissão – o fato dos filhos de José Anastácio serem pardos e tidos de uma relação com uma liberta, sendo que Procópio sequer menciona que os mesmos eram filhos ou que eram naturais, refere-se a “descendência”.13 José Anastácio foi senhor, em São Francisco de Paula, das Fazendas Monte Verde – que herdou do pai – e da Fazenda do Claro, que lhe veio por herança de sua esposa dona Maria Cândida Perpétua Rodrigues. Mas, como veremos, ele tinha outras propriedades rurais e uma grande quantidade de escravizados. Se considerarmos pelo menos parcialmente verídicas as informações de Henrique Oswaldo, ao optar por abandonar a esposa e ir viver com outra mulher, supostamente a parda Luiza, ele deixou a esposa na Fazenda do Claro, que era herança dela, e mudou-se para a Fazenda Monte Verde, que herdara de seu pai. No momento da doença que o levou à morte, contudo, ele voltou para a Fazenda do Claro, para sua residência oficial e onde morava sua legítima esposa, pois foi nesta propriedade que fez o seu último testamento e foi onde ele faleceu. A perda das folhas iniciais do processo de inventário nos privou da lista da avaliação detalhada dos bens deixados pelo Comendador José Anastácio 12. Na ação de perfilhação, nulidade de testamento e requerimento de entrega de herança algumas testemunhas comentam sobre as desavenças de José Anastácio da Costa Lima com um certo padre “Macabeu”, que não sei se é o mesmo mencionado por Henrique Oswaldo. De qualquer modo, não localizei nenhum processo criminal envolvendo José Anastácio e algum padre. As testemunhas da ação de perfilhação também atestam que José Anastácio era tido por valentão e estava sempre acompanhado por capangas. 13. No site da Câmara de Juiz de Fora, onde consta uma breve biografia de José Anastácio da Costa Lima, esta informação está presente – de que teve quatro filhos pardos com uma liberta.

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da Costa Lima. Todavia, recuperamos esta informação, ainda que possa haver alguns equívocos na interpretação, na divisão dos bens entre a meeira, dona Maria Cândida, e os quatro herdeiros nomeados em testamento. De acordo com a conclusão do inventário de José Anastácio, a composição de seus bens, em 1878, era a seguinte: Tabela 2 – Composição dos bens de José Anastácio da Costa Lima (1878) BENS

VALOR

Ouro e Prata

1:178$000

Moveis

7:325$880

Mantimentos e roças

11:160$000

Animais e Criação

16:140$000

Café em coco

4:780$000

Benfeitorias

35:400$000

Cafezais

118:650$000

Terras

187:425$000

Cativos

253:010$000

Dívidas Ativas

33:836$653

Dinheiro Existente

9:588$600

Dinheiros de liberdades

1:000$000

Dinheiro que renderam os bens arrematados em praça

1:457$100

Monte Mor

680:952$233

Monte Partilhável

645:523$313

Meação da Viúva

322:761$656

Meação do Inventariado

322:761$656

Deduções de deixas (missas, prêmio ao testamenteiro e, alforria)

7:800$000

Líquido para os herdeiros

314:961$656

Abate-se os legados e as custas, sobrando líquido para os órfãos

266:847$408

Legado para cada herdeiros

66:711$852

Fonte: AHUFJF. Fundo Benjamin Colucci. Inventário Post mortem. Inventariado: José Anastácio da Costa Lima. Inventariante: Maria Cândida Perpétua. 1878, cx. 146, processo n. 20.

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Para facilitar a análise, vou aqui considerar somente as terras, café (colhido e em plantas) e os cativos – que são os três principais ativos da herança. O espólio do Comendador José Anastácio da Costa Lima era composto de quatro propriedades: a Fazenda do Claro, com aproximadamente 281 alqueires; um sítio em Vargem Grande, com dois alqueires; a Fazenda do Monte Verde, com 188 alqueires e a Fazenda da Cachoeira, com perto de 262 alqueires. À viúva coube, na partilha, a Fazenda do Claro, o sítio em Vargem Grande e parte majoritária da Fazenda da Cachoeira. Uma parcela menor dessa última propriedade foi dividia entre os quatro herdeiros testamentários, que também ficaram com a Fazenda do Monte Verde.14A viúva recebeu 250 @ de café em côco na Fazenda do claro, 210 @ de café em côco no Engenho; 68.000 pés de café com frutos pendente na Fazenda Monte Verde; 8.0000 pés de café de 12 anos, 30.000 de 4 anos, 7.000 cafeeiros de 16 anos (estragados), 6.000 pés de café estragado. Para cada um dos quatro herdeiros nomeados, foram atribuídos 33 mil pés de café com frutos pendentes, de 16 anos (em 1878).15 Quanto à escravaria, foram listados 196 cativos (para a região, uma escravaria de grande porte) e avaliados os serviços de 20 ingênuos. Entre a avaliação e a divisão, 14 escravizados faleceram; outros três foram libertados em praça (provavelmente por idade). Portanto, sobrou para a divisão 189 cativos, dos quais 110 foram dados à meação da viúva e 79 divididos entre os quatro herdeiros, sendo que um deles, somente os serviços pelo prazo 14. A ausência das folhas iniciais do processo nos privou da avaliação dos bens, mas procuramos reconstituí-los considerando a divisão entre os herdeiros. Coube à viúva 200 alqueires de terras na Cachoeira, e mais as benfeitorias no mesmo lugar; as benfeitorias da fazenda do Claro, 20 alqueires de terras em matas na Fazenda do Claro; nesta mesma fazenda, 54 alqueires em capoeiras ordinárias, 98 e ½ em capoeiras, 20 em capoeiras, 88 e ½ em pastos; um sítio de cultura em Vargem Grande com 2 alqueires. Para cada um dos quatro herdeiros: 10 alqueires de terras boas, 5 alqueires de pastos valados, 14 e ½ alqueires de terras em capoeiras estragadas; 15 e ½ alqueires de terras na cachoeira; 25 alqueires de terras boas na Fazenda Monte Verde. Estimo, portanto, que foram deixados os seguintes legados em terras: 200 + 4X 15 e ½ na cachoeira = 262 alqueires na Cachoeira; 281 alqueires na Fazenda do Claro; um sítio com dois alqueires na Vargem Grande; e 188 alqueires de terra na Fazenda do Monte Verde. 15. Relatos da época estimavam a vida produtiva de um cafeeiro entre 25 e 40 anos em solo bom, mas outros avaliavam que um cafeeiro de 20-25 anos era velho e dava poucos frutos; havia mesmo os que pregavam que não valia a pena colher os frutos de cafeeiros com mais de 15 anos (GUIMARÃES, 2009:96).

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de sete anos, pois trata-se de Silvestre, libertado com a condição de servir por este período. Sendo os herdeiros menores, e tendo o testador indicado um tutor para gerir os bens até a emancipação deles, Joaquim Calisto Rodrigues passou a administrar o patrimônio. Como vimos, já de início enfrentando o questionamento de Juvêncio Bernardes da Silveira e dona Guilhermina e as despesas da demanda judicial. Depois de cerca de10 anos exercendo a função de tutor dos órfãos – cuidando da educação e gerenciando o patrimônio deles, Joaquim Calisto Rodrigues, irmão caçula de dona Maria Cândida Perpétua (a esposa do Comendador), requereu seu afastamento e prestou contas. Os anos de administração do tutor não foram vantajosos para os herdeiros de José Anastácio da Costa Lima, que deixou a propriedade com dívida aos Bancos e a Particulares. Note-se que os cafeeiros que couberam aos tutelados eram de 16 anos, quando do encerramento do inventário (1878), e já estavam começando a decair de produção. Quando o primeiro tutor deixou a função, sendo maior de 21 anos, Candido assumiu a tutela dos irmãos menores (em 1887). Logo que assumiu a gerência dos bens ele apresentou uma petição em Juízo requerendo a venda em praça de parte do patrimônio herdado para poder quitar os compromissos com os credores, assumindo o controle e a administração de seus bens e dos demais herdeiros. Os sucessores de José Anastácio da Costa Lima tiveram sorte similar ao de outros herdeiros negros, que tiveram seu patrimônio geridos por pessoas que não eram parentes, como os sucessores do Barão de Loriçal e de Cassimiro Lúcio Ferreira de Carvalho, ambos em Mar de Espanha, e de Calisto Mendes Ferreira, em Juiz de Fora – má gerência ou falcatruas consumiram parte significativa dos bens herdados (GUIMARÃES, 2006 e 2009). Do inventário, ou melhor, da prestação de contas de tutela a ele juntado, emergiram os sobrenomes que os herdeiros do Comendador José Anastácio da Costa Lima adotaram em suas vidas de adultos: Candido José da Costa Lima, nascido em 19 de novembro de 1866; Cesário José da Costa Lima, nascido em 25 de fevereiro de 1869; José Anastácio da Costa Lima e Marcelino José da Costa Lima, cujas datas de nascimento desconheço. A mãe dos herdeiros, a liberta Luiza, adotou o nome de Luiza Theodora de Jesus ou Luiza 66

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Theodora de Lima. Conhecedores de seus nomes e sobrenomes podemos agora buscá-los em fontes múltiplas e aprofundar o conhecimento sobre suas trajetórias. Para além das informações sobre as histórias de herdeiros negros, essa metodologia nos permite, também, a reconstrução de trajetória de algumas famílias de ex-cativos, como espero ter demonstrado. Assim, podemos dar visibilidade a uma parcela da população quase sempre silenciada e invisibilizada. Embora histórias como as que foram aqui narradas sejam exceções, no conjunto dos indivíduos egressos do cativeiro, e, portanto, consideradas “histórias exemplares”, elas nos revelam as possibilidades e as condições em que se deram a ascensão de alguns libertos (muitas vezes aparentados aos ex-senhores). Elas também expõem os limites da lei e sua dissociação com a Justiça, isso é, o cumprimento da lei nem sempre expressa a efetivação do que é justo. As instituições de Justiça precisam ser provocadas, e isso pressupõe conhecimentos e recursos que não estão disponíveis para os que são economicamente despossuídos ou por aqueles que foram alijados da educação, da informação e da cultura. As condições desiguais do passado escravista permanecem nas desigualdades do presente capitalista. Quanto aos herdeiros do Comendador José Anastácio, a situação do patrimônio, quando Cândido assumiu a administração dos bens, não era nada confortável. Para além das dívidas que recebeu junto com a herança, em 1887, a escravidão vivia seus momentos finais e, portanto, o principal ativo da herança – os cativos – estava prestes a deixar de existir, dificultando a possibilidade de quitar as dívidas contraídas, de renegociá-las e de reestruturar o patrimônio. Nos anos que se seguiram, os irmãos Costa Lima viram seus bens serem parcialmente consumidos, indo a leilão para o pagamento de dívidas. Não mais localizei conflitos envolvendo os autores da ação de perfilhação e de nulidade de testamento que deu origem a essa análise com os herdeiros nomeados do Comendador. Contudo, os nomes dos irmãos Costa Lima figuram em diversos processos de cobrança e de execução de dívidas, de tentativas de morte e de homicídio, com certa frequência, aparecem em notícias de jornais. Conflitos nos quais se envolveram em defesa do patrimônio e, principalmente, de suas terras..., mas estas são outras histórias.

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Fontes Arquivo Histórico de Juiz de Fora (PJF). Livros de Testamento, 1853-1904. Arquivo Histórico da Universidade Federal de Juiz de Fora, testamentos juntados aos processos de inventários post-mortem e testamentárias, 1839-1904. Arquivo Histórico da Universidade Federal de Juiz de Fora. Fundo Benjamin Colucci. Processo de Inventário. Inventariado: Comendador José Anastácio da Costa Lima. Inventariante: Maria Cândida Perpétua. 1878. Cx. 146/20º processo. Arquivo Histórico da Universidade Federal de Juiz de Fora. Fundo Benjamin Colucci. Processo de Inventário. Inventariado: Comendador José Anastácio da Costa Lima. Inventariante: Juvencio Bernardes da Silveira. 1878. Cx. 147/21º processo. Fórum de Mar de Espanha. Livros de Testamento, 1839-1904.

Internet http://www.projetocompartilhar.org/Familia/FranciscoRodriguesGuimaraes. htm Acesso em: 09 jul. 2021. https://www.camarajf.mg.gov.br/geral.php?tipo=HISTHINO&c=4. / Acesso em: 06 jul. 2021. http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/ Acesso em: 18 ago. 2021.

Referências bibliográficas AZEVEDO, Henrique Oswaldo Fraga de. Uma Freguesia nas Montanhas. Juiz de Fora: ESDEVA – Empresa Gráfica, 1878. GINZBURG, Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. In: GINZBURG, Carlo, CASTELNUOVO, Enrico & PONI. A Microhistória e outros ensaios. Bertran, Difel, 1991, [169-179]. GUIMARÃES, Elione Silva; SARAIVA, Luiz Fernando; SARAIVA, Paulo. Desigual entre os desiguais. Apontamentos para uma história das desigualdades

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raciais no Brasil: Juiz de Fora na década de 1870. In: MATHIAS, João Felippe Cury Marinho Mathias; SARAIVA, Luiz Fernando. Igual-Desigual. História e economia das desigualdades antes, durante e após a pandemia. São Paulo: Hucitec, 2020, [103-133]. GUIMARÃES, Elione. Múltiplos viveres de afrodescendentes na escravidão e no pós-emancipação: Família, trabalho, terra e conflito (Juiz de Fora – Minas Gerais, 1828-1928). São Paulo: Annablume – Juiz de Fora: FUNALFA, 2006. GUIMARÃES, Elione. Os arquivos locais e as comunidades negras – O Arquivo Municipal de Barbacena e o Quilombo do Paiol (Bias Fortes/MG). Mal-Estar e Sociedade – Ano V – n. 8 – Barbacena – janeiro/junho 2012 [85-10]. GUIMARÃES, Elione. Testamentos e Prestação de Contas Testamentárias, In: MOTTA, Márcia e GUIMARÃES, Elione (org.). Propriedades e Disputas: Fontes para a História do Oitocentos. Guarapuava: Unicentro, Niterói: EDUFF, 2011. GUIMARÃES, Elione Silva. Terra de preto: usos e ocupação da terra por escravos e libertos (Vale do Paraíba mineiro, 1850-1920). Niterói: EdUFF, 2009. KICH, Bruno Canísio. Testamentos e Testamentárias: Direito Civil. São Paulo: Frater et Labor Edições, 2001. LEVI, Giovanni. A Herança Material: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Prefácio de Jacques Revel; tradução de Cynthia Marques de Oliveira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. MATHIAS, João Felippe Cury; SARAIVA, Luiz Fernando, GEBARA NETO, Seme e GUIMARÃES, Elione. Escravidão, Renda Negativa e Desigualdade no Brasil: Uma Proposta de Agenda de Pesquisa. In: MEDEIROS João Leonardo, TRISTÃO, Ellen Lucy e DUARTE, Pedro Henrique E. (org.) Cadernos de Resumos. XXVI Encontro Nacional DE Economia Política: Centralidade do Trabalho e Crise do Capital no mundo pós-pandêmico. Goiânia: UGG, 2021. NUNES, Francivaldo Alves. “Inventários e Partilhas”. In: MOTTA, Márcia e GUIMARÃES, Elione (org.). Propriedades e Disputas: Fontes para a História do Oitocentos. Guarapuava: Unicentro, 2011; Niterói: EDUFF, 2011. PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos de Família. Prefácio de Salvio de Figueiredo – Ed. fac-similar – Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial: Superior Tribunal de Justiça, 2004.

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PROCÓPIO FILHO, José. Aspectos da Vida Rural de Juiz de Fora. Juiz de Fora: ESDEVA – Empresa Gráfica, 1973. REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. ALENCASTRO, Luiz Felipe (organizador do volume). História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, vol. 2, pp. 95-141. SARAIVA, Luiz Fernando, MATHIAS, João Felippe Cury Marinho, GEBARA NETO Seme e GUIMARÃES, Elione. Desigualdade de Renda em Sociedades Escravistas (Juiz de Fora c. 1870/79). Texto apresentado ao XIV Congresso Brasileiro de História Econômica & 15ª Conferência Internacional de História de Empresas. Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica, Varginha, 15 a 17 de novembro de 2021.

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A escravidão em números: estudo da demografia escrava entre 1851-1872

Maísa Faleiros da Cunha Pesquisadora do Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” (Nepo/ Unicamp)

Introdução A história da população é considerada a segunda conquista da abordagem quantitativa, em seguida à história dos preços, e se insere no movimento historiográfico conhecido como a segunda geração (1946-1969) da Escola dos Annales (BURKE, 2011:77-82; BARROS, 2012).1 O advento da história demográfica data dos anos 1950 na França. O desenvolvimento de métodos que possibilitaram o acompanhamento de mudanças no comportamento reprodutivo da população francesa do Antigo Regime, com o emprego de fontes até então pouco utilizadas por historiadores e demógrafos, marca o que veio a ser chamado de “demografia histórica”2 (MOURA, 2020; CUNHA, 2009). 1. Como aponta Peter Burke (2011:74), “da economia espraiou-se para a história social, especialmente para a história populacional”. 2. “História da População é um conceito abrangente, que integra e se enriquece com a Demografia Histórica, mas não se pode confundir com ela. Fontes diversas podem perspectivar o evoluir da população desde os mais remotos períodos da existência do homem. Só quando essas fontes permitem a análise demográfica terá sentido falar de Demografia Histórica” (AMORIM, 2000, p.89). Por sua vez, há autores que não diferenciam História da População e Demografia Histórica (REHER, 1997; 2000).

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Considerado o pioneiro da Demografia Histórica, Louis Henry apresentou os resultados do Método de Reconstituição de Famílias em 1960, método desenvolvido em colaboração com o historiador Michel Fleury.3 Henry era demógrafo e atuou no Instituto Nacional de Estudos Demográficos (Ined/ França). Os autores tinham como objetivo entender o declínio precoce da fecundidade4 na França em relação a outros países europeus no período entre guerras (1919-1939). Hoje se sabe que a França foi o primeiro país a passar pela transição demográfica5. Após a guerra, em 1945, quando começaram a ser registrados indícios de uma retomada da natalidade, reconfigurou-se o problema historiográfico na França como de questão política nacional. O primeiro resultado que o método de Louis Henry possibilitou – a compreensão da evolução secular da fecundidade – foi buscado através de um programa formal de pesquisas e sua metodologia bem-sucedida foi então disseminada como solução para obter informações que pudessem explicar a “bolha” de aumento da fecundidade após 1945, que contrariava a tendência secular de queda.6 No trajeto para dar uma solução acadêmica e administrativa para a questão política, Henry valeu-se de parcerias com outros demógrafos, com historiadores, arquivistas, genealogistas, pesquisadores não acadêmicos e estudantes, além de gozar de apoio das instituições estatísticas nacionais da França (MOURA, 2020:32-33). 3. Louis Henry apresentou a metodologia de Reconstituição de Famílias, pela primeira vez, em edição do Congresso Internacional de Ciências Históricas em Estocolmo (Suécia) no ano de 1960. O episódio que marca a inauguração da disciplina ocorreu em 1965, na cidade de Viena, com a criação da Comissão Internacional de Demografia Histórica no Congresso Internacional de Ciências Históricas (SCOTT, 2017:8). 4. Fecundidade refere-se à relação entre nascimentos vivos e mulheres em idade reprodutiva (15 a 49 anos de idade). 5. A “teoria” da transição demográfica foi proposta por Frank W. Notestein na década de 1940 e considera que a população do passado mantinha relativo equilíbrio através de taxas elevadas de natalidade e de mortalidade. O declínio da mortalidade, a partir do final do século XVIII, e a permanência das taxas de fecundidade elevadas por certo período garantiram um rápido crescimento populacional. Somente com a industrialização e a maior demanda por famílias menores é que a mortalidade e a fecundidade se aproximam do equilíbrio novamente. 6. O crescimento populacional verificado nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial (1945-1964) ficou conhecido como baby boom.

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Resumidamente, o método de reconstituição de família consiste no agrupamento em fichas nominais e padronizadas de todas as informações relativas aos nascimentos, casamentos e óbitos, tendo como referência inicial o registro de casamento. Esses registros paroquiais, produzidos pela Igreja Católica, fornecem informações para o preenchimento das fichas de famílias, permitindo o cálculo de indicadores demográficos (natalidade, nupcialidade e mortalidade) relativos a épocas anteriores à existência de registros estatísticos sistemáticos. Vemos a originalidade da demografia histórica na sua “formatação” por L. Henry, o que levou a sua rápida divulgação na comunidade acadêmica como solução metodológica para o estudo demográfico de populações pré-estatísticas. Ou seja, foram a metodologia de pesquisa e os objetivos historiográficos os fatores que impulsionaram a formação da demografia histórica como disciplina acadêmica (MOURA, 2020:34).

Os desdobramentos dos métodos mencionados permitiram o desenvolvimento do arcabouço metodológico e analítico da Demografia Histórica, assim como, o avanço nas temáticas de pesquisa e na ampliação de fontes históricas. Passamos a conhecer, dessa forma, uma infinidade de histórias de indivíduos e grupos até então “silenciados” (mulheres, crianças, crianças expostas, agregados, pessoas escravizadas) e de famílias/ grupos domésticos das camadas menos abastadas, urbanas etc. O primeiro e pioneiro trabalho de Demografia Histórica do Brasil é de 1967. Trata-se do doutorado de Maria Luiza Marcílio defendido na Universidade de Paris-Sorbonne sob orientação do professor L. Henry com a tese La ville de São Paulo. A primeira versão em livro foi publicada em francês em 1968. Ainda que essa tenha sido “a primeira aplicação das técnicas modernas de demografia histórica à população brasileira” (SCHWARTZ, 2001:32), o livro em português foi publicado apenas em 1973 com o título A vila de São Paulo – Povoamento e população. Como se pode notar, a presença da Demografia Histórica no Brasil data de pouco mais de 50 anos (SCOTT, 2017). Os estudos de Demografia Histórica abriram novas vertentes interpretativas acerca do processo de formação econômica e social da 73

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sociedade brasileira, com potencial revisionista da interpretação tradicional de autores como Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Celso Furtado, entre outros (MOTTA, 2002). Entre os contributos da Demografia Histórica, a demografia da escravidão é considerada uma das principais contribuições da Demografia Histórica brasileira. A história social da escravidão no Brasil tem apresentado vigorosa produção, desde fins da década de 1970, a partir de dois grandes territórios de pesquisa propostos por Hebe Mattos (2008: 1). “História econômica e social” que aborda a família escrava e padrão de posse de escravos e 2. “História vista de baixo” que trata da negociação e conflito. No tocante ao tópico 1, “ampliando o escopo das abordagens clássicas de história econômica e história demográfica, a pesquisa em história econômica e social desenvolvida na década de 1980 renovou as fontes e metodologias até então utilizadas” (MATTOS, 2008:53). A partir da proposta de Hebe Mattos, nosso trabalho se insere no vasto território da “História econômica e social”, sendo tributário da história da escravidão.

Fontes No intuito de realizar um exercício de caráter metodológico, comparamos os dados populacionais referidos a um momento específico (1872) com as informações coletadas em inventários post mortem para o período 1851-1871. Nosso objetivo é o de apontar as semelhanças e diferenças encontradas na demografia escrava a partir de fontes variadas e distintas. A confrontação entre uma fonte de caráter transversal (ponto específico no tempo) com os inventários post mortem (que permitem extrair informações longitudinais) demonstra que os dados provenientes das fontes citadas apresentam tendências e perfis semelhantes no tocante à demografia escrava. A utilização de fontes quantitativas, especialmente o Censo Geral do Império de 1872, deixa evidente a força da escravidão no Brasil, destacando sua presença por todo o território nacional e em atividades econômicas variadas: agroexportadora, voltada ao abastecimento interno, trabalho doméstico, atividades manuais especializadas etc. 74

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O recenseamento foi conduzido pela Directoria-Geral de Estatística criada pelo decreto n. 4.676 de 14 de janeiro de 1871. Ainda que a observação sobre possíveis falhas na realização de levantamentos de população seja evidenciada para o Recenseamento de 18727, é importante lembrar que para diversas localidades de nosso território não se conhecem levantamentos periódicos para o total da população antes do censo nacional. A própria Diretoria Geral de Estatística, no Relatório de 18768 – que dá por encerrado os trabalhos de impressão desse censo – além de ressaltar que os resultados obtidos “muito se aproximão da verdade”, aponta para a existência de problemas na sua realização, que geraram lacunas e incorreções (BASSANEIZI, 1998:17).

Datado de 01 de agosto de 1872, o primeiro censo nacional e o único a recensear a população escravizada no Brasil, contabilizou pouco menos de 10 milhões de habitantes, dos quais 84,7% eram livres e 15,3% escravos9. Neste momento, a população parda e negra era bastante expressiva, representando 62% do total de habitantes, com destaque para os pardos (42,2% da população total). Como já salientado por Herbert Klein, “dezesseis anos antes da Abolição, havia 4,2 milhões negros e mestiços livres e apenas 1,5 milhões de escravos. […] Em nenhuma outra importante sociedade escravista foram eles [população de cor livre] tão numerosos e tão importantes quanto no Brasil” (KLEIN, 2012:107). 7. As teses de doutorado de Heitor Moura Filho (2020) e de Dario Scott (2020, publicada em livro em 2021) realizaram criteriosas correções e ajustes das informações do Censo de 1872 para freguesias da província do Rio de Janeiro e da Madre de Deus de Porto Alegre (RS), respectivamente. 8. Directoria Geral de Estatística – Relatório e Trabalhos Estatísticos apresentados ao Ilmo. E Exmo. Sr. Conselheiro Dr. José Bento da Cunha e Figueiredo, Ministro e Secretario de Estado dos Negócios do Império pelo Director Conselheiro Manoel Francisco Correia em 31 de dezembro de 1876. Rio de Janeiro, 1877. 9. A cópia digital do Censo de 1872 se encontra em https://biblioteca.ibge.gov.br/bibliotecacatalogo?id=225477&view=detalhes (acesso em 09 dez. 2021); para as localidades que compunham a província de São Paulo, é possível consultar as tabelas corrigidas na sessão Estatísticas Históricas do Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” (Nepo/Unicamp): http://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/censos.php (acesso em 09 dez. 2021). Informações corrigidas, a nível nacional, foram realizadas por pesquisadores do Cedeplar/ UFMG e disponibilizadas em http://www.nphed.cedeplar.ufmg.br/pop-72-brasil/31/ (o site encontravase indisponível em dez. de 2021).

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Além da cor e da condição jurídica (livre e escrava), o Censo levantou a população por paróquias segundo o sexo, idade10, estado civil, nacionalidade, ocupação e religião. Essas informações evidenciam características da formação de uma sociedade escravista, hierarquizada, desigual e marcada pela miscigenação. Censos posteriores foram realizados durante a Primeira República (1890, 1900 e 1920). Com a fundação do Instituto de Geografia e Estatística (IBGE) em 1936, os censos passaram a ter regularidade decenal11, exceto em 1990, quando foi adiado para 1991 e em 2020. Após 150 anos, o Brasil se prepara para realizar a próxima operação censitária, o Censo Demográfico de 2022, cuja coleta foi cancelada em 2020 e postergada por conta da pandemia de Covid-19 (IBGE, 2021). A segunda fonte empregada consiste em inventários post mortem, abundantes nos arquivos e fóruns das cidades brasileiras e, ainda, pouco explorados em estudos de população. O estudo da demografia escrava a partir dos inventários post mortem corrobora o que já foi salientado por L. Henry (1988:11), “a análise dos fenômenos está pouco ligada ao tipo de documentos disponíveis” sendo necessário se adaptar à “diversidade de situações”. Diversas fontes não visam a contabilização da população, mas são empregadas para o estudo de segmentos populacionais, sendo o emprego dos inventários post mortem um caso exemplar. Os inventários são documentos regulados pelo direito de sucessões, nos quais “são enumerados os herdeiros e relacionados os bens de pessoa falecida, a fim de se apurarem os encargos e proceder-se à avaliação e partilha da herança” (FERREIRA, 2012). Esse documento é um dos poucos arrolamentos em que é possível verificar o tamanho da escravaria, informação ausente do recenseamento do Império, mas que atua como um dos fatores a influenciar a demografia e a família escrava. 10. As idades foram coletadas segundo os grupos: 0-1 ano, por idade simples de 1 a 5 anos, grupos quinquenais de 6 anos até 30 anos, passando para grupos decenais de 31 a 100 anos e 100 anos e mais. 11. Os censos em 1910 e 1930 não foram realizados por perturbações de ordem política (Fonte: https://memoria.ibge.gov.br/historia-do-ibge/historico-dos-censos/censos-demograficos. html Acesso em 10 dez. 2021).

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As peças consultadas para nossa pesquisa encontram-se disponíveis no Arquivo Histórico Municipal de Franca (AHMF) e referem-se ao 1º e 2º Ofícios Cíveis12, totalizando 339 inventários e 2.264 escravizados para o período 1851-187113.

Análise sociodemográfica da população escravizada em uma vila paulista, 1851-187214 Apresentamos o cenário socioeconômico que marcou a formação e o povoamento do município de Franca, localizado na região nordeste de São Paulo. A ocupação do território evoluiu de forma interligada com a dinâmica econômica, no mútuo condicionamento entre esse dinamismo e a demografia escrava vis-à-vis as conjunturas social, política, econômica e demográfica da província e região estudadas. Parte do processo de ampliação das áreas voltadas ao abastecimento interno na região Centro-Sul do Brasil em fins do século XVIII e começo do XIX, Franca recebeu indivíduos ligados a grupos familiares que se dirigiram para o que até então era chamado Sertão do rio Pardo. Famílias já constituídas migraram para o nordeste paulista e outras vieram a se constituir na nova freguesia (erigida em 1805). Ao chegar à condição de Vila (1824), Franca já contava moradores livres e escravizados que se dedicavam à agricultura de subsistência e à criação de gado vacum e suíno (CHIACHIRI FILHO, 1986; CUNHA, 2009). Ampliar a fronteira em um momento de procura internacional pelos produtos coloniais foi a forma encontrada para garantir a produção em terras ainda escassamente povoadas e relativamente férteis (LENHARO, 1979). 12. As informações coletadas para nossa pesquisa foram: a localização do inventário (caixa, número), ano de abertura, o nome do inventariado, inventariante(s) e os cativos arrolados (nome, idade, estado conjugal, relação de parentesco com outros cativos, condições de saúde, ocupação, cor, naturalidade e preço). 13. Levantamos todos os inventários post mortem referentes ao Termo de Franca, São Paulo e que constassem com ao menos um cativo arrolado. “Termo de vila ou cidade – O espaço a que abrange a jurisdição dos seus juízes” (SILVA; BLUTEAU, 1789, v. 2, L-Z:454). 14. Uma versão anterior intitulada “A escravidão em números: demografia escrava em Franca-SP, 1811-1888” (Cunha, 2015a) se encontra publicada em: https://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/textos_nepo/textos_nepo_70.pdf (Acesso em: 04 nov. 2021).

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Mesmo não estando diretamente inserida na agricultura de exportação, Franca apresentou uma economia relativamente dinâmica voltada para o abastecimento interno e a criação de animais, em um momento de expansão das plantations em terras paulistas. O fluxo de migrantes, oriundos principalmente de Minas Gerais, teve destacado papel no povoamento e ocupação do território nas primeiras décadas dos oitocentos. Em 1809, a população da Freguesia era de 1.279 habitantes, predominantemente paulistas. A partir de então, um grande fluxo migratório proveniente de Minas Gerais e, também, de outros locais de São Paulo alterou o volume e o perfil dessa população. Em 1820, a população total chegou a 2.966 habitantes, dos quais 994 escravizados (33,5%). A participação de migrantes de Minas Gerais como chefes de domicílios (homens e mulheres) demonstra o quão significativo foi o componente migratório na sociedade francana nas primeiras décadas do século XIX. Em 1836, a população total (livre e escravizada) chegou a pouco mais de 10.000 habitantes e de um total de 1.571 domicílios, 72,8% eram chefiados por uma pessoa nascida em Minas Gerais. A Lista Nominativa informa que 34,9% do total de habitantes livres era oriundo de Minas Gerais e 36,2% já eram nascidos em São Paulo em 1836 (CUNHA, 2005:109). Num primeiro momento, o fluxo de migrantes oriundos principalmente de Minas Gerais, teve destacado papel na ocupação e povoamento do território. Com o arrefecimento da vinda de migrantes após 1850, as elevadas taxas de natalidade (já observadas desde meados da primeira metade dos oitocentos) garantiram o crescimento populacional (CUNHA, 2015b). Vimos como o papel dos migrantes internos, com destaque para os originários de Minas Gerais, foi crucial para a ocupação, povoamento e crescimento demográfico de Franca e circunvizinhanças até a década de 1850. Porém, o fluxo não cessou, mas arrefeceu consideravelmente na segunda metade do século XIX. Para a segunda metade do século XIX, cotejamos os dados do Recenseamento Geral do Império de 1872 com as informações coletadas em inventários post mortem para o período 1851-1871. O recorte temporal se deve ao fim do tráfico transatlântico de escravizados e a promulgação da Lei do Ventre Livre em setembro de 1871. As informações referentes ao 78

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primeiro recenseamento realizado no Brasil em 1872 são provenientes da coletânea São Paulo do Passado: dados demográficos (BASSANEZI, 1998), na qual se encontram transcritos, corrigidos e sistematizados os dados dos levantamentos populacionais regionais e nacionais publicados para a Província/Estado de São Paulo entre 1836 e 1920. O Recenseamento Geral do Império de 1872, por motivos imperiosos, segundo as autoridades da época, só foi realizado na Província de São Paulo em 1874, ou seja, três anos após a Lei do Ventre Livre (1871). Embora a norma fosse considerar o ano de 1872 como referência na coleta das informações censitárias, parece não ter sido obedecida pelos recenseadores em Franca: entre os escravizados só foram contabilizadas as crianças com três anos e mais. Precisamos estar atentos a isso. De qualquer forma, mesmo que os dados sejam relativos ao ano de 1874, a referência será sempre o Recenseamento Geral do Império de 1872. No período 1839-1885, Franca presenciou a criação de novas vilas em seu antigo território15. De acordo com o Recenseamento Geral de 1872, o conjunto de municípios que compunham o município original de Franca era composto de três municípios (Franca, Batatais e Cajuru) e contava com 40.277 moradores, dos quais 33.816 livres e 6.461 cativos. Esse informa que apenas 4,2% dos moradores livres (de ambos os sexos) do território de Franca eram nascidos na Província de Minas Gerais e 90,9% já eram paulistas. Dentre os escravizados, 72,4% (de ambos os sexos) eram naturais de São Paulo e 3,5% eram originários de Minas Gerais (CUNHA, 2015b; BASSANEZI, 1998). Para o município de Franca, o Censo de 1872 contabilizou 21.419 habitantes, dos quais 18.021 (84%) livres e 3.398 (16%) escravizados. Em 1886, a população do território original de Franca contava com 50.923 habitantes16, sendo 10.040 no município de Franca. A participação de 15. Os desmembramentos territoriais sofridos pelo município de Franca no século XIX foram: Batatais (elevado a Vila em 1839, do qual se desmembrou Cajuru em 1865), Igarapava (1873), Patrocínio Paulista e Ituverava (ambos se tornaram Vila em 1885). Santo Antônio da Alegria desmembrou-se de Cajuru em 1885 e Nuporanga (ex Divino Espírito Santo de Batatais) também se tornou vila no mesmo ano. No entanto, este último foi reconduzido à categoria de distrito e incorporado ao município de Orlândia em 1909. Em 1926, tornou-se novamente município. (BASSANEZI, 1998, v. I:.233-234). 16. Estão somadas a população total de Nuporanga (pertencente a Batatais no levantamento de 1886) com 3.010 habitantes, de Patrocínio Paulista com 2.248 moradores e de Santo

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cativos no total da população do território declinou de 16,0% em 1872 para cerca de um décimo em 1887. Franca, em 1887, era o município do nordeste paulista que mantinha a maior porcentagem de cativos no total da população (12,8%), apesar de Batatais apresentar maior número absoluto de cativos em relação ao município de Franca. A malha ferroviária da Mogiana atingiu primeiro Batatais em 1886 e, um ano depois, Franca (1887). As últimas décadas do século XIX foram marcadas pela vinda de grandes produtores de café para a região próxima de Ribeirão Preto, e que aos poucos avançaram para a região de Franca, uma vez que a consolidação do café enquanto principal produto da região data dos anos 1890. O ritmo de vida tornou-se ainda mais dinâmico, com o fim da escravidão, a chegada de novos imigrantes estrangeiros (principalmente italianos) que acabaram por modificar o quadro tradicional da sociedade francana na passagem do século XIX para o XX. Ao focalizar a evolução da população cativa na segunda metade dos oitocentos é preciso levar em conta que durante o século XIX ocorreram no Brasil transformações econômicas, sociais e políticas que marcaram profundamente a dinâmica demográfica desse segmento populacional: o fim do tráfico atlântico de escravizados, a transição para o trabalho livre, a expansão da cafeicultura e seus desdobramentos (o crescimento dos núcleos urbanos, a expansão da malha ferroviária e a imigração internacional). Na primeira metade do século XIX os escravistas tiveram oferta constante de mão de obra escravizada oriunda da África, enfrentando poucas dificuldades para adquiri-la17. O ano de 1850 – quando ocorreu a abolição do tráfico atlântico – marcou um novo momento na demografia escrava. Após esse ano, embora o tráfico ilegal possa ter introduzido novos africanos no território brasileiro, a reprodução da população escravizada passou a depender, sobretudo, Antônio da Alegria com 4.294 habitantes ainda que não tenham contabilizado a população segundo condição social (livre e escrava). 17. Apesar de a Inglaterra pressionar o Brasil para a extinção do tráfico e ter conseguido que fosse proibido formalmente em 1831, a importação de africanos manteve-se nas décadas de 1830 e 1840.

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do crescimento vegetativo e do tráfico interno. A série de outras leis que encaminharam o processo emancipacionista, promulgadas entre 1850 e 1888, assim como as grandes transformações socioeconômicas observadas no país neste mesmo período, responderam por novas mudanças no sistema escravista que impactaram a demografia escrava. Franca não esteve alheia a esse processo. Com a lei n. 581, de 4 de setembro de 1850, conhecida como Lei Eusebio de Queiroz, que extinguiu o tráfico transatlântico de escravizados, o tráfico interno passou a abastecer as áreas escravistas do Sudeste com cativos especialmente provenientes da região Nordeste. A migração de escravizados das províncias do Nordeste para o Sudeste agroexportador perdurou até 1881, quando elevadas taxas de importação de cativos foram aprovadas pelas Assembleias Legislativas do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, dificultando o tráfico interno (SLENES, 1976:124-125). Durante a segunda metade do século XIX o Estado passou a interferir mais diretamente na relação senhor-escravizado através de leis referentes ao elemento servil. O decreto nacional n.1.695, de 15 de setembro de 1869, proibia a separação de escravizados casados por venda. A lei de 28 de setembro de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre ou Rio Branco, libertava os filhos de ventre escravo18 e permitia ao cativo a formação de pecúlio, com o qual podia comprar a sua liberdade19. Uma nova lei de encaminhamento do processo de abolição, a de n.3.270, de 28 de setembro de 1885, também conhecida como Lei dos Sexagenários ou Saraiva-Cotegipe, tornou livre todos os escravizados com 60 anos ou mais. Assim como a Lei do Ventre Livre, a libertação deu-se de maneira condicional: o escravizado beneficiado pela lei devia continuar servindo seu antigo proprietário por mais três anos ou até atingir 65 anos20. 18. A Lei estipulava que os filhos livres de ventre escravo (ingênuos) deveriam permanecer sob a tutela dos proprietários de suas mães até os oito anos, quando então, o senhor escolheria por se servir do trabalho dos ingênuos até seus 21 anos ou receber uma indenização do Estado e renunciar aos serviços. A primeira opção foi majoritariamente escolhida entre os senhores (TEIXEIRA, 2006:12). 19. O pecúlio só foi formalmente reconhecido nesta lei. 20. As leis procuravam realizar a transição para o trabalho livre de forma lenta e gradual, delimitando as relações sociais entre (ex)escravos e senhores na sociedade livre (MENDONÇA, 2008).

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Também é preciso considerar as alforrias que, compradas ou concedidas, eram um caminho possível para a liberdade e foram frequentes no Brasil escravista do período. Elas implicavam a saída de pessoas do segmento escravo para o livre e, consequentemente, em alterações na estrutura e dinâmica demográfica desses segmentos. Por fim, a extinção da escravidão ocorreu em 13 de maio de 1888 sem indenização para as pessoas escravizadas21. A combinação de tais aspectos teve impactos consideráveis na população escravizada do período.

1851-1871 Em 1836, viviam 10.370 pessoas na Vila Franca, das quais cerca de 1/3 eram escravizadas (3.395); quase quatro décadas após, encontravam-se 40.277 habitantes, dos quais 6.461 (16%) ainda eram cativos. Embora tenha quase dobrado seu volume em relação a 1836, a participação da população escravizada no total da população do território francano reduziu-se para 16,0% em 1872 (no município de Franca propriamente dito, para 18,9%). Tomando apenas o município de Franca, verificamos que em 1872, estava entre os municípios mais populosos da Província de São Paulo. Dos 89 municípios existentes nessa ocasião, seis tinham uma população superior a 20.000 habitantes e Franca ocupava a quinta posição nessa classificação com 21.419 moradores. Sua população livre era inferior apenas à paulistana e à de Itapetininga e seus escravizados representavam 2,2% (3.398) dos cativos da Província. A proporção de cativos no total da população do município de Franca (18,9%) era superior à observada em Itapetininga (8,5%) e na capital, São Paulo (12,2%). No entanto, inferior a outras localidades caracterizadas por uma agricultura agroexportadora: Bananal (53,1%), Campinas (43,6%) e Piracicaba (28,5%). No conjunto dos escravizados do município de Franca, a porcentagem de homens (53,2) predominava sobre a de mulheres (46,8%), em proporções semelhantes às encontradas para o antigo território. A proporção de crianças 21. A Lei 13 de Maio libertou pouco mais de 700.000 cativos já que, de acordo com a matrícula de 1887, a população escravizada no Brasil (de 15 a 59 anos) totalizava 723.175 cativos (SLENES, 1976:697-698).

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com até 10 anos apresentava-se um pouco maior no município que no território (16,5% e 15,3%, respectivamente). Verificamos que os escravizadoss listados nos 339 inventários, entre 1851 e 1871, totalizavam 2.264 pessoas, das quais 53,7% eram homens e 46,3% mulheres (valores muito próximos aos verificados no Censo de 1872). A razão de sexo ficou em 116 entre 1851-1871 e 114, tanto para o território como para o município de Franca, em 1872. Quando confrontamos os inventários post mortem no período 1851-1871, a proporção de crianças com idade igual ou inferior a 10 anos mostrou-se elevada (30%), o que acabou por dar forma piramidal à representação gráfica da população cativa por sexo e grupos etários. Nesse período, as crianças nascidas antes da Lei do Ventre Livre se fizeram presentes e a expressiva participação delas no segmento cativo nos leva a aventar a hipótese de reprodução natural em Franca. Há estudos que atestam a possibilidade de reprodução natural entre a população escravizada inserida em economias não voltadas para a agricultura agroexportadora como foi destacada por Gutiérrez (1987) em sua análise sobre a população escravizada na capitania/província do Paraná, no começo do século XIX. O elevado número de nascimentos e o perfil jovem da população cativa indicam que o crescimento desse segmento se deveu à reprodução natural entre os mesmos. Botelho (1994; 1998) em seu estudo sobre Montes Claros – MG no século XIX, também atentou para o crescimento vegetativo da população escravizada, assim como Marcondes e Garavazo (2002) ao analisarem a estrutura de posse cativa em Batatais-SP em meados da década de 1870. Paiva e Libby (1995) também chamaram a atenção para as regiões em Minas Gerais que não se alimentaram exclusivamente do tráfico internacional (ou do comércio interno de escravizados), uma vez que os nascimentos também foram responsáveis para a manutenção de escravarias, ao menos até 1872.22 22. Salles (2008) destaca a ocorrência de reprodução natural entre os cativos de VassourasRJ (zona de produção cafeeira) na segunda metade do século XIX, assim como Barroso (2015) também atenta para a possibilidade de reprodução natural entre os escravos da zona Guajarina e Baixo Tocantins (Grão-Pará) ao analisar inventários post mortem referentes ao período 1851-1888. Outros autores, por sua vez, têm enfatizado o papel crucial do tráfico de escravizados para a manutenção e expansão da população cativa (SLENES, 1976; KLEIN, 1987; FLORENTINO, 1997).

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Gráfico 1

Fonte: Bassanezi (1998).

Gráfico 2

Fonte: AHMF Inventários post mortem.

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Gráfico 3

Fonte: Bassanezi (1998).

A expressiva participação das crianças explica a idade média dos escravizados inventariados no período 1851-1871 ter valor igual a 24,7 anos, abaixo dos valores observados no Censo de 1872: 33 anos no território de Franca e 31 anos no município. Ao considerarmos apenas os escravizados inventariados com 11 anos e mais, chegamos à idade média de 33,4 anos, semelhante ao que o Censo verificou, uma vez que este último sub-representa o grupo 0-10 anos. É preciso lembrar que o assento de bens presente nos inventários post mortem poderia ser mais acurado do que o censo, pois os escravinhos (mesmo crianças) deveriam obrigatoriamente ser listados e avaliados para a partilha. No início dos anos 1870, no antigo território de Franca foram recenseados um total de 6.461 cativos, dos quais 92,5% eram nascidos no Brasil e 7,5% (482) oriundos do continente africano. No município, os africanos escravizados representavam 9,2% do total de cativos ou 314 pessoas. Entre os escravizados inventariados no período 1851-1871, os africanos representavam 14,6%. A maior porcentagem de africanos inventariados recenseados pode estar relacionada à idade mais elevada com que muitos dos proprietários faleciam, ou seja, os bens arrolados refletiam um “momento “declinante” do ciclo de vida do senhor, com escravarias envelhecidas [...]” (BACELLAR, 2008:93).

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Como mencionado, as crianças com até 10 anos de idade chegavam a 30% dos cativos inventariados, o que acabou por diminuir a idade média dos escravizados, mas as colocações sobre os proprietários inventariados mais envelhecidos também são pertinentes. É preciso lembrar que boa parte das crianças nasce no seio de famílias constituídas e, para que isso ocorra, é preciso relativa estabilidade da posse. Assim, as escravarias mais estáveis garantiram as condições de formação de famílias e o nascimento de crianças, e é bem possível que tenham se formado em décadas anteriores. Acreditamos que boa parte da aquisição de escravizados africanos pelos proprietários do nordeste paulista foi anterior aos tratados visando o fim do tráfico em 1831, pois a maior porcentagem de africanos verificada na população escravizada da Vila Franca ocorreu em 1829 (37% do total da população cativa era de origem africana), voltando a declinar nos anos subsequentes (OLIVEIRA, 2012:58). Apenas os inventários post mortem nos informam a procedência desses africanos. De um total de 330 escravizados africanos (14,6% do total de cativos), a procedência aparece em 217 casos: 82,9% vieram da Costa ou eram designados como De Nação; 11,5% procediam de Angola (Benguela, Rebolo, Cassange, Angola), 3,7%, do Congo e 1,2% de Moçambique. O mesmo não pode ser dito em relação ao local de origem dos escravizados nacionais. Segundo os inventários abertos entre os anos de 1851 e 1871, foi possível identificar 1.508 cativos como nacionais (66,6%) (inclusive pardos, mulatos e cabras) e para 18,8% não há menção sobre a origem. Sobre o local de nascimento, encontramos apenas informações para quatro cativos: uma escravizada era natural da Bahia, um homem de Batatais e um homem e uma mulher de Franca, respectivamente. Dentre os escravizados nascidos no Brasil, o Censo de 1872 especifica apenas a província de origem e não o município. No antigo território de Franca, 78% eram naturais da Província de São Paulo; 12,4% eram oriundos da Região Nordeste (sendo 5,8% da Bahia e 3,2% de Pernambuco), do Rio de Janeiro e de Minas Gerais (juntos somaram 6,4%). Como sabemos, a Região Nordeste figurou como uma das principais áreas produtoras de cana-de-açúcar no Brasil colonial e utilizou mão de obra ativamente. Com

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a decadência da produção de açúcar, suas províncias passaram a alimentar o tráfico interno de escravizados em direção à Região Sudeste, especialmente, as lavouras de café. No município de Franca, 80% dos nascidos no Brasil eram escravizados paulistas; 10,6% naturais da região Nordeste e 7,1% do Rio de Janeiro e Minas Gerais (conjuntamente). Ao que parece, a economia de Franca foi relativamente dinâmica para manter sua mão de obra escravizada, mesmo próxima a áreas de cafeicultura mais pujantes e ávidas por cativos na Província de São Paulo. É preciso frisar que estamos nos referindo a escravistas de pequenas posses (até 6 escravizados) característica de uma economia voltada ao abastecimento interno, mas que se utilizou do trabalho escravo até o suspiro final do sistema escravista. Tabela 1 – Distribuição dos inventários post mortem e cativos segundo período. Franca, 1851-1888 Período

N. cativos

%

1851-1860

1.066

33,4

N. ingênuos

%

N. inventários

%

N. médio cativos

158

31,3

6,7

1861-1870

1.091

34,2

168

33,3

6,5

1871-1880

652

20,4

45

20,9

115

22,8

5,7

1881-1888

379

12,0

170

79,1

64

12,8

5,9

Total

3.188

100,0

215

100,0

505

100,0

6,3

Fonte: AHMF Inventários post mortem.

Com a realização da Matrícula de Escravos em agosto de 1872, quase um ano após a Lei do Ventre Livre, os inventários post mortem deveriam apresentar uma cópia ou a transcrição dela23. A Matrícula trazia nome, idade, ocupação, condições para o trabalho, filiação e número da matrícula, o que acabou por contribuir com informações mais completas sobre os escravizados, especialmente, no tocante ao parentesco escravo. 23. Esta listagem tinha o objetivo de manter o controle sobre os nascimentos de filhos de escravas, a fim de terem sua liberdade garantida, além de conformar uma base para o Fundo de Emancipação de escravos. Por conseguinte, a matrícula seria também o fundamento legal para a propriedade de escravos, de forma que, a partir de 1872, todos os inventários post-mortem eram obrigados a apresentar sua transcrição (SILVA, 2012:16).

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As informações sobre o parentesco escravo revelam que 579 cativos (18,2%) estavam inseridos em grupos familiares entre 1851-1888. A maior parte das famílias escravas identificadas nos inventários era formada por casais (48,6%), seguida de mães com filhos (24,7%) e de casais com filhos (17,7%) (os três grupos responderam por 91% dos cativos aparentados). Uma forma de destacar a existência da família escrava e de visualizá-la nos recenseamentos é por meio do estado conjugal. De acordo com o Censo de 1872, no território de Franca 15,4% dos cativos com 16 anos ou mais eram casados ou viúvos. Quando analisamos segundo o sexo, 13,8% dos homens cativos com 16 anos ou mais eram casados e 1,5% viúvos, e entre as mulheres escravizadas, 13,6% encontravam-se casadas e 2,0% viúvas24. A existência de parceiros elegíveis proporcionou às mulheres mais oportunidades de se unirem, uma vez que a razão de sexo entre aqueles com 16 anos ou mais chegou a 154 em 1872. Quando comparamos o Censo de 1872 com as informações presentes nos inventários post mortem, chamamos a atenção para a possível sub-registro dos cativos casados ou viúvos recenseados em 1872. Os dados fornecidos pelos inventários post portem entre 1851-1871 indicam que dentre os escravizados de ambos os sexos arrolados, 23,1% daqueles com 16 anos ou mais se encontravam casados ou viúvos, os homens adultos cativos, alguma vez unidos chegaram a 20,7% e as mulheres a 26,2%. O importante a ser ressaltado é que o casamento atuou como instituição que possibilitou o estabelecimento de laços de parentesco, afetivos e sociais, assim como, promoveu a reprodução de parte do segmento escravizado e esteve presente em Franca no decorrer do período analisado. As informações apresentadas evidenciam que ser escravizado implicou em vivenciar um comportamento demográfico fortemente marcado pelos constrangimentos que essa condição lhe impunha.

24. Estamos nos referindo à idade de 16 anos em virtude de a população ser listada no Recenseamento Geral do Império de 1872 por idades simples até os cinco anos de idade, por idades quinquenais até os 30 anos (6-10, 11-15, 16-20, etc.) e a partir dessa idade, os grupos etários passam a ser decenais (31-40, etc.).

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Considerações finais Em meados da primeira metade do século XIX, Franca estava entre os municípios que possuíam mais escravizados na Província de São Paulo, no entanto, a participação da população cativa no total da população não era tão alta como nas áreas de grande lavoura. Ao lidarmos com uma localidade que sofreu diversos desmembramentos territoriais, apresentamos uma proposta de acompanhar o território original (agrupando as informações censitárias dos municípios desmembrados) juntamente com as informações referentes ao município propriamente dito. A fim de realizarmos um exercício de caráter metodológico, comparamos os dados censitários presentes no Recenseamento de 1872 e as informações recolhidas nos inventários post mortem referentes ao período 1851-1871. Ao focalizar a evolução da população cativa entre 1851-1871 é preciso levar em conta que durante o século XIX ocorreram transformações econômicas, sociais e políticas no Brasil que marcaram profundamente a dinâmica demográfica desse segmento populacional: o fim do tráfico atlântico de escravizados, a transição para o trabalho livre, a expansão da cafeicultura e seus desdobramentos. De uma perspectiva metodológica, demonstramos que os dados provenientes de fontes diversas (censo e inventários post mortem) e com recortes temporais distintos apresentaram tendências e perfis semelhantes quanto à estrutura e composição da população cativa, ainda que valores e proporções diversas, como era de se esperar. Sintetizamos as características demográficas dos escravizados e escravizadas recenseados em 1872 e inventariados(as) no período 1851-1871, por: Sexo: houve predomínio do número de homens sobre o de mulheres. Houve uma tendência ao equilíbrio entre os sexos que se acentuou com o fim do tráfico transatlântico (1850) que privilegiava a entrada de homens. Idade: as crianças escravizadas (com até 10 anos) tiveram expressiva participação nos inventários e chegaram a representar 30% do total da população escravizada. A partir de fins de 1871, as crianças filhas de mãe escravizada não eram mais contabilizadas entre a população escrava. O

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Censo de 1872 informa apenas as crianças de 3 a 10 anos (uma vez que foi realizado em 1874 na Província de São Paulo) e elas eram apenas 15,3% dos cativos no território de Franca e 16,5% no município. Podemos elucubrar que, pelo menos até 1872, há indícios de reprodução natural dos escravizados em Franca. A idade média da população escravizada oscilou entre 23 anos em 1836 a 33 anos em no território de Franca em 1872. A estrutura etária e por sexo da população africana evidenciou um perfil típico de população imigrante, com predomínio masculino em idade adulta e produtiva, ao passo que, os nacionais apresentaram um perfil mais próximo ao da população livre, destacando-se a elevada participação de crianças (ainda que em proporções inferiores à verificada para a população livre). Origem: os nacionais sobrepujaram os africanos na população escravizada de Franca. A participação africana oscilou entre 31,7% em 1836 ,14,6% entre 1851-1871, 7,5% no território e 9,2% no município em 1872. Os africanos eram, em sua maioria, oriundos do Centro-Oeste africano e pertenciam ao grupo linguístico banto. As informações a respeito do local de procedência da África são muito mais acuradas nos inventários post mortem da primeira metade do século XIX, ao passo que a procedência dos nacionais passa a ser mais bem informada a partir da segunda metade dos oitocentos nesse mesmo corpo documental. As fontes censitárias são mais genéricas ao indicar a procedência do escravizado, mencionando apenas que ele é de África. Outro dado atestando a ocorrência de reprodução natural se dá através da procedência dos escravizados nacionais: boa parte já era natural da Província de São Paulo em 1836 (21,1% do total de cativos, seguido dos naturais de Minas Gerais que chegaram a 15,2%). Em 1872, 78% dos escravizados que viviam no território de Franca e 80% daqueles do município eram naturais da província de São Paulo. Os nascidos nas províncias do Nordeste (Bahia e Pernambuco, especialmente) vinham em segundo lugar, indicando a presença do tráfico inter-regional de cativos. Estado conjugal: o casamento formal foi uma possibilidade na vida dos escravizados, principalmente para as mulheres. As mulheres com mais

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de 15 anos apresentaram maior proporção de casadas e viúvas que seus pares masculinos. A predominância numérica dos escravizados homens adultos e a baixa incidência de uniões entre noivos que pertenciam a proprietários diferentes certamente foram entraves significativos para que homens e mulheres escravizados tivessem acesso ao casamento religioso. Ausência de formalização, no entanto, não é sinônimo de relações familiares ausentes. O que podemos aferir, a partir das fontes analisadas, é que o estado de casado/a ou viúvo/a não foi insignificante entre os cativos de Franca. A maior participação dos casados/viúvos se deu em 1836, com 29% dos cativos com 15 anos ou mais de ambos os sexos unidos ou já unidos (ou 29,6% dos cativos com 16 anos ou mais). Os dados para 1851-1871 informam que 23,1% do total de cativos com 16 anos ou mais estavam casados ou viúvos. O Censo de 1872 incorreu em sub-registro do estado conjugal dos cativos de Franca, uma vez que apenas 15,3% do total de cativos do território foi arrolado como casados ou viúvos. Esperamos que o exercício comparativo seja capaz de demonstrar que diante de lacunas ou ausências de informações censitárias (recorte transversal) é possível utilizar os inventários post mortem (caráter longitudinal) a fim de caracterizar a população escravizada. Devido a sua abrangência nacional, o Recenseamento de 1872 permite uma análise da população livre e escravizada em nível paroquial, o que não se dá em relação às demais fontes de caráter censitário. Por sua vez, os inventários post mortem são fontes relativamente abundantes para o século XIX, no entanto, o seu acesso nem sempre é facilitado ou está disponível para consulta pública.

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Batismos, casamentos e óbitos: fontes para os estudos sobre a escravidão

Jonis Freire Universidade Federal Fluminense

Registros paroquiais: fontes “democráticas” Os sagrados sacramentos da Igreja Católica foram momentos importantes na vida de diversas populações ao longo dos séculos e demarcavam aspectos vitais do cotidiano de homens e mulheres1. Desde muito cedo a Igreja determinou a composição de livros nos quais eram registrados os assentos de batismo, casamentos e óbitos2 que deveriam abarcar todos os indivíduos, 1. “Os Sacramentos a Santa Madre Igreja, como a Fé Catholica nos ensina, são (1) sete, convem a saber: Baptismo, Confirmação, Eucharistia, Penitencia, Extremaunção, Ordem e Matrimonio. Todos sem duvida causão (2) graça nos que os recebem dignamente, e não põem (3) impedimento a ella; a qual graça por excellencia se chama cousa sagrada, e dom sagrado, pois nos santifica com Deos.” Título IX. (Vide, 1853, p. 10 – 11 – destaques no original). 2. Segundo as Constituições Primeiras..., cada paróquia deveria ter e guardar livros específicos para livres e escravos. (VIDE, 1853). Contudo, muitos livros de batismo, casamento e óbito possuíam registros de homens e mulheres de todas as condições jurídicas. Essa documentação encontra-se, geralmente, em arquivos eclesiásticos, contando nesse caso com documentos conservados, catalogados, tratados e disponíveis para consulta, ou ainda dispersos em diversas paróquias. É possível o acesso em sites na internet onde a essas fontes e/ou bancos de dados como, por exemplo: o NACAOB https://www.nepo.unicamp.br/nacaob/index.php/ sobre/; Family Search https://www.familysearch.org/pt/; o Slave Societies Digital Archive https://ncph.org/project/slave-societies-digital-archive/; a Escravidão africana nos arquivos Eclesiásticos – séculos XVI – XIX https://www.historia.uff.br/curias/modules/tinyd0/index. php?id=1

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independente de gênero, status social, condição jurídica (livre, escravo, forro, liberto), idade etc. (CAMPOS, FRANCO, LIBBY, 2004). No Brasil, esses e outros ritos católicos foram codificados no Sínodo Diocesano de 1707, confeccionado a partir da adaptação das resoluções do Concílio de Trento às condições sociais brasileiras e publicados nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia em 17203. Essa legislação canônica estipulava as multas devidas aos párocos que não realizassem de maneira adequada os sacramentos, determinavam a fórmula segundo a qual deveriam ser registrados, bem como suas interdições, matéria, formas e efeitos4. Portanto, para um bom entendimento sobre os sacramentos do batismo, casamento e óbito é imperativo que os estudiosos conheçam e utilizem essa fonte. Os registros dos sacramentos são documentos que permitem estudos quantitativos e qualitativos sobre variados aspectos das sociedades do passado e do presente, como: o cotidiano, a demografia, as mentalidades, a religiosidade etc. Dentre os sete sagrados sacramentos, batismo, matrimônio e óbito foram, talvez, os eventos mais marcantes e/ou com maior cobertura documental e é a respeito deles que trataremos. Nosso intuito é o de, a partir de tais fontes, demonstrar algumas das possibilidades de pesquisa para os estudos sobre a escravidão no Brasil que podem abarcar, dentre outros, aspectos demográficos, econômicos, culturais, sociais e religiosos5. No Brasil, onde até muito tarde o Padroado6 incidiu nas relações entre Estado e Igreja, os nascimentos, casamentos e óbitos revestiam-se de um duplo papel: religioso e civil. Contendo inúmeras informações, não é surpreendente que os ‘livros paroquiais’ tenham sido vistos com bons olhos pelo Estado monárquico. 3. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. (...). Sobre essa legislação canônica conferir: FEITLER, SALES SOUZA, 2011; VIDE, FEITLER, SALES SOUZA, 2010. 4. No entanto, quando nos defrontamos com as fontes, percebemos o quanto as normas eram burladas e/ou negligenciadas, bem como outros desvios das leis estabelecidas pelas Constituições Primeiras. Sobre esses “desvios”: MAIA, 2006. 5. Um trabalho com preocupações similares pode ser visto em: BASSANEZZI, 2009. 6. Segundo Marcílio: “O estatuto do Padroado Régio no Brasil até pelo menos a Constituição Republicana, de 1891 (quando foram separados, o Estado da Igreja) deu aos Registros Paroquiais uma cobertura praticamente universal da população brasileira (excluídos apenas os protestantes que surgem principalmente no Segundo Reinado e dos índios e africanos pagãos, ainda não batizados).” (MARCÍLIO, 2004, p.16).

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Numa sociedade marcada por elevado número de iletrados, o documento constituía um dos raros testemunhos escritos que provavam o vínculo familiar e a condição social dos indivíduos. Os processos matrimoniais dele dependiam. Através das atas batismais provava-se a posse de um escravo; forros em pia batismal, por sua vez, utilizavam esse testemunho para demonstrar a própria liberdade. Na identificação de herdeiros ou na elaboração de genealogias, destinadas a demonstrar ‘pureza de sangue’, também não se podia prescindir da ata de batismo. O documento era um identificador pessoal e social, (...). (VENÂNCIO, SOUSA, PEREIRA, 2006, P. 275).

Existe, portanto, uma riqueza de informações nessas fontes que, já há algum tempo, têm sido utilizadas pelos pesquisadores em estudos, qualitativos e quantitativos, com diversas perspectivas (MARCÍLIO, 1970; CAMPOS, FRANCO, LIBBY, 2004; FRAGOSO, FERREIRA, 2016; FRAGOSO, FERREIRA, SAMPAIO, 2014; BOTELHO, ANDRADE, LEMOS, 2013; GÓES, 1993). As potencialidades e o uso desses documentos para análises sobre as populações do passado e do presente, sobretudo, pela ausência quase que generalizada de documentação censitária, são muito interessantes. Seu caráter serial permite, no caso brasileiro, a depender do recorte cronológico (Monarquia, Império ou República) e do evento analisado (batismo, casamento ou óbito), conhecer informações diversas como: dia/mês/ano do registro; local; hora; sexo; relações familiares e de sociabilidades; “cor/ qualidade” (preto, branco, cabra, mulato, mestiço, etc.); condição social/ jurídica (livre, escravo, liberto/forro) – no caso dos cativos o(s) nomes de seu(s) proprietários(as); ocupação (alfaiate, pedreiro, médico, advogado, ama de leite etc.); títulos de prestígio (comendador, barão, dona, doutor, etc.); alforrias na pia batismal; origem (africano, crioulo, índio, espanhol, alemão, etc.); procedência (Angola, Mina, Cassange, Rio de Janeiro, Paris, Argirita, etc.); idade; ascendência e/ou descendência; causa mortis; local de sepultamento; etc. Essas são variáveis fundamentais para conhecer as dinâmicas, padrões e tendências das populações como podemos perceber nas imagens abaixo.

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A cobertura de populações diversas é uma das características importantes na utilização dos registros eclesiásticos. O cruzamento entre eles e outras fontes (inventários, testamentos, listas de habitantes, alforrias etc.) abre uma “janela” para análises de sociedades e indivíduos distintos e permite um estudo intensivo que possibilita acompanhar “indivíduos/grupos” por longos períodos de tempo, ajudando no entendimento de uma série de características sociodemográficas (LIBBY, 2020; SLENES; 2011; CUNHA, 2005; FREIRE, 2014). Por meio do intercruzamento de fontes, podemos analisar populações, vivências, dinâmicas, experiências, estratégias e comportamentos que auxiliam investigações quantitativas e qualitativas. O seu caráter individual e coletivo possibilita, portanto, analisar as características de momentos vitais na vida de um indivíduo, ou um grupo, ao longo do tempo e em recortes geográficos e cronológicos bem delimitados. A nomeação dos indivíduos é outro aspecto relevante, já que, além de suas características “pessoais”, possibilita a reconstituição de relações familiares. O valor desses registros é visível ainda pela sua confecção no momento “exato” em que as pessoas nasciam, casavam-se e morriam, demarcando seu caráter serial e cronológico. Em princípio, toda a população pode ser recuperada através desses registros. Por isso, os livros que os contêm são considerados fontes democráticas. Mesmo que, para determinados momentos e locais, uma parcela dos nascimentos, das uniões conjugais e dos óbitos, por algum motivo, não tenha sido anotada, esses livros incluem de fato todos os setores da sociedade. Homens e mulheres, ricos e pobres, brancos, negros e índios, nacionais e estrangeiros, filhos legítimos e ilegítimos/naturais, crianças expostas e enjeitadas e também escravos e libertos (antes de 1888) tiveram (e têm) os seus eventos vitais registrados. A universalidade dessas fontes é uma das coisas que mais atrai os historiadores (BASSANEZZI, 2009, p. 142).

Apesar do rico “arsenal” de informações, é preciso destacar que nem todas estão presentes, bem como outras surgem ao longo dos registros. Esse é um primeiro alerta para aqueles que se interessam em tal corpus documental e que é consequência da diligência, ou não, do Padre/Pároco/Vigário/Cura. 99

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Cada um desses representantes do clero podia ser mais ou menos detalhista nos registros das informações. Muitas das vezes, o seu tempo de atuação nas paróquias é fundamental, pois permite uma “memória” dos eventos vitais de seus fiéis, propiciando o conhecimento de informações importantes que extrapolam a redação estipulada pela Igreja para a confecção de cada um dos sacramentos. Outros dois grandes problemas são os relativos aos sub-registros e à conservação precária da documentação, que muitas vezes impossibilitam a pesquisa. Nem todas as pessoas, independentemente de seu estatuto jurídico e por motivos diversos, procuravam aqueles sacramentos e, portanto, muitos indivíduos não podem ser conhecidos pela análise dos batismos, casamentos e óbitos, há, portanto, um sub-registro. Então, por melhor que seja a amostra, uma parcela da população não será conhecida. Apesar disso, as características dessas fontes permitem variadas abordagens para a pesquisa e, claro, para os interessados na história de sociedades e populações do passado e do presente, demonstrando padrões e dinâmicas diversos. Aqui, vamos apontar algumas possibilidades de estudos sobre a escravidão utilizando os registros paroquiais de batismos, casamentos e óbitos e que podem auxiliar pesquisas sobre: história social, história demográfica, história da família etc.

“Entrelaçados”: Batismos, casamentos, óbitos e a escravidão O escravo não tem estado civil. Quase que sempre tem um nome, o de batismo. Não tem apelidos e família. O escravo não tem família. Chamase Joaquim, Manoel, João e confunde-se com todos os da mesma cor e do mesmo nome. Não tem pai conhecido, consta apenas o nome de batismo da mãe e, às vezes, somente ele o sabe. Não se lhe conhecem antepassados, nem atos que o caracterizem e chamem sobre ele a atenção. No assento de batismo, quando o fazem, apenas se lhe menciona um nome e o do senhor e, quando muito, o da mãe. Nos títulos de venda apenas se lhe menciona o nome de batismo, o do vendedor e comprador e

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se declara, genericamente, que é da nação (se é africano) sem se declarar qual seja, ou crioulo, se é nascido no Brasil, seja onde for.7

Em 1863, o parecer dado ao Conselho de Estado, pela “Seção de Negócios Estrangeiros”, apontava a ausência de laços entre os cativos. Na perspectiva do redator, sua “falta” de memória resultantes de sua promiscuidade, ausência de relações familiares duradouras, dentre outros aspectos, deixavam os escravos “perdidos” sem possibilidades de um mínimo de atuação/autonomia/ movimentação na sociedade ao qual se inseriam. Imperava, pela leitura do parecer, a devassidão. No entanto, quando analisamos os batismos, destacados pelo “Parecer”, os casamentos e os óbitos de escravos, nos deparamos com outra realidade. São inúmeras as relações familiares com a nomeação de mães, pais e/ou avós, bem como diversas redes de sociabilidade/solidariedade formadas pelos cativos dentro e fora da comunidade escrava e com indivíduos de outras condições jurídicas (livres, forros, libertos) 8. A análise dos registros demonstra um “mundo” muito diferente e bem mais complexo do que fazia constar o parecer da “Seção de Negócios Estrangeiros”. Uma primeira providência a ser feita depois da leitura desse tipo de fonte, ou melhor, em conjunto com ela, é a montagem de um banco de dados, já que se trata de uma documentação de caráter serial. Tanto para os estudos quantitativos como para os qualitativos, o banco de dados é essencial, pois permite cruzar as variáveis entre si ou com outros documentos, localizar indivíduos, apontar padrões/tendências, delimitar recortes, conectar relações familiares, além de permitir a análise de informações que nem sempre aparecem nas fontes, mas que, quando são destacadas, alargam o conhecimento de aspectos de indivíduos e/ou grupos e as transformações nas sociedades estudadas 9. 7. Parecer da Seção dos Negócios Estrangeiros, de 22 de junho de 1863. In: O Conselho de Estado e a política externa do Império: consultas da Seção dos Negócios Estrangeiros (18631867). Rio de Janeiro: Fundação Alexandre de Gusmão: 2007, p. 41-42. 8. As comunidades, como já destacado por Carlos Engemann, são entendidas como “um conjunto de indivíduos que partilham símbolos, ritos, mitos e parentesco dentro do mesmo espaço socialmente ordenado” (2008, p. 27). Sobre este assunto conferir também: Faria, 2007; Stevenson, 1996. 9. Um excelente exemplo de crítica e tratamento metodológico com os registros paroquiais, e outras fontes, pode ser encontrado em: Cunha, 2009.

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Pesquisas sobre os escravos, a partir dessa documentação, têm uma característica importante, qual seja, o nome de seu(ua/s) senhor(a/es/ as), que muito auxilia os estudos sobre demografia, família, compadrio, nupcialidade, mortalidade, condições de saúde, relações sociais, alforrias etc.10 O acompanhamento do nome do senhor(a) e/ou senhores(as) dos cativos, em todo e qualquer documento, possibilita o intercruzamento de fontes variadas e, por consequência, um estudo mais aprofundado sobre o cotidiano dos cativos11. Portanto, o nome dos senhores é uma “porta de entrada” para termos acesso aos escravos. (...) os assentos de batismo, casamento e óbitos da Igreja permitem, em geral, uma identificação mais segura de escravos do que de livres pobres. Para estes, muitas vezes falta o sobrenome nesses registros, ou há sobrenomes que não permanecem os mesmos ao longo da vida das pessoas. Para os escravos, ao contrário, quase sempre o nome do senhor vem indicado, o que funciona como ‘sobrenome’ (aliás bastante estável no tempo, já que se trata de pessoa mais ou menos abastada), possibilitando a localização do mesmo escravo em outros assentos da Igreja ou nas listas de cativos nos inventários (VOGT, FRY, SLENES, 1996, p. 50).

Os registros paroquiais podem ser trabalhados por meio do cruzamento de informações, seguindo escravarias no tempo, utilizando, por exemplo, técnicas de investigação em história demográfica conjugadas à história social e à micro-história. Análises a partir do método de ligação nominativa, cruzando 10. Trabalhos utilizando essas fontes, para diversos recortes geográficos e cronológicos, podem ser vistos em: http://historia_demografica.tripod.com/ 11. O sacramento do batismo interessava muito aos proprietários de escravos, pois, em virtude da instituição do padroado, o Estado português delegou à máquina eclesiástica inúmeras funções, levando as esferas religiosa e civil da vida das populações a estarem pouco diferenciadas. Dentre estas funções, a que mais interessava aos senhores de escravos dizia respeito à declaração, feita no registro de batismo dos inocentes e dos adultos, do nome do seu proprietário, o que lhe garantia a posse efetiva deles. “Quando um escravo era comprado, havia uma matrícula que servia como ‘comprovante’ da posse. Porém o inocente nascido de uma escrava não era matriculado, já que não tinha ocorrido uma transação comercial. Dessa maneira o registro de batismo era a única forma de que dispunha o proprietário para comprovar que alguns, dos escravos, nascidos em seus plantéis, eram efetivamente seus.” (Neves, 1990, p. 238, nota 5.)

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vários tipos de fontes, acompanhando, numa perspectiva longitudinal, a demografia e o cotidiano dos escravos ainda são poucas (FREIRE, 2014; SLENES, 2011; SLENES, VOGT, FRY, 2004; BACELLAR, SCOTT, 1990; CUNHA, 2009). Uma das grandes potencialidades dos registros paroquiais para os estudos da escravidão é a da reconstituição de relações familiares. Diferente do paradigma da anomia e da falta de laços nas relações familiares dos cativos, apontadas no parecer da “Seção de Negócios”, e, por um longo período, pela própria historiografia, tais fontes demonstram que os escravizados possuíam famílias duradouras, intergeracionais e estáveis ao longo do tempo e, muitas vezes, os registros possibilitam conhecer gerações de uma mesma família no período da escravidão e do pós-abolição (LIBBY, 2022; ROCHA, 2004; RIOS, 1990). Famílias compostas por indivíduos de condição escrava que estabeleceram relações consanguíneas e espirituais com outros de mesma condição e com pessoas de outros estatutos jurídicos (livres e libertos/forros). Os escravizados africanos e crioulos (nascidos no Brasil) (re) estabeleceram aqui suas redes de parentesco, laços afetivos, familiares e constituíram-se como um elemento importante na formação de uma identidade escrava ancorada em tradições, culturas e experiências africanas. O tráfico foi realmente danoso, entretanto, após sua chegada, a despeito de todas as agruras, eles conseguiram se (re)articular e (re)estabelecer traços fortes de sua cultura, bem como (re)constituir uma identidade entre africanos e afrodescendentes. Os traços da herança africana constantemente renovados pelo tráfico se fizeram sentir cotidianamente entre os escravizados. Isto ocorreu por meio do batismo, do casamento, das atitudes diante da morte, das práticas de nomeação dos filhos, do apadrinhamento etc. Para muitos deles, os sacramentos católicos foram bastante importantes para a sua (re) inserção nas comunidades escravas, que por vezes podiam extrapolar a propriedade na qual estavam inseridos, estabelecendo relações com cativos de outros senhores. A socialização das crianças e dos adultos se dava dentro das comunidades escravas e com indivíduos fora dela (livres e libertos/ forros), por meio dos laços de parentesco e amizade.

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Batismos: “a porta por onde se entra na Igreja Catholica, e se faz, o que o recebe, capaz dos mais Sacramentos”12 Os registros paroquiais de batismo13, assim como os de matrimônio e óbito, são fundamentais para a reconstituição demográfica da história brasileira, mais do que isto, “não são documentos apenas religiosos, mas sociais; a informação registrada fala da persona social total do indivíduo” (GUDEMAN e SCHWARTZ, 1988, p. 39). Nesse sentido, o batismo cristão, foi bastante importante para os projetos individuais e coletivos de muitos escravizados, que buscaram este sacramento e estabeleceram, a partir daquele momento, relações de solidariedade e reciprocidade que se consubstanciaram por meio do compadrio (parentesco espiritual/ritual).14 Para além de seu significado católico, os laços estabelecidos por pais, mães, batizandos e seus padrinhos e madrinhas perante a Igreja Católica extrapolaram o âmbito da Igreja e mostraram-se presentes em toda a sociedade, se fazendo sentir no cotidiano daquelas pessoas. “(...), o padrinho, segundo a doutrina católica, constituía-se em um segundo pai, em um com-padre: ou seja, alguém com quem, de algum modo, se dividia a paternidade.”15 Os batismos, como já dissemos, possuem uma série de informações que podem ser utilizadas pelos interessados em temas diversos. Possibilitam também análises qualitativas e quantitativas que auxiliam no entendimento das populações do passado e do presente. Esse documento, guardando as particularidades já descritas nesse capítulo, apresenta-se em livros próprios seguindo a redação estipulada pelas Constituições Primeiras como as imagens 12. Com a inserção na Igreja por meio do batismo o batizando passava a ter direito aos demais sacramentos da Igreja Católica. Sem este sacramento era vedado ao indivíduo o acesso, por exemplo, ao casamento, à extrema-unção ou à crisma: “O batismo é o primeiro de todos os sacramentos, e a porta por onde se entra na Igreja Católica, e se faz, o que o recebe, capaz dos mais sacramentos, sem o qual nem um dos mais fará nele o seu efeito”. (VIDE, 1853, p.12). 13. Como bem afirmou Mariza de Carvalho Soares, “Aos olhos da sociedade contemporânea os livros de batismo têm um significado quase desprezível, mas, no Antigo Regime eles são a forma primeira de identificação de qualquer indivíduo, livre ou escravo, pobre ou rico, nobre ou plebeu” (2000, p. 22). 14. O parentesco espiritual ou ritual é aquele estabelecido, por exemplo, pelos pais, padrinhos e o batizando por meio do batismo; entre os noivos e as testemunhas de seu casamento e em outros atos. 15. BRUGGER, 2007, p. 318.

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abaixo. Como podemos visualizar uma série de informações importantes podem ser retiradas dessa fonte. A Imagem 1 mostra a página do livro de Batismos da Freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838 -1888, na qual estão registrados os batismos de Merenciana, Desideria crioula, Nasaria crioula, Narcisa e Eva. Geralmente, o registro estava dividido em duas “colunas”. Na primeira constava, muitas vezes, o nome da pessoa a ser batizada, “cor” e/ou estatuto jurídico, na segunda os dados referentes aos batizandos, pais e padrinhos, a assinatura do clérigo responsável pelo registro, além de outras informações como as descritas no tópico anterior. Imagem 1 – Batismos de Merenciana, Desideria crioula, Nasaria crioula, Narcisa e Eva, freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, província de Minas Gerais, 1846

Fonte: livro de Batismos da Freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838 -1888. (Arquivo Paroquial)

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Já na freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé, província do Rio de Janeiro, no dia 20 de janeiro de 1838, foi batizado Justino, filho legítimo16 de Francisco e Joanna, todos escravos pertencentes a João Pereira Machado. Na ocasião, os pais do batizando escolheram como padrinhos os cativos Manoel e Luiza, propriedades de outro senhor chamado Francisco Pereira da Silva. No batismo de Justino, as relações estabelecidas pelos pais, padrinhos e o batizando, as quais se estendiam para o seu cotidiano, solidificaram relações dentro das comunidades escravas, que podiam, e esse foi o caso, extrapolar os limites das propriedades, com padrinhos oriundos de uma escravaria distinta da dos pais do batizando.17 Os vários estudos sobre o tema, com métodos, perguntas e inquietações diferentes indicam alguns padrões/tendências que caracterizavam o batismo de escravizados e a formação de laços de parentesco consanguíneos e espiritual/ritual (compadrio). As estratégias, experiências, solidariedades e sociabilidades estabelecidas por pais e mães dos inocentes, adultos batizados e dos padrinhos e madrinhas, naqueles sacramentos se deram de maneiras múltiplas e foram horizontais (entre pessoas de mesmo status social) e verticais (entre indivíduos de diferentes status sociais), com companheiros de mesma escravaria, com padrinhos “divinos” (Nossa Senhora; São Benedito, etc.), com africanos e/ou crioulos (MACHADO, 2008; BACELLAR, 2014; BRUGGER, 2007; SLENES, 1997). Naquela mesma freguesia, os adultos Porfilio, Trajano, Annibal, Pompeo, Antonio, Rebeca, Aura, Sara, Concordia, Raquel e Lia, pertencentes a Domingos Jose de Oliveira Maia, foram batizados em uma mesma cerimônia, no dia 24 de junho de 1849. No momento do batismo, escolheram e/ou foram escolhidos como padrinhos os africanos Jose Benguela e Maria 16. Os filhos legítimos eram aqueles cujos pais casaram-se perante a Igreja Católica. Os naturais, ou ilegítimos, eram os filhos de pais que não sacramentaram sua relação por meio do matrimônio. No caso desses últimos, os motivos foram diversos, no entanto, não significa que pelo fato de não terem se casado perante a Igreja não havia relações sólidas e duradouras e que eles viviam em relações promíscuas. Outros termos, a partir das relações entre seus pais podiam ser utilizados para definir essas crianças: espúrios (relações sexuais com meretrizes); adulterinos (um ou ambos os pais eram casados); sacrílegos (um dos pais pertencia ao ambiente religioso); incestuosos (união carnal entre parentes por sangue ou afinidade até o quarto grau) (LOPES, 1998). 17. Livros de Batismos da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé: Livro 02 – 1838 à 1849, f. 1 (Laboratório de Documentação Histórica – PPGH Universo, Doravante LADOCH).

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Conga, também propriedade de Domingos Jose.18 Portanto, as relações de parentesco espiritual foram tecidas dentro da própria comunidade escrava na qual estavam inseridos. Isto deve ter sido vital para esses “estrangeiros”, provavelmente sem laços familiares, reconectar/reinserir suas relações de sociabilidade, solidariedade e de parentesco, pois, ao que parece, eram escravizados “recém-chegados”. Nesse sentido, o compadrio foi fundamental. Para os padrinhos estabeleciam-se também as mesmas relações e ainda a responsabilidade para com eles e, em contrapartida, respeito e deferência por parte de seus afilhados. Com relação ao batismo de adultos, se engana quem pensa que esses indivíduos, batizados coletivamente, tiveram sempre o mesmo padrinho e a mesma madrinha. As fontes demonstram que havia outras possibilidades de apadrinhamento/amadrinhamento. Os padrinhos e madrinhas ajudavam a consolidar laços já existentes ou aumentar a rede de parentesco constituindo o que denominamos família extensa19 (parentesco consanguíneo e espiritual). O cura João Luis da Trindade batizou, em dezembro de 1838, Ireas uma inocente20 filha de escravos: Aos vinte e oito dias do mês de dezembro de mil oitocentos e trinta e oito nesta capella do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo batizou solenemente e pos os santos óleos o padre Ignácio Ferreira de Lacerda na inocente Ireas filha legítima de Mariano Angolla e de sua mulher [?] crioula escravos do capitão Felisberto da Silva Gonçalves forão padrinhos Mariano Brás Nogueira e Jesuína Maria da Conceição todos deste curato e de que tudo fiz este assento.21

O registro de batismo da inocente Ireas nos oferece, além das variáveis quantitativas, muitos elementos sobre a sua vida e as relações advindas a 18. Livros de Batismos da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé: Livro 02 – 1838 à 1849, f. 241v (LADOCH). 19. A família extensa é aquela que extrapola os “limites” consanguíneos. Trata-se de uma família mais ampla a partir do convívio familiar e da(s) comunidade(s) escrava(s). Ou seja, trata-se da família intergeracional e ampliada, baseada no parentesco consanguíneo e no ritual. Portanto, a família se estendia muito além dos limites de qualquer unidade domiciliar ou consanguínea. Podia atravessar os limites legais da condição de escravo, por meio das relações oriundas entre cativos e pessoas livres e libertas 20. Termo usual na documentação assim como párvulo, párvula. Por inocentes entendiamse as crianças – geralmente com menos de sete anos – que ainda não comungavam. 21. Livro de batismo nº 1, Matriz do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, 1838-1864, Argirita, MG.

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partir deste sacramento, alguns por si só perceptíveis no registro, outros que inferimos com a leitura dos livros de batismo. Esse registro de batismo, nos possibilita conhecer a data do batismo, a localidade, o pároco responsável, a legitimidade das relações familiares e diversos aspectos do batizando, pais e padrinhos. Ireas era filha legítima de um africano com procedência conhecida, Mariano Angola e de sua mulher [? ininteligível] crioula, uma escrava nascida no Brasil. Além disso, seus pais tinham uma ligação matrimonial legalmente sancionada pela Igreja Católica, já que o pároco a descreveu como “filha legítima”. Se não fosse assim ela, teria sido designada como “filha natural”. Os padrinhos eram livres, o que, dada a importância desse vínculo, aumentou as redes de sociabilidades/solidariedades para além da comunidade escrava. Era comum que os padrinhos e madrinhas fossem de estatutos jurídicos diversos. Sem dúvida teciam-se a partir desse sacramento vínculos importantes para o cotidiano de mãe, pai, batizandos, padrinhos, madrinhas. Para Mariano Angolla, pai de Ireas, a retomada de uma vida social interrompida traumaticamente pelo tráfico deve ter sido imprescindível. Retirado de sua nação Angola, sua (re)inserção em uma comunidade se solidificou quando se casou com uma escrava crioula, ou seja, nascida no Brasil e, provavelmente, com muitos laços familiares e de sociabilidade consolidados aos quais ele se inseriu. Por intermédio do batismo de sua filha ele conseguiu também estabelecer laços de compadrio com indivíduos de condição social livre. No caso de Ireas, seus pais, casados legalmente perante a Igreja, eram da mesma condição escrava e pertenciam a um mesmo proprietário, ou seja, residiam na mesma propriedade. Para esta família, o estabelecimento desses laços, a partir do sacramento do batismo, deve ter sido de extrema utilidade, pois pais, padrinhos e a inocente passaram a estabelecer, a partir desse evento, uma ampla rede de solidariedade. Diferente do casal acima foram as relações de compadrio estabelecidas por Novata, escrava e parda, que pertencia a Antonio Alves Pedroza. No batismo de Custodio, seu filho natural, nascido no dia 22 de outubro de 1843, e batizado no dia 26 de dezembro do mesmo ano, Novata escolheu como pais espirituais de seu filho Serafim Rodrigues e Oliveira, provavelmente homem livre, já que não há menção a outro estatuto jurídico (liberto ou forro), e como madrinha Protetora Nossa Senhora. Um podia interceder/ 108

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proteger seu afilhado junto ao mundo dos homens e a outra perante os anjos e santos da corte celestial.22 Expusemos aqui apenas algumas das relações de apadrinhamento. O compadrio foi muitas vezes multifacetado. Características como idade dos batizandos, “cor”, legitimidade, origem e status social não foram impedimentos para que se estabelecessem extensas redes de compadrio e, consequentemente, a formação da família ampliada. Inocentes e adultos tiveram relações de parentesco espiritual com padrinhos/madrinhas de condições sociais diversas, e no caso dos de mesma condição social, essas relações extrapolaram, muitas vezes, os limites geográficos das escravarias, demonstrando que as comunidades escravas eram bastante dinâmicas.

Matrimônio: “Conforme o direito Divino, e humano os escravos, e escravas podem casar com outras pessoas captivas, ou livres e seus senhores lhe não podem impedir o Matrimonio (...)”23 Em primeiro dia do mês de outubro de mil oitocentos e quarenta e cinco no oratório da Fazenda Lirio nesta Freguezia de Nossa Senhora das Neves do Certão do Rio Macahe pelas honze horas da manha tendo sido antes proclamados três dias festivos e confessados sem impedimento algum recebi em Matrimonio compalavras de presente a Simão de Nação Moçambique com Felecidade Conga e Cesario de Nação Mina com Felizarda Crioula todos escravos de Antonio Jose Ferreira Braga, senhor da dita Fazenda Lirio o qual presente estava estando presentes por testemunhas Domingos José Pereira Matter e Justino Joaquim de Figueiredo os quais assinarão a certidão que no mesmo ato comigo assinarão o qual aqui lancei neste livro e para constar fiz este assento que assino aos cinco dias do mesmo mês e ano era ut supra. O vigario encomendador Padre Jose Antonio de Sequeiros.24 22. Livros de Batismos da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé: Livro 02 – 1838 à 1849, f. 35 (LADOCH). 23. Constituições Primeiras (...), Título LXXI, p. 125. 24. Livros de Casamentos da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé: Livro 01 – 1848 à 1855, f. 1 (LADOCH).

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O matrimônio foi outro sacramento em que podemos encontrar escravizadas, escravizados e egressos do cativeiro. Assim como o batismo e o óbito, possuía uma maneira determinada para a redação dos registros e que permitem análises qualitativas e quantitativas25. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia determinavam que no sacramento do casamento: “O Varão para poder contrahir Matrimônio, deve ter quatorze anos completos, e a femea doze annos também completos salvo quando antes da dita idade, constar, que tem discrição, e disposição bastante que supra a falta daquella (...)”.26 Ainda segundo as Constituições Primeiras, o senhor não poderia impedir o casamento com ameaças ou maus tratos e os cativos podiam contrair matrimônio com pessoas cativas ou livres. Aquele sínodo diocesano determinava ainda que não se deveria separar por venda os escravos casados. Entretanto, ao mesmo tempo em que dava aos escravos esses “direitos”, assim como no caso dos batismos, a Igreja determinava que o cativo não sairia de sua condição de escravizado e permanecia pertencendo a seus senhores. Mesmo casado com pessoas livres ou libertas, se via obrigado a lhe prestar serviços.27 Diversas informações podem ser retiradas dessa documentação. Assim como os batismos, casamentos coletivos não eram raros. No matrimônio é possível saber: a data; horário e local do casamento e, claro, como trata-se de uma fonte nominativa, os nomes daqueles que estavam se casando e o das 25. A redação deveria ser a seguinte: “Aos tantos de tal mez, de tal anno pela manhã, ou de tarde em tal Igreja de tal Cidade, Villa, Lugar, ou Freguezia, feitas as denunciações na forma do Sagrado Concilio Tridentino nesta Igreja, onde os contraentes são naturaes, e moradores, ou nesta, e tal, e taes Igrejas, onde N. contrahente é natural, ou foi, ou é assistente, ou morador, sem se descobrir impedimento, ou tendo sentença de dispensação no impedimento, que lhe sahio, como consta da certidão, ou certidões dos banhos, que ficão em meu poder, e sentença que me apresentárão, ou sendo dispensados nas denunciações, ou diferidas para depois do Matrimonio por licença do Senhor Arcebispo, em presença de mim N. Vigario, Capellao, ou Coadjutor da dita Igreja, ou em presença de N. de licença minha, ou do senhor Arcebispo, ou do Provisor N., e sendo presentes por testemunhas N. e N., pessoas conhedicas, (nomeando duas, ou três das que se acharão presentes) se casarão em face da Igreja solemnemente por palavras N. filho de N., e de N., natural, e morador de tal parte, e freguez de tal Igreja, com N. filha de N., ou viúva que ficou de N. natural, e morador de tal parte, e Freguezia desta, ou de tal Parochia: (e se logo lhe der as bençãos acrecentará) e logo lhe dei as bençãos conforme os ritos, e ceremonias da Santa Madre Igreja, do que tudo fiz este assento no mesmo dia, que por verdade assignei.” Constituições Primeiras (...), Título LXXIII, p. 130 26. Constituições Primeiras (...), Livro I, Título LXIV, p. 109 -110. 27. Constituições Primeiras (...), Título LXXI, p. 125.

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testemunhas do casamento. Um ponto importante que devemos destacar é que, não raro, como diversos estudos já demonstraram, é possível encontrar casamentos entre indivíduos de diversos estatutos jurídicos: livres casando-se com livres; escravos com escravos; livres com forros; forros com escravos; livres com escravos; etc. Como estamos analisando registros de escravizados, é possível saber o nome de seu proprietário; sua origem – africanos ou crioulos, e no caso dos africanos qual a sua procedência – Moçambique; Congo e Mina. Nesse sacramento era possível também, em alguns casos, saber se alguns dos envolvidos no sacramento eram egressos do cativeiro, ou seja, ex-escravos (exemplo Imagem abaixo). Imagem 2 – Matrimônio dos escravos Vito crioulo com Christina Conga e Nicolao Congo com Virginia crioula, Freguesia de Nossa Senhora das Neves e Santa Rita do Serão do Rio Macahé – 1846

Fonte: Livro 1 de matrimônios freguesia Nossa Senhora das Neves e Santa Ritta do Sertão do Rio Macaé, 1848 – 1855. (LADOCH).

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Assim como os registros de batismos, os livros de casamentos estavam divididos em duas colunas. Na primeira constavam o nome dos que estavam casando e, muitas vezes, sua “cor”, condição jurídica e na segunda, a partir da redação estipulada pelas Constituições Primeiras, o registro com informações sobre os noivos, testemunhas, dia do casamento, condições jurídicas etc., ao final vinha o nome do vigário que realizou o sacramento. Não raras vezes, pelos registros de matrimônio podemos conhecer a ascendência dos nubentes, o que qualitativamente constitui-se como uma informação importante para analisar as escravarias. O casamento, além de ajudar a compreender a dimensão dada à família, teve papel importante na medida em que aumentava a família nuclear (mãe, pai e filhos(as)), transformando-a muitas vezes, pela incorporação de outros sujeitos (de diversas condições jurídicas), em famílias extensas, estáveis e intergeracionais. A formação da família muitas vezes passou pela instituição do casamento formal, sancionado pela Igreja, contudo é importante ressaltar que havia muitas famílias provenientes de outras relações. A família entre os cativos não passava necessariamente pelo reconhecimento da Igreja. Os laços familiares se desenvolveram amplamente dentro das relações ditas ilícitas. Se não chegavam a formar famílias legítimas, não significava que viviam em promiscuidade sexual e em ligações temporárias. Nesse sentido, tradições e heranças culturais africanas sobre o casamento ajudam a compreender essa não necessidade em sacramentar aos olhos da igreja suas uniões. Outrossim, a ilegitimidade foi, muitas vezes, reflexo dos costumes senhoriais, mais do que do desinteresse dos escravizados pelo matrimônio, ou seja, suas taxas de matrimônio variaram de acordo com o compromisso dos senhores na formalização dos enlaces de seus escravos, levando uniões consensuais a serem documentadas.28 No dia primeiro de fevereiro de 1870, na Matriz de Santo Antonio de Juiz de Fora, província de Minas Gerais, ocorreu o casamento entre Emilio, africano livre, e a escrava Ignacia pertencente à Viscondessa de Uberaba. As testemunhas do enlace foram Manoel e José e a noiva era filha legítima de 28. REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. A família negra no tempo da escravidão: Bahia, 18501888. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas, 2007, p. 75. (Tese de Doutorado em História).

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Custódio e Mathildes.29 Embora o registro não diga, é possível pensar que as testemunhas e os pais de Ignacia fossem cativos já que não há menção a seu sobrenome. O cruzamento de fontes talvez possa ajudar a elucidar essa questão. No entanto, para além dessas indagações o importante aqui é perceber a riqueza de informações que podem ser encontradas. Era um casamento entre uma escravizada, filha de pais casados perante a Igreja católica, com um africano livre, ou seja, um indivíduo que entrou no Brasil, após a proibição do tráfico em 1831, portanto, via tráfico ilegal o que lhe conferiu o termo de “africano livre” e que passava agora a (re)conectar seus laços. Já no dia 26 de fevereiro de 1884, na mesma localidade, casaram-se, o viúvo livre, Rufino Elias da Silva e a cativa Francisca, pertencente à Dona Ritta de Cassia Tostes, viúva de Antonio Dias Tostes. Foram testemunhas o Dr. Feliciano Duarte Penido e Ottoni da Silveira Tristão. Outros dois casamentos foram realizados no dia 28 de agosto de 1887, unindo a livre Antonia Maria da Conceição, filha legítima de Adão Antonio da Costa e Anna Rita dos Santos, com Marcelino, escravo de Dona Rotta Dias Tostes. As testemunhas foram Pedro Dias Tostes Felicidade Pérpetua de Jesus.30 O outro enlace foi o que uniu, a também livre Deolinda Anna de Jesus e o cativo Ananias. Deolinda era filha legítima de Adão José da Costa e Barbara de Jesus e segundo o registro os contraentes eram “nascidos e batizados” em Juiz de Fora. Esse casamento, teve duas mulheres como testemunhas Dona Maria de Queiros Americana e Maria do Carmo.31 Os enlaces matrimoniais entre cativas(os) libertas(os) com cônjuges escravas(os) não eram incomuns como o que se deu entre Joanna, africana liberta, e Manoel, também africano, escravo do Comendador Henrique Guilherme Fernando Halfeld, e foi celebrado no dia 17 de novembro de 1872.32 Entre os anos de 1887 e 1888 aconteceu o casamento do escravo Candido, propriedade de Generoso Dias Tostes, e a liberta Cassiana Maria de Jesus. Nesse casamento não houve testemunhas.33 Já no ano de 1882 aos 31 dias do 29. Catedral Metropolitana de Juiz de Fora. Livro 02, 1864/1887, f. 56. 30. Catedral Metropolitana de Juiz de Fora. Livro 04, 01/1887 – 01/1889, f.45. 31. Catedral Metropolitana de Juiz de Fora. Livro 04, 01/1887 – 01/1889, f.55. 32. Catedral Metropolitana de Juiz de Fora. Livro 02, 1864/1887, f.89. 33. Catedral Metropolitana de Juiz de Fora. Livro 04, 01/1887 – 01/1889, f.70.

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mês de maio, casaram-se perante a Igreja Evaristo, crioulo, 36 anos, escravo de Dona Ritta de Cassia Tostes, e Philomena Maria de Jesus, liberta. As testemunhas foram Severino Luis da Silva e Lusia Perpetua da Silva. Esse assento de casamento é muito interessante. O mesmo o pároco descreveu informações a respeito dos noivos. Sabemos pelo registro que Evaristo era natural da Bahia e que foi comprado pelo esposo de Dona Ritta, o capitão Antonio Dias Tostes, em dezembro de 1873, do senhor Francisco Albino da Costa Freiras; e que Philomena era ex-escrava do casal, nascida e batizada em Juiz de Fora, tendo sido liberta em testamento pelo capitão Tostes.34 O cruzamento do matrimônio com os batismos, óbitos, e outras fontes, permite ampliar o conhecimento das histórias de muitos núcleos familiares. Estudos longitudinais, pelo cruzamento dessas e outras fontes, possibilitam encontrar dentro das famílias, além do casamento, redes de parentesco integradas, nas quais as uniões de “longa” duração entre os escravos não foram incomuns. Óbitos e escravidão: ritos fúnebres Aos três de janeiro de mil oitocentos e dose nesta Parochial Igreja de Nossa Senhora das Neves da Aldea do Rio Macae encomendei e no Adro da mesma dei sepultura a Antonio solteiro de idade pouco mais ou menos de vinte e cinco anos escravo de Custodio Jose Teixeira Pinto da Fazenda da Atalaya desta Freguesia faleceo sem sacramentos por morrer afogado no Rio foi amortalhado em um lençol de algodão do que para constar fiz este assento era ut supra. O Vigario João Bernardo da Costa e Resende.35

Os registros de óbitos compõem a tríade dos sacramentos mais bem documentados e, por motivos diversos, também os mais procurados.36 A 34. Catedral Metropolitana de Juiz de Fora. Livro 03, 1883/1887, f, 38. 35. Livro de Óbitos da Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé. Livro 1, 1809 – 1847, f. 12v. (LADOCH). 36. A redação deveria ser: “Aos tantos dias de tal mez, e de tal anno falleceo da vida presente N. Sacerdote Diacono, ou Subdiacono; ou N. marido ou mulher de N. ou viúvo, ou viúva de N., ou filho, ou filha de N., de lugar de N., freguez desta, ou de tal Igreja, ou forasteiro, de idade de tanso annos, (se comodamente se puder saber) com todos, ou tal Sacramento, ou sem eles: foi sepultado nesta, ou em tal Igreja: fez testamento, em que deixou se dissessem tantas Missas por sua alma, e que se fizessem tantos Officios; ou morreo ab intestado, ou era

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preocupação “com uma boa morte” era de homens e mulheres de todas as condições jurídicas e não era diferente para escravizados e ex-escravizados, africanos e crioulos, com suas tradições sobre a morte e o além ou socializados nelas, “De suas terras de origem, os africanos haviam trazido ritos fúnebres e sofisticadas concepções sobre o Além.” (REIS, 1997, p. 98.). Neles é possível ter acesso às informações derradeiras dos indivíduos. Moléstias, condições de saúde, causa mortis, idade, data, sexo, procedência, origem, proprietário(a), sacramentos ministrados, local de sepultamento, dentre outros são informações que aparecem nos registros de óbitos (GOMES, KODAMA e PIMENTA, 2012; RODRIGUES, 2005; REIS, 1991). O estudo desse tipo de documentação revela muitos dos aspectos sobre a escravidão, os escravizados e os egressos do cativeiro e, claro, das agruras do sistema. Essa documentação permite, portanto, ter acesso às mortes e aos mortos e, por meio delas, calcular as taxas de mortalidade de homens e mulheres; crianças, jovens, adultos e idosos; africanos e crioulos, nas sociedades analisadas; fator muito importante, por exemplo, para comparar taxas de nascimento e mortes, expectativa de vida. Não é raro encontrar cativos morrendo por acidentes “de trabalho”, suicídios, homicídios mostrando muitas vezes tragédias individuais e “iluminam o custo em vidas da escravização dos africanos e da falta de cuidado com seus filhos.” (KARASCH, 2000, p. 144).

notoriamente pobre, e por tanto se lhe fez o enterro sem se lhe levar esmola”. Constituições Primeiras (...), Livro Quarto, Título XLIX, p. 292.

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Imagem 3 – óbitos de Maria, Thereza, Margarida e Balbina, Freguesia de Nossa Senhora das Neves, 1873

Também dividido em duas “colunas”, o registro de óbito trazia na primeira o nome do falecido e podia informar sua “cor”, condição jurídica, e na segunda informações sobre sua morte, sacramentos ministrados naquele momento, local de sepultamento, condição jurídica do falecido, proprietários(as), origem (africano ou crioulo), procedência (bahia, mina, angola etc), relações familiares etc.

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Ao analisar o livro de óbitos da freguesia de São José do Barreto, província do Rio de Janeiro, nos deparamos com um registro feito em julho de 1868, naquele momento foi sepultado e encomendado, pelo Vigário no Cemitério da Matriz de São José do Barreto (pertencente a Macaé), o cadáver de Eliziaria, escrava de Antonio de Freitas Caldas, segundo o Vigário Joaquim Coutinho a causa da morte “proveio de uma congestão cerebral.”37 Teria sido essa uma causa natural, ou Eliziaria recebeu um forte golpe na cabeça, de seu senhor, do feitor, de um companheiro de infortúnio ou terá sido um acidente que resultou na tal “congestão cerebral”? Somente com o registro de óbito pergunta difícil de responder. Caso não tenha sido um acidente o cruzamento deste registro com a imprensa, bem como a análise de um possível processo criminal, ajudaria em muito para conhecermos a história dessa personagem. Além disso, um bom trabalho de pesquisa com os batismos e casamentos teria grandes possibilidades de encontrá-la, em outros momentos, de modo a demonstrar suas relações familiares, de solidariedade, de sociabilidade e comunitárias. Outro aspecto importante dos registros de óbito como fonte de pesquisas tem se mostrado nos trabalhos sobre a história das doenças. Muitas vezes os cativos vinham a óbito por conta de uma comorbidade aumentada devido às condições sanitárias impostas pelo sistema de trabalho escravo; doenças do sistema digestivo; sistema respiratório; primeira infância; gravidez/ parto, tuberculose, diarreia, varíola, pneumonia, malária dentre outras eram moléstias que causavam doenças e mortes de escravizados e que podemos ter acesso pela leitura das fontes. Em outras palavras, os escravos morriam em maior número de moléstias cuja incidência diminui à medida que os padrões de vida de um grupo populacional melhoram. Os escravos que eram “mal alimentados, malvestidos, expostos a todos os danos do ar [e] submetidos a um trabalho quase contínuo” não podiam preservar sua saúde ou resistir aos ataques das doenças. O resultado era uma inevitável “despovoação” entre os escravos, ou, como admitia o ator de um manual do agricultor, a América “devorava” os negros (KARASCH, 2000, p. 258). 37. Livro de Óbitos Freguesia São José do Barreto, Livro 3 – 1868 – 1888, f.3 (LADOCH).

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No dia três de janeiro de mil oitocentos e doze foi sepultado Antonio solteiro, de mais ou menos 25 anos. O estado conjugal de Antonio aponta que ele não tinha casamento sacramentado pela Igreja, no entanto, os registros estão repletos de menções com as quais é possível determinar outras relações familiares, sobretudo aqueles entre pais, mães e filhos. No momento de seu sepultamento a causa mortis apontada foi o “afogamento” e seu corpo foi amortalhado em “lençol de algodão”, prática comum para muitos dos cativos enterrados na colônia/império. Contudo, Antonio faleceu sem sacramentos provavelmente, sem a confissão e a extrema-unção, por ter falecido por conta de um “acidente”. Antonio, como era batizado, teve o “direito” de ter sido enterrado pelo Vigario.38 O afogamento de Antonio teria sido obra do acaso ou suicídio? Difícil responder apenas com esse registro, contudo o suicídio não deve ser descartado, sobretudo, pelo fato de não ter recebido os sacramentos. De todo modo, suicídio ou acidente, para aquele sujeito, de acordo com tradições africanas e nas quais muitos crioulos foram socializados, esse foi um evento possível de levá-lo de volta aos seus ancestrais, pois o “afogamento e o enforcamento em árvores, significativos no contexto das crenças africanas, facilitariam a passagem de seus espíritos para a terra natal. Os que afogavam talvez acreditassem que a água era a barreira (Calunga) que tinham de cruzar para chegar à África e reunir-se aos ancestrais.” (KARASCH, 2000, p. 418). Os viajantes que visitaram o Brasil ao longo do século XIX evidenciaram o suicídio como um dos motivos para a morte de muitos escravizados. Essa atitude extrema demonstrava o desejo de fugir da escravidão ou de poupar algum parente dela, como no caso do infanticídio. Como já dissemos, nos óbitos também é possível encontrar referências às relações familiares dos cativos. Alguns meses depois do “afogamento” de Antonio, no dia doze de novembro do mesmo ano e na mesma localidade, foi feito o registro de óbito de outro indivíduo com o mesmo nome, era Antonio solteiro, 15 anos, filho de Francisco Cabiuna e Maria, todos escravos de Custódio José Teixeira Pinto e Companhia da Fazenda chamada Atalaya. Antonio foi sepultado, sem sacramento devido, segundo o registro, a 38. Livro de óbitos Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé. Livro 1, 1809 – 1847, f. 12v. (LADOCH).

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“incúria de seu senhor” e foi amortalhado em pano branco. Um dia após o sepultamento de Antonio, sepultou-se Narciso inocente filho de Antonio alfaiate e Maria, todos escravos do mesmo senhor acima descrito. O inocente tinha três meses, foi amortalhado em pano branco e enterrado “dentro e não no Adro” da Igreja. Informações como essas, quando contrastadas com os batismos e casamentos permitem alargar o conhecimento da família extensa (relações consanguíneas e espirituais).39

Considerações finais Os registros paroquiais de batismo, matrimônio e óbitos, como já dissemos, são fontes muito ricas e importantes para estudos sobre diversos aspectos do cotidiano das populações. Trata-se de fontes seriais que, apesar dos sub-registros, da falta de conservação dos documentos e da atuação correta ou não dos párocos, propiciam análises quantitativas e qualitativas para os interessados na demografia, no cotidiano, nas relações familiares e rituais/espirituais, as mentalidades etc. A utilização dessas fontes e seu cruzamento com outros documentos permite alargar o conhecimento dos indivíduos/populações pesquisadas. Aqui, expusemos algumas poucas possibilidades de utilização de corpus documental para análises sobre a escravidão. Para tanto, o leitor poderá utilizar os diversos arquivos eclesiásticos pelo país e em alguns casos localizar a documentação por vezes escondida nas paróquias. Igualmente, pode se valer de documentos disponibilizados na internet e, claro, utilizar os trabalhos desenvolvidos nos diversos Programas de Pós-graduação no Brasil e no exterior, sobretudo, nas Ciências Humanas. Existe também para populações livres, escravas e libertas/forras em diversos recortes cronológicos e geográficos uma farta literatura sobre alguns dos temas aqui expostos e outros dos quais não foi possível tratar, o que, sem sombra de dúvidas, possibilita o diálogo e comparações/conexões com outros espaços. Nosso intuito é o de estimular o leitor para que utilize esse tipo de fonte para suas pesquisas e/ou ensino. Se alguns se lançarem na empreitada já estaremos satisfeitos. Ao trabalho! 39. Livro de Óbitos Freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé. Livro 1, 1809 -1847, f.21. (LADOCH).

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Desenhando corpos, construindo liberdades: uma prosopografia das fugas no Rio de Janeiro

Tânia Pimenta | Fiocruz Layla Silva | Coc, Fiocruz Flavio Gomes | UFRJ

No Brasil, até meados do século XX, a literatura historiográfica abordava uma escravidão genérica, perspectiva quase a-histórica. Posteriormente um debate (totalmente esquecido nas abordagens contemporâneas) ganhou força com a emergência de modelos teóricos que redefiniram a ideia de um escravismo (MARQUESE, 2012 e 2013). Nas últimas décadas, renovadas gerações de historiadorxs têm se debruçado sobre fontes e acervos.1Mais e mais dimensões da escravidão têm sido investigadas considerando fundamentalmente – à luz de categorias, conceitos, exercícios empíricos e metodologias – as experiências dos escravizados. E é possível perscrutar mais sobre fugas e fugitivos. Entre os anúncios publicados nos jornais e os registros prisionais existe um universo social que, muitas vezes, fica completamente encoberto para o historiador (HEUMAN, 1985). A despeito de qualquer tentativa de classificação, a fuga era uma ação única e vivenciada diferentemente por cada indivíduo, levando em consideração desde o meio em que vivia – área urbana ou rural – sua naturalidade e sexo, até sua socialização, incluindo aí mundos 1. Ver o pioneirismo em Slenes, 1983 e 1985.

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do trabalho, relações de poder senhorial, domínios e sociabilidades. Ainda pouco exploradas, os anúncios de fugas (e há aqueles de compra, venda e aluguel) podem ser utilizados como ferramentas para analisar as imagens sobre corpos, identidades e comportamentos de senhores e escravizados. Neste capítulo propomos uma abordagem que possa sugerir a produção de uma prosopografia da escravidão urbana carioca a partir das fugas e os anúncios de fugitivos.2

Escapadas, interpretações e cidades negras Nas cidades, escapadas e fugidos conformavam paisagens e personagens. Fugitivos – nascidos no Brasil ou africanos – não eram tão-somente rebeldes, recalcitrantes ou obtusos, como apareceram na historiografia. Nos periódicos oitocentistas abundam informações sobre complexos mundos urbanos. Porém, mesmo considerando milhares de anúncios nos jornais e os registros prisionais envolventes, ainda pouco sabemos sobre as intenções e expectativas daqueles que escapavam e procuravam se manter escondidos. As fugas – e mais ainda as suas dimensões nos espaços urbanos – não podem ser banalizadas, classificadas como repetitivas ou cristalizadas em atos heroicos. Havia muito de política nas decisões de escapar e mais ainda de como se manter escondido, principalmente nas cidades. Cativos não fugiram apenas para causar prejuízo senhorial ou escapar de recorrentes castigos físicos. Mais do que somente «inadaptados» (MATTOSO, 1982) ao regime escravista – extenuante carga de trabalho e péssimas condições de vida – ajudaram a redefinir os significados do cativeiro e da liberdade.3 Os anúncios de fugas têm se revelado fontes ricas. Periódicos oferecem através deles faces e cotidiano da vida escrava, para além dos fugitivos. Várias questões podem ser consideradas. Há um breve período entre as ocasiões das fugas ou desaparecimentos e as datas dos anúncios. Este intervalo pode revelar como alguns senhores – habituados com o volume e frequência das escapadas de seus cativos – esperavam algum tempo para desencadear o processo de 2. Para destacados estudos sobre escravidão urbana no Brasil, ver: Algranti, 1988; Carvalho, 1998; Karasch, 2000; Silva, 1988; Soares, 2007 e Wissenbach, 1993. 3. Ver uma abordagem sobre anúncios e fugas em Read & Zimmerman, 2014.

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captura, no caso a comunicação às autoridades ou a contratação de capitães do mato. Nas ambiências urbanas, talvez alguns proprietários percebessem determinadas fugas como temporárias (como petit marronage), qual seja “costumeiras”, aguardando eventuais retornos dos seus cativos. Muitas escapadas eram mesmo curtas, assim interpretadas pelos senhores. É certo que – para desespero e incalculáveis prejuízos senhoriais – muitos fugidos continuaram ausentes por longos períodos ou jamais foram capturados. Já as escapadas endêmicas revelam como fugitivos organizavam espaços a sua volta. Não poucos fugiam para visitar “parentes”. Alguns anúncios foram repetidos por meses e até anos. Episódios de senhores que depois de anos continuavam anunciando sobre seus cativos em fugas. Restava sempre uma esperança de recuperar antigos fujões. Estudos já indicaram a importância das variáveis sobre a ocupação dos cativos nos perfis das fugas. Há índices reveladores, por exemplo, sobre ocupações especializadas de fugitivos: carpinteiros, ferreiros, alfaiates, costureiras etc. (LIMA, 1998 e COLISTETE, 2021). Aqueles com ocupações especializadas não necessariamente fugiam mais, porém talvez fossem menos capturados. Procurando proteção e fazendo valer a sua utilidade diante da ocupação e especialização laboral, conseguiam manterem-se maior tempo ausentes (NEVES & GOMES, 2010). Quais as faixas etárias dos fugidos anunciados? Tomando como referência a Corte do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XIX verifica-se que os africanos fugiam mais na faixa de 10 a 15 anos, sendo que os nascidos no Brasil faziam o mesmo na faixa dos 21 a 30 anos. Africanos não só escapavam em maior número e quando eram mais jovens. Mesmo alguns “boçais” (como eram denominados os africanos recém-chegados), pouco conhecendo as cidades, não demoravam muito para arriscar botar o pé na estrada. Segundo vários estudos sobre fugas, estas representaram uma atitude individual, ou seja, na maioria das vezes os cativos fugiam sozinhos. Não obstante, em alguns anúncios há evidências de escapadas coletivas, com a participação de dois, três, quatro ou mais cativos envolvidos, além de fugas envolvendo redes familiares (REIS, 1999 e 2001).

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São várias e diversas informações que aparecem nos anúncios de fugas, revelando um pouco mais da vida escrava urbana, ainda que interpretada sob o olhar senhorial. Mas de maneira geral, a historiografia brasileira pouco destaque deu às fugas, que apareceram mais como atos repetitivos – quase banalizados – da resistência e, supostamente, sem sentido político. (QUEIROZ, 1987) Algumas abordagens deram exclusivo destaque aos aspectos econômicos destas evasões sistêmicas. Os significados delas eram mais abordados pela perda por parte do senhor de seu produtor direto (o escravizado) e do lucro por ele gerado. Não poucos estudos generalizaram uma visão de que na maioria das vezes os cativos se evadiam porque eram muito castigados ou tinham como objetivo causar prejuízo aos seus senhores.4 Mas as fugas e os seus personagens estavam inseridas no cotidiano da escravidão. E os anúncios publicados nos jornais revelam muito mais do que protesto. É possível reconstituir universos sociais (relações de trabalho, violência, controle social, práticas de incentivos etc.), entender razões e significados (por quê, como e quando os escravizados escaparam?); estratégias (o que faziam para se manterem escondidos ou quais eram as possíveis direções tomadas?); solidariedades, tensões, ambiências, êxitos e fracassos (fugidos procuravam necessariamente as cidades ou se passar por libertos); reorganização social permanente da vida escrava (fugidos procuravam restabelecer laços familiares?) e as conexões entre fugitivos, escravizados e a população livre pobre.5 Estudo pioneiro foi o de Gilberto Freyre (1963), abordando os anúncios de jornais do século XIX. Partindo de uma perspectiva antropológica da época, analisou – sem qualquer preocupação metodológica quantitativa -- milhares de anúncios de Pernambuco e do Rio de Janeiro. Com base nos periódicos Diário de Pernambuco e o Jornal do Commercio, ofereceu um quadro analítico complexo. Segundo Freyre, os anúncios eram ricos em informações, visto que: “quem tinha seu escravo fugido e queria encontrá-lo 4. Ver, entre outros, Guimarães, 1988 e Maestri, 2003. 5. Ver também Schwartz (1987). Para um estudo clássico sobre fugas no Brasil, ver Goulart (1972). Outros estudos e novas perspectivas aparecem em Carvalho (1998), especialmente o capítulo 13, “A escolha de um senhor”; Flory (1979); Gebara (1986); Gomes (1996); Reis (1999); Silva (1989); Slenes (1987).

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precisava dar traços e sinais exatos. Fosse o anunciante embelezar a figura do fujão que era capaz de ficar sem ele para toda a vida” (FREYRE, 1979:26). Sobre as fugas ocorridas no mundo escravista urbano, uma abordagem exaustiva é oferecida por Marcus de Carvalho. Aponta para a grande pluralidade das fugas e o distanciamento espacial dos escravizados em relação aos senhores na Recife oitocentista (1998). Nas cidades, escravizados ampliavam ações e produziam expectativas de autonomia, desenvolvidas à revelia de seus senhores, como, por exemplo, viver longe da casa senhorial ou trabalhar além do jornal estabelecido para, com esse pecúlio, comprar a sua alforria. Karasch relacionou as fugas com a geografia do Rio de Janeiro em conjunto à escravidão urbana, perscrutando as formas, sentidos e possibilidades de fugas. (2000). Entre clássicos e pesquisas mais recentes são muitos os estudos cobrindo os anúncios de fugas em espaços urbanos de Belém, Salvador, São Paulo, Teresina, São Luís, Curitiba, Vitória, Cuiabá, Rio de Janeiro e Porto Alegre, assim como partes de Alagoas, Minas Gerais, Amazonas, Sergipe, São Pedro e Rio Grande.6

Desenhando corpos Os estudos sobre as imagens dos corpos, tópicas e descrições se destacam, entre as possibilidades analíticas – temas, objetos e abordagens –, a partir da utilização de anúncios de fugas. Amantino (2007) fez o levantamento no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro em 1850, identificando a estrutura nos anúncios, de acordo com a qual aparecem descrições e tópicas da conformação física, comportamento, costumes, sociabilidades etc. Ao selecionar 409 anúncios num total de 1.047, identificou diversas informações sobre as condições de saúde e compleição dos corpos dos africanos. A partir das condições físicas assinaladas, avaliou as principais causas para as fugas, 6. Ver: Abreu, 2014; Amantino, 2006, 2007; Bertin, 2021; Bezerra Neto, 1999, 2001, 2002, 2020; Brandão, 2004; Carvalho, 1997, 1998; Cavalcante, 2021, Colistete, 2021; Costa & Malaquias, 2016; Ferrari, 2005, 2010, 2015; Ferreira, 2010, 2011, 2020; Florentino, 2003, 2008, Gebara, 1986; Gomes, 1996; Maestri, 2003; Machado, 2004; Maneira, 2014; Mott, 2008; Mattos, 2008; Nascimento, 2019; Nepomuceno, 2020; Neves & Gomes, 2010; Ouriques, 2010; Pereira, 2013; Petiz. 2006; Reis, 1995-1996, 1999; Schwarcz, 1987; Silva, 1989; Silva, 2014; Silva & Silva, 2016; Slenes, 1987; Soares, 2003; Sott, 2018; Staudt, 2003 e Zanetti, 2002.

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individuais ou coletivas, classificando maus tratos, castigos excessivos, má alimentação e desrespeito aos direitos adquiridos. Da amostra total de anúncios analisados, 203 forneceram detalhes sobre características físicas como sinais de castigos, cortes de cabelos, marcas étnicas, falta ou desgaste de dentes etc. Havia também 206 anúncios que apresentavam descrição detalhadas de problemas físicos de acordo com o saber médico da época. Uma questão importante diz respeito à sistematização destas informações que, no caso apresentado, ocorreu com a tipologia proposta por Mendonça de Souza, “em que se classifica cada tipo de problema, condição patológica ou lesão de acordo com suas características anatômicas, patológicas ou etiológicas” (AMANTINO, 2007:1382). Aspectos anatômicos indicavam as regiões do corpo em que se apresentavam tais problemas, a despeito da patologia. São informações sobre lesões, cicatrizes, enfermidades etc. Evidências sobre enfermidades envolviam classificações sobre doenças carenciais, além daquelas infectocontagiosas, traumáticas, tumorais, reumáticas, psicossociais, de má-formação ou disfunções orgânicas. A autora destaca a descrição dos elementos sobre a etiologia que se referiam aos agentes causadores e a respectiva patologia quando esta pudesse ser identificada como queimaduras, infecções por certo tipo de vírus, bactérias, parasitas etc. Deve-se considerar também a importância de problematizar os anúncios como fonte, uma vez que muitos senhores deixariam de detalhar aspectos das condições físicas dos escravizados, pois bastavam algumas informações para identificar o indivíduo. Basicamente, destacavam as marcas que poderiam distinguir um escravizado em meio a outros tantos. Além disso, conforme Amantino (2007:1382-1383) aponta, os anúncios eram elaborados em linguagem leiga, o que reduziria a precisão dos termos das patologias. Em relação às condições patológicas, as doenças infectocontagiosas representavam quase 35%, seguidas de traumáticas (30,5%), de má-formação (19%) e carenciais (9,5%), entre outras com pequeno percentual. No primeiro grupo, a doença mais referida era varíola. As doenças traumáticas eram causadas, em geral, por queimaduras, fraturas ou feridas e estavam, muitas vezes, associadas a surras e uso de instrumentos de castigos. As enfermidades causadas por traumas junto com as carenciais apontam para condições ruins de vida e trabalho. Soma-se a isso as doenças de caráter psíquico que 129

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indicam pressões emocionais constantes, entre as quais se destaca a gagueira. A autora apresenta ainda outra forma de se verificar a situação física dos cativos urbanos, analisando patologias e relacionando-as com a anatomia, que indicaria que as lesões afetavam, sobretudo, membros superiores e inferiores e a cabeça. Outro aspecto explorado por Amantino diz respeito às marcas étnicas. Foram 191 anúncios onde aparecem características físicas organizados em cinco grupos: marcas feitas de acordo com a distinções das nações africanas e suas conexões nos corpos (17,5%) e nos dentes (21%); marcas de propriedade feitas pelos senhores (3%); sinais e cicatrizes (50,5%); e marcas de castigos nos corpos (7%). Conforme a autora pondera, provavelmente, os sinais e cicatrizes não foram feitos pelos escravizados, pois os anúncios costumam indicar as marcas étnicas. Desse modo, pode-se considerar que também refletem a violência do sistema contra os corpos cativos. Amantino argumentou que a busca por escravizados fugidos, ainda que doentes, passava mais pela lógica social de controle da escravaria do que pela lógica econômica. Com outras perspectivas, diferentes estudos analisaram os corpos dos escravizados a partir dos anúncios, considerando castigos físicos, má alimentação e identidades corporais.7 As abordagens a respeito do corpo escravizado constituem um ponto de convergência entre as historiografias da escravidão e da saúde (VIANA & GOMES, 2019). No Brasil, os estudos sobre saúde vêm sendo desenvolvidos por historiadores desde a segunda metade do século XX e se consolidaram, sobretudo, a partir da década de 1990 com a investigação de temáticas diversas como instituições e profissões biomédicas, epidemias, doenças, reformas sanitárias e urbanas, práticas de cura, relações entre raça, doença e saúde (TEIXEIRA et al., 2018; EDLER, 1998). Pesquisas voltadas para a história da medicina acadêmica mostram que podemos situar o início do processo de sua institucionalização no Brasil na primeira metade do século XIX, com a criação da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (1829), poucos anos depois transformada em Academia Imperial de Medicina (1835); das Escolas de Cirurgia (1808) de Salvador e do Rio de Janeiro, reorganizadas em 7. Ver também as abordagens de Jesus, 2016.

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Academias Médico-Cirúrgicas e, em 1832, em Faculdades de Medicina; e de periódicos especializados em medicina. Se pretendia identificar e relacionar as doenças que se desenvolviam no país, sobretudo, ao clima e à alimentação. Além disso, as faculdades contribuíram para o aumento quantitativo de médicos, ao menos nos centros urbanos maiores.8 Nesse contexto, os hospitais também representaram um importante local de aprendizado, exercício e construção do saber médico, em especial, os da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro e de Salvador que foram fundamentais no processo de estabelecimento da medicina clínica. Com isso, corpos – vivos ou mortos – passaram a ser o objeto principal da atenção. Procurava-se estabelecer vínculos entre sintomas e lesões orgânicas (FAURE, 2012). A partir daí, os corpos de africanos e seus descendentes foram essenciais no desenvolvimento da medicina no país por meio de dissecações, da observação do desenvolvimento de doenças e da realização de testes com novos medicamentos ou dosagens diferentes.9 Afinal, fosse como escravizado, liberto ou livre, esse grupo constituía boa parte dos doentes atendidos nas Santas Casas. Além dos hospitais, os médicos oitocentistas também percebiam e conviviam com africanos e seus descendentes em diversos momentos de suas vidas sociais e privadas. O Rio de Janeiro era, em 1849, a cidade das Américas com o maior número de escravizados, onde viviam e trabalhavam 80.000 cativos (KARASCH, 2000, 28). Dessa forma, os médicos registraram muitas informações sobre os escravizados em teses, artigos, atestados de óbitos. Além disso, aspectos sobre sua saúde, suas doenças e seus corpos podem ser encontrados em livros de entrada e saída de hospitais, em inventários postmortem, em anúncios de jornais, em processos judiciais. São documentos que têm sido explorados por historiadores voltados para a temática da saúde e escravidão, cuja produção tem se destacado a partir da década de 2010 e tem sido voltada para a análise de questões como o pensamento médico sobre os africanos e seus descendentes; a identificação e distribuição das doenças que mais atingiam os cativos e libertos; e o exercício das práticas de 8. Ver Ferreira (1996 e 2009). 9. Ver Lima (2011). Estudos sobre o sul dos EUA e Caribe apontam para o sofrimento causado a africanos e seus descendentes pela medicina exercida por brancos. Ver, por exemplo, Hogarth (2017) e Fett (2002).

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cura por essas pessoas (BARBOSA & GOMES, 2016; PIMENTA, GOMES & KODAMA, 2018; VIANA, GOMES & PIMENTA, 2020). Essas questões se desenvolveram em torno do corpo, cuja história não se limita à historiografia da saúde. Como destaca Roy Porter, na segunda metade do século XX, estudos feministas, sobre gênero e sexualidade contribuíram para as reflexões sobre a história do corpo. Obras de tradição marxista também apresentaram “modelos influentes do corpo encarado como um foco para a resistência e a crítica populares dos significados oficiais” (PORTER, 1992:293). Por fim, ao analisarmos aspectos sobre a história do corpo escravizado, podemos inseri-la também nos estudos sobre a história do corpo dos trabalhadores (CORBIN, 2012).

Traduzindo experiências Ainda pouco utilizados pela historiografia da escravidão, os anúncios de fugidos revelam-se fontes únicas para adentrarmos os universos da escravidão urbana e a sua dimensão africana. Para o Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX, eles podem oferecer indícios das primeiras traduções – e de seus tradutores –a respeito dos africanos em originais paisagens urbanas. As montagens-narrativas e as estruturas tópicas sobre corpo, perfil, estratégias, formas de falar e vestir, marcas e cotidiano das relações senhor-escravo oferecem possibilidades analíticas de recompor as primeiras visões sobre e dos africanos. Apresentamos uma abordagem descritiva com uma amostra de 780 anúncios de fuga (somente consideramos os africanos) publicados no Diário do Rio de Janeiro nos anos de 1822, 1823, 1840, 1841, 1842 e 1843.10 Escolhemos as conjunturas da década de 1820 e depois do tráfico ilegal na década de 1840, quando o Rio de Janeiro tinha tanto uma população escrava africana consolidada – reiteradas gerações trazidas desde o alvorecer de 1800 até 1830, quando o impacto do tráfico alternou entrada anual de oito a 35 mil africanos –, como contingentes clandestinos que chegavam aos portos e abasteciam as demandas de mão de obra urbana, para além do reenvio para o interior do sudeste escravista. 10. Diário do Rio de Janeiro, doravante DRJ.

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As primeiras traduções aparecem nas descrições do corpo dos (transformados em) africanos. Para ajudar na captura e reconhecimento – tanto de pedestres como daqueles que podiam denunciar os fugidos – surgem visões senhoriais. Longas temporadas de convívio ou aquelas curtas, uma vez que eram comuns escapadas de africanos recém-chegados e comprados no Valongo, eram suficientes para que senhores pudessem reter percepções e descrevessem em detalhes corpos, hábitos, costumes e personalidades de seus escravizados. Muitas vezes nas narrativas repetitivas surgem originais traduções sobre tais africanos. Mais do que tópicas preconceituosas, podemos a partir delas ver também como os próprios africanos – de diferentes origens – traduziam a si próprios para os olhares da sociedade escravista. Um capítulo original sobre a história do corpo dos africanos aparece nestas fontes. Dimensões físicas e corpóreas africanas emergem. Uma africana Cassange de idade de 13 para 14 anos era descrita como “baixa, tem os beiços grossos, nariz chato e alguma coisa reforçado” (DRJ, 29/01/1840). Já Silvana, uma africana Conga de “idade pouco mais ou menos 28 anos” tinha “estatura baixa, cheia de corpo” (DRJ, 24/02/1840). O africano Diogo Angola tinha “rosto redondo, olhos grandes, nariz bastante chato e boca regular”, enquanto Guilherme Cabinda trazia “cara comprida, olhos pequenos, muito cheio de corpo, peitos largos, pernas finas e pés compridos” (DRJ, 18/03/1840 e 24/03/1840). Tratava-se de descrições que reuniam impressões senhoriais, mas que ao mesmo tempo ajudariam numa rápida identificação do africano procurado. Havia de ser algo o mais próximo possível daquele escravizado africano específico a quem se procurava, que não deixasse margens para dúvidas ou equívocos, ainda mais naquele contexto com milhares e milhares de africanos nas ruas. Imagens positivas ou negativas – ambas preconceituosas – eram produzidas e circulavam para o domínio e reconhecimento daquela sociedade escravista urbana. Qual seja, só se poderia reconhecer (portanto encontrar) aquilo que já se conhecia. Por exemplo, a fugitiva Isabel “de nação” era “bonita de cara”, pois tinha “boca grande, beiços grossos, pés pequenos e bem feitos” (DRJ, 28/03/1840). Jeremias, nação Moange, tinha “estatura ordinária e cor retinta” enquanto Maria Monjolo apresentava “estatura alta e rosto comprido” (DRJ, 11/04/1840 e 21/04/1840). Já Felipe Congo, além de “gordo” tinha “os olhos e boca grande” (DRJ, 16/05/1840). De Sebastião, 133

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“um preto rapaz” sabia-se das suas “feições regulares” com “boca pequena e beiços finos” (DRJ, 27/07/1840). Por sua vez Bento Cabinda era “gordo e socado, retinto, feio” (DRJ, 05/09/1840). A descrição do “moleque” Ignácio Congo foi bem indicativa com “testa e olhos grandes, beiços grossos, bem feito de corpo, mas não é bonito de cara” (DRJ, 17/09/1840). O dono do fugido Cristovão Benguela foi mais incisivo avisando que o mesmo era “mal encarado” (DRJ, 24/09/1840). Este foi também o adjetivo usado tanto para João Moçambique que tinha o “corpo grosso” como para Joaquim Cabalar com “olhos vermelhos e nariz chato” (DRJ, 02/05/1841 e 09/02/1842). De Ventura “nação Gabão” era preciso saber que era “muito bexigoso, magro e tem o nariz chato” e de Raimundo Cabinda que tinha “estatura alta e rosto magro” (DRJ, 02/04 e 11/1842). Descrições corporais não eram aleatórias ou genéricas. Pelo contrário, eram conjugadas com indicações sobre barba, cabelos e dentes. Primeiramente só havia que se olhar e reconhecer rapidamente um determinado africano. Partes corpóreas como barba, cabelo e dente funcionavam também como sinais diacríticos. Antonio Moçambique, além de “olhos grandes e encarnados” tinha o “cabelo redondo” (DRJ, 02/01/1840). Enquanto Candido Moçambique aparecia com o “cabelo cortado de próximo” (DRJ, 28/04/1840). Diferente era Fortunato, que não só tinha “pés grandes e largos”, mas também “cabelo penteado” (DRJ, 06/05/1840). Sobre Diego Inhambane com “cara redonda e olhos grandes” tinha a “cabeça raspada de 15 dias” (DRJ, 21/07/1841). Uma preta Angola, que se desconfiava “ter sido desencaminhada” tinha o “cabelo crescido” (DRJ, 08/07/1842). O que dizer das africanas Floriana Inhambane que tinha “cabelos grandes” e Maria Conga com “cabelos crescidos” (DRJ, 21/12/1842 e 22/12/1843). Mas cabelos – raspados, crescidos ou penteados –, barba e, principalmente, dentes limados e, também, brincos estavam associados às distinções e identificações dos africanos, sinais diacríticos através dos quais eles informavam seus pertencimentos entre si e para a sociedade envolvente que os reconheciam, ou ainda mais procuravam fazê-lo visando a captura dos fugidos que estivessem perambulando na cidade. Silvana Conga tinha o “olho esquerdo torto” e “falta de dentes adiante” (DRJ, 24/02/1840). Mas Alexandre Moçambique era “alto, magro, rosto oblongo, boa dentadura” (DRJ, 134

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09/03/1840). Diogo com “nariz bastante chato, boca regular” apresentava-se “com falta de dois dentes de cada lado, tanto de cima como debaixo, beiços grossos” (DRJ, 18/03/1840). Lourenço Quilimane e Francisco Cassange fugiram juntos em 14 de julho e “foram vistos no mesmo dia na estrada Engenho Velho, e julga-se estarem acoitados nas imediações da Tijuca, Andaraí e Maracanã”, sendo que ambos tinham “dentes ralos”, embora o primeiro com um “semblante tristonho” e o segundo “cara risonha e bonita” (DRJ, 21/08/1840). De outra fuga coletiva sabemos que João Calabar apresentava “dentes frontais abertos naturalmente e muito barbado”, enquanto Antonio Benguela, era “bem dentiado e sem barba” (DRJ, 27/11/1840). Ladislau, fugitivo de uma chácara no “caminho Macabra”, figurava como “desdentado da parte de cima e com pouca barba” (DRJ, 03/12/1840). Mundos de escravidão emergem nestas diversas descrições dos anúncios de fugidos. Através destas narrativas é possível identificar os primeiros filtros, percepções, traduções das complexas experiências de africanos enquanto cativos numa sociedade urbana. As visões senhoriais – uma vez que eram textos e subtextos compostos que chegavam às tipografias e/ou eram montados pelos tipógrafos – traziam visões cruzadas. Olhares e lentes senhoriais desvelavam também aquilo que africanos escravizados queriam dizer. Nos termos de James Scott, temos através destas narrativas os “discursos ocultos” de experiência africana carioca (SCOTT, 2013). Da preta Carolina Benguela sabemos que se aproveitou do horário noturno para escapar. Eram momentos propícios para vários cativos cruzarem parte da cidade, buscando água em fontes públicas ou despejando dejetos em praias circunvizinhas. Ela, “indo à Carioca buscar água”, desapareceu (DRJ, 10/01/1840). O moleque africano Monjolo escapou durante o dia quando “andava vendendo limões de cheiro na cidade” (DRJ, 17/01/1840). Já a africana Maria Rosa de nação Mina Hausá, “indo vender quitanda”, acabaria fugindo (DRJ, 12/05/1840). Prejuízo grande houve com a escapada da africana lavadeira Cândida Conga “com um cesto de roupa lavada, vinda do rio do Engenho Velho, com 70 peças tudo de valor”. Quase na mesma ocasião, Thomas Congo iria desaparecer próximo ao rio São João, “as seis horas da tarde, indo apanhar folhas de manga” (DRJ, 01/06/1840). Pior azar teve o proprietário do cativo José Benguela, pois ele desapareceu “estando na porta do botequim do Comércio na companhia de 135

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seu senhor” (DRJ, 25/06/1840). Houve mesmo quem fugisse da porta de casa, como Domingos Benguela que desapareceu “indo vender biscoito” em frente à Rua São Pedro, número 154 (DRJ, 17/08/1840). O que teria acontecido para que Antonio Congo fugisse da Rua da Lampadosa, número 1, às “4 horas de madrugada” (DRJ, 01/01/1840). Do africano José Moçambique sabemos que em pleno domingo “tinha vindo de Botafogo para a cidade vender quitanda, e não voltou” (DRJ, 07/02/1840). E Francisco Angola, “andando com um tabuleiro a vender agulhas, alfinetes e outras miudezas”, se escafedeu. Quem se aproveitou da escuridão foi o africano Simplício, pois escapou à noite quando “veio à Praia do Peixe, botar água suja” (DRJ,15/06/1841). Mais audacioso foi Antonio Benguela, que “fugiu indo levar um recado a casa do Sr. Custódio José de Souza, no Aterrado” (DRJ,16/06/1841). Na praia do Valongo iria desaparecer João Angola quando “andava com uma carroça a vender lenha” (DRJ, 30/09/1843), enquanto meses depois escaparia Jesuína Cabinda, “vinda de Cosme Velho com um cesto de roupa de homem já lavada” (DRJ, 30/12/1843). Proprietários – através destas descrições que acabaram impressas nos anúncios- podiam recuperar momentos e/ou atmosfera da fuga, ocasiões nas quais sentiram falta dos seus cativos. Ou podiam sugerir as motivações das escapadas. Nenhum proprietário anunciou que seu cativo fugiu porque era maltratado, embora não poucos anúncios mencionassem castigos recentes e condições de vida de seus escravizados. Os corpos dos escravizados, igualmente traziam marcas e signos da sociedade envolvente.11 Do fujão Manoel Angola sabe-se que “tem uma pequena coroa no alto da cabeça de carregar barris de água”. Outro africano Manoel, porém, Cabinda era mencionado que tinha “um talho na testa até a ponta do nariz” (DRJ, 07/01/1840). As condições de vida e trabalho começavam a marcar africanos e produzir cicatrizes. Com 40 anos, Joaquim Cabinda tinha o “braço esquerdo do cotovelo para cima todo cicatrizado” (DRJ, 22/01/1840). Domingos Moçambique tinha “signaes no assento de ter sido recentemente surrado” (DRJ, 17/02/1840). O preto marceneiro 11. Ver uma abordagem instigante sobre marcas dos africanos nos anúncios de jornais em Jeha, 2019.

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José Angola, que tinha desaparecido de uma loja de marcenaria da Rua Mata Cavalos, possuía marca de ferro num dos lados da cara”, além de pisar cambaio (DRJ,10/10/1840). De Caetano Cassange, um africano que trabalhava ao ganho, havia “falta de cabelos no alto da cabeça procedido de carregar, canelas curvadas para frente, tendo sobre a da perna esquerda uma cicatriz de antiga ferida” (DRJ, 30/10/1840). Ainda com 12 anos, José Cabinda poderia ser reconhecido por “signaes antigos de queimadura nos braços” (DRJ, 08/07/1841). A preta Isadora Angola tinha “alguns signaes de castigo antigo” (DRJ, 24/04/1843). Embora já presente na Gazeta do Rio de Janeiro no alvorecer do século XIX, abundam na imprensa carioca nos anos 1820 e 1840 – esta última coincidência com o período do tráfico ilegal – anúncios com detalhes sobre as nações dos africanos, como marcas, sinais, fala e distinções.12 Mais do que nunca, em diferentes contextos, a sociedade escravista urbana traduzia os códigos das nações nos aspectos físicos e marcadores étnicos dos africanos. Era como se lembrassem aos leitores – futuros informantes e/ou perseguidores dos fugidos: sinais de nação, nos dentes, indumentária, apetrechos e mesmo hábitos com sentidos étnicos descritos quase como territórios africanos na cidade. Felizardo, nação Moçambique “bastante explicado quando fala, de maneira que parece crioulo” contra o qual se desconfiava “ter mudado de nome e nação para não ser conhecido” tinha “uma orelha furada” (DRJ, 09/03/1840). Guilherme, nação Cabinda, “expressa-se bem, tem um brinco de ouro na orelha esquerda, e é de supor que o tenha tirado” (DRJ, 24/03/1840). Também de nação Cabinda, Francisco andava “com brinco de miçanga em uma orelha” (DRJ,29/05/1840). Do fugitivo Joaquim, de nação Angola, era importante destacar que tinha “brinco na orelha ou orelha furada” (DRJ, 24/09/1840). Ignez, nação Cabinda, levara vestidos e lenços além de “brincos de ouro das orelhas” (DRJ, 18/02/1841). Maria, nação Benguela, portava “brincos pretos compridos” (DRJ, 27/06/1840). E a preta Maria tinha “uma argolinha numa das orelhas” (DRJ, 24/02/1841). Para Julião, nação Moçambique anotava-se ter “as duas orelhas com grandes furos” (DRJ, 12/05/1841). O oficial de carpinteiro, Caetano era conhecido por ter 12. Sobre fala dos escravizados nos anúncios ver Alkmin, 2006 e Lima, 2012.

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“um brinco em uma orelha” e Maria Benguela, por “argolas de ouro nas orelhas”, ambos de nação Benguela (DRJ, 06 e 23/06/1841). Dimensões da cultura material da escravidão urbana com tais brincos e seus formatos ainda precisam ser estudados (SLENES, 1991-1992). De fato, sinais de nação e inscrições corporais – de dentes ao corte do cabelo e indumentárias – faziam parte das tópicas dos anúncios de fugas que traduziram faces da cultura material e imaterial dos africanos do Rio de Janeiro urbano. O africano José, nação Mujambe, só poderia ser conhecido por “zambo de uma perna, na qual tem uma cicatriz de ferida”. As marcas de nação e as simbologias étnicas envolventes tinham um papel fundamental, especialmente nas cidades escravistas. Sobre a desaparecida preta Cecília, nação nagô, trazia “signaes de sua nação pelas costas” (DRJ, 11/04/1840). Joaquim, nação Inhambane, tinha “muitos bicos na testa” que eram “signaes de sua nação” (DRJ, 23/04/1840). Lourenço Monjolo com “signaes de nação na face esquerda” (DRJ, 06/05/1840). E Miguel, de nação Mina, “tem signal da nação no peito” (DRJ,19/06/1840). Já Manoel, nação Mucena, além de “um furo no queixo” tinha “signais de sua terra na testa e nas fontes” (DRJ, 27/06/1840). Teresa, nação Benguela, foi anunciada sem “signais de nação”, mas achava-se vestida de “pano da Costa, lenço pintado de encarnado na cabeça” (DRJ, 16/07/1840). Diego de nação Inhambane, era “muito alegre” posto que “fala bem o português e quase sempre rindo-se” e poderia ser encontrado pelos “signais de sua nação na testa” (DRJ, 21/07/1840). O africano Elias “muito ladino”, conhecido pedreiro, “na testa tem marcas em forma de cicatriz próprias de sua nação que é Moçambique” (DRJ, 30/10/1840). Quase misteriosa era a africana Eva, de nação Conga, mas com “um lanho da face direita como signal da nação Mina” (DRJ, 27/03/1841). José, de nação Angola, além de “meio atrapalhado na fala” tinha “os signais de sua terra nas costas” (DRJ,06/04/1841). Bernardo, nação Moçambique, tinha o “nariz todo cheio de repinicados, signaes de sua terra” (DRJ, 24/04/1841). Sobre um conterrâneo seu, Feliciano, anunciou-se “desembaraçado no falar, advertindo que suposto seja Moçambique, não tem signal algum da terra pelo corpo, por ter vindo muito pequeno, e parece ser crioulo” (DRJ, 04/05/1841). Brígida, também Moçambique, tinha “signal da sua nação sobre o lábio superior” (DRJ, 15/05/1841). 138

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A complexidade de descrições das marcas de “nação Moçambique” sugere uma variação étnica que ainda conhecemos pouco. Vicente, Moçambique, tinha “signais redondos de sua nação pela cara, dentes limados” (DRJ,11/06/1841). Uma africana Libolo era “bemfeita de corpo” e “não tem signal algum da terra” (DRJ, 20/07/1841). Os símbolos de nação de Juliana, Benguela, era o “pano da Costa escuro” que levava (DRJ, 26/07/1841). O africano Gil Braz, nação Cassange, tinha os “dentes limados” (DRJ,14/10/1841). Tendo sido “visto nestes dias de festa no Catete”, o africano Matheus, nação Congo, tinha os “dentes limados” e estava de “cabelo furado” (DRJ, 04/01/1842). Sobre um determinado africano Moçambique, mais do que destacar seus sinais de nação foi importante dizer que “costuma andar com o bigode crescido e barba no queixo”. Era alguém experiente naquele labirinto urbano – tendo escapado da rua nova do Livramento – a ponto de ser “muito velho, capaz de persuadir que não anda fugido” (DRJ, 08/01/1842). Esperteza semelhante parecia ter Bernardo, de nação Benguela, que “se diz crioulo por não ter marca de sua nação e também costuma dizer que é forro” (DRJ, 05/04/1842). Um africano de nação Cabundá tinha diversas “marcas de golpes na cabeça e de chicotadas pelo corpo”, porém “sem barbas, nem signaes de nação” (DRJ, 05/04/1842). Fugido na Rua de Mata Cavalos, um molecote Moçambique tinha “dois signais de sua nação na face e três na testa” (DRJ,14/09/1841). Quanto a João, igualmente Moçambique, advertia o anunciante: “não tem as marcas da nação, mas sim uma marca na testa como um risco” (DRJ, 03/11/1841). De “rosto carrancudo”, Josefina de “nação Moçambique de Macua” aparecia com “signal da sua nação por cima do nariz” (DRJ, 04/06/1842). Identificar nações era algo importante, por isso era necessário dirimir dúvidas e mesmo equívocos ao nomeá-las. Em julho de 1842 se dizia que o africano José, era de “nação Inhage ou Cassange” (DRJ,18/07/1842). Do anúncio de fuga do africano Miguel, oficial de pedreiro e com “cabelos brancos”, dizia-se que era “nação Angola ou Rebolo” (DRJ, 24/09/1842). Identificado como um africano “acostumado a fugir”, sobre José, não se sabia se era de “nação Moçambique ou Quilimane.” (DRJ, 02/12/1842).

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Considerações finais Indicamos possibilidades analíticas com base nos anúncios de escravizados que fugiam. As milhares de fugas por ano no Rio de Janeiro podem apontar para as relações com os proprietários e nos permitem conhecer melhor, a partir de uma metodologia adequada, os problemas de saúde que deixavam marcas visíveis nos escravizados. Os corpos dos escravizados foram desenhados nos anúncios de jornais não apenas por senhores e redatores (HUNT-KENNEDY, 2020). As tópicas destes registros repetidos são também fontes inscritas (diferente de escritas ou ditadas) pelos próprios escravizados. Eles também se deixavam revelar, pelo menos faces daquilo de como eram percebidos, ou mesmo poderiam se deixar perceber ou esconder das várias dimensões do governo senhorial. Como proprietários – e o olhar urbano escravista – podia reter tantas imagens, silhuetas, tópicas, contornos e sombras sobre homens e mulheres, suas roupas, suas dimensões étnicas, comportamentos, anseios e expectativas? Ao focalizar em demasia o olhar senhorial perdemos de vista a possibilidade de localizar os escravizados traduzindo seus próprios corpos (LE GLAUNEC, 2005). É possível também pensar em prosopografia e biografias coletivas de africanos e escravizados a partir de anúncios de fugitivos (SWEET, 2009). Conseguimos seguir trajetórias de personagens, articulados em redes de solidariedades e articulados em espaços, especialmente considerando as cidades negras. Assim, tais fontes secundárias, publicadas aos milhares nos jornais oitocentistas abrem horizontes de pesquisas para localizar pessoas, sentidos, expectativas e experiências (FERREIRA, 2006; FRAGOSO, 2010; MOREIRA & MATHEUS, 2011). Assim encontramos Catarina Cassange. Suas estratégias puderam ser acompanhadas por pelo menos quatro anúncios entre 1838 e 1839. Seu proprietário, Manoel da Rosa, anunciou no Diário do Rio de Janeiro que ela tinha escapado estando grávida de quatro meses. Tal qual os anúncios da época, seriam descritos seu corpo e comportamento. O primeiro anúncio da sua escapada foi seguido por pelo menos mais três anúncios num espaço de quatro meses. Mesmo sem conseguir capturá-la, conseguiam-se informações sobre o seu paradeiro. Conhecida como preta ao ganho, era uma vendedora que costumava circular pela praia do Valongo

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e Rua do Livramento, onde se concentravam muitos africanos. Poderia inclusive ter sido seduzida. Um mês depois do primeiro anúncio, seria publicado outro dizendo que Catarina – com ajuda de sedutores – estaria tentando seguir para Minas Gerais. Em mais um anúncio foi dito que ela estava passando as noites escondida em barcos ancorados e já estaria em adiantada gravidez. Catarina conseguiu ficar um ano refugiada, só sendo capturada no final de 1839. Revelou que tinha andado por muitos lugares da cidade e do recôncavo da Guanabara. Quem mais a tinha ajudado foi o liberto Aleixo, um africano Mina que tinha o ofício de barbeiro. Durante um bom período ele escondeu Catarina em sua casa da Rua dos Ferradores. Com apoio de vários acoitadores e proteções provisórias, Catarina conseguiria ter o seu filho – de nome José – sendo inclusive levada para as proximidades do “quilombo de Laranjeiras”.13 Ampliando as possibilidades de uma prosopografia da escravidão urbana podemos ir além e reconhecer olhares e lentes senhoriais para, através dos anúncios, percebermos aquilo que os africanos, em especial, queriam dizer.14 Inevitavelmente, os anúncios de fugas descreviam aspectos dos corpos dos cativos para que pudessem ser encontrados e, atentando para os “discursos ocultos” da experiência africana, mundos de escravidão emergem. É importante atentarmos para as relações de dominação, que podem ser compreendidas através da categoria analítica de infrapolítica. Diante das relações entre senhores e escravizados, considera-se as perspectivas do “discurso oculto”, uma vez que tais categorias sugerem a reflexão de alterações cotidianas nas relações de poder aqui mencionadas, atentando-se para as ações, narrativas e, também, silêncios presentes nos anúncios de escravizados fugidos (SCOTT, 2013). Tal como as fontes e perspectivas teóricas enquanto possibilidades interpretativas de contextos escravistas, é possível entender anúncios de fugas como instrumentos e ferramentas metodológicas nas leituras das dinâmicas sociais urbanas, aquelas fundamentalmente marcadas pela presença africana como a Corte Imperial na primeira metade Oitocentista. 13. Esta indicação apareceu nas pesquisas de Carlos Eugênio Líbano Soares (ARAÚJO, SOARES, FARIAS e GOMES, 2006). Ver também Soares, 1998. 14. Ver um debateteórico metodológico em: Ghobrial, 2019.

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Jornais no tempo da escravidão

Karoline Carula | Universidade Federal Fluminense

Jornais e suas características A imprensa, desde a década de 19701, é utilizada como profícua fonte de pesquisa para historiadores que investigam as mais variadas temáticas, no campo dos estudos sobre escravidão isso não é diferente. Com a transferência da Corte portuguesa para o Brasil, em 1808, e a criação da Imprensa Régia passou a circular o primeiro jornal totalmente editado aqui, a Gazeta do Rio de Janeiro2. A partir de então, no correr do século XIX, o número de publicações cresceu em termos numéricos e em diversidade – jornais de circulação diária com assuntos diversos, científicos, literários, ilustrados, satíricos, voltados ao público feminino, criados por associações e categorias profissionais, dentre outros. No Brasil, os estudos sobre escravidão que empregam imprensa como fonte estão restritos a um recorte cronológico bem específico – de 1808 a 1888. Nos últimos anos, com a facilidade de acesso aos jornais, desde a fundação da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional3 e a digitalização de acervos de outras instituições, cada vez mais a imprensa é empregada 1. Uma perspectiva sobre a utilização da imprensa brasileira como fonte pode ser encontrada em Luca (2008). 2. Sobre a Gazeta do Rio de Janeiro e a relação entre imprensa e poder, ver: Meirelles (2008). 3. http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/

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nos estudos historiográficos. Contudo, lançar mão de periódicos como fonte histórica implica na necessidade de compreender suas especificidades de produção. Assim como para os estudos de outros temas, nos sobre escravidão, a imprensa pode ser objeto de estudo ou fonte histórica (LUCA, 2008). A caracterização e compreensão do jornal de maneira densa e detalhada é essencial para aqueles que o empregam como objeto de pesquisa. No entanto, ela não deve ser totalmente deixada de lado pelo pesquisador que só o utiliza como fonte. Atributo essencial desse tipo de publicação é sua periodicidade. Desta maneira, um determinado assunto pode não se encerrar em uma única edição, implicando na necessidade da leitura de números seguintes. Por isso, conhecer algumas informações também é importante para quem faz uso do jornal como fonte, no intuito de complexificar e subsidiar a análise documental. Podemos destacar: 1) Dados gerais: título, subtítulo, periodicidade, tiragem e período no qual circulou; 2) Localização: locais de impressão e de venda; 3) Aspectos gráficos: número de páginas, número de colunas, presença de imagens; 4) Comercialização: tipo (assinatura e/ou venda avulsa), preços (local e outras provinciais); 5) Principais seções; 6) Expediente: proprietário, redator-chefe, colaboradores, dentre outros; 7) Perfil político (liberal, conservador, republicano, abolicionista, pretende-se imparcial etc.); 8) Tipo de público almejado (amplo, feminino, categoria profissional etc.). Esses dados podem ser obtidos por meio da historiografia que já analisou o jornal ou pela leitura diária – “folhear” algumas edições dos periódicos, mesmo que virtualmente, além de prazeroso, possibilitará reconhecer muitos desses elementos gerais. Assim, é possível confeccionar uma ficha 152

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de caracterização. Quando se trabalha com mais de um órgão de imprensa, esse registro é ainda mais valioso, pois facilita uma análise comparativa dos perfis. Metodologicamente, outro aspecto fundamental é delimitar como será realizada a consulta à fonte, por meio de leitura diária do jornal ou utilizando o buscador de palavras da Hemeroteca Digital, quando a publicação se encontra disponível para tal tipo de acesso. A leitura diária, seja no jornal físico ou qualquer outro suporte em que ele esteja (digital, microfilme ou edição facsímile), possibilita um conhecimento mais amplo de suas caraterísticas, uma vez que será necessário “procurar” o assunto nas várias partes que constituem a publicação. Primeiramente, o pesquisador deverá selecionar o periódico a ser analisado, escolha que partirá de algum conhecimento prévio sobre a imprensa existente4. Além da delimitação do recorte cronológico, que pode ser dada pelo tema ou pelo período de circulação do jornal, é primordial justificar a escolha – explicar quais foram os motivos que o levaram a eleger determinado título em detrimento de outro. O uso metodológico do buscador da Hemeroteca Digital requer o conhecimento preliminar do que se pretende buscar, ou melhor dizendo, quais palavras e/ou expressões podem ser inseridas para se chegar ao assunto desejado. Uma seleção deve inicialmente ser feita, a historiografia sobre o tema pode ajudar na escolha de quais utilizar, e, após a leitura do material selecionado, outras poderão surgir, complementado o que já foi levantado. O mecanismo possibilita buscar um determinado assunto em décadas, jornais e locais diversos. Ao aplicar tal procedimento, extremamente profícuo, alguns cuidados devem ser tomados. O primeiro é o relativo ao contexto histórico, situando o material encontrado dentro da escravidão no século XIX (proibição do tráfico transatlântico, comércio ilegal de escravos, leis emancipacionistas, abolicionismo etc.). Outro ponto importante é o tocante ao local de produção 4. Um dos trabalhos seminais sobre imprensa no Brasil é o Nelson Werneck Sodré (1999), que traz muitas informações sobre os periódicos do século XIX – fundação, periodicidade, proprietário etc. Já um estudo mais recente e importante sobre a imprensa no Oitocentos é o de Marialva Barbosa (2010), no qual é apresentado um panorama sobres os diversos aspectos dos jornais no período. Além desses, há a produção historiográfica que já utilizou uma determinada publicação como fonte ou objeto de estudo e que traz análises sobre um jornal específico e/ou sobre a imprensa de forma mais ampla.

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do periódico, atentando para as especificidades regionais. Por fim, aqueles relativos à estrutura do jornal, quais as suas principais características. Em seguida, apresento algumas possibilidades para a utilização do jornal como fonte para o estudo da escravidão, com destaque aos anúncios, às demais seções da publicação e, por fim, à imprensa ilustrada.

Anúncios A proficuidade do uso de anúncios de jornal para o estudo de escravidão há muito foi destacada por Gilberto Freyre (1979). Compra, venda, aluguel e fuga de escravos recheavam as seções de anúncios das publicações periódicas5. Nos principais centros urbanos brasileiros do século XIX, a circulação de jornais era grande, não só daqueles publicados na localidade, mas também de outras cidades e províncias. Em grandes localidades, os anúncios aumentavam a possibilidade de ter uma transação mercantil efetivada mais rapidamente. Já no caso das fugas, funcionava como um mecanismo a mais para que o senhor tentasse recuperar a sua propriedade. Por se tratar de fonte seriada, a utilização de anúncios favorece tanto estudo qualitativo como quantitativo. Em termos quantitativos, é possível verificar o número de anúncios publicados no período, quantos homens e mulheres escravizados estavam envolvidos na transação comercial (compra, venda ou aluguel) ou na fuga, a partir daí averiguar se havia diferença com relação ao gênero. Apurar se se tratava de um escravizado nascido no Brasil (crioulo) ou um africano e, neste caso, de qual nação6. Quais eram os ofícios mais desempenhados pelos cativos anunciados. Essas são apenas algumas possíveis variáveis que podem ser utilizadas para um estudo de teor quantitativo. Outras informações, de caráter qualitativo, também podem ser apreendidas por meio dos anúncios de jornais envolvendo pessoas 5. Tão logo a imprensa se instalou, no Rio de Janeiro e em Salvador, respectivamente, a Gazeta do Rio de Janeiro e a Idade do Ouro passaram a publicar anúncios envolvendo escravizados, com “impressões senhoriais, mesmo que improvisadas, instantâneas e provisórias” (VIANA & GOMES, 2019: 77). 6. O termo “nação”, empregado para designar africanos, correspondia ao porto de onde partiram na África, não designando um grupo étnico específico. Sobre a designação de “nações” africanas e as apropriações identitárias realizadas por escravizados na diáspora ver: Soares, Gomes e Farias (2005: cap. 1).

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escravizadas. O recorte cronológico a ser escolhido pode estar, dentre outros, no tempo de circulação, é possível acompanhar os anúncios durante todo o período de existência da publicação. Os anúncios de fuga trazem uma especificidade que é a presença de um texto mais objetivo, decorrente de sua própria motivação – “descrever o fugitivo de forma a torná-lo inconfundível para os leitores” (CARVALHO, 2010: 258). Como o intuito essencial é recuperar o escravizado fujão, descrições mais precisas, com riqueza de detalhes, ajudariam a recuperar a propriedade. Para garantir a eficácia do anúncio, o senhor teria que descrevê-lo da maneira mais próxima à realidade o possível. Os anúncios traziam descrições de características vinculadas à aparência do escravo – traços físicos, roupas, marcas de nação, cicatrizes, idade aproximada etc. Contudo, para assegurar êxito na empreitada, mais informações eram adicionadas, vinculadas a comportamentos cotidianos, como modos de andar e falar, cacoetes, entre outros. Assim, por meio dessa fonte além da ação de rebeldia, é possível apreender aspectos de sua vida ainda no cativeiro (Ibidem: 259-60). Nas várias partes do Brasil Imperial, a imprensa foi utilizada como auxiliar dos senhores na recuperação de seus escravos fugidos. Marcus de Carvalho sintetiza as características gerais desses anúncios, que não diferiam de maneira significativa em todo o território nacional, ora com algumas, ora com outras informações: Regra geral, consta o nome do senhor, ou da pessoa a quem o cativo deve ser entregue; menciona-se os trajes do escravo quando foi visto pela última vez; delineia-se a fisionomia e demais traços físicos, inclusive marcas de castigos e nação; pode oferecer alguma recompensa; às vezes é indicado o local onde teria sido visto; explicita alguns hábitos do escravo; por último, a parte que nos interessa mais aqui: o momento em que o senhor descreve não apenas o comportamento usual do cativo mas também um hipotético conjunto de condutas do fugitivo que, supõe o senhor, poderiam vir a ser mantidas após a fuga. (CARVALHO, 2010: 260)

O anúncio abaixo, à guisa de exemplo, mostra algumas informações que são possíveis encontrar: 155

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Escrava Está fugida desde o dia 21 de Dezembro, a de nome Benedicta, quitandeira, de 29 para 30 anos de idade alta, magra, de cor fula, tem as pernas inchadas e manca, provenientes do reumatismo; intitula-se liberta, pelo que julga-se estar alugada como cozinheira, nesta cidade ou fora. A pessoa que entregá-la na estação central urbana, será gratificada. (Correio Paulistano, 28/01/1880: 3)

No anúncio, publicado em jornal na capital da Província de São Paulo, o proprietário de Benedicta busca reaver sua escravizada fugida há mais de um mês. Benedicta era quitandeira, portanto, é possível inferir um pouco mais sobre sua vivência, que atuava no comércio, como muitas outras mulheres negras naquela sociedade. Estaria ela ao ganho vendendo suas quitandas?7 Seu porte físico é descrito com destaque à sua moléstia – reumatismo. Não raro anúncios traziam informações sobre enfermidades que o escravizado possuía, sendo, dessa maneira, possível o diálogo com outras fontes, para se compreender um pouco mais sobre a história da saúde e das doenças da população escravizada (PIMENTA & GOMES, 2016; PIMENTA, GOMES & KODAMA, 2018). Estratégias de sobreviência também podem ser apreendidas por meio de anúncios. Benedicta, após fugir, passou a afirmar ser liberta8, seu senhor ou já tinha tido informações ou supunha que ela tivesse fugido e tudo indicava que já estava atuando em outra atividade, como cozinheira, e talvez até em outra cidade9. Ou seja, sair do espaço onde muitos poderiam reconhecê-la e trabalhando em outro ofício dificultaria que seu senhor conseguisse reavê-la.

7. Uma análise sobre quitandeiras africanas da Costa Mina, na cidade do Rio Janeiro, que emprega anúncios de jornais em diálogo com os registros da Casa da Detenção, pode ser encontrado em Soares, Gomes e Farias (2005: cap. 5). 8. Utilizar outro nome após fugir, ou mesmo antes, foi estratégia amplamente utilizada pelos escravizados como forma de resistência: “Ao dizer por aí que era liberto, o rebelde afirmava sua condição humana [...] Ao negar o nome imposto pelo senhor, o cativo criva identidade, através da qual fruía mais amplamente vários aspectos da liberdade possível” (CARVALHO, 2010: 266) 9. Consoante Carvalho, “essas fontes dizem o que a classe senhorial acreditava que os escravos eram capazes de fazer” (2010: 261).

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Anunciar a venda ou aluguel de escravizados na imprensa era uma maneira de ampliar os negócios, aumentando a probabilidade de uma transação exitosa. Diferente dos anúncios de fuga, a intencionalidade aqui era outra – realizar uma transação comercial. Portanto, a veracidade das habilidades e qualidades apresentadas não era, necessariamente, plena. Embora alguns senhores fossem mais sinceros, como nesse anúncio de venda: “Uma negra, engoma, e lava de varela perfeitamente, cozinha sofrivelmente, mui fiel, e boa quitandeira, a vista do comprador se dirá o motivo porque se vende: no princípio da rua do Hospício quarta casa térrea de vidraça” (Diario de Pernambuco, 04/05/1836, p. 4). No caso dessa escravizada, mesmo não cozinhando bem, ela era uma “boa quitandeira”, indicando que o futuro comprador poderia ter um lucro maior, colocando a cativa para atuar nessa atividade. Para a venda, a valorização das habilidades, existentes ou não, do escravizado era fundamental, visto que isso agregaria valor. O aluguel10 de escravos constituía uma rentável exploração adicional, visto que o senhor continuava com sua propriedade e ainda lucraria com seu trabalho alugado. Assim como na venda, nos anúncios de aluguel as qualidades e habilidades do escravizado eram destacadas a fim de que pudessem interessar a um possível locatário. Diversas eram as atividades executadas por escravizados e anunciadas para o aluguel: Alugam-se diversos escravos: sendo uma perfeita mucama, dois pardos marceneiros e lustradores, duas amas de leite de 8 a 12 dias, sem filhos, um moleque alfaiate, uma cozinheira, diversos moleques e pretas para todo o serviço; para ver e tratar no largo do Catumbi, n. 34, placa. (Gazeta de Noticias, 09/08/1876: 4)

O anúncio talvez fosse referente a uma agência de aluguel de trabalhadores, esses locais também utilizavam a imprensa como veículo para divulgação. Contudo, proprietários também alugavam diretamente seus escravos em escritórios: 10. Existente desde o período colonial, o aluguel de cativos se intensificou no século XIX. O locatário pagava ao proprietário o valor referente à locação do serviço prestado pelo cativo, sendo responsável por ele durante o tempo em que ele estava contrato, sua alimentação, vestimenta e cuidados. Para o Rio de Janeiro, conferir: Soares (2007) e Karasch (2000).

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Alugam-se, à travessa do Ouvidor n. 27, 1° andar, fundos, das 8 às 5 da tarde, escravos de ambos os sexos tendo entre eles uma boa e carinhosa ama de leite, um bom cozinheiro de forno e fogão, copeiros e boas lavadeiras etc. Este escritório é do próprio senhor dos escravos e não de agência, e sendo grande o número, todos os dias tem escravos para alugar. (Gazeta de Noticias, 07/12/1876: 3)

Ao sinalizar para o fato de não se tratar de uma agência de escravos, talvez o senhor quisesse dar maior credibilidade ao anúncio. Dentre os diversos trabalhos a serem executados por escravizados anunciados, destaco o ofício de amas de leite. Classificada como serviço doméstico 11, a atividade de nutriz de aluguel foi majoritariamente desempenhada por escravizadas. Nesse sentido, saliento as possibilidades de se pensar o gênero na escravidão, abordagem cada vez mais investigada pela historiografia. Na capital do Império, por exemplo, a imprensa foi utilizada, de maneira significativa, tanto por senhores que ofertavam o serviço, quanto por famílias que buscavam uma mulher para aleitar seus bebês ALUGA-SE uma boa escrava para ama, tendo muito bom leite, muito sadia e do primeiro parto: esta escrava, além de servir de ama, é também prendada e sabe perfeitamente engomar, lavar, coser, cozinhar e bem arranjar uma casa; para ver e tratar, na rua do Bom Jardim n. 12 H (Jornal do Commercio, 19/08/1872: 1).

Os textos publicados, além da indicação de oferta ou procura, muitas vezes destacavam qualidades desejadas para uma ama de leite, bem como outras habilidades que a mulher possuía, sinalizando que poderiam exercer outro trabalho, além da amamentação e cuidado da criança. No caso do exemplo anterior, a ama de leite, além de aleitar e cuidar do bebê, pois o cuidado fazia parte do ofício, poderia engomar, lavar, costurar, cozinhar e arrumar a casa, ou seja, uma vasta gama de trabalho poderia ser exercida por aquela mulher. Esses foram apenas alguns exemplos de quão ricos, como fonte histórica, são os anúncios publicados na imprensa periódica do século XIX. As 11. Sobre o serviço doméstico no Rio de Janeiro ver: Souza, 2017.

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possibilidades analíticas são amplas, tanto para estudos quantitativos como para qualitativos. Por meio deles, aspectos do cotidiano dos escravizados são revelados e suas formas de resistência, além da perspectiva senhorial, quais qualidades do trabalho valorizadas, as suposições acerca das ações dos cativos etc.

Muito além dos anúncios A escravidão marcou a sociedade oitocentista, e não somente ela, em múltiplos aspectos. Sendo os jornais espaços públicos de discussão e formação de opinião pública sobre o cotidiano, política, economia, dentre outros, temas relativos à escravidão estavam sempre presentes. Para além dos anúncios, as demais seções dos jornais – editoriais, artigos noticiosos, publicações a pedido etc. – constituem importante fonte histórica para esse estudo. Muitos jornais abriam espaço para a publicação de textos de leitores, nos quais a opinião pessoal de alguém de fora da redação era tornada pública. Contudo, uma ressalva deve ser feita, na medida em que não bastava o leitor querer ou pagar para publicar, a prerrogativa final era do editor. Esse é um aspecto importante ao analisar o escrito de um possível leitor, digo possível porque ele poderia vir assim identificado e, na realidade, ter sido produzido pelo editor, redator ou outro colaborador do jornal. Tal estratégia visava oferecer a imagem de um espaço público aberto a perspectivas diversas ou de mostrar que aquela opinião12, semelhante ao posicionamento político da publicação, era mais ampla. Periódicos de cidades portuárias poderiam trazer informações acerca da entrada e saída de embarcações. Para o período anterior à proibição do tráfico transatlântico de escravos, 183113, os jornais do Rio de Janeiro publicavam avisos de chegada de navio negreiro vindos da África naquela praça mercantil. Além desse dado, também eram apresentados os nomes 12. Consoante Marco Morel, no Brasil, foi em 1821 que a imprensa passou a ser um espaço público no qual os debates se consolidavam e “onde ganhavam importância as leituras privadas e individuais, permitindo a formação de opinião de caráter mais abstrato, fundada sobre o julgamento crítico de cada cidadão-leitor e representando uma espécie de somatório das opiniões” (2005: 204). 13. A Lei de 7 de novembro de 1831 extinguia o comércio negreiro para o Brasil; sobre a manutenção do tráfico após a Lei, conferir: Mamigonian (2014).

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dos traficantes. Na Gazeta do Rio de Janeiro, por exemplo, havia a seção “Notícias Marítimas”, que trazia tais informações (FLORENTINO, 2014: 118). O cruzamento dessa com outras fontes14, pode contribuir para a compreensão do comércio de escravos. A política imperial acerca do tráfico negreiro marcou as páginas dos jornais. Antes de 1831 e durante todo o período em que, a despeito da ilegalidade, o comércio transatlântico de escravos continuou, o tema esteve presente nas diversas seções das publicações – editoriais, seções noticiosas e publicações a pedidos. Por meio da leitura e análise do conteúdo apresentado, é possível compreender como a publicação se posicionou acerca da questão, no intuito de formar uma determinada opinião pública a respeito, fosse ela favorável ou contrária ao fim do tráfico transatlântico de escravos, pensando antes de 1831, ou, após esse ano, colaborando, em certa medida, para o desembarque ilegal de escravos, à revelia da lei15. No tocante ao período entre 1831 e 1850 (fim efetivo do tráfico com a Lei Eusébio de Queirós)16, A equação era relativamente simples: os Saquaremas defendiam o tráfico negreiro no Parlamento; em seguida, os redatores filiados ao partido publicavam artigos com o mesmo conteúdo; a partir deles, os leitores de jornais – muitos deles senhores de escravos – ficavam sabendo que tinham sinal verde para desembarcar mais cativos na costa brasileira, uma vez que essa nova propriedade seria garantida pelos estadistas que produziam tais discursos. (YOUSSEF, 2016: 298)

A utilização de jornais conjuntamente com outras fontes, como os debates parlamentares, pode trazer importantes abordagens analíticas na medida em que, não raro, muitos atuavam na imprensa como colaboradores 14. O cruzamento dessa fonte com outras para a compreensão do tráfico e o mercado de cativos no Rio de Janeiro, ver: Florentino (2014: 114-143). Para o Recife, um estudo do comércio de escravos realizado por meio de jornais em diálogos com outras fontes pode ser encontrado em Carvalho (2010: parte II). 15. Análises sobre a relação entre o Estado e as classes proprietárias, no período, para a manutenção da escravidão podem ser encontradas em Parron (2011) e Chalhoub (2012). 16. Algumas embarcações ainda foram apreendidas após a Lei n. 581, de 4 de setembro de 1850, que reafirmava a Lei de 1831 estabelecendo medidas para repressão ao tráfico de africanos. Uma discussão sobre o tráfico de africanos entre 1800 e 1850 e os motivos que levaram ao comércio transatlântico de escravos ter encerrado após a Lei Eusébio de Queirós está presente em Rodrigues (2000).

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e/ou redatores. Em termos metodológicos, o buscador por palavra da Hemeroteca Digital pode ser empregado, todavia, a leitura do jornal em sua totalidade é deveras interessante, visto que o tema pode estar presente em várias partes do periódico e muitas delas possuem diálogo entre si. Por esse método é possível compreender o perfil político da publicação, qual opinião pública tencionava forjar sobre o tráfico negreiro, quais interesses a proposta atendia etc. Sobre as leis que estabeleciam o fim do tráfico transatlântico de escravos, anteriormente citadas, e as leis emancipacionistas de 1871 e 1885, respectivamente, Lei do Ventre Livre17 e Lei dos Sexagenários18, todas foram amplamente noticiadas e discutidas na imprensa. Os debates parlamentares que as precederam eram divulgados e reverberados nos jornais. Assim, por meio da leitura das diversas seções dos jornais é possível analisar quais eram os argumentos empregados por aqueles favoráveis e contrários à respectiva lei. Examinar a repercussão na imprensa cotejando com os debates parlamentares e os textos das leis é uma maneira de complexificar ainda mais a abordagem. No caso da Lei do Ventre Livre, um aspecto fundamental a ser ressaltado é o que corpo da mulher escravizada e sua maternidade passaram a figurar em primeiro plano19 (ABREU, 1996; SANTOS, 2016; COWLING, 2018; MACHADO et al., 2021), pois, até 1871, o princípio do partus sequitur ventrem garantia a continuidade da mão de obra escrava, visto que o/a filho/a seguia o estatuto jurídico da mãe. Nesse sentido, a perspectiva de uma história do gênero na escravidão pode ser empreendida. A experiência das cativas foi 17. A Lei n. 2040, de 28 de setembro de 1871, estabelecia que os filhos de escravizadas nascidos a partir dessa data seriam livres. Até os oito anos, a criança ficaria com sua mãe e após o proprietário daquela poderia utilizar os serviços até os 21 anos ou entregar ao governo, recebendo uma indenização. A Lei Rio Branco, como igualmente é conhecida, ademais regulamentava o direito consuetudinário de o escravo possuir pecúlio e de comprar a sua alforria. Sobre a Lei do Ventre, conferir Pena (2001), Chalhoub (2003: cap. 4) e Machado et al. (2021). 18. Também denominada como Saraiva-Cotegipe, a Lei n. 3.270, de 28 de setembro de 1885, determinava a alforria de escravos sexagenários, que, contudo, deveriam prestar serviços pelo espaço de três anos ou até os 65 anos. Uma discussão sobre a lei, fundamentada, principalmente, nos Anais da Câmara dos Deputados, pode ser encontrada em Mendonça (1999). 19. Dois anos antes, o Decreto n. 1.695, de 15 de setembro de 1869, proibiu a separação por venda de mãe e filhos/as, menores que 15 anos, escravos, indicando uma nova perspectiva acerca da maternidade das escravizadas.

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marcada por serem produtores e reprodutores de trabalho, “no papel de dupla produtora da riqueza escravista”, os princípios impostos pelos sistemas escravistas “acabaram sublinhando a centralidade do corpo da escravizada como o próprio locus da escravidão” (MACHADO, 2018: 337). O destaque ao corpo e à maternidade das mulheres escravizadas também se fez presente na imprensa nas discussões acerca da Lei e nos anos seguintes, já no bojo do movimento abolicionista. Artigos com forte retórica sentimental (COWLING, 2018) denunciavam o abandono do rebento da mãe escravizada na roda dos expostos20, para elas serem alugadas como amas de leite (CARULA, 2021), como exemplifica esse trecho: “Entre nós essas amas são quase sempre escravas; algumas são obrigadas para amamentar uma criança a ver os seus próprios filhos expostos pelos seus possuidores” (Diario de Noticias, 6/8/1870: 1). No tocante à atuação do movimento abolicionista, destaque especial merece ser dado à imprensa, uma vez que ela se tornou veículo primordial para a propagação de ideias contrárias à escravidão, simultaneamente às ações nos salões, parlamento, tribunais, ruas e praças (ALONSO, 2015). Em paralelo ao protagonismo da população escravizada que lutava contra escravidão (MACHADO, 2010), integrantes do movimento abolicionista – como Joaquim Nabuco e intelectuais negros, com destaque a Luís Gama, André Rebouças e José do Patrocínio – dentre outras ações, divulgavam nos jornais a crueldade da escravidão e a premente necessidade de seu fim (AZEVEDO, 1999; ALONSO, 2015; MACHADO, 2014; PINTO, 2018; FERREIRA, 2020). Nessa perspectiva, a análise dos escritos publicados nos periódicos, considerando o papel destes na divulgação e reverberação de novas ideias e propostas sociais, bem como a trajetória intelectual desses abolicionistas e seus outros mecanismos de ação é essencial, tanto para os estudos que buscam compreender a imprensa abolicionista como os que objetivam compreender as ideias abolicionistas de determinados intelectuais. Em termos metodológicos, para o estudo de um determinado órgão de imprensa abolicionista, vale lembrar a ressalva anterior: a leitura diária do jornal é de grande valia, posto 20. Instituição assistencialista pertencente à Santa Casa de Misericórdia, criada no período colonial, acolhia recém-nascidos abandonados.

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que há um diálogo entre as várias partes da publicação e compreendê-lo torna a abordagem analítica mais densa. Na segunda metade do século XIX, principalmente no último quartel, a difusão de ideias científicas pautadas em um discurso fortemente racializado passou a circular com intensidade em vários espaços da sociedade brasileira, ganhando também as páginas dos jornais (SCHWARCZ, 1987; CARULA, 2016). Muitos textos publicados, ao abordarem os mais variados temas, incluindo os relativos à escravidão, fundamentavam a argumentação em apropriações e ressignificações de teorias científicas que hierarquizavam a humanidade, classificando o negro como inferior. No contexto de desagregação do sistema escravista, com a valorização de projetos modernizadores da nação que buscavam inserir o Brasil no rol dos considerados países civilizados (CARULA, 2016), a discussão acerca da raça conectava-se diretamente ao trabalho, no que se refere às possíveis opções de mão de obra que fazendeiros teriam no pós-abolição. É possível, portanto, analisar como o discurso racializado estava presente nos assuntos relativos à escravidão publicados no jornal. Destaque também deve ser dado à imprensa negra21 – “jornais criados e mantidos por afro-brasileiros e dedicados a tratar de suas questões” (DOMINGUES, 2018: 254). Essa imprensa, produzida por homens negros livres e libertos tratava de questões do cotidiano, tanto dos interesses de livres, libertos e escravizados, como o combate ao racismo (PINTO, 2010). Muitas vezes esses homens negros eram vistos com desconfiança pela classe senhorial, pelo receio da quebra da ordem social vigente, pois, não raro, havia ligação entre a população livre negra e liberta com a do cativeiro. Os jornais, escritos por negros e direcionados ao mesmo público leitor, são uma rica fonte para o estudo do protagonismo dos afro-brasileiros no século XIX.

21. Ana Flávia Magalhães Pinto (2010) analisou os seguintes órgãos da imprensa negra: na cidade do Rio de Janeiro, em 1833, O Homem de Côr ou O Mulato, Brasileiro Pardo, O Cabrito e O Lafuente; em Recife, no ano de 1876, O Homem: Realidade Constitucional ou Dissolução Social; já no pós-abolição, em São Paulo, em 1889 e reaparecendo em 1899, A Pátria – Orgam dos Homens de Côr; e em Porto Alegre, no ano de 1892, O Exemplo. Também no Rio Grande do Sul, na cidade de Pelotas, em 1886, circulou o Ethióphico (DOMINGUES, 2018: 254).

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Além dos textos Em 1844, passou a circular na capital do Império do Brasil A Lanterna Magica, Periodico Plastico-Philosofico22, primeira publicação a empregar ilustrações de forma sistemática (LUCA, 2008: 135). Nos jornais ilustrados que proliferaram na segunda metade do século XIX predominou o conteúdo satírico-humorístico profundamente crítico. Nesse sentido, compreender o que era risível no contexto é outra tarefa com a qual o pesquisador que utiliza esse tipo de fonte enfrenta. Textos e imagens estão presentes na chamada imprensa ilustrada e sua análise requer que ambos sejam esquadrinhados de maneira dialógica. Para o estudo das ilustrações atenção também deve ser dada aos aspetos artísticos que envolviam a sua produção. Dentre os muitos títulos que circularam, podemos citar para a cidade do Rio de Janeiro A Marmota (1849), Illustração Brasileira (1854), Brasil Illustrado (1855), Semana Illustrada (1860), Vida Fluminense (1868), O Mosquito (1869) e a Revista lIlustrada (1876); já para São Paulo destacavam-se O Diabo Coxo (1864) e O Cabrião (1866). Muitos dos artistas que faziam as ilustrações eram estrangeiros, como, por exemplo, o alemão Henrique Fleuiss, o italiano Angelo Agostini e o português Rafael Bordalo Pinheiro (LUCA, 2008: 135). Dentre a vasta temática que permeava as folhas, estava a escravidão. A Semana Illustrada e a Revista Illustrada podem ser mencionadas como jornais23 nos quais de modo crítico a escravidão esteve presente de maneira marcante (BALABAN, 2009; PEREIRA, 2015; VASCONCELOS, 2015). A Semana Illustrada de Fleiuss trazia em sua capa a imagem de duas personagens que abriam as edições: O Dr. Semana e o Moleque, um [...] jovem escravo alfabetizado, sempre pronto para auxiliar seu senhor branco, uma figura bizarra, dotada de cabeça avantajada, coberta por 22. Lançada pelo escritor romântico Manuel de Araújo Porto-Alegre, o título da publicação “evocava a experiência parisiense dos espetáculos ambulantes das lanternas mágicas, aparelhos que projetavam por meio de lentes e espelhos imagens pintadas em lâminas de vidro” (LUCA, 2008: 135). 23. Sobre as primeiras revistas no século XIX, Ana Luiza Martins salienta a dificuldade em definir tal gênero de impresso, dada sua profunda semelhança com o jornal, “periódico que lhe deu origem e do qual, no passado, se aproximava tanto na forma – folhas soltas e in folio – como, por vezes, na disposição do conteúdo, isto é, seções semelhantes” (MARTINS, 2008: 43).

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vasta cabeleira e que cultivava relações com a elite e circulava livremente pela corte, o que lhe oferecia oportunidades para observar condutas, acompanhar fatos e comentá-los com seu leal companheiro (PEREIRA, 2015: 11).

À guisa de exemplo segue a capa uma edição de 1871, na qual é possível observar além do diálogo entre as personagens centrais, outros aspectos do estilo artístico do periódico.

Semana Illustrada, 19/03/1871: 1

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Já a Revista Illustrada, de Agostini, trazia de maneira acentuada a defesa do fim da escravidão. O jornal abolicionista possuía um caráter político e educativo que visava instruir a opinião pública (VASCONCELOS, 2018). Juntamente com a Semana Illustrada e outros órgãos de imprensa ilustrada, a publicação de Agostini constitui importante fonte para os estudos sobre escravidão. A publicação de ilustrações ampliava a repercussão da mensagem transmitida. A despeito do baixo nível de alfabetização da sociedade brasileira oitocentista, a leitura oral de periódicos era prática difundida (BARBOSA, 2010, p. 118). Além da parte textual, a iconográfica em si consistia em importante veículo transmissor de representações sociais e de formação de opinião pública. ***

Como fonte ou como objeto, a imprensa periódica produzida no século XIX é riquíssima para os estudos sobre escravidão, bem como para outros temas. Compreender a finalidade original da produção é essencial, uma vez que esses registros do passado não foram produzidos para serem utilizados por historiadores. No caso dos jornais, seu papel era informar, noticiar e polemizar, temas do cotidiano, da política, da economia, constituindo assim importante espaço de formação de opinião pública. Além de servir de veículo para auxiliar nas transações comerciais – por meio de seus anúncios de compra, venda e aluguel de escravos e de outros artigos – a recuperação da valiosa propriedade escrava. Por ser uma instituição difundida social e espacialmente por todo país, a escravidão foi tema constante e marcante na imprensa, tornando-a importante fonte para os pesquisadores.

Referências bibliográficas ABREU, Martha Campos. Slave mothers and freed childrens: emancipation and female space in debates on the free womb law, 1871. Journal of Latin American Studies, Cambridge, v. 28, p. 567-580, 1996. ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88). São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 166

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AZEVEDO, Elciene. Orfeu de carapinha a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo. São Paulo: Editora da Unicamp, Cecult, 1999. BALABAN, Marcelo. Poeta do lápis: sátira e política na trajetória de Angelo Agostini no Brasil Imperial (1864-1888). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009. BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa: Brasil, 1800-1900. Rio de Janeiro: Mauad X, 2010. CARULA, Karoline. Darwinismo, raça e gênero: projetos modernizadores da nação em conferências e cursos públicos (Rio de Janeiro, 1870-1889). Campinas: Editora da Unicamp, 2016. CARULA, Karoline . Maternidade escrava e amas de leite na imprensa do Rio de Janeiro do Oitocentos. In: CARULA, Karoline; ARIZA, Marília B. A. (org.). Escravidão e maternidade no mundo atlântico: corpo, saúde, trabalho, família e liberdade nos séculos XVIII e XIX. Niterói: Editora da UFF, 2021. CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850. 2 ed. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2010. CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. CHALHOUB, Sidney. Machado historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. COWLING, Camillia. Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e a abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro. Campinas: Unicamp, 2018. DOMINGUES, Petrônio. Imprensa negra. In: SCHWARCZ, Lilia M.; GOMES, Flavio dos Santos (org.). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 253-259. FERREIRA, Ligia Fonseca (org.). Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro. São Paulo: Edições Sesc, 2020. FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Editora Unesp, 2014. FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. 2 ed. São Paulo: Editora Nacional; Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, 1979. 167

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LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes históricas. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2008, p. 111-154. MACHADO, Humberto. Palavras e brados: José do Patrocínio e a imprensa abolicionista no Rio de Janeiro. Niterói: Editora da UFF, 2014. MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Mulher, corpo e maternidade. In: SCHWARCZ, Lilia M.; GOMES, Flavio dos Santos (org.). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 334-340. MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da abolição. 2. ed. rev. São Paulo: Edusp, 2010. MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo; BRITO, Luciana da Cruz; VIANA, Iamara da Silva; GOMES, Flávio dos Santos (org.). Ventres livres?: gênero, maternidade e legislação. São Paulo: Editora da Unesp, 2021. MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. A proibição do tráfico atlântico e a manutenção da escravidão. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (org.). O Brasil Imperial, v. I. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 207-234. MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em tempos de República, São Paulo (1890-1922). São Paulo: Edusp, 2008. MEIRELLES, Juliana Gesuelli. Imprensa e poder na corte Joanina: a Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1821). Rio de Janeiro: Ed. Arquivo Nacional, 2008. MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas, SP: Editora da Unicamp, Cecult, 1999. MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos: imprensa atores políticos e sociabilidades na cidade imperial (1820-1840). São Paulo: Hucitec, 2005. PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasiliera, 2011. PENA, Eduardo Spiller. Pajens da casa imperial: jurisconsultos, escravidão e a Lei de 1871. Campinas, SP: Editora da Unicamp, Cecult, 2001. PEREIRA, Renan Rivaben. Semana Ilustrada, o moleque e o Dr. Semana: imprensa, cidade e humor no Rio de Janeiro do 2º Reinado. Dissertação (Mestrado em História). Assis: Universidade Estadual Paulista, 2015. 168

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PIMENTA, Tânia Salgado; Gomes, Flávio; KODAMA, Kaori. Das enfermidades cativas: para uma história da saúde e das doenças no Brasil escravista. In: TEIXEIRA, Luiz Antonio; PIMENTA, Tânia Salgado (org.). História da saúde no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2018. PIMENTA, Tânia Salgado; Gomes, Flávio (org.). Escravidão, doenças e práticas de cura no Brasil. Rio de Janeiro: Outras Letras, 2016. PINTO, Ana Flávia Magalhães. Escritos de liberdade: literatos neros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2018. PINTO, Ana Flávia Magalhães. Imprensa negra no Brasil do século XIX. São Paulo: Selo Negro, 2010. RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas, SP: Editora da Unicamp, Cecult, 2000. SANTOS, Martha S. “Slave mothers”, partus sequitur ventrem, and the naturalization of slave reproduction in nineteenth-century Brazil. Tempo, Niterói, v. 22, n. 41. p. 467-487, set-dez. 2016. SCHWARCZ, Lília Moritz. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. SOARES, Carlos Eugênrio Líbano; GOMES, Flávio dos Santos; FARIAS, Juliana Barreto. No labirinto das nações: africanos e identidades no Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005. SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 4. ed. [atualizada]. Rio de Janeiro: Mauad, 1999. VASCONCELOS, Mônica. A campanha abolicionista da Revista Ilustrada (1876-1888): Ângelo Agostini e a educação do povo. Curitiba: Appris, 2018. VIANA, Iamara da Silva; GOMES, Flávio dos Santos. Do “mercado imperfeito”: sobre corpos, africanos e médicos no Rio de Janeiro Oitocentista. Revista Maracanan, v. 21, p. 71-96, maio/ago. 2019. YOUSSEF, Alain El. Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no Império do Brasil (Rio de Janeiro, 1822-1850). São Paulo: Intemeios, Fapesp, 2016.

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Onde estão os arquivos do abolicionismo negro?

Isadora Moura Mota | Princeton University

No início de fevereiro de 1863, os escravizados de Antônio Januário Pinto Ferraz organizaram uma noite de batuques e tambaques na Fazenda Atibaia. Era sábado antes do entrudo em Campinas e eles aproveitavam que o senhor-moço que administrava os cafezais do pai havia viajado para passar o feriado na cidade. Sob a supervisão de um feitor escravizado, o carnaval daquele ano atraiu para Atibaia ao menos outros dezesseis cativos vindos de propriedades vizinhas que juntos dançaram ao som da viola. Apesar da atmosfera informal repleta de música e muita conversa, tensões típicas do cotidiano da escravidão logo começaram a aparecer. Benedito chegou ao batuque furioso, anunciando a quem quisesse ouvir que pretendia matar Ferraz Júnior assim que ele retornasse de Campinas. Os motivos para tanto estavam inscritos em seu corpo: Benedito ainda exibia as cicatrizes das vinte e cinco chicotadas que recebera por entrar sem permissão na casa grande de Atibaia para encontrar-se com uma mulher mulata que ali trabalhava. Trazia nas costas as marcas legíveis da opressão racial. Enquanto Benedito apeava de seu cavalo, os demais presentes no carnaval correram para acalmá-lo. Ainda que concordassem ser aquilo muito castigo para pouco crime, os escravizados de Atibaia pediram para que o companheiro reconsiderasse seu plano. Uma insurreição já estava sendo organizada para a Semana Santa e era preciso evitar a vigilância que certamente se seguiria

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ao assassinato de um senhor num dos centros da economia cafeeira paulista. Benedito cedeu ao apelo e resolveu se juntar aos insurgentes, dando vivas à liberdade e aos ingleses, de quem eles esperavam apoio militar. Para os rebeldes de Campinas, o aprofundamento dos conflitos diplomáticos anglobrasileiros na década de 1860 sugeria a possibilidade de que os estrangeiros tão vilificados pelos proprietários fossem solidários à causa da abolição no Brasil. Assim já diziam gerações anteriores escoladas em décadas de conflitos pelo fim do tráfico de africanos nas Américas. O momento era de divisão entre os brancos e os insurgentes decidiram agir para conquistar a emancipação com suas próprias mãos. A rebelião teria rebentado não fosse o músico que tocara viola na Fazenda Atibaia denunciar a conspiração ao delegado de Campinas. “Desde o momento em que pela leitura das notas diplomáticas trocadas entre o ministro brasileiro e britânico, concebi a ideia da possibilidade de uma Guerra nacional, meu primeiro pensamento foi não tirar as vistas um só momento da nuvem negra que há muito sombreia o horizonte brasileiro,” disse ele (QUEIROZ, 1977:171). Em 28 de fevereiro de 1863, a Câmara Municipal se reuniu em sessão secreta para discutir o que fazer e logo conseguiu que o Chefe de Policia de São Paulo partisse para a região acompanhado da cavalaria do exército. Em 2 de março, o Barão de S. João do Rio Claro acalmou a Assembleia Provincial, dizendo não haver mais que rumores de revolta. No entanto, quando a cavalaria chegou à Campinas no mesmo dia, a Sociedade Patriótica Campineira, uma milícia branca encabeçada pelo juiz Vicente Ferreira da Silva Bueno, esperava a postos para auxiliar na repressão (XAVIER, 2002:79). Era sabido que a conspiração negra se espalhara por Belém, Amparo, e Indaiatuba, onde cerca de trinta mil escravizados viviam.1 Em linhas gerais, esta é a história sobre a insurreição negra em Campinas que emerge da documentação oficial trocada entre autoridades provinciais e imperiais em 1863. Um movimento desautorizado e fadado ao fracasso. Os 1. Revista Commercial, 7 de março de 1863, p. 2. O jornal Correio Mercantil divulgou pouco depois a volta da tranquilidade ao oeste paulista: “Com a remessa de força feita pela presidência dissiparam-se os receios de insurreição de escravos em Campinas, e agora as notícias de solução da questão anglo-brasileira devem fazer desaparecer quaisquer receios. A crença que tinham alguns escravos de que os ingleses os vinham libertar é que fazia avultar o perigo.” Correio Mercantil, 7 de Março de 1863, p. 2.

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detalhes vêm de um ofício enviado pelo juiz Silva Bueno ao presidente da província de São Paulo, no qual ele recomenda vigilância aos fazendeiros ainda que descarte como fantasiosos os relatos dos escravizados sobre uma aliança com os ingleses. Esta foi, porém, apenas uma das versões sobre o que aconteceu em 1863. Nenhuma fonte primária contém em si um significado único e imutável a ser revelado pelo(a) historiador(a). Documentos dependem das leituras que fazemos e seu valor como registros de uma época existe em relação ao meio social que os preserva e analisa. Para os estudiosos da escravidão no Brasil, o desafio metodológico é ainda mais espinhoso: à dimensão interpretativa da prática histórica, soma-se o fato de que as vivências de homens e mulheres escravizados sobreviveram de forma fragmentada em arquivos criados pelos interessados em desbaratar ataques ao sistema escravista. Juízes, delegados, comerciantes, ministros e proprietários de gente são geralmente os autores das fontes que silenciam as visões de mundo dos afrodescendentes ou os representam como sujeitos incapazes de transformarem a ordem social vigente. Nos acervos do século XIX, o ativismo negro é vigiado, criminalizado, desmerecido e, em última instância, inextricável de pressuposições racistas. Para ser estudado, portanto, ele requer antes de tudo que o reconheçamos como tal e consideremos que, ironicamente, o esforço de silenciar vozes negras também as registra. Combinando diferentes motivações e conjunturas políticas, as rebeliões escravas fizeram parte do cotidiano brasileiro ao longo do século XIX (REIS e GOMES, 2021, PIROLA, 2011, REIS, 2003, GOMES, 1995). Existiram como confrontos abertos, conspirações retaliadas antes de sua eclosão ou na forma de rumores que corriam pelos campos e cidades do império. Vividos ou imaginados, os levantes estavam imbricados num jogo complexo de expectativas escravas e senhoriais em torno de diferentes possibilidades de intervenção nas relações escravistas. Desejando a liberdade, os cativos interpretavam a realidade a seu redor e construíam estratégias de ação afinadas tanto com a efervescência política de seu tempo, quanto com a experiência das comunidades e culturas negras formadas sob a escravidão. Temerosos em perder o poder que exerciam sobre uma numerosa força de trabalho, os senhores, por outro lado, combinavam de forma imperfeita castigo e negociação, eximindo-se no controle da comunicação entre escravizados, libertos e livres. 172

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Como o exemplo de 1863 demonstra, o abolicionismo atlântico se tornou cada vez mais visível como parte da dialética que informava a politização do cotidiano pela população negra na segunda metade do oitocentos. Informações sobre a emancipação nas Américas circulavam amplamente através da palavra impressa e falada, estimulando a discussão sobre o futuro da escravidão no Brasil (MOTA 2020, MOREL, 2017, GRINBERG, 2016). Mais do que isso, ao engajarem-se na luta contra seus senhores a partir do que sabiam sobre os conflitos de seu tempo, os escravizados brasileiros constituíram o que chamamos de abolicionismo. Tal realidade se reflete nas fontes primárias da década de 1860, embora de maneira bastante desigual. Resolutos em negar o papel dos negros como agentes de sua libertação, autoridades imperiais descreveram a luta antiescravista como ameaça estrangeira e, sobretudo, como fruto da influência britânica sobre o império. Na documentação que resultou da repressão às rebeliões negras reina a desconfiança de que os cativos agiam como massa de manobra de forasteiros ou pessoas livres, uma vez que julgados inaptos a conceber a liberdade como projeto político mais amplo. Cabe, então, ao(à) historiador(a), desconstruir as fontes do ponto de vista das intencionalidades explícitas e implícitas de seus autores, do contexto sócio-histórico de sua produção, de sua função social e de seu público-alvo. Quando menciono o abolicionismo, é preciso salientar, refiro-me a um movimento amplo, de longa duração e com múltiplas origens (FERREIRA, 2018, SINHA, 2016, REIS, 2000). A busca por uma campanha abolicionista visivelmente articulada levou os(as) historiadores(as) a se concentrarem nas décadas de 1870 e 1880, momento em que ela emergiu como o primeiro movimento político nacional de massa do Brasil (CASTILHO, 2016, ALONSO, 2015, ALBUQUERQUE, 2009, AZEVEDO, 1987). No entanto, o abolicionismo tomou corpo anteriormente de forma mais difusa a partir de fontes díspares de oposição à escravidão, incluindo a resistência de escravizados, africanos livres e libertos no terceiro quartel do século XIX. Nos documentos, o que podemos chamar de abolicionismo negro se insinua de forma descontínua e geralmente transcrito na terceira pessoa. No entanto, tais relatos apontam para a existência de geografias alternativas sobre o desenrolar da abolição, alianças políticas improváveis e interpretações da história oitocentista tecidas no contexto de redes de comunicação subalternas espalhadas por todo o 173

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hemisfério (TROUILLOT, 1995, JOHNSON 2011). Para ouvi-las, precisamos lançar mão de um modo de análise textual que conceda às epistemologias negras a mesma legitimidade estendida às narrativas dominantes sobre a formação nacional brasileira (FUENTES, 2016:142-43).

A correspondência administrativa como fonte histórica Nas páginas que seguem, nos lançamos ao estudo do ofício escrito por Vicente Ferreira da Silva Bueno (1815-1873) em fevereiro de 1863. Membro dos quadros burocráticos da elite estatal dirigente em Campinas, ele administrava os negócios da justiça no âmbito da comarca, onde trabalhava juntamente aos juízes de paz dos distritos e juízes municipais dos termos.2 Era advogado formado pela faculdade de Direito de São Paulo e serviu como delegado e juiz em diversos municípios paulistas ao longo de sua vida. Entre 1850-51 e 1860-61, Silva Bueno foi deputado provincial pelo Partido Conservador e viria a se tornar Chefe de Polícia de São Paulo no fim da década.3 O posto que exercia em 1863 era bastante caro aos interesses monárquicos, já que juízes de direito atuavam não apenas como magistrados, mas também como articuladores do governo em conflitos e disputas políticas locais. Manter a paz e garantir a reprodução social do poder senhorial estavam entre as suas prioridades. A mensagem que Silva Bueno enviou ao presidente Vicente Pires da Mata respondia a um pedido de informações sobre as repercussões da chamada Questão Christie entre os escravizados de Campinas. O documento integra um dossiê guardado no Arquivo Nacional, como parte da “Série Justiça – Gabinete do Ministro,” coleção que reúne a correspondência oficial que passou pela mesa dos ministros da Justiça brasileiros entre 1806 e 1963. Para o período imperial (1822-1889) que aqui abordamos, há ordens e portarias do 2. BRASIL. Código do processo criminal de primeira instância para o Império do Brasil, com notas, nas quaes se mostrão os artigos que forão revogados, ampliados, ou alterados, seguido da disposição provisória acerca da administração da justiça civil e da Lei de 3 de dezembro de 1841 que reforma o mesmo código. Rio de Janeiro, Typographia de Manoel José Cardoso, 1842. 3. Em1872, foi nomeado para o Tribunal da Relação no Rio de Janeiro pouco antes de falecer. NETTO, Damuel Pfromm. Dicionário de Piracicabanos. São Paulo: IHGP, 2013; AZEVEDO, Elciene. Orfeu De Carapinha: A Trajetória De Luiz Gama na Imperial Cidade De São Paulo. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1999, p. 111.

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Gabinete remetidas para autoridades judiciais e policiais, atos administrativos, relatórios de batidas a quilombos e memorandos sobre a administração da justiça criminal. Este tipo de correspondência também pode ser encontrado em outros arquivos públicos e cartórios, geralmente sob a denominação de documentação provincial ou policial. Falamos da burocracia do dia-a-dia de uma sociedade escravista. Ofícios como o de Silva Bueno repetem fórmulas e técnicas típicas da padronização da linguagem judiciária.4 O juiz abre sua mensagem, por exemplo, com uma reverência ao “ilustríssimo e excelentíssimo” presidente de São Paulo e assina como “amigo atencioso, criado e obrigado” daquela autoridade. Ao documento, juntam-se outros semelhantes escritos no calor dos acontecimentos para justificar a resposta militarizada do Estado ao ativismo negro. Dentre eles, um ofício do comandante do quartel do destacamento da cidade de Campinas, João Carlos Nogueira de Bauman, e outro do suplente de delegado Francisco Antônio Pinto. Sugerimos adiante que, apesar do caráter formal, esta documentação suscita interpretações alternativas quando abordada do ponto de vista dos escravizados. Os ofícios contêm informações sobre as estratégias de insurgentes, seus nomes, idades, origem, e não raro paráfrases de seus depoimentos e acareações. Uma vez retirados do âmbito da segurança pública, eles podem muito bem constituir arquivos para o estudo do abolicionismo negro no Brasil. São fontes preciosas especialmente quando, como no caso de Campinas, um processo criminal não foi instaurado para investigar a tentativa de insurreição. A análise aqui apresentada se baseia em questões sugeridas pelo campo da História Social dentro de uma abordagem transnacional. Nas entrelinhas do discurso oficial, buscaremos significados do cotidiano, das identidades e das culturas cativas, procurando avançar na compreensão do mundo que os escravizados criaram para si.5 Revoltas como a de 1863 podem também 4. PINSKY, Carla Bassanezi e LUCA, Tânia Regina de (org.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009. 5. Para alguns exemplos, ver, dentre outros: CHALHOUB, Sidney. A Força da Escravidão: Ilegalidade e Costume no Brasil Oitocentista. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2012; LARA, Sílvia H. e MENDONÇA, Joseli, eds. Direitos e Justiças: Capítulos de História Social do Direito no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2006; SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999.

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ser vistas como iterações de uma luta transatlântica contra a escravidão liderada por negros que entendiam que seu destino estava entrelaçado com a sorte dos demais descendentes de africanos em diáspora. Uma história transnacional, portanto, é aquela que procura o global no local e vice-versa, reconhecendo que, para escravizados sem direito à cidadania, a liberdade não era necessariamente sinônimo do anseio de pertencer à nação. Propomos, portanto, uma incursão pela história imperial do Brasil pensada entre cenários regionais, nacionais e atlânticos.6

Uma conspiração escrava no rastro da Questão Christie Em 23 de fevereiro de 1863, Vicente Ferreira da Silva Bueno explicou com minúcia a repercussão em Campinas da recente represália naval inglesa no Rio de Janeiro. Havia décadas que Brasil e Grã-Bretanha brigavam sobre o processo de extinção do tráfico atlântico e o conflito atingiu seu ápice entre 1862 e 1863, resultando na suspensão de relações diplomáticas até 1865. Em dezembro de 1862, o representante da legação britânica na Corte, William D. Christie, enviou um ultimato ao governo de D. Pedro II. Ele exigia indenização e pedido oficial de desculpa em função do naufrágio da barca inglesa Prince of Wales no Albardão, Rio Grande do Sul, e da prisão de três marinheiros ingleses na capital imperial por desordem. Christie culpava os brasileiros pelo desaparecimento de parte da tripulação do Prince of Wales e considerava escandalosa a prisão de súditos ingleses por um país que se esquivava de cumprir tratados bilaterais desde sua independência.7 Quando o Marquês de Abrantes, ministro dos Negócios Exteriores, se recusou a conceder a reparação, Christie ordenou o bloqueio do porto do Rio de Janeiro. Na primeira semana de 1863, a marinha britânica capturou cinco navios mercantes brasileiros em águas nacionais, suscitando em todo o Brasil rumores de que uma guerra anglo-brasileira estava para começar.8 6. SCOTT, Julius. The Common Wind: Currents of Afro-American Currents in the Age of the Haitian Revolution London: Verso, 2018; SEIGEL, Micol. “Beyond Compare: Historical Method after the Transnational Turn.” Radical History Review 91, Winter 2005, pp. 62-90. 7. CHRISTIE, William D. Notes on Brazilian Questions. London, Cambridge: Macmillan and co. 1865. 8. GRAHAM, Richard. “Os Fundamentos da Ruptura de Relações Diplomáticas entre o Brasil e a Grã-Bretanha em 1863. A ‘Questão Christie.” Revista de História 24: 49 (Jan–March 1962), 117–37 and 379–400.

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Apesar da lei Eusébio de Queirós ter estancado aos poucos o tráfico após 1850, as tensões diplomáticas entre Brasil e Grã-Bretanha continuaram vivas por muitos anos. Em questão, estavam o contrabando de gente e o status dos africanos livres, homens, mulheres e crianças traficados em navios negreiros mas emancipados por intervenção de cruzeiros britânicos ou da legislação brasileira desde 1831. Os africanos livres ocupavam uma posição liminar na sociedade imperial e, embora tivessem direito à emancipação após cumprir catorze anos de serviços ao Estado ou a arrematantes particulares, sofriam rotineiramente com maus-tratos ou com a escravização. Diplomatas britânicos como William D. Christie tornaram pública a discussão sobre o tema que colocava em xeque tanto a posição diplomática do Brasil quanto a eficácia da política antiescravista britânica. Para o governo imperial, a continuidade da escravidão em meio ao avanço global da emancipação tornava a Grã-Bretanha, seu principal parceiro comercial e declarada potência abolicionista, também o seu maior adversário geopolítico.9 No ofício de sete páginas que escreveu à mão, Silva Bueno fez menção direta ao assunto que os contemporâneos chamavam de “questão anglo-brasileira,” mais tarde imortalizada por Victor Meirelles em uma pintura como “Questão Christie.”10 Silva Bueno caracterizou o bloqueio naval de 1863 tal como o pintor o faria em 1864, isto é, como uma afronta britânica à soberania brasileira. O nacionalismo ferido levara até o imperador 9. MAMIGONIAN, Beatriz. Africanos Livres: A abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 10. Em 1864, Victor Meirelles, pintor formado na Imperial Academia de Belas Artes, completou o seu completou o seu “Estudo para Questão Christie,” óleo em tela aparentemente encomendado pelo Marquês de Abrantes. MAMIGONIAN, Beatriz. Building the Nation, Selecting Memories: Victor Meireles, the Christie Affair and Brazilian Slavery in the 1860s.” In: COTTIAS, Myriam and ROSSIGNOL, Marie-Jeanne. Distant Ripples of the British Abolitionist Wave: Africa, Asia, and the Americas. Trenton, NJ: Africa World Press, 2017. Sobre a Questão Christie, ver: MANCHESTER, Alan. British Preeminence in Brazil: Its Rise and Decline. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1933; BETHELL, Leslie. The Abolition of the Brazilian Slave Trade: Britain, Brazil and the Slave Trade Question, 18071869. Cambridge [Eng.]: University Press, 1970; YOUSSEF, Alain El. “Questão Christie em perspectiva global: pressão britânica, Guerra Civil norte-americana e o início da crise da escravidão brasileira (1860-1864).” Rev. Hist. (São Paulo), n. 177 (2018), pp. 1-26; RYAN, Maeve. “British Antislavery Diplomacy and Liberated African Rights as an International Issue.” In: ANDERSON, Richard and LOVEJOY, Henry B., eds. Liberated Africans and the Abolition of the Slave Trade, 1807-1896. Rochester, NY: University of Rochester Press, 2020, 215-37.

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Pedro II às ruas do Rio de Janeiro para assegurar súditos indignados de “que ele deixaria de ser imperador do Brasil no dia em que não pudesse mais defender com dignidade a honra nacional e a independência de sua pátria.”11 Convertida em evento patriótico, a crise diplomática estimulou o apoio popular ao governo imperial, que começava a preparar o país para a eventualidade de um confronto armado com a Grã-Bretanha. A missiva de Silva Bueno oferecia um claro exemplo da corrida bélica: cidadãos livres de Campinas criaram uma milícia para coadjuvar a atuação de tropas militares e da Guarda nacional em 1863. Os inimigos, porém, eram tanto internos quanto externos. O magistrado assim iniciou seu relato no tom legalista típico da correspondência trocada com o Ministério da Justiça: “As ocorrências no Rio de Janeiro com o Ministro Inglês, a probabilidade de um rompimento que temos do exíguo número de praças de linha, e do Corpo de Permanentes que guarnecem esta Província, a impossibilidade em que se veria então o Governo de guarnecer um município da ordem deste, fez com que criássemos a Sociedade Patriótica Campineira (...)”

Criada a Sociedade começaram a aparecer boatos aqui e ali respeito da escravatura e naquela venda desta, e daquela estrada eles diziam isto e aquilo e nas pontes, aguadas e chafarizes onde de costume eles se ajuntam, e conversam ouvia-se (dizem) o que quer que fosse a respeito de levantes, de Ingleses & & pois é fato que ou contam com a proteção destes, ou ao menos há fundado motivo para recear alguma manifestação hostil por parte dos escravos caso se dê o rompimento com a Inglaterra. Estes boatos, pois, embora sem maior consistência, pois que eram destacados ouvidos aqui e ali por este e por aquele que muitas vezes não merecia crédito, e que nem dava razão suficiente de sua ciência, fez com que alguns sócios da Sociedade Patriótica requeressem ao Diretório dela a convocação da Sociedade para lançar-se mão dos meios de tornar práticos os fins da Sociedade = a coadjuvação `as autoridades =. & Um sócio apresentou uma indicação escrita para que a Sociedade criasse uma guarda urbana de 50 a 100 fardada, armada, equipada 11. Diário do Rio de Janeiro, 5 de janeiro de 1863, p. 1.

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e paga pela Sociedade e um outro indicou da mesma maneira que se criasse um batalhão de voluntários armados...”12 Seguindo a lógica daqueles que apoiavam o escravismo, Silva Bueno discorreu primeiro sobre a importância da segurança pública para só então revelar a razão tácita por trás da formação da milícia. O magistrado queixavase de que os escravizados trocavam ideias “a respeito de levantes, de Ingleses & &” e que esperavam contar com a proteção destes. Ou seja, Bueno estava à frente de um grupo que se armava para enfrentar escravizados que planejavam se insurgir. Silva Bueno defendia, no entanto, que a Sociedade Patriótica Campineira permanecesse numa posição secundária. Ela deveria contribuir para ampliar, fardar e municiar a Guarda Nacional, já que não havia fundos para propriamente equipar o corpo de voluntários. Os cidadãos de Campinas assim o fizeram, pois “como esses Guardas Nacionais somente vencendo o soldo e etape se negam ao serviço e mandam ou fazem-se substituir por tortos, aleijados, idiotas, enfim, por quem acham para lhe fazer o serviço bem barato,” era melhor que a Sociedade completasse o que dava o governo com “ uma gratificação de quinze a vinte mil réis por mês a cada um, que se mandasse concertar o armamento nacional aqui existente que a maior parte estava inútil, e que comprasse materiais para cartuchame que nenhum existia (...).” O magistrado ecoava, assim, iniciativas semelhantes espalhadas pelo Brasil. Em 1863, os arsenais de guerra passaram a produzir mais balas, empregados públicos circularam subscrições a fim de juntar dinheiro para o governo imperial e muitos foram os batalhões que como a Sociedade Patriótica Campineira se organizaram nominalmente para enfrentar a Grã-Bretanha.13 A preocupação de Silva Bueno com os escravizados tinha raízes concretas. Em Campinas, corriam boatos de que uma insurreição estava de fato para irromper durante a Semana Santa, combinando a violência do cotidiano escravista com o abolicionismo britânico: 12. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ), Seção Justiça (SJ), IJ1-518, 23 de fevereiro de 1863. Cópia do ofício de Vicente Ferreira da Silva Bueno para o presidente da província de São Paulo, Vicente Pires da Matta. 13. Diversas milícias criadas em 1863 acabaram ativas somente quando declarada a Guerra do Paraguai dois anos mais tarde. Para exemplos nas províncias do Rio de Janeiro e São Paulo, ver: Correio Paulistano, 18 Jan. 1863, 3; Diário do Rio de Janeiro, 6 Jan. 1863, 1.

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“Um filho do Snr Antônio Januário Pinto Ferraz, que toma conta da fazenda deste castigou um escravo da casa, tido por fiel, estimado & e castigou com 25 açoites, porque este escravo arrombou uma janela da casa da residência, e nela penetrou para fins libidinosos com uma mulata recolhida &&. Este castigo parece que foi pouco, em vez de corrigir exasperou ao tal escravo, vindo o Snr Ferraz Junior e sua Senhora para a Cidade para assistir o Carnaval deixou a fazenda entregue a um feitor que também é escravo da mesma. Estes escravos entenderam dever se revestir, digo, se divertir uma noite com batuques, tambaques &&, reuniram 16 escravos de uma fazenda vizinha, e alguns de outras && e aí espiritualizados, e por isso mais expansivos em suas conversas, aquele castigado de nome Benedito revelou o plano que tinha concebido de assassinar ao Snr Ferraz Junior quando voltasse da Cidade, e logo ao apear-se do cavalo os outros escravos tiraram-lhe isso da cabeça dizendo-lhe que isso ia destruir o plano da Semana Santa, continuaram nesta conversa e deram vivas aos Ingleses, `a liberdade &&. Toda esta conversa ou ao menos a 1a parte dela (a pretensão do assassinato) foi ouvida por um Carapina que lá estava na súcia tocando violão, digo, viola, este revelou isto a alguém, e este alguém ao Delegado. Este deu providências precisas, tem mandado vir diversos escravos, e das fazendas indigitadas e indigitados uns por outros, tem os interrogado, e um então revelou que o plano concertado era pela Semana Santa levantarem-se, baterem nas fazendas, saquearem o dinheiro e virem incorporados bater na Cidade, visto que contavam certos, nesse tempo com os Ingleses...”14

Neste trecho, Silva Bueno nos oferece um exemplo típico da retórica oficial sobre o ativismo negro no século XIX. A conspiração aparece como reação exasperada dos insurgentes ao castigo e fruto de ideias estapafúrdias trocadas por eles em momento de descontração. Em registro carregado de 14. ANRJ, SJ, IJ1-518, 23 de fevereiro de 1863.

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desrespeito às mentes e corpos negros, o juiz descreve o levante na Fazenda Atibaia como produto do desejo de vingança dos escravizados contra os brancos, prontos como estariam para lançarem-se ao roubo e à depredação da propriedade privada. Se Silva Bueno recupera fragmentos dos circuitos de informação entre os envolvidos, é somente para pleitear junto ao governo provincial o envio de mais tropas para Campinas. Sua narrativa constrói os insurgentes como pessoas inebriadas e crédulas, afeitas a serem influenciadas por emissários estrangeiros. O ofício termina com uma explicação um tanto tortuosa sobre a necessidade de se salvaguardar Campinas de um levante negro que o juiz considerava improvável. “Ainda se interrogam escravos, pessoas livres, camaradas, e agregados indigitados por escravos, e unicamente noto a repugnância que os escravos mostram em contar o que conversavam. Disse um deles que o plano é geral, e que qualquer escravo que se pegue sabe de tudo.” Silva Bueno se mostrava reticente porque as confissões dos insurgentes havia disso obtidas “debaixo de castigos”: “Com estes boatos, revelações && alguns espíritos estão impressionadíssimos, atemorizados &. Eu, porém, declaro a V. Exa. que não ligo importância alguma a isto, e nem creio que haja plano concertado de insurreição geral, e nem mesmo parcial, e por isso entendo que não estamos e nem estivemos sob vulcão algum. Essa revelação da Semana Santa foi extorquida debaixo de castigos, e por isso para mim desmerece de valor, entretanto como continuam as indagações me aguardo para moralizar mais tarde sobre o que houver. Algumas providências já tenho indicado ao Delegado por exemplo recomendar aos fazendeiros que redobrem de vigilância em suas fazendas, que não consintam comunicação de escravos, que acautelem toda a ferramenta da lavoura, que tomem todo o armamento que por ventura os escravos tenham, que não deixem as fazendas entregues a escravos pela Semana Santa, que não consintam em suas fazendas estes latoeiros, mascates, joalheiros & que podem bem ser emissários, pois o Governo Inglês não há de mandar Ingleses. Julgo também que pela Repartição da Polícia deve ser recomendado aos Delegados destes Municípios confinantes

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que recomendem a mesma coisa, e que tomem todas as cautelas, e por último entendo, e peço a V. Exa. que aumente este destacamento ao menos com dez praças de Permanentes ou de 1a Linha até depois da Semana Santa. Não porque me convença da iminência do perigo e sim por medida de cautela para o policiamento da Cidade, e para tranquilidade dos espíritos. Isto é indispensável por não se saber quando passará aqui o destacamento de Batatais.”15

Como vemos, há aqui uma contradição fundamental: se não havia perigo de rebelião, se ninguém deveria se fiar naquilo que os rebeldes diziam sobre os ingleses, para que armar e proteger o município de Campinas? Silva Bueno destacou a “repugnância que os escravos demonstravam ao relatar o que falavam”, mas mapeou suas conversas; culpou agentes britânicos por incitar a rebelião, mas admitiu que “os ingleses” eram um elemento importante da cultura política escrava em Campinas. Tal paradoxo atravessa toda a documentação sobre a escravidão oitocentista, revelando a presença do que hoje chamamos de racismo estrutural na construção das fontes primárias. Motivados pelo medo, autoridades recorriam à repressão preventiva ao menor sinal de agitação negra; guiados pela crença na inferioridade racial dos afrodescendentes, descartavam simultaneamente seus projetos como inconsequentes. Ao(À) historiador(a), no entanto, cabe considerar outras perspectivas. Silva Bueno assistiu ao uso de tortura na cadeia de Campinas. A presença de autoridades e senhores era comum em inquéritos sobre insurreição, aumentando mais ainda a pressão sobre os escravizados para que confessassem a “verdade” que as elites queriam ouvir.16 Os depoimentos de insurgentes, portanto, sofriam diferentes níveis de mediação antes de ganharem espaço na prateleira dos arquivos judiciais. Amarrados, açoitados ou ameaçados com duras sentenças, muitos sugeriam nomes de “incitadores” às autoridades 15. Ibid. 16. Durante o império, uma legislação específica regulava a aplicação de castigos físicos aos escravizados. O Código Criminal de 1830 determinava que açoites e ferros eram penas exclusivas para eles, além das penas de gales e morte. GRINBERG, Keila. “Castigos físicos e legislação.” In: SCHWARCZ, Lilia M.; GOMES, Flávio (Org.). Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, pp. 144-148.

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policiais, enquanto outros criavam explicações alternativas que mais escondiam do que revelavam suas estratégias de luta. As perguntas que lhes eram feitas geralmente seguiam um script ditado pelo objetivo de os enquadrar no crime de que eram acusados. Em seu artigo 113, o Código Criminal de 1830 definia o crime de insurreição como aquele cometido por escravos a fim de haver sua liberdade através da força, exigindo a comprovação do envolvimento de vinte ou mais participantes, sua manifestação “por atos exteriores” e início da execução. No caso de uma tentativa de insurreição, se requeria prova de que o movimento não teve lugar em virtude de circunstâncias fora do controle dos acusados.17 Seja como for, ao final dos interrogatórios, escrivães – e veja-se aqui a importância de reconhecer fontes jurídicas oitocentistas como fruto da perspectiva masculina – transcreviam os testemunhos dos escravizados em ofícios que eram, então, enviados a diversas autoridades. O uso de tortura e intimidação já levou muitos estudiosos a rejeitarem os testemunhos de insurgentes negros como indignos de confiança. Mas esta é a natureza dos arquivos da escravidão: repletos de violência, racismo e silêncios; um lugar no qual vozes negras aparecem filtradas pelo exercício da supremacia branca. Se entendemos o processo de construção de tais testemunhos, porém, podemos vislumbrar em suas entrelinhas como os rebeldes de Campinas atuaram como produtores de projetos abolicionistas. Embora não tivessem subjetividade jurídica ou política nos termos da legislação oitocentista, os escravizados foram os primeiros a lutar pela eliminação imediata do cativeiro no Brasil. Na seção que segue, discutiremos como uma leitura crítica do ofício de Silva Bueno pode dizer algo sobre os significados da liberdade negra durante o império.

Os arquivos do abolicionismo negro Na narrativa triunfante de Silva Bueno sobre a conspiração negra de Campinas, a presunção de invencibilidade dos senhores nega a natureza indeterminada da história. Em fevereiro de 1863, tudo concorria para o sucesso da rebelião: o Brasil estava a ponto de entrar em guerra com a Grã-Bretanha, o governo tinha poucos recursos para policiar as províncias, o povo estava nas 17. Código Criminal do Império do Brasil. Recife: Typographia Universal, 1858.

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ruas e os escravizados claramente entendiam que a questão anglo-brasileira ecoava a crise do escravismo no Atlântico. Em outras palavras, comunidades negras desenvolveram estratégias sólidas de resistência em diálogo com o que chamamos hoje de relações internacionais e com as contradições gritantes que marcavam o Brasil imperial. Do discurso hermético do juiz, transborda uma tradição oral negra que elevava a Grã-Bretanha ao status de aliada dos escravizados pela emancipação. O abolicionismo deve muito aos escravizados no Brasil. Sua luta contínua contra o regime escravista mais duradouro do hemisfério ocidental produziu uma crítica do poder senhorial que ainda precisa ser incorporada à história da abolição nas Américas. Cativos em um país que na década de 1830 era a única nação independente a se envolver extensivamente no comércio transatlântico de africanos, afrodescendentes elaboraram suas visões de liberdade ao colocar as contradições políticas do século XIX num contexto hemisférico. No Brasil imperial, o contrabando de pessoas coexistiu com a proibição do tráfico desde 1831, o avanço do abolicionismo atlântico esbarrou na supremacia da elite política conservadora e mesmo os liberais que se posicionavam a favor da abolição gradual falavam em prolongar o cativeiro até o século XX. Assim, entre escravizados e libertos brasileiros, grassava desde o início dos 1800s a crença de que a escravidão brasileira só seria destruída por meio de uma guerra emancipatória com apoio internacional. Se os negros já eram livres em outras partes do continente e se o tráfico havia de terminar, imaginavam eles, era plausível supor que a abolição não tardaria no Brasil. Falar das lutas escravas pela liberdade – por exemplo, das rebeliões e quilombos – como parte do movimento abolicionista, porém, não é uma proposição óbvia. Mesmo no campo da história social da escravidão, tal asserção requer um posicionamento metodológico: o que chamamos de abolicionismo, onde e quando ocorre, e quem são seus protagonistas? Sugiro que o pensamento abolicionista pode ser visto também como uma forma de discurso político negro gerado ainda no interior da escravidão, um discurso que excede as fontes de arquivo criadas para minar tudo o que estava além dos modos aceitáveis de participação popular no Brasil imperial. Ao encontrarem-se face a face como nas fontes de água de Campinas, 184

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escravizados e seus aliados partilharam anseios de um futuro radicalmente diferente para si mesmos e discutiram os acontecimentos históricos de seu tempo. Estas eram práticas abolicionistas ancoradas no mundo social e intelectual dos escravizados, assim como práticas de letramento, a evocação de lutas abolicionistas em outras partes do mundo e a promessa de uma reversão das hierarquias raciais no Brasil. O que Silva Bueno descarta em 1863 é, dentro desta perspectiva, o cerne da contribuição dos insurgentes para uma reinterpretação dos significados da Questão Christie e do abolicionismo inglês em geral. Ao imaginar que o bloqueio naval no Rio indicava a possibilidade de uma aliança militar com a Inglaterra, os escravizados expandiram tanto os significados da crise do escravismo no Brasil quanto o alcance da política externa inglesa que, de pressão antitráfico, ganhou cunho abolicionista. Eles sabiam, no entanto, que os britânicos não eram um bloco homogêneo e imagens de uma potência antiescravista coexistiam com experiências de escravização em mãos estrangeiras. Lembremos que a Inglaterra jamais deixou de contribuir para a reprodução do trabalho escravo no Brasil. Comerciantes com conexões em Birmingham, Leeds, Liverpool e Manchester abasteceram as viagens de traficantes brasileiros com mercadorias destinadas especificamente ao mercado africano; bancos britânicos autorizaram todo tipo de transação econômica usando escravizados como fiança e casas comerciais com sede na Inglaterra distribuíram a maior parte da produção agrícola brasileira no exterior, exportando pelo menos metade do café colhido por escravizados para os Estados Unidos e a Europa. Além disso, apesar da defesa dos direitos dos africanos livres, a Grã-Bretanha desprezou as reivindicações africanas por emancipação incondicional e participou ativamente da construção de novas formas de trabalho coercitivo através de esquemas de aprendizagem no Brasil e no Caribe.18 18. BETHELL, Leslie. “O Brasil no século XIX: parte do ‘império informal britânico’ In: CARVALHO, José Murilo de e CAMPOS, Adriana Pereira, eds. Perspectivas da cidadania no Brasil Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, 15-36; “O Brasil no mundo.” In: BOSI, Alfredo et al, ed. A construção nacional: 1830-1889 – HISTÓRIA DO BRASIL NAÇÃO – VOL. 2. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, pp. 131-77; MULHERN, Joseph M. “After 1833: British Entanglement with Brazilian Slavery.” PhD Diss., Durham University, 2018; EVANS, Chris. “Brazilian Gold, Cuban Copper and the Final Frontier of British Anti-Slavery.”

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De qualquer maneira, a negação da autonomia epistemológica dos negros que marca os arquivos imperiais obscureceu o fato de que o pensamento abolicionista se desenvolveu toda vez que afrodescendentes se reuniram para compartilhar ideias e ressignificar notícias jornalísticas, atos de governo e até mesmo lutas trabalhistas diferentes das suas. Em 1863, não muito longe de Campinas, por exemplo, a Questão Christie inspirou outra conspiração negra na Fazenda Ibicaba, em Limeira. Naquela que foi uma das primeiras experiências do Brasil com mão de obra livre, escravizados se insurgiram por ouvir imigrantes alemães darem vivas aos ingleses, aconselhando-os a parar de trabalhar para o Senador Nicolau Pereira de Campos Vergueiro já que os estrangeiros logo viriam libertá-los.19 Seja em Campinas ou Limeira, é o movimento heurístico de transferir vozes negras do âmbito da criminalidade para o do político que constitui os arquivos do abolicionismo negro. O diálogo sedicioso associado aos ingleses cumpriu em São Paulo funções específicas em 1863, assim como o fazia em outras partes das Américas: ele definia lealdades, termos de alianças com os brancos e o terreno geopolítico mais amplo da luta antiescravista. Em 1823, centenas de escravizados se rebelaram na colônia inglesa de Demerara por acreditarem que os fazendeiros locais se recusavam a obedecer às ordens britânicas para a sua emancipação. Da mesma forma, em 1844, escravizados cubanos protagonizaram a série de levantes conhecidos como La Escalera após ouvirem que “os ingleses estavam vindo em navios para fazer guerra aos brancos desta terra”. Em 1861, o liberto J. H. Banks reiterou que os negros nos Estados Unidos “ouvem dizer que, embora a Inglaterra tenha sido a primeira a introduzir a escravidão na América, ela a aboliu nas Índias Ocidentais; eles, portanto, a consideram a amiga da raça negra. É uma opinião comum entre os escravos que a escravidão

Slavery & Abolition 34.1 (2013), pp. 118-134; GUENTHER, L. “Merchants, Abolitionists and Slave Traders: Brazilian Perceptions of the British in Bahia, 1808-1850.” In: KRAAY, Hendrik, ed. Negotiating Identities in Modern Latin America. Calgary: University of Calgary Press, 2007, pp. 93-114; MAMIGONIAN, Beatriz. “In the Name of Freedom: Slave Trade Abolition, the Law and the Brazilian Branch of the African Emigration Scheme (Brazil–British West Indies, 1830s–1850s). Slavery and Abolition 30:1 (March 2009), pp. 41–66. 19. APESP, Secretaria de Polícia da Província, cx.2.500. Luis José de Sampaio to Vicente Pires da Matta, 17 de março de 1863.

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será encerrada por uma guerra entre a Inglaterra e os Estados Unidos.”20 Como vemos, os britânicos integravam as gramáticas políticas alternativas criadas por escravizados nas mais diferentes partes da diáspora africana. Em si mesmo um ato de construção do mundo, o internacionalismo permitiu que afrodescendentes se posicionassem como agentes a definir a tônica do abolicionismo atlântico ao longo do século XIX.

Considerações finais A documentação histórica é sempre um registro de várias vozes. Apesar do tom dominante dos autores e do poder de fala que lhes é concedido por instituições e arquivos, estes são interlocutores numa área de disputa narrativa e política. Para estudar a história do ativismo negro no Brasil, é preciso ter clareza sobre as questões que, como historiadores, levamos ao encontro de agentes históricos e fontes: quais trajetórias queremos ressaltar? Quem fala e quem silencia? Como lidar com o não-dito? Só então uma faceta ainda pouco explorada do abolicionismo brasileiro começa a emergir, qual seja, aquela protagonizada por afrodescendentes que cruzaram sua luta contra a violência do cativeiro com a política internacional do século XIX. Na burocracia da repressão estatal ao ativismo escravo, negros são representados como seres desprovidos de consciência política e sujeitos à “incitação” por agentes externos. A linguagem das fontes é, sobretudo, aquela da pacificação em nome da ordem própria de uma sociedade escravista. Dependendo dos fluxos e refluxos da história do Atlântico, as autoridades brasileiras acusaram haitianos, franceses, alemães, norte-americanos, mas, acima de tudo, os britânicos de levarem os escravizados à insurreição. Do ponto de vista do Estado, o abolicionismo era fenômeno estrangeiro e 20. COSTA, Emilia Viotti da. Crowns of Glory, Tears of Blood: The Dememara Slave Rebellion of 1823. Oxford: Oxford University Press, 1994; FINCH, Aisha K. Rethinking Slave Rebellion in Cuba: La Escalera and the Insurgencies of 1841-1844. (Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2015, p. 137; PENNINGTON, J. W. C., ed. A Narrative of Events of the Life of J. H. Banks, an Escaped Slave, from the Cotton State, Alabama, in America. Liverpool: M. Rourke Printer, 1861. For the British colonies, see also: MATTHEWS, Gelien. Caribbean Slave Revolts and the British Abolitionist Movement. Baton Rouge: Louisiana University Press, 2006; BECKLES, Hilary. “The Wilberforce Song: How Enslaved Caribbean Blacks Heard British Abolitionists,” Parliamentary History xxvi, Supplement (2007), pp. 113-126.

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atividade para homens livres. Em 1863, o juiz Silva Bueno reproduziu tal discurso, enfatizando a necessidade de vedar o acesso britânico às fazendas, o que não dissuadiu os escravizados de Campinas a desenvolverem uma interpretação própria sobre a Questão Christie como mostra da solidariedade britânica à causa da libertação negra. Silva Bueno levaria sua experiência como miliciano e juiz envolvido no combate a revoltas escravas para o gabinete de Chefe de Polícia de São Paulo, onde despediu Luiz Gama em 18 de novembro de 1869. O abolicionista assim transcreveu e grifou a portaria assinada por Silva Bueno: “(...) Chegando oficialmente ao meu conhecimento (por comunicação oficiosa que lhe fizera o presidente da província) a maneira inconveniente e desrespeitosa com a qual o amanuense da secretaria de polícia Luiz Gonzaga Pinto da Gama tem tratado ao senhor juiz municipal suplente em exercício, do termo desta capital, em requerimentos sobre não verificados direitos dos escravos, que, subtraindo-se ao poder de seus senhores encontram apoio no mesmo amanuense, e sendo por isso inconveniente a sua conservação na repartição da polícia, demito-o do lugar de amanuense. (!!!)”21

Silva Bueno qualificou as fugas escravas como boicote à autoridade senhorial e por isso exonerou Luiz Gama por prestar auxílio aos que, como os rebeldes de Campinas, buscavam sua liberdade. Na trajetória desses dois homens, se cruzaram dois fenômenos importantes da década de 1860: o abolicionismo internacionalista de insurgentes escravizados e o ativismo legal do ex-escravo que viria a ser um dos mais conhecidos abolicionistas do Brasil. É este o tipo de história do abolicionismo negro que o trabalho crítico com a documentação oficial nos permite trazer à tona.

21. Correio Paulistano, 20 de novembro de 1869. Apud, Azevedo, Orfeu de Carapinha, p. 111.

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Fontes: ANRJ, SJ, IJ1-518, 23 de fevereiro de 1863. APESP, Secretaria de Polícia da Província, cx.2.500. Luis José de Sampaio to Vicente Pires da Matta, 17 de março de 1863. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ), Seção Justiça (SJ), IJ1-518, 23 de fevereiro de 1863. Cópia do ofício de Vicente Ferreira da Silva Bueno para o presidente da província de São Paulo, Vicente Pires da Matta. BRASIL. Código do processo criminal de primeira instância para o Império do Brasil, com notas, nas quaes se mostrão os artigos que forão revogados, ampliados, ou alterados, seguido da disposição provisória acerca da administração da justiça civil e da Lei de 3 de dezembro de 1841 que reforma o mesmo código. Rio de Janeiro, Typographia de Manoel José Cardoso, 1842. CHRISTIE, William D. Notes on Brazilian Questions. London, Cambridge: Macmillan and co. 1865. Código Criminal do Império do Brasil. Recife: Typographia Universal, 1858. Correio Paulistano, 20 de novembro de 1869. Apud, Azevedo, Orfeu de Carapinha. Diário do Rio de Janeiro, 5 de janeiro de 1863. O Código Criminal de 1830 determinava que açoites e ferros eram penas exclusivas para eles, além das penas de galés e morte. PENNINGTON, J. W. C., ed. A Narrative of Events of the Life of J. H. Banks, an Escaped Slave, from the Cotton State, Alabama, in America. Liverpool: M. Rourke Printer, 1861.

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As sociedades mutualistas e os seus registros escritos: análise formal e social das atas de suas reuniões ordinárias e extraordinárias

Marcelo Mac Cord | Universidade Federal Fluminense

Há várias maneiras de se pesquisar, de se pensar e de se escrever História, mas, independentemente das escolhas feitas pelos historiadores, os critérios de suas investigações devem estar apoiados em trabalho metódico, disciplinado e criterioso. Estes cuidados são exigidos desde a elaboração do projeto de pesquisa, passando por sua execução, até a entrega do trabalho final de graduação ou de pós-graduação. A legitimidade e o reconhecimento destes últimos, pela comunidade acadêmica, passam pelo respeito ao rigor científico e à historiografia. Atentos a isto, por exemplo, no conjunto das formas de se pesquisar, de se pensar e de se escrever História Social, dois elementos ganham evidência: o indispensável suporte empírico da investigação, ou seja, o esforço interpretativo apoiado em denso corpus documental, e as análises fundamentadas nas questões de classe e suas interseccionalidades. Apesar da assertividade da sentença, “empiria” e “classe” são categorias problemáticas e em disputa entre os próprios historiadores sociais, o que torna tanto o trabalho destes especialistas quanto o seu campo de estudos ainda mais complexos. O capítulo que o leitor tem em mãos insere-se no campo da História Social, mas não se debruça sobre os debates teóricos mais amplos que 194

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buscam dar conta de importantes categorias como “empiria” e “classe”. Modestamente, de forma bastante pontual e objetiva, apresenta-se aqui um denso exercício metodológico, que foi feito com as atas das reuniões ordinárias e extraordinárias da Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais. Especialmente, as que foram produzidas entre os anos 1850 e 1880. Estes documentos registraram os encontros administrativos e deliberativos da referida sociedade mutualista, que, além de pecúlios, também oferecia aulas noturnas para seus membros e para a comunidade em geral. Em sua maioria, no período em quadro, os diretores e os sócios do grupo eram artífices especializados, gente preta e parda. Localizada na cidade do Recife, a associação existiu por pouco mais de um século, ocupou algumas sedes em sua longa história, conservou importante arquivo com farta memória operária e foi referência organizativa e educacional para muitos setores da população pernambucana negra, trabalhadora e pobre.

As sociedades mutualistas e sua relação com os registros escritos As sociedades mutualistas surgiram nos anos 1830, quando recrudescia, na Europa, a chamada “questão social”. Em seu nascedouro, elas reuniam trabalhadores mais ou menos qualificados, que sofriam com o impacto da proletarização de sua mão de obra, a obsolescência de suas tradições em contextos liberais e o acirramento da precarização de suas vidas cotidianas – frutos do aprofundamento da Revolução Industrial. Nesse contexto adverso, os trabalhadores mais ou menos qualificados compreenderam o advento das sociedades mutualistas como oportunidade para conquistar, entre outros, reconhecimento público, modernidade organizativa, instrução, ascensão política lato e stricto sensu e proteção financeira. Essencialmente, este último fator era a razão de ser e a justificativa social e jurídica para a existência das sociedades mutualistas. Com recursos próprios, os associados constituíam caixas sociais (em outras palavras, poupança) que buscavam garantir, entre outros, remuneração em caso de doenças e de acidentes de trabalho, auxílio

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jurídico na ocorrência de prisão injusta, pecúlio para seus familiares em caso de morte e sepultamento digno.1 Apesar de experimentar conjuntura diferenciada, em relação à Europa dos anos 1830, o Brasil também testemunhou a criação de algumas sociedades mutualistas em meados do século XIX. Entre elas, a Sociedade das Artes Mecânicas, fundada em 1841 na cidade do Recife, e a Sociedade Protetora dos Desvalidos, de 1851, em Salvador. Ambas foram criadas por trabalhadores especializados livres e libertos, homens de cor, com larga experiência organizativa em irmandades católicas.2 Contudo, foi no ano de 1860 que o Império do Brasil regulamentou, de forma sistemática, o que a lei chamou de “sociedades de socorros mútuos”.3 Por todo o país, um sem número delas foi criado, tanto com perfis bem delimitados (étnicos, nacionais, profissionais e classistas) quanto sem fechamento preciso.4 A Primeira República, em seu processo de modernização capitalista e industrial, além de reformar a referida legislação, registrou o período de maior sucesso das sociedades mutualistas, por causa das carências do crescente operariado nacional. Após os anos 1930,

1. Até aqui, para saber mais, consultar, entre outros: AGULHON, Maurice. 1848: o aprendizado da República. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. SAVAGE, Mike. “Classe e história do trabalho”, In: BATALHA, Claudio H. M. et al. (orgs.). Culturas de classe. Campinas: Editora da Unicamp, 2004, p. 25-48. VAN DER LINDEN, Marcel (ed.). Social security mutualism: the comparative history of mutual benefit societies. Bern: Lang, 1996. HOPKINS, Eric. Working-class selfhelp in nineteenth-century England. Londres: UCL Press, 1995. DESROCHE, Henri. Solidarités ouvrières: sociétaires et compagnons dans les associations coopératives (1831-1900). T. 1. Paris: Les Editions Ouvrières, 1981. GUESLIN, André. L’invention de l’économie sociale: idées, pratiques et imaginaires coopératifs et mutualistes dans la France du XIXe siécle. 2ª ed. rev. e ampl. Paris: Economica, 1998. 2. MAC CORD, Marcelo. Artífices da cidadania: mutualismo, educação e trabalho no Recife oitocentista. Campinas: Editora da Unicamp-FAPESP, 2012. LEITE, Douglas G. “Mutualistas Graças a Deus”: identidade de cor, tradições e transformações do mutualismo popular na Bahia do século XIX (1831-1869). Tese de Doutorado em História. São Paulo: USP, 2017. CAMPOS, Lucas R. Sociedade Protetora dos Desvalidos: mutualismo, política e identidade racial em Salvador (1861-1894). Dissertação de Mestrado em História. Salvador: UFBA, 2018. 3. LACERDA, David P. Solidariedades entre ofícios: a experiência mutualista no Rio de Janeiro imperial (1860-1882). Dissertação de Mestrado em História. Campinas: Unicamp, 2011. 4. A bibliografia sobre o tema é expressiva, mas há sínteses importantes em coletâneas e dossiês temáticos: Cadernos AEL: sociedades operárias e mutualismo. Campinas: Unicamp/IFCH, v. 6, n. 10/11, 1999. MAC CORD, Marcelo; MACIEL, Osvaldo (org.). Revista Mundos do Trabalho: dossiê “os trabalhadores e o mutualismo”, v. 2, n. 4, 2010. MAC CORD, Marcelo; BATALHA, Claudio H. M. (org.). Organizar e proteger: trabalhadores, associações e mutualismo no Brasil (séculos XIX e XX). Campinas: Editora da Unicamp-FAPESP, 2014.

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com as paulatinas políticas de bem-estar social, as sociedades mutualistas seguiram perdendo espaço no seio das chamadas “classes laboriosas”.5 De forma genérica, as legislações brasileiras que, no período em quadro, regulamentaram a criação e o funcionamento das sociedades mutualistas, exigiram que tais grupos mantivessem seus livros de registros administrativos e seus livros contábeis em absoluta ordem. Sobre este material, a fiscalização dos órgãos públicos competentes deveria ser periódica, para que se evitasse, entre outros, a malversação dos recursos financeiros acumulados na caixa social e o desvio das diretrizes associativas, que eram regulamentadas por estatutos. Este último documento era basilar, pois regia a existência cotidiana das sociedades mutualistas, norteando sua ordem institucional. Tais entidades somente conquistavam personalidade jurídica e autorização para funcionar quando seus estatutos eram aprovados pelas autoridades públicas.6 Como podemos deduzir, o grau de burocratização das sociedades mutualistas era expressivo, exigindo que produzissem muitos e diversificados documentos, como, por exemplo, registros de reuniões e balanços financeiros. Não bastasse o arquivamento de seus próprios papéis, ainda acondicionavam, entre outros, atestados e comprovantes expedidos pelas instâncias governamentais. Apesar do grande número de sociedades mutualistas existentes no Império do Brasil e na Primeira República, muitas delas tiveram existência curta e não preservaram seus arquivos. Até mesmo as entidades que existiram por mais tempo não deixaram seus documentos para a posteridade. Poucas associações longevas, como a Sociedade das Artes Mecânicas, do Recife, e a Sociedade Protetora dos Desvalidos, de Salvador, tiveram seus acervos resguardados. Geralmente, os estudiosos das sociedades mutualistas acessam fragmentos de suas memórias, que foram lavrados em um ou outro livro de registros que sobreviveu ao tempo. Contudo, por causa da intrínseca 5. Para saber mais, consultar, entre outros: VISCARDI, Cláudia M. R.; JESUS, Ronaldo P. “A experiência mutualista e a formação da classe trabalhadora no Brasil”, In: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão (org.). A Formação das tradições (1889-1945). Coleção “As Esquerdas no Brasil”, v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 21-51. FONSECA, Vitor M. M. No gozo dos direitos civis: associativismo no Rio de Janeiro, 1903-1916. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional; Niterói: Muiraquitã, 2008. 6. Para saber mais sobre as legislações que regulamentaram as sociedades mutualistas no Império do Brasil e na Primeira República, consultar LACERDA, David P. op. cit. FONSECA, Vitor M. M. op. cit.

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relação destas entidades com os governos e com a legalidade, há muitos outros tipos de fontes disponíveis. Os jornais são clássicos, pois, neles, os sócios convocavam reuniões e publicavam estatutos, atas das reuniões, agradecimentos aos seus patronos, conflitos institucionais etc. Importantes também são os papéis produzidos e recebidos pelos órgãos governamentais, como, por exemplo, os executivos, responsáveis pela análise dos estatutos e pela fiscalização administrativa e financeira das sociedades mutualistas.7 Como havia sido destacado anteriormente, um dos conjuntos documentais mais bem preservados e completos é o da Sociedade das Artes Mecânicas, que existiu na cidade do Recife entre os anos 1840 e 1950. No espaço de pouco mais de um século, a sociedade mutualista mudou de nome algumas vezes, sendo mais conhecida pelo seu último, Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais. Um dos motivos de sua longa duração é que, para além da oferta de socorros mútuos aos seus membros, a entidade também lhes ministrava aulas noturnas, assim como para a comunidade em geral. Em 1871, alguns artesãos pretos e pardos, que criaram e administraram a associação, fundaram, com a ajuda de seus patronos, o Liceu de Artes e Ofícios do Recife. A sede própria, um palacete no Campo das Princesas (hoje Praça da República), foi inaugurado em 1880.8 A escola pernambucana funcionou até 1950, o que nos ajuda a compreender o encerramento, em mesma época, das atividades de sua mantenedora, a Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais. Lamentavelmente, apesar das fontes disponíveis, faltam pesquisas de fôlego sobre a história da associação e de sua escola recortadas no século passado.

7. Nas últimas duas décadas, há pesquisas que foram feitas e que seguem sendo feitas em todo o país. Não é possível, nesse texto, fazer um balanço dos arquivos e dos acervos disponíveis para consulta. Para saber mais sobre alguns deles, por amostragem, consultar LEITE, Douglas G. op. cit. CAMPOS, Lucas R. op. cit. Cadernos AEL. op. cit. MAC CORD, Marcelo; MACIEL, Osvaldo (org.). op. cit. MAC CORD, Marcelo; BATALHA, Claudio H. M. (org.). op. cit. LACERDA, David P. op. cit. FONSECA, Vitor M. M. op. cit. 8. Para saber mais, consultar MAC CORD, Marcelo. Artífices da cidadania. LUZ, Itacir M. Compassos letrados: profissionais negros entre instrução e ofício no Recife (1840-1860). Dissertação de Mestrado em Educação. João Pessoa: UFPB, 2008. COSTA, Wendell R. Instruir, disciplinar e trabalhar: a Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais e o Liceu de Artes e Ofícios (1880-1908). Dissertação de Mestrado em História. Recife: UFRPE, 2013.

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O fato de sócios e recifenses em geral, trabalhadores de cor, buscarem escolarização na Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais, durante um século, é algo muito representativo. Nas últimas duas décadas, a historiografia social da educação tem demonstrado como grupos de africanos e seus descendentes, no Brasil, apesar da racialização e do racismo excludentes, construíram e/ou conquistaram, duramente, espaços para seu letramento. Tais sujeitos históricos compreenderam que a instrução era uma ferramenta essencial para sua liberdade jurídica, mobilidade social, cidadania mais ampla, autonomia cotidiana, respeitabilidade pública etc.9 Neste sentido, na medida em que compulsamos a documentação da Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais, chegamos a importante conclusão: os seus mais destacados gestores, homens com a pele escura (libertos, livres ou cidadãos, em contextos de emancipação ou de pós-abolição) foram os responsáveis pela escrituração da maior parte dos livros administrativos e contábeis da associação. Perceber isto é reafirmar a agência, o protagonismo e os próprios projetos políticos, econômicos, culturais e sociais dos de baixo da pirâmide social.

Os registros escritos da Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais No ano de 1970, o palacete que abrigou o Liceu de Artes e Ofícios do Recife e a sua mantenedora, a Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais, assim como todo o seu acervo documental, ficaram sob a guarda da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), localizada naquela mesma cidade. No final do ano de 1980, ou seja, uma década depois, todos os manuscritos da associação e de sua escola foram tratados e catalogados por aquela instituição de ensino superior e de pesquisa, sob a coordenação 9. Para saber mais, entre outros, consultar MAC CORD, Marcelo; ARAÚJO, Carlos Eduardo M.; GOMES, Flávio dos S. (org.). Rascunhos cativos: educação, escolas e ensino no Brasil escravista. Rio de Janeiro: 7Letras-FAPERJ, 2017. FONSECA, Marcus Vinícius. A educação dos negros: uma nova fase do processo de abolição da escravidão no Brasil. São Paulo: Edusf, 2002. MARTINEZ, Alessandra F. Educar e instruir: a instrução popular na Corte Imperial: 1870 a 1889. Dissertação de Mestrado em História. Niterói: UFF, 1997. FONSECA, Marcus Vinícius; BARROS, Surya A. P. (org.). A história da educação dos negros no Brasil. Niterói: EdUFF, 2016. SILVA, Adriana M. P. Aprender com perfeição e sem coação: uma escola para meninos pretos e pardos na corte. Brasília: Editora Plano, 2000.

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de José Ernani Souto Maior (Mestrinho), professor do curso de História. A série documental ainda permanece protegida e cuidada pela Unicap e foi indexada na Coleção Liceu, que também contém o que restou da biblioteca organizada pela sociedade mutualista desde a segunda metade do século XIX. Constam, para consulta, quase mil volumes. Entre eles, há importantes obras raras, como publicações literárias, artísticas, científicas e industriais editadas em países como França e Portugal. Há também coleções de jornais pernambucanos e de leis locais e nacionais. No conjunto bibliográfico, almanaques e anais diversos também merecem destaque.10 No início dos anos 2010, reconhecida a importância, a raridade e o volume dos manuscritos da Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais, algumas tratativas, para reproduzi-los, foram feitas entre Unicap, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), localizada na cidade do Recife. Um convênio formal entre as partes foi firmado, viabilizando a microfilmagem e a digitalização das fontes. Os processos de trabalho geraram 21 rolos de celuloide e 10 discos de DVD. Os recursos para a empreitada foram garantidos pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), no bojo do projeto temático Trabalhadores no Brasil: identidades, direito e política (séculos XVII ao XIX), coordenado pelo Centro de Pesquisa em História Social de Cultura – Cecult/ IFCH/Unicamp. Nesta última instituição de ensino superior e de pesquisa, por exemplo, o material microfilmado e digitalizado está depositado, desde o início de 2013, no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), sob o título Coleção Liceu de Artes Ofícios.11 Unicap e Fundaj também possuem cópias das referidas mídias em seus importantes acervos. O corpus documental da Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais, que chegou até nós e foi reproduzido, é constituído por aproximadamente 150 10. Os títulos disponíveis na Coleção Liceu (documentos manuscritos e impressos) podem ser pesquisados no site da biblioteca da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap): https://porto2.unicap.br/Pergamum/biblioteca/index.php. Aberta a página, assim proceder sequencialmente: clicar em “pesquisa avançada”, selecionar “assunto”, digitar “Liceu de Artes e Ofícios de Pernambuco” e clicar “pesquisar”. 11. Para conhecer a listagem completa dos documentos da Coleção Liceu de Artes e Ofícios, depositado no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), acessar https://www.cecult.ifch.unicamp. br/pf-cecult/public-files/noticias/8113/colecao-liceu-artes-oficios-pernambuco.pdf.

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volumes dos mais variados tamanhos e tipos. Podemos dividi-los, a grosso modo, em três grupos: administração, finanças e aulas. No primeiro deles, entre outros, encontramos as atas das reuniões ordinárias e extraordinárias, do conselho administrativo, das mesas eleitorais e das assembleias gerais. Há também relatórios diversos e os livros de registro dos sócios e de ofícios expedidos e recebidos. No segundo grupo, podemos arrolar a caixa do fundo social, os balancetes financeiros e os livros de contas-correntes, de mensalidades pagas pelos sócios, de prestação de contas e de receitas e despesas. Por último, no âmbito da instrução, temos, por exemplo, os livros de matrículas das aulas, de ponto da escola primária para adultos e de ponto dos professores, assim como os borrões das oficinas. Há também alguns códices avulsos, como os de um sindicato e de um grêmio literário que funcionaram no palacete do Liceu de Artes e Ofícios. Certamente, grupos com ligações diretas ou indiretas com a Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais. Em meio a tão farta e diversificada documentação, destacam-se, por dois motivos, as atas das reuniões ordinárias e extraordinárias da Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais. Primeiramente porque estes documentos revelam, em sua plenitude e de forma detalhada, as rotinas do grupo recifense. Neles são debatidos inúmeros assuntos, como, por exemplo, entradas de novos sócios, pedidos de auxílios financeiros à caixa social, justificativas de ausências aos compromissos associativos, requerimentos de professores das aulas noturnas, processos de desligamento dos sócios faltosos, resultados de eleições para os cargos da Mesa Diretora, sindicâncias realizadas, relações extramuros etc. Por causa disto, os demais códices possuem caráter complementar, pois seus registros geralmente ratificam e esmiúçam as deliberações anotadas nas atas das reuniões ordinárias e extraordinárias. O outro motivo para a escolha destas últimas fontes é a integridade do conjunto, ou seja, entre os anos 1850 e 1950, quase não há hiatos nos escritos associativos. Infelizmente, perderam-se as informações dos anos 1840, período que corresponde ao início das atividades da então Sociedade das Artes Mecânicas. No referido conjunto de manuscritos, para se realizar o exercício metodológico proposto pelos organizadores desta coletânea, foram selecionadas as atas das reuniões ordinárias e extraordinárias produzidas

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entre os anos 1850 e 1880. A escolha se justifica pelo fato de que, no período em quadro, a Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais experimentou duas importantes transformações. A primeira delas foi imposta pela legislação imperial de 1860, referida anteriormente. O Estatuto de 1862, reformado, determinava, por exemplo, a abertura do quadro social para estrangeiros e para membros da chamada “boa sociedade”. Por mais que aquela legislação não permitisse que as sociedades mutualistas tivessem outros fins, os patronos da associação recifense burlaram-na e mantiveram as aulas noturnas. Processo que foi corado, em 1871, com a fundação do Liceu de Artes e Ofícios, como vimos oportunamente. A outra transformação nos remete à crise do escravismo. O aumento quantitativo de trabalhadores livres e libertos fez com que os sócios se proletarizassem, buscassem proteger seus mercados de trabalho e contassem com seus patronos para lhes empregar.12 As atas das reuniões ordinárias e extraordinárias produzidas entre os anos 1850 e 1880, do ponto de vista formal, são muito semelhantes às demais. O primeiro ato de cada reunião era assinalar a data, a hora e o número de sócios presentes. Em seguida, o presidente da sessão (lugar que era ocupado por quem, no momento, respondesse pelo maior cargo da diretoria) iniciava os trabalhos administrativos com a leitura e a aprovação das atas do encontro anterior. A fase seguinte era o “expediente”, onde se informava a pauta do dia, composta por demandas dos sócios e questões institucionais. Alguns exemplos foram arrolados mais acima, como pedidos por auxílios financeiros, sindicâncias para a entrada de novos membros, julgamentos de querelas etc. Terminado este estágio, iniciava-se a “ordem do dia”, momento em que eram discutidos e deliberados os assuntos propostos. Neste instante, vinham à tona disputas políticas, alianças conjunturais e projetos de poder. Comissões poderiam ser formadas para estudar os casos mais sensíveis, antes da decisão final em sessões futuras. Terminado o encontro, o presidente registrava o respectivo horário e assinava o documento. Cumpre esclarecer que, entre os anos 1850 e 1880, período em que foram produzidas as fontes selecionadas, os relatores das atas das reuniões ordinárias 12. O estudo pormenorizado destas questões e seus significados políticos, educacionais, econômicos, étnicos e sociais podem ser encontrados em MAC CORD, Marcelo. Artífices da cidadania.

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e extraordinárias eram trabalhadores qualificados de pele escura, ou seja, gente preta e parda. Como foi comentado oportunamente, sublinhar isto é essencial, especialmente quando estudamos um império que quase sempre associava o trabalho manual à escravidão e à ignorância. Por mais que os sócios com destaque institucional usassem as suas próprias mãos na labuta diária, não havia como dissociá-los da instrução e do uso socialmente legitimado da inteligência, características indispensáveis para o reconhecimento público de seus talentos e de suas virtudes. Em outras palavras, eles eram trabalhadores letrados, estavam organizados em uma associação (espaço que simbolizava civilização e progresso desde a Revolução Francesa) e produziam documentos escritos. Estes últimos lhes permitiam, por meio de suas próprias penas, demarcar o seu lugar social e registrar suas memórias coletivas, ou seja, suas escolhas sobre o que deveria ser lembrado e sobre o que deveria ser esquecido – por seus contemporâneos e por nós.13

Metodologia e os registros escritos da Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais Metodologicamente, há diversas e legítimas formas de se trabalhar com os registros escritos da Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais. Contudo, independentemente do caminho a trilhar, deve-se atentar para dois condicionantes dialéticos. Em primeiro lugar, as escolhas dependerão do lugar social de quem tratará o corpus documental, dos problemas que construirá a partir dele e de sua filiação teórica. Em outras palavras, “é em função desse lugar que se instauram os métodos, que se precisa uma topografia de interesses, que se organiza os dossiers e as indagações relativas aos documentos”.14 Por sua vez, o próprio corpus documental imporá limites ao observador, seja qual for o seu lugar social, pois não é neutro. As fontes também foram produzidas por alguém interessado e afetado, algo que impõe 13. Para a percepção da memória enquanto campo de disputa e de escolhas voluntárias ou involuntárias do que se lembrar e do que se esquecer, ver, entre outros LE GOFF, Jacques. História e memória. 4ª ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1996. RICOEUR, Paul. A memória, a História e o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos, v. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. 14. DE CERTEAU, Michel. “A operação histórica”, In NORA, Pierre; LE GOFF, Jacques (org.). História: novos problemas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1988, p. 18.

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cuidados ao historiador.15 Tendo em vista tais alertas, e tomando por base as atas das reuniões ordinárias e extraordinárias produzidas entre os anos 1850 e 1880, apresenta-se aqui um exercício metodológico possível, que foi proposto pela tese de doutorado intitulada Andaimes, casacas, tijolos e livros: uma associação de artífices no Recife, 1836-1880.16 No processo de análise das fontes enunciadas, o primeiro procedimento metodológico do referido trabalho de pós-graduação foi a montagem de um banco de dados com todos os sócios nelas relatados. Cada um deles ganhou sua própria ficha nominal, onde foram registrados, quando informados na documentação, data de matrícula, idade, estado civil, cor, endereço residencial, profissão, cargos na Mesa Diretora, matrículas nas aulas noturnas, atuação como docente nas mesmas, relações pessoais (sócios que indicaram amigos, colegas de profissão ou patronos para filiarem-se à entidade), participação em outros grupos recifenses (montepios, clubes, irmandades e associações), alianças com outros sócios (políticas, profissionais, institucionais e familiares), atividades em comissões (de sindicância e de emprego de colegas em postos de trabalho) etc. O minucioso procedimento metodológico produziu cerca de 350 fichas nominais. A maior parte delas, com poucos dados pessoais e sociais dos membros da Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais. Outras, ao contrário, com substanciais informações quer do ponto de vista quantitativo quer do qualitativo. Construído o banco de dados, o passo seguinte foi hierarquizar as fichas nominais, segundo o volume e a peculiaridade das informações obtidas, para que ganhasse destaque os indivíduos com mais visibilidade e importância na Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais. O terceiro momento da análise foi cotejar o banco de dados com os outros documentos da própria entidade, para ratificar, retificar e/ou incorporar elementos. Logo após, na quarta etapa do processo metodológico, cruzou-se as fichas revistas dos sócios mais destacados tanto entre si quanto com as restantes. Notou-se, além da forte influência dos mais notórios na vida do grupo, suas consistentes relações 15. DUBY, Georges. A história continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores/Editora da UFRJ, 1993, p. 21-42. 16. MAC CORD, Marcelo. Andaimes, casacas, tijolos e livros: uma associação de artífices no Recife: 1836-1880. Tese de Doutorado em História. Campinas: Unicamp, 2009. Esta tese é a base do livro Artífices da cidadania, citado oportunamente.

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intra e extramuros. Neste último espaço, com membros de outras associações, funcionários de repartições públicas, políticos, intelectuais, empresários e negociantes. O quinto passo foi buscar, nos arquivos pernambucanos, outros conjuntos documentais que permitissem confirmar, refutar, aprofundar, compreender e esmiuçar as conexões mais amplas. Para tanto, foram consultados jornais, livros de irmandades, processos jurídicos, contratos de serviços públicos, debates legislativos, petições públicas, documentos escolares etc. A fase subsequente do tratamento das novas informações foi incorporálas às fichas nominais. Para além dos dados associativos, muitos dos principais sócios tiveram revelados, entre outros, locais de trabalho, escolas que estudaram e lecionaram e grupos que pertenceram. Por exemplo, um dos fundadores da Sociedade das Artes Mecânicas, José Vicente Ferreira Barros, mestre de carpina da cor preta, irmão de São José do Ribamar, criou seus três filhos legítimos em oficinas e em salas de aula, onde alcançaram o ensino secundário. Eles tornaram-se membros e professores da associação, sendo que dois deles, José Vicente Ferreira Barros Junior e Antonio Basílio Ferreira Barros, seguiram a profissão docente em escolas públicas primárias. O outro, João dos Santos Ferreira Barros, ganhou fama como mestre de obras, presidente do Gabinete Artístico Provincial e diretor do Liceu de Artes e Ofícios. Patronos que se tornaram sócios também colaboraram com as suas trajetórias de sucesso, especialmente os políticos. A mobilidade social ascendente, que os três últimos trabalhadores de cor conquistaram, transformou-os em homens pardos, mesmo que não fossem mestiços. Outro banco de dados também foi criado, concomitantemente ao primeiro, tomando por base as mesmas atas das reuniões ordinárias e extraordinárias produzidas entre os anos 1850 e 1880. Contudo, em seu nascedouro, o recurso metodológico foi alimentado com dados mais estruturantes, buscando identificar as fases político-institucionais da Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais. Entre as informações mais relevantes, por exemplo, atentou-se para aspectos como mudanças de nome e seus significados, perfis e composições das Mesas Diretoras, trocas de estatutos, formas de organização das aulas noturnas, assim como maior ou menor oferta de cadeiras e de matrículas, perfis de estudantes, professores e 205

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diretores das aulas, maior ou menor filiação de indivíduos da “boa sociedade”, fluxos de caixa e balancetes, aproximação ou afastamento de governantes e de homens públicos, características dos sócios no tempo e momentos de maior ou de menor pujança associativa. O árduo tratamento destes dados, complexos, identificou momentos-chave na história da associação, fazendo com que a pesquisa ancorasse suas interpretações em periodizações e tabulações. A sequência dos procedimentos metodológicos foi bastante semelhante àquela que fora feita no primeiro banco de dados. Em seguida à construção das periodizações e das tabulações, comparou-se os seus recortes e números com os registros dos outros documentos da Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais, para que se corrigisse, confirmasse e/ou incluísse informações. Recalibrado o segundo banco de dados com este estratagema, conjuntos de documentos públicos municipais e provinciais, ligados aos poderes executivo, legislativo e judiciário, foram compulsados nos arquivos pernambucanos. Entre outros, processos jurídicos de primeira e de segunda instâncias, orçamentos e leis provinciais, posturas municipais, orçamentos de obras municipais, provinciais e gerais e atas da Câmara Municipal do Recife e da Assembleia Legislativa de Pernambuco. Documentos de irmandades católicas leigas também foram importantes para o exercício realizado com as fontes. Todo esse corpus documental ajudou a robustecer o segundo banco de dados revisto, permitindo compreender, de forma mais ampla e profunda, os acontecimentos e as conjunturas experimentados pela associação. O segundo banco de dados demonstrou que, nos anos 1840, a Sociedade das Artes Mecânicas estava sediada na Igreja de São José do Ribamar. A importância da associação aproximou-a do governo, viabilizando verbas públicas para as suas aulas noturnas. No início dos anos 1850, quando passou a se chamar Sociedade das Artes Mecânicas e Liberais, suas portas também foram abertas para os profissionais que “utilizavam a inteligência”. Com isso, os artesãos buscaram afastar-se um pouco mais do “defeito mecânico”. Com as reformas legislativas de 1860, a rebatizada Sociedade dos Artistas Mecânicos Liberais optou por oferecer, exclusivamente, socorros mútuos. Contudo, como vimos, seus patronos contornaram a norma e o grupo continuou com a sua escola. Na segunda metade dos anos 1860, por causa do crescimento da associação e de suas mudanças, os irmãos de São José do 206

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Ribamar expulsaram-na de sua Igreja. A Sociedade dos Artistas Mecânicos entrou em crise, mas foi revitalizada no início dos anos 1870 e atraiu muitos políticos conservadores para seus quadros. A renovação rendeu-lhe o título de Imperial, o direito de fundar o Liceu de Artes e Ofícios e mais aportes financeiros. Apesar de os dois bancos de dados preocuparem-se com informações diferentes, ou seja, trajetórias individuais no primeiro e trajetória institucional no segundo, eles não foram usados, metodologicamente, como ferramentas ensimesmadas. Ao contrário. Fichas, periodizações e tabulações também foram cruzadas de forma tensa e intensa. Sócios, Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais e sociedade recifense do século XIX, em suas especificidades e contradições constituintes, foram dialéticos. Processar as informações de ambos os bancos de dados de maneira isolada criaria ilusões: ou os artesãos pareceriam absolutamente livres para fazer escolhas e definir, sem interferências, os rumos de seu grupo e de suas próprias vidas ou as estruturas da sociedade pernambucana oitocentista e da associação pareceriam determinar de forma absoluta suas ações. Cuidando-se contra este tipo de maniqueísmo, e sabendo do lugar social do historiador e dos limites epistemológicos das fontes históricas, a tese Andaimes, casacas, tijolos e livros: uma associação de artífices no Recife, 1836-1880 procurou evidenciar um aprendizado: além de seus métodos e interpretações, outros são possíveis.17

Considerações finais Os mestres de ofício pretos e pardos, membros da Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais, entre os anos de 1840 e 1880, foram trabalhadores experientes e reconhecidos pelos recifenses. Herdeiros das antigas tradições corporativas, porém adaptadas aos novos tempos, eles idealizavam os seus próprios produtos, projetavam-nos no papel, preparavam as oficinas para confeccioná-los, selecionavam as ferramentas adequadas para a empreitada, buscavam as matérias-primas precisas e executavam os serviços com todo o 17. Sobre as especificidades que envolvem o ponto de vista particular do historiador, entre outros, consultar BURKE, Peter. “A história dos acontecimentos e o renascimento da narrativa”, In BURKE, Peter (org.). A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Editora Unesp, 1992, p. 337.

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zelo possível, sendo auxiliados por seus aprendizes e oficiais. Depois disto, os sócios profissionalmente qualificados comparavam as obras prontas com o desenho projetado e refinavam-nas. Só então os produtos acabados eram entregues aos seus contratantes ou levados aos mercados para exposição e venda. Contudo, antes de se tornarem peritos experientes e prestigiados, todos aqueles associados, um dia, também foram aprendizes de seus ofícios e passaram por um longo e árduo processo de tirocínio artesanal. Sob a supervisão de seus velhos mestres, eles paulatinamente se familiarizaram com o métier e aprenderam técnicas, comportamentos e procedimentos. Respeitadas todas as especificidades constituintes, os desafios enfrentados pelos trabalhadores da Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais são bastante similares aos dos historiadores. Estes últimos profissionais também são fruto de um longo processo de treinamento orientado. No transcorrer dos seus estudos de graduação e de pós-graduação, período de formação, o artífice do tempo amadurece seus pensamentos, perspectivas e sensibilidades enquanto experimenta caminhos historiográficos, sofistica a construção de problemas, busca matéria-prima diversa nos arquivos, refina sua escrita monográfica e dialoga com os seus professores e colegas de ofício. Nesse longo processo de aprendizagem, para o historiador social, por exemplo, as fontes são fundamentais, pois configuram-se no mais importante insumo para a construção de sua obra. Portanto, planejar solidamente a estratégia metodológica, para um empirista, é ter, entre outros, a clareza sobre o corpus documental necessário para responder seus questionamentos. Caso contrário, o historiador social somente terá hipóteses sem evidências ou, no máximo, apenas argumentos baseados em pesquisas de terceiros.18

Fontes Coleção Liceu – Universidade Católica de Pernambuco – Unicap, Recife/PE: documentos físicos, microfilmados e digitalizados.

18. THOMPSON, Edward P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.

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Coleção Liceu de Artes Ofícios – Arquivo Edgard Leuenroth – AEL/Unicamp, Campinas/SP: documentos microfilmados e digitalizados. Reproduzido da Coleção Liceu sob a guarda da Unicap. Coleção Liceu de Artes Ofícios – Fundação Joaquim Nabuco – Fundaj, Recife/ PE: documentos microfilmados e digitalizados. Reproduzido da Coleção Liceu sob a guarda da Unicap.

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FONSECA, Vitor M. M. No gozo dos direitos civis: associativismo no Rio de Janeiro, 1903-1916. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional; Niterói: Muiraquitã, 2008. GUESLIN, André. L’invention de l’économie sociale: idées, pratiques et imaginaires coopératifs et mutualistes dans la France du XIXe siécle. 2ª ed. rev. e ampl. Paris: Economica, 1998. HOPKINS, Eric. Working-class selfhelp in nineteenth-century England. Londres: UCL Press, 1995. LACERDA, David P. Solidariedades entre ofícios: a experiência mutualista no Rio de Janeiro imperial (1860-1882). Dissertação de Mestrado em História. Campinas: Unicamp, 2011. LE GOFF, Jacques. História e memória. 4ª ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1996. LEITE, Douglas G. “Mutualistas Graças a Deus”: identidade de cor, tradições e transformações do mutualismo popular na Bahia do século XIX (1831-1869). Tese de Doutorado em História. São Paulo: USP, 2017. LUZ, Itacir M. Compassos letrados: profissionais negros entre instrução e ofício no Recife (1840-1860). Dissertação de Mestrado em Educação. João Pessoa: UFPB, 2008. MAC CORD, Marcelo. Andaimes, casacas, tijolos e livros: uma associação de artífices no Recife: 1836-1880. Tese de Doutorado em História. Campinas: Unicamp, 2009. MAC CORD, Marcelo. Artífices da cidadania: mutualismo, educação e trabalho no Recife oitocentista. Campinas: Editora da Unicamp-FAPESP, 2012. MAC CORD, Marcelo; ARAÚJO, Carlos Eduardo M.; GOMES, Flávio dos S. (org.). Rascunhos cativos: educação, escolas e ensino no Brasil escravista. Rio de Janeiro: 7Letras-FAPERJ, 2017. MAC CORD, Marcelo; BATALHA, Claudio H. M. (org.). Organizar e proteger: trabalhadores, associações e mutualismo no Brasil (séculos XIX e XX). Campinas: Editora da Unicamp-FAPESP, 2014. MAC CORD, Marcelo; MACIEL, Osvaldo (org.). Revista Mundos do Trabalho: dossiê “os trabalhadores e o mutualismo”. v. 2, n. 4, 2010.

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MARTINEZ, Alessandra F. Educar e instruir: a instrução popular na Corte Imperial: 1870 a 1889. Dissertação de Mestrado em História. Niterói: UFF, 1997. POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos, v. 2, n. 3, 1989, p. 3-15. RICOEUR, Paul. A memória, a História e o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. SAVAGE, Mike. “Classe e história do trabalho”, In BATALHA, Claudio H. M. et al. (org.). Culturas de classe. Campinas: Editora da Unicamp, 2004, p. 25-48. SILVA, Adriana M. P. Aprender com perfeição e sem coação: uma escola para meninos pretos e pardos na corte. Brasília: Editora Plano, 2000. THOMPSON, Edward P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. VAN DER LINDEN, Marcel (ed.). Social security mutualism: the comparative history of mutual benefit societies. Bern: Lang, 1996. VISCARDI, Cláudia M. R.; JESUS, Ronaldo P. “A experiência mutualista e a formação da classe trabalhadora no Brasil”, In: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel A. (org.). A Formação das tradições (1889-1945). Coleção “As Esquerdas no Brasil”, v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 21-51.

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Perante os tribunais As fontes judiciais e a historiografia da escravidão

María Verónica Secreto | Universidade Federal Fluminense

A documentação dos tribunais é fonte riquíssima para o estudo da escravidão. As práticas corriqueiras, os consensos jurídicos e as mudanças na compreensão do que é justo ou injusto em sociedades escravistas são alguns dos aspectos que aparecem nesse corpus documental. A história social recorreu à documentação dos “tribunais” porque nessa era possível encontrar vestígios de grupos sociais invisibilizados por sua pouca familiaridade com o universo letrado. Grupos que não se caracterizam por ter deixado escritos de si como diários, cartas e memórias, nem ter sido objeto da escrita de outros, como acontece com as classes dominantes. Escravos, índios, mulheres, camponeses etc. aparecem nos tribunais demandando ou sendo demandados. Nos processos nos contam parte de suas vidas, de seus problemas, do universo de representações, do que consideram justo e injusto. Os processos, peças polifônicas, se parecem com os romances. Como estes têm muitos personagens: juízes, fiscais, peritos, testemunhas, autores e réus. Daí sua polifonia. Cada um aparece falando de seu ponto de vista, de sua subjetividade. Juízes, fiscais, peritos, advogados defensores, informados pelo conhecimento técnico, buscam dar “sentidos” às falas e provas apresentadas. Na teoria do romance se considera que o gênero narrativo recebeu influência do “processo” judicial e por sua vez os romances incorporam procedimentos

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judiciais, ficcionalizando a ação (MAGUET, 2021). Por esse motivo, quando lemos um processo, ainda que seja do século XVIII ou XIX, em seguida nos envolvemos com a trama. A relação entre história e direito já foi muitas vezes aludida. Referindose ao surgimento do gênero “história”, faz mais de 2.500 anos, Ginzburg diz que, se bem a palavra “história” procede da linguagem médica, a capacidade argumentativa provém do âmbito jurídico. O trabalho do historiador bebe da medicina e da retórica: examina casos segundo o método da primeira buscando causas em comum, e as expõe seguindo as regras da segunda. Seguindo Arnaldo Momigliano, Ginzburg diz sobre a história: “a arte de persuadir nascida nos tribunais”. De acordo com a tradição clássica a exposição histórica devia ter a capacidade de representar com vivacidade situações e personagens (GINZBURG, 1993, 18). Atenção, não devemos confundir a história social, que utiliza fontes geradas em diferentes tribunais com uma historiografia tradicional que entendia a norma, a lei, como geradora de realidade. Já passou a época em que se estudava a norma para entender as sociedades, ou a lei para abordar a realidade. Disse Pierre Vilar que o historiador que observa o funcionamento de uma sociedade percebe que a sociedade tem regras cristalizadas no direito. Então a primeira tarefa é conhecer os juristas, o direito escrito e institucional, em seguida prestar atenção aos costumes e direito não escrito e, por último, observar o que ele chama de aceitação sociopsicológica. Mas ainda que consideremos estes três níveis não conseguiremos explicar o funcionamento dessa sociedade observada. Devemos observar a realidade socioeconômica e cultural que o direito organiza (VILAR, 1983:118-120). Para pleitear, para “correr atrás” de um direito, o direito buscado tem que estar expresso de alguma forma no corpo jurídico, nas práticas e costumes ou nos entendimentos consensuados do que é justo e merece ser atendido. A primeira pergunta, então, que devemos fazer, é se os escravos tinham direitos expressos no corpus legal e nas práticas judiciais. No mundo hispano a peça principal, sem ser a única, em que se expressava esse direito era as Sete Partidas. Compilação de legislação realizada no século XIII no contexto da presença moura na Península Ibérica, razão pela qual as formas de escravidão a que elas se referem estão vinculadas, 213

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principalmente, à guerra santa contra os infiéis. Outro foi o contexto da escravidão nas Américas, mas os direitos essenciais se mantiveram.1 Em 31 de maio de 1789, Carlos IV sancionou uma Real Cédula sobre educação, trato e ocupações dos escravos em seus domínios de Índias e Filipinas. Ela recopilava o que já constava nas Siete Partidas, na Recopilação de leis de Índias, nas cédulas particulares e gerais e nas ordenações. Não trazia matéria nova, organizava as anteriores disposições dando ênfase aos “direitos” que teriam os escravizados. Alguns dos direitos eram: à vida, à alimentação e ao vestuário, a não ser castigado excessivamente (sevícia), a mudar de senhor, à assistência judicial, à associação, ao matrimônio, a salvar a alma, ao asilo etc. (PETIT MUÑOZ, 1944). Quer dizer que qualquer falta em uma destas áreas podia levar o escravizado a buscar a justiça para defender seu direito. Diz Tamar Herzog que o direito em América Hispana estava intimamente ligado ao mundo da resolução de conflitos em oposição a suas formas teóricas e abstratas. “Cada aplicação supunha uma regra e cada regra, por sua vez, continha uma semente de aplicação.” As esferas do jurídico e do judicial estavam misturadas. “A distinção atual entre o ‘jurídico’ e o ‘judicial’, isto é, entre o que diz respeito ao direito e se ajusta a ele (jurídico) e o que pertence ao juízo ou à administração de justiça, (judicial) não existia.” (HERZOG, 1995b).

As demandas mais frequentes Analisaremos algumas demandas apresentadas nas instâncias da Buenos Aires colonial: ao vice-rei, ao Cabildo e à Real Audiência. Nesses, um escravo podia demandar, com a representação do defensor de pobres, e requerer a intervenção da justiça para obter o gozo de algum direito, também podia enviar uma carta, dirigida ao Governador Geral ou ao Vice-rei, narrando seu caso, solicitando a clemência do “justo” e “caridoso” governante.2

1. Disponível em domínio público: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ bk000005.pdf 2. Como uma primeira aproximação ao Archivo General de la República Argentina recomendoa leitura de seu livro disponível em linha: Fondos documentales del departamento de documentos escritos. Período Colonial/ Coord. Juan Pablo Zabala, Buenos Aires: AGN, 2011.

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Um dos mais frequentes recursos apresentados pelos escravos de Buenos Aires, junto com os pedidos de liberdade, foi o chamado “papel de venda”. Não é clara a origem desse direito, mas é importante aqui retomar a afirmação de Herzog, a do direito como resolução de conflitos, e não como abstração teórica. A aplicação da justiça alimentava novas práticas e novas interpretações, sempre visando a resolução dos conflitos que aquela sociedade demandava. A Partida quatro3 estabelecia que o senhor não podia tratar o escravo com demasiado rigor e, se isso ocorresse e o escravo se queixasse ante o juiz, o proprietário seria obrigado a vendê-lo sem poder jamais voltar a adquirir seu domínio. Por esse motivo, os escravos que acudiram às autoridades ou à Justiça de Buenos Aires com pedidos de outorga de “papel de venda” fizeram-no alegando maus-tratos por parte de seus senhores. Diz Miriam Moriconi que o maltrato foi uma das faltas penalizadas. As denúncias que chegaram até a Corte provocaram efeito normativo como foi a Real Cédula de 12 de outubro de 1683 remetida a todas as audiências e governações indianas para que a sevícia fosse castigada, definida essa como a ausência de assistência aos escravizados na doutrina cristã, vestimenta ou educação, reiterava a venda obrigada como remédio (MORICONI, 2018:237). Na aplicação da justiça se utilizou a Quarta Partida, título 6, artigo XXIa Real Cédula de 1683, mencionada por último, e outra Real Cédula de 1788 emitida para o Rio da Prata (a que nos referiremos mais adiante). Para isso se combinaram alguns recursos: papel de venda, preço justo, ação de liberdade. O “papel de venda” permitia resolver os conflitos entre senhores e escravos mudando de senhor; se bem por esta via o escravizado não escapava da escravidão, podia entrar numa escravidão negociada, em que o próprio escravizado buscava seu novo amo, alguém mais de seu “agrado”. As causas para a mudança eram enquadradas na má conduta do senhor, que não atendia às obrigações paternalistas/patriarcalistas incumbidas: desatendia o escravo na alimentação, o castigava excessivamente, não o atendia na saúde, não lhe permitia casar-se, negligenciava a salvação de sua alma etc. 3. ALFONSO X, EL SABIO. Partida Cuarta, título 6, artigo XXI. Las siete partidas. Santiago: Andrés Bello, 1982.

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Quando o senhor aceitava outorgar a autorização para que o escravo buscasse novo senhor – bilhete manuscrito de punho e letra no que constava o nome do escravo, o do proprietário, as qualidades, às vezes o endereço, sempre o valor que pretendia pelo mesmo e até a data, o período, a que tinha vigência o referido papel – o escravo procurava alguém disposto a comprá-lo, quando já não tinha alguém “apalavrado”. No caso de achar um interessado que aceitasse as condições do papel, procedia-se a uma compra-venda como qualquer outra. Mas muitas vezes, o “papel de venda” envolvia outros conflitos: o período estabelecido nele era muito curto, não sendo suficiente para o escravo achar um comprador, ou o valor pedido era excessivo. Nesses casos fica evidente que o senhor emitia o papel sem intenção real de vender o escravo. Eram esses casos os que chegavam na justiça. Francisco Arango y Parreño, o político e fazendeiro cubano, dizia que o escravizado no mundo hispano tinha quatro consolações: a eleição de um senhor menos severo; a faculdade de casar-se segundo sua inclinação; a possibilidade de comprar sua liberdade por meio do trabalho ou de obtê-la por bons serviços; e o direito de possuir alguma coisa e de pagar, por meio da propriedade adquirida, a liberdade de sua mulher e de seus filhos. Todos esses direitos se reiteravam uma e outra vez nas demandas e sentenças judiciais. A partir da leitura dos processos abertos pelos escravizados podemos compreender o funcionamento das relações escravistas. Podemos também compreender o rol da justiça na administração de conflitos, nos aproximar das representações sobre o que era justo e injusto, nos permitir observar argumentos baseados em diferentes noções econômicas, como as que se articulam a respeito dos preços dos escravizados etc.

Alguns casos Os processos administrativos ou judiciais se iniciam com uma apresentação do demandante falando em primeira pessoa. Da mesma forma que o fazem em outra tipologia de documentos chamada “solicitudes de esclavos” (solicitações dos escravos) que também utilizaremos nesse trabalho. Diz Natalie Zemon Davis que as cartas de remissão, cartas nas quais um condenado à morte pedia clemência ante o rei, era um gênero misto. Uma

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petição judicial destinada a persuadir o rei e a corte e um relato histórico dos atos de um indivíduo no passado e uma história (DAVIS, 2001:17). Se as cartas de remissão do século XVI analisadas por Davis entravam na vida de um requerente por causa de uma morte, as solicitudes dos escravizados entravam na vida desses ante a insuportabilidade de uma relação escravista, ante a possibilidade de conseguir um senhor mais “caridoso”, de sair da escravidão etc. Os escravizados não demandavam perdão, mas redenção. No caso das solicitudes o Governador Geral era o destinatário e, a partir da criação do vice-reino do Rio da Prata, em 1776, o vice-rei. Quando a máxima autoridade colonial considerava que a solicitude não podia ser resolvida por essa via, encaminhava o escravizado para o tribunal competente: “Acuda aos alcaides para a administração de justiça.” Uma das “solicitações de escravos” mais antiga que encontrei no Archivo General de la Nación Argentina é a da escrava María Antonia. A transcreverei na íntegra, mas não abusarei desse recurso: Buenos Aires 1771 Sr. Governador Manuela Antonia negra, siendo yo bozal en el tiempo en que era gobernador Andonaegui me compró Dn. Francisco Sosa a quien habiéndole servido con gusto y buen proceder por espacio de 5 años [me casé] con Joseph Antonio negro esclavo de otro amo a quien lo compró mi amo para casarlo conmigo y habiéndome casado comenzó mi amo a tomar tirria con mi dicho marido y para cumplir su gusto lo vendió para fuera de la tierra sin embargo de otras ridiculeces que había hecho antes para impedir el matrimonio, que por ser tantas no se ponen sino las principales. Siempre que yo clamaba por mi marido me hería, pues en el cuerpo traigo las cicatrices de tres heridas, y últimamente habiéndome hecho embarazada de mi amo por haber pedido mi marido me dio un garrotazo en las caderas que me hizo mal parir y habiendo mi amo recogido la criatura en un pañuelo, que todavía estaba medio viva la arrojo en un hinojal y habiendo quedado yo bien enferma de dicho golpe, me

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dijo cierto día que me fuese a buscar mi vida, que ya nadie se metería conmigo y que ya estaba yo libre de esclavitud, y habiendo yo venido a casa de Juan Pulido le conté lo que me pasaba y que así le estimaría lo mandase llamar a mi amo, y le dijese que una vez que me daba por libre me lo diese por escrito, mándalo llamar pero no quiso venir, y así me mantuve cuatro años en casa de don Juan Pulido, hasta que cierto día pasó mi amo por casa de Juan Pulido y habiéndolo yo visto le avise que ahí pasaba mi amo mandolo llamar y habiendo venido le preguntó si yo era su esclava pero dijo que no, preguntome a mi si era mi amo a lo que respondí que si, pero el siempre negaba y así se fue y yo me quedé en casa de Don Juan Pulido cuando en este intermedio vino mi marido a quien me entregó Don Juan Pulido y habiendo yo estado todo este tiempo con mi marido, ha venido ahora la cuñada de mi amo diciendo que ya murió y que me viene a llevar para hacerse pagar unos pesos que le debía el difunto. Por lo que pido y suplico que usando de su caridad para con los pobres y recta justicia se sirva determinar lo que convenga, y fuese razón. María Antonia Negra

O caso de María Antonia não podia ser resolvido por essa via extrajudicial, não havia testamento ou qualquer outro documento provatório. A palavra de Dom Juan Pulido provavelmente teria grande valor, já que era uma pessoa respeitável entre os vizinhos de Buenos Aires, mas essa só poderia aparecer em um processo. A demanda de María Antonia era “verossímil”, por isso o despacho na margem diz: “Acuda aos alcaides para a administração de justiça.” O relato de María Antonia cumpre com os requisitos das cartas de perdão mencionados acima: petição judicial destinada a persuadir, relato histórico dos atos de um indivíduo no passado e uma história. Mas outros casos podiam ser resolvidos por essa via administrativa. Em 1766 Luiza, morena, escrava de Dona María Luiza de Larria escreve ao Governador dizendo que sua senhora, defunta, tinha deixado em cláusula testamentária uma disposição para todos seus escravos: que se eles pagassem 200 pesos (taxação baixa, se comparada com os preços de mercado do período), se lhes desse a liberdade. Ocorreu que ela deu esse dinheiro para 218

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o executor testamentário, mas este, no lugar de dar-lhe carta de liberdade, a deixou em casa do notário Antonio de Herrera onde diz ter mais opressão do que a que tinha antes. O despacho na margem confirma a existência da clausula testamentária e diz que o executor, Manuel de Escalada, tinha sido apercebido e que emitiria logo a carta de liberdade. Uma demanda como essa levada aos tribunais podia demorar meses para ser resolvida, envolvendo desgaste econômico e emocional. As solicitudes de escravos, como as solicitudes de presos (que podiam também ser escravos) são textos breves que nos apresentam uma situação sobre a qual nem sempre conhecemos o desfecho. É um tipo de documento que nos aproxima da subjetividade do demandante, do entendimento do justo e do injusto, de problemas cotidianos e do drama da escravidão. As ordenações capitulares de Buenos Aires, redigidas em finais do século XVII, estabeleciam que um regedor deveria visitar a prisão para recolher as demandas. Em 1721 o ajuntamento de Buenos Aires criou o cargo de defensor de pobres, e a esse foi encarregada a visita do cárcere para acompanhar as causas dos pobres e para cuidar que não padecessem. A atenção dos miseráveis de cada comarca não era regulamentada pela coroa, a não ser como princípio, senão pela elite e administradores locais (REBAGLIATI, 2017:37-38). O defensor de pobres, no cabildo de Buenos Aires, também foi o defensor dos escravizados. Salientamos que os miseráveis no antigo regime não eram exclusivamente os “pobres”, mas os menorizados. Miserável era a pessoa que era incapaz de valer-se por si (DUVE, 2007; HESPANHA, 2007).

Filhos naturais O defensor de pobres Antonio Romero iniciou, em 1799, uma demanda contra Nicolás Higareda (ou Igareda). Narrava o defensor que Dom Nicolás, do comércio da cidade de Buenos Aires, tinha Julian entre outros vários escravos e que, apesar que esse lhe dava em conceito de “ganho” 7 pesos por mês, o senhor não atendia sua vestimenta e alimentação. Na casa de Higareda se utilizava meio real diário de carne para alimentar três criadas, outros três agregados e ao mencionado Julian. O que evidentemente era uma dieta de fome. O moço, que trabalhava de sapateiro, tinha uma irmã, Maria Clara,

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que morava em Assunção do Paraguai, na mesma cidade em que morava a mãe dos jovens, livre nesse momento. Resulta, dizia o Defensor, que ambos os jovens eram filhos naturais do comerciante e este os tinha por escravos.4 No período colonial a filiação se definiu a partir do matrimônio: dentro ou fora dele. Assim havia filhos legítimos (os nascidos dentro do matrimônio), os filhos naturais, (os nascidos fora do matrimônio de pais solteiros) e os ilegítimos (resultado da união entre duas pessoas sendo uma delas, pelo menos, casada com uma terceira pessoa). O caso de Higareda seria um caso claro de filhos naturais, já que Rosa Isabel e Nicolás Higareda eram solteiros à época dos nascimentos e assim permaneciam quando o defensor abraçou a demanda. Mas Rosa Isabel era escravizada ou tida por escrava. Un modo el más irregular, lo propio que a la madre al menos por todo el tiempo que se conservó en el Paraguay, y la tuvo en su casa y a su lado, no obstante, de que según las instrucciones que se han proporcionado al defensor que representa se atreve a afirmar que será imposible o dificultoso a Higareda justificar el motivo o título de señorío y dominio respecto de la Rosa Isabel madre natural de los citados.5

O defensor afirmava que outros “detalhes” seriam apresentados em seu devido tempo. Quando Higareda respondeu no processo, o fez dizendo que os dois jovens que o defensor dizia serem filhos naturais seus, eram seus escravos, dando por sentado que se tratava de frutos de ventre escravo. Evidentemente o caso não era fácil de resolver. O assessor letrado (TAU ANZOATEGUI, 2016: 245-267), argumentou que depois de estudar as leis e doutrina não achava antecedente que sustentasse o pedido do defensor. Os filhos que o homem solteiro tinha com sua escrava eram seus escravos, “sem que, por ser filho natural tenha direito e ação de justiça para reclamar sua liberdade”. É claro que a demanda entrava numa zona nebulosa. É bem sabido que os senhores de escravos tinham filhos com suas escravas e isso 4. Expediente promovido por el Defensor General de Pobres a nombre de Julián y María Clara, sobre que Nicolás Igared les de la libertad de estos por justas causas que hay para ello, 1799. AGN, Tribunales legajo 128 Expediente 1 Sala 9, 37-3-6. 5. Idem.

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não implicava mudanças jurídicas no status da mãe nem dos filhos. Podia acontecer de o pai reconhecer esses filhos, dar a liberdade ou deixá-la em testamento, mas tudo isso como “prerrogativa” pessoal.6 No último terço do século XVIII, um caso de teor semelhante foi tratado em Cartagena de Índias. Naquele caso Rafaela, uma filha ilegítima, fruto da relação de um senhor com sua escrava, recebeu no testamento do pai a liberdade condicional, deveria servir à esposa do defunto até a morte da viúva. Resultou que, depois de alguns anos, Rafaela se casou e teve dois filhos. Mas seu meio-irmão, filho legítimo de seu pai, e herdeiro, quis vender uma das crianças. Assim Rafaela e seu marido perceberam a fragilidade daquela liberdade outorgada em cláusula testamental. Demandaram ante a justiça a liberdade de Rafaela a partir da execução do testamento e não da morte futura da viúva. Além de basear o pedido na interpretação da cláusula testamentária, o Defensor de Cartagenas ingressou com um pedido de liberdade de Rafaela baseando-se na filiação com o testador. O direito de Castela permitia que o filho herdasse a nobreza do pai ainda quando a mãe fosse de condição humilde. Já que, através do sangue, o filho herdava a mesma natureza. Sustentava o defensor que Rafaela tinha herdado a nobreza de seu pai. O procurador baseava seu argumento na relação entre natureza e direito (DOUGNAC RODRIGUEZ, 2003: 323). Como imitador da natureza o direito não podia se opor a essa, e a única forma em que Rafaela poderia disfrutar da nobreza herdada do pai, seria na condição de livre. Como no caso de Julian e Maria Clara, também não sabemos da sentença final do caso (GIOLITTO, 2003:86). Mas em ambos os casos o que se busca é que a liberdade seja a consequência do reconhecimento da paternidade. Julian e Maria Clara esclareceram em mais de uma oportunidade que eles não demandavam a liberdade, mas ser reconhecidos como filhos naturais, o que os habilitaria ao gozo dos privilégios com que o direito auxiliava aos filhos naturais para os efeitos civis. Diz Tamar Herzog que os filhos naturais e os ilegítimos passaram por um processo de subestimação que os expropriou, entre outras coisas, da honorabilidade e do direito de ser chamados para a sucessão dos pais. Sobre o direito à herança, a mesma autora diz que o filho 6. Ver nesse mesmo livro o capítulo de Elione Guimarães.

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legítimo herdava, o natural somente se reconhecido como tal e o ilegítimo não tinha direito à herança. Por isso encontramos a Julian e Maria Clara dizendo que Dom Higarera não tem herdeiros, que eles, se reconhecidos como naturais, passariam a sê-lo. Independentemente de que Rafaela em Cartagena de Índias e Julian e Maria Clara em Buenos Aires conseguissem ou não o direito pleiteado, o certo é que nos tribunais se aventavam argumentos e entendimentos sobre os direitos cabíveis a pessoas tão “extraordinárias” que viviam no limbo das classificações.

Papel de venda, liberdade e preço justo O “papel de venda” foi uma das demandas recorrentes dos escravizados. Faz mais de dez anos que me deparei com o seguinte caso que realmente me surpreendeu, sobretudo pelos termos do argumento na demanda do papel. Se tratava de uma solicitude de preso. Isto quer dizer que um escravo que tinha sido colocado na cadeia por seu senhor demandava que o vice-rei intermediasse sua solicitação. Em 1777, o escravo Francisco, estando no cárcere, escreveu às autoridades para denunciar a truculência dos castigos que praticava seu senhor. Ele acreditava que tudo se devia a um motivo banal, o simples fato de que ele e sua mulher, também escrava, não queriam servir-lhe, sendo de lei, dizia, que todo escravo tinha liberdade para encontrar um senhor a seu gosto.7 Esses foram os termos em que Francisco colocou sua demanda. Eu me perguntava se essa interpretação do artigo das Siete Partidas era a predominante em Buenos Aires (SECRETO, 2010, 27-62) ou se não se tratava de uma interpretação “extravagante”. Os casos do mulato Cecilio Gonzalez e do Pascual Fernández tem estruturas semelhantes, embora os “enredos” sejam diferentes. Ambos pediram papel de venda pela quantidade em que tinham sido comprados. Como pode ser observado se trataria de uma dupla condicionalidade imposta ao senhor: a obrigatoriedade da venda e o valor limite para essa.8 7. Archivo General de la Nación Argentina (AGN), Solicitudes de presos. Libro 2, Sala 9, 12-9-12. 8. El mulato Cecilio esclavo de D. Isidro González solicitando se le obligue se le dé papel de venta por la cantidad en que lo compró, 1804, AGN Administrativos Legajo 14 Expediente

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Pascual dizia: que sintiéndome gravado con el peso de un extraordinario y no interrumpido servicio a que me tiene mi amo constantemente dedicado, con la desgracia de no conseguir darle entero gusto... quebrantada mi salud y en ocasión en que un sujeto muy conocido en esta Capital me ofrece trecientos pesos en préstamo para el rescate.

Cecílio foi muito convincente a respeito de seus méritos para ganhar o papel de venda. Tinha trabalhado durante 11 anos para Dom Isidro e nesse tempo tinha prestado muitos serviços para seu senhor. Pesava contra o senhor o fato de Cecílio ter padecido uma doença e não ter sido atendido. Dizia que sua vida corria risco e que o médico Cosme Argerich poderia dar testemunho9. Com esses argumentos reforçava a ideia de mudança de domínio. Sobre o preço que dava-se a essa transação, dizia: Este me compró con once años menos de edad, es decir, en todas las fuerzas de la mejor edad de la vida, con una capacidad y proporción de servirle que hoy no tengo y sin la enfermedad que ahora padezco, producida por la dureza del trabajo a que me ha tenido sujeto Quiero decir señor Exmo. que para la tasación que hoy se haga en mi sea justa, es necesario también que se me haga otra de la que yo valía al tiempo que me compró mi amo, con reflexión a la edad, robustez, salud y ofício que entonces tenía, para que contemplando la gracia que entonces me hizo el amo que me vendió y deduciéndola del valor que hoy tenga mi persona se conozca cuanto justamente puede mi amo sacar de mi venta.

No caso de Cecílio podemos dizer que ele e sua defesa perceberam que o tribunal era favorável à demanda, daí que “subissem a aposta”, se no início eles pedem que seja avaliado como no momento da compra (350 pesos e 295 (1804) Sala IX 23-6-2 e Expediente promovido por Pascual Fernández sobre que su amo Joaquín Manuel Fer-nández le otorgue la libertad recibiendo al efecto los 300 pesos en que lo compró, 1805, Adminis-trativos. Legajo 15 Expediente 440 (1804-05) Sala IX 23-6-3. 9. Cosme Argerich tinha estudado medicina em Espanha. Em 1794 foi nomeado examinador do Protomedicato do Rio da Prata. Desde 1802 ministrava aulas no Protomedicato.

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não os 500 pesos que pretendia o senhor), logo entreveram que, segundo as práticas de avaliação que eram realizadas localmente, eles poderiam baixar ainda mais esse preço, considerando a perda de capacidades físicas nos anos de serviço sob o domínio de Dom Isidro. Por isso, no segundo parágrafo da transcrição acima o escravo defende a ideia de um exame que considera seu estado de saúde e robustez no momento da demanda, em comparação ao de compra. Cecílio conseguiu que seu senhor fosse intimado a outorgar o papel de venda pelo valor que tinha pagado pelo dito escravo 11 anos antes: 350 pesos. O senhor de Pascual foi mais veemente na defesa de seus direitos dominiais. Argumentava que não havia lei que o obrigasse a vender seu escravo, não obstante que fosse para que esse conseguisse a liberdade, porque ainda que se afirme que a “justiça é favorável à liberdade”, não existiriam fundamentos legais que o obrigassem à alienação, dizia o Joaquín Manuel Fernández à vez que lembrava do seguinte antecedente: “y un caso sucedido en esta capital con cierta esclava de Monica de Arce, que motivó la Real Cédula de 9 de agosto de 1788 expedida en resultado del recurso que se hizo A S. M. es para un caso particular y muy distinto por todas las circunstancias del presente.” 10 Se bem o caso da proprietária Mónica Arce, obrigada a libertar a sua escrava pelo valor que essa lhe oferecia, formava parte da casuística mais ou menos frequente de resoluções de conflito nesse tipo de demanda, o certo é que a existência de uma Real Cédula de Sua Majestade criava uma fantasmagoria a perturbar os senhores. Por isso reiteravam como “mantra” não existir uma lei que os obrigasse à alienação, quando em realidade existia, tanto a das Sete Partidas11 quanto a Real Cédula de 9 de agosto de 1788.

10. Expediente promovido por Pascual Fernández sobre que su amo Joaquín Manuel Fernández le otorgue la libertad recibiendo al efecto los 300 pesos en que lo compró, 1805, Administrativos. Legajo 15 Expediente 440 (1804-05) Sala IX 23-6-3. 11. Conceitos reiterados na Real Cédula de Carlos II a las Audiencias y gobernadores de las Indias. Buen Retiro, 12 octubre 1683.

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Após a independência O ideário revolucionário atlântico condenava os privilégios de antigo regime, arvorava o princípio da igualdade e mantinha a escravidão. O caso que analisamos a seguir conjuga as contradições desse momento. Em 1817, com toda pompa se apresentou ante a justiça do Tucumán o “Coronel dos exércitos de Dragões da Nação”, Dom Cornelio Zelaya12, reclamando uma escrava que se encontrava em depósito fazia uns 15 dias e que lhe fazia muita falta. Quando um escravo fazia uma demanda contra seu senhor era depositado em casa de alguma família respeitável para não sofrer represálias em caso de permanecer sob o mesmo teto que o demandado. Na primeira página do expediente o senhor reclama a devolução da escrava. Imaginamos que há outro expediente anterior, movido por Marta, a escrava, não localizado. Logo após a reclamação de Zelaya pedindo a restituição, Marta se apresenta: Marta negra esclava del Sr. coronel de Dragones Cornelio Zelaya ante V.E. con los más sumisos rendimientos y como por derecho corresponde digo: que la bondad de V. E. se digno depositarme a virtud de queja que puse por el inmoderado castigo que he sufrido en casa de mi amo. Este es un motivo suficiente para reclamar por un papel de venta.13

A seguir diz Marta que encontrou alguém que, comovido com sua desgraça, lhe emprestava o dinheiro para que pudesse comprar sua liberdade. Para justificar esta ação salienta que, embora existiram leis sobre a inviolabilidade do direito do domínio, no momento da demanda não havia nada mais oposto ao sistema igualitário, proclamado no Rio da Prata, que o da escravidão. Se bem lamenta que não tenha sido extinta a escravidão, reconhece que pelo menos o sistema era benigno ao resgate da liberdade. Pedia então que o coronel fosse mandado a nomear um taxador, avaliador de seu valor, pois ela já havia nomeado Dom Gregório Araoz para esse fim.

12. Destacado militar que havia participado da defesa de Buenos Aires quando das invasões inglesas (1806-1807). Em 1810, na guerra de independência, também comandou um batalhão de cavalaria e foi nessa arma que constituiu parte do exército do Norte, no Alto Peru. 13. AGN. Administrativos, Leg. 32, Exp. 1097, Sala IX 23-8-6.

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Embora o coronel tenha sido chamado a designar um perito para avaliar a escrava, ele não aceitou a resolução. Expressava que Marta e quem lhe emprestava o dinheiro pretendiam despojá-lo de sua propriedade e fraudar o estado. Para ele se tratava de uma compra encoberta e não de um resgate da escravidão. Suspeitava o Coronel que se tratava de um comprador que buscava uma diminuição do preço à vez que burlava o fisco não pagando a taxa da operação de compra-venda. Enquanto havia impostos para a compravenda, não havia para a compra da liberdade. Qual era o papel dos avaliadores que cada uma das partes nomeava? Os peritos definiam o valor do escravizado a partir da análise físico/ ocupacional: idade, contextura, achaques, habilidades etc. Essa ação era chamada de justipreciar, que, como o diz a palavra, definia o preço justo. Nessa peritagem os escravizados buscavam sempre “valer menos”, declarar moléstias, dificuldades para desempenhar tarefas etc. de forma a facilitar a compra da liberdade ou compra por um terceiro, mais caridoso que o senhor que os possuía. Em alguns casos o litígio se concentrava nesse ponto: no valor do escravo. O senhor pretendia obter o máximo possível. Falava das qualidades do escravo, das habilidades, do preço que ele tinha pagado e das habilidades adquiridas sob seu domínio. Se bem algumas vezes os peritos eram leigos, em alguns casos mais litigiosos, eram os médicos do protomedicato os que emitiam suas valorizações. Antes de ser avaliada pelos peritos Marta foi examinada pelo médico José Baltasar Tejerina, que figura entre os primeiros formandos da Escola de Medicina do Protomedicato de Buenos Aires. Tinha sido médico no exército que lutou as guerras da independência e ocupava o cargo de médico na cidade de Tucumán. O laudo dele foi a base sobre a que se apoiaram os peritos quando realizaram o avaluo da escrava. Tejerina diagnosticara a escrava com doença do peito, pelo que não poderia realizar grandes esforços.14 Talvez um perito nomeado por Zelaya tivesse contestado os termos do parecer médico, mas o coronel se negou a nomear um perito. Contestava a resolução de justipreciar sua escrava, antecedente de aceitar a venda e o valor. 14. Esses atestados médicos existentes no interior dos processos também são fonte valiosa para a história da saúde e da medicina (PORTO, 2006).

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À revelia de Coronel Zelaya, foram nomeados os dois taxadores: Gregório Araoz e Patricio Acuña os quais estabeleceram, de comum acordo, o valor da escrava em 200 pesos. Acima falamos que os expedientes em questão permitem a aproximação a um conjunto de aspectos da sociedade estudada, como por exemplo: a respeito de entendimentos sobre o que é justo e injusto, sobre significados da escravidão e da liberdade, sobre os direitos de propriedade e suas limitações, sobre teorias econômicas. A discussões sobre o justo preço transitam entre conceitos jurídicas e econômicas. Assim encontramos entre os argumentos a favor da taxação que realizaram os avaliadores Araoz e Acuña, o seguinte texto escrito pelo defensor fiscal Mariano J. de Ulloa: El precio justo de mercadurías o especies sujetas a comercio según doctrina curial es de dos maneras, uno legítimo y otro natural. El primero es el que está constituido por la ley, Príncipe o República y de ese se dice constituir punto indivisible. El segundo es el que no está en la forma dicha constituida y por lo mismo no consiste en punto indivisible, sino arbitrario. Este precio natural que se divide en medio, superior e ínfimo, no se ha de calcular por lo que costó antes la alhaja sino por la estimación común al tiempo actual, en que se trata de su enajenación tuviese en el lugar ora gane ora pierda mucho el propietario… no se regulan ni mensuran por lo que valió la cosa tiempos antes de la venta sino contrariamente por la estimación que tenga al tiempo del contrato.15

Mariano José de Ulloa era um prestigioso advogado formado na Universidade de Chuquisaca. Nesse texto expunha duas teorias diferentes para fixar os preços. A segunda forma de definir o preço é a que mais se parece com o que seria conhecido como “de mercado”, “a estimação comum ao tempo atual”, como expressa Ulloa. Marta tinha perdido valor por causa da idade e de questões vinculadas a sua contextura natural, como tinha expressado o doutor Tejerina em seu laudo médico. O preço dela em 1817 não era o mesmo que tinha ao tempo em que o coronel a comprou. Então, em 1813, ele tinha pagado 400 pesos. O conjunto documental ao que pertence o 15. AGN. Sala IX 23-8-6, Administrativos, Leg. 32, Exp. 1097.

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expediente que analisamos está povoado por disputas em torno da liberdade e do preço da liberdade. Parecia que, sobre os benefícios da liberdade, ninguém duvidava. Sobretudo depois da independência. Quando as demandas chegavam na justiça o preço se transformava na principal arena das disputas. Vejamos o por quê. Para os escravizados, como já mencionamos, porque o preço definia a possibilidade ou não de conquistar a liberdade. Para os senhores porque o preço podia significar, no teatro do domínio, a manutenção do poder do pater famílias. O preço fixado nos processos dificilmente era o que pretendia o possuidor do escravizado. O caso de Marta e o Coronel Zelaya é exemplar a esse respeito. Os taxadores e o fiscal determinaram que ela valia a metade do que o Coronel tinha pagado por ela quatro anos antes. Por esse motivo o Coronel apelou. Nomeou para que o representasse em Buenos Aires, na instância de apelação, o Brigadeiro General Martín Rodríguez, enquanto a escrava foi representada por um reconhecido advogado chamado Antonio Moreno. A escolha do procurador de Zelaya demonstra que ele estava muito empenhado em ganhar a causa, um empenho talvez maior que o dimensionado pelos 200 pesos de diferença entre o que ele pretendia e o que o primeiro tribunal tinha sentenciado. Não conhecemos a sentença da apelação, mas sabemos dos argumentos que foram levantados em um e outro sentido. Moreno salientou que o estado de saúde da Martha, sendo propensa a febres, sem capacidade para trabalhos intensos e duradouros, tinham deteriorado seu preço. Moreno questionava sobre a pretensão de 400 pesos: ¿Es compatible con las ideas liberales de nuestro sistema, cuyo objeto es sostener y hacer valor los derechos del hombre, haciendo correr por todas partes torrentes de sangre y otros sacrificios los más costosos? Si Marta se ha deteriorado en poder del S. Zelaya y de consiguiente vale menos que cuando la compró, sibi imputare, pues empleo su dinero en cosas defectibles.16

16. AGN. Sala IX 23-8-6, Administrativos, Leg. 32, Exp. 1097.

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A partir de 1810 encontramos muitos argumentos a favor da liberdade sustentados no contexto político, nos ideais da independência e no sistema político escolhido para as Províncias Unidas. Por tanto há uma recontextualização das demandas e das resoluções. Mas, assim como nos melhores romances, o corpus documental se abre a múltiplas leituras e abordagens. A aqui somente apresentamos algumas possibilidades de trabalhar com os expedientes dos tribunais coloniais e o primeiro período independente do Rio da Prata.

Referências bibliográficas ALFONSO X, EL SABIO. Las siete partidas. Santiago: Andrés Bello, 1982. ARGENTINA, Fondos documentales del departamento de documentos escritos. Período Colonial/ Coord. Juan Pablo Zabala, Buenos Aires: AGN, 2011. DAVIS, Natalie Zemon. Histórias de Perdão e seus narradores na França do século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. DOUGNAC RODRIGUEZ, Antonio. Esquema del derecho familia indiano. Santigao de Chile: Instituto de História del Derecho Juan de Solarzano Pereyra, 2003. GINZBURG, Carlo. El juez y el historiador. Consideraciones al margen del proceso Sofri. Madrid: Anaya & Mario Muchnik, 1993. GIOLITTO, Loredana. Esclavitud y libertad en Cartagena de Indias. Reflexiones en torno a un caso de manumisión a finales del periodo colonial. Fronteras de la Historia, 8 (2003), 65-91. HERZOG, Tamar. La naturaleza, legitimidad y estructura de la familia colonial. Quito XVII-XVIII, Mar Oceana: Revista del Humanismo Español e Iberoamericano. N. 2, 1995a, 231-241. HERZOG, Tamar. Sobre la cultura jurídica en la América Colonial. Anuario de Historia del Derecho Español, 1995b, [903-912]. HESPANHA, Antonio Manuel. Imbecillitas: as bem-aventuranças da inferioridade nas sociedades de Antigo Regime. São Paulo: Annablume, 2010. MARGUET, Christine. Justicia y poética en la novela barroca: escena del proceso, ficcionalización de la pleitomanía, y unas líneas sobre la justicia

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poética. e-Spania [En ligne], 38 | février 2021, mis en ligne le 09 février 2021, consulté le 02 septembre 2021. URL: http://journals.openedition.org/espania/38952 ; DOI : https://doi.org/10.4000/e-spania.38952 MORICONI, Miriam. Voz y quebranto. Teodora Álvarez, esclavizada y fugitiva, en la cultura jurisdiccional en el Río de la Plata (1758). Revista História y Justicia, N°11 – Santiago de Chile, octubre 2018, 226-261 PETIT MUÑOZ, Eugenio. La condición jurídica, social, económica y política de los negros durante el coloniaje en la Banda Oriental. Montevideo: Talleres Gráficos 33, 1948. PORTO, Angela. O sistema de saúde do escravo no Brasil do século XIX: doenças, instituições e práticas terapêuticas. História, Ciência, SaúdeManguinhos 13(4) 2006, 1020-1027. REBAGLIATI, Lucas. Presos y defensores de pobres em Buenos Aires (17761810) Condiciones de vida y peticiones de libertad. Revista de Historia Americana y Argentina, vol. 52, No 1, 2017, 33-69. TAU ANZOATEGUI, Victor. El Abogado del Cabildo de Buenos Aires durante el Virreinato. In: El Jurista en el Nuevo Mundo: Pensamiento, Doctrina, Mentalidad. Max Planck Institute for Legal History and Legal Theory, 2016. VILAR, Pierre. Economía, derecho, historia, Barcelona, Ariel, 1983.

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Metodologia de ensino em história do Brasil colonial com base em fontes primárias: uma proposta para a formação de professores à luz da lei 10.639/ 2003

Aldair Rodrigues | UNICAMP

O objetivo deste capítulo é refletir sobre práticas e metodologias de ensino em História do Brasil colonial centradas no uso de fontes primárias que contêm evidências sobre a experiência histórica dos africanos na diáspora. Discutiremos a experiência desenvolvida no âmbito de duas disciplinas de graduação do curso de História da UNICAMP: “HH188 Laboratório de História”1, oferecida a alunos de primeiro semestre, e “HH384 Brasil 1”2, ministrada a estudantes de segundo ano. O texto encontra-se dividido em três eixos principais. Na primeira parte a proposta metodológica é brevemente situada no contexto mais amplo da renovação dos cursos de Brasil colonial a partir do diálogo com a historiografia sobre história da África e do impacto 1. Esta disciplina foi ministrada de forma remota no primeiro semestre de 2020 para alunos ingressantes. 2. A disciplina é oferecida regularmente no primeiro semestre de cada ano. Atualmente, além de mim, desde 2018, a professora Camila Dias é também concursada para esta cadeira, a qual assumimos de forma intercalada. No meu caso, fiquei responsável pelo curso nos anos de 2016, quando me tornei professor do departamento; 2017; 2019 e 2021. As reflexões desenvolvidas neste capítulo, portanto, baseiam-se no trabalho que desenvolvi com os alunos nos anos mencionados.

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da lei 10.639/2003.3 Em seguida apresentamos uma sugestão de roteiro para análise de documento em disciplinas de graduação. Na última parte, elaboramos um exercício de aplicação do roteiro adotando como exemplo um documento da Inquisição contra a comunidade de malungos de Recife, datado de 1779.

A renovação da disciplina História do Brasil 1 a partir de diálogos com história da África A expansão dos estudos sobre história da África e da cultura afrobrasileira nas universidades brasileiras a partir dos anos 2000, segundo Lucilene Reginaldo, está profundamente ligada à necessidade de adaptação das universidades às diretrizes da lei 10.639. Neste arcabouço, houve grande número de contratação de professores africanistas. Essas transformações abriram um imenso campo de possibilidades de renovação da ementa de História do Brasil 1 em diálogo com os trabalhos sobre a África da época moderna. Entre tantas, podemos sublinhar o reposicionamento do protagonismo histórico dos africanos escravizados no processo de colonização da América portuguesa. No cânone da área, durante muitas décadas, o enfoque das análises era dado mais sobre o funcionamento do tráfico e da escravidão do que sobre a vida dos africanos e seus descendentes. Já nos anos 1980 e 1990 a agência histórica dos escravizados passou a ganhar cada vez mais espaço na historiografia, principalmente em tópicos relacionados às margens de negociação construídas pelos africanos no seio das relações entre senhores e escravos. Nos anos 2000 notamos uma importante inflexão nas abordagens sobre a questão na medida em que a maior difusão das pesquisas sobre o continente africano permitiu, por exemplo, que conhecêssemos os contextos de onde os africanos trazidos para o Brasil eram oriundos e a historicidade

3. Essa lei tornou obrigatório o ensino de História da África e da cultura afro-brasileira na educação básica e teve inúmeros desdobramentos nos departamentos de história por terem que se habilitar para formar professores aptos ao cumprimento da medida. http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.htm. Sobre uma avaliação da aplicação da lei na educação básica, ver: Janz, Caroline & Cerri, Luis Fernando. 2018. “Treze anos após a lei nº 10.639/03: o que os estudantes sabem sobre a história da África?”. Afro-Ásia, 57, pp. 187-211. A lei 10.639 foi atualizada em 2008 e passou a incluir a obrigatoriedade do ensino de história indígena: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11645.htm

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dos processos escravização. Deste modo, vão sendo desmantelandas as imagens racializadas, estáticas e homogêneas do continente e sua história.4 O vigor historiografia sobre África não permite mais que continuemos a estudar a formação das hierarquias sociais na Colônia sem perguntar como os africanos e seus descendentes vivenciaram aquelas dinâmicas a partir de referências de seu universo cultural trazidas para as Américas. Devem ser consideradas suas múltiplas visões etnicidade; parentesco; fronteiras entre mundo visível e invisível; relações sociais; territorialidade; poder político, principalmente o impacto das ideologias políticas africanas no mundo colonial, tais como as revoltas escravas e constituição quilombos. O aumento de publicações disponíveis em português, que podem ser indicadas aos alunos, e a maior oferta de textos em língua estrangeira nos repositórios digitais, dando acesso ao professor de graduação à historiografia internacional produzida tanto na África como em outros continentes, possibilitam ganho de densidade na formulação de propostas de reflexões e perguntas que podem ser colocadas em sala de aula. Sob tais estímulos intelectuais, o professor pode elaborar exercícios com fontes permeáveis à experiência histórica dos africanos no contexto colonial brasileiro e levantar perguntas acerca das relações de poder subjacentes ao documento e, a partir da identificação desse filtro, vislumbrar possibilidades de aproximação do protagonismo histórico dos africanos escravizados. Afinal, a ementa da disciplina Brasil 1 cobre cerca de três séculos de colonização cujos temas são obrigatórios no currículo da educação básica, tanto no ensino fundamental como no ensino médio. O trabalho com documentos, para além da sua relevância em qualquer tema, torna-se particularmente importante no caso de história da cultura afro-brasileira na formação de professores porque nem sempre encontrarão material disponível nos livros didáticos regulares, apesar de avanços obtidos nos últimos anos. Explorando esta senda, argumentamos que os cursos de Brasil colonial estão posicionados para oferecer contribuições importantes para a formação de professores aptos a aplicarem a lei 10.639/2003 na educação básica. Para tanto, sugerimos a seguir um roteiro para exercício de análise documental com o objetivo de evidenciar essas potencialidades. 4. Foge ao escopo deste capítulo uma análise historiográfica aprofundada sobre essas questões. Excelentes balanços sobre as inflexões mencionadas podem ser encontrados, por exemplo, em: REGINALDO, 2020, 157-212; LARA, 2005, 21-38, LARA, 2021, 465-486.

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Proposta de roteiro para análise de fonte Introdução No estudo do passado, segundo Marc Bloch, a “diversidade dos testemunhos históricos é quase infinita. Tudo que o homem diz ou escreve, tudo que fabrica, tudo que toca pode e deve informar sobre ele” (BLOCH, 2001, 79). Portanto, a definição de fonte histórica englobaria uma multiplicidade de vestígios da ação humana no passado, indo desde tipologias mais convencionais, como informações textuais inscritas em papéis, até evidências arqueológicas. Essa definição de fonte histórica prende-se ao conceito de documento histórico na ciência arquivística: “documento é o registro de uma informação, independente da natureza do suporte que a contém” (PAES, 2004, 26). Normalmente, o trabalho de pesquisa em História apoia-se em fontes secundárias, aquilo que seria o conjunto da bibliografia tangente ao tema a ser estudado, e fontes primárias, que podem ser vestígios do passado preservados em arquivos, museus e bibliotecas, ou testemunhos acessíveis por meio da oralidade ou registros audiovisuais. Essas categorias (fonte primária e fonte secundária) não são fixas. O parâmetro para a definição de cada uma delas depende da questão central que norteia uma pesquisa. A depender da escolha do tema e sua abordagem, o que convencionalmente definimos como fonte secundária pode se tornar fonte primária, por exemplo, a obra de um autor ou um texto específico. A proposta de roteiro aqui apresentada parte da compreensão de que o exercício da análise de fontes é um passo fundamental na formação de qualquer professor ou pesquisador da área de História. Os estudantes devem saber pensar criticamente o processo histórico com base em evidências. Isso não significa dizer que os documentos fornecem a “verdade” ou um “retrato” neutro sobre o que aconteceu em diferentes contextos. Seu uso passa pelo crivo de uma rigorosa crítica documental que revele as mediações subjacentes à produção e aos usos do documento.

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Os principais objetivos dos exercícios de análise de fontes nas disciplinas de graduação são o desenvolvimento da habilidade de examinar as condições de produção histórica de um registro que adquiriu o estatuto de documento e, além disso, desvendar as relações de força que permearam sua produção e usos por diferentes agentes históricos imersos em múltiplas dinâmicas sociais.

Metodologia Cada tipo de vestígio da ação humana vai demandar um aparato metodológico específico conforme a sua configuração, tais como a materialidade em que está inscrito e as formas de disposição das informações que carrega. Nesta proposta de roteiro, estamos privilegiando informações textuais por serem aquelas convencionalmente mais acessíveis a alunos de graduação e aquelas mais trabalhadas pelos professores de história do Brasil colonial. O estudo de uma fonte originalmente inscrita em suportes de papel (digitalizadas ou não) pode ser dividido em seis passos principais. a. Dimensão descritiva O primeiro passo da análise de fonte consiste em uma breve apresentação do documento, explorando suas características principais e o contexto em que foi produzido. Para tanto, são relevantes os seguintes procedimentos: Apresente brevemente o documento e justifique a sua escolha, destacando a relevância da fonte em um parágrafo curto. Em seguida, destaque o que pretende desenvolver, seus objetivos e o que será enfatizado. Depois isso tudo será retomado e aprofundado na seção analítica. Avalie se, pelo tamanho e características, valeria a pena anexar uma cópia do documento ao trabalho, sua transcrição integral ou um excerto. Em seguida, passe para a descrição detalhada, considerando os seguintes elementos: Referência e localização do documento no arquivo. Tipologia (manuscrito, impresso, fotografia, objeto tridimensional, pintura, conteúdo audiovisual etc.) Materialidade: suporte; formato; dimensões e características físicas. Data(s); Localidade(s); O documento é único ou integra algum fundo/série do arquivo? Quem produziu? Se não for possível estabelecer autoria, levante hipóteses com base na bibliografia e em pistas da própria fonte. Em caso de fontes textuais, em quantas partes principais o documento pode ser dividido conforme a disposição de suas informações? No caso de imagens, qual é a disposição/configuração do que você observa?

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b. Dimensão analítica/ ênfase na problematização – formulação de uma questão que será o fio condutor da análise Na etapa analítica o aluno extrai informações da fonte, estabelece diálogos com a bibliografia sobre os aspectos ali presentes e encaminha alguma conclusão preliminar sobre os elementos destacados. Segue abaixo a elaboração de uma proposta de itinerário a ser trabalhado com os alunos tendo em vista estas habilidades. Em que contexto a fonte foi produzida? Com quais propósitos? Quais relações sociais, econômicas ou políticas ela mediou? Quem interfere na produção das informações? Quais são as mediações ali presentes? Que relações de poder estão subjacentes à construção do documento? Quais são as vozes mais em evidência? Consegue ver isso explicitamente? Se não, consegue conjecturar hipóteses com base na bibliografia ou em seu faro historiográfico? Quem tem visibilidade? Quais grupos sociais ou indivíduos? Quais protagonismos? Consegue identificar silêncios presentes nas entrelinhas do documento? Se possível, levante hipóteses sobre as vozes nele silenciadas. Lembre-se: o documento resulta de uma construção histórica, portanto sua historicidade deve ser evidenciada na análise. c. Interlocução com a bibliografia É muito importante que o aluno consulte artigos e livros (fontes secundárias) tangentes à fonte que pretende analisar para conseguir vislumbrar o contexto mais amplo em que ela emergiu. Quais autores já trabalharam com documentos semelhantes e o que extraíram deles? Quais são as potencialidades da fonte para essa historiografia? O que ela poderia revelar que ainda foi pouco explorado? Como esta fonte contribui para a sua formação? e. Desenvolvimento e aprofundamento da análise Aqui é muito importante entrelaçar as informações recolhidas no documento com os aportes da bibliografia sobre a temática enfocada. É relevante demonstrar que sabe mobilizar os subsídios da fonte, problematizá-los e, de modo preliminar, desenvolver o tema analiticamente. f. Conclusão Retome brevemente os objetivos colocados inicialmente, passe pelos elementos presentes na fonte e, em seguida, apresente a conclusão de forma sintética. Se possível, elabore um argumento, evidenciando como seu trabalho contribui para o(s) campo(s) de estudos tangenciado(s) pelas potencialidades do documento do documento escolhido.

Observação Esse caminho (ou roteiro) é uma proposta que contempla elementos básicos. Alguns tipos de fontes exigem metodologias muito específicas, por exemplo, na área de história da arte (plásticas, escultura, audiovisual 236

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etc.) e na área de patrimônio, torna-se necessária a adoção de estratégias metodológicas muito particulares conforme as especificidades desses campos. O mesmo vale para a história oral, em que o corpus de evidências empíricas exige metodologias consolidadas para lidar com a recolha de relatos orais. Dificilmente alunos de primeiro ano conseguem trabalhar com todas as etapas elencadas neste roteiro. O importante é que sejam estimulados a ter os elementos listados acima em seus horizontes ao longo da graduação. Espera-se que, ao final do curso, tantos alunos do bacharelado como da licenciatura tenham condições de desenvolver crítica documental.

Exemplo: “Sumário contra os pretos de Angola do continente de Pernambuco” (1779) Nesta seção desenvolvemos o exercício de aplicação do roteiro proposto tomando como exemplo um processo preservado no Arquivo da Torre do Tombo, Portugal: “Sumário contra os pretos de Angola do continente de Pernambuco”5, de 1779, cuja transcrição segue abaixo. O objetivo, como já referido, é apontar caminhos para que futuros professores de história da educação básica ampliem o repertório de possibilidades de aplicação da lei 10.639/2003 no ensino de história do Brasil colonial. O documento a ser examinado é constituído por um conjunto de denúncias ricas em informações sobre as práticas sociais, culturais, identitárias e religiosas da comunidade formada em Pernambuco pelos africanos de nação Angola. Além disso, o sumário oferece importantes evidências sobre as dinâmicas subjacentes à emergência do vocábulo “malungo” no léxico do português brasileiro do século XVIII. O estudo introdutório que antecede a transcrição do documento tem por objetivo aproximar o leitor do contexto no qual as denúncias foram realizadas e indicar as suas potencialidades para a produção do conhecimento histórico acerca das experiências das comunidades africanas na diáspora.

5. Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa, Processo 4740, 1779. Daqui em diante: Sumário. Uma versão ampliada da análise desse documento foi publicada em: RODRIGUES, 2019, 63-92.

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Transcrição atualizada do “Sumário Contra os Pretos de Angola do Continente de Pernambuco” [capa]

Sumário contra os Pretos de Angola do Continente de Pernambuco [fl.1v, em branco] [fl.2r] Escreveu-se pela Mesa ao Governador daquele Estado, para com as suas providências se remediar a desordem, de que faz menção a representação inclusa em carta com a data de 25 de novembro de 1779, a qual se acha registrada a folha 85. [fl.2v, em branco] [fl.3r] Sumário Pretos de Angola Ilustríssimos Senhores Da denúncia junta consta que os Pretos vindos a Pernambuco do gentio de Angola, e outros distritos, se ajuntam e executam umas danças acompanhadas de ritos gentílicos, como que aqueles bárbaros adoram as falsas divindades e outras que incitam a atos torpes e obscenos; a cuja maldade ocorrendo a vigilância dos padres missionários nada se conseguiu, por se lhe opor o governador daquela cidade fautorizando os perversos autores, permitindo-lhes aqueles escandalosos festejos e punindo com penas pecuniárias aos zelosos que ajudaram os missionários a fazer detestar aqueles erros, e quebrar-lhes os instrumentos. Informa o Comissário Manoel Félix da Cruz a verdade deste caso e a desordem que se irá aumentando com os sobreditos festejos gentílicos, pois vendo os pretos que o governador lhos permite, escarneiam do contrário e dos mesmos padres missionários. Consta que os governadores já [anteriormente] tinham proibido esta pestilente maldade, como de presente expõem Luís Diogo Lobo, que em 238

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substância vem a dizer o mesmo que expressam a denúncia e informação inclusa. Todos os atos que os gentios executam com alguma espécie de idolatria são tão abomináveis que os mesmos hereges os aborrecem, detestam e castigam; o que assim se deve executar entre a cristandade, pelo geral escândalo dos fiéis para dar publicamente a conhecer o horror de semelhante delito e para se precaver que aqueles mesmos pretos, depois de alcançarem a felicidade do batismo e a sã doutrina da igreja católica, não corram e se precipitem no horrível caos que lhes estava determinado ao tempo da sua miserável obscuridade, voltando-se por aquele modo ao seu [antigo] e detestável vômito. Portanto Requeiro [+/- 1 palavra corroída] [A Vossas Senhorias] por parte da | [fl.3v] da justiça, que vista a denúncia e conta do [sic] inclusas com a circunspeção que o caso pede, se prova do remédio que parecer mais apto e pronto para que exemplarmente se atalhe e corte pela raiz tão horrorosa maldade. o Promotor [Moller] [Re]presentado em Mesa o requerimento supra do promotor para os senhores inquisidores lhe haverem de deferir, de seu mandado lho fiz com clareza Gregório Xavier Godinho o escrevi. [Clos] [fl.4r] Denúncia ao Santo Ofício Se deve primeiro saber que neste Pernambuco tem introduzido os negros gentios batizados umas danças das suas terras, com que lá adoram e festejam aos seus falsos deuses, acompanhadas de instrumentos gentílicos, atabaques, que são como espécie de tambor, marimbas e outros de ferro, todos estrondosos, horríveis, tristes e desentoados, próprios do inferno, e certas cantilenas na sua língua gentílica, as quais em todos os domingos e dias santos do ano fazem, e se coloram com título de tirarem esmola para 239

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Nossa Senhora, e para mandarem dizer missas pelas almas dos que morrem daquela sociedade. E o fazem com certa mesa coberta com rito também gentílico: o que tudo deve causar todo o reparo e atenção, pois se acham em terra cristã e eles batizados. Alguns governadores proibiram estas danças e outras que se fazem na terra pelos naturais, chamadas fofa, ou batuque entre homens e mulheres, que consiste em representar um ato torpe de fornicação, acompanhada de instrumentos, estrépitos de pés e mãos, com ditos desonestos. E para maior desgraça, nos tempos presentes, com ditos blasfêmicos, como “Oh meu Deus, ora vamos para o céu”, cujo toque ou peça por si só ouvida nos instrumentos movem incentivos para desonestidade ainda nos tementes a Deus, quanto mais miseráveis pecadores. Foram estes Henrique Luiz, D. Marcos de Noronha, Luiz Diogo Lobo, e o Conde de Pavolide. Fora desses correm impunes, [maximá] nos tempos presentes e no seu aumento, nos quais o atual governador não cura disso e se tem mostrado não só permissor, [maximé] das dos negros, concedendo-lhes licença para isso por despacho seu, mas também fautor, como se verá do seguinte. Chegados os reverendos missionários capuchinhos a esta terra, mandados pela nossa Fidelíssima Rainha, informados e vendo as sobreditas danças, máxime a dos negros, começaram a [invehir] fervorosamente dos púlpitos contra elas, e levados do seu apostólico espírito no dia vinte e um de dezembro de 1778 saíram do Hospício, acompanhados de cinco sacerdotes seculares, e pelos lugares que lhes ensinava o povo, a força da razão com um santo Cristo reduziram a uns a entregar a alguns dos ditos instrumentos, que o povo pelo dito dos missionários quebraram e queimaram. Queixaram-se os outros negros no mesmo dia ao governador, que lhes concedera a licença in scriptis, e no seguinte dia mandou intimar ordem aos reverendos missionários de cessarem de tal fato sob pena de os remeter para Lisboa à nossa Fidelíssima Rainha como perturbadores da República. E condenou aos cinco sacerdotes seculares que os acompanharam em três mil réis cada um para refação [sic] de instrumentos quebrados por não terem os missionários com que pagar de que exaltaram os negros até com ditérios e cantigas subsanarem pelas ruas aos ditos missionários e solenizarem as festas do Santo Natal seguinte com especial concurso deles às tais danças. E 240

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a demais a um deles, que procurou ir a Lisboa dar conta à nossa Fidelíssima Rainha, houve tal embaraço que não foi possível embarcar. E como vendo os turcos que um cristão arrenegado andasse sempre a repetir o Credo Pater Noster, etc, e fazendo ações e ritos cristãos, prudentemente o teriam por cristão e não por mouro ou renegado. Do mesmo modo, vendo aos negros gentios batizados no Cristianismo com tanta frequência e publicidade exercitarem ações, cantilenas e ritos e festejos da gentilidade com que adoram aos seus falsos deuses, prudentemente se pode suspeitar e temer que estejam cristão sendo [fl.4v] sendo os mesmos que eram quando gentios. E não achando uma coisa de tanto porte e peso de nossa religião cristã remédio para se evitar nesta terra; porque, como disse, o governador concede e fautua, os missionários, em lugar de remediar, ficaram atalhados, abatidos e impedidos para ir dar conta à nossa Felicíssima Rainha. Eu, Domingos Marques de Oliveira, Sacerdote do hábito de São Pedro, natural, e morador nesta Vila de Santo Antônio do Recife de Pernambuco, por ser público e notório o memorado fato nesta terra e por o ter presenciado e ser um dos cinco que acompanharam aos missionários e que paguei os três mil réis da condenação, levado unicamente e movido da honra de Deus e da nossa religião cristã, o denuncio ao Santo Ofício para lhe por o remédio. Nesta mesma vila do Recife, aos 10 de fevereiro de 1779. Domingos de Oliveira Marques [fl.5r] Ilustríssimos Reverendíssimos Senhores Há tempo que ando escrúpulo e desejoso de dar conta à Vossa Reverendíssima de um abuso que se tem introduzido neste Pernambuco, e agora com maior razão pelo fato que faz menção a denúncia inclusa. Os negros do gentio de Angola, especialmente os do Gentio da Costa, costumam, quando morre algum seu parente ou malungo, por publicamente nas praças e outros lugares uma mesa coberta com uma baeta preta a pedirem esmola para mandar dizer missas por alma do tal parente ou malungo que faleceu (até aqui ato de piedade). Porém, nessa mesma ocasião se ajuntam 241

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umas e outros de diverso sexo e à roda da mesa fazem uma dança ao modo de sua terra com uns atabaques e outros instrumentos fúnebres, que, na verdade, não é outra coisa mais do que um rito seu gentílico. E o que mais é que o senhor governador consente e lhes dá licença para isto e para outras danças e batuques que atualmente fazem aos domingos e dias santos usando nesta sua dança de cantilenas e palavras escandalosas, donde resultou o fato que contém a denúncia inclusa, que toda é verdadeira. É coisa, na verdade, muito alheia que no meio da cristandade se consintam semelhantes danças que não parecem outra coisa que ritos gentílicos opostos à santa fé e religião cristã; e como estas coisas cheiram muito mal desse conta a Vossas Reverendíssimas com a denúncia inclusa para que possam dar a providência, como forem servido. Deus guarde a Vossas Reverendíssimas muitos anos. Boa Vista de Abril 8 de 1779. De Vossas Reverendíssimas Fiel Súdito e atento venerador Manoel Félix da Cruz [fl5v, em branco]

Análise Descrição da fonte O sumário é composto por 5 fólios (frente e verso), reunindo documentos produzidos por quatro clérigos que atuavam em Lisboa e em Pernambuco. Por ordem cronológica, a primeira peça é a denúncia detalhada que foi redigida pelo padre Domingos de Oliveira Marques no dia 10 de fevereiro de 1779. A segunda é uma carta escrita por Manoel Félix da Cruz, comissário do Santo Ofício de Pernambuco, em 08 de abril de 1779. Além de endossar o teor da denúncia, ofereceu uma contextualização mais ampla da persistência das práticas rituais da comunidade angolana em sua jurisdição. Por ser comissário do Santo Ofício em um território que não sediava um tribunal

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inquisitorial, Cruz era a autoridade máxima da Inquisição, provavelmente foi quem remeteu os papéis para Lisboa (RODRIGUES, 2014).6 O documento seguinte é um requerimento do promotor de Lisboa, Jansen Moller, por meio do qual solicita aos inquisidores o castigo dos africanos para que “exemplarmente se atalhe e corte pela raiz tão horrorosa maldade”. Por fim, o escrivão Gregório Xavier Godinho informa que os juízes da Mesa da Inquisição de Lisboa haviam escrito ao governador de Pernambuco no dia 25 de novembro de 1779 com o fim de admoestá-lo para que que tomasse providências para “remediar a desordem” causada na capitania pelos pretos de Angola. Infelizmente, uma cópia da ordem transmitida ao governador não foi anexada ao sumário.

Equilíbrios de poder subjacentes às denúncias Como indicado no roteiro, uma etapa fundamental da crítica documental é a análise das relações sociais subjacentes à produção do documento e seu contexto. No exemplo em apreço, a carta-denúncia enviada aos inquisidores expressa uma dinâmica conflituosa na administração colonial da capitania de Pernambuco. De um lado estavam os membros do clero (capuchinhos aliados com sacerdotes diocesanos) engajados em uma sanha punitivista contra os africanos e, de outro, o governador da capitania, José da Cunha e Menezes, o qual, segundo a denunciação, vinha adotando uma postura permissiva em relação às dinâmicas culturais africanas que destoava das administrações anteriores. O padre Marques tece um panorama histórico acerca da postura adotada pelos governadores de Pernambuco diante das danças e batuques 6. Além do Brasil, o tribunal de Lisboa exercia jurisdição sobre todo o Atlântico luso, incluindo aí as ilhas dos Açores, Madeira, as colônias e feitorias africanas. O único tribunal do Santo Ofício instalado no ultramar português foi o de Goa, na Índia. Para se fazer presente na Colônia brasileira, a Inquisição lançou mão de várias estratégias, predominando no século XVIII a ação por meio da rede de agentes eclesiásticos (Comissários e notários) e civis, que eram os chamados familiares do Santo Ofício. As estruturas das dioceses também tiveram papel importante para viabilizar a presença inquisitorial nestas terras, não apenas na transmissão de denúncias e processos para Portugal, mas também porque boa parte dos comissários eram membros dos cabidos e da justiça eclesiástica.

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que considerava gentílicos, elencando nominalmente os representantes da coroa que não toleravam tais práticas. Em sua avaliação, foram exemplares na repressão os governos de Henrique Luiz (1737-1746), D. Marcos de Norona (1746-1749), Luiz Diogo Lobo (1756-1763) e Luís José da Cunha Grã Ataíde e Lencastro, Conde de Povolide (1768-1769). Em contraste com as administrações citadas, denunciava a soltura com que os “pretos de Angola” organizavam suas festas e cerimônias sob o governo de José César de Menezes, que ali estava desde 1774 e permaneceria até 1787. Os estudos que abordam o governo de Menezes centram-se principalmente nas questões ligadas ao funcionamento da Companhia Geral de Pernambuco e Bahia. Destacam como ele buscava equilibrar, de um lado, os interesses da Coroa em aprofundar o mercantilismo concebido pelo reformismo ilustrado da segunda metade do século XVIII e, de outro, a resistência das elites pernambucanas aos monopólios da companhia, que encareciam os cativos (DIAS, 2011, 1-12). No que toca às relações entre Menezes e as comunidades negras, Antonia Aparecida Quintão sugere que havia uma certa flexibilidade do governador quanto às tradições hierárquicas de origem africana construídas e reconstruídas pelos cativos no contexto colonial. Autorizava, por exemplo, a prática da expedição de patente de governador dos “pretos marcadores das caixas de açúcar” do porto, os quais ritualmente estariam subordinados ao rei do Congo eleito pela irmandade do Rosário (QUINTÃO, 2002, 80-82). O clímax da tensão entre os dois polos do poder colonial foi atingido quando os capuchinhos, acompanhados de cinco clérigos seculares, saíram com uma cruz incitando a população a destruir os instrumentos empregados pelos negros em suas danças e batuques. Como resultado, “o povo, pelo dito dos missionários, quebraram e queimaram” os apetrechos. Essa medida repressiva afrontava diretamente a autoridade do governador Menezes, pois ele havia concedido “licença in scripts” que permitia os batuques. Afrontado pelos eclesiásticos, no dia seguinte mandou intimar os capuchinhos para que interrompessem seus excessos, “sob pena de os remeter para Lisboa”. Além disso, condenou os cinco padres que os acompanhavam a uma pena de três mil réis cada. A multa serviria para a restituição dos instrumentos que haviam sido destruídos no ataque aos africanos, conforme relata o padre Domingos de Oliveira Marques: 244

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condenou aos cinco sacerdotes seculares que os acompanharam em três mil reis cada um, para a refação [sic] de instrumentos quebrados por não terem os Missionários com que pagar, de que se exaltaram os negros até com ditérios e cantigas subsanarem pelas ruas aos ditos Missionários (...).

O cruzamento das informações do sumário com fontes coevas diversas, sobretudo conjuntos documentais mais permeáveis ao cotidiano dos africanos e sua ação histórica, poderia sustentar análises sobre as estratégias e astúcias que os africanos adotaram para negociar aquelas margens de permissibilidade descritas nas denúncias.

Ultrapassando o filtro colonial: práticas religiosas, sociais e culturais A contextualização do documento permite que o aluno identifique os vieses e intenções que estão por trás das informações presentes na fonte. Cumprida esta etapa, torna-se possível agora interpretar os dados que estão nas entrelinhas do documento e, principalmente, visualizar a riqueza de detalhes sobre a experiência africana na América portuguesa para além dos estereótipos ligados à ideologia da demonização que detratava e inferiorizava as culturas africanas. A obsessão dos inquisidores pelas minúcias das atividades religiosas dos réus na busca etnocêntrica de indícios de heresias resultava na descrição densa de uma série de práticas culturais desviantes em relação ao ideário da ortodoxia da fé católica nos documentos preservados pelos arquivos do Santo Ofício. Como argumentou Ginzburg, o conhecimento do funcionamento dos tribunais, da estrutura dos processos e do contexto no qual os inquisidores atuavam permite o historiador transpor o filtro plasmado nos documentos e se aproximar do universo cultural e das crenças dos sujeitos por eles perseguidos (GINZBURG, 1991, 203-214). No caso brasileiro, João Reis, em seu estudo sobre a invasão de um terreiro de Calundu na vila de Cachoeira pelo aparato oficial da Bahia, no ano de 1785, sublinhou que os documentos da repressão, não apenas os da Inquisição, constituem a “fonte típica em que se inscreveu a história da 245

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religião afro no Brasil” (REIS, 1988, 60). Seguindo nesta trilha, desde finais da década de 1980 a historiografia vem explorando o espólio resultante das atividades repressivas da justiça eclesiástica e da Inquisição para empreender análises inovadoras acerca da multiplicidade das práticas religiosas coloniais de matriz africana em diferentes partes da América portuguesa (SOUZA, 1986, MOTT, 1994, MOTT, 1986, 138) Nos anos 2000 e na década de 2010, a aproximação da historiografia sobre a cultura da população africana e seus descendentes no Brasil com a historiografia africanista resultou em uma importante inflexão nas suas escalas de análise. Seja por meio dos estudos enfocando povos específicos ou centrando em trajetórias individuais, notamos a constituição de um campo de pesquisa cada vez mais denso que lança mão das fontes inquisitoriais para o estudo da diáspora africana. As ênfases recaem nas especificidades dos elementos africanos presentes nas minúcias descritas pelos notários a partir de uma perspectiva que conjuga as dinâmicas situadas nos dois lados do Atlântico, desvelando novas dimensões identitárias e religiosas que compunham o universo cultural dos povos escravizados e seus descendentes vivendo no Brasil. Podemos elencar como testemunhos dessa vertente o trabalho de James Sweet sobre os Cobu do interior do golfo do Benim (SWEET, 2011, SWEET, 2007); a análise de Vanicleia Santos sobre os equívocos da associação entre o uso das bolsas de mandinga no mundo Atlântico e os povos Mandinga da África Ocidental (SANTOS, 2008); e, mais recentemente, a tese de Alexandre Marcussi a respeito dos calundus em Minas Gerais, privilegiando a trajetória de Luzia Pinta (MARCUSSI, 2015). Do lado Angolano, Roquinaldo Ferreira lançou mão de documentos do Santo Ofício para desvendar os intercâmbios culturais entre Angola e Brasil nos séculos XVIII e inícios do XIX, privilegiando a abordagem microbiográfica FERREIRA, 2012, REGINALDO, 33). O vigor dessa historiografia abre caminhos para pensarmos nas potencialidades do documento “Sumário contra os Pretos de Angola” para o desenvolvimento de pesquisas centradas nas cosmologias e nas religiosidades dos povos oriundos da África Centro-Ocidental que foram traficados para Pernambuco no Setecentos. Para evidenciar esse aspecto é muito importante a mediação do professor com o objetivo de apresentar as linhas gerais do 246

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campo historiográfico que se dedicou às relações entre Brasil e Angola na época do tráfico. Seria relevante comentar que a fonte em apreço oferece aportes para investigações tocantes aos ritos funerários e às suas relações com a ancestralidade no contexto da diáspora. Ao que tudo indica, as práticas fúnebres descritas no sumário eram derivadas da cerimônia do tambo. Alexandre Marcussi, baseando-se na historiografia africanista e na obra de Antonio Cavazzi, define-a como uma complexa “cerimônia pela qual se produzia o antepassado, ou seja, pela qual um morto, inicialmente hostil, se convertia em ancestral, entendido como um ascendente com quem a linhagem mantinha uma relação positiva de lealdade e harmonia, e a quem podia – e devia – render culto regular.” (MARCUSSI, 2017, 103-106) No reino de Matamba, o tambo durava oito dias, demandava uma hierarquia sacerdotal especializada e uma série de recursos materiais para as oferendas e envolvia possessão. No episódio pernambucano, notamos a influência de aspectos da cultura colonial e portuguesa nas práticas culturais angolanas, o que nos alerta para a impossibilidade de essencializar a análise das tradições africanas no Brasil. Os tambos parecem congregar elementos do catolicismo, aparentemente incluindo a celebração de missas na relação com o mundo dos ancestrais e não duravam oito dias como em Angola, sendo encurtados para caber no ritmo e calendário do regime de trabalho da escravidão. Neste estudo introdutório trabalhamos com a hipótese de que os elementos católicos foram incorporados às tradições africanas em termos africanos, e não o contrário. Ou seja, foram lidos e apropriados seletivamente com base nas cosmologias africanas que organizavam a vida social e a relação com o mundo invisível. Os trabalhos sobre a África Centro-ocidental convergem no sentido de apontar a complexidade do processo de penetração do catolicismo nas cosmologias africanas, sobretudo a cosmologia bakongo, emergindo daí um catolicismo africano (MACGAFFEY, 1986, THORNTON, 1984, FROMONT, 2014, SOUZA, 2018). Linda Heywood e John Thornton argumentam que estas transformações culturais tinham início no próprio continente africano em razão da conversão do reino do Congo no século XVI e da penetração portuguesa no território que constitui posteriormente Angola. Tratava-se de um processo de transformações culturais e formação de culturas crioulas que 247

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impactava tanto os portugueses, que iam se “africanizando”, e os africanos; muitos daqueles traficados para as Américas já possuíam variados graus de conhecimento do catolicismo e da língua portuguesa (HEYWOOD; THORNTON, 2001) O sumário detalha também a dimensão material dos cultos, revelando os instrumentos musicais e sonoros empregados nos ritos funerários, como atabaques, marimbas e outros. Descreve suas formas, material de que eram feitos e sons que emitiam. Tudo se passava em torno de uma “meza coberta com uma baeta preta”. O movimento dos corpos (“estrépidos de pés e mãos”) dos participantes dos rituais e os versos cantados em português (ditos blasfêmicos como Oh meu Deus, ora vamos para o Céu) ou nas línguas africanas (“cantinelas na sua língua gentílica”) não escapam aos olhos e aos ouvidos dos clérigos portugueses. Os denunciantes reprovam enfaticamente a convivência entre homens e mulheres no âmbito dos rituais que envolviam danças por conta da sensualidade que enxergavam ali: “batuque entre homens e mulheres que consiste em representar um ato torpe de fornicação, acompanhada de instrumentos, estrépitos de pés e mãos, com ditos desonestos e, para maior desgraça nos tempos presentes, com ditos blasfêmicos como Oh meu Deus, ora vamos para o Céu”. Em outro trecho: “ajuntam umas e outros de diverso sexo e à roda da mesa fazem uma dança ao modo de sua terra”.

Demonização das religiosidades africanas e destruição de seus objetos de culto Seria importante explicar aos alunos que o uso de expressões depreciativas pelos oficiais eclesiásticos para descrever as cerimônias religiosas dos escravizados de nação Angola, associando-as ao inferno, e a destruição de seus instrumentos musicais são episódios do longo processo histórico de demonização das religiões africanas (SOUSA, 1993). Tal processo não se restringia ao espaço colonial brasileiro. A historiografia africanista demonstra que, na verdade, este fenômeno esteve articulado também à penetração dos missionários e outros agentes eclesiásticos do outro lado do Atlântico. A

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ação e os projetos de missionação eram marcados pela circulação de seus agentes por todo o ultramar e pela troca intensa de correspondências e experiências que mediavam a ação missionária. Anne Hilton (1985, 195), John Thornton (2004, 326-327), Marina de Mello e Souza, (2018, 249-261) Alexandre Marcussi (2017, 33-34), entre outros historiadores que trabalharam com a documentação e crônicas produzidas pelos missionários na África centro-ocidental, relatam diversas circunstâncias em que os agentes europeus associavam o diabo cristão às atividades dos sacerdotes ngangas e xinguilas. Eram acusados de invocar o demônio ao manejar, na linguagem missionária, os fetiches minksi (Kikongo) e Kiteke (Kimbundu) para manipular as forças do mundo invisível. A ordem missionária que esteve por trás da destruição dos atabaques e marimbas em Pernambuco teve membros envolvidos também em ataques e queima de altares do outro lado do Atlântico durante o século XVIII. Tais ofensivas dos capuchinhos foram registradas nos documentos da administração colonial, nos relatos dos missionários e na iconografia católica, conforme trabalho de Suely Almeida (ALMEIDA, 2016, 622). A detração do universo cultural da população africana estava intimamente relacionada à exploração da sua força de trabalho e à inferiorizarão de seus lugares nas hierarquias sociais. Nos séculos XIX e XX, o processo passou a ser operado pelas forças policiais e foi um elemento importante da racialização das relações sociais brasileiras. Em boa medida, era isso que legitimava a apreensão e destruição de objetos litúrgicos do Candomblé (REIS, 2008; PARES, 2006).

Malungos e parentes Um aspecto do Sumário que chama bastante atenção é o fato da denúncia ser contra os africanos de Angola em sua coletividade: “contra os pretos de Angola do continente de Pernambuco”. Acreditamos que essa tendência a homogeneizar os cativos daquela origem expressava a face externa de uma comunidade formada em Pernambuco por pessoas que compartilhavam, além do trauma da escravização e travessia atlântica, elementos de um mesmo

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complexo cultural centro-africano (LARA, 2008)7. E o vocábulo malungo era o que codificava os elos entre os membros daquela comunidade. No século XVIII, a nação Angola designava, basicamente, os escravizados de origens múltiplas que eram embarcados no porto de Luanda. O próprio documento registrou em dois momentos que os pretos denunciados eram “do gentio de Angola e outros distritos”, “negros do gentio de Angola, especialmente os do Gentio da Costa”. Ou seja, havia diversas origens encobertas pelo termo abrangente “Angola”. De acordo com Joseph Miller, os luso-brasileiros, em 1570, definiam Angola como a “região ngola a kiluanje, sob o domínio de governantes africanos ao longo do meio do rio Cuanza” (MILLER, 2010, 38). Posteriormente, “os representantes governamentais estabeleceram seu principal porto de escravatura em Luanda, no começo do século XVII, eles designaram as regiões interiores sujeitas ao seu controle militar como o ‘Reino e conquista d’Angola” (MILLER, 2010, 40).8 Assim, “‘Angola’ a partir de então, serviu no Brasil como termo cognato para Luanda” (MILLER, 2010, 42). Segundo Lucilene Reginaldo, no contexto colonial, a nação Angola, que designava a origem dos escravizados deportados via Luanda, “era bastante genérica e imprecisa, tanto em termos étnicos como de procedência geográfica ou regional mais específica” (REGINALDO, 2011, 185). O leque de trabalhos que se debruçou sobre as rotas do tráfico entre Pernambuco e a África no século XVIII destaca a importância que o porto de Luanda desempenhava no abastecimento da praça recifense. E o estabelecimento da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba em 1759 certamente acentuou a prevalência angolana no tráfico com Pernambuco. A Coroa, entre outras motivações para a criação da companhia monopolista, pretendia diminuir a presença pernambucana na Costa da Mina, onde 7. Em sua análise sobre a constituição de Palmares no século XVII, Sílvia Lara destacou a importância de considerarmos as culturas políticas centro-africanas subjacentes à constituição da rede dos mocambos e da comunidade ali formada. O fato de os escravos de Pernambuco seiscentista serem majoritariamente oriundos da macrorregião Congo/ Angola forneceu-lhes, em suas palavras, uma gramática política comum. 8. Diferentemente do uso feito pelos luso-brasileiros, os europeus do Norte empregavam o termo Angola para designar a origem dos cativos vindos de todo o território ao sul do Cabo Lopes.

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tinha menos meios para taxar e controlar o comércio de cativos, pois ali os portos eram dominados pelas elites africanas (MENZ, 2013, 45-76; SILVA JR., 2017, 1-41; LOPES, 2008).9 Os dados sistematizados por Suely Almeida e Jéssica Sousa demonstram a prevalência angolana em Pernambuco tanto no número de embarcações como no número de pessoas desembarcadas. Quadro 1 – Número de embarcações que vieram da Costa Africana para o porto de Recife Período

Nº de embarcações vindas de Angola

Nº de embarcações vindas da Costa da Mina

1742-1759

121

63

1759-1777

78

25

Fonte: Almeida e Sousa, 2013, p. 44.

Como vimos, a denúncia refere-se aos governadores anteriores da capitania, informando que, em sua maioria, eram duros na proibição às práticas culturais africanas. Embora devamos cogitar que este pudesse ser um artifício retórico dos oficiais eclesiásticos para atacar o governador Meneses, é muito provável que os batuques promovidos pelos cativos constituíam uma tradição que vinha de longa data, recuando aos primórdios da escravidão africana e presença angolana na região. Ao descrever os ritos fúnebres para os inquisidores, o comissário Manoel Félix da Cruz especificou que eram praticados pelos “negros do Gentio de Angola, especialmente os do Gentio da Costa” quando “morre algum seu parente10, ou malungo”. Então costumavam por “publicamente nas praças, e 9. É importante notar que Pernambuco nunca deixou de importar pessoas escravizadas dos diversos portos da Costa da Mina, como pudemos observar nos dados reproduzidos acima e, também por meio das evidências presentes no trabalho de Gustavo Acioli Lopes para o período que vai 1654 a 1760. 10. Os temos malungo e parente aparecem no documento de forma sobreposta, como se fossem quase sinônimos. Tanto João Reis, em sua análise para o século XIX, como Aparecida Quintão, em seu estudo sobre o século XVIII, indicam que o termo parente possuía o sentido de “parente de nação”, expressava a relação entre as pessoas que tinham a mesma origem étnica, sobretudo no contexto das irmandades católicas negras. Muitas destas associações caritativas eram organizadas a partir das “nações” dos cativos. Cf. Reis, 1991, 55; Quintão, 2002 90-99. Portanto, malungo tendia a expressar não apenas os vínculos entre companheiros de um mesmo barco, mas também a relação entre africanos que tinham a mesma origem.

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outros lugares uma mesa coberta com uma baêta11 preta a pedirem esmola para mandar dizer missas por alma do tal parente, ou malungo, que faleceu”. Nestas ocasiões “se ajuntam umas e outros de diverso sexo e a roda da mesa fazem uma dança ao modo de sua terra com uns tabaques e outros instrumentos fúnebres”. A desenvoltura demonstrada pelos oficiais eclesiásticos no emprego do vocábulo malungo para se referir aos vínculos de amizade e companheirismo nutridos pelos africanos de Angola nos leva a pensar que seu uso pelas comunidades escravizadas vinha de tempos bem mais recuados. Era corrente entre eles, foi ganhando densidade e ultrapassando o universo social dos cativos até que passou a ser usado correntemente em Pernambuco. Por isso já fazia parte do léxico das autoridades portuguesas no século XVIII, chegando até Lisboa. Manoel Félix da Cruz, o comissário da Inquisição que transmitiu a denúncia ao Santo Ofício, era membro de uma família enraizada em Pernambuco havia várias gerações, pelo menos pelo lado materno. Seu processo de habilitação para se tornar agente inquisitorial informa que ele havia nascido na freguesia da Vargem em 1720, filho de Manoel Marques da Cruz. 12 Portanto, havia crescido entre uma população que convivia com os “pretos de Angola” havia muitos anos. Os estudos sobre o mundo afro-atlântico há tempos vêm sublinhando a importância dos elos construídos pelos africanos nos navios negreiros como forma de resistir à experiência dolorosa da viagem transatlântica. No ensaio “O nascimento da Cultura afro-americana”, Sidney Mintz e Richard Price argumentam que os laços formados durante a traumática travessia por pessoas de grupos étnicos variados eram as primeiras fagulhas da formação da cultura afro-americana. Na visão dos autores, as embarcações eram carregadas com uma imensa diversidade de povos cujas línguas não eram mutuamente compreensíveis. Em várias regiões do Caribe, os laços tecidos na travessia depois continuavam sendo estreitados na constituição 11. Segundo Raphael Bluteau, baeta significa “pano de lã”. Vol. 2. http://dicionarios.bbm. usp.br/pt-br/dicionario/1/baeta 12. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Habilitações do Santo Ofício, maço 176, documento 1868. 1760.

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de culturas crioulas que englobavam nestas redes de solidariedade os descendentes dos africanos nascidos no cativeiro (MINTZ; PRICE, 2003). As expressões que codificavam os vínculos criados na travessia variavam de acordo com as regiões escravistas: sibbi ou sippi no Suriname; malongue em Trinidad; bâtiment no Haiti; shipmate na Virgínia, Barbados e Jamaica; nesta última, shipmate era, inclusive, sinônimo de irmão nas comunidades escravizadas e poderia chegar ao ponto de interditar relações sexuais entre seus membros (MINTZ; PRICE, 2003, 65-67; REDIKER, 2011, 310-312). Em partes do Caribe, segundo Marcus Rediker, “mais tarde, os escravos que tinham viajado juntos estendiam ainda mais esse ‘parentesco’, recomendando aos filhos que chamassem seus companheiros de bordo de ‘tio’ e ‘tia’ (REDIKER, 2011, 310-312).13 No caso específico do Brasil, Robert Slenes realizou análise detida sobre a formação de identidades sociais e culturais no âmbito da diáspora dos povos da África Centro-ocidental para as áreas rurais do sudeste brasileiro do Oitocentos. Apoiado na linguística histórica e na demografia da escravidão e do tráfico, argumentou que os africanos oriundos das áreas falantes de Kikongo, Kimbundu e Umbundu, que constituíam a esmagadora maioria das comunidades escravas da região enfocada em seu estudo, compartilhavam códigos culturais e suas línguas, por serem todas do tronco linguístico bantu, eram mutuamente compreensíveis. Por isso, malungo, que tinha ressonância nas três línguas, originalmente significava barco e foi passando também a significar companheiro de barco, contendo em si a dimensão traumática da travessia (Slenes, 1992, 48-53). Mais do que a experiência comum da travessia, tratava-se da emergência de laços e identidades possibilitados pelo fato de que eram originários da macro área centro-africana, em que, apesar de especificidades, é possível encontrar um amplo complexo cultural formado pelos povos falantes das línguas do tronco bantu. Os elementos 13. Marcus Rediker. Apesar de destacar a formação de laços de companheirismo nas embarcações, o autor demonstra que o navio negreiro era um universo bastante complexo. Cita vários exemplos de rivalidades étnicas trazidas da África Ocidental, onde havia uma grande variedade formações políticas e linguísticas, que se desdobravam em conflitos violentos nas embarcações. Nesse sentido, como estratégia de controle social, os tripulantes contavam com a ajuda de intérpretes para evitar acorrentar juntos cativos de “nações” diferentes. Sobre este aspecto, ver as páginas 279-280.

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culturais comuns desta região emergiram na travessia terrestre, Atlântica, e depois na experiência do cativeiro. Assim, de acordo com o autor “A palavra ‘encapsula’ o processo pelo qual escravos, falantes de línguas bantu diferentes e provindos de diversas etnias, começaram a descobrir-se como ‘irmãos’” (SLENES, 1992, 54). Do ponto de vista social e político, a língua e os aspectos culturais comuns que partilhavam permitiram a construção de uma comunidade que desenvolveu múltiplas estratégias de resistência escrava. Estas tornaram-se um problema político para o processo de formação do estado-nação, que tinha que enfrentar a pressão inglesa pela abolição na face internacional e a pressão das senzalas, no contexto interno. Portanto, o termo malungo expressava os elos entre os membros das comunidades formadas por pessoas que constituíram esse mundo. Para a Bahia de inícios do século XIX, Lucilene Reginaldo encontrou o termo malungo sendo aplicado para designar vínculos entre companheiros que falavam Kicongo (da nação Congo) em um inquérito de 1807 aberto em Santo Amaro para apurar uma denúncia de contrabando de pólvora. Ao que parece, portanto, malungo poderia ser utilizado para traduzir as conexões entre cativos de uma mesma nação. Conforme transcrição da autora, o escrivão registrou que o denunciante Manoel Uzeda Rodrigues da Silva ficara sabendo da ocorrência envolvendo o desvio de pólvora por meio de João “malungo do escravo do denunciante e de igual nação” (REGINALDO, 2011, 189).14 Em síntese, considerando os estudos de Slenes para o sudeste bantu, as evidências presentes no trabalho de Lucilene Reginaldo e o uso do termo malungo em Pernambuco, podemos concluir que, tendencialmente, a palavra malungo abrangia os membros das comunidades formadas por falantes das línguas do tronco bantu: Kikongo, Umbundu e, sobretudo, Kimbundu (falado nos territórios habitados pelos vários grupos Ambundos, incluindo o reino do Ndongo, onde se situa a atual Angola). Mais do que apenas companheiros de barco, a palavra estava relacionada a um conjunto mais amplo de práticas sociais, religiosas e culturais de povos que compartilhavam um fundo 14. A transcrição do trecho do processo aqui reproduzida foi realizada pela autora a partir do processo presente Arquivo Público do Estado da Bahia, Maço 408, Capitães Mores – Santo Amaro, junho/1807.

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cultural cujos aspectos comuns emergiram na diáspora, sobrepondo-se aos contrastes que eram salientes no continente africano. O uso de malungo para se referir de forma particular aos escravizados de nação Angola num contexto em que conviviam com os de nação Mina, embora estes tivessem um peso demográfico bem menor, reforça a importância da densidade dos laços entre os povos de origem bantu na diáspora. Portanto, a palavra em português que designava companheiro de barco não foi forjada na Torre de Babel linguística imaginada por Mintz e Price, visto que Kikongo, Kimbundu e Umbundu, apesar de guardarem variações importantes, são idiomas mutuamente compreensíveis. Mais do que uma questão linguística, a experiência comunitária após a travessia demonstra o sentido afrocêntrico dos ritos e cerimônias fúnebres em Pernambuco. Malungo aparece no Sumário sendo empregada para designar os membros de uma comunidade que se reunia para a realização de práticas fúnebres conhecidas como Tambo. O microcosmo social do navio negreiro foi certamente um locus importante destas experiências, mas os princípios organizadores das comunidades africanas na diáspora remontavam ao continente africano.

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MILLER, Joseph. África Central durante a era do comércio de escravizados, de 1490 a 1850. In: HEYWOOD, Linda. (org.). Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2010, [38-42]. MINTZ, Sidney; PRICE, Richard. O nascimento da cultura afro-americana: uma perspectiva antropológica. Rio de Janeiro: Pallas, 2003. MOTT, Luiz. Acotundá: raízes setecentistas do sincretismo religioso afrobrasileiro. Anais do Museu Paulista, nova série, volume XXXI, São Paulo, 1986, [124-147]. MOTT, Luiz. O calundu Angola de Luzia Pinta: Sabará, 1739. Revista do IAC, Ouro Preto, UFOP, n. 01, 1994. MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca: Uma Santa Africana no Brasil. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1993. PAES, Marilena. Arquivo: teoria e prática. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2004. p. 26. PARES, Nicolau. A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas: Editora Unicamp, 2006. QUINTÃO, Antonia Aparecida. Lá vem o meu parente: as irmandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro e em Pernambuco (século XVIII). São Paulo: Anablume, FAPESP, 2002. REDIKER, Marcus. O navio negreiro: uma história humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp. 310-312. REGINALDO, Lucilene. Diversas nações de que se compõe a escravatura vinda da Costa da África: Identidades africanas, História da África e a Historiografia da Escravidão no Brasil. In: RÉ, Henrique Antonio; SAES, Laurent Azevedo Marques de; VELLOSO, Gustavo (Org.). História e Historiografia do Trabalho Escravo no Brasil: Novas Perspectivas. 1ed. São Paulo: Alameda; Brasiliana, 2020, [157-212]. REGINALDO, Lucilene. Os rosários dos angolas – irmandades de africanos e crioulos na Bahia setecentista. São Paulo: Alameda, 2011. REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. REIS, João. A Morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

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REIS, João. Magia Jeje na Bahia: a invasão do calundu do Pasto de Cachoeira, 1785.Revista Brasileira de História, v. 8, n. 16, [67-72], 1988. RODRIGUES, Aldair. Igreja e Inquisição no Brasil: agentes, carreiras e mecanismos de promoção social (Século XVIII). São Paulo: Alameda, FAPESP, 2014. RODRIGUES, Aldair. Malungos e parentes: “sumário contra os pretos de angola do continente de Pernambuco” (1779). Sankofa (São Paulo), v. 12, n. 22, 2019, [63-92]. SANTOS, Vanicléia Silva. As bolsas de mandinga no espaço Atlântico: Século XVIII. (Tese de doutorado, FFLCH-USP, 2008). SILVA JR. Carlos da. Interações atlânticas entre Salvador e Porto Novo (Costa da Mina) no século XVIII. Revista de História (USP), São Paulo, n. 176, [1-41] 2017. SLENES, Robert. Malungu, ngoma vem!: Africa coberta e descoberta do Brasi., Revista de História da USP, 1992 (12):48, p. 53. SOUZA, Laura de Mello e. Inferno Atlântico: Demonologia e Colonização (Séculos XVI-XVIII). São Paulo: Companhia das Letras, 1993. SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. SOUZA, Marina de Mello e. Além do visível: poder, catolicismo e no Congo e em Angola (séculos XVI e XVII). São Paulo: EDUSP, 2018.  SWEET, James. Domingos Alvares: African healing, and the intellectual history of the Atlantic world, Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2011. SWEET, James. Recriar Africa: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português (1441-1770). Lisboa: Edições 70, 2007. THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico 1400-1800.Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, [326-327]. THORNTON, John. The Development of an African Catholic Church in the Kingdom of Kongo, 1491-1750. The Journal of African History, 25 (2), 1984, [147-167].

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Sobre os autores

Aldair Rodrigues Possui graduação em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), mestrado e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). É professor efetivo do Departamento de História da UNICAMP, dedicando-se atualmente ao estudo da diáspora africana no Brasil colonial, é diretor do Arquivo Edgard Leuenroth. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 2. Elione da Silva Guimarães Doutora em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e mestre pela mesma instituição, fez graduação na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Elione atualmente é pesquisadora do Arquivo Histórico de Juiz de Fora (AHJF). Desde 1985 trabalha com organização de fontes documentais e, nos últimos anos, com digitalização de imagens documentais. Fabrício Prado Doutor em História da América Latina pela Emory University (Atlanta, EUA), licenciado e Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Fabrício é professor associado de história no College of William and Mary, onde ministra aulas sobre a América Latina Colonial e o Mundo Atlântico. Seus interesses de pesquisa se concentram em dinâmicas transfronteiriças, redes sociais, comércio, comércio de contrabando, corrupção, história social e econômica do Cone Sul da América Latina. Flavio dos Santos Gomes Doutor e mestre em história social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Fez graduação em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 259

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Professor nos programas de pós-graduação em História Comparada (PPGHC), História Social (PPGHIS) e Ensino de História (PPGEH), no Instituto de História da UFRJ. É professor colaborador do programa de pós-graduação em História da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Desenvolve pesquisas em história comparada, cultura material, demografia, escravidão, cartografia e pós-emancipação nas Américas, especialmente Venezuela, Colômbia, Guiana Francesa e Cuba. Também atua no Laboratório de Estudos de História Atlântica das sociedades coloniais e pós-coloniais (LEHA) do Instituto de História da UFRJ. Isadora Moura Mota Doutora em História pela Brown University (EUA) e mestre em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Fez graduação em História na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É professora do departamento de história de Princeton University (EUA). Historiadora da escravidão no Brasil e no mundo atlântico. Seus estudos se concentram na história brasileira moderna, escravidão comparada, abolicionismo, alfabetização e a diáspora africana para a América Latina. Jonis Freire Doutor em história pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), fez mestrado em história na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Franca (UNESP). Graduou-se em História na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Jonis é professor na Universidade Federal Fluminense (UFF), coordenador do Grupo de Pesquisa: História Economica, Quantitativa e Social (HEQUS), e do Centro de Estudos do Oitocentos (CEO). Tem experiência na área de História do Brasil nos períodos colonial e imperial. Suas pesquisas se concentram nas sociedades escravistas (XVIII e XIX) e demografia e economia da escravidão. Karoline Carula Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), possui mestrado em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), sendo graduada por esta mesma instituição. Karoline é professora da Universidade Federal Fluminense. Líder do Centro de Estudos do Oitocentos (CEO-UFF) e membro do Laboratório 260

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de Estudos de Gênero e Subjetividades (LEGES). Tem experiência na área de História do Brasil Imperial, atuando nos seguintes temas: Gênero; Raça; Escravidão; Intelectuais; Ciência; Imprensa. É Jovem Cientista de Nosso Estado/Faperj e bolsista de Produtividade em Pesquisa Nível 2 do CNPq. Layla Silva Ferreira Mestranda em História das Ciências e da Saúde (COC-FIOCRUZ). Fez graduação em história na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora das relações sociais escravistas no Brasil oitocentista. Atualmente realiza pesquisa sobre fugas de escravizados. Ligada ao LEHA – Laboratório de Estudos em História Atlântica (UFRJ). Maísa Faleiros da Cunha Graduada em Ciências Sociais, Mestre e Doutora em demografia pela UNICAMP. É pesquisadora do do Núcleo de Estudos de População «Elza Berquó” (NEPO) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Maísa tem experiência na área de Ciências Sociais, Demografia e História. Atua principalmente nos seguintes temas: demografia histórica, censos de população, registros paroquiais, família escrava e regimes demográficos. É coordenadora Associada do Nepo e coordenadora do GT População e História da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP). Marcelo Mac Cord Graduado em história pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutor e mestre em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor de História da Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisa sobre história social e história do trabalho e dos trabalhadores. Autor e organizador de numerosos livros que têm a experiência dos trabalhadores como tema central. María Verónica Secreto Doutora em História Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestre em História social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Fez graduação em História na Universidad Nacional de Mar Del Plata – Argentina. É professora titular da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisa sobre história da América, nos recortes de 261

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história agrária e história da escravidão. É Cientista de Nosso Estado/Faperj e bolsista de Produtividade em Pesquisa Nível 2 do CNPq. Tânia Pimenta Doutora e mestre em história social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Graduada em história pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz e professora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (COC/Fiocruz). Pesquisa e ensina sobre história da saúde pública no Brasil, escravidão e saúde, história das artes de curar, história dos hospitais e da assistência à saúde. Atualmente pesquisa sobre práticas de cura, epidemias e assistência à saúde. Bolsista de Produtividade em Pesquisa Nível 2 do CNPq.

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Coordenação editorial: Betânia G. Figueiredo Diagramação e capa: Amanda Paim do Carmo Revisão: Cláudia Rajão Formato: 15,5 x 22,5 cm | 263 p. Tipologias: Minion Pro e Myriad Pro. Papel da capa: Cartão 250g/m2 Papel do miolo: Polén Soft 80g/m2

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O destinatário do livro pode ser qualquer leitor curioso, mas principalmente os estudantes e jovens investigadores que se interrogam sobre as formas da pesquisa em história. Os organizadores partem de uma evidência, a de que o “manual” de metodologia da história é um gênero pouco cultivado, se comparado com os das ciências sociais. Nesse sentido, o livro vem preencher um vazio. A obra em mãos não é um manual propriamente dito; ele tem um recorte temático. Apresenta fontes e tratamentos metodológicos em torno da escravidão e liberdade