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Portuguese Pages 449 Year 2005
A
fragmentos de uma
frodite é uma das mais vivas divindades
– DEUSA–
da Grécia antiga em nosso imaginário. A ela, contudo, foi fixado o rótulo fácil de “deusa do amor
e da beleza”. Neste livro, Giuliana Ragusa, centrando-se na lírica arcaica de Safo, a célebre poeta da ilha de Lesbos
(séculos vii-vi a.C.), redimensiona a imagem de Afrodite, complexa e multifacetada, percorrendo, além da literatura, a história, a religião, a arqueologia e a iconografia gregas.
Giuliana Ragusa
A Representação de Afrodite na Lírica de Safo
Desse trajeto resultam cuidadosas análises, interpretações
pecializado ou não, aqui encontrará um denso e estimulante estudo, apresentado em linguagem clara e agradável, da fragmentária, porém rica, representação sáfica de Afrodite.
Giuliana Ragusa é professora de língua e literatura grega na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, onde se graduou em letras e obteve o título de mestre em letras clássicas. É doutoranda do Programa de PósGraduação em Letras Clássicas na mesma faculdade, e o projeto de pesquisa de sua tese atualmente em andamento, sobre a representação de Afrodite nos poetas líricos arcaicos, dá continuidade ao estudo apresentado neste livro.
Deusa Capa 1
fragmentos de uma deusa
mentos poéticos que chegaram até nós. Assim, o leitor, es-
A Representação de Afrodite na Lírica de Safo
e traduções dos poemas selecionados, ou melhor, dos frag-
G
iuliana ragusa traça, à vista do leitor, a figura de Afrodite a partir de 14 fragmentos da poesia lírica arcaica de Safo, em que a deusa é privilegiada. Com rigor e sensibilidade, ela apresenta os textos, faz um cuidadoso percurso pela geografia míticoreligiosa dessas peças literárias, comenta as interpretações antigas e contemporâneas e expõe sua própria leitura e traduções. O leitor estará muito bem atendido, seja ele um especialista ou um curioso informado, pois, além do tema, usufruirá de uma redação agradável e arguta. Trata-se de venturoso enlace entre um material fascinante e um estudo de grande competência.
Giuliana Ragusa
Mary de Camargo Neves Lafer
8/4/05 5:42:05 PM
FRAGMENTOS
DE UMA DEUSA
UNIVERSIDADE ESTADUAL
DE
CAMPINAS
Reitor JOSÉ TADEU JORGE Coordenador Geral da Universidade FERNANDO FERREIRA COSTA
Conselho Editorial Presidente PAULO FRANCHETTI ALCIR PÉCORA – ANTÔNIO CARLOS BANNWART – FABIO MAGALHÃES GERALDO DI GIOVANNI – JOSÉ A. R. GONTIJO – LUIZ DAVIDOVICH LUIZ MARQUES – RICARDO ANIDO
Giuliana Ragusa
FRAGMENTOS A
DE UMA DEUSA
REPRESENTAÇÃO DE
AFRODITE
NA LÍRICA DE
SAFO
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA B I B L I OT E C A C E N T R A L D A U N I C A M P
R128f
Ragusa, Giuliana. Fragmentos de uma deusa: a representação de Afrodite na lírica de Safo / Giuliana Ragusa. – Campinas, SP: Editora da U NICAMP , 2005. 1. Afrodite. 2. Safo. 3. Poesia lírica grega. 4. Poesia grega. I. Título.
e-ISBN 85-268-1325-0
CDD 884.01 881.01
Índices para catálogo sistemático: 1. Poesia lírica grega 2. Poesia grega
884.01 881.01
Copyright © by Giuliana Ragusa Copyright © 2005 by Editora da UNICAMP Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.
Para João, que inventou o amor para me fazer feliz.
AGRADECIMENTOS Este livro consiste na dissertação de mestrado, com alterações, que defendi em agosto de 2003, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, onde fiz minha graduação e cujo corpo docente tenho hoje a alegria de integrar. Neste momento, quero registrar alguns agradecimentos. À minha orientadora e amiga Paula da Cunha Corrêa. Foi estimulada por seu curso de graduação sobre lírica grega que segui para a Grécia; foi por ter contado com sua generosidade e sua confiança que pude lá aportar. Paula ensinou-me a língua grega e, generosamente, cuidou de minha formação. Sob sua orientação segura, aberta e atenciosa concluí este estudo, com o qual se encerra o primeiro ciclo de trabalhos iniciado em 1999 e, ao mesmo tempo, abre-se um novo. Aos professores Angélica Chiappetta, Filomena Hirata e Jaa Torrano, cujos cursos de pós-graduação ampliaram não apenas a minha formação geral, mas os horizontes de minhas pesquisas. Às professoras Patricia Rosenmeyer e Silvia Montiglio, do Departamento de Estudos Clássicos da Universidade de Wisconsin (Madison, EUA). Ambas me acolheram de maneira atenciosa e generosa, no primeiro semestre de 2000. Ao amigo querido Severino Albuquerque, professor do Departamento de Espanhol e Português da mesma universidade americana, por seu apoio e amizade em Madison e desde então. Às professoras Adriane da Silva Duarte (FFLCH–USP) e Haiganuch Sarian (MAE–USP), que integraram as bancas do exame de qualificação e de defesa do mestrado. Suas leituras atentas contribuíram para este estudo e foram, em ambas as ocasiões, muito estimulantes.
Agradeço duplamente à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Primeiro, pela bolsa de mestrado entre 2001 e 2003 e segundo, pelo auxílio à publicação, amparado em estimulante parecer ad hoc. De 1995 a 2003, vivi um intenso período de amadurecimento intelectual. Da graduação à pós-graduação, trilhei um longo percurso ainda fresco em minha memória, que agregou as mais diversas emoções e acabou por envolver os que me rodearam — e me rodeiam — de uma forma ou de outra. A todos — professores, familiares, colegas e amigos — quero dizer muito obrigada pelo apoio — em especial a Mariana, amiga querida. Por fim, agradeço a meu marido, amigo e companheiro, João Roberto Faria, cuja importância foi decisiva para que eu chegasse até aqui. Sinto-me especialmente afortunada por ter ao meu lado alguém que conhece bem o caminho que começo a percorrer e que já experimentou as alegrias, as frustrações e as ansiedades inerentes à carreira acadêmica. João apoiou-me de todas as formas possíveis, inclusive como leitor incansável, tarefa que lhe roubou uma fatia expressiva de seu tempo tão escasso. A ele meu amor, admiração, amizade e profunda gratidão por tudo, sempre.
SUMÁRIO LISTA DE ABREVIAÇÕES.........................................................................................................11 PREFÁCIO...................................................................................................................................13 INTRODUÇÃO...............................................................................................................................17 Parte I PRESENÇA DE SAFO NO CENÁRIO HISTÓRICO- CULTURAL DA G RÉCIA ARCAICA 1 A LÍRICA GREGA ARCAICA E SAFO...................................................................................23 2 A MULHER E A SEXUALIDADE NA GRÉCIA ARCAICA...................................................55 3 AS ILHAS DE LESBOS E CHIPRE E OS PERCURSOS HISTÓRICO-CULTURAIS ENTRE A GRÉCIA ARCAICA E O ORIENTE.........................79 Parte II PRESENÇA DE AFRODITE NA
LÍRICA DE
SAFO
NOTA PRÉVIA.......................................................................................................................101 4 CHIPRE, CITERA E CRETA: A GEOGRAFIA MÍTICO-RELIGIOSA E POÉTICA DE AFRODITE...........................................................103 5 O NOME “AFRODITE” E OS EPÍTETOS DA DEUSA EM SAFO..............................145
GIULIANA RAGUSA
6 CENÁRIOS DE AFRODITE: A NATUREZA, O SAGRADO E O EROTISMO................193 7 O FR. 1 V: UMA 8 AFRODITE EM
PRECE DE
“SAFO”
PARA
AFRODITE....................................261
DEZ FRAGMENTOS: APELOS E MENÇÕES ................................... 339
Parte III ENCERRAMENTO IMAGEM EM FRAGMENTOS...............................................................................................387 BIBLIOGRAFIA............................................................................................................................395 Anexo 1 QUADRO DA
TRANSLITERAÇÃO
DO GREGO PARA O PORTUGUÊS ................................................................ 423
Anexo 2 TEXTO GREGO E TRADUÇÃO DO CORPUS DE 14 FRAGMENTOS DE SAFO................................................... 424 Anexo 3 TEXTO GREGO E TRADUÇÃO DE OUTROS FRAGMENTOS DE SAFO INTEGRALMENTE CITADOS NO LIVRO ................................... 437
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LISTA DE ABREVIAÇÕES
LISTA
DE ABREVIAÇÕES
Obras Chantraine — C HANTRAINE , P. Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Paris: Klincksieck, 1984-1990. D — D AVIES , M. (ed.). Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I. Oxford: Clarendon Press, 1991. LSJ — LIDDEL, H. G.; SCOTT, R. e JONES, H. S. Greek-English lexicon with a revised supplement, 9a ed. Oxford: Clarendon Press, 1996. PLF — L OBEL, E. e P AGE, D. Poetarum Lesbiorum fragmenta. Oxford: Clarendon Press, 1997 [1a ed.: 1955]. PMG — PAGE, D. L. (ed.). Poetae melici Greci. Oxford: Clarendon Press, 1962. Voigt ou V — VOIGT, E.-M. (ed.). Sappho et Alcaeus: fragmenta. Amsterdã: Athenaeu, Polak & Van Gennep, 1971. W — W EST , M. L. (ed.). Iambi et elegi Graeci, 2 a ed. Oxford: Oxford University Press, 1989 (vol. 1), 1992 (vol. 2) [1as eds.: 1971-1972].
Periódicos AJA — American Journal of Archaeology AJPh — American Journal of Philology ATTI — Atti dell’Istituto Veneto di Scienze, Lettere ed Arti Venezia AW — Ancient World
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GIULIANA RAGUSA
BCH — Bulletin de Correspondance Hellénique CA — Classical Antiquity CJ — Classical Journal CPh — Classical Philology CQ — Classical Quarterly CR — Classical Review EL — Études de Lettres G&R — Greece and Rome GRBS — Greek, Roman & Byzantine Studies HSCP — Harvard Studies in Classical Philology HThR — Harvard Theological Review JHS — Journal of Hellenic Studies JSS — Journal of Semitic Studies MD — Materiali e Discussioni per l’Analisi dei Testi Classici MH — Museum Helveticum MPhL — Museum Philologum Londinense NGR — National Geographic Research PhQ — Philological Quarterly QS — Quaderni di Storia QUCC — Quaderni Urbinati di Cultura Classica REG — Revue des Études Grecques RFIC — Rivista di Filologia e di Instruzione Classica RhMus — Rheinisches Museum RHR — Revue de l’Histoire des Religions SCO — Studi Classici e Orientali SIFC — Studi Italiani di Filologia Classica SMEA — Studi Micenei ed Egeo-Anatolici T APA — Transactions and Proceedings of the American Philological Association ZPE — Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik
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PREFÁCIO
PREFÁCIO Je suis belle, ô mortels, comme un rêve de pierre. B AUDELAIRE
Em abril de 1820, ao revirar as terras que ficavam próximas de um teatro antigo à procura de pedras para fazer um muro, Yorgos, um camponês grego da ilha de Melos, descobriu uma magnífica escultura do século II a.C. Comprada, roubada ou adquirida dos turcos pelos franceses por meio da diplomacia, conforme alegam os relatos contraditórios, logo após a sua exposição no acervo do Museu do Louvre, ela tornou-se um ícone da arte ocidental, conhecida hoje como a Vênus de Milo (que é o nome da ilha em grego moderno). A poesia lírica grega do período arcaico, como grande parte dos sítios arqueológicos na Grécia, é um terreno árido, pouco atraente, e quase nada revela — com a exceção dos raros tesouros, como por milagre, preservados em bom estado — aos olhos distraídos, desinformados ou sem treino. Assim, para formarmos uma parca idéia do que pode ter sido a obra de Safo, a célebre poeta de Lesbos (c. 630 a.C.), é necessário perscrutar detalhada e judiciosamente, como se faz neste livro, além dos fragmentos poéticos que possuímos, todos os possíveis indícios e testemunhos que a fortuna nos legou, lançando mão não apenas das fontes literárias e dos recursos da filologia clássica e teoria literária, mas valendo-nos também de estudos de diversas áreas, tais como os da arqueologia, história e religião/mitologia. Este livro, portanto, é notável por uma série de razões. Primeiro porque Giuliana Ragusa, seduzida pela chamada “Ode a Afrodite”, de 13
PAULA DA CUNHA CORRÊA
Safo (Fr. 1 V), chegou à pós-graduação em letras clássicas vinda de outra área de estudos literários e, com enorme dedicação, entusiasmo e uma incansável busca da perfeição, em pouco tempo e de forma praticamente autodidata, armou-se de todos os instrumentos necessários para empreender a laboriosa tarefa de resgatar, dentre os fragmentos supérstites de Safo, a representação da deusa. Na primeira parte do livro, de forma clara e simples, mas sem furtar o leitor de todas as dificuldades envolvidas, a autora desenvolve uma discussão sobre questões metodológicas e problemas da definição do gênero; examina as diversas abordagens e perspectivas de leitura dos poemas, apresentando um quadro do contexto histórico e cultural dos versos de Safo, compostos num período de importantes relações entre a Grécia e o Oriente. Depois, na segunda parte, com mão segura e criteriosa, Giuliana recolhe, da análise dos 14 fragmentos de Safo em que Afrodite figura, quatro aspectos: a sua geografia poética e mítico-religiosa, o nome e os epítetos da deusa, o cenário e, por fim, os contextos em que é invocada ou mencionada. Essas facetas de Afrodite não são contempladas abstratamente, mas, sempre iluminadas contra o pano de fundo da tradição poética em que Safo se insere e com a qual dialoga, elas são comparadas com representações da deusa em outros autores e gêneros, particularmente com as da épica homérica, dos poemas hesiódicos e dos três Hinos homéricos a ela dedicados. Ao se deparar com estilhaços de mármore, papiros carcomidos e manuscritos corruptos, é difícil resistir à tentação de pretender recompor o todo original. Assim, desde a sua descoberta, a Afrodite de Melos suscitou inúmeras hipóteses de reparos e interpretações, principalmente dos braços perdidos, para os quais foram sugeridas diversas poses. Coube a Félix Ravaisson, o arqueólogo responsável pela restauração da estátua em 1871, o trabalho de corrigir as intervenções sofridas, removendo as partes adicionadas à estátua e, contra o costume de sua época, exibi-la quase da forma como foi encontrada na ilha de Melos. Os únicos acréscimos que Ravaisson admitiu, e que nela ainda hoje se conservam, são a extremidade do nariz, o lábio inferior, o dedão do pé direito e detalhes do drapejado. 14
PREFÁCIO
Infelizmente, a Afrodite de Safo não teve sorte semelhante, porque a obra da poeta de Lesbos nos chegou em um estado muito mais fragmentário. Dos nove livros compilados pelos alexandrinos, sabemos que apenas o primeiro continha 1.320 versos (o equivalente a 330 estrofes sáficas) dispostos em provavelmente 60 a 70 poemas. Embora os outros livros possam ter sido menores (o oitavo, por exemplo, contava com aproximadamente 130 versos), de tudo restou-nos um único poema na íntegra, a célebre Ode a Afrodite (Fr. 1 V), preservada por Dionísio de Halicarnasso em seu tratado Sobre o arranjo das palavras, e uma dúzia de textos mais substanciais dentre os 200 e poucos fragmentos menores. Portanto, ao extrair de tais destroços uma figuração da deusa, só pode restar-nos, como diz a própria autora, “uma imagem fragmentária da Afrodite ali representada”. Além disso, sobre a Afrodite de Safo acumularam-se, com o passar dos séculos, espessas camadas de leituras. Nesse sentido, notável também é o empenho de Giuliana em atentar o leitor, ao longo de seu estudo, para diversas interpretações, antigas e modernas, que revestem os versos de elementos alheios à sua poética. E se a autora resiste ao impulso de restaurar-nos uma figura completa da Afrodite de Safo, não é tanto pela afeição que os amantes da poesia grega arcaica têm ou acabam adquirindo por fragmentos e imagens lacunares ou trincadas, cujas cicatrizes parecem conferir-lhes vida e realidade, mas, sobretudo, por um rigor científico e o desejo de não cercear a imaginação dos leitores, após prover-lhes com toda a informação que lhes possa ser útil. Por fim, não se pode deixar de assinalar a relevância da publicação deste trabalho, que, embora defendido como dissertação de mestrado, em virtude da rara maturidade e diligência da pesquisadora, é mais propriamente uma tese de doutoramento, nos velhos e bons padrões de excelência acadêmica. Este livro oferece ao leitor brasileiro, além de uma sólida base para a leitura dos poemas de Safo, visões inovadoras e excelentes traduções de uma seleção de fragmentos que, mesmo em ruínas, compõem um dos mais belos monumentos da poesia ocidental. Paula da Cunha Corrêa 15
INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO Intitulado Fragmentos de uma deusa: a representação de Afrodite na lírica de Safo, este livro consiste no estudo da personagem divina como a concebe a poeta de Lesbos. Para tanto, concentra-se em um corpus definido a partir de um critério: a presença textual de Afrodite nos poemas. Assim, com base na edição de Eva-Maria Voigt, Sappho et Alcaeus: fragmenta (1971), esse corpus se compõe de 14 fragmentos líricos, a saber: 1 V, 2 V, 5 V, 15 V, 22 V, 33 V, 73a V, 86 V, 96 V, 102 V, 112 V, 133 V, 134 V e 140 V. A designação “fragmentos” revela já um dos muitos desafios que cercam este trabalho: o sério comprometimento da integridade material dos textos de Safo. Esse é um problema inerente à lírica grega arcaica, que, devido a causas e circunstâncias variadas, sofreu danos, mutilações, reduções e corrupções ao longo de sua conturbada transmissão. Diante disso, o título do trabalho explica-se claramente: se o objeto no qual a personagem divina Afrodite está representada se encontra em fragmentos, a compreensão dessa representação será, inevitavelmente, fragmentária. A idéia do fragmentário, do estilhaçado, do lacunoso perpassa, portanto, todo este estudo, pois não se limita apenas à poesia sáfica, mas atinge igualmente outras áreas que a cercam, gerando novos desafios relativos: 1) às dificuldades de abordagem e de definição da lírica grega antiga; 2) ao precário conhecimento que se tem da Grécia arcaica e, notadamente, da Lesbos de então; 3) à pouca informação sobre a situação da mulher em tal contexto sócio-histórico e cultural; 4) aos dados desencontrados e historicamente não comprovados da “biografia” de Safo; 17
GIULIANA RAGUSA
5) aos estereótipos e às lendas em torno da poeta e de suas canções; 6) às grossas e viciadas camadas de leitura que se sobrepõem aos poemas tornados, assim, quase invisíveis; 7) às dificuldades de estabelecer uma visão orgânica da literatura e da tradição literária gregas; 8) às obscuridades quanto à circulação da lírica que chamamos “literária”, mas que foi produzida em um mundo arcaico eminentemente oral; 9) à enorme bibliografia crítica produzida no decorrer de séculos de estudos clássicos. Eis uma síntese da realidade enfrentada por aquele que se dedica à lírica grega arcaica. Para uns, decerto, o quadro é desolador. Afinal, como é possível trabalhar com cacos de poemas? Para outros, dentre os quais me incluo, ele é, sim, desolador e potencialmente frustrante, mas, ao mesmo tempo, é a promessa de uma empreitada desafiadora com um sabor de aventura, pois mergulhar em tal quadro é percorrer um trajeto cheio de riscos, desvios, descaminhos, abismos e, eventualmente, pequenas conquistas e descobertas recompensadoras. Além de todos os desafios que a lírica grega arcaica oferece a quem dela se aproxima, no contexto acadêmico brasileiro há mais um a ressaltar: a escassa produção crítica a seu respeito, ao contrário do que acontece no exterior — sobretudo na Europa e nos Estados Unidos. No caso específico de Safo, há algumas traduções, mas apenas uma obra de estudo publicada, que será oportunamente referida. Assim, outro desafio se anuncia: passar pela sempre crescente fortuna crítica de Safo em língua estrangeira — para não falar das edições e traduções de seus fragmentos — e buscar travar com ela um diálogo equilibrado de modo a construir uma leitura independente, mas não autocentrada. Dito isso, cabe indagar: por que estudar a representação de Afrodite na lírica de Safo? Há pelo menos quatro razões: a primeira, porque diante da condição precária dos textos, o estudo temático parece ser o caminho mais certo para uma visão minimamente integralizadora tanto da poesia sáfica e da deusa ali representada quanto da tradição literária à qual a poeta pertence; a segunda, porque Afrodite predomina no que restou da poesia de Safo e, muito embora nela não seja a única deidade referida, parece ter sido privilegiada; a terceira, porque as características da representação da deusa concebida pela poeta suscitam uma série de 18
INTRODUÇÃO
relações interessantes não apenas com outras imagens poéticas da divindade, mas também com elementos dos seus cultos e dos seus mitos, bem como da percepção que dela tinham os antigos; e a quarta, porque o estudo do binômio Safo–Afrodite abre um panorama estimulante que não pode ser ignorado e que pode ser sintetizado em outro binômio, Grécia arcaica–Oriente. Já está sinalizado, portanto, o tipo de abordagem aqui adotada: uma abordagem que se concentra nos fragmentos de Afrodite dispersos na lírica sáfica, mas que procura estar atenta a outras representações poéticas, míticas e cultuais da deusa, bem como a elementos extraliterários pertinentes à análise interpretativa dos textos do corpus. Dessa maneira, o que se pretende é articular uma leitura tão vertical e ampla da Afrodite de Safo quanto possível. Como se organiza este trabalho? Na intenção de estruturá-lo segundo a metodologia e as posições que o norteiam, ele foi dividido da seguinte maneira: a parte I, intitulada “Presença de Safo no cenário histórico-cultural da Grécia arcaica”, propõe-se a discutir os desafios anteriormente comentados, a fim de, ao expô-los, traçar um panorama crítico minimamente compreensível do cenário histórico-cultural que cerca e permeia a poesia de Safo. Feito isso, a passagem para a análise da presença de Afrodite nos fragmentos sáficos será sustentada, espero, por um entendimento necessário do objeto deste estudo: a poeta de Lesbos, sua lírica e a personagem divina Afrodite nela representada. Essa etapa contém três capítulos. A parte II, “Presença de Afrodite na lírica de Safo”, concentra-se no estudo da representação de Afrodite em Safo. Na intenção de compreender e realçar a especificidade de tal representação, os cinco capítulos dessa etapa perseguem, a partir de uma abordagem interdisciplinar que privilegia a análise interpretativa dos fragmentos, quatro aspectos da presença da deusa nos textos: primeiro, sua geografia insular míticoreligiosa e poética; segundo, o nome e os epítetos atribuídos a Afrodite; terceiro, os cenários nos quais ela se insere; e quarto, se a deusa recebe um apelo ou se é mencionada pela voz dos poemas. Finalizadas essas partes, cujos capítulos se pretendem conclusivos em si mesmos, passo ao encerramento, chamado “Imagem em fragmen19
GIULIANA RAGUSA
tos”. Aqui, volto à idéia que percorre todo o estudo, a do fragmento, para refletir criticamente sobre o percurso trilhado e menciono um grupo de fragmentos não incluídos no corpus por não trazerem, textualmente, uma clara indicação da presença de Afrodite, que, todavia, não seria descabida. Seguem-se a Bibliografia e três anexos. O Anexo 1 traz um quadro da transliteração do grego para o português; o Anexo 2, o texto grego e a tradução dos fragmentos do corpus; e o Anexo 3, o texto grego e a tradução de outros fragmentos de Safo integralmente citados ao longo dos capítulos. Esclareço que todas as traduções para a língua portuguesa incorporadas ao trabalho, salvo quando indicado, foram feitas por mim.
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PARTE I
P RESENÇA DE S AFO NO CENÁRIO HISTÓRICO - CULTURAL DA G RÉCIA ARCAICA
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A LÍRICA GREGA ARCAICA E SAFO
1 A
LÍRICA GREGA ARCAICA E
SAFO
A lírica grega arcaica: problemas de definição e de abordagem Como definir a palavra lírica enquanto designação hoje dada a um gênero da poesia grega diverso do épico e do dramático, que abarca vários subgêneros e conta com representantes tão diferentes entre si? O que distingue um poeta e um poema líricos? Como abordar hoje a composição de um lírico grego arcaico? Essas são algumas indagações que a lírica grega da Grécia arcaica (c. 800-480 a.C.) suscita, e a lista poderia ainda estender-se por esta e outras páginas. Porém, duas questões sobressaem entre as mais debatidas nos estudos clássicos: a primeira diz respeito às dificuldades de definição da lírica; a segunda, ao uso nela abundante da primeira pessoa do singular, diferentemente do que ocorre na épica. O que define a lírica grega arcaica? Será o tipo de instrumento musical ao qual se destinava, a sua ocasião de performance, o seu conteúdo ou, ainda, a sua variedade métrica? E como entender a recorrência da primeira pessoa do singular nessa poesia? Não há respostas fáceis para essas perguntas que se originam, entre outras coisas, do fato de a lírica arcaica pertencer a uma cultura eminentemente oral; de sua edição ter sido tardia, num contexto em que a escrita já se sobrepunha à oralidade; e do próprio modo pelo qual os poetas líricos foram editados pelos alexandrinos — segundo a tradição, por Aristófanes de Bizâncio (c. 255-180 a.C.) — a partir do século III
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GIULIANA RAGUSA
a.C.,1 modo este que obedeceu a critérios variados e arbitrários: crê-se que os poemas de Safo foram compilados segundo um critério métrico,2 enquanto para as composições dos poetas Píndaro (c. 522/518-438 a.C.) e Baquílides (c. 520/510-450 a.C.) foi adotado o problemático critério de edição por gêneros, cujas definições costumam ser discutíveis.3 Os questionamentos e as indagações acerca da lírica grega arcaica se relacionam, em boa medida, ao próprio termo “lírico” (lurikÒw, lurikós), que “faz sua primeira aparição importante em Alexandria”.4 Eis aqui um primeiro problema da denominação lírica grega antiga, nas palavras de Albin Lesky, em sua História da literatura grega: “[...] o conceito antigo de lírica compreendia dois tipos importantes: a lírica coral e o canto individual, sem que esta separação, tão essencial para nós, se tivesse manifestado na antiga teoria da arte. Mas, ao mesmo tempo, reparamos que não estavam incluídos dois tipos que hoje em dia consideramos líricos: a elegia e o jambo” (1995, p. 134). Note-se que o chamado cânone alexandrino dos “nove poetas líricos” (™nn°a luriko¤, ennéa lurikoí) traz apenas poetas monódicos ou corais.5 Uma vez que na Antigüidade as composições dos poetas líricos — não raro, o único testemunho de sua existência — eram lidas como biográficas, o termo ganhou, desde muito cedo, a conotação de poesia autobiográfica, pessoal — um rótulo conveniente, em especial no caso de Safo, a única mulher da Grécia arcaica da qual sobreviveu um extenso e significativo corpus de canções e cuja “biografia” foi bastante romanceada ao longo dos tempos.6 Até hoje, a designação “poesia lírica” revela-se impregnada de tal conotação, o que se nota em textos de teoria e crítica literárias e mesmo em dicionários especializados. Cito dois exemplos. O primeiro é o livro de Anatol Rosenfeld O teatro épico, no qual o crítico procura distinguir duas acepções do termo a fim de esclarecer a definição do gênero lírico. Uma acepção seria a “substantiva”, ou seja, lírica, designando um gênero literário com características específicas: Pertencerá à Lírica todo poema de extensão menor, na medida em que nele não se cristalizarem personagens nítidos e em que, ao contrário, uma
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A LÍRICA GREGA ARCAICA E SAFO
voz central — quase sempre um “Eu” — nele exprimir seu próprio estado de alma [...]. Notamos que se trata de um poema lírico (Lírica) quando uma voz central sente um estado de alma e o traduz por meio de um discurso mais ou menos rítmico (1965, pp. 5-6).
A outra acepção seria a “adjetiva”, ou seja, o termo nomeando “traços estilísticos” próprios ao gênero, tais como a “brevidade”, a “intensidade expressiva”, a “concentração”, o “caráter imediato” e a “musicalidade”. Por isso, essa acepção seria mais elástica, estendendose a contextos extraliterários, pensa Rosenfeld (pp. 7-12). Veja-se que em ambas as acepções o crítico frisa o subjetivismo, o individualismo e o sentimentalismo da poesia lírica e de tudo o que venha a ser lírico. Além disso, sua tentativa de definir o gênero mostra quão árdua é essa tarefa; pode-se questionar, por exemplo, o critério do tamanho: afinal, de quantos versos se compõe um “poema de extensão menor”? O segundo exemplo é o verbete lírica do dicionário especializado de Chris Baldick, The concise Oxford dictionary of literary terms: lírica, no sentido moderno, qualquer poema razoavelmente curto expressando um tom pessoal, sentimento ou meditação de um único cantor (que pode ser, às vezes, uma personagem inventada, não o poeta). Na Grécia antiga, uma lírica era uma canção para o acompanhamento da lira, e podia ser uma lírica coral cantada por um grupo [...]. O sentido moderno, corrente desde a Renascença, com freqüência sugere uma qualidade de canção nos poemas aos quais se refere. Poesia lírica é a categoria de verso mais extensiva, especialmente depois do declínio — desde o século XIX no Ocidente — dos outros tipos principais: narrativa e verso dramático. A lírica pode ser composta em quase todos os metros e sobre quase todos os temas, apesar de as emoções mais usualmente apresentadas serem a do amor e a do sofrimento (1991, pp. 125-26).
Esse verbete se vale de critérios imprecisos e questionáveis de definição da poesia lírica, tais como a extensão do poema, seu “tom pessoal”, a expressão subjetiva da alma e dos sentimentos como seu conteúdo. Prevalecem aqui, como em Rosenfeld, conceitos originados na 25
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Antigüidade, mas reavivados e potencializados pelo Romantismo alemão. Ademais, pelo percurso histórico que traça, o verbete aponta para o processo de acumulação de significados, acepções e sentidos vários, sofrido pelo termo lírica, que o tornou um signo fortemente carregado. Por isso, muitos poetas e críticos manifestaram e manifestam desconforto diante dele, chegando a recusá-lo, como T. S. Eliot, que diz, em “The three voices of poetry”: “O próprio termo ‘lírica’ não é satisfatório. [...] Preferirei dizer ‘verso meditativo’ (a ‘poesia lírica’)” (1957, p. 36). Uma vez que Safo se insere entre os líricos gregos arcaicos cuja produção chegou aos nossos tempos e sua poesia foi associada, quase sempre, a uma idéia de lírica “romântica” ou “hegeliana”, é preciso desembaraçar, tanto quanto possível, essa designação — tornada sinônimo de emocional, subjetivo, confessional, pessoal — da pesada carga semântica que lhe foi lançada às costas para que estejamos aptos a considerar a lírica sáfica com olhos menos comprometidos e sugestionados, mais limpos, distanciados e cônscios de conceitos em nós introjetados e que podem levar a uma visão redutora, deslocada ou até equivocada da lírica grega arcaica. Não pensamos como os antigos, nem devemos fazê-lo. Justamente por isso é necessária, no mínimo, a consciência de que até mesmo o conceito de “literatura”, tão natural para nós, somente se especializa a partir no século XVIII; ele nem sempre existiu e, quando existiu, nem sempre foi único. 7 Assim, esclareço desde já que o uso aqui feito de palavras como “literatura”, “literário” e “poema” em referência às composições da lírica grega arcaica — geradas num contexto histórico em que prevaleciam a cultura oral e audição sobre a escrita e a leitura — pretende expressar apenas que tais composições têm propriedades específicas de forma e de linguagem que as diferenciam irremediavelmente de outros textos. No caso específico do termo lírica, os embaraços não puderam ser de todo evitados. Helenistas intelectualmente formados por conceitos, teorias e tendências em voga num dado momento histórico produziram leituras modernizantes dos poetas líricos arcaicos presentemente consi26
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deradas equivocadas, ultrapassadas, embora algumas delas, feitas certas ressalvas e revisões, ainda sejam respeitadas. Dentre as abordagens que mais marcaram os estudos da lírica grega arcaica, destaca-se a romântica, cujos conceitos levam a Hegel, o pilar do Romantismo alemão. Breves passagens de sua Estética8 podem dar a compreender, em linhas gerais, a sua concepção de poesia lírica: O objecto verdadeiro da poesia é o reino infinito do espírito (p. 31); [...] a principal missão da poesia consiste em evocar à consciência a potência da vida espiritual, e tudo aquilo que, nas paixões e sentimentos humanos, nos estimula e nos comove ou desfila tranqüilamente diante do nosso olhar meditativo (p. 32); • o discurso do poeta, como expressão dos sentimentos da alma, representa qualquer coisa de novo que suscita a admiração, pois revela mediante nova criação o que até então permanecera oculto (p. 83). • •
Hegel define a lírica como um gênero cujo conteúdo é o “subjectivo, o mundo interior, a alma agitada por sentimentos, alma que, em vez de agir, persiste na sua interioridade e não pode por conseqüência ter por forma e por fim senão a expansão do sujeito, a sua expressão” (p. 120). Domínio da subjetividade, a poesia lírica deve, segundo o pensador, “libertar o espírito, não do sentimento, mas no sentimento” (p. 218). Nessa visão, portanto, ela é concebida como produto da subjetividade e da “individualidade criadora” (p. 39) do poeta, em que se exprime “a totalidade da vida interior do indivíduo” (p. 244). Pautada por conceitos já bastante discutidos e relativizados, como a subjetividade, a individualidade e a originalidade, a concepção hegeliana de lírica seduziu e ainda seduz — talvez porque acene com a possibilidade de acesso do leitor aos sentimentos mais íntimos do poeta. Atribuindo “importância essencial ao conteúdo da obra e à sua significação espiritual”,9 tal concepção exacerba o subjetivismo e estimula o biografismo como perspectiva de abordagem crítica. Esse viés e a própria concepção de Hegel foram sendo minados por suas fraquezas e pela busca de respostas alternativas para o entendimento do gênero lírico e para seu estudo crítico, que mobilizou, já a 27
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partir do século XIX, poetas, críticos e teóricos. Ainda em meados do século XX, René Wellek e Austin Warren, em Teoria da literatura, 10 preocupavam-se em fazer ressalvas contundentes à poderosa visão romântica da lírica e ao biografismo, como estas que cito abaixo: [...] na lírica subjectiva, o “eu” do poeta é um “eu” dramático, fictício (p. 11); • a relação entre a vida particular e a obra não é uma simplista relação de causa e efeito (p. 93); • [...] em relação ao poeta subjectivo, não deve nem pode desaparecer a distinção entre uma afirmação pessoal de natureza autobiográfica e o emprego desse mesmo motivo numa obra de arte (p. 94); • mesmo quando uma obra de arte contém elementos que possam com segurança ser identificados como autobiográficos, tais elementos estarão de tal modo reelaborados e transformados na obra que perdem o seu significado especificamente pessoal e se tornam apenas o material humano concreto, partes integrantes da obra [...] é falsa a própria concepção de que a arte é auto-expressão pura e simples, a transcrição de sentimentos e experiências pessoais (p. 95). •
Hegel privilegiou o conteúdo da lírica, limitado pela temática restrita à expressão da alma e dos sentimentos do poeta,11 em detrimento da tradição e da convenção literárias, da mediação da forma e da elaboração artística, as quais, lembram Wellek e Warren, diluem e filtram os elementos biográficos que porventura existam numa obra. A lírica não é a pura e simples expressão das emoções que brotam da alma inspirada do poeta; e este, ainda que se autonomeie no poema e fale consigo mesmo, usa uma linguagem artisticamente elaborada, diversa — não importa quão próxima ela se pretenda — da linguagem cotidiana. O poeta pode estar falando do caos sentimental, mas seu discurso é pensado, organizado, arquitetado numa forma determinada e por componentes estruturais intrínsecos conscientemente escolhidos. Conforme afirma Paul Valéry, no ensaio “Poesia e pensamento abstrato” (1991, pp. 217-18), a poesia é, fundamentalmente, fruto do trabalho com a linguagem. A formação da complexa teia em que se enredou a palavra lírica decorre da questão “extremamente delicada de diferenciar o ‘Eu’ (a voz 28
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do poema lírico) e o poeta”.12 Buscando romper a identificação do poeta com a persona de seus versos, pensadores atuantes no início do século XX formularam novas concepções de poesia e de crítica literária, as quais pretendiam dirigir à lírica um olhar objetivo, atento às suas especificidades literárias e menos ideológico. Ezra Pound, por exemplo, tomando o poema em sua materialidade e objetividade de forma e conteúdo,13 declara, em ABC da literatura: “O método adequado para o estudo da poesia e da literatura é o método dos biologistas contemporâneos, a saber, o exame cuidadoso e direto da matéria e contínua comparação de uma ‘lâmina’ ou espécime com outra” (1970, p. 23). Uma expressão consagrada da crítica literária ecoa aqui: close reading, método de leitura praticado pelo new criticism, um dos movimentos da primeira metade do século XX empenhados em criar condições para uma abordagem não-romântica da obra literária. Os new critics visavam à “abordagem intrínseca do objeto literário”, abolindo “deliberadamente os traços das abordagens ‘extrínsecas’, históricas, biográficas e sociológicas que proliferavam na época”.14 O resultado, que acabou por desgastar o movimento, foi a radicalização do estudo intrínseco da literatura e a rejeição da sociologia e da história — algo duramente contestado.15 Colocando-se no que parece ser o extremo oposto a essa tendência, a atual voga norte-americana dos cultural and gender studies, que vem seduzindo muitos helenistas, supervaloriza aspectos extraliterários em detrimento daqueles intrínsecos ao texto. Assim, questões como o sexo, a etnia e a opção sexual de quem escreve sobrepõem-se à questão da especificidade da literatura — não raro reduzida a um pretexto para discussões que lhe são alheias. No caso da lírica grega arcaica, complica-se consideravelmente tal abordagem, pois são escassos, quando não inexistentes, os subsídios para se tratar da biografia dos poetas, de suas sociedades e mesmo das relações entre eles, para não falar dos problemas de definição da autoria de certos textos e do pouco que se sabe sobre a circulação, o estabelecimento e a edição dos textos líricos, sobretudo na Grécia arcaica. Em face dessas circunstâncias, os estudiosos da lírica grega vêem-se obri29
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gados a trabalhar com hipóteses, as quais, para que se sustentem minimamente, precisam ser construídas do modo mais sólido e menos especulativo possível. Do contrário, arriscam-se a agravar imprecisões e a aumentar a margem de risco inerente à sua atividade. A centralização na análise do texto é, sem dúvida, um caminho viável de estudo da lírica grega arcaica, tanto mais se considerarmos sua condição material. Para se ter uma idéia acerca dessa condição, cito a síntese de André Lardinois sobre a lírica sáfica, em “Safo lésbica e Safo de Lesbos”: “Uma edição erudita dos poemas de Safo, ou uma tradução não muito fantasiosa, contém apenas um poema completo, aproximadamente dez fragmentos substanciais, uma centena de citações breves de autores antigos e cerca de 50 peças de textos em papiro, que emergiram das areias do deserto egípcio. É por isso que é mais exato falar em fragmentos de Safo” (1995, p. 29). Diante desse quadro, torna-se mais importante e prudente o respeito ao texto dos fragmentos como base principal de estudo que deve abarcar, além da pesquisa de dados extraliterários, o exame das suas edições e do trajeto por eles percorrido até nós, isto é, da sua transmissão — a “direta”, por meio de papiros e inscrições, por exemplo, e a “indireta”, por meio de citações em obras de prosa e poesia, bem como em tratados de temas os mais variados. Avaliam William K. Wimsatt Jr. e Cleanth Brooks, em Crítica literária, que, como Pound, Eliot defendia “uma concepção ‘impessoal’ da arte [...] quase beligerantemente ‘anti-romântica’” (1971, p. 787), centrada não no poeta, mas na poesia. A confissão dos sentimentos do poeta, tão desejada pelos românticos, tombava, gravemente ferida, embora ainda viva. Afinal, que interesse pode ter a confissão biográfica do poeta? É ela quem dá ao poema a universalidade que o torna compreensível a todos, ou são as idéias e as emoções reconhecidas por todos?16 Esses alertas antibiografistas são pertinentes quando se trata da poesia de Safo, pois, com freqüência, os seus estudiosos enredam-se e perdem-se em meio às confusões, aos mal-entendidos e às apimentadas maledicências de sua “biografia”, que não é senão uma construção ficcionalizada a partir de passagens de comédias áticas — fontes pouco 30
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confiáveis, por serem literárias e por seu gosto pela extravagância sexual —, de diálogos platônicos, de anedotas e de “informações” extraídas, não raro, a fórceps dos poemas.17 Judith P. Hallett, no início de “Sappho and her social context”, comenta as imagens de Safo na Antigüidade que se formaram, sobretudo, do século IV a.C. em diante. Entre elas, encontra-se a da poeta como a “décima das nove Musas”, como a “heroína mítica” levada a um “suicídio dramático” — o célebre salto para a morte do rochedo de Lêucade por ter sido rejeitada pelo barqueiro Fáon — e, principalmente depois do século III a.C., como a mulher acusada de se envolver amorosamente com suas pupilas (1996, pp. 125-27).18 Sobre essas imagens díspares e desencontradas — todas elas algo extremas — da “biografia” de Safo criada e recriada pelos antigos, Glenn W. Most, no ensaio “Reflecting Sappho”, observa: As várias fontes que fluíram juntas para criá-la creditaram-na com um marido, uma filha, muitos irmãos, numerosas amigas e companheiras (com as quais, ao menos segundo alguns relatos, ela teve relações sexuais), numerosos amantes, um homem que rejeitou as investidas de Safo, e um salto suicida de um penhasco. Em princípio, decerto, não há razão para que uma vida social tão variada e rica não tenha sido possível — embora se pudesse cogitar como, entre um e outro compromisso, Safo teria encontrado tempo para compor sua poesia [...]. Mas tanta complexidade apresenta um desafio a qualquer um que tente imaginar um retrato coerente da vida de Safo, pois requer que elementos potencialmente divergentes sejam trazidos a uma relação plausível uns com os outros. Mais fundamentalmente, a recepção de Safo pode ser interpretada como uma série de tentativas de chegar a um termo com a complexidade dessa gama de informações (1996, p. 14).19
A leitura dos modernos dessa biografia confusa e ficcionalizada de Safo não foi menos infeliz. Most comenta, por exemplo, a leitura dos românticos: “Condensando numa única pessoa as muitas contradições com as quais a tradição tinha suprido Safo, eles inventaram uma figura intensamente paradoxal [...]. A Safo romântica é a primeira que é,
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essencialmente, uma poeta — mas uma poeta romântica, insatisfeita com a realidade banal e lutando para alcançar a perfeição espiritual incompatível com a vida e somente alcançável com a morte” (p. 20). Pode-se dizer, por essa pequena amostragem das leituras antigas e modernas de Safo, que cada época criou a sua imagem da poeta com maior liberdade do que normalmente aconteceria se houvesse dados mais seguros sobre sua existência histórica. O problema, todavia, é que essas imagens pseudobiográficas mereceram, muitas vezes e infelizmente, mais atenção do que sua arte. Esse quadro é, de certa forma, estimulado pela crítica literária de visada romântica, da qual ainda decorre uma sobreposição biografista entre Safo e sua lírica que perdurou, nos estudos clássicos, até as décadas de 50 e 60 do século XX. Exemplos disso são os trabalhos dos helenistas alemães Bruno Snell e Herman Fränkel, respectivamente A cultura grega e as origens do pensamento europeu (2001)20 e Early Greek poetry and philosophy (1975),21 que exerceram uma tal influência que as críticas a eles custaram um pouco a tomar corpo. A chamada “escola Snell-Fränkel” aliou à visão romântica da lírica a perspectiva biográfica, o problemático método lexicográfico de análise literária e a ultrapassada teoria histórico-evolutiva e derivativa dos gêneros poéticos, a fim de encontrar as origens da individualidade ocidental na Grécia antiga. No capítulo “O despontar da individualidade na lírica grega arcaica” de seu livro, Snell estuda a lírica em contraposição à épica. É impactante para ele a recorrência da primeira pessoa do singular naquela, diferentemente do que se verifica nesta. Para Snell, que afirma que os gêneros poéticos “não floresceram concomitantemente”, mas evolutivamente um após o outro, a individualidade aparece, pela primeira vez, na lírica, pois seus representantes “dizem-nos os seus nomes, falam-nos de si e dão-se a conhecer como indivíduos” (p. 56). Criticando essa visão, Claude Calame enfatiza, em The craft of poetic speech: [...] dos poemas épicos [final do século VIII a.C.?] às odes de vitória de Píndaro [século V a.C.], o “Eu” parece ocupar uma posição sempre mais
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objetiva e consciente, uma posição na qual a modalidade da vontade aparece sempre em maior relevo. Mas esse desenvolvimento aparentemente histórico-linear se deve, em parte, à nossa própria tradição que faz a poesia lírica vir cronologicamente depois dos textos épicos [...] na verdade, a épica e a lírica [...] desde há muito existiam concorrentemente: as diferenças entre elas, ao invés de serem históricas, são uma função dos vários gêneros conhecidos da poesia grega arcaica (1995, p. 24).
E Paula Corrêa lembra, em Armas e varões: a guerra na lírica de Arquíloco: Atualmente, os estudos de métrica indo-européia têm revelado que, formalmente, os poemas de Safo e Alceu são mais tradicionais que os de Homero e as demais estruturas jônicas. Se a lírica monódica de Safo possui, do ponto de vista formal, características mais antigas que a épica, como saber se os temas e o discurso na primeira pessoa do singular, por exemplo, não estariam já presentes na lírica pré-literária anterior à composição da Ilíada e da Odisséia? Por que seriam necessariamente desenvolvimentos posteriores? (1998, pp. 58-59).22
A propósito do mesmo problema, cito uma passagem de outro estudo de Calame, The poetics of eros in ancient Greece: [...] apesar de não se poder dizer que a poesia mélica [ou lírica] tenha marcado o advento do indivíduo moderno, ela concede um lugar de importância à figura do narrador ou do locutor, na medida em que aquele que fala ou canta o poema usa as formas gramaticais da primeira pessoa; essa figura lingüística tende a ser demasiado prontamente identificada com aquele que profere o poema, se não com o seu autor (1999, p. 14).
Essa identificação é perigosamente propiciada pela ótica de Snell, que tornou a lírica grega arcaica — a de Safo, em especial — um terreno fértil para as idéias hegelianas. Veja-se, por exemplo, como Cecil M. Bowra, influenciado pela leitura romântica daquela poesia, julga a lírica sáfica em Greek lyric poetry: “Safo diz o que sente, nem mais e nem menos do que isso” (1961, p. 239). Claro está o caráter românticobiografista de afirmações como a de Bowra, as quais são facilmente 33
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encontradas nos estudos da lírica, cujo estímulo maior vem do uso recorrente da primeira pessoa — um dado convencional que diferencia esse gênero poético da épica, conforme observa Mary Lefkowitz, em The lives of the Greek poets: O que Homero pode dizer sobre si mesmo na Ilíada e na Odisséia é determinado pela natureza da poesia épica; apenas as declarações mais funcionais e modestas são apropriadas. Mesmo Hesíodo, num épico didático endereçado ao seu irmão [Os trabalhos e os dias], só fala o estritamente necessário para estabelecer suas credenciais. Conseqüentemente, suas biografias concentram-se em eventos de suas vidas profissionais e dãolhes o lugar na sociedade que eles próprios se dão, ou a outros poetas, em seus poemas. Mas a vida dos escritores de poesia elegíaca e lírica envolve maior variedade de experiência, porque as declarações em primeira pessoa nos poemas expressam opiniões sobre outros assuntos além da poesia (1981, p. 25).
A problemática equação que iguala a primeira pessoa do poema à primeira pessoa biográfica do autor é um dos pilares da “escola SnellFränkel”, que não foi unanimemente aceita. Numerosos estudos criticando as suas posições foram publicados, entre os quais The justice of Zeus (1971), de Hugh Lloyd-Jones, e The nature of early Greek lyric (1987), de Robert L. Fowler,23 cujas críticas Anne Carson, em resenha, sintetiza assim: Fowler sujeita [...] a “escola Fränkel-Snell” a uma crítica lúcida, censurando seu método (lexicográfico); sua visão da sociedade humana (simplista); sua noção de mimesis (frouxa); sua apresentação de Arquíloco (ingênua); sua assunção fundamental (de que um conceito não pode ser creditado a uma cultura se a palavra que o denota não aparece em sua literatura); sua apreensão equivocada do estilo e dos deuses estilizados de Homero; a não consideração da influência do gênero sobre o conteúdo e o tom poéticos (1989, p. 362).
Francisco Achcar, em Lírica e lugar-comum, faz este comentário sobre Snell: 34
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Suas análises partem da concepção da lírica como movimento antitético em relação à épica, um movimento mais avançado no sentido da consciência de si, um passo adiante relativamente à representação do espírito que se encontra em Homero. Essa visão implica, ao mesmo tempo, uma concepção substancial do eu-lírico (a lírica seria expressão da consciência individual por parte do sujeito empírico) e a precedência histórica da épica (já que a lírica se constituiria, na história do espírito, como desdobramento e negação da racionalidade épica). Os problemas, aqui, envolvem a desconsideração do caráter de construto literário do sujeito lírico e a falta de evidência da suposta precedência histórica da épica. [...] A autoconsciência dos líricos, que chegam a incluir-se nominalmente em suas composições [...] é tomada como evidência do fenômeno histórico apontado por Snell. Ora, no século VII, um autor cuja poesia de forma alguma se confunde com a lírica, Hesíodo, apresenta nos prólogos de seus poemas a mesma autoconsciência enfática (1994, pp. 41-42).
Bruno Snell foi mais freqüentemente alvo de duras e pertinentes críticas. E enquanto sua obra é hoje por muitos rejeitada, a de Herman Fränkel, apesar das restrições, permanece respeitada. Eis uma explicação para isso: “Embora a visão e a abordagem de Fränkel [...] sejam muito semelhantes às de Snell no intuito de revelar estilos e gêneros como manifestações de fases sucessivas do espírito, a leitura que faz de Homero e do período Arcaico é consideravelmente diversa”.24 Citando Simon R. Slings, em “The I in personal lyric”, pode-se acrescentar que, ao contrário de Snell, Fränkel não pretende dar uma teoria totalizante sobre o Eu em toda a lírica grega do período arcaico. [...] Seu trabalho sobre os líricos [...] preocupase, em primeiro lugar e antes de tudo, com a poesia lírica enquanto uma fonte de informação para a história das idéias e da mentalidade. Como tal, certamente deve ser visto como uma reação contrária à tendência biográfica nos estudos clássicos até então [...] (1990, p. 3).
Além de obras de crítica à “escola Snell-Fränkel”, há uma extensa lista de obras que procuram desatrelar a lírica da visão romântica e defini-la em outros termos, muito embora se diga que “qualquer definição da antiga poesia lírica grega corre o risco de ser demasiado inclusiva para ser útil, ou, por outra, demasiado estreita”.25 Focalizar os poemas 35
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lingüisticamente, pensá-los em termos de discurso, abordá-los tendo por perspectiva a ocasião de performance — essas são algumas das opções seguidas pelos estudiosos. Cientes dos problemas do termo lírica, há helenistas que preferiram descartá-lo frisando que tal designação, mesmo no âmbito da literatura grega, é bastante limitada e restritiva se entendida apenas enquanto composição destinada a ser acompanhada por um instrumento musical específico, a lira. Vejamos alguns exemplos. Em The idea of lyric, Walter R. Johnson prefere, ao nome lírica, o conceito formulado por T. S. Eliot de “verso meditativo” e procede à análise de poemas líricos gregos encarando-os como “discursos” nos quais os pronomes apontam para suas variantes, sendo o discurso entre um “eu” e um “tu” o mais comum na lírica arcaica (1982, pp. 1-23). Francis Cairns, em Generic composition in Greek and Roman poetry, abandona o termo lírica e concentra-se nos gêneros poéticos classificados “não em termos da forma como são a épica, a lírica, a elegia, ou a epístola, mas em termos do conteúdo” (1972, p. 6): o viajante que se despede, o amante que é rejeitado, entre outros. Paul A. Miller, no controverso Lyric texts and lyric consciousness, resolve o problema da lírica arcaica de modo simplista ao afirmar que ela “não começa com os líricos gregos arcaicos [...] nem com os poetas helenistas, mas, sim, no período romano” (1994, p. 3). Isso porque, ele defende, a lírica “só é possível numa cultura da escrita” (p. 1), e não da oralidade. Outros helenistas buscam na lingüística e nas teorias sobre o discurso o instrumental para o estudo da lírica grega arcaica, principalmente no que se refere à primeira pessoa do singular dos poemas e, assim, afastam-se da visão romântica e biografista sobre essa questão.26 Exemplo dessa tendência é Calame (1995), que se utiliza das teorias e da terminologia da semiótica a fim de dar conta da lírica arcaica, o que provoca, às vezes, uma categorização excessiva e uma limitação da análise interpretativa das canções; a despeito disso, vale destacar sua busca pela distinção entre poeta e persona do poema: “Nunca é demais enfatizar que a posição do narrador/falante correspondente, na lírica grega arcaica, ao uso do pronome Eu é apenas uma simulação: refere-se so36
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mente de modo bastante indireto à pessoa biográfica, intradiscursiva, do autor” (p. 25). Diskin Clay, em “The theory of the literary persona in Antiquity” (1998), comenta os antigos críticos da poesia, gregos e romanos, observando que aquilo que os leitores modernos, marcados pelo Romantismo, não souberam separar — o poeta e a primeira pessoa do singular do poema — também era confundido pelos antigos, sobretudo porque a épica e, ainda mais, a lírica eram tomadas como documentos histórico-biográficos — os únicos acessíveis para o conhecimento da Grécia arcaica. Pensando o mesmo problema, Slings (1990, p. 2) afirma que “gradualmente, apenas, os estudiosos começaram a admitir que uma total subjetividade não é para ser esperada de um poeta grego arcaico [...]”. E considerando a questão do “eu” na lírica grega, o helenista a recoloca em outra chave. As modernas teorias sobre a poesia lírica pressupõem a leitura, enquanto aquela poesia se destinava à performance, à audição, a ser recitada perante uma audiência numa dada situação que se relacionava até mesmo ao gênero e subgênero do poema apresentado.27 Assim, o poeta grego arcaico, “precisamente porque é o causador de uma experiência estética, é, em certa medida, despersonalizado” (p. 11): “Se olharmos para o problema desse ângulo, tornar-se-á claro, imediatamente, que a oposição Eu ficcional x Eu biográfico é, na verdade, uma simplificação irresponsável. O Eu é o Eu do performer, que se move através de um continuum no qual o Eu biográfico e o Eu ficcional são os dois extremos: na maior parte do tempo, ele não é nenhum deles” (pp. 11-12). Considerados os problemas aqui levantados em torno da lírica grega arcaica, fica claro que estudar essa poesia é uma tarefa que envolve uma série de dificuldades. Giuliana Lanata diz, em “La poetica dei lirici greci arcaici”: “Traçar uma poética dos líricos gregos arcaicos é uma empreitada assaz árdua, em vista da particular dificuldade que apresenta a interpretação de textos lacunosos ou fragmentários [...]” (1956, p. 168). Além desses problemas materiais, Lanata lembra que os poemas que nos chegaram sob a forma escrita estão bastante distantes de sua realidade primeira, ou seja, da realidade de um mundo oral em que a 37
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poesia somente se realizava quando apresentada a uma audiência numa ocasião de performance apropriada à sua forma (p. 168). Os próprios editores de Alexandria, que se lançaram na empreitada de copiar e editar os textos dos líricos gregos, estavam no século III a.C. muito distantes da realidade histórica na qual Safo, poeta que nasceu por volta de 630 a.C., compôs seus poemas. Mesmo assim, Lanata afirma que essas dificuldades não foram e não são suficientes para que se desista de traçar alguns elementos da poética de cada um dos líricos e da própria lírica grega arcaica. Em seu ensaio, ela detém-se sobre um desses elementos que crê pertencer a uma concepção de poesia específica à época, qual seja, a concepção de poesia como uma dádiva das Musas, já presente na épica homérica. Já foi lembrada a condição fragmentária dos poemas sobreviventes, o que compromete, em boa medida, sua análise. Comparar as obras é outro problema: como relacionar os poetas de uma dada época aos seus antecessores? Como falar em “tradição literária” se lidamos com composições estruturalmente orais e feitas não para serem lidas, mas ouvidas em público, no âmbito de um contexto de performance específico? Como avaliar a poesia de Safo, se dos nove livros compilados em Alexandria restaram uns poucos poemas mais bem preservados e muitos fragmentos? Inegáveis, tais questões repousam, inquietas, no horizonte dos que se dedicam ao estudo da lírica grega arcaica. Tantas dúvidas não devem, é bom frisar, desanimar o crítico, mas estimulá-lo a buscar respostas, a garimpar informações, a formular hipóteses, enfim, a trilhar caminhos que conduzam a uma visão a mais orgânica possível da literatura grega arcaica em geral. Um desses caminhos é acompanhar com atenção as representações literárias, em gêneros poéticos diversos, de certas personagens, para, assim, observar as recorrências e as variações nessas representações e, por conseguinte, relacioná-las entre si. E igualmente importante é aproximar os poetas e também os gêneros poéticos entre si, e (r)estabelecer um diálogo, ainda que restrito, entre o presente e o passado histórico-cultural do poeta e entre as obras que vão compondo a tradição literária grega. 38
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Desse modo, este estudo sobre a presença de Afrodite na lírica de Safo levará em conta as representações da deusa em textos épicos, gênero que esteve no apogeu antes do século VII a.C. — segundo o que podemos inferir daquilo que conhecemos da literatura grega arcaica, buscando ampliar os horizontes de apreciação da personagem em Safo —, bem como suas representações religiosas, sobre as quais nos contam relatos antigos e as descobertas arqueológicas. Ao longo destas páginas, será fundamental a consciência de todos os problemas acerca da lírica grega arcaica aqui apontados — desde o termo lírica até a definição do gênero, passando pelos empecilhos à interpretação dos poemas impostos pelos danos materiais sofridos pelos textos —, não como algo desestimulante, mas, ao contrário, como um desafio que torna ainda mais emocionante a análise interpretativa dos fragmentos de uma poeta arcaica.
A lírica monódica: novos problemas de definição e de abordagem Gordon M. Kirkwood, em Early Greek monody (1974), busca traçar a história de um dos subgêneros da lírica grega, o monódico, que consiste em poesia destinada a ser cantada por uma pessoa, ao contrário do que ocorre na lírica coral, uma distinção que, conforme foi lembrado no início deste capítulo, não ocorre nas classificações antigas e apresenta certas ambigüidades. A despeito disso, muitos helenistas — Kirkwood incluído — a consideram, como nota Malcolm Davies, em “Monody, choral lyric, and the tyranny of the hand-book” (1988, pp. 52-64).28 Quanto às origens da lírica monódica, as evidências são parcas, mas Kirkwood afirma: É razoável pensar que canções de emoção e experiência pessoal existiam desde há muito em alguma forma. Exemplos de canções “populares” de tempos mais tardios estão preservados, canções de autoria desconhecida que foram, tradicionalmente, associadas a ocasiões sociais ou religiosas, formais ou informais, ou ao trabalho. [...] A maior parte dessas canções têm cola métricos do tipo usado na poesia dos monodistas e há evidência 39
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para o uso da forma estrófica. Pode-se assumir que ancestrais dessas canções influenciaram o desenvolvimento de uma poesia lírica mais formal (pp. 15-16).29
O estudioso aborda duas outras características da lírica monódica, ambas pensadas em oposição à lírica coral e repetidas nos estudos sobre a lírica grega arcaica: “A lírica monódica atingiu sua melhor forma nas sociedades eólica e jônica do Egeu oriental, no período de 650-500 [a.C.], [...] e esteve sempre perto da linguagem cotidiana, fortemente influenciada pelo dialeto regional do poeta” (pp. 10-11). A primeira afirmação é, na verdade, uma reafirmação da divisão entre as líricas monódica e coral, pois acredita-se que esta pertence à tradição dórica e aquela, à tradição jônica e lésbio-eólica.30 Contudo, Safo, poeta da tradição lésbio-eólica, normalmente tida como grande representante da lírica monódica, compôs cantos corais não raro relegados a um segundo plano pelos estudiosos por escaparem à categoria e às suas definições. Como diz Davies, em um dos poucos alertas à fácil aceitação da distinção entre lírica monódica e coral pelos helenistas, “[...] houve uma poesia coral e uma poesia monódica, mas é perigosamente errôneo falar em poetas corais ou monódicos. A maioria dos compositores líricos era versátil o suficiente para praticar as duas categorias” (1988, p. 61). A segunda afirmação de Kirkwood é recorrente e problemática. Sim, o dialeto influenciou fortemente a lírica: cada poeta empregou o seu dialeto local. Mas dizer que a lírica estaria próxima da linguagem cotidiana é complicado, porque tal conclusão se baseia na comparação da linguagem lírica com a épica-homérica, esta tida como bastante distante da cotidiana. Além disso, é impossível sabermos o que era a “linguagem cotidiana” e, de qualquer modo, mesmo que um poema pareça usá-la, ele o faz conscientemente e por opção, pois é uma composição literária. Já é possível notar que a conceituação da lírica monódica é difícil e cercada de armadilhas. Ao comentar os problemas de definição e de abordagem da lírica grega arcaica, insisti nas dificuldades geradas, principalmente, pela
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A LÍRICA GREGA ARCAICA E SAFO
concepção romântica da lírica que a entende como subjetiva, pessoal, sentimental, confessional, a expressão da alma do poeta. Essa concepção gera uma série de novas dificuldades que, no caso dos versos líricos monódicos de Safo, nos quais, além da constância da primeira pessoa do singular às vezes autodenominada “Safo”, há um forte conteúdo erótico-amoroso, são ainda mais agudas e levam a certas percepções e afirmações repetidas à exaustão pelos helenistas. Repete-se, então, que Safo foi uma mulher que compôs poemas de amor nos quais deixou vazar seus sentimentos, através dos quais confessou seus mais íntimos desejos. 31 Tal leitura é, no mínimo, indesejável, pois afasta o estudioso da especificidade da lírica grega arcaica. Todavia, a perspectiva romântica e a crença no senso comum do biografismo quando se trata da poeta têm perdurado e encontraram abrigo no Brasil, como se percebe na obra de Joaquim Brasil Fontes, Eros, tecelão de mitos: a poesia de Safo de Lesbos (2003). O fôlego da visão romântica em relação à poeta é alimentado por tudo o que já apontei até aqui — o problema do termo lírica; a leitura viciada e preconcebida dos seus fragmentos; a não raro apimentada ficcionalização, nos testemunhos antigos, de sua vida etc. Mas, sem dúvida, também o nutre o próprio caso de Safo, que tem ares de notável exceção: ela foi uma mulher e uma poeta lírica na Grécia arcaica, cujas sociedades eram, na maior parte dos lugares, dominadas por homens. Ademais, sua lírica traz outro dado surpreendente: ela é carregada de erotismo e dirige-se freqüentemente a figuras femininas, o que provaria a existência da homossexualidade entre mulheres em seu tempo.32 Em outras palavras, Safo representaria, no universo grego, uma quebra do padrão comportamental feminino conhecido, sobretudo, a partir do modelo ateniense.33 Menciono, por fim, um dado que desperta a curiosidade quanto à biografia de Safo: o grupo de meninas que a ela é associado desde a Antigüidade, cuja natureza e função são, até hoje, muito debatidas. Alguns acreditam tratar-se de um grupo reunido para fins didáticos — Safo seria a professora de música, de poesia e de outras prendas que ensinava meninas em fase preparatória para a vida adulta, ou seja, para 41
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o casamento;34 outros acreditam na função de iniciação sexual do grupo comandado pela poeta,35 e outros, ainda, crêem na função ritualística relacionada ao culto de Afrodite.36 Para os que identificam a primeira pessoa do singular ou a persona da lírica de Safo à poeta, são aceitáveis as inferências extraídas de seus poemas com as quais, em boa parte, é construída a sua “biografia ficcionalizada”. Foi assim que Safo de Lesbos se transformou, atualmente, em objeto predileto dos gay studies e dos women studies,37 e personagem de gay novels e de romances fortemente eróticos, como o que foi escrito por um helenista norte-americano, Peter Green, em The laughter of Aphrodite (1995). Nele, a poeta compõe o triângulo amoroso de um ménage à trois com seu marido e a jovem Átis, personagem de sua lírica ou, como preferem muitos estudiosos, de seu círculo. Todavia, para os que rejeitam ou ao menos desconfiam de tal identificação, essas inferências devem ser observadas com precaução, porque a biografia de Safo, em última instância, tem pequeno valor para a apreciação crítica dos poemas e, portanto, alçar a poeta ao centro da cena e tomar sua poesia como documento de sua condição seria desprezar o que temos de mais importante e atemporal: a lírica sáfica, que não merece ser ofuscada dessa forma. Esses parágrafos mostram que a concepção romântica e biografista da lírica de Safo pode levar a extremos. Porém, com lucidez, alguns helenistas, como Odysseus Tsagarakis, em Self-expression in early Greek lyric elegiac and iambic poetry, advertem que é problemática a primeira pessoa do singular encontrada na lírica monódica: Que alguma experiência humana real subjaza à situação poética (ela não precisa ser específica) é, dada a atitude do poeta lírico grego diante da vida, bastante compreensível. A relação da experiência poética com uma experiência real é de importância secundária no que se refere à apreciação de um poema enquanto uma peça de arte. Mas quando se trata de julgar o caráter de um poeta e de reconstruir sua biografia a partir do poema, a questão se torna séria. Mesmo se assumirmos, em prol da argumentação, que Safo relembra uma situação pessoal, não podemos provar que o que está descrito e o modo como está descrito refletem a 42
A LÍRICA GREGA ARCAICA E SAFO
experiência real. Uma experiência real de Safo ou de outra pessoa foi transformada em uma peça de poesia que — este agora é o problema — tem um propósito (1977, p. 71).
E, adiante, Tsagarakis conclui: “O caráter de Safo e de sua vida privada não pode ser julgado a partir de sua poesia” (pp. 81-82). É preciso, pois, alcançar o maior distanciamento possível de certas leituras modernas da lírica grega, se quisermos entender a sua especificidade antiga. Kirkwood (1974) não consegue esse afastamento e voltase para os poetas líricos arcaicos como alguém se volta para um poeta moderno. Por isso, seu estudo Early Greek monody sofre, na resenha “Reading the Greek lyric poets (monodists)” (1974) de Joseph Russo, duras e minuciosas críticas. Ressalto algumas delas. De acordo com Russo, Kirkwood mostra-se incapaz de tomar distância de “hábitos mentais [...] formados por nossa leitura da poesia mais moderna” (p. 707); além disso, a seleção de Kirkwood dos quatro poetas que estuda — Arquíloco, Alceu, Safo e Anacreonte — é questionável, porque Safo não é exclusivamente monódica, uma vez que há entre seus fragmentos cantos em forma dialogada e epitalâmios, os quais são sintomaticamente excluídos por ele. Ademais, lembra Russo, Arquíloco é incluído no estudo sobre a lírica monódica devido a uma convicção do autor e de outros estudiosos que é bastante polêmica: a de que o poeta seria o precursor da lírica grega. Russo observa, ainda, que a antiga concepção de que o poema lírico é a “essência da expressão pessoal” (p. 709) é tomada como critério por Kirkwood, que desconsidera a dimensão pública da lírica grega antiga, hoje cada vez mais estudada; além disso, a abordagem adotada apóia-se numa das mais caras teses da “escola Snell-Fränkel”: a teoria evolutiva dos gêneros — uma “ortodoxia”, diz Russo, que já nos anos 70, quando Kirkwood publica sua obra, “estava sendo amplamente desafiada” (p. 729). Por fim, Joseph Russo nota que Gordon Kirkwood ignora as relações entre as convenções poéticas dos gêneros e seus conteúdos, sendo levado, assim, a questionáveis e ultrapassadas conclusões tipicamente
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“snellianas”, tais como a que vê o nascimento da individualidade ocidental na lírica grega arcaica. Pontuei algumas críticas da resenha de Russo porque delas consta uma série de aspectos acerca do estudo da lírica grega arcaica que busquei discutir e problematizar aqui, e também porque elas nos mostram que qualquer helenista está sujeito a cair nas armadilhas em que se perde Kirkwood. Daí a importância, creio, de refletir neste livro sobre as dificuldades em torno de seu objeto, a lírica de Safo, e de apontar para o direcionamento teórico e metodológico que o norteia, cujas linhas de força são quatro: 1) o pressuposto da concomitância histórica — em vez de evolutiva — dos gêneros na Grécia antiga; 2) a consciência e, tanto quanto possível, o almejado distanciamento de conceitos de crítica moderna em nós introjetados e da concepção romântica da poesia lírica; 3) a ênfase na consideração dos relevantes elos entre as convenções de um gênero poético e seu conteúdo; 4) o reconhecimento dos estereótipos que se foram construindo e solidificando na crítica aos poetas líricos arcaicos, principalmente na crítica a Safo.
Safo, o epitalâmio e a tradição popular O epitalâmio (™piyalãmion, epithalámion) consiste numa canção de casamento. Fränkel (1975, p. 172) afirma, apoiado em certos testimonia (“testemunhos antigos”), que os epitalâmios “eram os mais famosos poemas de Safo” na Antigüidade. Igualmente respaldado por testimonia — um tipo de evidência cujo aspecto lendário-histórico deve inspirar cuidados —, declara Bowra: “Safo escreveu uma quantidade [de epitalâmios] suficiente para ocupar um livro inteiro [o nono] de seus trabalhos como eram conhecidos em Alexandria” (1961, p. 214). Essa opinião é bastante aceita entre os helenistas, mas de modo algum é consensual. 44
A LÍRICA GREGA ARCAICA E SAFO
Denys Page, em Sappho and Alcaeus, afirma: “Parece que o Livro de Epitalâmios formava um pequeno e comparativamente insignificante apêndice da coleção alexandrina da lírica de Safo. Este não é, contudo, o final da história. Há razão para crer que poemas de tipo epitalâmio foram incluídos em outros livros, se os seus metros assim o demandavam” (1987, p. 125). Já Lesky mostra-se mais cético em relação ao assunto: “[...] não passa de hipótese que o último dos nove livros desta edição [a alexandrina] compreendesse os Epitalâmios. [...] Os Epitalâmios eram uma parte reduzida da sua obra” (1995, pp. 168-69). Claro está, pela pequena amostragem, que as opiniões relativas ao livro alexandrino de epitalâmios de Safo são conflitantes e, devido aos problemas de transmissão das composições da poeta até nós, dificilmente serão esclarecidas com segurança. Mas, discussões à parte, interessa, por ora, observar que Safo, cuja deusa predileta, Afrodite, tinha em sua esfera de atuação a paixão, o sexo, a reprodução, a fecundidade, tenha composto canções de casamento, as quais, por serem corais, seriam apresentadas por ela ou por outros “numa ocasião formal ou cerimonial, pública ou privada”, afirma Page (1987, p. 119). Não é pouco, portanto, o que os epitalâmios têm a nos dizer sobre a lírica da poeta e sua relação com a deidade, como se verá no estudo de um exemplar desse gênero, o Fr. 112 V.38 Nem é pouco o que essas canções nos podem revelar, quando somadas a outros relatos antigos e a evidências iconográficas, a respeito das antigas cerimônias gregas de casamento. Conforme Bowra (1961, pp. 214-18), a despeito das variações que decerto sofriam quando realizados em locais geográfica e culturalmente diversos da Grécia antiga, os epitalâmios, até mesmo os sáficos, permitem que percebamos características gerais da cerimônia de casamento, tais como: o banquete inicial das bodas dava-se na casa do pai da noiva; durante a festa, eram feitos sacrifícios aos deuses do casamento, e a noiva, escondida por um véu, sentava-se à parte, junto às outras virgens, aguardando o momento de ser apresentada ao noivo pelos parentes e amigos dela; depois, uma procissão levava a noiva, o noivo e o padrinho deste numa carruagem à nova morada e, em se45
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guida, os noivos eram conduzidos aos seus aposentos com danças, cantos, brincadeiras e tochas. É comum encontrar nos textos sobre os epitalâmios, além do quadro esboçado por Bowra, duas afirmações sobre sua natureza: eles eram cantos de celebração dos noivos destinados a serem entoados por coros e podiam ter uma atmosfera jocosa, o que revelaria sua ligação com a tradição popular. É pautado por esses dados que Lesky emite este julgamento: “Nos Epitalâmios de Safo, vemos como a poesia popular tradicional é captada em toda a sua frescura e espontaneidade, por uma grande poetisa que, no âmbito de sua arte, a modela em composições que alcançam uma forma perfeita, sem perderem o encanto daquilo que surgiu do povo” (1995, p. 168).39
Nota sobre a transmissão dos fragmentos líricos Não é possível estudar a lírica grega arcaica sem considerar sua transmissão ao longo dos séculos, a qual se dá de duas maneiras que anteriormente referi: a “direta”, por meio de fontes como os papiros, as inscrições e os óstraka (óstracos),40 por exemplo, e a “indireta”, por meio de citações em textos antigos de gramáticos, lexicólogos, filósofos e outros pensadores. Boa parte dos fragmentos de Safo que neste trabalho serão analisados são papiráceos, ou seja, transmitidos diretamente por papiros, fato que me leva a discorrer um pouco sobre essas fontes. Apesar do início das escavações no Egito ter acontecido bem antes, somente a partir do ano de 1890 se abriu “a grande era dos papiros, com a descoberta pelo Prof. Flinders Petrie de papiros do século III a.C. na cartonagem de múmias”.41 Isso mostra quão tardias foram as descobertas dessas fontes e a especialização da papirologia. Ademais, nem todos os papiros encontrados eram literários; ao contrário, estes correspondiam à menor parte, pois a maior compunha-se de documentos nãoliterários. Frederic G. Kenyon, em “Greek papyri and classical literature” (1919, p. 4), observa que até então a soma dos achados alcançava aproximadamente 920; desse total, a minoria — mais ou menos 350 46
A LÍRICA GREGA ARCAICA E SAFO
papiros — nos trazia textos desconhecidos de “teologia, poesia lírica, tragédia, comédia, história, oratória”. E qual foi o impacto na crítica textual dessas descobertas ocorridas, majoritariamente, na cidade egípcia de Oxirrinco?42 Para essa indagação não há uma resposta única; as opiniões podem ser divergentes e dependem do autor que se tem em mente. Fortemente pessimistas, por exemplo, são as palavras de Kenyon, que, em seu artigo do início do século XX, formulou as seguintes constatações sobre o impacto das descobertas papiráceas na crítica textual: (1) os textos dos gregos clássicos correntes no segundo e no terceiro séculos depois de Cristo, e até no segundo e no terceiro séculos antes de Cristo, eram substancialmente os mesmos que os textos que temos agora; (2) a crítica moderna tem estado geralmente certa ao determinar quais dentre os preservados manuscritos vellum, dos quais nossos textos presentes dependem, são os melhores, mas, freqüentemente, tem ido longe demais ao confiar sua fé exclusivamente a essas autoridades;43 (3) os críticos modernos (se nos papiros devemos confiar) são raramente felizes na detecção e emenda das corrupções, exceto nos casos mais óbvios e pequenos; (4) algumas corrupções que, inquestionavelmente, ocorrem em nossos textos atuais são de data muito antiga, e se mantiveram através dos muitos séculos durante os quais o grego antigo era uma língua falada.44
Houve ganho, mas, principalmente, o reconhecimento das prováveis perdas com as quais devemos conviver. Kenyon frisa (1919): “É no período lírico, talvez, que as nossas perdas foram maiores; e aqui os papiros não fizeram muito por nós” (p. 9). Páginas antes dessa afirmação, o helenista ressalta que Safo foi favorecida pelas descobertas e sua obra sofreu acréscimo significativo, o que não aconteceu, infelizmente, com todos os autores antigos.45 Um tom pessimista perpassa seu artigo, mas no final Kenyon revela otimismo em relação à descoberta de papiros e não resiste a esta bela formulação: “Verdadeiramente, para todos aqueles que amam a literatura e reconhecem na literatura grega a mais alta expressão do pensamento humano, os desertos do Egito floresceram como uma rosa” (p. 13).
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Talvez pelo distanciamento no tempo, William H. Willis, ao contrário de Kenyon (1919), adota um tom mais equilibrado em “A census of the literary papyri from Egypt” (1968) e oferece ao leitor um censo dos papiros literários encontrados no Egito; até aquele ano, um total de 3 mil exemplares havia sido publicado — número bem maior do que aqueles apresentados por Kenyon e também por Bernard P. Grenfell, em “The value of papyri for textual criticism” (1919, pp. 16-36). A atitude moderada de Willis leva-o a fazer ressalvas, mesmo nos casos que podem gerar, à primeira vista, muito entusiasmo com os achados. Diz ele: Devemos, é claro, ter em mente as severas limitações de nossa evidência. Quase todos os nossos papiros vêm de uma única província do mundo grecoromano; e o Egito, de muitas maneiras — na geografia, na tradição e no isolamento político — foi uma província atípica. Tampouco podem os nossos textos preservados derivar uniformemente de todo o Egito. Uma vez que a sobrevivência dos papiros depende da completa proteção da umidade, as chuvas de Alexandria e a nascente do Delta, as inundações anuais do Nilo, a irrigação, e o crescimento gradual do lençol freático ao longo dos séculos — para não mencionar os inimigos naturais — devem, necessariamente, ter-nos roubado a vasta maioria dos textos antigos (1968, pp. 205-6).
Além dos fatores relativos ao clima, há que se considerar, frisa Willis (1968, pp. 206-9), a sorte, as limitações relacionadas às próprias escavações — sua organização e a extensão do território a ser explorado — e o interesse da equipe de escavação quanto aos autores que gostariam de ver renascer da terra quente e úmida do Egito. Isso tudo e a descrição acima citada podem dar boa medida dos estragos sofridos pelos papiros: a maior parte desapareceu, desfeita sob o solo egípcio, e os que resistiram e sobreviveram não escaparam ilesos; antes, com raras exceções, estão corrompidos e em condições fragmentárias. Mesmo assim, é inegável o benefício que nos trazem ao revelarem novas produções ou ao viabilizarem acréscimos e correções a obras já conhecidas. Cientes dos problemas em torno das fontes papiráceas, resta perguntar: o que informa o censo de Willis sobre Safo? Ela teve não apenas 48
A LÍRICA GREGA ARCAICA E SAFO
a fortuna de ter uma pequena parte de seus textos preservada, mas de gravitar na esfera de interesses de Edgar Lobel,46 um estudioso da lírica que trabalhou intensamente nos papiros de Oxirrinco. Conhece-se muito mais da literatura grega do que no passado se conhecia devido à coleção Oxyrhynchus Papyri, no qual foram publicados 188 textos gregos, com exceção dos bíblicos, e ao “trabalho fenomenal” de Lobel, que publicou 150 textos dos poetas gregos, lembra Willis (pp. 208-9), que declara: Não somente a incidência de apenas um ou dois papiros de um autor testemunhará o mero acaso, o acidente, mas entre os autores de maior sobrevivência [de papiros] a nossa relativa freqüência terá sido arrancada do tempo por quaisquer esforços especiais para procurar e publicar todos os textos de um autor de interesse particular. Tal é o caso daqueles poetas de interesse especial para o Prof. Lobel — Hesíodo, Arquíloco, Álcman, Alceu e Safo, Píndaro, Baquílides, Ésquilo e Calímaco (pp. 211-13).
Observando o ranqueamento feito por Willis, a posição de Safo é a 17 , com 17 textos encontrados. Ante os números apresentados, podese concluir que ela teve sorte, mas é complicada qualquer comparação com outros poetas, porque as descobertas datam, na grande maioria, dos séculos II-III d.C., adverte Willis: “[...] há bem poucos dados sobre os outros séculos para propiciar comparações prováveis, e a discussão não deve ser extraída do silêncio” (p. 213). Há outras informações sobre Safo no censo de Willis: a quinta tabela do artigo, que organiza os autores “de acordo com o período ou grupos de períodos nos quais seus papiros foram escritos”, mostra Safo incluída nos tardios períodos romano e bizantino; do total de 17 papiros encontrados da poeta, 15 concentram-se no período romano — 10 são do século II d.C. e 5 do século III d.C. — e os outros 2, no bizantino, precisamente no século VII d.C. (pp. 215-17; p. 230, Tabela VII). Tendo discorrido sobre a transmissão direta da lírica de Safo, passo à indireta. Salvatore Nicosia, em Tradizione testuale diretta e indiretta dei poeti di Lesbo, inclui na “tradição indireta” de transmissão dos fragmentos as paráfrases e as citações, muitas vezes ilustrativas, em escritos a
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GIULIANA RAGUSA
antigos variados e nos testimonia (1976, pp. 23-27). Tal forma de transmissão depende, contudo, da memória decerto falível e seletiva de quem cita, da versão do texto conhecida e das suas necessidades. Esses fatores influíram, por exemplo, no tamanho do texto citado, em geral bastante reduzido, e resultaram em diferenças entre as fontes de um mesmo texto.47 Alterações decorreram também, nota Nicosia, da aticização dos dialetos nos quais os poemas dos líricos foram originalmente concebidos — um processo freqüentemente observado nas citações. Diante desse quadro, ressalta o helenista, as fontes indiretas merecem certa desconfiança, ao contrário de fontes diretas como os papiros, os quais, uma vez que se pautavam pela cópia que pretendia preservar o texto original, seriam, em tese, a ele mais fiéis. Anterior aos manuscritos, o papiro, sublinha Nicosia, “fornece um texto essencialmente correto — se se prescinde das incorreções implícitas em uma transcrição — que não sofreu alteração advinda da transmissão plurissecular, da intervenção de testemunhos, do influxo do imediato contexto ático etc.” (p. 29). Resumindo a comparação entre as transmissões direta e indireta, Nicosia afirma: “De um lado, estão os textos quase sempre mutilados, mas corretos; do outro, as citações de resto íntegras, mas corruptas” (p. 35). Isso reforça, fortemente, a necessidade de atentar para a questão da transmissão da lírica grega arcaica ao longo dos séculos, pois ela influenciou não somente o estabelecimento, mas também a leitura e a interpretação dos textos. Portanto, considerar as fontes dos fragmentos de Safo, como buscarei fazer, é, por um lado, reconstituir parte da história de sua transmissão e, por outro, recolher para o estudo dos textos elementos que podem ser especialmente valiosos.
Notas 1
Cf. comentário de Nicosia (1976, pp. 28-31) e Knox (1990, pp. 1-15).
2
Há notícia da edição de nove livros, isto é, rolos de papiros da poeta, dos quais o último seria de epitalâmios (canções de casamento) e os demais de lírica monódica
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A LÍRICA GREGA ARCAICA E SAFO
(canto-solo) de metros variados. As fontes antigas falam ainda de um décimo livro, apenas de elegias. Safo teria composto também epigramas e jambos, lembram Di Benedetto (1982a, pp. 225-26) e Page (1987, pp. 112-17). Sobre os critérios adotados para a edição de Safo, cf. Nicosia (1976, pp. 31-32). Sobre a condição dos textos de Safo na época pré-alexandrina, declara Nicosia que “não podemos dizer quase nada” (p. 32). 3
Cf. Harvey (1955, pp. 157-75); contra ele, Calame (1974, pp. 113-28). Ver Gentili e Cerri (1988, pp. 97-103).
4
Bowra (1961, p. 2).
5
Bowra (1961, p. 2) nomeia os poetas do cânone: Safo, Alceu, Álcman, Íbico, Estesícoro, Anacreonte, Simônides, Baquílides e Píndaro. Cf. ainda Knox (1990, pp. 1-41) e West (1994, pp. vii-xxi).
6
Em obra de 1910, Mackail já notava: “Em torno da vida de Safo, e dos seus nove livros de lírica dos quais, lamentavelmente, pouco sobrevive, toda uma mitologia, não da natureza mais atraente, criou-se na Grécia posterior” (p. 93). Cavallina (1991, p. 99), 81 anos depois, faz a mesma observação.
7
Cf. os estudos de Souza (1992, pp. 367-89) e Dupont (1994, p. 17).
8
As citações seguem a tradução portuguesa de 1964. Os grifos são originais.
9
Souriau (1973, p. 22).
10
As citações seguem a tradução portuguesa de 1962.
11
Cf. Jakobson (1973, pp. 113-14).
12
P. Murray (1982, p. 79).
13
Cf. comentário de Wimsatt e Brooks (1971, p. 785).
14
Cohen (1975, p. 228).
15
Cf. crítica de Cohen (1975, pp. 228-29).
16
Cf. P. Murray (1982, pp. 79-82).
17
Cf. Lefkowitz (1981, p. viii). Para comentário sobre as comédias áticas, cf. Pomeroy (1976, p. 54).
18
Ao longo dessas páginas, ao tratar das imagens da poeta, ela fornece as indicações das fontes antigas.
19
Cf. Lefkowitz (1996, p.29).
20
O original alemão é de 1955.
21
O original alemão é de 1962.
22
Cf. West (1973, pp. 179-92).
23
Cf. comentário de Corrêa (1998, pp. 29-69) sobre esses e outros estudos críticos à “escola Snell-Fränkel”.
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24
Corrêa (1998, p. 52). A autora ainda ressalta que “as interpretações de Fränkel são também mais sutis, permanecendo os seus comentários a poemas individuais como valiosas análises do estilo arcaico”.
25
Cf. Kirkwood (1974, p. 1).
26
Cf. panorama traçado por Slings (1990, pp. 1-30).
27
A perspectiva de estudo da lírica grega arcaica centrada em sua dimensão essencialmente oral e destinada à performance tem sido adotada por vários helenistas. Cf. West (1974), Gentili (1990), Segal (1998, pp. 9-24) e Stehle (1997).
28
Cf. Fränkel (1975, p. 170; 1a ed. orig.: 1962) e Kirkwood (1974, pp. 1-19).
29
Tsagarakis (1977, p. 69) e Lesky (1995, pp. 133-82) crêem nas raízes populares da lírica monódica.
30
Cf. West (1973, pp. 179-92).
31
Hegel diz em sua Estética: “[...] Safo canta com palavras comoventes as suas ternas efusões, animada por ardorosa paixão” (1964, p. 267). Cf. ainda Snell (2001, pp. 55-81), cuja avaliação sobre a poeta é similar.
32
Cf. Dover (1989, pp. 171-84) sobre a homossexualidade feminina.
33
Cf. Foley (1992, pp. 127-68).
34
Essa tradição remonta ao século XIX, quando helenistas alemães, dentre os quais destacava-se U. von Wilamowitz-Moellendorf, buscaram “salvar” a imagem de Safo conferindo-lhe a irrepreensível aura da educadora. Para histórico analítico dessa tradição, cf. Parker (1996, pp. 146-83).
35
Cf. Burnett (1983, pp. 209-28).
36
Cf. Calame (1997, pp. 207-63).
37
Cf. Hallett (1996, p. 129).
38
“Fr.” é a abreviação para “fragmento”, forma pela qual os poemas são referidos nos diversos estudos e edições.
39
Cf. Fränkel (1975, pp. 172-74), que frisa a simplicidade e as raízes populares dos epitalâmios de Safo.
40
Plural de óstrakon (ˆstrakon), “fragmento, caco de vaso ou pote de cerâmica” (LSJ).
41
Kenyon (1919, p. 2).
42
A maioria é dos três primeiros séculos depois de Cristo, e um número razoável, de tempos posteriores; cf. Kenyon (1919, p. 9). Nicosia (1976, p. 32) argumenta que o fato de a maioria dos papiros recuperados ser proveniente de Oxirrinco mostra que essa cidade “tinha estreito contato com Alexandria” e que, “em geral, os textos lá descobertos reportam à atividade filológica e crítica dos grandes gramáticos alexandrinos”, dentre os quais Aristófanes de Bizâncio, considerado o editor dos líricos gregos.
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A LÍRICA GREGA ARCAICA E SAFO
43
Cf. Grenfell (1919, pp. 35-36) para a discussão do procedimento adotado regularmente pelos críticos com relação aos manuscritos e aos textos clássicos, e em que as descobertas dos papiros o alteram.
44
Kenyon (1919, p. 3). Cf. Grenfell (1919, p. 34).
45
Cf. Kenyon (1919, p. 4).
46
Lobel foi editor de Safo sozinho e juntamente com Denys Page.
47
Cf. Nicosia (1976, p. 28); Corrêa (1998, pp. 25-26).
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A MULHER E A SEXUALIDADE NA GRÉCIA ARCAICA
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M U L H E R E A S E X UA L I D A D E NA
GRÉCIA
ARCAICA
Notícia sobre as poetas gregas O momento histórico da poesia de Safo é o arcaico. A poeta teria nascido por volta de 630 a.C.1 em Êresos, costa ocidental de Lesbos, mas teria passado a maior parte de sua vida em Mitilene, na costa oriental. Essa brevíssima síntese contém dados notáveis: Safo viveu na cidade mais proeminente de seu tempo; Lesbos é uma das maiores ilhas do Egeu, vizinha de antigos reinos asiáticos como a Lídia; Safo é a única mulher entre os poetas líricos arcaicos e seu nome é referido desde sua época à da Roma antiga;2 de sua lírica temos uma quantia substanciosa de composições que sobreviveram, embora em condições precárias.3 Houve outras poetas na Grécia antiga. Não se tem notícia, porém, de nenhuma contemporânea a Safo.4 Dela, Mirtes seria a poeta mais próxima. Nascida em torno de 520 a.C., ela foi, segundo fontes antigas, mestra de Píndaro (séculos VI-V a.C.) e de Corina; e todos os três são poetas líricos corais provenientes da mesma região continental grega, a Beócia.5 Destaco que há um fragmento de Corina, o Fr. 664(a) PMG, cujos versos citam os nomes de Mirtes e Píndaro: m°mfomh d¢ kØ ligourån Mourt¤d’ fl≈ng’ ˜ti banå foËs’ ¶ba Pindãroi pÚt ¶rin
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... censuro também a de clara voz, Mirtes, porque, sendo mulher, com Píndaro entrou em disputa.
Apesar dessa referência, a ligação entre essas figuras e a questão da contemporaneidade delas permanece não comprovada, pois depende de mais informações biográficas sobre os três — de que ainda não dispomos — e da solução do debatido problema da datação de Corina, para quem há duas possibilidades bem distintas em termos cronológicos e de contexto histórico: o século V a.C., no período clássico, e o século III a.C., no helenístico.6 A primeira opção apóia-se em “fundamentos modestos”, afirma Albin Lesky, na História da literatura grega (1995, p. 209): relatos tardios de forte sabor anedótico e os versos de Corina acima citados — que pouco podem revelar. A segunda, na análise da ortografia dos papiros dos séculos I e II d.C. que preservaram os fragmentos da poeta, o que também não constitui uma base realmente sólida para a argumentação.7 E é notável ainda este fato, que em nada contribui para esclarecer a datação: o nome de Corina não ocorre em citações antes de 50 a.C.8 Ou seja, temos versos dessa poeta,9 mas é difícil estudá-los, na medida em que não encontramos segurança para situá-los historicamente. Lembro, aqui, os nomes de outras mulheres da poesia grega antiga, das quais temos pouquíssimos fragmentos e/ou apenas o registro histórico-biográfico: Telessila (Argos, séculos VI-V a.C.), Praxila (Sícion, século V a.C.), Erina (séculos IV-III a.C.),10 Moiró (Bizâncio, século III a.C.), Anite (Tegéia, séculos III-II a.C.) e Nóssis (Lócris, século III a.C.?).11 Essas e as poetas já aqui referidas figuram num epigrama da Antologia grega ou palatina — compilação de 15 livros de epigramas datados dos séculos VII a.C. ao V d.C. — atribuído a Antípatros de Tessalônica (século I a.C.), que diz: Tãsde yeogl≈ssouw ÑElik∆n ¶yrece guna›kaw Ïmnoiw ka‹ Maked∆n Pier¤aw skÒpelow, PrÆjillan, Moir≈, ÉAnÊthw stÒma, y∞lun ÜOmhron, Lesbiãdvn Sapf∆ kÒsmon ™#plokãmvn, ÜHrinnan, Tel°sillan égakl°a ka‹ s°, KÒrinna, 56
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yoËrin ’Ayhna¤hw ésp¤da melcam°nan, Noss¤da yhlÊglvssan fid¢ glukuax°a MÊrtin, pãsaw éenãvn ™rgãtidaw sel¤dvn. ’Enn°a m¢n MoÊsaw m°gaw OÈranÒw, ™nn°a d’ aÈtåw Ga›a t°ken ynato›w êfyiton eÈfrosÊnan. Estas mulheres de divinas línguas o Hélicon nutriu — e o rochedo macedônio de Piéria — com hinos: Praxila, Moiró, Anite eloqüente, feminino Homero, Safo, adorno das lésbias de belos cachos, Erina, Telessila muito gloriosa e tu, Corina, o impetuoso escudo de Atena cantando, Nóssis, de feminina língua, e Mirtes, doce de ouvir — todas fazedoras de eternos escritos. Nove Musas do grande Urano, e nove mesmas Gaia pariu para imperecível alegria dos mortais.12
Das composições poéticas de oito das nove poetas referidas nos versos acima, quase nada ou nada restou. Pierre Waltz, responsável pelo estabelecimento do texto grego do epigrama em Anthologie grecque — Tome VII, sintetiza bem essa situação: “Nove é um número consagrado: ele o é para o cânone das poetas como para o dos poetas líricos. [...] A sorte que presidiu a destruição das obras da Antigüidade foi particularmente cruel com as poetas. Das nove, ‘para imperecível alegria dos mortais’, somente Safo nos é conhecida, ainda que imperfeitamente” (1957, p. 12). Diante de tudo isso, o caso de Safo configura-se como exceção — seja pela data em que viveu, seja pela extensão de seu corpus, seja pelo seu renome e pelo seu sexo, ou ainda pela força e pelo teor de sua poesia. Neste capítulo, centralizo as atenções num dado supervalorizado pelos adeptos dos women studies, tão em voga na crítica literária: Safo foi uma mulher e poeta que compôs textos de conteúdo inegavelmente erótico no qual circulam outras mulheres, o que motivou e motiva muita especulação. Conseqüentemente, torna-se impossível passar à análise dos fragmentos da poeta lésbia sem refletir sobre a condição da mulher e a sexualidade no período arcaico grego. No caso da condição da mu57
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lher, é preciso, ainda, considerar alguns desdobramentos: como entender que uma mulher naquela época tenha sido poeta e tenha obtido desde cedo tamanho renome? Como teria sido a educação de Safo? Saberia ela ler e/ou escrever? E quanto às mulheres em geral, o que se pode dizer sobre sua vida social e sobre sua educação?
Em torno da condição social da mulher grega A Grécia arcaica caracteriza-se por um contexto turbulento e instável no qual as cidades-Estado, de origens étnicas diversas — dórica, lésbio-eólica, jônica —, se comportavam diversamente em relação às suas mulheres.13 Crêem alguns estudiosos que a casa (o‰kow, oi)kos), durante muitos séculos na história social grega, se constituiu como o espaço feminino por excelência. Nela, cumpria à mulher inspecionar as tarefas domésticas, das quais ela executava a confecção de roupas e tapetes, costurando e manejando o tear, fundamentalmente.14 Além disso, a mulher deveria obedecer a regras de comportamento ditadas pelos homens, as quais objetivavam, em última instância, mantê-la sob controle.15 Isso porque os gregos consideravam a mulher, dentre outras coisas, um ser volúvel, sem capacidade de controlar seus impulsos, vulnerável aos ataques do desejo, da paixão.16 Sinal disso seria, por exemplo, a função da procriação que relaciona a mulher aos elementos líquidos — de caráter fluido, amorfo e inconstante — e à capacidade de transformação; em outras palavras, a reprodução aproximaria a mulher da natureza — uma força imprevisível.17 Assim sendo, o casamento, etapa crucial na vida feminina e “já uma realidade social afirmada” nos poemas de Homero,18 era percebido como a forma pela qual “o homem pode controlar o ero#s selvagem das mulheres e assim impor uma ordem civilizada ao caos da natureza”.19 Sua realização conferia respeitabilidade e legitimidade à condição social da mulher. Esse cenário é montado em muitos estudos. Todavia, há fortes indícios, conservados em fontes arqueológicas, por exemplo, de que é 58
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preciso relativizá-lo mesmo quando são considerados períodos mais remotos da história grega do que o arcaico. Jon-Christian Billigmeier e Jude A. Turner, no artigo conjunto “The socio-economic roles of women in Mycenaean Greece”, observam: Os textos do Linear B [tábuas em que estão conservadas inscrições em micênico datadas por volta do século XIV a.C.] de Cnossos, Pilos, Micenas e Tebas envolvem apenas atividades públicas que concernem às autoridades palacianas. Parentesco entre indivíduos é às vezes mencionado, mas a vida familiar não é discutida. Assim, nós nada aprendemos sobre o trabalho das mulheres na casa. Por outro lado, numerosas ocupações femininas fora da casa aparecem nas tábuas. Essas ocupações se dividem em dois agrupamentos principais: 1) artesãs e outras mulheres que fazem trabalhos manuais que exigem ou não habilidade e 2) mulheres sacerdotais (1992, p. 3, grifo meu).
Há, portanto, evidências consistentes de que, nos tempos da civilização micênica, a situação social feminina era bastante diversa daquela das mulheres da Atenas do século V a.C., para as quais a regra era o confinamento na casa.20 De fato, segundo os helenistas, a análise das tábuas do Linear B, embora nada revele sobre as atividades domésticas das mulheres, mostra-as exercendo uma série de atividades externas. Na citação, Billigmeier e Turner identificam dois grupos que agregariam tanto mulheres de baixa extração social — sobretudo no primeiro e mais numeroso deles — quanto de alta extração — principalmente no segundo grupo (p. 6). E os dois estudiosos ainda identificam um grupo de mulheres seculares “de alta posição social”, mas que “aparecem em poucos lugares nas tábuas” (p. 9). Reproduzo a síntese que encerra o artigo: Essa revisão detalhada das evidências sobre o status socioeconômico das mulheres nas tábuas do Linear B sugere que as mulheres eram uma parte essencial da força de trabalho micênico-grega [...]. Nas classes mais altas, sacerdotisas e outras mulheres sacerdotais eram tão proeminentes quanto seus equivalentes masculinos. Esses fatos [...] sugerem que as mulheres 59
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na Grécia micênica podem ter desfrutado de uma condição social mais igualitária do que a da Hélade clássica (p. 3).
Olhando para épocas posteriores, o que ficou na literatura grega — um conjunto de gêneros e subgêneros poéticos e prosaicos cujas especificidades devem ser consideradas —, predominantemente realizada por homens, é um olhar pessimista, cuja intensidade varia de autor para autor e de texto para texto, mas que apreende a mulher, que é o outro, com desconfiança, pois esse objeto é estranho, diferente, desconhecido, intrigante e potencialmente perigoso.21 Na vida cultural da era arcaica, a mulher aparece de duas formas. Enquanto tema das composições líricas de poetas jâmbicos como Semônides de Amorgo (meados do século VII a.C.), ela é pintada com as cores próprias desse subgênero caracterizado pela zombaria, pela sátira, pelo humor cômico e pesado; nas tragédias, há certa ênfase na “selvageria feminina”.22 Enquanto poetas, conquistaram respeito. Mas a extensão dessa frase deve ser relativizada mesmo para o caso de Safo, “a mais admirada de todas as poetas gregas”.23 De qualquer modo, a ciência de que, na Grécia arcaica e depois, existiram várias poetas líricas suscita a questão da educação das mulheres na Antigüidade. Crêem alguns que em lugares como Lesbos e Esparta, onde as mulheres pareciam desfrutar de considerável liberdade, havia uma espécie de sistema educacional, ao menos para as jovens aristocratas, destinado a prepará-las provavelmente para o casamento, para o bom desempenho do papel social, inclusive o da esposa, e para a vida sexual e a reprodução.24 Veja-se a afirmação de Curtis Bennett, no artigo “Concerning ‘Sappho schoolmistress’”: “Deve ter havido um raro grau de igualdade sexual e cultural em Lesbos para que Safo emergisse, florescesse, e alcançasse proeminência como poeta por toda a Grécia. [...] Para tornar-se uma poeta, Safo teve de ser treinada, em expressão e composição, e nós naturalmente suporíamos que tal treino era aquele de outras meninas aristocráticas de Mitilene” (1994, p. 346). Claude Mossé, em La femme dans la Grèce antique, repara que, em se tratando de Lesbos, há que se considerar um dado relativo ao
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contexto histórico arcaico e à sua localização geográfica, no mar Egeu, a poucos quilômetros da antiga Lídia (atual Turquia): As cidades da costa ocidental da Ásia Menor e das ilhas, em contato com o mundo oriental, eram, se não as mais ricas, ao menos as mais brilhantes. Foi nesses locais que se desenvolveram as primeiras especulações filosóficas, lá que foram elaborados os diferentes gêneros poéticos. E não é surpreendente lá encontrar espíritos esclarecidos não apenas entre os homens, mas mesmo em certas mulheres, como a muito famosa Safo, originária de Mitilene, na ilha de Lesbos, e poeta de grande renome (1991, p. 42).
Acerca da cidade de Mitilene e de sua suposta atmosfera de refinamento cultural, há ainda um relato interessante, embora tardio, que testemunharia maior abertura e liberdade da sociedade aristocrática da ilha. Refiro-me a uma passagem da História variada do grego Eliano (c. 170-235 d.C.), em que se lê (livro VII, 15): ÑHn¤ka t∞w yalãtthw ∑rjan Mutilhna›oi, to›w éfistam°noiw t«n summãxvn timvr¤an ™ke¤nhn ™pÆrthsan, grãmmata mØ manyãnein toÁw pa›daw aÈt«n, mhd¢ mousikØn didãskesyai, pas«n kolãsevn ≤ghsãmenoi barutãthn e‰nai taÊthn ™n émous¤& ka‹ émay¤& katabi«nai. À época em que as pessoas de Mitilene tinham a supremacia sobre o mar, estabeleciam esta punição aos aliados que desertavam: proibiam as crianças destes de aprender a ler e a escrever e de receber uma educação musical. Eles consideravam, com efeito, que esta era a mais pesada das punições: viver na ignorância e afastado das Musas.25
Esse relato se refere à época em que viveu Safo e durante a qual governava em Mitilene o tirano Pítaco. Hermann Fränkel, em Early Greek poetry and philosophy, acredita que nele se atesta, na Lesbos arcaica, uma tradição de “cultivo da poesia e da música [...]” (1975, p. 175), pois mostra que a sociedade da capital lésbia prezava a educação musical e o ensino da escrita e da leitura. Talvez “as crianças” (toùs 61
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pai)das) implique meninos e meninas,26 o que ajudaria a explicar a própria existência de uma poeta do quilate de Safo na ilha. Todavia, sobre esse relato de Eliano e de outros de seus contemporâneos, Kevin Robb, em Literacy and paideia in ancient Greece, faz uma advertência importante: “Não se pode confiar nas referências a escolas antigas em fontes helenísticas tardias [...]” (1994, p. 208, nota 3). Muito embora seja tentador acreditar em Eliano, trata-se de uma evidência não apenas muito posterior ao tempo de Safo e Pítaco, mas de caráter literário e lendário, demasiado suspeita do ponto de vista factual. Não é fácil avaliar qual a situação social da mulher na Grécia arcaica, um mundo culturalmente bastante regionalizado. Mais complexo ainda, diante da falta de evidências, é avaliar qual seria o quadro apresentado pela ilha de Lesbos. Entre as indagações que o assunto suscita, uma parece saltar à frente de todas: como era a educação das mulheres? Elas eram ensinadas a ler e a escrever? Se sim, as poetas como Safo faziam uso dessas habilidades? Por trás dessas, palpita a questão da “oralidade vs. escrita” na Antigüidade, para a qual são vagas as respostas. Nela não pretendo centrar-me, mas tampouco posso ignorá-la. Declara Robb: “A Grécia arcaica era uma cultura de ouvintes, não de leitores habituais: isso é hoje geralmente reconhecido” (1994, p. 4). Enfatizei que tanto o mundo de Safo quanto aquele que a precedeu eram eminentemente orais. Apesar disso, é justamente nos primórdios do período arcaico que se localiza a reintrodução da escrita na Hélade. E por que “reintrodução”? Porque a história da escrita na Grécia dividese em dois momentos. A escrita aparece pela primeira vez para nós nos textos do Linear B (século XIV a.C.),27 um sistema de escrita micênico que, segundo JeanPierre Vernant, em As origens do pensamento grego, consistiria na adaptação de um sistema anterior, o minóico Linear A,28 realizada pelos “escribas cretenses, postos ao serviço das dinastias micênicas” então dominantes (1998, p. 30). Todavia, após a decadência de Micenas, a escrita desaparece (c. 1050 a.C.), embora não em definitivo. Entre os séculos IX-VIII a.C.,29 um outro e diverso sistema de escrita é reintroduzido na Hélade: o alfabeto grego, adaptado do fenício.30 E o 62
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que teria provocado esse acontecimento? O comércio marítimo entre gregos e fenícios, diz a tese principal e mais aceita.31 E quanto ao progresso desse sistema na Grécia antiga? As opiniões dos especialistas nem sempre coincidem, mas parece ser consensual a impressão de que, após sua reintrodução, a escrita não se espalhou largamente, e tampouco a leitura, porque a cultura helênica era predominantemente oral e era a essa oralidade, alimentada pela memória, que cabia registrar, preservar e dar a conhecer o passado — a história, as tradições míticas e a “glória imperecível” (kl°ow êfyiton, kléos áphthiton) de suas personagens imortalizadas pela épica. 32 William Harris, em Ancient literacy, enfatiza quão limitado era o uso da escrita e quão pequeno era o número de pessoas que a dominavam; Harris declara ainda que, da Grécia arcaica ao Império romano, os antigos foram, sim, usando a escrita, porém mantiveramse, sempre, muito dependentes da “comunicação oral” (1989, pp. 2046). 33 Marcel Detienne, em A invenção da mitologia, afirma que “a descoberta de uma técnica da escrita alfabética não trouxe mudanças imediatas” (1998, p. 60). 34 Os textos, na Antigüidade, circulavam com o auxílio da voz e da memória, o que implicava a inexatidão nas reproduções, salienta Detienne: “O ouvido é infiel e a boca é sua cúmplice. Frágil, a memória é igualmente enganadora: ela seleciona, interpreta, reconstrói” (p. 105).35 Na Grécia, escrita e oralidade conviveram, esta predominando sobre aquela. O acesso à escrita era restrito e limitava-se aos mais abastados, diz ele: “[...] sabemos que a cidade grega nunca instituiu nem impôs um sistema de educação escolar. As primeiras escolas de que temos registro surgiram por volta de 490 a.C. e se edificavam fora do espaço político. O ler e o escrever dependem da iniciativa privada, e a alfabetização é abandonada aos cidadãos que desejassem e que, provavelmente, possuíam tanto meios quanto tempo para tal” (p. 64). Nesse quadro, as mulheres aparecem marginalizadas e excluídas, em sua grande maioria; o caso de Safo, repito, excepcional, pode ser explicado em parte pela provável alta posição social de sua família em Lesbos. É difícil, porém, dizer algo além disso, uma vez que as infor63
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mações sobre as mulheres são parcas, ainda mais no que se refere às escolas, que, quando atestadas ou referidas, são de meninos. Talvez, então, mesmo na Atenas dos séculos V e IV a.C., as mulheres permanecessem afastadas da escrita e da leitura, com a exceção das cortesãs (ßtairai, hétairai) e das nobres, como a Fedra da tragédia Hipólito, de Eurípides (c. 485-406 a.C.), exemplificaria.36 Esse cenário não surpreende, pois, à medida que Atenas se urbanizou, mais excluídas de atividades ao ar livre, sociais e intelectuais e mais confinadas em casa foram as nobres mulheres da sociedade aristocrática masculina.37 Pode-se ver o confinamento e a exclusão social como empecilho ao seu acesso às letras, mas, para Robb, por exemplo, essa situação pode, ao contrário, ter favorecido a educação das mulheres: “[Elas], precisamente porque eram forçadas à reclusão em Atenas, tinham, como algumas figuras literárias da Nova Inglaterra do século XIX, muito mais motivo para se envolverem com livros e se tornarem alfabetizadas, se possível. Um irmão ou um escravo instruído podem ter sido chamados a ajudar” (1994, p. 208, nota 6). Embora válido, há que se considerar que para o argumento contrário, o de que a exclusão e o confinamento social significaram um obstáculo à aprendizagem da escrita e/ou leitura, é eloqüente — se não for mero acaso — o fato de que, entre as poetas mulheres cujos textos e/ou nome sobreviveram, nenhuma é da Ática,38 mas, sim, de outras regiões gregas, onde suas vidas seriam, de alguma forma, mais livres. Declara Lesky: “A Beócia e o Peloponeso, mas não a Ática, oferecemnos os nomes de poetisas cuja recordação perdurou longo tempo. Assim se manifesta uma posição diferente, mais livre, da mulher, que a que conhecemos no mundo de Atenas” (1995, p. 210). Nas representações iconográficas dos vasos atenienses, feitas por pintores que, “como bem se sabe, gostavam de representar todos os aspectos da vida diária da cidade”,39 as figuras femininas que mais aparecem associadas à escrita e/ou à leitura são poetas como Safo e deidades como as Musas. Susan G. Cole aborda essa questão ampliando o quadro em “Could Greek women read and write?” (1992). Subjaz à interrogação desse título outra já aqui formulada: Safo sabia ler e/ou escrever? Não há como responder a essa questão; pode64
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se apenas refletir sobre ela a partir dos escassos dados acerca da educação feminina na Grécia no que se refere ao ensino da escrita e da leitura, duas habilidades que, na Antigüidade, são separadas: a primeira “não implica automaticamente” a segunda, e vice-versa, conforme lembra Cole (p. 220). Acredita-se que o acesso às duas habilidades era não somente muito restrito, mas relacionado à posição social dos indivíduos. 40 A leitura limitava-se a poucos textos — poemas, inscrições e alguns documentos — e era feita em voz alta, pois as letras nada mais eram que o registro fonético da sua realidade oral. Nos vasos gregos onde estão representados, os livros “são usados não para a leitura solitária, mas como auxílios para a recitação”;41 nas representações de figuras femininas, é típico o retrato de uma mulher que lê para uma moça ou para um grupo de mulheres. Uma dessas leitoras é Safo, mas, segundo Cole, o vaso que a retrata “pretende, certamente, comemorar a famosa poeta e não pode ser considerado uma representação de uma cena familiar ou tipicamente doméstica” (1992, p. 224).42 De qualquer modo, a idéia de que Safo é um caso notório de exceção à regra — uma exceção que sublinha a exclusão das mulheres da cultura e da educação43 — repete-se no ensaio de Cole, que ressalta: mesmo em vasos onde figuram cenas domésticas, jamais as mulheres aparecem escrevendo. Sobre a educação regular das jovens, nada se sabe até a era helenística (323-31 a.C.), quando surgem evidências de que as moças nobres se reuniam em escolas a fim de aprender a ler e escrever e de estudar poesia. E quanto aos poetas arcaicos, será que faziam uso da escrita? Geoffrey S. Kirk, em The Iliad: a commentary, diz isto sobre a “possível contribuição da escrita” na composição do épico (1995a, p. 10): Se a linguagem artificial da Ilíada foi formada no período que durou do final da era do Bronze, ou pouco antes, até o tempo de Homero, o século VIII a.C., então ela foi formada, em sua maior parte, num ambiente de não-escrita e por aoidoi, éoido¤, cantores ou bardos, algo como Fêmio e Demódoco na Odisséia. Isso se confirma pelo sistema formular altamente desenvolvido do qual tanto a linguagem quanto o estilo de Homero depen65
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dem. E, no entanto, é um fato curioso que um novo tipo de escrita, baseado no desenvolvimento do alfabeto, começou a aparecer na Grécia ou um pouco antes, ou mesmo durante a vida do próprio Homero. Naturalmente, esse fato levanta uma questão: se Homero usou essa nova escrita, na verdade, se toda a criação do épico monumental, em algum sentido, dependeu dela (pp. 10-11).
Segundo Kirk, essa questão não é importante para o estudo da Ilíada ou para a biografia de Homero ou, ainda, para a consideração dos “elementos históricos no épico”, pois é indiscutível que o arcabouço e a arquitetura do poema se estruturam pelas técnicas de composição oral (p. 11). Jesper Svenbro, em Phrasikleia, afirma acreditar no uso da escrita em Homero, mas faz uma ressalva que vai no sentido do que afirma Kirk: a forma escrita da épica homérica não é senão uma transcrição tardia (século VI a.C.) de poemas que remontam ao século VIII a.C. e, pertencendo a uma tradição oral antiga, são arquitetados por estruturas e técnicas de composição da oralidade, tais como as expressões formulares, os epítetos fixos, e outros recursos mnemônicos (1993, pp. 27-30).44 Ademais, Kirk sublinha que a Ilíada é um épico que “foi concebido para uma audiência que ouve, uma vez que não é possível que a difusão da escrita tenha sido tal, por volta de 700 a.C., que permitisse uma proliferação de cópias e leitores” (1995a, p. 12). Saber se Homero se serviu da escrita nos auxiliaria a melhor compreender a história da escrita alfabética e as tradições oral e escrita, ressalta Kirk: “Minha própria opinião sempre foi a de que Homero fez pouco uso, se tanto, da escrita, [...] mas essa opinião poderia ser provada equivocada por uma nova evidência em qualquer tempo, e seria imprudente, bem como inútil, argumentar, de novo, longamente, a seu favor” (p. 11). A inclinação contrária de Kirk ao uso da escrita na Ilíada, ainda que feita de modo discreto e prudente, soma-se a outras posturas similares e mais abertamente afirmadas. Todavia, o historiador Oswyn Murray, por exemplo, em Early Greece, não crê “implausível” pensar que, no fim do século VIII a.C., os poetas épicos já gravavam seus poemas, para preservá-los, na forma escrita e usavam tal técnica como auxílio 66
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no processo de composição oral (1993, p. 19). Em “The spoken and the written word”, William C. Greene defende que os poetas épicos — até mesmo o da Ilíada e da Odisséia — faziam “uso limitado da escrita, no mínimo de notas (hypomnemata) para gravar as linhas gerais e a estrutura dos poemas que antes cantaram” (1951, pp. 30-31). Haiganuch Sarian, em “A escrita alfabética grega”, observa: Os poemas homéricos foram compostos em ambiente da Jônia asiática, entre o fim do séc. IX e o fim do séc. VIII a.C. Pressuporiam o uso da escrita? Tal é a questão eternamente debatida entre os homeristas que discorrem sobre a passagem da oralidade à escrita no tocante à Ilíada e à Odisséia. No estágio atual do nosso conhecimento, por mais importância que se queira dar à força da tradição oral e à capacidade mnemônica dos aedos, não se pode negar que os poemas homéricos tenham sido fixados pelo menos em algumas de suas partes, por escrito. E esta escrita foi necessariamente a escrita alfabética que na segunda metade do séc. VIII a.C. já havia atingido um momento de evolução suficiente para a conotação métrica, como testemunham as inscrições da enócoa do Dípylon e da “taça de Nestor” (1998-1999, p. 164).45
Volto a Kirk uma vez mais, somente: Que Homero usou a escrita para criar, em pessoa ou através de um escriba a quem ele ditava, toda a Ilíada, para seus propósitos e não para um público leitor, parece improvável por estas razões: (a) o alfabeto era novidade; (b) as indicações de que no tempo de Homero a escrita era usada para simples propósitos práticos; (c) a evidência sugerida por Hesíodo, Arquíloco e os pré-socráticos milésios de que o uso da escrita para a composição literária se desenvolveu gradualmente; (d) o provável alto custo e a disponibilidade errática do papiro, a dificuldade do peso e do desajeito dos rolos de papiros (dos quais um número enorme seria necessário para acomodar toda a Ilíada), especialmente quando escritos, provavelmente, em grafia grande e maiúscula, e a implausibilidade de tal enorme experimento em produção de livro nos mais iniciais dias da escrita. Essas objeções não se aplicam à possibilidade de que Homero tenha usado a escrita numa escala menor para listas de temas e tópicos, ou até para os esclarecimentos a serem feitos, por exemplo, num discurso longo e complicado (1995a, p. 13). 67
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O helenista mostra dificuldade em aceitar a escrita em Homero que não seja restrita a um uso mínimo. Aqueles que similarmente se posicionam, aceitando ao menos um uso limitado da escrita na épica homérica com base em sua impressionante extensão e na época da reintrodução da escrita na Grécia, pensam que tal uso se daria de forma progressivamente desenvolvida, da lírica em diante. Svenbro chega a defender que os poemas de Safo foram escritos à sua época e, mais, que a poeta interferiu nesse processo, escrevendo-os ela mesma (1993, pp. 145-59). Diz o helenista: Um grego que vivesse por volta de 600 a.C., se refletisse sobre o problema de registrar o poema sob a forma escrita, provavelmente consideraria a questão em termos de uma transcrição de algo que já tinha uma existência socialmente reconhecida e que tenha sido tecnicamente controlado num estado oral ou memorizado. Considerar a transcrição como uma operação que tornava o poema duradouro e famoso não seria necessário; a tradição oral era bastante capaz de fazer isso, sem o auxílio da escrita (p. 146).46
Ainda que Safo soubesse escrever e/ou ler, o registro escrito dos seus poemas será tão-somente sua transcrição? Ou será mais que isso? Dificilmente, pois uma leitura atenta aos elementos estruturais dos fragmentos dá a perceber que é a oralidade que os gera e sustenta. Safo compôs canções oralmente, não escreveu poemas no sentido moderno.
Considerações sobre a sexualidade feminina “Que lugar tinham o amor e a sexualidade na vida da mulher grega? A essa questão não é fácil responder”, afirma Mossé (1991, p. 155). Refletir sobre ela, contudo, faz-se necessário não apenas por ser Safo uma poeta-mulher na Grécia arcaica, mas pelo intenso erotismo e forte presença de personagens de seu sexo em sua lírica — o que, no decorrer dos séculos, tem incomodado os helenistas. Afinal, como se explica que uma mulher tenha podido se expressar como Safo o fez?
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Uma das razões do estranhamento patente na pergunta é termos como retrato modelar da vida das mulheres gregas aquele da Atenas clássica, cuja sociedade, até onde se sabe, não produziu uma só poeta, conforme antes frisei, e cujas mulheres estavam fadadas à exclusão, pois sua respeitabilidade dependia, fundamentalmente, do recato, da modéstia, da invisibilidade, do silêncio público, da reclusão em casa, da observância dos costumes definidos pelo universo masculino dominante. Apenas uma esfera de atuação civil lhes era permitida em Atenas: a religiosa, da qual participavam ativamente em funerais, casamentos, rituais e festivais públicos e privados.47 Essa descrição ganha sentido se for considerada a visão dos gregos sobre as mulheres, revelada não só na literatura, mas também nos escritos médicos. A mulher, cujo corpo é mais prolífero em líquidos do que o masculino, era entendida como um “ser úmido” dos pontos de vista psicológico e fisiológico. Isso se amplia no pensamento grego segundo o qual, ressalta Carson (1990, p. 137), “a condição mais saudável para um ser humano é a seca, contanto que não seja excessivamente seca” — um consenso expresso em Heráclito (séculos VI-V a.C.), Hipócrates (século V a.C.) e Aristóteles (século IV a.C.); além de saudável, tal condição carrega a idéia da estabilidade mental. Ressalte-se que, além da umidade, a temperatura do corpo distingue homens e mulheres: estas, frias; aqueles, quentes. Assim, o desejo, que aquece, é mais poderoso quando atinge as mulheres, criaturas úmidas e frias que não lhe conseguem resistir.48 Diante dessa realidade biológica e cultural, o casamento transforma-se numa via de mão dupla, pois se, por um lado, através dele o homem controla a mulher, por outro ele, ao iniciá-la no sexo, cria oportunidades para transgressões como o adultério. Evidencia-se, assim, a identificação da “sexualidade feminina com a promiscuidade voraz e da virgindade com o melhor momento da vida da mulher”, que, ignorando o sexo e as artes do amor, é vista com benevolência.49 O sexo, evidentemente, é necessário à continuidade da espécie. Daí que a fertilidade, um de seus aspectos, era cultuada pelos antigos que a vinculavam à agricultura e à fertilidade da terra, segundo atestam as 69
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recorrentes metáforas e analogias poéticas,50 pois, desde antes do sétimo milênio, a “sobrevivência e a prosperidade dependiam da reprodução de famílias humanas, de animais e da vegetação que os alimentava”.51 O perigo inerente à reprodução está noutra dimensão do sexo: a do prazer, do desejo e da luxúria, aos quais são suscetíveis mulheres, seres frágeis desprovidos de autocontrole, vítimas potenciais da natureza dos instintos.52 Há algo de transgressivo na natureza feminina, e isso viria de um dado da própria sociedade grega, segundo Anne Carson, em “Putting her in her place”: “A transgressão feminina começa num fato social. A mulher é uma unidade móvel numa sociedade que pratica o casamento patrilocal [...], e o homem não é. Desde o nascimento ele tem um lugar fixo no oîkos (‘casa’) e na pólis (‘cidade-Estado’), mas a mulher se move. No casamento, a esposa é levada não apenas (e talvez nem isso) ao coração do marido, mas à casa dele” (1990, p. 136). Essa transgressão abre espaço para outras; entre elas, o adultério, gravíssimo numa sociedade patriarcal, principalmente por motivos de herança e, em Atenas, de cidadania. Daí as estratégias de controle do éro#s (¶rvw, “amor erótico”) feminino: a reclusão, a opressão, a limitação de movimento físico e social, a exclusão. Como, então, explicar — retomando a pergunta do início deste item — que Safo se tenha expressado com tanta intensidade erótica e que sua lírica tenha tido repercussão nas sociedades gregas em que, no mínimo, parece ser muito forte o elemento masculino? Aventou-se a possibilidade plausível de que a poeta, decerto pertencente à aristocracia de Mitilene, respirasse ares mais leves em Lesbos, embora para Marylin B. Skinner, em “Woman and language in archaic Greece, or, Why is Sappho a woman?”, a existência de Safo comprovaria o contrário, pois seria a “evidência de que na Lesbos arcaica um grupo socialmente segregado de meninas e mulheres divisou seu próprio sistema simbólico e aparato de convenções discursivas, formalmente adaptados à expressão do desejo homoerótico feminino e exercitados na composição e apresentação de poesia oral” (1996, pp. 182-83). 70
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A lógica de que a repressão gerou um grupo fechado em si — como o suposto grupo de meninas em torno de Safo —, que funcionaria como espaço de vazão aos sentimentos, parece menos constantemente afirmada, embora seja válida, do que aquela segundo a qual a sociedade lésbia seria mais arejada; daí a própria existência da poeta e a aceitação de sua lírica.53 Todavia, ambas as possibilidades padecem da escassez de elementos históricos, o que torna difícil a argumentação a elas contrária ou favorável. E o que dizer da homossexualidade feminina? Na Antigüidade, desde, pelos menos, Aristófanes (c. 445-385 a.C.) e a comédia, a referência às lésbias e os verbos lesbiázein e lesbízein (lesbiãzein e lesb¤zein, “agir como uma de Lesbos”) conotavam luxúria e lascívia. Mais especificamente, diz Judith Hallett, em “Sappho and her social context”, tais verbos denotavam, no contexto referido, a prática de fellatio realizada por mulheres de Lesbos que a teriam inventado54 (1996, p. 129). A esse respeito, Bruno Gentili, em Poetry and its public in ancient Greece, observa: “Já na segunda metade do século V a.C. — e seu uso é certamente bem mais antigo — as palavras Lésbia ou moça de Lesbos tinham a típica conotação de fellatrix, não aquela de Lésbica no sentido moderno do termo. Lesbís e lesbiázein eram essencialmente peças de terminologia sociológica com um significado específico e inequivocamente erótico” (1990, p. 95). É muito difícil precisar a razão dessas associações entre as mulheres de Lesbos e determinadas práticas sexuais. Talvez isso se deva à fama da beleza e da sensualidade das mulheres da ilha, como foi comentado acima. Talvez, ainda, isso se deva à fama de desenvoltura nas artes do sexo — aparentemente, com o sexo oposto — atribuída às mulheres de Lesbos, que se verifica no uso do adjetivo “Lésbia” até tardiamente, em Catulo (século I a.C.) e em seu imitador, Marcial (século I d.C.), sempre em contextos heterossexuais, frisa Hallett (1996, pp. 129-30). Talvez, por fim, isso se deva a um somatório desses fatores e dos próprios poemas de Safo, dos quais alguns, observa Kenneth J. Dover, em Greek homosexuality, “se dirigem às mulheres na linguagem usada pelos erastai [os amadores] aos seus eramenoi [os amados]” (1989, p. 71
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174). Essa percepção tem levado helenistas adeptos dos gender/women/ gay studies a falarem de Safo como artista lésbica no sentido moderno e a tratarem sua poesia como atestado de seu lesbianismo, opção que teria sido feita pela poeta por oferecer “uma locação mais receptiva para o eros romântico” do que aquela oferecida pelo alegadamente menos transcendente amor heterossexual, conforme argumenta Eva Stehle, em “Romantic sensuality, poetic sense” (1996a, p. 145). Não é fácil considerar seriamente tal argumento, fruto de uma mentalidade demasiado atual e culturalmente circunscrita na luta político-social por espaços em todas as instâncias, até mesmo a acadêmica, que fragmentou a sociedade norte-americana em “minorias” esforçadas em criar identidades distintivas para legitimar seus direitos com discursos engajados e teoricizantes sobre assuntos como a literatura, que, nos últimos anos, foi dividida segundo a opção sexual do escritor, sua etnia e assim por diante. Ademais, sobre o termo lésbica, vale ressaltar o comentário de André Lardinois, em “Safo lésbica e Safo de Lesbos”: O emprego atual da palavra “lésbica” é pela primeira vez registrado em língua inglesa, em 1890. O substantivo “Lesbianismo”, relativo ao homossexualismo de mulheres, é ligeiramente mais antigo. Data de 1870. É escrito com uma letra maiúscula inicial, revelando assim o vínculo com a ilha de Lesbos, onde a poeta Safo escreveu seus cantos por volta de 600 a.C. Será justificada a relação entre a ilha de Lesbos e o homossexualismo das mulheres? Existiriam razões para crer que Safo de Lesbos fosse uma “lésbica”? É essa a Grande Questão Sáfica [...] [que] já era debatida na Antigüidade, mas os estudiosos ainda não foram capazes de chegar a um consenso. Provavelmente, jamais o consigam, não apenas porque as evidências sejam muito escassas, mas porque existe algo intrinsecamente errôneo na forma de colocar a questão (1995, pp. 27-28).55
Similarmente, Sue Blundell, em Women in ancient Greece, afirma: “A palavra ‘lésbica’ é uma invenção moderna: ela somente começou a ser usada para denotar uma mulher homossexual no final do século XIX,
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como resultado da publicidade criada por uma controvérsia acadêmica em torno da sexualidade da própria Safo” (1995, p. 83). Mas, adiante, Blundell frisa que, em textos antigos, a única “alusão clara a um comportamento homossexual de uma mulher de Lesbos ocorre num diálogo entre duas prostitutas escrito pelo satirista Luciano, no século II d.C.” (p. 82), no Diálogos das cortesãs (5). O contexto — literário, note-se — dessa alusão é muito adequado: a sátira sempre se valeu de linguagem abusiva e de liberdade para tratar do sexo. O leitor deste texto notará que jamais uso esses termos e preferirei não falar em homossexualismo, pois, muito embora predomine uma intensa atmosfera erótica na lírica de Safo — de forte presença feminina —, trata-se de literatura, não de biografia, e isso parece escapar àqueles helenistas. Ademais, a categorização de tal conceito definidor de uma opção sexual se faz a partir da oposição a “uma sexualidade normal” — a heterossexual —, que é moderna, lembra Mossé (1991, p. 156). Para estudar a homossexualidade masculina na Grécia, Dover (1989) analisa a iconografia erótica do período arcaico e, sobretudo, do clássico. É tendo por base a compreensão dessa homossexualidade que os helenistas se voltam para as mulheres. Esse espelhamento é o recurso ao qual recorre, por exemplo, Eva Cantarella, em Pandora’s daughters (1991). Por quê? Falta de evidências. Dover enfatiza quão complicado é o estudo da homossexualidade entre as mulheres, pois dela não há fontes além da poesia fragmentária de Safo e da raríssima representação iconográfica: “Que a homossexualidade feminina e a atitude das mulheres em relação à homossexualidade masculina possam ser ambas discutidas dentro de uma parte de um capítulo reflete a escassez de escritoras e artistas no mundo grego e o silêncio virtual dos escritores e artistas sobre esses assuntos” (p. 171).56 Quanto à propalada homossexualidade biográfica de Safo, o helenista sublinha: Comentários sobre as relações eróticas de Safo com outras mulheres não começam a ser feitos, até onde as evidências extensas atestam, antes dos tempos helenísticos [323-31 a.C.]. No mínimo seis comédias intituladas
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Safo foram produzidas na Atenas clássica [c. 450-323 a.C.]; numa dessas, Dífilo (Fr. 69f.) fez os poetas jônicos Arquíloco [século VII a.C.] e Hipônax [século VI a.C.] seus erastai [“amantes”]. Na peça de Antífanes (Fr. 196), ela propunha enigmas [...]. Nós nada sabemos sobre as peças em torno de Safo de Ameipsias (Fr. 16), Êfipos (Fr. 24), Ânfis (Fr. 32) e Tímocles (Fr. 30), mas o Fr. 4 de Epícrates a nomeia, juntamente com alguns poetas menores, uma autora de ero#tika (sc. canções). Menandro (Fr. 285) fala de Safo se apaixonando por Fáon, o lendário barqueiro de grande beleza [...], caçando-o e se suicidando por desespero. Hermesíanax, no final do IV século a.C., referiu-se (Fr. 7.47-50) a Alceu [séculos VIIVI a.C.] e Anacreonte [século VI a.C.] como erastai rivais de Safo; Dioscúrides 18, associando-a ao eros jovem em geral, imagina-a honrada pelas Musas, Himeneu (o deus do casamento) e Afrodite (como — em particular — a amante de Adônis) (p. 174).
Portanto, em nenhuma dessas peças parece haver menção à homossexualidade de Safo, algo que, afirma Dover, só é seguramente constatado após o século I a.C. (p. 174). Se esse dado não é conclusivo, ele ao menos relativiza ou coloca sob suspeita as referências tardias às relações eróticas entre a poeta e outras mulheres. Além disso, tal dado revela a complexidade da “questão sáfica”, sobre a qual, em “Sappho schoolmistress”, Holt Parker enfatiza: O texto de Safo está em fragmentos [...]. A linguagem é difícil, a sociedade, obscura. Voltamo-nos para os manuais e comentários para auxílio. Mas isso significa que chegamos a Safo já cegos pelas proposições largamente não examinadas de gerações prévias de estudiosos; e no caso de Safo o acúmulo de proposições é profundamente milenar e inclui comédias gregas, romances italianos e pornografia francesa. O caso é pior com Safo do que com qualquer outro autor, incluindo Homero. Pois aqui não lidamos apenas com a literatura arcaica, mas com a sexualidade; os comentários são pesadamente carregados de emoção e de nossos preconceitos. Mais importante, estamos lidando com homossexualidade (ou melhor, o que construímos como homossexualidade) e sexualidade feminina (1996, p. 149).
Os debates em torno da sexualidade e do homossexualismo feminino de Safo e de sua lírica têm rendido ao longo de séculos de estudos — e a 74
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hipérbole não é mero exagero — oceanos de tinta. Logo, esta apresentação sintética e aberta do assunto que nestas páginas julguei necessário realizar não pretende, e nem poderia, esgotá-lo. E uma vez que tais debates não constituem o cerne de meu estudo, só voltarei a eles quando a análise interpretativa dos fragmentos de Safo assim o demandar.
Notas 1
Cf. discussão acerca da datação de Safo no artigo de Di Benedetto (1982a, pp. 226-30).
2
Cf. ed. Campbell (1994, pp. 36-51), que arrola testemunhos de poetas, gramáticos e outros pensadores.
3
Cf. Campbell (1990, p. 203), entre outros. As edições mais respeitadas de Safo (PLF e V) trazem cerca de 200 fragmentos, dois quais há poucos bem preservados.
4
Cf. Cantarella (1991, pp. 73-76) e De Martino (1991, pp. 17-75).
5
Cf. ed. Campbell (1992), que ainda informa haver vagas e escassas notícias sobre duas mulheres, Cleobulina, filha do colecionador de enigmas Cleóbulo de Lindos, e Carixena, tocadora de flauta também referida como poeta em fontes que, todavia, dessa informação parecem duvidar. Nada nos restou de suas obras, quase nada se sabe de suas biografias e existências históricas; a datação de ambas oscila entre os séculos VI e V a.C.
6
Cf. West (1970b, pp. 277-87), Lefkowitz e Fant (1987, p. 7) e Campbell (1992, pp. 1-3). Segal (1990b, p. 240) enfatiza: “A questão da data de Corina permanece aberta”. No LSJ, na parte em que estão listados os autores e trabalhos gregos, a data de Corina é dada como século VI a.C.; porém, no suplemento revisto inserido ao final da edição de 1996 do dicionário, há esta correção: “[...] para ‘VI a.C.’ ler ‘?V-III a.C.’”.
7
Cf. a edição de Safo e de outros poetas líricos publicada por Campbell (1998, p. 408).
8
Cf. Campbell (1992, pp. 1-3 e pp. 18-69), Segal (1990b, pp. 239-41).
9
Sobre a quantidade de textos de Corina, Segal (1990b, p. 239) nota que há “porções significativas de três poemas preservados em fragmentos papiráceos”. Mas sua produção teria sido grande; segundo o léxico Suda (K 2087), compilado no século X d.C., a poeta Corina “escreveu (¶grace, égrapse) cinco livros” (ed. Adler, 1989, vol. III, pp. 157-58).
10
Sua origem é debatida. Lefkowitz e Fant (1987) preferem Telos; Snyder (1989), a região da ilha de Rodes.
11
Cf. Lefkowitz e Fant (1987), West (1994) e Segal (1990b, pp. 239-41). Sobre Erina, cf. Cavallini (1991, pp. 117-35); sobre Nóssis, cf. Skinner (1989, pp. 5-18; 1991, pp. 79-96). Tanto Cavallini quanto Skinner estudam a influência de Safo nessas poetas.
75
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12
Livro IX, Epigrama 26. Texto grego: ed. Waltz (1957).
13
A esse respeito, cf. Mossé (1991, pp. 80-88).
14
Cf. Buxton (1996, pp. 114-16) e o Calame (1999, pp. 110-29).
15
Cf. Lefkowitz e Fant (1987, p. 3) e Vernant (1999, pp. 48-70).
16
Cf. Carson (1990, pp. 135-69).
17
Sobre o par opositivo “mulher/natureza vs. homem/cultura”, cf. Redfield (1982, p. 185) e Foley (1992, pp. 140-48). Calame (1999, p. 117) declara: “No que diz respeito à mulher, o casamento grego era certamente concebido (sobretudo pelos homens) como uma passagem da ‘natureza’ para a cultura, mediada pela união dos sexos”.
18
Mossé (1991, p. 20).
19
Carson (1990, p. 143).
20
Cf. sobre a mulher ateniense o estudo de Mossé (1991, pp. 49-61).
21
Cf. as considerações de Bergren (1983, pp. 69-75) e Mossé (1991, pp. 95-100), por exemplo.
22
Cf. Carson (1990, p. 144).
23
Cf. Pomeroy (1976, p. 53).
24
Cf. Burn (1960, pp. 98-99).
25
Texto grego: ed. Wilson (1997).
26
Cf. LSJ. A mesma tradução é adotada por Lukinovich e Morand (1991) e Wilson (1997). Cf. Lefkowitz e Fant (1987).
27
Cf. Burkert (1998, p. 16).
28
Treuil (1998-1999, pp. 105-7) lembra que o Linear A é o segundo sistema de escrita a aparecer em Creta em torno de 1750 a.C. — o primeiro era a “escrita cretense hieroglífica”, usado a partir de cerca de 2000 a.C. Esse Linear se teria difundido, demonstram documentos arqueológicos, para as ilhas Cíclades do oeste, para Citera e para a Lacônia, não sendo, portanto, um sistema restrito ao Palácio de Cnossos.
29
Essas datas são até hoje debatidas. O século VIII a.C. é a mais citada, mas Vernant (1998, p. 31), por exemplo, prefere dizer “fim do século IX”. Sarian (1998-1999, pp. 159-77) argumenta convincentemente, com base em fortes evidências arqueológicas, que devemos “recuar a data da origem do alfabeto grego, situando-o no séc. IX a.C.”, pelo menos.
30
Cf. Sarian (1998-1999, p. 161): “[...] na verdade, quando se fala em ‘invenção’ do alfabeto grego entende-se uma ‘adaptação’ do alfabeto fenício às exigências da língua grega e, em particular, a adoção de cinco sinais determinados, que se encontravam no alfabeto fenício, para exprimir as cinco vogais que terão largo uso na língua grega”.
31
Cf. Burkert (1992, pp. 25-27) e O. Murray (1993, pp. 81-101 e 102-23). Contra essa teoria, cito Robb, que afirma: “[...] eu permaneço convencido de que gravar os
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hexâmetros em dedicatórias foi o motivo que fez existir todo o alfabeto grego. Os primeiros usos da escrita foram para realizar inscrições; o conteúdo era poesia, especificamente o hexâmetro épico” (1994, p. 8). 32
Cf. comentário de Bakker (1993, pp. 13-14).
33
Cf. também Thomas (1992, pp. 14-16), que crê em uma lenta transição da oralidade para a escrita que se foi processando do período arcaico ao helenístico. Igualmente, Skinner (1996, p. 185).
34
Ver ainda Gentili (1990, pp. 19-21). Cf. opinião contrária de O. Murray (1993, pp. 98-100).
35
No caso da lírica arcaica, normalmente há disparidades nas fontes diretas e indiretas de transmissão dos textos, bem como quando comparadas entre si.
36
Fedra, esposa de Teseu, é vítima e instrumento da vingança de Afrodite contra Hipólito, enteado da rainha por quem a deusa a faz apaixonar-se. Revelada sua paixão, ele ameaça contar tudo a Teseu; Fedra, então, comete suicídio, mas escreve antes uma carta ao marido acusando o jovem de estupro (vv. 856-90). A referência a essa carta é feita por Teseu, que, ao descobrir o corpo da esposa, indaga (vv. 856-59): “t¤ dÆ poy’ ¥de d°lto! ™k f¤lh! xerÚ!/ ±rthm°nh; y°lei ti !hm∞nai n°on;/ éll’ ∑ l°xou! moi ka‹ t°knvn ™pi!tolå!/ ¶gracen ≤dÊ!thno! ™jaitoum°nh” (“Que será essa tábua de sua querida mão/ pendendo? Quer algo novo sinalizar?/ Mas sobre nosso casamento e filhos uma mensagem/ escreveu a infeliz, estando receosa?”). Ao ler a falsa acusação de Fedra a seu filho, ele se desespera: “boçi boçi d°lto! êla!ta” (v. 877) (“Grita, grita esta carta horrores inesquecíveis”). Texto grego: ed. Barrett (1992). Cf. Harris (1989, pp. 107-8) e Hirata (2000-2001, pp. 315-22), que nota, sobre a menção às tábuas escritas: “[...] atento ao que se passava ao redor e mais propenso a introduzir em seus dramas fatos de seu tempo, Eurípides talvez estivesse simplesmente trazendo à cena uma prática que se difundia e que ele provavelmente usava” (p. 315). Vide análise de Hirata sobre o citado verso 877, que relaciona o grito — a voz — aos dizeres da carta de Fedra.
37
Cf. O. Murray (1993, p. 41).
38
Cantarella (1991, p. 75): “Na história da literatura grega, não há mulheres poetas da Ática”. Cf. De Martino (1991, pp. 17-75).
39
Robb (1994, pp. 185-86).
40
Cf. De Martino (1991, p. 70).
41
Cole (1992, p. 223). Para leitura em voz alta e em silêncio, cf. Stanford (1967) e Svenbro (1993).
42
Cf. Yatromanolakis (2001, pp. 159-68), sobre as representações de Safo em vasos datados entre 510-440 a.C., nos quais aparece o nome da poeta. Três vasos são bem conhecidos e referidos; um quarto vaso não é, e outros podem representar Safo, “mas
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como não há neles inscrição, não podemos ter certeza” (p.161). Ver ainda Edmonds (1922, pp. 1-14) e Herington (1985, p. 36). 43
Cf. Cantarella (1991, p. 71).
44
Cf. a discussão da oralidade e escrita, em Homero, Parry (1971) e os ensaios editados por Latacz (1979). Ver também o comentário de Gentili (1990, pp. 14-23).
45
Sarian (p. 162) observa que na enócoa do Dípylon (de Atenas, 740-725 a.C.) e a na “taça de Nestor” (da Eubéia, 710 a.C.) estão inscritos versos hexâmetros. Essas são evidências arqueológicas das quais se vale a autora para datar a escrita “pelo menos no final do séc. IX, se não antes” (p. 162), como já foi visto anteriormente. Cf. Robb (1994, pp. 21-54).
46
Cf. comentário de Rosenmeyer (1997, pp. 129-30) a essa citação.
47
Cf. Mossé (1991, pp. 152-53). Ver também Foley (1992, pp. 127-32).
48
Carson (1990, pp. 138-43).
49
Carson (1990, p. 147).
50
Garrison (2000, p. 10). Cf. Redfield (1982, p. 194).
51
Garrison (2000, p. 5).
52
Esse é um retrato da mulher pintado, por exemplo, na Ilíada (canto V, vv. 348-49), numa fala de Diomedes a Afrodite.
53
Cf. observações de Dover (1989, pp. 181-82), Burkert (1998, p. 105) e Calame (1997, pp. 31 e 122-23).
54
Cf. Gentili (1990, p. 95) e Lardinois (1995, pp. 40-41).
55
Encerrando seu estudo, afirma o autor (p. 50): “Podemos concluir que, no caso de Safo, estamos, no máximo, diante de relacionamentos breves entre uma mulher adulta e uma jovem prestes a se casar. Chamar de ‘lésbicas’ essas relações é um anacronismo. É impossível avaliar se a palavra se aplica à própria Safo ou à sua vida íntima. Na verdade, essa é uma questão sem sentido. Mesmo se, pelos padrões modernos, Safo devesse ser considerada lésbica, sua experiência deve ter sido muito diferente, vivendo, como viveu, em uma era diferente com diferentes noções e tipos de sexualidade”. À parte a teoria inicial, as demais considerações do helenista são de raras lucidez e prudência.
56
Cf. ainda as considerações de Mossé (1991, pp. 156-57).
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AS ILHAS DE LESBOS E CHIPRE
3 LESBOS E CHIPRE E OS P E R C U R S O S H I S T Ó R I C O - C U LT U R A I S E N T R E A GRÉCIA ARCAICA E O ORIENTE AS
ILHAS DE
O quadro de dificuldades que se viu até aqui, suficientemente complexo, deve ser ampliado por outras questões às quais o pesquisador não pode fugir, como a contextualização histórico-social e literária de Safo, de sua poesia e de sua terra, Lesbos, e a discussão das estreitas relações entre a Grécia arcaica e o Oriente, que motivaram uma série de mudanças em vários setores da vida helênica. Ignorar a força dessas relações é ignorar uma dimensão enriquecedora e fundamental para a compreensão do mundo em que viveu a poeta e do universo em torno da deusa que ela privilegiou, Afrodite, reconhecida como marcadamente oriental desde a Antigüidade.
Lesbos, a ilha de Safo São escassas as informações acerca de Lesbos à época de Safo e de seu contemporâneo, o poeta lírico Alceu. Daí a inevitável repetição e a circularidade de evidências. Posto esse fato, uma incursão pela Grécia arcaica é de grande valia para apreendermos minimamente o contexto histórico em que a poeta viveu e compôs. Carol Dougherty e Leslie Kurke, no início da obra Cultural poetics in archaic Greece, afirmam que a era arcaica foi uma “era revolucionária que testemunhou a emergência da cidade-Estado, a reintrodução da 79
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escrita e a lenta difusão dessa habilidade, a codificação dos poemas homéricos e a tendência ao pan-helenismo, a ascensão à proeminência do oráculo de Delfos, a onda do movimento colonial grego, o estabelecimento dos jogos pan-helênicos, a época dos tiranos, e o início da democracia” (1993, p. 1). Essa síntese dá uma idéia de mudança e de instabilidade. Eis aqui duas palavras-chave para o entendimento de um período marcado pela prosperidade econômica da pólis (pÒliw,“cidade-Estado”),1 cuja configuração resultou na explosão demográfica e na acentuada urbanização da sociedade rural e dos indivíduos, algo viabilizado também pelo aquecimento e expansão da atividade comercial marítima e pela colonização, da qual decorreu até mesmo a fundação de entrepostos e assentamentos gregos em regiões costeiras da Ásia Menor, no Sul da Itália e no Egito. Essenciais, tais fatores não apenas geraram riquezas materiais, mas promoveram uma aproximação entre a Grécia e o Oriente jamais vista e, assim, estabeleceram um fluxo contínuo e intenso entre esses dois universos culturais diversos que resultou, nas esferas mais variadas da vida cotidiana, em mudanças e novidades como o desenvolvimento e a reintrodução da escrita no mundo helênico, retomada, desta vez, dos fenícios, conforme foi observado no capítulo anterior. O estreitamento dos vínculos com os povos orientais levou a Grécia a experimentar, entre 750-650 a.C. — por um século, estimadamente —, um período conhecido como “orientalizante”, e suas influências na vida grega são perceptíveis nos costumes, nas vestimentas, na alimentação, na ética, nos hábitos durante os banquetes, na religião, nas técnicas, nos motivos e nas características da pintura, da escultura, da arquitetura, do artesanato e da literatura.2 Pode-se dizer que o intenso comércio marítimo com os povos orientais, a expansão colonial e o período ou “revolução orientalizante”3 são processos graças aos quais “os gregos passaram do isolamento e da pobreza comparativa a uma posição de poder e à posse e gozo da mais alta cultura”, ressalta John Boardman, em The Greeks overseas (1988, pp. 8-9). Ademais, esse cenário significou, em certa medida, o afrouxamento da rígida estrutura social em cujo topo a aristocracia se man80
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tinha e continua a manter-se, mas agora não sem a competição de homens que puderam ascender economicamente graças às mudanças referidas. Nesse contexto, surge a figura do “tirano” (tÊrannow, túrannos), uma derivação do monarca oriental, 4 crêem os estudiosos. O tirano era um líder popular, normalmente vindo da classe dominante, que tomava o poder e governava ilicitamente,5 mantendo cortes luxuosas, apoiando a expansão econômica, praticando o mecenato, estimulando as festas religiosas e “grandes trabalhos de construção e de equipamento” urbanos.6 Entre 650-550 a.C., em meio às constantes turbulências políticas, a tirania prevalecia nas principais cidades gregas, tendo-se instaurado em Mitilene, “a maior das cidades eólicas, graças ao dinamismo mental e físico de seu povo”,7 e Atenas, localidades relevantes de então. Todavia, reflete Oswyn Murray, em Early Greece, longe de trazer tranqüilidade, a tirania perpetuava o clima instável de então, devido à própria trajetória que seguiam os tiranos. Diz Murray: “[...] seu crime, aos olhos de sua classe [a dominante], era quebrar as convenções da vida política e buscar apoio no povo. Inicialmente, a tirania era uma forma popular de governo estabelecida contra a aristocracia; por uma geração, talvez, os interesses do povo e de seu governante aristocrático coincidiriam” (1993, p. 139). Depois da aliança, viria, porém, a discórdia: começavam a incomodar a ilegalidade do regime e a do tirano, este situado “à margem da moldura constitucional do conselho ou da assembléia que todas ou a maioria das cidades gregas possuíam”, nota Murray (p. 139). O povo, então, voltarse-ia para a aristocracia e, após a segunda geração de tiranos, cujas marcas eram comumente a exacerbação da brutalidade e da arbitrariedade, ocorreria a deposição do usurpador, não raro por meio da revolução. O que se pode dizer especificamente sobre a Lesbos arcaica? Poderosa no mar Egeu e muito rica, a ilha era uma das várias talassocracias do período.8 Mitilene, a cidade de maior proeminência, era governada pela aristocracia dos Pentílidas, linhagem que alegava descendência direta dos aqueus que lutaram em Tróia, pois Pentilo, o fundador do assentamento grego na ilha, seria neto de Agamêmnon e, portanto, filho de Orestes. Essa lenda bem como a força do ciclo épico 81
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troiano na tradição poética lésbio-eólica parecem relacionar-se a um fato histórico: no início do século VIII a.C., os eólios, que habitavam majoritariamente a ilha de Lesbos, atiraram-se à expansão na Trôade, sobretudo nas regiões às margens do Egeu, onde há claros sinais da presença acaia.9 Os Pentílidas, como outras linhagens aristocráticas instaladas nos governos das cidades gregas, estiveram no centro das convulsões políticas que agitaram Mitilene nos séculos VII e VI a.C. e que tinham por marcas a sucessão de tiranos e as lutas internas. Nesse quadro, destacase Pítaco, que, com o auxílio dos irmãos do poeta Alceu, chegou ao poder como tirano em cerca de 610 a.C. Embora pareça ter merecido o ódio deste, que duramente o atacou em sua lírica, e de Safo — ambos tidos, consensualmente, como membros de famílias aristocráticas daquela cidade —, Pítaco tem seu nome inserido na antiga lista dos Sete Sábios.10 Geograficamente, Lesbos é a verde e fértil terceira maior ilha do Egeu, situada bem próxima da costa da Trôade (região da atual Turquia), na Ásia Menor, onde ficava a antiga Lídia, com quem Lesbos manteve uma estreita ligação notável na lírica sáfica.11 Em termos culturais, crê-se que a existência de dois poetas como Safo e Alceu bem como evidências arqueológicas atestem na ilha uma “tradição há tempos estabelecida de refinamento cultural”.12 Em The poetic dialect of Sappho and Alcaeus, Angus M. Bowie dedica-se a provar a existência de uma tradição poética lésbio-eólica independente da dórica e da qual Safo e Alceu seriam “herdeiros” (1984, pp. 7-10) 13 — uma tese bastante razoável.14 Nomes de poetas a eles anteriores ou contemporâneos que fariam parte de tal tradição não faltam: Lesques e Terpandro (c. 700 a.C.), este tido pelos antigos como inventor da lira de sete cordas;15 Árion, cujo florescimento teria ocorrido entre os séculos VII-VI a.C.; Períclito (final do século VII a.C.); e Cépion, que “teria sido pupilo de Terpandro”. Para Bowie, não se pode duvidar da realidade histórica desses poetas, muito embora sua poesia se tenha perdido e alguns deles estejam cercados de lendas.16 Além de arrolar esses nomes, Bowie coleta e articula dados arqueológicos e his-
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tóricos para fundamentar sua tese e, principalmente, vale-se dos resultados de uma análise minuciosa do dialeto lésbio-eólico registrado em inscrições e nos próprios fragmentos de Safo e Alceu. Diante da escassez de fontes de conhecimento sobre a Lesbos arcaica, Bowie, como outros helenistas, busca aproveitar o diálogo entre literatura e história, guardadas as especificidades de cada uma, a fim de encontrar uma via de acesso àquele mundo. A que se deve tal escassez? Lilian H. Jeffery, em Archaic Greece, aponta como uma de suas causas o fato de que “nenhuma crônica dos eventos foi guardada em nenhum estado grego antes do século V a.C.” (1978, p. 34), pois, até então, a sociedade aristocrática prezava não o passado recente, mas os remotos e longínquos tempos da Guerra de Tróia, do ciclo tebano e de outras sagas preservadas na tradição épica que veiculava, oralmente, a memória dos heróis e das genealogias das grandes famílias.17 Somente no final do século VI a.C. há notícia da prosa e de homens que desejavam registrar relatos históricos mais recentes, como Hecateu de Mileto (séculos VI-V a.C.) e Heródoto (século V a.C.). À oralidade e ao verso épico, únicas formas de preservação da história, soma-se a prosa, preocupada em preservar a história recente.
A Grécia arcaica e o Oriente: entrecruzamentos A localização geográfica de Lesbos, a intensificação do comércio marítimo e a colonização motivaram o estreitamento das relações entre a ilha e as regiões vizinhas da costa da Ásia Menor, principalmente as da Frígia e da Lídia. Os frígios, segundo a tradição grega, aliaram-se aos troianos na Guerra de Tróia. Hécuba, a esposa do rei troiano Príamo, nascera na Frígia, cujo povo vinha, em parte, da Trácia, mas carregava “a herança étnica dos povos da Ásia e dos hititas”. 18 Com a decadência frígia,19 começa a aparecer na literatura grega do início do século VII a.C. o nome da Lídia, reino que ascende a partir da chegada de Giges ao poder. O lírico arcaico 83
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Arquíloco, que teria vivido entre 680-640 a.C., menciona, num de seus fragmentos, essa figura histórico-lendária, um soldado que usurpou o trono lídio e lá instalou a dinastia dos Mermnades.20 A Lídia — especialmente a capital, Sárdis — ganhou entre os gregos e outros povos a reputação de excepcional riqueza, chegando ao apogeu da prosperidade na época de Creso, o último monarca da “civilização brilhante”. 21 Ao reino que a precedeu em proeminência, a Frígia, e de cujos territórios a Lídia, em parte, se formou, também se associava a idéia da riqueza, uma vez que o ouro22 era lá abundante. Basta lembrar outro monarca histórico-lendário, este frígio, Midas, que transformava tudo aquilo que tocava, inclusive as próprias filhas e a si mesmo, no metal precioso. A riqueza lídia é atestada em estudos arqueológicos e relatos antigos que provam ter havido no solo daquele reino uma grande quantidade de ouro. Refinarias do metal teriam operado entre 600-550 a.C. e ateliês de joalheria foram revelados pelas escavações na região de Sárdis.23 Os lídios e os gregos mantiveram intenso comércio, sobretudo sob o monarca Creso, admirador da cultura grega.24 Na tradição helênica, à Lídia associam-se as túnicas luxuosas, as belas jóias, “os óleos perfumados usados nos cabelos, as essências, bálsamos e ungüentos”, a cozinha aromática, a confeitaria, a criação de jogos infantis.25 A áurea riqueza daquela civilização refletia-se, no plano da vida cotidiana, no refinado comportamento de seus habitantes, em seus costumes que, mais tarde, serão vistos com reserva pelos gregos, que os consideravam efeminados. Mas, apesar disso, essa riqueza os fascinava. Além do metal precioso, dos objetos de luxo, das técnicas artísticas, artesanais e arquitetônicas, ressalte-se que a Lídia provia aos gregos, que lá mantinham uma colônia, a rota de acesso principal para a penetração no Oriente.26 Até aqui, foram mencionadas, por sua incontestável importância no cenário cultural e político-econômico de Lesbos, Frígia e Lídia, isto é, apenas dois dos numerosos povos orientais ou, como diriam os gregos, dos “bárbaros” — leia-se, dos não-falantes da língua grega.27 Os fenícios 84
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foram antes citados devido à escrita, mas deixaram sua marca nas técnicas de construção naval, nas artes e na religião — os santuários de Afrodite em Citera e Chipre, por exemplo, seriam heranças deixadas por esse povo semítico.28 Merece menção também a Síria, “uma importante fonte de marfim de elefante”29 exportado para toda a Grécia desde a queda de Micenas e referido na lírica arcaica, incluindo a de Safo — note-se que na Lídia havia escolas para ensinar aos artesãos como trabalhar o marfim, informa Walter Burkert, em The orientalizing revolution (1992, pp. 2-3). Hoje é reconhecida a importância das relações Grécia–Oriente. Nem sempre foi assim. Por dois séculos, perdurou nos estudos clássicos, enfatiza Burkert (pp. 2-3), a “imagem de uma Grécia clássica, pura, em isolamento esplêndido” — uma imagem que se recusava a reconhecer a impossibilidade da espontânea e “milagrosa aparição de Homero” e as fundamentais contribuições do Oriente para a arquitetura helena e para a sua extraordinária cultura. Tais contribuições resultaram ainda, para os gregos, no aprendizado de novas habilidades, como a escrita, de novas técnicas de metalurgia, de trabalho com a escultura, de manufatura de jóias e na incorporação de fetiches e de motivos ornamentais artísticos, como a decoração floral. 30 A influência oriental atingiu significativamente a literatura e a religião gregas; no âmbito desta, faz-se notável na “imagem da deusa nua em pé, freqüentemente tocando seus seios”, associada às deusas Astarte, fenícia, e Afrodite;31 e, ainda, no uso de incenso em cultos sagrados, na “construção de enormes altares para oferendas” e “de templos para servirem de morada às deidades”,32 nos procedimentos adotados nos sacrifícios e nas preces — o vocabulário e a gestualidade — e na concepção dos deuses e de sua relação com os homens — a ira divina, as epifanias, as uniões amorosas, o favor divino.33 Ressalto, ainda, outra dimensão do Oriente marcante no imaginário grego: a musical. A Lídia e a Frígia são especialmente importantes no que se refere à música, pois a lira de sete cordas, cuja invenção era atribuída ao lésbio Terpandro, seria, na verdade, uma inovação lídia; 34 já o aulós (aÈlÒw), uma espécie de oboé, teria fortes traços frígios em 85
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seu desenvolvimento. Vários outros instrumentos seriam originariamente orientais: a harpa, o trompete, as castanholas. Na literatura, em particular, verificam-se “aspectos estilísticos e técnicos” da poesia oriental — certos símiles e metáforas, modelos de abertura e encerramento dos poemas, a figura do mensageiro, a descrição dos sonhos e seu papel, de banquetes, vestimentas, toilettes de deusas, jornadas de carruagens divinas e cenas de batalhas, conforme destaca Martin L. West, em The east face of Helicon (1997, pp. 168-219). A maioria das influências orientais na cultura grega aqui assinaladas, como se verá na Parte II deste trabalho, permeia sua lírica e também as representações cultuais e literárias de Afrodite, a divindade mais recorrente nos fragmentos da poeta, nos quais ela aparece quase sempre cercada por elementos desse outro universo tão próximo da ilha de Lesbos, o Oriente.
Chipre, a ilha de Afrodite: na encruzilhada de dois mundos Burkert (1992) afirma que “os gregos são os mais orientalizados dos ocidentais” (p. 129) e que Chipre foi “orientalizante” o tempo todo (p. 16). Os estudiosos, quando se voltam para essa ilha, insistem neste dado marcante de sua história e de seu universo cultural: a extrema proximidade geográfica da costa asiática, da Síria e da Palestina principalmente, o que fez de Chipre ponto intermediário onde se encontraram e se entrecruzaram, por vários séculos, as culturas helênica e orientais. Destaco, aqui, outro fato: a aderência da ilha à imagem poética de Afrodite, de Homero em diante — aderência esta que ultrapassa as fronteiras da literatura e se revela nos mitos em torno da divindade, em seus cultos, em inscrições, na iconografia e em relatos históricos antigos. Por isso, passo a traçar certas linhas gerais do panorama histórico-cultural da ilha cípria até o fim do período arcaico, durante o qual viveu Safo. Nesse panorama, a geografia é fundamental para a compreensão do “entre-lugar” Ocidente–Oriente ocupado pela ilha cípria, caminho 86
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para os povos orientais que se dirigiam às ilhas e ao continente gregos e para os helenos rumo à Síria, à Palestina e a outras regiões asiáticas. Por isso, Chipre absorveu elementos das culturas desses povos — sobretudo dos aqueus, povo de Micenas que para lá migrou em progressiva quantidade no fim da era do Bronze (c. 2600-1000 a.C.) e que se misturou à população autóctone, transformando a ilha numa espécie de caldeirão de diversidade étnica e cultural. Neste foi tão forte o ingrediente asiático que desempenhou um papel importante nas conjunções Grécia–Oriente, que os estudiosos crêem sólida a hipótese de que Chipre intermediou a transmissão e difusão até mesmo da escrita — um legado fenício adaptado — no mundo grego.35 Outro exemplo dessa intermediação cípria seria a construção de náoi (nãoi, “templos”), edificações destinadas a abrigar os deuses e suas imagens antropomórficas; o templo “no sentido de uma casa grandiosa para uma deidade que estava presente na forma de uma efígie única e marcante” era há tempos uma realidade no Oriente Próximo, de onde veio primeiro para Chipre, e depois, a partir do século VIII a.C., “espalhou-se rapidamente” por toda a Grécia.36 A localização geográfica da ilha não era seu único atrativo. Havia outros. Seu solo guardava fartas reservas de cobre que foram descobertas no Calcolítico (c. 3900-2300 a.C.), período da pré-história cípria,37 além de ouro, ferro, minérios e gemas preciosas; e suas florestas, madeira de excelente qualidade para a construção de barcos,38 bastante cobiçada pelos fenícios em especial. Graças a tais atrativos, que dela fizeram ponto de suma importância na intermediação do comércio no Egeu e no Mediterrâneo, a Chipre do mundo arcaico gozou de fortuna e prosperidade. Na população dessa ilha e, portanto, na sua cultura, fundem-se três elementos: o grego, o oriental — ambos facilmente perceptíveis — e o autóctone ou “eteocíprio”, obscuro para nós, mas atestado por inscrições encontradas em locais diferentes da ilha.39 Sobre esses primeiros habitantes identificados, que sobreviveram à chegada de novos povos a Chipre concentrando-se, isoladamente, em algumas cidades como Âmatos, Achilles Emilianidès, em Histoire de Chypre, julga que teriam vindo da costa da Anatólia para a ilha, onde 87
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se instalaram contínua e progressivamente, ao longo do quarto milenário a.C. (1963, p. 9). A presença desse povo remonta, pelo menos, ao Neolítico (c. 7500-3900 a.C.), período no qual se registra o aparecimento da cerâmica — cujas características levam a concluir que havia lá, desde a pré-história, um “comércio rudimentar com a costa sul da Ásia Menor”40 — e dos primeiros ídolos cíprios na ilha.41 Quanto aos helenos, sua presença remonta ao Bronze, quando se intensificam as atividades comerciais marítimas com o Oriente — o cobre era exportado de Chipre desde o fim do terceiro milenário a.C. — e as relações econômicas e culturais com os povos vizinhos da Síria, Palestina e Egito.42 Nos túmulos cíprios já explorados, foram encontradas armas de cobre e jóias de ouro datadas daquela época e objetos característicos da civilização minóica.43 A migração acaia para Chipre, afirma Walter Burkert, em Greek religion, “marca o início de um tempo de verdadeiro florescimento lá, que se estende mesmo para além do século XII a.C.” (1998, p. 47). Os colonos de Micenas, observa Emilianidès (1963, p. 11), trouxeram à terra cípria “o culto de seus deuses, sua arte, seus costumes e sua escrita silábica” e, além disso, sua língua, “o arcádio, foi também difundida por toda a ilha, onde a composição étnica não tardou a se modificar em benefício dos novos imigrantes, que puderam absorver o elemento indígena ou afastar os eteocíprios aos recantos mais isolados de Chipre”.44 Jean-Pierre Vernant descreve, em As origens do pensamento europeu, a colonização micênica em Chipre e seus efeitos: É no começo do século XIV igualmente que os micênicos se instalam à força em Chipre e constroem em Encomi uma fortaleza semelhante às da Argólida. De lá vão dar na costa da Síria, caminho de passagem para a Mesopotâmia e para o Egito. Em Ugarit, que faz comércio de cobre com Chipre, uma colônia cretense tinha, no século XV, determinado a cultura e até a arquitetura da cidade. Cede o lugar, no século seguinte, a uma povoação micênica assaz numerosa para ocupar um bairro da cidade. Na mesma época, Alalakh, sobre o Oronte, porta do Eufrates e da Mesopotâmia, torna-se um centro aqueu importante. Mais ao sul, os aqueus penetram até a Fenícia, Biblos e Palestina. Em toda essa região, elabora-
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se uma civilização comum cipro-micênica, em que os elementos minóicos, micênicos e asiáticos estão intimamente fundidos, e que dispõe de uma escrita derivada, como o silabário micênico, do Linear A [o sistema de escrita minóico]45 (1998, p. 19).
Chipre preservou os traços minóico-micênicos durante o período arcaico, dentre os quais Andrew R. Burn cita ainda, em The lyric age of Greece, “a monarquia, com um rei em cada cidade principal, morando num palácio de estilo minóico [...]; a carruagem, usada na guerra até o período persa; a sobrevivência, decadente e longa, do estilo micênico grandioso de pintura de vasos, com touros, pássaros, cenas de carruagens e personagens reais descansando ou se refrescando; a saga da Guerra de Tróia, e o silabário cíprio com traços micênicos” (1960, pp. 62-63). No final do Bronze, estreitam as ligações de Chipre com os povos do Egeu e a colonização micênica vai abrindo espaço para a gradual helenização da ilha. O estudioso Vassos Karageorghis, em Les anciens chypriotes, calcula que os micênicos ou aqueus, “nome que lhes deu Homero”, foram penetrando em Chipre gradual e continuamente no decorrer de um século (1991, p. 87). Sinal claro disso é que um dos mitos fundadores mais repetidos de uma das maiores cidades cíprias, Pafos, envolve um herói aqueu da Guerra de Tróia, Agapenor. Cito o relato do viajante Pausânias (século II a.C.), em sua descrição da Grécia (VIII, V, 2): ’AgapÆnvr d¢ ı ’Agka¤ou toË LukoÊrgou metå ÖExemon basileÊsaw ™w Tro¤an ≤gÆsato ’Arkãsin. ’Il¤ou d¢ èloÊshw ı to›w ÜEllhsi katå tÚn ploËn tÚn o‡kade ™pigenÒmenow xeim∆n ’AgapÆnora ka‹ tÚ ’Arkãdvn nautikÚn katÆnegken ™w KÊpron, ka‹ Pãfou te ’AgapÆnvr ™g°neto ofikistØw ka‹ t∞w ’Afrod¤thw kateskeuãsato ™n Palaipãfƒ tÚ flerÒn: t°vw d¢ ≤ yeÚw parå Kupr¤vn timåw e‰xen ™n Golgo›w kaloum°nƒ xvr¤ƒ. Agapenor, filho de Anqueu, o filho de Licurgo, tendo reinado após Equemo, para Tróia conduziu os arcádios. Após a captura de Ílio, uma tempestade se abateu sobre os helenos em viagem para casa e carregou Agapenor e a frota dos arcádios para Chipre; e de Pafos Agapenor tornou-se o fundador, e a Afrodite ergueu, na Velha Pafos, um santuário. Até aquele 89
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momento, a deusa recebia as honras dos cíprios num lugar chamado Golgoi.46
V. Karageorghis enfatiza que a presença arcádia na vila de Pafos, afirmada pelo relato de Pausânias, é também atestada pelo uso do dialeto arcádio na ilha (pp. 113-14), “a melhor evidência para uma real conexão entre a Arcádia e Chipre”.47 Note-se que Pausânias liga o herói Agapenor a duas vilas cíprias: Palaipáphos (“Velha Pafos”) e Páphos (“Pafos”). A primeira foi o centro mais importante e próspero do Bronze Recente (1550-1075 a.C.). Após sua destruição no final dessa era, “devido ou a uma catástrofe natural, ou a problemas internos” da ilha, ela foi reconstruída num sítio próximo ao original, passando a ser chamada Pafos, uma cidade-Estado importante de Chipre, governada pela “elite aristocrática micênica, com um rei por chefe”, tido como descendente do fundador da vila — o herói arcádio Agapenor.48 Os sinais deixados pelos helenos em Chipre no final do Bronze são numerosos; inscrições, cerâmica e objetos encontrados em templos e tumbas os denunciam. Porém o sinal mais notável é o santuário de Afrodite na “Velha Pafos” referida por Pausânias na passagem de sua obra anteriormente reproduzida. Esse santuário, conforme atestam estudos arqueológicos, teria sido estabelecido em torno de 1200 a.C., datação que, ao atribuir a construção do templo da deusa “ao período micênico, é da maior importância, porque ela confirma os dizeres de Homero na Odisséia [...]”, segundo V. Karageorghis (1991, p. 97).49 Além da Guerra de Tróia, a colonização micênica teria tido o impulso das invasões dóricas ocorridas por volta de 1100 a.C., que romperam, durante séculos, as ligações entre a Grécia e o Oriente e provocaram, ao isolar Micenas e o continente grego, uma espécie de retrocesso: decaiu a rica civilização micênica, modelada a partir da minóica, e suas estruturas econômica, política e social voltaram a um estágio de organização bem menos complexo e assentado na agricultura.50 Todavia, crê-se que os dóricos nunca chegaram a Chipre, apenas provocaram, ao invadirem a Grécia continental, as ilhas do mar Egeu e
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Creta, a migração dos povos desses locais para a ilha em busca de refúgio. 51 Sobre a queda de Micenas, diz Vernant: O mundo homérico não conhece mais uma divisão do trabalho comparável à do mundo micênico, nem o emprego numa escala tão vasta da mão-de-obra servil. Ignora as múltiplas corporações de “homens da ferramenta” agrupados nos arredores do palácio ou colocados nas aldeias para aí executar as ordens reais. Na queda do império micênico, o sistema palaciano desaba completamente; jamais se erguerá. [...] A própria escrita desaparece, como desfeita na ruína dos palácios (1998, pp. 30-31).
Para concluir, é preciso ressaltar que, além dos gregos e dos eteocíprios, muitos fenícios migraram para Chipre. A chegada destes à ilha remonta aos anos de 850-750 a.C., ou seja, ao contexto do período arcaico.52 Atraídos pelas riquezas da ilha e pelo seu potencial de comércio, os fenícios estabeleceram-se, sobretudo, em Âmatos e Cítion, 53 cidades onde se haviam refugiado os eteocíprios afastados pelos helenos quando estes migraram para Chipre.54 Os fenícios teriam coabitado pacificamente com esses autóctones; ademais, construíram santuários à deusa Astarte, à qual Afrodite é constantemente associada desde a Antigüidade.55 O comércio na Grécia arcaica era febril: Chipre importava objetos de arte da Síria, da Palestina e do Egito e exportava os seus para o Egeu e para as colônias gregas da Ásia Menor e da Síria. 56 Esses e outros artigos eram comercializados pelos fenícios, que “forneciam às cortes reais de Chipre, do Egeu e de todo o Mediterrâneo, produtos de luxo, móveis de marfim, jóias, tecidos e perfumes exóticos”, lembra V. Karageorghis (1991, p. 123). Outros povos orientais também foram para Chipre, tais como os assírios, cuja realeza dominou os cíprios, sem oprimi-los completamente, de 709-669 a.C.; ao final desse período, seguiu-se um século de independência,57 que depois deu lugar a novas dominações, por outros povos, em vários momentos — os egípcios, os persas, os romanos. Em sua história, a cobiçada ilha foi muito disputada, oscilando entre a domi91
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nação estrangeira e a liberdade. E as marcas desse movimento não são poucas, como bem mostram as escavações arqueológicas lá promovidas. Para concluir este panorama de Chipre, passo à religião na ilha. Olivier Masson, em “Cultes indigènes, cultes grecs et cultes orientaux à Chypre”, afirma que Chipre era, desde o Bronze, “uma espécie de carrefour de raças e de civilizações, submissa às influências diversas do Oeste, do Norte e do Leste” (1960, pp. 129-30). Três elementos destacam-se nesse cenário: o autóctone, o grego e o fenício. A respeito das práticas religiosas dos autóctones da ilha tem-se uma vaga idéia, observa Mason (pp. 131-32). Já sobre a influência helênica na religião cípria, muito se pode dizer, sobretudo acerca de Pafos. Essa vila de colonização marcadamente acaia é a cidade cujas histórias e personagens são mais recorrentes na Antigüidade. A importância do culto de Afrodite lá estabelecido por volta de 1200 a.C. pelos aqueus, segundo a tradição retomada por Pausânias, entre outros, é evidência da influência grega na região. Comentando os deuses aparentemente mais antigos na ilha, Masson destaca “uma grande divindade feminina ou ‘Mãe-Terra’ que se transformará pouco a pouco numa Afrodite; um grande deus será assimilado a Zeus; e por fim, um outro deus deve ser reconhecido, com uma figura próxima daquela do Apolo grego [...]” (1960, p. 132). Os fenícios também influenciaram a religião da ilha, estabelecendo cultos atestados por inscrições a vários deuses orientais, dentre eles Astarte, à qual se assemelha a Afrodite grega.58 Contudo, na tradição literária, “a luz está concentrada no culto da Afrodite Páfia”, e as escavações confirmam sua importância.59 George Hill, em A history of Cyprus — I (1949, pp. 67-80), começa do Neolítico, analisando evidências arqueológicas — cerâmicas, vasos, modelos de terracota, tumbas, estátuas de culto e indicadores de práticas funerárias e sacrificiais — para rastrear os indícios que sinalizariam a antiga religião de Chipre. A árdua tarefa amplia-se quando chega ao Bronze, em que as influências helênicas aparecem de modo transparente. Afrodite e os seus famosos templos em Pafos e Âmatos ganham, então, maior relevância. E assim Hill resume a antiga religião cípria: “Sinte92
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tizando, a religião básica da Chipre primitiva parece ter sido um culto à fertilidade, o deus sendo concebido em formas que nos são familiares através do Egeu e da Ásia Menor. [...] A fase antropomórfica encontra expressão na forma, de um lado, de uma Deusa-Mãe, que em Pafos e noutros locais se tornou especializada como Afrodite, e, de outro, na forma de Zeus” (p. 80). Foram encontradas, na costa sudoeste de Chipre, na região da “Velha Pafos”, várias estátuas de deusas nuas da fecundidade, as quais, crê-se, representam “a mesma divindade que aquela que reaparece em Pafos no Bronze Recente e vem a ser a Astarte ou Afrodite da mitologia”.60 No capítulo seguinte, ver-se-á quão estreitamente interligados estão o culto a deusas da fecundidade e a estatuária a ele relacionada, a deusa grega Afrodite e a fenícia Astarte, a região de Pafos e Chipre, o caldo cultural e religioso da ilha. O poema épico Cantos cíprios Grande parte dos estudos sobre Chipre e sobre as relações entre a Grécia e o Oriente cita, ainda que de passagem, os Cantos cíprios (tå KÊpria, tà Kúpria),61 poema ao qual Aristóteles, entre outros antigos, faz referência em sua Poética.62 Segundo François Jouan, em Euripide et les légendes des Chants cypriens (1966, pp. 6-7), essa composição se insere no conjunto “ao mesmo tempo o mais rico e o mais popular” da saga de Tróia e narra os antecedentes da guerra retratada na Ilíada. Jouan ressalta, ainda, que o poema, tendo 11 livros, “era a mais longa epopéia troiana depois da Ilíada e da Odisséia” (p. 15), mas não foi poupado pela sorte, lembra o helenista: “Os Cantos cíprios foram citados nominalmente por 30 vezes na Antigüidade e dele restam 26 fragmentos, dos quais o mais longo não excede doze versos” (p. 21). Burn assim resume o assunto do épico: “Iniciava-se nos primórdios da saga troiana, com as núpcias de Tétis e o Pomo da Discórdia, e continuava pelos primeiros nove anos do cerco ao início da Ilíada, de Homero, quando parava; pertence, assim, claramente, ao desenvolvimento pós-homérico do ciclo épico” (1960, p. 63). 93
GIULIANA RAGUSA
Jouan também crê que o “poema é seguramente posterior à Ilíada, da qual ele retoma e desenvolve vários temas” (p. 25), mas anterior ao Catálogo hesiódico e ao Hino homérico V, a Afrodite (pp. 26-27). Daí por que se aceita o século VII a.C. por data do poema. Subjaz a essa cronologia a idéia recorrente, mas contestada por alguns, de que os poemas do ciclo épico são dependentes da Ilíada e da Odisséia. Jonathan S. Burgess, contrário a essa visão, enfatiza, em “The non-Homeric Cypria”, que seria mais enriquecedor e coerente perceber que há uma “tradição ‘Cíclica’ pré-homérica”, da qual os poemas do ciclo épico tanto quanto os de Homero são representativos (1996, p. 79).63 E a questão da autoria dos Cantos cíprios? É incerta: foi atribuída a Homero por uma tradição, a Estásino, poeta cíprio, por outra — adotada na maioria das fontes antigas, o que não seria de espantar, nota Jouan, dado o “papel de Chipre, conservatório das tradições acaias no mundo grego após as invasões dóricas [...]” (1966, p. 24). E quanto ao título, que parece remeter ao nome da ilha? Parece que ninguém conseguiu responder satisfatoriamente tal pergunta.64 Burkert, por exemplo, recusa uma ligação direta entre o nome do poema, Cantos cíprios, e o outro nome de Afrodite, “Cípris” (1992, p. 207), presente na épica, na lírica e na tragédia. Para o helenista, “O notável título Cypria só pode ser entendido como uma referência à ilha de Chipre, a despeito do quanto possamos ser céticos sobre a informação tardia que faz de Estásino de Chipre autor do poema” (p. 103). Se não há relação entre aqueles dois nomes é inegável a ligação entre o conteúdo do poema e Afrodite, o que acaba por tornar implícita a relação com Chipre. Lembra Jouan, sobre o assunto: “Nos Cantos Cíprios, o motivo da vontade de Zeus domina a diversidade dos episódios e lhes confere uma significação comum. Sob o olhar de Zeus, Afrodite conduz a ação como Atena dirigia a Odisséia: vitoriosa sobre suas rivais divinas [Hera e Atena no julgamento de Páris], ela protege Páris, ajuda-o a administrar bem a sedução de Helena e intervém várias vezes, em particular para deter Aquiles na Trôade” (1966, pp. 28-29). Além disso, o épico Cantos cíprios “caracteriza-se pela abundância de episódios romanescos. Como é natural em um poema em que a Cípria era uma das protagonistas, os amores dos deuses e dos heróis aí ocupam um grande lugar [...]”.65 94
AS ILHAS DE LESBOS E CHIPRE
Cantos cíprios, “Cípris”, Chipre: o debate em torno das relações dessa trinca continuará, mas, por tudo o que aqui se disse, salta aos olhos o que importa frisar — a força incontestável do elo entre a ilha e Afrodite na literatura e nos relatos históricos. Eis um assunto do capítulo seguinte.
Notas 1
Cf. Jeffery (1978, p. 39): “Uma pólis (cidade-Estado) grega era uma unidade de pessoas que (a) ocupavam um território contendo como ponto central uma vila que sustinha o assento do governo e era, ela mesma, usualmente desenvolvida ao redor de uma cidadela (acrópole) murada que originalmente abrigava todo o assentamento; e (b) tinha autonomia na medida em que seu governo era provido por e de suas próprias fileiras, e não de fora”.
2
Cf. Murray (1993, pp. 81-101 e 102-23).
3
Cf. Burkert (1992).
4
Cf. Jeffery (1978, p. 46) e Aymard e Auboyer (1994, pp. 265-67).
5
Cf. Murray (1993, p. 139).
6
Cf. Aymard e Auboyer (1994, p. 267).
7
Jeffery (1978, p. 238).
8
Cf. Jeffery (1978, pp. 252-53).
9
Burn (1960, p. 226) diz que “os eólios se pensavam como herdeiros dos aqueus da Guerra de Tróia, e o ciclo troiano era uma fonte favorita para a poesia lésbia”. Cf. Jeffery (1978, p. 237). Afirma Boardman (1988, p. 85): “Há outras fundações lésbias na linha costeira ao sul de Tróia com cerâmica de superfície que sugere que elas foram estabelecidas em torno de 700 a.C.”. Ver também J. M. Cook (1982, p. 749), Janko (1995, pp. 15-19) — que relaciona os muitos “eolismos” da dicção épica à presença lésbia na Trôade — e Bowie (1984, pp. 5-14).
10
Cf. Burn (1960, pp. 226-46), Gentili (1990, pp. 80-81)e Martin (1993, pp. 108-28).
11
Cf. Burn (1960, pp. 239-46). Ver a análise dos fragmentos na Parte II.
12
Snyder (1989, p. 2). Cf. Boardman (1988, pp. 33-34) sobre as evidências arqueológicas.
13
Para Skinner (1996, p. 183), haveria não apenas uma forte tradição poética, mas, dado o caso de Safo, “uma longa linha de predecessoras mulheres” que teriam sido poetas. Todavia, não há qualquer evidência histórica que sustente essa hipótese.
14
Cf. West (1973, pp. 179-92).
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15
Burn (1960, p. 229). Cf. Bowie (1984, p. 9).
16
Cf. Segal (1990a, p. 168) sobre Terpandro e Árion.
17
Cf. Detienne (1998, p. 64), que encara esse fato como um dos vários sinais — tais como a falta de um sistema educacional imposto pela cidade e a preocupação com a alfabetização da população — da “relativa indiferença dos gregos com relação à coisa escrita”.
18
Aymard e Auboyer (1994, p. 186).
19
Para as causas, cf. Burn (1960, p. 102).
20
Cf. o Fr. 19 W. Toda essa narrativa é detalhada nas Histórias (livro I, 12) de Heródoto, que até mesmo se refere à menção que Arquíloco faz de Giges.
21
Aymard e Auboyer (1994, pp. 187-88). Cf. Hanfmann (1975, pp. 1-21), que na p. 5 diz: “‘Áurea Sárdis’ tinha uma reputação de luxuosa desde que o rei Giges assumiu o trono lídio no século VII a.C.”.
22
A palavra grega khrúsos (xrÊsow) seria emprestada aos fenícios, de quem os helenos compravam o metal. Cf. Burkert (1992, p. 36) e West (1997, p. 14).
23
Cf. Hanfmann (1975, pp. 5-6).
24
Boardman (1988, p. 94) declara que Sárdis foi “uma ‘Hollywood’ de oportunidades e riqueza”. Aymard e Auboyer (1994, pp. 189-206).
25
Aymard e Auboyer (1994, p. 189). Cf. Boardman (1988, p. 99), que lembra que a Lídia também fabricava perfumes reputados na Antigüidade.
26
Cf. J. M. Cook (1982, p. 748) e Burkert (1992, p. 14), que se baseia em Heródoto (livro 5, 49-53).
27
Cf. Jeffery (1978, p. 24) e Boardman (1988, p. 7).
28
Cf. Burn (1960, pp. 46-47).
29
Boardman (1988, p. 63). Para West (1997, p. 13), a palavra grega para “marfim, elefante”, eléphas (™l°faw), seria um empréstimo do acádio.
30
Para outros exemplos, cf. West (1997, pp. 10-12).
31
Burkert (1992, p. 20).
32
Idem, op. cit. Adiante, ele diz: “Parece não ter havido um templo grego propriamente antes do século VIII a.C., período do ímpeto da mão-de-obra oriental”. West (1997, p. 37) completa: “[...] o princípio do templo veio do Oriente Próximo”.
33
Cf. West (1997, pp. 33-42).
34
Cf. Boardman (1988, p. 94) e Aymard e Auboyer (1994, pp. 277-78).
35
Cf. Burkert (1992, pp. 27 e 128) e Hill (1949, p. 53), entre outros.
36
West (1997, p. 37). Cf. Burkert (1998, pp. 87-89) e Vernant (1990, pp. 55-57).
37
Cf. V. Karageorghis (1991, p. 32). Alguns relacionam ao cobre (xalkÒw, khalkós) a etimologia de Chipre (KÊprow, Kúpros); cf., por exemplo, Aymard e Auboyer (1995, p. 212). As duas palavras são, contudo, distintas, e os dicionários consultados não
96
AS ILHAS DE LESBOS E CHIPRE
fazem tal ligação, embora os adjetivos kúprios (kÊpriow) e kúprinos (kÊprinow) signifiquem “de cobre” (cf. LSJ). Há uma palavra que estaria mais próxima ao nome grego de Chipre e a outro produto da ilha famoso na Antigüidade, o perfume — cf. PirenneDelforge (1994a, p. 323): trata-se de kúpros (kÊprow), “alfeneiro”, uma planta odorífera. Cf. os dicionários LSJ, Chantraine (1990), Bailly (1959). Note-se que o referido adjetivo kúprinos significa, também, “feito da flor do [alfeneiro]” (LSJ). Chantraine dá os dois substantivos femininos, o nome da planta e o da ilha, mas sem relacionálos; ele tende a aproximar “de cobre” ao nome “Chipre”: “[Kúpros] [feminino], nome da ilha de Chipre (Homero etc.); [...] [Kúprios, adjetivo] significa ‘de cobre’ nos pap. mag. [Papiros Mágicos Gregos]; a ilha de Chipre possuía minas de cobre, [Kúpros] deu origem ao nome do cobre: o latim disse aes cyprium, e cuprum, termo provavelmente antigo, mas que aparece em Plínio 36, 193. [Etimologia]: Desconhecida”. Como se vê, a etimologia de “Chipre” é uma questão irresolvida. 38
Cf. V. Karageorghis (1991, p. 123), Emilianidès (1963, pp. 5-9) e Hill (1949, pp. 1-10).
39
Cf. Masson (1960, p. 130).
40
V. Karageorghis (1991, pp. 21 e 15-108).
41
Cf. J. Karageorghis (1977, p. 10). Na p. 15, a estudiosa diz: “O sexo de todas essas figuras é incerto”.
42
Cf. Hill (1949, pp. 29-30).
43
Cf. V. Karageorghis (1991, pp. 45-67).
44
Havia já um “silabário cíprio” usado até o século IV a.C., informa Hill (1949, p. 40). A primeira inscrição em grego arcádio — dialeto trazido pelos aqueus — não aparece antes do século XI a.C.; cf. Hill (1949, p. 85), Jeffery (1978, p. 24) e V. Karageorghis (1991, p. 105).
45
Sobre o Linear A, cf. Vernant (1998, p. 30) e Treuil (1998-1999, pp. 99-121). Sobre Ugarit, cf. J. Karageorghis (1977, pp. 79-80) e West (1997, p. 84), que afirma: “Em 1929, arqueólogos franceses começaram a investigar a colina de Ras Shamra na costa norte da Síria [...], exatamente no ponto mais próximo de Chipre. A colina, situada a meia milha do mar [...], era o lugar conhecido na era do Bronze como Ugarit, famoso pela riqueza e esplendor de seu palácio real [...]. Ugarit era um entreposto importantíssimo, com conexões ativas com as cidades fenícias e com o Egito no sul, com o império hitita no norte, com a Assíria no leste, e com Chipre e o mundo micênico no oeste”.
46
Texto grego: ed. Jones (1955, vol. IV). Sobre o culto em Golgoi, cf. Pirenne-Delforge (1994a, pp. 356-58). Sobre Pausânias, cf. Habicht (1985, p. 2), que diz: “[ele] escreveu uma descrição da Grécia como essa lhe pareceu em suas longas jornadas durante o século II d.C.”; p. 101: “Aquele que julga Pausânias deve sempre ser cuidadoso para distinguir entre o que ele viu [...], o que ele pode ter lido num relato histórico, e o que lhe pode ter sido contado. Ele freqüentemente acrescenta informações próprias àquilo que ele tira das inscrições”.
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47
Levi (1979, vol. II, pp. 379-80), em nota à sua tradução da passagem citada.
48
V. Karageorghis (1991, pp. 102-9).
49
Cf. também pp. 96-102. Cf. Odisséia, canto VIII (vv. 362-66) e Pirenne-Delforge (1994a, p. 339).
50
Cf. Vernant (1998, pp. 29-30) e Nilsson (1983, p. 4).
51
Cf. V. Karageorghis (1991, pp. 105-6); contra Burkert (1998, p. 47).
52
Cf. V. Karageorghis (1976), especialmente o capítulo “The Phoenicians at Kition” (pp. 95-141).
53
Cf. Boardman (1988, p. 38) e V. Karageorghis (1991, pp. 115-17; cf. p. 123).
54
Cf. Emilianidès (1963, p. 13; cf. p. 11).
55
Essa e outras relações Chipre–Afrodite serão retomadas na Parte II, capítulo 4, deste trabalho.
56
Pirenne-Delforge (1994a, p. 323). Entre os produtos cíprios exportados, os perfumes tinham destaque.
57
Cf. V. Karageorghis (1991, pp. 129-32). Na p. 121, o autor frisa que tal dominação não sufocou, cultural e politicamente, a ilha. Cf. Boardman (1988, p. 38) e Burkert (1992, p. 103).
58
Cf. Masson (1960, pp. 137-41).
59
Cf. Hill (1949, p. 55; cf. pp. 55-81).
60
V. Karageorghis (1991, p. 37).
61
Hill (1949, pp. 90-94), V. Karageorghis (1991, p. 122) e Burkert (1992, p. 103).
62
Aristóteles, Poética (1459b): “ofl d’ êlloi per‹ ßna poioËsi ka‹ per‹ ßna xrÒnon ka‹ m¤an prçjin polumer∞, oÂon ı tå KÊpria poiÆsaw ka‹ tØn mikrån ’Iliãda” (“Mas outros poetas compuseram em torno de um herói, ou um só período, ou uma única ação com muitas partes, tais como o poeta dos Cantos cíprios e da Pequena Ilíada”). Texto grego: ed. Butcher (1951, pp. 88-90). Segundo Jouan (1966, pp. 27 e 31), os poetas antigos conheciam bem e inspiraram-se nos Cantos cíprios; Eurípides e sua obra bem o demonstram. Cf. Vidal-Naquet (2002, p. 127).
63
Na p. 83, ele diz: “Se seguimos os críticos que pensam que o poema Cypria é influenciado pela Ilíada, um retrato curioso do poeta dos Cypria emerge: ele está preocupado em suplementar e justificar Homero [...]. Melhor explicação da similaridade geral com pequenas diferenças [entre certos episódios] é que a Ilíada e os Cypria pertencem, independentemente, à mesma tradição. Nesse caso, correspondência entre ambos não seria necessariamente resultado de influência”.
64
Cf. discussão do título e de outros aspectos dos Cantos cíprios, Burgess (1996, pp. 76-99).
65
Jouan (1966, p. 29; cf. pp. 24-29).
98
PARTE II
PRESENÇA
DE
NA LÍRICA
AFRODITE DE SAFO
GIULIANA RAGUSA
100
CHIPRE, CITERA E CRETA
N O TA
PRÉVIA
A lírica de Safo, devido à sua precária condição material que nos leva a chamar um poema de “fragmento”, não nos pode dar senão uma imagem fragmentária da Afrodite ali representada. É justamente essa imagem que passo a perseguir, a fim de compreendê-la. Para tanto, 14 fragmentos da poeta serão focalizados a partir de agora, além de elementos de outras representações poéticas de Afrodite, sobretudo daquelas encontradas nos poemas homéricos e nos hesiódicos, anteriores à poeta, e nos três Hinos homéricos dedicados à deusa, de datação e autoria problemáticas. Serão observados, ainda, evidências e relatos acerca dos cultos de Afrodite e de seu lugar na religião grega. Assim, movimentando e articulando dimensões múltiplas — literatura, religião, história, arqueologia, mitologia — que se entrecruzam constantemente, sem constituírem áreas perfeitamente delimitadas, pretendo apreender a especificidade da Afrodite da lírica de Safo. Esclareci na Introdução que todas as traduções aqui encontradas, salvo as exceções indicadas na bibliografia, são minhas. No caso específico das traduções do grego para o português, todas são de minha responsabilidade, opção que se justifica pela necessidade de uniformização, pois boa parte dos textos antigos referidos inexiste em nossa língua. Ademais, embora tenha consultado as traduções disponíveis, não gostaria de privilegiar nenhuma em especial, pois mesmo nestas há aspectos do original nem sempre enfatizados por outros tradutores, mas relevantes para as minhas argumentações.
101
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As edições adotadas nas referências aos textos épicos anteriormente citados e também para duas obras em prosa às quais recorro com freqüência são: • Para os Hinos homéricos: edição comentada de Allen, Halliday e Sikes (1980). • Para Homero: Ilíada — edição de Murray (1988, vol. I; 1993, vol. II); Odisséia — edição de Murray (1976, vol. I; 1975, vol. II). • Para Hesíodo: edições comentadas de West (Hesiod. Works and days, 1982; Hesiod. Theogony, 1988a). • Para Heródoto: edições de Godley, em dois volumes (1999, vol. I; 1995, vol. II). • Para Pausânias: edições de Jones, em quatro volumes datados de 1959 (vol. I), 1955 (vols. II e IV), 1954 (vol. III). Quando me referir a um autor antigo que não conste dessa listagem, indicarei em nota qual a edição do texto grego em que me baseio para a tradução.
102
CHIPRE, CITERA E CRETA
4 CHIPRE, CITERA
E
C R E TA :
A GEOGRAFIA MÍTICO-RELIGIOSA E POÉTICA DE
AFRODITE
Afrodite e Chipre Neste capítulo sobre a geografia mítico-religiosa e poética de Afrodite, a primeira parada é a ilha de Chipre, com a qual a deusa possui um antigo e profundo vínculo nitidamente marcado nos mitos que a envolvem, nos seus cultos e nas suas representações literárias. Em Safo, esse vínculo aparece sob a denominação Kúpris (KÊpri!, 1 “Cípris”), empregada em três fragmentos do corpus da poeta nos quais a deusa está presente — fragmentos 2 V, 5 V e 15 V —, sendo, depois do próprio nome “Afrodite” (’Afrod¤th, Aphrodíte#), a forma mais recorrente de designação da divindade. Mas essa não é a única forma pela qual Safo marca a forte ligação entre Afrodite e a ilha cípria. Em outros dois fragmentos — 22 V e 134 V —, ocorre o nome Kuprogéne#a (Kuprog°nha,2 “Ciprogênia”). Portanto, o elo deusa–ilha é enfatizado em cinco dos 14 fragmentos que aqui serão estudados. Diante dessa estatística, é claro que se poderia dizer que os nomes referidos, e não outros, ocorrem mais vezes nos fragmentos porque, justamente, os textos em que aparecem sobreviveram. Não é improvável que isso seja verdadeiro — ao menos em parte deve ser —, mas creditar tudo aos problemas decorrentes da transmissão dos poemas arcaicos e aos danos decorrentes do tempo e de suas vicissitudes é,
103
GIULIANA RAGUSA
creio, saída fácil e pouco atraente, tanto mais se retomarmos alguns pontos já abordados: 1) a ilha, como a deusa, sempre esteve muito próxima do Oriente, constituindo um ponto de intermediação entre este e a Grécia; 2) a Grécia arcaica foi marcada pela “revolução orientalizante”, que consistiu na intensificação do comércio marítimo com o Oriente e na expansão e colonização gregas; 3) Lesbos esteve o tempo todo, geográfica, econômica e culturalmente, ligada à costa da Ásia Menor, sobretudo ao reino da Lídia. A esses três pontos some-se um quarto: a recorrência da ligação Afrodite–Chipre em Safo e em toda a literatura grega antiga, o que torna impossível ignorá-la ou menosprezar sua importância. Será preciso, especialmente neste estudo, analisar tal ligação. É isso que passo a fazer. Cípris e Ciprogênia: dois outros nomes de Afrodite Ao longo dos versos que contam o nascimento de Afrodite na Teogonia (vv. 154-206), de Hesíodo, a relação entre a deusa e o Oriente se estabelece pela geografia que desenham e pelos marcantes paralelos com narrativas de povos orientais que têm o ato desencadeador da gênese de Afrodite — a castração de Urano — e o fato de, por meios nada convencionais, ela nascer na espuma do pênis castrado e lançado no mar. Interessa-me, por ora, tratar do primeiro ponto. No poema hesiódico, Afrodite é, como não havia sido antes na épica homérica, chamada “Ciprogênia” (Kuprogen°a, Kuprogenéa). Canta o poeta que, após se ter criado na espuma do mar e do esperma do pênis castrado de Urano, e tendo passado pela ilha de Citera, a deusa chega a Chipre, onde sai do mar (vv. 188-95). Eis a razão para um de seus nomes (v. 199, grifo meu): Kuprogen°a d’, ˜ti g°nto periklÊstƒ KÊprƒ: Ciprogênia, porque nasceu na Chipre de mar crespo. 104
CHIPRE, CITERA E CRETA
Conforme observa Vinciane Pirenne-Delforge, em L’Aphrodite grecque, “[...] Afrodite parece ser a única divindade geograficamente definida desde sua emergência” (1994a, p. 316). Ciprogênia é menos freqüentemente empregado do que outro nome de Afrodite, Cípris (KÊpriw, Kúpris), “mas de forma alguma é raro”.3 Por isso, faz-se importante manter a tradução do primeiro diferenciada da do segundo, mesmo porque as palavras gregas são bastante distintas: Kuprogenéa é literalmente “Ciprogênia”; Kúpris, simplesmente “Cípris” — nome ausente tanto da Teogonia quanto de Os trabalhos e os dias, os únicos poemas extensos de Hesíodo.4 Portanto, Cípris e Ciprogênia são dois outros nomes da deusa que trazem à tona seu forte elo com Chipre, sua ilha; eles não são epítetos acessórios de “Afrodite”, mas são empregados como substitutos deste. Tendo olhado antes para o segundo, passo ao primeiro. Sobre a designação Kúpris, os helenistas destacam sua relevância. Pirenne-Delforge sintetiza que esse “é, incontestavelmente, o nome da deusa mais largamente atestado na literatura, além de [‘Afrodite’]” (1994a, p. 317). Diante desse fato, facilmente verificável na própria poesia de Safo, é fundamental analisá-lo. O primeiro registro, para nós, desse nome que explicitamente liga Afrodite a Chipre5 remonta ao canto V da Ilíada, no qual Kúpris se repete por cinco vezes e, depois, desaparece.6 Em quatro dessas ocorrências (vv. 330, 422, 458 e 883), a deusa está empenhada em salvar seu filho Enéias dos ataques do aqueu Diomedes (vv. 297-448); na quinta (v. 760), ela está ao lado de Apolo, deus que, como ela, guarda ecos orientais e defende os troianos.7 Assim, a deidade grega Afrodite surge na Ilíada triplamente marcada pelo universo oriental dela sempre tão próximo: ela é “Cípris”; Enéias, seu filho, é um troiano gerado de seus amores com o pastor Anquises; 8 como Apolo, ela é aliada de Tróia, região da Ásia Menor. O nome Kúpris está ausente da Odisséia. Não obstante, o elo Afrodite–Chipre é estabelecido no canto VIII, na canção de Demódoco (vv. 266-369) sobre o adultério da deusa, esposa de Hefesto — o coxo e feio deus ferreiro —, com Ares, o deus da carnificina. Eis o triângulo 105
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amoroso, cujo casal oficial, Afrodite e Hefesto, é notável e pode parecer algo estranho à primeira vista. Mas, observada com cuidado, a associação matrimonial é reveladora. De um lado, segundo Walter Burkert, em Greek religion (1998, p. 153), nela se refletiria um dado dos cultos cíprios, pois na ilha havia vários santuários conjuntos à deusa da fecundidade e ao deus da metalurgia. Para V. Karageorghis, em Kition (1976, p. 76), é “tentador” ver nesses deuses “os predecessores de Hefesto e Afrodite”.9 De outro, assim como o casal Afrodite–Ares, a associação da deusa a Hefesto é a um só tempo opositiva e complementar: o primeiro par sintetiza-se no binômio união–guerra; o segundo, no binômio beleza–fealdade. Canta o aedo que Afrodite sucumbira, sob o teto do marido, ao desejo por Ares, a quem se unira em amor repetidas vezes. Finalmente, porém, esses encontros chegaram ao conhecimento de Hefesto pela boca de Hélio, o Sol, que tudo vira. O deus traído trama, então, sua vingança e finge viajar para Lemnos. Ares, ao vê-lo partir, vai a Afrodite e convida-a a aproveitar a chance de se deitar com ele (vv. 292-94); dele desejosa, Afrodite cede.10 Todavia, ao se deitarem, eles são presos pela armadilha de elos inextricáveis criada por Hefesto, que se posta ao lado deles e, encolerizado, grita aos deuses seu sofrimento e humilhação, acusando a esposa de ser uma “moça de olhos de cadela” (kun≈pidow [...] koÊrhw, v. 319), ou seja, de impudência. Ouvindo Hefesto e vendo o flagrante, riem os deuses sem cessar, enquanto as deusas, “envergonhadas” (afido›, v. 324), ficam em suas casas. Assim, o deus coxo, mas inteligente, vingase do forte Ares e da bela Afrodite, ao expor ao olhar público o adultério.11 Depois, ele solta os amantes — Ares vai para a Trácia; Afrodite, para Chipre (vv. 362-66): ≤ d’ êra KÊpron ·kane filommeidØw ’Afrod¤th, ™w Pãfon: ¶nya d° ofl t°menow bvmÒw te yuÆeiw. ¶nya d° min Xãritew loËsan ka‹ xr›san •la¤ƒ émbrÒtƒ, oÂa yeoÁw ™penÆnoyen afi¢n ™Òntaw, émf‹ d¢ e·mata ßssan ™pÆrata, yaËma fid°syai.
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CHIPRE, CITERA E CRETA
E em Chipre chegou a amante dos sorrisos, Afrodite, em Pafos; lá, o seu recinto sagrado e seu altar fragrante. E lá as Cárites a banharam e ungiram com óleo imortal, do tipo que cobre os deuses que sempre são, e a envolveram em vestes adoráveis — maravilha de se ver.
Há nesses versos vários elementos recorrentes nas representações de Afrodite. Destaco, por ora, a forma pela qual é marcado seu estreito elo com Chipre, notadamente com Pafos. Mas antes de abordar a relação entre essa vila e a deusa, devo discorrer sobre o motivo da toilette divina e sobre a associação de Afrodite aos perfumes e óleos especiais, dois pontos recorrentes na literatura grega antiga e que ecoam as afinidades da ilha e da deidade com o Oriente. O motivo da toilette das deusas se revela como uma das várias influências orientais na poesia helênica, estudadas por Martin L. West, em The east face of Helicon. Segundo o helenista, as cenas nas quais ele ocorre, tanto na poesia grega quanto na oriental, seguem um padrão de quatro movimentos mais ou menos constantes: “o banho, a aplicação de óleo perfumado, colocar uma bela vestimenta e acrescentar jóias” (1997, p. 204). Note-se que nos versos citados acima somente as jóias estão ausentes. Sublinhei já a intensidade das relações comerciais Grécia arcaica– Oriente, com destaque para a Ásia Menor. Entre os produtos mais cotados nesse comércio, estão os artigos de luxo — na tradição grega, muito associados aos lídios, aos cíprios e aos fenícios. Chipre importava aos povos orientais e exportava aos helenos esses artigos, sobretudo jóias, marfim, ricos tecidos e perfumes, os quais eram comercializados principalmente pelos fenícios.12 No caso específico das fragrâncias e ungüentos, vale lembrar que os perfumes cíprios “eram reputados, e um papiro egípcio, cuja redação remonta ao final do século XIII a.C., atesta a exportação, a partir da ilha, de diferentes óleos que poderiam ser cosméticos”.13 A essa atestação histórica devem somar-se as alusões poéticas, como o epíteto que o poeta anônimo do Hino homérico V, a Afrodite confere a Chipre — “fragrante” (eÈ≈dea, v. 67) — ao fim da descrição 107
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de uma toilette de Afrodite em Pafos muito similar àquela da Odisséia. No Hino, a deusa é banhada, perfumada, ungida, vestida e adornada, com a ajuda das Cárites (vv. 58-67); depois, pronta para seduzir o mortal Anquises, ela segue rápida para Tróia com o intuito de encontrá-lo e fazê-lo sucumbir aos seus encantos.14 Constata-se, pois, que o motivo da toilette é eloqüente no caso de Afrodite, cujas ressonâncias orientais não escapavam aos antigos, pois relaciona, nas suas numerosas ocorrências, a tríade Grécia arcaica– Chipre–Oriente. François Jouan, em Euripides et les légendes des Chants cypriens, afirma: Desde Homero, o tema da toilette de uma divindade era um lugar-comum da poesia épica: a de Hera na Ilíada, a de Afrodite na Odisséia, a de Afrodite no Hino homérico que celebra sua união com Anquises. Dois fragmentos dos Cantos cíprios, conservados por Ateneu, mostram-nos Afrodite em sua toilette, revestida de roupas que as Cárites e as Horas tinham impregnado de essências de flores diversas, e em seguida se adornando com coroas floridas em companhia das Ninfas e das Cárites (1966, p. 101).
Cabe lembrar que na Ilíada, muito embora Afrodite não apareça em cenas desse tipo, ela participa ativamente da toilette de uma Hera determinada a seduzir seu marido Zeus para distraí-lo da guerra que se desenrola entre os aqueus, os favoritos dela, e os troianos, os preferidos de Afrodite (vv. 153-351). Tal participação consiste no empréstimo que ela faz a Hera: Afrodite empresta-lhe o “cinto” (flmãnta, himánta, v. 214) que usa junto aos seios e no qual estão reunidos todos os seus poderes de deusa do amor erótico (éro#s). Note-se que da mesma forma que é oriental o motivo da toilette, também o é a imagem do cinto trespassado nos seios da deidade que rege éro#s, ressalta Daniel H. Garrison, em Sexual culture in ancient Greece (2000, p. 39). Há outra passagem da Ilíada que relaciona diretamente Afrodite aos óleos e perfumes, mas fora do contexto da sedução amorosa. No canto XXIII (vv. 185-87), são descritas as ações da deusa diante do cadáver de Heitor, ameaçado pelos maus-tratos que Aquiles lhe inflige e pela possibilidade de ser lançado aos cães. A fim de preservar o corpo do troiano, 108
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(...) kÊnaw m¢n êlalke DiÚw yugãthr ’Afrod¤th ≥mata ka‹ nÊktaw, =odÒenti d¢ xr›en ™la¤ƒ émbros¤ƒ, ·na mÆ min épodrÊfoi •lkustãzvn. [...] os cães longe manteve a filha de Zeus, Afrodite, por dias e noites, e ungiu-o com óleo de rosas, imortal, para que [Aquiles] não o lacerasse ao arrastá-lo.
Portanto, Afrodite não se vale dos óleos perfumados e divinos para exercer somente a sedução, como é habitual,15 mas também para preservar a integridade e a beleza — atributo da esfera da deusa — do cadáver do nobre Heitor, o filho de Príamo e defensor de Tróia, da qual ela é partidária.16 Encerrando a discussão acerca do motivo da toilette nas representações poéticas de Afrodite e de sua associação aos perfumes, cito o Fr. 6 dos Cantos cíprios como outro exemplo de poesia grega antiga na qual vislumbramos a deusa nesse tipo de cena: e·mata m¢n xro‹ ßsto tã ofl Xãrit°w te ka‹ äWrai po¤hsan ka‹ ¶bacan ™n ênyesin efiarino›si, oÂa foroËs’ äWrai, ¶n te krÒkƒ ¶n y’ Íak¤nyƒ ¶n te ‡ƒ yal°yonti =Òdou t’ ™n‹ ênyeÛ kal“ ≤d°i nektar°ƒ ¶n t’ émbros¤aiw kalÊkessi ênyesi nark¤ssou ka‹ leir¤ou: to›’ ’Afrod¤th Àraiw panto¤aiw teyuvm°na e·mata ßsto. * * * * ∂ d¢ sÁn émfipÒloisi filommeidØw ’Afrod¤th plejãmenai stefãnouw eÈ≈deaw, ênyea ga¤hw, ín kefala›sin ¶yento yea‹ liparokrÆdemnoi NÊmfai ka‹ Xãritew, ëma d¢ xrus∞ ’Afrod¤th, kalÚn ée¤dousai kat’ ˆrow polupidãkou ÖIdhw. Vestes no corpo pôs, que as Cárites e as Horas lhe fizeram e tingiram com flores primaveris, as que as Horas portam: açafrão e jacinto e violeta em botão, e da rosa a flor bela e doce e nectárea, e divinos botões 109
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das flores do narciso e do lírio. Afrodite tais vestes — com flores das estações todas perfumadas — pôs. * * * * E, com as atendentes, a amante dos sorrisos, Afrodite, tendo trançado guirlandas fragrantes — flores da terra —, puseram-nas sobre suas cabeças as deusas de radiantes penteados Ninfas e Cárites, e, junto a áurea Afrodite — elas belamente cantando no monte Ida, rico em fontes perenes.
Creio que as passagens poéticas arroladas mostram que, muito embora haja cenas de toilettes de outras deusas, o caso de Afrodite, tão recorrente nas descrições da poesia antiga — e também nas representações plásticas17 —, é especial, pois, além de relacionar-se intimamente à própria definição de sua esfera de poder, a toilette da deusa — sinônimo perfeito da beleza e da sedução, do erotismo e da sexualidade — constitui-se como mais uma das várias marcas orientais conservadas no imaginário grego.18 Mais: as diversas cenas que agregam Afrodite, óleos divinos e fragrâncias, e Chipre–Oriente, ainda que sejam plurais e tenham suas especificidades, parecem dialogar entre si. Através delas, vislumbramos os poetas que as resgataram e remodelaram em diálogo com uma vasta tradição mítico-poética construída e enriquecida constantemente por eles mesmos e pelos seus antecessores gregos e orientais. A ilha, a deusa e o Oriente Vimos em capítulo anterior que, geograficamente muito próxima do Oriente, Chipre foi ponto de encontro e de mistura de povos e culturas da Grécia e da Ásia Menor. Isso fica claro na composição de sua população, no dialeto arcádio-cíprio, nas suas tradições religiosas e nos mitos de fundação de célebres vilas cíprias. As influências helênica e fenícia, por exemplo, perpassam os mitos e a história de Pafos, um dos principais locais de culto a Afrodite conservado, “com numerosas modificações, até o período Romano [c. 31-363 d.C.]”.19 A antigüidade e a fama do santuário páfio são bem atestadas por gregos e romanos.20 110
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Pirenne-Delforge (1994a, pp. 346-47) nota que, no caso de Pafos, as evidências arqueológicas disponíveis trazem o nome “Afrodite” a partir do século III a.C.; antes disso, lê-se nas inscrições silábicas de cidade a palavra ánassa (ênassa, “soberana”), vinculada ao nome “Cíniras”, o sacerdote predileto do santuário de Afrodite e obscuro e lendário rei cíprio referido na Ilíada (canto XI, vv. 16-28).21 Mas esse dado deve ser relativizado, primeiramente porque o acaso costuma desempenhar um ingrato papel quando se trata da preservação de fontes. Além disso, em Âmatos, outra cidade cípria — esta de forte influência fenícia, notável sobretudo do século IX a.C. em diante —, há uma dedicatória do século IV a.C. que constitui “a mais antiga menção do nome ‘Afrodite’ em uma inscrição cípria alfabética”; nela, esse nome associa-se a “Cípris” na expressão Kupríai Aphrodíte#i (Kupr¤ai ’Afrod¤thi).22 Volto a Pafos. Associando os dados acerca da provável data do santuário de Afrodite lá erigido, 1200 a.C., e dos cultos à fecundidade praticados em Chipre, Pirenne-Delforge faz uma ressalva: “O santuário [páfio de Afrodite] remonta ao final do período do Bronze, mas a ausência de estrutura monumental anterior a essa época não exclui a existência de um culto remontando a uma data mais antiga; sabemos, com efeito, que forças da fecundidade eram adoradas em Chipre desde o calcolítico [c. 3900-2300 a.C.], pelo menos” (1994a, p. 339). Nessa época, essas “forças da fecundidade” são representadas por uma estatuária feminina que começou a surgir com traços bem definidos — os ídolos do período anterior tinham formas tais que não permitem dizer se são femininos ou masculinos. No Calcolítico, aumentaram os contatos entre os autóctones e os povos da Anatólia, Palestina e Tessália. Conforme Jacqueline Karageorghis, em La grande déesse de Chypre et son culte, isso revigorou a cultura cípria e a religião, na qual o culto à fecundidade, verificável nas civilizações daquelas regiões desde há muito, era dominante:23 “É nesse contexto de uma velha cultura cípria regenerada e estimulada por contatos com o estrangeiro que aparecem os primeiros verdadeiros ídolos femininos, cuja supremacia se afirma. [...] O número de ídolos calcolíticos descobertos cresce sem cessar e parece que ocorreu, naquela 111
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época, uma fabricação superabundante de figuras femininas que testemunham um intenso desenvolvimento do pensamento religioso” (1977, p. 19). E, adiante, ela completa: “Parece, pois, que no início do III milenário a.C. as forças da fecundidade eram adoradas em Chipre sob a forma de uma mulher de atributos sexuais bem marcados” (p. 21).24 A região de Pafos, onde se situa o santuário de Afrodite, é especialmente rica “em ídolos calcolíticos, o que prova uma vez mais que lá havia um centro religioso importante” já naqueles tempos.25 Com esse dado em mente, retomo outros dois, fornecidos pela literatura: Kúpris (“Cípris”) é o nome de Afrodite mais reiterado na literatura grega desde Homero, além do seu próprio e, de outro, Ciprogênia. Resta, pois, indagar, como faz J. Karageorghis: “É mero acaso se esses belos ídolos femininos aparecem no lugar onde a lenda faz nascer Afrodite?” (p. 30). Diante de tudo o que aqui já se viu sobre Pafos, dificilmente se pode dizer. A importância da representação de figuras femininas em Chipre crescerá bastante até o período arcaico, pelo menos. E a partir do Bronze Antigo (c. 2300-1850 a.C.), elas ganham ornamentos — brincos, colares e outras jóias — e vestes ricamente bordadas, o que é algo tipicamente oriental, lembra ainda J. Karageorghis. Esses adornos são especialmente associados, na literatura grega, a Afrodite — “deusa cípria por excelência”, acreditavam os helenos26 —, em cuja imagem estão intensamente presentes elementos de procedência oriental, como o ouro, os tecidos e os perfumes. Nas representações religiosas de Afrodite e na história de seus santuários, o Oriente deixou sua marca. No santuário de Pafos não foi diferente: em suas várias (re)construções ocorridas até os tempos de Roma, são identificáveis traços e técnicas gregas, fenícias e romanas.27 Falemos um pouco mais sobre os fenícios, de presença fortíssima em Chipre — para onde esse povo semítico levou o culto a Astarte, deusa com a qual Afrodite guarda inúmeras semelhanças. Conforme já foi dito, os contatos comerciais entre os fenícios e os cíprios existiam há muito, quando, por volta do século IX a.C., vieram para a ilha e ocuparam, principalmente, as vilas de Âmatos e Cítion — 112
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“grande assentamento fenício [...] estabelecido sobre um antigo sítio micênico”,28 onde eles (re)ergueram um imenso templo a Astarte,29 cujo nome é confirmado por evidências epigráficas de então.30 Diz V. Karageorghis: “O templo de Astarte em Cítion deve ter sido importante, igual, talvez, ao famoso templo de Afrodite em Pafos (mencionado em inscrições como de Astarte Páfia). Recentes escavações em Pafos revelaram, na verdade, que este tinha exatamente a mesma história que o de Cítion: foi primeiramente construído no final do século XIII a.C. [...] e continuou a existir durante o primeiro milênio a.C. até o período Romano” (1976, p. 107). E ele completa, adiante: “O templo de Astarte deve ter sido freqüentado por grande número de adoradores não apenas de Chipre e do Oriente Próximo, mas também do Egeu” (p. 172). Salta aos olhos que, dada a relevância dos templos de Cítion e de Pafos e, ainda, a identificação estreita entre Astarte e Afrodite, a deusa oriental influenciou, sem dúvida, a concepção da deusa grega em um processo que, em Chipre, parece ter sido de aculturação. Um exemplo disso pode ser tomado às representações artísticas de ambas. Observando a antiga imagem oriental de Astarte — deidade do sexo e da fecundidade —, John Boardman, em The Greeks overseas, ressaltalhe como motivo recorrente a nudez e o posicionamento das mãos nos seios ou próximas deles; 31 esse motivo foi adaptado pelos gregos na estatuária de Afrodite, pois eles preferiam cobrir sua deusa, “enquanto retiveram a posição sugestiva de seus braços” (1988, p. 76). Apesar de, antes do período helenístico, os gregos preferirem não seguir o padrão oriental da nudez — “suplantada cedo, logo na primeira metade do século VII a.C., pela representação normal da divindade com longas e suntuosas vestes e a alta coroa da deusa” 32 —, os mantos usados para cobrir as deusas gregas — Afrodite, sobretudo — “imitavam o luxo do Oriente”, salienta Walter Burkert, em The orientalizing revolution (1992, p. 20).33 Todavia, afirma esse estudioso, em estudo sobre a religião grega, que a Afrodite nua será recorrentemente representada pelos escultores da era helenística como a célebre estátua de culto “Afrodite de Cnidos”, datada de cerca de 340 a.C., que parece preparar-se para um banho; essa peça, realizada por Praxíteles, foi 113
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instalada no santuário daquela cidade grega na Ásia Menor — logo, no Oriente (1988, pp. 155-56). 34 Sobre a imagem, “rejeitada pelos cidadãos de Cós em favor de uma mais conservadora”,35 Burkert observa, baseado em testemunhos antigos: “[...] durante séculos essa figura permaneceu sendo a mais famosa representação da deusa do amor, a corporificação de todos os charmes femininos. A estátua foi disposta num círculo para que pudesse ser admirada de todos os ângulos; as fontes gregas sugerem que ela despertava mais voyeurism do que piedade” (1998, pp. 155-56). Desejo aqui destacar que, vestidas ou nuas, as representações literárias e plásticas da deusa grega Afrodite ecoam seu marcado tom oriental e, como venho enfatizando, nas primeiras faz-se notável a força do elo Afrodite–Chipre/Pafos, que se estabelece desde tempos remotos e fazse precioso dado da caracterização da deusa e de seus cultos, sobre os quais George Hill, em A history of Cyprus — I, afirma: “O culto de Afrodite no Egeu foi profundamente influenciado por Chipre no início do período arcaico” (1949, p. 95). Muitos anos antes, Ernest Gardner, no ensaio coletivo “Excavations in Cyprus, 1887-88”, declarava, baseado no estudo arqueológico do templo páfio de Afrodite: “Não podemos, na verdade, encontrar marcas do culto a Afrodite na Grécia num tempo anterior ao reconhecimento de Pafos como seu centro principal. E um centro de culto não poderia existir sem um templo, se usarmos a palavra templo em seu sentido original — um espaço consagrado e separado, mas não necessariamente implicando um prédio coberto, embora em geral esse espaço seja circundado por paredes” (1888, p. 206). Na sexta parte do referido ensaio, Gardner, David G. Hogarth e Montague R. James listam as inscrições gregas — todas do período clássico — do templo páfio de Afrodite (pp. 225-63); em várias, lê-se Paphía (Paf¤a, “Páfia”) ao lado do nome da deusa. Esse epíteto, decerto decorrente da fama do culto, consta de inscrições descobertas em outras vilas cíprias.36 Fora da ilha, Pausânias fala de um templo a Afrodite Paphía na Tegéia, região da Arcádia, terra de Agapenor, o mítico fundador de Pafos e do santuário à deusa lá erguido, segundo uma tradição que ele mesmo retoma (livro VIII, V, 2). Eis seu relato (VIII, LIII, 7): 114
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ÖEsti d¢ ka‹ DÆmhtrow ™n Teg°& ka‹ KÒrhw naÒw, ìw ™panomãzousi KarpofÒrouw, plhs¤on d¢ ’Afrod¤thw kaloum°nhw Paf¤aw: fldrÊsato aÈtØn Laod¤kh, gegonu›a m°n, …w ka‹ prÒteron ™dÆlvsa, épÚ ’AgapÆnorow ˘w ™w Tro¤an ≤gÆsato ’Arkãsin, ofikoËsa d¢ ™n Pãfƒ. Há também, na Tegéia, um templo de Deméter e Córe — a quem chamam de Traz frutos — e, perto deste, o de Afrodite Páfia. Ergueu a estátua da deusa Laodíce, que morou em Pafos — a descendente, como já antes mostrei, de Agapenor, o que para Tróia conduziu os arcádios.37
Ressalta ainda Pirenne-Delforge que, conforme os testemunhos que temos, “o epíteto Páfia atribuído a Afrodite aparece pela primeira vez na Grécia continental, conjuntamente na Lisístrata de Aristófanes [v. 556] e na pintura de vasos áticos de figuras vermelhas do final do século V a.C. [...]” (1994a, p. 70). Nessa comédia, Lisístrata refere-se à deusa como Ciprogênia (Kuprogénei, v. 551). Há, portanto, uma forte contaminação entre a deusa grega, Chipre/ Pafos e o Oriente percebida na Antigüidade, percebida “em pleno centro de Atenas, em plena época clássica”, lembra Pirenne-Delforge (1994a, p. 70). West chega a afirmar, sobre as origens de Afrodite: “Os gregos não tinham dúvida de que ela veio de Chipre (ou inicialmente de Áscalon, na Palestina, conforme Heródoto [livro I, 105]), e que lá estavam seus cultos mais importantes, especialmente o de Pafos” (1997, p. 56). A passagem de Heródoto referida por West trata do percurso dos citas38 na Síria, onde saquearam o “santuário de Afrodite Urânia”, sobre o qual ele relata: ¶sti d¢ toËto tÚ flrÒn,39 …w ™g∆ punyanÒmenow eÍr¤skv, pãntvn érxaiÒtaton flr«n ˜sa taÊthw t∞w yeoË: ka‹ går tÚ ™n KÊprƒ flrÒn ™nyeËten ™g°neto, …w aÈto‹ KÊprioi l°gousi, ka‹ tÚ ™n KuyÆroisi Fo¤nikew efis‹ ofl fldrusãmenoi ™k taÊthw t∞w Sur¤hw ™Òntew Este santuário, como eu descobri inquirindo, é o mais antigo de todos os santuários da deusa, pois o santuário em Chipre foi fundado a partir dele, como dizem os próprios cíprios, e o de Citera foram os fenícios, habitantes dessa terra da Síria, que o ergueram à deusa. 115
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Cito outro exemplo de que havia uma clara percepção entre os gregos das origens estrangeiras de Afrodite. Refiro-me a um relato de Pausânias; logo, bem posterior ao de Heródoto. A certa altura do livro sobre a Ática — o primeiro dos dez que compõem sua descrição da Grécia —, ele descreve o “santuário” de Afrodite “Urânia” situado na acrópole de Atenas e declara (I, XIV, 7): pr≈toiw d¢ ényr≈pvn ’Assur¤ouw kat°sth s°besyai tØn OÈran¤an, metå d¢ ’Assur¤ouw Kupr¤vn Paf¤oiw ka‹ Foin¤kvn to›w ’Askãlvna ¶xousin ™n tª Palaist¤n˙, parå d¢ Foin¤kvn KuyÆrioi mayÒntew s°bousin: Os primeiros homens a estabelecerem o culto à Urânia foram os assírios, aos quais se seguiram os páfios de Chipre e, dentre os fenícios, aqueles que moravam em Áscalon, na Palestina; o povo de Citera aprendeu com os fenícios a cultuá-la.
Há diferenças entre os dois relatos citados, certamente, mas o que importa, neste momento, é frisar dois pontos: que os gregos percebiam Afrodite como uma deusa de origens estrangeiras, sobretudo orientais,40 e que os santuários dela de Pafos e na ilha de Citera ocupam lugar de destaque entre os demais estabelecidos na Hélade. Reforça o primeiro ponto é a repetição do epíteto Urânia em Heródoto e em Pausânias, pois, conforme Lewis R. Farnell, em The cults of the Greek states — II, ele “trai a conexão direta ou indireta dos cultos mais antigos de Afrodite com o Oriente [...]” (1896, p. 620).41 Afinal, a Astarte semítica, ou a Ishtar assíria, deusa do amor, é — como o será Afrodite Urânia — chamada “rainha do Céu” no Velho Testamento.42 Eis uma das semelhanças entre as deusas, apontada por Burkert (1998, pp. 152-53), que destaca outras: “[...] Astarte é adorada com altares incensados e sacrifícios de pombas, como o é Afrodite e tão-somente Afrodite. Ishtar é também uma deusa guerreira, e, novamente, Afrodite pode estar armada e vangloriar-se na vitória. Se, ainda, há prostituição no culto a Afrodite, então a característica mais notória do culto de Ishtar-Astarte foi tomada”.43 116
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A idéia de que o par Astarte–Ishtar 44 ou outras deusas orientais similares a essas seriam a origem da Afrodite grega se faz presente em boa parte dos relatos antigos. Volto a Heródoto para ilustrar isso (livro I, 131): P°rsaw d¢ o‰da nÒmoisi toio›side xrevm°nouw, égãlmata m¢n ka‹ nhoÁw ka‹ bvmoÁw oÈk ™n nÒmƒ poieum°nouw fldrÊesyai, éllå ka‹ to›si poieËsi mvr¤hn ™pif°rousi, …w m¢n ™mo‹ dok°ein, ˜ti oÈk ényrvpofu°aw ™nÒmisan toÁw yeoÁw katã per ofl ÜEllhnew e‰nai: o„ d¢ nom¤zousi Di‹ m¢n ™p‹ tå ÍchlÒtata t«n Ùr°vn énaba¤nontew yus¤aw ¶rdein, tÚn kÊklon pãnta toË oÈranoË D¤a kal°ontew: yÊousi d¢ ≤l¤ƒ te ka‹ selÆn˙ ka‹ gª ka‹ pur‹ ka‹ Ïdati ka‹ én°moisi. toÊtoisi m¢n dØ yÊousi moÊnoisi érx∞yen, ™pimemayÆkasi d¢ ka‹ tª OÈran¤˙ yÊein, parã te ÉAssur¤vn mayÒntew ka‹ ÉArab¤vn. kal°ousi d¢ ÉAssÊrioi tØn ÉAfrod¤thn MÊlitta, ÉArãbioi d¢ ÉAlilãt, P°rsai d¢ M¤tran. Sei que os persas têm tais costumes: estátuas, templos e altares aos deuses erguer não consideram lícito, e crêem tolos os que fazem isso, como me parece, porque não julgam serem os deuses de natureza humana, conforme acreditam os helenos. Porém, eles costumam, subindo aos cumes das montanhas, oferecer a “Zeus” sacrifícios — nomeando “Zeus” todo o manto arqueado do céu. Sacrificam também ao sol, à lua, à terra, ao fogo, à água e aos ventos. A esses somente sacrificando de início, aprenderam a sacrificar também à Urânia, isso tendo aprendido com os assírios e os árabes. Os assírios chamam Afrodite de Milita, os árabes, de Alilat, e os persas, de Mitra.
Leia-se este comentário: “Essa passagem mostra a conexão estreita de Afrodite com a babilônica Milita, a assíria Ishtar, a fenícia Astarte; se houve, de fato, empréstimos ou se cultos independentes foram assimilados, é impossível dizer; provavelmente ambos foram os casos”. 45 Também em muitos estudos de religião grega aparece a idéia da helenização de Afrodite a partir de deusas orientais. Nessa idéia se baseava já Farnell, para quem, “quando um culto de Afrodite em qualquer estado grego clamava ser de remota antigüidade, sua origem estrangeira 117
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estava usualmente confessa” (1896, p. 620).46 Eis como o helenista abre o seu capítulo sobre os cultos gregos à deusa: O culto a Afrodite era, talvez, tão amplamente difundido nas terras mediterrâneas quanto o de qualquer outra divindade helênica. Nós o encontramos no norte da Grécia, e com honra especial em Tebas; na região da Ática — na cidade e na costa; em Mégara, em Corinto e suas colônias; em Sícion, Hermione, Epidauro e Argos. Na Lacônia, havia uma forma de culto especial e importante. Há comparativamente raros traços de culto na Arcádia, mas testemunho abundante de sua prevalência em Élis e na costa da Acaia. Os centros mais famosos de culto eram as ilhas gregas, Chipre, Citera e Creta. Ele espalhou-se com a colonização da Grécia no litoral do Mar Negro, até Panagória, por exemplo. Era um dos principais cultos públicos das cidades gregas da costa da Ásia Menor, notavelmente em Cnidos, enquanto da Trôade emergia o culto a Afrodite, que era associado ao nome de seu herói favorito, Enéias, e era levado ao continente da Grécia, à Sicília e à Itália.47 Finalmente, temos provas de cultos à deusa em Náucratis [...]. Mas, a despeito de sua larga prevalência no mundo helênico, não há evidência válida de que o culto de Afrodite pertencesse à religião aborígene da nação grega. A comparação de textos e monumentos leva à conclusão de que ela era, originalmente, uma divindade oriental e que, após sua adoção pela Grécia, ela reteve em muitos cultos locais muitas marcas de seu caráter oriental (p. 619).48
Por tudo o que aqui se afirmou, confirma-se, inequivocamente, a relação próxima entre Afrodite e o Oriente e, mais, a importância da ilha de Chipre nas figurações literárias da deusa, tão embasadas em elementos e saberes pertencentes a uma riquíssima cultura oral, à qual os poetas tinham fácil acesso, como enfatiza Geoffrey S. Kirk, em The Iliad: a commentary, analisando a ocorrência de Kúpris poema homérico: “[...] a conexão de Afrodite com Pafos e Chipre provavelmente estava à disposição de qualquer cantor nos estágios formativos da épica troiana” (1995b, pp. 94-95).
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O elo Chipre–Afrodite, a épica e a tradição poética de Lesbos No capítulo anterior, foi observado que na Mitilene, da Lesbos arcaica, detinham o governo os Pentílidas, que se afirmavam descendentes dos aqueus que em Tróia combateram. Essa relação mítica se liga a um fato historicamente comprovado: no começo do século VIII a.C., os eólios — grupo majoritário na população de Lesbos — estabeleceram assentamentos49 na Trôade, sobretudo na costa do mar Egeu. Lilian H. Jeffery, em Archaic Greece, comenta: “A proximidade da Trôade, cenário da épica grega ancestral, pode ter sido a razão pela qual os Pentílidas, clã real de Mitilene, alegavam que seu ancestral, Pentilo (que tradicionalmente liderou a maior parte da migração eólica no Egeu) era filho de Orestes — embora ele não apareça na épica antiga e o nome da família possa ter vindo de um lugar em Lesbos chamado Pentile” (1978, p. 237). A despeito dessas ressalvas, a proximidade de Lesbos com a Trôade explicaria, em parte, a força do ciclo épico troiano na tradição poética da ilha à qual Safo pertence. Andrew R. Burn, em The lyric age of Greece, declara que “os eólios se pensavam herdeiros dos aqueus da Guerra de Tróia, e o ciclo troiano era uma fonte favorita para a poesia lésbia” (1960, p. 226). Martin L. West, em “The rise of the Greek epic”, afirma, baseado na análise filológica dos eolismos e do que chama “fase lésbia” da épica grega: “É bastante concebível que a poesia sobre Tróia se tenha enraizado naquela região [Mitilene] antes do final do século XII e se tornado bem estabelecida no decorrer do XI a.C., alimentando-se de outros pedaços de saga trazidos pelos novos colonos da Tessália, Lócrida e outros lugares” (1988, p. 164).50 Ora, na lírica de Safo encontramos personagens da tradição épica,51 tais como Helena (Fr. 16 V), os Atridas (Fr. 17 V), Heitor, Príamo e Andrômaca, estes no Fr. 44 V, um poema narrativo pleno do universo da épica.52 Mais: é recorrente nos fragmentos da poeta o nome Kúpris para Afrodite, encontrado na épica homérica. Conclui-se, pois, ser grande e riquíssima a carga significativa que Safo imprime à sua representação de Afrodite ao associá-la a Chipre. 119
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Quando a poeta chama Afrodite de Kúpris ou Kuprogéne#a, independentemente do contexto dos fragmentos, ela se insere e também a sua personagem divina no diálogo com uma tradição cara à poesia lésbio-eólica e faz pulsar nesses nomes a vasta e fundamental tradição épica e mítica que conserva e propaga a memória do passado heróico grego e se configura como um dos fatores da identidade grega. Eis um dos fragmentos da Afrodite sáfica. Afirma Pirenne-Delforge: “Chipre e a Cípria são a tal ponto indissociáveis que uma ajuda a compreender a outra no imaginário dos gregos” (1994a, p. 369). Falar da ilha é, portanto, em larga medida, falar de Afrodite; é também falar do Oriente e marcar as múltiplas conexões desse universo com a deusa. Mas se essa se configura como a mais forte maneira de o fazer, não se trata da única. O Hino homérico V, a Afrodite 53 sublinha a proximidade entre a deusa e o Oriente ao definir um espaço oriental para o enredo — precisamente Tróia, na Ásia Menor — e um troiano, Anquises, como o objeto da paixão de Afrodite. E quando ela, disfarçada de bela virgem, vai ao encontro desse mortal a quem pretende seduzir, afirma ser filha de Otreu, célebre rei da Frígia, reino vizinho de Tróia (v. 111). Para completar, no v. 113, a falsa princesa diz conhecer a língua de Anquises. 54 Portanto, o poeta desconhecido do Hino, além de servir-se da relação Chipre–Afrodite para marcar os elos entre ela e o Oriente, como aqui já se viu, vale-se de outros recursos para fazê-lo. Há, ainda, muitos; passo a este: o nome “Citeréia”, que evoca a segunda parada nesta viagem pela geografia mítico-religiosa e poética da divindade, ou seja, os elos entre Afrodite e a ilha de Citera.
Afrodite e Citera Citeréia (Kuy°rha,55 Kuthére#a) é, depois de Cípris e de Ciprogênia, o nome mais usado para Afrodite na lírica de Safo, ocorrendo em dois dos 14 fragmentos do corpus deste livro, o 86 V e o 140 V. Sua relevância 120
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está na ligação que estabelece entre a deusa e a ilha de Citera, reiteradamente frisada por poetas e prosadores antigos. A ilha e a Citeréia Ao sul da Lacônia e ao pé do Peloponeso localiza-se Citera, pequena ilha que integra o mapa da geografia de Afrodite e que pertence à esfera étnico-cultural dórica. No século VIII a.C., Argos, cujo poderio militar era muito expressivo, dominava a ilha, lembra Nicholas G. L. Hammond, em “The Peloponnese” (1997, p. 326).56 E mesmo quando Esparta, na Lacônia, estava anexando outras regiões, observa Hammond, Argos, cujo auge se deu nos anos de 670-660 a.C., continuou a dominar localidades próximas e mais distantes, como Citera, “onde, realmente, um pouco de cerâmica argiva, e nenhuma da Lacônia, tem sido encontrada” (p. 338). Durante a expansão comercial e a colonização, às quais se lançaram as cidades do Peloponeso, Citera compôs uma das rotas de comércio marítimo com o Egito e Cirene, mas não chegou a ser tão importante e ativa quanto Chipre.57 Além de desempenhar esse papel, a ilha foi um ponto estratégico fundamental para Argos que ali manteve sua frota, vigiando e ameaçando a costa da Lacônia, região de sua maior inimiga, Esparta. Os helenistas, a fim de ilustrar quão vital para os argivos era Citera, costumam citar Heródoto que, pela boca de um personagem, Damáratos, diz (livro VII, 235, 2): ¶sti d¢ ™p’ aÈtª n∞sow ™pikeim°nh tª oÎnoma ™st‹ KÊyhra, tØn X¤lvn énØr par’ ≤m›n sof≈tatow genÒmenow k°rdow m°zon ín ¶fh e‰nai SpartiÆt˙si katå t∞w yalãsshw katadeduk°nai mçllon μ Íper°xein [...] Há, perto dali [da Lacônia], uma ilha à qual se dá o nome de Citera. Sobre ela, Quílon, o homem mais sábio entre nós, dizia ser mais vantajoso aos espartanos que estivesse antes no fundo do mar do que sobre ele [...].
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No século VI a.C., enquanto Esparta controlava boa parte do Peloponeso, Argos resistia, isolada, com o apoio de Citera. Até que, por volta de 560 a.C., a ilha caiu. As tropas de Esparta avançaram rumo a outras regiões argivas e, finalmente, em c. 546 a.C., tomaram Argos, após pesadas baixas de ambos os lados. Citera passou, então, para o domínio lacedemônio.58 Não foram, porém, apenas os gregos que estiveram na ilha. Os fenícios, através dos quais Citera teria aprendido a cultuar Afrodite, também passaram por lá.59 Duas fontes antigas assim o atestam: são os relatos, já reproduzidos no item anterior, de Heródoto (I, 105) e Pausânias (I, XIV, 7), que afirmam ser antigo e fenício o santuário da deusa na ilha. A partir desses relatos e de evidências arqueológicas das “conexões arcaicas dos fenícios com Citera”, John P. Brown, em “Kothar, Kinyras, and Kythereia”, lança a hipótese de que haveria um fundador comum para os cultos de Afrodite em Chipre e Citera (1965, pp. 209-10). Indícios arqueológicos analisados por Pirenne-Delforge apontam para este quadro sobre a fundação do culto a Afrodite “Urânia” na pequena ilha; neste caso, essa fundação “deve situar-se durante os ‘anos obscuros’, entre os séculos X e VIII a.C. Mas nada exclui a priori que colonos anteriores, talvez cretenses, teriam já no III milenário estabelecido na ilha um culto, cujo teor nos escapa completamente” (1994a, p. 221).60 Outras hipóteses podem ser construídas com base em tradições diversas daquela retomada por Heródoto e Pausânias. Um exemplo está nas Antigüidades romanas, de Dionísio de Halicarnasso (século I a.C.), erudito grego que viveu na Roma de Augusto e também realizou tratados de retórica e textos históricos. Nessa obra, Dionísio narra a fuga de Tróia de Enéias, o filho de Afrodite e de Anquises; antes de prosseguir pelo Peloponeso, tendo deixado Delos, Enéias pára em Citera e homenageia sua mãe erguendo-lhe um santuário (livro I, L, 1). Esse relato, crê Pirenne-Delforge, confirma “a reputação de Antigüidade do culto da deusa na ilha e sua celebridade” (1994a, pp. 219-20). Pausânias, em passagem específica sobre o santuário de Afrodite em Citera, afirma (livro III, XXIII, 1):
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™n KuyÆroiw d¢ ™p‹ yalãsshw Skãndeiã ™stin ™p¤neion, KÊyhra d¢ ≤ pÒliw énabãnti épÚ Skande¤aw stãdia …w d°ka. tÚ d¢ flerÒn t∞w OÈran¤aw ègi≈taton ka‹ fler«n ıpÒsa ’Afrod¤thw par’ ÜEllhs¤n ™stin érxaiÒtaton: Em Citera, Escândia é o porto sobre o mar; e a cidade de Citera, para quem sobe, está a dez estádios de lá. O santuário da Urânia é o mais sagrado e, dentre todos os santuários de Afrodite na Hélade, o mais antigo.
Em suma, há uma tradição que afirma a presença fenícia em Citera e no antigo e famoso culto grego a Afrodite. Como antes vimos, há ainda influência de deusas semíticas na concepção da deusa grega.61 Temos aqui, portanto, uma outra relação mítico-geográfica que a literatura grega antiga não ignorou. O elo Citera–Afrodite na épica e em Safo Em dois momentos da Odisséia — mas em nenhum da Ilíada —, o elo Afrodite–Citera estabelece-se pelo uso do nome “Citeréia”: nos cantos VIII e XVIII.62 No canto VIII, Demódoco canta o adultério de Afrodite e Ares (vv. 266-369). Após Hefesto, o marido, ter preparado uma armadilha a fim de flagrar sua esposa, ele fingiu viajar (vv. 276-84). Ares, vendo-o partir, não hesitou (vv. 287-88): b∞ d’ fi°nai prÚw d«ma periklutoË ÑHfa¤stoio fisxanÒvn filÒthtow ™ustefãnou Kuyere¤hw. Foi para os aposentos do famoso ferreiro, Hefesto, ansiando pelo amor da Citeréia de bela guirlanda.
Essa é a primeira ocorrência do nome. A segunda e última dá-se no canto XVIII da Odisséia, quando Atena incute em Penélope a vontade de se fazer mais desejável aos olhos dos pretendentes que se banqueteiam no palácio de Ulisses. Nesse contexto, Palas Atena envia um sono a Penélope e, enquanto esta dorme, a deusa faz o seguinte (vv. 192-94): 123
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kãlleÛ m°n ofl pr«ta pros≈pata kalå kãyhren émbros¤ƒ, o·ƒ per ™#st°fanow Kuy°reia xr¤etai [...] Primeiro, as faces belas purificou-lhe com bálsamo divino, com que a Citeréia de bela guirlanda se unge [...].63
Em comum, as duas ocorrências têm o epíteto eustéphanos (“de bela guirlanda”) acompanhando o nome “Citeréia”. Isso se verifica também em Hesíodo, mas somente na Teogonia, em que esse nome ocorre quatro vezes. As duas primeiras se dão em meio à narrativa da gênese de Afrodite, nos versos 196 — cuja autenticidade é questionável64 — e 198. Cito a passagem (vv. 195-98, grifo meu): [...]: tØn ’Afrod¤thn [éfrogen°a te yeån ka‹ ™ust°fanon Kuy°reian] kiklÆskousi yeo¤ te ka‹ én°rew, oÏnek’ ™n éfr“ yr°fyh: étår Kuy°reian, ˜ti pros°kurse KuyÆroiw: [...] Afrodite [deusa nascida da espuma e Citeréia de bela guirlanda] chamam-na os deuses e os homens, porque na espuma foi criada; mas Citeréia, porque alcançou Citera;
No verso 198, Hesíodo apresenta uma explicação etiológica para o nome Kuthéreia. Nos versos 190 a 193, ele canta que Afrodite, após ser gerada no esperma de Urano misturado à água salgada, é levada pelo mar a Citera, por onde apenas passa, e, depois, para Chipre, cujo solo a recebe. A terceira ocorrência verifica-se no verso 934, que se insere num pequeno bloco sobre a relação amorosa entre Afrodite e Ares, referida na Odisséia (canto VIII, vv. 266-369). Mas aqui, na Teogonia, não há adultério; somente a geração de uma descendência (vv. 933-37):65
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[...] aÈtår ÖArhi =inotÒrƒ Kuy°reia FÒbon ka‹ De›mon ¶tikte, deinoÊw, o· t’ éndr«n pukinåw klon°ousi fãllagaw ™n pol°mƒ kruÒenti sÁn ÖArhi ptolipÒryƒ, ‘Armon¤hn y’, ∂n Kãdmow Íp°ryumow y°t’ êkoitin. [...]. Com Ares, o que rompe escudos, Citeréia gerou Fóbos e Deimos, terríveis, que tumultuam as cerradas falanges dos homens na batalha enregelante junto a Ares, saqueador de cidades, e Harmonia, a quem Cadmo, o ousado, desposou.
Vale notar, acerca desses versos, que tanto Cadmo quanto Afrodite são tidos como estrangeiros no cenário tebano e grego: ambos teriam vindo do Leste, ou seja, do Oriente. Além disso, em Tebas, havia uma “estatueta de madeira” (jÒanon, ksóanon) da deusa que, segundo Pausânias, portava o epíteto “Urânia”, de forte carga semântica oriental. 66 Diz o viajante, no livro sobre a Beócia (IX, XVI, 3): ’Afrod¤thw d¢ Yhba¤oiw jÒanã ™stin oÏtv dØ érxa›a Àste ka‹ énayÆmata ÑArmon¤aw e‰na¤ fasin, [...] . kaloËsi d¢ OÈran¤an, tØn d¢ aÈt«n Pãndhmon ka‹ ’Apostrof¤an tØn tr¤thn: De Afrodite, em Tebas, havia três estatuetas de madeira tão antigas que oferendas de Harmonia dizem ser, [...] . Chamam-nas Urânia, uma delas Pândemos e a terceira Apostrófia.
A última ocorrência de “Citeréia” na Teogonia dá-se em meio a outro caso amoroso de Afrodite, agora com o mortal Anquises, pastor troiano (vv. 1.008-10): Afine¤an d’ êr’ ¶tikten ™ust°fanow Kuy°reia, ’Agx¤s˙ ¥rvi mige›s’ ™ratª filÒthti ÖIdhw ™n korufªsi poluptÊxou ±nemo°sshw. E Enéias ela pariu, Citeréia de bela guirlanda, a Anquises, herói, tendo se unido em amor adorável nos cimos do Ida de muitos vales e ventoso.67 125
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Ressalto que em três das quatro ocorrências de “Citeréia” no poema hesiódico o epíteto eustéphanos acompanha esse nome. O mesmo se dá no Hino homérico V, a Afrodite, no qual há três ocorrências, que, como na Teogonia, estão sempre na mesma ordem: primeiro, o epíteto; depois, o nome.68 Trata-se, pois, de uma estrutura formular, corrente nos poetas antigos.69 Diz Deborah D. Boedeker, em Aphrodite’s entry into Greek epic: “[Kúpris] nunca ocorre com um epíteto. [Kuthéreia] — exceto pela única atestação do Hino homérico 10.1 — recebe somente o epíteto [eustéphanos] e sua forma equimétrica variante fiost°fanow [iostéphanos] (Hino homérico, 6.18)” (1974, p. 20, grifos meus). Vejamos as ocorrências dos Hinos homéricos à deusa, referidos na citação. No verso 18 do Hino homérico VI, que tem 20 versos, precede Citeréia o epíteto iostephánou (“de violácea guirlanda”), que altera a qualificação da “guirlanda” (-stéphanos). Crêem os helenistas que iostéphanos e eustéphanos são apenas epítetos ornamentais usados para descrever outras deidades além de Afrodite, nada dizendo da natureza específica da deusa, exceto pela “possível referência às guirlandas freqüentemente usadas em danças sagradas realizadas para deusas da fertilidade”, tais como Deméter e a própria deusa do amor erótico.70 Isso já constitui uma ressalva importante. Há outra: Afrodite é intensamente ligada às flores e tem afinidades estreitas com a vegetação; logo, iostéphanos pode não ser meramente ornamental. Diversa é a ocorrência de “Citeréia” no Hino homérico X, a Afrodite, composto de seis versos. No primeiro deles, o nome aparece prece~ dido por outro: “Ciprogênia, a Citeréia” (Kuprogenê Kuthéreian). Viu-se, até agora, quão enfaticamente são marcados, e muitas vezes num mesmo poema, os elos insulares de Afrodite com Chipre e Citera. Homero, Hesíodo e os outros poetas antigos, incluindo Safo, dão prova disso, e os relatos históricos e arqueológicos sobre os cultos da deusa corroboram para tanto. Todavia, a ligação que os poetas estabelecem entre Citera e o nome “Citeréia” não é aceita por alguns em virtude de dificuldades etimológicas que a tornam contestável.71 A despeito disso, Pirenne-Delforge afirma que, “com toda a certeza, Afrodite é Citeréia 126
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porque seu culto insular era importante e antigo, mesmo se a abreviação de Kuy°reia [Kuthéreia] em relação a KuyÆra [Kuthê´ra, ‘Citera’] coloca problemas aos lingüistas.72 [...] Não há dúvida de que o nome é, antes de tudo, literário [...]” (1994a, p. 225).
Afrodite e Creta: o caso do Fr. 2 V, de Safo O fragmento e o nome “Creta”: problemas textuais Até aqui, debrucei-me sobre três nomes insulares de Afrodite: Kúpris, Ciprogênia e Citeréia. Agora, os procedimentos analíticos bem como o objeto observado serão um pouco diversos, uma vez que tratarei não de outro nome, mas da possível inserção de uma nova ilha na geografia insular — e sáfica — da deusa, Creta, que se daria no Fr. 2 V, 73 da poeta de Lesbos, hipótese que passo a considerar. Abre-se assim este fragmento: ..anoyen katiou[!|~deurummekrhte.!ip.[.]r. [ ]|.~ naËon [...] ... [... †Para cá, até mim, de Creta [.][
]|† templo
Não temos o início do poema, mas uma estrofe de quatro versos — estrutura que se repetirá até o verso 16, quando o texto é subitamente interrompido. O verso 1 é ilegível, nele só se distinguem algumas letras e há uma grande discussão em torno de sua pertinência ou não ao fragmento.74 O verso 1 pertence ao poema, mas a fonte em que sobrevive está bem deteriorada. Temos uma seqüência de 17 letras separadas por duas falhas, representadas por colchetes (deurummekre##te.sip.[.]r[ ]/.) — no primeiro, haveria uma letra, como indica o ponto; e no segundo, não se sabe quantas.
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Apesar disso, o verso é, em alguma medida, legível, como sinalizam as cruzes. Quebrando a seqüência de letras, haveria no mínimo três palavras gregas: o advérbio de lugar deu))ru (deËru, “aqui, para cá”), o pronome de primeira pessoa m’(e) (m’(e), acusativo singular de ¶gv, égo##, “eu”), e kre#te.s (krhte. !, genitivo singular de KrÆth, Krê´ te##, “Creta”), cujo epsilon (e, e) é incerto, como indica o ponto a ela subscrito. Talvez se leia também a preposição ek (™k, “de”) após m’. Na edição PLF, publicada pela primeira vez em 1955, o verso 1 aparece do seguinte modo: deurum~m. ekrhta.!.p[
]. naËon
deurum†m . ekre##ta. s. p[
]. nau))on
Denys Page — co-editor de Edgar Lobel na PLF — assim reconstrói o verso, em seu estudo Sappho and Alceus (1987, pp. 35-36; 1 a ed.: 1955): deËrÊ m’ ™k KrÆta! ™p[‹ tÒnd]e naËon75 deu))rú m’ ek Krê´ tas ep[ì tónd]e nau))on.
Essas duas reconstruções, sobretudo a segunda, são largamente aceitas. A fim de considerá-las, é preciso antes observar as fontes de transmissão do Fr. 2 V para que seja possível apresentar uma postura devidamente justificada diante do assunto controverso e uma explicação para minha própria tradução. O fragmento pertenceria ao primeiro dos nove livros de Safo editados pelos alexandrinos, porque seu esquema métrico segue a chamada “estrofe sáfica”.76 Foi preservado em um óstraco (ˆstrakon), caco de pote ou vaso de cerâmica, que é a mais antiga fonte de transmissão direta da lírica sáfica.77 Até a descoberta do Óstraco florentino, como ficou conhecido, e sua publicação em 1937 pela helenista italiana Medea Norsa, edições de Safo como as de John M. Edmonds, Lyra Graeca, vol. I (1934, Fr. 6), e de Théodore Reinach e Aimé Puech, Alcée, Sapho 128
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(1937, Fr. 5), só traziam, e separadas, duas estrofes do atual Fr. 2 V, a dos versos 5 a 8 e a dos versos 13 a 16.78 A única fonte destes últimos era o tratado Banquete dos sofistas, de Ateneu (gramático grego, séculos II-III d.C.);79 e dos versos 5 a 8, o tratado Sobre as idéias, de Hermógenes (retórico grego, século II d.C.).80 Os versos do Fr. 2 V como hoje os temos chegaram-nos somente depois que Norsa publicou o chamado Óstraco florentino em “Versi di Saffo in un ostrakon del sec. II a.C.” (1937, pp. 8-15).81 Para ela, o verso ~ 1 diria: úmme, Krê tes, pr. [ # (] énaugon ágnon (“vós, Cretenses, [...] iluminavam o sacro”). Ao editar o verso desse modo, Norsa busca afirmar, com o discreto apoio de estudos sobre os cultos de Afrodite em ~ Creta, que o nome Krêtes (“Cretenses”) aparece no fragmento e, sobretudo, que tal ilha é o local da cena ali descrita, e não o ponto de partida da deusa rumo a outro espaço (pp. 10-11). Essa segunda interpretação se fez, todavia, amplamente aceita, e duas leituras do verso 1 prevaleceram: †deurummekre##te.sip.[.]r. [ ]|.† nau)o) n (Voigt); e, mais reconstruída, a de Page, citada anteriormente, deu))rú m’ ek Krê´ tas ep[ì tónd]e nau)on (“Para cá, até mim, de Creta, para este templo”). De um modo ou de outro, com raríssimas exceções, os especialistas em Safo firmam o elo entre o Fr. 2 V e Creta. 82 Durante algum tempo, discutiu-se se sustenta tal elo a ocorrência de “Creta” (ou “Cretenses”) no verso 1, mas já em 1972 Etienne Barilier, em “La figure d’Aphrodite dans quelques fragments de Sappho”, dava a questão como quase encerrada e a leitura favorável à primeira opção, uma “conquista difícil” (p. 40). A ilha, a deusa e a poeta Considerar os cultos de Afrodite em Creta, como fizeram Norsa e outros, pode não resultar em provas conclusivas sobre a leitura ou não do nome da ilha no Fr. 2 V, mas certamente corrobora para uma argumentação favorável a respeito. Por isso, nestas páginas será esboçado um quadro acerca da presença da deusa na ilha, que, como frisou Farnell 129
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(1896, p. 619), está entre os locais mais importantes de seus cultos, além de Chipre e Citera. Creta situa-se próxima de Citera e na rota para o Egito, para as ilhas Cíclades, Rodes (perto da Ásia Menor) e Chipre — está a poucos quilômetros da costa Levantina, região da Fenícia e da Síria. Por isso, a posição geográfica da maior ilha do Egeu, Creta, é similar à de Chipre: ambas foram pontos importantes nas rotas comerciais marítimas; em ambas — mais intensamente na segunda —, etnias e culturas diversas deixaram suas marcas; daí esta frase de Burkert: “Chipre e também Creta estão em posição especial: elas foram ‘orientalizantes’ o tempo todo” (1992, p. 16). E ele ressalta, ainda, que “Creta não é apenas o antigo centro da cultura minóica, mas também — depois de Chipre — a área mais estreitamente conectada com o Leste semítico nos períodos geométrico [c. 900-700 a.C.] e início do ‘orientalizante’” (p. 63).83 Boardman, afirma: “Chipre provia a intermediação entre Creta e o leste, e todos os objetos ou idéias ‘orientalizantes’ que Creta aceitou durante as ‘Eras Negras’ [c. 1000-800 a.C.] ou são derivados diretamente de Chipre, ou envolvem o tipo de objeto que estava tão em casa em Chipre como no continente oriental” (1988, p. 36). Pode-se dizer, assim, que as duas ilhas não apenas guardam semelhanças entre si — os cultos a Afrodite, a geografia, a influência de povos orientais etc. — como estiveram econômica e culturalmente próximas. Boardman diz, em “The islands”, que elas se mantiveram em contato desde, pelo menos, c. 1100 a.C. (1982, p. 776). Uma história contada pelo grego Plutarco (séculos I-II d.C.) na biografia de Teseu é reflexo disso. Ele nos fala dos elos entre essa figura mítica, Afrodite, e Ariadne, a princesa cretense. Nessa rede de conexões se insere Chipre, precisamente Âmatos. Segundo Plutarco, Páion, poeta dessa vila, narra o seguinte (Teseu, 20, 4-7): [4] TÚn går Yhs°a fhs‹n ÍpÚ xeim«now efiw KÊpron ™jenexy°nta, ka‹ tØn ’Ariãdnhn ¶gkuon ¶xonta, faÊlvw d¢ diakeim°nhn ÍpÚ toË sãlou ka‹ dusforoËsan, ™kbibãsai mÒnhn, aÈtÚn d¢ t“ plo¤ƒ bohyoËnta pãlin efiw tÚ p°lagow épÚ t∞w g∞w f°resyai. [5] Tåw oÔn ™gxvr¤ouw guna›kaw tØn ’Ariãdnhn énalabe›n ka‹ peri°pein éyumoËsan ™p‹ tª 130
CHIPRE, CITERA E CRETA
mon≈sei, ka‹ grãmmata plastå prosf°rein …w toË Yhs°vw grãfontow aÈtª, ka‹ per‹ tØn »d›na sumpone›n ka‹ bohye›n, époyanoËsan d¢ yãcai mØ tekoËsan. [6] ’EpelyÒnta d¢ tÚn Yhs°a ka‹ per¤lupon genÒmenon to›w m¢n ™gxvr¤oiw épolipe›n xrÆmata, suntãjanta yÊein tª ’Ariãdn˙, dÊo d¢ mikroÁw éndriant¤skouw fldrÊsasyai, tÚn m¢n érguroËn, tÚn d¢ xalkoËn. [7] ’En d¢ tª yus¤& toË Gorpia¤ou mhnÚw flstam°nou deut°r& kataklinÒmenÒn tina t«n nean¤skvn fy°ggesyai ka‹ poie›n ëper »d¤nousai guna›kew: kale›n d¢ tÚ êlsow ’Amayous¤ouw, ™n ⁄ tÚn tãfon deiknÊousin, ’Ariãdnhw ’Afrod¤thw. [4] [Páion] diz que Teseu foi para Chipre levado por uma tempestade, tendo com ele Ariadne grávida; como ela se estava sentindo indisposta, devido ao balanço do mar, e passando mal, ele a fez desembarcar sozinha e, socorrendo a nau, novamente rumo ao pélago, para longe da terra, foi carregado. [5] Páion diz que as mulheres da região recolheram Ariadne e dela, que estava desesperada com sua solidão, cuidaram. E cartas forjadas lhe traziam, como se por Teseu tivessem a ela sido escritas. Quando ela estava em trabalho de parto, sofreram junto com ela e a ajudaram, mas Ariadne morreu sem parir, e elas a enterraram com honras funerárias. [6] Teseu, tendo voltado e estando profundamente entristecido pelo ocorrido, aos da terra deixou uma quantia em dinheiro, ordenando-lhes que fizessem sacrifícios a Ariadne e que duas pequenas estatuetas construíssem, uma de prata, a outra, de cobre. [7] E no evento do sacrifício, estabelecido no segundo dia do mês de Gorpíaos, um dos jovens, deitando-se, imitava os sons e agia como as mulheres em trabalho de parto. Os amatosianos chamam o bosque, onde mostram a tumba funerária da moça, “o bosque de Ariadne-Afrodite”.84
A desventura de Teseu e Ariadne ilustra o entrecruzamento das culturas de Creta e Chipre; Afrodite, como não poderia deixar de ser, é personagem desse movimento. Ressaltadas as semelhanças com Chipre, é preciso abordar este ponto: a ilha de Creta foi o centro da civilização minóica que lá floresceu e que remonta ao terceiro milenário a.C., no mínimo. Essa civilização antecede a micênica, que dela se beneficiou em vários aspectos. Por conta de sua antigüidade, o conhecimento do mun-
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do minóico fundamenta-se, sobretudo, na arqueologia85 — evidências como afrescos, gemas, selos, pinturas, sarcófagos etc. — e naquilo que se decifrou, até agora, do Linear A, sistema de escrita cretense da fase áurea do Palácio de Cnossos (1750 a.C.).86 Todavia, há muito a indagar: por exemplo, não se sabe quem eram os minóicos, mas sabe-se que “na segunda metade do terceiro milênio a.C., Creta era ainda totalmente não-grega”.87 A ida dos gregos à ilha foi motivada, entre outras coisas, pelas invasões dóricas, cujos efeitos foram sentidos em Creta devido à sua proximidade do continente por elas assolado. Assim, os micênicos refugiaram-se na ilha por volta do século XII a.C.,88 num momento em que a civilização minóica se encontrava em declínio. E logo ela foi dominada por Micenas, que dela absorveu elementos culturais, político-sociais e econômicos.89 Inaugurou-se, então, o mundo “minóico-micênico”. Olhando para o mundo minóico, há aqueles que concebem a Afrodite grega não como oriental, mas originariamente cretense: ela sido levada de Creta a Citera, ao continente, a Chipre e a outras localidades helenas, sobretudo do mar Egeu. Contudo, trata-se de um ponto tão ou mais difícil de provar quanto qualquer tese para a espinhosa questão das origens de Afrodite. De todo modo, a prevalência dos cultos à deusa em certas regiões de Creta, de acordo com Farnell, “é atestada pela reivindicação dos cretenses de que sua ilha deveria ser considerada como a casa original do culto a Afrodite [...]” (1896, p. 632). Mais importante por ora é o dado que afirma o lugar de destaque ocupado por Afrodite nos cultos cretenses. E, como se viu na citação de Plutarco, a deusa deixou sua marca nos mitos da ilha, a ponto de alguns helenistas a ela identificarem como seu duplo Ariadne, filha do lendário rei Minos de Creta.90 Nada haveria de estranho, então, no fato de um fragmento lírico como o 2 V de Safo ligar Afrodite à ilha. Mas, se desejarmos evidências arqueológicas da importância da deusa em Creta, devemos reportar-nos a uma descoberta de 1972: seu santuário e de Hermes em Kato Sime, na região centro-oriental da ilha, que é “o maior local de culto jamais descoberto” lá, “continuamente ocupado de 1600 a.C. ao século III 132
CHIPRE, CITERA E CRETA
d.C.”, segundo as exploradoras do sítio, Angeliki Lebessi e Polymnia Muhly, em “The sanctuary of Hermes and Aphrodite at Syme, Crete” (1987, p. 102).91 Essa ocupação constante é prova para elas, para Haiganuch Sarian, em “L’héritage mycénien” (1989), e para Giovanni P. Carratelli, em “Afrodite cretese” (1979), entre outros, de continuidade entre as civilizações minóica e micênica. Diz Carratelli: “No santuário cretense [de Afrodite e Hermes] é atestada, de fato, a continuidade do culto da idade minóica e micênica à geométrica e desta, ininterruptamente, até a idade romana” (p. 131). Conforme Sarian, o santuário é exemplo “de uma prática cultual ininterrupta entre o segundo e o primeiro milenário” (p. 589), quando cai Micenas: “Em Kato Sime, Creta, o santuário consagrado, na época histórica, a Hermes e a Afrodite recobre um local de culto minóico caracterizado por vestígios arquitetônicos e importantes depósitos votivos do Minóico-Médio III B e do Minóico Recente III B. O culto parece contínuo do Minóico Recente III B (século XIII a.C.) ao século VI a.C., mas a ocupação do sítio dura do século XVI a.C. ao século III d.C.” (pp. 589-90). Lebessi e Muhly ressaltam que, originariamente, em data bem recuada, os deuses do santuário seriam minóicos, mas teriam sido identificados aos gregos Afrodite e Hermes desde o século VI a.C., no mínimo — talvez até antes, no século VII a.C. —, e com toda a certeza no período helenístico, como revelam as inscrições encontradas no local e datadas dessa época (1987, pp. 111-12).92 Sobre as características do santuário, as arqueólogas declaram: “A longa sobrevivência de tradições minóicas é especialmente característica do santuário de Sime, mas este e outros traços singulares do local não deveriam obscurecer suas similaridades com outros santuários cretenses” (p. 111). Uma dessas é exatamente sua localização, pois ele fica no cume de um monte, espaço tão comum para um culto cretense quanto a caverna. 93 Lebessi e Muhly afirmam que o santuário foi erguido no remoto e de difícil acesso cume do monte Dikte (c. 1.130 metros), sendo Kato Sime a vila dele mais próxima e também da costa; ademais, ele “foi construído num anfiteatro natural com uma vista ampla do mar Líbio 133
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ao sul, mas cercado ao norte, leste e oeste por íngremes e rochosos penhascos dos quais cascatas de água da chuva descem e atravessam o sítio [...] [e há ainda] uma nascente copiosa que corre para o leste da escavação” (pp. 103-5). A descoberta desse santuário, cujos períodos de maior prosperidade foram o neopalacial (c. 1600-1425 a.C.), o geométrico tardio-arcaico (c. 700-450 a.C.) e o helenístico tardio-romano (c. 31 a.C.-363 d.C.), de acordo com Lebessi e Muhly (pp. 106-11), encorajou argumentações favoráveis a uma origem cretense de Afrodite. É o caso de Carratelli, talvez o mais enfático defensor dessa tese, que em artigo de 1979 se vale de uma reunião de elementos para afirmá-la, tais como a existência do próprio santuário de Kato Sime e as características naturais de sua localização, o Fr. 2 V de Safo e mesmo passagens de textos antigos, como este de Diodoro da Sicília (século I a.C.), na sua Biblioteca da história (livro V, 77, 4-7): t«n går ye«n fasi toÁw ple¤stouw ™k t∞w KrÆthw ırmhy°ntaw ™pi°nai pollå m°rh t∞w ofikoum°nhw (...) ımo¤vw d’ ’Afrod¤thn ™ndiatr›cai t∞w m¢n Sikel¤aw per‹ tÚn ÖEruka, t«n d¢ nÆsvn per‹ KÊyhra ka‹ Pãfon t∞w KÊprou t∞w ’As¤aw per‹ Sur¤an: diå d¢ tØn ™pifãneian ka‹ tØn ™p‹ pl°on ™pidhm¤an aÈt∞w toÁw ™gxvr¤ouw ™jidiãzesyai tØn yeÒn, kaloËntaw ’Afrod¤thn ’Eruk¤nhn ka‹ Kuy°reian ka‹ Paf¤an, ¶ti ka‹ Sur¤an. De fato, [os cretenses] dizem que a maioria dos deuses, de Creta sendo originários, foram para muitas partes do mundo habitado [...]. Similarmente, Afrodite assentou-se na Sicília, em torno de Érix, e, dentre as ilhas, em Citera e Pafos, ilha de Chipre, e na Ásia, ao redor da Síria. Devido à epifania da deusa e à sua longa estada entre eles, os habitantes dessas regiões se apropriaram dela, chamando-a Afrodite Erícina e Citeréia e Páfia e até Síria.94
Assim como esse relato de Diodoro, o Fr. 2 V de Safo daria prova da relevância do culto da deusa em Creta, se realmente esse nome consta do verso 1 da canção. Todavia, a tese da origem cretense de Afrodite não foi na Antigüidade, nem é hoje, muito difundida. Poucos a aceitam;
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Carratelli entre eles, para quem o fragmento sáfico, o santuário de Kato Sime e os elos míticos entre Afrodite, Teseu, Ariadne e o rei Minos, são elementos que poriam em cheque a “dominante convicção da procedência da deusa do mundo sírio-anatólico via Chipre: convicção que era, é verdade, difundida já no mundo grego, como indicam o epíteto [Kúpris] e a tradição recolhida de Heródoto (I, 105) sobre a origem oriental de Afrodite [Urânia] [...]” (p. 134).95 Pierre Lévêque e Louis Séchan, em Les grands divinités de la Grèce (1990), apresentam, sem assumir qualquer posicionamento, uma série de traços da Afrodite grega que apontam para o Oriente e outros tantos que apontam para o mundo minóico pré-helênico, como a associação de Afrodite à pomba, ave constante nas figurações religiosas descobertas no Palácio de Cnossos — sede daquele mundo —, nas quais está relacionada à deusa cretense da fecundidade (p. 369). Mas mesmo essa aproximação é problemática, pois sabe-se que a pomba também aparece associada às deusas orientais Astarte e Ishtar. Por isso, Pirenne-Delforge argumenta em sentido contrário, enxergando na ligação entre Afrodite e essa ave um motivo oriental (1994a, p. 416). Na introdução de seu estudo sobre Afrodite, Pirenne-Delforge arrola várias críticas à tese da origem cretense; reproduzo-as abaixo por crê-las bem estruturadas e apropriadas à postura favorável à tese da origem oriental da deusa, “que tem mais chances de ser fundamentada” (p. 8) e para a qual se inclina o presente trabalho. Cito suas três principais críticas: [1] a identificação do casal divino honrado [Afrodite e Hermes] nesse lugar selvagem e montanhoso [o santuário de Kato Sime] não é firmemente assegurada senão por inscrições da era helenística. É verdade que uma deidade pôde, num momento indeterminado, receber o nome de ’Afrod¤th [“Afrodite”] e que tal constatação permite postular afinidades funcionais [...] entre a deusa anônima em época remota e a Afrodite clássica. Mas isso não autoriza as extrapolações em termos de origem. [2] o poema de Safo [Fr. 2 V] [...] apresenta dificuldades consideráveis de leitura. [...] E, depois, é particularmente delicado deduzir dessa invo-
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cação poética [que convoca Afrodite para que venha de Creta a um outro lugar] dados históricos no tocante à origem da deusa. O mesmo vale para as lendas de Minos, de Teseu e de um culto de Dioniso cretense em Argos [...], que informa bem mais sobre as afinidades entre esse deus, Afrodite e Ariadne do que sobre a origem da deusa. [3] coloca-se em cheque, atualmente, a visão genética de uma Grande Deusa Primordial. [...] O ponto de vista desenvolvido por G. Pugliese Carratelli [1979] vai nesse sentido, malgrado as reservas [...] quanto à existência de uma “Grande Deusa” minóica (pp. 6-7, grifo meu).
Deixando de lado, agora, o santuário de Kato Sime, resta dizer que um argumento dos helenistas em prol da leitura de “Creta” no Fr. 2 V (v. 1) baseia-se, também, em outra suposta ocorrência do nome num fragmento duvidoso de Safo e na possível menção de uma vila cretense no Fr. 35 V. Contudo, se já o Fr. 2 V apresenta, como bem diz PirenneDelforge acima, “dificuldades consideráveis de leitura”, esses dois textos são ainda mais problemáticos. No primeiro caso, temos o Fr. 16 V, normalmente incluído nas edições da poeta entre os fragmentos de autoria duvidosa.96 Mesmo que ~ seja esse o caso, nele não se lê Krê´ tas (KrÆta!, “Creta”), mas Krêssai (Kr∞!!ai, “as Cretenses”). Observa Denys Page, em Select papyri, sobre o Fr. 2 V (v. 1) e o fragmento de lavra duvidosa: ) Se Kr∞tew [Krê tes, “Cretenses”] ou ™k KrÆtaw [ek Krê´ tas, “de Creta”] fossem lidos no v. 1, ele [Fr. 2 V] poderia ser uma descrição de um templo [de Afrodite]; e o poema de Safo poderia (mas não necessariamente) ter sido escrito em Creta no caminho de sua viagem de exílio para ou da Sicília. Não há nenhuma outra referência aos cretenses na poeta, a menos que o Fr. 12 incerti auctoris (Lobel, 1925, p. 73) [= Fr. 16 V inc. auct.] lhe seja atribuído. Neste, mulheres cretenses dançam em torno de um altar num prado de flores [...]. É fácil inferir que ambos os fragmentos descrevem o culto à mesma deusa — Afrodite das Flores, em Cnossos [...]. Mas faltam evidências decisivas, uma vez que não é certo que o v. 1 do nosso fragmento [2 V] traga qualquer referência aos cretenses (embora isso seja provável) e que Safo seja a autora do outro fragmento [16 V inc. auct.] (1992, pp. 376-77; 1a ed.: 1941).97
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Quanto ao segundo caso — a menção de uma cidade cretense num fragmento de Safo, em conexão com Afrodite —, as dúvidas são muitas. Refiro-me ao Fr. 35 V, preservado na Geografia (livro I, II, 33) de Estrabão (séculos I a.C.-I d.C.), sua fonte de transmissão indireta, que se resume somente a esta linha: ≥ !e KÊpro! μ Pãfo! μ Pãnormo!98 ... a ti ou Chipre ou Pafos ou Pânormos ...
Pensa-se que Afrodite, apesar de não ser mencionada nesse verso, estaria sendo invocada; logo, Pânormos, como a cípria Pafos, seria um local de culto à deusa. Essa hipótese levou um editor de Safo, Edmonds (1934, Fr. 5), entre outros, a intitular o fragmento “Para Afrodite” (efiw ’Afrod¤thn, eis Aphrodíte#n). Onde se situa, em termos geográficos, a cidade de Pânormos? Em Creta ou na Sicília?99 Se na primeira, teríamos, então, como no Fr. 2 V, uma nova ligação entre a ilha e Afrodite estabelecida na lírica sáfica. Porém isso não passa de conjectura muito dificilmente verificável. As dificuldades, como se pode notar, não são poucas. Mas o mínimo de pistas ou de prováveis evidências sobre a relação Creta–Afrodite bem como a própria leitura do verso 1 do Fr. 2 V no óstraco contribuem para que a maioria dos estudiosos aceite isto: sim, o nome da ilha está citado no fragmento. E, para concluir essa posição à qual sou favorável, acrescento aos dados até aqui arrolados um último. Trata-se de uma inscrição encontrada em Mitilene, onde viveu Safo, e datada do século III a.C., que diz: ˜ ke y°l˙ yÊein ™p‹ t“ tçw ’Afrod¤taw tçw Peiy«w ka‹ t“ ÑErmò o que deseja sacrificar a Afrodite e a Peitó [ou a Afrodite Peitó] e a Hermes.100
Ou seja, Hermes, Afrodite e Peitó, “a deusa Persuasão” — ou Afrodite Peitó (“a Persuasiva”) —, estão reunidos numa lei sagrada de Lesbos
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que envolve, provavelmente, normas de práticas sacrificiais a esses deuses, cujo santuário estaria localizado na ilha de Safo.
Notas 1
O sigma tem grafia variável (“!” e não “w”), que será respeitada como é utilizada nas obras consultadas.
2
Essa grafia é a que aparece em Safo, mas é variável.
3
West (1988a, p. 224). Ver os verbetes de ambos os nomes nos dicionários LSJ e Chantraine.
4
Cf. Otto (1979, pp. 91-93; 1 a ed. orig.: 1929), Boedeker (1974, p. 19), PirenneDelforge (1994a, p. 317) e Kirk (1995b, pp. 94-95). Kúpris ocorre num pequeno fragmento de Hesíodo (cf. Egimios, Fr. 3, ed. Evelyn-White, 1998, pp. 272-73). Ver comentário de Pirenne-Delforge (op. cit., p. 316, nota 31).
5
Cf. Kúpros (KÊprow), nos dicionários LSJ e Chantraine.
6
Cf. Boedeker (1974, p. 19), Pirenne-Delforge (1994a, pp. 311-12) e Kirk (1995b, pp. 94-95).
7
Diz Nilsson (1949, p. 155): “Apolo e Afrodite, que foram admitidos no panteão grego, mas cujas origens estrangeiras não foram esquecidas, tomam o lado dos troianos, pois também estes devem ter suas deidades protetoras”. Sobre a quinta ocorrência, ressalto que ela se dá quando Hera, que intervém junto a Zeus em prol dos aqueus, chama Afrodite de “Cípris”.
8
Para essa união amorosa, cf. Teogonia (vv. 1.008-10) e Hino homérico V à deusa, no qual é detalhada.
9
Cf. também J. Karageorghis (1977, p. 102-8), V. Karageorghis (1991, p. 94) e West (1997, p. 57), que segue a avaliação de Burkert.
10
Cf. Calame (1999, p. 42): “Mesmo a altamente erótica relação que se desenvolve entre Ares e Afrodite é colocada sob o signo da estreita reciprocidade”.
11
Sobre essa exposição, cf. Braswell (1982, pp. 129-37) e de C. G. Brown (1989, pp. 289-91).
12
V. Karageorghis (1991, p. 123).
13
Pirenne-Delforge (1994a, p. 323).
14
Kahil (1994, pp. 217-23) nota que esse é um “banho pré-nupcial”, enquanto o da Odisséia (canto VIII, vv. 362-66) é “pós-nupcial”.
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15
Detienne (1972, pp. 120-21) lembra que os perfumes e os arômatas também têm um “emprego ritual, na Grécia, para os recém-casados”, com a função de provocar e intensificar a atração entre o jovem casal.
16
Para as motivações que levam Afrodite a proteger o já morto Heitor, cf. Romilly (1997, pp. 126-27); para o poder dos óleos divinos de prevenir a putrefação do corpo humano, cf. Sissa e Detienne (1991, pp. 91-94). Sobre as unções divinas, cf. comentário de Vernant (1992a, p. 23).
17
Há inúmeras esculturas da deusa ajoelhada a banhar-se. Cf. Friedrich (1978, pp. 136-40), entre outros.
18
Cf. West (1997, pp. 203-5).
19
V. Karageorghis (1991, pp. 94-95).
20
V. Karageorghis (1991, p. 96). Sobre a fama, cf. Burkert (1998, p. 153), entre outros. Pirenne-Delforge (1994a, pp. 309-48) reproduz testemunhos de gregos e romanos sobre Pafos e Afrodite. O mesmo já era feito no antigo artigo de Gardner et al. (1888, pp. 175-92).
21
Sobre ánassa, feminino de ánax (ênaj), cf. Benveniste (1995b, pp. 23-29); sobre Cíniras, cf. West (1997, p. 57), J. P. Brown (1965, pp. 197-210) e Baurain (1980, pp. 277-308).
22
Masson e Hermany (1982, pp. 241-42).
23
Cf. V. Karageorghis (1991, p. 43).
24
J. Karageorghis (1977, p. 149) defende a já muito combatida tese da existência de uma “Grande Deusa” da fecundidade, que seria cultuada em Chipre desde o quarto milenário e dominante na religião da ilha entre os séculos XI-VI a.C., quando “foi bastante helenizada pela cultura introduzida por aqueus e cretenses”, o que fez com ela se tornasse “a Grande Deusa Afrodite”, pertencente ao mundo ocidental. Todavia, ainda de acordo com ela, essa Afrodite permanece “exposta às influências do Oriente tão próximo [da ilha]. Assim, sua representação tem face dupla, mantendo, ao mesmo tempo, a imagem grega e a imagem oriental” (p. 165). Cf. crítica em Pirenne-Delforge (1994a, pp. 6-7).
25
Cf. J. Karageorghis (1977, p. 30; cf. p. 223).
26
Cf. idem, op. cit., p. 111; Pirenne-Delforge (1994a, pp. 309-70).
27
Gardner et al. (1888, pp. 192-202).
28
Boardman (1988, p. 38). Cf. ainda V. Karageorghis (1976, pp. 58-94) sobre a chegada dos aqueus na vila, cuja data seria o século XIII a.C.
29
V. Karageorghis (1991, pp. 115-16). O autor ressalta que o “culto oficial” a Astarte na Fenícia remonta ao século IX a.C. (pp. 117-19). Em outro livro, sobre Cítion, ele diz: “Arquitetonicamente, o templo de Astarte é o maior templo fenício descoberto até agora no mundo fenício [...]” (1976, p. 171).
139
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30
V. Karageorghis (1976, pp. 106-7).
31
Muitas dessas imagens foram encontradas em Âmatos. Cf. V. Karageorghis (1991, pp. 130-31). Burkert (1992, p. 20) observa que o motivo da deusa nua tocando os seios era desde há muito tempo comum na Síria. Cf. J. Karageorghis (1977, pp. 123-35 e 156).
32
Cf. Burkert (1998, p. 155).
33
Sobre a nudez, cf. ainda Friedrich (1978, pp. 136-40).
34
Garrison (2000, pp. 200-6) completa: “A mais atestada e enigmática de suas características é o gesto de sua mão direita, que levemente encobre sua região púbica, ao mesmo tempo mascarando e chamando a atenção para essa parte de sua nudez”.
35
Friedrich (1978, p. 137).
36
Cf. Pirenne-Delforge (1994a, p. 358).
37
Cf. comentário de Pirenne-Delforge (1994a, p. 329).
38
Sobre esse povo, cf. Hartog (1999, pp. 45-71).
39
Hirón é a forma jônica de hierón (flerÒn), espaço que Will (1989, pp. 529-30) assim define: “[...] local considerado sagrado, seja porque o poder divino aí é manifesto, seja porque foi consagrado a um culto. Essa segunda eventualidade se verifica por ocasião da criação de cultos novos e, notadamente, por ocasião da fundação de cidades, onde se retiram os témenoi [t°menoi] dos deuses antes de conceder os lotes aos homens”. Palavra neutra derivada de hierós (flerÒw), o hierón pertence ao deus de maneira irrevogável (cf. Burkert, 1998, p. 269) e, por isso, está cercado de interdições que visam barrar a entrada do impuro. Will (1989, p. 530) destaca que tais interdições eram temporais, pessoais e topográficas, buscando coibir todas as formas possíveis de conspurcação em seus domínios.
40
Cf. How e Wells (1991, p. 113).
41
Cf. ibidem: “Os gregos tomaram do Oriente o seu título de [Urânia] [...]”.
42
Livro dos Profetas, Jeremias (7.18; 44. 17-19).
43
Cf. Friedrich (1978, pp. 12-23).
44
Cf. J. P. Brown (1965, pp. 212-14 e 216), Burkert (1992, pp. 96-97), West (1997, pp. 65-68).
45
How e Wells (1991, p. 113).
46
Mesmo os que concordam com a tese da procedência oriental de Afrodite podem discordar dessa visão, que, no entanto, é bastante aceita. Otto (1979, pp. 91-93), por exemplo, diz: “Sabemos que ela veio para a Grécia do leste, mas ela foi não somente naturalizada em tempos pré-Homéricos como se tornou completamente grega”.
47
Cf. também Lévêque e Séchan (1990, p. 377): “A deusa era venerada na Ásia Menor, notadamente na Trôade, onde as moedas da Nova Ílio são ornadas com sua efígie;
140
CHIPRE, CITERA E CRETA
nós a encontramos, também, na vila de Afrodisias, onde a celebramos com jogos públicos como deidade eponímia, e, sob o vocábulo Euplóia ou Cnidia, em Cnidos, onde se via a célebre estátua de Praxíteles, a imagem ideal de Afrodite, sobre a qual podemos ainda julgar pela melhor de suas numerosas réplicas, no Museu do Vaticano”. 48
Na passagem citada, a afirmação inicial de Farnell, em 1896, sobre a ampla difusão dos cultos de Afrodite na Grécia é hoje corroborada por evidências históricas, literárias e arqueológicas ainda bem mais numerosas, como o mostra o detalhado estudo de Pirenne-Delforge (1994a). São equivocadas as visões como a de Nilsson, que afirma serem “poucos” os cultos à deusa na Grécia (1949, p. 132).
49
Cf. J. M. Cook (1982, p. 749) e Boardman (1988, p. 85). Janko (1995, pp. 15-19) relaciona os muitos “eolismos” da dicção épica da Ilíada à presença lésbia na Trôade.
50
Ver também pp. 164-65: “Claramente, houve um grau considerável de continuidade entre a épica lésbia do início da ‘era das Trevas’ [c. 1000-800 a.C.] e a épica jônica de Homero [c. 750 a.C.?]”; “É conveniente falar, em termos esquemáticos, da fase eólica sendo ‘sucedida’ pela jônica. Claro que isso não aconteceu do dia para a noite. Deve ter havido um período de concorrência entre elas. [...] está claro que a poesia épica que correu a Grécia de cerca de 750 a.C. em diante era épica jônica e que esta não tinha um rival sério no dialeto lésbio ou em qualquer outro. O único poeta épico lésbio nomeado, Lesques de Mitilene, parece ter escrito em jônico” (p. 165).
51
Olhando para a lírica de Safo e Alceu, West (1988a, p. 151) observa a “preocupação obsessiva com a saga de Tróia [...]”.
52
Cf., por exemplo, Page (1987, pp. 63-74) e Harvey (1957, pp. 203-26).
53
O título deve-se à atribuição dos hinos ao poeta da Ilíada e da Odisséia, aos quais eles são posteriores. Os seus compositores permanecem anônimos. Sobre esse hino, Allen, Halliday e Sikes (1980, p. 351) crêem que seu compositor seria eólico ou lésbio; sua data é duvidosa, mas sua “linguagem leva os críticos a tê-lo como velho” (p. 350). Em sua edição, Evelyn-White (1998, p. xxxviii) julga que o século VII a.C. seria a data mais tardia possível.
54
Allen, Halliday e Sikes (1980, p. 360): “Homero sabe que o renque troiano continha várias línguas [...], mas essa é a primeira passagem na qual a diferença entre o troiano e o frígio é afirmada, e na qual uma nativa da Frígia, estando no monte Ida, pensa ser necessário esclarecer ter o conhecimento do troiano”; “A percepção da diferença entre línguas adjacentes aponta para uma origem asiática, talvez eólica, do hino. Mais tarde, a dificuldade das línguas estrangeiras era admitida [...], e mesmo a diferença entre os dialetos gregos [...]” (pp. 360-61). Cf. Friedrich (1978, p. 66).
55
Essa é a grafia registrada em Safo, mas há outras diversas em outros textos, as quais serão respeitadas.
56
Cf. Jeffery (1978, pp. 133-42). Às pp. 134 e 135, lê-se: “A propaganda argiva bem cedo anexou Agamêmnon, rei de Micenas de acordo com a Ilíada, e clamou-o governante de Argos”.
141
GIULIANA RAGUSA
57
Hammond (1997, p. 342).
58
Outro nome para “espartanos”. Cf. Jeffery (1978, pp. 138-39) e Hammond (1997, pp. 355-57).
59
Cf. Burn (1960, p. 47).
60
A própria autora comenta, pouco antes, que as “explorações arqueológicas permitiram afirmar que Citera foi, provavelmente no terceiro milenário a.C., uma colônia minóica” (p. 221).
61
Cf. Farnell (1896, pp. 619 e 640-41). Ver ainda os comentadores de Heródoto, Hows e Wells (1991, p. 106) e Burkert (1998, pp. 152-53). Morgan (1978, pp. 115-20) é um dos poucos helenistas a negar a importância do santuário de Afrodite em Citera na Antigüidade.
62
Cf. Boedeker (1974, p. 19).
63
Note-se que, novamente na poesia grega, o motivo da toilette e a relação de Afrodite com os perfumes e óleos aparece, mesmo que indiretamente.
64
Cf. edição comentada de West (1988a, p. 223).
65
Cf. ed. West da Teogonia (1988a, p. 415): “Em Homero, Afrodite é associada a Ares como sua irmã (Il. 5. 359, cf. 21. 416) ou amante (Od. 8. 267) [...] Seu casamento com Ares é conhecido da arte do início do século VI a.C. [...]”.
66
Burkert (1998, pp. 90-91) explica que as estatuetas dos deuses eram moldadas em barro, bronze ou madeira. Esse último tipo — a ksóanon — era a imagem de culto verdadeira. Havia, ainda, um outro tipo de imagem antropomórfica divina, diz Burkert, “célebres e trabalho de artistas conhecidos pelo nome; eram celebrizadas por sua beleza como agálmata [pl. ágalma, êgalma], presentes gloriosos que também aos deuses devem deleitar”. É interessante observar o epíteto “Urânia” e o nascimento de Afrodite na Teogonia, de Hesíodo: ela nasce do pênis castrado do deus Urano (cf. vv. 188-200). Cf. Sale (1961, pp. 508-21), que lembra que a narrativa da deusa do amor nascida do sexo do deus Celeste tem paralelos no Oriente.
67
Cf. a mesma genealogia de Enéias na Ilíada (canto V, vv. 311-13) e no Hino homérico V, a Afrodite.
68
Cf. vv. 6, 175 e 287. Em português, a ordem teve de ser invertida em favor da tradução.
69
Cf. West (1988a, p. 223) e Kirk (1995a, pp. 17-37) sobre a estrutura formular como técnica mnemônica própria à composição oral da poesia.
70
Cf. Boedeker (1974, p. 28; cf. pp. 21-22 e 27). Cf. os vv. 8-11 dos Cantos cíprios (Fr. 6), citados no primeiro item deste capítulo.
71
Cf. Morgan (1978, pp. 115-20) e West (1997, p. 56; 1988a, p. 223).
72
Todavia, em seus dicionários, Chantraine e LSJ nada dizem a esse respeito.
142
CHIPRE, CITERA E CRETA
73
Cf. Gallavotti (1942a, pp. 175-202) e Nicosia (1976, pp. 83-110) para comentário analítico e comparativo detalhado de todas as fontes de transmissão do fragmento.
74
Cf. Norsa (1937, pp. 8-15), Gallavotti (1942a, pp. 175-202), Page (1987, p. 35) e Lanata (1960, pp. 64-90).
75
Contra essa construção, cf. Lanata (1960, p. 79).
76
Cf. Page (1987, pp. 318-23) e West (1996, pp. 29-34).
77
O século III a.C. é a data hoje mais aceita, lembra Nicosia (1976, p. 83), o que torna o óstraco a única fonte pré-alexandrina de transmissão direta de Safo. Favoráveis a essa datação são Page (1987, p. 35) e a edição PLF (1997; 1a ed.: 1955), e Campbell (1998, p. 267; 1a ed.: 1967). Antes, seguia-se a data de Norsa (1937, p. 8) quando da publicação da fonte, a saber, o século II a.C., o que faria do óstraco um texto da era alexandrina. Willis (1968, p. 238), por exemplo, segue essa datação.
78
Ver ainda Hiller e Crusius (1911, Fr. 6), Bergk (1914, Fr. 5), Lobel (1925, Incerti libri, Fr. 6), Diehl (1936, Fr. 6).
79
Título em grego: Deipnosophísto#n (Deipnosof¤stvn ), livro XI, 463e. Cf. ed. Kaibel (1890, vol. III, pp. 9-10). Ver a edição de Gulick (1955, vol. V, p. 20) e as edições de Safo apontadas na nota anterior.
80
Título em grego: Perì Ideo )#n ( Per‹ ÉIde«n ), livro II, 4. Cf. ed. Rabe (1985, p. 331). Em edições anteriores à descoberta do óstraco, esses versos constituíam um outro fragmento. Cf. Hiller e Crusius (1911, Fr. 4), Bergk (1914, Fr. 4), Lobel (1925, Inc. lib., Fr. 6), Edmonds (1934, Fr. 4), Diehl (1936, Fr. 5), Reinach e Puech (1937, Fr. 4). A finalidade de Hermógenes, ao citar os versos que dá como duas linhas, é ilustrar os modos de descrever, em termos simples, prazeres elevados, como a beleza da natureza. Sua citação é comentada por dois outros antigos, o gramático Máximo Planudes (c. 1255-1305 d.C.; ed. Walz, Rhetores graeci, 1833), e o bizantino Siriano (século V d.C.; ed. Rabe, 1892).
81
Cf. comentários de Gallavotti (1942a, pp. 175-202) e Lanata (1960, pp. 64-90).
82
Eis uma exceção: West (1970, p. 316; 1994, p. 36) não acredita na leitura de Creta no verso 1 do Fr. 2 V.
83
Cf. Coldstream (1979, p. 17) sobre a denominação “período geométrico” — relativa a um certo estilo de cerâmica — e sua datação.
84
Texto grego: Flacière, Chambry e Juneaux (1957).
85
Cf. Murray (1993, pp. 5-6): “As escavações de Sir Arthur Evans em Cnossos, Creta, de 1900 em diante, revelaram uma cultura palacial não-grega ainda mais antiga, com seu apogeu de c. 2200-1450 a.C.; foi nomeada minóica, em referência ao lendário rei de Creta [Minos], o primeiro legislador da Grécia e juiz no submundo”. Cf. Jeffery (op. cit., pp. 43 e 188-90).
86
Cf. Burkert (1998, p. 22), Treuil (1998-1999, pp. 105-7), Freeman (1999, pp. 76-79).
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87
West (1997, p. 5). Cf. Castleden (1993, p. 11): “Precisamente quem os minóicos eram é uma questão não respondida”.
88
Cf. Boardman (1982, p. 773) e Castleden (1993, p. 35). As invasões dóricas, que levaram os micênicos a Creta, levaram os cretenses para a costa do Levante e para Chipre. Cf. V. Karageorghis (1991, pp. 105-6).
89
Cf. Nilsson (1983, pp. 20-21; 1a ed. orig.: 1932) e Burn (1960, pp. 62-68).
90
Cf., por exemplo, Farnell (1896, p. 620), Boedeker (1974, p. 44), Friedrich (1978, p. 69) e Carratelli (1979, pp. 136-39).
91
Cf. também Pirenne-Delforge (1994a, pp. 457-58).
92
Ver Carratelli (1979) e também Pirenne-Delforge (1994a, pp. 457-58).
93
Cf. Lebessi e Muhly (1987, p. 101). Ver Castleden (1993, pp. 53-57) e Burkert (1998, p. 22).
94
Texto grego: ed. Oldfather (1952).
95
Carratelli (1979, p. 137), contra Diodoro, sugere que os filisteus levaram a Afrodite cretense para Áscalon.
96
Ver V, PLF e Campbell (1994), entre outras edições. Cf., entre os que o julgam da autoria de Safo, West (1970, p. 316), McEvilley (1972, p. 328, nota 20) e Winkler (1990, p. 185), além das antigas edições de Bergk (1914, Fr. 54) e Diehl (1936, Fr. 93).
97
Cf. Norsa (1937, p. 10; 1949, p. 48), Gallavotti (1942a, p. 201) e Lanata (1960, pp. 80-81). O exílio, devido a questões políticas, é referido em inscrição do Mármore de Paros (cf. testimonia da edição de Campbell, 1994, pp. 8-9), mas esse dado não é historicamente comprovado.
98
Alguns poucos editores leram pânormos (pãnormow, substantivo comum, “porto seguro”). Cf. Reinach e Puech (1937, Fr. 6) e edição de Jones (1960, p. 148) do tratado de Estrabão. Mas a maior parte leu Pânormos (Pãnormo!, substantivo próprio). Cf. Hiller e Crusius (1911, Fr. 6), Bergk (1914, Fr. 6), Lobel (1925, Fr. 7), Edmonds (1934, Fr. 5), Diehl (1936, Fr. 7), PLF (1997).
99
Para Gallavotti (1942a, pp. 201-2), provavelmente em Creta. Contra: Campbell (1994, p. 83, Fr. 35, nota 1): “[...] Pânormos é provavelmente a cidade siciliana (moderna Palermo)”. Os dicionários lembram ainda que, segundo os antigos, Pânormos pode ser um porto na Ática, ou na Acaia, ou em Éfeso ou ainda em Mileto. Cf. verbete do dicionário de Peck (1898).
100
Apud Farnell (1896, p. 742, nota 73a). Essa inscrição está incluída no volume Inscriptiones Graecae (1903), e é assim indicada: IG, XII 2, 73. Cf. comentários de Pirenne-Delforge (1991, p. 412; 1994a, p. 457, nota 316).
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“A F R O D I T E”
E OS EPÍTETOS DA DEUSA EM SAFO
5 O
NOME
“A F R O D I T E ”
E P Í T E T O S DA D E U S A E M
E OS
SAFO
Aphrodíte#: o nome e duas etimologias poéticas O nome Aphrodíte# (Afrod¤th) é a forma pela qual a deusa é chamada na maior parte dos fragmentos de Safo em que figura (1 V, 33 V, 73a V, 96 V, 102 V, 112 V e 133 V) e, desde sempre, tem intrigado os helenistas, devido às dificuldades etimológicas que apresenta. Já em 1896, Lewis R. Farnell declarava, em The cults of the Greek states — II: “O nome não nos diz nada; até onde a filologia tentou explicá-lo, pode ser ariano ou semítico”1 (p. 619). Há várias propostas para explicar a etimologia de Aphrodíte#, muitas delas ligando a deusa ao Oriente. Não obstante, esse nome continua a ser obscuro, frisa Walter Burkert, em Greek religion (1998, p. 153), e apenas um consenso parece prevalecer: Aphrodíte# “não parece ser grego ou indo-europeu”, afirma Martin L. West, em “The name of Aphrodite” (2000, p. 154).2 Como, então, os antigos o explicavam? De formas diversas, como não poderia deixar de ser no universo eminentemente oral da Grécia antiga. Pontuarei, aqui, apenas duas das etimologias mais referidas: a de Hesíodo e a de Eurípides. Na Teogonia, Hesíodo relaciona a explicação etimológica de Aphrodíte# às circunstâncias violentas da gênese da deusa, que consistem na 145
GIULIANA RAGUSA
castração de Urano, o Céu — uma ação dolosa premeditada por Gaia, a Terra, e perpetrada pelo filho de ambos, Crono (vv. 154-89).3 Este, após ceifá-lo, lança ao mar o pênis paterno, Õw f°ret’ ím p°lagow poulÁn xrÒnon, émf‹ d¢ leukÚw éfrÚw ép’ éyanãtou xroÚw rnuto: t“ d’ ¶ni koÊrh yr°fyh: [...] [...]: tØn ’Afrod¤thn [éfrogen°a te yeån ka‹ ™ust°fanon Kuy°reian] kiklÆskousi yeo¤ te ka‹ én°rew, oÏnek’ ™n éfr“ yr°fyh: [...] onde boiou no pélago por muito tempo, e em torno branca espuma da carne imortal jorrava; nela uma virgem foi criada; [...] (vv. 190-92) [...]. Afrodite [deusa nascida da espuma e Citeréia de bela guirlanda] chamam-na os deuses e os homens, porque na espuma foi criada [...]. (vv. 195-98)
Séculos depois de Hesíodo, Platão (c. 429-347 a.C.) refere-se a esses versos no diálogo Crátilo (406b-d), quando Sócrates discute com Hermógenes a etimologia de vários nomes. Sobre o de Afrodite, Sócrates diz haver duas formas de explicá-lo: uma spoudai«w (“séria”), que se nega a relatar, e outra paidik«w (“faceciosa”). Esta nada mais é que aquela descrita nos versos da Teogonia acima citados; e Sócrates observa (406c-d): per‹ d¢ ’Afrod¤thw oÈk ëjion ÑHsiÒdƒ éntil°gein, éllå jugxvre› ˜ti diå tØn ™k toË éfroË g°nesin ’Afrod¤th ™klÆyh. Sobre o nome de Afrodite, não é válido contradizer Hesíodo, mas aceitar que se deve à gênese de Afrodite que se deu da espuma.4
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E OS EPÍTETOS DA DEUSA EM SAFO
A explicação etiológica oferecida por Hesíodo para Aphrodíte# e referida por outros antigos como o filósofo ateniense é, em geral, julgada pouco convincente, porque esclarece somente a primeira parte do nome — Aphro- de aphrós (“espuma”, vv. 191 e 197) —, algo “típico da etimologia antiga, especialmente em seus primórdios”. 5 O poeta, embora reitere que Afrodite é a aphrogenéa (“nascida da espuma”) no problemático verso 196, 6 nada afirma sobre a segunda metade do nome, -díte#, que é objeto de muitos debates. Tampouco ele especifica a natureza da aphrós na qual nasce a deusa. William Hansen indaga, em “Foamborn Aphrodite and the mythology of transformation”: “Que tipo de espuma Hesíodo tem em mente? A espuma pode ser do mar, claro [...]. Ou, também obviamente, pode ser esperma” (2000, p. 4). E adiante: “Ambas as visões [...] são atestadas na Antigüidade” (p. 5).7 Há ainda, lembra Hansen, uma terceira hipótese: a espuma é a mistura do sêmen que jorra do pênis decepado de Urano e da água do mar onde ele bóia (p. 5).8 Conforme essa razoável interpretação, o nome ganha duas das marcas fundamentais da deusa tanto na literatura quanto em seus cultos: o sexo e a forte relação que Afrodite mantém com o mar e/ou a água, a qual se revela em suas representações e em sua geografia mítico-religiosa e poética — a segunda, sobretudo insular —, em certos rituais e na localização e função de alguns de seus santuários. Discussões como a de Hansen são motivadas pelos problemas da etimologia hesiódica para Aphrodíte# , que levam outros estudiosos a descartá-la ou a se limitarem a referi-la. E tais problemas incluem, ainda, a questão da singularidade do mito da gênese da deusa na Teogonia,9 algo que deve ser relativizado, pois, além de termos um corpus limitado da antiga poesia grega, Hesíodo costura a narrativa do nascimento com linhas que se encontram trançadas em outras representações poéticas de Afrodite e na tradição mítico-religiosa em torno dela, tais como os seus elos com as ilhas de Chipre e Citera.10 Ressalte-se, ademais, que há pelo menos mais uma imagem épica, possivelmente posterior a Hesíodo, que entrelaça a deusa, o mar e a espuma. Ela ocorre no Hino homérico VI, a Afrodite, que mostra nas águas do mar a “Reverenciada, de áurea guirlanda e bela” (’Aido¤en 147
GIULIANA RAGUSA
xrusost°fanon kalØn, v. 1) Afrodite, que “as vilas muradas da Chipre de todo mar/ obteve [...]” (pãshw KÊprou krÆdemna l°logxen/ efinal¤ew [...], vv. 2-3) e lá [...] min ZefÊrou m°now ÍgrÚn é°ntow ≥neiken katå kËma poluflo¤sboio yalãsshw éfr“ ¶ni malak“: [...] [...] de Zéfiro o sopro úmido a carregou pelas ondas do multissonante mar, na espuma macia; [...] (vv. 3-6)
A Afrodite da Teogonia guarda, sim, especificidades, mas não é uma anomalia e tampouco é a narrativa de sua gênese “uma extravagância marginal da imaginação poética”.11 E há que se mencionar uma outra razão para rejeitar tal visão: em textos poéticos orientais mais antigos que o hesiódico, deixados por povos da Babilônia e da Síria, por exemplo, encontra-se trabalhado o motivo da castração do deus Céu que origina a deusa do amor erótico. Diz Deborah D. Boedeker, em Aphrodite’s entry into Greek epic: “A história de sucessão de Urano-Crono, com o resultante nascimento de Afrodite, é única na épica grega, e pode refletir a influência de mitos de sucessão do Oriente Próximo” (1974, p. 9).12 Embora tal história possa ser “única”, como diz a helenista, ela não é absurda. Feitas essas ressalvas, o fato é que poucos aceitam a etimologia e a genealogia hesiódicas de Afrodite, entre os quais George Hill, que afirma, em A history of Cyprus: “Uma característica da margem costeira na vizinhança de Pafos é a extraordinária produção de espuma decorrente da desintegração de organismos marinhos animais e vegetais. Não pode haver dúvida de que isso tem um peso no mito do nascimento da deusa Cípris da espuma do mar” (1949, p. 13).13 Note-se, por fim, que a genealogia hesiódica difere da épico-homérica, que, embora nada diga sobre a etimologia do nome da deusa, chama Afrodite — como faz, com uma ligeira diferença lexical, Safo (Fr. 1 V,
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v. 2) — de “filha de Zeus” (Diòs thugáte#r14) e de Dione, uma deidade “menos claramente desenhada” e cultuada em Dodona que, na mitologia, tem um papel que “consiste, essencialmente, em conceber Afrodite”, segundo Jean Rudhardt, em Le rôle d’Eros et d’Aphrodite dans les cosmogonies grecques (1986, p. 18). E ele arremata: “[...] observemos que seu nome [Dione] designa nela mesma uma forma ou um duplo feminino do deus [Zeus]. Nascida de Zeus e de uma deusa que parece participar da natureza dele, Afrodite se encontra, portanto, duplamente ligada a Zeus” (p. 19).15 Burkert, em The orientalizing revolution (1992, p. 98), comenta que essa estrutura — a deusa do amor erótico como filha de Zeus e Dione — tem paralelos com o poema acádio Gilgamesh e com os cultos e a mitologia da Mesopotâmia em geral. Portanto, novamente, vemos Afrodite relacionada ao universo oriental.16 A existência de no mínimo duas versões para a gênese de Afrodite é algo próprio de uma cultura predominantemente oral como foi a dos gregos, ao menos até o final do século V a.C.17 Rudhardt nota que o caso da deusa “não é único na Grécia”, pois quase “todas as deidades gregas são objeto de múltiplas narrativas diferentes, que às vezes nos parecem contraditórias” (1986, p. 21). Algo similar se dá com as etimologias antigas para uma mesma palavra. Abordei a hesiódica, cujo interesse para este estudo reside nas conexões orientais que estabelece. Passo a outra etimologia. Aphrodíte#, aphrosúne# (éfrosÊnh): a explicação oferecida para o nome da deusa na tragédia As troianas (vv. 989-90), de Eurípides, alicerça-se no elo criado entre essas duas palavras — a segunda significando “loucura, insensatez”. Tudo leva a crer que tal elo tenha sido estabelecido pela primeira vez pelo tragediógrafo do século V a.C., muito depois de Hesíodo. Conforme observa Claude Calame, em The craft of poetic speech in ancient Greece, a formulação etimológica do poeta beócio “em suas especulações na Teogonia não impede que Eurípides, pela boca de uma Hécuba dolorosamente atingida pela mesma Afrodite, vá numa direção bastante diferente e associe o nome da deusa à ‘loucura’” (1995, p. 179). 149
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Cito a passagem de Eurípides, na qual a esposa de Príamo e mãe de Páris, a rainha Hécuba, derrama sua revolta contra Helena, a responsável pela desgraça que se abate sobre as mulheres da derrotada e destruída Tróia, num longo e duro discurso, em que diz, a certa altura, a Helena (vv. 986-90): ∑n oÍmÒw uflÚw kãllow ™kprep°statow, ı sÚw d’ fid≈n nin noËw ™poiÆyh KÊpriw: tå m«ra går pãnt’ ™st‹n ’Afrod¤th broto›w, ka‹ toÎnom’ Ùry«w éfrosÊnhw êrxei yeçw. Não! Era meu filho [Páris] o mais belo entre todos, e tu, tendo-o visto, Cípris tomou tua mente: pois Afrodite é todas as loucuras para os mortais, e com razão seu nome como aphrosúne# — loucura — começa.18
Está criada uma explicação etimológica, mas relativa apenas à primeira metade de Aphrodíte#, como acontece em Hesíodo: Aphro-díte# inicia-se como aphro-súne#, a loucura, diz o jogo de palavras perdido na tradução. Ou seja, pela boca de Hécuba, Eurípides atrela a deusa da paixão à loucura, por via da etimologia. Se esse modo de realizá-la é novo, não o é essa conexão, como ilustram a Odisséia e o Hino homérico V, a Afrodite, entre outros textos. O enredo do Hino consiste na vingança de Zeus contra Afrodite, que se diverte fazendo deuses e deusas, inclusive ele mesmo, se deitarem com mortais e deles gerarem filhos, gabando-se disso. Ela, então, é vitimada por seu próprio poder, pois se apaixona por um mortal (vv. 45-52), o pastor troiano Anquises, a quem se une em amor. Disso decorrem a geração de um filho, Enéias — nome que Afrodite escolhe para expressar sua vergonha por seu ato (vv. 198-99) —, e a impossibilidade de seguir tramando mê´tias (“ardis”, v. 249) contra os deuses (vv. 247-51), fazendo-os se deitarem junto aos mortais. Ao darse conta disso, declara a deusa (vv. 253-54):
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[...] mãla pollÚn éãsyhn, sx°tlion oÈk ÙnotastÒn, épeplãgxyhn d¢ nÒoio, [...] bem grande foi minha insensatez, dolorosa e suave, e fui desviada de minha mente,
Para falar de sua insensatez, Afrodite usa a forma verbal aásthe#n (v. 253, de aáo#, éãv), cuja tradução não é simples, dada a complexidade do conceito de áte# (êth) ao qual se vincula, cujo significado, ao longo dos tempos, foi ganhando nuances e sentidos, tais como “loucura”, “erro, ruína, cegueira enviada pelos deuses como castigo, obscurecimento momentâneo da razão”. Depois, no verso 254, ela fala do desvio de sua mente. É essa Afrodite que pode apaixonar-se e perder o senso que o Hino homérico V retrata, essa deidade capaz até de desviar a mente de Zeus (vv. 33-36): t«n d’ êllvn oÎ p°r ti pefugm°non ¶st’ ’Afrod¤thn oÎte ye«n makãrvn oÎte ynht«n ényr≈pvn. ka¤ te par¢k ZhnÚw nÒon ≥gage terpikeraÊnou, ˜w te m°gistÒw t’ ™st‹ meg¤sthw t’ ¶mmore tim∞w. Não há, de resto, nada que tenha escapado a Afrodite — nem dentre os deuses venturosos nem dentre os homens mortais. Até de Zeus, que se apraz com o trovão, a mente ela desvia — ele que é o maior e que tem a maior das honras.
Na tragédia de Eurípides As troianas, essa afirmação será de novo feita quando Helena, em confronto com Hécuba, busca alegar inocência para si e culpa para Afrodite, argumentando que mesmo Zeus, a deidade maior, é “escravo” (doËlow, v. 950) da deusa. Antes disso, na Odisséia (canto IV, vv. 260-61), Helena já se tinha declarado uma vítima de Afrodite, que em seu peito colocara a áte#. Essa pequena amostragem poética permite que percebamos quão estreitos são os elos entre Afrodite, a paixão e a loucura — tríade constantemente trabalhada pelos poetas antigos, entre os quais Safo, como se verá na análise interpretativa do Fr. 1 V. 151
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Para concluir, é preciso notar que a discussão da etimologia do nome de Afrodite se relaciona, muitas vezes, ao debate das origens da deusa — matéria demasiado complexa que, no entanto, nas palavras de Vinciane Pirenne-Delforge, em L’Aphrodite grecque, “não parece constituir um pressuposto indispensável ao estudo de seus cultos às épocas arcaica e clássica, mas constitui um problema em si” (1994a, p. 9). Essa relação se verifica não apenas em estudos acerca da divindade, como os da helenista e também de Boedeker (1974, pp. 1-17), mas em obras de referência, como o dicionário etimológico de Chantraine (1984) e o dicionário grego-francês de Bailly (1952), cujos verbetes sobre o nome “Afrodite” demonstram quão próximas caminham as discussões sobre a etimologia e as origens da deusa e, ainda, que a tese da procedência oriental, embora imprecisa, se configura como a mais forte.19 A percepção de que Afrodite é estrangeira perpassa os estudos atuais, nos quais os pesquisadores buscam afirmar sua origem nãogrega, às vezes recorrendo a argumentos consideravelmente fracos, como a não-atestação de seu nome em dialeto micênico nas tábuas do Linear B. Ora, negar que Afrodite seja grega por essa razão é, no mínimo, uma temeridade, uma vez que as condições materiais das tábuas são precárias e que elas representam um corpus limitado de escrita. Todavia, a despeito da fragilidade desse argumento, alguns insistem em considerá-lo, tal como Burkert (1998, pp. 51-52) e West (2000, p. 134), que o inclui, desnecessariamente, entre bons argumentos para a sustentável tese da origem oriental da deusa: “É amplamente acordado que Afrodite era uma adição pós-micênica (ou, de qualquer forma, póspalacial) ao panteão grego. Ela não aparece nos documentos do Linear B e em Homero e Hesíodo ela tem fortes associações com Chipre, uma ilha onde assentamentos gregos de qualquer escala datam dos séculos XII-XI a.C. somente. Seus mais relevantes centros de culto eram em Chipre, especialmente em Pafos”. A ênfase na origem estrangeira de Afrodite, hoje normalmente aceita, desde há muito se insinua. Infelizmente, no entanto, seu efeito não raro foi negativo para o estudo profundo da deusa, que, por não se configurar como legitimamente helena e por ter como esfera de atuação 152
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um poder dito “menor” — o amor erótico —, mereceu de alguns, em obras um tanto ultrapassadas, um indisfarçável desprezo, um tom preconceituoso e mesmo a negação de sua importância na religião grega. Isso ocorre em A history of Greek religion, de Martin P. Nilsson, na qual Afrodite e Ares, outro deus estrangeiro/oriental, são reduzidos a deidades do “instinto sexual” com poucos cultos na Grécia (1949, p. 132; 1a ed.: 1925). Influenciou também esse tipo de avaliação negativa a tese orientalizante de suas origens, porque havia uma visão ingênua e algo distorcida dos estudiosos que não lhes permitia creditar senão aos próprios gregos a construção de sua civilização. Essa visão, como enfatizei anteriormente, impediu a avaliação das amplas conexões Grécia– Oriente. Ao contrário — e bem antes — de Nilsson, Farnell, em sua obra sobre os cultos gregos publicada em 1896, já dava provas suficientes da improcedência da idéia de que Afrodite era uma “deusa menor” e pouco cultuada. Com a valorização, nos últimos tempos, dos estudos das relações entre os gregos e os povos orientais, o avanço da arqueologia e das escavações e a ênfase nos estudos dos cultos gregos, a visão a respeito de Afrodite foi mudando. Quase cem anos depois de Farnell, PirenneDelforge (1994a) pôde traçar um detalhado panorama dos cultos da deusa e avaliar, com maior acuidade e com um olhar mais limpo, sua abrangência e relevância incontestes no cenário mítico-religioso da Grécia antiga.
Fr. 1 V: os epítetos Poikilóthron’ (“de flóreo manto furta-cor”) e dolóploke (“tecelã de ardis”) A polêmica em torno de Poikilóthron’ O epíteto composto Poikilóthron’ (Poi¸kilÒyro$n’), que abre o Fr. 1 V de Safo e a prece nele urdida, tem gerado, ao longo dos tempos, muita polêmica entre os estudiosos que se mostram inquietos diante do 153
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ineditismo do epíteto não encontrado na literatura grega antiga conhecida, nem antes nem depois da poeta, o que o torna um hápax legoménon (ëpaj legom°non, “dito uma só vez”).20 A maior razão da polêmica, contudo, reside na segunda metade de Poikiló-thron’ e, conseqüentemente, na questão do significado do epíteto: -thron’ poderia vir do substantivo masculino thrónos (yrÒnow, “trono”) — cujo significado seria “de trono furta-cor” — ou do substantivo neutro plural thróna (yrÒna) — cujo significado seria “de flóreo manto furta-cor”. Não bastasse essa dúvida, há uma terceira leitura para a segunda parte: Poikiló-phron’, cuja tradução seria “de múltiplo pensar”. Todavia, essa é a menos usual, pois, entre Poikilóphron’ e Poikilóthron’, “os manuscritos evidenciam” ser a segunda “a mais comum das duas leituras na Antigüidade”, conforme enfatiza Denys Page, em Sappho and Alcaeus (1987, p. 4). A fim de primeiro considerar o problema Poikilóthron’/Poikilóphron’, volto-me às fontes de transmissão indireta do Fr. 1 V, destacando dois tratados: Sobre o arranjo das palavras, de Dionísio de Halicarnasso, que traz a citação integral do fragmento, algo que raramente acontece;21 e Inquérito sobre os metros, de Heféstion, gramático grego de Alexandria (século II d.C.), que é fonte de vários versos antigos nos quais Safo é, depois de Homero, a mais citada.22 Observei já que a função da citação de poetas em tratados como os referidos é, tipicamente, explicativa ou ilustrativa. No de Heféstion, o verso 1 do Fr. IV é citado como exemplo de verso hendecassílabo, metro que, juntamente com o adônio, compõe a chamada “estrofe sáfica”.23 Seguindo nos manuscritos sobreviventes do Inquérito sobre os metros a citação do verso 1, constata-se que apenas a forma Poikilóthron’ do epíteto ocorre. Portanto, o primeiro registro de Poikilóphron’ não se dá em Heféstion, mas em outro gramático a ele bem posterior, Queróbosco (c. 600 d.C.), que comenta a citação de Safo feita pelo autor do tratado sobre os metros. 24 Como explicar tal fato? Salvatore Nicosia sugere, em Tradizione testuale diretta e indiretta dei poeti di Lesbo (1976, p. 208), que talvez Queróbosco tenha tido acesso a uma outra versão do 154
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texto de Heféstion, perdida para nós, da qual constaria a referida forma do epíteto. Muito tempo antes de Heféstion, na Roma do século I a.C., Dionísio citava o Fr. 1 V para ilustrar um tipo de discurso. Nos manuscritos conhecidos que conservaram seu tratado dá-se o mesmo que com os do tratado de Heféstion, ou seja, somente aparece a forma Poikilóthron’,25 a mais freqüente nas fontes de transmissão indireta do fragmento. E sua única fonte de transmissão direta, o Papiro de Oxirrinco no 2.288 (século II d.C.), publicado por Edgar Lobel, em The Oxyrhynchus papyri — Part XXI (1951), também aponta para essa direção. Na estreita tira de papiro que restou, há trechos mínimos de 21 versos do Fr. 1 V e nenhuma palavra inteira — apenas seus cacos. Olhany. do esse precário material, vê-se no início o conjunto ]i.kilóth.r.o.[ (]i.kilÒy r.o.[). Ainda que quatro letras — entre elas, o theta (y, th) — tragam um ponto subscrito sinalizando alguma dúvida quanto à leitura do papiro que favorece Poikilóthron’, vale destacar que a argumentação em prol de Poikilóphron’ “não recebe suporte desse manuscrito”.26 Por tudo isso, por uma questão de sentido, como se verá, e porque a rigorosa edição Voigt de Safo a adota, sou favorável a Poikilóthron’, embora reconheça que a opção Poikilóphron’ não é descabida e tampouco “uma banalização da primeira”, lembra Nicosia, pois é uma variante de leitura “difundida já na Antigüidade, à qual alguns têm dado preferência” (1976, p. 207). Adotada essa postura, devo dizer que, na verdade, a discussão em torno da segunda metade do epíteto — se -thron’ ou -phron’ — não é tão sonora quanto possa parecer, uma vez que a forma Poikilóthron’ é hoje a mais aceita. A grande polêmica reside em outra dimensão desse epíteto: a de seu significado.27 Ao empregá-lo para chamar Afrodite, Safo está relacionando a deusa a um “flóreo manto furta-cor” ou a um “trono furta-cor”? Afinal, -thron’ vem de thróna ou de thrónos?28 O verbete poikilÒ-yronow (poikiló-thronos) do dicionário de LSJ inclina-se pela segunda opção. Já Chantraine, em seu dicionário etimológico (verbete yrÒna, thróna), mostra simpatia pela primeira. Isso basta para notar que há, no mínimo, uma discordância entre os helenistas, a 155
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qual, dada a sua dimensão, constitui uma verdadeira polêmica, cujos desdobramentos não são simples, nem caberia aqui detalhá-los exaustivamente. Contudo, creio ser fundamental esboçar um quadro a respeito, sobretudo tendo em vista que, ao traduzir o Fr. 1 V, não pude escapar à necessidade de uma escolha que, como se verá, recai sobre a opção favorável a thróna; daí a tradução de Poikiló-thron’ como “flóreo manto furta-cor”. Logo de início esclareço que a opção por -thrónos (“trono”) é a “tradicional”, ou seja, tem sido mais comumente aceita há tempos. Da alternativa favorável a thróna (“flóreo manto”) falava-se quase aos sussurros e esporadicamente até a publicação do artigo “On certain Homeric epithets”, de Lillian B. Lawler, em 1948, quando ganhou atenção, pois a helenista constrói uma bem amarrada argumentação, visando, justamente, sustentar a tese pró-thróna para o segundo membro do epíteto sáfico. O alicerce central da tese consiste no verso 441 do canto XXII da Ilíada, feita pela primeira vez por um helenista alemão, em 1868,29 e retomada por Lawler. Os versos 437-41 mostram-nos Andrômaca no tear, ignorando a notícia da morte do marido Heitor, o guerreiro troiano filho de Príamo e Hécuba: [...]. êloxow d’ oÎ p≈ ti p°pusto ÜEktorow: oÈ gãr o· tiw ™tÆtumow êggelow ™ly∆n ≥ggeil’, ˜tti =ã ofl pÒsiw ¶ktoyi m¤mne pulãvn. éll’ ¥ g’ flstÚn Ïfaine mux“ dÒmou Íchlo›o d¤plaka porfur°hn, ™n d¢ yrÒna poik¤l’ ¶passen. [...]. E a consorte de Heitor nada sabia, pois nenhum mensageiro veraz, tendo vindo, lhe contara que seu marido ficara do lado de fora dos portões. Mas ela no tear fiava, no interior do aposento nobre, um manto duplo purpúreo, e nele flores furta-cor bordava.
O verso 441 conta que Andrômaca bordava, num díplaka (“manto duplo”), thróna poikíl’ (“flores furta-cor”). Comparando essa carac156
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terização a Poikilóthron’, alguns helenistas, como a própria Lawler, concluíram que thróna — “flores bordadas num manto ou tecido, decoração floral” — estaria no segundo membro do epíteto sáfico, e poikílos (“variegado, faiscante, furta-cor, ricamente adornado”), no primeiro. Haveria, então, para a supostamente inédita cunhagem Poikilóthron’, uma referência prévia na Ilíada que pode ter sido familiar a Safo. Ademais, há que se considerar a hipótese de o epíteto já existir no dialeto ou na poesia lésbio-eólica, conforme sugere George M. Bolling, em “POIKILOS and QRONA” (1958, p. 278), e/ou de ter sido empregado poeticamente em ocorrência anterior à do Fr. 1 V, mas perdida para nós. Seja como for, importa frisar que, se de fato Safo cunhou pela primeira vez Poikilóthron’ — dúvida insolúvel — como um amálgama de poikílos e thróna, ela pode não tê-lo feito ex nihilo, mas, talvez, a partir da descrição do manto bordado por Andrômaca. Considerando essa possibilidade, pode-se indagar: teria o público ouvinte do fragmento de Safo entendido essa ligação? Ou o sentido do epíteto também lhe parecia oscilar na ambigüidade entre thróna e thrónos? Se sim, poderia ser intencional ou não — alternativa que soaria provável, não fosse demasiadamente confortável e conveniente.30 Para tais especulações, não há respostas e, mesmo se houvesse, seriam de pouca valia para a análise interpretativa do Fr. 1 V. Retomo, pois, a reflexão sobre a segunda parte do epíteto composto Poikilóthron’, que, para Lawler (1948), vem de thróna. Apesar da sólida argumentação dessa pesquisadora, apoiada na Ilíada — uma base inegavelmente forte, dada a ampla difusão da épica na Grécia antiga —, haveria pelo menos um nó na derivação Poikilóthron’–thróna, resultante das dificuldades etimológicas de thróna e de seu uso bastante raro — depois da Ilíada, o termo reaparecerá tardiamente, no período helenístico (323-31 a.C.).31 Isso não inviabiliza, porém, as considerações de Lawler. Afinal, descartar a relação entre o epíteto e thróna pela rara ocorrência dessa palavra na literatura grega é imprudente, uma vez que sabemos imensas as perdas que esse corpus sofreu ao longo de séculos de transmissão. 157
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Outro nó da tese a favor de thróna consistiria nisto: o manto, que na Ilíada (canto XXII, v. 441) está expresso em díplaka (acusativo singular de díplaks, d¤plaj), está pressuposto no epíteto sáfico Poikilóthron’. Mas essa dificuldade seria falsa, pois uma tal pressuposição se faz “perfeitamente concebível” na poesia grega antiga, enfatiza Jesper Svenbro, em “La stratégie de l’amour” (1984, p. 60). Assim, as objeções à argumentação de Lawler configuram-se, creio, mais frágeis que o alicerce que a sustenta. Talvez por isso a helenista não vá muito além da comparação com a Ilíada ao advogar por thróna, mas busca reforçar sua postura dentro da esfera homérica, recorrendo a outros epítetos compostos em -thronos encontrados na épica homérica, os quais, ela afirma, vêm assim como Poikilóthron’ de thróna, pois seriam essencialmente femininos e atribuídos a deusas marcadas por vestimentas esplêndidas e ligações com a natureza (p. 81).32 Quanto à “tradicional” opção por thrónos para a segunda metade do epíteto, Lawler a descarta, argumentando que o “trono” é um objeto mais afim ao universo masculino na poesia épica e, além disso, a palavra grega nomeia antes uma cadeira imponente que um trono propriamente dito (pp. 81-83). O redimensionamento e o aprofundamento da aproximação entre a Afrodite envolta num “flóreo manto furta-cor” (Poikilóthron’) no Fr. 1 V de Safo e o manto de “flores furta-cor” (thróna poikíl’) de Andrômaca na Ilíada (canto XXII, vv. 440-41) promovidos por Lawler encontraram considerável eco entre os helenistas que ou a reafirmaram nas mesmas bases,33 ou a conduziram ainda mais longe. Esse é o caso de Michael C. J. Putnam, em “Throna and Sappho 1.1” (1960). O helenista enfatiza o sentido mágico de thróna fundamentado no escólio (skhólion, sxÒlion, “comentário antigo anônimo”) à ocorrência do termo no verso 59 do Idílio 2, As magas, de Teócrito (c. 300-260 a.C.).34 Segundo esse escólio, no contexto indicado thróna ganha o senso de phármaka (fãrmaka, “filtros mágicos, drogas”).35 Objetivando reforçar a leitura que transfere ao epíteto sáfico de Afrodite a dimensão mágica de thróna, Putnam ressalta que o himánta (“cinto”) da deusa descrito na Ilíada (canto XIV, vv. 215-16) já guardava tal dimensão, pois 158
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é poikílon (“furta-cor”) e — eis o mais importante para sua argumentação — guarda os thelktê´ria pánta (“encantos todos”) da sedução.36 Assim, conclui o estudioso, tal e qual o cinto, o manto da Afrodite de Safo, “ricamente adornado com os encantos do amor, talvez na forma de flores”, seria encantado (p. 82). Essa conclusão foi seguida por outros helenistas favoráveis à visão de que há um sentido encantatório latente em thróna e, por extensão, em Poikilóthron’ e em todo o Fr. 1 V da poeta — tanto no seu conteúdo quanto em sua forma. 37 A tal percepção, porém, Jacques Jouanna, em “Le trône, les fleurs, le char et la puissance d’Aphrodite”, faz uma prudente ressalva: “[…] parece exagerado ver nessa deidade uma maga e falar de ‘Safo, a feiticeira’,38 quando [Afrodite] é apresentada em todo o poema como uma deusa olímpia, qualquer que seja seu poder” (1999, p. 111). Volto à repercussão do artigo de Lillian Lawler (1948) para destacar uma terceira atitude diante dele: a rejeição. Não obstante a validade dos argumentos em prol de -thróna, muitos preferiram e preferem tomar a segunda parte de Poikilóthron’ como vinda de thrónos (“trono”).39 Page está entre eles: “[...] a abundante ilustração do epíteto poikilÒyrono! [poikilóthronos] será encontrada em representações de olímpios entronados nas pinturas de vaso do século VI a.C. [...]. A evidência pictórica não deixa espaço para dúvida de que a tradição concernente a tronos elaborados para os olímpios remonta, no mínimo, ao tempo de Safo” (1987, p. 5; 1a ed.: 1955).40 Além dessa atestação iconográfica tardia, os que julgam mais adequada a opção thrónos alegam que a voz do Fr. 1 V, auto-intitulada “Safo” (v. 20), descreve a descida de Afrodite dos céus à terra (vv. 5-13); logo, Poikilóthron’ indicaria, dentro de um padrão épico de jornadas divinas, a posição inicial da deusa: sentada em seu rico e colorido trono olímpio, de onde sai para descer à terra. Nessa leitura, segundo Page, o epíteto se configuraria como mero ornamento das estrofes que o sucedem (p. 5). Impossível não sentir, diante de Pokiló-thron’, o peso da “opção tradicional” por uma determinada tradução — “trono”. Mas é igual159
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mente impossível ignorar seu aspecto conveniente e, mais que isso, redutor, tendo em vista a ampla dimensão que a outra opção — “flóreo manto” — abre para a leitura do epíteto, do Fr. 1 V — um dos mais célebres de Safo desde a Antigüidade — e da caracterização de Afrodite. É possível, porém, dizer que o impasse entre as duas opções se dissolve quando procedemos a um exame mais detido e corajoso das duas alternativas para a derivação da segunda parte do epíteto, pois, muito embora os argumentos favoráveis à “opção tradicional” tenham validade, aqueles que podem ser empregados em defesa da “opção alternativa” se configuram mais consistentes e interessantes. E por quê? Porque estão respaldados em evidências poéticas, por assim dizer, recorrentes nas representações literárias de Afrodite desde, pelo menos, a poesia épica. Uma dessas sólidas evidências já foi comentada: a ocorrência de thróna poikíl’ (“flores furta-cor”) na Ilíada (canto XXII, v. 441). A esta, outras podem ser facilmente acrescidas pelo leitor atento, uma vez que ele perceba quão patente e inegável é a relevância conferida às vestimentas de Afrodite em suas imagens poéticas. Pontuo algumas delas. Viu-se que na Ilíada (canto XIV, vv. 214-15) é destacado o “cinto adornado/ furta-cor” de Afrodite. Na Odisséia (canto XVIII, v. 366), destacam-se suas “vestes [...] adoráveis” (ehímata [...] epê´rata), tal qual no Hino homérico V, à deusa, em que se encontra a seguinte descrição de sua figura: •ssam°nh d’ eÔ pãnta per‹ xro˛ e·mata kalå xrus“ kosmhye›sa filommeidØw ’Afrod¤th seÊat’ ™p‹ Tro¤hw prolipoËs’ eÈ≈dea KÊpron, Bem vestida — seu corpo envolto em belas vestes —, com ouro adornada, a amante dos sorrisos, Afrodite, partiu rápida para Tróia, deixando a fragrante Chipre [...].
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Adiante, diz o Hino sobre Afrodite: “[...] um manto vestia, mais brilhante que a luz do fogo” (p°plon [...] ßesto faeinÒteron purÚw aÈg∞w, v. 86). Por fim, volto ao Fr. 6 dos Cantos cíprios, citado no capítulo anterior, ressaltando que nele a vestimenta da deusa é referida e caracterizada exatamente pelo seu aspecto floral minuciosamente descrito. Repito um dos blocos do fragmento abaixo (vv. 1-7): e·mata m¢n xro‹ ßsto tã ofl Xãrit°w te ka‹ äWrai po¤hsan ka‹ ¶bacan ™n ênyesin efiarino›si, oÂa foroËs’ äWrai, ¶n te krÒkƒ ¶n y’ Íak¤nyƒ ¶n te ‡ƒ yal°yonti =Òdou t’ ™n‹ ênyeÛ kal“ ≤d°i nektar°ƒ ¶n t’ émbros¤aiw kalÊkessi ênyesi nark¤ssou ka‹ leir¤ou: to›’ ’Afrod¤th Àraiw panto¤aiw teyuvm°na e·mata ßsto. Vestes no corpo pôs, que as Cárites e as Horas lhe fizeram e tingiram com flores primaveris, as que as Horas portam: açafrão e jacinto e violeta em botão, e da rosa a flor bela e doce e nectárea e divinos botões das flores do narciso e do lírio. Afrodite tais vestes — com flores das estações todas perfumadas — pôs.
François Lasserre, em Sappho (1989, pp. 207-10), e Leah Rissman, em Love as war (1983, pp. 4-5), valem-se desses versos para reforçar a tese favorável a thróna, à qual aderem. Mas a leitura do primeiro é extremada: o manto de Afrodite no Fr. 1 V é uma alusão a um ritual à deusa, no qual uma sacerdotisa, que ele crê ser a própria poeta, viria oferecer-lhe um novo manto, preparado sob sua direção. De qualquer modo, as representações poéticas de Afrodite aqui arroladas reforçam os argumentos contra a “opção tradicional” de Poikiló-thron’, “de trono [thrónos]-furta-cor”, e compõem uma arquitetura firme e sem dúvida bem mais rica para a opção “de flóreo manto [thróna] furta-cor”.
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A deusa dolóploke: Afrodite, o ardil e a arte de tecer Como Poikilóthron’, dolóploke (dolÒ$ploke, “tecelã de ardis”), que Safo atribui a Afrodite, aparece pela primeira vez no Fr. 1 V (v. 2). Depois, no corpus sobrevivente da literatura grega, só reaparecerá três vezes, sempre na lírica: nos poetas Simônides (Ceos, c. 556-468 a.C.) e Teógnis (Mégara, c. 550-480 a.C.) e num fragmento de autoria desconhecida. Nesses casos, como em Safo, dolóploke é epíteto de Afrodite.41 Lembrando que a deusa tem como um de seus principais atributos a sedução, uma forma de engano amoroso realizável com o auxílio de armas variadas, a caracterização dolóploke parece-lhe muito apropriada, tanto mais porque Afrodite se vale da artimanha, do dolo, idéia marcada no primeiro membro do epíteto composto, doló-, à qual se associa, no segundo, a arte de tecer, de tramar fios (-ploke). Afrodite, os ardis e o tecer: olhemos de perto essas relações. O disfarce é um recurso muito utilizado pelos deuses desde a épica homérica. A ele recorre Afrodite, na Ilíada (canto III), em dois momentos: para salvar da morte o príncipe troiano Páris, seu protegido; e, depois, para levar-lhe a bela e desejável Helena. O primeiro momento dá-se nos versos 381 a 446, quando a deusa executa uma forma de disfarce recorrentemente empregada pelas deidades no poema: vendo Páris em perigo, ela o envolve em névoa espessa e, desse modo, oculta-o para poder tirá-lo de cena. Salvo do confronto com o aqueu Menelau, o marido traído de Helena,42 Páris é deitado em seu “tálamo, no leito fragrante” (yalãmƒ eu≈dei kh≈enti, v. 382), onde aguardará Helena, a quem Afrodite vai buscar (v. 383) — uma ocorrência do “motivo dos chamamentos divinos”43 — disfarçada sob as formas de uma velha senhora familiar à espartana. Eis o segundo momento. Trava-se, então, entre as duas, um tenso diálogo, cujo desfecho é, sem dúvida, favorável à deusa e a seus desígnios. Ela ordena — denota a forma imperativa íth’(i) (‡y’(i), “Vá”, v. 390), de ei)mi (e‰mi) — que Helena a siga até o troiano. Segue-se à ordem um discurso sedutor, em que a senhora/Afrodite exalta a beleza e o frescor de Páris (vv. 391-94). 162
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Helena ouve perturbada, até que, estupefata, reconhece na velha a deusa, denunciada por inequívocos sinais físicos de sua beleza imortal: “o belíssimo pescoço/ e os seios desejáveis e os olhos de brilho marmóreo” (perikall°a deirØn/ stÆyeã y’ flmerÒenta ka‹ ˆmmata marma¤ronta, vv. 396-97). Assim, o disfarce de Afrodite é ineficaz. Para Geoffrey S. Kirk, em The Iliad: a commentary, isso talvez reflita a “consciência do poeta de que essa deusa, em particular, é uma projeção de emoções pessoais” (1995a, p. 322). Três outras explicações podem ser arroladas: na primeira, Helena, sendo filha de Zeus e Leda e sinônimo da beleza, seria por isso mesmo capaz de reconhecer Afrodite; na segunda, a estreita proximidade entre deuses e homens, na Ilíada, explicaria a familiaridade entre eles; na terceira, é possível que Afrodite não queira, realmente, ocultar-se, pois, se Helena não for persuadida a obedecê-la pela sedução da linguagem, ela o será pela via da coerção, recurso ao qual recorre diante da mortal, que se nega a ir até Páris e acusa a deusa de ter vindo dolophronéousa (dolofron°ousa, “planejando ardis”, v. 405). A isso, Afrodite responde, furiosa, com ameaças terríveis de punição para a espartana (vv. 414-17). Importa frisar que, por fim, no episódio, Afrodite é associada ao amor erótico, à sedução, ao desejo, ao disfarce e ao ardil. Nada a estranhar nisso, pois atribuir à deusa o comportamento ardiloso será uma constante na literatura grega antiga, uma vez que é algo ligado à própria concepção da deidade e de sua esfera de atuação. Outra passagem da Ilíada ilustra essa afirmação. Refiro-me ao canto XIV, quando a enganadora Hera, desejando seduzir seu marido Zeus, de modo certeiro e arrebatador, executa uma toilette impecável para seu corpo, mas não pode prescindir de um detalhe: a ajuda de Afrodite, de quem empresta o “cinto” (himánta, v. 217), no qual estão reunidos os encantos de éro#s. Somente vestindo esse objeto é que Hera alcançará seu objetivo (vv. 220-328). Giulia Sissa e Marcel Detienne, em Os deuses da Grécia, notam que essa deusa da soberania “é incapaz de exercer um poder, o poder erótico, que caracteriza uma função inteiramente separada e que Afrodite encarna pessoalmente. A deusa sobe163
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rana tem de pedir ajuda à deusa amorosa, não só porque está excluída da função reservada a esta, mas também por não querer invadir o seu domínio exclusivo” (1991, p. 48).44 Na Teogonia, Hesíodo marcará, como o poeta da Ilíada, o aspecto enganoso da paixão e, por conseqüência, da deusa que a rege (vv. 203-6): taÊthn d’ ™j érx∞w timØn ¶xei ±d¢ l°logxe mo›ran ™n ényr≈poisi ka‹ éyanãtoisi yeo›si, paryen¤ouw t’ Ùãrouw meidÆmatã t’ ™japãtaw te t°rc¤n te glukerØn filÒthtã te meilix¤hn te. Esta honra, desde o princípio, ela tem e ainda obteve como porção entre os homens e os imortais deuses — os sussurros virginais e os sorrisos e os enganos e o prazer doce e a paixão e também a meiguice.
Impossível não notar a semelhança entre essa passagem e a dos versos 215 a 217 do canto XIV da Ilíada, no momento da enumeração dos itens do cinto de Afrodite: [...] ¶nya d° yelktÆria pãnta t°tukto: ¶ny’ ¶ni m¢n filÒthw, ™n d’ ·merow, ™n d’ ÙaristÊw, pãrfasiw ¥ t’ ¶klece nÒon pÊka per froneÒntvn: [...], onde os encantos todos estão reunidos: lá a paixão, e o desejo, e os sussurros amorosos, e a persuasão que engana a mente sagaz dos mais sábios.
Como observa William Sale, em “Aphrodite in the Theogony”, “[...] Homero e Hesíodo atribuem a Afrodite as mesmas timai [‘honras’] de modos bastante diversos: Hesíodo declara diretamente em 203-4 que essa é sua esfera; Homero fala simbolicamente e define seu papel através das qualidades que dá ao seu cinto” (1961, p. 511). Os poderes da esfera de Afrodite definidos na Ilíada e na Teogonia serão recorrentemente afirmados na lírica e na tragédia, permanecendo vivos até hoje no imaginário ocidental. E talvez por serem eles aspectos 164
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da sexualidade, dimensão tão fundamental do ser humano, Afrodite seja a deusa mais longeva e mais representada na arte em geral, superando os outros deuses olímpios. 45 Mas voltemos aos disfarces de Afrodite. Cito apenas mais um, agora no Hino homérico V. E o faço porque, nesse caso em especial, são fortemente entrelaçados às ações da deusa a sedução amorosa, a mentira, o engano. No Hino, Afrodite está tomada de desejo pelo pastor troiano Anquises. A fim de conquistá-lo, ela, tal qual fizera Hera para seduzir Zeus na Ilíada, prepara-se cuidadosamente em Pafos. De lá, segue para o monte Ida, em Tróia, buscando o belo mortal, e encontra-o nas tendas, afastado de seus companheiros, tocando animado a cítara (vv. 45-80).46 Então, Afrodite posta-se diante dele, maravilhosamente vestida e adornada, porém não como a divindade que é — o que o assustaria —, mas como uma “virgem pura” (pary°nƒ édmÆt˙, v. 82) que alega ser. Anquises sucumbe à visão ilusória da luminosa virgem. Todavia, desconfiado diante de tanto esplendor, indaga-lhe se ela não é uma deusa como Ártemis ou “a áurea Afrodite” (xrus°h ’Afrod¤th, v. 93). Ouvindo-o e sem intenção de se revelar, a enganadora deidade recorre a outro artifício para seduzir o mortal, a mentira: Afrodite diz-se uma mortal, filha do rei da Frígia, raptada por Hermes para ser a esposa legítima e a mãe dos filhos dele, Anquises. E ainda arremata sua fala com outra mentira, pois declara-se “pura [...] e inexperiente no amor” (édmÆthn [...] ka‹ épeirÆthn filÒthtow, v. 133). Por isso, pede-lhe que a despose e leve para sua família. Findo seu longo e bem amarrado discurso (vv. 108-42), “uma típica história épica mentirosa”,47 tornada verossímil pela coerente seqüência dos fatos e riqueza calculada de detalhes que dá a medida da mente ardilosa de Afrodite, a deusa atinge seu objetivo. Anquises, apaixonado, leva-a ao leito (vv. 166-67): [...] ˘ d’ ¶peita ye«n fiÒthti ka‹ a‡s˙ éyanãt˙ par°lekto yeò brotÒw, oÈ sãfa efid≈w
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[...] Então, pela vontade dos deuses e pelo destino à imortal deusa uniu-se o mortal, sem o saber claramente.
Uma das conseqüências dessa união será o nascimento de Enéias, como já vimos em outra ocasião. Mas a deusa alerta Anquises (vv. 284-90): fãsin toi nÊmfhw kaluk≈pidow ¶kgonon e‰nai, a„ tÒde naietãousin ˆrow kataeim°non Ïl˙. efi d° ken ™je¤p˙w ka‹ ™peÊjeai êfroni yum“ ™n filÒthti mig∞nai ™#stefãnƒ Kuyere¤˙, ZeÊw se xolvsãmenow bal°ei colÒenti keraun“. e‡rhta¤ toi pãnta: sÁ d¢ fres‹ sªsi noÆsaw ‡sxeo mhd’ ÙnÒmaine, ye«n d’ ™pop¤zeo m∞nin. Dize que ele é filho de uma ninfa de flóreos olhos, uma das que habitam este monte coberto de florestas. Se contares e te vangloriares em teu tolo coração que em amor te uniste à Citeréia de bela guirlanda, Zeus, em cólera, lançará contra ti um raio fumacento. Disse-te tudo já. Tu, refletindo em teu peito, contém-te e não digas meu nome, mas reverencia a ira dos deuses.
Afrodite, que se disfarçou e mentiu para seduzir Anquises, exige que ele minta e se cale sobre o que se passou entre ambos, sob pena de matá-lo pelas mãos de Zeus. Em “The Homeric hymn to Aphrodite”, Peter Walcot lembra: “Sendo o arquétipo da mulher enganadora, Afrodite começa e termina sua relação com Anquises pela exploração de uma mentira” (1991, p. 152).48 Como se vê, a deusa dolóploke do Fr. 1 V (v. 2) de Safo guarda parentesco com muitas outras “Afrodites” enganadoras. E quanto à arte de tecer, referida na segunda parte do epíteto e tão viva nas imagens da literatura grega antiga? O trabalho no tear, feminino por excelência, é executado, na épica homérica, por mulheres, como Andrômaca e Penélope, por uma ninfa, Calipso, por uma feiticeira, Circe, e pela ambígua Helena, filha de Leda e Zeus. À exceção da primeira, todas as outras personagens são também marcadas pela estreita proximidade com a astúcia. 166
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Nesse espectro, a figura de destaque é a Penélope da Odisséia, aquela que executa a arte de tramar, não apenas os fios de modo a formar um tecido, mas também os movimentos de uma ação própria da mê)tis (m∞tiw). Ou seja, uma ação em que o mais fraco — uma mulher —, incapaz de confrontar diretamente seus inimigos mais fortes — os pretendentes que se esbaldam no palácio do ausente Ulisses —, enfrentaos indiretamente, enganando-os: durante três anos, em sua trama, ela entrelaça, durante o dia, os fios de uma trama — o tapete — que desfaz à noite e que, por conseguinte, jamais termina.49 Eis o que a própria Penélope, no canto XIX da Odisséia (vv. 124-61), narra ao mendigo que ainda não sabe ser Odisseu, enfim de volta a Ítaca, como uma de suas “tramas” (dólous, v. 137) que ela desenrola contra os pretendentes. E, tendo sido delatada por suas servas, ela declara ao falso mendigo (vv. 158-59): nËn d’ oÎt’ ™kgug°ein dÊnamai gãmon oÎt° tin’ êllhn m∞tin ¶y’ eÍr¤skv: [...] Agora, não sou capaz de escapar às bodas, nem um outro ardil descubro; [...]
A lírica de Safo, que desenha cuidadosamente o universo feminino em seus ricos detalhes, vale-se da imagem da mulher que trança fios para caracterizar, metaforicamente, o aspecto ardiloso de Afrodite na síntese dolóploke. Se essa cunhagem é uma inovação de sua linguagem, jamais o saberemos ao certo e isso tampouco importa, pois, de qualquer forma, o que interessa é perceber no epíteto o pulsar de toda uma tradição que contempla a tarefa de fiar — especialmente quando realizada por mãos femininas — sob o signo da ambigüidade semântica. Poikílos, dólos e mê)tis: três termos e suas afinidades Retomo, brevemente, a discussão em torno de Poikilóphron’ (“de múltiplo pensar”), a leitura mais rara para o epíteto inicial do Fr. 1 V 167
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(Poikilóthron’). Os poucos estudiosos que a preferem costumam respaldar-se, de um lado, nos parcos registros da letra phi (f, ph) nos manuscritos antigos e, de outro, no significado de dolóploke (“tecelã de ardis”), que se relacionaria a Poikilóphron’.50 Ora, essa relação, à primeira vista consistente, tem fôlego curto e não é definitiva para a defesa dessa forma, uma vez que doló-ploke se liga também a Poikiló-thron’ na medida em que o adjetivo poikílos (“furta-cor”) e a noção de dólos (“ardil, dolo”) se inserem num campo ~ semântico comum, o da mêtis (m∞tiw), “inteligência astuciosa”, tradução que, todavia, não dá conta da carga significativa do original grego e nem com ele compartilha seu sentido habitualmente pejorativo em português.51 Não é extraordinário que, ao chamá-la Poikilóthron’ (“de flóreo manto furta-cor”), Safo marque Afrodite com a noção de poikilía. Na Ilíada, na Odisséia e nos Hinos homéricos à deusa dedicados, essa noção lhe é recorrentemente associada: no primeiro (canto XIV), destaquei que seu “cinto” (himánta) é poikílon (v. 215). No Hino homérico V, poikílos surge intensificado na descrição de um adereço da deusa, seus colares “belos áureos todo-faiscantes [pampoíkiloi]” (v. 89). Tenho traduzido poikílos como “furta-cor”, mas, no caso de pampoíkiloi qualificando os colares dourados de Afrodite, é mais adequada a opção “todo-faiscantes”. Feito tal ajuste, é preciso dizer que, na verdade, nenhuma dessas traduções exprime a complexa amplitude do adjetivo que compõe o epíteto Poikilóthron’. Por isso, pelo que o adjetivo poikílos nos pode ~ dizer da personalidade de quem o carrega e por suas ligações com a mêtis ~ e o dólos, vale a pena indagar: afinal, o que é a mê tis? Não é fácil apreender o significado desse substantivo feminino em cuja malha semântica se enredam as noções de dólos e de poikilía. No meticuloso Les ruses de l’intelligence, Marcel Detienne e Jean-Pierre ~ Vernant assim descrevem a mêtis: A métis é uma forma de inteligência e de pensamento, um modo de conhecer; implica um conjunto complexo, mas muito coerente, de atitudes mentais, de comportamentos intelectuais que combinam perspicácia, saga-
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cidade, previsão, capacidade de adaptação, cilada, capacidade de se desembaraçar, atenção vigilante, senso de oportunidade, habilidades diversas, uma experiência longamente adquirida. Ela se aplica a realidades fugazes, movediças, desconcertantes e ambíguas, que não se prestam nem à medida precisa, nem ao cálculo exato, nem ao raciocínio rigoroso (1974, p. 10).
~ A mêtis define-se, pois, no âmbito da instabilidade, da flexibilidade, da agilidade mental, da pluralidade, da ambigüidade, do confronto indireto, da obliqüidade. Nesse âmbito também se define a poikilía e, portanto, o adjetivo poikílos. Dizem os helenistas que “este designa o desenho colorido de um tecido, o cintilar de uma arma, o vestido salpicado de brilhos [...]. Essa mistura de cores variadas, esse embaralhamento de formas, ambos produzem um efeito de luzes cambiantes, de ondulamento, um jogo de reflexos que o grego percebe como uma vibração incessante da luz” (pp. 25-26). ~ Por sua vez, dólos designa o engano, recurso da mê tis que pressupõe, para sua eficácia, a surpresa. Retomo da Odisséia um episódio destacado no capítulo anterior — o amor adúltero entre Ares e Afrodite, cantado por Demódoco (canto VIII, vv. 266-369) — para ressaltar os versos que revelam a forma pela qual Hefesto, marido da deusa, prepara sua vingança, após saber da traição (vv. 274-84): ÜHfaistow d’ …w oÔn yumalg°a mËyon êkouse, b∞ =’ ‡men ™w xalke«na kakå fres‹ bussodomeÊvn, ™n d’ ¶yet’ ékmoy°tƒ m°gan êkmona, kÒpte d¢ desmoÁw érrÆktouw élÊtouw, ˆfr’ ¶mpedon aÔyi m°noien. aÈtår ™pe‹ dØ teËje dÒlon kexolvm°now ÖArei, b∞ =’ ‡men ™w yãlamvn, ˜yi ofl f¤la d°mni’ ¶keito, émf‹ d’ êr’ •rm›sin x°e d°smata kÊklƒ èpãnt˙: pollå d¢ ka‹ kayÊperye melayrÒfin ™jek°xunto, ±Êt’ érãxnia leptã, tã g’ oÎ k° tiw oÈd¢ ‡doito, oÈd¢ ye«n makãrvn: p°ri går dolÒenta t°tukto. aÈtår ™pe‹ dØ pãnta dÒlon per‹ d°mnia xeËen, e‡sat’ ‡men ™w L∞mnon, ™ukt¤menon ptol¤eyron, ¥ ofl gaiãvn polÁ filtãth ™st‹n èpas°vn.
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Hefesto, quando o pungente relato ouviu, andou rumo à ferraria — males no peito remoendo —, e pôs sobre o cepo grande bigorna, e forjou grilhões inquebráveis e inextricáveis, para que ambos fossem presos. Depois que fez o dolo, encolerizado com Ares, andou rumo ao quarto, onde seu leito se achava: em torno dos pés espalhou os grilhões em círculo por toda parte, e muitas também foram penduradas do teto a cair para o chão, tal como da aranha as teias, de modo que ninguém as visse — nenhum dos deuses afortunados. Pois muito ardilosamente as fez. Depois que todo o dolo pelo leito tinha espalhado, fingiu ir para Lemnos, a bem construída cidadela, que lhe era a mais cara de todas as que na terra há.
O invisível “dolo” (vv. 276, 282) de “grilhões”, feitos “ardilosa~ mente” (dolóenta, v. 281), é uma arma da mê tis, pois é tramado, confeccionado e preparado às escondidas:52 o casal de amantes nada verá e, ao deitar-se no leito de Hefesto, será preso e exposto a todos. Desse modo, apesar das limitações físicas que o fragilizam perante Ares, Hefesto tem como compensação este tipo especial de inteligência astuciosa, ~ a mê tis, que o leva a vencer seu rival. E observam Detienne e Vernant: “Todavia, a verdadeira presa do artífice não é Ares, mas sua cúmplice, porque a esposa de Hefesto é uma força de artimanha e de engano: sua métis ondulante (aiolómetis), sua habilidade de armar emboscadas (doloplókos), seu desejo insaciável de enganar e seduzir fazem de Afrodite uma divindade que tanto os deuses quanto os homens temem” (pp. 269-70). A grande ironia — ou talvez a grande humanidade — de Afrodite na Odisséia é ser ela própria vítima de seu poder, incapaz de recorrer à ~ mêtis. Não será essa a única vez em que a deusa se enredará em sua teia, como mostra o Hino homérico V. Resta fazer uma observação, ainda, a respeito da passagem da Odisséia acima reproduzida. Os versos 272 a 282 servem de base para uma das raríssimas contestações da leitura do epíteto sáfico dolóploke (“tecelã de ardis”) para Afrodite como amálgama de dólos e plokós
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(plokÒw, forma substantiva de pl°kv, pléko#, “tecer, urdir, entrelaçar”). Refiro-me à argumentação de G. Aurelio Privitera, em La rete di Afrodite (1974, p. 37), segundo a qual, naqueles versos, “o significado de [dólos] oscila entre os dois extremos ‘rede’/‘engano’”; dolóploke seria, então, “tecelã de redes de pesca”. Contudo, esse entendimento não se sustenta, porque o material do dolo de Hefesto são os “grilhões” (désmous, v. 274). Ademais, Privitera está estudando o Fr. 1 V de Safo e nele não é como pescadora, mas, se tanto, como guerreira, que Afrodite se configura, pois é chamada de súmmakhos (!Êmmaxo!, “aliada de lutas”, v. 28).53 E se há, além do universo da guerra, outro domínio de ação que metaforicamente se aproxime da deusa no citado fragmento, este é o da caça, como se verá. ~ Voltando à questão da mêtis, note-se que ela se relaciona à paixão, pois no âmbito desse que é o poder maior de Afrodite estão o prazer, o desejo, a sedução, o sofrimento e o engano. Na Teogonia, Hesíodo insere o dolo na esfera de poderes da deusa (vv. 205-6) e, antes, na própria gênese da deusa, cujo nascimento deriva de um ardil intimamente ligado ~ à mêtis: a castração de Urano. Canta o poeta que Gaia, divindade primordial, gera vários filhos, dentre os quais Urano (v. 127), o seu duplo — igual em tamanho e função. Ele cede ao irresistível impulso da união amorosa e passa a deitar-se continuamente sobre sua mãe, cobrindo-a por inteiro. Assim, Gaia engravida sucessivamente de seu filho-amante que, permanecendo colado a ela, aprisiona os filhos no ventre materno (vv. 157-58). Sofrendo muito e ultrajada, Gaia decide pôr fim ao malfeito de Urano e, para tanto, concebe um ardil que, para ser levado a cabo, depende da ajuda de algum de seus outros filhos. Voluntariamente, é Crono, o mais novo, quem aceita auxiliar a mãe (vv. 163-72). Gerado da união de Urano com Gaia, Crono, ao nascer, detestou o pai como este detestava a própria prole (v. 138 e vv. 155-56). Crono ~ é dito ankulomê te#s (égkulomÆthw, “de retorcido pensar”, v. 137), um ~ amálgama de ankúlos (“curvo, intricado”) e mê tis. Empregado para o filho de Urano no instante em que ele chama para si a tarefa de punir o pai, tal epíteto e a caracterização da tékne#n (t°knhn,“arte”) “ardilosa 171
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e maligna” (dol¤hn d¢ kakØn, v. 160) urdida por Gaia apontam para o tipo de ação que será cometida: premeditada e traiçoeira. Posto em tocaia pela mãe, em local oculto e disfarçado pela noite, Crono fica à espreita de Urano, a quem ataca desferindo um golpe com uma foice forjada por Gaia, instrumento que lhe decepa o pênis (vv. 161-62), que Crono atira para longe (vv. 181-82). Ele deseja provocar a esterilidade do pai, o que de fato acontece. Mas, curiosamente, o pênis ceifado — seu sangue e seu esperma — gerarão ainda outros filhos de duas formas diversas: do sangue respingado na terra, resultante do ato violento, nascem as Erínias, deidades associadas à vingança por crimes entre consangüíneos, os Gigantes e as Ninfas Freixos, associados à guerra (vv. 183-87).54 Do esperma que cai no mar, misturado à água, nasce Afrodite, deusa que rege o amor erótico, a sexualidade, a fecundidade (vv. 188-200). Vê-se, portanto, que a geração da deusa se dá sob o signo da traição, ~ do ardil, da premeditação, do ocultamento — em suma, da mê tis. Nascida não do sangue de Urano caído na terra firme, mas do líquido marinho espumoso e fértil, ela está intimamente ligada ao sexo e também ao mar — fluido, inapreensível e movente, tal qual a própria Afrodite, a inconstante, a dissimulada, a enganadora, a sedutora ou, como diz Safo no Fr. 1 V, a deusa Poikilóthron’ (“de flóreo manto furta-cor”, v. 1) e dolóploke (“tecelã de ardis”, v. 2), dupla adjetivação que confirma o comentário de Daniel Garrison, em Sexual culture in ancient Greece: “Os gregos entendiam todos os seus deuses como enganadores — mas nenhum mais do que Afrodite” (2000, p. 40).
Quatro epítetos da divina Afrodite: athanát’, mákaira, polúolbon e pótnia Os três primeiros epítetos do subtítulo, cujas traduções são, respectivamente, “imortal” (éyanãt’, Fr. 1 V, v. 1), “venturosa” (mãkaira, Fr. 1 V, v. 13) e “multiafortunada” (polÊolbon, Fr. 133 V, v. 2), denotam duas características da natureza dos deuses: a imortalidade e a bem172
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aventurança. Já “veneranda” (pÒtn¸ia, Fr. 1 V, v. 4) reflete uma das atitudes humanas para com as divindades: a reverência, o respeito. Essa síntese mostra que os quatro epítetos nada dizem de específico sobre Afrodite, mas falam de aspectos gerais da concepção grega dos deuses e de suas relações com os homens, que variam ao longo dos tempos, como mostra a literatura antiga: de Homero aos alexandrinos, são notáveis as diferenças de tom, de atitude, de postura ante os deuses, cujas representações poéticas foram sofrendo alterações ligadas a momentos histórico-sociais distintos entre si. Tampouco há, entre os estudiosos da religião grega, uma única maneira de pensá-la. Ao contrário, as abordagens do assunto variaram ao longo dos tempos, influenciadas pelas mais diversas escolas de pensamento — a psicanálise, a antropologia, a sociologia, a história cultural e outras. A fim de assinalar o que exprimem athanát’ (éyanãt’), mákaira (mãkaira), polúolbon (polÊolbon) e pótnia (pÒtn¸ia), traço aqui breves considerações acerca da natureza e da especificidade dos deuses do panteão grego e de suas relações com os homens. Uma das idéias mais duradouras — e ultrapassadas — nos estudos da religião grega e de sua história é a de que Homero foi o criador das divindades helenas. E um dos seus sustentáculos importantes era a crença numa espécie de purismo que concebia a civilização da Grécia antiga como um produto única e exclusivamente autóctone, livre de misturas estrangeiras. Burkert sintetiza: “A história da religião estava, antigamente, inclinada a considerar o mundo dos deuses olímpios como algo bastante único, como uma criação de Homero, isto é, dos gregos arcaicos e de seus poetas. Com a redescoberta da antiga literatura do Oriente Próximo, essa visão tem sido derrubada” (1998, p. 182). Os paralelos entre as religiões orientais e grega, outrora vistos como exotismos restritos à reflexão sobre deuses estrangeiros como Afrodite e Dioniso, ganharam dimensão e amplitude tais que é impossível hoje ignorá-los. Mesmo porque a comparação não empobrece, mas enriquece e define com maior nitidez os elementos que são próprios dos deuses gregos, como este apontado por Burkert: “[eles] são pessoas, não abs173
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trações, idéias ou conceitos; theos pode ser um predicativo, mas um nome divino nas narrativas míticas é um sujeito” (pp. 182-83).55 Decerto, outro fator que sustentou a idéia de que Homero criou o panteão grego foi, exatamente, a extrema vivacidade e minuciosidade dos relatos sobre os dias dos deuses na Ilíada e na Odisséia. Num plano separado do humano, cenas da “vida cotidiana dos deuses”, na expressão de Sissa e Detienne, são descritas e narradas: [...] assembléias e conversas, banquetes e altercações, no palácio de Zeus ou nas alturas que o rodeiam. Viagens, encontros, querelas: os deuses movem-se nesse algures onde os dias se sucedem aos dias, a um ritmo inteiramente semelhante ao dos mortais. Movem-se, agem, deslocam-se, mas também descansam: sabem abandonar-se ao correr do tempo, à ociosidade, à passagem das horas. O leitor de Homero tem a ilusão perfeita de que os deuses Olímpios formam uma sociedade de pleno direito, e independente. [...] A sua estrutura hierárquica e genealógica está continuamente exposta ao risco de conflito. Mas essa sociedade possui igualmente uma profunda estabilidade que assenta num sistema de comportamentos e de representações: os Olímpios obedecem a regras, seguem costumes, têm uma consciência muito precisa de sua identidade étnica (1991, pp. 29-30).
Nessa sociedade regida por um sistema hierárquico e “de comportamentos e representações”, dizem os helenistas, cada deus tem funções e domínios definidos — que não podem ser ultrapassados sem perigo para o infrator — e cada deus “é sempre, ele mesmo, múltiplo”, lembra Édouard Will, em Le monde grec et l’Orient (1989, p. 526). Mesmo Afrodite, dita a deusa da paixão, é mais do que isso, como se verá. Sendo pessoas, muito embora bastante especiais, os deuses gregos têm limitações: eles não são oniscientes, onipotentes e onipresentes — nem o próprio Zeus. 56 Não obstante, seu “conhecimento supera em muito a medida humana” e seus desígnios são, quase sempre, realizados, como frisa Burkert (1998, p. 183). A imortalidade, referida em athanát’ (“imortal”), que precede o nome de Afrodite no Fr. 1 V (v. 1), é outro traço dos deuses. E sendo
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imortais, seus corpos são diversos dos humanos: não corre sangue em seus veias, mas ikhô´r (fix≈r), e não carecem de pão, cereais e vinhos, mas tão-somente se nutrem de ambrosia e néctar.57 Apesar de definitivamente afastados da morte, os deuses gregos não são fisicamente inatingíveis. Ilustram esse dado várias passagens literárias, como a do canto V da Ilíada, em que Afrodite é ferida pelo guerreiro aqueu Diomedes, que a trata com surpreendente falta de reverência58 e a faz sentir dor ao atingi-la, com a lança, na altura do pulso (vv. 337-42): [...]: e›yar d¢ dÒru xroÚw éntetÒrhsen émbros¤ou diå p°plou, ˜n ofl Xãritew kãmon aÈta¤, prumnÚn Ïper y°narow: =°e d’ êmbroton aÂma yeo›o, fix≈r, oÂow p°r te =°ei makãressi yeo›sin: oÈ går s›ton ¶dous’, oÈ p¤nous’ a‡yopa o‰non, toÎnek’ éna¤mon°w efisi ka‹ éyãnatoi kal°ontai. [...] De pronto, a lança dilacerou a pele através do divino manto — obra das próprias Cárites para ela —, na altura do pulso; e jorrou o divino sangue da deusa, ikhô´ r, do tipo que corre nas venturosas deidades; pois pão não comem, nem bebem o brilhante vinho, porque são seres sem sangue e chamados imortais.59
Eis uma síntese do que se disse até aqui acerca dos deuses gregos. Saliento, ainda, com relação ao sofrimento divino, que ele pode ultrapassar a dimensão física e atingir os sentimentos, provocando a cólera, o riso, o ciúme, a inveja — tudo isso em proporções devastadoras e inextinguíveis, quando se trata das deidades.60 Isso se revela na literatura de um modo geral. Outro traço dos deuses gregos é a sexualidade, parte inalienável desses seres que podem relacionar-se tanto com seus pares quanto com os mortais como amantes, correspondidos ou rejeitados, gerando filhos e até se casando, ressalta Burkert (1998, p. 183). Esses envolvimentos amorosos são recorrentemente retratados pelos poetas antigos, e Afro-
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dite costuma desempenhar um papel importante em suas consumações. No Hino homérico V, isso é enfatizado e justamente por esse papel a deusa é punida por Zeus — ele mesmo uma de suas vítimas (vv. 1-6): MoËsã moi ¶nnepe ¶rga poluxrÊsou ’Afrod¤thw KÊpridow, ¥te yeo›sin ™p‹ glukÁn ·meron Œrse ka¤ t’ ™damãssato fËla kataynht«n ényr≈pvn ofivnoÊw te diipet°aw ka‹ yhr¤a pãnta, ±m¢n ˜s’ ≥peirow pollã tr°fei ±d’ ˜sa pÒntow: pçsin d’ ¶rga m°mhlen eÈstefãnou Kuyere¤hw. Ó Musa, canta-me os trabalhos da multiáurea Afrodite, Cípris, que nos deuses o doce desejo agita e doma as tribos dos homens mortais, e os pássaros alados e as criaturas todas — as tantas que a terra e as quantas que o mar nutrem: a todos concernem os trabalhos da Citeréia de bela guirlanda.
Clara está a grande amplitude do poder de Afrodite, cujo alcance vai do Olimpo à terra, passando pelo mar e pelo ar. Domar as criaturas e os homens e agitar o “doce desejo” (glukùn hímeron, v. 2) nos imortais são seu métier, o essencial de seus “trabalhos” (érga, vv. 1 e 6).61 Além da sexualidade, são largamente retratadas na literatura grega antiga as epifanias divinas, que, todavia, só ocorrem quando um deus deseja ser visto por um determinado mortal. Nesses momentos, os deuses costumam assumir formas humanas por motivos muitas vezes escusos, mas também porque sua figura divina, luminosa, é quase insuportável aos olhos mortais.62 Não obstante o disfarce, sua presença pode revelarse por um sinal físico indisfarçável — a beleza, o brilho do olhar, a altura desproporcional à dos homens.63 No Fr. 1 V, de Safo, acompanhamos, verso a verso, a epifania de Afrodite, deusa-personagem que chega a falar, em discurso direto, à voz que a chama e suplica por seu auxílio, como se verá mais adiante. Com referência ao contraste entre mortais e imortais, há que se lembrar que estes não podem dar a vida, mas sim destruí-la, completamente.
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Além disso, os deuses podem eleger seus prediletos entre os mortais e conceder-lhes favores e privilégios, o que não é, em princípio, uma garantia: “O homem nunca pode estar inteiramente certo de seus deuses. O que alcançou alturas grandes em demasia está ainda mais ameaçado de destruição: isso é o ciúme dos deuses”, lembra Burkert (1998, p. 189). Os deuses gregos interferem na vida humana, às vezes para dar assistência, para salvar seus protegidos, outras para advertir ou, ainda, para destruir.64 Pensando essas relações entre os deuses e os homens, Burkert observa: Politeísmo significa que muitos deuses são cultuados não apenas no mesmo lugar e no mesmo tempo, mas pela mesma comunidade e pelo mesmo indivíduo; somente a totalidade dos deuses constitui o mundo divino. Não importa quanto um deus é intencionado em sua honra, ele jamais disputa a existência de nenhum outro deus; todos eles são eternos. Não há um deus ciumento como na fé judaico-cristã. O que é fatal é se um deus é ignorado (p. 216).
Veja-se o caso notável de Hipólito, personagem-título da tragédia de Eurípides. No monólogo de Afrodite, que abre o prólogo (vv. 1-120), a própria deusa declara: toÁ! m¢n !°bonta! témå pre!beÊv krãth !fãllv d’ ˜!oi fronoË!in efi! ≤mç! m°ga. ¶ne!tin går dØ kén ye«n g°nei tÒde: tim≈menoi xa¤rou!in ényr≈pvn Ïpo. [...] ı går me Yh!°v! pa›!, ’AmazÒno! tÒko!, ÑIppÒluto!, ègnoË Pity°v! paideÊmata, mÒno! polit«n t∞!de g∞! Trozhn¤a! l°gei kak¤!thn daimÒnvn pefuk°nai: éna¤netai d¢ l°ktra koÈ caÊei gãmvn, Fo¤bou d’ édelfØn ÖArtemin, DiÚ! kÒrhn, timçi, meg¤!thn daimÒnvn ≤goÊmeno!, [...]
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toÊtoi!i m°n nun oÈ fyon«: t¤ gãr me de›; ì d’ efi! ¶m’ ≤mãrthke timvrÆ!omai ÑIppÒluton ™n t∞id’ ≤m°rai: [...] Honro os que reverenciam meus poderes, mas abato os que são arrogantes comigo, pois até isto pertence à estirpe dos deuses: alegrarem-se em serem honrados pelos homens. [...] Pois de Teseu o filho, da Amazona rebento, Hipólito, pupilo do sagrado Piteu — só ele, dentre os cidadãos desta terra de Trezena, diz-me ser a mais vil dentre as divindades, e rejeita o leito do amor, e renuncia às bodas, mas a irmã de Febo, Ártemis, a menina de Zeus, honra, a maior das deidades considerando-a. [...] Todavia, não invejo isso. Por que deveria? Mas do que contra mim ele errou, eu me vingarei de Hipólito neste dia [...].65
O verso 20 evidencia que incomoda Afrodite não a adoração de Hipólito a Ártemis em si, mas o fato de isso implicar a sua exclusão. A deusa declarou: ele “errou” (he#márte#ke, v. 21) ao não honrá-la; ela o punirá por isso. A voz suplicante do Fr. 1 V de Safo sublinha, ao chamar Afrodite de pótnia (“veneranda”, v. 4) — um termo de “antiga tradição sacra”, afirma Oddone Longo, em “Moduli epici in Saffo, Fr. 1” (1963-1964, p. 348) —, a postura reverente, respeitosa que os mortais devem adotar perante os deuses, pois, embora próximos dos humanos, eles estão destes afastados por um limite intransponível, a mortalidade do homem. Lembra Burkert: “Num certo sentido, eles são o contraste polar do homem. A linha que separa deuses e homens é a morte: mortais movendo-se em direção ao seu fim, de um lado, deuses imortais do outro. Não importa quanto os deuses se enfureçam ou mesmo sofram, toda a sua agitação
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carece da verdadeira seriedade que está na humanidade da possibilidade de destruição” (1998, p. 188). Esse “contraste polar” é enfatizado logo na abertura do Fr. 1 V, de Safo, com a expressão athanát’ Aphrodíte# (“imortal Afrodite”). Comparando esse uso do epíteto ao épico-homérico, Page comenta: “éyanãta [athanáta], éyãnatoi [athánatoi], adjetivo e substantivo, são freqüentemente aplicados para as divindades olímpias como uma classe; mas o singular éyãnato! [athánatos, ‘imortal’] é muito raramente aplicado como um adjetivo para um deus individualizado [...]” (1987, p. 5), como ocorre em Safo. Em “L’uso degli epiteti in Saffo e Alceo con riferimento alla tradizione epico-rapsodica”, ao notar também essa diferença de usos, Alessandra Romè afirma que “athánatos ocorre, ainda, em uso inusitado, unido ao nome próprio da deusa na invocação inicial [verso 1] que ressoa com particular majestade” (1965, p. 236). Portanto, os epítetos athanát’, mákaira, polúolbon — este não encontrado novamente até o período helenístico66 — e pótnia falam não apenas de Afrodite, mas dos deuses gregos e de sua natureza. Isso se torna especialmente eloqüente no Fr. 1 V, porque a estrutura formal dessa peça é, como explorarei noutro momento, a de uma prece.
Fr. 33 V: a deusa khrusostéphan’ (“de áurea guirlanda”) Em alguns momentos deste trabalho, referi-me ao ouro (xrÊsow, khrúsos) abundante na Lídia, reino vizinho de Lesbos e citado nestes fragmentos de Safo: • 96 V: Sárdis, a áurea capital que abrigava uma colônia grega e provia aos helenos a rota de acesso principal para a penetração no Oriente, pode ser a palavra que as letras sard do primeiro verso que temos formariam. Além disso, nos versos 6 e 7, são mencionadas as mulheres lídias; • 16 V: fala-se das carruagens e da infantaria dos lídios (vv. 19-20); • 39 V, 98 V e 132 V: respectivamente, há referência a uma “sandália furta-cor” (po¤kilo! mã!lh!, linha 2) dita “um belo trabalho 179
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lídio” (LÊdi-/on kãlon ¶rgon, linhas 2-3); a uma “fitinha de cabelo” (m].itrãnan, v. 10) “furta-cor de Sárdis” (poik¤lan épÁ %ard¤v[n, v. 11); e à “Lídia” (linha 3). Alguns desses fragmentos revelam vários aspectos da vida lídia: suas mulheres, seu poderio militar, seu artesanato. Safo demonstra, ao inseri-los em sua lírica, que a proximidade entre Lesbos e a Lídia era não apenas geográfica, mas cultural. A trinca ouro–Safo–Lesbos/Oriente pode ser expandida com a inserção de Afrodite. O epíteto khrusostéphan’ (xru!o!t°fan’, “de áurea guirlanda”), atribuído a ela no Fr. 33 V da poeta, sinaliza isso. Outro sinal disso reside na ambígua relação criada nos versos 7 a 9 do Fr. 1 V, parte da epifania de Afrodite, que vem à terra do pai: [...] pãtro$! d¢ dÒmon l¤poi!a x¸rÊ!ion ∑ly$e! êr¸m’ Èpa!de$Êjai!a: [...] [...] de teu pai deixando a casa áurea a carruagem atrelando vieste. [...]
Muito se discute se khrúsion (“áurea”, v. 8, acusativo singular masculino ou neutro singular) se relaciona a dómon (“casa”, v. 7, acusativo singular masculino) ou a árm’(a) (“carruagem”, v. 9, neutro singular).67 Vejamos. Na fonte de transmissão direta do fragmento, o Papiro de Oxirrinco no 2.288, há um ponto alto (. ) depois de algumas letras da palavra khrúsion — ] .rusion . — que, para seu editor, Lobel (1951, pp. 1-2), decide a favor de “casa áurea”,68 argumento que é, segundo Jouanna (1999, p. 116), insuficiente para solucionar o problema; ele prefere combinar “áurea carruagem”.69 Nicosia, avaliando a fonte e o ponto alto, observa que este apenas atesta “a preferência dada à primeira interpretação pelos antigos exegetas” (1976, p. 206).
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Em “Sappho Fr. 1, 8 V”, Simon R. Slings, ainda sobre o ponto alto do papiro, diz que o argumento de Lobel “tem pouca ou nenhuma autoridade” (1991, p. 404) e que a tendência seria a de manter, na tradução e no estudo do Fr. 1, a ambigüidade “casa-áurea-carruagem”, que pode ter sido desejada pela poeta de Lesbos. Não agrada a Slings essa solução — que decidi seguir em minha tradução —, mas a combinação “casa áurea”, que contrastaria, ele alega, “com a terra negra do verso 10, tendo o brilhante céu [...] no meio [...]” (p. 405). O fato de que há uma mudança de estrofe entre “casa [...]/ áurea [...]” (vv. 7-8) e “carruagem” (v. 9) é visto pelo helenista como um dos relevantes empecilhos à combinação “áurea carruagem”. Mas Jesper Svenbro, em “Sappho and Diomedes”, pensa exatamente o contrário, pois para ele tal mudança ocorre em outros fragmentos de Safo e de seu contemporâneo, Alceu (1975, p. 41, nota 14). A verdade é que para ambas as leituras há bons argumentos favoráveis e contrários. Se uma escolha fosse imprescindível, a combinação “áurea carruagem” seria mais interessante, considerada a estreita ligação entre Afrodite e o ouro, que é ampla e abarca ainda a ligação Grécia–Oriente, na medida em que, conforme Garrison, “A raiz khrus-, ‘ouro’, é, na verdade, semítica, apropriadamente evocando o luxo e a riqueza do Oriente, os quais foram sempre proverbiais para os gregos dos tempos históricos — e sem dúvida também dos tempos pré-históricos” (2000, p. 81). Sobre a conexão entre a deusa e o metal precioso, vale frisar que ela é poeticamente trabalhada desde a épica homérica, em que Afrodite — e somente ela — recebe o epíteto khrus- (“áurea”). Um exemplo encontrase no canto III da Ilíada, em que a presença atuante de Afrodite entre Helena e Páris cria atmosferas que conjugam as pequenas revelações do corpo, os perfumes, o desejo erótico, o prazer, a mente ardilosa e a linguagem sedutora ou ameaçadora, mas persuasiva. Além disso, a beleza dos dois mortais e da deusa é sublinhada de diversas formas, dentre as quais se destaca a expressão khrusê)s Aphrodíte#s (“áurea Afrodite”, v. 64), reveladora de uma qualidade que lhe é exclusiva. Assim, é preciso olhar com cuidado para o epíteto composto khrusóstephan- (“de áurea guirlanda”), no corpus dos fragmentos preservados de Safo apenas atribuído a Afrodite no Fr. 33 V. 181
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Enfatizei a exclusividade do epíteto khrus- (“áurea”) e também seu composto intensificado, polukhrús- (“multiáurea”). Analisando-os, Boedeker afirma: “Em linguagem homérica, ouro é, claro, o metal divino par excellence. Muitos deuses recebem epítetos compostos de xrus[khrus-, ‘ouro’] e um outro elemento [...]. Mas apenas Afrodite é, ela própria, xrus°h [khrusé–] ‘áurea’ [...]” (1974, p. 22). E quanto ao epíteto composto, especificamente não encontrado em Homero,70 diz a helenista, arrematando seu comentário: “[polukhrús-], aplicado a Afrodite, provavelmente se refere à sua beleza resplandecente e depende, para seu sentido, do epíteto fixo distintivo da deusa [khrusée#]” (p. 26). Feitas essas observações sobre a exclusiva qualidade “áurea” de Afrodite, Boedeker completa, lembrando outro epíteto comum a vários deuses, di)a (d›a, “esplêndido, resplandecente”), que aparece para adjetivá-la na Ilíada (canto III, v. 413): “Acima de tudo, em numerosas passagens da épica, Afrodite é descrita como uma figura particularmente luminosa” (p. 29). Cito alguns exemplos disso. Na Odisséia (canto VIII), após o flagrante dos amantes adúlteros Ares e Afrodite, Apolo, um dos espectadores da cena embaraçosa, indaga a Hermes se ele, no lugar de Ares, teria resistido à khrusée# i (“áurea”, vv. 337) deusa. O mensageiro retruca, entusiasticamente (vv. 339-42): A„ går toËto g°noito, ênaj •kathbÒl’ ÖApollon: desmo‹ m¢n tr‹w tÒssoi épe¤ronew émf‹w ¶xoien, Íme›w d’ efisorÒƒ te yeo‹ pçsa¤ te y°ainai, aÈtår ™g∆n eÏdoimi parå xrus°˙ ’Afrod¤t˙. Que isso acontecesse, ó soberano arqueiro, Apolo! Se três vezes mais correntes inextricáveis me detivessem, e se vós, deuses, nos vissem e também todas as deusas, mesmo assim eu me deitaria ao lado da áurea Afrodite.
Hermes expressa algo também ressaltado na Ilíada e no início do Hino homérico V: ninguém, homens ou deuses, escapa ao poder de Afrodite. Nem ela mesma, frisa Burkert, pois “a grande sedutora”, na
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Odisséia, “finalmente cai vítima de sua própria armadilha [...]” (1998, p. 154). Não apenas na épica homérica Afrodite é khrus- (“áurea”), mas freqüentemente assim é retratada na literatura grega antiga. Na Teogonia, de Hesíodo, em vários momentos o epíteto lhe é atribuído, como neste (vv. 820-22): aÈtår ™pe‹ Tit∞naw ép’ oÈranoË ™j°lase ZeÊw ıplÒtaton t°ke pa›da Tufv°a Ga›a pel≈rh Tartãrou ™n filÒthti diå xrus∞n ’Afrod¤thn: E quando os Titãs do céu ele expulsara, Zeus, o filho mais jovem, Tifeu, gerou prodigiosa Gaia, de Tártaro, em amor graças à áurea Afrodite.
Os versos marcam o elo deusa–ouro e agregam em sua esfera de atuação — a da sexualidade — também a concepção,71 como ressaltam ~ os dizeres formulares en philóte#ti dià khrusê n Aphrodíte#n (“em amor graças à áurea Afrodite”, v. 822), empregados aqui e em outros versos que descrevem a genealogia dos olímpios (vv. 960-61, 1.005, 1.014). 72 Adiante, no verso 980, o aspecto áureo da deusa — e, subentende-se, oriental, luminoso, precioso, sedutor e luxuoso — é mais fortemente sublinhado por uma variante anexada ao epíteto khrus-, o prefixo intensificador polu-: Afrodite é polukhrúsou (“multiáurea”). Outra ênfase dada na Teogonia à luminosidade da deusa envolve a figura do mortal Fáeton, o filho de Éos, a Aurora, e de Céfalo, filho de Hermes (vv. 986-87). Desejando-o, Afrodite rapta-o. A deusa apaixona-se por um jovem cujo nome é Phaéto#n (Fa°tvn), “aquele que brilha”. 73 Por fim, chego ao Hino homérico V. Logo no verso 1, a deusa é chamada polukhrúsou (“multiáurea”) Afrodite. Esta é apenas uma das muitas ocorrências do epíteto exclusivo no Hino que retrata uma Afro~ dite “com ouro adornada” (khrusôi kosme#thei)sa, v. 65) e apaixonada que assim se prepara em Pafos para seduzir Anquises:
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p°plon m¢n går ßesto faeinÒteron purÚw aÈg∞w, e‰xe d’ ™pignamptåw ßlikaw kãlukãw te faeinãw, ˜rmoi d’ émf’ èpalª deirª perikall°ew ∑san kalo‹ xrÊseioi pampo¤kiloi: …w d¢ selÆnh stÆyesin émf’ èpalo›sin ™lãmpeto, yaËma fid°syai: Pois um manto vestia, mais brilhante que a luz do fogo, e portava broches retorcidos e brincos flóreos radiantes, e em torno do macio pescoço colares belíssimos havia — belos, áureos, todo-faiscantes; e, como a lua, sobre seus seios macios brilhavam — maravilha de se ver.
Essa descrição é tecida fio a fio, resultando numa figura ofuscantemente bela e luminosa que aguça, preenche e embaralha a visão — sentido essencial da paixão para os gregos; seu efeito é imediato e inevitável: Anquises sucumbe (v. 91).74 A citação de exemplos nos quais reluz a imagem de Afrodite poderia continuar por páginas. Contudo, os versos já reproduzidos mostram quão especiais e exclusivamente relevantes são o ouro e a luz nas representações da deidade. Por isso, mesmo cientes de que khrusostéphan’ (“de áurea guirlanda”, Fr. 33 V) é comum a outras deidades, deve-se atentar para sua ampla e singular dimensão quando aplicado a Afrodite e para a rede de relações que suscita quando relacionado àquela que é a única “áurea” e “multiáurea” divindade do panteão grego. No caso de Safo, esse quadro é tão mais importante se consideradas as vezes em que a poeta lésbia canta a Lídia e sua capital Sárdis — uma civilização assentada em um solo lendária e historicamente abundante em ouro. Retomando, para encerrar, o debate em torno da ambigüidade dos versos 7 a 9 do Fr. 1 V — “áurea” (khrúsion) é a “casa” (dómon) de Zeus ou a “carruagem” (árm’) de Afrodite? —, muito embora a segunda alternativa se configure como interessante e plausível, a opção pela primeira não seria menos apropriada. Assim, neste caso, a tradução não deve solucionar o impasse que pode mesmo ser intencional.75 Por isso, busquei manter acesa a ambigüidade, situando o adjetivo “áurea” entre 184
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os dois termos: “[...] de teu pai deixando a casa/ áurea a carruagem/ atrelando vieste. [...]”. Parece-me mais rica a consideração das duas possibilidades: a casa de Zeus é “auréa”, o que é uma associação tradicional na poesia grega antiga,76 e também o é a carruagem de Afrodite.77 De um modo ou de outro, o que fica é o diálogo de Safo com as representações poéticas anteriores da deusa, seja ele inovador, no caso da segunda alternativa, seja uma forma de expressar sua identificação com uma tradição poética ou épico-homérica que certamente não lhe era desconhecida.
Fr. 102 V: a silhueta de Afrodite, a bradínan (“esguia”) No Fr. 102 V (v. 2), Safo caracteriza Afrodite como bradínan (brad¤nan, “esguia”), forma eólica do ático rhadinê´ (=adinÆ). Segundo comentário de David Campbell, em Greek lyric poetry, “o adjetivo [...] imprime a marca de Safo no poema” (1998, p. 281), tendo ocorrido apenas uma vez em Homero, na Ilíada (canto XXIII, vv. 583-84), qualificando um chicote, objeto longo, delgado e, decerto, elástico. Depois disso, registra-se uma ocorrência na Teogonia, agora para caracterizar uma parte do corpo de Afrodite, seus “pés [...] delgados” (possìn [...] rhadinoi)sin, v. 195), que pisam a ilha de Chipre, saindo das águas. Em Safo, sobreviveram três ocorrências do adjetivo: uma, no Fr. 44A (b), bradínois (v. 7), cuja referência se perdeu; a segunda, no Fr. 115 V, órpaki bradíno#i (“árvore jovem e esguia”, v. 2) à qual o noivo celebrado na canção é comparado. Na terceira, que se dá no Fr. 102 V, Safo inova ao estender o adjetivo para desenhar a figura de Afrodite, que é bradínan (“esguia”). Conforme observação de Romè, “a figura humana e divina” ganha, “sobretudo na obra de Safo, novas qualidades que a revelam em toda a sua graça [...]” (1965, p. 231). Sobre o sentido de bradínos cabem algumas palavras. O dicionário LSJ oferece as traduções “longo e fino, esguio, esbelto, suave, delgado, longilíneo” e, por conseqüência, “frágil”. Nota-se, pois, 185
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o sentido acentuadamente físico do adjetivo, que, por indicar uma estrutura comprida e magra, dá margem a outros sentidos possíveis, mas não necessariamente verdadeiros, tais como o da fragilidade, da suavidade, da flexibilidade e da delicadeza.78 Em seu dicionário etimológico, Chantraine afirma que “a palavra é dita de uma correia estreita e comprida, de vegetais, depois do corpo humano, de Afrodite”. Assim, na ocorrência da Ilíada acima apontada, é apropriado dizer que um “chicote” é “delgado” ou, como querem alguns, “flexível”.79 Essa mesma tradução parece válida para a caracterizar os pés de Afrodite na Teogonia. E no caso da ocorrência sáfica? A fim de conservar a idéia primeira do sentido físico do adjetivo bradínos, optei pela tradução “esguia”, como fizeram tantos outros helenistas, entre os quais Martin L. West, em Greek lyric poetry (1994, p. 45) e David Campbell, em Greek lyric — I (1994, pp. 126-27). Outros preferiram leituras mais interpretativas, como “suave”, “macia” ou, ainda, “branda”.80 Evitei-as, mas sobretudo evitei esta última, que se confunde com um dos valores mais reiterados na lírica de Safo, a habrosúne# (èbrosÊnh, “delicadeza”, entre outras traduções), assunto que será tratado no capítulo seguinte.
Notas 1
West (2000, p. 134): “Explanações a partir do semítico, em particular a visão de que o nome é uma deformação do nome de ‘Aštart-Astarte, tem uma plausibilidade intrinsecamente maior, dados os elos orientais de Afrodite e os traços que ela partilha com a deusa cananita, e tais explanações têm sido mais bem aceitas. Eu argumentarei que o nome não pode ser derivado de ‘Aštart, ou interpretado com certeza, mas que é genuinamente semítico”. A base de West para essa conclusão é o dialeto cípriofenício.
2
Cf., por exemplo, Otto (1979, p. 91) e Burkert (1998, p. 153). Para alguns, as origens e o nome da deusa são indo-europeus: Boedeker (1974, p. 6), Lévêque e Séchan (1990, pp. 369-70 e 382, nota 32). Cf. os panoramas etimológicos de Boedeker (1974, pp. 6-17) e de Pirenne-Delforge (1994a, pp. 1-13).
3
Cf. edição comentada da Teogonia de West (1988a, pp. 212-13). Segundo ele, a narrativa da gênese é um “complexo mito etiológico” e “um episódio que tem uma
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certa qualidade de sonho na ausência de qualquer ponto de vista fixo ou escala temporal definida, e na mudança contínua, fluida, mas irreversível, que transforma uma cena feia em cena de beleza”. Pirenne-Delforge (1994a, pp. 312-13) observa: “Inserido na narrativa da luta pelo poder que opõe as duas primeiras gerações de deuses, esse episódio faz de Afrodite uma divindade antiga [...]. Seu nascimento afirma claramente o poder das forças do amor e da geração [...]”. Ver análise de Rudhardt (1986, pp. 14-17) da cena inteira da Teogonia (vv. 154-206). 4
Texto grego: ed. Fowler (1992).
5
Cf. ed. West (1988a, p. 223) da Teogonia, Farnell (1896, p. 636), Rose (1953, p. 122) e Boedeker (1974, p. 9). Nilsson (1949, p. 270) observa: “A narrativa de Hesíodo sobre a geração de Afrodite [...] deve-se, provavelmente, ao fato de em seu nome ser reconhecida a palavra [aphrós] [...]”. Hansen (2000, p. 4) concorda: “A razão pela qual o mito traz Afrodite e a espuma a uma relação significativa é, sem dúvida, porque na etimologia popular entendia-se que seu nome contém a palavra aphrós”.
6
Sua autoria é contestada. Cf. edição da Teogonia de West (1988a, p. 223).
7
Cf. discussão dos argumentos nas pp. 6-7. A partir da p. 7, ele expõe sua solução para o “dilema” entre uma visão e outra: no “mito de Afrodite, o sêmen (aphros) se transforma na espuma do mar (aphrós)” (p. 17).
8
Ver Hansen (2000, pp. 5-6), para outras duas possibilidades pouco aceitas, uma das quais ele afirma ser “certamente incorreta”, a de que “o próprio membro é transformado em Afrodite”. Sobre a terceira possibilidade, à qual sou favorável, ele diz: “Não é satisfatório falar exclusivamente da espuma do mar ou do sêmen, enquanto, ao mesmo tempo, parece apenas sutilmente mais satisfatório falar de ambas as substâncias como estando num estado de mistura [...]” (p. 7). Vernant (1992b, p. 156) pensa o mesmo.
9
Cf. Boedeker (1974, p. 31): “[...] não há paralelo para a notável história de que Afrodite nasceu dos testículos cobertos de [espuma] de Urano”. Ver também pp. 23-24.
10
Na Tegonia, após nascer, a deusa passa por “Citera divina” (KuyÆroisi zay°oisin, v. 192) e, depois, vai rumo à “Chipre de mar revolto” (per¤rruton [...] KÊpron, v. 193), onde sai, pela primeira vez, das águas.
11
Burkert (1998, p. 154). Cf. também Garrison (2000, p. 84).
12
Cf. West (1997, pp. 290-92), além de sua edição da Teogonia (1988a, pp. 1-39 e 211-13).
13
Sale (1961, pp. 514-15) alia outros elementos a esse dado mais frágil para defender que o mito é cíprio e que Hesíodo o tomou de empréstimo.
14
O epíteto, diz Boedeker (1974, p. 20), é oito vezes atribuído a Afrodite na Ilíada, uma na Odisséia e quatro nos Hinos homéricos. Ela nota: “Apesar de, na épica grega, ser usado mais para Afrodite, é também atribuído a outras deusas, como Atena (Il.,
187
GIULIANA RAGUSA
II. 548, IV. 128), e uma vez para Ártemis (Od., XX. 61), Áte (Od., XIX. 91), Helena (Od., IV. 227) e Perséfone (Od., XI. 227). Ele é também aplicado à(s) Musa(s) (no sing., Od., I. 10 etc.; no pl., Teog., v. 76 etc.). Muitas dessas figuras são, de fato, ‘filhas de Zeus’ em termos da mitologia clássica grega e, em alguns casos, estórias populares de suas gêneses ilustram suas relações com ele (por exemplo, o nascimento de Atena na Teog., vv. 886-90). Claramente, todavia, algumas dessas ‘filhas’ se originaram independentemente de Zeus” (p. 30). Cf. Garrison (2000, p. 80). 15
Cf. Farnell (1896, pp. 621-22), Friedrich (1978, pp. 81-82), Burkert (1992, p. 98; 1998, pp. 152-54).
16
Farnell (1896, pp. 621-22) discute as genealogias hesiódica e épico-homérica e conclui que, “em algum momento, antes do período homérico, a deusa se tinha tornado parcialmente helenizada, mas que os elementos estrangeiros nos cultos e lendas locais eram marcados e fortemente sentidos, e que no tempo de Homero ela não tinha relações muito claramente definidas com quaisquer outras divindades gregas”.
17
Cf. Buxton (1996, p. 36), Thomas (1992) e Burkert (1992, p. 98; 1998, p. 154).
18
Texto grego: edição de Kovacs (1999). Cf. Aristóteles, Retórica (1400b), que cita esses versos destacando a etimologia de Aphrodíte#.
19
Cf. Pirenne-Delforge (1994a, p. 8).
20
Ver LSJ. Cf. Page (1987, pp. 4-5; 1a ed.: 1955), Bolling (1958, p. 277), Longo (19631964, p. 346), Romè (1965, p. 236), Campbell (1998, p. 264; 1a ed.: 1967), Gerber (1970, p. 162) e Jouanna (1999, p. 101).
21
Título em grego: Perì suntéseo#s onomáto# n (Per‹ sunt°sevw Ùnomãtvn ), 173-179. Cf. ed. Usener e Radermacher (1965, vol. VI, pp. 114-16).
22
Título em grego: Enkheirídion perì métro#n (Egxeir¤dion per‹ m°trvn), livro XVI, 1. Cf. ed. Consbruch (1971, pp. 43-44). Ver comentário de Righini (1950, pp. 65-66), que nota, sobre as citações de versos de Safo e também de Alceu: “Heféstion, sem dúvida, segue uma edição alexandrina dos dois poetas [...]”; além disso, ele “tende, na maioria dos casos, a preceder as citações do nome do poeta [...]”.
23
Sobre a estrofe e o metro, cf. West (1996, pp. 29-34) e Page (1987, p. 318).
24
Cf. ed. Consbruch (1971, pp. 249-51).
25
Cf. Nicosia (1976, p. 207): “Todos os códices, sejam de Dioniso ou de Heféstion, y ron’ [poikilóth th atestam, concordes, poikilÒy thron’]”.
26
Lobel (1951, pp. 1-2). Cf., sobre a fonte, Pieraccioni (1952, pp. 130-37) e Jouanna (1999, pp. 101-2).
27
Resume Jouanna (1999, p. 101, grifo meu): “Não é tanto a escolha entre as duas variantes [poikilóthron’] e [poikilóphron’] que divide os eruditos, mas o sentido de [poikilóthron’]”.
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28
Ver o histórico resumido por Putnam (1960, pp. 282-83, nota 3). Cf. Jouanna (1999, pp. 101-16).
29
Cf. Lasserre (1989, pp. 205-6). O nome do helenista alemão é G. Wustmann.
30
Cf. Stanley (1976, pp. 309-10, nota 26) e Jouanna (1999, p. 116).
31
Cf. Lawler (1948, pp. 80-81), Bolling (1958, p. 277) e Putnam (1960, pp. 79-83).
32
Lawler pensa em “chrysothronos, euthronos, poikilothronos, argyothronos e kallithronos” (p. 81, grifo meu). Bolling (op. cit., p. 282) concorda com Lawler enfaticamente. Já Privitera (1974, pp. 31-32) discorda, baseado nesses epítetos homéricos — pindáricos e esquilianos — em -thrónos. Para ele, pensar que a terminação desses epítetos venha de thróna “é uma hipótese arbitrária e ainda não provada”. Cf., ainda, críticas de Stanley (1976, pp. 309-10, nota 26) e Jouanna (1999, p. 114).
33
Cf., entre outros, Bolling (1958, p. 277), Svenbro (1975, pp. 37-49; 1984, pp. 57-79), Fowler (1987, p. 38), Lasserre (1989, pp. 202-10), Nagy (1996b, pp. 87-103), para quem a passagem da Ilíada (canto XXIV, vv. 440-41) é decisiva para a argumentação favorável a -thróna.
34
Em grego, Pharmakeutríai (Farmakeutr¤ai ). Cf. edição de Legrand (1946).
35
Cf. edição de Wendel (1967). Ver Putnam (1960, p. 80) e Jouanna (1999, pp. 1056) e o verbete thróna no dicionário de Chantraine.
36
Cf. Sissa e Detienne (1991, pp. 45-48).
37
Cf. Winkler (1990, pp. 172-74) e Petropoulos (1993, p. 55), entre outros. Para o caráter encantatório da forma do Fr. 1 V, cf. Barilier (1972, p. 26) e C. Segal (1996, pp. 58-75).
38
Jouanna refere-se ao artigo de Petropoulos (1993, pp. 43-56), que defende a idéia de que o epíteto vem de thróna e significa, no Fr. 1 V, “flores mágicas”.
39
Cf. Lasserre (1989, pp. 205-7).
40
Eis alguns tradutores que optam por thrónos (“trono”): Edmonds (1934, Fr. 1), Reinach e Puech (1937, Fr. 1), Kirkwood (1974, p. 109), Campbell (1994, pp. 52-53; 1a ed.: 1982), West (1994, p. 36), Torrano (1984, p. 93) e Fontes (2003, p. 375).
41
Cf. Page (1987, p. 8), Romè (1965, p. 215), Gerber (1970, p. 163), Campbell (1998, p. 264). Para Simônides, que associa o epíteto ao nome “Afrodite”, cf. PMG 541, e para o fragmento anônimo, PMG 949. Para Teógnis, que confere o epíteto à “Ciprogênia, a Citeréia”, cf. Fr. 1.386 W.
42
Cf. Kirk, 1995a, p. 320.
43
Cf. idem, op. cit., p. 321.
44
Ver também Calame (1999, pp. 43-44).
45
Cf., por exemplo, Wechsler (1961, pp. 27-37).
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46
A música é típica de cenários eróticos da poesia grega antiga. Cf. Calame (1999, pp. 37-38).
47
Walcot (1991, p. 145). Cf., a respeito das mentiras e da sedução amorosa, Calame (1999, pp. 46-48).
48
Cf. Calame (1999, pp. 43-48).
49
Cf. Snyder (1981, p. 194) e Thomas (1999, pp. 4-5).
50
Cf. Winkler (1990, pp. 166-67), Jouanna (1999, p. 102) e Thomas (1999, p. 4). No entanto, nenhum desses estudiosos aceita essa forma que é normalmente recusada, como já foi dito anteriormente.
51
Cf. Gerber (1970, p. 163).
52
Cf. Detienne e Vernant (1974, p. 51).
53
Cf. Stanley (1976, p. 309, nota 26).
54
Cf. Detienne (1973, pp. 106-7) e Vernant (2000, p. 25).
55
Há outras visões a esse respeito; cf. Vernant (2002, pp. 417-37).
56
Cf. Nilsson (1949, p. 148; 1 a ed.: 1925), Otto (1979, pp. 125-66; 1 a ed.: 1929), Burkert (1998, p. 183).
57
Cf. Wright (1917, pp. 4-6), Sissa e Detienne (1991, pp. 41-45 e 91-94), Vernant (1992a, pp. 7-39).
58
Cf. Friedrich (op. cit., p. 60) e Pirenne-Delforge (1994a, p. 463).
59
Cf. Kirk (1995b, p. 96).
60
Cf. Sissa e Detienne (1991, pp. 53-54) e Burkert (1998, p. 183).
61
Cf. Sissa e Detienne (1991, pp. 48-49).
62
Burkert (1998, p. 183). Cf. a Afrodite disfarçada de velha senhora na Ilíada (canto III, vv. 384-97) e de “virgem pura” (v. 82) no Hino homérico V. Cf. no Hino sua epifania para Anquises (vv. 180-90).
63
Cf. Nilsson (1949, p. 144): “Uma vez que a estatura alta era uma marca da beleza aristocrática que Homero raramente deixa de atribuir às suas personagens, especialmente às mulheres, essa marca é dada aos deuses num grau ainda maior”.
64
Cf. Sinos (1993, pp. 79-80).
65
Texto grego: Barrett (1992).
66
Cf. Fowler (1987, p. 47).
67
Cf. Privitera (1974, p. 59, nota 35).
68
Igualmente, Campbell (1998, p. 265) e Thomas (1999, p. 6). Cf. as traduções de Campbell (1994, pp. 52-53), de Torrano (1984, p. 93) e de Fontes (2003, p. 375), por exemplo.
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Por exemplo, as traduções para o fragmento de Edmonds (1934, Fr. 1), Jenkyns (1982, p. 8), Svenbro (1984, p. 59), Barnard (1986, poema 38), West (1994, p. 36), Quasimodo (1996, p. 7), Snyder (1997, pp. 163-64). Cf. ainda os estudos de Cameron (1939, p. 5), Castle (1958, p. 70), Page (1987, pp. 4 e 7; 1a ed.: 1955), Longo (19631964, pp. 355-56), Svenbro (1975, pp. 40-41).
70
Cf. comentário de West (1982, p. 288) ao verso 521 do poema hesiódico Os trabalhos e os dias, que tem o epíteto.
71
Cf. a respeito Sale (1961, p. 512) e Pirenne-Delforge (1994a, pp. 419-28). Sale, estudando Eros na Teogonia — deus primordial, vv. 120-22, e companheiro de Afrodite, vv. 201-2 —, destaca a procriação como outro aspecto do amor, além do desejo e do sexo, o que seria “uma idéia nova”.
72
Cf. West (1988a, pp. 383-84) para os problemas de autenticidade dos versos indicados.
73
Cf. tradução de West (1988b, p. 73), na qual se lê esta nota ao v. 986: “Phaëthon: aparentemente uma pessoa diferente do Fáeton que era filho do Sol e que dirigiu a carruagem do pai um dia com conseqüências desastrosas”. Nagy (1996a, pp. 35-57), analisando os versos hesiódicos sobre Fáeton, aproxima Afrodite de Éos, pois ambas são personagens de narrativas de abdução de mortais. Ao fazê-lo, ele ecoa várias vozes — Boedeker (1974), Friedrich (1978) e Burkert (1998), entre outros — que associam ambas as deusas às religiões orientais, pensando uma como desdobramento da outra. Tal proximidade constituiria mais um elemento do caráter oriental de Afrodite.
74
Cf., sobre a relação de anterioridade entre o olhar e a paixão, Goff (1990, p. 20) e Calame (1999, p. 21).
75
Cf. comentário favorável a essa visão, de Rissman (1983, p. 3).
76
Cf. West (1997, p. 112).
77
Sigo Gerber (1970, p. 164), por exemplo.
78
Cf. Romè (1965, p. 231), muito favorável à idéia da flexibilidade e, conseqüentemente, agilidade.
79
Cf., por exemplo, tradução de Campos (2002).
80
Cf. Barnard (1986, poema 12) e Snyder (1997, p. 206) para as duas primeiras. Para a terceira, cf. Fontes (2003, p. 477).
191
CENÁRIOS DE AFRODITE
6 CENÁRIOS
DE
AFRODITE:
A N AT U R E Z A ,
O SAGRADO E O EROTISMO
Os cenários elaborados com imagens da natureza, em que não raro encontramos o sagrado e/ou o erotismo, constituem um aspecto importante da lírica de Safo. Eles se encontram nos fragmentos 2 V, 96 V e talvez no 73a V, que passo a estudar.
O cenário do Fr. 2 V Dois problemas textuais Há várias dificuldades textuais no Fr. 2 V. Tratá-las exaustivamente não é o intuito deste trabalho. Aqui devo comentar apenas dois problemas. O primeiro diz respeito à palavra katairion (katairion, v. 8), cercada por uma velha polêmica, cujas origens remontam à controvertida leitura do verso em sua fonte de transmissão indireta, o já outrora referido tratado de Hermógenes, que era, antes da publicação do óstraco em 1937, a única fonte dos versos 8 e 9 do Fr. 2 V. No tratado, lê-se katarrei ) (katarre›),1 “cai”, forma verbal do indicativo presente ativo de kataréo# (katar°v). Todavia, essa forma verbal é considerada “uma óbvia trivialização” do dialeto da poeta, o lésbio-eólico, que não a admitiria, mas sim uma outra, karréei (karr°ei).2 Tal ajuste, contudo, cria um novo problema, pois a forma verbal correta é “impossível para 193
GIULIANA RAGUSA
o metro” do oitavo verso do fragmento, conforme frisa Salvatore Nicosia, em Tradizione testuale diretta e indiretta dei poeti di Lesbo (1976, p. 92). Diante desse quadro que o Óstraco florentino não esclareceu, por dar margem a duas leituras diversas, katagrion (katagrion) ou katairion, os helenistas puseram-se a buscar uma alternativa, adequada tanto ao dialeto quanto ao metro da canção sáfica. E, uma vez que não se pode “recuperar a leitura original com certeza”,3 várias hipóteses foram lançadas, tendo-se destacado “a conjectura kat°rrei (katérrei)”, afirma Nicosia (1976, pp. 92-93), que ressalta uma segunda, muito aceita: katágrei (katãgrei). Quanto a katérrei, terceira pessoa do singular do indicativo presente ativo de katérro# (kat°rrv), foram muitos os seus adeptos desde que J. Stizler a defendeu em 1927, conforme informa Nicosia (p. 92).4 Denys Page lembra, porém, em Sappho and Alcaeus, que não se sabe se katérro# de fato existiu e afirma que katérrei “certamente não está escrita” no Fr. 2 V (1987, p. 38; 1a ed.: 1955).5 Sobre esse verbo, observa Nicosia: sua “única atestação — incerta — [...] está em Erina” (p. 92, nota 39), num texto em que, argumentam alguns, teria o sentido de “derramar, escorrer”.6 A outra proposta para o final do verso 8, katágrei, “arremata”, forma verbal do indicativo presente ativo de katagréo# (katagr°v, “agarrar, capturar, arrebatar”), foi formulada após a publicação, por Medea Norsa, de “Versi di Saffo in un ostrakon del sec. II a.C.” (1937, pp. 8-15), que trouxe à luz os versos do Fr. 2 V inscritos num óstraco, pedaço de cerâmica, que está conservado em Florença. Sua data é discutida: mais comumente, aceita-se o século III a.C., mas alguns preferem o século II a.C., como Norsa. Optar pela primeira significa fazer do óstraco a única fonte de transmissão de Safo conhecida, anterior à época das edições alexandrinas; escolher a segunda implica inseri-la no período ptolomaico, marcado pelo “florescimento da atividade gramatical dos alexandrinos” e dos exercícios escolares de reprodução de textos famosos pelos alunos copistas, lembra Giuliana Lanata, em “L’ostracon fiorentino con versi di Saffo” (1960, pp. 64-90), para quem esses exer194
CENÁRIOS DE AFRODITE
cícios explicariam “muitos dos erros” de grafia do óstraco, que tornam duvidosa a leitura da palavra final do verso 8,7 katagrion ou katairion.8 Katagrion é geralmente aceita pelos helenistas favoráveis a katágrei, como Etienne Barilier, em “La figure d’Aphrodite dans quelques fragments de Sappho” (1972, p. 43).9 Já entre os seus oponentes estão Lanata (1960) e Page (1987; 1a ed.: 1955). Este, apesar de considerar katagrion a “mais provável” leitura do óstraco para o verso 8 do Fr. 2 V, refuta katágrei (“agarrar”) devido às dificuldades de sentido dessa forma no poema, pois ela “requereria a expressão ou alguma indicação do objeto agarrado, e não há nada [no texto] que sirva a esse propósito” (p. 38). Lanata, por sua vez, recusa katágrei por entender que ocorre katairion no óstraco (p. 69). Há ainda uma terceira conjectura para o final do verso 8, que é uma nova proposta de correção ao katarrei) de Hermógenes: kataírei (kata¤rei), “desce”, forma verbal do indicativo presente ativo de kataíro# (kata¤rv), que se tornou a forma mais recorrente nas traduções do fragmento ao qual o seu sentido intransitivo parece mais adequado.10 Page afirma: “É duvidoso que se encontre algo mais apropriado ao texto e ao seu sentido do que [kataírei]” (p. 38). David A. Campbell observa, em Greek lyric poetry, que esse verbo “aproxima-se mais da leitura do pedaço de cerâmica [o óstraco] [...]” (1998, p. 268; 1a ed.: 1967). Considerando que a edição-base deste trabalho, a Voigt, opta por katairion, e por me sentir afinada com as posturas de Page, Campbell e tantos outros, traduzi por “desce” a forma verbal do verso 8, entendendo-a como kataírei. Passemos ao segundo problema textual do Fr. 2 V, relativo ao verso 1. Aceita a ocorrência nele de “Creta”, algo justificado no quarto capítulo, enfrenta-se outra dificuldade: que preposição antecede tal nome, es (™w, “para”) ou ek (™k, “de”)? Não é possível uma resposta definitiva para essa questão, mas a segunda alternativa bem se ajustaria à totalidade do fragmento,11 uma vez que ele se aproxima, segundo uma visão consensual, de um hino clético, no qual é padrão o deslocamento do deus invocado.12 São poucas as vozes discordantes da leitura ek (“de”). Lanata, por exemplo, tendo examinado o óstraco, declara que “parece muito im195
GIULIANA RAGUSA
provável que se possa restituir-lhe” a expressão ek Krê´tas, “de Creta” (1960, p. 79). Isso valeria, pensa ela, para a reconstrução habitual do verso 1 — deu)rú m’ ek Krê´tas ep[ì tónd]e nau)on (“Para cá, até mim, de Creta, para este templo”).13 Outros estudiosos contrários à leitura “de Creta” são aqueles que discordam da ocorrência do nome da ilha no verso 1, preferindo nele ver a palavra “Cretenses” (Kr∞te!, Krê)tes), conforme propôs Norsa (1937, pp. 8-11). Esse é o caso de François Lasserre, que, em Sappho, opta por “as Cretenses” (ü KrÆtesi, ãi Krê´tessi) (1989, pp. 182-83).14 A polêmica, como se vê pelas datas dos estudos de Norsa, Lanata e Lasserre, é antiga. Hoje, tem prevalecido a leitura favorável a ek Krê´tas (“de Creta”) no verso 1 do Fr. 2 V. E tal leitura, aqui adotada, parece mais apropriada por tudo o que já foi apontado e também pelo próprio consenso de que o fragmento é um hino clético. Um hino clético Começo reproduzindo o Fr. 2 V e sua tradução: ..anoyen katiou[!|~deurummekrhte.!ip.[.]r. [ ]|.~ naËon êgnon ˆpp.[ai ]| xãrien m¢n êl!o!
(...) ... [...
1a 1
†Para cá, até mim, de Creta [.][ ]|† templo sagrado on[de
]| e agradável bosque
mal¤[an],| b. «moi d’ ¶i yumiãmenoi [li]|b. an≈tv:
de macieir[as], e altares nee são esfume-
™n d’ Îdvr cËxro$n¸| kelãdei di’ Î!dvn
E nele água fri$a¸ murmura por entre ramos
mal¤nvn,| brÒdoi!i d¢ pa›! Ù x«ro!
de macieiras, e pelas rosas todo o lugar
™!k¤|a!t’, afiyu!!om°nvn d¢ fÊllvn|
está sombreado, e das trêmulas folhas
ados com [in]cens.
torpor divino †desce.
k«ma ~katairion: ™n d¢ le¤mvn| fip. p.Òboto! t°yale ~tv . t...(.)rin|noi!~ ênye!in, afi êhtai m°lli|xa pn[°o]i!in [ [
E nele o prado pasto de cavalos viceja †
† com flores, os ventos
docemente so[pr]am [ [
]
]
¶nya dØ !Á .~!u.an~| ™loi!a KÊpri
Aqui tu †
†| tomando, ó Cípris,
xru!¤ai!in ™n ku|l¤ke!!in êbrv!
nos áureos cálices, delicadamente,
mme¤|xmenon yal¤ai!i| n°ktar
néctar, miurado às festividades, vinho-vertendo ...
ofinoxÒei!a
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Ressaltei que esse fragmento consiste num kle#tikòs húmnos (klhtikÚw Ïmnow, “hino clético”), ou seja, numa prece que invoca um deus para instá-lo a sair do local em que se encontra e vir à presença de quem chama. Essa é a impressão que deixa a leitura do fragmento, embora sua forma não contemple alguns motivos que lhe são convencionais, tais como estes que Martin L. West aponta, em The east face of Helicon: Numa sociedade politeísta, alguém que dirija uma prece a uma deidade deve começar por identificar o destinatário. Em grego, e também em acádio, isso é mais comumente feito pelo uso do vocativo — o nome do deus freqüentemente embelezado com uma série de títulos ou epítetos. Às vezes, esse nome é acompanhado do apelo “escuta-me” [...]. Às vezes, o deus é solicitado a voltar seus olhos assim como os seus ouvidos ao suplicante ou à situação que provocou o apelo [...]. Às vezes, o deus é realmente convidado a vir até o suplicante, a ficar ao seu lado e ajudá-lo de perto [...] (1997, pp. 269-71).
Sobre a escolha dos títulos para acompanhar o nome da deidade invocada, West diz ser “provável que o suplicante se concentre naqueles particularmente relevantes às suas próprias preocupações imediatas” (p. 272). Ao apelo e aos títulos, ele completa, pode somar-se outro artifício visando à eficácia da prece: “Para conquistar a simpatia do deus e estimular seu senso de obrigação, o suplicante pode lembrálo de sacrifícios e ofertas que lhe tenha feito no passado” (p. 273). Por fim, o helenista menciona exemplos de orações em que “a deidade é lembrada de suas próprias promessas” e uma forma de apelo que nomeia “cheque-em-branco”, feita “em benefício do suplicante ou de alguém a quem fala ou de terceiros” (p. 274).15 Mary Depew, em “Reading Greek prayers”, trata também das características das preces gregas, mas a partir de evidências arqueológicas e iconográficas encontradas em santuários. Diz a pesquisadora: A função e a forma característica da antiga prece grega deve, certamente, ter dependido de elementos inseparáveis da ocasião de sua vocalização: o lugar onde era proferida, freqüentemente um t°menow [témenos, “re-
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cinto sagrado”] ou um espaço separado de atividades seculares e, portanto, particularmente apropriado ao discurso que era, ele mesmo, separado do discurso cotidiano; ação de acompanhamento musical, que pode ter incluído uma procissão solene, um pequeno ou um grande sacrifício, música, ou a dedicação de uma oferenda votiva. A despeito da situação do ato de “rezar” no cenário cultural, lingüístico e histórico muito diverso do nosso, a maior parte dos estudos da oração grega ignora ou minimiza esse contexto mais amplo que deveria prover um ponto de partida, e se apóia, em vez disso, em considerações de forma e estrutura. Isso pode ser porque as preces que os acadêmicos tipicamente discutem são aquelas que ocorrem dentro de textos literários que sobreviveram até o presente. A maior parte dessas orações se conforma a padrões estilizados e convencionalizados (1997, pp. 229-30).
Acostumados à formatação, às vezes algo rígida, de que fala Depew ao final da citação, os helenistas, diante do Fr. 2 V e de outras preces literárias de Safo, como o Fr. 1 V, sentem considerável desconforto. É que, não obstante o fragmento 2 V pareça uma prece, estão ausentes de sua estrutura formal os motivos convencionais aqui arrolados, notadamente os epítetos, o nome da deidade invocada e um verbo apropriado à prece, como eúkhomai (eÎxomai, “rezo, vanglorio-me”)16 ou líssomai (l¤ssomai, “suplico, imploro”), que deveria constar da primeira estrofe.17 Nele não há, ainda, os verbos no imperativo típicos da oração, cujo objetivo é chamar a atenção do deus para quem lhe pede algo, conforme frisa Depew (p. 235). Sendo, todavia, o fragmento um hino clético, pensa-se que, em verso de uma estrofe anterior perdida, Afrodite tenha sido referida na canção.18 Em outras palavras, Safo deve ter seguido o padrão; ela não poderia ter nomeado a divindade a quem se dirige a voz poética de seu texto apenas no verso 13 da última estrofe conservada para nós. Na tentativa infrutífera de afirmar essa suposição, muita tinta temse consumido das canetas dos helenistas. Contudo, se a convenção, em certos casos, serve de auxílio para a reconstrução mínima de sentido de um fragmento, em outros ela pode servir de amarra ou simplesmente ser de pouca valia. Isso é o que se parece passar com o caso em questão.
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Deixo-o, pois, de lado para concentrar-me no ponto que interessa frisar: Afrodite é chamada no verso 13 pelo nome “Cípris”, na típica forma do vocativo singular (Kúpri); é a ela que a prece-convite é dirigida. Mais: é dessa deusa que o espaço descrito ao longo dos versos 1 a 12 está impregnado e, similarmente, é de suas imagens literárias e mítico-religiosas que se desprendem os elementos com os quais tal descrição é urdida pela poeta de Lesbos. Olhar o Fr. 2 V como um hino clético a Afrodite é um ponto de partida, mas não sem problemas, entre os quais estes três: quem convida a deusa, para onde e para quê. Quanto ao primeiro, pouco há a dizer além de algo relativo ao verso 1. É consenso que se lê, no agregado de letras entre cruzes, o pronome oblíquo de primeira pessoa m’, acusativo singular19 ou dativo singular de égo# (“eu”), forma esta mais aceita, o que explica minha opção pela tradução habitual “até mim”,20 sintonizada com o sentido de deslocamento implícito no verso, ou melhor, na sua reconstrução mais adotada. Com tal pronome, estaria estabelecida uma interação “eu–tu” típica da lírica21 no fragmento em que uma voz pede a Afrodite que venha até o local que lhe descreve cuidadosa e ricamente ao longo de três estrofes que totalizam a maior parte do texto. Mas que local é esse e com que finalidade é Afrodite chamada? É o que passo a explorar. Um cenário perfeito — irrecusável convite a Afrodite Canta a voz do Fr. 2 V nos versos 1 e 2: ~deurummekrhte.!ip. [.]r. [ ]|.~ naËon êgnon [...] †Para cá, até mim, de Creta [.] [ ]|† templo
sagrado [...].
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O itálico frisa que “Cípris” (v. 13) é chamada a um local no qual parece estar a voz do poema, e no qual há um “templo” (nau)on22). Eis o primeiro de uma série de elementos do espaço, cuja característica inerente se evidencia no epíteto ágnon (v. 2): ele é “sagrado”. Refletindo sobre tal epíteto em “L’uso degli epiteti in Saffo e Alceo con riferimento alla tradizione epico-rapsodica”, Alessandra Romè nota que ele é “próprio da esfera sacra”, sendo seu uso “raro na tradição épico-rapsódica, na qual é exclusivo da divindade feminina, com o significado de ‘puro, casto, venerando’, ou daquilo que lhe era relacionado, com o valor de ‘sacro’” (1965, pp. 232-33).23 Portanto, ao atribuir ágnon ao templo ao qual é chamada uma deusa, Safo emprega o epíteto de maneira habitual. Continuando a leitura, nota-se que ágnon não qualifica apenas o “templo”, mas estende-se a outros componentes do local geograficamente indefinido que o abriga, e que vai sendo construído nos versos 2 a 11 de tal modo que vemos abrir-se aos poucos, diante de nossos olhos, um espaço melodiosa24 e sensualmente arquitetado, cujos elementos, tirados mais da natureza do que da engenharia humana, são perpassados pelo sagrado. Adentrar esse espaço é experimentá-lo através dos cinco sentidos: é vê-lo, respirá-lo, ouvi-lo, tocá-lo e até mesmo degustá-lo. Faço-o, pois, sem mais demora. Nos versos 2 e 3, fica claro que a voz vai descrever não o “templo”, mas os componentes do espaço onde ele se situa. E o primeiro é um [...] xãrien m¢n êl!o! mal¤[an], [...] [...] agradável bosque de macieir[as], [...]
Na caracterização do “bosque” (álsos, v. 2), tanto sua especificação quanto seu adjetivo remetem ao sagrado, este porque compartilha da noção de kháris (xãriw), aquela porque elege um elemento da esfera de Afrodite.
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O amplo leque semântico da noção grega de kháris vai de “favor dos deuses” a “graça física, charme, regozijo, prazer”, e o adjetivo khárieis (xar¤eiw) costuma ser entendido como “gracioso, agradável, amável”. Ambos partilham, de um lado, do sagrado e, de outro, se inserem nas esferas do prazer e da beleza física — a esfera de Afrodite.25 Portanto, não é por acaso que, segundo Hesíodo, em Os trabalhos e os dias, Zeus ordena a Afrodite que derrame sobre a cabeça de Pandora, a primeira mulher criada, não apenas o “desejo” e as “ansiedades” (v. 66), mas o “charme” (khárin, v. 65) — no sentido físico — que pode suscitálos. Vê-se que Afrodite rege a kháris bem como o desejo e o prazer. Somese a essa passagem um outro dado da tradição poética 26 e de alguns cultos27 da deusa: a presença das Cárites (Xãritew, “Graças”) em seu séquito, as quais formam um conjunto de deidades que Safo chama, no Fr. 103 V, ágnai (êgnai, “sagradas”, v. 8) e que raramente são individualizadas como na Teogonia, de Hesíodo (vv. 907-11), em que não são diretamente associadas a Afrodite, mas à beleza e à paixão. Volto a khárien (“agradável”), epíteto de álsos (“bosque”) no Fr. 2 V (v. 2). Segundo Romè, ao atribuí-lo a um substantivo comum que designa uma realidade do mundo vegetal, Safo promove a “inovação mais forte” dos seus usos desde Homero, pois neste ele era associado somente a partes do corpo humano, e depois, em Hesíodo, se torna exclusivo da figura divina como um todo (1965, pp. 231-32).28 Essa inovação confere a álsos uma dimensão sagrada que lhe é inerente, uma vez que o bosque é elemento da natureza29 e podia servir de local de culto às deidades.30 A própria Afrodite, juntamente a Ariadne, teria sido cultuada num álsos de Âmatos, em Chipre, dizia uma passagem de Teseu (20, 4-7), de Plutarco, citada no quarto capítulo. Assim, o aspecto sagrado do álsos, sendo-lhe implícito, acaba por ser realçado pelo epíteto khárien, pela sua inserção no mesmo espaço de um “templo” e, ainda, pela sua composição de malían31 (“macieiras”, v. 3), pois a maçã é a fruta predileta de Afrodite tanto na poesia quanto nos cultos, sublinha Vinciane Pirenne-Delforge, em L’Aphrodite grecque (1994a, pp. 410-12). Exemplo disso, no âmbito cultual, encontra-se no 201
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santuário de Afrodite em Sicione, no golfo de Corinto, onde, diz Pausânias (livro II, X, 4-6), havia uma “estátua em posição sentada” (êgalma kayÆmenon) da deusa, feita por um artista da região, Cânaco (c. 500 a.C.), que tinha em uma das mãos a “papoula” (mÆkvna, mê´ko#na) e, ~ na outra, a “maçã” (m∞lon, mêlon).32 Outras associações cultuais aparecem nesta frase de Lewis P. Farnell, em The cults of the Greek states — II: “A maçã era sagrada para Afrodite em Chipre, e em moedas do período romano de Magnésia; no Meandro, encontramos a figura de Aphrodíte# Me#leía [’Afrod¤th Mhle¤a, ‘Afrodite da Maçã’]” (1896, pp. 642-43).33 As imagens do nau)on (“templo”) e do álsos (“bosque”) do Fr. 2 V são, sobretudo, visuais, mas a menção às “macieiras” (v. 3) suscita outros dois sentidos: o paladar e o olfato. É este que volta a ser estimulado nos versos 3 e 4: [...] b«moi d’ ¶i yumiãmenoi [li]|ban≈tv : [...] e altares nee são esfume< o> >. ados com [in]|cens< ~
Tal qual o naion e o álsos, os bômoi34 (“altares”) — novos componentes do cenário — guardam em si o sagrado, constituindo, na religião grega, a parte essencial dos santuários35 na qual são realizados os variados sacrifícios aos deuses, como a queima de incenso referida nos versos acima, um tipo de ritual não-cruento ou “puro”, cuja influência oriental é afirmada pelos estudiosos.36 Com relação ao altar, Walter Burkert, em Greek religion, recorda que ele podia ser feito de pedras, mas também construído e decorado (1998, p. 87). O fragmento nada diz a respeito. Merece destaque a ocorrência do nome libanô´to#i (“incenso”, dativo singular de libano#tós ), v. 4, que irá repetir-se no Fr. 44 V (líbanos,37 l¤banow, v. 30) de Safo. Trata-se da mais antiga referência que se tem a essa substância aromática, composta de “pequenos glóbulos esbran-
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quiçados de resina aromática endurecida”, define Page (1987, p. 36), e que, declara Marcel Detienne, em Les jardins d’Adonis, é “quase que exclusivamente” destinada “seja à fabricação de ungüentos e de perfumes, seja às práticas sacrificiais impostas pelo culto a divindades poderosas” (1972, p. 72). Todavia, não apenas a menção ao “incenso” é uma novidade da lírica sáfica; também o é a queima desse arômata como rito sacrificial, lembra Page (p. 36). Essa é uma prática não referida em Homero, mas depois incorporada pelos gregos, decerto na época arcaica, momento da colonização e de intensas trocas comerciais e culturais entre estes e os povos orientais, quando o incenso teria sido introduzido na Grécia. Sobre esse tipo de sacrifício, West observa que o próprio “incensário grego foi desenvolvido a partir de modelos mesopotâmicos, e os mais antigos exemplares são de manufatura fenícia” (1997, p. 39). Notese, ainda, que a palavra grega para “incenso”, líbanos, é árabe, assim como o produto que foi, “presumivelmente, um artigo do comércio fenício, sendo Hadramaut, ao sul da Arábia, a última fonte desse elemento no tempo de Safo”.38 No Inquérito sobre as plantas, de Teofrasto (séculos IV-III a.C.) — filósofo nascido em Êresos, Lesbos39 —, lê-se sobre o incenso (livro IV, IV, 14): PerittÒtera d¢ t«n fuom°nvn ka‹ ple›ston ™jhllagm°na prÚw tå êlla tå eÎosma tå per‹ ’Arab¤an ka‹ Sur¤an ka‹ ’IndoÊw, oÂon ˜ te libanvtÚw ka‹ ≤ smÊrna ka‹ ≤ kas¤a ka‹ tÚ Ùpobalsãmon ka‹ tÚ kinãmvnon ka‹ ˜sa êlla toiaËta: Entre as plantas que mais prodigiosamente crescem e que são mais diversas das outras estão as aromáticas da região da Arábia, da Síria e da Índia, tais como o incenso, a mirra, a cássia, o bálsamo de Meca, a canela e outras tantas desse tipo [...].40
Assim, constata-se que Safo, nativa de uma ilha encostada na Ásia Menor, traz para sua lírica elementos de culturas orientais. Vale notar que George Hill, em A history of Cyprus (1949, p. 76), afirma que se praticava a queima de incenso no santuário páfio de Afrodite. Se a infor203
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mação procede e se Safo dela tinha ciência, não sabemos, mas será casual o fato de que, no Fr. 2 V, a voz que chama “Cípris” lhe oferece em “altares” a queima de incenso? Dificilmente. Safo deveria saber disto: o incenso diz respeito não apenas ao Oriente, mas também ao culto da deusa em Chipre, sua dileta ilha. Na estrofe seguinte, outros elementos permeados pelo sagrado são trazidos ao espaço do “templo” e do “bosque”, entre os quais este (vv. 5-6): ™n d’ Îdvr cËxro$n¸| kelãdei di’ Î!dvn mal¤nvn, [...] E nele água fri$a¸ murmura por entre ramos de macieiras, [...].
Novamente, temos um elemento da natureza compondo o cenário: a “água” (údo#r). Por conseguinte, como o álsos (“bosque”, v. 2), ela guarda uma dimensão sagrada.41 Desse líquido, que lhe é vital, o homem serve-se para executar tanto as tarefas cotidianas quanto rituais como os de purificação42 e a loutrophoría, que consiste no banho nupcial muito praticado em Atenas, realizado no decorrer da cerimônia de casamento e “conhecido por favorecer a fecundidade dos recém-casados”, não se tratando apenas “de uma simples medida de higiene”, explica Vinciane Pirenne-Delforge, em “La loutrophorie et la ‘prêtresse-loutrophore’ de Sicyone” (1994b, p. 155). Circunscrito no quadro das núpcias, o ritual da loutrophoría ligase a Afrodite, pois “o elemento aquático está intimamente ligado à fecundidade dispensada” por ela que, em numerosos cultos, “é claramente patrona da jovem moça no casamento”, afirma Pirenne-Delforge (op. cit., p. 153). Lembro que a própria Afrodite, no Hino homérico V, se banha antes de se deitar com Anquises, de quem gera um filho (vv. 58-67). Mas, para além da literatura, o banho ocupa um lugar nos seus cultos. Volto ao santuário da deusa em Sicione e ao relato de Pausânias (II, X, 4-6), que conta que ele era servido por uma sacerdotisa, “à qual 204
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não era mais lícito ao lado de um homem se deitar” (√ mhk°ti y°miw par’ êndra foit∞sai), bem como por uma “virgem” (pary°now, parthénos), que cumpria “sacerdócio anual” (flervsÊnh ™p°teion) e era nomeada loutrophóros (loutrofÒrow), “a que porta o loutrophóron [‘vaso’43] com a água para o banho”.44 E que banho é esse? Trata-se do atestado ritual, “interdito ao olhar dos fiéis”, de banhar a estátua de culto de Afrodite, afirma Lilly Kahil, em “Bains de statues et des divinités” (1994, p. 219). Qual é, então, o significado do banho da estátua de Afrodite? Viuse que o ritual da loutrophoría, inserido no quadro do casamento, objetivava favorecer a fecundidade do jovem casal. Quando praticado em estátuas e mesmo nos mitos, os banhos de deidades guardam “uma simbologia análoga”, de acordo com Pirenne-Delforge: “Além dos imperativos de uma limpeza pura e simples, o banho de uma estátua confere à divindade que ela representa uma nova juventude ao aumentar seu ‘poder criador’” (1994a, p. 142). No caso específico do banho da estátua de Afrodite, a helenista cogita que ele poderia estar, como o ritual, “relacionado à idéia do casamento” (pp. 143-44), hipótese que se mostra plausível se considerarmos que, além do banho, a estátua da deusa em Sicione estaria segurando a maçã e a papoula, conforme Pausânias. Isso porque esses dois outros elementos integram, em Atenas e em outras cidades, salienta Pirenne-Delforge (1994a, p. 152), o quadro das cerimônias nupciais.45 Encerrando os comentários acerca das associações entre a água e Afrodite, devo recordar algo já neste livro explorado: essa deusa, segundo a Teogonia, de Hesíodo, nasce no mar. Esse outro detalhe, juntamente a tudo o que se viu aqui, mostra que tais associações não são poucas, nem frágeis, e acabam por reforçar o aspecto sagrado da própria água que, no Fr. 2 V, compõe o espaço ao qual Afrodite é convidada a vir. A “água” da canção sáfica é psu)khron (“fria”, v. 5). Que dizer sobre esse dado? Os hinos e as descrições da natureza são as situações da lírica grega arcaica nas quais mais se encontram frases ou epítetos homéricos.46 No Fr. 2 V, um hino clético, isso se confirma pelo uso de nau)on/ ágnon 205
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(“templo/ sagrado”, vv. 1-2), údo#r psu)khron (“água fria”, v. 5) e, como se verá, leímo#n ippóbotos (“prado pasto de cavalos”, v. 9). Sobre o epíteto psu) khron, quando conferido à água especificamente, Dominique Arnould, em “L’eau chez Homère et dans la poésie archaïque”, afirma que sua função é “laudatória”, pois louva-lhe um traço natural apreciado pelos antigos (1994, p. 19).47 Além disso, ele guarda uma dimensão sensível, pois suscita um sentido novo no poema: o tato. Outro sentido, a audição, também é sugerido, pois a água “murmura” (keládei, v. 5) por entre as árvores. Esse murmurar pressupõe, ainda, água em movimento, talvez uma fonte ou um córrego, observa Page (1987, p. 37). Visão, olfato, audição, tato, paladar: no decorrer de seis dos 16 versos do Fr. 2 V, o cenário poético construído para receber Afrodite já se configura como intensamente sinestésico,48 eminentemente natural e perpassado pelo sagrado. Depois da “água fria”, canta a voz algo sobre a região física do “templo” (vv. 6-7): [...] | brÒdoi!i d¢ pa›! Ù x«ro! ™!k¤|a!t’, [...] e pelas rosas todo o lugar está sombreado, [...].
Como ocorre com as “macieiras” (malían), citadas nos versos 3 e 6, não é à toa que há bródoisi (“rosas”) no espaço descrito, pois elas são as flores favoritas de Afrodite. E, assim como a presença daquelas árvores, a das “rosas” soa abundante por um detalhe: “todo o lugar” (pai) s khô) ros) é por elas sombreado — lugar este que parece amplo, aberto e algo selvagem. Significativamente, a rosa predomina no cenário do Fr. 2 V e mesmo na lírica de Safo conhecida, sublinha Ingrid Waern, em “Flora Sapphica”: “Tanto em sua forma selvagem quanto cultivada, a rosa era muito comum na Grécia antiga. A rosa cultivada tem suas origens na Ásia. Ela variava, originalmente, na cor do quase completa-
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mente branco ao vermelho. As freqüentes menções de Safo confirmam que a rosa era abundante em Lesbos, cujo solo vulcânico é muito adequado ao seu crescimento” (1972, p. 4). Isso talvez explique parcialmente a preferência da poeta. Mas uma razão mais interessante pode residir na própria predileção de Afrodite, deusa privilegiada por Safo, pela rosa — predileção esta atestada na literatura49 e em outras evidências. Por exemplo, “Cípris” (Fr. 2 V, v. 13) aparece ao lado de rosas em moedas de Pafos, Chipre, datadas do século IV a.C.50 A rosa está, portanto, como a própria linguagem do fragmento, na esfera do sagrado por ser um elemento da natureza e por suas afinidades estreitas com Afrodite. E também como a linguagem da canção, essa flor tem características sinestésicas: a maciez de suas pétalas estimula o tato, sua cor, a visão, e seu perfume, o olfato. Mais uma vez, o cenário criado para Afrodite mostra-se pleno da natureza, do sagrado e do sensível. Assim se encerra a estrofe dos versos 5 a 8: [...] afiyu!!om°nvn d¢ fÊllvn| k«ma ~katairion. 51 [...] e das trêmulas folhas torpor divino † desce.
O substantivo comum kô)ma (“torpor divino”) é o novo elemento do cenário sáfico. Não é fácil compreendê-lo, nem a imagem descrita nos versos 7 e 8. Que kô)ma é este? Por que tremem as folhas das árvores? É a ação de ventos não referidos que provoca tal efeito, ou a forte presença do sagrado e da vinda anunciada de Afrodite? Primeiramente, diga-se que kô)ma escapa aos registros da natureza e da engenharia humana que abarcam todos os outros componentes do cenário nomeados até o verso 8. Apenas o registro do sensível se percebe no aspecto visual do torpor que desce das folhas e no possível aspecto auditivo de tremor destas. Ademais, esse kô)ma confere ao espaço descrito uma idéia de suspensão temporal.
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Como os helenistas têm entendido o uso de kô)ma no fragmento, “uma palavra tão raramente atestada em grego, fora da literatura médica”?52 Não se trata, decerto, de simples “sono”, como é às vezes traduzido,53 mas de algo mais. Page, com base nas poucas ocorrências épicas e líricas dessa palavra não encontrada na tragédia, observa: “Não se trata de um sono natural, mas de um tipo de transe ou coma artificialmente induzido [...]” (1987, p. 37; 1a ed.: 1955).54 Pensam alguns que kô)ma seria um “sono mágico”. Essa é a tradução de Thomas McEvilley, em “Sappho, fragment two”; para ele, toda a cena é “mágica” e a descrição do texto não é a de um espaço, mas a “de um estado interior” (1972, p. 332; cf. p. 324). Também as traduções de David Campbell, em Greek lyric I (1994, p. 57), de Emmet Robbins, em “Sappho, Aphrodite, and the Muses” (1995, p. 232), e de Joaquim B. Fontes, em Eros, tecelão de mitos (2003, p. 381, “sortilégio”), entre outras, atribuem um sentido mágico, encantatório, a kô)ma. Outras traduções marcam a palavra com a idéia do transe, por vezes considerado religioso.55 Mas sendo “transe” — assim como as noções de magia e encantamento — um termo tão carregado de sentidos pejorativos em português, julgo-o inadequado. Contraponho-me a essas duas linhas de tradução de kô)ma, porque ambas levam a leituras extremadas do poema, transformando Afrodite em maga e Safo em feiticeira ou sacerdotisa da deusa em plena função.56 Em The death of comedy (2001), Erich Segal comenta a diferença entre o “sono” comum, correspondente ao grego húpnos (Ïpnow), e o outro sono, designado kô ) ma. Segal lembra que ambos os termos não devem ser confundidos, como já observavam o médico Hipócrates, no século V a.C., e o lexicólogo Hesíquio, no século V d.C. (p. 460, nota 10). Quanto ao tipo de sono nomeado kô)ma, ele ressalta que este “pode ter um sentido erótico” (p. 2), notável em seus usos mais antigos (p. 9). O helenista refere-se à Ilíada (canto XIV, v. 359), um dos muitos exemplos da recorrente ligação sono-éro#s (“amor erótico”) na poesia grega. No episódio da célebre sedução de Zeus, vemos o deus que, após amar Hera nos cimos do Ida, adormece, “com o sono e com o amor domado” 208
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(húpno#i kaì philóte#ti dameís, v. 353), sono este enviado por “profundo Húpnos” (nê´dumos Húpnos, v. 354). O termo húpnos dá nome ao deus e é usado para descrever o sono erótico que domina Zeus. Mas quando o Húpnos vai a Posêidon contar o que se passara no monte Ida, ele explica que, a pedido de Hera, encobriu Zeus enviando-lhe um malakòn... kô)m’ (“suave... torpor divino”, v. 359). Há, pois, no canto XIV da Ilíada, semelhança entre kô) ma e húpnos: ambos são regidos pelo mesmo deus e se relacionam a um contexto erótico, sendo usados sem a distinção mais tarde assinalada pelos antigos. No caso do segundo, ele ocorre em situação muito semelhante no episódio da sedução de Anquises por Afrodite, no Hino homérico V, em que, após se unir à deusa em amor, toma o pastor um glukùn húpnon [...] nê´dumon (“doce sono... profundo”, vv. 170-71).57 Em outra ocorrência de kô)ma, referida por Segal (p. 460, nota 10), persiste o tom erótico tanto nesse termo quanto em húpnos. Trata-se de um momento da Odisséia (canto XVIII, v. 201) no qual, conta o poeta, Penélope desperta de um glukùn húpnon (“doce sono”, vv. 188 e 199) reparador que lhe enviara Atena com o intuito de fazê-la mais atraente aos pretendentes que se banqueteiam no palácio do ausente Odisseu. E quando Penélope desperta, ela afirma que a encobrira um malakòn kô )m’ (“suave torpor divino”, v. 201). Note-se que, mesmo nessa pequena amostragem, as expressões glukùn húpnon e malakòn kô)m’ e, sobretudo, a relação sono–éro#s que a elas subjaz ocorrem reiteradamente, e os termos húpnon e kô ) ma não parecem tão distintos entre si. Impossível ignorar, portanto, o sentido erótico do sono, seja ele um húpnos, seja um kô)ma, nem tampouco a afinidade que, Segal observa, haveria entre o segundo e o “transe de sonolência que se segue ao ato sexual” (p. 9). Todavia, valer-se das passagens poéticas comentadas para afirmar que, especificamente, o kô)ma do Fr. 2 V é o relaxamento ou a sonolência que se segue à consumação do ato sexual entre as meninas do círculo atribuído à poeta ou entre essas e a própria Safo configurase como uma interpretação extremada. 58 Nada há no texto que a sustente; e mesmo o erotismo latente em seu cenário jamais se torna dominante. Cabe, ainda, uma ressalva: ao contrário dos episódios destacados 209
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da Ilíada, da Odisséia e do Hino homérico V, não há no fragmento de Safo o elemento fundamental que os compõe, que é a presença de um casal deus–deusa ou deus/deusa–mortal que se une em amor recíproco. Sendo assim, optei por não explicitar o possível tom erótico de ) kô ma no Fr. 2 V (v. 8), que traduzi por “torpor divino” para frisar as idéias de suspensão temporal e de tranqüilidade, bem como de um estado de letargia, de certa analgesia da consciência. E preferi marcar a distinção entre kô)ma e húpnos escolhendo “torpor”, em vez de “sono”. Qual a natureza desse kô)ma que desce do tremor das folhas das árvores? Atentando para a imagem das folhas a tremer, não seria descabido arriscar que, devido à atmosfera do fragmento, em que paira algo de extraordinário, motivado pela intensa presença do sagrado e a expectativa da epifania de Afrodite, a causa do tremor e, conseqüentemente, do “torpor divino”, seja não-natural. Page fala em “um estado de transe ou coma induzido pelo som da água e do rufar das folhas” (1987, p. 37). Campbell fala em sono “induzido por encantamento ou por outros meios especiais ou sobrenaturais” (1998, p. 267). Fico com a idéia de uma causa especial, que seria o forte toque do sagrado que permeia o cenário. Prosseguindo com o estudo dos elementos do espaço do Fr. 2 V, chegamos à penúltima estrofe preservada (vv. 9-12), mas, infelizmente, bastante mutilada e com a perda total do verso 12. Vejamos, então, os versos 9 a 11: ™n d¢ le¤mvn| fip.p.Òboto! t°yale ~tv . t...(.)rin|noi!~ ênye!in, afi êhtai m°lli|xa pn[°o]i!in E nele o prado pasto de cavalos viceja † † com flores, os ventos docemente so[pr]am [
Entram em cena um leímo# n (“prado”) e os áe#tai (“ventos”). O primeiro elemento revela uma dimensão relevante das representações literárias e mítico-religiosas de Afrodite — seu elo com a vegetação — 210
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e traz à tona um aspecto não apenas do espaço do fragmento, mas da sua linguagem — o erotismo, reforçado pelo segundo elemento. Canta a voz do fragmento que o leímo# n “viceja/†(?)† com flores” (téthale/†to.# t ... rin|nois† ánthesin, vv. 9-10). Temos, aqui, um problema textual: entre as cruzes, o que se lê são algumas letras cortadas por lacunas. O que estaria escrito nesse verso 10 é assunto para debates que deixo de lado, até porque a proposta de leitura mais aceita (±r¤noi!in, e#rínoisin, “primaveris”) confere às “flores” um adjetivo que, na verdade, já lhes é implícito.59 Mais importante é sublinhar que as flores em geral — e não apenas as rosas — são caras às figurações poéticas e mítico-religiosas de Afrodite, deusa floral, que na cidade cretense de Cnosso, segundo uma fonte bem tardia, Hesíquio, teria recebido um culto sob o epíteto Ántheia (ÖAnyeia, “a Floral”).60 Safo chama o leímo#n de ippóbotos (“pasto de cavalos”, v. 9). Isso seria, diz Romè (1965, p. 238), um “convencionalismo” épico. Lanata observa, porém, que a “expressão como um todo sugere a possibilidade de que [ippóbotos] não deve ser entendido como simples herança homérica, mas como tendo um preciso valor cultual” (1960, p. 82). Tal comentário se baseia no Fr. 346 (Fr. 1a) PMG do lírico Anacreonte (século VI a.C.), em que “Cípris” aparece em meio a cavalos, em campos de jacinto.61 Antes disso, no Fr. 2 V de Safo, ela pode ter sido retratada em situação similar — numa área sombreada de “rosas” (vv. 10-11) e, como indica o epíteto ippóbotos, num leímo#n (“prado”) freqüentado por cavalos, animais que representam a força, o vigor da juventude selvagem e a graça.62 Vale lembrar que Afrodite se associa mítica e cultualmente aos cavalos. Segundo Farnell, o epíteto éphippos (¶fippow, “sobre o cavalo”) guardaria uma “misteriosa alusão” a um culto da deusa na Trôade, alusão esta “feita por um escoliasta da Ilíada, que nos conta a simples narrativa de que, quando Enéias navegou para o Oeste, ele montou um cavalo e comemorou o evento dedicando à sua mãe [Afrodite] uma estátua que a representava igualmente montada num cavalo” (1896, pp. 641-42). Além desse incerto testemunho, Pirenne-Delforge, estudando os “cultos domésticos” de Corinto, observa que, em um “altamente pro211
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vável” pequeno santuário de Afrodite lá descoberto, foi encontrado um numeroso montante de figurinos votivos de mulheres em várias situações, uma delas entre cavalos, e “uma única inscrição com referência” à deusa, datada de c. 500-475 a.C. (1994a, pp. 99-100). Diante desse quadro e do cenário sáfico construído para Afrodite e dela tão intensamente impregnado,63 o comentário de Lanata à página anterior citado pode, afinal, ser adequado: a menção aos cavalos no Fr. 2 V não seria mera convenção épica. Antes de continuar a análise do leímo#n do fragmento, pensemos um pouco nesse tipo de paisagem. André Motte, em Prairies et jardins de la Grèce antique, afirma que o leímo#n tem “uma carga religiosa muito nítida” por ser uma “realidade natural” e, como tal, percebida como sagrada (1973, pp. 6-7).64 Além disso, essa paisagem tem um caráter de solitário distanciamento, sendo separada dos campos cultivados e das habitações, o que a torna ainda mais apropriada às atividades religiosas que costumava abrigar (p. 15). Pensando as afinidades do “prado” com Afrodite, implícitas no Fr. 2 V, cito um comentário de Motte: “Os prados encarnam [...], aos olhos dos gregos, o mistério permanente da vida que espontaneamente jorra do solo” (p. 9). Portanto, eles, como a deusa, simbolizam a fertilidade e a fecundidade essenciais à renovação da vida. Essa relação se verifica no leímo#n do fragmento, propício ao crescimento de flores (vv. 9-10), habitualmente integradas a tal cenário, não deixando dúvidas quanto à fertilidade do solo e, diz Motte, encarnando “a beleza, a juventude, a feminilidade”, o erotismo e “a imagem do destino efêmero do homem, mas também de sua esperança de um renascimento” (pp. 9-10). Note-se, ainda, que, no mesmo espaço, se inclui um álsos (“bosque”, v. 2), comumente associado ao “prado”.65 Isso vale também para a presença da água nessa paisagem que costuma ser “uma larga extensão de terra úmida, provida de uma vegetação abundante e espontânea”, ressalta Motte (p. 7). Além de contribuir para a fertilidade do cenário do fragmento, a “água fria” (v. 5) decerto é um atrativo para os animais aludidos no epíteto de leímo#n, ippóbotos (“pasto de cavalos”, v. 9). 212
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Que Afrodite está ligada à água e à vegetação, mostra-o o fragmento. Retomando a Teogonia, vemos que tais ligações se estabelecem desde a gênese da deusa: que se formou no mar e, depois de passar pela ilha de Citera, ela chegou a Chipre, onde pisou a terra firme pela primeira vez (vv. 188-93). E então, prodigiosamente (vv. 194-95), [...] émf‹ d¢ po¤h poss‹n Ïpo =adino›sin é°jeto: [...] [...] em torno, relva sob seus pés delgados cresceu.
De pronto, os pés de Afrodite fertilizam o solo, num claro indício de sua afinidade com a fertilidade — e não apenas a humana —, a qual se estabelece em Chipre. Afirma Pirenne-Delforge que é o nascimento da deusa que faz da ilha “o lugar florido e fecundo tal qual o pensavam os antigos” (1994a, p. 316). E, adiante, a helenista completa: “[...] em Chipre, Afrodite possui afinidades com o mundo vegetal e sua renovação cíclica; ela preside à sexualidade humana, mas os aspectos procriadores de sua ação são notadamente acentuados e ela possui qualidades de courótrofos [‘a que nutre crianças’] mais claramente afirmadas do que no continente” (pp. 368-69). No fragmento 2 V, Safo escolhe, para compor o cenário que receberá Afrodite, imagens da natureza com as quais esta guarda grandes afinidades, que, por sua vez, se tornam ainda mais marcadas se atentarmos para a forma como a poeta nomeia a deusa no verso 13, “Cípris”, que evoca seus elos com Chipre, onde seus cultos acentuavam exatamente o caráter vegetal da divindade. Na poesia grega antiga, será constante a ênfase das relações de Afrodite com a natureza, já verificáveis na Ilíada, no hieròs gámos (flerÚw gãmow, “enlace amoroso sacro”) entre Zeus e Hera narrado no canto XIV, concretizado com o auxílio de Afrodite. Destaco, agora, o final dessa célebre, quando Zeus sucumbe à deslumbrante visão de sua esposa e, no monte Ida, faz crescer um leito para amá-la (vv. 346-49):66
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to›si d’ ÍpÚ xy∆n d›a fÊen neoyhl°a po¤h, lvt$Òn y’ •rsÆenta fid¢ krÒkon ±d’ Íãkinyon puknÚn ka‹ malakÚn, ˘w épÚ xyonÚw ÍcÒs’ ¶erge. E sob eles a terra divina fez brotar fresca relva, e o lótus orvalhado e o açafrão e ainda o jacinto cerrado e macio, que da terra os sustenta.
Em Sexual culture in ancient Greece, Daniel H. Garrison declara, sobre esses versos: “Esse é o mais antigo aparecimento na poesia grega das harmonias verdejantes e florais do erotismo, embora a conexão talvez já fosse convencional enquanto um aspecto do hieros gamos, a união sexual de um deus e uma deusa [...]” (2000, pp. 81-82). Jean Rudhardt estuda, em Le rôle d’Eros et d’Aphrodite dans les cosmogonies grecques, os mesmos versos e também os da Teogonia há pouco reproduzidos. Centrando-se na tríade Afrodite–fertilidade–natureza, ele observa: “Mesmo quando não é mais gerador, o ato de amor é o centro de uma irradiação; ele revigora os poderes da vida no interior do mundo” (1986, p. 37). Afrodite rege esse impulso amoroso-sexual que faz pulsar e irromper a vida humana, animal e vegetal, o que se reflete em sua habitual entourage poética e mítico-religiosa, na qual há, além de deidades ligadas ao desejo e à sedução — Éros e Hímeros, por exemplo (Teogonia, vv. 201-2) 67 —, deusas ligadas à flora e ao seu crescimento, como as Horas, “que escandem o ritmo anual da floração e da frutificação”, e as Cárites, “que se regozijam com as flores”.68 Há ainda um ponto importante relativo ao caráter vegetal de Afrodite: o elo cultual da deusa com o jardim, do qual fala Pausânias, em suas andanças pelo sudeste de Atenas, nos arredores do templo de Zeus Olímpio. Lá, havia uma região que relacionava a deusa e os jardins, relata o viajante (livro I, XIX, 2): - ™w d¢ tÚ xvr¤on, ˘ KÆpouw Ùnomãzousi, ka‹ t∞w ’Afrod¤thw tÚn naÚn oÈde‹w legÒmenÒw sfis¤n ™sti lÒgow: oÈ mØn oÈd¢ ™w tØn ’Afrod¤thn, ∂ toË naoË plhs¤on ßsthke. taÊthw går sx∞ma m¢n tetrãgvnon katå taÈtå ka‹ to›w ÑErma›w, tÚ d¢ ™p¤gramma shma¤nei tØn OÈran¤an ’A-
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frod¤thn t«n kaloum°nvn Moir«n e‰nai presbutãthn. tÚ d¢ êgalmat∞w ’Afrod¤thw t∞w ™n KÆpoiw ¶rgon ™st‹n ’Alkam°nouw ka‹ t«n ’AyÆn˙sin ™n Ùl¤goiw y°aw êjion. Quanto à região que chamam Jardins, e o templo de Afrodite, não há nenhuma história que contem a seu respeito, tampouco quanto à Afrodite que estava posta perto do templo. A forma dela, de fato, é quadrangular, como o é a forma das Hermas, e a inscrição indica ser a Afrodite Urânia [...]. Quanto à estátua de Afrodite nos Jardins, ela é a obra de Alcâmenes e faz parte do pequeno número de obras em Atenas dignas de admiração.
A data da estátua instalada em Atenas, pela menção ao artista, situa-se entre 430-420 a.C. e, pela continuidade do relato de Pausânias (I, XIX, 3-6), fica-se sabendo que essa região nomeada Kê)poi (“Jardins”) ficava próxima do rio Ilisso, em sua margem direita. Adiante ainda, Pausânias (I, XXVII, 3) menciona outra Afrodite en Kê)pois (“nos jardins”), esta na Acrópole ateniense e relacionada ao festival da Arreforia, do qual participavam meninas “virgens” (parthénoi) em ações noturnas, dentre as quais uma caminhada que se iniciava no templo de Atena. Lá, elas recebiam misteriosas oferendas. Depois, elas passavam por um períbolos (“recinto fechado”) “na cidade, não longe de Afrodite chamada ‘nos jardins’” ou “de Afrodite chamada ‘nos jardins’, não longe na cidade” (t∞w kaloum¢nhw ™n kÆpoiw ’Afrod¤thw oÈ pÒrrv) — dependendo do entendimento da ambígua frase grega. 69 De lá, as parthénoi desciam “uma passagem subterrânea natural” (kãyodow ÍpÒgaiow aÈtomãth), ao final da qual depunham as oferendas secretas e “bem embrulhadas” (™gkekalumm°non).70 Pirenne-Delforge, analisando os grupos de testimonia relativos à região do Ilisso e ao períbolos da Acrópole em Atenas, que ligam Afrodite à expressão en kê´pois, diz: Sem negar que a representação do jardim esteja profundamente enraizada na personalidade de Afrodite, parece, contudo, que a origem da determinação é topográfica: é porque ela era honrada num local nomeado “os
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Jardins” que ela recebeu esse epíteto. Uma tal afirmação não dissocia de modo algum a deusa dos jardins que a acolheram, pois o quadro florido e campestre das margens do Ilisso, que suscitou o topônimo, devia precisamente corresponder à maneira pela qual os antigos apreendiam Afrodite. Ao contrário, isso implica que o santuário do Ilisso é anterior ao da Acrópole [século V a.C.] ao qual ele deu seu nome, o que permite compreender a expressão t∞w kaloum¢nhw ™n kÆpoiw ’Afrod¤thw [“de Afrodite chamada ‘nos jardins’”] de Pausânias, já que, a priori, o rochedo da Acrópole corresponde bem pouco à imagem de um jardim, a menos que se suponha a existência de uma estrutura artificial (1994a, p. 65).
Além dos dois santuários atenienses da deusa en kê´pois e, ainda, da “abundante tradição pictográfica representando Afrodite cercada de um jardim que remonta, em Atenas, ao menos ao século V a.C.”,71 Estrabão, em sua Geografia (livro XIV, VI, 3), relata que havia, próximo de Pafos — a célebre sede cípria de culto à deusa —, um local envolvido num rito em honra de Afrodite e chamado Hieroke# pía (ÑIerokhp¤a, “Região do Jardim Sagrado”),72 nome que, segundo Farnell, “deve ser derivado do título sacro” de Afrodite, cujas “funções de deidade da vegetação são aludidas pelo nome similar de seu templo em Atenas, o templo ‘nos jardins’, perto de onde ficava a estátua de Afrodite Urânia” (1896, p. 642).73 Esteja Farnell certo ou não quanto a isso, o que importa é que, novamente, um jardim que “freqüentemente tem valor ritual” e costuma ser “quase exclusivamente” dedicado “a divindades que encarnam a vida”, afirma Motte (1973, p. 22), é relacionado a Afrodite, “Cípris”. Há outros exemplos de associações cultuais Afrodite–jardins — na Grécia,74 em Chipre e na Ásia Menor.75 Todavia, aqueles aqui arrolados já ilustram os fortes elos entre a deusa e o mundo vegetal, sobretudo pelo seu aspecto vivo, primaveril, fértil e luxuriante. Justamente por guardarem esse aspecto, tais elos revelariam, de acordo com Farnell, as origens orientais de Afrodite (1896, p. 642), o que se reforça quando lembramos que em Chipre o seu caráter vegetal é sublinhado e que, em meio às referências à deusa “nos jardins” citadas, encontramos seu epíteto oriental “Urânia” e o seu templo de Pafos. Salienta Motte, ainda, 216
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que Ishtar, deidade babilônica “soberana da fecundidade e protótipo de Afrodite”, foi instalada nos arredores dos famosos “jardins suspensos da Babilônia” (1973, pp. 124-26). E assim como Ishtar, Walter Burkert recorda que também Astarte, a deusa semítica à qual se assemelha a Afrodite grega, aparece ligada ao jardim (1998, p. 153). No Fr. 2 V, não temos um kê)pos (“jardim”) propriamente dito, mas um leímo#n (“prado”, v. 9). Essas paisagens são aparentadas, embora não idênticas — a primeira teria a interferência do trabalho humano e seria limitada, enquanto a segunda se conservaria como “um espaço primitivo, original” e não limitado artificialmente —, e os seus universos “estão estreitamente unidos nos mesmos temas”, comenta Motte (p. 19):76 “Eles guardam em comum a presença das águas e dos ventos fecundos, uma vegetação generosa e fragrante. Eles estão similarmente impregnados do divino e participam, na mentalidade antiga, de simbolismos vizinhos” (p. 19). No caso do cenário do Fr. 2 V, o leímo# n ali referido tem vários elementos comuns ao kê)pos — a água, as árvores e as flores, todos já considerados. Passo, agora, ao último elemento inserido no espaço descrito: os “ventos” (áe#tai, v. 10), que lá sopram “docemente” (méllikha, v. 11). Segundo Motte, a ocorrência de “ventos” é fenômeno característico do leímo#n — esta “realidade natural” luminosa, ampla e aberta, propícia, portanto, à sua ocorrência (1973, p. 10). Mas, além desse dado, diga-se que os ventos se relacionam a Afrodite na literatura. Por exemplo, no poema Os trabalhos e os dias, de Hesíodo, Bóreas, o vento frio do norte, é-lhe associado — ele que (vv. 519-21) ka‹ diå paryenik∞w èpalÒxroow oÈ diãhsin, ¥ te dÒmvn ¶ntosye f¤l˙ parå mht°ri m¤mnei oÎ pv ¶rg’ efidu›a poluxrÊsou ’Afrod¤thw: através da pele macia da virgem não sopra — a que dentro de casa, junto à mãe querida, permanece, não sabedora ainda dos trabalhos da multiáurea Afrodite.
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No Hino homérico VI à deusa, é Zéfiro, o vento ameno que sopra do oeste, que carrega Afrodite pelas vagas marinhas em que nasce, conduzindo-a a Chipre, onde ela é recebida alegremente pelas Horas, deidades que presidem sobre as estações (vv. 1-6). A relação de Afrodite com os ventos não é, portanto, inusitada ou inexpressiva. Como ela, os ventos são deidades sensuais, lembra Motte, “deuses que fecundam as terras e são também capazes de engravidar as fêmeas” (1973, p. 214). Assim, tanto Zéfiro quanto Bóreas, “em suas demandas amorosas, percorrem de bom grado as pradarias”, declara o helenista (p. 10). Não parece casual que a voz da canção sáfica traga ao “prado” de seu cenário os “ventos”. É tempo, agora, de tratar de um outro aspecto que marca o espaço e a linguagem do Fr. 2 V: o erotismo que, com a natureza e o sagrado, compõe uma tríade indissociável no imaginário grego. No fragmento, uma linguagem altamente sinestésica entrelaça uma série de elementos numa paisagem à qual Afrodite é convocada e que com ela e suas prerrogativas — a sexualidade, a fertilidade, o prazer, a beleza — mantém estreitas afinidades. Macieiras, água, rosas, o “prado pasto-de-cavalos” com suas flores e ventos: tudo isso, que é percebido desde a Antigüidade como dotado de erotismo, porque se liga fortemente à vida — sua gênese e renovação —, ganha maior carga significativa na medida em que se deixa perpassar de Afrodite. O cenário transita entre as órbitas do sagrado e da sexualidade, órbita pela deusa regida. E é preciso enfatizar: entre o sagrado e o sexo: o conflito é aparente, pois, para os antigos, Motte recorda, “as coisas da sexualidade eram todas percebidas [...] como penetradas de religião” (p. 52). Na literatura, a fusão natureza–sagrado–erotismo é notável desde a Ilíada, pelo menos, no já referido enlace de Zeus e Hera, um dos muitos episódios de união amorosa entre deuses ou entre estes e os mortais encontrados na poesia antiga grega e retratados com freqüência em leitos naturais.77 Ilustra tal fusão o cenário do Fr. 2 V, cujo erotismo se revela, primeiramente, no adjetivo de álsos (“bosque”), khárien (“agradável”, v. 2), inserido no leque semântico da noção de kháris e na esfera de Afrodite. Note-se que as deidades que incorporam tal noção, as Cárites, 218
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integrantes do séquito de Afrodite, são relacionadas à paixão na Teogonia (vv. 907-11): tre›w d° ofl EÈrunÒmh Xãrihtaw t°ke kalliparÆouw, ’WkeanoË koÊrh poluÆraton e‰dow ¶xousa, ’Agla˝hn te ka‹ EÈfrosÊnhn Yal¤hn t’ ™rateinÆn: t«n ka‹ épÚ blefãrvn ¶row e‡beto derkomenãvn lusimelÆw: kalÚn d° y’ Íp’ ÙfrÊsi derkiÒvntai. E três Cárites de belas faces de Zeus gerou Eurínome, a virgem que tem forma multiamorável: Aglaia e também Eufrosine e Tália adorável; dos seus olhos que olham brilhantes escorre amor, o solta-membros; e belos sob os cílios brilham seus olhares.78
A dimensão erótica do álsos (“bosque”) é reiterada, ainda, pelas árvores que o compõem, as malían (“macieiras”, v. 2), que dão a fruta predileta de Afrodite, a maçã, como ela ligada “à união sexual, particularmente dentro do casamento”.79 Diz Pirenne-Delforge: “Símbolo erótico e amoroso, a ‘maçã’, o que quer que seja, 80 é freqüentemente associada a Afrodite na literatura, mas aparece, igualmente, nas cerimônias de casamento, em Atenas, para favorecer a primeira aproximação entre os esposos” (1994a, p. 138).81 A água é outro componente eroticamente marcado do cenário do fragmento de Safo. Isso porque é um elemento da natureza e, ademais, insere-se nas reiteradas imagens poéticas e plásticas de banhos de Afrodite — ligados tanto à sexualidade quanto à sensualidade — e nas versões que relacionam o nascimento da deusa ao mar na literatura e na iconografia. Mas no Fr. 2 V o aspecto erótico inerente à água é sutilmente reforçado pelo seu som e pelo seu movimento: ela “murmura por entre ramos/ de macieiras” (vv. 5-6), árvores que parecem estar carregadas literalmente — os ramos plenos de maçãs são tocados pela água — e metaforicamente — estão plenas de sensualidade. A rosa, flor cara a Afrodite, que também se insere no espaço do Fr. 2 V, é erótica, pois, para os antigos, ela refletia “os mistérios carnais 219
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da mulher” — idéia viva até hoje — e, portanto, encontraria “um fundamento na evocação dos poderes” da deusa da paixão.82 Por fim, há o “prado pasto de cavalos”, cheio de flores e ventos. O erotismo é latente nessa paisagem considerada constantemente, no universo grego, “um microcosmo onde se concentram as forças vivas da natureza e seus charmes sensuais”.83 Embora incontestavelmente presente, o erotismo subjaz ao cenário da canção bem como à própria linguagem que o cria, sem jamais a ele se sobrepor, ao contrário do que pretendem certas interpretações, como a de Jack Winkler, em The constraints of desire, que declara ser o poema todo uma metáfora do corpo “num longo e difuso ato de amor”, cujo objetivo é mimetizar a experiência da cerimônia pública e “infundir a participação dos que celebram com memórias da sexualidade lésbica” (1990, p. 186). Ou a de Anne P. Burnett, em Three archaic poets (1983, pp. 269-76), que, considerando o Fr. 2 V um acúmulo de metáforas sexuais que o tornam o “jardim de uma virgem”,84 vê a sucessão dos versos como o desenrolar de um ato sexual até sua consumação, que se revela pelos termos kô)ma (v. 8), que entende como “sono profundo” pós-sexo, e néktar (v. 15), que entende como o “dom divino” de Afrodite, ou seja, o próprio amor físico. Essa linha de leitura, alicerçada em símbolos, alegorias e metáforas formulados sempre na chave da sexualidade vista por uma ótica psicologizante, parece demasiado moderna e improvável, porque perde de perspectiva o aspecto do sagrado — este sim evidenciado, explícito e dominante no fragmento. Cito a adequada crítica de Richard Jenkyns, em Three classical poets, a essa linha baseada no que ele ironicamente chama “o kit do-it-yourself da psicanálise do Dr. Freud”: “O Fr. 2 de Safo é uma recriação viva e aguda da experiência real, e é uma pena vaporizar tal vivacidade em alegoria” (1982, p. 32). Outra linha interpretativa diversa gira em torno de uma questão sinalizada na afirmação de Jenkyns: o espaço do Fr. 2 V é real ou imaginário ou ambas as coisas ao mesmo tempo? Essa questão — quase um dilema — divide os helenistas.85 Todavia, observada de perto, ela se configura como um falso problema, pois discutir a realidade geográfica 220
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ou não do cenário é, na verdade, irrelevante, uma vez que este é uma construção poética concebida para receber a visita de uma deusa. Mas, afinal, que interpretação a análise dos elementos do espaço sáfico poderia aventar? A de que o cenário do Fr. 2 V é a representação poética de um espaço sagrado de culto no qual a voz deseja aproximarse de Afrodite. Nomeadamente, a representação poética de um témenos (t°menow, “recinto sagrado”). Volto a uma passagem de Depew que citei ao tratar das preces gregas: A função e a forma característica da antiga prece grega deve, certamente, ter dependido de elementos inseparáveis da ocasião de sua vocalização: o lugar onde era proferida, freqüentemente um [témenos] ou um espaço separado de atividades seculares e, portanto, particularmente apropriado ao discurso que era, ele mesmo, separado do discurso cotidiano; ação de acompanhamento musical, que pode ter incluído uma procissão solene, um pequeno ou um grande sacrifício, música, ou a dedicação de uma oferenda votiva (1997, p. 229).
Considero o fragmento de Safo um hino clético, ou seja, uma prececonvite a “Cípris” (v. 13). Decerto, trata-se de uma prece poética, embora sua forma pareça escapar às convenções que lhe seriam típicas — por opção da poeta ou por conta das mutilações do começo e do final do texto. Acrescento, após ter esmiuçado o cenário da canção e a linguagem que o molda, que a prece de Safo se aproxima do que seriam, nas palavras citadas de Depew, os “elementos inseparáveis da ocasião de [sua] vocalização”, porque, justamente, o espaço da canção configura-se como a representação poética de uma realidade religiosa indubitavelmente familiar à poeta, o témenos, onde estaria a voz do fragmento que se dirige a Afrodite.86 Seguindo os elementos referidos por Depew e recordando a natureza da lírica grega arcaica, pode-se pensar que a vocalização da prececonvite de Safo — o Fr. 2 V — pressupõe um acompanhamento musical, o que jamais é dito no texto. Mas a realização de um sacrifício é explicitada nos versos 3 e 4: a queima de incenso. Como entender essa oferta? 221
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O sacrifício é um ritual que, declara Émile Benveniste, em O vocabulário das instituições indo-européias, visa “colocar o homem em relação com a divindade” (1995b, p. 245). Assim, ao abrir uma espécie de “via de comunicação” entre eles, lembra Jean-Pierre Vernant, em Mythe et religion en Grèce ancienne, essa prática religiosa sublinha, ao mesmo tempo, “a extrema distância separando mortais e imortais” (1990, pp. 78-79). Logo, a inserção do sacrifício no cenário sagrado, erótico e natural do fragmento de Safo indica uma busca de aproximação entre Afrodite e a voz que a chama. De modo similar pode ser entendido o desejo dessa voz de que a deusa se apresente no local descrito, o qual creio ser a representação poética de um témenos, ou seja, de um espaço de culto localmente definido e “fixado numa tradição antiga”, que não podia ser mudado, conforme explica Burkert (1998, p. 84). Pedaço de terra devotado ao sagrado, o témenos devia estar separado do profano. Assim, sua extensão era delimitada por fronteiras sinalizadas por pedras, árvores ou por um muro; nas suas descrições antigas, o témenos costumava fundir-se à paisagem grega (pp. 84-85).87 Dentro dos seus limites, estavam freqüentemente compreendidos um bosque, uma pastagem para os animais destinados aos sacrifícios e também água, para aqueles e para rituais como os de purificação. Também intrafronteiras estava o seu elemento fundamental, o altar, adequado aos sacrifícios e o templo, “a casa da deidade”, que era geralmente posterior ao témenos onde se situava.88 Retomo certos componentes do espaço do Fr. 2 V de Safo: nau)on álsos bô)moi údo#r leímo#n
“templo” (v. 1) bosque (v. 2) altares (v. 3) água (v. 5) “prado” (v. 9)
Não é possível ignorar as semelhanças entre o cenário sáfico que receberá a visita de Afrodite — arquitetado por uma linguagem sinestésica que conjuga a natureza, o sagrado e o erótico — e as imagens típicas do témenos grego. Ademais, haveria local mais apropriado à 222
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epifania de uma deusa e à desejada aproximação entre ela e a voz que lhe fala? E poderá Afrodite deixar de atender ao chamado dessa voz que, para propiciar sua vinda, lhe descreve poeticamente um témenos tão adequado às suas prerrogativas e especificidades, tão belamente desenhado e dela tão fortemente impregnado? O convite soa irrecusável e a voz que se dirige à deusa parece saber disso, pois, apesar de não retratar sua epifania — ao menos nos versos preservados —, ela a antevê acontecendo na derradeira estrofe conservada do Fr. 2 V. Vejamos se esta ainda fornece outros subsídios que sustentem a interpretação aqui proposta: ¶nya dØ !Á ~!u.an~| ¶loi!a KÊpri xru!¤ai!in ™n ku|l¤ke!!in êbrv! mme¤|xmenon yal¤ai!i| n°ktar ofinoxÒei!a Aqui tu † †| tomando, ó Cípris, nos áureos cálices, delicadamente, néctar, miurado às festividades, vinho-vertendo ...
Dada a mutilação de parte do verso 13 e a abrupta interrupção do texto, decerto incompleto, não é fácil restituir o sentido da estrofe e do fragmento como um todo.89 Discute-se, embora hoje com menor freqüência, se haveria um verso seguinte ao último que temos, uma vez que, na fonte de transmissão indireta da estrofe — o Banquete dos sofistas, de Ateneu — se lê, logo após a sua citação, a frase “para estes companheiros, os meus e os teus”.90 Não se sabe se ela pertenceria ao poema; 91 se seria uma adaptação, feita por quem cita, de um verso pertencente a uma estrofe seguinte à dos versos 13 a 16;92 ou se é simplesmente uma frase de Ateneu de arremate da citação.93 Vê-se, pois, que se trata de algo muito controverso e insolúvel, como bem mostra a discussão de Nicosia (1976, pp. 96-99). De qualquer modo, fica patente, novamente, que a voz do fragmento deseja a epifania de Afrodite a tal ponto que a antevê, descrevendo 223
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a presença ativa da deusa ali, em sua companhia. Essa participação é definida pela voz que, empregando o vocativo, pede que a deusa, “tomando” algo que ignoramos e “vinho-vertendo” (oinokhóeisa)94 “delicadamente”, em “áureos cálices”, “néctar” “misturado às festividades”, faça algo que desconhecemos. Primeiro, vejamos o advérbio ábro#s (“delicadamente”), de abrosúna (em ático, habrosúne#, èbrosÊnh), “delicadeza”, noção cara a Safo que, no Fr. 58 V (v. 25), diz amar tal qualidade.95 Observando os usos do adjetivo também derivado dessa noção, habrós, Chantraine, em seu dicionário etimológico, comenta que sua primeira ocorrência conhecida está num fragmento de Hesíodo, em que habrê` (“delicada”) qualifica uma parthénos (“menina virgem”).96 Ademais, continua ele, é raro o uso de tal adjetivo na prosa, ao contrário do que ocorre na poesia, em que é “largamente atestado, nos líricos e nos trágicos” e “freqüente em Safo”. De fato, relendo os cerca de 200 fragmentos da poeta estabelecidos na edição Voigt, encontramos ábros no Fr. 140 V (v. 1), qualificando Adônis, jovem amante de Afrodite; ábran no Fr. 44 (v. 7), qualificando a noiva de Heitor, Andrômaca, uma virgem como a jovem do fragmento hesiódico acima referido; ábrai no Fr. 128 V (v. 1), caracterizando as Cárites. Sobre outras três ocorrências, nos fragmentos 25 V (ábra), 84 V (ábroi) e 100 V (ábrois’), nada se pode dizer devido aos danos materiais sofridos pelos textos. Volto, pois, às ocorrências do adjetivo nos fragmentos 140 V, 44 V e 128 V. Nos dois primeiros, elas se relacionam a dois jovens — Adônis e Andrômaca; no terceiro, às Cárites. Todas essas figuras estão ligadas, de algum modo, a Afrodite. Pensando nisso e lembrando que no Fr. 2 V o advérbio ábro#s (v. 14) determina como deve ser uma ação da deusa, pode-se notar que a sensualidade está entranhada na noção de abrosúna — marca da lírica sáfica e de seu universo greco-oriental.97 Romè comenta: A maior renovação acontecida no âmbito da poesia de Safo e de Alceu se colhe nos epítetos que exprimem um sentimento estético de graça e beleza, de malemolência e de delicadeza — epítetos em direção aos quais a sen-
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sibilidade dos poetas líricos via-se particularmente atraída. Dessas qualidades eles investem as criaturas humanas e divinas, e as coisas do mundo natural, que mostram perceber na mesma medida, ricos de dons de suavidade e amabilidade. Esses são particularmente caros a Safo como ela mesma confessa quando diz amar a [abrosúna, Fr. 58, v. 25] [...], substantivo no qual está incluso todo o sentido voluptuoso que caracteriza sua poesia e reflete, num quadro mais geral, aquele ideal de vida da aristocracia grega, no qual o influxo lídio alimentava o seu amor pelo luxo e pelo refinamento, as coisas malemolentes e delicadas. Daí a predileção dos poetas eólicos pelos epítetos que exprimem tais qualidades: esses mostram, em confronto com a tradição épica, uma ampliação dos seus usos e uma evolução que, procedendo dos dois líricos, atesta o surgimento de uma sensibilidade e disposição de ânimo totalmente novas (1965, p. 230).98
No verso 14, diz-se que os “cálices” (kulíkessin) em que a deusa deverá verter algo são “áureos” (khrusíaisin). Ora, também essa qualidade evoca não só a própria Afrodite — a única deusa “áurea” e “multiáurea” da poesia grega antiga, e que Safo chama “auricoroada” no Fr. 33 V —, mas também o Oriente, fonte do metal precioso. Novamente, como ocorre com o nome “Cípris” (v. 13) e a referência à queima de incenso (vv. 3-4), o fragmento vale-se de um elemento que suscita as relações Safo–Afrodite/Grécia–Oriente, perpassadas pelo sagrado a que os versos da última estrofe, com a antecipação da epifania da deusa, conferem uma consistência quase tangível já trabalhada pela linguagem sinestésica do poema. Além da antevisão da presença da deusa, que estará integrando as “festividades” (thalíaisi), também a referência ao “néctar” (néktar, v. 15) é uma forma de enfatizar o sagrado, pois esse é o alimento dos deuses que “pão não comem, nem bebem o vinho brilhante”, diz um verso da Ilíada (canto V, v. 341) citado noutro momento. Alguns crêem que esse néktar é um “sinônimo poético do vinho”, o que Jenkyns refuta, informando que essa ligação, até onde se sabe, só ocorre depois do século III a.C. (1982, p. 29). Outros o tomam por metáfora sexual: ele é o “dom divino” de Afrodite, ou seja, é o amor físico, diz Burnett (1983, p. 276). E alguns, como Robbins
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(1995, p. 233), vêem o néktar como a imortalidade dada por Afrodite aos que beberem dos “cálices” por ela servidos. A interpretação do fragmento que venho construindo segue nessa direção, mas não porque, como quer Cecil M. Bowra, em Greek lyric poetry (1961, p. 198), a associação néctar–imortalidade derive da visão concreta da poeta incapaz de maiores abstrações, e sim porque, na argumentação que venho defendendo, o espaço da canção é a representação literária de um local de culto a Afrodite, de um témenos, alicerçada na tríade natureza–sagrado–erotismo. Nesse contexto, o néktar funciona como mais um elemento da esfera do divino incluído, apropriadamente, no momento da antecipação visual da epifania de Afrodite. E mais: se esse alimento, quando oferecido pelos deuses, pode dar aos mortais a imortalidade, está reiterado, na imagem sáfica, o desejo expresso pela voz da canção de proximidade com a deusa. Similarmente, está enfatizado na forma verbal oinokhóeisa (“vinho-vertendo”, v. 16) um aspecto fundamental da linguagem do Fr. 2 V: a fusão. No universo do fragmento, não há dicotomias, mas misturas. Logo, é coerente que o alimento divino se misture ao “vinho”, a bebida dos homens cujo nome consta da primeira metade (oino-) de oinokhóeisa.99 Assim como a linguagem mistura néctar e vinho, os versos finais dizem que o líquido divino está “misturado às festividades” (v. 15). Quais são elas? Como entendê-las? Antes de buscar responder essas questões, cabe considerar as interpretações do Fr. 2 V diante da referência às “festividades” (thalíaisi), que motivou leituras segundo as quais ela provaria a associação entre Safo e um grupo de jovens meninas, cuja natureza é alvo, desde a Antigüidade, de muita especulação.100 Por conta de thalíasi e do conteúdo — diga-se, fugidio — da última estrofe do Fr. 2 V, os helenistas imaginam-se diante de um coro dirigido pela poeta em torno de um rito a Afrodite, mais ou menos nos moldes dos coros de jovens meninas de Esparta, cuja existência está razoavelmente comprovada não apenas pela lírica coral de Álcman (séculos VIIVI a.C.), mas por outras evidências.101 Justamente os versos desse autor são a base para que alguns questionem que a lírica monódica seja o subgênero lírico mais cultivado por Safo e defendam que este era a lírica 226
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coral. Por conseguinte, a primeira pessoa do singular da poesia de Safo representaria, na verdade, a primeira pessoa do plural, e o erotismo, centrado principalmente nas mulheres, estaria explicado, pois são atestadas relações homoeróticas entre a líder e as integrantes dos coros no caso dos grupos espartanos. 102 Todavia, o Fr. 2 V, que seria um suporte importante dessa teoria, nada diz sobre quem participaria das thalíaisi além de Afrodite e, talvez, da própria voz que lhe fala,103 nem traz qualquer referência à presença de um coro de jovens meninas sob a liderança de Safo, num contexto de atividades ritualísticas ou pedagógicas. Tampouco o fragmento alude a relacionamentos homossexuais entre quem quer que seja. Uma outra leitura que se apóia no Fr. 2 V como evidência histórica é a de Giovanni P. Carratelli, que, em “Afrodite Cretese” (1979), defende ser cretense a origem, como o verso 1 da canção sáfica comprovaria. Além disso, considerando o restante do texto, ele afirma que a cena nela configurada — sobretudo na estrofe final — “coincide perfeitamente com as imagens de várias gemas minóico-micênicas retratando a epifania de uma deusa na presença de mulheres adoradoras” (p. 134).104 Nada há, porém, de concreto no fragmento que sustente essa leitura. Nele não se fala em “mulheres adoradoras”, mas apenas em “Cípris” (v. 13), a quem se dirige a prece-convite da desconhecida primeira pessoa do singular indicada, possivelmente, no verso 1. O Fr. 2 V é tomado, ainda, como prova da existência do thíasos (y¤asow, “círculo ritual”) e da “escola” presididos por Safo. Hermann Fränkel, em Early Greek poetry and philosophy (1975, p. 175), Burnett (1983) e Bruno Gentili, em Poetry and its public in ancient Greece (1990, pp. 72-104), aliam-se a essa velha e muito combatida teoria, ferrenhamente defendida por Ulrich von Wilamowitz em estudo de 1913. 105 Burnett chega mesmo a afirmar que o poema mostra que haveria “um calendário de deveres rituais para as meninas” do thíasos sáfico (pp. 261-63). Outros estudiosos recusam as idéias da “escola” e do thíasos: Martin L. West, em “Burning Sappho” (1970a, pp. 307-30), Robbins (1995, pp. 225-39) e Giuliana Lanata, em “Sappho’s amatory language” (1996, 227
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pp. 11-25), que opta por chamar de étairai (“companheiras”) as meninas em torno da poeta — palavra usada por Safo, ao contrário de thíasos, lembra West, “ausente também de Alceu” (p. 324).106 Por sua vez, Claude Calame, em Choruses of young women in ancient Greece, julga “mais prudente” falar apenas em “círculo” de Safo, “ou, de uma forma ainda mais neutra, de seu grupo” (1997, p. 210). Embora os helenistas concordem em preterir a palavra thíasos, não há consenso quanto à natureza das ligações entre as meninas e a poeta. Eva Stehle, em Performance and gender in ancient Greece, resume algumas das principais indagações: Safo treinava parthenoi [“meninas virgens”] em performance coral e, mais do que isso, guiava o despertar de sua sexualidade através da transição para a vida adulta, ou mesmo supervisionava um processo de iniciação formal, como a reconstrução predominante considera? Se ela era uma mentora de parthenoi, quanto de sua poesia era, de fato, coral e composta para performance por elas (logo refletindo sua auto-apresentação e não a da poeta)? Ou era sua audiência um círculo de amigas mulheres adultas, como a própria poeta, e sem dúvida casadas? (1997, p. 263).
Nada se sabe sobre essas questões, mas, como lembra Stehle, a mais forte tendência pensa, por espelhamento em relação ao coro lírico feminino, que as meninas eram um grupo de virgens “ligadas por uma líder por laços expressos na palavra” étairai, que “realizam danças e cantos juntas”.107 Esses “laços” seriam, à semelhança do que se passa nos “grupos de companheiros” (•tair¤a, hetairía), os de relações afetivo-amorosas que pressuporiam a lealdade entre as suas integrantes e a função didática da líder, segundo Calame (1997, pp. 210-11), que completa: “De um ponto de vista pedagógico, o círculo de Safo parece mais um tipo de escola para a feminilidade destinada a tornar jovens pupilas em mulheres feitas: através da performance do canto, da música e de atos cultuais, elas tinham lições de comportamento e elegância, refletidas em muitas descrições de adornos e atitudes femininas nos fragmentos de Safo que temos” (p. 231). E, adiante, ele conclui: “[Safo] tinha que iniciálas [as jovens virgens] em seu papel de gênero como esposas de famílias 228
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aristocráticas” (p. 233). Portanto, em sua teoria, ele identifica as étairai referidas por Safo como as parthénoi cuja tutela lhe é atribuída.108 Todavia, como todas as teorias a respeito, essa é de difícil sustentação, pois mesmo as outras fontes de “informações” de que se vale Calame são, em sua grande maioria, inferências feitas pelos antigos a partir dos versos dos dois poetas líricos arcaicos, Álcman e Safo. Assim, seu caráter é demasiado hipotético, o que compromete a formulação que o Fr. 2 V comprovaria e, novamente, não o faz: nele nada há relativo à dança, ao coro, às jovens virgens e às relações amorosas. Uma ressalva: mesmo se houvesse, não deixa de ser extremamente complicado tomar um texto poético, um produto da linguagem e da forma, como documento histórico. Claro está que nem Calame, nem qualquer helenista que conheça a lírica sáfica — à exceção de Wilamowitz, o grande defensor da castidade e do caráter moral da poeta e de seus seguidores109 — pode negar o indiscutível erotismo de seus versos em que predomina a presença feminina — erotismo este nomeado “homoerotismo”, “homossexualismo” ou “lesbianismo”.110 Mas buscar provas disso nos fragmentos ou tecer teorias sobre essa questão e o sobre o grupo de meninas de Safo configura-se, quase sempre, em armadilha pouco relevante à apreciação das suas canções que, mais freqüentemente do que se poderia desejar, acabam ofuscadas por discussões tangenciais que acabam por torná-las provas ou contra-provas de alguma hipótese. West comenta: “As •taire›ai [hetairei)ai, grupos] de mulheres tornaram-se notórias pelo amor homossexual. A isso não se segue que essa era a sua razão de ser, e no caso do grupo de Safo parece que elas tinham outros interesses mais úteis para a sociedade como um todo e mais prováveis de terem tido o apoio desta: música e canção, para performance pública ou privada”111 (1970, p. 325). Esse comentário acerta ao relativizar a desmedida relevância conferida à polêmica “questão sáfica” da homossexualidade, 112 que “não é absolutamente uma questão que se possa discutir com base em evidência confiável”, lembra Page (1987, p. 145): “Eu, portanto, retiro-me dessa discussão”. Mas West, na citação acima, cria uma hi229
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pótese para explicar as atividades do grupo de Safo que, novamente, não é verificável. Holt Parker, em “Sappho Schoolmistress”, após ter revisado todas as linhas de teorias criadas para explicar a natureza do grupo de meninas atribuído à poeta e de suas relações, observa que os helenistas caem em uma cilada, em um “círculo hermenêutico vicioso”, quando entram nessas discussões. Nossa quase completa ignorância acerca do panorama histórico-social da Lesbos arcaica e a afirmação corrente, mas questionável, de que “é preciso que tenhamos algumas lentes através das quais possamos visualizar a poesia [de Safo] a fim de interpretá-la” não justificam, como se pretende, as especulações, adverte Parker, pois “uma construção distorcida é um perigo, não um auxílio [...]” (1996, p. 173). É tempo de voltar às interpretações do Fr. 2 V e de seu cenário. Para West, que crê ser “real” o espaço do qual falam idilicamente os versos do fragmento, nele “Safo e suas companheiras estão desfrutando de um picnic” (1970, p. 317).113 Essa leitura é redutora, pois minimiza radicalmente o peso dos elementos sagrados do poema. Já a visão de François Lasserre, em Sappho, o exacerba, pois transforma Safo numa sacerdotisa em plena atividade, presidindo um ritual a Afrodite (1989, pp. 182-86). Mais equilibrada, Lanata vê o fragmento como uma composição que nos leva a um “ambiente de culto”, a uma “ocasião precisa ou uma circunstância na qual Safo e as ¶tairai [‘companheiras’] de seu círculo celebraram a divindade à qual sua existência estava mais estreitamente ligada, no espaço sagrado para ela e de seus atributos impregnado” (1996, p. 15). Concordo que o Fr. 2 V recria — poeticamente — um “ambiente de culto”, mas o restante da hipótese de Lanata não encontra sustentação no poema. Como bem observa Page, na lírica da poeta não encontramos “rastros da Safo sacerdotisa; Safo, a presidente de uma associação de culto; Safo, a diretora de uma academia [...]” (1987, pp. 140-41). Atirar-se a comprovar quaisquer dessas teorias configura-se como a tentativa de driblar um fato que é causa de certa frustração diante do Fr. 2 V: as suas dificuldades textuais comprometem sua interpretação e 230
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inviabilizam “uma segura avaliação do significado e do preciso valor da canção”, afirma Nicosia (1976, p. 107). Enfrentando essa realidade inerente a quase todo o corpus da lírica grega arcaica, deixo de lado a discussão das especulações de natureza histórico-biográficas motivadas, sobretudo pelo termo thalíaisi (“festividades”), que implicaria um acontecimento coletivo. Mas retomo-o na tentativa de fechar uma leitura literária do fragmento. Tomando o singular de thalíaisi, thalía (yal¤a), chega-se ao verbo thállo# (yãllv, “vicejar”) do dicionário de Chantraine, no qual thalía é dado como um substantivo de um “grupo de termos sobretudo poéticos relativos, em princípio, aos vegetais”. Há empregos especiais de certos termos do grupo, entre os quais, thalía (“abundância, alegria, festa”), que no plural significa “festas” e é mais associado aos deuses na poesia. Assim, o substantivo no dativo plural thalíaisi usado por Safo estaria relacionado ao cenário natural do fragmento, por um lado, e à esfera dos deuses, por outro. Também a Afrodite ele pode ser relacionado indiretamente, pois, segundo a Teogonia, de Hesíodo, “Tália adorável” (v. 909) é uma das Cárites que, em várias imagens literárias, acompanham a deusa e têm afinidades com o crescimento da flora. Será, então, que a proximidade com a divindade, almejada pela voz da canção e realizada por sua linguagem e forma, teria como finalidade alguma celebração cuja natureza não é possível determinar? Será que, na continuação do fragmento, a voz falaria mais sobre as “festividades”? Será que elas viriam despertar a atmosfera do “torpor divino” (v. 8) que pairava sobre o local antes da chegada de Afrodite? Para essas perguntas, é tentador acenar positivamente. Mas discorrer sobre elas implicaria considerar o que não temos do fragmento, o que está perdido para nós. Desse modo, o já inevitável terreno movediço em que se vê obrigado a caminhar o estudioso da lírica grega arcaica torna-se ainda mais incerto, mais especulativo. Por isso, prefiro abdicar de mais essa caminhada e enfrentar o que é fato: buscar uma imagem de Afrodite no Fr. 2 V é buscar um objeto do qual divisamos apenas certos contornos de linhas descontínuas, interrompidas. Escolho reter esse pequeno ganho fragmentado que consiste na interpretação 231
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inevitavelmente parcial do poema, a fim de não estilhaçá-lo ainda mais em conjecturas de pouca consistência. Sintetizo, pois, em quatro pontos, essa leitura do fragmento, do cenário nele construído e da relação deste com Afrodite: 1) O fragmento é um hino clético, ou seja, uma prece-convite literária. 2) Nele, uma voz em primeira pessoa do singular convoca Afrodite a vir de Creta para o outro local que descreverá e que se configura como um témenos poeticamente arquitetado sobre a tríade natureza–sagrado– erotismo, pleno de elementos que lhe são típicos e/ou com os quais a deusa guarda indiscutíveis afinidades poéticas e mítico-religiosas. 3) À fusão da tríade são somadas outras: a sinestesia da linguagem; o profano com o divino (vinho e néctar); o mortal com o imortal — a antevista epifania de Afrodite no mesmo espaço em que está uma voz humana que a chama, a participação da deusa em “festividades” cujo sentido não podemos precisar e cujos participantes ignoramos. Mais: a Grécia e o Oriente (o incenso e sua queima, o nome “Cípris” para a deusa evocando Chipre, a ilha situada na encruzilhada desses dois mundos). 4) Todas essas misturas, a antecipação da epifania da deusa e as oferendas a Afrodite — entre as quais a própria prece114 — são formas de expressar algo que alicerça a linguagem e a forma do fragmento: o desejo de proximidade entre a voz e a deusa por ela privilegiada e a diluição poética de fronteiras entre mortalidade e imortalidade.115
O Fr. 73a V: uma incógnita Antes de mais nada, reproduzo o Fr. 73 a V e sua tradução: a ]nb.[.].[.] u . . ]a ]an ’Afrodi[ta é]dÊlogoi d’ ™r[
a ](...).[.].[.](...) ](...) ](...), ó Afrodi[te o]s de doce fala e (...)[ 232
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]b.alloi a]i!. ¶xoi!a ]..° na yaa![! ]ãllei ]a! ™°r!a![
] lançaria (?) .](...) tendo ela (...) ](...) ... (?) [ ](...) ](...) orvalho[
Esse fragmento, infelizmente bastante mutilado, é papiráceo. Foi descoberto no rolo Papiro de Oxirrinco no 1.787 (século III d.C.), editado em 1922 por Bernard P. Grenfell e Arthur S. Hunt, em The Oxyrhynchus papyri — Part XV. Introduzindo esse volume, eles declaram que esse rolo “sofreu severamente, tendo sido rasgado em pedaços bastante pequenos, que não se encaixaram muito bem” (p. 26). E mais: “A dificuldade da tarefa de reconstrução [...] é bastante aumentada pelo fato de que os remanescentes desse rolo foram encontrados junto com uma quantidade de outros fragmentos líricos numa caligrafia idêntica” (p. 26). Em comentário ao papiro, Grenfell e Hunt sinalizam que, depois do nome de Afrodite (v. 3) e de adúlogoi (“os de doce fala”, v. 4), temos o início de uma palavra — er[ — que poderia ser éro#tes (¶rvtew, “amores”) (1922, p. 35).116 Assim, poderia ser cogitado que o verso diria “os amores de doce fala”, em referência a um coro formado por esses companheiros da deusa. A sugestão é feita com base, como os editores indicam (p. 44), em uma passagem de Himério (século IV d.C.) sobre os epitalâmios, em sua Oração XI (33-47); cito uma passagem: [...] tå d¢ ’Afrod¤thw ˆrgia par∞kan tª Lesb¤& Sapfo› õdein prÚw lÊran ka‹ poie›n tÚn yãlamon: ∂ ka‹ efis∞lye metå toÁw ég«naw efiw yãlamon, pl°kei pastãda, tÚ l°xow str≈nnusi, grãfei pary°nouw, numfe›on êgei ka‹ ’Afrod¤thn ™f’ ìrma Xar¤tvn ka‹ xorÚn ’Er≈tvn sumpa¤stora. [...] os ritos de Afrodite foram deixados à lésbia Safo, para que os cantasse para a lira e os fizesse para o tálamo. Após os concursos, ela seguia para o tálamo, ornamentava o aposento nupcial, preparava o leito, juntava as meninas virgens, conduzia as noivas e Afrodite na carruagem das Cárites, e o coro de Érotes para que se juntassem à diversão.117
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No quadro das cerimônias de casamento, Himério associa Safo, seus cantos epitalâmios, os “ritos” (órgia) de Afrodite, as Cárites e um coro de Érotes (“Amores”). Talvez, no Fr. 73a V, Safo associe Afrodite a um coro de “amores de doce fala” numa canção que, se não fosse um epitalâmio, seria à maneira de. Essa sugestão de Grenfell e Hunt, muito embora não seja aceita pela edição Voigt,118 é por ela — e mesmo pelo editor de Himério, Aristides Colonna, em Himerii declamationes et oraciones (1951, p. 76) — indicada. E estudando-a, Giuseppa Cuffari, em I riferimenti poetici di Imerio, conclui que, apesar de ser explícita a referência a Safo na passagem de Himério, é “vão o confronto pontual” com o Fr. 73a V (1983, p. 59). De fato, não há suporte textual para a atraente sugestão dos editores do papiro, o que explicaria sua não-admissão em edições mais recentes de Safo como a PLF e a própria Voigt. Mas voltemos ao que restou do Fr. 73a V, que pertenceria ao livro IV da compilação Alexandrina.119 Em nove versos cheios de lacunas, há, além de algumas letras, seis palavras legíveis: • Aphrodita (v. 3), forma do vocativo singular; • adúlogoi (“os de doce fala”, v. 4), um epíteto sinestésico que mistura paladar e audição; • talvez balloi (“lançaria”, v. 5), forma verbal optativa em terceira pessoa do singular de bállo# (bãllv);120 • ékhoisa (“tendo ela”, v. 6), forma participial feminina de ékho# (¶xv); • thaass, talvez uma forma do verbo tháasso# (yãa!!v, “sento”) no v. 7; • eérsas (“orvalho”, v. 9). Impossível saber o conteúdo do fragmento. Mas repensando o pouco que temos, a passagem de Himério e, ainda, a palavra eérsas, poderíamos aventar a hipótese de que Safo ofereceria, no Fr. 73a V, a visualização de imagens da natureza em que Afrodite, de alguma forma, estaria inserida — talvez ligada ao casamento e/ou à sexualidade/fertilidade/ erotismo. Mas essa leitura é mera conjectura, erguida em bases bem frágeis, que decorrem da extrema fragilidade do texto preservado. 234
CENÁRIOS DE AFRODITE
Assim, resta notar a referência a Afrodite e ao “orvalho” (eérsas) em uma mesma composição, algo que se repetirá no Fr. 96 V, mas cuja relação será lá, como aqui, difícil — se não impossível — de avaliar.
O Fr. 96 V e Afrodite: uma difícil avaliação Reproduzo, primeiramente, o fragmento 96 V e sua tradução: (Sárdis?) ...[...]
] !ard.[..] [—]
mui]tas vezes para cá [.]... ela tendo
pÒl]laki tu¤de. [.]vn ¶xoi!a
[—] (...)..[...].(...) (...), .[...].. (...).[..]
»!p..[...].≈omen, ..[...].. x[..] !e ~yea!ikelan érignvta~, !çi d¢ mãli!t’ ¶xaire mÒlpai.
.
(?) † qual deusa manifesta †, e (ela) muito se deleitava com tua [canção.
nËn d¢ LÊdai!in ™mpr°petai guna¤-
Mas agora ela se sobressai entre Lídias mulheres como, depois do sol
ke!!in ! pot’ éel¤v
posto, a dedirrósea
dÊnto! é brododãktulo!
pãnta per°xoi!’ ê!tra: fão! d’ ™p¤-
supera todas as estrelas; e sua luz se esparrama por sobre o salso mar
!xei yãla!!an ™p’ élmÊran
e igualmente sobre multifloridos
‡!v! ka‹ poluany°moi! éroÊrai!:
[campos.
é d’ °r!a kãla k°xutai, teyã-
E o orvalho é derramado em beleza, e brotam as rosas e o macio ce-
lai!i d¢ brÒda kêpal’ ên-
refólio e o trevo-mel em flor.
yru!ka ka‹ mel¤lvto! ényem≈dh!:
pÒlla d¢ zafo¤tai!’ égãna! ™pi-
E (ela) muito agitada de lá para cá a recordar a gentil Átis com desejo;
mnã!yei!’ ÖAtyido! fim°rvi
decerto frágil peito (?) se consome.
l°ptan poi fr°na k[.]r...bÒrhtai:
k∞yi d’ ¶lyhn émm.[..]..i!a tÒ. d’ oÈ nvnta[..]u!to.num. [..(.)] pÒlu!
E até lá ir (...).[..]..(...) isto não (...)[..]...(...)...[..(.)] muito
235
GIULIANA RAGUSA
garÊei. [..(.)]alon. [.....(.)] t. o. m°!!on: —
canta [...]...(...)... (no) meio;
e] Î. mar[e! m]¢. n oÈ.a.mi y°ai!i mÒrfan ™pÆ[rat]on ™j¤!v-
F]ác[il n]ão ... com as deusas quanto à for-
—
ma ad[orá]vel rivalizar...[..]... (......)[...]....
!y. ai !u[..] r. o . ! ¶xh!ya[...].n¤dhon
[
]...
...(.)]...[
] mãos Peitó
[
](...)[..](...) [
](...) [
]......ai [
]e! tÚ Gera¤!tion
]...... ](...) o Geraístio ](...) queridas
]n f¤lai[ [
] o néctar derramava da
áurea [
] nan . ]x°r!i Pe¤yv
[ [
]..., ó Afrodite
...[
] y[..]h.!enh ]aki!
[
].(amor?)
e...[...]...[
] n°ktar ¶xeu’ épÁ
...(.)]apour. [ [
]...[...(.)](......[
—
kam. [ xru!¤a![ [
[
]o! ’Afrosta
ka‹ d[.]m. [
—
—
to. [...(.)]rati].ero!
mal[
[
—
[
]u. !ton oÈdeno[ ]eron fijo[m
[
]... não ...[ ] ... ...[...
O texto grego está visivelmente incompleto e danificado. Os versos 21 a 36 são os mais severamente atingidos, encontrando-se demasiado “fragmentados para permitir restaurações, e o seu sentido está muito quebrado para que suas leituras sejam significantes”.121 Por isso, costumam ser cortados nas traduções.122 Uma vez que a menção a Afrodite acontece justamente nesse bloco, no verso 26, torna-se bastante difícil e problemático o estudo da representação da deusa no Fr. 96 V, similarmente ao que ocorre no Fr. 73a V. Vejamos, pois, o que é possível extrair da análise do fragmento, cuja localização na compilação alexandrina de Safo é incerta.123 Mas, antes, comento sua transmissão até nós. A fonte mais importante do Fr. 96 V é de transmissão direta, o Papiro de Berlim no 9.722 (século VI d.C.), publicado pela primeira vez por Wilhelm Schubart em 1902 e, depois, revisado e reeditado por ele e Ulrich von Wilamowitz em 1907, no quinto volume do periódico 236
CENÁRIOS DE AFRODITE
Berliner Klassikertexte (BKT), intitulado Lyrische und Dramatische Fragmente (pp. 15-18). Mas Schubart, que assina sozinho a edição do texto grego da canção, fornece apenas os versos 1 a 20. Os versos 21 a 36 foram posteriormente editados por Edgar Lobel, em SAPFOUS MELH (1925, p. 80). O que diria o conjunto de letras sard do primeiro verso conservado do Fr. 96 V? A proposta dada no aparato crítico da edição da fonte é SARD[ÍO#N,124 “Sárdis”, nome da rica capital da antiga Lídia, reino da Ásia Menor, próximo de Lesbos e recorrente na lírica sáfica, conforme enfatizei anteriormente. Além da coincidência das letras iniciais, essa recorrência seria uma das razões para a proposta, à qual se somaria a leitura de Lúdaisin (“Lídias”) no verso 6 do fragmento. Assim, os helenistas normalmente imprimem “Sárdis” no verso 1,125 embora alguns prefiram nada traduzir.126 Mas, dada sua alta probabilidade,127 optei por uma solução intermediária, registrando o nome seguido de um ponto de interrogação.128 Seja como for, ainda que a proposta se configurasse equivocada, a referência à Lídia não se perderia completamente por causa do sexto verso. Passando ao verso 2, enfrentamos nova dificuldade de leitura: pól]laki tuíde [.]o#n ékhoisa (“mui]tas vezes para cá [.]... ela tendo”). Temos dois advérbios, uma palavra perdida e ékhoisa, forma participial feminina de ékho# (¶xv), que revela que alguém — uma voz que não se identifica, tal qual no Fr. 2 V — está falando de uma terceira pessoa do sexo feminino, cuja ação ignoramos, a menos que se aceite a sugestão no texto grego dos editores da fonte para a lacuna marcada na Voigt: nô)n (n«n, acusativo singular de nou)s, noËw, “mente”) talvez como objeto de ékhoisa.129 Essa leitura, porém, não é consensual.130 Na primeira estrofe com três versos (3-5) — um padrão no fragmento —, temos: »!p..[...].≈omen, ..[...].. x[..] !e ~yea!ikelan érignvta~, !çi d¢ mãli!t’ ¶xaire mÒlp a. i:
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GIULIANA RAGUSA
(...)..[...].(...) (...), .[...].. (...).[..] (?) † qual deusa manifesta †, e (ela) muito se deleitava com tua canção.
Declara Page, sobre o verso 3: “Essa linha não pode ser reconstituída com a evidência à nossa disposição. Não temos idéia de qual pode ter sido o seu sentido, e a leitura das letras é duvidosa em muitos lugares” (1987, p. 89). No verso 4, temos as letras se, que, dada a constante divisão da palavra final dos versos no texto, se cogita ser a terminação da terceira pessoa do singular, o indicativo aoristo ativo etíme#se (™t¤mh!e, “honrou”, de timáo#, timãv).131 Nos versos 4 e 5, há duas palavras entre cruzes — †theasikelan ari-/gno#ta†, “†qual deusa manifes-/ta†” — e, no verso 5, uma frase completa, em que a voz do texto diz que alguém “se deleitava” (ékhaire, forma indicativa do imperfeito de khaíro#, xa¤rv) “com a canção” (mólpai) de outra pessoa — a segunda do singular, indicada no pronome sãi (dativo singular de sú, !Ê, “tu”). Considerando em conjunto os dois primeiros pontos, os helenistas sugerem a tradução “[Ela honrou-]/te qual deusa manifesta”132 para parte dos versos 3 e 4.133 De qualquer forma, fica claro que, até os versos 4 e 5, temos uma voz a falar de duas outras pessoas — ambas do sexo feminino — que estiveram relacionadas de algum modo. Isso se reforça com a frase do verso 5, em que “(ela)” — decerto a terceira pessoa do singular referida na forma participial feminina ékhoisa (v. 2) — “se deleitava” com algo relativo à segunda pessoa do singular referida em sãi — que seria a mólpai (“canção”), canta a voz que rememora o passado. Esse tempo é alterado na estrofe seguinte (vv. 6-8): nËn d¢ LÊdai!in ™mpr°petai guna¤ke!!in ! pot’ éel¤v dÊnto! é brododãktulo! Mas agora ela se sobressai entre Lídias mulheres como, depois do sol posto, a dedirrósea .
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CENÁRIOS DE AFRODITE
O advérbio nu)n (“agora”) traz o canto para o presente, numa alternância que é uma marca importante da lírica sáfica134 e que também se verifica em outros quatro fragmentos do corpus deste livro (1V, 5V, 22V e 86 V). No Fr. 96 V, ela faz com que a voz passe a descrever a situação atual da desconhecida personagem “ela”, que estaria na Lídia, onde “se sobressai” (emprépetai, forma do indicativo presente de emprépo#, ™mpr°pv) entre as mulheres. A alternância temporal introduz, ainda, o símile da canção, longamente desenvolvido no decorrer de três estrofes (vv. 6-14), razão pela qual essa figura de linguagem se tornou central nas discussões sobre o Fr. 96 V.135 O símile inicia-se com ô´s (“como”), que explicará de que maneira “ela” “se sobressai entre Lídias mu-/lheres” (vv. 6-7). Guarde-se, pois, primeiramente, a referência ao Oriente, universo próximo de Safo e de Afrodite e também presente no Fr. 2 V, como vimos. No Fr. 96 V, tal referência consiste na menção da Lídia. A ponte que viabiliza a comparação daquela que “se sobressai” à selánna136 (“lua”, v. 8) é a beleza de ambas. Mulheres, elementos femininos como a lua, beleza: estamos na esfera de Afrodite. Em essência, a função do símile é expressar, através de uma série de imagens, quão bela é aquela que está distante. E a imagem de comparação, trabalhada na figura de linguagem, é esta: aquela que está ausente de Lesbos137 se destaca entre as lídias “como” (v. 7), após o pôr-do-sol (vv. 7-8), a brododáktulos selánna (“dedirrósea lua”, v. 8): pãnta per°xoi!’ ê!tra: fão! d’ ™p¤!xei yãla!!an ™p’ élmÊran ‡!v! ka‹ poluany°moi! éroÊrai!:
é d’ °r!a kãla k°xutai, teyãlai!i d¢ brÒda kêpal’ ênyru!ka ka‹ mel¤lvto! ényem≈dh!: supera todas as estrelas, e sua luz se esparrama por sobre o salso mar e igualmente sobre multifloridos campos.
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GIULIANA RAGUSA
E o orvalho é derramado em beleza, e brotam as rosas e o macio cerefólio e o trevo-mel em flor.
Ou seja, a beleza daquela que supera as lídias equivale à beleza da “lua” brododáktulos (em ático =ododãktulo!, rhododáktulos), que supera a de “todos [...] os astros” (pánta [...] ástra) e cuja “luz” (pháos) se espalha pelo mar e pela terra fazendo cair o “orvalho” (eérsa) “em beleza” (kála) sobre a flora. Comparando os cenários desse fragmento e do Fr. 2 V, percebe-se que ambos são estruturados, fundamentalmente, em imagens da natureza articuladas num momento instantâneo de observação descrito pelas respectivas vozes dos dois fragmentos. Mas há, pelo menos, três diferenças: o sagrado é dominante no cenário do Fr. 2 V, que guarda ainda uma dimensão erótica, enquanto no Fr. 96 V acontece exatamente o contrário; o cenário do Fr. 2 V parece configurar-se como diurno, o do Fr. 96 V, como noturno; o do primeiro lida sobretudo com elementos terrestres, enquanto o segundo tem por elemento principal a selánna (“lua”), que é celeste. Essa selánna é chamada brododáktulos, ou seja, “dedirrósea”. O que significa essa atribuição à “lua” do epíteto homérico de Éos, a deusa Aurora? Essa indagação é inquietante. Compreende-se que a manhã se anuncie avermelhada ou rósea, mas que a lua tenha ou projete tais cores é algo que escapa à compreensão dos estudiosos.138 No entanto, Safo especifica que a “dedirrósea lua” vem “depois do sol posto” (pot’ aelío#/ dúntos, vv. 7-8). Logo, talvez a sua coloração reflita, segundo o olhar da poeta, o rastro deixado no horizonte pelo pôr-do-sol, e não exatamente as cores desse fenômeno observado na Grécia.139 O certo é que a imagem da “lua dedirrósea” inverte a imagem épicohomérica da “Aurora dedirrósea”. Com isso, a poeta inova uma vez mais, pois transfere o epíteto e sua carga significativa de um elemento que traz a manhã (Éos) a outro que traz a noite (a lua) sem, contudo, sair do registro da natureza e de suas marcações temporais, como o raiar do dia, o seu cair e o anoitecer. Essa explicação pode soar muito simples, mas, às vezes, a complexidade é uma criação dos críticos. 240
CENÁRIOS DE AFRODITE
Não se pode deixar de lado, ainda, o notável fato de que, nos fragmentos sáficos que temos, Éos é referida em pelo menos cinco fragmentos de Safo (58 V, 103 V, 104 V, 123 V e 157 V). No entanto, à exceção do Fr. 104 V, em que seu nome aparece sozinho, em nenhum dos outros textos ela recebe o epíteto homérico rhododáktulos (“dedirrósea”): no Fr. 58 V, ela é brodópakhun (brodÒpaxun, “de róseos braços”); nos fragmentos 103 V e 123 V, Éos é khrusopédilos (xru!op°dilo!, “de áurea sandália”); e no Fr. 157 V, pótnia (pÒynia, “veneranda”). Parece que a imagem homérica não foi reservada, na lírica de Safo, a Éos, a deusa aurora. Se essa leitura procede, há que se destacar que, na alternância da estrofe dos versos 6 a 8 para a dos versos 9 a 11, ocorre uma pequena mudança, pois a voz percebe os outros astros e passa agora a descrever, em primeiro plano, não mais a “lua”, mas sua “luz” (pháos) e o amplo alcance por terra e mar. Talvez, então, não estejamos mais nos primeiros momentos do anoitecer como antes, mas em estágio avançado desse período. Depois, na virada para a estrofe dos versos 12 a 14, há uma nova mudança que nos leva da alta noite a meados da madrugada, quando cai o orvalho sobre o chão. Assim, além do amplo painel de cores e brilho que suscita, o símile abarcaria água, céu, mar e ar, e igualmente as diversas etapas da noite e suas características. Sua riqueza e sua trama bem urdida são notáveis. E não será esta a única vez em que Safo cantará a lua. Destaco duas outras. A primeira, no Fr. 34 V, em que Safo articula beleza, elementos femininos, a lua e sua luz: ê!tere! m¢n émf‹ kãlan !elãnnan íc épukrÊptoi!i fãennon e‰do! ˆppota plÆyoi!a mãli!ta lãmph gçn . . . . * * * érgur¤a ... e as estrelas, em torno da bela lua, de novo ocultam sua luzidia forma, 241
GIULIANA RAGUSA
quando plena ao máximo ela ilumina a terra ... * * * argêntea
A segunda dá-se no Fr. 154 V, da qual apenas o início se conservou — indica a koro#nís (korvn¤w, ⊗): ⊗
PlÆrh! m¢n ™fa¤net’ é !elãna, afi d’ »! per‹ b«mon ™!tãyh!an Em plenitude brilhava a lua, quando elas em torno do altar se postaram ...
Difícil saber o que se passaria nesse fragmento. O bô)mon (“altar”) rodeado de mulheres e o fato de a lua estar brilhando plena indicariam a descrição poética de um ritual sacrificial noturno. Mas por que, no Fr. 96 V, ela escolheu a selánna (“lua”) para o símile? Essa questão incomoda os estudiosos, levando a uma inviável e algo inadequada pesquisa intencional. Buscando restringi-la ao contexto da composição e pensando tanto nos fragmentos 34 V e 154 V quanto na explicação proposta anteriormente para o epíteto rhododáktulos (“dedirrósea”), uma resposta razoável seria esta: a lua é um elemento feminino, mesmo na língua grega, e suas funções, sendo as de regular os ciclos biológicos e o ritmo das marés e interferir na fertilidade,140 a aproximariam da esfera da mulher, percebida na Antigüidade como próxima dos líquidos, da umidade e da natureza, porque lhe cabe garantir uma etapa crucial do ciclo biológico humano, a reprodução. Portanto, nada há de estranho ou absurdo no símile sáfico, cuja consistência e coerência do ponto de vista das imagens que o tecem são inegáveis. Primeiro, porque a imagem que serve de comparação à beleza de uma mulher é a da lua, elemento feminino, o que de pronto estabelece o universo da canção. Depois, porque todas as imagens do símile estão assentadas na tríade que o alicerça — natureza–mulher/beleza–fertilidade, a qual é também trabalhada no Hino homérico V, a Afrodite, em 242
CENÁRIOS DE AFRODITE
passagem citada no capítulo anterior, mas que relembro agora, pois nela lê-se que sobre os seios da deusa ricamente vestida e adornada “brilhavam” (elámpeto, v. 90), “como a lua” (ho#s dè selê´ne#, v. 89), “colares belíssimos [...]/ belos, áureos, todo-faiscantes” (vv. 88-89). Quanto à amplitude da “luz” (pháos) lunar do Fr. 96 V, ela atinge o “salso [...] mar” (thálassan [...] almúran, v. 10) — uma expressão épico-homérica141 — e os “multifloridos campos” (poluanthémois aroúrais, v. 11). Se a imagem do mar fala do alcance da luz, a dos campos plenos de flores várias fala da terra fertilizada pela influência lunar. É a fertilidade e a beleza que, de novo — e duplamente —, serão enfatizadas na estrofe seguinte, cujo tom erótico é marcado. Os versos 12 e 13 cantam que o “orvalho [...] é derramado” (eérsa [...] kékhutai) — subentendese, pela lua — “em beleza” (kála), e que, ao tombar sobre a terra, faz brotar, diz a forma verbal tethálaisi (perfeito de thállo# , yãllv), as “rosas” (bróda). Temos, pois, uma reiteração da presença da flor, no verso 11, já inserida no símile de modo intensificado, caracterizando os “multifloridos campos”. A diferença é que no verso 13 a voz do fragmento especifica uma espécie de flor e as “rosas”. Além dessas, são especificados o “cerefólio” (ánthruska) e o “trevo-mel” (melílo#tos, v. 14), que crescem estimulados pelo orvalho e também pela luz lunar. Vejamos de perto essa flora. As bróda não recebem nenhum adjetivo, mas figuram como prediletas de Afrodite e recorrentes na lírica sáfica, carregando um forte sentido de beleza, de erotismo, de pujança vital e de efemeridade, como, aliás, todas as outras flores. Interessante notar esta ligação: a brododáktulos (“dedirrósea”) selánna (“lua”), que faz cair o eérsa (“orvalho”) fertilizador, gera bróda (“rosas”). Lua, rosa e fertilidade relacionam-se fortemente no fragmento. Ressalte-se que, segundo Waern, o tipo de rosa mais comum em Lesbos deve ter sido a cor-de-rosa (1972, p. 4). Quanto ao ánthruska e o melílo# tos, esses recebem adjetivos. O primeiro é dito ápal’ (v. 13), de apalós (em ático, hapalós, èpalÒw), que, 243
GIULIANA RAGUSA
lembra Jenkyns, é “um adjetivo favorito” da lírica sáfica, antes dela não empregado para um vegetal, mas apenas para o corpo ou suas partes (1982, p. 68).142 Impossível ignorar o aspecto sensual de tal adjetivo e, por conseqüência, de seu objeto. O segundo é dito anthemô´de#s (“em flor”, v. 14), adjetivo que, novamente, sublinha sua qualidade floral, fresca, viva e pulsante. Voltando ao estudo de Waern, ela diz, sobre as três flores dos versos 12 a 14, que “Safo, no Fr. 96 V, põe juntas três flores altas e de doce aroma, nas cores rosa, branca e amarela, o que pode ter sido feito conscientemente para efeito” (p. 6). Afinal, podem ser essas as cores da lua no fragmento: no início, na transição entardecer–anoitecer, é “dedirrósea”; depois, quando na alta noite ela se projeta proeminente sobre as outras estrelas, oscila entre o branco, o argênteo e o perolado. Como se não bastasse tamanha ênfase no aspecto belo, erótico, fértil e colorido dessas imagens do cenário lunar do poema, elas são precedidas pelo “orvalho” (eérsa) derramado pela lua sobre a terra. Esse dado merece atenção. Recapitulo dois outros: 1) No danificado Fr. 73a V (v. 9), lê-se eérsas. Esse fragmento costuma ser associado, embora sem sólida fundamentação, ao quadro das bodas e, logo, à fertilidade e a Afrodite. O “orvalho” também. Logo, sua referência não seria fortuita. 2) Comentei, em dado momento do estudo do Fr. 2 V, que, no episódio do hieròs gámos entre Zeus e Hera na Ilíada (canto XIV), do qual Afrodite participa, o “orvalho” é um dos elementos que vem somarse à flora estimulada pelo soberano deus a brotar para servir de leito de amor. Precisamente, canta o poeta que o “lótus [...] orvalhado” (lo#tón [...] hersê´enta, v. 347) vem compor o cenário erótico-amoroso natural nos cimos do monte Ida. Em Descent from heaven, Deborah Boedeker discorre detalhadamente sobre as imagens do orvalho na poesia e na religião gregas. Uma conclusão interessante para a análise do símile do Fr. 96 V é que essa substância líquida “está conectada, na poesia arcaica, com a nutrição 244
CENÁRIOS DE AFRODITE
de plantas não cultivadas para servirem de alimento humano, especificamente com flores e pastos” (1984, p. 38). O primeiro caso é o do fragmento em pauta. Isso revelaria, segundo a helenista, que o orvalho “é mais estreitamente associado à natureza do que à cultura, incluindo a agricultura” (p. 41). Interessante notar, ainda, que esse líquido teria um aspecto de doçura, enfatizado pela sua relação com o mel, segundo Boedeker: “É largamente atestada [na Antigüidade] a crença de que o mel se origina de um tipo de ‘orvalho’ coletado pelas abelhas” (p. 47). No fragmento, o “orvalho” alimenta flores de doce aroma, uma delas tendo o “mel” na primeira parte do nome, melí-lo#tos (“trevo-mel”). Avançando suas considerações, Boedeker afirma que o orvalho é tido como um produto da lua e do ar, capaz de nutrir e de fertilizar a terra e sua flora (p. 51). Esse aspecto é também notável na mulher, na lua e nas várias flores trabalhadas no símile do Fr. 96 V, para não mencionar as próprias prerrogativas de Afrodite. Resta perguntar, agora: qual o sentido do símile em relação ao restante do fragmento? Eis outra questão debatida.143 Embora não vá abordá-la, ressalto que o símile se conecta ao restante do poema na medida em que ambos tratam da beleza feminina e estão perpassados pelo erotismo, aspecto frisado na estrofe dos versos 15 a 17: pÒlla d¢ zafo¤tai!’ égãna! ™pimnã!yei!’ ÖAtyido! fim°rvi l°ptan poi fr°na k[.]r...bÒrhtai: E (ela) muito agitada de lá para cá a recordar a gentil Átis com desejo; decerto frágil peito (?) se consome.
De “desejo” (iméro#i) por “Átis”, a quem possivelmente a voz do fragmento se endereçava ao citar a segunda pessoa do singular,144 “ela” “se consome” (bóre#tai)145 — ou talvez o seu “coração” seja consumido, segundo uma reconstituição das letras k[.]r (v. 17), que formariam a palavra kê)r (k∞r).146 245
GIULIANA RAGUSA
Entre as palavras hímeros (·merow) e póthos (pÒyow), Safo escolhe a primeira para nomear o “desejo”, a qual, afirma Claude Calame, em The poetics of eros in ancient Greece, “parece referir-se a um desejo mais premente que chega ainda mais perto de sua realização” (1999, p. 31). Essa nuance conferiria à estrofe reproduzida uma intensificação erótica que, de qualquer modo, é exercida pelas relações recorrentes na poesia antiga entre Afrodite, póthos, hímeros e éro#s — os três últimos sendo também deidades do séquito da deusa. Isso ocorre, por exemplo, na Teogonia, em que Hímeros figura ao lado de Éros como acompanhante da recém-gerada deusa, quando ela, saída das águas, vai ao Olimpo para ser apresentada aos seus pares (vv. 201-2).147 Portanto, pode-se dizer que a voz do Fr. 96 V insere sua canção no universo de Afrodite — como o faz a voz do Fr. 2 V. Não faltam elementos, até o verso 17, que se liguem à deusa e à sua esfera de atuação. Até mesmo o cenário noturno, que “na opinião dos antigos” era “o melhor para a expressão dos desejos, memórias e lamentos”,148 funciona como um dos elementos de tal ligação. A estrofe dos versos 18 a 20 está bastante comprometida. Nela, identificam-se o advérbio de lugar kê)thi (“lá”, v. 18); o infinitivo aoristo élthe#n (“ir”, v. 18), de érkhomai (¶rxomai); a negação de algo (tós’ ou, “isto não”, v. 18); alguém que “muito/ canta” (pólus/ garúei, vv. 1920); a palavra mésson (“meio”, v. 20). Essa situação é ainda pior nos versos subseqüentes. Neles, fala-se novamente em comparação entre as mortais e as deusas (cf. vv. 4-5) e na beleza. A voz canta: “Fácil não” (eúmares mèn ou, v. 21) “com as deusas” (théaisi, v. 21) “rivalizar” (eksíso#sthai, vv. 22-23) em relação à “forma adorável” (mórphan epê´raton, vv. 21-22). Difícil saber como articular esses versos às estrofes anteriores. Depois, a mutilação é mais dramática, impedindo a reconstrução de sentido da canção: eros, talvez éro#s, o “amor” (v. 25); Aphrodíta (v. 26); “o néctar derramava/ da áurea” (néktar ékheu’ apù/ khrusías, vv. 27-28); “mãos” (khérsi, v. 28). Talvez esses versos trouxessem uma invocação a Afrodite, na qual o sagrado se insinua, dada a forma vocativa do nome da deusa no verso 26 e, sobretudo, a sua semelhança com 246
CENÁRIOS DE AFRODITE
os versos 13 a 16 do Fr. 2 V — sempre notada, mas nunca satisfatoriamente explicada por conta dos graves danos ao texto.149 Continuando, temos ainda: Peitó (Peítho#, “a Persuasão”, v. 29); “o Geraístio” (tò Geraístion, v. 33); “queridas” (phílai, v. 34). A deusa Peitó, segundo certas tradições, compõe o séquito de Afrodite e, de todo modo, liga-se à sedução amorosa. Quanto a “Geraístio”, trata-se do nome de um santuário de Posêidon em Geraistos, na Eubéia — Grécia continental — e, portanto, distante de Lesbos. Sua relação com o poema e mesmo com Afrodite é obscura, pois o santuário, segundo Rob W. M. Schumacher, em “Three related sanctuaries of Poseidon”, tinha a reputação de ser um “asilo”, diz uma inscrição do período helenístico (1993, pp. 68 e 79). Schumacher ressalta que o sítio onde ficava o santuário é mencionado em muitas fontes antigas, especialmente por sua enseada, pois Geraistos era um porto importante: “No tempo de Homero, a rota entre Lesbos e Geraistos já estava em uso” (p. 77). Se houve de fato um vínculo histórico entre Geraistos e Lesbos, isso explicaria a menção do nome do santuário de Posêidon em Safo. Mas como esta se vincularia ao Fr. 96 V e/ou a Afrodite? Eis algo que escapa aos helenistas.150 Chego, pois, ao final do percurso pelo cenário do Fr. 96 V com um ganho vago: quase todos os seus componentes são passíveis de serem relacionados a Afrodite. Contudo, ignoramos se tais relações se estabelecem de fato, de que maneira e por que razões, pois o texto da canção oferece um empecilho incontornável à compreensão da representação de Afrodite nele realizada: o nome da deusa é referido apenas no verso 26, ou seja, justamente num bloco de versos demasiado mutilado, cujo pertencimento ao poema é até mesmo posto em dúvida, como mostra a nota de Campbell à sua tradução de tal bloco: “Talvez [seja] o início de um novo poema” (1994, p. 123).151 Para este capítulo, é certamente o fim do estudo dos cenários sáficos de Afrodite e da busca de fragmentos da representação da deusa neles realizada por Safo.
247
GIULIANA RAGUSA
Notas 1
Cf. ed. Rabe (1985, p. 331).
2
Lanata (1960, p. 82). Mesma opinião: Gallavotti (1942a, p. 181), Page (1987, p. 38; 1 a ed.: 1955), Nicosia (1976, p. 92).
3
Nicosia (1976, p. 93).
4
Cf. Gallavotti (1942a, p. 181) e Lanata (1960, pp. 82 e 90). Entre os adeptos dessa forma, Kirkwood (1974, p. 114) e Jenkyns (1982, p. 26). Lasserre (1989, p. 182) defende katárrei (katãrrei, “cai sem cessar”), forma dada em Lobel (1925, Inc. Lib., Fr. 6), Edmonds (1934, Fr. 4), Diehl (1936, Fr. 5), Reinach e Peuch (1937, Fr. 4).
5
Cf. também a crítica de Norsa (1949, p. 50) a essa conjectura.
6
Gallavotti (1942a, p. 181) e Lanata (1960, p. 82). Fontes (2003, p. 381) escolhe katérrei, “escorre”.
7
Cf. Norsa (1937, p. 8), para quem o registro pode ser uma “cópia privada” do texto sáfico. Gallavotti (1942a, pp. 183-89) dá uma listagem classificatória dos erros “imputáveis ao transcritor” e a descrição do enquadramento dado pelo copista ao texto. Cf. Nicosia (1976, pp. 98-99, nota 58). Em relação ao copista, diz West (1970, p. 315): “O texto [do Fr. 2 V] está num estado mais difícil que o usual, graças à falta de cuidado do copista que freqüentemente o corrompe [...]”. Similarmente, Norsa (1949, p. 50), Page (1987, p. 35) e Campbell (1998, p. 267; 1 a ed.: 1967). Uma das raras vozes contrárias às opiniões negativas sobre o copista é a de Robbins (1995, p. 233): “[Ele] não era um garoto de escola tomando um ditado, mas uma pessoa de boa caligrafia que transcreveu na cerâmica parte de um poema favorito”.
8
Nicosia (1976, p. 88) afirma: o texto do óstraco “não se constitui como um dado seguro e incontroverso para a restituição” do Fr. 2 V. Recordo uma terceira opção proposta por Norsa (1937, pp. 12-13), mas já descartada: katirron (katirron), que seria kat’ írron (kat’ ‡rron). Contra essa leitura: Gallavotti (1942a, pp. 180-81), Page (1987, p. 38) e Lanata (1960, pp. 64-90).
9
Também West (1970, p. 317, nota 24; 1994, p. 36), McEvilley (1972, p. 323) e Robbins (1995, p. 232). Note-se que Bergk (1914, Fr. 5) e Lobel (1925, Inc. Lib., Fr. 6) são fiéis à forma citada em Hermógenes. Mas, como o dialeto de Safo a inviabiliza, eles propõem katágrei como solução.
10
Cf. traduções de Ramos (1964, p. 64), Souza (1984, pp. 71-72), Snyder (1997, p. 165) etc. Para Lanata (1960, p. 82), o uso intransitivo é “estranho à linguagem da épica, da lírica e da tragédia”.
11
Cf. Lanata (1960, pp. 88-89), Bowra (1961, p. 197), Barilier (1972, p. 41), Carratelli (1979, p. 139, “Nota”), Campbell (1983, p. 16), Wilson (1996, p. 34).
248
CENÁRIOS DE AFRODITE
12
Diz Page (1987, p. 40): “A convenção [do hino clético] requer que a localidade descrita nas primeiras três estrofes mais ou menos completas [do Fr. 2 V] seja entendida como o lugar que a deusa deve visitar, não o local que ela deve deixar”.
13
Cf. Page (1987, p. 34), Campbell (1998, p. 41; 1a ed.: 1967), Danielewicz (1969-1970, p. 165), McEvilley (1972, p. 324), Carratelli (1979, p. 133), Jenkyns (1982, p. 22), Snyder (1991, p. 67). Ver as traduções de Souza (1984, p. 71), Robbins (1995, p. 232) e Fontes (2003, pp. 380-81). Raros são os casos como o de West (1994, p. 36), que opta por uma forma neutra — “Vem, deusa, para o seu santuário sacro...” — por não crer na ocorrência de “Creta” no verso 1.
14
Igualmente em Lanata (1960, p. 89) e Kirkwood (1974, p. 114). Porém, para eles, Norsa (1937, pp. 10-14; 1949, pp. 44-50) e Gallavotti (1942a, pp. 190-94), a cena passa-se em Creta. Já Lasserre (1989, pp. 182-84) crê que a cena se passa em Lesbos (ver crítica de Liberman, 1989, pp. 236-37).
15
Para boa parte dos motivos literários das preces, West aponta paralelos nas literaturas orientais. Cf. Gould (1992, pp. 15-23) para comentários sobre alguns desses motivos.
16
Verbo muito estudado devido aos seus dois significados, “rezar” e “vangloriar-se”. Cf. LSJ, Benveniste (1995b, pp. 233-43), Depew (1997, pp. 232-34) e Burkert (1998, p. 73). Para Depew, o primeiro sentido é “religioso”, o segundo, “secular”, sendo ambos aproximados por uma função comum — “Eles fazem um pedido” — que executam “da mesma maneira”.
17
A maior parte das edições pós-anos 50 dá como incompleto o Fr. 2 V. Alguns concordam com isso — Page (1987, p. 39), Campbell (1998, p. 268; 1a ed.: 1967) e Robbins (1995, p. 233), entre outros —, mas para Gallavotti (1942a, pp. 195-98) e Lanata (1960, pp. 87-88) a peça está completa.
18
Cf. Page (1987, p. 39) e Robbins (1995, p. 233).
19
Cf. Gallavotti (1942a, pp. 193-94).
20
Cf. Lanata (1960, p. 80, notas 1 e 2) sobre o dativo. Dois dos poucos que traduzem o dativo com outro sentido, “em meu benefício”, são McEvilley (1972, p. 324) e Kirkwood (1974, p. 114).
21
Cf. Fränkel (1975, p. 185), Johnson (1982, p. 4) e Calame (1995).
22
É muito raro que se conteste essa leitura. Há dois casos mais recentes — e isolados: Lasserre (1989, p. 182) e Martyn (1990, pp. 204-5), que adotam énaulon (¶naulon, “pequeno vale”) em vez de nau)o n, como antes deles fizeram Gallavotti (1942a, p. 193) e Lanata (1960, p. 81). Esta última mantém tal postura em artigo de 1996. Cf. crítica de Liberman (1989, p. 237). Mesmo Norsa (1937, p. 12), que no óstraco lia énaugon (¶naugon), palavra “não registrada nos léxicos”, aceita nau)on em artigo de 1949 (pp. 47 e 49).
23
Cf. Benveniste (1995b, pp. 202-3): “[...] hágnos [ëgnow, ‘sagrado’, forma do ático], epíteto homérico, é sobretudo um termo poético”.
249
GIULIANA RAGUSA
24
O esquema métrico do Fr. 2 V, por isso inserido no livro I da edição alexandrina de Safo, é o da “estrofe sáfica”, formada de três versos hendecassílabos e um adônio (l = sílaba longa; b = breve; x = anceps, isto é, longa ou breve): 1, 2, 3 (l b l x) (l b b l) (b l l) / 4 (l b b l | l). Esse esquema, cujo núcleo é o coriambo ( l b b l ), confere acentuada sonoridade à composição ao alternar bastante as sílabas longas e breves. Tal sonoridade é enriquecida por outros recursos, como as anáforas, as assonâncias, as aliterações, e mesmo pela ausência de espírito rude (’, h) — cujo som seria “rr” —, característica do dialeto lésbio-eólico que suaviza a pronúncia de palavras como ágnon, que em ático seria hágnon (ëgnon). Cf. Page (1987, pp. 318-23), Bowie (1984) e West (1996, pp. 29-34). A música, parte integrante da antiga poesia grega, é uma dimensão perdida para nós, sendo o que se sabe a respeito mera reconstrução artificial. Todavia, vale lembrar que a lírica sáfica era, na Antigüidade, tida como intensamente melodiosa. Cf. testimonia na edição de Campbell (1994, pp. 2-51).
25
Cf. comentários de Vernant (1992a, pp. 19 e 38) e de Snyder (1997, pp. 81-87).
26
Ver Ilíada (canto V, vv. 337-39), Odisséia (canto VIII, vv. 362-66), Cantos cíprios (Fr. 6), Hino homérico V, a Afrodite (vv. 58-67). Sobre as Cárites, cf. Friedrich (1978, pp. 106-7), entre outros.
27
Sobre os cultos, cf. Pirenne-Delforge (1994a, pp. 39, 231-32, 279-80, 377).
28
Cf. também comentário similar de Barilier (1972, p. 43).
29
Cf. Motte (1973, pp. 6-7), que diz que a palavra grega álsos está entre aquelas que, denominando realidades naturais, guardam uma inegável carga religiosa.
30
Cf. Burkert (1998, pp. 84-85).
31
Waern (1972, pp. 9-10) salienta que a palavra “pode significar qualquer árvore frutífera, mas usualmente significa macieiras”.
32
Analisando a datação do santuário, Pirenne-Delforge (1994a, p. 136) afirma que “diferentes elementos permitem inscrever no século VIII a.C. o terminus ante quem da origem do culto de Afrodite no sítio”. Sobre a maçã e a estátua, cf. Otto (1979, p. 95; 1a ed.: 1929) e Friedrich (1978, pp. 74-75).
33
Cf. ainda Jenkyns (1982, p. 31).
34
West (1997, pp. 35-36): a palavra, ausente do Linear B, teria raízes semíticas.
35
Cf. Will (1989, p. 531), Vernant (1990, p. 70), Sissa e Detienne (1991, p. 195) e Burkert (1998, p. 87).
36
Sobre os tipos de sacrifício, cf. Vernant (1990, pp. 72-73) e Burkert (1998, pp. 38-42). Este último lhes ressalta a influência oriental, sobretudo nas oferendas não-cruentas, nas ofertas de líquidos, nas queimas de incenso. Ver West (1997, pp. 35-40). A forma thumiámenoi (vv. 3-4, thumiázo#, yumiãzv, “incensar, ser queimado”) relaciona-se ao verbo típico para indicar um ato sacrificial, thúo# (yÊv). Cf. LSJ e estudos de Detienne (1972, pp. 73-74) e Benveniste (1995b, pp. 229-30).
250
CENÁRIOS DE AFRODITE
37
A palavra, como libano# t ós, é traduzida por “incenso”. Todavia, ela designaria a árvore da qual se extrai esse elemento. Cf. LSJ e Page (1987, p. 36).
38
Page (1987, p. 36). Cf. Burkert (1992, p. 36) e Campbell (1998, p. 267).
39
Safo também teria nascido nessa cidade, como já se afirmou. Sobre Teofrasto, cf. a introdução da edição Hort (1948). Essa e outras informações sobre o autor são dadas pela sua biografia por Diógenes Laércio (início do século III d.C.), em Vida de filósofos, obra compilada cerca de 400 anos após a morte de Teofrasto. Trata-se, portanto, de uma fonte problemática.
40
Texto grego: ed. Hort. Incenso, cássia e mirra são citados no Fr. 44 V (v. 30) de Safo, sendo que “mirra” (murra, mÊrra, variante de smúrna) e “cássia” (kasía) nele ocorrem pela primeira vez, segundo Campbell (1998, p. 276; 1a ed.: 1967). Cf. Detienne (1972, pp. 37-47), sobre a cássia, que também analisa a mirra. Sobre esta, ver ainda Atallah (1966, pp. 44-48).
41
Cf., sobre a água e sua dimensão divina, Arnould (1994, p. 16).
42
Cf. a respeito Burkert (1998, pp. 76-78).
43
Pirenne-Delforge (1994a, p. 141) observa que esse vaso era “um presente tradicional para os casamentos e uma decoração fúnebre reservada às sepulturas dos celibatários”.
44
Cf. idem, op. cit., pp. 139-45, para comentários acerca do relato de Pausânias sobre as serventes do santuário.
45
Cf. Faraone (2001, pp. 72-73).
46
Harvey (1957, pp. 215-17).
47
Cf. ainda Romè (1965, p. 238).
48
Cf. Fränkel (1975, p. 179), Jenkyns (1982, p. 24) e Snyder (1991, p. 7), entre outros que ressaltam esse aspecto do Fr. 2 V.
49
Cf. Ilíada (canto XXIII, vv. 185-87) e Cantos cíprios (Fr. 6, vv. 4-5). Otto (1979, p. 94) lembra várias outras referências encontradas tanto em poetas gregos quanto em poetas latinos.
50
Hill (1949, p. 73). Cf., sobre outras evidências arqueológicas e dados míticos em Motte (1973, pp. 122 e 127), Pirenne-Delforge (1994a, pp. 231-32 e 341, nota 162) e Calame (1999, p. 162). A rosa aparece, ainda, em certas versões do mito de Afrodite e Adônis, trabalhado no Fr. 140 V de Safo, como se verá.
51
Como já disse, entendo katairion como kataírei.
52
Lanata (1996, p. 17).
53
Tradução de Snyder (1997, p. 18). O problema é que ela superficializa o complexo sentido de kô)ma.
54
Cf. os comentários parecidos de Campbell (1998, pp. 267-68; 1a ed.: 1967) e Barilier (1972, p. 44).
251
GIULIANA RAGUSA
55
Cf. a tradução de West (1994, p. 36, “um sono de transe”) e Danielewicz (1969-1970, p. 165), que fala em “êxtase religioso” e “tom de encantamento”. Ver também Jenkyns (1982, pp. 22-25).
56
Assim pensa Lasserre (1989, pp. 184-88): “[o Fr. 2 V] não é uma ficção poética, mas se reporta a um ritual. Ela acompanha necessariamente um dos atos de uma cerimônia no curso da qual a própria poeta, provavelmente em sua qualidade de sacerdotisa da deusa, conduzia o ofício. Qual? [...] a libação”. Contra essa visão: Page (1987, pp. 42-43 e 128) e Lesky (1995, p. 172), entre outros.
57
Cf., sobre a relação sono–paixão e as passagens poéticas referidas, Calame (1999, pp. 36, 43-46 e 167). Sobre os leitos das duas uniões, ver Motte (1973, pp. 207-13). Note-se que em Safo, Fr. 63 V, lê-se úpnos [/ glúkus th[é]os (“sono [ / o doce d[e]us”, vv. 2-3), mas pouco se pode dizer a respeito dessa ocorrência, dada a condição precária do texto.
58
Cf., por exemplo, Burnett (1983, p. 272). Contra essa postura, Robbins (1995, pp. 233-35), que diz, ao final de uma série de objeções: “Eu não acredito nem por um instante, sobretudo, que Safo, dentre todos os poetas, pudesse ser ingênua o suficiente para sugerir que a satisfação sexual vem do alto das árvores”.
59
Page (1987, p. 38) adota tal leitura, que foi proposta em 1937 por Vogliano. Lanata (1960, p. 90), Campbell (1998, p. 41; 1a ed.: 1967), Fontes (2003, pp. 380-81) e vários outros também a aceitam. Há outras três propostas diversas feitas, respectivamente, por Norsa (1937, p. 13), Gallavotti (1942a, pp. 193-94) e Lasserre (1989, p. 182).
60
Pirenne-Delforge (1994a, p. 165, nota 78). Cf. Farnell (1896, pp. 642 e 740) e Lévêque e Séchan (1990, pp. 373-74), que apontam outros epítetos cultuais da deusa ligados às flores ou à fertilidade do solo e crescimento das plantas.
61
Ver comentários de Lanata (1996, p. 16). Lembro o Fr. 1 PMG de Álcman e o Fr. 7 W de Semônides (cf. ed. Campbell, 1998), nos quais esses líricos do século VII a.C. equiparam a virgem ou a mulher à égua em termos de beleza e de vaidades comuns.
62
Cf. Jenkyns (1982, p. 31).
63
Cf. comentários de Barilier (1972, pp. 41-43) e Calame (1999, p. 167).
64
Cf. Curtius (1996, p. 244): “A natureza participa do divino”, por sua própria maravilha misteriosa.
65
Cf. Motte (1973, p. 18).
66
Cf. comentário de Bonnafé (1984, pp. 78-81), para quem essa cena é uma das várias da Ilíada nas quais a “natureza harmoniza espontaneamente suas manifestações aos sentimentos dos deuses” (p. 78).
67
Sobre os cultos de Éros e Afrodite, cf. comentários de Pirenne-Delforge (1994a, pp. 46-73).
252
CENÁRIOS DE AFRODITE
68
Motte (1973, pp. 89-90). Sobre as Cárites e as Horas, cf. Farnell (1896, pp. 623-24, 642-43 e 742, nota 94), Otto (1979, p. 94), Lévêque e Séchan (1990, pp. 373-74) e Garrison (2000, pp. 32-33). Falei já sobre cultos associados Afrodite–Cárites; sobre a deusa e as Horas, Farnell (1896, p. 642) conta: “Podemos crer que associação de Afrodite com as Horas, encontrada em um culto em Olímpia, e que aparece ocasionalmente em monumentos preservados, aludia ao processo de nascimento e crescimento que todas essas divindades protegiam”. Cf. ainda Pirenne-Delforge (1994a, pp. 228-31). Cito outra figura mítica muito próxima da flora, dos arômatas e de Afrodite: Adônis. Cf. análise do Fr. 140 V de Safo, adiante.
69
Cf. Pirenne-Delforge (1994a, p. 50).
70
Cf. análise dos testemunhos antigos e evidências arqueológicas em Pirenne-Delforge (1994a, pp. 48-66), que relaciona esse relato ao santuário de Afrodite e Éros (século V a.C.), no flanco nordeste da Acrópole, descoberto por Oscar Broneer em 1931. Ver Atallah (1966, pp. 242-44), Motte (1973, pp. 133-34) e Calame (1999, pp. 170-74). Sobre a Arreforia, ver Duarte (2000, pp. 179-80).
71
Motte (1973, pp. 130-31) tece comentários acerca dos dois santuários de Afrodite “nos jardins”.
72
Cf. edição de Jones (1992, vol. VI). Ver Motte (1973, p. 123) e Pirenne-Delforge (1994a, pp. 341-42). Noto que Estrabão (XIV, VI, 3-4), como Pausânias (VIII, V, 2-3), confia na tradição que vê em Agapenor o fundador de Pafos e de um culto a Afrodite.
73
Claramente, o helenista baseia-se no relato de Pausânias (I, XIX, 2) anteriormente reproduzido.
74
Cf. comentário de Pirenne-Delforge (1994a, p. 372).
75
Para essas duas regiões, cf. enumeração e fontes dadas por Motte (1973, pp. 123 e 124-25).
76
Cf. a distinção no estudo de Calame (1999, pp. 153-64).
77
Cf. Motte (1973, pp. 16 e 198-232).
78
Cf. semelhante associação das Cárites, do olhar e do amor erótico no Fr. 1 PMG de Álcman. Sobre a relação olhar–paixão, cf. Goff (1990, p. 20) e Calame (1999, p. 21).
79
Calame (1999, p. 160). Cf. também Jenkyns (1982, p. 31) e Carson (1998, pp. 88-89).
80
Mália “pode significar qualquer árvore frutífera, mas usualmente significa macieiras” (Waern, 1972, pp. 9-10), e mê)lon (m∞lon) “designa, antes de tudo, um ‘fruto redondo’” (Pirenne-Delforge, 1994a, p. 138).
81
Adiante, ela diz (p. 411): “O elo entre a ‘maçã’ e o desejo sexual na mentalidade grega foi suficientemente evidenciado por muitos exegetas do motivo, de modo que não se faz necessário aí me demorar longamente”.
253
GIULIANA RAGUSA
82
Pirenne-Delforge (1994a, p. 380; cf. p. 413).
83
Motte (1973, p. 11).
84
Cf., sobre jardins-juventude/virgindade, Henderson (1976, p. 163) e Calame (1999, p. 162).
85
Entre os que pensam que o local é “real”, ainda que “idílico”: Page (1987, p. 39), West (1970), Kirkwood (1974, p. 115), Jenkyns (1982, p. 31), Lasserre (1989, p. 186) e Calame (1999, p. 167). Entre os que o crêem “imaginário”: McEvilley (1972, pp. 327-28) e Robbins (1995, p. 233). Entre os que acreditam que ele seja “real e mítico”: Barilier (1972, pp. 40-41) e Wilson (1996, p. 38).
86
Essa é a postura de Page (1987, p. 40), Campbell (1998, p. 267) e outros.
87
Burkert (1988, pp. 84-88). Cf. comentário de West (1997, p. 37).
88
Burker (1988). Cf. Motte (1973, p. 31), Vernant (1990, pp. 55-57) e SourvinouInwood (1993, pp. 1-17).
89
Uma das propostas de reconstituição do que estaria entre as cruzes é a de Norsa (1937, p. 13): sÊ st°mmat’ ¶loisa (“tu, guirlandas pegando,”) (cf. 1949, pp. 47 e 50). Alguns seguem tal proposta: McEvilley (1972, pp. 323-24), Lasserre (1989, pp. 182-83), Robbins (1995, p. 232). Outra leitura é a de Lanata (1960, p. 86): sÊ g’ ¶ly’ Ùn°loisa (“tu, vem, tendo tomado”). Kirkwood (1974, pp. 114-15) a segue, entre outros. Uma terceira proposta é a de West (1970, p. 317): sÁ pÒlla m°loisa (“tu, muito cuidando”) (cf. 1994, p. 37). Usualmente, contudo, a mutilação é apenas sinalizada e a lacuna, mantida. Cf. Page (1987, pp. 34-35), que refuta as tentativas de Norsa e Lanata, dizendo ser “impossível” reconstituir a parte central do verso 13.
90
Em grego: toÊtoiw to›w •ta¤roiw ™mo›w ge ka‹ so›w. Livro XI, 463e, ed. Kaibel (1890, p. 10, vol. III).
91
Opinião que parece ter Campbell (1994, pp. 58-59).
92
O mesmo Campbell assume essa postura (1998, p. 268), dizendo que a frase é provavelmente “uma versão em prosa do começo de outra estrofe”. Essa opinião segue a de Norsa (1949, p. 50), Page (1987, p. 39), West (1970, p. 317, nota 25). Para esses, como para a maioria dos helenistas, o poema está incompleto.
93
Cf. Gallavotti (1942a, pp. 195-98) e Lanata (1960, pp. 87-88). Ambos crêem na completude do fragmento.
94
A edição PLF e muitos helenistas lêem esse verbo como oinokhóaison (“derrama”), uma forma do imperativo aoristo ativo, segunda pessoa do singular. Todavia, segui a tendência menos usual que toma o verbo como forma participial por conta da edição Voigt do texto, baseada nos estudos de Norsa (artigos de 1937 e 1949) e Lanata (1960, pp. 84-85 e 89-90).
95
Diz o verso: “eu amo a delicadeza [abrosúnan]” (¶gv d¢ f¤lhmm’ ébro!Ênan). Ver Liberman (1995, pp. 45-46) e Nagy (1996a, pp. 56-57), que traduz o termo por “luxúria”.
254
CENÁRIOS DE AFRODITE
96
Fr. 128, edição de Rzach (1967, pp. 212-13).
97
Cf. comentários de Lanata (1996, p. 20), Wilson (1996, p. 115) e de Snyder (1997, pp. 87-91).
98
Cf. Liberman (1995, p. 46).
99
Fontes (2003, pp. 180-81), ao traduzir o verbo que entende como oinokhóaison (ofinoxÒaison) para o português como “derrama” reduz muito sua riqueza significativa no contexto do fragmento.
100
Cf. Burnett (1983, pp. 209-28), Gentili (1990, pp. 72-104), Parker (1996, pp. 146-83), Calame (1997, pp. 207-63), entre vários outros que tratam do assunto.
101
Cf. estudo de Calame (1997).
102
Cf. op. cit., especialmente pp. 244 e 252-53, sobre a homofilia nos grupos e seu papel pedagógico. À p. 253, ele diz: “[...] a evidência das práticas homoeróticas entre as mulheres espartanas não oferece dúvidas, não obstante sua exigüidade”. Sobre a relação “eu”–“nós” na lírica coral, ver pp. 255-56. Na mesma linha de pensamento de Calame estão Robbins (1995, p. 229) e Lardinois (1996, pp. 150-72). Cf. crítica de Parker (1996, pp. 162-68) e Stehle (1997, pp. 262-318) a Calame e Lardinois.
103
Apesar de o texto grego do Fr. 2 V não permitir, os helenistas, em geral pensando no coro, no círculo de Safo, costumam inserir o pronome “nossas” antes de “festividades”: Page (1987, p. 34), West (1994, p. 37), Lardinois (1996, p. 165), Fontes (2003, p. 381), entre outros.
104
Tanto na civilização minóica quanto na micênica, observa Burkert (1998, p. 34), as duas principais atividades de culto eram a dança e as procissões, das quais as mulheres participavam ativamente.
105
Cf. entre os que combatem a teoria, Page (1987, pp. 110-12), Robbins (1995, pp. 225-26), de Calame (1996, pp. 113-24) e Parker (1996, pp. 150-54).
106
Cf. Parker (1996, pp. 175-76), que diz que, apesar disso, thíasos é usada há quase cem anos na crítica a Safo; ele declara: “Eu estou oficialmente anunciando a sua morte. Tal palavra nunca deveria ser usada novamente em conexão com Safo”. Quanto a étaira (“companheira”, em ático, hetaíra, •ta¤ra), o termo ocorre na única linha do Fr. 142 V, ligada a duas figuras míticas: “... Leto e Níobe eram as mais queridas companheiras [étairai]...” (Lato ka‹ NiÒba mãla m¢n f¤lai ∑!an ¶tairai). Outra ocorrência se dá no Fr. 160 V; eis suas duas linhas:“... agora às minhas/ companheiras [étaírais] estas coisas †prazerosas† belamente cantarei...” (tãde nËn ™ta¤rai!/ ta‹! ¶mai! ~t°rpna~ kãlv! ée¤!v). Ver Calame (1997, pp. 210-14 e 249-52) e a discussão de Stehle (1997, pp. 264-65); sobre essas duas ocorrências Stehle afirma que nada revelam do que Safo quer dizer com a palavra. Diferentemente pensa Parker (p. 183), para quem a poeta tinha uma associação que era, exatamente, uma hetairía (•tair¤a) feminina, ou seja, “um grupo de mulheres ligadas pela família,
255
GIULIANA RAGUSA
classe, política e amor erótico” que “cooperava com as atividades rituais, práticas cultuais e eventos sociais informais” em sua cidade. 107
Calame (1997, p. 212). Assim pensa a maioria dos estudiosos, como Burnett (1983, pp. 209-10), que diz que “algumas eram pouco mais do que crianças”. Cf. crítica de Parker (1996, pp. 154-62).
108
Cf. crítica de Stehle (1997, pp. 264-68), que estuda as ocorrências de parthénos em Safo. Sobre o termo, ela nota que, “nos casos em que o contexto nos permite julgar, ele vem associado a casamentos ou em poemas com um assunto mítico”. Adiante: “Evidência interna e externa fortemente alinham parthénoi com a performance de poesia de casamento ou outro tipo de poesia ritual [...]. Fora dessas situações, não se pode provar que qualquer outra mulher referida na poesia de Safo seja uma parthenos” (p. 270). Para Stehle, a audiência da poesia de Safo seria de mulheres da mesma idade que a poeta, por isso chamadas étairai (cf. pp. 288-311). Wilson (1996, p. 87) pensa que o grupo seria composto por mulheres de idades variadas, desde meninas virgens (até mesmo crianças) a adultas. O assunto, vê-se, é polêmico.
109
Cf. Robbins (1995, pp. 225-27), Jenkyns (1982, pp. 1-3), Parker (1996, pp. 150-53).
110
Ver crítica de Page (1987, pp. 142-46). Fränkel (1975, pp. 175-76), seguidor da teoria de Wilamowitz sobre o thíasos e a escola de Safo, não consegue, como aquele, ignorar o sentimento amoroso entre as mulheres da lírica sáfica. Mesmo assim, ele procura “salvar” o caráter da poeta dizendo que o homossexualismo era, pelos gregos do século VI a.C., visto como “mais dignificante [...]”.
111
Essa diferenciação no caso de Safo é bastante complexa e divide os helenistas. Há quem considere o Fr. 2 V uma peça para performance privada, como Page (1987, p. 42), para quem o Fr. 2 V teria sido “evidentemente recitado em um local de culto”. Ver C. Segal (1998, pp. 18-19). Outros pensam ser o fragmento destinado à performance pública, como Kirkwood (1974, p. 116). E há os que argumentam que a lírica de Safo demandaria uma variedade de ocasiões de performance, como Lardinois (1996, pp. 150-72) e Stehle (1997, pp. 262-318) — tendência razoável à qual voltarei oportunamente.
112
Cf. Lardinois (1995, pp. 27-28).
113
Ver crítica de Robbins (1995, pp. 232-33).
114
Cf. Benveniste (1995b, p. 223).
115
Assim sendo, parecem equivocadas as discussões que pretendem esclarecer se Safo acredita ou não na epifania da deusa que no fragmento a voz — e não a poeta, é preciso frisar — demanda. A questão, simplesmente, não se coloca. Cf. Page (1987, pp. 41-42).
116
Aceitaram essa sugestão Bergk (1936, p. 61, Fr. 74) e Reinach e Puech (1937, p. 255, Fr. 83), por exemplo.
117
Texto grego: edição Colonna (1951, pp. 75-76).
256
CENÁRIOS DE AFRODITE
118
Também não aceitam a sugestão a ed. PLF e Lobel (1925, Fr. 13a).
119
Cf. Voigt, Reinach e Puech (1937) e Lobel (1925). Sobre o metro das composições desse livro, cf. Page (1987, p. 319).
120
Digo “talvez”, porque essa é a leitura da ed. Voigt, mas no papiro do fragmento publicado por Grenfell e Hunt (1922) lê-se ]sálloi (p. 34), que é editado ]s álloi (]w êlloi, “]s outros”, p. 35).
121
McEvilley (1973, p. 260). Cf. também comentários às pp. 276-77.
122
Cf. op. cit., p. 258, Kirkwood (1974, pp. 117-18), Lasserre (1989, p. 141), West (1994, pp. 43-44, v. 22), Stehle (1997, p. 301), entre outros.
123
Crê-se que pertenceria ao livro V de Safo, seu esquema métrico sendo o seguinte (l = sílaba longa; b = breve; x = ancepes, longa ou breve): 1 (l b l) (x x l b b l b l)/ 2 b l b l) ( b l l )
(x x l b b l b l)/ 3
(x x l b
O metro comum aos três versos é o glicônico ( x x l b b l b l ) — no primeiro verso, precedido de um crético e, no segundo, de um báquio. Cf. Page (1987, pp. 115 e 319). 124
Schubart e Wilamowitz (1907, p. 16). A palavra está no caso genitivo. Schubart já tinha feito essa proposta em 1902, quando da primeira edição da fonte, comenta McEvilley (1973, p. 258). Diehl (1936, Fr. 98) e Reinach e Puech (1937, Fr. 96) são alguns dos poucos editores do fragmento que acatam essa proposta. Cf. Edmonds (1916, p. 131), que examina as fotos do Papiro de Berlim com o Fr. 96 V e aceita a proposta, mas alterando-lhe o caso, que crê ser o dativo.
125
Cf. Reinach e Puech (1937, Fr. 96), Ramos (1964, p. 69), McEvilley (1973, p. 258), Kirkwood (1974, p. 117), Campbell (1994, Fr. 96), Lasserre (1989, p. 141), Snyder (1997, p. 201).
126
Cf. Page (1987, p. 88), West (1994, pp. 43-44) e Fontes (2003, p. 399).
127
Cf. Page (1987, p. 89) e Campbell (1998, p. 280; 1a ed.: 1967).
128
Sigo o procedimento de Snyder (1997, p. 46) e Stehle (1997, p. 301), por exemplo.
129
Schubart e Wilamowitz (1907, p. 16).
130
Page (1987, pp. 88-89) e West (1994, p. 43) não a consideram, começando suas traduções a partir dos vv. 3-4. Já Lobel (1925, p. 45, Fr. 5), Edmonds (1934, Fr. 86), Diehl (1936, Fr. 98), Reinach e Puech (1937, Fr. 96), a edição PLF (1997; 1a ed.: 1955), McEvilley (1973, pp. 257-58) e Campbell (1994, Fr. 96; 1a ed.: 1982) incorporam-na ao texto grego e, quando ela é feita, também à tradução do v. 2. Igualmente, Ramos (1964, p. 69) e Fontes (2003, pp. 396-97).
131
Cf. Edmonds (1916, pp. 130-33), Page (1987, p. 89), Campbell (1998, p. 280; 1a ed.: 1967).
132
A tradução de arigno#ta, “manifesta”, entende a palavra como um adjetivo que ocorre na Odisséia (canto VI, v. 108, arigno#tê´, érignvtÆ), quando Nausícaa é comparada
257
GIULIANA RAGUSA
à virgem Ártemis. Sigo Page (1987, p. 89) e a maioria dos helenistas: Edmonds (1934, Fr. 86), Bowra (1961, p. 193), McEvilley (1973, pp. 258 e 262), Kirkwood (1974, p. 117), Campbell (1994, Fr. 96), Lasserre (1989, p. 141), Fontes (2003, pp. 396-97). Há os que tomam arigno#ta pelo nome próprio de uma jovem: Diehl (1936, Fr. 98), Reinach e Puech (1937, Fr. 96), West (1970, p. 319) e Gentili (1990, p. 82). Ver a argumentação de Marzullo (1952, pp. 85-92) contra esta última opção. 133
Cf. Page (1987, p. 88), McEvilley (1973, p. 258) e outros.
134
Cf. a respeito Danielewicz (1969-1970, p. 168), Jenkyns (1982, p. 71) e Simondon (1982, pp. 79-80).
135
Cf. Page (1987, pp. 92-96), McEvilley (1973, pp. 257-80), Kirkwood (1974, pp. 118-20), Macleod (1974, pp. 217-20), Carey (1978, pp. 366-71), Renehan (1983, pp. 1-29) e Hague (1984, pp. 29-36), entre outros. A palavra selánna é uma emenda a mê´na (mÆna, em ático mê´ne#, mÆnh, “lua”), esta
136
“impossível metricamente”, diz McEvilley (1973, p. 259; cf. p. 262). Tal emenda foi sugerida por Schubart e Wilamowitz (1907, p. 16). Para discussão, cf. Janko (1982, pp. 322-25), Renehan (1983, pp. 1-29). Bolling (1961, pp. 152 e 155) argumenta que a redação de mê´na no papiro teria sido um erro do copista repassado aos alexandrinos, o que os fez pensar que Safo poderia ter usado tal palavra. A forma selánna prevalece, embora mê´na conste de edições mais antigas, como a de Diehl (1936, Fr. 98) — que indica no aparato crítico a outra emenda — e da edição PLF (1997; 1a ed.: 1955), pois um de seus autores, Page (op. cit., p. 90), julga selánna uma emenda insatisfatória. Quanto a essa relutância, Renehan (p. 16) observa que os editores da PLF, Lobel e Page, criaram um “sistema de gramática lésbia que encerra um aparato de regras demasiado rígidas e fundadas em evidências demasiado exíguas”. Noto que selánna se encontra também no Fr. 34 V de Safo. 137
Por haver uma “ela” no Fr. 96 V que está ausente — provavelmente em Sárdis (vv. 1 e 6) —, Calame (1997, p. 233), entre outros, crê que o poema prova que o grupo de adolescentes de Safo não era apenas composto de jovens de Lesbos, mas “de diferentes partes da Jônia, particularmente da Lídia”. Igualmente Robbins (1995, p. 228). Stehle (1997, pp. 269-70) problematiza a questão. Gentili (1990, p. 82) acrescenta que “ela” está ausente do thíasos sáfico porque teria partido para a Lídia para se casar. Burnett (1983, p. 216), para quem a finalidade do aprendizado do thíasos e da “escola” de Safo era a de preparar as jovens virgens para o casamento, pensa o mesmo. Cf. discussão sobre o grupo de meninas de Safo na análise interpretativa do Fr. 2 V.
138
Cf. Page (op. cit., pp. 90 e 93-96), Bowra (1961, pp. 193-95), Campbell (1998, p. 280; 1a ed.: 1967). A crítica de Page, que tenta desqualificar o símile e sua importância no fragmento, é bastante dura e questionável, como bem mostram as respostas a elas dadas por McEvilley (1973, pp. 257-80), Macleod (1974, pp. 217-20), Carey (1978,
258
CENÁRIOS DE AFRODITE
pp. 366-71), Renehan (1983, pp. 1-29), Hague (1984, pp. 29-36), Robbins (1995, p. 233) e Snyder (1997, pp. 47-52). Sobre a “dedirrósea lua”, recorda Renehan (p. 18) que o “problema das palavras descritivas para as cores em grego é bastante conhecido e nós não devemos esperar precisão” dos poetas. Ver o estudo sobre cores de Irwin (1974). Noto que alguns desses estudiosos e outros ainda — como Hindley (2002, pp. 374-77) — propõem emendas para o epíteto brododáktulos. A sugestão do referido helenista é argurodáktulos (“de argênteos dedos”), imagem que crê mais apropriada à lua. 139
Cf. Danielewicz (1969-1970, p. 168) e Waern (1972, p. 4), que diz: “[...] o epíteto homérico para a aurora e que a ela se aplica de modo excelente pode muito bem ser também adaptado para a lua cheia. Quando, nas noites escuras da Grécia, a lua ascende além do horizonte ou detrás das montanhas ou dos topos das árvores, é precedida por uma luz de tom vermelho-pálido que irradia finas flamas. Essa cor se deve à refração da luz no ar freqüentemente brumoso. Somente quando a lua está mais alta nos céus é que ela adquire sua luz amarela ou branco-prateada”. Para crítica a essa linha interpretativa, cf. Hindley (2000).
140
Cf. Burnett (1983, p. 308).
141
Cf. Page (1987, p. 90), Romè (1965, p. 237), Campbell (1998, p. 274). Safo emprega expressão similar no Fr. 44 V (vv. 7-8), uma narrativa épica.
142
Cf., ainda, Romè (1965, p. 231) e Waern (1972, p. 5).
143
Cf. Page (1987, pp. 90 e 93-96; 1a ed.: 1955), Bowra (1961, pp. 193-95) e Campbell (1998, p. 280; 1a ed.: 1967), McEvilley (1973, pp. 257-80), Macleod (1974, pp. 217-20), Carey (1978, pp. 366-71), Renehan (1983, pp. 1-29), Hague (1984, pp. 29-36), Robbins (1995, p. 233) e Snyder (1997, pp. 47-52).
144
Essa visão é a mais aceita: Page (1987, p. 92), Campbell (1998, p. 279), Lasserre (1974, p. 25), Hague (1984, pp. 29-36), Gentili (1990, p. 82), Stehle (1992, p. 56; 1997, p. 300) e Robbins (1995, pp. 228 e 230). West (1970, p. 320) crê que ele é endereçado a Arignota (v. 5), o que traria ao poema quatro mulheres. Discute-se se a canção pretende consolar ou seduzir Átis. Cf. os já apontados e Carey (1978, pp. 366-71) e Simondon (1982, pp. 79-80), que preferem a primeira alternativa. “Átis” aparece em outros três fragmentos de Safo, pelo menos: 8 V, 49 V e 130 V.
145
Cf. Lanata (1996, p. 24) sobre o verbo e seu sentido erótico-violento. Ver Bonanno (1990, pp. 119-24) e Carson (1998, p. 36).
146
Cf. Schubart e Wilamowitz (1907, p. 17) e Edmonds (1916, p. 130). Incluem essa possibilidade em suas traduções e/ou textos do Fr. 96 V: McEvilley (1973, p. 258), Campbell (1994, Fr. 96), West (1994, p. 43), Snyder (1997, p. 46).
147
Cf. Boedeker (1974, p. 50) e Calame (1999, pp. 30-33 e 45) sobre as relações entre o desejo, éro#s e Afrodite — a deusa e seus poderes eróticos.
148
Danielewicz (1969-1970, p. 168).
259
GIULIANA RAGUSA
149
Cf. Page (1987, p. 92), Campbell (1998, p. 281; 1a ed.: 1967) e McEvilley (1973, p. 277), entre outros.
150
Cf. Page (1987, p. 92) e Campbell (1998, p. 281).
151
Para opinião semelhante, cf. Page (1987, p. 92), West (1970, p. 319), McEvilley (1973, p. 259), Kirkwood (1974, p. 118) e Stehle (1997, p. 302), entre outros.
260
O FR. 1 V: UMA PRECE DE
“SAFO”
PARA AFRODITE
7 O F R . 1 V: U M A P R E C E D E “S A F O ” PA R A A F R O D I T E Tendo passado pelo estudo da geografia mítico-religiosa e poética de Afrodite, de seu nome e epítetos e dos cenários nos quais ela se insere, abordo, neste capítulo e no seguinte, um quarto aspecto da representação sáfica da deusa: ela é alvo de um apelo ou é mencionada pela voz das canções. Estas páginas são exclusivamente dedicadas ao Fr. 1 V, exemplar da primeira situação, por duas razões. Em primeiro lugar, porque essa composição, conhecida como “Hino a Afrodite”, não só é uma das mais estudadas pelos helenistas, como é a única de Safo quase totalmente completa, apresentando apenas um problema de legibilidade não solucionado no início do verso 19. Em segundo lugar, porque seu caráter de texto completo permite uma análise mais integral dos seus aspectos estruturais e uma interpretação mais abrangente dos seus significados. Por conseguinte, é possível uma apreensão diferenciada da representação de Afrodite no poema, ao contrário do que ocorre nos outros fragmentos.
Nota sobre a transmissão do fragmento A que se deve o fato de o Fr. 1 V ter sido tão bem preservado, algo raro em se tratando dos líricos gregos arcaicos? É difícil precisar a razão, até porque ela talvez seja a somatória de uma série de fatores po-
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sitivos, como a sua citação integral num tratado antigo, que é sua principal fonte de transmissão, nesse caso, indireta: Sobre o arranjo das palavras, de Dionísio de Halicarnasso. A essa se aliam outras fontes do mesmo tipo, nas quais um ou mais versos ou palavras do fragmento são citados.1 Some-se ao tratado a única fonte de transmissão direta que temos, o Papiro de Oxirrinco no 2.288 (suplemento extra), editado e publicado por Edgar Lobel, em The Oxyrhynchus papyri — Part XXI (1951). Segundo boa parte dessas fontes, o Fr. 1 V seria a primeira canção do livro I de Safo compilado pelos alexandrinos, organizado segundo o critério métrico da “estrofe sáfica”.2 No primeiro capítulo deste livro, discorri sobre a transmissão dos fragmentos da lírica grega antiga. No que se refere à transmissão indireta, ressaltei que a função das paráfrases e, sobretudo, das citações dos poetas em escritos de natureza variada era, freqüentemente, ilustrativa. Ademais, tais citações dependiam da memória — faculdade passível de falhas, alterações e erros — e também das necessidades de quem as realiza. Esses fatores interferem na versão dos textos e no seu tamanho, que pode ir de uma única palavra a um texto completo — caso mais raro, que, felizmente, é o do Fr. 1 V de Safo. Em seu tratado, Dionísio cita o poema como exemplo de um — o “polido” (glafurã, glaphurá) — dos três tipos de discurso que estabelece. Em sua avaliação dos versos sáficos, que reproduz, revela admiração pela poeta (vv. 179-81): taÊthw t∞w l°jevw ≤ eÈ°peia ka‹ ≤ xãriw ™n tª sunexe¤& ka‹ leiÒthti g°gone t«n èrmoni«n: parãkeitai går éllÆloiw tå ÙnÒmata ka‹ sunÊfantai katã tinaw ofikeiÒthtaw ka‹ suzug¤aw fusikåw t«n grammãtvn: [...] efikÒtvw dØ g°gonen eÎrouw tiw ≤ l°jiw ka‹ malakÆ, t∞w èrmon¤aw t«n Ùnomãtvn mhd¢n épokumatizoÊshw tÚn ∑xon. A eufonia e a graça desse discurso nascem da continuidade e suavidade de suas junções, pois as palavras jazem próximas, umas ao lado das outras, e são alinhavadas juntas conforme algumas afinidades e combinações naturais das letras [...]. Naturalmente, o discurso gerado é suave e fluente, musical, porque o arranjo das palavras não encrespa a onda de seu som.3
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Esse é um dos poucos testemunhos de um grego do século I a.C. que ainda podia desfrutar da experiência de ouvir a lírica grega arcaica, àquela altura não totalmente divorciada da música — dimensão perdida para nós. Como Dionísio ouvia os poetas,4 julgava-os pela sua eufonia — critério principal para ele, mesmo na prosa. Não mais é possível ouvir as canções dos gregos arcaicos, nem apreender, de fato, a sempre elogiada musicalidade dos versos de Safo. Resta-nos deles apenas o registro escrito, frio e normalmente precário. Sabemos da importância do som na poesia, mas somos educados para a leitura silenciosa, com os olhos, e não com os ouvidos. E ainda que estejamos sozinhos diante de um poema, a timidez e a falta de hábito nos impedem, muitas vezes, de arriscar a necessária leitura em voz alta. Se esse poema for de um lírico arcaico que o concebeu em um universo eminentemente oral, há ainda outros dois dados desestimuladores à sua audição: a mutilação dos textos marcados pela descontinuidade que, em voz alta, é ainda mais real e desoladora; a artificialidade da reconstrução sonora tanto do alfabeto grego quanto da metrificação dos versos, cujas sílabas se distinguem não pelo acento, mas pelo aspecto quantitativo — longo ou breve. Assim, somos antes de tudo leitores das composições sáficas, mas para apreender minimamente sua dimensão sonora e notar os recursos fonoestilísticos dos quais a poeta lançou mão, é preciso que sejamos ouvintes. No caso do Fr. IV, ao menos, a experiência compensa. Cito-o a seguir: ⊗ Poi¸kilÒyro$n’ éyanãt’AfrÒdita, pa›¸ D$¤¸o! dol$Òploke, l¤!!oma¤ !e, mÆ m’¸ ê!ai!i $mhd’ Ùn¤ai!i dãmna, pÒtn¸ia, yË$mon, éll¸å tu¤d’ ¶l$y’, a‡ pota két°rvta tå¸! ¶ma! aÎ$da! é¤oi!a pÆloi ¶k¸lue!, pãtro$! d¢ dÒmon l¤poi!a x¸rÊ!ion ∑ly$e! êr¸m’ Èpa!de$Êjai!a: kãloi d° !’ îgon ¸kee! !troË$yoi per‹ gç! mela¤na! pʸkna d¤n$nente! pt°r’ ép’ »rãnv a‡yero¸! diå m°!!v: a‰¸ca d’ ™j¤ko$nto: !Á d’, Œ mãkaira,
⊗ De flóreo manto furta-cor, ó imortal Afrodite, filha de Zeus, tecelã de ardis, suplico-te: não me domes com angústias e náuseas, veneranda, o coração, mas para cá vem, se já outrora — a minha voz ouvindo de longe — me atendeste, e de teu pai deixando a casa áurea a carruagem atrelando vieste. E belos te conduziram velozes pardais em torno da terra negra — rápidas asas turbilhonando céu abaixo e pelo meio do éter. De pronto chegaram. E tu, ó venturosa,
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sorrindo em tua imortal face, indagaste por que de novo sofro e por que de novo te invoco, e o que mais quero que me aconteça em meu desvairado coração: “Quem de novo devo [persuadir .¸.!.ãghn $™! !ån filÒtata; t¤! !’, Œ (?) ao teu amor? Quem, ó Cã¸pf’, $éd¤kh!i; Safo, te maltrata? ka¸‹ g$år afi feÊgei, tax°v! di≈jei, Pois se ela foge, logo perseguirá; afi d¢ d«ra mØ d°ket’, éllå d≈!ei, e se presentes não aceita, em troca os dará; e se não ama, logo amará, afi d¢ mØ f¤lei, tax°v! filÆ!ei mesmo que não queira”. kvÈk ™y°loi!a. Vem até mim também agora, e liberta-me dos ¶lye moi ka‹ nËn, xal°pan d¢ lË!on duros pesares, e tudo o que cumprir meu ™k mer¤mnan, ˆ!!a d° moi t°le!!ai coração deseja, cumpre; e, tu mesma, yËmo! fim°rrei, t°le!on, !Á d’ aÎta ⊗ sê minha aliada de lutas. !Êmmaxo! ¶!!o. ⊗
meidia¤$!ai!’ éyanãtvi pro!≈pvi ≥¸re’ ˆtt$i dhÔte p°ponya k tti dh¸Ôte k$ãl¸h$mmi k¸ tti $moi mãli!ta y°lv g°ne!yai m¸ainÒlai $yÊmvi: t¤na dhÔte pe¤yv
A forma do Fr. 1 V: uma prece literária Ao abordar o Fr. 2 V, afirmei considerá-lo um hino clético, ou seja, uma prece na qual se invoca um deus para instá-lo a sair do local em que se encontra e vir à presença de quem chama. Todavia, ressaltei que essa conclusão se deve mais ao conteúdo daquele texto do que à sua forma, distante do que seria a de uma típica prece literária. O Fr. 1 V é, igualmente, um hino clético, mas agora, tanto pelo seu conteúdo quanto pela sua forma, estruturado de maneira que será considerada a convencional.5 Cito os versos 1 e 2: ⊗
Po¸kilÒyro$n’ éyanãt’AfrÒdita, pa›¸ D$¤¸o! dol$Òploke, l¤!!oma¤ !e,
⊗
De flóreo manto furta-cor, ó imortal Afrodite, filha de Zeus, tecelã de ardis, suplico-te:
Um dos traços convencionais das preces poéticas, encontrado nesses versos, diz respeito à maneira-padrão pela qual o deus é invocado: a voz suplicante chama-o pelo nome, ao qual associa um ou mais epítetos — tudo no vocativo. No fragmento, Afrodite é invocada pelo seu 264
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nome e a ele são associados quatro epítetos literários da deusa — nenhum deles é atestado em cultos,6 dado importante para argumentar contrariamente aos que tomam a prece de Safo, que é literária, como cultual.7 Outra convenção empregada no início do fragmento é o uso de um verbo típico de oração, nesse caso, líssomaí (“suplico”), no qual está marcada a primeira pessoa do singular da canção. Conforme Oddone Longo, em “Moduli epici in Saffo, Fr.1”, tal verbo tem uma “riquíssima atestação épica” e é “de uso exclusivamente poético”, salvo raras exceções (1963-1964, pp. 348-49). Os quatro epítetos e o nome de Afrodite foram já estudados. Quanto ao nome, viu-se que até hoje não é clara sua epistemologia, nem tampouco há certeza quanto à sua origem, embora a deusa seja considerada estrangeira. Quanto aos epítetos, retomo parte das considerações realizadas no quinto capítulo deste livro. O primeiro epíteto composto Poikiló-thron’ (“De flóreo manto furta-cor”, v. 1) revela dois dados das imagens poéticas de Afrodite. Em sua primeira metade, está impresso o aspecto múltiplo, variegado, cambiante da sedutora e bela deusa, cujas prerrogativas incluem os enganos. Esse aspecto marca todo o campo semântico da noção de poikilía, no qual se insere o adjetivo poikílos, cuja tradução, “furta-cor”, busca realçar ao exprimir um efeito visual colorido, brilhante, mutante e embaralhado. Em sua segunda metade, -thron’ (“de flóreo manto”), é frisado o aspecto floral de Afrodite, intensamente marcado na poesia grega, inclusive na de Safo, como já se viu. Note que em “flóreo” há também a idéia da mistura, da multiplicidade própria de poikílos, pois o termo implica uma variedade de flores indistintas. O segundo, athanát’ (“imortal”, v. 1), nada diz especificamente sobre Afrodite, mas seu uso vem enfatizar uma característica essencial que separa homens e deuses em pólos opostos: a imortalidade. Aquela que se dirige à deusa conhece bem essa distinção hierárquica e, no início de sua prece, não deixa de estabelecê-la.8 O terceiro, pai) Díos (“filha de Zeus”, v. 2), assemelha-se ao epíteto épico-homérico Diòs thugáte#r (“filha de Zeus”); nessa tradição, Afrodite é filha de Zeus e de seu duplo feminino, Dione. Assim, ao escolhê-lo, a 265
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voz do Fr. IV frisa tanto o sentido de athanát’ quanto o estatuto olímpio e poderoso da deidade. O quarto epíteto, doló-ploke (“tecelã de ardis”, v. 2), é composto e, como Poikilóthron’, seria uma cunhagem sáfica. Além disso, sua primeira metade retoma o sentido da primeira metade de Poikiló-thron’ na medida em que o adjetivo poikílos e a noção de dólos (“ardil”) se inserem no campo semântico maior da mê)tis, que designa uma forma de inteligência muito especial que combina a astúcia, a rapidez de pensamento, o confronto indireto, a capacidade de antever os eventos, a armadilha etc. Afrodite não é estranha a esse âmbito do movediço, do fugidio, do oblíquo que é o da mê)tis e de seus termos afins, pois a esfera de poder da deusa envolve a sedução e, portanto, a dissimulação, o engano, e assim por diante. Quanto à segunda metade de doló-ploke, ela se relaciona ao tecer, uma tarefa exclusivamente feminina — universo, por excelência, de Afrodite e igualmente da lírica sáfica. Ademais, o ato de tecer tem atestado o uso metafórico de tramar desde a época homérica. Observando os elos entre os quatro epítetos, G. Aurelio Privitera, em La rete di Afrodite (1974, pp. 34-35), ressalta sua disposição em quiasmo: Poi¸kilÒyro$n’ éyanãt’ x pa›¸ D$¤¸o! dol$Òploke
De flóreo manto furta-cor, ó imortal x filha de Zeus, tecelã de ardis
Há uma ligação semântica entre os membros de cada lado do quiasmo, cujos sentidos, sintetizados, revelam uma Afrodite multifacetada– ardilosa, imortal–poderosa, sedutora–perigosa. A seleção e a disposição dos epítetos não se mostram casuais. Mas o que deseja pedir a essa Afrodite a voz que lhe suplica? Há seis pedidos na prece, concentrados nas duas primeiras e na última estrofe. Vários recursos os enfatizam, entre os quais se destaca o uso de verbos no imperativo na segunda pessoa do singular.
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Os dois pedidos iniciais O primeiro deles é este, feito ainda na primeira estrofe (vv. 1-4): mÆ m’¸ ê!ai!i $mhd’ Ùn¤ai!i dãmna, pÒtn¸ia, yË$mon, não me domes com angústias e náuseas, veneranda, o coração,
A linguagem dessa súplica é cuidadosamente concebida em termos do amor erótico. Mostra-o a escolha de dámna (“domes”), forma imperativa de damnáo# (damnãv), verbo típico de contextos de caça, de guerra e de erotismo, que revela dois aspectos da visão dos antigos gregos sobre éro#s: o “amor” é uma força externa e sua vinda implica o combate. Isso está expresso na Teogonia, de Hesíodo, em que Éros aparece entre os deuses primordiais (vv. 116-22) e, depois, passa a integrar, junto a Hímeros (“o Desejo”), o séquito de Afrodite (v. 201).9 Cito a descrição de Éros (vv. 120-22): (...) ÖErvw, ˘w kãllistow ™n éyanãtoisi yeo›si, lusimelÆw, pãntvn te ye«n pãntvn t’ ényr≈pvn dãmnatai ™n stÆyessi nÒon ka‹ •p¤frona boulÆn. [...] Éros, o mais belo entre os imortais deuses, o solta-membros, de todos os deuses e de todos os homens doma no peito a mente e também o prudente conselho.
Ecos desses versos perpassam a poesia grega. Canta o Fr. 196 W, Arquíloco (século VII a.C.), o primeiro poeta lírico arcaico do qual temos um corpus significativo de fragmentos: éllã m’ ı lusimelØw Œta›re dãmnatai pÒyow. ... mas, ó companheiro, o solta-membros me doma — o desejo.
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O fragmento mostra que, além de se configurarem como forças externas que vêm domar sua vítima, éro#s e/ou póthos (“desejo”) provocam a sua desintegração física, como diz o epíteto lusimelê`s (“solta-membros”),10 conferido a póthos por Arquíloco e, recorrentemente noutros poetas, a éro#s. O Fr. 130 V de Safo declara: ÖEro! dhÔte m’ Ù lu!im°lh! dÒnei, glukÊpikron émãxanon ˆrpeton [...] Éros de novo — o solta-membros — me agita, doce-amarga inelutável criatura [...]
Não se pode resistir a éro#s. Tampouco àquela que o rege, Afrodite — algo reiterado, sobretudo, na épica, na lírica e na tragédia. Nada pode escapar aos desígnios da deusa: ela a todos doma, quando assim o quer.11 No Fr. 1 V, a voz suplicante pede reverentemente — diz o epíteto pótnia (“veneranda”, v. 4) — a Afrodite: “não me domes com angústias e náuseas/ [...] o coração” (vv. 3-4). Em outras palavras, pede para ser poupada e, ao fazê-lo, sua linguagem revela outro aspecto da concepção grega do amor erótico: além de ser uma força externa que subjuga o sujeito atingido, ele pode neste causar males físicos, como ásaisi (“angústias”, em ático, áse#, êsh) e oníaisi (“náuseas”, em ático, anía, én¤a). Giuliana Lanata, em “Sappho’s amatory language” (1996, p. 24), sublinha que ambos os termos são registrados em um texto de medicina, no qual, como em Safo, aparecem relacionados.12 No Fr. 1 V, ambos têm não apenas uma dimensão psicológica, mas também física e isso é típico da concepção de éro#s, considerado “uma doença da mente e do corpo”.13 Entre os fragmentos preservados de Safo, há um que é especialmente centrado nos efeitos de éro#s sobre o indivíduo: o 31 V, preservado no famoso tratado Do sublime, de Longino (século I d.C.?), que o cita para ilustrar os “sofrimentos da loucura amorosa” (ero#tikai)s maníais pathê´mata).14 Reproduzo os versos do fragmento, no qual uma voz em primeira pessoa do singular descreve uma sucessão de sintomas pato-
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lógicos que acometem sua mente e seu corpo e decorrem da presença de éro#s: ⊗
Fa¤neta¤ moi k∞no! ‡!o! y°oi!in ¶mmen’ nhr, ˆtti! ™nãntiÒ! toi fi!dãnei ka‹ plã!ion îdu fvne¤!a! ÈpakoÊei ka‹ gela¤!a! fim°roen, tÒ m’ ∑ mån kard¤an ™n !tÆye!in ™ptÒai!en: »! går !’ ‡dv brÒxe’ ! me f≈nh!’ oÈd¢n ¶t’ e‡kei, éllå ~kam~ m¢n gl«!!a ~¶age~, l°pton d’ aÎtika xr«i pËr ÈpadedrÒmaken, Ùppãte!!i d’ oÈd¢n ˆrhmm’, ’pibrÒmei!i d’ êkouai, ~¶kade~ m’ ‡drv! kakx°etai, trÒmo! d¢ pa›!an êgrei, xlvrot$°ra d¢ p¸o¤a! ¶mmi, tey$nãkhn d’ Ù¸l¤gv ’pide$Êh! fa¸¤nom’ ¶m’ aÎt. [ai éllå pån tÒlmaton, ™pe‹ ~ka‹ p°nhta~
⊗
Parece-me ser par dos deuses ele, o homem, que oposto a ti senta e de perto tua doce fala escuta, e tua risada atraente. Isso, certo, no peito atordoa meu coração; pois quando te vejo por um instante, então falar não posso mais, mas †se quebra† †minha† língua, e ligeiro fogo de pronto corre sob minha pele, e nada vêem meus olhos, e zumbem meus ouvidos, e água escorre de mim, e um tremor de todo me toma, e mais verde que a relva estou, e bem perto de estar morta pareço eu mesma. Mas tudo é suportável, já que †mesmo um pobre† ... 269
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Essa incapacitação generalizada resultante do ataque de éro# s é constantemente retratada na lírica15 e também na tragédia. Lembro o Hipólito, de Eurípides. No prólogo desse texto, Fedra aparece morrendo devido à paixão que tem pelo filho de seu marido, Teseu, e que nela foi lançada por Afrodite, conforme conta a própria deusa: fido!a Fa¤dra kard¤an kat°!xeto ¶rvti dein«i to›! ™mo›! bouleÊma!in. Fedra vendo-o [Hipólito], seu coração foi tomado de amor terrível, por meus desígnios (vv. 27-28). [...] (...) !t°nou!a kékpeplhgm°nh k°ntroi! ¶rvto! ≤ tãlain’ épÒllutai !ig∞i, jÊnoide d’ oÎti! ofiket«n nÒ!on. [...] gemendo e sendo atingida pelos aguilhões do amor, a desgraçada perece em silêncio; nenhuma das servas conhece sua doença.16
No verso 40, éro#s é chamado, explicitamente, de nóson (“doença”), algo nada incomum na poesia antiga. Anne Carson, em Eros, the bittersweet, observa: Consistentemente, por todo o corpus de lírica grega, assim como na poesia da tragédia e da comédia, eros é uma força externa que toma de assalto quem ama e assume o controle de seu corpo, de sua mente [...]. Os poetas representam eros como uma invasão, uma doença, uma insanidade, um animal selvagem, um desastre natural. Sua ação é derreter, provocar o colapso, consumir, queimar, devorar, exaurir, entontecer, picar [...] (1998, p. 148).17
Não estamos falando, portanto, do amor romântico — associação imediata para nós, herdeiros do Romantismo do século XIX e de valores judaico-cristãos —, mas de éro#s, o amor sexual, erótico. Volto ao Hi270
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pólito e ao retrato contundente dessa força na primeira metade da “Ode a Éros”, entoada pelo coro de mulheres trezenas no primeiro estásimo (vv. 525-42): ÖErv! ÖErv!, ˘ kat’ Ùmmãtvn !tãzei! pÒyon, efi!ãgvn gluke›an cuxçi xãrin oÓ! ™pi!trateÊ!hi, mÆ moi pot¢ !Án kak«i fane¤h! mhd’ êrruymo! ¶lyoi!. oÎte går purÚ! oÎt’ ê!trvn Íp°rteron b°lo! oÂon tÚ tç! ’Afrod¤ta! ·h!in ™k xer«n ÖErv! ı DiÚ! pa›!. êllv! êllv! parã t’ ’Alfe«i Fo¤bou t’ ™p‹ Puy¤oi! terãmnoi! boÊtan fÒnon ÑEllå! a‰’ é°jei ÖErvta d°, tÚn tÊrannon éndr«n, tÚn tç! ’Afrod¤ta! filtãtvn yalãmvn klhidoËxon, oÈ !eb¤zomen, p°ryonta ka‹ diå pã!a! fl°nta !umforç! ynatoÁ! ˆtan ¶lyhi. Ó Éros, ó Éros, que nos olhos destilas o desejo, levando o doce encanto ao espírito dos que atacas, que jamais a mim com males te reveles, e nem desmedido me venhas. Pois nem o dardo do fogo e nem o dos astros é mais poderoso que o de Afrodite, que das mãos lança Éros, o filho de Zeus. Em vão, em vão, junto ao Alfeu e sob teto pítio de Febo a terra da Hélade acumula sacrifícios de gado, se Éros — o tirano dos homens, dos aposentos adorados de Afrodite o guardião — não cultuamos — ele que devasta tudo e infortúnios traz aos mortais quando vem.18 271
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O pedido nos versos 528 a 529 pode-nos remeter àquele feito pela suplicante do Fr. 1 V, pois ela pede, similarmente, para ser poupada dos males de éro#s . E em seguida, ela passa ao segundo apelo à deusa no fragmento (vv. 5-7): éll¸å tu¤d’ ¶l$y’, a‡ pota két°rvta tå¸! ¶ma! aÎ$da! é¤oi!a pÆloi ¶k¸lue!, [...]. mas para cá vem, se já outrora — a minha voz ouvindo de longe — me atendeste, [...].
Imediatamente após solicitar a presença da deusa — o que já está pressuposto em um hino clético como o Fr. 1 V —, a voz trata de recordar a Afrodite a relação prévia que tem com ela. Portanto, somos levados do presente (vv. 1-5) ao passado: no decorrer dos versos 5 a 24 — logo, durante a maior parte da prece —, estaremos no tempo da memória. O que explicaria tão extensa recordação, que é também bastante detalhada? Provavelmente, a necessidade de garantir a eficácia do apelo. A recordação dos elos com a deusa consiste, acima de tudo, em um novo artifício que vem somar-se a outros com igual objetivo — o emprego do nome de Afrodite e de epítetos no vocativo, o uso de um verbo próprio da oração, a recorrência das formas verbais imperativas para os pedidos. É que, ao lembrar Afrodite de outra ocasião em que ela a atendeu, a suplicante pretende suscitar na deidade um “senso de obrigação” e de direitos adquiridos, por assim dizer, que não a permitam ignorar a nova invocação.19 Pode-se dividir a descrição do encontro com Afrodite no passado (vv. 5-24) em dois momentos: no primeiro (vv. 7-12), a suplicante descreve a viagem da deusa dos céus à terra, à sua presença; no segundo (vv. 13-24), ela descreve a epifania propriamente dita da divindade e as palavras que de sua boca ouviu.
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Memória de um encontro — I: a jornada de Afrodite (...) pãtro$! d¢ dÒmon l¤poi!a x¸rÊ!ion ∑ly$e! êr¸m’ Èpa!de$Êjai!a: kãloi d° !’ îgon ¸kee! !troË$yoi per‹ gç! mela¤na! pʸkna d¤n$nente! pt°r’ ép’ »rãnv a‡yero¸! diå m°!!v: [...] e de teu pai deixando a casa áurea a carruagem atrelando vieste. E belos te conduziram velozes pardais em torno da terra negra — rápidas asas turbilhonando céu abaixo e pelo meio do éter.
São notáveis a linguagem extremamente visual e a riqueza de detalhes que compõem a cena descrita — características essas verificáveis também nos fragmentos 2 V e 96 V. Nos versos 7 a 9, a sintaxe cria uma ambigüidade analisada no quinto capítulo: tanto dómon, a “casa” do pai de Afrodite, Zeus, quanto árm’, a “carruagem” dela, podem receber o adjetivo khrúsion, “áurea”. A primeira opção leva-nos ao registro épico-homérico; a segunda ressalta um traço — o de ser “áurea” — que, além de exclusivamente atribuído a Afrodite desde Homero, carrega a marca do Oriente e de suas relações com a Grécia. Sem que se possa seguramente eliminar uma ou outra, minha tradução busca preservar a ambigüidade. De qualquer modo, ao dizer que Afrodite deixou a casa de seu pai, a voz reitera o alto lugar hierárquico da deusa e o seu estatuto olímpio, ambos os aspectos antes indicados nos epítetos athanát’ (“imortal”, v. 1) e pai) Díos (“filha de Zeus”, v. 2). Note-se, ainda, que, como ocorre neste último epíteto, Zeus é, no verso 7, novamente dado como pai de Afrodite, o que decerto enfatiza o poder da deidade a quem a voz fala agora no presente, como fez antes, no passado.
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Sobre a jornada de Afrodite em sua carruagem, Martin L. West, em The east face of Helicon, declara ser este um motivo que remonta às “tradições poéticas do Oriente Próximo” (1997, p. 205), e do qual a épica faz largo uso. O “padrão básico” da jornada divina é assim descrito pelo estudioso: [...] primeiro, os cavalos são atrelados ao veículo; então, o condutor e seu companheiro montam, aquele toma as rédeas e aplica o chicote e os corcéis partem em velocidade [...]; há uma indicação da direção tomada, mas nada se diz do cenário ou dos lugares no caminho; a destinação é alcançada sem maiores explicações, e os cavalos são acalmados até ficarem em repouso. Algumas vezes acrescenta-se que eles foram desatrelados e alimentados (p. 205).20
Comparando esse padrão à viagem de Afrodite no Fr. 1 V, há coincidências na seqüência dos eventos mais sucintamente descritos em Safo: a deusa atrela a carruagem e parte em velocidade para um local cuja orientação é indicada e ao qual chega logo. Mas tal destino, a terra, não se especificará geograficamente. Eis uma diferença entre o padrão e a canção sáfica; as outras são estas: no lugar de cavalos, pássaros; a deusa está sozinha no veículo; diz-se algo sobre o trajeto da viagem (vv. 10-12). A descrição da jornada de Afrodite é, sobretudo, visual, mas sua linguagem suscita ao menos mais um sentido, a audição, despertada não por um simples bater, mas pelo turbilhonar das “rápidas asas” (púkna [...] ptér’, v. 11) dos “belos [...]/ velozes pardais” (káloi [...]/ ô´kees strou)thoi, vv. 9-10) que trouxeram a “carruagem” (árm’, v. 9) da deusa. Impossível não pensar na velocidade marcada pelos adjetivos que caracterizam as aves e suas asas, e que se encontram na posição inicial dos versos que abrem, e pela forma verbal dínnentes (“turbilhonando”, v. 11), que define o movimento executado por estas: febril e certamente ruidoso. Dois pontos precisam ser aqui ressaltados. O primeiro é que os pardais recebem dupla adjetivação: além de ô´kees (“velozes”), são káloi (“belos”).21 Eis uma qualificação coerente para os condutores de Afro274
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dite, a deusa da beleza. O segundo ponto é que o adjetivo púkna, forma plural de puknós (puknÒw), tem como primeiro sentido “cerradas, densas, espessas”; empregado para as asas que batem turbilhonando, pode ser traduzido como “rápidas” — tão rápidas que não vemos o bater de cada uma delas, mas uma sobreposição de movimentos similar à de hélices girando a todo vapor.22 A jornada de Afrodite no Fr. 1 V de Safo é, portanto, bastante veloz. Em outro poema, o Hino homérico V, também se vê uma rápida viagem da deusa que, após se vestir e adornar para seduzir Anquises, de Pafos “partiu rápida para Tróia [...]/ pelos ares, no alto, entre as nuvens, viajando veloz” (seÊat’ ™p‹ Tro¤hw [...]/ Ïci metå n°fesin =¤mfa prÆssousa k°leuyon, vv. 66-67). De acordo com West (1997, p. 112), a notável velocidade é um aspecto típico das viagens divinas, tanto na poesia grega quanto nas tradições poéticas orientais. Mas por que, no Fr. 1 V, os condutores da deusa são stroithoi (“pardais”, v. 10)? Seria esse um dado casual? Em um poema lírico, cuja linguagem tende à concisão e, por isso mesmo, a assumir uma forte carga significativa, é difícil conceber que o seu vocabulário seja casualmente selecionado. Ao contrário, tal seleção pressupõe algumas reflexões concernentes, no mínimo, à adequação das palavras ao metro dos versos. Pelo que buscaram mostrar as análises dos fragmentos 2 V e 96 V no capítulo anterior, com Safo e sua lírica arcaica não parece ter sido diferente. E os versos do Fr. 1 V até aqui comentados o confirmariam, pois tanto o seu vocabulário quanto a sua sintaxe estão estreitamente relacionados, de um lado, à forma do poema e, de outro, a Afrodite. Este pode ser, justamente, o caso dos pássaros que conduzem sua carruagem. Segundo o Hino acima referido, Afrodite é capaz de domar os “pássaros alados” (oio#noús te diipetéas, v. 4), entre outras criaturas, e mesmo as mais selvagens (vv. 70-71) não resistem ao seu poder. Os elos poéticos e cultuais da deusa com os animais e com a vegetação são fortes.23 E no que se refere aos “pardais”, em especial, há um dado relevante a considerar. Entre os antigos, eles “[...] eram notórios por seu ímpeto sexual e pela fecundidade [...] sua carne; [...] e seus ovos [...] 275
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podiam ser ingeridos pelo seu efeito afrodisíaco. Era, portanto, natural que se pensasse que eles simbolizavam o poder de Afrodite [...]”.24 Tal comentário se baseia principalmente no Banquete dos sofistas, de Ateneu, cujo livro IX (391ef) traz estes dizeres: ka‹ ofl strouyo‹ d° efisin Ùxeutiko¤: diÚ ka‹ Tercikl∞w toÁw ™mfagÒntaw fhs‹n strouy«n ™pikatafÒrouw prÒw éfrod¤sia g¤nesyai. mÆ pote on ka‹ ≤ Sapf∆ épÚ t∞w flstor¤aw tØn ’Afrod¤thn ™p’ aÈt«n fhsin [Fr. 1] Ùxe›syai: ka‹ går ÙxeutikÚn tÚ z“on ka‹ polÊgonon. Também os pardais são copuladores. Daí porque Terpsicles diz que os comedores de pardais tornam-se inclinados à luxúria [aphrodísia]. Talvez, portanto, Safo se baseie nessa história quando diz que Afrodite é por eles conduzida, pois o animal é copulador e prolífico.25
Eis o que seria, segundo o gramático dos séculos II e III d.C., uma boa explicação para a escolha de Safo. Se essa percepção sobre os pardais de fato remontar à época da poeta (séculos VII-VI a.C.), ela estaria então, como nos fragmentos 2 V e 96 V, usando uma linguagem que, além de bastante visual, incorpora elementos relacionados estreitamente a Afrodite em canções em que a deusa está presente. O último detalhe da imagem da jornada de Afrodite é relativo à descrição, ainda que geral, do percurso de sua carruagem alada: ela é levada perì gãs melaínas (“em torno da terra negra”, v. 10), ap’ o#ráno# (“céu abaixo”, vv. 11-12) e aítheros dià mésso# (“pelo meio do éter”, vv. 11-12). Quanto à primeira especificação, crê-se que Safo se esteja valendo de uma expressão convencional da tradição épico-homérica,26 cujo significado, no entanto, não é totalmente claro para os helenistas: por que o adjetivo melaínas é associado à “terra”? Eleanor Irwin, em Colour terms in Greek poetry (1974, pp. 19899), propõe: “A interpretação mais natural parece-nos ser a de que a terra negra era fértil, ao contrário do barro de cor mais clara ou da areia, que é relativamente estéril”. Já A. E. Harvey, em “Homeric epithets in Greek lyric poetry” (1957, pp. 216-17), embora acredite que, em cer276
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tos casos, a cor se refere à fertilidade da terra, afirma, sem explicar o porquê desta conclusão, que Safo “claramente não pode estar pensando no solo” ao empregá-la; ele argumenta que talvez a expressão “terra negra” guarde “alguma associação religiosa profunda, a qual foi sem dúvida esquecida já no tempo de Homero”, mas que marcou, na poesia, o substantivo. Na segunda especificação do trajeto, Safo diferencia o#ráno# (“céu”) de aítheros (“éter”), dois substantivos que, segundo West, os gregos habitualmente viam como “mais ou menos equivalentes” (1997, p. 139).27 Assim, torna-se difícil compreender a distinção feita no Fr. 1 V. Pensa-se que o#ráno# significaria o espaço divino habitado pelos deuses, o teto do mundo, e aítheros, a camada de ar entre a terra e o manto celestial. Seja como for, importa notar que, no passado, Afrodite desceu da morada celeste de seu pai e veio à terra, à presença da suplicante.
Memória de um encontro — II: a epifania de Afrodite Cito os versos 13 e 14: a‰¸ca d’ ™j¤ko$nto: !Á d’, Œ mãkaira, meidia¤$!ai!’ éyanãtvi pro!≈pvi De pronto chegaram. E tu, ó venturosa, sorrindo em tua imortal face, [...].
O primeiro dado fornecido pelo verso 13 é a confirmação, pelo advérbio ai)psa (“de pronto”), da prontidão com a qual Afrodite atendeu no passado ao apelo da suplicante. Depois, a epifania da deusa — a quem a voz em primeira pessoa do singular chama “tu” (sù), como no Fr. 2 V (v. 13) — acontece e é retratada de tal maneira que somente neste Fr. 1 V, o mais intacto de Safo, ela ganha realidade física tanto para a suplicante do poema quanto para nós.
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No verso 13, além de chamá-la de “tu”, a voz qualifica Afrodite de mákaira (“venturosa”), epíteto empregado no vocativo singular, formalmente adequado à prece, que enfatiza o estatuto divino de Afrodite,28 como já o haviam feito os epítetos athanát’ (“imortal”, v. 1) e pa) Díos (“filha de Zeus”, v. 2). E, assim como um outro epíteto registrado no Fr. 133 V, polúolbon (“multiafortunada”, v. 2), mákaira assinala a bem-aventurança que, tal qual a imortalidade, é da própria natureza dos deuses. Adiante, no verso 14, a suplicante novamente sublinha essas marcas da natureza divina ao descrever que Afrodite, a athanát’, lhe veio meidiaísais’ (“sorrindo”) na athanáto#i prosô´po#i (“imortal face”).29 Assim, a voz da canção reitera estar ciente e respeitar o “contraste polar”30 inerente à sua relação com a deusa. Acrescente-se que o par opositivo mortal/imortal está impresso na própria expressão prosô´po#i athanáto#i. É que Afrodite, em sua epifania, assume uma forma corpórea, tolerável aos olhos mortais,31 e apresenta uma “face” (prosô´po#i) aparentemente humanizada, que é, contudo, em essência, “imortal” (athanáto#i). A imagem sáfica do sorriso de Afrodite guarda uma forte dimensão erótico-sensual, nítida num epíteto exclusivo da deusa ausente da lírica de Safo, mas usado desde a Ilíada, pelo menos: philommeidê´s (filommeidÆw, “amante dos sorrisos”). Segundo Deborah Boedeker, em Aphrodite’s entry into Greek epic, “Afrodite é [philommeidê´s] no sentido de que ela preside sobre os sorrisos que são elementos de sua esfera da consumação do ato amoroso. O epíteto [...] é regularmente associado ao papel de Afrodite como deusa do amor sexual [...], mas deve-se observar que o conceito de sorriso não está limitado à função de Afrodite como deusa do amor” (1974, p. 24). Exemplo disso é o canto III da Ilíada, em que a philommeidê´s Aphrodíte# (v. 424) guia uma silenciosa, encoberta e temerosa Helena ao leito de Páris.32 Outro exemplo está no canto XIV do mesmo épico, quando a philommeidê`s Aphrodíte# (v. 211) auxilia uma Hera também sorridente (vv. 222-23) a seduzir Zeus. O epíteto ocorre mais três vezes na Ilíada, em contextos menos marcados pelo tom erótico. 278
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No canto IV (v. 10), Zeus chama a deusa philommeidê`s Aphrodíte# ao lembrar, na assembléia dos deuses, que ela salvou Páris da morte ao tirá-lo do confronto com Menelau. No canto V (v. 375), o poeta menciona a philommeidê`s Aphrodíte# no momento em que ela narra à sua mãe, Dione, como o mortal aqueu Diomedes a feriu e expulsou da luta. Por fim, no canto XX (v. 38), o poeta descreve a entrada dos deuses na batalha que se desenrola entre gregos e troianos e diz que aos últimos se aliou, entre outras deidades, a philommeidê`s Aphrodíte. Nas vezes em que aparece, philommeidê´s marca, portanto, a característica feminilidade sedutora de Afrodite, não se restringindo aos momentos de sua atuação como deusa do amor, como bem ressaltou Boedeker. Diga-se, ainda, que philommeidê`s Aphrodíte# (“a amante dos sorrisos, Afrodite”) consiste no que chamamos uma expressão formular, pois na épica — e não apenas na Ilíada — é fixada sempre ao final dos versos hexâmetros e a ordem dos termos nunca se altera. Ao contrário do que se passa na Ilíada, na Odisséia só se registra uma ocorrência do epíteto, na expressão formular philommeidê`s Aphrodíte#.33 Dessa vez, e não por acaso, seu contexto é erótico: o canto VIII (v. 362), quando a deusa, em Pafos refugiada e auxiliada pelas Cárites numa toilette, se refaz do flagrante de seu adultério com Ares. É nesse mesmo tipo de cena — e com a presença das Cárites e das Horas — que se encontra a philommeidê`s Aphrodíte# no Fr. 6 (v. 8) dos Cantos cíprios. Igualmente no Hino homérico V, em que o epíteto exclusivo da deusa lhe é atribuído em vários momentos — um deles mostrando-a a sair ricamente vestida e adornada de uma cena de toilette em Pafos (vv. 58-67) para ir a Tróia, em busca de Anquises, sobre quem a apaixonada e philommeidê`s Aphrodíte# (v. 65) exercerá seu poder de sedução. A relação entre Afrodite e os sorrisos aparece expressa duplamente no Hino, que nos conta como Zeus, cansado de ser vítima de Afrodite, resolve dela vingar-se deste modo (vv. 45-52): Tª d¢ ka‹ aÈtª ZeÁw glukÁn ·meron ¶mbale yum“ éndr‹ kataynht“ mixyÆmenai, ˆfra tãxista
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mhd’ aÈtØ brot°hw eÈn∞w époergm°nh e‡h ka¤ pot’ ™peujam°nh e‡p˙ metå pçsi yeo›sin ≤dÁ geloiÆsasa filommeidØw ’Afrod¤th Àw =a yeoÁw sun°mije kataynªsi gunaij‹ ka¤ te kataynhtoÁw ufle›w t°kon éyanãtoisin, Àw te yeåw én°mije kataynhto›w ényr≈poiw. Mas nela Zeus lançou o doce desejo no coração de a um homem mortal se unir, para que bem rápido nem ela mesma de um leito mortal fosse privada, e não mais se gabando entre os deuses todos e docemente rindo a amante dos sorrisos, Afrodite, dissesse que deuses uniu às mulheres mortais que filhos mortais geraram com os imortais, e que as deusas uniu aos homens mortais.
Nessa passagem, que fala do principal atributo de Afrodite, o de suscitar o amor erótico, um mesmo e único verso (49) marca o elo entre a deusa e o sorriso: geloiê´sasa (“rindo”), a philommeidê`s Aphrodíte# exerce indiscriminadamente seu poder. Noutro momento pleno de erotismo, quando Zeus faz com que a deusa veja e se apaixone por Anquises, o poeta do Hino chama-a philommeidê`s Aphrodíte# (vv. 56-57). E, após fazer com que a paixão também o arrebate, a philommeidê`s Aphrodíte# (v. 155) deixa-se levar ao leito conduzida pelo pastor, em atitude dissimulada de tímida virgem — “o rosto virando para o lado e para baixo os olhos belos lançando” (metastrefye›sa kat’ ˆmmata kalå baloËsa, vv. 156-57). Em seguida, acompanhamos a descrição dos amantes no leito, onde Anquises despe a deusa, começando pelos seus ricos ornamentos (vv. 161-66). Cumpre-se, assim, a vontade de Zeus. Nesse contexto, a escolha do epíteto não poderia ser mais eloqüente. Observando, agora, a Teogonia, encontraremos a philommeidê`s Aphrodíte (v. 989) uma única vez — como na Odisséia — e num contexto erótico, quando ela, desejando-o, arrebata o jovem Fáeton, raptando-o para levá-lo ao seu templo.34 Mas Hesíodo enfatiza também de outro modo a relação entre a deusa e os sorrisos. 280
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Após seu nascimento, Afrodite ascende ao Olimpo, onde é definida a sua moi)ra (“porção”, mo›ra, v. 204), ou seja, o conjunto de prerrogativas que lhes são destinadas exclusivamente — as prerrogativas do amor erótico.35 Nessa moir) a incluem-se, entre outras coisas, os meidê´mata (“sorrisos”, v. 205). Essas são as duas ocorrências certas da ligação entre a deusa e os sorrisos na Teogonia, mas pode haver uma terceira no verso 200, suspeito de não ser hesiódico. Com ele, encerra-se a lista de nomes de Afrodite que o poeta elenca após narrar a gênese da deusa: “e ‘Amante do pênis’ [philommeidéa, filommeid°a], porque do membro [me#déo#n, mhd°vn] veio à luz”. Nesse verso, philommeidéa — que jamais reaparecerá na poesia grega antiga conhecida — gera dificuldades, pois embora se ligue estreitamente aos atributos eróticos da deusa, assemelha-se ao epíteto philommeidê´s (“amante dos sorrisos”), exclusivo de Afrodite. Cogita Hugh Evelyn-White, em sua edição Hesiod, Homeric hymns, epic cycle, Homerica (1998), que aquele seria apenas “uma perversão do normal” philommeidê´s (p. 93, nota 3); a mesma opinião têm Walter Burkert, em Greek religion (1998, pp. 154-55), e Martin L. West, em Hesiod — Theogony; Works and days (1988b). Este reconhece que em philommeidéa “Hesíodo liga meid-‘sorriso’ a me#dea-‘genitais’”, mas, mesmo assim, prefere para o epíteto a tradução “amante dos sorrisos”, ou seja, a tradução dada para philommeidê´s (p. 65). Os helenistas tendem a tomar philommeidéa por uma anomalia ou uma alteração de philommeidê´s. Seja essa leitura correta ou não, importa frisar que este prevaleceu entre os poetas que dele se valem, entre outros recursos, para associar Afrodite aos sorrisos. Um último exemplo dessa associação deve ser aqui mencionado. Trata-se do brevíssimo Hino homérico X, a Afrodite, composto de seis versos — destinados a servirem de “prelúdio recitado numa competição”36 —, que cito abaixo (vv. 1-6): Kuprogen∞ Kuy°reian ée¤somai ¥ te broto›si me¤lixa d«ra d¤dvsi, ™f’ flmert“ d¢ pros≈pƒ
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afie‹ meidiãei ka‹ ™f’ flmertÚn y°ei ênyow. Xa›re yeå Salam›now ™#ktim°nhw med°ousa efinal¤hw te KÊprou: dÚw d’ flmerÒessan éoidÆn. aÈtår ™g∆ ka‹ se›o ka‹ êllhw mnÆsom’ éoid∞w. Ciprogênia, a Citeréia, eu cantarei — aos mortais ela dá doces dons, e na desejável face sempre sorri e nela brilha a desejável beleza. Salve! ó deusa guardiã de Salamina bem construída, e da marinha Chipre: dá-me desejável canto. Agora eu de ti e também de um outro canto recordarei.
A atmosfera do Hino é marcada pelo erotismo, algo denunciado sobretudo pela referência aos meílikha dô)ra (“doces dons”, v. 2) de Afrodite, pela tripla repetição do adjetivo himerós (“desejável”, vv. 2, 3 e 5), e pela menção à beleza da deusa, feita pelo realce de sua face que, além de “desejável” (himertô)i, v. 2), traz o brilho da “flor” (ánthos, v. 3) — elemento da natureza extremamente feminino, sensual e caro às representações poéticas de Afrodite —, igualmente “desejável” (himertòn, v. 3). A semelhança entre os versos 2 a 3 (eph’ himertô)i dè prosô´po#i/ aieì meidiáei) e o verso 14 do Fr. 1 V de Safo, em que Afrodite aparece meidiaísais’ (“sorrindo”) na athanáto#i prosô´po#i (“imortal face”), num contexto eminentemente erótico, é notável e, como se pode verificar pelo estudo do elo entre a deusa e os sorrisos que venho analisando, a imagem sorridente de Afrodite é muito significativa. Essa imagem vai permeando a linguagem do poema sáfico, da esfera de Afrodite e de sua prerrogativa fundamental: o amor erótico. E é como deidade que rege tal poder que a suplicante deseja que Afrodite a ajude, o que se vai tornando cada vez mais claro a partir do verso 14. Observando-o, seja a partir desse quadro mais amplo de outras representações poéticas da deusa, seja a partir da forma, do conteúdo e da linguagem do Fr. 1 V, soa pouco convincente a hoje bastante criticada interpretação de Denys Page, em Sappho and Alcaeus, para o sorriso de Afrodite. Para entendê-la, devo citar os versos 15 a 20, que trazem as indagações da sorridente deusa feita outrora à suplicante: 282
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≥¸re’ ˆtt$i dhÔte p°ponya k tti dh¸Ôte k$ãl¸h$mmi k¸ tti $moi mãli!ta y°lv g°ne!yai m¸ainÒlai $yÊmvi: t¤na dhÔte pe¤yv .¸.!.ãghn $™! !ån filÒtata; t¤! !’, Œ Cã¸pf’, $éd¤kh!i; indagaste por que de novo sofro e por que de novo te invoco, e o que mais quero que me aconteça em meu desvairado coração: “Quem de novo devo persuadir (?) ao teu amor? Quem, ó Safo, te maltrata?”
Page argumenta, em seu livro primeiramente publicado em 1955, que as reiteradas indagações da deusa e a tripla repetição do advérbio de#u)te (“de novo”), que os grifos ressaltam acima, estão perpassadas por um “tom de reprovação e impaciência” (1987, p. 13).37 Logo, ele explica assim o sorriso da deusa: “Não há mais qualquer dúvida de que Afrodite sorri pela razão mais óbvia: porque ela está se divertindo com a situação. Um pouco impaciente, mas tolerante, como uma mãe diante de uma criança problemática” (p. 15). Ao contrário do que pretende Page, essa interpretação dos versos 14 a 20 — formulada de modo categórico — está longe de ser definitiva — como, aliás, qualquer outra interpretação do texto literário, cuja natureza polissêmica permite sempre a releitura. E seus problemas acabam por comprometer toda a visão do helenista acerca do Fr. 1 V.38 Destaco dois deles. O primeiro é que Page não considera com cuidado a relevância das ocorrências poéticas do epíteto philommeidê´s e/ou da marcante tríade Afrodite–sorrisos–erotismo. Ao estudar os fragmentos de Safo, e não apenas o Fr. 1 V, ele o faz de maneira demasiado fechada, abrindo pequenas frestas, no máximo, aos poemas de Homero. O segundo problema é que Page não leva a sério o próprio conteúdo da prece que é o Fr. 1 V, assim como pensa que Afrodite não leva a
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sério a suplicante e, ainda, que Safo — ele se refere à primeira pessoa da canção (v. 20), embora não pareça distingui-la claramente da poeta — não se leva a sério e está “rindo de si mesma na hora de seu sofrimento” (p. 16).39 Assim, Page entende os versos 14 a 20 e, também, os versos 21 a 24, que adiante citarei, como uma “interminável seqüência de perseguição, fuga e dificuldades, [que] não é para ser considerada muito seriamente” (p. 16). A prece de Safo é, sim, literária, e não deve ser tomada como uma prece religiosa. Nesse sentido, ao qual Page responde em parte, o helenista está decerto sendo razoável, sobretudo se pensarmos que na data da primeira edição de seu estudo era costume considerar a prece de Safo um “documento religioso”.40 Nem por isso, porém, ela se torna uma brincadeira, um pequeno divertimento, algo que não é construído com seriedade e que não merece ser apreciado da mesma forma. Sua linguagem — para ficar só com esse aspecto que venho aqui analisando — prova o contrário, pois os versos que ela estrutura dialogam enfaticamente não apenas entre si, mas também com a forma do poema, seu assunto e outras representações poéticas de Afrodite e da paixão, provavelmente familiares a Safo — seja pelo seu conhecimento dos poemas homéricos e/ou hesiódicos, especificamente, seja pelo conhecimento dos elementos neles articulados e, de algum modo, inseridos no caldo cultural grego que a oralidade, fundamentalmente, veiculava. Volto, pois, ao estudo do fragmento, agora aos versos 15 a 20, nos quais a primeira pessoa do singular, que está a recordar à deusa o seu auxílio no passado, profere as palavras divinas que ouvira antes de Afrodite em discurso indireto; depois de uma pausa sinalizada pelo ponto alto (:) no verso 18, o discurso indireto altera-se para direto: é a própria deusa que fala pela boca e pela memória da suplicante. Anteriormente, destaquei a ocorrência do advérbio de#u)te (“de novo”) nos versos 15, 16 e 18, sempre sublinhada pelos estudiosos. Essa tripla repetição é interessante para o momento em que acontece, pois talvez indique que a suplicante, ao recordar à deusa um encontro entre elas no passado, pretenda sinalizar que este não foi o único. Em uma prece permeada por repetições semanticamente articuladas, a possibi284
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lidade de que também o encontro entre Afrodite e a mortal se tenha repetido várias vezes não se configura como absurda. Ao contrário, a repetição do advérbio, se entendida dessa forma, serviria como novo mecanismo para reforçar na deidade o sentido de obrigação para com aquela que no presente, tal qual no passado, merece ser atendida. Notese, ainda, que a repetição marca a própria estrutura morfológica de de#u)te, resultante da junção da partícula de ênfase dê´ (dÆ) ao advérbio au)te (aÔte, “de novo, uma vez mais”). Não apenas de# u) te, mas também os pronomes interrogativos se repetem ao longo das indagações de Afrodite — “por que”, por duas vezes (ótti e kô´tti, v. 15), “o que” (kô´tti, v. 17), “quem” (tína, v. 18; tís, v. 19). O conteúdo das questões é sempre retomado: por que o sofrimento (v. 15), e por que o apelo à deusa (vv. 15-16), e o que quer a suplicante (vv. 17-18), e o que a deusa deve fazer (vv. 18-19), e quem faz sofrer aquela que a invoca (vv. 19-20). No caso do verso 15, o pronome kô´tti, que resulta da junção de kaí (ka¤, “e”) e ótti (ˆtti,“por que”), torna a repetição duplamente expressa, pois ela jaz tanto na própria palavra quanto no conteúdo da pergunta que introduz e na retomada do pronome interrogativo ótti que inicia tal verso abrindo a série de questões recordadas. As cinco indagações da deidade giram em torno do mesmo problema — o amor e suas dores. Em comum, quatro dessas perguntas têm, ainda, a linguagem, completamente inserida na esfera de Afrodite — da paixão e da sedução. Vejamos uma a uma. A primeira, reportada em discurso indireto, é ê´re’ ótti de#u)te pépontha (“indagaste por que de novo sofro”, v. 15). No passado, denuncia a forma verbal de perfeito de páskho# (pãsxv), a suplicante — que no presente pede para ser poupada dos males do amor por Afrodite (vv. 3-4) — estava sofrendo “de novo” (de#u)te), e não pela primeira vez; daí seu pedido. A segunda indagação de Afrodite, igualmente citada em discurso indireto, é kô´tti/ de#u)te kále#mmi (“e por que/ de novo te invoco”, vv. 15-16). Repete-se nesta a estrutura sintática da anterior: primeiro o pronome interrogativo; depois, o advérbio; por fim, o verbo.
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Essas duas primeiras perguntas se completam: o motivo do sofrimento de quem apela é, naturalmente, o motivo da invocação à deusa. A terceira indagação, de certa forma, complementa a segunda, dizendo, em discurso indireto: kô´tti moi málista thélo# génesthai/ mainólai thúmo#i (“e o que mais quero que me aconteça em meu/ desvairado coração”, vv. 17-18). No verso 17, repete-se o pronome interrogativo inicial e agora temos a inserção de um verbo volitivo, thélo# (“quero”), ao qual se articula a forma verbal de infinitivo génesthai, traduzida por “aconteça”. Ligado a esse verbo está o pronome moi — dativo singular de égo# (“eu”), com sentido de benefício. Observe-se, anteposto a thélo#, o superlativo málista, que mostra que Afrodite não se interessou simplesmente em saber o que a suplicante queria, mas sim o que ela queria acima de tudo, o que ela “mais” queria. Tal especificação seria um sinal da especial atenção que a deusa concedeu à suplicante no passado, ao qual vem somar-se outro, com o mesmo significado: a prontidão com que a deusa deixou a casa de Zeus, seu pai, para vir até ela. A memória desses detalhes revela que é justamente esse tipo de atenção que a suplicante novamente deseja receber no presente que lhe dirige uma prece. Por fim, no início do verso 18, encontra-se a expressão mainólai thúmo#i (“desvairado coração”) — no dativo singular, com sentido locativo —, ligada à forma verbal thélo#.41 Ela torna claro o estado de espírito da suplicante no passado, antes sugerido na forma verbal pépontha (“sofro”) do verso 15: tal estado é o do desvario amoroso. A expressão mainólai thúmo#i está, pois, profundamente sintonizada com a linguagem do Fr. 1 V, assentada no amor erótico como o compreendiam os antigos gregos: uma força externa que atinge o indivíduo causando-lhe males físicos (vv. 3-4) e que aproxima sua vítima da loucura (v. 18). Não por acaso, Safo emprega o termo mainólai (“desvairado”) adjetivando thúmo#i (“coração”) — este pela segunda vez usado no poema, ocorrendo antes no verso 4 (thúmon). Reitero que a linguagem da canção se constrói não apenas sob o signo do amor erótico, mas, até por conseqüência, sob o signo de Afrodite: os quatro epítetos iniciais ligam-se estreitamente às representações 286
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poéticas da deidade e à sua atuação entre os deuses e os homens; a força externa que é éro#s é prerrogativa fundamental da deusa; a manutenção da ambigüidade “casa/áurea carruagem” traz ao texto uma qualidade exclusiva de Afrodite, a única “(multi)áurea” deidade grega; os “pardais”, condutores de sua “carruagem”, são chamados “belos” e são aves que apresentam um comportamento afinado com as prerrogativas da deusa, pois eram tidos como sexualmente ativíssimos. E a loucura, poderia ser incluída nessa recapitulação? Sim, sem dúvida. Vimos já que uma das etimologias antigas para o obscuro nome Aphro-díte# liga sua primeira metade à “loucura, desvario, insensatez” (aphro-súne# ); essa ligação é feita, pela primeira vez, na tragédia As troianas (vv. 989-90), de Eurípides, posterior a Safo, e é mais tarde citada por Aristóteles, em sua Retórica (1400b). É possível ao tragediógrafo estabelecer tal associação em termos etimológicos porque o amor e a loucura, cujo nome pode ser também manía (man¤a), andam juntos no imaginário grego, o que fica evidente na épica, na lírica, na tragédia e mesmo na comédia, nas quais a paixão aparece regularmente como um descontrole, um desvio, um descarrilamento da mente — a dos mortais, sobretudo, mas também a dos imortais, incluindo a da própria Afrodite. Pois bem. Na imagem do mainólai thúmo#i da suplicante do Fr. 1 V, está impressa a vizinhança que subjaz ao binômio amor/desejo–loucura e é sublinhada pelos poetas gregos de maneiras diversas. Safo evoca tal vizinhança em ao menos dois outros fragmentos: o 36 V e o 47 V.42 No primeiro, do qual temos um único verso preservado, a primeira pessoa do singular declara: ka‹ poyÆv ka‹ maÒmai ... e desejo e enlouqueço ...
A relação entre o desejar e o enlouquecer parece, portanto, ser causal. No Fr. 47 V, composto por dois versos, diz a primeira pessoa do singular: 287
GIULIANA RAGUSA
ÖEro! d’ ™t¤naj° fr°na!, »! ênemo! kãt’ ˆro! drÊ!in ™mp°tvn ... e Éros sacudiu meus sensos, qual vento montanha abaixo caindo sobre as árvores.
Não há um verbo ou um nome gregos da loucura, mas a imagem claramente fala do comprometimento temporário da sanidade por causa de Éros — a divindade e a força. Vários helenistas se detiveram no binômio amor/desejo–loucura. Entre eles, Eric R. Dodds, que distingue, em The Greeks and the irrational, quatro formas de loucura, a última delas sendo a “erótica, inspirada por Afrodite e Éros” (1966, p. 64). Carson nota: “O amador, governado por eros, não pode responder por sua própria sanidade mental ou por suas ações. Dessa condição, que os gregos chamam loucura erótica ou mania, deriva-se a capacidade de machucar do amador. Assim que eros entra em sua vida, o amador está perdido, pois ele enlouquece” (1998, p. 149).43 William F. Wyatt Jr., em “Sappho and Aphrodite” (1974, pp. 213-14), observa, justamente, que a relação Afrodite–loucura no Fr. 1 V é assinalada pela referência a tal estado em mainólai thúmo#i (“desvairado coração”, v. 18) e pelas outras perturbações causadas por éro#s referidas nos versos 3 e 4. Éro#s entrou na vida da suplicante: os seus dolorosos efeitos não poderiam ser diferentes. É evidente que ela está sofrendo. Relembrando os versos 13 e 14, em que a mákaira Afrodite aparece “sorrindo” na “imortal face”, a conclusão de Douglas Gerber, na antologia comentada Euterpe, configura-se muito apropriada: “O ponto principal aqui, portanto, pode ser o contraste entre a eterna felicidade da deusa e o coração torturado de ‘Safo’” (1970, p. 164), a suplicante autonomeada no verso 20; “A felicidade de Afrodite é constante, a de Safo é apenas intermitente” (p. 165). Gerber coloca-se, com essa interpretação, contra a leitura de Page, segundo a qual o sorriso é uma forma de demonstrar impaciência maternal para com a suplicante e o próprio divertimento da deusa diante 288
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do seu desespero.44 Acrescente-se, pois, que Safo, a poeta, ao mostrar Afrodite sorrindo, não apenas estabelece o contraste apontado por Gerber, mas também enfatiza, ao mesmo tempo, o papel da deidade de múltiplas prerrogativas que é relevante para sua composição — o de regente de éro#s — e o contexto em que se insere o tema da prece — o do amor erótico e as suas dores. A quarta questão de Afrodite à suplicante marca a alteração do discurso indireto para o direto: tína de# u)te peítho#/.¸.ságe#n es sàn philótata (“Quem de novo devo persuadir/ (?) ao teu amor?”, vv. 18-19). Quem fala, agora, é Afrodite, mas pela recordação daquela que relata sua epifania no passado. Antes, porém, de analisar essa pergunta, devo tratar do único problema textual do Fr. 1 V que aqui considerarei: o início corrompido do verso 19, no qual há dois pontos indicando a existência de duas letras não identificáveis e o conjunto s. áge#n, cuja primeira letra é incerta, conforme sinaliza o ponto a ela subscrito. Nos manuscritos da principal fonte do Fr. 1 V, o tratado de Dionísio de Halicarnasso, a palavra inicial do verso 19 é sagê´nessan (sagÆnessan), forma verbal incerta de sage#neúo# (saghneÊv, “arrasto, levo a”), que foi, desde sempre, alvo de tentativas de emenda, recorda Salvatore Nicosia, em Tradizione testuale diretta e indiretta dei poeti di Lesbo (1976, pp. 210-11). Entre tais tentativas está mai)s’ áge#n (ma›s’ êghn, “desejas levar”), hoje descartada.45 Outra emenda foi sugerida por Lobel, em edição do Papiro de Oxirrinco no 2.288, fonte do poema muito precária, em que se lê apenas: “]..áge#n. ( ]..ãghn.)”. Declara o editor: “É desapontador que o problema apresentado pelas linhas 18-19 não possa ser resolvido pela ajuda do que o novo manuscrito nelas oferece” (1951, p. 1). Adiante, Lobel descreve uma proposta para o verso corrompido: “19 O primeiro sinal visível parece ser, necessariamente, a parte de cima da letra f [ph] ou y [ps] e não há espaço para uma letra entre essa e a próxima, que parece representar c [s]. A letra perdida — é quase impossível que houvesse mais do que uma — no início da linha deve, portanto, ter sido uma vogal. Eu nada posso oferecer nessas condições além de êc !’ [áps s’]” (p. 2). Seguindo essa proposta, diria o início do verso 19: áps s’ áge#n (“a de novo ir”, êc !’ êghn). 289
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Pouco tempo após a publicação do papiro com o Fr. 1 V, Dino Pieraccioni, em “Miscellanea: il volume XXI dei papiri di Ossirinco”, afirmou que essa emenda é possível, mas não resolve a questão de maneira realmente satisfatória (1952, p. 131). Já Page concorda em parte com Lobel ao reconhecer o advérbio áps (“de novo”) como inquestionável; ele rejeita, porém, o restante da reconstrução.46 Similarmente, Simon R. Slings, em “Sappho Fr. 1, 19”, para quem, todavia, o advérbio “está longe de ser o único suplemento aceitável para o começo do verso” (1988, p. 20). Ele próprio propõe esta leitura para os versos 18 e 19: “A quem, de novo, a Peitó/ pedes que conduza a teu amor?” (tina de#u)te Peítho#n/ phãs áge#n es sàn philótata).47 Como Slings, Jacques Jouanna, em “Le trône, les fleurs, le char et la puissance d’Aphrodite” (1999), discorda da emenda proposta por Lobel e mesmo de sua descrição do papiro. Na verdade, a crítica de Jouanna a essa e outras tentativas de emendar a corrupção inicial do verso 19 diz respeito a uma questão de método, pois, conforme o helenista, elas são formuladas com base apenas no papiro, desconsiderando a tradição manuscrita de sua principal fonte, o tratado de Dionísio. Assim, sua proposta será uma conclusão estabelecida a partir do exame dos manuscritos do tratado; depois disso é que ele vai ao papiro para verificar se ela também poderia estar adequada a essa fonte. Feita a primeira parte do percurso, Jouanna oferece esta lição: bai) s’ áge# n (ba›s’ êghn, “para conduzi-la”),48 proposta que o papiro não inviabilizaria (pp. 123-24). Por essa pequena amostragem, vê-se quanta controvérsia há em torno do início do verso 19. Um exame da bibliografia deste livro provará o mesmo, pois nela estão incluídos cinco artigos, centrados nos versos 18 e 19 do Fr. 1 V, nos quais os autores propõem diversas emendas que, no entanto, permanecem meras hipóteses.49 Tanto é assim que Slings abre com esta frase a sua busca por uma emenda: “Eu não ofereço desculpas por estar propondo ainda uma outra conjectura — e uma conjectura especulativa, além disso —, embora eu realmente sinta ser meu dever ser o mais breve possível” (1988, p. 19).
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Uma vez que não é meu objetivo me estender demasiado sobre um problema filológico até agora insolúvel, cito as palavras de Nicosia, que sintetiza a situação: A lição original não pode ser resgatada com certeza nem a partir da tradição indireta nem do papiro. Entre as muitas propostas que fazem recurso da conjectura, algumas são conciliáveis com os dados do papiro, mas não parecem convincentes em seu sentido [...]. Outras não são conciliáveis com os dados do papiro e apresentam inconvenientes ainda mais graves [...]. As letras certas do papiro coincidem perfeitamente com aquelas da tradição indireta, mas uma solução indubitável não parece se seguir a isso. Não resta outra coisa além de assinalar a corruptela [...] (1976, p. 214).
Essa última opção acabou por ser seguida nas edições PLF e Voigt.50 A prudência dessas edições observa-se, ainda, em George L. Koniaris, que, após apresentar um panorama resumido e comentado de várias sugestões para o verso 19 até a data de seu artigo “On Sappho, Fr. 1 (Lobel-Page)”, afirma que, na verdade, “nenhuma emenda segura pode ser proposta [...]” (1965, p. 38). Eis por que optei por não traduzir o polêmico início do verso 19, anotando no texto em português uma interrogação — “(?)”. Essa solução marca, além da impossibilidade de uma leitura minimamente sólida, que nem mesmo o Fr. 1 V de Safo, seu único poema inteiramente preservado, está de todo livre dos prejuízos materiais acarretados por séculos de transmissão. Feitas essas considerações, volto à análise da quarta pergunta de Afrodite à suplicante, com a qual saímos do discurso indireto e passamos ao direto: “Quem de novo devo persuadir / (?) a teu amor?” (vv. 18-19). A palavra com a qual ela se abre é o pronome indefinido tína (“quem”), que introduz uma terceira pessoa do singular no poema; agora, além da típica interação lírica “eu”–“tu”, 51 temos outro alguém, por enquanto não identificado. Em seguida, registra-se a terceira ocorrência do advérbio de#u)te (“de novo”, cf. versos 15 e 16), e uma vez mais estamos diante de um recurso-chave da canção: a repetição. Mas o significado dessa tripla ocorrên291
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cia em meio às cinco perguntas de Afrodite — que se repetem e se retomam em termos de sentido, sintaxe e léxico — é muito debatido, sobretudo por conta da interpretação de Page, para quem esse advérbio constitui mais um sinal da alegada “reprovação e impaciência” da deusa para com a suplicante e é prova da volubilidade, da inconstância — para não dizer da leviandade — desta que está sendo novamente arrebatada pelo amor (1987, pp. 13-16; 1a ed.: 1955).52 Nessa equivocada visão já aqui exposta, segundo a qual o poema não deve ser seriamente considerado, pois é uma grande brincadeira, o recurso estilístico da repetição e, ao mesmo tempo, toda a construção da linguagem poética acabam sendo banalizados. Não é à toa que muitos se posicionaram contra ela. Gerber (1970), por exemplo, ao comentar o Fr. 1 V, mantém-se em diálogo com Page, de quem discorda em vários pontos relevantes, como o relativo ao sentido do sorriso de Afrodite e ao significado da tripla repetição de de#u)te. Para ele, a recorrência não indica, como quer Page, a censura e a impaciência maternal da deusa em relação a uma suplicante infantil, mas consiste num recurso cujo “efeito” é o de ressaltar o páthos [pãyow, “sofrimento”] daquela que apela (pp. 164-65).53 Complementando essa leitura, pode-se ainda notar um segundo efeito da repetição do advérbio, se atentarmos para a questão temporal. O poema inicia-se no presente. A partir do verso 5, vai ao passado, tempo da memória, no qual se dá a epifania de Afrodite (vv. 5-24). Todavia, parte desse evento consiste na revelação das falas da deusa, reproduzidas ora indiretamente, ora diretamente. Nelas, prevalecem nas formas dos verbos principais, o presente e até mesmo o futuro (vv. 15-24). Resulta disso a impressão de que a epifania ocorrida no passado está novamente se repetindo no presente. A tripla ocorrência de de#u)te (versos 15, 16 e 18) tem o efeito de reforçar tal impressão. E, conciliados, esses recursos acabam por transformar a memória em uma realidade do presente, conferindo-lhe autonomia e até um sentido de futuro, sobretudo nos versos 21 a 24, como se verá. 54 Desse modo, a recordação tecida pela suplicante não apenas busca garantir a eficácia da prece, mas antecipa, através da presentificação da epifania, a futura vinda da deusa. 55 292
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Além disso tudo, a recorrência de de#u)te — palavra na qual Safo funde passado e presente56 —, num contexto que fala da experiência amorosa, também se refere ao aspecto repetitivo desta. Carson observa: “O amador na lírica grega [...] vê-se [...] vítima da novidade e da recorrência. Há um sinal muito claro, em todos os poetas líricos gregos, que esses autores se preocupavam com as perversidades do tempo. Ele consiste em uma única palavra que representa, ela própria, em microcosmo, o dilema temporal de eros. É o advérbio de#u)te” (1998, p. 118). No Fr. 1 V, as idas e vindas de éro#s são fortemente assinaladas exatamente pela tripla repetição de de#u)te. E, em dois outros fragmentos, esse advérbio marcará o mesmo: no anteriormente citado Fr. 130 e no Fr. 22 V, que ainda será estudado.57 A poeta, portanto, jamais fala do primeiro e único amor de almas romanticamente idealizado, mas do amor erótico que nada tem de definitivo, que é inesperado, arrebatador, uma força “inelutável”, conforme diz o adjetivo amákhanon do Fr. 130 V, palavra que conjuga a noção de ame#khanía (émhxan¤a, “impotência humana”58), muito cara à concepção dos poetas gregos antigos acerca de éro#s, em cujo domínio se inscreve o Fr. 1 V. Uma última palavra sobre o advérbio de#u)te. Privitera observa que, na primeira ocorrência (v. 15), seu sentido é de compreensão, de afeto; na segunda, de “esperança confiante”; e na terceira, “de um novo amor para uma outra pessoa” (1974, pp. 67-68). É este o sentido geral que parece ter a quarta pergunta de Afrodite (vv. 18-19): a deusa interroga a suplicante para saber quem deve persuadir a amá-la. Após o pronome interrogativo tína e o advérbio, temos a forma verbal de subjuntivo presente peítho# (“devo persuadir”). Sua escolha é eloqüente, pois a persuasão é um aspecto importante dos contextos que exploram o amor erótico e a sedução, e constitui uma das prerrogativas de Afrodite. Por isso mesmo, configura-se como um dos elementos recorrentes nas representações poéticas e também mítico-religiosas da deusa. Em “Le culte de la Persuasion”, Vincianne Pirenne-Delforge lembra que, para os gregos, “a persuasão, quando é uma ação, diz respeito a uma arte, uma técnica, mas pertence, igualmente, ao cortejo de divindades” (1991, p. 395). 59 293
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A deusa Peitó (“a Persuasão”) foi cultuada na Grécia antiga e cantada pelos seus poetas — Safo inclusive. Lê-se o nome Peítho# no Fr. 96 V (v. 29) da poeta, mas em sua parte mais danificada, que permite apenas duas notas: o nome de Afrodite é citado poucos versos antes e o erotismo marca fortemente a canção. Há ainda um fragmento a considerar, o 90 V, preservado em precárias condições no Papiro de Oxirrinco no 2.293 (século II d.C.), editado por Lobel (1951). Trata-se de um comentário antigo a Safo, possivelmente ao seu livro IV, ressalta o helenista (p. 16). Observando a edição Voigt do Fr. 90 V (commentarius, col. II), lemos: en.[ ] KuyerÆa! trÒfo![ y]r°pth ™n êlloi! d¢ yug[at°ra (t∞!) ’Afro]d¤th! e‡rhke tØ[n Peiy≈: .[ ] h. !efv . neihm[ ... [ ] por Citeréia nutriz? [ ...] em outros lugares e fi[lha de Afrodite [Safo]] chama a deusa Peitó; ... [ ] ... [
Para que entendamos o sujeito do verbo “chama” (eíre#ke) como sendo Safo, contribui um escólio ao verso 73 de Os trabalhos e os dias, de Hesíodo. Nesse poema, em dado momento da criação de Pandora, lê-se esta descrição sobre as deidades que vestiram essa primeira mulher: émf‹ d° ofl Xãrit°w te yea‹ ka‹ pÒtnia Peiy≈ ˜rmouw xruse¤ouw ¶yesan xro˝: émf‹ d¢ tÆn ge äWrai kall¤komoi st°fon ênyesin efiarino›sin: e ao seu redor as deusas Cárites e a veneranda Peitó colares áureos puseram sobre seu corpo, e as Horas de belos cachos sua cabeça com flores coroaram.
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O escólio diz respeito ao verso 73, no qual aparece o nome Peitó: 73c Sapf∆ [...] d° fhsi tØn Peiy∆ ’Afrod¤thw yugat°ra. 73c Safo [...] diz que Peitó é filha de Afrodite.60
Isso esclareceria o sujeito do verbo do Fr. 90 V (linha 7): a própria Safo.61 Volto ao poema Os trabalhos e os dias. Antes dos versos supracitados, Hesíodo havia descrito os dons com que, por ordem de Zeus, os outros deuses haviam presenteado Pandora. Entre eles, nos versos 65 e 66, destaco que Afrodite lhe concede a khárin (xãrin) — a graça, o charme, a beleza — e também póthon argaléon (“desejo terrível”) e guiobórous meledô)nas (“devoradoras ansiedades”). As Cárites, Peitó e as Horas, cujas afinidades com Afrodite são flagrantes, vêm completar a esfera da deusa da beleza e da sedução amorosa. Como Afrodite, que a fim de conquistar Anquises, no Hino homérico V, recebe de suas atendentes, as Cárites, “colares/ [...] áureos” (hórmoi/ [...] khrúseioi, vv. 88-89), também Pandora ganha dessas deidades esse mesmo adereço (hórmous khruseíous, v. 74). Observa Willem J. Verdenius, em edição comentada de Os trabalhos e os dias, que, “à parte a atração implicada no ouro, o colar tem o poder mágico de atar quem o contempla” (1985, p. 56). É isso o que desejam tanto a primeira mulher quanto a deusa. E sobre a deidade Peitó no poema hesiódico, que adorna Pandora junto a outras integrantes divinas do séquito de Afrodite, Verdenius declara: “No contexto presente, ela incorpora o poder da mulher de persuadir o homem ao ato sexual” (p. 56). Diante disso, do Fr. 96 V de Safo, da afinidade que Peitó tem com os cultos de Afrodite e da relação da persuasão a contextos eróticoamorosos, alguns viram na pergunta do Fr. 1 V (vv. 18-19) não uma forma verbal, mas o nome da deidade — tendência largamente rejeitada devido às muitas dificuldades sintáticas dela derivadas e ao fato de ela estar demasiado comprometida com certas propostas de emenda ao início do verso 19 pouco convincentes.62
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Descartada essa alternativa, como normalmente acontece,63 é válido, no entanto, considerar, para a leitura de peítho# no verso 18, as relações entre a ação de persuadir, a divindade Peitó, Afrodite e éro#s. Hesíodo, além de tratar Peitó como deidade associada às Cárites e às Horas — todas da esfera de Afrodite —, dá-lhe uma genealogia diversa da de Safo (Fr. 90 V, commentarius, col. II). Na Teogonia, Peitó aparece como filha de Oceano e Tétis, irmã de Métis e de várias outras deidades nascidas do mesmo casal (v. 349). Dessa forma, Peitó, “a Persuasão”, aproxima-se de Métis que, por sua vez, nada mais é do que a divindade da mê) tis, um tipo especial de inteligência, como se viu no capítulo 5. A ação de persuadir guarda algumas correspondências com a da mê)tis, pois objetiva conquistar, seduzir o outro, não raro através do ardil, do engano, da dissimulação. Assim, ainda que as genealogias sejam diversas, os dados se complementam: Peitó liga-se a Afrodite, sua ação liga-se à sedução e à mê)tis, e tudo isso pode ser integrado a um único contexto: o de éro#s. E, no âmbito dos cultos gregos, o que se sabe sobre Peitó? Conforme relatos de fontes antigas, Afrodite e ela tinham cultos conjuntos na Grécia. Pausânias, ao descrever a região continental a Ática (livro I, XXII, 3), menciona um santuário a “Afrodite Pánde#mos” (Pãndhmow, “Protetora da comunidade”) e a Peitó no flanco sudoeste da Acrópole, fundado por Teseu, quando ele reuniu em Atenas os atenienses de diversas comunidades. Continuando, o viajante declara que ele mesmo já não viu as estátuas das duas deusas. Diante desse relato, comenta Vinciane Pirenne-Delforge, em L’Aphrodite grecque, que inscrições com o nome de Afrodite Pánde# mos encontradas na Acrópole ateniense confirmariam a existência do santuário descrito por Pausânias e que outros relatos reforçariam sua antigüidade, que remontaria ao início do século VI a.C., e a “conotação política” do epíteto da deusa (1994a, pp. 26-28).64 A helenista também ressalta que a descoberta de uma inscrição votiva do século IV a.C. dedicada a Peítho# na Ática, em um templo a Afrodite descrito por Pausânias (livro I, XXXVII, 7) perto de Dáfni e no caminho para Elêusis, atesta “seja a associação das duas divinda296
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des, seja a atribuição a Afrodite de um epíteto que põe em evidência seu poder de persuasão” (pp. 73-74). Há outra tradição, lembra Pirenne-Delforge, que faz de Sólon (séculos VII-VI a.C.) o fundador do santuário ateniense de Afrodite Pánde#mos e Peitó, que estaria associado à prostituição destinada a servir aos jovens atenienses e a conduzi-los da adolescência à idade adulta; nesse caso, a tradução do epíteto não seria “Protetora da comunidade”, mas “a Comum, a de todos”.65 Essa tradição “emana de uma comédia que faz [de Afrodite] a patrona das cortesãs”, conforme frisa a helenista, o que não impede que a associação dela e de Peitó, “à aproximação dos sexos, seja ela venal ou conjugal,” se configure como verossímil (1991, pp. 401-2). Ademais, essa segunda interpretação não deixa de inserir o epíteto numa dimensão sociopolítica, lembra Pirenne-Delforge, que marca “a imbricação dos domínios da vida política e da vida sexual dos futuros cidadãos tais quais as reflete a dupla tradição do santuário de Afrodite Pánde#mos” (1994a, p. 40). Havia outros templos associados de Afrodite que podiam incluir, além de Peitó, Éros, Pótos e Hímeros — “abstrações divinizadas que personalizam diversas facetas dos poderes” da deusa.66 Pirenne-Delforge passa por alguns deles, tratando, ainda, do santuário consagrado apenas a Peitó em Sicione (1991, pp. 403-11), região onde, como se viu no capítulo anterior, havia também um templo de Afrodite. Adiante, a helenista volta-se para as inscrições concernentes a Peitó, que totalizam uma dezena. Entre elas, há uma encontrada na principal cidade de Lesbos, Mitilene, que já citei ao final do quarto capítulo e que ora retomo: ˜ ke y°l˙ yÊein ™p‹ t“ tçw ’Afrod¤taw tçw Peiy«w ka‹ t“ ÑErmò o que deseja sacrificar a Afrodite e a Peitó [ou a Afrodite Peitó] e a Hermes.67
Segundo Pirenne-Delforge, essa inscrição do século III a.C. teria o objetivo de decretar a interdição de sacrifício do porco no altar dessas deidades (1991, p. 412). Muito tempo antes, em seu The cults of the Greek states — II, Lewis R. Farnell afirmava, diante da mesma
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evidência, que esta era uma prova do culto de Afrodite Peitó (“a Persuasiva”) em Lesbos, assim como em outra localidade grega, a cidade de Fársalos, na Tessália, como atestaria uma inscrição do século V a.C. (1896, pp. 664-65).68 Baseado nesses dados, Farnell acreditava que do epíteto cultual se teria descolado e personificado na deusa Peitó (“a Persuasão”) — algo que não mais é sustentável, uma vez que tanto a inscrição de Mitilene quanto a de Fársalos foram revisadas e a conclusão à qual chegaram os estudiosos, ressalta Pirenne-Delforge (1991, p. 412, nota 73), foi a de que ambas têm um problema comum: pode ser que elas falem de uma Afrodite Peitó ou de Afrodite e de Peitó como duas deusas distintas, opção à qual ela se mostra favorável.69 Daí por que, na tradução, assinalei a ambigüidade do texto grego. De qualquer modo, está claro que também em Lesbos, mais especificamente em Mitilene, havia a associação cultual Afrodite–Peitó, que inclui ainda Hermes. E muito embora a data da inscrição seja tardia, não se pode descartar a hipótese da existência de um santuário desses deuses que remontaria, no mínimo, ao século V a.C., época em que, segundo evidências epigráficas, Peitó tinha cultos na Grécia, ainda que, como é largamente atestado, em conjunto com Afrodite, como observa Pirenne-Delforge (1991, p. 413), e também com Hermes. Compreende-se bem a conjugação Afrodite–Peitó. Afinal, a persuasão é algo inerente à sedução amorosa. E quanto a Hermes, que se associa à primeira em um santuário bastante antigo em Creta, por exemplo,70 e que, na inscrição de Mitilene, está relacionado a ambas? Que afinidades haveria entre os três deuses? Uma delas é certa: o caráter enganador, dissimulado, de Hermes e de Afrodite,71 que pode marcar — mas não necessariamente — o discurso persuasivo e, logo, a deusa Peitó. No poema Os trabalhos e os dias, quando da criação de Pandora, Hesíodo conta que Hermes, obedecendo às ordens de Zeus, presenteia essa mulher com “a mente de uma cadela” (kÊneÒn te nÒon) e “um caráter dissimulado” (™piklÒpon ∑yow), diz o verso 67. Adiante, no verso 78, ele lhe incute “falsas e lisonjeiras palavras” (ceÊdeã y’ aflmul¤ouw te lÒgouw) e, novamente, “um caráter dissimulado” (™piklÒpon ∑yow). 298
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Mentir, enganar, dissimular, fingir, seduzir ardilosamente, persuadir — tudo isso é próprio da atuação de Afrodite a quem, segundo o Hino homérico V, somente três deidades resistem, às quais ela “não é capaz de persuadir a mente nem enganar” (dÊnatai pepiye›n fr°naw oÈd’ épat∞sai, v. 7): Atena, Ártemis e Héstia. São notáveis os termos dessas restrições, pois caracterizam bem as ações de Afrodite e de Hermes — como ela, um mestre em persuadir e enganar. Não é à toa que é ele o mensageiro divino, o enviado de Zeus à divina ninfa Calipso, na Odisséia (canto V, vv. 1-42), para convencê-la a permitir que Ulisses parta de sua ilha e siga sua viagem de retorno a Ítaca. Cabe uma palavra sobre um dom de Hermes concedido a Pandora no poema de Hesíodo: a “mente de uma cadela” (kúneón te nóon). Eis aqui uma maneira de os poetas denotarem a impudência feminina. Como noutro momento enfatizei, na Odisséia (canto VIII, v. 319), diz Hefesto que sua esposa adúltera, Afrodite, é uma “moça de olhos de cadela” (kunô´pidos [...] koúre#s), ou seja, uma “impudente”. Talvez essa característica, nesse mesmo episódio, explique a resposta de Hermes a Apolo, quando este lhe indaga se ele resistiria a Afrodite; o mensageiro declara que, mesmo que sofresse o que sofreu Ares, jamais poderia resistir à deusa (vv. 339-42). Por fim, Hermes, Afrodite e Peitó relacionam-se, ainda, “às necessidades da concórdia e da eloqüência persuasiva que intervêm nos encargos dos magistrados”72 da cidade. Ou seja, os três guardam uma dimensão comum de mantenedores da harmonia civil. E Pirenne-Delforge arremata, lembrando outras duas esferas comuns aos três, a da sedução amorosa e a do casamento:73 Persuasão amorosa e privada, e persuasão política e pública designam, ampliando-o, o campo de ação de uma Afrodite que vimos honrada por particulares e por magistrados. A associação a Hermes pertence a uma esfera de influência similar, uma vez que o deus acompanha Afrodite na cena privada dos casamentos, mas também na cena pública em que os magistrados cumprem os deveres de seus cargos. [...] Hermes, o deus de uma palavra eficaz, às vezes enganadora, o deus das passagens e da comunicação, acompanha Afrodite, que, se suas prerrogativas em ma299
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téria de sexualidade são predominantes nos contextos matrimoniais, cumpre funções de concórdia e de harmonia em largo sentido quando ela aparece na ágora [êgora, a praça pública] (1994a, p. 457).
No que se refere à lírica, Richard Buxton, em Persuasion in Greek tragedy, comenta que Peitó ou o verbo peíthein (“persuadir”) são recorrentes em toda a poesia erótica grega antiga (1982, p. 38). Portanto, a forma verbal peítho# empregada por Safo no Fr. 1 V, mesmo que entendida como tal, e não como o nome de uma deidade, confirma o contexto erótico-amoroso inerente às prerrogativas de Afrodite a partir do qual se articula a linguagem do poema — tal qual ocorre nos fragmentos 2 V e 96 V. A forma verbal peítho# , no poema sáfico, faz emanar da fala da deusa uma dimensão que o verbo da quinta e última pergunta da deusa enfatizará: a dimensão da cidade e da justiça que, na época de Safo — o turbulento e instável mundo arcaico —, estava em fase de estruturação. Guardo, por ora, esse dado para tratar de mais um termo da quarta pergunta de Afrodite: philótata (v. 18). De um modo geral, philótata pode significar tanto “amor” quanto “amizade” ou, ainda, um tipo de relacionamento que envolveria características de ambos. No que se refere ao Fr. 1 V, não há consenso quanto à sua interpretação. Na tradução, uns preferem a palavra “amizade”, mas entendida na terceira possibilidade de sentido. Page (1987, pp. 4 e 10-11) inclui-se entre os que pressupõem a existência do círculo ou do grupo de meninas ligadas a Safo,74 entre os quais alguns pensam que Afrodite estaria indagando a que “desertora” desse grupo ela deveria persuadir a se reconciliar com ele e com a sua líder — a própria poeta.75 Creio que há nessa leitura dois problemas: sua fundamentação historicamente não comprovada e a visão do poema como de reconciliação. Pelo que nos revela a sua linguagem, não é esse o tema, mas as idas e vindas, a instabilidade de éro#s. Daí por que muitos — para não dizer a maioria — optam pela tradução “amor” para philótata.76 Incluome entre estes, pois seu argumento principal é dado na própria forma e
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conteúdo do poema, não sendo fruto de especulações questionáveis, que, contudo, são às vezes valorizadas.77 Gerber observa, sobre philótata: “certamente ‘amor’, não ‘amizade’, em vista de [mainólai, ‘desvairado’, v. 18]” (1970, p. 165). 78 Todavia, ressalto que minha tradução não endossa as teorias de lesbianismo entre as misteriosas integrantes do tão falado, desconhecido e não atestado grupo de meninas de Safo. Conforme observa Lanata, o substantivo philóte# s, do qual philótata é a forma do acusativo, faz parte da linguagem erótico-amorosa de Safo e também de Homero e Hesíodo (1996, p. 20). Nesses poetas, vemos que philótata não apenas é termo próprio de contextos dominados por éro#s como também está estreitamente relacionado à deusa que rege tal poder. Basta que recordemos duas breves passagens já citadas neste trabalho, uma da Ilíada, outra da Teogonia. Na primeira, philóte#s , o “amor”, é incluído entre os “encantos todos” do “cinto” de Afrodite (canto XIV, vv. 214-16); na segunda, philóte#tá (“amor”) é definido como uma das prerrogativas da deusa (vv. 203-6). Além disso, ao descrever a genealogia dos deuses, Hesíodo emprega várias vezes a fórmula en philóte#ti (“em amor”) — em alguns versos, somada a dià khrusê)n Aphrodíte#n (“graças à áurea Afrodite”, 822, 962, 1.005, 1.014) — para dizer como foram gerados os filhos de um determinado casal. O sentido sexual de philóte#s, que garante a reprodução, é inegável. Cito, ainda, o Hino homérico V, no qual o poeta diz que philommeidê´s Afrodite, a “a amante dos sorrisos”, jamais “doma com o amor” (dámnatai en philóte#ti) Ártemis, a virgem (v. 16). Eis uma síntese da linguagem erótico-amorosa usada no Fr. 1 V: o verbo “domar” exprime a ação da deusa, o “amor” (philóte#ti) é o seu instrumento principal e o sorriso, algo que lhe é especialmente caro e adequado.79 Diante de todas essas referências, bem como do contexto e da linguagem do Fr. 1 V, o termo philótata (v. 19) está impregnado de erotismo e, portanto, na esfera de Afrodite. Passo à quinta pergunta de Afrodite, dita em discurso direto pela suplicante: tís s’, ô )/ Psápph’, adíke#si? (“Quem, ó/ Safo, te maltrata?”, vv. 19-20). Como acontece nas outras quatro indagações da deusa, ela 301
GIULIANA RAGUSA
se abre com um pronome interrogativo, tís; a seguir, vem o vocativo singular ô/) Psápph’, seguido de adíkes# i, forma do indicativo presente de adikê´o# (édikÆv, “fazer uma injustiça, fazer mal”, em ático, adikê´o#, édik°v). A pergunta final retoma a primeira; em ambas, Afrodite busca descobrir a razão do sofrimento da suplicante: por que ela sofre, quem a maltrata? O elemento mais notável dessa última pergunta de Afrodite é a identificação da primeira pessoa do singular do poema como “Safo” (Psápph’(oi)), 80 nome que se repetirá uma única vez no corpus deste estudo (Fr. 133 V) e, fora dele, nos fragmentos 65 V e 94 V — um dado decerto decorrente dos prejuízos materiais sofridos pelos textos. Bastante mutilados, os versos 5 a 10 do Fr. 65 V cantam: Cãpfoi, !ef¤l[ KÊprvi. b. [a]!¤l[ k. a¤toi m°ga d.[ ˆ]!!oi! fa°yv n. [ pãntai kl°o! [
— ka¤ !’ ™nn ’Ax°r[ont ó Safo, ...[ Chipre (r[a]inha?)...[ embora grande (...)[ p]ara tantos brilhando [ em toda parte glória [ — e a ti no Aque[ronte
Nesse fragmento papiráceo,81 sem início nem final, cujas referências a “Chipre” (Kúpro#i), a ilha de Afrodite, e talvez à palavra “rainha” (b.[a]síl[, v. 6) poderiam indicar a presença da deusa no texto, o nome “Safo” (Psápphoi, v. 5) aparece no vocativo. Depois, são legíveis algumas palavras, entre as quais um pronome de segunda pessoa do singular s’ (v. 10, acusativo de sú, !Ê), que remeteria a Psápphoi. Diante desses parcos elementos, é impossível avaliar o contexto do fragmento e da ocorrência do nome “Safo”. 302
O FR. 1 V: UMA PRECE DE
“SAFO”
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Cito agora os versos 1 a 5 do Fr. 94 V, cujo início e final estão perdidos para nós: teynãkhn d’ édÒlv! y°lv: ê me ci!dom°na katel¤mpanen
pÒlla ka‹ tÒd’ ¶eip° [moi: im’ de›na pep[Òny]amen, Cãpf’, ∑ mãn !’ é°koi!’ épulimpånv. morta, honestamente, quero estar: ela me deixava estando coberta
de muito pranto e isto me [dizia: “Ah, terrivelmente sofremos, ó Safo, e, sim, contrariada te deixo”.
Alguns versos adiante, depois das palavras proferidas por aquela que parte, em discurso direto, a voz da canção — que parece ser “Safo”82 — passa a relembrar os momentos que desfrutaram juntas numa linguagem perpassada pelo erotismo (vv. 12-23). A separação entre Psápph’ e aquela que parte pode representar, portanto, uma separação entre duas pessoas ligadas por uma relação amorosa. Reunidos esses elementos, a menção do nome da poeta neste Fr. 94 V guarda em comum com a do Fr. 1 V três aspectos: ela se dá no vocativo singular, ela ocorre no momento do discurso direto, a canção está marcada pelo erotismo. O caso do Fr. 94 V, lembrado quando se comenta o do Fr. 1 V, constitui um dos motivos que fazem com que a ocorrência de “Safo” em ambos seja compreendida, de um ponto de vista romântico e biografista, como uma referência à própria poeta de Lesbos, e não à sua persona poética. Os outros motivos principais que corroboram para isso são: a constância com a qual sua lírica trabalha o tema do amor; o fato de sua lírica ser tida como monódica; a freqüência da primeira pessoa do singular como a voz dos fragmentos; e os obscuros e ficcionalizados dados da vida de Safo, especialmente os relativos ao célebre, mas não atestado grupo de meninas com as quais ela manteria relações de tipo 303
GIULIANA RAGUSA
que se ignora, embora se diga, devido ao erotismo de sua poesia, terem sido amorosas. No primeiro capítulo deste estudo, bem como em certo momento da análise interpretativa do Fr. 2 V — e também do 96 V —, foram longamente discutidos os problemas da abordagem romântico-biografista dos poetas gregos arcaicos. Mas com referência à menção do nome “Safo”, especificamente, em canções que falam de éro#s numa linguagem por ele marcada, a sua compreensão biográfica torna-se ainda mais complicada, se considerarmos que não são apenas em canções desse tipo que tal menção se verifica. Mostra-o o Fr. 133 V, que estudarei mais detalhadamente no capítulo 8, mas que devo aqui reproduzir: ⊗
Exei m¢n ’Androm°da kãlan émo¤ban *** Cãpfoi, t¤ tån polÊolbon ’Afrod¤tan ....;
⊗
“Tem Andrômeda bela paga” *** “Ó Safo, por que a multiafortunada Afrodite...?”
Este fragmento, do qual temos apenas dois versos iniciais, se configura como um canto dialogado em que uma pergunta, feita por não se sabe quem, é lançada a Psápphoi, nome que, como nos fragmentos 1 V, 65 V, 94 V, está no vocativo. Apesar de bastante reduzido, o fragmento constitui uma boa razão para que se relativize a leitura da autonomeação como biográfica. Não estamos diante de uma poeta a falar dos seus amores pessoais, mas de sua persona, de sua máscara, de seu sujeito lírico. Evidentemente, aqueles que insistem no biografismo e no romantismo vêem no fragmento citado uma “prova” da existência do círculo de meninas comandado por Safo sob o signo de Afrodite. Contudo, como último recurso, nunca é demais repetir: entre a biografia e a literatura há a forma, a linguagem construída, o que não permite que tomemos a ficção como fato do qual ela é, apenas e se assim o quiser, a representação verossímil. 304
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Voltando ao Fr. 1 V, nele a suplicante Psápph’ (v. 20) se identifica diretamente, o que não acontece em nenhum outro fragmento em primeira pessoa do singular. Mas essa “Safo” não é o sujeito empírico da poeta.83 Aqueles que não observam essa diferença — válida, se não por mais nada, pelo fato de esta “Safo” estar inserida em uma criação da linguagem — acabam por tratar essa persona como a pessoa e, aliando dados pseudobiográficos, terminam por articular considerações que pouco contribuem para a leitura do texto. Importa reter que no verso 20, que encerra a quinta estrofe, temos o “eu” e o “tu” plenamente identificados. Tipicamente, estamos diante de uma situação dramática: até o discurso direto, a primeira pessoa do singular é “Safo”, a suplicante, e a segunda pessoa do singular é a deusa; na alteração para o discurso direto, quando as palavras de Afrodite são reproduzidas, a relação “eu”/Safo–“tu”/deusa se inverte. Depois, na sétima e última estrofe (vv. 25-28), a situação inicial será retomada: o “eu” e o “tu” voltam a ser, respectivamente, a suplicante e a divindade invocada. Para Eva Stehle, em Performance and gender in ancient Greece, essas alterações, num poema destinado à apresentação oral numa ocasião de performance que desconhecemos, produzem o efeito de “descolar a personagem ‘Safo’ do cantor e torná-la uma figura na imaginação do ouvinte” (1997, p. 297). Mas, adiante, Stehle acaba por cair no biografismo, pois interpreta esse artifício de linguagem como uma maneira de Safo, a poeta, motivar alguém “a vir (ou a retornar) para o seu grupo” (pp. 297-99). Essa leitura pressupõe a crença no grupo e no relacionamento amoroso entre as suas integrantes.84 As alterações discursivas e de enunciação contribuem, na verdade, para a universalização do poema, e não para sua personalização. Não estamos diante dos tormentos pessoais de um indivíduo empírico, mas de tormentos que são passíveis de serem sentidos por qualquer ser humano, uma vez que advêm da experiência amorosa, que, muito embora seja cultural e historicamente percebida de variadas formas, é universal. Marilyn B. Skinner, em “Woman and language in archaic Greece, or, Why is Sappho a woman?”, adota uma postura anti-romântica diante da lírica de Safo, dizendo que: 305
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dada a função normal do poeta grego arcaico como um falante-representante indicado por sua — dele ou dela — comunidade, é bem mais provável que a auto-estilização de Safo enquanto o sujeito (ego) que deseja, junto com seu extenso estoque de temas, formas de versos e melodias, tropos e imagens, fosse largamente tradicional, um produto de muitas gerações de um esforço criativo local. [...] Abordando as canções de Safo como discursos sociais, evitamos os difíceis problemas de representação envolvidos no tratamento do texto como um espelho fiel da subjetividade única de um autor (1996, p. 183).
A despeito disso, sua leitura de Safo não deixa de ser demasiado centrada na questão do gênero — a mulher —, observada com as lentes de um neofeminismo muito em voga. Assim, Skinner terminará adotando outra espécie de biografismo, pois, para entender o aspecto social do que nomeia “o discurso feminino-específico” de Safo (p. 192), ela não pode prescindir dos dados “biográficos” sobre a poeta e seu círculo, que são extremamente problemáticos. Além disso, como costuma acontecer à leitura fortemente comprometida com uma ideologia, a de Skinner perde de foco a lírica sáfica e a sua riqueza, para vê-la numa perspectiva demasiado ampla, que torna o texto um pretexto para considerações extraliterárias, que consistem, em realidade, num fim em si mesmas. Similarmente, a discussão dessas posturas poderia constituir-se objeto e finalidade primeira deste livro. Mas uma vez que esse não é o caso, pois escolhi priorizar a análise interpretativa dos fragmentos a partir de um tema, restrinjo-me a ilustrar tal discussão. Retomo, pois, o estudo do Fr. 1 V. Em sua pergunta final a “Safo”, Afrodite deseja saber quem a adíke#si (“maltrata”). Fica aqui expressa a terceira pessoa do singular sobre a qual a deusa ainda falará nos versos 21 a 24. A suplicante invoca a deusa por conta do seu sofrimento amoroso causado por alguém — “ele/ela” — sobre quem nada se sabe antes da penúltima estrofe do poema, que cito abaixo: ka¸‹ g$år afi feÊgei, tax°v! di≈jei, afi d¢ d«ra mØ d°ket’, éllå d≈!ei,
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afi d¢ mØ f¤lei, tax°v! filÆ!ei kvÈk ™y°loi!a. Pois se ela foge, logo perseguirá; e se presentes não aceita, em troca os dará; e se não ama, logo amará, mesmo que não queira.
Assim se encerra a fala de Afrodite, que a suplicante, em sua prece, recorda à própria deusa. Nela, novamente, destaca-se o aspecto formal da repetição, sobretudo nos versos 21 a 23, cuja estrutura paralelística é muito rica sonoramente. Estes são alguns detalhes da construção desses versos: • No verso 21, há uma assonância na terminação dos verbos phéugei (“foge”) e diô´ ksei (“perseguirá”), perdida na tradução. O mesmo acontece no verso 23, entre phílei (“ama”) e philê´sei (“amará”), dessa vez mantida na tradução, mas com outra vogal final. • O advérbio takhéo# s (“logo”) repete-se nos versos 21 e 23, na mesma posição. • A primeira metade dos versos 22 e 23 começa por uma negativa. • Os verbos da primeira metade dos versos 21 a 23 estão no presente; os da segunda, no futuro. E todos estão na terceira pessoa do singular. Note-se, pois, que o jogo temporal entre eles está espacialmente marcado. • Os versos 22 e 23 têm uma anáfora, ou seja, ambos se iniciam por ai dè (“e se”). • Nos versos 21 a 23, são sempre os verbos que antecedem a vírgula, estando, pois, dispostos nas mesmas posições espaciais. • No som final dos versos 21 a 23, temos a aliteração do “s” e a assonância do conjunto “ei”: todos terminam em -sei (diô´ksei; dô´sei; philê´sei). Note-se que, entre diô´ksei e dô´sei, ambos no futuro, a similaridade sonora é ainda mais intensa. Diante desses aspectos estilísticos que apenas ilustram os muitos recursos empregados habilmente na construção do Fr. 1 V, alguns es307
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tudiosos consideram que há na forma do poema, bem como em sua linguagem e estilo, um aspecto encantatório. As repetições, a sonoridade, a indeterminação espacial, a epifania, a fala de uma deusa, a fusão dos tempos — que confere uma dimensão atemporal do poema que passa a ser “parte de uma seqüência contínua” 85 —, tudo isso imprime à canção uma atmosfera de suspensão espaço-temporal que parece tornar à concretização lingüística de um momento encantado. Mas se Étienne Barilier, em “La figure d’Aphrodite dans quelques fragments de Sappho” (1972, pp. 25-26), e Charles Segal, em “Eros and incantation” (1996, pp. 67-68), se limitam a destacar o tom encantatório do fragmento e de sua performance,86 outros helenistas — como Archibald Cameron, em “Sappho’s prayer to Aphrodite” (1939, pp. 1-17), e J. C. B. Petropoulos, em “Sappho the sorceress — Another look at fr. 1 (LP)” (1993, pp. 43-46) — levam essa percepção a extremos, entendendo o poema como a recitação de um feitiço, uma construção formal à maneira dos discursos mágicos.87 Diante dessas leituras, Zsigmond Ritoók observa, em “Tradition and innovation in Sappho’s ode to Aphrodite”, que não se pode estendêlas a todo o Fr. 1 V: “Meramente de um ponto de vista formal, a estrofe [vv. 21-24] pode ser considerada como um feitiço ou um encantamento [...]. No contexto integral do poema, contudo, e especialmente no contexto das estrofes que antecedem a sexta, esta não é, de maneira alguma, um feitiço, mas uma promessa [...]” (1995, p. 354). A visão de Ritoók de que a sexta estrofe é uma promessa consoladora de Afrodite de reversão da situação em favor de “Safo” é, normalmente, compartilhada pelos estudiosos.88 Mas essa não é a única forma de compreendê-la, o que explica que o significado dos versos 21 a 24 seja um dos pontos mais debatidos do poema, sobretudo com relação ao seu tom, lembra Anne Carson, em “The justice of Aphrodite in Sappho 1” (1996, p. 226); por isso, ela concentra suas preocupações na sexta estrofe, a fim de tentar esclarecer “o que está acontecendo nos seus versos”. Como qualquer outra interpretação, a de Carson é passível de revisão, mas ela se diferencia de outras na medida em que respeita e acei308
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ta o que oferece o texto grego dos versos 21 a 24, hoje tido como consensualmente estabelecido. Isso quer dizer que a helenista enfrenta um fato da sexta estrofe sem procurar corrigi-lo, sem vê-lo como um defeito. Ao contrário, ela o toma como um dado da linguagem da estrofe e, assim, busca integrá-lo ao restante do poema sem maiores contorcionismos. Que fato é esse? Se atentarmos para os quatro verbos dos versos 21 a 23, veremos que eles têm um sujeito comum em terceira pessoa do singular que é do sexo feminino, conforme revela a forma verbal participial ethéloisa (“queira”) no verso 24. 89 Todavia, ressalta Carson, nenhum deles tem objeto no texto grego, algo que mantive na tradução: “ela” foge de quem? Perseguirá a quem? Rejeita os presentes de quem e a quem os dará? Não se sabe a quem “ela” não ama, nem a quem amará. Nada disso está explicitado na sexta estrofe, mas os helenistas costumam assumir em suas traduções e/ou em seus comentários que o objeto dos verbos é “Safo” (v. 20), a suplicante.90 Indo além dessa complementação aos verbos, Page afirma que diô´ko#, cuja forma do futuro encerra o verso 21 (diô´ksei), necessariamente implica não a mera perseguição, mas “correr atrás de alguém que está fugindo” (1987, p. 14; 1a ed.: 1955). Assim, para ele, o verso 21 diria “se hoje ela está fugindo de ti, amanhã tu estarás fugindo dela”; o verso 22, “se hoje ela recusa teus presentes, amanhã tu estarás recusando os dela”; e o verso 23, “Hoje ela não te ama, amanhã ela te amará”. Tomando os versos nesse sentido, a leitura de Page retrata Safo como alguém que, constante e voluvelmente, entra e sai de paixões; daí por que ele crê não haver seriedade no poema — nem da parte da suplicante, nem da deidade. Por essa visão e porque ela está baseada em uma frágil inferência sobre o significado de diô´kein (di≈kein, “perseguir”) é que são muitos os seus críticos.91 Entre eles, Koniaris (1965) é dos mais contundentes. Ele refuta a “inferência” a partir da qual Page “procede como se ele tivesse estabelecido a razão suficiente” para sua interpretação dos versos 21 a 23 da sexta estrofe. E ao mostrar que diô´ko# não necessariamente implica “correr atrás de alguém que está fugindo”, como quer Page, Koniaris crê 309
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demonstrar que a interpretação do helenista inglês não procede e deve ser abandonada: “É claro que não se pode provar que Page está errado, mas eu espero mostrar que, em termos de probabilidade, a interpretação dele é insatisfatória” (p. 32). Inicialmente, Koniaris observa: Decerto é verdade que o primeiro significado de [diô´ko#] sugere a situação do perseguidor e do perseguido. [...] Mas no sentido erótico, o [diô´ko#n, “perseguidor”] — o amador — não tem que implicar um “amado” hostil, um “amado” que foge. Somente se o “amado” é explicitamente mencionado como [pheúgo#n, “o que foge”] torna-se claro que ele evita (seja no momento ou para sempre) o [diô´ko#n] (p. 32).
Após ter ilustrado esse comentário com passagens da literatura grega,92 Koniaris faz uma segunda observação: Eu quero chamar a atenção de meu leitor para o fato de que, no poema de Safo aqui em discussão, [phéugei-diô´ksei, “foge”–“perseguirá”] do texto grego referem-se a uma e mesma pessoa — a garota. Assim, [...] o contraste [no v. 21] é simplesmente entre a atitude da garota agora, quando ela não ama Safo, e mais tarde, quando ela amará Safo. O [diô´ksei, “perseguirá”] é a antinomínia de [phéugei], mas não necessariamente implica nada sobre Safo como sendo uma [phéugoisa, “fugitiva”] (p. 32).
Devido a essas e a algumas outras razões, Koniaris enfraquece a frágil inferência que alicerça a leitura de Page, cuja inadequação foi já apontada e reiterada. Por outro lado, ele fala em “garota”, enquanto o poema só se refere a “ela”; e ele suplementa os verbos dos versos 21 a 23 tomando “Safo” como o objeto deles. Proceder dessa forma é não apenas veladamente “corrigir” a sintaxe dos três primeiros versos da penúltima estrofe, mas pressioná-la a enquadrar-se em um pressuposto de leitura que é o da existência de um grupo de garotas amigas-amantes em torno de Safo. Além disso, se voltarmos às cinco perguntas de Afrodite e tomarmos a própria suplicante como objeto dos verbos ditos pela deusa, te-
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remos uma visão acerca dos versos 21 a 23 que os insere em um quadro específico — o do sofrimento amoroso de “Safo” —, muito embora a fala da deidade guarde o sentido amplo — o de que não se pode escapar ao seu poder. Ao contrário, se aceitarmos a ausência dos objetos e deixarmos de buscar pressupostos gramaticais ou mesmo “biográficos” para forçá-los aos verbos, a declaração de Afrodite ganha em profundidade e torna-se ainda mais ampla; com isso, dissipa-se o problema do tom de suas palavras e torna-se nítida a alteração do específico para o geral na virada da sexta estrofe. Carson comenta que, da pergunta dos versos 19 e 20 — “Quem, ó/ Safo, te maltrata?” — para os versos 21 a 24, “Afrodite passa de uma injustiça específica para um princípio geral de justiça que governa tais casos” como o da suplicante (1996, p. 227, nota 3).93 Lidos os versos da sexta estrofe como eles se apresentam, a declaração da deusa, muito embora pertença a um momento passado — à memória de “Safo” —, soa como uma espécie de verdade ou de regra universal das relações amorosas, algo que é reforçado pela fusão passado–presente–futuro que faz com que aquilo que foi dito por Afrodite pareça atemporal. E qual é essa regra geral proferida por Afrodite? A de que éro#s é uma força instável, cujos caminhos não são lineares, mas incertos, cheios de idas e vindas, e reviravoltas que fazem o amado de hoje tornar-se o amador de amanhã. Quem está livre no presente do glukúpikron (“doceamargo”) flagelo do amákhanon (“inelutável”) éro#s, conforme canta o Fr. 130 V de Safo citado antes, pode não estar no futuro. Nas palavras de Afrodite, aquela que “foge”, “logo perseguirá”, diz o par antitético phéugei-diô´ksei (v. 21) — um tópos “da poesia e iconografia eróticas gregas do período arcaico em diante”.94 Ou seja, aquela que rejeita seu amador, um dia estará em situação similar, buscando alcançar o objeto de sua paixão. No verso 22, o par opositivo é dô)ra mê` déket’–dô´sei (“presentes não aceita”–“dará”); e os “presentes” (dô)ra) são oferecidos sempre antes da conquista por constituírem uma forma de persuasão — noção que fica referida uma segunda vez (cf. v. 18). Ou seja, o amado que não os aceita rejeita a corte, mas um dia os “dará” e estará, igualmente, tentando seduzir o seu objeto.95 No verso 23, o último par 311
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opositivo sintetiza tudo o que foi dito antes pela deusa: mê` phíleiphilê´sei, quem “não ama”, um dia “amará”. Observando esse jogo de antíteses, no qual a inversão de papéis provocada pelas voltas que éro# s dá, devido à inevitável lei de “justiça amorosa”,96 vê-se que, em realidade, é irrelevante que se nomeie a terceira pessoa dos verbos. Mesmo porque se isso acontecesse e se o objeto dos verbos dos versos 21 a 23 fosse expresso, a declaração de Afrodite seria restrita a um caso particular. Não é isso o que faz a linguagem do poema. Antes, ela omite ambos os dados. O nome do sujeito não é dito, nem este parece ser o mesmo referido indiretamente nas perguntas de Afrodite (vv. 15-20). Conforme sublinhei, na sexta estrofe a deusa não está mais voltada para “Safo” apenas, mas para os caminhos de seu poder. Nesse sentido, não nomear o sujeito é conferir à sua fala uma amplitude maior, embora a revelação do sexo da terceira pessoa do singular estimule leituras centradas na questão do homossexualismo feminino, acerca do qual pouquíssimo sabemos. No poema, há uma persona nomeada “Safo” e Afrodite, que, ao falar de uma lei geral dos relacionamentos, se refere a uma “ela”, expressa na forma verbal do verso 24. Esse dado é textual e não se pode pretender negá-lo. Igualmente, é inegável que o poema insere a persona e a “ela” da fala da deusa na esfera erótica. Mas dizer que estaríamos diante de uma relação “homossexual”, “homoerótica” ou lésbica entre “ela” e Safo, a poeta, é imprudente e questionável. Leituras como essa que vemos em Petropoulos (1993, p. 43) parecem desconsiderar o distanciamento entre Safo e a persona do poema ao verem no fato de a terceira pessoa do singular ser do sexo feminino “uma evidência desprovida de ambigüidades de que ela [a poeta] era uma ‘lésbica’ in sensu technico”. Essa avaliação tem dois sérios problemas: o primeiro é que ela identifica poeta e persona, algo nada raro quando se trata da poesia lírica — especialmente, da sáfica. Isso se verifica no artigo de Petropoulos e, entre outros, no de John D. Marry, “Sappho and the heroic ideal” (1979, p. 71) — para quem “é a série de promessas feita por Afrodite a 312
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Safo nas linhas 21-24 do poema que mais claramente reflete os valores e desejos da poeta”. J. R. C. Martyn, em “Sappho and Aphrodite” (1990, p. 201), afirma: “Safo foi a primeira poeta a analisar as suas próprias emoções”. Fica subentendido em tal pressuposto que, para Martyn, todas as vozes dos fragmentos da poeta são uma só: a dela mesma. Contudo, como bem observa Bridget M. Thomas, em “The rhetoric of prayer in Sappho’s ‘hymn to Aphrodite’”, “isso é extremamente problemático: nós deveríamos resistir a cada um de nossos impulsos de igualar narrador e poeta — e também questionar o pressuposto de que o mesmo narrador fala em cada poema” (1999, p. 8, nota 20). Conforme já se disse, só há três outros fragmentos em que lemos o nome “Safo”. Em tese, somente haveria quatro textos em que fala a mesma persona, mas nem isso se sustenta, pois, no caso do Fr. 133 V, temos um canto dialogado em que outra(s) pessoa(s) fala(m), lançando a “Safo” uma pergunta. Esta nada diz, não é a falante do fragmento — ao menos em suas duas únicas linhas. O segundo problema da avaliação de Petropoulos é o de ela afirmar que o poema “prova” que Safo, a poeta, era lésbica. Assim, além de identificar a pessoa empírica à persona de uma ficção, o estudioso toma a literatura como história e biografia e, a partir disso, chega a um veredicto sobre a sexualidade da poeta. Esse caminho é, no mínimo, arriscado: quase nada se sabe sobre a pessoa de Safo, sobre seu tempo, sobre sua ilha, sobre as relações homossexuais entre mulheres em sua sociedade. Carson, embora busque marcar a distância que separa poeta e persona e ressalte pontos formais e sintáticos importantes do poema, acaba tomando esse (des)caminho: ela estuda a “justiça de Afrodite” (vv. 21-24) por espelhamento às normas que regem as relações homossexuais masculinas. Diz a helenista: Não é geralmente o caso na poesia grega que os amantes rejeitados prendam suas esperanças em uma reversão mútua dos papéis eróticos. Normalmente, amadores rejeitados se consolam com um pensamento muito menos fantástico: nomeadamente, o de que o amado que não corresponde
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GIULIANA RAGUSA
ao seu amador crescerá um dia e se tornará, ele mesmo, um amador e virá a sentir “o quanto dói” ser rejeitado. Dentro das convenções estritas do Éros homossexual, tal revanche é razoavelmente certa. Há idades de vida claramente definidas para os papéis de amador [erastê´s, ™rastÆw] e amado [erô´menos, ™r≈menow]. No curso do tempo, o amado natural e inevitavelmente se tornará o amador, e irá, quase que inevitavelmente, experimentar a rejeição ao menos uma vez. Essa idéia é recorrentemente enfatizada na poesia grega e certamente reflete uma experiência humana comum (1996, pp. 227-28).
No segundo capítulo deste livro, lembrei que Kenneth Dover, em vários momentos de seu Greek homosexuality, frisa que é demasiado difícil o estudo do homossexualismo entre mulheres, pois simplesmente são muito escassas as suas fontes materiais — literárias, iconográficas e assim por diante (1989, p. 171). Diante disso, não são poucos os que passam a considerar o assunto por espelhamento à homossexualidade masculina. Exemplo disso é o comentário reproduzido de Carson. Assim, Thomas, que reconhece a relevância da ênfase da helenista sobre a ausência de objetos para os verbos dos versos 21 a 23 e sobre o sentido amplo da declaração de Afrodite, ressalta que o argumento de Carson “é fragilizado pelo fato de que ela assume que a homossexualidade feminina operava dentro da mesma estrutura de poder da homossexualidade masculina na Grécia antiga” (1999, p. 8, nota 19). A declaração final de Afrodite, a sua “justiça”, não consiste em uma promessa de reconciliação de uma “desertora” do misterioso grupo de Safo;97 tampouco é algo que necessariamente diz respeito às normas das relações homossexuais entre mulheres. É, sim, a expressão de uma regra subjacente às relações amorosas em geral. Eventualmente, a pessoa que um dia é o objeto do amor de alguém, ao qual não corresponde, pode se tornar o sujeito amador e encontrar-se em posição semelhante à que já esteve. Avaliar se isso é um consolo configura-se como algo subjetivo e irrelevante para o poema. Afinal, cada amador terá uma visão diferente sobre o que gostaria que se passasse com o amado que o rejeita; não há uma única forma de consolo que satisfaça os amadores rejeitados em todos os tempos. 314
O FR. 1 V: UMA PRECE DE
“SAFO”
PARA AFRODITE
A deusa que rege éro#s está lembrando à suplicante — no passado e no presente — e aos ouvintes/leitores do poema que seu poder não pode ser eternamente resistido. Cedo ou tarde, éro#s chega para todos; e quem não o corresponde um dia poderá amar e ser igualmente não correspondido. Essa é a “justiça de Afrodite” — inevitável, conforme sublinham as frases da deusa que começam por ai dè (“e se”). 98 Essa é a amplitude que a linguagem de Safo confere à penúltima estrofe de sua canção e que, por sua vez, intensifica ainda mais o impacto do verso 24, no qual a deusa declara, como fecho de suas frases antitéticas, que érMs independe da vontade individual. Note-se que, nesse verso, se registra a segunda ocorrência do verbo “querer”: na primeira (thélo#), seu sujeito era a suplicante (vv. 17-18); nesta (ethéloisa), é “ela”, a terceira pessoa jamais nomeada. Considerando-as, pode-se dizer que a primeira ressalta um dado inerente à prece, que é a vontade: quem apela fatalmente quer algo. Já a segunda, na conclusão da fala de Afrodite, enfatiza a irrelevância da vontade humana diante da força de eros e dos desígnios dos deuses — argumento do qual se valeu um favorito da deusa, Páris, para se defender das censuras do estarrecido irmão Heitor, no canto III (vv. 64-66) da Ilíada. Se os deuses enviam o amor, como dita a concepção grega a respeito, então nada se pode fazer. Mas se o objeto amado não aceita o amador, que fazer? É quase certo que um dia ele se encontre em posição semelhante e conheça os dissabores de éro#s, como diz Afrodite no Fr. 1 V. Por quê? Simplesmente para consolar a suplicante? Talvez, mas também porque “Safo” parece ocupar no poema a posição daquela que ama e deseja conquistar o objeto de seu amor. E, para ser bem-sucedida nessa empreitada, ela chama, muito apropriadamente, a deusa que rege éro#s, Afrodite, a Poikilóthron’ [...] athanát’ (v. 1), a pai) Díos dolóploke (v. 2), a pótnia (v. 4) e a mákaira (v. 13) divindade, em cuja face repousa o seu sorriso soberano (v. 14), um reflexo da sua existência feliz e superior e também de sua esfera de atuação, a erótico-amorosa. Os epítetos escolhidos pela suplicante e igualmente a imagem do sorriso divino na face de Afrodite não são fruto da casualidade,99 pois, além de os epítetos dialogarem entre si, eles e o sorriso sublinham o 315
GIULIANA RAGUSA
estatuto olímpio da deusa e de seu aspecto poderoso governante de toda a esfera do amor erótico. A sexta estrofe do poema só vem confirmar a força dessas marcas. Não é esta a primeira vez em que, em dado momento de sua epifania, um deus declara qual é o seu poder e como ele funciona. A própria Afrodite o faz no canto III da Ilíada. Quando Helena percebe que a senhora que a veio chamar para ir aos aposentos de Páris nada mais é do que a deusa disfarçada, ela se rebela e ensaia uma revolta contra Afrodite, atitude que se altera para um submisso silêncio (v. 420) após a ameaça da “furiosa” (v. 413) deidade, que declara à espartana (vv. 414-17): MÆ m’ ¶reye, sxetl¤h, mØ xvsam°nh se meye¤v, t∆w d° s’ épexyÆrv …w nËn ¶kpagl’ ™f¤lhsa, m°ssƒ d’ émfot°rvn mht¤somai ¶xyea lugrã, Tr≈vn ka‹ Dana«n, sÁ d° ken kakÚn o‰ton ˆlhai. Não me incites, insolente, para que, furiosa, não te deixe, e então te odeie como agora te amo além de toda a medida. Se no meio de ambos eu suscitasse ódios lutuosos — entre troianos e dânaos —, tu de cruel destino perecerias.
Helena não pode negar-se a corresponder aos desígnios da divindade; se o fizer, uma dura punição lhe sobrevirá. No caso dos versos de Safo, também a punição está prevista no discurso de Afrodite: fazer do amado indiferente de hoje o amador em busca de seu objeto amado de amanhã. O aspecto que a fala de Afrodite tem, no Fr. 1 V, de ser a declaração de sua justiça está afinado exatamente com essa noção evocada em dois momentos anteriores do discurso direto da deusa pelas formas verbais peítho# (v. 18) e adíke#si (v. 20), comuns na Grécia antiga tanto à esfera de éro#s — que predomina no poema — quanto à esfera da díke# (d¤kh) — a “regra imperativa”, a sentença, a “justiça”, sentido que, segundo Émile Benveniste, em O vocabulário das instituições indo-européias II, se institucionaliza com o passar do tempo (1995b, p. 112) — sobretudo a partir do início da era arcaica, observa André Rivier, em “Observations sur Sappho, 1, 19 sq” (1967, p. 85). Este comenta ain316
O FR. 1 V: UMA PRECE DE
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da que o termo díke# se expande “de início ao senso da sentença dada por um juiz [...], depois ao sentido da justiça ela-mesma, como instância ou poder protetor da eqüidade e da paz civil [...]” (pp. 85-86). Saliente-se que a forma verbal a-díke#si, carregando o alpha privativo, traz em seu corpo a ausência da díke#. No caso do poema, a epifania de Afrodite revela que, no passado, alguém maltratou “Safo”, violando a regra da reciprocidade;100 se isso também é o que se passa no presente, como parece, então a regra geral de Afrodite se aplicará para retribuir a injustiça. Desse modo, o “equilíbrio que a dike demanda” será restabelecido.101 Visto por esse prisma e em conjunto com a sexta estrofe, não há razão para entender o uso de adíke#si (v. 20) no poema como um “exagero provocador”.102 Encerrando o comentário dos versos 21 a 24, volto a enfatizar que o recurso estilístico da repetição, que permeia a linguagem da deusa e do poema como um todo, não é um defeito da dicção sáfica, nem tampouco é fruto do comportamento infantil de uma “Safo” que, como a vê Page, está sempre a chamar pela mãe. Tal recurso é, sim, uma chave poética, um artifício estrutural que, entre outros efeitos já apontados, espelha o movimento de éro#s , o qual faz com que a experiência amorosa se repita, embora com variações, uma vez que, “no contexto grego, ninguém pode interpretar o papel de amador para sempre”.103 Creio que a leitura da sexta estrofe aqui proposta corrobora para a afirmação que venho reiterando: o Fr. IV não é uma brincadeira irônica e nada séria de Safo consigo mesma; os versos 21 a 24 não são um retrato da sua volubilidade amorosa; a fala de Afrodite — reproduzida em discurso indireto e direto — não é similar à de uma mãe diante de uma “criança-problema”, como argumenta Page (1987, pp. 12-18) em sua interpretação tão controversa — e empobrecedora.
De volta ao começo ¶lye moi ka‹ nËn, xal°pan d¢ lË!on ™k mer¤mnan, ˆ!!a d° moi t°le!!ai
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GIULIANA RAGUSA
yËmo! fim°rrei, t°le!on, !Á d’ aÎta !Êmmaxo! ¶!!o.
⊗
Vem até mim também agora, e liberta-me dos duros pesares, e tudo o que cumprir meu coração deseja, cumpre; e, tu mesma, sê minha aliada de lutas.
⊗
Nesses versos, a suplicante faz quatro pedidos a Afrodite, sempre usando verbos no imperativo: o primeiro (v. 25) é a repetição de um apelo já feito (v. 5); o segundo (vv. 25-26) retoma, com certa modificação, a súplica dos versos 3 e 4; o terceiro (vv. 26-27) retoma as palavras de Afrodite nos versos 17 e 18; e o último é novo. Na primeira parte do verso 25, “Safo” suplica: élthe moi kaì nu)n (“Vem até mim também agora”). Ao fazê-lo, ela repete o segundo pedido, anterior ao relato da epifania da deusa no passado — allà tuíd’ élth’ (“mas para cá vem”, v. 5). Fechando seu apelo, a suplicante repete e enfatiza o pedido da presença de Afrodite com a expressão kaì nu)n (“também agora”). Desse modo, Safo faz com que um verso da última estrofe que encerra a recordação da epifania de Afrodite retome um verso do início da canção. Esse procedimento se denomina “composição anelar” (ring composition); seu efeito, afirma Thomas, é o de indicar “para a audiência que uma parte da prece foi concluída e que a próxima está começando” (1999, pp. 8-9). Depois, o pedido dos versos 25 e 26 retoma o dos versos 3 e 4. Neles, “Safo” dizia: mê´ m’ ásaisi me#d’ oníaici dámna/[...] thu)mon (“não me domes com angústias e náuseas/ [...] o coração”). Agora, no final, ela diz: khalépan dè lu)son/ ek merímnan (“liberta-me dos/ duros pesares”). A diferença é sutil: o pedido da estrofe inicial — o primeiro da prece — é feito com uma frase negativa; o dos versos 25 e 26 — a quarta súplica —, com uma frase afirmativa. Ao invés de mê´ [...] dámna (“não me domes”), a suplicante pede lu)son (“liberta-me”). Nessa gradação negativo–positivo, é como se, de início, “Safo”, sofrendo as dores de éro#s, pedisse para não ser de todo subjugada por essa força, e 318
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“SAFO”
PARA AFRODITE
agora pedisse para ser inteiramente libertada dela e de seus “duros pesares”, na expressão khalépan [...] merímnan, comum em contextos erótico-amorosos. No incessante jogo de repetições — mesmo que nem sempre idênticas — que estrutura a prece, há ainda uma última repetição a destacar. Trata-se do quinto pedido (vv. 26-27), que retoma não uma súplica, mas uma fala de Afrodite citada em discurso indireto nos versos 17 e 18. Nestes, a suplicante conta que a deusa, em encontro passado, lhe indagou o que ela “mais” (málista) queria em seu mainólai thúmo#i (“desvairado coração”). Agora, “Safo” é quem roga a Afrodite: óssa dé moi télessai/ thu)mos imérrei, téleson (“tudo o que cumprir meu/ coração deseja, cumpre”). A comparação mostra que não somente os seus conteúdos se repetem, mas também os termos intensificadores superlativos — málista (v.17) e óssa (“tudo”, v. 26) —, os verbos volitivos, thélo# (“quero”, vv. 17 e 24) e imérrei (“desejo”, v. 27), a palavra thu)mos, traduzida como “coração” (versos 18 e 27). Note-se que a última estrofe traz a terceira ocorrência dessa palavra também registrada no verso 4. Cabe ressaltar, ainda, uma repetição interna aos versos 26 e 27, a de formas verbais de teléo# (tel°v,“cumpro, realizo, perfaço”): no verso 26, infinitiva (télessai), relacionada a thu)mos; no verso 27, imperativa (téleson), relacionada a Afrodite. Encerrando a prece, temos o sexto pedido da suplicante — positivo, como o quinto —, que é novo em sua formulação, mas retoma, com ênfase, algo claro na prece: “Safo” quer o auxílio de Afrodite. Ela diz à deidade: sù d’ aúta/ súmmakhos ésso (“tu mesma,/ sê minha aliada de lutas”, vv. 27-28). Como no verso 13 do Fr. 2 V, a voz do Fr. 1 V dirige-se diretamente à deusa empregando o pronome de segunda pessoa do singular sù (“tu”)) . Essa é uma maneira de a suplicante enfatizar que está falando a Afrodite. E, para sublinhar seu derradeiro apelo, ela profere, logo após o pronome pessoal, o reflexivo aúta (“mesma”). “Safo” quer o auxílio empenhado da deusa e dela somente. Eis o primeiro ponto a destacar dos versos 27 e 28. O segundo diz respeito ao epíteto súmmakhos (“aliada de lutas”, v. 28), que não é convencional e muito raramente se registra antes ou depois da poeta.104 319
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A ocorrência desse epíteto, somada a alguns traços formais do poema, estimulou uma linha de interpretação que vê a canção sáfica como uma releitura da Ilíada, especificamente de seu canto V.105 Exemplo disso é o artigo “Sappho and Diomedes”, de Jesper Svenbro, para quem Safo tinha “em mente”, quando da composição do poema, a passagem do canto em que Afrodite, tentando salvar seu filho troiano Enéias, acaba sendo humilhada e expulsa da guerra pelo aqueu Diomedes. É assim que Svenbro explica, entre outras coisas, o emprego no Fr. 1 V de súmmakhos para Afrodite, uma deusa do amor (1975, pp. 37-49). Mais: Svenbro, como Marry (1979, pp. 71-92), crê que Safo, ao recorrer a Homero, está buscando heroicizar seu mundo. Para outros estudiosos, o poema sáfico não é apenas uma releitura, mas uma resposta a Homero de um ponto de vista feminino. Assim, Jack Winkler afirma, em “Gardens of nymphs”: “O uso que faz Safo de passagens homéricas é uma maneira de nos permitir, mesmo de nos encorajar, a abordar sua consciência como uma mulher e poeta lendo Homero” (1996, p. 93). Adiante, Winkler conclui que a poeta, ao se voltar para a Ilíada, não deseja heroicizar seu mundo, mas, “na medida em que os seus poemas são uma leitura de Homero (e então nos leva a lê-lo novamente), eles estabelecem uma perspectiva feminina sobre a atividade masculina que mostra mais claramente a estrutura interna e a motivação da exclusão do feminino das arenas masculinas” (p. 96). Várias objeções podem ser feitas a essas leituras, cujas argumentações, que consideram somente o que julgam ser semelhanças ou reproduções da Ilíada (canto V) no Fr. 1 V, são relativizadas por Ritoók (1995, pp. 349-56), que analisa uma série de diferenças entre o épico de Homero e o poema sáfico, as quais, normalmente, são desconsideradas ou contornadas com flagrante malabarismo. A leitura de Winkler, por sua vez, com as já aqui questionadas lentes dos gender/women studies, tem sua abordagem altamente modernizante, além de demasiado arraigada num contexto histórico-cultural determinado — o norte-americano, sobretudo pós-1990. E se não fosse por nada mais, é preciso assinalar que essas leituras não consi320
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deram um complexo problema relativo à transmissão e circulação da Ilíada na Antigüidade. Pontuei anteriormente alguns problemas que gravitam em torno desse assunto: a incerta edição tardia (século VI a.C., provavelmente) dos poemas orais de Homero que datariam do século VIII a.C.; a reintrodução da escrita (no final do século IX a.C., talvez) e as dúvidas quanto à velocidade e amplitude de sua difusão; nossa ignorância acerca da educação das mulheres na Grécia arcaica e da sociedade de Lesbos nesse período; nossas interrogações no que diz respeito às relações entre os poetas gregos antigos. Como lembra Paula Corrêa, em Armas e varões, é “difícil avaliar a influência de Homero sobre os líricos arcaicos, pois não sabemos até que ponto a Ilíada e a Odisséia que conheciam assemelhavam-se aos textos que nos chegaram” (1998, p. 60). A despeito disso, é legítimo aproximar os textos épicos, líricos e trágicos ao analisar um determinado tema ou uma personagem, como Afrodite. Igualmente legítimo é acreditar ser provável que Safo conhecesse a épica homérica. Todavia, é imprudente e redutor o olhar que só consegue pensar a lírica de Safo como resposta feminina a um Homero suspeito por pertencer ao sexo dominante, para dizer o mínimo, ou “machista” — rótulo moderno e banalizado. Volto à estrofe final do Fr. 1 V para retomar o estudo de súmmakhos (v. 28). Como entendê-lo no contexto do poema? O que ele revela acerca de Afrodite? No amálgama súmmakhos temos as idéias de companheirismo, união e guerra. Quanto à primeira, ela vem justificar — se é que isto é realmente necessário — a longa narrativa da epifania de Afrodite que se desenrola nos versos 5 a 24 com extrema riqueza de detalhes. Essa epifania não é irrelevante para o poema, nem tampouco é prova de uma mente artística e supersticiosa, como quer Page (1987, p. 18; 1 a ed.: 1995). Antes dele, Cameron reconhecia a aparição da deidade no poema como convencional, um exercício de estilo (1939, pp. 14-15). Warren Castle, em “Observations on Sappho’s To Aphrodite”, lembra que per321
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guntar se a epifania aconteceu, se é “real”, se configura, em si mesmo, como absurdo, pois o poema é uma ficção e a epifania nele confeccionada é um produto da sua linguagem (1958, p. 75). Mais que isso, a narração da aparição de Afrodite, na qual fica estabelecido o estreito laço entre a deusa — que fala diretamente à suplicante chamando-a pelo nome106 — e “Safo”, é muito importante, pois esta pede, no encerramento de seu apelo, que aquela venha lutar ao seu lado, como sua companheira de batalha, sua súmmakhos. E Thomas observa que essa última solicitação só foi feita depois que “Safo” gradualmente construiu “uma relação segura e protetora com a poderosa e caprichosa deusa” (1999, p. 9). Quanto à idéia da guerra, ela se harmoniza com o contexto erótico-amoroso do poema. Se o epíteto súmmakhos é raro na poesia grega antiga, não o é o binômio opositivo amor/guerra,107 trabalhado por Safo também no Fr. 16 V: ⊗
O]fi m¢n fippÆvn !trÒton, ofi d¢ p°!dvn, ofi d¢ nãvn fa›!’ ™p[‹] gçn m°lai[n]an ¶]mmenai kãlli!ton, ¶gv d¢ k∞n’ ˆttv ti! ¶ratai:
⊗
U]ns, renque de cavalos, outros, de soldados, outros, de naus, dizem ser sobre a terra neg[r]a a coisa mais bela, mas eu (digo): o que quer que se ame.
As imagens dessa estrofe articulam as linguagens da guerra e de éro#s. Conforme frisei anteriormente, a deidade e o poder que rege constituem forças devastadoras que marcham sobre o indivíduo, o domam e arrebatam. Apesar disso tudo, a associação, criada no Fr. 1 V por súmmakhos, entre Afrodite — a deusa do amor erótico — e a guerra costuma incomodar os helenistas, que, para explicá-la, ou pensam que Safo está relendo Homero ou argumentam que ela se está contrapondo a ele de um ponto de vista feminino.
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Se não é satisfatório o fato de a relação amor–guerra ser trabalhada em outro fragmento de Safo e de as linguagens dessas esferas se entrecruzarem com freqüência, uma passagem pelas representações épicas e cultuais de Afrodite pode contribuir para o entendimento da ligação impressa no epíteto sáfico. Viu-se que, na Teogonia, Afrodite nasce de um ato violento e ardiloso: a castração de Urano. Tal ato gera, ao mesmo tempo, do esperma misturado à água, a deusa que rege éro#s, e do sangue do pênis que cai na terra, deidades da guerra — os Gigantes, as Ninfas Freixos108 — e da vingança — as Erínias(vv. 185-87). Conforme sublinham Marcel Detienne e Jean-Pierre Vernant, em Les ruses de l’intelligence, a castração “funda a necessária complementaridade entre as forças do conflito e as forças do amor [...]” (1974, p. 69). Formam-se, assim, dois pares opositivos: guerra–amor e sangue–sexo. Portanto, de acordo com o mito hesiódico, não é descabida a relação Afrodite–guerra. E os poemas de Homero, o que dizem a esse respeito? No canto V da Ilíada, Afrodite passa por um momento desastroso, quando enfrenta na arena da batalha o guerreiro aqueu Diomedes, que, enxotando-a, indaga: E‰ke, DiÚw yÊgater, pol°mou ka‹ dhiot∞tow: ∑ oÈx ëliw ˜tti guna›kaw énãlkidaw ±peropeÊeiw; Deixa, filha de Zeus, a guerra e o combate; ou não te basta que as mulheres fracas seduzas? (vv. 348-49)
Humilhada, a deusa refugia-se no Olimpo. Lá, Atena, divertindose, relata o ocorrido a Zeus; este, rindo, diz à filha, Afrodite (vv. 428-30): OÎ toi, t°knon ™mÒn, d°dotai polemÆia ¶rga, éllå sÊ g’ flmerÒenta met°rxeo ¶rga gãmoio, taËta d’ ÖAr˙ yo“ ka‹ÉAyÆn˙ pãnta melÆsei. Não a ti, minha filha, são dados os trabalhos da guerra, mas, tu, zela pelos adoráveis trabalhos das bodas. Isso tudo das lutas será para Ares veloz e Atena cuidarem. 323
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Nessa fala benevolente, Zeus lembra a Afrodite a especificidade de seus trabalhos e os limites de sua esfera de atuação, a serem respeitados. Na Íliada, não cabe à deusa a esfera da guerra, embora no final ela entre no combate junto a outros deuses que se postam ao lado dos troianos (canto XX, v. 38). Na Odisséia, a relação amor–guerra estabelece-se no canto VIII (vv. 266-366), com a narrativa do caso de amor adúltero entre Afrodite e o deus da carnificina, Ares. Essa relação amorosa é mencionada também na Teogonia, em que Afrodite gera de Ares três filhos (vv. 933-37): Fóbos e Deímos — deidades que interferem nas batalhas junto ao pai — e Harmonia, que age na união. Vê-se, pois, que também a descendência de Ares e Afrodite reflete a sua relação opositiva, mas complementar.109 Contudo, não é só na literatura que esses deuses são amantes, mas também na arte grega do início do século VI a.C em diante.110 E nos cultos de Afrodite, também a esfera da guerra associa-se à deusa. Farnell afirma que, na Grécia antiga, havia templos conjuntos de Ares e Afrodite (1896, p. 623)111 e representações da deusa armada (pp. 653-54). Refletindo sobre esses dados, o helenista comenta: Nós podemos acreditar que o culto da Afrodite armada pertence ao primeiro período de seu culto na Grécia. Em Chipre, se consideramos a ilha como o primeiro assentamento grego, ouvimos falar de uma Afrodite [Énkheios] e provavelmente o epíteto denota “a deusa da lança”. Mas, em Citera, temos prova ainda mais clara dada por Heródoto do culto muito antigo à deusa oriental como uma divindade guerreira [...]. Nós podemos acreditar que tal culto tenha também existido em Corinto [...] e podemos supor que ele tenha vindo cedo a Tebas, ocasionando a estreita associação entre Ares e Afrodite na cidade. Mas em nenhuma outra parte tal culto tinha mais renome do que entre os espartanos, que certamente o derivaram de Citera, e que deram à nova deusa os epítetos marciais de Areia112 ou ’Ariont¤a [Ariontía]. Na literatura grega mais tardia, as referências ao escudo e à lança nas mãos da deusa do amor são geralmente jocosas [...]. Mas até o último período da história grega ela preservou seu caráter herdado de deusa da guerra em alguns estados. O mais famoso desses cultos era o de Afrodite Stra324
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tonikís em Esmirna [...]. Em Milasa, Afrodite era “a que acompanha as tropas” [Strateía]. Em Amorgo, a localidade na qual a deusa era adorada parece ter sido chamada ÉAsp¤w [Aspís], “o lugar do escudo”; daí o porquê do título ÉAfrod¤th OÈran¤a ≤ ™n ésp¤di [Afrodite Urânia com o escudo]. Na Mantinéia, o templo de Afrodite Summax¤a [Summakhía, “a aliada de lutas”] comemorava a ajuda dada pelos mantineus a Roma e a Augusto na batalha de Áctio. E no juramento da aliança entre Orcômeno, cidade da Arcádia, e a Liga Acaia nós encontramos o nome de Afrodite. Em Argos, onde o culto oriental tinha deixado fundas raízes, o culto a Afrodite NikhfÒrow [Nike#phoros, “a que traz a vitória”] deve ter sido inspirado pela idéia oriental de uma deusa guerreira, muito embora o povo o explicasse de outra forma (pp. 653-54).113
A citação mostra que o aspecto guerreiro de Afrodite ocorre nos cultos gregos, ao menos segundo as fontes antigas. Dos muitos detalhes que Farnell arrola, destaco estes: a relação que ele faz entre Afrodite– Oriente e as representações armadas da deusa; a ocorrência desse tipo de Afrodite armada em Chipre e Citera; o culto a Afrodite Súmmakhia na Mantinéia, região do Peloponeso, onde havia outros cultos da deusa armada, em Argos e Esparta. Em Sexual culture in ancient Greece, Daniel Garrison lembra que as deusas orientais do amor erótico, do sexo, eram também guerreiras — aspecto suavizado na Afrodite grega representada na épica (2000, p. 62). Todavia, tal aspecto não foi completamente apagado, como se viu, na literatura subseqüente. Esse aspecto seria ainda um eco do caráter armado típico de deidades como a babilônica Ishtar, à qual se assemelha Afrodite. Afirma Garrison que, quando ocorreu a helenização dessa deusa, os gregos “despiram-na de seu caráter guerreiro e deixaram apenas uma afeição por Ares como vestígio de seu poder antigo” (p. 79). Mas ele mesmo ressalta que, se isso aconteceu na poesia homérica — na qual “a terrível deusa da procriação e da batalha é reduzida a uma dissimulada atriz de segunda-mão no palco helênico” (p. 80) —, não se pode dizer exatamente o mesmo acerca dos cultos, pois em alguns deles há traços da esfera da guerra associados a Afrodite (p. 79).
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Em Chipre, ilha muito próxima do Oriente, Farnell informa, na citação reproduzida, que havia uma Afrodite Énkheios, “da Lança”; sua fonte é o léxico do século V d.C. de Hesíquio, no qual se lê: Énkheios: Aphrodíte#. Kúprioi (“‘da Lança’: Afrodite. Dos Cíprios”).114 Mais recentemente, K. Hadjiannou, em “Aphrodite in arms” (1981, pp. 184-86), considerando a referência de Hesíquio, analisa duas estátuas de Afrodite em armas encontradas em regiões diferentes de Chipre, chegando à conclusão de que ambas pertencem ao tipo cíprio de Afrodite Énkheios, datam do mesmo período e foram feitas pelo mesmo escultor. Todavia, para Pirenne-Delforge, é algo a provar que tal representação de Afrodite seja originalmente cípria (1994a, pp. 361-62), pois o aspecto guerreiro da deusa na ilha “é o correlato natural de seu papel de protetora da comunidade” (p. 369). Ela não vê na Afrodite Énkheios “consistência cultural” (p. 471). Mesmo que Pirenne-Delforge acerte nessa avaliação, não deixa de ser relevante o fato de que Hesíquio mencione uma representação armada da deusa do amor exatamente em seu local de culto mais orientalizado. Quanto à Afrodite de Citera, onde seu culto tinha reputação e antigüidade atestadas, a evidência é o relato de Pausânias, em livro sobre a Lacônia (III, XXIII, 1), que diz que no santuário de Afrodite “a própria deusa é uma estatueta de madeira [ksóanon] armada [ho#plisménon, …plism°non]”. Para Pirenne-Delforge, o termo ksóanon, que designa a verdadeira estátua de culto, “acentua a impressão de antigüidade” que o viajante confere ao santuário da deusa na ilha (1994a, p. 223). E no que se refere à representação armada de Afrodite, ela crê razoável pensar que ela “tenha sido realizada no momento em que os espartanos dominavam” Citera (século VI a.C.). Pensando numa direção algo diversa, poderia ser aventada a hipótese de a Afrodite armada do santuário relacionar-se ao próprio caráter oriental de sua fundação, afirmado por Pausânias e Heródoto, como se viu no quarto capítulo deste livro. De todo modo, importa frisar que não apenas na pequena Citera teria havido uma imagem armada de Afrodite, mas também na planície continental grega. 326
O FR. 1 V: UMA PRECE DE
“SAFO”
PARA AFRODITE
Em Esparta e Corinto (na Acrocorinto),115 como em Citera, havia, segundo relatos de Pausânias, e de outros antigos, representações da Afrodite ho#plisméne# (“armada”).116 Sobre os cultos da deusa entre os espartanos, Pirenne-Delforge comenta outras imagens que a associam à guerra de formas diversas (1994a, pp. 204-11). Eis sua conclusão: “A Afrodite armada dos lacedemônios é mais que uma imagem literária: a deusa possuía, na cidade de Esparta, um caráter militar inegável” (p. 210). No caso da Mantinéia, novamente Pausânias é fonte sobre o culto a uma Afrodite guerreira. Ele fala, no livro sobre a Arcádia (VIII, IX, 6), de um “templo de Afrodite nomeada ‘a Aliada de Lutas’ [Summax¤aw, Summakhías]”, desaparecido em sua época (século II d.C.), mas que remontaria ao século I a.C., pois comemoraria uma vitória da Roma de Augusto para a qual teriam contribuído os mantineus. O epíteto cultual Summakhías coincide com o último pedido que Safo dirige a Afrodite no Fr. 1 V: súmmakhos ésso (“sê minha aliada de lutas”, v. 28). Entre Safo e o templo erguido à deusa na Mantinéia há uma enorme distância espaço-temporal que impede o estabelecimento de qualquer relação. Todavia, o que busco mostrar é que o uso de súmmakhos e a alusão ao universo da guerra em um poema de contexto erótico-amoroso em que se destaca Afrodite não são ações descabidas da poeta de Lesbos e tampouco precisam ser vistas como respostas femininas diretas ao mundo masculino de Homero especificamente. Lesbos favorecia a proximidade de Safo com a Ásia Menor e outras localidades orientais; a época da poeta é marcada por conflitos armados em toda parte; o amor e a guerra ligam-se na poesia grega antiga, na concepção de algumas deusas orientais e em certas imagens cultuais de Afrodite, que guarda fortes elos com o Oriente... Não parece absurdo pensar que talvez a poeta conhecesse representações cultuais armadas da deusa que privilegia em sua lírica. Talvez ela conhecesse outras relações poéticas que ligam a guerra e o amor e/ou a deusa que o rege. Talvez, ainda, se ela as conhecia, Safo esteja aludindo às deusas orientais similares a Afrodite e imprimindo-lhe um traço daquelas que não lhe seria de todo estranho. Por fim, a explicação para súmmakhos 327
GIULIANA RAGUSA
pode estar na soma de todas essas possibilidades. Esse quadro pode ser contestado, mas tem ao menos um ponto válido: ele relativiza as viciadas leituras da canção sáfica. Retomando-a, pode-se dizer que Safo associa, em seu final, amor e guerra. Agora, porém, não para realçar o poder devastador, desarticulador, de éro#s — algo feito no início da prece (vv. 3-4) —, e sim num tom positivo que torna Afrodite não aquela que enviará o amor com seus males, mas aquela que, intimamente ligada à suplicante117 — a quem trata pelo nome, “Safo” (v. 20), a quem aparece sem provocar, aparentemente, medo algum, como seria normal na epifania de um deus a um mortal118 —, virá auxiliá-la e, junto a ela, lado a lado, partir para conquistar o objeto de sua paixão. Nesse sentido, os epítetos poéticos da abertura da prece conferidos à deusa que a suplicante deseja ter por aliada não poderiam ser mais adequados, pois a Afrodite do universo sáfico119 deverá ser poderosa — como expressam “imortal” (v. 1) e “filha de Zeus” (v. 2) — e hábil na esfera da sedução — conforme assinalam “de flóreo manto furta-cor” (v. 1) e “tecelã de ardis” (v. 2).120 No conflito amoroso, na luta pela conquista do objeto amado, que súmmakhos (“aliada de lutas”) seria mais eficiente do que Afrodite? Safo, a poeta, e “Safo”, a suplicante do poema, bem o sabem: nenhuma outra além dela.
Notas 1
Quando pertinente, elas serão consideradas. Cf. panorama de Nicosia (1976, pp. 203-13).
2
Cf. Campbell (1998, p. 264). Como expliquei em nota ao Fr. 2 V, essa estrofe se compõe de três hendecassílabos e um adônio.
3
Texto grego: Usener e Radermacher (1965). Cf. Castle (1958, pp. 66-69) sobre a citação de Safo em Dionísio.
4
A leitura silenciosa da poesia “não é claramente atestada antes do quarto século d.C.”, afirma Stanford (1981, p. 127).
5
Cf. a respeito Page (1987, pp. 16-17; 1a ed.: 1955), Castle (1958, p. 69), Bowra (1961, p. 200), Gerber (1970, p. 162), Campbell (1983, p. 12), Jenkyns (1982, pp. 8-9),
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O FR. 1 V: UMA PRECE DE
“SAFO”
PARA AFRODITE
Calame (1995, p. 13) e De Martino e Vox (1996, p. 1.042), entre outros. Em especial, vide Thomas (1999, pp. 3-10). 6
Cf. Bowra (1961, p. 201) e Jenkyns (1982, pp. 8-9).
7
Ver ainda Cameron (1939, p. 1), West (1970, p. 308) e Kirkwood (1974, p. 111), entre outros.
8
Cf. Romè (1965, p. 236): “[…] tem-se a impressão de que Safo, ao empregá-lo, queria, propositadamente, sublinhar a superioridade da deusa em confronto com ela mesma, ‘Safo’ [v. 20], ser humano e mortal, que nada podia sem a intervenção e o auxílio de Afrodite”.
9
Cf. Farnell (1896, p. 625) e a edição de West da Teogonia (1988a, pp. 195-96).
10
Cf. comentário de Carson (1998, pp. 115-16).
11
Ver as notas das edições do Fr. 1 V editado por Gerber (1970) e De Martino e Vox (1996, p. 1.043), entre outros.
12
Cf. comentários de Page (1987, pp. 6-7), Campbell (1998, p. 265; 1a ed.: 1967), Jenkyns (1982, pp. 9-10) e De Martino e Vox (1996, p. 1.043).
13
Stanford (1983, p. 36).
14
™rotika›w man¤aiw payÆmata. Título em grego do tratado: Per‹ ÜUcow, Perì Húpsos, ed. Prickard (1955).
15
Cf. Fowler (1987, p. 25) a respeito.
16
Texto grego: Barrett (1992).
17
Cf. versos 14 a 17 do Fr. 96 V, no capítulo anterior.
18
Texto grego: Barrett (1992).
19
Cf. Depew (1997, pp. 235-36), West (1997, pp. 262-63), Thomas (1999, p. 6).
20
O autor indica alguns exemplos dessas cenas na Ilíada e na Odisséia (nota 109 à p. 205). Cf. também o comentário de Sinos (1993, pp. 74-78).
21
Sobre essa dupla adjetivação, que também se observa no início do Fr. 1 V, nos dois versos que trazem os quatro epítetos de Afrodite, cf. Romè (1965, pp. 232 e 236).
22
Essa tradução vai de encontro à análise de Jouanna (1999, pp. 117-19) e às traduções de Page (1987, p. 4) e Campbell (1994, Fr. 1).
23
A deusa babilônica Ishtar, à qual se assemelha Afrodite, é marcada por tais elos. Cf. West (1997, p. 56).
24
Page (1987, pp. 7-8). Ele arremata assim seu comentário: “De tempos em tempos ressurge a velha opinião de que [strou) thoi] possa ser também genérico, denotando qualquer pássaro, especialmente qualquer pássaro grande. Nenhum suporte para essa doutrina será encontrado onde foi primeiramente buscado”, ou seja, nas fontes antigas. Cf. Farnell (1896, p. 649), Waern (1972, p. 2), Jenkyns (1982, pp. 9-10),
329
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Rissman (1983, pp. 9-10) e os tradutores do Fr. 1 V Bing e Cohen (1993, p. 72, nota 2). Essa possibilidade, ainda que vaga, parece explicar a tradução de Torrano (1984, p. 93) para strou) thoi, simplesmente “pássaros”. 25
Texto grego: ed. Kaibel (1887, vol. II, p. 354). O editor indica o texto grego da passagem como fonte do Fr. 1 V.
26
West (1997, p. 220). Ver Page (1987, p. 8), Harvey (1957, pp. 215-16 e 220) e Campbell (1998, p. 265). Rissman (1983, pp. 15-16) questiona a “homericidade” de gãs melaínas (“terra negra”, v. 10), pois, em duas outras vezes que Safo a usa, ela o faz ao final de um verso hendecassílabo, como no Fr. 1 V; logo, “é tentador vê-las como uma fórmula sáfica, talvez existindo independentemente da épica gai)an mélainan”.
27
Cf. ainda Longo (1963-1964, pp. 359-60), que lembra que a distinção ocorre em Homero.
28
Cf. Jenkyns (1982, p. 10).
29
Cf. Romè (1965, p. 236).
30
A expressão é de Burkert (1998, p. 188).
31
Cf. Vernant (1992a, pp. 31-32) e Burkert (1998, p. 183) sobre as epifanias e o corpo dos deuses.
32
Cf. também comentário de Kirk à Ilíada (1995a, pp. 326-27).
33
Cf. Boedeker (1974, pp. 20 e 33-34).
34
O epíteto não ocorre no outro poema de Hesíodo, Os trabalhos e os dias. Cf. Boedeker (1974, p. 20).
35
Cf. Burkert (1998, p. 129).
36
Cf. comentário dos editores Allen, Halliday e Sikes (1980, p. 391).
37
Muito similar é a visão de Cameron (1939, p. 7).
38
Aliam-se à visão de Page: Castle (1958, p. 72), Stanley (1976, pp. 305-21), Martyn (1990, p. 203) e outros. Entre os seus críticos, destaco Longo (1963-1964, p. 364, nota 83), Koniaris (1965, pp. 30-38), Rivier (1967, pp. 84-92), Gerber (1970, pp. 164-65), Barilier (1972, pp. 27-28), Privitera (1974, p. 66), Kirkwood (1974, pp. 112-13), Campbell (1983, p. 13), Ritoók (1995, p. 355), Lanata (1996, p. 19, nota 35).
39
Cf., sobre esses dois problemas e outros mais, Koniaris (1965, pp. 30-38).
40
A expressão é de Cameron, que em artigo de 1939 já vinha contestar essa visão. Anos depois, em artigo de 1964, o mesmo helenista lembra que, nesse ponto, ele e Page concordam. Mas, em seguida, Cameron passa a contestar a interpretação de Page dos vv. 21-24 (cf. pp. 237-39).
41
Cf. Page (1987, p. 9) e Campbell (1998, p. 266) sobre a sintaxe da frase.
42
Talvez também no Fr. 51 V, reduzido a uma linha somente: “Não sei o que faço: duas são as minhas mentes [...]” (oÈk o‰d’ ˆtti y°v: dÊo moi tå noÆmata).
330
O FR. 1 V: UMA PRECE DE
“SAFO”
PARA AFRODITE
43
Cf. também Foley (1998, p. 47) e Calame (1999, pp. 13-19).
44
A visão de Ritoók (1995, p. 355) é similar à de Gerber. Já para Campbell (1998, p. 265), que também discorda de Page, o sorriso da deusa denota “boa vontade” para com a suplicante. Similar é a visão de Thomas (1999, p. 7). Jenkyns (1982, p. 10) crê que o sorriso expressa a serenidade da deusa e a sua relação de intimidade e distância com a suplicante.
45
Aceitaram-na Diehl (1936, Fr. 1) e Reinach e Puech (1937, Fr. 1), por exemplo.
46
Page (1987, pp. 9-10). Igualmente, Gerber (1970, p. 154), Petropoulos (1993, p. 44) e Fontes (2003, pp. 376-77).
47
Slings apóia-se na emenda de Bennekom (1972, pp. 113-22), mas com reservas.
48
Parca (1982, pp. 47-50) e Rissman (1983, p. 6) já haviam feito a mesma proposta de emenda para o início do verso 19. Noto que Jouanna (1999, p. 123) tem outra visão acerca do advérbio do verso 18, de#u)te, que não traduz como “de novo”, mas como “então”.
49
Tais artigos são: Colonna (1955, pp. 308-9), Page (1987, p. 10), Beattie (1957, pp. 180-83), Bennekom (1972, pp. 113-22), Parca (1982, pp. 47-50) e Slings (1988, pp. 19-20). Cf. as propostas de Bolling (1961, pp. 153-54), Campbell (1998, p. 266; 1 a ed.: 1967), Privitera (1974, p. 62), Lasserre (1974, p. 28; 1989, pp. 202-3), Rissman (1983, p. 6), Martyn (1990, p. 202). Não há consenso entre essas emendas. Cf. as traduções de Page (1987, p. 4; cf. p. 10), Campbell (1994, Fr. 1), Torrano (1984, p. 93), Barnard (1986, p. 38). Page e Campbell dialogam, um rejeitando a proposta do outro.
50
Igualmente em vários estudos, tais como os de West (1970, p. 309) e de Petropoulos (1993, p. 44).
51
Cf. Fränkel (1975, p. 185), Johnson (1982, p. 4) e Calame (1995).
52
Jenkyns (1982, p. 11), que busca contrapor-se a Page, parece aceitar em parte a interpretação deste, mas defendendo a suplicante ao dizer que “talvez ela se apaixone muito freqüentemente, mas seus amores são passionais e intensos”.
53
Igualmente contra Page: Longo (op. cit., p. 363), Campbell (1998, p. 266) e Kirkwood (1974, p. 112), que traz uma problemática argumentação de que a repetição do advérbio é “parte da ingenuidade da dicção e da sintaxe que caracteriza toda a poesia [de Safo] e que sugere simplicidade, candura e honestidade de atitude”.
54
Cf. comentário de Simondon (1982, pp. 77-78).
55
Cf. Snyder (1997, p. 12).
56
Cf. comentários de Burnett (1983, p. 258) e Wilson (1996, p. 105).
57
O advérbio aparece no Fr. 83 V, mas é impossível entender seu contexto, pois, em sete linhas preservadas, só há três palavras legíveis. Os estudiosos sempre enfatizam que dois outros poetas posteriores a Safo empregaram à maneira dela o advérbio
331
GIULIANA RAGUSA
de#u )te: Anacreonte e Íbico, ambos do século VI a.C. Cf. Campbell (1998, p. 266; 1a ed.: 1967), Gerber (1970, p. 165), Simondon (1982, pp. 77-78) e outros. 58
Um dos críticos mais enfáticos da “escola Snell-Fränkel”, referida no capítulo que abre este trabalho, Lloyd-Jones (1971, p. 41), declara: “Safo sabe que o poder e a imortalidade pertencem apenas aos deuses, e que o homem pode desfrutar momentos de felicidade apenas quando os deuses os concedem”. Adiante, após essa lúcida nota, ele afirma, em momento infeliz: “Ela é uma mulher e o seu universo espiritual é estreito [...]”. Desnecessário apontar quão amplamente falha é tal avaliação. Creio que as páginas até aqui apresentadas provam sua improcedência. Sobre a noção de ame#khanía, cf. ainda o LSJ e os estudos sobre a lírica grega arcaica de Fränkel (1975, pp. 150-51) e Fowler (1987).
59
Cf. estudo detalhado de Buxton (1982).
60
Cf. ed. Pertusi (1955, p. 39).
61
Cf. Campbell (1994, Fr. 90).
62
Cf., por exemplo, Cameron (1939, p. 9), Colonna (1955, p. 309), Bennekom (1972, p. 113) e Slings (1988, p. 20). Ver estas edições e/ou traduções do poema: Hiller e Crusius (1911), Bergk (1914), Diehl (1936), Reinach e Puech (1937), Barnard (1986, p. 38), Lasserre (1989, pp. 202-3), Quasimodo (1996, pp. 7-8), Fontes (2003, pp. 376-77).
63
Cf. Page (1987, pp. 3-4 e 9-10), Castle (1958, p. 72), West (1970, p. 309; 1994, p. 36), Kirkwood (1974, pp. 109-10), Stanley (1976, pp. 314-15), Buxton (1982, pp. 38 e 50-51), Campbell (1983, pp. 10-12). Ver estas edições e/ou traduções do poema: Lobel (1925, pp. 14-15), Edmonds (1934), PLF (1997; 1 a ed.: 1955), Rivier (1967, p. 92), Gerber (1970, p. 154), Voigt (1971), Torrano (op. cit., p. 93), Campbell (1994, Fr. 1), Gentili (1990, p. 80), Petropoulos (1993, p. 44), Stehle (1997, p. 296), Snyder (1997, p. 8), Jouanna (1999, p. 123), Thomas (1999, p. 7).
64
Cf., da mesma helenista, o artigo de 1991 (p. 400), no qual ela diz que as duas deidades “encarnam as virtudes da concórdia civil e da harmonia política projetadas sobre o passado remoto da cidade”.
65
Cf. Buxton (1982, p. 33).
66
Pirenne-Delforge (1994a, p. 456).
67
Apud Farnell (1896, p. 742, nota 73a).
68
Cf., no estudo de Farnell, as notas 2, para Fársalos (p. 731), e 73a, para Lesbos (p. 742).
69
Buxton (1982, p. 32) mostra-se favorável a ver não as duas deusas, mas somente Afrodite e o epíteto.
70
Há outros cultos conjuntos de Afrodite e Hermes; cf. o estudo de Pirenne-Delforge (1994a, p. 456) e o quarto capítulo deste livro.
332
O FR. 1 V: UMA PRECE DE
“SAFO”
PARA AFRODITE
71
Cf. Burkert (1998, pp. 220-21).
72
Pirenne-Delforge (1991, p. 413).
73
Buxton (1982, p. 33) crê que o culto em Lesbos de Hermes e Afrodite Peitó estaria inserido no quadro do casamento.
74
Essa leitura também se apóia na sua emenda ao verso 19, que ele se recusa a sustentar, dada a fragilidade por ele mesmo reconhecida (p. 10). Assim, Page nem sequer imprime no texto grego de seu estudo a sua conjectura. Quanto às traduções de philótata como “amizade”, cf. Campbell (1998, p. 266; 1a ed.: 1967) e Snyder (1997, p. 8), entre outros.
75
O próprio Page dá essa impressão ao propor a emenda para o verso 19. Cf. também Rivier (1967, pp. 84-93) e Stanley (1976, pp. 314-15), por exemplo. Gentili (1990, p. 80) também fala em deserção.
76
Cf., entre outros, Edmonds (1934, Fr. 1), Reinach e Puech (1937, Fr. 1), Castle (1958, p. 72), Rivier (1967, p. 92), Bennekom (1972, p. 113), Kirkwood (1974, pp. 109-10), Campbell (1994, pp. 54-55; 1 a ed.: 1982), Torrano (1984, p. 93), Barnard (1986, p. 38), Lasserre (1989, pp. 202-3), Petropoulos (1993, p. 44), West (1994, p. 36), Quasimodo (1996, pp. 7-8), Jouanna (1999, p. 123), Fontes (2003, pp. 376-77).
77
Cf., por exemplo, Gentili (1990, p. 80).
78
Cf. artigos de Rivier (1967, pp. 90-91) e Parca (1982, pp. 47-50).
79
No caso de Ártemis, os termos da negação são especiais: a conotação erótica do epíteto philommeidê´s distingue Afrodite com perfeição da virgem, lembra Boedeker (1974, p. 24); a expressão en philóte#ti intensifica a diferença entre elas; e a forma verbal dámnatai, da caça e do erotismo, é comum aos contextos de ambas as deusas, Ártemis e Afrodite, respectivamente.
80
Sobre a etimologia de Psáppho#, cf. Zuntz (1951): “Onde quer que Safo cite seu próprio nome, sua inicial é y (Ps); onde quer que outros escritores se refiram a ela, é com S (S). A diferença pode tanto ser explicada pela pressuposição de algum desenvolvimento fonético ou pode ser descrita como meramente ortográfica e descartada” (p. 16). Se for um “desenvolvimento fonético”, ele ressalta, não pode ser subseqüente a Safo, “pois Alceu, seu contemporâneo e compatriota, escreve seu nome com S (S)” (p. 17). O autor baseia-se na PLF, Fr. 384; a Voigt traz uma lição diferente. Zuntz descarta, igualmente, que a alteração se dê por uma questão métrica, pois a inicial não poderia ser y (Ps). A explicação se basearia numa “inferência principal sugerida” pelo estudo do nome: ele “pertence à esfera asiática, e não à grega” (p. 18), afirma Zuntz, que arremata: “É altamente improvável que a própria Safo tenha usado o signo y’ (Ps’) para o som sibilante do início de seu nome” (p. 19). Zuntz crê que ela teria usado um outro símbolo antigo e corrente na Ásia Menor, similar à letra y (Ps), pois nos primórdios do alfabeto grego, ele lembra, sistemas de escrita prévios do Egeu ainda sobreviviam, tais como o silabário cíprio. Os copistas gregos, en-
333
GIULIANA RAGUSA
tão, teriam trocado o símbolo de outra língua pela letra y (Ps) que acabou marcada no nome “Safo” dos fragmentos, mas não em Alceu ou nos outros antigos que à poeta se referiram. E Zuntz completa: “O nome Safo é asiânico [...]. A maior parte de seus portadores são, não gregos, mas asiânicos; o próprio nome é incapaz de uma etimologia grega; e sua inicial tem uma qualidade não-grega”. Dada a proximidade de Lesbos com a Ásia Menor, ele conclui que na ilha “um nome desse tipo é tudo menos deslocado” (p. 22). 81
Sua única fonte é de transmissão direta, o Papiro de Oxirrinco no 1.787, publicado em The Oxyrhynchus papyri — Part XV (1922, pp. 31-33), por Grenfell e Hunt.
82
Cf. Campbell (1998, p. 278).
83
Cf. Achcar (1994, pp. 45-50). Em dado momento, ele lembra o “Carlos” da poesia de Carlos Drummond de Andrade e afirma que “entre Drummond e seu poema há uma figura fictícia, que é produto da situação enunciativa. Não se trata de uma personagem do texto, mas de um autor simulado, que corresponde ao eu-lírico da poesia drummondiana e que tendemos a identificar como autor empírico. O mesmo se pode dizer de Safo, ainda que aqui não tenhamos elementos para constatar, como no caso de Drummond, a proximidade ou a distância entre a pessoa empírica e o eulírico” (p. 49). Ver ainda Hallett (1996, pp. 139-40) e Lanata (1996, pp. 13-14), por exemplo, que também reiteram a distinção poeta vs. persona.
84
A visão de Stehle, exposta nas pp. 323 e 324 de seu livro, pressupõe também a forte influência da escrita na composição dos poemas por Safo — algo que está longe de poder ser seguramente afirmado — e a problemática questão do gênero, que a faz entender a lírica sáfica como uma forma de “comunicação entre as mulheres” e a veiculação de uma alegada “subjetividade feminina”, cuja compreensão seria partilhada por elas, mas não necessariamente pelos homens que a ouvissem, os quais, no entanto, ouviriam “Safo” falar através dela — a voz da famosa poeta. Para ela, Safo “fez-se antes uma fonte de fascinação do que apenas uma produtora de canções possíveis de serem recantadas” e, por isso, sua poesia sobreviveu, “porque estava destinada a escapar da tirania da cultura da performance e permanecer como a sua ‘voz’, ou seja, estava destinada a circular como texto desde o início”. É no mínimo complexa essa afirmação que, talvez, advenha do desconforto da helenista diante da incômoda e não respondida pergunta: qual a ocasião de performance das canções sáficas — canções de uma mulher que muitas vezes é marcada pelo erotismo e fala com constância do desejo, do amor, cujo universo é bastante feminino? Sobre a questão da escrita, considerada no segundo capítulo deste livro, busquei mostrar quão incertas são as nossas informações, sobretudo no que se refere às mulheres. Isso mostra quão movediço é o terreno onde se move Stehle.
85
Wilson (1996, p. 132).
86
Cf. também Jenkyns (1982, p. 11).
334
O FR. 1 V: UMA PRECE DE
“SAFO”
PARA AFRODITE
87
Em seu artigo, Cameron diz: “A última estrofe do discurso de Afrodite está modelada em uma forma que tem associações mágicas”; “[...] a prece de Safo aproxima-se do feitiço não apenas em seu aspecto estrutural [...]. As palavras de Afrodite implicam que, no passado, ela foi chamada para agir como um mágico invoca seu espírito a agir e como Safo deseja que ela aja novamente” (pp. 8-9). Indo um pouco mais longe, Petropoulos afirma que “a composição como um todo tem afinidades com o discurso mágico” (p. 43). Adiante, diz que “poema pode bem ser uma versão literária — ou mesmo uma ‘transcrição’ — de um tipo de feitiço de amor que era baseado no hino clético, suplicatório” (p. 56).
88
Cf. Cameron (1939, p. 8; 1964, p. 239) e Dover (1989, pp. 176-77), entre outros. Ver comentário de Carson (1996, p. 227).
89
Por uma necessidade de clareza, optei por deslocar o sujeito “ela”, impresso na forma verbal ethéloisa (“queira”, v. 24), para o primeiro verbo da sexta estrofe, no verso 21.
90
Cf. Edmonds (1934, Fr. 1), Reinach e Puech (1937, Fr. 1) e Torrano (1984, p. 93), por exemplo.
91
Marry (1979, pp. 72-73) tende a concordar com Page sobre o sentido do verbo. Cf. contra: Castle (1958, pp. 72-73), Longo (1963-1964, p. 364, nota 90), Cameron (1964, pp. 237-39), Gerber (1970, p. 165), Barilier (1972, pp. 34-35), entre outros, com argumentos diversos. Todos são contrários à visão de Page sobre o poema. Ver as edições de Campbell (1998, p. 266; 1a ed.: 1967) e De Martino e Vox (1996, p. 1.046).
92
Todas elas são posteriores ao século IV a.C., mas Koniaris (pp. 33-34) defende-se de possíveis críticas lembrando, muito apropriadamente, que “Page não oferece um único exemplo clássico ou pós-clássico que seja relevante” para o caso do poema de Safo.
93
Privitera (1974, p. 68) sublinha essa mesma alteração dizendo que, até o verso 19, Afrodite é “uma ouvinte afetuosa; depois, uma juíza”. Gentili (1990, p. 80) aproxima-se dessa visão ao entender a fala da deusa como “peremptória e elíptica, à moda de quem está proclamando uma inalterável norma de justiça [...]”. Entretanto, sua leitura do Fr. 1 V está demasiado comprometida com as teorias sobre o thíasos de Safo e com dados biográficos não comprovados: “O poema é, em síntese, uma prece de Safo a Afrodite para que esta venha em seu auxílio para ser sua aliada no restabelecimento do elo de amor mútuo que a amada quebrou ao desertar o thíasos sáfico em favor de uma comunidade rival”. Similares a essa leitura são as de Rivier (1967, pp. 84-92), Hague (1984, p. 36) e Calame (1999, pp. 25-27). Este, embora rejeite a palavra thíasos, adota a idéia do círculo de meninas em torno da poeta e lê a lírica sáfica a partir dela.
94
Carson (1998, p. 19).
335
GIULIANA RAGUSA
95
Sobre o sentido erótico de “presentes” (dô)ra), cf. Privitera (1974, p. 79) e Marry (1979, p. 76).
96
A expressão é de De Martino e Vox (1996, p. 1.046), em sua edição comentada do poema.
97
Page (1987, pp. 12-16; 1a ed.: 1955) e Stanley (1976, pp. 314-18), por exemplo.
98
Cf. Koniaris (1965, p. 33).
99
Cf. comentário sobre a escolha dos epítetos em uma prece em West (1997, p. 272).
100
De Martino e Vox (1996, p. 1.045). Cf. Privitera (1974, p. 77).
101
Calame (1999, p. 26). Privitera (1974, p. 80) vê Afrodite como a “reguladora e distribuidora” de sua própria justiça.
102
Stanley (1976, p. 318).
103
Carson (1996, p. 230).
104
Cf. Campbell (1998, p. 266).
105
Cf. Longo (1963-1964, pp. 353-54), Di Benedetto (1973, pp. 121-23), Svenbro (1975, pp. 37-49; 1984, pp. 57-79), Marry (1979, pp. 71-92), Garner (1980, p. 12), Rissman (1983, pp. 1-29). Esta fala em “débito” de Safo para com Homero. Para discussão da relação épica–lírica, cf. Corrêa (1998, pp. 55-61).
106
Cf. Cameron (1939, pp. 7-8) e Thomas (1999, p. 9).
107
Cf. Gerber (1970, p. 165).
108
Em sua edição, West (1988a, p. 221) observa que o nome das Ninfas se relaciona a um certo tipo de árvore de cuja madeira se podia fazer, pensavam os antigos, lanças letais.
109
Cf. Burkert (1998, p. 220).
110
Cf. West (1988a, p. 415), em comentário de sua edição da Teogonia.
111
Pirenne-Delforge (1994a, pp. 167-69) estuda as evidências sobre um templo de Ares e Afrodite em Argos, que seria de “implantação antiga”. Outras associações cultuais são por ela consideradas.
112
Cf. op. cit., pp. 208-11.
113
Cf. Pirenne-Delforge (1994a, pp. 407 e 452-53). A helenista lê o epíteto de maneira diversa, não como relacionado à guerra.
114
Apud Farnell (1896, p. 749, nota 105).
115
Villing (1997, p. 93) comenta: “[...] fontes antigas indicam que uma Afrodite guerreira era a protetora principal da cidade [Corinto], com um santuário na acrópole — Acrocorinto [...]”.
116
Cf. respectivamente os livros sobre a Lacônia (III, XV, 10) e Corinto (II, V, 1). Sobre Corinto, ver Pirenne-Delforge (1994a, pp. 103-4) — que ressalta que Afrodite
336
O FR. 1 V: UMA PRECE DE
“SAFO”
PARA AFRODITE
era cultuada na Acrocorinto desde, pelo menos, o século VII a.C. (p. 127) — e Villing (1997, pp. 93-94), que discorda da explicação para o caráter guerreiro de Afrodite baseada no Oriente e suas deusas do amor erótico e da guerra, pois crê que tal movimento supervaloriza a influência oriental na formação da deusa grega. Villing propõe a hipótese de que, em Corinto, Afrodite tenha substituído uma deusa autóctone, primitiva, cujas funções estariam ligadas tanto à fertilidade e ao sexo quanto à guerra. Sobre Esparta, ver p. 199 do estudo de Pirenne-Delforge e pp. 88-89 do de Villing. 117
Cf. Danielewicz (1969-1970, p. 164) e Burnett (1983, p. 254), entre outros que frisam tal intimidade.
118
Cf. West (1997, p. 185). Anquises, no Hino homérico V, a Afrodite, assusta-se com a visão da altíssima e radiantemente bela Citeréia, ao lado de quem, ignorante, ele se deitara em amor (vv. 180-90). Essa é a reação mais normalmente retratada quando um mortal se depara com a presença de um deus. Mas no Fr. 1 V de Safo, durante a narrativa do encontro com Afrodite, o medo parece ausente, suplantado pela familiaridade, pela intimidade que se estabelece entre a deusa e a suplicante.
119
Cf. Barilier (1972, p. 38).
120
Para Privitera (1974, pp. 48-52), súmmakhos descarta o epíteto dolóploke: Safo quer a deusa combatente, e não a “tecelã de ardis”. Mas no jogo de éro#s, não é o confronto direto que interessa, e sim o indireto — a sedução, a corte, o cerco ao objeto amado e assim por diante. A leitura do helenista, além de não integrar as pontas do poema, parece tomar o verso final muito literalmente, perdendo a sutileza da metáfora tecida em um contexto eminentemente erótico-amoroso que é o do Fr. 1 V.
337
AFRODITE EM DEZ FRAGMENTOS
8 AFRODITE
EM DEZ FRAGMENTOS:
APELOS E MENÇÕES
Neste capítulo, passo ao estudo de dez fragmentos do corpus, cujo aspecto comum consiste no quinto traço geral da representação sáfica de Afrodite: se ela recebe um apelo, como nos já considerados fragmentos 1 V e 2 V, ou se é apenas mencionada pela voz das canções, caso dos fragmentos 73a V e 96 V.
Os apelos: fragmentos 5 V, 15 V, 33 V, 86 V e 140 V Os fragmentos 33 V e 86 V: dois casos incertos Os fragmentos 33 V e 86 V, materialmente muito precários, pouco oferecerem ao estudo da representação de Afrodite em Safo, além deste dado: há indicações de que, em ambos os casos, estamos diante de preces à deusa. Cito o Fr. 33 V: a‡y’ ¶gv, xru!o!t°fan’ ÉAfrÒdita, tÒnde tÚn pãlon laxo¤hn ... se ao menos eu, ó Afrodite de áurea guirlanda, este lote obtivesse por parte ...
Dessa canção não se conhece nem o início nem o final; tampouco se sabe de quantos versos ela seria composta. Só se pode dizer que seu 339
GIULIANA RAGUSA
primeiro verso é um hendecassílabo e, muito provavelmente, também o segundo, pois, à semelhança dos fragmentos 1 V e 2 V, o Fr. 33 V estaria inserido no livro I da compilação alexandrina de Safo, cujo critério de organização parece ter sido o do esquema métrico da “estrofe sáfica”, formada por três versos hendecassílabos e um adônio. 1 Além disso, a estrutura do fragmento seria, segundo sua fonte de transmissão indireta, uma prece. Essa fonte é o tratado Sobre a sintaxe, do gramático grego Apolônio Díscolo (século II d.C.),2 que cita, no livro III (247) de sua obra, as duas linhas do Fr. 33 V a fim de exemplificar um dos advérbios — aíth’(e) (“se ao menos”) — que são típicos das preces. Note-se que Apolônio não declara a autoria dos versos que reproduz.3 Considerando, pois, o contexto da citação, pode-se pensar que o “eu” (égo#) do verso 1 esteja dirigindo um apelo à “Afrodite de áurea guirlanda”, a quem invoca, não por acaso, usando o vocativo singular — outro indicativo da situação de oração.4 Conforme expressam o advérbio aíth’ e, no verso 2, a forma verbal de optativo com sentido volitivo lakhoi) e# (“obtivesse”, de lankháno#, lagxãnv), quem suplica à deusa deseja algo. O quê? Diz a voz da prece: “este lote” (tòn pálon). Infelizmente, a lacuna que se segue e o abrupto fim da canção impedem sua compreensão. Impossível dizer o que se estaria pedindo a Afrodite. Quais seriam as características da deusa no fragmento? O pouco que se pode apreender delas é revelado nos elementos formais dos versos: Afrodite estaria na situação de quem recebe um apelo, constituindo a segunda pessoa do singular, a quem fala diretamente o égo# (v. 1). Ela é khrusostéphan’ (“de áurea guirlanda”), epíteto que, como frisei no quinto capítulo, se insere na tradição épico-homérica e se faz especialmente significativo quando atribuído a Afrodite, ainda que não lhe seja exclusivo, porque, de um lado, traz à tona o universo oriental tão próximo da deusa e, de outro, lembra outro epíteto de Afrodite e dela tãosomente: (polu-)khrus-, “(multi)áurea”. Da imagem da deusa no Fr. 86 V também são escassos os dados a colher: 340
AFRODITE EM DEZ FRAGMENTOS
].akãla.[ ] a. fig.i Òxv l. a. [ ]. K.u. y°rh’ e. È. x. om[ ]o. n ¶xoi!a yËm o. [n
].(...).[ ] o porta-égide (Zeus?)...[ ]... ó Citeréia, eu rez[o (?) ]... (tu?) tendo coraçã[o
]a! p. r. ol¤poi! . a k[ ]. ped’ ¶man fi≈[ ].n x a. l°pai.[
]... (tu?) deixando (...)[ ]. para minha (...)[ ]... pesares...[
kl]Ëy¤ m. ’ êra! a‡ p[ota két°rvta
e]scuta-me as preces, se j[á outrora
Como o Fr. 73a V, o Fr. 86 V foi localizado no rolo Papiro de Oxirrinco no 1.787 (século III d.C.), publicado por Bernard P. Grenfell e Arthur S. Hunt, em The Oxyrhynchus papyri — Part XV (1922). Todavia, sua edição como a conhecemos só aconteceu em 1941, no volume de Edgar Lobel, Colin H. Roberts e Eefje P. Wegener, The Oxyrhynchus papyri — Part XVIII. Lobel, responsável por Safo, tendo-se deparado com “fragmentos que pertenciam a outros papiros previamente publicados”, juntou-os sob o número 2.166; e um deles suplementa o rolo 1.787, trazendo um novo fragmento, que vem a ser Fr. 86 V.5 Nas oito linhas preservadas desse fragmento, lêem-se estas palavras: • v. 2: a. .i giókho# (“porta-égide”), havendo alguma dúvida quanto
às duas letras iniciais, como indicam os pontos a elas subscritos; • v. 3: K. u . thére#’ (“Citeréia”), o outro nome de Afrodite, cujas duas letras iniciais são alvo de dúvida; • v. 3: .e u . k.hom[, possivelmente de eúkhomai (eÎxomai), forma do indicativo presente na primeira pessoa do singular. Há dúvida quanto à leitura das duas vogais iniciais e da consoante kh (x); • v. 4: ékhoisa thu)mo. [n (“tendo coração”): a forma verbal é de particípio presente no singular, feminino, caso nominativo; • v. 6: .p.rolípoi.sa (“deixando”), formal verbal participial feminina de proleípo# (prole¤pv). Há dúvida quanto às duas consoantes iniciais e a final; • v. 7: há algo relacionado à primeira pessoa do singular, denuncia o pronome éman (caso acusativo, “minha”), precedido da preposição
341
GIULIANA RAGUSA
ped’(á) (“para”, em ático, metã, metá). A tradução “para minha” é uma das possibilidades de sentido da combinação; • v. 8: kha. lépai (“pesares”), há dúvida sobre a leitura da primeira vogal. No verso 2, aigiókho# constitui uma referência quase certa a Zeus, pai de Afrodite (cf. Fr. 1 V, vv. 2 e 7), pois é um epíteto a ele exclusivamente atribuído.6 A leitura Kuthére#’ (v. 3) foi proposta por Ernestus Diehl, em “Lyrici Graeci redivivi” (1944, p. 8), para a seqüência ..there#e. .. (..yerhe...) do papiro. Sua aceitação é habitual. Se for procedente, trata-se de uma clara referência a Afrodite. E após Kuthére#’, é provável que esteja escrito eúkhomai, verbo típico das preces,7 o que reforça a tese de que o Fr. 86 V é uma oração a Afrodite. No quarto verso, a forma verbal ékhoisa (“(tu?) tendo”), de ékho# (¶xv), revela o sexo feminino de um sujeito que pode ser a “Citeréia” ou uma terceira pessoa referida pela voz do fragmento; daí a interrogação que se segue ao “tu” grafado na tradução entre parênteses. Isso vale também para outra forma verbal de mesmo tipo, prolípoisa (“(tu?) deixando”, v. 6). Note-se que a expressão ékhoisa thu)mo[n (“tendo coração”) pode significar “tendo boa vontade”, “tendo espírito favorável”.8 Quanto a prolípoisa, não sabemos o que Afrodite — se ela for o sujeito “tu” — estaria “deixando”. David Campbell, em Greek lyric I (1994), sugere, na tradução do texto, “Chipre”, terra de Afrodite, certamente estimulado por isso e pelo fato de que, após prolípoisa, se lê a letra kappa (k, k), a primeira do nome grego da ilha, Kúpros. Todavia, sendo essa evidência muito frágil, preferi nada grafar após o verbo. No verso 7, a primeira pessoa do singular, que é a voz do poema segundo a provável reconstrução de eukhom[ (v. 3) como eúkhomai (“rezo”), aparece no pronome éman, que acompanha a preposição ped’ (“para”). Impossível dizer o que o verso registraria. No o último verso preservado, há khalépai (“pesares”), palavra que se costuma associar a contextos erótico-amorosos, como é o caso de sua 342
AFRODITE EM DEZ FRAGMENTOS
ocorrência no Fr. 1 V (v. 25). Essa não é a única semelhança entre os dois fragmentos. Há outra: o verso 5 do Fr. 86 V, além de confirmar o que o verbo do terceiro verso indica — o fragmento é uma prece —, é similar ao verso 5 do Fr. 1 V. Cito-os a seguir: (Fr. 86 V, v. 5)
(Fr. 1 V, v. 5)
kl]Ëy¤ m’ êra! a‡ p[ota két°rvta
éll¸å tu¤d’ ¶l$y’, a‡ pota két°rvta
escuta-me as preces, se já outrora
mas para cá vem, se já outrora
A segunda metade de ambos é idêntica. A primeira guarda o mesmo sentido: reiterar o apelo pela atenção da deidade — Afrodite — a quem a prece é dirigida. No caso do Fr. 86 V, isso é feito através da expressão kl]u)thí m’ (“escuta-me”) — que reúne uma forma verbal imperativa de klúo# (klÊv) e um pronome de primeira pessoa do singular9 — e da palavra áras, a qual, conforme Walter Burkert, em Greek religion (1998, pp. 73-74), pode assumir uma dimensão positiva ou negativa, significando “preces” ou “maldições”: “Ara tem um som arcaico e recorda o poder direto que a palavra da prece exercita como uma bênção ou como uma maldição que, uma vez proferida, jamais pode ser retirada”. Será que, como no Fr. 1 V (v. 5), o quinto verso do Fr. 86 V introduziria uma epifania de Afrodite, a quem a voz do poema parece apelar? Infelizmente, tal hipótese, dada a precária condição do fragmento, não pode ser considerada adequadamente.10 Fim do fragmento. Que Afrodite estaria nele representada? Impossível saber. De seu desenho, temos apenas três elementos. O primeiro: a voz da canção a nomeia “Citeréia”, designação que evoca tanto as imagens poéticas da deusa quanto as mítico-religiosas que se revelam em relatos antigos que estabelecem a tríade Afrodite–Citera–Oriente/ fenícios. O segundo: ela seria, como no Fr. 1 V e, ao que tudo indica, no Fr. 33 V, a destinatária de uma prece proferida na primeira pessoa do singular. O terceiro: ela estaria inserida, como no Fr. 1 V, num contexto erótico.
343
GIULIANA RAGUSA
O Fr. 5 V: súplica a Cípris e às Nereidas O fragmento 5 V, completo, mas bastante danificado, consta do rolo Papiro de Oxirrinco n o 7 (século III d.C.), editado por Bernard Grenfell e Arthur Hunt em The Oxyrhynchus papyri — Part I (1898).11 Seu esquema métrico segue, como o dos fragmentos 1 V, 2 V e 33 V, a “estrofe sáfica”, o que o inclui no livro I da compilação alexandrina da lírica de Safo. Cito-o a seguir: ⊗
⊗
KÊpri ka‹] NhrÆÛde!, éblãbh[n moi
Ó Cípris e] Nereidas, iles[o, a mim,
tÚn ka!¤]gnhton d[Ò]te tu¤d’ ‡ke!ya[i
o meu ir]mão con[c]edei aqui chega[r,
k !!a W]o. .i yÊmv ke y°lh g°ne!yai pãnta te]l°!yhn,
e o que n]o coração ele queira que seja —
[—]
[—]
ˆ!!a d¢ pr]Ò!y’ êmbrote pãnta lË!a[i
e que seus pa]ssados erros todos ele repar[e
ka‹ f¤loi!]i Wo›!i xãran g°ne!yai
e que aos amigo]s uma alegria ele seja,
....... ¶]xyroi!i, g°noito d’ êmmi
(...) a]os inimigos, e que não nos seja
tudo cu]mpri,
(...) nin]guém;
...... m]hd’ e‰!: [—]
[—]
tån ka!ig]nÆtan d¢ y°loi pÒh!yai
e a ir]mã — que ele a queira fazer ] honra, [so]frimento lutuoso
]t¤ma!, [Ùn]¤an d¢ lÊgran ]otoi!i pã]roiy’ éxeÊvn
]... a[n]tes lamentando
].na
]...
].ei!a˝v[n] tÚ k°gxrv
] ouvind[o] ... o grão
]lepag[..(.Ä)]ai pol¤tan
](...)[..(.)]... cidadãos
]llv!. [...]nhke d’ aÔt’ oÈ
](...)[...](...) mas não de novo ]...[]
]krv[] ]onaik[ ]eo[
](...) [
].i
]
]..[.]; [e] tu, ó Cíp[ris]..[..(.)](...)
]..[.]n: !Á [d]¢. KÊ p. [ri]..[..(.)]na
] coloca[nd]o ... má[?
]yem[°n]a kãkan[ ]i.
] [
⊗
](...).
⊗
Como os fragmentos 1 V, 2 V, 33 V e 86 V, o Fr. 5 V configurase como uma prece a Afrodite. Duas características, todavia, distinguem-no dos demais: as súplicas não são feitas somente à deusa; a voz da canção — na primeira pessoa do singular — apela não em benefí344
AFRODITE EM DEZ FRAGMENTOS
cio próprio, mas de uma terceira pessoa, o kasígne#ton (“irmão”, v. 2). Uma vez que a primeira pessoa do singular da lírica sáfica é entendida como sendo a própria poeta, os editores da fonte de transmissão direta do texto alegam que esse “irmão” seria o de Safo, Cáraxo. Essa identificação, embora problemática, costuma ser amplamente aceita, como se verá. No verso 1 da primeira estrofe são invocadas, no vocativo, as deidades a quem a prece é endereçada: Kúpri (“Cípris”), como no Fr. 2 V (v. 13), e as Ne#rê´ïdes (“Nereidas”). Não há epítetos acompanhando esses nomes e a última palavra do verso — o pronome moi (“a mim”) — esclarece que a voz que fala está na primeira pessoa do singular. No verso 2, vê-se que a voz reza em favor de seu “irmão”. E, como no Fr. 1 V, não faz um, mas vários pedidos às divindades, os quais são regidos pela forma verbal imperativa dóte (“concedei”, de dído# m i, d¤dvmi). Quais são os pedidos? Inicialmente, há dois: a voz suplicante pede pela segurança (vv. 1-2) de quem viaja, o “irmão”, e que as deidades concedam que ele tenha todos os seus desejos atendidos (vv. 3-4). Notese como a linguagem aqui é semântica, sintática e lexicalmente similar à dos versos 17 e 18, 26 e 27 do Fr. 1 V, nos quais é “Safo” quem pede a Afrodite que cumpra todos os desejos de seu próprio coração.12 Na segunda estrofe, outros pedidos ligados à forma verbal dóte (“concedei”, v. 2) são feitos. No verso 5, que o “irmão” “repare” (lu)sai, forma infinitiva de lúo#, lÊv) “todos” (pánta) os seus “erros” (ámbrote) do passado (prósth’); nos versos 6 e 7, que ele aja de modo diferenciado com os amigos e os inimigos, sendo uma “alegria” (kháran) para aqueles e, para estes, algo que o texto não permite dizer, mas que, segundo a ética grega, seria uma desgraça, um mal.13 Mais: nos versos 7 e 8, que ele não seja algo igualmente desconhecido — talvez uma dor, um pesar14 — para a primeira pessoa do plural (ámmi, “nós”). A quem se refere esse “nós”? O pronome incluiria a própria voz da prece? Ele se refere à família do irmão? A voz suplicante, que fala, se pensarmos na ocorrência de tàn kasig]nê´tan no verso 9, é a da “irmã”? Ou, menos provavelmente, o “nós” se relacionaria ao misterioso gru345
GIULIANA RAGUSA
po de Safo, que constituiria a sua audiência?15 Há muitas dúvidas quanto à compreensão do fragmento. Ao longo dos versos 9 a 20, essas dúvidas aumentam devido ao agravamento das mutilações do texto, que acaba por perder a divisão estrófica de quatro em quatro versos. O que acontece nesse trecho da canção? Nos versos 9 e 10, parece haver outro pedido à “Cípris” e às “Nereidas”, que envolveria a “irmã” e a “honra” (tímas). Do verso 10 em diante, sobram letras e poucas palavras distinguíveis:16 • v. 10: [on]ían dè lúgran (“sofrimento lutuoso”), mas não se sabe
de quem; • v. 11: p[á]roith’ akheúo#n (“antes lamentando”): akheúo#n, na forma participial masculina, teria por sujeito o “irmão”; o que ele lamentaria?; • v. 13: tò kénkhro# (“grão” de cereal), talvez relacionado a um sacrifício; • v. 14: polítan (“cidadãos”); • v. 18: sù [d]è Kúpri (“e tu, ó Cípris”).17 Pela segunda vez, a voz suplicante dirige-se diretamente a Afrodite, e agora a ela somente, chamando-a pelo mesmo nome do verso 1; • v. 19: algo relativo a colocar (them[én]a, “colocando”) e ao mal (kákan,“má”); a forma verbal é de particípio aoristo ativo, feminino, nominativo singular de títhe#mi (t¤yhmi). O passado é mencionado duas vezes por advérbios: no verso 5, por prósth’; no verso 11, por páoith’. Em ambas, esse tempo guarda uma dimensão negativa, pois na primeira se associa a “erros” (ámbrote) e, na segunda, a lamentos (akheúo#n, “lamentando”). O que está se passando? Não sabemos. A leitura habitual do Fr. 5 V relaciona-o a um relato de Heródoto (livro II, 134-35) em torno da “cortesã” (•ta¤rhw) Rodopis (Rodô)pis, ÑRod«piw). Nascida na Trácia, ela foi feita escrava e, depois, foi levada para o Egito do faraó Amásis (c. 570 a.C.) por um homem para trabalhar. Este a libertou após o pagamento de “enorme soma de dinheiro”
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(xrhmãtvn megãlvn). Esse pagamento, conta Heródoto, foi efetuado por “Cáraxo de Mitilene, filho de Escamandrônimo e irmão de Safo, a poeta” (Mutilhna¤ou Xarãjou toË SkamandrvnÊmou paidÒw, édelfeoË d¢ SapfoËw t∞w mousopoioË.).18 E ele continua: Xãrajow d¢ …w lusãmenow ÑRod«pin épenÒsthse ™w MutilÆnhn, ™n m°leÛ Sapf∆ pollå katekertÒmhs° min. Cáraxo, depois que libertou Rodopis, retornou a Mitilene, e em uma canção Safo muito o atacou de maneira severa.
A “canção” (méleï) referida seria o Fr. 5 V — esta, por sua vez, seria uma fonte de Heródoto.19 Contudo, nada há nela — tal como a temos — que se reflita no relato de maneira explícita.20 A despeito disso, os estudiosos do fragmento geralmente se valem da história de que Cáraxo, um comerciante de vinhos de Lesbos, 21 tido como “o irmão mais velho” (presbu[taton) de Safo,22 seria o “irmão” referido no verso 2, que, tendo passado pelo Egito e se apaixonado pela cortesã Rodopis, teria comprometido as finanças da família ao pagar caro pela liberdade daquela que era uma escrava em Náucratis, cidade com a qual a ilha da poeta manteve relações comerciais intensas durante todo o período arcaico e que, além disso, abrigava um famoso templo a Afrodite.23 Safo, então, estaria repreendendo-o24 ou, ainda, dele zombando.25 Outros testimonia relacionam esses personagens26 e, ainda, um outro nome de mulher, Dórica, que aparece no Fr. 15 V; Dórica e Rodopis poderiam ou não ser a mesma pessoa.27 Cabe, contudo, indagar em que medida esses relatos, incluindo o de Heródoto, são historicamente comprovados, ressalta Arnold W. Gomme, em “Interpretations of some poems of Alkaios and Sappho” (1957, p. 259). Menciono um só dos inúmeros problemas do relato do historiador do século V a.C.: o nome que ele dá para o pai de Safo e Cáraxo é apenas um dos oito nomes arrolados para designar o desconhecido progenitor de ambos.28 Há um outro nó na leitura de que o fragmento trata do caso entre Cáraxo–Rodopis/Dórica: os que a fazem estão assumindo que a primeira 347
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pessoa da prece é Safo, a poeta,29 o que é, como venho enfatizando, bastante questionável. Deixo no plano das conjecturas a complexa questão em torno das relações entre os relatos antigos e os dados biográficos que estariam aludidos no Fr. 5 V. A ele voltarei no próximo subtítulo. Passo a observar a Afrodite representada no fragmento, ressaltando, inicialmente, que a presença da deusa não é de todo segura, pois depende da aceitação da restauração do verso 1, Kúpri kaì] (“Cípris e]”), o que costumeiramente acontece.30 O primeiro dado é que a suplicante a chama “Cípris”, nome que ocorre duas outras vezes na lírica sáfica (Fr. 2 V, v. 13; Fr. 15 V, v. 9) e que, como “Citeréia” (Fr. 86 V, v. 3; Fr. 140 V, v. 1), evoca as imagens épico-homéricas da deusa e as ligações dela com o Oriente. Há uma terceira coincidência entre ambos os nomes: eles são insulares, algo muito eloqüente no caso do Fr. 5 V, porque “Cípris” associa-se às “Nereidas”, as netas de Oceano e filhas do velho do mar, Nereu, que formam um conjunto numeroso de deidades marinhas nem sempre especificadas,31 e cultuadas em Lesbos.32 A invocação dessas deidades fornece um dos dois únicos dados sobre a viagem do “irmão” da suplicante, muito provavelmente. Essa viagem se daria por mar e ainda estaria em curso considerado o tempo do poema; nada é dito sobre o ponto de partida — entendido por muitos como Náucratis, no Egito — e o de chegada, este último chamado “aqui” (tuíd’, v. 2) e tomado como Lesbos.33 O primeiro pedido da suplicante às deusas é que elas concedam que o seu “irmão” chegue ao seu destino “ileso” (ablábe#n, v. 1). Tal apelo se insere perfeitamente na esfera de atuação de “Cípris” e das “Nereidas” — todas elas protetoras dos marinheiros de acordo com os mitos, os relatos antigos e os cultos. Se não espanta que as Nereidas tenham essa função, o fato de Afrodite também desempenhá-la pode causar estranhamento. Mas, para Safo e para os gregos de um modo geral, essa deusa não é apenas a do amor erótico. Ela tem outras prerrogativas; uma delas é, justamente, a da proteção dos navegantes. Logo, ela é adequada ao Fr. 5 V, uma prece 348
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cujo contexto não é o erótico-amoroso e que, por isso, é para muitos a prova de que Safo não compôs somente canções que tratam de éro#s, mas também de temas “sociais”.34 A ligação de Afrodite com a água e com o mar, do ponto de vista poético, já foi explorada neste livro. Enfatizei que, desde o seu nascimento, a deusa guarda relação com o sexo, com a água e com a vegetação. Se estudarmos seus cultos, veremos que esse elo com o mar — que também se verifica nas representações das deusas orientais Ishtar e Astarte, às quais a Afrodite grega se assemelha 35 — é bastante forte. 36 Declara Lewis R. Farnell, em The cults of the Greek states — II: A conexão [de Afrodite] com o mar e seu interesse na navegação são atestados por uma longa série de títulos. Enseadas e promontórios rochosos foram nomeados a partir da deusa ou deram-lhe nomes. [...] no Pireu, em Cnido, em Milasa e Náucratis, [ela era cultuada] como a deusa que dá o vento bom; ela aparece como a salvadora de um naufrágio em um relato de Ateneu [...]. Concluímos que ela apresenta mesmo caráter [de salvadora] nas cidades marítimas da Acaia, e ouvimos falar de um ídolo dela sendo arrastado do mar pela rede de um pescador em Pátras. Em Panticapéia, como governante dos navios, ela era cultuada ao lado de Posêidon, o Salvador [...] (1896, pp. 636-37).37
Esse breve apanhado mostra que o aspecto marinho de Afrodite ganhou ênfase não apenas na Grécia. Em L’Aphrodite grecque, Vinciane Pirenne-Delforge comenta detidamente algumas das indicações de Farnell, tais como o culto de Afrodite no Pireu. Lá, afirma a pesquisadora, a deusa tinha o epíteto de Eúploia (EÎploia, “da boa navegação”) (1994a, pp. 33 e 433); 38 esse era também seu epíteto no culto em Cnido e em várias outras cidades. Em Corinto, segundo a helenista, ela era Epilimenía (ÉEpilimen¤a, “guardiã do porto”),39 seu epíteto também em Egina 40 (p. 434). Na cidade de Hermione, Pirenne-Delforge (p. 186) lembra Pausânias, que no livro sobre Corinto (II, XXXIV, 11) menciona um “templo a Afrodite Pontías kaì Limenías [Pont¤aw ka‹ Limen¤aw, ‘do mar e do porto’]”, deusa que zelava pela segurança dos marinheiros. 41 349
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Além desses e de vários outros cultos de Afrodite de aspecto marinho marcado nos muitos santuários da deusa localizados perto da água, Pirenne-Delforge (1994a, p. 435) enfatiza a relação Afrodite–Posêidon, deus do mar, pois ambos “se encontram obstinadamente justapostos” nos portos e em regiões próximas ao oceano, “mesmo se eles não estão associados em um culto conjunto”. Analisando os mitos e os relatos antigos em torno dessa relação, ela conclui: “Enquanto a ação de Posêidon sobre as marés é violenta, a intervenção de Afrodite parece ter por objetivo essencial o apaziguamento dos elementos” (p. 436). Esse tipo de ação pode ser ilustrado com uma narrativa tardia referida por Farnell (1896, pp. 636-37). Tal narrativa se encontra em Ateneu sob a forma de citação de uma fonte que o antigo gramático especifica — o livro (bibl¤ƒ, biblío#i) Sobre Afrodite (Per‹ ’Afrod¤thw), de Policarmo de Náucratis, que isto escreveu: [...] ı ÑHrÒstratow, pol¤thw ≤m°terow ™mpor¤& xr≈menow ka‹ x≈ran pollØn peripl°vn, prossx≈n pote ka‹ Pãfƒ t∞w KÊprou égalmãtion ’Afrod¤thw spiyamia›on, érxa›on tª t°xn˙, »nhsãmenow æei f°rvn efiw tØn NaÊkratin. ka‹ aÈt“ plhs¤on ferom°nƒ t∞w AfigÊptou ™pe‹ xeim∆n afifn¤dion ™pep°sen ka‹ sunide›n oÈk ∑n ˜pou g∞w ∑san, kat°fugon ëpantew ™p‹ tÚ t∞w ’Afrod¤thw êgalma s–zei aÍtoÁw aÈtØn deÒmenoi. ≤ d¢ yeÚw (prosfilØw går to›w Naukrat¤taiw ∑n), afifn¤dion ™po¤hsen pãnta tå parake¤mena aÈtª murr¤nhw xlvrçw plÆrh Ùdm∞w te ≤d¤sthw ™plÆrvsen tØn naËn ≥dh épeirhkÒsi to›w ™mpl°ousin tØn svthr¤an diå tØn pollØn naut¤an genom°nou te ™m°tou polloË: ka‹ ≤l¤ou ™klãmcantow katidÒntew toÁw ˜rmouw ∏kon efiw tØn NaÊkratin. [...] [...] Heróstrato, cidadão de nossa cidade [Náucratis], engajado no comércio, estava viajando muito quando, tendo aportado em Pafos, de Chipre, comprou uma pequena estátua de Afrodite de nove polegadas de altura — de antigo artesanato — e, partindo e carregando-a, para Náucratis veio. E, quando estava perto do Egito, uma tempestade repentina se abateu sobre ele carregando-o e não mais era possível ver em que terra estavam ele e os seus companheiros de viagem. Então todos eles se refugiaram sob a estátua de Afrodite implorando-lhe que os salvasse. E a deusa (pois
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amigável era para com os de Náucratis) repentinamente fez tudo o que jazia ao seu lado ficar coberto do fresco e verde mirto e de doce odor encheu a nau, quando os navegantes estavam sem meios de salvação por causa de muita náusea que havia e do muito vômito. Do sol a luz brilhou, e eles, vendo o ancoradouro, retornaram a Náucratis.42
Não é à toa que a suplicante do Fr. 5 V se dirige a “Cípris” e às “Nereidas” para que elas garantam o seguro retorno de seu “irmão”, um quadro composto nos versos 1-2 que aproxima o fragmento de um gênero poético de prece que mais tarde será muito usado pelos poetas, o propemptikón, uma canção “na qual o falante pede que um amigo ou parente chegue em casa com segurança”.43 Mas é difícil dizer que o fragmento sáfico seja um exemplar avant la lettre de tal gênero, pois os rumos dos versos 3 a 20 parecem extrapolar a sua especificidade, não havendo, nos pedidos neles contidos, nada que os ligue de maneira especial às deidades invocadas na abertura, a menos que se aceite a hipótese de Safo estar representando poeticamente um dado “biográfico”, envolvendo um alegado caso amoroso entre seu irmão e uma cortesã — o que se inseriria na esfera de Afrodite. Para Francis Cairns, em Generic composition in Greek and Roman poetry (1972, pp. 229-30), o gênero trabalhado por Safo é, mais especificamente, o prosphonetikón, uma canção de “boas-vindas ao viajante” projetada para o futuro, cujo “destinatário lógico”, o kasígne#ton, o “irmão” do v. 2 — habitualmente identificado a Cáraxo, o irmão de Safo —, é substituído pelas destinatárias Cípris e Nereidas. Essa percepção é comprometida pela interpretação biografista à qual o helenista não resiste, mas é enriquecedora, pois ela realça uma hábil manobra poética. Ao pedir tão apropriadamente àquelas deidades protetoras dos os navegantes para que o kasígne#ton retorne bem da viagem por mar, a voz segue as convenções do gênero escolhido. Porém, ao alterar o tempo do presente para o futuro, jogar com os destinatários e avançar com os pedidos lançados do verso 3 em diante, a primeira pessoa do singular — para muitos, a kasigne#tan do verso 9, a “irmã” identificada à própria Safo — redimensiona seu canto e vai além da estrutura convencional, pois, ao falar às deusas, dirige-se, na verdade, ao kasígne#ton, 351
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enviando-lhe recados sobre o comportamento que este deverá adotar com relação aos amigos, à sua família e mesmo aos inimigos — comportamento este que deverá ser diferente daquele apresentado no passado; eis o porquê do pedido da voz às deusas para que concedam que ele repare “todos os erros” de então. Se tivéssemos o fragmento em melhores condições, essa avaliação poderia ser aprofundada. Mas, diante do que restou da canção, isso é tudo o que se pode dizer. O Fr. 15 V: apelos a Cípris Um pouco mais mutilado que o fragmento anterior, sem o início e com a koro#nís (⊗) marcando somente o seu término, o curto Fr. 15 V é este: b
a
b
]a mãkai[r
](...) venturo[sa (?)
]euplo.:[
](...) [ ](...) [
a
].ato!ka[
]
] ]o!y’[
]...[
]brotekh[
].....[
]atai!. [
] n. em. [ ].Êxai li.[ ] e. no! kl[ ].[ ]
] (...) [ ]...[
](...) (...)[ ].[
]
[-]
[-]
KÊ]pri ka[¤ !]e pi[krot.Ä.]an ™peÊr[oi
ó Cí]pris, [e] a m[ais amar]ga te descub[ra
mh]d¢ kauxã![a]i.to tÒd’ ™nn°[poi!a D]v . r¤xa tÚ deÊ[t]eron »! poye[
e n]ão se vangl[o]rie isto con[tando — ela,
]eron ∑lye.
D]órica : como a seg[u]nda vez (...)[
⊗
](...) veio.
⊗
A única fonte desse fragmento é de transmissão direta: o Papiro de Oxirrinco no 1.231 (século II d.C.), publicado em The Oxyrhynchus papyri — Part X (1914), por Bernard Grenfell e Arthur Hunt, segundo os quais o Fr. 15 V seria endereçado a Cáraxo, o irmão de Safo, e “Dórica” (v. 11) é o outro nome de Rodopis, a cortesã com a qual ele se teria envolvido na cidade egípcia de Náucratis. Note-se que o nome D]o#ríkha
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não está de todo legível no papiro, que traz apenas [...]rikha. Trata-se, pois, de uma restauração creditada a Wilamowitz por Grenfell e Hunt (p. 40) e amplamente aceita.44 Como os fragmentos 1 V, 2 V, 5 V e 33 V, o Fr. 15 V pertenceria ao livro I de Safo editado pelos alexandrinos, pois seu esquema métrico é o da “estrofe sáfica”, o que de fato só pode ser observado nos versos 9 a 12, os únicos legíveis do texto reduzido, antes da nona linha, a letras e palavras cortadas, das quais apenas uma parece mais seguramente identificável: makái[r (b, v. 1), talvez makáira (“venturosa”), epíteto de Afrodite no Fr. 1 V (v. 13). Que dizem, então, os versos 9 a 12? Parece que eles nos colocam diante de uma prece, tal qual ocorre nos fragmentos 1 V, 2 V, 5 V, 33 V e 86 V. Não se pode dizer sobre a voz suplicante, mas o vocativo Kúpri indica que a deusa é o “tu” a quem essa voz na primeira pessoa do singular se dirige. Assim, é provável que makáira, epíteto próprio aos deuses, se refira mesmo a “Cípris”. No verso 9, segue-se ao vocativo o primeiro pedido compreensível da prece: “e a mais amarga te descubra” (v. 9). Igualmente ao que se passa no Fr. 5 V, esse apelo não é feito em benefício direto da voz suplicante, mas envolve uma terceira pessoa do singular, revelada na forma verbal optativa com sentido volitivo epeúroi (“descubra”, de epheurísko#, ™feur¤skv), cujo sujeito é nomeado no verso 11, “Dórica”, mas já indicado no verso 10, quando do segundo e último pedido da prece: “e não se vanglorie isto contando — ela”. Neste, à forma verbal optativa com sentido volitivo kaukhásaito (“se vanglorie”, de kaukháomai, kauxãomai), seguem-se o pronome tód’ (“isto”) e uma outra forma verbal, agora participial no nominativo singular feminino, ennépoisa (“contando”, de en-légo#, ™n-l°gv). Portanto, o sujeito dos verbos dos versos 9 e 10 é uma mulher, Do#ríkha (v. 11).45 Contudo, uma vez que já Grenfell e Hunt (1914, p. 40) o relacionam à mesma história que se crê subjacente ao Fr. 5 V, o caso Safo–Cáraxo–Rodopis/Dórica, pensam alguns — não sem malabarismo interpretativo — que a terceira pessoa de epeúroi (“descubra”, v. 9) pode ser “ele”, o irmão da poeta.46 Isso explica também por que 353
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em certos estudos ou edições se imprimem, reunidos, os fragmentos 5 V e 15 V.47 Para além do problema dessa leitura biografista, que identifica a não identificada voz poética do Fr. 15 V a Safo, os dados contraditórios dos testemunhos antigos sobre o referido caso trazem dificuldades consideráveis à sua compreensão. Analisando o Fr. 5 V, reproduzi o relato de Heródoto, em que lemos os nomes “Cáraxo”, “Rodopis” e “Safo”, e lembrei que, em outros testemunhos, os nomes Rodopis e Dórica se confundem, às vezes identificados a uma mesma mulher — a cortesã de Náucratis. Veja-se o relato de Estrabão, na Geografia (livro XVII, I, 33): (...) ∂n Sapf∆ m°n, ≤ t« mel«n poiÆtria, kale› Dvr¤xan, ™rvm°nhn toË édelfoË aÈt∞w Xarãjou gegonu›an, o‰non katãgontow efiw NaÊkratin L°sbion kat’ ™mpor¤an, êlloi Ùnomãzousi ÑRod«pin: [...] a que Safo, a compositora de canções, chama Dórica — a amante de seu irmão Cáraxo, que no transporte de vinho lésbio para Náucratis estava engajado —, mas que outros nomeiam Rodopis.48
Para Estrabão, Dórica e Rodopis denominam a mesma mulher. Muito posteriormente, Ateneu declara o contrário, no Banquete dos sofistas (livro XIV, 596b-c): ’EndÒjouw d¢ •ta¤raw ka‹ ™p‹ kãllei diaferoÊsaw ≥negken ka‹ ≤ NaÊkratiw. Dvr¤xan te, ∂n ≤ kalØ Sapf∆ ™rvm°nhn genom°nhn Xarãjou toË édelfoË aÈt∞w kat’ ™mpor¤an efiw tØn NaÊkratin épa¤rontow diå t∞w poiÆsevw diabãllei …w pollå toË Xarãjou nosfisamm°nhn. ÑHrÒdotow d’ aÈtØn ÑRod«pin kale›, égno«n ˜ti •t°ra t∞w Dvr¤xhw ™st‹n aÏth ... Famosas cortesãs, que pela beleza se distinguiam, produzia também Náucratis. Como Dórica, a quem a bela Safo, quando a cortesã se tornou amante do irmão da poeta, Cáraxo — que em negócios a Náucratis viajava — atacou através de sua poesia porque Dórica tinha roubado muito dinheiro dele. Mas Heródoto chama-a Rodopis, ignorando que esta é diferente de Dórica...49
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Segundo Ateneu, a cortesã Dórica é uma pessoa; Rodopis, outra. Quem as confundiu numa só mulher foi Heródoto (II, 134-35). O primeiro nome é o que figura numa fonte papirácea da “biografia” de Safo, datada entre os séculos II-III d.C., período em que viveu Ateneu. Refiro-me ao Fr. 1 (col. I) do rolo Papiro de Oxirrinco no 1.800, que se compõe de fragmentos biográficos, editado por Grenfell e Hunt (1922, p. 138). Nesse fragmento, lê-se que Cáraxo, o irmão “mais velho” (presbu[taton, linhas 9-10) de Safo, se envolveu com “Dórica” (Do# rikhai, linha 10). Quem está certo? Heródoto, Estrabão, Ateneu ou o anônimo biógrafo do fragmento papiráceo? E a “Dórica” do Fr. 15 V (v. 11) de Safo é Rodopis, uma outra cortesã ou uma mulher não implicada em toda a história? Essas dúvidas, detalhadamente analisadas por Joel B. Lidov em “Sappho, Herodotus, and the hetaira” (2002, pp. 203-37), não parecem ser solucionáveis. Assim, prefiro deixar de lado as conjecturas histórico-“biográficas” que se crê subjacentes aos fragmentos 5 V e 15 V, mesmo porque neste último, como no primeiro, nada há que se refira explicitamente ao caso Cáraxo–Rodopis/Dórica. Volto, pois, a perseguir a imagem de Afrodite no Fr. 15 V — tarefa, na verdade, já praticamente concluída, uma vez que, depois do segundo pedido à deusa, nada mais se pode dizer sobre suas características. É que no verso 11, após o nome “Dórica”, somente lemos tò deúterono#n (“como a segunda vez”) e a palavra mutilada pothe[; e no verso 12, que encerra a canção, apenas as letras ]eron e a forma verbal na terceira pessoa do singular “veio” (ê)lthe, de érkhomai, ¶rxomai). Diante disso, e considerando os relatos sobre o irmão de Safo e a cortesã, os helenistas costumam emendar os versos 11 e 12, completando as palavras mutiladas deste modo: (...) tÚ deÊ[t]eron »! pÒye[nnon efiw ¶ron ∑lye. [...] — como a seg[u]nda vez par[a um ansiado amor ele [Cáraxo] veio.
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De acordo com essa reconstituição do texto grego, adotada na edição PLF,50 a suplicante, identificada a Safo, pede “Cípris” que impeça “Dórica” de se gabar de sua influência sobre Cáraxo. Mas essa hipótese não pode ser sustentada com segurança devido tanto aos problemas textuais do fragmento quanto ao viés biografista que a embasa e devido, ainda, às dificuldades em torno das relações desses três personagens mortais entre si. Oferecer uma interpretação arquitetada em tão frágeis alicerces parece uma maneira de pulverizar, ainda mais, o fragmentado poema. Limito-me, pois, a recolher os parcos cacos da imagem fragmentária de Afrodite que o Fr. 5 V traz. Começo pelo nome, “Cípris” (v. 9), antes empregado nos fragmentos 2 V (v. 13) e 5 V (v. 1), e aqui, pela última vez, encontrado em Safo. Nele estão impressas três características da deusa: sua geografia poética e mítico-religiosa notadamente insular; suas afinidades estreitas com Chipre e o Oriente; sua imagem que dialoga, em alguma medida, com suas representações épico-homéricas. Outro traço da Afrodite se revela, indiretamente, no primeiro pedido compreensível da prece: o seu amargor. Como Éros, que Safo qualifica no Fr. 130 V como glukúpikron (“doce-amargo”), a deusa que o rege pode ser também, diz o Fr. 15 V, “a mais amarga” (pikrotátan) criatura.51 Por fim, também revelado indiretamente no segundo pedido está o traço final da imagem de Afrodite na canção: ela pode impedir que “Dórica” se vanglorie — uma atitude potencialmente perigosa para uma mortal.52 O Fr. 140 V: um canto dialogado O Fr. 140 V foi transmitido indiretamente por uma fonte do século II d.C., o tratado Inquérito sobre os metros, de Heféstion, que cita as duas linhas da canção de Safo para ilustrar um tipo de tetrâmetro (X, 4). 53 Cito o fragmento:
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⊗
Katyn]ã!kei, Kuy°rh’, êbro! ÖAdvni!: t¤ ke ye›men; kattÊpte!ye, kÒrai, ka‹ katere¤ke!ye x¤tvna! ⊗
“Morre, Citeréia, delicado Adônis. Que podemos fazer?” “Golpeai, ó virgens, vossos seios, e lacerai vossas vestes...”
Ao citar esse texto, Heféstion não especifica a autoria. Mas esta é tida como certa,54 pois há elementos em relatos antigos que favorecem creditar os dois versos a Safo. Um deles é o de Pausânias, que na obra na qual descreve a Beócia (IX, XXIX, 8) afirma que “Safo, a Lésbia” (Sapphô`, he# Lesbía) “sobre Adônis [...] cantou” (Ádo#nin [...] ê)isen).55 Além disso, a própria lírica sáfica apóia a atribuição da autoria de Safo ao Fr. 140 V na medida em que Adônis nela aparece pelo menos outras duas vezes, nos fragmentos 117b V56 e 168 V. No primeiro, lê-se: a ÖE!per’ ÈmÆnaon b Œ tÚn ’Ad≈nion a “...Ó Vésper! Ó Himeneu!” b “Ó para o Adônio!”
No segundo, o 168 V, diz o lamento: Œ tÚn ÖAdvnin ... ó! por Adônis ...57
Como se vê, é muito precária a condição de ambos os fragmentos que marcam a presença textual de Adônis na lírica sáfica. Já o Fr. 140 V, embora composto de apenas dois versos, traz dois dados a ressaltar. Um diz respeito à sua forma; o outro, ao par Adônis–Afrodite. Começo por este, relativo a uma ligação que expõe a dimensão mítica dos versos, pois Adônis e Afrodite — chamada “Citeréia” (Kuthére#’), como no Fr. 86 V (v. 3) —, associam-se nos relatos antigos sob o signo de éro#s e da morte,58 e nas práticas cultuais, sob o signo das Adonias. 357
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Adônis, como outras deidades vegetais — as Cárites e as Horas —, é próximo da flora, das plantas, dos arômatas, dos jardins e de Afrodite.59 Alvo da paixão da deusa, ele acaba morto violentamente no auge de sua juventude e virilidade,60 de formas que variam segundo as versões do mito; Afrodite sofre com sua morte e a lamenta. Os mitos envolvendo as duas personagens divinas são referidos tanto na literatura quanto nas suas representações iconográficas e religiosas. Sobre estas, Pausânias (IX, XLI, 2) dá-nos um exemplo ao afirmar que, na cidade cípria de Âmatos, “há de Adônis [...] e Afrodite um antigo templo” (Adô´nidos [...] kaì Aphrodíte#s hierón estin arkhai)on).61 Tal referência é eloqüente, uma vez que Afrodite era a deusa dominante na ilha62 e que Chipre ocupava um “lugar proeminente de culto a Adônis, de acordo com a tradição grega”, assinala Walter Burkert, em Structure and history in Greek mythology and ritual (1982, p. 106). Além disso, continua ele (pp. 106-7), a ilha, próxima da Palestina, foi “um lugar onde as tradições semítica e grega em definitivo se encontraram e se misturaram por séculos”. Essa mistura predominou, especialmente, em Âmatos, onde a população fenícia era maciça, atraída pela abundância de madeira própria à construção naval, vital para um povo comerciante. À importância dos fenícios em Âmatos, some-se sua relevância, segundo fontes antigas, na fundação do templo de Afrodite em Citera63 e o caráter originário de Adônis — “uma importação semítica que veio para a Grécia no século VII a.C.”, ressalta Burkert (pp. 105-6).64 Esse elemento semítico é, portanto, comum às ilhas de Citera e Chipre, às origens de Adônis e de Afrodite e mesmo, lembra Martin L. West, em The east face of Helicon, ao mito que faz a deusa do amor sexual ser arrebatada pelo jovem deus precocemente morto (1997, p. 57). Ademais, segundo Vassos Karageorghis, em Les anciens chypriotes, também o templo de Palaipáphos (“Velha Pafos”), cidade cípria destruída em torno de 1050 a.C., “via o desenrolar de festas em honra de Adônis e Afrodite” (1991, p. 123). Do ponto de vista das práticas cultuais, o festival das Adonias reúne Afrodite e Adônis. Interdito aos homens 65 e “não admitido entre as grandes festas”66 das cidades gregas, dele só participavam as mulheres 358
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adultas67 que deviam, como a deusa, “prantear a morte do jovem deus [...] no início do verão”, explica Burkert (1982, p. 106).68 Essa festa é realizada a partir do século VI a.C., com características específicas e diversas em Atenas (segunda metade do século V a.C.),69 em outras cidades gregas70 e, mais tarde, no Egito (século III a.C.), onde “ganham um caráter público e oficial”.71 Durante as Adonias, além de chorar Adônis, para representar o sofrimento de Afrodite, cabia às mulheres semear, no teto de suas casas,72 “‘jardins’ em vasos ou potes, para depois jogá-los no mar”, e carregar uma efígie do deus morto para ser igualmente lançada na água, completa Burkert (p. 107). 73 No imaginário grego, os efêmeros “jardins de Adônis” simbolizavam o estéril, o infrutífero, sublinha Wahid Atallah, em Adonis dans la littérature e l’art grecs (1966, p. 322), 74 pois as suas plantas — hortaliças e arômatas — crescem rápido e precisam de calor, mas sua duração é curta e perecem jovens, com o sol quente do verão, assim como o deus pereceu no auge de sua virilidade; como ele, essas plantas estão na esfera da esterilidade, oposta à de Afrodite. Considera-se, desde a Antigüidade, que a mais remota menção ao mito de Afrodite e Adônis, ao culto do deus e ao rito de lamentar sua morte seja justamente o Fr. 140 V de Safo.75 Um exemplo disso é o epigrama 407, de Dioscúrides (final do século III a.C.), incluído no livro VII da Antologia grega. Nele, o poeta vê Safo “junto à enlutada Afrodite” (oduroméne#i Aphrodíte#i, v. 7) a lamentar a morte de Adônis.76 Outro aparece na Mitologia (5, 16), de Comes Natalis (século XVI d.C.), que diz: “Safo deixou uma relíquia escrita de que o morto Adônis foi escondido num pé de alface por Vênus [Afrodite]”.77 Olhemos mais de perto o Fr. 140 V de Safo. Do ponto de vista formal, John Herington, em Poetry into drama, afirma que a estrutura dramática do fragmento “antecipa” cenas semelhantemente trabalhadas na tragédia; daí sua conclusão de que “temos de creditar a Safo e a mais ninguém o mais antigo fragmento de drama em verso preservado em toda a tradição européia [...]” (1985, p. 57). Observando tal estrutura, ela se configura como um canto dialogado. 359
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Presumivelmente, no verso 1, Katthnáskei, Kuthére#’, ábros Ádo#nis; tí ke thei)men? (“Morre, Citeréia, delicado Adônis. Que podemos fazer?”), um coro em primeira pessoa do plural, conforme indica a forma verbal optativa thei)men (de títhe#mi, t¤yhmi) dirige-se à “Citeréia” lançando um apelo por uma direção diante do terrível fato: a morte de Adônis. No verso 2, Kattúptesthe, kórai, kaì katereíkesthe khíto#nas... (“Golpeai, ó virgens, vossos seios, e lacerai vossas vestes...”), a deusa — talvez representada por uma solista na performance — responde às kórai do coro ordenando-lhes, com dois verbos no imperativo, que ajam de uma determinada maneira, adequada ao ritual do luto — do seu luto pelo amante morto.78 Diante dessa estrutura, pode-se pensar que o canto dialogado ou coral seja também cultual, no sentido de que o contexto de sua performance pode ter sido o do culto a Adônis em Lesbos. De fato, Denys Page, em Sappho and Alcaeus, vê o fragmento como “o único traço de canção cultual nos fragmentos de Safo” (1987, p. 127). Eva Stehle, em “Sappho’s gaze”, crê que o Fr. 140 V “pode ter sido feito como uma canção para o ritual de lamento fúnebre a Adônis” (1996b, p. 198). E tanto para Herman Fränkel, em Early Greek poetry and philosophy (1975, p. 182; 1a ed.: 1962) quanto para Atallah (1966, p. 307), o fragmento de Safo pode indicar que o culto a Adônis já existia no século VII a.C. em Lesbos. Todavia, diante do fato de o ritual evocado no fragmento ser identificado ao das Adonias, causa estranhamento o termo kórai (“virgens”) no verso 2 do Fr. 140 V, pois essa festa seria restrita a mulheres adultas. De todo modo, é preciso dizer que esse dado que especifica as participantes é relativo às Adonias atenienses do século V a.C. e não necessariamente coincide com os desconhecidos traços do festival em outros locais, como provavelmente a Lesbos de Safo. Seja como for, toda a discussão pode-se esfumaçar ao lembrarmos que o Fr. 140 V não é um registro documental, mas poético, podendo ser antes a representação do ritual praticado — e não o próprio — num canto coral não obrigatoriamente destinado a um contexto ritualístico de performance. 360
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Destaco, ainda, no Fr. 140 V, o adjetivo ábros (“delicado”, v. 1) qualificando Adônis, o amante de Afrodite. Conforme frisei ao analisar o advérbio ábro#s (“delicadamente”) no Fr. 2 V (v. 14), além de ter forte conotação erótica, a idéia da “delicadeza” (habrosúne# ) parece especialmente apropriada à figura desse deus jovem, belo e efêmero, que é o Adônis sáfico. E a Afrodite do fragmento, o que se pode dizer de sua imagem? Infelizmente, o pouco que foi preservado permite uma consideração limitada da representação da deusa. Sobre ela, pode-se afirmar: • No corpus de 14 fragmentos em que Afrodite está textualmente
presente, o 140 V é o único que a insere num plano mítico; • igualmente, apenas nesse fragmento ela aparece não apenas como a deusa do amor erótico, mas como a amante; • enquanto nada se pode dizer da ocorrência de seu nome “Citeréia” (Kuthére#’) no Fr. 86 V (v. 3), aqui, no Fr. 140 V, ele se afina com o universo semítico que subjaz às origens de Adônis e aos mitos em torno de sua figura e com o universo oriental que perpassa as representações poéticas — incluindo as sáficas — e mítico-religiosas de Afrodite; • Adônis, Afrodite e mesmo as Adonias inserem-se no quadro religioso e cultual da ilha de Chipre; • a deusa, cuja felicidade é inerente à sua natureza, é retratada aqui num momento dramático de suas peripécias mítico-amorosas; • no fragmento, como em muitos outros, um apelo — embora não formatado em uma prece, mas em um lamento — é feito a Afrodite. Esses cinco pontos sintetizam o que se pode dizer com segurança sobre a imagem fragmentária da Afrodite do Fr. 140 V. Mas há algo que ainda interessa frisar, para concluir: tal fragmento relativiza a surrada e repetida noção de que a poeta de Lesbos só compôs lírica monódica tematizando o amor e epitalâmios. O fragmento em questão e sua estrutura dramática não se encaixam nem em um gênero nem em outro.
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As menções: fragmentos 22 V, 102 V, 112 V, 133 V e 134 V O Fr. 22 V: música, desejo e a “Ciprogênia” O Fr. 22 V encontra-se seriamente mutilado até o verso 11 e do 17 em diante. Incompleto, o texto tem nos versos 11 a 16 sua parte mais legível, que não chega sequer a duas estrofes. Esse fragmento foi preservado no rolo Papiro de Oxirrinco no 1231 (século II d.C.), publicado por Grenfell e Hunt (1914, pp. 28-31). Eles observam que o Fr. 22 V segue o esquema métrico da “estrofe sáfica”, o que o incluiria no livro I da compilação alexandrina de Safo. Cito-o a seguir: ]bla.[ ]ergon, ..l’a..[ ]n =°yo! doki m. [ ]h!yai ]n aÈãdhn x.[ d]¢ mÆ, xe¤mvn[ ].oi!analgea.[ ]de .].e.[....].[... k]°lomai !.[ ..].gula.[...] a. nyi lãboi!a .a.[ pç]ktin, î!. !e dhÔte pÒyo! t. .[ émfipÒtatai — tån kãlan: é går katãgvgi! aÎta[ ™ptÒai!’ ‡doi!an, ¶gv d¢ xa¤rv, ka‹ går aÎ t. a dÆ p o. [t’] ™memf[ . K]uprog°n[ha [—] » . ! êrama . [i toËto t«[ b]Òlloma. [i
](....)[ ] tarefa (?), (...)[ ](...) rosto (...)[ ](...) ](...) desagradável (...)[ e] não, tormenta[ ]... (...)... (dor?)[ ](...) ]...[...]...[... p]eço a ti (?)[ ]... [...]... pegando...[ ha]rpa, enquanto de novo o desejo...[ voa ao redor de ti — — a bela —; pois o vestido...[ vendo tremeste, e eu me alegro, pois, cer[t]a vez, a própria...[ C]iprogê[nia [—] como rez[o isto (...)[ q]uer[o
Nos versos 1 a 8,79 as palavras reconhecíveis têm uma dimensão negativa: auáde#n (“desagradável”, v. 5), kheímo#n (“tormenta”, v. 6); 362
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talvez algo relativo a “dor” (v. 7). As exceções, aparentemente neutras, são ]ergon (“tarefa (?)”, v. 2) e rhéthos (“rosto”, v. 4). Essa atmosfera, que envolve um contexto obscuro para nós, se altera nos versos 9 a 16, nos quais predominam palavras e imagens cheias de positividade, leveza e alegria. No verso 9, lêem-se k]élomai (“peço”) e, ao final (s.[), possivelmente o pronome se (“te”). No verbo, revela-se a primeira pessoa do singular, que parece ser a voz da canção; no pronome, a segunda pessoa do singular, a quem tal voz estaria falando. Depois, no início do verso 10, distinguem-se quatro letras (gula) que, para os editores do papiro do Fr. 22 V, Grenfell e Hunt (1914, pp. 31 e 42), comporiam o nome feminino “Gongila” (Gongúla). Muitos aceitaram essa reconstituição,80 com base em dois argumentos principais: o nome figurar em outro fragmento de Safo e o fato de ser registrado em relatos antigos a ela relacionados, segundo os quais essa Gongila seria uma das integrantes do lendário grupo de meninas em torno da poeta. Isso é o que afirma, por exemplo, o Suda (S 107), léxico do século X d.C., que aponta “Gongila de Cólofon” era uma das “pupilas” (mayÆtriai) de Safo.81 Esses dois argumentos, porém, são bastante problemáticos. O primeiro, porque a ocorrência do nome Gongila de fato se verifica em outro fragmento sáfico, o 95 V (v. 5), mas o contexto dos versos precários do poema — todos eles apenas com o início preservado — é nebuloso.82 O segundo, porque as fontes tardias normalmente se valem de elementos da própria lírica de Safo para construir a “biografia” da poeta; portanto, seus relatos são demasiado comprometidos com a ficção para serem considerados como documentais. Na seqüência da emenda “Gongila” ao início do verso 10, há helenistas que, por razões semelhantes e igualmente contestáveis, incorporam uma outra emenda, agora um nome feminino para as letras ]anthi: “Ábantis” (Ábanthi).83 Dada a fragilidade de ambas as sugestões, preferi nada imprimir na tradução, pois o que de concreto há no verso 10 é tão-somente a forma participial feminina láboisa (“pegando”, de lambáno#, lambãnv), 363
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que pode referir-se tanto à voz que fala — cujo nome e sexo, todavia, desconhecemos — quanto à segunda pessoa do singular (v. 9), cuja presença na canção é provável, mas não claramente identificável. No verso 11, a voz parece falar de música ao mencionar a “harpa” (pãktin), instrumento de procedência oriental.84 Logo em seguida, temos o advérbio “enquanto” (ãs), que dá a idéia de algo que está acontecendo ao mesmo tempo: “voa ao redor” (amphipótatai, v. 12) de “ti” (se, v. 11) o “desejo” (póthos), e ele está fazendo isso “de novo” (de#u)te), advérbio estudado quando abordei o Fr. 1 V, que enfatiza a repetição da ação, sendo muito eloqüente em contextos eróticos, nos quais se marca o aspecto recorrente de éro#s. Esse é justamente o caso do Fr. 22 V, no qual o elemento música e a presença de póthos não deixam dúvidas quanto ao erotismo que paira em sua atmosfera, algo que a estrofe dos versos 13 a 16 irá reforçar. O verso 13 completa os versos 11 e 12, pois seu início caracteriza “a bela” (tàn kálan) a segunda pessoa do singular (se) referida no verso 11. Esse dado, a beleza, é mais um ingrediente da atmosfera erótica do fragmento, ao qual se soma a imagem dos versos 13 e 14: “pois o vestido...[/ vendo tremeste”. Assim, nos versos 11 e 14, além da recorrente associação da música a contextos dominados por éro#s,85 Safo ainda trabalha duas outras ligações costumeiras: beleza/vestuário–desejo, de um lado, e amor/desejo–olhar, de outro. O último elemento desse cenário erótico é a alegria da voz na primeira pessoa do singular que — somente agora fica claro — é a falante do poema: “e eu me alegro” (égo# dè khaíro#, v. 14). A síntese no Fr. 22 V dos aspectos de éro#s é notável.86 Todavia, sobre esse égo#87 nada é dito: não há qualquer identificação — tal qual ocorre nos fragmentos 2 V, 73a V, 15 V, 33 V e 86 V.88 A despeito disso, o “eu” é geralmente identificado a Safo ou, no mínimo, a uma mulher. Similarmente, nada sabemos sobre aquela que porta o “vestido” (katágo#gis) e sobre quem o vê. Temos três pessoas no fragmento 22 V, mas elas são de todo desconhecidas, como acontece também no Fr. 96 V. Após declarar sua alegria, a voz parece começar a explicá-la: “pois, certa vez, a própria...[/ Ciprogênia” (vv. 15-16). Seguem-se a isso 364
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algumas palavras de uma nova estrofe: o#s áramai (“como rezo”, v. 17); o pronome demonstrativo tou)to (“isto”, v. 18) e o verbo volitivo bóllomai (“quero”, v. 19). Seria essa estrofe o início — ou a conclusão — de uma prece? Os versos 15 a 19 são nebulosos e, infelizmente, é nesse momento que entra em cena Afrodite, de cuja representação só se podem ressaltar dois pontos: • A voz chama-a Kuprogéne#a (“Ciprogênia”, v. 16), sublinhando
o elo genético da geografia poética e mítico-religiosa da deusa com a ilha de Chipre. • A menção à deusa levaria a voz do fragmento ao passado, a uma recordação, conforme indicam o advérbio pót’(e) (“certa vez”, v. 15) e, talvez, ememph[, 89 cuja forma verbal seria a de algum tempo do passado. Por fim, como última palavra acerca da presença da deusa no Fr. 22 V, dada a sua atmosfera, em que flutuam o desejo e a música, o olhar para a beleza e a excitação sensual, a representação de Afrodite dá-se num cenário que lembra de perto o do Fr. 96 V e que, como aquele, guarda com ela estreitas afinidades. Resta lamentar a condição tão precária de ambos os fragmentos — do 22 V, ainda pior. O Fr. 102 V: o desejo, a arte de tecer e Afrodite As fontes que preservaram o Fr. 102 V são de transmissão indireta. A principal delas é o tratado de metrificação de Heféstion (X, 5), que cita as duas linhas de que se compõe o fragmento para exemplificar um tipo tetrâmetro, “no qual Safo escreveu canções ao final do (ou no) sétimo livro” da compilação alexandrina.90 Desses versos, o primeiro, que é o inicial do poema, foi também conservado anonimamente em três dicionários etimológicos e no léxico de Zónaras, um bizantino do século XII d.C.91 Segue, pois, o Fr. 102 V:
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GlÊkha mçter, oÎ toi dÊnamai kr°khn tÚn ‡!ton pÒyvi dãmei!a pa›do! brad¤nan di’ ’Afrod¤tan ⊗
Ó doce mãe, não posso mais tecer a trama — domada pelo desejo de um menino, graças à esguia Afrodite...
O verbo dúnamai (“posso”, v. 1) revela-se a voz da canção na primeira pessoa do singular, dirigindo uma queixa à sua “doce mãe” (glúke#a mãter, v. 1), no vocativo singular: “domada pelo desejo de um menino” (pótho#i dámeisa pai)dos, v. 2). Com o instrumento do desejo — expresso na forma de dativo singular de pótho#i —, essa voz foi domada, por causa de Afrodite (di’ Aphrodítan, v. 2). Assim, o sujeito se declara incapaz de prosseguir o trabalho de “tecer a trama” (kréke#n tòn íston, v. 1). Note-se que a forma participial passiva dámeisa (“domada”) de damádzo# (damãzv) — verbo recorrente em contextos eróticos, guerreiros e de caçadas — indica que é alguém do sexo feminino que fala através dos versos. Se a isso somarmos a natureza do trabalho referido no verso 1 e a menção a Afrodite, saltará aos olhos que o universo de referência do Fr. 102 V é o feminino. Em dois parcos versos, portanto, Safo sintetiza um cenário erótico-amoroso muito apropriado a Afrodite, pois nele se articulam éro#s/ póthos e a típica ação de domar, a idéia do desejo que paralisa e incapacita física e mentalmente o indivíduo, a presença da deusa do amor erótico como a responsável por tais efeitos e a ação de tecer relacionada tanto a éro# s quanto a Afrodite. Essas ligações são recorrentes na poesia grega antiga e já foram exploradas de algum modo nos outros fragmentos do corpus deste livro. Cabe, ainda, observar dois pontos do Fr. 102 V. O primeiro é que o sexo do objeto da paixão daquela que canta é identificável, bem como sua faixa etária: a palavra pai)dos (v. 2), que traduzi por “menino”,92 indica que se trata de alguém do sexo masculino que é ainda jovem. Nos outros fragmentos aqui antes estudados — 1 V, 96 V, 22 V, especificamente —, ou nada se sabe sobre as personagens envolvidas no cenário amoroso, ou seu sexo é o feminino. 366
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O segundo ponto a observar é que, no verso 1, a forma verbal kréke#n (“tecer”) e o substantivo íston (“trama”) suscitam, de um lado, o universo das mulheres, do oi)kos, ou seja, da “casa” — espaço que, durante muitos séculos na Grécia, se constituiu como eminentemente feminino, no qual a mulher realizaria, entre outras, a tarefa de tecer — e, de outro, a esfera da dolóploke Afrodite, a “tecelã de ardis”, como diz o Fr. 1 V (v. 2).93 Isso faz lembrar o fato de que a apaixonada Penélope da Odisséia também fiava e desfiava uma trama de duplo sentido — o do tapete e o do ardil para driblar seus pretendentes enquanto Ulisses não retornava ao lar. A leitura pelo viés metafórico da trama do Fr. 102 V como algo além de um conjunto de fios entrelaçados seria sustentável, embora seja demasiado rarefeito o contexto que restou da canção sáfica para embasála. Ao contrário, a outra leitura, que entende a trama em seu sentido denotativo, parece encontrar elementos mais seguros de sustentação, pois os helenistas, baseados no metro do fragmento e na referência a um trabalho cercado por duas figuras femininas — mãe e filha —, assinalam que a canção tem um tema definido — o da “queixa da garota doente de amor”, nas palavras de Odysseus Tsagarakis, em “Broken hearts and the social circumstances in Sappho’s poetry” (1986, p. 2) — e que ela “parece ter sua origem na tradição popular”, como resume Douglas Gerber, na antologia Euterpe (1970, p. 177).94 Nesse caso, a primeira pessoa do singular — a persona — poderia, então, ser comunal, representando um determinado grupo. Por isso, Albin Lesky declara, na Histórica da literatura grega, que o fragmento é “um dos exemplos de lírica dramática em que falam personagens com máscaras alheias” (1995, p. 170). E por que a voz queixosa do Fr. 102 V se dirige à sua mãter? Segundo Tsagarakis (p. 3, nota 9), a explicação reside num dado extraliterário: “Na sociedade grega antiga, era materna a responsabilidade de determinar o trabalho e os deveres domésticos dos membros de sua família e daqueles que a ela pertenciam”. Assim, tal qual o Fr. 140 V, o Fr. 102 V mostraria que o “eu” dos fragmentos de Safo não é sempre e incondicionalmente “pessoal”, como se pretende. Poeta de uma “sociedade orientada em grupos”, segundo 367
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André Lardinois, em “Who sang Sappho’s songs” (1996, p. 159), ela, se tanto, “incorpora uma personagem” que, no Fr. 1 V e em outros três textos (65 V, 94 V e 133 V), é nomeada “Safo”, mas que, na maior parte do que restou de sua lírica, aparece simplesmente como uma voz em primeira pessoa do singular que não necessariamente se refere a um único indivíduo.95 Note-se, por fim, que, em meio à sua queixa, a falante atribui sua incapacidade de “tecer” (v. 1), de trabalhar ao fato de ter sido domada pelo desejo por causa da “esguia Afrodite” (bradínan di’ Aphrodítan, v. 2). Eis aqui o pouco que há a dizer sobre a imagem de Afrodite no cenário tomado por referências à sua esfera. Sintetizando os fragmentos de tal imagem, pode-se concluir: Afrodite é a deusa do amor erótico; seu poder é uma força que doma e pode, portanto, paralisar sua vítima; ela é “esguia” (bradínan). Conforme ressaltei ao estudá-lo no quinto capítulo deste livro, esse epíteto guarda um sentido marcadamente físico, ressaltando a bela e erótica figura corpórea de Afrodite em Safo apenas mencionada uma única outra vez, no Fr. 1 V, em que se fala de sua sorridente “imortal face” (v. 14). Para concluir, destaco o contraste entre a deusa de aspecto longilíneo, ágil — e, por isso, algo delicado — e a deusa que é responsável pela ação de domar, que implica a idéia de força — física ou mental — exercida sobre o outro de tal forma que o torna, ainda que momentaneamente, imóvel, estático e refém do domador — tal qual a voz feminina que não mais pode fiar no tear. E se os instrumentos de caçadores e guerreiros são lanças, redes, chicotes e objetos similares, Afrodite tem um instrumento não-material, mas suficientemente poderoso, que é referido pela falante do Fr. 102 V, logo no início do verso 2, em que ela explica sua ame#khanía, sua impotência: pótho#i, o “desejo”. O Fr. 112 V: um epitalâmio Do Fr. 112 V, restaram o verso inicial e outros quatro bruscamente interrompidos antes do final da canção. Desses cinco versos, o ter368
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ceiro e o quinto encontram-se mutilados. Assim sobreviveu o único epitalâmio de Safo no qual Afrodite está textualmente presente. Pouco mais se pode dizer sobre a canção de casamento, cujo momento de performance no quadro dos eventos da cerimônia, conforme lembra Page (1987, p. 122), não se pode precisar. As principais fontes do fragmento são de transmissão indireta. Uma delas é o tratado sobre metros de Heféstion (XV, 26), que, atribuindoos a Safo, cita os versos 1 e 2 e, separadamente, o verso 4.96 A outra é a obra de um sofista do século VI d.C., Corício de Gaza, intitulada Epitalâmios em Zacarias. Nela, Corício cita os versos 3 a 5 do poema,97 que reproduzo a seguir:98 ⊗
⊗
ÖOlbie gãmbre, !o‹ m¢n dØ gãmo! »! êrao
Ó feliz noivo, tua boda, como pediste,
™ktet°le!t’, ¶xhi! d¢ pãryenon, ín êrao.
se cumpriu, e tens a virgem que pediste.
!o‹ xãrien m¢n e‰do!, ˆppata
Tua forma é graciosa, olhos de
m°llix’, ¶ro! d’ ™p’ fim°rtvi k°xutai pro!≈pvi mel, e amor se derrama na desejável face tet¤mak’ ¶joxã !’ ’Afrod¤ta
honra-te em especial Afrodite...
No verso 1, canta-se a felicidade do “noivo” (gámbre), a quem a voz não identificada do poema se dirige na forma vocativa. Depois, é como se essa voz passasse a lembrar ao “noivo” os motivos de sua felicidade: a “boda” (gámos) aconteceu como ele pediu e também a sua “virgem” (párthenon) é a que queria. Estruturalmente, os versos 1 e 2 encerram-se com árao (“pediste”), forma verbal de aráomai (érãomai). Esse verbo ocorre também no Fr. 22 V (v. 17), o qual parece introduzir uma prece, pois seu significado não é simplesmente “pedir”, mas “pedir em prece”. No Fr. 86 V (v. 5), lemos o substantivo da palavra áras (“preces”). Em todas essas ocorrências, as formas verbais de aráomai e o substantivo áras, que são ambivalentes, podendo ter um sentido positivo — o da prece — ou negativo — o da maldição —, parecem estar no primeiro pólo. Nos versos 3 a 5, seguindo o que veio a ser uma das características convencionais do gênero,99 a voz entoa o elogio dos noivos. Contudo, 369
GIULIANA RAGUSA
as lacunas nos versos 3 e 5 e seu final repentino não permitem que se afirme com certeza se a voz que falava ao “noivo” nos versos 1 e 2 continua a lhe falar ou se dirige à noiva, a “virgem” (v. 2). Esta última alternativa é aceita por alguns como a mais provável,100 porque teria como apoio o texto de uma das fontes do Fr. 112 V, a obra de Corício, Epitalâmios em Zacarias 19, na qual uma voz declara: ™g∆ oÔn tØn nÊmfhn, ·na soi pãlin xar¤svmai, Sapfikª melƒd¤& kosmÆsv... [segue-se a citação dos versos 3-5 do Fr. 112 V] “Portanto, eu — para que a ti novamente agrade — com um canto sáfico adornarei a noiva...”101
Todavia, esse argumento não é tido como conclusivo: os estudiosos ou optam por ver os versos 3 a 5 como relativos ao “noivo”,102 ou deixam a questão em aberto103 — solução esta que parece mais prudente; daí minha tradução propositadamente ambígua dos versos do canto coral.104 De qualquer modo, o que se apreende seguramente sobre o elogio é sua função: louvar a aparência física e sedutora dos noivos. Assim, há nele motivos recorrentes de contextos erótico-amorosos: a “forma” (ei)dos) de um dos noivos é dita khárien (“graciosa” v. 3); os “olhos” (óppata) de um deles podem estar relacionados à doçura (vv. 3-4); e o “amor [éros] se derrama na desejável face” de um dos cônjuges. Todas essas imagens são altamente erotizadas, sobretudo a última, que traz à tona os versos 910 e 911 da Teogonia, nos quais o poeta canta que dos olhos das Cárites “escorre amor”, ou o início da “Ode a Éros” entoada na tragédia Hipólito, de Eurípedes, em que se diz que Éros, o deus, destila nos olhos o desejo (vv. 525-26). Assim, o epitalâmio parece uma canção destinada a despertar o interesse dos jovens cônjuges um pelo outro, a fim de motivá-los à união amoroso-sexual. Outros recursos eram adotados para tanto, como o banho ritual e o uso de perfumes, vestes especiais e adornos.105 Nesse quadro é que se dá a menção a Afrodite (v. 5), em um verso lacunoso que 370
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diz que ela “honra em especial” (tetímak’ éksokhá) a segunda pessoa do singular (s’) — um dos noivos a quem se dirige a voz do fragmento. O que dizer da representação de Afrodite no Fr. 112 V? Infelizmente, quase nada, a não ser isto: ela está referida em um cenário pleno de elementos de sua esfera — a graciosidade, o desejo, éro#s e a doçura do olhar. Ademais, o tema de tal cenário, a “boda” (gámos, v. 1), faz parte das prerrogativas da deusa, tanto em suas representações literárias quanto cultuais, como já tive a oportunidade de ressaltar ao longo deste livro, sobretudo na segunda parte. O Fr. 133 V: outro canto dialogado Uma vez mais, devemos a Heféstion (XIV, 7) as únicas duas linhas que nos chegaram do Fr. 133 V, que ele cita como composição de Safo.106 Reproduzo-as a seguir: ⊗
ÖExei m¢n ’Androm°da kãlan émo¤ban *** Cãpfoi, t¤ tån polÊolbon ’Afrod¤tan ....;
⊗
“Tem Andrômeda bela paga” *** “Ó Safo, por que a multiafortunada Afrodite...?”
Similarmente ao que ocorre com o Fr. 140 V, o Fr. 133 V configura-se como um canto coral dialogado. No verso 1, uma voz — ou um coro — faz uma constatação acerca de “Andrômeda” (Androméda) e de sua “bela paga” (kálan amoíban). No verso 2, uma voz — talvez a mesma do verso 1 — lança uma pergunta a “Safo” (Psápphoi, forma vocativa), na qual pede uma explicação (tí, “por que”) sobre algo relativo à “multiafortunada Afrodite” (polúolbon Aphrodítan). Sobre o nome chamado no verso 2, comentou-se no estudo do verso 20 do Fr. 1 V — no qual a primeira pessoa do singular da canção é denominada também Psápph’(oi) — que essa coincidência entre o nome da persona e o da poeta, encontrada, ainda, nos fragmentos 65 V e 94 V, 371
GIULIANA RAGUSA
é motivo de certa confusão, pois os estudiosos tendem a identificálas como uma só. Ou seja, a persona passa a ser vista como a pessoa real, e o poema, como produto biográfico-confessional. Conforme ressaltado então, o Fr. 133 V constitui um dos dados da própria lírica sáfica que relativiza essa visão, porque sua estrutura dramática aproxima-o do canto coral, gênero cujas características inviabilizam a leitura romântico-subjetivista e biografista da qual a lírica monódica, que é o canto solo muito praticado por Safo, costuma ser alvo preferencial. 107 Justamente é a forma do Fr. 133 V que suscita a sempre acesa discussão sobre a existência de outros grupos de meninas liderados por poetas em Lesbos, além do de Safo — tão célebre quanto desconhecido. Andrômeda, de acordo com a argumentação dos helenistas, seria a líder de um grupo rival ao de Safo. Esse nome aparece em outros dois fragmentos sáficos, pelo menos: no 68 V, se a emenda ao papiro que o preservou estiver correta,108 e no 130 V (v. 4). No primeiro, o contexto da referência a Andrômeda é inteiramente obscuro. No segundo, lê-se: ÖEro! dhÔte m’ Ù lu!im°lh! dÒnei, glukÊpikron émãxanon ˆrpeton *** ÖAtyi, !o‹ d’ ¶meyen m¢n épÆxyeto front¤!dhn, ™p‹ d’ ’Androm°dan pÒth ... Éros de novo — o solta-membros — me agita, doce-amarga inelutável criatura .... *** ó Átis, mas a ti tornou-se odioso meu pensamento, e para Andrômeda alças vôo...
Os três asteriscos que separam as duas duplas de versos indicam que a edição Voigt é favorável a vê-los como consecutivos, embora a dúvida permaneça.109 Outras edições estabelecem os versos 1 e 2 como o Fr. 130 e os versos 3 e 4 como Fr. 131.110 Se a alternativa de Voigt 372
AFRODITE EM DEZ FRAGMENTOS
procede, pode-se dizer que o contexto em que aparece o nome “Andrômeda” é erótico e que há, nos versos 3 e 4, a idéia de que “Átis” — personagem de outros fragmentos, como o 96 V (v.16) —, que estava ao lado da primeira pessoa do singular, passou para o de “Andrômeda”. Esse movimento faria referência ao do amado que deixa seu amador para cair nos braços de outro ou a alguém que pertencia a um determinado grupo e trocou-o por outro. De qualquer modo, crê-se que a personagem Andrômeda, tanto no Fr. 130 V quanto no Fr. 133 V, apareceria como uma poeta rival da poeta de Lesbos.111 Page chega mesmo a declarar que ela é “proeminente entre as rivais” de Safo, afirmação de duvidosa sustentação histórica, uma vez que é baseada numa evidência literária — a lírica sáfica — e num relato tardio do retórico Máximo de Tiro (século II d.C.), que, comparando Safo a Sócrates — a personagem platônica —, diz que ambos tinham rivais; entre as da poeta, estariam “Gôrgo” (Gorgô`) e “Andrômeda”, a quem ela “ora censurava, ora examinava e usava de ironia como fazia Sócrates”.112 Em que se baseou Máximo, “a única fonte sobre tais rivais”, sublinha Holt Parker, em “Sappho Schoolmistress” (1996, p. 155)? Muito provavelmente, como ainda fazem alguns, em “provas” literárias — como a lírica de Safo —, questionáveis devido à sua própria natureza. É a partir desses alicerces movediços que certas idéias — a da “escola”, a do thíasos e a de um grupo que, às vezes, sofria deserções e cuja líder, Safo, era, ocasionalmente, alvo de ingratidão — acabam sendo estendidas ao estudo dos versos sáficos em geral, conforme observa Parker. Assim é que o texto dos fragmentos se vai tornando um palimpsesto, na feliz imagem do helenista (p. 148), tão coberto de espessas camadas de “acúmulo crítico” e de repetições exaustivas de idéias e pressuposições que “é quase impossível enxergar as palavras” ali praticamente soterradas. A leitura de que no verso 1 do Fr. 133 V a voz está falando de uma rival de “Safo” (v. 2) chamada “Andrômeda” traz uma dificuldade de compreensão textual: como entender a expressão kálan amoíban (“bela paga”)? Haveria ironia no uso do adjetivo? Para Jane M. Snyder, que 373
GIULIANA RAGUSA
em Lesbian desire in the lyrics of Sappho se propõe a demonstrar a estética sáfica do amor lésbico — algo muito questionável —, o sentido de kálan amoíban é positivo; daí a tradução “belo presente” (1997, p. 212).113 Já Page toma a expressão como negativa e algo irônica; por isso traduz “troco merecido”,114 pois “talvez [Andrômeda] tenha perdido uma amante para Safo, ou talvez uma de suas próprias amantes lhe tenha feito uma injúria” (1987, p. 134).115 Claro está que os helenistas partem de dois princípios: a persona “Safo” é a poeta; a relação entre as integrantes do(s) grupo(s) é erótica. Quanto ao primeiro, este livro já o refutou várias vezes; quanto ao segundo, seu caráter de conjectura é, no mínimo, comprometedor. A fragilidade do conhecimento histórico sobre Lesbos e sua sociedade precisa ser admitida: se Andrômeda foi uma poeta rival de Safo, para o que não há, em princípio, nenhum empecilho, dela nada restou a não ser o registro de seu nome na materialmente precária e literária lírica sáfica. Buscando matizar a questão em torno de Andrômeda — se ela é ou não uma rival —, preferi uma tradução para kálan amoíban que mantivesse a ambigüidade de sentido negativo ou positivo: “bela paga”. Considerado o verso 1, passo ao segundo, no qual ocorre a menção à “multiafortunada Afrodite”. Pouco há a ressaltar da imagem da deusa nesse fragmento além de três detalhes: ela é citada junto ao nome de “Safo”; seu epíteto nada revela acerca da especificidade de suas representações poéticas, mas remete a um dado inerente à natureza dos deuses, a bem-aventurança e a fortuna, conforme ressaltei no quinto capítulo, ao estudá-lo; ela está presente num canto coral dialogado, como o Fr. 140 V, ao que parece. Isso é tudo o que se pode apreender da Afrodite desenhada no Fr. 133 V, que guarda com a imagem do Fr. 1 V um aspecto comum. Em ambos os fragmentos, aparecem os nomes “Safo” e “Afrodite” relacionados de tal forma que fica patente a forte sugestão de intimidade entre a deusa e a persona poética da poeta de Lesbos. Não é à toa que, no Fr. 133 V (v. 2), deseja-se de “Safo” uma explicação para algo que envolve a deusa a ela tão próxima, sempre. 374
AFRODITE EM DEZ FRAGMENTOS
O Fr. 134 V: o sonho e a Ciprogênia O último fragmento analisado neste trabalho está preservado, como os fragmentos 102 V, 112 V, 133 V e 140 V, no Inquérito sobre os metros, de Heféstion (XII, 4).116 O Fr. 134 V compõe-se apenas desta linha: ⊗ Zå ™lejãman ˆnar Kuprogenha ⊗ Em sonho falei à Ciprogênia...
Sobre esse verso, dado como o primeiro de um poema irremediavelmente perdido, parcas palavras podem ser ditas. Nele, uma voz em primeira pessoa do singular evidencia-se na forma verbal “falei” (eleksáman, de légo#, l°gv); há um nome de Afrodite, “Ciprogênia” (Kuprogene#a), em sua segunda e última ocorrência (cf. Fr. 22 V, v. 16), e algo que acontece “em sonho” (Zdà ónar). Por que chamar de “caso incerto” o Fr. 134 V? Porque seu texto reduzido não permite afirmar, com segurança, que a tradução oferecida seja a única possibilidade correta, uma vez que, além de entender o verso como o relato da primeira pessoa do singular a alguém, a quem conta ter falado “em sonho” à Kuprogene#a,117 é possível entendê-lo deste modo: “Em sonho falei-te, ‘Ciprogênia’...”.118 Seja qual for o caso, o único elemento que se apreende da imagem da deusa no fragmento, além do que revela o nome pelo qual ela é referida — sua forte ligação geográfica, poética e mítico-religiosa com Chipre —, é sua presença em um “sonho” (ónar), percebido pelos antigos como “comunicado ou sinal vindo dos deuses”, lembra West (1997, p. 185). Ele afirma que, entre os “sonhos literários”, há dois tipos: o “sonho-mensagem” e o “sonho simbólico”. Impossível saber qual seria a situação do fragmento sáfico; impossível dizer que Afrodite nele está representada. Resta, apenas, um derradeiro traço a ressaltar: como nos fragmentos 1 V, 2 V, 5 V, 15 V, 22 V, 33 V, 86 V e 102 V, certamente, uma voz identificada na canção como a primeira pessoa do singular fala a ou de Afrodite. 375
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Notas 1
Cf. Page (1987, pp. 318-23) e West (1996, pp. 29-34).
2
Título em grego: Perì Suntákseo#s (Per‹ Suntãjevw ). Cf. ed. de Uhlig (1910).
3
Cf. Gallavotti (1942b, pp. 103-13), que estuda as citações de Safo em Apolônio.
4
Cf. tradução e comentário de Campbell (1994, Fr. 133) para o fragmento.
5
Cf., além da Voigt e PLF, E. Fraenkel (1942, p. 56) e Diehl (1944, pp. 8-9). O Fr. 86 V pertenceria, como todos os do Papiro de Oxirrinco no 1.787, ao livro IV de Safo. Cf. Page (op. cit., pp. 114-15 e 319).
6
Cf. West (1997, p. 115) e Burkert (1998, pp. 127-31).
7
Cf. Benveniste (1995b, pp. 233-43) e Burkert (1998, p. 73).
8
Cf. tradução de Campbell (1994, Fr. 86).
9
Cf. West (1997, pp. 270-71).
10
Snyder (1997, p. 20) é favorável a essa leitura.
11
Cf. Papiro de Oxirrinco n o 2.289 (Fr. 6), editado por Lobel (1951, p. 4).
12
Cf. nota de Grenfell e Hunt (1898, p. 12) à edição do papiro do Fr. 5 V. Ver Campbell (1998, p. 269).
13
Lesky (1995, p. 166). Cf. Grenfell e Hunt (1898, p. 11), que emendam ko#nían ao início do verso 7, uma somatória de kaí e onían; a tradução seria: “também uma ruína” “aos inimigos”. Page (1987, p. 45) e Campbell (1994, Fr. 5; e 1998, p. 42; 1 a ed.: 1967), entre outros, seguem essa sugestão. Cf. as traduções de Bowra (1961, p. 210), Kirkwood (1974, p. 129), Souza (1984, p. 72), Lasserre (1989, p. 187), West (1994, p. 37), Snyder (1997, p. 98) e Fontes (2003, pp. 382-81), por exemplo, que seguindo ou não a emenda, dão ao verso um sentido semelhante. Campbell (1994, Fr. 5) segue a sugestão de Page (1987, p. 47), pê)m’ éti, cujo signi-
14
ficado seria “para nós não seja/ ainda um pesar”. Cf. as traduções diversas de Snyder (1997, p. 98) e Lasserre (1989, p. 187), por exemplo. 15
Essa é a crença de Lardinois (1996, pp. 165-66), para quem o Fr. 5 V seria um canto coral. Sua argumentação não é convincente — nem quanto ao entendimento do pronome, nem quanto à classificação do fragmento como canto coral. Em ambos os casos, o helenista mostra-se demasiado preso à questão do círculo de meninas em torno de Safo, uma base de reflexões tão movediça quanto obscura.
16
Cf. Di Benedetto (1982b, pp. 5-8), sobre os versos 10 a 15.
17
Cf. construção similar no Fr. 2 V, v. 13. No Fr. 1 V, vv. 13 e 27, a suplicante usa “tu” (sú) para falar diretamente à deusa.
18
Cf. análise de Di Benedetto (1982, pp. 226-30) dessa passagem, sobretudo das datações dos eventos e da vida de Safo. Ele nota problemas nessas cronologias e
376
AFRODITE EM DEZ FRAGMENTOS
propõe que a data do reinado de Amásis se refira ao florescimento de Rodopis e que seu caso com Cáraxo retroceda a uma fase anterior, em torno de 590 a.C., pois, assim, Safo teria 60 anos quando compôs o Fr. 5 V. Parece que, a despeito da questão das datas, o problema reside em conectar o relato de Heródoto ao fragmento, forçando a adequação entre ambos. Eles não estão necessariamente relacionados, mesmo porque o “irmão” da suplicante do poema não é, necessariamente, Cáraxo, o irmão da poeta. Quanto aos eventos da canção, quase nada se pode dizer que os ligue ao que conta Heródoto, com base em fonte desconhecida. 19
Cf. Lidov (2002, pp. 214-15).
20
Cf. Page (1987, p. 50) e Gomme (1957, p. 259) para essa visão. Apesar disso, Page faz toda a sua leitura do poema baseado em Heródoto e outros antigos. Gomme critica-o por isso.
21
Cf. Estrabão, Geografia (livro XVII, I, 33). Ver ed. de Jones (1959, vol. VIII, pp. 92-93).
22
Esse dado consta do rolo Papiro de Oxirrinco no 1.800 (século II-III d.C.), uma miscelânea biográfica publicada por Grenfell e Hunt (1922, pp. 137-39 e 145-46). Os editores observam que nenhuma outra fonte diz que Cáraxo era o mais velho dos três irmãos de Safo. Cf. Di Benedetto (1982, pp. 217-30) para uma análise do fragmento “biográfico” do papiro.
23
Cf. Jeffery (1978, pp. 53-54) e Boardman (1988, pp. 119-32). Este informa que, no templo de Afrodite em Náucratis, foram encontrados: materiais em cerâmica do século VI a.C., provenientes da Grécia oriental e de Atenas; objetos de tipo cíprio; vasos do século VI a.C., vindos de Lesbos. Fontes antigas, lembra Boardman (p. 120), alegam que o culto a Afrodite podia ser antigo na cidade egípcia e que a sua estátua de adoração teria sido trazida de Chipre. Ele afirma que “Náucratis tinha certa reputação devido à aparência e de suas mulheres fáceis” (p. 132); exemplo disso, Boardman anota, seria o caso Rodopis–Cáraxo.
24
Essa é a leitura mais comumente feita, devido aos versos 5, 10 e 11. Cf. nota dos editores do papiro do fragmento, Grenfell e Hunt (1898, p. 12), ao verso 5, além de Bowra (1961, p. 210), Cairns (1972, pp. 229-30) e Stehle (1997, p. 283). Contra essa visão: Gomme (1957, p. 259) e Cavallini (1991, p. 101), que vê no fragmento não censura violenta ou sutil, mas alegria de Safo pelo retorno de seu irmão.
25
Assim lê Page (1987, p. 50), para quem o verbo empregado por Heródoto na citação reproduzida à página anterior, katekertóme#se (de katakertoméo#), não significa “atacar com severidade, violentamente”, mas “atacar zombando”. Essa não é a tradução costumeira do verbo na passagem. Cf. Cavallini (1991, p. 100) e edição de Heródoto de Sodley (1999, p. 439).
26
Cf., por exemplo, testemunho de Tzetzes (gramático bizantino, século XII d.C.), similar ao de Heródoto. Ver edição de Nauck (1965, p. 236).
377
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27
Cf. Page (1987, pp. 48-49) e Campbell (1998, p. 268).
28
Cf. o léxico Suda (Σ 107), editado por Adler (1989, vol. IV, pp. 322-23).
29
Cf. Page (1987, pp. 50-51), Campbell (1998, p. 268). Ver também Stehle (1997, p. 283).
30
Um caso raro é o de Edmonds (1909, pp. 249-53; 1920, pp. 4-6; 1934, Fr. 36), que não aceita a restauração, ao contrário de Lobel (1921, pp. 163-65; 1925, Fr. 3), Diehl (1936, Fr. 25), Reinach e Puech (1937, Fr. 25) e as edições PLF e Voigt. Cf., ainda, Page (1987, pp. 45-46), Gomme (1957, p. 259), Bowra (1961, p. 210), Campbell (1994, Fr. 5), Souza (1984, p. 72), Cavallini (1991, p. 101), West (1994, p. 37), Snyder (1997, p. 98), Stehle (1997, p. 283), Fontes (2003, pp. 382-83), entre outros.
31
Para a genealogia das Nereidas e suas características, cf. Burkert (1998, p. 172), que destaca Tétis e Leucotéia. A Teogonia (vv. 241-64) enumera 50 Nereidas.
32
Cf. Page (1987, p. 46), Campbell (1998, p. 269; 1a ed.: 1967), Cairns (1972, p. 229). Para Lasserre (1989, p. 190), cujas leituras se baseiam em questionáveis reconstruções de todos os versos dos fragmentos e no argumento de que Safo era uma sacerdotisa de Afrodite, a associação prova a existência de um santuário conjunto delas no porto de Mitilene. Ver crítica de Liberman (1989, pp. 229-37).
33
Cf. Page (1987, pp. 46-51), Campbell (1998, pp. 268-69). Ver Snyder (1997, p. 98).
34
Cf. Tsagarakis (1986, p. 14, nota 69) e Stehle (1997, pp. 282-83).
35
Cf. Farnell (1896, p. 636), Friedrich (1978, pp. 80-81) e Burkert (1998, p. 153).
36
Os estudiosos do fragmento 5 V sempre ressaltam essa ligação. Cf. Page (1987, p. 46) e Snyder (1997, pp. 98-100), por exemplo.
37
Cf. Lévêque e Séchan (1990, pp. 371-72) e Pirenne-Delforge (1994a, pp. 239-43).
38
Esse culto, fundado em comemoração a uma vitória militar, remontaria ao século IV a.C., segundo Pirenne-Delforge (1994a, p. 399; cf. p. 33, nota 98). Sua base é o livro sobre a Ática de Pausânias (I, I, 3) e evidências epigráficas.
39
Cf. Pirenne-Delforge (1994a, pp. 94-97).
40
Cf. op. cit., p. 176. A helenista analisa uma inscrição com o epíteto associado a Afrodite encontrada no templo de Apolo e datada do século V a.C.
41
A helenista salienta que Hermione estava sob a proteção de Posêidon. O culto de Afrodite ali “harmoniza-se com a vocação marítima da cidade”.
42
Banquete dos sofistas, livro XV, 675f-676b. Texto grego: Gulick (1957, vol. VII, p. 118). Sobre a predileção da deusa pelo mirto, cf. Pirenne-Delforge (1994a, pp. 41214). Note-se que é com ele e seu perfume que a deidade mais floral de todas as do panteão grego apazigua o mar. O livro citado por Ateneu nos é desconhecido.
43
Snyder (1997, p. 99). Ver também Bowra (1961, p. 210), Kirkwood (1974, p. 129) e Lardinois (1996, p. 166).
378
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44
No Fr. 7 V, também esse nome aparece reconstituído no v. 1.
45
O meu entendimento e tradução dos versos 9 e 10 afinam-se com Edmonds (1934, Fr. 37), Page (1987, p. 46), Gomme (1957, p. 259), Bowra (1961, p. 211), Campbell (1994, Fr. 15), Lasserre (1989, p. 195), Snyder (1997, p. 101) e outros.
46
Campbell (1998, p. 269), em comentário ao verbo do verso 9, levanta essa possibilidade. Cf., ainda, Reinach e Puech (1937, Fr. 26) e West (1994, p. 37).
47
Cf., por exemplo, Page (1987, pp. 45-46) e Fontes (2003, pp. 382-83).
48
Texto grego: ed. de Jones (1959, vol. VIII, pp. 92-93).
49
Texto grego: ed. de Gulick (1959, vol. VI, p. 212).
50
Essa reconstrução é proposta por Grenfell e Hunt (1914, pp. 23 e 40). Cf. Edmonds (1934, Fr. 37), Reinach e Puech (1937, Fr. 26), Page (1987, pp. 47-46), Gomme (1957, p. 259), Bowra (1961, p. 211), Kirkwood (1974, p. 131), Campbell (1994, Fr. 15), Souza (1984, p. 72), Lasserre (1989, p. 195), West (1994, p. 37), Snyder (1997, p. 100) e Fontes (2003, pp. 382-83), que a seguem.
51
No verso 9 do texto grego, lê-se pi[krot.´.]an; pikrotátan é a reconstituição amplamente aceita. Cf. Edmonds (1934, Fr. 37, pikrotéran, “mais amarga”), Reinach e Puech (1937, Fr. 26), Diehl (1936, Fr. 26), Page (1987, p. 46), Bowra (1961, p. 211), Campbell (1994, Fr. 15), Lasserre (1989, p. 195), West (1994, p. 37), Snyder (1997, p. 100), Fontes (2003, pp. 382-83).
52
Cf. Burkert (1998, pp. 248-49).
53
Cf. ed. de Consbruch (1971, p. 33).
54
Cf. Page (1987, p. 127, nota 2).
55
Cf. ed. de Spiro (1959, vol. III, p. 64).
56
Na PLF e na de Campbell (1994), o fragmento é numerado como 24 e está inserido em Incerti Auctoris. Voigt insere-o entre os fragmentos de Safo.
57
Para Atallah (1966, p. 94), trata-se de um “grito ritual” à morte de Adônis, representando o sofrimento de Afrodite. Cf. Bowra (1961, p. 212).
58
Além de Afrodite, Adônis desperta, desde seu nascimento, a paixão de Perséfone, deusa que transita nas esferas dos vivos e dos mortos. Cf. Detienne (1972, pp. 124-25).
59
Sobre as relações míticas de plantas como o mirto e a rosa com os mitos em torno da deusa e de Adônis, cf. Frazer (1951, p. 226) e Pirenne-Delforge (1994a, pp. 412-14); sobre a mirra nesse quadro, substância oriental que serve de incenso e nomeia, em várias versões do mito, a mãe de Adônis que o gera de um incesto. Cf. Atallah (1966, pp. 44-48) e Detienne (1972, p. 122). Ver também Atallah (pp. 317-27) e Motte (1973, p. 229) sobre a natureza do deus e seus elos com a deusa e a vegetação.
60
Cf. Nagy (1996a, pp. 35-57). Detienne (1972, pp. 128-29) observa que na versão mais retomada, um javali mata Adônis. Sobre esse dado e a relação porco–Afrodite,
379
GIULIANA RAGUSA
animal interdito nos rituais da deusa em muitos cultos, cf. Pirenne-Delforge (1994a, pp. 388-93). Cf. painel dado por Atallah (1966, pp. 53-91). 61
Cf. comentário de Frazer (1951, pp. 31-32) e Pirenne-Delforge (1994a, pp. 351-52).
62
Pirenne-Delforge (1994a, p. 352).
63
J. P. Brown (1965, p. 210) comenta que há “evidências literárias e arqueológicas das antigas conexões fenícias com Citera”. Segundo o autor, essas remontariam ao segundo milenário a.C., pelo menos.
64
Pirenne-Delforge (1994a, pp. 363-65), que esmiúça as relações Adônis/Afrodite– Chipre/Oriente, percorrendo uma série de evidências. Cf. Farnell (1896, pp. 627-28 e 644-48), Frazer (1951), Motte (1973, pp. 137-38), West (1997, p. 57), Burkert (1998, pp. 176-77) e Garrison (2000, pp. 18-19), sobre a origem semítica de Adônis e os parentescos orientais de Afrodite.
65
Cf. Burkert (1998, pp. 258-59).
66
Glotz (1920, p. 180). As considerações do estudioso se baseiam em testemunhos encontrados em papiros e no Idílio XV (As siracusianas ou As mulheres na festa a Adônis), de Teócrito, poeta que descreve as Adonias em Alexandria (cf. ed. Legrand, vol. I, 1946).
67
Buxton (1996, p. 117) observa que as Adonias eram “celebradas por todas as mulheres”; Pirenne-Delforge (1994a, p. 24) ressalta que essas mulheres eram tanto cortesãs quanto “cidadãs respeitáveis”, ao contrário do que sugere Detienne (1972, pp. 126-27 e 238-39).
68
Cf. Detienne (1972) e Motte (1973, p. 139). Atallah (1966, pp. 229-58) discute as datas das Adonias atenienses.
69
Cf. Atallah (1966, p. 307) e Detienne (1972, pp. 125-26).
70
Pirenne-Delforge (1994a, pp. 166-67) fala de Adonias celebradas em pelo menos mais dois locais: Argos e Samos, desde o século VI a.C.
71
Glotz (1920, p. 180).
72
Essa especificação consta da comédia ateniense Lisístrata, de Aristófanes. Cf. versos 387-98, em que se assinala o comportamento licencioso das mulheres durante as Adonias. Ver comentário de Henderson (1991, pp. 118-19) ao texto grego. Cf. Detienne (1972, pp. 187-88) e Pirenne-Delforge (1994a, pp. 21-22).
73
Detienne (1972, pp. 127-28) comenta outras características das Adonias na cidade de Atenas.
74
Cf., ainda, pp. 211-28 e Frazer (1951, pp. 237-59) e o estudo de Detienne (1972, pp. 188-226). Ver também Motte (1973, pp. 139-45).
75
Cf. Farnell (1896, p. 647), J. P. Brown (1965, p. 218), Atallah (1966, pp. 53 e 93), Friedrich (1978, p. 108), Burkert (1982, p. 106), West (1994, p. 201; 1997, pp. 44,
380
AFRODITE EM DEZ FRAGMENTOS
57, 448 e 530) e DuBois (1995, p. 185), em suas traduções e/ou comentários ao fragmento. Ver Campbell (1994, Fr. 140). 76
Cf. ed. de Paton, (1953, vol. II).
77
Apud Voigt, Testimonia, Fr. 211c (original em latim). Cf. Campbell (1994, pp. 19495, “Sappho”, Fr. 211b iii). Sobre a relação entre a alface e o mito de Adônis– Afrodite, cf. Detienne (1972, pp. 115-38).
78
Essa compreensão segue West (1970, p. 327), Herington (1985, p. 57), Lardinois (1996, pp. 152-61).
79
Diehl dava os versos 1 a 8 do Fr. 22 V como um outro fragmento, o Fr. 34. Igualmente, Reinach e Puech (1937, Frs. 33 e 36). Em edição anterior a essas, Lobel (1925, Fr. 11) dava o fragmento como veio a ficar estabelecido na PLF e na Voigt. Yatromanolakis (1999, pp. 23-24) é contra a junção dos versos 1 a 8 aos versos 9 a 19 do fragmento.
80
Cf. edições e/ou traduções e/ou comentários de Edmonds (1934, Fr. 45), Diehl (1936, Fr. 36), Reinach e Puech (1937, Fr. 36), West (1970, p. 319; 1994, p. 38), Campbell (1994, Fr. 22), Snyder (1993, p. 4), Stehle (1997, pp. 302-3), Fontes (2003, pp. 440-41). Ver os estudos de Edmonds (1914, p. 75; 1916, pp. 101-2) quando da publicação da fonte do fragmento. Lobel (1925, Fr. 11) não aceita a emenda “Gongila”. Desfavoráveis a ela mostram-se Page (1987, p. 135, nota 4) e Di Benedetto (1986, pp. 22-23) — este último em análise do Papiro de Oxirrinco no 1.231 em que está conservado o Fr. 22 V. As edições PLF e Voigt também não a incorporam ao texto grego do fragmento.
81
Cf. ed. Adler (1989, vol. IV, pp. 322-23). Ver comentário de Parker (1996, pp. 157-58) sobre o significado do termo mathê´triai.
82
Ver comentário de Page (op. cit., pp. 84-86 e 135).
83
Cf. edições e/ou traduções e/ou comentários de West (1970, p. 319; 1994, p. 38), Campbell (1994, Fr. 95), Snyder (1993, p. 4). Ver crítica de Di Benedetto (1986, p. 22), desfavorável à emenda Gongila.
84
Cf. também o Fr. 156 V. West (1997, p. 31) observa sobre esse antiqüíssimo instrumento atestado no Oriente desde o quarto milenário e na Grécia desde o século VII a.C.: “Os gregos consideravam ser a harpa de origem lídia, mas o tipo mais antigo de harpa grega, uma harpa vertical sem pilar de frente, é claramente um parente próximo de um tipo representado em monumentos babilônicos e assírios”.
85
Cf. Hino homérico V, a Afrodite (vv. 45-80). Ver análise do Fr. 96 V em nosso capítulo 6 e Paradiso (1995, pp. 103-4), embora sua leitura seja dirigida pela idéia do thíasos, que entende como “escola de mousiké [‘poesia cantada com acompanhamento musical’] de Safo dedicada a Afrodite”.
86
Cf. comentário de Snyder (1993, pp. 3-8). Para a relação erotismo–alegria, cf. 96 V (v. 5).
381
GIULIANA RAGUSA
87
Esse pronome, no corpus da pesquisa, ocorre somente no Fr. 33 V (v.1).
88
Cf. Stehle (1996b, p. 219).
89
West (1970, p. 310), Campbell (1994, Fr. 22), Snyder (1993, p. 4), Stehle (1997, pp. 302-3), entre vários outros, reconstituem o verbo como imperfeito na terceira pessoa do singular — emémph[et’ —, relacionado a Afrodite e significando “culpou” ou “censurou”.
90
Em grego: ⁄ m°trƒ ¶gracen õsmata ka‹ Sapf∆ ™p‹ ~t∞w toË •brÒmou. Cf. ed. Consbruch (1971, p. 34). Sobre o metro, cf. Campbell (1998, pp. 50, 281 e 458).
91
Cf. verbete Kerk¤w [Kerkís, “lançadeira” do tear] no Etimológico Magno 505, 57 e segs. (ed. Torresani, 1549), datado de cerca de 1100 d.C.; no Etimológico Genuíno (ed. Calame, 1970, p. 32), datado de cerca de 870 d.C.; e no Etimológico Gudiano 316, 35 e segs. (ed. Sturz, 1818), do final do século XI d.C. Ver o léxico de Zónaras, verbete Kerkís (ed. Tittmann, 1967).
92
Cf. Reinach e Puech (1937, Fr. 104), Edmonds (1934, Fr. 135), Campbell (1994, Fr. 102), Jenkyns (1982, p. 62), Souza (1984, p. 75), Lasserre (1989, p. 208), Snyder (1997, p. 109), Fontes (2003, p. 477). DuBois (1995, p. 11) e Segal (1996, p. 70, nota 20) questionam a tal tradução.
93
Snyder (1981, pp. 193-96) observa, ainda, as relações metafóricas entre o tecer e o cantar e/ou compor. O próprio kréke#n , ela ressalta, “literalmente lançar, atingir”, é usado tanto com referência à “lançadeira” que “toca” o tear quanto ao plê´ktron (plÆktron, “paleta”) que toca as cordas da lira (p. 194).
94
Cf. edição do fragmento de Campbell (1998, p. 281). Ver comentários de Lesky (1995, p. 170), Stehle (1996a, p. 144), Wilson (1996, p. 119), Snyder (1997, p. 109). Tsagarakis (1986, pp. 1-3) concentra-se nas origens populares da lírica grega arcaica.
95
Diz Foley (1998, p. 66): “[...] não está claro se as primeiras pessoas são do singular ou do plural (para ser cantada por um coro)”.
96
Cf. ed. Consbruch (1971, pp. 55-56). Novamente, Heféstion está ilustrando, ao citar o poema, um tipo de metro.
97
Epitalâmios em Zacarias 19. Cf. ed. Foerster e Richtsteig (1929, pp. 86-87).
98
Cf. edições de Lobel (1925, Fr. 9 App.), Edmonds (1934, Frs. 155 e 156) e Diehl (1936, Fr. 128). Reinach e Puech (1937, Frs. 106 e 108) estabeleciam os versos 1 e 2, e os versos 3 e 5 em dois fragmentos distintos.
99
Cf. Bowra (1961, pp. 214-18) e Calame (1999, pp. 118-20).
100
Cf. Fränkel (1975, p. 173), Campbell (1994, Fr. 112 V), Souza (1984, p. 75), Fontes (2003, pp. 496-97), Wilson (1996, p. 148), Snyder (1997, p. 84).
101
Texto grego: ed. Foerster e Richtsteig (1929, pp. 86-87).
102
Cf. Bowra (1961, p. 218), que vê a segunda metade do verso 3 e o verso 4 como relativos à noiva. Ver Romè (1965, p. 231).
382
AFRODITE EM DEZ FRAGMENTOS
103
Cf. Kirkwood (1974, p. 264, nota 62) e West (1994, p. 46).
104
Note-se que novamente estamos diante desse tipo de canto nada favorável à leitura romântico-biografista da lírica sáfica defendida por vários helenistas, como vimos ao longo do trabalho. Por isso, Kirkwood (1974, p. 139) subestima os cantos corais e os epitalâmios, dizendo-os “poesia sem grande distinção”. Ver crítica no artigo de Russo (1974, pp. 723-28).
105
Cf. também a introdução de Vernant ao livro de Detienne (1972, pp. i-xlvii).
106
Cf. ed. Consbruch (1971, p. 46). Novamente, os versos ilustram um metro. Cf. West (1996, p. 31).
107
Sobre a lírica coral, cf. C. Segal (1990a, pp. 124-60). Para Lardinois (1996, p. 153), a menção do nome de Safo no Fr. 133 V e nos fragmentos 1 V, 65 V e 94 V pode indicar que ela os entoava.
108
O fragmento está preservado no Papiro de Oxirrinco n o 1.787 (século III d.C.), editado por Grenfell e Hunt (1922, pp. 33 e 43).
109
Igualmente West (1994, pp. 46-47).
110
Esse é o caso da PLF (1997; 1a ed.: 1955) e da ed. de Campbell (1994).
111
Cf. ed. de Campbell (1994, p. xiii), em introdução aos fragmentos de Safo. Ver também p. 484 e o seu estudo de 1983 (p. 133), além de Bowra (1961, p. 179), Kirkwood (1974, p. 138), Burnett (1983, p. 212), Snyder (1997, p. 107). Bowra diz: “Em Lesbos, meninas eram cultivadas por mais de uma mulher mais velha, e as relações entre as rivais não eram sempre cordiais”. É evidente que ele pressupõe que Safo era mais velha que as supostas integrantes de seu grupo — nada se sabe sobre a idade da poeta — e que o que ele diz sobre a relação entre as rivais nada mais é que uma inferência tirada da lírica sáfica e de relatos tardios, no mínimo, suspeitos.
112
Em grego: nËn m¢n ™pitimò (...), nËn d¢ ™l∞gxei, ka‹ efirvneÊetai aÈtå ™ke›na tå %vkrãtou!. Apud Voigt, Testimonia 219 (p. 167). Ver West (1970, p. 320).
113
Similarmente, as traduções de Campbell (1994, Fr. 133) e Fontes (2003, p. 447).
114
Similarmente, as traduções de West (1994, p. 47) e Gentili (1990, p. 81).
115
O “troco” estaria relacionado ao que acontece no Fr. 130 V, no qual Safo, crê Page, é quem perde para Andrômeda uma amante.
116
Cf. ed. Consbruch (1971, p. 39). O verso citado como sendo de Safo ilustra um tipo de metro. Cf. West (1996, p. 31).
117
Essa opção é seguida por Edmonds (1934, Fr. 123), Reinach &e Puech (1937, Fr. 156), West (1970, p. 310; 1994, p. 47), Fontes (2003, p. 405).
118
Cf. Snyder (1997, p. 20) e Fontes (2003, p. 405). Campbell (1994, p. 151; 1a ed.: 1982, Fr. 134) indica em nota a tradução que adotei, na qual a voz fala de Afrodite, e não a ela.
383
PARTE III
ENCERRAMENTO
GIULIANA RAGUSA
386
IMAGEM EM FRAGMENTOS
IMAGEM
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Este livro se centrou num corpus de 14 fragmentos de Safo para neles estudar a representação de Afrodite. Em meio às diversas dificuldades em torno do objeto privilegiado, a lírica arcaica sáfica, o critério da presença textual de Afrodite nas canções foi adotado para que as análises interpretativas aqui desenvolvidas partissem de uma base minimamente segura. Ainda assim, dada a condição precária do que restou das canções de Safo que compõem o corpus, nem sempre foi possível, ao final dos percursos por seus versos, apreender mais do que contornos fugidios de uma imagem fragmentária para nós — contornos muitas vezes apenas destacados, pois seu sentido nem sempre pôde ser percebido e articulado ao contexto geral dos textos. Decerto Afrodite poderia estar em outros fragmentos de Safo. Na verdade, há quatro casos prováveis disso (fragmentos 16 V, 35 V, 44 V, 65 V), para não mencionar as canções nas quais a deusa está presente, mas cuja autoria permanece incerta: não se sabe se são da poeta ou de seu contemporâneo, Alceu. O Fr. 16 V tem como principal fonte de transmissão o rolo Papiro de Oxirrinco no 1.231 (século II d.C.), editado por Bernard P. Grenfell e Arthur S. Hunt, em The Oxyrhynchus papyri — Part X (1914). Dado como completo (vv. 1-32) na edição Voigt, o fragmento, que pertenceria ao livro I da compilação alexandrina de Safo,1 apresenta sérios danos, principalmente nos versos 21 a 32, na quarta estrofe (vv. 13-16) e nos versos 8 e 12. Cito o poema: ⊗
⊗
O]fi m¢n fippÆvn !trÒton, ofi d¢ p°!dvn,
U]ns, renque de cavalos, outros, de soldados,
ofi d¢ nãvn fa›!’ ™p[‹] gçn m°lai[n]an
outros, de naus, dizem ser sobre a terra neg[r]a
387
GIULIANA RAGUSA
a coisa mais bela, mas eu (digo): o que quer
¶]mmenai kãlli!ton, ¶gv d¢ k∞n’ ˆt-
que se ame.
tv ti! ¶ratai: [—]
[—]
pã]gxu d’ eÎmare! !Êneton pÒh!ai
In]teiramente fácil tornar compreensível a
p]ãnti t[o]Ë. t’, é går pÒlu per!k°. y. o . .i!. a kãllo! [ény] r. ≈pvn ÉEl°na [tÚ]n êndra
t]odos i[s]so, pois a que muito superou
[—]
t. Ú n. [
em beleza os [hom]ens, Helena, [o] marido, o [mais no]bre,
ar] i. !ton
[—]
kll[¤poi]! . ’ ¶ba!’ Tro˝an pl°oi. [!a
tendo de[ixa]do, foi para Tróia navegan[do,
kvÈd[¢ pa]›do! oÈd¢ f¤lvn to[k]Ævn
até mesm[o da fi]lha e dos queridos p[a]is
pã[mpan] ™mnã!y, éllå parãg .a .g . ’aÎtan
de t[odo] esquecida, mas desencaminhou-a (...)]
]!an [—]
[—] ] (...) pois [
]ampton går [ ]...koÊfv!t[
] (...)[
]oh.[.] n.
..] m. .e nËn ’Anaktor¤[a! Ù] n. .° mnai-
](...) agora traz-me Anactór[ia à l]embrança, a] que está ausente,
!’ oÈ] pareo¤!a!, [—]
[—]
tç]! e bollo¤man ¶ratÒn te bçma
S]eu adorável caminhar quisera ver,
kémãruxma lãmpron ‡dhn pro!≈pv
e o brilho luminoso de seu rosto,
μ tå LÊdvn êrmata kén ˆploi!i
a ver dos lídios as carruagens e a armada infan]taria.
pe!dom]ãxenta!. [—]
[—]
].men oÈ dÊnaton g°ne!yai
] (...) impossível vir a ser
].n ényrvp[..(.) p]ed°xhn d’ êpa!yai
] (...) hom[em (?) ... p]artilhar e orar
[
]
[
]
[
]
[
]
[
]
[
]
[
]
[
]
[
]
[
] (...) [
pro![ —
—
».!d[ ..].[
][
.].[.]v . l. .[ t’ ™j édokÆ[tv.
(...)[ ] [ ](...) [ ⊗
e inesperadamen[te.
⊗
Helena, Menelau e a fuga da bela espartana com Páris para Tróia: a dimensão mítica do poema é muito apropriada a Afrodite. Por isso, os 388
IMAGEM EM FRAGMENTOS
primeiros editores do papiro já sugeriam que a deusa é o sujeito do verbo “desencaminhou” (parágag’, v. 11, forma verbal de parágo#, parãgv), cujo objeto é aútan (v. 11), ou seja, a própria “Helena” (v. 7). Assim, como suplemento à lacuna do verso 12, Grenfell e Hunt (1914, pp. 23 e 40) imprimiram Kúpris (“Cípris”); e muitos aceitam tal emenda.2 Estaria a deusa presente no Fr. 16 V? É provável, é verossímil. A despeito disso, fica impossível estudar sua representação a partir dessa hipótese. O Fr. 35 V foi já citado no final do quarto capítulo. Preservado na Geografia (I, 2, 33) de Estrabão, sua fonte de transmissão indireta, seu único verso diz: ≥ !e KÊpro! μ Pãfo! μ Pãnormo! ... a ti ou Chipre ou Pafos ou Pânormos ...
Dada a carta geográfica da canção, Afrodite estaria presente no restante dela que se teria perdido.3 Afinal, Chipre é sua ilha por excelência, Pafos é o centro de um dos seus mais célebres cultos e Pânormos poderia ser uma vila de Creta ou da Sicília, locais em que havia santuários importantes da deusa. A hipótese não é descabida, mas estudar a imagem invisível de Afrodite no fragmento é impossível. O Fr. 44 V tem como fontes principais os rolos Papiro de Oxirrinco o n 1.232 (século III d.C.), editado por Grenfell e Hunt (1914), e no 2.076 (século II d.C.), publicado por Hunt (1927). Esse fragmento é atribuído ao livro II de Safo, compilado em Alexandria.4 Totalizando 34 versos, nos quais há várias mutilações, a canção traz as figuras do arauto Ideu, de Heitor, de Andrômaca, do rei Príamo e do deus Apolo, que transitam no universo mítico de Tróia trabalhado na épica homérica. Isso, por si só, já tornaria apropriada a presença de Afrodite, pois a deusa, como Apolo, esteve ao lado dos troianos quando da guerra com os gregos. Outro fato que corroboraria para tanto: o tema do fragmento, que é a narrativa das bodas do herói Heitor e de Andrômaca, razão pela qual os helenistas debatem se o Fr. 44 V é um epitalâmio ou um exemplar de poesia narrativa mitológica — opção mais aceita.5 Cito-o a seguir: 389
GIULIANA RAGUSA
Kupro. .[ - 22 ]a!. : kçruj ∑lye. ye. [ - 10 - ]ele. [...].yei! ÖIdao! tadeka...f[..].i! tãxu! êggelo!
3a tã! t’ êlla! ÉA!¤a! .[.]de.an kl°o! êfyiton: ÖEktvr ka‹ !un°tair.[o]i êgo. i!’ ™lik≈pida . YÆba! ™j fi°ra! Plak¤a! t’ ép . ’ [éÛ]nãv êbran ÉAndromãxan ™n‹ naË!i ™p’ êlmuron pÒnton: pÒlla d’ [™l¤]gmata xrÊ!ia kêmmata porfÊr[a] kata@t[me]na, po. ¤k. .i l’ éyÊrmata, érgÊra . t. ’ énã . r$i¸ y. ma $potƸr$ia¸ kél°fai!ª”. Ã! e‰p’: Ùtral°v! d’ énÒrou!e pãt[h] r. f¤lo!: fãma d’ ∑lye katå ptÒ. lin eÈrÊxo. r. o. n. f¤loi!. aÎtik’ ’Il¤adai !at¤nai[!] Èp’ ™utrÒxoi! îgon afimiÒnoi!, ™. p . [°]baine d¢ pa›! ˆxlo! guna¤kvn t’ êma paryen¤ka[n] t..[..].!fÊrvn, x«ri! d’ aÔ Perãmoio yug[a]tre![ ‡pp[oi!] d’ êndre! Îpagon Èp’ êr. [mata p[ ]e! ±¤ y. eoi, megãlv[!]ti d. [ d[ ]. én¤oxoi f[.....].[ p[ Ä]ja.o[ 20 < desunt aliquot versus > ‡]keloi y°oi[ 21 ] êgnon éol[le $ˆ. rmata ]non ™! ÖIlio[n . .i ¸[ $aÔlo! d’ édu[m]°lh !. ¸[ ]t ’ Ùnem¤gnu[to $ka‹ c[Ò]fo[! k]rotãl¸[vn ]v! d’ êra pãr[yenoi $êeidon m°lo! êgn¸[on, ‡ka]ne d’ ™! a ‡ y [era . .. $êxv ye!pe!¤a . ge l. ¸[ $pãntai d’ ∑! kåt ˆdo¸[i! $krãthre!| f¤ala¤ t’ Ù¸[...]uede[..]..eak[.].[ $mÊrra ka‹ ka!¤a l¤b¸anÒ! t’ Ùneme¤xnuto $gÊnaike! d’ ™l°lu!do¸n ˆ!ai progen°!tera[i $pãnte! d’ êndre! ™p¸Æraton ‡axon ˆryion $pãon’ Ùnkal°onte! ’Ekãbolon eÈlÊran $Îmnhn d’ ÖEktora k’A¸ndromãxan yeoik°lo[i!. ⊗ (...) Chipr(e ?/ Ciprogênia?) [ ...
- 22 390
...](...);
IMAGEM EM FRAGMENTOS
Veio o arauto (...)[ - 10 - ](...) [...](...) Ideu (...)[..](...) , veloz mensageiro:
3a e do resto da Ásia (...)[.](...) glória imperecível. Heitor e os companheir[o]s a de vivos olhos trazem de Tebas sacra e da Plácia de [fo]ntes perenes — ela, delicada Andrômaca —, nas naus, sobre o salso mar. E muitos [bra]celetes áureos e vestes de púrpur[a] fragr[an]tes, adornos furta-cor, incontáveis cálices prateados e marfins”. Assim ele falou; e rápido ergueu-se o p[a]i querido; e a nova, cruzando a ampla cidade, chegou aos amigos. De pronto os troianos às carruagen[s] de boas rodas atrelaram as mulas, e nelas su[b]iu toda a multidão de mulheres e junto as virgen[s] (...?)tornozelos, mas apartadas as fil[h]as de Príamo[ e cava[los] os homens atrelaram aos ca[rros [ ](...) moços solteiros, e por um largo espa[ç]o [ [ ](...) os condutores das carruagens [.....].[ [ ](...)[ 20 < desunt aliquot versus > s]ímeis aos deuse[s 21 ] sacro, em multidõ[es rumou [ ](...) em direção a Íli[o e a flauta de doc[e] som [ ] se mistur[ou e o s[o][m das c]astanhol[as ] e então as vir[gens cantaram uma canção sac[ra e che]gou aos céus eco divino (...)[ e em toda parte estava ao longo das ru[as crateras e cálices (...)[...](...)[..](...)[.].[ mirra e cássia e incenso se misturavam, e as mulheres soltavam alto brado, as mais velha[s, e todos os homens entoavam adorável e alto peã invocando o Arqueiro hábil na lira, e hineavam Heitor e Andrômaca, aos deuses síme[is.
O último fato que poderia indicar a presença de Afrodite nesse fragmento é que no verso 1 se lê o seguinte conjunto de letras: Kupro. De-
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pois, há uma quebra e a mutilação de 22 letras. Esse conjunto poderia formar a palavra Kúpros (“Chipre”),6 nome da ilha de Afrodite, ou Kuprogénea (“Ciprogênia”), um dos nomes da deusa registrado nos fragmentos 22 V (v. 16) e 134 V do corpus da pesquisa. A hipótese é válida, mas não concretiza a presença de Afrodite no Fr. 44 V nem fornece um subsídio básico para estudar sua representação: a imagem textual. O Fr. 65 V, já citado no sétimo capítulo, é papiráceo e encontra-se bastante danificado. Em seu texto poderia estar Afrodite, pois no verso 6 lê-se o nome “Chipre” (Kúpro # i ) e, talvez, a palavra “rainha” (b[a]síl[).7 Mas como estudar sua representação a partir de uma presença possível, mas não assegurada textualmente? Em suma, diante das já difíceis condições dos fragmentos em que a presença da deusa é segura, creio ser imprudente e impossível trabalhar com esses quatro casos tão hipotéticos e frágeis. E é assim que encerro este trabalho, à maneira dos poetas antigos, em “composição anelar” (ring-composition). Tendo começado pelas dificuldades de abordagem da lírica grega arcaica e de Safo, encerro-o discorrendo sobre as dificuldades do estudo da representação de Afrodite em textos mutilados, lacunosos, emendados e remendados ao longo dos tempos. O leitor destas páginas, sobretudo em determinados momentos da análise interpretativa das canções, deve ter experimentado, entre outros sentimentos, alguma frustração e surpresa. Afinal, como um objeto tão precário pode suscitar tamanho interesse e tão vasta bibliografia? Como é que os estudiosos da lírica podem estudá-la se sua dimensão musical está irremediavelmente perdida para nós e se o que dela somente restou, o parco registro artificial do texto, se encontra tão materialmente fragmentado? Em The idea of lyric, Walter R. Johnson declara: Nós todos ficamos, quando lemos a lírica grega, desapontados em certo sentido: não porque a poesia não impressione — antes, ela é supremamente bela — mas porque ela existe para nós apenas em cacos e farrapos. O corpus da lírica grega, magramente aumentado de tempos em
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tempos pelas areias do Egito, sobrevive em ruínas. E, quando comparamos a lírica grega com os outros remanescentes da literatura e da cultura gregas, essas ruínas são de machucar o coração. Nenhuma experiência de leitura, talvez, seja mais deprimente e mais frustrante do que a de abrir um volume dos fragmentos de Safo e reconhecer, ainda uma vez — pois sempre se espera que desta vez seja diferente —, que essa poesia está perdida para nós. Esse é um fato que escolhemos não encarar — não de frente e constantemente. Logo, nós divisamos uma ficção — a ficção [...] que chamamos poesia lírica grega —, mesmo que saibamos que ela está em meros fragmentos. Na verdade, porque sabemos que ela está em meros fragmentos, nós agimos, falamos e escrevemos como se o impensável não tivesse acontecido, como se bispos pios, monges descuidados e ratos famintos não tivessem consignado Safo e seus colegas líricos ao esquecimento irremediável. [...] Naturalmente, qualquer helenista a quem você perguntar admitirá o fato da fragmentação. Pode até ter prazer em descrever o estado verdadeiro dos textos e a incerteza fascinante de restaurações e conjecturas. Mas se você persistir em seu escrutínio e conversar sobre a poesia, sobre os poemas não-existentes, à medida que a conversa esquentar, o esqueleto ganhará carne e cor, e a ruína se esvaecerá. Isso não é prevaricação ou enganação, isso é a natureza humana: nós queremos aqueles poemas e, nos momentos em que nos desarmamos, nós os imaginamos de volta à existência. [...] É o leitor, então, que deve se lembrar, quando eu me esquecer, que a lírica grega, [...] é essencialmente inacessível para nós (1982, pp. 25-26).
A realidade fragmentária da lírica grega arcaica, que Johnson lembra ao leitor antes de começar seu estudo e que aqui reiteradamente recordei, paradoxalmente não a fragiliza, mas potencializa suas forças e dá-lhe fôlego para sobreviver. Os que se enredam em sua trama de fios dispersos, descontínuos e remendados e aceitam o desafio de estudá-la, aprendem a conviver com as suas limitações e com as inevitáveis frustrações advindas da falta da letra seguinte, da palavra seguinte, do verso seguinte ou da estrofe seguinte. Por outro lado, cada pequena descoberta — se é que elas são ainda possíveis —, cada breve filete de luz que se vislumbra, cada pequeno caco de lente embaçada que se consegue remover do amontoado de leituras que recobrem os fragmentos, enfim, 393
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cada pequeno passo que o trabalho com os textos render terá um inigualável sabor de conquista, de recompensa valorosa, de missão cumprida. Busquei aqui a imagem da Afrodite sáfica. Ao fazê-lo, passei por outras representações poéticas e mítico-religiosas da deusa, pelas relações Grécia–Oriente — direção para a qual a poeta de Lesbos olha atentamente —, pelos problemas em torno de nosso desconhecimento acerca de Safo e de seu contexto histórico-social. Atingindo o final do percurso, tenho consciência de que tudo o que pude apresentar foram os estilhaços de tal imagem. Parece magro o resultado, como parecem frágeis os versos fragmentários de Safo. Nada mais enganoso: a força da lírica da poeta e de sua personagem-divina está viva nos fragmentos; quem deles se aproximar não o fará em vão.
Notas 1
Seu esquema métrico é o da “estrofe sáfica”. Cf. Page (1987, p. 318).
2
Cf. edições e/ou traduções de Diehl (1936, Fr. 27), Reinach e Puech (1937, Fr. 27), Page (1987, pp. 52-53), Bowra (1961, p. 180), Campbell (1998, p. 270; 1a ed.: 1967), Privitera (1974, p. 134), Burnett (1983, p. 278), Svenbro (1984, pp. 64-65), Torrano (1984, p. 94), Gentili (1990, p. 88), Martyn (1990, p. 210), Snyder (1997, p. 169), Fontes (2003, p. 385).
3
Isso é indicado nas edições e/ou traduções de Edmonds (1934, Fr. 5) e Page (1987, p. 128).
4
Cf. Page (1987, pp. 318-19). Em termos de esquema métrico, o Fr. 44 V estruturase em glicônicos com expansão dactílica.
5
Cf. discussão nas obras de Page (1987, pp. 72-74), Bowra (1961, pp. 227-32), Kirkwood (1974, pp. 142-47), Burnett (1983, p. 220), Rissman (1983, p. 133), Lasserre (1989, pp. 81-106; cf. crítica de Liberman, 1989, pp. 232-33).
6
Essa é a preferência de Grenfell e Hunt (1914, p. 47), e também de Edmonds (1934, Fr. 66), Campbell (1994, Fr. 44), Snyder (1997, p. 181). Note-se, no entanto, que ela não elimina inteiramente a possibilidade da presença de Afrodite no fragmento.
7
Cf. Page (1987, p. 128), West (1970, p. 310), Campbell (1994, Fr. 65), Snyder (1997, p. 187), Fontes (2003, p. 509).
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ANEXOS
Anexo 1 Q UA D R O
DA T R A N S L I T E R A Ç Ã O
D O G R E G O PA R A O P O R T U G U Ê S
a, A = a, A (alpha) b, B = b, B (beta) g, G = g, G (gamma) d, D = d, D (delta) e = e, E (epsilon) zd, Z = z, Z (zeta) e#, E# = h, H (eta) th, Th = q, Q (theta) i, I = i, I (iota) k, K = k, K (kappa) l, L = l, L (lambda) m, M = m, M (mu) n, N = n, N (nu) ks, Ks = j, X (ksei) o, O = o, O (omicron)
p, P = p, P (pi) r, R = r, R (rho) s, S = s, c, w, S (sigma) t, T = t, T (tau) u, U = u, U (upsilon) ph, Ph = f, F (phei) kh, Kh = x, X (khei) ps, Ps = c, C (psei) o#, O# = v, W (omega)
(’): espírito brando, não é transliterado (‘): espírito rude (h; som de “rr”) gamma (g, g): antes de consoantes guturais (gamma, kappa ou khei — g, k ou kh), é grafado como a consoante nasal n. 423
GIULIANA RAGUSA
Anexo 2 TEXTO CORPUS DE
GREGO E TRADUÇÃO DO
14
FRAGMENTOS DE
SAFO
Apresento, aqui, os textos gregos, com base na edição Voigt, e as traduções dos fragmentos do corpus deste livro. Antes, porém, devo esclarecer que as traduções se pautaram, na medida do possível e sem comprometer a clareza na língua portuguesa, pela fidelidade ao texto grego, mas em verso livre e branco.
• Fr. 1 V ⊗ Poi¸kilÒyro$n’ éyanãt’AfrÒdita, pa›¸ D$¤¸o! dol$Òploke, l¤!!oma¤ !e, mÆ m’¸ ê!ai!i $mhd’ Ùn¤ai!i dãmna, pÒ,tn¸ia, yË$mon, éll¸å tu¤d’ ¶l$y’, a‡ pota két°rvta tå¸! ¶ma! aÎ$da! é¤oi!a pÆloi ¶k¸lue!, pãtro$! d¢ dÒmon l¤poi!a x¸rÊ!ion ∑ly$e! êr¸m’ Èpa!de$Êjai!a: kãloi d° !’ îgon ¸kee! !troË$yoi per‹ gç! mela¤na! pʸkna d¤n$nente! pt°r’ ép’ »rãnv a‡yero¸! diå m°!!v: a‰¸ca d’ ™j¤ko$nto: !Á d’, Œ mãkaira, meidia¤$!ai!’ éyanãtvi pro!≈pvi 424
ANEXO 2
≥¸re’ ˆtt$i dhÔte p°ponya k tti dh¸Ôte k$ãl¸h$mmi k¸ tti $moi mãli!ta y°lv g°ne!yai m¸ainÒlai $yÊmvi: t¤na dhÔte pe¤yv .¸.!.ãghn $™! !ån filÒtata; t¤! !’, Œ Cã¸pf’, $éd¤kh!i; ka¸‹ g$år afi feÊgei, tax°v! di≈jei, afi d¢ d«ra mØ d°ket’, éllå d≈!ei, afi d¢ mØ f¤lei, tax°v! filÆ!ei kvÈk ™y°loi!a. ¶lye moi ka‹ nËn, xal°pan d¢ lË!on ™k mer¤mnan, ˆ!!a d° moi t°le!!ai yËmo! fim°rrei, t°le!on, !Á d’ aÎta ⊗
!Êmmaxo! ¶!!o. ⊗ De flóreo manto furta-cor, ó imortal Afrodite, filha de Zeus, tecelã de ardis, suplico-te: não me domes com angústias e náuseas, veneranda, o coração, mas para cá vem, se já outrora — a minha voz ouvindo de longe — me atendeste, e de teu pai deixando a casa áurea a carruagem atrelando vieste. E belos te conduziram velozes pardais em torno da terra negra — rápidas asas turbilhonando céu abaixo e pelo meio do éter. De pronto chegaram. E tu, ó venturosa, sorrindo em tua imortal face, indagaste por que de novo sofro e por que
de novo te invoco, e o que mais quero que me aconteça em meu desvairado coração: “Quem de novo devo persuadir (?) ao teu amor? Quem, ó Safo, te maltrata? 425
GIULIANA RAGUSA
Pois se ela foge, logo perseguirá; e se presentes não aceita, em troca os dará; e se não ama, logo amará, mesmo que não queira”. Vem até mim também agora, e liberta-me dos duros pesares, e tudo o que cumprir meu coração deseja, cumpre; e, tu mesma, ⊗
sê minha aliada de lutas.
• Fr. 2 V ..anoyen katiou[!|-
1a
~deurummekrhte!ip[.]r[ ]|.~ naËon
1
êgnon ˆpp[ai ]| xãrien m¢n êl!o! mal¤[an],| b«moi d’ ¶i yumiãmenoi [li]|ban≈tv: ™n d’ Îdvr cËxro$n¸| kelãdei di’ Î!dvn mal¤nvn,| brÒdoi!i d¢ pa›! Ù x«ro! ™!k¤|a!t’, afiyu!!om°nvn d¢ fÊllvn| k«ma ~katairion: ™n d¢ le¤mvn| fippÒboto! t°yale ~t v . t...(.)rin|noi!~ ênye!in, afi êhtai m°lli|xa pn[°o]i!in [ [
]
¶nya dØ !Á ~!u.an~| ¶loi!a KÊpri xru!¤ai!in ™n ku|l¤ke!!in êbrv! mme¤|xmenon yal¤ai!i| n°ktar ofinoxÒei!a (...) ...[... †Para cá, até mim, de Creta [.][ ]|† templo sagrado on[de
]| e agradável bosque
de macieir[as], e altares nee são esfumeados com [in]cens. E nele água fri$a¸ murmura por entre ramos 426
ANEXO 2
de macieiras, e pelas rosas todo o lugar está sombreado, e das trêmulas folhas torpor divino †desce. E nele o prado pasto de cavalos viceja †
† com flores, os ventos
docemente so[pr]am [ [
]
Aqui tu †
†| tomando, ó Cípris,
nos áureos cálices, delicadamente, néctar, miurado às festividades, vinho-vertendo ... • Fr. 5 V ⊗ KÊpri ka‹] NhrÆÛde!, éblãbh[n moi tÚn ka!¤]gnhton d[Ò]te tu¤d’ ‡ke!ya[i k !!a W]o . .i yÊmv ke y°lh g°ne!yai pãnta te]l°!yhn, [—] ˆ!!a d¢ pr]Ò!y’ êmbrote pãnta lË!a[i ka‹ f¤loi!]i Wo›!i xãran g°ne!yai ....... ¶]xyroi!i, g°noito d’ êmmi ...... m]hd’ e‰!: [—] tån ka!ig]nÆtan d¢ y°loi pÒh!yai ]t¤ma!, [Ùn]¤an d¢ lÊgran ]otoi!i p[ã]roiy’ éxeÊvn ].na ].ei!a˝v[n] tÚ k°gxrv ]lepag[..(.Ä)]ai pol¤tan ]llv ! . [...]nhke d’ aÔt’ oÈ ]krv[] ]onaik[ ]eo[ ].i ]..[.]n: !Á [d] .¢ KÊp . [ri]..[..(.)]na ]yem[°n]a kãkan[ ⊗
]i. 427
GIULIANA RAGUSA
⊗ Ó Cípris e] Nereidas, iles[o, a mim, o meu ir]mão con[c]edei aqui chega[r, e o que n]o coração ele queira que seja — tudo cu]mpri, [—] e que seus pa]ssados erros todos ele repar[e e que aos amigo]s uma alegria ele seja, (...) a]os inimigos, e que não nos seja (...) nin]guém; [—] e a ir]mã — que ele a queira fazer ] honra, [so]frimento lutuoso ]...a[n]tes lamentando ]... ] ouvind[o] ... o grão ](...)[..(.)]... cidadãos ](...)[...](...) mas não de novo ]...[] ](...) [
] [
]
]..[.]; [e] tu, ó Cíp[ris]..[..(.)](...) ] coloca[nd]o ... má[? ⊗
](...). • Fr. 15 V b
]a mãkai[r ]euplo.:[ a
].ato!ka[ ]
]o!y’[
]brotekh
]atai.![
].n em. [ ].Êxai li.[ ] e. no! kl[ 428
ANEXO 2
].[
]
[-] KÊ]pri ka[¤ !]e pi[krot.Ä.]an ™peÊr[oi mh]d¢ kauxã![a] .i to tÒd’ ™nn°[poi!a D] v . r¤xa tÚ deÊ[t]eron »! poye[ ]eron ∑lye.
⊗
b ](...) venturo[sa (?) ](...) [ ](...) [
a
] ]...[
] (...) [
].....[ ]...[ ](...) (...)[ ].[
]
[-] ó Cí]pris, [e] a m[ais amar]ga te descub[ra e n]ão se vangl[o]rie isto con[tando — ela, D]órica : como a seg[u]nda vez (...)[ ⊗
](...) veio. • Fr. 22 V ]bla.[ ]ergon, ..l’a..[ ]n =°yo! doki m. [ ]h!yai ]n aÈãdhn x.[ d]¢ mÆ, xe¤mvn[ ].oi!analgea.[ ]de .].e .[....].[... k]°lomai !.[ ..].gula.[...] a. nyi lãboi!a .a.[ 429
GIULIANA RAGUSA
pç]ktin, î! . !e dhÔte pÒyo! t. .[ émfipÒtatai — tån kãlan: é går katãgvgi! aÎta[ ™ptÒai!’ ‡doi!an, ¶gv d¢ xa¤rv, ka‹ g . år aÎt. a dÆ p o. [t’] ™memf[ K]uprog°n[ha [—] ». ! êram a . [i toËto t«[ [b]Òlloma . [i ](....)[ ] tarefa (?), (...)[ ](...) rosto (...)[ ](...) ](...) desagradável (...)[ e] não, tormenta[ ]... (...)... (dor?)[ ](...) ]...[...]...[... p]eço a ti (?)[ ]... [...]... pegando...[ ha]rpa, enquanto de novo o desejo...[ voa ao redor de ti — — a bela —; pois o vestido...[ vendo tremeste, e eu me alegro, pois, cer[t]a vez, a própria...[ C]iprogê[nia [—] como rez[o isto (...)[ q]uer[o
430
ANEXO 2
• Fr. 33 V a‡y’ ¶gv, xru!o!t°fan’ ÉAfrÒdita, tÒnde tÚn pãlon laxo¤hn ... se ao menos eu, ó Afrodite de áurea guirlanda, este lote obtivesse por parte ...
• Fr. 73a V a ]nb.[.].[.]u ]a ]an ’Afrodi[ta é]dÊlogoi d’ ™r[ ]b`alloi a]i! . ¶xoi!a ].°na yaa![! ]ãllei ]a! ™°r!a![ a ](...).[.].[.](...) ](...) ](...), ó Afrodi[te o]s de doce fala e (...)[ ] lançaria (?) .](...) tendo ela (...) ](...) ... (?) [ ](...) ](...) orvalho[
431
GIULIANA RAGUSA
• Fr. 86 V ].akãla.[ ] a. fig.i Òxv l. a. [ ]. K.u. y°rh’ e. È. x. om[ ]o. n ¶xoi!a yËm o. [n
kl]Ëy¤ m. ’ êra! a‡ p[ota két°rvta ]a! p. r. ol¤poi!. a k[ ]. ped’ ¶man fi≈[ ].n x a. l°pai.[ ].(...).[ ] o porta-égide (Zeus?)...[ ]... ó Citeréia, eu rez[o (?) ]... (tu?) tendo coraçã[o e]scuta-me as preces, se j[á outrora ]... (tu?) deixando (...)[ ]. para minha (...)[ ]... pesares...[
• Fr. 96 V ] !ard.[..] pÒl]laki tu¤d .e [.]vn ¶xoi!a
[—]
»!p..[...].≈omen, ..[...].. x[..] !e ~yea!ikelan érignvta~, !çi d¢ mãli!t’ ¶xaire mÒlpai.:
nËn d¢ LÊdai!in ™mpr°petai guna¤ke!!in ! pot’ éel¤v dÊnto! é brododãktulo!
432
ANEXO 2
pãnta per°xoi!’ ê!tra: fão! d’ ™p¤!xei yãla!!an ™p’ élmÊran ‡!v! ka‹ poluany°moi! éroÊrai!: — é d’ °r!a kãla k°xutai, teyãlai!i d¢ brÒda kêpal’ ênyru!ka ka‹ mel¤lvto! ényem≈dh!:
pÒlla d¢ zafo¤tai!’ égãna! ™pimnã!yei!’ ÖAtyido! fim°rvi l°ptan poi fr°na k[.]r...bÒrhtai:
k∞yi d’ ¶lyhn émm.[..]..i!a t.Ò d’ oÈ nvnta[..]u!t o. nu m. [..(.)] pÒlu! —
garÊe i. [..(.)]alo n . [.....(.)] t. o. m°!!on:
e] Î. mar[e! m].¢ n oÈ.a.mi y°ai!i mÒrfan ™pÆ[rat]on ™j¤!v—
! y. ai !u[..]ro. ! ¶xh!ya[...].n¤dhon .
[
]to. [...(.)]ratimal[
].ero!
ka‹ d[.]m. [
— ka m. [
]o! ’Afros¤ta ]n°ktar ¶xeu’ épÁ
xru!¤a![
]n. an
...(.)]apou r. [ [
]x°r!i Pe¤yv ]y[..]h!enh
[
]aki! [
[
]e! tÚ Gera¤!tion [ [
[
]......ai ]n f¤lai ] u. !ton oÈdeno[ ]eron fijo[m 433
GIULIANA RAGUSA
(Sárdis?) ...[...] mui]tas vezes para cá [.]... ela tendo [—] (...)..[...].(...) (...), .[...].. (...).[..] (?) † qual deusa manifesta †, e (ela) muito se deleitava com tua canção.
Mas agora ela se sobressai entre Lídias mulheres como, depois do sol posto, a dedirrósea
supera todas as estrelas, e sua luz se esparrama por sobre o salso mar e igualmente sobre multifloridos campos.
E o orvalho é derramado em beleza, e brotam as rosas e o macio cerefólio e o trevo-mel em flor.
E (ela) muito agitada de lá para cá a recordar a gentil Átis com desejo; decerto frágil peito (?) se consome.
E até lá ir (...).[..]..(...) isto não (...)[..]...(...)...[..(.)] muito canta [...]...[...]... (no) meio; — F]ác[il n]ão ... com as deusas quanto à forma ad[orá]vel rivalizar...[..]... (......)[...].... — [
]...[...(.)](......[
].(amor?) e...[...]...[
]..., ó Afrodite
434
ANEXO 2
— ...[
] o néctar derramava da áurea [ ...(.)]...[
[
]... ] mãos Peitó ](...)[..](...)
[
](...) [
[
]...... ](...) o Geraístio
[
](...) queridas [
[
]... não ...[ ] ... ...[...
• Fr. 102 V ⊗ GlÊkha mçter, oÎ toi dÊnamai kr°khn tÚn ‡!ton pÒyvi dãmei!a pa›do! brad¤nan di’ ’Afrod¤tan ⊗ Ó doce mãe, não posso mais tecer a trama — domada pelo desejo de um menino, graças à esguia Afrodite ...
• Fr. 112 V ⊗ ÖOlbie gãmbre, !o‹ m¢n dØ gãmo! »! êrao ™ktet°le!t’, ¶xhi! d¢ pãryenon, ín êrao. !o‹ xãrien m¢n e‰do!, ˆppata m°llix’, ¶ro! d’ ™p’ fim°rtvi k°xutai pro!≈pvi tet¤mak’ ¶joxã !’ ’Afrod¤ta ⊗ Ó feliz noivo, tua boda, como pediste, se cumpriu, e tens a virgem que pediste. Tua forma é graciosa, olhos de mel, e amor se derrama na desejável face honra-te em especial Afrodite ...
435
GIULIANA RAGUSA
• Fr. 133 V ⊗ ÖExei m¢n ’Androm°da kãlan émo¤ban *** Cãpfoi, t¤ tån polÊolbon ’Afrod¤tan ....; ⊗ “Tem Andrômeda bela paga” *** “Ó Safo, por que a multiafortunada Afrodite...?”
• Fr. 134 V ⊗ Zå ™lejãman ˆnar Kuprogenha ⊗ Em sonho falei à Ciprogênia ...
• Fr. 140 V ⊗ Katynã!kei, Kuy°rh’, êbro! ÖAdvni!: t¤ ke ye›men; kattÊpte!ye, kÒrai, ka‹ katere¤ke!ye x¤tvna! ⊗ “Morre, Citeréia, delicado Adônis. Que podemos fazer?” “Golpeai, ó virgens, vossos seios, e lacerai vossas vestes...”
436
ANEXO 3
Anexo 3 TEXTO
GREGO E TRADUÇÃO DE
OUTROS FRAGMENTOS DE
SAFO
I N T E G R A L M E N T E C I TA D O S N O L I V R O
Apresento, aqui, os textos gregos, com base na edição Voigt, e as traduções de alguns fragmentos de Safo não incluídos no corpus por não trazerem a figura de Afrodite, mas integralmente citados no livro, ao longo dos capítulos.
• Fr. 16 V ⊗ O]$fi m¢n fippÆvn !trÒton, ofi d¢ p°!dvn, ofi d¢ nãvn fa›!’ ™p[‹] gçn m°lai[n]an ¶]mmenai kãlli!ton, ¶gv d¢ k∞n’ ˆttv ti! ¶ratai: [—] pã]gxu d’ eÎmare! !Êneton pÒh!ai p]ãnti t[o] Ë. t’, é går pÒlu per!k .° .yo. .i !a . kãllo! [ény]r. ≈pvn ÉEl°na [tÚ]n êndra [—]
tÚ . .n [
ar] .i !ton
kall[¤poi] ! . ’ ¶ba!’ Tro˝an pl°o .i [!a kvÈd[¢ pa]›do! oÈd¢ f¤lvn to[k]Ævn pã[mpan] ™mnã!y, éllå parã .g a .g . ’ aÎtan ]!an 437
GIULIANA RAGUSA
[—] ]ampton går [ ]...koÊfv!t[
]oh.[.] n.
..] m. e. nËn ’Anaktor¤[a! Ù] n. .° mnaipareo¤!a!, [—] tç]! e bollo¤man ¶ratÒn te bçma kémãruxma lãmpron ‡dhn pro!≈pv μ tå LÊdvn êrmata kén ˆploi!i pe!dom]ãxenta!. [—] ] . men oÈ dÊnaton g°ne!yai ] . n ényrvp[..(.) p]ed°xhn d’ êpa!yai[ [
]
[
]
[
]
[
] pro![
— » . !d[ ..].[.].[ .].[.]v .l . .[
⊗
t’ ™j édokÆ[tv. ⊗
U]ns, renque de cavalos, outros, de soldados, outros, de naus, dizem ser sobre a terra neg[r]a a coisa mais bela, mas eu (digo): o que quer que se ame. [—] In]teiramente fácil tornar compreensível a t]odos i[s]so, pois a que muito superou em beleza os [hom]ens, Helena, [o] marido, o [mais no]bre,
438
ANEXO 3
[—] tendo de[ixa]do, foi para Tróia navegan[do, até mesm[o da fi]lha e dos queridos p[a]is de t[odo] esquecida, mas desencaminhou-a (...)] [—] ] (...) pois [ ] (...)[ ](...) agora traz-me Anactór[ia à l]embrança, a] que está ausente, [—] S]eu adorável caminhar quisera ver, e o brilho luminoso de seu rosto, a ver dos lídios as carruagens e a armada infan]taria. [—] ] (...) impossível vir a ser ] (...) hom[em (?) ... p]artilhar e orar [ [ [ [ [ (...) [ — (...)[ ][ ] [ ](...) [ e inesperadamen[te.
• Fr. 31 V ⊗ Fa¤neta¤ moi k∞no! ‡!o! y°oi!in ¶mmen’ nhr, ˆtti! ™nãntiÒ! toi fi!dãnei ka‹ plã!ion îdu fvne¤!a! ÈpakoÊei 439
] ] ] ] ]
GIULIANA RAGUSA
ka‹ gela¤!a! fim°roen, tÒ m’ ∑ mån kard¤an ™n !tÆye!in ™ptÒai!en: »! går !’ ‡dv brÒxe’ ! me f≈nh!’ oÈd¢n ¶t’ e‡kei, éllå ~kam~ m¢n gl«!!a ~¶age~, l°pton d’ aÎtika xr«i pËr ÈpadedrÒmaken, Ùppãte!!i d’ oÈd¢n ˆrhmm’, ’pibrÒmei!i d’ êkouai, ~¶kade~ m’ ‡drv! kakx°etai, trÒmo! d¢ pa›!an êgrei, xlvrot$°ra d¢ p¸o¤a! ¶mmi, tey$nãkhn d’ Ù¸l¤gv ™pide$Êh! fa¸¤nom’ ¶m’ aÎ t . [ai éllå pån tÒlmaton, ™pe‹ ~ka‹ p°nhta~ Parece-me ser par dos deuses ele, o homem, que oposto a ti senta e de perto tua doce fala escuta, e tua risada atraente. Isso, certo, no peito atordoa meu coração; pois quando te vejo por um instante, então falar não posso mais, mas †se quebra† †minha† língua, e ligeiro fogo de pronto corre sob minha pele, e nada vêem meus olhos, e zumbem meus ouvidos, e água escorre de mim, e um tremor de todo me toma, e mais verde que a relva estou, e bem perto de estar morta pareço eu mesma. Mas tudo é suportável, já que †mesmo um pobre† ...
440
ANEXO 3
• Fr. 34 V ê!tere! m¢n émf‹ kãlan !elãnnan íc épukrÊptoi!i fãennon e‰do! ˆppota plÆyoi!a mãli!ta lãmph gçn . . . . *
*
*
érgur¤a
... e as estrelas, em torno da bela lua, de novo ocultam sua luzidia forma, quando plena ao máximo ela ilumina a terra ... *
*
*
argêntea
• Fr. 35 V ≥ !e KÊpro! μ Pãfo! μ Pãnormo! ... a ti ou Chipre ou Pafos ou Pânormos ...
• Fr. 36 V ka‹ poyÆv ka‹ maÒmai ... e desejo e enlouqueço ...
• Fr. 44 V Kupro. .[
- 22 -
]a!. :
kçruj ∑lye. ye. [ - 10 -
]ele. [...].yei! ÖIdao! tadeka...f[..].i! tãxu! êggelo! 441
GIULIANA RAGUSA
tã! t’ êlla! ÉA!¤a! .[.]de.an kl°o! êfyiton: ÖEktvr ka‹ !un°tair.[o]i êgo. i!’ ™lik≈pida . YÆba! ™j fi°ra! Plak¤a! t’ ép . ’ [éÛ]nãv êbran ÉAndromãxan ™n‹ naË!i ™p’ êlmuron pÒnton: pÒlla d’ [™l¤]gmata xrÊ!ia kêmmata porfÊr[a] kata@t[me]na, po. ¤k. .i l’ éyÊrmata, érgÊra . t. ’ énã . r$i¸ y. ma $potƸr$ia¸ kél°fai!ª”. Ã! e‰p’: Ùtral°v! d’ énÒrou!e pãt[h] r. f¤lo!: fãma d’ ∑lye katå ptÒ. lin eÈrÊxo. r. o. n. f¤loi!. aÎtik’ ’Il¤adai !at¤nai[!] Èp’ ™utrÒxoi! îgon afimiÒnoi!, ™. p . [°]baine d¢ pa›! ˆxlo! guna¤kvn t’ êma paryen¤ka[n] t..[..].!fÊrvn, x«ri! d’ aÔ Perãmoio yug[a]tre![ ‡pp[oi!] d’ êndre! Îpagon Èp’ êr. [mata p[ ]e! ±¤ y. eoi, megãlv[!]ti d. [ d[ p[
]. én¤oxoi f[.....].[ Ä]ja.o[
desunt aliquot versus
‡]keloi y°oi[
21
] êgnon éol[le $ˆ. rmata . .i ¸[
]non ™! ÖIlio[n
$aÔlo! d’ édu[m]°lh !. ¸[ $ka‹ c[Ò]fo[! k]rotãl¸[vn
]t’ Ùnem¤gnu[to ]v! d’ êra pãr[yenoi
$êeidon m°lo! êgn¸[on, ‡ka]ne d’ ™! a . .‡ y. [era $êxv ye!pe!¤a . ge l. ¸[ $pãntai d’ ∑! kåt ˆdo¸[i! $krãthre!| f¤ala¤ t’ Ù¸[...]uede[..]..eak[.].[ $mÊrra ka‹ ka!¤a l¤b¸anÒ! t’ Ùneme¤xnuto $gÊnaike! d’ ™l°lu!do¸n ˆ!ai progen°!tera[i $pãnte! d’ êndre! ™p¸Æraton ‡axon ˆryion $pãon’ Ùnkal°onte! ’Ekãbolon eÈlÊran $Îmnhn d’ ÖEktora k’A¸ndromãxan yeoik°lo[i!.
442
⊗
ANEXO 3
(...) Chipr(e ?/ Ciprogênia?) [... - 22 - ...](...); Veio o arauto (...)[ - 10 - ](...) [...](...) Ideu (...)[..](...) , veloz mensageiro:
3a e do resto da Ásia (...)[.](...) glória imperecível. Heitor e os companheir[o]s a de vivos olhos trazem de Tebas sacra e da Plácia de [fo]ntes perenes — ela, delicada Andrômaca —, nas naus, sobre o salso mar. E muitos [bra]celetes áureos e vestes de púrpur[a] fragr[an]tes, adornos furta-cor, incontáveis cálices prateados e marfins”. Assim ele falou; e rápido ergueu-se o p[a]i querido; e a nova, cruzando a ampla cidade, chegou aos amigos. De pronto os troianos às carruagen[s] de boas rodas atrelaram as mulas, e nelas su[b]iu toda a multidão de mulheres e junto as virgen[s] (...?)tornozelos, mas apartadas as fil[h]as de Príamo[ e cava[los] os homens atrelaram aos ca[rros [ ](...) moços solteiros, e por um largo espa[ç]o [ [ ](...) os condutores das carruagens [.....].[ [ ](...)[ 20 < desunt aliquot versus > s]ímeis aos deuse[s 21 ] sacro, em multidõ[es rumou [ ](...) em direção a Íli[o e a flauta de doc[e] som [ ] se mistur[ou e o s[o][m das c]astanhol[as ] e então as vir[gens cantaram uma canção sac[ra e che]gou aos céus eco divino (...)[ e em toda parte estava ao longo das ru[as crateras e cálices (...)[...](...)[..](...)[.].[ mirra e cássia e incenso se misturavam, e as mulheres soltavam alto brado, as mais velha[s, e todos os homens entoavam adorável e alto peã invocando o Arqueiro hábil na lira, e hineavam Heitor e Andrômaca, aos deuses síme[is. 443
⊗
GIULIANA RAGUSA
• Fr. 47 V ÖEro! d’ ™t¤naj° fr°na!, »! ênemo! kãt’ ˆro! drÊ!in ™mp°tvn ... Éros sacudiu meus sensos, qual vento montanha abaixo caindo sobre as árvores ...
• Fr. 51 V oÈk o‰d’ Òtti y°o: dÊo moi tå noÆmata Não sei o que faço: duas são as minhas mentes ...
• Fr. 65 V .....]...a[ .....]rome[ .....].ela! .[ .rotÆnneme[ Cãpfoi, !ef¤l[ KÊprv.i b . [a]!¤l[ k.a¤toi m°ga d.[ ˆ]!!oi! fa°yvn .[ pãntai kl°o! [ — ka¤ !’ ™nn ’Ax°r[ont ..[......] n .p . [ (...) .....]...
[
.....]
[
.....]. (...)
[ [
ó Safo, ...[ 444
ANEXO 3
Chipre (r[a]inha?)...[ embora grande (...)[ p]ara tantos brilhando [ em toda parte glória [ — e a ti no Aque[ronte ..[......] [
• Fr. 117b V a
ÖE!per’ ÈmÆnaon
b
Œ tÚn ’Ad≈nion
a
“...Ó Vésper! Ó Himeneu!”
b
“Ó para o Adônio!...”
• Fr. 130 V ÖEro! dhÔte m’ Ù lu!im°lh! dÒnei, glukÊpikron émãxanon ˆrpeton *** ÖAtyi, !o‹ d’ ¶meyen m¢n épÆxyeto front¤!dhn, ™p‹ d’ ’Androm°dan pÒth ... Éros de novo — o solta-membros — me agita, doce-amarga inelutável criatura .... *** ó Átis, mas a ti tornou-se odioso meu pensamento, e para Andrômeda alças vôo ...
• Fr. 142 V Lato ka‹ NiÒba mãla m¢n f¤lai ∑!an ¶tairai ... Leto e Níobe eram as mais queridas companheiras ... 445
GIULIANA RAGUSA
• Fr. 154 V ⊗ PlÆrh! m¢n ™fa¤net’ é !elãna, afi d’ »! per‹ b«mon ™!tãyh!an Em plenitude brilhava a lua, quando elas em torno do altar se postaram ...
• Fr. 160 V tãde nËn ™ta¤rai! ta‹! ¶mai! †t°rpna† kãlv! ée¤!v ... agora às minhas companheiras estas coisas †prazerosas† belamente cantarei ...
• Fr. 168 V Œ tÚn ÖAdvnin ... ó! por Adônis ...
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ANEXO 3
Título
Fragmentos de uma deusa A representação de Afrodite na lírica de Safo
Autora
Giuliana Ragusa
Equipe técnica Gerente de produção Preparação dos originais Revisão Secretário gráfico Editoração eletrônica Assessoria de projetos gráficos Design de capa Formato Papel Tipologia Número de páginas Laser filme
Ana Paula Gomes Daniela Lellis Grazia Maria Quagliara Ednilson Tristão Rossana Cristina Barbosa Lygia Arcuri Eluf Negrito Design 16 x 23 cm Pólen soft 80 g/m 2 – miolo Cartão supremo 250 g/m 2 – capa Sabon 448
Editora da U NICAMP
Imagem da capa Gold ring with an intaglio of Aphrodite taking up arms Signed by: Gelon; Greek, Hellenistic Period, about 310-198 b.C.; findspot: Greece, Euboia, Eretria, Tomb of the Erotes; place of manufacture: Greece; gold with garnet intaglio; length x width: 2.9 x 2.4 cm; Museum of Fine Arts, Boston; Francis Bartlett Donation, 21.1213 Photograph © 2005 Museum of Fine Arts, Boston
Editora da U NICAMP Cidade Universitária CEP 13083-892
Tel./Fax: www.editora.unicamp.br
Caixa Postal 6074 Barão Geraldo Campinas – SP – Brasil (19) 3788-7235/7786
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447
A
fragmentos de uma
frodite é uma das mais vivas divindades
– DEUSA–
da Grécia antiga em nosso imaginário. A ela, contudo, foi fixado o rótulo fácil de “deusa do amor
e da beleza”. Neste livro, Giuliana Ragusa, centrando-se na lírica arcaica de Safo, a célebre poeta da ilha de Lesbos
(séculos vii-vi a.C.), redimensiona a imagem de Afrodite, complexa e multifacetada, percorrendo, além da literatura, a história, a religião, a arqueologia e a iconografia gregas.
Giuliana Ragusa
A Representação de Afrodite na Lírica de Safo
Desse trajeto resultam cuidadosas análises, interpretações
pecializado ou não, aqui encontrará um denso e estimulante estudo, apresentado em linguagem clara e agradável, da fragmentária, porém rica, representação sáfica de Afrodite.
Giuliana Ragusa é professora de língua e literatura grega na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, onde se graduou em letras e obteve o título de mestre em letras clássicas. É doutoranda do Programa de PósGraduação em Letras Clássicas na mesma faculdade, e o projeto de pesquisa de sua tese atualmente em andamento, sobre a representação de Afrodite nos poetas líricos arcaicos, dá continuidade ao estudo apresentado neste livro.
Deusa Capa 1
fragmentos de uma deusa
mentos poéticos que chegaram até nós. Assim, o leitor, es-
A Representação de Afrodite na Lírica de Safo
e traduções dos poemas selecionados, ou melhor, dos frag-
G
iuliana ragusa traça, à vista do leitor, a figura de Afrodite a partir de 14 fragmentos da poesia lírica arcaica de Safo, em que a deusa é privilegiada. Com rigor e sensibilidade, ela apresenta os textos, faz um cuidadoso percurso pela geografia míticoreligiosa dessas peças literárias, comenta as interpretações antigas e contemporâneas e expõe sua própria leitura e traduções. O leitor estará muito bem atendido, seja ele um especialista ou um curioso informado, pois, além do tema, usufruirá de uma redação agradável e arguta. Trata-se de venturoso enlace entre um material fascinante e um estudo de grande competência.
Giuliana Ragusa
Mary de Camargo Neves Lafer
8/4/05 5:42:05 PM