Fisiologia [5 ed.] 8527733331, 9788527733335

De autoria da Professora Margarida Aires, este livro apresenta o conteúdo nacional de Fisiologia mais completo da área.

108 49 102MB

Portuguese Pages [1996] Year 2018

Report DMCA / Copyright

DOWNLOAD PDF FILE

Fisiologia [5 ed.]
 8527733331, 9788527733335

  • 0 0 0
  • Like this paper and download? You can publish your own PDF file online for free in a few minutes! Sign Up
File loading please wait...
Citation preview

■ A  autora  deste  livro  e  a  EDITORA  GUANABARA  KOOGAN  LTDA.  empenharam  seus  melhores  esforços  para  assegurar  que  as informações e os procedimentos apresentados no texto estejam em acordo com os padrões aceitos à época da publicação, e todos os dados foram atualizados pela autora até a data da entrega dos originais à editora. Entretanto, tendo em conta a evolução das ciências da saúde, as mudanças regulamentares governamentais e o constante fluxo de novas informações sobre terapêutica medicamentosa e reações adversas a fármacos, recomendamos enfaticamente que os leitores consultem sempre outras fontes fidedignas, de modo a se certificarem de que as informações contidas neste livro estão corretas e de que não houve alterações nas dosagens recomendadas ou na legislação regulamentadora. ■ A autora e a editora se empenharam para citar adequadamente e dar o devido crédito a todos os detentores de direitos autorais de qualquer  material  utilizado  neste  livro,  dispondo­se  a  possíveis  acertos  posteriores  caso,  inadvertida  e  involuntariamente,  a identificação de algum deles tenha sido omitida. ■ Direitos exclusivos para a língua portuguesa Copyright © 2018 by EDITORA GUANABARA KOOGAN LTDA. Uma editora integrante do GEN | Grupo Editorial Nacional Travessa do Ouvidor, 11 Rio de Janeiro – RJ – CEP 20040­040 Tels.: (21) 3543­0770/(11) 5080­0770 | Fax: (21) 3543­0896 www.grupogen.com.br | [email protected] ■ Reservados todos os direitos. É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, no todo ou em parte, em quaisquer formas ou por quaisquer  meios  (eletrônico,  mecânico,  gravação,  fotocópia,  distribuição  pela  Internet  ou  outros),  sem  permissão,  por  escrito, da EDITORA GUANABARA KOOGAN LTDA. ■ Capa: Editorial Saúde Produção digital: Geethik ■ Ficha catalográfica A255f 5. ed. Aires, Margarida de Mello Fisiologia / Margarida de Mello Aires. ­ 5. ed. ­ Rio de Janeiro : Guanabara Koogan, 2018. : il. ISBN 978­85­277­3401­1 1. Fisiologia humana. I. Título. 18­49076 Meri Gleice Rodrigues de Souza ­ Bibliotecária CRB­7/6439

 

CDD: 612 CDU: 612

Editores Convidados

Fernando Abdulkader

Professor Doutor do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Luciana Venturini Rossoni

Professora Associada do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Marcus Vinícius C. Baldo

Professor Associado do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Maria Oliveira de Souza

Professora Associada do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Maria Tereza Nunes

Professora Titular do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Sonia Malheiros Lopes Sanioto

Professora Livre­Docente do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Thiago S. Moreira

Professor Associado do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo.

Colaboradores

Adalberto Vieyra

Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro Nacional de Biologia Estrutural e Bioimagem (Cenabio/UFRJ). Programa de Pós­Graduação em Biomedicina Translacional da Unigranrio/Inmetro/UEZO. Adriana Castello Costa Girardi

Professora Associada do Departamento de Cardiopneumologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Ana C. Takakura

Cirurgiã­Dentista. Mestre e Doutora em Farmacologia pela Universidade Federal de São Paulo. Professora Doutora do Departamento de Farmacologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Ana Maria de Lauro Castrucci

Professora Titular (Sênior) do Departamento de Fisiologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Ana Paula Davel

Professora Doutora do Departamento de Biologia Estrutural e Funcional do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas. André L. Araujo­dos­Santos

Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro Nacional de Biologia Estrutural e Bioimagem (Cenabio/UFRJ). Andréa S. Torrão

Professora Associada do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Angelo Rafael Carpinelli

Professor Titular do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Aníbal Gil Lopes

Professor Titular aposentado do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Antonio Carlos Bianco

Professor of Medicine – Division of Endocrinology, Diabetes and Metabolism – Rush University Medical Center, Chicago, IL. Antonio Carlos Campos de Carvalho

Professor Titular do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Antonio Carlos Cassola

Professor Associado do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Antonio J. Magaldi

Médico Assistente Doutor do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) – Laboratório de Investigação Médica (LIM 12). Departamento de Clínica Médica – Disciplina Nefrologia da FMUSP. Beatriz de Carvalho Borges Del Grande

Jovem Pesquisadora do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Caroline Serrano do Nascimento

Pesquisadora do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, do Hospital Albert Einstein. Doutora em Fisiologia pelo Departamento de Fisiologia e Biofísica da Universidade de São Paulo. Celso Rodrigues Franci

Professor Titular do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Cesar Timo­Iaria (in memoriam)

Professor Titular de Fisiologia, Laboratório de Neurocirurgia Funcional da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Christina Joselevitch

Professora Doutora do Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Claudia F. Dick

Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis da UFRJ. Centro Nacional de Biologia Estrutural e Bioimagem (Cenabio/UFRJ). Cláudio A. B. Toledo (in memoriam)

Professor Associado Doutor do Núcleo de Pesquisa em Neurociências da Universidade Cidade de São Paulo. Clineu de Mello Almada Filho

Professor Afiliado da disciplina Geriatria e Gerontologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. Dalton Valentim Vassallo

Doutor em Biofísica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Emérito da Universidade Federal do Espírito Santo. Titular de Fisiologia do Departamento de Ciências Fisiológicas da Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória. Dayane Aparecida Gomes

Professora Adjunta do Departamento de Fisiologia e Farmacologia da Universidade Federal de Pernambuco. Débora Souza Faffe

Professora Associada de Fisiologia do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Deise Carla A. Leite Dellova

Professora Doutora do Departamento de Medicina Veterinária da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da Universidade de São Paulo. Dora F. Ventura

Professora Titular do Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Edna T. Kimura

Professora Titular do Departamento de Biologia Celular e do Desenvolvimento do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Eduardo Rebelato

Professor Adjunto do Departamento de Biofísica da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. Elisardo Corral Vasquez

Doutor em Fisiologia pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Professor Emérito pela Universidade Federal do Espírito Santo. Professor Titular nível 3 da Universidade Vila Velha. Emiliano Horacio Medei

Professor Associado do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fábio Bessa Lima

Professor Titular do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Fabio Fernandes Rosa

Pesquisador Associado do Paris Centre de Recherche Cardiovasculaire, Institut National de la Santé et de la Recherche Médicale, Paris, França. Fernando Marcos dos Reis

Professor Associado do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Frida Zaladek Gil

Professora Associada do Departamento de Fisiologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. Fulgencio Proverbio

Philosophus Scientiarum en Fisiología y Biofísica. Investigador Titular Emérito del Instituto Venezolano de Investigaciones Científicas. Miembro de la Academia de Ciencias de la América Latina. Gerhard Malnic

Professor Emérito do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Professor Titular do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Giovanne Baroni Diniz

Bacharel em Ciências Moleculares pela Universidade de São Paulo. Doutorando em Ciências pelo Programa de Ciências Morfofuncionais do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Glaucia Helena Fortes

Doutora em Fisiologia pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Professora Associada do Departamento de Fisiologia da Universidade de Uberaba. Guiomar Nascimento Gomes

Professora Associada do Departamento de Fisiologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. Hamilton Haddad Junior

Professor Assistente Doutor do Departamento de Fisiologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Helio Cesar Salgado

Professor Titular do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Hilton Pina

Professor Titular de Ginecologia da Universidade Federal da Bahia. Humberto Muzi­Filho

Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro Nacional de Biologia Estrutural e Bioimagem (Cenabio/UFRJ). Isis do Carmo Kettelhut

Professora Titular do Departamento de Bioquímica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Ivanita Stefanon

Professora Titular de Fisiologia do Departamento de Ciências Fisiológicas do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Espírito Santo. Jackson Cioni Bittencourt

Professor Titular do Departamento de Anatomia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Janete Aparecida Anselmo­Franci

Professora Associada do Departamento de Morfologia, Fisiologia e Patologia Básica da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Jennifer Lowe

Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro Nacional de Biologia Estrutural e Bioimagem (Cenabio/UFRJ). Joaquim Procopio

Professor Associado do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. José Antunes­Rodrigues

Professor Emérito do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. José Cipolla­Neto

Professor Titular do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. José Geraldo Mill

Professor Titular do Departamento de Ciências Fisiológicas da Universidade Federal do Espírito Santo. José Hamilton Matheus Nascimento

Professor Associado do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. José Vanderlei Menani

Professor Titular do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Odontologia de Araraquara da Universidade Estadual Paulista. Juliana Dias

Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro de Transplante de Medula Óssea do Instituto Nacional do Câncer José Alencar Gomes da Silva. Centro Nacional de Biologia Estrutural e Bioimagem (Cenabio/UFRJ). Juliano Zequini Polidoro

Mestre em Fisiologia Humana pelo Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Doutorando em Ciências Médicas pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Karina Thieme

Pós­Doutoranda na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Doutora em Fisiologia Humana pelo Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Kleber Gomes Franchini

Professor Titular do Departamento de Clínica Médica da Universidade Estadual de Campinas. Laura M. Vivas

Pesquisadora Principal do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas. Instituto de Investigación Médica Mercedes y Martín Ferreyra (INIMEC/CONICET/Universidad Nacional de Córdoba). Professora da Facultad de Ciencias Exactas Físicas y Naturales da Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Laurival Antonio De Luca Junior

Professor Titular de Fisiologia do Departamento de Fisiologia e Patologia da Faculdade de Odontologia de Araraquara da Universidade Estadual Paulista. Lisete Compagno Michelini

Professora Titular do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Lucienne S. Lara

Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro Nacional de Biologia Estrutural e Bioimagem (Cenabio/UFRJ). Lucila Leico Kagohara Elias

Professora Associada do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Lucília Maria Abreu Lessa Leite Lima

Professora Adjunta de Fisiologia Humana do Curso de Medicina da Universidade Estadual do Ceará. Pesquisadora do Instituto Superior de Ciências Biomédicas da Universidade Estadual do Ceará. Luiz Carlos Carvalho Navegantes

Professor Associado do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Luiz R. G. Britto

Professor Titular do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo.

Manassés Claudino Fonteles

Pesquisador do CNPq. Ex­Reitor da Universidade Estadual do Ceará. Ex­Reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor Emérito da Universidade Estadual do Ceará. Marcio Josbete Prado

Doutor em Urologia pela Universidade de São Paulo. Professor Associado do Departamento de Ginecologia, Obstetrícia e Reprodução Humana da Universidade Federal da Bahia. Margaret de Castro

Professora Titular do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Maria Cláudia Irigoyen

Professora Livre­Docente do Departamento de Cardiopneumologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Médica Pesquisadora da Unidade de Hipertensão do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. Maria Jose Campagnole dos Santos

Professora Titular do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Maria Luiza Morais Barreto­Chaves

Professora Associada do Departamento de Anatomia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Mariana Souza da Silveira

Professora Adjunta do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mário José Abdalla Saad

Professor Titular do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas. Marise Lazaretti­Castro

Livre­Docente. Professora Adjunta de Endocrinologia. Chefe do Setor de Doenças Osteometabólicas da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. Masako Oya Masuda

Professora Adjunta IV aposentada do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mauro César Isoldi

Professor Associado Doutor do Departamento de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Ouro Preto. Maysa Seabra Cendoroglo

Professora Adjunta da disciplina Geriatria e Gerontologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. Newton Sabino Canteras

Professor Titular do Departamento de Anatomia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Patrícia Chakur Brum

Professora Associada do Departamento de Biodinâmica do Movimento do Corpo Humano da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo. Patrícia de Oliveira Prada

Professora Associada do Curso de Nutrição da Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas. Patricia Rieken Macedo Rocco

Professora Titular de Fisiologia do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Chefe do Laboratório de Investigação Pulmonar. Membro Titular da Academia Nacional de Medicina. Membro Titular da Academia Brasileira de Ciências. Poli Mara Spritzer

Professora Titular do Departamento de Fisiologia do Instituto de Ciências Básicas da Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenadora da Unidade de Endocrinologia Ginecológica do Serviço de Endocrinologia do Hospital das Clínicas de Porto Alegre.

Priscilla Morethson

Cirurgiã­Dentista pela Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo. Doutora em Fisiologia Humana com Pós­ Doutorado em Morfofisiologia Óssea pelo Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Professora da Universidade Nove de Julho. Editora em Ciências Médicas e Odontológicas. Rafael Linden

Professor Titular do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Reinaldo Marín

Philosophus Scientiarum en Fisiología y Biofísica. Investigador Titular Emérito del Instituto Venezolano de Investigaciones Científicas. Miembro de la Academia de Ciencias de la América Latina (ACAL). Renata Gorjão

Professora Adjunta do Programa de Pós­Graduação Interdisciplinar em Ciências da Saúde da Universidade Cruzeiro do Sul. Renato de Oliveira Crajoinas

Doutor em Ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Renato Hélios Migliorini (in memoriam)

Professor Titular do Departamento de Bioquímica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Robson Augusto Souza dos Santos

Professor Emérito do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Rubens Fazan Júnior

Professor Associado do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Rui Curi

Farmacêutico­Bioquímico pela Universidade Estadual de Maringá. Professor Titular do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Professor Titular da Universidade Cruzeiro do Sul. Sergio Luiz Cravo

Professor Associado do Departamento de Fisiologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. Silvia Lacchini

Professora Doutora do Departamento de Anatomia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Affiliate Professor, Institute of Cardiovascular and Medical Sciences, University of Glasgow. Silvia Passos Andrade

Professora Titular do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Solange Castro Afeche

Doutora em Fisiologia Humana pelo Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Pesquisadora nível VI do Laboratório de Farmacologia do Instituto Butantan. Ubiratan Fabres Machado

Professor Titular do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Valdo José Dias da Silva

Doutor em Fisiologia pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Professor Titular de Fisiologia do Instituto de Ciências Biológicas e Naturais da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Wagner Ricardo Montor

Professor Adjunto do Departamento de Ciências Fisiológicas da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Walter Araujo Zin

Professor Titular de Fisiologia do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Chefe do Laboratório de Fisiologia da Respiração. Wamberto Antonio Varanda

Professor Titular aposentado do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

Prefácio

É  uma  grande  satisfação  lançar  a  quinta  edição  de Fisiologia.  Temos  orgulho  de,  neste  período,  termos  colaborado para  a  sólida  formação  básica  de  nossos  estudantes  de  graduação  e  pós­graduação,  ensinando­lhes  o  raciocínio  e  o julgamento  científico  exato  a  partir  de  dados  experimentais  criteriosos  para  que  sejam  profissionais  relevantes  em  seu meio de ação. O  texto  de  Fisiologia  é  didático  e  objetivo,  porém  não  superficial.  Visa  fornecer  um  ensino  mais  formativo  que informativo,  em  que  os  mecanismos  fisiológicos  são  apresentados  e  discutidos  para  serem  realmente  entendidos  e aplicados na futura vida profissional dos estudantes. Entretanto, a abrangência do texto tenta ser adequada ao tempo que os alunos dispõem para o estudo. No mundo contemporâneo, o capital moderno é o conhecimento – base para uma diferença de tecnologia que ajudará nosso  país  a  alcançar  a  tão  desejada  maturidade  científica,  cultural  e  social.  Como  tudo  o  que  acontece  hoje  é  rápido  e intenso, a tarefa de elaborar um conteúdo atual tem­se mostrado cada vez mais árdua, e por isso decidimos convidar novos editores  responsáveis,  escolhidos  pela  competência  científica  e  didática  em  vários  sistemas  fisiológicos,  que  se empenharão para que nossos alunos sempre recebam informações imediatas sobre as importantes descobertas que surgem em seu campo de conhecimento. Além  disso,  capítulos  e  seções  foram  inteiramente  revisados,  atualizados  ou  reescritos,  como  é  o  caso de  Excitabilidade  Celular  e  Potencial  de  Ação;  ATPases  de  Transporte;  Controle  da  Ventilação;  Contratilidade Miocárdica; Visão Contemporânea do Sistema Renina­Angiotensina II e Angiotensina­(1­7); Fisiologia do Metabolismo Osteomineral  |  Dentes;  Circulação  Arterial  e  Hemodinâmica  |  Física  dos  Vasos  Sanguíneos  e  da  Circulação; e Desreguladores Endócrinos. Para  que  os  alunos  se  entusiasmem  ao  descobrir  o  empenho  e  a  dedicação  de  alguns  de  nossos  mais  importantes fisiologistas,  também  apresentamos  nesta  edição  os  currículos  dos  mais  destacados  fisiologistas  brasileiros contemporâneos. Agradecemos  a  todos  os  que  colaboraram  para  a  elaboração  desta  obra  e,  em  especial,  aos  autores  convidados,  à Guanabara Koogan, integrante do GEN | Grupo Editorial Nacional, representada por Juliana Affonso, Tatiane Carreiro e Priscila Cerqueira no Rio de Janeiro, e por Dirce Laplaca e Renata Giacon em São Paulo, e aos estudantes e professores que contribuíram com novas ideias e sugestões. Críticas e novas informações serão bem acolhidas e tornarão possível o aprimoramento de futuras edições. Manifesto também profunda gratidão ao meu querido esposo, Fernando da Cruz Lopes, pela compreensão, carinho e ajuda que vem me oferecendo durante a quimioterapia para recuperação do linfoma que me acometeu nos últimos quatro anos. Agradeço  igualmente  aos  componentes  do  Laboratório  de  Oncologia  do  Hospital  Sírio­Libanês,  liderado  pela  Dra. Yana Augusta Novis Zogbi, e à sua competente e dedicada equipe: Dra. Mariana Gomes Serpa, Dr. Erick Menezes Xavier, Dra. Michelly Kerly Sampaio de Melo e Dr. Guilherme Brasil Amarante. Tudo o que fizerdes, fazei­o de coração, como para o Senhor, e não para os homens. (Colossenses 3:23) Margarida de Mello Aires

Material Suplementar

Este livro conta com o seguinte material suplementar: ■ Ilustrações da obra em formato de apresentação (restrito a docentes). O  acesso  ao  material  suplementar  é  gratuito.  Basta  que  o  leitor  se  cadastre  e  faça  seu  login  em nosso site (www.grupogen.com.br), clicando em GEN­IO, no menu superior do lado direito. É  rápido  e  fácil.  Caso  haja  alguma  mudança  no  sistema  ou  dificuldade  de  acesso,  entre  em  contato  conosco ([email protected]).

Sumário

Homenagem a Fisiologistas Brasileiros Contemporâneos Uma Breve História da Fisiologia Coordenador: Marcus Vinícius C. Baldo História Geral da Fisiologia Hamilton Haddad Junior

As Origens da Fisiologia no Brasil Marcus Vinícius C. Baldo | Cesar Timo­Iaria (in memoriam) | Margarida de Mello Aires

Seção 1 Meio Interno e Homeostase Coordenadora: Maria Oliveira de Souza 1

Homeostase, Regulação e Controle em Fisiologia Gerhard Malnic

2

Compartimentalização dos Líquidos do Organismo Gerhard Malnic

3

Sinalização Celular Mauro César Isoldi | Ana Maria de Lauro Castrucci

4

Fisiologia dos Compartimentos Intracelulares | Via Secretora Karina Thieme

5

Ritmos Biológicos Solange Castro Afeche | José Cipolla­Neto

6

Fisiologia do Músculo Esquelético Andréa S. Torrão | Luiz R. G. Britto

Seção 2 Transporte Através da Membrana Coordenador: Fernando Abdulkader 7

Membrana Celular Wamberto Antonio Varanda

8

Difusão, Permeabilidade e Osmose Fulgencio Proverbio | Reinaldo Marín

9

Gênese do Potencial de Membrana, Excitabilidade Celular e Potencial de Ação Gênese do Potencial de Membrana Joaquim Procopio Excitabilidade Celular e Potencial de Ação Fernando Abdulkader

10

Canais para Íons nas Membranas Celulares Antonio Carlos Cassola

11

Transportadores de Membrana Maria Oliveira de Souza

12

ATPases de Transporte Adalberto Vieyra | Jennifer Lowe | Lucienne S. Lara | Humberto Muzi­Filho | Claudia F. Dick | André L. Araujo­dos­ Santos | Juliana Dias

Seção 3 Equilíbrio Acidobásico Coordenador: Fernando Abdulkader 13

Regulação do pH do Meio Interno Gerhard Malnic | Wagner Ricardo Montor

Seção 4 Neurofisiologia Coordenador: Marcus Vinícius C. Baldo 14

Sinalização Neuronal Rafael Linden

15

Transmissão Sináptica Rafael Linden | Mariana Souza da Silveira

16

Organização Geral dos Sistemas Sensoriais Marcus Vinícius C. Baldo

17

Somestesia Marcus Vinícius C. Baldo

18

Propriocepção Marcus Vinícius C. Baldo

19

Audição Marcus Vinícius C. Baldo

20

Gustação e Olfação Marcus Vinícius C. Baldo

21

Visão Marcus Vinícius C. Baldo | Dora F. Ventura | Christina Joselevitch

22

Sistemas Geradores de Movimento Luiz R. G. Britto

23

Cerebelo, Núcleos da Base e Movimento Voluntário Cláudio A. B. Toledo (in memoriam) | Luiz R. G. Britto

24

Sistemas Neurovegetativos Sergio Luiz Cravo

25

Bases Neurais dos Comportamentos Motivados e das Emoções Newton Sabino Canteras

26

Controle Neuroendócrino do Comportamento Alimentar Beatriz de Carvalho Borges Del Grande | Giovanne Baroni Diniz | Jackson Cioni Bittencourt

Seção 5 Fisiologia Cardiovascular

Coordenadora: Luciana Venturini Rossoni 27

Estrutura e Função do Sistema Cardiovascular Silvia Lacchini | Maria Cláudia Irigoyen | Luciana Venturini Rossoni

28

Eletrofisiologia do Coração José Hamilton Matheus Nascimento | Emiliano Horacio Medei | Antonio Carlos Campos de Carvalho | Masako Oya Masuda

29

Bases Fisiológicas da Eletrocardiografia José Geraldo Mill

30

Contratilidade Miocárdica Dalton Valentim Vassallo | Ivanita Stefanon

31

O Coração como Bomba José Geraldo Mill | Elisardo Corral Vasquez

32

Circulação Arterial e Hemodinâmica | Física dos Vasos Sanguíneos e da Circulação Eduardo Rebelato | Ana Paula Davel | Helio Cesar Salgado

33

Vasomotricidade e Regulação Local de Fluxo Lisete Compagno Michelini | Luciana Venturini Rossoni | Ana Paula Davel

34

Aspectos Morfofuncionais da Microcirculação Robson Augusto Souza dos Santos | Maria Jose Campagnole dos Santos | Silvia Passos Andrade

35

Veias e Retorno Venoso Helio Cesar Salgado | Rubens Fazan Júnior | Valdo José Dias da Silva

36

Circulações Regionais Circulação Coronariana Kleber Gomes Franchini | Luciana Venturini Rossoni Circulação Renal Renato de Oliveira Crajoinas | Adriana Castello Costa Girardi | Juliano Zequini Polidoro Circulação para a Musculatura Esquelética Patrícia Chakur Brum Circulação Esplâncnica Patrícia Chakur Brum Circulação Cerebral Glaucia Helena Fortes | Valdo José Dias da Silva Circulação Cutânea Valdo José Dias da Silva | Glaucia Helena Fortes Circulação Pulmonar Margarida de Mello Aires Circulação Fetal Luciana Venturini Rossoni

37

Regulação da Pressão Arterial | Mecanismos Neuro­Hormonais Lisete Compagno Michelini

38

Regulação a Longo Prazo da Pressão Arterial Lisete Compagno Michelini | Kleber Gomes Franchini

Seção 6 Fisiologia da Respiração

Coordenador: Thiago S. Moreira 39

Organização Morfofuncional do Sistema Respiratório Walter Araujo Zin | Patricia Rieken Macedo Rocco | Débora Souza Faffe

40

Movimentos Respiratórios Walter Araujo Zin | Patricia Rieken Macedo Rocco | Débora Souza Faffe

41

Volumes e Capacidades Pulmonares | Espirometria Walter Araujo Zin | Patricia Rieken Macedo Rocco | Débora Souza Faffe

42

Mecânica Respiratória Walter Araujo Zin | Patricia Rieken Macedo Rocco | Débora Souza Faffe

43

Ventilação Alveolar, Distribuição da Ventilação, da Perfusão e da Relação Ventilação­Perfusão Walter Araujo Zin | Patricia Rieken Macedo Rocco | Débora Souza Faffe

44

Difusão e Transporte de Gases no Organismo Walter Araujo Zin | Patricia Rieken Macedo Rocco | Débora Souza Faffe

45

Controle da Ventilação Thiago S. Moreira | Ana C. Takakura

46

Regulação Respiratória do Equilíbrio Acidobásico Walter Araujo Zin | Patricia Rieken Macedo Rocco | Débora Souza Faffe

47

Mecanismos de Defesa das Vias Respiratórias Walter Araujo Zin | Patricia Rieken Macedo Rocco | Débora Souza Faffe

48

Fisiologia Respiratória em Ambientes Especiais Walter Araujo Zin | Patricia Rieken Macedo Rocco | Débora Souza Faffe

Seção 7 Fisiologia Renal Coordenadora: Maria Oliveira de Souza 49

Visão Morfofuncional do Rim Margarida de Mello Aires

50

Hemodinâmica Renal Margarida de Mello Aires

51

Função Tubular Margarida de Mello Aires

52

Excreção Renal de Solutos Margarida de Mello Aires

53

Papel do Rim na Regulação do Volume e da Tonicidade do Líquido Extracelular Margarida de Mello Aires

54

Papel do Rim na Regulação do pH do Líquido Extracelular Margarida de Mello Aires

55

Rim e Hormônios Sistema Renina­Angiotensina Maria Luiza Morais Barreto­Chaves | Margarida de Mello Aires Aldosterona | Ações Renais Genômicas e Não Genômicas Deise Carla A. Leite Dellova Peptídios Natriuréticos

Maria Luiza Morais Barreto­Chaves | Dayane Aparecida Gomes Outras Substâncias Vasodilatadoras com Ação Renal | Óxido Nítrico, Prostaglandinas e Bradicinina Guiomar Nascimento Gomes Hormônio Antidiurético (ADH) Antonio J. Magaldi Hormônio Paratireoidiano (PTH) Frida Zaladek Gil Eritropoetina Aníbal Gil Lopes Uroguanilina Lucília Maria Abreu Lessa Leite Lima | Manassés Claudino Fonteles Endotelinas Maria Oliveira de Souza 56

Distúrbios Hereditários e Transporte Tubular de Íons Aníbal Gil Lopes

57

Fisiologia da Micção Marcio Josbete Prado | Hilton Pina

Seção 8 Fisiologia do Sistema Digestório Coordenadora: Sonia Malheiros Lopes Sanioto 58

Visão Geral do Sistema Digestório Sonia Malheiros Lopes Sanioto

59

Regulação Neuro­Hormonal do Sistema Digestório Sonia Malheiros Lopes Sanioto

60

Motilidade do Sistema Digestório Sonia Malheiros Lopes Sanioto

61

Secreções do Sistema Digestório Sonia Malheiros Lopes Sanioto

62

Digestão e Absorção de Nutrientes Orgânicos Sonia Malheiros Lopes Sanioto

63

Absorção Intestinal de Água e Eletrólitos Maria Oliveira de Souza | Sonia Malheiros Lopes Sanioto

Seção 9 Fisiologia Endócrina Coordenadora: Maria Tereza Nunes 64

Introdução à Fisiologia Endócrina Ubiratan Fabres Machado | Maria Tereza Nunes

65

Hipotálamo Endócrino Maria Tereza Nunes

66

Glândula Hipófise Maria Tereza Nunes

67

Glândula Pineal José Cipolla­Neto | Solange Castro Afeche

68

Glândula Tireoide Edna T. Kimura

69

Glândula Suprarrenal Lucila Leico Kagohara Elias | Fabio Fernandes Rosa | José Antunes­Rodrigues | Margaret de Castro

70

Pâncreas Endócrino Angelo Rafael Carpinelli | Patrícia de Oliveira Prada | Mário José Abdalla Saad

71

Gônadas Sistema Genital Masculino Poli Mara Spritzer | Fernando Marcos dos Reis Sistema Genital Feminino Celso Rodrigues Franci | Janete Aparecida Anselmo­Franci

72

Moléculas Ativas Produzidas por Órgãos Não Endócrinos Fábio Bessa Lima | Renata Gorjão | Rui Curi

73

Crescimento e Desenvolvimento Maria Tereza Nunes

74

Controle Hormonal e Neural do Metabolismo Energético Isis do Carmo Kettelhut | Luiz Carlos Carvalho Navegantes | Renato Hélios Migliorini (in memoriam)

75

Controle Neuroendócrino do Balanço Hidreletrolítico José Antunes­Rodrigues | Lucila Leico Kagohara Elias | Margaret de Castro | Laurival Antonio De Luca Junior | Laura M. Vivas | José Vanderlei Menani

76

Fisiologia do Metabolismo Osteomineral Marise Lazaretti­Castro | Antonio Carlos Bianco | Priscilla Morethson

Os Dentes Priscilla Morethson 77

Fisiologia da Reprodução Janete Aparecida Anselmo­Franci | Poli Mara Spritzer | Celso Rodrigues Franci

78

Desreguladores Endócrinos Caroline Serrano do Nascimento | Maria Tereza Nunes

Seção 10 Fisiologia do Desenvolvimento Humano Coordenadora: Margarida de Mello Aires 79

Fisiologia do Neonato Frida Zaladek Gil

80

Fisiologia do Envelhecimento Humano Clineu de Mello Almada Filho | Maysa Seabra Cendoroglo

Homenagem a Fisiologistas Brasileiros Contemporâneos

Prof. Pedro Gaspar Guertzenstein (in memoriam) Prof.ª Maria Marques Prof. Gerhard Malnic Prof. Eduardo Moacyr Krieger Prof. Robson Augusto dos Santos Prof. José Antunes­Rodrigues

História Geral da Fisiologia Hamilton Haddad Junior

As Origens da Fisiologia no Brasil Marcus Vinícius C. Baldo Cesar Timo­Iaria (in memoriam) Margarida de Mello Aires

História Geral da Fisiologia Hamilton Haddad Junior

INTRODUÇÃO

▸ Por que estudar a história da fisiologia? Todos conhecemos ou pelo menos já ouvimos falar de cientistas como Galileu, Newton ou Einstein. Aprendemos na escola  as  contribuições  para  a  química  de  Boyle  e  Lavoisier.  Mas  será  que  nomes  de  grandes  fisiologistas,  tais  como William  Harvey  ou  Claude  Bernard,  nos  são  também  tão  familiares?  Será  que  levamos  em  conta  que  Boyle  e  Lavoisier também  realizaram  importantes  descobertas  para  a  fisiologia?  Provavelmente  não.  Estas  comparações  simples  refletem uma enorme discrepância entre o valor que normalmente damos à história da física e da química em relação à história de outras  ciências  naturais,  como  a  fisiologia.  Na  verdade,  a  história  da  fisiologia  tem  sofrido  uma  sistemática  negligência tanto por parte dos historiadores quanto por parte dos que a praticam: os próprios fisiologistas. Essa negligência não se justifica por vários motivos. Primeiro, porque a fisiologia ocidental é tão antiga quanto a física e a química – todas com origem  nos  primeiros  pensadores  gregos.  Segundo,  porque  essas  disciplinas  provavelmente  tinham  e  têm  equivalente relevância para a sociedade ao longo da história. Por fim, a história da fisiologia é tão interessante e instigante que, ao nos debruçarmos  sobre  ela,  nos  deparamos  com  uma  aventura  digna  de  qualquer  romance  épico.  Este,  por  si  só,  seria  um motivo para estudá­la. O que fazemos hoje dentro dos laboratórios de pesquisa foi e é determinado historicamente, estando inexoravelmente inserido em uma tradição de pesquisa que possui suas raízes em épocas remotas. Olhando para o passado, podemos aguçar

a  visão  crítica  sobre  a  pesquisa  atual,  procurando  sempre  evitar  cometer  os  erros  de  nossos  predecessores.  Estudar  a história  de  qualquer  ciência  é  dar  a  ela  uma  dimensão  temporal;  é  inseri­la  dentro  da  história  da  sociedade,  abrindo  as portas  para  uma  compreensão  mais  ampla  de  suas  práticas  atuais.  Além  disso,  ao  contrastar  essa  imagem  dinâmica  do projeto  científico  contra  a  imagem  de  uma  ciência  estática  e  a­histórica,  nos  damos  conta  de  que  nossas  descobertas  e contribuições serão também um dia substituídas por outras, em um processo que provavelmente nunca findará. Antes  de  iniciarmos  nossa  jornada,  convêm  alguns  esclarecimentos.  Não  se  pretende  aqui  contar  a  história  da fisiologia (considerando­se que isso fosse possível), mas uma história da fisiologia. Para tanto, uma angustiante seleção de  fatos,  personagens  e  teorias  teve  de  ser  realizada,  de  modo  que  o  que  será  apresentado  constitui  uma  fina  fatia  do imenso  bolo  de  acontecimentos  dessa  disciplina.  Procurou­se  dar  relevância  às  ideias  e  teorias  por  trás  dos  cientistas  e suas  descobertas,  em  vez  de  uma  simples  cronologia  de  fatos  e  datas.  Procurou­se  também,  na  medida  do  possível, relacionar as principais descobertas fisiológicas com o contexto social e cultural da época, bem como sua relação com as descobertas  ocorridas  em  outras  ciências  e  em  outros  ramos  do  saber,  tais  como  a  filosofia  e  a  arte.  Obviamente,  a intenção  do  presente  texto  não  é,  de  longe,  esgotar  o  assunto  em  questão,  mas  incentivar  o  gosto  e  a  pesquisa  dessa fascinante área, na esperança de que no futuro possamos corrigir a dívida que temos para com a história da disciplina.

▸ Antiguidade clássica Primeiros pensadores: os physiologói “A  água  é  o  princípio  de  tudo”,  teria  dito  o  primeiro  filósofo  da  história  ocidental:  Tales  de  Mileto.  Outros  o seguiram, como Anaxímenes, que identificou o princípio de todas as coisas no ar, ou Heráclito, que disse que tudo vinha do  fogo.  Esses  primeiros  pensadores  são  alguns  dos  chamados  filósofos  pré­socráticos,  que  viveram  na  Grécia  entre  os séculos VII e IV antes de Cristo. O centro de suas investigações foi a natureza. A busca por uma explicação racional para os fenômenos naturais os levou a tentar descobrir a origem, o princípio absoluto do qual tudo deriva; em grego, o arkhé. Sabemos  atualmente  que  água,  ar  e  fogo  não  são  a  origem  de  tudo  o  que  existe.  Entretanto,  longe  de  serem  soluções ingênuas,  a  ideia  de  que  pode  ser  possível  explicar  a  complexidade  dos  fenômenos  naturais  com  base  em  princípios simples  e  universais  é  um  objetivo  incansavelmente  buscado  pela  ciência  até  os  dias  atuais.  Quando  utilizamos  um conjunto  de  equações  que  descreve  a  queda  de  um  lápis  e,  ao  mesmo  tempo,  é  capaz  de  colocar  um  satélite  em  órbita, estamos,  de  certa  maneira,  fazendo  isso.  Esses  primeiros  investigadores  estavam,  portanto,  imbuídos  do  mais  puro espírito  científico,  de  modo  que  podemos  considerá­los  tanto  os  primeiros  filósofos  quanto  os  primeiros  cientistas.  A palavra grega phýsis designa a totalidade da natureza, isto é, tudo o que existe (incluindo o ser humano). Ela deu origem tanto  à  palavra física  quanto  à  fisiologia.  No  entanto,  a  distinção  entre  essas  duas  disciplinas,  uma  relacionada  com  o funcionamento do universo e a outra relacionada com o funcionamento do organismo, só foi realizada séculos mais tarde. Dessa maneira, os filósofos pré­socráticos, interessados no estudo da natureza como um todo, podem ser considerados os primeiros physiologói, ou fisiólogos: os “estudantes da natureza”. Citamos  alguns  filósofos  que  conceberam  a  phýsis  como  unitária,  isto  é,  propuseram  um  princípio  único  para  a natureza.  Entretanto,  outros  pensadores  pré­socráticos  adotaram  soluções  pluralistas,  como  foi  o  caso  do  filósofo  e médico  Empédocles.  Para  ele,  tudo  o  que  existe  seria  composto  por  uma  mistura  de  quatro  elementos:  ar,  água,  terra  e fogo,  as  “raízes  de  todas  as  coisas”.  Estas  quatro  essências  fundamentais  seriam  unidas  e  separadas  por  duas  forças opostas, o amor (philía) e o ódio (neîkos), atração e repulsão. Outros filósofos, como Leucipo e Demócrito, sugeriram a ideia,  tão  ousada  quanto  fabulosa,  de  que  tudo  seria  constituído  de  espaço  vazio,  no  qual  se  movimentariam  partículas sólidas indivisíveis: os átomos (do grego tomo, que significa divisão; a­tomo: aquilo que não se divide). A teoria atômica era  uma  teoria  materialista  e  mecanicista,  pois  tentava  explicar  a  complexidade  dos  fenômenos  naturais  em  termos  de matéria  e  movimento.  O  perpétuo  movimento  inerente  aos  átomos  no  vácuo  era  concebido  como  o  resultado  de  um mecanismo  de  causa  e  efeito,  resultado  das  colisões  entre  eles.  A  mecanicidade,  esse  aspecto  fundamental  da  proposta atomista, presente também na teoria de Empédocles, provocou uma grande reação nos pensadores que o sucederam.

▸ Medicina grega A  medicina  grega  floresceu  na  mesma  época  dos  pré­socráticos.  Além  da  escola  de  Empédocles,  outras  duas importantes  escolas  médicas  surgiram  nesse  período.  A  primeira  foi  fundada  por  Alcmeão,  nativo  de  Crotona,  uma colônia  grega  situada  no  litoral  da  Itália.  Consta  que  Alcmeão  realizou  algumas  dissecções  em  animais  e  que  concebia  a saúde  como  um  equilíbrio  de  forças  dentro  do  organismo.  Essa  ideia  de  balanço,  ou  igualdade  de  potências  (isonomia),

também presente no pensamento de Empédocles, representa provavelmente uma influência do pré­socrático Pitágoras, que identificava a natureza com números, em um sistema ordenado e harmonioso de proporções. A fundação da medicina como uma disciplina racional e científica está associada, no entanto, principalmente à figura de Hipócrates (Figura 1). Pouco se sabe a seu respeito; provavelmente nasceu na ilha de Cós, onde fundou uma escola, e viveu entre os anos 460 e 370 a.C. O conjunto de sua extensa obra forma o Corpus Hippocraticus, embora se admita que grande  parte  dela  tenha  sido  escrita  por  seus  colegas  e  seguidores.  Na  famosa  obra  Sobre  a  Natureza  dos  Homens,  é exposto  o  pensamento  fisiológico  da  escola  hipocrática.  Ele  se  baseava  na  doutrina  dos  “quatro  humores”  ou  sucos (khymós).  Segundo  essa  teoria,  o  corpo  humano  seria  constituído  por  uma  mistura  de  quatro  fluidos,  ou  humores:  o sangue, a fleuma, a bile amarela e a bile negra. Cada um desses humores estaria associado a um dos elementos essenciais (fogo,  água,  ar  e  terra,  respectivamente)  e  possuiria  um  par  dentre  quatro  características:  quente,  frio,  seco  e  úmido. Assim,  o  sangue  seria  quente  e  úmido;  a  fleuma,  fria  e  úmida;  a  bile  amarela,  quente  e  seca,  e  a  bile  negra,  fria  e  seca (Figura  2).  Em  um  organismo  saudável  esses  quatro  humores  estariam  misturados  de  maneira  equilibrada;  já  a  doença seria  o  excesso  ou  a  falta  de  um  desses  fluidos,  ou  seja,  um  desequilíbrio.  Na  saúde,  o  organismo  estaria,  portanto, em eukrasia (eu: boa, krásis: fusão, mistura); na doença, em dyskrasia. Posteriormente, essa doutrina deu origem à ideia dos quatro temperamentos, de acordo com a predominância de um desses humores no organismo. Uma pessoa poderia ter um temperamento sanguíneo, fleumático, colérico (em caso de excesso de bile amarela, ou kholé) ou melancólico (excesso de  bile  negra,  a  atrabílis,  chamada  em  grego  de mélaina kholé).  Hipócrates  e  a  doutrina  dos  quatro  humores  exerceram enorme influência na medicina ocidental – mesmo após a Renascença – avançando até meados do século XVIII. Podemos ainda  hoje  observar  seus  ecos  em  nossa  linguagem  cotidiana,  quando  dizemos,  por  exemplo,  que  alguém  está  bem­ humorado ou de mau humor.

Figura 1 ■ Hipócrates, representado por um artista bizantino. Nas mãos, o médico grego carrega um livro contendo um de seus mais famosos aforismos: “A vida é curta, a arte é longa.” (Adaptada de Inglis, 1968.)

Figura 2 ■ Esquema da doutrina humoral, ponto central na fisiologia hipocrática.

▸ Platão e Aristóteles Antes  de  continuarmos  nossa  jornada,  é  imprescindível  examinarmos  de  maneira  mais  detida  as  ideias  de  dois filósofos que, juntos, representam o apogeu e a síntese do pensamento grego: Platão e Aristóteles. Ambos devotaram suas pesquisas  a  praticamente  todos  os  ramos  do  conhecimento,  incluindo  a  cosmologia,  a  física,  a  teologia,  a  lógica,  a matemática,  a  política,  a  ética  e  a  estética.  Apesar  de  ambos  terem  escrito  sobre  o  assunto,  a  fisiologia  não  foi  o  foco principal  de  suas  investigações.  Entretanto,  suas  ideias  teóricas  e  metodológicas  praticamente  dominaram  o  panorama científico  e  filosófico  dos  dois  milênios  seguintes,  consequentemente  influenciando  de  maneira  marcante  a  prática fisiológica desse período. Platão  (427­347  a.C.)  viveu  em  Atenas,  principal  polo  político  e  cultural  da  época,  e  foi  discípulo  de Sócrates.1  Praticamente  toda  sua  obra  é  constituída  por  diálogos,  nos  quais  Sócrates  é,  quase  sempre,  o  personagem principal. O diálogo em que Platão apresenta sua física e sua fisiologia é o Timeu, escrito já na sua maturidade. A primeira coisa  que  nos  chama  a  atenção  nesse  diálogo,  no  qual  Timeu  expõe  a  Sócrates  sua  cosmologia,  é  o  paralelismo  entre  o macrocosmo  (universo)  e  o  microcosmo  (ser  humano).  O  organismo  seria  um  pequeno  universo;  este,  por  sua  vez,  é concebido como um grande organismo vivo, um “animal dotado de alma e de razão”. Segundo Platão, o ser humano e o universo seriam cópias moldadas por um artífice divino, um demiurgo que utilizou como molde formas ideais e eternas. Tanto  o  mundo  quanto  o  ser  humano  teriam  uma  alma  que  comandaria  a  matéria,  esta  formada  pelos  quatro  elementos: terra, fogo, água e ar. A fisiologia contida no Timeu é  baseada  em  uma  divisão  tripartida  da  alma  humana,  que  teria  uma  porção  imortal  e outra  mortal.  A  porção  imortal  seria  divina  e  a  mais  nobre,  uma  reprodução  microcósmica  da  alma  do  mundo;  estaria situada  na  cabeça,  resultando  daí  seu  formato  esférico.  Essa  parte  da  alma  seria  racional  e  capaz  de  aquisição  de conhecimento, além de ser responsável por comandar a porção mortal. Situada no tronco, a alma mortal seria dividida em duas partes. Uma porção irascível, ou colérica, situada acima do diafragma, em torno do coração e dos pulmões; ela seria

capaz de sentir ira, participando, assim, da coragem do ser humano para enfrentar seus inimigos. A outra porção da alma mortal seria a apetitiva, situada entre o diafragma e o umbigo (distante da porção racional), e buscaria alimentos e bebidas, cuidando das funções nutricionais do corpo. O estômago, o intestino, o fígado e o baço seriam comandados por essa parte da alma. Utilizando esse esquema, Platão construirá sua fisiologia, na qual a respiração desempenha um papel central. O ar inspirado servirá para resfriar o coração, que possui um calor inato e ferve em momentos de cólera. Osmovimentos de inspiração  e  expiração  seriam  responsáveis  pela  circulação  do  sangue  nas  artérias  e  veias.  Esses  movimentos  seriam  o resultado de um complexo processo mecânico causado por correntes dos elementos fogo e ar. O sangue seria produzido no estômago, pela transformação (digestão) dos alimentos por meio da ação do fogo, e subiria em direção à cabeça em dois grandes vasos. É interessante notarmos que Platão, como seus contemporâneos, não fazia distinção entre artérias e veias, e não conhecia a contração muscular do coração como propulsora do movimento sanguíneo. A  medula  espinal  desempenha  um  papel  fundamental  no  esquema  platônico.  É  a  partir  dela,  que  contém  as  três espécies de alma, que seriam formadas as outras partes do organismo humano. Ela seria o elemento primordial, a ligação da  alma  com  o  corpo,  a  “semente  universal  de  toda  espécie  sujeita  a  morte”.  Platão  indica  a  existência  de  um  canal, ligando  a  medula  aos  órgãos  sexuais,  por  onde  passariam  as  sementes  (o  sêmen)  do  homem.  Essa  ideia  ganhou  adeptos até na Renascença, como podemos observar em alguns desenhos de Leonardo da Vinci (ver Figura 6, adiante). Aristóteles (384­321 a.C.) nasceu na cidade de Estagira, situada na península da Calcídica, território macedônico. Aos dezoito anos, foi para Atenas estudar na Academia de Platão, tornando­se seu discípulo por vinte anos. Após a morte do mestre,  deixa  a  Academia  e  realiza  algumas  viagens.  Em  uma  delas,  aceita  a  tarefa  de  ir  à  Macedônia  ser  preceptor  do jovem Alexandre, futuro imperador. De volta a Atenas, o estagirita funda sua própria escola, o Liceu. Sem dúvida alguma, Aristóteles  foi  o  maior  biólogo  da  Antiguidade.  O  fato  de  seu  pai  ter  sido  médico  na  corte  macedônica  certamente contribuiu para que esse assunto se tornasse um de seus principais interesses. Sua obra contém a descrição de centenas de espécies  animais,  nalgumas  das  quais  ele  provavelmente  realizou  dissecções.  Também  foi  pioneiro  na  realização  de  uma extensa  e  detalhada  classificação  dos  seres  vivos,  formando  uma scala  naturae  (escala  natural).  Assim  como  nos  pré­ socráticos, o estudo da phýsis foi uma preocupação central em suas investigações. A Terra ocupa o centro de seu universo, que  é  dividido  em  duas  grandes  regiões:  supralunar  e  sublunar.  Tudo  que  está  acima  da  Lua  seria  composto  por  uma quinta­essência:  o  éter.  Nessa  região,  caracterizada  pela  perfeição,  os  corpos  celestes  estariam  em  eterno  movimento circular,  formando  esferas  concêntricas  em  torno  da  Terra.  Já  abaixo  da  Lua,  tudo  seria  composto  por  uma  mistura  dos quatro  elementos  (terra,  fogo,  água  e  ar),  e  estaria  sujeito  à  geração  e  à  destruição,  a  um  começo  e  um  fim.  No  mundo sublunar,  o  movimento  natural  do  fogo  e  do  ar  tenderia  para  o  alto.  Já  os  corpos  pesados,  que  conteriam  os  elementos terra e água, tenderiam a ir para o centro do universo, que coincidiria com o centro da Terra. Uma característica central da filosofia natural aristotélica é o problema do movimento e da mudança. Por que as coisas mudam  de  lugar,  de  qualidade  ou  de  quantidade?  Por  que  as  coisas  aparecem  e  desaparecem,  nascem  e  perecem?  Na principal  obra  em  que  trata  desse  tema,  a  Física,  Aristóteles  afirma  que  só  podemos  conhecer  a  natureza  quando conhecermos as causas da permanência e da mudança: “conhecer é conhecer as causas”. Aristóteles admitia a existência de quatro tipos de causas. A causa material seria responsável pela matéria da qual um ser é constituído, isto é, aquilo de que uma coisa é feita. A causa formal corresponderia à essência, ou natureza do ser. A causa eficiente seria responsável pela presença de uma forma em uma determinada matéria, ou seja, uma causa mecânica, origem imediata de um movimento ou repouso. Finalmente, causa final representaria o motivo, a finalidade da existência de alguma coisa. Essas quatro causas apresentariam uma hierarquia de importância, sendo o conhecimento das causas finais e formais superior e mais valioso do  que  o  das  causas  materiais  e  eficientes.  No  caso  dos  animais,  por  exemplo,  Aristóteles  considera  que  a  presença  de uma determinada forma na matéria deve­se a uma causa mecânica imediata (eficiente), mas que obedece a uma finalidade última presente na natureza (Quadro 1). A teleologia está, assim, no centro de sua fisiologia. Na obra As Partes dos Animais, Aristóteles marca posição contra explicações  fisiológicas  mecanicistas,  como  as  de  Empédocles  e  Demócrito,  afirmando  categoricamente  que,  para  o fisiólogo,  as  causas  finais  são  mais  importantes  que  as  eficientes.  Ao  estudar  uma  parte  de  um  animal  –  um  órgão,  por exemplo  –  o  fisiólogo  deve  buscar  explicar  “em  vista  de  que”  aquele  órgão  existe,  ou  seja,  qual  a  sua  finalidade,  qual  a sua função. Como exemplo, ele nos diz que quando analisamos o trabalho de um carpinteiro, não estamos interessados na força e no ângulo com o qual ele desfere seus golpes na madeira (causa eficiente), mas sim na razão, no objetivo final pelo qual ele está esculpindo. Para Aristóteles, a reprodução tem importância fundamental, visto que ela garante a perpetuação da  forma,  da  essência  da  espécie,  consistindo  em  uma  das  evidências  mais  claras  a  favor  da  existência  da  finalidade  na natureza.  Dessa  maneira,  ele  investigou  arduamente  o  problema  da  reprodução  e  do  crescimento,  analisando  o desenvolvimento de diversas espécies de embriões. Em sua teoria, o calor vital – inato ao organismo – desempenhava uma

função central, sendo o instrumento do desenvolvimento. No macho, o calor vital transformaria o excesso de sangue em sêmen; na fêmea, que possuiria um calor vital inferior, o excesso de sangue seria escoado na menstruação. Não ocorreria, segundo ele, transferência de matéria do macho para a fêmea. O esperma conteria apenas a forma do animal, e seu papel seria  o  de  produzir  movimento,  imprimindo  essa  forma  na  matéria  fornecida  pela  fêmea;  assim,  o  sêmen  agiria  como causa  formal  e  eficiente.  No  organismo  adulto,  o  calor  vital  teria  sua  sede  no  coração,  considerado  por  Aristóteles  o principal órgão do organismo, uma vez que era o primeiro órgão a ser observado funcionando no crescimento embrionário e o último a parar de funcionar na morte. O coração seria também a sede da sensibilidade e do pensamento; a função do cérebro seria simplesmente a de resfriar o excesso de calor vital. Em  338  a.C.,  Felipe  da  Macedônia  conquista  a  Grécia,  que  perde  sua  autonomia.  Dois  anos  depois,  seu  filho Alexandre, ex­discípulo de Aristóteles, assume o trono. Alexandre, o Grande, conquistará um imenso império, que fundirá a cultura grega com as culturas egípcia e orientais. Com isso, ocorre uma difusão da cultura helênica. Atenas deixa de ser o centro científico e cultural do mundo antigo, que se transfere para uma cidade fundada no Egito pelo jovem imperador: Alexandria, o “empório do mundo”.

Quadro 1 ■ Teleologia. Em grego, o termo télos significa fim, finalidade, pleno desenvolvimento. A palavra teleologia, inicialmente o “estudo dos fins”, acabou por designar qualquer doutrina que identifica a presença de metas, fins ou objetivos últimos guiando a natureza e a humanidade, considerando a finalidade como princípio explicativo fundamental na organização e nas transformações de todos os seres. A teleologia pode ser transcendente, quando os propósitos e os fins estão na mente de Deus, como é o caso do demiurgo em Platão, ou imanente, quando essa finalidade é inerente a todos os seres da natureza, como em Aristóteles. O télos pode também estar presente na consciência humana, quando agimos deliberadamente. Talvez devido à imensa presença aristotélica na biologia, a explicação teleológica tem sido identificada como típica da fisiologia, caracterizando a busca da finalidade, ou da função de um determinado órgão, estrutura ou sistema. A moderna fisiologia, entretanto, na medida em que a teoria darwiniana forneceu um algoritmo pelo qual os seres vivos e suas partes evoluíram, tende a considerar a função como a atividade exercida por uma estrutura na manutenção de estados de equilíbrio, chamados estados homeostáticos. Uma vez que esses estados foram selecionados ao longo do processo evolutivo, a função de uma estrutura pode ser definida como uma atividade selecionada pelo processo evolutivo. No século XX, o termo teleonomia foi criado para denominar processos guiados por um programa preestabelecido, como é o caso do controle genético dos mecanismos fisiológicos.

▸ Escola de Alexandria Com a morte prematura de Alexandre, aos 33 anos, seu império é desmembrado, e o controle do Egito fica a cargo de um de seus generais, Ptolomeu I Sóter, dando origem à dinastia ptolomaica. O rei Ptolomeu I constrói em Alexandria um centro de estudos de proporções fabulosas. Dotado de um museu e uma vasta biblioteca, que chegou a contar com mais de 500 mil obras, o centro se transforma no grande ponto de confluência científica do mundo antigo. Homens como Euclides e  Arquimedes  lá  trabalharam.  Foi  lá  também  que  Cláudio  Ptolomeu  (que  não  era  parente  dos  reis  ptolomaicos)  realizou suas observações astronômicas, sintetizadas na obra Almagesto. Esta obra consolidará a visão geocêntrica aristotélica do universo,  até  ser  contestada  na  Renascença  por  Copérnico  e  Galileu.  Alexandria  contava  também  com  uma  importante escola  médica,  que  fundiu  o  pensamento  médico  hipocrático  com  os  conhecimentos  da  medicina  egípcia.  O  clima  de liberdade científica que dominava a cidade possibilitou que a dissecção de cadáveres humanos fosse prática comum entre seus  integrantes,  e  é  provável  que  até  algumas  vivissecções  humanas  tenham  sido  por  eles  realizadas!  Essa  escola  foi responsável por enormes avanços no conhecimento anatômico e fisiológico; nela, destacam­se os nomes de Herófilo e de Erasístrato. Considerado  por  alguns  como  o  pai  da  anatomia,  Herófilo  viveu  por  volta  de  300  a.C.  Foi  um  dos  primeiros professores a realizar dissecções em público, e sua fama atraía para Alexandria estudantes de várias regiões. Foi pioneiro no  estudo  sistemático  da  anatomia  do  sistema  nervoso  humano.  Discordando  de  Aristóteles,  ele  identificou  o  cérebro

como  a  sede  das  sensações  e  da  inteligência,  além  de  diferenciá­lo  do  cerebelo.  Descreveu  as  meninges,  o  quarto ventrículo e vários nervos cranianos; de acordo com Erasístrato, foi também o primeiro a distinguir os nervos sensoriais dos  motores.  Herófilo  descreveu  diversos  órgãos,  tais  como  o  fígado  e  o  intestino  (devemos  a  ele  o  termo  “duodeno”), além  de  redigir  detalhadas  descrições  dos  órgãos  genitais  masculino  e  feminino.  Já  no  sistema  cardiovascular,  sua contribuição  foi  extraordinária:  foi  o  primeiro  a  diferenciar  claramente  as  artérias  das  veias.  Utilizando  uma  clepsidra (relógio  d’água),  mediu  o  pulso  de  diversos  pacientes.  Embora  considerasse  a  pulsação  como  um  processo  ativo  das próprias  artérias,  procurou  exaustivamente  uma  explicação  racional  para  as  medidas  encontradas,  tentando  relacioná­las com a saúde e a doença. Contemporâneo  um  pouco  mais  jovem  que  Herófilo,  Erasístrato  tinha  uma  inclinação  mais  fisiológica  do  que anatômica,  sendo,  por  isso,  considerado  um  dos  pais  da  fisiologia.  Foi  o  primeiro  a  realizar  necropsias  para  estudar  as causas da morte. Não aceitou a doutrina hipocrática dos quatro humores, como havia feito Herófilo; em vez disso, adotou uma maneira modificada do atomismo de Demócrito. Considerou os tecidos como uma malha formada por veias, artérias e  nervos,  que  continuavam  a  se  subdividir  além  dos  limites  da  visão;  uma  dedução  genial,  em  uma  época  em  que  o microscópio  havia  sequer  sido  cogitado.  Erasístrato  foi  também  o  primeiro  a  propor  de  maneira  clara  que  a  ação  dos músculos era responsável pela produção de movimento. Dessa maneira, abandonou a crença, adotada até então, de que a digestão era uma espécie de cozimento, ou fermentação dos alimentos, e propôs que ela se devia à ação dos músculos do estômago. Depois de digeridos, os alimentos dariam origem ao sangue, no fígado, que seria distribuído pelas veias para o resto do organismo. Por meio de passagens minúsculas, o sangue passaria das veias para as artérias; Erasístrato, assim, antecipa a existência dos capilares. O ar (pneûma) absorvido nos pulmões atingiria o coração, onde seria transformado em um  espírito  vital,  distribuído  pelas  artérias  para  o  resto  do  organismo.  O  coração  foi  reconhecido  por  Erasístrato  como responsável pelo bombeamento do sangue: o lado direito bombearia o sangue produzido no fígado e o esquerdo, o sangue misturado  com  o  ar  proveniente  dos  pulmões.  A  ideia  de  que  as  artérias  conduziam  ar,  crença  comum  na  época,  foi posteriormente derrubada por Galeno. Assim como Herófilo, Erasístrato realizou pesquisas detalhadas sobre o sistema nervoso. Supôs, por exemplo, que a inteligência  superior  do  ser  humano  devia­se  ao  maior  número  de  circunvoluções  observadas,  quando  comparado  ao cérebro de outros animais. Seguindo sua teoria pneumática, concluiu que, ao chegar no cérebro, o espírito vital contido no sangue  era  transformado  no  espírito  animal.  Isso  ocorreria  dentro  dos  ventrículos;  daí,  esse  espírito  seria  transportado pelos nervos para o resto do organismo. Apesar  de  esses  dois  homens  lançarem  as  bases  da  anatomia  e  da  fisiologia  ocidentais,  Herófilo  e  Erasístrato  não deixaram  discípulos  imediatos  importantes,  e,  com  suas  mortes,  a  escola  de  medicina  de  Alexandria  entrou  em  declínio. Na verdade, pouco saberíamos a respeito de suas realizações, não fosse a visita ilustre de Galeno a Alexandria no século II d.C.  Nessa  ocasião,  Galeno  teve  a  oportunidade  de  registrar  os  incríveis  feitos  dessa  escola,  antes  que  sucessivos incêndios  e  saques  destruíssem  definitivamente  o  museu  e  a  biblioteca,  em  uma  das  maiores  perdas  culturais  que  a humanidade conheceu.2 Outras  informações  sobre  a  ciência  da  Antiguidade,  incluindo  o  período  alexandrino,  devemos  a dois grandes enciclopedistas latinos: Celso (século I a.C.) e Plínio, o Velho (século I d.C.).

▸ Galeno e o legado da Antiguidade Cláudio  Galeno  (129­200  d.C.)  foi  uma  das  mais  influentes  figuras  médicas  da  Antiguidade  (Figura  3),  equiparável somente  a  Hipócrates.  Nascido  em  Pérgamo,  cidade  grega  situada  na  Ásia  Menor,  estudou  filosofia  e  medicina  na juventude, alcançando o importante posto de médico de gladiadores. Posteriormente, transferiu­se para Roma, onde obteve fama,  tornando­se  médico  do  imperador  e  filósofo  romano  Marco  Aurélio.  Escritor  incansável,  Galeno  nos  legou  uma obra  incrivelmente  volumosa,  em  que  trata  de  uma  vasta  gama  de  assuntos,  tais  como  anatomia,  fisiologia,  patologia  e terapêutica.  A  autoridade  que  os  séculos  posteriores  lhe  atribuíram  fez  com  que  suas  opiniões  sobre  essas  disciplinas chegassem  praticamente  inquestionadas  até  a  Renascença.  Seu  pensamento  incorpora  as  filosofias  platônica  e, principalmente, aristotélica; sua medicina julga­se herdeira de Hipócrates. Complementando essa tradição teórica, Galeno dissecou  vários  animais  e  realizou  inúmeros  experimentos,  motivo  pelo  qual  alguns  o  consideram  o  pai  da  fisiologia experimental. Assim como em Aristóteles, a teleologia perfaz toda a anatomia e a fisiologia galênica. A natureza não faria nada em vão,  e  agiria  sempre  com  um  propósito  em  vista,  determinando  a  morfologia  das  várias  estruturas  do  organismo;  estas possuiriam sempre a forma ideal para que melhor executassem a função a que foram destinadas. Seguindo esse princípio, Galeno  realizou  uma  detalhada  descrição  do  corpo  humano,  sobretudo  no  que  diz  respeito  aos  ossos  e  aos  músculos,  de onde  derivam  alguns  dos  nomes  que  utilizamos  ainda  hoje,  como,  por  exemplo,  o  do  músculo  masseter.  Investigou

também o sistema nervoso, descrevendo sete dos doze pares de nervos cranianos. Em experimentos sobre a fisiologia da coluna vertebral, relacionou a altura de lesões com os déficits por elas produzidos.

Figura 3 ■ Cláudio Galeno (129­200 d.C.). (Adaptada de www.uaemex.mx/fmedicina/Galeno.html.)

A  fisiologia  de  Galeno  baseia­se  na  doutrina  humoral  hipocrática,  e,  apesar  de  ser  um  grande  crítico  de  Erasístrato, adota um sistema parecido com o do mestre alexandrino. Esse sistema baseia­se em três centros, sede das três partes da alma  humana  conforme  Platão:  o  fígado,  o  coração  e  o  cérebro.  A  estes  centros,  estariam  relacionados  três  tipos  de pneuma, ou espíritos, respectivamente: o pneûma physicón (espírito natural), o pneûma zoticón (espírito vital) e o pneûma phychicón (espírito  animal).  Assim  como  Platão,  Galeno  acreditava  que  o  corpo  era  apenas  um  instrumento  da  alma;  o pneuma seria a essência da vida, o espírito do mundo, incorporado ao homem no ato da respiração.3 Pela trachea arteria, o  ar  inspirado  chegaria  aos  pulmões  e,  dali,  pelas  veias  pulmonares,  o  ventrículo  esquerdo  do  coração,  onde  seria misturado  ao  sangue.  O  sangue  seria  produzido  no  fígado  –  os  alimentos  absorvidos  no  intestino  seriam  transportados para lá pela veia porta. Também no fígado, o sangue venoso recém­produzido seria impregnado com o espírito natural, e daí distribuído para todo o organismo. O lado direito do coração era considerado um importante ramo do sistema venoso. No  ventrículo  direito,  uma  pequena  parte  do  sangue  atravessaria  o  septo  interventricular  através  de  minúsculos  canais, penetrando  o  ventrículo  esquerdo.  A  esse  sangue  seria  incorporado  o  espírito  vital,  proveniente  do  ar  absorvido  nos pulmões.  Ao  alcançar  o  cérebro,  o  sangue  receberia  o  terceiro  tipo  de  pneuma,  o  espírito  animal,  distribuído  para  o restante do organismo pelos nervos, que seriam ocos. Esse esquema (Figura 4) dominou a fisiologia cardiovascular até o Renascimento, quando Vesálio contestou a existência das passagens no septo interventricular e William Harvey propôs sua teoria da circulação sanguínea. A teleologia galênica possibilitou realizações extraordinárias na anatomia e na fisiologia. Ao mesmo tempo, tornou­se uma  barreira  para  o  avanço  dessas  disciplinas,  uma  vez  que  ela  desmotivava  a  busca  de  causas  eficientes,  centrando  o problema  na  determinação  de  causas  finais;  cada  estrutura  do  organismo  possibilitaria  desvendar  a  mente  do  Criador. Apesar de não ser judeu nem cristão, Galeno acreditava, como Platão, que o mundo era obra divina. Não é difícil, por esse motivo,  entendermos  a  ampla  aceitação  e  o  enorme  prestígio  que  sua  obra  alcançou  na  Idade  Média,  período  em  que  a cultura ocidental foi dominada pelo pensamento cristão. Com o desmoronamento do Império Romano, por volta do século V d.C., a Europa mergulha na chamada “Idade das Trevas”. Durante esse período, marcado por um exacerbado sentimento

místico  e  religioso,  a  cultura  ocidental  será  confinada  nos  mosteiros  medievais.  O  estudo  do  corpo  humano  dá  lugar  ao estudo da alma, no intuito de obter sua salvação. A teologia passa a ocupar o lugar da ciência, que emigra para o mundo árabe.

Figura 4 ■ Esquema geral da fisiologia galênica. (Adaptada de Singer, 1996.)

RENASCIMENTO CULTURAL

▸ Os precursores: a medicina árabe e o surgimento das universidades Enquanto  a  Europa  encontrava­se  devastada  por  guerras,  pela  miséria  e  pela  fome,  o  mundo  assistia  ao  florescer  de uma  civilização  exuberante.  Entre  os  séculos  VII  e  XIII  d.C.,  os  árabes  chegaram  a  dominar  um  território  que  ia  das fronteiras  da  Índia  e  China  ao  Cáucaso,  ocupando  todo  o  norte  da  África  e  o  sul  da  Espanha.  Graças  ao  mecenato proporcionado pelas dinastias dos Abássidas, em Bagdá, e dos Omíadas, em Córdoba, a ciência e a filosofia encontraram

solo  fértil  para  continuar  os  trabalhos  dos  mestres  gregos.  As  figuras  de  Aristóteles,  Hipócrates  e  Galeno  foram  sem dúvida o norte da filosofia e da medicina islâmica. Os árabes não apenas traduziram para seu idioma as obras gregas, mas também  realizaram  comentários  e  análises  rigorosas  a  partir  delas.  Dentre  os  primeiros  nomes  da  medicina  árabe, podemos destacar Al­Razi, conhecido no ocidente como Rhazes (865­925), médico de origem persa que viveu em Bagdá e realizou  importantes  avanços  a  partir  da  obra  de  Galeno,  sobretudo  nos  estudos  sobre  a  varíola.  Durante  os  séculos  XI, XII e XIII, um importante centro de estudos funcionou em Córdoba, situada na Andaluzia (Al­Andaluz), sul da Espanha. Ali  trabalharam  Abu’l­Qasim,  famoso  cirurgião  conhecido  como  Abulcasis  (936­1013),  e  Ibn  Rushd,  médico  e  filósofo aristotélico  conhecido  como  Averróis  (1126­1198),  cujo  pensamento  exerceu  forte  influência  em  toda  a  Europa.  No entanto, a maior autoridade médica árabe foi Ibn Sina, que o Ocidente conheceu como Avicena (980­1037). Sua principal obra, o Cânon,  pode  ser  vista  como  uma  tentativa  de  articulação  dos  sistemas  de  Hipócrates  e  Galeno  com  a  filosofia biológica aristotélica. É uma obra dogmática, apoiada na brilhante exposição de uma cultura extremamente vasta. A lógica e  a  eloquência  de  seu  estilo  conferiram­lhe  autoridade  praticamente  indiscutível  dentro  das  ciências  médicas  medievais  e renascentistas. O Cânon de  Avicena  foi  traduzido  para  o  latim  por  Gerardo  de  Cremona,  que,  junto  com  Constantino,  o Africano, foram os principais tradutores das obras da ciência árabe para o Ocidente. Podemos, assim, traçar um tortuoso caminho, no qual as obras gregas foram traduzidas para o árabe e depois para o latim. No entanto, apesar da fundamental importância  árabe  para  o  renascimento  científico  europeu,  não  devemos  nos  esquecer  de  que  muitas  obras  dos  antigos foram preservadas por padres nos mosteiros medievais, vindo à tona por ocasião do Renascimento. Nos primeiros séculos desse segundo milênio, outro fenômeno capital para o futuro das ciências ocorreu no continente europeu:  o  nascimento  das  universidades.  Fruto  do  crescimento  da  vida  urbana,  as  universidades  têm  sua  origem  nas escolas que existiam junto às catedrais. O direito de lecionar, a princípio nas mãos do clero, foi entregue posteriormente aos mestres leigos. Entretanto, a vigilância sobre o ensino dentro das universidades permaneceu sob intenso controle do Papa.  Na  maioria  das  vezes,  o  ensino  básico  era  constituído  das  sete  artes  liberais:  o  trivium  (gramática,  retórica  e dialética) e o quadrivium (aritmética,  geometria,  astronomia  e  música).  Além  dessas  disciplinas,  lecionava­se  medicina, direito e teologia. Das principais universidades fundadas entre os séculos XII e XIII, estão as de Oxford e Cambridge, na Inglaterra;  as  de  Paris  e  Montpellier,  na  França;  e  as  de  Bolonha  e  Pádua,  na  Itália.  As  duas  últimas,  como  veremos, desempenharam um papel fundamental no desenvolvimento da anatomia e da fisiologia na Renascença. Na universidade de Bolonha,  funcionou  uma  importante  escola  cirúrgica,  que  está  ligada  aos  primórdios  da  prática  da  dissecção  no  fim  da Idade Média. Dessa escola, destaca­se Mondino de Luzzi (1270­1326). O nome de Mondino está ligado à consolidação da anatomia como uma disciplina independente no quadro universitário nascente.  Sua  principal  obra,  o  Anathomia,  um  manual  de  dissecção  escrito  em  1316,  sintetiza  o  estado  da  arte  dos conhecimentos  anatômicos  de  sua  época,  e  tornou­se  referência  obrigatória  entre  os  professores  que  o  sucederam;  foi amplamente utilizado até o século XVI. Embora essa obra seja fruto de várias dissecções, Mondino não possuía o espírito científico  crítico  e  contestador  que  encontraremos  em  seus  colegas  do  Renascimento.  Em  vez  disso,  suas  observações  e comentários procuravam, sobretudo, confirmar as autoridades árabes. Sua fisiologia baseava­se quase inteiramente na de Galeno. De acordo com uma crença comum da época, ele descrevia o cérebro com três ventrículos (Figura 5): o anterior, para onde confluíam todos os sentidos (por isso recebia o nome de sensus communis, ou senso comum); o médio, onde se localizava a imaginação, e o posterior, sede da memória.

▸ Origem da era moderna Durante os séculos XV, XVI e XVII, a Europa assistiu a uma quantidade de mudanças sociais, econômicas e culturais sem paralelo na história até então. Essas mudanças representaram o rompimento com a Idade Média, dando início ao que se convencionou chamar de Idade Moderna. A intensificação do comércio deslocou o centro da vida cotidiana dos campos para as cidades, fazendo surgir uma nova classe de artesãos e comerciantes: a burguesia. As cidades­estados italianas, tais como  Florença,  Gênova  e  Veneza,  desfrutavam  as  riquezas  proporcionadas  pela  retomada  do  comércio.  O  ciclo  das grandes  navegações  –  incentivado  pela  busca  de  novas  rotas  comerciais  para  o  Oriente,  sobretudo  após  a  tomada  de Constantinopla  pelos  turcos  otomanos,  em  1453  –  ampliou  o  horizonte  do  homem  europeu  de  um  modo  antes inimaginável,  além  de  incentivar  pesquisas  técnicas  e  astronômicas.  Em  1492,  Cristóvão  Colombo  descobria  um  novo continente, a América, fonte de mistério e riquezas inesgotáveis. As artes e as ciências revisitaram os gregos, mas de uma maneira crítica, o que culminou com um rompimento com a tradição antiga, dando origem a uma nova arte e a uma nova ciência.  A  difusão  desses  saberes  contava  agora  com  a  imprensa  de  tipos  móveis,  inventada  por  Gutenberg,  que possibilitava a reprodução de livros em grande escala, popularizando o conhecimento e tirando sua exclusividade das mãos

da  Igreja.  Fruto  desse  ambiente  efervescente,  um  novo  ser  humano  nasceu  na  Europa,  especialmente  na  Itália,  epicentro desse fenômeno.

Figura 5 ■ Ilustração do século XV, atribuída a Gregor Reisch. Biblioteca Nazionale Centrale, Florence. (Adaptada de Bennett, 1999.)

▸ A ciência nos estúdios No Renascimento, talvez mais do que em qualquer outra época, observamos a sinérgica união da arte com a ciência. Estudos sobre a óptica foram incorporados à pintura, em um movimento iniciado por Giotto (1266­1337), que começou a utilizar a perspectiva em seus quadros. Esse movimento culminou no naturalismo: a tentativa de recriar o mundo em uma tela  da  maneira  mais  fiel  possível.  Não  demorou  até  que  os  artistas  percebessem  o  quanto  o  estudo  do  corpo  humano poderia  favorecer  sua  arte.  Os  grandes  gênios  da  arte  renascentista,  como  Michelangelo,  Rafael,  Dürer  e  Leonardo  da Vinci,  estudaram  anatomia  e  acompanharam  dissecções  humanas  junto  aos  médicos­cirurgiões  da  época.  Alguns,  como Michelangelo  e  da  Vinci,  fizeram  mais  do  que  isso,  realizando,  eles  próprios,  dissecções  em  seus  estúdios.  Os  estudos concentravam­se  na  anatomia  superficial,  especialmente  dos  ossos  e  músculos,  uma  vez  que  o  interesse  principal  era estético.  Leonardo  da  Vinci  (1452­1519),  contudo,  foi  um  caso  à  parte.  Seus  interesses  iam  muito  além  da  arte,  e  seu incrível gênio dedicou­se a diversos ramos da ciência. Até hoje ele é considerado um dos maiores anatomistas da história; seus  desenhos  anatômicos  e  suas  especulações  fisiológicas  (Figura  6)  têm  uma  riqueza  de  detalhes  e  uma  precisão  que estavam muito à frente de sua época. É difícil calcular qual teria sido o futuro da anatomia e da fisiologia se Marcantonio della Torre (1481­1512), professor de anatomia de Pávia com o qual da Vinci pretendia publicar um tratado, não tivesse morrido prematuramente. Foi  um  pequeno  passo  para  que  a  arte  renascentista  deixasse  os  estúdios  e  fosse  aproveitada  pelos  professores acadêmicos, o que ocorreu sobretudo na Universidade de Pádua, o grande centro de ensino médico da Itália na época. A primeira  grande  figura  paduana  foi  o  holandês  Andreas  Vesalius  (1514­1564).  Sua  obra­prima,  o De  Humani  Corporis Fabrica (1543), é considerada por muitos como a maior contribuição isolada para a medicina de todos os tempos, assim como são os Principia, de Newton, para a física. Para entender a revolução instaurada por Vesalius, devemos analisar as características do ensino anatomofisiológico realizado em Pádua e na maioria das universidades europeias da época. Pelo  menos  desde  o  século  XIV,  uma  aula  universitária  de  anatomia  consistia  na  leitura  do  manual  de  Mondino (o  Anathomia),  seguida  geralmente  da  leitura  de  um  texto  de  Galeno.  Enquanto  o  professor,  do  alto  de  sua  cátedra, realizava  a  leitura  do  texto  em  latim,  um  cirurgião­barbeiro  –  inculto  e  iletrado  –  dissecava  um  cadáver,  apontando  as

estruturas  anatômicas  aos  alunos  (Figura  7).  Não  é  difícil  imaginarmos  as  confusões  decorrentes  dessa  prática,  uma  vez que  o  professor  não  se  aproximava  do  cadáver  e  seu  assistente  não  entendia  latim.  Além  disso,  essas  demonstrações, assim como a maioria das dissecções realizadas nas Universidades, tinham como principalobjetivo confirmar as descrições de Galeno. A autoridade galênica era tamanha que Iacobus Sylvius (1478­1553), professor de Vesalius, chegou a dizer que “qualquer  estrutura  encontrada  no  ser  humano  contemporâneo  cuja  descrição  divergisse  daquela  feita  por  Galeno  seria apenas o resultado de posterior decadência e degeneração da espécie humana” (Saunders e O’Malley, 2003). Vesalius, por sua  vez,  já  tinha  experiência  em  dissecção  quando  se  tornou  professor  de  anatomia  e  cirurgia  em  Pádua.  Suas  aulas passaram a ser extremamente concorridas, pois todos queriam assistir ao novo mestre, que inusitadamente descia de sua cátedra  para  demonstrar  diretamente  no  cadáver  as  estruturas  descritas  nos  textos  (Figura  8).  Não  tardou  para  que Vesalius,  inicialmente  grande  seguidor  da  anatomia  e  fisiologia  galênica,  encontrasse  discordâncias  entre  os  textos  e  o cadáver – isso graças à sua nova arma metodológica: a observação direta dos fenômenos.

Figura 6 ■ Desenhos de Leonardo da Vinci (1452­1519). À direita, em uma representação do coito, da Vinci indica a existência de  um  canal  ligando  a  medula  aos  órgãos  sexuais  masculinos,  por  onde  passaria  o  sêmen  –  de  acordo  com  uma  teoria platônica. (Adaptada de Crispino, 2000.)

Em suas aulas, Vesalius desenhava em um quadro grandes esquemas anatômicos, fato que agradou muito aos alunos, e a  cópia  desses  desenhos  passou  a  circular  entre  os  estudantes.  Temendo  que  desenhos  de  qualidade  inferior  fossem utilizados  nos  estudos,  Vesalius  publica,  em  1538,  as  Tabulae  Anatomicae  Sex  (Seis  Pranchas  de  Anatomia),  que  se tornaram  sucesso  imediato.  As  três  primeiras  pranchas  são  diagramas  da  anatomia  e  da  fisiologia  de  Galeno.  As  três últimas são esqueletos desenhados por um pintor da época. O sucesso dessa obra serviu como estímulo para que, 5 anos mais  tarde,  ele  publicasse  o  De  Humani  Corporis  Fabrica  (A  Estrutura  do  Corpo  Humano).  Essa  obra,  ricamente ilustrada  (Figura  9),  marca  o  início  da  anatomia  e  fisiologia  modernas.  Com  ela,  foi  quebrada  a  longa  tradição  que supunha  que  a  transmissão  do  conhecimento  estaria  ligada  exclusivamente  ao  texto  escrito.  Até  a  publicação  do  De Humani,  todo  o  ensino  científico  era  realizado  com  base  nos  textos  clássicos,  que  não  apresentavam  figuras.  Dessa maneira, o uso de ilustrações era visto com desconfiança pelos professores europeus, uma vez que “a figura degradaria a erudição  do  texto”.  Vesalius  transfere  a  cultura  visual  ligada  ao  naturalismo  desenvolvido  nos  ateliês  renascentistas  para os  livros  de  anatomia.  O  uso  da  ilustração  na  transmissão  do  conhecimento,  juntamente  com  a  observação  direta  dos

fenômenos  naturais,  colocam  Andreas  Vesalius  e  o De  Humani  Corporis  Fabrica nos  pilares  da  nova  ciência  nascente. Contudo, a Revolução Científica iniciada no Renascimento agregaria ainda a quebra de muitas outras tradições clássicas e medievais.

▸ A nova ciência A ciência moderna surgiu ao longo dos séculos XVI e XVII, no que se convencionou chamar de Revolução Científica. A grande marca dessa revolução é a ruptura com a visão de mundo e com a ciência de Aristóteles, que, como vimos, havia dominado  o  panorama  científico  até  então.  A  Revolução  Científica  engloba  duas  revoluções:  uma  astronômica  (física celeste),  em  que  o  geocentrismo  aristotélico­ptolomaico  é  substituído  pelo  heliocentrismo  copernicano,  e outra mecânica (física terrestre), na qual a mecânica aristotélica dá lugar à mecânica galilaico­newtoniana. Essas mudanças ocorreram  concomitantemente  a  uma  virada  metodológica:  o  método  experimental  foi  definitivamente  incorporado  às ciências naturais. Em  1543,  mesmo  ano  em  que  Vesalius  publicou  sua  principal  obra,  um  astrônomo  polonês  chamado  Nicolau Copérnico  (1473­1543)  publicou  a De  Revolucionibus  Orbium  Coelestium  (As  Revoluções  da  Órbita  Celeste),  na  qual expunha  a  tese  de  que  os  planetas  girariam  em  órbita  em  torno  do  Sol.  Para  termos  uma  ideia  do  impacto  da  proposta heliocêntrica,  devemos  recordar  que  a  concepção  geocêntrica  de  Aristóteles  e  Ptolomeu  era  adotada  pela  ciência  e  pela Igreja  há  mais  de  mil  anos.  Se  recordarmos  também  algumas  características  da  física  aristotélica,  veremos  que  ela  é incompatível com o heliocentrismo. Essas incompatibilidades foram exploradas pelo italiano Galileu Galilei (1564­1642). Utilizando o recém­descoberto telescópio, Galileu realizou uma série de observações, como as luas de Júpiter e as fases de Vênus.  Essas  observações  concordavam  com  o  sistema  copernicano,  que  ele  passou  a  defender  (Figura  10).  Do movimento  dos  corpos  celestes,  Galileu  passa  a  estudar  o  movimento  dos  corpos  na  superfície  da  Terra,  introduzindo  o conceito de inércia. Suas investigações sobre o movimento o levaram a romper definitivamente com a física aristotélica, em  um  processo  que  culminou  com  o  surgimento  da  nova  física.  Nessa  nova  física,  que  é  a  que  utilizamos  hoje,  os fenômenos  naturais  são  explicados  segundo  suas  causas  imediatas,  ou  mecânicas  (que  corresponderiam  à  causa  eficiente de  Aristóteles).  O  finalismo,  ou  a  busca  de  causas  finais  na  natureza,  passa  a  ser  evitado;  com  o  tempo,  as  ciências biológicas  também  adotariam  essa  postura,  principalmente  após  Darwin.  Outra  característica  da  nova  física  iniciada  com Galileu é o uso da matemática:4 os fenômenos naturais, que antes eram estudados de maneira essencialmente qualitativa, passam a ser analisados de maneira quantitativa.

Figura 7 ■ Gravuras do final do século XV, indicando como era uma aula de anatomia no começo da renascença: enquanto o professor  lia  um  texto  clássico,  seu  assistente  apontava  as  estruturas  anatômicas  aos  alunos.  À  esquerda,  uma  ilustração do  Fasciculus  Medicinae,  de  Johannes  de  Kethan  (Veneza,  1495).  À  direita,  a  página­título  de  uma  edição  de  Mondino, realizada por Martin von Mellerstadt (Leipzg, 1493). (Adaptadas de Kickhöfel, 2003.)

Figura 8 ■ Página de rosto da primeira edição do De Humani Corporis Fabrica, de 1543. Podemos observar Vesalius no centro da gravura, junto ao cadáver. (Adaptada de Saunders e O’Malley, 2003.)

Figura 9 ■ Gravuras do livro de Andreas Vesalius De Humani Corporis Fabrica, de 1543. (Adaptada de Saunders e O’Malley, 2003.)

Figura 10 ■ Capa da obra de Galileu Galilei Diálogos Sobre os Dois Sistemas de Mundo, de 1632. Nela, observamos um diálogo imaginário entre Copérnico (à direita), Ptolomeu e Aristóteles, os dois últimos defensores do sistema geocêntrico. Por defender o sistema  heliocêntrico  copernicano,  Galileu  sofreu  um  grave  processo  imposto  pela  Igreja,  sendo  levado  a  renunciar publicamente a suas posições. (Adaptada de Ronan, 1987.)

Outro  traço  fundamental  marca  a  nova  ciência  nascente:  a  experimentação,  o  recurso  que,  nos  dias  de  hoje, imediatamente  associamos  às  ciências  naturais.  A  atitude  experimental  foi  veementemente  enfatizada  pelo  filósofo britânico Francis Bacon (1561­1626), que defendia a ideia de que a aquisição de conhecimento deve necessariamente partir de  observações  empíricas.  Na  sua  obra  mais  famosa,  o  Novo  Organon,  publicada  em  1620,  Bacon  critica  o  método aristotélico,  que  dava  um  grande  valor  às  deduções  de  conclusões  científicas  a  partir  de  princípios  axiomáticos (o Organon é  uma  das  obras  em  que  Aristóteles  expõe  a  lógica  e  o  método  científico).  Bacon  propõe  “trocar  os  livros pelas  coisas,  a  biblioteca  pelo  laboratório,  o  mundo  teórico  pelo  universo  prático”  (Zaterka,  2004);  ou  seja,  substituir  a ênfase que os gregos davam ao raciocínio puramente teórico e dedutivo pela experimentação prática. Não  devemos,  no  entanto,  descartar  completamente  a  observação  da  agenda  científica  dos  antigos.  O  próprio Aristóteles insiste, em várias passagens de sua obra, na necessidade da observação cuidadosa para a confirmação de novos fatos  e  teorias.  Entretanto,  devemos  distinguir observação de experimentação.  Entre  os  antigos,  a  observação  tinha  um caráter essencialmente contemplativo – era um processo passivo diante da natureza. Ao longo da Idade Média, o papel da observação  passa  a  ser  o  de  confirmar  as  teorias  e  descrições  realizadas  na  Antiguidade,  e  não  o  de  possibilitar  a descoberta de novos fatos.5 Já os adeptos da proposta baconiana não estavam, todavia, interessados em confirmar o que já

era conhecido, mas de ver como a natureza se comportaria em condições ainda não observadas. Essa investigação baseada em  experiências  empíricas  deveria  ser  realizada  de  acordo  com  um  método  sistemático  e  controlado.  Esse  traço experimental  da  Revolução  Científica,  juntamente  com  a  virada  explanatória  (a  mudança  em  direção  da  busca  de  causas eficientes)  iniciada  por  Galileu,  constituirá  as  bases  da  ciência  moderna.  Antes  de  investigarmos  como  a  fisiologia incorporou  essas  novas  ideias,  convém  analisarmos  ainda  dois  outros  aspectos  da  nova  ciência:  o  materialismo  e o mecanicismo.

▸ A constituição da matéria Um  traço  marcante  da  Revolução  Científica  foi  a  retomada  da  antiga  teoria  atomista  de  Leucipo  e  Demócrito.  Essa ideia  havia  sido  desenvolvida  por  pensadores  greco­romanos  posteriores,  com  Epicuro  e  Lucrécio.  Porém,  a  adoção  do paradigma platônico­aristotélico ofuscou completamente as ideias desses pensadores. Como vimos, o atomismo era uma proposta materialista, isto é, o mundo poderia ser explicado em termos de matéria e movimento. Durante o século XVII, diversas teorias oriundas do atomismo grego surgiram na Europa, principalmente na Inglaterra e na França; chamaremos essas  teorias  de  corpusculares  porque  as  versões  dessa  ideia  mudam  de  pensador  para  pensador.  Galileu  e  Bacon  eram corpuscularistas,  mas  podemos  apontar  o  químico  Robert  Boyle  (1627­1691)  e  o  filósofo  Pierre  Gassendi  (1592­1655) como os principais divulgadores dessa ideia. O corpuscularismo tem uma importância fundamental dentro da formação da ciência  moderna,  pois,  além  de  alinhar­se  à  tradição  experimental,  ele  abre  caminho  para  a  explicação  dos  fenômenos naturais em termos mecânicos. Resumindo: a mudança na natureza seria resultado dos choques entre esses microscópicos corpúsculos  em  movimento.  A  filosofia  mecânica  foi  um  dos  pilares  na  Revolução  Científica  e  foi  desenvolvida  por diversos pensadores do século XVII; dentre eles, o filósofo francês René Descartes (1596­1650).

▸ O universo mecânico de Descartes Ao  contrário  de  Bacon,  Descartes  afirmava  que  a  gênese  do  conhecimento  estava  na  razão  e  não  na  experiência.  De acordo  com  ele,  o  raciocínio  dedutivo  matemático  forneceria  um  substrato  seguro  para  a  ciência.  Contrastando  Bacon  e Descartes, observamos a formação de duas tendências epistemológicas:6 uma empirista e outra racionalista.  A  oposição entre  essas  duas  tradições  diz  respeito  ao  papel  que  tanto  a  experiência  quanto  a  razão  ocupam  na  formação  do conhecimento  científico.  Para  o  empirista,  o  conhecimento  origina­se  na  experiência  e  é  organizado  e  confirmado  pela razão. Para o racionalista, o conhecimento funda­se na razão, mas é confirmado pelos resultados obtidos pela experiência. Para  Descartes,  o  universo  seria  uma  grande  máquina  em  movimento.  Essa  visão  contrastava  com  a  de  Platão  e Aristóteles,  que  concebiam  o  universo  como  um  organismo  vivo.  Na  verdade,  a  analogia  cartesiana  caminha  no  sentido oposto: os seres vivos (homens e animais) são concebidos como máquinas. Para explicar um fenômeno natural, portanto, é  necessário  desvendar  os  mecanismos  dessa  máquina,  substituir  o  fenômeno  real  pelo  modelo  mecânico  subjacente.  A realidade última das coisas não é identificada com o que é observável, com a experiência imediata, mas sim com a matéria e  o  movimento  das  partículas  que  constituem  a  matéria;  ambos  devem  ser,  na  medida  do  possível,  medidos  e quantificados. Segundo o historiador da ciência Paolo Rossi (2001), a “filosofia mecânica”, da qual Descartes era um dos expoentes, partia de alguns pressupostos: (1) a natureza não é a manifestação de um princípio vivo, mas é um sistema de matéria em movimento governado por leis; (2) tais leis podem ser determinadas com exatidão pela matemática; (3) um número muito reduzido dessas leis é suficiente  para  explicar  o  universo;  (4)  a  explicação  dos  comportamentos  da  natureza  exclui  em  princípio  qualquer referência às causas vitais ou às causas finais.

Entre  as  várias  áreas  da  ciência  a  que  Descartes  se  dedicou,  estava  a  fisiologia,  que  foi  totalmente  determinada  pela sua concepção materialista e mecanicista da natureza. A organização e a estrutura dos órgãos determinariam sua função, de maneira  que  o  organismo  agiria  de  forma  mecânica.  Ao  tomar  conhecimento  dos  trabalhos  de  Harvey  sobre  a  circulação sanguínea, Descartes vê uma confirmação de suas ideias. No entanto, ele rejeita a ideia de que o coração funcionaria como uma bomba; em vez disso, propõe que o coração funcionaria como um forno, produzindo calor que fermentaria e dilataria o  sangue,  provocando  o  batimento  cardíaco  e  sua  expulsão  pelas  artérias.  Descartes  propôs  também  uma  teoria  dualista para  dar  conta  da  relação  entre  a  substância  material  e  a  substância  do  pensamento.  Nessa  teoria,  a  glândula  pineal  tem uma importância fundamental, servindo como interface entre o mundo físico e o mundo psíquico, entre o corpo e a alma, entre a res extensa e a res cogitans.  Os  nervos  conduziriam  as  informações  sensoriais  até  a  pineal,  sede  das  sensações (Figura 11).

Figura 11 ■ Figura do livro de Descartes O Tratado do Homem, de 1664. (Adaptada de Rothschuh, 1973.)

O  italiano  Giovanni  Alfonso  Borelli  (1608­1679)  tentou  levar  às  últimas  consequências  a  aplicação  da  filosofia mecânica ao mundo da vida. Fiel seguidor de Galileu e Descartes, Borelli considerou a respiração, a circulação e todos os demais  movimentos  do  corpo  humano  como  resultado  de  ações  determinadas  por  leis  mecânicas.  Isso  o  levou  ao sistemático  estudo  dos  músculos,  ossos  e  articulações  envolvidos  no  movimento,  publicado  no  tratado  De  Motu Animalium (Sobre o Movimento dos Animais), em 1681. Esse estudo está repleto de cálculos matemáticos a respeito da força muscular, além da explicação do movimento em termos de alavancas (Figura 12). Os músculos seriam comandados pelos nervos, que conteriam um fluido nervoso e funcionariam de maneira hidráulica – como os freios de um automóvel. Dentre  várias  observações  importantes,  Borelli  ressaltou  a  participação  do  diafragma  e  dos  músculos  intercostais  na mecânica da respiração.

▸ William Harvey e a circulação do sangue A  Revolução  Científica  não  poupou  Galeno.  Ao  longo  do  século  XVII,  uma  sucessão  de  descobertas,  que  culminou com  a  teoria  da  circulação  sanguínea  proposta  por  William  Harvey  (1578­1657),  derrubou  o  núcleo  central  da  fisiologia galênica. Lembremos que esta baseava­se na tríade fígado­coração­cérebro. O lado direito do coração transportaria sangue venoso produzido no fígado a partir dos alimentos vindos dos intestinos. A porção esquerda do coração, juntamente com as artérias, seria responsável por transmitir o espírito vital – absorvido nos pulmões – para todo o organismo. Uma fração do sangue venoso atravessaria o septo interventricular em direção ao ventrículo esquerdo para tornar­se arterial. A  grande  descoberta  de  Harvey  está  diretamente  ligada  à  fantástica  escola  anatomofisiológica  deixada  por  Vesalius após  sua  saída  de  Pádua.  Dela  participaram  grandes  nomes,  tais  como  Realdo  Matteo  Colombo  (1516­1559),  Gabriel Fallopio (1523­1562) e Girolamo Fabrici d’Aquapendente (1533­1619). Colombo foi discípulo e sucessor de Vesalius na cadeira  de  anatomia  de  Pádua.  A  principal  descoberta  atribuída  a  ele  é  a  da  pequena  circulação  (circulação  pulmonar),

embora  conste  que  ela  tenha  sido  descrita  anteriormente  pelo  médico  espanhol  Miguel  Servet  (1511­1553).  Servet,  no entanto,  a  descreve  ao  longo  de  poucas  páginas  inseridas  dentro  de  um  tratado  teológico.  Esse  tratado  foi  queimado  na fogueira,  juntamente  com  seu  autor,  por  conter  ideias  heréticas  –  como  a  negação  da  Santíssima  Trindade.  Colombo,  no entanto,  demonstrou  experimentalmente  que  o  sangue  passava  do  ventrículo  direito  para  os  pulmões  e,  daí,  através  das veias pulmonares, de volta para o coração. Como Vesalius e Servet, Colombo não acreditava que o sangue atravessava o septo interventricular. Colombo foi sucedido por Fallopio, que, além de outras descobertas importantes, descreveu o canal auditivo  e  a  trompa  feminina  que  durante  muito  tempo  levaram  seu  nome.  O  principal  discípulo  de  Fallopio  foi  Fabrici d’Aquapendente, que foi professor de Harvey. Embora já houvessem sido descritas por diversos anatomistas, as válvulas venosas  foram  extensa  e  sistematicamente  estudadas  por  d’Aquapendente.  Dessa  maneira,  percebemos  que  já  havia  em Pádua um intenso clima intelectual em torno das pesquisas acerca da circulação sanguínea na época em que Harvey inicia suas investigações.

Figura 12 ■ Figura do livro de Borelli Sobre os Movimentos dos Animais, de 1681. (Adaptada de Hankins, 1985.)

Vindo  da  Inglaterra,  William  Harvey  passa  os  anos  de  1599­1602  em  Pádua  sob  a  supervisão  de  d’Aquapendente,  a fim  de  obter  seu  doutoramento  em  medicina.  De  volta  à  sua  terra  natal,  Harvey  continua  suas  pesquisas  como  membro do London College of Physicians. Durante mais de duas décadas, ele realiza uma série de observações e experimentos com pacientes  e  com  animais,  que  são  publicados  no  pequeno  tratado Exercitatio  Anatomica  de  Motu  Cordis  et  Sanguinis  in Animalibus (Estudo  Anatômico  sobre  o  Movimento  do  Coração  e  do  Sangue  nos  Animais),  em  1628.  Harvey  observou que  quando  seguramos  um  coração  com  as  mãos,  sentimos  que  ele  enrijece  ao  funcionar,  do  mesmo  modo  que  acontece quando  um  músculo,  como  o  bíceps,  por  exemplo,  se  contrai  –  razão  para  se  considerar  a  ação  do  coração  como  a  de qualquer  músculo.  Também  observou  que  a  expansão  das  artérias,  sentida  na  pulsação,  se  dá  concomitantemente  à

contração ventricular, descartando a ideia de que a dilatação das artérias fosse um processo ativo independente do coração. Além disso, viu que quando o sangue penetra em uma das grandes artérias (pulmonar ou aorta), ele é impedido de voltar pelas  válvulas  arteriais,  fato  que  já  era  conhecido  por  Galeno,  da  Vinci  e  Colombo,  entre  outros.  Seguindo  a  escola paduana, Harvey insistiu na impossibilidade de o sangue atravessar o septo cardíaco; não só por sua espessura, mas pelo fato  de  os  dois  ventrículos  contraírem­se  ao  mesmo  tempo,  o  que  não  provoca  pressão  suficiente  para  movimentar  o sangue de um ventrículo ao outro. Harvey também levou a cabo alguns experimentos cruciais. Em um deles, comprimiu a veia cava de serpentes com um fórceps, observando que o coração não se enchia mais de sangue e tornava­se pálido. Já se a compressão fosse feita na aorta, a região entre a compressão e o coração dilatava­se a ponto de quase explodir, além de adquirir  uma  cor  profundamente  avermelhada.  Em  outro  experimento,  ele  utilizou  o  conhecimento  de  que  as  artérias situam­se  em  profundidade  em  relação  às  veias,  que  ficam  mais  próximas  à  superfície  da  pele.  Se  um  garrote  colocado acima do cotovelo de um ser humano fosse muito apertado, o sangue arterial não conseguia chegar até a mão, que perdia a pulsação e esfriava, enquanto a região acima do torniquete inchava. Já se o garrote fosse levemente apertado, era o sangue venoso que não conseguia retornar da extremidade do braço, que inchava (Figura 13). Esses experimentos foram seguidos de astuciosas análises quantitativas. Multiplicando a quantidade de sangue ejetada do ventrículo esquerdo a cada contração pelo  número  de  batimentos  cardíacos  por  minuto,  percebeu  que  a  quantidade  de  sangue  que  passa  pelo  coração  em  uma hora  excede  muito  o  peso  de  um  ser  humano.7 Como,  então,  poderia  todo  esse  sangue  ser  continuamente  produzido  a partir  dos  alimentos?  A  única  conclusão  a  que  se  pode  chegar  é  que  o  sangue  circula  em  vez  de  ser  continuamente produzido no fígado. Com  base  em  todas  essas  evidências,  Harvey  propôs  a  teoria  de  que  o  sangue  circula  pelo  organismo,  impulsionado pelos  movimentos  de  contração  muscular  do  coração.  Essa  ideia  coadunava­se  com  a  nova  filosofia  mecânica,  uma  vez que  atribuía  o  movimento  do  sangue  a  causas  mecânicas.  É  interessante  notarmos  que,  apesar  disso,  Harvey  era  um aristotélico  convicto,  o  que  o  levou  a  buscar  incessantemente  a  finalidade  para  o  movimento  circular  do  sangue. Lembremos que o movimento circular, de acordo com Aristóteles, era privilégio do mundo supralunar, ou seja, do mundo celeste. Possivelmente, a fidelidade à cosmologia do grande mestre grego impediu Galeno e seus sucessores de procurar movimentos circulares na esfera terrestre. Desse modo, o movimento sanguíneo no sistema galênico apresentava, como os demais  movimentos  sublunares,  início  e  fim.  Harvey  utiliza  a  velha  analogia  entre  macrocosmo  e  microcosmo  para resolver  o  problema.  Assim  como  o  movimento  circular  dos  astros  celestes  garantiria  coesão  ao  universo,  o  movimento circular do sangue seria responsável pela manutenção do organismo. O centro do microcosmo humano seria o coração, que é  identificado  com  o  Sol  –  refletindo  provavelmente  a  nova  concepção  heliocêntrica  de  Copérnico.  Isso  é  colocado  de maneira clara na dedicatória do De Motu Cordis ao rei Charles da Inglaterra. “Sereníssimo Rei”, escreve ele:

Figura 13 ■  Experimentos  com  o  uso  de  torniquete  realizados  por  Harvey,  descritos  na  obra  Exercitatio  Anatomica  de  Motu Cordis et Sanguinis in Animalibus, de 1628. (Adaptada de Singer, 1996.)

O coração dos animais é o fundamento de suas vidas, o soberano de todos os seus órgãos, o sol do microcosmo, fonte a partir da qual todo crescimento depende, todo poder e força emanam. O Rei, da mesma maneira, é o fundamento do seu reino, o sol do seu microcosmo e o coração do seu Estado, dele todo o poder emana e toda graça provém […]

Esse  fragmento  reflete  também  o  clima  político  na  época  das  monarquias  absolutistas,  em  que  o  rei  detinha  poderes quase ilimitados. Alguns anos mais tarde, na França, Luís XIV seria conhecido como o “Rei Sol”. A  partir  dos  trabalhos  de  Harvey,  a  concepção  do  funcionamento  do  corpo  animal  foi  radicalmente  alterada.  O  De Motu Cordis  foi  o  primeiro  tratado  da  era  moderna  dedicado  a  um  tema  estritamente  fisiológico,  o  que  não  acontecia desde  a  Antiguidade.  Nele  estão  presentes  vários  dos  métodos  utilizados  pela  fisiologia  moderna,  como,  por  exemplo,  a extrapolação de conclusões tiradas a partir de animais para os seres humanos. Podemos nos arriscar a dizer que, a partir de Harvey, a fisiologia começou a tomar a forma que conhecemos hoje.

▸ A época de ouro da microscopia Havia  ainda  um  elo  a  ser  completado  na  teoria  da  circulação:  Harvey  havia  teorizado  a  existência  de  passagens microscópicas  entre  as  artérias  e  as  veias,  mas  foi  apenas  em  1661  que  um  discípulo  de  Borelli  conseguiu  observá­las. Esse  homem  foi  o  italiano  Marcello  Malpighi  (1628­1694).  Utilizando  o  microscópio,  ele  observou  a  existência  dos capilares  nos  pulmões  de  uma  rã.  Malpighi  pertenceu  a  uma  geração  de  grandes  microscopistas  que  revolucionou  vários ramos  da  biologia,  como  a  zoologia,  a  botânica,  a  anatomia,  a  fisiologia  e  a  embriologia.  Essa  geração,  que  contou  com nomes  como  Robert  Hooke  (1635­1703),  Antoni  van  Leeuwenhoeck  (1632­1723)  e  Jan  Swammerdan  (1637­1680), praticamente fundou a histologia e a microbiologia. O  início  do  uso  do  microscópio  está  ligado  à Academia de Lincei (Quadro  2),  em  que  o  termo microscopia  aparece pela primeira vez, em 1625. Ao longo do século XVII, o instrumento foi aperfeiçoado e novos usos foram incorporados. Um dos primeiros a realizar observações sistemáticas ao microscópio foi o holandês van Leeuwenhoeck, que, entre outras coisas,  mediu  o  diâmetro  dos  glóbulos  vermelhos  no  sangue  e  observou  as  fibras  musculares  em  contração.  O  inglês

Robert  Hooke  foi  o  primeiro  a  observar  pequenos  poros  presentes  no  tecido  da  cortiça,  que  ele  chamou  de  células.  No entanto, de maneira alguma se pode atribuir a Hooke a descoberta da célula, ainda que tenha sido ele o primeiro a observá­ la,  pois  o  fundamento  conceitual  do  que  chamamos  hoje  de  célula  só  será  construído  no  século  XIX.  A  importância  de Hooke,  porém,  está  na  publicação  de  sua  principal  obra:  a  Micrographia,  de  1665,  em  que  ele  descreve  uma  série  de observações realizadas com o auxílio do microscópio (Figura 14). As ilustrações contidas nessa obra são riquíssimas e, a exemplo do que aconteceu com a obra de Vesalius, serviram como padrão para obras posteriores. O uso do microscópio foi um dos avanços tecnológicos de maior impacto na fisiologia e na anatomia. Com ele, um novo mundo se mostrou aos pesquisadores,  e  a  expansão  do  conhecimento  proporcionada  por  ele  dificilmente  encontra  paralelo  na  história  dessas disciplinas.

SÉCULO DAS LUZES

▸ Ousar saber A  Revolução  Científica  iniciada  nos  séculos  XVI  e  XVII  foi  levada  a  cabo  no  século  XVIII.  A  física  de  Galileu  e  a cosmologia  de  Copérnico  culminaram  nos  trabalhos  de  Isaac  Newton  (1642­1727),  expostos  no Philosophiae  Naturalis Principia  Mathematica  (Princípios  Matemáticos  de  Filosofia  Natural),  de  1687.  A  teoria  exposta  nos  Principia  era baseada  em  princípios  relativamente  simples,  como  os  de  inércia,  de  ação  e  reação  e  de  gravitação,  e  fornecia  uma explicação precisa e unificada para os fenômenos naturais. Não bastasse isso, Newton desenvolveu um poderoso método matemático: o cálculo diferencial – que também foi desenvolvido, de maneira independente, pelo filósofo alemão Gottfried Leibniz (1646­1716). O sucesso da teoria newtoniana foi enorme e ela exerceu hegemonia na física até o início do século XX, quando foi questionada por Einstein. Pela primeira vez depois de Aristóteles, um sistema teórico completo era capaz de explicar, com precisão matemática, tanto os fenômenos celestes quanto os terrestres. E o século XVIII soube prestar as devidas homenagens ao trabalho de Newton, como lemos nos versos do poeta Alexander Pope: Nature and Nature’s law lay hid in night, God said: “Let Newton be” and all was light […] 8

Quadro 2 As academias científicas. O  surgimento  das  Academias  de  Ciência,  ao  longo  do  século  XVII,  foi  um  dos  frutos  da  Revolução Científica.  Não  encontrando  espaço  nas  conservadoras  universidades  europeias,  a  nova  ciência  alojou­se em  torno  dessas  organizações.  Livres  da  autoridade  e  do  dogmatismo  teológico  da  universidade,  os cientistas  ali  trocavam  informações  e  apresentavam  suas  novas  descobertas.  Além  disso,  experimentos eram  realizados,  cujos  resultados  eram  analisados  e  discutidos  em  conjunto.  Desse  modo,  as  Academias constituíram  um  esforço  coletivo  para  o  avanço  das  ciências  naturais.  A  submissão  dos  novos  resultados experimentais obtidos por esses pesquisadores à crítica de seus pares mostrou­se um rigoroso instrumento de controle, imprescindível à ciência nascente. As primeiras sociedades científicas surgiram na Itália. A Accademia dei Lincei foi fundada em 1603 pelo nobre e amante das ciências Federico Cesi. O nome da Academia faz alusão à aguçada visão do lince, e esse espírito marcou seus integrantes: olhar e entender o mundo como ele realmente é. Para esse fim, não foi poupado o uso de instrumentos como o microscópio e o telescópio, aperfeiçoados por um de seus mais ilustres  sócios:  Galileu  Galilei.  Outra  associação  italiana  de  destaque  foi  a  Accademia  del Cimento  (Academia  do  Experimento),  fundada  pelos  irmãos  Medici,  Leopoldo  e  Ferdinando  II,  em  1657. Grande divulgadora da nova ciência galilaica, ela contou, entre outros, com integrantes do porte de Torricelli e  Borelli.  O  fim  das  reuniões  dessa  sociedade  aconteceu  após  a  nomeação  de  Leopoldo  de  Medici  para cardeal, em 1667. Na  Inglaterra,  a Royal Society  (Sociedade  Real)  de  Londres  foi  fundada  em  1662,  pelo  Rei  Carlos  II. Assim como suas irmãs italianas, uma forte tendência experimentalista marcou suas atividades. Inspirada nas ideias de Francis Bacon (Figura 15) sobre a instauração de uma nova ciência, a sociedade tinha como moto a afirmação “Nullius in verba” – contração de uma citação de Horácio, “nullius addictus iurare in verba magistri”,  isto  é,  não  prestar  juramento  às  palavras  dos  antigos  mestres,  como  Aristóteles.  As  disciplinas

tratadas nas reuniões da sociedade incluíam a física, a química e a fisiologia. O químico Robert Boyle foi um  dos  mais  proeminentes  dentre  os  primeiros  membros  da  sociedade.  Ele  e  Robert  Hooke,  o  primeiro secretário,  realizavam  experimentos  e  demonstrações  semanais  aos  demais  integrantes.  Dentre  eles, destaca­se a utilização de uma bomba de vácuo em investigações sobre a constituição do ar atmosférico e da  fisiologia  respiratória.  Ao  contrário  do  que  sugere  seu  nome,  a  Royal  Society  exercia  suas  atividades com  independência  do  governo,  pois  não  recebia  subvenção  da  coroa;  esse  fato  garantiu  uma  grande autonomia  a  seus  membros.  Os  avanços  científicos  obtidos  pela  sociedade  eram  divulgados no  Philosophical  Transactions  (Negócios  Filosóficos),  jornal  que,  assim  como  a  Royal  Society,  existe  até hoje. Criada  em  1666  por  Colbert  –  ministro  da  economia  de  Luís  XIV  –  a  Académie  Royale  des Sciences  (Academia  Real  de  Ciências),  sediada  em  Paris,  logo  se  tornou  o  ponto  de  convergência  da ciência  francesa.  Buffon,  d’Alembert,  Laplace  e  Lavoisier  são  alguns  dos  homens  que  integraram  seus quadros.  Ao  contrário  da  Royal  Society,  a  Academia  de  Paris  era  financiada  diretamente  pela  monarquia francesa.  Durante  a  Revolução,  foi  considerada  um  símbolo  do  Ancient  Régime,  sendo  fechada  pela Convenção  em  1793.  A  Académie  des  Sciences  serviu  de  modelo  para  outras  sociedades  científicas europeias, como a Academia de Berlim, criada por Frederico I em 1700. Reorganizada por Frederico II em 1711,  ela  passou  a  se  chamar  Königliche  Preussische  Akademie  der  Wissenschaften  (Academia  Real Prussiana de Ciências).

Figura  14  ■   À  esquerda,  um  dos  microscópios  utilizados  por  Robert  Hooke.  À  direita,  uma  das  ilustrações  de  sua obra Micrographia, de 1665. (Adaptada de Harris, 1999.)

Assim,  lançado  da  escuridão  para  a  luz,  nasceu  o  século  XVIII:  o siècle  des  lumières.  O  Iluminismo,  como  ficou conhecido o movimento científico­filosófico associado a esse século, pretendia esclarecer, iluminar, clarear o pensamento humano;  e  a  ferramenta  escolhida  para  essa  tarefa  foi  o  uso  da  razão.  Somente  a  razão  poderia  libertar  o  ser  humano  da ignorância. Ela seria o ponto de amarração das diversas propostas científicas e filosóficas do século XVIII. Os métodos racionais  utilizados  na  lógica  formal  foram  transferidos  às  ciências  naturais,  e  o  uso  da  razão  foi  definitivamente incorporado  pela  ciência  experimental.  O  filósofo  alemão  Immanuel  Kant  (1724­1804),  ao  tentar  responder  à  pergunta sobre o que foi o Iluminismo, nos descreve o lema que motivou os homens desse período: sapere aude! – ousar saber! A  filosofia  mecânica  e  o  materialismo  invadiram  o  século  XVIII.  Os  trabalhos  fisiológicos  de  Descartes  e  Borelli incentivaram  a  busca  de  compreensão  do  funcionamento  da  máquina  humana.  Os  seres  vivos,  considerados  agora  parte

integraldo  universo  físico,  estavam  sujeitos  às  mesmas  leis  que  re­giam  o  mundo  newtoniano.  Os  trabalhos  sobre  a química  darespiração  realizados  por  Lavoisier  e  a  descoberta  da  eletricidade  animal  executada  por  Galvani  são  exemplos da  tentativa  de  integração  do  mundo  vivo  ao  domínio  físico­químico.  Em  1749,  um  filósofo  e  médico  francês  chamado Julien  Offray  de  la  Mettrie  (1709­1751)  publicou  um  livro  chamado  L’homme  machine  (O  Homem­máquina),  em  que expunha uma visão puramente materialista e ateísta do mundo. La Mettrie reduzia a fisiologia humana a seus componentes mecânicos,  negando  inclusive  o  dualismo  corpo­alma  cartesiano:  mesmo  as  funções  mentais  como  o  livre­arbítrio  e  a moral  seriam  resultados  de  interações  da  matéria.  Essa  obra  tornou­se  muito  popular  e  provocou  escândalo  entre  seus contemporâneos.  Na  verdade,  apesar  de  racionais,  materialistas  e  mecanicistas,  os  homens  do  século  XVIII  buscavam incessantemente uma maneira de conciliar ciência e religião. Negar a existência de Deus e da alma humana era uma atitude que  tendia  a  provocar  repulsa  na  maioria  dos  fisiologistas  da  época.  Fenômenos  fisiológicos  tais  como  o  crescimento,  a nutrição  e  a  atividade  mental  revelaram­se  mais  difíceis  de  explicar  em  termos  puramente  mecânicos  e  materiais  do  que supuseram  mesmo  os  maisentusiasmados  mecanicistas.  A  matéria  tornou­se  um  conceito  extremamente  abrangente  e variável. Como veremos a seguir, ela poderia, por exemplo, ter qualidades especiais, como sensibilidade e irritabilidade.

Figura 15 ■ Frontispício da History  of  the  Royal  Society  of  London  de  Thomas  Sprat,  1667.  Do  lado  direito  do  busto  do  Rei Charles II, patrono da academia, está Francis Bacon, pai da nova filosofia experimental. A referência ao caráter experimental da sociedade está também nos diversos instrumentos científicos espalhados ao fundo. (Adaptada de Ronan, 1987.)

▸ O grande Albrecht von Haller O maior e mais influente fisiologista do século XVIII foi o suíço Albrecht von Haller (1708­1777). Escritor profícuo, publicou  uma  obra  volumosa,  na  qual  destacam­se  os  oito  volumes  dos  Elementa  Physiologiae  Corporis Humani (Elementos de Fisiologia do Corpo Humano), lançados entre 1757 e 1766. Nessa obra, Haller sintetiza o “estado

da arte” da fisiologia de sua época, coordenando em bases científicas as várias teorias e observações realizadas por ele e por  seu  pares,  com  os  quais  mantinha  intensa  correspondência.  Dois  conceitos  centrais  da  fisiologia  de  Haller  eram  os de irritabilidade e sensibilidade. No século anterior, o francês Francis Glisson (1597­1677), ao estudar a liberação de bile pela  vesícula  biliar,  havia  proposto  que  as  fibras  que  a  compunham  teriam  a  capacidade  de  sofrer  irritação  frente  a  um estímulo  externo.  A  irritabilidade,  de  acordo  com  Glisson,  seria  a  capacidade  da  matéria  orgânica  de  reagir  a  uma perturbação,  sendo  a  geradora  dos  movimentos  no  organismo  e  a  grande  responsável  pela  possibilidade  da  vida.  Haller continuou  os  experimentos  de  Glisson,  sendo  um  dos  primeiros  a  determinar  a  função  da  bile  na  digestão  de  gorduras. Além  disso,  ele  estudou  a  propriedade  de  irritabilidade  e  a  distinguiu  de  outra  propriedade  da  matéria  orgânica:  a sensibilidade.  Para  Haller,  o  organismo  seria  composto  de  elementos  básicos,  as  fibras,  que  foram  divididas  em  três classes.  A  primeira  seria  a tela cellulosa (tecido  celular),  que  formaria  o  tecido  conectivo  e  de  sustentação  do  corpo.  A segunda seria a fibra muscularis, que formaria os músculos, e teria a propriedade intrínseca de irritabilidade: contrair­se em resposta a um estímulo. Por fim, a fibra nervosa, capaz de sentir e de transmitir essas sensações para outras partes do organismo.  As  noções  de  irritabilidade  e  de  sensibilidade  obtiveram  grande  adesão  nos  anos  que  se  seguiram  às publicações de Haller, como observaremos, por exemplo, nos trabalhos de Galvani. A  ideia  de  que  o  organismo  fosse  constituído,  em  última  instância,  por  tipos  diferentes  de  fibras  com  propriedades especiais  culminou  na  elaboração  da  influente  “doutrina  do  tecido”,  que  emergiu  dos  trabalhos  do  francês  Xavier  Bichat (1771­1802). Esse médico – que foi a principal figura na fisiologia francesa da virada do século – identificou vinte e um tipos  de  tecidos,  que  seriam  formadores  dos  órgãos  humanos.  Sua  classificação  foi  tanto  anatômica  quanto  fisiológica; cada  tecido  desempenharia  uma  função  no  organismo,  consequência  do  tipo  de  “propriedade  vital”  presente  em  cada  um deles (como a sensibilidade, por exemplo). Segundo Bichat, essas propriedades vitais seriam um impedimento para que a fisiologia  fosse  explicada  em  termos  puramente  físico­químicos.  Com  base  nesse  tipo  de  raciocínio,  diversas  propostas vitalistas surgiram nos séculos XVIII e XIX. O vitalismo introduzia a existência de uma “força vital” (também chamada de vis vitalis ou élan vital), responsável pelas peculiaridades observadas nos processos orgânicos.

▸ Origem da eletrofisiologia: Galvani e Volta As pesquisas sobre os fenômenos elétricos avançaram muito no século XVIII, graças aos trabalhos de homens como Benjamin Franklin, Henry Cavendish e vários outros pesquisadores. Os artefatos desenvolvidos nessa época, tais como a garrafa  de  Leyden  (capaz  de  armazenar  energia  elétrica),  propiciaram  as  pesquisas  sobre  a  presença  da  eletricidade  nos seres  vivos.  Em  1791,  o  professor  de  anatomia  da  Universidade  de  Bolonha,  Luigi  Galvani  (1737­1798),  publicou  a primeira  obra  sobre  esse  assunto,  o  De  Viribus  Electricitatis  in  Motu  Musculari  Commentarius  (Comentário  Sobre  o Poder  da  Eletricidade  no  Movimento  Muscular).  Nessa  obra,  fruto  de  mais  de  dez  anos  de  experimentação,  Galvani propõe  a  existência  da  “eletricidade  animal”.  Utilizando  vários  tipos  de  preparações  experimentais,  ele  estimulou eletricamente nervos de rãs e observou a contração muscular que ocorria em suas patas (Figura 16). Sua conclusão foi que o  corpo  desses  animais  era  capaz  de  produzir  e  armazenar  um  tipo  de  fluido  elétrico  que  era  responsável  pela  contração muscular. O Commentarius obteve enorme sucesso quando foi publicado, mas também gerou críticas intensas. A principal delas veio de um professor de física da Universidade de Pavia: Alessandro Volta (1745­1827). Lendo atentamente a obra de Galvani e repetindo alguns de seus experimentos, ele concluiu que, apesar de reagir à eletricidade externa, as rãs não eram  capazes  de  produzir  eletricidade  intrinsecamente.  De  acordo  com  Volta,  os  resultados  encontrados  por  Galvani deviam­se à eletricidade provocada pelos metais utilizados para conectar os nervos e músculos da rã. A disputa entre esses dois  brilhantes  cientistas  tornou­se  um  dos  grandes  debates  da  história  da  ciência,  e  gerou  experimentos  valiosos  de ambos  os  lados.  Os  experimentos  de  Volta,  por  exemplo,  culminaram  na  invenção  da  pilha  voltaica,  isto  é,  da  bateria elétrica.

Figura  16  ■   Figura  da  obra  de  Galvani  De  Viribus  Electricitatis  in  Motu  Musculari  Commentarius,  de  1791.  (Adaptada  de Piccolino, 1998.)

Com o sucesso obtido por Volta e a morte de Galvani em 1798, os anos posteriores atribuíram a Volta o fato de haver interpretado corretamente os resultados dos trabalhos experimentais iniciados por Galvani. No entanto, uma análise mais detida revela a importância dos trabalhos do bolonhês na fundação e no desenvolvimento posterior da eletrofisiologia. A teoria de Galvani (que, ao contrário de Volta, tinha sólida formação médica) sobre a eletricidade animal estava diretamente ligada à tradição fisiológica de sua época. Essa tradição derivava dos trabalhos de Haller, sobretudo de suas teorias sobre a  irritabilidade  do  tecido  muscular,  sendo  um  dos  arcabouços  conceituais  utilizados  por  Galvani  na  concepção  de  seus experimentos.  O  fato  de  utilizar  rãs  recentemente  sacrificadas,  em  vez  de  animais  vivos,  por  exemplo,  evitava  qualquer possível interferência da alma ou de forças vitais em suas preparações. A irritabilidade era uma propriedade intrínseca do músculo, assim como era a eletricidade animal. A reação do organismo a um agente externo dependia de sua organização interna. O fenômeno da contração não era, dessa maneira, diretamente causado pelo estímulo elétrico externo; a noção de irritabilidade  supunha  que  o  organismo  já  estava  previamente  preparado  para  reagir  de  uma  maneira  específica,  com  um tipo de energia que já possuía dentro de si. Atualmente, poderíamos associar esse tipo de raciocínio a diversos fenômenos fisiológicos,  como,  por  exemplo,  aqueles  mecanismos  que  envolvem  “cascatas  bioquímicas”.  A  perturbação  causada  por um  estímulo,  nessas  situações,  é  amplificada  muitas  vezes,  e  a  resposta  final  depende  apenas  muito  indiretamente  do estímulo inicial. São impressionantes, portanto, as conclusões a que chegou Galvani, em uma época em que nem a célula nem  sua  membrana  –  local  onde  sabemos  atualmente  ser  provocada  e  armazenada  a  energia  elétrica  do  organismo  – haviam sido descobertas.

▸ A combustão e a química da vida Como  vimos,  a  relação  entre  vida  e  calor,  assim  como  a  dependência  do  ar  nos  fenômenos  vitais,  foi  estabelecida desde  a  Antiguidade.  Durante  os  séculos  XVIII  e  XIX,  a  determinação  dos  processos  químicos  por  trás  dessas observações  ocupou  a  mente  de  grande  parte  da  comunidade  fisiológica.  Esses  pesquisadores  procuraram  relações quantitativas  entre  o  consumo  de  oxigênio  e  nutrientes  pelo  organismo  e  a  produção  de  calor  e  subprodutos  de  suas atividades  metabólicas.  Podemos,  entretanto,  encontrar  precursores  desse  tipo  de  investigação  ainda  na  Renascença.  O italiano Santorio Santorio (1561­1636) foi um dos pioneiros no estudo do metabolismo. Ao longo de mais de trinta anos de  pesquisas,  utilizando  diversos  instrumentos  –  como  termômetros  e  balanças  –  Santorio  introduziu  uma  série  de medidas quantitativas sobre o funcionamento do corpo humano (Figura 17). A  descoberta  do  oxigênio  e  sua  participação  na  combustão  provocaram  uma  revolução  na  química  durante  o  século XVIII, formando as bases modernas dessa disciplina. A aplicação da nova química à fisiologia deu­se pelas mesmas mãos do  líder  dessa  revolução:  o  francês  Antoine  Lavoisier  (1743­1794).  A  estreita  relação  do  processo  de  combustão  com  a respiração animal logo foi estabelecida por Lavoisier, que percebeu que os seres vivos absorvem oxigênio e liberam gás carbônico,  da  mesma  maneira  que  faz  uma  substância  quando  em  combustão.  Ele  percebeu,  também,  que  ambos  os

processos produziam calor. Utilizando o calorímetro de gelo (Figura 18), instrumento que desenvolveu em parceria com o físico Pierre Simon de Laplace (1749­1827), realizou diversas medidas sobre a produção de calor animal. A partir dessas experiências, e de muitas outras (Figura 19), Lavoisier concluiu que a respiração era um lento processo de combustão que ocorriadentro dos pulmões. Ao propor esse primeiro esquema da fisiologia respiratória, Lavoisier dava um imenso passo em  direção  da  inserção  dos  organismos  vivos  no  reino  físico­químico,  jornada  que  continuou  no  século  XIX,  com  a descoberta dos princípios da conservação de energia.

Figura 17 ■ Balança metabólica utilizada por Santorio Santorio. (Adaptada de Rothschuh, 1973.)

Figura 18 ■  Calorímetro  de  gelo  de  Lavoisier  e  Laplace.  O  espaço  entre  as  duas  paredes  (isolante  térmico),  assim  como  o espaço entre a parede interna e a cesta experimental, eram preenchidos com gelo. Um animal experimental era então colocado dentro  da  cesta.  O  calor  produzido  pelo  animal  derretia  o  gelo  da  parte  interna,  e  a  água  produzida  era  captada  pelo  vaso inferior. A quantidade de água servia como um índice do calor produzido pelo animal, que era verificado em diversas situações experimentais. O calor animal era também comparado ao calor produzido pela chama de uma vela colocada dentro da cesta. (Adaptada de Coleman, 1971.)

A revolução francesa, iniciada em 1789, pôs fim à era moderna e inaugurou a era contemporânea. Pôs fim também à vida  de  Lavoisier,  guilhotinado  pelos  revolucionários  em  1794.  Sua  proposta  de  que  a  respiração  fosse  um  processo  de combustãodentro dos pulmões logo era contestada. As observações eram simples: os pulmões não apresentavam qualquer indício de conter um processo de queima. Sua temperatura não era superior à de qualquer outra parte do corpo, e nenhum sinal de lesão tecidual, como se poderia esperar, foi encontrado. Foi proposto, então, que o sangue passava pelos pulmões simplesmente para absorver o oxigênio do ar; o sangue, então, passou a ser o local da combustão. A pri mazia do sangue nos processos vitais já contava com muitos adeptos desde os trabalhos de Harvey. O influente John Hunter, por exemplo, criou  a  noção  de  “vitalidade  do  sangue”  –  ele  acreditava  que  o  sangue  continha  a  essência  da  vida,  sendo  o  componente mais importante do organismo. A hegemonia do sangue nos processos fisiológicos durou até a segunda metade do século XIX,  apesar  de  vários  trabalhos  indicarem  a  importância  da  atividade  tissular,  como  a  do  músculo,  por  exemplo,  no consumo de oxigênio. Mas foi a partir de 1870, com a publicação dos trabalhos de Eduard Pflüger (1829­1910), que ficou estabelecido que o consumo de oxigênio pelo organismo dependia da atividade metabólica dos tecidos.

▸ Fisiologia versus anatomia Olhamos  para  o  passado  com  as  lentes  do  presente.  É  inevitável  a  tentação  de  analisar  fatos  ocorridos  em  outras épocas do ponto de vista atual. Isso é especialmente flagrante quando olhamos para a história das ciências: intuitivamente temos o impulso de aplicar nosso ponto de vista privilegiado ao pensamento dos nossos predecessores científicos. Afinal, supostamente somos mais esclarecidos, visto que dispomos de teorias e tecnologias mais avançadas. Contudo, se o nosso objetivo  é  o  de  entender  as  reais  motivações  dessas  pessoas,  devemos  observá­las  sob  o  prisma  da  época  em  que  elas

viveram. Devemos nos colocar na posição das personagens que investigamos e tentar enxergar uma época como a viam os homens desse período. A fisiologia como a praticamos hoje, isto é, a fisiologia experimental, tem data e locais de nascimento: século XIX, na França e, posteriormente, na Alemanha. Entre os anos de 1500 e 1800, no entanto, a fisiologia possuía uma identidade um tanto  distinta  da  atual.  A  coleta  de  dados  empíricos  e  a  realização  de  experimentos  nesse  período  eram  feitas  pelos anatomistas.  Segundo  o  historiador  Andrew  Cunningham,  enquanto  a  anatomia  lidava  com  a  prática  (como etimologicamente  pode­se  deduzir  do  termo  anatomia:  dividir  em  partes,  dissecar,  ou  seja,  uma  prática),  a  fisiologia lidava exclusivamente com a teoria. O fisiologista era um filósofo natural; ele teorizava a partir dos dados da anatomia, mas  também  poderia  utilizar  dados  de  outras  disciplinas,  como  fez  Lavoisier  com  a  química.  Um  fisiologista  nunca realizava um experimento; o anatomista o fazia. O anatomista preocupava­se com os o quês? e comos? do organismo, isto é,  com  suas  causas  materiais  e  eficientes.  O  fisiologista  estava  interessado  nascausas  últimas  (finais),  nos por  quês?  – inacessíveis  aos  anatomistas.  A  anatomia  criava  fatos,  a  fisiologia  tirava  conclusões.  A  diferença  entre  essas  duas disciplinas  remonta  à  distinção,  na  Antiguidade,  entre  ciência  e  arte.  Os  antigos  não  valorizavam  o  trabalho  manual (técnico  ou  artístico)  tanto  quanto  o  conhecimento  teórico  e  contemplativo.  O  filósofo  natural  estava,  assim,  distante  e acima do artesão. Aristóteles, por exemplo, distinguia as chamadas ciências teoréticas das ciências produtivas. Enquanto as primeiras visavam o conhecimento teórico, com um fim em si mesmo, as últimas lidavam com a produção de algo útil ou  belo.  Essa  dicotomia  chegou  até  os  modernos,  alocando  a  anatomia  no  campo  das  artes  e  a  fisiologia  no  campo  das ciências. Podemos ilustrar isso analisando a obra dos cientistas desse período.

Figura  19  ■   Investigações  sobre  a  respiração  realizadas  no  laboratório  de  Lavoisier.  Enquanto  seu  marido  realizava  os experimentos, Madame Lavoisier tomava as notas; devemos a ela este desenho. (Adaptada de Hankins, 1985.)

O  médico  francês  Jean  Fernel  (1497­1558)  foi  o  primeiro  moderno  a  utilizar  o  termo  Fisiologia  no  sentido  antes descrito. Em 1554, o termo Physiologia aparece como título de um dos livros que compunha sua obra Universa Medicina. Segundo  Fernel,  a  fisiologia  era  parte  da  filosofia  e  deveria  buscar  as  causas  dos  fenômenos  naturais  com  base  na demonstração  lógica  e  não  na  demonstração  experimental  ou  visual.  De  acordo  com  essa  concepção,  a  fisiologia  deveria dar  conta  de  três  classes  de  coisas,  com  as  quais  a  anatomia  não  conseguiria  lidar:  (1)  das  menores  unidades  que constituiriam  o  corpo  humano,  e  de  como  essas  porções  minúsculas  e  invisíveis  estariam  relacionadas  com  as  porções visíveis;  (2)  das  causas  últimas  do  movimento  e  da  mudança  no  organismo;  (3)  da  explicação  das  grandes  funções  do organismo, tais como a nutrição, o crescimento e a geração. O conceito fisiológico de Fernel foi seguido por Haller, que ao  longo  de  sua  vida  executou  uma  enorme  quantidade  de  experimentos  com  animais  vivos  e  mortos,  além  de  seres humanos.  Todavia,  quando  estava  realizando  esses  experimentos,  Haller  usava  seu  “chapéu”  de  anatomista  e  não  de fisiologista  (Figura  20).  Segundo  ele,  “physiologia  est  animata  anatome” (fisiologia  é  anatomia  animada).  A  fisiologia deveria  ir  além  das  evidências  fornecidas  pelos  sentidos;  deveria  incorporar  a  busca  pelo  propósito,  ou  finalidade  da

existência  da  estrutura  estudada.  É  a  teleologia  biológica  de  Aristóteles,  acrescida  da  ideia  cristã  de  um  criador infinitamente  sábio  e  benevolente.  A  anatomia  seria  uma  espécie  de  serva  da  fisiologia;  a  forma  de  um  órgão  seria consequência da função para qual aquela estrutura foi criada por Deus. Com base nessa noção, o francês Georges Curvier (1769­1832)  criaria  mais  tarde  o  termo  anatomia  funcional.  Por  fim,  o  exemplo  mais  marcante  dessa  dicotomia anatomia/fisiologia  vem  de  William  Harvey.  A  obra  em  que  expõe  sua  teoria  da  circulação  do  sangue,  o  Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis in Animalibus, é, como o título indica, um exercício, um estudo anatômico, não fisiológico.  Todos  os  experimentos  descritos  nessa  obra  são,  na  concepção  de  Harvey,  experimentos  anatômicos.  A despeito  de  considerarmos  hoje  uma  obra  tipicamente  fisiológica,  seu  autor  considerava­se  praticando  uma  anatomia analítica. Como veremos, a criação da fisiologia experimental alterou a identidade da fisiologia, incorporando definitivamente a investigação empírica aos seus objetivos e métodos. Não devemos, entretanto, utilizar os conceitos da nova fisiologia ao olharmos  para  a  velha  fisiologia  e  para  a  velha  anatomia  se  quisermos  ter  uma  visão  fiel  do  que  constituíam  essas disciplinas no passado.

SÉCULO XIX

▸ Sob a luz da evolução Foi graças aos enormes desenvolvimentos ocorridos na Alemanha e na França durante o século XIX que a fisiologia adquiriu os contornos atuais. Mas antes de analisarmos as peculiaridades das tradições de pesquisa fisiológica nesses dois países,  devemos  nos  voltar  para  a  Inglaterra,  onde  viveu  Charles  Darwin  (1809­1882).  Em  1859,  Darwin  publicou  a obra Origin of Species (Origem das Espécies), que contém sua teoria da evolução por meio da seleção natural. Essa teoria –  segundo  a  qual  os  seres  vivos  se  modificam  por  meio  de  pequenas  mutações  aleatórias  que  são  selecionadas  pelo ambiente  –  revolucionou  e  unificou  todos  os  campos  da  biologia.  A  seleção  natural  forneceu,  enfim,  o  mecanismo  pelo qual os organismos e suas partes se modificam, o que possibilitou aos cientistas entenderem o porquê de uma determinada estrutura ser do jeito que ela é. Foi o golpe letal na presença da teleologia aristotélica e um grande passo para a expulsão das  explicações  finalísticas  na  biologia  (ver  Quadro  1).  Não  devemos,  no  entanto,  imaginar  que  a  teoria  darwinista desfrutou  de  vida  fácil  nos  primeiros  anos  de  sua  existência.  A  Inglaterra  e  o  restante  da  Europa  foram  palco  de fervorosos  debates  na  segunda  metade  do  século  XIX.  Foi  apenas  na  primeira  metade  do  século  XX,  quando  um movimento  que  ficou  conhecido  como  “síntese”  uniu  a  teoria  evolutiva  à  genética  mendeliana,  que  os  conceitos darwinistas  foram  plenamente  aceitos  na  biologia  –  a  ponto  de  um  dos  líderes  desse  movimento,  o  russo  Theodosius Dobzhansky (1900­1975), dizer: “Nada faz sentido na biologia, a não ser sob a luz da evolução.”

Figura 20 ■ O frontispício do Volume II dos Elementa Physiologiae Corporis Humani (1757­1766), de Albrecht von Haller, nos dá uma  ideia  da  diferença  entre  a  anatomia  e  a  fisiologia  nessa  época.  À  esquerda,  observamos  o  anatomista  exercendo sua prática; com a ajuda de instrumentos, ele realiza seus experimentos, sua arte. À direita, o fisiologista, em reflexão, escreve. Ao lado de outras ciências, como a astronomia e a geometria (representadas pelos anjos à sua direita), ele alinha­se com os filósofos  naturais.  Enquanto  o  anatomista  lida  com  os  meios,  o  fisiologista  interessa­se  pelos  fins,  pelas  causas  últimas. (Adaptada de Cunningham, 2002.)

▸ Três concepções da fisiologia Ao analisarmos a fisiologia do século XIX, devemos ter em mente que três pontos de vista sobre o que era a vida, e de como a ciência poderia ter acesso a esse fenômeno, permeavam as pesquisas dentro dos laboratórios. O primeiro deles era a perspectiva vitalista. Existiram diversos tipos de vitalismo ao longo do desenvolvimento da fisiologia, de maneira que esse  termo  está  longe  de  delimitar  um  conceito  preciso.  De  uma  maneira  geral,  os  adeptos  dessa  posição  concebiam  a matéria  orgânica  como  possuidora  de  um  tipo  de  “força  vital”,  responsável  pela  presença  da  vida  na  matéria.  Os  dois fisiologistas  mais  influentes  do  começo  do  século  –  Xavier  Bichat,  na  França,  e  Johannes  Müller,  na  Alemanha  –  eram vitalistas.  Entretanto,  com  o  passar  dos  anos  e  com  o  desenvolvimento  científico  que  ocorreu  ao  longo  do  século,  a interferência  de  uma  força  externa  não  física  –  uma  “mão  estranha”  –  na  corrente  causal  das  explicações  fisiológicas passou a ser vista com desconfiança pelas gerações seguintes. O  entusiasmo  causado  pelos  avanços  da  física  e  da  química  no  século  XIX  impulsionou  a  retomada  de  um  projeto iniciado  por  Descartes,  Borelli  e  La  Mettrie:  o  reducionismo  materialista.  O  objetivo  era  reduzir  os  fenômenos fisiológicos  em  termos  de  matéria  e  movimento,  seguindo  os  preceitos  da  mecânica.  A  descoberta  dos  princípios  de conservação  de  energia  e  da  presença  de  fenômenos  elétricos  nos  seres  vivos  proporcionaram  novas  e  promissoras perspectivas  aos  reducionistas.  Como  veremos,  um  influente  grupo  de  fisiologistas  adotou  essa  visão  na  Alemanha  a partir  da  segunda  metade  do  século.  Esses  cientistas  representaram  uma  reação  aos  Naturphilosophen  (filósofos  da natureza)  germânicos  (Quadro  3),  assim  como  aos  vitalistas.  Desse  grupo  reducionista,  conhecido  como  “grupo  de Berlim”, participaram homens tais como Emil du Bois­Reymond, Hermann von Helmholtz e Carl Ludwig.

Quadro 3 A naturphilosophie alemã. A visão materialista e mecanicista do mundo desenvolvida pelos franceses encontrou forte resistência em alguns  segmentos  do  pensamento  alemão.  Esses  teóricos  estavam  alinhados  a  outra  concepção  do universo,  que  ficou  conhecida  como  Naturphilosophie,  ou  Filosofia  da  Natureza.  Associada  ao  movimento romântico, a Naturphilosophie possuiu diversas formulações entre os séculos XVIII e XIX. No entanto, sua forma  mais  acabada  pode  ser  encontrada  nos  escritos  do  filósofo  Friedrich  Schelling  (1775­1854).  Os Naturphilosophen concebiam o mundo como um organismo vivo em evolução, e não como uma máquina, como queria Descartes e a tradição mecanicista. Mesmo as leis da física e da química estariam sujeitas às leis  desse  processo  evolutivo,  que  seriam  leis  de  caráter  biológico,  tais  como  as  que  regulam  o desenvolvimento  ontogenético  de  um  organismo  vivo.  A  meta  desse  processo  contínuo  e  dinâmico  de transformação da natureza seria a realização da autoconsciência. A evolução do universo seria orientada na  direção  da  formação  do  ser  humano,  que  seria  capaz  de  tomar  consciência  do  processo.  Dessa maneira, no ser humano a natureza alcançaria a consciência de si mesma. Apesar  da  postura  idealista  e  um  tanto  especulativa,  a  Naturphilosophie  exerceu  grande  influência  na filosofia e na ciência alemã e de países vizinhos. Entre seus principais representantes estavam o zoologista Lorenz Oken (1779­1851) e o poeta Wolfgang Goethe (1749­1832). Ambos realizaram várias descobertas anatômicas guiados pelos princípios dessa filosofia natural. Na física, Hans Oersted (1777­1851), discípulo de  Schelling,  descobriu  a  conexão  fundamental  entre  eletricidade  e  magnetismo  baseado  na  ideia  de unidade  na  natureza  e  na  existência  de  uma  “força  universal”,  das  quais  as  demais  forças  físicas  seriam apenas manifestações. Uma terceira concepção da fisiologia, mais cética e cautelosa do que a reducionista, ficou conhecida como positivista. Ela concentrava­se nos fenômenos fisiológicos e nas suas relações entre si, considerando como metafísica a busca pelas causas últimas desses fenômenos. Para esses homens, a análise físico­química do organismo poderia fornecer uma valiosa ferramenta  para  a  fisiologia.  No  entanto,  o  fisiologista  deveria  concentrar­se  nos  fenômenos  fisiológicos,  em  vez  de preocupar­se  com  suas  causas  últimas;  ou  com  a  essência  do  que  era,  afinal,  a  vida.  Essa  concepção  está  ligada  ao nascimento da fisiologia experimental na França, a partir dos trabalhos de François Magendie e Claude Bernard.

▸ A fisiologia experimental dá seus primeiros passos

O que presenciaremos ao longo do século XIX é o nascimento de uma nova disciplina: a fisiologia experimental. Isso aconteceu  primeiro  na  França,  e,  logo  depois,  na  Alemanha.  Em  seguida,  os  discípulos  dos  grandes  mestres  franceses  e germânicos  incumbiram­se  de  espalhar  essa  nova  disciplina  para  o  restante  do  mundo.  Os  primeiros  praticantes  dessa nova  visão  constituem  uma  reação  contra:  (1)  a  concepção  de  que  a  fisiologia  era  uma  ciência  puramente  teórica,  ou  um ramo  da  filosofia;  (2)  a  presença  de  “forças  vitais”  no  funcionamento  dos  organismos  vivos,  ou  seja,  a  recusa  de explicações vitalistas. Um  dos  primeiros  defensores  da  fisiologia  experimental  foi  François  Magendie  (1783­1855).  Sua  obra  Précis Élémentaire de Physiologie (Compêndio Elementar de Fisiologia), de 1816­1817, é uma espécie de manifesto a favor da nova  disciplina.  Nela,  Magendie  defende  entusiasticamente  a  adoção  do  “método  baconiano  da  indução  nas  ciências fisiológicas”.  Segundo  ele,  ao  contrário  de  outras  ciências  naturais  –  tais  como  a  física  e  a  química  –  a  fisiologia,  até aquele  momento,  teria  sido  “um  longo  e  enfadonho  romance”.  Para  alcançar  o  sucesso  daquelas  disciplinas,  a  fisiologia deveria, assim como elas, ser reduzida “inteiramente ao experimento”. Além disso, ele critica severamente as concepções vitalistas  de  seu  professor,  Xavier  Bichat  –  na  época,  a  figura  mais  influente  na  fisiologia  francesa.  Magendie  observou que certas propriedades e fenômenos fisiológicos não eram explicáveis de acordo com as leis da física e da química; ele as denominou atividades vitais.  No  entanto,  essas  propriedades  vitais  seriam  mais  fruto  da  ignorância  dos  cientistas,  que lançavam  mão  delas  quando  não  conseguiam  reduzir  um  fenômeno  biológico  a  termos  físico­químicos,  do  que propriedades intrínsecas aos seres vivos. Ele assumia, dessa maneira, uma posição agnóstica com relação às causas vitais – e anuncia, em tom quase profético: A fisiologia está, no momento, precisamente no ponto em que estavam as ciências físicas antes de Newton: ela espera apenas  que  um  gênio  de  primeira  ordem  venha  para  descobrir  as  leis  da  força  vital  do  mesmo  modo  que  Newton desvendou as leis da atração.

▸ Claude Bernard: o fundador da fisiologia moderna A possibilidade da existência de um Newton nas ciências da vida era questão frequente entre os pensadores do início do século XIX. A expectativa era de que um sucesso equivalente ao que a teoria newtoniana havia alcançado nas ciências exatas acontecesse nas ciências biológicas. Alguns chegavam a duvidar que isso fosse possível, como foi o caso de Kant. Em sua obra Crítica do Juízo, de 1790, ele assegura a impossibilidade de o ser humano vir a conhecer suficientemente os seres vivos a ponto de explicá­los segundo “simples princípios mecânicos da natureza”: […] e isso é tão certo que podemos ter a ousadia de dizer que é absurdo para os homens se entregarem a tal projeto, ou esperar que possa nascer um dia algum Newton que faça compreender a simples produção de um ramo de erva […]

Por trás dessa afirmação está a convicção de que as possibilidades do mundo vivo são tais que, ainda que os homens venham a conhecer todas as suas condições físicas e materiais de existência, algo ainda escapará. Isso significa dizer que as leis da física nunca explicariam totalmente os organismos vivos. O “Newton do ramo de erva” teria, assim, a tarefa de vencer  o  abismo  entre  o  reino  físico  e  o  reino  biológico.  Foi  esse  o  desafio  que  o  fisiologista  francês  Claude  Bernard (1813­1878) aceitou enfrentar; ao fazer isso, ele lançou as pedras fundamentais da fisiologia moderna (Figura 21). A primeira constatação de Bernard foi a de que realmente existem fenômenos que ocorrem nos organismos vivos que não  ocorrem  nos  corpos  inanimados.  Assim,  são  as  leis  que  regem  esses  fenômenos  que  o  fisiologista  deve  tentar desvendar;  essas  leis  não  são  físicas  nem  químicas,  mas  leis fisiológicas.  Não  se  trata  de  negar  que  a  vida  depende  de fenômenos  físico­químicos,  mas  de  dizer  que  ela  não  se  reduz  a  esses  fenômenos.  Bernard  não  era,  portanto,  um reducionista  ou  um  materialista:  ele  tentava  limitar  o  escopo  da  fisiologia  ao  estudo  dos  fenômenos  fisiológicos.  Ao buscar  o  que  é  próprio  da  fisiologia,  Bernard  acaba  propondo  uma  virada  na  concepção  da  disciplina.  A  fisiologia, segundo  ele,  deveria  constituir­se  em  uma  ciência autônoma.  Uma  vez  que  Bernard  buscava  afirmar  essa  nova  visão  da fisiologia  como  disciplina  independente,  ele  não  podia,  de  modo  algum,  admitir  que  esta  fosse  reduzida  à  física  e  à química. Além disso, ele busca separar a nova fisiologia das outras ciências da vida, em um rompimento com a história da antiga  fisiologia  e  de  sua  relação  com  a  anatomia.  Bernard  não  concebe  mais  a  fisiologia  como  uma  continuação  da anatomia  (uma  animata  anatome).  Ao  contrário,  ele  afirma  que  “em  vez  de  proceder  do  órgão  para  a  função”,  o fisiologista deve “começar a partir do fenômeno fisiológico e procurar sua explicação no organismo”.

Figura 21 ■ Claude Bernard (1813­1878), aos 53 anos, Bibliothèque de l’Académie Nationale de Médicine, Paris. (Adaptada de Fulton, 1966.)

Apesar de distinguir­se das ciências físico­químicas, a fisiologia deve, no entanto, nelas se espelhar no que concerne ao  método  experimental.  Discípulo  de  Megendie,  Bernard  exalta  a  fisiologia  experimental  defendida  por  seu  professor. Segundo  ele,  o  objetivo  da  investigação  experimental  não  é  a  essência,  a  natureza  da  vida,  mas  a  determinação experimental dos fenômenos vitais. Por meio de experimentos cuidadosamente controlados, o fisiologista deve buscar as “condições do fenômeno”, isto é, as condições experimentais em que um determinado fenômeno fisiológico é observado. A experimentação fisiológica deve, ainda, ser um processo ativo; o pesquisador deve provocar a ocorrência do fenômeno que deseja investigar: “experimentação é observação provocada”, ensina ele. É interessante notarmos a importância que Bernard (1872) concede à distinção entre observação e experimentação. O “observador”, segundo ele, aceita os fenômenos apenas da maneira como a natureza os coloca diante dele; o experimentador os faz aparecerem sob condições nas quais ele é o mestre.

Como consequência dessa visão, o santuário do fisiologista não deve ser o hospital. De acordo com Bernard, o clínico e  o  patologista  apenas  observam  os  fenômenos  vitais.  Essas  observações  podem,  é  claro,  servir  como  ponto  de  partida, mas apenas isso. A partir daí, o verdadeiro fisiologista deve entrar em seu reino: o laboratório. E foi no laboratório que Bernard  realizou  muitas  descobertas  fundamentais  para  a  fisiologia;  dentre  elas  estão  a  participação  do  pâncreas  na digestão e a função glicogênica do fígado. Certo  dia,  Bernard  trabalhava  em  seu  laboratório  examinando  fígados  de  coelho.  Seu  objetivo  era  descobrir  qual  ou quais  seriam  os  órgãos  responsáveis  pela  digestão  do  açúcar  ingerido  na  alimentação.  De  acordo  com  a  teoria  de  seu professor Jean­Baptiste Dumas (1800­1884) – aceita na época –, plantas e animais apresentariam fisiologias distintas: os vegetais seriam produtores de nutrientes, enquanto os animais seriam apenas consumidores. Portanto, a glicose encontrada no  sangue  de  animais  teria  origem  direta  nos  alimentos  por  eles  ingeridos.  Tendo  observado,  entretanto,  a  presença  de glicose  no  sangue  de  animais  que  não  a  ingeriram  (em  jejum),  Bernard  pôs­se  a  examinar  diversos  órgãos,  incluindo fígados  de  coelho,  dosando  o  nível  dessa  substância  em  várias  situações  experimentais.  Estando  apressado,  por  algum motivo,  nesse  dia  ele  dosou  o  nível  de  glicose  logo  após  o  sacrifício  do  animal,  e  guardou  o  órgão  para  terminar  suas análises  no  dia  seguinte.  Surpreendentemente,  o  nível  de  glicose  encontrado  no  dia  seguinte  foi  muito  superior  ao encontrado  logo  após  o  sacrifício,  a  despeito  do  fato  de  o  animal  já  estar  morto  há  várias  horas.  Essa  observação  deu origem  ao  famoso  experimento  do  “fígado  lavado”.  Bernard,  após  sacrificar  o  animal,  lavava  cuidadosamente  o  fígado para remover toda a glicose presente, e o armazenava em condições adequadas. Algumas horas depois, ele dosava o nível de  glicose,  encontrando  uma  grande  quantidade  dessa  substância,  que  só  poderia  ter  sido  produzida  desde  a  lavagem. Outros  órgãos,  quando  submetidos  a  essa  operação,  não  apresentavam  esse  comportamento.  Bernard  havia,  assim,

descoberto  a  função  glicogênica  do  fígado.  Os  animais,  assim  como  as  plantas,  eram  capazes  de  produzir  glicose.  Mais ainda,  a  digestão  não  era  um  processo  simples  e  direto  como  se  supunha,  em  que  o  organismo  simplesmente  utiliza  os alimentos que ingere. Antes, é um processo indireto e complexo, em que o organismo é capaz de armazenar, modificar e fabricar seus próprios nutrientes. Outro  conceito  importante  deduzido  desses  experimentos  –  e  de  vários  outros  –  é  o  de secreção interna.  O  fígado, além  de  secretar  bile,  é  capaz  de  secretar  glicose  diretamente  no  sangue.  A  descoberta  da  capacidade  de  um  órgão  ou glândula secretar, no ambiente interno, substâncias essenciais para seu funcionamento lançou as bases para a fundação da endocrinologia.  A  noção  de  secreção  interna  também  levou  Bernard  (1978)  à  sua  teoria  que  unificaria  definitivamente  a fisiologia moderna: a teoria do meio interno. Vamos ouvi­lo: Creio ter sido o primeiro a insistir nessa ideia de que para o animal há realmente dois meios: um meio externo no qual está colocado o organismo e um meio interno (milieu intérieur), no qual vivem os elementos dos tecidos. A existência do ser se dá não no meio externo, o ar atmosférico para o ser aéreo, a água doce ou salgada para os animais aquáticos, mas no meio líquido interno formado pelo líquido orgânico circulante que envolve e banha todos os elementos anatômicos dos tecidos. […] A conservação do meio interno é a condição de vida livre, independente: o mecanismo que a possibilita é aquele que assegura no meio interno a manutenção de todas as condições necessárias para a vida dos elementos.

Podemos  notar  que  Bernard  compara  o  organismo  a  uma  sociedade,  em  que  os  vários  elementos,  vivendo  no  meio interno, trabalham conjuntamente para a manutenção do todo. Para ele, “o organismo forma, por si próprio, uma unidade harmônica,  um  pequeno  mundo  (microcosmo)  contido  em  um  grande  mundo  (um  macrocosmo)”.  A  explicação  dos fenômenos  que  governam  o  meio  interno  passa,  então,  a  ser  o  objetivo  do  fisiologista.  Em  1929,  Walter  B.  Cannon (1871­1945)  retomará  essa  teoria  ao  propor  a  ideia  de homeostase.  Os  elementos  citados  por  Bernard  correspondem  às células, e um de seus objetivos será unir sua teoria do meio interno a uma teoria proposta na Alemanha algumas décadas antes, a teoria celular.

▸ A teoria celular Enquanto a teoria da evolução de Darwin fornecia o arcabouço explicativo sobre a formação das estruturas presentes nos  seres  vivos,  e  a  teoria  do  meio  interno  de  Bernard  unificava  a  fisiologia,  outra  teoria  terminou  de  unir  a  biologia vegetal  e  animal,  e  tornou­se  também  um  dos  pilares  da  fisiologia  moderna.  A  teoria  celular,  como  ficou  conhecida, surgiu  na  Alemanha,  com  os  trabalhos  de  Matthias  Schleiden  (1804­1881)  e  Theodor  Schwann  (1810­1882).  O desenvolvimento dessa ideia, porém, tem início quase duzentos anos antes, com as primeiras observações com o auxílio do microscópio feitas por Hooke, Leeuwenhoeck, Malphigi e vários outros. Esses pesquisadores, e os que os seguiram, observaram  que  tanto  os  tecidos  vegetais  quanto  os  tecidos  animais  apresentavam  uma  grande  variedade  de  glóbulos  e corpúsculos. Dessa maneira, no início do século XIX a existência das “células” era fato conhecido da comunidade europeia de microscopistas. Qual foi, então, a grande novidade introduzida por Schleiden e Schwann? Como veremos, mais do que acrescentar  novas  descrições  às  já  muitas  existentes  na  época,  foi  a  insistência  na  ideia  de  que  a  célula  é  a  unidade fundamental  de  todos  os  organismos  vivos  que  os  colocou  no  centro  dessa  importante  descoberta.  Isto  é,  a  grande mudança foi conceitual e não metodológica. Dentre  os  muitos  precursores  da  teoria  celular,  podemos  citar  os  franceses  Henri  Dutrochet  (1776­1847)  e  François Raspail  (1794­1878),  o  tcheco  Jan  Evangelista  Purkinje  (1787­1869)  e  seus  discípulos,  e  o  alemão  Lorenz  Oken  (1779­ 1851).  Purkinje  liderou  um  importante  centro  de  pesquisas  microanatômicas  e  fisiológicas  em  Breslau  e  posteriormente em Praga. Suas investigações lhe renderam diversas descobertas, tais como as grandes células observadas no cerebelo que hoje  levam  seu  nome,  sendo  considerado  um  dos  principais  pioneiros  da  teoria  celular.  De  acordo  com  alguns historiadores,  os  trabalhos  de  Purkinje  e  seu  grupo  –  muitos  deles  publicados  em  tcheco  –  foram  eclipsados  por rivalizarem  com  o  grupo  dominante  na  fisiologia  germânica  liderado  por  JohannesMüller.  Já  o  caso  de  Lorenz  Oken representa um capítulo interessante no desenvolvimento da doutrina da célula. Oken era adepto da Naturphilosophie, um movimento  científico­filosófico  que  exerceu  grande  influência  no  ambiente  cultural  alemão  no  final  do  século  XVIII  e começo  do  século  XIX  (ver  Quadro  3).  Na  obra Die  Zeugung  (Sobre  a  Geração),  de  1805,  Oken  propõe  que  todas  as formas  vivas,  das  mais  simples  às  mais  complexas,  seriam  constituídas  de  “infusorianos”:  pequenas  vesículas  que  se formariam a partir de um fluido original amorfo e indiferenciado. As afirmações de Oken baseavam­se excessivamente em argumentos metafísicos e não em observações diligentes e sistemáticas ao microscópio, o que lhe rendeu inúmeras críticas

por parte dos seus contemporâneos. No entanto, para muitos, sua importância na formação da teoria celular residiu na sua insistência de que os organismos vivos eram formados por minúsculas unidades funcionais. Em  1833,  Johannes  Müller  (1801­1858)  assumiu  a  cadeira  de  anatomia  e  fisiologia  da  Universidade  de  Berlim, formando em torno de si um importante grupo de pesquisas. Entre os primeiros alunos de Müller estavam dois exímios microscopistas: Schleiden, um ex­advogado que virou botânico, e Schwann, um microanatomista. Ao investigar o tecido embrionário de plantas, Schleiden concluiu que o tecido vegetal era constituído de uma “sociedade” de células, que, juntas, formavam a base estrutural das plantas. Além disso, concluiu que todas as células eram causadas pelo mesmo mecanismo. Suas descobertas foram publicadas na monografia Beiträge zur Phytogenesis (Contribuições para a Fitogênese), em 1838. Durante  um  jantar,  Schleiden  compartilhou  suas  ideias  com  Schwann,  que  ficou  muito  entusiasmado,  pois  viu  grande semelhança  com  o  trabalho  que  ele  mesmo  desenvolvia  com  tecidos  cartilaginosos  e  de  notocorda.  Em  1839,  Schwann publicou  suas  conclusões  sob  o  título Mikroskopische  Untersuchunger  über  die  Uebereinstimmung  in  der  Struktur  und dem  Wachstum  der  Thiere  und  Pflanzen  (Pesquisas  Microscópicas  sobre  a  Conformidade  na  Estrutura  e  Crescimento entre Plantas e Animais). Essa obra, que incorporou os trabalhos de Schleiden, obteve grande sucesso e marca, enfim, o nascimento  da  teoria  celular  (Figura  22).  Nela,  Schwann  propõe,  de  forma  coesa  e  baseada  em  diversas  e  sólidas evidências empíricas, a teoria de que as células constituiriam as unidades fundamentais dos animais e dos vegetais. Elas seriam a sede das atividades metabólicas do organismo. Tanto Schleiden quanto Schwann não reconheceram o processo de divisão celular, e acreditavam que as novas células se  formavam  a  partir  de  um  fluido  nutritivo,  em  um  processo  análogo  ao  de  cristalização.  Esses  erros,  no  entanto,  não impediram  que  a  teoria  celular,  aliada  à  teoria  do  meio  interno,  funcionasse  como  grande  ponto  de  convergência  para  a fisiologia, assim como para diversas outras disciplinas biológicas. Rudolf Virchow (1821­1902), por exemplo, transferiu para a fisiologia da célula a sede das doenças, fundando a patologia celular.

Figura 22 ■ Desenhos de células feitos por Schwann. À esquerda, um retrato de Matthias Schleiden (1804­1881); à direita, de Theodor Schwann (1810­1882). (Adaptada de Coleman, 1971; e de http://vlp.mpiwg­berlin.mpg.de.)

▸ A conservação de energia aplicada ao mundo da vida O  projeto  de  inserir  os  seres  vivos  no  universo  físico­químico  foi  a  motivação  que  levou  Lavoisier  a  investigações sobre  a  química  da  respiração,  no  século  XVIII.  Esse  mesmo  espírito  norteou  grande  parte  da  pesquisa  fisiológica  do

século XIX. O trabalho do químico Justus Liebig (1803­1873) sobre a química animal foi um dos principais responsáveis por isso. Sua proposta era oferecer à fisiologia as novas descobertas da química, de modo que podemos considerá­lo um dos precursores da bioquímica – esta, uma disciplina do século XX. Liebig propunha que era possível descobrir que tipo de  transformações  químicas  aconteciam  dentro  do  organismo,  analisando  quimicamente  o  que  entrava  e  o  que  saía  do corpo.  Além  disso,  a  descoberta  do  princípio  da  conservação  de  energia  –  sistematizado  de  maneira  independente  por Robert  Mayer  (1814­1878),  James  Joule  (1818­1889)  e  Hermann  von  Helmholtz  (1821­1894)  –  criava  o  conceito de energia como  moeda  de  troca  entre  diversos  processos  físicos.  O  intercâmbio  de  energia  era  observado  em  diversos fenômenos  durante  o  século  XIX,  como,  por  exemplo,  nas  baterias  voltaicas,  que  transformavam  energia  química  em elétrica, e nas máquinas a vapor, que convertiam calor em energia mecânica. Não demorou até esse raciocínio ser aplicado ao  mundo  vivo,  já  que  os  organismos  poderiam  ser  encarados  como  uma  máquina  química  produtora  de  calor  e movimento.  Dessa  maneira,  diversos  cientistas  procuraram  a  confirmação  de  que  o  princípio  de  conservação  de  energia aplicava­se também ao reino biológico. Um  aperfeiçoamento  dos  calorímetros  de  gelo,  os  calorímetros  respiratórios  (Figura  23)  tornaram­se  um  clássico nesses  estudos.  Com  a  ajuda  desses  aparelhos,  buscava­se  medir  a  quantidade  total  de  substâncias  e  gases  ingeridos  e excretados por um animal, assim como a quantidade de calor produzido. Em Munique, Carl Voit (1831­1908) e Max von Pettenkofer  (1818­1901)  realizaram  uma  série  de  experimentos  utilizando  esse  tipo  de  aparato,  verificando,  entre  outras coisas,  que  a  quantidade  de  oxigênio  consumido  variava  em  função  do  tipo  de  alimento  ingerido.  Max  Rubner  (1854­ 1932), um discípulo de Voit e Pettenkofer, continuou essa investigação, realizando uma longa série de experimentos que se tornaram  muito  famosos.  Graças  a  eles,  Rubner  verificou  definitivamente  que  a  conservação  de  energia  estava  presente nos seres vivos.

Figura 23 ■ Calorímetro respiratório. (Adaptada de Coleman, 1971.)

▸ O grupo de Berlim

Dois  alunos  de  Johannes  Müller  promoveram  uma  revolução  nas  pesquisas  eletrofisiológicas  iniciadas  por  Galvani. Esses  alunos,  junto  com  alguns  outros,  formaram  o  que  ficou  conhecido  como  o  grupo  de  Berlim:  um  grupo  de fisiologistas  de  sólida  formação  em  física  e  matemática,  e  também  com  forte  tendência  reducionista  e  materialista.  O primeiro  deles  foi  Emil  du  Bois­Reymond  (1818­1896),  que  começou  suas  pesquisas  após  ler  o  tratado  do  físico  Carlo Matteucci  (1811­1865)  sobre  eletricidade  animal.  Du  Bois­Reymond  começou  replicando  os  resultados  do  italiano. Convencido de que os seres vivos estavam sujeitos às leis da física e da química, ele realizou uma série de experimentos utilizando o galvanômetro, um instrumento capaz de medir pequenas alterações elétricas. Graças à sua grande paciência e habilidade  experimental,  du  Bois­Reymond  aperfeiçoou  muito  a  sensibilidade  desse  instrumento,  além  de  desenvolver vários outros aparatos para aferição elétrica. Esses equipamentos possibilitaram a descoberta da “corrente de repouso”, um fluxo  de  cargas  presente  nas  fibras  nervosas  e  musculares  mesmo  na  ausência  de  estímulos  elétricos.  Além  disso,  du Bois­Reymond observou que essa corrente diminuía, e era até revertida, quando um estímulo era aplicado a essas fibras. Ele chamou esse fenômeno de “variação negativa”. O próximo passo na descoberta da transmissão do impulso nervoso foi dado  por  seu  grande  amigo:  o  médico  e  físico  Hermann  von  Helmholtz  (1821­1894)  (Figura  24),  provavelmente  o  mais brilhante dentre os alunos de Müller. Johannes  Müller,  assim  como  a  maioria  da  comunidade  fisiológica  da  época,  acreditava  que  o  “princípio  nervoso” fosse  um  “fluido  imponderável”.  Por  ter  velocidade  infinita,  ou  imensamente  grande,  qualquer  tentativa  de  se  medir  a velocidade  de  transmissão  do  sinal  neural  estaria  fadada  ao  fracasso.  Utilizando  uma  preparação  relativamente  simples, porém engenhosa (Figura 25), Helmholtz foi capaz, em 1850, de medir a velocidade de um potencial de ação em uma fibra nervosa. Ela era de algumas dezenas de metros por segundo. A importância desses experimentos vai muito além do campo da  eletrofisiologia,  pois,  pela  primeira  vez,  um  fenômeno  imaterial  e  etéreo  como  a  transmissão  nervosa  –  normalmente tratada  como  manifestações  do  espírito  ou  da  alma  –  foi  medida  com  precisão  por  meio  de  instrumentos  físicos.  Dessa maneira,  foi  dado  um  grande  passo  para  explicar  em  termos  materialistas  o  funcionamento  do  organismo,  expurgando  a presença  de  espíritos  e  forças  vitais  operando  dentro  dos  seres  vivos.  Coube  a  um  aluno  de  Helmholtz  e  du  Bois­ Reymond,  Julius  Bernstein  (1839­1917),  desvendar  os  mecanismos  de  polarização,  despolarização  e  propagação  do potencial  elétrico  na  membrana  das  células  excitáveis,  graças  ao  excesso  de  íons  positivos  no  exterior  e  negativos  no interior dessas células. Os trabalhos de Bernstein culminaram no modelo proposto por Hodkgin e Huxley no século XX. A  importância  de  Helmholtz  para  a  ciência  ultrapassa  os  limites  da  fisiologia,  alcançando  os  campos  da  matemática, física,  psicologia  e  filosofia.  Ao  lado  de  Leonardo  da  Vinci,  ele  foi  uma  das  grandes  mentes  científicas  da  história.  Na psicofisiologia,  por  exemplo,  Helmholtz  fez  importantes  descobertas  sobre  a  percepção  auditiva  e  visual  (dentre  elas,  a percepção  de  cores),  relatadas  no Estudo  das  Sensações  de  Tom  como  uma  Base  Fisiológica  para  a  Teoria  da  Música (1863) e no Tratado sobre Ótica Fisiológica (1857­1866).

Figura 24 ■ Hermann von Helmholtz (1821­1894). (Adaptada de http://vnl.cps.utexas.edu/timeline.html.)

Figura 25 ■ Reconstrução atual do aparato experimental utilizado por Helmholtz para medir a velocidade de condução de um estímulo  elétrico  em  um  nervo.  Para  mais  detalhes  sobre  este  experimento,  consulte:  http://blog.sbnec.org.br/2008/10/na­ velocidade­do­pensamento. (Adaptada de Schimidgen, 2002.)

▸ Carl Ludwig e o Instituto de Leipzig

Se  a  fisiologia  francesa  contou  com  Claude  Bernard,  a  alemã  contou  com  um  cientista  de  qualidade  similar:  Carl Ludwig  (1816­1895).  Vimos  que  na  primeira  metade  do  século,  Johannes  Müller  formou  em  Berlim  uma  grande quantidade  de  alunos,  como  Schwann,  Henle,  du  Bois­Reymond  e  Helmholtz.  Na  segunda  metade  do  século,  contudo,  a fisiologia  germânica  foi  associada  à  figura  de  Ludwig.  Após  lecionar  em  Marburg,  Zurique  e  Viena,  Carl  Ludwig  se estabeleceu em Leipzig, onde fundou um Instituto de Fisiologia (Figura 26). O Instituto logo se tornou o grande centro de referência  da  nova  fisiologia  experimental  europeia,  atraindo  estudantes  do  mundo  todo.  O  efeito  disso  foi  que  grande parte dos fundadores da fisiologia experimental em outros países, tais como a Inglaterra, EUA e Canadá, passaram pelas mãos de Ludwig. Sua capacidade de lecionar e sua dedicação junto aos alunos se tornaram famosas. Consta que muitas de suas  descobertas  foram  publicadas  apenas  com  o  nome  dos  estudantes  junto  aos  quais  elas  foram  realizadas,  apesar  da participação direta de Ludwig nos trabalhos. A  orientação  teórica  do  Instituto,  assim  como  a  de  seu  idealizador,  era  antivitalista,  e  seus  métodos  experimentais eram físico­químicos. Essa tendência fisicista norteou os grandes avanços metodológicos levados a cabo por Ludwig. O principal  deles  provavelmente  foi  a  invenção  do  quimógrafo,  instrumento  que  virou  um  dos  símbolos  da  pesquisa fisiológica  durante  várias  décadas  (Figura  27).  Capaz  de  medir  diversas  variáveis  fisiológicas  ao  longo  do  tempo,  o quimógrafo foi um dos responsáveis por tornar a fisiologia uma disciplina dinâmica, possibilitando pensar os fenômenos da vida em termos de processos que variam com o tempo. Outra inovação introduzida por Ludwig foi a técnica de manter um  órgão  isoladamente  vivo,  por  meio  da  perfusão  de  uma  solução  nutriente.  Essa  técnica  possibilitou  o  estudo  do funcionamento  do  coração.  Em  preparações  com  rãs,  Ludwig  e  seus  estudantes  Adolf  Fick,  Elias  Cyon,  Joseph  Coats  e Henry Bowditch começaram a descobrir as leis que regem a contração cardíaca, trabalho que seu outro aluno, Otto Frank, continuou em Munique. A fisiologia cardiovascular foi a área mais conspícua à qual se dedicou Carl Ludwig. Dentre suas principais  descobertas  estão  a  do  centro  vasomotor  bulbar,  a  da  permeabilidade  capilar  e  a  lei  do  “tudo  ou  nada”  e  a  do período refratário cardíaco. Além disso, graças à invenção da bomba de gás sanguínea, Ludwig e seus discípulos puderam realizar diversas observações sobre a saturação de oxigênio e gás carbônico no sangue.

Figura 26 ■ Instituto de Fisiologia de Carl Ludwig, em Leipzig. O prédio foi destruído na Segunda Guerra Mundial. (Adaptada de Zimmer, 1997.)

Figura  27  ■   Quimógrafo  utilizado  por  Carl  Ludwig.  (Adaptada  de  http://vlp.mpiwg­berlin.mpg.de.  Originais:  Cyon  E.  Atlas  zur Methodik der Physiologischen Experimente und Vivisectionen, 1876.)

Além  do  sistema  cardiovascular,  a  fisiologia  renal  foi  alvo  de  intensas  pesquisas  no  Instituto.  À  época  de  Ludwig, muitas  descobertas  acerca  da  anatomia  e  da  fisiologia  dos  rins  já  haviam  sido  realizadas  por  homens  como  Jacob  Henle (1809­1885)  e  William  Bowman  (1816­1892).  Em  suas  primeiras  investigações,  Ludwig  dedicou­se  aos  princípios  que governam  a  formação  da  urina:  a  filtração  glomerular  e  a  reabsorção  tubular.  Enquanto  a  pressão  hidrostática  nas arteríolas  aferente  e  eferente  foi  reconhecida  como  a  força  responsável  pela  filtração,  a  força  química  responsável  pela reabsorção  foi  sugerida,  mas  não  totalmente  esclarecida  por  Ludwig.  Essa  proposta,  que  buscava  explicar  os  fenômenos de  formação  da  urina  em  termos  físico­químicos,  ia  de  encontro  às  ideias  de  Johannes  Müller,  que  defendia  uma  visão vitalista do funcionamento renal. De acordo com os partidários de Müller, os rins agiriam como uma glândula secretora, sendo  que  forças  vitais  seriam  responsáveis  pela  secreção  de  urina  nos  túbulos  renais.  Em  1874,  Rudolph  Heidenhain (1834­1926) propôs uma teoria da secreção renal, que ficou conhecida como teoria de Bowman­Heidenhain. Essa disputa entre a “teoria da filtração”, de orientação mecanicista, e a “teoria da secreção”, de orientação vitalista, só seria resolvida no século XX, quando os mecanismos da formação da urina foram desvendados.

SÉCULO XX

▸ Os grandes grupos de pesquisa

Em  4  anos  sucessivos,  o  fisiologista  russo  Ivan  Pavlov  (1849­1936)  foi  indicado  para  o  prêmio  Nobel  por  suas pesquisas  sobre  a  fisiologia  da  digestão  (Figura  28).  No  entanto,  sua  indicação  suscitava  sempre  a  mesma  pergunta:  as descobertas  de  Pavlov  eram  frutos  originais  de  seu  próprio  trabalho,  ou  representavam  uma  espécie  de  compilação  dos trabalhos  realizados  no  grande  laboratório  que  ele  liderava?  Pavlov  comandava,  desde  1891,  a  divisão  de  fisiologia  do Instituto  Imperial  de  Medicina  Experimental,  e  possuía,  de  longe,  o  mais  bem  equipado  laboratório  de  fisiologia  da Rússia. Assim como o Instituto de Leipzig, liderado por Carl Ludwig (com quem Pavlov estudou entre 1884 e 1886), seu laboratório possuía várias salas e muitos ajudantes e colaboradores. Essa nova forma de praticar a fisiologia contrastava diretamente com a maioria das pesquisas até então. Claude Bernard, por exemplo, por quem Pavlov nutria grande respeito e de quem se declarava discípulo intelectual, trabalhava geralmente sozinho, ou com um ajudante ou colaborador, e sempre em  um  pequeno  laboratório.  A  fisiologia  praticada  por  Ludwig  e  Pavlov  constituiu­se  em  uma  tendência  nos  principais centros de pesquisa nos anos seguintes. Grandes laboratórios, com muitas pessoas trabalhando (o que envolve divisão de trabalho)  e  grandes  investimentos  financeiros,  caracterizarão  a  maneira  como  a  fisiologia  será  praticada  no  século  XX. Dentro  dessa  no­va  organização  social  da  ciência,  os  fisiologistas,  além  das  atividades  científicas,  passaram  a  lidar também  com  atividades  de  administração  e  gerenciamento  de  recursos.  A  obtenção  desses  recursos  passou,  ao  longo  do tempo, a depender da publicação dos trabalhos executados no laboratório.

Figura 28 ■ Ivan Pavlov (1849­1936), em 1904. (Adaptada de Todes, 1997.)

▸ Um século de descobertas A proximidade no tempo torna qualquer tentativa de síntese do século XX uma tarefa extremamente perigosa. Somente os  desdobramentos  e  as  consequências  decorrentes  das  descobertas  e  teorias  atuais  tornarão  possível  uma  avaliação criteriosa.  Além  disso,  a  quantidade  de  informação  adicionada  ao  corpo  da  fisiologia  nesse  século  provavelmente  supera em  muito  a  soma  de  todos  os  anteriores.  A  lista  dos  laureados  com  o  prêmio  Nobel  em  Fisiologia  e  Medicina (ver http://nobelprize.org)  pode  nos  fornecer  uma  vaga  ideia  desse  fato.  A  simples  tentativa  de  listar  essas  descobertas ocuparia  um  espaço  muito  superior  ao  do  presente  capítulo,  fugindo  às  nossas  reais  intenções.  Podemos  tentar  destacar alguns poucos eventos que marcaram as diversas áreas da fisiologia no século que passou, sabendo, no entanto, que uma enorme injustiça estará inevitavelmente sendo cometida.

A partir de um novo método de corar tecidos com prata, desenvolvido pelo histologista italiano Camillo Golgi (1843­ 1926), o espanhol Santiago Ramón y Cajal (1852­1934) propôs que o sistema nervoso era composto por células ligadas entre  si,  não  sendo  uma  rede  contínua  como  alguns  propunham  (Figura  29).  Essa  ideia  deu  origem  à  doutrina  do neurônio, o pilar sobre o qual se ergueu a moderna neurofisiologia. Em 1906, o neurologista inglês Charles Sherrington (1857­1952)  publicou  sua  famosa  monografia  The  Integrative  Action  of  the  Nervous  System  (A  Ação  Integrativa  do Sistema  Nervoso),  fundada  sobre  o  conceito  de  sinapse,  criado  por  ele.  Esses  três  cientistas  foram  laureados  com  o prêmio  Nobel,  assim  como  o  neurofisiologista  australia­no  John  Eccles  (1903­1997)  –  premiado  em  1963,  por  suas pesquisas sobre o mecanismo de transmissão na sinapse química. Nesse mesmo ano, dois eletrofisiologistas dividiram o prêmio  com  Eccles,  por  desvendarem  os  processosresponsáveis  pela  bioeletrogênese  na  membrana  de  células  excitáveis: Alan  Hodgkin  (1914­1998)  e  Andrew  Huxley  (1917­).  Utilizando  técnicas  de  fixação  de  voltagem,  eles  deram continuidade às pesquisas iniciadas por Galvani no século XVIII, propondo um modelo que revolucionou a neurofisiologia e  a  eletrofisiologia.  Diversas  técnicas  recentemente  desenvolvidas,  como  o  “patch­clamp”,  a  imuno­histoquímica  e  a neuroimagem, estão atualmente alargando esses dois campos de maneira espetacular.

Figura 29 ■ Da esquerda para a direita, Camillo Golgi (1843­1926), Santiago Ramón y Cajal (1852­1934) e Charles Sherrington (1857­1952). (Adaptada de http://nobelprize.org.)

Vimos que o século XIX termina com uma intensa disputa na fisiologia renal entre adeptos da “teoria da filtração” e da “teoria  da  secreção”.  Em  1916,  o  inglês  Arthur  Cushny  (1866­1926)  propôs  sua  “teoria  moderna”  sobre  o  assunto. Segundo  ele,  a  urina  seria  formada  por  ultrafiltração  glomerular,  sendo  sua  composição  posteriormente  modificada  pela reabsorção seletiva no túbulo renal. Nos anos que se seguiram, duas técnicas experimentais contribuíram para desvendar os mecanismos por trás dos processos de filtração e reabsorção. A primeira foi a micropunção tubular, criada por Alfred Richards  (1876­1966).  A  segunda  foi  a  medida  da  taxa  de  filtração  glomerular  por  meio  da  determinação do clearance (depuração)  renal  de  uma  substância,  como  a  creatinina  ou  a  inulina.  Em  1935,  James  Shannon  e  Holmer Smith determinaram o clear­ance da  inulina  em  animais  e  em  humanos,  inaugurando  um  enorme  campo  de  investigação nessa área. Já o mecanismo de contracorrente, entre os ramos ascendente e descendente da alça de Henle, foi proposto pelo físico­químico Werner Kuhn (1899­1968), sendo que o primeiro a encontrar evidências a favor dessa “estranha” ideia foi o suíço Heinrich Wiz (1914­1993). A endocrinologia pode ser considerada uma ciência essencialmente do século XX. Fundada a partir das noções de meio interno e de secreção interna formuladas por Claude Bernard, essa disciplina conheceu um avanço extraordinário ao longo do  século.  Em  1902,  William  Bayliss  (1880­1924)  e  Ernest  H.  Starling  (1866­1927)  demonstraram  que  a  secretina  era capaz de estimular a secreção pancreática. A partir desses resultados, eles introduziram o conceito de hormônio como um fator químico capaz de controlar a ação de um órgão a distância. Embora os efeitos da extirpação do pâncreas na produção de  diabetes  já  fossem  conhecidos  desde  1889,  com  os  trabalhos  de  Mering  e  Minkowski,  foi  apenas  em  1920  que  os canadenses John Macleod (1873­1935), Frederick Banting (1891­1941) e Charles Best (1899­1978) conseguiram isolar a insulina.  Já  a  interação  do  sistema  endócrino  com  o  sistema  nervoso  foi  estabelecida  a  partir  dos  trabalhos  de  Herbert Evans (1882­1971) sobre a glândula hipófise. A fisiologia cardiovascular adentrou o século XX já em estágio avançado de conhecimento, graças, em grande parte, aos  progressos  do  grupo  de  Carl  Ludwig  em  Leipzig.  Em  1913,  Willem  Einthoven  (1860­1927)  desenvolveu  um  novo tipo  de  galvanômetro,  capaz  de  registrar  pequenos  sinais  elétricos  projetados  pelo  coração  na  superfície  do  corpo.  Era  a origem do eletrocardiograma, método de crucial importância clínica e fisiológica ao longo do século XX. As estruturas de condução  dos  potenciais  elétricos  no  coração  foram  descobertas  por  His  e  Purkinje  ainda  no  século  XIX.  Já  os  nós

sinoatrial  e  atrioventricular  foram  descritos  nos  primeiros  anos  do  novo  século.  Em  1914,  o  já  citado  Ernest  Starling, utilizando  uma  preparação  de  coração  e  pulmão  isolados  de  cachorro,  observou  que  a  força  de  contração  sistólica  era diretamente proporcional ao grau de estiramento do músculo cardíaco no final da diástole. Como esse fenômeno já havia sido observado antes por Otto Frank em corações de rãs, esse mecanismo recebeu o nome de lei de Frank­Starling. Antes disso,  Starling  já  havia  realizado  importantes  descobertas  sobre  a  permeabilidade  capilar,  determinando  as  forças (hidrostática e coloidosmótica) que agem na passagem de líquido através da parede capilar – razão pela qual essaspressões passaram  a  ser  conhecidas  como  “forças  de  Starling”.  A  interação  da  regulação  do  fluxo  capilar  local  com  a  atividade metabólica  tecidual  foi  intensamente  estudada  por  August  Krogh  nas  primeiras  décadas  do  século  XX.  No  início  desse século, o também já citado William Bayliss observou que os vasos sanguíneos respondiam à distensão contraindo­se. Era o início das teorias miogênicas de controle local de fluxo. Na década de 1980, Robert Furchgott demonstrou a capacidade modulatória do endotélio. Já os mecanismos subjacentes a esse fenômeno – que conta com a participação do óxido nítrico – foram descobertos apenas mais recentemente. A  incorporação  da  química  à  fisiologia,  formando  a  química  fisiológica  ou  bioquímica,  foi  um  longo  processo  que ocorreu desde o final do século XIX. Durante o século XX, sobretudo a partir da segunda metade, o centro de gravidade da  fisiologia  deslocou­se  para  a  bioquímica  celular  e  molecular.  As  novas  descobertas  teóricas  e  metodológicas proporcionadas  pelos  avanços  desses  campos  revolucionaram  praticamente  todos  os  ramos  da  fisiologia.  O  horizonte investigativo  da  disciplina  ampliou­se  e  atravessou  a  membrana  citoplasmática,  alcançando  o  interior  do  núcleo  celular. Nesse  contexto,  devemos  destacar  a  que  provavelmente  foi  a  maior  descoberta  das  ciências  biológicas  do  século  XX:  a elucidação  da  estrutura  do  DNA,  por  James  Watson  (1928­)  e  Francis  Crick  (1916­2004)  (Figura  30),  baseada  nos trabalhos de cristalografia de Rosalind Franklin (1925­1955) e Maurice Wilkins (1916­2004). A partir dessa descoberta, os  mecanismos  genômicos  responsáveis  pelos  processos  fisiológicos  puderam  começar  a  ser  desvendados.  Mais  um importante passo foi dado para explicar as bases físicas e químicas dos processos envolvidos no que chamamos de vida.

Figura 30 ■ Da esquerda para a direita, Francis Crick (1916­2004) e James Watson (1928­). (Adaptada de http://nobelprize.org.)

CONCLUSÃO Assistimos às várias mudanças teóricas e metodológicas que a fisiologia sofreu ao longo desses mais de dois milênios de história. Vimos também as relações que ela, assim como outras ciências, travou com as concepções filosóficas vigentes em uma determinada época. Acompanhamos o caminho percorrido pela fisiologia, desde seu desmembramento como um ramo  da  filosofia  natural,  até  seu  estabelecimento  como  uma  ciência  autônoma  e,  sobretudo,  experimental.  Assim, aceitamos  hoje  que  toda  ideia  científica  deve  ser  posta  em  confronto  com  a  experiência,  isto  é,  somente  depois  de confirmada por fatos experimentais uma teoria deve ser aceita. Após essa longa jornada, algumas perguntas imediatamente saltam  à  nossa  frente:  podemos  aprender  algo  olhando  para  o  passado  de  uma  disciplina  científica?  Em  caso  afirmativo, que “lição de moral” podemos tirar da história da fisiologia? Ao  defender  a  fisiologia  experimental  nascente,  vimos  François  Magendie  proclamar  que  a  fisiologia  deveria  ser reduzida  “inteiramente  ao  experimento”.  Aparentemente,  esse  conselho  tem  sido  seguido  nos  dias  de  hoje.  No  entanto,

devemos  ficar  atentos  para  que  o  “fetiche  do  experimento”  não  seduza  nossas  mentes,  e  que,  no  afã  da  produtividade  e obtenção de recursos, a realização ansiosa de experimentos e a obtenção de novos fatos, de maneira quase obsessiva, não se  torne  praxe.  Muitas  vezes,  a  importante  pergunta  “qual  a  ideia  por  trás  da  pesquisa?”,  que  deveria  anteceder  a experimentação, está esquecida. Do mesmo modo, a análise criteriosa e o embasamento teórico dos dados experimentais também  são  tratados  com  um  perigoso  desdém.  A  ciência  não  é  feita  com  fatos,  mas  com ideias  moldadas  pelos  fatos cuidadosamente analisados. Esta é uma das lições que Claude Bernard, o fundador da fisiologia moderna, nos ensina. Em sua principal obra metodológica, Introduction à l’Étude de la Médicine Expérimentale (Introdução ao Estudo da Medicina Experimental),  lemos:  “A  simples  verificação  de  fatos  nunca  poderá  chegar  a  constituir  uma  ciência.”  Mais  adiante, “toda  a  iniciativa  experimental  reside  na  ideia,  porque  é  ela  que  provoca  a  experiência”.  E  finalmente:  “O  homem  que perdeu  a  razão,  o  alienado,  não  se  instrui  pela  experiência,  já  não  raciocina  experimentalmente.”  Nunca  é  tarde  para aprendermos com os grandes mestres. Abordagens reducionistas e integrativas têm formado um pêndulo sob o qual oscilou a fisiologia ao longo dos anos. Aparentemente,  períodos  de  grandes  avanços  em  outras  áreas  da  ciência,  tal  como  a  física  e  a  química,  suscitam  a esperança  dos  fisiologistas  de  que  os  fenômenos  responsáveis  pela  vida  serão  enfim  resolvidos  em  conceitos  como matéria,  movimento,  força  e  energia.  Já  períodos  de  maior  ceticismo  estão  associados  a  concepções  mais  holísticas,  em que  a  fisiologia  é  tratada  de  maneira  mais  fenomenológica  ou  positivista.  Testemunhamos  que  Carl  Ludwig  e  Claude Bernard  representaram  a  coexistência  dessas  duas  visões  dentro  de  um  mesmo  período.  Recentemente,  os  avanços promovidos pela biologia molecular e pela genômica novamente colocam o reducionismo materialista na pauta do dia. Será que um dia afisiologia será reduzida à bioquímica? Quando os homens tiverem conhecimento suficiente da genômica e da proteômica, serão dispensáveis os conceitos fisiológicos sobre a vida? É inegável que entender o funcionamento das partes é  fundamental  para  a  compreensão  do  todo.  Todavia,  ao  percorrer  o  tortuoso  caminho  até  as  partes,  até  os  mecanismos íntimos  responsáveis  pelos  fenômenos  estudados,  pensamos  que  o  fisiologista  não  deve  nunca  esquecer  o  caminho  de volta. Estudar as árvores não deve impedir que se tente compreender a floresta. Qual seria, então, a verdadeira identidade da fisiologia? Qual seria seu real escopo e quais seriam seus métodos? As respostas a essas inquietações provavelmente só virão com o tempo. Enquanto isso, podemos tentar buscar alguma luz na história.  Há  mais  de  um  século,  o  grande  neurofisiologista  Charles  Sherrington  (1906)  dizia  a  uma  atenta  plateia  em Oxford, a respeito da fisiologia: Pode­se  dizer  dela  que  ela  não  possui  métodos  próprios,  ou  que  todos  os  métodos  são  seus:  ambas  as  expressões  são verdadeiras. O que é dela, e apenas dela, é o escopo do seu problema, a saber, a decifração de como os organismos vivos vivem.

As Origens da Fisiologia no Brasil Marcus Vinícius C. Baldo | Cesar Timo­Iaria (in memoriam) | Margarida de Mello Aires

Aperto  sua  mão,  que  sente  a  minha,  mas  não  pode  retribuir  a  força.  Já  são  várias  as  visitas  que  lhe  tenho  feito,  nas tardes de sábado, em que a conversa flui à deriva. Mas nesta tarde trago um gravador que saberá guardar, sem a neblina da memória, o fio que vai nos conduzir por muitas histórias. A voz que fala sem muito fôlego é de alguém que não apenas sabe  essas  histórias,  ou  que  apenas  participou  delas,  mas  de  alguém  que  ajudou  a  escrevê­las.  Essa  personagem, testemunha  e  cúmplice  da  construção  de  nossa  Fisiologia,  é  Cesar  Timo­Iaria,  um  dos  últimos  dos  poucos  eruditos  da ciência brasileira. Pouco tempo depois dessas conversas ele nos deixaria, órfãos atônitos, mas que reconhecem estampado em suas próprias ideias, em seus argumentos e atos, o reflexo de um pai que caminha invisível e sólido em nossas vidas. Sua voz apenas nos ilude, parecendo hesitante e entrecortada nas gravações que ainda guardo, mas é forte e cristalina nas ideias  que  carrega.  Dessas  conversas  surgiu  este  texto.  Desembaraçado  o  novelo  que  guarda  quase  um  século  de memórias, retificados os rumos e ordenadas as datas, sua voz vai se desdobrando em uma nítida linha do tempo, sobre a qual se desvenda a história de nossa Fisiologia. Cesar  contava  essa  história  como  quem  fala  da  própria  família:  dos  pais  científicos  que  amou,  dos  muitos  filhos acadêmicos  que  criou,  e  de  antepassados  com  os  quais  agora  convive,  em  uma  enorme  casa  assombrada  por  almas iluminadas. Casa que, ainda hoje, poderia pairar evanescente em uma tranquila esquina de uma cidade encantada, talvez no insólito cruzamento das ruas Almirante Tamandaré e Machado de Assis. Vamos, pois, entrar e percorrer juntos esta casa iluminada, em nada silenciosa e vazia, para que possamos saudar seus habitantes e ouvir suas histórias.

Foi  junto  ao  Museu  Nacional,  no  Rio  de  Janeiro,  que  nasceu  o  primeiro  laboratório  brasileiro  de  Fisiologia Experimental.  Impressionado  com  o  que  ouvira  de  Claude  Bernard  (1813­1878)  e  Du  Bois­Reymond  (1818­1896)  em suas visitas à Europa, D. Pedro II planejara a criação de um Instituto de Fisiologia. Embora jamais criado, o plano de D. Pedro  II  já  prenunciava  o  germe  que,  possivelmente,  contribuiria  para  dar  origem  ao  Laboratório  de  Fisiologia Experimental  do  Museu  Nacional.  Primitivo  e  improvisado,  foi  inicialmente  montado  na  segunda  metade  da  década  de 1870,  com  parcos  recursos,  e  oficialmente  inaugurado  em  1880,  por  João  Batista  de  Lacerda  (1846­1915)  (Figura  31). Lacerda,  formado  pela  Faculdade  de  Medicina  do  Rio  de  Janeiro,  carecia,  no  entanto,  de  uma  sólida  formação  em fisiologia.  Louis  Couty  (1854­1884)  (Figura  32),  um  jovem  pesquisador  francês,  foi  assim  convidado  pelo  Governo Imperial para assumir, como primeiro diretor, em 1880, o Laboratório de Fisiologia Experimental, tendo Lacerda como subdiretor. Sob os olhos entusiasmados do Imperador, a intensa motivação de Lacerda e Couty fez do Laboratório o berço da Fisiologia em nosso país.

Figura 31 ■ João Batista de Lacerda (1846­1915). (Adaptada de http://pt.wikipedia.org/wiki.)

Embora  reconhecido  internacionalmente,  o  Laboratório  iniciou  sua  decadência  com  a  morte  precoce  de  Couty,  em 1884,  e  com  a  ausência  de  um  fisiologista  na  cátedra  da  Faculdade  de  Medicina  do  Rio  de  Janeiro,  já  que  Lacerda  fora preterido  em  um  concurso  para  aquela  disciplina.  A  dispersão  dos  discípulos,  a  inexistência  de  um  verdadeiro  ensino defisiologia e um cenário acadêmico nada favorável foram os principais elementos que definiram o fim dessa etapa. O  renascimento  da  fisiologia  brasileira  teria  de  aguardar  a  iniciativa  de  Álvaro  Ozório  de  Almeida  (1882­1952), considerado  por  muitos  o  nosso  verdadeiro  “patriarca”  (Figura  33).  Recém­formado  pela  Faculdade  de  Medicina  do  Rio de  Janeiro,  parte  em  1906  para  Paris,  indo  estagiar  no Institut Pasteur e no Collège  de  France.  De  volta  ao  Brasil,  já professor  da  Faculdade  de  Medicina  do  Rio  de  Janeiro,  não  encontraria  as  condições  que  desejava  para  a  pesquisa fisiológica, instalando no porão da residência dos pais, na rua Almirante Tamandaré, o seu próprio laboratório. Fez assim surgir  no  Brasil,  nas  primeiras  décadas  do  século  XX,  um  tempo  heroico  das  ciências  fisiológicas.  Modesto,  um  tanto improvisado, o laboratório ganharia logo a colaboração de um discípulo, Miguel Ozório de Almeida (1890­1953) (Figura 34),  irmão  de  Álvaro.  Em  1915,  o  laboratório  mudou­se  para  a  residência  da  rua  Machado  de  Assis,  onde  a  irmã  de ambos,  Branca  de  Almeida  Fialho,  dividia­se  como  laboratorista  e  dona  de  casa.  Pelo  laboratório  dos  irmãos  Ozório passaram alguns dos que se tornariam importantes semeadores da fisiologia brasileira, como Thales Martins (1896­1979) e Paulo Galvão (1902­1968). Passaram também turistas curiosos, em rápidas visitas, anônimos ou majestosos, tais como Albert Einstein e Madame Curie.

Figura 32 ■ Louis Couty (1854­1884). (Adaptada de www.bbk.ac.uk/ibamuseum/texts/Andermann01E.htm.)

Álvaro  dedicava­se,  na  fase  inicial  de  seu  laboratório,  a  estudos  sobre  metabolismo  e  calorimetria,  e  à  ação  de fármacos, como o curare, sobre a regulação metabólica tanto do ser humano quanto de animais silvestres. Posteriormente, concentrou­se  nos  efeitos  do  oxigênio  sob  alta  pressão  como  terapia  do  câncer.  Já  Miguel  Ozório,  com  sólida  formação em  física  e  matemática,  tinha  grande  inclinação  para  a  abordagem  biofísica,  tendo  se  dedicado  à  fisiologia  de  tecidos excitáveis, crioepilepsia, reflexos labirínticos e tônus muscular. Vários neurofisiologistas, ao longo dos anos 30 e 40 do século  passado,  formaram­se  direta  ou  indiretamente  sob  a  influência  de  Miguel  Ozório,  notadamente  Hayti  Moussatché (1910­1998),  Mário  Vianna  Dias  (1914­2001),  Tito  Cavalcanti  (1905­1990)  e  Carlos  Chagas  Filho  (1910­2000)  (Figura 35).

Figura 33 ■ A. Álvaro Ozório de Almeida (1882­1952). B. Álvaro Ozório em sua posse como conselheiro do CNPq, em 1951. (Adaptada de http://centrodememoria.cnpq.br/fotogaleria51.html.)

Figura  34  ■   Miguel  Ozório  de www.ioc.fiocruz.br/personalidades/MiguelOzorioDeAlmeida.htm.)

de 

Almeida 

(1890­1953). 

(Adaptada

Chagas  Filho  criaria,  em  1937,  o  Laboratório  de  Biofísica  da  Universidade  do  Brasil,  anexo  à  disciplina  de  Física Médica.  Em  1945,  este  Laboratório  transforma­se  no  Instituto  de  Biofísica,  hoje  Instituto  de  Biofísica  Carlos  Chagas Filho (IBCCF), integrante da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Além de Carlos Chagas Filho, o IBCCF contou e tem contado com outros também brilhantes cientistas, como Aristides Azevedo Pacheco Leão (1914­1993), Hiss Martins  Ferreira  (1920­2009),  Antonio  Paes  de  Carvalho,  Eduardo  Oswaldo­Cruz  Filho  e  Carlos  Eduardo  Guinle  da Rocha­Miranda.  Hoje,  a  herança  deste  grupo  espalha­se  por  muitos  outros  estados  do  Brasil,  incluindo  Pará,  Espírito Santo, Distrito Federal, São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco, Sergipe e Rio Grande do Sul. O  sucesso  científico  obtido  pelo  laboratório  dos  irmãos  Ozório  (que  encerraria  suas  atividades  somente  em  1932) motivara Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas (1879­1934) (Figura 36), então diretor do Instituto Oswaldo Cruz, a criar, em 1919, uma Seção de Fisiologia em Manguinhos (Figura 37), convidando Miguel Ozório para chefiá­la. Ali, em 1926, também ingressaria Thales César de Pádua Martins (1896­1979), formado pela Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil (atual UFRJ).

Figura 35 ■ Carlos Chagas Filho (1910­2000). (Adaptada de www.abc.org.br/sjbic/curriculo.asp?consulta=ccf.)

Figura  36  ■   Carlos  Ribeiro  Justiniano  de www.ioc.fiocruz.br/personalidades/CarlosChagas.htm.)

das 

Chagas 

(1879­1934). 

(Adaptada

Thales Martins (Figura 38), tendo estudado inicialmente aspectos da fisiologia muscular, em colaboração com Miguel Ozório,  em  Manguinhos,  volta­se  para  questões  de  fisiologia  endócrina  (alguns  de  seus  importantes  experimentos  nesta área  estão  descritos  no  Capítulo  64,  item  “Sistemas  hormonais  clássicos”).  Em  1934,  ao  se  mudar  para  São  Paulo, estabeleceu novos núcleos de estudos fisiológicos, com ênfase em endocrinologia experimental, em uma faculdade então privada,  a  recém­criada  Escola  Paulista  de  Medicina  (atualmente  integrante  da  Universidade  Federal  de  São  Paulo, Unifesp),  e  no  Instituto  Butantã.  Em  meados  da  década  de  1950  fundou,  ao  lado  de  outros  importantes  fisiologistas brasileiros, a Sociedade Brasileira de Fisiologia (SBFis). No Instituto Butantã, Thales Martins contou com a colaboração daquele que viria a ser um de nossos mais importantes farmacologistas, José Ribeiro do Valle (1908­2000) (Figura 40), posteriormente Professor Emérito da Escola Paulista de Medicina. Thales Martins assumiu, então, a cadeira de Fisiologia da  Escola  Paulista  de  Medicina,  sendo  sucedido  por  Paulo  Enéas  Galvão  (1902­1968),  após  retornar  ao  Rio  de  Janeiro. Galvão, também discípulo de Álvaro Ozório, estabeleceu­se inicialmente no Instituto Biológico de São Paulo, criado em meados  de  1920.  Ao  longo  dos  anos  1930  e  1940,  o  Instituto  Biológico  atrairia,  além  de  Galvão,  uma  grande  leva  de cientistas, dentre eles Wilson Teixeira Beraldo (1917­1998) (Figura 41) e Maurício Oscar da Rocha e Silva (1910­1983) (Figura 42), que, com a colaboração de Gastão Rosenfeld (1912­1990), foram os descobridores da bradicinina. Rocha e Silva  iria  estabelecer­se,  posteriormente,  em  Ribeirão  Preto,  e  Wilson  Beraldo  iria  alavancar,  em  Belo  Horizonte,  a fisiologia mineira. O Instituto Oswaldo Cruz foi fundado em 1900, originalmente como “Instituto Soroterápico Municipal”. Já sob  a  direção  de  Oswaldo  Gonçalves  Cruz  (1872­1917)  (Figura  39),  torna­se,  em  1901,  uma  instituição federal,  passando  a  denominar­se,  em  1907,  “Instituto  de  Medicina  Experimental  de  Manguinhos”  e recebendo,  no  ano  seguinte,  o  nome  de  seu  efetivo  criador.  Com  a  morte  de  Oswaldo  Cruz,  o  Instituto passa, então, a ser dirigido por Carlos Chagas. Chagas e seu mestre Oswaldo Cruz, de quem foi brilhante discípulo, protagonizaram alguns dos mais importantes momentos da história científica brasileira. Com eles, e  com  os  herdeiros  científicos  que  formaram,  as  ciências  médicas,  no  Brasil,  deixam  a  “fase  escolar”  e ingressam em sua “fase científica”, que hoje testemunhamos.

Figura 37 ■ Manguinhos e arredores, no Rio de Janeiro, em 1927. (Adaptada de www.coc.fiocruz.br/manguinhos.)

O  “Instituto  Butantã”,  tal  como  o  “Instituto  Manguinhos”  (atual  Instituto  Oswaldo  Cruz),  surgiu  como reação dos dirigentes públicos a graves epidemias que irromperam na transição do século XIX ao XX. O Instituto  Butantã  foi  dirigido,  de  1901­1919,  por  Vital  Brasil  Mineiro  da  Campanha  (1865­1950), contemporâneo e colaborador de Adolfo Lutz (1855­1940), diretor, de 1893­1908, do Instituto Bacteriológico de São Paulo (hoje Instituto Adolfo Lutz).

Figura 38 ■ Thales César de Pádua Martins (1896­1979). (Adaptada de Ribeiro­do­Valle, 1979.)

Figura  39  ■   Oswaldo  Gonçalves  de www.ioc.fiocruz.br/personalidades/OswaldoGoncalvesCruz.htm.)

Cruz 

(1872­1917). 

(Adaptada

Figura 40 ■ José Ribeiro do Valle (1908­2000). (Adaptada de www.sbhm.org.br/index.asp?p=medicos_view&codigo=151.)

Figura 41 ■ Wilson Teixeira Beraldo (1917­1998). (Adaptada de http://en.wikipedia.org/wiki.)

Figura 42 ■ Maurício Oscar da Rocha e Silva (1910­1983). (Adaptada de www.fmrp.usp.br/rfa/Depto.htm.)

Octávio  Coelho  Magalhães  (1890­1972),  doutor  em  Fisiologia  pela  Faculdade  de  Medicina  do  Rio  de  Janeiro, estagiara  em  Manguinhos,  sendo  influenciado  por  cientistas  da  estatura  de  Oswaldo  Cruz  e  Carlos  Chagas.  Aceitou,  em 1913,  o  cargo  de  professor  de  fisiologia  na  recém­criada  Faculdade  de  Medicina,  em  Belo  Horizonte,  introduzindo  a medicina  experimental  em  Minas  Gerais.  Em  razão  de  sua  aposentadoria  compulsória,  em  1960,  Magalhães  seria substituído  por  um  de  seus  antigos  alunos,  Wilson  Beraldo.  Para  retornar  a  Belo  Horizonte  e  assumir  a  cátedra  de fisiologia da Universidade Federal de Minas Gerais, Beraldo seria obrigado a interromper sua carreira no Departamento de Fisiologia  da  Faculdade  de  Medicina  da  USP,  em  São  Paulo,  onde  era  livre­docente  e  membro  de  um  grupo  de fisiologistas liderado por Franklin Augusto de Moura Campos (1896­1962) (Figura 43). A  Faculdade  de  Medicina  de  São  Paulo  fora  fundada  em  19  de  dezembro  de  1912,  e  teve  como  primeiro  diretor Arnaldo Vieira de Carvalho (1867­1920). Em 1929, Moura Campos, que estagiou em Harvard sob a influência de Walter Cannon  (1871­1945),  tornou­se  catedrático  de  Fisiologia,  e  iniciou  as  pesquisas  fisiológicas  na  Faculdade  de  Medicina. Moura  Campos  teve  como  notável  discípulo,  além  de  Beraldo,  o  fisiologista  Alberto  Carvalho  da  Silva  (1916­2002) (Figura 44), seu legítimo sucessor na Faculdade de Medicina da USP.

Figura 43 ■ Franklin Augusto de Moura Campos (1896­1962). (Adaptada de Ribeiro­do­Valle, 1979.)

Figura 44 ■ Alberto Carvalho da Silva (1916­2002). (Adaptada de www.iea.usp.br/iea/contato/contato31.html.)

Alberto Carvalho da Silva, assumindo a cátedra do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina, em 1964, reestruturou e diversificou suas linhas de pesquisa. Foi o responsável, direto ou indireto, pela formação de uma grande e importante  geração  de  fisiologistas  brasileiros  que  se  fixaram  na  própria  USP  ou  se  estabeleceram  em  outros  centros, irradiando o ensino e a pesquisa de fisiologia para diversas universidades brasileiras. Dentre esses fisiologistas, egressos do  Departamento  de  Fisiologia  da  USP  e  responsáveis  pela  disseminação  da  fisiologia,  podemos  citar  Gerhard  Malnic, Thomas  Maack,  Maurício  da  Rocha  e  Silva  Jr.,  Margarida  de  Mello  Aires,  Francisco  Lacaz  Vieira,  Rebeca  de  Angelis (1925­2007),  Núbio  Negrão,  Oswaldo  Ubríaco  Lopes,  Sônia  Lopes  Sanioto,  Massako  Kadekaro,  Pedro  Guertzenstein (1938­1994) (Quadro 4) e Cesar Timo­Iaria (1924­2005). Com a reforma universitária, o Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina funde­se, em 1970, com departamentos de fisiologia e farmacologia de outras faculdades da USP, culminando  com  a  formação  do  atual  Departamento  de  Fisiologia  e  Biofísica  do  Instituto  de  Ciências  Biomédicas  da Universidade de São Paulo, instalado na Cidade Universitária.

Quadro 4 Pedro Gaspar Guertzenstein (1938­1994).

A  disciplina  de  Fisiologia  Cardiovascular  e  Respiratória  da  Unifesp/EPM  (atual  Centro  de  Pesquisas  Prof. Dr. Pedro Gaspar Guertzenstein) se iniciou em 1987, com a ida para a Escola Paulista de Medicina do Prof. Pedro Guertzenstein, aprovado em concurso público para o provimento de uma vaga para Professor Titular no  Departamento  de  Fisiologia.  Formado  na  EPM,  o  Prof.  Guertzenstein  inicialmente  foi  docente  do Departamento  de  Fisiologia  e  Biofísica  do  ICB/USP,  no  grupo  de  Fisiologia  Cardiovascular,  e  tinha  como linha de pesquisa o controle central do sistema cardiovascular, particularmente o estudo dos mecanismos responsáveis  pela  manutenção  do  tônus  vasomotor.  Numerosas  evidências  experimentais  obtidas  nas quatro últimas décadas demonstravam que a medula oblonga contém os principais circuitos responsáveis pela  geração  e  manutenção  do  tônus  vasomotor  e  a  regulação  da  pressão  arterial.  A  visão  atual  que possuímos desses circuitos deriva, em grande parte, dos estudos pioneiros do Prof. Guertzenstein. Em  1970,  o  jovem  cientista  chegou  aos  laboratórios  do  Prof.  Feldberg,  renomado  pesquisador  inglês, para bolsa de pós­doutorado, permanecendo por 3 anos. Segundo as próprias palavras de Feldberg: “Nós, isto é, Guertzenstein e eu, tropeçamos na superfície ventral do cérebro até 1972. Nossa história começou com  um  experimento  simples,  com  queda  na  pressão  arterial  após  a  injeção  de  alguns  miligramas  de pentobarbitônio sódico (Nembutal®) no ventrículo cerebral lateral” (Feldberg, 1982). Durante  esses  3  anos,  sozinho  ou  em  colaboração  com  muitos  colegas,  Guertzenstein  produziu  o número  impressionante  de  quatro  comunicações  para  a  Physiological  Society  (Guertzenstein,  janeiro  de 1971; Feldberg e Guertzenstein, janeiro de 1972; Guertzenstein, abril de 1972; Guertzenstein e Silver, junho de  1973)  e  cinco  artigos  completos  publicados  no  Journal  of  Physiology  ou  no  British  Journal  of Pharmacology  (Feldberg  e  Guertzenstein,  1972;  Guertzenstein,  1973;  Bousquet  e  Guertzenstein,  1973; Guertzenstein  e  Silver,  1974;  Edery  e  Guertzenstein,  1974).  Juntamente  com  seus  trabalhos  publicados muito mais tarde, após seu retorno ao Brasil, e incluindo alguns desenvolvidos durante seus últimos anos na  Unifesp,  esses  experimentos  estabeleceram  os  alicerces  da  visão  atual  dos  núcleos  vasomotores medulares ventriculares e seu papel na regulação da pressão arterial. Suas publicações foram citadas em média 33 vezes/ano, em um total de quase 1.300 citações. A publicação mais citada e reconhecida como um documento clássico é aquela que ele publicou com a colaboração de Ann Silver (Guertzenstein e Silver, 1974). Nesse artigo, definiram, pela primeira vez, a localização precisa do que é claramente reconhecido, até hoje em dia, como a medula ventrolateral rostral (RVLM), a fonte mais importante de excitação tônica para  os  neurônios  simpáticos  pré­ganglionares  na  coluna  celular  intermediária  da  medula  espinal.  Seus resultados  demonstraram  inequivocamente  que,  após  uma  destruição  eletrolítica  bilateral  de  uma  área pequena,  não  maior  que  1  mm2  na  medula  ventrolateral,  a  pressão  arterial  não  é  mantida  e  permanece baixa  durante  pelo  menos  6  horas.  Em  1976,  Feldberg  e  Guertzenstein  publicaram  outro  documento fundamental que mostrava a existência de uma área diferente, caudal à já descrita, sobre a qual a aplicação tópica  de  nicotina  produz  queda  acentuada  da  pressão  arterial  devido  à  inibição  do  tônus  vasoconstritor. Supondo que a nicotina atuasse como uma substância excitadora, eles propuseram: “Com a evidência até agora disponível [...] existem pelo menos duas regiões separadas: uma mais rostral e outra mais caudal, e também a ação em si é, provavelmente, de um centro excitatório que se exerce sobre neurônios inibitórios que  formam  conexões  com  a  via  vasomotora.”  Com  essas  sugestões,  eles  descreveram  o  que

conheceríamos  como  a  medula  ventrolateral  caudal  (CVLM)  e  avançaram  nas  principais  propriedades dessa região: seu papel vasodepressor, por meio da inibição tônica e reflexa do RVLM. Uma caracterização adicional  dessa  área,  na  regulação  das  funções  cardiovasculares,  e  particularmente  nos  reflexos cardiovasculares  modulantes,  foi  desenvolvida  após  o  retorno  de  Guertzenstein  ao  Brasil,  apresentada pioneiramente em uma comunicação à Sociedade de Fisiologia e posteriormente publicada (Guertzenstein e  Lopes,  1980,  1984).  Assim,  a  rota  para  a  compreensão  do  CVLM  e  suas  implicações  na  regulação  do tônus  simpático  e  nos  reflexos  cardiovasculares  estava  totalmente  aberta  e  pronta  para  ser  entendida. Alguns  anos  mais  tarde,  com  base  em  um  conjunto  de  observações  experimentais,  Guertzenstein  e Feldberg  passaram  a  propor  a  existência  de  uma  área  vasomotora  na  terceira  vascular  da  medula ventrolateral.  Mais  uma  vez,  sua  visão  estava  muito  à  frente  de  seu  tempo.  O  desenvolvimento  e  a caracterização da área que previram levaram mais 10 anos. Essa foi também a sua empreitada final, por causa  de  sua  morte  prematura,  em  1994.  No  entanto,  em  seus  últimos  trabalhos,  ele  e  seus  colegas  do Departamento de Fisiologia da Unifesp puderam mostrar que a terceira área, a área pressora caudal (CPA), contém células com uma atividade pressora tônica que contribuiu para a manutenção dos níveis basais de pressão  arterial  e,  além  disso,  que  as  respostas  cardiovasculares  induzidas  por  CPA  são  mediadas  pelo CVLM, com o envolvimento de sinapses glutamatérgicas e GABAérgicas (Possas et al., 1994; Campos  et al., 1994). Margarida de Mello Aires Informações dadas pelo Prof. Sérgio Cravo, Departamento de Fisiologia da Unifesp A Universidade de São Paulo, criada em janeiro de 1934, teve a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras como sua verdadeira  primogênita,  elemento  de  integração  das  diversas  áreas  da  atividade  universitária.  Em  1939,  Paulo  Sawaya (1903­1995)  (Figura  45),  formado  pela  Faculdade  de  Medicina  de  São  Paulo,  tornou­se  catedrático  da  disciplina  de Fisiologia Geral e Animal, destinada ao ensino e pesquisa de fisiologia animal comparativa. Além da herança científica e intelectual  deixada  ao  atual  Instituto  de  Biociências  da  USP,  o  antigo  Departamento  de  Fisiologia  Geral  e  Animal  da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP ajudou a semear a fisiologia comparativa em outros centros brasileiros. Pelas  mãos  de  discípulos  de  Sawaya,  como  Erasmo  Garcia  Mendes  (1916­2001)  e  Maria  Marques,  a  fisiologia comparativa irradiou­se, por exemplo, para o interior de São Paulo e também para Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. A  cátedra  de  Fisiologia  da  Faculdade  de  Medicina  de  Porto  Alegre  foi  exercida,  intermitentemente,  por  Raul  Pilla (1892­1973). Engajado na militância política, Pilla encontrou em seu assistente, Pery Riet Correa, a dedicação necessária à  criação  da  pesquisa  em  fisiologia  no  Rio  Grande  do  Sul.  Por  intermédio  de  Riet  Correa,  estabeleceu­se  fecunda colaboração  com  o  Instituto  de  Biología  y  Medicina  Experimental,  em  Buenos  Aires,  criado  pelo  grupo  de  Bernardo Houssay (1887­1971, Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia em 1947) (Figura 46). Em meados de 1950, a experiência de ensino e pesquisa de Houssay e seus colaboradores foi trazida para o recém­criado Instituto de Fisiologia Experimental, em Porto Alegre. A influência argentina fez com que os estudos de fisiologia endócrina e cardiovascular se tornassem, a partir de então, o foco da atenção na pesquisa fisiológica gaúcha. Neste grupo formou­se Eduardo Moacyr Krieger, logo se transferindo para a recém­criada Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Miguel Rolando Covian (1913­1992), assistente de Houssay, estabeleceu­se em Ribeirão Preto, em 1955, como chefe do Departamento de Fisiologia e Biofísica da Faculdade de Medicina, criada em 1952. Foi mestre, dentre outros, de Cesar Timo­Iaria (Quadro 5), um de nossos neurocientistas mais importantes e prolíferos. Covian contribuiu para a formação e disseminação  de  uma  importante  geração  de  fisiologistas  por  todo  o  Brasil.  Ilustres  fisiologistas  do  grupo  de  Ribeirão incluem Eduardo Krieger (atualmente no Instituto do Coração, em São Paulo), José Antunes­Rodrigues e Renato Hélios Migliorini  (1926­2008)  (Quadro  6)  –  ambos  permaneceram  em  Ribeirão  Preto  –,  e  Carlos  Eduardo  Negreiros  de  Paiva, que,  em  1964,  transferiu­se  para  Campinas  para  montar  o  Departamento  de  Fisiologia  da  Faculdade  de  Medicina  da Unicamp. Antes da chegada de Covian a Ribeirão Preto, o único fisiologista da Faculdade de Medicina era José Venâncio de  Pereira  Leite  (1920­1980),  cuja  formação  fisiológica  fora  adquirida  no  Rio  de  Janeiro,  ao  lado  de  Álvaro  Ozório  e Thales Martins. Autodidata em eletrônica, Venâncio incumbiu­se, nos primeiros anos, de preparar os demais professores recém­chegados a Ribeirão, os quais possuíam majoritariamente experiência clínica.

Figura 45 ■ Paulo Sawaya (1903­1995). (Adaptada de www.abc.org.br/sjbic/curriculo.asp?consulta=PS.)

Figura 46 ■ Bernardo Houssay (1887­1971). (Adaptada de www.biblioteca.anm.edu.ar/houssay.htm.)

Quadro 5 Cesar Timo­Iaria (1924­2005).

É com profunda emoção que externo meus agradecimentos ao Prof. Dr. Cesar Timo­Iaria, um dos maiores incentivadores para que eu publicasse este livro e autor­colaborador nas suas três primeiras edições. Em sua  homenagem,  transcrevo  a  seguir  o  texto  escrito  pelos  Profs.  Drs.  José  Antunes­Rodrigues,  Renato

Hélios  Migliorini  e  Eduardo  Moacyr  Krieger,  publicado  em  junho  de  2005,  na  Newsletter  da  Sociedade Brasileira de Fisiologia (SBFis). – Margarida de Mello Aires A  família  dos  fisiologistas  brasileiros  perde  um  dos  seus  mais  ilustres  Mestres:  Professor Cesar Timo­Iaria. Cesar  graduou­se  pela  Escola  Paulista  de  Medicina  em  1952.  Iniciou  a  sua  carreira  acadêmica  no Departamento de Fisiologia de Ribeirão Preto, onde exerceu as funções de Instrutor (1953), Doutor (1961) e Livre­Docente da FMRP/USP (1962). Transferiu­se para São Paulo em 1964; primeiro para a Faculdade de  Medicina/USP  e,  depois,  com  a  reforma  universitária  (1970),  foi  para  o  departamento  de  Fisiologia  e Farmacologia do Instituto de Ciências Biomédicas/USP), onde continuou sua intensa atividade científica e formadora  de  inúmeros  discípulos,  tornando­se,  logo  em  seguida,  Professor  Titular  de  Fisiologia  do ICB/USP.  Exerceu  também  função  docente  na  State  University  of  New  York,  onde  ministrou  aulas  no Departamento de Fisiologia. Mais  do  que  um  neurofisiologista  (área  mais  específica  de  suas  atividades  de  pesquisa),  foi  um  dos maiores fisiologistas do país, tendo contribuído decisivamente para o avanço científico e tecnológico nesta área do conhecimento. Foi um dos principais responsáveis pela criação dos laboratórios de Neurofisiologia do Departamento de Fisiologia da FMRP/USP, do ICB/USP e da Faculdade de Medicina/USP. Exerceu na FMRP/USP uma grande liderança político­universitária desde os pioneiros anos da criação desta Escola, trabalhando em problemas básicos e aplicados. Sempre defendeu uma universidade de alto nível, a nossa contribuição para o desenvolvimento de ciência e tecnologia no país, bem como a qualidade dos nossos pesquisadores. Orientou mais de 120 estudantes estagiários e pós­graduandos, além de pós­ doutores  brasileiros,  argentinos  e  americanos,  dos  quais  dois  são  professores  titulares  nos  EUA  e  um  na Alemanha. Foi  um  dos  primeiros  eletrencefalografistas  do  Brasil,  e  em  seu  laboratório  em  Ribeirão  Preto  foram feitos os primeiros registros de sono experimental em gatos na América Latina. Sua produção científica é de  mais  de  80  artigos  em  revistas  e  livros  internacionais,  da  qual  resultaram  algumas  descobertas relevantes, devendo­se destacar: ■ A primeira demonstração experimental de uma substância, ativada por estimulação da área septal, que produz vasodilatação e hipotensão, mais tarde identificada como fator natriurético atrial ■ A  região  do  sistema  nervoso  central  em  que  é  gerado  o  sono,  campo  investigado  por  muitos laboratórios no Brasil e no exterior ■ Os  mecanismos  neurais  de  regulação  da  glicemia,  originados  em  três  sistemas  de  glicorreceptores sensíveis  à  citoglicopenia,  situados  no  fígado,  nos  núcleos  do  trato  solitário  e  no  fascículo prosencefálico do hipotálamo médio e anterior ■ O mecanismo de desencadeamento da fome, que demonstrou ser devido não à hipoglicemia de jejum, que  não  ocorre  de  fato,  e  sim  ao  trabalho  metabólico  do  fígado,  acionado  pelos  glicorreceptores sensíveis  à  citoglicopenia.  Essas  pesquisas  permitiram­lhe  enunciar  a  teoria  de  que  os comportamentos  se  caracterizam,  sob  o  aspecto  de  expressão,  por  componentes  motores  e  por componentes vegetativos ■ Introdução  definitiva  do  rato  como  objeto  de  estudo  do  sono,  hoje  preferencial,  após  descrever minuciosamente  em  1970  os  estados  e  as  fases  do  sono  desse  animal,  tema  que  pesquisava, abordando as manifestações e a gênese da atividade onírica desse animal ■ Descoberta de uma região localizada na borda medial do fascículo prosencefálico medial do hipotálamo médio e posterior do rato, que regula rigidamente o sistema imunológico. Ministrou  quase  cem  conferências  no  Brasil  e  vinte  no  exterior,  e  organizou  dois  congressos internacionais,  um  simpósio  internacional  e  quinze  de  âmbito  nacional.  Foi  membro  de  numerosas sociedades  e  academias  nacionais  e  internacionais.  Recebeu  várias  homenagens  como  reconhecimento dos relevantes trabalhos prestados para a ciência brasileira: Membro da Academia Brasileira de Ciências, Comendador  (1995)  e  Grã­Cruz  da  Ordem  Nacional  do  Mérito  Científico  (1998).  Prêmio  Paulino  Longo (1970) e Prêmio R. Hernandez­Peón (1990) pelos seus trabalhos sobre o sono. O  Prof.  Cesar  foi  um  modelo  de  cientista  para  todos  nós,  particularmente  para  um  de  nós  (José Antunes­Rodrigues),  que  teve  o  privilégio  de  ser  o  seu  primeiro  aluno  de  iniciação  científica  nos  idos  de

1955. Foi um dos principais responsáveis pelo direcionamento de sua vida universitária. Como  líder  da  nossa  comunidade  científica,  sempre  questionou  a  especialização  precoce  dos  nossos jovens  pesquisadores,  bem  como  a  desastrosa  divisão  de  nossa  ciência.  Assim  ele  dirigiu  um  apelo  aos novos membros da Academia Brasileira de Ciência em 3 de junho de 2002: [...]  para  que  almejem  tornar­se  linces,  como  eram  considerados  os  membros  da  primeira academia  do  mundo.  Que  enxerguem  muito  longe,  abrangendo  um  ângulo  acadêmico  de  saber muito  amplo  e  passando  essa  atitude  para  seus  alunos.  Precisamos  deixar  de  ser  formiguinhas, treinadas para carregar pedacinhos de folhas de um lugar a outro quase que cegamente, e voltar a formar linces. Tinha  uma  vasta  cultura  e  era  portador  de  uma  capacidade  intelectual  invejável.  Gostava  de  discutir física, astronomia, música, fisiologia e demais especialidades da medicina, bem como humanidades. O Prof. Cesar Timo­Iaria será sempre lembrado como um dos pioneiros da Neurofisiologia brasileira e um ser humano de inestimável valor. Sua sabedoria, cultura e visão humanística da ciência fizeram dele um modelo a ser seguido por todos nós. José Antunes­Rodrigues, Renato Hélios Migliorini, Eduardo Moacyr Krieger Colegas que trabalharam com o Prof. Cesar noDepartamento de Fisiologia da FMRP/USP

Quadro 6 Renato Hélios Migliorini (1926­2008).

Uma brevíssima notícia, divulgada online pela Universidade de São Paulo, comunicou o falecimento, em 16 de janeiro de 2008, de Renato Hélios Migliorini, sepultado em Ribeirão Preto, onde viveu a maior parte de seus 82 anos. Nascido  em  Jaú  em  1926,  graduou­se  pela  Faculdade  de  Medicina  da  USP  em  1949  e  obteve  seu doutoramento com a tese Efeito de estrógenos no diabetes produzido por pancreatectomia total em ratos, que  prenunciava  sua  sistemática  futura  atividade.  Em  1953,  foi  o  primeiro  contratado  em  dedicação exclusiva pelo Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Fez pós­doutorado na  Universidade  da  Califórnia,  como  bolsista  da  Fundação  Rockefeller  em  1959/1960,  uma  distinção  só outorgada por inquestionável mérito na era pré­FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) a talentos muito especiais. Dizer  que  foi  vice­diretor  e  diretor  da  Faculdade  de  Filosofia,  Ciências  e  Letras  de  Ribeirão  Preto (FFCLRP)  da  USP;  que  produziu  mais  de  uma  centena  de  trabalhos  em  revistas  internacionais  de destaque,  principalmente  no  American  Journal  of  Physiology;  que  foi  citado  mais  de  mil  vezes  e homenageado  em  vários  fóruns  –prêmio  SBEM  de  1996,  comendador  da  Ordem  Nacional  do  Mérito Científico  do  governo  brasileiro  e  membro  titular  da  Academia  Brasileira  de  Ciências  –,  entre  outras distinções; ou que formou considerável número de mestres e doutores é pouco por não traduzir o caráter, o âmago do homem, seu devotado amor à ciência e à sua Faculdade que o mantiveram ativo por mais de dez anos como professor emérito, período em que publicou parte substancial de sua obra científica.

Parar,  não  podia!  Impensável  para  este  homem  que  se  inquietava  com  o  que  produzia,  eterno insatisfeito, crítico mais severo de sua própria obra – como confessava sem cerimônia, com a mais natural simplicidade  –,  não  por  insegurança  pessoal  ou  timidez,  mas  por  sentir  que  pesquisa,  principalmente biológica, é repleta de incertezas inerentes e sempre sujeitas às armadilhas experimentais. Percebê­las era privilégio  de  mentes  agudamente  alertas,  como  a  do  Migliorini  que  conhecemos.  Crítico  de  si  próprio, também não tolerava a mediocridade; foi assim que o ouvi comentar, como de costume, a voz baixa, após uma conferência científica à qual havíamos assistido de um clínico de fama, também professor: “Teria sido uma  palestra  compreensível  se  ousasse  fazer  perguntas  com  clareza.”  Isso,  como  tudo  o  mais,  dizia  em frases  lúcidas  precedidas  por  um  fugaz  instante  de  silêncio,  como  se  hesitante,  pausado,  calmo, despretensiosamente carregando seu meio sorriso suave em uma fisionomia austera e tranquila. O  legado  de  Migliorini  para  a  ciência  foi  o  caminhar  coerente,  metódico,  buscando  elucidar  cada processo fisiológico, etapa por etapa, dos mecanismos neurais de regulação do metabolismo plasmático e tissular de ácidos graxos e glicose, o papel dos estados de jejum e alimentar nessa regulação, seu controle no tecido adiposo marrom, além do metabolismo de proteínas no tecido muscular, as interações da proteína e da glicose alimentar na glicólise no tecido adiposo, as ações metabólicas nesse tecido por exposição ao frio  e  fármacos,  e  muitas  mais  variações  sobre  o  tema.  Quem  pensaria,  senão  uma  mente incontrolavelmente  curiosa,  em  usar  tantas  espécies  animais  distintas  –  ratos,  codornas,  peixes,  sapos, serpentes  –  como  modelos  experimentais  úteis  para  compreensão  da  fisiologia/bioquímica  humana, incluindo  investigar  a  neoglicogênese  em  um  animal  estritamente  carnívoro,  como  os  abutres?  Migliorini mostrou­nos que isso só é possível com uma equipe coesa, unida em propósitos e ideais, edificada sobre mútuo  respeito,  na  qual  se  contavam  muitos  e  leais  companheiros,  como  Isis  do  Carmo  Kettelhut,  José Antunes­Rodrigues, José Ernesto dos Santos, Itamar Vugman, Cecílio Linder, Jorge Gross, Ingrid Dick de Paula, Vera Lúcia Teixeira, além dos já falecidos Cesar Timo­Iaria, André Ricciardi Cruz, Cássio Botura e Miguel Rolando Covian, apenas para citar alguns de meu limitado conhecimento, claro que sob o risco de ter omitido tantos outros igualmente cruciais ao seu trabalho. Essa  obra  ímpar  foi  coroada  pela  vida  afetiva  familiar.  Casado  desde  1953  com  Emília  Blat  Migliorini, viveu inconsolável viuvez depois de 40 anos, tendo gerado quatro filhos: Renato, Maria Cecília, Vera Lúcia e Valéria,  e  destes,  seis  netos.  Vera  Lúcia  confidenciou­me  que  Renato  aprendeu  a  amar  a  música  com  o piano de Emília Blat, colaborou na Fundação Pró­Música de Ribeirão Preto para a realização de concertos com  músicos  consagrados  e  dedicou­se  com  afinco  à  vinda  da  Escola  de  Música  da  USP  para  Ribeirão Preto,  no  topo  de  ser  ouvinte  assíduo.  Soubessem  dessas  outras  qualificações,  seus  amigos  e admiradores,  ainda  que  distantes  de  Ribeirão  Preto,  teriam  usufruído  melhor  ainda  de  seu  convívio.  Por tudo isso, inimaginável passar despercebida a passagem deste exemplar e dedicado operário da ciência. Eder C. R. Quintão Professor Emérito de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), ex­titular da Disciplina de Endocrinologia da FMUSP Relembro, comovida, quando conversei com o professor Migliorini pela última vez, em uma palestra da Federação  de  Sociedades  de  Biologia  Experimental  (FeSBE),  e  ele,  emocionado,  me  apresentou  os originais de seu texto para a quarta edição deste livro, comentando, com lágrimas nos olhos, que ele e seus assistentes  (Isis  do  Carmo  Kettelhut  e  Luiz  Carlos  Carvalho  Navegantes)  tinham  se  dedicado  muito  na redação do texto, e que ele tinha a certeza de que a visão que eles deram sobre o Controle Hormonal e Neural  do  Metabolismo  Energético  não  será  encontrada  em  outro  livro  didático.  Meu  agradecimento  a todos. – Margarida de Mello Aires Tendo  a  fisiologia  brasileira  enraizado­se,  inicialmente  no  Rio  de  Janeiro  e  sucessivamente  em  São  Paulo,  Porto Alegre, Belo Horizonte e Ribeirão Preto, consolidou­se uma rede fecunda de pesquisa e ensino de fisiologia que, além do intenso  intercâmbio  mútuo,  promoveria  uma  importante  irradiação  do  conhecimento  fisiológico  para  outros  centros  do país. Contando com a dedicação de fisiologistas utópicos, e com a experiência dos centros de pesquisa já existentes no sul e sudeste, assistimos à Fisiologia multiplicar­se pelo país pelas mãos de pioneiros como, dentre outros, Wilson Beraldo, Nelson Chaves e Azor Oliveira e Cruz. Beraldo, como vimos, deixou a Faculdade de Medicina da USP em 1960, tomando

as rédeas do Departamento de Fisiologia, em Belo Horizonte, e moldando o que se constituiu em um centro de excelência em pesquisa e ensino de fisiologia. Nelson Chaves (1906­1982), médico da Faculdade de Medicina do Recife, assumiu, em 1943, a cátedra de Fisiologia, aprimorando­se como fisiologista sob a orientação de Álvaro Ozório, no Rio de Janeiro. Chaves aglutinou um produtivo grupo dedicado à pesquisa e ao ensino de fisiologia, focalizando particularmente a fisiologia da nutrição e contando com a colaboração de importantes fisiologistas, tais como a médica Naíde Teodósio (1915­2005) (Figura 47). A partir de 1970, no entanto, o grupo pernambucano sofreria duros golpes, sob os efeitos da reforma universitária, empreendida em todo o país,  recuperando­se  posteriormente  a  partir  dos  esforços  de  uma  nova  geração  de  fisiologistas,  com  destaque  para  as atuações de Waldemar Ladosky e Carlos Peres da Costa. Foi com Azor Oliveira e Cruz que a pesquisa em fisiologia iniciou­se, verdadeiramente, em Curitiba. Oliveira e Cruz se torna, em 1937, regente em Fisiologia da então Universidade do Paraná, passando a manter intenso contato com centros de pesquisa cariocas e paulistas, e se caracterizando como um pioneiro da fisiologia paranaense. É  assim  que,  em  função  de  um  íntimo  contato  de  jovens  pesquisadores  com  núcleos  já  estabelecidos,  e  da experiênciaherdada  dos  grupos  pioneiros,  a  fisiologia  brasileira  tem­se  disseminado,  ainda  que  de  maneira  lenta  e irregular, pela maior parte de nosso território. Em Vitória, a pesquisa em fisiologia floresceu na Universidade Federal do Espírito  Santo,  tendo  em  Dalton  Valentim  Vassallo  um  de  seus  pioneiros.  Outros  pioneiros,  que  perdoarão  a  nossa provisória omissão, incumbiram­se de semear a fisiologia nos que são, hoje, expressivos grupos de pesquisa e ensino em Belém, Brasília, Florianópolis, Salvador e ainda outros centros que deveriam ser lembrados.9

Figura 47 ■ Naíde Teodósio (1915­2005). (Adaptada de http://revista.cremepe.org.br/01/somepe1.php.)

Devemos  manter  em  nossas  mentes  que  a  história  da  Fisiologia,  não  só  no  Brasil  mas  em  todo  o  mundo,  está visceralmente  ligada  à  história  da  medicina  e  da  biologia,  e  das  demais  disciplinas  que  as  compõem.  É  assim  que  as mesmas  personagens  que  protagonizaram  as  aventuras  da  fisiologia  poderão  ser  encontradas  nas  aventuras  da farmacologia, microbiologia, zoologia e epidemiologia, citando algumas. Vemos, portanto, a história da fisiologia fundir­ se  com  as  vidas  de  cientistas  tais  como  Oswaldo  Cruz,  Carlos  Chagas,  Álvaro  e  Miguel  Ozório,  personagens  que  não podem ser definidas por um rótulo único e óbvio. Percebemos, então, que o germe da curiosidade científica não se divide em disciplinas estanques, e não é barrado pelas paredes que dividem os departamentos. Uma única pergunta científica, se relevante  e  bem  posta,  sempre  envolve  múltiplos  métodos  de  abordagem,  diferentes  níveis  de  interpretação,  variadas consequências  teóricas  e  inusitadas  aplicações.  Jamais  poderemos  entender  a  história  da  fisiologia  olhando­a  em isolamento, sem ponderar não só a trajetória percorrida pelas outras disciplinas com as quais se relaciona, mas também o caminho  pessoal  traçado  pelos  indivíduos  que  a  constroem.  E  saibamos  que  o  caminho  a  ser  tomado  é  sempre  incerto  e tortuoso, porém ungido por cruzes e chagas.

É chegada a hora de deixarmos esta casa iluminada. Vamos sair em silêncio, ouvindo ao longe a animada conversa de seus habitantes, deixando­a ecoar livre pelos cantos da casa. Assim, quando uma voz incógnita soprar em nossos ouvidos uma súbita e luminosa ideia ou, entrecortada, murmurar a solução óbvia que não víamos, saberemos de onde ela vem.

BIBLIOGRAFIA História geral da fisiologia BARNES J. Filósofos Pré­socráticos. Martins Fontes, São Paulo, 1997. BENNETT MR. The early history of the synapse: from Plato to Sherrington. Brain Res Bull, 50(2), 1999. BERNARD C. De la Physiologie Générale. Hachette, Paris, 1872. BERNARD C. Introdução à Medicina Experimental. Guimarães e Cia. Editores, Lisboa, 1962. BERNARD C. Leçons sur les Phénomènes de la Vie Communs aux Animaux et aux Végétaux. Paris, 1878. CADET R. L’invention de la Physiologie: 100 expériences Historiques. Belin, Paris, 2008. CASTIGLIONI A. História da Medicina (2 volumes). Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1947. CLARKE E, O’MALLEY CD. The Human Brain and Spinal Cord: A Historical Study Illustrated by Writings from Antiquity to the Twentieth Century. Norman Publishing, San Francisco, 1996. COLEMAN  W.  The  Biology  in  the  Nineteenth  Century:  Problems  of  Form,  Function,  and  Transformation.  Cambridge University Press, 1971. CRISPINO E (Ed.). Leonardo: Art and Science. Giunti Editore, Firenze­Milano, 2000. CUNNINGHAM A. The Pen and Sword: Recovering the Disciplinary Identity of Physiology and Anatomy Before 1800. I: Old Physiology – the Pen. Studies in History and Philosophy of Biological Sciences, 33, 2002. CUNNINGHAM A. The Pen and Sword: Recovering the Disciplinary Identity of Physiology and Anatomy Before 1800. II: Old Anatomy – the Sword. Studies in History and Philosophy of Biological Sciences, 34, 2003. FULTON JF. Selected Readings in the History of Physiology. Charles C Thomas Publisher, Springfield, 1966. HALL TH. History of General Physiology: 600 B.C. to A.D. 1900 (2 volumes). The University of Chicago Press, Chicago, 1969. HANKINS TL. Science and the Enlightenment, Cambridge University Press, Cambridge, 1985. HARRIS H. The Birth of the Cell. Yale University Press, New Haven, 1999. HARVEY W. Estudo Anatômico Sobre o Movimento do Coração e do Sangue nos Animais. In: Cadernos de Tradução, número 5. Universidade de São Paulo, São Paulo, 1628/1999. INGLIS B. Historia de la Medicina. Ediciones Grijalbo, Barcelona, 1968. KICKHÖFEL EHP. A Lição de Anatomia de Andreas Vesalius e a Ciência Moderna. Scientia Studia, vol. 1, n. 3, 2003. MAGENDIE F. Précis Élémentaire de Physiologie. Paris, 1816­1817. MARILENA C. Introdução à História da Filosofia: Dos Pré­socráticos a Aristóteles. Companhia das Letras, São Paulo, 2002. PICCOLINO M. Animal electricity and the birth of eletrophysiology: the legacy of Luigi Galvani. Brain Res Bull, 46(5), 1998. RONAN CA. História Ilustrada da Ciência, vol. III. Círculo do Livro/Jorge Zahar, São Paulo, 1987. ROSSI P. O Nascimento da Ciência Moderna na Europa. EDUSC, 2001. ROTHSCHUH KE. History of Physiology. Robert E Krieger Publishing Company, Huntington, New York, 1973. SAUNDERS JBCM, O’MALLEY CD. Andreas Vesalius de Bruxelas, De Humani Corporis Fabrica, Epítome, Tabula Sex. Ateliê Editorial/Ed. Unicamp/Imprensa Oficial, 2003. SCHIMIDGEN H. Of frogs and men: the origins of psychophysiological time experiments, 1850­1865. Endevour, 26(4), 2002. SHERRINGTON C. Physiology: Its Scope and Method. In: Strong TB (Ed.). Lectures on the Method of Science. Clarendon Press, Oxford, 1906. SINGER C. Uma Breve História da Anatomia e Fisiologia desde os Gregos até Harvey. Editora da Unicamp, Campinas, 1996. TODES DP. Pavlov’s physiology factory. Isis, 88(2):204­46, 1997. ZATERKA  L.  A  Filosofia  Experimental  na  Inglaterra  do  Século  XVII:  Francis  Bacon  e  Robert  Boyle.  Associação  Editorial Humanitas, Fapesp, 2004. ZIMMER HG. Carl Ludwig, the Leipzig Physiological Institute, and introduction to the focused issue: growth factors and cardiac hypertrophy. J Mol Cell Cardiol, 29 (11):2859­64, 1997.

As origens da fisiologia no Brasil AZEVEDO F. As Ciências no Brasil. Melhoramentos, São Paulo, 1956.

RIBEIRO­DO­VALLE J. Alguns aspectos da evolução da Fisiologia no Brasil. In: FERRI MG, MOTOYAMA S (Eds.). História das Ciências no Brasil. EDUSP, São Paulo, 1979. RIBEIRO­DO­VALLE  J.  A  farmacologia  no  Brasil.  In:  FERRI  MG,  MOTOYAMA  S  (Eds.).  História  das  Ciências  no  Brasil. EDUSP, São Paulo, 1979. www.ioc.fiocruz.br www.coc.fiocruz.br/manguinhos www.biologico.sp.gov.br/historico/historico.htm

  Maria Marques.

Nascida em 1924, Maria Marques vive atualmente em Porto Alegre, na companhia de sua sobrinha, Maria Flávia. Natural de Jaguarão, cidade de fronteira com o Uruguai, recebeu desde cedo de seu pai, engenheiro agrônomo  com  especialização  em  universidades  americana  e  europeia,  fundamental  incentivo  para  seus estudos.  Fez  o  curso  científico  em  Porto  Alegre,  onde  teve  o  privilégio  de  ser  aluna  de  Biologia  do  Prof. Pery  Riet  Corrêa,  também  docente  de  Fisiologia  na  Faculdade  de  Medicina  da  UFRGS  e  de  Biologia  na Faculdade  de  Filosofia  da  PUCRS.  Como  sempre  sonhou  ser  professora,  optou  por  inscrever­se  no bacharelado em História Natural na PUCRS. Voltou, assim, a ser aluna do Prof. Riet Corrêa, que a convidou para ser assistente ao término do curso, em 1950. Decorridos 3 anos, a cátedra de Fisiologia da Faculdade de  Medicina  foi  transformada  em  Instituto  de  Fisiologia  Experimental,  voltado  ao  ensino  e  à  pesquisa,  e Maria  Marques  foi  logo  convidada  para  nele  ingressar  como  auxiliar  de  pesquisa.  Nesse  instituto,  teve  a oportunidade  ímpar  de  trabalhar  diretamente  com  o  Prof.  Bernardo  A.  Houssay,  renomado  cientista argentino,  Prêmio  Nobel  de  Fisiologia  e  Medicina,  e  com  vários  de  seus  discípulos,  os  quais  muito contribuíram em sua formação e entusiasmo pela Fisiologia e dedicação à pesquisa. Em 1965, concluiu o doutorado  em  Ciências  na  Faculdade  de  Filosofia,  Ciências  e  Letras  da  USP,  sob  a  orientação  do  Prof. Paulo Sawaya, introdutor da Fisiologia Comparada na USP. Em sua longa carreira universitária na UFRGS, onde se tornou Professora Titular de Fisiologia em 1983, orientou alunos de iniciação científica, mestrado e doutorado. Com seu perseverante trabalho e incansável dedicação, ajudou a criar e consolidar o Curso de Pós­Graduação  em  Fisiologia,  tornando­o  um  dos  três  no  país  que  ofereciam  programas  de  doutorado específicos na área de Fisiologia credenciados pelo CFE. O conselho que ela dava aos alunos era trabalhe, trabalhe,  trabalhe.  Para  ela,  passar  o  fim  de  semana  debruçada  sobre  um  trabalho  científico  era  uma delícia. Mas deixar para amanhã o que pode ser feito hoje era um horror. Portanto, não foi sem motivos que ganhou entre os colegas o apelido de Maria Pé de Boi. Quando se aposentou, as pessoas lhe diziam: Estás aposentada, agora aproveita a vida. E ela respondia: Mas eu sempre aproveitei a vida. Aposentada  em  1994,  continuou  pesquisando  e  orientando  estudantes  como  bolsista  IA  do  CNPq. Muitos  de  seus  discípulos  são  hoje  docentes  e  ativos  pesquisadores  no  Departamento  de  Fisiologia  da UFRGS  e  em  outras  universidades  de  seu  estado.  Suas  linhas  de  pesquisa  envolvem:  aspectos comparativos  da  ação  da  insulina;  receptores  e  ação  da  insulina  em  glândulas  endócrinas;  e  insulina extrapancreática  em  vertebrados  e  invertebrados.  Sua  produção  científica  no  campo  da  Fisiologia Endócrina, em especial sobre aspectos comparativos da produção e ação da insulina, inclui dois capítulos em  livros  editados  no  exterior,  numerosos  artigos  publicados  em  periódicos  internacionais,  alguns  em revistas  locais  e  uma  centena  de  comunicações  em  congressos  nacionais  e  internacionais.  Em  suas pesquisas em tartaruga, identificou receptores para insulina em glândulas endócrinas, o que confirmou em ratos, e demonstrou que esse hormônio atua diretamente sobre as glândulas adrenais e tireoide. Investigou

a  produção  de  insulina  na  mucosa  gastrintestinal  da  tartaruga  e  sua  possível  função,  e  a  ação  desse hormônio em invertebrados. Desempenhou  várias  funções  de  liderança  na  UFRGS  e  em  sociedades  científicas.  Foi  presidente  da Sociedade  de  Fisiologia  do  Rio  Grande  do  Sul  (1976­1980),  secretária  regional  da  SBPC  (1977­1978)  e presidente da Sociedade Brasileira de Fisiologia (1991­1994). Em reconhecimento à sua contribuição como cientista  e  professora,  a  Sociedade  de  Fisiologia  do  Rio  Grande  do  Sul  instituiu  um  prêmio  a  jovens pesquisadores, denominado Prêmio Maria Marques. Na década de 1970, esteve no Canadá, tendo a honra de ser recebida por Charles Best, descobridor da insulina e ganhador do Prêmio Nobel da Ciência em 1921, junto com seu colega Banting, do Instituto Beste & Banting. Margarida de Mello Aires Fonte: Jornal da Universidade, 12 de setembro de 1997;Ademar Vargas de Freitas (jornalista) ___________ 1

Sócrates, que viveu em Atenas provavelmente entre os anos 470 e 399 a.C., é considerado o fundador da filosofia ocidental.

2

Um esforço internacional liderado pela UNESCO possibilitou a construção da Nova Biblioteca de Alexandria, inaugurada em 2002. Ver www.bibalex.org. 3 De origem pré­socrática, a doutrina pneumática é uma das teses centrais do estoicismo, corrente filosófica muito influente no Império  Romano.  Fundada  por  Zenão  de  Cício  (século  III  a.C.),  teve  no  imperador  Marco  Aurélio  um  de  seus  principais representantes. 4 Em uma famosa passagem da obra O Ensaiador, Galileu escreve: “O livro da natureza está escrito na linguagem matemática.” 5

Podemos  ter  uma  ideia  da  autoridade  que  Aristóteles  tinha  nas  universidades  renascentistas  quando  lemos  no  estatuto  da Universidade de Oxford na época de Bacon: “Aqueles Bacharéis e Mestres que não seguirem Aristóteles fielmente estão sujeitos a uma multa de cinco xelins para cada ponto de divergência, e para cada falta cometida contra a Lógica do Organon.” (Zaterka, 2004.) 6 A epistemologia é o estudo da aquisição e da justificação lógica do conhecimento pelo ser humano. 7 Harvey calculou o que hoje chamamos de débito cardíaco. Tomando o volume sistólico como 75 ml e a frequência cardíaca como 75 bpm, 5,6 l de sangue passarão pelo ventrículo esquerdo por minuto. Em 1 h, passarão 337,5 lde sangue, ou seja, várias vezes o volume de um homem médio! 8

A Natureza e as leis da Natureza permaneciam ocultas na noite, Deus disse: “Faça­se Newton”, e tudo foi luz… Nessa  breve  história  da  fisiologia  brasileira,  deixamos  voluntariamente  de  incluir  seu  desenvolvimento  mais  recente, focalizando, de maneira incompleta e fragmentária, eventos e personagens cuja relevância é anterior aos anos 1970. 9

1 2

Homeostase, Regulação e Controle em Fisiologia Compartimentalização dos Líquidos do Organismo

3 4

Sinalização Celular Fisiologia dos Compartimentos Intracelulares | Via Secretora

5 6

Ritmos Biológicos Fisiologia do Músculo Esquelético



Introdução

■ ■

Classificação dos sistemas Níveis de regulação



Bibliografia

INTRODUÇÃO O  organismo  vivo  depende  de  um  grande  número  de  processos  regulatórios  para  manter  constantes  as  condições  de seu  meio  interno,  o milieu  intérieur  de  Claude  Bernard.  Este  meio  interno,  no  qual  estão  imersas  todas  as  células  do organismo,  corresponde,  no  mamífero,  ao  líquido  extracelular,  basicamente  uma  solução  de  cloreto  de  sódio  com concentrações  menores  de  outros  íons,  como  bicarbonato,  potássio  e  cálcio.  Uma  série  de  propriedades  deste  líquido, incluindo pressão, volume, osmolalidade, pH, concentrações iônicas e de outros componentes, devem ser mantidas dentro de  faixas  estreitas  de  variação  para  permitir  que  as  células  sobrevivam  em  condições  normais  de  funcionamento.  Essas propriedades,  em  seu  conjunto,  são  denominadas  homeostase  e  definem  as  condições  normais  de  vida  de  determinado organismo. Os processos encarregados de sustentar essa homeostase são mecanismos de regulação, e seu estudo constitui um dos principais objetivos da Fisiologia. Grande parte dos sistemas de órgãos de um organismo está destinada a conservar sua homeostase. Assim, o sistema digestório mantém a constituição do meio interno por meio da ingestão, digestão e absorção de  alimentos  como  hidratos  de  carbono,  proteínas  e  gorduras,  importantes  para  a  constância  dos  níveis  extracelulares  de glicose, aminoácidos e ácidos graxos, por exemplo. O sistema endócrino contribui para a manutenção da disponibilidade de  substratos  energéticos  (p.  ex.,  glicose,  ácidos  graxos)  e  do  equilíbrio  hidreletrolítico,  entre  muitas  outras  funções.  O sistema  respiratório  mantém  a  homeostase  do  gás  oxigênio  e  do  gás  carbônico  no  meio  interno.  O  rim  é  um  órgão homeostático  por  excelência,  mantendo  o  nível  interno  de  grande  número  de  componentes,  incluindo  concentração  dos íons, osmolalidade, pH etc. Antes de entrar na discussão de aspectos mais relacionados com os mecanismos dos quais os organismos biológicos lançam  mão  para  regular  as  suas  funções  e  manter  sua  homeostase,  vamos  discutir  alguns  princípios  gerais  de mecanismos  de  regulação  com  base  em  um  método  de  estudo  denominado análise de sistemas,  que,  mesmo  aplicado  ao nosso  caso  de  maneira  muito  elementar,  pode  trazer  uma  visão  mais  clara  e  sistematizada  dos  processos  que  nos propomos a investigar (Stolwijk e Hardy, 1974). Um  processo  regulatório  pode  ser  representado  por  um  mecanismo  básico  chamado  de sistema,  consistindo  em  um grupo  de  componentes  interconectados  que  interagem,  sistema  este  que  apresenta,  para  uma  dada  entrada  (input),  uma saída  (output)  previsível.  Os  componentes  do  sistema  podem  ser  mecânicos,  elétricos,  eletrônicos,  químicos  ou biológicos.  No  último  caso,  que  é  o  que  nos  interessa,  esses  componentes  podem  ser  constituídos  por:  (1)  células nervosas  interligadas  por  dendritos  e  axônios;  (2)  células  capazes  de  produzir  substâncias  (humores  ou  hormônios)  que atuam sobre outras células a distância; (3) células que detectam modificações da homeostase diretamente ou por meio de

outras, especializadas em receptores específicos, e que, por sua vez, ativam mecanismos neurais que levam a determinadas respostas mecânicas (ação muscular) ou químicas (secreção). As possibilidades relativas à constituição de sistemas em um organismo são muito amplas, e, frequentemente, não se conhecem bem os componentes de um dado sistema, mas, apesar disso,  existe  a  possibilidade  de  estudar,  de  algum  modo,  suas  características.  Por  isso,  às  vezes  convém  tratar  esses sistemas como “caixa­preta”, analisando suas características, isto é, a relação entre entrada e saída (ou estímulo e reação do sistema) independentemente, ou mesmo antes, de um conhecimento mais aprofundado de sua constituição. Esse tipo de análise está esquematizado na Figura 1.1. Nota­se  que  cada  sistema  tem  determinadas  propriedades  ou  segue  determinadas  leis.  Tais  propriedades  ou  leis  nada mais  são  que  relações  fixas  de  entrada  e  saída  do  sistema,  determinadas  empiricamente.  Frequentemente,  é  difícil,  ou mesmo impossível, atingir o ideal de conhecer com detalhes todos os componentes e seus mecanismos de interação em um sistema, para deduzir daí suas propriedades. Por isso, é muito utilizada, especialmente em processos biológicos, a técnica empírica de analisar um dado sistema observando as relações entre sua entrada e respectiva saída. Há  diversas  técnicas  de  estudo  apropriadas  que  permitem  conhecer  melhor  as  características  de  dado  sistema.  A primeira  delas  seria  a  análise  detalhada  dos  componentes  do  sistema,  deduzindo­se  daí  seu  conhecimento  e  seu funcionamento. Pelos motivos já indicados, tal técnica é, especialmente no caso de sistemas mais complexos, um ideal de realização bastante longínqua. Outra técnica, já mais indireta, é a que visa a um diagnóstico, ou seja, com base em um dado de saída do sistema, tirar conclusões a respeito da entrada e do funcionamento do próprio sistema. Tomemos, por exemplo, o caso de um organismo que esteja apresentando hiperglicemia. Trata­se de uma saída de um sistema  encarregado  da  manutenção  da  homeostase  quanto  à  concentração  de  glicose  no  sangue,  saída  esta  que,  no  caso, estaria  desregulada.  O  que  se  quer  saber  é:  por  que  o  sistema  não  está  regulando  o  nível  de  glicose  de  maneira  correta? Tratar­se­ia de uma alteração na sua entrada, ou do próprio mecanismo de regulação? Para obtermos uma resposta a essas perguntas, podemos submeter o sistema a uma entrada alterada (p. ex., um teste de sobrecarga de glicose), fornecendo ao sistema uma entrada conhecida e diferente da normal, verificando o que acontece com a saída nessas condições. Trata­se de um teste do sistema, que pode levar a conclusões, isto é, a um diagnóstico. Para obtermos sucesso nesse diagnóstico, temos  que  ter  conhecimento  das  leis  e  propriedades  do  sistema.  Para  obtermos  essas  leis,  temos  que  lançar  mão  de métodos  de  pesquisa,  ou  seja,  estudar  o  sistema  propondo  a  ele  entradas  diferentes,  porém  conhecidas,  e  observando  as saídas  consequentes.  Mesmo  com  um  conhecimento  deficiente  dos  componentes  do  sistema,  podemos  obter  as  relações entre entrada e saída que definem o funcionamento do sistema, pelo menos nas condições que foram testadas. Com  base  nessas  observações,  pode­se  tentar  generalizar  o  comportamento  do  sistema,  estabelecendo  suas  leis.  No caso  da  pesquisa  biológica,  o  estabelecimento  dessas  leis  apresenta  problemas  muito  grandes,  devido  à  dificuldade  de isolar os sistemas estudados, que estão intimamente ligados a outros, formando supersistemas que utilizam componentes comuns e que funcionam de maneira encadeada. A dificuldade, pois, consiste em isolar dado sistema e manter os demais sem alteração durante o período de pesquisa.

Figura 1.1 ■ Análise de sistemas: representação esquemática.

CLASSIFICAÇÃO DOS SISTEMAS

▸ Sistemas passivos Tomemos como exemplo uma situação em que a energia (calor) dirigida para o sistema não é regulada por ele próprio, ou seja, a entrada não é modulada pelo sistema. O crescimento de microrganismos como função da temperatura do meio constitui um sistema desse tipo, isto é, um sistema passivo, pois a sua saída (ritmo de crescimento) depende da entrada (calor fornecido), mas os microrganismos não dispõem de meios de limitar ou controlar o calor que é fornecido a eles, ao contrário  de  organismos  mais  complexos,  que  podem  manter  uma  temperatura  interna  controlada  na  vigência  de considerável variação de entrada, ou seja, do calor fornecido.

▸ Sistemas controlados O  exemplo  mais  simples  seria  um  banho  (recipiente  de  água)  aquecido  por  uma  resistência  regulada  por  termostato. Nesse caso, o sistema tem um mecanismo capaz de regular a quantidade de energia que é fornecida a ele e que constitui sua entrada, de modo a manter a saída, no caso, a temperatura do banho, em níveis desejados. Um sistema passivo seria um banho com resistência aquecedora, mas sem termostato: qualquer fornecimento de energia se traduz em saída elevada, ou melhor, em um aumento da temperatura do banho. Esses sistemas podem também ser classificados da maneira a seguir.

Sistemas de alça aberta (open loop) São sistemas em que a saída não tem efeito sobre a entrada. Um sistema de medida de pressão arterial, por exemplo, é deste tipo: a entrada é a pressão arterial, o sistema consiste em um transdutor, sistema de detecção, de amplificação e de registro, e a saída é o registro da pressão. Nesse sistema, obviamente, a saída deverá espelhar a entrada, sem ter influência sobre ela. No caso, podemos definir uma função de transferência ou acoplamento do sistema do seguinte modo:

em  que  o  valor  numérico  de  K  equivale  ao  ganho  do  sistema,  quando  a  relação  entre  saída  (S)  e  entrada  (E)  é  linear. Podemos  exemplificar  essa  relação  com  o  sistema  de  detecção  de  variações  de  pressão  arterial  (PA)  do  bulbo  carotídeo, que relaciona PA com frequência de estímulo dos nervos do seio carotídeo (Fr):

Nesse  caso,  temos  uma  função  de  acoplamento  que  permite  calcular  o  nível  de  PA  desde  que  seja  conhecida  a frequência  de  impulsos  nervosos  nos  nervos  carotídeos,  ou  vice­versa.  Como  nesse  sistema  não  é  só  a  frequência  que afeta  isoladamente  a  PA,  trata­se  de  sistema  aberto.  Esse  sistema,  no  entanto,  está  inserido  em  outro  mais  amplo,  de regulação  de  pressão  arterial,  em  que  essa  frequência,  através  dos  centros  nervosos  bulbares,  vai  atuar  sobre  a  pressão arterial, ou seja, a entrada do próprio sistema, constituindo um sistema de alça fechada.

Sistemas de alça fechada São também chamados de sistemas com realimentação (feedback), nos quais há um controle da saída sobre a entrada. Um  exemplo  típico  é  a  produção  de  hormônios  por  glândulas  endócrinas.  Consideremos  a  glândula  tireoide.  A  entrada seria  o  hormônio  tireotrófico  (TSH),  produzido  pela  hipófise  sob  controle  hipotalâmico.  O  sistema  seria  a  glândula tireoide, e a saída, seu hormônio, a tiroxina (T4). Nesse caso, a saída vai afetar a entrada, ou melhor, o nível de tiroxina vai regular a liberação de TSH pela hipófise, de modo que uma elevação do nível de tiroxina reduzirá o de TSH. Trata­se aqui  de  uma  realimentação  negativa,  isto  é,  a  uma  elevação  da  saída  corresponde  um  efeito  de  redução  da  entrada.  O sistema de alça fechada pode ser esquematizado pelo diagrama da Figura 1.2.  De  acordo  com  essa  figura,  F  é  o  sistema efetor, cuja função de transferência é S/E, e R é o subsistema de realimentação, cuja função de transferência é E2/S.

Figura  1.2  ■   Sistema  de  alça  fechada,  com  realimentação.  S,  saída;  E1,  entrada;  E2,  entrada  por  realimentação;  E,  entrada resultante; F, efetor; R, sistema de realimentação.

Temos, pois,

Daí obtemos a relação entre a saída (S) e a entrada (E1) do sistema todo, que é dada por:

Note que FR = E2/E indica a efetividade do controle de realimentação, pois, quanto maior for FR, tanto maior o efeito de S sobre E1.

▸ Sistemas de controle Os  sistemas  anteriormente  descritos  podem  ter  a  função  de  regular  ou  controlar  determinados  parâmetros  da constituição  do  meio  interno.  Um  sistema  com  realimentação,  especialmente  negativa,  é  um  sistema  de  controle,  pois  se regula  sua  saída  pelo  próprio  nível  dessa  saída.  Quanto  maior  a  saída,  maior  a  redução  da  entrada,  o  que  vai  diminuir  a saída;  quando  a  saída  se  reduz,  a  entrada  é  menos  afetada,  tendendo  a  elevar  novamente  a  saída.  O  sistema  impede, portanto,  que  a  sua  saída  se  desvie  de  um  determinado  nível,  característico  do  balanço  entre  o  sistema  efetor  e  o subsistema  de  realimentação.  É  costume  classificar  os  sistemas  de  controle  de  acordo  com  sua  maneira  de  responder  a desvios  do  parâmetro  controlado.  A  relação  entre  a  saída  produzida  pelo  sistema  e  o  desvio  do  parâmetro  controlado  de seu valor normal, que deve ser mantido, é que vai distinguir os diferentes tipos de sistemas de controle.

Controle contínuo proporcional Trata­se  de  sistema  de  controle  em  que  há  uma  relação  constante  e  contínua  entre  o  desvio  (D)  do  parâmetro controlado e a saída do sistema (S):

Quanto maior o desvio, maior a resposta do sistema. Esse sistema pode levar a uma regulação bastante estável de um dado  parâmetro,  mas  necessita  de  certo  erro  ou  desvio  para  ativar  o  mecanismo  de  correção.  Detectado  o  desvio, estabelecer­se­á uma resposta constante e proporcional a este, que vai diminuindo continuamente à medida que o próprio desvio for reduzido. Podemos exemplificar esse tipo de controle com um aspecto, embora muito parcial, do mecanismo de regulação da glicemia, que é a perda de glicose pelo rim. Esse órgão tem uma capacidade máxima de reabsorver glicose (Tm)  e,  quando  esta  é  ultrapassada,  há  perda  de  glicose  na  urina.  O  rim  seria,  então,  um  sistema  cuja  função  é  a manutenção da glicose sanguínea abaixo de um dado máximo, o limiar renal de glicose. A eliminação da glicose filtrada em  excesso  ao  Tm  representaria  a  resposta,  S,  do  sistema  de  controle.  Essa  eliminação  é  proporcional  ao  desvio  (da glicemia  do  valor  normal),  pois,  quanto  maior  o  desvio,  maior  a  quantidade  filtrada  e  excretada  e,  portanto,  maior  a resposta do sistema. Em contraposição, poderíamos citar um sistema de controle não proporcional, como, por exemplo, o sistema de aquecimento de um banho com termostato. Nesse caso, sendo o desvio detectado, o sistema de aquecimento é ligado por um relé, havendo aquecimento do banho pela resistência do sistema até a temperatura voltar à faixa desejada. Aqui, a intensidade do aquecimento não é proporcional ao desvio, mas constante, embora aplicada por tempo variável.

Controle integral É  um  sistema  de  controle  que  permite  manter  um  dado  parâmetro  em  seu  nível  desejado,  com  erro  ou  desvio praticamente nulo. Aqui, o ritmo de saída será proporcional ao desvio:

em que: β = constante D = desvio. Neste caso, na ausência do desvio, a saída do sistema não será zero, mas permanecerá constante. Além disso, não há relação fixa entre o desvio e a ação efetora, como existia no caso anterior.

Esse  sistema  é  capaz  de  manter  uma  situação  estacionária  (steady­state),  como,  por  exemplo,  a  glicemia  (nível  de glicose no sangue). Esta é mantida por um sistema extremamente complexo, em que a adição de glicose ao meio interno é balanceada pela retirada dessa substância por todos os tecidos. O ritmo de produção de glicose ou de sua retirada do meio é  proporcional  ao  desvio  em  relação  à  glicemia  normal.  Esse  desvio  tende  a  ser  infinitesimal,  próximo  à  situação de steady­state.

Controle de ritmo (rate control) Neste caso, a ação efetora (saída do sistema) é proporcional ao ritmo de variação da variável controlada, e não à sua magnitude:

em que: S – So = magnitude da resposta do sistema γ = constante dv/dt = velocidade de variação da variável controlada. Esse sistema aumenta a velocidade de resposta a alterações da variável controlada. No entanto, não chega a regular o nível  da  variável  controlada  em  termos  absolutos,  mas  só  atua  enquanto  esta  varia.  Por  outro  lado,  tal  sistema  pode  ser utilizado juntamente com outros sistemas que controlam o valor absoluto da variável, tendo então a vantagem de ser um elemento  estabilizador,  impedindo  desvios  de  um  nível  estável.  Um  exemplo  desse  tipo  de  controle  é  o  fenômeno  da acomodação  observado  em  células  nervosas.  Na  presença  de  um  estímulo,  que  é  uma  alteração  brusca  da  entrada  do sistema,  ocorre  um  incremento  da  saída.  Entretanto,  com  a  continuação  do  estímulo,  a  resposta  da  célula  se  atenua, voltando com o tempo ao nível normal, apesar da manutenção do estímulo. Trata­se, pois, de um sistema em que a saída só se eleva com dD/dt e não com D, o valor absoluto do desvio da variável controlada.

Outros sistemas de controle Em organismos biológicos, frequentemente são encontrados sistemas mais complexos que os até aqui descritos. Trata­ se principalmente de sistemas não lineares, isto é, a relação entre causa e efeito ou o ganho do sistema não são lineares. Neste caso, as constantes K, β ou γ não são constantes, mas proporcionais, em alguns casos, à entrada do sistema. Qual  o  valor  de  uma  análise  de  sistemas  em  geral  e  de  sistemas  de  controle  em  particular?  Podemos,  com  essas técnicas,  levantar  questões  mais  objetivas  quanto  aos  mecanismos  de  regulação  que  desejamos  estudar.  Tais  questões permitirão a realização de pesquisas mais precisas e quantitativas a respeito da relação entre as causas e efeitos envolvidos em processos de regulação, permitindo ainda avaliar, de um ponto de vista mais quantitativo, a importância dos diversos fatores reguladores.

NÍVEIS DE REGULAÇÃO Em  sistemas  biológicos,  podemos  encontrar  mecanismos  de  regulação  ou  (adotando  a  terminologia  da  análise  de sistemas)  sistemas  de  controle,  em  praticamente  todos  os  níveis,  incluindo  o  molecular,  o  celular,  o  dos  órgãos  e, finalmente, o correspondente ao organismo como um todo.

▸ Regulação ao nível molecular Podemos considerar que, em qualquer reação química reversível, o acúmulo de produtos inibe a reação, de acordo com a lei da ação das massas: A + B ↔ C + D e

Do  ponto  de  vista  da  análise  de  sistemas,  uma  reação  reversível  corresponde  a  um  sistema  com  realimentação negativa.  Como  a  razão  entre  o  produto  das  substâncias  resultantes  da  reação  (C  e  D)  e  o  dos  reagentes  (A  e  B)  é constante, um acúmulo de resultantes vai elevar também a concentração dos reagentes, e isso vai inibir a reação.

Enzimas reguladoras Uma série de características contribui para o comportamento regulador de reações catalisadas por enzimas (Koshland, 1973). Podemos incluir neste tópico características reguladoras gerais de enzimas, como, por exemplo, sua sensibilidade ao pH do meio, à concentração de substrato, à presença de determinados íons, como Mg2+ e K+, e outras que contribuem para  regular  determinadas  reações  com  base  em  características  gerais  do  meio  no  qual  essas  reações  estão  ocorrendo (Holzer  e  Duntze,  1971;  Brown  e  Stow,  1996;  Lehninger  et  al.,  1993).  Quando  se  fala  em  enzimas  reguladoras,  no entanto,  é  costume  ter  em  mente  essencialmente  três  formas  de  participação  de  processos  enzimáticos  nos  mecanismos reguladores em nível molecular. Esses três modos de participação dos processos enzimáticos são descritos a seguir. Enzimas alostéricas Em certos sistemas multienzimáticos, isto é, em sequências de reações do metabolismo celular dependentes da catálise por uma série de enzimas, ocorre frequentemente que o produto terminal dessa sequência é inibidor da enzima no início da sequência.  Um  exemplo  desse  tipo  de  mecanismo  é  a  cadeia  de  enzimas  que  catalisa  a  conversão  de  l­treonina  em  l­ isoleucina, um passo do metabolismo de aminoácidos (Monod et al., 1965; Lang et al., 1998):

A primeira reação dessa sequência, catalisada pela l­treonina  desidratase,  é  inibida  pelo  produto  final,  a l­isoleucina. Trata­se,  pois,  de  uma  enzima  que  tem,  além  do  local  ativo  para  seu  substrato  normal,  a  l­treonina,  um  local  ativo adicional para outra substância denominada moduladora. Daí o nome de enzima alostérica, isto é, portadora de outro local ativo. A ligação com o modulador altera a conformação da molécula, modificando a sua atividade catalisadora para com a sua  reação  original.  Dessa  maneira,  a  concentração  do  modulador,  no  caso  a  l­isoleucina,  regula  toda  a  sequência  de reações, incluindo toda a série de enzimas E1, E2, E3 … En.  Note  que  a  enzima  alostérica  é  especificamente  sensível  ao produto  final  da  série,  e  não  aos  produtos  intermediários.  A  ligação  entre  enzima  e  modulador  não  é  covalente,  e  sim reversível.  Podemos  ter  moduladores  negativos,  como  no  exemplo  precedente,  que  inibem  a  atividade  enzimática  da enzima  alostérica,  mas  também  ocorrem  moduladores  positivos.  Por  outro  lado,  enzimas  alostéricas  com  um  único modulador  são  chamadas  de  monovalentes;  com  mais  de  um  modulador,  são  designadas  polivalentes.  A  mesma  enzima pode ter moduladores positivos ou negativos. Um bom exemplo de enzima alostérica polivalente e com moduladores tanto positivos como negativos é o da fosfofrutoquinase. Essa enzima catalisa um ponto­chave da glicólise: ATP + D­frutose­6­fosfato → ADP + D­frutose­1,6­difosfato É este o ponto de controle mais importante de toda a sequência. Tem diversos moduladores alostéricos: ■ Negativos (inibidores): concentração alta de trifosfato de adenosina (ATP), citrato, ácidos graxos ■ Positivos (estimuladores): difosfato de adenosina (ADP), monofosfato de adenosina (AMP). Por meio dessa reação, a glicólise pode ser praticamente desligada perante uma geração de elevadas concentrações de ATP  ou  da  disponibilidade  de  outras  fontes  energéticas  que  não  glicose,  como  citrato  e  ácidos  graxos:  é  o  substrato bioquímico  do  efeito  Pasteur,  ou  seja,  a  redução  do  consumo  de  glicose  e  da  formação  de  lactato  quando  o  meio  é oxigenado,  permitindo  o  funcionamento  do  metabolismo  oxidativo.  A  reação  catalisada  pela  fosfofrutoquinase  é irreversível; aliás, a maior parte das enzimas reguladoras catalisa reações irreversíveis. Enzimas regulatórias de modulação covalente

Certos mecanismos de regulação em nível enzimático se processam pela conversão da forma ativa em inativa, ou vice­ versa,  por  modificações  estruturais  que  envolvem  ligações  covalentes.  Tais  alterações  de  estrutura  são,  em  geral, catalisadas pela ação de outras enzimas. Um bom exemplo desse tipo de regulação enzimática é o controle da degradação do glicogênio: Glicogênio = (glicose)n + Pi ↔ (glicose)n­1 + glicose­l­fosfato Essa reação é catalisada pela glicogênio­fosforilase, enzima que tem duas formas: a fosforilase a, ativa, e a b, inativa. A Figura 1.3 mostra que a fosforilase a consta de quatro subunidades, cada qual ligada a um radical fosfato no resíduo serina­14. A hidrólise dessa enzima, catalisada pela fosforilase, leva à sua desfosforilação e à quebra em duas moléculas de fosforilase b e quatro íons fosfato inorgânicos (Pi): Fosforilase a + 4 H2O ↔ 2 fosforilase b + 4 Pi

Figura 1.3 ■ Esquema da transformação de fosforilase a em b pela fosforilase fosfatase, e da conversão inversa pela fosforilase quinase. (Adaptada de Lehninger et al., 1993.)

Essa  reação  é  reversível  e  sua  reversão  é  feita  com  a  ajuda  de  outra  enzima,  a  fosforilase  quinase,  e  de  ATP,  que fornece os radicais fosfato. Trata­se, pois, de uma transformação completa da estrutura da enzima, o que não acontece no caso de enzimas alostéricas. Como será visto adiante, essa reação está inserida no mecanismo de ação de epinefrina sobre a célula hepática, correspondendo à ação glicogenolítica desse hormônio, processo no qual o AMP cíclico funciona como intermediário, induzindo a formação de fosforilase quinase. Essas enzimas, por outro lado, também apresentam regulação alostérica: em sua forma muscular, a fosforilase b é inativa em repouso, com ATP elevado. A enzima tem local alostérico, que  é  inibido  por  ATP  e  ativado  por  AMP,  o  que  acontece  durante  o  exercício.  A  fosforilase  a,  no  entanto,  é  ativa independentemente  do  nível  de  ATP  ou  AMP.  Já  no  fígado,  o  local  alostérico  da  fosforilase b não  é  sensível  a  ATP  ou AMP. Processos  enzimáticos  são,  de  maneira  geral,  processos  amplificadores,  pois  uma  molécula  enzimática  é  capaz  de catalisar  a  transformação  de  muitas  moléculas  de  substrato.  O  mecanismo  anteriormente  descrito  representa,  no  entanto, um  sistema  de  amplificação  adicional.  Poucas  moléculas  de  fosforilase  quinase  podem  transformar  muitas  de fosforilase b em a, e esta, por sua vez, age na transformação de muitas moléculas de substrato.

Outro processo de interesse fisiológico que se baseia em mecanismo semelhante é a ativação covalente de zimogênios. Precursores inativos de enzimas, denominados zimogênios, são ativados por mecanismo covalente, isto é, por mudança de estrutura, por ação de outras enzimas. Importante exemplo são as enzimas digestivas:

Trata­se de remoção de sequências de aminoácidos da estrutura de zimogênios em uma reação de natureza irreversível. Dessa maneira, impede­se a ação proteolítica dessas enzimas até ocorrer a necessidade de seu uso. Regulação genética de enzimas A ocorrência de diversas formas de uma dada enzima pode também funcionar com finalidade regulatória. Neste caso, trata­se de uma regulação com base genética, pois a indução de uma ou outra das isoenzimas de um grupo enzimático pode levar  a  funções  diferentes,  de  acordo  com  as  situações  biológicas  das  células  em  que  atuam.  Apesar  de  terem  estrutura muito semelhante, diferindo apenas quanto à presença de alguns aminoácidos ou pH isoelétrico, isoenzimas diferentes têm propriedades cinéticas diferentes, isto é, podem ter km (constante de Michaelis) e Vmáx (velocidade máxima), parâmetros da  cinética  de  Michaelis­Menten,  diferentes.  Exemplifica  esse  tipo  de  regulação  a  reação  seguinte  (Fine  et  al.,  1963; Philp et al., 2005):

Há cinco isoenzimas da desidrogenase láctica, um tetrâmero de 140 kD. Em músculo esquelético, predomina a forma M4,  mais  ativa,  com  km mais  baixa  e  Vmáx  mais  alta  para  piruvato,  seu  substrato,  permitindo  então  o  uso  eficiente  da glicólise  nesse  tecido,  com  formação  de  lactato.  Por  outro  lado,  o  músculo  cardíaco,  um  tecido  que  normalmente  não forma lactato, mas oxida piruvato a CO2 e água pelo ciclo aeróbio dos ácidos tricarboxílicos, apresenta predominância da desidrogenase  láctica  de  forma  H4,  menos  ativa,  com  km,  mais  elevada,  e  Vmáx,  mais  baixa.  O  músculo  cardíaco,  dessa maneira, tem capacidade de converter piruvato a lactato só a elevadas concentrações do primeiro. Verifica­se que a síntese de  determinada  isoenzima  mais  apropriada  para  dado  tecido  vai  regular  o  metabolismo  dessas  células  e  depende  de premissas genéticas, por meio das quais cada célula sintetiza as isoenzimas que são peculiares a ela.

▸ Regulação do pool energético celular As  diversas  reações  do  metabolismo  energético  celular  levam  a  um  acúmulo  de  ATP  ou  de  outros  reservatórios energéticos, como fosfocreatina. Por outro lado, o consumo de energia por parte dos diversos processos vitais da célula, como síntese, secreção, transporte etc., vai depletar esses reservatórios de energia, e os componentes do sistema adenilato estarão  presentes  de  preferência  na  forma  de  AMP  e  ADP.  Já  vimos  que  a  situação  do pool energético  celular,  isto  é,  a predominância  de  ATP  ou  de  AMP/ADP,  é  um  importante  fator  regulador  do  metabolismo  celular,  regulando alostericamente  a  enzima  fosfofrutoquinase  e,  através  dela,  toda  a  via  glicolítica.  De  forma  semelhante,  os  níveis  dos componentes  do  sistema  adenilato  afetam  a  atividade  de  diversas  enzimas  na  sequência  de  reações  do  metabolismo  de carboidratos,  como  é  demonstrado  na Figura 1.4.  Temos  aqui  um  sistema  de  realimentação  negativa,  representado  pela ação  inibitória  de  níveis  elevados  de  ATP  sobre  os  passos  fundamentais  dessa  sequência  de  reações  que  leva  a  uma elevação do teor energético celular. Por outro lado, ocorre também um processo de sinalização positiva, representado pela ação  estimulante  de  AMP  e  ADP  sobre  alguns  dos  mesmos  passos.  A  análise  dessa  figura  demonstra  que  o  estado  do sistema  adenilato  em  termos  energéticos,  ou  o  pool  energético  celular,  exerce  importante  função  reguladora  de  todo  o metabolismo celular. Por esse motivo, tem­se tentado exprimir o grau de depleção ou preenchimento deste pool por meio da avaliação quantitativa dos componentes desse sistema. De  acordo  com  Atkinson  (1977),  é  possível  avaliar  a  carga  energética  do  sistema  adenilato  por  intermédio  da determinação  das  concentrações  de  AMP,  ADP  e  ATP.  Considera  este  autor  que  a  carga  energética  máxima  (CE  =  1) ocorre  quando  todo  o  sistema  está  na  forma  de  ATP.  Por  outro  lado,  a  carga  energética  mínima,  CE  =  0,  ocorre  quando todo o sistema adenilato está na forma de AMP. Finalmente, se o sistema está todo na forma de ADP ou sob a forma de quantidades equimolares de AMP e ATP, teríamos uma carga energética de 0,5. Consequentemente, pode­se exprimir esta carga da seguinte maneira:

Com  base  no  valor  obtido  para  essa  carga  energética  do  sistema  adenilato,  pode­se  prever  o  funcionamento  dos sistemas de geração de ATP e de utilização de ATP. Essa relação está esquematizada na Figura 1.5, que demonstra que, na presença de uma CE = 1, a geração de ATP atinge um mínimo, enquanto o seu consumo, um máximo. A interseção das linhas  que  definem  as  velocidades  dos  processos  de  geração  e  de  utilização  de  ATP,  isto  é,  o  equilíbrio  entre  esses processos,  encontra­se  a  uma  CE  de  0,85,  que,  em  consequência,  é  a  situação  de  muitos  tipos  de  células  em  condições normais,  e  de  jejum  e  em  repouso.  Esse  nível  corresponde  a  um  steady­state  ótimo.  Abaixo  do  valor  de  0,85,  haverá incremento de geração de ATP e redução de sua utilização, mas a tendência para cada tecido será dirigir­se para o estado de equilíbrio descrito, resistindo a qualquer tendência de se desviar desse nível.

Figura 1.4 ■ Locais de regulação no metabolismo de carboidratos. São indicados os locais de inibição por ATP e de estimulação por AMP, ADP e dinucleotídio de nicotinamida e adenina (NAD). São demonstrados também os locais de realimentação negativa por parte de glicose­6­fosfato, citrato e NAD reduzido (NADH).

Com base na reação: ADP + Pi ↔ ATP + H2O podemos  definir  ainda  o  potencial  de  fosforilação  de  uma  célula,  que  é  equivalente  à  constante  de  equilíbrio,  Γ,  desta reação:

Essa  é  uma  medida  termodinamicamente  mais  adequada  e  bem  mais  sensível  do  balanço  energético  da  célula, diretamente  relacionada  com  a  energia  livre  disponível  a  partir  de  ATP,  indicando  a  sua  capacidade  de  fornecer  radicais fosfato ricos em energia. Sobre a carga energética de Atkinson, tem ainda a vantagem de incluir a concentração de fosfato inorgânico (Pi) do meio, componente importante desse processo. Na ausência de qualquer fonte de energia, o potencial de fosforilação é extremamente baixo, apresentando um valor de 5 μM–1 a 25°C. Nas células vivas, o valor desse potencial é normalmente  da  ordem  de  200  a  800  μM–1.  Enquanto  a  carga  energética  costuma  variar  pouco  ao  redor  do  valor  de equilíbrio  de  0,85,  o  potencial  de  fosforilação,  uma  medida  do  nível  energético  da  célula,  varia  consideravelmente  de acordo com o estado metabólico da célula.

Figura 1.5 ■ Variação da carga energética do sistema AMP/ADP/ATP com o ritmo de produção e consumo de ATP.

▸ Regulação a distância em organismos pluricelulares Regulação nervosa Organismos multicelulares têm a necessidade de reagir como um todo a estímulos e a mudanças provenientes do meio em  que  vivem.  Para  isso,  necessitam  de  mecanismos  de  integração,  ou  seja,  daqueles  que  permitam  a  atividade  de  um determinado número de células em conjunto. O mesmo tipo de atividade conjugada pode ser necessário não como resposta a  estímulos  externos  ao  organismo,  mas  também  para  garantir  um  funcionamento  em  conjunto,  harmonioso,  das  células desse  organismo.  Para  permitir  tal  tipo  de  funcionamento,  torna­se  necessária  a  existência  de  sistemas  de  controle  mais amplos, supracelulares, que conjuguem o funcionamento de certo grupo de células diferentes ou iguais e, mesmo, de um conjunto de órgãos cuja função se torna necessária para atingir determinado objetivo. Essa integração funcional de órgãos e  células  pode  ser  obtida,  em  linhas  gerais,  essencialmente  por  dois  tipos  de  sistemas.  O  primeiro  é  o  sistema  nervoso, conjunto  de  células  distribuído  por  todo  o  organismo,  mas  apresentando  aglomerações  regionais  e  centrais  de  extrema complexidade,  capaz  de  analisar  e  armazenar  informações  e  de  elaborar  as  respostas  adequadas  a  estímulos  externos  e internos, a fim de, por meio dessas respostas, manter a homeostase desse organismo. O segundo sistema é o humoral ou endócrino,  constituído  de  glândulas  produtoras  de  substâncias  denominadas  hormônios,  que  atuarão  a  distância,  sem continuidade física, e que será analisado adiante. O primeiro sistema, o sistema nervoso, tem mecanismos ou subsistemas de detecção de estímulos externos e de alterações das condições do meio interno, chamados de receptores, que enviam as

informações colhidas a centros que integram e elaboram essas informações e, por sua vez, mandam ordens a subsistemas efetores, por intermédio dos quais se efetuam as alterações necessárias para responder aos estímulos do meio exterior ou às  alterações  do  meio  interno.  O  conjunto  de  receptores,  vias  aferentes,  centros  nervosos  e  vias  eferentes  é  denominado arco  reflexo,  que  pode  apresentar  vários  graus  de  complexidade.  O  sistema  nervoso  funciona  com  base  em  continuidade física  entre  seus  componentes,  que  é  garantida  por  prolongamentos  celulares,  as  fibras  nervosas,  que,  por  meio  de diferentes  processos,  transmitem  informações  entre  os  subsistemas  já  esquematizados  aqui.  Por  tratar­se  de  estudo extremamente  amplo  e  complexo,  não  iremos  abordar  em  nossas  explanações  a  importância  do  sistema  nervoso  para  a regulação  do  meio  interno.  Podemos  somente  exemplificar,  pela  descrição  sumária  do  processo  da  regulação  nervosa  da pressão arterial. Os receptores de pressão estão localizados no bulbo carotídeo e na crossa da aorta, que darão origem às fibras nervosas aferentes, que transitarão, por nervos específicos ou junto com o nervo vago, para os centros vasomotores do bulbo. As vias efetoras seguem pelos sistemas simpático e parassimpático até os efetores, as células musculares lisas da  parede  de  arteríolas,  e  aumentarão  sua  tensão  sob  estímulo  das  vias  simpáticas  e  a  reduzirão  quando  as  vias parassimpáticas forem estimuladas. É  interessante  notar  que  as  vias  aferentes  levam  suas  mensagens  aos  centros  por  meio  de  uma  codificação  de frequência de descargas nervosas, como é demonstrado na Figura 1.6. Quando a pressão no bulbo carotídeo ou na crossa da  aorta  se  eleva,  os  receptores  locais  são  estimulados,  elevando­se  a  frequência  dos  potenciais  de  ação  nas  fibras aferentes, acontecendo o oposto quando cai a pressão nesses locais. A  elevação  de  frequência  dos  potenciais  de  ação  nas  fibras  aferentes  vai  estimular  os  centros  vasodepressores  do bulbo, e, em consequência, aumentar a frequência de descargas nas vias eferentes parassimpáticas. Uma  redução  das  descargas  nas  vias  aferentes  irá,  por  sua  vez,  inibir  os  centros  vasodepressores,  elevando  a frequência  de  descarga  das  fibras  do  sistema  nervoso  simpático  com  a  consequente  vasoconstrição  sistêmica,  com elevação da pressão arterial. É necessário acentuar que essa descrição da regulação nervosa da pressão arterial é bastante esquemática. Há outros receptores que participam desse sistema; por outro lado, os centros relacionados com a regulação cardiovascular têm amplas conexões com outros setores do sistema nervoso central, em particular com o hipotálamo, que é um centro de integração e regulação neurovegetativa, ou seja, de processos relacionados com a manutenção das funções responsáveis pela higidez funcional do organismo, das quais a regulação da constituição do meio interno é uma das mais importantes.

Figura 1.6 ■ Atividade de impulsos nervosos medidos em fibra isolada de nervo aórtico (2), sendo o gráfico de pressão arterial na carótida comum esquerda (1) sobreposto ao registro anterior. Pressões médias: (A) 125 mmHg; (B) 80 mmHg; (C) 62 mmHg; (D) 55 mmHg; (E) 42 mmHg. (Adaptada de Neil, 1954.)

Regulação humoral Uma parte importante dos sistemas de controle de um organismo multicelular é composta por mecanismos humorais, dos quais participam substâncias produzidas por células especializadas e por estas transferidas à corrente circulatória. Tais substâncias, dessa maneira, atingem as células (células­alvo), nas quais desencadeiam a mensagem regulatória. Esse tipo de substância é denominado hormônio. Não trataremos aqui da descrição de todos os sistemas de controle que funcionam à base de hormônios, mas apenas de alguns princípios básicos comuns a todos eles. Regulação da produção de hormônios

É  um  processo  que  varia  muito  de  acordo  com  o  tipo  de  hormônio  considerado.  Há,  no  entanto,  um  grupo  de hormônios que apresentam certas características comuns, as quais serão aqui discutidas. Trata­se dos hormônios liberados pela  hipófise,  glândula  que  depende,  em  sua  função,  da  atividade  hipotalâmica.  Na  porção  ventral  do  hipotálamo,  existe uma  série  de  núcleos  nervosos  cujos  neurônios  produzem  neurossecreções  que  são  transferidas  à  hipófise.  Nos  núcleos paraventriculares  e  supraópticos  do  hipotálamo,  originam­se  neurossecreções  que  se  dirigem,  pelos  axônios  dessas células, à hipófise posterior ou neuro­hipófise, onde essas neurossecreções (a vasopressina ou hormônio antidiurético e a ocitocina)  são  armazenadas  nas  terminações  dos  neurônios  hipotalâmicos.  A  liberação  desses  hormônios  depende  da atividade dos neurônios dos citados núcleos. Por outro lado, os hormônios produzidos nas células da hipófise anterior ou adeno­hipófise estão igualmente sob dependência do hipotálamo, mas por mecanismo diferente. Os neurônios de diversos núcleos  hipotalâmicos  produzem,  por  um  processo  de  neurossecreção,  fatores  liberadores  dos  hormônios  produzidos  na hipófise anterior. Tais fatores são liberados pelo axônio desses neurônios na eminência média, a região hipotalâmica mais próxima  à  hipófise.  Nesse  local  se  encontra  um  sistema  porta,  isto  é,  uma  capilarização  dupla,  responsável  pela transferência dos fatores liberadores à hipófise. A primeira capilarização desses vasos está localizada na eminência média, formando­se, a partir desses capilares, vasos de tipo portal que se dirigem à adeno­hipófise e aí se capilarizam novamente. Dessa maneira indireta, os fatores liberadores atingem as células produtoras dos hormônios pituitários anteriores. Assim, por exemplo, o fator liberador de tireotrofina, um tripeptídio originado no núcleo paraventricular do hipotálamo e liberado na  eminência  média,  atua  sobre  a  liberação  de  hormônio  tireotrófico  produzido  por  células  basófilas  da  adeno­hipófise. Esse  hormônio,  por  sua  vez,  atua  sobre  a  glândula  tireoide,  constituindo­se  em  seu  fator  trófico,  isto  é,  um  fator  que estimula  seu  crescimento  e  funcionamento.  Sua  ação,  a  longo  prazo,  determina  hipertrofia  (excesso  de  hormônio)  e,  a curto prazo, regula a produção diária dos hormônios dessa glândula, as iodotironinas (tri­ e tetraiodotironina [tixorina], T3 e T4, ver Capítulo 68, Glândula Tireoide). O nível de T4 (tiroxina) circulante, mas também do T3, por um processo de realimentação  negativa,  vai  reduzir  a  produção  de  hormônio  tireotrófico,  bem  como  do  fator  liberador  hipotalâmico correspondente.  Assim,  temos  um  sistema  de  controle  da  produção  de  iodotironinas  caracterizado  por  realimentação negativa, capaz de manter níveis constantes e adequados desses hormônios. Além disso, a interface com o sistema nervoso central por meio do fator liberador produzido no hipotálamo permite manter influências centrais sobre a produção desses hormônios;  por  exemplo,  em  pequenos  mamíferos,  incluindo  o  recém­nascido  da  espécie  humana,  o  mecanismo  de termorregulação sediado no próprio hipotálamo pode lançar mão de variações dos níveis desses hormônios, responsáveis pelo nível do metabolismo energético celular e, portanto, também pela liberação de calor a partir das reações metabólicas. Outro aspecto de interesse geral é a maneira pela qual os hormônios atuam ao nível das células­alvo. Certo número de hormônios, especialmente os lipossolúveis, atravessa com facilidade a membrana celular, dirigindo­se diretamente ao seu local de ação intracelular. É o caso, por exemplo, da tiroxina, a que já nos referimos, e dos hormônios esteroides, como a aldosterona. Esses hormônios, de maneira geral, são transportados tanto no plasma sanguíneo como no citosol por ligação a  moléculas  proteicas  ou  lipoproteicas  que  formam  um  complexo  hidrossolúvel.  A  aldosterona  se  liga  a  um  receptor citoplasmático  nas  células­alvo,  uma  proteína  de  107  kD.  O  complexo  aldosterona­receptor  se  dirige  ao  núcleo  celular, onde  se  liga  ao  promotor  de  alguns  genes.  Essa  ligação  causa  o  recrutamento  de  maquinaria  que  ativa  a  ação  hormonal. Tem sido demonstrado que essa ligação nuclear é específica, por meio do deslocamento da aldosterona (marcada com  3H) por  outros  esteroides  que  atuam  em  transporte  de  sódio  e  competem  com  a  aldosterona,  como  a  desoxicorticosterona (DOCA  –  um  esteroide  de  ação  semelhante  à  da  aldosterona)  e  as  espironolactonas  (compostos  que  competem  com  a aldosterona), e, dessa maneira, impedem sua ação. Por outro lado, esteroides que não têm ação do tipo mineralocorticoide não  deslocam  a  aldosterona  de  receptores  nucleares.  A  formação  de  RNA  mensageiro  induz  a  síntese  de  proteínas específicas, responsáveis pela elevação do transporte de sódio. Existem  três  hipóteses  relativas  ao  mecanismo  da  elevação  do  transporte  de  sódio.  Em  primeiro  lugar,  Edelman  e Fimognari  (1968)  sugeriram  a  possibilidade  do  estímulo  da  síntese  de  enzimas  do  metabolismo  energético,  ocorrendo  a elevação  do  transporte  de  sódio  devido  ao  maior  fornecimento  de  energia  na  forma  de  ATP.  Outra  possibilidade  seria  a síntese  e/ou  incorporação  de  canais  iônicos  na  membrana  apical,  particularmente  de  células  principais  do  ducto  coletor renal;  estes  canais  (designados  ENaC,  epithelial  Na  channels)  são  moléculas  proteicas  responsáveis  pela  elevação  da permeabilidade  da  membrana  luminal  (ou  apical)  da  célula  epitelial  ao  sódio.  Finalmente,  há  estímulo  da  atividade  da Na+/K+­ATPase,  que  pode  ocorrer  por  elevação  do  teor  de  sódio  na  célula  ou  por  estímulo  da  biossíntese  deste transportador. Atualmente, sabe­se que a aldosterona pode atuar por vários mecanismos, alguns mais rápidos, outros em mais longo prazo. Entre os mecanismos que agem a curto prazo (minutos a horas), denominados não genômicos, estão a fosforilação  reversível  da  subunidade  catalítica  da  Na+/K+­ATPase  e  a  redistribuição  subcelular  e  inserção  na  membrana celular,  das  bombas  Na+/K+­ATPase e H+­ATPase,  do  trocador  Na+/H+ e  dos  canais  de  Na+ e K+.  Em  mais  longo  prazo

(dias  e  semanas),  ocorrem  os  efeitos  genômicos,  devidos  a  alterações  da  expressão  gênica  que  regulam  a  biossíntese desses elementos (Bastl e Hayslett, 1992). Mecanismos de sinalização celular Hormônios  hidrossolúveis,  como  vasopressina  (ou  hormônio  antidiurético),  epinefrina,  paratormônio,  insulina, glucagon  e  a  maioria  dos  hormônios  tróficos  (ACTH,  tireotrófico,  foliculestimulante  etc.),  em  sua  maior  parte polipeptídios,  não  penetram  diretamente  na  célula  para  exercer  sua  ação,  mas  têm  mecanismos  comuns,  pelos  quais  as células­alvo  são  informadas  de  sua  presença.  Estes  são  designados  mecanismos  de  sinalização  celular,  que  estão discutidos  em  maior  detalhe  no  Capítulo  3,  Sinalização  Celular.  Esses  sistemas  são  constituídos  por  um  primeiro mensageiro (extracelular), por receptores deles (inseridos na membrana celular) e por um ou mais segundos mensageiros, como o AMP cíclico. Como  exemplo,  apresentaremos  a  seguir  o  sistema  adenilatociclase/AMP  cíclico,  o  primeiro  a  ser  descoberto.  O primeiro  mensageiro,  que  é  o  hormônio  em  questão,  interage  na  membrana  celular  da  célula­alvo  com  um  receptor específico para esse hormônio, exemplificado na Figura 1.7 pelo receptor beta­adrenérgico. Esse receptor é uma proteína de  64  kD,  inserida  na  membrana  por  meio  de  sete  segmentos  hidrofóbicos  que,  devido  a  essa  característica,  têm disposição  transmembranal.  A  sua  extremidade  C­terminal,  citoplasmática,  ativa  outra  molécula  incluída  na  membrana celular, a adenilatociclase. Essa ativação se dá por meio de uma proteína G (proteína que se liga a guanilnucleotídios). Na forma inativa, essa proteína está ligada ao difosfato de guanosina (GDP). Sua ativação se dá quando o hormônio se une ao receptor.  Nessas  condições,  a  proteína  G  perde  imediatamente  sua  afinidade  pelo  GDP  e  se  liga  a  uma  molécula  de trifosfato  de  guanosina  (GTP).  Em  seguida,  essa  proteína  se  dissocia  em  duas  subunidades,  sendo  a  forma  Gsα responsável  pela  ativação  da  adenilatociclase.  Esta,  por  sua  vez,  catalisa  a  transformação  de  ATP  em  monofosfato  de adenosina cíclico (cAMP), responsável pela ativação de uma série de processos intracelulares que, por fim, levarão à ação do hormônio. Esse nucleotídio cíclico, comum à via de sinalização intracelular de diversos hormônios hidrossolúveis, é, por essa razão, denominado segundo mensageiro. O cAMP formado nesse processo irá ativar uma proteinoquinase A, que, por  sua  vez,  ativará  os  efetores  do  processo.  Como  exemplo,  podemos  citar:  (1)  a  incorporação  de  vesículas  (contendo canais  de  água  em  sua  parede)  à  membrana  apical  da  célula  tubular  renal,  sensível  ao  hormônio  antidiurético,  e  (2)  a separação de moléculas de glicose do glicogênio na célula hepática ou muscular, por ação da epinefrina (Abramow et al., 1987). Um exemplo da ação de uma substância não hormonal sobre esse sistema, causando sua disfunção, é o da toxina da cólera,  agente  causador  de  modificação  irreversível  da  proteína  Gs.  Sua  ação  implica  formação  exagerada  de  cAMP  e ativação  dos  canais  de  cloreto  da  mucosa  intestinal,  levando  a  prolongada  elevação  da  secreção  de  líquido  por  essa mucosa, provocando grave diarreia e consequente desidratação do organismo. Vários  outros  sistemas  de  sinalização  foram  descobertos  mais  recentemente,  dentre  os  quais  a  cascata  de fosfoinositídios  é  de  grande  importância.  Outros  sistemas  relevantes  incluem:  o  guanilato  ciclase/monofosfato  de guanosina  cíclico  (que  atua  no  processo  da  visão  e  do  peptídio  atrial  natriurético),  o  sistema  das  tirosinoquinases (ativadoras de processos de crescimento e da ação da insulina) e o íon cálcio (um dos mediadores mais onipresentes, de papel central na contração muscular). No Capítulo 3, esses sistemas são descritos em maiores detalhes.

Figura 1.7 ■ Componentes do sistema adenilatociclase e sua interação. A. Receptor beta­adrenérgico e sua estrutura de sete hélices transmembrana. O hormônio se liga às unidades de oligossacarídio e ativa o receptor. Essa ativação corresponde a uma mudança conformacional das alças citoplasmáticas, particularmente da terceira a partir da extremidade N­terminal da molécula do  receptor,  interagindo  então  com  a  proteína  G.  A  extremidade  C­terminal  é  moduladora,  e  sua  fosforilação  inativa  o complexo.  B.  Ativação  da  adenilatociclase  por  meio  da  proteína  G,  através  de  sua  subunidade  α.  M,  membrana  celular. (Adaptada de Berg et al., 2002.)

BIBLIOGRAFIA ABRAMOW M, BEAUWENS R, COGAN E. Cellular events in vasopressin action. Kidney Int, 32(Suppl 21):S56­66, 1987. ATKINSON DE. Cellular Energy Metabolism and Its Regulation. Academic Press, New York, 1977. BASTL CP, HAYSLETT JP. The cellular action of aldosterone in target epithelia. Kidney Int, 42:250­64, 1992. BERG JH, TYMOCZKO JL, STRYER L. Biochemistry. 5. ed. Freeman, NY, Regulatory Strategies, 261­94, 2002. BERRIDGE MJ. Calcium oscillations. J Biol Chem, 265:9583­6, 1990. BERRIDGE MJ. Inositol triphosphate and calcium signaling. Nature, 361:315­25, 1993. BROWN  D,  STOW  JL.  Protein  trafficking  and  polarity  in  kidney  epithelium:  From  cell  biology  to  physiology.  Physiol Rev, 76:245­97, 1996.

EDELMAN IS, FIMOGNARI GM. On the biochemical mechanism of action of aldosterone. Recent Progr Hormone Res, 24:1­ 44, 1968. FINE IH, KAPLAN NO, KUFFINEC P. Developmental changes of mammalian lactic dehydrogenases. Biochemistry, 2:116­21, 1963. FULLER PJ, YOUNG MJ. Mechanisms of mineralocorticoid action. Hypertension, 46(6):1227­35, 2005. GOLDBERG  ND.  Cyclic  nucleotides  and  cell  function.  In:  WEISSMANN  G,  CLAIBORNE  R  (Eds.).  Cell Membranes. Biochemistry, Cell Biology and Pathology. Hospital Practice Publ, New York, 1975. HOLZER H, DUNTZE W. Metabolic regulation by chemical modification of enzymes. Ann Rev Biochem, 40:345­74, 1971. KOSHLAND DE. Protein shape and biological control. Sci Am, 229:52­64, 1973. KURTZ A, DELLA BRUNA R, PFEILSCHIFTER J et al. Role of cGMP as second messenger of adenosine in the inhibition of renin release. Kidney Int, 33:798­803, 1988. LANG F, BUSCH GL, VOLKL H. The diversity of volume regulatory mechanisms. Cell Physiol Biochem, 8:1­45, 1998. LEHNINGER AL, NELSON DL, COX MM. Principles of Biochemistry. 2. ed. Worth, New York, 1993. MONOD J, WYMAN J, CHANGEUX JP. On the nature of allosteric transitions: a plausible model. J Mol Biol, 12:88­118, 1965. NEIL E. The carotid and aortic vasosensory areas; their contribution to circulatory and respiratory adjustments occurring after haemorrhage. Arch Middx Hosp, 4:16­27, 1954. PHILP A, MACDONALD AL, WATT PW. Lactate – a signal coordinating cell and systemic function. J Exp Biol, 208:4561­75, 2005. RAYMOND JR. Multiple mechanisms of receptor­G protein signaling specificity. Am J Physiol, 269:F141­58, 1995. STOLWIJK  JAJ,  HARDY  JD.  Regulation  and  control  in  physiology.  In:  MOUNTCASTLE  VB  (Ed.).  Medical  Physiology. Mosby, St. Louis, 1974. SUTHERLAND EW, ROBINSON GA. The role of cyclic AMP in the control of carbohydrate metabolism. Diabetes,  18:797­ 819, 1969. WILLIAMS JS, WILLIAMS GH. 50th anniversary of aldosterone. J Clin Endocrinol Metab, 88(6):2364­72, 2003.



Introdução

■ ■

Propriedades estruturais da água Distribuição da água no organismo

■ ■ ■

Compartimentos de distribuição da água no organismo Constituição iônica dos compartimentos do organismo Bibliografia

INTRODUÇÃO A  água  é  o  solvente  biológico  por  excelência  e,  portanto,  constitui  a  maior  parte,  em  peso,  de  praticamente  todas  as estruturas  biológicas,  à  exceção  de  estruturas  esqueléticas.  Assim,  cerca  de  45  a  75%  do  peso  corporal  humano  são formados  de  água,  dependendo  da  quantidade  de  gordura  do  indivíduo  e  de  sua  idade.  Por  conseguinte,  indivíduos  mais jovens  e  mais  magros  têm  maior  teor  hídrico.  Os  demais  componentes  do  organismo  estão  dissolvidos  neste  meio,  ou então  representam  fases  separadas,  como  as  gorduras,  que  estão  presentes  em  células  especializadas  sob  forma  de gotículas  imiscíveis  com  a  água  celular,  e  como  as  próprias  membranas  celulares,  que  são  compostas  de  lipídios  e, portanto, também constituem uma fase insolúvel em água. A água é um componente muito particular do meio interno. E não apenas do ponto de vista quantitativo, mas também devido a várias de suas propriedades, que a tornam um meio fundamental para a manutenção da vida. É sabido que a vida se originou nos oceanos, dependendo essencialmente da presença de água na Terra. A constituição iônica atual das células é um reflexo da constituição dos oceanos primevos. Apesar de ser considerada a mais comum das moléculas que ocorrem em estado líquido, e realmente um paradigma de líquido, a água é o líquido mais anômalo que existe sob o ponto de vista químico.  Tem,  de  longe,  os  pontos  de  fusão  (do  gelo)  e  de  ebulição  mais  elevados  em  comparação  com  os  de  outros líquidos,  como  a  amônia  (NH3),  o  ácido  fluorídrico  (HF),  o  ácido  clorídrico  (HCl)  e  o  ácido  sulfídrico  (H2S).  Ela  tem rigidez  e  densidade  menores  que  as  de  outros  líquidos,  por  exemplo,  gases  nobres  em  estado  líquido,  considerados líquidos  ideais,  que  apresentam  maior  proximidade  entre  suas  moléculas.  Isso  porque  a  água  dispõe  de  uma  estrutura relativamente aberta, com poucas (4 a 5) moléculas de água em volta de cada uma delas, e com pouca rigidez, por ausência de  regularidade  em  sua  estrutura.  Aplicando  pressão  a  este  líquido,  haverá  fluxo  de  líquido,  pois  o  movimento  de moléculas não resiste ao estresse aplicado.

PROPRIEDADES ESTRUTURAIS DA ÁGUA A molécula de água é polarizada, ou seja, ela tem um momento de dipolo, pois parte da molécula é levemente positiva e parte, levemente negativa. Isso decorre da distribuição assimétrica de carga elétrica. O ângulo entre os dois átomos de hidrogênio  é  de  104,5°,  de  modo  que  estes  dois  átomos  estão  de  um  lado  da  molécula,  dando  a  ela  carga  positiva, enquanto  o  átomo  de  oxigênio  está  do  outro  lado,  fornecendo  carga  negativa.  A  polaridade  da  água  permite  a  formação

de ligações de hidrogênio (hydrogen bonds) com outras moléculas hídricas e com outras moléculas vizinhas. A energia da ligação hidrogeniônica é de somente 5% da ligação covalente, por exemplo, da ligação H­O da própria molécula de água. Apesar  disso,  determina  de  forma  importante  as  interações  e  orientações  de  outras  moléculas  dissolvidas  na  água,  bem como da própria água. Este  líquido  tem  uma  condutividade  elétrica  mensurável.  Mesmo  em  gelo,  tal  condutividade  é  significante,  o  que levou à suposição da possibilidade de dissociação da água com liberação de íons H+. No entanto, estes íons H+ não estão livres  em  solução,  mas  formam  íons  mais  complexos,  por  sua  ligação  a  outras  moléculas  hídricas,  constituindo íons hidroxônio e hidroxila. Ou seja: H2O + H2O ↔ H3O+ + OH– O  íon  H+  pode  ligar­se  a  moléculas  de  água  diferentes  em  curto  espaço  de  tempo,  podendo  haver,  portanto,  um movimento em saltos de íons H+ de uma molécula de água a outra. Esta é também uma maneira importante de movimento de  ácido  não  só  em  meio  aquoso,  mas  também  ao  longo  de  moléculas  proteicas,  que  funcionariam  como  condutores elétricos para H+. Do mesmo modo, os íons H+ dissociados quando da dissolução de ácidos (como HCl em água) estariam na forma de H3O+ e não de H+.

DISTRIBUIÇÃO DA ÁGUA NO ORGANISMO A  água,  uma  vez  ingerida,  atinge  as  regiões  mais  distantes  do  ponto  de  ingestão  por  meio  de  dois  mecanismos: convecção  e  difusão.  Na  convecção,  esse  líquido  se  move  em  bloco,  juntamente  com  os  outros  constituintes  do  sangue, impulsionado pela bomba cardíaca, isto é, há um movimento de volume. Em  regiões  mais  periféricas  do  organismo,  a  água  deve  atravessar  diferentes  tipos  de  membranas.  Incluem­se  aqui tanto aquelas que envolvem as células (formadas por bicamadas lipídicas), como as paredes de capilares (constituídas de uma  membrana  basal  e  endotélio  capilar)  e  as  epiteliais  (que  são  membranas  compostas  por  camadas  unicelulares  de células polarizadas). A estrutura básica das membranas celulares é a bicamada lipídica. Constitui­se de duas camadas de moléculas  lipídicas  apostas,  com  sua  cabeça  hidrofílica  (a  molécula  de  glicerol)  dirigida  para  fora,  isto  é,  para  o  meio aquoso,  e  sua  cauda,  formada  por  longas  cadeias  hidrofóbicas  (ácidos  graxos),  direcionada  para  o  centro  da  bicamada (Figura 2.1).  Moléculas  proteicas,  correspondentes  a  canais  para  a  passagem  de  íons  ou  transportadores  de  membrana, estendem­se por toda a espessura da membrana; outras dessas moléculas, por exemplo, enzimas, podem estar parcialmente inseridas  ou  apostas  externamente  à  bicamada  lipídica  (mais  detalhes  a  respeito  desse  assunto  estão  no  Capítulo 7, Membrana Celular). De  maneira  geral,  em  todos  os  tipos  de  membranas  estudados  não  foi  detectado  nenhum  movimento  de  transporte ativo da água, isto é, diretamente ligado ao metabolismo celular. Ao nível dos capilares, ocorrem ultrafiltração e difusão. A  ultrafiltração  é  um  processo  que  permite  passagem  de  água  e  solutos  de  tamanho  molecular  pequeno  por  estruturas microscópicas, descontinuidades, canais ou poros; a água e os solutos são movidos por diferença de pressão hidrostática entre  a  luz  capilar  e  o  espaço  entre  as  células,  o  interstício  tecidual.  Estes  poros  não  deixam  passar  macromoléculas (proteínas) nem elementos figurados do sangue (glóbulos brancos e vermelhos e plaquetas). Já ao nível das células, a água se  move  por  difusão,  tanto  através  da  bicamada  lipídica  como  através  de  poros  bem  menores  que  os  dos  capilares,  os canais de água (aquaporinas).

Figura 2.1 ■ Esquema da membrana celular: bicamada lipídica e molécula proteica.

Os  mecanismos  mais  importantes  responsáveis  pela  distribuição  da  água  nos  vários  setores  do  organismo são: difusão, osmose e/ou pressão hidrostática;  esses  mecanismos  são  capazes  de  mover  água  através  de  membranas  de qualquer espécie. A difusão depende da diferença de concentração de uma substância entre dois pontos de uma solução ou através  de  uma  membrana;  nesse  tipo  de  mecanismo,  ocorre  movimento  da  substância  do  local  onde  sua  concentração  é maior para o local em que ela é menor. Osmose é um movimento particular de difusão para a água, que depende de uma diferença  de  osmolalidade  entre  dois  compartimentos  separados  por  uma  membrana.  Osmolalidade  (concentração  de solutos por kg de água) consiste no somatório das concentrações de todas as moléculas e íons independentes que existe em uma  solução  aquosa.  A  osmose  é  também  um  movimento  de  água  do  local  de  sua  maior  concentração  para  o  de  menor, usando­se  o  termo  osmolalidade  simplesmente  porque  a  água  é  enorme  maioria  em  qualquer  solução  aquosa.  A concentração de NaCl em uma solução como o plasma sanguíneo é de cerca de 0,15 mol por litro, enquanto a de água de aproximadamente 55,5 moles por litro (1.000 g divididos pelo peso molecular da água, 18). O  movimento  de  água  devido  à  osmose  pode  ser  contrabalançado  por  uma  pressão  hidrostática.  A  pressão hidrostática que contrabalança determinada osmolalidade através de uma membrana é chamada de pressão osmótica (letra grega pi, π), dada pela equação de Van t’Hoff:

em  que  R  é  a  constante  dos  gases;  T,  a  temperatura  absoluta;  e  ΣC,  o  somatório  das  concentrações  das  substâncias (moléculas  e  íons  independentes)  dissolvidas  na  solução,  somatório  esse  denominado  osmolalidade.  A  equação  2.1  é válida  para  uma  situação  em  que  a(s)  substância(s)  dissolvida(s)  não  possa(m)  atravessar  a  membrana,  isto  é,  em  que  a membrana seja impermeável a ela(s), o que é chamado de membrana semipermeável. Como foi dito, a diferença de osmolalidade entre duas soluções corresponde a uma diferença de concentração de água entre elas. O movimento hídrico se dá, então, como no caso dos solutos, de um compartimento de concentração de água maior  para  outro  de  concentração  de  água  menor,  ou  de  um  compartimento  de  osmolalidade  ou  pressão  osmótica  menor para outro com osmolalidade ou pressão osmótica maior. O  balanço  destas  forças  através  da  parede  dos  capilares  sanguíneos  é  responsável  pela  nutrição  tecidual.  As  forças descritas  são  denominadas  forças  de  Starling,  famoso  fisiologista  inglês  do  século  XIX;  elas  mantêm  o  equilíbrio  do líquido que passa pelos capilares com o líquido que se encontra fora dos capilares e entre as células (líquido intersticial). Este  balanço  depende  do  equilíbrio  entre  a  pressão  hidrostática  interna  aos  capilares  (que  impele  o  líquido  para  fora destes)  e  a  força  osmótica  das  moléculas  que  constituem  o  líquido  capilar  (que  impulsiona  o  líquido  de  volta  aos capilares). Do lado arterial dos capilares, predomina a pressão hidrostática capilar, levando à ultrafiltração de líquido. Do lado venoso, com a pressão hidrostática capilar já mais baixa, predomina a pressão osmótica, conduzindo parte do líquido de volta para o capilar. Com isso, há trocas de líquido entre capilar e interstício, que permitem a nutrição tecidual. Dois

aspectos  adicionais  devem  ser  discutidos  aqui.  Em  primeiro  lugar,  boa  parte  das  trocas  entre  capilares  e  interstício  é decorrente  de  substâncias  sem  movimento  de  líquido,  difusão  de  nutrientes  dos  capilares  ao  interstício  e  difusão  de produtos do metabolismo celular do interstício aos capilares. A pressão osmótica efetiva é característica de uma solução e das substâncias nela dissolvidas, bem como da membrana que separa as soluções. No caso da parede capilar, sua permeabilidade a íons e pequenas moléculas (glicose, aminoácidos) é muito alta, de modo a impedir que esta parede distinga entre estas substâncias e a própria água. Só as moléculas que não podem  passar  pela  parede  capilar  exercem  pressão  osmótica,  e  são  principalmente  as  proteínas  do  plasma,  como  a albumina  e  a  globulina.  A  pressão  osmótica  devida  a  elas  é  chamada  de pressão coloidosmótica ou oncótica;  é  ela  que determina  uma  das  forças  de  Starling,  aquela  que  retém  líquido  dentro  dos  capilares.  Por  isso,  a  equação  de  Van  t’Hoff precisa ser ampliada para a situação mais complexa da maioria das membranas biológicas, incluindo­se o termo σ (sigma), que corresponde ao coeficiente de reflexão. Ou seja:

O coeficiente de reflexão varia de 0 a 1. O coeficiente 0 corresponde à situação em que existe alta permeabilidade da membrana  em  relação  ao  soluto,  isto  é,  apesar  de  haver  determinada  concentração  de  soluto,  a  pressão  osmótica  é  0,  ou seja, a membrana não distingue entre a água e o soluto. O coeficiente de reflexão 1 corresponde à situação em que ocorre impermeabilidade  total  da  membrana  ao  soluto,  situação  na  qual  a  pressão  osmótica  é  máxima.  No  caso  da  parede  do capilar, o coeficiente de reflexão é próximo a 1 para proteínas do plasma e próximo a zero para íons como Na+ e Cl–. Uma solução é chamada de solução hipertônica quando apresenta pressão osmótica efetiva maior que aquela de uma célula  viva,  por  exemplo,  o  glóbulo  vermelho;  a  célula  imersa  nessa  solução  sofre  retração  (ou  diminuição  de  volume). Uma  solução  hipotônica  tem  pressão  osmótica  efetiva  menor  que  a  célula;  a  célula  imersa  nessa  solução  incha  (ou aumenta de volume). Os aspectos biofísicos a respeito dessa matéria estão no Capítulo 8, Difusão, Permeabilidade e Osmose.

COMPARTIMENTOS DE DISTRIBUIÇÃO DA ÁGUA NO ORGANISMO A água está subdividida em uma série de compartimentos, em geral separados por membranas celulares ou epiteliais que  são,  em  grande  parte,  responsáveis  pelas  diferentes  características  dos  compartimentos  que  limitam.  A  Figura 2.2 mostra,  esquematicamente,  a  magnitude  dos  principais  compartimentos  onde  se  distribui  esse  líquido  no  organismo humano. A determinação dos volumes e da constituição desses compartimentos tem considerável importância, tanto do ponto de vista fisiológico como do patológico. Por exemplo, o aumento do volume extracelular levará a situações como hipertensão (subida da pressão hidrostática do sangue) e edema (elevação do volume de líquido intersticial).

Figura 2.2 ■ Representação esquemática dos principais compartimentos do organismo, indicando seu volume relativo.

▸ Determinação do volume dos compartimentos O  método  mais  utilizado  para  esta  finalidade  é  o  método  da  diluição,  que  corresponde  à  medida  dos  espaços  de distribuição  de  certas  substâncias.  De  maneira  geral,  um  volume  pode  ser  medido  a  partir  da  definição  de  concentração, isto é: Concentração = massa/volume, C = M/V e daí:

em que: V = volume do compartimento a ser medido M = massa de uma substância que foi adicionada a este volume C = concentração resultante desta substância após sua distribuição homogênea pelo volume a ser medido. É claro que este método se baseia, essencialmente, no uso de substâncias que se distribuam pelo compartimento que se deseja avaliar, e só nele. Como  exemplo,  vamos  descrever  a  medida  do  volume  do  sangue  contido  no  espaço  vascular,  denominado  volemia, delimitado pela parede dos vasos sanguíneos; esse espaço corresponde ao volume do plasma sanguíneo (parte aquosa do sangue,  subtraído  o  volume  dos  elementos  figurados  do  sangue,  os  glóbulos  vermelhos  e  brancos,  que  fazem  parte  do volume intracelular). No caso da medida do volume plasmático, devemos utilizar uma substância que não possa atravessar os limites deste compartimento, isto é, as paredes dos capilares sanguíneos. Para preencher estas condições, a substância em questão deverá ter peso molecular bastante grande, a fim de não ser perdida através dos poros dos capilares, que têm um diâmetro equivalente de cerca de 40 Å em capilares musculares e por volta de 100 Å em capilares do glomérulo renal. As  substâncias  que  têm  sido  utilizadas  são:  (1)  albuminas  plasmáticas  (macromoléculas  de  peso  molecular  da  ordem  de 66.000)  marcadas  com  131I,  um  átomo  radioativo  (RISA,  radioiodo­soroalbumina)  ou  (2)  azul  de  Evans  (T  1824),  um corante  que  se  liga  às  albuminas  plasmáticas  e,  portanto,  se  comporta  como  macromolécula.  A  determinação  da concentração  destas  substâncias  não  apresenta  problemas.  Porém,  deve­se  levar  em  conta  a  possibilidade  de  perda  lenta das substâncias do compartimento, por certo vazamento através da parede capilar, e mesmo por destruição das substâncias ou  desacoplamento  do  marcador  (131I  ou  azul  de  Evans).  A  perda  das  substâncias,  de  maneira  geral,  ocorre  de  modo exponencial. Assim, inicialmente, injetamos neste espaço conhecida quantidade da substância escolhida (ou seja, em uma

veia)  e  esperamos  algum  tempo  para  haver  distribuição  homogênea  dela  no  líquido  deste  compartimento.  A  seguir,  são retiradas  várias  amostras  de  sangue,  em  um  período  de  cerca  de  1  h.  Projetando,  em  escala  logarítmica,  os  valores  de concentração da substância obtidos nas diferentes amostras de sangue contra o tempo de coleta da amostra após a injeção, é  possível  extrapolar  a  curva  obtida  de  volta  ao  tempo  zero,  quando  se  tem  presente  no  compartimento  a  totalidade  da substância injetada e, portanto, uma concentração mais perfeitamente representativa do volume a ser estimado. Por outro lado, quando as perdas desta substância forem pequenas e não se necessitar de grande precisão nas medidas, pode­se fazer somente uma determinação da concentração sanguínea desta substância, após um período de 10 a 20 min, necessário para sua completa distribuição pelo compartimento. Pode­se  também  medir  o  volume  do  sangue  total  usando­se  glóbulos  vermelhos  marcados  com  32P  ou  51Cr  e  daí calcular  o  volume  de  plasma,  conhecendo  a  proporção  de  glóbulos  em  uma  amostra  de  sangue  (ou  o  hematócrito).  Este método dá valores um pouco menores que o anterior, devido à distribuição diferente de glóbulos e plasma nos pequenos vasos e capilares. Os glóbulos têm distribuição axial nos vasos, e a camada estacionária de plasma (sem glóbulos), situada junto às paredes dos vasos, apresenta praticamente a mesma espessura nos grandes e pequenos vasos; em consequência, no  sangue  em  pequenos  vasos  se  encontra  maior  proporção  de  plasma  que  no  sangue  em  grandes  vasos  em  que  são coletadas as amostras. A  água  total  do  organismo,  que  corresponde  à  soma  hídrica  de  todos  os  compartimentos,  pode  ser  medida  por metodologia  semelhante.  Usam­se,  neste  caso,  substâncias  de  peso  molecular  pequeno  que  se  espalham  por  todo  o organismo, isto é, que, uma vez injetadas, deixam o espaço vascular, distribuem­se pelo líquido intersticial e penetram nas células.  Uma  das  substâncias  utilizadas  há  mais  tempo  para  esta  finalidade  é  a  antipirina.  Mais  recentemente,  deu­se preferência ao uso de água marcada com isótopos, como o D2O (à base de deutério, D) ou HTO (com trítio, T), que têm uma cinética de distribuição muito semelhante à da água comum. Foi visto que esta proporção hídrica corresponde a 45 a 75%  do  peso  corporal.  A  considerável  variabilidade  desta  proporção  está  ligada  essencialmente  ao  diferente  teor  de gordura de determinado organismo ou tecido, uma parcela praticamente isenta de água. É costume, pois, com frequência expressar  concentrações  de  água  e  outros  componentes  de  tecidos  em  termos  de  peso  magro  (lean  body  mass  ou  lean tissue  mass),  após  extração  dos  lipídios.  Com  base  no  peso  corporal  de  um  organismo  vivo  e  admitindo­se  que  a proporção  média  de  água  no  peso  magro  é  de  0,73  (73%)  desse  valor,  pode­se  calcular  seu  peso  magro  pela  seguinte relação:

O volume extracelular corresponde  à  água  do  organismo  que  se  encontra  fora  das  células,  a  cerca  de  20%  do  peso corporal.  Inclui  o  líquido  intersticial  e  a  água  plasmática.  O  líquido  intersticial  banha  todas  as  células  do  organismo, correspondendo  ao  chamado  milieu  intérieur  (meio  interno)  de  Claude  Bernard,  isto  é,  ao  meio  em  que  estas  células vivem. O compartimento extracelular se compõe de dois outros: o vascular, contendo a água plasmática, cuja medida já foi discutida,  com  um  volume  de  4  a  5%  do  peso  corporal,  e  o  intersticial,  correspondendo  a  15  a  16%  deste  peso.  O compartimento extracelular pode ser medido injetando­se em uma veia alguma substância que atravesse a parede capilar, mas  que  não  possa  penetrar  na  célula.  Várias  substâncias  são  usadas  com  esta  finalidade,  porém  não  levam  a  volumes iguais  quando  se  aplica  o  método  da  diluição.  Este  fato  se  deve  às  suas  características  particulares,  pois  são  utilizadas desde  substâncias  que  penetram  nas  células  em  pequena  proporção  até  substâncias  que,  por  terem  diâmetro  molecular considerável,  não  se  distribuem  por  todos  os  recantos  do  extracelular.  As  usadas  com  mais  frequência,  na  ordem  da magnitude do volume medido, ou seja, de seu volume de distribuição, são as seguintes: 24Na > 36Cl > SO4 > tiossulfato > manitol  >  sacarose  >  inulina.  Em  tecidos  isolados in vitro,  são  muito  empregados  manitol,  sacarose  e  inulina  marcados com 14C. Para organismos in vivo, estas substâncias são perdidas bem rapidamente por filtração glomerular, preferindo­se utilizar substâncias reabsorvidas pelos túbulos renais, como o SO4–2 e Cl– marcados, apesar de penetrarem, ainda que em pequena  proporção,  no  interior  das  células.  O  volume  do  líquido  intersticial  é  medido  por  diferença  entre  volumes extracelular e vascular (plasmático). Pertencem  ainda  ao  espaço  extracelular  os  chamados  compartimentos  transcelulares,  que  estão  em  cavidades delimitadas  por  epitélios,  como  as  mucosas  digestivas,  ou  por  mesotélio,  como  os  que  revestem  as  cavidades  pleural  e peritoneal. O volume destes líquidos é pequeno, correspondendo a 1 a 3% do peso corporal; sua constituição, de maneira geral, assemelha­se à do líquido extracelular, modificado pela ação das camadas celulares que os delimitam.

O  volume  do  líquido  intracelular  corresponde  a  30  a  40%  do  peso  corporal,  constituindo  assim  o  maior  dos compartimentos  do  organismo.  Não  é  um  compartimento  homogêneo,  pois,  de  um  lado,  corresponde  à  soma  de  grande número de células que podem variar de constituição de órgão para órgão ou de tecido para tecido, e, de outro lado, uma dada célula é formada de grande variedade de estruturas subcelulares, de ultraestrutura e constituição bastante diferentes. Assim,  este  compartimento  é,  na  realidade,  uma  abstração,  correspondendo  à  média  de  grande  número  de  estruturas bastante  heterogêneas.  A  sua  magnitude  pode  ser  determinada  pela  diferença  entre  água  total  e  volume  extracelular,  por meio  da  metodologia  anteriormente  descrita.  O  Quadro  2.1  mostra  o  volume  relativo  dos  subcompartimentos  de  uma célula  representativa  de  mamífero,  a  célula  hepática,  indicando  que  quase  a  metade  de  seu  volume  é  composta  de compartimentos  subcelulares  delimitados  por  membranas  (Alberts et al.,  2002).  Nestas  células,  o  maior  volume  após  o citosol  é  o  de  mitocôndria,  das  quais  há  cerca  de  1.700  por  célula.  No  Quadro  2.1,  há  também  a  distribuição  das membranas  da  mesma  célula,  em  termos  de  superfície.  É  claro  que  estas  proporções  variam  em  células  de  tecidos diferentes. Por exemplo, em células exócrinas de pâncreas, capazes de secretar volumes consideráveis de líquido contendo enzimas e sais, a área de membrana predominante é a do retículo endoplasmático rugoso, que corresponde a 60% da área total de membrana.

▸ Regulação do volume celular O  volume  celular  depende  não  só  do  conteúdo  de  água,  sais,  proteínas  e  outras  substâncias  intracelulares,  como também  do  equilíbrio  osmótico  entre  a  célula  e  o  meio  extracelular.  Se  colocarmos  a  célula  em  meio  hipotônico,  ela inchará,  por  entrada  de  água,  e  poderá  mesmo  romper­se  caso  a  hipotonicidade  externa  seja  exagerada  (p.  ex.,  água destilada). Em meio hipertônico,  a  célula  reduzirá  seu  volume.  No  entanto,  mantendo­a  por  algum  tempo  nestes  meios modificados,  ela  retornará  gradativamente  ao  seu  volume  original,  o  que  é  denominado,  no  caso  de  soluções hipotônicas, redução regulatória de volume (RRV). Isto é claramente demonstrado na Figura 2.3, que mostra ainda que, continuando  em  meio  hipotônico,  a  célula  mantém  seu  volume  até  o  retorno  a  meio  extracelular  normal.  Com  a  volta  à situação normal, a variação de volume se inverte, ou seja, a célula sente a solução normal como hipertônica, reduzindo seu volume,  e  depois  volta  gradativamente  ao  seu  volume  original.  Estudos  com  inibidores  de  transporte  iônico  mostraram que em meio hipotônico vários mecanismos de transporte são ativados, de modo a transportar solutos para fora da célula. Este é o caso do cotransportador K+/Cl–, que elimina KCl da célula reduzindo a osmolalidade dela; desta forma, permite a saída  de  água,  reduzindo  o  volume  celular.  Mecanismos  em  direção  oposta  são  ativados  quando  se  retorna  ao  meio extracelular  normal  (que  consiste  essencialmente  em  NaCl).  Quando  a  célula  é  colocada  em  meio  hipertônico,  ocorrem saída  de  água  e  redução  rápida  de  volume,  seguida  de  entrada  de  água  com  retorno  ao  volume  normal  (ARV,  aumento regulatório de volume).  Neste  caso,  o  movimento  de  água  (e  sal)  se  dá  em  direção  ao  interior  da  célula.  Para  isso,  são ativados mecanismos como o cotransporte Na+:K+:2Cl–, que transporta NaCl e KCl para dentro da célula. Assim, percebe­ se que as células têm mecanismos de detecção de modificações de seu volume, bem como mecanismos capazes de manter esse  volume  na  faixa  normal.  Entretanto,  no  caso  do  meio  hipertônico,  nem  sempre  acontece  uma  regulação  de  volume perfeita, sendo a variação de volume muito retardada ou inexistente em alguns tipos celulares.

Quadro 2.1 ■ Volumes relativos de compartimentos intracelulares e áreas relativas de membranas em célula hepática de mamífero. Compartimento (estrutura)

Volume total (%)

Membrana total (%)

Membrana plasmática



2

Citosol

54



Mitocôndria

22



Membrana externa



7

Membrana interna



32

9

35

RE rugoso

RE liso e Golgi

6

23

Núcleo

6

0,2

Peroxissomos

1

0,4

Lisossomos

1

0,4

Endossomos

1

0,4

RE, retículo endoplasmático. Fonte: Alberts et al., 2002. Esses  dados  permitem  deduzir  o  que  acontecerá  quando  são  infundidas  certas  soluções  na  veia  de  um  indivíduo normal.  Injetando­se  água  destilada,  o  que  pode  acarretar  hemólise  (ruptura  das  hemácias)  se  isso  for  realizado  de maneira muito rápida, ela se distribuirá tanto no meio extra como no intracelular, já que as membranas celulares e a parede capilar são permeáveis à água. No caso da infusão de solução de NaCl (solução fisiológica), esta permanecerá no líquido extracelular,  causando  expansão  de  seu  volume,  já  que  o  sódio  é,  em  sua  maioria,  mantido  fora  das  células.  Por  outro lado, infundindo­se KCl, desde que não ultrapasse uma concentração sanguínea da ordem de 8 mM, tóxica, deverá haver principalmente  aumento  do  líquido  intracelular,  apesar  de  ocorrer  grande  excreção  renal  deste  sal.  Se  infundirmos  uma solução  que  contém  proteínas  ou  então  sangue  total,  estas  soluções  permanecerão,  em  boa  parte,  dentro  dos  vasos sanguíneos,  já  que  seu  soluto  não  poderá  sair  dos  vasos,  constituindo  o  melhor  meio  de  recuperar  a  situação  fisiológica após uma hemorragia (perda de sangue).

Figura 2.3 ■ Regulação do volume celular. A. Quando a célula é colocada em meio hipotônico, aumenta rapidamente de volume e, em seguida, volta, mais lentamente, ao volume normal (redução regulatória de volume); posteriormente, quando ela retorna à solução isotônica, as variações de volume se invertem. B. Quando a célula é colocada em meio hipertônico, inicialmente sofre redução rápida de volume e, em seguida, apresenta aumento regulatório de volume. Há células em que este aumento não é observado.

CONSTITUIÇÃO IÔNICA DOS COMPARTIMENTOS DO ORGANISMO Os líquidos que constituem os diferentes compartimentos do organismo se caracterizam por diferentes concentrações iônicas. Neste ponto, é apropriado falar de algumas das medidas de concentração mais usadas. Vamos partir da definição do conceito de concentração: é a relação entre quantidade de soluto por volume de solvente, que no caso biológico é a água. Concentração = massa/volume Essa relação pode ser dada como gramas por litro ou gramas por 100 mℓ. A molalidade é uma medida mais ligada à função  da  molécula  dissolvida  e  é  definida  como  o  número  de  moléculas­grama  do  soluto  por  quilograma  de água. Molécula grama (mol) consiste no peso molecular de uma substância em gramas. Por exemplo, o cloreto de sódio, NaCl, tem peso molecular de 58,44 (a soma do peso atômico do Na+ = 23,0 e do Cl– = 35,44). Uma solução 1 M (molar)

de  NaCl  apresenta  então  58,44  gramas  por  litro.  Um  mol  de  qualquer  substância  dispõe  sempre  do  mesmo  número  de moléculas  (ou  átomos),  o  número  de  Avogadro  (6,0  ×  1023),  e  pesa  mais  ou  menos  somente  em  função  de  seu  peso molecular e não do número de moléculas presente. O sal NaCl é composto por dois íons, Na+ e Cl–, e o peso atômico de Na+,  em  gramas  (23,0  gramas),  é  chamado  de equivalente.  Uma  solução  1  M  de  NaCl  contém  então  um  equivalente  de Na+ (1 Eq) e outro de Cl–. A concentração de Na+ do plasma sanguíneo é de 140 miliequivalentes por litro (140 mEq/ℓ). No  caso  do  cloreto  de  cálcio,  CaCl2,  um  mol  deste  sal  contém  um  equivalente  de  Ca2+  (bivalente)  e  dois  de Cl– (monovalente); assim, um mol de CaCl2 é composto de três equivalentes iônicos, um de Ca2+ e dois de Cl–. A  composição  do  meio  intracelular  é,  em  essência,  diferente  daquela  do  meio  extracelular.  Esta  diferença  pode  ser verificada na Figura 2.4, em que são comparados os líquidos plasmático e intracelular. Nota­se que o líquido intracelular é rico  em  potássio  (cerca  150  mEq/ ℓ )  e  pobre  em  sódio  e  cloreto.  Por  outro  lado,  o  líquido  extracelular  se  constitui predominantemente de Na+ (140 mEq/ℓ) e Cl– (100 mEq/ℓ), contendo uma concentração baixa de potássio (4 mEq/ℓ). O  segundo  ânion  do  líquido  extracelular  em  importância  é  o  bicarbonato,  presente  na  concentração  de  cerca  de  25 mEq/ ℓ .  O  líquido  intersticial  difere  do  plasmático  praticamente  pela  presença  de  concentração  relativamente  elevada  de proteínas no plasma (cerca de 70 g por litro ou 16 mEq/ℓ), além de pequenas diferenças de concentrações iônicas devidas ao efeito Donnan através das paredes dos capilares (relacionadas com a presença de proteínas apenas do lado plasmático). Desta maneira, haverá concentrações cerca de 5% mais elevadas de ânions difusíveis do lado intersticial, com nível baixo de  proteínas,  enquanto  os  cátions  difusíveis  terão  concentração  mais  elevada,  na  mesma  proporção,  do  lado  plasmático (para maiores detalhes, consulte o Capítulo 9, Gênese do Potencial de Membrana, Excitabilidade Celular e Potencial de Ação). Quando  se  trata  da  composição  iônica  dos  compartimentos  do  organismo,  dois  problemas  fundamentais  devem  ser considerados.  O  primeiro  diz  respeito  aos  métodos  utilizados  para  a  medida  destas  concentrações,  e  o  segundo, relacionado  com  o  primeiro,  é  relativo  à  atividade  dos  íons  presentes  nos  vários  compartimentos.  Como  o  meio extracelular  é  uma  solução  relativamente  diluída  e  de  acesso  bastante  fácil,  já  que  amostras  de  plasma  são  obtidas diretamente  por  punção  venosa  e  amostras  de  líquido  intersticial  podem  ser  obtidas  pela  coleta  de  linfa  em  linfáticos  de calibre  maior  ou  menor  (o  sistema  linfático  é  uma  rede  de  delicados  vasos  que  drenam  o  líquido  intersticial),  estes problemas dizem respeito, principalmente, às características do meio intracelular. Para determinar as concentrações iônicas em  dado  tipo  de  célula,  será  necessário  analisar  amostras  de  tecido  que,  além  de  conterem  as  células  em  questão,  ainda incluem uma determinada proporção de líquido extracelular, isto é, de líquido intersticial que se encontra entre as células deste tecido. Na análise química deste tecido, será preciso levar em conta esta contaminação, já que serão medidos também os  íons  deste  espaço.  A  fim  de  avaliar  esta  contaminação,  necessitamos  conhecer  a  massa  de  dado  íon  encontrada  no interstício de uma amostra de tecido. Para isso, precisamos conhecer o volume de líquido extracelular presente na amostra e a concentração do íon neste volume. O volume de líquido extracelular será dado por:

Figura 2.4 ■ Composição  iônica  do  meio  interno  de  mamífero:  plasma  (representando  o  meio  extracelular)  e  célula.  Ác.  org., ácido orgânico.

em que inulina, no caso, foi usada para avaliação do espaço extracelular. Para tanto, será necessário determinar a massa de inulina  contida  na  amostra,  bem  como  a  concentração  no  líquido  intersticial,  que  será  igual  à  do  plasma  em experimentos  in  vivo,  ou  do  banho  em  que  foi  incubada  a  amostra  em  experimentos  in  vitro.  A  quantidade  de  íon  X proveniente do extracelular será dada então por:

Por outro lado, a quantidade de íon na célula será dada por:

em  que  Xt  é  a  quantidade  total  do  íon  determinada  quimicamente  na  amostra  de  tecido.  De  (2.6)  e  (2.7),  obtém­se facilmente a concentração do íon na célula, representada por [Xc]:

em que Vt = volume total da amostra.

Nota­se  que  os  íons  com  concentração  elevada  na  célula  e  baixa  no  líquido  intersticial  (como  o  potássio)  serão determinados com maior precisão que aqueles com concentrações intracelular baixa e intersticial alta (como Na+ e Cl–), já que,  neste  caso,  os  erros  na  avaliação  da  contaminação  extracelular  são  mais  importantes,  reduzindo­se  obviamente aqueles quando a concentração extracelular for baixa. Essa  discussão  se  refere  à  determinação  química  das  concentrações  intracelulares  de  íons.  É  possível,  no  entanto, determinar as atividades (concentração efetiva do íon na solução do ponto de vista termodinâmico) intracelulares por meio de microeletrodos sensíveis a determinados íons. Estes microeletrodos podem ser construídos de vidro, com propriedades de permeabilidade específica a determinado íon (como H+, Na+, K+), ou podem conter em sua ponta quantidade pequena de resina de troca iônica íon­específica. Há resinas específicas para um grande número de íons, incluindo Na+, K+, H+, Cl–, HCO3–  etc.  Poder­se­iam  esperar  valores  de  atividade,  medidos  por  meio  destes  eletrodos,  diferentes  da  concentração estabelecida  quimicamente,  quando  a  água  celular  não  estiver  toda  disponível  como  solvente,  ou  quando  os  íons  em questão não tiverem propriedades semelhantes às encontradas em solução livre e diluída. Já a partir de concentrações da ordem de 0,1 M para cima, começa a haver interações entre os íons em solução que alteram suas características, reduzindo sua liberdade, o que equivale a uma atividade inferior à sua concentração. No meio intracelular, podem existir interações adicionais com as macromoléculas (proteínas) aí presentes, ou seja, poderia haver ligação mais ou menos firme da água ou dos  íons  com  cargas  elétricas  destas  macromoléculas.  O  grau  destas  interações  tem  sido  objeto  de  considerável controvérsia, existindo, de um lado, os pesquisadores partidários de uma situação intracelular semelhante às condições de solução livre, em que se baseia grande parte da teoria iônica dos fenômenos de membrana (Hodgkin, 1951). Segundo esta teoria,  os  fenômenos  elétricos  observados  em  membranas  de  células  excitáveis  ou  não  excitáveis  dependem  de movimentos iônicos através da membrana celular, baseando­se na capacidade de estes íons se moverem com considerável liberdade de ambos os lados desta membrana. Por outro lado, outro grupo de pesquisadores é favorável à ideia de ligação bastante rígida dos íons às macromoléculas intracelulares, explicando inclusive a distribuição característica de íons entre compartimentos  intra  e  extracelulares  desta  maneira  (Ling,  1965).  Estudos  mais  recentes  com  técnicas  de  ressonância magnética  (RM),  condutividade  iônica  e  medidas  de  coeficiente  de  difusão  no  meio  intracelular  mostraram  que  a  maior parte  do  potássio  intracelular  se  comporta,  do  ponto  de  vista  de  sua  atividade,  como  se  estivesse  em  solução  livre;  seu coeficiente  de  difusão  intracelular  é  cerca  de  metade  daquele  em  solução,  o  que  pode  estar  ligado  ao  grande  número  de “obstáculos”  intracelulares,  como  mitocôndria,  vesículas  subcelulares  e  vários  tipos  de  macromoléculas  (Edzes  e Berendsen, 1975). De maneira geral, íons monovalentes apresentam comportamento semelhante ao potássio. O sódio, no entanto, mostra na  célula  atividade  20  a  50%  inferior  àquela  em  solução  de  concentração  igual.  Já  íons  bivalentes,  como  o  cálcio,  têm mobilidade acentuadamente menor no meio intracelular, sendo seu coeficiente de difusão, em músculo de anfíbio e axônio gigante  de  lula,  50  vezes  menor  que  o  observado  em  solução  aquosa;  provavelmente,  essa  diferença  se  deve  a  seu sequestramento pelo retículo endoplasmático, uma estrutura subcelular membranosa tubular que transporta íons cálcio para seu interior. A concentração intracelular de cálcio é muito mais baixa (100 nanomolar, 100 × 10–9 M) que a extracelular (1 a 2 mM), permitindo que este íon funcione como mensageiro da sinalização celular. Do ponto de vista da heterogeneidade de distribuição de íons no meio intracelular, demonstrou­se que o nível de cálcio é consideravelmente mais elevado (da ordem de 20% maior) na região do aparelho de Golgi que no citoplasma e no núcleo (Chandra et al.,  1991).  Por  outro  lado,  o  cálcio  nuclear  de  uma  maneira  geral  não  é  diferente  do  citoplasmático,  o  que também ocorre com os íons Na+ e K+. Somente quando ocorre sobrecarga celular por cálcio há limitação da entrada deste íon no núcleo (Al­Mohanna et al., 1994). É bem conhecido que mitocôndrias apresentam pH mais alcalino que o citoplasma, que tem pH da ordem de 6,9 a 7 em  células  musculares  (que  podem  produzir  ácido  láctico  em  seu  metabolismo)  e  de  7,2  a  7,4  em  células  epiteliais  (que muitas vezes transportam H+ para o exterior, por exemplo, no caso das células da mucosa gástrica). Em mitocôndria, o pH alcalino  é  devido  à  extrusão  de  íons  H+ através  da  sua  membrana  interna.  Esta  extrusão  é  consequência  da  fosforilação oxidativa mitocondrial. O gradiente de íons H+ (criado pelo metabolismo mitocondrial por meio da extrusão destes íons do interior da matriz mitocondrial pela cadeia de citocromos) é o responsável pela criação do gradiente eletroquímico que irá gerar ATP pelas H+­ATPases mitocondriais. Entretanto, a concentração iônica celular não é necessariamente constante com o tempo no caso de todos os íons. Em tecido muscular, bem como em outros tecidos­alvo de ação nervosa ou hormonal, a concentração de cálcio varia amplamente, funcionando como mensageiro da ação nervosa ou humoral. O mesmo acontece com a concentração celular de sódio em nervo e músculo; ela se eleva transitoriamente com a estimulação nervosa, devido ao aumento da permeabilidade da membrana celular a este íon.

Além das variações da atividade intracelular de cálcio que descrevemos, ocorrem oscilações ou ondas nesta atividade em grande número de células, como as musculares cardíacas, as da musculatura lisa de vasos e as secretoras e epiteliais (Berridge,  1990).  Estas  oscilações  podem  ser  bastante  regulares  e  percorrer  as  células  em  um  sentido  constante,  sendo inicialmente  desencadeadas  por  agentes  externos,  como  vasopressina  ou  acetilcolina,  mas  sua  manutenção  intracelular depende de trifosfato  de  inositol  (IP3),  que  faz  parte  de  um  dos  sistemas  sinalizadores  intracelulares,  como  será  visto no Capítulo 3, Sinalização Celular. Estas ondas de cálcio podem também depender do próprio nível intracelular de cálcio (ondas de cálcio dependentes de cálcio) (Blatter e Wier, 1992). Tais ondas têm importante papel na excitabilidade celular e na regulação de processos secretórios. Em  conclusão,  pode­se  dizer,  com  bastante  confiança,  que  a  distribuição  iônica  característica  dos  seres  vivos  não  é devida  à  ligação  específica  a  macromoléculas,  mas  deve  ser  causada  por  fenômenos  de  transporte  ao  nível  da  membrana celular, bem como em membranas de estruturas subcelulares. Por outro lado, os íons intracelulares não deixam de sofrer certa ação de seu meio, embora esta ação não seja capaz de alterar decisivamente suas características físico­químicas.

BIBLIOGRAFIA ADROGUÉ HJ, WESSON DE. Salt & Water. Libra & Gemini, Houston, 1993. AL­MOHANNA  FA,  CADDY  KW,  BOLSOVER  SR.  The  nucleus  is  insulated  from  large  cytosolic  calcium  ion changes. Nature, 367:745­50, 1994. ALBERTS B, JOHNSON A, LEWIS J et al. Compartimentos intracelulares e endereçamento de proteínas. In: Biologia Molecular da Célula. 4. ed. Artmed, Porto Alegre, 2002. BERRIDGE MJ. Calcium oscillations. J Biol Chem, 265:9583­6, 1990. BLATTER LA, WIER WG. Agonist­induced [Ca] waves and Ca2+­induced Ca2+ release in mammalian vascular smooth muscle cells. Am J Physiol, 263:H576­86, 1992. BRINI  M,  MARSAULT  R,  BASTIANUTTO  C  et  al.  Nuclear  targeting  of  aequorin.  A  new  approach  for  measuring  nuclear Ca2+ concentration in intact cells. Cell Calcium, 16:259­68, 1994. CHANDRA S, KABLE EP, MORRISON GH et al. Calcium sequestration in the Golgi apparatus of cultured mammalian cells revealed by laser scanning confocal microscopy and ion microscopy. J Cell Sci, 100:747­52, 1991. EDZES T, BERENDSEN HJC. The physical state of diffusible ions in cells. Ann Rev Biophys Bioeng, 4:265­85, 1975. GARY­BOBO CM, SOLOMON AK. Properties of hemoglobin solutions in red cells. J Gen Physiol, 52:825­53, 1968. HODGKIN AL. The ionic basis of electrical activity in nerve and muscle. Biol Reviews, 26:339­409, 1951. HOUSE CR. Water Transport in Cells and Tissues. Arnold, London, 1974. LING GN. The physical state of water in living cell and model systems. Annals N Y Acad Sci, 125:401­17, 1965. NELSON DL, COX MM. Water. In: Lehninger Principles of Biochemistry, Worth Publishers, New York, 2009.



Unicelularidade/multicelularidade e homeostase



Comunicação intercelular | Células “conversando” com células



Receptores de membrana

■ ■ ■

Receptores intracelulares Modulação de sinal Finalização de sinal



Bibliografia

UNICELULARIDADE/MULTICELULARIDADE E HOMEOSTASE A  vida  na  Terra  é  cercada  de  mistérios  que  vêm  motivando  descobertas  desde  os  primórdios  das  civilizações.  O próprio aparecimento de vida em nosso planeta, provavelmente, seja o maior mistério de todos. Questões do tipo quando e, principalmente, como ela surgiu permanecem ainda cobertas de dúvidas e especulações. Neste  cenário,  a  ciência  tenta  retroceder  ao  máximo,  usando  muitas  vezes  ferramentas  sofisticadas,  como  a  análise comparativa  de  sequências  de  aminoácidos  em  proteínas  de  diferentes  grupos,  para  tentar  traçar  perfis  evolutivos compatíveis  com  o  que  podemos  ter  nos  dias  atuais.  Hoje  conseguimos,  pelo  menos  em  teoria,  vislumbrar  o  mundo imediatamente  antes  do  aparecimento  da  primeira  célula.  Nele,  moléculas  com  capacidade  replicativa,  provavelmente RNA, já ensaiavam os primeiros passos do que denominaríamos vida em uma distância de aproximadamente 3,8 bilhões de  anos.  Este  então  chamado  mundo  do  RNA  perdurou  por  cerca  de  200  milhões  de  anos,  quando  provavelmente apareceram as primeiras unidades de vida separadas por membranas e, portanto, mantendo um meio intracelular próprio, o que  viríamos  a  conhecer  por  célula.  Neste  ponto,  a  vida  recém­surgida  tinha  grande  desafio:  perceber  variações  do  meio externo e promover ajustes internos, de modo a adaptar­se às novas condições ambientais. Percepção, hierarquização das informações, integração e ajuste homeostático eram exercidos pela mesma entidade. O agrupamento de células, fazendo com que a vida saísse da situação de mono para a de pluricelularidade, apresentou desafios de tão grande complexidade quanto os que fizeram moléculas comuns tornarem­se tão complexas como os ácidos ribonucleicos,  capazes  de  se  multiplicarem.  O  agrupamento  de  células  em  um  novo  organismo  exigia  que  essas  células pudessem  comunicar­se  entre  si,  a  fim  de  que  os  ajustes  homeostáticos  ocorressem  de  modo  integrado,  conduzindo  o organismo em um único sentido de resposta. A sinalização inter e intracelular foi a base que permitiu às diferentes células de um mesmo organismo comunicarem­ se, integrando assim funções e coordenando eventos.

COMUNICAÇÃO INTERCELULAR | CÉLULAS “CONVERSANDO” COM CÉLULAS Como os seres unicelulares, certamente os primeiros a comporem o cenário biológico da Terra primitiva, agregaram­ se em direção a uma maior complexidade? Evidentemente,  relações  harmônicas  cooperativas  trouxeram  grandes  benefícios  às  células  anteriormente  isoladas, como,  por  exemplo,  economia  de  energia  nos  ajustes  osmóticos,  na  busca  de  alimentos  etc.  Provavelmente,  a  união  de

células com características distintas possibilitou, no início, divisão de tarefas para o bem comum, dando a estas “uniões” maior capacidade adaptativa. Porém, estas “uniões” de diferentes células necessitariam coordenar funções. Sem esta coordenação, seria totalmente impossível sincronizar tarefas, e a evolução teria fatalmente atingido no máximo seres formados por poucas células, pouco diferenciadas,  que  continuariam  se  dividindo  independentemente  e  se  agregando  ou  não,  dependendo  de  vários  fatores ambientais. Para que essa coordenação se efetivasse, foi necessária a especialização de (1) células para percepção do meio ambiente  (receptores  sensoriais),  (2)  centro(s)  integrador(es)  dessas  informações,  onde  a  hierarquização  e  coordenação central  (sistema  nervoso)  fossem  realizadas,  e  (3)  efetuadores  de  respostas  de  ajuste  homeostático  (sistemas  muscular, exócrino  e  endócrino).  Adicionalmente,  para  que  essas  funções  fossem  eficientemente  realizadas,  surgiram  moléculas  de sinalização  entre  as  células  e,  nas  membranas  celulares,  apareceram  moléculas  capazes  de  seletivamente  perceberem  um desses sinais químicos e passarem essa informação para dentro das células. Uma  das  transições  iniciais  de  organismos  unicelulares  para  pluricelulares  foi  a  evolução  de  uma  única  molécula  de superfície celular, essencial para a interação de células vizinhas. Neste sentido, o aparecimento de estruturas de ligação e, principalmente,  de  comunicação  entre  as  diferentes  células  deste  “organismo  primitivo”  foi  decisivo  para  o  sucesso  e  a diversificação  da  vida.  Entre  estas  estruturas,  tiveram  grande  importância  as  junções  comunicantes  (gap).  Além  desses canais de comunicação entre células adjacentes, a conversa entre duas células pode ser estabelecida por moléculas presas às  membranas  de  ambas  as  células,  a  sinalização  dependendo  de  contato  entre  essas  moléculas.  E,  finalmente,  por mensageiros  extracelulares  produzidos  por  uma  célula,  que  vão  atuar  em  células­alvo  que  os  possam  reconhecer  e  que, para  tanto,  têm  moléculas  de  superfície  ou  intracelulares  (os  receptores),  aos  quais  esses  sinalizadores  se  ligam especificamente (Figura 3.1).

Figura 3.1 ■ As principais estratégias de comunicação entre células se dão por: (A) mensageiros intercelulares: o mensageiro é secretado  por  uma  célula  e  vai  atuar  em  células  que  o  reconheçam.  Essas  células  são  denominadas  células­alvo  e  o reconhecimento é feito por meio de receptores específicos para os mensageiros; (B) comunicação por junções comunicantes: são canais nas membranas de duas células adjacentes, que permitem a passagem de pequenas moléculas, de maneira não seletiva; e (C)  comunicação  por  contato:  estabelece­se  entre  proteínas  de  células  adjacentes  ou  entre  proteínas  celulares  e proteínas da matriz intercelular. (Adaptada de Krauss, 2003.)

▸ Junções comunicantes A primeira imagem de microscopia eletrônica de junções comunicantes, feita em meados da década de 1960, sugeria uma  simples  estrutura  formada  por  duas  membranas  justapostas,  que  continham  um  arranjo  uniforme  de  conexões (conexons) posicionadas de cada lado das membranas. Este arranjo entre as membranas forma um poro, sendo o conjunto estrutural denominado junção comunicante (gap). Esse tipo de junção permite a passagem de íons e pequenas moléculas, como  3∦  ,5∦  ­monofosfato  de  adenosina  cíclico  (cAMP),  Ca2+,  Na+,  trifosfato  de  inositol  (IP3)  etc.,  entre  células adjacentes. Os conexons são formados por proteínas transmembrânicas chamadas de conexinas.  O  arranjo  de  seis  destas moléculas  forma  na  membrana  o  hemicanal  (conexon).  O  encontro  destas  estruturas  na  membrana  celular  de  ambas  as células comunicantes constitui o canal ou junção comunicante (Figura 3.2). Esses canais não estão constantemente abertos como  se  imaginava  a  princípio.  Muitos  deles  apresentam  a  capacidade  de  fechamento,  o  que  pode  ocorrer,  por  exemplo, com  a  variação  da  voltagem  da  membrana  plasmática,  com  extremos  de  pH,  Ca2+ ou  por  fosforilações.  Porém,  existem evidências  de  que  nem  todos  os  tipos  de  junções  comunicantes  são  formados  por  conexinas.  Outras  moléculas  com  o mesmo  perfil  químico  das  conexinas,  ou  seja,  possuidoras  de  quatro  domínios  transmembrânicos,  aparecem  como formadoras  das  junções  comunicantes  em  invertebrados.  A  proposta  vigente  é  que  a inexina,  uma  molécula  distinta  da conexina, seja a formadora de junções comunicantes nesta classe de animais. Nos  invertebrados,  as  inexinas  (proteínas  bifuncionais  de  membrana)  podem  formar  tanto  as  junções  comunicantes (gap)  como  os  canais  de  membrana  (inexons).  A  estrutura  análoga  dos  vertebrados,  panexina,  perdeu  a  capacidade  para organizar  junções  gap,  formando  apenas  os  canais  de  membrana  não  juncionais  conhecidos  como  panexons. Tanto inexons quanto panexons são  permeáveis  ao  ATP,  liberando  ATP  ao  meio  extracelular,  o  que  originou  uma  nova forma de comunicação intracelular, independente de uma comunicação citoplasmática direta. Essa comunicação intercelular foi descoberta com as chamadas “ondas” de Ca2+. Notou­se que essas variações de Ca2+ podiam “saltar” entre as células, ou mesmo entre tecidos, sem a necessidade de serem transmitidas de célula a célula. Esses “saltos” eram possíveis pela liberação de ATP do citoplasma para o meio extracelular, o que ocasionava a abertura de hemicanais de conexina dispostos na  membrana  de  outras  células  teciduais.  Hemicanais  são  estruturas  formadas  apenas  pelo  arranjo  das  conexinas  na membrana sem estarem acoplados a outra conexina da célula adjacente, o que a princípio formaria o conexon.

Figura 3.2 ■ Junções comunicantes: seis  moléculas  de  conexinas  constituem  um  hemicanal;  a  união  de  dois  hemicanais  de duas  células  adjacentes  forma  a  junção  comunicante,  que  permite  a  passagem  de  íons  e  nucleotídios  cíclicos.  (Adaptada de www.academic.brooklyn.cuny.edu.)

Propriedades  químicas  e  físicas  dos  inexons  e  dos  panexons  assemelham­se  às  da  conexina,  demonstrando  que  os primeiros foram provavelmente a base evolutiva para as conexinas. Independentemente  da  composição  química  que  tenham,  os conexons  são  importantes  na  comunicação  entre  células adjacentes.  A  passagem  de  íons  pode  iniciar­se  em  qualquer  dos  lados  da  junção,  ou  seja,  a  comunicação  é  bidirecional. Este fluxo de íons tem importância vital, por exemplo, na ritmicidade da contração do músculo cardíaco, na transmissão da  mensagem  nervosa  pelos  neurônios  e  no  movimento  peristáltico  intestinal  encontrado  nos  vertebrados.  Junções comunicantes  neuronais  são  também  denominadas  sinapses  elétricas,  pela  função  específica  que  desempenham  na propagação da corrente elétrica entre células nervosas. Na embriogênese, estas comunicações têm papel fundamental, não só  para  a  transmissão  da  informação  necessária  à  diferenciação  celular,  mas  também  para  a  distribuição  de  metabólitos, antes da formação do sistema circulatório. Estas passagens também apresentam a capacidade de se fecharem em determinadas condições, por exemplo, em altas concentrações de Ca2+ ou em extremos de pH. Esta propriedade protege as células que estão se comunicando por junções comunicantes dos danos causados pela morte de alguma das células pertencentes ao circuito.

▸ Sinalizadores dependentes de contato Dentro desse conceito, enquadram­se as integrinas, proteínas transmembrânicas heterodiméricas que se conectam, via proteínas  de  ancoragem,  ao  citoesqueleto  cortical  de  actina.  A  afinidade  que  elas  apresentam  por  ligantes  extracelulares como  fibronectina,  fibrinogênio  e  colágeno  é  regulada  por  sinalização  intracelular,  resultando  em  uma  peculiar  ativação das  integrinas  de  “dentro  para  fora”.  Essa  ativação  controla  a  força  de  adesão  e  migração  celular.  Mas  as  integrinas também se comportam como receptores tradicionais, respondendo a ligantes extracelulares com cascatas intracelulares que modulam a polaridade celular, citoesqueleto, expressão gênica e proliferação. As integrinas são encontradas por toda a história evolutiva dos metazoários, sendo essenciais para o desenvolvimento de, possivelmente, todos os organismos multicelulares. As regiões extracelulares das porções alfa e beta das integrinas se unem não covalentemente para formarem uma “cabeça” globular, com capacidade para ligar­se em domínios específicos

da matriz extracelular (Figura 3.3 A). Enquanto somente poucas integrinas existem nos invertebrados, até o momento são conhecidas,  por  sequenciamento  em  humanos,  24  subunidades  alfa  e  nove  beta.  Cada  combinação  alfa/beta  tem  seu próprio ligante com características exclusivas de sinalização. Uma das funções das integrinas é estrutural. Elas são a ponte de ligação entre a matriz extracelular e o citoesqueleto. A  maioria  das  integrinas  reconhece  muitas  proteínas  da  matriz  extracelular;  e  proteínas  individuais  dessa  matriz  podem ligar­se a muitas integrinas. Este reconhecimento das proteínas da matriz extracelular, por parte das integrinas, possibilita a percepção do meio extracelular e consequente ajuste a sinais externos. A  importância  destas  moléculas  no  desenvolvimento  se  dá  não  só  pelo  fato  de  promoverem  adesão  celular,  mas também  por  terem  capacidade  de  modular  a  cascata  de  transdução  de  sinais,  regulando  grande  número  de  atividades celulares, incluindo a expressão de genes. A adesão celular mediada por integrinas pode envolver: (1) influxo de Ca2+, (2) ativação  de  enzimas  que  adicionam  grupos  fosfato  a  tirosinas,  serinas  e  treoninas  (tirosina  e  serina/treoninoquinases), como  PKC  e  Akt,  (3)  ativação  da  família  das  Rho  e  Ras  (pequenas  GTPase  monoméricas,  ver  “Receptores tirosinoquinases”)  e  (4)  mobilização  de  fosfoinositídios,  pela  ativação  de  fosfolipases  (Figura  3.3  B).  A  resultante ativação  de  fatores  de  transcrição  como  ERK,  JNK  e  p38  induz  proliferação  celular.  Na  ausência  de  sinalização  por integrinas, caspases ativas levam a célula à apoptose. A capacidade de as células crescerem e proliferarem na ausência de adesão  mediada  por  integrina  (ancoramento  independente)  está  fortemente  relacionada  com  tumorigênese,  podendo capacitar células tumorais a metástase e a crescimento em regiões inapropriadas do organismo.

▸ Mensageiros extracelulares Os mensageiros químicos intercelulares devem atingir células, denominadas células­alvo, que possam interpretar esses sinais.  Para  reconhecer  esses  mensageiros,  essas  células­alvo  precisam  ter  elementos,  os  chamados  receptores,  que mudam  de  configuração  quando  o  mensageiro  a  eles  se  liga.  Em  alguns  casos,  a  célula­alvo  modifica  quimicamente  o ligante,  transformando­o  em  um  composto  para  o  qual  ela  dispõe  de  receptores.  Clássico  exemplo  é  a  testosterona,  que, enquanto atua como tal em tecidos da genitália interna masculina, é transformada em estradiol por outros tecidos­alvo (no hipotálamo masculino, graças à enzima aromatase) ou em di­hidrotestosterona (na genitália externa masculina), para então sinalizar por intermédio desses receptores.

Figura 3.3 ■ A. As integrinas são receptores transmembrânicos constituídos por duas subunidades α e β, cujas extremidades extracelulares ligam­se a proteínas da matriz ou de células vizinhas. B. A porção citoplasmática das integrinas pode acoplar­se a quinases (FAK), resultando na ativação de uma variedade de moléculas promotoras de proliferação, incluindo: PI3K, ERK, JNK e p38, ou pode interagir com proteínas do citoesqueleto, modulando a adesão e a motilidade celular. (Adaptada de Alberts et al., 2002.)

Outro  bom  exemplo  é  o  receptor  de  aldosterona,  denominado  de  mineralocorticoide  ou  simplesmente  MR,  que apresenta  afinidade  similar  aos  glicocorticoides.  Além  disso,  a  concentração  plasmática  dos  glicocorticoides  é  de  pelo menos  100  vezes  a  concentração  plasmática  da  aldosterona.  Tecidos  nos  quais  a  aldosterona  evoca  resposta  biológica sintetizam  a  enzima  11­beta­hidroxiesteroide  desidrogenase  do  tipo  II,  capaz  de  degradar  cortisol  (forma  ativa)  em cortisona  (forma  inativa),  protegendo  assim  a  ligação  da  aldosterona  ao  seu  receptor.  Nesses  tecidos,  portanto,  a aldosterona pode se ligar a seu receptor, uma vez que não haverá a competição com glicocorticoides pelo seu receptor MR. Os  sistemas  ligante/receptor  são  específicos,  ao  mesmo  tempo  que  apresentam  flexibilidade  e  são  altamente conservados. A mesma molécula sinalizadora pode ligar­se a muitos tipos de receptores na mesma célula ou em diferentes tecidos,  além  de  ativá­los;  por  exemplo,  epinefrina  produzida  pela  glândula  suprarrenal  é  ligante  para,  no  mínimo,  nove tipos de receptores (Figura 3.4), acetilcolina para cinco e serotonina para 15. As vias de sinalização podem ser distintas e a  resposta  celular  será  um  balanço  entre  esses  inputs  (Figura  3.5).  Por  outro  lado,  diferentes  ligantes  podem  ativar diversos receptores específicos; ainda assim, a via de sinalização estimulada pode ser a mesma (ver Figura 3.5).

Figura 3.4 ■ Quatro diferentes subtipos de adrenorreceptor reconhecem a epinefrina como mensageiro extracelular. A ligação de epinefrina a dois deles, β1 e β2, ativa a mesma via de sinalização (adenililciclase/AMP cíclico);  a  ligação  ao  terceiro,  α2,  inibe essa  mesma  via,  e  ao  quarto,  α1,  ativa  uma  via  diversa  (fosfolipase  C/IP3/DAG).  IP3,  trifosfato  de  inositol;  DAG,  diacilglicerol. (Adaptada de Hadley, 2000.)

Então, o que confere especificidade da resposta de determinado tipo celular a um ligante? Durante a diferenciação de uma  célula  embrionária  em  um  tecido  específico,  certos  genes  são  silenciados  e  outros  ativados,  de  maneira  específica, para  aquele  tipo  celular,  que  então  expressará  proteínas  específicas.  Desse  modo,  esse  tipo  celular  terá,  por  exemplo, proteínas X participando de eventos terminais da sinalização, enquanto um outro terá proteínas Y; isso levará a respostas muito distintas a um mesmo ligante ativando um mesmo tipo de receptor. A complexidade de sinais que chegam a uma célula, com múltiplas vias intracelulares sendo ativadas, é extraordinária.  Não  está  claro  como  as  células  discriminam  e  hierarquizam  os  sinais,  emitindo  respostas específicas.  Aparentemente,  proteínas  denominadas  ancoradoras  organizam  os  elementos  sinalizadores em  complexos,  guiando  a  sucessão  de  eventos  e  evitando  que  outras  vias  sejam  ativadas.  Uma  das proteínas  ancoradoras  mais  bem  estudadas  é  a  AKAP,  proteína  ancoradora  da  PKA  (ver  “Receptores acoplados a proteínas Gs e Gi, cAMP e PKA”). Os mensageiros químicos intercelulares podem ser classificados de acordo com a distância que percorrerão do local de sua  síntese  para  a  célula­alvo  da  mensagem,  bem  como  do  tipo  de  inter­relação  da  célula  produtora  com  a  célula­alvo (Figura 3.6). Provavelmente,  os  primeiros  mensageiros  químicos  comunicavam  células  adjacentes;  eram  sinalizadores  presos  à membrana  de  uma  célula  atuando  em  receptores  da  membrana  da  célula  adjacente,  ou  presos  às  proteínas  da  matriz intercelular,  como  as  integrinas.  Quando  esses  sinalizadores  passam  a  ser  secretados  pela  célula  produtora  e  a  atuar  em células  adjacentes  próximas,  são  denominados  parácrinos.  Caso  atuem  na  própria  célula  produtora,  são  chamados de  autócrinos.  Sinalizadores  parácrinos  produzidos  por  células  nervosas  são  nomeados  neurotransmissores.  Estes  são lançados  na  região  entre  neurônios,  entre  neurônio  e  fibra  muscular  ou  entre  neurônio  e  glândula  exócrina  ou  endócrina; essa  região  é  designada  fenda  sináptica.  Sinalizadores  lançados  na  corrente  sanguínea,  cuja  célula­alvo  encontra­se distante, são conhecidos como hormônios (em senso estrito).

Os ligantes podem ainda ser classificados, quanto à sua solubilidade, em hidrossolúveis e lipossolúveis. Mensageiros intercelulares  hidrossolúveis  são  incapazes  de  atravessar  o  meio  altamente  hidrofóbico  formado  pelos  lipídios  que constituem a membrana celular; devem, assim, ser reconhecidos por receptores que estejam na membrana. Por outro lado, compostos  lipossolúveis  apresentam  alta  afinidade  química  por  membranas  biológicas;  portanto,  podem  atravessar  a membrana e atuar dentro das células, chegando muitas vezes até o núcleo. Seus receptores são, assim, intracelulares. Dentre os mensageiros hidrossolúveis, podemos citar as aminas e os derivados de aminoácidos, peptídios e proteínas; e,  quanto  aos  lipossolúveis,  os  esteroides,  os  hormônios  da  tireoide,  a  vitamina  D,  os  eicosanoides  e  o  óxido  nítrico (Quadro 3.1).

Figura 3.5 ■  Esquema  da  multiplicidade  de  sinais  recebidos  por  uma  célula  por  meio  de  diferentes  receptores,  evocando  a ativação  de  uma  variedade  de  vias  intracelulares,  enquanto  outras  vias  são  inibidas.  A  resposta  homeostática  celular  será  o balanço  de  todos  esses  eventos.  PKA,  proteinoquinase  A  (dependente  de  AMP  cíclico);  IP3,  trifosfato  de  inositol;  PKC, proteinoquinase C (dependente de cálcio); Ras, proteína G monomérica; PKB, proteinoquinase B (Akt). (Adaptada de Alberts et al., 2002.)

Apresentamos, a seguir, alguns exemplos das vias de síntese desses mensageiros. Como exemplo de aminas, a via de produção  das  catecolaminas  é  notável.  A  partir  do  aminoácido  tirosina,  são  produzidos  os  mensageiros  dopamina, norepinefrina  ou  epinefrina  (Figura 3.7).  A  definição  de  qual  desses  compostos  é  o  produto  final  dessa  via  depende  do tipo  celular  em  que  ela  ocorre  e  do  microambiente  onde  essa  célula  se  diferenciou.  Ou  seja,  tecido  nervoso  produtor  de catecolaminas,  que  permaneceu  no  sistema  nervoso,  terá  como  produto  final,  dependendo  da  região,  dopamina, norepinefrina  ou  epinefrina.  Já  células  de  mesma  origem,  mas  que,  ao  longo  da  ontogênese  migraram  para  outra  região extranervosa  (como  a  glândula  suprarrenal),  por  estímulos  locais  (p.  ex.,  a  presença  de  cortisol)  passam  a  ter  a  enzima feniletanolamina  N­metil  transferase  funcional;  portanto,  têm  a  capacidade  de  transformar  norepinefrina  em  epinefrina. Assim, a natureza, com uma única proposta biossintética, é capaz de propiciar a produção de três mensageiros químicos.

Figura 3.6 ■ Tipos  de  sinalizadores.  A.  Parácrino:  o  mensageiro  químico  atua  localmente,  em  células­alvo  vizinhas  à  célula secretora.  B.  Neuronal:  o  parácrino  é  produzido  por  um  neurônio  e  secretado  na  fenda  sináptica,  de  onde  atinge  a  célula­ alvo.  C.  Endócrino:  o  hormônio  é  secretado  na  corrente  sanguínea,  indo  atuar  em  célula­alvo  distante  da  célula  produtora. (Adaptada de Alberts et al., 2002.)

Quadro 3.1 ■ Exemplos de mensageiros extracelulares. Aminas e derivados Dopamina, epinefrina, norepinefrina, glutamato, ácido gama­aminobutírico (GABA), melatonina, serotonina, tiroxina (T4) e tri­iodotironina (T3) Peptídios e proteínas Hormônio estimulante de melanócitos (MSH), hormônio adrenocorticotrófico (ACTH), endorfinas, tireotrofinas, gonadotrofinas, hormônio do crescimento (GH), insulina Esteroides Progesterona, estradiol, testosterona, cortisol, aldosterona, vitamina D Eicosanoides Tromboxano, leucotrieno, prostaglandina, prostaciclina Gases Óxido nítrico (NO)

Figura 3.7 ■ Via de síntese de catecolaminas. A última etapa depende da expressão da enzima PNMT, cujo gene é desreprimido na presença de cortisol, nas células da medula da glândula suprarrenal. (Adaptada de Hadley, 2000.)

Peptídios  e  proteínas  sinalizadores,  geralmente,  se  originam  da  clivagem  de  grande  proteína  sintetizada  em  uma variedade de tipos celulares; entretanto, novamente, dependendo da maquinaria enzimática expressa, a grande proteína será clivada,  de  preferência,  neste  ou  naquele  produto.  Por  exemplo,  a  partir  da  POMC  (pró­opiomelanocortina)  podem  ser produzidos mensageiros químicos peptídicos como ACTH (hormônio adrenocorticotrófico), MSH (hormônio estimulante de melanócitos) ou endorfinas (Figura 3.8). Se a POMC for expressa na pars distalis da glândula endócrina hipófise, os produtos finais são ACTH e endorfinas. Estes sinalizadores são secretados em condições de estresse crônico, preparando o organismo para enfrentá­lo: o ACTH estimula a produção e a secreção do hormônio do estresse ou cortisol (pelo córtex da  glândula  suprarrenal),  ao  passo  que  as  endorfinas  promovem  analgesia  e  sensação  de  bem­estar  (pois  são  opioides endógenos). Entretanto, se a expressão de POMC se dá na pars intermedia da hipófise do embrião humano ou na pele de adultos, o ACTH também é produzido, mas imediatamente clivado, dele resultando α­MSH, estimulador do crescimento neural (durante a embriogênese) e da produção de melanina pela pele (em resposta à radiação ultravioleta). Quanto  aos  mensageiros  lipossolúveis,  a  maioria  é  constituída  de  esteroides,  que  derivam  estruturalmente  do colesterol (Figura 3.9), sendo sua síntese restrita a poucos tecidos esteroidogênicos. Neste caso, mais uma vez, a natureza encontrou  soluções  econômicas  para  a  produção  de  vários  mensageiros  químicos,  com  alvos  e  ações  extremamente diferentes. A partir do colesterol, é sintetizada a pregnenolona, que sai da mitocôndria em que é formada e é transformada em diferentes compostos, dependendo do tecido no qual está ocorrendo a síntese. Se a síntese se der no córtex da glândula suprarrenal,  os  produtos  finais  serão  aldosterona  ou  cortisol.  Caso  ela  aconteça  nos  testículos,  a  via  é  desviada  para  a produção  de  testosterona,  hormônio  sexual  masculino.  Se  a  síntese  se  der  nos  ovários,  é  expressa  uma  nova  enzima,  a

aromatase,  sendo  toda  testosterona  formada  imediatamente  convertida  em  estradiol,  o  hormônio  sexual  feminino,  ou, dependendo do momento do ciclo ovariano, a via termina em progesterona. Os eicosanoides são sinalizadores de natureza lipídica, derivados do ácido araquidônico, formado a partir da quebra de fosfolipídios  de  membrana  por  fosfolipases,  principalmente  a  fosfolipase  A2.  Esse  ácido  é  um  ácido  graxo  de  20 carbonos,  que  pode  ser  oxidado  não  só  pela  ação  catalítica  de  ciclo­oxigenases  a  prostaglandinas,  prostaciclinas  e tromboxanos,  como  também,  alternativamente,  por  lipo­oxigenases  a  leucotrienos  e  lipoxinas  (Figura  3.10).  Esses eicosanoides são secretados e atuam paracrinamente, muitas vezes em respostas locais de inflamação, causando constrição das vias respiratórias, vasodilatação, agregação plaquetária e migração de leucócitos. O uso de ácido acetilsalicílico como agente  anti­inflamatório  decorre  de  sua  ação  inibitória  das  ciclo­oxigenases,  enquanto  a  utilização  terapêutica  de corticosteroides  para  o  mesmo  fim  deve­se  à  inibição  desses  hormônios  sobre  as  fosfolipases  A2.  Alguns  receptores  de eicosanoides foram clonados; eles pertencem à família dos receptores de membrana acoplados à proteína G.

Figura  3.8  ■   Via  de  produção  de  hormônios  peptídicos  derivados  da  pró­opiomelanocortina  (POMC),  encontrada  na  pars intermedia e pars distalis da adeno­hipófise, no hipotálamo e na pele. Os produtos finais dependem do local de produção. CLIP, peptídio semelhante à corticotrofina; ACTH, hormônio adrenocorticotrófico; β­LPH, β­lipotrofina; γ­MSH, hormônio estimulante de melanócito γα­MSH, hormônio estimulante de melanócito α;β­MSH, hormônio estimulante de melanócito β. (Adaptada de Hadley, 2000.)

Hoje  se  sabe  que  gases,  como  o  óxido  nítrico  (NO),  podem  ser  mensageiros  intercelulares.  A  capacidade  de  difusão desse gás é imensa, mas ele age apenas localmente, pois sua meia­vida é de somente alguns segundos. O NO é sintetizado a partir do aminoácido arginina, pela atividade de NO sintase; a atividade desta enzima é aumentada em alguns tecidos, em resposta a estímulos provenientes do sistema nervoso. Sabe­se que o NO está presente já em plantas; é o responsável pelo relaxamento da musculatura lisa de vasos sanguíneos, levando à vasodilatação observada em muitas respostas fisiológicas (Figura 3.11), inclusive na ereção peniana. Além disso, muitos tipos neuronais secretam NO para sinalizar para neurônios vizinhos.  Foram  identificadas  três  isoformas  de  sintase  de  óxido  nítrico  (NOS).  Todas  têm  locais  de  ligação  para:  (1) resíduo  heme  na  porção  N­terminal,  (2)  NADPH  na  C­terminal  e  (3)  calmodulina  entre  essas  duas  regiões.  A  NOS catalisa a conversão de arginina para citrulina e NO. O óxido nítrico produzido nas células endoteliais está envolvido no relaxamento  de  vasos,  na  agregação  de  plaquetas  e  na  homeostase  cardiovascular.  A  sintase  de  óxido  nítrico  endotelial (eNOS,  cNOS,  tipo  III)  é  constitutivamente  expressa  em  células  endoteliais  e  alguns  outros  tipos  celulares.  A miristoilação  e  a  palmitoilação  mantêm  a  eNOS  restritamente  localizada  nas  cavéolas  da  membrana  plasmática,  ligada  à caveolina,  o  que  deixa  a  eNOS  inativa.  A  ativação  de  receptores  de  acetilcolina  no  endotélio  estimula  a  fosfolipase  C (PLC);  esta  enzima  catalisa  a  produção  de  1,4,5­trifosfato  de  inositol  (IP3)  e  diacilglicerol  (DAG),  a  partir  de  4,5­ bifosfato de fosfatidilinositol (PIP2). O aumento de Ca2+ induzido por IP3 ativa a calmodulina, que se liga à eNOS, a qual

se dissocia da caveolina e transloca­se para o citoplasma. A fosforilação da eNOS por proteinoquinase A (PKA) inativa a enzima, que então se realoca nos cavéolos da membrana plasmática. Sintase  de  óxido  nítrico  do  tipo  II  (iNOS,  macNOS)  pode  ser  induzida  em  macrófagos,  após  exposição  a  certas citocinas,  como  a  interferona  γ  (IFN­γ).  Os  macrófagos  são  importantes  para  a  resposta  imunitária  a  curto  prazo  a microrganismos invasores, e a geração de NO é central nessa função. O receptor de IFN­γ sinaliza por meio das quinases Janus  (JAK)  e  de  proteínas  transdutoras  de  sinal  e  ativadoras  de  transcrição  (STAT).  A  ocupação  do  receptor  e  sua dimerização induzem a fosforilação das STAT associadas. As STAT ativadas dimerizam­se e translocam­se para o núcleo, onde aumentam a expressão do fator de transcrição, IRF­1; este, por sua vez, liga­se a elementos específicos do DNA no promotor do gene da iNOS, elevando sua expressão. iNOS é uma enzima solúvel que, diferentemente da eNOS e nNOS, não requer crescimento intracelular de Ca2+ para sua ativação. A sintase de NO neuronal (nNOS, bNOS, cNOS, tipo I) está associada à proteína de densidade pós­sináptica (PSD­95) na  membrana  neuronal.  Em  resposta  ao  aumento  intracelular  de  Ca2+,  a  nNOS  interage  com  a  CaM.  O  complexo  Ca2+­ CaM,  em  combinação  com  a  biotetrapterina  (BH4),  liga­se  à  nNOS  e  induz  sua  translocação  da  membrana  para  o citoplasma. A desfosforilação da nNOS pela calcineurina inicia a produção de NO. A nNOS é inativada por fosforilação pela proteinoquinase A (PKA) ou proteinoquinase C (PKC).

Figura 3.9 ■ Via de síntese de hormônios esteroides. O colesterol, proveniente da dieta ou produzido pelo fígado, é utilizado por tecidos esteroidogênicos (como gônadas e córtex da glândula suprarrenal) para a produção de hormônios sexuais masculino (testosterona)  e  femininos  (progesterona  e  estradiol),  aldosterona  e  cortisol.  A  primeira  etapa  da  via,  a  produção  de pregnenolona, acontece dentro da mitocôndria, compartimento em que se encontra a enzima responsável por essa conversão, a desmolase; as etapas seguintes ocorrem no retículo endoplasmático liso. (Adaptada de Hadley, 2000.)

RECEPTORES DE MEMBRANA

Conforme  já  mencionado,  a  passagem  da  condição  de  mono  para  a  de  pluricelularidade  envolveu  uma  série  de adaptações  que  possibilitaram  que  as  células  se  comunicassem  e,  com  isso,  regulassem  suas  funções  em  uma  divisão sincronizada  de  tarefas.  Entre  estas  adaptações,  o  aparecimento  de  receptores  de  membrana  foi  o  passo  decisivo  para  o sucesso  do  estabelecimento  da  condição  de  pluricelularidade.  Esta  condição  teve  origem  temporal  independente  em  cada um  dos  reinos  da  natureza,  apresentando­se  repetidas  vezes  dentro  de  alguns  filos;  consequentemente,  no  curso  da evolução,  receptores  de  superfície  celular  são  únicos  em  animais,  plantas  e  fungos,  apesar  de  compartilharem  alguns domínios proteicos em comum.

Figura 3.10 ■ Via de síntese de eicosanoides. O ácido araquidônico, derivado da clivagem de fosfolipídios de membrana, pode tomar  duas  rotas  bioquímicas:  (1)  pela  ação  de  ciclo­oxigenases  pode  converter­se  em  prostaglandinas,  prostaciclinas  e tromboxanos, ou (2) pela ação de lipo­oxigenases pode originar leucotrienos e lipoxinas. (Adaptada de Hadley, 2000.)

Figura 3.11 ■ Síntese de óxido nítrico (NO) em uma célula endotelial, a partir de arginina, pela ação catalítica da enzima NO sintase, estimulada por acetilcolina liberada por terminais nervosos nos vasos sanguíneos. A rápida difusão desse gás causa relaxamento da fibra muscular que reveste os vasos, levando à sua dilatação. (Adaptada de Alberts et al., 2002.)

A  necessidade  de  comunicação  intercelular  em  metazoários  coincide  com  o  aparecimento  evolutivo  de  múltiplos receptores  de  membrana  (Figura  3.12).  Esses  receptores  contêm  regiões  intracelulares  com  propriedades  únicas,  que podem ser: enzimáticas, de recrutamento ou de translocação nuclear. Provavelmente, no processo evolutivo, os receptores de membrana surgiram após as junções comunicantes. Eles são glicoproteínas integrantes da membrana, cujo domínio extracelular reconhece um ligante; assim, percebem mudanças nas características  do  ambiente.  O  resultado  dessa  interação  com  o  ligante  é  o  desencadear  de  reações  intracelulares, responsáveis  pela  transmissão  dessa  informação  para  o  meio  intracelular,  possibilitando  respostas  de  ajuste  celulares.  A maioria  dos  receptores  de  membrana  plasmática  transmite  sinais  extracelulares  para  o  interior  das  células,  permitindo  o reconhecimento de células e estruturas extracelulares, bem como de condições físicas e químicas do ambiente. Na tentativa de explicar o fenômeno da sinalização, foram surgindo múltiplas definições, para facilitar o entendimento das várias etapas  do  processo.  A  transmissão  do  sinal  inicia­se  quando  um  mensageiro  ou  ligante  extracelular,  chamado de primeiro mensageiro (podendo  ser  hormônio,  neurotransmissor  ou  um  parácrino),  liga­se  a  seu  receptor  específico, promovendo neste uma mudança conformacional.  Com  esta  mudança,  o  receptor  passa  de  sua  condição  inativa  à  ativa  e inicia  a  transdução  do  sinal,  desencadeando  a  denominada  cascata  de  sinalização.  Esta  ativação  do  receptor  levará, dependendo  do  tipo  de  receptor  em  questão,  à  formação  de  segundos  mensageiros  intracelulares  (como  AMP  cíclico [cAMP], GMP cíclico [cGMP] ou óxido nítrico [NO]) ou à liberação do íon Ca2+ (proveniente de estoques intracelulares ou do meio extracelular, entrando na célula graças à abertura de canais da membrana plasmática). A presença de segundos mensageiros no meio intracelular irá, por sua vez, ativar vias bioquímicas específicas. Eles amplificam o sinal vindo do meio  externo,  pois  a  ativação  de  um  único  receptor  gera  a  formação  de  grande  número  de  moléculas  do  segundo mensageiro que ativarão, na maioria das vezes, quinases que fosforilarão um número ainda maior de moléculas­alvo, antes de serem inativadas.

Figura 3.12 ■ Principais classes de receptores de membrana. A. Receptores canais iônicos, que se abrem quando o mensageiro extracelular se liga a eles, permitindo a passagem de íons, com uma certa seletividade. B. Receptores acoplados à proteína G, enzima  trimérica  com  atividade  GTPásica  (daí  seu  nome),  que  desencadeia  uma  cascata  de  sinalização  ao  ser  ativada  pela mudança  de  conformação  do  receptor,  quando  o  mensageiro  extracelular  se  liga  a  ele. C.  Receptores  enzimáticos,  que  têm

atividade quinásica ou fosfatásica em seu domínio citoplasmático, ou que se associam diretamente a enzimas citoplasmáticas. (Adaptada de Alberts et al., 2002.)

A  amplificação  do  sinal  recebido  pelo  receptor,  pelas  vias  de  sinalização  aos  quais  está  acoplado,  ocorre  em  vários níveis da cascata de sinalização (Figura 3.13) e é uma importante característica da transmissão de sinais entre células.

▸ Receptores canais Proteínas de canal formam poros nas membranas que, diferentemente das junções comunicantes que são permissivas, podem ser abertos ou fechados, sendo seletivos para determinados íons. Há quatro tipos básicos de canais nas células dos organismos atuais: aqueles modulados por voltagem, os canais receptores modulados por ligante extracelular (mensageiro intercelular), os modulados por ligante intracelular (segundo mensageiro) e os operados mecanicamente (Figura 3.14).

Canais receptores abertos por ligante extracelular Este sistema de comunicação celular é largamente empregado pelo sistema nervoso; ocorre entre duas células nervosas ou  entre  um  neurônio  e  uma  célula  efetuadora  (como  a  muscular  ou  glandular  exócrina  ou  endócrina).  A  região  de transmissão,  denominada  sinapse  química,  é  onde  os  neurotransmissores  são  liberados,  indo  atuar  em  receptores  de membrana  na  célula  pós­sináptica.  Canais  receptores  modulados  por  ligante  extracelular  são  especializados  para, rapidamente,  converterem  um  sinal  químico  em  mudança  no  potencial  de  membrana  da  célula  pós­sináptica,  a  qual  é eletricamente excitável. Dependendo do íon para o qual o canal é seletivo, essa alteração no potencial de repouso da célula poderá: (1) levar à despolarização celular, como é o caso de alguns subtipos de receptores de acetilcolina e glutamato, que são canais de Na+ ou Ca2+, ou (2) dificultar eventual resposta de despolarização a um estímulo excitatório, como é o caso dos  receptores  do  ácido  gama­aminobutírico  (GABA)  e  de  glicina,  que  são  canais  de  Cl–.  Neurotransmissores  que despolarizam  as  células­alvo  são  denominados excitatórios (p.  ex.,  acetilcolina  e  glutamato),  ao  passo  que  aqueles  que aumentam o limiar para a excitação, inibitórios (p. ex., glicina e GABA).

Figura 3.13 ■ Esquema dos mecanismos de amplificação do sinal (H) nas vias intracelulares. Para cada receptor ativado (R*), muitas  moléculas  (E1)  podem  ser  recrutadas  na  etapa  seguinte  da  cascata.  Adicionalmente,  para  cada  molécula  de  enzima catalisadora  (E2)  da  produção  do  segundo  mensageiro,  muitas  moléculas  do  segundo  mensageiro  podem  ser  produzidas. (Adaptada de Krauss, 2003.)

O  canal  receptor  de  acetilcolina  está  presente  na  membrana  da  fibra  muscular  esquelética;  ele  é  aberto  por  esse neurotransmissor,  o  qual  é  liberado  por  terminais  axônicos  de  fibras  nervosas  motoras.  Esse  receptor  tem  cinco subunidades  que  se  dispõem  em  anel  rodeando  o  poro  do  canal  (Figura  3.15)  e  dispõe  de  dois  locais  de  ligação  para acetilcolina. Quando esses locais são ocupados pelo neurotransmissor, o canal se abre, permitindo grande influxo de Na+, que despolariza a fibra muscular e, em última instância, leva à sua contração (para mais detalhes, consulte a Figura 6.5). Relaxantes  musculares,  amplamente  utilizados  durante  cirurgias,  baseiam­se  na  estrutura  do  curare  (veneno  extraído  de plantas,  usado  por  índios  brasileiros  para  paralisar  a  caça).  O  curare  liga­se  ao  receptor  de  acetilcolina,  alterando­o  para uma conformação inapropriada à ligação do neurotransmissor. Os canais receptores de glutamato são responsáveis pelo fenômeno conhecido como potenciação de longo termo, que resulta  em  formação  de  memória  e  aprendizado  (Figura 3.16).  O  glutamato  liberado  pelo  neurônio  pré­sináptico  liga­se aos  dois  receptores  canais,  o  não  NMDA  e  o  NMDA,  que  se  abrem.  O  não  NMDA  permite  influxo  de  Na+,  o  que despolariza  a  membrana  do  neurônio  pós­sináptico.  Essa  mudança  de  voltagem  da  membrana  expele  íons  Mg2+  que bloqueavam  o  canal  NMDA,  fazendo  com  que  este  agora  permita  o  influxo  de  íons  Ca2+.  Esse  aumento  de Ca2+ citoplasmático  causa  a  inserção  de  mais  receptores  não  NMDA  na  membrana  e  ativa  a  síntese  de  óxido  nítrico  no neurônio  pós­sináptico,  que  retroalimenta  positivamente  o  neurônio  pré­sináptico,  estimulando  a  liberação  de  mais glutamato. Alguns tranquilizantes, como, por exemplo, diazepam, ligam­se aos canais de Cl– receptores de GABA, colocando­os em conformação mais favorável à sua ativação pelo neurotransmissor.

▸ Receptores acoplados à proteína G Os  receptores  acoplados  à  proteína  G  (GPCR)  são  de  origem  remota;  provavelmente,  evoluíram  de  receptores sensoriais  de  organismos  unicelulares.  Têm,  tipicamente,  sete  domínios  transmembrânicos,  discretas  e  previsíveis  alças transmembrâ­nicas,  consistindo  em  domínios  hidrofóbicos.  Os  estímulos  extracelulares  capazes  de  ativar  os  receptores dos  sete  domínios  incluem:  fótons  (opsinas),  íons,  odorantes,  aminoácidos,  peptídios  etc.  Um  exemplo  interessante  é  o que ocorre no Dictyostelium discoideum, que  pode  existir  como  um  simples  organismo  ou  como  uma  colônia  social  de amebas.  Neste  eucarioto,  a  percepção  de  folato  e  de  AMP  cíclico  é  mediada  por  dois  diferentes  receptores  de  sete domínios transmembrânicos. Esta dicotomia pode representar a primeira divergência entre detecção de ligantes de origem externa  (folato)  e  ligantes  produzidos  pelo  próprio  organismo  multicelular  (cAMP).  As  classes  de  GPCR  dispõem  de sequências únicas nas regiões transmembrânicas; por isso, não podem ser consideradas com única origem evolutiva.

Figura  3.14  ■   Tipos  de  canais  iônicos:  canais  abertos  por  mudança  de  voltagem  da  membrana  –  são  típicos  de  células eletricamente  excitáveis,  como  neurônios  e  fibras  musculares;  canais  abertos  por  ligante  extracelular  –  são  receptores  de membrana;  canais  abertos  por  ligante  intracelular,  como  AMP  cíclico  (cAMP)  e  GMP  cíclico  (cGMP)  e  canais  abertos mecanicamente. (Adaptada de Alberts et al., 2002.)

Figura 3.15 ■ O receptor canal para acetilcolina. A. O receptor é constituído de duas subunidades α, uma subunidade β, uma subunidade γ e uma subunidade δ; há dois locais de ligação para acetilcolina nas duas subunidades α do receptor. B. Quando o neurotransmissor está ligado a seu receptor, as subunidades se movem abrindo o canal para o íon Na+ , que penetra na fibra muscular esquelética, despolarizando a membrana e causando a contração muscular. (Adaptada de Alberts et al., 2002.)

Os mensageiros extracelulares ligantes de GPCR induzem mudanças conformacionais no receptor, que recruta e ativa diferentes proteínas G; estas são assim chamadas por ligarem­se a nucleotídios de guanina, GDP e GTP. As proteínas G são heterotrímeros, constituídos por subunidades α,  β  e  γ.  Há  pelo  menos  20  subtipos  de  subunidade  α,  pois  é  ela  que confere especificidade à cascata de reações subsequentes. No estado inativo, Gα está acoplada a GDP, do lado interno da membrana plasmática; quando o ligante liga­se ao receptor, este sofre mudança conformacional (alostérica), promovendo uma  alteração  alostérica  também  na  proteína  G.  Esta  libera  GDP  e  liga­se  a  GTP,  o  que  faz  com  que  Gα  seja  ativada  e desligue­se  do  dímero  β.  Agora,  Gα  liga­se  a  uma  enzima,  podendo  acarretar  estimulação  ou  inibição  de  sua  atividade catalítica (Figura  3.17).  Essas  enzimas  catalisam  a  geração  de  mensageiros  intracelulares,  como:  3’,5’­monofosfato  de adenosina  cíclico  (cAMP),  fosfoinositídios,  diacilglicerol  e  outros  segundos  mensageiros.  Estes  segundos  mensageiros, por  sua  vez,  ativam  cascatas  quinásicas  e  fosforilam  fatores  citosólicos  e  de  transcrição  nuclear.  O  dímero  βγ  também  é capaz de modular a atividade de enzimas, de canais e de receptores de membrana. Conforme  dito,  a  estimulação  do  receptor  acoplado  à  proteína  G  (GPCR)  promove  a  translocação  da  proteína  Gα  à membrana  plasmática,  seguida  por  uma  rápida  dessensibilização  mediada  por  beta­arrestina,  levando  à  internalização  do receptor em endossomos. No entanto, foi demonstrado que alguns GPCR apresentam a capacidade de ativar as proteínas Gα no interior desses endossomos, resultando em uma sinalização positiva sustentada, descoberta que colocou em cheque o modelo clássico para ativação de receptores.

Figura 3.16 ■ Os dois subtipos de receptor canal de glutamato no sistema nervoso central: receptor NMDA e receptor não NMDA. O glutamato, liberado pelo neurônio pré­sináptico, liga­se aos dois receptores canais, que se abrem. O receptor NMDA, apesar de aberto, não permite passagem de íons, pois se encontra bloqueado por Mg2+ . É necessária a entrada de cargas positivas na célula,  pelo  canal  não  NMDA,  para  expulsar  o  Mg2+   do  canal  NMDA  e  permitir  o  influxo  de  Ca2+ .  A  elevação  do Ca2+  citoplasmático promove o aumento de receptores não NMDA na membrana e, também, ativa a síntese de óxido nítrico (NO) no  neurônio  pós­sináptico,  que  retroalimenta,  positivamente,  o  neurônio  pré­sináptico,  estimulando  a  liberação  de  mais glutamato. Ambos os eventos reforçam essa sinapse positivamente, favorecendo seu estabelecimento. (Adaptada de Alberts et al., 2002.)

Figura 3.17 ■ Receptores acoplados à proteína G. São receptores com sete domínios transmembrânicos (I a VII), cuja mudança conformacional (causada pela ligação do mensageiro extracelular) ativa a proteína G trimérica, que dissocia sua subunidade α (com atividade GTPásica) do dímero formado pelas subunidades βγ. As subunidades α podem ser dramaticamente diferentes e específicas, para a ativação ou inibição de determinadas enzimas, enquanto o dímero βγ, muito semelhante nas várias proteínas G, pode também modular canais e enzimas. (Adaptada de www.sigma­aldrich.com.)

O  modelo  clássico  assumia  que  a  ligação  de  um  agonista  ao  receptor  GPCR  promoveria  ativação  por  meio  de  um único  mecanismo,  o  que  implicaria  uma  única  conformação  ativa  para  este  receptor  após  ligação  ao  agonista.  Trabalhos recentes vêm evidenciando que receptores GPCR podem apresentar espontaneamente conformações múltiplas antes de sua ligação ao primeiro mensageiro. Seletividade funcional refere­se então à capacidade de um primeiro mensageiro de ativar apenas  um  determinado  subconjunto  de  conformações  de  um  determinado  receptor  perante  todo  o  conjunto  de conformações  possíveis.  Entre  as  várias  moléculas  intracelulares  capazes  de  se  ligar  a  um  receptor  acoplado  ou  não  a proteínas  G,  induzindo  assim  mudanças  conformacionais  do  mesmo,  as  beta­arrestinas  têm  sido  as  mais  estudadas. Arrestinas apresentam quatro isoformas, duas das quais referidas como arrestinas visuais por se limitarem principalmente ao  sistema  visual.  As  outras  duas  isoformas,  beta­arrestinas  1  e  2,  são  altamente  expressas  em  praticamente  todos  os tecidos e desempenham papéis importantes na função e regulação dos receptores GPCR. GPCR  ativados  também  recrutam  quinases  de  receptores  (GRK),  que  fosforilam  os  próprios  receptores,  facilitando, assim, o término do sinal. A finalização do sinal será discutida com maiores detalhes ao final deste capítulo.

Receptores acoplados a proteínas Gs e Gi, cAMP e PKA O papel do cAMP como segundo mensageiro começou a ser elucidado já no final da década de 1950. Nessa data, foi verificado,  em  homogeneizados  de  fígado  de  camundongo,  um  aumento  da  concentração  da  enzima  fosforilase  na  sua forma  ativa  (fosforilada),  quando  o  tecido  era  tratado  com  catecolaminas,  na  presença  de  ATP.  Enquanto  em  bactérias  a variação  da  concentração  de  cAMP  está  relacionada  com  a  regulação  da  expressão  gênica,  em  células  eucarióticas  este segundo mensageiro é capaz de mediar uma grande variedade de respostas rápidas de ajuste, que independem de alteração da expressão de genes.

Após a ativação do receptor, a adenililciclase é ativada pela subunidade α da proteína trimérica Gs e passa a sintetizar cAMP a partir de ATP. A interação do receptor com a proteína G, e desta com a ciclase, assim como a produção de cAMP, ocorrem  muito  próximo  à  superfície  interna  da  membrana  plasmática  (Figura 3.18).  Depois  da  estimulação  da  Gαs,  os níveis de cAMP podem aumentar em até 20 vezes o nível basal. Existem  dez  tipos  conhecidos  de adenililciclases em  mamíferos,  algumas  ativadas  pelo  complexo  Ca2+/calmodulina, outras inibidas por baixas concentrações de Ca2+ e ainda outras que são inibidas por calcineurina (uma proteína fosfatase dependente  de  Ca2+)  ou  pela  fosforilação  da  proteinoquinase  II  dependente  do  complexo  Ca2+/calmodulina  (CAMK II). Alguns tipos de adenililciclase também podem ser ativados após fosforilação por proteinoquinases C. Esses dez tipos estão  sendo  agrupados  em  duas  classes  distintas:  nove  deles  ligados  à  membrana  plasmática  (TmAC1  a  TmAC9)  e  um solúvel (ACs). Logo após a descoberta da ACs, verificou­se que sua localização não se restringia apenas ao citoplasma, mas podia ser encontrada também no núcleo e nas mitocôndrias.

Figura  3.18  ■   Cascata  de  sinalização  de  receptores  acoplados  à  proteína  Gs.  A  subunidade  αs  ativa  a  adenililciclase,  que catalisa a conversão de ATP em AMP cíclico. Este se liga a quatro locais nas duas subunidades reguladoras da proteinoquinase dependente de AMP cíclico (PKA). Isto faz com que as duas subunidades catalíticas desliguem­se uma da outra e do dímero regulatório e fosforilem substratos específicos, inclusive o fator de transcrição CREB (elemento responsivo a cAMP), no núcleo da célula. O CREB fosforilado une­se à proteína ligante de CREB; então, o complexo formado ativa genes específicos, causando sua transcrição. (Adaptada de Alberts et al., 2002.)

Em alguns casos, a subunidade α da proteína G é inibitória de adenililciclase, e o resultado da ativação de um receptor acoplado  a  Gi  é  a  diminuição  de  cAMP;  na  maioria  dos  casos,  Gi  liga­se  a  canais  e  os  modula  e  não  regula  a adenililciclase.  Em  receptores  de  acetilcolina  do  tipo  muscarínico,  a  subunidade  αi  inibe  a  adenililciclase,  diminuindo  o

nível  de  cAMP,  enquanto  a  subunidade  βγ  liga­se  a  canais  de  K+ (ver Figura 3.17),  abrindo­os,  hiperpolarizando  a  fibra muscular cardíaca e inibindo sua contração. É interessante mencionar que duas toxinas de bactérias, bem conhecidas, exercem seus efeitos orgânicos por atuarem sobre  proteínas  G.  Gαs  é  o  alvo  da  toxina  liberada  pela  bactéria Vibrio cholerae,  que  causa  a  cólera.  A  toxina  de  cólera adiciona riboses à subunidade α da proteína Gs, que fica impedida de hidrolisar GTP, permanecendo constantemente ativa, o que mantém a adenililciclase também ativa e os níveis de cAMP elevados. No epitélio intestinal, isso provoca aumento de  efluxo  de  cloro  e  água,  sob  forma  de  diarreia,  que  pode  levar  à  morte.  A  outra  toxina  é  a  toxina  de  pertússis,  ou  da popularmente  conhecida  coqueluche.  Sua  ligação  à  proteína  Gi  impede  a  dissociação  da  subunidade  αi,  prevenindo  a continuação da cascata de sinalização que se seguiria. O cAMP liga­se e ativa as proteinoquinases dependentes de cAMP (PKA), as primeiras quinases a serem descobertas. Em  sua  forma  inativa  (na  ausência  de  cAMP),  a  PKA  é  uma  holoenzima  tetramérica  formada  por  duas  subunidades reguladoras  R  e  duas  subunidades  catalíticas  C.  Sua  ativação  dá­se  quando  duas  moléculas  de  cAMP  se  ligam  de  forma cooperativa a cada uma das duas subunidades R, causando um decréscimo de afinidade entre as porções catalíticas (C) e reguladoras  (R)  da  molécula  da  quinase.  Esta  perda  de  afinidade  leva  à  dissociação  das  partes,  com  a  formação  de  um dímero da subunidade R e de dois monômeros das subunidades C, agora ativos, cada um pela ligação a duas moléculas de cAMP (ver Figura 3.18). A subunidade C ativa catalisa a transferência de gamafosfato (P) do complexo Mg2+­trifosfato de  adenosina  (ATP)  para  resíduos  de  serina  e  treonina  de  substratos  proteicos  específicos,  especificidade  essa  conferida por sequências particulares de aminoácidos. A PKA, preferencialmente, fosforila locais onde haja uma sequência dibásica separada do aminoácido fosforilável (serina ou treonina), por um aminoácido qualquer e um resíduo hidrofóbico adjacente ao carboxiterminal. Foram  descritas  até  o  momento  em  mamíferos  duas  classes  de  isoformas  de  PKA,  denominadas PKA  tipos  I  e  II. Além disso, as subunidades C e R têm grande heterogeneidade. Cinco isoformas são conhecidas para a subunidade R (RI alfa, RI beta, RII alfa, RII beta) e três para a C (C alfa, C beta e C gama), todas codificadas por genes distintos. Estas diferentes  isoformas  apresentam  padrões  próprios  de  distribuição  entre  os  tecidos,  o  que  explicaria  a  grande  diversidade de respostas mediadas por cAMP. Uma vez ativada, a PKA, dependendo do tipo celular, pode atuar em diferentes substratos e eliciar enorme variedade de respostas. As subunidades C livres podem migrar para o núcleo, onde são capazes de fosforilar o fator de transcrição CREB, levando a célula a um aumento de transcrição de genes específicos, que têm a sequência CRE em seus promotores (ver Figura 3.18). Um  importante  ponto  de  controle  da  ação  catalítica  da  PKA  é  exercido  pelos  inibidores  termoestáveis  de proteinoquinases  (PKI).  Estas  proteínas  ligam­se,  com  alta  especificidade,  ao  local  catalítico  da  subunidade  C,  por disporem de uma sequência de aminoácidos semelhante à sequência reconhecida pela subunidade C em seus substratos. Proteínas ancoradoras de PKA ou AKAP já eram conhecidas desde a década de 1970. Inicialmente, achava­se que elas eram  contaminantes  que  apareciam  durante  o  processo  de  purificação  da  quinase.  Só  na  década  de  1990  é  que  foi descoberto  que  tais  moléculas  são,  muitas  vezes,  essenciais  para  a  atividade  da  enzima.  As  AKAP  ligam­se  às subunidades  reguladoras  das  PKA  e  à  membrana  ou  citoesqueleto,  fixando  a  quinase  a  locais  específicos  da  membrana celular.  Esta  distribuição  especial  faz  com  que  a  enzima  exerça  sua  função  catalítica  junto  a  seu  substrato  específico,  ou mesmo  direcionando  e  modulando  a  resposta.  Estas  proteínas  adaptadoras  formam  grandes  complexos  moleculares,  em que  não  somente  existem  locais  de  ligação  para  PKA,  mas  também  para  proteinoquinases  C  e  fosfatases  (Figura  3.19), como a PP2A e a calcineurina (PP2B), por exemplo.

Figura 3.19 ■ Esquema do complexo sinalizador organizado pela proteína ancoradora dependente de PKA (AKAP). O complexo organiza  elementos  como  PKA,  PKC  e  fosfatase  (no  exemplo,  dependente  de  Ca2+ /calmodulina),  de  modo  a  integrá­los,  em termos  de  localização  e  de  funcionalidade,  para  evocar  a  resposta  celular.  C,  subunidade  catalítica  da  PKA;  R,  subunidade reguladora da PKA; PPase, fosfatase; PKC, proteinoquinase C; DAG, diacilglicerol. (Adaptada de Krauss, 2003.)

É  comum  que,  dependendo  do  tipo  celular,  o  cAMP,  em  vez  de  ativar  a  PKA,  ligue­se  diretamente  a  canais  iônicos, abrindo­os. Ao  catalisar  a  fosforilação  (ativação  ou  desativação)  de  enzimas  intracelulares,  as  quinases  dependentes  de  cAMP eliciam uma ampla variedade de processos celulares. A regulação negativa da via ocorre quando as fosfodiesterases (PDE) catalisam  a  hidrólise  de  cAMP  a  5’­monofosfato  de  adenosina  (5’­AMP).  Várias  famílias  de  fosfodiesterases  (PDE  I  a VI)  atuam  como  reguladores:  a  PDE  II  pode  clivar  tanto  cAMP  como  cGMP,  a  PDE  III  é  inibida  por  cGMP  e  está envolvida na regulação da musculatura lisa e do músculo cardíaco, e a PDE IV é altamente seletiva para cAMP, sendo a fosfodiesterase  mais  comum.  Atualmente  são  conhecidas  oito  famílias  de  PDE,  cada  uma  podendo  apresentar  genes múltiplos e uma grande variedade de splices, o que aumenta em muito a quantidade possível de isoformas.

Receptores acoplados a proteínas Gq, fosfoinositídios, Ca2+ e PKC A  família  das  proteínas  Gq  é  uma  das  mais  bem  caracterizadas  entre  as  proteínas  G.  Quan­do  a  proteína  Gq  é estimulada  (normalmente,  por  mensageiros  extracelulares  mobilizadores  de  Ca2+),  promove  a  ativação  da  enzima fosfolipase  Cβ  (PLCβ).  Uma  vez  ativada,  a  PLCβ  promove  a  catálise  do  fosfolipídio  de  membrana  4,5­bifosfato  de fosfatidilinositol, gerando 1,4,5­trifosfato de inositol (IP3) e diacilglicerol (DAG) (Figura 3.20). As  isoformas  da  fosfolipase  C  (PLC)  que  catalisam  a  quebra  de  polifosfoinositídios  (PI)  em  trifosfato  de  inositol (IP3),  com  subsequente  liberação  de  Ca2+  de  estoques  intracelulares,  e  diacilglicerol  (DAG),  foram  caracterizadas  e classificadas em três tipos: β, ϒ e δ. É cada vez mais evidente que a via de sinalização por cAMP utiliza a compartimentalização como uma estratégia  para  a  coordenação  de  um  grande  número  de  funções  celulares.  O  confinamento  espacial permite  a  formação  de  “pontos  quentes”  de  sinalização  de  cAMP  em  discretas  regiões  do  domínio

subcelular  em  resposta  a  estímulos  específicos.  Essas  regiões,  primeiramente,  permitem  que  diferentes vias  que  utilizam  cAMP  como  segundo  mensageiro  possam  atuar  simultaneamente.  Em  segundo,  essas microrregiões  agrupam  uma  série  de  enzimas  e  proteínas  relacionadas  à  via  de  transdução  do  sinal  em questão,  otimizando  assim  a  resposta.  O  conhecimento  cada  vez  maior  dos  componentes  dessas microrregiões aumenta as possibilidades de exploração terapêutica das mesmas. As  isoformas  β  são  conhecidas  por  mediarem  a  hidrólise  de  PI  após  ativação  de  receptores  acoplados  a  proteínas  G por certos hormônios, neurotransmissores e agonistas relacionados. Em contraste, as isoformas ϒ medeiam a hidrólise de PI  induzida  por  atividade  intrínseca  de  receptores  tirosinoquinases  ligados  a  fatores  de  crescimento  (ver  “Receptores tirosinoquinases”, adiante) ou tirosinoquinases citoplasmáticas solúveis que são elementos de vias de sinalização de certos receptores.  Finalmente,  as  isoformas  do  tipo  δ  catalisam  a  hidrólise  de  fosfatídios  da  esfingomielina  (SM)  e  da fosfatidiletanolamina (PE), fazendo parte das vias da fosfolipase C fosfatidilcolina­específica (PC­PLC).

Figura  3.20  ■   Cascata  de  sinalização  de  receptores  acoplados  à  proteína  Gq.  A  subunidade  αq  ativa  a  fosfolipase  C,  que catalisa  a  clivagem  de  fosfolipídios  de  membrana,  como  4,5­bifosfato  de  fosfatidilinositol  em  trifosfato  de  inositol  (IP3)  e diacilglicerol  (DAG).  O  IP3liga­se  a  (e  abre)  canais  de  Ca2+   modulados  por  ligante  intracelular,  localizados  no  retículo endoplasmático liso, permitindo a saída de íons Ca2+  para o citosol. O DAG liga­se a um local na proteinoquinase dependente de Ca2+  (PKC) já ligada a Ca2+ , ativando­a e permitindo que fosforile substratos específicos, inclusive MAP­quinases. Então, inicia­ se uma cascata de fosforilações por MAP­quinases que, em última instância, induz a fosforilação do fator de transcrição Elk­1, que  se  liga  ao  elemento  responsivo  a  soro  (SRE),  em  genes  específicos,  causando  sua  transcrição  (esta  última  cascata  de eventos não está indicada na figura). (Adaptada de Alberts et al., 2002.)

IP3 é hidrossolúvel, difundindo­se da membrana para o interior da célula, onde se ligará aos chamados receptores de IP3  (IP3R);  estes  são  canais  de  Ca2+  existentes  na  membrana  do  retículo  endoplasmático/retículo  sarcoplasmático (RE/RS).  Esta  ligação  levará  à  abertura  desses  canais  de  Ca2+,  liberando  os  estoques  deste  íon  do  RE/RS  para  o citoplasma. Além do citado receptor de IP3 utilizado para a liberação de Ca2+ do retículo, outro tipo de receptor, conhecido como rianodina (RyR), pode ser ativado para este fim. Estes dois tipos de canais intracelulares (IP3R e RyR) apresentam grande homologia em seus domínios de formação de canais transmembrânicos, e ao menos três isoformas distintas de ambos são conhecidas.

Em  muitos  tipos  celulares,  a  liberação  do  Ca2+ de  estoques  intracelulares  (promovida  por  IP3)  induz  a  abertura  de canais de Ca2+ da membrana celular, promovendo assim um influxo de Ca2+ do meio extracelular para o interior da célula. Esse influxo iônico pode também ser estabelecido pela abertura de canais de Ca2+ de membrana dependentes de voltagem, que se abrem quando células eletricamente excitáveis (como as células endócrinas, exócrinas, musculares ou nervosas) se despolarizam.  Em  células  excitáveis,  o  principal  meio  para  influxo  de  Ca2+ é  a  via  do  canal  de  Ca2+  voltagem­seletivo (VGCC).  Indiretamente,  a  voltagem  também  modula  a  quantidade  de  Ca2+  que  passa  através  de  todos  os  canais  de Ca2+  voltagem­independentes,  pela  modificação  da  direção  da  força  para  o  influxo  de  Ca2+.  Os  canais  permeáveis  a Ca2+ independentes de voltagem compreendem as mais numerosas e variadas rotas de influxo celular de Ca2+. Com poucas exceções  (canais  modulados  por  ligantes  e  canais  mecanossensitivos),  as  rotas  independentes  de  voltagem  são  em  geral ativadas  por  cascatas  de  sinalização.  A  mais  comum  envolve  a  já  mencionada  ativação  de  PLCβ,  com  geração  de  IP3  e diacilglicerol. A mudança da concentração de Ca2+ citosólico é um sinal versátil que pode regular muitos processos celulares. Esta variação pode se dar também em outros compartimentos celulares, como nas mitocôndrias ou mesmo no núcleo. O Ca2+ é, tradicionalmente, descrito como um segundo mensageiro liberado de estoques intracelulares. Entretanto, ele mesmo pode liberar mais Ca2+ desses estoques, adicionando assim um passo a mais na cascata de sinalização. Dentro  das  organelas  que  estocam  Ca2+,  estes  íons  encontram­se  ligados  a  proteínas  tamponantes  especiais.  Entre estas, incluem­se calsequestrinas, calreticulinas e calnexinas.  Já  no  citosol,  existem  proteínas  tamponantes  móveis  que, ao se ligarem a Ca2+, impedem aumentos bruscos deste, além de auxiliarem na redistribuição deste íon e de transmitirem o sinal  adiante  na  cascata.  São  exemplos  destas  proteínas citosólicas:  calbindinas,  paravalbuminas,  troponinas,  calmodulinas  e  proteínas  da  família  S100.  A  troponina  C  é  a molécula sinalizadora de Ca2+ na  célula  muscular  esquelética,  enquanto  a  calmodulina  é  a  mais  comum  nos  vários  tipos celulares. Ambas têm quatro locais de ligação para cálcio. A calmodulina, uma vez ligada a cálcio, muda de conformação, podendo  então  ligar­se  a  enzimas  e  a  proteínas  de  membrana  de  transporte,  ativando­as.  A  mais  conhecida  é  a proteinoquinase  dependente  de  Ca2+/calmodulina, a CAM­quinase, uma  Ser/Tre­quinase  que  se  autofosforila  e  fosforila outros  substratos.  Na  interação  Ca2+/calmodulina,  a  enzima  apresenta  sua  conformação  alterada,  liberando  sua  porção catalítica  quinásica  da  inibição.  Sua  autofosforilação  permite  que  a  enzima  continue  ativa,  mesmo  depois  de  os  níveis intracelulares de Ca2+caírem e de o complexo Ca2+/calmodulina se dissociar da quinase (Figura 3.21). Essa propriedade, na CAM­quinase II cerebral, constitui a base da memória e do aprendizado. Ao contrário da grande variedade de mecanismos encontrados para o influxo de Ca2+, a perda de Ca2+ para o espaço extracelular é limitada à ação de duas famílias de proteínas da membrana plasmática: Ca2+­ATPase (PMCA) e o trocador Na+/Ca2+.  As  concentrações  de  Ca2+  também  são  controladas  no  interior  das  organelas  celulares,  por  uma  variedade de bombas e transportadores específicos para cada organela. No RE, a captação de Ca2+ é controlada por uma família de Ca2+­ATPase de retículo sarco/endoplasmático (a SERCA), enquanto na mitocôndria isso é feito por um transportador de Ca2+ mitocondrial. O  outro  produto  da  hidrólise  de  fosfolipídios  de  membrana  pela  PLCβ,  o  DAG,  permanece  na  membrana,  podendo: (1)  promover  ativação  de  proteinoquinase  C  (PKC)  (desencadeando,  assim,  uma  cascata  de  fosforilação)  ou  (2)  ser clivado, gerando ácido araquidônico (que dará início à via de síntese dos eicosanoides). A  PKC  é  uma  quinase  que  fosforila  resíduos  serina  e  treonina  em  proteínas  substratos,  resultando  em modulaçãofuncional destas. A existência dessas quinases foi evidenciada, pela primeira vez, no final da década de 1970, quando  a  PKC  foi  identificada  como  uma  proenzima  que  requer  concentrações  milimolares  de  cálcio  para  sua  atividade, daí seu nome.

Figura 3.21 ■ A calmodulina, molécula citosólica, ao ligar­se a quatro átomos de Ca2+  muda de conformação, interagindo com uma quinase dependente de Ca2+ /calmodulina (a CAM­quinase), que se autofosforila e passa a exercer sua atividade catalítica quinásica sobre substratos específicos. Com o retorno dos íons Ca2+  para o retículo endoplasmático, a quinase desliga­se da calmodulina, mas ainda retém cerca de 70 a 80% de sua plena atividade, prolongando, assim, sua permanência no estado ativo. No cérebro, essa sinalização é essencial para o mecanismo de memória e aprendizado. (Adaptada de Alberts et al., 2002.)

A PKC é uma enzima amplamente distribuída no organismo, tendo sido encontrada em praticamente todos os tecidos de  mamíferos  testados.  É  particularmente  abundante  no  sistema  nervoso  (SN),  desempenhando  importante  papel  no controle  da  atividade  do  SN  e  da  propagação  do  sinal  neural.  Sua  ampla  distribuição  nos  diferentes  tecidos,  tanto  de vertebrados  quanto  de  invertebrados,  evidencia  seu  papel  crucial  no  controle  ou  modulação  de  vários  outros  processos biológicos.  Entre  os  mais  conhecidos,  podemos  citar:  regulação  de  secreções  celulares,  liberação  de  neurotransmissores, condutância de membrana e contração muscular. Atualmente,  sabe­se  que  a  PKC  faz  parte  de  uma  grande  família  de  proteínas,  com  várias  isoformas  que  apresentam características  enzimológicas  sutilmente  individuais.  Alguns  membros  da  família  apresentam  padrões  distintos  de expressão tecidual e localização intracelular. A família PKC é classificada em quatro grupos: ■ Convencionais ou cPKC: α, βI, βII e γ, as quais são ativadas por Ca2+, fosfatidilserina (PS), diacilglicerol (DAG) ou éster de forbol ■ Novas ou nPKC: δ, ε, η, μ e θ, as quais são ativadas por PS e DAG ou éster de forbol, mas independentes de Ca2+ ■ Atípicas ou aPKC:  ξ,  ι  e  λ,  as  quais  são  Ca2+­independentes  e  insensíveis  a  DAG  e  a  éster  de  forbol,  porém  são ativadas por PS ■ PRK: semelhantemente às atípicas, são insensíveis a Ca2+, a DAG e a éster de forbol, sendo ativadas pelas proteínas G monoméricas, Rho. As  isoformas  de  PKC  consistem  em  um  domínio  catalítico  (carboxiterminal)  e  um  domínio  regulatório (aminoterminal).  O  domínio  catalítico  contém  sequências  incluindo  o  local  de  ligação  para  ATP,  que  são  homólogas  a outras proteinoquinases. Os domínios regulatórios de algumas isoformas apresentam locais para ligação de cálcio. Todas

as isoformas apresentam no seu domínio regulatório um motivo denominado pseudossubstrato, que pode interagir com o local ativo da enzima, inativando­a na ausência de fatores ativadores. O fato de a ativação de PKC ser uma resposta comum a quase todos os mitógenos, e de promotores tumorais serem mitogênicos para certos tipos celulares, levou a uma intensiva busca de seus substratos ao longo das últimas duas décadas. Ao contrário da proteinoquinase A (PKA), não foi ainda determinada uma sequência consenso para a fosforilação pela PKC. Todas as PKC requerem resíduos básicos, mas há uma variação considerável na justaposição e escolha de arginina ou lisina ao redor do local de fosforilação. Além da fosforilação de serina ou treonina, a isoforma δ de PKC também tem capacidade  de  fosforilar  tirosina.  PKC  também  é  capaz  de  se  autofosforilar  em  três  regiões  diferentes  de  sua  sequência primária, o que provavelmente implica uma autorregulação de sua função biológica. A  organização  espacial  e  temporal  da  transdução  de  sinal  é  fundamental  para  direcionar  diferentes estímulos extracelulares para distintas respostas celulares. Um exemplo clássico é a interação que ocorre entre  hormônios  e  fatores  de  crescimento,  com  a  grande  família  de  serinas/treoninoquinases  conhecidas como  proteinoquinases  C  (PKC).  Os  requisitos  moleculares  para  promover  a  translocação  da  PKC  a específicos  domínios  da  membrana  plasmática  envolvem  sua  ativação  por  diacilglicerol  (DAG)  e  cálcio (Ca2+).  A  interação  de  isoformas  de  PKC  com  proteínas  como  receptores  para  quinases  C  ativadas (RACKS),  AKAP,  proteína  14­3­3,  proteínas  de  choque  térmico  (HSP)  e  importinas  transloca  o  complexo para  localizações  celulares  específicas,  aproximando  a  PKC  a  seus  substratos.  Várias  anexinas  (Anx), incluindo  AnxA1,  A2,  A5  e  A6,  também  interagem  e  conduzem  PKC  para  a  membrana,  possibilitando  a fosforilação de substratos específicos. A  ativação  da  PKC,  frequentemente,  resulta  em  sua  translocação  para  a  membrana  citoplasmática,  não  sendo  pois surpreendente que vários de seus substratos sejam proteínas associadas à membrana. Na realidade, diferentes isoformas de PKC  podem  translocar­se  para  locais  celulares  distintos,  o  que  explica  a  variedade  de  respostas  celulares  por  elas controladas. Há  vários  substratos  de  PKC  localizados  no  citoesqueleto;  estes  podem  servir  de  instrumento  para  as  rápidas modificações  morfológicas  documentadas  em  células  tratadas  com  fatores  de  crescimento  ou  ésteres  de  forbol.  Uma proteína ácida foi identificada como um dos substratos majoritários para a PKC. Esta proteína foi denominada MARCKS (myristoylated,  alanine­rich  C­kinase  substrate).  MARCKS  é  uma  proteína  ligante  de  actina  e  de  calmodulina,  cuja ligação à membrana plasmática durante a adesão a substrato é regulada pela PKC. Sendo assim, representa uma molécula candidata ideal através da qual a PKC poderia regular a associação reversível do citoesqueleto de actina com a membrana plasmática, que é um pré­requisito para a locomoção, assim como para outras alterações morfológicas celulares. A  cascata  desencadeada  por  Gq,  através  de  PKC,  também  parece  regular  muitas  isoformas  de  fosfolipase  D  (PLD), podendo  ativar  o  fator  transcricional  NF­κB.  PLD  é  uma  enzima  de  ubiquitinação  (ver  adiante,  “Receptores  de  TNF”  e “Finalização  de  sinal”)  que  hidrolisa  fosfatidilcolina  a  ácido  fosfático  e  colina.  O  fator  transcricional  NF­κB,  uma  vez ativado no citoplasma, migra para o núcleo da célula, onde poderá ativar a transcrição de grande número de genes, como, por exemplo, os relacionados com processos inflamatórios e estresse.

Receptores acoplados a proteínas Gt e Go Como já tivemos a oportunidade de ver, os estímulos externos geram uma resposta intracelular por alterarem os níveis dos  chamados  segundos  mensageiros.  Entre  estes  estímulos, podemos  ter  os  mensageiros  químicos  (p.  ex.,  odores)  e, além destes, a luz. Ambas as vias de transdução do sinal luminoso e do odorífero estão baseadas em um tipo especial de canal catiônico, aberto por nucleotídios cíclicos, conhecido por CNG (cyclic nucleotide gated). Mais de 10.000 odores são detectados  por  receptores  olfatórios  celulares  localizados  na  cavidade  nasal.  Estes  receptores  estão  acoplados  a uma  proteína  Golf,  cuja  ativação  leva  ao  crescimento  da  atividade  de  adenililciclase,  promovendo  assim  um  aumento intracelular  de  cAMP.  O  cAMP  produzido  promove  a  despolarização  destas  células,  ao  ligar­se  a  um  tipo  específico  de canal  altamente  permeável  ao  íon  Ca2+.  A  abertura  destes  canais  pelo  cAMP  conduz  a  uma  grande  elevação  da concentração  de  cálcio  no  citoplasma  que  promove,  por  sua  vez,  uma  despolarização  celular  por  saída  de  Cl– (a  qual  é Ca2+­dependente), amplificando assim a corrente gerada pelo cAMP (Figura 3.22). Por experiência própria, sabemos que o sistema  olfatório,  bem  como  todos  os  nossos  sistemas  sensoriais,  adapta­se  rápida  e  eficientemente  a  estímulos persistentes.  Esta  adaptação,  parcialmente,  realiza­se  por  um  mecanismo  interessante  de  retroalimentação  no  neurônio

olfatório.  Quando  a  célula  é  estimulada  e  os  canais  CNG  se  abrem,  ocorre  grande  influxo  celular  de  íons  Ca2+,  que  se ligam  à  calmodulina  (CaM).  O  complexo  Ca2+/CaM  liga­se  a  locais  nos  canais  CNG,  que  reduzem  sua  afinidade  por cAMP e se fecham, novamente. Além disso, o complexo Ca2+/CaM ativa a fosfodiesterase (PDE), que destrói o cAMP. Assim,  embora  a  substância  odorífera  ainda  esteja  presente,  a  sensibilidade  da  célula  é  altamente  reduzida.  Outros mecanismos  adicionais  de  adaptação  existem  no  cérebro,  durante  as  várias  etapas  do  processamento  da  informação olfatória.

Auroras quinases As  auroras  formam  uma  conservada  família  de  serina/treoninoquinases,  que  apresentam  funções essenciais  na  divisão  celular.  As  auroras  quinases  são  quinases  mitóticas,  frequentemente  associadas  a cromossomos  e  complexadas  a  outras  proteínas.  Elas  interagem  com  componentes  do  citoesqueleto,  na divisão celular. Existem três tipos em mamíferos: auroras quinases A, B e C, cada qual apresentando uma localização  específica  durante  a  mitose  celular.  A  aurora  quinase  A,  também  conhecida  como  “quinase polar”, está primariamente associada à separação dos centrossomos, enquanto a B, chamada de “quinase equatorial”,  é  uma  proteína  cromossômica  passageira.  A  C  aparece  localizada  no  centrossomo,  desde  a anáfase até a telófase; é altamente expressa nos testículos. Os três tipos de auroras quinases têm forte associação a câncer. A aurora A vem sendo mapeada em regiões  do  cromossomo  humano  que  estão  amplificadas  em  células  cancerosas  e  tumores  primários.  Os níveis de expressão das auroras B e C apresentam­se também elevados em algumas linhagens celulares tumorais. A aurora C se localiza em uma porção cromossômica associada a câncer ovariano e pancreático. Curiosamente,  a  fototransdução  promovida  por  cones  e  bastonetes,  da  retina  dos  vertebrados,  também  utiliza  canais CNG para gerarem uma resposta eletrofisiológica. Nestas células receptoras, no entanto, o cGMP está ligado ao canal de Na+,  mantendo­o  aberto  no  escuro  (o  que  provoca  despolarização  da  membrana);  sob  iluminação,  a  proteína  Gt (ou transducina), ativada pelo receptor de fótons (agora em nova configuração), estimula uma fosfodiesterase que degrada cGMP, baixando os níveis desse nucleotídio, que se desliga dos canais de Na+, que se fecham (causando hiperpolarização da membrana) (Figura 3.23). Além disso, a adaptação de fotorreceptores, como ocorre nos receptores olfatórios, é causada pelas  mudanças  nas  concentrações  intracelulares  de  Ca2+  que  acompanham  a  resposta  ao  estímulo,  dependentes  de calmodulina  e  da  afinidade  de  cGMP  pelos  canais  CNG.  Entretanto,  os  efeitos  dos  nucleotídios  cíclicos  e  do  Ca2+  são opostos:  nas  células  olfatórias,  cAMP  e  Ca2+ aumentam  com  o  estímulo,  ao  passo  que  nos  fotorreceptores  dos  cones  e bastonetes o cGMP e o Ca2+ diminuem em resposta à luz. Nos fotorreceptores, a ativação pela luz promove diminuição da ação  do  Ca2+  pela  sua  ligação  à  calmodulina,  restaurando  assim  o  estado  aberto  dos  canais  CNG.  Os  baixos  níveis intracelulares  de  Ca2+  também  contribuem  para  a  ativação  da  guanililciclase,  o  que  novamente  resulta  no  aumento  da abertura dos canais CNG.

Receptores frizzled e a sinalização por b­catenina Semelhantemente  aos  receptores  acoplados  à  proteína  G,  os  receptores  frizzled  também  têm  sete  domínios transmembrânicos;  mas,  embora  possam  sinalizar  através  de  proteínas  Gq,  na  sua  maioria  atuam  independentemente  de proteínas  G,  utilizando  a  proteína  citoplasmática  dishevelled.  Seu  ligante,  Wnt,  é  proteico  e  foi  inicialmente  descrito em Drosophila. Hoje, sabe­se que o sistema Wnt/receptor frizzled existe em todos os animais estudados e está relacionado com  muitos  aspectos  de  desenvolvimento.  O  genoma  dos  mamíferos  codifica  19  proteínas  Wnt  e  10  receptores transmembrânicos frizzled,  os  quais,  em  teoria,  poderiam  perfazer  190  combinações,  cada  uma  evocando  uma  diferente resposta  biológica.  Esses  genes  são  altamente conservados com genes Wnt ortólogos  encontrados  em  várias  espécies  de poríferos,  cnidários,  insetos  e  vertebrados,  abrangendo  600  milhões  de  anos  de  evolução.  Nesses  organismos,  o gene  Wnt  é  a  principal  via  de  controle  da  proliferação  e  morte  celular,  diferenciação  durante  o  desenvolvimento embrionário e homeostase na fase adulta.

Figura 3.22 ■ Cascata  de  sinalização  de  receptores  (RO)  acoplados  à  proteína  Golf,  em  neurônios  olfatórios.  A  subunidade aolf ativa a adenililciclase tipo III, que catalisa a conversão de ATP em AMP cíclico. Este se liga a um canal catiônico operado por nucleotídio  (o  CNG)  na  membrana  citoplasmática,  que  se  abre,  permitindo  a  entrada  de  íons  Na+   (que  despolarizam  a membrana, transformando o sinal químico em elétrico) e íons Ca2+  (que se ligam à calmodulina). A Ca2+ /calmodulina (CaM) ativa uma  fosfodiesterase  (PDE),  que  catalisa  a  transformação  de  AMP  cíclico  (cAMP)  em  não  cíclico  (AMP),  atenuando  o  sinal, fenômeno conhecido como adaptação sensorial. (Adaptada de www.utdallas.edu.)

Figura  3.23  ■   Cascata  de  sinalização  de  receptores  acoplados  à  proteína  Gt  (transducina)  nos  bastonetes  da  retina.  A  luz fotoisomeriza a rodopsina, cuja mudança conformacional ativa a proteína Gt. A subunidade αt ativa a fosfodiesterase (PDE), que catalisa a conversão de GMP cíclico (cGMP) em não cíclico (GMP). No escuro, o cGMP encontra­se ligado a canais catiônicos

operados por nucleotídio (CNG) na membrana citoplasmática, mantendo os canais abertos e a célula despolarizada. Na luz, com a  diminuição  dos  níveis  de  cGMP,  os  canais  se  fecham  e  a  célula  se  hiperpolariza.  GC,  guanililciclase.  (Adaptada de www.utdallas.edu.)

Estudos iniciais direcionaram para a existência das chamadas rotas Wnt canônicas (incluindo Wnt1, Wnt3a e Wnt8) e não canônicas (incluindo Wnt5a e Wnt11), que ativariam vias de sinalização canônicas e não canônicas, respectivamente. No  entanto,  as  inúmeras  possibilidades  teóricas  e  vias  de  sinalização  encontradas  nos  últimos  anos  sugerem  que  a subdivisão de Wnt extrapolaria em muito essas duas categorias inicialmente propostas. Em vez disso, o postulado de que os Wnt são capazes de ativar múltiplos caminhos determinados por conjuntos distintos de receptores parece hoje o mais correto. Ligantes  Wnt  são  únicos,  na  medida  em  que  podem  ativar  diferentes  receptores,  mediando  assim  inúmeras  vias  de transdução  de  sinal.  Essa  diversificação  torna­se  ainda  maior,  pois  Wnt  ativa  distintas  cascatas,  que  por  sua  vez apresentam  intersecções  com  outros  sinais  no  meio  intracelular.  A  ativação  de  algumas  dessas  sinalizações  depende  de correceptores, como lipoproteínas de baixa densidade, por exemplo. Uma  vez  ligado  ao  seu  receptor,  o  Wnt  ativa  pelo  menos  cinco  cascatas  de  sinalização  intracelulares  diferentes,  já conhecidas  (Figura  3.24):  Wnt/β­catenina  (rota  canônica),  rota  canônica  divergente  ou  não  canônica,  Wnt/polaridade celular planar (Wnt/PCP via), Wnt/Ca2+ e rota da translocação nuclear do receptor frizzled. Nas primeiras quatro cascatas, a  mudança  conformacional  do  receptor  frizzled  conduz  à  ativação  da  proteína  dishevelled,  o  que  modula  componentes seguintes  da  via.  Outros  sistemas,  ainda  pouco  estudados  em  mamíferos,  também  relacionados  com  embriogênese  e diferenciação, são os receptores notch e hedgehog.

Receptores notch A cascata de sinalização por receptor notch, inicialmente descrita em Drosophila, é altamente conservada. Mamíferos têm quatro receptores nocth que podem ser ativados por cinco ligantes diferentes: Delta 1, 3 e 4 e Jagged 1 e 2. O receptor é  um  heterodímero,  consistindo  em  uma  subunidade  extracelular  covalentemente  ligada  a  uma  segunda  subunidade  que contém o domínio de heterodimerização extracelular, o domínio transmembrânico e a região citoplasmática. Uma estrutura comum a todos os ligantes de notch é o domínio aminoterminal denominado DSL (Delta, Serrate e Lag­2), envolvido na ligação  ao  receptor.  A  sinalização  é  iniciada  pela  ligação  ligante­receptor  entre  células  vizinhas,  o  que  leva  a  duas clivagens proteolíticas sucessivas do receptor. Dessa forma, é liberado o domínio intracelular do receptor, que trafega para o núcleo e heterodimeriza com fatores de transcrição, conduzindo à indução de expressão de genes­alvo (Figura 3.25). Há evidências de que notch pode conversar ou cooperar com outras vias de sinalização, como NF­κB e TGF­β, ampliando o espectro de genes­alvo. Nos seres humanos, o anormal ganho ou a perda de componentes da sinalização notch provoca um grande número de patologias, entre elas a síndrome de Alagille (displasia artério­hepática que pode atingir o fígado e o coração), doenças da válvula aórtica e cânceres.

Receptores de hedgehog A via de hedgehog, também descoberta em Drosophila, é um regulador importante de diferenciação celular, polaridade tecidual  e  proliferação.  No  início  da  década  de  1990,  foram  identificados  em  vertebrados  três  homólogos de  hedgehog,  Sonic,  Indian  e  Desert,  que  são  secretados  e  atuam  em  tecidos  em  desenvolvimento,  tanto  em  células próximas  como  distantes.  Recentemente,  foi  demonstrado  que  ocorre  a  ativação  desta  via  em  uma  variedade  de  cânceres humanos,  incluindo  carcinomas,  meduloblastomas,  leucemia  e  tumores  de  próstata,  mamas,  ovários  e  pulmões.  A sinalização por hedgehog também é altamen­te conservada. Na ausência de ligantes hedgehog, a proteína smoothened (de sete  domínios  transmembrânicos)  encontra­se  inibida  por  outra  proteína  transmembrânica  patched.  A  ligação de hedgehog ao seu receptor patched remove essa inibição, permitindo que smoothened inicie a cascata de sinalização que leva à ativação de fatores de transcrição.

Figura 3.24 ■ Cascata de sinalização de receptores frizzled. A. Via canônica é a cascata de sinalização mais bem estudada. A ligação de Wnt aos receptores frizzled ativa a proteína ancoradora dishevelled (DVL), resultando na estabilização de β­catenina e  seu  transporte  para  o  núcleo,  onde  regula  expressão  gênica  por  meio  de  sua  associação  ao  fator  de  transcrição LEF/TCF. B. Via canônica divergente: DVL liga­se a microtúbulos e regula a fosforilação de proteínas associadas a microtúbulos (MAP). C. Via da polaridade celular: nesta sinalização, DVL ativada estimula as pequenas GTPases RhoA e Rac1, que por sua vez  ativam  a  quinase  JNK  para  a  regulação  dos  citoesqueletos  de  actina  e  de  microtúbulos.  D.  Via  de  cálcio:  nesta  via,  a ativação  de  DVL  induz  um  aumento  nos  níveis  intracelulares  de  Ca2+   e  a  ativação  de  proteinoquinase  C  (PKC)  e  quinase

dependente  de  Ca2+ /calmodulina  II  (CaMKII),  resultando  na  migração  do  fator  de  transcrição  de  células  T  (NFAT)  para  o núcleo.  E.  Via  de  importação  nuclear  de  frizzled:  nesta  via  alternativa,  os  receptores  de  Wnt  são  internalizados,  clivados  e levados ao núcleo. Este tráfego depende da ligação do fragmento do receptor frizzled 2 (FZ2) à proteína ligante do receptor de glutamato (GRIP). (Adaptada de Korkut e Budnik, 2009.)

Figura  3.25  ■   Sinalização  por  notch.  Proteínas  notch  são  sintetizadas  como  precursores  que,  após  clivagem,  geram  um heterodímero  cujas  subunidades  se  ligam  não  covalentemente.  A  sinalização  é  iniciada  pela  interação  ligante­receptor,  que induz  duas  outras  clivagens.  A  última  proteólise  libera  o  domínio  citoplasmático  do  receptor  Notch,  que  se  transloca  para  o núcleo,  onde  se  liga  ao  fator  de  transcrição  CSL,  que  se  converte  de  repressor  em  ativador  transcricional.  (Adaptada  de Radtke et al., 2010.)

Receptores de TNF (fator de necrose tumoral) Esses  fatores  são  massivamente  liberados  por  mastócitos;  atuam  em  tecidos  envolvidos  em  resposta  inflamatória, estimulando­os  a  produzirem  mais  TNF,  em  uma  retroalimentação  positiva  que,  rápida  e  eficientemente,  amplifica  a resposta. Os receptores  de  TNF são  homotrímeros  de  proteínas  transmembrânicas  que  reconhecem  TNF­α  e  TNF­β.  A ligação  de  TNF  a  seu  receptor  desencadeia  a  fosforilação  de  uma  proteína  IκB,  que  é  ubiquitinada  e  destruída  por proteassomos (ver adiante, “Finalização de sinal”). A proteína IκB normalmente inibe o fator de transcrição NF­κB, que agora, desinibido, move­se para o núcleo, onde atua como fator de transcrição (Figura 3.26),  ligando­se  ao  promotor  de mais  de  60  genes,  como  os  que  produzem  interleucinas  e  outras  citocinas  promotoras  de  inflamação.  A  ação  anti­ inflamatória de glicocorticoides deve­se à sua atividade estimuladora da produção de IκB, além de eles inibirem a via de síntese dos eicosanoides.

Figura 3.26 ■ Cascata de sinalização de receptores de fator de necrose tumoral α (TNF­α). Após a ativação por TNF­α, proteínas adaptadoras associam o receptor trímero à ativação de uma quinase que fosforila IKK β que, por sua vez, fosforila o elemento IκB. Esta proteína, na ausência dessa sinalização, encontra­se associada ao fator de transcrição NF­κB, inibindo­o. Depois da fosforilação  de  IκB,  ele  se  dissocia  de  NF­κB,  que  migra  para  o  núcleo,  onde  ativa  genes­alvo,  enquanto  seu  inibidor  é ubiquitinado e degradado no proteassomo. (Adaptada de Alberts et al., 2002.)

▸ Receptores com atividade enzimática intrínseca Quatro tipos de domínios enzimáticos (tirosinoquinase, serina/treoninoquinase, tirosinofosfatase e guanililciclase) são encontrados como receptores de membrana (Figura 3.27), a maioria deles ativada após dimerização. Os  receptores  tirosinoquinases,  os  receptores  semelhantes  a  tirosinofosfatase  e  os  receptores  guanililciclase  do peptídio atrial natriurético formam homodímeros, ao passo que os receptores serina/treoninoquinases e a única classe de receptores de fatores de crescimento epidérmico (EGF) formam heterodímeros.

Receptores tirosinoquinases

Os  mensageiros  extracelulares  (geralmente  fatores  de  crescimento,  como  a  insulina  e  o  fator  de  crescimento  de fibroblasto),  ao  ligarem­se  ao  receptor  tirosinoquinase,  ativam  sua  autofosforilação  sobre  um  resíduo  Cys;  então,  o receptor  se  dimeriza,  desencadeando  uma  cascata  de  fosforilação  de  proteínas,  muitas  delas  tirosinoquinases  citosólicas. Algumas delas entram no núcleo e fosforilam fatores de transcrição. Os receptores tirosinoquinases podem ter sido vitais no  estabelecimento  do  primeiro  metazoário.  Embora  estes  receptores  estejam  ausentes  em  leveduras  ou  plantas (fosforilação em tirosinas ocorre em plantas e leveduras, mas não por meio da ação de uma tirosinoquinase de membrana), eles estão presentes nas esponjas. Muitos ortólogos para as cinco maiores classes de receptores tirosinoquinases humanos [receptores de FGF, EGF, insulina,  fator  de  crescimento  endotelial  vascular  (VEGF)  e  fator  de  crescimento  derivado  de plaquetas (PDGF)] já estão presentes em Caenorhabditis elegans e Drosophila melanogaster.

Figura  3.27  ■   Representação  esquemática  de  receptores  de  membrana  cuja  porção  N­terminal  tem  atividade  quinásica  ou fosfatásica, comparados com enzimas equivalentes citoplasmáticas. (Adaptada de Alberts et al., 2002.)

A ativação do receptor pelo ligante leva à ativação da porção quinásica do receptor, resultando em autofosforilação e fosforilação de substratos SHC, o que culmina com a ativação da proteína G Ras. A Ras é uma proteína G monomérica, com capacidade de ligar­se a GTP e GDP, tendo atividade GTPásica; essas propriedades são semelhantes às da subunidade α  das  proteínas  G  triméricas.  O  interesse  despertado  por  essa  pequena  proteína,  de  21  kDa,  deve­se  a  seu  papel  central, multifuncional, na sinalização do crescimento e da proliferação celular, na diferenciação e na apoptose. As  proteínas  Ras  processam  os  sinais  –  advindos  de:  (1)  receptores  tirosinoquinases,  (2)  receptores  associados  a enzimas quinases e (3) receptores acoplados a proteínas G – para o interior das células, afetando a transcrição gênica. Para tanto,  os  componentes  comumente  ativados  pelas  Ras  são  as  quinases  Ser/Tre,  Raf,  MEK  e  PI3K,  ocasionando  uma cascata de fosforilações que culmina em fatores de transcrição, principalmente ERK e JNK.

Nas  vias  de  sinalização  de  receptores  monoméricos,  a  cascata  de  MAP­quinases  (MAPK)  é  recrutada,  resultando  na ativação  de  fatores  de  transcrição  como  CREB, c­Fos  e  Elk­1,  envolvidos  na  transcrição  de  genes  relacionados  com  a proliferação celular (Figura 3.28). Os receptores de fatores de crescimento, por exemplo a insulina, podem muitas vezes dimerizar­se,  como  início  da  sinalização.  Nesse  caso,  é  ativada  a  fosfoinositídio  3­quinase  (PI3K),  aumentando  a concentração  intracelular  de  PIP2  e  PIP.  Este,  por  sua  vez,  ativa  a  quinase  dependente  de  fosfato  de  fosfatidilinositol (PDK­1), que subsequentemente ativa a Akt/PKB. A PI3K pode ser ativada por receptores de fatores de crescimento, diretamente ou através da proteína G monomérica Ras; a subunidade βγ (liberada das proteínas G após a estimulação de receptores acoplados à proteína G) também constitui um outro mecanismo de ativação de PI3K. Pequenas GTPases formam uma família de proteínas de ligação ao GTP, com um peso molecular de aproximadamente  21  kDa.  Entre  elas  podemos  destacar  Ras,  Rho,  Rab  e  Arf.  Essas  GTPases  estão envolvidas  em  relevantes  processos  celulares,  como  a  síntese  e  o  tráfico  de  proteínas,  a  transdução  de sinais  da  membrana  plasmática  em  resposta  a  estímulos  externos  e  a  regulação  do  citoesqueleto,  entre outros.  Ras  GTPases,  expressas  por  três  genes,  regulam  proliferação,  apoptose,  senescência  e diferenciação.  Uma  das  principais  vias  de  sinalização  ativadas  por  Ras  é  a  Raf­MEK­ERK  (cascata  de MAP­quinases,  MAPK),  capaz  de  sinalizar  alvos  no  citosol,  bem  como  no  núcleo.  A  família  das  Rho GTPases é constituída por mais de 20 membros que funcionam como reguladores­chave do citoesqueleto, modulando  assim  a  migração  de  células,  o  tráfego  de  vesículas  e  a  citocinese.  Os  três  principais  grupos dentro  da  família  são  Rho,  Rac  e  Cdc42.  A  maior  família  de  proteínas  relacionadas  a  Ras  é  a  das  Rab GTPases  com  11  componentes  em  levedura  e,  pelo  menos,  60  em  mamíferos.  Rab  GTPases desempenham  papel­chave  na  regulação  do  tráfego  de  membrana  em  diferentes  locais  do  sistema  de membranas  internas.  Enquanto  Arf  GTPases  controlam  a  biogênese  de  vesículas,  Rab  GTPases  são importantes para o transporte dirigido a membranas específicas. Arf GTPases estão implicadas no controle do tráfego por membrana e arquitetura de organelas. Em mamíferos, existem seis ARFs divididas em três classes:  classe  I,  composta  por  Arf  1  e  3;  classe  II,  composta  por  Arf  4  e  5;  e  classe  III,  composta  pela ARF6,  a  proteína  mais  divergente  deste  grupo.  Em  seres  humanos,  Arf2  e  Arf4  são  idênticas.  A  família inclui também Arf Sar1 e mais de 20 proteínas Arf­like (ARL). A Akt/PKB é uma serina/treoninoquinase que, em mamíferos, se apresenta sob três isoformas conhecidas: Akt1, Akt2 e  Akt3.  A  Akt  ativada  promove  a  sobrevivência  celular  através  de  duas  vias  distintas,  descritas  a  seguir. Por  uma  das vias –  inibe  a  apoptose  ao  fosforilar  o  componente  Bad  do  complexo  Bad/Bcl­XL.  O  Bad  fosforilado  liga­se  a  14­3­3, causando a dissociação do complexo Bad/Bcl­XL, o que permite a sobrevivência celular. Pela outra via – ativa a IKK­α que, em última instância, conduz à ativação de NF­κB e à sobrevivência celular (Figura 3.29).

Figura 3.28 ■ Cascata de sinalização de receptores tirosinoquinases monoméricos. A ativação de receptores monoméricos por fatores  de  crescimento  (FC)  leva  à  autofosforilação  do  receptor  e  à  fosforilação  de  substratos  específicos  (SHC,  PLCγ).  Isso resulta  na  ativação  da  proteína  G  monomérica  Ras,  desencadeando  fosforilações  em  cascata  de  MAP­quinases  (MEK)  e ativação dos fatores de transcrição ELK­1, CREB ou c­FOS. (Adaptada de www.sigma­aldrich.com.)

Figura 3.29 ■ Cascata de sinalização de receptores tirosinoquinases diméricos. A ativação de receptores tirosinoquinases por fatores  como  a  insulina,  por  exemplo,  pode  induzir  sua  dimerização.  Nessa  sinalização,  a  fosfoinositídio  3­quinase  (PI3K)  é ativada,  geralmente  através  da  proteína  G  monomérica  Ras,  causando  a  ativação  da  quinase  dependente  de  fosfato  de fosfatidilinositol. A Akt inibe a apoptose, ao fosforilar o componente Bad do complexo Bad/Bcl­XL. O Bad fosforilado liga­se a 14­ 3­3, provocando a dissociação do complexo Bad/Bcl­XL, o que permite a sobrevivência celular. A Akt também ativa a quinase IKK,  que  fosforila  o fator  inibidor  de  NF­kB,  o  qual,  liberado  da  inibição,  estimula  transcrições  de  genes  relacionados  com  a sobrevivência celular. (Adaptada de www.sigma­aldrich.com.)

Receptores serina/treoninoquinases O ligante conhecido para receptores serina/treoninoquinases é o fator de crescimento transformante beta (TGF­b), cuja ligação  ativa  a  capacidade  quinásica  do  receptor  que  fosforila proteínas  Smad  citoplasmáticas.  Estas  se  movem  para  o núcleo, onde formam dímeros com outra proteína Smad, os quais agora se ligam ao DNA, reprimindo ou estimulando a transcrição  do  gene­alvo  (Figura  3.30).  Essa  via  de  sinalização  inibe  o  ciclo  celular;  portanto,  não  é  de  estranhar  que mutações nos genes do receptor ou das proteínas Smad estejam associadas a câncer (p. ex., de pâncreas e de cólon).

Receptores tirosinofosfatases Em  contrapartida,  os  receptores  semelhantes  a  tirosinofosfatases,  quando  ativados  por  ligantes,  desfosforilam proteínas  celulares.  Seu  domínio  catalítico  na  porção  citoplasmática  da  molécula  é  muitas  vezes  duplo.  Só  recentemente, foram identificados uns poucos ligantes para esses receptores. Por exemplo, no tecido nervoso, a contactina parece ser o parácrino  responsável  pela  ativação  de  um  subtipo  de  receptor  tirosinofosfatase.  Esses  receptores  vêm  sendo  implicados na angiogênese e na adesão celular.

Receptores guanililciclases O  hormônio  peptídico  denominado  peptídio  atrial  natriurético  (ANP),  produzido  preferencialmente  pelas  células musculares  cardíacas  atriais  e  ventriculares,  é  lançado  na  circulação  e  vai  ativar  receptores  de  membrana  que  são guanililciclases  (GC)  de  membrana.  A  ativação  da  GC  leva  à  conversão  de  trifosfato  de  guanosina  (GTP)  em  3’,5’­ monofosfato de guanosina cíclico (cGMP). Existem outros dois hormônios análogos ao ANP: o BNP, produzido também

no  coração  (cardiomiócitos  ventriculares,  principalmente),  e  o  CNP,  formado  nas  células  endoteliais  dos  vasos.  Os  três hormônios exibem atividade vasodilatadora e abaixam a pressão arterial por aumentar a excreção renal de sódio e água. Os  receptores  NPR­A/B  e  NPR­NPR­C  são  os  principais  tipos  de  receptores  para  os  peptídios  atriais  natriuréticos. NPR­A e B são receptores guanililciclase de membrana, ao passo que o receptor NPR­C não apresenta essa atividade. A ligação  do  ANP  ao  receptor  NPR­A  leva  à  conversão  de  GTP  a  cGMP,  um  segundo  mensageiro  intracelular.  O  receptor NPR­A  ativo  é  um  homodímero;  cada  monômero  contém  um  domínio  extracelular  de  ligação  ao  ANP  na  sua  porção aminoterminal  e  um  domínio  intracelular  guanililciclase  na  sua  porção  carboxiterminal.  Como  dito,  o  cGMP  recém­ sintetizado  pode  se  ligar  a  proteinoquinases  dependentes  de  cGMP  (PKG  I  ou  II),  além  de  atuar  sobre  canais  iônicos dependentes de nucleotídios cíclicos (CNG). Até o momento, dois subtipos diferentes de NPR­C foram identificados que podem se ligar a uma ampla gama de agonistas, incluindo ANP, BNP e CNP.

Figura 3.30 ■ Cascata de sinalização de receptores serina/treoninoquinases. Ao ligarem­se ao mensageiro extracelular, esses receptores dimerizam­se, desencadeando uma sequência de fosforilações e ativações de proteínas Smad. Essas proteínas são ancoradouros  de  fatores  de  transcrição  que  podem,  então,  exercer  ativação  gênica,  resultando  em  inibição  da  proliferação  e apoptose. (Adaptada de www.sigma­aldrich.com.)

O cGMP serve como um segundo mensageiro (Figura 3.31), de uma forma similar àquela observada com o cAMP; ele pode ser constituído pela ação da GC, que é a porção intracelular do receptor de membrana, ou de GC solúveis citosólicas.

RECEPTORES INTRACELULARES

Os receptores intracelulares regulam a expressão gênica de modo direto, pois são fatores de transcrição ativados por ligantes,  situados  no  citoplasma  ou  no  núcleo.  Incluem  os  receptores  de:  hormônios  esteroides  (cortisol,  hormônios sexuais),  hormônio  da  tireoide  (T3),  vitamina  D  e  os  receptores  órfãos.  Estes  últimos  são  receptores  nucleares  para  os quais nenhum ligante foi, até o momento, identificado.

▸ Receptores de esteroides Receptores  de  esteroides  são  proteínas  com  afinidade  por  determinado  esteroide  que,  uma  vez  complexados  com  o ligante,  irão  se  dimerizar  e  se  ligar  a  elementos  responsivos  localizados  no  promotor  do  gene­alvo.  Essa  família  de receptores tem em comum três domínios funcionais: o domínio em dedo de zinco (Figura 3.32) (necessário para ligação ao DNA),  a  região  N­terminal  de  ligação  ao  promotor  e  a  região  C­terminal  (responsável  pela  ligação  ao  hormônio  e  à segunda unidade do dímero) (Figura 3.33).  O  domínio  em  dedo  de  zinco  é  assim  chamado  por  dispor  quatro  átomos  de zinco, cada um preso a quatro cisteínas (ver Figura 3.32). É característico de muitos fatores de transcrição; entre eles, os receptores de esteroides. Alguns receptores de esteroides estão no núcleo, associados a desacetilases, mantendo a expressão do gene reprimida, a  ele  ligados  mesmo  na  ausência  do  hormônio.  Após  a  ligação  do  hormônio  ao  seu  receptor,  o  complexo  se  separa  da desacetilase; então, recruta acetilases e liga­se a regiões específicas responsivas a esteroides, ativando a expressão gênica. Em outros casos, a ligação do complexo ao promotor pode reprimir o gene. Outros receptores, como os de glicocorticoides, estão no citoplasma. O cortisol, por exemplo, atravessa a membrana plasmática e liga­se ao seu receptor. O complexo resultante tem o domínio de ligação ao DNA comprometido por ligação a proteínas, como o dímero heat shock protein 90 (hsp 90), o heat shock protein 70 (hsp 70) e o FKB P52 (Figura 3.34). A dissociação do complexo libera a subunidade receptor/cortisol, agora na forma ligante ao DNA. O receptor ativado forma um  homodímero  e  se  transloca  para  o  núcleo,  onde  se  liga  a  elementos  responsivos  específicos  ao  cortisol  (GRE)  no DNA,  para  ativar  a  transcrição  gênica.  As  respostas  rápidas  (em  cerca  de  alguns  minutos),  chamadas  de  respostas primárias, são consequentes do aumento da expressão de genes comuns, como cfos, independente do tipo de célula­alvo. As respostas tardias (de longo termo), denominadas secundárias, são específicas ao tecido­alvo.

Figura  3.31  ■   Cascata  de  sinalização  de  receptores  guanililciclases.  Os  ligantes  conhecidos  para  esse  subtipo  de  receptor enzimático pertencem à família do peptídio natriurético atrial. Com o aumento de cGMP intracelular, causado pela ação catalítica da guanililciclase sobre o GTP, uma proteinoquinase dependente de cGMP (a PKG) é ativada, desencadeando fosforilações que evocam  a  resposta  biológica  final.  GC,  guanililciclase;  NO,  óxido  nítrico;  PDE,  fosfodiesterase.  (Adaptada  de  www.sigma­ aldrich.com.)

Figura 3.32 ■ Domínio de ligação ao DNA, presente nos receptores de esteroides, com a característica estrutura em dedos de zinco, na qual o Zn4+  pode estar ligado a quatro cisteínas (Cys) ou a duas cisteínas e duas histidinas (His). (Adaptada de Krauss, 2003.)

▸ Óxido nítrico, guanililciclases, cGMP e proteinoquinases dependentes de cGMP (PKG) O  óxido  nítrico  (NO)  é  uma  das  mais  importantes  moléculas  sinalizadoras,  em  neurônios  e  no  sistema  imunológico, seja atuando dentro das células onde é produzido ou penetrando as membranas plasmáticas de células adjacentes. Por ser um gás, o NO difunde­se livremente através de membranas celulares. No entanto, sua meia­vida é muito curta, transformando­se  rapidamente  em  nitratos  e  nitritos.  Por  isso,  ele,  geralmente,  atua  próximo  de  onde  é  sintetizado,  de modo  parácrino,  ou  mesmo  autócrino.  A  sinalização  evocada  por  NO  depende  de  sua  ligação  a  proteínas  intracelulares receptoras, que tenham um íon metálico (p. ex., ferro) ou um átomo de enxofre (p. ex., cisteínas). Mudanças alostéricas nessa proteína levam à formação de um segundo mensageiro, que desencadeia uma cascata de reações. O receptor de NO mais conhecido é a guanililciclase; a estimulação das enzimas guanililciclases, solúveis no citosol ou ligadas à membrana plasmática, leva à formação de GMP cíclico (Figura 3.35).

Figura 3.33 ■ Os receptores dos esteroides e do hormônio tireoidiano possuem três domínios: a porção mais próxima do terminal carboxílico (de reconhecimento do ligante), a intermediária (de ligação ao DNA) e a mais perto do terminal amina (ativadora de transcrição). (Adaptada de Alberts et al., 2002.)

Figura 3.34 ■ Cascata de sinalização do receptor de glicocorticoides. Este receptor (R) encontra­se no citoplasma; ao ligar­se ao cortisol,  o  domínio  de  ligação  ao  DNA,  que  estava  comprometido  por  ligação  a  proteínas  (como  o  dímero heat  shock  protein 90 [hsp 90], o heat shock protein 70 [hsp 70] e o FKB P52), fica livre. O complexo receptor/cortisol forma um homodímero, que se transloca  para  o  núcleo,  onde  se  liga  a  elementos  responsivos  ao  cortisol  (GRE)  no  DNA,  para  ativar  a  transcrição  gênica. (Adaptada de www.sigma­aldrich.com.)

O  cGMP  pode,  por  sua  vez,  atuar  de  três  maneiras  diferentes,  dependendo  do  ambiente  celular  em  questão.  Uma destas  atividades  conhecidas  é  a  da  modulação  da  concentração  de  cAMP,  ativando  ou  inibindo  uma  fosfodiesterase específica  para  cAMP.  Na  retina,  ou  no  sistema  olfatório,  o  cGMP  abre  canais  catiônicos  modulados  por  nucleotídios cíclicos,  os  quais  são  essenciais  para  a  geração  de  sinal  nestes  sistemas  sensoriais.  Finalmente,  o  cGMP  ativa proteinoquinases dependentes de cGMP (PKG), eliciando uma grande gama de respostas celulares (ver Figura 3.35). Várias famílias de fosfodiesterases (PDE I a VI) agem como switches reguladores, ao catalisar a degradação de cGMP a 5’­monofosfato de guanosina (5’­GMP). Dentre elas, a PDE II é estimulada por cGMP e a PDE III, inibida por cGMP; a PDE V liga­se a cGMP e é importante na regulação da contração de músculo liso, e a PDE VI é altamente seletiva para cGMP, localizando­se nos fotorreceptores. Em mamíferos, as PDE são classificadas em 11 superfamílias, resultantes da expressão de 21 genes. As  proteinoquinases  dependentes  de  cGMP  emergiram  como  importantes  quinases  componentes  de  cascatas  de sinalização. A possibilidade da existência desta enzima já era cogitada na década de 1960, porém a referida enzima só foi descoberta  na  década  seguinte,  em  músculo  de  cauda  de  lagosta.  Ela  está  largamente  difundida  nas  células  eucarióticas, tendo sido altamente conservada durante a evolução, desde organismos unicelulares (como o protozoário Paramecium) até o homem.

Em  mamíferos,  sua  expressão  é  controlada  por  dois  genes,  originando  os  subtipos  PKGII  e  PKGI;  este  último,  por sua vez, por splice gênico, pode originar duas isoformas (PKGI alfa e PKGI beta). As  PKG  pertencem  à  família  de  proteinoquinases  que  fosforilam,  preferencialmente,  resíduos  de  serina/treonina, dispondo de três domínios funcionais: ■ Um domínio N­terminal ■ Um domínio regulatório R, contendo dois locais para ligação do cGMP ■ Um domínio catalítico C, apresentando dois domínios: um para a ligação do complexo Mg2+­ATP e outro de ligação a peptídios. Este último catalisa a transferência da ligação do fosfato gama do ATP para o resíduo de serina/treonina da proteína­alvo.

Figura  3.35  ■   Mecanismo  proposto  para  potenciação  de  longo  termo.  Os  receptores  NMDA  (canais  de  cálcio  presentes  na membrana  do  neurônio  pós­sináptico)  são  abertos  por  glutamato  (secretado  pelo  neurônio  pré­sináptico),  permitindo  grande influxo de íons Ca2+ . O complexo Ca2+ /calmodulina, então formado, ativa a enzima sintase de óxido nítrico (NOS), que catalisa a conversão de arginina em citrulina e óxido nítrico (NO). Este liga­se ao átomo de ferro da enzima guanililciclase, ativando­a e aumentando os níveis de cGMP e a atividade de PKG, tanto no neurônio pós­sináptico como no pré­sináptico. Em resposta, há aumento da secreção de glutamato e dos receptores NMDA, fortalecendo a relação sináptica entre esses neurônios. (Adaptada de Hadley, 2000.)

A ligação de cGMP em ambos os locais da subunidade C leva a mudanças conformacionais, que revertem a inibição do  centro  catalítico  pela  porção  N­terminal,  e  resulta  na  fosforilação  do  substrato  proteico.  Em  baixas  concentrações  de cGMP,  a  ativação  da  heterofosforilação  pode  ser  precedida  pela  autofosforilação  da  porção  N­terminal.  A  PKG  é direcionada a locais específicos subcelulares de atuação, orientada por esta porção. Em neurônios, os canais de Ca2+ receptores de glutamato abrem­se após a ligação ao neurotransmissor, aumentando os níveis de Ca2+ citosólico por influxo celular. A Ca2+/calmodulina ativa a sintase de óxido nítrico, que catalisa a produção de NO. Este estimula a guanililciclase, tanto no neurônio onde foi produzido como no pré­sináptico, elevando os níveis de GMP  cíclico;  isso  acarreta,  respectivamente,  o  aumento  de  receptores  de  glutamato  e  de  secreção  de  mais neurotransmissor  (ver  Figura  3.35).  O  NO  apresenta  efeitos  no  sistema  nervoso  central,  tanto  sobre  a  transmissão neuronal como sobre a plasticidade sináptica. Outra  das  funções  mais  bem  estudadas  da  PKG  é  o  controle  do  tônus  da  musculatura  lisa.  As  células  dessa musculatura  são  o  componente  principal  dos  vasos  sanguíneos;  elas  controlam  seu  tônus  e  detêm  papel  central  na

patogênese  da  aterosclerose  e  de  outras  doenças  vasculares.  Há  pouco  mais  de  duas  décadas,  tornou­se  evidente  que  o nitroprussiato  de  sódio  e  outros  nitratos  orgânicos,  usados  como  vasodilatadores  há  mais  de  um  século,  relaxavam  a musculatura lisa por aumentarem os níveis de cGMP. A descoberta seguinte foi que este efeito está associado à produção local  de  óxido  nítrico  por  estes  nitratos,  o  que  aumenta  os  níveis  de  cGMP  por  ativar  uma  guanililciclase  e,  em  última instância, uma PKGI. O NO reage com o íon ferro do local ativo da enzima guanililciclase (GC), estimulando­a a produzir GMP cíclico (cGMP), resultando no relaxamento da musculatura lisa que reveste os vasos e na vasodilatação. A  ereção  do  pênis  é  mediada  por  NO  liberado  pelo  endotélio  dos  vasos  sanguíneos  penianos,  depois  de  estimulação dos  terminais  nervosos  que  controlam  esses  vasos.  Os  fármacos  modernos  (como  Viagra®,  Levitra®  e  Cialis®) aumentam essa resposta, por inibirem a fosfodiesterase que degrada o cGMP, mantendo alto o nível desse nucleotídio, o que faz os vasos ficarem relaxados e o pênis túrgido de sangue. Camundongos, com deleção do gene para PKGI, tornam­se hipertensos entre quatro e seis semanas de vida. A geração de  ondas  peristálticas  no  sistema  digestório  é  controlada  por  neurônios  noradrenérgicos,  os  quais  liberam  NO  após estimulação, relaxando o músculo liso intestinal. Os camundongos com deleção de PKGI apresentam o chamado pylorus stenosis, quadro que mostra grave distensão do estômago e peristaltismo irregular, com retardo da passagem do conteúdo intestinal.

MODULAÇÃO DE SINAL

▸ Regulações negativa e positiva do receptor Os receptores são elementos dinâmicos da membrana e seu número pode mudar em função do ciclo celular, do estágio de diferenciação celular e das condições fisiológicas. Assim, uma célula pode tornar­se menos ou mais responsiva a um mensageiro extracelular, em função da flutuação de sua quantidade de receptores. O número de um dado receptor pode ser modulado,  de  modo  negativo  ou  positivo,  diretamente  por  seu  ligante  extracelular  (regulação  homoespecífica)  ou  por mensageiros  seletivos  para  outros  receptores  (regulação  heteroespecífica).  Por  exemplo,  o  hormônio  da  tireoide  (T3)  é indispensável  para  a  manutenção  do  número  de  adrenorreceptores  (receptores  de  epinefrina  e  norepinefrina)  no  músculo cardíaco (regulação heteroespecífica); quando existe T3 em excesso (em indivíduos hipertireóideos), ocorre a taquicardia típica dessa patologia. Opostamente, quando a insulina é secretada em excesso (em obesos), há diminuição do número de seus receptores, na maioria dos tecidos (regulação homoespecífica). A  afinidade  com  que  um  mensageiro  extracelular  liga­se  a  seu  receptor  também  pode  ser  alterada  positivamente; assim,  quando  a  ligação  inicial  de  uma  molécula  do  ligante  a  um  receptor  facilita  a  união  das  moléculas  seguintes  aos outros receptores, diz­se que o cooperativismo é positivo. Porém, quando a afinidade é reduzida pela ligação inicial, diz­se que o cooperativismo é negativo (p. ex., a insulina).

▸ Proteinoquinases e fosfatases Quase todas as grandes rotas intracelulares são reguladas, de alguma maneira, por fosforilação. A adição ou subtração de  grupos  fosfato  em  substratos  proteicos  representa  a  maneira  mais  comum  utilizada  pela  maioria  das  células  dos eucariotos  para  regularem  suas  atividades,  pelo  delicado  balanço  entre  fosfatases  e  quinases.  Estas  modificações  pós­ traducionais  de  proteínas  apresentam  a  propriedade  de  serem  transientes  e  reversíveis.  Elas  viabilizam  a  propagação  do sinal  vindo  do  meio  extracelular  (p.  ex.,  na  forma  de  um  hormônio  que  ativa  um  específico  receptor  de  membrana), desencadeando, por sua vez, uma cascata de transdução intracelular. O caráter rápido e reversível desta reação possibilita à célula ajustar­se aos inúmeros sinais que se propagam a todo momento nas suas diversas cadeias bioquímicas. Esta rede de  sinais,  ao  mesmo  tempo  caótica  e  altamente  organizada,  regula  praticamente  todas  as  funções  celulares:  desde mitogênese, diferenciação, secreção, síntese, até morte celular. Neste  contexto,  as  enzimas  responsáveis  pela  fosforilação,  em  conjunto  representadas  pela  grande  família  das proteinoquinases, são as mais diversificadas conhecidas. As responsáveis pela subtração de grupos fosfato, ou seja, as da família das fosfatases, geralmente sinalizam o término da resposta. Há  três  grandes  famílias  de  fosfatases:  as  tirosinofosfatases,  as  serina/treoninofosfatases  e  aquelas  que  atuam  em resíduos  tirosina,  serina  e  treonina.  Ao  contrário  das  quinases  (que  são  inúmeras  e  diferem  na  estrutura  de  seus  locais catalíticos),  as  fosfatases  são  poucas  e  adquirem  especificidade  por  se  ligarem  a  cofatores  proteicos,  que  facilitam  sua translocação e sua ligação seletiva a proteínas fosforiladas.

As proteínas serina/treoninofosfatases compreendem duas famílias de genes denominados PPP e PPM. As fosfatases que catalisam a remoção de grupos fosfato de serinas ou treoninas podem ser classificadas em seis subtipos: PP1, PP2A, PP2B  (fosfatase  dependente  de  Ca2+/calmodulina  conhecida  como  calcineurina),  PP4,  PP5,  PP6  e  PP2C  (fosfatase dependente  de  ATP/Mg2+),  cada  uma  com  múltiplas  isoformas.  Os  três  primeiros  subtipos  apresentam  alto  grau  de homologia, enquanto PP2C é estruturalmente distinta, além de ser a única representante pertencente à família PPM. PP1 e PP2A são importantes reguladores negativos do ciclo celular. PP1 desfosforila substratos de PKA, como o CREB; PP2A consiste em uma fosfatase genérica para substratos fosforilados por quinases de Ser/Tre. PP2B é ativada por cálcio, tem alta  atividade  em  tecido  cerebral  e  parece  estar  envolvida  em  mecanismos  de  memória.  Algumas  das  anormalidades neurofisiológicas  encontradas  em  portadores  da síndrome  de  Down (trissomia  do  cromossomo  21)  parecem  decorrer  da expressão  aumentada  de  proteínas  codificadas  por  genes  situados  no  cromossomo  21,  que  inibem  a  calcineurina.  PP2B também desempenha importante papel na inflamação e na imunossupressão; tanto que a ciclosporina, substância inibidora de PP2B, é amplamente utilizada para prevenir a rejeição do órgão transplantado. PP4 é um membro da subfamília PP2A, encontrada no citoplasma, centrômero e núcleo, possuindo diferentes funções, dentre as quais duplicação do centrômero. PP5, encontrada praticamente em todos os tecidos, é uma serina/treoninofosfatase que possui homologia catalítica com a calcineurina  (PP2B)  e  com  as  fosfatases  PP1A  e  PP2A.  PP6  é  encontrada  principalmente  no  núcleo,  onde  participa  da regulação da transcrição. PP2C é abundante nos músculos cardíaco e esquelético, participando de vias de MAP­quinases. As  enzimas  tirosinofosfatases  (PTP)  hidrolisam  resíduos  de  fosfato  ligados  à  tirosina  e  estão  envolvidas  em  várias vias de sinalização. Nos últimos anos, mais de 112 PTP foram isoladas e sequenciadas a partir de diversos organismos, incluindo  bactérias,  leveduras,  nematoides,  insetos  e  vertebrados.  Essa  família  é  subdividida  em  dois  grupos:  proteínas tirosinofosfatases ligadas à membrana (tipo receptor) e citoplasmáticas. As  PTP  são  enzimas  ligadas  à  membrana  (CD45,  PTPα  e  PTPγ),  que  consistem  em  um  segmento  extracelular, semelhante  àqueles  presentes  em  domínios  de  moléculas  de  adesão,  como  a  fibronectina,  seguido  de  um  segmento transmembranar simples, com um ou dois domínios catalíticos intracelulares. As  PTP  citosólicas  (PTP1B,  VH1  e  SHP)  frequentemente  contêm  domínios  extracatalíticos,  que  podem  estar envolvidos  diretamente  na  regulação  da  atividade  catalítica  ou  no  direcionamento  e  reconhecimento  do  substrato.  Como exemplo, podemos citar um par de domínios SH2 que conferem alta capacidade de ligação com proteínas contendo tirosina fosforilada.

▸ Conversas cruzadas As  vias  de  sinalização  interferem  umas  com  as  outras,  de  modo  que  a  resposta  final  do  ajuste  homeostático  de  uma célula  a  sinais  extracelulares  dependerá  do  balanço  das  estimulações  e  inibições  que  determinada  enzima,  fator  de transcrição ou, em última instância, o promotor gênico recebe. Por exemplo, existem adenililciclases que são inibidas por Ca2+;  assim,  um  ligante  que  estimula  um  receptor  acoplado  à  proteína  Gs  evocará  uma  resposta  maior  se  a  célula  não estiver,  ao  mesmo  tempo,  sendo  estimulada  por  um  outro  ligante  que  evoca  aumento  intracelular  de  Ca2+ (Figura 3.36). Outro exemplo interessante é o de receptores nucleares que são fosforilados por PKA ou por MAP­quinases, acoplando a sinalização por receptor nuclear a outras vias de sinalização.

Figura  3.36  ■   Exemplo  de  conversas  cruzadas  entre  vias  de  sinalização  de  receptores  acoplados  a  proteínas  Gs  e  Gq, receptores  enzimáticos  tirosinoquinase  e  receptores  nucleares.  AC,  adenililciclase;  PKA,  proteinoquinase  A;  PKC, proteinoquinase C; Cam KII, proteinoquinase dependente de cálcio/calmodulina; DAG, diacilglicerol;  PLC,  fosfolipase  C;  PIP2, fosfatidilinositol; IP3, trifosfato de inositol; RE, retículo endoplasmático; PTK, receptor tirosinoquinase. (Adaptada de www.sigma­ aldrich.com.)

FINALIZAÇÃO DE SINAL Tão  importante  quanto  iniciar  uma  “conversa”  química  é  saber  terminá­la.  Principalmente,  quando  lembramos  que inúmeros  sinais  estão  sendo  recebidos  pela  mesma  célula,  simultaneamente;  e,  portanto,  centenas  de  mensagens  estão sendo  processadas  pelas  células  em  um  dado  momento.  Os  processos  mais  conhecidos  de  finalização  de  sinal  incluem: fosforilação/desfosforilação proteica, dessensibilização do sistema receptor/via de sinalização, ubiquitinação e inibição por proteínas reguladoras de proteínas G.

▸ Fosforilação/desfosforilação de proteínas A fosforilação de substratos por proteinoquinases é terminada pela retirada do grupo fosfato, por fosfatases. Como já discutido anteriormente, trata­se de um mecanismo fisiológico ágil, na medida em que a regulação da resposta é feita com rapidez e refinamento.

▸ Dessensibilização Consiste  em  um  processo  de  atenuação  do  sinal,  desencadeado,  sob  condições  de  estimulação  longa,  por  muitos hormônios e neurotransmissores. Mesmo com a continuidade do sinal extracelular, este não é mais passado para dentro da célula.  A  dessensibilização  pode  ocorrer  ao  nível  do  receptor  ou  de  componentes  da  via  de  sinalização.  Ao  nível  do receptor,  geralmente  envolve  internalização  do  complexo  receptor/ligante,  por  endocitose;  ou  pode  englobar  mudança conformacional  do  receptor,  por  sua  fosforilação  ou  pela  ligação  a  uma  proteína  citoplasmática.  Esta  mudança

conformacional  coloca  o  receptor  em  uma  conformação  inadequada  para  ele  se  ligar  novamente  ao  ligante  ou  ativar  a proteína G. Em ambas as situações, participam, como elemento central, as β­arrestinas (Figura 3.37). β­arrestinas  são  importantes  para  a  sinalização  da  degradação  de  receptores  acoplados  à  proteína  G  (GPCR).  Isso ocorre  devido  ao  fato  de  as  β­arrestinas  aproximarem  esses  receptores  de  segundos  mensageiros,  como  cAMP  e diacilglicerol  (DAG),  fazendo  então  com  que  estes  entrem  em  contato  com  fosfodiesterases  ou  enzimas  dependentes  de DAG. A ativação dessas enzimas promoveria a degradação desses receptores. Outra  maneira  de  participação  da  β­arrestina  no  processo  de  inativação  desses  receptores  é  a  seguinte:  a  ativação  de receptores  GPCR  geralmente  resulta  em  sua  rápida  fosforilação  por  quinases  específicas  (GRK),  normalmente  sobre resíduos  de  serina  ou  treonina  localizados  no  seu  domínio  intracelular.  Essa  fosforilação  proporciona  uma  superfície  de ligação  para  proteínas  adaptadoras,  como  as  β­arrestinas  que  são  recrutados  a  partir  do  citoplasma  para  o  receptor fosforilado na membrana plasmática. Essa ligação desacopla o receptor da proteína G associada por meio de um processo que  envolve  o  impedimento  estereoquímico,  encerrando  assim  a  ativação  da  proteína  G  pelo  receptor  e  culminando  no processo conhecido como dessensibilização.

Figura 3.37 ■ Papel das arrestinas na dessensibilização e finalização do sinal. As arrestinas ligam­se ao receptor de membrana fosforilado por uma quinase específica, modificando sua conformação e, dessa forma, impedem sua ativação pelo mensageiro extracelular. Em uma segunda instância, o complexo ligante/receptor/arrestina é internalizado por endocitose; o receptor pode,

então, ser reciclado de volta à membrana celular ou ser degradado dentro de lisossomos. L, ligante; GRK, quinase de receptor acoplado à proteína G. (Adaptada de Krauss, 2003.)

Muitos tipos de receptores acoplados à proteína G são alvos de fosforilações por GRK, uma família de serina/treonina proteinoquinases  que,  especialmente,  fosforilam  estes  receptores  após  sua  ativação  por  ligantes.  Essa  fosforilação possibilita,  então,  a  ligação  da  arrestina  à  porção  citoplasmática  do  receptor  fosforilado.  É  possível  duas  rotas  serem seguidas a partir desse evento: (1) o receptor pode ter sua conformação modificada, o que impede a ativação da proteína G ou (2) ele, agora, está apto a associar­se a componentes da maquinaria endocitótica e ser internalizado (ver Figura 3.37). Neste  caso,  a  arrestina  atua  como  uma  proteína  adaptadora,  por  ligar  os  receptores  aos  componentes  da  maquinaria  de transporte,  como  as clatrinas e as proteínas  adaptadoras  AP­2.  Em  mamíferos,  são  conhecidos  quatro  membros  desta família. As arrestinas 1 e 4, visuais, são encontradas apenas em células fotorreceptoras visuais, os cones e bastonetes da retina; ao passo que as 2 e 3, em praticamente todos os tecidos. O resultado final do processo acaba sendo a internalização destes receptores em vesículas, denominadas endossomos. Duas rotas podem ocorrer a seguir: a reciclagem do receptor à membrana ou a degradação do receptor (ver Figura 3.37). Ainda  é  pouco  conhecido  o  que  faz  a  célula  escolher  uma  das  duas  rotas  bioquímicas  possíveis,  mas,  aparentemente, processos que envolvem ubiquitinação estão nessa decisão.

▸ Ubiquitinação Os sistemas proteolíticos intracelulares reconhecem e destroem as proteínas danificadas ou com erros de configuração, as cadeias peptídicas incompletas e as proteínas regulatórias. Há vários mecanismos para a degradação proteica dentro das células.  Os  dois  mais  importantes,  em  resposta  a  estresse  celular,  são:  as  proteases  da  família  das  calpaínas  e  a  via ubiquitina­proteassomo.  Proteassomos  consistem  em  grandes  complexos  com  múltiplas  subunidades,  localizados  no núcleo  e  no  citosol.  Têm  atividade  peptidásica  e  funcionam  como  uma  máquina  catalítica  que,  seletivamente,  degrada proteínas intracelulares. A via ubiquitina­proteassomo atua, amplamente, na reciclagem de proteínas. Ela desempenha um papel central na degradação de proteínas regulatórias importantes, em uma variedade de processos de sinalização celular, incluindo:  ciclo  celular,  transcrição,  modulação  de  receptores  de  membrana  e  de  canais  iônicos,  ou  processamento  e apresentação  de  antígenos.  A  via  emprega  uma  cascata  enzimática,  pela  qual  múltiplas  moléculas  de  ubiquitina  são covalentemente acopladas ao substrato proteico (Figura 3.38). A poliubiquitinação marca a proteína para a destruição e a direciona ao complexo 26S, a fim de sua degradação. A ubiquitina é uma proteína de 76 aminoácidos, altamente conservada ao longo da evolução, encontrada em todos os organismos. A ubiquitinação e a desubiquitinação estão envolvidas na modulação da atividade de quinases e no reparo de DNA.  Por  exemplo,  o  NF­κB,  normalmente  em  células  não  estimuladas,  está  sequestrado  no  citoplasma,  por  estar associado a seu inibidor, o IκB. Após a estimulação por mensageiros extracelulares, o IκB é fosforilado por uma quinase, transformando­se em alvo para a ubiquitinação e subsequente degradação pelo proteassomo 26S. Como resultado, o NF­ κB  está  liberado  para  entrar  no  núcleo  e  atuar  como  fator  de  transcrição  em  muitos  genes­alvo.  Assim,  a  ubiquitinação proteica  emergiu  como  importante  modificação  que  não  só  marca  certas  proteínas  para  serem  degradadas  pelos proteassomos, mas, também, regula funções de outras proteínas de maneira independente da proteólise, tendo participação ativa na sinalização celular.

Figura 3.38 ■ A ubiquitinação de proteínas as transforma em alvo de destruição nos proteassomos 26S. Esse mecanismo é de extrema  importância  na  modulação  da  sinalização  celular.  E1,  enzima  ativadora  de  ubiquitinas;  E2,  enzima  conjugadora  de ubiquitinas; E3, ligase de ubiquitinas. (Adaptada de Krauss, 2003.)

▸ Proteínas reguladoras de proteínas G O sinal evocado por proteínas G pode ainda ser finalizado pela ação das proteínas reguladoras de proteínas G (RGS). Essa família de mais de 30 proteínas intracelulares modula negativamente a cascata intracelular sinalizada pela ativação de receptores acoplados a proteínas G. Embora a atividade GTPásica endógena da proteína Gα seja lenta, sua taxa é acelerada dramaticamente pelas proteínas RGS, que se ligam à subunidade Gα acoplada a GTP, aumentando sua atividade GTPásica. Com isso, as subunidades Gα retornam ao estado inativo ligado a GDP, reassociando­se aos dímeros Gβγ. Ao acelerar o retorno da proteína G ao estado inativo de heterotrímero, as RGS terminam a ativação dos efetores pelas subunidades Gα e Gβγ, regulando dessa maneira a cinética e a amplitude do sinal.

RGS e dependência química Sabe­se hoje que a dependência química é um resultado de adaptações na sinalização dos receptores acoplados a proteínas G no cérebro. Na maioria dos casos, não há alterações significantes nos níveis do neurotransmissor  ou  na  quantidade  de  seus  receptores,  o  que  sugere  que  as  mudanças  devem  estar ocorrendo  na  cascata  intracelular  de  sinalização.  Algumas  dessas  modificações  incluem  superativação  do sistema do cAMP, alterações na taxa de fosforilação de ERK, de reciclagem do receptor ou da função de canais iônicos. Por exemplo, a dependência de morfina tem sido associada à atividade aumentada da via do cAMP, resultando em atividade de disparo elevada nos neurônios do locus coeruleus. Como se sabe que o receptor de opioides atua via Gi/o, portanto diminuindo a produção de cAMP, essa ação da morfina deve se  dar  além  da  ativação  da  proteína  G  pelo  receptor.  De  fato,  ativação  de  adrenorreceptores  α2,  que medeiam  inibição  da  produção  de  cAMP,  aliviam  os  sintomas  de  retirada  da  morfina  do  dependente químico. Uma possibilidade interessante é que drogas que causam dependência podem estar controlando a expressão  das  proteínas  RGS,  que  constituem,  assim,  potenciais  alvos  na  terapêutica  do  dependente químico.

BIBLIOGRAFIA ADIBHATLA RM, HATCHER JF, GUSAIN A. Tricyclodecan­9­yl­xanthogenate (D609) mechanism of actions: a mini­review of literature. Neurochem Res, 37:671­9, 2012. ALBERTS B, JOHNSON A, LEWIS MR et al. Molecular Biology of the Cell. 4. ed. Garland Science, New York, 2002. BACHMANN  VA,  RIML  A,  HUBER  RG  et  al.  Reciprocal  regulation  of  PKA  and  Rac  signaling.  Proc  Natl  Acad  Sci USA, 110:8531­6, 2013. BARCZYK M, CARRACEDO S, GULLBERG D. Integrins. Cell Tissue Res, 339(1):269­80, 2010.

BASCHIERI F, FARHAN H. Crosstalk of small GTPases at the Golgi apparatus. Small GTPases, 3:80­90, 2012. BENDRIS N, SCHMID SL. Endocytosis, metastasis and beyond: multiple facets of SNX9. Trends Cell Biol, 27(3):189­200, 2017. BOLOGNA  Z,  TEOH  JP,  BAYOUMI  AS  et  al.  Biased  G  protein­coupled  receptor  signaling:  new  player  in  modulating physiology and pathology. Biomol Ther, 25:12­25, 2017. BURKHARDT P. The origin and evolution of synaptic proteins – choanoflagellates lead the way. J Exp Biol, 218:506­14, 2015. CALZADA E, ONGUKA O, CLAYPOOL SM. Phosphatidylethanolamine metabolism in health and disease. Int Rev Cell Mol Biol, 321:29­88, 2016. COCCO  L,  FOLLO  MY,  MANZOLI  L  et  al.  Phosphoinositide­specific  phospholipase  C  in  health  and  disease.  J  Lipid Res, 56:1853­60, 2015. DAHL G, MULLER KJ. Innexin and pannexin channels and their signaling. FEBS Letters, 588:1396­402, 2014. DEMA  A,  PERETS  E,  SCHULZ  MS  et  al.  Pharmacological  targeting  of  AKAP­directed  compartmentalized  cAMP signaling. Cell Signal, 27:2474­87, 2015. FISCHER MJ, MCNAUGHTON PA. How anchoring proteins shape pain. Pharmacol Ther, 143(3):316­22, 2014. FOOT N, HENSHALL T, KUMAR S. Ubiquitination and the regulation of membrane proteins. Physiol Rev, 97(1):253­81, 2017. FUSHIKI  D,  HAMADA  Y,  YOSHIMURA  R et al.  Phylogenetic  and  bioinformatic  analysis  of  gap  junction­related  proteins, innexins, pannexins and connexins. Biomed Res, 31:133­42, 2010. HADLEY ME. Endocrinology. 5. ed. Prentice Hall, Upper Saddle River, 2000. HANDLY  LN,  PILKO  A,  WOLLMAN  R.  Paracrine  communication  maximizes  cellular  response  fidelity  in  wound signaling. Elife, 4:e09652, 2015. HENGGE  AC.  Kinetic  isotope  effects  in  the  characterization  of  catalysis  by  protein  tyrosine  phosphatases.  Biochim  Biophys Acta, 1854:1768­75, 2015. HILLENBRAND M, SCHORI C, SCHÖPPE J et al. Comprehensive analysis of heterotrimeric G­protein complex diversity and their interactions with GPCRs in solution. Proc Natl Acad Sci USA, 112:E1181­90, 2015. HOQUE  M,  RENTERO  C,  CAIRNS  R  et  al.  Annexins  –  Scaffolds  modulating  PKC  localization  and  signaling.  Cell Signal, 26:1213­25, 2014. HUANG  H,  WANG  H,  FIGUEIREDO­PEREIRA  ME.  Regulating  the  ubiquitin/proteasome  pathway  via  cAMP­signaling: neuroprotective potential. Cell Biochem Biophys, 67:55­66, 2013. INSERTE J, GARCIA­DORADO D. The cGMP/PKG pathway as a common mediator of cardioprotection: translatability and mechanism. Br J Pharmacol, 172:1996­2009, 2015. KAWAMURA K. A hypothesis: life initiated from two genes, as deduced from the RNA world hypothesis and the characteristics of life­like systems. Life, 6(3). pii: E29, 2016. KENNEDY JE, MARCHESE A. Regulation of GPCR trafficking by ubiquitin. Prog Mol Biol Transl Sci, 132:15­38, 2015. KITAGAWA  M.  Notch  signalling  in  the  nucleus:  roles  of  Mastermind­like  (MAML)  transcriptional  coactivators.  J Biochem, 159(3):287­94, 2015. KITZEN JJ, de JONGE MJ, VERWEIJ J. Aurora kinase inhibitors. Crit Rev Oncol Hematol, 73:99­110, 2010. KORKUT C, BUDNIK V. WNTs tune up the neuromuscular junction. Nature Rev Neuroscience, 10:627­34, 2009. KRAUSS G. Biochemistry of Signal Transduction and Regulation. 3. ed. Wiley­VCH Gmbh & Co., Weinheim, 2003. LABAT­ROBERT J. Cell­matrix interactions, the role of fibronectin and integrins. A survey. Pathol Biol, 60:15­9, 2012. LEFKIMMIATIS K, ZACCOLO M. cAMP signaling in subcellular compartments. Pharmacol Ther, 143:295­304, 2014. LITOSCH I. Decoding Gαq signaling. Life Sci, 152:99­106, 2016. LORENZ R, BERTINETTI D, HERBERG FW. cAMP­dependent protein kinase and cGMP­dependent protein kinase as cyclic nucleotide effector. Handb Exp Pharmacol, 238:105­22, 2017. MAGIEROWSKI  M,  MAGIEROWSKA  K,  KWIECIEN  S  et  al.  Gaseous  mediators  nitric  oxide  and  hydrogen  sulfide  in  the mechanism of gastrointestinal integrity, protection and ulcer healing. Molecules, 20:9099­123, 2015. MOKRYA  J,  Mokra  D.  Immunological  aspects  of  phosphodiesterase  inhibition  in  the  respiratory  system.  Respir  Physiol Neurobiol, 187:11­7, 2013. OSHIMA A. Structure and closure of connexin gap junction channels. FEBS Letters. 588:1230­7, 2014. RADTKE F, FASNACHT N, MACDONALD HR. Notch signaling in the immune system. Immunity, 32(1):14­27, 2010. RIAZ  A,  HUANG  Y,  JOHANSSON  S.  G­Protein­coupled  lysophosphatidic  acid  receptors  and  their  regulation  of  AKT signaling. Int J Mol Sci, 17(2):215, 2016. RINALDI  L,  SEPE  M,  DONNE  RD  et  al.  A  dynamic  interface  between  ubiquitylation  and  cAMP  signaling.  Front Pharmacol, 6:177, 2015. SAEKI Y. Ubiquitin recognition by the proteasome. J Biochem, 161(2):113­24, 2017.

SHATTI SJ, KIM C, GINSBERG MH. The final steps of integrin activation: the end game. Nat Rev Mol Cell Biol, 11(4):288­300, 2010. SKERRETT IM, WILLIAMS JB. A structural and functional comparison of gap junction channels composed of connexins and innexins. Dev Neurobiol, 77(5):522­47, 2017. SYROVATKINA  V,  ALEGRE  KO,  DEY  R  et  al.  Regulation,  signaling,  and  physiological  functions  of  G­proteins.  J  Mol Biol, 428(19):3850­68, 2016. THEILIG  F,  WU  Q.  ANP­induced  signaling  cascade  and  its  implications  in  renal  pathophysiology.  Am  J  Physiol  Renal Physiol, 308:F1047­55, 2015. THOMSEN  AR,  PLOUFFE  B,  SHUKLA  AK  et  al.  GPCR­G  protein­b­arrestin  super­complex  mediates  sustained  G  protein signaling. Cell, 166:907­19, 2016. TIAN X, KANG DS, BENOVIC JL. β­arrestins and G protein­coupled receptor trafficking. Handb Exp Pharmacol, 219:173­86, 2014. TRAYNOR J. Regulator of G protein­signaling proteins and addictive drugs. Ann NY Acad Sci, 1187:341­52, 2010. VOLLE DH. Nuclear receptors as pharmacological targets, where are we now? Cell Mol Life Sci, 73(20):3777­80, 2016. YEN MR, SAIER Jr. MH. Gap junctional proteins of animals: the innexin/pannexin superfamily. Prog Biophys Mol Biol, 94(1­ 2):5­14, 2007. ZHANG F, ZHANG L, QI Y et al. Mitochondrial cAMP signaling. Cell Mol Life Sci, 73(24):4577­90, 2016. ZHOU L, BOHN LM. Functional selectivity of GPCR signaling in animals. Curr Opin Cell Biol, 27:102­8, 2014.



Introdução

■ ■

Endereçamento de novas proteínas para a via secretora Transporte e localização de proteínas na via secretora

■ ■ ■

Transporte de proteínas na rede trans­Golgi Papel do cálcio na via secretora Importância do pH na via secretora

■ ■

Considerações finais Bibliografia

INTRODUÇÃO Para  o  correto  funcionamento  do  organismo,  as  células  precisam  comunicar­se  umas  com  as  outras  e  ser  capazes  de responder  rapidamente  às  mudanças  no  ambiente  em  que  vivem.  A  membrana  plasmática,  composta  por  uma  bicamada lipídica  e  proteínas  acessórias,  é  de  suma  importância  para  que  a  célula  seja  capaz  de  responder  a  diferentes  estímulos. Além  da  membrana  plasmática,  as  células  possuem  um  complexo  sistema  de  membranas  internas,  que  formam  diversos compartimentos  intracelulares  funcionais,  as  organelas.  Cada  organela  é  envolta  por  membrana  e  possui  um  conjunto  de proteínas que lhe confere propriedades funcionais e estruturais características. A compartimentalização das células permite a  separação  de  espaços  do  citosol,  o  que  aumenta  a  capacidade  da  célula  de  ter  locais  específicos  para  a  realização  de diferentes processos. No entanto, apesar dessa compartimentalização, as organelas possuem ampla comunicação entre si e com  a  membrana  plasmática,  por  meio  de  vesículas  de  transporte.  Assim,  por  meio  de  um  processo  denominado exocitose, a via biossintético­secretora faz a entrega de proteínas, carboidratos e lipídios recém­sintetizados na célula para a membrana plasmática ou para o meio extracelular. Já por meio do processo denominado endocitose, as células fazem a remoção  de  componentes  da  membrana  plasmática  ou  então  capturam  moléculas  do  compartimento  extracelular  e  as entregam aos endossomos, organelas responsáveis pela reciclagem e/ou degradação. O transporte dessas moléculas é feito por  meio  de  vesículas  transportadoras,  que  brotam  de  uma  membrana  e  se  fundem  a  outra,  em  um  processo  regulado, equilibrado e organizado. As vesículas transportadoras devem ser capazes de direcionar corretamente as moléculas a serem transportadas,  fusionando­se  apenas  às  membranas­alvo  adequadas.  Neste  capítulo  serão  discutidos  os  mecanismos  de organização, função, regulação e interação das diferentes organelas da via biossintético­secretora.

ENDEREÇAMENTO DE NOVAS PROTEÍNAS PARA A VIA SECRETORA A  maioria  das  proteínas  é  sintetizada  nos  ribossomos  citoplasmáticos  e  então  translocadas  para  o  retículo endoplasmático (RE), onde a cadeia polipeptídica será corretamente dobrada. Quando uma proteína se dobra, forma uma estrutura compacta, com a maioria dos resíduos hidrofóbicos voltados para a região central. Além disso, as ligações não covalentes entre as diversas partes da molécula participam do dobramento final da cadeia polipeptídica, e assim a proteína

adquire  a  sua  conformação  tridimensional  característica  e  funcional.  O  destino  final  de  cada  proteína  dependerá  da  sua sequência de aminoácidos e dos sinais de endereçamento que possui. As proteínas secretadas e as proteínas de membrana plasmática  são  coletadas  por  vesículas  no  RE  e  enviadas  ao  aparelho  de  Golgi  inicial,  também  denominado  cis­Golgi (Brandizzi e Barlowe, 2013). As proteínas podem então permanecer no aparelho de Golgi como residentes permanentes ou ser  distribuídas  na  rede trans­Golgi  (TGN),  de  onde  serão  direcionadas  para  os  endossomos,  lisossomos  ou  membrana plasmática (Glick e Luini, 2011; Papanikou e Glick, 2014) (Figura 4.1). O transporte entre os diferentes compartimentos é bidirecional – simultaneamente ao transporte do RE para o aparelho de Golgi (transporte anterógrado), há o transporte no sentido contrário, ou seja, de proteínas do aparelho de Golgi para o RE (transporte retrógrado) (Spang, 2013). Portanto, o transporte intracelular de proteínas envolve um sensível equilíbrio entre  as  vias  anterógradas  e  retrógadas,  isto  é,  existem  vesículas  de  transporte  que  levam  as  proteínas  para  o  próximo compartimento,  enquanto  outras  fazem  o  recolhimento  de  proteínas  perdidas,  levando­as  para  o  compartimento  anterior (Spang, 2013).

TRANSPORTE E LOCALIZAÇÃO DE PROTEÍNAS NA VIA SECRETORA

▸ Transporte anterógrado entre o RE e o aparelho de Golgi A  via  secretora  é  essencial  para  as  atividades  celulares  e  envolve  a  síntese,  a  modificação,  a  seleção  e  a  secreção  de proteínas para outros locais, como as organelas e a membrana plasmática, bem como para o meio extracelular. Alterações na regulação dessa via estão implicadas em uma ampla gama de doenças, como doenças neurodegenerativas (Milosevic et al., 2011) e neuromusculares (Gonzalez­Jamett et al., 2014), entre outras, e por isso têm ganhado mais atenção (Otomo et al., 2015). Durante  o  transporte  do  RE  para  o  aparelho  de  Golgi  e  deste  para  a  superfície  celular,  as  proteínas  passam  por diferentes  compartimentos,  onde  serão  maturadas  e  processadas  (Benham,  2012).  As  proteínas  são  primeiramente sintetizadas  nos  ribossomos  e  então  translocadas  para  o  lúmen  do  RE,  onde  são  dobradas  e  modificadas  pós­ traducionalmente, por exemplo, por glicosilação (Braakman e Bulleid, 2011). As proteínas recém­sintetizadas atravessam a  membrana  do  RE  e  são  direcionadas  para  regiões  especializadas  denominadas  regiões  de  transição  do  RE  ou  sítios  de saída do RE (ERES) (Bevis et al., 2002; Shindiapina e Barlowe, 2010; Barlowe e Miller, 2013). Os ERES fazem parte de  uma  grande  estrutura  denominada  complexos  de  exportação  (Bannykh  et  al.,  1996),  que  compreendemum  ou  mais elementos  de  ERES,  que  emitem  brotos  voltados  para  uma  cavidade  central  contendo  várias  vesículas  e  túbulos, conhecidos  como  agregados  tubulovesiculares  (VTC,  tubulovesicular  clusters)  (Schweizer  et  al.,  1991;  Balch  et  al., 1994).  Em  células  de  mamíferos,  os  ERES  estão  distribuídos  ao  longo  de  todo  o  citoplasma;  no  entanto,  estão  mais concentrados  próximo  ao  aparelho  de  Golgi  (Watson  e  Stephens,  2005).  Nesses  locais  brotam  as  chamadas  vesículas revestidas  com  proteína  COPII  (vesículas  COPII)  (Johnson  et  al.,  2015;  Ujike  e  Taguchi,  2015),  que  farão  o empacotamento das proteínas recém­sintetizadas e processadas e as direcionarão para o compartimento intermediário entre o  RE  e  o  aparelho  de  Golgi,  também  conhecido  como  ERGIC  (Schweizer et al., 1991; Hauri et al.,  2000;  Appenzeller­ Herzog e Hauri, 2006) (ver Figura 4.1). O RE é uma rede interconectada de túbulos e cisternas que se estendem por todo o citoplasma (Voeltz et al., 2002). Já o  aparelho  de  Golgi  consiste  em  uma  gama  de  subcompartimentos  achatados,  denominados  cisternas,  que  variam  em composição  (Papanikou  e  Glick,  2009;  2014).  Basicamente,  o  aparelho  de  Golgi  é  formado  por  três  tipos  de subcompartimentos, denominados cis­Golgi, Golgi intermediário e trans­Golgi (Schoberer e Strasser, 2011). As proteínas provenientes  do  RE/ERGIC  entram  pela  face cis­Golgi,  por  um  processo  que  envolve  o  direcionamento  e  a  fusão  das vesículas COPII (Hauri et al., 2000; Appenzeller­Herzog e Hauri, 2006;Barlowe e Miller, 2013). De fato, COPII participa do  processo  de  deformação  da  membrana  e  geração  das  vesículas  transportadoras  (Barlowe  et  al.,  1994;  Bonifacino  e Glick, 2004).

Figura 4.1 ■ Via secretora biossintética. As proteínas e lipídios sintetizados no retículo endoplasmático (RE) são transportados em vesículas COPII para o compartimento intermediário entre o RE e o aparelho de Golgi, denominado ERGIC. Seguem, então, para a porção cis do  aparelho  de  Golgi,  e  depois  são  transportadas  ao  longo  das  porções  medial  e trans,  até  alcançarem  a rede trans­Golgi (TGN), onde serão selecionados para seu destino: lisossomos, membrana plasmática ou meio extracelular. O transporte retrógrado entre o aparelho de Golgi e o RE é mediado pelas vesículas COPI. (Adaptada de Kienzle e Von Blume, 2014.)

A subsequente passagem pelo aparelho de Golgi expõe as proteínas a maturação e processamento, até a sua saída pela face trans­Golgi. O direcionamento final da proteína ocorre na rede trans­Golgi (TGN), e as proteínas podem então seguir para  outras  organelas,  para  a  membrana  plasmática  ou  para  o  meio  extracelular  (Rodriguez­Boulan  e  Musch,  2005; Papanikou  e  Glick,  2014).  Na  TGN  ocorre  a  separação  de  duas  vias  secretoras:  a  constitutiva  e  a  regulada.  Todas  as células realizam a secreção constitutiva, também denominada secreção­padrão, que ocorre continuamente e faz o aporte de proteínas e lipídios para a membrana plasmática. Essa via não parece depender de um sinal definido e, assim, as proteínas são  automaticamente  carregadas  do  lúmen  do  aparelho  de  Golgi  para  a  superfície  celular  e  secretadas  por  exocitose (Zhang  et  al.,  2010).  As  células  secretoras  especializadas,  além  da  secreção  constitutiva,  fazem  uma  secreção  mais complexa e específica, denominada secreção regulada. Na TGN, proteínas que serão secretadas são selecionadas por meio de  sinais  específicos  e  então  distribuídas  para  vesículas  secretoras,  onde  serão  concentradas  e  armazenadas  até  que  um estímulo extracelular estimule a fusão das vesículas à membrana e a secreção de seu conteúdo (Otte e Barlowe, 2004).

Formação das vesículas COPII

O transporte de proteínas­carga do RE para o aparelho de Golgi é feito por meio de vesículas COPII (Figura 4.2). As vesículas COPII são compostas de cinco proteínas, Sar1, Sec23, Sec24, Sec13 e Sec31, que formam a maquinaria mínima para  a  sua  formação  (Barlowe  e  Miller,  2013).  A  montagem  das  vesículas  COPII  na  membrana  do  RE  ocorre  em diferentes  estágios,  começando  pelo  recrutamento  da  Sar1.  A  Sar1  é  uma  GTPase  da  família  das  proteínas  Arf  e desempenha um papel central no recrutamento da proteína­carga e na formação das vesículas COPII (Budnik e Stephens, 2009). A montagem do revestimento COPII (COPII­coat) depende da ativação da GTPase Sar1 por Sec12 (GEF, fator de troca  nucleotídio  guanina).  Essa  ativação  causa  a  exposição,  na  região  N­terminal  de  Sar1,  de  uma  alfa­hélice  anfifática que leva à inserção da Sar1 na membrana do RE (Bi et al., 2002; Bielli et al., 2005; Lee et al., 2005). Essa inserção gera a  curvatura  inicial  da  membrana,  crucial  na  formação  da  vesícula.  Logo  em  seguida,  a  Sar1,  que  se  encontra  ligada  ao trifosfato  de  guanosina  (GTP),  recruta  o  heterodímero  Sec23/24  para  a  região  interna  da  vesícula  em  formação (Matsuoka et al.,  1998;  2001;  Bi  et  al.,  2002).  A  Sec24  é  a  principal  proteína  adaptadora  para  o  revestimento  COPII (Miller et al., 2003). Já a Sec23 possui um resíduo de arginina que leva à sua inserção no sítio catalítico de Sar1 (Bi et al., 2002), resultando na estimulação da atividade GTPase de Sar1, por meio da estabilização de grupos fosfato. Após o recrutamento  de  todos  os  elementos,  forma­se  uma  vesícula  pré­brotamento.  Outro  complexo,  o  Sec13/Sec31  é posteriormente recrutado, agora para a região externa da vesícula. A ligação de Sec31 a Sec23/Sar1 reorienta o resíduo de arginina de Sec23 e aumenta a atividade GTPase de Sar1 em 4 a 10 vezes (Antonny et al., 2001; Bi et al., 2007). Além disso, o complexo Sec13/Sec31 forma a camada externa da vesícula COPII (Matsuoka et al., 2001), direciona ainda mais a curvatura da membrana para a formação da vesícula e auxilia a formação de uma estrutura rígida, que facilita o próximo passo na formação das vesículas COPII, ou seja, a fissão da membrana. Esse processo é mediado pela habilidade da hélice anfifática  N­terminal  de  Sar1  de  se  inserir  na  membrana  e  induzir  uma  assimetria  entre  as  camadas  internas  e  externas, promovendo  a  curvatura  e  criando  agregados  de  lipídios  que  resultam  em  fissão  e  brotamento  da  vesícula  COPII (Brown et al.,  2008;  Long et al.,  2010).  Logo  após  o  brotamento,  as  vesículas  COPII  perdem  o  seu  revestimento,  em razão da hidrólise de GTP mediada por Sar1 (Oka e Nakano, 1994).

Figura 4.2 ■ Formação de vesículas COPII. A montagem das vesículas COPII na membrana do retículo endoplasmático inicia­se com a ativação da GTPase Sar1, por meio de Sec12, um fator de troca de nucleotídio guanina. A Sar1 ativada interage com o heterodímero Sec23/24. O complexo Sec13/Sec31 também é recrutado, favorecendo a estrutura rígida da vesícula. A fissura da vesícula é mediada pela habilidade da hélice anfifática N­terminal de Sar1 de se inserir na membrana e induzir uma assimetria entre as camadas interna e externa, promovendo a curvatura da membrana e criando agregados de lipídios que resultam na fissão e no brotamento da vesícula COPII. (Adaptada de Venditti et al., 2014.)

Apesar de as proteínas descritas representarem a maquinaria mínima necessária para o transporte das vesículas COPII, há diversos complexos e proteínas adicionais e acessórias responsáveis por modular o recrutamento do revestimento das vesículas  e  o  seu  transporte.  Dentre  esses  fatores,  destaca­se  a  Sec16,  que  se  localiza  nos  sítios  de  saída  do  RE  (os ERES),  sendo  importante  para  a  manutenção  destes  (Watson  et  al.,  2006;  Hughes  et  al.,  2009).  A  Sec16  interage fisicamente  com  todas  as  proteínas  das  vesículas  COPII,  bem  como  com  proteínas  da  membrana  do  RE  (Whittle  e Schwartz, 2010; Montegna et al., 2012; Yorimitsu e Sato, 2012). Algumas proteínas do RE também participam ativamente do processo de formação das vesículas COPII. Um exemplo é a proteína transmembrana TANGO1 (Budnik e Stephens, 2009). Tem sido sugerido que TANGO1, complexado ao seu

par cTAGE5, interage com o colágeno no lúmen do RE e com o complexo Sec23/24, favorecendo assim o recrutamento de Sec31, a hidrólise de GTP por Sar1 e a excisão da vesícula (Saito et al., 2009) (ver Figura 4.2). Além disso, as proteínas que serão carregadas pelas vesículas também influenciam diretamente na sua biogênese. As proteínas podem, assim, influenciar a formação das vesículas por meio de vários fatores, como quantidade e tamanho das proteínas­carga  a  serem  transportadas;  ligação  de  peptídios  sinais  às  proteínas  formadoras  da  vesícula  COPII; estabilização das vesículas; regulação da atividade de GTPase da Sar1; e geometria (tamanho e forma) das vesículas (Sato e Nakano, 2007; Quintero et al., 2010; Dong et al., 2012; Venditti et al., 2014). Os sinais que direcionam a saída das proteínas solúveis para fora do RE em direção ao aparelho de Golgi não foram completamente elucidados. Sabe­se, no entanto, que algumas proteínas transmembrana de RE servem como receptores de carga  para  empacotar  algumas  proteínas  de  secreção  nas  vesículas  revestidas  de  COPII.  Os  principais  receptores  são lectinas que se ligam a oligossacarídios. Um dos principais, denominado ERGIC­53, faz a ligação das proteínas­carga a serem  transportadas  com  a  maquinaria  da  vesícula,  assegurando  o  correto  endereçamento  dessas  moléculas  para  as vesículas  nascentes  e  então  para  o  ERGIC.  ERGIC­53  é  uma  lectina  ligada  à  manose,  necessária  para  a  exportação  de várias  proteínas  de  carga  do  RE  (Nichols et al.,  1998;  Appenzeller et al.,  1999).  O  seu  recrutamento  para  as  vesículas COPII é realizado por meio da ligação a Sec23 (Kappeler et al., 1997); em seguida, são reciclados de volta ao RE quando a vesícula chega ao ERGIC (Schindler et al., 1993). As vesículas nascentes perdem seus revestimentos e se fundem para formar o compartimento intermediário entre o RE e o Golgi, ou seja, o ERGIC ou agregados tubulovesiculares (VTC). Há muito tempo discute­se na literatura se o ERGIC e o VTC são dois compartimentos diferentes ou apenas variantes de um mesmo compartimento. De fato, há evidências da existência  de  ambos  coexistindo  em  células  de  mamíferos,  com  diferentes  dinâmicas,  porém  funções  semelhantes (Verissimo  e  Pepperkok,  2013).  Desse  modo,  formam­se  os  chamados  agrupamentos  tubulares  de  vesículas,  que perduram por um curto período de tempo e se movem ao longo de microtúbulos em direção ao aparelho de Golgi, onde se fusionarão para entregar as proteínas­carga. Após  o  ancoramento  da  vesícula  contendo  as  proteínas­carga  à  membrana­alvo  no  ERGIC  ou  VTC,  ocorrerão aproximação  e  fusão  das  membranas,  permitindo  assim  o  descarregamento  do  conteúdo  das  vesículas.  Para  que  esse processo  ocorra  de  maneira  adequada,  proteínas  de  ligação  do  NSF  sináptico  alfassolúvel  (SNARE)  catalisam  a  reação. SNARE  são  proteínas  transmembrana  e  existem  como  conjuntos  complementares,  ou  seja,  t­SNARE  encontram­se  na membrana­alvo  enquanto  v­SNARE  encontram­se  na  membrana  das  vesículas  (Bonifacino  e  Glick,  2004;  Spang,  2013; Verissimo e Pepperkok, 2013).

▸ Transporte retrógrado entre o RE e o aparelho de Golgi Como mencionado anteriormente, o tráfego entre o RE e o aparelho de Golgi também pode ocorrer no sentido inverso, ou seja, as proteínas podem fazer o caminho retrógrado e serem devolvidas para o compartimento anterior. O transporte retrógrado é responsável pela manutenção das proteínas residentes do aparelho Golgi. Neste caso, as proteínas residentes do  aparelho  de  Golgi  se  reciclam,  permanecendo  na  organela,  enquanto  as  proteínas  sintetizadas  se  movem anterogradamente (Glick e Luini, 2011; Morriswood e Warren, 2013; Papanikou e Glick, 2014). Esse transporte também é mediado por vesículas, porém agora revestidas de outra proteína, a COPI (Watson e Stephens, 2005).

Formação das vesículas COPI Assim que os agrupamentos tubulares de vesículas se formam, vesículas derivadas deles próprios também começam a brotar, porém estas são revestidas de COPI em vez de COPII. Essas vesículas fazem o transporte retrógrado de proteínas residentes,  bem  como  de  proteínas  que  participaram  da  própria  reação  de  brotamento  de  vesículas  do  RE.  De  fato,  a montagem do revestimento COPI dessas vesículas inicia­se logo após a remoção de COPII. Como ocorre com COPII, o heptâmero  COPI  é  recrutado  para  a  membrana  do  aparelho  de  Golgi  por  uma  GTPase,  a  Arf1,  e  tem  a  dupla  função  de favorecer  a  curvatura  da  membrana  e  ligar­se  a  proteínas­carga  ou  receptores  por  meio  do  reconhecimento  de  sinais  em suas alças citoplasmática (Dancourt e Barlowe, 2010). Apesar de o transporte anterógrado do RE para o aparelho de Golgi ser mediado sempre por vesículas COPII, há mais de  um  mecanismo  envolvido  no  transporte  retrógrado.  Além  do  transporte  dependente  de  vesículas  cobertas  com  o complexo proteico COPI, há outros mecanismos que envolvem transporte independente de COPI. As vias independentes de  COPI  têm  sido  muito  menos  estudadas  e  caracterizadas.  Estudos  indicam  ser  uma  via  envolvida  na  reciclagem constitutiva de enzimas do aparelho de Golgi, bem como no transporte retrógrado de proteínas de membrana. Essa via é

regulada  por  uma  pequena  GTPase  pertencente  à  família  Rab,  a  Rab6A,  e  parece  envolver  estruturas  tubulares  e  não vesículas carregadoras (Pfeffer, 2013). Essa  via  retrógrada,  de  recuperação  de  proteínas,  depende  de  sinais  de  recuperação  do  RE  para  acelerar  o  processo. Para as proteínas de membrana do RE, o sinal mais bem caracterizado chama­se sequência KKXX. Ele consiste em duas Lys  (lisina,  letra  K  do  código  de  aminoácidos),  seguidas  por  outros  dois  aminoácidos  quaisquer,  e  encontra­se  na extremidade  C­terminal  das  proteínas.  Já  para  as  proteínas  solúveis  do  RE,  a  sequência  mais  conhecida  é  a  KDEL,  que consiste em uma sequência de Lys­Asp­Glu­Leu (lisina, aspartato, glutamato e leucina). Algumas proteínas, porém, não dependem desses sinais e entram aleatoriamente nas vesículas COPI. No entanto, a sua taxa de recuperação é muito mais lenta (Spang, 2013).

TRANSPORTE DE PROTEÍNAS NA REDE TRANS­GOLGI Por  muito  tempo  se  acreditou  que  o  aparelho  de  Golgi,  juntamente  com  RE,  lisossomos,  endossomos,  vesículas  de transporte  e  membranas  nucleares  e  plasmática,  formava  um  complexo  integrado,  de  compartimentos  estáveis, denominado sistema endomembranas (Mollenhauer e Morre, 1974). Atualmente, esse conceito tem sido substituído pelo tráfego através da via secretora/endossomal (Lippincott­Schwartz et al., 2000; Lowe e Barr, 2007; Glick e Nakano, 2009). Ao  longo  da  passagem  pelas  diferentes  cisternas  do  aparelho  de  Golgi,  as  moléculas  carregadas  sofrem  sucessivas modificações covalentes. Cada cisterna possui um aparato próprio e complexo de enzimas de processamento. Assim, cada etapa é importante, e a molécula somente evoluirá em seu processamento se tiver sido adequadamente processada na etapa anterior.  Hoje  se  sabe  que  as  etapas  de  processamento  ocorrem  em  uma  sequência  tanto  bioquímica  como  espacial  –  ou seja,  as  enzimas  que  fazem  o  processamento  inicial  das  moléculas  encontram­se  na  face cis,  enquanto  as  envolvidas  no processamento final encontram­se próximas à face trans das cisternas. Existem dois modelos que tentam explicar o transporte através do aparelho de Golgi: modelo de transporte vesicular e modelo de maturação de cisternas (Figura 4.3). De acordo com o modelo de transporte vesicular, o aparelho de Golgi seria uma  estrutura  relativamente  estática.  As  suas  enzimas  seriam  mantidas  no  lugar,  enquanto  as  moléculas­carga  seriam transportadas nas vesículas de transporte. O fluxo retrógrado recuperaria proteínas que tivessem escapado do aparelho de Golgi e do RE.

Figura 4.3 ■ Transporte através do aparelho de Golgi. De acordo com o modelo de transporte vesicular (à esquerda), o aparelho de Golgi seria uma estrutura relativamente estática e as suas enzimas seriam mantidas no lugar, enquanto as moléculas­cargo seriam transportas nas vesículas de transporte COPI. Já de acordo com o modelo de maturação de cisternas, mais aceito na atualidade, o aparelho de Golgi teria uma estrutura dinâmica e, assim, as suas próprias cisternas se moveriam. Neste modelo, o tráfego  anterógrado  no  aparelho  de  Golgi,  da  face  cis  para  a  face  trans,  ocorreria  pela  síntese  de  novo  de  cisternas,  que sofreriam progressiva maturação. O fluxo retrógrado seria mediado pelas vesículas COPI, encarregadas de trazer de volta as enzimas das cisternas finais para as iniciais. (Adaptada de McDermott e Mousley, 2016.)

Já no segundo modelo, mais aceito na atualidade, o aparelho de Golgi teria uma estrutura dinâmica e, assim, as suas próprias cisternas se moveriam. Nesse modelo, o tráfego no aparelho de Golgi, da face cis para a face trans, ocorreria pela

síntese de novo de cisternas, que sofreriam progressiva maturação (Day et al., 2013). O fluxo retrógrado, mediado pelas vesículas COPI, carregaria de volta as enzimas das cisternas iniciais. Após a sua passagem pelo aparelho de Golgi, as moléculas são direcionadas para a TGN, onde terão seu destino final definido.  Dependendo  do  tipo  de  célula,  os  destinos  incluem:  membranas  apical  e  basolateral,  endossomos,  lisossomos, grânulos de secreção, dentre outros (Traub e Kornfeld, 1997). Na  maioria  das  células,  a  TGN  apresenta­se  como  uma  estrutura  que  emerge  das  duas  últimas  cisternas  trans  (De Matteis e Luini, 2008) (Figura 4.4). Em contraste com a exportação do RE, que ocorre em domínios estáveis, os ERES, a exportação  da  TGN  parece  ser  bem  mais  complexa.  Estudos  têm  demonstrado  a  existência  de  domínios  de  saída, compostos  por  diversos  tipos  de  lipídios,  vesículas  e  agrupamentos  tubulares,  enriquecidos  com  moléculas­carga  e maquinaria de brotamento, porém desprovidas de proteínas residentes do aparelho de Golgi (Gleeson et al., 2004). Esses domínios  de  saída  são  formados  por  microambientes  únicos,  sendo  sua  formação  altamente  dinâmica  e  dependente  de influxo das moléculas­carga (De Matteis e Luini, 2008). Os principais atuantes nesse processo de distribuição das moléculas da TGN incluem adaptadores citosólicos que são recrutados até a membrana da TGN para, direta ou indiretamente, ligarem­se às moléculas­carga. Algumas proteínas, em particular as luminais, associam­se aos adaptadores indiretamente por meio de receptores transmembrana (ver Figura 4.4). A saída da TGN ocorre principalmente por vesículas revestidas por clatrina, a mesma proteína que faz o revestimento de vesículas  endocíticas.  Em  geral,  a  clatrina  não  se  associa  diretamente  às  moléculas­carga,  por  isso  a  importância  dos adaptadores  (Ladinsky  et  al.,  2002).  A  polimerização  da  clatrina  associada  aos  adaptadores  forma  regiões  cobertas  na membrana, que facilitam então a sua deformação e a formação das vesículas (Guo et al., 2014). Uma vez que as vesículas cobertas  de  clatrina  são  liberadas,  as  proteínas  ancoradas  à  membrana  da  vesícula  se  dissociam  para  participar  de  novos ciclos  de  distribuição  de  proteínas  na  TGN.  Dentre  as  proteínas  adaptadoras,  as  mais  conhecidas  são  os  complexos heterotetraméricos de proteínas adaptadoras (AP), fosfatidilinositóis (PIP), fator de ribosilação do ADP (ARF), proteínas ligadoras de ARF (GGA) e as proteínas epsin (Guo et al., 2014). A família dos complexos AP, que incluem AP­1, AP­2, AP­3, AP­4 e AP­5, participa do tráfego intracelular, incluindo as vias de transporte para os endossomos, bem como para a  membrana  basolateral  de  células  epiteliais  (Hirst  et  al.,  2013).  Apesar  da  importância  dos  PIP  para  o  processo  de distribuição,  eles  sozinhos  não  fornecem  especificidade  sem  as  GTPases  da  família  ARF  (Yorimitsu et al., 2014). Já as GGA  contribuem  para  o  recrutamento  da  clatrina  pela  interação  com  a  região  N­terminal  da  cadeia  pesada  da  clatrina (Puertollano et al., 2001; Stahlschmidt et al., 2014).

PAPEL DO CÁLCIO NA VIA SECRETORA Diversos  aspectos  da  vida  celular  são  afetados  e  dependem  do  cálcio  (Ca2+),  que  é  considerado  uma  molécula sinalizadora  evolutivamente  conservada.  Esse  íon  possui  funções  na  transmissão  sináptica,  contração  muscular,  secreção de grânulos, expressão gênica, reparo da membrana celular, autofagia, entre outros (Parys et al., 2012). O Ca2+ adiciona carga às proteínas ligadoras de Ca2+ e, assim, leva à mudança conformacional destas e torna­as sensores de Ca2+. Existem centenas  de  proteínas  que  atuam  como  sensores  de  Ca2+  com  propriedades  de  afinidade  de  ligação  ao  íon  variando  de nanomolar (nM) a milimolar (mM) (Distelhorst e Bootman, 2011; Parys et al., 2012). O citosol apresenta concentrações de Ca2+ na ordem de 100 nM, enquanto no espaço extracelular chega a 2 mM e, nos compartimentos  intracelulares,  varia  entre  0,5  e  1  mM.  Portanto,  existem  elevados  gradientes  de  Ca2+ entre  esses  locais (Distelhorst  e  Bootman,  2011;  Van  Petegem,  2015),  que  são  estabelecidos  por  transportadores  de  Ca2+  localizados  na membrana plasmática e nas membranas das organelas (Decuypere et al., 2015). Assim, após um estímulo celular, ocorre o aumento  do  Ca2+ citosólico  tanto  pela  sua  entrada  através  dos  transportadores  de  membrana  plasmática,  como  pela  sua liberação dos estoques intracelulares (ou seja, das organelas) (Decuypere et al., 2015).

Figura  4.4  ■   Endereçamento  de  proteínas  na  rede  trans­Golgi  (TGN).  As  moléculas­carga  a  serem  transportadas  são inicialmente reconhecidas por receptores presentes nos domínios de saída do aparelho de Golgi. Adaptadores citosólicos são, então, recrutados para auxiliar na associação da clatrina e formação das vesículas secretoras. Após a fissura das vesículas da membrana  do  aparelho  de  Golgi,  as  proteínas  ancoradas  se  dissociam  para  participar  de  novos  ciclos  de  distribuição  de proteínas na TGN. (Adaptada de Guo et al., 2014.)

O RE é a principal organela de estoque de Ca2+ e, assim, desempenha um papel central na sinalização intracelular de Ca .  O  conteúdo  de  Ca2+  no  RE  depende  essencialmente:  da  sua  entrada  na  organela,  via  uma  ATPase  denominada SERCA  (Vandecaetsbeek  et  al.,  2011);  da  expressão  de  proteínas  ligadoras  de  Ca2+  no  lúmen  da  organela  (Prins  e Michalak,  2011);  e  da  natureza  e  atividade  de  proteínas  liberadoras  de  Ca2+,  como  o  receptor  para  1,4,5­trifosfato  de inositol (IP3R) e o receptor de rianodina (RyR) (Lanner, 2012; Van Petegem, 2015). Além do RE, estudos recentes têm demonstrado a importância dos estoques intracelulares no Golgi, na mitocôndria e nos lisossomos (Clapham, 2007). Estudos utilizando sondas de Ca2+ sugerem que o aparelho de Golgi contém 2,5 a 5% do Ca2+celular, sendo que a concentração do íon nessa organela pode chegar a 300 micromolar (μM) (Pinton et al., 1998). Apesar  de  menos  importante  que  o  RE,  o  aparelho  de  Golgi  também  contribui  para  a  sinalização  do  Ca2+,  pela  sua liberação via IP3R. Tem sido também proposto que, devido à sua proximidade com o núcleo da célula, o aparelho de Golgi deva  participar  da  sinalização  nuclear  do  Ca2+  (Vanoevelen  et  al.,  2005b).  Além  disso,  a  manutenção  de  altas concentrações  luminais  de  Ca2+ no  aparelho  de  Golgi  é  necessária  para  o  processamento  das  proteínas  (Kienzle  e  Von Blume, 2014). 2+

▸ Transportadores de Ca2+ O  sensível  balanço  da  concentração  de  Ca2+  intracelular  é  mantido  pela  refinada  atividade  de  transportadores  de Ca2+ presentes nas membranas celulares, que permitem o movimento desse íon para dentro e para fora da célula e/ou das organelas que fazem o seu estoque (Brini e Carafoli, 2000). As  bombas  de  Ca2+ pertencentes  à  superfamília  das  ATPases  do  tipo  P  (originalmente  denominadas  do  tipo  E1E2) movem  íons  através  das  membranas,  contra  o  seu  gradiente  eletroquímico,  utilizando  a  energia  da  hidrólise  de ATP(Palmgren  e  Axelsen,  1998;  Palmgren  e  Nissen,  2011).  Apesar  de  relacionadas  pela  similaridade  de  sequência, homologia  estrutural  e  mecanismo  de  transporte,  existem  três  subtipos  de  bombas  de  Ca2+  que  são  filogeneticamente distintas e que possuem localizações subcelulares características: Ca2+­ATPase de membrana plasmática (PMCA, presente na membrana plasmática); Ca2+­ATPase  do  retículo  sarcoplasmático  (SERCA,  presente  no  RE);  e  a  Ca2+­ATPase da via secretora (SPCA, presente nas vesículas secretoras derivadas do aparelho de Golgi).

▸ Ca2+­ATPases de membrana plasmática (PMCA) Há quatro ATPases de membrana plasmática descritas, denominadas PMCA1­4 e codificadas pelos genes ATP2B1­4 (Krebs,  2015).  A  isoforma  PMCA1  apresenta  distribuição  ubíqua  pelos  diversos  tecidos  e  possui  cinco  variantes (PMCA1a­e).  A  isoforma  PMCA2  possui  seis  variantes,  enquanto  PMCA3  possui  três  variantes,  todas  expressas  no sistema  nervoso  central  e  em  tecidos  intimamente  conectados  ao  sistema  nervoso  (Chicka  e  Strehler,  2003;  Strehler, 2015).  PMCA2  é  expressa  na  membrana  apical  de  células  acinares  de  glândula  mamária,  podendo  ser  substancialmente induzida durante a lactação. Estudos em camundongos knockout para PMCA2 demonstraram redução de 60% nos níveis

de Ca2+ no  leite,  o  que  sugere  um  importante  papel  de  PMCA2  na  secreção  de  Ca2+  no  leite  materno.  Similarmente  à PMCA1, a isoforma PMCA4 também é ubiquamente expressa e possui oito variantes (Chicka e Strehler, 2003; Strehler, 2015).

▸ Ca2+­ATPases de retículo sarco/endoplasmático (SERCA) A Ca2+­ATPase de retículo sarco/endoplasmático (SERCA) é altamente expressa na membrana do RE e é a principal responsável  por  sequestrar  e  estocar  o  Ca2+ intracelular.  Há  três  genes  (ATP2A1­3)  que  codificam  os  três  subtipos  de bomba  de  Ca2+(SERCA1­3),  e  a  expressão  destes  é  diferente  nos  diversos  tecidos.  A  SERCA1  é  predominantemente expressa na musculatura esquelética, enquanto SERCA2 apresenta distribuição ubíqua. A variante SERCA2b possui uma função essencial de manutenção das concentrações de Ca2+ intracelular. Já a variante SERCA2a é exclusivamente expressa em células musculares e neuronais, enquanto as variantes SERCA2c­d são expressas no coração. Esses tecidos necessitam de um minucioso controle do Ca2+ para exercer as suas funções específicas, como a contração muscular e a propagação de potenciais  de  ação  no  sistema  nervoso  (Baba­Aissa  et  al.,  1998;  Vangheluwe  et  al.,  2005).  A  SERCA3  foi  a  última isoforma  a  ser  caracterizada,  sendo  expressa  em  células  derivadas  do  sistema  hematopoético  e  imune,  bem  como  em outros  tipos  celulares.  Há  diversas  variantes  de  SERCA3,  o  que  sugere  que  esta  deve  exercer  um  papel  importante  na homeostase do Ca2+ celular, porém este ainda não foi completamente elucidado (Periasamy e Kalyanasundaram, 2016). Apesar de o ciclo catalítico da SERCA ainda não ter sido completamente elucidado, a maioria dos modelos baseia­se na transformação entre dois estados conformacionais principais, designados E1 e E2. Na conformação E1, os dois sítios de ligação ao Ca2+ estão  voltados  para  o  citoplasma  e  possuem  alta  afinidade  pelo  íon.  Já  no  estado  E2,  os  sítios  estão voltados para o lúmen do RE e possuem baixa afinidade pelo íon. O ciclo inicia­se pela ligação de dois íons Ca2+ e  um ATP, pelo lado citoplasmático, determinando a forma 2Ca2+­E1­ATP, que é então fosforilada, formando 2Ca2+­E1­P,  um intermediário  de  alta  energia,  sensível  a  ADP,  no  qual  os  íons  Ca2+  ligados  ficam  oclusos.  A  conversão  para  um intermediário  de  baixa  energia  é  acompanhada  por  uma  mudança  conformacional  para  a  forma  2Ca2+­E2­P  (insensível  a ADP), na qual a afinidade pelo Ca2+ é baixa e que se orienta para o lúmen do RE. O ciclo se completa com a liberação dos íons Ca2+ e  do  fosfato  no  lúmen  do  RE  e  a  mudança  conformacional  do  estado  E2  para  o  estado  E1  (Wuytack et  al., 2002).

▸ ATPases transportadoras de Ca2+ na via secretora associada ao Golgi (SPCA) Recentemente,  uma  nova  classe  de  bombas  de  Ca2+  tem  sido  demonstrada,  sendo  que  o  primeiro  membro  foi descoberto  em  levedura  S.  cerevisiae  e  nomeado  Pmrf1  (Rudolph  et  al.,  1989).  Os  homólogos  em  mamíferos, denominados  SPCA1  e  SPCA2,  são  codificados  pelos  genes  ATP2C1  e  ATP2C2,  respectivamente  (Shull,  2000).  A SPCA1  é  expressa  de  forma  ubíqua  em  todos  os  tecidos,  enquanto  SPCA2  está  restrita  a  epitélios  absortivos  (epitélio intestinal) e secretores (pâncreas, glândulas salivares e glândulas mamárias) (Vanoevelen et al., 2005a; Dode et al., 2006). Já  foram  descritas  cinco  variantes  de  SPCA1,  que  diferem  na  sua  região  C­terminal  (Fairclough  et  al.,  2003), enquanto nenhuma variante foi descrita para SPCA2 (Pestov et al., 2012). Ambas, SPCA1 e SPCA2, apresentam 65% de identidade,  diferindo  prioritariamente  na  região  N­terminal.  Além  disso,  ambas  apresentam  propriedades  cinéticas semelhantes (Xiang et al., 2005; Dode et al., 2006). Em leveduras, as proteínas SPCA estão localizadas no aparelho de Golgi intermediário, onde têm papel fundamental na  via  secretora  (Antebi  e  Fink,  1992;  Dürr et al.,  1998).  O  Ca2+ no  lúmen  do  aparelho  de  Golgi  controla  importantes funções,  incluindo  o  tráfego  de  proteínas  luminais  e  de  membrana,  a  condensação  das  cargas  e  o  processamento  de precursores (Chanat e Huttner, 1991; Oda, 1992; Carnell e Moore, 1994). De fato, a maior fração do Ca2+ no lúmen do aparelho  de  Golgi  não  fica  livre,  e  sim  ligada  a  proteínas  como  a  CALNUC,  a  Cab45  e  a  GRP94  (Scherer et al.,  1996; Lin et al., 1998; Vorum et al., 1999; Brunati et al., 2000). Além  das  SPCA,  as  SERCA  também  participam  da  captação  de  Ca2+ para  o  aparelho  de  Golgi  (Van  Baelen  et  al., 2003).  A  contribuição  relativa  das  bombas  SPCA  e  SERCA  para  a  captação  total  de  Ca2+ pelo  Golgi  depende  do  tipo celular, e as porcentagens variam em cada descrição experimental (Van Baelen et al., 2004). Vale ressaltar ainda que as SPCA participam não apenas do aporte de Ca2+, mas também de Mn2+ (Lapinskas et  al., 1995) e podem fazer isso com a mesma eficiência (Van Baelen et al., 2004). O Mn2+ presente  no  lúmen  do  aparelho  de Golgi é necessário para o processo de glicosilação de proteínas (Kaufman et al., 1994; Varki, 1998) e para a atividade da caseína quinase, abundantemente expressa em glândulas mamárias (West e Clegg, 1984; Lasa et al., 1997).

▸ Efeitos do cálcio citosólico na secreção Douglas  e  Rubin,  em  1961,  foram  os  primeiros  a  propor  que  o  Ca2+ intracelular  controla  o  acoplamento  estímulo­ secreção  em  células  endócrinas  (Douglas  e  Rubin,  1961).  Mais  tarde,  Katz  e  Miledi  sugeriram  que  o  Ca2+  intracelular controla  a  rápida  liberação  de  neurotransmissores  nas  sinapses  (Katz  e  Miledi,  1965;  1967).  Portanto,  esses  foram  os primeiros indícios da participação e da dependência do Ca2+ no processo de exocitose/secreção regulada. A  elevação  da  concentração  de  Ca2+  livre  no  citosol  desencadeia  diretamente  a  exocitose  regulada,  por  meio  da estimulação da fusão completa das vesículas secretoras à membrana plasmática ou a fusão transitória do tipo kiss­and­run, na qual a integridade da vesícula é mantida e apenas o seu conteúdo é liberado (Alabi e Tsien, 2013). Apesar  de  estudos  demonstrarem  que  os  mesmos  complexos  proteicos  parecem  participar  da  fusão  de  vesículas  em todas  as  células  exocíticas,  os  complexos  participantes  das  sinapses  são  os  mais  caracterizados.  Assim,  sabe­se  que  o complexo  denominado  SNARE  de  quatro  hélices  é  formado  pela  união  de  três  proteínas  de  ligação  do  NSF  sináptico alfassolúvel (SNARE), sintaxina, proteína da membrana associada à vesícula (VAMP) e proteína de 25 kDa associada ao sinaptossomo  (SNAP25)  (Sutton  et  al.,  1998).  A  formação  desse  complexo  é  desencadeada  por  concentrações micromolares  de  Ca2+ (Hu  et  al.,  2002).  As  três  SNARE  parecem  ser  a  maquinaria  mínima  para  a  exocitose  (Brini  e Carafoli, 2000; Brini et al., 2012), porém as proteínas acessórias aumentam a precisão espacial e temporal da exocitose. Durante  elevados  níveis  de  atividade,  o  que  é  comum  no  sistema  nervoso,  a  estimulação  repetitiva  leva  ao  aumento cumulativo na concentração de Ca2+ intracelular pré­sináptica, favorecendo a exocitose. Na sinapse, uma grande maioria de proteínas ligadoras de Ca2+ liga­se a ele por meio de motivos de domínio C2, que são  estruturalmente  semelhantes  ao  presente  na  proteinoquinase  C  (PKC).  Em  adição  à  ligação  ao  Ca2+,  as  proteínas ligam­se  também  a  fosfolipídios  de  membrana  e  às  proteínas  SNARE  (direta  ou  indiretamente)  (Barclay  et  al.,  2005), modulando  o  processo  de  exocitose.  Dentre  as  proteínas  ligadoras  de  Ca2+,  as  mais  importantes  são:  sinaptotagmina, Munc13, RIM, Piccolo, Rabphilin e Doc2 (Barclay et al., 2005). A sinaptotagmina parece atuar como sensor para ativar a rápida exocitose (Verkhratsky, 2005; Bergner e Huber, 2008; Periasamy e Kalyanasundaram, 2016), enquanto Munc13 regula, além da exocitose, a plasticidade sináptica (Ashery et al., 2000; Junge et al., 2004). Já RIM está envolvida na probabilidade de liberação do conteúdo das vesículas (Schoch et al., 2002),  e  Piccolo  participa  da  organização  da  maquinaria  exocítica  (Garner  et  al.,  2000).  Outras  proteínas,  como  a calmodulina e o sensor neuronal de cálcio (NCS), também se ligam ao Ca2+ na sinapse. A calmodulina pode exercer seus efeitos de maneira dependente e independente de Ca2+. No processo de exocitose, a calmodulina  tem  um  papel  Ca2+­dependente  bem  estabelecido.  A  ligação  Ca2+­calmodulina  leva  à  ativação  da proteinoquinase  II  dependente  de  cálcio­calmodulina  (CaMKII),  que  então  promove  a  fosforilação  de  sinapsinas.  Estas promovem o recrutamento das vesículas sinápticas que terão seu conteúdo secretado (Hilfiker et al., 1999). Além disso, a calmodulina também se liga a sinaptotagmina, complexo SNARE, Rab3 (Burgoyne e Clague, 2003) e Munc13 (Junge et al., 2004).

IMPORTÂNCIA DO pH NA VIA SECRETORA A  manutenção  do  pH  luminal  em  organelas  da  via  secretora  é  outro  elemento  necessário  para  o  apropriado direcionamento e processamento proteolítico nesses locais. Mesmo pequenas diferenças de pH entre as organelas podem ser críticas para diferenciar eventos celulares. Além disso, até mesmo o direcionamento entre a via secretora constitutiva e regulada  parece  depender  do  pH  luminal  das  organelas  (Yoo  e  Albanesi,  1990;  Chanat  e  Huttner,  1991;  Colomer et  al., 1996). Há  diversos  fatores  que  cooperativamente  regulam  o  pH  das  organelas.  As  bombas  de  prótons  vacuolares,  também denominadas  V­ATPases,  são  determinantes  nesse  processo.  Elas  realizam  a  transferência  de  prótons  do  citosol  para  o lúmen das organelas, sendo esse processo dependente de ATP. Uma vez que são eletrogênicas, a atividade dessas bombas é  afetada  pelo  potencial  transmembrana,  que  em  contrapartida  depende  da  permeabilidade  de  outros  íons.  Além  disso,  a homeostase do pH na organela também é alterada pela taxa de “vazamento” de H+ e seus equivalentes (OH–, HCO3–) em direção ao citosol (Paroutis et al., 2004). Estudos de diversos grupos, usando diferentes técnicas experimentais, demonstraram que as organelas da via secretora tornam­se mais acídicas do RE para o Golgi (Figura 4.5). O pH luminal do RE varia entre 7,1 e 7,2, sendo similar ao pH citosólico, enquanto o pH luminal no aparelho de Golgi é de 6,2 a 6,5 (Kim et al., 1996; Llopis et al., 1998; Wu et al., 2000),  e,  nos  grânulos  secretores,  pode  ser  de  apenas  5,2  (Urbe et  al.,  1997;  Wu  et  al.,  2000).  Essa  acidificação  das

organelas ao longo da via secretora é determinada pelo aumento da atividade de proteínas V­ATPases e pela menor perda de prótons para o citosol (Wu et al., 2001).

Figura  4.5  ■   Diferenças  de  pH  entre  as  organelas.  As  organelas  da  via  secretora  tornam­se  mais  ácidas  do  retículo endoplasmático  (RE)  para  o  aparelho  de  Golgi.  O  pH  luminal  do  RE  varia  entre  7,1  e  7,2,  sendo  similar  ao  pH  citosólico, enquanto o pH luminal no aparelho de Golgi é de 6,2 a 6,5 e nos grânulos secretores pode ser de apenas 5,2. (Adaptada de Casey et al., 2010.)

▸ V­ATPases A V­ATPase é composta por 14 subunidades organizadas em dois domínios: V0, um complexo integral da membrana que é constituído por seis subunidades, e V1, um complexo citosólico composto de oito diferentes tipos de subunidades. O domínio V0é responsável pela translocação de prótons H+ através da bicamada, enquanto o domínio V1 está envolvido na conversão da energia derivada da hidrólise do ATP em força mecânica necessária para a translocação de prótons (Forgac, 2007).  A  regulação  da  atividade  da  V­ATPase  é  realizada  de  diversas  maneiras,  incluindo  dissociação  reversível  dos complexos V1V0, controle da localização celular e alterações na eficiência do acoplamento entre o transporte de prótons e a hidrólise de ATP (Cotter et al., 2015). As V­ATPases desempenham um importante papel na acidificação dos endossomos, o que possibilita a dissociação do complexo  internalizado,  permitindo  a  reciclagem  dos  receptores  para  a  superfície  celular  e  a  degradação  da  molécula internalizada. Além disso, a atividade das enzimas de degradação também depende de pH ácido. Por último, em vesículas secretoras, o gradiente de prótons e o potencial de membrana estabelecido pelas V­ATPases são utilizados para favorecer o uptake de pequenas moléculas como os neurotransmissores (Forgac, 2007). Alguns  patógenos  se  beneficiam  desse  papel  acidificador  das  V­ATPases.  O  pH  ácido  facilita  a  entrada  de  RNA mensageiro (mRNA) de vírus e porções de toxinas por poros que são formados em membranas endossomais (Gruenbergj e  van  Der  Goot,  2006).  Além  disso,  a  atividade  das  V­ATPases  tem  sido  relacionada  a  diversas  patologias,  como osteoporose e câncer (Cotter et al., 2015).

CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste capítulo buscamos entender o processo de exocitose/secreção desempenhado pelas células. Foram estudadas as principais  organelas  participantes  desse  processo,  com  ênfa­se  no  RE  e  no  aparelho  de  Golgi.  Além  disso,  as  principais proteínas envolvidas na formação, translocação e fusão das vesículas secretoras também foram descritas. Por fim, foram enfatizados o papel do Ca2+ e do pH das organelas na regulação de todo esse processo.

BIBLIOGRAFIA ALABI  AA,  TSIEN  RW.  Perspectives  on  kiss­and­run:  role  in  exocytosis,  endocytosis,  and  neurotransmission.  Annu  Rev Physiol, 75:393­422, 2013. ANTEBI A, FINK GR. The yeast Ca(2+)­ATPase homologue, PMR1, is required for normal Golgi function and localizes in a novel Golgi­like distribution. Mol Biol Cell, 3(6):633­54, 1992. ANTONNY  B,  MADDEN  D,  HAMAMOTO  S et al.  Dynamics  of  the  COPII  coat  with  GTP  and  stable  analogues.  Nat  Cell Biol, 3(6):531­7, 2001. APPENZELLER  C,  ANDERSSON  H,  KAPPELER  F  et  al.  The  lectin  ERGIC­53  is  a  cargo  transport  receptor  for glycoproteins. Nat Cell Biol, 1(6):330­4, 1999. APPENZELLER­HERZOG  C,  HAURI  HP.  The  ER­Golgi  intermediate  compartment  (ERGIC):  in  search  of  its  identity  and function. J Cell Sci, 119(Pt 11):2173­83, 2006. ASHERY  U,  VAROQUEAUX  F,  VOETS  T  et  al.  Munc13­1  acts  as  a  priming  factor  for  large  dense­core  vesicles  in  bovine chromaffin cells. Embo J, 19(14):3586­96, 2000. BABA­AISSA F, RAEYMAEKERS L, WUYTACK F et al. Distribution and isoform diversity of the organellar Ca2+ pumps in the brain. Mol Chem Neuropathol, 33(3):199­208, 1998. BALCH WE, MCCAFFERY JM, PLUTNER H et al. Vesicular stomatitis virus glycoprotein is sorted and concentrated during export from the endoplasmic reticulum. Cell, 76(5):841­52, 1994. BANNYKH SI, ROWE T, BALCH WE. The organization of endoplasmic reticulum export complexes. J Cell Biol, 135(1):19­35, 1996. BARCLAY JW, MORGAN A, BURGOYNE RD. Calcium­dependent regulation of exocytosis. Cell Calcium,  38(3­4):343­53, 2005. BARLOWE C, ORCI L, YEUNG T et al. COPII: a membrane coat formed by Sec proteins that drive vesicle budding from the endoplasmic reticulum. Cell, 77(6):895­907, 1994. BARLOWE CK, MILLER EA. Secretory protein biogenesis and traffic in the early secretory pathway. Genetics, 193(2):383­410, 2013. BENHAM AM. Protein secretion and the endoplasmic reticulum. Cold Spring Harb Perspect Biol, 4(8):a012872, 2012. BERGNER  A,  HUBER  RM.  Regulation  of  the  endoplasmic  reticulum  Ca(2+)­store  in  cancer.  Anticancer  Agents  Med Chem, 8(7):705­9, 2008. BEVIS  BJ,  HAMMOND  AT,  REINKE  CA  et  al.  De  novo  formation  of  transitional  ER  sites  and  Golgi  structures  in  Pichia pastoris. Nat Cell Biol, 4(10):750­6, 2002. BI  X,  CORPINA  RA,  GOLDBERG  J.  Structure  of  the  Sec23/24­Sar1  pre­budding  complex  of  the  COPII  vesicle coat. Nature, 419(6904):271­7, 2002. BI X, MANCIAS JD. GOLDBERG J. Insights into COPII coat nucleation from the structure of Sec23. Sar1 complexed with the active fragment of Sec31. Dev Cell, 13(5):635­45, 2007. BIELLI  A,  HANEY  CJ,  GABRESKI  G  et  al.  Regulation  of  Sar1  NH2  terminus  by  GTP  binding  and  hydrolysis  promotes membrane deformation to control COPII vesicle fission. J Cell Biol, 171(6):919­24, 2005. BONIFACINO JS, GLICK BS. The mechanisms of vesicle budding and fusion. Cell, 116(2):153­66, 2004. BRAAKMAN  I,  BULLEID  NJ.  Protein  folding  and  modification  in  the  mammalian  endoplasmic  reticulum.  Annu  Rev Biochem, 80:71­99, 2011. BRANDIZZI  F,  BARLOWE  C.  Organization  of  the  ER–Golgi  interface  for  membrane  traffic  control.  Nat  Rev  Mol  Cell Biol, 14(6):382­92, 2013. BRINI M, CALÌ T, OTTOLINI D et al. Calcium pumps: why so many? Compr Physiol, 2(2):1045­60, 2012. BRINI M, CARAFOLI E. Calcium signalling: a historical account, recent developments and future perspectives. Cell Mol Life Sci, 57(3):354­70, 2000. BROWN WJ, PLUTNER H, DRECKTRAH D et al. The lysophospholipid acyltransferase antagonist CI­976 inhibits a late step in COPII vesicle budding. Traffic, 9(5):786­97, 2008. BRUNATI AM, CONTRI A, MUENCHBACH M et al. GRP94 (endoplasmin) co­purifies with and is phosphorylated by Golgi apparatus casein kinase. FEBS Lett, 471(2­3):151­5, 2000. BUDNIK A, STEPHENS DJ. ER exit sites – localization and control of COPII vesicle formation. FEBS Lett, 583(23):3796­803, 2009. BURGOYNE RD, CLAGUE MJ. Calcium and calmodulin in membrane fusion. Biochim Biophys Acta, 1641(2­3):137­43, 2003.

CARNELL  L,  MOORE  HP.  Transport  via  the  regulated  secretory  pathway  in  semi­intact  PC12  cells:  role  of  intra­cisternal calcium and pH in the transport and sorting of secretogranin II. J Cell Biol, 127(3):693­705, 1994. CASEY JR, GRINSTEIN S, ORLOWSKI J. Sensors and regulators of intracellular pH. Nat Rev Mol Cell Biol, 11(1):50­61, 2010. CHANAT E, HUTTNER WB. Milieu­induced, selective aggregation of regulated secretory proteins in the trans­Golgi network. J Cell Biol, 115(6):1505­19, 1991. CHICKA MC, STREHLER EE. Alternative splicing of the first intracellular loop of plasma membrane Ca2+­ATPase isoform 2 alters its membrane targeting. J Biol Chem, 278(20):18464­70, 2003. CLAPHAM DE. Calcium signaling. Cell, 131(6):1047­58, 2007. COLOMER V, KICSKA GA, RINDLER MJ. Secretory granule content proteins and the luminal domains of granule membrane proteins aggregate in vitro at mildly acidic pH. J Biol Chem, 271(1):48­55, 1996. COTTER  K,  STRANSKY  L,  MCGUIRE  C  et  al.  Recent  insights  into  the  structure,  regulation,  and  function  of  the  V­ ATPases. Trends Biochem Sci, 40(10):611­22, 2015. DANCOURT J, BARLOWE C. Protein sorting receptors in the early secretory pathway. Annu Rev Biochem, 79:777­802, 2010. DAY KJ, STAEHELIN LA, GLICK BS. A three­stage model of Golgi structure and function. Histochem Cell Biol, 140(3):239­ 49, 2013. DE MATTEIS MA, LUINI A. Exiting the Golgi complex. Nat Rev Mol Cell Biol, 9(4):273­84, 2008. DECUYPERE  JP,  PARYS  JB,  BULTYNCK  G.  ITPRs/inositol  1,4,5­trisphosphate  receptors  in  autophagy:  from  enemy  to ally. Autophagy, 11(10):1944­8, 2015. DISTELHORST CW, BOOTMAN MD. Bcl­2 interaction with the inositol 1,4,5­trisphosphate receptor: role in Ca(2+) signaling and disease. Cell Calcium, 50(3):234­41, 2011. ISSN 0143­4160. DODE L, ANDERSEN JP, VANOEVELEN J et al. Dissection of the functional differences between human secretory pathway Ca2+/Mn2+­ATPase (SPCA) 1 and 2 isoenzymes by steady­state and transient kinetic analyses. J Biol Chem, 281(6):3182­9, 2006. DONG C, NICHOLS CD, GUO J et al. A triple arg motif mediates alpha(2B)­adrenergic receptor interaction with Sec24C/D and export. Traffic, 13(6):857­68, 2012. DOUGLAS  WW,  RUBIN  RP.  The  role  of  calcium  in  the  secretory  response  of  the  adrenal  medulla  to  acetylcholine.  J Physiol, 159:40­57, 1961. DÜRR G, STRAYLE J, PLEMPER R et al. The medial­Golgi ion pump Pmr1 supplies the yeast secretory pathway with Ca2+ and Mn2+  required  for  glycosylation,  sorting,  and  endoplasmic  reticulum­associated  protein  degradation.  Mol  Biol Cell, 9(5):1149­62, 1998. FAIRCLOUGH RJ, DODE L, VANOEVELEN J et al. Effect of Hailey­Hailey Disease mutations on the function of a new variant of human secretory pathway Ca2+/Mn2+­ATPase (hSPCA1). J Biol Chem, 278(27):24721­30, 2003. FORGAC M. Vacuolar ATPases: rotary proton pumps in physiology and pathophysiology. Nat Rev Mol Cell Biol, 8(11):917­29, 2007. GARNER  CC,  KINDLER  S,  GUNDELFINGER  ED.  Molecular  determinants  of  presynaptic  active  zones.  Curr  Opin Neurobiol, 10(3):321­7, 2000. GLEESON PA, LOCK JG, LUKE MR et al. Domains of the TGN: coats, tethers and G proteins. Traffic, 5(5):315­26, 2004. GLICK BS, LUINI A. Models for Golgi traffic: a critical assessment. Cold Spring Harb Perspect Biol, 3(11):a005215, 2011. GLICK BS, NAKANO A. Membrane traffic within the Golgi apparatus. Annu Rev Cell Dev Biol, 25:113­32, 2009. GONZÁLEZ­JAMETT  AM,  HARO­ACUÑA  V,  MOMBOISSE  F  et  al.  Dynamin­2  in  nervous  system  disorders.  J Neurochem, 128(2):210­23, 2014. GRUENBERGJ, VAN DER GOOT FG. Mechanisms of pathogen entry through the endosomal compartments. Nat Rev Mol Cell Biol, 7(7):495­504, 2006. GUO Y, SIRKIS DW, SCHEKMAN R. Protein sorting at the trans­Golgi network. Annu Rev Cell Dev Biol, 30:169­206, 2014. HAURI HP, KAPPELER F, ANDERSSON H et al. ERGIC­53 and traffic in the secretory pathway. J Cell Sci, 113(Pt 4):587­96, 2000. HILFIKER S, PIERIBONE VA, CZERNIK AJ et al. Synapsins as regulators of neurotransmitter release. Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci, 354(1381):269­79, 1999. HIRST  J,  IRVING  C,  BORNER  GH.  Adaptor  protein  complexes  AP­4  and  AP­5:  new  players  in  endosomal  trafficking  and progressive spastic paraplegia. Traffic, 14(2):153­64, 2013. HU  K,  CARROLL  J,  FEDOROVICH  S et al.  Vesicular  restriction  of  synaptobrevin  suggests  a  role  for  calcium  in  membrane fusion. Nature, 415(6872):646­50, 2002.

HUGHES H, BUDNIK A, SCHMIDT K et al. Organisation of human ER­exit sites: requirements for the localisation of Sec16 to transitional ER. J Cell Sci, 122(Pt 16):2924­34, 2009. JOHNSON  A,  BHATTACHARYA  N,  HANNA  M  et  al.  TFG  clusters  COPII­coated  transport  carriers  and  promotes  early secretory pathway organization. Embo J, 34(6):811­27, 2015. JUNGE HJ, RHEE JS, JAHN O et al.  Calmodulin  and  Munc13  form  a  Ca2+  sensor/effector  complex  that  controls  short­term synaptic plasticity. Cell, 118(3):389­401, 2004. KAPPELER F, KLOPFENSTEIN DR, FOGUET M et al. The recycling of ERGIC­53 in the early secretory pathway. ERGIC­53 carries a cytosolic endoplasmic reticulum­exit determinant interacting with COPII. J Biol Chem, 272(50):31801­8, 1997. KATZ  B,  MILEDI  R.  The  effect  of  calcium  on  acetylcholine  release  from  motor  nerve  terminals.  Proc  R  Soc  Lond  B  Biol Sci, 161:496­503, 1965. KATZ B, MILEDI R. The timing of calcium action during neuromuscular transmission. J Physiol, 189(3):535­44, 1967. KAUFMAN  RJ,  SWAROOP  M,  MURTHA­RIEL  P.  Depletion  of  manganese  within  the  secretory  pathway  inhibits  O­linked glycosylation in mammalian cells. Biochemistry, 33(33):9813­9, 1994. KIENZLE C, VON BLUME J. Secretory cargo sorting at the trans­Golgi network. Trends Cell Biol, 24(10):584­93, 2014. KIM JH, LINGWOOD CA, WILLIAMS DB et al. Dynamic measurement of the pH of the Golgi complex in living cells using retrograde transport of the verotoxin receptor. J Cell Biol, 134(6):1387­99, 1996. KREBS J. The plethora of PMCA isoforms: alternative splicing and differential expression. Biochim Biophys Acta, 1853(9):2018­ 24, 2015. LADINSKY MS, WU CC, MCINTOSH S et al. Structure of the Golgi and distribution of reporter molecules at 20 degrees C reveals the complexity of the exit compartments. Mol Biol Cell, 13(8):2810­25, 2002. LANNER JT. Ryanodine receptor physiology and its role in disease. Adv Exp Med Biol, 740:217­34, 2012. LAPINSKAS  PJ,  CUNNINGHAM  KW,  LIU  XF et  al.  Mutations  in  PMR1  suppress  oxidative  damage  in  yeast  cells  lacking superoxide dismutase. Mol Cell Biol, 15(3):1382­8, 1995. LASA M, MARIN O, PINNA LA. Rat liver Golgi apparatus contains a protein kinase similar to the casein kinase of lactating mammary gland. Eur J Biochem, 243(3):719­25, 1997. LEE MC, ORCI L, HAMAMOTO S et al. Sar1 p N­terminal helix initiates membrane curvature and completes the fission of a COPII vesicle. Cell, 122(4):605­17, 2005. LIN  P,  LE­NICULESCU  H,  HOFMEISTER  R  et  al.  The  mammalian  calcium­binding  protein,  nucleobindin  (CALNUC),  is  a Golgi resident protein. J Cell Biol, 141(7):1515­27, 1998. LIPPINCOTT­SCHWARTZ J, ROBERTS TH, HIRSCHBERG K. Secretory protein trafficking and organelle dynamics in living cells. Annu Rev Cell Dev Biol, 16:557­89, 2000. LLOPIS J, MCCAFFERY JM, MIYAWAKI A et al. Measurement of cytosolic, mitochondrial, and Golgi pH in single living cells with green fluorescent proteins. Proc Natl Acad Sci U S A, 95(12):6803­8, 1998. LONG  KR,  YAMAMOTO  Y,  BAKER  AL  et  al.  Sar1  assembly  regulates  membrane  constriction  and  ER  export.  J  Cell Biol, 190(1):115­28, 2010. LOWE M, BARR FA. Inheritance and biogenesis of organelles in the secretory pathway. Nat Rev Mol Cell Biol,  8(6):429­39, 2007. MATSUOKA K, ORCI L, AMHERDT M et al.  COPII­coated  vesicle  formation  reconstituted  with  purified  coat  proteins  and chemically defined liposomes. Cell, 93(2):263­75, 1998. MATSUOKA  K,  SCHEKMAN  R,  ORCI  L.  Surface  structure  of  the  COPII­coated  vesicle.  Proc  Natl  Acad  Sci  U  S A, 98(24):13705­9, 2001. McDERMOTT  MI,  MOUSLEY  CJ.  Lipid  transfer  proteins  and  the  tuning  of  compartmental  identity  in  the  Golgi apparatus. Chem Phys Lipids, 200:42­61, 2016. MILLER EA, BEILHARZ TH, MALKUS PN et al. Multiple cargo binding sites on the COPII subunit Sec24 p ensure capture of diverse membrane proteins into transport vesicles. Cell, 114(4):497­509, 2003. MILOSEVIC I, GIOVEDI S, LOU X et al. Recruitment of endophilin to clathrin coated pit necks is required for efficient vesicle uncoating after fission. Neuron, 72(4):587­601, 2011. MOLLENHAUER HH, MORRE DJ. Polyribosomes associated with the Golgi apparatus. Protoplasma, 79(3):333­6, 1974. MONTEGNA EA, BHAVE M, LIU Y et al. Sec12 binds to Sec16 at transitional ER sites. PLoS One, 7(2):e31156, 2012. MORRISWOOD B, WARREN G. Cell biology. Stalemate in the Golgi battle. Science, 341(6153):1465­6, 2013. NICHOLS  WC,  SELIGSOHN  U,  ZIVELIN  A et al.  Mutations  in  the  ER­Golgi  intermediate  compartment  protein  ERGIC­53 cause combined deficiency of coagulation factors V and VIII. Cell, 93(1):61­70, 1998.

ODA  K.  Calcium  depletion  blocks  proteolytic  cleavages  of  plasma  protein  precursors  which  occur  at  the  Golgi  and/or  trans­ Golgi network. Possible involvement of Ca(2+)­dependent Golgi endoproteases. J Biol Chem, 267(24):17465­71, 1992. OKA T, NAKANO A. Inhibition of GTP hydrolysis by Sar1 p causes accumulation of vesicles that are a functional intermediate of the ER­to­Golgi transport in yeast. J Cell Biol, 124(4):425­34, 1994. OTOMO  T,  SCHWEIZER  M,  KOLLMANN  K  et  al.  Mannose  6  phosphorylation  of  lysosomal  enzymes  controls  B  cell functions. J Cell Biol, 208(2):171­80, 2015. OTTE S, BARLOWE C. Sorting signals can direct receptor­mediated export of soluble proteins into COPII vesicles. Nat  Cell Biol, 6(12):1189­94, 2004. PALMGREN MG, AXELSEN KB. Evolution of P­type ATPases. Biochim Biophys Acta, 1365(1­2):37­45, 1998. PALMGREN MG, NISSEN P. P­type ATPases. Annu Rev Biophys, 40:243­66, 2011. PAPANIKOU E, GLICK BS. The yeast Golgi apparatus: insights and mysteries. FEBS Lett, 583(23):3746­51, 2009. PAPANIKOU E, GLICK BS. Golgi Compartmentation and Identity. Curr Opin Cell Biol, 29:74­81, 2014. PAROUTIS  P,  TOURET  N,  GRINSTEIN  S.  The  pH  of  the  secretory  pathway:  measurement,  determinants,  and regulation. Physiology (Bethesda), 19:207­15, 2004. PARYS  JB,  DECUYPERE  JP,  BULTYNCK  G.  Role  of  the  inositol  1,4,5­trisphosphate  receptor/Ca2+­release  channel  in autophagy. Cell Commun Signal, 10(1):17, 2012. PERIASAMY  M,  KALYANASUNDARAM  A.  SERCA  pump  isoforms:  their  role  in  calcium  transport  and  disease.  Muscle Nerve, 35(4):430­42, 2016. PESTOV  NB,  DMITRIEV  RI,  KOSTINA  MB  et  al.  Structural  evolution  and  tissue­specific  expression  of  tetrapod­specific second isoform of secretory pathway Ca2+­ATPase. Biochem Biophys Res Commun, 417(4):1298­303, 2012. PFEFFER SR. Rab GTPase regulation of membrane identity. Curr Opin Cell Biol, 25(4):414­9, 2013. PINTON  P,  POZZAN  T,  RIZZUTO  R.  The  Golgi  apparatus  is  an  inositol  1,4,5­trisphosphate­sensitive  Ca2+  store,  with functional properties distinct from those of the endoplasmic reticulum. Embo J, 17(18):5298­308, 1998. PRINS D, MICHALAK M. Organellar calcium buffers. Cold Spring Harb Perspect Biol, 3(3), 2011. PUERTOLLANO R, RANDAZZO PA, PRESLEY JF et al.  The  GGAs  promote  ARF­dependent  recruitment  of  clathrin  to  the TGN. Cell, 105(1):93­102, 2001. QUINTERO CA, GIRAUDO CG, VILLARREAL M et al. Identification of a site in Sar1 involved in the interaction with the cytoplasmic tail of glycolipid glycosyltransferases. J Biol Chem, 285(39):30340­6, 2010. RODRIGUEZ­BOULAN  E,  MUSCH  A.  Protein  sorting  in  the  Golgi  complex:  shifting  paradigms.  Biochim  Biophys Acta, 1744(3):455­64, 2005. RUDOLPH HK, ANTEBI A, FINK GR et al. The yeast secretory pathway is perturbed by mutations in PMR1, a member of a Ca2+ ATPase family. Cell, 58(1):133­45, 1989. SAITO K, CHEN M, BARD F et al. TANGO1 facilitates cargo loading at endoplasmic reticulum exit sites. Cell, 136(5):891­902, 2009. SATO K, NAKANO A. Mechanisms of COPII vesicle formation and protein sorting. FEBS Lett, 581(11):2076­82, 2007. SCHERER PE, LEDERKREMER GZ, WILLIAMS S et al. Cab45, a novel (Ca2+)­binding protein localized to the Golgi lumen. J Cell Biol, 133(2):257­68, 1996. SCHINDLER R, ITIN C, ZERIAL M et al. ERGIC­53, a membrane protein of the ER­Golgi intermediate compartment, carries an ER retention motif. Eur J Cell Biol, 61(1):1­9, 1993. SCHOBERER J, STRASSER R. Sub­compartmental organization of Golgi­resident N­glycan processing enzymes in plants. Mol Plant, 4(2):220­8, 2011. SCHOCH S, CASTILLO PE, JO T et al. RIM1alpha forms a protein scaffold for regulating neurotransmitter release at the active zone. Nature, 415(6869):321­6, 2002. SCHWEIZER A, MATTER K, KETCHAM CM et al. The isolated ER­Golgi intermediate compartment exhibits properties that are different from ER and cis­Golgi. J Cell Biol, 113(1):45­54, 1991. SHINDIAPINA  P,  BARLOWE  C.  Requirements  for  transitional  endoplasmic  reticulum  site  structure  and  function  in Saccharomyces cerevisiae. Mol Biol Cell, 21(9):1530­45, 2010. SHULL GE. Gene knockout studies of Ca2+­transporting ATPases. Eur J Biochem, 267(17):5284­90, 2000. SPANG A. Retrograde traffic from the Golgi to the endoplasmic reticulum. Cold Spring Harb Perspect Biol, 5(6), 2013. STAHLSCHMIDT W, ROBERTSON MJ, ROBINSON PJ et al. Clathrin terminal domain­ligand interactions regulate sorting of mannose 6­phosphate receptors mediated by AP­1 and GGA adaptors. J Biol Chem, 289(8):4906­18, 2014. STREHLER  EE.  Plasma  membrane  calcium  ATPases:  From  generic  Ca(2+)  sump  pumps  to  versatile  systems  for  fine­tuning cellular Ca(2.). Biochem Biophys Res Commun, 460(1):26­33, 2015.

SUTTON RB, FASSHAUER D, JAHN R et al. Crystal structure of a SNARE complex involved in synaptic exocytosis at 2.4 A resolution. Nature, 395(6700):347­53, 1998. TRAUB LM, KORNFELD S. The trans­Golgi network: a late secretory sorting station. Curr Opin Cell Biol, 9(4):527­33, 1997. UJIKE  M,  TAGUCHI  F.  Incorporation  of  spike  and  membrane  glycoproteins  into  coronavirus  virions.  Viruses,  7(4):1700­25, 2015. URBE S, DITTIE AS, TOOZE SA. pH­dependent processing of secretogranin II by the endopeptidase PC2 in isolated immature secretory granules. Biochem J, 321(Pt 1):65­74, 1997. VAN  BAELEN  K,  DODE  L,  VANOEVELEN  J  et  al.  The  Ca2+/Mn2+  pumps  in  the  Golgi  apparatus.  Biochim  Biophys Acta, 1742(1­3):103­12, 2004. VAN  BAELEN  K,  VANOEVELEN  J,  CALLEWAERT  G  et  al.  The  contribution  of  the  SPCA1  Ca2+  pump  to  the  Ca2+ accumulation  in  the  Golgi  apparatus  of  HeLa  cells  assessed  via  RNA­mediated  interference.  Biochem  Biophys  Res Commun, 306(2):430­6, 2003. VAN PETEGEM F. Ryanodine receptors: allosteric ion channel giants. J Mol Biol, 427(1):31­53, 2015. VANDECAETSBEEK  I,  VANGHELUWE  P,  RAEYMAEKERS  L  et  al.  The  Ca2+  pumps  of  the  endoplasmic  reticulum  and Golgi apparatus. Cold Spring Harb Perspect Biol, 3(5):a004184, 2011. VANGHELUWE P, RAEYMAEKERS L, DODE L et al. Modulating sarco(endo)plasmic reticulum Ca2+ ATPase 2 (SERCA2) activity: cell biological implications. Cell Calcium, 38(3­4):291­302, 2005. VANOEVELEN J, DODE L, VAN BAELEN K et al. The secretory pathway Ca2+/Mn2+­ATPase 2 is a Golgi­localized pump with high affinity for Ca2+ ions. J Biol Chem, 280(24):22800­8, 2005a. VANOEVELEN J, RAEYMAEKERS L, DODE L et al. Cytosolic Ca2+ signals depending on the functional state of the Golgi in HeLa cells. Cell Calcium, 38(5):489­95, 2005b. VARKI A. Factors controlling the glycosylation potential of the Golgi apparatus. Trends Cell Biol, 8(1):34­40, 1998. VENDITTI R, WILSON C, DE MATTEIS MA. Exiting the ER: what we know and what we don’t. Trends Cell Biol, 24(1):9­18, 2014. VERISSIMO F, PEPPERKOK R. Imaging ER­to­Golgi transport: towards a systems view. J Cell Sci, 126(Pt 22):5091­100, 2013. VERKHRATSKY A. Physiology and pathophysiology of the calcium store in the endoplasmic reticulum of neurons.  Physiol Rev, 85(1):201­79, 2005. VOELTZ GK, ROLLS MM, RAPOPORT TA. Structural organization of the endoplasmic reticulum. EMBO Rep,  3(10):944­50, 2002. VORUM H, HAGER H, CHRISTENSEN BM et al. Human calumenin localizes to the secretory pathway and is secreted to the medium. Exp Cell Res, 248(2):473­81, 1999. WATSON  P,  STEPHENS  DJ.  ER­to­Golgi  transport:  form  and  formation  of  vesicular  and  tubular  carriers.  Biochim  Biophys Acta, 1744(3):304­15, 2005. WATSON P, TOWNLEY AK, KOKA P et al. Sec16 defines endoplasmic reticulum exit sites and is required for secretory cargo export in mammalian cells. Traffic, 7(12):1678­87, 2006. WEST DW, CLEGG RA. Casein kinase activity in rat mammary gland Golgi vesicles. Demonstration of latency and requirement for a transmembrane ATP carrier. Biochem J, 219(1):181­7, 1984. WHITTLE JR, SCHWARTZ TU. Structure of the Sec13­Sec16 edge element, a template for assembly of the COPII vesicle coat. J Cell Biol, 190(3):347­61, 2010. WU  MM,  GRABE  M,  ADAMS  S  et  al.  Mechanisms  of  pH  regulation  in  the  regulated  secretory  pathway.  J  Biol Chem, 276(35):33027­35, 2001. WU MM, LLOPIS J, ADAMS S et al. Organelle pH studies using targeted avidin and fluorescein­biotin. Chem Biol, 7(3):197­ 209, 2000. WUYTACK F, RAEYMAEKERS L, MISSIAEN L. Molecular physiology of the SERCA and SPCA pumps. Cell Calcium, 32(5­ 6):279­305, 2002. XIANG  M,  MOHAMALAWARI  D,  RAO  R.  A  novel  isoform  of  the  secretory  pathway  Ca2+,Mn(2+)­ATPase,  hSPCA2,  has unusual properties and is expressed in the brain. J Biol Chem, 280(12):11608­14, 2005. YOO  SH,  ALBANESI  JP.  Ca2(+)­induced  conformational  change  and  aggregation  of  chromogranin  A.  J  Biol Chem, 265(24):14414­21, 1990. YORIMITSU T, SATO K. Insights into structural and regulatory roles of Sec16 in COPII vesicle formation at ER exit sites. Mol Biol Cell, 23(15):2930­42, 2012. YORIMITSU  T,  SATO  K,  TAKEUCHI  M.  Molecular  mechanisms  of  Sar/Arf  GTPases  in  vesicular  trafficking  in  yeast  and plants. Front Plant Sci, 5:411, 2014.

ZHANG  X,  BAO  L,  MA  GQ.  Sorting  of  neuropeptides  and  neuropeptide  receptors  into  secretory  pathways.  Prog Neurobiol, 90(2):276­83, 2010.



Cronobiologia e ritmos biológicos

■ ■

Classificação dos ritmos biológicos Origem e evolução da ritmicidade circadiana

■ ■ ■

Características gerais da ritmicidade circadiana Organização celular e multicelular do sistema circadiano de temporização Núcleos supraquiasmáticos

■ ■

Ritmos circadianos nos diversos sistemas fisiológicos e conceito de homeostase Ritmos das secreções hormonais

■ ■ ■

Ritmos da função renal Termorregulação Ritmos dos elementos figurados do sangue

■ ■ ■

Ritmos no sistema cardiovascular Ritmos no sistema respiratório Variação circadiana na ação de medicamentos | Cronofarmacologia e cronoterapêutica



Bibliografia

CRONOBIOLOGIA E RITMOS BIOLÓGICOS A  cronobiologia  é  um  ramo  das  ciências  biológicas  contemporâneas  que  tem  como  objeto  de  estudo  a  organização temporal dos seres vivos. Um  dos  pressupostos  básicos  dos  estudos  cronobiológicos  é  que  tenham  ocorrido,  ao  longo  do  processo  evolutivo, fenômenos  adaptativos  nos  seres  vivos  em  resposta  à  pressão  seletiva  exercida  pela  organização  temporal  de  fenômenos geofísicos  ambientais.  Supõe­se,  ainda,  que  as  sequências  de  eventos  ambientais,  recorrentes  e  periódicos,  como  a alternância  entre  o  dia  e  a  noite,  os  ciclos  de  gravitação,  as  estações  do  ano  e  os  fenômenos  físico­químicos  a  elas associados (luminosidade, temperatura, tensão de oxigênio), possam ter sido fatores poderosos de pressão seletiva desde o momento da própria organização original do material biológico. Assim, como uma maneira de adaptação aos fatores cíclicos ambientais, os seres vivos teriam desenvolvido, ao longo da  evolução,  uma  distribuição  temporal  de  suas  funções  ao  longo  do  dia  e  da  noite,  do  mês  ou  do  ano.  Os  eventos biológicos  que  apresentam  uma  repetição  periódica  recebem  o  nome  de ritmos biológicos.  Ao  fenômeno  de  recorrência sistemática, regular e periódica de eventos biológicos, dá­se o nome de ritmicidade biológica.

CLASSIFICAÇÃO DOS RITMOS BIOLÓGICOS Os ritmos biológicos podem ser classificados em 3 grandes grupos, de acordo com o período de recorrência do evento considerado: ■ Ritmos circadianos: cujas flutuações se completam a cada 24 h aproximadamente (período de 24 ± 4 h). Praticamente todas as variáveis fisiológicas e comportamentais de um mamífero apresentam ritmicidade circadiana

Ritmos ultradianos:  que  apresentam  mais  de  um  ciclo  completo  a  cada  24  h  (período  menor  do  que  20  h).  Muitas variáveis fisiológicas apresentam ritmicidade ultradiana, como, por exemplo, as secreções hormonais ■ Ritmos infradianos:  cujo  período  de  repetição  é  maior  do  que  28  h.  O  ciclo  menstrual  feminino,  assim  como  outros processos reprodutivos, na maioria das espécies, apresenta uma flutuação anual ou sazonal. ■

ORIGEM E EVOLUÇÃO DA RITMICIDADE CIRCADIANA Várias  teorias  discutem  a  origem  e  a  evolução  dos  processos  rítmicos  biológicos,  postulando  que  a  ritmicidade circadiana tenha sido resultante de: ■ Um  processo  de  acoplamento  entre  ritmos  ultradianos  e/ou  alteração  gradativa  de  seus  períodos,  originariamente sincronizados aos ciclos geofísicos da Terra primitiva ■ Organização de uma ordenação temporal, internamente referenciada, de processos metabólicos e de divisão da célula e de organelas primitivas, dentro da hipótese de surgimento dos eucariotos por endossimbiose ■ Um  processo  de  temporização  de  fenômenos  vitais,  necessário  para  adaptar  os  organismos  primitivos  ao  ciclo  de iluminação ambiental diário e à alta tensão de oxigênio presente na atmosfera terrestre. Esta hipótese está baseada no fato de, tanto em procariotos como em eucariotos, a irradiação solar na faixa do visível e do ultravioleta poder afetar, diretamente  ou  por  meio  de  reações  foto­oxidativas,  processos  como:  a  replicação  do  DNA  e  a  indução  gênica,  os fenômenos de membrana responsáveis pela respiração mitocondrial e as funções metabólicas celulares. Não  importando  qual  a  teoria  que  melhor  explica  a  origem  dos  ritmos  biológicos,  o  fato  é  que,  hoje  em  dia,  para  a maioria  das  espécies  conhecidas,  os  ritmos  biológicos  são  gerados  pelos  próprios  organismos  e  são  determinados geneticamente.

CARACTERÍSTICAS GERAIS DA RITMICIDADE CIRCADIANA As  estruturas  biológicas  capazes  de  gerar  os  períodos  dos  diversos  ritmos  observados  são  denominadas  osciladores endógenos, marca­passos ou relógios biológicos. Os osciladores endógenos circadianos têm a propriedade de poderem ser sincronizados por fatores cíclicos ambientais, fenômeno chamado de sincronização ou arrastamento. Estes fatores ambientais capazes de ajustar o período e a fase dos osciladores  endógenos  são  denominados  agentes  sincronizadores,  agentes  arrastadores  ou  zeitgebers  (um  neologismo alemão  que  significa  doador  de  tempo).  O  sincronizador  ambiental  mais  poderoso  para  a  maioria  dos  seres  vivos  é  a alternância entre o claro e o escuro, o dia e a noite. Mesmo  em  condições  especiais,  em  que  não  ocorram  flutuações  cíclicas  dos  possíveis  agentes  sincronizadores ambientais, os ritmos circadianos continuam a se expressar. Esta situação é conhecida por livre­curso, e, nela, os ritmos expressam, de modo relativamente fiel, as características endógenas dos osciladores. Os períodos dos ritmos circadianos em livre­curso tornam­se ligeiramente diferentes do período expresso em condições de arrastamento (que é de exatamente 24 h). Tanto  em  condições  de  arrastamento  quanto  em  determinadas  situações  de  livre­curso,  os  ritmos  endógenos  mantêm entre si relações temporais constantes. Essa relação temporal estável entre todas as funções de um organismo é chamada de ordem temporal interna. Há muitas evidências na literatura indicando que a sincronização dos ritmos endógenos com o meio ambiente e a manutenção da ordem temporal interna são necessárias para a expressão funcional normal de qualquer organismo,  seja  unicelular  ou  pluricelular.  No  caso  do  ser  humano,  a  ordenação  temporal  interna  dos  fenômenos fisiológicos  é  pré­condição  para  a  manutenção  da  saúde  de  qualquer  indivíduo.  A  ruptura  desses  padrões  (como  em situações de trabalho noturno ou em turnos alternantes ou em voos transmeridiânicos frequentes) resulta em ameaça para a saúde e, possivelmente, em redução na expectativa de vida do indivíduo. Os ritmos biológicos se caracterizam por alguns parâmetros básicos: ■ Período: intervalo de tempo entre repetições (ciclos) do evento considerado ■ Amplitude: diferença entre o valor médio da variável e seus valores de máxima ou mínima ■ Ciclo: todos os valores de uma variável biológica assumidos ao longo de um período ■ Fase ou ângulo de fase: qualquer instante ao longo de um ciclo.

Dependendo  dos  modelos  matemáticos  utilizados  para  representar  o  ritmo  biológico,  alguns  outros  parâmetros  são empregados para caracterizá­lo. Se o modelo utilizado for o de ajuste de uma curva cosseno aos dados reais (método do Cosinor), denomina­se mesor ao valor médio da curva ajustada e acrofase ao instante de ocorrência do valor máximo da curva ajustada.

ORGANIZAÇÃO CELULAR E MULTICELULAR DO SISTEMA CIRCADIANO DE TEMPORIZAÇÃO Quando  se  discute  a  organização  do  sistema  circadiano  de  temporização  e,  eventualmente,  os  seus  aspectos bioquímicos  e  moleculares,  devem­se  ter  em  mente  as  distinções  existentes  entre  organismos  unicelulares,  organismos pluricelulares e células isoladas de seres pluricelulares. No  primeiro  caso,  a  célula  é  o  maior  nível  de  organização  biológica  do  ser  vivo  considerado.  Desta  maneira,  é,  ao nível da organização intrinsecamente celular, bioquímica e molecular, que podem ser entendidos os fenômenos típicos das expressões  rítmicas  circadianas:  os  mecanismos  geradores  de  tempo  (os  relógios  circadianos),  as  estruturas  e  vias  que garantem  os  efeitos  sincronizadores  de  agentes  físicos  ambientais  sobre  os  osciladores  celulares,  assim  como  as  vias bioquímicas  que  acoplam  esses  osciladores  aos  diferentes  sistemas  funcionais  da  célula,  garantindo  sua  temporização circadiana. No  caso  de  seres  multicelulares,  deve­se  considerar  que  o  nível  de  organização  celular  está,  necessariamente, subordinado  aos  níveis  de  organização  hierarquicamente  superiores,  como  os  tecidos  e  os  sistemas  fisiológicos.  Assim, apesar de as células isoladas poderem apresentar expressões rítmicas circadianas, comandadas pelos clock genes (p.  ex., quanto a atividade enzimática, divisão celular, crescimento, respiração, síntese e secreção etc.), no conjunto do organismo, estas  não  são  autônomas,  pois  dependem  de  agentes  moleculares  extracelulares,  neurais  e/ou  humorais,  que  trazem  a informação dos osciladores mestres do organismo. As  únicas  células  de  seres  pluricelulares  que,  com  algumas  restrições,  apresentam  similaridades  com  os  seres unicelulares,  quanto  à  sua  organização  rítmica,  são  as  células  dos  marca­passos  centrais.  Os  osciladores  centrais  de vertebrados e invertebrados, enquanto estruturas multicelulares, têm a capacidade de gerar tempo, de sincronizar­se, direta ou  indiretamente,  com  agentes  cíclicos  ambientais  e  de  temporizar  os  sistemas  fisiológicos  e  comportamentais  do organismo.  Em  alguns  casos,  a  capacidade  de  relógio  circadiano  é  intrínseca  a  cada  célula  do  oscilador  mestre,  como parece ser o caso da pineal de aves, do núcleo supraquiasmático de mamíferos e das células dos olhos de alguns moluscos, como  Aplysia  e  Bulla.  No  entanto,  a  sincronização  e  a  geração  final  do  período  de  aproximadamente  24  h  pelos osciladores  mestres  de  seres  pluricelulares  podem  estar,  também,  na  dependência  de  uma  relação  funcional  entre  um conjunto  de  células,  como  parece  ser  o  caso  dos  núcleos  supraquiasmáticos  de  mamíferos.  Além  disso,  em  alguns organismos,  as  células  do  marca­passo  central  são  diretamente  sensíveis  aos zeitgebers,  como  é  o  caso  da  maioria  dos relógios  de  invertebrados  e  da  pineal  de  vertebrados  não  mamíferos.  Em  outros,  no  entanto,  a  ação  sincronizadora dos zeitgebers se  dá  por  meio  de  sistemas  sensoriais  organizados,  como  é  o  caso  do  sistema  visual  de  mamíferos,  cujo órgão  receptor  e  vias  e  estruturas  centrais  podem  comunicar­se  com  os  núcleos  supraquiasmáticos,  levando  a  eles  a informação sobre o ciclo de iluminação ambiental. Finalmente, uma outra diferença está no fato de o relógio circadiano de um ser unicelular temporizar, diretamente, por intermédio de vias bioquímicas, as funções celulares, enquanto as células de  um  oscilador  central  de  seres  multicelulares  têm  que  lançar  mão  de  transformações  bioquímicas  e  moleculares  que coloquem  em  ação  sistemas  neurais  e/ou  endócrinos  de  modo  a  comandar  funções  a  distância  distribuídas  por  todo  o organismo.

NÚCLEOS SUPRAQUIASMÁTICOS Na década de 1970, demonstrou­se a importância dos núcleos supraquiasmáticos (NSQ) hipotalâmicos na geração da ritmicidade  circadiana  em  mamíferos.  A  partir  de  estudos  de  lesões  desses  núcleos,  verificou­se  a  perda  da  ritmicidade circadiana  em  muitas  variáveis  fisiológicas  e  comportamentais.  O  passo  seguinte  para  a  confirmação  do  papel  dos  NSQ como marca­passo central foi a demonstração da presença de atividade elétrica multiunitária rítmica nesses núcleos e a sua persistência  mesmo  quando  os  núcleos  eram  isolados  de  suas  conexões  com  o  restante  do  sistema  nervoso  central, utilizando  uma  preparação  chamada  de  “ilha  hipotalâmica”.  Ainda,  com  relação  às  oscilações  in  vivo  dos  NSQ,  foi

demonstrado  um  ritmo  circadiano  de  atividade  metabólica  na  captação  de  2­desoxiglicose  marcada,  com  atividade metabólica elevada durante o dia, e que persiste mesmo na ausência do ciclo de iluminação ambiental. Estudos  in  vitro  da  atividade  elétrica  dos  NSQ  evidenciaram  a  autonomia  desses  núcleos  como  marca­passos circadianos. Mais  recentemente,  as  abordagens  para  estudar  os  processos  de  geração  da  ritmicidade  circadiana  têm  incluído métodos de biologia molecular e genética molecular. Foram identificados hamsters mutantes em que o período endógeno de  seus  ritmos  difere  do  período  encontrado  nos  animais  “selvagens”  ou  normais.  Esses  animais  mutantes, denominados mutantes tau, apresentam um período em livre­curso menor (22 h para os heterozigotos tau/+ e 20 h para os homozigotos tau/tau) do que o dos animais normais (período de 24 h). Transplantes de tecidos dos NSQ desses mutantes em hamsters selvagens com seus núcleos supraquiasmáticos lesados restauram a ritmicidade no hospedeiro com o período do  ritmo  do  doador.  Mutações  induzidas  que  afetam  a  função  do  relógio  têm  sido  identificadas  em  outros  mamíferos (camundongos – mutante clock) e não mamíferos (Drosophila melanogaster, Neurospora crassa, Cyanobacteria). Nessa perspectiva de compreensão dos mecanismos do relógio biológico ao nível celular, a demonstração da presença de ritmicidade circadiana na atividade elétrica de neurônios isolados dos NSQ, com períodos diferentes, reforçou a busca por  mecanismos  geradores  da  ritmicidade  circadiana  ao  nível  molecular.  Alças  regulatórias  da  transcrição  e  tradução gênicas  dos  chamados  genes  do  relógio  (clock  genes)  têm  sido  postuladas  como  modelo  para  a  geração  dos  ritmos circadianos. Assim, a ritmicidade circadiana, em nível celular, parece depender de ciclos bioquímicos que envolvem processos de transcrição,  tradução,  interação  proteica,  processos  de  fosforilação,  degradação  proteica,  translocação  para  o  núcleo  e interação com o material genômico, fechando alças de regulação positiva ou negativa da expressão gênica. Esses processos estão organizados temporalmente de tal modo que são capazes de gerar ciclos de aproximadamente 24 h. Muitos  são  os  denominados  genes  do  relógio,  dentre  os  quais  se  destacam  os  genes  clock,  bmal1,  período per1, per2, per3), criptocromo (cry1, cry2), tim. Como produto da transcrição de cada um desses genes e da tradução dos respectivos  RNA  mensageiros,  geram­se  as  proteínas  correspondentes  CLOCK,  BMAL1,  PER1,  PER2,  PER3,  CRY1, CRY2 e TIM. O gene clock expressa­se continuamente, enquanto o bmal1 apresenta uma expressão rítmica circadiana. As proteínas CLOCK  e  BMAL1  dimerizam­se  no  citoplasma  e  se  translocam  para  o  núcleo,  onde,  agindo  sobre  os  elementos reguladores do DNA responsáveis pela expressão dos genes per e criptocromos, estimulam esse processo de transcrição, resultando, assim, em um aumento das proteínas correspondentes no citoplasma. As proteínas PER e CRY, por sua vez, formam  complexos  heterodiméricos  que  se  translocam  para  o  núcleo  e  vão  inibir  a  ação  estimulatória  do  complexo proteico CLOCK:BMAL1, fechando­se um ciclo que dura aproximadamente 24 h. O ciclo descrito anteriormente é o ciclo básico da expressão circadiana dos genes do relógio. No entanto, deve­se ter em conta que a realidade é mais complexa, uma vez que outros genes, proteínas e processos bioquímicos celulares estão envolvidos. Assim, as proteínas PER1 e PER2, por exemplo, podem ser fosforiladas por uma caseína­quinase (CKIɛ) e, nessa  forma  fosforilada,  são  rapidamente  degradadas.  Dessa  maneira,  processos  de  fosforilação  podem  controlar  as concentrações  das  proteínas  e,  consequentemente,  a  formação  dos  complexos  ativadores  e  negativadores  da  expressão gênica dos genes do relógio. Recentemente, foram descobertas proteínas secundárias que interferem com esse ciclo, podendo regular o período e a amplitude do ritmo, que são as proteínas REV­ERBα e β, PAR (proteínas ricas em aminoácido prolina), incluindo a HLF (fator leucocitário hepático), a TEF (fator tireotrófico embrionário) e a DBP (proteína ligante do elemento D albumina).

RITMOS CIRCADIANOS NOS DIVERSOS SISTEMAS FISIOLÓGICOS E CONCEITO DE HOMEOSTASE Os  estudos  cronobiológicos  demonstram  que  praticamente  todas  as  variáveis  fisiológicas  apresentam  flutuações regulares  e  periódicas  em  sua  intensidade  ao  longo  das  24  h  do  dia.  Demonstram,  também,  que,  além  dessa  variação quantitativa, os diversos sistemas fisiológicos respondem de forma diferente a um mesmo estímulo de acordo com a hora do dia. Essa ritmicidade circadiana, filogeneticamente incorporada e endogenamente gerada, teria a finalidade de preparar, antecipadamente,  os  organismos  para  enfrentar  as  alterações  e  estimulações  ambientais  estreitamente  vinculadas  às flutuações do dia e da noite. A essa capacidade regulatória, cuja qualidade e intensidade são ritmicamente moduladas, dá­ se  o  nome  de  homeostase  preditiva.  Já  o  fenômeno  homeostático  clássico,  isto  é,  a  capacidade  que  os  sistemas

fisiológicos  têm  de  ajustar  uma  determinada  variável  em  torno  de  um  certo  valor  médio,  é  denominado  homeostase reativa. A  vantagem  da  complementação  do  conceito  de  homeostase  com  a  chamada  homeostase  preditiva  é  entender  que  o “valor médio”, em torno do qual se dá a regulação fisiológica clássica, varia de modo rítmico ao longo das 24 h do dia. Da mesma maneira, varia também a própria capacidade regulatória dos diversos sistemas fisiológicos.

RITMOS DAS SECREÇÕES HORMONAIS Ao se fazerem várias dosagens plasmáticas dos diversos hormônios humanos, intervaladas ao longo das 24 h, nota­se uma  variação  considerável  entre  os  seus  valores  mínimos  e  máximos.  Mesmo  quando  os  fatores  habituais,  como  sexo, idade,  estado  nutricional  e  alimentar  etc.,  são  controlados,  grande  parte  dessa  variabilidade  permanece  e  demonstra  ser devida a uma variação rítmica circadiana endógena. Cada  um  dos  hormônios  circulantes  apresenta  seu  pico  de  máxima  produção  e  secreção  em  momentos  diferentes  do dia, de acordo com as necessidades típicas da espécie. Assim, para a espécie humana, tipicamente de atividade diurna, os corticosteroides suprarrenais, que no conjunto de suas funções preparam o organismo para a vigília e a interação ativa com o  meio  ambiente,  têm  seu  pico  máximo  de  produção  e  secreção  no  fim  da  noite  de  sono,  precedendo  o  despertar.  Da mesma  maneira,  a  insulina  é  produzida  e  liberada  em  maior  quantidade,  além  de  agir  mais  intensamente,  de  manhã  e  no começo da tarde, quando as necessidades energéticas na espécie humana são maiores. Além  da  variação  circadiana  na  produção  e  secreção  desses  hormônios,  demonstra­se,  também,  que  a  reatividade  de seus sistemas funcionais é diferente em distintos momentos do dia. Assim, estímulos estressantes produzem seu máximo efeito  nos  momentos  circadianos  de  menor  produção  de  corticosteroides  e  efeitos  mínimos  nos  instantes  de  sua  máxima produção  e  secreção.  Da  mesma  maneira,  a  quantidade  de  insulina  liberada  por  uma  carga  oral  de  glicose  é  máxima  de manhã e mínima à noite, de que se pode inferir que a glicemia resultante será maior e mais duradoura à tarde e à noite do que de manhã. Outra secreção hormonal que apresenta uma distribuição circadiana bem evidente é a do hormônio de crescimento. Seu pico de máxima para os seres humanos se dá no primeiro terço da noite de sono, coincidentemente com a maior incidência de sono sincronizado de ondas lentas (fases 3 e 4), momento este em que o metabolismo proteico cerebral é máximo. Vale ressaltar  que,  da  mesma  maneira  que  para  os  corticosteroides  suprarrenais,  as  relações  entre  os  ciclos  circadianos  de vigília­sono e a concentração plasmática de hormônio de crescimento são principalmente temporais e não causais. Também,  para  várias  outras  secreções  hormonais,  está  demonstrada  a  existência  de  ritmicidade  circadiana: tireotropina, prolactina, aldosterona, renina e testosterona. Quanto aos hormônios foliculestimulante (FSH) e luteinizante (LH), nota­se, igualmente, uma tendência circadiana na sua concentração plasmática. No entanto, para o LH e o hormônio liberador de LH (LHRH), são muito mais evidentes e fisiologicamente  importantes  as  suas  produções  e  secreções  infradianas  (obedecendo  aos  ciclos  estrais)  e  pulsátil (obedecendo a um ritmo ultradiano que, no ser humano, tem um período entre 1 e 2 h).

RITMOS DA FUNÇÃO RENAL A excreção renal de água e eletrólitos apresenta nítidas flutuações circadianas. Nos seres humanos, a excreção urinária de água, potássio, cálcio e hidrogênio é máxima de manhã e no começo da tarde, enquanto a excreção de sódio é maior à tarde.  Da  mesma  maneira,  as  regulações  do  volume  de  líquido  extracelular  e  da  concentração  de  eletrólitos  plasmáticos pelos mecanismos renais variam de acordo com a hora do dia. É possível demonstrar que, quando todos os outros fatores interferentes  estão  controlados,  a  resposta  diurética  humana  à  ingestão  de  água  é  consideravelmente  maior  de  manhã  do que  à  tarde.  Demonstra­se,  em  seres  humanos,  que  o  aumento  do  retorno  venoso  provocado  pela  passagem  da  posição ereta para a posição deitada causa, de dia, um aumento imediato da diurese e da natriurese e, de madrugada, uma resposta quase  5  vezes  menor.  Mostra­se,  ainda,  que  o  organismo  humano  tem  uma  capacidade  maior  de  livrar­se  de  uma sobrecarga de potássio de dia do que de noite.

TERMORREGULAÇÃO

A  temperatura  corpórea  apresenta  um  dos  mais  conspícuos  ritmos  circadianos  em  mamíferos,  e  no  ser  humano  em particular. Em indivíduos adequadamente sincronizados a um esquema social de trabalho diurno e repouso noturno, a temperatura corpórea  central  apresenta  seu  valor  máximo  por  volta  das  17  a  18  h  e  seu  valor  mínimo  por  volta  do  segundo  terço  do sono  noturno.  Esse  valor  mínimo  da  temperatura  corpórea  aparece  após  o  período  de  maior  incidência  de  sono sincronizado  com  ondas  lentas  e  de  máxima  secreção  do  hormônio  de  crescimento  e  precede  os  momentos  de  maior incidência de sono com movimentos oculares rápidos e de máxima secreção de corticosteroides suprarrenais. Nas  mulheres,  a  ritmicidade  circadiana  da  temperatura  corporal  está  modulada  por  um  ritmo  infradiano  de aproximadamente 1 mês, que atinge o seu valor máximo concomitantemente com a ovulação.

RITMOS DOS ELEMENTOS FIGURADOS DO SANGUE Em  seres  humanos,  vários  parâmetros  hematológicos,  quando  medidos  ao  longo  das  24  h,  mostram  uma  variação considerável que pode, quando excluídos os outros fatores, ser atribuída ao fenômeno da ritmicidade circadiana. Assim, a título de exemplo, o momento de máxima no número de hemácias, na quantidade de hemoglobina e no hematócrito ocorre por volta das 12 h. Já o número total de glóbulos brancos tem seu maior valor imediatamente antes ou mesmo no início do período  de  repouso  (aproximadamente  das  23  às  24  h).  Essa  curva  circadiana  dos  leucócitos  pode  ser  decomposta  para cada um de seus componentes: neutrófilos têm sua maior ocorrência por volta das 18 às 19 h, e linfócitos totais, em torno das  24  h  (e  linfócitos  do  tipo  B  têm  seu  valor  máximo  no  fim  da  noite  de  sono).  Por  outro  lado,  as  plaquetas  têm  seu número máximo perto das 18 h.

RITMOS NO SISTEMA CARDIOVASCULAR Praticamente  todos  os  parâmetros  cardiovasculares  humanos  apresentam  uma  flutuação  circadiana  regular.  Assim,  a frequência  cardíaca,  o  débito  cardíaco,  o  volume  sistólico  e  as  pressões  arteriais  sistólica  e  diastólica,  além  do  volume circulante,  apresentam  valores  máximos  por  volta  das  17  às  18  h.  Já  o  tempo  de  ejeção  ventricular,  o  intervalo  entre sístoles, a resistência capilar e a viscosidade sanguínea ou plasmática apresentam seus valores máximos entre 5 e 8 h da manhã.  Por  meio  de  uma  análise  dessas  flutuações  circadianas,  podem­se  inferir  os  momentos  de  maior  risco  para acidentes vasculares do tipo isquêmico (de madrugada e início da manhã) e do tipo hemorrágico (fim da tarde e noite).

RITMOS NO SISTEMA RESPIRATÓRIO Os valores das variáveis ligadas à função respiratória apresentam uma flutuação circadiana, em seres humanos, de tal forma que a capacidade respiratória é mínima à noite e de madrugada e máxima durante o dia. Além do mais, demonstra­ se  que  a  responsividade  máxima  da  árvore  brônquica  a  agentes  parassimpaticomiméticos  ocorre  à  noite,  e  a  agentes simpaticomiméticos,  durante  o  dia.  Este  fato,  associado  à  maior  resposta  alergênica,  menor  resposta  anti­inflamatória, além de um maior contato com o antígeno, explicaria a maior incidência de crises de asma alérgica à noite.

VARIAÇÃO CIRCADIANA NA AÇÃO DE MEDICAMENTOS | CRONOFARMACOLOGIA E CRONOTERAPÊUTICA Como a fisiologia do organismo humano oscila de modo qualitativo e quantitativo nas 24 h do dia, é de se esperar que a  interação  do  organismo  com  fármacos  a  ele  administrados  também  apresente  a  mesma  variação.  O  fato  de  um medicamento apresentar efeito diferente em razão do horário da sua administração deve­se a diversos fatores que variam de  acordo  com  o  ciclo  circadiano,  tipo:  absorção,  capacidade  de  metabolização,  armazenamento,  excreção,  bem  como número e afinidade de receptores em órgãos­alvo.

BIBLIOGRAFIA CIPOLLA­NETO J, MARQUES N, MENNA­BARRETO LS (Eds.). Introdução ao Estudo da Cronobiologia. Ícone­Edusp, São Paulo, 1988.

EDMUNDS, Jr LN. Cellular and Molecular Bases of Biological Clocks. Springer­Verlag, New York, 1988. HASTINGS MH. Central clocking. Trends Neurosci, 20:459­64, 1997. LOWREY PL, TAKAHASHI JS. Mammalian circadian biology: elucidating genome­wide levels of temporal organization. Annu Rev Genomics Hum Genet, 5:407­41, 2004. MOORE­EDE  MC.  Physiology  of  the  circadian  time  system:  predictive  versus  reactive  homeostasis.  Am  J  Physiol,  250(5  Pt 2):R737­52, 1986. MOORE­EDE MC, SULZMAN FM, FULLER CA. The Clocks that Time Us. Harvard University Press, Cambridge, 1982. PAULY JE, SCHEVING LE. Advances in Chronobiology. Alan R Liss, New York, 1987. REINBERG  A,  SMOLENSKY  MH  (Eds.).  Biological  Rhythms  and  Medicine:  Cellular,  Metabolic,  Physiopathologic  and Pharmacologic Aspects. Springer­Verlag, New York, 1983. WEAVER DR. The suprachiasmatic nucleus: a 25­year experience. J Biol Rhythms, 13:100­12, 1998.



Introdução

■ ■

Estrutura geral da célula muscular esquelética Junção neuromuscular

■ ■ ■

Transmissão sináptica na junção neuromuscular Acoplamento excitação­contração Regulação da atividade muscular

■ ■

Tipos de fibras musculares “Plasticidade” muscular

■ ■

Doenças neuromusculares Bibliografia

INTRODUÇÃO Uma  das  grandes  conquistas  evolutivas  dos  animais,  principalmente  no  que  diz  respeito  aos  vertebrados,  foi  a possibilidade  de  se  locomover  e  assim  explorar  territórios  novos  e  cada  vez  maiores.  Essa  aquisição  possibilitou,  entre outras vantagens, maior interação dos indivíduos de uma mesma espécie, busca por abrigos seguros, fuga de predadores e repertório  mais  variado  no  comportamento  alimentar.  A  espécie  humana,  em  particular,  adquiriu  com  a  postura  bípede  a possibilidade de utilizar as mãos nas mais diversas atividades, como confeccionar utensílios para as tarefas diárias. Além disso, os movimentos precisos das mãos permitiram o desenvolvimento da escrita e, juntamente com os da face, criaram todo um repertório sofisticado de comunicação que é um dos exemplos mais complexos de interação social. A execução de movimentos,  comportamentos  que  podem  ser  dos  mais  simples  (como  o  reflexo  miotático  patelar  gerado  quando  se percute o tendão do joelho) aos mais complexos (p. ex., o de tocar uma peça ao piano, que exige movimentos coordenados e  precisos),  é  vista  como  a  principal  resposta  do  sistema  nervoso  a  uma  série  de  sinais  neurais,  periféricos  e  centrais, sendo discutida neste capítulo em termos de contração muscular. O sistema motor somático apresenta, além do próprio músculo esquelético, vários elementos neurais que controlam e planejam as diversas etapas do processo que culmina com a contração muscular. Esses elementos, que têm características e funções específicas, podem ser classificados como efetuadores (músculos esqueléticos), ordenadores (motoneurônios da medula espinal e do tronco encefálico), controladores (cerebelo e núcleos da base) e planejadores (córtex motor). Neste capítulo, trataremos mais especificamente do elemento efetuador, o músculo estriado esquelético, que dispõe em sua  estrutura,  de  uma  organização  de  proteínas  contráteis  capazes  de  deslizar  umas  sobre  as  outras,  promovendo  o encurtamento  (contração)  da  fibra  muscular  e  gerando  o  movimento.  É  importante  mencionar  que  a  contração  muscular pode servir a outros propósitos, como os calafrios, que podem aumentar por até cinco vezes a produção de calor muscular, sendo assim fundamental na homeostase térmica. A  contração  muscular  resulta  de  uma  sequência  de  sinalização  molecular,  iniciada  por  potenciais  de  ação  em  um motoneurônio,  que  conduz  à  liberação  de  um  neuromediador  na  região  de  contato  entre  o  neurônio  e  o  músculo.  Esse

neuromediador  interage  então  com  receptores  específicos  presentes  na  membrana  da  célula  muscular,  o  que  leva posteriormente  à  ativação  de  proteínas  do  citoesqueleto.  Assim,  dizemos  que  a  célula  muscular  é  excitável  como  os neurônios, ou seja, sofre variações de suas propriedades elétricas promovidas pelo potencial de ação. Porém,  antes  de  descrevermos  os  eventos  moleculares  da  contração  muscular  esquelética  (que  se  inicia  com  um impulso  nervoso  gerado  em  um  motoneurônio  que  estabelece  sinapse  com  uma  fibra  muscular),  precisamos  entender  as características  morfofuncionais  das  células  musculares  em  geral,  considerando,  no  entanto,  as  especificidades  do  tecido muscular seja ele liso ou estriado. Em seguida, trataremos da região de contato entre neurônio e músculo, uma estrutura denominada junção neuromuscular.

ESTRUTURA GERAL DA CÉLULA MUSCULAR ESQUELÉTICA Tanto  as  células  musculares,  como  as  nervosas,  apresentam  a  característica  de  serem  excitáveis  e  especializadas  em converter sinais químicos e elétricos em energia mecânica (ou trabalho). Essa conversão pode resultar, por exemplo, em movimentos peristálticos, como ocorre nos órgãos do sistema digestório que contêm grande quantidade de músculo liso. Pode,  também,  levar  à  contração  sincronizada  de  um  sincício,  como  no  músculo  cardíaco,  responsável  pela  ejeção  do sangue no sistema vascular. Ou, ainda, causar movimentos complexos e voluntários, como em sequências específicas de encurtamento e relaxamento de fibras musculares esqueléticas que resultam nos atos de caminhar e falar. Nessa conversão de sinais, as células musculares usam o ATP como fonte de energia para a realização de trabalho, por terem uma série de proteínas relacionadas ao citoesqueleto, com filamentos finos e grossos, cuja complexa organização, que inclui proteínas sensíveis ao íon Ca2+, permite a contração muscular. Os  músculos  estriados  esqueléticos  são  conjuntos  de  centenas  ou  milhares  de  células  alongadas,  multinucleadas, também chamadas de fibras musculares agrupadas em feixes e envoltas por uma cápsula de tecido conjuntivo. Esse tecido é mais rígido nas extremidades e forma os tendões que ligam os músculos aos ossos. Cada fibra muscular apresenta sua própria membrana celular (sarcolema),  sendo  formada  por  unidades  menores  denominadas miofibrilas,  em  que  estão  as moléculas contráteis. As miofibrilas são cilíndricas, têm 1 a 2 mm de diâmetro e são organizadas longitudinalmente dentro da fibra muscular (Figura 6.1). Cada uma delas é envolta por uma especialização do retículo endoplasmático liso (retículo sarcoplasmático),  que  apresenta,  como  principal  função,  armazenar  íons  Ca2+,  que  serão  liberados  no  citosol  durante  o processo  de  contração  muscular.  Muito  próximo  ao  retículo  sarcoplasmático,  existem  estruturas  tubulares  formadas  pela invaginação  do  sarcolema,  designadas  túbulos  transversos  ou  túbulos  T,  que  contêm  canais  de  Ca2+  dependentes  de voltagem (ver Figura 6.1). O conjunto constituído pelo túbulo T e os dois lados do retículo forma uma estrutura conhecida por tríade. É justamente na região da tríade que ocorre o acoplamento entre a excitação da membrana e os sinais químicos necessários à contração muscular. Cada  miofibrila  é  formada  por  conjuntos  longitudinais  de  filamentos  finos  e  grossos  delimitados  por  bandas perpendiculares chamadas de linhas Z, que aparecem organizados em unidades repetidas ditas sarcômeros (Figura 6.2). É essa  organização  morfológica  que  confere  ao  músculo  o  aspecto  estriado  ao  microscópio.  Os  filamentos  finos  e  grossos dos sarcômeros são justamente as proteínas contráteis, responsáveis pela contração muscular; portanto, poderíamos dizer que  os  sarcômeros  são  as  unidades  morfofuncionais  do  músculo  esquelético.  Os  filamentos  grossos  contêm principalmente  moléculas  de  miosina,  e  os  finos,  actina,  tropomiosina  e  troponina.  A  miosina  e  a  actina,  juntas, representam  aproximadamente  55%  das  proteínas  do  músculo.  Os  filamentos  grossos  e  finos  são  também  dispostos longitudinalmente nas miofibrilas, com uma distribuição simétrica e paralela. A molécula de miosina é grande e complexa, sendo formada por dois peptídios enrolados em hélice. Em uma de suas extremidades, mais próxima da linha Z, a miosina apresenta uma saliência globular ou cabeça que dispõe de enzimas ATPase, locais específicos de ligação com moléculas de ATP,  tendo,  portanto,  atividade  ATPásica  (Figura 6.3).  É  nessa  porção  da  molécula  que  também  se  encontra  o  local  de combinação com a molécula de actina. A molécula de actina é longa e formada por duas cadeias de monômeros globulares torcidas  uma  sobre  a  outra,  em  hélice  dupla  (ver  Figura  6.3).  Cada  monômero  de  actina  globular  tem  uma  região  de combinação  com  a  molécula  de  miosina.  Os  filamentos  finos  contêm  ainda  moléculas de tropomiosinae troponina associadas aos de actina (ver Figura 6.3). A molécula de tropomiosina é longa e fina; contém duas cadeias polipeptídicas em α­hélice enroladas uma na outra e que se unem pelas extremidades para formar filamentos longos,  que  se  enrolam  ao  longo  dos  dois  filamentos  globulares  de  actina.  Cada  molécula  de  tropomiosina  contém  um local  específico  onde  se  localiza  uma  molécula  de  troponina  associada;  esse  local  é  na  verdade  um  complexo  de  três polipeptídios  globosos  chamados  de  subunidades  TnT,  TnC  e  TnI.  A  TnT  se  liga  fortemente  à  tropomiosina,  a  TnC apresenta alta afinidade por íons Ca2+ e a TnI inibe a interação entre actina e miosina.

Figura 6.1 ■ Estrutura de uma fibra muscular. Descrição no texto. Note que os túbulos T conduzem a atividade elétrica a partir da superfície da membrana para o interior da fibra muscular. (Adaptada de Bear et al., 2001.)

Os  sarcômeros  apresentam  (ver  Figura  6.2),  em  uma  das  extremidades  delimitada  pelas  linhas  Z,  bandas  claras constituídas  de  moléculas  de  actina,  seguidas  por  faixas  escuras  que  contêm  sobreposições  de  moléculas  de  actina  e  de miosina,  uma  região  central  contendo  principalmente  miosina  (banda H),  novamente  faixas  escuras  seguidas  de  bandas claras  e  finalmente,  na  outra  extremidade,  linhas  Z.  Vale  lembrar  que,  durante  o  processo  de  contração  muscular,  os filamentos grossos e finos mantêm seus comprimentos originais; portanto, a contração (ou encurtamento) de um músculo é resultado de aumento da zona de sobreposição entre os filamentos. Adicionalmente,  outras  proteínas  participam  da  organização  dos  filamentos  miofibrilares,  como,  por  exemplo, filamentos  de  desmina,  que  unem  as  miofibrilas  umas  às  outras.  O  conjunto  de  miofibrilas  é,  ainda,  ancorado  ao sarcolema  por  outras  proteínas,  como  a distrofina,  que  liga  os  filamentos  de  actina  às  proteínas  integrais  da  membrana plasmática.  Tem  sido  dada  muita  importância  também  a  duas  proteínas  de  elevado  peso  molecular:  a  titina  (conhecida também  por  conectina)  e  a  nebulina  (antes  denominada  proteína  da  banda  3),  que  parecem  ter  papel  fundamental  na manutenção  da  estrutura  e  controle  da  elasticidade  do  sarcômero.  Além  disso,  é  sabido  que  mutações  nos  genes  que codificam  essas  proteínas  também  estão  envolvidas  em  doenças  neuromusculares,  como  as  alterações  dos  genes  que codificam as chamadas “proteínas contráteis”.

JUNÇÃO NEUROMUSCULAR A junção neuromuscular,  como  o  próprio  nome  diz,  é  a  região  de  contato  entre  o  terminal  axônico  de  um  neurônio motor  pré­sináptico  (motoneurônio)  que  se  divide  em  vários  ramos  e  uma  região  especializada  da  fibra  muscular  pós­

sináptica chamada de placa motora (Figura 6.4). Em geral, cada fibra muscular é inervada por apenas um axônio, o que faz  dessa  sinapse  exemplo  simples  e  muito  útil  no  entendimento  da  transmissão  sináptica  química,  mas  um  mesmo motoneurônio  pode  inervar  grande  número  de  fibras  musculares.  A  fibra  nervosa  e  a(s)  fibra(s)  muscular(es)  por  ela inervada(s) formam uma unidade motora. Cada ramo desse axônio motor, que não é mielinizado na região próxima à fibra muscular, apresenta diversas varicosidades conhecidas como botões sinápticos, que contêm os componentes relacionados com  a  liberação  do  neuromediador.  Esses  componentes  incluem  grande  número  de  vesículas  cheias  do  neuromediador acetilcolina (ACh), mitocôndrias, canais de Ca2+dependentes  de  voltagem  (fundamentais  para  os  processos  de  fusão  das vesículas com a membrana pré­sináptica e liberação do neuromediador) e regiões especializadas da membrana (zona ativa) relacionadas com a liberação vesicular do neuromediador.

Figura 6.2 ■ Miofibrila: uma visão mais detalhada. Descrição no texto. (Adaptada de Bear et al., 2001.)

Figura 6.3 ■ Bases moleculares da contração muscular. A ligação do Ca2+  à troponina permite que a cabeça da miosina ligue­se ao filamento de actina. Daí, as cabeças de miosina fazem um movimento de rotação, induzindo o deslizamento dos filamentos um em direção ao outro. (Adaptada de Bear et al., 2001.)

Figura 6.4 ■ Junção neuromuscular. No músculo, o axônio motor divide­se em vários ramos finos de aproximadamente 2 mm de espessura. Cada ramo forma múltiplas dilatações chamadas de botões sinápticos, que são cobertos por fina camada de células de Schwann. Os botões ficam sobre uma região especializada da membrana da fibra muscular, a placa motora, e são separados dela por uma fenda sináptica de 100 nm. Cada botão sináptico contém mitocôndrias e vesículas sinápticas agrupadas ao redor das  zonas  ativas,  onde  o  transmissor  acetilcolina  (ACh)  é  liberado.  Sob  cada  botão  na  placa  motora,  estão  várias  dobras juncionais, que contêm alta densidade de receptores de ACh em suas cristas. A fibra muscular é coberta por uma camada de tecido conjuntivo, a membrana basal, que consiste em colágeno e glicoproteínas. Tanto o terminal pré­sináptico como a fibra muscular secretam proteínas na membrana basal, incluindo a enzima acetilcolinesterase, que torna inativa a ACh liberada pelo

terminal pré­sináptico, quebrando­a em acetato e colina. A membrana basal também organiza a sinapse, alinhando os botões sinápticos com as dobras juncionais pós­sinápticas. (Adaptada de Kandel et al., 2000.)

A  fenda  sináptica  existente  entre  as  membranas  pré­sináptica  (do  axônio  motor)  e  pós­sináptica  (da  fibra  muscular) tem  aproximadamente  100  nm,  uma  distância  muito  maior  quando  comparada  àquela  das  sinapses  do  sistema  nervoso central  (de  20  a  40  nm).  Na  fenda  existe  uma  membrana  basal  composta  por  várias  proteínas  da  matriz  extracelular  que contém ancorada às suas fibrilas de colágeno a enzima de degradação da ACh, a acetilcolinesterase, que é sintetizada tanto pelo terminal axônico pré­sináptico como pela fibra muscular pós­sináptica e que hidrolisa rapidamente o neuromediador. Os botões sinápticos do axônio motor, por sua vez, estabelecem contato com a região da placa motora que apresenta invaginações profundas da membrana, as dobras juncionais. A crista dessas dobras tem grande quantidade de receptores de acetilcolina do tipo nicotínico (cerca de 10.000 receptores/μm2!), e as regiões mais profundas das dobras são ricas em canais  de  Na+  dependentes  de  voltagem  (ver  Figura  6.4).  Os  receptores  de  acetilcolina  do  tipo  nicotínico  (AChR)  são macromoléculas constituídas de cinco proteínas organizadas ao redor de um canal iônico que atravessa a membrana celular e que contém os locais de ligação da ACh, ou seja, o próprio receptor é o canal iônico (Figura 6.5).

TRANSMISSÃO SINÁPTICA NA JUNÇÃO NEUROMUSCULAR O  potencial  de  ação  que  atinge  o  terminal  axônico  motor  promove  a  abertura  dos  canais  de  Ca2+  dependentes  de voltagem,  presentes  nos  botões  sinápticos;  o  influxo  desse  íon  inicia  uma  sequência  de  eventos  bioquímicos  que  leva  à fusão  das  vesículas  contendo  ACh  com  a  membrana  pré­sináptica  e  liberação  do  neuromediador  na  fenda  sináptica. Quando liberada na fenda sináptica, a ACh se difunde rapidamente em direção aos receptores da membrana pós­sináptica. Porém, nem todas as moléculas de ACh se ligam aos receptores, porque dois processos de remoção do neuromediador da fenda  atuam  rapidamente.  Uma  parte  desse  contingente  de  moléculas  de  ACh  se  difunde  para  fora  da  fenda  e  outra  é rapidamente hidrolisada pela acetilcolinesterase. As moléculas de ACh que alcançam a membrana pós­sináptica se ligam aos  receptores,  e  a  ligação  desse  neuromediador  com  os  receptores  nicotínicos  na  membrana  pós­sináptica  muscular promove  uma  movimentação  coordenada  de  cada  uma  das  proteínas  que  constituem  esses  receptores.  Uma  vez  que  o receptor contém dois locais de ligação do neuromediador, acredita­se que sejam necessárias duas moléculas de ACh para promover a abertura do canal do receptor (ver Figura 6.5 A). Essa mudança conformacional da macromolécula receptora resulta  na  abertura  do  canal  formado  em  sua  região  central,  permitindo  o  influxo  de  íons  Na+  e  o  efluxo  de  íons  K+, levando a uma despolarização da membrana da placa motora. Esse potencial pós­sináptico excitatório na célula muscular é chamado  de  potencial  da  placa  motora.  O  potencial  da  placa  motora  gerado  pela  abertura  dos  receptores  de  ACh  é  o resultado do fluxo de íons Na+ e K+ através do mesmo canal, diferente do observado para canais iônicos dependentes de voltagem,  que  apresentam  uma  seletividade  a  íons.  Isso  talvez  se  explique  pelo  fato  de  o  diâmetro  do  canal  do  receptor nicotínico  da  ACh  ser  muito  maior  que  o  de  canais  iônicos  dependentes  de  voltagem,  formando  um  ambiente  repleto  de água que permite, assim, o fluxo dos dois cátions. Adicionalmente, estudos eletrofisiológicos realizados na placa motora mostraram  que  o  potencial  da  membrana  no  qual  a  corrente  iônica  é  zero  (ou  seja,  no  qual  se  estabelece  um  equilíbrio entre  os  fluxos  iônicos)  difere  daquele  esperado  para  o  íon  Na+.  O  valor  encontrado  para  o  potencial  da  placa  motora parece mais refletir uma combinação dos potenciais de equilíbrio dos íons Na+ e K+.

Figura 6.5 ■ A. Modelo tridimensional do canal iônico nicotínico ativado pela ACh. O complexo receptor­canal consiste em cinco subunidades (2α, 1β, 1δ e 1γ), todas contribuindo para formar o poro do canal. Quando duas moléculas de ACh se ligam às porções das subunidades α expostas na superfície da membrana, o canal do receptor muda de conformação. Isso abre um poro na parte do canal embutida na bicamada lipídica; então, tanto o K+  como o Na+  fluem através do canal aberto, a favor de seus gradientes eletroquímicos (havendo influxo de Na+  e efluxo de K+ ). B. Modelo molecular das subunidades transmembrânicas do receptor­canal  nicotínico  da  ACh.  Cada  subunidade  é  composta  de  quatro  domínios  transmembrânicos  em  α­hélices (denominados M1 a M4). C. As cinco subunidades são arranjadas de tal modo que formam um canal aquoso, com o segmento M2  de  cada  subunidade  voltado  para  dentro  e  constituindo  a  parede  do  poro.  Note  que  a  subunidade  γ  fica  entre  as  duas subunidades α. (Adaptada de Kandel et al., 2000.)

Na década de 1950, o potencial da placa motora foi estudado em detalhes por Paul Fatt e Bernard Katz, que realizaram registros intracelulares de voltagem. Esse potencial apresenta uma amplitude de cerca de 70 mV (passando de –90 mV, no potencial  de  repouso,  para  –20  mV  com  a  despolarização)  com  a  estimulação  de  uma  única  fibra  e  é  restrito  à  região  da placa motora, decaindo progressivamente com a distância (Figura 6.6). Essa amplitude é muito grande, quando comparada à  de  menos  de  1  mV  dos  potenciais  pós­sinápticos  gerados  na  maioria  dos  neurônios  no  sistema  nervoso  central.  O potencial  pós­sináptico  excita  então  as  regiões  vizinhas  da  placa  motora,  mas  ainda  não  é  um  potencial  de  ação.  Porém, nas regiões mais internas das dobras juncionais, a membrana muscular é rica em canais de Na+ dependentes de voltagem, que,  quando  ativados  pela  despolarização,  geram  mais  influxo  de  Na+,  suficiente  para  ultrapassar  o  limiar  da  célula muscular, convertendo assim o potencial da placa motora em um potencial de ação no músculo, que se espalha por toda a membrana da célula muscular.

Figura 6.6 ■ A. O potencial sináptico no músculo é maior na região da placa motora e se propaga passivamente a partir deste ponto. A amplitude do potencial sináptico decai e sua evolução temporal diminui com a distância do local de seu início na placa motora. B. O decaimento resulta do vazamento da membrana da fibra muscular. Como o fluxo de corrente deve completar um circuito, na placa motora a corrente sináptica para dentro gera um fluxo de retorno da corrente para fora através dos canais de repouso  e  da  membrana  (o  capacitor).  É  esse  fluxo  de  retorno  da  corrente  para  fora  que  produz  a  despolarização.  Como  a corrente  vaza  para  fora  ao  longo  de  toda  a  membrana,  o  fluxo  de  corrente  diminui  com  a  distância  da  placa  motora.  Assim, diferentemente do potencial de ação regenerativo, a despolarização local produzida pelo potencial sináptico da membrana se reduz com a distância. (Adaptada de Kandel et al., 2000.)

ACOPLAMENTO EXCITAÇÃO­CONTRAÇÃO Conhecendo as estruturas da junção neuromuscular e do músculo esquelético propriamente dito, descritas previamente, podemos  descrever  a  sequência  de  eventos  que  conduzem  à  contração  do  músculo  esquelético.  Seja  para  um  movimento reflexo  ou  para  um  movimento  mais  elaborado  que  dependa  de  comandos  superiores  do  encéfalo,  como  os  movimentos voluntários, os eventos que vamos descrever são os mesmos. A  sequência  inicia­se  com  um  potencial  de  ação  no  motoneurônio  que  acaba  por  liberar  grandes  quantidades  de acetilcolina na fenda sináptica, entre o neurônio e o músculo. A acetilcolina, então, se liga aos AChR presentes nas dobras juncionais,  resultando  na  abertura  do  canal  formado  pelos  próprios  receptores.  Essa  abertura  permite  o  influxo  de  íons Na+ e Ca2+ e o efluxo de íons K+, provocando uma alteração no potencial da membrana da célula muscular, levando a uma hipopolarização. Esse potencial  excitatório  pós­sináptico na  célula  muscular,  o  potencial  da  placa  motora,  é  suficiente para  ativar  rapidamente  canais  de  Na+  dependentes  de  voltagem,  presentes  nas  porções  mais  profundas  das  dobras juncionais, gerando mais entrada de íons Na+; isso causa uma despolarização ainda maior que, quando atinge o limiar da célula muscular, gera um potencial de ação que se propaga ao longo da fibra muscular. A propagação desse potencial de ação na fibra muscular chega, então, ao interior dos túbulos T. Assim, a despolarização alcança os túbulos T, que contêm canais de Ca2+ dependentes de voltagem do tipo L (de longa duração) que, desse modo, se abrem e permitem o influxo de

íons Ca2+.  Esses  canais,  por  sua  vez,  estão  muito  próximos  a  outro  tipo  de  canais  de  Ca2+ presentes  na  membrana  do retículo sarcoplasmático, que são sensíveis à abertura dos canais de Ca2+ do tipo L. A abertura desse outro tipo de canal de Ca2+ causa a liberação no citosol de mais íons Ca2+ provenientes agora do retículo sarcoplasmático. Esse contingente extra  de  Ca2+  citosólico  atinge  então  as  moléculas  contráteis  das  miofibrilas.  Em  seguida,  o  Ca2+  citosólico  se  liga  à subunidade  TnC  da  molécula  de  troponina,  o  que  conduz  a  uma  mudança  conformacional  do  complexo  troponina­ tropomiosina, expondo os locais de ligação da actina e possibilitando assim o seu ancoramento com a região da cabeça da molécula  de  miosina  e  formando  pontes  transversas  entre  os  filamentos  (ver  Figura  6.3).  Esse  acoplamento  leva  ao deslizamento  dos  filamentos  finos  e  grossos  entre  si,  aproximando  as  linhas  Z  e  encurtando  o  sarcômero,  resultando  na contração  das  fibras  musculares.  Antes  de  a  contração  ocorrer,  a  atividade  ATPásica  da  cabeça  da  molécula  de  miosina cliva  ATP  em  ADP  +  Pi,  que  é  utilizado  como  fonte  de  energia  para  puxar  os  filamentos  acoplados  depois  que  o Ca2+ expõe os locais de ligação da actina. Assim, podemos dizer que há uma transformação de energia química em energia mecânica,  que  provoca  um  tracionamento  entre  as  moléculas  de  filamentos.  Ao  final  do  processo  de  contração,  as condições  iniciais  se  restabelecem:  o  Ca2+  é  bombeado  de  volta  para  o  retículo  sarcoplasmático,  o  efeito  inibitório  do complexo  troponina­tropomiosina  sobre  a  molécula  de  actina  volta  a  existir,  ocorre  o  desacoplamento  da  miosina  com  a actina e nova molécula de ATP se liga à cabeça da molécula de miosina. É  interessante  mencionar  que  a  concentração  de  cálcio  no  citosol  das  células  musculares  é  baixa  em  condições  de repouso  (menor  que  10–7  M),  o  que  garante  o  estado  de  relaxamento  muscular.  Por  outro  lado,  após  a  ativação  pelos motoneurônios,  que  desencadeia  a  sequência  de  reações  anteriores,  a  concentração  de  cálcio  citosólico  pode  chegar  a 2 × 10–4 M.  A  redução  dessa  concentração  a  níveis  de  repouso  é  fundamental  para  o  relaxamento  muscular,  o  que  se obtém pela atividade intensa da bomba de cálcio na parede do retículo sarcoplasmático (que possibilita o bombeamento de cálcio  de  volta  para  o  retículo)  e  ligação  do  cálcio  a  proteínas  como  a sequestrina.  Uma  informação  interessante  neste ponto  é  a  persistência  de  uma contratura pós­morte (o rigor mortis),  resultante  da  perda  da  fonte  energética  necessária para o relaxamento muscular. Assim, até 25 h pós­morte a musculatura pode permanecer contraída, já que o relaxamento só  vai  acontecer  depois  da  degradação  das  proteínas  musculares  por  autólise.  Em  temperaturas  mais  altas,  a  autólise  é mais rápida, e a contratura pode ceder em 10 a 15 h após a morte. Deste  modo,  a  contração  muscular  resulta  do  acoplamento  excitação­contração,  que  é  o  conjunto  de  alterações eletroquímicas  que  explicam  o  vínculo  entre  o  potencial  de  ação  na  membrana  da  célula  muscular  e  o  encurtamento  do músculo.  Na  realidade,  o  mecanismo  contrátil  do  músculo  esquelético  é  essencialmente  o  mesmo  quando  não  existe encurtamento, na denominada contração isométrica. Esse tipo de contração ocorre, por exemplo, quando o músculo está fixado  em  suas  extremidades.  Neste  caso,  os  elementos  não  contráteis  são  estirados,  gerando  tensão.  A chamada contração isotônica acontece quando há encurtamento real do músculo, contra uma carga constante.

REGULAÇÃO DA ATIVIDADE MUSCULAR A  força  de  contração  muscular  é  um  fenômeno  que  deve  ser  analisado  como  sendo  a  ação  de  diversas  fibras musculares que se contraem praticamente ao mesmo tempo, todas estimuladas pelo mesmo motoneurônio, que por sua vez irá  regular  a  frequência  e  a  intensidade  de  contração  das  fibras  musculares.  Durante  a  contração,  nem  todas  as  fibras  de um  músculo  contraem­se  ao  mesmo  tempo:  enquanto  alguns  grupos  de  fibras  musculares  estão  contraídas,  outras  ficam relaxadas. A Figura 6.7 ilustra os principais mecanismos de regulação da força contrátil. A força de contração depende de alguns parâmetros, como os apresentados a seguir. ▸ Comprimento inicial do músculo. A explicação para esse efeito depende em grande parte da organização muscular  esquelética.  Para  que  a  força  seja  máxima,  a  contração  deve  iniciar­se  com  o  músculo  em  um  comprimento inicial característico, o comprimento ideal. Em geral, este comprimento é o mantido pelo músculo em questão na postura normal da espécie. Quando a contração inicia­se em comprimentos maiores ou menores que o comprimento ideal, existe perda  na  força  resultante.  A  curva  tensão­comprimento  resultante  (ver  Figura  6.7  A)  revela  claramente  o  comprimento ideal,  para  a  maior  efetividade  da  contração  muscular,  e  sugere  uma  dependência  estrita  da  situação  mecânica  do sarcômero em cada situação como fator preponderante na gênese desses efeitos. ▸  Somação  de  contrações  musculares.  A  somação  de  abalos  musculares  isolados  ocorre  a  fim  de determinar movimentos musculares fortes e combinados. Em geral, isto acontece de duas maneiras diferentes (ver Figura 6.7 B):

Pelo aumento do número de unidades motoras que se contraem simultaneamente (somação espacial). O crescimento ■ do  número  de  unidades  motoras  recrutadas  é  proporcional  ao  do  número  de  motoneurônios  que  estão  ativados.  Este mecanismo é conhecido como recrutamento. Uma  célula  muscular  individualizada  não  é  capaz  de  graduar  de  maneira  significante  sua  contração,  por  causa  da natureza tudo  ou  nada do  potencial  de  ação.  As  variações  na  força  de  contração  de  um  músculo  podem  ser,  então, variações  do  número  de  fibras  musculares  que  se  contraem  em  determinado  momento.  Como  os  músculos  são constituídos por unidades motoras, a força ou intensidade de contração de um deles pode ser proporcional ao número de  fibras  musculares  inervadas  por  uma  fibra  nervosa;  ou  seja,  pode  depender  do  tamanho  da  unidade  motora estimulada e/ou do número de unidades motoras estimuladas em determinado momento. O  tamanho  da  unidade  motora,  que  reflete  o  nível  de  divergência  da  fibra  nervosa  sobre  o  músculo,  também  se relaciona  com  a  delicadeza  e  a  precisão  de  movimentos.  Por  exemplo,  uma  única  fibra  nervosa  se  ramifica  muitas vezes e inerva várias fibras musculares de grandes músculos, como os músculos apendiculares da perna utilizados na execução de movimentos pouco precisos. Por outro lado, uma fibra nervosa inerva somente uma fibra muscular ou se ramifica  pouco  e  inerva  apenas  algumas  fibras  musculares  em  músculos  que  executam  movimentos  mais  precisos  e delicados, como os dos dedos da mão ou os músculos oculares ■ Pelo  aumento  da  eficiência  de  contração  de  unidades  motoras  (somação  temporal),  gerado  pela  elevação  da frequência  de  potenciais  de  ação.  Se  a  frequência  crescer,  contrações  sucessivas  irão  se  fundir,  deixando  de  ser distinguidas umas das outras (ocorrendo o fenômeno denominado tetania). Os potenciais de ação sucessivos atingem o músculo  antes  de  o  relaxamento  alcançar  um  percentual  importante  do  relaxamento  total,  e  assim  a  contração subsequente será maior, até chegar a um platô para cada frequência. Possivelmente, um acúmulo de cálcio citosólico (remanescente  da  estimulação  anterior)  tem  um  papel  na  contração  aumentada  que  é  induzida  pela  alta  frequência  de potenciais,  mas  claramente  também  estão  envolvidos  fenômenos  mecanoelásticos.  Na  estimulação  com  frequências médias  ou  altas  suficientes  para  produzir  essa  somação  temporal,  os  números  de  fibras  musculares  que  estão  se contraindo serão sempre os mesmos, mas a força resultante será progressivamente maior, em função da frequência, até um  valor  máximo,  característico  de  cada  músculo.  É  importante  mencionar  que  essa  somação  é  possível  porque  o período  refratário  das  células  musculares  está  na  dependência  de  suas  propriedades  elétricas  (especificamente,  do potencial de ação), sendo, portanto, muito mais curto que o componente mecânico.

Figura 6.7 ■ Regulação da força de contração do músculo esquelético. A. Relação tensão­comprimento, mostrando que há um comprimento inicial ótimo para desenvolvimento máximo de tensão. Esse comprimento corresponde ao comprimento de repouso na postura típica da espécie. B. Efeito da somação espacial (recrutamento por estímulos de intensidades crescentes) e temporal (somação por frequências de estimulação crescentes) sobre a força de contração.

TIPOS DE FIBRAS MUSCULARES Os  músculos  não  são  tecidos  homogêneos,  mas  sim,  em  sua  imensa  maioria,  constituídos  por  vários  tipos  de  fibras musculares.  Essas  fibras  podem  ser  agrupadas  em  dois  tipos  principais:  as  do  tipo  1,  especializadas  para  movimentos lentos, tônicos e aeróbicos, com metabolismo predominantemente oxidativo, e as do tipo 2, especializadas para contrações rápidas, com metabolismo glicolítico. As fibras do tipo 1, ou vermelhas, têm irrigação abundante, muitas mitocôndrias e níveis  de  mioglobina  altos.  As  características  metabólicas  dessas  fibras  limitam  a  sua  velocidade  de  contração  e relaxamento, mas propiciam condições ideais para um trabalho muscular sustentado. As do tipo 2 incluem, na realidade, dois subtipos de fibras musculares, as fibras 2a e 2b, sendo estas últimas conhecidas como fibras brancas, que contêm poucas  mitocôndrias  e  uma  irrigação  limitada.  Todavia,  suas  características  metabólicas,  incluindo  influxos  grandes  de cálcio  e  alta  atividade  ATPásica,  propiciam  condições  de  alta  velocidade,  ainda  que  por  tempos  reduzidos.  As  fibras  do subtipo 2a, por outro lado, têm características intermediárias entre os tipos 1 e 2b, representando, de certa maneira, fibras mistas, com propriedades metabólicas que garantem velocidade e resistência à fadiga.

As propriedades metabólicas e contráteis das diferentes fibras musculares implicam propriedades particulares de suas unidades motoras, como a sua frequência de fusão. Quando uma unidade motora recebe impulsos em frequências tais, que o  intervalo  entre  eles  é  menor  que  o  tempo  de  relaxamento,  ocorre  uma  somação,  e  as  contrações  podem  fundir­se (contração tetânica).  Assim,  como  as  contrações  das  fibras  do  tipo  1  são  mais  lentas,  é  possível  elas  fundirem­se  em frequências mais baixas, entre 12 e 15 Hz. As fibras do tipo 2 têm frequências de fusão acima de 40 Hz. É  importante  comentar  que  as  diferentes  propriedades  metabólicas  das  várias  fibras  musculares  dependem  da expressão  de  uma  família  de  genes  que  codificam  distintas  isoformas  de  miosina,  cálcio­ATPase  e  troponina,  por exemplo,  e  que  a  regulação  da  expressão  desses  genes  tem  estrita  dependência  de  interações  tróficas  dos  motoneurônios com  as  células  musculares.  De  fato,  os  motoneurônios  que  inervam  as  diversas  fibras  musculares  apresentam propriedades  particulares,  além  das  que  determinam  as  propriedades  das  fibras  musculares.  Os  motoneurônios  que controlam as fibras do tipo 1 têm, de modo geral, diâmetros pequenos e excitabilidade alta, possivelmente em função do maior  impacto  que  os  potenciais  sinápticos  podem  ter  sobre  sua  atividade  elétrica  (ver  Capítulo  15,  Transmissão Sináptica).  Os  motoneurônios  que  inervam  as  fibras  do  tipo  2,  opostamente,  apresentam  diâmetros  grandes  e excitabilidade mais baixa. Nos dois tipos de motoneurônios, há altas velocidades de condução dos impulsos nervosos, mas a  velocidade  de  condução  dos  motoneurônios  que  inervam  as  fibras  do  tipo  2  é  sistematicamente  mais  elevada,  coerente com a maior velocidade de contração dessas fibras.

Adaptabilidade das fibras musculares esqueléticas As  fibras  musculares  esqueléticas  podem  se  adaptar  a  novas  necessidades,  mudando  suas características  metabólicas  e  contráteis  no  sentido  de  manter  a  homeostase.  Por  exemplo,  quando  um músculo é submetido à imobilização por períodos prolongados (procedimento frequente em indivíduos que sofreram fraturas), existe uma conversão de fibras do tipo I em tipo II. Isso ocorre porque as fibras do tipo I têm  metabolismo  mais  “caro”,  em  função  de  este  ser  predominantemente  aeróbio  (com  muitas  enzimas oxidativas e grande quantidade de mitocôndrias, entre outros fatores). A exposição a elevadas quantidades de  certos  hormônios  também  pode  modular  a  composição  das  fibras  dos  músculos  esqueléticos.  Por exemplo,  o  hormônio  tireoidiano  converte  fibras  do  tipo  I  para  tipo  II;  em  indivíduos  hipertireóideos,  esse fenômeno contribui para a sensação de cansaço excessivo, normalmente relatado pelo paciente antes do tratamento adequado. O exercício físico também pode levar à conversão de fibras musculares, tanto para tipo  I  quanto  para  II.  Exercícios  resistidos  (aqueles  em  que  o  indivíduo  levanta  pesos)  provocam  alguma conversão  para  fibras  do  tipo  II,  enquanto  exercícios  aeróbios  (os  que  envolvem  atividades  de  longa duração)  causam  certa  conversão  para  fibras  do  tipo  I.  É  interessante  notar  que  essa  conversão  trazida pelo exercício é limitada e o componente genético parece ser muito importante. Em atletas de alto nível de desempenho, pode haver união do componente genético favorável para determinada atividade física com o efeito do treinamento. Na Figura 6.8 A, há a fotografia de um nadador de elite, especializado em provas de 50 m (atividade que exige “explosão”). A análise da composição das fibras musculares de seu quadríceps (Figura 6.8 C)  apresenta  predominância  de  fibras  do  tipo  II  (claras).  É  difícil  demonstrar,  com  precisão,  o efeito do treinamento nesse indivíduo na conversão para fibras do tipo II, mas estima­se que seja da ordem de  10%.  Pode  parecer  pouco,  mas  esse  efeito  do  treinamento  específico  é  capaz  de  ser  um  importante diferencial  competitivo.  Entretanto,  já  está  estabelecido  que  o  componente  genético  é  fundamental  para determinar  grande  aptidão  a  certas  atividades  físicas.  Na Figura 6.8  B,  aparece  um  ciclista  de  alto  nível, especializado  em  longas  distâncias.  A  análise  do  seu  músculo  quadríceps  (Figura  6.8  D)  mostra  uma composição de fibras radicalmente diferente daquela do atleta anterior: quase a totalidade das suas fibras musculares são do tipo I (escuras), garantindo a esse atleta altíssima capacidade de contração por longos períodos  sem  fadiga  significativa.  Atualmente,  não  se  sabe  quais  são  os  genes  envolvidos  nessa determinação  de  tipos  de  fibra  muscular  e,  possivelmente,  algumas  moléculas  estão  envolvidas,  como PGC­1.  Essa  proteína  faz  parte  da  biogênese  mitocondrial  e  da  estimulação  da  síntese  de  enzimas oxidativas.  Camundongos  transgênicos  para  PGC­1  têm  músculos  com  proporção  muito  aumentada  de fibras  do  tipo  I  e  mostram  maior  desempenho  em  atividades  de  longa  duração,  quando  comparados  com animais selvagens. Anselmo Sigari Moriscot. Prof. Associado do Departamento de Biologia Celular e do Desenvolvimento do Instituto de Ciências Biomédicas – USP.

“PLASTICIDADE” MUSCULAR O músculo estriado esquelético está sujeito a uma série de forças que impõem mudanças plásticas, adaptativas, em sua estrutura  e  função.  Essas  mudanças  envolvem  o  diâmetro,  o  comprimento,  a  irrigação  e  os  tipos  de  fibras  musculares, determinando  a  força  contrátil.  As  mudanças  que  surgem  em  função  do  treinamento  físico  ou  da  denervação  podem ilustrar esses fenômenos. A hipertrofia muscular se caracteriza pelo aumento dos filamentos de actina e miosina em cada fibra  muscular,  com  crescimento  do  número  de  miofibrilas,  produzindo,  assim,  uma  elevação  do  tamanho  das  células musculares.  Esse  fenômeno,  em  geral,  é  produzido  por  algum  regime  de  contrações  máximas  ou  submáximas,  como  o exigido  durante  o  treinamento  físico.  A  hipertrofia  muscular  pode  também  ocorrer  por  estiramento  pronunciado,  o  que produz  a  adição  de  novos  sarcômeros  na  extremidade  das  células  musculares.  Os  mecanismos  exatos  pelos  quais  a hipertrofia  muscular  é  produzida  não  são  totalmente  conhecidos,  mas  eles  envolvem  neurotrofinas  de  origem  nos motoneurônios e alterações de expressão gênica na célula muscular.

Figura 6.8 ■ Análise da composição das fibras do músculo quadríceps em atletas de alto nível de desempenho. Em nadador de elite  especializado  em  natação  de  curta  distância  (A),  há  predominância  de  fibras  do  tipo  II,  claras  (C).  Em  ciclista  de  elite especializado  em  provas  de  longa  distância  (B),  predominam  fibras  do  tipo  I,  escuras  (D).  (Adaptada  de  Billeter  e  Hoppeler, 2003.)

Do mesmo modo, a atrofia muscular, que surge por denervação ou por uso diminuído da massa muscular, depende da menor oferta de neurotrofinas, o que impõe reduzida produção de proteínas contráteis.

Em algumas poucas situações, pode ocorrer hiperplasia muscular, com crescimento do número de células musculares e  não  só  de  seu  tamanho.  Esse  mecanismo  não  parece  muito  importante  quanto  à  hipertrofia  descrita  anteriormente,  em termos do aumento da força contrátil resultante.

O controle da massa muscular Como mencionado, o músculo esquelético pode sofrer hipertrofia por crescimento em diâmetro ou em comprimento.  O  primeiro  é  conhecido  como  hipertrofia  radial  enquanto  o  segundo,  como  hipertrofia longitudinal. Essas respostas hipertróficas são disparadas por estresse mecânico, de naturezas diferentes. Na  hipertrofia  radial,  o  estímulo  mecânico  envolve  contração  muscular  contra  resistência;  portanto,  com gasto  de  ATP.  Nesse  tipo  de  hipertrofia,  existe  aumento  de  sarcômeros  em  paralelo,  principalmente formando novas miofibrilas e também, em menor grau, elevando o diâmetro das miofibrilas preexistentes. Estas adaptações provocam mais capacidade contrátil e, consequentemente, maior geração de força pela fibra muscular. O grau da hipertrofia radial varia consideravelmente em função de vários fatores. Estudos que  envolvem  treinamento  resistido,  em  humanos,  demonstram  que  a  área  de  secção  transversal  pode crescer:  (1)  cerca  de  30%  em  pessoas  sedentárias  que  se  engajaram  em  programa  de  treinamento  com exercícios  resistidos  ou  (2)  perto  de  60%  em  fisiculturistas  de  elite  quando  comparados  com  indivíduos destreinados  com  igual  idade.  Além  do  aumento  por  estresse  mecânico  provocado  pela  contração  com gasto  de  ATP,  também  se  pode  estimular  mecanicamente  o  músculo  simplesmente  estirando­o  de  modo passivo. Neste caso, é necessário que o estiramento persista por certo tempo (minutos), não seja lesivo e tenha determinada frequência (em torno de três seções semanais, por período de 2 semanas, já é possível observar ganhos de comprimento muscular e, portanto, de amplitude articular). Na hipertrofia  longitudinal, existe  também  acréscimo  de  novos  sarcômeros  na  fibra  muscular,  como  na  hipertrofia  radial;  no  entanto, esses sarcômeros são adicionados nas extremidades das miofibrilas preexistentes. Esse fenômeno implica miofibrilas  mais  longas  e,  portanto,  também  fibras  musculares  mais  longas,  que  têm  como  consequência aumento da amplitude articular sem ganho de força. Existem modalidades esportivas em que a hipertrofia longitudinal é um componente extremamente importante, como, por exemplo, a ginástica olímpica. Quando pensamos em hipertrofia, devemos levar em consideração a quantidade de proteínas presentes em determinado músculo; esta é controlada pelo balanço entre sua síntese e sua degradação. No processo hipertrófico, o nível de proteína na fibra muscular se eleva, o que pode ser fruto do aumento da síntese ou diminuição  da  degradação  proteica.  Apesar  de  os  mecanismos  envolvidos  na  degradação  de  proteínas terem grande importância na atrofia muscular (ver adiante), na hipertrofia não existe importante mudança da taxa de degradação de proteínas, pelo menos na hipertrofia induzida por exercícios resistidos. Porém, a taxa  de  síntese  proteica  sofre  grandes  alterações  em  resposta  ao  exercício  resistido;  mesmo  certos nutrientes,  especialmente  aminoácidos,  são  capazes  de  aumentar  a  síntese  proteica  no  músculo esquelético. Embora  ainda  não  esteja  claro  como  o  estímulo  mecânico  aumentado,  provocado  pela  contração muscular  (em  um  programa  de  treino  com  exercícios  de  força),  pode  resultar  na  ativação  de  moléculas sinalizadoras  no  interior  da  fibra  muscular  esquelética,  é  consenso  que  microlesões  na  fibra  muscular desempenham  importante  papel.  Essas  microlesões,  decorrentes  da  sobrecarga  mecânica,  podem acometer a membrana plasmática e a estrutura sarcomérica, sinalizando para células­satélite que estão na proximidade. Estas são pequenas células mononucleadas, localizadas sob a lâmina basal da fibra muscular e em íntimo contato com ela. As células­satélite ativadas proliferam gerando células­filhas; então, a minoria delas  continua  proliferando  e  a  maioria  se  funde  à  fibra  muscular,  contribuindo  com  um  novo  núcleo.  A adição  deste  novo  núcleo  proporciona  maior  capacidade  de  produção  de  RNA  mensageiros  de  proteínas contráteis  e,  assim,  novos  sarcômeros  são  construídos.  Um  fator  de  crescimento,  chamado  de  MGF (mechano  growth  factor)  é  produzido  e  liberado  pela  fibra  muscular  em  resposta  ao  estimulo  mecânico, tendo  efeito  estimulador  sobre  as  células­satélite.  Mais  recentemente,  foi  descoberto  outro  fator, a miostatina, que parece ser bastante importante para o controle da massa muscular, sendo forte inibidor dessa massa. Mutações naturais dessa proteína ocorrem em certas raças de gado, como, por exemplo, no azul  belga;  nestes  animais,  a  miostatina  é  funcionalmente  deficiente,  ocorrendo  crescimento  extremo  da musculatura.  Atualmente,  descobriu­se  que  seres  humanos  também  podem  ter  mutações  no  gene  da

miostatina,  em  hetero  ou  homozigose.  Indivíduos  que  apresentam  essa  mutação,  em  homozigose, manifestam massa muscular mais elevada que a média da população. A miostatina é secretada pela fibra muscular  esquelética  e  se  liga  a  receptores  da  própria  membrana  plasmática  dessa  fibra;  portanto,  é  um efeito  predominantemente  parácrino/autócrino.  Além  da  miostatina,  a  fibra  muscular  secreta  um  fator denominado folistatina, que se une a essa proteína, inibindo a capacidade de ligação dela ao seu receptor. Ainda não são bem conhecidos os mecanismos celulares pelos quais a miostatina inibe o crescimento da fibra  muscular;  até  o  momento,  sabe­se  que  tal  proteína  é  capaz  de  antagonizar  a  ação  de  MGF,  um importante  fator  hipertrófico.  Além  disso,  ela  aciona  processos  de  proteólise  na  fibra  muscular.  Outro aspecto importante no controle negativo da massa muscular é o sistema proteassomal, principal controlador da  proteólise  no  músculo  esquelético.  Quando  esse  músculo  é  imobilizado  por  curto  período  de  tempo,  a expressão  de  certas  enzimas  (atrogenes)  chave  desse  sistema  é  aumentada,  induzindo  proteólise  e, portanto, perda de sarcômeros. Em roedores, que apresentam alta taxa metabólica, em apenas 12 h após imobilização de uma pata, a expressão dos atrogenes aumenta de 5 a 10 vezes o normal. É  bem  conhecido  que  a  testosterona  tem  efeito  anabólico,  elevando  a  síntese  proteica  em  fibras musculares  esqueléticas.  As  células­satélite  dispõem  de  receptores  para  testosterona  cuja  atividade  é aumentada  com  níveis  suprafisiológicos  do  hormônio.  Esse  efeito  contribui,  sobremaneira,  para  o crescimento do número de núcleos nas fibras musculares de indivíduos submetidos a treinamento de força, pois este tipo de treinamento promove elevação transitória dos níveis séricos de testosterona. Além disso, esse  hormônio  é  importante  para  o  desenvolvimento  muscular  durante  a  fase  de  crescimento  rápido  na adolescência, em que os músculos esqueléticos precisam acompanhar o aumento dos ossos longos. Anselmo Sigari Moriscot. Prof. Associado do Departamento de Biologia Celular e do Desenvolvimento do Instituto de Ciências Biomédicas – USP.

DOENÇAS NEUROMUSCULARES Uma série de doenças que afetam a unidade motora, como aquelas que envolvem o corpo celular do neurônio motor ou os  axônios  periféricos  (neurogênicas),  ou  as  que  englobam  a  junção  neuromuscular  e  as  fibras  musculares  (miopatias), têm sido extensivamente estudadas e caracterizadas. Em geral, essas doenças da unidade motora causam fraqueza e atrofia dos  músculos  esqueléticos,  mas  as  características  de  cada  patologia dependem  de  qual  componente  da  unidade  motora  é diretamente afetado. Entre as muitas doenças relacionadas com a unidade motora, discutiremos, de início, uma que atinge a  transmissão  sináptica  da  junção  neuromuscular  (miastenia gravis)  e,  posteriormente,  falaremos  sobre  outra  que  afeta diretamente  as  fibras  musculares  (distrofia  muscular  de  Duchenne),  lembrando  que  há  inúmeras  outras  doenças  nessas categorias, algumas das quais têm a sua etiologia totalmente desconhecida.

▸ Miastenia gravis Das  doenças  que  afetam  a  transmissão  sináptica,  a  miastenia  gravis  (myasthenia  gravis)  é  a  mais  bem  estudada. Caracteriza­se por uma disfunção da transmissão sináptica química entre os motoneurônios e os músculos esqueléticos. A miastenia gravis se tornou também o modelo de doença autoimune (o tipo mais comum da doença), em que anticorpos são produzidos contra os AChR presentes no músculo, reduzindo o número de receptores funcionais ou impedindo a interação do  neuromediador  acetilcolina  com  esses  receptores.  Há  também  outras  formas,  congênitas  e  hereditárias,  de  miastenia que não apresentam o caráter autoimune e que parecem ser heterogêneas em suas características, já que incluem deficiência de acetilcolinesterase, diminuição da capacidade ligante dos AChR e mesmo número reduzido de AChR. A característica principal desta doença é a fraqueza muscular que quase sempre afeta os músculos cranianos (pálpebras, músculos do olho e  orofaríngeos)  e  que  pode  ser  revertida,  em  alguns  casos,  com  o  uso  de  fármacos  inibidores  da  acetilcolinesterase  (a enzima de degradação da ACh), como a neostigmina. Duas observações importantes ajudaram a definir o caráter autoimune da miastenia gravis. Uma delas foi a de que a remoção do timo, ou de timomas, provocava uma redução dos sintomas em pacientes com miastenia gravis, o que ficou mais  claro,  posteriormente,  com  o  advento  dos  conhecimentos  acerca  do  papel  imunológico  do  timo.  A  outra  descoberta relevante  emergiu  com  a  caracterização  e  localização  dos  AChR  do  músculo,  a  partir  do  uso  de  ferramentas farmacológicas,  que  possibilitou  a  observação  de  que  em  pacientes  miastênicos  há  diminuição  de  AChR  (resultado indireto de alterações dos mecanismos de reciclagem e degradação) e presença de anticorpos no soro.

Como já citado (ver Figura 6.5), os AChR são macromoléculas constituídas de cinco proteínas organizadas ao redor de um canal iônico que atravessa a membrana celular e que contém os locais de ligação da ACh. O local de interação da ACh com o complexo receptor está presente na subunidade α, e, no caso da miastenia gravis, os autoanticorpos parecem ser dirigidos contra a região imunogênica principal presente na porção extracelular dessa subunidade. O tratamento de pacientes com miastenia gravis do tipo autoimune se baseia no uso de agentes anticolinesterásicos que prolongam  a  disponibilidade  de  ACh  na  fenda  sináptica  da  junção  neuromuscular,  gerando  um  alívio  sintomático  pelo menos  parcial.  Além  disso,  as  terapias  imunossupressivas  que  inibem  a  síntese  de  anticorpos,  a  timectomia  e  a plasmaférese (que removem do sangue os anticorpos contra o receptor) também são tratamentos utilizados. O tratamento para o tipo congênito da miastenia gravis também tem como base o uso de agentes anticolinesterásicos.

▸ Distrofia muscular de Duchenne Esta  distrofia  é  uma  miopatia  hereditária  que  se  manifesta  apenas  em  indivíduos  do  sexo  masculino  (transmite­se como  fator  recessivo  ligado  ao  cromossomo  X).  Tem  início  com  fraqueza  muscular  nas  pernas  e  progride  relativamente rápido, levando à morte por volta de 30 anos de idade. Os  indivíduos  portadores  da  distrofia  muscular  de  Duchenne  não  têm  a  proteína  distrofina  ou  a  apresentam  em quantidade muito pequena. Como citado, a distrofina desempenha um papel fundamental na manutenção da integridade da membrana plasmática muscular, já que ela ancora os filamentos de actina às proteínas integrais da membrana plasmática.

BIBLIOGRAFIA BEAR  MF,  CONNORS  BW,  PARADISO  MA.  Neuroscience:  Exploring  the  Brain.  2.  ed.  Lippincott  Williams  &  Wilkins, Philadelphia, 2001. BERNE RM, LEVY MN, KOEPPEN BM et al. Physiology. Elsevier, Philadelphia, 2004. BILLETER R, HOPPELER H. Muscular basis of strength. In: Strength and Power in Sport. Blackwell Science, Oxford, 2003. COSTANZO LS. Physiology. Elsevier, Philadelphia, 2002. KANDEL ER, SCHWARTZ JH, JESSELL TM. Principles of Neural Science. 4. ed. McGraw­Hill, New York, 2000. LENT R. Cem Bilhões de Neurônios – Conceitos Fundamentais de Neurociência. Atheneu, São Paulo, 2004.

7 8

Membrana Celular Difusão, Permeabilidade e Osmose

9 Gênese do Potencial de Membrana, Excitabilidade Celular e Potencial de Ação 10 Canais para Íons nas Membranas Celulares 11 Transportadores de Membrana 12 ATPases de Transporte



Introdução

■ ■

Lipídios estão presentes na membrana celular Proteínas na membrana



Bibliografia

INTRODUÇÃO Um dos pressupostos básicos para o aparecimento da vida, como a conhecemos hoje, é, sem dúvida, a possibilidade de individualizar­se  um  certo  volume  que  mantivesse  características  físico­químicas  distintas  do  ambiente. A  compartimentalização  desse  volume  aquoso,  dentro  de  um  ambiente  também  francamente  aquoso,  é  que  permitiu  a ocorrência  de  reações  químicas  diversas,  de  forma  ordenada,  características  dos  seres  vivos.  Nesse  processo, as membranas surgem como primeira estrutura no estabelecimento de uma interface entre dois meios que necessariamente devem  ter  características  próprias,  tanto  do  ponto  de  vista  de  composição,  como  termodinâmico.  Na  verdade,  as membranas  biológicas  definem  não  só  compartimentos  macroscópicos  e  celulares,  mas  também  aqueles  subcelulares, representados  pelas  organelas.  Como  interfaces,  as  membranas  biológicas  geram  e  mantêm  gradientes  químicos  e elétricos,  suportam  reações  químicas  vetoriais,  geram  e  transmitem  informações  elétricas  em  células  excitáveis,  servem como substrato para reconhecimento imunológico, funcionam como arcabouço para receptores para hormônios e fármacos etc.  Embora  tenham  funções  múltiplas  e  algumas  de  grande  complexidade,  todas  as  membranas  biológicas  apresentam várias características comuns, como flexibilidade, composição e estrutura supramolecular. A presença de uma membrana delimitando o citoplasma de células pode ser evidenciada por meio de experimentos muito simples, como a observação de plasmólise  em  células  vegetais,  detecção  de  resistência  e  capacitância  elétrica  entre  intra  e  extracelular  e  visualização através  de  microscopia  eletrônica.  A  imagem  microeletrônica  revela  um  arranjo  bastante  característico  com  duas  linhas eletrodensas separadas por uma região mais transparente, com espessura ao redor de 60 a 70 Å (6 a 7 nm). Esse arranjo trilamelar é encontrado em todas as membranas biológicas, sejam elas plasmáticas ou de organelas. A Figura 7.1 mostra uma  microfotografia  eletrônica  de  duas  membranas  plasmáticas  separadas  pelo  espaço  intercelular.  Como  se  pode observar,  o  aspecto  de  bicamada  é  claramente  definido,  e  as  regiões  mais  eletrodensas  devem  refletir  as  regiões  polares das moléculas de fosfolipídios. Neste  capítulo,  a  membrana  biológica  será  abordada  do  ponto  de  vista  de  composição  e  estrutura  básica,  e  nos seguintes serão descritos os sistemas funcionais mais específicos.

LIPÍDIOS ESTÃO PRESENTES NA MEMBRANA CELULAR A  observação  de  que  células  podem  ser  lisadas  quando  na  presença  de  detergentes  e/ou  solventes  orgânicos  (éter, hexano,  pentano,  decano  etc.)  permite  postular  a  presença  de  lipídios  na  membrana  plasmática.  Além  disso,  está  bem estabelecido que as membranas celulares são mais permeáveis a substâncias lipossolúveis e neutras que àquelas com carga elétrica  e  hidrossolúveis,  como  sugerido  desde  longa  data  por  Ernest  Overton  (1899).  Adicionalmente,  sabe­se  que  os

detergentes funcionam como agentes antissépticos devido à capacidade de interação com gorduras. Em certos organismos, as gorduras servem como moléculas para estocagem intracelular de energia, isolamento térmico, proteção de superfície ou, ainda, podem servir como hormônios, regulando processos metabólicos, como é o caso dos esteroides. O  que  torna  os  lipídios  interessantes  enquanto  agentes  formadores  de  membranas?  Para  responder  a  esta  questão, passaremos a analisar o problema do ponto de vista bioquímico. O arranjo molecular da membrana plasmática é assunto que tem intrigado os cientistas há muito tempo, e uma das demonstrações mais engenhosas da estruturação da membrana como  uma  bicamada  lipídica  é,  seguramente,  a  de Gorter  e  Grendel,  datada  de  1925.  Esses  pesquisadores  extraíram  de glóbulos vermelhos as membranas e as trataram com um solvente orgânico volátil para extrair os lipídios. Essa solução de lipídios foi, então, colocada sobre a superfície de uma solução aquosa, tendo se dado tempo suficiente para a evaporação do  solvente  orgânico.  Como  será  detalhado  mais  adiante,  os  lipídios  são  moléculas  anfipáticas  e,  portanto,  na  superfície aquosa  distribuem­se  com  suas  regiões  hidrofóbicas  voltadas  para  o  ar.  Assim,  por  meio  de  manipulação  experimental adequada,  é  possível  fazer  com  que  as  moléculas  lipídicas  se  disponham  lado  a  lado,  formando  uma  camada  molecular simples (monocamada) sobre a superfície da água. Foi o que Gorter e Grendel fizeram, medindo a área (A) ocupada pelos lipídios nessa monocamada. Em seguida, como conheciam a área de membrana em cada glóbulo vermelho e o número de glóbulos  que  haviam  utilizado  no  experimento,  calcularam  a  área  total  de  membrana  (S)  dos  glóbulos  vermelhos. Comparando essas duas áreas, Gorter e Grendel verificaram que:

Embora os experimentos de Gorter e Grendel possam ser hoje criticados, entre outras coisas, por não terem levado em conta que parte da área das membranas é ocupada por proteínas, seus resultados levaram à conclusão de que os lipídios em uma membrana plasmática assumem um arranjo de bicamada. Desde então, vários modelos foram propostos para descrever as propriedades das membranas biológicas. O de Singer e Nicolson (1972), conhecido como modelo do mosaico fluido, é um ponto de referência. Baseado em dados funcionais e termodinâmicos,  o  modelo  incorpora  o  papel  das  proteínas,  como  elementos  essenciais  nos  processos  de  transdução  de sinais e de transporte através das membranas. Para  entendermos  as  propriedades  de  estabilidade  e  a  forma  das  bicamadas  lipídicas,  basta  entendermos  o chamado caráter anfipático das moléculas lipídicas que, em última instância, determina suas propriedades de agregação, quando em um ambiente aquoso.

Figura 7.1 ■ Duas membranas plasmáticas separadas pelo espaço intercelular. (Adaptada de Fawcett e Bloom, 1994.)

▸ Ácidos graxos são componentes importantes dos lipídios Como veremos adiante, os lipídios podem ser agrupados em diferentes classes. Porém, preservam várias propriedades comuns  que  são  derivadas,  essencialmente,  da  presença  de  um esqueleto hidrocarbônico em  suas  moléculas,  o  que  lhes confere propriedades de isolantes elétricos com uma constante dielétrica a cerca de 2. Essa característica é contrária à da água, cuja molécula é polarizável e apresenta uma constante dielétrica de 80. O interessante é que os lipídios da bicamada conferem  às  membranas  celulares  uma  propriedade  de  capacitor.  Ou  seja,  as  membranas  conseguem  armazenar  cargas

entre  os  lados  intra  e  extracelular,  e  essa  propriedade  confere  uma  dependência  intrínseca  do  tempo  aos  fenômenos elétricos (p. ex., despolarizações) que aí ocorrem. A Figura 7.2 ilustra essa propriedade da membrana. Como  se  pode  observar  na  Figura  7.2,  ao  ser  ligado  o  pulso  de  voltagem,  a  corrente  apresenta  um  transiente direcionado para baixo, que decai com o tempo, mesmo mantendo­se a voltagem constante. A área sob a curva de corrente é  diretamente  proporcional  à  quantidade  de  cargas  armazenadas  entre  os  2  lados  da  bicamada.  Outro  fato  interessante  é que,  devido  à  pouca  variabilidade  na  espessura  da  bicamada  de  célula  para  célula  (ou  mesmo  de  organelas),  o  valor  da capacitância  é  praticamente  o  mesmo  para  todas  as  membranas  e  igual  a  1  μF/cm2.  Portanto,  medidas  de  capacitância podem ser utilizadas para a avaliação da área da membrana celular. Esse experimento ainda traz uma outra informação: a membrana (bicamada) apresenta uma resistência relativamente alta (da ordem de 108 Ω ꞏ cm2), já que a resposta mantida de corrente é muito pequena frente ao pulso de voltagem (observe a diferença entre o traçado de corrente estacionária e a linha pontilhada que representa corrente igual a zero). De  modo  geral,  os  lipídios  complexos  (aqueles  que  podem  sofrer  saponificação)  são  derivados  de  ácidos  graxos. Estes, por sua vez, são compostos quimicamente simples, formados por cadeias hidrocarbônicas de extensão variável e terminadas  por  uma  carboxila,  existindo  uma  centena  de  tipos  diferentes  de  ácidos  graxos.  Tais  cadeias  podem ser saturadas,  isto  é,  apresentam  somente  ligações  simples  entre  seus  carbonos,  ou insaturadas,  caso  em  que  existem uma  ou  mais  duplas  ligações  ao  longo  da  cadeia.  A  maioria  dos  ácidos  graxos  tem  um  pK  ao  redor  de  4,5,  estando, portanto, ionizados em pH fisiológico. Do ponto de vista de nomenclatura, os ácidos graxos recebem seus nomes baseados no número de carbonos na cadeia e na presença ou ausência de insaturações. Rotineiramente, no entanto, os seus nomes populares são mais utilizados. O Quadro 7.1 enumera alguns deles, com o nome científico e o popular.

Figura 7.2  ■   Resposta  de  corrente  (traçado  superior,  em  roxo)  de  uma  célula  CHO  (chinese  hamster  ovary)  a  um  pulso  de voltagem  hiperpolarizante  (de  –60  para  –80  mV,  em  amarelo).  Note  que:  (1)  a  resposta  de  corrente  não  acompanha temporalmente o pulso de voltagem, que se instala instantaneamente, e (2) os transientes da corrente têm sentidos contrários ao ligamento ou desligamento do pulso de voltagem.

Os dados do Quadro 7.1 mostram  que  a  presença  de  insaturações  do  tipo cis na  cadeia  hidrocarbônica  de  um  ácido graxo  faz  com  que  seu  ponto  de  fusão  se  desloque  para  temperaturas  mais  baixas,  atingindo  inclusive  valores  abaixo  de zero,  como  no  caso  dos  ácidos  linoleico  e  linolênico.  Ou  seja,  à  temperatura  ambiente,  enquanto  os  ácidos  graxos  cis­ saturados  comportam­se  como  ceras,  os  insaturados  encontram­se  no  estado  líquido.  Isso  se  deve  ao  fato  de  as  cadeias saturadas  serem  flexíveis,  permitindo  um  maior  alinhamento  e  empacotamento  entre  cadeias  vizinhas,  já  que  rotações podem ocorrer ao nível de cada carbono. Por outro lado, a presença de duplas ligações cis torna a cadeia angulada naqueles pontos  onde  elas  ocorrem.  Com  isso,  diminui  a  possibilidade  de  interações  do  tipo  van  der  Waals  entre  as  cadeias vizinhas, impedindo um empacotamento maior das moléculas. Poucos são os exemplos de ácidos graxos trans­saturados na natureza, mas, como esse tipo de dupla ligação não insere ângulos na cadeia hidrocarbônica, suas propriedades físico­ químicas  assemelham­se  às  dos  ácidos  graxos  saturados  de  mesmo  tamanho.  A  geração  de  ácidos  graxos saturados trans era comum em processos industriais para a solidificação de gorduras vegetais a partir de óleos ricos em ácidos  graxos  saturados  cis,  cujas  insaturações  eram  hidrogenadas  para  formação  de  ácidos  saturados,  portanto,  com

maior  temperatura  de  fusão.  Porém,  o  restrito  arsenal  metabólico  das  células  para  metabolizar  os  ácidos graxos  trans  parece  estar  associado  a  doenças  metabólicas,  motivo  pelo  qual  a  indústria  alimentícia  tem  procurado processos  diferentes  de  hidrogenação  de  gorduras  vegetais  que  não  levem  à  formação  de  ácidos  graxos  trans  como subprodutos. Em  animais,  os  ácidos  graxos  mais  comuns  são  o oleico (18  carbonos  e  uma  insaturação,  ou  seja,  um  ácido  graxo 18:1), o palmítico (16 carbonos) e o esteárico (18 carbonos). Os mamíferos requerem na dieta a presença de alguns ácidos graxos poli­insaturados, como o ácido linoleico (18:2) e o a­linolênico (18:3), encontrados somente em plantas e peixes. Esses ácidos graxos são denominados essenciais. Dependendo de onde ocorre a primeira insaturação a partir do carbono mais  distante  da  carboxila  do  ácido  graxo  insaturado  (carbono  ω),  os  ácidos  graxos  poli­insaturados  são  classificados como pertencentes à família ω­9 (p. ex., oleico), ω­7 (palmitoleico), ω­6 (linoleico) e ω­3 (α­linolênico).

Quadro 7.1 ■ Nomenclatura de alguns ácidos graxos. Número de

Ligações

Nome científico

Nome comum

Ponto de fusão,

carbonos

insaturadas

12

0

n­dodecanoico

Láurico

44,2

14

0

n­tetradecanoico

Mirístico

53,9

16

0

n­hexadecanoico

Palmítico

63,1

18

0

n­octadecanoico

Esteárico

69,6

20

0

n­eicosanoico

Araquídico

76,5

16

1

 

Palmitoleico

–0,5

18

1

 

Oleico

13,4

18

2

 

Linoleico

–5,0

18

3

 

Linolênico

–11,0

°C

A Figura 7.3 exemplifica a estrutura química de dois desses ácidos graxos. Você pode dizer qual deles é saturado ou insaturado? Por quê?

▸ Lipídios são derivados de ácidos graxos com glicerol Os  ácidos  graxos  podem  combinar­se  com  o  glicerol  para  formar  uma  classe  de  compostos  chamada de  acilgliceróis  ou  glicerídios.  A  reação  faz­se  por  esterificação  de  uma  ou  mais  hidroxilas  originando  moléculas conhecidas  como  monoglicerídio,  diglicerídio  ou  triglicerídio  (na  dependência  do  número  de  hidroxilas  esterificadas). Esta  última  classe  de  compostos  constitui  a  forma  mais  comum  de  armazenagem  de  gorduras  em  animais.  A  Figura 7.4 ilustra a estrutura química desses compostos.

▸ Fosfolipídios têm uma das hidroxilas esterificada por um grupamento fosfato Suponha agora que, em vez de 3, apenas 2 ácidos graxos se ligam ao glicerol e que na hidroxila terminal se ligue um grupamento fosfato, como exemplificado na Figura 7.5. Haverá então a formação de uma nova molécula, um fosfolipídio, que,  no  exemplo  dado,  é  um  ácido  – ácido fosfatídico.  Note  que  esta  última  molécula  apresenta  duas  cargas  resultantes negativas,  decorrentes  do  grupamento  fosfato.  Uma  dessas  cargas,  por  sua  vez,  pode  ser  neutralizada  por  uma  outra esterificação através de grupos hidroxila provenientes de pequenos alcoóis, resultando em diferentes fosfolipídios. Assim, se  for  ligada  uma  colina  ao  fosfato,  teremos  a  formação  de fosfatidilcolina;  caso  seja  ligado  um  grupamento  serina,  se formará a fosfatidilserina;  se  for  ligada  a  etanolamina,  vai  ser  formada  a  fosfatidiletanolamina,  e  assim  por  diante.  A

estrutura química desses lipídios pode ser vista na Figura 7.5. As moléculas resultantes podem ter carga total neutra ou negativa, dependendo do álcool esterificado com o fosfato. Existem outros fosfolipídios, além dos citados, que se distinguem não só pelos ácidos graxos que os compõem, mas também pelos grupamentos ligados ao fosfato. Um exemplo é a cardiolipina, um fosfolipídio típico da membrana interna de  mitocôndrias  que,  por  possuir  apenas  2  hidroxilas  esterificadas  por  fosfatos,  constitui­se  em  um difosfatidilglicerol. Em razão de os grupos fosfato terem, cada, uma carga negativa livre, a molécula apresenta 2 cargas negativas resultantes. Como  dito  no  início  do  capítulo,  as  moléculas  de  lipídios  (gorduras)  são  insolúveis  em  água,  porém  dissolvem­se facilmente  em  solventes  orgânicos,  como  éter,  hexano,  benzeno  etc.  Esta  propriedade  pode  ser  mais  bem  entendida  se olharmos  para  a  estrutura  química  das  moléculas  anteriormente  descritas:  em  todas,  é  possível  encontrar  uma  extensa região  apolar,  formada  pelas  cadeias  hidrocarbônicas  dos  ácidos  graxos.  No  entanto,  os  fosfolipídios  têm  uma  região (hidroxila  esterificada  pelo  fosfato)  onde  predominam  grupamentos  com  cargas,  ou  seja,  o  que  se  convencionou  chamar de  cabeça  polar,  cuja  interação  preferencial  se  faz  com  a  água.  Esta  região  é,  portanto,  hidrofílica.  Desse  modo,  as moléculas  de  lipídios  são  denominadas anfipáticas,  já  que  parte  da  molécula  é  altamente  hidrofóbica  e  parte,  altamente hidrofílica.  Como  consequência,  quando  moléculas  anfipáticas  são  colocadas  em  água  tendem  a  se  estruturar  de  modo  a minimizarem as interações das cadeias carbônicas com a água, possibilitando o aparecimento de estruturas distintas, como exemplificado  na  Figura  7.6:  (1)  micelas,  preferencialmente  formadas  por  moléculas  que  têm  uma  única  cadeia hidrocarbônica, resultando em um arranjo em que as cadeias apolares ficam voltadas para o centro de estruturas tubulares ou  esféricas  e  protegidas  do  ambiente  aquoso.  Isto  é,  o  centro  da  micela  é  francamente  hidrofóbico,  ou  (2)  bicamadas, situação  em  que  2  moléculas  lipídicas,  com  cadeias  hidrocarbônicas  duplas,  tendem  a  associar­se  espontaneamente,  de modo  a  ter  suas  regiões  apolares  protegidas  pelos  grupos  polares,  que  estão  voltados  para  o  ambiente  hidrofílico.  Um grande número de lipídios tende a se estruturar em uma bicamada, quando colocado em contato com água. Para minimizar ao máximo a interação das cadeias hidrocarbônicas com a água, tais bicamadas fecham­se, formando pequenas esferas que contêm solução aquosa em seu interior, conhecidas como lipossomos ou vesículas, e podem ser delimitadas por uma única bicamada  ou  apresentar  várias  bicamadas  arranjadas  concentricamente.  Dependendo  do  método  utilizado  na  sua preparação,  os  lipossomos  podem  ter  diâmetros  que  variam  desde  alguns  poucos  angstroms  até  micrômetros.  Em laboratório, é também possível produzir bicamadas planas, com área da ordem de milímetros quadrados. Estas bicamadas constituem material de fundamental importância para o estudo de sistemas transportadores, particularmente canais iônicos, por técnicas eletrofisiológicas, já que é possível ter­se acesso aos dois lados das bicamadas.

Figura 7.3 ■ Estrutura  química  de  dois  ácidos  graxos.  A  título  de  ilustração,  um  deles  tem  insaturações  na  cadeia  carbônica. Observe  que  a  ocorrência  de  ligações  duplas  tende  a  angular  a  cadeia,  dificultando  o  acoplamento  de  outras  moléculas  de ácido graxo.

Figura 7.4 ■ Formação de um triglicerídio. A esterificação das hidroxilas do glicerol, por um ácido graxo, resulta na formação de mono, di ou triglicerídios. Em cada posição, os ácidos graxos podem ser iguais ou diferentes. R indica as cadeias carbônicas dos ácidos graxos.

Figura 7.5 ■ Fosfolipídios. A ligação de um grupamento fosfato a um dos carbonos do glicerol origina um ácido fosfatídico (A) com  carga  resultante  negativa.  A  ligação  subsequente  de  outros  grupamentos  ao  fosfato  pode  originar  diversos  fosfolipídios, aqui  exemplificados  por  fosfatidilserina  (B),  fosfatidiletanolamina  (C)  e  fosfatidilcolina  (D),  com  carga  resultante  negativa  ou neutra.

A  bicamada  lipídica  pode  ser  considerada  como  um  protótipo  simples  da  membrana  celular  que,  no  entanto,  guarda uma  de  suas  propriedades  básicas,  a  fluidez.  Os  lipídios,  em  uma  bicamada,  podem  sofrer  vários  tipos  de  movimentos, desde rotação ao redor de seu próprio eixo, até movimentar­se lateralmente no plano da bicamada; podem, também, trocar de  monocamada,  indo  de  uma  a  outra,  movimento  este  conhecido  com  o  nome  de  flip­flop.  Nos  últimos  anos,  a movimentação  de  moléculas  lipídicas  em  uma  membrana  tem  sido  estudada  por  uma  técnica  em  que  marcadores moleculares são acoplados à cabeça polar e seus movimentos seguidos por espectroscopia de ressonância eletrônica.

▸ O colesterol é um lipídio que influencia as propriedades físico­químicas da membrana Como  descrito,  a  fluidez  de  uma  membrana  é  dependente  do  tipo  de  fosfolipídio  que  a  compõe  (saturado  ou insaturado). Além disso, essa propriedade também é tremendamente influenciada pelo seu conteúdo de colesterol (Figura 7.7), um lipídio simples da classe dos esteroides que está presente na maioria das membranas de animais e plantas. O colesterol é responsável por cerca de 20% do total de lipídios presentes em glóbulos vermelhos de várias espécies animais e, também, na mielina. Como a molécula de colesterol é composta por vários anéis hidrocarbônicos interligados e apenas uma curta cadeia hidrocarbônica linear, ela se apresenta com uma estrutura bastante rígida, interpondo­se entre as moléculas de fosfolipídios e interagindo com as cabeças destes, através de sua única hidroxila. Esta interação resulta em uma relativa imobilização e “empacotamento” dos fosfolipídios, formando uma bicamada com reduzida permeabilidade à água  e  a  não  eletrólitos  de  baixo  peso  molecular.  Obviamente,  a temperatura também  é  importante  na  determinação  do estado  de  fluidez  de  uma  bicamada.  Isto  é  devido  a  uma  propriedade  chamada  de  transição  de  fase  dos  lipídios,  que

podem assumir um estado cristalino rígido (gel) ou um estado cristalino líquido, dependendo da temperatura. Como regra, os  lipídios  com  ácido  graxo  de  cadeia  mais  curta,  ou  possuidora  de  ligações  duplas,  formam  estruturas  rígidas  em temperaturas mais baixas que as requeridas por lipídios com cadeias mais longas e totalmente saturadas (ver Quadro 7.1). O  ácido  graxo  de  cadeia  curta  tem  reduzida  chance  de  interação  com  o  seu  vizinho,  o  que  pode  ser  mais  acentuado  se também possuir duplas ligações, já que nestes pontos a cadeia estará angulada.

Figura 7.6 ■ Principais arranjos estruturais assumidos por moléculas anfipáticas em ambiente aquoso. Devido, essencialmente, ao chamado efeito hidrofóbico, essas moléculas tendem a formar estruturas em que as cabeças polares estão voltadas para o ambiente aquoso, e as cadeias hidrocarbônicas, protegidas desse ambiente.

Figura 7.7  ■   Estrutura  química  do  colesterol.  A  região  do  anel  esteroide  forma  uma  estrutura  com  pouca  mobilidade,  e  sua interação com os fosfolipídios tende a tornar a bicamada mais “empacotada”.

Interessantemente, o colesterol, apesar de aumentar a rigidez da bicamada por aumentar o empacotamento dos lipídios, abaixa  a  temperatura  de  transição  de  fase  ao  dificultar  que  fosfolipídios  saturados  empacotem  entre  si,  garantindo  assim que a membrana encontre­se em estado líquido cristalino nas temperaturas usuais em que vive o organismo. O fato de o colesterol  aumentar  o  empacotamento  e  deixar  a  membrana  em  um  estado  mais  fluido  pode  parecer  um  contrassenso  à

primeira vista. Todavia, ao manter a membrana como um líquido cristalino, impede que essa estrutura tão delgada torne­se “quebradiça”  em  estado  sólido­gel  (uma  analogia  pode  ser  aqui  feita  com  a  casca  de  um  ovo),  ao  mesmo  tempo  que  se torna mais coesa (graças ao maior empacotamento e à rigidez consequente).

▸ Os lipídios são assimetricamente distribuídos entre as duas faces de uma bicamada Em  1972,  Bretscher  formulou  a  hipótese  (hoje  amplamente  confirmada)  de  que  os  lipídios  distribuem­se  de  modo diferencial  entre  as  duas  monocamadas  componentes  da  bicamada.  Este  pesquisador  observou  que  certas  substâncias químicas,  que  reagem  especificamente  com  os  grupos  amino  da  fosfatidilserina  e  da  fosfatidiletanolamina,  não apresentavam efeito quando em contato com glóbulos vermelhos intactos, mas sim, quando em contato com fragmentos de membranas  desses  glóbulos.  Estudos  posteriores,  e  em  várias  outras  células,  demonstraram  que  a  fosfatidilserina  e  a fosfatidiletanolamina  (possuidoras  de  grupos  amino  primários)  tendem  a  localizar­se  preferencialmente  na  monocamada voltada para o intracelular, enquanto a fosfatidilcolina e a esfingomielina localizam­se, preferencialmente, na monocamada cujos  grupos  polares  estão  voltados  para  o  extracelular.  Como  a  fosfatidilserina  possui  carga  resultante  negativa,  a bicamada apresenta uma diferença significativa de cargas entre suas faces intra e extracelular (não confunda com diferença de  potencial  entre  as  soluções  intra  e  extracelular,  assunto  que  será  estudado  em  vários  outros  capítulos).  Outra consequência  é  que  algumas  enzimas  ligadas  à  membrana  requerem  fosfatidilserina  e  sua  negatividade  para  funcionarem adequadamente,  como  é  o  caso  da  proteinoquinase  C,  importante  na  fosforilação  de  proteínas  presentes  nas  células. Interessante notar que, devido à movimentação das moléculas de lipídios entre as monocamadas (flip­flop), já referida, não seria  de  esperar  tal  assimetria  lipídica  na  bicamada;  no  entanto,  há  que  se  considerar  que  tais  movimentos  são  muito lentos, processando­se na escala de horas a dias. Já o colesterol pode mudar de monocamada em uma escala de tempo de segundos.  De  qualquer  forma,  há  evidências  de  que  a  distribuição  assimétrica  dos  lipídios  encontra­se  sobre  controle metabólico, já que células  espoliadas  de  ATP  tendem  a  perder  essa  assimetria,  que  é  refeita  quando  os  estoques  de  ATP são repostos. Com efeito, existem enzimas ATPases presentes na membrana das células que medeiam o rápido transporte vetorial  de  fosfolipídios  de  um  folheto  da  bicamada  para  o  outro,  denominadas  de  flipases.  Curiosamente,  mais recentemente  foram  descritas  outras  proteínas  de  membrana  independentes  de  ATP  que  simplesmente  aceleram  o  flip­ flop  de  fosfolipídios  indistintamente,  dissipando  a  assimetria  usual  dos  fosfolipídios  nas  membranas.  Tais  proteínas, conhecidas  como  scramblases  (do  inglês  scramble,  desorganizar),  são  ativadas  por  sinais  intracelulares  de  sofrimento celular, como, por exemplo, o aumento da concentração intracelular de cálcio. Esse é provavelmente um dos mecanismos que  levam  células  em  sofrimento  em  certas  situações  a  exteriorizar  fosfatidilserina  (que  normalmente  é  encontrada  no folheto intracelular da membrana plasmática), o que, por sua vez, recruta células do sistema imunológico que, em última análise, ativam um processo de morte celular programada. Uma consequência interessante da distribuição assimétrica de lipídios carregados na membrana celular é a alteração de excitabilidade  muscular  verificada,  por  exemplo,  no  hipoparatireoidismo.  Nessa  situação  de  concentração  de  cálcio plasmática anormalmente baixa, observa­se um estado de hiperexcitabilidade muscular que leva a contrações involuntárias. Esse estado tem a ver com a excitabilidade intrínseca dos canais para sódio presentes na membrana plasmática das células musculares.  Como  já  conhecido,  esses  canais  abrem­se  com  as  despolarizações  do  potencial  de  repouso  da  célula  e  são responsáveis pela gênese do potencial de ação que se propaga pela célula toda, condição inicial indispensável para que se inicie o processo de contração muscular. A explanação para o fenômeno baseia­se no fato de que o íon cálcio forma uma camada difusa na face externa da membrana celular, afetando desta forma o campo elétrico existente através da membrana. Este mecanismo pode ser mais bem entendido analisando­se a Figura 7.8. Como descrito no Capítulo 9, Gênese do Potencial de Membrana, Excitabilidade Celular e Potencial de Ação, todas as  células  apresentam  uma  diferença  de  potencial  elétrico  entre  os  meios  intra  e  extracelular,  dada  pela  eletrodifusão  de íons.  Essa  diferença  de  potencial  pode  ser  medida  com  microeletrodos  colocados  nas  soluções.  No  entanto,  devido  a presença de lipídios com carga negativa (p. ex., esfingomielina) no folheto de lipídios voltado para a face extracelular da membrana, essa região adquire um potencial negativo que, em condições de cálcio normal, está indicado por ψ1 na Figura 7.8. Note que nesta situação este potencial é bastante reduzido, já que o cálcio funciona como uma blindagem, anulando a carga resultante que ali existe. No entanto, quando a concentração de cálcio diminui, as cargas negativas dos lipídios ficam mais  evidentes  e  o  potencial  na  face  extracelular  da  membrana  tende  a  ficar  mais  negativo,  indo  para  ψ2.  Como  o  canal para  sódio  encontra­se  embutido  na  membrana,  ele  “percebe”  esse  potencial  de  interface  e  o  “interpreta”  como  uma

despolarização,  que  o  leva  a  se  abrir.  Desse  modo,  a  célula  fica  com  sua  excitabilidade  automaticamente  aumentada, levando o músculo a contrair­se involuntariamente.

Figura 7.8 ■ Efeito da carga de lipídios sobre a excitabilidade do canal para sódio. Vm é diferença de potencial de repouso da célula, medida com microeletrodos nas soluções banhantes intra e extracelular. A curva em roxo indica o perfil de potencial à medida que o microeletrodo se aproxima da face externa da membrana. Note que, na situação controle, junto à membrana existe uma negatividade dada pelos lipídios carregados negativamente, dada por Ψ1. Perceba que, quando a concentração de cálcio cai na solução externa, o potencial na face da membrana torna­se Ψ2. M é a fase da membrana. O desenho não está em escala. Mais explicações no texto.

▸ Outros lipídios presentes em membranas celulares Embora os fosfolipídios derivados do glicerol sejam os mais frequentemente encontrados, tanto em animais como em plantas,  existe  uma  segunda  classe  que  corresponde  aos  esfingolipídios,  cujo  representante  mais  conhecido  é a esfingomielina, abundante em células do sistema nervoso central de mamíferos. São primordialmente derivados da serina (em  vez  do  glicerol),  à  qual  se  liga  uma  cadeia  de  ácido  graxo  para  formar  a  esfingosina.  A  ligação  de  uma  segunda molécula  de  ácido  graxo  ao  grupamento  amino  da  serina  leva  à  formação  de  ceramida  e,  finalmente,  a  ligação  de  um fosfato com a colina à hidroxila C­1 originará a esfingomielina (Figura 7.9). Se, em vez do fosfato com a colina, tivermos a  ligação  de  um  oligossacarídio,  originar­se­á  um  glicoesfingolipídio.  Destes,  os  melhores  exemplos  são  os galactocerebrosídios, em que o açúcar é a galactose, abundantes na mielina e aparentemente envolvidos na interação entre a célula nervosa e a célula mielinizante.

PROTEÍNAS NA MEMBRANA Como  descrito  até  aqui,  a  membrana  celular  mostra­se  efetivamente  como  uma  barreira  lipídica  de  alta  resistência, separando dois meios aquosos: o intracelular e o extracelular. Sabemos, no entanto, que a célula troca substâncias com o meio que a circunda e, em alguns casos, essa taxa de trocas é relativamente alta, o que nos obriga a assumir a presença de regiões hidrofílicas imersas na bicamada, responsáveis por essa movimentação. O  reconhecimento  de  que  a  membrana  é  um mosaico  de  regiões  hidrofílicas  e  hidrofóbicas é  devido  a  Collander  e Bärlund,  em  1933.  No  entanto,  somente  em  1972  é  que  Singer  e  Nicolson  associaram,  de  forma  definitiva,  as  proteínas presentes  na  membrana  aos  lipídios  que  a  compõem.  O  modelo  de  membrana  formulado  por  esses  autores,  conhecido como  modelo  do  mosaico  fluido,  pressupõe  a  presença  de  proteínas  imersas  na  fase  lipídica,  sugerindo  que  elas atravessam  a  bicamada  lipídica,  efetivamente  conectando  o  intra  e  o  extracelular.  Atualmente,  esse  modelo  é  aceito  em termos  gerais,  a  ele  tendo  sido  incorporados  outros  achados.  Presentemente,  sabemos  que  tanto  as  proteínas  como  os lipídios não estão homogeneamente distribuídos na bicamada, existindo domínios lipídicos e proteicos distintos. Algumas membranas  têm  uma  abundância  tão  grande  de  proteínas  que  estas  formam  arranjos  quase  cristalinos.  É  o  caso,  por exemplo,  da  bacteriorrodopsina  presente  na  membrana  de  halobactérias.  Em  outras  palavras,  tanto  os  lipídios  como  as

proteínas  particionam­se  diferentemente  entre  as  monocamadas  e,  dentro  destas,  podem  ainda  segregar­se  em  regiões distintas,  formando  ilhas  (ou  rafts)  com  estrutura  e  composição  diferentes.  Essa  distribuição  não  homogênea  dos componentes da membrana celular é uma justificativa para a dependência de lipídios específicos que certas proteínas têm para  funcionar  adequadamente.  Com  efeito,  os  chamados  lipid  rafts  são  estruturas  nanoscópicas  ricas  em  colesterol  e lipídios saturados, que organizam e restringem nesse domínio lipídico proteínas de membrana, que participam de vias de sinalização relacionadas, potencializando a eficiência e localização específica dessas vias em regiões distintas das células em que ocorrem.

Figura 7.9 ■ Estrutura dos esfingolipídios. Em vez do glicerol, os esfingolipídios têm um esqueleto básico de serina, à qual se ligam  dois  ácidos  graxos.  A  ligação  subsequente  do  fosfato  e  colina  ao  carbono  C­1  resulta  na  esfingomielina.  Note  a semelhança  estrutural  entre  a  esfingomielina  e  a  fosfatidilcolina  (Figura 7.5).  Ambas  possuem  carga  total  neutra,  porém  são zwiteriônicos.

As proteínas de membrana são classificadas, de acordo com sua localização na bicamada, em três grupos essenciais, mencionados a seguir: ■ Proteínas  periféricas  (extrínsecas)  –  compreendem  aquelas  que  não  chegam  a  interagir  fortemente  com  as  cadeias hidrocarbônicas dos lipídios, situando­se essencialmente na região dos grupos polares, com os quais interagem através de pontes de hidrogênio ou eletrostaticamente. Em consequência, podem ser removidas da membrana com tratamentos pouco  agressivos,  como  mudança  do  pH  ou  da  força  iônica  do  meio.  Tais  manobras  interferem,  quase  que exclusivamente, nas interações proteína­proteína, não introduzindo modificações nos lipídios ■ Proteínas ancoradas – normalmente, encontram­se covalentemente ancoradas através de moléculas lipídicas ■ Proteínas integrais (intrínsecas)  –  são  aquelas  inseridas  de  tal  modo  na  membrana  celular  que  interagem  não  só  em nível de cabeças polares, mas também com as regiões hidrofóbicas dos fosfolipídios. Por essa razão, podem ser vistas

também como substâncias anfipáticas, já que devem ter domínios francamente polares e outros apolares para interação com  os  lipídios.  Sua  remoção  da  membrana  requer  tratamentos  mais  drásticos,  com  substâncias  que  destroem  a membrana, como é o caso de detergentes (triton, octilglucosídio, dodecilsulfato de sódio etc.). As proteínas integrais, por  transpassarem  completamente  a  bicamada,  servem  à  conexão  entre  o  intra  e  o  extracelular,  prestando­se  à passagem  de  substâncias  (como  é  o  caso  de  carregadores  transmembranais  e  canais  iônicos)  ou  à  transmissão  de mensagens ao intracelular (como é o caso de receptores). A Figura 7.10 apresenta uma visão atual da ultraestrutura da membrana. Uma proteína intrínseca pode atravessar a membrana uma única vez (como, por exemplo, a glicoforina) ou ter regiões que  atravessam  a  bicamada  múltiplas  vezes  (como  é  o  caso  do  complexo  receptor/canal  colinérgico).  Em  qualquer situação,  tem  que  ser  admitido  que  a  região  mergulhada  no  interior  da  bicamada  deve  ser  constituída  por  aminoácidos hidrofóbicos.  Tomando  a  glicoforina  como  exemplo,  há  uma  única  região  com  cerca  de  20  aminoácidos  que  têm unicamente  cadeias  laterais  hidrofóbicas  (ILE,  HTR,  ILE,  VAL,  PHE,  GLY,  VAL,  MET,  ALA,  GLY,  VAL,  ILE,  GLY, THR,  ILE,  LEU,  LEU,  ILE,  SER).  O  número  20  não  é  casual;  este  é  o  tamanho  esperado  para  uma  sequência  de aminoácidos em α­hélice que consiga atravessar uma membrana com espessura aproximada equivalente a 2 moléculas de fosfolipídios. A glicoforina é uma glicoproteína e foi a primeira proteína a ter sua sequência de aminoácidos determinada. Seu terminal carboxílico situa­se na face citoplasmática, enquanto o terminal amino, juntamente com os carboidratos, na face  extracelular  da  membrana.  De  modo  semelhante  ao  da  glicoforina,  alguns  receptores  de  membrana  são  constituídos por  proteínas  que  têm  uma  única  α­hélice  que  atravessa  a  bicamada  lipídica.  Vários  desses  receptores  levam  sinais  do meio extracelular para dentro da célula, por ativação das proteínas G. Outros, como, por exemplo, o receptor de insulina, atuam fosforilando resíduos de tirosina na proteína­alvo, como resposta à ligação do hormônio ao receptor.

Figura 7.10 ■ Esquema da ultraestrutura da membrana plasmática. Note cadeias de hidratos de carbono ligadas a lipídios e a proteínas. (Adaptada de Junqueira e Carneiro, 2008.)

Este achado não se restringe às proteínas que atravessam a bicamada uma única vez. As que o fazem múltiplas vezes apresentam várias regiões com sequências de aproximadamente 20 aminoácidos hidrofóbicos, repetidas ao longo da cadeia polipeptídica. Tais proteínas formam canais iônicos ou transportadores na membrana. Por exemplo, a molécula formadora do complexo receptor/canal colinérgico tem mais de 20 alças hidrofóbicas que atravessam a membrana múltiplas vezes. Como consequência da interação específica estabelecida entre lipídios e proteínas em uma membrana, é de se esperar que  as  proteínas  assumam  conformações  predefinidas  e  dependentes  do  tipo  de  lipídio  que  compõe  a  bicamada.  Na verdade, o funcionamento adequado da proteína dependerá dessa conformação. A definição desses fatores é feita quando da síntese da proteína nos polirribossomos ligados ao retículo endoplasmático, onde as várias subunidades da molécula se unem  formando  a  estruturação  necessária  ao  seu  funcionamento.  Muitas  proteínas  de  membrana  dirigem­se  dessa  região para  o  aparelho  de  Golgi,  onde  são  incorporadas  em  vesículas.  Estas  últimas  podem  fundir­se,  então,  à  membrana plasmática, transferindo a ela a proteína com seu suporte lipídico. Tal direcionamento é mediado pelo reconhecimento de

sequências consenso de aminoácidos nessas proteínas que, ao serem detectadas pela maquinaria celular, direciona­as para seus sítios de endereçamento.

BIBLIOGRAFIA ALBERTS B, JOHNSON A, LEWIS J et al. Molecular Biology of the Cell. 4. ed. Garland Publishing, New York, 2002. BRETSCHER MS. Asymmetrical lipid bilayer structure for biological membranes. Nature New Biol, 236:11­2, 1972. BRETSCHER MS. Membrane structure: some general principles. Science, 181:622­9, 1973. DAVENPORT L, KNUTSON JR, BRAND L. Fluorescence studies of membrane dynamics and heterogeneity. In: HARRIS JR, ETÉMADI AH (Eds.). Subcellular Biochemistry, Plenum, New York, 1989. EDIDIN M. Patches, posts and fences: proteins and plasma membrane domains. Trends Cell Biol, 2:376­80, 1992. FASMAN  GD,  GILBERT  WA.  The  prediction  of  transmembrane  protein  sequences  and  their  conformations:  an evaluation. Trends Biochem Sci, 15:89­92, 1990. FAWCETT DW, BLOOM W. Bloom and Fawcett, a Textbook of Histology. 12. ed. Chapman & Hall, New York, 1994. JUNQUEIRA LC, CARNEIRO J. Histologia Básica. 11. ed. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 2008. MONTIGNY C, LYONS J, CHAMPEIL P et al. On the molecular mechanism of flippase­ and scramblase­mediated phospholipid transport. Biochim Biophys Acta, 1861:767­83, 2016. OVERTON E. Ueber die allgemeinen osmotischen Eigenschaften der Zelle, ihre vermutlichen Ursachen und ihre Bedeutung fur die  Physiologie  (The  Probable  origin  and  physiological  significance  of  cellular  osmotic  properties).  Vierteljahrsschr Naturforsch Ges Zuerich, 44:88­135, 1899. SINGER SS, NICOLSON GL. The fluid mosaic model of the structure of membranes. Science, 175:120­31, 1972. TANFORD C. The Hydrophobic Effect. John Wiley & Sons, Chichester, 1973. Os  sites  indicados  a  seguir  trazem  informações  sobre  a  membrana  celular  e  podem  ser  consultados  como  material complementar: http://employees.csbsju.edu/hjakubowski/classes/ch331/bcintro/default.html http://www.whatislife.com/education/fact/history.htm http://cellbio.utmb.edu/cellbio/membrane_intro.htm http://cellbio.utmb.edu/cellbio/membran3.htm



Membrana plasmática e sua permeabilidade seletiva

■ ■

Difusão simples Potencial químico

■ ■ ■

Prévias considerações para o estudo do transporte de substâncias através de membranas Fluxo difusional de íons através de membranas biológicas | Equação de Goldman­Hodgkin­Katz Forças envolvidas no transporte de líquidos através da membrana celular

■ ■

Conceitos básicos Bibliografia

MEMBRANA PLASMÁTICA E SUA PERMEABILIDADE SELETIVA A água, os gases oxigênio e dióxido de carbono, os nutrientes e os sais minerais são elementos essenciais à matéria viva: ■ O oxigênio é necessário para que as células aeróbicas possam realizar a respiração celular e com isso obter a energia química de que necessitam para desempenhar suas funções vitais ■ O dióxido de carbono é necessário para que as células de organismos autotróficos possam produzir alimentos e liberar oxigênio pelo processo de fotossíntese ■ A água tanto é responsável por muitos dos fenômenos da natureza como absolutamente essencial para a matéria viva. De  fato,  um  grande  número  de  reações  bioquímicas  que  acontecem  nas  células  ocorrem  no  citoplasma  (meio intracelular), o qual é de natureza aquosa. Além disso, o meio que banha as células, ou seja, o extracelular, é também da mesma natureza, nos organismos uni e pluricelulares ■ Substâncias como glicose, aminoácidos e ácidos graxos, são essenciais à nutrição das células. Do mesmo modo, íons (p. ex., Na+, K+, Cl–, Ca2+ e Mg2+) são necessários para a realização de muitas das funções celulares ■ As células devem ter a capacidade de eliminar os produtos de refugo do seu metabolismo, como o ácido úrico, a ureia e o dióxido de carbono. A  membrana  plasmática  celular  separa  os  mencionados  meios  aquosos,  intra  e  extracelulares,  cada  um  dos  quais contém, em solução ou suspensão, grande variedade de substâncias, em geral com diferentes concentrações entre os dois meios. As características de permeabilidade seletiva da membrana celular permitem que as células possam manter ótimas concentrações dessas substâncias em seu interior. Assim, são diversas as substâncias que podem atravessar a membrana celular; por exemplo: ■ Moléculas necessárias para a vida das células, como ácidos graxos, glicose e aminoácidos do meio extracelular ■ Substâncias de refugo, como a ureia e o ácido úrico, que devem ser eliminadas

■ Moléculas  hidrofóbicas  pequenas,  gases  como  oxigênio  e  dióxido  de  carbono,  água,  cátions  (p.  ex.,  H+,  Na+,  K+, Mg2+, Ca2+) e ânions (p. ex., Cl– e HCO3–). Do  mesmo  modo,  a  permeabilidade  seletiva  da  membrana  plasmática  impede  que  moléculas,  como  o  ATP,  saiam  do interior celular com facilidade. Embora  algumas  substâncias  como  os  gases,  diversos  íons  e  o  etanol  possam  atravessar  a  membrana  celular  sem grande dificuldade, devido à membrana ter maior ou menor grau de permeabilidade para essas substâncias, existem outras que não podem atravessar a membrana por si próprias e precisam de ajuda para poderem ir de um lado a outro da célula. Neste  processo,  intervém  uma  série  de  proteínas,  conhecidas  como  proteínas  transportadoras.  Elas  se  encontram  nas membranas  e  ajudam  uma  específica  substância  a  atravessar  a  membrana  celular.  As  proteínas  de  transporte  das membranas plasmáticas podem ser agrupadas em três grandes tipos: canais; cotransportadores; contratransportadores e bombas (ou ATPases). No  presente  capítulo,  será  considerada  a  passagem  de  substâncias  através  de  barreiras  ou  membranas  ideais,  sem  a participação  das  proteínas  transportadoras.  Assim  sendo,  aqui  serão  apresentados  os  princípios  fundamentais  para,  mais adiante, poderem ser analisados os mecanismos que permitem o desenvolvimento do potencial de repouso da membrana celular.

DIFUSÃO SIMPLES Do  ponto  de  vista  intuitivo,  é  muito  fácil  ter  uma  noção  do  que  seja  a  difusão  simples.  Basta  colocar  uma  gota  de detergente líquido em um recipiente com água e observar como o detergente se move na massa deste fluido e, em pouco tempo,  está  completamente  diluído  nela.  O  deslocamento  das  moléculas  do  detergente  na  água  é  devido  a  um  processo de difusão simples. Suponhamos  um  recipiente  com  água  dividido  em  dois  compartimentos,  I  e  II,  separados  por  um  plano  vertical, totalmente  permeável  a  substâncias  (Figura 8.1).  Adicionemos  ao  compartimento  I  várias  moléculas  de  uma  substância qualquer, que, no exemplo inicial, era o detergente. É sabido que, a nível molecular e atômico, os átomos e as moléculas nunca estão em repouso, movimentando­se contínua e aleatoriamente em qualquer direção, a menos que se encontrem no chamado zero absoluto (0°K ou –278°C; em que °K = graus Kelvin e °C = graus Celsius); nessa condição, teoricamente, nem  as  moléculas  nem  os  átomos  estão  em  movimento.  No  presente  exemplo,  as  moléculas  de  detergente  situadas  no compartimento  I  irão  se  deslocar,  saltando  de  um  ponto  a  outro,  sempre  do  local  onde  estão  mais  concentradas  para  os lugares  em  que  se  encontram  menos  concentradas.  Ao  alcançarem  a  membrana  que  separa  os  dois  compartimentos,  em vista de a membrana ser permeável a elas, as moléculas vão passando para o compartimento II, movidas pela diferença de sua  concentração  entre  ambos  os  compartimentos.  É  evidente  que,  à  medida  que  as  moléculas  se  acumulam  no compartimento  II,  algumas  destas  que  estão  próximas  da  membrana  que  separa  os  dois  compartimentos,  em  seu movimento aleatório, podem ir do compartimento II para o I. Nos momentos iniciais, a ida de I para II é muito maior que a de II para I. Contudo, com o passar do tempo, a concentração das moléculas, em I, irá diminuindo e, ao contrário, em II, aumentando. Em consequência, a passagem de I para II irá se reduzindo, ao passo que a de II para I, crescendo, até que, quando  se  igualarem  as  concentrações  da  substância  nos  dois  lados  da  membrana,  o  sistema  estará  em  equilíbrio,  e  o número de moléculas que cruzam a membrana de I para II será igual ao de moléculas que o fazem em sentido contrário, ou seja, de II para I. Desta maneira, as moléculas ocuparam o máximo espaço disponível, resultando que em pouco tempo a distribuição  delas  ficará  relativamente  uniforme  em  todo  recipiente.  A  diferença  de  concentração  das  moléculas  de detergente estabelecida entre ambos os compartimentos nas condições iniciais produziu um movimento difusivo resultante de I para II. Cada movimento de moléculas de I para II ou de II para I é denominado fluxo unidirecional, e representado como  JI  →  II  e  JII  →  I,  respectivamente  (Figura  8.2).  A  diferença  de  JI  →  II  menos  JII  →  I  é  chamada  de  fluxo resultante (Jresultante):

Outro aspecto a se considerar é o número de moléculas que atravessam o plano entre I e II e vice­versa, entre II e I, não  ser  somente  proporcional  às  suas  concentrações  nos  compartimentos  I  (CI) e II (CII),  mas  também  à  área  de  secção transversal (A)  do  referido  plano.  Consequentemente,  o  fluxo  resultante  das  moléculas  de  detergente  no  exemplo  citado será  proporcional  à  diferença  de  concentração  do  detergente  em  ambos  os  compartimentos  I  e  II,  assim  como  à  área  de secção transversal (A) do plano que os separa.

Figura 8.1 ■ Difusão  de  uma  gota  de  detergente  entre  dois  compartimentos,  separados  por  um  plano  vertical  permeável  ao detergente.  No  momento  inicial  (tempo  zero),  o  compartimento  I  tem  elevada  concentração  do  detergente  (concentração  B), enquanto o II não tem detergente (concentração zero). Com o passar do tempo, as moléculas de detergente, em seu movimento contínuo ao acaso, alcançam e atravessam o plano que separa ambos os compartimentos, passando do I para o II. Desse modo, vão  se  acumulando  moléculas  de  detergente  no  II,  e  também  passagem  de  moléculas  de  detergente  de  II  para  I,  porém  em quantidade bem menor (tempo 1). O resultado desse processo é, como vemos para o tempo 2, as concentrações de detergente se  igualarem  nos  dois  compartimentos,  alcançando­se  o  equilíbrio.  A  partir  deste  momento,  o  movimento  de  moléculas  de detergente de I para II é igual ao de moléculas que passam de II para I. Em outras palavras, no equilíbrio o fluxo de I para II (JI → II) é igual ao de II para I (JII → I). No gráfico, a linha roxa representa a concentração de detergente no compartimento I, e a azul, no compartimento II. (Adaptada de Vander et al., 2003.)

Figura 8.2 ■ Fluxos unidirecionais de um soluto entre os compartimentos I e II. O fluxo resultante (J)  é  a  diferença  dos  fluxos unidirecionais do compartimento I ao II (JI → II) e do II ao I (JII → I). (Adaptada de Vander et al., 2003.)

Quando  as  concentrações  de  detergente  se  igualam  nos  dois  compartimentos  I  e  II,  os  fluxos unidirecionais  JI  →  II  e  JII  →  I  ficam  iguais,  e,  portanto,  o  fluxo  resultante  J  será  igual  a  zero.  Esta  condição  é designada equilíbrio. A proporção descrita para a equação 8.2 pode ser transformada em uma igualdade correspondente à relação matemática que descreve o fluxo resultante das moléculas em situações como a ilustrada no exemplo da Figura 8.1, por meio do uso de uma constante de proporcionalidade (K), ficando:

Do  ponto  de  vista  prático,  podemos  considerar  que  a  diferença  de  concentração  entre  os  compartimentos  I  e  II (CI  –  CII)  representa  a  força  indispensável  necessária  para  que  ocorra  o  processo  de  difusão  simples  entre  dois compartimentos, resultante da agitação térmica das moléculas e que, teoricamente, não acontece no zero absoluto.

POTENCIAL QUÍMICO Do ponto de vista físico, o trabalho que uma substância m pode realizar depende dos seguintes parâmetros: ■ Concentração (Cm) ■ Carga elétrica (Zm) ■ Volume parcial molar (V–m) ■ Massa (mm) ■ Estrutura química. A  somatória  de  todos  os  parâmetros  que  permitem  a  uma  substância  m  realizar  um  trabalho  é  conhecida  como seu potencial químico (μm). O potencial químico de uma substância m pode ser calculado pela seguinte equação:

em que: R = constante dos gases [8,314472 joules/(mol ꞏ °K)] T = temperatura absoluta Cm = concentração da substância Zm = valência da substância F = constante de Faraday (96.487 coulombs/equivalente) y = potencial elétrico Vm = volume parcial molar de m (aumento do volume da solução após adição de 1 mol de m) P = pressão exercida acima da pressão atmosférica mm = massa da substância m g = aceleração da gravidade padrão (9,80665 m/s2) h = altitude acima do nível do mar. O potencial químico padrão (µ0m) corresponde ao potencial químico da substância m quando sua concentração (Cm) é 1 molar  (ln  Cm  =  0),  o  potencial  elétrico  é  zero  (ψ  =  0),  a  temperatura  é  padrão  (T  =  298°K  =  25°C),  em  condições isobáricas (P é igual em todos os pontos do meio onde se encontra a substância) e a substância está ao nível do mar (h = 0). Em  vista  de,  para  grande  parte  dos  solutos, Vm ter  um  valor  muito  pequeno,  o  termo VmP contribui  bem  pouco  no valor de μm na equação 8.4, podendo ser ignorado, particularmente nos sistemas biológicos. Logo, ao nível do mar, com a eliminação dos últimos termos, a equação 8.4 referente ao potencial químico passa a ser:

Cada  termo  da  equação  8.5,  da  esquerda  para  a  direita,  representa  o  trabalho  químico,  osmótico  e  elétrico  que  a substância m pode realizar. O potencial químico é expresso em unidades de trabalho, como joules/mol ou calorias/mol. No caso do exemplo anterior, em que uma substância m colocada no compartimento I difunde para o compartimento II, o  equilíbrio  alcançado  pode  ser  expresso  em  termos  do  potencial  químico.  Assim,  o  equilíbrio  é  alcançado  quando μm  é

igual em qualquer parte do sistema e não varia com o passar do tempo.

PRÉVIAS CONSIDERAÇÕES PARA O ESTUDO DO TRANSPORTE DE SUBSTÂNCIAS ATRAVÉS DE MEMBRANAS Quando  uma  membrana  é  interposta  entre  duas  regiões  de  uma  solução,  ela  cria  uma  barreira  ao  movimento  das moléculas, e o fluxo de substâncias passa então a depender da sua eficiência em atravessar a membrana. Para a avaliação do transporte de substâncias através de membranas, várias considerações essenciais devem ser feitas: ■ Solubilidade da substância na membrana ■ Carga elétrica da substância ■ Diferença  do  gradiente  de  potencial  químico  (μm)  que  possa  existir  entre  os  dois  compartimentos  separados  pela membrana ■ Permeabilidade da membrana para a substância.

▸ Solubilidade da substância na membrana | Coeficiente de partição Como  as  membranas  biológicas  têm  componentes  lipídicos  de  natureza  hidrofóbica,  a  passagem  de  qualquer substância  através  deste  ambiente  vai  depender  diretamente  da  natureza  química  da  substância,  podendo  ou  não  se dissolver no ambiente lipídico da membrana. O coeficiente de partição de uma substância X em dois meios imiscíveis (p. ex.,  água  e  óleo)  pode  ser  calculado  dividindo  as  concentrações  da  substância  X  em  ambos  os  meios.  Para  termos  uma noção  operacional  do  coeficiente  de  partição,  imaginemos  dentro  de  um  funil  de  separação:  óleo  vegetal,  água  e  glicerol (Figura 8.3). O  glicerol  é  um  álcool  com  três  grupos  hidroxila;  estes  constituem  centros  hidrofílicos,  que  estabelecem  pontes  de hidrogênio  com  as  moléculas  de  água,  fazendo  com  que  o  glicerol  se  encontre  em  um  estado  energeticamente  mais favorável na água que no óleo.

Por  conseguinte,  o  glicerol  tem  uma  solubilidade  maior  em  água  que  em  lipídios.  Isso  pode  ser  apreciado  ao misturarmos  no  funil  o  glicerol  com  óleo  e  água  e  os  deixarmos  em  repouso  para  que  alcancem  o  equilíbrio.  De  acordo com  a  definição  de  equilíbrio,  o  potencial  químico  do  glicerol  no  óleo  (μglicerol(óleo))  é  igual  ao  do  glicerol  na  água (μglicerol(água)). Assim:

Como  o  glicerol  não  tem  carga,  o  componente  elétrico  (ψ)  da  fórmula  do  potencial  químico  (equação  8.5)  pode  ser eliminado. Substituindo os m da equação 8.6 por seus respectivos componentes:

Ordenando,

Figura 8.3 ■ Preparação de uma mistura de glicerol, óleo e água em um funil de separação. Após misturar bem glicerol com óleo e  água,  a  mistura  é  deixada  em  repouso  para  que  alcance  o  equilíbrio.  Pela  definição  de  equilíbrio,  o  potencial  químico  do glicerol no óleo será igual ao do glicerol na água. A relação da concentração do glicerol em cada meio Cglicerol(óleo) /Cglicerol(água)  é conhecida  como  o  coeficiente  de  partição  para  a  distribuição  do  glicerol  em  uma  mistura  de  óleo  e  água.  O  coeficiente  de partição dessa mistura é simbolizado como kóleo/água (lembre que glicerol e água são transparentes).

Pela regra de logaritmos,

A relação Cglicerol(óleo)/Cglicerol(água) é conhecida como o coeficiente de partição para a distribuição do glicerol em uma mistura  de  óleo  e  água  no  equilíbrio.  O  coeficiente  de  partição  nesta  mistura  é  simbolizado  por  kóleo/água  e,  segundo  a equação 8.11, para o exemplo do glicerol, será igual a:

Portanto, o coeficiente de partição de uma molécula entre um ambiente lipídico e um aquoso depende diretamente da diferença  entre  o  potencial  químico  padrão  da  molécula  considerada,  em  água  e  em  lipídios.  No  caso  do  glicerol, considerando  que  sua  solubilidade  é  maior  em  água  que  em  lipídios  (pela  presença  dos  três  grupos  hidroxila  nesta molécula),  seu  coeficiente  de  partição  será  menor  que  1  (lembre  que  o  exponencial  de  um  número  negativo  é  sempre inferior a 1), pois μ0glicerol(óleo)  0). Essa diferença produzirá fluxo de solvente de I para II. Com  o  passar  do  tempo,  condição  (B),  o  aumento  de  volume  no  compartimento  II  ocasionará  elevação  da  pressão hidrostática nesse compartimento, a qual se oporá ao fluxo de água de I para II. Eventualmente, a pressão hidrostática se tornará igual à osmótica, porém em sentido contrário, alcançando­se um estado de equilíbrio, no qual o fluxo resultante de água entre os dois compartimentos será igual a zero. Consequentemente, podemos dizer que no equilíbrio ΔII–I = ΔPII–I. As  conclusões  anteriores  podem  ser  comprovadas  nas  próximas  condições  experimentais.  Consideremos  o  início  do próximo experimento na mesma situação de (A).

Na condição seguinte, representada em (C), é colocado um pistão no compartimento II, que exercerá uma pressão não permitindo  variação  do  volume  nesse  compartimento.  A  pressão  exercida  pelo  pistão  é  igual  à  hidrostática  desenvolvida em (B), sendo igual, porém em sentido contrário, à pressão osmótica desempenhada em (B) (ΔII–I = ΔPII–I). Na  próxima  condição,  são  colocados  iguais  volumes  de  água  em  ambos  os  compartimentos.  Evidentemente,  não haverá  fluxo  hídrico  para  nenhum  dos  compartimentos;  porém,  se  por  meio  do  pistão  for  exercida  uma  pressão  igual  à aplicada  na  condição  anterior  (C),  existirá  fluxo  de  II  para  I,  até  que  a  coluna  de  água  do  compartimento  I  atinja  uma altura  semelhante  à  alcançada  pela  água  do  II  em  (B).  Esta  condição  está  representada  em  (D).  No  equilíbrio,  a  pressão exercida  pelo  pistão  no  compartimento  II  (ΔPII–I)  é  igual  à  desenvolvida  pela  coluna  de  água  no  I,  mas  em  sentido contrário  (ΔPI–II).  O  fluxo  hídrico  do  compartimento  II  para  o  I  é  semelhante  ao  produzido  pela  diferença  de  pressão osmótica (ΔπII–I) dos compartimentos I e II na condição (B).

▸ A equação de van’t Hoff

Em 1855, Jacobus  Henricus  van’t  Hoff,12  físico­químico  holandês,  formula  uma  expressão  que  relaciona  a  pressão osmótica com a concentração de soluto para soluções diluídas, semelhante à equação dos gases ideais, e propõe a primeira teoria  para  explicar  a  pressão  osmótica.  Ele  propôs  que  a  pressão  osmótica  é  o  resultado  do  choque  das  moléculas  do soluto  com  a  membrana  semipermeável  que  separa  as  duas  soluções,  assumindo  que  as  moléculas  do  solvente  não contribuem para essa pressão. Por conseguinte, na proposta de van’t Hoff, a pressão osmótica de uma solução é a mesma pressão que exerceria um gás ideal que ocupasse o mesmo volume da solução. Assim, a lei dos gases ideais estabelece que:

em que: P = pressão em atmosferas V = volume em litros n = número de moles R = constante universal dos gases T = temperatura absoluta (°K). Sendo  n  o  número  de  moles  do  gás,  ou  de  soluto  no  caso  de  soluções,  e  V  o  volume  da  solução  em  litros,  a relação  n/V  é  igual  à  concentração  molar  do  soluto  (C).  Por  conseguinte,  van’t  Hoff  trocou  P  da  equação  8.52  por  π (pressão osmótica), ficando a equação de van’t Hoff para o cálculo da pressão osmótica do seguinte modo:

Logo,  um  mol  de  uma  substância  não  eletrolítica  de  comportamento  ideal,  à  temperatura  de  0°C  (273°K),  exercerá uma pressão osmótica de:

Deve  ser  destacado  que  22,4  atm  é  a  pressão  de  1  mol  de  um  gás  ideal  comprimido  em  um  volume  de  1  l,  em condições  de  0°C  (273°K).  Esta  coincidência  foi  utilizada  como  critério  para  validar  o  cálculo  da  pressão  osmótica  pela equação de van’t Hoff (equação 8.53). Não obstante, deve ser mencionado que a lei dos gases foi estabelecida para gases ideais,  cujas  moléculas  não  apresentem  atrações  entre  si  e  careçam  de  volume.  Portanto,  o  uso  desta  equação  é  menos exato para os líquidos que para os gases. Sua aplicação seria válida para soluções bem diluídas.

▸ Diferença de pressão osmótica entre duas soluções Vamos  considerar  dois  compartimentos  separados  por  uma  membrana  semipermeável  ideal.  No  compartimento  I,  é colocada solução de sacarose 0,1 molar e, no II, de sacarose 0,2 molar. A membrana deixa passar o solvente, que é água, porém não a sacarose. Nestas condições, haverá fluxo hídrico do compartimento com solução de sacarose mais diluída (I) para o compartimento com solução mais concentrada (II), impulsionado pelo desenvolvimento de maior pressão osmótica no compartimento II. O cálculo da pressão osmótica resultante, responsável pelo fluxo de solvente, é feito da seguinte maneira:

Logo,

▸ Osmolaridade e osmolalidade Para  expressar  a  concentração  osmótica  de  uma  solução,  são  utilizados  os  termos osmolaridade ou osmolalidade.  A osmolaridade  é  definida  como:  concentração  das  partículas  osmoticamente  ativas,  expressas  em  osmoles/litro.  Quando  é dito  partículas  de  soluto  osmoticamente  ativas,  faz­se  referência  às  partículas  que  estão  efetivamente  dissolvidas  no solvente e, em consequência, podem gerar pressão osmótica. É calculada pela seguinte equação:

em que: i = cada tipo de soluto presente na solução ni = constante de dissociação ideal do soluto Ci = concentração química do soluto. Caso seja preparada uma solução aquosa com um soluto não ionizável, como glicose ou sacarose, a osmolaridade da solução dependerá diretamente da concentração química da solução, já que o soluto não se dissocia. Por exemplo, se forem dissolvidos 34,23 g de sacarose13 em água, até um volume final de 1 ℓ de solução, a concentração química (molaridade) da solução será igual à osmolaridade ideal:

Se for feita uma solução aquosa com eletrólitos (ácido, base ou sal), suas moléculas vão se dissociar individualmente em dois ou mais íons. Cada íon será uma partícula osmoticamente ativa, e, por conseguinte, a osmolaridade dessa solução eletrolítica  será  maior  que  sua  concentração  química.  Assim,  a  constante  de  dissociação  ideal  de  NaCl  ou  KCl  é  2:  os cátions Na+ ou K+ e os correspondentes ânions Cl–. Caso se utilize CaCl2, a constante de dissociação ideal para este sal é 3: o cátion Ca2+ e dois ânions Cl–. Por  exemplo,  se  dissolvermos  7,46  g  de  KCl14 em  água  até  um  volume  final  de  1 ℓ de  solução,  a  osmolaridade  da solução (assumindo um comportamento ideal) será o dobro de sua concentração química:

Contudo,  na  realidade,  os  eletrólitos  não  apresentam  um  comportamento  ideal.  Mesmo  no  caso  dos  eletrólitos fortes,15  a  dissociação  iônica  não  é  completa,  pois,  quando  os  ânions  e  cátions  estão  dissolvidos,  tendem  a  se  atrair, fazendo  a  solução  se  comportar  como  se  houvesse  uma  concentração  de  partículas  osmoticamente  ativas  menor  que  a calculada quando é assumido um comportamento ideal. A equação 8.56 requer um fator que corrija a dissociação real dos eletrólitos:

em que φi é o coeficiente osmótico. O coeficiente osmótico indica a dissociação iônica real para um determinado eletrólito. No  Quadro  8.2,  há  o  valor  do  coeficiente  osmótico  de  vários  eletrólitos.  Este  fator  permite  corrigir  o  cálculo  da pressão  osmótica  por  meio  da  equação  de  van’t  Hoff  (equação  8.53)  no  caso  de  eletrólitos.  A  equação  de  van’t  Hoff corrigida fica:

A  molaridade  e  a  osmolaridade  são  valores  que  dependem  da  temperatura,  pois  a  água  muda  seu  volume  com  a temperatura.  Apesar  de  em  Fisiologia,  comumente,  ser  utilizado  o  termo  osmolaridade,  necessita­se  esclarecer  que,  do ponto  de  vista  químico,  é  mais  correto  usar  o  termo  osmolalidade.  A  osmolalidade  consiste  na  medida  do  número  de osmoles  de  soluto  por  quilograma  de  solvente  (osmol/kg);  é  calculada  pela  mesma  equação  8.57,  porém  a  concentração química (Ci)  é  expressa  em  molalidade.16 Quando  a  concentração  dos  solutos  é  muito  baixa,  os  termos  osmolaridade  e osmolalidade são praticamente equivalentes.

▸ Propriedades coligativas das soluções As  propriedades  das  soluções  que  dependem  do  número  de  partículas  efetivamente  dissolvidas,  sem  considerar  a natureza química dessas partículas, são denominadas propriedades coligativas das soluções. O aumento da concentração de partículas osmoticamente ativas de uma solução tende a modificar qualquer mudança do estado físico do seu solvente. As soluções apresentam quatro propriedades coligativas: ▸  Aumento da pressão osmótica. Ao  ser  adicionado  mais  soluto  em  uma  solução,  ocorre  aumento  da  sua osmolalidade,  que  indica,  claramente,  que  a  solução  pode  exercer  uma  pressão  osmótica  maior  que  a  exercida anteriormente. ▸  Diminuição  da  pressão  de  vapor.  As  partículas  de  um  solvente  puro  estão  unidas  por  forças intermoleculares.  Na  superfície  do  líquido,  as  partículas  do  líquido  interagem  com  as  moléculas  que  se  encontram  sob elas, mas na parte superior se encontram com o ar (ou outra fase gasosa). Assim, as partículas do solvente na superfície do  líquido  podem  passar  para  a  fase  de  vapor,  sendo  este  processo  reversível.  Em  uma  solução  aquosa  que  contém  um soluto não volátil, as partículas desse soluto estão ocupando um certo espaço, que originalmente estava ocupado só pelo solvente. Por conseguinte, as partículas não voláteis de soluto diminuem o número de partículas de solvente disponíveis na interfase entre a solução e o ar, e, com isso, ocorre uma diminuição da pressão de vapor da solução (Figura 8.11). A lei de Raoult17 estabelece que a pressão do vapor de uma solução, Psolução, é igual à fração molar do solvente XW multiplicada pela pressão do vapor do solvente puro, P0W:

Quadro 8.2 ■ Valores do coeficiente osmótico (φi) para alguns eletrólitos em solução.  

Concentração molal (m)

Eletrólito

0,02 (φi)

0,10 (φi)

0,10 (φi)

CaCl2

2,673*

2,601

2,573

KCl

1,919

1,857

1,827

KNO3

1,904

1,784

1,698

LiCl

1,928

1,895

1,884

MgCl2

2,708*

2,658

2,679

MgSO4

1,393*

1,212

1,125

NaCl

1,921

1,872

1,843

*0,025 molal. Fonte: Heilbrunn, 1952.

Figura 8.11 ■ A presença de partículas de soluto não volátil em uma solução diminui a pressão de vapor da solução. A pressão de vapor de uma solução, Psolução, é igual à fração molar do solvente XW multiplicada pela pressão do vapor do solvente puro, Pw o.

A fração molar do solvente (XW) é definida como a relação entre o número de moles do solvente (nW) e o número total de moles presentes na solução (nT), ou seja, o número de moles do solvente mais os do soluto:

▸  Aumento do ponto de ebulição. As partículas de um soluto não volátil interferem na passagem massiva das moléculas do solvente para o ar e alcançam o ponto de ebulição do solvente. Isso faz com que o ponto de ebulição da solução  seja  mais  elevado  que  o  do  solvente  puro.  O  aumento  do  ponto  de  ebulição  de  uma  solução  aquosa  (ΔTB) corresponde ao quanto ele difere de 100°C (o ponto de ebulição da água):

Em  que:  TB  é  o  ponto  de  ebulição  da  solução  aquosa  e  TB0,  o  ponto  de  ebulição  do  solvente,  neste  caso  a  água (100°C). Admitindo que o ponto de ebulição de uma solução aquosa 1 molal de um não eletrólito ideal seja 100,51°C,18 a equação 8.61 permite calcular o ΔTB dessa solução ideal: ΔTB = 100,51°C – 100°C = 0,51°C Com este valor de referência, é possível calcular a osmolalidade de uma solução aquosa diluída, determinando apenas sua ΔTB:

▸  Diminuição do ponto de congelamento. As  partículas  do  soluto  presentes  na  solução  interferem  no processo  de  aproximação  mínima  necessária  para  que  as  moléculas  do  solvente  possam  congelar  e  alcançar  o  estado sólido. Em consequência, para a solução congelar, é necessário que a temperatura diminua mais. Em outras palavras, se aumenta  a  concentração  de  partículas,  é  preciso  que  a  temperatura  seja  mais  baixa  para  que  o  solvente  passe  do  estado líquido ao sólido, havendo uma queda do ponto de congelamento. A diminuição desse ponto de uma solução aquosa (ΔTF) é o quanto ele difere de 0°C (o ponto de congelamento da água):

Em que: TF0 é o ponto de congelamento do solvente, que neste caso é água (0°C), e TF, o ponto de congelamento da solução aquosa. O ponto de congelamento de uma solução aquosa 1 molal de um não eletrólito ideal é –1,86°C.19 Assim, o ΔTF dessa solução 1 osmol ideal (aplicando a equação 8.63) é: TF = 0°C – (–1,86°C) = 1,86°C Com este valor de referência, é possível calcular a osmolalidade de uma solução aquosa diluída:

Quando  é  modificada  a  concentração  de  partículas  osmoticamente  ativas  de  uma  solução,  suas  quatro  propriedades coligativas variam entre si, de forma conhecida. Por conseguinte, se em uma solução for medida uma de suas propriedades coligativas, facilmente, será possível calcular as demais. Um dos métodos experimentais usados para determinar a osmolalidade de uma solução é a medida da diminuição do seu ponto de congelamento ou de sua pressão de vapor. Este é o princípio utilizado nos osmômetros modernos. Considerando que 1 mol de uma substância não eletrolítica de comportamento ideal, na temperatura de 0°C (273°K), exerce  uma  pressão  osmótica  de  22,4  atm,  podemos  determinar  a  pressão  osmótica  de  qualquer  solução  não  eletrolítica, pela seguinte equação:

Por  exemplo,  uma  solução  de  um  não  eletrólito  com  ΔTF  de  2,79°C  tem  1,5  osmol  e  pode  exercer  uma  pressão osmótica de 33,6 atm, a 0°C. O  coeficiente  osmótico  de  uma  solução  eletrolítica  pode  ser  calculado  pela  divisão  da  diminuição  do  seu  ponto  de congelamento  a  uma  dada  molalidade  (ΔTF{ionizável, molalidade})  pela  diminuição  do  ponto  de  congelamento  para  um  soluto não ionizável com a mesma molalidade (ΔTF{não ionizável, molalidade}).

A fórmula para determinar o coeficiente osmótico de uma solução eletrolítica é:

▸ Coeficiente de reflexão Para as deduções e conclusões feitas até aqui, foram utilizadas membranas semipermeáveis ideais, que deixam passar sem  restrições  o  solvente,  mas  não  deixam  passar  o  soluto.  Contudo,  este  não  é  o  caso  das  membranas  biológicas  e  de outras membranas, que não são ideais, pois apresentam permeabilidade seletiva, ou seja, não só permitem a passagem do solvente, como também podem permitir a passagem de solutos, com maior ou menor facilidade. Suponhamos uma membrana M que separa dois compartimentos, I e II, com diferentes graus de permeabilidade a um soluto S e  livremente  permeável  à  água  (Figura 8.12).  No  início,  há  água  no  compartimento  I  e  uma  solução  aquosa  do soluto S no II. Caso A: A membrana é impermeável ao soluto. Ocorre um fluxo de água de I para II (Jágua (I → II)) e não há fluxo de soluto. Caso B: A membrana tem certa permeabilidade ao soluto. Além do fluxo de água de I para II (Jágua (I → II)), há fluxo de soluto  de  II  para  I  (JS(II → I)),  cuja  magnitude  dependerá,  diretamente,  do  coeficiente  de  permeabilidade  da  membrana  ao soluto S. Como a diferença de concentração de S entre os compartimentos I e II diminui, a diferença de pressão osmótica entre II e I (Δπ(II–I)) será menor que a observada no caso A e, portanto, o Jresultante de água também será menor que o do caso A. Caso  C:  Quando  a  membrana  é  livremente  permeável  ao  soluto,  as  soluções  em  ambos  os  compartimentos  se equilibram e não existe diferença de pressão osmótica entre I e II (Δπ(II–I) = 0). Estudos semelhantes realizados por Albert Jan Staverman,20 em  1951,  fizeram  com  que  ele  chegasse  à  conclusão  de que a capacidade da membrana, que separa dois compartimentos, para discriminar entre o soluto e a água pode ser descrita por um fator que denominou coeficiente de reflexão (σ).21 Este nome foi escolhido para indicar a capacidade da membrana de  refletir  partículas  do  soluto  que  tentam  atravessá­la  com  maior  ou  menor  facilidade,  em  relação  à  passagem  do solvente.

O  coeficiente  de  reflexão  pode  ser  determinado  experimentalmente,  pela  relação  entre  a  pressão  osmótica  real determinada e a pressão osmótica calculada pela equação de van’t Hoff. Ou seja:

Na  condição  A  (ver Figura 8.12),  há  uma  membrana  ideal,  ou  seja,  que  deixa  passar  apenas  o  solvente,  a  pressão osmótica real (πreal) é igual à calculada (πcalculada), sendo o coeficiente de reflexão (σ) igual a 1. Na  condição  C,  em  que  a  membrana  deixa  passar  livremente  tanto  o  solvente  como  o  soluto S,  não  se  desenvolve nenhuma pressão osmótica, sendo σ igual a 0, já que πreal = 0.

Na  condição  B,  em  que  a  membrana  deixa  passar  livremente  o  solvente  e  tem  certa  restrição  para  a  passagem  do soluto S, o coeficiente de reflexão estará entre os valores extremos de 1 (caso A) e 0 (caso C).

Figura  8.12  ■   Fluxo  de  água  (Jágua)  e  de  solutos  entre  dois  compartimentos  (I  e  II),  separados  por  uma  membrana.  Esta membrana é completamente permeável à água. Inicialmente, há água no compartimento I e solução aquosa do soluto (S) no II. No caso A, a membrana é impermeável ao soluto. Portanto, não ocorre JS  (II  →  I) , mas é produzido um Jágua  (I  →  II) . No caso B,  a membrana tem certa permeabilidade ao soluto. Dependendo da sua permeabilidade ao soluto, é produzido um certo JS  (II  →  I)  e um certo Jágua  (I  →  II) . Porém, o Jágua  (I  →  II)  é menor que o produzido no caso A. No caso C, a membrana deixa passar livremente tanto as moléculas de água, como as de soluto. Assim, no equilíbrio JS (II → I)  = JS (I → II)  → e o JS  resultante é igual a zero. O Jágua  (I  → II)  = Jágua (II → I)  e não há diferença de pressão osmótica entre os dois compartimentos (Δπ(II–I)  = 0).

É necessário enfatizar que o coeficiente de reflexão se refere, especificamente, a uma membrana M e a um soluto S; assim sendo, seu símbolo deve ser representado por σSM. Staverman demonstrou que o cálculo da pressão osmótica deve incluir a correção para σSM, de modo que:

sendo  πefet  a  pressão  osmótica  efetiva  através  de  uma  membrana  não  ideal.  Substituindo  a  equação  8.68  na  8.58 (π = φiCiRT), o cálculo de πefet será:

▸ Osmolaridade e tonicidade A osmolaridade de uma solução, segundo descrito na seção Osmolaridade e osmolalidade, refere­se à concentração de suas partículas osmoticamente ativas. Portanto, se duas soluções de diferentes solutos com a mesma osmolaridade, isto é, isosmolares, fossem colocadas em cada lado de uma membrana ideal para ambas as soluções, a pressão osmótica exercida por cada uma delas seria a mesma, e o sistema estaria, osmoticamente, em equilíbrio.

Figura 8.13 ■ Fluxo de água (Jágua) em eritrócitos humanos ressuspensos em soluções com diferentes tonicidades. No caso A, os eritrócitos foram ressuspensos em solução isotônica de 150 mM NaCl. O fluxo de água do interior para o exterior do eritrócito (Jágua  (i  →  e) )  é  igual  ao  produzido  do  seu  exterior  para  o  seu  interior  (Jágua  (e  →  i) ).  Não  há  variação  do  volume  intracelular  dos eritrócitos. No caso B, os eritrócitos foram ressuspensos em solução hipertônica de 300 mM NaCl. O fluxo de água do interior para o exterior do eritrócito (Jágua (i → e) ) é significativamente maior que o produzido do seu exterior para o seu interior (Jágua (e → i) ). Há diminuição do volume intracelular dos eritrócitos. No caso C, os eritrócitos foram ressuspensos em solução hipotônica de 90 mM NaCl. O fluxo de água do interior para o exterior do eritrócito (Jágua (i → e) ) é significativamente menor que o produzido do seu exterior para o seu interior (Jágua (e → i) ). Há aumento do volume intracelular dos eritrócitos, o qual pode ocasionar sua ruptura (ou hemólise).

Entretanto,  segundo  discutido  na  seção  anterior,  Coeficiente  de  reflexão,  as  membranas  não  são  necessariamente ideais,  podendo  apresentar  graus  distintos  de  permeabilidade  para  os  vários  solutos.  Deste  modo,  caso  sejam  colocadas duas  soluções  isosmolares  de  diferentes  solutos  em  cada  lado  de  uma  membrana,  sendo  esta  membrana  impermeável  ao soluto  da  solução  I,  porém  tendo  certo  grau  de  permeabilidade  ao  da  II,  a  pressão  osmótica  exercida  pela  solução  I  será maior que a exercida pela II, o que determinará um fluxo de solvente de II para I. Tal  descoberta  levou  ao  conceito  de  tonicidade  de  uma  solução.  A  tonicidade  é  definida  como  a  pressão  osmótica efetiva (πefet) de uma solução, em relação a uma determinada membrana. Para definir a tonicidade de uma solução, é necessário sempre considerar uma membrana ou célula específica. Assim, as soluções podem ser classificadas como (Figura 8.13): ■ Isotônicas: quando uma célula é suspensa em uma solução isosmolar determinada e não ocorre nenhuma variação do volume  intracelular,  esta  solução  é  isotônica  para  essa  célula.  Neste  caso,  a  πefet da  solução  é  igual  à  πefet do líquido intracelular ■ Hipotônicas: caso a célula seja suspensa em uma solução isosmolar e haja aumento do volume intracelular, a solução utilizada  é  hipotônica  em  relação  ao  líquido  intracelular.  A  πefet da  solução  é  substancialmente  menor  que  a  πefet  do líquido intracelular ■ Hipertônicas:  se  a  célula  for  suspensa  em  uma  solução  isosmolar  e  ocorrer  uma  diminuição  do  volume  intracelular, esta  solução  é  hipertônica  para  essa  célula.  A  πefet  da  solução  é  substancialmente  maior  que  a  πefet  do  líquido intracelular.

Esse critério também é aplicado quando cada face de uma membrana não ideal é banhada por soluções não isosmóticas de um mesmo soluto que atravessa com certa dificuldade a membrana. Neste caso, o número de partículas osmoticamente efetivas  em  cada  solução  será  diferente  devido  à  diferença  de  concentração  de  soluto  nas  duas  soluções,  pois  a  solução menos concentrada será hipotônica em relação à mais concentrada, que será hipertônica.

▸ Potencial químico de um solvente Quando se adiciona certa quantidade de substância solúvel em um solvente, é evidente que a concentração do solvente em determinado volume dessa solução será menor que aquela existente no mesmo volume de solvente puro. Uma forma de expressar a concentração de um solvente é pela sua fração molar (XW), indicada anteriormente (equação 8.60). Quando  se  trata  de  um  solvente  puro,  o  valor  de XW será 1, já que nW = nT.  À  medida  que  o  soluto  é  adicionado,  o valor de XW vai diminuindo. Utilizando a fórmula do potencial químico (equação 8.4), agora expressa para um solvente, temos:

Quando há solvente puro XW = 1, ln XW = 0 e VW = 0. Portanto,

É evidente que, de um ponto de vista rigoroso, em vez da fração molar, deveria ser usada a atividade do solvente, ou seja, sua concentração efetiva, parâmetro que considera as interações moleculares. Para  a  água,  principal  componente  dos  meios  intra  e  extracelulares,  o  potencial  químico  total,  aplicando  a  equação 8.70, é dado por:

▸ Diferença de potencial químico total do solvente entre duas soluções Na  situação  indicada  no  caso  A  da Figura 8.12,  o  cálculo  da  diferença  do  potencial  químico  total  do  solvente,  que nesse caso é água, entre as duas soluções será: Segundo a equação 8.72,

e

Nesta situação, a diferença de potencial químico entre as duas soluções (II e I) é fornecida pela resultante da equação 8.74 menos a equação 8.73. Assim, obtemos:

Rearranjando os termos da equação 8.75, temos:

Resolvendo o primeiro termo da direita da equação 8.77:

Substituindo Xágua no primeiro termo da equação 8.78 pelo indicado na equação 8.60, fica:

Ordenando esta equação:

Como em soluções aquosas diluídas nágua >> ns e considerando que ln(1 + x) se aproxima de x na medida em que x se aproxima de zero, na equação 8.82 podemos substituir ln(1 + x)por x, ficando:

Substituindo a equação 8.83 na 8.77, resulta:

Dividindo ambos os termos por Vágua, obtemos:

Considerando que  respectivamente, a equação 8.86 fica:

 representam os volumes dos compartimentos II e I,

Como na equação de van’t Hoff (8.53), a diferença de pressão osmótica é fornecida por Δπ = RT ꞏ ΔC, em que ΔC é a diferença  de  concentração  de  solutos,  aos  quais  a  membrana  é  impermeável, entre  os  compartimentos  II  e  I,  a  equação 8.89 pode ser expressa como:

Na situação de equilíbrio, quando uIágua = uIIágua, ΔπII­Iágua total =0. Portanto, a equação 8.90 resulta em:

Em  outras  palavras,  no  equilíbrio,  quando  já  não  há  fluxo  de  volume  entre  os  dois  compartimentos,  a  diferença  de pressão osmótica entre os compartimentos I e II é igual à diferença de pressão hidrostática entre os compartimentos II e I, mas com sinal oposto.

▸ Movimento de água através da membrana celular Consideremos,  novamente,  uma  membrana  semipermeável  ideal,  que  separa  duas  soluções,  a  qual  deixa  passar  sem restrição o solvente, neste caso água, impedindo a passagem do soluto. A força envolvida no movimento hídrico através da membrana (Fágua)22 deriva da diferença da pressão hidrostática (ΔPII–I) e da diferença de pressão osmótica (RT ꞏ ΔCSII– I  = ΔπII–I) entre as duas soluções que banham cada lado da membrana. Assim, podemos escrever:

Resolvendo ΔμII–Iágua total pela equação 8.90, Fágua resulta em:

Essa força imprime um movimento às moléculas de água, cuja velocidade média é dada por:

em que: vágua = velocidade média das moléculas de água Fágua = força definida na equação 8.94 Ωm = coeficiente de mobilidade modificada da água através de uma membrana específica = uáguak k = coeficiente de distribuição da água entre a solução e a membrana. O fluxo de água por unidade de área (Jágua) será igual à velocidade média das moléculas de água (vágua) multiplicada pela concentração da água (Cágua):

o qual é expresso em 

 ou seja, o Jágua é dado em moles ꞏ cm–2 ꞏ s–1.

Substituindo a equação 8.95 na 8.96, temos:

Considerando a equação 8.94, resulta:

Em  soluções  diluídas,  o  produto  da  concentração  da  água  pelo  volume  parcial  molar  desse  fluido  é  próximo  de  1   Assim,

O coeficiente de permeabilidade para a água é definido por

Substituindo a equação 8.100 na 8.99, temos:

Para expressar a pressão osmótica de II a I, podemos escrever:

Então, a equação 8.101 resulta em:

Com base na equação 8.103, podemos tirar as seguintes conclusões: 1. 2.

3.

Se o coeficiente de permeabilidade para a água for zero (págua = 0), não há fluxo resultante desse líquido. Se o coeficiente de permeabilidade para a água for diferente de zero (págua ≠ 0), haverá fluxo resultante desse fluido sempre e quando ΔPII–I ≠ ΔπII–I, indicando que o fluxo resultante de água através da membrana depende da diferença de pressão mecânica e da diferença de concentração de soluto nos dois lados da membrana. Se o coeficiente de permeabilidade para a água for diferente de zero (págua ≠ 0) e a diferença da pressão hidrostática entre  II  e  I,  igual  à  diferença  de  pressão  osmótica  entre  II  e  I  (ΔPII–I = ΔII–I),  não  haverá  fluxo  resultante  de  água, indicando que, no equilíbrio, a pressão hidrostática é igual à pressão osmótica.

Entretanto,  se  a  membrana  não  se  comportar  de  um  modo  ideal,  isto  é,  se  for  permeável  ao  solvente  e,  também,  em maior  ou  menor  grau,  ao  soluto,  a  situação  será  totalmente  diferente.  Neste  caso,  existirão  fluxos  cruzados  de  soluto  e solvente,  interatuando.  Esta  situação  foi  analisada  por Ora Kedem23 e Aharon­Katzir Katchalsky,24 em  1958,  utilizando critérios da termodinâmica de processos irreversíveis.

Equações de Kedem e Katchalsky Existe grande número de leis fenomenológicas que descrevem os processos irreversíveis em forma de proporcionalidade. Por exemplo, a lei de Fick – entre o fluxo de matéria de um componente de uma mistura e  seu  gradiente  de  concentração,  e  a  lei  de  Ohm  –  entre  a  corrente  elétrica  e  o  gradiente  de  potencial aplicado. Quando dois ou mais destes fenômenos ocorrem simultaneamente, eles interferem e dão lugar a novos efeitos. Entre estes fenômenos cruzados, pode ser citado, por exemplo, o caso de uma membrana não ideal, permeável à água e com certa permeabilidade ao soluto m, que separa dois compartimentos (I e II)  que  contêm  soluções  aquosas  com  diferentes  concentrações  de  m,  como  seja,  CIIm  >  CIm.  Nesta condição, haverá fluxo de água de I para II   e de soluto de II para I   Em 1931, ao estudar a diferença  entre  os  efeitos  cruzados,  L.  Onsager  estabeleceu  sua  reciprocidade;  isto  é,  a  possibilidade  de que  tais  efeitos  possam  intercambiar.  No  caso  das  membranas,  tem  particular  importância  a correspondência  recíproca  dos  efeitos  causados  por  diferenças  de  concentrações  e  de  pressões.  Entre 1951 e 1952, Albert Jan Staverman estabeleceu a primeira teoria para explicar o fluxo osmótico, propôs o coeficiente de reflexão σ e indicou as causas termodinâmicas daquele fluxo. Entre 1957 e 1966, Ora Kedem e Aharon­Katzir Katchalsky completaram a aplicação da teoria da termodinâmica de processos irreversíveis a estes processos de transporte. As equações básicas que resultaram desta aplicação em membranas em que há duas forças termodinâmicas, dadas por ΔCs e ΔP, serão discutidas a seguir. Kedem e Katchalsky, estudando o transporte de solvente e soluto através de uma membrana banhada por  duas  soluções,  consideraram  os  seguintes  fluxos,  proporcionais  à  pressão  hidrostática  e  à  osmótica, respectivamente:

em que: Jv = fluxo total de volume (soluto mais solvente) JD = fluxo de soluto em relação ao solvente (fluxo de intercâmbio). Para transformar as proporções anteriores em igualdades, esses pesquisadores propuseram o uso dos coeficientes LP e LD, isto é, o coeficiente de pressão­filtração (para uma diferença de concentração igual a zero) e o coeficiente difusional (para uma diferença de pressão igual a zero), respectivamente. Deste modo, os fluxos em cada caso são fornecidos pelas expressões:

Considerando a equação de van’t Hoff (RTΔCS = Δπ), a equação anterior fica: JD = LDΔπ

Ou seja, quando ambas as forças atuam, ΔP produz  variação  na  velocidade  relativa  soluto­solvente  e Δπ, variação no fluxo de volume, ambas devendo ser colocadas nas equações, sendo seus coeficientes de proporcionalidade – o coeficiente osmótico (LpD) e o de ultrafiltração (LDp), respectivamente. Então, as equações dos fluxos, chamadas de equações fenomenológicas de Kedem e Katchalsky, ficam da seguinte maneira: Jv = Lp ΔP + LpDΔπ JD = LDpΔP + LDΔπ O  teorema  de  Onsager  demonstra  que,  nas  condições  expressas,  os  dois  coeficientes  cruzados  são iguais, isto é, LpD = LDp. Suponhamos, agora, que a membrana que separa as duas soluções se comporta como uma membrana ideal, que deixa passar livremente o solvente, porém tem total impermeabilidade ao soluto. Neste caso, Jv é apenas fluxo de solvente (impulsionado pela pressão hidrostática) e JD, também apenas fluxo de solvente, porém,  como  é  impulsionado  pela  pressão  osmótica,  apresenta  sinal  contrário.  Logo,  se  o  sistema  se encontra próximo do equilíbrio, pode­se considerar que Jv = – JD. Assim, ambas as equações se igualam, ficando:

Para que a equação anterior seja igual a zero, é necessário que os valores em parênteses sejam zero; para tanto, Lp deve ser igual a –LDp e LD, a –LpD. Além disso, como, segundo o teorema de Onsager, LpD = LDp, teremos: Lp = LD = –LpD = –LDp Com  as  equações  de  Kedem  e  Katchalsky,  é  possível  avaliar,  de  modo  experimental,  o  valor  dos coeficientes  de  pressão­filtração  (Lp),  difusional  (LD),  ultrafiltração  (LDp)  e  osmótico  (LpD)  para  uma  dada membrana. Por exemplo, se Δπ = 0, a equação de Jv ficará Jv = LpΔP, bastando determinar Jv e ΔP para se ter o valor de Lp, ou seja:

Staverman  definiu  o  coeficiente  de  reflexão  (s)  como  a  relação  entre  –LpD  (coeficiente  osmótico) e Lp (coeficiente de pressão­filtração), logo:

Vamos considerar Δπ= 0. Portanto, as equações iniciais de Jv e JD serão:

Rearranjando, fica:

1. 2. 3.

Se a membrana se comporta como uma membrana ideal, impermeável ao soluto, então –LDp = Lp ou, –JD = Jv, de modo que σ = 1. Se a membrana é livremente permeável ao solvente e ao soluto, então não há fluxo relativo, de modo que σ = 0. Se a membrana é livremente permeável ao solvente e oferece certo grau de dificuldade para a passagem do soluto, s terá um valor entre 0 e 1.

CONCEITOS BÁSICOS ▸  Difusão. Processo  físico  em  que  partículas  materiais  passam  do  meio  onde  se  encontram,  para  outro  meio  onde estão  ausentes  ou  em  menor  concentração,  aumentando  a  entropia  ou  desordem  molecular  do  sistema  constituído  pelas partículas  que  difundem  e  o  meio  no  qual  difundem.  Este  processo  não  requer  um  aporte  energético.  A  difusão  de substâncias através das membranas celulares pode ser simples, quando só intervêm atores responsáveis pela mesma, como pode  ser  facilitada  ou  mediada,  quando  intervêm,  além  de  proteínas  de  membrana  como  canais,  cotransportadores  e contratransportadores, que reconhecem especificamente as substâncias e facilitam a passagem das mesmas. ▸  Potencial químico (μm). Somatória  de  todos  os  parâmetros  que  permitem  que  uma  substância m realize  um trabalho.  Nos  sistemas  biológicos,  ao  nível  do  mar,  podemos  calcular  o  potencial  químico  de  uma  substância,  isto  é,  a capacidade de realizar um trabalho químico, osmótico ou elétrico, com a seguinte equação:

em  que  R  é  a  constante  de  gás,  T  é  a  temperatura  absoluta,  Cm  é  a  concentração  da  substância,  Zm  é  a  valência  da substância,  F  é  a  constante  de  Faraday,  e  y  ψ  o  potencial  elétrico.  O  potencial  químico  padrão  (μ0m)  corresponde  ao potencial químico da substância m quando a concentração (Cm) é 1 molal (ln Cm = 0), o potencial elétrico é zero (ψ = 0), temperatura (T =  298  K  =  25  °C),  em  condições  isobáricas  (P igual  em  todos  os  pontos  do  meio  onde  a  substância  é encontrada) e a substância está ao nível do mar (h = 0). ▸  Coeficiente  de  partição  de  uma  substância  m  em  meios  hidrofóbicos  e hidrofílicos.  Parâmetro  que  representa  o  quociente  entre  as  concentrações  de  uma  substância  m  em  uma  mistura bifásica  formada  por  dois  solventes  imiscíveis  em  equilíbrio,  tais  como  um  meio  lipídico  e  um  meio  aquoso.  Com  este parâmetro, se pode saber com que facilidade a substância se dissolve em cada um dos meios. ▸ Potencial de Nernst. A passagem de uma substância com carga elétrica, de um meio I para um meio II através de uma membrana, cria uma diferença de potencial elétrico entre os dois lados da membrana, conhecido como potencial de Nernst. Este pode ser calculado, para uma substância carregada i, com a equação de Nernst:

▸ Gradiente químico. Diferença de potencial químico de uma substância m entre dois compartimentos separados por uma membrana. ▸ Permeabilidade de uma barreira a uma substância m. De modo geral, refere­se à capacidade de uma  barreira,  como  uma  membrana,  de  permitir  a  passagem  de  uma  substância  sem  alterar  sua  estrutura  interna.  Como existem substâncias com carga elétrica, e que podem se apresentar diferentes condições nos compartimentos, são gerados diferentes casos, a saber: ■ Primeiro  caso:  partículas  carregadas  na  presença  de  um  gradiente  de  concentração  (dCm/dx)  e  um  gradiente  de potencial elétrico (dψ/dx) ■ Segundo caso: partículas eletroneutras na presença de um gradiente de concentração na barreira (dCm/dx) ■ Terceiro  caso:  partículas  carregadas  na  presença  de  um  gradiente  de  potencial  elétrico  (dψ/dx)  na  barreira,  a concentrações constantes de m.

▸  Osmose.  Fluxo  de  água  produzido  colocando­se  duas  soluções  aquosas  de  diferentes  concentrações  de  soluto separadas  por  uma  membrana  que  é  apenas  permeável  às  moléculas  de  água,  mas  não  às  do  soluto:  a  água  difunde  da solução com menor concentração de soluto, para a solução com a maior concentração do mesmo. ▸ Pressão osmótica. Uma das quatro propriedades desenvolvidas pelas soluções, conhecidas como propriedades coligativas  porque  dependem  do  número  de  partículas  dissolvidas  nelas,  e  que  podem  ser  definidas  como  a  pressão  que deveria  ser  aplicada  a  uma  solução  I,  separada  por  uma  membrana  semipermeável  de  outra  solução  II,  com  menor quantidade de soluto dissolvido, para deter o fluxo resultante de solvente que é produzido a partir da solução II para a I, através da membrana que os separa. ▸  Osmolaridade  e  osmolalidade.  A  concentração  osmótica  de  uma  solução  é  definida  pela sua  osmolaridade  ou  osmolalidade,  conforme  se  expresse  a  concentração  de  partículas  osmoticamente  ativas  em osmoles/litro  de  solução,  ou  osmoles/quilo  de  solvente,  respectivamente.  Quando  se  fala  de  partículas  de  soluto osmoticamente  ativas,  é  feita  referência  àquelas  que  estão  efetivamente  dissolvidas  no  solvente  e,  consequentemente, podem gerar pressão osmótica. Esta propriedade é calculada através da seguinte equação

em que o termo i refere­se a cada tipo de soluto presente na solução, ni à constante de dissociação ideal do soluto e Ci à sua concentração química. Se prepararmos uma solução aquosa com um soluto não ionizável, como glicose ou sacarose, a osmolaridade da solução dependerá diretamente da concentração. Se, em vez disso, a solução é um eletrólito (ácido, base ou  sal),  suas  moléculas  vão  se  dissociar  individualmente  em  dois  ou  mais  íons.  Cada  íon  será  uma  partícula osmoticamente  ativa  e,  portanto,  a  osmolaridade  de  uma  solução  de  eletrólitos  será  maior  que  a  da  sua  concentração química. Como os eletrólitos não se dissociam completamente, é necessário um fator que corrija sua dissociação real; esse fator é conhecido como o coeficiente osmótico (φ). A equação da osmolaridade seria, então:

▸  Propriedades coligativas das soluções. São  as  propriedades  que  uma  solução  desenvolve  devido  ao número de partículas dissolvidas nela. As propriedades coligativas são quatro: ■ Aumento da pressão osmótica:  ao  adicionar  mais  soluto  a  uma  solução,  há  um  aumento  na  osmolalidade  da  referida solução ■ Diminuição  da  pressão  de  vapor:  as  partículas  não  voláteis  de  soluto  diminuem  o  número  de  partículas  de  solvente disponíveis na interface entre a solução e o ar e, assim, ocorre uma diminuição da pressão de vapor da solução ■ Aumento  do  ponto  de  ebulição:  as  partículas  de  um  soluto  não  volátil  interferem  para  que  as  moléculas  do  solvente possam  passar  maciçamente  para  o  ar  ao  alcançar  o  ponto  de  ebulição  do  solvente.  Isso  faz  com  que  o  ponto  de ebulição da solução seja mais alto que o do solvente sozinho ■ Diminuição  no  ponto  de  congelamento:  as  partículas  de  um  soluto  presente  na  solução  interferem  no  processo  de aproximação mínima necessário para que as moléculas do solvente congelem e atinjam o estado sólido. Isso resulta na necessidade de reduzir ainda mais a temperatura da solução para que esta possa se congelar. ▸ Coeficiente de reflexão (σ). Também chamado de coeficiente de reflexão de Staverman, indica a capacidade de uma membrana para “refletir” partículas de soluto que tentam atravessá­la. Este coeficiente toma valores que vão de 0, quando a membrana permite passar livremente o solvente e o soluto, para 1, quando a membrana permite passar apenas o solvente. ▸ Tonicidade. Pressão osmótica efetiva (πefet) que exerce uma solução em relação a certa membrana. De acordo com a sua tonicidade, as soluções podem ser: ■ Isotônicas: quando o (Πefet) de duas soluções são iguais ■ Hipotônicas: refere­se à solução que tem menor (Πefet) do que a outra solução com a qual está em contato através da membrana ■ Hipertônicas: refere­se à solução que possui maior (Πefet) do que a outra solução com a qual está em contato através da membrana.

BIBLIOGRAFIA BORON WF, BOULPAEP EL. Medical Physiology. W.B. Saunders, 2008. HEILBRUNN LV. An Outline of General Physiology. W.B. Saunders, Philadelphia, 1952. HODGKIN  AL,  HOROWICZ  P.  The  influence  of  potassium  and  chloride  ions  on  the  membrane  potential  of  single  muscle fibres. J Physiol, 148:127­60, 1959. SCHULTZ SG. Basic Principles of Membrane Transport. Cambridge University Press, New York, 1980. SNELL FM, SHULMAN S, SPENCER RP et al. Biophysical Principles of Structure and Function. Addison­Wesley Publishing Co, 1965. SPERELAKIS N. Cell Physiology. Academic Press, San Diego, CA, 1998. STEIN WD. Transport and Diffusion Across Cell Membranes. Academic Press, Orlando, FL, 1986. STEN­KNUDSEN O. Passive transport processes. In: GIEBISH G, TOSTESON DC, USSING HH (Ed.). Membrane Transport in Biology. Vol. 1, chapter 2, 5­113. Springer­Verlag, Berlin, Heildelberg, 1978. VANDER  AJ,  SHERMAN  JH,  LUCIANO  DS.  Human  Physiology:  the  mechanisms  of  body  function.  9.  ed.  McGraw­Hill, Boston, 2003. WEISS TF. Cellular Biophysics. Vol. 1, Transport. The MIT Press, Cambridge, 1996.

___________ 1

  O  valor  61,5  é  resultante  do  cálculo  de 

,  em  que:  R  =  8,314472  joules/(mol  ×  °K);  T  =  310°K,  F  =  96.487

coulombs/equivalente e 2,303 = fator de conversão de ln em log. Portanto,

2

  O  cálculo  de  Pm  também  pode  ser  expresso  como  o  resultado  de  ΩmRT/Δx,  em  que  Ωm  é  definido  como  o  coeficiente  de mobilidade modificada do soluto m através de uma barreira específica, sendo Ωm = umkm, ou seja, a mobilidade de m através  de uma barreira determinada multiplicada pelo coeficiente de partição de m na dita barreira (km). 3  A lei de Ohm estabelece que a intensidade da corrente elétrica que circula por um condutor elétrico é diretamente proporcional à diferença de potencial aplicada e inversamente à resistência do condutor, podendo ser expressa matematicamente como   em que I = intensidade da corrente, V = diferença de potencial (neste capítulo simbolizada como Δψ) e R = resistência. 4

 É necessário esclarecer que a mobilidade iônica em uma membrana biológica depende diretamente da presença de proteínas transportadoras, específicas ou não, que permitem o transporte de íons através da porção hidrofóbica da bicamada lipídica. 5  Biofísico norte­americano que derivou a equação de campo constante, durante seu doutorado na Columbia University. 6  Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1963. 7

 Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1970.  A equação 8.46 também é conhecida como equação de GHK; porém, para efeitos práticos, neste texto a 8.49 será identificada como de GHK. 9   Neste  caso,  os  compartimentos  I  e  II,  mencionados  anteriormente,  equivalem  aos  meios  externo  e  interno  à  membrana, respectivamente. 8

10

 Também chamados lipofílicos, por sua capacidade de dissolução em solventes orgânicos, como os lipídios.  Do grego ώσμόζ (osmos), ação de empurrar, impulso. 12  Primeiro prêmio Nobel de Química, em 1901. 11

13

 Peso molecular 342,30.  Peso molecular 74,60. 15  Um eletrólito é definido como forte quando, em solução, alta proporção dele se dissocia para formar íons livres. Ao contrário, se a maior parte do soluto não se dissocia, o eletrólito é considerado fraco. 14

16

  A  molalidade  de  uma  solução  é  o  quociente  entre  o  número  de  moles  presentes  na  solução  e  a  massa  do  solvente  em quilogramas. 17  François­Marie Raoult, químico francês, estudou o fenômeno da queda do ponto de congelamento e da pressão de vapor nas soluções. 18  O valor de 0,51°C também é conhecido como constante ebulioscópica (KB). 19

 O valor de –1,86°C também é conhecido como constante crioscópica (K ).

19

 O valor de –1,86°C também é conhecido como constante crioscópica (KF).  Eminente físico­químico holandês, que deu contribuições muito importantes para o estudo do movimento de água e solutos através de membranas. 20

21

 Este coeficiente também é denominado coeficiente de reflexão de Staverman ou coeficiente sigma de reflexão.  A difusão das moléculas de um soluto é causada pela força difusional que atua sobre elas. Logo, essa força é expressa como Δμ/ Δx. 23  Professora emérita do Weizmann Institute of Science e discípula do Professor Aharon­Katzir Katchalsky. Dedicou­se ao estudo dos processos tecnológicos de dessalinização da água do mar. 22

24

 Cientista israelense, pioneiro no estudo da eletroquímica de biopolímeros no Weizmann Institute of Science.



Gênese do Potencial de Membrana Joaquim Procopio ■ Introdução



■ ■ ■

Relação entre carga e potencial elétrico Origem das cargas elétricas Papel dos canais iônicos na geração de excessos de carga

■ ■

Geração de voltagem na membrana Aproximação da célula real

■ ■ ■

Potencial de membrana Cálculo das forças moventes para o Na+  e para o K+  no potencial de repouso Perturbações do potencial de repouso

■ ■ ■

Modelo hidráulico do sistema célula/membrana Perturbações do potencial de membrana produzidas pela abertura de canais iônicos Despolarização maciça da membrana | Potencial de ação

■ ■

Papel das bombas de sódio­potássio na gênese do potencial de membrana Gênese da diferença de potencial elétrico (DP) transepitelial

■ ■

Técnica de voltage­clamp Corrente de curto­circuito

Excitabilidade Celular e Potencial de Ação Fernando Abdulkader ■ Variações do potencial de membrana ■ ■

Alterações do potencial de membrana em células excitáveis Importância dos potenciais de ação em células endócrinas pequenas



Bibliografia

Gênese do Potencial de Membrana Joaquim Procopio

INTRODUÇÃO Ao longo do processo de evolução, os seres vivos desenvolveram diferentes estratégias para obtenção, armazenamento e uso da energia. Os tipos básicos de energia utilizados pelos seres vivos estão armazenados em ligações químicas (p. ex., trifosfato de adenosina [ATP], glicose), gradientes químicos (p. ex., força próton­motiva), potencial redox (p. ex., cadeia

respiratória,  dinucleotídio  de  nicotinamida  e  adenina  reduzido  [NADH])  e,  finalmente,  a  energia  armazenada  no  campo elétrico. Entre as mais importantes formas de armazenamento e processamento da energia e da informação está a energia elétrica. O objetivo deste capítulo é introduzir ao estudante as bases necessárias para compreender os fenômenos elétricos no âmbito da fisiologia celular. A percepção da bioeletricidade na ciência teve origem nos anos 1700, com os estudos de Luigi Galvani. Entre outros, Michael  Faraday  deu  continuidade  a  esses  estudos  e  iniciou  a  fase  mais  científica  da  Eletricidade.  Curiosamente,  o desenvolvimento da Bioeletricidade e o da Eletricidade Clássica ocorreram de modo mais ou menos paralelo no tempo. O grande  impulso  da  eletricidade  clássica,  unificando  eletricidade  e  magnetismo,  no  entanto,  ocorreu  já  no  final  dos  anos 1800,  principalmente  com  os  trabalhos  de  James  Clerk  Maxwell.  A  bioeletricidade,  por  sua  vez,  teve  de  esperar  até meados dos anos 1900 para sofrer uma unificação importante, com os estudos de Hodgkin e Huxley (ver boxe na p. 195), entre outros. Contudo, desde o início dos anos 1900, já estava bem clara a percepção de que os seres vivos podiam ser considerados “máquinas” eletrobioquímicas, no sentido de que o armazenamento, a interconversão e a sincronização dessas formas de energia  ocorriam  como  um  processo  geral,  indissociável,  nas  células  vivas.  Uma  percepção  não  muito  agradável,  mas bastante  convincente  da  existência  da  bioeletricidade,  é  levar  um  choque  de  400  volts  de  uma  enguia  elétrica,  cujo  nome científico, bastante adequado, é Electrophorus electricus.

RELAÇÃO ENTRE CARGA E POTENCIAL ELÉTRICO Provavelmente,  uma  das  mais  interessantes  estratégias  evolutivas  no  que  se  refere  à  bioeletricidade  ocorreu  no aproveitamento de uma propriedade dos objetos, que é a relação entre carga livre armazenada e o potencial elétrico. Existe uma enorme desproporção entre a quantidade de carga livre em um dado objeto e seu potencial elétrico. Para  se  ter  uma  ideia  dessa  desproporção,  basta  dizer  que  a  carga  elétrica  de  uma  bateria  de  telefone  celular,  se distribuída em uma esfera metálica do tamanho da Terra, levaria o potencial elétrico da esfera a 10 milhões de volts, como demonstra o exercício de Aplicação 1.

Aplicação 1 Em  um  experimento  hipotético,  toda  a  carga  elétrica  armazenada  em  uma  bateria  de  telefone  celular (2.000  miliamperes/hora)  é  transferida  para  a  superfície  interna  de  uma  esfera  metálica  gigante,  oca  e perfeitamente lisa, com o tamanho da Terra (12.800 quilômetros de diâmetro). Calcule a voltagem atingida pela esfera. Solução: Carga = 2 amperes × hora = (2 coulombs/segundo) × (3.600 segundos) = 7.200 coulombs

Claramente, observando o resultado da Aplicação 1, deduz­se que a desproporção mencionada anteriormente advém do valor  extremamente  pequeno  da  constante  ε0  =  8,85  ×  10–12  farads/metro  (permitividade  elétrica  do  vácuo)  no denominador e da enorme quantidade de elétrons em 1 coulomb. Graças  a  essa  propriedade,  a  transferência  de  cargas  extremamente  pequenas  aos  objetos  em  geral  leva  à  geração  e  à modificação de grandes valores de potenciais elétricos. Conclui­se  que  os  objetos  de  modo  geral  são  péssimos  acumuladores  de  cargas  elétricas.  No  entanto,  é  possível aumentar enormemente a capacidade de armazenamento de cargas, conforme descrito na Aplicação 2.

Aplicação 2

Se revestirmos a esfera gigante da Aplicação 1 com uma folha de plástico isolante e constante dielétrica (ε) igual a 2, com a espessura de uma sacola plástica de supermercado (0,1 mm), e cobrirmos tudo com uma  folha  metálica  bem  ajustada,  a  mesma  quantidade  de  carga  contida  na  bateria  do  celular  (7.200 coulombs), depositada nesse novo sistema, criará agora uma voltagem de:

A diferença nos dois exemplos (Aplicações 1 e 2) é que a esfera metálica simples é um condutor esférico simples, e a esfera metálica revestida por uma membrana com uma placa por fora é um capacitor elétrico (Figura 9.1).

Figura 9.1 ■ Comparação entre um capacitor elétrico clássico (A) e o sistema celular citoplasma/membrana/meio extracelular (B). O núcleo metálico do capacitor corresponde ao citoplasma, o isolante do capacitor corresponde à membrana, e a carcaça externa do capacitor corresponde ao meio extracelular.

Dois  fatos  se  tornam  evidentes  nos  exemplos  anteriores.  Uma  mesma  quantidade  de  carga  na  esfera  simples  gerou uma voltagem absurdamente alta, enquanto no capacitor de mesmo tamanho gerou uma voltagem desprezível. O segundo fato  indica  que,  no  capacitor,  é  possível  adicionar  uma  grande  quantidade  de  carga  com  uma  relativamente  pequena variação de voltagem. O capacitor é, portanto, um dispositivo adequado para armazenar ou acumular cargas. A  analogia  do  capacitor  gigante  com  a  célula  viva  é  direta.  No  capacitor  (ver  Figura  9.1  A),  os  dois  condutores metálicos  correspondem  ao  citoplasma  (a  esfera  interna)  e  ao  extracelular  (a  capa  metálica  externa),  enquanto  o  isolante entre os dois condutores corresponde à membrana celular (a célula está representada na Figura 9.1 B). As  células  vivas  são,  portanto,  pequeníssimos  capacitores  elétricos.  Dessa  forma,  outra  estratégia  desenvolvida  pela natureza  foi  a  capacidade  das  células  em  armazenarem  carga  elétrica,  de  modo  a  permitir  sua  utilização  em  ocasiões convenientes  e  impedir  variações  indesejáveis  de  voltagem  na  vigência  de  variadas  perturbações  elétricas.  Essa propriedade  de  armazenamento  deriva  da  capacitância  elétrica  das  células,  vista  anteriormente,  resultado  da  geometria particular  do  sistema  citoplasma/membrana/extracelular,  e  da  espessura  extremamente  delgada  da  membrana  celular.  Por sua  vez,  as  cargas  elétricas  armazenadas  na  célula  servem  a  muitas  funções,  entre  elas:  sinalização,  armazenamento  de energia eletroquímica, transporte através da membrana e modulação de canais iônicos.

Portanto,  graças  à  capacitância  elétrica  relativamente  grande  da  célula,  a  carga  elétrica,  na  forma  de  íons,  pode  ser armazenada  e  manipulada,  concomitantemente  à  geração  de  potenciais  e  variações  de  potencial  dentro  dos  limites fisiológicos, ou seja, inferiores a 100 mV. Para que as células animais funcionem utilizando adequadamente os fenômenos elétricos em associação aos fenômenos químicos/bioquímicos, é necessário que a célula possa: ■ Responder de modo significativo a quantidades extremamente pequenas de carga elétrica veiculadas ao citoplasma por abertura  de  canais,  por  exemplo.  Com  isso,  o  organismo  consegue  sinalizar  com  mínimo  gasto  de  energia  ou movimentação de cargas ou, de modo equivalente, de íons. Além disso, a pequena quantidade de carga necessária para esses processos permite a rapidez de respostas, necessária à sobrevivência do indivíduo ■ Responder  a  essas  pequenas  injeções  de  carga  com  alterações  de  potencial  de  membrana  suficientemente  altas  para sinalização e controle de outros processos, porém suficientemente baixas para não lesionarem a delicada estrutura da membrana celular ■ Armazenar  a  carga  elétrica  recebida  durante  tempo  suficiente  para  interagir  com  outras  injeções  de  carga  (p.  ex., somação de potenciais). Em condições de repouso, armazenar a carga elétrica como forma de energia potencial elétrica (ou potencial eletroquímico) ■ Permitir que as voltagens através da membrana representem diferenças de potencial elétrico da mesma ordem que as diferenças  de  potencial  químico  decorrentes  dos  gradientes  de  concentração.  Dessa  forma,  a  célula  permite  que  a energia elétrica possa somar­se à energia química com grande eficiência, fato que é rotina. Das informações anteriores fica claro que o mecanismo básico de geração de voltagens através da membrana celular é a  criação  de  um  excesso  de  cargas  elétricas  no  citoplasma.  Excesso  de  cargas  positivas  polariza  a  membrana  com citoplasma positivo, enquanto um excesso de cargas negativas gera um potencial de membrana negativo. Dessa  maneira,  o  potencial  de  membrana  (VM)  é  gerado,  essencialmente,  por  um  excesso  de  cargas  elétricas  no citoplasma. A relação entre o excesso de carga (ΔQ) e o potencial elétrico do citoplasma (VM) é muito simples:

A  maior  parte  deste  capítulo  visa  explicar  ao  estudante  de  que  modo  é  gerado  e  mantido  esse  excesso  de  cargas elétricas  no  citoplasma,  de  modo  a  manter  a  maioria  das  células  com  potenciais  de  membrana  relativamente  estáveis  no tempo.  Também  estudaremos  os  processos  que  alteram  a  carga  elétrica  na  célula  e  o  potencial  de  membrana  e  levam  ao fenômeno da excitabilidade elétrica das células. Ao final do capítulo, discutiremos também como os processos de manejo de  cargas  elétricas  em  membranas  podem  gerar,  em  epitélios,  diferenças  de  potencial  elétrico  entre  o  meio  externo  e  o meio interno.

Aplicação 3 Calcule  a  capacitância  elétrica  de  uma  célula  com  10  micrômetros  de  diâmetro,  membrana  de  5 nanômetros de espessura e constante dielétrica relativa igual a 2. Solução:

ORIGEM DAS CARGAS ELÉTRICAS Nos objetos em geral existe uma igualdade quase total entre a quantidade de cargas positivas e negativas. Dessa forma, os  objetos  são,  em  condições  normais,  eletricamente  neutros.  Entretanto,  dada  a  enorme  mobilidade  dos  elétrons  livres

que permeiam todos os sólidos, essa igualdade pode ser, e é, facilmente rompida. Por exemplo, ao andar descalço sobre um  tapete  em  um  dia  seco,  o  corpo  humano  pode  ganhar  ou  perder  elétrons  (dependendo  do  tipo  de  tapete),  adquirindo facilmente  um  potencial  de  milhares  de  volts.  Ao  tocar  uma  maçaneta  metálica,  uma  faísca  pode  ocorrer,  descarregando rapidamente esse excesso de carga. A faísca elétrica que resulta dessa descarga veicula uma corrente elétrica tão baixa que não produz qualquer efeito nocivo ou doloroso (além de um susto), demonstrando que a quantidade de carga em excesso é muito pequena. Esse é o fenômeno da eletrização por atrito. No  entanto,  na  água  e  nas  soluções  eletrolíticas,  ou  seja,  nos  fluidos  biológicos,  essa  eletrização  por  atrito  é  muito menos significante, pelo fato de que a água e as soluções iônicas, sendo condutores, não permitem o desenvolvimento de diferenças de potencial elétrico significativas. A membrana celular, com sua propriedade de isolamento elétrico, permite, no entanto, a existência de diferenças de voltagem entre o citoplasma e o meio extracelular. Essa é a base para a geração e a manutenção do potencial de membrana. Outra  diferença  entre  a  geração  de  potenciais  nas  células  vivas  e  nos  objetos  inanimados  é  que,  nas  células,  os potenciais  elétricos  não  se  devem  a  um  excesso  ou  déficit  de  elétrons  livres,  e  sim  a  um  desequilíbrio  entre  as concentrações de cátions e ânions no citoplasma.

PAPEL DOS CANAIS IÔNICOS NA GERAÇÃO DE EXCESSOS DE CARGA Como  veremos  a  seguir,  a  abertura  de  um  ou  poucos  canais  iônicos,  veiculando  um  fluxo  iônico  associado  a  uma corrente  elétrica  diminuta  ao  citoplasma,  pode  provocar,  na  célula,  variações  de  potencial  citoplasmático  na  faixa fisiológica. No entanto, o que move essa entrada ou saída de cátions ou ânions, e o que permite ser esse fluxo, em muitos casos, exclusivamente de cátions ou de ânions desacompanhados de seus pares? Aqui,  entra  em  cena  uma  propriedade  dos  canais  iônicos:  a  sua  seletividade  iônica.  A  seletividade  iônica  é  a propriedade que permite a um dado canal iônico selecionar o sinal da carga do íon que passará por ele: cátion (+) ou ânion (–). A seletividade pode ser ainda mais restrita, permitindo ao canal selecionar entre diferentes espécies de cátions ou de ânions.  É  a seletividade intercatiônica ou  interaniônica.  Os  detalhes  da  origem  da  seletividade  iônica  por  canais  serão descritos no Capítulo 10, Canais para Íons nas Membranas Celulares.

GERAÇÃO DE VOLTAGEM NA MEMBRANA Para  entender  como  os  canais  iônicos  podem  gerar  voltagem  no  citoplasma,  consideremos  uma  célula  hipotética (esférica  e  com  diâmetro  de  10  micrômetros),  banhada  em  um  meio  aquoso  contendo  NaCl  140  mmol/ ℓ .  Vamos  supor que, no citoplasma, temos NaCl 10 mmol/ℓ. Não nos preocupemos com o mecanismo de manutenção dessa diferença de concentração  entre  os  meios  intracelular  (IC)  e  extracelular  (EC).  Uma  bomba  iônica  hipotética  poderia  manter indefinidamente essas concentrações, a despeito de entradas ou saídas de Na+. Vamos supor que o potencial intracelular é inicialmente igual ao potencial no EC. Ou seja, não há, inicialmente, uma diferença de potencial elétrico (DP) através da membrana. Abrindo,  na  membrana,  um  canal  seletivo  ao  Na+,  os  íons  Na  tenderão  a  entrar  na  célula  por  estarem  mais concentrados  no  meio  EC  (Figura 9.2 A).  Como  vimos  no Capítulo 8, Difusão,  Permeabilidade  e  Osmose,  agirá  então nos íons Na uma força difusional que  impulsiona  a  entrada  de  Na+.  Essa  força,  como  vimos,  é  numericamente  igual  ao potencial de equilíbrio do Na+ (ENa). Como o canal para Na+ impede a passagem de Cl–, para cada íon Na que penetra no citoplasma, um íon Cl permanece, despareado,  no  meio  EC.  Como  os  íons  Cl–  não  conseguem  fluir  pelo  canal  acompanhando  o  Na+,  a  entrada  de  íons Na, desacompanhados  de  íons  Cl,  gera,  no  citoplasma,  um  pequeno  excesso  de  cargas  positivas.  Ao  mesmo  tempo,  o meio  EC  adquire  um  excesso  de  cargas  negativas,  porém  esse  fato  não  é  relevante  para  a  presente  discussão.  À  medida que mais íons Na vão entrando, o citoplasma vai se tornando cada vez mais positivo, como mostra a Figura 9.2 C. A  consequência  do  aumento  da  positividade  do  citoplasma  é  o  aparecimento  de  uma  força  elétrica  orientada  do citoplasma  para  o  meio  EC,  que  freia  progressivamente  a  entrada  de  Na+.  Até  quando  os  íons  Na  continuarão  a  entrar? Quando  a  força  elétrica  repulsiva,  orientada  para  fora  da  célula,  iguala­se  à  força  difusional  para  dentro,  o  fluxo  de Na+ anula­se. Nessa voltagem, o íon Na atinge o equilíbrio no interior do canal.

Figura 9.2 ■ Representação esquemática de células hipotéticas permeáveis somente a Na+  (vermelho) ou a K+  (azul). A e B. A entrada  de  Na+   desacompanhada  de  Cl–  e  a  saída  de  K+   desacompanhada  de  Cl–  geram  separação  de  cargas  entre  o citoplasma e o meio extracelular. C e D. Os íons Na e K atingem o equilíbrio nos respectivos canais, gerando uma voltagem no citoplasma, os potenciais de equilíbrio ENa e EK, respectivamente. E e F. O canal para Na+  em equilíbrio pode ser representado por uma bateria com o polo positivo orientado em direção ao citoplasma e com uma força eletromotriz (FEM) = ENa. O canal para K+  em equilíbrio pode ser representado por uma bateria com o polo positivo orientado em direção ao meio extracelular e com uma FEM = EK.

A voltagem que anula a entrada de Na+ movida pela diferença de concentração (força difusional) e equilibra o íon Na no interior do canal nada mais é do que o potencial de equilíbrio do Na+, dado pela equação de Nernst, e designado por ENa. Neste caso, temos:

A Figura 9.2 C mostra a situação de equilíbrio, na qual a força difusional e a força elétrica se anulam. Nesta condição, o potencial de membrana (VM) é igual a ENa: Na condição de equilíbrio, VM = ENa = +68,0877 mV Como  indica  a  Figura  9.2  C,  as  forças  difusional  e  elétrica  são  iguais  e  opostas.  A  condição  de  equilíbrio  pode manter­se indefinidamente. O resultado desse processo pode ser visto como sendo uma transformação de energia potencial química em energia potencial elétrica. Esse é também o princípio de operação das baterias. Ao ser atingido o potencial de equilíbrio do Na+, a voltagem através da membrana estabiliza­se. O excesso de cargas positivas (ΔQ) (neste caso, um excesso de íons Na) associado ao potencial VM (+68,0877 mV) pode ser calculado usando a equação do capacitor e o valor da capacitância calculado na Aplicação 1. Esse valor corresponde a 1 Na+ despareado para cada 6.680 Na+ pareados com ânions Cl. Esse cálculo é demonstrado na Aplicação 4.

Aplicação 4 Calcule  a  fração  de  carga  despareada  em  uma  célula  com  10  micrômetros  de  diâmetro  e  potencial citoplasmático de +68,0877 mV, contendo NaCl 10 mmol/ℓ. Solução: ΔQ = C × ΔV = (1,11 × 10–12 farads) × (68 × 10–3 volts) = 7,55 × 10–14 coulombs Esse excesso de carga corresponde a um excesso do número de íons Na em relação a íons Cl, dado por: ΔQ/q = (7,55 × 10–14 coulombs)/(1,602 × 10–19 coulombs/íon) = 4,7 × 105 íons Na, em excesso no citoplasma. O número de íons Na+ (ou Cl–), NNa/Cl, inicialmente presentes na célula antes da abertura do canal para Na , era: +

NNa/Cl = [Na+] × (volume da célula) × NAvogadro NNa/Cl = (10 moles/m3) × (5,23 × 10–16 m3) × (6,02 × 1023 íons/mol) = 3,14 × 109 íons Na (ou Cl) Isso significa que a quantidade de íons Na que entrou é apenas (3,14 × 109)/(4,7 × 105) = 6.680, ou seja, 1/6.680 avos da quantidade inicial de Na+ presente na célula. Esse cálculo reforça nossa afirmação anterior de que um mínimo desequilíbrio (neste caso, 1 íon Na desbalanceado, para 6.680 íons Na pareados com ânions  Cl)  entre  o  número  de  cargas  positivas  e  negativas  causa  variações  importantes  do  potencial  de membrana e suficientes, neste exemplo, para interromper a entrada de íons Na no citoplasma. O canal para Na+, na sua condição de equilíbrio, pode ser representado eletricamente por meio de uma bateria com o polo positivo voltado para o citoplasma, como mostra a Figura 9.2 E. A força eletromotriz (FEM) da bateria é igual a ENa. Da mesma forma como fizemos para o íon Na, podemos agora inserir, em outra célula hipotética, de mesmo volume que a anterior, um canal seletivo aos íons K. O meio EC é agora KCl 5 mmol/ℓ, e o citoplasma contém KCl 140 mmol/ ℓ (Figura 9.2 B). O efeito da abertura do canal para K+ é permitir a saída de íons K, mais concentrados no citoplasma que no  EC,  e  movidos  pela  sua  diferença  de  concentração.  Os  íons  Cl,  acompanhantes  do  K+,  não  podem  sair  da  célula  e começam  a  se  acumular  no  citoplasma,  gerando,  nesse  local,  um  excesso  de  cargas  negativas  que  vai  progressivamente aumentando  à  medida  que  mais  íons  K,  despareados,  vão  saindo  do  citoplasma  em  direção  ao  meio  EC.  Analogamente (mas  opostamente)  ao  que  ocorre  com  o  canal  para  Na+,  o  efeito  da  abertura  do  canal  para  K+  é  tornar  o  citoplasma progressivamente mais negativo, até que a força elétrica agente no K+, e que atrai o K+ para dentro da célula, anule a força difusional  que  tende  a  mover  o  K+ para  fora  da  célula.  Ao  ser  atingido  o  estado  de  equilíbrio  do  K+ no  interior  do  seu canal, as forças difusional e elétrica serão iguais e de sentidos opostos. Como mostra a Figura 9.2 D, a força difusional é orientada para fora, e a força elétrica, para dentro da célula. Nesta condição de equilíbrio, o potencial de membrana (VM) iguala­se ao potencial de equilíbrio do potássio (EK):

Assim como no caso do Na+, o canal para K+ pode ser representado eletricamente por uma bateria voltada para fora da célula, com FEM = EK (Figura 9.2 F). Além disso, da mesma forma como foi feito para o canal para Na+, o excesso de cargas negativas, causado pela saída de íons K, pode ser calculado.

Aplicação 5 Uma célula hipotética, esférica, tem diâmetro de 10 micrômetros. A célula contém inicialmente KCl 140 mmol/ ℓ   e  está  em  um  meio  contendo  KCl  5  mmol/ ℓ .  Calcule  quantos  íons  K  devem  sair  da  célula (desacompanhados de Cl) para que o potencial de membrana atinja o valor de –85,97 mV. Compare com a quantidade de íons K inicialmente presentes na célula e determine a proporção entre íons K livres e íons K pareados com Cl–. Solução: ΔQ = CM × ΔV = (1,11 × 10–12 farads) × (0,08597 volts) = 9,54 × 10–14 coulombs Número de íons K que devem sair = ΔQ/q = (9,54 × 10–14 coulombs)/(1,6 × 10–19 coulombs/íon) = 596.250 íons NK = [K+] × (volume celular) × (Navogadro) = (5 moles/m3) × (5,23 × 10–16 m3) × (6,02 × 1023) = 1,57 × 109 íons K A relação é (1,57 × 109)/(596.250) = 2.633 íons Na pareados para cada íon Na despareado.

APROXIMAÇÃO DA CÉLULA REAL As células vivas contêm, nas suas membranas, muitos tipos de canais iônicos, além de transportadores, bombas etc. Para tornar nosso modelo um pouco mais realista, vamos analisar o que acontece quando, na membrana celular, existem canais para Na+ e para K+ simultaneamente. Em uma primeira etapa, vamos colocar as células contendo canais para Na+ e canais para K+ em um mesmo meio, uma mistura de: NaCl = 140 mmol/ℓ + KCl = 5 mmol/ℓ. As concentrações e composições iônicas no citoplasma são idênticas aos  modelos  anteriores.  Cada  célula,  contendo  seu  canal  para  Na+ ou de K+ respectivamente,  está  em  equilíbrio,  no  seu respectivo potencial de equilíbrio: VM(Na) = ENa e VM(K) = EK. A  segunda  etapa  em  direção  ao  modelo  mais  realista  consiste  em  unir  as  duas  células,  ou  fundi­las,  permitindo  uma comunicação livre entre seus citoplasmas. Com a fusão, as duas células passam a compartilhar um mesmo citoplasma e, necessariamente, deverão ter o mesmo potencial elétrico intracelular (Figura 9.3 A). Determinar o valor desse potencial comum é a nossa tarefa a seguir. Imediatamente ao ocorrer a fusão, as duas células (com  canais  para  Na+ e  com  canais  para  K+)  ainda  têm  polaridades  elétricas  opostas  e  composição  química  original.  A célula  do  Na+é  positiva,  enquanto  a  do  K+  é  negativa.  Dessa  forma,  ao  dar­se  a  fusão,  uma  movimentação  intensa  de cargas ocorrerá entre os dois citoplasmas. Os cátions em excesso fluirão da célula do Na+ para a célula do K+, e ânions em excesso  fluirão  da  célula  de  K+  para  a  célula  do  Na+.  Em  um  intervalo  de  tempo  muito  curto  (possivelmente microssegundos), ocorre nova estabilização de voltagem. A voltagem comum de estabilização, ou seja, o novo potencial de membrana (VM) é menos positiva do que a ENa e menos negativa do que EK, tendo, portanto, um valor intermediário entre ENa e EK (+68 > VM > –85), por exemplo, –70, –60, –50 mV, como mostra a Figura 9.3 A. O  balanço  de  forças  em  cada  canal  é  também  profundamente  alterado  com  a  fusão  das  duas  células.  No  canal  de + Na  onde havia equilíbrio entre a força elétrica (Felétrica = DP) e a força difusional (Fdifusional = ENa), a força elétrica agente no Na+ agora é menor que a força difusional (ENa) e, portanto, insuficiente para equilibrar os íons Na no interior do canal. O  resultado  é  que  a  força  difusional,  que  continua  sendo  numericamente  igual  a  ENa,  supera  a  força  elétrica.  Como consequência, os íons Na passam a ter fluxo resultante penetrando no citoplasma, movidos agora por sua força movente (FMNa):

Um processo análogo, porém oposto, ocorre no canal para K+. A força elétrica, agente no K+, agora é menos negativa que EK. O resultado é que a força difusional que age no potássio, orientada para fora da célula, vence a força elétrica que foi diminuída pela fusão das células. O equilíbrio de forças nos íons K é rompido, e o K+ passa a “sentir” uma força movente (FMK), orientada para fora da célula e dada por:

A nova célula, resultante da fusão, contém agora dois tipos de canais na sua membrana: um canal para Na+ e um canal para K+, e um potencial elétrico citoplasmático a ser determinado (ver Figura 9.3 A). A  célula  tem  agora  um  potencial  citoplasmático  estável,  mas,  nos  canais,  os  íons  não  estão  mais  em  equilíbrio.  No canal para Na+ ocorre um fluxo de íons Na para dentro da célula, e no canal para K+, um fluxo de íons K para fora. Esses fluxos  iônicos  veiculam  correntes  elétricas,  respectivamente,  iNa  e  iK.  Como  o  potencial  do  citoplasma  é  estável,  a quantidade de carga no citoplasma é constante, e, consequentemente, a corrente iNa entrando tem, necessariamente, de ser igual e de sentido contrário à corrente iK, saindo da célula: iNa = –iK

Figura 9.3 ■ A. Etapa intermediária entre a fusão das células Na+  e K+ , mostrando o novo esquema de forças difusional e elétrica nos íons Na e K. O potencial de membrana adquire um valor intermediário entre ENa e EK e, em cada canal, a força difusional vence  a  respectiva  força  elétrica.  A  consequência  é  um  desbalanço  de  forças,  com  entrada  de  íons  Na  e  saída  de  íons K.  B  e  C.  Após  adquirido  o  potencial  de  membrana  estável  (VM),  as  forças  difusional  e  elétrica  em  cada  canal  somam­se, originando as forças moventes respectivas.

Essa é uma situação estacionária (que não se altera no tempo), porém não mais de equilíbrio. A entrada de íons Na na célula pode continuar indefinidamente, porque a bomba Na+/K+ ejeta continuamente íons Na para fora. O mesmo raciocínio

vale para a saída de íons potássio, que são continuamente repostos no citoplasma pela bomba Na+/K+. Cada corrente iônica é movida pela sua respectiva força movente e é dada pelas seguintes equações (Figura 9.4 A):

Observe  que,  agora,  usamos  um  mesmo  valor  de  VM no  cálculo  tanto  das  correntes  de  Na+  como  nas  de  K+.  Isso decorre  do  fato  de  que  a  nova  célula  contendo  os  dois  tipos  de  canais  tem  um  único  citoplasma  e,  portanto,  um  único potencial de membrana. Como as correntes iNa e iK são iguais e opostas, podemos igualar os lados direitos das equações anteriores:

Figura 9.4 ■ A. Circuito elétrico equivalente da célula, contendo na membrana canais para Na+  e para K+ . B. Redução do circuito elétrico de A. O circuito reduzido em B equivale ao circuito de A.

Rearranjando os termos, obtemos:

AplicaçÃo 6 Calcule o potencial de membrana de uma célula contendo canais para Na+ e para K+ na sua membrana e banhada em um meio contendo Na+ = 140, K+ = 5 e Cl– = 145 mmol/ℓ. As concentrações intracelulares de Na+, K+ e Cl– são, em milimol/l: Na = 10, K = 140 e Cl = 150. Sabe­se que nessa célula a condutância da membrana ao K+ é 20 vezes maior que a condutância ao Na+. SoluçÃo:

Como as condutâncias aparecem no numerador e no denominador, seus valores reais não influenciam o resultado. Apenas é necessário colocar seus valores relativos; neste exercício, GK/GNa = 20. Nas  células  nervosas,  usadas  comumente  como  exemplo,  efetivamente  a  relação  entre  as  condutâncias  GNa e GK  em repouso é próxima de GK/GNa = 20. Essa grande diferença deve­se não ao fato de a condutância unitária dos canais para K+ ser 20 vezes maior que dos canais para Na+, e sim ao fato de haver um número maior de canais para K+ ativados, na condição de repouso. O potencial de membrana (VM) calculado na equação 9.12 e na Aplicação 6 é um potencial estacionário, ou seja, não varia com o tempo, indicando que não está ocorrendo uma variação temporal da quantidade de cargas livres no citoplasma. É o chamado potencial de repouso da membrana (EM).  Muitos  estudantes  têm  dificuldade  em  entender  a  diferença  entre potencial de repouso (EM) e potencial de membrana (VM). VM  é  o  potencial  elétrico  do  citoplasma,  medido  com  referência  ao  meio  extracelular,  ou  seja,  VM  =  Vcitoplasma  – Vextracelular. VM é o potencial citoplasmático (potencial de membrana) em qualquer condição, esteja a célula em repouso ou durante um potencial de ação, ou durante uma perturbação artificial do potencial de membrana. Por outro lado, EM é um caso  particular  de  VM,  quando  a  célula  encontra­se  em  estado  estacionário  elétrico,  ou  seja,  quando  a  célula  está em repouso elétrico.  No  repouso  elétrico,  o  potencial  intracelular  não  está  variando  no  tempo,  e  a  célula  não  está  sendo perturbada eletricamente. Assim, EM é sempre igual a VM, porém VM nem sempre é igual a EM. Dessa forma, o potencial de  membrana  definido  e  calculado  pela  equação  9.12  é,  na  realidade,  EM,  uma  vez  que  é  válido  apenas  na  condição  de estado  estacionário  (ou  repouso),  quando  a  corrente  de  Na+  entrando  é  igual  e  oposta  à  corrente  de  K+  saindo,  e, consequentemente, o potencial VM não varia no tempo. Por essa razão, costuma­se colocar a equação na seguinte forma:

POTENCIAL DE MEMBRANA O  potencial  de  membrana  é  em  geral  definido  como  sendo  o  potencial  do  citoplasma  tomado  como  referência  ao potencial do EC (VM = Vic – Vec).  Normalmente,  o  potencial  do  EC  é  tomado  como  zero;  dessa  forma,  VM = Vic.  Nem sempre,  no  entanto,  o  potencial  do  EC  é  zero.  No  caso  da  pessoa  andando  sobre  o  tapete,  o  potencial  do  EC  pode  ser milhares  de  volts.  Assim  como  no  caso  de  um  pássaro  pousado  sobre  um  fio  de  alta  tensão.  Desde  que  o  pássaro  não toque  outro  condutor,  ele  não  será  afetado.  Em  alguns  países  existem  proteções  especiais  impedindo  que  um  pássaro, pousado no fio, possa tocar com o bico qualquer outra região condutora.

Aplicação 7 Um pássaro está pousado em um fio de +10.000 volts. Sabendo que suas células nervosas têm uma DP transmembrana  de  90  mV  com  o  citoplasma  negativo  em  relação  ao  EC,  determine  qual  o  potencial citoplasmático absoluto nessas células e nessa condição. Qual o potencial de membrana VM? Solução: O  potencial  citoplasmático  absoluto  é  10.000  –  0,090  =  +9999,91  volts.  O  potencial  de  membrana  é: VM = Vic – Vec = 9.999,91 – 10.000 = –0,09 volts. O  citoplasma,  sendo  um  meio  condutor,  permite  a  livre  acomodação  das  cargas  livres  em  busca  da  configuração  de menor energia. Como as cargas se repelem e não podem atravessar livremente a membrana, elas se localizam nas bordas do citoplasma. Na  superfície  interna  da  célula,  há  uma  camada  de  cargas  negativas  que  atrai  cargas  positivas  do  meio  extracelular. Dessa maneira, junto à face externa da membrana, há uma camada de cargas positivas. Isso ocorre mesmo que o potencial do meio EC seja zero.

CÁLCULO DAS FORÇAS MOVENTES PARA O Na+ E PARA O K+ NO POTENCIAL DE REPOUSO A  obtenção  de  um  valor  numérico  para  o  potencial  de  repouso  da  célula,  no  exemplo  anterior,  nos  permite  calcular também as forças moventes para os íons sódio e potássio, através da membrana. FMNa = (–78,634 – ENa) = [–78,634 – (+68,0878)]= = –146,7218 mV (IN) FMK = (–78,634 – EK) = [–78,634 – (–85,97)] = = +7,336 mV (OUT) Fazendo a razão entre as forças moventes para o sódio e para o potássio, obtemos: FMNa/FMK = (146,7218/7,336) = 20,0002 Isso mostra ser 20 essa razão. Sabemos que, no exemplo analisado, as correntes de Na+ e de K+ têm o mesmo valor numérico. No entanto, como a condutância da membrana ao Na+ é 20 vezes menor que ao K+, a força movente deve ser 20 vezes maior no Na+ do que no K+.

PERTURBAÇÕES DO POTENCIAL DE REPOUSO Tão  importante  como  entender  a  origem  do  potencial  de  repouso  da  célula  é  compreender  de  que  modo  as  células reagem  às  perturbações  do  potencial  de  membrana.  As  células  vivas  estão  constantemente  sujeitas  a  processos  que modificam  suas  características  elétricas.  Bombas  e  transportadores  eletrogênicos  criam  desequilíbrios  de  carga  no citoplasma.  Canais  iônicos  podem  gerar,  e  normalmente  geram,  correntes  despolarizantes  ou  hiperpolarizantes.  Nos receptores  sensoriais,  processos  físicos  oriundos  do  meio  ambiente  são  transformados  em  perturbações  elétricas (potenciais  geradores)  que  dão  origem  a  sinais  elétricos  propagados  (potenciais  de  ação)  que  veiculam  e  processam  uma infinidade  de  informações.  Dessa  forma,  os  seres  vivos  podem  interagir  com  o  ambiente  de  modo  a  garantir  sua sobrevivência e a perpetuação de sua espécie. Em muitos tecidos, as células encontram­se quase sempre em estado de repouso elétrico, ou seja, seus potenciais de membrana  flutuam  pouco  em  torno  de  um  valor  médio.  Exemplos  são  as  células  epiteliais  da  pele.  Contudo,  em  outros tecidos,  a  rotina  da  célula  é  uma  constante  modificação  do  potencial  de  membrana.  Nas  células  do  nodo  sinoatrial  do coração, o potencial de membrana oscila ritmicamente, determinando a frequência de contração do coração. Cada vez mais estão  sendo  reconhecidos,  como  excitáveis,  tecidos  supostos  anteriormente  como  não  excitáveis.  Existe  atualmente  um consenso  de  que  praticamente  todos  os  tipos  de  células  possuem  certo  grau  de  excitabilidade.  Assim,  as  células  beta  do pâncreas atualmente são consideradas excitáveis, demonstrando claramente potenciais de ação relacionados à secreção de insulina. De modo geral, uma célula é dita excitável quando responde de modo adequado e consistente a perturbações de seu  potencial  de  membrana.  Além  disso,  a  resposta  de  uma  célula  excitável,  a  determinadas  perturbações,  ativa  uma determinada função.

Apesar de todas as células terem maior ou menor grau de excitabilidade, as células musculares e as células nervosas fazem da excitabilidade a sua “rotina”, ou seja, são os protótipos das células excitáveis. Dessa  forma,  tão  importante  quanto  compreender  a  origem  do  potencial  de  repouso  é  entender  como  as  células respondem às perturbações de seu potencial de membrana, sejam elas naturais ou fisiológicas, ou perturbações artificiais usadas na investigação científica, usando ferramentas da eletrofisiologia. Para  entender  como  uma  célula  reage  a  estímulos  elétricos,  é  muito  útil  representar  a  membrana  por  meio  de  um circuito elétrico convencional. Dessa forma, a maioria dos estímulos e respostas podem ser descritos usando o formalismo da  eletricidade  clássica.  Quando  a  célula  é  representada  por  um  circuito  elétrico,  diz­se  que  esse  é  o  circuito  elétrico equivalente da célula. Na Figura 9.4 A está o circuito elétrico equivalente da célula contendo os canais para Na+ e K+. Como existe um fluxo de cargas entrando pelos canais para Na+ e saindo pelos canais para K+, é fundamental colocar resistências elétricas (RNa e RK) em série com as forças eletromotrizes (FEM) de cada canal. Usando o circuito elétrico equivalente da Figura 9.4 A, podemos calcular o potencial de membrana por um processo independente daquele usado no modelo biológico. No modelo biológico  usamos  o  conceito  de  forças  moventes.  Aqui,  no  entanto,  não  podemos  lançar  mão  dos  conceitos  usados  no modelo  biológico  e  temos  de  nos  ater  ao  circuito  elétrico  convencional.  Ou  seja,  não  se  podem  “misturar”  os  dois modelos. A corrente circulante, no sentido anti­horário, é:

Essa corrente pode ser estimada a partir dos valores calculados para ENa e EK e da relação entre as resistências RNa e RK.  Como  vimos,  nesse  cálculo  interessa  apenas  a  relação  entre  as  resistências  (ou  entre  as  condutâncias).  Assim, podemos fazer RNa= 20 e RK =1, mantendo a relação 20:1.

Vamos  então  verificar  que  a  corrente  circulante  vale  7,336  unidades  arbitrárias  de  corrente  (u.a.c.).  O  potencial  na parte inferior de cada ramo do circuito corresponde a VM e é igual, em cada canal, à soma da voltagem da bateria (ENa ou EK) com a queda ôhmica em cada resistência (RNa × i ou RK × i). VM = ENa + RNa × 7,336 = 68,0877 – (20 × 7,336) = –78,632

Na Figura 9.4 B  temos  o  que  se  denomina  uma redução do  circuito  elétrico  da  Figura  9.4  A.  Isso  significa  que  o circuito  da  Figura  9.4  B  tem  as  mesmas  propriedades  que  o  circuito  da  Figura  9.4  A.  A  vantagem  é  que  o  circuito reduzido é mais simples. No  circuito  elétrico  equivalente  reduzido,  representado  na  Figura  9.4,  a  FEM  da  bateria  é  numericamente  igual  ao potencial  de  repouso  EM.  A  resistência  elétrica  (RM)  engloba  todas  as  vias  condutivas  da  membrana.  Na  célula­modelo contendo apenas canais para Na+ e para K+, a resistência RM é a soma em paralelo de RNa e RK. Por sua vez, a capacitância elétrica  da  membrana  (CM)  no  circuito  equivalente  é  a  própria  capacitância  elétrica  da  membrana.  Dessa  forma,  os componentes do circuito equivalente reduzido (Figura 9.4 B) podem ser resumidos como: Bateria: FEM = EM com polo positivo voltado para fora Resistência: RM = soma em paralelo de RNa e RK = (RNaRK)/(RNa + RK) A resistência RM é considerada como sendo a resistência interna ou intrínseca da bateria EM Capacitância: CM = εεo(área da membrana)/(espessura da membrana) Como está indicado na Figura 9.4 B, na célula em repouso elétrico, a bateria EM e sua resistência em série (RM) estão em  circuito  aberto.  Ou  seja,  não  há  corrente  fluindo  pelo  ramo  EM–RM. A DP através do ramo EM–RM é igual a EM,  ou seja,  o  próprio  potencial  de  repouso.  O  capacitor,  em  paralelo  com  o  ramo  EM–RM,  está  carregado  com  uma  voltagem

igual a EM sendo o polo interno negativo. O sistema, como mostrado na Figura 9.4 B, pode permanecer indefinidamente nesse estado. É na representação da Figura 9.4 B que temos condições de descrever as respostas da membrana aos diferentes tipos de perturbações elétricas. Em  condições  fisiológicas,  embora  existam  muitas  formas  diferentes  de  perturbação  elétrica  da  célula,  todas  elas convergem, essencialmente, para a produção de uma corrente transmembrana e/ou uma despolarização da membrana. Por exemplo,  na  abertura  de  canais  sinápticos  excitatórios,  ativados  por  um  mediador  químico,  o  evento  final  é  a despolarização da membrana por entrada de cátions no citoplasma, o que será mais discutido no item sobre variações no potencial de membrana em células excitáveis. Portanto,  é  importante  compreender  de  que  maneira  a  aplicação  de  uma  corrente  elétrica  perturba  a  célula. Primeiramente, no entanto, é necessário entender como pode ser aplicada uma corrente elétrica na célula e qual o tipo de corrente  que  pode,  efetivamente,  perturbar  uma  célula.  Essencialmente,  uma  corrente  aplicada  através  da  membrana  vai injetar ou retirar cargas positivas no citoplasma, produzindo, respectivamente, uma despolarização ou hiperpolarização da membrana celular. O  esquema  usual  para  representar  uma  perturbação  por  corrente  é  mostrado  na  Figura  9.5  A.  Uma  micropipeta, conectada  a  uma  fonte  de  corrente,  é  inserida  no  citoplasma  da  célula,  impalando  a  célula.  O  equivalente  fisiológico  da micropipeta injetando carga é um canal iônico aberto na membrana, permitindo a entrada de cátions no citoplasma. Aplicando  uma  corrente  que  injeta  cargas  positivas  no  citoplasma,  ocorrerá  uma  diminuição  da  negatividade intracelular,  produzindo  uma  “desnegativação”  ou,  mais  corretamente,  uma despolarização da  membrana.  A  membrana, que estava inicialmente polarizada com uma voltagem igual a EM, passa a ter agora uma voltagem menos negativa que EM. No circuito elétrico equivalente, esse processo corresponde a unir os dois polos da perna EM–RM com a fonte de corrente, como indica a Figura 9.5 B.

Figura 9.5 ■ Injeção  de  corrente  através  de  uma  micropipeta,  despolarizando  a  membrana.  A.  Modelo  biológico.  B.  Circuito elétrico equivalente da célula/membrana. Após atingido o estado estacionário, o novo potencial de membrana será dado por: VM = EM – RM × Iinj.

Existem  duas  maneiras  usuais  de  entender  por  que  a  injeção  de  cargas  positivas  no  citoplasma  despolariza  a membrana. Uma delas usa o modelo biológico, e a outra, o modelo elétrico. No modelo biológico, no qual desenhamos a célula, a membrana e a pipeta injetora de cargas, o potencial de repouso depende, em última análise, do excesso de cargas negativas no citoplasma. Não existem aqui baterias, resistências elétricas ou capacitores. Um  fato  que  deve  ser  lembrado  é  que  todos  os  tipos  de  potencial  elétrico  intracelular  dependem  de  um  excesso  de cargas positivas ou negativas no citoplasma. Portanto, se a célula tem um potencial de membrana negativo no repouso, isso significa que há um excesso de cargas negativas  no  citoplasma.  Ao  injetarmos,  com  a  pipeta,  cargas  positivas  no  citoplasma,  uma  parte  do  excesso  de  cargas negativas  será  anulada  e,  portanto,  o  excesso  de  cargas  negativas  será  menor.  O  resultado  é  uma  diminuição  da negatividade do citoplasma e a despolarização da membrana. No modelo biológico, esse processo é intuitivo. Porém, não nos permite quantificar adequadamente os efeitos da corrente injetada. Quando uma fonte de corrente é ligada, passando a injetar  uma  corrente  constante  no  citoplasma,  observa­se  que  a  célula  não  se  despolariza  instantaneamente,  e  sim  vai, lentamente,  diminuindo  sua  negatividade,  para  finalmente  se  estabilizar  em  outro  valor  de  potencial,  menos  negativo  (p. ex.,  passa  de  –80  mV  para  –60  mV).  A  partir  desse  momento,  enquanto  perdurar  a  corrente  injetada,  o  potencial  de

membrana  mantém­se  constante.  Ao  ser  desligada  a  corrente,  o  potencial  de  membrana  não  volta  instantaneamente  ao valor original, mas volta lentamente seguindo uma curva inversa àquela da despolarização. Outro ponto importante é o destino da corrente injetada pela pipeta. Uma parte das cargas positivas injetadas na célula permanece  no  citoplasma,  enquanto  outra  parte  vaza  para  fora  da  célula,  através  das  vias  disponíveis  na  membrana.  No entanto, por que uma parte das cargas vaza para fora? Qual a fração das cargas injetadas que se acumula na célula e qual fração vaza para fora? Vamos  usar  o  modelo  elétrico  (Figura  9.5  B),  paralelamente  ao  modelo  biológico,  (ver  Figura  9.5  A),  para  tentar entender o que acontece na vigência de uma injeção de cargas no citoplasma da célula. O excesso de cargas negativas que existe, inicialmente, na célula em repouso está localizado no citoplasma e, portanto, no capacitor. Ao ser ligada a fonte de corrente, uma parte da corrente injetada no citoplasma (ou no circuito) anulará uma fração do excesso de cargas negativas acumuladas anteriormente no citoplasma (ou no capacitor), diminuindo a sua negatividade. Porém, outra parte das cargas injetadas  não  permanece  no  citoplasma  (ou  no  capacitor)  e  vaza  pelas  vias  de  vazamento  disponíveis  na  membrana  (ou vaza através do ramo EM – RM do circuito). À medida que passa o tempo, o citoplasma (ou capacitor) vai ficando menos negativo, a diferença entre VM e EM vai aumentando, e, devido a esse fato, o ritmo de vazamento de cargas para fora da célula vai aumentando também. Com isso, a fração da corrente que se acumula no citoplasma (ou no capacitor) diminui, e a  fração  que  vaza  pelos  canais  da  membrana  (pelo  ramo  EM – RM),  consequentemente,  aumenta.  Quando  a  corrente  de vazamento iguala­se à corrente injetada, a quantidade de carga entrando na célula (ou no circuito), a cada segundo, iguala­ se à quantidade saindo por vazamento. Não há mais acumulação de carga no citoplasma (ou no capacitor), e sua voltagem permanece  constante  (não  há  mais  variação  de  VM).  A  partir  desse  momento,  enquanto  a  fonte  estiver  injetando  uma corrente constante, VM se manterá constante, indefinidamente (Figura 9.6).

Figura 9.6 ■ A imposição de uma corrente em degrau (a corrente ou é zero ou passa, instantaneamente, a um valor constante diferente de zero) através de uma micropipeta, injetando cargas positivas no citoplasma a um ritmo constante (A), resulta em uma resposta de voltagem (B)  do  tipo  exponencial.  A  interrupção  da  corrente  também  resulta  em  uma  resposta  exponencial, aproximadamente inversa.

A porção da corrente injetada que se acumula no citoplasma (ou no capacitor) recebe o nome de corrente capacitiva, enquanto a parte da corrente injetada que vaza pela membrana (ou pelo ramo EM – RM) é a corrente resistiva. No início da injeção de cargas, a corrente resistiva é nula (não há diferença entre VM e EM), e a corrente capacitiva é máxima. No estado estacionário, quando VM atinge seu valor constante, a corrente capacitiva é nula, e a corrente resistiva é máxima. O modelo elétrico, no entanto, permite­nos avançar ainda um pouco mais. Se a corrente injetada for I, a despolarização final da membrana, quando toda a corrente I estiver vazando para fora da célula, será ΔV = I × RM, e o novo potencial de

membrana, nesse estado estacionário, será VM = (EM – ΔV) = (EM – RMI). A corrente capacitiva (iC) entre o início e o fim do processo não é constante e é dada, a cada instante, pelo ritmo de variação do excesso de carga no citoplasma:

Ou seja, enquanto VM estiver variando, haverá corrente capacitiva. A corrente resistiva (iR) também varia ao longo do processo de despolarização e é dada por iR = (VM – EM)/RM. Então, sempre que o potencial de membrana VM for diferente de EM, existirá corrente resistiva.

Aplicação 8 Deseja­se manter o potencial de membrana de uma célula no valor de –95 mV. O potencial de repouso é  –60  mV,  e  a  resistência  global  da  membrana  é  15  megaohm.  Qual  deverá  ser  a  corrente  injetada  no citoplasma e qual o seu sentido? Solução: ΔV = I × RM, em que I = ΔV/RM = (0,035 V)/(15 × 109 ohms) = 2,33 × 10–9 amperes = 2,33 nanoamperes, com cargas positivas saindo do citoplasma para o extracelular.

MODELO HIDRÁULICO DO SISTEMA CÉLULA/MEMBRANA Para  facilitar  a  compreensão  dos  fenômenos  descritos  anteriormente,  um  modelo  hidráulico  do  sistema célula/membrana  é  bastante  eficiente.  Na  Figura  9.7  está  representado  o  modelo  hidráulico  de  uma  célula  com  sua membrana. O  modelo  hidráulico  consiste  em  dois  reservatórios  cilíndricos,  conectados  por  um  tubo.  O  reservatório  EM tem seu nível fixado automaticamente no valor de EM. O nível de água em EM é numericamente igual ao potencial de repouso da célula  e  não  varia.  No  reservatório  VM,  o  nível  de  água  é  sempre  igual  ao  potencial  de  membrana  VM e  pode  variar  de acordo  com  as  perturbações  ou  outros  fatores.  As  perturbações  são  sempre  feitas  no  reservatório  VM.  No  modelo hidráulico  podemos  ter  dois  tipos  de  perturbações:  injeções  de  água  e  retiradas  (ou  aspirações)  de  água.  Os  dois reservatórios  são  unidos  por  um  tubo  (RM)  cuja  resistência  hidráulica  é  RM.  Como  dito  anteriormente,  o  nível  EM  é mantido fixo, automaticamente, em um valor abaixo do nível zero. É importante notar que a nomenclatura vale tanto para a identificação do reservatório como  para  o  valor  numérico  do  parâmetro  representado.  O nome do  reservatório  está  em negrito. As correspondências são as seguintes:

Figura 9.7 ■ Modelo hidráulico do sistema membrana/citoplasma. A. Modelo hidráulico da célula sem perturbações, em que o potencial de membrana (VM) é igual ao potencial de repouso (EM). B. Modelo hidráulico da célula perturbada por uma injeção de corrente constante.

■ VM = valor numérico do nível de água no reservatório VM ■ EM = valor numérico do nível de água no reservatório EM ■ RM = valor numérico da resistência hidráulica do tubo RM. As analogias com a célula/membrana são as seguintes: ■ Nível de água EM (fixo) no reservatório EM corresponde ao potencial de repouso da membrana EM (fixo) ■ Nível de água VM (variável) no reservatório VM corresponde ao potencial de membrana VM (variável) ■ Resistência hidráulica (RM) do tubo de ligação corresponde à resistência elétrica (RM) da membrana ■ Quantidade  de  água  (Q)  em  excesso  (ou  déficit)  no  reservatório VM,  acima  (ou  abaixo)  do  nível  EM,  corresponde  à quantidade de carga positiva (ou negativa) em excesso no citoplasma ■ Área da base (A) do reservatório VM corresponde à capacitância elétrica da membrana (CM) ■ Fluxo de água (I) lançado sobre VM corresponde à corrente elétrica (I) injetada no citoplasma por uma micropipeta ou por um canal iônico ■ Fluxo  de  água  (iR)  através  do  tubo  de  ligação  entre  VM  e  EM  corresponde  à  corrente  de  vazamento  através  da membrana ou corrente resistiva (iR) ■ Ritmo de acúmulo de água em VM(A[dVM/dt]) corresponde ao ritmo de acúmulo de carga no citoplasma ou corrente capacitiva, iC = CM(dVM/dt) ■ Elevação do nível de água em VM corresponde à despolarização da membrana (o nível aproxima­se do nível zero) ■ Descida do nível de água em VM corresponde à hiperpolarização da membrana (o nível afasta­se do nível zero).

No modelo hidráulico da Figura 9.7, é fácil perceber que, sempre que o sistema é deixado em repouso (isso equivale ao  repouso  elétrico  da  célula),  o  nível  VM  é  igual  ao  nível  EM.  Quem  se  encarrega  de  igualar  os  níveis,  no  estado  de repouso, é o tubo de ligação (RM) entre os dois reservatórios. Vamos  agora  descrever  o  que  acontece  quando  um  fluxo  de  água  constante,  designado  por  I,  é  lançado  sobre  o reservatório VM. (Esse fluxo de água corresponde à corrente elétrica I.) Vamos impor a condição de que o fluxo I pode ter apenas dois valores: ou é zero ou passa, instantaneamente, para um valor constante igual a I. Ao ser iniciado o fluxo de água sobre o reservatório VM, ocorrerá uma elevação do nível da água (VM), aproximando o nível ao valor zero e, portanto, tornando o nível menos negativo. A elevação do nível de água em VM corresponde a uma despolarização  da  membrana.  Tão  logo  o  nível  VM  suba  acima  do  valor  EM,  ocorrerá  um  desnível  de  água  entre  os reservatórios VM e EM e, como consequência, ocorrerá um fluxo de água de VM para EM através do tubo de ligação RM. Na célula, isso equivale a haver uma diferença entre o potencial de membrana (VM) e o potencial de repouso (EM). Essa diferença não é fácil de visualizar no modelo biológico ou no circuito elétrico equivalente da célula. No modelo hidráulico, no entanto, ela é evidente. O fluxo de água (iR) através do tubo de ligação (RM), que corresponde à corrente de vazamento na célula, decorre da diferença  de  pressão  causada  pelo  desnível  entre  VM  e  EM  e  é  diretamente  proporcional  a  esse  desnível  de  água  e inversamente proporcional à resistência hidráulica do tubo de ligação:

Percebe­se claramente na equação 9.17 que, quando VM = EM, o fluxo iR é igual a zero. Mantendo­se  constante  o  fluxo  de  água  sobre  o  reservatório  VM,  o  nível  continua  a  subir,  porém  cada  vez  mais lentamente (ver também Figura 9.6). Por que a velocidade de elevação do nível cai com o tempo? À medida que o nível VM sobe, aumenta o desnível (VM – EM) entre os dois reservatórios, e o ritmo de vazamento (fluxo iR) aumenta. Como o fluxo  I  da  torneira  é  constante,  à  medida  que  o  vazamento  aumenta,  sobra  menos  água  para  encher  o  reservatório  VM. Assim, cada vez mais água vaza de VM para EM, e cada vez menos água sobra para encher VM. A taxa de subida do nível em VM é igual a dVM/dt a cada instante. A variação da quantidade de água (Q) acumulada no reservatório VM é dQ/dt = A(dVM/dt). A correspondência entre o que ocorre no modelo hidráulico e na célula é:

Como vimos, o fluxo da torneira é mantido constante e igual a I. Pelo princípio da conservação (da água ou das cargas elétricas), o ritmo de variação da quantidade de água em VM ou do excesso de carga elétrica no citoplasma é sempre igual a um fluxo que entra (corrente ou fluxo de água) menos um fluxo que sai:

Na equação 9.19, o ritmo de subida da água em VM é dVM/dt. Contudo, à medida que VM sobe, a diferença (VM – EM) aumenta e, portanto, subtrai mais valor de I, que tem valor fixo. O resultado é uma diminuição progressiva de (dVM/dt). As equações anteriores são equações diferenciais, cuja solução é equivalente tanto para o modelo hidráulico como para a membrana celular:

O produto RMA é a constante de tempo do sistema hidráulico, e o produto RMCM é a constante de tempo da membrana celular.

Aplicação 9 Explique o significado da constante de tempo: qual o valor de ΔVM quando t = RMCM? Solução: Quando t = RMCM, o termo dentro da exponencial é –1. O valor de “e” é 2,718. Sabe­se que e–1 = 1/e = 1/(2.718) = 0,37. Por outro lado, 1 – 0,37 = 0,63. Assim, quando t = RMCM, ΔVM = I × RM × 0,63, ou 63% da corrente máxima final.

Aplicação 10 Em uma célula hipotética com diâmetro de 10 micrômetros, capacitância = 1,11 × 10–12 F e RM = 10 gigaohms,  abre­se  na  membrana  um  canal  iônico  veiculando  ao  citoplasma  uma  corrente  de  5 picoamperes. O canal permanece aberto. O potencial de repouso da célula é –70 mV. Qual deverá ser o potencial de membrana após 5 e após 15 milissegundos? Solução: A constante de tempo dessa célula é: RMCM = (10 × 109)(1,11 × 10–12) = 11,1 ms. Colocando os valores numéricos na equação 9.20, temos: ΔVM = (5 × 10–12 amperes)(10 × 109 ohms)(1 – e–K), em que K = t/RC. Calculando o valor de K em t = 5 e 15 ms:

Calculando o valor dentro do colchete da equação 9.20:

Examinando  a  equação  9.20,  vemos  que,  em  t  =  0,  ΔVM =  0,  e  em  t  =  infinito,  ΔVM =  I  ×  RM.  Entre  t  =  0  e  t  = infinito,  podemos  descrever,  rigorosamente,  a  evolução  de  VM  no  tempo  usando  a  equação  9.20.  Porém,  mesmo qualitativamente,  ou  seja,  sem  muito  rigor,  podemos  ter  uma  ideia  razoavelmente  boa  do  tipo  de  curva  que  descreve  a evolução de VM. Observando a equação 9.19, podemos afirmar que o maior valor de dVM/dt é quando VM = EM, ou seja, no instante t = zero. Nesse caso, dVM/dt = I/A. A partir do instante zero, dVM/dt vai diminuindo gradativamente, pois o seu  valor  é  a  subtração  de  I  por  um  termo  que  aumenta  com  VM,  ou  seja,  (VM  –  EM)/RM.  Em  t  =  infinito,  o  termo exponencial vai para zero, e o fluxo de vazamento iguala­se ao fluxo constante (I) injetado no reservatório VM. Ou seja, o sistema  entra  em  estado  estacionário,  e  o  nível  VM mantém­se  constante  no  tempo,  enquanto  o  fluxo  de  água  I  para  o reservatório VM for mantido constante. Portanto, a curva entre os pontos t = 0 e t = infinito tem uma máxima inclinação em t = 0 e uma inclinação zero em t = infinito. A curva de evolução de VM em função do tempo tem, na realidade, a forma de uma função exponencial. Esse  tipo  de  comportamento  exponencial  da  voltagem  citoplasmática,  em  resposta  a  uma  corrente  de  início  súbito,  é muito importante para a interação elétrica entre células nervosas. Vemos facilmente, no modelo hidráulico, que, quando o fluxo de água é interrompido bruscamente, após a estabilização do sistema, o nível VM não cai instantaneamente ao valor do  repouso,  e  sim  de  forma  lenta,  seguindo  também  uma  curva  exponencial,  que  é  uma  imagem  “especular”  vertical  da curva  anterior.  Essa  “lentidão”  da  resposta  decorre  do  fato  de  que  leva  certo  tempo  para  o  reservatório VM se  esvaziar, após interrompida a entrada de água. Esse comportamento permite a uma célula nervosa guardar uma memória elementar do estímulo, durante poucos milissegundos. Essa é base da somação temporal dos potenciais sinápticos.

PERTURBAÇÕES DO POTENCIAL DE MEMBRANA PRODUZIDAS PELA ABERTURA DE CANAIS IÔNICOS Como  mencionado  anteriormente,  a  injeção  de  cargas  elétricas  no  citoplasma  (positivas  ou  negativas)  ocorre,  em condições  fisiológicas,  através  da  abertura  de  canais  iônicos  na  membrana.  Existem,  essencialmente,  as  seguintes possibilidades: ■ Condição  1:  canal  catiônico  com  força  movente  do  cátion  para  dentro.  Resultado  é  entrada  de  cargas  (+)  e despolarização da membrana. Exemplo: canais para Na+ dependentes de voltagem, do neurônio ■ Condição  2:  canal  catiônico  com  força  movente  para  o  cátion  orientada  para  fora.  Resultado:  saída  de  cargas  (+)  e hiperpolarização da membrana. Exemplo: canais para K+, dependentes de voltagem, do neurônio ■ Condição  3:  canal  aniônico  com  força  movente  do  ânion  para  dentro.  Resultado:  entrada  de  cargas  (–)  e hiperpolarização da membrana. Exemplo: canal para Cl– em desequilíbrio eletroquímico através da membrana ■ Condição  4:  canal  de  ânion  com  força  movente  para  fora.  Resultado:  saída  de  cargas  (–)  e  despolarização  da membrana. Exemplo: canal para Cl– em desequilíbrio eletroquímico através da membrana.

Aplicação 11 Em uma célula temos Kic = 145 e Kec = 5 milimols/ ℓ . A célula está, inicialmente, em repouso elétrico com um potencial de membrana espontâneo igual a –90 mV. A abertura de canais para K+ na membrana produzirá  uma  corrente  de  K  orientada  para  dentro  ou  para  fora  da  célula?  Irá  despolarizar  ou hiperpolarizar a membrana? Solução: EK = –86 mV. A força elétrica é para dentro e igual a 90 mV. A força difusional é para fora e igual a 86 mV. A força elétrica vence a força difusional, e o K+ vai entrar na célula, despolarizando a membrana.

Aplicação 12 Em uma célula temos Clic = 10 e Clec = 120 milimols/ℓ. A célula está, inicialmente, em repouso elétrico com um potencial de membrana espontâneo igual a –90 mV. A abertura de canais para Cl– na membrana produzirá  uma  corrente  de  Cl–  orientada  para  dentro  ou  para  fora  da  célula?  Irá  despolarizar  ou hiperpolarizar a membrana? Solução:

ECl = –64 mV. Força elétrica para fora = 90 mV. Força difusional para dentro = 64 mV. A força para fora vence a força para dentro, e o Cl– sai da célula, despolarizando a membrana. No  entanto,  em  alguns  casos,  particularmente  com  o  ânion  Cl,  a  abertura  de  canais  para  Cl–  não  gera  fluxo  de Cl–  porque  o  Cl–  encontra­se  em  equilíbrio  através  da  membrana  (ver  Figura  9.15,  mais  adiante).  Esse  caso  é  muito interessante. Ocorre, aqui, uma diminuição de RM, por efeito da abertura dos canais para Cl–. Se, ao mesmo tempo, são abertos canais para Na+ despolarizantes, o efeito despolarizante será menor, porque uma fração grande das cargas positivas que iriam despolarizar o citoplasma vaza para fora da célula, através dos canais para Cl–. Esse efeito diminui a eficiência da  despolarização  e,  portanto,  do  processo  excitatório,  corresponde  a  uma inibição da excitação e denomina­se efeito  de shunt da inibição. Para  termos  uma  ideia  de  como  a  abertura  de  canais  iônicos  pode  afetar  o  potencial  de  membrana,  vamos  resolver  a Aplicação 13.

Aplicação 13 Suponha que na membrana de uma dada célula abre­se, durante 10 milissegundos, um canal para Na+ com  condutância  de  1  pS,  sendo  que  Naec  =  140  e  Naic  =  10  milimols/l,  respectivamente.  A  célula  está inicialmente em um potencial de repouso de –70 mV, e sua capacitância é 1,11 × 10–12 farads. Qual será a variação de VM? Solução: A força movente nos íons Na é: FMNa = VM – ENa = –70 – (+68,0877) = –138,0877 mV A corrente unitária de Na+ (iNa) é: iNa = gNa (VM – ENa) = (1 × 10–12) mho × 0,1381 volts = 1,381 × 10–13 amperes = 0,1381 picoamperes Se esse canal permanecer aberto por 10 milissegundos, a carga que vai entrar no citoplasma é: ΔQ = (0,1381 × 10–12 coulombs/segundo) × (0,01 segundo) = 1,381 × 10–15 coulombs A variação do potencial de membrana será: ΔV = ΔQ/CM = (1,381 × 10–15 coulombs)/(1,11 × 10–12 farads) = 1,244 mV O  que  se  depreende  da  Aplicação  13  é  que  a  abertura  de  um  único  canal  iônico  durante  um  tempo  muito  pequeno influencia muito pouco VM. No entanto, tipicamente, em condições fisiológicas, ocorrem centenas ou mesmo milhares de aberturas  de  canais,  intercaladamente  no  tempo.  O  efeito  coletivo  pode  ser  uma  despolarização  suficientemente  intensa para causar um potencial de ação. Além da questão da pequena corrente veiculada por um único canal, existe ainda o fato do vazamento de cargas, que ocorre simultaneamente ao processo de despolarização. Como vimos, uma parte das cargas injetadas no citoplasma, pela abertura do canal, começa imediatamente a vazar para fora. Quanto menor for RM, maior será o vazamento e mais tempo a corrente  excitatória  levará  para  despolarizar  a  membrana  em  certa  extensão.  Os  mecanismos  biológicos  para  que  essas variações no VM ocorram serão discutidos a seguir, no item sobre excitabilidade e potencial de ação.

DESPOLARIZAÇÃO MACIÇA DA MEMBRANA | POTENCIAL DE AÇÃO Como  vimos  no  item  anterior,  a  abertura  de  canais  despolarizantes  pode  alterar  o  potencial  de  membrana  em  alguns milivolts. No entanto, em certas condições, ocorre abertura de um número muito grande de canais na membrana celular. Isso ocorre particularmente nas células excitáveis. O neurônio é um exemplo de célula excitável na qual canais para Na+ e para K+, do tipo dependente de voltagem, desempenham papel fundamental no fenômeno da excitabilidade. Os canais para Na+ e para K+, dependentes de voltagem, são estudados no Capítulo 6, Fisiologia do Músculo Esquelético. Aqui usaremos esses canais apenas como uma aplicação da equação 9.12. Como  veremos  na  segunda  parte  deste  capítulo,  no  potencial  de  ação  (PA)  ocorre  a  ativação  maciça  de  canais  para Na+ dependentes de voltagem, seguida pela ativação de canais para K+ também dependentes de voltagem. Durante a fase do pico  do  PA,  o  potencial  de  membrana  permanece  constante  durante  um  período  muito  pequeno,  mas  suficiente  para

aplicarmos a equação 9.12, que é válida apenas quando o potencial de membrana não varia no tempo. No pico do potencial de  ação,  as  correntes  de  Na+entrando e de K+ saindo  são  iguais  e  opostas,  e  dVM/dt  =  0,  o  que  nos  permite  empregar  a equação 9.12 para calcular o valor do potencial de membrana. Apenas para ilustrar, vamos supor que nessa fase de pico GNa = 20 GK, que é uma relação real para algumas células excitáveis. Colocando na equação os valores numéricos nessa condição, temos:

Percebemos  que,  no  pico  do  PA  dessa  célula  hipotética,  o  potencial  de  membrana  não  somente  se  despolariza completamente,  mas  ainda  inverte  de  valor.  Na  realidade,  esse  valor  não  chega  a  ser  alcançado,  porque  entram  em  jogo vários mecanismos de recuperação da voltagem ou de repolarização da membrana. Esses mecanismos serão estudados na segunda parte deste capítulo.

PAPEL DAS BOMBAS DE SÓDIO­POTÁSSIO NA GÊNESE DO POTENCIAL DE MEMBRANA A  partir  de  toda  a  discussão  anterior,  fica  claro  que  o  valor  da  diferença  de  potencial  elétrico  através  de  membranas biológicas é função da existência de vias passivas de permeabilidade seletiva a íons, proporcionadas por canais iônicos, e da força movente atuante sobre esses íons. A força movente, por sua vez, é um balanço entre a energia elétrica (derivada do  próprio  VM)  e  a  energia  química  (derivada  da  diferença  de  concentração  do  íon  através  da  membrana  ou,  de  forma equivalente, de seu potencial de equilíbrio). Ainda, se o potencial de membrana permanece constante (i. e., no potencial de repouso EM), a quantidade de cargas negativas em excesso sobre as positivas também é constante, a despeito de poderem fluir pelos canais iônicos. Ou seja, a corrente iônica total através da membrana é zero. Isso,  porém,  não  quer  dizer  que  as  correntes  de  cada  íon  pelos  canais  sejam  também  zero,  mas  que  todas,  somadas, anulam­se.  Dado  que  cada  íon  tem  uma  força  movente  atuando  sobre  si  se  não  estiver  em  equilíbrio  eletroquímico,  a corrente  desses  íons  individuais  não  será  zero.  O  problema  é  que,  mesmo  que  sejam  relativamente  pequenas,  se  essas correntes  por  canais  forem  mantidas  sem  serem  contrabalanceadas,  eventualmente  levarão,  em  uma  janela  de  tempo  de vários minutos (um tempo que é extremamente grande na escala de vida de uma célula), a uma alteração das concentrações intracelulares desses íons. Com isso, o potencial de equilíbrio e, portanto, o EM, se alteraria (ver equação 9.12). O que impede que isso ocorra é o trabalho conjunto das bombas de sódio e potássio, que ativamente bombeiam sódio para  fora  da  célula  e  potássio  para  dentro.  Assim,  as  bombas  têm  uma  importância  indireta  fundamental  para  a manutenção do potencial de repouso, pois mantêm constantes os potenciais de equilíbrio para o sódio e o potássio através da membrana, enquanto esses íons passivamente vazam por canais. Considerando a estequiometria de trabalho dessas bombas, que transportam três íons sódio do meio intracelular para o extracelular  e  dois  íons  potássio  a  cada  ATP  consumido,  vê­se  que  elas  mesmas,  por  si  sós,  geram  uma  separação  de cargas através da membrana. A cada ciclo de trabalho, o saldo é de uma carga positiva sendo bombeada do meio IC para o EC.  Ou  seja,  além  de  contribuírem  indiretamente  para  o  EM,  pois  mantêm  constantes  os  potenciais  de  equilíbrio  para  o sódio e o potássio, as bombas também contribuem diretamente para a negatividade do meio IC. No entanto, para a maior parte das células, essa contribuição direta das bombas para o EM é mínima (algo entre 5 e 15 mV), ressaltando mais uma vez a importância primordial dos canais para o estabelecimento do EM. Há, no entanto, células em que a proporção entre bombas  e  canais  é  alta,  nas  quais  a  corrente  hiperpolarizante  gerada  pelas  bombas  pode  responder  por  quase  metade  do valor do EM, como é o caso da musculatura lisa vascular.

GÊNESE DA DIFERENÇA DE POTENCIAL ELÉTRICO (DP) TRANSEPITELIAL Os  epitélios  transportadores  fornecem  excelentes  exemplos  do  jogo  de  correntes  e  potenciais  elétricos  em  um  tecido vivo.  A  estrutura  fundamental  de  um  epitélio  transportador  está  esquematizada  na  Figura  9.8.  Aqui  temos  um  epitélio bastante  simplificado,  no  qual  são  omitidos  diversos  aspectos  estruturais  e  funcionais.  Essencialmente,  esse  epitélio­ modelo  é  constituído  por  uma  única  camada  de  células,  unidas  entre  si  por  junções  do  tipo tight junctions.  Vamos  usar

como exemplo o epitélio tubular renal, dada sua simplicidade geométrica e sua importância na fisiologia de mamíferos. O segmento  discutido  pode  ser  uma  região  genérica  do  túbulo.  A  discussão  pode  ser  estendida  a  outros  epitélios transportadores. A  célula  de  um  epitélio  transportador  típico  é  assimétrica,  histologicamente  e  funcionalmente.  A  membrana  apical, voltada  para  o  lúmen  tubular,  é  sede  de  sistemas  de  transporte  bastante  diversos  dos  transportadores  presentes  na membrana basolateral (MBL), voltada para o interstício. Na membrana apical de nosso exemplo, vamos supor a existência de canais seletivos ao Na+ e/ou transportadores eletrogênicos de Na+ (p. ex., SGLT). Ou seja, a membrana apical é capaz de gerar uma voltagem dependente da diferença de concentração de Na+. Na MBL, por sua vez, existem canais seletivos ao K+,  além  de  uma  bomba  de  Na+/K+ que  vamos  supor  ser  eletroneutra  e,  portanto,  não  geradora  de  voltagem.  O  líquido tubular contém NaCl 140 mmol/ℓ e outras substâncias não relevantes para a nossa análise. O interstício contém o íon K a uma concentração de 5 mmol/ℓ e  também  NaCl  a  uma  concentração  idêntica  à  do  líquido  tubular.  Graças  ao  trabalho  da bomba, as concentrações intracelulares de Na+ e K+ são mantidas em 10 e 140 mmol/ℓ, respectivamente.

Figura  9.8  ■   A.  Esquema  simplificado  de  um  epitélio  transportador.  Na  membrana  apical,  canais  para  Na  e  transportador Na/glicose. Na membrana basolateral, canais para K e bomba Na/K. B. Circuito elétrico equivalente do epitélio. Na membrana apical, ENa é o potencial de equilíbrio do Na. Na membrana basolateral, EK é o potencial de equilíbrio do K+ . C. Perfil de potencial elétrico através do epitélio. Os números são as variações de voltagem através de cada rampa, medidas em milivolts. TJ,  tight junction.

Vamos considerar, inicialmente, que as tight junctions têm uma resistência elétrica infinita. Nesse caso, o epitélio pode ser representado eletricamente por um circuito como o da Figura 9.8. Na membrana apical, temos uma bateria com força eletromotriz  (FEM)  igual  ao  potencial  de  equilíbrio  do  Na+,  ou  FEMapical  =  ENa,  com  o  polo  positivo  voltado  para  o citoplasma. Na MBL temos uma bateria cuja FEM é igual ao potencial de equilíbrio do K+, ou FEMbasolateral = EK, com o polo  positivo  voltado  para  o  interstício.  De  acordo  com  a  equação  de  Nernst,  as  forças  eletromotrizes  nas  membranas apical e basolateral e os respectivos potenciais de equilíbrio do Na+ e K+ são dados por: FEMapical = ENa = RT/zF ln(140/10) = 68,0876 mV FEMbasolateral = EK = RT/zF ln (140/5) = 85,971 mV As baterias se somam em série, e a DP transepitelial (DPtrans) será igual a: DPtrans = ENa + EK = 68,0876 + 85,971 = 154,0586 mV Esse exemplo, embora interessante, é raramente observado na prática, uma vez que a via paracelular tem sempre certo grau de vazamento. Na Figura 9.8 observa­se que o citoplasma é positivo em relação ao lúmen tubular e negativo em relação ao interstício. Essa  situação  é  aparentemente  paradoxal,  sendo  comum  a  seguinte  pergunta:  afinal,  qual  é  o  potencial  elétrico  do citoplasma? +68,09 ou –85,97 mV? O interstício é normalmente ligado eletricamente à Terra no arranjo experimental, e, portanto, o potencial do interstício é considerado como zero. Portanto, considera­se o potencial do citoplasma como sendo –85,97  mV.  Essa  situação,  no  entanto,  não  é  encontrada  nos  epitélios  transportadores  de  mamíferos,  como  o  epitélio tubular  renal,  ou  o  epitélio  intestinal,  mas  pode  ser  encontrada  nos  epitélios  da  pele  de  certos  anfíbios,  em  condições experimentais  restritas.  No  epitélio  tubular  renal  e  no  intestino  de  mamíferos,  as  tight  junctions  (TJ)  têm  resistências elétricas  relativamente  pequenas.  No  túbulo  proximal,  por  exemplo,  a  resistência  elétrica  das  TJ  é  muito  pequena,  e,  à medida que o túbulo se distaliza, ocorre um aumento gradual da resistência elétrica das TJ, culminando no ducto coletor papilar.  De  qualquer  modo,  porém,  ocorre  sempre  um  vazamento  substancial  de  corrente  elétrica  através  das  TJ,  o  que diminui consideravelmente a DP transtubular, como veremos em seguida. Na  Figura  9.9  está  representado  o  mesmo  epitélio  tubular  padrão  da  Figura  9.8.  Entretanto,  nesse  caso,  as  TJ permitem certo grau de vazamento. Assim, a soma das FEM das duas baterias, ENa e EK, gera uma corrente que circula em sentido anti­horário. A corrente atravessa o epitélio, entrando na célula pela membrana apical e saindo da célula pela MBL.  Na  membrana  apical  a  corrente  é  carreada  pelos  íons  Na,  e  na  MBL  a  corrente  é  carreada  pelos  íons  K.  Na  TJ  a corrente  é  carreada  por  todos  os  íons  presentes  no  meio,  uma  vez  que  essa  estrutura  não  possui  seletividade  iônica normalmente. As TJ constituem, portanto, uma via de curto­circuito (ou de shunt) da corrente que flui por dentro da célula através de suas membranas apical e basolateral. A presença de uma corrente circulante requer a inclusão, no circuito, de resistências elétricas. Para  podermos  descrever  quantitativamente  as  correntes  e  voltagens  nesse  epitélio­modelo,  não  há  necessidade  de usarmos valores de resistências semelhantes aos reais. Vamos atribuir apenas valores relativos às resistências, o que não afetará os cálculos finais das diferenças de potencial: RNa = 10, RK = 1 e Rshunt = 2

Figura 9.9 ■ A. Esquema simplificado de um epitélio transportador. Na membrana apical, os canais para Na+  e o transportador Na/glicose  foram  incluídos  em  um  único  sistema  gerador  de  voltagem.  Na  membrana  basolateral,  canais  para  K+   e  bomba Na/K. B. Circuito elétrico equivalente do epitélio. Na membrana apical, ENa e RNa são respectivamente o potencial de equilíbrio e a resistência elétrica ao Na+ . Na membrana basolateral, EK e RK são o potencial de equilíbrio do K+  e a resistência da membrana ao  K+ .  Rshunt  é  a  resistência  elétrica  da  via  de  shunt.  C.  Perfil  de  potencial  elétrico  através  do  epitélio.  Os  números  são  as variações de voltagem através de cada rampa, medidas em milivolts.

A corrente circulante (i) será dada por:

A  DP  transtubular  pode  ser  facilmente  calculada  como  sendo  o  produto  da  corrente  circulante  pela  resistência  da  via de shunt:

Como  a  corrente  atravessa  a  TJ  no  sentido  do  interstício  para  o  lúmen  tubular,  ela  polariza  a  TJ  de  tal  modo  que  o lúmen tubular fique negativo em relação ao interstício. No  entanto,  é  bastante  instrutivo  calcular  a  DP  transtubular  examinando  as  variações  de  voltagem  através  da  via transcelular. Para tal, examinemos o perfil de voltagem do epitélio no quadro C da Figura 9.9. Partindo do potencial zero no interstício, e caminhando em direção ao lúmen tubular, vamos encontrar uma queda de voltagem na bateria EK, igual a 85,971  mV.  A  passagem  da  corrente  através  da  resistência  RK gera  uma  subida  de  voltagem  igual  a  (RK ×  i)  =  11,8506 mV.  Então  se  chega  ao  citoplasma  com  uma  voltagem  igual  a  Vcito. =  –85,971  +  11,8506  =  –74,1204  mV.  A  passagem através da bateria ENa, na membrana apical, decai a voltagem em 68,087 mV. Porém, no nível da resistência RNa, ocorre uma elevação de voltagem dada por (RNa × i) = 118,506 mV. Assim, a passagem pela membrana apical corresponde a uma variação total de voltagem igual a: ENa – (RNa × i) = –68,087 + 118,506 = +50,419 mV

Aplicação 14 Parte  1:  Usando  os  valores  do  epitélio  fornecidos  anteriormente  e  trocando  a  Rshunt  de  2  para  0,5, calcule o valor da DP transtubular. Considere os valores: RNa = 10, RK = 1 e Rshunt = 0,5. Solução: i = (68,087 + 85,971)/(10 + 1 + 0,5) = 13,396 ΔPtrans = R × i = 0,5 × 13,396 = 6,698 mV, lúmen tubular negativo Parte  2:  Admitindo  que  a  condutância  da  membrana  apical  ao  Na+  dobrou  de  valor,  calcule  a DPtranstubular,  considerando  os  seguintes  valores  relativos  das  resistências  e  a  DP  através  das  membranas apical e basolateral: RNa = 5, RK = 1 e Rshunt = 0,5. Solução:

Parte  3  (teste  sem  solução): No  mesmo  epitélio  das  partes  anteriores,  bloqueando  com  amilorida  a condutância  da  membrana  apical  ao  sódio,  leva­se  RNa  para  20.  Os  valores  das  resistências  são  agora: RNa = 20, RK = 1 e Rshunt = 0,5. Qual a DP transtubular e qual a DP apical? Qual foi o efeito de bloquear parcialmente os canais para Na+ apicais? Dessa  forma,  ao  passar  do  citoplasma  para  o  lúmen  tubular,  a  voltagem  no  citoplasma  (–74,1204  mV)  soma­se  à elevação  de  voltagem  na  membrana  apical  (+50,419  mV),  chegando­se  ao  túbulo  com  uma  voltagem  Vtub =  –74,1204  + 50,419 = –23,701 mV. Observa­se que essa DP é exatamente igual àquela através da TJ. A sequência total de variações de voltagem entre o interstício e o túbulo pode ser resumida da seguinte maneira: Vinterstício – EK + (RK × i) – ENa + (RNa × i) = Vtúbulo 0 – 85,971 + (1 × 11,8506) – 68,087 + (10 × 11,8506) = –23,701

0 – 85,971 + 11,8506 – 68,087 + 118,506 = –23,701

TÉCNICA DE VOLTAGE­CLAMP A eletrofisiologia avançou consideravelmente após a introdução da técnica de voltage­clamp, principalmente por Cole, na  década  de  1930.  Essa  técnica  permite  manter  fixo  o  potencial  de  membrana  e  medir  as  correntes  associadas  à movimentação  de  íons  através  da  membrana.  O  melhor  arranjo  experimental  para  compreender  essa  técnica  consiste no voltage­clamp de  quatro  eletrodos,  de  ajuste  manual,  esquematizado  na Figura 9.10.  Um  par  de  eletrodos  serve  para medir  o  potencial  de  membrana,  e  um  segundo  par  de  eletrodos  serve  para  injetar  uma  corrente  elétrica  no  citoplasma. Nesse  experimento,  o  experimentador  ajusta  o  valor  da  corrente  injetada  de  modo  a  manter  o  potencial  de  membrana  no valor desejado, denominado Vclamp. Vamos supor que o potencial de repouso da célula seja EM e o experimentador deseje fixar o potencial de membrana (VM) em um valor (Vclamp) diferente de EM. Como vimos anteriormente, sabe­se que: VM = EM – (RM × i) Assim,

Nesse  caso,  a  corrente  iclamp  (i  na  figura)  corresponde  à  corrente  injetada  pelo  pesquisador,  por  meio  de  uma micropipeta conectada a uma fonte de corrente. Como mostra a Equação 9.23, ajustando o valor de iclamp, o pesquisador consegue manter o potencial de membrana no valor Vclamp desejado. Um valor de Vclamp comumente usado é o valor zero. Vamos  supor  que,  em  uma  determinada  célula,  EM =  –70  mV  e  a  resistência  da  membrana  seja  RM  =  2  megaohm.  A corrente necessária para fixar o potencial de membrana no valor zero pode ser determinada por: 0 = EM – RM × i0 Portanto, i0 = EM/RM = 0,070/(2 × 106) = 3,5 × 10–8 amperes Raciocinando de modo inverso, a medida da corrente no potencial zero serve para determinar a resistência elétrica da membrana.

Figura 9.10 ■ Arranjo experimental para fixação de voltagem (voltage­clamp) em uma célula hipotética. Explicação no texto.

No  entanto,  ao  ser  iniciada  a  injeção  de  corrente,  a  voltagem  não  vai  instantaneamente  ao  seu  valor  final,  mas  segue um decurso exponencial como visto anteriormente neste capítulo. Podemos dizer que, no início da aplicação da corrente, uma parte das cargas é usada para levar o potencial de membrana de EM para Vclamp. Após atingido Vclamp, toda a corrente injetada na célula vaza para fora, mantendo constante a despolarização da membrana. No  voltage­clamp  manual,  embora  útil  do  ponto  de  vista  didático,  o  ajuste  de  voltagem  é  limitado  pelo  tempo  de resposta  do  experimentador  e  pela  baixa  rapidez  dos  instrumentos.  Portanto,  essa  técnica  manual  não  serve  para  estudar fenômenos rápidos, como o potencial de ação no nervo, que se processam na escala temporal de milissegundos. Nesses casos é preciso usar o voltage­clamp automático, uma técnica poderosa que permitiu desvendar os fenômenos elétricos  subjacentes  ao  potencial  de  ação  na  década  de  1950.  Dessa  forma,  como  veremos  a  seguir,  o  voltage­ clamp automático permite medir correntes iônicas, com resolução temporal de microssegundos. O  voltage­clamp  automático  contém  um  sensor  de  voltagem  acoplado  eletronicamente  a  um  dispositivo  que  gera corrente.  O  sensor  de  voltagem  é  muito  sensível  e  rápido  e  compara,  continuamente,  a  voltagem  da  membrana  com  a voltagem  de  clampeamento  (Vclamp)  desejada  pelo  pesquisador.  Se  o  sensor  de  voltagem  detecta  uma  diferença  entre  o potencial de membrana (VM) e Vclamp, ele “comanda” rapidamente (em microssegundos) o “gerador de corrente” a injetar cargas elétricas no citoplasma, de modo a anular a diferença entre VM e Vclamp. Na realidade, tanto o sensor de voltagem quando  o  sistema  de  geração  de  corrente  fazem  parte  de  um  conjunto  de  dispositivos  eletrônicos denominados amplificadores operacionais, acoplados em um circuito eletrônico com diferentes graus de complexidade. O  uso  dessa  técnica,  utilizada  por  Hodgkin  e  Huxley  na  década  de  1950,  permitiu  um  avanço  considerável  no entendimento do fenômeno do potencial de ação no nervo, permitindo identificar as correntes de Na+ e de K+ associadas a esse fenômeno.

CORRENTE DE CURTO­CIRCUITO A  corrente  de  curto­circuito  (CCC)  é  um  dos  parâmetros  elétricos  obtidos  pela  técnica  de voltage­clamp,  na  qual  a voltagem  da  membrana  é  fixada  no  valor  zero.  Para  compreender  o  uso  dessa  estratégia,  é  conveniente  descrevê­la  no contexto de um caso prático.

Na Figura 9.11, uma membrana seletiva ao íon Na é interposta entre duas soluções, 1 e 2, contendo NaCl. A solução 1 contém NaCl 100 mmol/ℓ, e a solução 2, NaCl 10 mmol/ℓ. A membrana tem uma área de 4 cm2. A câmara especial, que contém  a  membrana  e  as  soluções,  permite  a  medida  simultânea  da  DP  e  da  corrente  transmembrana,  que  é  fornecida  e pode  ser  modificada,  por  um  gerador  de  corrente.  Essa  configuração  é  um voltage­clamp de  quatro  eletrodos.  Quando  a corrente transmembrana é nula, a DP espontânea é dada pelo potencial de Nernst para o Na+: DP = (RT/zF) ln(100/10) = 0,0258 × 2,302 = 0,0594 V = 59,4 mV Nessa  situação,  ou  seja,  no  potencial  de  equilíbrio  do  Na+,  a  corrente  através  da  membrana  é  igual  a  zero.  Não  há, portanto,  fluxo  de  Na+.  Isso  significa  que  as  duas  forças  agentes  nos  íons  Na,  a  força  elétrica  e  a  força  difusional,  são iguais e opostas. Injetando cargas positivas no lado 1 por meio do gerador de corrente, a DP através da membrana cai, e os íons Na se desequilibram no interior da membrana, passando a mover­se no sentido 1 para 2. À medida que se aumenta a corrente, o lado 1 vai ficando progressivamente menos negativo, e os íons Na vão “liberando­se” gradualmente da força elétrica  freadora,  aumentando  progressivamente  seu  fluxo  no  sentido  1  para  2. A  melhor  forma  de  descrever  o  efeito  da aplicação da corrente sobre o movimento do Na+ é por meio da chamada curva corrente versus voltagem (curva I vs. V).

Figura  9.11  ■   Arranjo  experimental  para  estudo  da  relação  corrente  versus  voltagem  em  uma  membrana  cátion­seletiva. Explicação no texto. CCC, corrente de curto­circuito.

Continuando  a  aumentar  a  corrente  no  sentido  1  para  2,  mais  cargas  negativas  em  excesso  no  lado  1  vão  sendo neutralizadas, e a DP vai caindo progressivamente até atingir o valor zero. Na DP zero, a corrente transmembrana e, portanto, o fluxo de Na+ são movidos exclusivamente pela força difusional agente nos íons Na. Essa é a corrente de curto­circuito (CCC). Sabemos que, de modo geral, a corrente de Na+  através dessa membrana íon­seletiva é dada por: iNa = GNa(VM – ENa) Em que GNa é a condutância da membrana ao Na+. Como VM = 0, podemos escrever que:

Como essa é a corrente de curto­circuito, escrevemos:

Portanto,  a  medida  da  CCC  nessa  preparação  permite  medir  a  corrente  carreada  pelo  fluxo  do  íon  Na  através  da membrana. O poder dessa técnica pode ser constatado ao transformar a corrente medida em fluxo de Na+: JNa = PNa(C1 – C2) Finalmente, a permeabilidade da membrana ao íon Na pode ser determinada lembrando que: PNa = JNa /(C1 – C2) A inclinação ou coeficiente angular da curva I versus V (ΔI/ΔV) mede a condutância da membrana ao Na+. Por  que  a  curva  tem  uma  inclinação  diferente  nas  diferentes  voltagens?  Isso  se  deve  ao  fato  de  que,  na  preparação mostrada na Figura 9.11, a condutância da membrana ao Na+ depende da voltagem. É a chamada retificação de Goldmann. A retificação de Goldmann resulta do fato de que a concentração dos íons Na no interior da membrana modifica­se com a voltagem aplicada e com o sentido da passagem da corrente. Quando a corrente vai de 1 para 2, a membrana é preenchida por uma população de íons Na em maior concentração, vindos do lado 1. Quando a corrente vai de 2 para 1, a membrana é preenchida  por  íons  Na  em  menor  concentração,  vindos  do  lado  2.  Por  outro  lado,  a  condutância  da  membrana  ao  sódio depende  da  concentração  de  Na+ no  interior  da  membrana.  Essa  concentração  não  é  a  mesma  em  todas  as  camadas  da membrana  e,  portanto,  é  a  concentração  média  de  Na+ que  constitui  o  parâmetro  relevante  para  a  condutância.  Assim,  a membrana conduz “melhor” quando a corrente passa de 1 para 2 do que quando a corrente passa do lado 2 para o lado 1.

Aplicação 15 Uma membrana seletiva ao íon Na, com área de 4 cm2, separa duas soluções de NaCl. Lado 1: NaCl 100 mmol/ℓ. Lado 2: NaCl 10 mmol/ℓ. Calcule o potencial de equilíbrio do Na+. Sabe­se que, no experimento em questão, mediu­se na DP zero uma corrente de 5,94 × 10–8 amperes = 59,4 nanoamperes, ou 14,85 nanoamperes/cm2. Calcule a condutância da membrana ao íon Na. Solução: ENa = RT/zF ln(Na1/Na2) = 0,0258 ln (10) = 0,0594 V CCC = GNa(VM – ENa) Como VM = 0, CCC = GNa × ENa GNa = CCC/(VM – ENa) = (14,85×10–9)/(0,0594) = 2,5 × 10–7 mho/cm2 Calcule o fluxo de Na+ na condição de curto­circuito. Solução: JNa = iNa/F = (1.485 × 10–8 coulombs × seg–1 cm–2)/(96.460 coulombs/mol) = 1,54 × 10–13 mol/(seg cm2) Um fluxo tão pequeno como esse não pode ser determinado por meios químicos. Calcule a permeabilidade da membrana ao íon Na lembrando que:

JNa = PNa(C1 – C2) Solução: PNa = JNa/(C1 – C2) = (1,54 × 10–13 mol × seg × cm–2)/(90 × 10–6 mol × cm–3) = 1,71 × 10–9 cm seg–1.

▸ Corrente de curto­circuito e transporte transepitelial de sódio A técnica de voltage­clamp tornou­se,  a  partir  da  década  de  1950,  uma  poderosa  ferramenta  eletrofisiológica  para  o estudo  do  transporte  iônico  transepitelial.  Os  trabalhos  pivotais  de  Koefoed­Johnsen  e  Ussing  pavimentaram  o  caminho para  um  grande  número  de  estudos.  Uma  das  mais  importantes  vertentes  desses  estudos  foi  correlacionar  o  transporte transepitelial  de  Na+  com  a  CCC  transepitelial.  Montados  nas  famosas  “câmaras  de  Ussing”,  epitélios  transportadores como a pele e a bexiga urinária de anfíbios e o intestino de mamíferos foram extensamente estudados utilizando a técnica de voltage­clamp em curto­circuito. Um  dos  achados  importantes  da  técnica  de  curto­circuito  foi  a  descoberta  de  que  vários  tipos  de  epitélios transportadores eram capazes de gerar uma corrente elétrica na ausência de uma DP transepitelial e de qualquer diferença de concentração iônica. Evidentemente, tal corrente somente poderia ser explicada pela existência de um transporte ativo. Logo no início desses estudos, essa corrente foi identificada (na maioria dos casos) com o fluxo transepitelial de Na+ e a origem do transporte ativo de Na+foi correlacionada à atividade da bomba de Na+/K+ localizada na membrana basolateral. Para  entender  a  ideia  geral  em  que  se  baseia  essa  técnica,  consideremos  o  epitélio  modelo  esquematizado  na  Figura 9.12.  Na  condição  de  curto­circuito,  a  DP  transepitelial  é  zero  e  não  há  corrente  circulante  nas  TJ.  Portanto,  toda  a corrente  que  passa  através  do  epitélio  flui  pela  via  transcelular,  entrando  pelo  lado  apical  e  saindo  pelo  lado  basolateral. Essa  corrente,  por  sua  vez,  é  idêntica  (e  de  sentido  oposto)  à  corrente  gerada  pelo  aparelho  de voltage­clamp.  Ou  seja, o voltage­clamp  gera  continuamente  uma  corrente,  que  retira  as  cargas  positivas  que  vão  chegando  ao  lado  intersticial (nesse  caso,  íons  Na+),  impedindo,  assim,  o  acúmulo  de  cargas  positivas  no  lado  intersticial.  Dessa  forma,  a  DP transepitelial  mantém­se  nula.  A  corrente  gerada  pelo  aparelho  é,  portanto,  idêntica  numericamente  àquela  gerada  pelo epitélio.  Na  membrana  apical,  a  corrente,  indo  do  lado  apical  para  o  citoplasma,  é  transportada  pelo  movimento  de  Na+, que  penetra  na  célula  através  de  canais  ou  de  transportadores.  Na  MBL,  a  corrente  é  mediada  pelo  fluxo  de Na+ transportado do citoplasma para o interstício, através da bomba de Na+/K+. O potássio, por sua vez, é transportado do interstício  para  o  citoplasma,  acoplado  ao  Na+,  na  bomba  de  Na+/K+.  Porém,  ao  mesmo  tempo,  o  potássio  sai  da  célula para o interstício, através de canais na MBL. Dessa forma, o potássio gera apenas um ciclo de corrente elétrica na MBL e não contribui para a corrente transepitelial.

Figura 9.12 ■ Origem da corrente de curto­circuito em um epitélio transportador mantido em curto­circuito elétrico. Os símbolos são idênticos aos das Figuras 9.10 e 9.11. Explicação no texto. TJ, tight junction.

Portanto,  nos  epitélios  transportadores  que  obedecem  a  esse  padrão,  é  possível  demonstrar  que  a  corrente  de  curto­ circuito deve­se, essencialmente, ao transporte transepitelial de Na+:

Dimensionalmente, temos: Coulomb s–1 cm–2 = (mol s–1 cm–2) × (coulomb mol–1) Assim, a técnica de curto­circuito é uma poderosa ferramenta para medir o fluxo transepitelial de Na+. Por meio dessa técnica, pode­se estudar, por exemplo, o efeito de bloqueadores de canais para Na+ sobre o transporte epitelial, o efeito da presença  de  glicose  no  lúmen,  os  bloqueadores  do  SGLT,  os  bloqueadores  da  fosforilação  oxidativa,  a  ausência  (ou requisito) de O2 e outras manobras.

Aplicação 16

Em um epitélio isolado, com área de 10 cm2, obtém­se uma corrente de curto­circuito (CCC) igual a 20 microamperes. Sabendo que, nessa preparação, essa corrente é totalmente gerada pelo fluxo ativo de Na+, calcule o fluxo de Na+ através do epitélio. Solução: CCC = JNa × F, e JNa = CCC/F Unidades: CCC = coulomb × seg–1 × cm–2, e F = coulomb × mol–1 JNa = (coulomb × seg–1 × cm–2)/(coulomb × mol–1) = mol × seg–1 × cm–2 Portanto, JNa = CCC/F = (20 × 10–6/10)/96.485 = 2,073 × 10–11 mol × seg–1 × cm–2

Excitabilidade Celular e Potencial de Ação Fernando Abdulkader Uma  característica  distintiva  da  vida  celular  é  o  fato  de  que,  por  mais  primitivo  que  seja  o  ser  vivo,  as  células  são dotadas  de  mecanismos  para  sensoriar  o  ambiente  em  que  se  encontram.  Esses  mecanismos  levam  a  alterações  no funcionamento  das  células  que  podem  lhes  permitir  ajustar­se  às  novas  condições.  Como  discutido  no  Capítulo 3,  Sinalização  Celular,  a  maior  parte  dos  mecanismos  de  sensoriamento  extracelular  envolve  proteínas  da  membrana plasmática, por ser a membrana a interface entre os meios intra e extracelular. Uma  das  formas  mais  ancestrais  de  sensoriamento  extracelular  e  consequente  modulação  intracelular  é  a  variação  da diferença  de  potencial  de  membrana  frente  a  estímulos  externos.  A  capacidade  de  uma  célula  alterar  seu  potencial  de membrana  por  um  dado  estímulo  é  denominada  excitabilidade  celular,  e,  portanto,  as  células  que  respondem  a  um estímulo  na  forma  de  variações  reguladas  do  seu  potencial  de  membrana  são  ditas  excitáveis  eletricamente  ou, simplesmente, excitáveis. Algumas  células  excitáveis  (no  caso  dos  seres  humanos,  neurônios,  fibras  musculares  e  certas  células  endócrinas) evoluíram  no  sentido  de  codificar  essas  variações  do  potencial  de  membrana  com  um  evento  elétrico  de  membrana característico e, geralmente, muito rápido (duração de poucos milissegundos), denominado potencial de ação.1 No caso de células  grandes,  ramificadas  e  extensas,  como  fibras  (células)musculares  e  neurônios,  a  geração  de  potenciais  de  ação permite  que  esse  sinal  elétrico  seja  regenerado  ao  longo  de  seu  comprimento,  sendo  a  base  da  transmissão  rápida  de informação ao longo de grandes distâncias no nosso organismo. As  bases  biofísicas  da  excitabilidade  celular,  do  potencial  de  ação  e  de  sua  propagação  ao  longo  de  uma  célula  de formato complexo serão os assuntos tratados neste capítulo.

VARIAÇÕES DO POTENCIAL DE MEMBRANA Antes  de  entendermos  como  podem  ocorrer  variações  do  potencial  de  membrana,  é  preciso  definir  alguns  termos relacionados.  Considerando  que  nas  células  a  diferença  de  potencial  estacionária  através  da  membrana,  o chamado  potencial  de  repouso  (ver  “Gênese  do  Potencial  de  Membrana”),  tem  valores  negativos  no  citoplasma  em referência  ao  extracelular,  há  uma polarização elétrica  da  membrana  em  que  a  face  intracelular  é  negativa  em  relação  à extracelular. A partir do valor do potencial de repouso, portanto, se o valor da diferença de potencial de membrana torna­se menos negativo, dizemos que houve uma despolarização. Analogamente, se o potencial de membrana torna­se mais negativo do que  o  potencial  de  repouso,  isso  corresponde  a  uma hiperpolarização.  Aqui  é  importante  tomar  cuidado  com  o  uso  de expressões como “o potencial de membrana aumentou” ou “diminuiu”, pois podem levar a falta de clareza sobre o conceito que se quer expressar. Isso porque dizer que “houve um aumento no potencial de membrana” pode ser interpretado tanto como  o  potencial  ter  passado  de  um  valor  mais  negativo  para  um  menos  negativo  (p.  ex.,  de  –60  para  –55  mV),  quanto haver  aumentado  a  intensidade  da  diferença  de  potencial  (o  que  corresponderia  ao  potencial  ficar  mais  intensamente negativo,  por  exemplo,  de  –60  para  –70  mV).  Os  biofísicos  entendem  um  aumento  no  potencial  de  membrana  como  a segunda  interpretação,  ou  seja,  uma  hiperpolarização.  De  qualquer  forma,  o  uso  dos  termos  “despolarização”  e “hiperpolarização”, ou “mais negativo” e “menos negativo”, dirime qualquer possibilidade de mal­entendido.

Outro  termo  importante  para  descrevermos  as  possíveis  variações  no  potencial  de  membrana  é  a repolarização, que nada mais é do que o retorno do potencial de membrana ao valor de repouso EM, seja após uma despolarização – caso em que o potencial vai ficando mais negativo até igualar­se ao valor de repouso –, seja após uma hiperpolarização – quando a repolarização  corresponde  ao  potencial  de  membrana  ficar  menos  negativo,  retornando  ao  potencial  de  repouso  (Figura 9.13). É  possível  também  que  uma  despolarização  seja  tão  intensa  que  a  diferença  de  potencial  inverta  sua  polaridade,  ou seja, o citoplasma fique positivo em relação ao extracelular. Nos casos em que isso ocorre, rigorosamente, não devemos falar  de  uma  despolarização,  pois  a  polaridade  elétrica  foi  invertida.  Assim,  pode­se  denominar  essas  variações  do potencial de membrana a valores positivos, acima do valor de 0 mV, simplesmente de inversão de polaridade ou, usando o termo consagrado em inglês, overshoot (em tradução semântica livre, algo como “passar do ponto”).

▸ Como os diferentes íons variam o potencial de membrana Tendo  entendido  o  jargão  da  excitabilidade,  precisamos  entender  como  essas  variações  na  diferença  de  potencial elétrico podem ser causadas. Para tanto, é preciso lembrar do que foi discutido na primeira parte deste capítulo, de que o potencial de membrana é um balanço dos potenciais de equilíbrio dos íons ponderados pelas condutâncias da membrana a cada um dos íons (ver equação 9.12). Recordando  que  a  condutância  a  um  dado  íon  é  reflexo  do  número  de  vias  condutivas  abertas  na  membrana (principalmente canais) em um dado instante para aquele íon, se o estímulo extracelular causar, por exemplo, a abertura de canais para sódio, o peso do potencial de equilíbrio para o sódio sobre o valor do potencial de membrana aumentará em relação aos dos outros íons (Figura 9.14 A). Como o potencial de equilíbrio para o sódio, graças à atividade da bomba de Na+/K+,  é  positivo  no  citosol  em  relação  ao  extracelular  e  o  potencial  de  repouso  das  células  é  negativo  (graças  à  maior condutância  de  repouso  ao  potássio),  a  abertura  desses  canais  para  sódio  causará  uma  despolarização.  Despolarizações também podem ser induzidas pela abertura de canais para cálcio (Figura 9.14 B), já que esse íon tem a maior diferença de potencial eletroquímico através da membrana plasmática das células (o potencial de equilíbrio para o cálcio é da ordem de +120 mV, positivo no citoplasma).

Figura 9.13 ■ Uso dos termos “despolarização”, “hiperpolarização”, “repolarização” e “inversão de polaridade” (overshoot) tendo um potencial de ação como exemplo.

Por outro lado, se o estímulo causar abertura de canais para potássio, considerando que o seu potencial de equilíbrio é mais  negativo  do  que  o  potencial  de  repouso,  aumentará  o  efluxo  de  íons  potássio  do  meio  intra  para  o  extracelular, havendo,  portanto,  uma  hiperpolarização  (Figura 9.14 C  superior).  No  entanto,  há  também  canais  para  potássio  que,  na presença de seu estímulo específico, em lugar de se abrirem, fecham­se. Dessa forma, o efluxo de potássio (e, portanto, de cargas positivas) do citoplasma para o meio extracelular diminui, despolarizando a célula (Figura 9.14 C inferior). Os canais para cloreto regulados por estímulos constituem um caso especial de modulação do potencial de membrana. Isso porque o potencial de equilíbrio para o cloreto tem valores distintos entre os diferentes tipos celulares, podendo ser

mais negativo, menos negativo, ou igual ao potencial de repouso da célula (Figura 9.15). Em  grande  parte  dos  fenótipos  celulares,  o  íon  cloreto  não  é  alvo  de  transporte  ativo  secundário,  o  que  faz  com  que sua  concentração  intracelular  seja  determinada  pela  diferença  de  potencial  de  membrana  que  é  definida  pela  condutância (ou  permeabilidade)  da  membrana  aos  íons  mantidos,  por  transporte  ativo,  fora  do  equilíbrio  eletroquímico.  Ou  seja,  o cloreto está em equilíbrio nessas células, obedecendo, em sua distribuição através da membrana plasmática, ao potencial de repouso, determinado principalmente pelo potássio e pelo sódio, através de suas diferenças de potencial eletroquímico   e a condutância relativa da membrana a eles. Esse  exemplo  em  que  o  cloreto  está  em  equilíbrio  no  potencial  de  repouso  pode  parecer  desimportante  para  a ocorrência  de  fenômenos  elétricos  nas  células,  já  que  seu  potencial  de  equilíbrio  não  difere  do  potencial  de  repouso. Entretanto, quanto maior for a condutância da membrana de uma célula ao cloreto, menos excitável será a célula – isto é, mais difícil será um estímulo despolarizá­la ou hiperpolarizá­la. Por  que  isso  ocorre?  Temos  de  considerar  que  nesses  casos  o  cloreto  está  em  equilíbrio  (i. e.,  sem  fluxo  resultante através da membrana) somente no potencial de repouso. Ou seja, se qualquer excurso no potencial de membrana ocorrer em  relação  ao  repouso  –  seja  uma  despolarização  ou  uma  hiperpolarização  –,  os  íons  cloreto  não  estarão  mais  em equilíbrio  e  fluirão  através  da  membrana  no  sentido  que  restaure  o  seu  equilíbrio  termodinâmico,  que  se  dá,  como  dito anteriormente, somente no potencial de repouso. Dessa forma, o cloreto acaba funcionando como um “tampão elétrico” do potencial  de  membrana,  o  que  faz  com  que,  quanto  maior  for  a  condutância  a  cloreto  de  uma  célula  que  não  expresse transportador  ativo  para  esse  íon,  menos  excitável  seja  a  célula  (mais  difícil  seja  para  um  estímulo  despolarizante  ou hiperpolarizante  alterar  significativamente  o  potencial  de  membrana  da  célula).  Com  efeito,  há  tipos  celulares  em  que  a condutância da membrana em repouso ao cloreto é maior do que a condutância ao potássio. Exemplo disso são as fibras musculares  esqueléticas.  Isso  garante  que  essas  células  não  sejam  excitadas  por  estímulos  indevidos,  mas  estejam  sob controle  estrito  do  sistema  nervoso,  já  que  somente  com  a  ativação  da  sinapse  entre  motoneurônio  e  fibra  muscular  –  a junção  neuromuscular  (discutida  no  Capítulo  15,  Transmissão  Sináptica)  –  alcança­se  uma  despolarização  intensa  e localizada o bastante que vença o efeito estabilizador da condutância a cloreto nessas fibras.

Figura 9.14 ■ Possíveis alterações no potencial de membrana induzidas por alterações das condutâncias aos íons.

No entanto, como já se pode inferir dessa discussão, há tipos celulares igualmente relevantes que apresentam sistemas de transporte ativo, basicamente secundário, para cloreto. Com isso, nessas células os íons cloreto não estão em equilíbrio através  da  membrana  plasmática,  e  variações  na  condutância  a  esses  íons  diretamente  alteram  o  valor  do  potencial  de membrana.  No  exemplo  mais  comum  desses  casos,  as  células  expressam  majoritariamente  o  cotransportador  potássio­ cloreto  (KCC)  que,  utilizando  a  diferença  de  potencial  químico  para  o  potássio,  move  íons  cloreto  do  meio  intra  para  o extracelular. Assim, se a condutância a cloreto aumentar, gera­se uma diferença de potencial eletroquímico para o cloreto através da membrana que promove fluxo resultante de cloreto para o citoplasma, deslocando o potencial de membrana para

valores mais negativos do que o potencial de repouso, em direção ao potencial de equilíbrio do cloreto – que, neste caso, é mais negativo do que o de repouso. Assim, no caso discutido, a abertura de canais para cloreto promove hiperpolarização.

Figura 9.15 ■ Possíveis efeitos dos canais para cloreto sobre o potencial de membrana.

Por outro lado, há células em que, quanto aos transportadores de cloreto, prevalece a atividade dos cotransportadores sódio­potássio­2 cloretos (NKCC), nos quais a diferença de potencial químico para o sódio move íons potássio e cloretos (2  cloretos  para  cada  sódio  e  potássio)  contra  o  sentido  de  seus  potenciais  químicos,  para  o  meio  intracelular.  No  caso dessas células, como há transporte ativo secundário de cloreto para o citoplasma, sua tendência termodinâmica é de saída da  célula,  e,  como  o  cloreto  porta  uma  carga  negativa,  sua  saída  promove  despolarização.  Interessantemente,  observa­se que durante o desenvolvimento do sistema nervoso, neurotransmissores como o ácido gama­aminobutírico (GABA), que ativam  canais  para  cloreto  nas  células  pós­sinápticas,  inicialmente  têm  ação  despolarizante  e  depois  adquirem  atividade hiperpolarizante. O que ocorre é uma mudança no padrão de expressão gênica desses neurônios pós­sinápticos, em que no começo  do  desenvolvimento  a  atividade  de  NKCC  prevalece,  mas  ao  longo  da  ontogênese  a  atividade  de  KCC  passa  a predominar de tal forma que, no cérebro adulto, a resposta hiperpolarizante a esse neurotransmissor é a mais expressiva. Há  fortes  evidências  de  que  essas  sinapses  precoces  despolarizantes  são  fundamentais  para  a  correta  formação  da circuitaria neural. No caso de células excitáveis que apresentam potenciais de ação, todas as possibilidades discutidas anteriormente de variações  do  potencial  de  repouso  ou  de  excitabilidade  geralmente  recebem  denominações  alternativas  para  os  termos “despolarizante”, “hiperpolarizante” e/ou “estabilizante”. Isso porque se considera que a expressão da excitabilidade dessas células  é  justamente  o  surgimento  nelas  de  potenciais  de  ação.  Assim,  estímulos  sobre  essas  células  que  aumentam  a probabilidade de disparo de potenciais de ação, ou aumentam a frequência com que os potenciais de ação são disparados, são  ditos  estímulos  excitatórios.  Por  outro  lado,  se  um  estímulo  diminui  a  frequência  de  potenciais  de  ação  ou  a probabilidade  de  disparo  destes  na  célula,  trata­se  de  um estímulo inibitório.  Como  discutiremos  adiante,  sabe­se  que  a geração de potenciais de ação é em geral promovida por despolarizações, enquanto inibições da excitabilidade são causadas ou por hiperpolarização ou por estabilização do potencial de repouso. Considerando os exemplos discutidos de modulação da condutância da membrana a íons inorgânicos, podemos resumir os efeitos e classificações no Quadro 9.1. Tendo  entendido  de  que  modo  variações  das  condutâncias  aos  íons  podem  afetar  o  potencial  de  membrana,  resta compreender qual seria o significado adaptativo dessas variações e quais são os mecanismos moleculares desencadeados pelos  diferentes  estímulos  que  acabam  por  promover  as  alterações  a  eles  associadas  na  condutância  de  canais  iônicos específicos.

ALTERAÇÕES DO POTENCIAL DE MEMBRANA EM CÉLULAS EXCITÁVEIS Esta parte do capítulo começou com a afirmação de que um fator fundamental para a manutenção da vida no nível das células  –  e,  portanto,  no  de  qualquer  organismo  vivo  –  é  a  capacidade  de  sensoriar  o  meio  extracelular  e  traduzir  esse sensoriamento em respostas adaptativas intracelulares, sendo alterações do potencial de membrana, a excitabilidade, uma das  mais  antigas  formas  de  sensoriamento  e  consequente  sinalização  intracelular.  Até  aqui  discutimos  como  são  os mecanismos de sinalização elétrica por trás da excitabilidade. Isto é, havendo alterações na condutância de canais, em que sentido  elas  podem  alterar  o  potencial  de  membrana  e  a  excitabilidade.  Todavia,  para  termos  um  quadro  mais  completo dessa  importante  propriedade  celular  que  é  a  excitabilidade,  ainda  nos  falta  entender  como  são  geradas  as  alterações  de condutância desses canais. De  forma  geral,  podemos  entender  esses  canais  iônicos  responsáveis  pela  excitabilidade  celular  como  máquinas moleculares conversoras de energia (Figura 9.16). Cada tipo de canal excitável é especializado em captar mais ou menos energia em uma ou mais das formas em que ela pode ser encontrada (mecânica, térmica, elétrica ou química)2 e investi­la no  trabalho  mecânico  de  alteração  conformacional  do  canal.  Essas  variações  da  energia  presente  constituem  aquilo  que antes  chamamos  genericamente  de  estímulo.  Assim,  um  estímulo  térmico  pode  ser  um  aumento  da  temperatura;  um mecânico,  um  aumento  de  pressão  sobre  a  célula;  um  elétrico,  uma  variação  do  potencial  de  membrana;3 e  um  químico, um  aumento  na  concentração  de  um  neurotransmissor  na  fenda  sináptica,  por  exemplo.  Para  que  um  desses  estímulos module  um  dado  canal,  basta  que  ele  tenha  algum  requisito  estrutural  que  lhe  permita  captar/sensoriar/responder  a  esse estímulo. Por  exemplo,  no  caso  do  neurotransmissor  na  fenda  sináptica,  se  na  membrana  da  célula  pós­sináptica  houver  um canal  com  uma  região  extracelular  que  se  ligue  especificamente  ao  neurotransmissor  e  essa  ligação  promover  uma alteração conformacional importante no canal, quanto maior for a concentração do neurotransmissor na fenda (em outras palavras, quanto maior for o seu potencial químico), maior será a probabilidade de uma molécula de neurotransmissor, em

seu movimento térmico, encontrar o seu sítio de ligação específico no canal (Figura 9.17). Dessa forma, quanto maior é a concentração  do  neurotransmissor,  maior  é  a  fração  do  tempo  em  que  o  canal  permanece  ligado  a  moléculas  do neurotransmissor, e, portanto, maior o tempo em que o canal permanece com sua estrutura modificada pela interação com o neurotransmissor. O trabalho mecânico de alteração conformacional do canal frente ao seu estímulo específico, por sua vez, redunda em alteração  de  a  probabilidade  do  canal  encontrar­se  em  um  estado  condutivo  ou  não  condutivo,  através  da  abertura  ou fechamento das comportas (ou gates) do canal (ver Capítulo 10).  Por  fim,  a  alteração  da  condutância  do  canal  promove alteração  (aumento  ou  diminuição)  do  fluxo  do  íon  através  da  membrana  para  o  qual  é  seletivo,  no  sentido  determinado pela   do  íon.  Assim,  essas  mudanças  no  fluxo  iônico  alteram  o  potencial  de  membrana,  e  ambos  –  fluxo  iônico  e ΔVM –  constituem  um  trabalho  eletroquímico,  consumindo  Δμ  do  íon  transportado.  Porém,  estando  a  célula  viva,  com mecanismos de transporte ativo para o íon funcionando, alimentados pelo metabolismo celular, a   do íon mantém­se constante  e,  consequentemen­te,  o  estado  estacionário  característico  dos  fenômenos  biológicos  também.  Ou  seja,  é possível transformar a informação de que ocorreu um estímulo em algo (a ΔVM) com que a célula excitável “sabe lidar”, como um todo. Entretanto, nessa “tradução” da informação (estímulo) para essa “linguagem” que a célula entende (ΔVM), há gasto de energia.

Quadro 9.1 ■ Efeitos de alterações das condutâncias iônicas em células excitáveis que geram potenciais de ação. Íon permeante

Variação de

Sentido do

condutância

fluxo dado por 

Efeito sobre VM Probabilidade/frequência de potenciais de ação

 on

no repouso Na+



Influxo

Despolarização

Excitatório

Ca2+



Influxo

Despolarização

Excitatório

K+



Efluxo

Hiperpolarização Inibitório

↓ Cl–



Despolarização

Excitatório

Influxo

Hiperpolarização Inibitório

Nenhum

Estabilização

Inibitório

Efluxo

Despolarização

Excitatório

Figura  9.16  ■   Transdução  de  energia  em  variações  do  potencial  de  membrana  por  canais  dependentes  de  pressão, temperatura, voltagem ou ligante.

Figura 9.17 ■ Dependência da concentração de ligante sobre a resposta de uma população de canais dependentes do ligante. As moléculas de ligante estão representadas por triângulos verdes.

Toda essa sequência de eventos de conversão de energia, desde o surgimento do estímulo até a alteração do potencial de membrana em resposta ao estímulo, constitui um exemplo do importante conceito em biologia denominado transdução de sinal.  Outros  mecanismos  de  transdução  de  sinal  são  discutidos  no Capítulo 3 e  na  Seção  4,  Neurofisiologia.  Com efeito,  os  fenômenos  de  transdução  de  sinal  são  particularmente  importantes  no  funcionamento  do  sistema  nervoso.  Por exemplo,  se  a  transdução  de  sinal  ocorre  em  uma  célula  especializada  em  expressar  os  canais  que  detectam  um  dado estímulo, e essa célula constitui uma porta de entrada para o sistema nervoso da informação portada pelo estímulo, essa célula inteira é denominada receptor sensorial.  Dependendo  da  natureza  do  estímulo  que  o  receptor  sensorial  reconhece, este será chamado de termoceptor, mecanoceptor ou quimioceptor. Continuando a discussão sobre a nomenclatura, mas retornando aos canais especializados em reconhecer os diferentes estímulos, como esses canais mudam sua atividade na dependência de haver ou não estímulo, eles podem ser chamados de canais  sensíveis,  ou  dependentes,  ou  regulados  ou  operados  pelo  estímulo.  Todos  esses  termos  são  sinônimos,  mas diferentes  textos  podem  usar  uma  ou  outra  denominação.  Aqui  preferimos  usar  o  termo  canal  dependente.  Assim, podemos  ter  canais  dependentes  de  temperatura,  dependentes  de  pressão  ou  tensão  mecânica,  dependentes  de voltagem  ou  dependentes  de  ligante  (ver  Figura  9.16).  Estes  últimos  podem  ser  exemplificados  pelo  caso  discutido anteriormente, em que o neurotransmissor se liga a um canal especializado em reconhecê­lo, através de um sítio de ligação específico (ver Figura 9.17).

Receptores na Fisiologia e na Farmacologia | Mesma palavra, mas diferentes significados Os  canais  dependentes  de  ligante  podem  causar  alguma  confusão  para  o  estudante,  considerando outros nomes que também podem receber. A Farmacologia, por exemplo, enxerga a interação entre uma molécula  e  o  canal  dependente  dela,  do  ponto  de  vista  dessa  molécula  que  se  liga  especificamente  ao canal. Assim, esse mesmo canal que chamamos, na Fisiologia Celular, de “canal dependente de ligante” é, para a Farmacologia, um “receptor para a molécula”, que, no caso, funciona como um canal que passa a estar  aberto  ou  fechado  na  presença  da  molécula.  Note­se,  portanto,  que  o  mesmo  termo  “receptor”  é empregado em dois contextos bem distintos. Para a Farmacologia, receptor é uma proteína que se liga a uma molécula de forma específica, ou seja, é um receptor molecular. Além disso, para a Farmacologia, se o receptor molecular é um canal modulado pela sua ligação específica à molécula em questão, este pertence a uma classe de receptores denominada receptores ionotrópicos, já que sua ativação envolve alteração nos fluxos iônicos através da membrana. Já para a Fisiologia, um receptor, se for sensorial, é uma célula. Se  os  usos  do  termo  “receptor”  nesses  diferentes  contextos  não  ficam  claros,  podemos  chegar  a considerações  que,  apesar  de  corretas,  podem  parecer  extremamente  confusas  para  um  leigo.  Por exemplo,  é  correto  afirmar  que  um  receptor  para  o  gosto  amargo  (i.  e.,  uma  célula  quimioceptora)  tem receptores  específicos  para  algumas  aminas  (ou  seja,  um  receptor  molecular  que  reconhece  padrões moleculares específicos, associados à percepção de amargo). Algo que já deve ter sido intuído até aqui é que quanto mais intenso é o estímulo, maior é a fração do tempo em que o canal dependente dele permanece no estado de condutância determinado pela sua interação com o estímulo. Considerando que uma dada célula excitável deve expressar mais de um desses canais, quanto mais intenso é o estímulo, analogamente maior é o efeito resultante sobre o potencial de membrana da célula. Assim, a resposta sobre o potencial de membrana é

proporcional  à  intensidade  do  estímulo  e  é  chamada  de  potencial  graduado,  independentemente  de  ele  causar despolarização, hiperpolarização ou estabilização do potencial de membrana. Os  potenciais  graduados  podem  receber  nomes  diferentes  dependendo  da  célula  em  que  ocorrem.  Por  exemplo,  em uma  célula  pós­sináptica  de  uma  sinapse  química  (Figura 9.18),  se  o  neurotransmissor  ligar­se  ao  seu  canal  dependente específico  e  com  isso  surgir  um  potencial  graduado  despolarizante,  tal  potencial  graduado  será  chamado  de  potencial excitatório pós­sináptico (PEPS). Por outro lado, se o efeito da ligação do neurotransmissor ao seu canal dependente for de  estabilização  do  potencial  de  membrana  ou  de  hiperpolarização,  o  potencial  graduado  registrado  será denominado potencial inibitório pós­sináptico (PIPS). Além desses exemplos na sinapse, se o potencial graduado ocorre em um receptor sensorial e em resposta ao seu estímulo sensorial específico, ele pode ser chamado de potencial receptor, ou potencial de receptor.4 E o que um potencial graduado causa na célula em que ele ocorre? Essa pergunta não tem uma resposta única, pois o que acontecerá depende do fenótipo celular. Ao longo dos capítulos seguintes serão explicadas algumas das consequências celulares  do  surgimento  de  um  potencial  graduado,  nos  diferentes  sistemas  orgânicos  em  que  podem  ocorrer.  Neste capítulo  discutiremos  uma  das  possíveis  consequências  dos  potenciais  graduados  que  é  observada  em  vários  desses sistemas: o potencial de ação. ▸  O  potencial  de  ação  é  um  evento  elétrico  desencadeado  por  canais  dependentes de  voltagem  e  que  se  propaga  no  espaço.  Você  já  se  perguntou  como  consegue,  ao  pisar  em  uma tachinha com o dedão descalço, perceber a dor e retirar o pé em uma rápida fração de segundo? Então você examina o pé e vê que nem chegou a se machucar mesmo. Na verdade o que ocorreu é que o seu sistema nervoso, nesse ínfimo intervalo, conseguiu: ■ Sentir o contato com o objeto pontiagudo (através da geração de um potencial de receptor) ■ De alguma forma – que discutiremos nesta seção – conduzir essa sensação para a sua medula espinal ■ Processar  ali,  rapidamente,  a  sensação  de  pressão  localizada,  por  neurônios  medulares,  que  geraram  um  comando sobre outros neurônios ditos motores – ou motoneurônios ■ Da  mesma  forma,  por  enquanto  obscura,  com  que  a  sensação  de  contato  com  a  tachinha  “subiu”  para  a  medula, “descer” esse comando pelos motoneurônios, que informaram seus terminais pré­sinápticos para que liberassem uma grande  quantidade  de  neurotransmissor  que  causa  PEPS  muito  intensos  em  fibras  esqueléticas  de  vários  grupos musculares.

Figura 9.18 ■ Potenciais pós­sinápticos que podem ser induzidos pela ligação de neurotransmissores a diferentes receptores que  sejam  canais  dependentes  do  neurotransmissor.  Exemplos  de  potenciais  excitatórios  pós­sinápticos  (PEPS)  e  potenciais inibitórios pós­sinápticos (PIPS).

Considerando  que  as  fibras  musculares  esqueléticas  são  células  muito  grossas  e  compridas  (algumas  com  vários centímetros  de  comprimento),  mesmo  a  informação  de  que  o  PEPS  ocorreu  deve  caminhar  por  distâncias  enormes  na escala celular para a resposta de contração muscular de retirada do pé ser tão rápida a ponto de você nem se ferir com a tachinha. E, como dito, tudo isso pode acontecer um pouco antes mesmo de você perceber a dor associada à pressão sobre a tachinha.5 Como essa sequência de eventos assim complexa pode ocorrer tão rapidamente, sendo que, em um adulto de 1,80 m, a distância  entre  a  ponta  do  dedão  do  pé  e  o  local  na  medula  em  que  a  sensação  de  pressão  é  processada  é  de  1,30  m aproximadamente?  Considerando  esse  arco  de  eventos  sequenciais  e  automáticos  (chamado  de  arco  reflexo)  –  em  que  a informação sensorial “sobe” do dedão do pé até a medula, é ali processada, e um comando de retirada do dedão “desce” a mesma  distância  –,  é  possível  estimar  a  velocidade  com  que  esse  trajeto  todo  é  percorrido?  Medidas  em  voluntários mostraram que o tempo entre o estímulo de pressão pontiaguda no pé e a resposta muscular de retirada está por volta de 0,1  s,  o  que  corresponde  a  uma  velocidade  de  26  m/s  (aproximadamente  94  km/h).  Para  efeito  de  comparação,  a  maior velocidade já atingida por um corredor humano até 2017 (Usain Bolt, o recordista nos 100 m rasos) é de 44,72 km/h, uma velocidade  bem  menor  do  que  aquela  estimada  aqui  para  a  velocidade  de  transmissão  e  processamento  neural  da informação. Esse  exemplo  simples  serve  para  mostrar  que  há  soluções  biológicas  extremamente  eficientes  que  garantem  uma enorme capacidade de transmissão rápida de informação pelo sistema nervoso e nos músculos do nosso corpo. No entanto, fica claro que essa transmissão não pode ser decorrente da difusão de moléculas de neurotransmissor ao longo de todo o trajeto,  como  é  discutido  no  Capítulo  8.  Com  efeito,  se  considerássemos  que  são  só  moléculas  do  neurotransmissor acetilcolina  que  carregam  a  informação  desde  o  receptor  sensorial  até  a  sinapse  motora,  por  difusão  em  uma  única

dimensão  (o  que  já  acelera  bastante  a  velocidade  de  difusão  em  relação  à  nossa  realidade  3D),  como  seu  coeficiente  de difusão D é  de  4,0  ×  10–4 μm2 ꞏ μs–1,  a  distância  percorrida  é  de  2,6  m  (≡  2.600.000  μm)  e  o  tempo  aumenta  com  o quadrado da distância, uma molécula de acetilcolina conseguiria realizar esse percurso em 1.333.739 anos!6 Porém, se a mesma molécula de acetilcolina tivesse de se difundir por uma distância igual à espessura da membrana plasmática  (cerca  de  10  nm),  ela  o  faria  dentro  de  0,6  ms.  Íons  Na+ e K+ são  bem  menores  do  que  a  acetilcolina,  tendo coeficientes  de  difusão  maiores  em  uma  ordem  de  grandeza  do  que  o  do  neurotransmissor  (1,334  ×  10–3 e  1,957  ×  10– 3  μm2 ꞏ μs–1, respectivamente). Assim, podem atravessar a membrana em intervalos menores do que 0,03 ms. Isso sem considerar o efeito da diferença de potencial elétrico através da membrana. Nisso reside a resposta para a charada de como a informação pode ser transmitida tão rapidamente por células excitáveis, cobrindo longas distâncias: ela está baseada na rapidíssima movimentação de cargas iônicas através da membrana da célula excitável que perturbam instantaneamente os outros  íons  que  já  estavam  no  citoplasma  da  célula  (Figura 9.19 A).  Imaginando  que  essa  célula  seja  aproximadamente cilíndrica  e  tenha  um  comprimento  de  mais  de  1  metro7 e  uma  membrana  perfeitamente  impermeável  aos  íons,  a  única possibilidade que os íons citoplasmáticos têm de responder à perturbação elétrica causada pelas cargas iônicas entrantes é se repelirem ou se atraírem, dependendo de sua polaridade, ao longo do eixo da célula. Em outras palavras, uma corrente elétrica de natureza iônica seria conduzida ao longo do citoplasma da célula. Nesse  exemplo  hipotético  de  uma  membrana  com  resistência  elétrica  infinita,  um  íon  sódio  faria,  portanto,  com  que outro  íon  positivo  monovalente  qualquer  presente  em  um  dos  extremos  da  célula  se  afastasse  instantaneamente  do  íon sódio inicial, contanto que houvesse outros íons entre ambos, que seriam influenciados pelo campo elétrico do íon sódio e se  influenciariam  sequencialmente,  através  de  seus  próprios  campos  elétricos,  até  que  o  íon  positivo  na  extremidade celular  fosse  alcançado.  Uma  analogia  que  cabe  aqui  é  a  de  várias bolas  de  bilhar  orientadas  lado  a  lado  em  uma  reta (Figura 9.19 B). Se o jogador acertar, em uma tacada, uma nova bola naquela que está em uma das pontas desse arranjo, o impulso se propagará pelas bolas intermediárias, sem estas se moverem, e somente a última bola, na outra extremidade, efetivamente se moverá. Ou seja, o movimento da bola que foi tacada pelo jogador equivale ao movimento da última bola na  ponta  oposta,  mas  o  movimento  inicial  e  o  final,  apesar  de  serem  equivalentes,  foram  realizados  por  bolas  de  cores diferentes  –  mas,  ainda  assim,  por  bolas  de  bilhar.  Fazendo  aqui  as  correspondências  dessa  analogia  com  o  fenômeno biológico, a bola tacada pelo jogador seria o íon sódio que atravessou a membrana, as bolas intermediárias seriam os íons citoplasmáticos  que  conduzem  a  corrente  elétrica  gerada  pela  entrada  do  íon  sódio,  e  a  última  bola  representa  o  cátion monovalente  que  se  move  no  extremo  distal,  no  sentido  do  eixo  central  dessa  célula  excitável  cilíndrica.  Esse  tipo  de condução  de  corrente  elétrica  por  íons  dentro  do  citoplasma  de  uma  célula  que  é  gerada  pela  movimentação  de  cargas através da membrana plasmática é chamada de condução (ou corrente) eletrotônica.

Figura 9.19 ■ A. Repulsão/atração entre íons citoplasmáticos como origem da corrente eletrotônica. B. Analogia do bilhar para a corrente eletrônica: a bola branca representa o íon Na que entrou no citoplasma, e as bolas coloridas, os íons citoplasmáticos com que o Na+  interage.

▸  A  capacitância  e  a  resistência  da  membrana  limitam  a  velocidade  e  o  alcance  da transmissão elétrica de informação em uma célula excitável. Uma  transmissão  rápida  de  sinal elétrico ao longo de uma célula seria conseguida facilmente se: (1) o sinal em si se estabelecesse muito rapidamente, e (2) tivesse  um  grande  alcance  no  espaço  –  isto  é,  com  perda  pequena  de  intensidade  ao  se  afastar  do  ponto  em  que  foi inicialmente gerado. Porém, como não existe perfeição na Biologia, não há célula com uma membrana perfeitamente impermeável às cargas elétricas  dos  íons.  Muito  pelo  contrário,  a  membrana  plasmática  é  um  isolante  bastante  ineficiente,  se  comparada  com outros  materiais  como  plástico  ou  borracha.  Mesmo  assim,  as  membranas  celulares  são  um  isolante  eficiente  o  bastante para  permitir  a  separação  de  cargas  iônicas  entre  os  meios  intra  e  extracelular,  sendo  por  isso  a  região  em  que  ocorre  a diferença de potencial elétrico que chamamos de potencial de membrana e, portanto, sendo um capacitor (ver “Gênese do Potencial de Membrana”). Nesse sentido, é um capacitor muito eficiente, pois, por ser muito delgada, a membrana permite que  a  energia  potencial  elétrica  associada  à  separação  das  cargas  seja  relativamente  baixa.  Isso  porque  as  cargas  em  um lado  e  no  outro  da  membrana  estão  muito  próximas  e  seus  campos  elétricos  praticamente  se  anulam,  reduzindo  o  custo energético  associado  à  perda  da  eletroneutralidade  nos  meios  intra  e  extracelular  (Figura  9.20).  Assim,  a  membrana consegue armazenar uma quantidade muito grande de cargas sem que isso gere uma grande diferença de potencial elétrico. Em  outras  palavras,  a  variação  da  quantidade  de  cargas  separadas  pela  membrana  tem  um  efeito  relativamente  pequeno sobre o potencial de membrana. Essa característica tem um efeito positivo, por exemplo, em transportadores que realizam transporte acoplado, pois grandes quantidades de substância podem ser movidas sem que o potencial de membrana varie muito  e,  portanto,  sem  repercussões  importantes  sobre  o  “combustível”  desse  transporte,  o    do  íon  movente.  Por outro  lado,  essa  mesma  característica  capacitiva  da  membrana  faz  com  que  uma  quantidade  relativamente  grande  de cargas  tenha  de  ser  transportada  através  da  membrana  para  que  o  potencial  de  membrana  seja  variado,  o  que  impõe  um intervalo de tempo para esse carregamento da membrana, limitando assim a velocidade com que uma variação de potencial elétrico  (um  potencial  graduado)  ocorre  em  dado  ponto  da  membrana  de  uma  célula  (ver  Aplicação  10).  Ou  seja,  quanto maior a capacitância da membrana, maior o tempo para que seu potencial de membrana possa ser variado.

Figura 9.20 ■ Capacitância elétrica da membrana e o efeito da bainha de mielina sobre ela.

Como a capacitância é diretamente proporcional à área da membrana e inversamente proporcional à sua espessura (ver equação  9.4),  células  pequenas  têm  um  tempo  de  carregamento  relativamente  curto.  Nos  vertebrados  e  em  alguns invertebrados  –  como  minhocas,  camarões  e  algumas  espécies  de  zooplâncton  –,  surgiu  uma  adaptação  exclusiva  do sistema nervoso que diminui a capacitância efetiva dos neurônios ao aumentar a espessura do isolante que separa os meios intra e extracelular e, portanto, diminui o efeito de neutralização mútua dos campos elétricos dos íons que constituem as cargas  opostas  entre  os  meios.  Essa  adaptação  é  a  bainha  de  mielina  (ver  Figura  9.20),  que  é  formada  por  células acessórias  aos  neurônios8  que  apresentam  regiões  com  citoplasma  praticamente  inexistente,  delimitadas  por  uma membrana muito pobre em proteínas, mas rica no lipídio de membrana esfingomielina. Essas regiões se enrolam em torno de axônios (e, raramente, de dendritos), compondo assim um revestimento lipídico dos segmentos axonais, semelhante à bainha de uma espada – daí o nome dessa estrutura. Assim, a membrana do neurônio em contato com a bainha de mielina

fica “encapada” por uma grossa camada de material isolante, o que, além de diminuir a capacitância efetiva da membrana, afastando os meios intra e extracelular entre si, também aumenta a resistência efetiva de sua membrana, o que também tem repercussões sobre a transmissão elétrica nessas células, como veremos a seguir. Entre uma célula formadora de bainha e outra ao longo da fibra, há uma pequena área de membrana do axônio que fica exposta ao meio extracelular. Essas regiões são chamadas de nós de Ranvier, onde são encontrados com grande densidade canais para sódio e potássio dependentes de voltagem e canais de vazamento. Voltando à questão da ineficiência da membrana como isolante, fica claro que a resistência elétrica da membrana não pode  ser  infinita,  pois  ela  contém  canais  que  conduzem  íons  entre  os  meios  intra  e  extracelular.  Assim,  comparando  ao exemplo  da  célula  cilíndrica  hipotética,  com  membrana  impermeável  aos  íons  e  sua  analogia  com  o  bilhar  (ver  Figura 9.19),  os  íons  citoplasmáticos  em  uma  célula  real  não  estão  restritos  a  se  movimentarem  somente  dentro  do  citoplasma conduzindo corrente quando perturbados pelo influxo do sódio. Também podem movimentar­se pelos canais de vazamento da membrana e saírem do citoplasma (ou íons extracelulares entrarem pelos mesmos canais), o que dissipa, ao longo do eixo da célula, a transmissão do efeito do campo elétrico do íon sódio entrante (Figura 9.21 A). Ou seja, a existência de uma resistência elétrica de membrana finita (i. e., de uma condutância de membrana mensurável) limita o alcance de um potencial  graduado  ao  longo  de  uma  célula  excitável  alongada.  Todavia,  quanto  maior  for  a  resistência  da  membrana, maior o alcance espacial da ΔVM, deflagrada pelo estímulo, na célula. Uma estratégia evolutiva que aumenta a resistência elétrica  entre  os  meios  intra  e  extracelular  é  a  bainha  de  mielina,  que,  dessa  forma,  não  só  acelera  a  velocidade  do  sinal elétrico em um ponto da membrana, mas também seu alcance à distância. Entretanto, ao determinarem a resistência da membrana, os canais de vazamento não afetam somente o alcance espacial do  potencial  graduado.  Quanto  maior  é  a  densidade  de  canais  de  vazamento  no  sítio  de  geração  do  potencial  graduado, menor a intensidade máxima do potencial que é registrada e também menos tempo dura esse evento. Considerando que o potencial graduado é uma variação de voltagem sobre o potencial de repouso – que é uma situação estacionária, na qual a soma das correntes dos diferentes íons através da membrana é nula –, as forças moventes dos íons pelos seus canais de vazamento  seletivos  (VM  –  Eíon)  são  alteradas  pela  mudança  do  VM  constituída  pelo  potencial  graduado.  Assim,  as correntes  iônicas  veiculadas  pelos  canais  de  vazamento  são  alteradas,  sem  haver,  no  entanto,  alteração  da  condutância intrínseca dos canais, pois:

Figura  9.21  ■   A.  Efeito  da  resistência  da  membrana  sobre  o  alcance  de  variações  do  potencial  de  membrana  no espaço.  B.  Efeito  da  resistência  da  membrana  sobre  o  intervalo  de  tempo  para  o  estabelecimento  de  um  novo  patamar  de

potencial  de  membrana  frente  a  injeções  de  corrente.  Os  esquemas  em  fundo  laranja  e  a  curva  laranja  no  gráfico correspondente à situação de alta RM. Os esquemas em fundo roxo e a curva roxa no gráfico, à de baixa RM.

Como ilustra a Figura 9.21 B, essas correntes de vazamento se contrapõem às mediadas pelos canais dependentes do estímulo. Além disso, repolarizam a membrana quando o estímulo cessa e os canais dependentes retornam para seu estado de  repouso.  Portanto,  quanto  maior  for  a  densidade  de  canais  de  vazamento,  maiores  serão  as  correntes  que  tendem  a trazer o potencial de membrana ao seu valor de repouso, o que limita a intensidade do potencial graduado e o repolariza ao potencial de repouso mais rapidamente, restringindo a duração do sinal elétrico. Além  de  afetar  o  alcance  espacial  do  sinal  elétrico,  a  resistência  da  membrana,  como  a  capacitância,  também  afeta  a velocidade de propagação do sinal na célula (ver Figura 9.21 B). Aqui, entender o que ocorre é um pouco mais complicado do que o que foi discutido para a capacitância, pois a relação entre o tempo de carregamento da membrana e a resistência de membrana é mais complexa. Com efeito, a equação que descreve quanto tempo o carregamento da membrana demora para  atingir  uma  dada  ΔVM,  em  função  da  corrente  injetada  e  da  capacitância  e  resistência  da  membrana,  mostra  que  o tempo de carregamento depende da resistência em dois pontos:9

Inicialmente  podemos  pensar  que,  já  que  o  potencial  graduado  é  devido  à  injeção  de  íons  através  dos  canais dependentes  do  estímulo,  se  houver  ao  redor  desses  canais  dependentes  também  canais  de  vazamento,  os  íons  injetados poderiam “escapar”, pelos canais de vazamento, de conduzir corrente eletrotônica. Assim, em um primeiro momento, uma membrana com menor densidade de canais de vazamento (ou revestida por bainha de mielina) retém mais eficientemente no citoplasma as cargas injetadas em decorrência do estímulo do que uma membrana com grande densidade de canais de vazamento  (ou  sem  bainha  de  mielina).  Isso  implicaria  que  uma  célula  com  poucos  canais  (alta  resistência)  tivesse  uma velocidade maior de variação do seu potencial de membrana do que uma com muitos canais (alta condutância). No começo isso de fato acontece. No entanto, como a facilidade de retenção de cargas na célula com poucos canais é maior, mais tempo demora para que, ao final, a célula atinja um novo potencial de membrana estável, mais intenso do que aquele que se atinge na célula vazada. Em ambos os casos, um novo estado estacionário é alcançado nas duas células, no qual a corrente iônica que vaza pelos canais de vazamento se iguala em intensidade, mas não em sentido, àquela injetada pelos  canais  dependentes.  Na  célula  com  alta  resistência  de  membrana,  essa  corrente  é  atingida  à  custa  de  mais  força movente (I = VM↑/RM↑), enquanto na com baixa resistência o mesmo valor de corrente é atingido em uma força movente menor,  pois  a  facilidade  que  os  íons  encontram  para  cruzar  a  membrana  é  maior  (I  =  VM↓/RM↓).  Assim,  se  o  efeito biológico do potencial graduado depender da velocidade inicial de variaçãodo potencial de membrana, ou de uma variação final de potencial mais intensa (ainda que mais demorada), isso será conseguido em células que tenham baixa densidade de canais  de  vazamento  ou  tenham  bainha  de  mielina.  O  tempo  característico  para  que  um  dado  ponto  da  membrana  se carregue  até  certo  valor  de  VM  é  produto,  portanto,  tanto  de  RMquanto  de  CM  (ver  Aplicação  9),  sendo  descrito  pela constante de tempo da membrana (τ):

Até  aqui  vimos  que  há  dois  fatores  que  afetam  a  velocidade  com  que  um  sinal  elétrico  (uma  variação  no  VM)  se desenvolve – a capacitância e a resistência elétricas da membrana – e um fator que afeta o alcance desse sinal no espaço – novamente a resistência da membrana. Há ainda outro fator do qual o alcance do sinal elétrico depende: a dificuldade que a corrente  eletrotônica  encontra  para  ser  conduzida  pelo  citoplasma,  o  que  é  denominado resistência  elétrica  axial (Figura 9.22). Se a resistência axial (RA) for alta, naturalmente será dificultado o fluxo de íons pelo citoplasma quando eles são perturbados pela entrada de cargas promovida pelos canais dependentes na presença de seus estímulos específicos. Assim, se a condução é dificultada no citoplasma, maior é a chance de os íons também “escaparem” pelos canais de vazamento na membrana.  Uma  analogia  seria  o  fluxo  de  água  por  duas  mangueiras  com  vários  furos  (ver Figura 9.22):  se  houver  um entupimento  em  algum  ponto  de  uma  das  mangueiras,  maior  altura  a  saída  de  água  pelos  furos  alcançará  antes  do entupimento e menor essa altura nos furos que se seguem à região entupida. Isso significa que o perfil de pressão cai mais intensamente  ao  longo  do  comprimento  da  mangueira  entupida,  e  justo  ao  redor  da  região  entupida,  em  relação  à mangueira  desobstruída,  cujo  perfil  de  pressão  cai  homogeneamente  ao  longo  de  seu  comprimento.  Nesse  exemplo

hidráulico, a mangueira é análoga à membrana; o fluxo de água, à corrente eletrotônica; os furos, aos canais de vazamento; o entupimento, à resistência axial; e a altura alcançada pela água nos furos, ao potencial de membrana em cada ponto. Entretanto,  do  que  depende  a  resistência  axial?  Como  ela  pode  ser  reduzida,  aumentando  o  alcance  da  ΔVM?  O citoplasma  na  realidade  não  é  um  meio  homogêneo,  pois  nele  há  um  grande  amontoamento  de  proteínas  solúveis  e insolúveis (p. ex., citoesqueleto) e de organelas que restringem em maior ou menor grau a movimentação dos íons. Se o segmento  celular  que  estivermos  considerando  for  muito  fino,  por  exemplo,  há  grande  probabilidade  de  os  íons,  em  seu movimento  térmico,  chocarem­se  com  o  meio  não  condutor  da  membrana,  dissipando  parte  da  sua  energia  cinética orientada no sentido axial, que por sua vez deriva da energia potencial elétrica adquirida com o fluxo de íons na membrana através dos canais ativados pelo estímulo. Se, porém, o raio desse segmento for dobrado, a área de citoplasma por onde os íons  podem  conduzir  corrente  eletrotônica  será  quadruplicada,  pois,  lembrando  que  Área  =  π  ꞏ  (raio)2,  tem­se  que Áreainicial = πr2 e Áreafinal  =  π(2r)2  =  4(πr2)  =  4(Áreainicial).  Ou  seja,  a  facilidade  que  os  íons  encontram  em  conduzir corrente  pelo  citoplasma  quadruplica.  Ao  mesmo  tempo,  a  área  de  membrana  que  poderia  atrapalhar  a  condução eletrotônica  é  somente  dobrada,  pois  o  perímetro  do  segmento  correspondente  à  membrana  é  função  direta  do  raio (Perímetro = 2πr)  e  a  área  de  membrana  do  segmento  fica  sendo  Área  de  membrana  =  (Perímetro)  ꞏ  (Comprimento  do segmento).  Assim,  o  saldo  de  se  ter  um  segmento  de  célula  com  diâmetro  de  citoplasma  dobrado  claramente  favorece  a redução da resistência axial, aumentando o alcance do potencial graduado no espaço.

Figura 9.22 ■ Analogia hidráulica para o efeito da condutância axial citoplasmática sobre a condução eletrotônica e o alcance de variações do potencial de membrana no espaço.

Como  a  resistência  de  membrana  (RM)  e  a  resistência  axial  (RA)  afetam  o  alcance  espacial  de  uma  ΔVM,  mas  com efeitos inversos, o decaimento do VM em função do espaço pode ser descrito quantitativamente pela seguinte equação:

em que VM (x) é o valor do potencial de membrana em função do espaço (x), VM (0) é o valor do potencial de membrana no ponto x =  0  (p.  ex.,  onde  se  localiza  o  canal  dependente  de  estímulo  que  deu  início  à  perturbação  do  VM),  e  λ  é  a chamada constante de espaço da membrana, sendo a distância em que VM perdeu 63% de seu valor em relação àquele no ponto x = 0 (ver Figura 9.21 A). A constante de espaço descreve os efeitos combinados de RM e RA sobre o alcance de um sinal elétrico correspondente a uma variação de VM, por ser:

Voltando agora aos dois requisitos para a rápida transmissão elétrica em células excitáveis longas com que iniciamos este  tópico,  podemos  resumir,  no  Quadro  9.2,  os  fatores  físicos  e  seus  correspondentes  biológicos  que  favorecem  o cumprimento desses dois requisitos.

Da análise do Quadro 9.2,  fica  a  pergunta:  todas  as  nossas  células  excitáveis  conseguem  preencher  esses  requisitos, garantindo  que  a  informação  portada  pelos  potenciais  graduados  alcance  rápida  e  amplamente  todas  as  suas  regiões, através de condução eletrotônica, e sem perdas importantes de sinal no trajeto? Alguns  neurônios,  como  os  da  retina,  são  suficientemente  curtos  para  que  possam  conduzir  rapidamente,  em  si mesmos,  informação  exclusivamente  na  forma  de  potenciais  graduados  e  correntes  eletrotônicas.  Isso  é  possível  porque suas  dimensões  limitadas  são  bem  menores  do  que  a  constante  de  espaço  calculada  com  base  nos  seus  valores  para  os fatores  físicos  listados  no Quadro 9.2.  Ademais,  também  porque  suas  dimensões  são  pequenas,  a  área  de  membrana  é pequena,  o  que  implica  baixa  capacitância  e  poucos  canais  de  vazamento  (alta  resistência),  contribuindo  para  uma velocidade de variação do VM em resposta ao estímulo rápida.

Quadro 9.2 ■ Requisitos para transmissão rápida, fatores físicos e seus correspondentes biológicos. Requisitos para transmissão rápida

Fatores físicos

Estruturas biológicas

Velocidade rápida de desenvolvimento do

Baixa capacitância de

Célula pequena

sinal elétrico em um ponto da membrana

membrana Alta resistência de membrana (no início do sinal) Baixa resistência de

Poucos canais de vazamento Bainha de mielina Muitos canais de vazamento

membrana (para atingir o pico do sinal, que terá baixa amplitude) Longo alcance do sinal ao longo do

Alta resistência de membrana

comprimento da membrana, sem perda

Bainha de mielina

detectável de sua intensidade conforme a distância se afasta do ponto de origem do sinal na membrana (i. e., alta λ)

Poucos canais de vazamento

Baixa resistência axial

Aumento do diâmetro celular

Porém, a imensa maioria dos neurônios e das fibras musculares tem dimensões muito maiores do que suas constantes de  espaço  e,  pelo  mesmo  motivo,  tem  capacitância  muito  grande.  Como  no  caso  dos  neurônios  e  fibras  musculares discutidas  no  arco  reflexo  de  retirada,  a  informação  mediada  por  potenciais  graduados  não  pode  ser  transmitida exclusivamente  por  condução  eletrotônica  ao  longo  dessas  células,  isto  é,  contando  somente  com  eventos  elétricos  na membrana mediados por canais geradores do potencial graduado e canais de vazamento. Como a atividade dos canais de vazamento  está  sempre  disponível  na  membrana  e  não  é,  em  princípio,  modificada  pela  ocorrência  dos  potenciais graduados, a condução eletrotônica de sinal é considerada uma condução passiva. De  qualquer  forma,  não  se  pode  escapar  do  fato  de  que  o  potencial  graduado  é  o  sinal  elétrico  que  imediatamente porta,  de  forma  analógica,  a  informação  sobre  a  identidade,  a  intensidade  e  a  duração  do  estímulo.  Por  outro  lado,  fica evidente  que  o  potencial  graduado,  por  si  só,  não  consegue  ter  a  velocidade  e  o  alcance  observados  no  arco  reflexo  aqui discutido. Disso se conclui que outras estruturas de membrana e outras formas de condução têm de estar envolvidas nessa transmissão rápida e ampla de informação, além dos canais dependentes desses estímulos. De  fato  isso  realmente  ocorre  e,  no  caso  dessas  células  musculares  e  neuronais  que  participam  do  arco  reflexo,  por exemplo, o potencial graduado constitui um estímulo gerado na membrana que modifica o funcionamento dessas segundas estruturas de membrana que participam da transmissão de sinal em seguida aos canais que geraram o potencial graduado. Tais estruturas também são canais dependentes, mas o que os modula é uma variação do potencial de membrana (no caso, o potencial graduado). São os canais dependentes de voltagem (ver Capítulo 10),  dos  quais  trataremos  daqui  até  o  final deste  capítulo.  Porém,  como  canais  iônicos  são  os  principais  determinantes  da  intensidade  do  potencial  de  membrana

momento a momento, os canais dependentes de voltagem também podem alterar o potencial de membrana, dependendo de estarem ou não conduzindo corrente iônica. Note­se aqui que, com os canais dependentes de voltagem, temos uma situação de retroalimentação: uma variação de potencial  de  membrana  modula  a  atividade  de  canais  dependente  de  voltagem  que,  por  isso,  podem  variar  o  potencial  de membrana,  modulando  a  atividade  de  outros  canais  dependentes  de  voltagem  ao  lado...  e  assim  por  diante,  resolvendo  o requisito  não  cumprido  pela  condução  puramente  eletrotônica  de  garantir  um  amplo  alcance  espacial  do  sinal.  Pode­se perceber  aqui  que,  se  houver  canais  dependentes  de  voltagem  relativamente  próximos  (i. e.,  em  uma  distância  menor  do que  a  constante  de  espaço  λ)  e  distribuídos  por  toda  a  membrana  da  célula,  essa  ativação  de  canais  dependentes  de voltagem  passará  a  ser,  ao  mesmo  tempo,  sua  própria  causa  e  efeito:  o  sinal  elétrico  agora  gerado  por  esses  canais  vai sendo  reproduzido  (regenerado)  em  cada  ponto  onde  houver  outros  canais  dependentes  de  voltagem,  como  em  uma avalanche.  Ou  seja,  a  partir  do  momento  em  que  canais  dependentes  de  voltagem  ativados  pelo  potencial  graduado conseguem  ativar  outros  canais  dependentes  de  voltagem,  vencendo  o  efeito  de  repolarização  dos  canais  de  vazamento (ver Figura 9.21 B), o sinal elétrico gerado por eles é inevitavelmente refeito em todos os pontos que contenham canais semelhantes.  Ou  seja,  esse  sinal  ou  acontece,  ou  não  acontece,  sendo  por  isso  chamado  de  um  evento  “tudo  ou  nada” (Figura 9.23 A). Como o sinal é refeito ponto a ponto, as   dos íons através da membrana são consumidas um pouco mais  em  todos  os  pontos  da  membrana  pelos  fluxos  iônicos  adicionais  que  surgem  através  dos  canais  dependentes  de voltagem, o que demanda maior consumo de energia livre por mecanismos de transporte ativo –principalmente pela Na/K­ ATPase  –  no  sentido  de  manter  essas  .  Há  aqui,  portanto,  uma  condução  ativa  de  sinal,  e  não  passiva,  como  na condução eletrotônica do potencial graduado. Assim, esse sinal de voltagem criado ativamente pelos canais dependentes de voltagem é chamado de potencial de ação. Não  só  o  potencial  de  ação  cumpre  o  requisito  do  alcance  de  sinal  para  a  rápida  transmissão  da  informação,  mas também resolve o problema da velocidade de geração do sinal a cada ponto, o que emana do fato de ser um evento baseado na retroalimentação entre as atividades dos canais dependentes de voltagem. No entanto, como se trata de um evento “tudo ou nada”, a intensidade do potencial de ação não tem como relatar a intensidade do estímulo inicial analogicamente, como faz o potencial graduado de que depende para ser deflagrado. Em outras palavras, sendo algo que ou ocorre (“1”) ou não (“0”),  o  potencial  de  ação  não  é  um  sinal  analógico  como  o  potencial  graduado,  e  sim  um  sinal  digital.  Há  aí  uma conversão da forma de codificação com que a informação do estímulo é veiculada por sinais elétricos de variação do VM. Como  veremos  adiante,  inicialmente  acontece  a  transdução  analógica  do  estímulo  em  potencial  graduado,  pelos  canais dependentes  do  estímulo,  que  a  seguir  leva  à  codificação  digital  do  potencial  graduado  na  forma  da  frequência  com  que ocorrem potenciais de ação, disparados pelos canais dependentes de voltagem (ver Figura 9.31, mais adiante). Tendo entendido aqui os papéis que os potenciais graduados e os potenciais de ação têm na transdução e codificação dos  estímulos,  veremos  a  seguir  os  mecanismos  moleculares  e  celulares  pelos  quais  os  canais  dependentes  de  voltagem codificam e propagam essa informação dos estímulos pelos neurônios e fibras musculares. ▸  O  potencial  de  ação  origina­se  da  retroalimentação  positiva  entre  canais

dependentes  de  voltagem  despolarizantes  para  sódio  ou  cálcio  e  é  terminado  pela repolarização promovida por canais para potássio dependentes de voltagem. Até  aqui chegamos  à  conclusão  de  que  a  transmissão  de  informação  por  longas  distâncias  em  uma  célula  excitável  depende  de canais  dependentes  de  voltagem  que  medeiam  uma  variação  “tudo  ou  nada”  do  VM  que  é  ativamente  conduzida  pelas regiões da membrana que têm canais dependentes de voltagem. Esses canais são seletivos ou a sódio, ou a cálcio – que, como  vimos,  são  íons  cujo  aumento  da  condutância  causará  despolarização  –,  ou  ainda  a  potássio,  íon  cujo  aumento  de condutância  tenderá  a  uma  hiperpolarização  em  relação  ao  potencial  de  repouso.  Ao  evento  “tudo  ou  nada”  mediado  por esses canais dependentes de voltagem demos o nome de potencial de ação, mas ainda não explicamos como é um potencial de ação, ou seja, qual é o seu perfil no tempo quando ocorre em dado ponto da membrana. Na verdade, não há um único perfil temporal de potencial de ação que seja comum a todas as células excitáveis (para alguns exemplos, ver Figura 9.24). No entanto, há, sim, algumas características comuns a todos os tipos de potencial de ação (ver Figura 9.24), a saber: ■ O  início  de  todo  potencial  de  ação  é  uma  despolarização  muito  intensa  (muitas  vezes  com  overshoot  do  VM)  e extremamente  rápida  (comumente  na  faixa  dos  μs).  Como  sabemos  que  o  potencial  de  ação  é  uma  consequência  da atividade  de  canais  dependentes  de  voltagem,  chega­se  à  conclusão  de  que  nessa  fase  inicial  do  potencial  de ação prevalece a  atividade  de  canais  para  sódio  e/ou  cálcio  dependentes  de  voltagem.10 Em  geral  são  os  canais  para sódio dependentes de voltagem (ou Nav) que respondem por essa rápida despolarização

■ A despolarização rápida desacelera e atinge um valor máximo (o pico do potencial de ação), para logo ser sucedida por repolarização. Esse pico é um momento de duração praticamente indetectável, mas, como nesse instante a variação do VM muda  de  sentido  (de  despolarização  para  repolarização),  no  pico  do  potencial  de  ação  o  VM é  momentaneamente estável  –  ou  seja,  não  há  ΔVM  ocorrendo  no  pico  do  potencial  de  ação.  Isso  só  é  possível  se,  nesse  brevíssimo intervalo, a soma de todas as correntes iônicas fluindo naquele ponto da membrana for nula ■ A partir do pico do potencial de ação, o “cabo de guerra” entre as correntes iônicas passa a ser vencido, mais cedo ou mais  tarde,  por  uma  corrente  repolarizante  catiônica  ativada  por  voltagem,  que  só  pode  ser  de  potássio.  Ou  seja,  na repolarização passa a prevalecer a atividade dos canais para potássio dependentes de voltagem (os Kv).

Figura 9.23 ■ Diagramas de blocos para os fenômenos subjacentes ao potencial de ação. A. Descrição do potencial de ação com base nas correntes iônicas envolvidas. B. Descrição do potencial de ação com base nos canais dependentes de voltagem e seus estados de condutividade.

Porém,  qual  é  o  gatilho  para  que  toda  essa  sequência  de  eventos  que  compõem  o  potencial  de  ação  ocorra?  Os potenciais  de  ação  iniciam­se  com  uma  despolarização  da  membrana,  geralmente  um  potencial  graduado,  mas  nem  toda despolarização  consegue  deflagrar  um  potencial  de  ação.  Em  experimentos  em  que  a  despolarização  é  induzida artificialmente por injeção de corrente no citoplasma, observa­se que somente a partir de certo nível de despolarização do

potencial de membrana surge o potencial de ação no ponto de injeção da corrente (Figura 9.25). A partir desse potencial, outros  estímulos  elétricos  que  causem  despolarizações  ainda  mais  intensas  também  deflagrarão  potenciais  de  ação similares.  Esse  potencial  é,  portanto,  um  ponto  muito  instável,  sendo  o  limite  a  partir  do  qual  despolarizações  maiores inevitavelmente gerarão um potencial de ação e despolarizações menores não terão como deflagrar potenciais de ação. Por isso é chamado de potencial limiar de deflagração do potencial de ação.

Figura 9.24 ■ Exemplos de potenciais de ação registrados em diferentes células excitáveis e suas fases típicas: despolarização (rosa), pico (azul), platô (preto) e repolarização (verde). Note as diferenças marcantes no formato, amplitude e duração desses eventos.

O que ocorre no potencial limiar para que ele seja esse divisor de águas para a ocorrência ou não do potencial de ação? Ele é justamente o potencial de membrana que consegue abrir um número suficiente de canais para sódio11 que conseguem gerar  uma  corrente  igual  em  intensidade,  mas  oposta  em  sentido,  àquela  repolarizante  gerada  concomitantemente  pelos canais  para  potássio  de  vazamento  e  pelos  eventuais  canais  para  potássio  dependentes  de  voltagem  que  já  se  abram  em resposta  à  despolarização.  Despolarizações  maiores  do  que  o  potencial  limiar,  portanto,  abrirão  ainda  mais  canais  para sódio  dependentes  de  voltagem,  e  assim  a  corrente  de  sódio  será  maior,  em  módulo,  do  que  as  correntes  de  potássio simultâneas repolarizantes. Com esse saldo positivo das correntes despolarizantes mediadas por sódio, mais despolarizado se  tornará  o  potencial  de  membrana,  o  que  recrutará  mais  canais  para  sódio  a  saírem  do  estado  fechado  para  o  aberto,  e assim sucessivamente, em um efeito de retroalimentação positiva de despolarização que explica a primeira característica comum a todos os potenciais de ação discutida anteriormente (ver Figuras 9.23 B e 9.25). No  nível  molecular,  como  surge  a  dependência  de  voltagem  apresentada  tanto  pelos  canais  para  sódio  quanto  pelos canais  para  cálcio  e  pelos  canais  para  potássio  dependentes  de  voltagem?  Para  que  qualquer  estrutura  possa  sofrer  a influência de diferenças de potencial elétrico, ela deve ter cargas elétricas. Como os canais dependentes de voltagem são proteínas de membrana e a diferença de potencial elétrico ocorre através da membrana, a dependência de, ou sensibilidade a,  voltagem  desses  canais  necessariamente  depende  de  terem  cargas  elétricas  em  algum  de  seus  segmentos transmembrânicos. Como discutido no Capítulo 10, a estrutura básica dos canais dependentes de voltagem é formada por quatro arranjos (domínios) de seis segmentos proteicos transmembrânicos em alfa­hélice (S1 a S6) (Figura 9.26). Dentro  de  cada  domínio,  entre  os  segmentos  S5  e  S6  há  uma  alça  reentrante  na  membrana  sem  estrutura  secundária definida, o segmento P. Os quatro segmentos P dos quatro domínios formam o filtro de seletividade do canal para o seu íon permeante específico. No segmento S4 encontram­se resíduos de aminoácidos polares básicos que, portanto, têm carga positiva,  fazendo  com  que  o  segmento  S4  seja  o  sensor  de  voltagem  de  todos  os  canais  dependentes  de  voltagem

conhecidos  nos  animais.  A  função  dos  segmentos  S1  a  S3  ainda  é  bastante  debatida,  mas  há  evidências  de  que,  ao envolverem  o  segmento  S4,  funcionam  tanto  como  um  “escudo”  estabilizante  das  cargas  do  sensor  frente  ao  efeito hidrofóbico  do  interior  apolar  da  membrana,  quanto  “guias”  para  a  movimentação  orientada  desses  sensores  dentro  do campo elétrico da membrana que permite que as comportas (gates) intracelulares de ativação, que ocluem a passagem de íons pelo vestíbulo interno do canal, desloquem­se, liberando passagem para os íons permeantes.

Figura 9.25 ■ Limiar de deflagração do evento e natureza “tudo ou nada” dos potenciais de ação.

Figura 9.26  ■   Correlação  entre  a  estrutura  molecular  e  a  atividade  de  canais  dependentes  de  voltagem  para  sódio  (Nav)  e potássio  (Kv).  São  apresentados  esquemas  representativos  com  visões  superiores  de  um  canal  dependente  de  voltagem qualquer e seus quatro domínios formadores do canal funcional, cada um com seis segmentos transmembrânicos (S4 sensor de voltagem, S5 e S6 compondo as paredes da via condutiva do canal). Em visão lateral, apresenta­se esquema de dois dos quatro domínios  que  compõem  um  Nav.  Sobrepostas  ao  fundo  amarelo  estão  representadas  combinações  possíveis  para  o  estado aberto e inativo dos Nav e, em azul, a configuração aberta dos Kv.

Note  que,  para  termos  um  canal  funcional,  precisamos  ter  quatro  domínios  interagindo  entre  si,  cada  um  deles  com uma  comporta  formada  por  S5  e  S6  sob  o  controle  dependente  de  voltagem  de  S4.  No  caso  dos  Nav,  se  quaisquer  três dessas  quatro  comportas  se  abrirem,  em  princípio  o  canal  passará  de  um  estado  não  condutivo,  denominado  estado fechado,  para  um  estado  condutivo,  ou  estado  aberto  (ou,  em  nomenclatura  mais  antiga,  mas  às  vezes  usada,  estado ativo).  Já  no  caso  dos  Kv,  estes  só  se  abrem  se  suas  quatro  comportas  de  ativação  estiverem  abertas.  Essa  diferença, aparentemente banal, é o que explica o fato de que a população de canais para sódio de uma célula excitável responda mais rapidamente  a  uma  despolarização  do  que  a  de  canais  para  potássio,  pois  a  probabilidade  de  quaisquer  três  de  quatro comportas de ativação estarem abertas em um mesmo instante é maior do que todas as quatro estarem abertas no mesmo instante,  no  caso  dos  Kv,  frente  à  mesma  despolarização.  Se  não  fosse  assim,  não  haveria  como  o  potencial  de  ação  se iniciar com o predomínio da atividade dos Nav sobre a dos Kv, pois o mecanismo de sensoriamento de voltagem para os dois tipos de canais é o mesmo. Por outro lado, é importante lembrar que essas transições de conformação das comportas de ativação serão tão mais prováveis quanto maior for o seu estado intrínseco de agitação molecular; em outras palavras, quanto  maior  for  a  temperatura.  Isso  faz  com  que,  quanto  maior  for  a  temperatura,  menor  seja  a  diferença  no  tempo  de

resposta  a  uma  despolarização  supralimiar  entre  os  Kv e os Nav,  o  que  altera  significativamente  o  perfil  do  potencial  de ação  em  um  dado  ponto  de  uma  célula  excitável,  que  vai  se  tornando  cada  vez  mais  curto  e  com  menor  amplitude,  dado que a velocidade de ativação dos Kv é acelerada (Figura 9.27). Até  aqui  explicamos  as  bases  moleculares  e  funcionais  responsáveis  pela  primeira  característica  comum  a  todos  os potenciais de ação listada anteriormente: a de se iniciar com uma rápida despolarização promovida por canais Nav que se sustenta  por  estes  canais  serem  mais  rápidos  do  que  os  Kv para  responderem  à  despolarização  supralimiar.  Entretanto, ainda não conseguimos explicar as bases moleculares para que, a partir de certo ponto – o pico do potencial de ação –, a atividade dos Kv passe a prevalecer sobre a dos Nav (i. e., |IK| > |INa|), gerando repolarização. Poder­se­ia imaginar que a densidade e/ou condutância máxima dos Kv na membrana fosse maior do que a dos Nav. Assim, mesmo que inicialmente mais lentos, a corrente mediada pelo conjunto dos Kv superaria aquela ainda ativa pelos Nav. Estudos realizados por Alan Hodgkin  e  Andrew  Huxley  entre  o  fim  dos  anos  1940  e  início  dos  1950,  todavia,  mostraram  que  também  a corrente de sódio dependente de voltagem (que  hoje  se  sabe  ser  mediada  pelos  canais  Nav),  independentemente  da  atividade  dos  Kv, diminui (i. e., se inativa) se a membrana for mantida despolarizada pelo experimentador (Figura 9.28 A). Pelo contrário, se a mesma manobra é realizada em uma preparação em que se meça somente a corrente de potássio, esta não se inativa, e permanece ativa enquanto perdurar o estímulo despolarizante. Ao  longo  dos  anos,  vários  pesquisadores  após  o  trabalho  seminal  de  Hodgkin  e  Huxley  (ver  Quadro  9.2) demonstraram  a  existência  dos  canais  iônicos  e  seu  papel  como  mediadores  das  correntes  ativadas  por  voltagem registradas  por  esses  dois  pesquisadores  ingleses.  Ademais,  hoje  se  tem  conhecimento  no  nível  atômico  da  estrutura básica dos canais dependentes de voltagem e até mesmo de algumas conformações moleculares possíveis associadas aos diferentes estados dos canais. Ou seja, como discutimos anteriormente o funcionamento das comportas de ativação e dos domínios  e  segmentos  transmembrânicos,  já  temos  conhecimento  dos  eventos  moleculares  que  explicam  os  fenômenos elétricos  empíricos  subjacentes  aos  potenciais  de  ação  que  foram  registrados  por  Hodgkin  e  Huxley.  Dessa  forma, considera­se que, enquanto os Kv possam transitar somente entre dois estados – um não condutivo (fechado, predominante no  potencial  de  repouso)  e  outro  condutivo  (aberto,  mais  provável  quanto  mais  a  membrana  está  despolarizada)  –,  os Nav apresentam três tipos de estados – um condutivo (aberto, desencadeado por despolarização), e dois não condutivos: o estado  fechado,  que,  como  no  caso  dos  Kv,  predomina  no  potencial  de  repouso;  e  o estado  inativo,  que  corresponde  à situação  detectada  por  Hodgkin  e  Huxley  em  que  a  corrente  de  sódio  ativada  por  despolarização  vai  se  inativando  (se desligando) ainda na presença de despolarização. Em outras palavras, os Nav têm dois estados igualmente não condutivos, mas cujas causas são diametralmente opostas: o estado fechado, associado a potenciais intracelulares negativos, e o estado inativo, associado a despolarizações mantidas. Novamente,  como  no  caso  da  cinética  de  resposta  a  despolarizações,  são  diferenças  entre  as  estruturas  dos  Kv e dos Nav que explicam a ocorrência do estado inativo nos Nav e, em uma primeira análise, sua ausência nos Kv. No caso dos Kv,  os  quatro  domínios  formadores  do  canal  ativo  não  fazem  parte  de  uma  única  proteína,  constituindo,  cada  um,  uma subunidade  diferente.  Assim,  os  canais  para  potássio  dependentes  de  voltagem  podem  ser  formados  por  múltiplas combinações possíveis de quaisquer quatro dentre várias subunidades de Kv. Isso empresta a esses canais uma variedade funcional muito grande. Já no caso de cada Nav, os quatro domínios fazem parte de uma única proteína, de um único gene. Assim, nos Nav, os quatro domínios estão conectados entre si por alças intracelulares da proteína (ver Figura 9.26). A alça intracelular entre os domínios III e IV dos Nav constitui uma estrutura globular, mas com certa mobilidade térmica e que apresenta alguns aminoácidos apolares em sua superfície. Isso confere afinidade pela abertura intracelular do vestíbulo do canal, que, por ser uma região transmembrana, também tem características apolares. Com isso, essa região intracelular constitui também uma comporta adicional do canal, ausente nos Kv: a comporta de inativação.12 Dada sua morfologia e mobilidade, como se fosse  uma  bola  atada  a  um  barbante  (semelhante  a  um  bilboquê),  essa  comporta  também  é  conhecida  como  bola  de inativação (mecanismo de ball­and­chain – bola e corrente). Note que essa comporta, ao ter seu acesso à boca do vestíbulo facilitado  pela  movimentação  das  comportas  de  ativação,  que  são  diretamente  controladas  pelo  VM,  é  indiretamente também dependente de voltagem. Entretanto, à diferença das comportas de ativação, cuja probabilidade de estarem abertas aumenta quanto maior for a intensidade da despolarização, a comporta de inativação funciona ao contrário.

Figura 9.27 ■ Efeito da temperatura sobre o formato do potencial de ação no axônio gigante de lula. (Traçados gerados a partir do  programa  NERVE,  desenvolvido  pelo  Prof.  Francisco  Bezanilla,  da  Universidade  de  Chicago,  e  disponível em http://nerve.bsd.uchicago.edu.)

Quanto mais despolarizado o VM, maior a probabilidade de a comporta de inativação transitar de uma conformação que deixa livre a boca do vestíbulo do canal para a outra, em que a oclui.13 A essa conformação corresponde o estado inativo dos Nav. Como  o  fechamento  da  comporta  de  inativação  é  dependente  em  parte  de  sua  afinidade  hidrofóbica  natural  pelo vestíbulo do canal, e por outra parte pela facilitação de seu acesso ao vestíbulo pelo movimento das comportas de ativação, duas consequências importantes decorrem daí para o funcionamento dos Nav e, portanto, para as propriedades do potencial de ação. Em primeiro lugar, a cinética da resposta de inativação frente a uma despolarização é mais lenta do que da de ativação (Figura 9.28 B). Assim, ainda que seja possível, é menos provável que a comporta de inativação se feche antes que todas as comportas de ativação estejam abertas. Se a inativação fosse mais rápida do que a ativação, o ciclo de retroalimentação positiva  entre  os  Nav,  em  que  quanto  mais  canais  se  ativam,  maior  a  despolarização  e  mais  canais  são  ativados,  seria impossível. Por outro lado, o fato de as comportas de ativação estarem todas fechadas no potencial de repouso, e isso dificultar o fechamento da comporta de ativação, não significa que nenhuma comporta de inativação esteja fechada no repouso. Com efeito,  no  axônio  gigante  da  lula  estima­se  que  no  repouso  aproximadamente  40%  dos  Nav estejam  inativos  (ver  Figura 9.28 B). Isso não implica que no caso dos Nav o repouso seja uma situação estática na qual um dado Nav esteja sempre inativo.  Pelo  contrário,  essa  é  uma  situação  dinâmica:  um  canal  que  em  dado  instante  estava  inativo  pode  passar  a  estar fechado  por  mera  oscilação  térmica  no  instante  seguinte.  No  entanto,  momento  a  momento,  40%  da  população  dos Nav naquela região de membrana se encontram no estado inativo, e o restante, no estado fechado durante todo o tempo em que  o  VM estiver  em  seu  valor  de  repouso.  Assim,  os  Nav que  podem  dar  início  ao  potencial  de  ação  são  aqueles  que estejam naquele instante no estado fechado, o que, no caso do potencial de repouso do axônio gigante da lula, corresponde a somente 60% dos canais para sódio dependentes de voltagem dessa célula. Em linguagem corriqueira, o estado fechado dos Nav é o seu único estado “abrível” e, por isso, é o único estado a partir do qual se pode iniciar um potencial de ação.

Figura 9.28 ■ A. Ilustração dos experimentos de Hodgkin e Huxley em um axônio gigante de lula. O potencial de membrana foi mantido por 4,5 ms em –4 mV (56 mV mais despolarizado que o potencial de membrana de –60 mV). À esquerda, registro da corrente iônica total da membrana (IM) durante o estímulo. Desse registro foram separados os componentes da corrente de sódio (INa – centro) e de potássio (IK – direita). Note­se que a INa se ativa mais rapidamente do que a IK, mas logo se inativa, enquanto a IK, não. B. Percentual  de  canais  para  sódio  inativos  (roxo)  e  a  condutância  a  sódio  (azul)  durante  um  potencial  de  ação  em axônio  gigante  de  lula.  (Traçados  gerados  a  partir  do  programa  NERVE,  desenvolvido  pelo  Prof.  Francisco  Bezanilla,  da Universidade de Chicago, e disponível em http://nerve.bsd.uchicago.edu.)

Agora  que  já  vimos  como  funcionam  os  canais  dependentes  de  voltagem,  suas  semelhanças  e  diferenças  em  relação aos estados associados ao transporte, ou não, dos íons, e as velocidades com que transitam entre esses estados, podemos fazer um sumário dos eventos que caracterizam um potencial de ação durante o seu decurso em dado ponto da membrana de uma célula excitável. Os itens numerados a seguir fazem referência aos pontos numerados do mesmo modo na Figura 9.29. O fluxograma apresentado na Figura 9.23 B também pode ser acompanhado nesse resumo.

Figura 9.29 ■ Inter­relações  entre  o  potencial  de  membrana,  sua  velocidade  de  variação,  forças  moventes  para  os  íons  e  as correntes e condutâncias durante um potencial de ação em axônio gigante de lula. Explicações dos rótulos numerados estão no texto.  (Traçados  gerados  a  partir  do  programa  NERVE,  desenvolvido  pelo  Prof.  Francisco  Bezanilla,  da  Universidade  de Chicago, e disponível em http://nerve.bsd.uchicago.edu.)

A rápida (1) despolarização (2) que corresponde à primeira fase do potencial de ação é causada por um maciço influxo de cargas positivas (3) na célula ativado por voltagem. Essa corrente de influxo decorre principalmente da rápida abertura de canais para sódio dependentes de voltagem, que medeiam uma robusta corrente de íons sódio (4) que supera o paralelo aumento  do  efluxo  de  potássio  (5)  mediado  por  canais  para  potássio  dependentes  de  voltagem.  A  maciça  corrente despolarizante de sódio se deve ao aumento explosivo da condutância da membrana ao sódio (6) associada à abertura dos canais para sódio dependentes de voltagem e à grande força movente inicial para o sódio (7), que é igual a (Vrepouso – ENa). Conforme  a  despolarização  progride,  ela  desacelera  (8),  pois  a  corrente  de  sódio  tende  a  diminuir  de  intensidade  (9),  já que  sua  força  movente  diminui  (10)  com  o  potencial  de  membrana  aproximando­se  do  seu  potencial  de  equilíbrio.  Essa desaceleração da despolarização também se deve ao aumento paralelo da corrente de potássio dependente de voltagem (11), movido, por sua vez, pelo lento aumento da condutância a potássio (12) e pelo aumento da força movente (VM – EK) para esse  íon  (13).  Um  pouco  antes  de  o  potencial  de  ação  atingir  seu  pico  de  despolarização,  observa­se  que,  apesar  da velocidade  ainda  positiva  de  despolarização  (8),  a  taxa  de  abertura  de  canais  para  sódio  dependentes  de  voltagem  é superada pela taxa de inativação, pois a condutância a sódio começa a cair (14). A partir daí, a condutância a sódio só cairá (15), devido à progressiva inativação dos Nav. O pico do potencial de ação (16), por sua vez, é um instante brevíssimo em que o potencial de membrana fica estável novamente, isto é, a velocidade de variação do potencial de membrana torna­se nula (17).  Sendo  o  pico  uma  situação  de  estabilidade  do  VM,  ele  só  pode  se  dever  ao  fato  de  que  a  soma  das  correntes iônicas através da membrana nesse instante torna­se zero (18). Com efeito, no pico do potencial de ação as correntes de sódio (19) e de potássio (20)  dependentes  de  voltagem  igualam­se  em  intensidade,  mas  têm  sentidos  opostos  (sódio,  de influxo; e potássio, de efluxo). A partir do pico, ocorre a repolarização (21), o que corresponde a uma velocidade negativa de  variação  do  VM  (22).  A  repolarização  é  movida  por  uma  inversão  no  sentido  do  fluxo  total  de  cátions  através  da membrana (23), isso porque a corrente de potássio passa, do pico em diante, a sempre ter maior intensidade (24) do que a de sódio (25).  Mesmo  com  a  redução  da  condutância  a  sódio  (15)  causada  pela  inativação  dos  Nav,  a  corrente  de  sódio mantém­se  relativamente  grande  durante  o  início  da  repolarização  (25),  pois  o  outro  determinante  de  sua  intensidade,  a força movente para o sódio (VM – ENa), aumenta muito (26) durante a repolarização. Já a corrente para potássio vai caindo ao  longo  da  repolarização  (24),  pois  sua  força  movente  (VM  –  EK)  vai  se  reduzindo  (27)  conforme  o  VM  fica  mais negativo, o que também ajuda indiretamente a reduzir esse efluxo de potássio, pois promove fechamento progressivo dos Kv e, portanto, da condutância a potássio (28). No caso do potencial de ação do axônio gigante de lula aqui apresentado – bem  como  em  muitos  potenciais  de  ação  registrados  em  nosso  tecido  nervoso  –,  observa­se  o  fenômeno da hiperpolarização póspotencial (29). Esse fenômeno se deve ao fato de que, dada a cinética mais lenta dos Kv nas suas transições entre os estados aberto e fechado, a condutância a potássio permanece maior do que o seu valor de repouso (30) por  algum  tempo  ainda  depois  de  o  VM  “passar”  pelo  seu  valor  de  repouso.  A  repolarização  que  se  segue  à hiperpolarização (31) deve­se ao fato de que a membrana volta às suas condutâncias iônicas de repouso, determinada pelos canais para sódio e potássio de vazamento.14 ▸  A  inativação  dos  canais  para  sódio  dependentes  de  voltagem  determina  a

existência  de  um  período  após  o  potencial  de  ação  em  que  a  membrana  fica refratária  à  geração  de  novos  potenciais  de  ação.  Revendo  a  Figura  9.28  B,  observamos  que  a recuperação dos Nav a partir do estado inativado é lenta, bem mais lenta do que o fim do potencial de ação e do intervalo em que se pode detectar condutância a sódio dependente de voltagem. Isso significa que a ausência de condutância a sódio ao fim do potencial de ação não decorre do fato de 60% dos Nav encontrarem­se fechados e os outros 40% inativos, como originalmente no potencial de repouso. Há, sim, uma porcentagem significativamente maior desses canais ainda inativada, reduzindo, portanto, o número de canais Nav no estado fechado. Lembrando que é a partir do estado fechado que os canais podem  abrir  e  gerar  a  despolarização  adicional  que  se  retroalimenta  positivamente  deflagrando  o  potencial  de  ação,  se  o mesmo estímulo elétrico que deflagrou o potencial de ação for novamente aplicado nesse período, a corrente total de sódio que ele conseguirá ativar pela abertura dos poucos Nav já no estado fechado será menor do que a que gerou no potencial de ação  original.  Essa  corrente  menor  de  sódio  pode  não  ser  suficiente  para  superar  a  corrente  de  potássio  dependente  de voltagem  paralelamente  ativada.  Assim,  não  se  atinge  mais  um  potencial  limiar,  em  que  a  corrente  de  sódio  se  iguala  à corrente de potássio. É como se a membrana tivesse perdido sua responsividade original ao mesmo estímulo. Diz­se, pois, que a membrana entra em um período refratário ao disparo de potenciais de ação (Figura 9.30). No período refratário, como a densidade de canais Nav no estado fechado é menor do que no repouso pleno, somente estímulos que levem o VM a valores menos negativos do que o potencial limiar original (ou seja, estímulos mais intensos) poderão disparar um novo potencial de ação. Em outras palavras, o potencial limiar é variável e é tão mais despolarizado

quanto  mais  próximo  do  início  do  potencial  de  ação  original  for  aplicado  um  novo  estímulo.  Por  isso,  no  período refratário,  os  Nav  fechados  precisam  de  um  bônus  de  despolarização  a  mais,  provindo  do  estímulo,  para  conseguir deflagrar  um  novo  potencial  de  ação.  Outra  consequência  é  que  esse  novo  potencial  de  ação  terá  um  pico  de  menor amplitude (Figura 9.31), pois será atingido com um número menor de canais Nav abertos, já que se parte de um número menor de canais “abríveis”, isto é, aqueles canais que já se encontram no estado fechado.

Hodgkin, Huxley e a lula | Molusco tímido, cientistas audazes Alan  Hodgkin  e  Andrew  Huxley  foram  dois  cientistas  ingleses  que,  por  meio  de  seus  experimentos  no axônio  gigante  da  lula  (uma  fibra  nervosa  muito  calibrosa,  com  um  diâmetro  que  pode  alcançar  1  mm) elucidaram como as condutâncias e correntes dependentes de voltagem interagem entre si na geração do potencial  de  ação.  Nesse  animal,  o  grande  diâmetro  desse  neurônio  garante  uma  rápida  propagação  do potencial  de  ação,  pois  sua  constante  de  espaço  é  grande,  devido  à  resistência  axial  baixa  (as  lulas  não tiveram  o  desenvolvimento  de  bainha  de  mielina  ao  longo  de  sua  evolução).  Essa  grande  velocidade  de propagação permite ao animal realizar uma contração rápida e vigorosa do seu manto, permitindo sua fuga de predadores através do jateamento retrógrado de água pelo seu sifão e liberação de tinta. Em  um  brilhante  esforço  intelectual  e  de  computação,  em  uma  época  em  que  não  havia  computador disponível,  Hodgkin  e  Huxley  elegantemente  construíram  um  modelo  matemático  cujos  resultados reproduziam fidedignamente suas observações experimentais. Nesse modelo, elaborado antes mesmo de que  a  existência  dos  canais  fosse  comprovada,  propuseram  que  as  condutâncias  a  sódio  e  a  potássio seriam regidas pela movimentação de “partículas”, movimentação cuja probabilidade seria dependente da voltagem  através  da  membrana.  Tais  partículas  poderiam  alternar  entre  estados  condutivos  e  não condutivos.  No  caso  da  condutância  a  sódio,  esta  seria  ativada  se  três  partículas  de  ativação  (cuja probabilidade  de  estarem,  cada  uma,  em  estado  condutivo  –  variando  de  0  a  1  –  foi  denominada  por Hodgkin  e  Huxley  como  “m“)  se  encontrassem  ao  mesmo  tempo  no  estado  condutivo  (ou  seja,  a probabilidade  de  ativação  da  condutância  a  sódio  seria  dada  por  m3)  e  que  outra  partícula  (“h“), responsável pela inativação, estivesse também em um estado condutivo. Para a condutância a potássio, a mesma  estratégia  de  modelagem  foi  seguida,  mas,  no  caso  desses  íons,  o  modelo  não  predizia  uma partícula  de  inativação  da  corrente  (já  que  efetivamente  não  observaram  inativação  das  correntes  de potássio),  e  sua  ativação  seria  dependente  da  probabilidade  de  que  quatro  partículas  de  ativação  da condutância  (denominadas  por  eles  como  “n“)  estivessem  todas  em  um  estado  condutivo  (ou  seja,  n4). Ademais, o modelo se ajustava aos dados experimentais se as constantes de velocidade de transição entre os estados condutivo e não condutivo para m fossem maiores do que para h e n. É  impressionante  como  tal  modelo  concorda  com  o  que  hoje  sabemos  sobre  o  funcionamento  dos canais: três comportas de ativação precisam se abrir para que um canal para sódio saia do estado fechado para  o  aberto  (correspondendo  a  m3),  mas  o  canal  pode  se  inativar  pela  movimentação  da  bola  de inativação  entre  os  domínios  III  e  IV  (ou  seja,  h).  No  caso  dos  canais  para  potássio,  sua  resposta  à voltagem  é  mais  lenta  à  despolarização,  em  parte  porque  é  preciso  que  todas  as  quatro  comportas  de ativação estejam abertas (n4) para o canal se abrir. Por essas contribuições, Hodgkin e Huxley ganharam o Prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia em 1964. Na  verdade,  o  período  refratário  pode  ser  subdividido  em  período  refratário  relativo,  em  que  um  estímulo  mais intenso do que o limiar original ainda consegue disparar um potencial de ação, e o período refratário absoluto, quando a porcentagem de canais no estado inativo é tão grande que há muito poucos canais no estado fechado disponíveis para se abrir e iniciar um novo potencial de ação.

Figura 9.30 ■ Períodos refratários relativo e absoluto e sua relação com a variação do potencial limiar no tempo e com o número de canais para sódio dependentes de voltagem inativos. (Traçados gerados a partir do programa NERVE, desenvolvido pelo Prof. Francisco Bezanilla, da Universidade de Chicago, e disponível em http://nerve.bsd.uchicago.edu.)

O “bônus de despolarização” disponibilizado pelo estímulo para que a membrana vença o período refratário relativo é particularmente  importante  no  caso  de  estímulos  longos  –  com  duração  muito  maior  do  que  a  duração  de  um  único potencial de ação –, pois possibilita a codificação da intensidade e da duração do estímulo pela frequência e duração das salvas de potenciais de ação deflagradas pelo estímulo, como mostra a Figura 9.31. Isso porque, com um estímulo mais intenso,  consegue­se  desenvolver  mais  cedo  uma  corrente  despolarizante  que  supere  a  corrente  de  potássio.  Ou  seja, apesar de o valor do potencial limiar variar após um potencial de ação, mais cedo um valor limiar é atingido pela soma da despolarização promovida pelo estímulo com a corrente de sódio dependente de voltagem mediada pelos poucos canais já no estado fechado que se abrem em resposta ao estímulo despolarizante.15

Figura  9.31  ■   Codificação  da  intensidade  e  duração  de  potenciais  graduados  supralimiares  pela  frequência  gerada  de potenciais  de  ação.  A.  Resposta  graduada  de  um  axônio  de  lula  frente  a  estímulos  de  corrente  dispolarizante  (EST.) crescentes. B. Resposta do mesmo segmento aos estímulos em A, agora considerando também a atividade dos NaV e KV. Note que  o  número  de  potenciais  de  ação  contados  no  intervalo  de  tempo  aumenta  com  a  intensidade  de  EST.,  mas  a  amplitude diminui.  (Traçados  gerados  a  partir  do  programa  NERVE,  desenvolvido  pelo  Prof.  Francisco  Bezanilla,  da  Universidade  de Chicago, e disponível em http://nerve.bsd.uchicago.edu.)

Se o período refratário relativo é fundamental para a codificação da intensidade dos estímulos por potenciais de ação, o período refratário absoluto é crucial para a propagação do potencial de ação ao longo da célula excitável, como veremos a seguir. ▸  A  existência  do  período  refratário  absoluto  determina  o  sentido  de  propagação

autorregenerativa  do  potencial  de  ação  no  espaço  ao  impedir  que  um  potencial  de ação  deflagre  um  novo  potencial  de  ação  por  onde  já  passou. Até  aqui,  abordamos  como  o potencial  de  ação  ocorre  em  uma  única  região  da  membrana  ao  longo  do  tempo.  Como  discutimos  anteriormente,  o

potencial de ação, uma vez deflagrado, é inevitavelmente refeito em todos os pontos da membrana que contenham canais dependentes de voltagem NaV.  Já  vimos  antes  também  que  o  alcance  espacial  (dependente  da  constante  de  espaço  λ)  e  a velocidade  de  variação  do  potencial  de  membrana  promovida  pelos  canais  dependentes  de  voltagem  em  cada  ponto  da membrana (dependente da constante de tempo τ) afetam a velocidade de propagação de sinais elétricos em uma célula. No caso  dos  neurônios  geradores  de  potenciais  de  ação  nos  seres  humanos,  são  observadas  diferentes  morfologias  que implicam diferentes velocidades de propagação, como resume o Quadro 9.3. Como  se  pode  ver  nesse  quadro,  quanto  maior  o  diâmetro  da  fibra  (maior  λ),  maior  a  velocidade  de  condução  do potencial  de  ação.  Também,  a  presença  de  bainha  de  mielina  tem  efeito  ainda  mais  pronunciado  sobre  a  velocidade  de condução (maior λ e menor τ). Como a bainha também aumenta a eficiência das cargas que se movimentam, através dos canais  dependentes  de  voltagem,  em  promover  variação  do  VM,  por  diminuir  a  capacitância  e  as  correntes  de  vazamento (alta RM), a duração do potencial de ação, e por consequência a do seu período refratário, é reduzida. Isso permite que a faixa  de  frequências  com  que  os  potenciais  de  ação  possam  ser  gerados  e  transmitidos  nessas  fibras  seja  grande, aumentando o poder e a sensibilidade da codificação de informação nas fibras mielínicas em relação às amielínicas. A diferença na velocidade entre as formas de condução (regeneração) do potencial de ação entre as fibras mielinizadas e  aquelas  sem  mielinas  é  tão  grande  que  a  condução  nas  fibras  com  bainha  de  mielina  recebeu  o  nome  de  condução saltatória, enquanto nas fibras não mielinizadas (fibras C, células musculares e no axônio gigante da lula) sua condução é pontual,  ou  condução  ponto  a  ponto.  Esses  nomes  distintos  podem  sugerir  que  há  mecanismos  fundamentalmente diferentes  na  propagação  dos  potenciais  de  ação  entre  esses  dois  tipos  de  fibra,  mas  isso  não  é  verdade.  Como  ilustra a Figura 9.32, é o alcance espacial instantâneo (ou seja, λ) do potencial de ação a outra área de membrana que permitirá que nessa área de membrana seguinte os Navdali sejam ativados e o sinal seja refeito pelos canais dessa região, desde que chegue com amplitude tal que a despolarização que promova ainda seja superior ao potencial limiar naquela região. Esse mecanismo tem de acontecer tanto na condução ponto a ponto quanto na condução saltatória para que o potencial de  ação  seja  propagado.  A  diferença  entre  as  duas  conduções  é  que,  sem  bainha  de  mielina,  a  constante  de  espaço  decai intensamente,  tendo  um  alcance  de  poucos  micrômetros.  Por  outro  lado,  com  a  bainha  de  mielina,  o  decaimento  da constante  de  espaço  é  muito  menos  intenso,  o  que  faz  com  que  potenciais  de  ação  possam  ser  transmitidos eletrotonicamente entre dois nós de Ranvier que podem estar afastados entre si por até um milímetro! De qualquer forma, no segundo nó, da mesma forma que na condução ponto a ponto, empenha­se tempo em regenerar o potencial de ação com os canais dependentes de voltagem dali para que, assim regenerado, o potencial de ação alcance o nó de Ranvier seguinte. Portanto,  enquanto  na  condução  ponto  a  ponto  um  potencial  de  ação  gasta  10  ms  para  se  propagar  (i.  e.,  ir  se autorregenerando)  por  uma  distância  de  10  μm,  um  potencial  de  ação  trafegando  por  uma  fibra  mielínica  terá  percorrido 1.000 μm (1 mm) nos mesmos 10 ms. No entanto, essa eficiência das fibras revestidas com mielina pode custar caro em doenças  em  que  haja  perda  da  bainha  de  mielina,  como  é  o  caso  da  esclerose  múltipla  e  da  síndrome  de  Guillain­Barré. Isso porque, como praticamente não há canais dependentes de voltagem nas regiões de membrana da fibra envolvidas pela bainha, a perda da mielina não pode ser compensada por condução ponto a ponto. Como a mielinização é muito importante nos motoneurônios α que controlam a musculatura esquelética, essas doenças se caracterizam pela perda dos movimentos voluntários e, eventualmente, dos movimentos respiratórios. Tendo entendido como os potenciais de ação podem ser propagados por todas as regiões da membrana da célula que sejam contíguas e contenham Nav e Kv, uma questão pode surgir: será que um potencial de ação não pode voltar por onde veio e ficar reverberando em um eterno vaivém? Mais uma vez a existência de períodos refratários, neste caso do período refratário absoluto, é fundamental (Figura 9.33). Quando o potencial de ação está se desenvolvendo em certo ponto da membrana, o outro ponto que imediatamente o precedeu (e onde no milissegundo anterior estava ocorrendo o potencial de ação que levou ao desenvolvimento deste novo e  mesmo  potencial  de  ação  no  ponto  da  membrana  considerado)  está  no  seu  período  refratário  absoluto  –  isto  é,  não  há canais Nav fechados e disponíveis para serem abertos e gerarem um novo potencial de ação, pois a maioria desses canais, senão  todos,  estão  no  estado  inativo.  Ou  seja,  nesse  ponto  anterior  da  membrana  neste  momento  não  é  possível  que  um potencial  de  ação  seja  gerado,  por  mais  que  justamente  na  região  adjacente  esteja  agora  acontecendo  uma  despolarização muito intensa – um potencial de ação. ▸ O potencial limiar também varia no espaço em função da densidade de canais para

sódio  dependentes  de  voltagem  ao  longo  da  membrana  da  célula,  delimitando regiões  mais  prováveis  para  o  início  do  disparo  e  propagação  de  um  potencial  de ação.  Sabendo  como  o  potencial  de  ação  se  propaga  pelas  células  excitáveis  longas  e  se  extingue  ao  alcançar  os

terminais de um neurônio (ou o fundo dos túbulos T em uma fibra muscular esquelética), resta somente uma pergunta a ser respondida: onde na célula é mais provável que surjam os potenciais de ação?

Quadro 9.3 ■ Diferentes morfologias que implicam diferentes velocidades de propagação de sinais elétricos em fibras nervosas. Velocidade Tipo de

Período

de

Duração

refratário

Diâmetro

Bainha de

condução

do PA

absoluto

fibra

Subtipo

Função

(µm)

mielina

(m/s)

(ms)

(ms)

A

α

Propriocepção,

12 a 20

Sim

70 a 120

0,4 a 0,5

0,4 a 1

motoneurônios α β

Tato, pressão

5 a 12

(Espessa)

30 a 70

γ

Motoneurônios γ

3 a 6

Sim

15 a 30

δ

Dor localizada, frio,

2 a 5

Sim

12 a 30

> Volumecélula.

O processo associado a um Ji – e outros semelhantes que envolvem gases em lugar de partículas diluídas – recebe o nome de difusão.  A  difusão  pode  ser  definida  como  o  movimento  de  um  componente  de  um  dado  compartimento  para outro,  que  se  realiza  espontaneamente  no  sentido  de  igualar  sua  concentração  ou,  de  uma  perspectiva  termodinâmica,  de igualar seu potencial químico.  Por  acontecer  espontaneamente,  a  difusão  é  considerada  um transporte passivo.  Uma  vez que  o  termo  “compartimento”  implica  certa  quantidade  de  substância  que  se  comporta  de  maneira  homogênea,  admite­se de  imediato  que  a  difusão,  para  igualar  o  potencial  químico  de  determinada  espécie,  deve  ocorrer  através  de  uma membrana  que  o  separa  de  outro  no  qual  o  potencial  químico  dessa  espécie  seja  menor.  Nesse  ponto,  o  fenômeno  da difusão  deve  ser  conceitualmente  diferenciado  do  movimento  constante  dos  componentes  que  ocorre  dentro  de  um compartimento como resultado da agitação térmica. A  expressão  potencial  químico  de  uma  substância  “i”  (μi)  requer  sua  definição.  Trata­se  da  medida  da  capacidade dessa  substância  de  provocar  uma  troca  física  ou  química,  de  modo  que  uma  substância  com  alto  potencial  químico  tem uma grande capacidade de tornar possíveis essas trocas, inclusive o de sua própria concentração! No caso específico deste capítulo,  quanto  maior  o  potencial  químico  de  uma  substância  “i”  dissolvida  em  um  compartimento,  maior  será  sua tendência espontânea de fluir – através de uma membrana – para outro compartimento vizinho onde seu potencial químico seja mais baixo. A partir dessa definição, torna­se claro que, quanto maior a concentração de uma espécie química, maior o seu potencial químico. De maneira análoga, quanto maior a pressão parcial de um gás (uma medida de sua concentração em  uma  mistura),  maiores  seu  potencial  químico  e  sua  tendência  a  fluir  para  outro  compartimento:  é  o  que  ocorre  no epitélio alveolar, como apresentado no Capítulo 44, Difusão e Transporte de Gases no Organismo. Quando nos referimos à difusão simples (veremos logo a diferença com relação à difusão facilitada), essa tendência de migrar  espontaneamente  é  dada  pelo  potencial  químico  de  uma  substância  e  é  a  única  que  intervém.  Não  intervém  o transporte  do  líquido  onde  essa  substância  se  encontra  (água  nos  sistemas  biológicos),  embora  exista  o  fenômeno de  arraste  pelo  solvente,  importante  em  alguns  segmentos  dos  túbulos  renais;  assim  como  não  intervêm  na  difusão simples os campos elétricos ou gravitacionais. Há mais de um século foi proposto – e demonstrado 50 anos depois – que a entrada  de  uma  substância  em  uma  célula  é  mais  rápida  quanto  mais  facilmente  ela  se  dissolve  em  lipídios,  do  que  a entrada  daquelas  que  têm  menor  solubilidade  nestes;  e,  de  modo  geral,  quanto  menor  for  seu  tamanho.  O  experimento apresentado na Figura 12.2 demonstra que a velocidade de entrada de diferentes substâncias não eletrolíticas nas células da alga  verde  Chara  é  maior  quanto  maior  for  seu  coeficiente  de  partição  “κ”  entre  azeite  de  oliva  e  água,  sendo  κ  = solubilidade  em  azeite  de  oliva/solubilidade  em  água.  Esse  experimento  não  apenas  ajuda  a  entender  por  que  pequenas

moléculas  não  carregadas  (incluindo  gases)  penetram  com  facilidade  dentro  das  células  ou  as  atravessam:  ele  deu  uma contribuição  essencial  para  a  formulação  da  teoria  da  membrana  e  do  modelo  da  bicamada  lipídica.  Para  além  do  seu simples  particionamento  na  membrana  e  de  sua  transferência  para  o  compartimento,  onde  o  potencial  químico  da substância seja menor, a difusão simples pode ocorrer através de poros, como é o caso da água, por exemplo. Os fluxos de  água,  que  exemplificam  também  como  a  passagem  de  uma  substância  pode  ser  influenciada  por  hormônios,  serão abordados no Capítulo 55, Rim e Hormônios.

Figura  12.2  ■   A  velocidade  de  entrada  de  diferentes  substâncias  não  eletrolíticas  nas  células  da  alga  verde  Chara ceratophylla (ordenada) é maior quanto maior for o seu coeficiente de partição azeite de oliva/água κ (abscissa). MRD  é  uma função  da  massa  molecular,  e  os  símbolos  usados  indicam  as  faixas  de  valores  para  essa  função.  Os  valores  mostrados  na ordenada para velocidade de entrada (permeabilidade da membrana para cada substância; ver equações 12.2 a 12.6 no texto) correspondem  à  raiz  quadrada  daqueles  determinados  experimentalmente.  A  linha  B  se  ajusta  à  maioria  dos  valores  de  P obtidos para diferentes substâncias, enquanto as linhas A e C se ajustam, respectivamente, a um número menor de valores de P, que são aproximadamente 5 vezes superiores e inferiores aos encontrados ao longo da trajetória B. No artigo original, o autor discute ainda que a solubilidade em lipídios é o fator mais importante que governa a permeação de uma substância através de uma  membrana  (note  que  há  símbolos  diferentes  ao  longo  de  toda  a  linha  B),  mas  reconhece  que  “há  uma  influência  do tamanho molecular maior do que aquela assumida em outro trabalho”. (Adaptada de Collander, 1949.)

Uma vez que já temos a definição de Ji, resta­nos compreender qual seu significado fisiológico para além da diferença de  potencial  químico/concentração.  A  conhecida  primeira  lei  de  Fick  de  1885  estabelece  que  “a  quantidade  de  uma substância  ‘i’  em  solução  que  atravessa  uma  barreira  (p.  ex.,  uma  membrana)  na  unidade  de  tempo  (ou  seja  Ji)  é proporcional à área de superfície da barreira e ao gradiente de concentração de ‘i’ entre ambos os lados da barreira e ao coeficiente de difusão ‘Di’”. Note­se que a lei menciona gradiente de concentração Δci/Δx – a força acoplada (no sentido de causadora) responsável pela ocorrência desse fluxo –, no qual Δx corresponde à espessura da barreira, assumindo que a  passagem  é  perpendicular  a  ela,  e  não  apenas  Δci.  Essa  diferença  conceitual,  aparentemente  sutil,  é  essencial  para compreender como a velocidade de passagem para dentro ou para fora de uma célula depende da espessura da membrana. Uma analogia pode ser encontrada no deslizamento de água do alto de uma montanha: se a diferença de altura entre o topo e a base for estabelecida abruptamente, a água desliza mais rapidamente do que se essa mesma diferença for estabelecida suavemente ao longo de uma grande distância. Note­se ainda que a lei de Fick não se refere à “membrana”. Sua existência ainda  era  negada  por  muitos  àquela  época.  Essa  lei,  assim  formulada,  pressupõe  que  a  substância  não  é  carregada  e  que

não  existem  diferenças  de  pressão  hidrostática  que,  ao  provocar  fluxo  do  líquido  da  solução,  poderiam  gerar  um  fluxo adicional de “i”. Em símbolos, podemos escrever:

em  que  Ji  e  Δci/Δx  têm  os  significados  definidos  anteriormente.  Note­se  que  tanto  Ji  quanto  Δci/Δx  são  magnitudes (quantidades) vetoriais porque têm direção e sentido. O sinal negativo da equação (vindo de Δci/Δx) indica que Ji implica a diminuição da Δci porque, como definido anteriormente, um fluxo espontâneo ocorre da maior para a menor concentração para que estas se igualem. O coeficiente de difusão D – uma constante de proporcionalidade – é definido como o número de moles (ou múltiplos/submúltiplos) que fluem em 1 segundo através de uma barreira com uma área de superfície de 1 cm2, quando existe uma diferença de concentração de 1 mol por cm3 estabelecida ao longo de uma distância de 1 cm entre um  lado  e  outro  dessa  barreira.  O  coeficiente  D  depende  da  natureza  química  da  substância  que  difunde,  de  sua  massa molecular, da temperatura e de propriedades do meio como a viscosidade. Quais são as unidades em que se expressa D no sistema CGS, o sistema de unidades baseado no centímetro, na grama e no segundo? Pela definição anterior: D = 1 mol/{(1 cm2 × 1 s) × [(1 mol/cm3)/1 cm]} Disso resulta que as unidades de D são cm2 × s–1. No sistema internacional (SI) baseado no metro, no quilograma e no segundo, as unidades de D são m2 × s–1. Se  à  época  de  sua  formulação  a  lei  de  Fick  não  requeria  conceitualmente  uma  membrana,  ela  existe  e  o  fluxo  de substâncias  através  dela  constitui  o  objeto  do  presente  capítulo.  Nos  seres  vivos  encontramos  a  membrana  sendo  a estrutura através da qual os gradientes se estabelecem e os fluxos ocorrem, de modo que, assumindo (i) que a diferença de concentração  através  da  membrana  é  homogênea  e  (ii)  que  a  difusão  é  linear  e  perpendicular  ao  plano  da  membrana,  a distância  que  separa  os  dois  compartimentos  (interstício  e  célula  no  caso  da  membrana  plasmática)  é  a  espessura  da membrana “l”, de modo que a equação 12.1 pode ser escrita como:

sendo a relação –Di/l denominada coeficiente de permeabilidade Pi.  Assim,  a  equação  12.2  pode  ser  inicialmente  escrita como:

Todavia, as concentrações ci1 e ci2 no interior das soluções dos respectivos compartimentos não são as mesmas que as existentes  nas  faces  (e  no  interior)  da  membrana  que  se  encontram  em  contato  imediato  com  as  soluções;  estas  são estabelecidas  dependendo  do  coeficiente  de  partição  βi  =  solubilidade  da  substância  “i”  na  membrana/solubilidade  da substância “i” no líquido dos compartimentos, que no caso dos sistemas biológicos é a água, de modo que a equação 12.2 pode ser escrita como:

ou:

em que –Diβi/l ≡ Pi conforme definido anteriormente. Essa  equação  nos  permite  ampliar  o  conceito  de  “propriedades  do  meio  dos  quais  depende  D”  anteriormente apresentado: Di depende também do coeficiente de partição de “i” na membrana. Portanto, a equação 12.3 pode ser escrita como:

Embora D e P sejam propriedades relacionadas, como o mostra o sinal de identidade (≡), o coeficiente Di é referido como  sendo  uma  propriedade  da  substância  “i”  que  flui,  enquanto  o  coeficiente  Pi é  referido  como  uma  propriedade  da

membrana  da  qual  depende  a  maior  ou  menor  facilidade  de  passagem  da  substância  “i”.  É  interessante  destacar  que  a unidade de P no sistema CGS – como podemos ver a partir de sua relação com D e l – é cm × s–1, ou seja, uma unidade de velocidade,  o  que  de  maneira  muito  apropriada  caracteriza  a  facilidade  ou  não  com  que  uma  substância  atravessa  uma membrana biológica. A Figura 12.3 ilustra, de maneira esquemática, o que as equações anteriores descrevem. A  equação  12.5  descreve  de  forma  adequada  o  transporte  passivo  de  muitas  substâncias  não  carregadas  através  da membrana plasmática das células. Todavia, em muitos casos, os fluxos são subestimados usando essa equação, indicando que  a  membrana  é  mais  permeável  do  que  o  previsto.  Entretanto,  a  permeabilidade  aumenta  para  algumas  substâncias  e não  para  outras  e,  quando  o  aumento  ocorre,  ele  é  distinto  para  diferentes  substâncias,  o  que  permite  concluir  que  o transporte é mediado por carreadores específicos através de processos denominados difusão facilitada. Ver mais adiante, em detalhe, “Tipos de transporte através da membrana”. Para uma substância “i”  ser  carreada  em  um  processo  de  difusão  facilitada,  esta  precisa  inicialmente  se  ligar  ao  seu carreador  específico  “C”  na  superfície  da  membrana  voltada  para  o  compartimento  a  partir  do  qual  será  transportada, formando o complexo “iC” que se dissocia do outro lado em “i” e “C”. Podemos, então, representar um equilíbrio (para cada temperatura) da forma: iC ⇔ i + C e escrever a constante K que descreve (quantifica) a relação de concentrações de iC, i e C neste equilíbrio:

Figura 12.3 ■ Representação gráfica do fluxo passivo da substância “i” (Ji  1→2) através de uma membrana de espessura “l” que separa os compartimentos 1 e 2. A figura apresenta à esquerda o compartimento 1 e à direita o compartimento 2, sendo ci1> ci2. A barreira  cinza  que  separa  ambos  os  compartimentos  representa  a  membrana,  na  qual  β  é  o  coeficiente  de  partição  de  “i”.  O sentido do fluxo Ji 1→2 espontâneo (seta) é determinado pelo fato de c1 > c2. Sua velocidade depende da magnitude da diferença entre ambas, pelos valores de D e de β (diretamente proporcional a ambos), bem como de “l” (inversamente proporcional). O sinal  negativo  indica,  pela  convenção  dos  sinais  em  termodinâmica,  que  o  processo  é  espontâneo.  As  linhas  horizontais  em ambos  os  compartimentos  traçadas  em  nível  de  ci1  e  ci2  indicam  que  as  concentrações  são  iguais  em  qualquer  parte  dos compartimentos. A reta dentro da membrana indica que a concentração de “i” decresce linearmente dentro da membrana desde sua  entrada  pela  face  voltada  para  o  compartimento  1  até  sua  saída  pela  face  voltada  para  o  compartimento  2.  Para  outras diferentes circunstâncias específicas, ver texto.

Como a concentração total de C ([C]t) pode ser expressa como:

teremos:

Retornando  às  equações  de  fluxo,  como  “i”  é  transportado  nessa  classe  de  processo  na  forma  do  complexo  “iC”  e assumindo – para simplificar – que “i” é consumido imediatamente após sua passagem para o compartimento 2 (portanto ci2 = 0), podemos escrever a equação 12.5 como:

e ainda:

Substituindo a [iC] na equação 12.11 pelo seu igual conforme a equação 12.9, chegamos a:

em que [i] é a concentração de “i” no compartimento a partir do qual o fluxo se origina (neste caso, o compartimento 1). Conforme definido anteriormente: –DiCβiC/l ≡ PiC Assim, podemos escrever, reagrupando:

Torna­se evidente que, quando todos os carreadores “C” estiverem ocupados por “i” (ou seja, quando [iC] = [C]t), o fluxo de “i” será máximo (Jmáx i), e a equação 12.13 poderá ser finalmente escrita:

cuja  representação  gráfica  é  mostrada  na  Figura  12.4.  Essa  figura  e  a  equação  12.14  (uma  hipérbole  retangular)  nos indicam que os fenômenos de transporte mediados por carreadores podem ser tratados formalmente, em grande parte dos casos,  como  reações  enzimáticas  que  seguem  a  cinética  de  Michaelis­Menten.  Exibem,  por  isso, saturação  (existe  uma velocidade máxima de transporte para cada temperatura) e, em muitos casos, estereoespecificidade (isômeros ópticos L e D podem ter carreadores diferentes). Por isso, também podem sofrer inibição – competitiva e não competitiva ou mista – por substâncias que interferem na ligação da espécie transportada com seu carreador e que, muitas vezes, são usadas como fármacos.

Figura 12.4 ■ Representação gráfica da magnitude do fluxo por difusão facilitada de uma substância “i” (Ji  1→2) através de uma membrana,  em  função  da  concentração  de  “i”  [i]  no  compartimento  a  partir  do  qual  o  fluxo  se  origina  (neste  caso,  o compartimento  denominado  “1”).  Quando  os  carreadores  encontram­se  saturados  por  “i”  (i.  e.,  todos  ocupados  por  “i”),  o fluxo  Ji  alcança  seu  valor  máximo  (Jmáx)  indicado  pela  linha  tracejada.  Note  que  quanto  menor  for  o  valor  da  constante  K, o Jmáx será  alcançado  com  menor  [i],  conforme  se  depreende  da  equação  12.7.  Quanto  maior  a  afinidade  do  carreador  pela substância “i”, maior será a concentração do complexo substância:carreador [iC] para um dado valor de [i].

O  seguinte  exemplo  nos  mostra  agora  como  a  P  de  uma  mesma  membrana  biológica  é  diferente  para  substâncias distintas, tanto no caso de uma difusão simples quanto no de um transporte mediado por carreador. Esse exemplo antecipa também como os fluxos entre compartimentos são de magnitudes diferentes, dependendo da espécie transportada, e como a  distribuição  de  espécies  moleculares  (ou  iônicas)  distintas  varia  quando  se  comparam  o  interior  celular,  os compartimentos extracelulares e o interstício. A permeabilidade da membrana plasmática para o K+ (PK) tem um valor que oscila, dependendo do tipo de célula, em torno de 10–6 cm × s–1 a 37°C, enquanto a permeabilidade para o Na+ (PNa) da membrana  de  uma  célula  em  repouso  oscila  em  torno  de  10–8  cm  ×  s–1  à  mesma  temperatura.  As  concentrações extracelulares e intracelulares de K+ são 5 e 150 mM, respectivamente. As correspondentes para Na+ são  150  e  20  mM, também  dependendo  do  tipo  de  célula.  Qual  seria  a  grandeza  dos  respectivos  fluxos  espontâneos  –  enquanto  essas concentrações se mantiverem – e seu sentido, assumindo que não há diferenças de potencial elétrico? Antes de apresentar os cálculos, mencionamos, exemplificando o funcionamento da membrana como barreira para a difusão, que a PK de uma camada de água é de 10 cm × s–1, ou seja 107 vezes maior. No caso do K+, a tendência termodinâmica espontânea é a de sair do citoplasma (compartimento 2 por convenção; 150 mM = 150 × 10–6 × mol × cm–3) para o meio extracelular (compartimento 1; 5 mM = 5 × 10–6 × mol × cm–3). Aplicando a equação 12.4:

ou  seja,  1,45  ×  10–10  mol  de  K+  haverão  de  fluir  por  cm2  de  área  de  membrana  por  segundo.  Aplicando  o  mesmo raciocínio, encontraremos JNa 1→2 = –1,30 × 10–12 mol × cm–2 × s–1 (i. e., fluindo espontaneamente do interstício para o citoplasma). Esse  exemplo  nos  ajuda  a  compreender  em  parte  o  porquê  da  distribuição  dos  íons  K+  e  Na+  nos  seres  vivos.  A concentração  intracelular  de  Na+  é,  em  uma  condição  de  estado  estacionário,  muito  menor  do  que  a  do  interstício circundante, apesar da tendência termodinâmica de suas concentrações se igualarem (inclusive favorecida pela diferença de potencial  elétrico,  interior  negativo  em  relação  ao  exterior).  Isso  se  explica  em  parte  pela  baixa  permeabilidade  (PNa)  da

membrana  plasmática  e,  como  veremos  ainda  neste  capítulo,  pela  existência  de  poderosas  maquinarias  moleculares  que transportam o Na+ para fora da célula: as ATPases transportadoras de Na+. Embora  as  equações  anteriores  sejam  úteis  para  descrever  o  fluxo  de  uma  única  substância,  devemos  levar  em consideração que as membranas das células são permanentemente atravessadas por um grande número de substâncias ao mesmo tempo e que isso ocorre nas duas direções. Sobretudo, é importante destacar que muitas das espécies químicas que permeiam as membranas biológicas são carregadas e o potencial elétrico gerado pela difusão de uma delas pode favorecer ou restringir a passagem de outra(s). Por outro lado, além da carga elétrica, pressões hidrostáticas, osmóticas e oncóticas podem participar de fluxos de diferentes espécies, apesar de, por simplificação, as deixarmos de lado, como mencionado anteriormente. Um exemplo pode ser visto nos túbulos contornados proximais renais (ver Capítulo 51, Função Tubular).

TRABALHO DE CONCENTRAÇÃO Do  ponto  de  vista  energético,  a  difusão  implica,  enquanto  processo  espontâneo,  uma  variação  negativa  –  pela convenção  de  sinais  que  se  adota  –  de  uma  propriedade  termodinâmica  denominada energia  de  Gibbs (energia  livre,  na notação antiga). Quando isso ocorre, o processo, neste caso o fluxo através de uma membrana, é chamado de exergônico, que em grego significa “realizando trabalho”. Antecipar esse conceito é relevante porque em grande número de processos de transporte, como descreveremos mais adiante, ocorre o acoplamento molecular e termodinâmico de fluxos exergônicos com endergônicos (estes últimos “requerendo trabalho” para ocorrer). A menção anterior ao fato de que o gradiente de concentração Δci/Δx é a força responsável pela ocorrência de um fluxo passivo e que os fluxos implicam a realização de trabalho nos permite facilmente associar o fluxo de “i” do compartimento 1 para o compartimento 2 devido à existência de uma Δci, com a realização de um trabalho de concentração wc i que pode ser definido formalmente como:

em  que  o  trabalho  realizado  (em  joule  ×  mol–1),  ou  variação  de  energia  de  Gibbs  quando  a  substância  “i”  flui espontaneamente  do  compartimento  1  para  o  compartimento  2,  é  igual  ao  produto  da  constante  geral  dos  gases  R  (8,31 joules × K–1 × mol–1), da temperatura absoluta T (em Kelvin, K) e do logaritmo natural da relação entre as concentrações de “i” nos compartimentos 1 e 2. O sinal negativo indica que a variação de energia de Gibbs será negativa (ela se “libera”), como  corresponde  quando  ocorre  um  fluxo  espontâneo  (ci1  >  ci2).  Isso  significa  que  nunca  poderá  ser  definido um wc 1→2 quando ci1  V2, a ΔV será positiva, e se, ao mesmo tempo, o íon “i” transportado for  um  cátion, z terá  sinal  positivo  e  zF  também.  Neste  caso,  o  Ji  1→2  terá  sinal  negativo  e  ocorrerá  espontaneamente. Se V1  ci2, o sinal de z é positivo e o sinal de Em é negativo. O contrário ocorre com a entrada de K+ em uma célula: ci1  2) – evidentemente na faixa em que as enzimas preservam sua estrutura e função – indica a existência de reações químicas envolvidas e, portanto, de transporte ativo. Um Q10 >  GNa  (cerca  de  50  vezes).  Isso  significa  que,  na  equação  de  potencial  de membrana,  os  termos  que  contêm  GK são  muito  maiores  que  os  que  contêm  GNa.  É  por  essa  razão  que  o  potencial  de repouso  depende  muito  mais  da  condutância  ao  K+  que  da  ao  Na+  (conforme  mostrado  nos  resultados  experimentais da Figura 28.3) e possui um valor próximo ao potencial de equilíbrio do K+. É importante ressaltar que as condutâncias para  os  outros  íons  não  são  nulas.  Assim,  o  potencial  de  repouso  do  cardiomiócito  não  coincide  exatamente  com  o potencial de equilíbrio do K+ (que  é  da  ordem  de  –92  mV),  embora  esteja  próximo  a  ele;  desse  modo,  tal  potencial  está muito distante do potencial de equilíbrio do sódio (ENa), que é de +70 mV, e também do Ca2+ (ECa), ainda mais positivo. Dessa  forma,  fica  fácil  compreender  que,  durante  o  repouso,  há  fluxos  de  Na+, K+ e  outros  íons,  pois  existe  uma  força propulsora (Em – EK) para o K+, (Em – ENa) para o Na+, e assim por diante, desde que a membrana tenha permeabilidade a esses íons, isto é, que a condutância (G) para cada um deles não seja nula. A  condutância  ao  K+  no  miocárdio  em  repouso  decorre  da  presença  de  um  tipo  de  canal  para  K+,  da  subfamília Kir2.x, que  conduz  a  corrente  de  K+ retificadora  de  influxo,  IK1.  Dentre  as  propriedades  desse  canal  (IK1),  destaca­se  a dependência de sua condutância à [K+]e (ver Figura 28.3). Até este ponto, consideraram­se apenas fluxos passivos de íons na determinação do potencial de repouso. No entanto, há uma contínua perda de K+ e ganho de Na+ pela célula, mesmo no repouso, existindo permanente reposição desses íons, o  que  permite  manter  as  concentrações  intracelulares  dentro  de  uma  faixa  razoavelmente  estreita  de  valores.  Isso  é  feito pela  bomba  de  Na+/K+.  Devido  à  sua  estequiometria,  transportando  em  cada  ciclo  3Na+ para  fora  da  célula  e  2  K+  para dentro dela, observa­se que há um efluxo efetivo de uma carga positiva a cada ciclo de atividade da bomba, resultando em uma bomba eletrogênica (ou geradora de potencial). A corrente de efluxo carreada pela bomba deve, portanto, ser incluída no  cômputo  das  correntes  que  contribuem  para  o  potencial  de  repouso,  que,  no  caso  do  miocárdio,  é  significativa.  Por meio  da  inibição  seletiva  da  atividade  da  bomba  de  Na+/K+  por  compostos  denominados  de  glicosídios  cardiotônicos, observa­se que, no coração, esse mecanismo de transporte é responsável diretamente por cerca de 5 a 10 mV do potencial de repouso. Portanto, no coração, a bomba de Na+/K+ contribui com esse potencial não só mantendo os gradientes de Na+ e K+, mas também transportando carga efetiva.

▸ Papel do potencial de repouso na excitação cardíaca A manutenção do potencial de repouso dentro de certos valores é fundamental para a ativação normal do coração, uma vez  que  os  principais  canais  iônicos  responsáveis  pela  atividade  elétrica  cardíaca  são  dependentes  de  voltagem.  Assim, para a ativação normal do miocárdio (excetuando­se as células marca­passo), é fundamental que tal potencial seja mantido na  faixa  de  –80  a  –90  mV.  Isso  porque  o  canal  para  Na+,  responsável  pela  fase  inicial  do  potencial  de  ação,  apresenta inativação  dependente  de  voltagem.  Em  –90  mV,  a  probabilidade  de  inativação  do  canal  para  Na+ é  pequena;  portanto, nessa faixa de potencial de membrana o miocárdio tem excitabilidade normal. Na clínica médica e experimentalmente, a hiperpotassemia e a hipopotassemia, além da intoxicação digitálica (inibição da  atividade  da  bomba  de  Na+/K+),  são  condições  que  comumente  alteram  o  potencial  de  repouso.  Caso  o  Vr  se  torne menos negativo, há um progressivo aumento da inativação dos canais para Na+, o que deixa o miocárdio progressivamente menos excitável, podendo ocorrer desde uma propagação lenta e deficiente, até a interrupção da propagação, pelo fato de o miocárdio  passar  a  ser  completamente  inexcitável.  Outra  situação  que  igualmente  compromete  a  excitação  normal  do coração é o aparecimento de uma dispersão espacial de potenciais de repouso, com algumas regiões mais e outras menos despolarizadas, em locais próximos. Isso leva ao aparecimento de correntes extracelulares entre essas regiões, bloqueios de condução, formação de circuitos de reentrada etc.; essas situações favorecem o surgimento de arritmias.

POTENCIAIS DE AÇÃO CARDÍACOS Um  aspecto  que  chama  a  atenção  quando  se  fala  em  potencial  de  ação  cardíaco  é  a  grande  diversidade  de  formas dependendo da região do coração, conforme pode ser observado na Figura 28.4. Os potenciais de ação do NSA e NAV de mamíferos  dispõem  de  amplitudes  bem  menores  que  os  de  outras  regiões  do  coração  (sendo  cerca  de  60  mV  nos

nodos versus 120 mV no miocárdio atrial e ventricular). Além disso, as células do NSA e NAV de mamíferos não têm um potencial de repouso (fase 4) estável. Outra característica marcante dos potenciais de ação cardíacos é a longa duração, quando comparados aos potenciais de ação do axônio. Conforme mostrado na Figura 28.2 B, a partir do potencial de repouso de cerca de –90 mV, percebe­se rápida  despolarização  que  pode  chegar  a  +40  mV  em  poucos  milissegundos  (fase  0).  A  seguir,  diferentemente  do observado  no  potencial  de  ação  do  axônio,  em  que  a  repolarização  se  processa  em  poucos  milissegundos,  no  músculo ventricular  a  fase  de  repolarização  rápida  (fase  1)  é  interrompida  por  um  platô  de  duração  variável  (100  a  500  ms). Durante o platô (fase 2),  a  célula  fica  despolarizada  com  um  potencial  próximo  de  zero  mV,  para  só  depois  completar  a repolarização (fase 3), voltando ao nível de repouso (fase 4). Dentro  desse  contexto,  pode­se  perguntar:  como  é  possível  toda  essa  variabilidade?  Para  analisar  essa  questão, retorna­se à equação de circuito equivalente:

Segundo essa equação, o potencial transmembrana é determinado basicamente pela relação entre as várias condutâncias iônicas a cada momento, já que os potenciais de equilíbrio dos diferentes íons são mantidos razoavelmente constantes.

Figura 28.4 ■ Registros  de  potenciais  de  ação  obtidos  em  diferentes  regiões  do  coração.  Observe  que  cada  figura  tem  uma escala de voltagem (vertical) e de tempo (horizontal) diferente, devido às diferenças nas amplitudes e durações dos potenciais de ação nos vários locais de registro. A. Ilustra a atividade marca­passo de uma célula do nodo sinusal de coelho. (Adaptada de Boyett et al., 2000.) B. Indica  o  potencial  de  ação  de  um  miócito  atrial  humano.  (Adaptada  de  Li  e  Nattel,  1997.)  C.  Ilustra  o potencial de ação de fibra de Purkinje humana. (Adaptada de Lee et al., 2004.) D. O potencial de ação de um miócito isolado de ventrículo esquerdo humano. (Adaptada de Iost et al., 1998.) E. Indica os potenciais de ação de miócitos isolados das camadas do ventrículo direito humano: subendocárdica (Endo), subepicárdica (Epi) e mesocárdica/endocárdica (M). (Adaptada de Li et al., 1998.)

No repouso, como descrito anteriormente, uma vez que GK >> GNa, o potencial de repouso do cardiomiócito tem valor próximo  ao  EK.  Se,  em  dado  momento,  GNa ou GCa aumentarem  e  se  tornarem  muito  maiores  que  o  GK,  a  situação  se

inverterá completamente, ficando o potencial transmembrana mais perto do ENa ou do ECa. Assim, durante um potencial de ação,  as  condutâncias  aos  diversos  íons  estarão  variando,  e  o  potencial  transmembrana  terá,  a  cada  momento,  valores definidos  pela  relação  entre  as  diferentes  condutâncias,  estando  sempre  mais  próximos  do  potencial  de  equilíbrio  do  íon cuja condutância, naquele determinado momento, seja predominante. A seguir, será descrito como variam as condutâncias iônicas ao longo do potencial de ação e, assim, será possível compreender como é determinado o decurso temporal de um potencial de ação. Fundamentando­se  no  potencial  de  repouso  (fase  4  estável  ou  instável)  e  na  velocidade  de  despolarização  (fase  0 rápida ou lenta), os potenciais de ação cardíacos são classificados em dois tipos: rápido ou lento.

▸ Potencial de ação rápido Na Figura 28.5 A  é  apresentado  o  esquema  de  um  potencial  de  ação  rápido,  característico  do  miocárdio  de  trabalho atrial e ventricular, do feixe de His e das fibras de Purkinje, em paralelo com um esquema representando a intensidade das principais  correntes  iônicas  envolvidas  no  mesmo.  Registros  experimentais  de  potenciais  de  ação  do  tipo  rápido  foram exemplificados na Figura 28.4 B a E. Os mecanismos envolvidos na gênese do potencial de ação do tipo rápido serão descritos, a seguir, de acordo com cada fase. ▸  Fase 0. A  principal  corrente  despolarizante,  responsável  pela fase  0  do  potencial  de  ação  rápido,  é  a  corrente  de influxo de Na+ (INa) que flui através de canais para Na+ dependentes de voltagem (ver Capítulo 10, Canais para Íons nas Membranas  Celulares).  INa  é  ativada  quando  a  membrana  é  despolarizada  até  o  nível  limiar,  levando  o  canal  para Na+ dependente de voltagem do estado fechado para o estado aberto, tornando GNa >> GK e promovendo rápido e maciço influxo  de  Na+.  Esse  influxo,  por  sua  vez,  promoverá  despolarização  adicional  e,  consequentemente,  maior  aumento  de GNa, pois um maior número de canais passará do estado fechado para o aberto, contribuindo com o maior influxo de Na+; e  assim  por  diante,  em  um  processo  de  retroalimentação  positiva,  resultando  em  rápida  e  grande  despolarização  (dV/dt: 150 a 800 V/s), característica da fase 0 deste tipo de potencial de ação, levando o potencial transmembrana em direção ao ENa.  Pela  sua  grande  densidade,  essa  corrente  é  fundamental  para  a  rápida  propagação  do  potencial  de  ação  (1  a  5  m/s), que  atinge  maior  velocidade  nas  fibras  de  Purkinje  (tecido  especializado  em  condução)  e  menor  no  miocárdio  atrial  e ventricular.  Porém,  como  descrito  no  Capítulo  10,  esse  canal  possui  uma  comporta  de  inativação,  também  sensível  a despolarização;  assim,  a  progressiva  despolarização  da  membrana  plasmática  levará  o  canal  para  Na+  dependente  de voltagem do estado aberto para o estado inativado, o que reduz a INa. ▸ Fase 1. Esta fase é marcada por uma rápida e transitória repolarização, que se segue à despolarização inicial, a qual está  associada  à  abertura  de  canais  para  K+ (Kv1.4,  Kv4.2  e  Kv4.3)  ativados  por  despolarização,  que  geram  a  corrente transiente de efluxo de K+ (Ito1). Nesta fase, portanto, há rápido e momentâneo aumento de GK, fato que traz o potencial transmembrana em direção ao EK, afastando­o do ENa. As rápidas cinéticas de ativação e inativação desses canais explicam a pronta instalação desta fase de repolarização e o seu caráter transitório, que se reflete na presença de uma incisura entre o  pico  da  fase  0  e  o  platô  (fase  2)  do  potencial  de  ação  (ver  Figura  28.5  A).  Uma  vez  que  a  Ito1  se  distribui heterogeneamente  na  parede  ventricular,  a  incisura  será  mais  pronunciada  nos  cardiomiócitos  das  camadas  epicárdica  e miocárdica, que apresentam maior expressão desses canais em comparação com os miócitos endocárdicos, que apresentam incisura reduzida ou nula (ver Figura 28.4 E). A breve repolarização causada pela Ito modula a magnitude da corrente de Ca2+ (ICa,L), regulando o acoplamento excitação­contração (que será descrito no Capítulo 30, Contratilidade Miocárdica). Em  alguns  tecidos,  como  nas  fibras  de  Purkinje,  existem  evidências  de  que  também  ocorre  uma  corrente  repolarizante através do canal para Cl– (Ito2), a qual também contribui com a fase 1. Devido ao seu potencial de equilíbrio (cerca de –50 mV), o Cl– tende a entrar na célula durante quase todas as fases de repolarização. ▸  Fase  2.  Durante  a  fase  de  platô  (fase  2),  tanto  as  correntes  despolarizantes  (influxo  de  Na+  e  Ca2+)  quanto  as repolarizantes (efluxo de K+ e influxo de Cl–) são pequenas e de amplitudes praticamente iguais (a soma das condutâncias ao Na+ e Ca2+praticamente se iguala à soma das condutâncias ao K+ e Cl–). Assim, o fluxo efetivo de carga durante esta fase  é  muito  pequeno,  razão  pela  qual  o  potencial  transmembrana  permanece  relativamente  estável.  As  correntes despolarizantes  presentes  nesta  fase  incluem  a  corrente  de  Ca2+ do  tipo  L  (em  lenta  e  progressiva  diminuição  devido  à inativação do canal para Ca2+ dependente de voltagem e do aumento da concentração intracelular de Ca2+), o componente de inativação lenta de INa, além da corrente de influxo carreada pelo trocador Na+/Ca2+. Quanto às correntes repolarizantes, o canal para K+ retificador de influxo, IK1, que permanece aberto durante o repouso, fecha­se quase instantaneamente com

a despolarização da fase 0. Assim, durante o platô, ele permanece fechado, contribuindo para diminuir a corrente de efluxo de K+,  mantendo  a  membrana  despolarizada.  Lembre­se  também  de  que  a  bomba  de  Na+/K+,  pela  sua  estequiometria  (2 K+ para dentro da célula e 3Na+ para fora dela), é eletrogênica, carreando corrente repolarizante de baixa amplitude durante todo  o  ciclo  cardíaco.  Seus  efeitos  são  mais  proeminentes  durante  os  dois  períodos  em  que  a  intensidade  das  demais correntes é relativamente baixa, ou seja, durante o repouso e o platô. Finalmente, como a inativação de Ito1, embora seja rápida, não é completa (apresentando um componente de inativação lenta [Ito1,s]), ela pode contribuir para o platô, sendo, pois, também importante na determinação da duração do potencial de ação. Também está envolvida nessa fase a ativação dos canais para K+ dependentes de voltagem, do tipo retificadores retardados (IKr, IKs e IKur). A abertura desses canais, de forma mais rápida ou mais lenta, é induzida pela despolarização da fase 0, a qual promove efluxo de K+. O decaimento das correntes despolarizantes e a predominância das correntes repolarizantes marcam o fim da fase 2 e a gênese da fase 3.

Figura 28.5 ■  Curso  temporal  dos  potenciais  de  ação  cardíacos  rápido  (A)  e  lento  (B)  e  das  principais  correntes  de  influxo (deflexões  negativas)  e  de  efluxo  (deflexões  positivas)  relacionadas  com  cada  fase  dos  potenciais.  INa,  corrente  de  sódio dependente de voltagem; ICa,L,  corrente  de  cálcio  tipo  L; ICa,T,  corrente  de  cálcio  tipo  T;  INa/Ca,  corrente  carreada  pelo  trocador sódio/cálcio; IK1, corrente de potássio retificadora de influxo; IKs, corrente de potássio retificadora retardada lenta; IKr , corrente de potássio  retificadora  retardada  rápida;  IKur ,  corrente  de  potássio  retificadora  retardada  ultrarrápida;  Ito,  corrente  transiente  de efluxo com os dois componentes, Ito1 e Ito2; INa/K, corrente da bomba sódio/potássio; IKp, corrente de fuga de potássio; IK,ACh, corrente de potássio ativada por acetilcolina; IK,ATP, corrente de potássio inibida por ATP; If, corrente marca­passo; INa,bg, corrente de fuga de sódio; Ist, corrente sustentada de influxo. (A. Adaptada de Snyders, 1999. B. Adaptada de Kurata et al., 2002.)

▸  Fase  3.  A  fase  de  repolarização  rápida  final  caracteriza­se  pela  absoluta  predominância  de  correntes  de  efluxo. Portanto,  volta  a  predominar  a  GK.  Nesta  fase,  a  condutância  ao  K+ depende  de  canais  iônicos  diferentes  daqueles  que determinam o potencial de repouso. Ela está diretamente associada à ativação dos canais para K+ dependentes de voltagem, retificadores retardados (IKr, IKs e IKur), induzida pela despolarização da fase 0,  promovendo  um  grande  efluxo  de  K+,  o que  leva  à  rápida  repolarização  observada  nesta  fase.  Esse  processo  de  repolarização  permite  que  o  canal  para K+ retificador de influxo volte para o estado aberto, contribuindo com a IK1, corrente que contribui para a finalização do processo  de  repolarização.  Isso  porque,  com  a  repolarização,  os  canais  para  K+  dependentes  de  voltagem  retificadores retardados estão predominantemente no estado fechado, reduzindo IKr, IKs e IKur. Cabe ressaltar que as peculiaridades dos diversos tipos de canais para K+ retificadores retardados, predominantes nas diferentes regiões do coração e também em distintas espécies animais, são uma das causas da grande variabilidade na morfologia do potencial de ação antes relatada.

A fase 3 é  um  dos  determinantes  da  duração  do  potencial  de  ação  e,  portanto,  de  todas  as  propriedades  que  dependem desse parâmetro. ▸ Fase 4. Durante a fase 4, nas células com potencial de repouso estável, há novamente um balanço entre correntes de efluxo e influxo, de modo que o saldo é uma corrente efetiva nula. A corrente retificadora de influxo, IK1, é responsável pela  estabilização  do  potencial  de  repouso.  IK1 “amortece”  pequenas  variações  do  potencial  de  membrana  da  célula  em repouso.  O  deslocamento  do  potencial  de  membrana  para  valores  mais  negativos  que  o  EK  gera  uma  corrente despolarizante,  de  influxo  de  K+,  que  se  contrapõe  à  hiperpolarização  da  membrana.  Contudo,  em  potenciais  mais positivos  que  o  EK,  a  baixa  condutância  dos  canais  de  IK1  permite  amortizar  pequenas  despolarizações,  tornando­as sublimiares,  mas  impede  esses  canais  de  se  contraporem  à  despolarização  da  membrana  produzida  pelo  influxo  de Na+  durante  a  fase  0  do  potencial  de  ação.  Essa  propriedade  do  canal  de  IK1,  denominada  retificação  de  influxo,  é decorrente do bloqueio do poro desse canal pelo magnésio (Mg2+) e poliaminas (putrescina, espermidina e espermina), que entram  no  poro  pelo  lado  citoplasmático  quando  a  membrana  está  despolarizada.  Esse  bloqueio  pode  ser  revertido  por repolarização da membrana, permitindo correntes de efluxo de K+ por esse canal durante a fase 3 do potencial de ação. No coração humano, a subunidade α do canal para Na+, hNaV1.5 (hH1), é codificada pelo gene SCN5A, que  está  localizado  no  cromossomo  3p21.  A  localização,  a  densidade  e  as  propriedades  biofísicas  do NaV1.5  são  moduladas  por  subunidades  β  auxiliares  (β1  a  β4),  codificadas  por  quatro  genes  (SCN1B  a SCN4B). Como os genes que codificam as subunidades α e β são expressos diferencialmente nos tecidos corporais,  pode  haver  distinções  de  propriedades  entre  os  canais  para  Na+  de  diversos  tecidos.  Nesse sentido,  por  exemplo,  os  canais  para  Na+ cardíacos  são  menos  sensíveis  à  tetrodotoxina,  bloqueador  de canais para Na+, quando comparados aos canais para Na+ localizados no encéfalo.

▸ Potencial de ação lento Nas células do NSA e NAV, a equação de circuito equivalente se reduziria aos termos dependentes de Ca2+ e K+, uma vez  que  não  há  participação  de  canais  para  Na+ dependentes  de  voltagem  na  gênese  do  potencial  de  ação  nessas  células. Nessas regiões, a principal corrente despolarizante e responsável pela fase 0 é a corrente de Ca2+ do tipo L (ICa,L), através de canais para Ca2+ dependentes de voltagem, que se caracteriza por uma ativação mais lenta e uma densidade de corrente bem inferior à de INa (ver Figura 28.5 B). Disso resulta uma fase 0 mais lenta (dV/dt: 2 a 20 V/s) quando comparada à registrada nos cardiomiócitos atriais e ventriculares. Como consequência, a propagação do potencial de ação nos nodos é também  mais  lenta  (aproximadamente  0,05  m/s).  Durante  o  potencial  de  ação  lento,  além  da  própria  ICa,L,  também  a corrente carreada pelo trocador Na+/Ca2+ contribui como corrente despolarizante, dado que sua estequiometria é de influxo de 3 íons Na+ para cada íon Ca2+transportado para fora da célula quando o potencial de membrana tem valores não muito despolarizados. O potencial de ação nas células nodais não apresenta fase 1 nem propriamente uma fase 2, no sentido de um período de platô em que o potencial de membrana permanece praticamente estável. Como se pode observar nas Figuras 28.4 A e 28.5 B, após a fase 0, na qual GCa >> GK, segue­se uma repolarização contínua, fase 3, mais lenta no início e mais rápida no final, na qual a situação se inverte (GK >> GCa). Nessas células, os principais canais para K+ dependentes de voltagem, retificadores retardados, estão representados por IKr e IKs, que constituem as principais vias de correntes repolarizantes. Nas  células  com  atividade  marca­passo,  NSA  e  NAV,  a  fase  4  é  determinada  por  outros  componentes,  como  será detalhado quando da descrição do automatismo cardíaco (mais adiante).

▸ Período refratário do potencial de ação cardíaco Do mesmo modo que outros tecidos excitáveis, o miocárdio apresenta o fenômeno da refratariedade, relacionada com a inativação dos canais iônicos responsáveis pela despolarização inicial do potencial de ação. Uma  vez  estimulado  um  potencial  de  ação  rápido  no  miocárdio,  por  maior  que  seja  a  intensidade  do  estímulo,  um segundo  potencial  de  ação  só  poderá  ser  disparado  depois  que  tenham  ocorrido  ao  menos  50%  de  repolarização.  Este período  é  denominado  de  período  refratário  absoluto  (PRA)  (Figura  28.6).  A  partir  daí,  inicia­se  o  período  refratário relativo  (PRR),  no  qual  um  estímulo  com  intensidade  supralimiar  é  capaz  de  disparar  um  segundo  potencial  de  ação,  o qual apresentará menor taxa de despolarização da fase 0 e menor velocidade de propagação quando comparado ao potencial de  ação  fisiológico.  O  intervalo  de  tempo  mínimo  necessário  para  que  dois  potenciais  de  ação  propagados,  sucessivos,

possam  ser  estimulados  com  estímulo  de  intensidade  limiar  é  chamado  de  período  refratário  efetivo  (PRE)  (ver  Figura 28.6). Uma vez que o potencial de ação no músculo cardíaco apresenta maior duração, os períodos refratários são muito mais longos quando comparados aos observados nos axônios. A consequência desse prolongamento é que no coração não se  observa  o  fenômeno  de  somação  temporal,  o  qual  é  observado  nos  neurônios  e  nos  músculos  esqueléticos,  e  é  de fundamental importância para a função neuronal. Outra consequência desse fenômeno é a redução em cerca de três vezes da frequência máxima de ocorrência de potenciais de ação no coração quando comparada à do axônio, o que, do ponto de vista funcional, tem consequências interessantes. No axônio, a função básica do potencial de ação é transmitir rapidamente mensagens  ao  longo  de  grandes  distâncias,  sendo  a  modulação  de  frequência  um  fator  importante  para  o  conteúdo  da mensagem transmitida; consequentemente, quanto mais ampla a faixa de frequência, maior a capacidade de transmissão de mensagem. Já no miocárdio, a função básica do potencial de ação é garantir uma propagação rápida e coordenada e, com isso,  disparar  o  processo  de  contração  e  relaxamento  sincronizados  em  todo  o  coração.  Como  cada  ciclo  de  potencial  de ação  está  associado  a  um  ciclo  de  contração  e  relaxamento,  frequências  ventriculares  muito  altas  reduziriam  o  tempo  de enchimento ventricular durante a diástole, diminuindo a eficiência da bomba cardíaca. Uma  observação  interessante  em  relação  ao  potencial  de  ação  lento  é  o  longo  período  refratário  que,  neste  caso, ultrapassa  a  própria  duração  do  potencial  de  ação.  Isso  é  uma  consequência  do  maior  tempo  requerido  para  que  o  canal para  Ca2+dependente  de  voltagem  do  tipo  L  saia  do  estado  inativado  e  volte  para  o  estado  fechado.  Um  fenômeno relacionado a esse fato é a fadiga de transmissão através do NAV. Ela se manifesta como um bloqueio de condução pelo NAV à medida que a frequência cardíaca aumenta.

Figura 28.6 ■ Períodos refratários do potencial de ação cardíaco. O período refratário absoluto (PRA) se estende da fase 0 até, mais  ou  menos,  a  metade  da  fase  3.  O  período  refratário  relativo  (PRR)  vai  do  final  do  PRA  ao  início  da  fase  4.  O  período refratário efetivo (PRE) inclui o PRA e parte do PRR.

Potencial de ação cardíaco em situações especiais Miócitos  atriais,  do  NSA  e  do  NAV,  apresentam  em  seu  sarcolema  receptores  muscarínicos  que interagem  com  acetilcolina,  o  neurotransmissor  pósganglionar  do  sistema  nervoso  parassimpático  que inerva o coração pelo nervo vago. Dentre os vários efeitos produzidos pela interação da acetilcolina com o receptor  muscarínico  na  célula  miocárdica,  destaca­se  a  ativação  de  um  canal  para  K+,  conhecido  como GIRK,  que  medeia  a  corrente  IK,ACh.  A  ativação  desse  canal  provoca  um  aumento  na  intensidade  do potencial  de  repouso  (hiperpolarização),  bem  como  um  encurtamento  da  duração  dos  potenciais  de  ação atrial e nodais, já que adiciona uma via para efluxo de K+, favorecendo e acelerando a repolarização (fase 3). Nos locais em que existem potenciais de ação lentos, como nos NSA e NAV, a atuação de IK,ACh  pode ser  dramática.  Assim,  uma  ativação  parassimpática  intensa  pode  acarretar  um  bloqueio  de  condução atrioventricular por depressão do potencial de ação no NAV, já que, no jogo entre correntes despolarizantes e  hiperpolarizantes  mostrado  antes,  a  adição  de  um  componente  repolarizante,  representado  por  IK,ACh, provoca  diminuição  da  inclinação  da  fase  0  e  da  amplitude  do  potencial  de  ação,  além  de, consequentemente,  maior  dificuldade  de  propagação.  O  mesmo  ocorre  no  NSA:  neste,  além  deste  efeito sobre  a  condução,  há  também  uma  depressão  da  despolarização  diastólica  (ver  “Automatismo  cardíaco”, mais adiante), o que levará à redução da frequência de disparo nodal, ou seja, da frequência cardíaca.

Outra  corrente  de  efluxo  é  a  corrente  de  K+ dependente  de  ATP,  IK,ATP.  Trata­se  de  uma  corrente  de K  através de um canal mantido fechado em presença de concentrações fisiológicas de ATP citoplasmático. Quando  esta  diminui,  cessa  o  bloqueio  e  o  canal  se  abre,  permitindo  o  efluxo  de  K+,  causando,  portanto, encurtamento da duração do potencial de ação. Admite­se que, em condições de isquemia miocárdica, tal canal seja ativado e participe da gênese de arritmias. Em algumas condições patológicas nas quais há aumento anormal da concentração citoplasmática de Ca2+ livre,  como  acontece  durante  intoxicação  digitálica,  há  evidência  da  ativação  de  um  canal  catiônico, não seletivo, ativado por Ca2+ citoplasmático (Iti). Nos níveis normais de potencial de repouso, esse canal carreia  corrente  de  influxo  (primordialmente,  Na+),  gerando  as  oscilações  de  potencial  de  pequena amplitude,  chamados  póspotenciais  tardios,  que  sucedem  um  potencial  de  ação  normal.  Esses  pós­ potenciais têm sido associados à gênese de taquiarritmias. +

Alterações de canais iônicos versus patologias cardíacas As  alterações  funcionais  dos  canais  iônicos  constituem  importantes  mecanismos  fisiopatológicos  de várias  doenças  cardíacas  congênitas.  Já  foram  identificadas  inúmeras  mutações  do gene SCN5A associadas a arritmias cardíacas, como a síndrome  do  QT  longo  tipo  3  (LQT3).  Muitas  das mutações produzem ganho de função (aumento da corrente) do canal para Na+ ao removerem a inativação rápida, causando maior persistência da corrente de Na+ durante o platô do potencial de ação. O retardo na repolarização da membrana, caracterizado eletrocardiograficamente como um prolongamento do intervalo QT,  predispõe  o  indivíduo  a  taquicardias  ventriculares  polimórficas,  do  tipo  torsade  de  pointes.  Outras mutações do gene SCN5A acarretam perda de função (redução da corrente) do canal para Na+,  tal  como nas  mutações  associadas  à  síndrome  de  Brugada,  à  doença  progressiva  de  condução  e  à  síndrome  do nodo sinusal. Uma  mutação  do  canal  CaV1.2  foi  identificada  como  causa  da  síndrome  de  Timothy,  uma  doença multissistêmica  que  provoca,  entre  outros  distúrbios,  arritmias  cardíacas  e  morte  súbita.  Essa  mutação remove  a  inativação  dependente  de  voltagem,  produzindo  corrente  sustentada  de  influxo  de  Ca2+,  o  que prolonga a duração do potencial de ação cardíaco e desencadeia pós­potenciais tardios (potenciais de ação anômalos, acoplados aos normais, que surgem no final ou logo depois da repolarização), fatores estes que aumentam  o  risco  de  arritmias  cardíacas.  Adicionalmente,  mudanças  na  expressão,  densidade  e  função dos  canais  para  Ca2+  tipo  L  estão  associadas  a  determinadas  patologias  cardiovasculares,  tais  como: cardiomiopatia hipertrófica, insuficiência cardíaca e fibrilação atrial. Síndromes congênitas de QT longo associam­se também a defeitos nos canais KV (LQT1, LQT2, LQT5 e  LQT6).  A  síndrome  do  QT  longo  tipo  2  (LQT2)  é  causada  por  mutação  no  gene  HERG,  localizado  no cromossomo 7, que codifica a subunidade α de IKr. A tipo 6 (LQT6) está ligada a mutações no gene MiRP1 (cromossomo  21),  codificante  da  subunidade  β  de  IKr.  Já  as  síndromes  do  QT  longo  tipos  1  (LQT1)  e  5 (LQT5)  estão  associadas,  respectivamente,  a  mutações  nos  genes  KVLQT1  (cromossomo  11) e minK (cromossomo 21), que codificam as subunidades α e β de IKs. O intervalo QT prolongado, seja ele congênito  ou  não,  predispõe  a  uma  arritmia  ventricular  característica  denominada  torsade  de  pointes. Mutação  no  gene  KCNJ2  que  codifica  Kir2.1  está  associada  à  síndrome  de  Andersen  (LQT7),  que  no coração se manifesta como prolongamento do intervalo QT e arritmias ventriculares.

AUTOMATISMO CARDÍACO As  células  cardíacas  miocárdicas  do  NSA,  NAV  e  fibras  de  Purkinje  não  necessitam,  em  condições  fisiológicas,  de estímulo  externo  para  iniciar  um  potencial  de  ação,  sendo  capazes  de  espontaneamente  gerar  potenciais  de  ação.  Essa propriedade  é  referida  como  automatismo.  Nesses  tecidos,  não  existe  um  potencial  de  repouso  estável,  sendo  a repolarização  ao  final  de  um  potencial  de  ação  seguida  de  uma  despolarização  lenta  da  membrana denominada despolarização diastólica lenta (DDL) ou fase 4 dos potenciais de ação automáticos (ou marca­passo). Esta fase prossegue até certo valor de potencial de membrana (potencial limiar), a partir do qual ocorrem a ativação dos canais para Ca2+ dependentes de voltagem do tipo L (ICa,L) ou dos canais para Na+ dependentes de voltagem (INa) e consequente

despolarização celular (fase 0). Enquanto nas células nodais a fase 0 se dá por ativação de ICa,L, nas fibras de Purkinje essa acontece  por  meio  da  INa  (Figura  28.7).  Esse  padrão  difere  completamente  do  que  ocorre  nos  miócitos  atriais  e ventriculares,  os  quais  não  apresentam  DDL  e  permanecem,  após  o  final  de  um  potencial  de  ação,  em  seu  potencial  de repouso estável (fase 4) até serem estimulados novamente. Dentre os tecidos dotados de automatismo, as células do NSA são as que mostram fase 4 mais inclinada (DDL mais rápida), o que se traduz em maior frequência de disparo, garantindo a essa estrutura a condição de marca­passo cardíaco, ou seja, o comando da frequência cardíaca. Na ativação cardíaca fisiológica, o estímulo sinusal alcança o NAV e as fibras de Purkinje antes que essas estruturas atinjam seu potencial limiar (ver Figura 28.7). Desse modo, a fase 0 nessas células não é desencadeada pela despolarização diastólica própria, e sim por uma pequena despolarização supralimiar causada por correntes iônicas locais geradas em células vizinhas acopladas, durante a propagação do impulso elétrico (ver adiante). Pelo  exposto,  depreende­se  que,  em  condições  fisiológicas,  apenas  o  automatismo  do  NSA  se  manifesta.  Entretanto, se  o  estímulo  sinusal  falhar,  atrasar  ou  for  bloqueado,  outro  tecido  que  possui  automatismo  poderá  atingir  seu  potencial limiar, gerando um batimento de escape (ver Figura 28.7 B).  Se  a  falha  (ou  bloqueio)  no  NSA  persistir,  a  estrutura  de frequência  intrínseca  imediatamente  inferior  à  do  NSA  tende  a  assumir  a  função  de  marca­passo  (normalmente  nesta sequência:  NSA  >  NAV  >  feixe  de  His  >  ramos  do  feixe  de  His,  sendo  os  segmentos  proximais  mais  rápidos  que  os distais). Por exemplo, na vigência de bloqueio do NAV, o controle dos batimentos ventriculares passa, geralmente, a ser desempenhado pelo feixe de His.

Figura  28.7  ■   A.  Diagrama  representativo  de  potenciais  transmembrana  do  nodo  sinoatrial  (NSA)  e  de  fibra  de  Purkinje.  A inclinação da despolarização diastólica (DD) é mais acentuada, e o potencial limiar (PL) é atingido mais cedo no NSA do que na fibra de Purkinje. Assim, a fibra de Purkinje é despolarizada (fase 0) por impulsos propagados originados no NSA (setas) antes que  alcance  seu  próprio  PL.  Observe  as  diferenças  de  amplitude  (APA),  de  duração  do  potencial  de  ação  (DPA)  no  curso temporal da repolarização (fases 1, 2 e 3) e de potencial diastólico máximo (PDM) entre os dois tipos celulares. B. Quando um segundo impulso sinusal (II) falha em alcançar o sistema His­Purkinje por bloqueio de condução (sinalizado por ⊥), ou quando a frequência sinusal é acentuadamente mais lenta (p. ex., por descarga vagal, linha tracejada), a DD da fibra de Purkinje pode então atingir seu PL e causar um batimento de escape. (Adaptada de Watanabe e Dreifus, 1968.)

A  frequência  de  geração  dos  impulsos  depende  do  tempo  necessário  para  que  a  despolarização  diastólica  atinja  o potencial limiar. Esse tempo, por sua vez, é função da diferença de voltagem entre o potencial diastólico máximo (PDM, potencial mais negativo alcançado no final da repolarização) e o potencial limiar e da inclinação da fase 4 (Figura 28.8). Sendo  assim,  uma  redução  da  frequência  cardíaca  pode  ser  causada  tanto  por  aumento  da  diferença  de  voltagem  entre  o PDM  e  o  potencial  limiar,  quanto  por  redução  na  inclinação  da  fase  4,  ocasionando  uma  diminuição  da  taxa  de despolarização  diastólica  lenta.  O  aumento  da  diferença  PDM­potencial  limiar,  por  sua  parte,  pode  ocorrer  por hiperpolarização da membrana e/ou deslocamento do potencial limiar para valores mais positivos. Ao contrário, a redução da  diferença  PDM­potencial  limiar  e/ou  o  aumento  da  inclinação  da fase  4  promovem  aumento  da  frequência  cardíaca. Esses ajustes serão discutidos quando da descrição dos efeitos do sistema neurovegetativo sobre a frequência cardíaca (ver adiante).

▸ Bases iônicas do automatismo cardíaco Como  todas  as  alterações  do  potencial  de  membrana,  o  potencial  diastólico  máximo  (PDM)  e  a  despolarização diastólica lenta (DDL) são consequências diretas do somatório de correntes iônicas que atravessam a membrana nos dois sentidos  ao  longo  do  tempo.  Assim  sendo,  as  correntes  de  influxo  tendem  a  despolarizar  a  membrana,  acelerando  o automatismo,  ao  passo  que  as  de  efluxo  atuam  em  sentido  oposto,  favorecendo  a  hiperpolarização  e  a  redução  da frequência  de  disparo.  Como  principais  correntes  de  influxo  na fase  4  das  células  com  automatismo  cardíaco,  deve­se destacar:  corrente  marca­passo  (If),  correntes  de  cálcio  (ICa,T)  e  a  corrente  gerada  pela  atividade  do  trocador Na+/Ca2+ (INa/Ca)  no  modo  normal  (corrente  despolarizante).  No  caso  das  correntes  de  efluxo,  destacam­se  as  de  K+  de retificação retardada IKs e IKr. Nas fibras de Purkinje, participa também de forma decisiva a corrente de K+ retificadora de influxo  (IK1),  principal  responsável  pela  condutância  ao  K+  na  fase  diastólica  destas  células.  Menos  importantes  e/ou menos estudadas, destacam­se a corrente de “vazamento” ou de fuga (background) carreada por Na+ (INa,bg), e a corrente (hiperpolarizante) gerada pela bomba Na+/K+ (INa/K) (ver Figura 28.5 B).

Figura 28.8 ■ Fatores determinantes da frequência de disparo. A frequência de disparo dos tecidos automáticos é função do tempo  gasto  para  a  membrana  se  despolarizar  do  potencial  diastólico  máximo  (PDM)  até  o  potencial  limiar  (TP).  Este  tempo depende da inclinação da fase 4 (compare as letras a e b, gráfico superior), do nível do PDM (compare as letras a e d, gráfico inferior) e do nível do potencial limiar (compare as letras b e c, gráfico inferior). (Adaptada de Hoffman e Cranefield, 1960.)

A corrente ativada por hiperpolarização, If (do inglês, funny) ou corrente marca­passo, foi caracterizada pela primeira vez  há  cerca  de  30  anos  e,  desde  então,  as  informações  acerca  de  sua  participação  no  automatismo  cardíaco  apontam­na como  uma  das  mais  importantes  na  geração  de  atividade  espontânea  (fase  4)  e  no  controle  da  frequência  cardíaca.  Os canais  responsáveis  pela  If fazem  parte  da  família  de  canais  HCN  (hyperpolarization­activated  cyclic  nucleotide­gated), existentes não só no coração, mas também em tecidos neurais dotados de automatismo. Do ponto de vista molecular, os canais HCN têm estrutura semelhante à dos canais para K+ ativados por voltagem, sendo constituídos pela associação de quatro  subunidades  proteicas  homólogas  (isoformas),  cada  uma  apresentando  seis  segmentos  transmembrana  e  um  sítio intracelular para ligação de cAMP, próximo à extremidade carboxiterminal. No coração, os canais HCN têm conformação heteromérica, composta pelas isoformas HCN1, HCN2 e HCN4. Contudo, HCN4 é a isoforma predominante nos nodos SA e AV. Descrita em todos os tecidos cardíacos providos de atividade automática, a corrente marca­passo é catiônica carreada por Na+ e K+,  e  sua  ativação  ocorre  por  hiperpolarização  da  membrana,  diferentemente  de  outros  canais  dependentes  de voltagem, cujas ativações ocorrem por despolarização da membrana. A ativação da If é desencadeada a partir de voltagens mais  negativas  que  –40  ou  –45  mV,  por  um  processo  lento,  e  tem  potencial  de  reversão  entre  –10  e  –20  mV,  o  que  se explica pelo fato de os canais HCN permitirem tanto a passagem de Na+ quanto de K+, sendo PK > PNa. Contudo, como em condições  fisiológicas  esses  canais  só  se  abrem  no  final  da  repolarização,  ou  seja,  em  potenciais  próximos  de  EK  e afastados  de  ENa,  os  íons  Na+  permeiam  o  canal  em  proporção  bem  maior  que  os  íons  K+,  causando,  portanto,  uma corrente despolarizante. Como a corrente If é predominantemente de influxo e, portanto, leva à despolarização, a simples observação de que a faixa de voltagens de ativação da If se sobrepõe aos valores de potencial atingidos durante DDL (–40 a –65 mV no NSA) já  nos  sugere  que  If  é  forte  candidata  a  ser  a  corrente  geradora  da  DDL  (fase  4  do  potencial  de  ação  lento),  agindo, portanto, como “corrente marca­passo”. Em termos fisiológicos, está bem estabelecida a grande contribuição de If para a DDL das fibras de Purkinje. No que se refere ao NSA, a hipótese de If como  principal  geradora  do  automatismo  básico tem sido alvo de debate há muitos anos. Uma  alternativa  à  hipótese  do  papel  dominante  de  If  no  mecanismo  do  automatismo  sinusal  é  que  a  DDL  seja desencadeada  essencialmente  por  desativação  de  correntes  de  efluxo  de  retificação  retardada  –  no  caso  IKs  ou  IKr  – concomitante à ocorrência de uma corrente de influxo, não necessariamente If. Essas correntes de K+ apresentam, no NSA, as  mesmas  propriedades  descritas  em  outras  regiões  do  coração.  Resumidamente,  IKs  caracteriza­se  por  uma  ativação bastante lenta, retificação de efluxo, ausência de inativação e desativação lenta. Já a ativação da IKr é mais rápida e ocorre em voltagens mais positivas que –50 mV. A comprovação da participação de IKs e IKr na gênese do automatismo é também tema de debate, embora dados sobre a cinética de desativação de IKs e IKr sugiram que essas correntes possam participar da fase 4 do potencial de ação. A Figura 28.9  mostra  a  evolução  de  IKr  durante  um  potencial  de  ação  sinusal.  Observa­se  que  essa  corrente  aumenta progressivamente após a fase 0, atinge o pico na repolarização final e decai ao longo de toda a despolarização diastólica, o que condiz com sua participação nesta fase. Outra  corrente  envolvida  na  DDL  foi  descrita  inicialmente  em  miócitos  ventriculares  e  atriais,  a  corrente  de  Ca2+ do tipo T (ICa,T), a qual é considerada uma das principais correntes responsáveis pela gênese do automatismo no NSA e NAV. A  designação  “T”  refere­se  à  pequena  condutância  unitária  do  canal  (do  inglês tiny)  e  à  rápida  (transient)  velocidade  de inativação da corrente macroscópica comparada ao descrito para ICa,L (large e long lasting). O envolvimento de ICa,T no automatismo dos nodos justifica­se pela ativação da corrente em potenciais mais positivos a  –60  mV,  ou  seja,  dentro  da  faixa  de  voltagem  da  despolarização  diastólica.  Além  disso,  a  densidade  de  canais  ICa,T no NSA revelou­se maior que em células atriais e ventriculares, o que favoreceria a hipótese de sua participação na gênese do automatismo do marca­passo sinusal. A participação de ICa,T no marca­passo sinusal é evidenciada pelo efeito do bloqueio farmacológico  dessa  corrente.  Observa­se  que,  quando  ICa,T  é  abolida,  a  despolarização  diastólica  torna­se  mais  lenta (principalmente em sua metade final), levando a uma diminuição da frequência de disparo.

Figura 28.9 ■ Participação  da  corrente  de  potássio  de  retificação  retardada  rápida  (IKr )  na  despolarização  diastólica  do  nodo sinusal  (NSA).  A  figura  mostra  um  experimento  com  célula  isolada  do  NSA  de  coelho  que  demonstra,  por  meio  da  técnica de action potential clamp, a participação de IKr  na fase 4 do potencial de ação (PA). Na parte superior, observam­se pulsos­testes de  voltagem  que  reproduzem  exatamente  o  formato  do  PA  da  célula  estudada.  Na  parte  inferior,  apresenta­se  a  corrente  de compensação  (equivalente  à  própria  IKr   e  assim  designada)  durante  o  bloqueio  de  IKr  pelo  E­4031  (3  mM).  Observe  que IKr   aumenta  lentamente  depois  da  fase  0  e  atinge  seu  pico  pouco  antes  do  potencial  diastólico  máximo,  para  então  decair durante toda a despolarização diastólica. A queda abrupta imediatamente após a fase 0, provavelmente, deve­se à retificação de influxo exibida pela corrente. (Adaptada de Ono e Ito, 1995.)

Em  relação  ao  controle  da  frequência  cardíaca  pelo  sistema  nervoso  simpático  e  parassimpático,  o  papel  relevante desempenhado  pela  corrente  marca­passo  é  bastante  evidente.  Como  mostrado  na  Figura  28.10,  a  estimulação  dos receptores  β1­adrenérgicos  do  NSA  por  catecolaminas  (epinefrina  e  norepinefrina,  também  chamadas  adrenalina  e noradrenalina) ou agonistas β­adrenérgicos (isoproterenol) promove deslocamento da curva de ativação de If para valores menos  negativos,  sem  alterar  o  valor  máximo  da  corrente.  Em  consequência,  ocorre  aumento  da  corrente  nos  potenciais em  geral  atingidos  na  DDL,  resultando  em  elevação  da  frequência  de  disparo  (efeito  cronotrópico  positivo).  O  mesmo pode ser verificado para a estimulação adrenérgica das fibras de Purkinje. O mecanismo subjacente envolve a proteína Gs, ativação da adenilatociclase e a formação do cAMP que ativa PKA, a qual se liga ao local específico presente na porção intracelular  do  canal,  alterando  sua  dependência  de  voltagem.  Além  disso,  a  ativação  da  corrente  ainda  é  facilitada  pela hiperpolarização (por aumento de IKs) resultante da estimulação adrenérgica. Além  do  mais,  no  que  diz  respeito  à  regulação  autonômica  da  frequência  cardíaca,  é  bem  conhecida  a  modulação simpática  de  IKs.  A  estimulação  do  receptor  β1­adrenérgico  via  cAMP/PKA  induz  a  fosforilação  desses  canais  para  K+, levando  ao  aumento  da  amplitude  e  desativação  acelerada  dessa  corrente.  Como  resultado  da  elevação  de  IKs,  o  PDM torna­se  mais  negativo  e  a fase 4,  mais  inclinada,  levando  a  um  aumento  da  frequência  de  disparo.  Este  último  efeito poderia decorrer diretamente pela desativação mais rápida de IKs ou, indiretamente, pela maior ativação da corrente marca­ passo,  If.  Com  relação  à  IKr,  os  dados  são  menos  conclusivos,  uma  vez  que  têm  sido  descritos  tanto  aumento  quanto diminuição da corrente pelo estímulo β­adrenérgico, dependendo da espécie ou tecido usado nos experimentos.

Figura 28.10 ■ Efeitos de agonistas muscarínico (acetilcolina, ACh) e beta­adrenérgico (isoproterenol, Iso) sobre o potencial de membrana  e  a  corrente  marca­passo  (If)  em  miócitos  isolados  do  nodo  sinusal  (NSA)  de  coelho.  A.  Potenciais  de  ação espontâneos  registrados  em  condições­controle  (Controle)  ou  na  presença  de  ACh  ou  Iso  nas  concentrações  indicadas. Observe que a aceleração (na presença de Iso) ou o alentecimento (na presença de ACh) da frequência se devem a alterações na inclinação da despolarização diastólica. B. Registro da If, corrente marca­passo, ativada por pulso hiperpolarizante a –85 mV aplicado a partir de um potencial fixado em –35 mV. A perfusão com ACh promove redução da corrente, e o oposto é verificado com o uso de Iso. C. Curvas de ativação de If, refletindo a porcentagem de canais abertos em função do potencial de membrana, em  condição­controle  ou  na  presença  de  ACh  ou  de  Iso.  ACh  ou  Iso  deslocam  a  curva  de  ativação  nos  sentidos  negativo  e positivo, respectivamente, sem alterar a corrente total. As curvas foram calculadas dividindo­se as correntes obtidas por pulsos em  rampa  de  –35  a  –125  mV  pelos  valores  teóricos  máximos  de  corrente,  admitindo­se  uma  condutância  total  em  cada potencial. Todos os registros foram conseguidos com a técnica de patch clamp. (Adaptada de Accili et al., 2002.)

Por  sua  vez,  mediante  estimulação  vagal,  ocorre  liberação  de  acetilcolina  (ACh),  e  esta,  ao  interagir  com  receptores muscarínicos  do  tipo  M2  em  células  do  NSA,  promove  um  efeito  cronotrópico  negativo  (diminuição  da  frequência cardíaca).  Basicamente  a  interação  acetilcolina­receptor  muscarínico  M2 no  NSA  desloca  a  curva  de  ativação  de  If  para potenciais  mais  hiperpolarizados,  levando  à  diminuição  da  corrente,  aumento  da  duração  da  DDL  e,  consequentemente, redução  da  frequência  cardíaca  (ver  Figura  28.10).  Acredita­se  que  os  efeitos  colinérgicos  sejam  consequência  de  três processos:  (1)  redução  da  concentração  de  cAMP  por  inibição,  via  proteína  Gi,  da  adenilatociclase;  (2)  efeito  inibitório direto da subunidade α de Gi (ou de outra proteína G) sobre os canais HCN, reduzindo a If; (3) a ativação do canal para K+  ativado  por  acetilcolina,  conhecido  como  IK,Ach  (ver  detalhes  no  boxe  “Potencial  de  ação  cardíaco  em  situações especiais”).  Em  fibras  de  Purkinje,  a  acetilcolina  é  capaz  de  reverter  o  efeito  dos  agonistas  β­adrenérgicos,  sendo provavelmente destituída de ações diretas.

▸ Outras correntes iônicas envolvidas com o automatismo cardíaco. Mais recentemente, foi aventada a participação da corrente do trocador Na+/Ca2+ (INa/Ca) como componente importante do mecanismo marca­passo no NSA. Essa hipótese teve origem na observação de aumentos transitórios da concentração intracelular de Ca2+ (“ondas de  Ca2+”)  durante  a  fase  4  de  potenciais  sinusais.  O  tratamento  com  rianodina  (substância  bloqueadora  dos  canais  de liberação  de  Ca2+  do  retículo  sarcoplasmático)  aboliu  as  ondas  de  Ca2+  e,  ao  mesmo  tempo,  reduziu  ou  suprimiu  a atividade automática. Nesse contexto, postula­se que, durante a fase 4, a entrada de Ca2+ via canais ativados por voltagem (ICa,T e ICa,L)  induza  a  liberação  de  Ca2+ do  retículo  sarcoplasmático  pelo  mecanismo  de  “liberação  de  Ca2+ induzida  por Ca2+” (mais informações no Capítulo 30), gerando as ondas de Ca2+. Por sua vez, o aumento da concentração intracelular de Ca2+ promoveria  maior  ativação  de  INa/Ca,  que,  por  carrear  uma  corrente  de  influxo  durante  a fase 4  do  potencial  de ação, contribuiria para acelerar a DDL. Do ponto de vista das correntes de efluxo, temos ainda INa/K e IK1. Uma evidência da participação da primeira vem do fato de que, quando a Na+/K+­ATPase é inibida pelos glicosídios cardiotônicos, a frequência de disparo tende a se elevar em  função  de  uma  redução  do  PDM  e  de  uma  aceleração  da fase 4.  Isso  é  bem  estabelecido  para  fibras  de  Purkinje  e observado  em  vários  (mas  não  em  todos)  estudos  que  envolvem  o  NSA.  A  participação  de  INa/K  na  despolarização diastólica do NSA foi avaliada diretamente, registrando­se a corrente em miócitos nodais de coelho, quando se verificou que a densidade de corrente era suficientemente grande para influir, de modo decisivo, na despolarização diastólica. Considerando­se a visão clássica de que IK1 não  está  presente  no  NSA  e  NAV,  essa  corrente  será  discutida  a  seguir, juntamente com outros aspectos particulares do automatismo das fibras de Purkinje.

▸ Automatismo nas fibras de Purkinje Em linhas gerais, os mecanismos discutidos para o automatismo sinusal aplicam­se também às fibras de Purkinje. As diferenças importantes devem­se à presença dos canais IK1 nessas fibras, o que determina uma permeabilidade bem maior ao  K+  e,  consequentemente,  um  PDM  mais  hiperpolarizado  (cerca  de  –90  mV).  Assim,  a  despolarização  diastólica desenvolve­se em voltagens mais negativas, a partir de –90 mV, até um potencial limiar em torno de –65 mV, quando tem lugar  a  despolarização  rápida,  com  a  ativação  de  INa.  Estando  submetidos  a  potenciais  mais  negativos,  os  canais envolvidos na geração do automatismo apresentam uma cinética alterada, em relação ao observado no NSA. Além disso, as propriedades de retificação de influxo e dependência do K+ extracelular exibidas por IK1 conferem às fibras de Purkinje características  peculiares  quanto  ao  automatismo.  Vale  lembrar  que,  em  condições  normais,  a fase 0 nessas  fibras  não  é desencadeada pela despolarização diastólica, e sim por correntes eletrotônicas geradas no processo de propagação. Segundo  o  modelo  Noble­DiFrancesco,  no  balanço  das  correntes  iônicas  fluindo  na  despolarização  diastólica  das células de Purkinje, destacam­se If, INa,bg e INa/Ca, no sentido despolarizante, e IKs, IK1 e INa/K, no hiperpolarizante. Devido ao  PDM  mais  negativo,  a  ativação  de  If  é  bastante  significativa,  não  havendo  dúvidas  quanto  à  sua  relevância  no mecanismo  marca­passo.  É  importante  destacar  também  o  maior  gradiente  eletroquímico  para  o  Na+,  o  que  eleva  a amplitude de If e INa,bg. Todavia, o aumento das correntes de influxo é contrabalançado pela alta condutância ao K+  dada pelos canais IK1, o que se reflete na lenta velocidade da despolarização diastólica. Nas  fibras  de  Purkinje,  as  propriedades  básicas  dos  canais  IK1 são  essencialmente  as  mesmas  descritas  em  células atriais  e  ventriculares:  retificação  de  influxo  (ativação  por  hiperpolarização),  grande  chance  de  abertura  nos  níveis  do potencial de repouso, dependência da [K+]e e rápida desativação ( NAV > feixe de His > ramos do feixe de His funciona no dia a dia e como a estrutura de frequência intrínseca imediatamente inferior assume o papel de marca­ passo cardíaco. A Figura 28.13 mostra  a  sequência  de  ativação  do  coração,  com  os  potenciais  de  ação  típicos  de  cada  região,  bem como  os  retardos  observados  ao  longo  desse  processo.  No  traçado  inferior,  há  o  eletrocardiograma  equivalente  a  essa sequência de eventos, que será analisado em detalhe no próximo capítulo.

CONTROLE NEUROVEGETATIVO (AUTONÔMICO) DA ATIVIDADE ELÉTRICA CARDÍACA Embora o coração seja dotado de automatismo, a sua função é, de modo contínuo, ajustada às variáveis demandas do organismo  em  situações  bem  diferentes,  como  durante  o  sono,  quando  esses  requerimentos  diminuem  muito,  ou  ao  se participar de uma maratona, atividade com alto consumo metabólico. Assim, o coração responde aos mecanismos gerais de controle nervoso e hormonal. A seguir, será abordado como a ativação  do  sistema  nervoso  neurovegetativo  interfere  na  eletrofisiologia  cardíaca  e  nos  mecanismos  básicos  envolvidos nesse processo.

Figura 28.13 ■ Esquema que mostra o curso temporal do potencial de ação obtido nas várias regiões do coração, em sequência temporal de ativação, iniciando no nodo sinusal. O traçado inferior representa o eletrocardiograma convencional (ECG). Observe a correspondência temporal com os potenciais transmembrana apresentados nos traçados superiores. Note a menor duração do

potencial  de  ação  ventricular  na  face  subepicárdica.  Os  registros  onda  P,  complexo  QRS  e  onda  T  identificam  no  ECG, respectivamente,  os  eventos  de  propagação  da  despolarização  atrial,  despolarização  ventricular  e  da  repolarização ventricular. NSA, nodo sinusal; A, átrio; NAV, nodo atrioventricular; H, feixe de His; PJ, fibra de Purkinje; VEN, tecido ventricular subendocárdio; VEPI, tecido ventricular subepicárdio. (Adaptada de Paes de Carvalho e Fonseca Costa, 1983.)

Este órgão recebe inervação do sistema nervoso tanto simpático como parassimpático. Os efeitos das ativações desses dois  sistemas  se  fazem  sentir  sobre  a  frequência  cardíaca,  a  condução  atrioventricular,  a  força  de  contração  e  o relaxamento.  Tais  efeitos  são  também  referidos  como  cronotrópico,  dromotrópico,  inotrópico  e  lusitrópico, respectivamente. No  coração  de  mamíferos,  a  inervação  parassimpática,  por  intermédio  do  nervo  vago,  é  muito  abundante  na musculatura atrial e nos nodos sinusal e atrioventricular, mas escassa nos ventrículos. Já  a  inervação  simpática  se  distribui  extensamente  pelas  quatro  câmaras:  tanto  nos  nodos  quanto  nos  tecidos especializados em condução e também no miocárdio de trabalho (atrial e ventricular).

▸ Sistema nervoso parassimpático A  ativação  vagal  libera  acetilcolina  nas  terminações  pós­ganglionares,  de  modo  que  seus  efeitos  são  mediados  pela ação  desse  neurotransmissor  nos  receptores  muscarínicos  que,  no  caso  do  coração,  são  do  tipo  M2.  A  interação  de acetilcolina com receptores M2 cardíacos promove basicamente três eventos: 1. 2.

3.

Abre,  por  um  processo  mediado  por  uma  proteína  Gi,  o  canal  para  K+  responsável  pela  corrente  IKACh,  descrito anteriormente. Pela ativação de uma proteína Gi, inibe a adenilatociclase, reduzindo as concentrações de cAMP no citoplasma, o que leva  à  diminuição  da  fosforilação  de  canais  para  Ca2+ tipo  L  e,  consequentemente,  da  corrente  de  Ca2+  por  esses canais. Ativa  a  guanilatociclase,  elevando  os  níveis  de  cGMP  no  citoplasma,  que  pode  inibir  os  canais  de  Ca2+ tipo  L  (via PKG – proteinoquinase dependente de cGMP) ou diminuir a concentração de cAMP (via estimulação de uma cAMP­ fosfodiesterase ativada por cGMP).

Essas três ações acarretam efeitos importantes na ativação cardíaca, a saber: bradicardia, redução da força de contração atrial e bloqueio de condução atrioventricular. Esses distúrbios estão relacionados com os seguintes efeitos da acetilcolina: ■ Nodo sinusal: (a) reduz a taxa de despolarização diastólica por diminuição de If e ICa,L e também (como IK,ACh é uma corrente  hiperpolarizante)  se  opõe  à  despolarização,  resultando  em  queda  de  frequência  sinusal  ou  até  mesmo  parada sinusal;  (b)  provoca  redução  da  taxa  de  despolarização  e  da  amplitude  do  potencial  de  ação  sinusal,  pois,  além  de ativar  IK,ACh,  uma  corrente  hiperpolarizante,  promove  redução  de  ICa,L  (conforme  foi  descrito  em  “Automatismo cardíaco”). Ambos os fatores deprimem o potencial de ação do tipo lento do nodo sinusal, ocasionando um bloqueio de condução sinoatrial ■ Miocárdio  atrial:  (a)  aumenta  o  potencial  de  repouso  (hiperpolarização),  pois  IK,ACh  se  somará  a  IK1;  (b)  reduz  a duração do potencial de ação atrial, pela presença de um componente repolarizante extra (IK,ACh); e (c) diminui a força de contração da musculatura atrial, por redução de influxo de Ca2+ causado pela inibição de ICa,L ■ Nodo atrioventricular:  diminui  a  taxa  de  despolarização  e  a  amplitude  do  potencial  de  ação,  pelos  mesmos  motivos apontados  para  o  potencial  de  ação  no  NSA,  levando  a  um  bloqueio  de  condução  atrioventricular.  (Nota  importante: fala­se em bloqueio de condução sempre que há dificuldade na propagação do sinal elétrico. Isso acarreta diminuição de velocidade de condução e eventualmente interrupção da condução.)

▸ Sistema nervoso simpático A ativação simpática, por outro lado, ocasiona a liberação de norepinefrina nas varicosidades dos terminais nervosos em íntimo contato com todo o miocárdio. A epinefrina circulante, liberada pela medula suprarrenal, ao atingir o coração, também irá interagir com receptores adrenérgicos aí presentes. O principal receptor adrenérgico encontrado nas células cardíacas é do tipo β e, possivelmente, a grande maioria dos efeitos descritos para ativação simpática no coração são associados à interação com esse receptor. O coração possui os três subtipos  de  receptores  β­adrenérgicos  (β1,  β2  e  β3).  A  interação  das  catecolaminas,  principalmente  com  o  receptor β1 (como descrito anteriormente em “Automatismo cardíaco”) leva à estimulação da adenilatociclase e, consequentemente,

ao  aumento  das  concentrações  de  cAMP  no  citoplasma,  por  meio  da  ativação  de  uma  proteína  Gs.  Como  consequência, ativa­se a PKA, aumentando, assim, a probabilidade de fosforilação de inúmeras proteínas. São efeitos da ativação β­adrenérgica no coração a fosforilação de canais para Ca2+ dependentes de voltagem do tipo L e  a  de  canais  para  K+ dependentes  de  voltagem  retificador  retardado  (IKs),  o  que  provoca  um  aumento  na  densidade  de corrente  por  esses  canais,  bem  como  a  ligação  do  cAMP  ao  canal  HCN  (If),  deslocando  a  sua  curva  de  dependência  de voltagem  para  valores  mais  positivos.  Outros  efeitos  importantes,  via  PKA,  incluem  aumento  da  sensibilidade  da maquinaria contrátil, possivelmente pela fosforilação de troponina I, e a estimulação da liberação e recaptação de Ca2+ pelo retículo sarcoplasmático (como será discutido no Capítulo 30). Os  principais  efeitos  da  ativação  simpática  no  coração  são:  taquicardia,  facilitação  da  condução  atrioventricular, aumento na força de contração atrial e ventricular, além de aceleração do relaxamento ventricular. Adicionalmente: ■ Nodo sinusal:  nota­se  aumento  na  taxa  de  despolarização  diastólica,  por  deslocamento  da  curva  de  dependência  de voltagem  do  canal  HCN  (If)  para  valores  mais  despolarizados.  Assim,  essa  corrente  marca­passo  é  ativada  mais precoce  e  rapidamente  durante  a  diástole,  em  presença  de  ativação  do  subtipo  β1 do  receptor  adrenérgico,  atingindo, portanto,  o  limiar  para  o  potencial  de  ação  de  modo  mais  rápido,  o  que  ocasiona  aumento  na  frequência  de  disparo. Um aumento de ICa,L reflete­se no potencial de ação lento do nodo sinusal, com fase 0 mais rápida e maior amplitude do  potencial  de  ação,  resultando  em  melhora  na  condução  sinoatrial.  Também  o  aumento  de  IKs reduz  a  duração  do potencial de ação do nodo sinusal ■ Nodo  atrioventricular:  os  efeitos  observados  são  basicamente  sobre  o  potencial  de  ação  lento;  potenciação  da ICaL conduz à aceleração da fase 0 e a maior amplitude, tendo, como resultado, facilitação da condução atrioventricular. Outro  aspecto  importante  é  a  diminuição  da  duração  do  potencial  de  ação  lento,  por  ativação  de  IKs.  Isso  reduz  o período  refratário,  contribuindo  para  que  haja  condução  atrioventricular  facilitada,  mesmo  em  frequências  cardíacas maiores ■ A  mesma  diminuição  do  período  refratário  é  percebida  ao  longo  do  tecido  de  condução  ventricular  (feixe  de  His  e fibras  de  Purkinje),  que  são  as  estruturas  com  maiores  durações  dos  potenciais  de  ação.  Como  esse  período  é  mais longo  nessas  regiões,  a  redução  deste  parâmetro  em  condições  de  taquicardia  é  fundamental  para  garantir  uma condução atrioventricular fisiológica ■ Miocárdio de trabalho atrial e ventricular: ocorre o aumento da força de contração (efeito inotrópico positivo); esse efeito  pode  ser  associado  a  aumento  do  influxo  de  Ca2+  pelos  canais  para  Ca2+  do  tipo  L,  maior  liberação  de Ca2+  pelos  estoques  intracelulares  e  maior  sensibilidade  da  maquinaria  contrátil  ao  Ca2+  (como  será  discutido no Capítulo 30). Observa­se também redução na duração do potencial de ação, como consequência de maior ativação de IKs, o que se reflete em uma repolarização mais rápida, com relaxamento mais precoce, associado a uma contração de maior rapidez. Isso garante um tempo de diástole ventricular adequado, fundamental para o enchimento ventricular, mesmo  em  presença  de  frequência  cardíaca  aumentada.  Além  disso,  a  PKA  ativa  a  bomba  de  Ca2+  do  retículo sarcoplasmático  e  fosforila  a  troponina  I,  levando  ao  efeito  lusitrópico  positivo  (como  também  será  discutido no Capítulo 30). Em  condições  fisiológicas,  os  dois  sistemas  –  simpático  e  parassimpático  –  atuam  simultaneamente,  com predominância de um ou outro no sentido de adequar, a cada instante, a atividade do coração à sua primordial função de bombear sangue, gerando fluxo sanguíneo adequado para a eficiente perfusão de todos os tecidos.

BIBLIOGRAFIA ACCILI EA, PROENZA C, BARUSCOTTI M et al. From funny current to HCN channels: 20 years of excitation. News Physiol Sci, 17:32­7, 2002. ASHCROFT FM. Ion channels and disease. San Diego: Academic Press; 2000. BALSER JR. The cardiac sodium channel: gating, function and molecular pharmacology. J Mol Cell Cardiol, 33:599­613, 2001. BARUSCOTTI M, DIFRANCESCO D. Pacemaker channels. Ann N Y Acad Sci, 1015:111­21, 2004. BERS  DM,  PEREZ­REYES  E.  Ca  channels  in  cardiac  myocytes:  structure  and  function  in  Ca  influx  and  intracellular  Ca release. Cardiovasc Res, 42:339­60, 1999. BOYETT MR, HONJO H, KODAMA I. The sinoatrial node, a heterogeneous pacemaker structure. Cardiovasc Res, 47:658­87, 2000.

BRIOSCHI C, MICHELONI S, TELLEZ JO et al. Distribution of the pacemaker HCN4 channel mRNA and protein in the rabbit sinoatrial node. J Mol Cell Cardiol, 47:221­7, 2009. BROWN HF, DIFRANCESCO D, NOBLE SJ. How does adrenaline accelerate the heart? Nature, 280:235­6, 1979. CATTERALL WA, CHANDY KG, GUTMAN GA. The IUPHAR compendium of voltage­gated ion channels. Leeds: IUPHAR Media; 2002. DHEIN S, VAN KOPPEN CJ, BRODDE OE. Muscarinic receptors in the mammalian heart. Pharmacol Res, 44:161­82, 2001. DIFRANCESCO D. The contribution of the ‘pacemaker’ current (If) to generation of spontaneous activity in rabbit sino­atrial node myocytes. J Physiol, 434:23­40, 1991. DIFRANCESCO  D,  CAMM  JA.  Heart  rate  lowering  by  specific  and  selective  If  current  inhibition  with  ivabradine:  a  new therapeutic perspective in cardiovascular disease. Drugs, 64:1757­65, 2004. DIFRANCESCO  D,  NOBLE  D.  A  model  of  cardiac  electrical  activity  incorporating  ionic  pumps  and  concentration changes. Phylosoph Trans R Soc B, 307:353­98, 1985. DIFRANCESCO D, TROMBA C. Inhibition of the hyperpolarization­activated current (If) induced by acetylcholine in rabbit sino­atrial node myocytes. J Physiol, 405:477­91, 1988. HAGIWARA  N,  IRISAWA  H,  KASANUKI  H  et  al.  Background  current  in  sino­atrial  node  cells  of  the  rabbit  heart.  J Physiol, 448:53­72, 1992. HERING  S,  BERJUKOW  S,  SOKOLOV  S  et  al.  Molecular  determinants  of  inactivation  in  voltage­gated  Ca2+  channels.  J Physiol, 528:237­49, 2000. HERRING  N,  DANSON  EJF,  PATERSON  DJ.  Cholinergic  control  of  heart  rate  by  nitric  oxide  is  site  specific.  News  Physiol Sci, 17:202­6, 2002. HOFFMAN BF, CRANEFIELD PF. Electrophysiology of the Heart. New York: McGraw­Hill; 1960. IOST  N,  VIRÁG  L,  OPINCARIU  M  et  al.  Delayed  rectifier  potassium  current  in  undiseased  human  ventricular myocytes. Cardiovasc Res, 40:508­15, 1998. IRISAWA H, BROWN HF, GILES W. Cardiac pacemaking in the sinoatrial node. Physiol Rev, 73:197­227, 1993. KURATA Y, HISATOME I, IMANISHI S et al. Dynamical description of sinoatrial node pacemaking: improved mathematical model for primary pacemaker cell. Am J Physiol, 283:2074­101, 2002. LANGER GA. The myocardium. 2. ed. San Diego: Academic Press; 1997. LEE  FY,  WEI  J,  WANG  JJ  et  al.  Electromechanical  properties  of  Purkinje  fibers  strands  isolated  from  human  ventricular endocardium. J Heart Lung Transplant, 23:736­44, 2004. LI GR, FENG J, YUE L et al. Transmural heterogeneity of action potentials and ITO1 in myocytes isolated from the human right ventricle. Am J Physiol, 275:H369­77, 1998. LI  GR,  NATTEL  S.  Properties  of  human  atrial  ICa  at  physiological  temperatures  and  relevance  to  action  potential.  Am  J Physiol, 272:H227­35, 1997. MARIONNEAU  C,  COUETTE  B,  LIU  J  et  al.  Specific  pattern  of  ionic  channel  gene  expression  associated  with  pacemaker activity in the mouse heart. J Physiol, 562:223­34, 2005. MATSUURA H, EHARA T, DING WG et al. Rapidly and slowly components of delayed rectifier K + curent in guinea­pig sino­ atrial node pacemaker cells. J Physiol, 540:815­30, 2002. MITCHESON JS, SANGUINETTI MC. Biophysical properties and molecular basis of cardiac rapid and slow delayed rectifier potassium channels. Cell Physiol Biochem, 9:201­16, 1999. MITSUIYE T, SHINAGAWA Y, NOMA A. Sustained inward current during pacemaker depolarization in mammalian sinoatrial node cells. Circ Res, 87:88­91, 2000. NERBONNE  JM.  Molecular  basis  of  functional  voltage­gated  K +  channel  diversity  in  the  mammalian  myocardium.  J Physiol, 525:285­98, 2000. NICHOLS CG, LOPATIN AN. Inward rectifier potassium channels. Annu Rev Physiol, 59:171­91, 1997. NOMA  A,  MORAD  M,  IRISAWA  H.  Does  the  “pacemaker  current”  generate  the  diastolic  depolarization  in  the  rabbit  node cells? Pflügers Arch, 397:190­4, 1983. ONO  K,  ITO  H.  Role  of  rapidly  activating  delayed  rectifier  K +  current  in  sinoatrial  node  pacemaker  activity.  Am  J Physiol, 269:H453­62, 1995. PAES  DE  CARVALHO  A.  Excitação  cardíaca.  In:  KRIEGER  EM  (Ed.).  Fisiologia  Cardiovascular.  Rio  de  Janeiro:  Byk­ Procienx; 1976. PAES  DE  CARVALHO  A,  FONSECA  COSTA  A.  Circulação  e  Respiração;  Fundamentos  de  Biofísica  e  Fisiologia.  Rio  de Janeiro: Cultura Médica; 1983.

PENNEFATHER P, COHEN IS. Molecular mechanisms of cardiac K +­channel regulation. In: ZIPES DP, JALIFE J (Eds.). Cardiac

PENNEFATHER P, COHEN IS. Molecular mechanisms of cardiac K +­channel regulation. In: ZIPES DP, JALIFE J (Eds.). Cardiac electrophysiology: from cell to bedside. Philadelphia: WB Saunders; 1990. SCHRAM G, POURRIER M, MELNYK P et al. Differential distribution of cardiac ion channel expression as a basis for regional specialization in electrical function. Circ Res, 90:939­50, 2002. SHI W, WYMORE R, YU H et al.  Distribution  and  prevalence  of  hyperpolarization­activated  cation  channel  (HCN)  mRNA expression in cardiac tissues. Circ Res, 85:1­6, 1999. SHIH HT. Anatomy of the action potential in the heart. Mol Cell Cardiol, 21:30­41, 1994. SINGH  BN.  An  overview  of  slow  channel  applications. Cardiology, 69(Suppl. 1):2­25, 1982.

blocking 

drugs: 

pharmacological 

basis 

for 

therapeutic

SNYDERS DJ. Structure and function of cardiac potassium channels. Cardiovasc Res, 42:377­90, 1999. SPLAWSKI  I,  TIMOTHY  KW,  DECHER  N  et  al.  Severe  arrhythmia  disorder  caused  by  cardiac  L­type  calcium  channel mutations. Proc Natl Acad Sci USA, 102:8089­96, 2005. SPRAY D, CAMPOS DE CARVALHO AC. Junções comunicantes. Ciência Hoje, 77:44­52, 1994. STRIESSNIG J. Pharmacology, structure and function of cardiac L­type Ca2+ channels. Cell Physiol Biochem, 9:242­69, 1999. TAMARGO J, CABALLERO R, GOMÉZ R et al. Pharmacology of cardiac potassium channels. Cardiovasc Res, 62:9­33, 2004. WATANABE Y, DREIFUS LS. Newer concepts in the genesis of cardiac arrhythmias. Am Heart J, 76:114­35, 1968. ZIPES DP, JALIFE J (Eds.). Cardiac Electrophysiology: From Cell to Bedside. 5. ed. Philadelphia: Saunders; 2009.



Bases do eletrocardiograma

■ ■

Princípios da eletrocardiografia Geração das ondas do eletrocardiograma

■ ■ ■

Sistema de registro do eletrocardiograma Leitura e interpretação do eletrocardiograma Bibliografia

BASES DO ELETROCARDIOGRAMA Como detalhado no capítulo anterior, o coração, a exemplo do que ocorre com outros tecidos musculares e o sistema nervoso, funciona com base em sinais elétricos. O desempenho adequado da bomba cardíaca exige perfeita sincronia entre o  período  em  que  músculo  está  relaxado,  permitindo  assim  o  enchimento  das  câmaras,  e  o  período  de  contração,  o  que possibilita  imprimir  pressão  (energia  potencial)  e  velocidade  (energia  cinética)  ao  sangue,  garantindo  a  circulação sanguínea  (como  será  discutido  no  Capítulo  31,  O  Coração  como  Bomba).  O  sincronismo  da  atividade  mecânica  das câmaras  cardíacas  (contração  e  relaxamento)  é  garantido  pela  geração  e  propagação  de  potenciais  elétricos  (potenciais  de ação) ao longo do sincício elétrico miocárdico, como discutido no Capítulo 28, Eletrofisiologia do Coração. Alterações na atividade  elétrica  do  coração  levam  à  perda  de  sincronia  nos  ciclos  de  relaxamento  e  contração,  sendo  deletérias  para  a função da bomba cardíaca. Em uma situação extrema em que a atividade elétrica nesse órgão cessa, ocorre parada cardíaca. O  eletrocardiograma  (ECG)  constitui  o  exame­padrão  para  avaliar  a  geração  e  a  propagação  da  atividade  elétrica  no coração.  Trata­se  de  um  exame  de  fácil  execução,  de  baixo  custo  e  potencialmente  rico  no  fornecimento  de  informações sobre  a  atividade  elétrica  cardíaca  e,  consequentemente,  o  funcionamento  do  coração.  Essa  é  a  razão  pela  qual  o  ECG constitui  elemento  indispensável  para  a  avaliação  clínica  de  atletas,  de  indivíduos  que  vão  se  submeter  a  procedimentos cirúrgicos e, principalmente, de pacientes portadores de algum tipo de doença cardiovascular. Como visto no capítulo anterior, os cardiomiócitos, em repouso, apresentam uma diferença de potencial entre os meios extra e intracelular. O valor desta diferença, que constitui o potencial de membrana ou potencial de repouso, é variável nos diferentes tipos de células do coração, sendo encontrados menores valores nos nodos (cerca de –50 a –55 mV) e maiores nas  fibras  subendocárdicas  de  Purkinje  (cerca  de  –85  a  –90  mV).  Independentemente  do  valor  do  potencial  de  repouso, entretanto,  este  sempre  é  negativo  no  meio  intracelular  em  relação  ao  meio  extracelular.  Como  o  meio  extracelular  tem baixa resistência elétrica e todas as células são envolvidas pelo mesmo meio condutor (a solução eletrolítica que envolve as  células),  a  diferença  de  potencial  entre  dois  pontos  do  meio  extracelular  é  nula  quando  as  células  estão  em  repouso. Quando as fibras de uma região são estimuladas e entram em atividade (sofrem despolarização), há redução no valor do potencial elétrico do meio extracelular nas vizinhanças da região ativa (o qual fica mais negativo que o potencial elétrico do  meio  intracelular).  Em  consequência,  surge  uma  diferença  de  potencial  entre  dois  pontos  do meio extracelular, como mostrado  na  Figura  29.1.  Considerando­se  que  o  meio  extracelular  é  um  fluido  condutor  de  baixa  resistência,  existe

deslocamento de cargas elétricas entre os dois pontos, ou seja, aparece uma corrente elétrica entre a região já despolarizada e  as  demais  células  que  ainda  se  encontram  em  repouso  elétrico  (ver  Figura  29.1  B).  Se  a  corrente despolarizante (corrente d, Figura 29.1 B) tem intensidade suficiente para vencer a resistência das junções intercelulares, a  despolarização  propaga­se  como  uma  onda  da  região  ativa  para  as  regiões  ainda  inativas  (no  presente  exemplo  da esquerda para a direita). No momento em que todas as células estão igualmente despolarizadas, os fluxos de corrente entre os dois pontos de registro novamente desaparecem (ver Figura 29.1 C). Uma vez que a célula da esquerda foi a primeira a se despolarizar, ela também deverá ser a primeira a se repolarizar. Novamente aparece uma diferença de potencial entre os dois  pontos  de  registro,  só  que  a  corrente  que  flui  no  meio  extracelular  (corrente  r, Figura 29.1 D) desloca­se da região ativa para a inativa. Tal corrente denomina­se corrente repolarizante porque tende a restabelecer a polaridade de repouso da membrana. Como o coração está imerso em um meio condutor, o campo elétrico gerado pelo deslocamento de correntes despolarizantes  e  repolarizantes  no  fluido  extracelular  propaga­se  para  todo  o  corpo.  Desta  maneira,  eletrodos posicionados  em  diferentes  regiões  da  superfície  corporal,  quando  acoplados  a  um  amplificador  apropriado,  podem registrar  as  variações  do  potencial  elétrico.  Este  princípio  constitui  o  fundamento  de  uma  série  de  registros  elétricos obtidos de diversos órgãos e tecidos que têm como base de seu funcionamento a geração de potenciais de ação.

Figura 29.1 ■ A figura representa quatro células do miocárdio, acopladas através das junções intercelulares. Em A,  todas  as células  estão  em  repouso.  Dois  eletrodos  situados  no  meio  extracelular  detectam  diferença  de  potencial  nula.  Em  B,  a despolarização da célula à esquerda faz aparecer uma diferença de potencial entre os eletrodos de registro consequente ao aparecimento  de  uma  corrente  despolarizante  (d).  Em  C,  quando  todas  as  células  estiverem  despolarizadas,  novamente  o

galvanômetro  registrará  diferença  de  potencial  igual  a  0.  Em  D,  como  a  célula  à  esquerda  repolariza  primeiro,  outra  vez aparecerá  diferença  de  potencial  entre  os  eletrodos  de  registro,  só  que  a  corrente  extracelular  (r)  fluirá  agora  da  região repolarizada para a região ativa. O galvanômetro irá registrar esta corrente com um sinal oposto ao da corrente despolarizante.

Deve­se  a  Waller,  em  1887,  a  primeira  demonstração  de  que  as  flutuações  do  campo  elétrico  cardíaco  podiam  ser captadas  por  eletrodos  posicionados  na  superfície  do  corpo.  Estas  flutuações  correspondem  ao  ECG,  e  os  princípios básicos  de  obtenção  desse  registro  podem  também  ser  aplicados  a  outros órgãos  e  tecidos  que  funcionam  com  base  em potenciais  de  ação,  originando  outros  tipos  de  registro,  como  o  eletroencefalograma,  o  eletrorretinograma,  o eletromiograma,  dentre  outros.  Nestes  registros,  são  captadas,  por  meio  de  eletrodos  e  sistemas  especiais  de  filtragem  e amplificação de sinais elétricos, as flutuações do potencial do meio extracelular. Por outro lado, os registros do potencial de ação (como visto no capítulo anterior) captam as mudanças do potencial transmembrana.

PRINCÍPIOS DA ELETROCARDIOGRAFIA Grande  parte  do  desenvolvimento  da  eletrocardiografia  como  exame  fundamental  para  a  análise  da  atividade  elétrica cardíaca foi possível graças aos trabalhos desenvolvidos pelo médico holandês Willem Einthoven na primeira década do século XX; portanto, há mais de 100 anos. Naquela época, apesar de já se saber há mais de 25 anos que o funcionamento do coração produzia flutuações periódicas no potencial elétrico da superfície corporal, o grande problema era como obter um  registro  confiável  e  reprodutível  destas  flutuações.  Deve­se  a  Einthoven  o  desenvolvimento  de  um  sistema  avançado (para  a  época)  de  captação  de  sinais  elétricos  de  baixa  amplitude,  o  galvanômetro  de  corda,  que  tinha  sensibilidade suficiente  para  captar,  na  superfície  corporal,  as  flutuações  do  campo  elétrico  cardíaco.  Estas  flutuações  eram transformadas pelo galvanômetro nas ondas do ECG. De  posse  deste  instrumento  de  registro,  e  usando  a  teoria  do  dipolo,  coube  a  Einthoven  formular  um  conjunto  de proposições  que  permitiram  padronizar  os  registros.  A teoria  do  dipolo  estabelece  que  qualquer  diferença  de  potencial existente em um meio condutor, também chamada de dipolo, pode ser representada por um vetor que aponta para o lado do potencial  mais  alto  e  cujo  comprimento  é  proporcional  à  intensidade  do  dipolo.  Desta  maneira,  as  correntes  ‘d’  e  ‘r’ esquematizadas  na  Figura  29.1  poderiam  ser  representadas  por  dipolos,  denominados,  respectivamente,  vetor  de despolarização  (Figura  29.2  A)  e  vetor  de  repolarização  (Figura  29.2  B).  Observa­se  que  as  correntes  ‘d’  e  ‘r’  têm sentidos  contrários,  pois  fluem  em  diferentes  sentidos  no  meio  extracelular.  Se,  no  galvanômetro,  a  corrente  ‘d’  for registrada como uma onda positiva, a corrente ‘r’ aparecerá como uma onda negativa. A junção das duas ondas indica as modificações  elétricas  do  meio  extracelular  decorrentes  da  excitação  das  células,  como  ilustrado  na  Figura  29.2.  Na verdade, o sentido das ondas depende apenas dos arranjos de entrada do sinal no galvanômetro. O que a teoria do dipolo garante,  entretanto,  é  que  as  ondas  tenham  sinais  contrários,  pois  representam  vetores  que  se  propagam  em  sentidos opostos. Além disso, a amplitude de cada onda será proporcional à intensidade do dipolo. Como o dipolo elétrico propaga­ se  no  sincício  miocárdico  e  essa  propagação  não  é  instantânea,  a  duração  das  ondas  será  proporcional  à  velocidade  de ativação da propagação de cada dipolo.

Figura 29.2 ■ Considerando­se a mesma situação mostrada na Figura 29.1 (em que a onda de despolarização se propaga da esquerda para a direita e os campos elétricos gerados pelas correntes “d” e “r” passam a ser representados por vetores), o vetor de despolarização irá apontar para a direita. Assim, se o eletrodo da esquerda for ligado à referência do amplificador e o da direita for o ativo, a despolarização será registrada como uma onda positiva (A), e a repolarização, como uma onda negativa (B). A junção das duas ondas representará as flutuações do campo elétrico extracelular durante os processos de despolarização e repolarização celular.

Einthoven  aplicou  a  teoria  do  dipolo  na  interpretação  das  correntes  elétricas  registradas  na  superfície  corporal, formulando  um  conjunto  de  proposições  que  são,  por  vezes,  chamadas  de  princípios  da  eletrocardiografia  ou  Leis  de Einthoven. Resumidamente, estes podem ser assim enunciados: ■ O  meio  condutor  que  envolve  o  coração  é  homogêneo.  Como  consequência,  o  dipolo  elétrico  gerado  pela  ativação cardíaca propaga­se igualmente por toda a superfície corporal ■ O  campo  elétrico  a  cada  instante  é  representado  por  um  dipolo  único,  resultante  da  atividade  sincronizada  de  um grande número de células no coração ■ Os dipolos instantâneos têm um ponto de aplicação comum, representado pelo centro elétrico do coração ■ Os pontos da superfície corporal (braço esquerdo, braço direito e perna esquerda) escolhidos para o registro do campo elétrico cardíaco formam um triângulo equilátero, cujo centro corresponde ao centro elétrico do coração. Rigorosamente  falando,  nenhum  destes  princípios  é  válido,  uma  vez  que  o  meio  extracelular  não  é  totalmente homogêneo,  a  ligação  de  eletrodos  aos  membros  não  forma  um  triângulo  equilátero  e  nem  tampouco  o  coração  ocupa  o centro deste triângulo imaginário. Apesar destas restrições, esses princípios têm sido aceitos desde então no uso clínico da eletrocardiografia. A montagem do sistema de registro eletrocardiográfico, bem como a interpretação das ondas do ECG, tem por base a aceitação da validade destes princípios.

GERAÇÃO DAS ONDAS DO ELETROCARDIOGRAMA A ativação cardíaca normal se faz em uma sequência regular representada pelo ciclo da atividade elétrica do coração, como discutido no capítulo anterior. É importante ressaltar que a onda de excitação propaga­se no músculo cardíaco com diferentes velocidades, como mostrado no Quadro 29.1. A velocidade de propagação depende da intensidade dos circuitos locais  de  corrente  em  decorrência  dos  fluxos  iônicos  que  geram  o  potencial  de  ação  nos  miócitos.  As  células  que  têm potencial de repouso mais negativo, como as fibras musculares dos ventrículos e as fibras de condução de Purkinje, vão apresentar  correntes  de  influxo  (entrada)  de  Na+  de  grande  amplitude.  Nestas  condições,  a  velocidade  com  que  ocorre despolarização, fase 0 do potencial de ação, também é grande. Isso se traduz, em termos de registro, por um valor grande de  dV/dt  máximo  (velocidade  máxima  de  despolarização).  Nestas  células,  o  potencial  de  ação  se  propaga  com  grande velocidade  (ver  Quadro  29.1).  Nos  tecidos  nodais,  ao  contrário,  as  células  apresentam  potencial  de  repouso  menos negativo (da ordem de –50 mV). A despolarização destas células é feita por uma corrente lenta de influxo de Ca2+ através da membrana, originando um valor de dV/dt máximo de baixa amplitude. Como consequência, a amplitude dos circuitos locais  de  corrente  é  baixa  e,  portanto,  a  velocidade  de  propagação  da  onda  de  despolarização  também  é  pequena  quando comparada com a dos tecidos não nodais (miocárdio atrial e ventricular e sistema de His­Purkinje).

Quadro 29.1 ■ Características do potencial de ação e velocidade de propagação da onda de excitação nas diferentes regiões do coração. Região do coração

Potencial de repouso

Amplitude do potencial Velocidade de

(mV)

de ação (mV)

propagação (m/s)

Nodo sinusal

–45 a –50

50 a 60

0,01

Átrios

–70 a –80

85 a 95

0,8 a 1,2

Nodo atrioventricular

–50 a –55

60 a 65

0,01 a 0,05

Sistema His­Purkinje

–85 a –90

110 a 130

2,0 a 5,0

Ventrículos

–80 a –85

105 a 110

1,0 a 1,5

Os números indicam valores típicos encontrados em células das diferentes regiões do coração. A  Figura  29.3  mostra  os  diferentes  tipos  de  potencial  de  ação  gerados  durante  um  ciclo  cardíaco  e  as  ondas eletrocardiográficas geradas na superfície do corpo. Observa­se que o ciclo cardíaco origina­se com a despolarização das células  do  nodo  sinusal,  propagando­se  pelos  átrios  direito  e  esquerdo.  Analisando­se  a  equivalência  temporal  entre  os registros  de  potencial  em  diferentes  regiões  do  coração  e  as  ondas  do  ECG,  verifica­se  que  a  ativação  (despolarização) atrial gera uma onda denominada onda P. A despolarização ventricular gera um conjunto de ondas pontiagudas e de rápida inscrição, chamado de complexo QRS. A onda T coincide  com  a  fase  3  do  potencial  de  ação  ventricular,  representando, portanto, a repolarização ventricular. A onda U, que às vezes aparece em um registro do ECG após a onda T, parece ser determinada pela repolarização tardia das fibras ventriculares com potenciais de ação mais longos.

Figura 29.3 ■ Propagação da atividade elétrica no coração. À esquerda, esquema do coração mostrando as câmaras cardíacas, os  nodos  e  o  sistema  de  condução  intraventricular.  À  direita,  potenciais  de  ação  típicos  encontrados  em  cada  uma  destas estruturas e a correlação temporal com as ondas e intervalos do eletrocardiograma (ECG). Observe que a onda P coincide com o espalhamento da excitação nos átrios, o complexo QRS coincide com a ativação ventricular e a onda T coincide temporalmente com a fase 3 da repolarização dos potenciais de ação do músculo ventricular. Observe, também, as diferenças de duração de potencial de ação nos vários componentes do sistema de condução intraventricular e no miocárdio de trabalho ventricular. SA, sinoatrial (ou sinusal); AV, atrioventricular. (Adaptada de Netter, 1969.)

Imaginando­se  o  coração  em  uma  posição  fixa,  o  ciclo  elétrico  da  atividade  cardíaca  ocorreria  sempre  na  mesma sequência  e  com  velocidade  de  propagação  uniforme  em  diferentes  batimentos.  Assim,  as  ondas  do  ECG  captadas  por eletrodos com posição fixa produzem sempre ondas com a mesma forma. Mudando­se a posição dos eletrodos, entretanto, há grande variação da morfologia destas ondas.

Nomenclatura das ondas e intervalos do eletrocardiograma

O  ECG  corresponde  ao  registro  de  variações  de  voltagem  em  função  do  tempo.  Deste  modo,  a voltagem ou amplitude das ondas é indicada no eixo vertical e as durações dos processos elétricos, no eixo horizontal.  Para  a  comparação  de  registros  feitos  em  diversos  momentos  em  um  mesmo  indivíduo,  ou registros  obtidos  em  indivíduos  diferentes,  há  necessidade  de  se  obter  o  ECG  de  modo  padronizado.  No ECG convencional, o paciente deve estar em repouso e deitado em decúbito dorsal. O registro é realizado na velocidade de 25 mm/s e a amplificação (ganho) é de 1 mV/cm. Como consequência, cada milímetro de registro corresponde à duração de 40 ms (ou 0,04 s) e à amplitude de 0,1 mV. Os principais elementos lidos no ECG podem ser vistos na Figura 29.4.  Alguns  parâmetros  obtidos  na  leitura  do  ECG  são  importantes para entendimento do texto: Intervalo PR: vai do início da onda P ao início do complexo QRS. Segmento PR: vai do final da onda P ao início do complexo QRS. Intervalo QT: vai do início do complexo QRS ao término da onda T. Segmento ST: vai do final do complexo QRS (ponto J) ao começo da onda T.

Figura 29.4 ■ Representação gráfica de um registro eletrocardiográfico padrão, mostrando a nomenclatura das ondas, intervalos e  segmentos.  Observe  que,  em  condições­padrão,  a  velocidade  do  registro  é  de  0,04  s/mm  (ou  25  mm/s)  e  de  0,1  mV/mm. (Adaptada de Netter, 1969.)

▸ Despolarização atrial e geração da onda P Quando o coração está em repouso elétrico e prestes a iniciar um novo ciclo de atividade, a primeira região a disparar potenciais  de  ação  será  o  nodo  sinusal  (ou  nodo  sinoatrial),  que  se  localiza  na  região  de  conexão  das  veias  cavas  com  o átrio  direito.  O  nodo  sinusal  tem  as  células  com  o  grau  mais  elevado  de  automatismo  no  coração.  A  atividade  elétrica desse  nodo  é  de  baixa  amplitude,  pelo  pequeno  volume  de  células  que  o  compõe.  Em  consequência,  a  atividade  elétrica sinusal não é captada por eletrodos situados na superfície corporal usados na eletrocardiografia convencional. A atividade gerada  no  nodo  sinusal  se  propaga  inicialmente  pelo  átrio  direito,  tomando  o  caminho  descendente  da crista  terminalis. Em  seguida,  são  despolarizados  o  septo  interatrial  e  o  átrio  esquerdo.  Assim,  a  ativação  das  câmaras  atriais  pode  ser representada por dois vetores (Figura 29.5). O primeiro é voltado ligeiramente para a esquerda, para baixo, e para a frente, e resulta da ativação do átrio direito. O segundo é virado para a esquerda e para trás e tem pequena inclinação para baixo. Esses dois vetores originam um vetor resultante, denominado vetor P, que na maior parte dos indivíduos orienta­se para a esquerda e para baixo no plano frontal, e para trás no plano horizontal. O vetor P é, portanto, o vetor resultante da ativação dos dois átrios e o responsável pela inscrição da onda P (ver Figura 29.4). A duração da onda P (Quadro 29.2) reflete o tempo gasto para que a onda de despolarização se espalhe pelos dois átrios, situando­se entre 80 e 100 ms nos indivíduos saudáveis.

Figura  29.5  ■   Posição  do  vetor  médio  de  ativação  atrial  (vetor  P)  no  plano  frontal.  Observe  que  o  vetor  P  é  formado  pela composição  dos  vetores  de  ativação  do  átrio  direito  (AD)  e  do  átrio  esquerdo  (AE).  O  eixo  de  P  situa­se,  na  maioria  dos indivíduos sem alterações cardíacas, em torno de +60° no plano frontal.

Quadro 29.2 ■ Duração das ondas e intervalos do eletrocardiograma no coração de adultos saudáveis. Parâmetro

Duração (ms)

Onda P

80 a 120

Intervalo PR

120 a 200

Segmento PR

80 a 100

Duração do QRS

70 a 110

Intervalo QT*

300 a 400

Segmento ST

100 a 150

Onda T

100 a 150

*O intervalo QT é fortemente influenciado pela frequência cardíaca.

Variabilidade da ativação atrial A ativação atrial não segue um padrão com o mesmo grau de regularidade normalmente observado nos ventrículos.  O  caminho  seguido  pela  onda  de  excitação  (despolarização)  pode  ser  modificado  por alterações  da  frequência  cardíaca  e  pelo  grau  de  atividade  autonômica  direcionada  para  o  coração.  O músculo atrial é rico em receptores colinérgicos. A descarga vagal não só reduz a frequência de disparo do marca­passo  sinusal  como  também  diminui  a  velocidade  de  condução  intra­atrial.  Como  tais  efeitos  não ocorrem uniformemente em toda a extensão dos átrios, o trajeto seguido pela onda de despolarização pode mudar de caminho nestas condições. Quando isso acontece, muda o padrão de inscrição da onda P. Outro fator que interfere na geração da onda P é a presença de feixes de condução rápida do impulso elétrico na musculatura atrial. Entretanto, há controvérsias a este respeito, devido ao fato de tais vias serem definidas mais do ponto de vista funcional que anatômico. Os estudos eletrofisiológicos invasivos (eletrodos de estimulação e de registro posicionados dentro do coração) detectam em muitas situações a presença de vias rápidas de condução, mas a maioria dos estudos histológicos falha em demonstrar a presença de tais

vias.  Com  base  em  estudos  funcionais,  foram  descritas  três  vias  de  condução  rápida.  O  trato  internodal anterior divide­se em dois ramos: um comunica­se diretamente com o nodo atrioventricular (nodo AV) e o outro  atravessa  o  septo  interatrial  e  se  espalha  pelo  átrio  esquerdo.  Os  outros  dois  tratos, denominados mediano e posterior, comunicam diretamente o nodo sinusal ao nodo AV. Aparentemente, na maioria dos indivíduos os feixes internodais são muito finos, de modo que a propagação se faz através do próprio  miocárdio  atrial.  Em  situações  especiais,  entretanto,  esses  feixes  podem  ser  funcionais,  fazendo com que a excitação ventricular seja realizada de modo prematuro, isto é, sem o atraso nodal, em virtude da lenta propagação do potencial de ação ao longo do nodo AV.

▸ Condução atrioventricular O  anel  de  tecido  conjuntivo  que  separa  os  átrios  dos  ventrículos  funciona  como  isolante  elétrico  entre  as  câmaras atriais  e  ventriculares,  de  maneira  que  a  única  conexão  elétrica  entre  as  câmaras  atriais  e  as  ventriculares  é  por  meio  do nodo  atrioventricular  (AV).  Existem  situações  em  que  remanescentes  de  tecido  atrial  permanecem  no  anel  fibroso  e,  se forem de calibre adequado e apresentarem conexões com fibras atriais e ventriculares, podem funcionar como elementos adicionais de conexão elétrica entre os átrios e os ventrículos. Quando essas vias “anômalas” são funcionais, fazem com que os ventrículos se despolarizem e, consequentemente, se contraiam muito precocemente, isto é, quando ainda não estão totalmente cheios de sangue. O batimento ventricular precoce determina o aparecimento de baixo débito sistólico (volume sistólico) e queda de pressão arterial. Do ponto de vista funcional, o nodo AV pode ser dividido em três regiões: atrionodal (AN), nodal propriamente dita (N)  e  nodal­ventricular  (NV).  O  mapeamento  funcional  do  nodo  AV  foi  feito  por  Paes  de  Carvalho  e  colaboradores,  no Instituto de Biofísica da UFRJ, no final dos anos 1950. Na região AN, são encontradas fibras que apresentam potenciais de ação de transição que ocorrem nas fibras atriais típicas (i. e., que têm fase 0 com alta velocidade de despolarização) e fibras  com  potencial  de  ação  do  tipo  nodal,  como  mostrado  na Figura 29.3.  Os  potenciais  de  ação  lentos,  cuja  fase  de despolarização é dependente quase exclusivamente do influxo de Ca2+ nas células, são encontrados apenas na região N. A condução pelo nodo AV é bastante lenta (ver Quadro 29.1). A exemplo do nodo sinusal, o nodo AV também é uma região muito  pequena,  razão  pela  qual  sua  atividade  elétrica  não  gera  um  campo  elétrico  com  magnitude  suficiente  para  ser registrado  na  superfície  do  corpo.  Do  ponto  de  vista  temporal,  a  passagem  do  estímulo  elétrico  pelo  nodo  AV  coincide com a fase inicial do segmento PR do ECG, ou seja, a linha isoelétrica que vai do final da onda P ao início do complexo QRS (ver Figura 29.3). Assim, no registro convencional do ECG, pode­se apenas verificar se a condução AV está normal, lentificada (aumento do segmento PR) ou acelerada (segmento PR curto). Entretanto, o funcionamento adequado do nodo AV  é  crítico  para  o  coração.  Bloqueios  nessa  região,  ou  condução  acelerada,  podem  levar  a  sérios  distúrbios  do funcionamento  cardíaco  e  até  à  morte.  Como  será  visto  mais  adiante,  a  exploração  da  condução  atrioventricular  com eletrodos  intracardíacos  permite  acompanhar  a  propagação  da  onda  através  do  nodo  (ver  eletrograma  do  feixe  de His, Figura 29.6), exame esse de grande valor para se determinar o local exato de distúrbios de condução na junção AV. Este tipo de análise é que o orienta a colocação de marca­passos para prevenir morte súbita no caso de interrupção brusca da condução atrioventricular. Apesar  de  o  segmento  PR  não  conter  nenhuma  “onda”  no  ECG,  durante  o  seu  registro  a  onda  de  excitação  está  se propagando pelas diferentes regiões do nodo AV e pelos feixes do sistema de His­Purkinje. Como visto anteriormente, a região  mais  distal  do  nodo  AV  (região  NH)  corresponde  à  transição  do  tecido  nodal  propriamente  dito  com  o  tronco  do feixe de His. Este percorre o trajeto na região alta do septo interventricular, dividindo­se em dois ramos: o direito, mais fino e longo, e o esquerdo, mais curto e grosso. O ramo direito do feixe de His caminha ao longo do septo em direção ao ápice  do  coração,  pela  parede  livre  do  ventrículo  direito.  O  ramo  esquerdo  apresenta  as  primeiras  ramificações  no  terço médio  do  septo  interventricular,  distribuindo­se  sob  a  forma  de  dois  fascículos  (um  anterior  e  outro  posterior)  para  a superfície  endocárdica  do  ventrículo  esquerdo.  O  registro  da  onda  H  no  eletrograma  do  feixe  de  His  (ver  Figura  29.6) corresponde à ativação elétrica do feixe de His propriamente dito. A medida do tempo entre as ondas A (ativação atrial) e V (ativação ventricular) permite inferir o tempo necessário para que o estímulo elétrico proveniente dos átrios atravesse o nodo AV.

▸ Ativação ventricular e geração do complexo QRS A rápida ativação das fibras miocárdicas ventriculares (geralmente referidas como miocárdio de trabalho ventricular) é  garantida  por  uma  complexa  rede  de  fibras  miocárdicas  organizadas  anatomicamente  em  feixes,  denominada  sistema

periférico de His­Purkinje. Como as fibras de Purkinje têm diâmetro maior (em comparação com o miocárdio de trabalho atrial ou ventricular) e existe elevado grau de acoplamento intercelular no sentido longitudinal, a propagação do potencial de ação nestas fibras se faz com grande velocidade, podendo atingir até 5 m/s (nas regiões de melhor acoplamento celular) no sentido longitudinal dos feixes (ver Quadro 29.1). A rede de fibras de Purkinje se origina das ramificações periféricas dos ramos direito e esquerdo do feixe de His, distribuindo­se pelo endocárdio de ambos os ventrículos. Esta é a razão pela qual a excitação ventricular se propaga do endocárdio para o epicárdio, ou seja, o endocárdio se despolariza primeiro que o epicárdio, o contrário ocorrendo na repolarização, como será visto mais adiante.

Figura 29.6 ■ Equivalência entre as ondas do eletrocardiograma e os registros do eletrograma do feixe do His, obtido durante cateterismo  cardíaco.  O  registro  da  passagem  da  onda  de  excitação  pelo  feixe  de  His  é  indicado  pela  espícula  H.  A  onda  A corresponde à excitação atrial e a V, à excitação ventricular.

A ativação ventricular começa no terço médio do septo interventricular, caminha rapidamente em direção ao ápice do coração  e  paredes  livres  ventriculares  e  termina  com  a  excitação  das  regiões  posterobasais  de  ambos  os  ventrículos.  A duração de todo o processo de ativação dos ventrículos é dada pela duração do complexo QRS. No ECG de um indivíduo saudável, a duração do QRS não deve ultrapassar 110 ms. Quando maior que 120 ms, pode­se deduzir que ocorre retardo na propagação do impulso elétrico ao longo dos ventrículos. É interessante notar que a duração da onda P e do complexo QRS  é  praticamente  a  mesma,  apesar  de  a  massa  dos  ventrículos  ser  cerca  de  cinco  vezes  maior  que  a  dos  átrios.  Isso significa  que  o  tempo  necessário  para  a  onda  de  despolarização  percorrer  os  átrios  (tempo  de  ativação  atrial)  e  os ventrículos  (tempo  de  ativação  ventricular)  é  praticamente  o  mesmo.  O  fator  responsável  pela  maior  eficiência  dos processos  de  ativação  e  de  propagação  ventricular  é  a  presença  da  rede  subendocárdica  de  fibras  Purkinje.  Estas,  como descrito  anteriormente,  possuem  potencial  de  ação  de  grande  amplitude  e  alta  dV/dt  máxima  que  se  traduz  em  grande velocidade de propagação do potencial elétrico. Adicionalmente, o acoplamento celular no sentido fisiológico (que vai do feixe  de  His  para  a  rede  periférica  de  fibras  de  Purkinje)  é  muito  grande,  ou  seja,  a  resistência  longitudinal  ao  fluxo  de corrente  é  baixa,  facilitando  a  propagação  da  excitação.  A  ausência  de  uma  rede  semelhante  de  distribuição  do  estímulo nos átrios faz com que sua excitação seja feita mais lentamente. Por esta razão, a onda P apresenta­se mais arredondada, enquanto  o  complexo  QRS  é  constituído  por  um  conjunto  de  ondas  apiculadas  que  traduzem  a  elevada  velocidade  de tráfego do estímulo nos ventrículos. A garantia de uma excitação ventricular rápida e uniforme é fator essencial para que os dois ventrículos se contraiam praticamente ao mesmo tempo, condição básica para a eficiência mecânica da contração e da ejeção de sangue pelos ventrículos. O alargamento do complexo QRS se dá pela redução na velocidade de propagação da onda ao longo dos ventrículos. Isso pode acontecer porque a velocidade de propagação no sistema de His­Purkinje é mais lenta, ou porque o estímulo não está se propagando no sentido fisiológico (geralmente, denominado sentido anterógrado).  Sabe­se  que  a  propagação  do  impulso  elétrico  no  sincício  miocárdico  em  sentido retrógrado é mais lenta.

Para  fins  de  análise  do  ECG,  a  excitação  ventricular  pode  ser  representada  por  quatro  vetores,  assim  denominados (Figura 29.8): ■ Vetor septal (ou vetor 1) ■ Vetor de parede livre de ventrículo direito (ou vetor 2) ■ Vetor de parede anterolateral de ventrículo esquerdo (ou vetor 3) ■ Vetor de parede basal (ou vetor 4). A Figura 29.7 mostra  um  esquema  da  propagação  da  onda  de  excitação  ventricular.  A  primeira  região  excitada  é  a região média esquerda do septo interventricular, gerando o vetor septal (ver Figura 29.7 A). Como a ativação das fibras musculares do septo é feita por ramificações do ramo esquerdo do feixe de His, o vetor septal é, em geral, voltado para a direita, para baixo e para a frente. Após a ativação do septo, a onda de excitação propaga­se para baixo e para a frente, em direção  ao  ápice  do  coração.  Em  seguida,  muda  de  direção  e,  caminhando  pela  superfície  endocárdica  dos  ventrículos direito  e  esquerdo,  percorre  as  paredes  livres  de  ambos  os  ventrículos  em  direção  à  base  (ver  Figura  29.7  B  e  C).  A excitação  das  paredes  livres  dos  ventrículos  direito  e  esquerdo  ocorre  quase  simultaneamente.  A  excitação  do  ventrículo direito  gera  um  vetor  que  aponta,  no  plano  frontal,  para  a  direita  ou  ligeiramente  para  a  esquerda  (na  dependência  de  o coração ser mais horizontal ou vertical), enquanto a ativação do ventrículo esquerdo gera outro vetor sempre voltado para a esquerda (vetores 2 e 3, respectivamente, Figuras 29.7 e 29.8). Entretanto, a maior amplitude do campo elétrico gerado pela despolarização ventricular esquerda (em vista da maior massa de células existente nessa câmara) faz com que o vetor médio de ativação das paredes ventriculares seja predominantemente gerado pelo vetor 3. Esta é a razão pela qual o vetor de parede livre ventricular é, em geral, orientado para a esquerda e para baixo (no plano frontal, Figura 29.7) e da frente para trás (no plano anteroposterior, Figura 29.8). Porém, é importante ressaltar que a exata posição destes vetores em um determinado  indivíduo  só  pode  ser  determinada  pelo  ECG,  uma  vez  que  os  ângulos  de  cada  vetor  variam  em  função  do biotipo e da posição do coração no tórax. As últimas regiões dos ventrículos a serem ativadas situam­se inferiormente (em contato  com  o  diafragma)  e  posteriormente  (em  contato  com  os  vasos  da  base),  gerando  o  vetor  4  ou  vetor  basal  (ver Figuras 29.7 e 29.8). Normalmente, este está voltado para cima e para trás, sendo o responsável pela inscrição da última parte  do  complexo  QRS.  A  Figura  29.8  mostra  os  vetores  de  ativação  ventricular  no  plano  anteroposterior,  fazendo coincidir a origem de todos eles com o centro elétrico cardíaco, como preconizado pelas Leis da Eletrocardiografia.

Figura  29.7  ■   Sequência  temporal  de  ativação  dos  ventrículos.  A  propagação  da  onda  de  excitação  é  representada  por coloração roxa. Em A,  está  indicado  que  a  primeira  região  a  sofrer  despolarização  é  a  parte  média  do  septo  interventricular. Em B, o vetor representa a excitação da parte baixa do septo e da ponta do coração; note que, rapidamente, o vetor se dirige para a direita na ativação da parede livre do ventrículo direito. Em C, está representada a ativação do ventrículo esquerdo. Em D, é indicado que as regiões posterobasais do ventrículo esquerdo são as últimas a serem excitadas.

Figura 29.8 ■ Posição dos vetores de ativação ventricular, em corte transversal do tórax. O esquema mostra o esterno e uma vértebra, para servir de referência no eixo anteroposterior (A­P). Vetor 1: ativação septal; vetor 2:  ativação  da  parede  livre  do ventrículo direito; vetor 3: ativação da parede anterolateral do ventrículo esquerdo; vetor 4: ativação das regiões posterobasais dos ventrículos. Como os vetores 2 e 3 são quase simultâneos, a ativação das paredes anteriores e laterais dos ventrículos é geralmente representada por um único vetor, resultante da composição dos vetores 2 e 3. (Adaptada de Garcia, 1998.)

▸ Segmento ST e onda T | Repolarização ventricular Como descrito anteriormente, a ativação das paredes ventriculares ocorre no sentido transversal, isto é, do endocárdio para o epicárdio, gerando o complexo QRS. Quando o miocárdio ventricular está despolarizado, não há grandes diferenças de  potencial  entre  regiões  distintas  dos  ventrículos,  pois  o  platô  do  potencial  de  ação  situa­se  em  torno  de  0  mV (ver Figura 29.3). Logo, não há fluxos de corrente no meio extracelular de uma região para outra do ventrículo, e o ECG volta para valores próximos à linha de base (ou linha isoelétrica), correspondendo ao segmento ST (ver Figura 29.4). Os fluxos de corrente gerados pela repolarização são de baixa magnitude quando comparados às correntes responsáveis pela excitação ventricular. Deste modo, a velocidade de propagação da onda de repolarização é bem mais lenta que a onda de despolarização.  Essas  diferenças  ficam  evidentes  ao  se  compararem  as  morfologias  do  complexo  QRS  (ondas  rápidas  e apiculadas) e da onda T. Esta, por representar um fenômeno de propagação mais lento, é mais arredondada, como também acontece com a onda P. Um  fato  importante  na  eletrofisiologia  celular  do  coração  é  que  as  fibras  do  epicárdio  ventricular  têm  duração  de potencial  de  ação  ligeiramente  menor  que  as  fibras  de  localização  endocárdica  (ver Figura  28.13,  no  capítulo  anterior). Como consequência, o epicárdio (que foi o último a se despolarizar) é o primeiro a se repolarizar, ou seja, a desenvolver a fase 3 do potencial de ação. Assim, a repolarização, enquanto fenômeno elétrico, caminha do epicárdio para o endocárdio. Entretanto, o vetor representativo da repolarização,  responsável  pela  inscrição  da  onda  T,  dirige­se  do  epicárdio  para  o endocárdio (Figura 29.9).  Desta  maneira,  os  vetores  de  despolarização  e  repolarização  ventricular  têm  o  mesmo  sentido elétrico. Essa é a razão pela qual o sentido elétrico do complexo QRS é o mesmo da onda T. Este fato é consequência de os  vetores  elétricos  representativos  da  despolarização  (complexo  QRS)  e  da  repolarização  (onda  T)  ventricular  terem  o mesmo sentido, como mostrado na Figura 29.10. Os  sentidos  do  complexo  QRS  e  da  onda  T  tornam­se  divergentes  (situação  em  que  se  diz  que  a  onda  T  está invertida) quando os sentidos elétricos da despolarização e repolarização da parede ventricular são contrários. Isso ocorre, por exemplo, na vigência de extrassístole, como indicado na Figura 29.11. Assim, enquanto nos batimentos fisiológicos o complexo  QRS  e  a  onda  T  têm  o  mesmo  sinal  elétrico,  indicando  que  a  despolarização  e  a  repolarização  da  parede ventricular ocorreram segundo o preconizado no esquema da Figura 29.9, na extrassístole a onda T é em sentido inverso ao  complexo  QRS,  mostrando  inversão  na  sequência  da  repolarização  da  parede.  A  inversão  da  onda  T  no  batimento extrassistólico ocorre porque tanto a despolarização como a repolarização se iniciam no endocárdio, o que leva os vetores de despolarização e repolarização a adquirirem sentidos opostos. As diferenças de duração do potencial entre as fibras do endocárdio  e  do  epicárdio,  mostradas  na  Figura  28.13  (capítulo  anterior),  só  ocorrem  na  vigência  de  ritmo  cardíaco regular. Quebras no ritmo, como apresentado na Figura 29.11, alteram este comportamento eletrofisiológico peculiar das fibras ventriculares.

▸ Intervalo QT Como visto na Figura 29.4, o intervalo QT vai do início da ativação ventricular (marcado pelo início da inscrição do complexo  QRS)  até  o  final  da  repolarização  ventricular,  que  coincide  com  o  final  da  onda  T.  Sendo  assim,  como apresentado  na  Figura  29.3,  o  intervalo  QT  expressa,  aproximadamente,  a  duração  do  potencial  de  ação  ventricular. Alargamentos ou diminuições da duração do potencial de ação em fibras ventriculares, notadamente nas fibras de Purkinje, determinam alterações na duração do intervalo QT. Um dos fatores que encurtam o platô do potencial de ação cardíaco é o aumento da frequência cardíaca. Portanto, a duração do intervalo QT é muito dependente da frequência cardíaca. Esta é a razão pela qual esse intervalo, em geral, é expresso sob a forma de QT corrigido (QTc). Existem diversas fórmulas para se calcular o QTc, sendo a fórmula de Bazett a mais utilizada em clínica:

Figura 29.9 ■ Representação  esquemática  dos  vetores  de  despolarização  (vetor  D)  e  de  repolarização  (vetor  R)  ventricular. Cada  painel  representa  uma  secção  da  parede  ventricular,  mostrando  o  endocárdio  (end)  e  o  epicárdio  (epi).  As  setas estreitas representam as ondas de despolarização (que vão do endocárdio para o epicárdio em B) e de repolarização (que vão do  epicárdio  para  o  endocárdio  em  D).  O  painel  A  mostra  o  estado  de  repouso,  e  o  C,  o  momento  em  que  toda  a  parede ventricular  encontra­se  despolarizada  (fase  de  platô  dos  potenciais  de  ação).  Observe  que  o  sentido  elétrico  do  vetor  de despolarização (seta ocre em B), que gera o complexo QRS, é o mesmo do vetor de repolarização (seta ocre em D), que gera a onda T.

Figura 29.10 ■ Eletrocardiograma convencional mostrando as seis derivações do plano frontal (I, II, III, aVR, aVL e aVF) e as seis do plano horizontal, também chamadas de derivações precordiais (V1 a V6). O registro inferior, feito em D2, é estendido para se analisar  a  ritmicidade  cardíaca.  Observe  a  concordância  entre  os  sentidos  do  complexo  QRS  e  da  onda  T.  Os  valores numéricos à direita correspondem à leitura automatizada de algumas variáveis eletrocardiográficas, realizada por computador (mostrada em mais detalhes na Figura 29.19). bpm, batimentos por minuto.

Figura 29.11 ■ Registro  eletrocardiográfico  em  D2,  mostrando  uma  extrassístole  ventricular.  Nos  batimentos  normais,  notar  a sequência das ondas P, QRS e T e a regularidade dos segmentos e intervalos. Observe que a extrassístole não vem precedida de onda P (sugerindo sua origem ventricular) e é bastante alargada (indicando propagação intraventricular lenta). A onda T é invertida na extrassístole. Observe também a pausa compensatória pós­extrassistólica.

O intervalo entre duas ondas R, expresso em segundos, fornece a frequência cardíaca. Logo, o QTc nada mais é que o ajuste da duração do intervalo QT para a frequência de 1 hertz (um batimento por segundo ou 60 batimentos por minuto).

Eletrograma do feixe de His | Detalhes da condução AV A Figura 29.3 mostra a atividade elétrica registrada por meio da sequência temporal dos potenciais de ação  e  sua  inscrição  eletrocardiográfica  durante  um  ciclo  cardíaco.  O  segmento  PR,  que  vai  do  final  da onda P até o início do complexo QRS, corresponde ao período em que a atividade elétrica propaga­se pelo nodo AV e pelo feixe de His. O campo elétrico produzido pelos potenciais de ação gerados nesta área é de baixa  amplitude,  razão  pela  qual  não  são  detectadas  inscrições  no  ECG.  Assim,  o  segmento  P­R

corresponde  a  uma  linha  isoelétrica  (nível  0)  no  ECG.  O  aumento  da  duração  do  segmento  P­R  sempre sugere redução na velocidade de propagação da atividade elétrica no nodo AV, como ilustrado na Figura 29.12,  em  que  o  segmento  P­R  apresenta­se  bastante  alargado  em  paciente  com  doença  de  Chagas. Detalhes da propagação do estímulo pelo nodo AV, como visto anteriormente, podem ser analisados pelo eletrograma do feixe de His, feito durante cateterismo cardíaco. O exame é feito posicionando­se o eletrodo de  registro  no  endocárdio,  o  mais  próximo  possível  do  feixe  de  His.  O  registro  permite  visualizar  três espículas, denominadas A, H e V (Figura 29.13). A onda A equivale à propagação do estímulo pelas fibras atriais vizinhas à região nodal na transição atrionodal, o que pode ser deduzido pela correspondência com o final  da  onda  P  do  ECG.  A  onda  H  se  correlaciona  com  a  espícula  gerada  pela  ativação  do  feixe  de  His. Logo  em  seguida,  aparecem  as  ondas  V,  correspondentes  ao  início  da  ativação  do  septo  interventricular. Portanto, o segmento A­H representa o tempo necessário para o estímulo atravessar o nodo AV e excitar o feixe de His, correspondendo ao principal componente do retardo (atraso) nodal (segmento P­R) medido no ECG. O intervalo H­V, por sua vez, determina a velocidade de propagação do estímulo desde o feixe de His até  as  primeiras  terminações  de  Purkinje  geradas  a  partir  do  ramo  esquerdo  do  feixe  de  His.  Alterações neste intervalo são importantes para indicar mais precisamente o local onde há prejuízo na condução AV, ou ainda, para determinar o mecanismo de geração de algumas arritmias cardíacas com origem no nodo AV. O registro superior da Figura 29.13, obtido em indivíduo saudável, apresenta intervalo H­V de 36 ms. O registro inferior mostra condução praticamente normal no intervalo AH, indicando que a excitação do nodo AV  pelos  potenciais  atriais  é  normal,  mas  o  intervalo  HV  está  muito  aumentado  (cerca  de  130  ms), indicando bloqueio de condução abaixo do feixe de His. Indivíduos com distúrbios importantes da condução AV, notadamente quando o intervalo H­V encontra­se alargado, têm aumento de risco de morte súbita por bloqueio AV total, razão pela qual nestas situações a implantação de marca­passo artificial é muitas vezes indicada.

Figura 29.12 ■ Registro eletrocardiográfico que mostra ritmo regular, sinusal, com alargamento do intervalo e do segmento P­R. Observe que a onda P tem duração normal, indicando condução lenta na junção atrioventricular. Note que há inversão da onda T nas derivações precordiais esquerdas (V5 e V6), sugerindo alteração na repolarização da parede do ventrículo esquerdo.

Figura 29.13 ■ Registro do eletrocardiograma (traço superior) e do eletrograma do feixe de His (traço inferior) em dois pacientes. Cada  painel  mostra  o  ECG  (na  derivação  V5)  e  o  eletrograma  de  His,  onde  a  onda  A  corresponde  à  ativação  atrial;  a  H,  à ativação do feixe de His; e a V, ao complexo de ondas que indica a excitação ventricular. No painel superior, o intervalo H­V mede 36 ms, e no inferior, cerca de 130 ms, indicando dificuldade de propagação na porção baixa do feixe de His. (Cortesia de J. Elias.)

SISTEMA DE REGISTRO DO ELETROCARDIOGRAMA Como discutido no capítulo anterior, a ativação elétrica do coração é feita obedecendo a uma sequência, tanto temporal como espacial, que irá propiciar condições ótimas para o processo de ativação das câmaras cardíacas. O registro do ECG permite  reconstruir  os  passos  do  processo  de  ativação  das  câmaras  cardíacas,  tanto  no  domínio  do  tempo  (por  medidas precisas  de  duração  das  ondas,  dos  intervalos  e  dos  segmentos)  como  do  espaço  (pelo  cálculo  dos  vetores  médios  de ativação  das  câmaras  cardíacas).  Para  tanto,  há  necessidade  de  registrar  a  atividade  elétrica  cardíaca  a  partir  de  diversos pontos  do  corpo  para  se  atingir  o  segundo  objetivo.  Usando  uma  linguagem  figurada,  pode­se  dizer  que  cada  eletrodo “enxerga” o coração de um ângulo diferente. A partir das “imagens” (ondas) assim obtidas, pode­se reconstruir a ativação elétrica do órgão em uma perspectiva tridimensional. Denomina­se derivação eletrocardiográfica ao eixo elétrico que une os eletrodos usados para captar os sinais elétricos originados  pelo  coração.  Inicialmente,  Einthoven  definiu  três  derivações,  que  ficaram  conhecidas  como  as  derivações bipolares (D1, D2 e D3), pois medem, a cada instante, a diferença de potencial entre dois eletrodos situados em membros

diferentes. Os princípios da eletrocardiografia, vistos anteriormente neste capítulo, referem­se ao ECG registrado nessas três derivações. Posteriormente, foram propostas e padronizadas várias derivações unipolares, que medem a diferença de potencial  entre  um  ponto  da  superfície  corporal  e  outro  ponto  de  potencial  nulo.  No  ECG  convencional,  além  das derivações  bipolares,  são  registradas  três  derivações  unipolares  dos  membros  e  seis  derivações  precordiais.  Em registros eletrocardiográficos especiais, como no mapeamento precordial, por exemplo, o número de derivações unipolares registradas pode ser bem maior.

▸ Derivações do plano frontal São  as  derivações  que  captam  as  flutuações  do  campo  elétrico  no  plano  frontal,  isto  é,  considerando  apenas  o  eixo lateral  (direita/esquerda)  e  vertical  (superior/inferior)  do  coração.  No  plano  frontal,  são  registradas  as  três  derivações bipolares definidas por Einthoven e as três derivações unipolares dos membros.

Derivações bipolares Para o registro das derivações D1, D2 e D3, os eletrodos são posicionados nos braços direito e esquerdo e na perna esquerda.  O  aterramento  do  sistema  é  feito  por  outro  eletrodo  situado  na  perna  direita  (Figura 29.14).  A  disposição  dos eletrodos na entrada do amplificador é feita de tal modo que a amplitude de um vetor registrado em D2 seja igual à soma das amplitudes registradas em D1 e D3. Essa igualdade é conhecida como a Lei de Einthoven:

É importante ressaltar que essa disposição foi proposta de maneira arbitrária, visando obter ondas positivas e de maior amplitude no complexo QRS registrados em indivíduos saudáveis. A validade desta relação é feita ao se analisar a Figura 29.15. A ativação ventricular pode ser representada pela resultante dos vetores 1, 2, 3 e 4, que formam o complexo QRS, mostrados na Figura 29.8.  Na  maioria  dos  indivíduos  saudáveis,  o  vetor  resultante  da  ativação  ventricular  aponta  para  a esquerda  e  ligeiramente  para  baixo  no  plano  frontal  (ver Figura 29.15).  Sendo  assim,  esse  vetor  se  projeta  para  o  braço esquerdo em D1 e para a porção inferior (perna esquerda) das derivações D2 e D3. Observe que, para D2 ser igual à soma de D1 + D3, como preconizado na lei de Einthoven, a disposição dos eletrodos deve obedecer ao seguinte esquema: D1 = VL – VR D2 = VF – VR D3 = VF – VL em que: VL = potencial do braço esquerdo (L vem de left arm) VR = potencial do braço direito (R vem de right arm) VF = potencial da perna esquerda (F vem de foot). Então, de acordo com a equação 29.1, pode­se escrever:

Esta  é  a  origem  da  convenção  de  sinais  no  triângulo  de  Einthoven,  apresentada  na  Figura  29.14,  ou  seja,  para  se registrar D1, a entrada negativa do amplificador deve ser ligada ao eletrodo situado no braço direito e a entrada positiva, ao  braço  esquerdo.  A  mesma  regra  deve  ser  seguida  para  se  obterem  os  registros  de  D2  e  D3,  que  deve  seguir  o preconizado  na  equação  29.2.  Detalhes  adicionais  sobre  a  montagem  e  padronização  de  registros  eletrocardiográficos devem ser vistos em textos mais específicos. No esquema da Figura 29.15, o vetor médio de ativação ventricular origina um complexo QRS positivo e com a maior amplitude em D2, pois é praticamente paralelo a este plano de derivação. Esse mesmo vetor originaria um complexo QRS positivo em D1, pois se projeta em direção ao eletrodo explorador posicionado no braço esquerdo. Em D3 seria registrada uma onda de amplitude bem pequena, uma vez que o vetor elétrico é praticamente perpendicular ao plano da derivação D3. Vale  ressaltar  que,  quando  uma  onda  eletrocardiográfica  é  nula  ou  isoelétrica  (a  parte  positiva  é  igual  à  parte  negativa), isso indica que o vetor original está a 90° do plano de derivação.

Figura 29.14 ■ Esquema de ligação dos eletrodos no braço direito (R), braço esquerdo (L) e perna esquerda (F) para registro das derivações bipolares D1, D2 e D3. O aterramento é feito com o eletrodo posicionado na perna direita. (Adaptada de Garcia, 1998.)

Figura 29.15 ■ Projeções do vetor médio de ativação ventricular (cuja origem coincide com o centro elétrico do coração) sobre as derivações bipolares do triângulo de Einthoven. Na parte inferior, estão registrados os complexos QRS nas derivações D1, D2 e  D3.  Observe  que  a  amplitude  do  QRS  em  D2  é  igual  à  soma  das  amplitudes  em  D1  +  D3,  como  preconizado  pela  lei  de Einthoven. R, braço direito; L, braço esquerdo; F, perna esquerda. (Adaptada de Katz, 1992.)

Derivações unipolares dos membros Visando  estabelecer  o  potencial  elétrico  absoluto  de  cada  extremidade  do  corpo,  Wilson,  em  1934,  desenvolveu  um dispositivo,  cujo  potencial  elétrico  é  nulo,  que  pode  ser  considerado  um  “terra  virtual”,  denominado central  terminal  de Wilson. Portanto, registrando­se a diferença de potencial entre qualquer ponto da superfície corporal e a central terminal, consegue­se  um  registro  unipolar,  ou  seja,  o  potencial  captado  pelo  eletrodo  explorador  é  igual  à  variação  absoluta  do potencial  elétrico  daquele  local.  O  ponto  de  potencial  nulo  é  conseguido  pela  ligação  dos  três  eletrodos  conectados  aos membros  em  um  nó  comum  do  circuito  elétrico,  obtendo­se  assim  um  sistema  fechado.  Pela  segunda  lei  de  Kirchoff,  a soma de potenciais em circuito elétrico fechado é igual a zero. Então:

Tendo  em  vista  que  os  potenciais  registrados  no  braço  direito,  no  braço  esquerdo  e  na  perna  esquerda  apresentam baixa  amplitude,  o  que  dificulta  a  interpretação  das  ondas  do  ECG,  Goldberger  propôs  uma  modificação  no  circuito construído por Wilson. Na configuração proposta por Goldberger, o registro do potencial unipolar de um membro (p. ex., perna  esquerda)  é  feito  conectando­se  apenas  os  eletrodos  dos  outros  dois  membros  ao  ponto  de  potencial  nulo,  como mostrado na Figura 29.16. Com isso, os potenciais unipolares registrados nos membros têm maior amplitude, sendo mais fácil  analisá­los.  Essas  novas  derivações  foram  incorporadas  definitivamente  aos  registros  do  ECG  basal,  sendo denominadas  aVR,  aVL  e  aVF  (a  letra a indica augmented).  Os  eixos  elétricos  das  derivações  unipolares  dos  membros são  definidos  por  linhas  imaginárias  que  ligam  o  membro  onde  se  situa  o  eletrodo  explorador  e  o  coração,  ou  seja,  o centro do triângulo de Einthoven (Figura 29.17 A).

Círculo de Einthoven | Plano frontal do eletrocardiograma

As  seis  derivações  registradas  no  plano  frontal  são  comumente  representadas  em  um  círculo,  chamado  de círculo de Einthoven  (Figura  29.17  B).  Os  ângulos  do  círculo  são  divididos  em  positivos  (parte  inferior)  e  negativos  (parte superior).  O  círculo  é  dividido  em  quatro  quadrantes,  sendo  o  primeiro  quadrante  (I)  compreendido  entre  0  e  +90°,  e  o segundo quadrante (II), entre +90 e ± 180°. Os quadrantes III e IV localizam­se na parte superior do círculo, entre ± 180 e –90° e entre –90 e 0°, respectivamente. Como cada derivação está separada da outra por um ângulo de 30°, torna­se muito útil, na interpretação do ECG, a análise de derivações perpendiculares. Assim, se o QRS é positivo nas derivações D1 e aVF, isso indica que o eixo médio de ativação ventricular situa­se entre 0 e +90°, ou seja, o vetor médio de ativação dos ventrículos está direcionado para a esquerda e para baixo. Se for positivo em D1 e negativo em aVF, deve estar entre 0 e – 90° (quadrante IV), portanto direcionado para a esquerda e para cima.

Figura  29.16  ■   Esquema  de  ligação  dos  eletrodos  para  o  registro  das  derivações  unipolares  dos  membros.  O  eletrodo explorador, ligado ao braço direito (em aVR), ao braço esquerdo (em aVL) e à perna esquerda (em aVF), é sempre lido contra um  ponto  de  potencial  nulo,  denominado  Central  Terminal  de  Goldberger  (CTG).  Observe  que  o  amplificador  é  do  tipo diferencial, pois a saída mede a diferença de potencial entre a entrada positiva (ligada ao eletrodo explorador) e a negativa (V = 0). (Adaptada de Garcia, 1998.)

Figura 29.17 ■ A. Triângulo de Einthoven, mostrando as relações angulares das seis derivações do plano frontal. O centro do triângulo corresponde ao centro elétrico cardíaco. Observe que cada derivação unipolar dos membros corta o ponto médio do plano  de  uma  derivação  bipolar.  As  derivações  bipolares  são  positivas  desde  a  origem  até  o  centro  elétrico  cardíaco  (linhas contínuas)  e  negativas  nas  projeções  além  desse  ponto  (linhas  tracejadas).  B.  As  relações  angulares  formadas  pelas  seis derivações do plano frontal.

▸ Derivações do plano horizontal O ECG convencional é complementado pelo registro de seis outras derivações unipolares, em que a entrada negativa do amplificador é conectada a um ponto de potencial nulo e a positiva ao eletrodo explorador, o qual deve ser colocado em contato com seis pontos específicos da região precordial, conforme mostrado na Figura 29.18. Os registros assim obtidos denominam­se derivações unipolares precordiais,  que  são  numeradas  de  V1  a  V6.  Desta  maneira,  quando  uma  onda  de despolarização  se  aproxima  do  eletrodo  explorador,  este  irá  registrar  uma  onda  positiva  (deflexão  para  cima  na  linha  de registro).  Ao  contrário,  será  registrada  uma  onda  negativa  quando  a  onda  de  despolarização  se  afasta  da  posição  em  que está localizado o eletrodo explorador. Os locais onde deve ser posicionado o eletrodo explorador são os seguintes:

Figura 29.18 ■ Esquema  geral  de  um  eletrocardiograma  normal,  com  o  registro  das  12  derivações.  Observe  as  posições  de colocação dos eletrodos na região precordial para o registro das derivações unipolares precordiais (V1 a V6).

■ V1 – quarto espaço intercostal, junto à borda direita do esterno ■ V2 – quarto espaço intercostal, junto à borda esquerda do esterno ■ V3 – no ponto médio entre V2 e V4 ■ V4 – quinto espaço intercostal, sobre a linha hemiclavicular esquerda ■ V5 – quinto espaço intercostal, na altura da linha axilar anterior esquerda ■ V6 – quinto espaço intercostal, na altura da linha axilar média esquerda. Comparando­se  a  posição  ocupada  pelo  coração  na  caixa  torácica  e  o  posicionamento  dos  eletrodos  na  mesma (ver  Figura  29.18),  observa­se  que  as  derivações  precordiais  permitem  visualizar  a  ativação  cardíaca  no  eixo anteroposterior.  Sendo  assim,  as  derivações  V1  e  V2  são  mais  adequadas  para  identificar  o  processo  de  ativação  do ventrículo direito, enquanto V5 e V6 refletem de modo mais seletivo a ativação do ventrículo esquerdo.

LEITURA E INTERPRETAÇÃO DO ELETROCARDIOGRAMA

A  leitura  cuidadosa  do  ECG  permite  a  reconstrução  dos  processos  de  despolarização  e  repolarização  das  câmaras cardíacas.  Para  atingir  este  objetivo,  entretanto,  há  necessidade  de  se  verificarem,  sistematicamente,  os  vários componentes  do  traçado.  Atualmente  são  disponibilizados  cada  vez  mais  eletrocardiógrafos  digitais  acoplados  a computadores  com  programas  customizados  para  fazer  a  leitura  automatizada  de  certos  parâmetros  do  ECG  (Figura 29.19). A leitura automatizada, entretanto, não prescinde da análise individual feita pelo médico, pois detalhes no padrão de ondas só podem ser detectados por meio da análise manual do registro. Para isso, há necessidade de registros de boa qualidade, sem interferência da rede elétrica (60 Hz) e sem a interferência do eletromiograma. Esta é a principal razão pela qual  o  ECG  convencional  é  obtido  com  o  paciente  deitado,  pois  nessa  condição  a  musculatura  esquelética  encontra­se relaxada. Caso o paciente esteja tenso, com a musculatura contraída, ou se fizer movimentos durante o registro, o traçado eletrocardiográfico  capta  o  registro  do  eletromiograma,  dificultando  a  visualização  das  ondas  elétricas  geradas  pelo coração.  A  leitura  e  a  interpretação  do  ECG  dependem  de  conhecimento  da  eletrofisiologia  cardíaca  e  de  experiência clínica  do  médico.  Não  existe  uma  única  maneira  de  se  fazer  essa  leitura.  Entretanto,  alguns  passos  são  essenciais  na coleta de informações, como será visto a seguir.

▸ Determinação do ritmo Apesar  de  a  duração  de  cada  ciclo  cardíaco  não  ser  exatamente  a  mesma,  o  intervalo  entre  as  ondas  do  ECG  é, aproximadamente, igual em distintos batimentos. A variação da frequência cardíaca em repouso depende de vários fatores, inclusive  da  respiração  (aumento  da  frequência  na  inspiração  e  diminuição  na  expiração),  como  indicado  no  registro  C da Figura 29.20.  Quando  há  regularidade  entre  os  intervalos  das  ondas,  ocorre  ritmo  cardíaco  regular.  Se  os  intervalos entre  as  ondas  variam  de  modo  importante,  ou  seja,  além  daqueles  valores  esperados  pela  variação  respiratória  (que geralmente  não  ultrapassa  10  a  15  batimentos  por  minuto),  tem­se  ritmo  irregular.  Exemplos  de  ritmo  cardíaco  regular podem  ser  vistos  nos  registros  eletrocardiográficos  mostrados  nas  Figuras  29.10  e  29.12.  A  presença  de  extrassístoles determina  irregularidade  no  ritmo  que  pode,  muitas  vezes,  ser  detectada  apenas  com  a  palpação  do  pulso  arterial.  É importante  ressaltar  que  na  ativação  cardíaca  normal  as  câmaras  atriais  são  ativadas  antes  dos  ventrículos.  Portanto,  no ECG a onda P deverá preceder o complexo QRS em todos os batimentos. Assim, no ritmo cardíaco fisiológico, também chamado de ritmo sinusal, a sequência onda P, complexo QRS e onda T é mantida em todos os ciclos cardíacos.

▸ Frequência cardíaca No ECG convencional, o registro é realizado na velocidade de 25 mm/s. Desta maneira, em 1 min há registro de 1.500 mm.  Portanto,  se  dividirmos  o  número  1.500  pelo  intervalo  entre  duas  ondas  simétricas,  teremos  a  frequência  de aparecimento desta onda em particular. Quando ritmo cardíaco é regular, usa­se o intervalo entre os picos de duas ondas R como  o  intervalo  entre  os  batimentos.  Dividindo­se  1.500  pelo  espaço  em  milímetros  entre  duas  ondas  R,  tem­se  a frequência cardíaca instantânea, em batimentos/min.

Figura  29.19  ■   Eletrocardiograma  convencional  registrado  em  sistema  para  leitura  computadorizada  de  algumas  variáveis. Observe nos registros os pontos selecionados pelo programa, para realização da leitura das ondas e intervalos. bpm, batimentos por minuto.

Figura 29.20 ■ Registros eletrocardiográficos obtidos em diferentes indivíduos. Observe a regularidade do ritmo em A e B. Em B, porém, há uma bradicardia sinusal (frequência cardíaca = 43 batimentos por minuto). Em C, ocorre um ritmo sinusal com grande variação  da  frequência  cardíaca  produzida  pelo  ciclo  respiratório.  Em  D  e  E,  aparecem  ritmos  irregulares  causados  pela presença de focos extrassistólicos.

▸ Duração das ondas e dos intervalos Como discutido anteriormente, em cada região do coração há uma velocidade de propagação específica, em função das características  locais  do  potencial  de  ação,  do  acoplamento  elétrico  no  tecido,  além  de  outros  fatores.  O  aumento  de

duração de uma onda (ou de um intervalo) indica diminuição da velocidade de propagação no segmento específico que o ECG representa. O Quadro 29.2 mostra as durações mínima e máxima das diversas ondas e intervalos no ECG registrado em repouso. Assim, por exemplo, o aumento de duração do segmento PR está associado à dificuldade de propagação do estímulo ao longo do nodo AV (ver Figura 29.13). A duração do complexo QRS reflete o tempo de ativação ventricular e, quando  esta  é  feita  em  condições  fisiológicas,  a  duração  do  complexo  QRS  não  deve  ultrapassar  110  ms.  O  aumento  de duração deste complexo pode decorrer de duas situações: bloqueio no sistema de condução intraventricular (bloqueios nos ramos direito e/ou esquerdo etc.) ou propagação da ativação ventricular por vias não fisiológicas. Observe, por exemplo, o registro da Figura 29.11, em que os ciclos cardíacos são normais na maior parte do registro, pois obedecem à sequência onda P, complexo QRS e onda T. Nestes ciclos, as durações das ondas e intervalos também são normais e regulares, com a  duração  do  complexo  QRS  de  cerca  de  100  ms.  Entretanto,  em  determinado  ponto  há  um  complexo  QRS  fora  da sequência,  o  que  corresponde  a  uma  extrassístole  ventricular.  O  aparecimento  dessa  extrassístole  indica  que  existe  um foco  anômalo  (foco  ectópico)  no  ventrículo,  que  dispara  um  estímulo  que  se  propaga  para  a  massa  ventricular.  O batimento  ectópico  propaga­se  para  os  ventrículos  por  vias  não  fisiológicas  que  são,  em  sequência,  o  feixe  de  His,  os ramos esquerdo e direito e o sistema periférico de Purkinje. Neste caso, a excitação das fibras do miocárdio ventricular se faz  por  vias  retrógradas,  nas  quais  a  resistência  à  propagação  do  estímulo  elétrico  é  mais  elevada.  Portanto,  o  tempo  de ativação  ventricular  aumenta,  e  este  fato  é  registrado  no  ECG  como  um  aumento  da  duração  do  complexo  QRS (alargamento  do  complexo  QRS).  No  caso  da  extrassístole  observada  na  Figura  29.11,  a  duração  do  QRS  é  de, aproximadamente, 160 ms. O simples fato de a morfologia do complexo QRS extrassistólico ser totalmente diferente da morfologia  dos  complexos  QRS  normais  indica  que  a  ativação  ventricular  ocorreu  por  caminhos  diferentes  nas  duas situações.

▸ Determinação dos eixos médios de ativação das câmaras cardíacas A excitação cardíaca pode ser representada por milhares de vetores elétricos. Para efeito prático, entretanto, a ativação atrial é representada por um único vetor, o vetor P, o qual em indivíduos saudáveis dirige­se para a esquerda e para baixo no plano frontal. Geralmente, situa­se em torno de +60°, sendo, portanto, paralelo a D2. Esta é a razão pela qual a onda P tem maior amplitude em D2, onde, em geral, ela é examinada com mais detalhes. Do mesmo modo, a ativação ventricular é fortemente influenciada pela posição do vetor 3 (ver Figuras 29.7 e 29.8), que representa a ativação da maior parte do ventrículo esquerdo. Assim, o eixo médio de ativação ventricular é em geral voltado para a esquerda e para baixo no plano frontal  e  para  trás  no  horizontal.  O  cálculo  dos  vetores  médios  de  ativação  de  átrios  e  ventrículos  é  parte  importante  da leitura e interpretação do ECG. Para tanto, são usados os diagramas mostrados na Figura 29.17 (plano frontal) e Figura 29.21 (plano  horizontal).  Para  determinar  a  posição  dos  eixos  médios  de  ativação  no  plano  frontal,  é  mais  prático  usar duas  derivações  perpendiculares  entre  si,  como  D1  e  aVF,  por  exemplo.  Observe  o  ECG  da Figura 29.10.  A  onda  P  é positiva  em  D1  e  em  aVF.  Logo,  ela  se  situa  no  quadrante  I.  Como  a  maior  amplitude  ocorre  em  D2  e  a  onda  P  não aparece  em  aVL,  o  vetor  P  deve  situar­se  em  torno  de  +60°,  o  que  foi  confirmado  pela  leitura  automatizada  feita  pelo computador (que indicou o eixo de P em +62°). O mesmo procedimento pode ser feito para se encontrar o eixo médio de ativação  ventricular  (ÂQRS).  Nesse  caso,  o  complexo  QRS  é  isoelétrico  (parte  positiva  igual  à  parte  negativa)  em  aVL, indicando  que  o  eixo  está  a  90°  (perpendicular)  desta  derivação.  De  acordo  com  o  diagrama  da Figura 29.17 B,  o  vetor médio  de  ativação  ventricular  deve  estar  sobre  D2.  Como  o  QRS  é  positivo  nessa  derivação,  o  ÂQRS  deve  localizar­se também próximo a +60°.

Figura 29.21 ■ Projeções das derivações V1 a V6 no plano horizontal e a relação espacial com as câmaras ventriculares. O eixo médio de QRS projeta­se para trás, pois é negativo em V1 e positivo em V6.

É  importante  ressaltar  que,  quando  há  crescimento  do  ventrículo  esquerdo,  o  eixo  elétrico  de  QRS  sofre  rotação  no sentido anti­horário, ou seja, desloca­se mais para a esquerda (indo em direção ao quadrante IV) e para trás. Isso pode ser visto no ECG da Figura 29.22, registrado em um paciente com hipertensão arterial. Observe que nesse caso a projeção do QRS  sobre  D1  é  positiva  e  sobre  aVF,  negativa,  indicando  que  o  eixo  médio  da  ativação  ventricular  encontra­se  no quadrante  IV  do  plano  frontal.  Ao  contrário,  quando  há  sobrecarga  no  ventrículo  direito,  o  ângulo  médio  do  complexo QRS (ÂQRS) irá desviar para a direita (ou no sentido horário). Para  determinar  o  eixo  médio  de  ativação  das  câmaras  cardíacas  no  plano  horizontal,  usam­se,  rotineiramente,  as projeções dos vetores de ativação em V1 e V6. O paciente cujo registro é mostrado na Figura 29.22 tem eixo elétrico de QRS voltado para trás e para a esquerda.

Figura 29.22 ■ Eletrocardiograma registrado em homem com 53 anos de idade. Observe o deslocamento do eixo elétrico para a esquerda no plano frontal. bpm, batimentos por minuto.

▸ Análise da morfologia das ondas Como descrito no presente capítulo, a ativação atrial é um processo relativamente lento quando comparado à ativação ventricular. Em consequência, a onda P é arredondada e, em geral, sem entalhes. Tem amplitude baixa (no máximo 0,25 mV  quando  paralela  ao  eixo  de  derivação)  e  é  voltada  para  baixo  e  para  a  esquerda  no  plano  frontal  (com  limites  de normalidade entre 0° e +90°). Quando há crescimento do átrio esquerdo, a duração da onda P tende a aumentar. Por outro lado, o crescimento do átrio direito determina aumento de amplitude da onda P. Um  parâmetro  importante  na  análise  do  QRS  é  sua  morfologia  em  algumas  derivações  específicas.  Em  um  ciclo cardíaco normal, a primeira região do ventrículo a se ativar é a região esquerda do septo interventricular. Tal vetor aparece como uma pequena onda R em V1, daí porque sua ausência, em associação com o aumento de duração total do QRS, pode indicar bloqueio do ramo esquerdo do feixe de His. A onda T também tem inscrição lenta, com amplitude menor que o QRS e apresentando polaridade similar à do QRS. A onda T normal também é assimétrica, com uma fase de subida mais lenta e de queda mais rápida. A inversão da onda T (complexo  QRS  positivo  e  onda  T  negativa)  pode  indicar  repolarização  precoce  em  fibras  localizadas  no  subendocárdio. Isso  acontece,  por  exemplo,  quando  o  endocárdio  recebe  quantidade  insuficiente  de  oxigênio  (isquemia)  e  as  células musculares  sofrem  lesão.  A  inversão  da  onda  T  também  pode  ocorrer  quando  existe  aumento  de  espessura  da  parede ventricular. O segmento ST, que vai do final do complexo QRS ao pico da onda T, é fortemente influenciado pela duração média dos  potenciais  de  ação  nos  ventrículos.  O  encurtamento  deste  tempo  indica  menor  duração  do  platô,  enquanto  seu alargamento sugere aumento da duração do potencial de ação.

BIBLIOGRAFIA BARBOSA  ET.  O  registro  do  campo  elétrico.  In:  Fisiologia  Cardiovascular.  Fundo  Editorial  Byk­Procienx,  Rio  de  Janeiro, 1976. BOINEAU JP, SCHUESSLER RB, MOONEY CR et al.  Multicentric  origin  of  the  atrial  depolarization  wave:  the  pacemaker complex. Relation to dynamics of atrial conduction, P­wave changes and heart rate control. Circulation, 58:1036­48, 1978. FISCH C. Electrocardiography. In: BRAUNWALD E (Ed.). Heart Disease. A Textbook of Cardiovascular Medicine. 5. ed. WB Saunders Co, Philadelphia, 1997. GARCIA EAC. Biofísica. Sarvier, São Paulo, 1998. KATZ AM. Physiology of the Heart. Raven Press, New York, 1992.

NETTER FH. Ilustrações Médicas. Vol. 5. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 1969. PAES DE CARVALHO A, ALMEIDA DF. Spread of activity through the atrioventricular node. Circulation Research, 8:801­9, 1960. SCHERF L, JAMES TN. Fine structure of cells and their histologic organization within internodal pathways in the heart: clinical and electrocardiographic implications. Am J Cardiol, 44:345­69, 1979.



Ultraestrutura da célula muscular cardíaca

■ ■

Bioquímica da contração Mecanismo da contração

■ ■ ■

Acoplamento excitação­contração Mecanismos envolvidos na regulação da contratilidade miocárdica Aspectos moleculares da modulação da sensibilidade dos miofilamentos ao Ca2+

■ ■

Intervenções que afetam a responsividade miofibrilar ao Ca2+ Métodos de estudo da contração



Bibliografia

A contratilidade é uma das propriedades do músculo cardíaco. Para entender o mecanismo da contração, é necessário compreender os diversos componentes das células musculares, que, direta ou indiretamente, contribuem para o fenômeno mecânico, ou seja, a gênese de força ou encurtamento.

ULTRAESTRUTURA DA CÉLULA MUSCULAR CARDÍACA As  células  miocárdicas  são  únicas,  ramificadas  e  se  comunicam  umas  com  as  outras.  Nas  regiões  de  contato  entre células,  existem  inúmeras  especializações,  tais  como:  zônula  aderens,  desmossomos,  regiões  de  ancoramento  de miofilamentos e junções de baixa resistência elétrica, as junções comunicantes (ou gap juctions). Estas últimas permitem ao miocárdio comportar­se como um sincício funcional. A membrana plasmática é de natureza lipoproteica, sendo a fração lipídica  composta  por  moléculas  fosfolipídicas  que  contêm  duas  cadeias  de  ácidos  graxos,  na  parte  central,  ligadas  a porções  globulares  fosfatadas,  nas  regiões  periféricas.  As  proteínas  estão  situadas  na  face  interna  ou  externa  da membrana, ou transpassando­a em toda a sua espessura. São geralmente de natureza glicoproteica, com funções diversas (p.  ex.,  receptores  de  membrana,  enzimas,  trocadores  e  canais  iônicos).  Externamente,  a  membrana  é  revestida  de mucopolissacarídios, ricos em sítios aniô­nicos que fixam cátions como Ca2+e Na+; e, internamente, também apresentam sítios de grande afinidade pelo Ca2+, sensíveis às variações de potencial intracelular. No  interior  das  células  musculares,  encontram­se  os  sistemas  tubulares.  Um  deles,  o  sistema  transverso,  penetra  e percorre  transversalmente  as  células  e,  ramificando­se,  envolve  os  sarcômeros  nos  discos  Z.  Trata­se,  portanto,  de  um sistema  tubular  que  se  abre  na  membrana  plasmática,  estando  em  contato  com  o  meio  extracelular.  O  outro,  o  retículo sarcoplasmático, tem localização estritamente intracelular. É composto por túbulos que correm longitudinalmente por entre as  miofibrilas  e,  no  disco  Z,  formam  cisternas  que  entram  em  contato  com  o  sistema  transverso.  A  região  do  retículo sarcoplasmático que entra em contato com o sistema transverso, constituída por cisternas laterais, é denominada retículo juncional,  e  a  região  entre  as  cisternas  é  denominada  retículo  não  juncional.  A  combinação  entre  um  túbulo  transverso  e duas cisternas laterais do retículo sarcoplasmático recebe o nome de tríade (Figura 30.1). No miocárdio, também é comum

a visualização de cisternas do retículo sarcoplasmático em contato com a membrana plasmática. Como será descrito mais adiante,  estes  sistemas  tubulares  desempenham  papel  fundamental  na  ativação  do  processo  de  acoplamento  excitação­ contração. O sistema transverso, por meio da excitação elétrica da célula (platô do potencial de ação), induz a liberação de Ca2+  armazenado  no  retículo  sarcoplasmático,  ativando  assim  a  contração.  O  retículo  sarcoplasmático  também  é fundamental para o processo de relaxamento cardíaco, ao recaptar Ca2+ativamente, por meio da bomba de Ca2+ (SERCA), o que reduz sua concentração citoplasmática. Das organelas celulares, cabe lembrar o papel das mitocôndrias. Estas funcionam como usinas geradoras de energia, sintetizando  trifosfato  de  adenosina  (ATP)  a  partir  da  atividade  da  cadeia  respiratória.  Essa  energia  provém  da metabolização aeróbica de glicose e de ácidos graxos, sendo então utilizada para a contração. Mais recentemente, também, tem sido estudado o papel das mitocôndrias no controle da concentração de Ca2+ citoplasmático. Além  das  especializações  de  membrana  e  das  organelas,  o  material  contrátil  é  de  fundamental  importância  para  a fisiologia da contração e do relaxamento muscular. Este se encontra organizado, formando o sarcômero, considerado como a unidade contrátil básica do músculo (Figura 30.2). O sarcômero é limitado por duas linhas ou discos Z. Entre eles, há regiões claras e escuras denominadas, respectivamente, banda I e banda A. A banda I é uma região isotrópica, não desvia a luz polarizada e é composta por filamentos finos que se ligam ao disco Z. Assim, de cada lado do disco Z, temos uma hemibanda  I.  A  banda  A  é  anisotrópica,  ou  seja,  desvia  a  luz  polarizada,  daí  sua  aparência  escura  quando  vista  ao microscópio de polarização. É constituída por filamentos grossos. Nas porções laterais da banda A, existe uma região de superposição  de  filamentos  grossos  e  finos  e,  entre  estas,  temos  uma  região  central  onde  só  se  encontram  filamentos grossos. Esta última região, localizada no centro da banda A, é denominada banda H. Na porção mediana dos sarcômeros, no  meio  da  banda  A,  os  filamentos  grossos  apresentam  um  espessamento  que  forma  a linha M  (ver  Figura  30.2).  Em condição de repouso, os sarcômeros medem cerca de 2,20 μm de comprimento. Os filamentos finos, medidos a partir do disco Z até a sua extremidade, têm 1,60 μm, enquanto os grossos, em média, 1,50 μm.

Figura 30.1 ■ Esquema  tridimensional  da  célula  cardíaca  e  seus  componentes:  sarcômero,  sistemas  de  túbulos  transversos, retículo sarcoplasmático, sarcolema, disco Z que delimita o sarcômero, mitocôndria, núcleo e o detalhe de um capilar contendo um eritrócito. Observe que as tríades e díades ocorrem próximas do disco Z. (Adaptada de Lossnitzer et al., 1984.)

Nos filamentos finos e grossos encontram­se as proteínas que participam do processo de contração e relaxamento do músculo cardíaco. Para a compreensão adequada do processo contrátil, é necessária a análise da composição do sarcômero e seus diversos componentes.

▸ Disco Z O disco Z é formado por um complexo de proteínas contendo, principalmente, α­actinina, Cap Z (antiga β­actinina), T­Cap e nebulete. No disco Z é feito o ancoramento das proteínas actina (filamento fino) e titina (une o filamento grosso

ao  disco  Z)  de  cada  hemissarcômero  (ver Figura 30.2 B).  Várias  são  as  funções  do  disco  Z:  (a)  transmissão  de  força produzida  pelos  miofilamentos;  (b)  esqueleto  para  fixação  do  filamento  fino  (actina  com  a  α­actinina  e  a  Cap­Z)  e  o filamento grosso (titina e nebulete com a α­actinina e T­Cap); (c) interface entre a maquinaria contrátil e o citoesqueleto com os receptores de integrina e costâmeros (região de comunicação de um complexo de proteínas que faz ancoramento e comunicação  de  proteínas  do  disco  Z  com  a  matriz  extracelular);  e  (d)  receptor  de  estiramento,  sensor  de  tensão,  em decorrência do complexo de proteínas ali ancoradas e sua mecanotransdução com a membrana plasmática, o que modula a expressão gênica, podendo promover, por exemplo, a hipertrofia cardíaca.

Figura 30.2 ■ A. Esquema simplificado da estrutura do sarcômero. A linha M é criada pelo espessamento do filamento grosso. O filamento  fino  é  composto  principalmente  de  actina,  troponina  (C,  T  e  I)  e  tropomiosina.  O  filamento  grosso  é  constituído principalmente  de  miosina.  Na  ilustração,  um  grupo  de  miofibrilas  está  conectado  ao  sarcolema  (membrana  plasmática)  por meio da rede de costâmeros. B. Esquema estrutural do sarcômero, com as suas bandas e discos, ilustrando o filamento de titina proteína estrutural que une as extremidades do filamento grosso ao disco Z. (Adaptada de Sequeira et al., 2014.)

▸ Filamentos grossos São formados pela associação de moléculas de miosina compostas de duas cadeias entrelaçadas que terminam em uma região globular (Figura 30.3). A hidrólise enzimática da miosina com tripsina a divide em duas partes: uma leve, formada por grande parte de sua cauda (denominada meromiosina leve), e outra mais pesada (meromiosina pesada), que contém a região  globular.  Com  o  prosseguimento  da  hidrólise,  a  meromiosina  pesada  subdivide­se  em  duas  subunidades,  S1  e S2 (ver Figura 30.3). A subunidade S1 corresponde à região globular propriamente dita, tendo atividade ATPásica, sendo

considerada  a  ATPase  miosínica.  Essa  subunidade  é  composta  por  um  par  de  estruturas  globulares,  cada  uma  contendo uma cadeia polipeptídica pesada e duas leves. A cadeia pesada constitui o corpo da enzima (ATPase miosínica), e as leves parecem  modular  a  atividade  dessa  enzima,  visto  que  sua  remoção  leva  à  perda  da  atividade  de  hidrólise  de  ATP.  As cadeias  pesadas  existem  sob  duas  isoformas,  α  e  β.  Como  cada  filamento  de  miosina  tem  duas  cadeias  pesadas,  as associações podem ser αα, αβ e ββ. A isoforma αα é típica de músculos de contração rápida com grande velocidade de hidrólise de ATP. A isoforma ββ é típica de músculos lentos e com baixa velocidade de hidrólise de ATP, e a isoforma αβ é intermediária às duas anteriores. Essas  isoformas  são  denominadas  V1,  V2  e  V3,  respectivamente,  de  acordo  com  a  velocidade  de  hidrólise  de  ATP.  No miocárdio  humano,  predomina  a  isoforma  lenta  ββ  (V3).  A  relação  entre  a  atividade  da  ATPase  miosínica  e  a  função contrátil é bastante intrigante, e tem sido demonstrado que, no miocárdio, alterações na contratilidade estão associadas a mudanças nas isoformas da ATPase miosínica, levando a ajustes na atividade dessa enzima, ou seja: Condições

Atividade ATPásica da miosina

Exercício físico

Aumenta

Hipertireoidismo

Aumenta

Envelhecimento

Diminui

Insuficiência corticoadrenal

Diminui

Insuficiência cardíaca

Diminui

Inatividade física

Diminui

Figura 30.3 ■ A. Filamento grosso. Esquema da estrutura da molécula de miosina. As setas indicam os pontos de clivagem por enzimas  proteolíticas.  MML,  meromiosina  leve;  MMP,  meromiosina  pesada,  com  os  seus  respectivos  pesos  moleculares;  S1, subfragmento  da  MMP  que  contém  a  cabeça  da  miosina,  com  a  indicação  das  cadeias  leves  que  se  prendem  às  cadeias pesadas; S2, subfragmento da MMP que contém parte da cauda. Observe que em S1 se localiza a ATPase miosínica. B. Estrutura esquemática  do  filamento  fino.  1,  monômeros  de  G­actina,  que,  ao  se  polimerizarem,  formam  a  F­actina;  2,  molécula  de troponina; 3, molécula de tropomiosina, situada no sulco entre os filamentos de F­actina e em cuja extremidade prende­se uma molécula de troponina. C. Filamento de titina. A região extensível da titina, localizada na banda I, consiste em três componentes elásticos que agem como uma mola: Ig, região do domínio tipo imunoglobulina, proximal ao disco Z e distal, próximo das bandas I  e  A;  PEVK,  região  rica  em  prolina  (P),  ácido  glutâmico  (E),  valina  (V)  e  lisina  (K);  segmentos  N2B  e  N2A.  (Adaptada  de Kobirumaki­Shimozawa et al., 2014.)

A  associação  de  diversas  moléculas  de  miosina  forma  o  filamento  grosso,  estando  as  cabeças  sempre  localizadas  na extremidade voltada para o disco Z e projetadas para fora do filamento. Estas correspondem às projeções dos filamentos grossos em direção aos filamentos finos. O filamento grosso tem na sua composição outras proteínas, como a proteína C, a titina, e as proteínas da linha M, algumas das quais ainda não possuem uma função perfeitamente definida. A proteína C promove  a  fixação  das  diversas  moléculas  de  miosina  entre  si  (na  transição  entre  a  meromiosina  leve  e  o  subfragmento S2 da meromiosina pesada) e com a titina. A titina estende­se do disco Z à linha M, possuindo uma parte inextensível na banda  A  e  outra  extensível  na  banda  I.  A  região  extensível  consiste  em  três  componentes  elásticos  que  agem  como  se fossem  uma  mola  (ver  Figura  30.3  C).  A  titina  é  a  terceira  proteína  mais  abundante  nos  miofilamentos,  sendo  uma “plataforma” para ajustar o tamanho da banda A e permitir a ligação da proteína C. Acredita­se ser essa proteína o fator responsável  pelas  características  elásticas  do  sarcômero,  regulando  o  estiramento  do  sarcômero  durante  o  enchimento

cardíaco  e  auxiliando  seu  retorno  à  posição  de  repouso,  com  a  repolarização  e,  consequentemente,  o  relaxamento miocárdico.  A  titina  também  participa  como  um  sensor  de  tensão  juntamente  com  o  disco  Z  (conecta­se  ao  disco  Z  por meio  da  interação  com  molécula  de  actina  e  α­actinina).  A  linha  M  é  a  região  central  do  sarcômero,  funcionando  como uma  central  de  conexão.  Nessa  área,  a  miosina  e  a  titina  se  fixam  e,  para  tal,  duas  proteínas  desempenham  papel fundamental, a miomesina (fixa as moléculas de miosina à linha M) e a obscurina (fixa as moléculas de titina à linha M).

▸ Filamentos finos São  compostos,  basicamente,  por  quatro  proteínas:  actina,  tropomiosina,  troponina  e  nebulina.  A  actina  tem  como unidade  básica  a  actina  globular  (G­actina),  que,  em  presença  de  ATP,  polimeriza­se  formando  cadeias  fibrilares  (F­ actina). As duas cadeias fibrilares de F­actina associadas formam o filamento de actina presente no sarcômero. Compondo ainda  o  filamento  fino,  estão  presentes  a  tropomiosina  e  a  troponina,  que  se  localizam  no  sulco  entre  as  duas  cadeias fibrilares de F­actina (ver Figura 30.3 B).

Figura 30.4 ■ Esquema simplificado, demonstrando o mecanismo de obtenção de energia química para a contração, por meio da metabolização aeróbica de glicose e ácidos graxos.

A  actina  apresenta  sítios  ativos  de  interação  com  a  miosina,  durante  a  qual  ocorre  a  liberação  do  fosfato,  o  qual  foi gerado por meio da hidrólise do ATP pela ação da ATPase miosínica, com consequente liberação da energia necessária à contração (Figura 30.4). Em repouso o sítio de interação da actina com a miosina é bloqueado pela tropomiosina, proteína alongada e dimérica, que, por sua vez, liga­se a troponina. A troponina é formada por três subunidades interconectadas: a subunidade  C  (TnC),  que  é  o  sítio  de  ligação  do  Ca2+;  a  subunidade  I  (TnI)  que  modula  a  afinidade  da  TnC  ao  Ca2+  e, quando interage com a actina e a tropomiosina, provoca a inibição do sítio ativo da actina; e a subunidade T (TnT), que se liga à tropomiosina, tendo sua função modulada pela ligação do Ca2+ à TnC. Quando o Ca2+ se une à TnC, a tropomiosina desloca­se liberando os sítios ativos da actina, garantindo a perfeita interação actina­miosina. A nebulina tem localização central ao longo do filamento fino, e, em torno dela, as F­actinas se enovelam. Liga­se ao disco  Z  e  interage  com  a  actina.  Funciona  como  uma  plataforma  que  serve  de  base  para  determinar  o  comprimento  do filamento  fino.  Dados  recentes  sugerem  que  a  nebulina  age:  na  transdução  de  sinais;  na  regulação  da  contratilidade,  por definir o comprimento ideal do filamento fino, otimizando a superposição deste com os filamentos grossos; e na regulação da  geração  de  força,  por  aumentar  a  ativação  dos  filamentos  finos  e  regular  a  cinética  da  ciclagem  de  interação  actina­ miosina. Compreende­se aqui que as proteínas que realizam a atividade contrátil são a actina e a miosina, sendo denominadas proteínas  contráteis,  enquanto  a  tropomiosina  e  a  troponina  modulam  a  sua  interação,  daí  a  denominação  de  proteínas moduladoras da contração. Além  das  proteínas  contráteis  e  moduladoras  da  interação  actina­miosina,  existem  as  proteínas  componentes  do citoesqueleto,  que  sustentam  a  estrutura  espacial  do  sarcômero  e  estão  envolvidas  em  vários  outros  processos

fundamentais  do  funcionamento  celular,  como:  adesão  celular,  interações  célula  a  célula,  manutenção  de  especializações regionais das células e transferência de informação da superfície celular ao citoplasma (Figura 30.5).

Figura 30.5 ■ A e B. Esquemas representativos dos componentes do citoesqueleto de uma célula muscular: 1, costâmero, com FI,  vinculina,  talina,  espectrina,  anquirina,  α­actinina;  2,  actina,  vinculina,  talina,  espectrina  e  anquirina;  3,  desmossomos  e receptores transmembrana: integrina, complexo distroglicano; 4, matriz extracelular: colágeno, fibronectina, laminina; 5, desmina, espectrina e anquirina, ancoradas no disco Z. (A. Adaptada de Aplin et al., 1998. B. Adaptada de Morita et al., 2005.)

Para exercer suas diversas funções, as proteínas do citoesqueleto precisam ancorar­se nas membranas (plasmática e de organelas).  Os  principais  locais  de  ancoramento  na  membrana  plasmática  são  os  desmossomos  e  os  costâmeros.  Os costâmeros  funcionam  como  ancoradouros  de  proteínas  diversas  (vinculina,  talina,  α­actinina  e  espectrina)  no  disco  Z. Ligam­se ao glicocálice e à matriz extracelular, via receptores de integrina. Outras proteínas que se ligam à membrana celular são as anquirinas e a distrofina. Estas parecem desempenhar papel na regulação da estabilidade sarcolemal e na sua permeabilidade. As anquirinas pertencem a uma família de proteínas que se  unem  à  espectrina  do  citoesqueleto  e  às  proteínas  integrais  de  membrana.  Dessa  maneira,  podem  se  fixar,  em  locais apropriados, às proteínas da membrana plasmática envolvidas em diferentes funções, como: canais para Na+, canais para Ca2+ do retículo sarcoplasmático (que têm papel no acoplamento excitação­contração), trocador Na+/Ca2+, organização das tríades, dentre outras. Quanto às distrofinas, pode ser dito que o arranjo miofibrilar está ancorado a membrana plasmática por  uma  proteína  que  se  liga  à  actina,  chamada  de  distrofina.  Sua  falta,  ou  deficiência,  resulta  na distrofia  muscular  de Duchenne,  causando  fraqueza  muscular  progressiva  e  cardiomiopatia.  Os  receptores  de  adesão  celular  são  proteínas integrais de membrana que interligam o sistema de filamentos intermediários da célula (citoesqueleto) e os elementos da matriz  extracelular.  Foi  demonstrado  que  esses  receptores  podem  ligar­se  com  quinases  intracelulares  e  participar  de processos  de  sinalização  celular.  No  músculo,  algumas  proteínas  compõem  os  receptores  de  adesão  celular.  Dentre  elas, merecem  destaque:  integrinas,  caderinas,  selectinas  e  a  superfamília  das  immunoglobulin  cell  adhesion molecules (ICAM).

BIOQUÍMICA DA CONTRAÇÃO A  contração  muscular  depende  da  hidrólise  do  ATP  para  fornecimento  da  energia  necessária  à  geração  do  trabalho mecânico  (Figura  30.6).  Esse  ATP  é  obtido,  principalmente,  por  meio  de  mecanismos  aeróbicos,  que  ocorrem  nas mitocôndrias.  As  mitocôndrias,  que  existem  em  grande  número  nas  células  musculares,  oxidam  derivados  de  açúcares  e ácidos graxos (acetato, obtido da glicose pelo processo de glicólise anaeróbica e dos ácidos graxos por meio dos ciclos de β­oxidação)  via  ciclo  de  Krebs.  Em  condições  fisiológicas,  para  a  obtenção  de  energia,  o  miocárdio  metaboliza  40%  de açúcares e 60% de ácidos graxos, mas também é capaz de utilizar ácido láctico. O ATP, assim formado, constitui a fonte de energia para a contração, ao ser hidrolisado pela ATPase miosínica. Para  subsistir  aos  pequenos  períodos  de  falta  de  oxigênio,  o  músculo  tem  depósitos  de  glicogênio,  que  podem  ser utilizados  anaerobicamente,  e  de  fosfocreatina.  Esta  última  é  composta  pela  combinação  de  um  ATP  +  creatina,  reação catalisada  pela  enzima  creatinofosfoquinase,  com  formação  de  difosfato  de  adenosina  (ADP),  que  é  reutilizado.  A

creatinofosfoquinase catalisa a reação em ambas as direções e, tão logo a concentração mioplasmática de ATP diminua, ela reverte  a  reação,  formando  novamente  ATP  e  liberando  creatina.  Cumpre  lembrar  que  a  creatinofosfoquinase  é  uma enzima  intracelular  e  parece  ser  específica  para  cada  tipo  de  músculo,  existindo  diversas  isoenzimas.  Portanto,  qualquer lesão  de  células  cardíacas  libera  a  creatinofosfoquinase  específica  do  miocárdio  (CPK  Mb)  para  o  meio  extracelular, ocorrendo a sua presença no plasma, o que traduz uma indicação direta de lesão das células miocárdicas. Estima­se que o estoque de ATP seja suficiente para cobrir as necessidades metabólicas da célula por apenas alguns segundos. A regulação da produção de ATP depende, entre outros fatores, da concentração de Ca2+ que entra pelo transportador mitocondrial  de  Ca2+  (MCU,  mitochondrial  calcium  uniport)  e  pode  regular  enzimas  fundamentais  do  metabolismo mitocondrial  (ver  Figura  30.6).  Para  manter  o  estado  de  equilíbrio,  o  influxo  de  Ca2+  na  mitocôndria  precisa  ser balanceado com sua extrusão equivalente. Uma fonte importante de efluxo de Ca2+ da mitocôndria é o trocador Na+/Ca2+, o qual  trabalha  na  estequiometria  de  1  Ca2+  por  3  Na+.  Um  segundo  mecanismo  é  dependente  do  poro  de  transição  de permeabilidade  (PTP),  que  é  um  canal  de  membrana  não  seletivo  com  alta  permeabilidade.  Existe  uma  terceira  via  de extrusão  de  Ca2+  que  parece  depender  do  trocador  H+/Ca2+.  A  redução  de  Ca2+  da  matriz  mitocondrial  depende, consequentemente,  da  recaptação  do  Ca2+  pelo  retículo  sarcoplasmático  por  meio  da  atividade  da  SERCA  (ver  Figura 30.6).

MECANISMO DA CONTRAÇÃO O mecanismo de contração muscular envolve três aspectos: morfológico, bioquímico e funcional. O mecanismo morfológico foi proposto ao mesmo tempo por H.E. Huxley e Hanson e por A.F. Huxley e Niedergerke, em  1954,  ao  se  analisar  o  músculo  com  o  auxílio  do  microscópio  ótico  e  eletrônico.  Quando  comparado  à  condição  de repouso, durante a contração muscular observava­se encurtamento dos sarcômeros, o que é demonstrado por observações diretas e, mais recentemente, por ultracinematografia ou difração de laser (Figura 30.7). A teoria morfológica prevê que o encurtamento  se  realiza  porque  os  filamentos  finos  deslizam  por  entre  os  filamentos  grossos  e  com  isso  é  observado aproximação das linhas ou discos Z; diminuição da banda I; diminuição da banda H; e manutenção da banda A. O  mecanismo  bioquímico  já  se  conhecia  desde  há  muito  pela  existência  da  actina  e  da  miosina  como  proteínas contráteis e da necessidade de ATP, Ca2+ e Mg2+ para  a  contração.  O  avanço  no  conhecimento  das  reações  químicas  que estariam envolvidas no processo de gênese de força ou encurtamento levou Lymm e Taylor (1971) a proporem um modelo definindo  a  sequência  de  reações  desse  processo.  Resumidamente,  o  modelo  de  Lymm  e  Taylor  propõe  as  reações esquematizadas  na  Figura  30.8.  Após  uma  contração,  quando  ainda  estão  interagindo  a  actina  (A)  e  a  miosina  (M) (complexo AM), a disponibilidade de um ATP para a miosina desfaz o complexo AM formando a conformação miosina e ATP  (M.  ATP),  e  o  sarcômero  passa  para  o  estado  relaxado.  A  clivagem  do  ATP  pela  ATPase  miosínica  leva  a  uma segunda  conformação  ainda  no  estado  relaxado,  M.  ADP.  Pi,  a  qual  se  desfaz  muito  lentamente.  Porém,  o  aumento  das concentrações  intracelulares  de  Ca2+([Ca2+]i)  expõe  os  sítios  de  ligação  da  miosina  presentes  na  actina,  ocorrendo  a interação  actina­miosina,  formando­se  o  complexo  AM.ADP.  Pi.  Em  seguida,  o  ADP  e  o  Pi  são  liberados  e,  neste momento, a interação entre a actina e a miosina move­se, ocorrendo o processo de contração, encurtamento, mantendo­se o  complexo  AM.  Como  descrito  no  início  deste  parágrafo,  o  complexo  AM  será  desfeito  com  a  associação  de  um  novo ATP (complexo M.ATP) e o ciclo recomeça.

Figura 30.6 ■ Regulação do metabolismo mitocondrial. A. Observe que o cálcio liberado pelo retículo sarcoplasmático (RS) é captado  pela  mitocôndria,  via  transportador  para  cálcio  mitocondrial  (MCU,  mitochondrial  calcium  uniporter).  A  mitocôndria encontra­se próximo ao receptor de rianodina (RyR2) no RS, criando um microdomínio de cálcio. A proteína Mfn2 (Mitofusion2) está envolvida com a comunicação entre o RS e a mitocôndria. É importante salientar a importância do cálcio aumentando a atividade  de  enzimas  mitocondriais  fundamentais  para  a  produção  de  ATP.  B.  Proteínas  de  influxo  de  cálcio  mitocondrial:  o cálcio (Ca2+ ) é captado através do MCU, localizado na membrana interna da mitocôndria, a qual é a principal via de entrada de Ca2+ . Proteínas de efluxo de cálcio mitocondrial: o efluxo de Ca2+  ocorre principalmente por meio do trocador Na+ /Ca2+  (NCX), do trocador Ca2+ /H+  (HCX) e do poro de transição de permeabilidade mitocondrial (PTP). O PTP age como um canal reversível de Ca2+ . (A. Adaptada de Santo­Domingo et al., 2015. B. Adaptada de Carley et al., 2014.)

Figura 30.7 ■ A. Esquema simplificado do encurtamento dos sarcômeros, durante a contração. No estado contraído, nota­se que os  filamentos  finos  deslizaram  por  sobre  os  grossos,  efeito  provocado  pela  formação  das  pontes  entre  a  actina  e  a miosina. B. Registro fotográfico do encurtamento do sarcômero, medido com a técnica de difração com raios laser. Observe que o encurtamento do sarcômero é entremeado por pausas (P), indicando que, neste momento, cessou o encurtamento de toda a população de sarcômeros iluminados pelo laser. CS, comprimento de sarcômero; CI, contração isométrica.

Figura 30.8 ■ Esquema simplificado das reações químicas que ocorrem durante o ciclo de contração­relaxamento, nas regiões de interação da actina e da miosina. M, miosina; A, actina; ATP, trifosfato de adenosina; ADP, difosfato de adenosina; Pi, fosfato inorgânico;  Ca2+ ,  cálcio  ionizado;  AM,  complexo  actina­miosina;  1,  combinação  entre  ATP  e  miosina,  seguindo­se  da desfosforilação do ATP (2), mas sem liberação de energia. Os derivados da desfosforilação permanecem presos à miosina. 3, sob ação do cálcio que se prende à troponina, ocorre a ligação entre actina e miosina (AM), a formação da ponte entre actina e miosina e, em seguida, a movimentação da cabeça da miosina (ponte) e a liberação do ADP e de Pi (4). Nesta fase, a energia é liberada para que se realize o encurtamento do sarcômero. 5, na presença de ATP, o complexo AM se desfaz, e a actina separa­ se da miosina, podendo ser iniciado um novo ciclo.

Outro modelo de interação entre as proteínas contráteis foi apresentado por Katz no início da década de 1970, quase ao mesmo tempo em que o modelo de Lymm e Taylor foi proposto. Entretanto, tal modelo não se preocupou com a cinética das  reações  de  hidrólise  do  ATP.  Este  modelo  surgiu  com  os  conhecimentos  resultantes  da  descrição  das  funções reguladoras da troponina e da tropomiosina, quando eram comparadas as propriedades dos filamentos naturais e sintéticos de  actina­miosina  (AM).  Neste  modelo  já  se  considera  o  mecanismo  de  interação  entre  as  proteínas  musculares  como sendo feito por meio de proteínas reguladoras (troponina e tropomiosina) e de proteínas contráteis (actina e miosina). O mecanismo  básico  proposto  por  Katz  está  esquematizado  na Figura 30.9,  no  qual,  em  condição  de  repouso,  a  interação

entre actina e miosina é bloqueada pela tropomiosina. Esta última está associada à troponina e ambas à actina, formando um  complexo  actina/tropomiosina/troponina.  Com  o  aumento  das  [Ca2+]i  nos  cardiomiócitos,  o  Ca2+  se  une  à  TnC, deslocando  a  tropomiosina,  o  que  expõe  o  sítio  ativo  da  actina.  Esta  passa  a  interagir  com  a  miosina,  e,  por  meio  da hidrólise  do  ATP,  obtém­se  a  energia  para  movimentação  da  interação  entre  actina  e  miosina.  Após  a  movimentação,  a interação  actina­miosina  se  desfaz  e  pode  passar  a  ocorrer  com  outro  sítio  ativo.  A  remoção  do  Ca2+  da  TnC  leva  ao retorno  da  tropomiosina  à  sua  posição  inicial,  inibindo  a  interação  entre  actina  e  miosina.  Com  isso  cessa  a  gênese  de força e ocorre o relaxamento. Um fato que demonstra como os processos bioquímicos afetam a contração está relacionado à temperatura. O aumento da  temperatura  promove  alterações  típicas  na  contração  cardíaca.  A  principal  característica  é  a  aceleração  de  todos  os processos  que  contribuem  para  a  contração.  Verifica­se  uma  redução  nos  parâmetros  temporais,  tempo  de  ativação  e  de relaxamento, com aumento da velocidade de desenvolvimento da força, mas com redução da força máxima desenvolvida. (Figura 30.10). As teorias funcionais que tentam explicar a geração de força e encurtamento da maquinaria contrátil são as teorias das pontes e a eletrostática. Ambas englobam a ideia de deslizamento e tentam explicá­lo por meio da interação entre actina e miosina.

Figura  30.9  ■   Esquema  simplificado  das  diversas  fases  da  contração.  Observe  os  deslocamentos  da  tropomiosina  e  o reposicionamento da troponina entre as fases A e B e as fases C e D. Na fase C, ocorre o encurtamento, devido ao deslizamento dos filamentos finos sobre os grossos.

Figura  30.10  ■   A.  Representação  esquemática  das  ações  do  cálcio  (Ca2+ ),  da  acetilcolina  (ACh),  agonista  muscarínico,  da epinefrina (adrenalina) (Epi), agonista de receptor β­adrenérgico, e da temperatura (T) sobre a força de contração isométrica do músculo  papilar  em  função  do  tempo.  Contração  controle  (C). B.  Registros  originais  obtidos  em  músculo  papilar  de  rato  em contração  isométrica,  mostrando  o  efeito  da  variação  das  concentrações  de  cálcio  no  meio  extracelular;  na  vertical,  eixo  de força;  na  horizontal,  eixo  de  tempo.  C.Idem,  apresentando  o  efeito  da  variação  das  concentrações  de  isoproterenol  (Iso), agonista  de  receptor  β­adrenérgico.  Observe  as  variações  da  força  e  as  variações  temporais  da  ativação  e  do  relaxamento, produzidas por esses diversos fatores sobre a contração.

Considerando  os  aspectos  funcionais,  a  teoria  que  primeiro  foi  descrita  foi  uma  continuidade  do  pensamento  de  um dos autores da teoria do deslizamento, A.F. Huxley. Em 1957, Huxley propôs a teoria das pontes. Essa teoria prevê pontes entre actina e miosina, as quais são visualizadas nas fotomicrografias eletrônicas. Constituem­se das cabeças de miosina, que são móveis e capazes de interagir com a actina. Existem inúmeros dados de literatura demonstrando a existência das pontes  e  a  capacidade  de  interação  da  cabeça  de  miosina  com  a  actina.  Para  que  as  pontes  induzam  o  deslizamento,  elas devem ser móveis. Essa capacidade é garantida por regiões na molécula de miosina que são caracterizadas por serem mais sensíveis à ação da tripsina. Como detalhando no início deste capítulo, Szent­Gyorgyi, em 1953, demonstrou pela primeira vez  que  a  molécula  de  miosina  pode  ser  cindida  em  duas  partes  pela  ação  da  tripsina:  meromiosina  leve  (MML)  e meromiosina  pesada  (MMP).  Mais  tarde,  foi  demonstrado  que  a  tripsina  pode  cindir  a  miosina  em  três  partes,  pois  a meromiosina pesada pode ser dividida em outras duas subunidades: S1 e S2 (ver Figura 30.3 A). Como a formação das pontes só ocorre quando há superposição entre os miofilamentos e como estes têm comprimento considerado invariável, pode­se prever a morfologia da curva estiramento­tensão. A teoria prevê uma superposição ótima com sarcômeros com comprimentos de 2,0 a 2,25 μm. A tensão ativa deve cair a partir deste ponto, tornando­se nula com sarcômeros maiores do que 3,65 μm (Figura 30.11). Recentemente,  Pollack  propôs  um  novo  modelo  de  contração.  Este  surgiu  com  as  técnicas  que  permitem  a  leitura contínua do comprimento dos sarcômeros durante a contração, como a técnica de difração com laser, utilizando sensores de  alto  poder  de  resolução  temporal  e  espacial.  Supõe­se,  pela  teoria  das  pontes,  que  o  deslizamento  é  um  ato  contínuo, resultado  do  movimento  contínuo  dos  filamentos  finos  superpostos  aos  filamentos  grossos.  Entretanto,  a  leitura  do processo  de  encurtamento  dos  sarcômeros,  durante  a  contração,  mostrou  a  existência  de  pausas  (ver  Figura  30.7).  A existência das pausas foi evidenciada inicialmente por Pollack e colaboradores (1977) e a posteriori demonstrado com o uso  de  outras  técnicas.  Como  o  campo  atingido  pelo laser envolve  uma  população  de  109 sarcômeros,  a  existência  das pausas prevê que todos os sarcômeros desse campo paralisam o seu encurtamento ao mesmo tempo e também reiniciam esse  encurtamento  ao  mesmo  tempo.  Este  é,  portanto,  um  processo  cooperativo  e  altamente  organizado.  Pollack  (2004) sugere  que  a  interação  actina­miosina  apresenta  natureza  quantal.  Esse  mecanismo  seria  o  responsável  pelas  pausas existentes  nos  registros  de  encurtamento  dos  sarcômeros  durante  a  contração.  As  pausas  são  iguais  ou  múltiplos  de  2,7 nm,  que  é  a  metade  da  distância  entre  duas  unidades  de  G­actina,  que  é  da  ordem  de  5,4  nm.  Como  o  filamento  fino  é formado por duas fitas de G­actina que se entrelaçam uma à outra, a repetição monomérica da G­actina é a metade dessa distância. Esses e outros resultados experimentais sugerem, então, que a interação actina­miosina, que ocorre como uma repetição em degraus, constitui o mecanismo central da contração muscular.

ACOPLAMENTO EXCITAÇÃO­CONTRAÇÃO

O acoplamento excitação­contração (AEC) é o conjunto de mecanismos que são desencadeados pela excitação elétrica gerada pelo potencial de ação e que vão promover a contração. Observa­se, então, que no coração a atividade mecânica é precedida e disparada pela atividade elétrica (o potencial de ação). O  acoplamento  entre  os  processos  de  excitação  e  contração  depende  da  sinalização  do  íon  Ca2+.  O  Ca2+  é  um mensageiro  que,  em  resposta  à  excitação  elétrica,  ativa  o  processo  contrátil.  Suas  concentrações  nos  meios  extra  e intracelulares são definidas a seguir. Distribuição do Ca21 nas células

 

Cálcio extracelular

10–3 M

Cálcio intracelular

 

    Retículo sarcoplasmático

10–4 M

    Citoplasma (músculo ativado)

10–5 M

    Citoplasma (músculo repouso)

10–7 M

Figura 30.11 ■ A. Curva estiramento­tensão, representada por valores percentuais de força e estiramento por comprimento dos sarcômeros, conseguidos em oito experiências com músculos papilares. O comprimento dos sarcômeros foi medido pela técnica de  difração  com  raios  laser.  Cada  ponto  representa  uma  medida  isolada.  As  medidas  foram  feitas  em  preparações  em funcionamento e não após fixação para avaliações histológicas. A contração máxima ocorre com sarcômeros estirados a 2,40 μm.  B.  Curva  comprimento­tensão  do  sarcômero,  obtida  em  fibra  muscular  esquelética  isolada.  (Adaptada  de  Gordon  et  al., 1966.)

O  papel  primordial  do  Ca2+  para  a  contração  cardíaca  foi  inicialmente  descrito  por  Ringer,  em  1882.  Esse  autor demonstrou, utilizando preparações de coração isolado, que a ausência de Ca2+ na solução nutridora abolia a contração. A razão desse comportamento já está elucidada e será discutida a seguir, e permite a compreensão da dinâmica da contração muscular,  a  qual  pode  ser  modulada,  ou  por  modificações  das  [Ca2+]i  ou  por  interferência  na  cinética  dos  fluxos  de Ca2+ através da membrana plasmática. Existem  duas  principais  fontes  de  Ca2+ que  podem  ativar  a  contração  do  músculo  cardíaco:  (1)  influxo  de  Ca2+  no cardiomiócito,  proveniente  do  meio  extracelular,  durante  o  platô  do  potencial  de  ação,  principalmente  através  dos  canais para Ca2+dependentes de voltagem do tipo L; e (2) Ca2+ liberado do retículo sarcoplasmático, através da abertura de canais para Ca2+ sensíveis a Ca2+ (receptores de rianodina). O  acoplamento  excitação­contração  inicia­se  com  a  despolarização  da  membrana  plasmática,  que,  quando  alcança valores  em  torno  de  –55  a  –35  mV,  começa  a  aumentar  a  condutância  de  Ca2+  pelos  canais  para  Ca2+  dependentes  de voltagem (principalmente o canal para Ca2+ dependente de voltagem do tipo L), alcançando o máximo de corrente durante o platô do potencial de ação, o que levará ao proeminente influxo do Ca2+. Esse influxo promove o aumento das [Ca2+]i, de 10–7 M,  na  condição  de  repouso,  para  10–5 M  durante  a  contração  (Figura 30.12).  O  aumento  das  [Ca2+]i  atuará  nos canais para Ca2+ sensíveis  a  Ca2+ do  retículo  sarcoplasmático  (receptores  de  rianodina),  aumentando  a  probabilidade  de esse canal encontrar­se no estado aberto, o que levará a maior liberação de Ca2+ dessa organela. A importância do influxo de Ca2+ durante o potencial de ação no miocárdio pode ser visualizada ao se observar que o aumento  da  duração  do  potencial  de  ação  (aumento  da  duração  do  platô)  eleva  a  contração  miocárdica,  e  o  seu encurtamento provoca o inverso. Esta também pode ser visualizada ao se manipular a corrente de influxo de Ca2+, durante o platô do potencial de ação, uma vez que, quando essa corrente é abolida, a contração cessa, e, quando ela é amplificada, a  contração  aumenta.  Esse  aumento  da  [Ca2+]i  irá,  então,  induzir  a  ligação  do  Ca2+ à  TnC  e  disparar  o  mecanismo  da contração.

Até  o  momento,  pode­se  deduzir  a  importância  do  Ca2+  para  o  acoplamento  excitação­contração.  O  Ca2+  está compartimentalizado  em  uma  série  de  locais  dentro  e  fora  do  cardiomiócito.  Modificações  em  sua  concentração,  nesses compartimentos,  resultarão  em  alterações  na  contratilidade  cardíaca.  A  partir  desse  momento,  serão  realizadas  algumas considerações  sobre  os  compartimentos  de  Ca2+  no  cardiomiócito  e  intervenções  passíveis  de  serem  realizadas  e  que geram modificações da atividade mecânica (Figura 30.13). ▸  Líquido  extracelular.  O  aumento  ou  a  diminuição  do  Ca2+  sanguíneo  (calcemia)  e  no  líquido  extracelular (ver Figura 30.13  A)  provocam,  respectivamente,  elevação  ou  redução  da  força  de  contração  do  músculo  cardíaco.  No plasma, aproximadamente 25% do Ca2+ total encontra­se sob a forma livre, ionizada, disponível para a maioria das células no nosso organismo. Os 75% restantes estão ligados a proteínas plasmáticas ou na forma sal com ânions inorgânicos. A concentração de Ca2+ depende do pH plasmático e do conteúdo de proteínas. Em condições fisiológicas, o Ca2+ plasmático e o do líquido extracelular se mantêm relativamente constantes e estáveis, por meio do fino controle hormonal induzido, principalmente, pelo hormônio paratireoidiano (PTH), pela vitamina D e pela calcitonina. Entretanto, elevações no Ca2+ do líquido extracelular podem ser observadas por meio da adição direta de sais de cálcio (cloreto de cálcio) ou no caso de um hiperparatireoidismo, e reduções do mesmo podem ocorrer com o uso de agentes quelantes de Ca2+, como EDTA e EGTA, ou no caso de um hipoparatireoidismo.

Figura 30.12 ■ Transporte de cálcio em miócito ventricular. O quadro inferior relaciona o curso temporal do potencial de ação (AP,  linha  preta),  a  variação  da  concentração  intracelular  de  cálcio  ([Ca2+ ]i,  linha  ocre)  e  a  contração  (linha  tracejada  roxa) medida  em  miócito  ventricular  de  coelho.  RyR,  receptor  de  rianodina;  NCX,  trocador  sódio/cálcio;  SERCA,  Ca2+ ­ATPase  do retículo sarcoplasmático; PLB, fosfolambam; PLCA, Ca2+ ­ATPase da membrana plasmática; NKA, Na+ ­K+ ­ATPase. (Adaptada de Bers, 2002.)

Figura  30.13  ■   Esquema  simplificado  dos  diversos  compartimentos  e  sítios  de  importância  no  mecanismo  de  acoplamento excitação­contração.  A.  Compartimento  do  líquido  extracelular  contendo  cálcio  ionizado  (Ca2+ ).  B.  Compartimento  que corresponde  aos  sítios  aniônicos  do  glicocálice  da  membrana,  onde  interagem  Na+   e  Ca2+   (em  detalhe  no  quadro  inferior; adaptada  de  Lossnitzer  et  al.,  1984).  C.  Canal  para  cálcio  dependente  de  voltagem  na  membrana  plasmática,  passível  de fosforilação dependente da ativação pela via da adenilatociclase (AC), a qual pode ser ativada pela estimulação dos receptores β­adrenérgicos (β). D. Compartimento  correspondente  aos  locais  de  alta  afinidade  pelo  Ca2+ ,  que  existem  na  face  interna  na membrana  plasmática  e  são  sensíveis  às  variações  de  potencial  de  ação.  E.  Compartimento  que  corresponde  ao  retículo sarcoplasmático;  este  libera  o  Ca2+   armazenado  pelo  transporte  ativo  (TA)  induzido  pela  SERCA  via  ação  da  corrente despolarizante  do  potencial  de  ação  (1),  atuando  por  meio  do  mecanismo  liberador  de  Ca2+ ,  cálcio­induzido  (seta tracejada).  F.  Compartimento  que  corresponde  ao  Ca2+   mioplasmático,  que  pode  atuar  sobre  as  proteínas  contráteis  do sarcômero (2) quando a sua concentração aumenta, ou ser retirado ativamente através do sarcolema (3) ou da SERCA. Em (4), indicação de que o mecanismo transarcolemal de troca Na+ /Ca2+  pode ocorrer em ambos os sentidos.

▸ Ca2+  ligado aos sítios aniônicos do glicocálice. Durante a excitação da membrana celular, o influxo

▸ Ca2+  ligado aos sítios aniônicos do glicocálice. Durante a excitação da membrana celular, o influxo de  Ca2+  pelos  canais  e  trocadores  iônicos  ocorre  preferencialmente  pelos  estoques  de  Ca2+  localizados  na  membrana plasmática,  no  glicocálice,  e  este  se  encontra  em  equilíbrio  com  o  Ca2+ extracelular  (ver  Figura  30.13  B).  O  Ca2+  e  o Na+ competem pelos sítios aniônicos em uma razão: 1Ca2+ para 2Na+. Assim, o aumento das concentrações extracelulares do Na+ ([Na+]e) desloca Ca2+ desses sítios e, consequentemente, reduz a contração muscular. Por sua vez, manobras que reduzem  as  [Na+]e  provocam  respostas  inversas.  Outra  forma  de  observar  a  importância  do  Ca2+  ligado  aos  sítios aniônicos para o acoplamento excitação­contração é por meio de uma série de manobras: (1) pela ação de outros cátions no meio extracelular, como La3+ ou Co2+; (2) pelo aumento da concentração de ureia no meio extracelular; (3) com o uso de fármacos  como  o  verapamil,  bloqueador  de  canal  para  cálcio  dependente  de  voltagem;  e  (4)  durante  a  acidose.  Essas manobras  ou  reduzem  o  número  de  sítios  aniônicos  da  membrana  plasmática  ou  a  afinidade  destes  pelo  Ca2+  e, consequentemente, reduzem a força de contração do miocárdio. ▸ Influxo de Ca2+ . Na Figura 30.6 C, é possível observar que o influxo de Ca2+ ocorre durante a excitação elétrica, principalmente, através dos canais para Ca2+ dependentes de voltagem. A condutância pelos canais para Ca2+ dependentes de  voltagem  está  diretamente  correlacionada  com  a  concentração  intracelular  de  AMP  cíclico  (cAMP)  e  a  ativação  da proteinoquinase  ativada  por  cAMP  (PKA).  Assim,  neurotransmissores  e  hormônios  que  elevam  as  concentrações  de cAMP, como as catecolaminas (norepinefrina e epinefrina) (Figura 30.14), aumentam a corrente de Ca2+ e a contração. Por sua vez, a redução da liberação de catecolaminas ou a liberação de acetilcolina, essa principalmente no músculo atrial, por meio da ativação da proteína Gi, inibe a atividade da adenilatociclase (ver Figura 30.14), reduz as concentrações de cAMP e  a  contração.  Além  de  uma  ação  direta  no  canal  para  Ca2+ dependente  de  voltagem,  a  acetilcolina  encurta  a  duração  do potencial de ação, devido ao aumento da condutância ao K+ e, assim, acelera a repolarização e reduz a duração do platô, o que reduz também a probabilidade de o canal para Ca2+ dependente de voltagem encontrar­se no estado aberto, diminuindo o influxo de Ca2+. Vale ressaltar que vários fármacos atuam sobre o influxo de Ca2+ reduzindo­o, ou diretamente, como as di­hidropiridinas (anlodipino e nifedipino), fenilalquilaminas (verapamil, D600) e benzodiazepinas (diltiazem), ou indiretamente, como os antagonistas β­adrenérgicos (propranolol), que, por antagonizarem as ações das catecolaminas, reduzem as concentrações intracelulares de cAMP. Outro  efeito  indireto  sobre  o  influxo  de  Ca2+  é  observado  modificando  o  potencial  de  membrana,  por meio  de  modificações  na  concentração  de  K+  extracelular  ([K+]e).  A  redução  excessiva  ou  o  aumento discreto das [K+]e acarretam uma semidespolarização das células miocárdicas, a qual inibirá o componente rápido do potencial de ação, e as fibras se tornam inexcitáveis. Nesse caso, o músculo permanece relaxado (parada  do  coração  em  diástole).  Caso  as  [K+]e  aumentem  o  suficiente  para  despolarizar  a  membrana (hiperpotassemia ou hipercalemia) e atingir o limiar mecânico (aproximadamente –40 mV), será observado o aumento da condutância dos canais para Ca2+ dependentes de voltagem. Além disso, ocorrerá influxo de Ca2+  e,  consequentemente,  o  músculo  entrará  em  contratura  (parada  em  sístole),  uma  vez  que  a repolarização do miocárdio, nessa condição, estará dificultada pela hiperpotassemia.

Figura 30.14 ■ Os agonistas de receptores β1­adrenérgicos, como a norepinefrina (NE) e a epinefrina (E), ativam a proteína Gs (estimulatória).  Ao  ser  estimulada,  a  proteína  Gs  ativa  a  adenilatociclase  (AC).  O  cAMP  formado  ativará  a  proteinoquinase  A (PKA),  que,  resumidamente,  via  uma  AKAP  (A­kinase  anchoring  protein),  induz  os  seguintes  efeitos  inotrópico  e  lusitrópico positivos: 1, fosforilação (P) do canal para Ca2+  dependente  de  voltagem  da  membrana  plasmática,  do  receptor  de  rianodina (RyR2);  2,  fosforilação  do  fosfolambam  (PLB),  proteína  inibitória  da  bomba  de  Ca2+   do  retículo  sarcoplasmático  (SERCA2a), aumentando a recaptação do Ca2+ ; 3, fosforilação da TnI, que causa redução da sensibilidade da TnC ao Ca2+ . O primeiro efeito provoca aumento do transiente de Ca2+  e, consequentemente, aumenta a força de contração. Por sua vez, a dessensibilização da TnC acelera a velocidade de relaxamento, reduzindo o tempo gasto em cada ciclo de contração e relaxamento cardíaco. A recaptação  elevada  de  Ca2+   para  o  retículo  sarcoplasmático  (RS)  também  acelera  o  tempo  de  relaxamento  e, concomitantemente,  contribui  para  o  aumento  do  conteúdo  de  cálcio  do  RS.  A  acetilcolina  (ACh),  via  ligação  em  receptores muscarínicos (subtipo M2), acoplados à proteína Gi, inibe a atividade da AC, dentre outros efeitos. (Adaptada de Bers, 2002.)

▸ Ca2+  ligado à face interna da membrana celular. Na face interna da membrana (ver Figura 30.13 D) existem sítios de grande afinidade pelo Ca2+, os quais são dependentes do estado de polarização da célula. A afinidade ao Ca2+ é grande quando a célula está repolarizada, em repouso, diminuindo durante a despolarização. Essa região, portanto, libera  Ca2+  para  o  citoplasma  durante  o  potencial  de  ação  e  enquanto  a  célula  estiver  despolarizada,  favorecendo  a contração. Em seguida à repolarização, parte do Ca2+ citoplasmático volta a se unir aos sítios intracelulares, propiciando o relaxamento cardíaco. ▸  Ca2+   armazenado  no  retículo  sarcoplasmático.  No  miocárdio,  o  retículo  sarcoplasmático  é fundamental  para  o  manuseio  do  Ca2+ intracelular (ver Figura 30.13 E)  e  participa  de  várias  intervenções  que  alteram  a força de contração (inotropismo). O  Ca2+  é  transportado  ativamente  para  o  retículo  sarcoplasmático  por  meio  da  ATPase  Ca2+­Mg2+­dependente  (ou bomba  de  Ca2+ do  retículo  sarcoplasmático  –  SERCA).  A  SERCA  é  um  dos  principais  mecanismos  responsáveis  pela redução  das  concentrações  de  Ca2+  citoplasmático  em  cardiomiócitos,  que  levará  ao  processo  de  relaxamento.  Com  a ativação da SERCA, ocorre o aumento das concentrações de Ca2+ no retículo sarcoplasmático, o qual pode ser novamente liberado para o citoplasma durante a despolarização. O  microdomínio  celular  entre  os  túbulos  transversos  e  a  membrana  do  retículo  sarcoplasmático,  onde  ocorre  a interação  entre  os  canais  para  Ca2+ dependentes  de  voltagem  da  membrana  plasmática  e  os  canais  para  Ca2+ sensíveis  a Ca2+ do  retículo  sarcoplasmático  (receptor  de  rianodina),  é  denominado couplon.  No  miocárdio,  cada  couplon  congrega cerca de 100 receptores de rianodina para 10 a 25 canais para Ca2+ dependentes de voltagem (ver Figuras 30.12 e 30.15). Esses  microdomínios  auxiliam  no  entendimento  do  processo  de  despolarização­contração  e  no  processo  de repolarização­relaxamento.  Como  já  descrito  no  início  deste  capítulo,  as  cisternas  do  retículo  sarcoplasmático  formam junções com os túbulos transversos (retículo juncional), por meio de estruturas denominadas feet (ou pés), que se acredita

serem os canais para Ca2+ (ver Figura 30.15). Essa região facilita a transdução do sinal elétrico de despolarização para a resposta  iônica  de  influxo  e  liberação  de  Ca2+ do  retículo  sarcoplasmático.  Mais  recentemente  foi  demonstrado  que  os túbulos  transversos  apresentam  “microdobras”  em  sua  superfície.  Nessa  região  foi  descrita  uma  proteína denominada bridging integrator 1 (BIN1),  a  qual  possui  mecanismos  regulatórios  multifuncionais  no  túbulo  transverso participando da sinalização de Ca2+. A BIN1 organiza as “microdobras” de forma a conter os canais para Ca2+ dependentes de  voltagem  do  tipo  L  e  recrutam  o  receptor  de  rianodina  do  retículo  juncional,  ou  seja,  os  componentes  dos  couplons, exercendo  seu  papel  fundamental  no  mecanismo  de  acoplamento  excitação­contração  e  na  contratilidade  miocárdica (ver Figura 30.15). Já na porção medial dos sarcômeros, o retículo sarcoplasmático apresenta­se sob a forma de túbulos de distribuição longitudinal (chamado de retículo não juncional), sendo este o provável local onde o Ca2+ é recaptado para o interior dessa organela por meio da atividade da SERCA (ver Figura 30.12). A  SERCA,  fisiologicamente,  tem  a  sua  atividade  inibida  por  um  polipeptídio  denominado  fosfolambam  ou fosfolambano (PLB). O efeito inibitório se dá por meio da associação física entre o fosfolambam e a SERCA. No entanto, quando  o  fosfolambam  é  fosforilado,  perde  sua  funçãoinibitória  sobre  a  SERCA;  assim,  a  fosforilação  do  fosfolambam resulta  em  ativação  da  SERCA  e  aumento  da  recaptação  de  Ca2+  para  o  retículo  sarcoplasmático,  o  que  aumenta  a velocidade de relaxamento do músculo cardíaco. A fosforilação do fosfolambam é mediada, principalmente, pela quinase dependente de calmodulina (CaMKII) e pela PKA (ver Figura 30.14). A  atividade  da  SERCA  pode  ser  inibida  pela  ação  de  fármacos  como  a  tapsigargina,  e  sua  atividade pode encontrar­se reduzida em algumas doenças cardíacas, como a insuficiência cardíaca. Por outro lado, a  ativação  simpática  ou  o  uso  de  agonistas  b­adrenérgicos  ativam  a  SERCA,  assim  como  o  treinamento físico. A  liberação  do  Ca2+  armazenado  no  retículo  sarcoplasmático  é  feita  por  duas  populações  de  canais  para  Ca2+  na membrana  do  retículo  sarcoplasmático,  os  canais  para  Ca2+ sensíveis  a  Ca2+ (receptores  de  rianodina  –  RyR)  e  o  canal para Ca2+ sensível a IP3 (receptor para IP3). Tanto a despolarização da membrana plasmática, com o influxo de Ca2+ pelos canais para Ca2+ dependentes de voltagem, como o aumento das concentrações intracelulares de IP3 ativam canais iônicos na membrana do retículo sarcoplasmático que liberam Ca2+ para o citoplasma a favor do gradiente de concentração, uma vez que a concentração de Ca2+ no retículo sarcoplasmático é superior à observada no citoplasma do cardiomiócito. O  canal  para  Ca2+  sensível  a  Ca2+  (receptor  de  rianodina)  (Figura  30.16)  é  o  principal  mecanismo  de  liberação  de Ca2+ do retículo sarcoplasmático dos cardiomiócitos. Os receptores de rianodina são ativados por aumento das concentrações intracelulares de Ca2+ ou pela ação de fármacos como cafeína, heparina, doxorrubicina e rianodina (em concentração abaixo de 10 mM). Por  sua  vez,  esses  são  inibidos  por  fármacos  como  vermelho  de  rutênio  e  rianodina  (em  concentração acima de 10 mM). Existem dois subtipos de receptores de rianodina, designados RyR1 e RyR2, com predominância do subtipo 2 (RyR2) no miocárdio. O RyR2 é formado por um complexo macromolecular gigante contendo quatro monômeros de RyR2 onde podem se ancorar várias proteínas, dentre as quais calmodulina (CaM), PKA, CaMKII, fosfatases 1 e 2A (PP1 e PP2A), entre outras, as quais regulam a liberação de Ca2+ do  retículo  sarcoplasmático,  por  modificar  a  probabilidade  de  o  canal para Ca2+ sensível a Ca2+ (receptor de rianodina) encontrar­se no estado aberto (ver Figura 30.16 A). Cabe ressaltar que a projeção citoplasmática desse receptor está voltada para a membrana dos túbulos transversos, dando origem ao couplon, já descrito anteriormente, ou para o sarcolema. Como descrito, a modulação da atividade do receptor de rianodina é realizada por várias proteínas. A CaM liga­se ao receptor de rianodina e afeta a probabilidade de abertura do canal, diminuindo a sua sensibilidade ao Ca2+. Por sua vez, a PKA e a CaMKII fosforilam o receptor de rianodina e aumentam a liberação de Ca2+ do retículo sarcoplasmático. Essas proteínas são desfosforiladas por fosfatases. No coração, mais de 90% da atividade de fosfatase é atribuída a PP1 e PP2A, as  quais  desfosforilam  o  receptor  de  rianodina  e  inibem  a  liberação  de  Ca2+  do  retículo  sarcoplasmático.  Em  direção oposta,  a  redução  da  atividade  dessas  fosfatases  aumenta  a  fosforilação  do  receptor  de  rianodina  e,  consequentemente, ocorre  o  vazamento  de  Ca2+por  essa  organela  (Ca2+  diastólico).  Caso  ocorra  esse  vazamento,  haverá  a  redução  das concentrações  de  Ca2+  no  retículo  sarcoplasmático  ([Ca2+]RS)  e,  consequentemente,  diminuição  da  liberação  desse  íon

durante o platô do potencial de ação. Essa redução acarretará a redução da força de contração, contribuindo para a falha de bombeamento  cardíaco  durante  a  sístole  (insuficiência  sistólica).  Também  é  importante  salientar  que  a  PP1  é  a  principal enzima  que  desfosforila  o  fosfolambam,  levando  a  inibição  da  SERCA,  o  que  reduz  ainda  mais  os  estoques  de  Ca2+  no retículo sarcoplasmático, amplificando a insuficiência sistólica e gerando uma insuficiência diastólica.

Figura  30.15  ■   Ilustração  esquemática  da  localização  da  proteína  BIN1  no  túbulo  T.  Em  A  é  mostrado  um  cardiomiócito ventricular com as invaginações que ocorrem periodicamente na altura da linha Z. Em B a organização dos microdomínios entre os túbulos T e o retículo sarcoplasmático juncional, onde se destaca em amarelo a proteína regulatória BIN1 próxima ao canal para  cálcio  dependente  de  voltagem  do  tipo  L  da  membrana  plasmática  (LTCC),  representado  em  verde,  e  o  receptor  de rianodina (RyR), representado em azul. (Adaptada de Fu e Hong, 2016.)

Uma  propriedade  importante  do  receptor  de  rianodina  é  sua  ativação  pelo  influxo  de  Ca2+ na  membrana  dos  túbulos transversos ou do sarcolema. A probabilidade de o canal para Ca2+ sensível a Ca2+ (RyR2) encontrar­se no estado aberto é dependente de fatores como: concentrações de Ca2+, Mg2+, ATP e pH no citosol, e da própria [Ca2+]RS (Ca2+ luminal).

Figura 30.16 ■ A. Sítios de interação para o receptor de rianodina cardíaco (RYR2). CaM, calmodulina; PKA,  proteinoquinase A; CaMK, calmodulina­quinase; FKBP, proteína de ligação FK506 ou calstabina; PP1 e PP2A, isoforma 1 e 2A das fosfatases

Sorcina (soluble resistance­related calcium binding protein), a qual reduz a atividade do receptor de RyR2. MH indica regiões de analogia com o RyR1 nas quais as mutações genéticas estão associadas a hipertermia maligna. B. Regulação do receptor de rianodina (RyR2): do lado citosólico, o receptor de rianodina (RyR2) interage com CaM, FKBP, Homer, Sorcina, PKA, CaMKII, PP1  e  PP2A.  Do  lado  luminal,  o  Ca2+   regula  a  atividade  desse  receptor,  ligando­se  diretamente  no  canal  (a).  As  proteínas triadina e junctina formam o sensor luminal de Ca2+  via sua interação com a proteína ligadora de Ca2+  a calsequestrina (b).  O Ca2+  luminal  também  pode  regular  o  receptor  de  rianodina  de  maneira  indireta,  ativando  o  sítio  de  ligação  citosólico  por  um mecanismo de retroalimentação (c). (A. Adaptada de Bers, 2004. B. Adaptada de Zima e Mazurek, 2016.)

É  interessante  descrever  que  o  canal  para  Ca2+  sensível  a  Ca2+  é  ativado  quando  a  concentração  de  Ca2+  luminal ([Ca2+]RS)é  alta  (10–5  M),  e  é  inibido  quando  essa  concentração  se  reduz.  O  mecanismo  pelo  qual  a  concentração  de Ca2+ luminal  regula  a  probabilidade  de  esse  canal  encontrar­se  no  estado  aberto  não  está  totalmente  claro,  mas  parece depender  de  sua  ligação  com  a  proteína  calsequestrina  (proteína  do  retículo  sarcoplasmático  ligadora  de  Ca2+)  e/ou  com um sensor no lado luminal, a proteína STIM1 (ver Figura 30.16). Alterações  na  estabilidade  do  receptor  de  rianodina  no  coração  podem  ter  como  consequência  o aumento no vazamento de Ca2+ do retículo sarcoplasmático, como acontece, por exemplo, na insuficiência cardíaca  ou  na  taquicardia  ventricular  polimórfica  catecolaminérgica.  A  taquicardia  ventricular  polimórfica catecolaminérgica  é  uma  doença  grave,  que  leva  a  taquiarritmias  e  está  associada,  principalmente,  a mutações  congênitas,  tanto  na  isoforma  RyR2  do  receptor  de  rianodina  quanto  na  calsequestrina. Manifesta­se  com  taquicardia,  síncope  e  morte  súbita  em  jovens,  podendo  ser  deflagrada  por  estresse emocional ou mesmo atividade física. Outra condição clínica grave decorrente de modificação funcional do receptor de rianodina é a hipertermia maligna. Além dos receptores de rianodina, como descrito anteriormente, o retículo sarcoplasmático também possui canais para Ca  sensíveis a IP3, os chamados receptores de IP3. Os receptores de IP3 são ativados por IP3 e inibidos por heparina e cafeína. Apesar de o IP3 ser um dos principais ativadores da liberação de Ca2+ dos estoques intracelulares em células não musculares  e  no  músculo  liso  vascular,  no  músculo  cardíaco  esse  não  é  o  principal  mecanismo  para  o  disparo  do acoplamento excitação­contração. No coração foram descritos, até o momento, três subtipos de receptores para IP3 (IP3R­ 1, IP3R­2 e IP3R­3) que estão associados com a regulação da hipertrofia cardíaca em resposta a neuro­hormônios (como a endotelina­1  e  angiotensina  II).  O  aumento  das  concentrações  de  IP3 no  citosol  promove  a  liberação  de  Ca2+ do  retículo sarcoplasmático, através da abertura de canais para Ca2+ sensíveis a IP3,  o  que  pode  regular  a  contração  e  ativar  vias  de sinalização  intracelulares  capazes  de  modular  a  expressão  gênica,  como  o  fator  de  transcrição  nuclear  (NFAT)  e  de calcineurina (CnA). 2+

Fagulhas (sparks) e ondas (waves) de cálcio A  liberação  sincronizada  de  Ca2+  é  fundamental  para  o  funcionamento  normal  do  cardiomiócito;  no entanto, algumas vezes, há vazamento de Ca2+ pelo retículo sarcoplasmático, o que pode comprometer o processo  de  acoplamento  excitação­contração.  O  fenômeno  conhecido  como  fagulha  de  Ca2+  (sparks) refere­se à liberação de Ca2+ por um ou poucos canais para Ca2+ sensíveis  a  Ca2+ no  retículo,  no  espaço entre  a  membrana  dessa  organela  e  a  membrana  dos  túbulos  transversos  ou  do  sarcolema,  durante  a diástole. Esse pequeno aumento local da concentração de Ca2+ nem afeta a [Ca2+]i nem ativa a contração muscular.  Recentemente,  foi  definido  um  papel  fisiológico  para  esse  fenômeno.  Como  o  espaço  entre  as duas membranas é muito pequeno, a concentração local do Ca2+ aumenta para valores que promovem a abertura  de  canais  para  K+  dependentes  de  Ca2+  e,  assim,  induzem  hiperpolarização  da  membrana plasmática por induzir aumento do efluxo de K+.  Essa  ação  contribui  para  manter  o  potencial  de  repouso dos  cardiomiócitos.  Cumpre  ressaltar  que,  quando  grande  número  de  canais  de  Ca2+  do  retículo sarcoplasmático se ativa, pode ocorrer uma onda de Ca2+ (calcium wave). Essa onda pode ser deflagrada por somação temporal e espacial das fagulhas de Ca2+, podendo induzir resposta arritmogênica e contribuir para a disfunção mecânica do cardiomiócito. Assim,  pode­se  concluir  que,  interferindo  na  habilidade  de  o  retículo  sarcoplasmático  armazenar  e  liberar  Ca2+,  é possível modular o processo contrátil: ou agindo nos canais para Ca2+ sensíveis a Ca2+ (receptor de rianodina), elevando

ou diminuindo a capacidade do retículo de liberar o Ca2+; ou na interação SERCA/fosfolambam, aumentando ou reduzindo sua capacidade de receptação de Ca2+. ▸  Influência  do  trocador  Na+ /Ca2+   e  da  Na+ /K+ ­ATPase  sobre  a  contratilidade cardíaca. Esses dois componentes da membrana plasmática, a bomba de Na+/K+ e o trocador Na+/Ca2+, são proteínas importantes na regulação da atividade mecânica cardíaca. O  trocador  Na+/Ca2+  é  uma  proteína  de  membrana  que  realiza  um  contratransporte  de  Na+  e  Ca2+  com  uma estequiometria de 3Na+:1Ca2+, isto é, o influxo de 3 íons Na+ fornece energia para o efluxo de um íon Ca2+. Nas células miocárdicas, em repouso, a troca Na+/Ca2+ pode gerar uma corrente despolarizante. Duas condições podem dificultar, ou mesmo  inverter,  o  sentido  dessa  troca:  a  despolarização  celular  e  o  aumento  da  [Na+]i  (ver  Figura  30.12,  o  trocador Na+/Ca2+ localizado  no  túbulo  T).  Já  foi  demonstrado  que,  durante  a  despolarização,  o  potencial  de  equilíbrio  da  troca Na+/Ca2+ é ultrapassado e sua atividade inverte­se, ou seja, ocorrerá o efluxo de 3 íons Na+ e o influxo de 1 íon Ca2+, o que  contribui  para  a  elevação  das  [Ca2+]i  no  decorrer  do  potencial  de  ação,  principalmente  na  fase  inicial  do  platô.  Em seguida,  com  a  repolarização,  esse  mecanismo  volta  para  a  atividade  basal,  reduzindo  as  [Ca2+]i  (ver  Figura  30.12, observar o trocador Na+/Ca2+ localizado no sarcolema). Esse é um dos mecanismos importantes para a redução das [Ca2+]i durante  os  eventos  diastólicos.  Desse  modo,  o  trocador  Na+/Ca2+  pode  participar  tanto  do  processo  contrátil  como  do relaxamento  cardíaco.  Por  sua  vez,  a  elevação  das  [Na+]i  dificulta,  rápida  e  intensamente,  a  troca  Na+/Ca2+ no  estado  de repouso, basicamente porque o aumento da [Na+]i reduz o gradiente difusional do Na+ através da membrana. Além disso, o  trocador  dispõe  de  dois  sítios  intracelulares  onde  se  ligam  o  Na+  e  o  Ca2+.  A  ligação  do  Na+  provoca  redução  da atividade da troca, enquanto a ligação com o Ca2+ a estimula. Desse modo, manobras que promovem elevação das [Na+]i, tais como os glicosídeos cardiotônicos e o aumento de frequência de estimulação, dificultam a extrusão do Ca2+ via troca Na+/Ca2+, elevando a força de contração. A Na+/K+­ATPase é composta de 3 subunidades, α, β e γ. A subunidade α possui atividade ATPásica e, hidrolisando o ATP,  obtém  energia  para  o  transporte  de  3Na+ para  fora  e  2  K+  para  dentro  da  célula.  São  conhecidas  4  isoformas  da subunidade α: α 1, α 2, α 3 e α 4. No coração já foram detectadas as isoformas α 1, α 2 e α 3. A isoforma α 1 se distribui por toda a extensão da membrana dos miócitos, sendo responsável pela manutenção das concentrações iônicas, necessárias para a atividade elétrica da célula, e da osmolaridade. As isoformas α 2 e α 3 normalmente se localizam em região de contato com o  retículo  sarcoplasmático,  desempenhando  função  na  atividade  contrátil  da  célula.  Normalmente  sua  expressão  está,  em um  microdomínio  de  membrana,  colocalizada  com  o  trocador  Na+/Ca2+.  A  subunidade  β  age  como  uma  chaperona, necessária  para  a  inserção  da  Na+/K+­ATPase  na  membrana  e  moduladora  de  sua  atividade.  Já  a  subunidade  γ  é  uma proteína da família das fosfoleman (PLM) que também possui atividade moduladora sobre a atividade da Na+/K+­ATPase. A  fosfoleman  desfosforilada  inibe  a  Na+/K+­ATPase,  enquanto  a  fosforilada,  tanto  por  PKA  quanto  PKC,  estimula  a atividade dessa enzima. Já  foi  demonstrado  que,  no  microdomínio  celular  entre  a  membrana  plasmática  e  o  retículo  sarcoplasmático,  estão presentes o trocador Na+/Ca2+ e a isoforma α 2 da Na+/K+­ATPase, na membrana plasmática, e a SERCA, na membrana do retículo. Esse microdomínio celular foi denominado de Plasm­ERsome.  Essa  região  auxilia  no  entendimento  dos  efeitos inotrópicos  positivos  dos  glicosídeos  cardiotônicos,  como  a  ouabaína.  Ao  inibir  a  atividade  da  isoforma  α 2  da  Na+/K+­ ATPase,  a  ouabaína  promove  aumento  local  da  [Na+]i  sem,  entretanto,  afetar  a  concentração  global  desse  íon  no  meio intracelular. Tal aumento inibe, parcialmente, a atividade do trocador Na+/Ca2+, elevando a [Ca2+]i no microdomínio onde se  colocaliza  com  a  SERCA.  Por  sua  vez,  o  Ca2+  será  recaptado  para  o  retículo  e,  perante  uma  despolarização  do cardiomiócito,  mais  Ca2+  será  liberado  através  dos  canais  para  Ca2+  sensíveis  a  Ca2+  (receptores  de  rianodina), aumentando  a  força  de  contração.  Esse  mecanismo  explica  como  funciona  um  efeito  amplificador  de  contrações,  sem ocorrer aumento generalizado das [Ca2+]i, mas amplificando o estoque de Ca2+ no retículo sarcoplasmático. Também  se  pode  observar  a  ação  fundamental  da  Na+/K+­ATPase  no  controle  do  inotropismo  cardíaco,  por  meio  de manobras que reduzam a [K+]e. Em uma preparação de músculo papilar de cobaia, a redução da [K+]e de 5,4 mM para 1 mM induziu aumento significativo da força de contração (Figura 30.17). Esse efeito é explicado pela inibição da atividade da bomba de Na+/K+.  Como  a  atividade  dessa  bomba  é  dependente  tanto  das  [K+]e  como  das  [Na+]i,  existindo  sítios  de ligação para o K+, na face extracelular, e para o Na+, na face intracelular, a redução da [K+]e reduz a atividade da bomba, provocando aumento da [Na+]i com consequente aumento das [Ca2+]i, o que induz aumento da força de contração (efeito inotrópico positivo).

MECANISMOS ENVOLVIDOS NA REGULAÇÃO DA CONTRATILIDADE MIOCÁRDICA

Diferente  do  que  ocorre  no  músculo  esquelético,  em  que  a  força  de  contração  é  regulada  por  recrutamento  de  novas fibras ou mesmo somação das contrações, no músculo cardíaco a somação das contrações não é possível devido à longa duração  do  potencial  de  ação,  o  qual  cursa,  aproximadamente,  com  a  contração  muscular.  Assim,  no  músculo  cardíaco existem três maneiras pelas quais a força de contração pode ser modulada: (1) pela alteração da [Ca2+]i, alcançada durante o potencial de ação; (2) pela mudança da sensibilidade dos miofilamentos contráteis ao Ca2+; e (3) pela mudança na força máxima ativada por Ca2+ que pode ser alcançada pelos miofilamentos, o que corresponde à variação no número de pontes cruzadas. Esses três mecanismos podem ser ativados ao mesmo tempo ou isoladamente, por meio de estímulos diversos, muito embora nem sempre seja fácil distinguir entre os dois últimos. Até  pouco  tempo,  a  maneira  mais  conhecida  de  promover  intervenções  inotrópicas  era  utilizar  um  mecanismo  que aumentasse a [Ca2+]i. De fato, as mudanças na quantidade de Ca2+ que se liga às proteínas contráteis têm um papel central na regulação da contratilidade miocárdica. Um aspecto importante a ser esclarecido é por que a elevação da [Ca2+]i, além de determinada concentração, pode trazer prejuízo funcional para a célula e, até mesmo, sua morte. Das consequências do aumento  desse  íon,  pode­se  citar  a  situação  de  sobrecarga  de  Ca2+ (Ca2+­overload),  que  provoca  sobrecarga  do  retículo sarcoplasmático,  causando  liberações  espontâneas  de  Ca2+  no  mioplasma  (as  ondas  de  Ca2+)  –  ver  boxe  “Fagulhas (sparks) e ondas (waves) de cálcio” –, colaborando para o surgimento de correntes arritmogênicas. Em  condições  fisiológicas,  dificilmente  a  [Ca2+]e  altera­se  a  ponto  de  provocar  modificações  importantes  na concentração de [Ca2+]i. No entanto, a [Ca2+]i pode se elevar no decorrer da ativação simpática, via ativação do receptor β1­adrenérgico, como durante uma reação de luta ou fuga, ou em condições patológicas, como durante hipoxia (queda da PO2) ou isquemia do músculo cardíaco (desbalanço entre a oferta e consumo de nutrientes e O2 para o miocárdio). Se, por um lado, o aumento da [Ca2+]i promove efeito inotrópico positivo (aumento da força de contração), por outro também é responsável  pela  elevação  do  consumo  metabólico.  A  produção  de  mais  força  por  meio  do  aumento  da  [Ca2+]i  eleva  o consumo  energético  do  miocárdio,  basicamente,  por  duas  razões:  (1)  por  aumento  da  atividade  ATPase  miosínica;  e  (2) porque a energia requerida para reciclar o Ca2+i é maior (transporte ativo das bombas de Ca2+ do retículo sarcoplasmático e  da  membrana  plasmática).  Desse  modo,  considerando­se  a  energia  metabólica  consumida  para  dada  contração,  é  mais vantajoso para a célula muscular cardíaca aliar maior produção de força a menores modificações na concentração livre de Ca2+  citoplasmático.  Esse  mecanismo  pode  ser  possível  por  intermédio  da  alteração  da  responsividade  miofibrilar  ao Ca2+.  Pode­se  depreender  desse  fato  que,  desde  que  mais  força  seja  produzida  na  presença  de  um  transiente  de Ca2+ constante, os problemas de sobrecarga de Ca2+ citoplasmático poderiam ser minimizados, e um menor requerimento energético  passaria  a  ser  exigido  pelo  miócito.  De  fato,  existem  evidências  de  que  algumas  intervenções  inotrópicas  são capazes  de  melhorar  a  eficiência  da  maquinaria  contrátil,  de  forma  que  o  aumento  de  força  de  contração  não  requer necessariamente maior consumo relativo de energia, havendo então melhor eficiência energética para a célula. Entretanto, uma possível desvantagem dos agentes que aumentam a sensibilidade do sistema contrátil ao Ca2+ é o aumento da tensão passiva ou de repouso (tensão diastólica) e o retardo no processo de relaxamento, o que, isoladamente, poderia prejudicar o enchimento ventricular e, assim, o débito cardíaco.

Figura 30.17 ■ Efeitos da redução da concentração de K+  extracelular sobre a força de contração (F) e sua primeira derivada temporal (dF/dt). Observe que a diminuição da concentração de K+  extracelular de 5,4 para 1,0 mM provoca aumento tanto da força de contração quanto da sua primeira derivada temporal positiva e negativa. Esse efeito pode ser explicado em decorrência da redução da atividade da Na+ /K+ ­ATPase e do trocador Na+ /Ca2+ ; consequentemente, elevam­se as concentrações de Na+  e de Ca2+  intracelular, assim como a força desenvolvida. Experimentos realizados em músculo papilar isolado de rato em sistema de contração isométrica.

Tentativas no sentido de minimizar esses problemas poderiam advir da combinação de agentes inotrópicos com mais de  um  mecanismo  de  ação.  Como  exemplo,  pode  ser  citado  o  que  ocorre  com  alguns  compostos  que,  muito  embora elevem a sensibilidade da maquinaria contrátil ao Ca2+ e, com isso, dificultem o relaxamento muscular, também inibem a fosfodiesterase (PDE, uma enzima que hidrolisa o cAMP), consequentemente aumentando o cAMP e a ativação da PKA. Essa  via  é  capaz  de  desencadear  mecanismos  que  culminam  na  redução  da  afinidade  da  maquinaria  contrátil  ao  Ca2+, fosforilando  a  TnI,  e  aceleram  o  processo  de  relaxamento  muscular,  por  ativar  a  SERCA  (aumentando  a  receptação  de Ca2+ para  o  retículo  sarcoplasmático).  Os  dois  efeitos  sobre  o  relaxamento  potencializariam  o  relaxamento  do  músculo cardíaco  (efeito  lusitrópico  positivo),  enquanto,  ao  mesmo  tempo,  o  aumento  da  biodisponibilidade  do  cAMP  elevaria  a condutância dos canais para Ca2+ dependentes de voltagem na membrana plasmática, aumentando a força de contração para dada concentração de Ca2+ citoplasmático (Figura 30.18).

Figura  30.18  ■   Esquema  representativo  dos  mecanismos  de  ação  de  agentes  inotrópicos  que  atuam  no  músculo  cardíaco aumentando  a  força  de  contração.  RS,  retículo  sarcoplasmático;  PKA,  proteinoquinase  A;  AC,  adenilatociclase;  PDE, fosfodiesterase. Os glicosídios cardiotônicos inibem a bomba de Na+ /K+ , induzindo a redução da troca Na+ /Ca2+ , o que eleva a [Ca2+ ]i.  Os  abridores  dos  canais  para  Ca2+   aumentam  a  condutância  ao  cálcio.  Os  inibidores  da  PDE,  os  agonistas  β­ adrenérgicos e os ativadores da AC aumentam as concentrações de cAMP, que, entre outros efeitos, é capaz de elevar a [Ca2+ ]i. (Adaptada de Lee e Allen, 1993.)

ASPECTOS MOLECULARES DA MODULAÇÃO DA SENSIBILIDADE DOS MIOFILAMENTOS AO CA2+ A modulação da sensibilidade dos miofilamentos ao Ca2+ pode ocorrer de duas maneiras: (1) no filamento fino, pela modificação  na  afinidade  da  TnC;  e  (2)  no  filamento  grosso,  pela  fosforilação  da  cadeia  leve  fosforilável  da  miosina (MPLC) ou da isoenzima da miosina (Figura 30.19). Os filamentos finos estão envolvidos ativamente no controle, batimento a batimento, da função cardíaca por meio de mecanismos regulatórios neurais, hormonais e locais como o mecanismo de Frank­Starling. As proteínas com afinidade ao Ca2+, como a calmodulina e a TnC, dispõem em comum de regiões para ligação ao Ca2+, com afinidades variadas. A TnC cardíaca tem quatro dessas regiões. As regiões 1 e 2 (região N­terminal) são específicas para Ca2+, enquanto as regiões 3 e 4 (C­terminal), em condições fisiológicas, ligam­se tanto ao Ca2+ quanto ao Mg2+. A região 1 comumente não se liga ao Ca2+;  no  entanto,  parece  que  a  atividade  dessa  região  modifica  as  propriedades  de  ligação  da  TnC  ao  Ca2+, presumivelmente via região 2. Isso é possível, já que as regiões 1 e 2 são de baixa afinidade, sendo a 2 ocupada apenas acima de determinada [Ca2+]i. Para que se possa ter uma noção de como a sensibilidade do sistema contrátil ao Ca2+ pode ser  alterada  em  condições  fisiológicas,  pode­se,  por  exemplo,  citar  o  mecanismo  de  Frank­Starling  como  uma  condição que aumenta a sensibilidade da maquinaria contrátil ao Ca2+;  adicionalmente,  outras  situações  diminuem  a  sensibilidade, tais como: acidose, aumento do fosfato inorgânico intracelular, hipoxia, anoxia, elevação da atividade de quinases (PKC e PKA).  Esses  exemplos  são  úteis  para  demonstrar  a  ampla  capacidade  de  determinadas  intervenções,  fisiológicas  e patológicas,  modularem  a  responsividade  do  sistema  contrátil  ao  Ca2+.  Muito  embora  o  Ca2+  seja  o  elo  essencial  no mecanismo  de  acoplamento  excitação­contração,  outros  fatores,  como  sua  ligação  na  TnC  e  a  subsequente  alteração conformacional  nas  miofibrilas,  são  essenciais  para  a  produção  de  força.  As  mudanças  na  sensibilidade  ao  Ca2+  estão baseadas  nas  curvas  obtidas  mediante  a  variação  da  [Ca2+]e  a  geração  da  força  de  contração  (ver  Figura  30.19).  Sendo assim,  as  intervenções  que  resultem  em  deslocamento  dessa  relação  são  referidas  como  mudanças  na  sensibilidade  ao Ca2+. Assim, é possível obervar que:

Figura 30.19 ■ Modulação da amplitude da força de contração por variação da concentração de cálcio e da sensibilidade dos miofilamentos.  O  aumento  da  amplitude  de  força  (gráfico  à  esquerda)  decorre  do  aumento  da  [Ca2+ ]i.  Existe  variação  da sensibilidade (gráfico à direita) quando há deslocamento da curva de sensibilidade. Neste caso, a força é maior para a mesma [Ca2+ ]i. O deslocamento para a esquerda significa aumento da sensibilidade ao cálcio e, para a direita, redução. Nestes gráficos, a pCa é calculada por: pCa2+  = –log [Ca2+ ]i. (Adaptada de Lee e Allen, 1993.)

■ Aumentos  na  sensibilidade  ao  Ca2+ provocam  maior  força  para  dada  [Ca2+]i;  consequentemente,  o  relaxamento  fica prejudicado, pois para as menores [Ca2+] a ligação à TnC é maior ■ Reduções  na  sensibilidade  ao  Ca2+  diminuem  a  força  para  determinada  [Ca2+]i;  ao  mesmo  tempo,  aceleram  a velocidade de relaxamento, justamente pelo mecanismo oposto, ou seja, para dada [Ca2+] a ligação à TnC é menor. A alteração na ocupação da TnC pelo Ca2+ parece  ser  o  mecanismo  mais  conhecido,  mas  não  o  único,  para  alterar  a sensibilidade  a  esse  íon.  Outra  maneira  pela  qual  a  geração  de  força  pode  ser  alterada  é  por  intermédio  da  mudança  na força máxima ativada pelo Ca2+, que envolve os miofilamentos grossos. Tal efeito poderia ocorrer via mudança no número de pontes cruzadas, no número de pontes cruzadas ativadas ou mesmo por meio da força produzida por cada ponte (Figura 30.20). Na prática, é difícil distinguir entre mudanças na sensibilidade e na força máxima ativada pelo Ca2+, a menos que se usem concentrações saturantes de Ca2+. O melhor termo a ser utilizado nessas circunstâncias seria, então, responsividade miofibrilar ao Ca2+, o que englobaria os dois termos.

INTERVENÇÕES QUE AFETAM A RESPONSIVIDADE MIOFIBRILAR AO CA2+ Os  principais  agentes  que  afetam  a  responsividade  miofibrilar  ao  Ca2+  são:  (1)  estimulação  dos  receptores  α  e  β­ adrenérgicos; (2) fosforilação da cadeia leve da miosina e mudança na isoenzima da miosina; (3) fosfato inorgânico (Pi); (4)  pH  intracelular;  (5)  hipoxia  e  isquemia;  (6)  sensibilizadores  naturais  e  sintéticos;  e  (7)  estiramento  (mecanismo  de Frank­Starling).

Alguns  agentes  farmacológicos  aumentam  tanto  a  sensibilidade  quanto  a  força  máxima,  como,  por  exemplo,  a molécula de pimobendana, enquanto outros causam elevação na sensibilidade e queda na força máxima, como a molécula de  cafeína.  Essas  observações  suportam  a  hipótese  de  que  a  sensibilidade  e  a  força  máxima  ao  Ca2+  podem  ser consideradas mecanismos independentes, os quais podem ser manipulados em separado para regular a força de contração.

Figura  30.20  ■   Esquemas  representativos  dos  efeitos  da  (A)  mudança  na  sensibilidade  ao  Ca2+   (p.  ex.,  por  alteração  da afinidade  da  TnC  ao  Ca2+   extracelular)  e  (B)  mudança  na  força  máxima  ativada  por  Ca2+   (p.  ex.,  devido  à  mudança  no comprimento do sarcômero, o qual altera o número de pontes cruzadas). (Adaptada de Lee e Allen, 1993.)

▸ Estimulação dos receptores adrenérgicos O  efeito  inotrópico  positivo  mediado  pela  ativação  simpática  depende  do  aumento  da  [Ca2+]i  e  também  de  sua  ação sobre  os  miofilamentos  finos.  Como  já  descrito  neste  capítulo,  alguns  agentes  inotrópicos,  como  os  agonistas  β­ adrenérgicos,  as  catecolaminas,  ativam  a  adenilatociclase,  aumentando  a  produção  do  segundo  mensageiro  cAMP,  que ativa  PKA,  causando  fosforilação  da  TnI  (ver  Figura  30.14).  Esse  mecanismo  envolve  interações  alostéricas  entre  as proteínas  do  filamento  fino,  culminando  na  redução  da  afinidade  da  TnC  pelo  Ca2+.  A  TnI  dispõe  de  seis  regiões funcionalmente distintas. Uma delas contém o local de fosforilação dependente da PKA, nas posições Ser­23 e Ser­24. Esse mecanismo, aparentemente contraditório, tem importante significado funcional. Considerando a ação da ativação simpática  sobre  o  coração  como  uma  bomba,  fica  fácil  entender  a  importância  fisiológica  desse  mecanismo.  Deve  ser lembrado que os agonistas de receptores β­adrenérgicos são capazes de promover efeito inotrópico positivo por meio do aumento  do  influxo  de  Ca2+,  o  que  acontece  devido  à  fosforilação  de  canais  para  cálcio  dependentes  de  voltagem localizados  na  membrana  plasmática,  associada  ao  aumento  da  liberação  de  Ca2+  do  retículo,  devido  ao  aumento  da ativação dos canais para Ca2+ sensíveis a Ca2+ (receptores de rianodina). Associado a esse fato, também ocorre aumento da  frequência  cardíaca,  efeito  cronotrópico  positivo,  via  regulação  das  células  do  nodo  sinusal  (ver  Capítulo 28,  Eletrofisiologia  do  Coração).  Isso  significa  que  mais  Ca2+  entrará  na  célula  durante  o  processo  de  acoplamento excitação­contração,  porém  mais  Ca2+  terá  que  ser  expulso  em  um  menor  período  de  tempo.  A  redução  das  [Ca2+]i  é favorecida,  em  parte,  pela  ativação  da  recaptação  de  Ca2+  pelo  retículo  sarcoplasmático,  induzido  pela  fosforilação  do fosfolambam e ativação da SERCA. Concomitantemente, a fosforilação da TnI reduz a afinidade das proteínas contráteis ao  Ca2+.  Esses  mecanismos  auxiliam  o  relaxamento  do  músculo  cardíaco.  Como  já  descrito,  o  aumento  do  cAMP, mediado pela ativação β­adrenérgica, tem uma série de efeitos sobre o coração. Alguns desses efeitos levam ao aumento da  força  de  contração  (efeito  inotrópico  positivo),  aceleram  o  relaxamento  muscular  (efeito  lusitrópico  positivo),

aumentam  a  velocidade  de  condução  do  estímulo  elétrico  (efeito  dromotrópico  positivo)  e  elevam  a  frequência  cardíaca (efeito cronotrópico positivo). Apesar de não ser o principal receptor adrenérgico envolvido no efeito inotrópico positivo, os agonistas α­adrenégicos, como,  por  exemplo,  a  fenilefrina,  além  de  aumentarem  a  [Ca2+]i,  via  ação  do  IP3,  também  aumentam  a  afinidade  do sistema contrátil ao Ca2+.

▸ Fosforilação da cadeia leve da miosina e expressão da isoenzima Os detalhes precisos dos mecanismos envolvidos nessa intervenção, assim como seu papel fisiológico para o músculo cardíaco,  não  estão  totalmente  elucidados.  Entretanto,  alguns  aspectos  moleculares  a  respeito  da  constituição  da  miosina são esclarecidos e já foram abordados neste capítulo. Relembre que a região pesada da molécula de miosina consiste em duas  cadeias  pesadas  (MHC)  e  dois  pares  de  cadeias  leves  (MLC).  Nos  ventrículos  e  átrios  humanos,  são  encontradas duas variedades de MHC: α­MHC e β­MHC. Já as cadeias leves foram designadas como: álcali LC (LC­1) e regulatória LC  (LC­2).  Elas  podem  ser  reversivelmente  fosforiladas,  sendo  assim  designadas  MPLC  (cadeia  leve  fosforilável  da miosina).  A  existência  de  duas  isoformas  da  MPLC  no  ventrículo  humano  sugere  a  possibilidade  de  ocorrerem  três diferentes isoenzimas da miosina: LC­2/LC­2, LC­2/LC­2* e LC­2*/LC­2*. LC­1 foi inicialmente denominada LC essencial. Atualmente, sabe­se que ela não é essencial para a atividade ATPase miosínica, podendo ser removida por tratamento alcalino sem qualquer alteração da função dessa enzima, daí o nome álcali LC.  A  função  das  outras  três  isoenzimas  da  cadeia  leve  da  miosina  continua  obscura.  A  fosforilação  da  MPLC  do músculo  cardíaco  aumenta  a  força  de  contração,  mas  não  a  velocidade  de  encurtamento.  Em  preparações  in  vivo,  a fosforilação da MPLC não é alterada por catecolaminas, tampouco durante a sístole ou mesmo na diástole.

▸ Fosfato inorgânico (Pi) Sob  condições  basais,  o  Pi  é  mantido  em  concentrações  baixas  (alguns  milimoles/litro),  apesar  de  o  Pi  estar  sendo continuamente produzido pela hidrólise do ATP pelas ATPases celulares. Esse controle se deve ao fato de o Pi ser um dos maiores reguladores da produção de ATP mitocondrial por fosforilação oxidativa, de modo que, se o Pi aumenta (p. ex., durante o aumento do trabalho cardíaco), a produção de ATP a partir de ADP e Pi se acelera. Normalmente,  os  sistemas  reguladores  internos  mantêm  certa  constância  nesses  níveis;  por  exemplo,  quando  o trabalho cardíaco dobra, o Pi se eleva de cerca de 2 mM para 5 mM. Contudo, a eficiência do sistema circulatório torna­se falha durante a isquemia miocárdica, quando a fosforilação oxidativa é severamente inibida pela hipoxia tecidual. No início da  hipoxia,  a  demanda  de  ATP  é  mantida  pela  reação  da  creatinoquinase,  a  qual  usa  a  fosfocreatina  para  refosforilar  o ADP  para  ATP,  liberando  Pi  (de  2  para  20  mM).  Esse  aumento  do  Pi  tem  significante  ação  detrimental  na  produção  de força  miofibrilar.  A  hipótese  proposta  para  explicar  esse  mecanismo  é  que,  durante  a  formação  das  pontes  cruzadas  e geração  de  força  muscular,  a  cabeça  da  miosina  se  liga  ao  monômero  de  actina,  havendo  liberação  de  Pi.  A  presença  de mais Pi deslocaria o equilíbrio da reação para a esquerda, ou seja, no sentido contrário ao da produção de força (ver Figura 30.8).  O  resultado  disso  seria  a  redução  do  número  de  pontes  cruzadas  passíveis  de  gerar  força  muscular.  Os  efeitos  da adição de Pi na produção de força são bastante similares àqueles observados durante a acidose.

▸ Mudança no pH intracelular Normalmente, o transporte transmembranal de H+ (trocador Na+/H+) regula o pH intracelular (pHi), de modo a mantê­ lo  próximo  de  7;  contudo,  o  pHi  pode  variar  em  certas  condições  designadas  de  acidose.  A  causa  da  acidose  pode  ser fisiológica  (como  ocorre  no  aumento  da  frequência  cardíaca),  farmacológica  (pelo  uso  dos  glicosídios  cardiotônicos)  ou mesmo patológica (tal como a acidose do infarto do miocárdio, quando o pHi pode cair até 6,2 devido à acidose láctica). Essas variações podem afetar muitos sistemas celulares, incluindo as bombas e os canais iônicos da membrana. Parece que, durante a acidose, não apenas o número de pontes cruzadas está reduzido, como também existe diminuição na força média produzida pelas pontes que estão ligadas. Ou seja, a acidose reduz a eficiência da contração muscular em termos de força produzida por molécula de ATP consumida. Apesar dessas evidências, o mecanismo exato pelo qual a acidose altera a resposta dos miofilamentos ao Ca2+ não está totalmente  elucidado.  Não  parece  que  o  simples  fato  de  o  íon  H+ competir com o Ca2+ pelo  mesmo  sítio  na  TnC  seja  a única resposta, de modo que outros mecanismos já estão sendo investigados.

▸ Efeitos da hipoxia e da isquemia

Embora  as  variações  da  [Ca2+]i  e  de  força,  em  função  de  modificações  do  estado  hipóxico,  tragam  resultados controversos, o efeito final, aparentemente, deve­se ao aumento da [Ca2+]i subsequente à acidose. Na tentativa de explicar os  efeitos  da  acidose,  decorrentes  da  hipoxia  ou  isquemia  sobre  a  contração,  é  aceita  a  existência  de  duas  etapas temporalmente distintas: ■ Durante a primeira exposição à anoxia, a quebra dos estoques de glicogênio elevaria a produção de ácido láctico, e a acidose resultante aumentaria a [Ca2+]i ■ Nas exposições repetidas, os estoques de glicogênio diminuiriam, reduzindo também o ácido láctico, caindo a acidose e  a  [Ca2+].  Além  disso,  a  depleção  do  glicogênio  reduz  a  duração  do  potencial  de  ação,  e  isso  também  diminui  a [Ca2+]i. De  tais  efeitos,  espera­se  que  haja  alteração  nas  concentrações  de  Pi,  fosfocreatina,  ATP  e  ADP.  As  mudanças  na concentração  de  qualquer  desses  metabólitos  podem  alterar  a  sensibilidade  das  proteínas  contráteis  ao  Ca2+ e  contribuir para os efeitos da acidose no desenvolvimento de força. Vale relembrar, como citado no item anterior, que a afinidade da TnC ao Ca2+ está diminuída na acidose.

▸ Sensibilizadores naturais e sintéticos Considerando  que  a  cafeína  é  um  agente  sensibilizador  dos  miofilamentos  ao  Ca2+,  foi  sugerido  que  ela  poderia mimetizar a ação de substâncias endógenas. Surgiram como candidatos os compostos que continham o grupo imidazol. Os dipeptídios da histidina, exemplificados pela carnosina, satisfazem essa exigência. Compostos que aumentam a sensibilidade do sistema contrátil ao Ca2+ geralmente dispõem também de outras ações. O sulmazol,  por  exemplo,  afeta  tanto  a  [Ca2+]i  quanto  a  responsividade  dos  miofilamentos  a  esse  íon.  Os  inibidores  da fosfodiesterase  (PDE)  também  têm  ação  sobre  a  sensibilidade  ao  Ca2+.  A  pimobendana,  inibidora  da  PDE,  aumenta  a sensibilidade ao Ca2+ e prolonga a duração do potencial de ação, o que eleva o [Ca2+]i.

▸ Mecanismo de Frank­Starling O  coração  desenvolve  a  função  de  uma  bomba  ejetora  com  capacidade  de  regular  o  seu  débito  cardíaco  (o  fluxo  de sangue  gerado  pelo  coração),  de  acordo  com  as  exigências  do  organismo.  Para  tanto,  necessita  ser  capaz  de  alterar  seu estado  contrátil  dentro  de  uma  larga  escala.  O  débito  cardíaco,  que  matematicamente  é  o  produto  da  frequência  cardíaca (minutos)  pelo  débito  sistólico  (volume  sistólico,  m ℓ ),  pode  ser  regulado  por  mecanismos  denominados  intrínsecos  e extrínsecos.  Os  intrínsecos,  que  determinam  o  desempenho  do  coração  isolado,  podem  envolver  a  autorregulação heterométrica e homeométrica. No  coração,  a  autorregulação  heterométrica  é  mais  comumente  conhecida  como  Mecanismo  de  Frank­Starling.  O mecanismo  de  Frank­Starling  se  baseia  na  propriedade  fundamental  do  músculo  de  variar  sua  capacidade  de  encurtar  e desenvolver tensão em função de seu comprimento de repouso. Assim, o débito sistólico está relacionado com o volume diastólico  final  (volume  existente  nos  ventrículos  ao  final  da  fase  de  enchimento  ventricular),  posto  que  o desenvolvimento  da  pressão  sistólica  ventricular  se  correlaciona  com  o  comprimento  das  fibras  musculares  em  repouso. Basicamente, esse conceito estabelece que, em condições fisiológicas (considerado o fato de que a circulação é um circuito fechado),  o  fluxo  sanguíneo  que  entra  para  a  cavidade  ventricular  (retorno  venoso)  será  ejetado  (bombeado),  garantindo, batimento  a  batimento,  que  o  retorno  venoso  seja  igual  ao  débito  cardíaco.  Uma  vez  que  o  mecanismo  básico  implica mudança do comprimento de repouso das fibras cardíacas, ele é também designado autorregulação heterométrica. O mecanismo de Frank­Starling pode então ser considerado como uma resposta adaptativa funcional a curto prazo, no qual o estiramento causado pelo aumento do retorno venoso eleva a contratilidade miocárdica para atender à demanda de ejeção  de  sangue  batimento  a  batimento.  Assim,  uma  questão  que  ainda  não  foi  completamente  elucidada  sobre  o mecanismo de Frank­Starling é como o estiramento do sarcômero aumenta a sensibilidade da maquinaria contrátil ao Ca2+. Uma das hipóteses que tem muita aceitação é a de que o maior enchimento da cavidade ventricular induz estiramento do miócito,  o  que  reduz  a  distância  entre  os  miofilamentos,  aumentando  assim  a  formação  de  pontes  actinomiosínicas  sem haver  necessariamente  elevação  da  concentração  de  Ca2+ citoplasmático.  Essa  teoria  é  conhecida  como  Efeito  Lattice  e parece  depender  grandemente  da  titina.  Como  descrito  anteriormente  neste  capítulo,  essa  proteína  gigante  possui propriedade elástica e, normalmente, está relacionada com a geração de força passiva no sarcômero (Figura 30.21). O  aumento  da  produção  de  força  pelo  estiramento  resulta  de  dois  efeitos,  referidos  como  fatores  físicos  e  efeitos  da ativação.

▸ Fatores físicos. Resultam do fato de que o comprimento muscular governa o formato das fibras e a disposição das  estruturas  internas,  notadamente  o  sistema  de  filamentos  deslizantes.  A  redução  da  força  contrátil,  em  pequenos comprimentos de sarcômero, parece ser decorrente das interações inadequadas entre os miofilamentos (dupla superposição ou compressão dos filamentos de actina); adicionalmente, parece também ser decorrente do surgimento de forças internas despertadas pelos conflitos entre os filamentos finos no centro do sarcômero, que se opõem à força que se estabelece no sentido da contração, constituindo­se no fator preponderante na redução da tensão ativa. Outro fato importante que ocorre durante  o  estiramento  do  músculo  é  a  compressão  lateral  dos  filamentos  transversos,  o  que  aumenta  a  interação  actina­ miosina. ▸  Efeitos da ativação. Os  efeitos  da  ativação  resultam  do  fato  de  que  o  grau  de  ativação  do  sistema  contrátil depende  do  comprimento  muscular  em  repouso.  As  evidências  demonstradas  até  aqui  sugerem  então  que  os  fatores  que determinam a ativação, e desse modo a força de contração, podem ocorrer de duas maneiras principais. Sendo assim, são relacionados  em  duas  categorias:  (1)  aqueles  que  modulam  o  aumento  transiente  da  [Ca2+]i  que  ocorre  subsequente  à excitação (liberação de Ca2+ no  mioplasma,  dependente  do  estiramento);  e  (2)  aqueles  que  modulam  o  grau  de  interação dos  miofilamentos  com  o  Ca2+,  resultando  em  alteração  da  produção  de  força  para  uma  dada  [Ca2+]  (mudanças  na sensibilidade dos miofilamentos).

Figura 30.21 ■ Esquema ilustrativo demonstrando o papel da titina na modulação do espaço Lattice entre os filamentos grossos e finos. Em maiores comprimentos de sarcômero, ocorre redução da distância entre os filamentos grossos e finos, aumentando a probabilidade  de  formação  de  pontes  actina­miosina  para  dada  concentração  de  cálcio  intracelular.  Essa  teoria  é  conhecida como Efeito Lattice e parece depender da titina. (Adaptada de Kobirumaki­Shimozawa F et al., 2014.)

Quanto  à  liberação  citoplasmática  de  Ca2+  dependente  do  estiramento,  uma  proposta  existente  é  a  de  que,  com  o estiramento,  poderia  ocorrer  variação  na  magnitude  do  transiente  rápido  de  Ca2+,  iniciando  a  contração  muscular.  Até  o presente,  existem  poucas  evidências  de  que  a  liberação  de  Ca2+,  dependente  do  estiramento,  contribua  para  as  alterações imediatas  na  contração.  Considerando  que  o  comprimento  muscular  afeta  o  mecanismo  liberador  de  Ca2+,  é  importante enfatizar  que  variações  na  geometria  das  organelas,  tanto  quanto  na  dos  miofilamentos,  podem  acontecer  durante  o estiramento  muscular.  Desse  modo,  um  possível  mecanismo  que  explicaria  as  alterações  dependentes  de  estiramento poderia ser devido ao efeito do estiramento nas propriedades físicas das estruturas da membrana sarcolemal. A presença de  túbulos  T  (dobras)  e  de  invaginações  vesiculares  (cavéolas),  presentes  no  sarcolema,  tem  papel  de  ampliar  a  área  de superfície  de  membrana  na  célula  cardíaca.  A  deformação  dessas  estruturas  foi  obtida  com  o  aumento  do  comprimento muscular,  o  que  poderia  levar  a  alterações  no  estado  funcional  de  canais,  bombas,  trocadores  e  receptores  contidos  nas cavéolas, ativando mecanismos que poderiam mediar o efeito do estiramento sobre o fluxo iônico transarcolemal. Quanto  às  mudanças  na  sensibilidade  dos  miofilamentos  ao  Ca2+,  indo  de  encontro  ao  que  acabou  de  ser  descrito  a respeito  das  variações  do  gradiente  de  Ca2+ em  função  do  estiramento,  há  evidências  de  que  a  redução  da  ativação  das miofibrilas  pelo  Ca2+,  decorrente  da  diminuição  do  comprimento  do  sarcômero  em  repouso,  deve­se  à  concomitante redução na sensibilidade das miofibrilas para esse íon. Tal fenômeno representa uma propriedade intrínseca da miofibrila cardíaca  e  é  extremamente  importante  na  relação  comprimento­tensão  do  sarcômero.  Deve  ocorrer  mudança  no desenvolvimento de força em função da alteração dependente do estiramento, originada nas miofibrilas, para dada [Ca2+]. As  evidências  para  a  sensibilização  dos  miofilamentos  ao  Ca2+  na  dependência  do  comprimento  do  sarcômero  são mostradas em experimentos de músculo sem membrana plasmática (skinned fiber). Nestes, foram determinadas a relação entre  a  tensão  isométrica  e  a  [Ca2+]i,  em  diferentes  comprimentos  de  sarcômeros.  Parece  que  a  região­alvo  para  a

sensibilização  seja  a  TnC,  considerada  o  transdutor  dos  miofilamentos  que  ajusta  a  sensibilidade  ao  Ca2+ em  função  do estiramento.  A  afinidade  ao  Ca2+  de  cada  molécula  de  TnC  varia  de  acordo  com  sua  localização  no  filamento  fino.  A afinidade  aumenta  progressivamente,  no  sentido  do  centro  do  sarcômero,  sugerindo  que  a  polaridade  do  filamento  fino possa  ser  a  base  molecular  para  a  transdução  do  comprimento  no  mecanismo  de  Frank­Starling.  Tanto  em  preparações isoladas de músculo esquelético quanto de músculo cardíaco, a ativação dependente do estiramento pode ser demonstrada comparando­se  curvas  estiramento­tensão,  normalizadas  em  relação  ao  desenvolvimento  máximo  de  tensão.  Caso  a produção de tensão seja função apenas da superposição de miofilamentos (não ocorrendo mudanças no estado inotrópico), as  curvas  de  função  ventricular  no  coração  isolado  (obtidas  sob  diferentes  intervenções  inotrópicas)  deveriam  ser superponíveis quando normalizadas. Se essas curvas não se sobrepõem, pode­se concluir que a mudança no comprimento muscular afeta o estado inotrópico (Figura 30.22).

MÉTODOS DE ESTUDO DA CONTRAÇÃO Para  melhor  entendimento  dos  métodos  utilizados  na  análise  da  contração  do  músculo  estriado,  faz­se  necessário considerar  o  músculo  sob  a  forma  de  modelos  musculares.  Dois  análogos  mecânicos  são  comumente  utilizados, os modelos de Voight e de Maxwell. Entretanto,  para  os  conceitos  que  se  pretende  abordar,  será  utilizado  um  modelo  mais  simplificado,  o  modelo  de Hill (Figura 30.23). O músculo estriado, quando em repouso, comporta­se como uma estrutura viscoelástica, a qual está representada simplesmente como uma mola. Quando em atividade, seus sarcômeros são capazes de desenvolver tensão e gerar  trabalho,  o  que  está  representado  pelo  componente  contrátil  (CC).  O  presente  modelo  dispõe  de  um  componente contrátil  ligado  a  um  componente  elástico  em  série  (CES).  A  partir  desse  modelo,  pode­se  analisar  melhor  os  métodos mais comuns de estudo da atividade mecânica, as contrações isométrica e isotônica.

▸ Contração isométrica Esse tipo de contração se realiza quando uma preparação de músculo tem suas extremidades fixas e ao ser estimulado contrai­se,  gerando  força.  Porém,  o  músculo  não  se  encurta,  daí  o  nome:  iso  =  mesmo,  métrico  =  comprimento.  Nesse caso, de acordo com o modelo, os sarcômeros que compõem o componente contrátil encurtam­se estirando o componente elástico em série (ver Figura 30.23), sem haver encurtamento externo. Observa­se, assim, que nessa contração somente é registrada  a  força  desenvolvida  pelo  músculo,  posto  que  o  encurtamento  externo  é  nulo.  Pode­se  acrescentar  que  a  força registrada se deriva da ação conjunta dos dois componentes, o que nos impossibilita analisar, em separado, a atividade do componente  contrátil.  Entretanto,  uma  série  de  informações  pode  ser  obtida  desses  registros  isométricos,  referentes  às variações  de  amplitude  da  contração  e  de  seus  parâmetros  temporais.  A  amplitude  da  contração  traduz  a  quantidade  de força  desenvolvida  pelo  músculo.  Esses  parâmetros  fornecem  dados  indiretos  sobre  a  cinética  de  ativação  e  relaxamento do músculo, quais sejam:

Figura  30.22  ■   Curvas  estiramento­tensão,  obtidas  de  ventrículo  esquerdo  isolado  de  rato,  em  diferentes  concentrações  de Ca2+  extracelular. Estão projetados os valores relativos de pressão sistólica isovolumétrica (PSIV, nas ordenadas) em função da variação de pressão diastólica (PD, nas abscissas). Os resultados foram normalizados para a PSIV máxima e PD desenvolvida em  25  mmHg,  em  concentrações  extracelulares  crescentes  de  Ca2+ :  ( ⚫ )  0,5;  ( ○ )  1,25;  ( ■ )  2,5;  e  ( □ )  3,75  mM.  Os  dados representam  a  média  ±  EPM.  (**)  Valores  estatisticamente  significantes  (P  >  0,01)  comparados  ao  seu  respectivo  controle (Ca2+  0,5 mM).

Figura  30.23  ■   Esquema  simplificado  de  uma  contração  isométrica,  indicando  as  alterações  dos  componentes  do  modelo simplificado. A. Diagrama da preparação do músculo papilar isolado. T, transdutor mecanoelétrico; V, haste para fixação de uma das extremidades do músculo; M, músculo papilar; P,  leito  de  parafina  onde  o  músculo  é  fixado. B.  Diagrama  mostrando  um potencial  de  ação  (PA)  que  dispara  uma  contração  isométrica  (CI).  C.  Músculo  na  situação  de  repouso  (relaxado).  CES, componente  elástico  em  série;  CC,  componente  contrátil  (sarcômero).  D.  Músculo  contraído.  Observe  em  C  e  D  que  o comprimento total do músculo não se altera com a contração, mas internamente o CES foi estirado devido ao encurtamento do CC.

■ Tempo de ativação, medido do início da contração até o seu pico máximo, reflete a cinética dos processos envolvidos na ativação da contração (processos que aumentam o Ca2+ mioplasmático) ■ Tempo de relaxamento, medido do pico da contração até o seu término, reflete a cinética dos processos envolvidos no relaxamento (processos que diminuem o Ca2+ mioplasmático). Com essas medidas, podemos interpretar os efeitos de intervenções que alteram a atividade mecânica muscular.

▸ Contração isotônica Como  o  próprio  nome  indica,  é  uma  contração  que  o  músculo  faz  contra  uma  carga  constante.  Nesse  caso,  no momento em que a força gerada pelo componente contrátil (armazenada no componente elástico em série) torna­se igual à carga,  o  músculo  encurta­se,  movimentando  a  carga.  Como  representado  na Figura 30.24,  pode­se  observar  que,  nessa condição, a mola (componente elástico em série) permanece com um estiramento constante e que o encurtamento é, agora, uma atividade exclusiva do componente contrátil. Assim, o encurtamento permite a avaliação isolada das propriedades do componente contrátil. Para o registro do encurtamento durante a contração muscular, uma das extremidades do músculo é fixada,  enquanto  a  outra  é  ligada  a  uma  alavanca.  Nessa  preparação,  o  comprimento  diastólico  do  músculo  é  obtido  pela

variação da posição da alavanca com uma pré­carga. Impedindo­se, a partir daí, a variação da posição da alavanca, pode­se adicionar nova carga (pós­carga), que só será sentida pelo músculo durante a contração. Dessa maneira, o músculo inicia sua  contração  com  um  estiramento  determinado  pela  pré­carga  e  só  a  partir  desse  momento  exerce  tensão  sobre  a  pós­ carga.  Durante  a  contração,  ele  exerce  tensão  sobre  a  pré  e  a  pós­carga,  ou  seja,  sobre  a  carga  total.  Enquanto  a  tensão exercida  pelo  músculo  é  menor  que  a  carga  total,  este  se  contrai  isometricamente,  encurtando­se  (contração  isotônica) quando a tensão é suficiente para deslocar a carga total. Nesse caso, a contração processa­se com tensão constante, igual àquela gerada pela carga total. Uma das características importantes, obtida a partir das contrações isotônicas, é aquela que mostra que o encurtamento diminui com o aumento da carga suportada pelo músculo. Também se observa que a velocidade máxima de encurtamento se reduz com o aumento de carga. Essa velocidade é medida pela inclinação máxima da curva de encurtamento, já que essa inclinação  corresponde  a  uma  relação  L/t  (espaço/tempo).  Plotando­se  velocidade  nas  ordenadas  contra  carga  nas abscissas,  são  construídas  as  curvas  de  velocidade­carga,  que  nos  permitem  avaliar  as  características  do  componente contrátil isoladamente. Na Figura 30.24 B,  em  que  estão  apresentadas  três  curvas  de  carga­velocidade,  pode­se  verificar que a curva B mostra um músculo capaz de mover uma carga com maior velocidade que o da curva A. Isso quer dizer que a  “qualidade”  do  músculo  avaliado  na  curva  B  é  melhor  que  a  do  músculo  avaliado  na  curva  A.  Tal  condição  é  obtida sempre que o estado inotrópico do miocárdio melhora, podendo ser proporcionada por catecolaminas, aumento da [Ca2+]e, elevação  da  frequência  de  estimulação  e  treinamento  muscular.  No  último  caso,  a  melhora  do  estado  inotrópico  é acompanhada  de  maior  velocidade  de  hidrólise  de  ATP,  pela  atividade  da  ATPase  miosínica.  Considerando  a  curva  C, observa­se uma situação oposta, em que a contratilidade, ou inotropismo, está diminuída. Tal situação é obtida por ação da acetilcolina ou em inúmeras condições clínicas que levam a uma deficiência contrátil do coração, como nas hipertrofias e na  insuficiência  cardíaca.  Também  nessas  últimas  situações,  observa­se  que  a  ATPase  miosínica  altera­se,  passando  a mostrar menor capacidade de hidrólise de ATP. No  miocárdio,  a  curva  velocidade­carga  apresenta  característica  hiperbólica,  à  semelhança  daquela  descrita  por  Hill para  o  músculo  esquelético  em  1938.  Esse  autor,  utilizando  resultados  obtidos  de  contrações  isotônicas  e  do  calor produzido durante as contrações, definiu matematicamente esta curva pela equação de uma hipérbole: (P + a) – (V + b) = b (P0 + a) em que V = velocidade de encurtamento; P = tensão desenvolvida; P0 =  tensão  tetânica;  a  =  constante  com  dimensão  de força; b = constante com dimensão de velocidade.

Figura 30.24 ■ A. Arranjo experimental para estudo de contrações isotônicas com pré e pós­carga. Parte superior: por uma das extremidades,  o  músculo  fica  preso  a  um  transdutor  de  força  e,  pela  outra,  a  uma  alavanca  para  medidas  de  encurtamento muscular.  A  pré­carga  determina  o  estiramento  muscular  na  condição  de  repouso.O  uso  do  freio  permite  que  a  pré­carga determine  o  estiramento  e  que  cargas  adicionais  (pós­carga)  não  o  façam.  A  pós­carga  somente  será  sentida  pelo  músculo depois  do  início  da  contração.  A  soma  da  pré  com  a  pós­carga  equivale  à  carga  total  suportada.  Parte  inferior:  registro  de contração  isotônica  com  pós­carga,  em  função  do  tempo:  acima,  encurtamento  (L);  abaixo,  força  (P)  que  corresponde  a  uma tensão  igual  à  carga  total,  iniciando  o  encurtamento.  A  tangente  à  curva  de  encurtamento  (dl/dt)  corresponde  à  velocidade máxima  de  encurtamento.  (Adaptada  de  Sonnenblick,  1969).  B.  Curvas  de  carga­velocidade:  nas  ordenadas,  velocidade  de encurtamento; nas abscissas, carga. A velocidade máxima de encurtamento (Vmáx) é obtida pela extrapolação da curva até o cruzamento com o eixo das ordenadas; corresponde à velocidade de um músculo contraindo­se contra uma carga zero. P0 é a tensão máxima desenvolvida pelo músculo quando a velocidade de encurtamento é zero. Observe as diferenças entre as curvas A, B e C, indicadas pela seta. O estado inotrópico é maior no músculo B que nos demais.

No miocárdio, essa curva é usada para a definição da velocidade máxima de encurtamento (Vmáx). A Vmáx tem sido considerada  como  um  índice  de  estado  inotrópico;  é  obtida  por  extrapolação  da  curva  de  velocidade­carga  até  o  eixo  das ordenadas. Assim, ela seria a velocidade obtida quando a carga suportada pelo músculo fosse igual a zero. Outro valor que pode  ser  definido  pela  curva  é  aquele  determinado  pela  curva  velocidade­carga,  quando  esta  cruza  o  eixo  das  abscissas. Este valor, denominado P0, corresponde à força máxima capaz de ser desenvolvida pelo músculo, quando a velocidade de encurtamento  é  zero.  Significaria  a  condição  em  que  o  músculo  tem  capacidade  de  promover  a  máxima  interação  entre  a actina e a miosina. No músculo esquelético, P0 corresponde à tensão tetânica; mas, no miocárdio, devido à impossibilidade de obtenção de tétano, não se consegue medir este dado experimentalmente.

BIBLIOGRAFIA ALLEN DG, JEWELL BR. Calcium transients in aequorin­injected frog cardiac muscle. Nature, 273:509­13, 1978. ALLEN DJ. On the relationship between action potential duration and tension in cat papilary muscle. Cardiovasc Res, 11:210­8, 1977. APLIN AE, HOWE A, ALAHARI SK et al. Signal transduction and signal modulation by cell adhesion receptors: the role of integrins, cadherins, immunoglobulin­cell adhesion molecules and selectins. Pharmacol Rev, 50:197­263, 1998. ARNON  A,  HAMLYN  JM,  BLAUSTEIN  MP.  Ouabain  augments  Ca(21)  transients  in  arterial  smooth  muscle  without  raising cytosolic Na(1). Am J Physiol Heart Circ Physiol, 279:H679­91, 2000.

BEELER Jr GH, REUTER H. Membrane calcium current in ventricular myocardial fibres. J Physiol, 207:191­209, 1970. BEELER  Jr  GH,  REUTER  H.  The  relation  between  membrane  potential,  membrane  currents  and  activation  of  contraction  in ventricular myocardial fibres. J Physiol, 207:211­20, 1970. BERS DM. Cardiac excitation­contraction coupling. Nature, 415:198­205, 2002. BERS DM. Macromolecular complexes regulating cardiac ryanodine receptor function. J Mol Cell Cardiol, 37:417­29, 2004. BERS DM. Cardiac sarcoplasmic reticulum calcium leak: basis and roles in cardiac dysfunction. Annu Rev Physiol,  76:107­27, 2014. BLAUSTEIN MP, LEDERER WJ. Sodium/calcium exchange: its physiological implications. Physiol Rev, 79:763­854, 1999. BLAUSTEIN  MP,  DIPOLO  R,  REEVES  JP.  Sodium­calcium  exchange.  Proceedings  of  the  second  international  conference. Annals of the New York Academy of Sciences. vol. 639, 1991. BLAUSTEIN MP, JUHASZOVA M, GOLOVINA VA et al. Na/Ca exchanger and PMCA localization in neurons and astrocytes: functional implications. Ann N Y Acad Sci, 976:356­66, 2002. BRAVENY P, SUMBERA J. Electromechanical correlations in the mammalian heart muscle. Pflugers Arch, 319:36­48, 1970. CARLEY AN, TAEGTMEYER H, LEWANDOWSKI ED. Matrix revisited: mechanisms linking energy substrate metabolism to the function of the heart. Circ Res, 114(4):717­29, 2014. CIBA FOUNDATION SYMPOSIUM 24. The Physiological Basis of Starling’s Law of the Heart. Amsterdam, Elsevier, 1974. CLAPHAM DE. Calcium signaling. Cell, 80:259­68, 1995. COLYERT J, WANG JW. Dependence of cardiac sarcoplamsic reticulum calcium pump activity on the phosphorylation status of phospholamban. J Biol Chem, 266:17486­93, 1991. DAVIES MJ, HILL MA. Signaling mechanisms underlying the vascular myogenic response. Physiol Rev, 79:387­423, 1999. DAVIES RE. A molecular theory of muscle contraction. Calcium dependent contractions with hydrogen bond formation plus ATP dependent extensions of part of the myosin­actin cross­bridge. Nature, 199:1068­74, 1963. DULHUNTY AF, HAARMANN CS, GREEN D et al. Interactions between dihydropyridine receptors and ryanodine receptors in striated muscle. Prog Biophys Mol Biol, 79:45­75, 2002. EISNER DA, LEDERER WJ. Na­Ca exchange stoichiometry and electrogenicity. Am J Physiol, 248:C185­202, 1985. FABIATO A, FABIATO F. Calcium and cardiac excitation­contraction coupling. Ann Rev Physiol, 41:473­84, 1979. FARRELL  EF,  ANTARAMIAN  A,  RUEDA  A  et  al.  Sorcin  inhibits  calcium  release  and  modulates  excitation­contraction coupling in the heart. J Biol Chem, 278:34660­6, 2003. FILL M, COPELLO JA. Ryanodine receptor calcium release channels. Physiol Rev, 82:893­922, 2002. FLIEGEL L, DYCK RB. Molecular biology of the cardiac sodium/hydrogen exchanger. Cardiovasc Res, 29:155­9, 1995. FU Y, HONG T. BIN1 regulates dynamic t­tubule membrane. Biochim Biophys Acta. 2016; 1863(7 Pt B):1839­47. GEERING K. FXYD proteins: new regulators of Na­K­ATPase. Am J Physiol Renal Physiol, 290:F241­50, 2006. GORDON  AM,  HUXLEY  AF,  JULIAN  FL.  The  variation  in  isometric  tension  with  sarcomere  length  in  vertebrate  muscle fibers. J Physiol, 184:170­92, 1966. HILL AV. The heat of shortening and the dynamic constants of muscle. Proc Royal Soc B, 126:136­95, 1938. HOROWITZ A, MENICE CB, LAPORTE R et al. Mechanisms of smooth muscle contraction. Physiol Rev, 76:967­1003, 1996. HUXLEY AF, SIMMONS RM. Proposed mechanism of force generation in striated muscle. Nature, 233:533­8, 1971. HUXLEY  HE.  Electron  microscope  studies  on  the  structure  of  natural  and  synthetic  filaments  from  striated  muscle.  J  Mol Biol, 7:281­308, 1963. HUXLEY  HE,  HANSON  J.  The  structural  basis  of  the  contraction  mechanism  in  striated  muscle.  Ann  New  York  Acad Sci, 81:403­8, 1959. JAGGAR JH, PORTER VA, LEDERER WJ et al. Calcium sparks in smooth muscle. Am J Physiol Cell Physiol, 278:C235­56, 2000. KATZ AM. Biochemical basis for cardiac contraction. In: MIRSKY JI, GHISTA DN, SANDLER H (Eds.). Cardiac Mechanics: Physiological, Clinical and Mathematical Considerations. New York. John Wiley and Sons, 1974. KEURS HE. The interaction of Ca2+ with sarcomeric proteins: role in function and dysfunction of the heart. Am J Physiol Heart Circ Physiol, 302(1):H38­50, 2012. KIMURA J, NOMA A, IRISAWA H. Na­Ca exchange current in mammalian heart cells. Nature, 319:596­7, 1986. KOBIRUMAKI­SHIMOZAWA  F,  INOUE  T,  SHINTANI  SA  et  al.  Cardiac  thin  filament  regulation  and  the  Frank­Starling mechanism. J Physiol Sci, 64(4):221­32, 2014. KUHN DC, KATUS HA, FREY N. The sarcomeric Z­disc: a nodal point in signalling and disease. J Mol Med, 84:446­68, 2006.

LABEIT  S,  KOLMERER  B,  LINKE  WA.  The  giant  protein  titin.  Emerging  roles  in  physiology  and  pathophysiology.  Circ Res, 80:290­4, 1997. LEE  JA,  ALLEN  DG. Modulation  of  Calcium  Sensitivity.  A  New  Approach  to  Increasing  the  Strength  of  the  Heart.  Oxford, Oxford University Press, 1993. LIU X, POLLACK GH. Stepwise sliding of single actin and myosin filaments. Biophys J, 86:353­8, 2004. LOSSNITZER K, PFENNIGSDORF G, BRAUER H. Miocárdio, Vasos, Cálcio. Ludwigshafen, Laboratório Knoll AG, 1984. LUCCHESI PA, BERK BC. Regulation of sodium­hydrogen exchange in vascular smooth muscle. Cardiovasc  Res,  29:172­7, 1995. LULLMANN  H,  PETERS  T,  PREUNER  J.  Role  of  the  plasmalemma  for  calcium  homeostasis  and  for  excitation­contraction coupling in cardiac muscle. In: DRAKE­HOLLAND AJ, NOBLE MIM (Eds.). Cardiac Metabolism. London, John Wiley and Sons, 1983. LYMN RW, TAYLOR EW. Mechanism of adenosine triphosphate hydrolisis by actomyosin. Byochemistry, 10:4617­24, 1971. LYMN  RW,  TAYLOR  EW.  Transient  state  phosphate  production  in  the  hy  drolisis  of  nucleoside  triphosphate  by myosin. Biochemistry, 9:2975­83, 1970. MAIER  LS.  CaMKIId  overexpression  in  hypertrophy  &  heart  failure:  cellular  consequences  for  excitation­contraction coupling. Braz J Med Biol Res, 38(9):1293­302, 2005. MARX  SO,  GABURJAKOVA  J,  GABURJAKOVA  M  et  al.  Coupled  gating  between  cardiac  calcium  release  channels (Ryanodine Receptors). Circ Res, 88:1151­8, 2001. MARX SO, REIKEN S, HISAMATSU Y et al.  PKA  phosphorylation  dissociates  FKBP12.6  from  the  calcium  release  channel (Ryanodine Receptor): defective regulation in failing hearts. Cell, 101:365­76, 2000. MILL JG, LEITE CM, VASSALLO DV. Mechanisms underlying the genesis of post rest contractions in cardiac muscle. Brazilian J Med Biol Res, 25:399­408, 1992. MILL  JG,  VASSALLO  DV,  LEITE  CM  et  al.  Influence  of  the  sarcoplasmic  reticulum  on  the  inotropic  responses  of  the  rat myocardium resulting from changes in rate and rhythm. Brazilian J Med Biol Res, 27:1455­65, 1994. MORITA H, SEIDMAN J, SEIDMAN CE. Genetic causes of human heart failure. J Clin Invest, 115(3):518­26, 2005. NORDIN  C.  Abnormal  Ca2+  handling  and  the  generation  of  ventricular  arrhythmias  in  congestive  heart  failure.  Heart Failure, 5:143­54, 1989. O’DONNEL ME, OWEN NE. Regulation of ion pumps and carriers in vascular smooth muscle. Physiol Rev, 74:683­721, 1994. POLLACK GH. The cross­bridge theory. Physiol Rev, 63:1049­113, 1983. POLLACK  GH,  IWAZUMI  T,  TER  KEURS  HEDJ  et  al.  Sarcomere  shortening  in  striated  muscle  occurs  in  stepwise fashion. Nature, 268:757­9, 1977. POZZAN T, RIZZUTO R, VOLPE P et al. Molecular and cellular physiology of intracellular calcium stores. Physiol Rev, 74:595­ 636, 1994. RIDGWAY EB, ASHLEY CC. On the relationship between membrane potential and calcium transient and tension in the single barnacle muscle fiber. J Physiol, 209:105­30, 1970. SANTO­DOMINGO  J,  WIEDERKEHR  A,  De  MARCHI  U.  Modulation  of  the  matrix  redox  signaling  by  mitochondrial Ca(2.). World J Biol Chem, 6(4):310­23, 2015. SCHEUER  J,  BHAN  AK.  Cardiac  contractile  proteins.  Adenosine  triphosphatase  activity  and  physiological  function.  Circ Res, 45:1­12, 1979. SCHIAFFINO  S,  REGGIANI  C.  Molecular  diversity  of  myofibrillar  proteins:  gene  regulation  and  functional significance. Physiol Rev, 76:371­423, 1996. SEQUEIRA V, NIJENKAMP LL, REGAN JA et al. The physiological role of cardiac cytoskeleton and its alterations in heart failure. Biochim Biophys Acta, 1838(2):700­22, 2014. SIMMERMAN HKB, JONE LR. Phospholanban: protein structure, mechanism of action and role in cardiac function.  Physiol Rev, 78:921­47, 1998. SIMMONS RM, JEWELL BR. Mechanics and models of muscular contraction. In: LINDEN RJ (Ed.). Recent Advances Series, 9, Physiology. London, Churchill Livingstone, 1974. SOMMER  JR,  WAUGH  RA.  The  ultrastructure  of  mammalian  cardiac  muscle  cell  with  special  emphasis  on  the  tubular membrane systems. Am J Pathol, 82:192­217, 1976. SONG  J,  ZHANG  XQ,  WANG  J  et  al.  Regulation  of  cardiac  myocyte  contractility  by  phospholemman:  Na/Ca2 exchange versus Na­K­ATPase. Am J Physiol Heart Circ Physiol, 295:H1615­25, 2008. SONNENBLICK EH. Structural and functional correlates of the myocardium. Experientia Suppl, 15:9, 1969.

STEFANON I, VASSALLO DV, MILL JG. Left ventricle length­dependent activation in the isovolumic rat heart. Cardiovascular Research, 24:254­6, 1990. STENGER RJ, SPIRO D. The ultrastructure of mammalian cardiac muscle. J Bioph Biochem Citol, 9:325­51, 1961. SUTKO JL, AIREY JA. Ryanodine receptor Ca21 release channels: does diversity in form equal diversity in function? Physiol Rev, 76:1027­71, 1996. SZENT­GYORGI A. Chemical Physiology of Contraction in Body and Heart Muscle. New York, Academic Press, 1953. SZENT­GYORGI A. Meromysosins, the subunits of myosin. Arch Biochem Biophys, 42:305­20, 1953. TAGGART MJ. Smooth muscle excitation­contraction coupling: a role for caveola and caveolin? News  Physiol  Sci,  16:61­5, 2001. VASSALLO  DV.  Acoplamento  excitação­contração.  Mecanismos  e  sua  importância  em  medicina.  Revista  AMRIGS,  22:6­11, 1978. VASSALLO DV, MILL JG. Length­dependent inotropic changes in cardiac muscle. Brazilian J Med Biol Res, 15:147­51, 1982. VASSALLO  DV,  POLLACK  GH.  The  force­velocity  relation  and  stepwise  shortening  in  cardiac  muscle. Circ  Res,  51:37­42, 1982. VASSALLO DV, TUCCI PJF. Intensidade da ação de intervenções inotrópicas em diferentes graus de estiramento da miofibrila. Aparente inter­relação entre o mecanismo de Frank­Starling e o inotropismo cardíaco. Arq Bras Cardiol, 31:155­8, 1978. VASSALLO DV, LIMA EQ, CAMPAGNARO P et al. Mechanisms underlying the genesis of post­extrasystolic potentiation in rat cardiac muscle. Brazilian J Med Biol Res, 28:377­83, 1995. WANG DY, CHAE SW, GONG QY et al. Role of aiNa in positive force­frequency staircase in guinea­pig papillary muscle. Am J Physiol, 24:C798­807, 1988. WINEGRAD S. Regulation of cardiac contractile proteins. Correlations between physiology and biochemistry. Circ Res, 55:565­ 74, 1984. YOUNG P, FERGUSON C, BAÑUELOS S et al. Molecular structure of the sarcomeric Z­disk: two types of titin interactions lead to an asymetrical sorting of alpha­actinin. EMBO J, 17:1614­24, 1998. ZIMA  AV,  MAZUREK  S  R.  Functional  impact  of  ryanodine  receptor  oxidation  on  intracellular  calcium  regulation  in  the heart. Rev Physiol Biochem Pharmacol, 171:39­62, 2016.



Alça pressão­volume ventricular

■ ■

Ciclo cardíaco Débito cardíaco



Bibliografia

ALÇA PRESSÃO­VOLUME VENTRICULAR No início do século passado, os fisiologistas Frank e Starling demonstraram, em animais experimentais, que o volume de sangue ejetado pelo ventrículo (volume sistólico) depende do volume de sangue presente nessa câmara cardíaca no final da  diástole  (volume  diastólico  final),  ou  seja,  o  volume  sistólico  era  diretamente  relacionado  ao  volume  diastólico  final. Portanto,  segundo  essa  relação,  denominada  relação  de  Frank­Starling,  a  cada  ciclo  cardíaco  o  volume  ejetado  pelo coração na aorta ou na artéria pulmonar durante a sístole é igual ao volume que o coração recebe pelo retorno venoso. A Figura 31.1 mostra a curva pressão­volume do ventrículo esquerdo humano, mas a mesma poderia ser aplicada ao ventrículo direito, guardadas as diferenças de pressão ventricular. As curvas sistólica e diastólica representam as pressões ativa  e  passiva,  respectivamente,  do  ventrículo  em  função  do  volume  diastólico  final.  As  setas,  formando  uma  alça  no sentido anti­horário, representam a relação pressão­volume no ventrículo durante as quatro fases de um ciclo cardíaco. O fim  do  enchimento  ventricular  determina  o  volume  diastólico  final,  o  qual  ocorre  sob  pressão  intraventricular  bastante baixa,  uma  vez  que  o  ventrículo  encontra­se  relaxado.  O  estiramento  a  que  as  paredes  ventriculares  são  submetidas  ao final  da  diástole  é  chamado  de  pré­carga.  Como  dito  anteriormente,  o  estiramento  do  cardiomiócito  (estiramento diastólico)  tem  papel  fundamental  na  regulação  do  desempenho  sistólico  das  câmaras  cardíacas.  No  início  da  sístole,  a pressão  intraventricular  aumenta  acentuadamente,  sem  haver  alteração  do  volume,  pois  a  elevação  da  pressão  dentro  das câmaras determina o fechamento das valvas mitral e tricúspide. Como as valvas aórtica e pulmonar ainda estão fechadas, essa fase do ciclo cardíaco é denominada contração isovolumétrica. À medida que a contração ventricular progride, chega um ponto em que a pressão intraventricular ultrapassa a pressão na aorta e na artéria pulmonar. Nesse momento, as valvas aórtica e pulmonar se abrem, e o sangue é rapidamente ejetado para o sistema arterial. Essa é a fase de ejeção. Ao término da ejeção ventricular, a pressão dentro da câmara cai, havendo então tendência do sangue a refluir para o ventrículo, e isso determina  o  fechamento  das  valvas  aórtica  e  pulmonar.  Nunca  a  ejeção  ventricular  produz  esvaziamento  completo  da câmara, sendo que sempre uma parte do sangue ainda permanece na cavidade ventricular (volume residual), determinando o  volume  sistólico  final  (ou  volume  diastólico  inicial).  Por  fim,  o  ventrículo  relaxa  acentuadamente  sem  variação  de volume,  pois  as  quatro  valvas  cardíacas  estão  fechadas,  determinando  a  fase  de relaxamento  isovolumétrico,  a  qual  se segue da abertura das valvas mitral e tricúspide e, assim, o enchimento ventricular.

Figura 31.1 ■ Alça pressão­volume ventricular. Demonstração gráfica das quatro fases de variações da pressão e do volume intraventricular esquerdo, durante um ciclo cardíaco.

CICLO CARDÍACO A ação bombeadora do coração reflete­se nas mudanças de volume e pressão que ocorrem em cada câmara cardíaca e nas grandes artérias à medida que o coração completa cada ciclo em decorrência da estimulação elétrica cardíaca. A Figura 31.2 mostra  a  relação  temporal  entre  as  pressões  na  aorta  e  nas  cavidades  atrial  e  ventricular  esquerda,  as  variações  do volume ventricular e as relações temporais com os registros do eletrocardiograma e o fonocardiograma. As alterações no lado direito (ou território pulmonar) são similares, exceto quanto à pressão desenvolvida na sístole, cujo valor situa­se em torno de 1/5 da pressão sistólica desenvolvida pelo ventrículo esquerdo. Também cabe ressaltar que a sístole atrial direita ocorre frações de segundo antes da esquerda, e, por outro lado, a contração ventricular esquerda inicia­se antes da direita, embora a ejeção ventricular direita anteceda à do ventrículo esquerdo. As  valvas  cardíacas  desempenham  papel  essencial  no  direcionamento  do  fluxo  sanguíneo  através  das  diferentes câmaras  cardíacas  e  nas  vias  de  saída  dos  ventrículos.  Como  descrito  no Capítulo 27,  Estrutura  e  Função  do  Sistema Cardiovascular,  as  valvas  atrioventriculares  estão  fixas  por  anéis  fibrosos  na  sua  base  e  prendem­se  aos  músculos papilares  por  meio  das  cordoalhas  tendíneas.  A  valva  que  separa  o  átrio  direito  do  ventrículo  direito  é  composta  de  três cúspides ou folhetos, e denomina­se valva tricúspide, enquanto aquela que separa o átrio esquerdo do ventrículo esquerdo é  composta  de  dois  folhetos  e  é  chamada  de  valva  mitral.  As  valvas  atrioventriculares  abrem­se  quando  a  pressão ventricular é menor que a atrial e fecham­se quando as pressões se invertem. Além das valvas atrioventriculares, existem ainda as valvas semilunares, constituídas por três cúspides cada uma, inseridas no trato de saída da artéria pulmonar e da aorta. As valvas semilunares abrem­se quando a pressão ventricular ultrapassa a pressão arterial (pulmonar ou aórtica) e fecham­se quando ocorre o inverso. Dentre  os  parâmetros  analisados  durante  o  ciclo  cardíaco,  destacam­se  também  os  ruídos  cardíacos,  chamados de bulhas. A primeira e a segunda bulha são normalmente audíveis em todos os indivíduos. São ouvidas (auscultadas) e distinguidas por meio do estetoscópio ou mesmo colocando­se diretamente o ouvido sobre a região precordial. A primeira bulha  caracteriza­se  por  ter  maior  duração  e  intensidade  do  que  as  demais  e  é  auscultada  mais  facilmente  na  região  do ápice  cardíaco.  Os  sons  da  primeira  bulha  são  gerados,  principalmente,  pelo  fechamento  das  valvas  atrioventriculares, possuindo,  assim,  um  componente  tricúspide  (mais  facilmente  audível  à  esquerda  do  esterno,  paraesternal,  no  quinto espaço  intercostal)  e  outro  mitral  (audível  sobre  o  ápice  cardíaco).  Além  disso,  o  movimento  do  sangue  dentro  das câmaras cardíacas e a vibração das paredes das câmaras contribuem para gerar a primeira bulha. A segunda bulha é gerada pelo  brusco  fechamento  das  valvas  semilunares  pulmonar  (audível  no  segundo  espaço  intercostal  esquerdo)  e  aórtica (audível no segundo espaço intercostal direito). Assim, a segunda bulha, de modo similar ao da primeira, apresenta dois componentes distintos (aórtico e pulmonar). Na clínica médica também se pode auscultar a terceira e a quarta bulhas, as

quais  nem  sempre  são  audíveis.  A  terceira  bulha  deve­se  à  vibração  produzida  nas  paredes  ventriculares  pela  alta velocidade  do  sangue  durante  a  fase  de  enchimento  rápido  ventricular  e  é  mais  facilmente  audível  em  jovens.  A  quarta bulha coincide com a última fase do enchimento ventricular, a sístole atrial, e é audível mais raramente.

Figura  31.2  ■   Ciclo  cardíaco.  Relação  temporal  entre  as  pressões  atrial,  ventricular  e  aórtica,  o  volume  ventricular,  o eletrocardiograma e o fonocardiograma. Os valores de pressão, fluxo e volume ventricular referem­se ao ventrículo esquerdo. (Adaptada de Guyton e Hall, 2000.)

A cada geração espontânea de um potencial de ação pelo nodo sinusal, inicia­se um ciclo cardíaco que corresponde ao período compreendido entre o início de um batimento cardíaco e o início do batimento seguinte. Didaticamente, podemos dividir o ciclo cardíaco em fases (ver Figura 31.2).

▸ Sístole atrial

O  ciclo  cardíaco  inicia­se  com  a  excitação  atrial,  cuja  duração  é  de,  aproximadamente,  0,11  segundo.  A  excitação  da musculatura  atrial  é  visualizada  no  eletrocardiograma  pela  onda  P,  representativa  da  despolarização  atrial,  e  que  levará  à contração  atrial.  Nesse  ponto,  cabe  ressaltar  que  a  valva  mitral  já  está  aberta  nesse  instante  (o  que  já  ocorreu  durante  a diástole  atrial),  pois  a  mesma  ocorre  quando  os  valores  de  pressão  no  átrio  ultrapassam  os  valores  observados  no ventrículo,  fato  esse  observado  ao  final  da  fase  de  relaxamento  isovolumétrico  e  início  do  enchimento  ventricular  (fases que  serão  descritas  a  seguir).  A  elevação  da  pressão  atrial  durante  a  contração  origina  a  onda a (4  a  6  mmHg).  Dessa forma,  o  enchimento  ventricular  será  finalizado,  porque  nesse  momento  a  valva  aórtica  permanece  fechada  e,  por  isso, nota­se  a  subida  da  curva  do  volume  intraventricular.  Enquanto  o  ventrículo  está  relaxado  e  se  enchendo  de  volume,  a pressão aórtica diminui progressivamente durante a diástole, porque nessa fase o sangue flui dos grandes vasos arteriais em  direção  à  microcirculação.  Em  frequências  cardíacas  baixas,  a  contribuição  da  sístole  atrial  para  o  enchimento ventricular  é  pequena,  uma  vez  que  a  maior  parte  do  enchimento  ocorre,  de  modo  passivo,  na  parte  inicial  e  média  da diástole ventricular. Entretanto, quando a frequência cardíaca aumenta, ocorre um progressivo encurtamento da duração da diástole. Nessa condição, a contração atrial exerce um papel cada vez mais importante para o enchimento ventricular. Uma das arritmias cardíacas mais comuns, notadamente em idosos, é a fibrilação atrial. Nesse caso, a excitação atrial é totalmente desorganizada de modo que os átrios já não mais contribuem com a fase ativa do  enchimento  ventricular  (sístole  atrial).  Nesses  indivíduos  em  repouso,  a  fibrilação  atrial  é  praticamente assintomática  porque,  como  vimos,  a  contração  dos  átrios  praticamente  não  contribui  para  o  enchimento ventricular em frequências cardíacas baixas. Porém, quando há necessidade de frequência cardíaca mais alta, como ocorre durante exercício físico, a participação da contração atrial para o enchimento ventricular torna­se essencial. Em presença de fibrilação atrial, essa não ocorrerá efetivamente, e o primeiro sintoma a aparecer será a falta de ar (dispneia).

▸ Contração isovolumétrica ventricular Quando a despolarização atinge o ventrículo esquerdo, indicado pela presença do complexo QRS no eletrocardiograma, inicia­se  a  contração  ou  sístole  ventricular.  Observa­se,  nesse  curto  intervalo  de  tempo,  um  rápido  aumento  da  pressão intraventricular, forçando o fechamento da valva mitral e produzindo a primeira bulha. A elevação da pressão atrial, nesse momento, produz a onda c no pulso venoso. Essa onda deve­se à elevação do assoalho atrial e a uma pequena protrusão das valvas atrioventriculares em direção à cavidade atrial. Caso uma valva atrioventricular seja insuficiente (não se fecha direito), haverá refluxo de sangue em direção ao átrio, aumentando a amplitude da onda c. No período em que as valvas mitral e aórtica permanecem fechadas, a contração ventricular processa­se sem haver alteração de volume na câmara, razão pela qual essa fase da sístole é denominada contração isovolúmica ou isovolumétrica. O aumento progressivo da tensão na parede ventricular, em decorrência da ativação do componente contrátil dos sarcômeros, produz rápido aumento da pressão na  cavidade.  No  momento  em  que  a  pressão  ventricular  ultrapassa  a  pressão  na  aorta  (aproximadamente  80  mmHg, ver Figura 31.2), a valva semilunar abre­se, começando a ejeção de sangue da cavidade ventricular para a aorta. A fase de contração isovolumétrica ventricular tem duração aproximada de 0,04 segundo.

▸ Ejeção ventricular Essa  fase  inicia­se  com  a  abertura  das  valvas  semilunares  (aórtica  na  circulação  sistêmica  e  pulmonar  na  circulação pulmonar)  e  tem  um  componente  inicial  rápido  (da  ordem  de  0,11  segundo)  seguido  por  uma  fase  de  ejeção  mais  lenta (0,13  segundo).  No  momento  em  que  a  pressão  intraventricular  esquerda  ultrapassa  a  pressão  aórtica,  abre­se  a  valva semilunar aórtica e inicia­se a ejeção ventricular rápida, conforme se constata pelo aumento da pressão intraventricular e pelo  declínio  da  curva  de  volume  intraventricular  (ver  Figura  31.2).  Como  a  entrada  de  sangue  na  aorta  ocorre  mais rapidamente  do  que  a  passagem  deste  para  as  artérias  menores,  a  pressão  aórtica,  que  antes  estava  em  declínio,  agora aumenta até atingir um valor máximo aproximadamente na metade do período de ejeção. Essa pressão máxima é referida como pressão  arterial  sistólica.  Nesse  momento,  o  miocárdio  ventricular  esquerdo  começa  a  se  repolarizar;  observe  a presença  da  onda  T  no  eletrocardiograma.  A  pressão  intraventricular  torna­se  inferior  à  pressão  aórtica,  mas  a  ejeção continua ainda que reduzida em relação à primeira fase. A ejeção nesse caso é decorrente da alta aceleração imprimida ao sangue  pela  contração  ventricular  na  fase  anterior.  Em  resposta  à  repolarização  ventricular,  ocorre  o  relaxamento ventricular,  e,  assim,  a  rápida  queda  da  pressão  na  cavidade  ventricular  esquerda  leva  ao  fechamento  da  valva  aórtica, produzindo a incisura dicrótica na curva de pressão arterial aórtica, marcando assim o fim do período de sístole, ou seja,

da  ejeção  ventricular.  Cabe  ressaltar  que  nem  todo  volume  contido  no  ventrículo  esquerdo  é  ejetado,  ficando  certa quantidade  de  sangue  no  interior  da  cavidade.  Em  uma  sístole  típica  em  indivíduos  saudáveis  em  repouso, aproximadamente 80 mℓ de sangue são ejetados e cerca de 35 mℓ permanecem no ventrículo esquerdo, correspondendo a uma fração de ejeção da ordem de 0,7 ou 70%. Ao término da fase de contração ventricular, nota­se uma onda de pressão atrial, denominada v,  causada  pelo  acúmulo  de  sangue  nos  átrios  (em  diástole)  quando  as  valvas  atrioventriculares  estão fechadas ao longo de todo o período de contração ventricular (ver Figura 31.2).

▸ Relaxamento ventricular isovolumétrico Nesta  fase,  ocorre  a  segunda  bulha  cardíaca,  cujo  som  é  provocado,  em  grande  parte,  pela  vibração  das  valvas semilunares ao passarem do estado aberto para o fechado. No caso de a valva aórtica ou pulmonar ser insuficiente (não se fecha  adequadamente),  certa  quantidade  de  sangue  reflui  para  o  interior  do  ventrículo  durante  essa  fase.  É  interessante ressaltar  que  a  quantidade  de  refluxo  indica  o  grau  de  insuficiência  da  valva.  A  exemplo  do  que  ocorre  na  contração isovolumétrica, as quatro valvas cardíacas estão fechadas, não havendo variação de volume ventricular por uma fração de tempo,  período  este  chamado  de  relaxamento  ventricular  isovolumétrico,  que  marca  o  início  da  diástole.  A  pressão ventricular  diminui  rapidamente  devido  ao  relaxamento  e  à  consequente  queda  de  tensão  ativa  na  parede  ventricular.  A pressão  arterial  aórtica  decai  lentamente  devido  à  elasticidade  da  parede  arterial,  mas  depois  diminui  progressivamente durante  toda  a  diástole  à  medida  que  o  sangue  escoa  da  aorta  para  os  vasos  mais  periféricos.  A  pressão  atrial  continua aumentada, em decorrência do retorno venoso e do fato de as valvas mitral e tricúspide estarem fechadas, até o momento em  que  essa  supera  a  pressão  intraventricular.  Nesse  ponto,  abrem­se  as  valvas  mitral  e  tricúspide  (as  valvas  aórtica  e pulmonar continuam fechadas) e termina a fase de relaxamento ventricular isovolumétrico.

▸ Enchimento ventricular No período em que a pressão atrial é superior à ventricular (devido ao retorno venoso), ocorrem a abertura das valvas mitral e tricúspide e, consequentemente, o enchimento ventricular (ou diástole ventricular), conforme pode ser observado pela  rápida  ascensão  da  curva  de  volume  ventricular  (ver Figura 31.2).  O  enchimento  ventricular  é  inicialmente  rápido, porque o gradiente pressórico é muito favorável à passagem do sangue da cavidade atrial para a ventricular. O enchimento rápido  recebe  grande  influência  da  perda  de  tensão  na  parede  do  ventrículo  no  início  da  diástole.  Essa  perda  de  tensão depende tanto da eficiência do relaxamento muscular como da complacência da câmara. Assim, esse componente passivo de  enchimento  ocorre  em  menor  proporção  nas  câmaras  mais  rígidas  ou  menos  complacentes,  caracterizando  o  quadro de insuficiência diastólica. À medida que o gradiente pressórico através da valva atrioventricular diminui na fase média da diástole  (a  chamada  fase  de  enchimento  ventricular  lento),  a  velocidade  de  enchimento  torna­se  menor.  Dependendo  do turbilhonamento  causado  pela  abertura  das  valvas  atrioventriculares,  pode  ser  audível  nessa  fase,  embora  raramente,  a terceira  bulha  cardíaca.  Simultaneamente,  a  pressão  aórtica  continua  caindo  lentamente  até  atingir  um  valor  mínimo  no final  da  diástole  (pressão  diastólica)  e  início  da  sístole  (fase  de  contração  isovolumétrica)  (ver  Figura  31.2).  O enchimento ventricular termina com a contração atrial (primeira fase descrita nesta sessão). A fase diastólica ventricular, de duração de cerca de 0,41 segundo (compreendida pelo relaxamento ventricular isovolumétrico, o enchimento ventricular rápido e lento e a sístole atrial), termina com o fechamento das valvas mitral e tricúspide. O aparecimento da onda P no eletrocardiograma e a gênese da sístole atrial indicam o início de um novo ciclo cardíaco.

DÉBITO CARDÍACO O débito cardíaco consiste na quantidade de sangue que cada ventrículo lança na circulação (pulmonar ou sistêmica) em uma unidade de tempo. Em geral, o débito cardíaco é expresso em litros de sangue/minuto, ou seja, o fluxo de sangue gerado  pelo  coração.  É  importante  notar  que  o  ventrículo  direito,  a  circulação  pulmonar,  o  ventrículo  esquerdo  e  a circulação sistêmica constituem um sistema conectado em série. Dessa forma, o débito do ventrículo direito, ao longo de um  tempo,  é  praticamente  igual  ao  do  ventrículo  esquerdo.  Ocorrem,  normalmente,  variações  batimento  a  batimento devido ao fato de que o retorno venoso é fortemente influenciado pela respiração. O  volume  de  sangue  ejetado  pelo  ventrículo  a  cada  ejeção  (fase  sistólica)  é  chamado  de  débito  sistólico.  Em  um indivíduo em repouso, o débito sistólico situa­se em torno de 70 a 80 mℓ por batimento. Dessa forma, o débito cardíaco pode  ser  calculado  pelo  produto  do  débito  sistólico  (volume  sistólico)  ×  frequência  cardíaca.  Se  considerarmos,  por exemplo, que um indivíduo em repouso apresenta 70 batimentos por minuto, com débito sistólico médio de 70 mℓ nesse

intervalo, seu débito cardíaco será de 4.900 mℓ/min ou, aproximadamente, 5 ℓ/min. O débito cardíaco é uma variável que deve se ajustar de modo muito eficiente ao consumo de O2 pelo organismo. Como a hemoglobina do sangue arterial tem saturação de O2 próxima a 100%, é fácil compreender que, se o consumo de oxigênio aumentar (no exercício físico, por exemplo),  uma  oferta  adequada  de  O2  aos  tecidos  só  poderá  ser  garantida  se  houver  aumento  do  débito  cardíaco.  Ao contrário, em situações em que o consumo total de O2estiver diminuído, o coração poderá trabalhar em regime de débito menor. Como o consumo de O2 no indivíduo em repouso depende da sua massa total de células, o débito cardíaco é, em muitos estudos comparativos, corrigido para a superfície corporal. Essa correção fornece outra variável chamada de índice cardíaco,  que,  nos  indivíduos  saudáveis  em  repouso,  situa­se  em  torno  de  3,2  ℓ /min/m2  de  superfície  corporal.  A superfície corporal pode ser calculada por fórmulas que levam em consideração o peso e a altura do indivíduo.

▸ Medida do débito cardíaco O débito cardíaco, medido em repouso ou durante descarga do sistema nervoso simpático (como no exercício físico), constitui  um  parâmetro  muito  importante  para  avaliar  o  estado  funcional  do  coração.  Nos  quadros  de  insuficiência cardíaca, por exemplo, é comum encontrar débito cardíaco baixo. Atletas, por outro lado, terão um desempenho aeróbico tanto melhor quanto maior o débito cardíaco que conseguirem atingir. Maior débito cardíaco, nesse caso, representa maior capacidade  de  ofertar  O2aos  tecidos,  principalmente  para  os  músculos  em  atividade.  Consequentemente,  maior  será  a capacidade do indivíduo de suportar cargas mais elevadas de trabalho aeróbico. Dessa forma, a medida do débito cardíaco constitui elemento importante de avaliação do desempenho da bomba cardíaca. Em animais experimentais, o débito cardíaco pode ser medido por meio do uso de transdutores de fluxo colocados em torno da aorta ascendente. Esse método, entretanto, não se aplica à investigação em humanos. A medida do débito cardíaco em humanos pode ser feita aplicando­se o princípio de Fick, ou por diluição de corante e por termodiluição, ou com o uso da ecocardiografia. Esse último é de uso cada vez mais corriqueiro, uma vez que não é invasivo e de mais fácil obtenção em relação aos outros dois métodos.

Método de Fick O  princípio  de  Fick  estabelece  que  a  quantidade  de  uma  substância  utilizada  pelo  corpo  é  proporcional  à  diferença arteriovenosa  dessa  substância  (mede  a  remoção  dessa  substância  da  circulação)  e  ao  fluxo  sanguíneo  (débito  cardíaco). Em  consequência,  qualquer  substância  que  seja  removida  da  circulação  no  nível  dos  capilares  poderá  ser  usada  para  o cálculo do débito cardíaco. Na prática, usa­se a diferença arteriovenosa de O2. Para isso, deve­se coletar uma amostra de sangue venoso e outra de sangue arterial e medir, ao mesmo tempo, o consumo de O2. Assim, é possível estabelecer que: Débito cardíaco = consumo O2/(O2arterial – O2venoso) Vejamos  como  essa  fórmula  pode  ser  aplicada.  O  consumo  de  O2  em  indivíduo  adulto  (com  70  kg)  no  estado  de repouso é de cerca de 250 mℓ/min. A medida de O2 no sangue arterial e venoso, nessas condições, fornece valores típicos da ordem de 190 mℓ/litro e 140 mℓ/litro, respectivamente. Logo, aplicando­se o princípio de Fick, teremos: Débito cardíaco = 250 mℓ/min/(190 – 140) mℓ/ℓ = 5.000 mℓ/min ou 5 ℓ/min

Diluição do corante ou termodiluição Esse método pode ser usado para a medida do débito cardíaco ou para a avaliação do fluxo sanguíneo em determinado território  vascular,  como  no  membro  inferior,  por  exemplo.  Deve­se  inicialmente  fazer  a  cateterização  do  vaso  ou  da cavidade onde será promovida a injeção do corante. Uma quantidade conhecida de um corante ou de um isótopo radioativo é injetada in bolus no vaso ou cavidade. Amostras seriadas de sangue são coletadas em seguida. Se o corante for injetado no átrio direito, por exemplo, o débito cardíaco será igual à quantidade do corante injetado dividida pela concentração do corante  na  amostra  coletada.  Recentemente,  passou­se  a  usar  solução  salina  gelada  como  substituto  do  corante,  o  que originou o método da termodiluição. Utiliza­se para esse fim um cateter de duplo lúmen. Uma amostra de solução salina gelada  é  injetada  através  do  tubo  mais  curto.  Na  ponta  do  tubo  mais  longo,  situa­se  um  termistor  que  irá  medir  a temperatura  do  sangue  adiante  do  ponto  de  injeção.  O  fluxo  sanguíneo  será  inversamente  proporcional  à  diferença  de temperatura entre o local de injeção (que será de 37°C) e o local onde se localiza o termistor. Isto é, se o fluxo for grande, o  frio  da  salina  será  diluído  mais  rapidamente,  e  o  sangue  que  chega  ao  termistor  estará  com  sua  temperatura  mais próxima a 37°C.

Ecocardiograma Atualmente, o ecocardiograma vem substituindo os métodos anteriores na medida do débito cardíaco. As imagens do coração  obtidas  no  ecocardiograma  permitem  as  medidas  dos  volumes  diastólico  final  e  inicial  em  cada  sístole.  Essa diferença  corresponde  exatamente  ao  débito  sistólico.  Este,  multiplicado  pela  frequência  cardíaca,  permite  o  cálculo numérico do débito cardíaco.

▸ Determinantes do débito cardíaco O  débito  cardíaco  representa  o  produto  do  débito  sistólico  (volume  sistólico)  e  da  frequência  cardíaca.  Assim,  os valores assumidos por essas duas variáveis exercerão grande influência sobre o débito cardíaco. À primeira vista, aumentos da frequência cardíaca determinarão aumento do débito cardíaco. Essa relação, entretanto, não  é  tão  simples.  Isso  porque  o  débito  sistólico  não  se  mantém  constante  quando  ocorrem  grandes  variações  da frequência  cardíaca.  Quando  há  taquicardia,  o  intervalo  entre  os  dois  batimentos  diminui,  principalmente  à  custa  de  uma redução  da  duração  da  diástole.  Como  consequência,  em  frequências  cardíacas  muito  elevadas,  o  tempo  de  enchimento ventricular  diminui  e,  consequentemente,  o  volume  diastólico  final  do  ventrículo  assume  também  valores  mais  baixos. Mantendo­se fixa a fração de ejeção, o volume ejetado em cada batimento (débito sistólico) também irá diminuir. Assim, os estudos hemodinâmicos mostram que o débito cardíaco aumenta inicialmente com o aumento da frequência cardíaca, até atingir  um  valor  máximo.  A  partir  desse  ponto,  aumentos  adicionais  da  frequência  cardíaca  são  acompanhados  de  queda progressiva do débito. A inter­relação de frequência cardíaca, débito sistólico e débito cardíaco pode ser melhor observada nos registros da Figura 31.3, obtidos em indivíduo bem treinado fisicamente e submetido a uma carga de trabalho aeróbico progressivo. Observa­se que, no início do exercício, tanto a frequência cardíaca como o débito sistólico aumentam. Logo, o produto das duas variáveis (que é o débito cardíaco) também irá aumentar. A partir de certo valor de frequência, o débito sistólico começa a cair. O débito cardíaco ainda continuará crescendo à custa do aumento da frequência cardíaca, até que essa  variável  atinja  valor  máximo.  Aumentos  adicionais  da  frequência  cardíaca  determinarão  queda  mais  acentuada  do débito sistólico e, consequentemente, do débito cardíaco.

Figura 31.3 ■ Variações  da  frequência  cardíaca  (FC),  débito  sistólico  (DS)  e  débito  cardíaco  (DC)  produzidas  pelo  aumento gradual da carga de espaço em indivíduo sadio e em condições aeróbicas. A linha tracejada representa o momento em que ocorre  o  máximo  consumo  de  O2 (VO2  máx).  Observe  que  cargas  de  trabalho  acima  desse  ponto  determinam  aumento  menos acentuado da FC e queda do DC, secundários à progressiva queda do DS.

O  valor  da  frequência  cardíaca  em  que  o  débito  cardíaco  atinge  índices  máximos  é  uma  característica  importante  do aparelho cardiovascular e varia em função da idade e do grau de performance física do indivíduo. Essa frequência não tem um  valor  fixo  e  é  bastante  variável  de  indivíduo  para  indivíduo.  Entretanto,  pode  ser  calculada  aproximadamente  pela seguinte fórmula: FCmáxima = 220 – idade (anos) × K Nessa fórmula, K pode assumir valores de 1 a 0,8, dependendo do grau de performance física do indivíduo. Em atleta de  20  anos,  por  exemplo,  a  FCmáxima  prevista  estará  próxima  a  200  bpm.  Em  indivíduo  de  mesma  idade  e  totalmente sedentário, será de cerca de 160 bpm. Valores calculados dessa maneira constituem referência para ajustes de intensidade

de  treinamento  físico  e  para  a  avaliação  da  performance  cardiovascular  no  teste  de  esforço  em  bicicleta  ou  esteira ergométrica. O  outro  fator  que  exerce  grande  influência  no  débito  cardíaco  é  o débito sistólico,  ou  seja,  a  quantidade  de  sangue ejetada pela câmara ventricular em cada batimento (volume sistólico). Grosso modo, o débito sistólico é determinado por três variáveis principais: o retorno venoso, a contratilidade miocárdica e a resistência à ejeção. A Figura 31.4 ilustra graficamente como as variações da pré­carga (determinada pelo aumento do retorno venoso), da contratilidade miocárdica e da pós­carga (produzida pela elevação da resistência à ejeção) podem influenciar o formato da alça pressão­volume ventricular. É importante salientar que a área da curva pressão­volume representa o trabalho realizado pelo ventrículo para ejetar o sangue (também chamado de trabalho sistólico). Em uma condição de pós­carga aumentada, como  ocorre  quando  existe  alguma  dificuldade  adicional  na  passagem  de  sangue  do  ventrículo  esquerdo  para  a  aorta  (p. ex.,  por  estenose  da  valva  aórtica),  há  aumento  do  trabalho  total  da  câmara  cardíaca  em  paralelo  a  uma  diminuição  do volume de sangue ejetado. Dessa forma, o gasto energético do músculo cardíaco para realizar a ejeção ventricular é sempre maior  em  condições  de  pós­carga  aumentada.  Assim,  o  aumento  da  pós­carga  eleva  o  consumo  de  O2 pelo  miocárdio  e determina  um  maior  desgaste  da  câmara  ventricular.  A  situação  clínica  mais  comum  de  aumento  da  pós­carga  é  a hipertensão  arterial.  Nessa  condição,  o  ventrículo  esquerdo  precisa  elevar  a  pressão  intracavitária  até  valores  mais  altos para  vencer  a  pressão  do  sangue  arterial  (pressão  arterial  diastólica).  Portanto,  em  um  indivíduo  com  pressão  elevada,  o trabalho cardíaco e o gasto de trifosfato de adenosina (ATP) pelo miocárdio é mais alto. ▸  Retorno venoso (pré­carga).  Uma  das  descobertas  mais  importantes  para  a  compreensão  da  homeostase cardiocirculatória  foi  feita  pelo  fisiologista  inglês  E.  Starling,  em  1910.  Trabalhando  com  uma  preparação  de  coração­ pulmão  isolados,  Starling  observou  que,  quanto  maior  era  a  pressão  de  enchimento  da  câmara  ventricular,  maior  era  o volume de sangue ejetado em cada sístole. Ou seja, quanto maior a pressão de enchimento, maior o estiramento da câmara cardíaca. Essa descoberta serviu como base para o seguinte enunciado, que é conhecido como lei do coração ou relação de Frank­Starling: “A força desenvolvida por uma câmara cardíaca durante a contração é diretamente proporcional ao grau de estiramento  a  que  as  fibras  miocárdicas  estão  submetidas  no  período  imediatamente  anterior  ao  início  da  contração.”  É importante observar que essa constatação foi feita no coração isolado, isto é, desconectado das influências excitatórias ou inibitórias  do  sistema  nervoso  autônomo.  Do  ponto  de  vista  funcional,  a  existência  da  relação  de  Frank­Starling  é fundamental para a homeostase cardiocirculatória, porque faz com que o coração seja capaz de ajustar seu débito, em cada batimento,  em  função  do  retorno  venoso  que  ocorreu  durante  a  diástole  imediatamente  anterior.  Assim,  por  exemplo,  os ajustes  do  débito  sistólico  em  função  da  respiração  são  conseguidos  apenas  pela  ativação  da  relação  de  Frank­Starling. Essa  relação  também  pode  ser  observada  no  músculo  cardíaco  isolado.  Nesse  caso,  a  força  desenvolvida  durante  a contração  é  proporcional  ao  estiramento  das  fibras  no  estado  de  relaxamento  imediatamente  precedente  ao  início  da contração (para maiores detalhes, ver Capítulo 30, Contratilidade Miocárdica). ▸  Retorno venoso (pré­carga).  Uma  das  descobertas  mais  importantes  para  a  compreensão  da  homeostase cardiocirculatória  foi  feita  pelo  fisiologista  inglês  E.  Starling,  em  1910.  Trabalhando  com  uma  preparação  de  coração­ pulmão  isolados,  Starling  observou  que,  quanto  maior  era  a  pressão  de  enchimento  da  câmara  ventricular,  maior  era  o volume de sangue ejetado em cada sístole. Ou seja, quanto maior a pressão de enchimento, maior o estiramento da câmara cardíaca. Essa descoberta serviu como base para o seguinte enunciado, que é conhecido como lei do coração ou relação de Frank­Starling: “A força desenvolvida por uma câmara cardíaca durante a contração é diretamente proporcional ao grau de estiramento  a  que  as  fibras  miocárdicas  estão  submetidas  no  período  imediatamente  anterior  ao  início  da  contração.”  É importante observar que essa constatação foi feita no coração isolado, isto é, desconectado das influências excitatórias ou inibitórias  do  sistema  nervoso  autônomo.  Do  ponto  de  vista  funcional,  a  existência  da  relação  de  Frank­Starling  é fundamental para a homeostase cardiocirculatória, porque faz com que o coração seja capaz de ajustar seu débito, em cada batimento,  em  função  do  retorno  venoso  que  ocorreu  durante  a  diástole  imediatamente  anterior.  Assim,  por  exemplo,  os ajustes  do  débito  sistólico  em  função  da  respiração  são  conseguidos  apenas  pela  ativação  da  relação  de  Frank­Starling. Essa  relação  também  pode  ser  observada  no  músculo  cardíaco  isolado.  Nesse  caso,  a  força  desenvolvida  durante  a contração  é  proporcional  ao  estiramento  das  fibras  no  estado  de  relaxamento  imediatamente  precedente  ao  início  da contração (para maiores detalhes, ver Capítulo 30, Contratilidade Miocárdica).

Figura 31.4 ■ Exemplos de fatores que influenciam a configuração da alça pressão­volume. O ciclo ventricular esquerdo basal é representado pela área ocre, e os efeitos das variações são representados pelas setas,  indicando:  (1)  a  fase  de  enchimento ventricular, (2) a contração isovolumétrica, (3) a ejeção ventricular e (4) o relaxamento isovolumétrico.

Nos experimentos realizados no coração isolado, a relação de Frank­Starling apresenta o aspecto mostrado na Figura 31.5,  isto  é,  uma  alça  ascendente  (ou  de  compensação)  e  uma  alça  descendente  (ou  de  descompensação).  Na  fase ascendente, o aumento do estiramento do músculo em repouso aumenta a força de contração. Consequentemente, quanto maior o volume diastólico final, maior o débito sistólico. A Figura 31.4 (painel da esquerda) ilustra o efeito de aumento da  pré­carga  (pelo  aumento  do  retorno  venoso)  sobre  o  débito  sistólico.  A  partir  de  determinado  ponto,  entretanto, estiramentos adicionais levam a uma diminuição da força contrátil e, consequentemente, do volume de sangue ejetado pela câmara cardíaca. Do ponto de vista funcional, um coração que estivesse trabalhando na região da alça de descompensação estaria em estado de insuficiência, ou seja, quanto mais estivesse estirado, menos sangue ejetaria. Quanto menos sangue fosse  ejetado  na  sístole,  maior  seria  o  volume  residual  sistólico.  Esse  círculo  vicioso,  se  não  interrompido,  levaria  à falência completa da bomba cardíaca e à morte do indivíduo.

Figura  31.5  ■   Relação  de  Frank­Starling  obtida  em  coração  isolado.  Na  região  de  compensação,  o  aumento  do  volume diastólico  final  da  câmara  cardíaca  determina  melhoria  do  desempenho  contrátil  do  miocárdio,  com  aumento  do  volume  de sangue ejetado em cada sístole. A dilatação progressiva, entretanto, leva à descompensação mecânica e à falência da bomba cardíaca.

Entretanto, experimentos realizados no coração in situ, isto é, em animais íntegros, não têm evidenciado a presença da alça descendente da relação de Frank­Starling, quando apenas a força de contração ventricular é analisada. Porém, quando o  trabalho  sistólico  (débito  sistólico  ×  pressão  média  de  ejeção)  é  relacionado  com  o  volume  diastólico  final,  a  alça

descendente da relação de Frank­Starling é evidente. Essas discrepâncias ocorrem porque, no indivíduo em repouso e em situação supina, o músculo ventricular funciona em um grau de estiramento próximo ao platô da curva de Frank­Starling (ver  Figura  31.5).  Maiores  estiramentos  determinados  pelo  aumento  do  volume  diastólico  final  da  câmara  recaem, sobretudo,  sobre  o  componente  elástico  do  miocárdio,  não  levando,  portanto,  a  estiramentos  adicionais  dos  sarcômeros propriamente  ditos.  Em  vista  disso,  as  relações  entre  o  enchimento  ventricular  e  o  débito  cardíaco  têm  sido  mais comumente  expressas  em  função  da  curva  de  função  ventricular,  em  que  o  trabalho  sistólico  ou  o  débito  cardíaco  é analisado  em  função  da  pressão  diastólica  final.  Em  condições  basais,  para  uma  pressão  diastólica  final  próxima  a  5 mmHg, o coração produz um débito cardíaco da ordem de 5 ℓ/min. ▸  Contratilidade  cardíaca  (inotropismo).  A  posição  da  curva  de  função  ventricular  não  é  fixa,  como mostra  a  Figura  31.6.  Na  vigência  de  uma  estimulação  simpática,  por  exemplo,  há  deslocamento  dessa  curva  para  a esquerda  e  para  cima.  Isso  quer  dizer  que,  para  igual  valor  de  estiramento,  o  músculo  cardíaco,  ao  se  contrair,  produz maior força. O deslocamento da curva de função ventricular reflete, portanto, alterações do componente contrátil próprias do  coração,  ou  intrínsecas  ao  próprio  músculo  cardíaco.  Dizemos,  nesse  caso,  que  ocorreu  aumento  ou  melhora  da contratilidade ou do inotropismo cardíaco. As alterações da contratilidade miocárdica são determinadas por muitos fatores (como visto em detalhes no Capítulo 30).  Grande  parte  deles  atua  interferindo  na  oferta  de  Ca2+  à  maquinaria  contrátil  durante  o  acoplamento  excitação­ contração (ver Capítulo 30). As catecolaminas, por exemplo, atuam nos receptores β­adrenérgicos dos miócitos cardíacos, aumentando  o  influxo  de  Ca2+  para  o  citosol,  durante  o  platô  do  potencial  de  ação,  e  a  liberação  de  Ca2+  do  retículo sarcoplasmático.  O  aumento  do  Ca2+  mioplasmático  produz  aumento  da  força  de  contração  em  cada  célula individualmente. Esse efeito, se extensivo à câmara ventricular como um todo, determina o aumento do volume ejetado em cada  sístole.  Consequentemente,  para  um  mesmo  valor  de  estiramento  (retorno  venoso),  o  débito  cardíaco  é  maior.  O inverso ocorre no caso de redução da estimulação simpática. Consequentemente, para um mesmo valor de estiramento, a contração será menor, assim como o volume sistólico.

Figura  31.6  ■   Curva  da  função  ventricular  em  condições  basais  (normal),  em  presença  de  estímulo  inotrópico  positivo  (por estimulação simpática) ou na vigência de falência contrátil (insuficiência cardíaca). Em caso de inotropismo positivo, para um

mesmo  volume  (estiramento)  da  câmara  ventricular,  o  rendimento  da  contração  é  maior,  produzindo  aumento  do  volume  de sangue ejetado na sístole.

A  determinação  do  estado  inotrópico  é  um  parâmetro  importante  na  avaliação  da  eficiência  do  miocárdio  em transformar a energia química resultante da hidrólise do ATP em trabalho mecânico. O deslocamento da curva de função ventricular  para  a  esquerda  e  para  cima  (por  estimulação  simpática,  catecolaminas  exógenas,  glicosídeos  cardiotônicos, dentre outros) representa uma melhoria do inotropismo; ao passo que o deslocamento da curva para a direita e para baixo (por  uso  de  bloqueadores  dos  canais  para  Ca2+,  inibidores  da  acetilcolinesterase  e  consequente  aumento  da biodisponibilidade de acetilcolina, antagonistas dos receptores β­adrenérgicos, dentre outros) traduz uma piora no estado inotrópico do miocárdio e uma diminuição da eficiência da bomba cardíaca. A avaliação do inotropismo pode ser realizada por meio da curva de função ventricular, em que são analisadas comumente: (1) a velocidade máxima de desenvolvimento de  pressão  durante  a  fase  de  contração  isovolumétrica  (dP/dtmáx)  e  (2)  a  velocidade  máxima  (Vmáx)  de  encurtamento  do miocárdio  durante  a  fase  de  ejeção  ventricular.  A  Figura  31.4  (painel  do  meio)  ilustra  o  efeito  do  aumento  da contratilidade miocárdica, aumentando o débito sistólico e reduzindo o volume sistólico final, o que ocorre com o aumento do trabalho ventricular. ▸ Resistência à ejeção (pós­carga). O terceiro determinante do débito sistólico é a resistência à ejeção, em geral referido como pós­carga, isto é, a carga pressórica contra a qual o ventrículo deve ejetar o sangue. Com o aumento da resistência à ejeção (devido ao aumento da resistência vascular periférica ou pulmonar e/ou um estreitamento das valvas aórtica  ou  pulmonar),  ocorre  aumento  da  força  de  contração  ventricular,  com  o  intuito  de  manter  o  débito  cardíaco.  No coração intacto, os efeitos do aumento da pós­carga são difíceis de serem separados do mecanismo de Frank­Starling, uma vez  que  o  aumento  súbito  da  pós­carga  determina  uma  redução  do  volume  sistólico  e,  consequentemente,  aumento  do volume diastólico inicial e/ou final nas sístoles subsequentes. A Figura 31.4 (painel da direita) ilustra o efeito do aumento da  resistência  arterial  sobre  o  débito  sistólico;  o  ventrículo  desenvolverá  maior  pressão  durante  a  fase  de  contração isovolumétrica  para  vencer  a  resistência  e  ejetará  um  volume  sistólico  reduzido,  e  consequentemente  o  volume  sistólico final  (ou  volume  diastólico  inicial)  será  aumentado.  Esse  é  outro  exemplo  no  qual  o  trabalho  ventricular  aumenta, elevando o consumo de O2 e ATP. Em resumo, pode­se dizer que o volume sistólico está na dependência de três fatores básicos: o primeiro é intrínseco ao  músculo  cardíaco,  ou  seja,  o  grau  de  estiramento  das  fibras  na  diástole  (pré­carga);  o  segundo,  a  contratilidade miocárdica,  é  dependente  em  grande  parte  do  grau  de  ativação  simpática,  sendo,  portanto,  extrínseco  ao  coração;  e  o terceiro é puramente mecânico, sendo dependente da resistência hidráulica contra a qual a ejeção deve ser realizada (pós­ carga).  Em  preparações  isoladas,  é  relativamente  fácil  separar  esses  mecanismos.  Em  situações  operacionais,  entretanto, esses  três  fatores  encontram­se  relacionados  de  tal  maneira  que  fica  difícil,  por  vezes,  quantificar  a  participação  de  cada um deles na regulação final do débito sistólico e do débito cardíaco. Isso pode ser observado, por exemplo, nos ajustes do débito cardíaco durante o exercício físico.

▸ Regulação do débito cardíaco durante exercício físico Durante  exercício  físico,  o  aumento  do  consumo  de  O2  é  proporcional  ao  trabalho  realizado.  Portanto,  o  débito cardíaco se ajustará à maior demanda de O2 pelo organismo decorrente do aumento do consumo de O2 na musculatura em atividade.  Ocorre  aumento  de  atividade  simpática  dirigida  para  o  coração.  Consequentemente,  aumentam  a  frequência cardíaca,  a  contratilidade  e  o  relaxamento  miocárdico.  O  aumento  da  frequência  faz  com  que  o  tempo  de  enchimento ventricular  fique  mais  curto,  mas  o  aumento  do  relaxamento  miocárdico  permite  um  enchimento  ventricular  adequado, mesmo com o tempo mais curto entre as estimulações elétricas. Assim, as câmaras ventriculares passam a funcionar em um ponto mais baixo da curva de Frank­Starling. Entretanto, o débito sistólico aumenta, porque o aumento do inotropismo cardíaco  (contratilidade  miocárdica)  faz  com  que  o  esvaziamento  sistólico,  traduzido  pela  fração  de  ejeção,  seja aumentado. Em intensidades baixas de exercício (quando a frequência cardíaca ainda é menor que 120 bpm), o aumento do débito cardíaco é dependente tanto de um ligeiro aumento do débito sistólico como da elevação da frequência cardíaca. Em intensidades moderadas de exercício, o débito sistólico permanece aproximadamente constante à medida que a intensidade do exercício aumenta. Consequentemente, nessa condição, os aumentos do débito cardíaco são basicamente dependentes de aumento da frequência cardíaca. Em intensidades maiores de exercício, próximas ao ponto do consumo máximo de O2, a frequência  cardíaca  tende  a  se  estabilizar.  Logo,  aumentos  adicionais  da  carga  de  trabalho  determinam  queda  do  débito cardíaco,  ocorrendo  o  esgotamento  físico,  o  qual  é  determinado  pela  incapacidade  do  aparelho  cardiocirculatório  em continuar aumentando a oferta de O2 aos tecidos.

▸ Contribuintes e determinantes da disfunção cardíaca Múltiplos  fatores  podem  levar  à  insuficiência  cardíaca,  a  incapacidade  do  coração  em  manter  fluxo  adequado  aos diversos  órgãos  e  tecidos,  o  que  se  deve  a  um  comprometimento  da  função  bombeadora  do  sangue  pelo  coração.  A insuficiência cardíaca é uma síndrome que pode ocorrer em múltiplas doenças, e sua fisiopatologia pode variar em função da  doença  básica  que  levou  ao  comprometimento  da  bomba  cardíaca.  Essa  pode  decorrer  da  presença  de  doença  arterial coronariana (o músculo cardíaco não recebe oxigenação adequada), cardiomiopatias (lesões próprias do músculo cardíaco), lesões  das  valvas  cardíacas,  hipertensão  arterial,  diabetes,  doenças  pulmonares  e  renais,  entre  outras.  A  insuficiência cardíaca  pode  ser  predominantemente  sistólica  (a  capacidade  ejetora  do  coração  está  comprometida),  diastólica  (o enchimento  ventricular  está  prejudicado)  ou  mista.  Em  fases  mais  avançadas  da  síndrome,  as  alterações  estruturais  e funcionais  do  coração  resultam  em  diminuição  da  fração  de  ejeção  ventricular  e  do  débito  cardíaco,  com  consequente aumento  das  pressões  diastólica  inicial  e/ou  final  ventricular.  O  coração  sofrerá  uma  série  de  ajustes  (ativação  dos sistemas  neuro­humorais,  como  o  sistema  nervoso  simpático  e  sistema  renina­angiotensina­aldosterona)  que  levarão  ao remodelamento cardíaco na tentativa de manter o débito cardíaco. Caso esses ajustes não sejam efetivos e culminem com a queda do fluxo sanguíneo sistêmico, sinais e sintomas aparecerão, como edema pulmonar, falta de ar (dispneia), cianose, turgência  jugular,  hepatomegalia,  ascite,  edema  de  membros,  redução  da  capacidade  de  realizar  esforço  físico,  entre outros.  A  Figura  31.7  ilustra,  simplificadamente,  os  vários  mecanismos  que  progressivamente,  e  de  modo  isolado  ou associado,  contribuem  para  o  desenvolvimento  das  alterações  estruturais  e  funcionais  do  coração  que  caracterizam  a insuficiência cardíaca.

Figura  31.7  ■   Principais  mecanismos  que  podem  favorecer  ou  determinar  o  desenvolvimento  de  alterações  estruturais  e funcionais no coração associadas ao desenvolvimento de insuficiência cardíaca.

BIBLIOGRAFIA ALPER NR, HAMRELL BB, MULIERI LA. Heart muscle mechanics. Annu Rev Physiol, 41:521­9, 1979. ARMOUR JA, RANDALL WC. Structural basis of cardiac function. Am J Physiol, 218:1517­25, 1970. BERNE RM, LEVY MN. Cardiovascular Physiology. Mosby, St. Louis, 1981. BRUTSAERT DL, SYS SU. Relaxation and diastole of the heart. Physiol Rev, 69:1228­315, 1989. GUYTON AC, HALL JE. Textbook of Medical Physiology. 10. ed. Saunders, Philadelphia, 2000. LAKATTA  EG.  Starling  Law  of  the  heart  is  explained  by  an  intimate  interaction  of  muscle  length  and  myofilament  calcium activation. J Am Coll Cardiol, 10:1157­64, 1987. OPIE  LH.  Mechanisms  of  cardiac  contraction  and  relaxation.  In:  BRAUNWALD  E  (Ed.).  Heart  Disease:  A  Textbook  of Cardiovascular Medicine. 5. ed. Saunders, Philadelphia, 1997. ROSS Jr J, SOBEL BE. Regulation of cardiac contraction. Annu Rev Physiol, 34:47­87, 1972. ROWELL LB. Human Cardiovascular Control. Oxford University Press, New York, 1993. SAGAWA K. The ventricular pressure­volume diagram revisited. Circ Res, 43:677­84, 1978. SUGA H. Ventricular energetics. Physiol Rev, 70:247­326, 1990.



Introdução

■ ■

Pressão no sistema circulatório | Pressão arterial Pressão como unidade relativa de força

■ ■ ■

A acomodação do volume ejetado na aorta ascendente do ponto de vista energético Pulso arterial Aspectos da rigidez arterial | Reflexão da onda de retorno, sua velocidade e intensidade

■ ■

Fluxo sanguíneo | Fluxo de um fluido real Determinantes da resistência vascular

■ ■

Tensão na parede dos vasos Bibliografia

INTRODUÇÃO O  sistema  circulatório  conecta  os  diversos  sistemas  do  organismo  por  meio  do  contínuo  fluxo  de  sangue  distribuído para todos os órgãos do corpo. Estabelecendo uma analogia com um sistema elétrico, o sistema circulatório em mamíferos interliga  os  diferentes  órgãos  em  paralelo  entre  si.  Essa  disposição,  em  paralelo,  das  resistências  dos  órgãos  ao  fluxo sanguíneo,  permite  que  cada  uma  delas  esteja  conectada,  em  série,  com  o  órgão  responsável  pela  homeostase  gasosa  do sangue,  o  pulmão.  Por  sua  vez,  a  conexão  em  série  com  o  pulmão  se  dá  por  meio  da  bomba  geradora  de  fluxo  (débito cardíaco)  no  sistema  cardiovascular,  o  coração  (ver  Figura  27.3  no  Capítulo  27,  Estrutura  e  Função  do  Sistema Cardiovascular). Seguindo a mesma analogia elétrica, pode­se considerar o coração como o gerador de uma diferença de potencial, ou seja, por gerar fluxo em um sistema de tubos, o qual se opõe à passagem desse fluido, mantém uma diferença de pressão entre  os  segmentos  iniciais  e  finais  do  sistema  circulatório  (para  o  sistema  elétrico:  ΔV  =  I  ꞏ  RE;  para  o  sistema hidráulico:  ΔP  =  F  ꞏ  RH,  em  que  ΔV  é  a  diferença  de  voltagem;  I,  corrente;  RE,  resistência  elétrica;  ΔP,  diferença  de pressão, F, fluxo; RH, resistência hidráulica). Assim, os ventrículos direito e esquerdo, ao ejetarem o volume sistólico no sistema  de  tubos,  pulmonar  e  sistêmico,  respectivamente,  atuam  no  sentido  de  manter  o  sistema  arterial  pressurizado. Como a pressão se dissipa espontaneamente, conforme o sangue percorre o sistema circulatório, há sempre uma diferença de  pressão  entre  um  segmento  anterior  e  um  posterior  desse  sistema.  Essa  diferença  de  pressão  é  a  força  movente  que impulsiona o sangue no sentido anterógrado, ou seja, saindo dos ventrículos e retornando para os átrios.

PRESSÃO NO SISTEMA CIRCULATÓRIO | PRESSÃO ARTERIAL

Classicamente,  a  pressão  sanguínea  apresenta  um  caráter  dissipativo  conforme  percorre  o  sistema  circulatório. A Figura 32.1 ilustra com clareza a redução da pressão sanguínea conforme o sangue avança pelos vasos sanguíneos; bem como  mostra  a  atenuação  progressiva  do  perfil  oscilatório  da  pressão  sistólica  e  diastólica  ao  longo  da  árvore  arterial. Essa atenuação faz com que o fluxo de sangue na microcirculação seja, praticamente, contínuo. Assim,  sob  uma  análise  detalhada  da  variação  da  pressão  arterial  ao  longo  dos  tubos  que  compõem  o  sistema circulatório pode­se observar que há um padrão oscilatório da pressão no lado arterial da circulação; o qual é, basicamente, composto  por  reestabelecimentos  constantes  da  pressão  arterial,  devido  à  ejeção  ventricular  e  pela  característica  elástica das  grandes  artérias,  que  receberão  e  acomodarão  o  volume  sistólico  ejetado.  Isso  se  dá  pela  latência  entre  o  coração receber  (fases  de  enchimento  ventricular)  e  devolver  (ejeção)  o  sangue  para  a  circulação  arterial  durante  o  ciclo  cardíaco (ver Capítulo 31, O Coração como Bomba). Em  uma  análise  simplificada,  o  trabalho  cardíaco  mantém  um  nível  constante  da  pressão  arterial  à  custa  de  ejeções intermitentes  de  sangue  no  sistema  circulatório.  Assim,  a  fase  de  ejeção  ventricular  gera  picos  de  pressão  no  sistema circulatório (sístole) seguidos por períodos latentes, nos quais ocorrem a dissipação da pressão (diástole). Dessa forma, a pressão  gerada  pelo  trabalho  cardíaco  no  sistema  arterial  pode  ser  vista  de  duas  formas:  (1)  uma  onda  de  pressão  que percorre  o  sistema  arterial  (onda  de  pulso);  (2)  uma  unidade  relativa  de  força  que  está  contida  no  sistema  circulatório responsável  por  deslocar  o  sangue  no  sentido  anterógrado  (saindo  dos  ventrículos,  por  meio  de  vasos,  e  retornando  aos átrios).

Figura 32.1 ■ Perfil de pressão na circulação sistêmica. Linha vermelha, pressão sistólica; linha azul, pressão diastólica; caixas, valor médio da pressão arterial. (Adaptada de Boron e Boulpaep, 2012.)

Tomando como base a circulação sistêmica, essa unidade relativa de força contida no sistema circulatório se inicia na raiz da aorta com valor médio, aproximado, de 90 mmHg, e é denominada de pressão arterial média (PAM). Conforme a massa  de  sangue  avança  anterogradamente,  a  pressão  contida  no  sistema  circulatório  é  dissipada.  Assim,  na  veia  cava observam­se valores em torno de 3 mmHg. Entretanto, apesar dessa enorme variação de pressão nos diferentes trechos do sistema circulatório, o volume que adentra o sistema arterial na raiz da aorta é, exatamente, o mesmo que deixa o sistema

venoso  e  chega  ao  átrio  direito.  Ou  seja,  a  variação  da  pressão  no  sistema  circulatório  se  dá  de  maneira  proporcional  à dificuldade  de  passagem  do  sangue,  o  que  se  denomina  de  resistência  dos  vasos,  ou  resistência  vascular  (descrito  mais adiante neste capítulo).

PRESSÃO COMO UNIDADE RELATIVA DE FORÇA Em  um  indivíduo  adulto  o  volume  de  sangue  contido  no  sistema  circulatório  é  de,  aproximadamente,  5  ℓ .  Caso  o coração  parasse  e  não  ocorresse  alteração  no  calibre  dos  vasos  sanguíneos,  a  pressão  interna  em  todo  o  sistema circulatório  seria  a  mesma,  e  com  um  valor  de  aproximadamente  7  mmHg,  o  qual  representa,  segundo  Guyton  et  al. (1954), a pressão média de enchimento circulatório. Assim, a pressão arterial não é gerada, simplesmente, pela restrição da massa de sangue no interior dos vasos sanguíneos, mas sim pela contração cíclica do coração, a qual injeta no sistema arterial,  aproximadamente,  80  m ℓ   de  sangue,  a  cada  batimento.  O  tônus  dos  vasos  arteriais,  por  sua  vez,  se  opõe  ao deslocamento do sangue da aorta para os vasos periféricos, o que contribui para a manutenção de valores mais elevados da pressão  nas  artérias  ao  longo  de  todo  o  ciclo  cardíaco.  Após  a  pressão  arterial  atingir  o  seu  valor  máximo  no  pico  da sístole, ela vai decaindo progressivamente à medida que o sangue flui dos vasos arteriais para a microcirculação, atingindo seu valor mínimo ao final da diástole. Assim, a pressão arterial sistólica corresponde à pressão máxima do sangue no pico da sístole, e a pressão arterial diastólica corresponde à pressão mínima ao final da diástole (ou início de uma nova sístole). A  ejeção  de  sangue  pelo  ventrículo  esquerdo  para  a  aorta  pressuriza  o  sistema  circulatório.  Como  o  sistema circulatório é fechado, todo sangue que sai do coração retorna ao mesmo; assim, pode­se olhar para o sistema circulatório como  um  tubo  com  duas  extremidades,  as  quais  conectam­se  com  as  câmaras  cardíacas.  Tomando­se  como  exemplo  a circulação  sistêmica,  uma  das  extremidades  encontra­se  no  lado  arterial,  a  aorta  ascendente  conectada  ao  ventrículo esquerdo,  e  a  outra  extremidade  encontra­se  no  lado  venoso,  cujos  segmentos  finais,  as  veias  cavas,  são  conectadas  ao átrio direito. Assim, como a ejeção de sangue para a circulação sistêmica ocorre na aorta, esse é o primeiro local onde a pressão se eleva após a saída do sangue do ventrículo esquerdo.

Quadro 32.1 ■ Pressão e sua equivalência em mmHg. A pressão é a relação entre a força aplicada a uma unidade de área, ou seja,

Como F = massa (m) × aceleração (a), Tem­se que:

No  sistema  internacional  a  unidade  de  pressão  é  pascal  (Pa),  em  que  1  pascal  corresponde  à  força capaz de acelerar uma massa de 1 kg, em 1 metro por 1 segundo ao quadrado (kg ꞏ m/s2), sendo esta força aplicada a uma superfície de 1 m2. Entretanto, apesar de que do ponto de vista físico o conceito de pressão seja bastante claro, quando se trata de fluxo e medida de pressão pode­se ter diferentes formas de abordagem. Em  hemodinâmica  expressa­se  a  pressão  em  unidade  de  milímetros  de  mercúrio  (mmHg).  Como  já mencionado,  em  indivíduos  adultos  saudáveis,  a  pressão  arterial  média  (PAM)  é  da  ordem  de  90  mmHg. Essa  conversão  se  baseia  nos  instrumentos  de  aferir  pressão,  os  manômetros,  os  quais  contrapõem  a pressão  que  será  aferida  em  um  determinado  sistema  contra  uma  coluna  graduada  de  mercúrio,  ou  seja, contra a força (peso) exercida pelo volume de mercúrio. O mercúrio tem densidade (r) de 13,6 g/mℓ. Considerando­se a equação 32.2, a massa necessária para cobrir uma área de 1 m2,  com  1  mm  de  altura,  seria  igual  a  13,6  kg,  os  quais  acelerados  a  9,8  m/s2  pela gravidade (g) corresponderiam a uma pressão de 133 Pa. Assim, 1 mmHg corresponde a 133 Pa.

Em  termos  práticos,  utiliza­se  o  peso  exercido  por  uma  coluna  de  mercúrio  para  aferir  uma  força  que contrabalança esse peso. Para ilustrar, considere um indivíduo com 1,80 m de altura, no qual o coração se encontra  a  1,30  m  de  altura  do  solo  (Figura  32.2).  Quando  analisada  somente  a  pressão  exercida  pela coluna de sangue (ρ = 1,05 g/mℓ), sem a participação do coração ou do tônus vascular, ou seja, a pressão gravitacional (PGrav), chega­se à conclusão a seguir. Ao  analisar  a  PGrav  no  pico  (ponto  A),  no  meio  (ponto  B),  e  na  base  (ponto  C)  da  coluna  de  sangue representada  na  Figura  32.2,  as  profundidades  se  constituem  em:  h  =  0;  h  =  65  cm;  e  h  =  130  cm, respectivamente. Simplificando a equação 32.2, em ρ ꞏ h ꞏ g, tem­se: Ponto A: 1.050 × 0 × 9,8 = 0 Pa, ou seja, 0 mmHg Ponto B: 1.050 × 0,65 × 9,8 = 6.689 Pa, ou seja, 50 mmHg Ponto C: 1.050 × 1,3 × 9,8 = 13.347 Pa, ou seja, 100 mmHg Os cálculos mostram que a profundidade da coluna, por determinar a massa de sangue que se encontra sobre a mesma área, determina de modo diretamente proporcional a PGrav; ou seja, quanto maior a coluna de  sangue,  maior  a  força  (peso)  exercida  por  ela;  e,  consequentemente,  maior  a  PGrav.  Assim,  a PGrav exercida nos pés do indivíduo de 1,80 m de altura, pela coluna de sangue que vai do coração até seus pés (1,30 m), corresponde à mesma pressão exercida por 100 mmHg.

Figura 32.2 ■ Diagrama representando, em vermelho, a coluna de sangue de um indivíduo cujo coração se encontra a 130 cm acima do solo. Em cinza está representada a coluna de mercúrio correspondente ao peso da coluna de sangue.

Como já discutido no capítulo anterior, a Figura 32.3 mostra a relação de pressão entre o ventrículo esquerdo e a aorta. A  pressão  da  câmara  ventricular  se  eleva  durante  a  contração  isovolumétrica,  e  no  momento  em  que  a  pressão  do ventrículo  esquerdo  ultrapassa  a  pressão  arterial  diastólica  na  aorta,  a  valva  aórtica  se  abre  e  o  sangue  do  ventrículo começa  a  ser  ejetado  para  a  circulação  sistêmica.  Percebe­se  que  o  determinante  para  que  ocorra  fluxo  de  sangue  entre essas duas regiões é a diferença de pressão (ΔP).

Dessa  forma,  considerando­se  a  equação  32.3,  quando  o  ΔP  é  positivo  observa­se  um  fluxo  de  sangue  no  sentido anterógrado,  ou  seja,  do  ventrículo  esquerdo  para  a  aorta.  Entretanto,  quando  o  ΔP  for  negativo  ocorrerá  um  fluxo retrógrado  da  aorta  para  o  ventrículo  esquerdo,  ou  seja,  no  sentido  contrário  ao  da  circulação  sanguínea.  Porém,  em indivíduos  saudáveis  esse  fenômeno  não  ocorre,  pois  ele  é  impedido  pelo  fechamento  da  valva  aórtica,  o  qual  ocorre  no início  do  relaxamento  da  câmara  ventricular,  impedindo  que  o  sangue  ejetado  para  a  circulação  sistêmica  retorne  ao ventrículo esquerdo. O mesmo ocorre no coração direito; só que nesse caso é a valva pulmonar que impede o refluxo do

sangue  para  o  ventrículo  direito.  Esse  momento  de  ΔP  negativo  é  marcado,  na  aorta,  pelo  que  se  denomina  de  incisura dicrótica  (ver  explicação  mais  adiante,  na Figura 32.7).  Assim,  em  decorrência  do  funcionamento  fisiológico  das  valvas presentes no sistema circulatório (como discutido no capítulo anterior), só há movimentação da massa de sangue quando o valor de ΔP se torna positivo. Observando­se cuidadosamente a Figura 32.3, pode­se notar que, no momento em que o ΔP se torna positivo, e por consequência o sangue é ejetado do ventrículo, a pressão na aorta que era em torno de 80 mmHg no fim da diástole se eleva, acompanhando o perfil de subida da pressão intraventricular. Essa  relação  mútua  das  pressões  ventricular  e  aórtica  durante  a  sístole  se  dá  no  exato  momento  em  que  há  a transferência  da  massa  de  sangue  entre  esses  compartimentos.  Na  diástole  ventricular,  o  sangue  acumulado  na  aorta durante a sístole flui para a circulação periférica, ou seja, no sentido anterógrado. Apesar de a sístole durar cerca de 250 ms, o tempo necessário para que o ventrículo esquerdo ejete a maior parte do sangue para a aorta é de aproximadamente 180 ms, como pode ser visto na variação do volume ventricular (ver Figura 32.3). Considerando  os  cálculos  realizados  no Quadro 32.2,  para  que  o  sangue  ejetado  pelo  ventrículo  esquerdo  ocupe  seu lugar na aorta, ele precisaria deslocar, anterogradamente, toda a massa de sangue que se encontra na circulação sistêmica, por uma distância de 25,4 cm. Nesse ponto, deve­se considerar a incompressibilidade do fluido, e o fato de que as duas massas  de  sangue  não  podem  ocupar  o  mesmo  espaço  ao  mesmo  tempo.  Assim,  tendo  em  vista  que  aproximadamente 80%  do  sangue  corporal  se  encontra  na  circulação  sistêmica,  o  coração  deveria  gerar,  durante  a  sístole,  uma  força suficiente  para  deslocar  4 ℓ de  sangue,  o  que  corresponde  a  uma  massa  de  4,2  kg.  Considerando­se  a  equação  32.4,  a pressão necessária para realizar esse trabalho seria de 788 mmHg (ver Quadro 32.2). Porém, sabe­se que em indivíduos saudáveis, em repouso, o processo de ejeção ventricular resulta na geração de uma pressão em torno de 120 mmHg. Para que  esse  processo  ocorra  com  a  geração  de  pressões  reativamente  baixas,  uma  grande  parte  do  sangue  ejetado  pelo ventrículo esquerdo é acomodada no sistema circulatório devido à distensão da aorta. Assim, durante a ejeção, aproximadamente 50% do volume ventricular se acomodam na aorta, de modo concomitante com  o  escoamento  anterógrado  de  um  mesmo  volume  de  sanguíneo.  Os  50%  de  volume  excedente  acabam  por  se acomodar no sistema arterial, à custa da distensão da parede da aorta. Essa resposta ocorre em consequência da elevação da  pressão  arterial,  a  qual  atuando  sobre  a  parede  da  aorta,  promove  sua  distensão,  e  permite  que  todo  o  volume ventricular seja, então, acomodado nesse vaso.

Figura 32.3 ■ Perfil pressórico das cavidades esquerdas do coração e da aorta durante um ciclo cardíaco. Variação do volume do ventrículo esquerdo durante o ciclo cardíaco. Faixa amarela, sístole atrial; faixa laranja, contração isovolumétrica; faixa azul, ejeção; faixa verde, relaxamento isovolumétrico; faixa lilás, enchimento ventricular.

Quadro 32.2 ■ Pressão necessária para ejetar 80 mℓ de sangue do ventrículo esquerdo para aorta ascendente. Considerando que em humanos saudáveis a aorta ascendente possui um diâmetro médio aproximado de 2 cm  (raio  =  1  cm),  sua  área  de  secção  transversal  seria  de  3,14  cm2.  Assim,  sob  uma  análise  simplista,  e considerando  a  aorta  como  um  tubo  rígido,  para  acomodar  o  volume  ejetado  pelo  ventrículo  esquerdo seriam  necessários  25,4  cm  lineares  da  aorta,  os  quais  seriam  preenchidos  em  180  ms  (Figura  32.4). Entretanto, antes do início da fase de ejeção essa área da aorta já se encontra preenchida com sangue, e sob uma pressão aproximada de 80 mmHg, ou seja, a pressão arterial diastólica. Baseado na equação 32.2 (P = m × a/A), temos que:

Assim, desconsiderando a resistência viscosa, a pressão necessária para ejetar 80 mℓ de  sangue  pelo ventrículo esquerdo, deslocando o sangue linearmente por 25,4 cm pela aorta, seria de:

Entretanto,  mesmo  durante  a  fase  de  ejeção  o  fluxo  de  sangue  não  se  interrompe,  ou  seja,  o  sangue contido nos vasos continua escoando. Levando­se em consideração que, em média, a velocidade do sangue no sistema circulatório é de 0,55 m/s, durante o período de ejeção (0,18 s) o sangue na aorta ascendente escoará, anterogradamente, cerca de 10 cm (ou seja, 31,4 mℓ de sangue), movido pela energia imposta pela sístole  anterior.  Assim,  para  acomodar  os  80  m ℓ   que  serão  ejetados  na  aorta  pela  próxima  sístole  é necessário  gerar  uma  pressão  suficiente  para  deslocar  a  massa  de  sangue  na  aorta  ascendente  por adicionais 15,4 cm. Porém, mesmo essa menor distância de deslocamento do sangue exigiria ainda que o ventrículo esquerdo desenvolvesse uma pressão elevada. Dessa forma, considerando­se a equação 32.4, a pressão necessária para deslocar a massa sanguínea por 15,4 cm, em 180 ms, seria 63.576 Pa, ou seja, 478 mmHg. Entretanto, sabe­se que, em indivíduos saudáveis, o pico de pressão sistólica no repouso é da ordem de 120 mmHg, a qual, durante os 620 ms restantes do ciclo cardíaco (70 ms do fim da sístole mais 550 ms da diástole), é dissipada até atingir 80 mmHg. Portanto, durante a ejeção do sangue na aorta, o sistema arterial é repressurizado em 40 mmHg. Pressão essa que será dissipada pelo sistema arterial para gerar trabalho mecânico e impulsionar o sangue anterogradamente. Assim, considerando­se a equação 32.4, durante os 180 ms de ejeção, a adição de 40 mmHg no sistema arterial contribuirá, adicionalmente, para o deslocamento da massa de sangue em 1,3 cm; ou seja, 4 mℓ de sangue. Dessa  forma,  durante  a  ejeção  do  volume  sistólico  (180  ms),  a  contínua  movimentação  da  massa  de sangue no sistema circulatório, impulsionada pelas sístoles anteriores, associada à elevação da pressão em 40 mmHg, favorece o deslocamento linear da massa sanguínea; permitindo, assim, que aproximadamente 35 mℓ, provenientes da ejeção ventricular, ocupem seu lugar na aorta, à custa do escoamento de um volume idêntico,  o  qual  se  encontrava,  anteriormente,  no  sistema  circulatório.  Entretanto,  sabe­se  que  a  ejeção ventricular ocorre nos primeiros 180 ms da sístole, e nesse período o ventrículo ejeta 80 mℓ. Para  que  ocorra  a  ejeção  completa,  uma  parte  do  volume  sistólico  (aproximadamente  45  m ℓ )  irá distender  a  parede  da  aorta  durante  o  estabelecimento  da  pressão  máxima  transferida  do  ventrículo esquerdo  para  o  sistema  arterial  (120  mmHg).  Assim,  parte  do  volume  ejetado,  durante  a  sístole,  será acomodado na aorta devido à sua distensão, conferindo a esse vaso uma energia potencial elástica (EPE). A elasticidade  da  aorta  é  de  vital  importância  para  a  manutenção  do  fluxo  sanguíneo  dos  grandes  vasos arteriais  para  a  circulação  periférica  durante  a  diástole.  O  conceito  de  energia  potencial  elástica  será explicado com mais detalhe adiante.

Figura 32.4 ■ Diagrama representativo da aorta ascendente e suas dimensões para acomodar um volume de 80 mℓ.

A ACOMODAÇÃO DO VOLUME EJETADO NA AORTA ASCENDENTE DO PONTO DE VISTA ENERGÉTICO Conforme descrito anteriormente, e levando­se em consideração os conceitos e cálculos apresentados no Quadro 32.2, até  o  momento,  entende­se  que  a  força  que  move  o  sangue  pela  circulação  sistêmica  deriva  da  contração  do  ventrículo esquerdo, o qual gera, em seu interior, uma força capaz de acelerar a massa de sangue em direção à aorta. Dessa forma, a contração isovolumétrica do ventrículo esquerdo comprime o sangue que é pressurizado em sua cavidade. Como descrito anteriormente, conforme a pressão sistólica ventricular ultrapassa a pressão arterial diastólica, a valva aórtica se abre e a massa de sangue que estava pressurizada é, então, acelerada em direção anterógrada (ver Figura 32.3). Nesse momento, o sangue passa de uma velocidade de 0 para cerca de 1 m/s.

Conforme  a  massa  de  sangue  deixa  o  ventrículo,  e  adentra  o  segmento  ascendente  da  aorta,  ele  é,  imediatamente, desacelerado, pois a velocidade média do sangue no sistema circulatório é de 0,5 m/s. Essa perda da velocidade se dá pelo bloqueio do fluxo sanguíneo (fluxo = volume/tempo) devido à massa de sangue que já se encontra no sistema arterial, a qual precisa ser deslocada para que o volume ejetado, então, se acomode, bem como pela própria viscosidade do sangue ejetado.  Como  a  velocidade  de  escoamento  é  menor  do  que  a  velocidade  de  entrada  (fluxo  de  saída   BNP). O receptor NPR­C atua primariamente como um receptor  de  clearance  ou  depuração,  regulando  os  níveis  dos  peptídios  natriuréticos  na  circulação.  Esse  é  o  principal mecanismo  de  eliminação  dos  peptídios  natriuréticos,  uma  vez  que  o  NPR­C  é  altamente  expresso  na  parede  vascular. Após  ligação  ao  NPR­C,  que  não  é  acompanhada  por  aumento  dos  níveis  de  cGMP,  os  peptídios  são  internalizados  e, então, sofrem degradação lisossomal.

Figura  55.13  ■   Metabolismo  dos  peptídios  natriuréticos  e  ciclagem  do  receptor  NPR­C.  O  NPR­C,  localizado  na  superfície celular, liga­se fortemente ao ANP, BNP ou CNP, sendo posteriormente internalizado com o ligante. O complexo ligante­receptor entra  na  célula,  é  processado  e  depois  se  associa  aos  lisossomos;  nestes  é  hidrolisado  e,  finalmente,  liberado  da  célula  na forma  de  aminoácidos  livres.  Então,  o  receptor  NPR­C  é  reciclado  de  volta  para  a  superfície  celular.  (Adaptada  de  Samson, 1997.)

Figura 55.14 ■ Peptídios natriuréticos humanos do tipo A (ANP), B (BNP) e C (CNP) e seus respectivos receptores (NPR­A, NPR­ B e NPR­C). (Adaptada de Gardner et al., 2007.)

Embora  o  principal  papel  do  receptor  NPR­C  seja  sua  atuação  como  um  receptor  de  clearance,  trabalhos  recentes apontam que pode mediar alguns efeitos biológicos dos peptídios natriuréticos, por meio da ativação de outros segundos mensageiros que não o cGMP, como monofosfato de adenosina cíclico (cAMP), trifosfato de inositol (IP3) e diacilglicerol (DAG).

ASPECTOS FISIOLÓGICOS

▸ Ações renais Embora  o  ANP  e  o  BNP  sejam  produzidos  nos  átrios  e  ventrículos  cardíacos  e  secretados  pela  distensão  dessas câmaras cardíacas, seus efeitos agudos vão se manifestar, primariamente, em uma série de respostas renais que têm como resultado  final  o  aumento  da  excreção  de  sódio  (natriurese)  e  água  (diurese),  eventos  que,  por  si  sós,  contribuem  para  a diminuição  do  volume  extracelular  e  da  pressão  arterial,  caracterizando  uma  típica  resposta  de  retroalimentação  negativa (Figura 55.15). A natriurese e a diurese obervadas após ação do ANP ocorrem como consequência do aumento do ritmo de filtração glomerular (RFG) e da inibição da reabsorção de sódio e água ao longo dos túbulos renais. O aumento do RFG pelo ANP se dá pela elevação da pressão nos capilares glomerulares, por meio da ação coordenada do ANP em promover dilatação da arteríola aferente e constrição da arteríola eferente. Já a queda da reabsorção de sódio acontece em decorrência da  inibição  que  o  ANP  promove  na  Na+/K+­ATPase  e  nos  canais  epiteliais  de  sódio  (ENaC)  sensíveis  a  amilorida.  A potente ação diurética e natriurética do ANP é devida, também, em grande parte, ao seu efeito vasodilatador, responsável

pelo  aumento  do  fluxo  sanguíneo  medular  renal  e  consequente  lavagem  do  interstício  papilar  renal  (para  detalhes  desse mecanismo, consulte o Capítulo 53). Paralelamente a essas ações, o ANP age, ainda, reduzindo a secreção de renina e de Aldo e inibindo as ações renais da Ang II e da Aldo, o que acentua ainda mais o seu caráter natriurético. Todas essas suas ações renais parecem ser mediadas exclusivamente por receptores do tipo NPR­A. O CNP é produzido em pequenas quantidades pelo coração e seus efeitos renais ainda são pouco compreendidos.

▸ Ações cardiovasculares O  ANP  e  o  BNP  agem  de  várias  maneiras  nos  mecanismos  vasculares,  o  que  também  contribui  para  a  diminuição do  volume  sanguíneo.  Assim,  esses  peptídios  promovem  vasodilatação  venosa  e  arterial,  por  mecanismos  diretos  e indiretos. Diretamente, após ligação aos receptores NPR­A presentes no músculo liso vascular, esses peptídios elevam o cGMP,  com  consequente  relaxamento  muscular,  ou  vasodilatação.  Indiretamente,  o  ANP  e  o  BNP  inibem  os  efeitos vasoconstritores  da  Ang  II,  das  catecolaminas  e  da  endotelina,  intensificando  a  vasodilatação.  Um  segundo  mecanismo deflagrado  por  ação  desses  peptídios  na  parede  do  vaso  diz  respeito  ao  aumento  da  permeabilidade  vascular  em consequência da ligação a receptores presentes no endotélio de microvasos. Este mecanismo irá propiciar a redistribuição, tanto de proteínas plasmáticas como de líquido, do espaço vascular para o espaço intersticial. O aumento da capacitância venosa em função da venodilatação e o redirecionamento do líquido intravascular para o compartimento extravascular, por aumento da permeabilidade endotelial, promovem redução na pré­carga cardíaca, contribuindo, de modo relevante, para a diminuição da pressão sanguínea.

Figura 55.15 ■ Ações renais do peptídio natriurético atrial (ANP). A função renal do ANP é modulada por meio de três diferentes mecanismos:  aumento  do  ritmo  de  filtração  glomerular,  diminuição  da  reabsorção  de  sódio  nos  túbulos  proximais  e  ductos coletores  e  diminuição  da  secreção  de  renina  pelas  células  justaglomerulares.  Estes  três  mecanismos  juntos  promovem aumento da natriurese e da diurese. (Adaptada de Potter et al., 2006.)

Em relação ao CNP, este parece ter um efeito na dilatação de veias ainda mais potente do que o do ANP e o do BNP.

Paralelamente  às  ações  vasculares,  o  ANP  e  o  BNP  também  exercem  efeitos  endócrinos  e  parácrinos  nas  células cardíacas,  antagonizando  a  hipertrofia  do  cardiomiócito  e  promovendo  efeitos  antiproliferativos  dos  fibroblastos,  o  que confere a esses peptídios importantes efeitos cardioprotetores em situações patológicas.

▸ Ações no SNC Os  peptídios  natriuréticos  também  são  sintetizados  e  secretados  por  neurônios  no  SNC  (chamados  neurônios ANPérgicos).  No  SNC,  os  níveis  de  expressão  do  CNP  são  pelo  menos  10  vezes  maiores  em  relação  aos  do  ANP  e  do BNP, enquanto os de BNP são três vezes mais abundantes que os de ANP. O hipotálamo é a estrutura do SNC que contém a  maior  concentração  de  peptídios  natriuréticos.  O  ANP  é  sintetizado  e  liberado  por  neurônios  localizados  no  órgão vasculoso  da  lâmina  terminal  (OVLT),  núcleo  pré­óptico  mediano,  núcleo  supraquiasmático,  núcleo  paraventricular, núcleo parabraquial, núcleo do trato solitário e área postrema. Estas regiões são conhecidas por regular uma variedade de respostas cardiovasculares e modular a homeostase hidreletrolítica (Figuras 55.16 e 55.17). Além  disso,  embora  os  peptídios  natriuréticos  não  atravessem  a  barreira  hematencefálica,  eles  atingem  alguns  locais do SNC fora dessa barreira, como a eminência mediana hipotalâmica e outras regiões envolvidas no controle do volume de líquidos  corporais  e  na  regulação  da  pressão  arterial.  Assim,  as  ações  dos  peptídios  natriuréticos  no  SNC  intensificam seus efeitos na periferia, já descritos. O ANP atua em núcleos do tronco encefálico, diminuindo o tônus simpático para a periferia. Como consequência, há atenuação  da  regulação  tônica  dos  barorreceptores  e  supressão  da  liberação  de  catecolaminas  nas  terminações  nervosas autonômicas.  Por  outro  lado,  o  ANP  diminui  o  limiar  de  ativação  das  fibras  aferentes  vagais,  suprimindo  o  reflexo  de taquicardia  e  a  vasoconstrição  que  acompanham  a  redução  da  pré­carga,  contribuindo  para  a  manutenção  da  redução  da pressão arterial. A  ativação  dos  neurônios  ANPérgicos  no  hipotálamo,  via  expansão  de  volume,  também  inibe  a  ingestão  de  água (ou ação dipsogênica)  e  sal,  além  de  inibir  a  secreção  de  vasopressina  (ou  ADH).  Portanto,  os  neurônios  ANPérgicos desempenham papel importante, não só na modulação da ingestão de líquido, mas também na sua excreção, na tentativa de manutenção  da  homeostase  corporal.  Cada  um  destes  efeitos  implica,  portanto,  ações  centrais  e  periféricas  coordenadas, que agirão no controle do volume e da concentração dos líquidos do organismo, garantindo sua homeostase. (Esse assunto é também discutido no Capítulo 75.)

Figura  55.16  ■   Mecanismos  envolvidos  no  controle  neuroendócrino  da  liberação  do  peptídio  natriurético  atrial  (ANP).  OT, ocitocina; NTS, núcleo do trato solitário; AVP, vasopressina ou ADH. Descrição no texto. (Adaptada de Antunes­Rodrigues et al., 2004.)

Embora, como descrito, o estiramento libere o ANP dos cardiomiócitos, algumas evidências indicam que a liberação do  ANP  promovida  pela  expansão  de  volume  é  mediada  por  impulsos  aferentes  dos  barorreceptores  ao  hipotálamo.  Ou seja,  a  expansão  de  volume  distenderia  os  barorreceptores  do  átrio  direito,  dos  seios  carotídeos  e  aórtico  e  dos  rins, alterando a entrada aferente para o tronco encefálico e hipotálamo, resultando na estimulação da liberação de ocitocina pela hipófise posterior; este hormônio, no átrio direito, estimularia a liberação do ANP. Acredita­se  que  o  CNP  apresente  uma  ação  mais  generalizada,  uma  vez  que  os  seus  receptores  encontram­se espalhados por todo o SNC, atuando, principalmente, em efeitos de anticrescimento na glia.

IMPLICAÇÕES TERAPÊUTICAS Em condições basais, os peptídios natriuréticos são pouco expressos; entretanto, sua expressão é dramaticamente alta durante  o  desenvolvimento  embrionário  e  fetal,  diminuindo  rapidamente  no  período  pós­natal,  e  em  condições fisiopatológicas. Os peptídios natriuréticos são associados a uma série de doenças cardiovasculares; por esse motivo, nas

três últimas décadas, vários estudos avaliaram o seu verdadeiro papel nessas condições patológicas. Evidências clínicas e experimentais  já  demonstraram  que  os  peptídios  natriuréticos,  em  especial  o  BNP,  encontram­se  significativamente aumentados  na  circulação  sistêmica  em  situações  de  insuficiência  cardíaca,  de  infarto  do  miocárdio,  de  hipertrofia ventricular esquerda, de aterosclerose coronariana, entre outras (Figura 55.18). Em condições normais, no coração saudável, o BNP é produzido e armazenado nos grânulos atriais, juntamente com o ANP; enquanto os cardiomiócitos ventriculares quase não produzem esses grânulos, e não contêm peptídios derivados do pró­BNP.  Assim,  indivíduos  saudáveis  apresentam  concentrações  plasmáticas  de  BNP  da  ordem  de  1  fmol/m ℓ   (3,5 pg/mℓ),  cerca  de  dez  vezes  menores  que  as  do  ANP.  Em  contraste,  as  concentrações  plasmáticas  de  BNP  em  pacientes com  insuficiência  cardíaca  congestiva  elevam­se  cerca  de  200  a  300  vezes.  Os  elevados  níveis  de  BNP  sob  essas condições  não  se  restringem  à  circulação,  uma  vez  que  após  o  infarto  do  miocárdio  há  abrupto  aumento  nos  níveis  de RNA mensageiro e da proteína BNP no ventrículo esquerdo. Além disso, como as expressões cardíacas de ANP e BNP quase  sempre  são  reguladas  de  forma  sincrônica  nas  diferentes  patologias  cardiovasculares,  a  concentração  plasmática aumentada de um destes peptídios é seguida pelo aumento da concentração do outro. Com  base  nesses  estudos,  atualmente,  esses  peptídios  vêm  sendo  usados  como  potente  ferramenta  no  diagnóstico  e prognóstico dessas doenças, servindo como importante marcador do estado clínico de disfunção ventricular esquerda.

Figura  55.17  ■   Efeitos  fisiológicos  dos  peptídios  natriuréticos  dos  tipos  A,  B  e  C.  A  secreção  aumentada  desses  peptídios promove diminuição da pressão arterial e do volume plasmático, por ações coordenadas do SNC, suprarrenais, rins e vasos. O sinal  (–)  indica  que  a  queda  do  volume  plasmático  leva  à  diminuição  do  retorno  venoso,  a  qual  provoca  queda  da  secreção

desses  peptídios.  NPR­A,  NPR­B  e  NPR­C,  receptores  dos  peptídios  natriuréticos  tipos  A,  B  e  C,  respectivamente;  AVP, vasopressina; RFG, ritmo de filtração glomerular; UNaV, excreção urinária de sódio; VU, volume urinário. (Adaptada de Levin et al., 2004.)

Figura  55.18  ■   Síntese  e  estocagem  cardíaca  dos  peptídios  natriuréticos  atrial  (ANP)  e  cerebral  (BNP),  sob  condições fisiológicas  e  patológicas.  Em  situações  fisiológicas,  o  ANP  e  pequenas  quantidades  de  BNP  são  liberados  dos  grânulos  de estocagem do átrio cardíaco. Em condições patológicas, o ventrículo esquerdo passa a corresponder à principal fonte de síntese do  BNP.  O  tamanho  das  setas  corresponde  às  quantidades  secretadas  relativas  desses  peptídios.  VE,  ventrículo  esquerdo. (Adaptada de Kim e Piano, 2000.)

Outras Substâncias Vasodilatadoras com Ação Renal | Óxido Nítrico, Prostaglandinas e Bradicinina Guiomar Nascimento Gomes A  adequada  perfusão  sanguínea,  nos  diversos  tecidos  do  organismo,  é  mantida  graças  à  participação  de  sistemas  de controle nervoso, hormonal ou parácrino, que são ativados frente a situações distintas. Quando o organismo depara com uma situação adversa como a hipovolemia, por exemplo, são acionados sistemas vasoconstritores como o sistema renina­ angiotensina, a ativação simpática renal e o hormônio antidiurético (ou vasopressina). Estes mecanismos contribuem para a manutenção da pressão arterial; entretanto, podem reduzir o fluxo sanguíneo renal, comprometendo a excreção urinária de  água  e  eletrólitos.  Porém,  substâncias  vasodilatadoras  com  ação  renal  são  capazes  de  se  contrapor  a  este  efeito,  que pode ser danoso, protegendo a função renal. Neste item serão discutidos os seguintes vasodilatadores de ação renal: óxido nítrico, prostaglandinas e bradicinina.

ÓXIDO NÍTRICO

▸ Aspectos gerais O papel do endotélio sobre o tônus vascular começou a ser estudado no início da década de 1980, quando Furchgott e Zawadski  verificaram  que  o  efeito  vasodilatador  da  acetilcolina,  em  preparações  vasculares,  só  se  manifesta  quando  o endotélio  se  apresenta  íntegro.  Na  ausência  do  endotélio,  a  acetilcolina  não  produz  este  efeito.  Assim,  o  efeito vasodilatador  foi  atribuído  a  uma  substância  vasoativa,  secretada  pelas  células  endoteliais,  que  passou  a  ser  chamada  de fator  relaxante  derivado  do  endotélio  (EDRF).  Posteriormente,  o  óxido  nítrico  (NO)  foi  identificado  como  o  mais importante vasodilatador derivado do endotélio. O  NO  é  um  gás  com  um  radical  livre,  difusível  e  solúvel  em  água,  cuja  meia­vida  é  bastante  curta  (1  a  5  s),  sendo rapidamente decomposto a nitrito (NO2–) e nitrato (NO3–).

O  NO  é  sintetizado  a  partir  do  aminoácido  L­arginina,  pela  atividade  da  enzima  NO  sintase  (NOS),  tendo  como cofatores  a  tetraidrobiopterina  e  a  NADPH.  A  NOS  catalisa  a  conversão  de  arginina  em  citrulina  e  NO  (Figura  55.19). Quando as células endoteliais são estimuladas pela acetilcolina ou por outro vasodilatador (bradicinina, serotonina, ATP), há produção e liberação do NO. O NO apresenta as seguintes ações: (1) ativa a guanilatociclase do músculo liso vascular, resultando no aumento da concentração intracelular de guanosina 3’, 5’­monofosfato cíclico (cGMP) – que bloqueia canais para Ca2+ dependentes de voltagem, presentes na membrana celular – e (2) ativa a proteinoquinase dependente de cGMP (PKG).  A  PKG  fosforila  proteínas  do  retículo  sarcoplasmático  (SERCA)  que  sequestram  Ca2+  no  retículo sarcoplasmático.  Portanto,  ocorre  redução  na  concentração  intracelular  de  Ca2+  e,  consequentemente,  relaxamento  do músculo liso.

Figura 55.19 ■ Esquema  ilustrativo  da  formação  do  óxido  nítrico  (NO)  a  partir  do  metabolismo  da  arginina,  pela  ativação  da enzima óxido nítrico sintase (NO sintase). (Adaptada de Nelson et al., 2000.)

Existem 3 isoformas de NOS: neuronal (nNOS), endotelial (eNOS) e induzível (iNOS). As isoformas nNOS e eNOS são  constitutivas,  encontrando­se  ancoradas  na  membrana  plasmática.  A  iNOS  é  produzida  no  organismo  mediante estimulação por citocinas, como o fator de necrose tumoral α (TNFα), ou outros estímulos fisiopatológicos. A  geração  de  espécies  reativas  de  oxigênio,  como  o  íon  superóxido  (O2–),  é  considerada  normal  em  processos fisiológicos, desde que os mecanismos de defesa antioxidante estejam adequados. Quando há aumento da produção de O2–, ou há redução da atividade ou expressão da superóxido dismutase (SOD) (na defesa antioxidante), o excesso de O2– reage com  o  NO  com  grande  afinidade  formando  o  peroxinitrito  (ONOO–),  que  é  um  radical  altamente  citotóxico.  O peroxinitrito é capaz de atacar proteínas (nitração de proteínas), ácidos nucleicos e lipídios, principalmente da membrana celular (peroxidação lipídica), comprometendo as suas funções. Além  do  importante  papel  como  vasodilatador,  o  NO  parece  exercer  relevante  ação  na  destruição  de  microrganismos invasores, mediada por macrófagos e neutrófilos. O NO também tem sido apontado como um neurotransmissor, no SNC e no  sistema  nervoso  entérico  (SNE).  Ele  é  liberado  tanto  em  terminais  pré  como  pós­sinápticos.  Por  ser  uma  molécula pequena  e  solúvel  em  membranas,  difunde­se  mais  livremente  que  outras  moléculas  transmissoras,  podendo,  ao  ser secretado pelo terminal pós­sináptico, modular a atividade pré­sináptica.

▸ Efeitos do NO na função renal No  rim,  ocorre  síntese  de  NO  nas  células  mesangiais  e  endoteliais  do  glomérulo,  na  mácula  densa,  no  aparelho justaglomerular, no túbulo proximal e no túbulo coletor. Entretanto, em virtude de sua alta difusibilidade, o NO produzido em um vaso ou em determinado segmento do néfron pode influenciar a atividade das estruturas renais circunvizinhas. O  papel  do  NO  na  regulação  da  filtração  glomerular  foi  evidenciado  em  estudos  que  indicaram  que  inibidores  da síntese de NO causam acentuada queda no fluxo plasmático renal (FPR) e no ritmo de filtração glomerular (RFG). Este efeito  foi  atribuído  ao  aumento  da  resistência  da  arteríola  aferente  em  paralelo  ao  decréscimo  do  coeficiente  de  filtração glomerular  (Kf),  decorrentes  da  menor  produção  de  NO  pelas  células  mesangiais  na  presença  dos  inibidores  de  sua síntese.  Além  disso,  a  inibição  da  NOS  também  aumenta  a  resposta  vasoconstritora  das  arteríolas  renais  (aferentes  e eferentes)  em  resposta  à  angiotensina  II.  De  maneira  semelhante,  a  infusão  intrarrenal  de  norepinefrina  em  animais tratados com N­nitro­L­arginine methyl ester (ou L­NAME, inibidor não seletivo da NO sintase) causa acentuada queda no  RFG  e  no  FPR,  alteração  não  observada  na  ausência  do  inibidor,  sugerindo  que  o  NO  exerça  um  papel  modulador sobre o efeito vasoconstritor da angiotensina II e da epinefrina.

A  produção  de  NO  pelas  células  da  mácula  densa  parece  participar  do  balanço  tubuloglomerular  (BTG). Resumidamente: em condições normais, quando ocorre aumento do RFG em um determinado néfron, há aumento do fluxo de líquido e de NaCl para o segmento distal do mesmo néfron, particularmente, na sua mácula densa. O maior influxo de NaCl nas células da mácula densa faz com que haja liberação de agentes parácrinos (ATP, adenosina, tromboxano e outras substâncias)  que  provocam  a  contração  das  células  musculares  lisas  da  parede  da  arteríola  aferente  do  próprio  néfron, aumentando  a  sua  resistência  e,  consequentemente,  reduzindo  o  seu  RFG.  O  papel  exato  do  NO  neste  mecanismo  ainda não  está  claro.  Estudos  realizados  em  alças  de  Henle  isoladas  e  perfundidas  com  soluções  contendo  diferentes concentrações de NaCl demonstraram que o aumento da concentração luminal de NaCl causa aumento da produção de NO nas células da mácula densa; assim, a maior produção de NO poderia desempenhar um papel modulador da vasoconstrição causada pelo BTG. Os  efeitos  do  NO  sobre  a  reabsorção  de  líquido  no  túbulo  contornado  proximal  (TCP)  são  controversos.  Estudos in vivo  mostraram  que  se  no  lúmen  tubular  do  TCP  for  adicionado  (1)  nitroprussiato  (doador  de  NO)  –  há  redução  da reabsorção  de  líquido  ou  (2)  L­NAME  –  há  aumento  da  reabsorção  de  líquido,  sugerindo  que  o  NO  apresenta  efeito inibitório  sobre  a  reabsorção  de  líquido  no  TCP.  Por  outro  lado,  outros  estudos,  também  realizados  in  vivo  no  TCP, demonstraram que: (1) a infusão intravenosa de L­NAME reduz a reabsorção de líquido e (2) em animais knockout para nNOS há menor reabsorção de líquido que em animais wild­type, sugerindo que o NO estimula a reabsorção de líquido no TCP. Entretanto, os animais knockout apresentam alterações em outros órgãos que podem ter influenciado os resultados. Além disso, foi relatado que a administração intravenosa de L­NAME causa um aumento paradoxal na produção de NO no córtex renal. Ou seja, os resultados obtidos no TCP in vivo são de difícil interpretação. Já os resultados obtidos com células  de  túbulo  proximal,  em  cultura,  são  mais  consistentes  e  indicam  que  o  NO  inibe  a  atividade  do  trocador Na+/H+ bem como da Na+/K+­ATPase. Os  estudos  realizados  em  alças  de  Henle  isoladas  e  perfundidas  sugerem  que  nesse  segmento  tubular  o  NO  inibe  a reabsorção de NaCl por uma ação direta sobre o cotransporte luminal Na+:2Cl–:K+ e não por ação secundária à inibição da Na+/K+­ATPase. O  aumento  da  biodisponibilidade  de  NO  na  medula  renal  tem  fundamental  papel  na  regulação  do  fluxo  sanguíneo medular,  protegendo  esta  região  de  lesão  isquêmica.  Este  aumento  pode  ser  decorrente  da  grande  quantidade  de  NOS encontrada  nos  ductos  coletores  medulares  (cerca  de  26  vezes  maior  que  no  córtex  renal).  O  tratamento  crônico  com  L­ NAME,  em  dose  que  não  altera  o  fluxo  sanguíneo  cortical,  resulta  em  redução  de  30%  do  fluxo  sanguíneo  medular, acompanhada de queda da excreção renal de sódio e desenvolvimento de hipertensão arterial. Esses achados evidenciam a relevante ação do NO na irrigação da medula renal e no transporte iônico do ducto coletor medular. Em conclusão: o NO desempenha importante papel na regulação da função renal, tanto por seu efeito vascular, quanto pela sua ação direta sobre os transportadores tubulares.

PROSTAGLANDINAS

▸ Aspectos gerais As prostaglandinas, tromboxanos e leucotrienos são substâncias derivadas do ácido araquidônico (AA) sintetizado no fígado,  a  partir  do  ácido  linoleico  da  dieta.  O  AA  é  transportado  no  plasma  ligado  a  lipoproteínas  de  baixa  densidade (fração esterificada) e a albumina (fração não esterificada). A fração esterificada é, posteriormente, captada pelas células e armazenada  nos  fosfolipídios  da  membrana  plasmática.  A  liberação  do  AA  da  membrana  plasmática  ocorre  por  diversos estímulos  (químico,  inflamatório,  traumático,  mitogênico),  por  meio  da  enzima  fosfolipase  A2  (PLA2).  O  AA  forma produtos  distintos,  dependendo  da  via  de  metabolização:  (1)  a  via  da  ciclo­oxigenase  –  leva  à  formação  das prostaglandinas (PG), (2) a via da lipo­oxigenase – resulta na síntese dos ácidos mono, di­ e tri­hidroxieicosatetraenoico (HETE)  e  dos  leucotrienos  (LT)  e  (3)  a  via  de  oxigenação  pelas  epoxigenases,  mediada  pelo  citocromo  P­450  –  leva  à formação dos ácidos epóxi­eicosatrienoicos (ácidos graxos ω­hidroxilados).

Via da ciclo­oxigenase (COX) Inicialmente,  a  COX  promove  a  formação  de  compostos  intermediários  instáveis  (PGG2  e  PGH2)  que, subsequentemente,  são  convertidos  a  compostos  mais  estáveis  e  biologicamente  ativos:  prostaglandina  E2  (PGE2), prostaglandina I2 (PGI2 ou prostaciclina), prostaglandina F2α (PGF2α), prostaglandina D (PGD) e tromboxano A2 (TxA2). Estas substâncias são rapidamente metabolizadas, tendo função autócrina e parácrina (Figura 55.20).

Duas  isoformas  de  COX  já  foram  identificadas:  COX1 e COX2. A COX1 parece  ser  constitutiva  e  estar  relacionada com  as  funções  fisiológicas.  A  COX2  é  induzida  por  mediadores  inflamatórios  e  por  mitógenos,  mas  também  parece exercer função de manutenção celular.

Figura 55.20 ■ Esquema ilustrativo da síntese das prostaglandinas. Explicações no texto.

Cada  prostaglandina  se  liga  a  um  receptor  específico  na  membrana  celular,  acoplado  a  uma  proteína  G.  Até  agora, foram  identificados  e  caracterizados  os  seguintes  receptores:  DP  (PGD),  EP  (PGE),  FP  (PGF),  IP  (PGI)  e  TP  (TxA). Quatro  subtipos  de  receptores  foram  encontrados  para  a  PGE:  EP1,  EP2,  EP3,  EP4.  Os  receptores  EP1  e  EP3  estão associados  à  contração  do  músculo  liso,  enquanto  os  receptores  EP2  e  EP4  promovem  relaxamento  do  músculo  liso, incluindo  o  vascular.  Os  diversos  efeitos  das  PG  dependem  das  diferentes  células  nas  quais  seus  receptores  estão expressos,  bem  como  da  via  de  sinalização  que  medeia  seu  efeito.  Os  receptores  DP,  IP,  EP2  e  EP4  são  acoplados  à proteína G estimulatória (Gs) e promovem aumento da concentração intracelular de cAMP; já o receptor EP3 está acoplado à  proteína  G  inibitória  (Gi)  e  reduz  a  síntese  de  cAMP.  Em  alguns  tecidos,  os  receptores  TP,  FP  e  EP1  promovem mobilização de cálcio. Considerando os distintos receptores específicos para cada PG e sua ampla distribuição, é possível compreender sua diversidade  de  ações  no  organismo,  desempenhando  papel  central  na  inflamação,  coagulação  sanguínea,  ovulação,  parto, metabolismo ósseo, função renal, tônus vascular, crescimento e desenvolvimento neuronal.

▸ Efeito das prostaglandinas na função renal Nos rins, as prostaglandinas são importantes moduladores do tônus vascular, do transporte tubular de sal e água e da liberação de renina. A PGE2 e a PGI2 (ou prostaciclina) são as prostaglandinas que apresentam maior síntese nos rins. No córtex renal, há maior  produção  de  PG  nos  vasos,  no  glomérulo  e  no  túbulo  coletor  cortical.  Em  humanos,  o  glomérulo  e  as  células mesangiais produzem principalmente PGI2, além de quantidades menores de PGE2, PGF2 e TxA. A produção de PGE2 é maior  na  medula  renal,  desempenhando  importante  papel  na  regulação  do  transporte  de  sal  e  água  na  alça  ascendente espessa  e  no  ducto  coletor.  Tendo  em  vista  que  a  COX1  é  muito  expressa  em  ductos  coletores  corticais  e  medulares, acredita­se que as prostaglandinas produzidas por esta via estejam envolvidas na resposta natriurética. Há muito tempo é conhecido  que  a  elevação  do  volume  de  líquido  extracelular  causa  aumento  agudo  da  pressão  hidrostática  intersticial  e natriurese;  e,  atualmente,  está  constatado  que  a  infusão  de  inibidores  não  seletivos  da  COX  impede  essa  resposta natriurética, confirmando a participação das PG nesse mecanismo. Em  rins  de  mamífero,  a  mácula  densa  (MD)  participa  do  mecanismo  de  controle  do  tônus  da  arteríola  aferente detectando  alterações  na  concentração  luminal  de  cloreto,  por  meio  de  modificações  na  atividade  do  cotransporte Na+:K+:2Cl–,  estimulando  a  secreção  de  renina  (pelo  balanço  tubuloglomerular,  anteriormente  mencionado).  Estudos  in vivo,  em  néfrons  isolados  e  perfundidos,  demonstraram  que  a  administração  de  inibidores  não  seletivos  da  COX  inibe  a

secreção  de  renina  mediada  pela  diminuição  da  carga  de  NaCl  na  MD.  Além  disso,  em  situações  em  que  a  secreção  de renina é elevada, como na deficiência de sal, no uso de inibidores da enzima conversora de angiotensina ou na hipertensão renovascular experimental aumenta a expressão da COX2 na mácula densa. Portanto, estes experimentos demonstram que as prostaglandinas também contribuem para regulação do transporte tubular de sódio e liberação de renina nos rins. Em  condições  normais,  as  prostaglandinas  parecem  exercer  pouca  influência  no  fluxo  sanguíneo  renal  e  no  ritmo  de filtração  glomerular.  Entretanto,  em  situações  em  que  há  grande  queda  do  volume  de  líquido  extracelular,  o  aumento  da secreção  de  catecolaminas,  angiotensina  II  e  vasopressina  pode  causar  acentuada  vasoconstrição  renal,  reduzindo drasticamente  a  filtração  glomerular.  Nestas  situações,  a  ação  de  substâncias  vasodilatadoras,  tais  como  as prostaglandinas,  é  fundamental  para  proteger  o  fluxo  sanguíneo  renal  e  o  ritmo  de  filtração  glomerular  (para  outros detalhes,  consultar  o Capítulo 50).  Deste  modo,  as  prostaglandinas,  particularmente  a  PGE2 e  a  PGI2,  parecem  agir  no glomérulo contribuindo para a manutenção da filtração glomerular. As prostaglandinas também interferem na capacidade renal de concentrar a urina, devido a seu efeito inibidor da ação do hormônio antidiurético. Dados da literatura sugerem que este efeito ocorra pela ligação da PGE2 ao receptor EP1 e/ou EP3,  resultando  na  ativação  da  proteinoquinase  C  (PKC).  Também  é  descrito  que  a  PGE2  se  contrapõe  ao  hormônio antidiurético, resgatando moléculas de aquaporina 2 (AQP2) da membrana luminal do ducto coletor.

SISTEMA CALICREÍNA­CININAS O  sistema  calicreína­cininas  é  um  complexo  de  várias  enzimas  que  regulam  os  níveis  de  peptídios  biologicamente ativos denominados cininas. Seus principais componentes são a enzima calicreína, o substrato cininogênio, os hormônios efetores lisil­bradicinina e bradicinina (BK) e as enzimas metabolizadoras cininases, dentre as quais as mais importantes são  a  cininase  I  e  a  cininase  II  (também  denominada  de  enzima  conversora  de  angiotensina  ou  ECA)  e  a  endopeptidase neutra (Figura 55.21). A calicreína plasmática parece desempenhar relevante função no processo de ativação da via intrínseca da coagulação, utilizando  como  substrato  um  cininogênio  de  alto  peso  molecular,  do  qual  libera  um  nonapeptídio,  a  BK.  A  calicreína tissular,  por  sua  vez,  age  sobre  cininogênios  de  alto  ou  baixo  peso  molecular,  liberando  o  decapeptídio  lisil­bradicinina ou calidina.  No  rim,  a  forma  tissular  da  calicreína  é  encontrada  principalmente  em  células  dos  túbulos  de  conexão  e  do ducto coletor cortical, cuja proximidade anatômica com o aparelho justaglomerular sugere que o sistema calicreína­cinina possa estar envolvido na regulação do FPR, do RFG e da liberação de renina.

Figura 55.21 ■ Esquema ilustrativo do sistema calicreína­cininas. Explicações no texto.

Praticamente, todos os componentes do sistema calicreína­cinina, incluindo o cininogênio de baixo peso molecular, a calicreína,  os  receptores  de  cininas  e  as  cininases,  foram  encontrados  nos  rins,  principalmente,  no  ducto  coletor. Inicialmente,  foi  atribuída  à  BK  um  efeito  natriurético  e  diurético.  Posteriormente,  foi  reconhecido  que  o  mecanismo responsável por estes seus efeitos poderia ser indireto, devido ao aumento do fluxo de sangue da medula renal secundário à  ação  da  BK  na  vasodilatação  medular,  com  consequente  dissipação  da  hipertonicidade  intersticial  medular  (graças  ao mecanismo de lavagem do interstício papilar, descrito no Capítulo 53). Em experimentos mais recentes, com uso de BK exógena,  foi  confirmado  seu  aumento  no  fluxo  sanguíneo  renal  papilar  e  medular  e  seu  pouco  efeito  no  fluxo  sanguíneo total  ou  cortical  ou  na  taxa  de  filtração  glomerular;  nesses  experimentos,  também  foram  observados  efeitos  opostos  aos descritos,  após  inibição  do  receptor  B2  da  BK  com  Hoe  140,  reforçando  os  dados  que  indicam  que  a  BK  causa vasodilatação medular. A origem das cininas encontradas nos vasos renais é dupla: (1) podem difundir do local de sua síntese, nas células do túbulo  de  conexão  e  do  ducto  coletor,  para  ir  modular  o  tônus  vascular  de  arteríolas  glomerulares  de  glomérulos justamedulares  e/ou  dos  vasos  retos  descendentes  e  (2)  também  podem  ser  sintetizadas  e  liberadas  do  endotélio.  Mas, qualquer que seja a origem da BK, seu efeito sobre a vasculatura renal é o mesmo, vasodilatação. Em  mamíferos,  foram  identificados  dois  receptores  da  BK,  B1R  e  B2R,  ambos  acoplados  à  proteína  G.  O  receptor B2R  é  constitutivamente  expresso  na  maioria  dos  tecidos,  sendo  abundante  nas  células  endoteliais  vasculares,  onde  é

funcionalmente ligado à ativação da óxido nítrico sintase endotelial (eNOS ou NOS3). Em condições normais, a expressão de B1R é mínima; entretanto, é induzida pela inflamação, diabetes, isquemia/reperfusão etc. Em condições fisiológicas, o mRNA  do  B2R  é  expresso  em  todos  os  segmentos  do  rim;  em  contraste,  nessas  condições,  nenhum  mRNA  de  B1R  é detectado  no  rim.  A  estimulação  dos  receptores  da  BK  por  cininas  eleva  a  concentração  intracelular  de  cálcio  ([Ca2+]i), pela ativação do complexo fosfatidilinositol fosfolipase C (PI­PLC) de maneira dependente da proteína GQ.

▸ Bradicinina e óxido nítrico A  estimulação  dos  receptores  de  BK  pela  cininas  eleva  a  [Ca2+]i  e  ativa  as  isoformas  de  NOS  dependentes  de Ca   (eNOS  e  nNOS).  A  BK,  por  intermédio  de  seus  receptores,  também  leva  à  ativação  sequencial  da  PI3­quinase, fosforilação  da  Akt,  e  fosforilação  da  eNOS.  A  expressão  da  isoforma  da  NOS  independentes  de  Ca2+ (NOS  induzível) também  é  aumentada  pela  bradicinina,  tanto  por  meio  do  B1R  como  do  B2R.  Assim,  o  sistema  cinina­calicreína  parece exercer seus efeitos, pelo menos em parte, pela produção de NO, e desta maneira modular a função renal. 2+

▸ Bradicinina e prostaglandinas A  BK  pode  aumentar  a  produção  de  PG  por  meio  de  seus  receptores,  por  mecanismos  distintos.  Ela  promove  a fosforilação  e  a  translocação  da  fosfolipase  A2 citosólica  para  a  membrana  celular,  na  dependência  de  cálcio,  bem  como estimula  a  fosfolipase  A2  independente  de  cálcio.  Estas  fosfolipases  liberam  ácido  araquidônico  dos  fosfolipídios  da membrana.  A  BK  também  leva  à  indução  da  ciclo­oxigenase­2,  que  converte  o  ácido  araquidônico  em  PG.  As  PG, formadas  após  a  estimulação  dos  receptores  de  bradicinina,  vão  agir  por  meio  de  seus  receptores,  mediando  alguns  dos efeitos das cininas no tônus vascular. Em  resumo,  o  sistema  calicreína­cinina  influencia  a  hemodinâmica  renal  por  sua  ação  vasodilatadora,  bem  como  o transporte tubular renal de sódio e água, com consequente ação diurética e natriurétrica. Esses efeitos são, pelo menos em parte, mediados pelo NO (causando vasodilatação) e pelas PG (provocando diurese e natriurese). Sua principal interação com o sistema renina­angiotensina é determinada pela enzima conversora de angiotensina (ECA ou cininase II), que além de liberar angiotensina II, também degrada as cininas (ver Figura 55.21).

Hormônio Antidiurético (ADH) Antonio J. Magaldi A eliminação de urina concentrada resulta da reabsorção de água pelo ducto coletor medular interno e está diretamente relacionada  com  dois  fatos  importantes:  (1)  formação  de  medula  hipertônica  em  relação  ao  fluido  tubular  e  (2)  ação  do ADH  aumentando  a  permeabilidade  à  água  e  à  ureia  nos  ductos  coletores  medulares.  A  formação  da  medula  hipertônica está  diretamente  ligada  ao  mecanismo  de  contracorrente  multiplicador  que  ocorre  nos  ramos  finos  descendente  e ascendente e na porção espessa da alça de Henle. Pela diferença de permeabilidade à água e a solutos destes segmentos e pelo efeito  unitário  da  porção  espessa,  que  adiciona  NaCl  ao  interstício  (pelo  cotransportador  ativo  secundário  Na+:K+: 2Cl–), a medula renal torna­se progressivamente hipertônica da região justamedular em direção à papila. Este aumento da osmolalidade  papilar  favorece  a  reabsorção  de  água  nos  ductos  coletores  medulares  tornados  permeáveis  à  água  pelo hormônio antidiurético. Outras informações a respeito do ADH são fornecidas no Capítulo 53 e no Capítulo 66, Glândula Hipófise.

SÍNTESE E LIBERAÇÃO DO ADH O ADH é um peptídio que tem peso molecular 1.084 Da e nove aminoácidos, exibindo a seguinte composição:

O  aminoácido  arginina,  localizado  na  posição  8,  confere  ao  ADH  humano  também  o  nome  de  arginina­ vasopressina  (ou  AVP),  em  virtude  do  seu  efeito  vasopressor.  Este  nonapeptídio  é  sintetizado  pela  maioria  dos

mamíferos,  menos  os  da  subordem  suína;  estes  produzem  a  lisil­vasopressina,  em  que  a  arginina  da  posição  8  é substituída pela lisina. Este hormônio produz dois efeitos fundamentais: (1) aumento da permeabilidade à água e à ureia nos ductos coletores e  (2)  aumento  da  pressão  arterial,  porém  em  uma  concentração  muito  maior  do  que  a  necessária  para  produzir  a antidiurese. Com a substituição da fenilalanina por isoleucina e da arginina por leucina há produção de ocitocina. Este é um  hormônio  encontrado  em  todos  os  mamíferos,  apresentando  fraca  ação  antidiurética,  porém  potente  ação  constritora dos músculos lisos da glândula mamária e do útero. O  ADH  é  sintetizado  em  neurônios  dos  núcleos  supra­óptico  e  paraventricular  do  hipotálamo  e  liberado  pela  neuro­ hipófise (Figura 55.22). Quando  há  elevação  da  osmolalidade  plasmática,  os  osmorreceptores  hipotalâmicos  sofrem  retração  celular, aumentando a atividade de canais de cálcio mecanossensíveis, localizados em suas membranas. Os íons cálcio atravessam estas  membranas  causando  significante  despolarização,  com  consequente  aumento  da  frequência  de  seus  potenciais  de ação. Essas informações são transmitidas aos neurônios dos núcleos supra­óptico e paraventricular do hipotálamo. O mecanismo de biossíntese do hormônio nos neurônios dos núcleos hipotalâmicos é complexo. Inicia­se no núcleo da célula  neuronal  com  a  expressão  da  informação  genética  e  a  ativação  do  processo  de  transcrição  gênica.  O  gene  para  o ADH  contém  aproximadamente  2.000  pares  de  base,  encontra­se  no  cromossomo  20  e  contém  três  éxons,  A,  B  e  C, separados  por  dois  segmentos  intermediários,  íntrons  1  e  2  (Figura  55.23).  O  RNA  mensageiro,  agindo  sobre  os ribossomos  nas  paredes  do  retículo  endoplasmático,  serve  como  modelo  padrão  para  a  síntese  de  uma  macromolécula precursora  chamada  de  pré­pró­hormônio  ou  pró­pressofisina  (com  peso  molecular  cerca  de  21.000  Da).  Cada  éxon codifica  um  dos  três  domínios  funcionais  do  pré­pró­hormônio  que  contém  a  sequência  do  peptídio  sinalizador  com  um NH2 terminal (a do ADH), a da neurofisina (que é a proteína transportadora do ADH), e a de um glicopeptídio (copeptina) com um terminal COOH.

Figura  55.22  ■   Esquema  da  neuro­hipófise  e  das  suas  relações  anatômicas.  nh,  neuro­hipófise;  ah,  adeno­hipófise;  ds, diafragma  da  sela;  qo,  quiasma  óptico;  nso,  núcleo  supraóptico;  npv,  núcleo  paraventricular;  or,  osmorreceptores;  br, barorreceptores; nts, núcleo do trato solitário; ap, área postrema. (Adaptada de Robertson e Berl, 1996.)

Figura 55.23 ■ Estrutura do pró­hormônio do ADH e do gene que o codifica. Descrição da figura no texto. c, local de glicosilação. (Adaptada de Robertson e Berl, 1996.)

Com  a  perda,  por  clivagem,  da  proteína  sinalizadora,  o  pré­pró­hormônio  transforma­se  no  pró­hormônio.  Este,  no sistema  de  Golgi,  é  empacotado  sob  a  forma  de  grânulos  que  são  transportados  pelos  axônios  neuronais  até  suas terminações nervosas na neuro­hipófise. Durante este transporte (por fluxo axoplasmático), que leva em média de 12 a 24 h, ocorre o processo de maturação no qual a molécula precursora torna­se alvo de modificações enzimáticas, resultando na formação do ADH, da neurofisina e da copeptina. Os grânulos secretórios acumulados nas terminações neuronais hipofisárias são liberados na circulação por exocitose mediada  por  Ca2+,  estimulada  pelo  aumento  da  frequência  de  potenciais  de  ação  (defagrados  pela  estimulação  dos neurônios  dos  núcleos  hipotalâmicos  supraóptico  e  paraventricular)  que  se  propagam  ao  longo  dos  axônios,  causando  a despolarização da membrana, influxo de cálcio, fusão dos grânulos secretórios com a membrana e extrusão do conteúdo. O  ADH  secretado  é  então  rapidamente  captado  pela  rica  rede  capilar  do  sistema  porta­hipotálamo­hipofisário,  de  onde alcança a circulação geral.

REGULAÇÃO DA SECREÇÃO DO ADH

▸ Fator osmótico A  intensidade  da  secreção  do  ADH  oscila  sob  a  influência  de  vários  fatores  fisiológicos  e  fisiopatológicos.  Entre  os vários  fatores  conhecidos  (Quadro  55.2),  acredita­se  que,  em  condições  fisiológicas,  a  variação  da  osmolalidade plasmática seja o mais importante. Juntamente  com  a  secreção  do  ADH,  a  alteração  da  osmolalidade  plasmática  também  provoca  o  aparecimento  da sensação  de  sede.  A  variação  da  osmolalidade  plasmática  é  percebida  por  neurônios  especializados,  chamados  de osmorreceptores,  localizados  na  região  hipotalâmica  próxima  aos  núcleos  supraóptico  e  paraventricular,  a  qual  não  sofre restrições  da  barreira  hematencefálica.  Quando  a  osmolalidade  plasmática,  ou  mais  precisamente  a  quantidade  de  sódio plasmático,  se  eleva  acima  de  um set­point,  a  secreção  de  ADH  ocorre  em  proporção  a  este  aumento.  E,  inversamente, quando a osmolalidade plasmática cai abaixo deste nível de gatilho, a secreção hormonal se interrompe. O limiar osmótico está em torno de 285 mOsm/kg e variações tão pequenas quanto 1% desse valor são capazes de produzir secreção de ADH de, em média, 1 pg/mℓ, quantidade essa suficiente para alterar a concentração e o volume da urina (Figura 55.24).  Esta extraordinária  sensibilidade  do  osmorreceptor  lhe  confere  o  principal  papel  na  mediação  da  resposta  antidiurética decorrente da alteração da osmolalidade plasmática. Curiosamente, o limiar osmótico pode variar ligeiramente de pessoa para pessoa, mas em um mesmo indivíduo permanece praticamente constante durante toda a vida e parece ser determinado geneticamente.

Quadro 55.2 ■ Condições que influenciam a secreção de ADH. Alterações osmóticas Osmolalidade plasmática Alterações do balanço hídrico Infusão de solução hipertônica ou hipotônica

Hiperglicemia (por deficiência de insulina) Modificações hemodinâmicas Volume sanguíneo (total ou efetivo) Postura Hemorragia Deficiência ou excesso de aldosterona Gastrenterite Insuficiência cardíaca congestiva Cirrose Síndrome nefrótica Respiração com pressão positiva Diuréticos Diurese osmótica (no diabetes melito não controlado) Pressão arterial Hipotensão ortostática Reação vagovagal Substâncias (isoproterenol, norepinefrina, nicotina, nitroprussiato de sódio, trimetafam, histamina, bradicinina, morfina) Situações eméticas (que provocam vômitos) Náuseas Substâncias (apomorfina, morfina, nicotina) Cinetose (distúrbio em trajetos por avião, navio ou automóvel) Cetoacidose Hormônios (colecistocininas) Situações glicopênicas Hipoglicemia (por insulina ou 2­deoxiglicose) Outras condições Estresse Temperatura Angiotensina

pCO2, pO2, pH Medicamentos (ver Quadro 55.3) A  sensibilidade  do  osmorreceptor  a  variações  de  osmolalidade  não  é  igual  para  todos  os  solutos  plasmáticos.  A velocidade com que o soluto é capaz de penetrar na célula osmorreceptora é o fator determinante para que o estímulo seja iniciado. Assim, substâncias que penetram rapidamente nessa célula não são capazes de criar um gradiente osmótico, entre ela  e  o  plasma  que  a  circunda,  suficientemente  duradouro  para  permitir  o  influxo  de  água  no  neurônio,  causador  do estiramento  da  sua  membrana  e  iniciador  do  estímulo  elétrico.  O  Na+,  juntamente  com  o  Cl–  e  HCO3–,  solutos  que contribuem com mais de 95% da pressão osmótica do plasma, penetram na célula mais lentamente do que os solutos do tipo de certos açúcares, como o manitol e a sacarose; por isso, esses íons são mais eficientes em relação à capacidade de estimular a secreção de ADH.

Figura 55.24 ■ Comparação da sensibilidade dos osmo e barorreceptores. A secreção de ADH é mais sensível às mudanças da osmolalidade plasmática do que às mudanças da pressão ou do volume de sangue. (Adaptada de Robertson e Berl, 1996.)

▸ Fatores não osmóticos O  segundo  importante  estímulo  para  a  liberação  de  ADH  é  a  alteração  do  volume  circulante  ou  da  pressão  arterial. Estas influências hemodinâmicas na secreção do ADH são mediadas, pelo menos em parte, por barorreceptores. Estes são classificados em dois tipos. O primeiro inclui os barorreceptores cardiopulmonares localizados no sistema circulatório de baixa pressão, ou particularmente, nos vasos pulmonares e nas paredes dos átrios esquerdo e direito. O segundo tipo está localizado  no  sistema  arterial  de  alta  pressão  (barorreceptores  sino­aórticos)  e  também  fora  da  caixa  torácica,  no  seio carotídeo e no aparelho justaglomerular renal. Projeções neuronais aferentes partem destes dois grupos de barorreceptores, via  nervos  vago  e  glossofaríngeo,  alcançando  o  SNC,  terminando  nos  neurônios  do  hipotálamo.  A  redução  do  volume plasmático  ou  da  pressão  arterial  promove  liberação  do  ADH;  ao  contrário,  o  aumento  do  volume  plasmático  ou  da pressão  arterial  suprime  a  secreção  de  ADH.  A Figura 55.24 indica  que  uma  redução  de  5%  a  10%  da  pressão  arterial média produz pequena variação no nível plasmático de ADH; mas, uma queda de 20% a 30% na pressão arterial provoca uma  liberação  de  ADH  muitas  vezes  maior  do  que  a  necessária  para  produzir  uma  antidiurese  máxima.  Portanto, comparados com os omorreceptores, os barorreceptores são menos sensíveis; isto é, há necessidade de uma variação em torno de 20% a 30% da pressão arterial para desencadear uma liberação efetiva de ADH, enquanto uma alteração de 1% a 2%  da  osmolalidade  plasmática  produz  liberação  efetiva  do  hormônio  (ver Figura 55.24).  A  secreção  de  ADH  pode  ser

alterada por vários outros fatores (ver Quadro 55.2) e também sofrer os efeitos farmacológicos de vários medicamentos e hormônios (Quadro 55.3). A quantidade de ADH que circula normalmente no plasma varia de 1 a 12 pmol/ℓ, sendo que a máxima capacidade de concentração urinária ocorre com a maior concentração plasmática de ADH.

Quadro 55.3 ■ Fármacos ou hormônios que alteram a secreção de ADH. Estimuladores

Inibidores

Acetilcolina

Norepinefrina

Nicotina

Flufenazina

Apomorfina

Haloperidol

Morfina (em dose alta)

Prometazina

Epinefrina

Oxilorfan, butofarnol

Isoproterenol

Agonistas (kappa) do ópio

Bradicinina

Morfina (em dose baixa)

Prostaglandina

Álcool

β­Endorfina

Glicocorticoide

Ciclofosfamida

Fenitoína?

Vincristina

Clonidina

Insulina

Muscinol

2­deoxiglicose

Fenciclidina

Histamina Angiotensina Clorpropamida? Clofibrato? Fator de liberação da corticotrofina Naloxona Colecistocinina

AÇÃO HORMONAL

▸ Receptores O ADH exerce a sua função por meio de receptores seletivos localizados na membrana celular. O hormônio, substância que  evoca  a  resposta  celular,  é  chamado  de  primeiro  mensageiro.  A  resposta  celular  induzida  pelo  hormônio  não  se  dá diretamente, mas mediada por um segundo mensageiro intracelular. Este segundo mensageiro é produzido pela interação do hormônio com o seu receptor celular específico e é o ponto­chave na expressão da ativação hormonal. Os dois sistemas de  segundos  mensageiros  mais  importantes  conhecidos  na  fisiologia  dos  hormônios  são  o  sistema  do  AMP  cíclico  e  o

sistema  relacionado  com  a  concentração  de  cálcio  no  citosol  [Ca2+].  O  ADH  utiliza  estes  dois  sistemas  para  exercer  os seus efeitos. Já foram identificados quatro receptores diferentes para o ADH. Inicialmente, foram designados como receptores tipos V1 e V2.  Posteriormente,  foram  descobertos  subtipos  do  receptor  V1 que  foram  designados  como  V1 (ou V1a)  e  V3  (ou V1b). O V1 é descrito no fígado, nas células lisas vasculares e na maioria dos tecidos periféricos; no entanto, em humanos, é  encontrado  somente  na  artéria  mesentérica.  O  receptor  V2  está  presente  no  rim  e  nas  plaquetas.  O  receptor  V3  está presente em hipófise, rim, coração, timo, pulmão, baço, útero e glândulas mamárias. Recentemente, foi descrito um quarto receptor,  V4,  presente  no  coração,  cérebro  e  músculos  esqueléticos.  Os  receptores  V1,  V3  e  V4estão,  primariamente, ligados  às  enzimas  fosfolipase  C  (PLC)  e  fosfolipase  A2  (PLA2),  e  têm  como  segundo  mensageiro  o  Ca2+,  enquanto  o receptor V2 está  ligado  à  enzima  adenilciclase  e  tem  como  segundo  mensageiro  o  cAMP.  Apesar  de  o  rim  possuir  três tipos de receptores, somente o receptor V2 responde ao ADH.

Receptor V2 O  receptor  V2  está  localizado  principalmente  na  membrana  basolateral  das  células  principais  dos  ductos  coletores, corticais  e  medulares,  embora  também  exista  na  membrana  luminal  e  na  porção  espessa  ascendente  da  alça  de  Henle (Figura  55.25).  Este  receptor  já  foi  totalmente  clonado  e  sequenciado  no  rato  e  em  humanos,  mostrando  possuir  4 domínios  extramembranais,  7  domínios  intramembranais  e  4  domínios  intracelulares.  Estudos  utilizando  a  técnica  de biologia molecular mostraram que sua 3a alça intracelular é a responsável pela estimulação da proteína G, após o ADH ter ocupado o seu locus de ação situado concomitantemente na 2a e 3a alça extramembranal do receptor. A sua conformação na membrana celular não é linear, sendo que a conexão do ADH no seu locus induz uma alteração alostérica na sua estrutura, tornando­o  capaz  de  interagir  com  a  proteína  G,  que  está  aposta  no  lado  interno  da  membrana  celular.  No  entanto,  a natureza  das  mudanças  dinâmicas  nas  proteínas  do  receptor,  que  produzem  a  ativação  do  complexo  G,  não  é  ainda totalmente conhecida. O número de receptores V2 inseridos na membrana ou sua afinidade ao hormônio são regulados pela presença do próprio ADH. É conhecido que ratos da linhagem Brattleboro (cepa de animais que não produzem ADH por um defeito hereditário) apresentam número de receptores e expressão de mRNA diminuídos em 30% quando comparados com ratos normais; entretanto, depois da reposição hormonal, a expressão de mRNA volta ao normal. Após  a  ligação  do  ADH  ao  receptor,  este  se  interioriza  por  um  processo  de  endocitose,  protegendo­se  de  uma estimulação  contínua.  Depois  de  completar  o  ciclo  de  estimulação,  o  receptor  novamente  se  exterioriza,  ficando  pronto para  um  novo  estímulo.  O  V2 é  também  sensível  a  substâncias  análogas  ao  ADH,  tanto  agonistas,  quanto  antagonistas. Das agonistas, a mais conhecida é a dDAVP, largamente utilizada no uso terapêutico. Das antagonistas ou antirreceptores V2,  classe  de  substâncias  não  peptídicas  conhecidas  como  vaptans,  existem  várias  em  estudos,  e  algumas  já  estão disponíveis para uso clínico. Constituem um instrumento poderoso na terapêutica da hiponatremia decorrente da secreção inapropriada do ADH, secundária a inúmeras patologias. O  receptor  V2  possui  também  a  capacidade  de  estimular  fosfolipases  de  membrana  que  estimulam  a  síntese  de prostaglandina  E2  (PGE2)  a  partir  do  ácido  araquidônico.  Nas  células  principais  do  ducto  coletor  medular  interno,  a PGE2  é  capaz  de  bloquear  a  ação  da  proteína  G,  estabelecendo  um  sistema  de  autobloqueio,  ou  feedback  negativo  do funcionamento do receptor, formando um mecanismo de controle da ação do ADH. Alterações na sequência dos aminoácidos do receptor V2 produzidas por mutações podem determinar uma não resposta do receptor ao ADH, desencadeando um estado poliúrico (com muita urina).

Figura 55.25 ■ Regulação da expressão celular de aquaporina 2 e da sua inserção na membrana luminal da célula principal do ducto  coletor  da  medula  interna.  A  sequência  da  cascata  de  ativação  do  ADH  está  descrita  no  texto.  As  proteínas  dineína  e dinactina fazem o transporte das vesículas até a membrana luminal. Acredita­se que a PKA também participe na fosforilização dos fatores de transcrição CREB­P, responsáveis pela síntese de aquaporina 2 no núcleo. G­prot., proteína G; Gs,  proteína  G estimuladora; Gi, proteína G inibidora; AC, adenililciclase; Ro, outros receptores; PKA, proteinoquinase A; CREB, cAMP­response element  binding  protein;  CREB­P,  CREB  fosforilado;  AP1,  fator  transcripcional;  VAMP­2  e  NSF,  receptores  específicos  da vesícula; sintaxina­4, receptor da membrana. (Adaptada de Nielsen et al., 1999.)

Proteína G reguladora Esta unidade é um complexo de proteínas derivadas da guanina, que apresentam subunidades estimuladoras, chamadas de Gs, e subunidades inibidoras, chamadas de Gi. Este complexo é um heterotrímero, ou seja, é composto por três outras proteínas,  α,  β  e  γ,  que  contém,  ligado  à  unidade  α,  um  GDP.  Após  a  ligação  do  hormônio  ao  receptor,  o  heterotrímero entra em contato com a 3a alça  do  receptor,  substituindo  o  GDP  por  um  GTP.  Em  seguida,  a  proteína  Gs se  dissocia  na subunidade  α,  e  no  heterodímero  βγ.  A  subunidade  α  vai  então  estimular  outra  estrutura  intramembranosa,  a  enzima adenilciclase. Em seguida, a subunidade α hidrolisa o GTP a GDP e se reassocia ao heterodímero βγ, tornando novamente a ser um heterotrímero pronto para um novo ciclo de ativação. Já foram descritas 17 famílias de proteínas G, sendo que o receptor V2 utiliza as subfamílias Gs (estimuladora) e Gi (inibidora), e os receptores V1 utilizam as subfamílias Gq.  Em mamíferos,  a  complexidade  das  proteínas  G  é  grande,  e  foram  identificados  pela  técnica  de  PCR  pelo  menos  15  tipos diferentes de genes responsáveis pela síntese da subunidade α. Entre as subunidades β e γ, também existem diversidades, pois já foram descritos 4 cDNA para a subunidade β e 5 para a subunidade γ.

Adenililciclase A  enzima  adenililciclase  (AC)  faz  parte  de  uma  superfamília  de  pelo  menos  10  isoformas.  É  uma  estrutura extremamente complexa que compõe a cascata de ação do ADH (ver Figura 55.25). Esta unidade catalítica está inserida na membrana  celular  e  possui  6  domínios  extracelulares,  12  intramembranosos  (sendo  2 sets de  6  regiões)  e  7  citosólicos. Cinco isoformas de AC (AC4 a AC9) são expressas no rim de mamífero adulto e destas, a AC6 é a predominante. Em ratos Brattleboro (que não exibem ação do ADH), a expressão de mRNA para estas AC está diminuída, sugerindo que a

presença do ADH é necessária para manter um nível basal desta enzima. Na sequência das reações da cascata do ADH, a AC é responsável pela transformação do ATP em cAMP, que é considerado o segundo mensageiro. Ela é estimulada pela subunidade  α­GTP  da  proteína  G  (nos  seus  domínios  intracelulares  chamados  de  regiões  C1a  e  C2a),  pela  hidrólise  da Gsα­GTP  a  Gsα­GDP.  A  AC  pode  ser  inibida  pelas  unidades  Gi  (inibidoras)  da  proteína  G,  bem  como  também  ser estimulada pelo forskolin, que é um composto diterpênico de origem vegetal.

AMP cíclico (3’,5’­cAMP) A geração de cAMP é extremamente importante não só no sistema do ADH como também para um largo número de hormônios (glucagon, ACTH, TSH etc.). Este segundo mensageiro tem sua quantidade intracelular regulada não só pela sua  síntese,  mas  também  pela  sua  degradação  pela  enzima  fosfodiesterase  (ver  Figura  55.25).  Esta  enzima  degrada  o 3’,5’­cAMP em 5’­cAMP que é um composto inativo (assim como degrada também o cGMP). A fosfodiesterase pertence a  uma  superfamília  de  enzimas,  isozimas  e  suas  isoformas  que  compreendem  mais  de  20  compostos  distintos  e  estão divididos  em  5  famílias  ou  tipos  (de  PDE­I  a  PDE­V)  codificadas  por  um  ou  mais  genes.  Inibidores  da  PDE  são substâncias largamente utilizadas na pesquisa básica e na terapêutica clínica, pois são substâncias que potenciam o efeito do cAMP. Os inibidores mais conhecidos são as xantinas (isobutilmetilxantina ou IBMX, teofilina, cafeína), a papaverina, a  trifluoperazina  e,  mais  recentemente,  a  sildenafila,  usada  em  urologia.  Acredita­se  que  o  cAMP  também  seja  capaz  de diminuir a síntese de PGE2, participando do sistema de feedback negativo ADH­PGE2.

Proteinoquinase A (PKA) Conhecida  como  PKA­dependente  do  cAMP,  foi  purificada  e  clonada  de  vários  diferentes  tecidos.  Consiste  em  um tetrâmero  inativo,  composto  por  duas  unidades  reguladoras  R  e  por  duas  unidades  catalíticas  C  (R2C2).  O  tetrâmero R2C2 é dissociado e ativado pelo cAMP: R2C2 + 4cAMP → R24cAMP + C2. Pelo menos três isoformas da unidade C já foram identificadas, Cα, Cβ e Cγ. A unidade reguladora R tem dois tipos, I e II, cada um com subtipos α e β.

Aquaporinas (AQP) Estudos biofísicos iniciais efetuados na presença de ADH, em membranas de eritrócitos, vesículas de borda em escova de  túbulos  proximais,  ductos  coletores  e  bexiga  de  sapo,  evidenciaram  que  a  rápida  passagem  de  água  por  estas membranas  é  mediada  por  proteínas  específicas.  Posteriormente,  estas  proteínas,  ou  canais  de  água,  foram  identificados em  quase  todos  os  tecidos  do  organismo,  e  foi  verificado  que  formam  um  poro  estreito  que  permite  fluxo  contínuo  de água em fila única ou single­file. Estes canais foram denominados genericamente de aquaporinas (AQP). Em mamíferos, até  o  momento,  foram  identificados  13  tipos  de  AQP.  A  primeira,  isolada  e  clonada  em  oócito  de Xenopus,  foi  a  dos eritrócitos  (CHIP  28  ou  AQP1).  A  AQP  1,  por  existir  em  grande  quantidade  na  membrana  dessas  células,  é  a  mais estudada  e  usada  como  base  para  o  estudo  das  outras  AQP.  Sua  estrutura  é  complexa,  contendo  três  domínios extracelulares  (alças  A,  C  e  E),  6  intramembranosos  e  2  citoplasmáticos  (alças  B  e  D)  juntamente  com  as  porções terminais  NH2  e  COOH  (Figura  55.26).  As  alças  B  e  E  têm  a  sequência  de  aminoácidos  asparagina­prolina­alanina (denominada motivo NPA), ambas inseridas na membrana (ver Figura 55.26). A disposição espacial da AQP na membrana não é linear; ela se dispõe em forma de ampulheta, sofrendo uma rotação que permite que os dois grupos NPA se acoplem formando um poro, com o diâmetro de aproximadamente 6Å, por onde a água passa. Uma unidade de AQP se associa a outras três, tornando­se um tetrâmero que é o complexo que transporta a água. A AQP2 é o canal de água sensível à ação do  ADH.  Estudos  utilizando  a  técnica  de  imuno­histoquímica  em  ducto  coletor  da  medula  interna  (DCMI)  localizaram AQP2  na  membrana  luminal  e  em  vesículas  citoplasmáticas,  mostrando  que  o  ADH  aumenta  a  permeabilidade  à  água, inserindo  estas  vesículas  na  membrana  e  expondo  os  canais  de  água  por  um  processo  de  exocitose.  Estas  vesículas  têm receptores específicos (VAMP2, sinaptotagminas­6, NSF) que se ligam na membrana em outros receptores (sintaxinas e SNAP­23),  proporcionando  a  exocitose  (ver Figura 55.25).  O  processo  de  translocação  destas  vesículas  (trafficking)  no citoplasma  é  complexo  e  feito  por  meio  dos  microtúbulos  e  microfilamentos,  utilizando  proteínas  específicas  como  as dinactinas  e  as  dineínas  (proteínas  motoras).  Todo  este  processo  é  elicitado  pela  PKA,  fosforilando  a  AQP2  inserida  na vesícula. Após expor os canais de água na membrana celular, as vesículas sofrem endocitose, se fechando e voltando para o citoplasma. Acredita­se que a prostaglandina E2 também tome parte na recuperação das AQP da membrana. No ciclo que envolve desde a síntese de AQP2, sua localização na vesícula, inserção da vesícula na membrana luminal e a recuperação da AQP2 por endocitose, cerca de 3% das AQP2 são secretadas para o lúmen tubular e excretadas na urina. Sua dosagem na urina pode ser utilizada no diagnóstico diferencial de patologias do metabolismo de água.

Existem  dois  modos  de  regulação  da  permeabilidade  do  DCMI.  A  regulação  rápida  (ou short­term)  ocorre  de  1  a  5 min após a elevação dos níveis de ADH no plasma e corresponde ao processo descrito anteriormente. No entanto, há uma regulação  lenta  (ou long­term)  que  envolve  a  síntese  da  AQP2  e  a  formação  das  vesículas  para  manter  um  nível  basal intracelular  acessível  no  momento  do  estímulo  pelo  ADH.  A  síntese  de  AQP2  a  partir  do  seu  gene  é  estimulada  pela presença  de  ADH,  por  meio  da  geração  de  cAMP  e  estímulo  da  PKA,  que,  por  sua  vez,  provavelmente,  fosforiliza  a AQP2.  O  cAMP  estaria  também  diretamente  envolvido  por  intermédio  do  CREB  (cAMP­response  element  binding protein), de sua fosforilação (CREB­P) e de um fator transcricional AP1, situado na região 5’­não traduzida do gene da AQP2. Quando o nível de ADH na circulação é baixo, a expressão de AQP2 está diminuída.

Figura  55.26  ■   Modelo  ampulheta  da  aquaporina.  Representação  esquemática  da  organização  estrutural  do  monômero  na membrana e a oligomerização de quatro monômeros formando o tetrâmero. As setas mostram o movimento de entrelaçamento das alças B e E, formando o poro de água, constituído por dois motivos NPA. P, prolina; A, alanina; N, asparagina; C, cisteína; Ex, extracelular; In, intracelular. (Adaptada de Jung et al., 1994.)

Podem ocorrer mutações na sequência das proteínas que compõem a AQP2, determinando um defeito do transporte de água, ocasionando distúrbios no metabolismo hídrico. A  expressão  das  AQP1,  3,  4  e  7  já  foi  detectada  no  rim.  Nas  células  principais  do  DCMI,  as  AQP3  e  4  estão localizadas na membrana basolateral. Estas aquaporinas tomam parte ativa no processo de reabsorção de água, pois, após entrar na célula pela AQP2 situada na membrana luminal, a água sai da célula passando para o interstício pelas AQP3 e 4. A AQP3 também pode ser regulada pelo ADH; isto é, este hormônio pode aumentar a expressão de AQP3 na membrana basolateral,  e  mudanças  na  sua  expressão  podem  também  causar  alteração  no  mecanismo  de  concentração  urinária.  Não existe  relato  de  que  a  AQP4  seja  regulada  pelo  ADH.  Algumas  patologias  do  metabolismo  de  água  são  consequência  de alterações  destes  canais.  Diminuição  da  expressão  de  AQP1  (localizada  no  proximal,  mas  principalmente  nas  células  da porção  fina  descendente  da  alça  de  Henle)  foi  detectada  recentemente,  explicando  defeitos  na  formação  da  medula hipertônica  que,  consequentemente,  causa  alterações  no  mecanismo  de  concentração  urinária.  No  Capítulo  53  há  mais informações e figuras a respeito do ADH.

Transporte de ureia (receptores UT) Outra função importante exercida pelo receptor V2 é a sua ação no transporte de ureia. A ureia é um elemento essencial na  formação  da  hipertonicidade  medular,  que  é  um  dos  dois  fatores  fundamentais  para  a  reabsorção  de  água  no  DCMI. Como  descrito  no Capítulo 53,  a  ureia  que  é  reabsorvida  no  DCMI  vai  para  o  interstício.  Parte  da  ureia  intersticial  é retirada pelos vasos retos e pode penetrar nas hemácias, e a que fica no plasma pode ser novamente filtrada, voltando para os túbulos. A outra parte da ureia intersticial passa diretamente para o lúmen das alças de Henle descendente e ascendente, aumentando  a  sua  concentração  no  lúmen  tubular.  Este  processo  é  chamado  de ciclo  da  ureia (apresentado  em  detalhes no Capítulo 52, Excreção Renal de Solutos). Dois  tipos  de  transportadores  de  ureia  já  foram  clonados  e  sequenciados:  UT­A  e  UT­B.  O  UT­A  apresenta  várias isoformas,  de  1  a  4,  sendo  só  o  UT­A1  localizado  no  DCMI  e  regulado  pelo  ADH;  o  UT­B  encontra­se  na  hemácia  e  é importante na recirculação da ureia. A permeabilidade do DCMI à ureia é regulada pelo ADH por meio do receptor V2 que, ao formar PKA, estimula os transportadores  de  ureia  UT­A1  localizados  na  membrana  apical  da  célula  tubular,  determinando  a  reabsorção  tubular  da ureia por transporte facilitado. A ureia é o produto final do metabolismo das proteínas, e o seu excesso deve ser eliminado pelo rim. Há um processo de  secreção  tubular  de  ureia  que  se  dá  principalmente  no  terço  final  do  DCMI,  e  não  é  dependente  da  ação  do  ADH. Envolve um mecanismo de contratransporte ativo secundário acoplado ao sódio, localizado na membrana apical das células deste segmento, que secreta ureia para o lúmen tubular e reabsorve sódio do lúmen tubular para a célula.

Receptor V1 Pelo fato de o receptor V2 ser o predominante no rim, acreditava­se que o receptor V1 não participasse no transporte de  água.  No  entanto,  trabalhos  recentes  mostram  que  o  receptor  V1b  (ou  V3)  pode  ter  participação  neste  transporte.  O receptor V1b, da mesma maneira que o V2, também estimula uma proteína G, porém da subfamília Gq11 (Figura 55.27). Na membrana celular, a proteína G fosforiliza a fosfolipase Cβ (PLCβ), que por sua vez estimula duas outras vias: ■ Hidrólise do fosfatidilinositol, formando o trifosfato de inositol (IP3), que libera Ca2+ dos estoques intracelulares. O Ca2+ se liga a proteínas (calmodulina e outras) que vão participar da formação dos microtúbulos e microfilamentos e ■ Estimulação do diacilglicerol (DAG), que é um potente ativador da proteinoquinase C (PKC). A PKC é um inibidor da  adenilciclase,  e  pode  regular  a  geração  de  cAMP.  Outra  ação  do  receptor  V1  via  PKC  é  estimular  a  fosfolipase A2 (PLA2)  que,  mobilizando  o  ácido  araquidônico  da  membrana  celular,  leva  à  síntese  de  PGE2,  que,  como  citado anteriormente, também é capaz de inibir a adenilciclase. Recentemente foi descrita uma via alternativa para a estimulação da inserção de AQP2 na membrana luminal do DCMI utilizando, não a via clássica do cAMP, mas uma via que utiliza o cGMP. A L­arginina (que gera óxido nítrico), o peptídio atrial natriurético e o nitroprussiato de sódio estimulariam a enzima guanilatociclase, que transformaria o GTP (trifosfato

de  guanosina)  em  cGMP.  Este  estimularia  uma  PKG  que,  por  vias  ainda  não  bem  definidas,  estimularia  a  PKA  ou fosforilaria a serina 256 da AQP2, promovendo a sua inserção na membrana luminal sem a ação do ADH.

Figura 55.27 ■ Esquema indicando que a ação renal do ADH via receptor V1 se faz pela ativação da proteinoquinase C (PKC) pelo diacilglicerol (DAG). Descrição no texto. (Adaptada de Bichet, 1998.)

▸ Ação do ADH em outras células renais O  ADH  diminui  o  coeficiente  de  ultrafiltração  do  capilar  glomerular  (Kf),  porém,  sem  alteração  significante  da filtração glomerular. Assim, o efeito do ADH na microcirculação glomerular é complexo e não totalmente entendido até o momento. Em cultura de células mesangiais, o ADH determina contração e rearranjamento de estruturas do microesqueleto, bem como estimula o crescimento celular. Desde a década de 1980, é conhecido que o ADH, por meio do receptor V2, estimula o cotransportador Na+:K+:2Cl– da membrana  luminal  da  porção  espessa  ascendente  da  alça  de  Henle  cortical  e  medular,  causador  do  efeito  unitário  do mecanismo  de  contracorrente,  responsável  pela  concentração  do  interstício  medular  (descrito  no  Capítulo  53),  sendo provável que o cAMP gerado estimule a Na+/K+­ATPase da membrana basolateral. Recentemente foi descrita, por estudos com imunoeletromicroscopia, a possibilidade de o ADH aumentar a atividade do cotransportador Na+:K+:2Cl–, regulando o trafficking deste cotransportador até a membrana luminal. A PGE2 estaria também envolvida, pois se ligando ao receptor EP3,  inibiria  a  expressão  desse  cotransportador,  por  inibir  a  adenilciclase  (tendo  sido  verificado  que  a  indometacina  e  o diclofenaco, inibidores da PGE2, aumentam a expressão do cotransportador Na+:K+:2Cl–). Também foi demonstrado que o ADH aumenta a expressão do mRNA do transportador de glicose GLUT­4, aumentando o aporte de glicose para a geração de  ATP  intracelular.  Além  destas,  foram  descritas  outras  ações  da  ADH  neste  segmento,  como  a  participação  na acidificação luminal por atuar no trocador Na+/H+ apical, como também no aumento da reabsorção dos cátions bivalentes cálcio e magnésio.

Ação extrarrenal do ADH É  conhecido  que  o  ADH  também  tem  ação  em  vários  outros  segmentos  do  organismo.  Participa  na  regulação  da pressão arterial, na hemostasia, na função hipofisária, na comunicação célula­célula no SNC, na regulação da sua própria secreção  no  hipotálamo,  no  comportamento  e  na  memória.  Neste  livro,  sua  ação  extrarrenal  está  descrita  nos  capítulos correspondentes a esses sistemas fisiológicos.

▸ Regulação das aquaporinas no rim A  reabsorção  de  água  no  ducto  coletor  pode  se  alterar  rapidamente,  em  questão  de  minutos,  em  resposta  ao  nível  de ADH  circulante.  A  ativação  aguda  dos  receptores  V2 induz  alterações  nas  células  principais  do  ducto  coletor,  que  fazem

com que a AQP2 estocada em vesículas intracelulares se desloque para a membrana apical. Quando os níveis plasmáticos de ADH diminuem, a AQP2, por um processo de endocitose, retorna ao citoplasma. Além desta regulação aguda da permeabilidade à água no ducto coletor, existem alterações a longo prazo na regulação da AQP2 e de outras aquaporinas renais em diversas patologias. A Figura 55.28 ilustra a expressão de AQP2 em várias situações fisiopatológicas e na gravidez; no boxe a seguir são dadas informações a esse respeito.

Figura 55.28 ■ Alterações  na  expressão  de  aquaporina  2  observadas  em  diferentes  distúrbios  do  metabolismo  de  água.  As patologias poliúricas podem ser adquiridas ou hereditárias e apresentam vários graus de diurese. A insuficiência cardíaca e a gravidez são associadas ao aumento de expressão de aquaporina 2 e excessiva retenção hídrica. DI central, diabetes insípido central; DI +/+ rato,  diabetes  insípido  em  rato  Brattleboro; hipo­K,  hipopotassemia;  hiper­Ca,  hipercalcemia;  IRA,  insuficiência renal aguda; IRC, insuficiência renal crônica. (Adaptada de Nielsen et al., 1999.)

Alterações a longo prazo na regulação das AQP Diabetes insípido central Os  ratos  da  linhagem  Brattleboro  apresentam  defeito  no  gene  da  neurofisina,  não  produzindo  ADH  e, consequentemente, têm intensa poliúria (muita urina). A expressão de AQP2 nestes animais está bastante reduzida. Administração de ADH a estes ratos aumenta a expressão de AQP2 e corrige o defeito de baixa concentração  urinária.  É  interessante  observar  que  pacientes  com  diabetes  insípido  central  apresentam baixa  perda  urinária  de  AQP2,  e  a  injeção  de  ADH  aumenta  a  excreção  urinária  de  AQP2,  porém  sem atingir  os  níveis  observados  em  indivíduos  normais,  sugerindo  que  nesses  pacientes  há  redução  dos estoques celulares de AQP2. Diabetes insípido nefrogênico A  poliúria  consequente  à  falta  de  resposta  do  túbulo  coletor  ao  ADH  ocorre  em  diversas  situações clínicas.  Camundongos  com  diabetes  insípido  nefrogênico  hereditário  apresentam  defeito  no  gene  para fosfodiesterase,  resultando  em  atividade  exagerada  desta  enzima  que  metaboliza  o  AMP  cíclico. Consequentemente,  os  níveis  citoplasmáticos  de  AMP  cíclico  diminuem,  levando  à  redução  dos  níveis  de AQP2 a um quarto do observado em cepas normais, o que explica a diurese excessiva destes animais. O diabetes  insípido  nefrogênico  ocorre  com  frequência  em  pacientes  psiquiátricos  tratados  com  lítio,  que chegam a apresentar diurese de 8 a 10 ℓ por dia. Tão intensa poliúria é explicada pela queda, de até 95%, dos níveis de AQP2 na célula do ducto coletor observada em animais tratados com lítio. Hipopotassemia e hipercalcemia Distúrbios  metabólicos,  como  hipopotassemia  e  hipercalcemia,  também  são  acompanhados  por aumento da diurese; porém, esta não é tão intensa quanto a causada pelo lítio, mas é igualmente devida a

menor expressão de AQP2. Desnutrição proteica Na  desnutrição  proteica  ocorre  menor  reabsorção  de  água  no  ducto  coletor.  Estudos  com  animais submetidos a dieta pobre em proteínas mostraram menor expressão de AQP2 nesse segmento tubular. Obstrução urinária É  conhecido  que  pacientes  com  obstrução  urinária  (na  maioria  das  vezes,  idosos  com  hipertrofia prostática),  após  a  desobstrução  da  via  urinária  apresentam  poliúria  que,  de  início,  é  devida  à  diurese osmótica.  Entretanto,  a  persistência  da  poliúria  por  vários  dias  nesses  pacientes  é  explicada  pela  menor expressão de AQP2, observada em modelos animais de obstrução ureteral. Insuficiência renal aguda pós­isquêmica Na insuficiência renal aguda pós­isquêmica (induzida no rato pela ligadura do pedículo renal esquerdo por  45  min  e  nefrectomia  contralateral),  a  diurese  aumenta  nas  primeiras  18  h  após  a  isquemia  e  se mantém  elevada  por  72  h.  O  mecanismo  responsável  por  tal  diurese  foi  estudado  recentemente  em experimentos que demonstram que a AQP2 renal está diminuída, cerca de 45%, nas 18 h após a isquemia, retornando  ao  normal  após  72  h.  Achado  semelhante  foi  verificado  em  modelos  de  insuficiência  renal crônica por ablação renal. Retenção de água Em  situações  clínicas  em  que  a  volemia  arterial  efetiva  encontra­se  diminuída  (como  na  insuficiência cardíaca e na cirrose hepática), ocorre maior liberação de ADH devida à ativação de receptores de volume. Modelos  experimentais  de  insuficiência  cardíaca  congestiva  em  ratos  (induzida  por  ligadura  das  artérias coronárias),  mostraram  aumento  tanto  do  mRNA  quanto  da  proteína  da  AQP2.  O  tratamento  desses animais com um antagonista de receptor V2 por 24 h reverteu o aumento dos níveis de AQP2 e aumentou a diurese.  Em  animais  com  cirrose  hepática  e  ascite  (induzidas  por  tetracloreto  de  carbono),  também  foi observado aumento do nível de AQP2, que diminui com tratamento por antagonista do receptor V2. Gravidez Na gravidez ocorre retenção de água, principalmente no terceiro trimestre. Estudos com ratas grávidas mostraram  que  a  expressão  de  AQP2  está  aumentada,  o  que  explica  a  maior  retenção  de  água  e  a hiponatremia  observada  nesta  condição.  O  bloqueio  do  receptor  V2 por  antagonista  específico  suprime  o aumento da AQP2. Síndrome nefrótica Na  síndrome  nefrótica  induzida  pela  adriamicina  ou  puromicina,  ocorrem  retenção  de  água  e  ascite. Apesar  de  o  ADH  plasmático  estar  aumentado  nestes  modelos,  os  níveis  de  AQP2  estão  diminuídos.  Tal achado sugere um mecanismo de escape à ação do ADH e que outros sinais, além deste hormônio, podem alterar a expressão de AQP2. Secreção inapropriada (elevada) de ADH Em modelo animal para mimetizar a secreção inapropriada de ADH (produzido pela infusão contínua de ADH  e  sobrecarga  de  água),  também  foi  verificada  diminuição  de  AQP2,  evidenciando  o  fenômeno de escape à ação do ADH descrito anteriormente. Outras aquaporinas Também têm sido descritas alterações na expressão de AQP3 e AQP4, aquaporinas que se situam na membrana  basolateral  do  ducto  coletor  e  que  são  tidas  como  não  sensíveis  ao  ADH.  Recentemente,  foi verificado que a expressão de AQP3 varia com a atividade do ADH; entretanto, nem sempre essa variação se correlaciona com as alterações verificadas com a AQP2, sugerindo que o controle hormonal destas duas aquaporinas seja diferente. Por sua vez, a AQP4 não se altera em muitas destas condições. Diminuição na expressão da AQP1, aquaporina encontrada no túbulo proximal e na porção fina descendente da alça de Henle,  tem  sido  descrita  em  situações  em  que  ocorre  defeito  na  concentração  urinária,  tais  como  a obstrução ureteral, insuficiência renal crônica e alguns modelos de síndrome nefrótica.

As  variações  na  expressão  das  aquaporinas  e  seus  mediadores  ainda  não  estão  bem  esclarecidas, sendo necessários mais estudos para a melhor compreensão da regulação do balanço de água.

Hormônio Paratireoidiano (PTH) Frida Zaladek Gil O  hormônio  paratireoidiano  (PTH)  é  um  polipeptídio  constituído  de  84  aminoácidos,  secretado  pela  glândula paratireoide e essencial para a homeostase do Ca2+. Ele é sintetizado como pré­pró­PTH, que é modificado para pró­PTH no retículo endoplasmático, e a seguir no aparelho de Golgi para PTH; permanece neste local sob forma de vesículas até que  um  estímulo,  em  geral  queda  no  cálcio  ionizado  do  plasma  circulante,  faça  com  que  haja  sua  liberação.  Os  alvos clássicos  do  PTH  são  os  ossos  e  o  rim.  Por  meio  dos  seus  efeitos  na  enzima  1­α  hidroxilase  renal,  o  PTH  estimula  a síntese da forma ativa da vitamina D – a 1,25(OH)2D3 – que age aumentando a absorção do Ca2+ no rim e no duodeno. No rim, o PTH estimula a reabsorção de cálcio pelo ramo ascendente da alça de Henle e início de túbulo distal. O PTH e seus análogos,  PTHrP  (peptídios  PTH­relacionados)  interagem  com  um  receptor  de  membrana,  e  desencadeiam  tanto  a estimulação da adenilciclase e produção de cAMP, como a hidrólise do 4,5­bifosfato de fosfatidilinositol, dependente de fosfolipase C, o que gera IP3 e diacilglicerol. Após a formação do segundo mensageiro, a cAMP ativa a proteinoquinase A,  o  IP3  leva  à  liberação  de  Ca2+  de  seus  depósitos  intracelulares  e  a  DAG  causa  ativação  e  translocação  da proteinoquinase C do citosol para a membrana celular e ativação de canais de Ca2+. A estimulação de PTH também leva a outras  vias  de  sinalização,  como  a  da  PLA2,  e  pode  regular  outras  proteinoquinases,  como  a  MAPK  (mitogen­activated protein kinase). O  Ca2+  é  o  principal  íon  regulador  da  secreção  do  PTH.  Baixos  níveis  plasmáticos  de  Ca2+  ionizado  estimulam  a liberação  de  PTH  pela  paratireoide  em  minutos;  enquanto  altos  níveis  desse  íon  inibem  a  liberação  do  hormônio  e favorecem  a  degradação  do  PTH  dentro  da  própria  glândula.  Assim,  a  relação  do  Ca2+ ionizado  plasmático  e  os  níveis séricos  de  PTH  é  expressa  por  uma  curva  sigmoidal,  na  qual  pequenas  variações  do  Ca2+  circulante  levam  a  grandes variações na secreção do PTH (Figura 55.29).

REGULAÇÃO DA SECREÇÃO DE PTH O efeito do Ca2+ circulante  sobre  o  PTH  é  mediado  por  receptores  específicos,  denominados CaR,  que  pertencem  à família  de  receptores  ligados  à  proteína  G  e  estão  presentes  na  membrana  das  células  da  paratireoide.  O  aumento  no Ca2+ plasmático é sentido pelo CaR, que deflagra uma cascata de sinais intracelulares que resulta na inibição da secreção e síntese do hormônio. Um esquema de vias de regulação da secreção do PTH está mostrado na Figura 55.30.

Figura 55.29 ■ Relação do cálcio ionizável circulante e os níveis de PTH sérico.

Embora  a  expressão  do  CaR  possa  ser  alterada  em  várias  circunstâncias,  uma  característica  particular  da  expressão deste  receptor  é  que  ele  necessita  que  as  células  tenham  uma  apresentação  tridimensional,  ou  seja,  em  monocamadas  de culturas  celulares  o  comportamento  do  receptor  não  reproduz  o  que  ocorre in  vivo.  Outra  característica  interessante  do CaR  é  que  a  sua  expressão  no  tecido  da  paratireoide  não  depende  do  nível  de  cálcio  no  meio  extracelular,  ou  seja,  o Ca2+ não tem ação direta sobre o seu receptor. Um  segundo  regulador  da  secreção  do  PTH  é  o  calcitriol  (forma  ativa  da  vitamina  D).  Este  age  na  paratireoide  por meio do seu receptor específico VDR, que pertence à família dos receptores de esteroides/tireoide. Quando o calcitriol se liga a seu receptor, há a translocação do complexo VDR­calcitriol para o núcleo celular, formando um heterodímero com o receptor  para  retinoide.  Este  complexo  promove  a  inibição  da  transcrição  do  gene  para  PTH.  O  calcitriol  pode  agir, indiretamente,  por  aumentar  a  absorção  do  Ca2+  no  intestino  e,  ao  mesmo  tempo,  estimular  a  reabsorção  óssea.  Ele também regula a própria síntese do CaR, estimulando­a. Pode haver, ainda, uma interferência do calcitriol na regulação do CaR; entretanto, estes dados ainda são controversos.

Figura 55.30 ■ Regulação da secreção de PTH pela célula da paratireoide. CaR, receptor para cálcio.

Outro  fator  que  pode  regular  o  CaR  e  o  VDR  é  o  fósforo,  fora  a  sua  própria  ação  no  estímulo  da  síntese  de  PTH. Alguns estudos mostram que dietas ricas em fósforo são capazes de reduzir a expressão do CaR e do VDR. Outro regulador que deve ser lembrado é o alumínio, que inibe a secreção do PTH e interfere na regulação do CaR e do VDR.

▸ Relação entre fósforo e PTH O  PTH  é  um  hormônio  que  causa  fosfatúria  (aumento  de  fosfato  na  urina).  A  reabsorção  de  fosfato  no  túbulo proximal é o maior regulador da homeostase do fosfato. A entrada de fosfato na célula é feita por meio de um cotransporte

ativo  secundário,  localizado  na  borda  em  escova  da  membrana  apical,  que  transporta  3Na+ e  1  íon  fosfato  (na  forma  de HPO42– ou  de  H2PO4–);  esse  cotransportador  é  denominado  NaPi.  O  PTH  leva  à  redução  na  expressão  do  cotransporte sódio­fósforo, fazendo com que os cotransportadores NaPi sejam inibidos.

EFEITOS DO PTH

▸ Rins e ossos Os principais locais de ação do PTH são os rins e ossos. Informações detalhadas a respeito da atuação desse hormônio nos rins são dadas no Capítulo 52, e nos ossos, no Capítulo 76, Fisiologia do Metabolismo Osteomineral.

▸ Enterócitos O  cálcio  é  absorvido  no  sistema  digestório  pela  via  transcelular  –  principalmente  no  intestino  delgado  –  e  pela  via paracelular, ao longo de todo o intestino. O  PTH,  similarmente  à  sua  ação  no  rim,  estimula  o  influxo  de  Ca2+ na  célula  duodenal,  envolvendo  a  ativação  de canais dependentes de voltagem e também utilizando a via do cAMP. Os canais dependentes de voltagem são modulados tanto  por  PKC  como  por  PKA.  O  hormônio  induz  rápida  mobilização  dos  depósitos  intracelulares  de  Ca2+,  seguida  de influxo  de  Ca2+ do  meio  extracelular  para  o  intracelular.  Dentro  do  enterócito,  o  cálcio  se  liga  à  calbindina  D­9k,  que mantém o Ca2+ baixo e participa no transporte do Ca2+ do lúmen tubular para a região basolateral. No  intestino  delgado  são  encontrados  receptores  do  tipo  1  para  PTH  (PTHR1).  Vários  trabalhos  experimentais mostraram que este receptor encontra­se tanto na borda luminal como na basolateral dos enterócitos, sendo a expressão na membrana basolateral cerca de sete vezes a da membrana luminal. O PTHR1 também foi demonstrado em citoplasma e em núcleos  de  enterócitos;  entretanto,  esta  última  localização  ainda  não  tem  seu  significado  fisiológico  esclarecido. Interessante  notar  que,  durante  o  envelhecimento,  a  expressão  do  PTHR1 na  membrana  basolateral  e  citoplasma  tende  a diminuir, talvez explicando o déficit na absorção intestinal de Ca2+ observada em indivíduos idosos. Outra  ação  do  PTH  nos  enterócitos  é  a  ativação  de  sinais  mitogênicos,  pela  via  das  proteinoquinases  ativadas  por mitógenos, as MAPK. Um esquema de transporte de Ca2+ em enterócitos é mostrado na Figura 55.31 e mais informações sobre esse assunto são dadas no Capítulo 63, Absorção Intestinal de Água e Eletrólitos.

Figura 55.31 ■ Esquema do transporte de cálcio em enterócitos. A. A reabsorção transcelular de cálcio envolve três fases: (1) entrada de cálcio por canais localizados no brush border da membrana luminal; (2) difusão intracelular mediada pela proteína citoplasmática ligadora de cálcio (calbindina D­9K) e por transporte vesicular; e (3) extrusão celular pela membrana basolateral, mediada principalmente pela Ca2+ ­ATPase e, em menor grau, pelo trocador Na+ /Ca2+ . B. Modelo  proposto  para  os  efeitos  do PTH no transporte intestinal de cálcio. A interação do PTH com seu receptor resulta na estimulação dos segundos mensageiros: adenililciclase/cAMP e PLC/IP3/DAG, com subsequente ativação da PKA e PKC, abertura de canais de Ca2+  tipo L, fosforilação e liberação de Ca2+  dos seus estoques intracelulares. Esse transiente aumento de Ca2+  intracelular estimula o transporte vesicular transcelular de Ca2+  com consequente exocitose do íon. (Adaptada de Boland, 2004.)

▸ Sistema cardiovascular Uma  relação  entre  insuficiência  cardíaca  congestiva  e  insuficiência  renal  crônica  (IRC)  é  conhecida  de  longa  data.  A função  ventricular  pode  estar  prejudicada  pela  anormalidade  na  produção,  utilização  e  transferência  de  energia  do miocárdio. Receptores para PTH e PTHrP já foram identificados no miocárdio e a função cardíaca normal parece depender de adequado controle na secreção do PTH. O  PTH  é  também  um  potente  vasodilatador.  O  mecanismo  pelo  qual  o  PTH  ou  seus  aminofragmentos  induzem vasodilatação parece ser complexo. Uma das ações seria por inibição do canal de Ca2+ tipo L ou por indução da produção de prostaglandinas locais. Receptores para PTH estão presentes nas células de músculo liso arterial e no endotélio. Ligado a esse fato, a prevalência de hipertensão é maior em pacientes com hiperparatireoidismo (HPT).

▸ Sistemas muscular e imunológico

É verificada perda de massa muscular no HPT primário ou secundário (decorrente da IRC). É provável que o excesso de PTH leve a aumento na proteólise muscular. Na  IRC,  a  suscetibilidade  a  infecções  é  aumentada.  Este  fato  é  devido  à  queda  na  produção  de  imunoglobulinas  e  à inibição  na  ação  de  leucócitos.  Tanto  os  linfócitos  T  como  os  linfócitos  B  mostram  resposta  diminuída  a  estímulos proliferativos.

▸ Metabolismo lipídico Aumento nos triglicerídios é comum em pacientes com IRC. Nessa enfermidade, a atividade e a expressão da lipase lipoproteica estão diminuídas e a oxidação de ácidos graxos nos músculos esqueléticos e no miocárdio é prejudicada.

▸ Pele Na uremia (elevação de ureia no sangue) crônica, são comuns calcificações da pele e tecidos moles. Em pacientes com HPT secundário à IRC, a paratireoidectomia (retirada da paratireoide) diminui a deposição de cálcio na pele. Receptores para PTH já foram demonstrados nos fibroblastos da derme e em queratinócitos.

▸ Órgãos endócrinos A administração exógena de PTH pode estimular a liberação de prolactina. O  PTH  estimula  também  a  liberação  de  aldosterona  induzida  pela  angiotensina  II.  Em  experimentos  com  animais, receptores para PTH foram identificados na própria zona cortical de glândulas suprarrenais. A  secreção  de  insulina  é  prejudicada  na  IRC,  sendo  que,  após  paratireoidectomia,  as  ilhotas  pancreáticas  tendem  a normalizar sua função.

▸ Outros órgãos Várias  ações  do  PTH  foram  demonstradas  em  órgãos  e  sistemas  não  citados,  classicamente,  como  alvo  da  ação  do hormônio. Estudos clínicos e também experimentais, nos quais foi verificado excesso de PTH circulante, como na IRC, trouxeram à luz ações não conhecidas do PTH. Nestas condições, existe resistência à ação do PTH por: (1) diminuição nos receptores celulares de PTH ou PTHrP ou (2) alteração na transdução do sinal intracelular em resposta ao hormônio. Nos  casos  de  IRC,  o  HPT  secundário  leva  a  aumento  do  Ca2+  citosólico  de  muitos  órgãos  e  células.  Uma  das consequências  sérias  é  a  inibição  das  vias  oxidativas  mitocondriais  e  a  inibição  da  produção  de  ATP,  que  trazem  um desajuste em todos os sistemas que dependem de energia, inclusive da extrusão de Ca2+ da célula – quer pela troca com Na+ ou pela Ca2+­ATPase. No  sistema  nervoso,  o  excesso  de  PTH  altera  o  funcionamento  de  sinaptossomas  (terminações  nervosas  na  região subsináptica), alterando a resposta de condução nervosa e levando a alterações eletroencefalográficas.

▸ Gestação No  feto,  a  função  das  paratireoides  pode  ser  detectada  ao  redor  da  12a  semana  de  gestação,  mas  a  resposta  à hipocalcemia aparece ao redor da 25a semana. As necessidades minerais do feto com relação ao cálcio, fósforo e magnésio são supridas pela placenta. A partir da 25a semana de gestação, a mineralização óssea aumenta em 4 vezes e o acréscimo de  Ca2+  pode  chegar  a  350  mg/dia.  O  fosfato  tem  seu  pico  de  acréscimo  máximo  na  metade  da  gestação  e  então  se estabiliza até o nascimento. Os rins são capazes de converter a 25(OH)D na 1,25(OH)2D ao redor da 28a semana de gestação; mas o fígado só fica maturo com relação à 25­hidroxilase ao redor da 36a semana. O PTH e os níveis de 1,25(OH)2D são baixos no feto e, provavelmente, têm um efeito limitado na sua fisiologia. O hormônio principal que regula o metabolismo do cálcio no feto é o PTHrP. O  recém­nascido  é  hipercalcêmico  e  hiperfosfatêmico  se  comparado  à  mãe.  Como  ele  necessita  de  maiores  estoques para o crescimento e desenvolvimento, a parada do fornecimento transplacentário de minerais pode ser compensada pelo aumento nos níveis sanguíneos de cálcio e de fósforo. Estes valores voltam ao normal dentro das primeiras 48 h após o nascimento, quando o PTH e a 1,25(OH)2 tomam o controle destes íons.

ALTERAÇÕES NOS PERFIS DE CÁLCIO, FOSFATO E PTH APÓS O NASCIMENTO

Nos primeiros dias após o nascimento ocorrem várias alterações metabólicas. O suprimento materno de Ca2+ não está mais  disponível  e  o  neonato  deve  se  adaptar  a  estas  novas  condições.  Então,  para  que  os  níveis  plasmáticos  sejam mantidos, o recém­nascido inicia a mobilização do Ca2+ ósseo e aumenta sua absorção intestinal. A concentração do Ca2+ total e ionizado é maior no sangue do cordão umbilical do que no materno. O mesmo acontece com o magnésio e o fosfato. Ao  nascimento,  o  PTH  está  diminuído  e  o  PTHrP,  aumentado;  mas  este  perfil  logo  se  modifica  nas  primeiras  48  h após o nascimento, quando o PTH e a vitamina D assumem seus papéis na manutenção da calcemia e da fosfatemia. Neste período,  tanto  o  Ca2+ total  como  o  ionizado  mostram  um  decréscimo,  tendendo  a  assumir  valores  normais  a  partir  do 3o dia de vida.

NOVOS MECANISMOS REGULADORES DA CALCEMIA E DA SECREÇÃO DE PTH A  descoberta  de  novos  genes  que  têm  influência  na  calcemia,  na  fosfatemia  e  no  metabolismo  da  vitamina  D  vem adicionando  novos  conceitos,  não  só  sobre  a  regulação  do  metabolismo  ósseo  e  mineral,  como  do  papel  destes  novos genes  no  processo  de  envelhecimento  –  que  inclui  alterações  na  epiderme,  esterilidade,  atrofia  muscular,  osteoporose, calcificação vascular, hipoglicemia e hipofosfatúria. O achado de duas novas moléculas, klotho e FGF­23 (fibroblast growth factor), foi essencial para a obtenção de mais informações sobre a regulação da calcemia, fosfatemia e secreção de PTH. O FGF­23 é uma proteína que contém 251 aminoácidos e é secretada por osteoblastos e osteócitos após a estimulação por  fosfato  ou  vitamina  D.  O  FGF­23  inibe  a  reabsorção  de  fosfato  no  túbulo  renal,  a  atividade  da  1α­hidroxilase  e  a síntese de calcitriol. O  gene  do  klotho  foi  descrito  em  camundongos  geneticamente  modificados  que  exibiam  envelhecimento  precoce, osteopenia, hipercalcemia e hiperfosfatemia. Este gene codifica uma proteína que tem, pelo menos, quatro modos de ação: ■ O klotho age como glicuronidase, e pode atuar em diversos sistemas metabólicos, como no dos estrióis e no próprio canal de Ca2+ ■ Pode agir como fator humoral, ligando­se a um receptor de membrana, ainda não identificado, deflagrando a cascata da proteinoquinase C no rim e nos testículos. A ativação deste receptor também leva à inibição da cascata intracelular da insulina e/ou IGF­1. Esta atividade, provavelmente, contribui para o efeito antienvelhecimento do klotho ■ O klotho age como cofator ou correceptor de outras proteínas, tipo FGF­23 ■ O  klotho  interage  fisicamente  com  a  Na+/K+­ATPase  nas  células  da  paratireoide  e  regula  a  secreção  estimulada  por PTH. Em animais com deleção do gene para klotho, a Na+/K+­ATPase está diminuída na paratireoide e a secreção de PTH é prejudicada. O  metabolismo  do  fosfato  é  também  prejudicado  e  há  aumento  na  forma  ativa  da  vitamina  D  no  plasma,  juntamente com  hipercalcemia.  Paralelamente,  há  aumento  na  excreção  fracional  de  Ca2+  urinário;  e  o  metabolismo  ósseo  mostra alteração tanto na osteogênese como na reabsorção óssea, resultando em osteopenia.

Eritropoetina Aníbal Gil Lopes Como visto nos Capítulos 49 a 54, os mecanismos de depuração plasmática renal desempenham importante papel na manutenção  do  volume  do  líquido  extracelular,  da  sua  composição  e  das  suas  características  físico­químicas,  tais  como osmolalidade  e  pH.  Adicionalmente,  os  rins  atuam  na  regulação  da  pressão  arterial  e  das  condições  hemodinâmicas  do organismo,  por  meio  de  diferentes  sistemas  hormonais,  hormônios  isolados  e  autacoides  de  origem  renal,  tais  como  o sistema renina­angiotensina­aldosterona, as cininas e as prostaglandinas. A descoberta da eritropoetina (EPO) revelou uma nova faceta do rim, a de sensor de oxigênio e regulador da eritropoese. Assim, ao lado das funções bem estabelecidas e classicamente  estudadas,  os  rins  também  desempenham  papel  fundamental  na  manutenção  de  outros  importantes parâmetros fisiológicos, tipo hematócrito, viscosidade sanguínea e capacidade do sangue de transportar O2 e CO2. Apesar  de  os  rins  exibirem  elevado  fluxo  sanguíneo  e  baixa  extração  de  oxigênio,  suas  tensões  de  oxigênio  são bastante  heterogêneas  e  atingem,  na  região  medular,  níveis  inferiores  aos  do  sangue  venoso  renal.  O  processo  renal  que

mais consome O2 é a reabsorção proximal de sódio; esta é proporcional à massa filtrada desse íon, razão pela qual há uma relação direta entre o consumo de O2 e o ritmo de filtração glomerular (RFG). A oferta de O2, por sua vez, é proporcional ao fluxo sanguíneo renal (FSR). Logo, nos rins, a relação entre a demanda e a oferta de O2 pode ser traduzida pela fração de  filtração  (FF),  que  é  a  razão  entre  o  RFG  e  o  FSR.  Como  exposto  no  Capítulo  50,  em  indivíduos  saudáveis  em condições normais, estes parâmetros são bem controlados, de tal modo que a FF é mantida constante. Todavia, o controle estreito desses parâmetros, denominado autorregulação do fluxo sanguíneo renal, é um fenômeno renal cortical, que não ocorre no fluxo sanguíneo renal medular. A  baixa  tensão  de  oxigênio  verificada  na  região  renal  medular,  alcançando  níveis  inferiores  aos  do  sangue  venoso renal,  é  devida  ao  fato  de  os  ramos  arteriais  e  venosos  dos vasos retos se  manterem  justapostos,  com  contato  próximo entre si, no trajeto em contracorrente que fazem ao acompanhar as estruturas descendentes e ascendentes da alça de Henle (ver  Figura  49.6,  no  Capítulo  49,  Visão  Morfofuncional  do  Rim).  Tal  justaposição  vascular  possibilita  a  passagem  de oxigênio  do  ramo  arterial  descendente  diretamente  ao  ramo  venoso  ascendente,  criando  um  curto­circuito  antes  que  o sangue  passe  a  percorrer  seu  leito  longitudinal  ao  longo  da  medula  renal  em  direção  à  papila.  Portanto,  como  ilustrado na Figura 55.32, forma­se um gradiente de O2 ao longo da medula, e as tensões de oxigênio se reduzem com o aumento da distância da superfície renal, alcançando níveis abaixo de 10 mmHg na região papilar. Isto faz com que, em certas regiões do rim, o tecido possa ser submetido a grandes variações da pressão parcial de oxigênio. Assim sendo, não é de admirar que  no  processo  evolutivo  o  rim  tenha  desenvolvido  a  função  de sensor  de  oxigênio associada  à  produção  de  um  fator humoral  capaz  de  regular  a  produção  de  eritrócitos.  Estas  características  permitem  que  o  rim  apresente  a  capacidade  de ajustar a produção de EPO em resposta às mudanças na oferta de oxigênio que recebe. Entende­se  por  hematopoese  a  formação,  o  desenvolvimento  e  a  maturação  dos  elementos  do  sangue  –  eritrócitos, leucócitos  e  plaquetas  –  a  partir  de  um  precursor  celular  comum  e  indiferenciado,  conhecido  como  célula  hematopoética pluripotente  ou  célula­tronco.  Apesar  de  a  EPO  ser  um  modulador  crítico  da  eritropoese,  sua  liberação  não  está relacionada com a concentração de glóbulos vermelhos, mas com a redução da pressão parcial de oxigênio. Por essa razão, os estudos para a compreensão do controle da secreção da EPO levaram à pesquisa dos mecanismos sensíveis à pressão parcial de O2 presentes no tecido renal, responsáveis pela regulação da produção desse hormônio. É amplamente aceito que mudanças na concentração de O2 provocam respostas tanto agudas como crônicas; entretanto, enquanto as respostas agudas implicam alterações na atividade de proteínas preexistentes, as respostas crônicas envolvem modificações na expressão gênica. Fisiologicamente, as concentrações intracelulares de O2 são mantidas dentro de uma faixa estreita, tendo em vista que o excesso de O2 (hiperoxia) leva ao dano oxidativo e o aporte insuficiente de O2 (hipoxia) leva à disfunção celular e, em última instância, à morte da célula. A hipoxia tecidual pode ser causada por: (a) redução da oxigenação do sangue (como ocorre  em  certas  doenças  pulmonares);  (b)  deficiência  na  liberação  de  oxigênio  causada  por  alterações  na  hemoglobina (como  acontece  em  certas  hemoglobinopatias);  (c)  redução  do  número  de  hemácias  ou  de  sua  concentração  de hemoglobina;  e  (d)  aporte  inadequado  de  sangue  causando  anemia  localizada  (i. e.,  isquemia),  como  resultado  do  baixo débito  cardíaco  ou  obstrução  vascular.  Vários  mecanismos  fisiológicos  possibilitam  que  os  mamíferos  se  adaptem  à hipoxia,  tais  como:  (a)  aumento  da  secreção  de  EPO,  que  eleva  a  eritropoese;  (b)  indução  da  tirosina  hidroxilase,  que facilita  o  controle  da  ventilação  pelo  corpo  carotídeo;  e  (c)  estímulo  da  gênese  de  novos  vasos  sanguíneos  pela  ação  do VEGF (vascular  endothelial  growth  factor).  Em  nível  celular,  a  hipoxia  induz  uma  série  de  alterações  metabólicas  que tornam possível a manutenção da geração de energia apesar da redução da oferta de oxigênio. Tendo em vista a amplitude do tema, neste capítulo só serão tratados seus pontos mais relevantes.

Figura 55.32 ■ Representação da formação do gradiente de oxigênio ao longo dos vasos retos. Descrição no texto.

ASPECTOS HISTÓRICOS O conceito de regulação humoral da hematopoese foi formulado em 1906 por Paul Carnot, professor de medicina em Paris,  e  seu  assistente,  Deflandre.  Esses  autores  verificaram  que  o  plasma  retirado  de  animais  estimulados  por sangramento,  quando  injetado  em  animais  controle,  provoca  aumento  do  número  de  glóbulos  vermelhos  imaturos circulantes.  A  partir  dessa  observação,  propuseram  a  existência  de  um  fator  humoral  que  denominaram  hemopoetina. Posteriormente,  outros  estudos  confirmaram  a  existência  de  um  fator  humoral  capaz  de  regular  a  formação  de  glóbulos vermelhos,  que  passou  a  ser  chamado  eritropoetina.  Em  1977,  a  EPO  foi  purificada  a  partir  da  urina  de  indivíduos humanos anêmicos e, em 1985, com base na sua sequência de aminoácidos, foi clonada, o que levou ao desenvolvimento de EPO recombinante para uso clínico.

ERITROPOETINA | CARACTERÍSTICAS E PRINCIPAIS AÇÕES O gene EPO está localizado no cromossomo 7 e codifica uma cadeia polipeptídica que contém 193 aminoácidos que, ao longo do processo de secreção, resulta em uma proteína circulante com 165 aminoácidos. A forma madura do hormônio é  uma  glicoproteína  com  30,4  kDa,  e  cerca  da  metade  do  seu  peso  molecular  é  constituída  por  hidratos  de  carbono  que podem  variar  entre  as  diferentes  espécies  animais.  Os  açúcares  presentes  em  sua  estrutura  contribuem  para  sua solubilidade, metabolismo in vivo e processamento celular. Como indicado na Figura 55.33, a EPO apresenta 3 locais de N­glicosilação  (asparagina  –  nas  posições  24,  38  e  83)  e  um  de  O­glicosilação  (serina  –  na  posição  126).  Sua  estrutura terciária é globular e caracterizada por 4 hélices α (A, B, C e D) e 2 folhas β antiparalelas. As  quatro  cadeias  glicosiladas  da  EPO  são  importantes  para  sua  atividade  biológica.  Esses  oligossacarídios estabilizam  a  molécula  e  a  protegem  dos  radicais  ativos  de  oxigênio.  Como  outras  glicoproteínas,  a  EPO  circula  como um pool de isoformas que diferem na glicosilação, massa molecular, atividade biológica e imunorreatividade.

Figura 55.33 ■ Estrutura tridimensional da eritropoetina. Note três locais de N­glicosilação (asparagina, nas posições 24, 38 e 83; indicados em amarelo) e um de O­glicosilação (serina, na posição 126; indicado em preto), 4 hélices α (A, B, C e D, em rosa) e 2 folhas β antiparalelas (em azul). (Adaptada de Boissel et al., 1993.)

Durante o período fetal a EPO é produzida nos hepatócitos. Estudos recentes mostraram que, durante a embriogênese, fibroblastos  derivados  da  crista  neural  migram  para  os  espaços  peritubulares  intersticiais  do  rim  dando  origem  aos fibroblastos reponsáveis pela produção de EPO. Após o nascimento, em condições de normoxia, praticamente toda a EPO circulante  é  originada  na  região  do  interstício  justamedular  renal,  como  indicado  no  painel  A  da  Figura  55.34.  Como

representado  no  painel  B  dessa  mesma  figura,  a  EPO  é  produzida  exclusivamente  nos  fibroblastos  peritubulares  5’NT­ positivos (que são capazes de converter o 5’­AMP em adenosina) e captada pelos capilares peritubulares. O painel C dessa figura mostra uma micrografia representativa dessa região. Na medida em que o suprimento de oxigênio renal cai, mais células são recrutadas para expressar a EPO. A indução da  produção  da  EPO  tem  um  ganho  de  resposta  extremamente  alto;  ou  seja,  pequenas  variações  na  tensão  de  oxigênio levam a grandes mudanças nos níveis de EPO. Em  adultos,  pequenas  quantidades  do  mRNA  da  EPO  são  expressas  no  parênquima  hepático,  pulmões,  testículos, útero  e  cérebro.  Recentemente  foi  verificado  que  vários  outros  tecidos  secretam  EPO,  tais  como  mioblastos,  células produtoras  de  insulina  e  o  tecido  cardíaco.  Ao  lado  do  seu  papel  na  eritropoese,  descrito  inicialmente,  muitos  estudos atuais vêm demonstrando que a EPO ocorre em diferentes partes do organismo e tem grande importância em vários órgãos e  tecidos,  tipo:  cérebro,  coração  e  sistema  vascular.  Adicionalmente,  também  foi  verificado  que  a  EPO  atua  nas  vias apoptóticas  e  nos  mecanismos  cognitivos.  Durante  a  maturação  infantil,  elevadas  concentrações  de  EPO  foram correlacionadas com aumento da pontuação do Índice de Desenvolvimento Mental. No sistema nervoso, locais primários de produção e secreção de EPO estão no hipocampo, cápsula interna, córtex, mesencéfalo, células endoteliais e astrócitos. A presença do receptor de EPO nos sistemas nervoso e vascular tem suscitado interesse nas potenciais aplicações clínicas da EPO, tais como em doença de Alzheimer, doença de Parkinson, insuficiência cardíaca, transplante cardíaco, cirurgia de revascularização do miocárdio e com o intuito de evitar lesão renal. Com a expansão do conhecimento sobre a EPO, foram identificadas as moléculas que controlam sua expressão gênica, principalmente os fatores de transcrição induzível por hipoxia (HIF). Também foi caracterizado como o receptor dimérico da EPO (EPOR) deflagra as vias de sinalização celular que promovem suas diferentes ações fisiológicas. A presença de EPOR  em  tecidos  não  hematopoéticos  indica  que  a  EPO  é  um  fator  pleiotrópico  de  viabilidade  e  de  crescimento,  com especial potencial efeito neuro e cardioprotetor. Como  exposto  anteriormente,  a  hipoxia  tissular  é  o  principal  estímulo  para  a  produção  de  EPO.  Na  maioria  dos tecidos,  incluindo  o  cérebro,  a  transcrição  do  gene  EPO  e  do  gene  EPOR,  responsável  pela  codificação  do  receptor  de EPOR,  é  diretamente  ativada  pela  via  do  HIF­1  (hypoxia­inducible  factor  1)  em  condições  de  hipoxia,  regulando  suas expressões. A transcrição do gene EPO é mediada pelo intensificador de transcrição que se liga especificamente ao HIF­1. No entanto, a hipoxia não é a única condição que pode alterar a expressão da EPO e do EPOR. A produção e a secreção de EPO  nos  órgãos  reprodutivos  femininos,  por  exemplo,  são  dependentes  de  estrogênio.  Durante  a  evolução  cíclica  do endométrio  uterino,  o  17β­estradiol  pode  levar  a  um  aumento  rápido  e  transitório  do  mRNA  da  EPO  no  útero,  tubas uterinas  e  ovários.  Entretanto,  a  expressão  do  mRNA  da  EPO  induzida  por  hipoxia  no  tecido  uterino  ocorre  apenas  na presença  de  17β­estradiol  e  é  menos  pronunciada  do  que  a  que  ocorre  no  rim  e  no  cérebro.  Vários  distúrbios  celulares podem  alterar  a  expressão  de  EPO  por  meio  do  HIF,  como  hipoglicemia,  exposição  ao  cádmio,  elevação  do  cálcio intracelular  ou  intensa  despolarização  neuronal  gerada  por  ROS  (reactive  oxygen  species)  mitocondrial.  O  estresse anêmico,  a  liberação  de  insulina  e  várias  citocinas,  incluindo  o  ILGF  (insulin­like  growth  factor),  o  fator  de  necrose tumoral­α  (TNF­α),  a  interleucina­1β  (IL­1β)  e  a  interleucina­6  (IL­6),  também  podem  elevar  a  expressão  da  EPO  e  do EPOR.

Figura 55.34 ■ No painel A é representada a distribuição dos fibroblastos peritubulares 5’NT­positivos na região justamedular renal. No painel B é mostrada a localização desses fibroblastos nos espaços intersticiais, delimitados pelos túbulos proximais retos, e em íntimo contato com os capilares peritubulares. No painel C é apresentada uma micrografia (rim do camundongo) em que  pode  ser  visto  o  interstício  peritubular  cortical.  O  espaço  intersticial  entre  os  túbulos  proximais  (P)  e  os  capilares  (C)  é ocupado:  (i)  por  fibroblastos  (seta)  e  seus  processos  expressando  5’NT  (em  vermelho)  e  (ii)  células  dendríticas  (asteriscos)

expressando  moléculas  MHC  classe  II  –  major  histocompatibility  complex  class  II  (em  verde).  Os  núcleos  celulares  estão marcados em azul. A estrutura do tecido é mostrada por microscopia de contraste diferencial de interferência (DIC). A borda em escova dos túbulos proximais é fracamente marcada para 5’NT. Barra 10 μm. (Adaptada de Dunn e Donnelly, 2007; Kaissling e Le Hir, 2008.)

▸ Papel do HIF no controle da expressão gênica da EPO A manutenção da homeostase do oxigênio é uma exigência fisiológica crucial que envolve a regulação coordenada de grande  número  de  genes.  Quando  os  níveis  de  oxigênio  são  baixos,  é  ativada  uma  via  de  resposta  à  hipoxia  que  foi altamente  preservada  ao  longo  da  evolução.  A  análise  molecular  da  resposta  regulatória  da  produção  de  EPO  frente  a variações dos níveis de oxigênio levou à descoberta dos fatores de transcrição induzível por hipoxia (HIF), responsáveis pelas respostas genômicas à hipoxia, situação em que a demanda celular de oxigênio excede a oferta. O  aporte  de  O2  nas  células  dos  animais  unicelulares  e  dos  multicelulares  com  pequenas  dimensões  (tais  como  os nematoides, que têm cerca de 103 células) pode se dar por difusão. Em contraste, para garantir o suprimento adequado de O2 nas  células  dos  mamíferos  adultos  (muitos  dos  quais  têm  mais  de  1013 células),  são  necessárias  células  eritroides  e complexos  sistemas  cardiovascular  e  respiratório.  Originalmente,  os  HIF  podem  ter  surgido  em  animais  multicelulares, para regular o metabolismo energético celular (glicólise versus fosforilação oxidativa), de acordo com a disponibilidade de O2, passando a ser necessário para o desenvolvimento dos sistemas orgânicos nos animais multicelulares complexos. Os HIF  têm  um  envolvimento  crítico  no  desenvolvimento  embrionário,  situação  na  qual  são  necessários  mecanismos rigorosos para regular a atividade transcricional; entretanto, também desempenham importantes papéis na fisiologia pós­ natal  e  estão  associados  à  patogênese  de  muitas  doenças  humanas  graves.  Por  isso,  é  importante  compreender  os mecanismos  moleculares  pelos  quais  o  sinal  fisiológico  (redução  da  disponibilidade  de  O2)  é  transferido  para  o  núcleo, pelo aumento da atividade transcricional dos HIF. A  interação  dos  HIF  com  as  regiões  regulatórias  dos  genes  induzíveis  por  hipoxia  ocorre  por  meio  das  várias sequências regulatórias de DNA existentes na vizinhança desses genes. A sequência­chave está localizada no elemento de resposta à hipoxia (HRE – hypoxia response element), composto pelos nucleotídios nos quais o HIF pode se ligar. Mais de  70  genes  foram  confirmados  como  contendo  o  HRE,  e  mais  de  200  transcrições  são  reguladas  pela  hipoxia, indiretamente pela via do HIF, ou por via independente do HIF. O número de genes­alvo dos HIF conhecidos continua a aumentar,  e  as  funções  tradicionais  das  proteínas  codificadas  proporcionam  uma  base  molecular  para  a  compreensão  de como  o  HIF­1  controla  os  vários  processos  de  desenvolvimento  fisiológico.  No Quadro 55.4 estão  alguns  exemplos  de proteínas codificadas por genes regulados pelo HIF­1. Os produtos desses genes respondem à hipoxia: (i) diminuindo a dependência e o consumo celular de oxigênio e (ii) aumentando  a  eficiência  da  oferta  de  oxigênio  às  células.  Esses  processos  incluem  vasculogênese  e  angiogênese, metabolismo, vasodilatação, proliferação e sobrevivência celular. Essa  regulação  dependente  de  oxigênio  está  presente  em  todos  os  tipos  celulares  testados  até  o  momento, independentemente  da  sua  capacidade  de  produzir  eritropoetina.  Os  dados  experimentais  acumulados  ao  longo  do  tempo mostram que a capacidade de sentir o oxigênio é uma propriedade universal das células de mamíferos e a gama de genes regulados por oxigênio e HIF vai muito além do envolvimento da EPO. De fato, os HIF estão envolvidos na regulação de muitos processos biológicos que facilitam tanto a oferta de oxigênio como a redução da demanda de oxigênio. Os  HIF  são  fatores  de  transcrição  heterodiméricos  compostos  por  duas  proteínas,  HIFα  e  HIFβ,  membros  da superfamília de proteínas bHLH/PAS que têm dois domínios, o bHLH (basic helix­loop­helix), de dimerização e ligação ao  DNA,  e  um  domínio  de  dimerização  denominado  PAS  por  apresentar  proteínas  PER,  ARNT  e  SIM  (PER  – periodic circadian protein; ARNT –  arylhydrocarbon  receptor  nuclear  translocator;  e  SIM  –  single­minded  protein  family).  A maioria das proteínas da superfamília PAS são moléculas presentes em procariotos, que estão envolvidas na transdução de sinal  na  resposta  aos  estímulos  ambientais,  tais  como  luz,  concentração  de  O2 e  estado  redox.  Isto  sugere  que  o  HIF­1 pode  ser  diretamente  regulado  pelo  O2,  pois  os  domínios  PAS  de  várias  proteínas  se  ligam  a  grupos  prostéticos,  como o heme.

Quadro 55.4 ■ Exemplos de proteínas codificadas por genes regulados pelo HIF­1 agrupados segundo sua função fisiológica Metabolismo

Enzimas glicolíticas Lactato desidrogenase A

Fosfoglicerato quinase 1 Aldolase A Aldolase C Fosfofrutoquinase L Piruvato quinase M Enolase 1 Hexoquinase 1 Hexoquinase 2 Desidrogenase gliceraldeído­3­fosfato Triose fosfato isomerase Transportadores de glicose (GLUT­1 e GLUT­3) Adenilato quinase­3 Anidrase carbônica­9 Proliferação e sobrevida

Ciclina G2 Eritopoetina Heme oxigenase­1 IGF (insulin­like growth factor II) IGFBP dos tipos 1, 2 e 3 (insulin­like growth factor binding proteins ­1, ­2 e ­3) NOS2 (óxido nítrico sintase 2) Proteína pró­apoptótica Nip3 Proteína p21 VEGF (fator de crescimento endotelial vascular)

Biologia vascular

Endotelina­1 Receptor adrenérgico a1B HO­1 (heme oxigenase 1) NOS2 (óxido nítrico sintase 2) Adrenomedulina PAI (inibidor do ativador do plasminogênio tipo 1) TGF­b3 (transforming growth factor beta 3)

VEGF (fator de crescimento endotelial vascular) VEGFR (receptor do fator de crescimento endotelial vascular) Eritropoese/ferro

Eritropoetina Receptor de eritropoetina Transferrina Receptor de transferrina Ferroxidase

As  subunidades  HIFβ  (ARNT1,  ARNT2  e  ARNT3)  são  proteínas  nucleares  constitutivas  do  tipo  ARNT  que participam de outras vias de transcrição. Em contrapartida, todas as três subunidades HIFα (HIF­1α, HIF­2α e HIF­3α) são proteínas cujos níveis são altamente induzidos pela hipoxia. Como  esquematizado  na Figura 55.35,  o  HIF­1α  também  apresenta  um  domínio  denominado  ODDD  de  degradação dependente  de  oxigênio  e  dois  domínios,  C  e  N­terminal,  de  ativação  transcricional  (TAD  –  transactivation  domain). Mediante  um  sinal  de  localização  nuclear  (NLS),  situado  na  região  C­terminal,  o  HIF­1α  estabilizado  pode  se  ligar rapidamente a proteínas do poro da membrana nuclear e se translocar para o interior do núcleo. No HIF1­β também ocorre o NLS. Enquanto mudanças na oferta de oxigênio não afetam os níveis de HIF­1β, a subunidade HIF­1α não é detectável em células em normoxia, pois nessa condição sua meia­vida é muito curta (menos de 5 min).

Figura 55.35 ■ Domínios dos fatores de transcrição HIF. Tanto o HIFα como o HIFβ têm domínios bHLH e PAS e o NLS. O HIFα contém domínios ODDDs, N­TAD e C­TAD. Descrição no texto.

Nos rins, são expressos o HIF­1α e o HIF­2α. Enquanto o HIF­2α é encontrado principalmente nas células endoteliais e  células  intersticiais  do  tipo  fibroblastos­símile,  o  HIF­1  é  expresso  na  maioria  das  células  epiteliais  e  nas  células intersticiais e endoteliais das regiões medular interna e papilar, mas não foi detectado nas células endoteliais e intersticiais do córtex nem da medula externa. Como ilustrado na Figura 55.36, resultados obtidos em ratos submetidos à hipoxia por 5 h mostram claro aumento da expressão  de  HIF­1α  na  região  papilar,  enquanto  a  expressão  da  subunidade  HIF­2α  ocorre  nas  células  peritubulares  do córtex,  nas  células  intersticiais  fora  dos  raios  medulares  e  nas  células  endoteliais  dos  capilares  dentro  dos  feixes vasculares da medula externa. Foram  identificados  dois  mecanismos  primários  de  regulação  da  atividade  do  HIF­1α  pelo  oxigênio,  ilustrados na  Figura  55.37.  O  primeiro  deles  se  deve  ao  fato  de  que,  sob  condições  de  normoxia,  o  domínio  de  degradação dependente  de  oxigênio  (ODDD)  da  subunidade  HIF­1α  é  reconhecido  pelo  produto  do  gene  supressor  de  tumor  de  von Hippel­Lindau  (VHL).  O  VHL  é  um  dos  componentes  do  complexo  multiproteico  ubiquitina  ligase  denominado  VBC (VHL/elongina B/elongina C), que liga covalentemente o HIF­1α à cadeia de ubiquitina (Ub), o que causa o atracamento no complexo proteossomal que seletivamente degrada as proteínas conjugadas à ubiquitina. O reconhecimento do HIF­1α pelo VHL depende da hidroxilação de resíduos de prolina. Na presença de oxigênio, essa hidroxilação  se  dá  por  meio  das  proteínas  do  domínio  prolil  hidroxilase  –  PHD  (prolyl­hydroxylase domain protein), no resíduo  de  prolina  402  do  domínio  de  degradação  dependente  de  oxigênio  –  ODDD  (oxigen­dependent  degradation domain) e no resíduo de prolina 564 do domínio N­terminal. O segundo processo citado anteriormente corresponde à hidroxilação, na presença de O2, da asparagina, localizada na posição  803  do  domínio  de  transativação  C­terminal  do  HIF­1α,  catalisada  pelo  fator  de  inibição  do  HIF  (FIH).  Esta hidroxilação  impede  a  ativação  do  HIF­1α,  pela  redução  da  capacidade  do  HIF­1α  em  se  ligar  aos  coativadores transcricionais p300 e CBP (CREB­binding protein).

Tanto as PHD como o FIH são dioxigenases pertencentes à família das enzimas heme não oxidantes. Suas atividades são  dependentes  de  oxigênio  e  de  2­oxoglutarato,  tendo  Fe2+  (ferro  não  heme)  como  cofator.  Na  presença  de  Fe2+,  as moléculas de O2 dão origem a dois átomos, um dos quais se transfere para a hidroxila do resíduo de prolina ou asparagina e o outro é transferido para o 2­oxoglutarato (um intermediário do ciclo de Krebs), formando succinato e CO2. Como se ligam  diretamente  ao  oxigênio,  é  atribuída  a  estas  enzimas  a  função  dos  sensores  de  oxigênio  envolvidos  na  resposta hipóxica. Assim sendo, sob condições de hipoxia, a prolil hidroxilação está bloqueada, pois um menor número de moléculas de O2  está  disponível  para  se  ligar  às  PHD  e  ao  FIH.  Dessa  maneira,  o  HIF­1α  deixa  de  ser  hidroxilado  e  degradado, resultando em sua maior estabilidade e acumulação.

Figura 55.36 ■ A. Expressão de HIF­1α na papila de ratos expostos a hipoxia por 5 h. (a) Amostra controle em normoxia, não apresentando  coloração  de  base.  (b)  Exemplo  mostrando  significativo  aumento  da  expressão  de  HIF­1α  após  exposição  ao monóxido de carbono. (c e d) Detalhes em maior aumento das respectivas áreas de ponta da papila e da região papilar média, indicadas na micrografia (b). Setas, fibroblastos intersticiais. Aumentos: 20× em a e b; 160× em c e 220× em d. 3, porção fina da alça  de  Henle;  9,  ducto  coletor  medular.  B.  Expressão  de  HIF­2α  em  rins  de  ratos  expostos  a  hipoxia  por  5  h.  (a)  Labirinto cortical. (b) Zona externa da medula externa. (c e d) Zona interna da medula externa. (e) Papila. Células peritubulares no córtex com marcação positiva. Na medula externa, tanto as células intersticiais fora dos raios medulares (seta branca) como as células endoteliais  dos  capilares  dentro  dos  feixes  vasculares  (seta  preta)  apresentam  marcação  positiva.  1,  túbulo  proximal convoluto;  4,  porção  ascendente,  espessa  medular  da  alça  de  Henle;  8,  ducto  coletor  cortical;  9,  ducto  coletor  medular;  G, glomérulo. Aumentos: 100× em a; 220× em b, c e d; 120× em e.(Adaptada de Rosenberger et al., 2002.)

Figura  55.37  ■   Hidroxilação  do  HIFα.  Detalhes  explicados  no  texto.  OH,  grupo  hidroxila;  P,  resíduo  prolil;  N,  resíduo aspariginil; Ub, ubiquitina; 2­OG, 2­oxoglutarato; PHD, domínio prolil hidroxilase; FIH, fator de inibição do HIF.

O aumento da estabilidade do HIF­1α também pode ocorrer por uma via independente de oxigênio, na qual o HIF­1α se liga à proteína de choque térmico 90 (Hsp90). O uso de inibidores de Hsp90, que impedem sua ligação com o HIF­1α, mostrou  que  nessa  situação  o  receptor  da  proteinoquinase  C  ativada  (RACK1)  pode  se  ligar  ao  HIF­1α  e  recrutar  o sistema  da  ubiquitina  ligase,  potencializando  a  degradação  proteossomal  da  subunidade  α.  Em  algumas  situações,  a hipoxia leva também a aumento do acúmulo de mRNA do HIF­1α. Portanto,  somente  em  condições  de  hipoxia  o  HIF­1α  acumula­se  no  citosol;  isto  permite  que  o  HIF­1α  penetre  no núcleo  e  forme  com  o  HIF­1β  o  heterodímero  HIF­1,  o  qual  induz  a  transcrição  de  muitos  genes,  cuja  expressão  é dependente de hipoxia.

▸ Formação do HIF e sua ação no HRE A  heterodimerização  de  HIF­1α  e  de  HIF­1β  é  mediada  pelos  domínios  bHLH  e  PAS  de  cada  subunidade,  e  é indispensável  para  que  ocorra  ligação  aos  elementos  de  resposta  à  hipoxia  (HRE)  na  região  regulatória  dos  genes­alvo. Esta ocorre por meio das regiões básicas contíguas aos motivos HLH das duas subunidades em contato com o DNA. No  caso  da  expressão  da  EPO,  foram  descritas  duas  regiões  essenciais  para  a  atividade  do  HIF­1:  (i)  o  elemento  de resposta  à  hipoxia  (HRE),  ou  seja,  o  local  de  ligação  do  HIF  (HIF­binding  site  –  HBS),  que  contém  uma  sequência consenso  (A/G)CGTG  com  a  qual  o  HIF1  contata  diretamente,  e  (ii)  a  sequência  ancilar  do  HIF­1  (HAS),  que  é  uma repetição invertida imperfeita, capaz de recrutar fatores de transcrição complexos, diferentes do HIF­1. Uma  vez  no  núcleo,  a  ligação  do  HIF­1  ao  DNA  ocorre  mediante  os  domínios  bHLH  e  os  domínios  localizados  na região  N­terminal  de  cada  subunidade.  As  sequências  específicas  de  DNA  que  são  alvo  do  HIF,  conhecidas  como elementos  de  resposta  à  hipoxia  (HRE),  são  compostas  de  5’­RCGTG­3’  (em  que  R  é  A  ou  G)  e  são  encontradas principalmente nas regiões do promotor, íntron e/ou regiões potenciadoras dos genes­alvo. Ao  se  ligar  ao  elemento  de  resposta  à  hipoxia  (HRE),  o  HIF1  recruta  coativadores  transcricionais  para  formar  um complexo de iniciação, por meio de dois domínios de transativação: o domínio C­terminal regulado por oxigênio (C­TAD, abrangendo os resíduos 786 a 826 do HIF­1α) e o domínio N­terminal (N­TAD, abrangendo resíduos 531 a 575 do HIF­ 1α). Tanto o N­TAD como o C­TAD do HIF­1α são altamente conservados entre as espécies, apresentando conservação de 90%  e  100%  de  aminoácidos,  respectivamente,  entre  ratos  e  seres  humanos.  No  entanto,  em  humanos,  há  pouca similaridade entre o N­TAD e o C­TAD, indicando que cada domínio deva ter papéis diferentes e importantes. Tanto o N­

TAD  como  o  C­TAD  recrutam  coativadores  CBP/p300,  SRC­1,  e  o  fator  intermediário  de  transcrição  2  (TIF­2),  ainda que  interações  diretas  só  tenham  sido  demonstradas  entre  o  C­TAD  e  os  coativadores  CBP/p300.  Os  coativadores transcricionais  CBP  e  p300  são  essenciais  para  a  ligação  de  fatores  de  transcrição,  como  o  HIF,  com  a  maquinaria  de transcrição.  Além  disso,  têm  atividade  histona  acetiltransferase  necessária  para  a  modificação  da  cromatina  antes  da transcrição. Como  o  N­TAD  é  contíguo  ao  ODDD,  é  difícil  distinguir  sua  regulação  específica  da  degradação  de  proteína dependente  de  oxigênio  mediada  pelo  ODDD.  Há  evidências  de  que  o  C­TAD  seja  o  domínio  de  transativação predominante, regulando a maioria, mas não todos, os genes­alvo do HIF. No entanto, um subconjunto de genes­alvo do HIF  depende  exclusivamente  do  N­TAD  e  não  é  influenciado  por  mudanças  na  atividade  do  C­TAD.  Embora  o  HIF­1β tenha seu próprio C­TAD, este parece ser dispensável para a transcrição no contexto do heterodímero HIF1.

▸ Mecanismos de ação da EPO por meio do EPOR A ação da EPO decorre de sua ligação a um receptor de superfície da célula­alvo, o receptor EPO (EPOR). Em vários tipos  celulares  ocorre  paralelamente  a  expressão  da  EPO  e  do  EPOR.  A  expressão  funcional  do  EPOR  ocorre  tanto  nas células  hematopoéticas  como  em  vários  tipos  de  células  não  hematopoéticas,  incluindo  endoteliais,  musculares  lisas, mioblastos esqueléticos, cardiomiócitos, neurônios, fotorreceptores da retina, do estroma hepático, da placenta, do rim e macrófagos. O  EPOR  faz  parte  de  uma  família  de  receptores  de  citocinas  do  tipo  1  e  é  ativado  via  homodimerização.  O  EPOR partilha  com  essa  família  a  estrutura  comum  que  consiste  em  um  domínio  extracelular  de  ligação,  um  domínio transmembranal e um domínio intracelular. O domínio extracelular é necessário para a ligação inicial do EPO e o domínio intracelular é responsável pela transdução de sinalização intracelular.

Interação HIF e HRE O  estudo  de  um  câncer  hereditário,  conhecido  como  síndrome  de  Von  Hippel­Lindau  (VHL),  doença descrita inicialmente em 1894, levou à descoberta do gene VHL, com comportamento típico de supressor de tumor, que apresenta distribuição ubíqua. Por splicing, esse gene dá origem a duas isoformas proteicas que se comportam de modo semelhante, denominadas pVHL. Há algum tempo, foi observado que células de carcinoma renal, que não expressam a forma selvagem da pVHL, apresentam expressivo aumento do mRNA  de  proteínas  VEGF  e  GLUT1,  induzível  por  hipoxia  tanto  em  condições  de  normoxia  como  de hipoxia. Esta observação induziu ao estudo do seu papel na expressão de genes que codificam proteínas que medeiam respostas adaptativas à redução da disponibilidade de oxigênio. Esse estudo indicou que a pVLH  também  tem  distribuição  ubíqua  e  forma  um  complexo  celular  que  contém,  no  mínimo,  elongina  B, elongina C, Cul2 e Rbx1 (RING Box protein 1). A arquitetura deste complexo é semelhante à dos complexos SCF  (SKp1/Cdc53/F­box),  presentes  em  leveduras,  que  servem  como  ligase  de  ubiquitina  E3.  Nesses complexos, a proteína F­box (assim chamada porque um primeiro motivo curto foi identificado na ciclina F) se liga ao alvo a ser destruído. Desses achados, surgiu a pergunta instigante: qual a razão de a pVHL só reconhecer o HIF­α na presença de oxigênio? Foi observado que a pVHL se liga ao HIF­1α só após este ser enzimaticamente hidroxilado nos resíduos prolil,  conservados  no  domínio  de  degradação  dependente  de  oxigênio  (ODDD).  Esta  ligação  é intrinsecamente dependente de oxigênio pelo fato de o átomo de oxigênio do grupo hidroxila ser derivado do  oxigênio  molecular.  Além  disso,  esta  reação  requer  os  cofatores  2­oxoglutarato,  vitamina  C  e  ferro.  A necessidade  deste  último  cofator  explica  a  razão  pela  qual  quelantes  de  ferro  (tais  como  mesilato  de deferoxamina) e antagonistas de ferro (tais como o cloreto de cobalto) mimetizam os efeitos da hipoxia. Três enzimas homólogas, denominadas EGLN1, EGLN2 e EGLN3, contendo domínio prolil hidroxilase, podem  hidroxilar  o  HIF­1α  em  um  dos  dois  locais  de  prolina  presentes  no  ODDD  (Pro­402  e  Pro­564). Resíduos prolil análogos estão presentes no HIF­2a e HIF­3α. Na presença de oxigênio, as proteínas EGLN são ativas e hidroxilam o domínio ODDD do HIF­1a, o que permite que a pVHL se ligue e poliubiquitine o HIF.  Isto,  por  sua  vez,  leva  à  degradação  proteossomal  do  HIF.  Sob  condições  de  hipoxia,  a  enzima  não pode hidroxilar o HIF, e, portanto, o HIF não é reconhecido pela pVHL. Como resultado, o HIF se acumula na célula e fica disponível para ativar a transcrição (ver Figura 55.37). Como o turnover de HIF depende da via  de  hidroxilação  pelas  prolil  4­hidroxilases  (PHD)  e  ubiquitinação  por  VHL,  vários  inibidores  de  PHD

foram desenvolvidos como estabilizadores de HIF para melhorar a produção de EPO e eritrócitos. Em seres humanos  estão  sendo  desenvolvidos  estudos  de  Fases  II  e  III  de  roxadustat,  AKB­6548  e  GSK1278863 (GlaxoSmithKline). Após a clonagem do gene da EPO em 1985, seu receptor foi observado em condições normais, bem como em células eritroides  transformadas.  O  EPOR  se  expressa  nas  células  eritroides,  principalmente,  nos  estágios  de  desenvolvimento CFU­E  e  pronormoblástico.  Durante  a  diferenciação  das  células  eritroides,  o  número  de  EPOR  por  célula  diminui gradualmente,  e  os  reticulócitos  e  o  eritrócito  maduro  não  apresentam  EPOR.  O  gene  do  EPOR  foi  clonado  a  partir  de células eritroleucêmicas murinas. O EPOR é expresso como um dímero com 66 a 78 kDa. Dois locais de ligação, um com alta e outro com baixa afinidade, foram demonstrados no domínio extracelular do EPOR. Como  ilustra  a  Figura  55.38,  ao  se  ligar  à  EPO  o  EPOR  muda  sua  conformação  e  se  autodimeriza  por  meio  da transfosforilação da quinase JAK2, constitutivamente associada aos monômeros do receptor de EPO. Após a EPO ativar o receptor, oito resíduos de tirosina no domínio citoplasmático do EPOR são fosforilados, formando locais de ligação para proteínas  com  domínios  SH2,  iniciando  a  sinalização  intracelular  por  meio  da  fosforilação  da  tirosina  de  diversas proteínas, ainda que o receptor EPO não tenha atividade tirosinoquinase endógena. Isso permite a ativação de várias vias de transdução de sinal, tais como as vias quinase Ras/MAP e fosfatidil inositol 3 quinase (PI3­quinase), além da via que envolve membros da família de transdutores de sinal e ativadores de transcrição STAT (signal transducers and activators of transcription), por meio da fosforilação de um único resíduo de tirosina, o que leva à sua dimerização. As  proteínas  STAT  são  substratos  das  tirosinoquinases  Janus  (Jak2).  Em  mamíferos  há  sete  genes  que  codificam proteínas  STAT,  que  podem  ser  ativadas  por  fosforilação  e  são  consideradas  fatores  de  ligação  ao  DNA.  A  ativação  da Jak2  pela  EPO  resulta  em  fosforilação  e  dimerização  de  STAT.  O  STAT  dimerizado  se  transloca  para  o  núcleo,  onde  se liga aos elementos de resposta específica nos promotores de genes­alvo, e ativa transcricionalmente esses genes. Associadas  a  estas  vias  de  transcrição  estão  as  proteinoquinases  ativadas  por  mitógenos,  que  incluem  as  quinases relacionadas com sinal extracelular (ERK, extracellular signal­related kinases), as quinases c­Jun aminoterminal (JNK, c­ Jun  N­terminal  kinases),  envolvidas  com  a  apoptose,  e  a  MAPK  p38  (p38  mitogen­activated  protein  kinase),  que  pode controlar a proliferação e a diferenciação dos eritroides. No entanto, no que se refere à citoproteção, a EPO não só ativa as STAT3, STAT5 e ERK 1/2, mas também utiliza essas vias para promover o desenvolvimento e a proteção celular.

▸ Algumas vias deflagradas pela EPO por meio do EPOR Ainda que o espectro de ações conhecidas da EPO seja muito amplo, incluindo mitogênese, quimiotaxia, angiogênese, mobilização  de  cálcio  intracelular  e  inibição  da  apoptose,  diariamente  são  descritos  novos  aspectos  que  revelam  seu importante  significado  na  saúde  e  na  doença.  Inicialmente,  foi  suposto  que  a  EPO  atuasse  exclusivamente  em  células progenitoras eritroides. Posteriormente, foi descrito um amplo espectro de ações, sendo confirmada a expressão do gene da EPO em diferentes tecidos e a presença do EPOR em grande número de tipos celulares, tendo sido evidenciadas ações autócrinas e parácrinas da EPO. A seguir serão apresentados alguns aspectos das ações da EPO na apoptose, eritropoese, angiogênese, no tecido neural e no tecido renal.

Apoptose A palavra grega apoptosis, que originalmente significava queda natural das pétalas de flores ou das folhas de árvores, por sugestão do Professor James Cormack do Departamento de Grego da Universidade de Aberdeen, Escócia, foi utilizada pela primeira vez por Kerr e colaboradores, em 1974, para designar a morte celular programada, não seguida da autólise, que ocorre em organismos multicelulares. Esse processo fisiológico de morte está envolvido no mecanismo de renovação celular, necessário para o desenvolvimento e a manutenção da higidez dos tecidos. A  apoptose  envolve  perda  do  potássio  intracelular  com:  redução  do  volume  celular,  falta  da  assimetria  da  membrana pela  exteriorização  de  fosfatidilserina,  perda  da  adesão  celular,  despolarização  mitocondrial,  fragmentação  nuclear, condensação  da  cromatina  e  fragmentação  do  DNA.  A  apoptose  está  envolvida  na  gênese  de  várias  doenças,  tais  como: acidente  vascular  cerebral  isquêmico,  demência,  doença  de  Alzheimer,  lesão  medular  e  infarto  do  miocárdio.  A  EPO previne  a  apoptose  induzida  por  diferentes  estímulos,  tipo  hipoxia,  excitotoxicidade  (liberação  maciça  de neurotransmissores por células atingidas por um estímulo agressor) e exposição a radicais livres. Além de evitar a lesão por apoptose, a EPO atua no desenvolvimento neuronal de células progenitoras, por intermédio do fator nuclear­κB, que

promove  a  produção  de  células­tronco  neurais.  Adicionalmente,  em  vários  modelos  experimentais,  a  EPO  tem demonstrado papel potencial na proteção contra a fagocitose microglial e as lesões trombóticas. Como  esquematizado  na  Figura  55.39,  ao  ligar­se  ao  seu  receptor  EPOR,  a  EPO  deflagra,  por  meio  da  JAK2 (tirosinoquinase Janus­2), várias vias de sinalização que levam à inibição da apoptose, tais como: a proteína transdutora de sinal e ativadora de transcrição 5 (STAT5), a fosfatidilinositol­3­quinase (PI3K) e a Hsp70 (heat shock protein).

Figura 55.38 ■ O primeiro passo para a ativação do receptor de EPO ao se ligar à EPO (a) é sua dimerização (b), o que ocorre mediante o contato entre si das quinases JAK2, que estão associadas aos monômeros, com consequente transfosforilação. Os resíduos de tirosina do EPOR são então fosforilados (c e d), provocando locais de ligação para proteínas com domínios SH2 (e).

Figura 55.39 ■ Esquema de vias de sinalização envolvidas na apoptose. Detalhes no texto.

A fosforilação da STAT5 promovida pela JAK2 leva a sua homodimerização e translocação para o núcleo, onde ativa genes que codificam moléculas antiapoptóticas, como o Bcl­xL, que inibe a caspase 3.

O JAK2, por intermédio da fosfatidilinositol 3­quinase(PI3K) e da proteinoquinase B (PKB), promove a fosforilação em  cadeia  e  a  inativação  de  moléculas  pró­apoptóticas,  tais  como  a  glicogênio  sintase  quinase­3β  (GSK­3β)  e  o  fator  de transcrição  FOXO3a.  A  GSK­3β  desempenha  importante  papel  na  indução  de  apoptose  em  diversos  tipos  celulares, inclusive  neurônios,  células  musculares  lisas  vasculares  e  cardiomiócitos.  O  FOXO3a,  quando  inativado,  é  retido  no citoplasma e, assim, impede a ativação de genes­alvo, como o da FasL (Fas ligand –  proteína  da  família  dos  fatores  de necrose  tumoral,  TNF)  que  induz  apoptose.  Tanto  a  GSK­3β  como  FOXO3a  promovem  processos  pró­apoptóticos mitocondriais;  assim  sendo,  a  inibição  da  GSK­3β  ou  do  FOXO3a  bloqueia  a  ativação  desses  processos. Consequentemente, deixa de haver liberação do citocromo C e a ativação das caspases 1, 3 e 9. As caspases são proteases de  cisteína  sintetizadas  na  forma  inativa  e,  no  início  da  apoptose,  são  proteoliticamente  clivadas  em  subunidades.  De acordo  com  a  sequência  de  ativação,  as  caspases  são  classificadas  como  iniciadoras  ou  efetoras.  Uma  caspase  iniciadora cliva  e  posteriormente  ativa  uma  caspase  efetora  que,  por  sua  vez,  cliva  diretamente  substratos  proteicos,  levando  à destruição celular. As caspases 1 e 3 são associadas às vias de apoptose por clivagem do DNA genômico e exposição de fosfatidilserina de membrana. Neste caso, fica inibida a ação da caspase 9 de clivar e ativar a caspase 3. Desse modo, a caspase  3  deixa  de  ativar  a  caspase  1,  inibindo  seu  papel  na  indução  de  processos  inflamatórios  pela  exposição  de fosfatidilserina  na  membrana  celular.  Além  disso,  como  a  caspase  3  participa  do  direcionamento  das  células  para  a fagocitose, esta deixa de ocorrer por estar inibida. A PBK, por meio da fosforilação da I­κB, possibilita a liberação do fator de transcrição NF­κB, sua translocação para o núcleo e a ativação de genes que codificam moléculas antiapoptóticas, tais como XIAP (X­linked inhibitor of apoptosis protein)  e  c­IAP2  (cellular  inhibitor  of  apoptosis  2).  Por  outro  lado,  a  JAK2  ativa  a  Hsp70  (heat  shock  protein),  que inativa moléculas pró­apoptóticas, tais como o fator ativador de proteases pró­apoptóticas (Apaf­1) e o fator de indução de apoptose (AIF).

Eritropoese O  organismo  humano  adulto  possui  mais  de  30  trilhões  de  hemácias,  o  que  corresponde  a  cerca  de  um  quarto  do número  total  de  células.  Além  disso,  o  volume  dos  eritrócitos  é  superior  a  2  ℓ ,  ou  seja,  quase  10%  do  volume  celular total. Assim, os eritrócitos estão entre os tipos de células mais abundantes do corpo humano. Como a expectativa de vida dos  eritrócitos  é  de  100  a  120  dias,  a  cada  dia  mais  de  200  bilhões  deles  precisam  ser  substituídos,  ou  seja,  devem  ser produzidos cerca de 139 milhões de glóbulos vermelhos a cada minuto. O principal regulador desse processo, assim como outras citocinas, é a EPO. Produzido nos rins, este hormônio está presente no plasma em concentrações picomolares, ou seja, cerca de um centésimo da concentração da grande maioria dos hormônios  circulantes.  A  EPO  induz  a  produção  de  glóbulos  vermelhos  na  medula  óssea,  em  que  se  liga  a  células progenitoras eritroides. Estudos em cultura celular identificaram duas classes de células progenitoras eritroides, BFU­E e (CFU­E).  Ambas  têm  receptores  para  EPO  em  suas  superfícies.  Quando  a  EPO  se  liga  ao  EPOR  nas  células  BFU­E, estas dão origem aos proeritroblastos (CFU­E). Como ilustrado pela Figura 55.40, os proeritroblastos, pela ação da EPO, à qual são extremamente sensíveis, proliferam e se desenvolvem em eritroblastos e reticulócitos que entram na circulação periférica, onde amadurecem, dando origem às hemácias circulantes. A falta de EPO pode causar vários distúrbios fisiológicos. Se, por exemplo, seu nível plasmático é reduzido, o nível de hemoglobina pode cair para 7 ou 8 g/dℓ, em vez do nível normal de 14 a 16 g/dℓ. A anemia resultante provoca falta de ar e sensação de cansaço. Por outro lado, níveis elevados de EPO estimulam a produção das células vermelhas do sangue, causando  policitemia,  condição  em  que  aumenta  a  viscosidade  do  sangue,  o  que  pode  levar,  por  exemplo,  a  danos cerebrais.

Figura 55.40 ■ Etapas da eritropoese. Detalhes no texto.

Ainda que a via de sinalização da EPO seja necessária para a eritropoese em condições de estresse, ela é dispensável para a eritropoese no estado estacionário. Por outro lado, a EPO leva à maturação dos eritrócitos por inibir a apoptose das células eritroides. A  expressão  do  EPOR  em  tecidos  hematopoéticos  é  essencial  para  a  eritropoese  normal  de  mamíferos  durante  o desenvolvimento. Foi verificado que embriões de camundongos, knockout para EPO ou EPOR, morrem no útero devido à falta de eritropoese no fígado fetal. Esses embriões também apresentam defeitos na angiogênese e morfogênese cardíaca, com aumento da apoptose das células do endocárdio e miocárdio. O  processo  de  multiplicação  e  diferenciação  das  células­tronco  hematopoéticas  (HSC)  é  finamente  regulado  por  um conjunto  de  fatores  de  crescimento  e  hormônios  que  determinam  sua  autorrenovação  e/ou  diferenciação.  A  EPO,  agindo por  meio  do  EPOR,  é  o  principal  hormônio  eritropoético.  A  estimulação  do  EPOR  ativa  vias  de  sinalização  necessárias para a sobrevivência, proliferação e diferenciação de eritroblastos. Outra citocina importante envolvida na eritropoese é o fator  de  célula­tronco  (SCF  – stem  cell  factor),  que  se  liga  ao  receptor  de  citocina  c­Kit,  retardando  a  diferenciação  e aumentando a proliferação de células progenitoras. A ativação da Jak2 pela EPO, por intermédio do EPOR, induz a ativação da via PI3K AKT/PKB, que, pela inibição do fator  de  transcrição  FOXO3a,  reduz  a  expressão  do  inibidor  do  ciclo  celular  p27/kip1.  Quando  diminui  a  expressão  de EPOR,  tanto  a  expressão  como  a  atividade  transcricional  da  FOXO3a  aumentam  durante  a  maturação  das  células precursoras eritroides. Por outro lado, a PI3K também ativa a MAPK (proteinoquinase ativada por mitógeno), levando à proliferação  dos  eritroblastos.  Por  meio  do  EPOR  é  deflagrada  cascata  Ras­Raf­MEK­ERK  que,  via  fatores  de transcrição,  regula  a  expressão  gênica  e  a  atividade  de  muitas  proteínas  envolvidas  com  a  apoptose.  A  fosforilação  da quinase Raf1 retarda a diferenciação dos eritroblastos, pela redução da ativação da caspase­3. Adicionalmente,  EPO  e  SCF  ativam  a  JNK  (Jun­N­terminal  kinase)  e,  assim,  promovem  a  proliferação  e  a sobrevivência de células hematopoéticas. Por outro lado, a diferenciação das células eritroides induzida pela EPO também depende  da  via  de  sinalização  PI3K/Akt,  que  age  em  conjunto  com  a  proteinoquinase  C  (PKC)­α.  A  PKC­α  medeia  a diferenciação eritroide das células progenitoras CD34 da medula óssea. Na regulação da eritropoese, também está envolvida a via de sinalização Jak/STAT5, que é rapidamente ativada após a ligação  da  EPO  ao  EPOR  em  progenitores  eritroides.  A  sobrevivência  dos  eritroblastos  jovens  e,  consequentemente,  a eritropoese normal, são controladas pela STAT5 por meio do aumento da transcrição do gene Bcl­xL e estimulação da via antiapoptótica,  que  pode  ser  inibida  pela  cascata  das  caspases.  A  ativação  da  caspase­3  leva  à  degradação  dos  fatores  de transcrição SCL/TAL­1 (stem cell leukemia/T­cell acute lymphoblastic leukemia 1), bem como do fator de transcrição de eritroides GATA­1, que regulam a expressão gênica do Bcl­xL. A proteína Tal­1 é fosforilada em resposta à estimulação da  EPO  mediante  a  via  de  sinalização  da  MAPK  ativada  por  PI3K.  A  proteína  GATA­1  é  considerada  fator  crítico  de transcrição  na  eritropoese  e  da  megacariopoese.  A  atividade  de  transativação  da  GATA­1  é  altamente  dependente  da interação  com  vários  cofatores,  tais  como:  FOG­1,  EKLF,  SP1,  CBP/p300,  LMO2,  Ldb1,  Runx1,  Fli1  e  PU­1.  Estes cofatores  constituem  uma  rede  muito  complexa  de  regulação  da  eritropoese,  promovendo  ou  reprimindo  a  atividade  de GATA­1. Esses  vários  mecanismos  integrados  garantem  que  o  efeito  estimulante  da  eritropoetina  em  células  progenitoras eritroides  seja  apropriado.  Se,  por  um  lado,  a  ligação  da  EPO  ao  seu  receptor  inicia  a  cascata  de  sinalização  que  leva  à proliferação celular e à prevenção da apoptose, esse efeito é atenuado por moléculas intracelulares, tais como supressores de sinalização de citocina, o que realmente evita a proliferação descontrolada dos glóbulos vermelhos. Os  dados  aqui  apresentados  evidenciam  a  complexidade  da  regulação  da  eritropoese  que  envolve  grande  número  de vias  de  sinalização  e  regulação  da  transcrição  gênica.  Ao  lado  de  outras  citocinas,  a  EPO  tem  papel  fundamental  na multiplicação  e  diferenciação  das  células­tronco  hematopoéticas  e  no  desenvolvimento,  sobrevivência,  crescimento  e maturação dos glóbulos vermelhos, determinando, assim, o número de eritrócitos circulantes necessários para a adequada oxigenação tissular.

Angiogênese A  angiogênese  é  um  processo  complexo,  em  que  vários  tipos  de  células  e  mediadores  interagem  para  criar  um microambiente  adequado  para  a  formação  de  novos  vasos.  A  angiogênese  ocorre  em  diversas  condições  fisiológicas  e patológicas, tais como desenvolvimento embrionário (em que está associada a vasculogênese, ou seja, a formação de vasos capilares a partir de células endoteliais diferenciadas de células mesodérmicas), cicatrização, remodelação cíclica do tecido uterino durante o ciclo menstrual, inflamações crônicas e tumores.

Como visto, na diferenciação de células hematopoéticas a ligação da EPO ao EPOR ativa vias de transdução de sinal que controlam a proliferação celular, a sobrevivência e a expressão de genes específicos. Como as células hematopoéticas e endoteliais advêm de progenitoras comuns, as citocinas e os fatores de crescimento associados à hematopoese também atuam na angiogênese. A ação angiogênica da EPO é semelhante à do VEGF (fator de crescimento endotelial vascular). Na vigência  de  hipoxia  ou  isquemia,  via  HIF­1,  ocorre  aumento  da  expressão  de  EPO  e  VEGF  e  seus  receptores,  o  que mobiliza células progenitoras endoteliais e promove a neovascularização. Em certas doenças, tais como retinopatia diabética e crescimento tumoral, a regulação da angiogênese é perdida, o que concorre para o desenvolvimento e a progressão da moléstia. Apesar  de  a  EPO  ser  um  fator  de  sobrevivência  para  os  fotorreceptores  da  retina,  no  vítreo  de  diabéticos  ocorre aumento  significativo  da  expressão  de  EPO  endógena,  o  que  tem  sido  associado  à  gênese  da  retinopatia  diabética proliferativa.  Além  disso,  a  administração  precoce  de  EPO  no  tratamento  da  anemia  da  prematuridade  é  associada  ao aumento  significativo  do  risco  de  retinopatia,  sugerindo  que  a  ativação  do  EPOR  de  células  endoteliais  leve  à neovascularização dos vasos da retina em desenvolvimento. No  início  do  uso  terapêutico  da  EPO  recombinante  humana  (rHuEPO),  em  pacientes  com  anemia  de  origem  renal (causada  pela  redução  da  produção  de  EPO  pelos  rins),  foi  observada  elevação  da  pressão  arterial  como  efeito  colateral. Duas ações mediadas pela EPO explicam esse efeito: (1) nas células endoteliais a EPO deflagra, via fosforilação da JAK2, o aumento da transcrição de endotelina 1, um potente agente vasoconstritor e (2) em células musculares lisas vasculares a EPO estimula o influxo de cálcio, o que leva à contração. Esse aumento na mobilização de Ca2+ intracelular é inibido pela genisteína, um inibidor da via JAK2/STAT5, indicando que esta é a via envolvida nesse processo. Esses dois mecanismos explicam a hipertensão associada ao tratamento com rHuEPO.

Tecido neural A  EPO  circulante,  produzida  no  rim,  não  atravessa  a  barreira  hematencefálica  devido  ao  seu  elevado  peso  molecular (30,4 kDa); mas, em várias regiões do cérebro ocorre produção local de EPO, tornando possível sua ação parácrina. Ainda que  em  níveis  inferiores  aos  encontrados  nos  rins,  tanto  o  mRNA  da  EPO  e  do  EPOR  como  suas  proteínas  são amplamente distribuídos em diferentes regiões do cérebro de mamíferos, incluindo córtex, hipocampo, amígdala, cerebelo, hipotálamo  e  núcleo  caudado.  Isto  ocorre  conjuntamente  com  outros  fatores  de  crescimento  hematopoéticos  que  são expressos e atuam no SNC. Com relação ao tipo de células neurais que expressam EPO, os astrócitos são a principal fonte de EPO no cérebro. Além dos neurônios, oligodendrócitos e células gliais, uma forte presença de EPOR foi detectada nas células endoteliais vasculares do cérebro. Essa ampla distribuição neural implica um vasto espectro de ações cerebrais da EPO. Vários  efeitos  da  EPO  foram  descritos  no  SNC.  Inicialmente,  foi  observado  que  o  uso  terapêutico  de  eritropoetina recombinante humana (rHuEPO) em pacientes anêmicos frequentemente levava a melhora da função cognitiva, o que foi atribuído  à  maior  oxigenação  cerebral  decorrente  do  aumento  do  hematócrito.  Posteriormente,  no  tecido  neural,  foi verificada  tanto  a  presença  de  EPOR  como  a  produção  local  de  EPO,  indicando  a  presença  de  uma  ação  parácrina. Coerentemente  com  essa  ação  parácrina,  a  EPO  produzida  no  cérebro  tem  peso  molecular  menor  (devido  a  menor sialização),  enquanto  a  estabilização  da  EPO  circulante  no  plasma  só  é  possível  mediante  intensa  sialização. Adicionalmente, as células neurais, como os astrócitos, respondem à hipoxia produzindo EPO. Em  células  neuronais  fetais  humanas  foi  verificado  que  a  expressão  do  mRNA  da  EPO  duplica  em  condições  de hipoxia. Por outro lado, a presença de EPOR foi detectada em grande variedade de tecidos neurais, incluindo linhagens de células  neuronais  PC12  e  SN6,  células  NT2  e  HNT,  células  endoteliais  de  capilares  de  cérebro  de  ratos,  neurônios hipocampais e corticais de ratos, e neurônios, astrócitos e micróglia de cérebros humanos. Também foi demonstrado que a EPO reduz a morte celular induzida por hipoxia, causando um efeito neuroprotetor. Coerentemente, a expressão de EPO e EPOR é especialmente alta nas regiões do cérebro conhecidas por serem mais sensíveis à hipoxia aguda, o hipocampo e o telencéfalo, o que é compatível com uma ação protetora contra a hipoxia. Como mencionado anteriormente, após a ligação da EPO ao EPOR, a tirosinoquinase Janus 2 (JAK2) é fosforilada e ativada.  Isto  leva  ao  recrutamento  de  moléculas  sinalizadoras  secundárias,  tais  como  a  proteína  transdutora  de  sinal  e ativadora da transcrição 5 (STAT5), seguida pela ativação de Ras/MAPK (mitogen activated protein kinase), ERK­1/­2 e PI3K/Akt.  Além  disso,  EPO  induz  a  expressão  da  proteína  antiapoptótica  Bcl­xL.  A  maioria  destas  vias  parece  ser funcional  no  cérebro.  Em  experimentos  realizados in vitro,  a  inibição  de  MAPK  e  PI3K  bloqueou  a  proteção  conferida pela  EPO  aos  neurônios  do  hipocampo  submetidos  a  hipoxia.  O  uso  de  inibidores  da  ERK­1/­2  e  Akt  evidenciou  que  a ativação dessas proteínas é essencial para o efeito neuroprotetor da EPO. Entretanto, o papel da STAT5 na neuroproteção

induzida pela EPO é controverso. Foi observado, em ratos, que a fosforilação da STAT5 ocorre em neurônios hipocampais após isquemia cerebral global transitória, indicando sua participação na neuroproteção mediada pela EPO. Por outro lado, um  estudo  de  medida  da  toxicidade  do  glutamato  em  cultura  de  neurônios  hipocampais  de  fetos  de  ratos knockout  para STAT5  evidenciou  que  a  STAT5  não  é  necessária  para  a  neuroproteção  mediada  pela  EPO,  mas  é  indispensável  para  a função neurotrófica da EPO. No cérebro, parece que a ativação do EPOR induz à translocação do fator nuclear κB (NF­ κB) para o núcleo e que esse efeito é importante para a neuroproteção mediada pela EPO. Curiosamente, a translocação de NF­κB induzida pela EPO só é observada em células neuronais e não em astrócitos. Assim, é provável que a ação nuclear do  NF­κB  induz  a  expressão  de  proteínas  neuroprotetoras  e  antiapoptóticas.  Verificou­se  também  que camundongos knockout para EPOR apresentam apoptose maciça e redução no número de células progenitoras neuronais, evidenciando uma ação antiapoptótica da EPO no SNC. Deve ser notado que há diferenças entre as cascatas de sinalização ativadas por EPO no SNC e nas células eritroides. Como exemplo, foi verificado que Bcl­xL é importante na proteção mediada por EPO nas células eritroides, mas não nas neuronais.  Além  disso,  foi  visto  que  nos  neurônios  a  EPO  ativa  a  fosfolipase  C­γ  (PLC­γ)  e  assim  pode  influenciar diretamente a atividade neuronal e a liberação de neurotransmissores. Na  hipoxia  é  induzida  a  expressão  da  EPO,  que  age  diretamente  sobre  as  células  estaminais  neuronais do prosencéfalo,  estimulando  a  neurogênese  pós­hipóxica.  Além  disso,  a  EPO  também  age  indiretamente  por  meio  da indução da expressão do fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF) que, por sua vez, aumenta o efeito direto da EPO na neurogênese. Além dos efeitos diretos sobre os neurônios, a neuroproteção induzida pela EPO também pode ser atribuída à melhoria da  perfusão  cerebral  pela  promoção  de  angiogênese,  que  foi  verificada  em  vários  modelos  experimentais.  O  efeito angiogênico da EPO também ocorre no cérebro, onde foi detectado o mRNA da EPO e do EPOR nas células endoteliais dos capilares, sendo verificada uma relação dose­dependente entre a EPO e a atividade mitogênica. A ação angiogênica da EPO  foi  confirmada  em  camundongos  knockout  para  EPO  ou  EPOR,  cujos  embriões  apresentam  graves  defeitos  na angiogênese.  Em  modelos  experimentais,  também  foi  verificado  que  a  EPO  promove  a  integridade  da  barreira hematencefálica pela regulação da permeabilidade vascular, o que protege a integridade do tecido neural. Por outro lado, a hipoxia induz, via HIF­1, a expressão de diferentes proteínas, não só EPO, VEGF e seus receptores, que  irão  melhorar  a  oferta  de  oxigênio  para  os  tecidos,  como  também  as  enzimas  da  via  glicolítica,  que  vão  adaptar  o metabolismo celular à menor disponibilidade de oxigênio. Enfim,  é  possível  afirmar  que,  por  meio  de  ações  parácrinas/autócrinas  em  diferentes  tipos  celulares  presentes  no cérebro,  a  EPO  está  envolvida  não  só  na  neuroproteção,  como  também  na  neurogênese,  diferenciação  e  sobrevivência neuronal. O  conjunto  desses  dados  indica  que  a  EPO  pode  vir  a  ser  usada  terapeuticamente  para  reduzir  o  dano  tecidual  da isquemia ou da hipoxia do SNC.

Tecido renal A  expressão  do  EPOR  nas  células  mesangiais,  do  túbulo  proximal  e  do  ducto  coletor  medular  são  coerentes  com  as ações  renoprotetoras  da  EPO  descritas  na  literatura.  Em  modelos  animais,  o  tratamento  com  EPO  reduz  o  grau  da disfunção renal provocada por isquemia/reperfusão, provavelmente pela redução da morte celular por apoptose. Em cultura de  células  humanas  de  túbulo  proximal,  foi  demonstrado  que  EPO  reduz  significativamente  a  apoptose  induzida  por hipoxia.  Em  roedores  pré­condicionados  com  EPO  e  submetidos  à  lesão  de  isquemia/reperfusão,  foi  observada  redução das lesões renais concomitante ao encontro de: diminuição da atividade da caspase­3, aumento da expressão de Bcl­2 e de proteínas de choque térmico 70, e redução dos marcadores de inflamação. Também foi verificado que EPO protege contra a disfunção renal induzida pela cisplatina e diminui a inflamação e fibrose intersticial renal da nefropatia crônica induzida pela  ciclosporina.  Entretanto,  contrastando  com  esses  efeitos  renoprotetores,  foi  relatado  que  a  administração concomitante  de  EPO  e  radiação  leva  a  uma  deterioração  da  função  renal.  Os  mecanismos  moleculares  responsáveis  por esses  efeitos  deletérios  da  EPO  na  presença  de  radiações  ionizantes  não  foram  adequadamente  esclarecidos,  havendo necessidade de novos estudos para que venham a ser compreendidos.

▸ Uso terapêutico da rHuEPO | Benefícios e riscos Antes  do  uso  terapêutico  da  rHuEPO,  cerca  de  25%  dos  pacientes  com  doença  renal  crônica  (DRC),  em  diálise, necessitavam  de  transfusão  regular  de  glóbulos  vermelhos.  O  uso  da  rHuEPO  foi  aprovado  pela  FDA  (Food  and  Drug

Administration, dos EUA) com a finalidade terapêutica de elevar ou manter o nível de glóbulos vermelhos e para diminuir a necessidade de transfusões. Em  1989,  foi  relatado  o  primeiro  caso  de  paciente  com  DRC  tratado  com  EPO  recombinante  humana  (rHuEPO). Antes  do  tratamento,  um  paciente  do  sexo  masculino,  40  anos  de  idade  e  HIV­positivo,  apresentava  o  seguinte  quadro: hemodiálise  por  7  anos;  um  transplante  renal  sem  sucesso;  terapia  com  andrógeno  e  recebimento  de  313  bolsas  de glóbulos  vermelhos.  Após  o  uso  de  rHuEPO  por  8  semanas,  seu  hematócrito  aumentou  de  15%  para  38%,  deixando  de necessitar transfusões de glóbulos vermelhos. Posteriormente, voltou a trabalhar e a participar de atividades esportivas. A  partir  daí,  a  rHuEPO  e  seus  análogos,  conhecidos  como  ESA  (erythropoiesis  stimulating  agents)  passaram  a  ser utilizados  por  milhões  de  pacientes  com  DRC  e,  mais  recentemente,  por  pacientes  com  diferentes  tipos  de  câncer recebendo quimioterapia e apresentando anemia grave. Esses pacientes, além de ficarem livres de transfusões de hemácias, apresentavam  melhoria  da  qualidade  de  vida  e  da  função  cognitiva.  Adicionalmente  foi  verificado  que  o  uso  da  EPO prevenia  a  hipertrofia  ventricular  esquerda.  Ao  lado  desses  benefícios  terapêuticos,  dados  laboratoriais  mostraram  que  o EPOR  é  expresso  em  diferentes  tecidos,  por  meio  dos  quais  a  EPO  atuaria  como  um  fator  citoprotetor,  aumentando  a sobrevivência  e  o  crescimento  celular.  Essas  observações  estimularam  novos  usos  dos  ESA,  tais  como  em  doenças cerebrais e cardíacas. Todavia,  alguns  resultados  adversos  foram  verificados,  destacando­se  o  aumento  do  risco  de  tromboembolismo  e  a possibilidade de a EPO estimular o crescimento do câncer, tanto pelo aumento da sobrevivência das células tumorais como pela estimulação da angiogênese e melhor aporte de nutrientes para o tecido tumoral. A  EPO  é  uma  citocina  pleiotrópica  pró­angiogênica  e  induz  a  proteção  de  tecidos  de  diversos  órgãos  não hematopoéticos.  A  capacidade  de  a  rHuEPO  estimular  a  angiogênese  fisiológica  e  patológica  e  a  expressão  do  receptor EPOR em células cancerosas e do endotélio vascular têm sugerido que esse hormônio possa exercer efeitos diretos sobre o  crescimento  tumoral  e  a  angiogênese.  Tanto  o  EPOR  como  a  EPO  se  expressam  em  células  de  diferentes  tumores  e foram  detectados  em  várias  linhagens  imortalizadas  de  células  tumorais.  Estas  características  são  compatíveis  com  a existência de vias autócrinas e parácrinas capazes de estimular as células cancerígenas. A expressão de EPOR no endotélio vascular  de  tumores  indica  a  possibilidade  de  a  EPO  estimular  a  angiogênese  nesse  tecido  e  modular  vários  aspectos  da biologia tumoral, tais como proliferação celular, apoptose e sensibilidade à quimioterapia e à radiação. Embora  a  angiogênese  seja  o  processo  primário  que  leva  à  formação  e  à  expansão  da  vascularização  do  tumor,  há evidências,  mais  recentes,  de  que  as  células  progenitoras  endoteliais  (EPC  –  endothelial  progenitor  cells)  circulantes também possam estar envolvidas nesses processos. Adicionalmente foi verificado que pacientes com anemia causada por DRC, após 2 semanas de tratamento com rHuEpo, apresentaram significante aumento do número das EPC circulantes (3 vezes maior que o observado em indivíduos saudáveis sem anemia). Contudo, até o momento, não há estudos conclusivos que permitam estabelecer que o uso da rHuEpo possa propiciar o desenvolvimento tumoral por meio dessa via. Por outro lado, foi verificado que na maioria dos cânceres humanos, e mais ainda em suas metástases, a expressão do HIF­1  se  encontra  aumentada.  Isto  acontece  porque  a  hipoxia  resgata  o  HIF­1  da  degradação  proteossômica,  permitindo sua translocação nuclear e heterodimerização; este fato leva à ativação de genes HIF­1­alvo, incluindo os de codificação da EPO, VEGF e seus receptores, e de outros genes envolvidos em eritropoese, angiogênese, vasodilatação e metabolismo da glicose.  Essa  característica  permite  que  as  células  cancerosas  se  adaptem  à  hipoxia  e  desenvolvam  condições  para  sua melhor sobrevivência e proliferação. Embora  vários  ensaios  clínicos  tenham  mostrado  um  efeito  benéfico  do  uso  de  rHuEPO  no  tratamento  de  pacientes com câncer, há estudos que indicam que a sobrevida desses pacientes, em condição livre de progressão do tumor, é menor que  a  dos  pacientes  tratados  com  placebo.  Esta  controvérsia  ainda  não  tem  uma  resposta  definitiva,  razão  pela  qual  são necessários novos estudos para compreender melhor os mecanismos moleculares desencadeados pela EPO nos tecidos não hematopoéticos, incluindo as células cancerígenas. Mesmo que esta questão ainda seja controversa na atual literatura médica, ela foi objeto de recente metanálise realizada para verificar os dados obtidos em estudos clínicos controlados para uso dos ESA, abrangendo mais de 15.000 pacientes. Essa  análise  não  evidenciou  efeito  significativo  na  sobrevivência  ou  progressão  da  doença  em  pacientes  que  usaram  os ESA,  em  relação  aos  que  receberam  placebo;  no  entanto,  detectou  um  aumento  do  risco  de  eventos  tromboembólicos venosos com o uso dos ESA. Outro dado importante é o fato de que os resultados desfavoráveis foram encontrados nos estudos  que  não  seguiram  as  diretrizes  atuais  para  o  uso  dos  ESA  em  pacientes  com  câncer.  Tanto  o  hematócrito  inicial como o atingido após o tratamento eram superiores aos recomendados, indicando que o aumento da viscosidade sanguínea, em combinação com elevada contagem de plaquetas, deve ser a causa do aumento da incidência de formação de trombos. Em pacientes com doença renal crônica, uma concentração de hemoglobina inferior a 100 g/ℓ é desfavorável para a saúde e

sobrevivência  do  paciente.  No  entanto,  foi  verificado  que  quando  a  hemoglobina  alcança  níveis  superiores  a  120  g/ℓ  há maior risco de eventos tromboembólicos. E mais: um estudo que analisou o efeito neuroprotetor da rHuEPO mostrou que pacientes  que  receberam  esse  medicamento  apresentaram  taxa  de  mortalidade  mais  elevada  do  que  a  dos  que  receberam placebo, particularmente aqueles que necessitavam de terapia trombolítica. A esse respeito, deve ser lembrado que, mesmo em pessoas saudáveis, a probabilidade de um infarto cerebral aumenta com a elevação do hematócrito. Assim, conclui­se que, para a recomendação do uso terapêutico seguro dos ESA, mais estudos são necessários para a melhor compreensão dos fenômenos moleculares envolvidos em situações ainda não suficientemente esclarecidas. Alguns aspectos importantes a serem observados no uso terapêutico de ESA em pacientes renais crônicos: ■ Ainda  que  na  doença  renal  crônica  a  anemia  seja  uma  condição  comum,  causada  principalmente  pela  diminuição  da produção  de  eritropoetina  pelos  rins,  antes  de  iniciar  o  uso  de  ESA  é  importante  investigar  e  descartar  outras condições subjacentes tratáveis, tais como deficiências de ferro ou vitaminas. A anemia da doença renal está associada a  morbidade  significativa,  como  aumento  do  risco  de  hipertrofia  ventricular  esquerda,  infarto  do  miocárdio  e insuficiência cardíaca, podendo ser considerada um multiplicador de mortalidade por outras causas ■ Infelizmente, até o momento, o único benefício incontestável do tratamento com ESA continua sendo a prevenção de transfusões de sangue. Por outro lado, os grandes ensaios clínicos randomizados que analisaram os benefícios de ESA mostram que seu uso pode estar associado ao aumento do risco de eventos cardiovasculares. Portanto, é recomendável que  seu  uso  na  doença  renal  crônica  seja  individualizado,  não  devendo  ser  iniciado  a  menos  que  o  nível  de hemoglobina seja inferior a 10 g/dℓ e a meta terapêutica não ultrapasse a obtenção de níveis de hemoglobina até 11,5 g/dℓ ■ Vários  medicamentos  inovadores  para  o  tratamento  da  anemia  renal  estão  em  estudo,  dentre  os  quais  uma  forma peguilada  de  rHuEPO,  com  meia­vida  prolongada,  e  uma  nova  e  promissora  classe  de  medicamentos,  chamada  de estabilizadores  do  HIF.  Portanto,  é  esperado  que  a  abordagem  terapêutica  da  anemia  renal  evolua  em  um  futuro próximo.

Uroguanilina Lucília Maria Abreu Lessa Leite Lima | Manassés Claudino Fonteles Ao  longo  dos  últimos  anos,  foi  descoberto  muito  sobre  a  regulação  da  excreção  renal  de  sódio.  No  entanto,  ainda existem mecanismos envolvidos neste processo que requerem melhor entendimento. Os rins apresentam ritmo diurno de excreção de sódio, que persiste apesar da ingestão constante desse íon. Ademais, estes órgãos têm a habilidade de variar a excreção de sódio em larga escala, em decorrência de mínimas alterações plasmáticas da concentração de sódio. O balanço deste eletrólito está ligado ao controle de volume de líquido extracelular, que envolve sensores de pressão arterial e venosa e de volume. No entanto, é difícil demonstrar esta relação em condições que ocorrem alterações mais modestas na ingestão de  sódio.  O  conceito  da  existência  de  um  mecanismo  de  regulação  ligando  o  sistema  digestório  ao  rim  não  é  recente.  A hipótese  de  um  monitor  gastrintestinal  para  o  balanço  de  sódio  foi  proposta  a  partir  da  observação  de  que  uma  carga  de sódio é mais rapidamente excretada após administração por via oral, quando comparada à administração de concentração equivalente por via intravenosa. Foi proposto que os peptídios guanilina­símile sejam os responsáveis por este mecanismo de regulação, ligando assim, a regulação intestinal e renal de sal e água, já que as guanilinas são produzidas no intestino em grandes quantidades, em resposta a uma dieta rica em sal.

FAMÍLIA DAS GUANILINAS A  toxina  termoestável  (STa)  é  um  pequeno  peptídio  secretado  por  cepas  enterotoxigênicas  da Escherichia  coli,  que aumenta a secreção de eletrólitos e água no lúmen intestinal, causando a conhecida diarreia infantil ou do viajante. No final da década de 1970, foi demonstrado que esta toxina age via o aumento das concentrações de cGMP nas células intestinais e,  no  início  dos  anos  1980,  pesquisadores  brasileiros  demonstraram  seus  efeitos  natriuréticos,  caliuréticos  e  diuréticos. Em 1990, foi clonado um receptor do tipo guanilatociclase de membrana, GC­C, do intestino de ratos, e demonstrado que o  mesmo  era  ativado  após  ligação  com  a  STa.  Além  disso,  uma  série  de  investigações  revelou  que  a  toxina  STa  ativaria

um  receptor  órfão  (GC­C)  encontrado  em  rins,  como  também  em  outros  órgãos  de  gambá.  A  busca  por  um  análogo endógeno da STa que ativaria este receptor órfão levou à descoberta das guanilinas. Um ano após a descoberta da guanilina, um segundo peptídio similar à STa, chamado uroguanilina (UGN), foi isolado a  partir  de  urina  de  gambá  (Didelphis virginiana).  As  estruturas  primárias  de  guanilina  e  uroguanilina  são  similares,  e ambas  compartilham  alto  grau  de  identidade  com  a  toxina  termoestável  (STa).  A  guanilina  humana  consiste  em  15 aminoácidos  e  possui  duas  pontes  dissulfeto  entre  as  cisteínas  das  posições  de  4  a  12  e  7  a  15  (Figura  55.41).  A uroguanilina  humana  consiste  em  16  aminoácidos  e  também  apresenta  duas  pontes  dissulfeto  nas  mesmas  posições (ver Figura 55.41).  Estas  pontes  dissulfeto  influenciam  a  conformação  molecular  e,  desta  maneira,  a  atividade  biológica desses peptídios. A STa também apresenta 16 aminoácidos, sendo que existem três pontes dissulfídricas em sua estrutura. Os  genes  que  codificam  as  guanilinas  estão  localizados  no  cromossomo  1  humano  (p33  a  p36)  e  no  cromossomo  4  no rato. Guanilina e uroguanilina são codificadas por genes similares que consistem de três éxons e dois íntrons. Tanto guanilina como uroguanilina são sintetizadas como propeptídios, que estão presentes em grande quantidade no epitélio do intestino e são secretados no lúmen intestinal e na circulação, em resposta ao aumento de NaCl luminal. Além do  mais,  o  mRNA  para  estes  peptídios  é  encontrado  em  muitos  outros  tecidos  como  rim,  cérebro,  medula  suprarrenal, miocárdio, pâncreas e epitélio das vias respiratórias superiores. O conhecimento da família das guanilinas vem crescendo ao  longo  dos  anos;  o  último  membro  descoberto  é  a  renoguanilina  (RNG),  isolada  de  enguias,  e  que  tem  similaridades estruturais  com  a  uroguanilina.  Foi  sugerido  que  este  novo  peptídio  seja  participante  ativo  no  processo  de  adaptação  de peixes que migram da água doce para água salgada e vice­versa.

▸ Efeitos biológicos e fisiológicos Os  efeitos  gerais  da  uroguanilina,  guanilina  e  STa  foram  comparados  em  experimentos  com  células  renais  e intestinais, verificando­se aumento na concentração intracelular de cGMP, promovido pelos três agonistas em células OK (rim de gambá/opossum) e T84 (intestinal). A ativação do receptor de guanilatociclase nestas linhagens celulares revelou uma ordem de potência distinta, ou seja: STa – uroguanilina – guanilina. Além disso, em outro estudo, utilizando a técnica de  perfusão  de  rim  isolado  de  rato,  ficou  demonstrado  que  o  efeito  natriurético  estimulado  pelos  peptídios  é  mais pronunciado  após  o  tratamento  com  uroguanilina  do  que  com  guanilina.  Uma  característica  estrutural  que  pode  estar relacionada à maior potência de STa e uroguanilina, em comparação à guanilina, seria: a uroguanilina e os peptídios ST de bactérias  apresentam  resíduos  de  asparagina  conservados  em  suas  estruturas  primárias  (ver  Figura  55.41),  os  quais conferem resistência ao ataque por endopeptidases, tipo quimiotripsina. Em contraste, a guanilina é rapidamente degradada e  inativada  por  hidrólise,  em  resíduos  de  tirosina  ou  fenilalanina  da  alça  C­terminal  do  peptídio.  Além  disso,  em  rins perfundidos, inibidores de proteases aumentam a atividade biológica da guanilina.

Figura  55.41  ■   Estrutura  primária  das  guanilinas  em  diferentes  espécies  animais,  e  de  peptídios  de  toxinas  termoestáveis bacterianas.  Os  peptídios  estão  alinhados  usando  os  resíduos  de  cisteína  conservados,  encontrados  nas  quatro  classes  de peptídios. Note o resíduo de asparagina (N) observado na estrutura da uroguanilina e das toxinas bacterianas.

Inicialmente, foi considerado que o principal papel fisiológico dos peptídios, guanilina e uroguanilina, seria regular a secreção  de  líquido  e  eletrólitos  através  do  epitélio  intestinal.  No  entanto,  estudos  utilizando  camundongos  transgênicos deficientes  em  R­GC­C,  em  guanilina,  ou  uroguanilina  indicam  que  esses  animais  parecem  não  desenvolver  grandes anormalidades na secreção de líquido intestinal. Estes achados sugeriram que outros papéis fisiológicos para a guanilina e a  uroguanilina  poderiam  existir,  incluindo  a  regulação  da  função  renal,  com  a  ativação  de  vias  paralelas,  como  a sinalização  pela  proteína  G.  Com  a  posterior  demonstração  de  efeitos  renais  promovidos  por  estes  peptídios,  e  sendo  a uroguanilina, o peptídio endógeno com ações mais efetivas, vem sendo postulado que este peptídio atuaria nos rins através de um eixo endócrino, ligando o sistema digestório ao rim na regulação da homeostase hidrossalina, como já referido.

UROGUANILINA E HOMEOSTASE HIDROSSALINA

A uroguanilina é expressa em todo o trato intestinal, e existe em concentrações apreciáveis no plasma de humanos e de outros animais. Como mencionado anteriormente, é resistente à clivagem por proteases, sendo facilmente isolada da urina de mamíferos. Ademais, foi demonstrado que a expressão intestinal de uroguanilina pode ser regulada pela quantidade de ingestão de sal e pela hipertonicidade extracelular. Efeitos  renais  da  uroguanilina  incluem:  natriurese,  caliurese,  clorurese,  diurese  e  aumento  da  excreção  de  cGMP. Ademais,  foi  demonstrado  que  a  dieta  rica  em  sal  aumenta  a  expressão  da  uroguanilina  no  rim  de  camundongos,  como também aumenta a resposta natriurética e a excreção urinária do peptídio. Recentemente, foi observado que o tratamento de animais com dieta rica em sódio potencializa marcadamente a resposta à uroguanilina, mesmo em concentrações antes incapazes de ativar a GC­C. Foi observado também que, nestas condições, aumenta a expressão deste receptor. Camundongos  que  não  expressam  uroguanilina  desenvolvem  aumento  significativo  da  pressão  arterial  e,  quando submetidos  a  dieta  rica  em  sal,  o  efeito  natriurético  diminui  significativamente.  Além  disso,  estes  camundongos desenvolvem  alterações  no  processo  de  redistribuição  da  isoforma  NHE3  do  trocador  Na+/H+,  em  túbulos  proximais, aumentando a reabsorção proximal de sódio. É amplamente conhecido que pacientes com síndrome nefrótica apresentam aumento dos níveis plasmáticos e urinários de uroguanilina. Ademais, a expressão de mRNA para o peptídio também se encontra aumentada nos rins destes pacientes. Este  achado  pode  estar  relacionado  ao  fato  de  que  na  síndrome  nefrótica  aumenta  a  retenção  de  NaCl  pelos  rins,  o  que estimula a produção de uroguanilina. Além disso, em pacientes com retenção de sódio secundária à insuficiência cardíaca congestiva,  os  níveis  urinários  de  uroguanilina  estão  significativamente  aumentados,  o  que  indica  a  participação  da uroguanilina nos grandes edemas. Dessa  forma,  a  uroguanilina  participa  da  regulação  da  homeostase  hidrossalina,  particularmente,  com  relação  ao manejo  da  dieta  rica  em  sal.  Além  disso,  existem  mecanismos  que  regulam  a  produção  e/ou  secreção  de  uroguanilina quando  a  retenção  de  sódio  ocorre  secundariamente  a  processos  patológicos  nos  rins,  coração,  ou  outros  órgãos.  O aumento  nos  níveis  de  mRNA  para  uroguanilina  tanto  em  células  intestinais  como  em  renais,  em  resposta  a  um incremento  no  conteúdo  de  NaCl  na  dieta,  sugere  que  as  ações  endócrina  e  parácrina/autócrina  podem  participar  dos mecanismos de sinalização tubular que governam o transporte de sal. O principal sítio de expressão de uroguanilina em intestinos de ratos são as células enterocromafins. Estudos recentes demonstram  que  a  uroguanilina  é  estocada  especialmente  neste  tipo  celular  e  liberada  na  circulação  na  forma  de  seu precursor,  a  prouroguanilina.  O  mesmo  acontece  com  outros  peptídios  hormonais,  como  ANP,  que  é  estocado  quase exclusivamente  na  forma  propeptídio  inativa.  Foi  demonstrado  também  que  a  infusão  de  prouroguanilina  em  ratos promove  efeitos  natriuréticos  e  diuréticos.  O  processo  de  conversão  da  prouroguanilina  em  sua  forma  ativa  ocorreria  no lúmen dos túbulos renais. O sítio intrarrenal onde o processo de conversão de prouroguanilina à uroguanilina ocorre ainda não foi identificado. No  entanto,  tem  sido  sugerido  que  o  propeptídio  intacto  poderia  passar  através  da  barreira  de  filtração  glomerular  e  o processamento  para  conversão  ao  peptídio  ativo  ocorreria  dentro  do  lúmen  tubular,  através  de  proteases  residentes  na borda  em  escova  epitelial  do  túbulo  proximal.  Esta  hipótese  é  considerada  pelo  fato  de  que  a  prouroguanilina  circula  no plasma como um peptídio de 9,4 kDa, não complexado com proteínas carreadoras, e, assim, é pequena o bastante para ser livremente  filtrada.  Além  disso,  o  curso  de  tempo  do clearance de  prouroguanilina  do  plasma  é  bastante  similar  ao  da inulina, o que reforça a ideia de que o clearance renal de prouroguanilina é devido à filtração e não à secreção. Na  Figura  55.42  há  o  desenho  esquemático  do  modelo  proposto  para  a  ação  da  uroguanilina  na  homeostase hidrossalina.  De  acordo  com  tal  modelo,  a  ingestão  de  sal  estimularia  a  secreção  apical  e  basolateral  de  prouroguanilina pelas  células  enterocromafins  presentes  principalmente  no  intestino  delgado.  A  prouroguanilina,  que  seria  secretada  pela membrana apical das células, seria convertida à uroguanilina por proteases presentes no lúmen intestinal. Dessa forma, a uroguanilina  regularia  os  mecanismos  de  transporte  epitelial  de  eletrólitos.  O  resultado  principal  seria  o  aumento  da secreção  de  cloreto  via  CFTR  (cystic  fibrosis  transmembrane  regulator)  e  HCO3–,  através  da  ativação  do  trocador Cl–/HCO3– e supressão da absorção de sódio pela inibição do permutador NHE3 a partir do lúmen intestinal. Em paralelo, a  prouroguanilina  secretada  pela  membrana  basolateral  alcançaria  os  rins,  onde  seria  filtrada  e  convertida  em  peptídios menores  e/ou  aminoácidos  livres.  Os  aminoácidos  livres  retornariam  à  circulação,  e  a  uroguanilina  ativa  atuaria  nos segmentos  do  néfron  regulando  o  transporte  tubular  de  eletrólitos,  resultando  na  diminuição  da  reabsorção  de  sal  pelos túbulos  proximais,  por  inibição  do  permutador  NHE3  e  inibição  da  bomba  Na+/K+­ATPase.  Em  segmentos  distais,  este peptídio  estimula  a  secreção  de  potássio  via  canais  MAXI­K+,  além  de  inibir  a  secreção  de  hidrogênio  pela  H+­ATPase, como  demonstrado  por  microperfusão  renal.  Vale  salientar  o  envolvimento  da  via  da  PKG/cGMP  nos  mecanismos  de sinalização  para  estes  efeitos.  Dessa  forma,  esta  via  endócrina  poderia  coordenar  a  atividade  dos  dois  principais  órgãos

envolvidos na homeostase de eletrólitos: o intestino, onde o sal é absorvido, e o rim, onde o sal é excretado. Além disso, a liberação de prouroguanilina poderia ocorrer também em resposta a uma expansão de volume, como já observado durante a produção e liberação de ANP. Ambos os peptídios agem de forma sinérgica, modulando a excreção de sal.

Figura 55.42 ■ Esquema do modelo para a resposta pós­prandial à ingestão de sal em ratos. A descrição da figura se encontra no texto. UGN, uroguanilina; proUGN, prouroguanilina; CE, células enterocromafins. (Adaptada de Qian et al., 2008.)

Assim,  no  processo  evolutivo,  as  guanilinas  apareceram  bem  cedo,  já  que  são  encontradas  em  todas  as  espécies animais  examinadas  (mamíferos,  aves  e  peixes).  Este  fato  indica  a  importância  desses  hormônios  na  manutenção  da homeostase  de  água  e  eletrólitos  em  paralelo  com  outros  agentes  regulatórios  já  conhecidos,  como  o  sistema  renina­ angiotensina­aldosterona, arginina­vasopressina (AVP), e peptídios natriuréticos como o ANP. Tanto  os  sítios  das  ações,  como  as  vias  de  sinalização  das  guanilinas  no  rim,  são  objeto  de  pesquisas  recentes,  e representam  um  campo  novo,  em  expansão.  Novas  vias  de  sinalização  celular  continuam  a  ser  exploradas,  sobretudo  no que tange às grandes alterações promovidas por dietas ricas em sal, tão comuns na sociedade hodierna. Certamente a GC­ C  continua  sendo  o  principal  receptor  para  os  efeitos  da  uroguanilina  no  intestino.  Nos  rins,  esta  via  é  igualmente importante, mas, foram demonstradas outras rotas de sinalização, como a produção de eicosanoides e proteína G sensível à toxina pertussis. Não menos importantes são os outros papéis biológicos demonstrados para a uroguanilina, em que este peptídio  se  apresenta  como  potente  agente  indutor  de  apoptose  em  células  neoplásicas  de  diversas  linhagens.  Por  ações cerebrais  seria  um  modulador  da  homeostase  energética,  regulando  a  saciedade  e  reduzindo  a  obesidade.  Além  disso, recentemente, foram sintetizados fármacos análogos da uroguanilina, agonistas da GC­C, para o tratamento de distúrbios gastrintestinais, tais como constipação intestinal idiopática crônica e síndrome do intestino irritado seguida de constipação intestinal.

Endotelinas Maria Oliveira de Souza

SISTEMA ENDOTELINAS A  partir  de  1985,  foi  demonstrada  a  importância  das  células  endoteliais  na  síntese  e  liberação  de  um  fator  com  ação contrátil,  que  mais  tarde  foi  purificado  e  identificado  como  endotelina  (ET).  Nas  células  endoteliais,  a  endotelina  é sintetizada na forma de pré­pró­endotelina, molécula inativa constituída por 212 aminoácidos (aa), que ao ser liberada na corrente sanguínea é clivada por endopeptidases (como a furina) para gerar o peptídio de 38 aminoácidos (pró­endotelina ou big endotelina), com baixa atividade vasoativa. A pró­endotelina, por sua vez, pode ser clivada pela enzima conversora de  endotelina  (ECE),  e  o  produto  dessa  clivagem  forma  o  peptídio  ativo  endotelina,  com  apenas  21  aminoácidos.  A endotelina  pode  ser  sintetizada  a  partir  de  três  genes  diferentes,  dando  origem  a  três  isoformas  distintas:  ET­1,  ET­2,  e ET­3 (Figura 55.43). A transcrição gênica das endotelinas é sensível a diversos fatores, como angiotensina II, vasopressina, interleucina­1 e peptídios  natriuréticos.  As  endotelinas  são  sintetizadas  por  vários  tecidos,  onde  atuam  como  moduladores  do  tônus vascular,  proliferação  e  diferenciação  celular  e  produção  de  hormônios.  Dos  três  peptídios,  a  ET­1  é  sintetizada, predominantemente,  pelas  células  endoteliais  e  no  plasma;  suas  concentrações  podem  variar  entre  0,1  pM  e  0,4  pM. Apesar  dos  baixos  níveis  plasmáticos,  a  ET­1  está  associada  a  diversas  patologias,  incluindo  doenças  cardiovasculares, diabetes  melito  tipo  2  e  doenças  renais.  A  ET­2  é  sintetizada  nos  rins,  intestino  e  em  menor  quantidade  no  miocárdio, placenta e útero. No entanto, seu papel biológico não está bem esclarecido. A ET­3 é encontrada no cérebro, no intestino, nos pulmões e nos rins e está envolvida com hipertensão pulmonar e doenças renais.

▸ Receptores para endotelinas Os efeitos biológicos das endotelinas são mediados por receptores ETA e ETB, acoplados à proteína Gq. ET­1 e ET­2 apresentam similar capacidade de interação com os receptores ETA e ETB, enquanto a ET­3 interage essencialmente com os  receptores  ETB.  Os  receptores  ETA são  abundantes  nas  células  da  musculatura  lisa  vascular,  miócitos,  e  em  menor quantidade  em  várias  células  epiteliais.  Os  receptores  ETB são  encontrados  em  células  endoteliais,  da  musculatura  lisa vascular e dos túbulos renais. No entanto, as respostas teciduais mediadas pelos efeitos das endotelinas são complexas e dependem da expressão e localização de seus receptores, bem como a via de sinalização intracelular ativada. Nas células da musculatura  lisa  vascular,  a  ativação  do  receptor  ETA pela  endotelina  1  resulta  em  ativação  da  fosfolipase  C  (PLC)  e consequente aumento de vários mensageiros intracelulares, incluindo o íon cálcio, o qual favorece as respostas contráteis e regula a atividade de outras proteínas intracelulares como algumas isoformas da família de proteinoquinases C (PKC). Já nas  células  endoteliais  a  ativação  do  receptor  ETB pela  endotelina  1  pode  induzir  aumento  do  óxido  nítrico  (NO)  e  de prostaglandina E2 (PGE2), moléculas que atuam por via parácrina nas células da musculatura lisa vascular, para induzir vasodilatação.  Outra  função  importante  do  receptor  ETB  é  a  sua  atuação  como  receptor  de  clearance.  Nesse  contexto, quando os níveis circulantes de endotelina 1 ultrapassam a condição fisiológica, as moléculas peptídicas interagem com os receptores ETB e, então, estes complexos são internalizados pelas células dos pulmões, rins e fígado, sendo rapidamente degradados pelos lisossomos.

Figura 55.43 ■ Esquema representativo da biossíntese de endotelinas 1, 2 e 3.

▸ Endotelina 1 e função renal Os rins são órgãos importantes para a biologia do sistema endotelinas, pois produzem endotelina 1, e são sítios para ação  de  todas  as  endotelinas,  em  virtude  da  ampla  distribuição  dos  receptores  ETA e ETB (Figura 55.44).  Os  receptores ETA  são  extensamente  distribuídos  nas  células  musculares  lisas  vasculares  das  artérias  arqueadas  e  arteríolas glomerulares,  bem  como  nos  vasos  retos,  o  que  demonstra  a  influência  de  ET­1  na  regulação  da  hemodinâmica  renal, controlando  o  fluxo  sanguíneo  renal  (FSR)  e  o  ritmo  de  filtração  glomerular  (RFG).  Entretanto,  quando  a  produção  de ET­1  sistêmica  ou  intrarrenal  é  aumentada,  os  parâmetros  hemodinâmicos  renais  são  afetados,  uma  vez  que  o  peptídio induz  aumento  da  resistência  vascular  renal  por  vasoconstrição  das  arteríolas  aferentes  e  eferentes  e  pelas  artérias arqueadas e interlobulares. Consequentemente, há redução do fluxo sanguíneo renal, do ritmo de filtração glomerular e da queda  na  reabsorção  de  sódio  e  de  água.  Além  das  artérias  e  arteríolas  renais,  a  ET­1  também  atua  para  regular  o  fluxo sanguíneo medular, especialmente por estimular o receptor ETA nos pericitos – células relativamente indiferenciadas com capacidade  contrátil  e  associadas  às  paredes  de  vasos  retos.  Assim,  como  em  outros  leitos  vasculares,  as  respostas contráteis  de  ET­1  na  vasculatura  renal  são  mediadas  predominantemente  pelo  receptor  ETA e  envolvem  alterações  dos níveis de cálcio da célula­alvo. Os receptores ETB são expressos nos glomérulos e em maior número no sistema tubular (proporção 1:2), incluindo os ductos coletores, onde regulam o manejo de eletrólitos e água, favorecendo a natriurese em alguns modelos animais.

Figura 55.44 ■ Esquema representativo da distribuição de receptores para endotelina (ETA e ETB) nas porções do néfron.  AA, arteríola  aferente;  AE,  arteríola  eferente;  G,  glomérulo;  TP,  túbulo  proximal;  AH,  alça  de  Henle;  TD,  túbulo  distal;  DC,  ducto coletor. (Adaptada de Kohan et al., 2011.)

O  efeito  natriurético  de  ET­1  via  receptor  ETB se  dá  especialmente  quando  há  aumento  de  ET­1  no  plasma.  Nessa condição, a ativação das vias de sinalização celular associadas à atividade da PKC, phosphatidylinositol­4,5­bisphosphate 3­kinase/proteinoquinase  B  (PI3K/Akt)  e  cálcio  intracelular  resulta  em  queda  da  atividade  de:  (a)  Na+/K+­ATPase;  (b) isoforma 3 do trocador Na+/H+ (NHE3)  –  localizado  na  membrana  luminal  do  túbulo  proximal;  (c)  cotransportador  Na+­

K+­2Cl– –  localizado  na  membrana  luminal  do  ramo  espesso  da  alça  de  Henle;  e  (d)  canal  epitelial  de  sódio  (ENaC)  – localizado no néfron distal (Figura 55.45). Além  de  controlar  a  hemodinâmica  e  o  manejo  renal  de  eletrólitos,  a  ET­1,  via  ativação  do  receptor  ETA,  também contribui  para  a  progressão  de  várias  patologias,  incluindo  insuficiência  cardíaca  crônica,  hipertensão  arterial, aterosclerose, hipertensão pulmonar e espasmo cerebrovascular. No rim, a interação ET­1/ETA induz estresse oxidativo e inflamação, na injúria renal aguda (IRA). O processo inflamatório, por sua vez, quando associado à síntese de moléculas como o fator nuclear kappa B (NF­κB), fator de necrose tumoral alfa (TNFα), e interleucinas 1 e 6 (IL1 e IL6), sustenta a progressão  da  injúria  renal  aguda  para  a  doença  renal  crônica  (DRC).  Na  DRC,  a  ET­1,  além  de  manter  o  processo inflamatório,  promove  a  diferenciação  de  fibroblastos  e  induz  a  síntese  e  a  deposição  de  componentes  na  matriz extracelular,  o  que  leva  a  disfunção  glomerular  e  tubular  renal  com  consequente  proteinúria.  Assim,  a  terapia  com antagonistas  do  receptor  ETA  pode  ser  uma  boa  alternativa  para  casos  em  que  os  tratamentos  convencionais  não  são suficientes para a redução da hipertensão arterial, especialmente quando esta é associada a gestação, diabetes e proteinúria.

Figura 55.45 ■ Efeito da endotelina 1, via receptor ETB, no transporte de sódio nas diferentes porções do néfron. ML, membrana luminal; MBL, membrana basolateral.

BIBLIOGRAFIA Sistema renina­angiotensina ABDALLA S, LOTHER H, ABDEL­TAWAB AM et al. The angiotensin II AT2 receptor is an AT1 receptor antagonist. J  Biol Chem, 276(43):39721­6, 2001. BADER  M.  Tissue  renin­angiotensin­aldosterone  system:  targets  for  pharmacological  therapy.  Annu  Rev  Pharmacol Toxicol, 50:439­65, 2010. BADER M, GANTEN D. Update on tissue renin­angiotensin systems. J Mol Med, 86:615­21, 2008. BARRETO­CHAVES  ML,  CARRILLO­SEPÚLVEDA  MA,  CARNEIRO­RAMOS  MS  et  al.  The  crosstalk  between  thyroid hormones and the renin­angiotensin system. Review. Vascul Pharmacol, 52(3­4):166­70, 2010. CASTELO­BRANCO  RC,  LEITE­DELLOVA  DCA,  FERNANDES  FB  et  al.  The  effect  of  Angiotensin­(1­7)  on  the  NH3 exchanger and on [Ca2+]i in the proximal tubules of spontaneously hypertensive rats. Am J Physiol Renal Physiol, 1, 2018. CASTELO­BRANCO  RC,  LEITE­DELLOVA  DCA,  MELLO­AIRES  M.  Dose­dependent  effects  of  angiotensin­(1­7)  on  the NHE3 exchanger and [Ca(2+)](i) in in vivo proximal tubules. Am J Physiol Renal Physiol, 304:F1258­65, 2013. FUNDER  JW.  Aldosterone  and  mineralocorticoid  receptors  in  the  cardiovascular  system.  Prog  Cardiovasc  Dis,  52:393­400, 2010. FYHRQUIST F, SAIJONMAA O. Renin­angiotensin system revisited. Review. J Intern Med, 264(3):224­36, 2008. GOLDBLATT H, LYNCH J, HANZAL RF et al. Studies on experimental hypertension: I. The production of persistent elevation of systolic blood pressure by means of renal ischemia. J Exp Med, 59(3):347­79, 1934.

KAPPERT K, UNGER T. Role of the renin­angiotensin system in hypertension. Hot Topics in Hypertension, 4:7­23, 2008. KUMAR R, BOIM MA. Diversity of pathways for intracellular angiotensin II synthesis. Curr Opin Nephrol Hypertens, 18:33­9, 2009. KUMAR  R,  SINGH  VP,  BAKER  KM.  The  intracellular  renin­angiotensin  system:  a  new  paradigm.  Trends  Endocrinol Metab, 18:208­14, 2007. MOGI  M,  IWAI  M,  HORIUCHI  M.  Emerging  concepts  of  regulation  of  angiotensin  II  receptors:  new  players  and  targets  for traditional receptors. Arterioscler Thromb Vasc Biol, 27:2532­739, 2007. NAVAR LG, KOBORI H, PRIETO MC et al. Intratubular renin­angiotensin system in hypertension. Hypertension,  57:355­62, 2011. ORO  C,  QIAN  H,  THOMAS  WG.  Type  1  angiotensin  receptor  pharmacology:  signaling  beyond  G  proteins.  Pharmacol Ther, 113:210­26, 2007. PINHEIRO SV, SIMÕES E SILVA AC, SAMPAIO WO et al. Nonpeptide AVE 0991 is an angiotensin (1­7) receptor Mas agonist in the mouse kidney. Hypertension, 44(4):490­6, 2004. RE  RN,  COOK  JL.  Mechanisms  of  disease:  intracrine  physiology  in  the  cardiovascular  system.  Nat  Clin  Pract  Cardiovasc Med, 4:549­57, 2007. SANTOS CF, CAPRIO MA, OLIVEIRA EB et al.  Functional  role,  cellular  source,  and  tissue  distribution  of  rat  elastase­2,  an angiotensin II­forming enzyme. Am J Physiol Heart Circ Physiol, 285(2):H775­83, 2003. SANTOS RA, FERREIRA AJ, SIMÕES E SILVA AC. Recent advances in the angiotensin­converting enzyme 2­angiotensin (1­ 7)­Mas axis. Exp Physiol, 93(5):519­27, 2008. SANTOS  RA,  SIMÕES  E  SILVA  AC,  MARIC  C et al.  Angiotensin­(1­7)  is  an  endogenous  ligand  for  the  G  protein­coupled receptor Mas. Proc Natl Acad Sci U S A, 100(14):8258­63, 2003. SANTOS RA, FERREIRA AJ, VERANO­BRAGA T et al. Angiotensin­converting enzyme 2, angiotensin­(1­7) and Mas: new players of the renin­angiotensin system. J Endocrinol, 216(2):R1­17, 2013. SANTOS RAS, MION JUNIOR D, OIGMAN W et al. Mecanismo de regulação de pressão arterial: sistema renina­angiotensina. In: MION Jr D, OIGMAN W, NOBRE F (Orgs.). MAPA: Monitoramento Ambulatorial da Pressão Arterial. 3. ed. Atheneu, São Paulo, 2004. SCHIAVONE MT, SANTOS RAS, BROSNIHAN KB et al. Release of vasopressina from the rat hypothalamo­neurohypophysial system by angiotensin­(1­7) heptapeptide. Proc Natl Acad Sci EUA, 85:4095­8, 1988. TALLANT EA, FERRARIO CM, GALLAGHER PE. Angiotensin­(1­7) inhibits growth of cardiac myocytes through activation of the Mas receptor. Am J Physiol Heart Circ Physiol, 289(4):H1560­6, 2005. TIGERSTEDT R, BERGMAN PG. Kidney and circulation. Skand Arch Physiol, 8:223­71, 1898. WARNER FJ, SMITH AI, HOOPER N et al. Angiotensin­converting enzyme­2: a molecular and cellular perspective. Cell Mol Life Sci, 61:2704­13, 2004. WEBER KT. Aldosterone in congestive heart failure. N Engl J Med, 345:1689­97, 2001.

Revisões sobre o SRA CASTROP H, HOCHERL K, KURTZ A et al. Physiology of kidney renin. Physiol Rev, 90:607­73, 2010. DANILCZYK U, PENNINGER JM. Angiotensin­converting enzyme II in the heart and the kidney. Circ Res, 98:463­71, 2006. FERRARIO CM, TRASK AJ, JESSUP JA. Advances in biochemical and functional roles of angiotensin­converting enzyme 2 and angiotensin­(1­7) in regulation of cardiovascular function. Am J Physiol Heart Circ Physiol, 289:H2281­90, 2005. KEIDAR S, STRIZEVSKY A, RAZ A et al. ACE2 activity is increased in monocyte­derived macrophages from prehypertensive subjects. Nephrol Dial Transplant, 22:597­601, 2007. LAMBERT DW, HOOPER NM, TURNER AJ. Angiotensin­converting enzyme 2 and new insights into the renin­angiotensin system. Biochem Pharmacol, 75:781­6, 2008. SANTOS RA. Angiotensin­(1­7). Hypertension, 63:1138­47, 2014. SANTOS RA, FERREIRA AJ, SIMÕES E SILVA AC. Recent advances in the angiotensin­converting enzyme 2­angiotensin(1­ 7)­Mas axis. Exp Physiol, 93:519­27, 2008. VARAGIC J, TRASK AJ, JESSUP JA et al. New angiotensins. J Mol Med (Berl), 86:663­71, 2008.

Aldosterona AZIZI M, AMAR L, MENARD J. Aldosterone synthase inhibition in humans. Nephrol Dial Transplant, 28(1):36­43, 2013. BOLDYREFF B, WEHLING M. Non­genomic actions of aldosterone: mechanisms and consequences in kidney cells. Nephrol Dial Transplant, 18:1693­5, 2003.

CALLERA GE, TOUYZ RM, TOSTES RC et al.  Aldosterone  activates  vascular  p38MAP  kinase  and  NADPH  oxidase  via  c­ Src. Hypertension, 45(4):773­9, 2005. CONNELL JMC, DAVIES E. The new biology of aldosterone. J Endocrinol, 186:1­20, 2005. FUNDER JW. The nongenomic actions of aldosterone. Endocr Rev, 26:313­21, 2005. GAUER  S,  SEGITZ  V,  GOPPELT­STRUEBE  M.  Aldosterone  induces  CTGF  in  mesangial  cells  by  activation  of  the glucocorticoid receptor. Nephrol Dial Transplant, 22(11):3154­9, 2007. GEKLE M, GROSSMANN C. Actions of aldosterone in the cardiovascular system: the good, the bad, and the ugly?  Pflügers Arch – Eur J Physiol, 458:231­46, 2009. GOMEZ­SANCHEZ CE, GOMEZ­SANCHEZ EP, GALIGNIANA M. Aldosterone receptors and their renal effects: molecular biology and gene regulation. In: SINGH AK, WILLIANS GH. Textbook of Nephro­Endocrinology. Elsevier, Oxford, 2009. GOOD DW. Nongenomic actions of aldosterone on the renal tubule. Hypertension, 49:728­39, 2007. GROSSMANN C, GEKLE M. New aspects of rapid aldosterone signaling. Mol Cell Endocrinol, 308:53­62, 2009. GROSSMANN  C,  GEKLE  M.  Nongenotropic  aldosterone  effects  and  the  EGFR:  interaction  and  biological relevance. Steroids, 73:973­8, 2008. HERMIDORFF MM, DE ASSIS LVM, ISOLDI MC. Genomic and rapid effects of aldosterone: what we know and do not know thus far. Heart Fail Rev, 22(1):65­89, 2017. LEITE­DELLOVA DCA, OLIVEIRA­SOUZA M, MALNIC G et al. Genomic and nongenomic dose dependent biphasic effect of aldosterone on Na+/H + exchanger in proximal S3 segment: role of cytosolic calcium. Am J Physiol Renal Physiol, 295:F1342­ 52, 2008. LÖSEL  RM,  WEHLING  M.  Classic  versus  non­classic  receptors  for  nongenomic  mineralocorticoid  responses:  emerging evidence. Front Neuroendocrinol, 29:258­67, 2008. MÖELLIC CL, OUVRAD­PASCAUD A, CAPURRO C et al. Early nongenomic events aldosterone action in renal collecting duct  cells:  PKC­activation,  mineralocorticoid  receptor  phosphorylation,  and  cross­talk  with  genomic  response.  J  Am  Soc Nephrol, 15:1145­60, 2004. PERGHER  PS,  LEITE­DELLOVA  DCA,  MELLO­AIRES  M.  Direct  action  of  aldosterone  on  bicarbonate  reabsorption  in  in vivo cortical proximal tubule. Am J Physiol Renal Physiol, 296:1185­93, 2009. PIPPAL J, FULLER PJ. Structure­function relationships in the mineralocorticoid receptor. J Mol Endocrinol, 41:405­13, 2008. SHEADER  EA,  WARGENT  ET,  ASHTON  N et al.  Rapid  stimulation  of  cyclic  AMP  production  by  aldosterone  in  rat  inner medullary collecting ducts. J Endocrinol, 175:343­7, 2002. VIENGCHAREUN S, LE MENUET D, MARTINERIE L et al. The mineralocorticoid receptor: insights into its molecular and (patho)physiological biology. Nucl Recep Signal, 5:e012, 2007. WILLIAMS JS, WILLIAMS GH. 50th anniversary of aldosterone. J Clin Endocrinol Metab, 88:2364­72, 2003.

Peptídios natriuréticos ANAND­SRIVASTAVA MB. Natriuretic peptide receptor­C signaling and regulation. Peptides, 26:1044­59, 2005. ANTUNES­RODRIGUES  J,  CASTRO  M,  ELIAS  LK  et  al.  Neuroendocrine  control  of  body  fluid  metabolismo.  Physiol Rev, 84:169­208, 2004. BAXTER GF. The natriuretic peptides: an introduction. Basic Res Cardiol, 99:71­5, 2004. BURLEY  DS,  HAMID  SA,  BAXTER  GF.  Cardioprotective  actions  of  peptide  hormones  in  myocardial  ischemia.  Heart  Fail Rev, 12(3­4):279­91, 2007. CURRY FE. Atrial natriuretic peptide: an essential physiological regulator of transvascular fluid, protein transport, and plasma volume. J Clin Invest, 115(6):1458­61, 2005. DE BOLD AJ. Atrial natriuretic fator: a hormone produced by the heart. Science, 230:767­70, 1985. DE VITO P, INCERPI S, PEDERSEN JZ et al. Atrial natriuretic peptide and oxidative stress. Peptides, 31(7):1412­9, 2010. D’SOUZA  SP,  DAVIS  M,  BAXTER  GF.  Autocrine  and  paracrine  actions  of  natriuretic  peptides  in  the  heart.  Pharmacol Ther, 101:113­29, 2004. GARBERS  DL,  CHRISMAN  TD,  WIEGN  P  et  al.  Membrane  guanylyl  cyclase  receptors:  an  update.  Trends  Endocrinol Metab, 17(6):251­8, 2006. GARDNER DG, CHEN S, GLENN DJ et al. Molecular biology of the natriuretic peptide system: implications for physiology and hypertension. Hypertension, 49(3):419­26, 2007. KASAMA S, FURUYA M, TOYAMA T et al. Effect of atrial natriuretic peptide on left ventricular remodelling in patients with acute myocardial infarction. Eur Heart J, 29:1485­94, 2008.

KIM SD, PIANO MR. The natriuretic peptides: physiology and role in left­ventricular dysfunction. Biol Res Nurs,  2(1):15­29, 2000. KISHIMOTO I, TOKUDOME T, HORIO T et al.  Natriuretic  peptide  signaling  via  guanylyl  cyclase  (GC)­A:  an  endogenous protective mechanism of the heart. Curr Cardiol Rev, 5(1):45­51, 2009. KOLLER KL, GOEDDEL DV. Molecular biology of the natriuretic peptides and their receptors. Circulation, 86:1081­8, 1992. KUHN M. Molecular physiology of natriuretic peptide. Basic Res Cardiol, 99:76­82, 2004. KUWAHARA K, NAKAO K. Regulation and significance of atrial and brain natriuretic peptides as cardiac hormones. Endocr J, 57(7):555­65, 2010. LEVIN ER, GARDNER DG, SAMSON WK. Natriuretic peptides. N Engl J Med, 339(5):321­8, 2004. NUSSENZVEIG DR, LEWICKIN JA, MAACK T. Cellular mechanisms of the clearance function of type C receptors of atrial natriuretic factor. J Biol Chem, 265(34):20952­8, 1990. POTTER  LR,  ABBEY­HOSCH  S,  DICKEY  DM.  Natriuretic  peptides,  their  receptors,  and  cyclic  guanosine  monophosphate­ dependent signaling functions. Endocr Rev, 27(1):47­72, 2006. ROSE RA, GILES WR. Natriuretic peptide C receptor signalling in the heart and vasculature. J Physiol, 586:353­66, 2008. SAMSON WK. Natriuretic Peptides in Health and Disease. Humana Press, Totowa, 1997.

Substâncias vasodilatadoras com ação renal BOONE  M,  DEEN  PM.  Physiology  and  pathophysiology  of  the  vasopressin­regulated  renal  water  reabsorption.  Pflugers Arch, 456(6):1005­24, 2008. CHENG HF, HARRIS RC. Cyclooxygenases, the kidney, and hypertension. Hypertension, 43(3):525­30, 2004. COWLEY Jr AW. Renal medullary oxidative stress, pressure­natriuresis, and hypertension. Hypertension, 52(5):777­86, 2008. GRANGER J, NOVAK J, SCHNACKENBERG C et al. Role of renal nerves in mediating the hypertensive effects of nitric oxide synthesis inhibition. Hypertension, 27(3 Pt 2):613­8, 1996. HAO CM, BREYER MD. Physiological regulation of prostaglandins in the kidney. Annu Rev Physiol, 70:357­77, 2008. KAKOKI M, SMITHIES O. The kallikrein­kinin system in health and in diseases of the kidney. Kidney Int, 75:1019­30, 2009. LIU  R,  PITTNER  J,  PERSSON  AE.  Changes  of  cell  volume  and  nitric  oxide  concentration  in  macula  densa  cells  caused  by changes in luminal NaCl concentration. J Am Soc Nephrol, 13(11):2688­96, 2002. MARSH N, MARSH A. A short history of nitroglycerine and nitric oxide in pharmacology and physiology. Clin Exp Pharmacol Physiol, 27(4):313­9, 2000. NELSON DL, COX MM, LEHNINGER AL. Principles of Biochemistry. 3. ed. Worth Publishers, Nova York, 2000. ORTIZ PA, GARVIN JL. Role of nitric oxide in regulation of nephron transport. Am J Physiol Renal Physiol, 282:F777­84, 2002. PATZAK A, PERSSON AE. Angiotensin II – nitric oxide interaction in the kidney. Curr Opin Nephrol Hypertens, 16:46­5, 2007. RAIJ L, BAYLIS C. Glomerular actions of nitric oxide. Kidney Int, 48:20­32, 1995. SADOWSKI J, BADZYNSKA B. Intrarenal vasodilator systems: NO, prostaglandins and bradykinin. An integrative approach. J Physiol Pharmacol, 59(Suppl 9):105­19, 2008.

Hormônio antidiurético BICHET DG. Nephrogenic diabetes insípido. Am J Med, 105:431­42, 1998. BROWN D, NIELSEN S. Cell biology of vasopressin action. In: BRENNER BM, RECTOR FC (Eds.). Brenner & Rector’s the Kidney. 8. ed. Saunders Elsevier, Philadelphia, 2008. HOLMES  CL,  LANDRY  DW,  GRANTON  JT.  Science  review:  vasopressin  and  the  cardiovascular  system  part  1  –  receptor physiology. Crit Care, 7(6):427­34, 2003. JUNG JS, PRESTON GM, SMITH BL et al. Molecular structure of the water channel through Aquaporin CHIP – the hourglass model. J Biol Chem, 269:14648­54, 1994. KNEPPER  MA,  HOFFERT  JD,  PACKER  RK  et  al.  Urine  concentration  and  dilution.  In:  BRENNER  BM,  RECTOR  FC (Eds.). Brenner & Rector’s the Kidney. 8. ed. Saunders Elsevier, Philadelphia, 2008. KNEPPER  MA.  Molecular  physiology  of  urinary  concentrating  mechanism:  regulation  of  aquaporin  water  channels  by vasopressin. Am J Physiol, 272:F3­12, 1997. MARPLES D, FROKIAER J, NIELSEN S. Long term regulation of aquaporins in the kidney. Am J Physiol, 276:F331­9, 1999. NIELSEN  S,  KNOWN  TH,  CHRISTENSEN  BM  et  al.  Physiology  and  pathophysiology  of  renal  aquaporins.  J  Am  Soc Nephrol, 10:647­63, 1999. ROBERTSON  GL,  BERL  T.  Pathophysiology  of  water  metabolism.  In:  BRENNER  BM,  RECTOR  FC  (Eds.).  The  Kidney. Saunders, New York, 1996.

SANDS JM. Regulation of renal urea transporters. J Am Soc Nephrol, 10:635­46, 1999. ZEIDEL ML. Recent advances in water transport. Semin Nephrol, 18:167­77, 1998.

Hormônio paratireoidiano BOLAND AR. Age­related changes in the response of intestinal cells to parathyroid hormone. Mech Ageing Devel, 125:877­88, 2004. BRO S, OLGAARD K. Effects of excess PTH on nonclassical target organs. Am J Kidney Disease, 30:606­20, 1997. CARRILLO­LÓPEZ N, FERNANDEZ­MARTIN JJ, CANNATA­ANDIA JB. The role of calcium and its receptors in parathyroid regulation. Nefrologia, 29:103­8, 2009. KIELA  PR,  GRISHAN  FK.  Recent  advances  in  the  renal­skeletal  gut­axis  that  controls  phosphate  homeostasis.  Laboratory Invest, 89:7­14, 2009. KOVACS  CS,  KRONBERG  HM.  Maternal­fetal  calcium  and  bone  metabolism  during  pregnancy,  puerperium  and lactation. Endocr Rev, 18:854­900, 1997. MASSRY SG, SMOGORZEWSKI M. The effects of serum calcium and parathyroid hormone and the interaction between them on blood pressure in normal subjects and in patients with chronic kidney failure. J Renal Nutr, 15:173­7, 2005. TORRES PU, PRIÉ D, BECK L et al. Klotho Gene, phosphocalcic metabolism and survival in dialysis. J Renal Nutrition, 19:50­ 6, 2009. TRAEBERT M, ROTH J, BIBER J et al. Internalization of proximal tubular type II Na­Pi cotransporter by PTH: immunogold electron microscopy. Am J Physiol Renal Physiol, 278:F148­54, 2000.

Eritropoetina ARCASOY MO. The non­haematopoietic biological effects of erythropoietin. Br J Haematol, 141:14­3, 2008. BOISSEL JP, LEE WR, PRESNELL SR et al. Erythropoietin structure­function relationships. Mutant proteins that test a model of tertiary structure. J Biol Chem, 268(21):15983­93, 1993. BRAHIMI­HORN MC, POUYSSÉGUR J. HIF at a glance. J Cell Sci, 122:1055­7, 2009. DUNN A, DONNELLY S. The role of the kidney in blood volume regulation: the kidney as a regulator of the hematocrit. Am J Med Sci, 334:65­71, 2007. FISHER JW. Erythropoietin: physiology and pharmacology update. Exp Biol Med, 228:1­14, 2003. FOOD  AND  DRUG  ADMINISTRATION.  FDA  Drug  Safety  Communication:  Erythropoiesis­Stimulating  Agents  (ESAs): Procrit,  Epogen  and  Aranesp.  Disponível em: www.fda.gov/Drugs/DrugSafety/PostmarketDrugSafetyInformationforPatientsandProviders/ucm200297.htm. FOOD AND DRUG ADMINISTRATION. Information on Erythropoiesis­Stimulating Agents (ESA) Epoetina alfa (marketed as Procrit,  Epogen)  Darbepoetina  alfa  (marketed  as  Aranesp).  Disponível em: www.fda.gov/drugs/drugsafety/postmarketdrugsafetyinformationforpatientsandproviders/ucm109375.htm. FOOD  AND  DRUG  ADMINISTRATION.  Safety  of  Erythropoiesis­Stimulating  Agents  (ESAs)  in  Oncology.  10  May  2007. Disponível em: www.fda.gov/ohrms/dockets/ac/07/briefing/2007­4301b2­01­01.AMGEN­odac­supplement­2007.pdf. FRIED W. Erythropoietin and erythropoiesis. Exp Hematol, 37:1007­15, 2009. HEYMAN SN, KHAMAISI M, ROSEN S et al. Renal parenchymal hypoxia, hypoxia response and the progression of chronic kidney disease. Am J Nephrol, 28:998­1006, 2008. JELKMAN W. Erythropoietin: back to basics. Blood, 115:4151­2, 2010. KAISSLING B, LE HIR M. The renal cortical interstitium: morphological and functional aspects. Histochem Cell Biol, 130:247­ 62, 2008. KUHRT D, DON M, WOJCHOWSKI AM. Emerging EPO and EPO receptor regulators and signal transducers. Blood, 125:3536­ 41, 2015. LACOMBE C, MAYEUX P. Erythropoietin receptors: their role beyond erythropoiesis. Nephrol Dial Transplant, 14:22­8, 1999. LAPPIN T. The cellular biology of erythropoietin receptors. Oncologist, 8:15­8, 2003. LAPPIN  TR,  MAXWELL  AP,  JOHNSTON  PG.  EPO’s  alter  ego:  erythropoietin  has  multiple  actions.  Stem  Cells,  20:485­92, 2002. LISY K, PEET DJ. Turn me on: regulating HIF transcriptional activity. Cell Death Differ, 15:642­9, 2008. LIU J, WEI Q, GUO C et al. Hypoxia, HIF, and associated signaling networks in chronic kidney disease. Int J Mol Sci, 18:950­ 67, 2017. MAIESE K, CHONG ZZ, LI F et al. Erythropoietin: elucidating new cellular targets that broaden therapeutic strategies. Prog Neurobiol, 85:194­213, 2008.

MAIESE K, LI F, CHONG ZZ. New avenues of exploration for erythropoietin. JAMA, 293:90­5, 2005. NAKHOUL G, SIMON JF. Anemia of chronic kidney disease: treat it, but not too aggressively. Cleve Clin J Med, 83:613­24, 2016. ROSENBERGER  C,  MANDRIOTA  S,  JÜRGENSEN  JS  et  al.  Expression  of  hypoxia­inducible  factor­1alpha  and  ­2alpha  in hypoxic and ischemic rat kidneys. J Am Soc Nephrol, 13:1721­32, 2002. ROSSERT J, KAI­UWE E. Erythropoietin receptors: their role beyond erythropoiesis. Nephrol Dial Transplant, 20:1025­8, 2005. SEMENZA GL. Hydroxylation of HIF­1: oxygen sensing at the molecular level. Physiology, 19:176­82, 2004. UNGER  EF,  THOMPSON  AM,  BLANK  MJ  et  al.  Erythropoiesis­stimulating  agents­time  for  a  reevaluation.  N  Engl  J Med, 362:189­92, 2010.

Uroguanilina AMORIM  JB,  MUSA­AZIZ  R,  LESSA  LM  et  al.  Effect  of  uroguanylin  on  potassium  and  bicarbonate  transport  in  rat  renal tubules. Can J Physiol Pharmacol, 84:1003­10, 2006. ARNAUD­BATISTA FJ, PERUCHETTI DB, ABREU TP et al.  Uroguanylin  modulates  (Na++K +)ATPase  in  a  proximal  tubule cell line: interactions among the cGMP/protein kinase G, cAMP/protein kinase A, and mTOR pathways. Biochim  Biophys Acta, 1860(7):1431­8, 2016. BRANCALE A, SHAILUBHAI K, FERLA S et al. Therapeutically targeting guanylate cyclase­C: computational modeling of plecanatide, a uroguanylin analog. Pharmacol Res Perspect, 5(2):e00295, 2017. CURRIE MG, FOK KF, KATO J et al. Guanylin, an endogenous activator of intestinal guanylate cyclase. Proc Natl Acad Sci USA, 89:947­51, 1992. FONTELES MC, GREENBERG RN, MONTEIRO HS et al. Natriuretic and kaliuretic activities of guanylin and uroguanylin in the isolated perfused rat kidney. Am J Physiol, 275:F191­7, 1998. FONTELES MC, HAVT A, PRATA RB et al. High­salt intake primes the rat kidney to respond to a subthreshold uroguanylin dose during ex vivo renal perfusion. Regul Pept, 158:6­13, 2009. FONTELES  MC,  NASCIMENTO  NR.  Guanylin  peptide  family:  history,  inter­actions  with  ANP,  and  new  pharmacological perspectives. Can J Physiol Pharmacol, 89(8):575­85, 2011. FORTE LR Jr. Uroguanylin and guanylin peptides, pharmacology and experimental therapeutics. Pharmacol Ther, 104(2):137­ 62, 2004. FORTE LR Jr, FONTELES MC. Uroguanilyn and guanylin: endocrine link connecting the intestine and kidney for regulation of sodium balance. In: SELDIN DW, GIEBISCH G. The Kidney. 4. ed. Lippincott Williams & Wilkins, Philadelphia, 2000. LENNANE RJ, CAREY RM, GOODWIN TJ et al.  A  comparison  of  natriuresis  after  oral  and  intravenous  sodium  loading  in sodium­depleted man: evidence for a gastrointestinal or portal monitor of sodium intake. Clin Sci Mol Med, 49:437­40, 1975. LESSA LM, CARRARO­LACROIX LR, CRAJOINAS RO et al. Mechanisms underlying the inhibitory effects of uroguanylin on NHE3 transport activity in renal proximal tubule. Am J Physiol Renal Physiol, 303(10):F1399­408, 2012. LIMA AA, MONTEIRO HS, FONTELES MC. The effects of Escherichia coli heat­stable enterotoxin in renal sodium tubular transport. Pharmacol Toxicol, 70:163­7, 1992. QIAN  X,  MOSS  NG,  FELLNER  RC  et  al.  Circulating  prouroguanylin  is  processed  to  its  active  natriuretic  form  exclusively within the renal tubules. Endocrinol, 149(9):4499­509, 2008. SCHULZ S, GREEN CK, YUEN PST et al. Guanylil cyclase is a heat­stable enterotoxin receptor. Cell, 63:941­8, 1990. YUGE  S,  INOUE  K,  HYODO  S et  al.  A  novel  guanylin  family  (guanylin,  uroguanylin,  and  renoguanylin)  in  eels:  possible osmoregulatory hormones in intestine and kidney. J Biol Chem, 20;278(25):22726­33, 2003.

Endotelinas ABDEL­SAYED S, NUSSBERGER J, AUBERT JF et al. Measurement of plasma endothelin­1 in experimental hypertension and in healthy subjects. Am J Hypertens, 16:515­21, 2003. BARTON M, YANAGISAWA M. Endothelin: 20 years from discovery to therapy. Can J Physiol Pharmacol, 86:485­98, 2008. DE MATTIA G, CASSONE­FALDETTA M, BELLINI C et al.  Role  of  plasma  and  urinary  endothelin­1  in  early  diabetic  and hypertensive nephropathy. Am J Hypertens, 11:983­8, 1998. HASEGAWA  H,  HIKI  K,  SAWAMURA  T  et  al.  Purification  of  a  novel  endothelin­converting  enzyme  specific  for  big endothelin­3. FEBS Lett Netherlands, 428:304­8, 1998. HICKEY KA, RUBANYI G, PAUL RJ et al. Characterization of a coronary vasoconstrictor produced by cultured endothelial cells. Am J Physiol, 248:C550­6, 1985.

HOPFNER RL, GOPALAKRISHNAN V. Endothelin: emerging role in diabetic vascular complications. Diabetologia, 42:1383­ 94, 1999. IMAI  T,  HIRATA  Y,  EMORI  T  et  al.  Induction  of  endothelin­1  gene  by  angiotensin  and  vasopressin  in  endothelial cells. Hypertension, 19:753­7, 1992. KARET FE. Endothelin peptides and receptors in human kidney. Clin Sci (Lond), 91:267­73, 1996. KOHAN  DE.  Endothelin,  hypertension  and  chronic  kidney  disease:  new  insights.  Curr  Opin  Nephrol  Hypertens,  19:134­9, 2010. KOHAN  DE,  PADILLA  E.  Osmolar  regulation  of  endothelin­1  production  by  rat  inner  medullary  collecting  duct.  J  Clin Invest, 91:1235­40, 1993. KOHAN  DE,  ROSSI  NF,  INSCHO  EW  et  al.  Regulation  of  blood  pressure  and  salt  homeostasis  by  endothelin.  Physiol  Rev United States, 91:1­77, 2011. KOWALCZYK A, KLENIEWSKA P, KOLODZIEJCZYK M et al. The role of endothelin­1 and endothelin receptor antagonists in inflammatory response and sepsis. Arch Immunol Ther Exp (Warsz), 63:41­52, 2015. KUC  R,  DAVENPORT  AP.  Comparison  of  endothelin­A  and  endothelin­B  receptor  distribution  visualized  by  radioligand binding  versus  immunocytochemical  localization  using  subtype  selective  antisera.  J  Cardiovasc  Pharmacol,  44(Suppl 1):S224­6, 2004. MASAKI T. Historical review: endothelin. Trends Pharmacol Sci, 25:219­24, 2004. NAMBI  P,  PULLEN  M,  BROOKS  DP  et  al.  Identification  of  ETB  receptor  subtypes  using  linear  and  truncated  analogs  of ET. Neuropeptides, 29:331­6, 1995. SAUVAGEAU S, THORIN E, VILLENEUVE L et al. Endothelin­3­dependent pulmonary vasoconstriction in monocrotaline­ induced pulmonary arterial hypertension. Peptides, 29:2039­45, 2008. SCHNEIDER JG, TILLY N, HIERL T et al. Elevated plasma endothelin­1 levels in diabetes mellitus. Am J Hypertens, 15:967­ 72, 2002. SIMONSON MS. Endothelins: multifunctional renal peptides. Physiol Rev, 73:375­411, 1993. SPEED JS, FOX BM, JOHNSTON JG et al. Endothelin and renal ion and water transport. Semin Nephrol, 35:137­44, 2015. TOMITA K, NONOGUCHI H, TERADA Y et al. Effects of ET­1 on water and chloride transport in cortical collecting ducts of the rat. Am J Physiol, 264:F690­6, 1993. WESSON  DE.  Endogenous  endothelins  mediate  increased  acidification  in  remnant  kidneys.  J  Am  Soc  Nephrol,  12:1826­35, 2001. WOLF SC, SMOLTCZYK H, BREHM BR et al. Endothelin­1 and endothelin­3 levels in different types of glomerulonephritis. J Cardiovasc Pharmacol, 31(Suppl 1):S482­5, 1998. YANAGISAWA M, KURIHARA H, KIMURA S et al.  A  novel  peptide  vasoconstrictor,  endothelin,  is  produced  by  vascular endothelium and modulates smooth muscle Ca2+ channels. J Hypertens Suppl, 6: S188­91, 1988.



Introdução

■ ■

Exemplos de tubulopatias do segmento proximal Exemplos de tubulopatias do ramo grosso ascendente

■ ■ ■

Exemplo de tubulopatia do segmento distal convoluto Exemplo de tubulopatia do túbulo coletor Acidose tubular renal de origem hereditária

■ ■

ATR distal tipo 1 ATR proximal tipo 2

■ ■ ■

ATR combinada (proximal/distal) tipo 3 Conclusão Bibliografia

INTRODUÇÃO A  compreensão  dos  mecanismos  moleculares  de  transporte  transcelular  de  íons  nos  diferentes  segmentos  do  néfron vem  sendo  aprimorada  pela  análise  de  tubulopatias  de  origem  genética.  As  alterações  funcionais  de  proteínas transportadoras causam doenças com amplo espectro fenotípico. Neste capítulo, serão abordados alguns desses distúrbios com  a  finalidade  de  ressaltar,  pela  análise  da  perda  da  função,  os  mecanismos  fisiológicos  desses  transportadores. Adicionalmente,  utilizando  o  conhecimento  disponível  sobre  determinadas  tubulopatias,  serão  aproximados  os  estudos fisiológicos  básicos  aos  advindos  da  clínica,  para  melhor  compreensão  das  inter­relações  dos  diferentes  transportadores iônicos. Os exemplos clínicos foram escolhidos na tentativa de fixar o conteúdo apresentado em capítulos anteriores, sem qualquer preocupação de um estudo sistemático.

EXEMPLOS DE TUBULOPATIAS DO SEGMENTO PROXIMAL

▸ Doença de Dent Várias síndromes familiares raras, caracterizadas pela perda da capacidade funcional do túbulo proximal em reabsorver solutos,  foram  descritas  no  século  XX.  Com  a  intenção  de  aprofundar  o  entendimento  dos  mecanismos  de  transporte presentes  nesse  segmento  do  néfron,  será  analisada  a  doença  de  Dent,  uma  das  causas  de  nefrolitíase  (cálculo  renal).  A nefrolitíase é uma doença muito comum, sendo caracterizada pela formação recorrente de cálculos renais. É predominante no sexo masculino; apenas cerca de 30% dos casos ocorre em mulheres. Os cálculos mais frequentes são de sais de cálcio, principalmente  fosfato  e  oxalato;  os  formados  por  cistina  (dímero  da  cisteína),  urato  e  Mg(NH4)PO4  (estruvita)  são menos comuns.

Em  1964,  Dent  e  Friedman  descreveram  uma  forma  hereditária  rara  de  nefrolitíase  associada  ao  cromossomo  X, caracterizada pela presença de proteinúria de baixo peso molecular acompanhada, na maioria dos casos, por hipercalciúria, nefrocalcinose,  raquitismo  e,  algumas  vezes,  por  insuficiência  renal.  Foram  descritas  síndromes  semelhantes  em diferentes  países,  tendo­lhes  sido  atribuídos  nomes  diferentes:  síndrome  de  Dent,  no  Reino  Unido,  raquitismo hipofosfatêmico  recessivo  associado  ao  cromossomo  X,  na  Itália  e  na  França,  e  síndrome  da  proteinúria  de  baixo  peso molecular com hipercalciúria e nefrocalcinose, no Japão. Atualmente, é aceito que cerca de 50 a 60% dos pacientes com doença de Dent apresentam mutações do gene CLCN5, que codifica o transportador ClC­5, e que cerca de 15% têm mutações do gene OCRL1, que codifica a fosfatidilinositol 4,5­bifosfato  5­fosfatase.  Porém,  entre  25  e  35%  dos  pacientes  com  características  clínicas  da  doença  de  Dent  não apresentam mutações em nenhum desses dois genes, indicando a possibilidade de outros genes estarem envolvidos com a origem da doença. Inicialmente,  foi  identificado  como  causa  da  doença  de  Dent  o  defeito  do  gene  CLCN5,  localizado  na  região  11.22­ 11.23 do cromossomo X. Posteriormente, foi demonstrado que o produto por ele codificado é um transportador de cloreto sensível à voltagem, o ClC­5, que pertence à família dos canais de cloreto que inclui o ClC­Kb, cujas mutações causam um  dos  tipos  de  síndrome  de  Bartter,  que  será  analisada  mais  adiante.  Atualmente,  já  foram  identificadas  mais  de  30 mutações na sequência do ClC­5. Enquanto  os  transportadores  ClC­1,  ­2,  Ka  e  Kb  estão  predominantemente  localizados  na  membrana  plasmática,  os transportadores  ClC­3,  ­4,  ­5,  ­6  e  ­7  localizam­se,  principalmente,  nas  vesículas  endocíticas  e  lisossomais  (sendo  que ClC­3,  ­4  e  ­5  apresentam  80%  de  homologia  em  suas  sequências).  A  maioria  das  organelas  celulares  que  apresentam esses transportadores são acidificadas por H+­ATPases vesiculares. Os primeiros estudos realizados em pacientes portadores da doença de Dent e em camundongos knockout (ou KO) para o ClC­5 (i. e., que não têm esse canal funcionante) indicaram a importância fisiológica desse transportador na reabsorção de proteínas de baixo peso molecular no túbulo proximal (ver Figura 52.10 no Capítulo 52, Excreção Renal de Solutos). Por  meio  de  métodos  de  imunofluorescência  e  imunomicroscopia  eletrônica,  foram  obtidos  os  seguintes  dados experimentais: ■ As  proteínas  de  baixo  peso  molecular  que  são  filtradas  no  glomérulo  são  reabsorvidas,  por  endocitose,  no  túbulo proximal, local onde os transportadores ClC­5 apresentam grande expressão ■ Os transportadores ClC­5 se apresentam colocalizados com ATPases tipo V na região abaixo da borda em escova dos túbulos proximais, rica em vesículas endocíticas ■ Quando  utilizada  proteína  marcada  radioativamente,  verifica­se  que  ela  é  reabsorvida  nessa  região  e  se  localiza  em endossomos que expressam o ClC­5. A partir do entendimento vigente na época, de que o ClC­5 seria um canal de cloreto, foi proposto que os endossomos seriam  acidificados  pelo  influxo  de  H+ promovido pela H+­ATPase,  que  dependeria  do  fluxo  paralelo  de  um  ânion  (Cl–) para  operar  adequadamente.  Assim  considerado,  e  tendo  por  base  os  dados  experimentais  expostos  anteriormente,  foi sugerido  que  o  ClC­5,  atuando  como  um  canal,  permitiria  a  formação  de  gradientes  transvesiculares  de  pH,  o  que  seria essencial para a endocitose proteica no túbulo proximal. Essa hipótese foi confirmada com estudos em camundongos KO para o ClC­5, que reproduziram a proteinúria de baixo peso molecular característica dos portadores da doença de Dent. Estudos  eletrofisiológicos  recentes  demonstraram,  todavia,  que  o  ClC­5  é  um  permutador  2Cl–/H+,  eletrogênico  e dependente  de  voltagem,  e  não  um  canal  de  cloreto,  como  foi  entendido  inicialmente.  Assim  sendo,  o  ClC­5  permite  o vazamento do íon hidrogênio do interior da vesícula e leva ao acúmulo do íon cloreto no seu interior. Para  verificar  se  a  doença  de  Dent  decorreria  ou  não  de  uma  acidificação  inadequada  do  endossomo,  em  2010, Novarino et al.  desenvolveram  um  camundongo  com  uma  mutação  que  converte  o  permutador  2Cl–/H+ em  um  canal  de cloreto. Como esperado, a acidificação dos endossomos foi normal nos animais em que o ClC­5 desempenhava a função de canal de cloreto, mas estava gravemente comprometida nos animais com knockout para o ClC­5. Os animais em que o ClC­5  funcionava  como  canal  de  cloreto,  ainda  que  acidificassem  normalmente  os  endossomos,  desenvolveram  quadro semelhante  ao  da  doença  de  Dent  humana,  resultado  parecido  com  o  obtido  nos  animais knockout para  o  ClC­5.  Essas descobertas, que excluem a hipótese originalmente formulada, sugerem que a redução do acúmulo de cloreto endossomal possa ser importante na gênese da doença de Dent e indicam que a concentração de cloreto possa desempenhar importante papel na fisiologia dessa organela. O papel do ClC­5 presente nos endossomos das células tubulares proximais, todavia, ainda  não  está  suficientemente  esclarecido,  não  sendo  possível,  no  momento,  estabelecer  os  mecanismos  intrínsecos envolvidos na gênese dessa doença.

Mais recentemente, foram identificadas mutações no gene OCRL1 – localizado na região q25 do cromossomo X, que codifica a fosfatidilinositol 4,5­bifosfato 5­fosfatase, enzima relacionada com o processo de endocitose – que dão origem à doença de Dent tipo 2. Nesta enfermidade, ao lado de alterações renais similares às observadas na doença de Dent tipo 1, anteriormente  descritas,  ocorrem  sintomas  extrarrenais,  tais  como  catarata  subclínica,  hipotonia  e  retardo  mental  ameno. Os mecanismos que levam a esses distúrbios podem ser atribuídos ao papel da fosfatidilinositol 4,5­bifosfato 5­fosfatase, codificada pelo gene OCRL1, no tráfego lisossômico e na triagem endossomal. O substrato preferencial dessa enzima é o fosfatidilinositol  4,5­bifosfato  (PIP2),  que,  pela  hidrólise  do  fosfato  5’,  é  degradado  em  fosfatidilinositol  4­fosfato.  O PIP2  tem  importante  papel  na  regulação  da  cinética  do  citoesqueleto  e,  assim,  em  diversos  passos  envolvidos  na endocitose.  A  ausência  ou  perda  funcional  da  fosfatidilinositol  4,5­bifosfato  5­fosfatase  leva,  portanto,  ao  acúmulo  de PIP2 no interior das células do túbulo proximal, o que responde pelas alterações do tráfico endocítico responsáveis pelos sintomas da doença de Dent tipo 2. Tanto  as  mutações  do  gene  CLCN5  como  as  do  gene  OCRL1,  por  causarem  disfunções  do  processo  de  endocitose, levam à perda de proteínas de baixo peso molecular, um dos sintomas característicos da doença de Dent.

▸ Hipercalciúria e hiperfosfatúria Uma  das  mais  importantes  funções  da  endocitose  no  túbulo  proximal  é  a  conservação  de  vitaminas  essenciais,  tais como o retinol e a vitamina D, que, juntamente com as proteínas de ligação, são reabsorvidas nesse segmento. Enquanto as proteínas de ligação são degradadas nos lisossomos, as vitaminas a elas ligadas são reabsorvidas, como o retinol. No caso da vitamina D, como veremos adiante, após a endocitose, ela é transformada na forma ativa antes de ser reabsorvida para  o  sangue.  Tanto  nos  animais  KO  para  o  ClC­5  como  nos  pacientes  com  a  doença  de  Dent,  foi  observada  perda urinária massiva de retinol, vitamina D e suas proteínas de ligação. Para a vitamina D, esta situação é complexa em razão da  influência  da  paratireoide  no  metabolismo  da  vitamina  D.  O  hormônio  da  paratireoide  (PTH)  aumenta  a  produção  de vitamina D3 ativa [ou 1,25(OH)2­VitD3] no túbulo proximal, pelo estímulo da transcrição da enzima 1α­hidroxilase, que converte  o  precursor  inativo  [ou  25(OH)­VitD3] na vitamina D3 ativa.  Sendo  um  pequeno  peptídio,  o  PTH  é  livremente filtrado  e  posteriormente  reabsorvido  via  endocitose  no  túbulo  proximal.  Nesse  segmento  do  néfron,  os  receptores  para esse  hormônio  estão  presentes  tanto  na  membrana  basolateral  como  na  luminal.  A  perda  da  capacidade  endocítica, decorrente  das  mutações  do  CLCN5  ou  do  OCRL1,  resulta  no  aumento  da  concentração  luminal  de  PTH  e  consequente aumento da ativação de seus receptores luminais (PTH­R). O aumento da concentração do hormônio no lúmen do túbulo proximal  estimula  a  transcrição  da  1α­hidroxilase  por  meio  dos  receptores  luminais,  o  que  eleva  a  relação  entre  as concentrações plasmáticas de vitamina D3 ativa e seu precursor inativo nos camundongos KO para ClC­5 (Figura 56.1 A). Entretanto, a concentração plasmática absoluta da vitamina D3 ativa não fica necessariamente elevada, pois a falta do ClC­ 5 funcional reduz drasticamente a reabsorção do precursor da vitamina D3 no túbulo proximal. Dependendo das condições alimentares e de fatores genéticos, o balanço entre esses dois efeitos pode ocorrer em qualquer das duas direções. Em muitos portadores da doença de Dent, os níveis plasmáticos de vitamina D estão levemente aumentados, enquanto nos camundongos KO para ClC­5 encontram­se consistentemente diminuídos. É esperado que o nível plasmático elevado de  vitamina  D3  ativa  estimule  a  reabsorção  intestinal  de  cálcio,  podendo,  portanto,  este  íon  ser  excretado  em  maior quantidade pelos rins. Entretanto, o uso de camundongos KO para o ClC­5 (que apresentam hipercalciúria e aumento dos níveis  plasmáticos  de  vitamina  D3 ativa)  mostra  que  a  disponibilidade  do  cálcio  decorre  do  remanejamento  ósseo  desse íon, e não do aumento de sua reabsorção intestinal. A hiperfosfatúria encontrada na doença de Dent também parece ser um efeito secundário ao aumento da concentração urinária  do  PTH  (Figura  56.1  B).  A  reabsorção  de  fosfato  no  túbulo  proximal  ocorre  principalmente  por  meio  do cotransportador  NaPi  (localizado  na  membrana  luminal),  o  qual  é  inibido  pelo  PTH,  via  endocitose  e  degradação lisossomal (ver Capítulo 52).  Como  esperado,  em  camundongos  KO  para  o  ClC­5  a  quantidade  de  NaPi  na  membrana luminal  está  diminuída  em  razão  do  aumento  da  concentração  luminal  do  PTH.  Adicionalmente,  nesses  animais,  o cotransportador  NaPi  está  localizado  principalmente  nas  vesículas  intracelulares.  Esses  achados  indicam  que  a  fosfatúria encontrada na doença de Dent é decorrente do defeito primário da endocitose do PTH que ocorre nessa anomalia.

EXEMPLOS DE TUBULOPATIAS DO RAMO GROSSO ASCENDENTE

▸ Questões em torno da alcalose metabólica crônica

O  desafio  intelectual  básico  a  que  o  pesquisador  está  sujeito  é  o  de  ser  capaz  de  reconhecer  causas  distintas  para situações  semelhantes  e  causas  comuns  para  situações  distintas.  Assim,  a  observação  atenta  de  pacientes  com  alcalose metabólica crônica levou vários pesquisadores, nas décadas de 1950 e 1960, a tentar estabelecer diagnósticos sindrômicos a  partir  das  outras  manifestações  apresentadas  paralelamente  a  esse  distúrbio  metabólico.  O  desenrolar  das  descobertas científicas  que  iremos  acompanhar  a  partir  de  então  representa  o  trabalho  de  muitos  cientistas  ao  longo  de  40  anos  de estudos, até a elucidação de algumas causas desse distúrbio. Em  1962,  Frederic  Bartter  descreveu  as  seguintes  anormalidades  metabólicas  em  dois  pacientes:  alcalose  metabólica hipoclorêmica  acompanhada  de  perda  urinária  grave  de  potássio,  hipopotassemia,  hiperaldosteronismo  e  hiperplasia  do aparelho  justaglomerular.  A  singularidade  desses  casos  residia  no  fato  de  que,  ao  contrário  do  que  ocorre  em  pacientes com  formas  mais  comuns  de  hiperaldosteronismo,  esses  eram  jovens,  apresentavam  retardo  mental  brando  e  eram normotensos.  Essa  descrição  causou  interesse  na  comunidade  científica,  e  muitos  casos  semelhantes  foram,  então, relatados.  Pouco  depois,  ficou  evidente  um  padrão  de  transmissão  familiar,  autossômico  recessivo.  Posteriormente,  em 1966, Gitelman descreveu uma síndrome similar em três pacientes, caracterizada por alcalose metabólica acompanhada de aumento  dos  níveis  plasmáticos  de  renina  e  depleção  renal  de  magnésio  e  potássio,  levando  a  hipomagnesemia  e hipopotassemia. Essas características eram consistentes com um excesso de mineralocorticoides, exceto pela ausência de hipertensão. Em razão da hipomagnesemia, foi suposto que se tratava de uma variante da síndrome descrita por Bartter.

Figura 56.1 ■ Modelo  para  explicar  a  hipercalciúria  e  a  hiperfosfatúria  na  doença  de  Dent. A. Alterações  no  metabolismo  de vitamina  D.  O  paratormônio  (PTH)  é  normalmente  filtrado  no  glomérulo  e  reabsorvido  no  túbulo  proximal  por  endocitose (mediada pela megalina) com posterior degradação intravesical. A perda da capacidade endocítica decorrente da disfunção do ClC­5 resulta no aumento da concentração luminal de PTH e consequente aumento da ativação de seus receptores luminais (PTH­R). Isso estimula a transcrição mitocondrial da enzima 1α­hidroxilase (1α­HYD), que catalisa a conversão de 25(OH)­VitD3, precursor  da  vitamina  D,  em  1,25(OH)2­VitD3,  seu  metabólito  ativo.  Por  sua  vez,  a  vitamina  D3  ativa  causa,  indiretamente, hipercalciúria  em  razão  de  aumentar  a  reabsorção  intestinal  de  cálcio.  Porém,  a  25(OH)­VitD3 ligada  à  DBP,  sua  proteína  de ligação,  é  reabsorvida  apicalmente,  por  endocitose  dependente  da  megalina  e  do  ClC­5;  assim,  o  defeito  na  endocitose presente na doença de Dent leva à menor disponibilidade de substrato para a 1α­HYD. Há, portanto, um delicado balanço entre

a ativação da enzima e a disponibilidade do precursor, o que pode levar tanto ao aumento como à diminuição da produção de vitamina D3 ativa. Além disso, o hormônio ativo também pode ser perdido na urina. Isso pode explicar o fato de a hipercalciúria ser muito variável, tanto entre os pacientes da doença de Dent como nos diferentes modelos de camundongos KO para ClC­ 5. B. Mecanismos causadores de fosfatúria. A falta de ClC­5 funcional reduz a endocitose do PTH, causando o aumento de sua concentração no túbulo proximal. Como o cotransportador luminal de fosfato de sódio NaPi é inibido pelo PTH, o qual causa sua endocitose  e  degradação,  na  falta  de  ClC­5  funcional  a  reabsorção  proximal  de  fosfato  é  deprimida,  ocorrendo  consequente fosfatúria. (Adaptada de Jentsch et al., 2005.)

Clinicamente, essas síndromes são diferenciadas com base na concentração plasmática de magnésio e na concentração urinária  de  cálcio,  sendo  a  síndrome  de  Gitelman  confirmada  pela  hipomagnesemia  e  hipocalciúria.  Outra  diferença importante é que a síndrome de Bartter típica, geralmente, ocorre antes dos 6 anos de idade e apresenta sintomas graves, tais  como  desidratação  e  retardo  do  crescimento.  Ao  contrário,  a  síndrome  de  Gitelman  manifesta­se  na  adolescência  e início  da  vida  adulta,  com  predomínio  de  sintomas  neuromusculares,  tais  como  cãibra,  fadiga,  fraqueza  muscular, irritabilidade  e  espasmos  nas  mãos  e  nos  pés.  Em  alguns  casos,  foram  relatadas  manifestações  graves  como  tetania, paralisia e rabdomiólise (ruptura de células musculares com extravasamento de seu conteúdo para a corrente sanguínea). Por  muitos  anos,  a  sobreposição  das  características  fisiológicas  e  a  variabilidade  fenotípica  dessas  duas  síndromes dificultaram  sua  diferenciação,  sendo  que  muitos  pacientes  com  síndrome  de  Gitelman  foram  diagnosticados, equivocadamente, como portadores da síndrome de Bartter. Mais tarde, a análise genética de pacientes de uma mesma família permitiu classificar a síndrome de Bartter em pelo menos três grandes grupos fenotípicos: variante pré­natal (ou síndrome de hiperprostaglandina E), que seria caracterizada por  prematuridade,  polidrâmnio  (aumento  do  líquido  amniótico)  e  desidratação  ao  nascimento;  síndrome  de  Bartter clássica, que acometeria crianças e seria caracterizada por distúrbios graves de crescimento; e síndrome de Gitelman, que acometeria  adultos,  sendo  caracterizada  por  hipomagnesemia,  hipercalcemia  e  hipocalciúria.  Entretanto,  estudos genômicos  mais  recentes  revelaram  que  a  síndrome  de  Gitelman  tem  causa  totalmente  diferente  da  síndrome  de  Bartter, como veremos a seguir.

▸ Síndrome de Bartter Os mecanismos moleculares envolvidos na síndrome de Bartter evidenciam a complexidade das dependências entre os diferentes  sistemas  de  transporte  iônico  presentes  nas  células  do  ramo  ascendente  grosso  da  alça  de  Henle.  Neste segmento do néfron ocorre cerca de 20% da reabsorção do NaCl e 70% do íon magnésio ultrafiltrados. Como analisado com detalhes no Capítulo 51, Função Tubular, e no Capítulo 53, Papel do Rim na Regulação do Volume e da Tonicidade do  Líquido  Extracelular,  neste  segmento  há  a  dissociação  entre  a  reabsorção  de  soluto  e  água,  o  que  lhe  confere  a capacidade  de  diluir  o  fluido  tubular.  Paralelamente  e  em  consequência  da  diluição  do  fluido  luminal,  ocorre  a concentração do interstício medular. Esta etapa é necessária para a reabsorção de água no túbulo coletor, a qual se dá pela inserção, promovida pelo ADH, de aquaporina tipo 2 na membrana luminal das células principais desta porção do néfron. De  fato,  a  perda  da  capacidade  de  diluição  do  fluido  tubular  no  ramo  grosso  ascendente  tem  como  consequência  a impossibilidade de a urina ser concentrada pela reabsorção de água no sistema coletor do néfron. O  arranjo  de  diferentes  transportadores  iônicos  nas  membranas  luminal  e  basolateral  das  células  tubulares  do  ramo grosso  ascendente  lhes  confere  características  funcionais  muito  particulares.  Como  representado  na  Figura  56.2,  o cotransportador  eletroneutro  1Na+:1  K+:2Cl–  (NKCC2),  presente  na  membrana  luminal,  é  fundamental  neste  processo. Através dele, os íons Na+, K+ e Cl– entram para a célula, movidos pelo gradiente eletroquímico favorável à entrada do íon Na+,  o  qual  é  gerado  pela  Na+/K+­ATPase  presente  na  membrana  basolateral.  Esses  três  íons  tomam  caminhos  distintos para  saírem  da  célula.  Enquanto  o  Na+  sai  para  o  interstício  através  da  Na+/K+­ATPase,  o  Cl–atravessa  a  membrana basolateral  via  canais  ClC­Ka  e  ClC­Kb.  O  K+,  por  sua  vez,  pode  retornar  para  o  lúmen  tubular  pelos  canais  ROMK presentes  na  membrana  luminal  ou  passar  para  o  interstício  através  de  canais  de  K+ presentes  na  membrana  basolateral. Isso  acarreta  duas  consequências  da  maior  importância.  Primeiro,  a  recirculação  do  íon  potássio  na  membrana  luminal  é fundamental  para  que  ocorra  o  transporte  através  do  cotransportador  NKCC2.  A  magnitude  da  afinidade  desse cotransportador ao potássio exige concentrações luminais adequadas desse íon para que, com todos os sítios de ligação aos três  íons  ocupados,  o  cotransportador  possa  sofrer  as  mudanças  conformacionais  que  levam  ao  transporte  iônico eletroneutro  através  da  membrana  luminal.  Em  segundo  lugar,  o  vazamento  do  íon  potássio  para  o  lúmen  tubular hiperpolariza  a  membrana  luminal,  contribuindo  para  a  eletropositividade  do  lúmen  em  relação  ao  interstício.  Isso  gera parte do gradiente eletroquímico favorável à reabsorção dos íons Ca2+ e Mg2+através da via paracelular. Deve ser lembrado que, sendo o ramo grosso ascendente impermeável à água, a reabsorção de NaCl gera um gradiente transcelular de Na+, o

que leva a um retorno paracelular desse íon, contribuindo, assim, para a geração de parte do potencial transepitelial lúmen­ positivo característico desse segmento do néfron. É  interessante  observar,  do  ponto  de  vista  termodinâmico,  o  fluxo  de  energia  que  ocorre  por  meio  dos  sucessivos processos de transporte iônico (ver Figura 56.2). Inicialmente, o gasto de energia metabólica por meio da Na+/K+­ATPase gera  um  gradiente  de  concentração  do  íon  sódio,  o  qual,  via  cotransportador  NKCC2,  forma,  por  sua  vez,  um  gradiente químico  para  o  íon  potássio,  cujo  retorno  para  o  lúmen  tubular,  via  canais  ROMK,  origina  um  gradiente  elétrico  a  ser utilizado para a reabsorção de magnésio e cálcio pela via paracelular.

Figura 56.2 ■ Mecanismos de transporte iônico no ramo grosso ascendente da alça de Henle e os cinco tipos da síndrome de Bartter  (tipo  I–tipo  V).  Em  condições  normais,  o  cloreto  de  sódio  é  reabsorvido  no  ramo  grosso  ascendente  por  meio  do cotransportador NKCC2 sensível à furosemida e à bumetanida. A força motriz deste sistema decorre das baixas concentrações intracelulares dos íons Na e Cl, geradas pela Na+ /K+ ­ATPase e pelo canal de cloreto CIC­Kb, localizados na membrana celular basolateral. A disponibilidade luminal de potássio é limitante para o NKCC2, sendo que a recirculação do K+  pela  membrana luminal (através do canal de potássio tipo ROMK, regulado por ATP) garante o adequado funcionamento do NKCC2 e gera um potencial transepitelial lúmen­positivo. Estudos genéticos identificaram mutações com perda de função nos genes que codificam os transportadores NKCC2, ROMK e CIC­Kb em diferentes subgrupos de pacientes com síndrome de Bartter. Ao contrário da situação normal, a perda de função do NKCC2 impede a reabsorção de sódio e potássio. A inativação do ROMK limita também a quantidade de potássio disponível para o NKCC2. A inativação do CIC­Kb reduz a reabsorção transcelular de cloreto. A perda da função desses transportadores reduz o potencial elétrico transepitelial, diminuindo assim a força motriz para a reabsorção paracelular  de  cátions  divalentes.  Na  maioria  dos  pacientes  com  a  síndrome  de  Bartter  a  excreção  urinária  de  cálcio  está aumentada.  A  ativação  do  receptor  sensível  ao  cálcio  (CaSR)  inibe  a  atividade  do  NKCC2,  do  ROMK  e  da  Na+ /K+ ­ATPase, reduzindo a reabsorção de solutos neste segmento do néfron. Mutações que aumentam a sensibilidade do receptor ao íon cálcio inibem tanto a reabsorção de NaCl como a dos íons cálcio e magnésio, estas duas últimas dependentes do potencial lúmen­ positivo gerado pela recirculação do potássio na membrana luminal e do retorno paracelular do íon sódio. RGA, ramo grosso ascendente. Mais detalhes no texto.

A  síndrome  de  Bartter  decorre  de  mutações  genéticas  que  codificam  transportadores  iônicos  e  o  receptor  de  cálcio presentes no ramo ascendente grosso (descrito alguns parágrafos adiante). Atualmente, sabe­se que esses genes são: ■ Gene SLC12A1, que codifica o transportador apical NKCC2, cujas mutações causam a síndrome de Bartter tipo I ■ Gene KCNJ1, que codifica o canal luminal de K+ (tipo ROMK), cujas mutações causam a síndrome de Bartter tipo II ■ Genes  da  família  CLC,  que  codificam  os  canais  basolaterais  de  Cl– (ClC­Ka  e  ClC­Kb),  cujas  mutações  causam  a síndrome de Bartter tipo III ■ Gene  BSND,  que  codifica  a  subunidade  β  dos  canais  basolaterais  de  Cl–  (ClC­K)  (denominada  barttina),  cujas mutações causam a síndrome de Bartter tipo IV, também associada à surdez neurossensorial

Genes que codificam o receptor de cálcio (CaSR) na membrana basolateral, cujas mutações levam à hiperfunção desse ■ receptor e causam a síndrome de Bartter tipo V. Na síndrome de Bartter tipo I, diferentes mutações homozigotas determinam diminuição da função do cotransportador NKCC2. Esse defeito no cotransportador tríplice produz efeitos semelhantes aos causados pelos diuréticos de alça (como furosemida  ou  bumetanida).  Os  pacientes  apresentam  grande  perda  de  cloreto  de  sódio  e  de  potássio,  hipopotassemia grave, alcalose metabólica, hipercalciúria, nefrocalcinose e perda da capacidade de concentração urinária, podendo evoluir para insuficiência renal. Tal anormalidade já foi descrita tanto na variante pré­natal quanto na forma clássica da síndrome de Bartter. A  síndrome  de  Bartter  tipo  II,  decorrente  de  mutações  com  diminuição  de  função  ou  ausência  dos  canais  ROMK,  é descrita  principalmente  na  forma  pré­natal.  Nestes  pacientes  há  participação  importante  de  PGE2  na  fisiopatologia  da doença,  sendo  comum  o  uso  de  inibidores  da  COX­2  como  ferramenta  terapêutica  fundamental  para  melhora  dos sintomas. A síndrome de Bartter tipo III é causada por mutações que levam à redução da função dos canais de Cl– presentes na membrana basolateral, principalmente o ClC­Kb. Como tais canais também são expressos no túbulo convoluto distal, há alguma  semelhança  fenotípica  com  a  síndrome  de  Gitelman,  com  exceção  da  excreção  urinária  de  Ca2+,  diminuída  nesta última  anomalia.  No  ramo  grosso  ascendente,  a  menor  saída  do  íon  Cl– do  meio  intracelular  para  o  interstício  altera  o gradiente  eletroquímico,  prejudicando  assim  a  reabsorção  luminal  de  NaCl.  A  síndrome  de  Bartter  tipo  III  tem  sido relacionada com a forma clássica de apresentação da doença. A síndrome de Bartter tipo IV, descrita mais recentemente, resulta de mutações que causam alterações na subunidade β do  canal  ClC­K  (ou  barttina),  prejudicando  sua  inserção  na  membrana  basolateral.  Tais  pacientes,  além  de  apresentarem síndrome de Bartter com grande perda renal de sal e retardo de crescimento, desenvolvem surdez neurossensorial pelo fato de a barttina estar associada à produção da endolinfa no ouvido médio. Já  a  síndrome  de  Bartter  tipo  V  está  associada  à  hiperfunção  do  receptor  sensível  ao  cálcio  extracelular  (CaSR), presente na membrana basolateral desse segmento do néfron. A  descoberta  e  clonagem  do  CaSR  em  glândulas  paratireoides,  em  1993,  permitiu  um  melhor  entendimento  da regulação  do  transporte  de  cálcio  no  ramo  grosso  ascendente.  O  CaSR  pertence  à  família  de  receptores  acoplados  à proteína G (GPCR, G protein coupled receptor) da classe II, a qual inclui os receptores para ácido gama­aminobutírico, glutamato metabotrópico e certos ferormônios. Esse receptor é codificado por 6 éxons do gene localizado no braço longo do  cromossomo  3  (cromossomo  3q21­q24).  O  CaSR  é  constituído  de  1.078  resíduos  de  aminoácidos,  apresentando  um longo domínio extracelular (formado por 612 resíduos de aminoácidos, onde se encontra o sítio de ligação ao íon cálcio), um domínio carboxi (C)­terminal intracelular (com cerca de 200 resíduos de aminoácidos) e 7 domínios intramembranais. É  importante  observar  que  este  receptor  não  é  ativado  por  aminoácido  ou  modificado  por  polipeptídio,  mas  por  íons elementares inorgânicos (tais como Ca2+, Mg2+ e Gd3+) e policátions orgânicos (tipo neomicina e espermicina). Ainda que o CaSR não seja específico para o íon Ca2+,  apresenta  maior  afinidade  por  esse  cátion.  Uma  característica  do  CaSR  é  o fato de as regiões de ligação ao íon cálcio estarem localizadas no domínio extracelular e não nas alças extracelulares dos domínios transmembrana. Do ponto de vista funcional, o CaSR se apresenta como um dímero. O  CaSR  está  expresso  em  vários  segmentos  do  néfron.  Nas  células  do  ramo  grosso  ascendente  localiza­se  na membrana basolateral. Quando esse receptor é ativado pelo cálcio extracelular, uma proteína G ativa uma fosfolipase A2, levando  à  formação  de  ácido  araquidônico.  Através  da  via  metabólica  do  citocromo  P­450,  o  ácido  araquidônico  é metabolizado em 20­HETE, um eicosanoide. Este metabólito inibe tanto o canal ROMK como o cotransportador NKCC2. Desse  modo,  a  diferença  de  potencial  transtubular  positiva  não  se  estabelece,  impossibilitando  a  reabsorção  paracelular dos íons cálcio e magnésio. Na síndrome de Bartter tipo V, devido a uma hiperfunção do CaSR, essa inibição é deflagrada por  menores  concentrações  plasmáticas  de  cálcio,  levando  a  uma  maior  excreção  urinária  de  cálcio,  magnésio,  sódio  e potássio, além de perda da hipertonicidade medular e aparecimento de alcalose hipoclorêmica. A clonagem do CaSR permitiu a compreensão dos mecanismos envolvidos em desordens da homeostase do íon cálcio, provenientes de anormalidades na estrutura e/ou função desse receptor. Neste contexto, foram determinadas as disfunções provocadas por várias doenças geneticamente transmitidas, cuja análise escapa aos objetivos deste capítulo.

▸ Síndrome da hipomagnesemia hipercalciúrica (SHH) É  interessante  observar  que,  ao  contrário  do  verificado  nas  síndromes  de  Bartter  e  de  Gitelman  (nas  quais  a  perda urinária  de  cálcio  e  magnésio  é  acompanhada  de  hipopotassemia,  alcalose  metabólica  e  hiperaldosteronismo  secundário),

em uma doença familiar rara, a síndrome da hipomagnesemia hipercalciúrica, ocorre unicamente a perda urinária de cálcio e magnésio. A manifestação principal da SHH é a nefrocalcinose, consistentemente associada à poliúria e, ocasionalmente, à  nefrolitíase  (a  qual  pode  levar  à  insuficiência  renal)  e  ao  retardo  mental.  Pouco  era  conhecido  a  respeito  da  disfunção tubular relacionada com a gênese dessa síndrome, até ter sido verificado que essa doença está relacionada com mutações homozigotas  do  gene  que  codifica  a  paracelina­1  (PRCL­1).  Esta  proteína  pertence  à  família  das  claudinas,  tendo  sido identificada  por  Simon  e  colaboradores  em  1999,  por  clonagem  posicional,  em  seres  humanos.  A  paracelina­1  tem  305 aminoácidos com 4 domínios transmembranais e 2 intracelulares (domínios terminais NH2 e COOH). Como sua estrutura é  semelhante  à  das  claudinas,  recebeu  o  nome  de  claudina  16,  constituindo  o  membro  mais  distante  dessa  família  de proteínas.  A  PRCL­1  tem  10  a  18%  de  homologia  com  as  claudinas,  apresentando  grande  semelhança  no  segmento  do primeiro  domínio  extracelular,  ao  qual  se  atribui  a  função  de  estabelecer  pontes  entre  as  células.  Ela  está  localizada nas tight junctions entre as células do ramo grosso ascendente. Mutações que levam à perda funcional da PRCL­1 causam maciça perda renal de magnésio e cálcio acompanhada de nefrocalcinose e insuficiência renal. É  conhecido  que,  a  partir  de  unidades  localizadas  em  células  vizinhas,  formam­se  dímeros,  os  quais  apresentam características  de  um  canal  com  seletividade  para  os  íons  magnésio  e  cálcio.  Enquanto  os  canais  anteriormente  descritos permitem  a  passagem  de  solutos  através  de  membranas,  estes  promovem  a  passagem  de  solutos  por  meio  dos  espaços paracelulares. Este seria o mecanismo pelo qual o magnésio e o cálcio seriam reabsorvidos via espaço paracelular, a favor do  gradiente  eletroquímico  gerado  pelo  transporte  iônico  que  ocorre  nesse  segmento  (descrito  anteriormente). Adicionalmente, como há evidências de que a via paracelular é regulada pela concentração de magnésio, há a hipótese de que  a  PRCL­1  possa  funcionar  como  um  sensor  do  íon  Mg2+,  que  alteraria  a  permeabilidade  paracelular  por  meio  de outros  fatores.  Esta  proteína  pode  representar  uma  nova  família  de  transportadores  que  venha  a  explicar  fenômenos  até agora mal compreendidos de reabsorção paracelular de solutos ao longo do néfron. Como  pudemos  verificar,  a  análise  dos  dados  obtidos  em  pacientes  portadores  dos  diversos  tipos  da  síndrome  de Bartter  e  da  SHH  ajudou  a  compreensão  da  complexidade  das  interações  dos  diferentes  transportadores  envolvidos  na função do ramo grosso ascendente.

EXEMPLO DE TUBULOPATIA DO SEGMENTO DISTAL CONVOLUTO

▸ Síndrome de Gitelman A síndrome de Gitelman é caracterizada pela ocorrência de alcalose metabólica hipopotassêmica em combinação com hipomagnesemia e baixa excreção urinária de cálcio. A prevalência é estimada em cerca de 1:40.000, e, consequentemente, a prevalência de heterozigotos é de aproximadamente 1% em populações caucasianas, tornando­a um dos mais frequentes distúrbios  hereditários  da  função  tubular  renal.  Na  maioria  dos  casos,  os  sintomas  não  aparecem  antes  dos  6  anos  de idade,  sendo  normalmente  diagnosticada  a  doença  na  adolescência  ou  na  idade  adulta.  Períodos  transitórios  de  fraqueza muscular  e  tetania,  por  vezes  acompanhados  de  dor  abdominal,  vômitos  e  febre,  são  frequentemente  observados  nesses pacientes. Também podem ocorrer parestesias, especialmente na face. Alguns pacientes permanecem assintomáticos até a idade  adulta,  quando  se  desenvolve  condrocalcinose,  o  que  causa  inchaço,  calor  local  e  dor  nas  articulações  afetadas.  A pressão arterial é mais baixa do que na população em geral. Parada cardíaca súbita tem sido relatada ocasionalmente. Em geral,  o  crescimento  é  normal,  mas  pode  ser  retardado  nos  pacientes  com  hipopotassemia  grave  e  hipomagnesemia.  O diagnóstico  inicial  é  fundamentado  nos  sintomas  clínicos  e  alterações  bioquímicas  (hipopotassemia,  alcalose  metabólica, hipomagnesemia e hipocalciúria). Em geral, o prognóstico a longo prazo dessa doença é bom. Estudos de genética clínica mostraram que a síndrome de Gitelman é uma doença hereditária autossômica, causada por mutações  no  gene  SLC12A3  localizado  no  cromossomo  16,  o  qual  codifica  o  cotransportador  Na+­Cl–  (NCCT).  São conhecidas mais de 140 mutações diferentes do NCCT. Grande parte dos casos clínicos descritos apresenta alterações que levam a falhas de endereçamento do NCCT. Como  visto  no  Capítulo  51,  cerca  de  7%  da  carga  filtrada  de  NaCl  é  reabsorvida  no  túbulo  convoluto  distal.  As células  nesta  porção  do  néfron  expressam  na  membrana  luminal  o  cotransportador  NCCT,  que  é  sensível  aos  diuréticos tiazídicos (Figura 56.3). Este transportador eletroneutro permite o influxo de Na+ e Cl– do lúmen tubular para a célula, a favor  do  gradiente  de  Na+ gerado  pela  Na+/K+­ATPase,  presente  na  membrana  basolateral,  por  onde  o  Na+ sai  da  célula para  o  interstício,  enquanto  o  Cl– sai  por  canais  específicos  também  presentes  nessa  membrana.  A  perda  da  função  do NCCT  leva  à  redução  da  reabsorção  de  Na+ e  consequente  contração  do  volume  extracelular,  o  que  estimula  o  sistema renina­angiotensina­aldosterona.  Nessa  situação,  aldosterona  induz  uma  maior  expressão  dos  canais  apicais  ENaC  e

ROMK no túbulo coletor, o que compensa parcialmente o balanço de sódio. Adicionalmente, a aldosterona, por estimular a  secreção  de  potássio  e  de  hidrogênio,  eleva  a  excreção  urinária  desses  dois  íons  e,  portanto,  causa  hipopotassemia  e alcalose metabólica. Normalmente,  no  túbulo  contornado  distal  também  ocorre  reabsorção  de  aproximadamente  8%  da  carga  filtrada  de 2+ Ca   (ver  Capítulo  52  e  Figura  56.3).  Através  do  canal  TRPV5,  localizado  na  membrana  luminal,  ocorre  entrada  do Ca2+ no interior celular, onde ele se liga à calbindina­D28 K, proteína carreadora que permitirá a apresentação desse íon aos  transportadores  presentes  na  membrana  basolateral,  a  saber,  o  permutador  3Na+/1Ca2+  (NCX1)  e  a  Ca2+­ATPase (PMCA1b), que permitirão a extrusão do cálcio para o líquido intersticial. Tanto  na  síndrome  de  Gitelman  como  com  o  uso  de  tiazídicos,  diuréticos  inibidores  do  cotransportador  NCCT luminal, ocorre aumento da reabsorção de Ca2+. Uma das hipóteses para explicar a razão pela qual a perda da função ou a inibição  deste  cotransportador  levaria  ao  aumento  da  reabsorção  do  íon  cálcio  é  a  de  que  a  diminuição  da  atividade intracelular  do  íon  cloreto  causaria  a  hiperpolarização  da  membrana  apical,  provocando  abertura  de  canais  de Ca2+ presentes  na  membrana  luminal.  Dessa  maneira,  aumentaria  o  influxo  de  cálcio  para  a  célula,  o  que,  associado  à menor  concentração  de  Na+  no  interior  da  célula,  estimularia  a  permuta  entre  os  dois  íons  na  membrana  basolateral, através do trocador 3Na+/1Ca2+ (cálcio sairia da célula em troca por sódio que entraria na mesma). Assim, estabelecer­se­ ia  um  fluxo  transcelular  de  Ca2+,  com  aumento  de  sua  reabsorção.  Há  também  outras  hipóteses,  apresentadas  por diferentes autores, não estando ainda definitivamente estabelecido o mecanismo molecular que causa o conhecido aumento da reabsorção de cálcio causado pelos tiazídicos e presentes na síndrome de Gitelman.

Figura  56.3  ■   Mecanismos  de  transporte  iônico  presentes  no  túbulo  convoluto  distal  e  a  síndrome  de  Gitelman.  No  túbulo convoluto distal, em condições normais, o cloreto de sódio é reabsorvido através do cotransportador Na+ ­Cl– (NCCT),  sensível aos tiazídicos, presente na membrana luminal. O gradiente favorável ao transporte eletroneutro de Na+  e Cl– através do NCCT é dado  pelas  baixas  concentrações  intracelulares  de  sódio  e  cloreto  geradas  pela  Na+ /K+ ­ATPase  e  pelo  canal  de  cloreto, presentes na membrana basolateral. Na membrana luminal deste segmento do néfron se expressa o canal de cálcio TRPV5; na membrana basolateral estão localizados o permutador 3Na+ /1Ca2+  (NCX1) e a Ca2+ ­ATPase (PMCA1b). Evidências fisiológicas indicam que os mecanismos de transporte de magnésio são semelhantes aos do cálcio. Na síndrome de Gitelman, mutações com perda de função do transportador NCCT diminuem a reabsorção de cloreto de sódio e aumentam a reabsorção de cálcio. Mais detalhes no texto.

A maior oferta de NaCl aos segmentos posteriores do néfron leva ao aumento da reabsorção de Na+ através dos canais ENaC  presentes  nas  células  principais  do  túbulo  coletor,  com  consequente  aumento  do  potencial  elétrico  negativo  do lúmen  desse  segmento  tubular.  Este  potencial  elétrico  faz  com  que  aumente  a  secreção  do  íon  potássio  pelos  canais

ROMK,  também  presentes  no  coletor.  Esta  é  a  razão  do  aumento  da  fração  de  excreção  de  potássio  e  consequente hipopotassemia  observadas  nesses  pacientes.  Como  decorrência  da  hipopotassemia,  aumenta  a  reabsorção  ativa  de potássio  através  da  K+/H+­ATPase,  presente  na  membrana  luminal  das  células  intercalares  tipo  α.  Isto,  por  elevar  a secreção de íons hidrogênio, causa a alcalose típica dessa síndrome. O aumento da fração de excreção de Mg2+ observado na inibição do NCCT ainda não está adequadamente esclarecido. A  hipofunção  do  cotransportador  NCCT  gera  distúrbio  tubular,  com  prejuízo  na  homeostase  dos  solutos  citados.  A expressão  fenotípica  da  síndrome  de  Gitelman  é  menos  grave  do  que  a  da  síndrome  de  Bartter.  Por  não  envolver  os mecanismos de concentração urinária, a síndrome de Gitelman não leva à poliúria nem à polidipsia.

Diagnóstico diferencial das alcaloses metabólicas hipopotassêmicas A apresentação clínica de alcalose metabólica hipopotassêmica (K+ baixo  no  plasma)  leva  aos  seguintes  diagnósticos diferenciais:  síndrome  de  Bartter,  síndrome  de  Gitelman,  uso  de  diuréticos  e  vômito  (ou  outras  afecções  gastrintestinais como bulimia e anorexia nervosa). Além dessas, existe uma condição clínica rara chamada de diarreia de cloreto congênita (congenital  chloride  diarrhea),  que  também  se  manifesta  com  alcalose  metabólica  hipopotassêmica.  Trata­se  de  uma doença autossômica recessiva caracterizada por um defeito na reabsorção de cloreto no íleo e possivelmente no colón. Os pacientes  que  têm  essa  doença  apresentam  elevada  excreção  fecal  de  cloreto  de  sódio  e  podem  ser  diagnosticados  pela avaliação eletrolítica de suas fezes. A síndrome de Bartter (especialmente tipo III) é a doença genética mais importante a ser considerada no diagnóstico diferencial  da  síndrome  de  Gitelman.  Os  pacientes  com  síndrome  de  Gitelman  não  apresentam  sintomas  na  infância  e geralmente  são  diagnosticados  na  adolescência  e  juventude.  Essa  síndrome  pode  ser  diagnosticada  por  exames laboratoriais  de  rotina  em  pacientes  assintomáticos  ou  que  apresentam  sintomas  brandos  de  cãibra,  fadiga,  fraqueza muscular,  irritabilidade  e  espasmos  nas  mãos  e  nos  pés.  Por  isso,  essa  síndrome  frequentemente  é  considerada  uma doença  benigna  e,  erroneamente,  tida  como  uma  forma  atenuada  da  síndrome  de  Bartter.  No  entanto,  já  foram  relatadas manifestações graves como tetania, paralisia e rabdomiólise (causada pela ruptura de células musculares e extravasamento de  seu  conteúdo  citoplasmático  para  a  corrente  sanguínea).  Crianças  pequenas  podem  apresentar  desenvolvimento deficiente e ataques febris. Não ocorre polidrâmnio, prematuridade ou poliúria, e tanto a maturação sexual como a mental são  normais.  A  incidência  de  hipopotassemia,  alcalose  metabólica,  hipomagnesemia  e  policalciúria  é  muito  alta  em pacientes homozigotos para a mutação do gene que codifica o NCCT. É interessante notar que a gravidade dos sintomas não está sempre relacionada com o grau de hipopotassemia, e ainda não está claro porque alguns pacientes (com mutações idênticas  na  mesma  família)  são  mais  sintomáticos  do  que  outros.  Também  foi  descrita  a  ocorrência  de  condrocalcinose (depósito  de  cristais  de  pirofosfato  de  cálcio  no  líquido  sinovial)  em  pacientes  homozigotos  para  as  síndromes  de Gitelman  e  Bartter,  sendo  que  todos  os  pacientes  com  a  síndrome  de  Bartter  apresentam  hipomagnesemia.  Lesões similares foram induzidas pela deficiência de magnésio em animais, evidenciando que a hipomagnesemia é importante na fisiopatologia  da  condrocalcinose,  por  reduzir  a  atividade  da  pirofosfatase  e,  assim,  promover  a  cristalização  do pirofosfato.  Nos  pacientes  com  a  síndrome  de  Gitelman,  foi  demonstrado  que  a  suplementação  alimentar  de  magnésio consegue  evitar  a  ocorrência  dessa  complicação.  Além  disso,  nesses  pacientes  é  descrita  ocorrência  de  calcificação bilateral da esclera associada a condrocalcinose bilateral. O Quadro 56.1 resume os achados mais frequentes que auxiliam no diagnóstico diferencial dessas síndromes.

EXEMPLO DE TUBULOPATIA DO TÚBULO COLETOR

▸ Síndrome de Liddle e canal ENaC Liddle et al.  descreveram,  em  1963,  uma  síndrome  que  apresenta  uma  forma  rara  de  hipertensão  arterial  sistêmica, com  herança  monogênica  autossômica  dominante.  Essa  grave  hipertensão  cursa  com  expansão  de  volume  extracelular, baixa  renina  plasmática,  hipopotassemia  e  alcalose  metabólica.  Essa  anomalia  mimetiza  o  hiperaldosteronismo,  embora não  apresente  anormalidades  nos  níveis  séricos  e  urinários  de  aldosterona  ou  de  corticoides.  Nas  próprias  palavras  de Liddle et al.: “A desordem aparentemente decorre de uma tendência não usual de os rins conservarem sódio e excretarem potássio,  mesmo  na  ausência  virtual  de  aldosterona.”  Embora  seus  portadores  não  respondam  ao  uso  de  espironolactona (inibidor  competitivo  da  aldosterona),  foi  verificado  que  o  uso  de  trianterene  ou  amilorida  (inibidores  do  ENaC)  e  a restrição de sal na dieta auxiliam no controle da pressão arterial.

Quadro 56.1 ■ Diagnóstico diferencial entre síndrome de Gitelman e síndrome de Bartter. Parâmetros

Síndrome de Gitelman

Síndrome de Bartter

Início

Adolescência e juventude

Infância (até os 6 anos)

Excreção urinária de Ca2+

Baixa

Alta

Concentração plasmática de

Baixa/normal

Normal

Túbulo convoluto distal/túbulo de

Segmento grosso ascendente da

conexão

alça de Henle

Cotransportador Na+/Cl– (NCCT)

Transportador NKCC2

2+

Mg

Local do defeito tubular

Defeito tubular

sensível a tiazídicos

Canal basolateral de Cl– (ClC­Kb) Canal de K+ (ROMK) Receptor de cálcio (CaSR)

Habilidade de concentrar a

Mantida

Prejudicada

urina O  túbulo  coletor  apresenta  dois  tipos  celulares:  células  principais  e  intercalares  α  e  β  (ver Capítulo 51).  As  células principais expressam o canal ENaC na membrana luminal, o que permite a passagem de Na+ do lúmen tubular para dentro da  célula  a  partir  do  gradiente  eletroquímico  gerado  pela  Na+/K+­ATPase,  localizada  na  membrana  basolateral.  Pela despolarização da membrana luminal, o influxo celular de sódio gera uma diferença de potencial elétrico transtubular com o  lúmen  negativo,  o  que  favorece  a  secreção  de  K+  pelo  canal  ROMK.  Logo,  fatores  que  estimulam  a  síntese  ou  a atividade do ENaC, como aldosterona e corticoides, favorecem a reabsorção de Na+ e a excreção de K+, enquanto fatores que inibem o ENaC, como os diuréticos amilorida e trianterene, possuem efeitos natriuréticos e poupadores de potássio. O  canal  ENaC  é  um  heteromultímero  composto  por  quatro  subunidades:  duas  α,  uma  β  e  uma  γ  (ver  Figura 10.13  no  Capítulo  10,  Canais  para  Íons  nas  Membranas  Celulares).  Seus  domínios  regulatórios  estão  presentes  nos segmentos amino e carboxiterminais localizados na porção citoplasmática. Recentemente, foi observado que mutações nos genes que codificam as subunidades β ou γ (tal como a alteração do aminoácido prolina na posição 616 da subunidade β) acarretam ativação contínua do ENaC. Tal ativação gera maior reabsorção de Na+ nas células principais do túbulo coletor, o  que  eleva  a  massa  corpórea  de  sódio  e  aumenta  o  volume  de  líquido  extracelular,  causando  os  transtornos  que caracterizam a síndrome de Liddle, já descritos. Em  contrapartida,  as  mutações  que  inibem  a  atividade  do  ENaC  geram  nefropatias  perdedoras  de  sal,  causando,  por exemplo, o pseudo­hipoaldosteronismo autossômico recessivo tipo I.

ACIDOSE TUBULAR RENAL DE ORIGEM HEREDITÁRIA Nos  animais,  a  produção  de  ácidos  decorre  do  metabolismo  dos  alimentos.  Como  o  funcionamento  ideal  da  maioria dos processos fisiológicos depende da manutenção do pH do líquido extracelular dentro de um intervalo estreito (em torno de  pH  7,4),  o  controle  homeostático  rigoroso  do  equilíbrio  acidobásico  é  essencial  para  a  sobrevivência  dos  organismos vivos. Embora boa parte do ácido produzido seja excretada pelos pulmões (na forma de CO2), os rins desempenham um papel  regulatório  fundamental  nesse  controle  homeostático,  por  meio  da  secreção  de  prótons  na  urina  e  recuperação  do bicarbonato filtrado. De fato, os rins representam a única via regulada de secreção de ácidos fixos. A reabsorção proximal do bicarbonato filtrado e a secreção distal de H+ são os mais importantes mecanismos renais relacionados com o equilíbrio acidobásico.  Para  mais  detalhes  desses  mecanismos,  ver  Capítulo  54,  Papel  do  Rim  na  Regulação  do  pH  do  Líquido Extracelular.

A reabsorção renal do íon HCO3 é  mediada  por  proteínas  transportadoras  do  grupo  SLC  (solute carrier), que inclui mais de 300 membros organizados em 47 famílias. Os solutos que são transportados pelos vários membros do grupo SLC são muito diversos e incluem moléculas orgânicas carregadas e não carregadas eletricamente, bem como íons inorgânicos. Como  é  típico  nas  proteínas  integrais  de  membrana,  os  SLC  apresentam  várias  α­hélices  transmembranais,  conectadas entre si por alças intra e extracelulares. Dependendo do tipo, esses transportadores podem se apresentar como monômeros ou  como  homo  ou  hetero­oligômeros.  A  família  SLC4  de  genes  e  proteínas  tem  10  membros  que  transportam  base (HCO3– ou OH–)  através  da  membrana  celular.  Pertencem  a  esta  família  os  trocadores  de  ânions  AE1  (gene  SLC4A1, localizado no cromossomo 17q12­21); AE2 (gene SLC4A2, localizado no cromossomo 7q35­q36) e AE3 (gene SLC4A3, localizado  no  cromossomo  2  p36).  Em  humanos,  mutações  nos  transportadores  AE1  (SLC4A1)  e  AE4  (SLC4A4), também chamado NBCe1, estão associadas a acidose tubular renal distal e proximal, respectivamente. A secreção distal de H+ ocorre nas células intercalares α, que se localizam majoritariamente no ducto coletor. Esse tipo celular tem como principal característica a presença de H+­ATPase e H+/K+­ATPase na membrana luminal e do trocador de ânions  AE1  (Cl–/HCO3–)  na  membrana  basolateral,  o  qual  troca  o  ânion  bicarbonato  intracelular  pelo  ânion  cloreto presente  no  meio  extracelular  (ver Figura 51.13 no  Capítulo  51).  Estes  mecanismos  são  fundamentais  para  que  ocorra secreção  de  H+  e  reabsorção  de  HCO3.  A  existência  da  anidrase  carbônica  II  no  citoplasma  favorece  a  reação  OH–  + CO2 ↔ HCO3–, aumentando a eficiência da regeneração do bicarbonato. A maior atuação da célula α ocorre, portanto, em situações  de  acidose  sistêmica.  É  importante  citar  que  os  sistemas­tampão  presentes  no  lúmen  tubular  permitem  que  a concentração  luminal  de  H+  seja  mantida  em  níveis  baixos,  garantindo  assim  o  gradiente  químico  favorável  para  sua secreção, etapa importante para a regeneração do bicarbonato. Esses aspectos são apropriadamente discutidos no Capítulo 54. A acidose de origem renal, denominada acidose tubular renal (ATR), decorre, portanto, de uma falha dos mecanismos de reabsorção proximal de bicarbonato ou de secreção ácida no túbulo distal, sendo caracterizada pela presença de acidose metabólica na vigência de função renal conservada, ou seja, com ritmo de filtração glomerular normal. As causas da acidose podem ser subdivididas em quatro grupos: ■ Acidoses  hereditárias  de  origem  renal,  relacionadas  com  a  falência  renal  (a)  primária  de  secretar  ácido  ou  recuperar bicarbonato, ou (b) secundária, devido a defeitos na manipulação de outros eletrólitos ■ Acidoses adquiridas de origem renal, mais comumente decorrentes de doenças com perda da função renal ■ Acidoses hereditárias de origem não renal, com excesso de produção de ácido em outras partes do organismo, devido a um defeito hereditário do metabolismo ■ Acidoses  adquiridas  de  origem  não  renal,  como,  por  exemplo,  a  acidose  láctica  resultante  da  baixa  oxigenação  dos tecidos. Embora as ATR adquiridas sejam mais comuns na prática clínica, é a partir do estudo das formas hereditárias que os investigadores,  além  de  esclarecer  a  base  genética  dessas  doenças,  vêm  sendo  capazes  de  melhorar  a  compreensão  da fisiologia  renal  normal.  A  seguir,  analisaremos  as  acidoses  tubulares  renais  hereditárias,  com  o  intuito  de  aprofundar  e tornar mais claros os mecanismos fisiológicos normais descritos anteriormente no Capítulo 54. As ATR hereditárias podem ser classificadas em três tipos, numerados na ordem histórica de suas descobertas: tipo 1 (clássica,  distal),  tipo  2  (proximal)  e  tipo  3  (combinada,  com  envolvimento  proximal  e  distal).  A  partir  da  compreensão dos  mecanismos  de  transporte  de  ácido  e  base  pelos  rins,  é  fácil  perceber  que  a  ATR  proximal  resulta  da  falha  de reabsorção de bicarbonato, e a ATR distal, de uma falha da secreção de ácido. O Quadro 56.2 resume os principais dados referentes aos diferentes tipos de acidose tubular renal.

ATR DISTAL TIPO 1 A acidose tubular renal (ATR) distal, também denominada tipo 1, é caracterizada pela presença de acidose metabólica hiperclorêmica,  com  redução  da  secreção  tubular  de  ácido  e  incapacidade  para,  após  carga  ácida,  reduzir  o  pH  urinário abaixo de 5,5. Há três formas hereditárias conhecidas: a autossômica dominante e as autossômicas recessivas com ou sem surdez. Em geral, a forma mais grave é a hereditária recessiva.

▸ Forma autossômica dominante

Na  acidose  tubular  renal  distal  autossômica  dominante,  a  acidose  metabólica  pode  ser  compensada,  e  os  pacientes podem  ser  assintomáticos.  A  formação  de  cálculos  renais  é  uma  característica  comum,  sendo  menos  proeminentes  a doença  óssea  e  o  atraso  no  crescimento.  O  retardo  mental  e  a  surdez  nunca  estão  presentes.  A  forma  autossômica dominante  se  manifesta  geralmente  na  vida  adulta,  causada  por  alterações  do  permutador  basolateral  de  Cl–/HCO3–, chamado  de  proteína  AE1,  decorrentes  de  mutações  no  gene  SCL4A1,  localizado  no  cromossomo  17q12­21.  Nos mamíferos,  além  dos  rins,  esse  transportador  só  é  encontrado  nos  eritrócitos,  sendo  então  denominado  eAE1,  às  vezes referido  como  banda  3  por  causa  de  sua  posição  relativa  na  eletroforese  da  fração  de  membrana  de  eritrócito.  O  AE1 apresenta  12  a  14  domínios  transmembranais,  responsáveis  pelo  transporte  de  ânions  e  dimerização,  e  os  domínios citoplasmáticos terminais NH2– e COOH. A sequência terminal NH2 do eAE1 apresenta 65 aminoácidos a mais do que a isoforma  renal  (kAE1),  o  que  lhe  confere  funções  adicionais.  Dentre  estas,  destaca­se  a  facilitação  do  metabolismo  das células vermelhas e manutenção da estabilidade estrutural dos eritrócitos, através da interação com, respectivamente, uma enzima glicolítica complexa e elementos do citoesqueleto. Em humanos, a maioria das mutações do AE1 está associada a alterações  dos  glóbulos  vermelhos  com  herança  autossômica  dominante,  tais  como:  a  anemia  esferocítica  hereditária (também causada por mutações na ankyrina, espectrina e proteína 4.2) e a ovalocitose do Sudeste Asiático (nas quais não se  encontra  alterado  o  transporte  renal  de  ácido  e  base).  Há  evidências  sugerindo  que  outras  proteínas  interagem  com  a AE1, para formar uma unidade funcional capaz de promover o transporte de bicarbonato. Como indicado na Figura 56.4, a perda da função de AE1 impede a reabsorção renal do íon bicarbonato, reten­do­o no interior da célula tubular, o que eleva sua concentração intracelular. Pela lei da ação das massas, a elevação da concentração intracelular de bicarbonato reduz a velocidade da reação de hidratação do CO2 e, em consequência, a de formação de H+. Desse modo, há, também, redução de  sua  secreção  através  dos  transportadores  luminais,  com  consequente  perda  da  capacidade  de  acidificação  do  fluido tubular.

Quadro 56.2 ■ Características das acidoses tubulares renais (ATR). ATR

Subtipo/herança Aparecimento Achados clínicos

Proteína

Gene

Distal

Dominante

AE1

SCL4A1

AE1

AE1

Subunidade

ATP6V1B1

Tipo 1

Adolescentes

Acidose metabólica leve

e adultos

ou compensada Hipopotassemia (variável) Hipercalciúria Hipocitratúria Nefrolitíase Nefrocalcinose Algumas vezes raquitismo/osteomalacia Eritrocitose secundária

Recessiva

Infância

Acidose metabólica Anemia hemolítica Só em populações do Sudeste Asiático

Recessiva com surdez precoce

Infância

Acidose metabólica Nefrocalcinose precoce

B1 da

Vômitos/desidratação

H+­ATPase

Retardo do crescimento Raquitismo Surdez neurossensorial precoce Recessiva com

Infância

surdez tardia ou

Acidose metabólica Nefrocalcinose precoce

ausente

Vômitos/desidratação

Subunidade

ATP6V0A4

a4 da H+­ATPase

Retardo do crescimento Raquitismo Surdez neurossensorial tardia ou ausente Proximal Tipo 2

Recessiva com

Infância

lesões oculares

Acidose metabólica

NBC1

SLC4A4

AC II

CA2

Hipopotassemia Lesões oculares (ceratopatia, catarata, glaucoma) Retardo do crescimento Retardo mental Esmalte dentário defeituoso Calcificação dos gânglios da base

Combinada Proximal/distal

Recessiva com osteopetrose

Tipo 3

Infância

Acidose metabólica Hipopotassemia Osteopetrose (aumento da densidade óssea) Cegueira Surdez Nefrocalcinose precoce

Fonte: Fry e Karet, 2007. Até  o  momento,  oito  diferentes  mutações  do  permutador  AE1  foram  descritas  como  causadoras  da  ATR  distal autossômica  dominante.  Muitos  desses  mutantes  foram  clonados  e,  expressos  em  oócitos  de  Xenopus,  apresentaram  a

função  normal  e  troca  de  ânions;  isto  indica  que  o  transporte  anormal  de  ânions,  por  si  só,  não  explica  o  mecanismo  da doença. Da mesma forma, o AE1 é conhecido por formar oligômeros, mas a coexpressão do mutante com o tipo selvagem de AE1 não parece afetar a função do tipo selvagem. Há evidências de que possa ocorrer retenção intracelular de AE1, o que explicaria a gênese da doença. Qualquer  que  seja  o  mecanismo  molecular  envolvido,  a  perda  funcional  da  proteína  AE1  reduz  a  capacidade  de acidificação urinária, causando acidose metabólica de gravidade variável, geralmente com hipopotassemia, hipercalciúria, hipocitratúria,  raquitismo  e  osteomalacia.  A  baixa  excreção  urinária  de  citrato  se  deve  ao  aumento  de  sua  reabsorção  no túbulo  proximal,  o  que  permite  gerar  novo  íon  bicarbonato  intracelular.  A  hipercalciúria  é  multifatorial,  envolvendo  o aumento  da  liberação  de  cálcio  ósseo,  como  mecanismo  de  tamponamento  da  acidose  sistêmica,  e  uma  diminuição  da expressão  de  proteínas  transportadoras  de  Ca2+,  induzida  pela  acidose.  Esses  fatores,  juntamente  com  a  elevação  do  pH urinário, favorecem a deposição de cálcio, o que gera cálculos renais e/ou nefrocalcinose, que podem resultar ao longo do tempo em insuficiência renal. Embora as mutações no AE1 sejam responsáveis por todos os casos de acidose tubular renal distal autossômica dominante, foram encontradas no Sudeste Asiático mutações do AE1 que causam acidose tubular renal distal autossômica recessiva em associação com anemia hemolítica. Neste caso, verificado em uma família tailandesa, pela expressão do mutante em oócitos de Xenopus foi detectado o comprometimento do tráfico proteico. Todavia, a função do mutante  na  troca  aniônica  em  hemácias  mostrou­se  normal,  sendo  necessários  novos  estudos  para  esclarecer  a  causa  da anemia hemolítica.

▸ Formas recessivas A acidose tubular renal distal recessiva se manifesta geralmente na infância, com hipopotassemia grave, podendo ser acompanhada  de  várias  outras  manifestações,  como:  retardo  de  crescimento,  doença  óssea  (osteomalacia  e  raquitismo), nefrocalcinose  e,  ocasionalmente,  retardo  mental  e  calcificação  cerebral.  Na  maioria  dos  pacientes  com  ATR  distal autossômica  recessiva  ocorre  perda  auditiva  neurossensorial  bilateral  progressiva;  entretanto  há  casos  em  que  a  audição normal  é  preservada.  A  eritrocitose  (aumento  do  número  de  eritrócitos  no  sangue)  pode  ser  vista  em  pacientes  com nefrocalcinose,  embora  isso  não  seja  patognomônico.  Acredita­se  que  a  eritrocitose  seja  consequente  ao  aumento  da produção  de  eritropoetina,  secundária  à  hipoxia  tecidual,  combinada  com  defeitos  de  concentração  urinária  que  causam redução do volume plasmático. Duas formas de acidose tubular renal distal recessiva são associadas a mutações com perda da função das subunidades (B1 ou a4) da H+­ATPase,  presente  na  membrana  luminal  das  células  intercalares  α  do  ducto  coletor.  A  acidose  tubular renal  distal  recessiva  com  surdez  é  causada  por  defeitos  na  subunidade  B1  (codificada  pelo  gene  ATP6V1B1,  que  está localizado no cromossomo 2q13). Esta isoforma da subunidade também se expressa dentro da cóclea e saco endolinfático. Como  a  alta  concentração  de  potássio  (cerca  de  150  mmol/ ℓ )  neste  compartimento  fechado  não  é  normalmente acompanhada por alcalinidade da endolinfa, é proposto que prótons devam ser secretados para manter o pH da endolinfa < 7,4.  Seria  esperado  que  a  perda  das  H+­ATPases  neste  compartimento  isolado  causasse  aumento  do  pH  da  endolinfa, danificando inicialmente as células ciliadas, o que poderia levar a uma lesão permanente. Isso explicaria por que a perda auditiva  progride  independentemente  da  correção  do  pH  do  líquido  extracelular  por  administração  de  álcalis.  Por  outro lado, a perda da função da subunidade a4 (que é codificada pelo gene ATP6V0A4, localizado no cromossomo 7q33 ± 34) causa acidose tubular renal distal igualmente grave, mas sem importante perda da audição na infância.

Figura  56.4  ■   Efeito  da  perda  da  função  do  permutador  AE1  na  reabsorção  de  bicarbonato  e  secreção  de  H+   nas  células intercalares  tipo  α  do  néfron  distal.  Na  membrana  luminal  estão  presentes  a  H+ ­ATPase  e  a  H+ /K+ ­ATPase.  Na  membrana basolateral destacam­se os transportadores: AE1 = trocador Cl–/HCO3–; KCC4 = cotransportador de K+ ­Cl– e ClC­Kb = canal de Cl– (para simplificação, foi omitida a Na+ /K+ ­ATPase). AC II, anidrase carbônica intracelular; [Produção H+ ]i, produção intracelular do íon hidrogênio.

Nas famílias com acidose tubular renal distal tem sido verificado um amplo espectro de mutações nesses dois genes. No entanto, ainda existem algumas famílias com acidose tubular renal distal que não apresentam qualquer ligação com o ATP6V1B1 ou o ATP6V0A4, indicando a existência de outros genes envolvidos na gênese da acidose tubular renal. Como  indicado  na  Figura  56.5,  a  perda  da  função  da  H+­ATPase  em  razão  da  mutação  de  quaisquer  de  suas  sub­ unidades  impede  a  secreção  do  íon  hidrogênio  e  eleva  sua  concentração  intracelular,  o  que,  pela  ação  da  lei  da  ação  das massas, reduz a hidratação intracelular do CO2; assim, cai a formação intracelular de HCO3–, o que causa a redução de seu transporte  através  do  AE1  localizado  na  membrana  basolateral,  com  consequente  redução  de  sua  reabsorção.  Como resultado final, ocorre, portanto, redução da secreção tubular de H+ e da reabsorção de HCO3–.

ATR PROXIMAL TIPO 2 A  ATR  proximal  é  uma  doença  autossômica  recessiva  rara,  caracterizada  por  deficiência  nos  mecanismos  de reabsorção  de  bicarbonato  no  túbulo  proximal  com  a  manutenção  da  reabsorção  de  outros  solutos,  tais  como:  glicose, aminoácidos,  fosfato  e  citrato.  A  ATR  proximal  pode  apresentar  apenas  retardo  de  crescimento  ou  ser  acompanhada  de atraso mental ou alterações oculares, tipo: ceratopatia em faixa (doença da córnea em que ocorre deposição de cálcio sobre a  córnea  central),  catarata  e  glaucoma.  A  suplementação  terapêutica  de  bicarbonato  é  difícil,  porque  a  capacidade  de reabsorção tubular proximal desse íon fica muito reduzida, e o aumento compensatório de sua reabsorção nos segmentos mais  distais  do  néfron  é  limitado.  No  entanto,  alta  dose  de  suplementação  de  bicarbonato  pode  aumentar  o  crescimento, mesmo se a correção da acidose metabólica não for completa.

Figura  56.5  ■   Efeito  da  perda  da  função  da  H+ ­ATPase  na  reabsorção  de  bicarbonato  e  secreção  de  H+   pelas  células intercalares  tipo  α  do  néfron  distal.  Na  membrana  luminal  estão  presentes  a  H+ ­ATPase  e  a  H+ /K+ ­ATPase.  Na  membrana basolateral destacam­se os transportadores: AE1 = trocador Cl–/HCO3–; KCC4 = cotransportador de K+ ­Cl– e ClC­Kb = canal de Cl–(para  simplificação,  foi  omitida  a  Na+ /K+ ­ATPase).  AC  II,  anidrase  carbônica  intracelular;  [Produção  HCO3–]i,  produção intracelular do íon bicarbonato.

O cotransporte de Na+/HCO3– na membrana basolateral, necessário para a reabsorção proximal de bicarbonato, ocorre através  da  proteína  NBC1  da  família  dos  cotransportadores  eletrogênicos  NAC­bicarbonato.  O  gene  SLC4A4,  que responde  pela  expressão  da  proteína  NBC1  em  humanos,  foi  analisado  em  famílias  portadoras  de  ATR  proximal,  tendo sido  encontradas  várias  mutações.  Dados  obtidos  em  oócitos  de  Xenopus  sugerem  que  o  mutante  R510  H  do  NBC1 trafega anormalmente, e que os mutantes R298S e S427L apresentam atividades de transporte prejudicadas. As alterações oculares observadas nesses pacientes são consistentes com a presença de isoformas do NBC1 em vários tecidos oculares humanos  e  de  ratos.  Curiosamente,  foi  verificado  que  paciente  com  mutação  Q29X,  que  deve  preservar  a  produção  da isoforma pNBC1, tem, além de retardo mental, glaucoma bilateral sem ceratopatia em faixa ou catarata. A estequiometria de cotransportador NBC1 no túbulo proximal é de 3HCO3–:1Na+, mas para a isoforma kNBC1 essa estequiometria é de 2:1.  Como  uma  estequiometria  de  transporte  de  2:1  não  é  compatível  como  as  taxas  de  reabsorção  tubular  proximal  de bicarbonato, acredita­se que mutações que reduzam a estequiometria do NBC1 possam prejudicar sua função. Ainda que a isoforma NHE3, luminal, do trocador Na+/H+ se expresse nos túbulos proximais de humanos, mutações de  seu  gene  codificador  ainda  não  foram  detectadas  como  causa  de  ATR  proximal,  o  que  não  deixa  de  torná­lo  um potencial candidato para a gênese da doença.

ATR COMBINADA (PROXIMAL/DISTAL) TIPO 3 A  primeira  acidose  tubular  renal  hereditária  que  teve  sua  causa  determinada  foi  a  provocada  pela  deficiência  de anidrase carbônica II (AC II). Esta enzima solúvel é amplamente expressa no citosol das células do túbulo proximal e nas células intercalares do néfron distal. Ao lado de apresentarem um quadro de ATR com componentes proximais e distais, os  pacientes  com  essa  deficiência  apresentam  osteopetrose  (aumento  da  densidade  óssea),  calcificação  cerebral  e  retardo no  crescimento,  entre  outros  sintomas.  Em  algumas  famílias  foi  descrito  retardo  mental  leve  ou  grave.  Três  das  13 mutações  conhecidas  respondem  por  mais  de  90%  dos  pacientes.  Foi  descrito  que  o  transplante  de  medula  óssea  pode corrigir  a  osteopetrose  e  estacionar  a  progressão  da  calcificação  cerebral,  mas  não  corrige  a  ATR  mista  e  o  retardo  de crescimento.

Com  a  perda  da  função  da  AC  II,  tanto  nas  células  do  túbulo  proximal  como  nas  células  intercalares  tipo  α,  haverá menor formação de H+ e de HCO3– no interior celular, já que essa enzima acelera a velocidade da reação de hidratação do CO2. Como consequência, ocorrerá menor secreção de H+, seja através do permutador Na+/H+, seja através das ATPases secretoras  de  próton  (a  H+­ATPase  e  a  H+/K+­ATPase),  levando,  portanto,  a  uma  perda  da  capacidade  de  acidificação urinária.  No  túbulo  proximal,  a  menor  formação  intracelular  de  HCO3–  levará  a  uma  redução  do  transporte  desse  íon através  do  cotransportador  NBC1  presente  na  membrana  basolateral  e,  assim,  haverá  redução  de  sua  reabsorção.  Nas células  intercalares  tipo  α,  por  outro  lado,  a  menor  formação  intracelular  de  HCO3–  levará  à  redução  da  atividade  do permutador AE1, reduzindo, também, a reabsorção desse íon. Devido à redução da atividade da H+/K+­ATPAse decorrente da  menor  oferta  de  H+,  também  haverá  redução  da  reabsorção  do  íon  K+,  diminuindo  também  sua  transferência  para  o meio  interno,  pelo  cotransportador  K+/Cl–  (CKC4)  na  membrana  basolateral,  levando,  em  última  análise,  à hipopotassemia.  A  Figura  56.6  ilustra  como  essa  doença  afeta  o  transporte  acidobásico  no  túbulo  proximal.  A  Figura 56.7 indica as alterações verificadas nas células intercalares tipo α do néfron distal. Como a distribuição da AC II não se restringe  ao  território  renal,  outras  alterações  em  diferentes  partes  do  organismo  serão  observadas,  como  as  relatadas no Quadro 56.2, referente aos achados clínicos dos doentes que apresentam mutações com perda de função da AC II.

▸ Síntese A  análise  mais  atenta  das  acidoses  tubulares  renais  hereditárias  evidencia  que  o  processo  de  acidificação  urinária depende tanto da integridade da AC II como dos transportadores envolvidos na secreção de H+ e na reabsorção de HCO3–. A  perda  funcional  de  qualquer  um  destes  leva  a  distúrbios  de  magnitude  variada,  pois  os  mecanismos  remanescentes suprem, em parte, as exigências homeostáticas. As Figuras 56.4 a 56.7 ilustram  o  papel  dos  transportadores  envolvidos nos  mecanismos  de  acidificação  luminal  e  reabsorção  de  HCO3– no  túbulo  proximal  e  nas  células  intercalares  tipo  α  do néfron distal.

Figura 56.6 ■ Efeito da perda da função da anidrase carbônica intracelular na reabsorção de bicarbonato no túbulo proximal. Na membrana  luminal  está  indicada  a  isoforma  NHE3  do  trocador  Na+ /H+ .  Na  membrana  basolateral  está  destacado  o cotransportador  NBC1  que  troca  1Na+ /3  HCO3–  (para  simplificação,  foi  omitida  a  Na+ /K+ ­ATPase).  AC  II,  anidrase  carbônica intracelular; AC IV, anidrase carbônica intratubular; i, intracelular.

Figura  56.7  ■   Efeito  da  perda  da  função  da  anidrase  carbônica  intracelular  na  reabsorção  de  bicarbonato  pelas  células intercalares  tipo  α  do  néfron  distal.  Na  membrana  luminal  estão  presentes  a  H+ ­ATPase  e  a  H+ /K+ ­ATPase.  Na  membrana basolateral destacam­se os transportadores: AE1 = trocador Cl–/HCO3–; KCC4 = cotransportador de K+ /Cl– e ClC­Kb = canal de Cl– (para simplificação, foi omitida a Na+ /K+ ­ATPase). AC II, anidrase carbônica intracelular; i, intracelular.

CONCLUSÃO Os  exemplos  analisados  de  algumas  doenças  hereditárias  ilustram  as  inter­relações  dos  diferentes  mecanismos  de transporte  iônico  presentes  ao  longo  do  néfron.  Adicionalmente,  mostram  como  o  olhar  científico  pode  fazer  da  doença uma  fonte  importante  de  questionamentos  e  um  caminho  privilegiado  para  a  compreensão  da  fisiologia  a  partir  dos distúrbios fisiopatológicos.

BIBLIOGRAFIA ALPER SL. Genetic diseases of acid­base transporters. Annu Rev Physiol, 64:899­923, 2002. AMILARK I, DAWSON KP. Bartter syndrome: an overview. Q J Med, 93:207­15, 2000. BARTTER  FC,  PRONOVE  P,  GILL  JR  Jr  et  al.  Hyperplasia  of  the  juxtaglomerular  complex  with  hyperaldosteronism  and hypokalemic alkalosis: A new syndrome. Am J Med, 33:811­28, 1962. BAUER FM, GLASSON P, VALLOTON MB et al. Bartter’s syndrome, chondrocalcinosis and hypomagnesemia. Schweiz  Med Wocjenschr, 109:1251­56, 1979. DE JONG JC, VAN DER VLIET WA, VAN DEL HEUVEL LPWJ et al. Functional expression of mutations in the human NaCl cotransporter: Evidence for impaired routing mechanisms in Gitelman’s syndrome. J Am Soc Nephrol, 13:1442­8, 2002. FELDAMNN D, ALESSANDRI JL, DESCHENES G. Large deletion of the 5’end of the ROMK1 gene causes antenatal Bartter syndrome. J Am Soc Nephrol, 9:2357­9, 1998. FINER G, SHALEV H, BIRK OS et al. Transient neonatal hyperkalemia in the antenatal (ROMK defective) Bartter syndrome. J Pediatric, 142:318­23, 2003. FRY AC, KARET FE. Inherited Renal Acidoses. Physiology, 22:202­11, 2007. GAO  PJ,  ZHANG  KX,  ZHU  DL  et  al.  Diagnosis  of  Liddle  syndrome  by  genetic  analysis  of  beta  and  gamma  subunits  of epithelial sodium channel – a report of five affected family members. J Hypertens, 19:885­9, 2001. GITELMAN HJ, GRAHAM JB, WELT LG. A new familial disorder characterized by hypokalemia and hypomagnesemia. Trans Assoc Am Physicians, 79:221­35, 1966. GUAY­WOODFORD LM. Bartter syndrome: unraveling the pathophysiology enigma. Am J Med, 105:151­61, 1998. HEBERT SC. Bartter syndrome. Curr Opin Nephrol Hypertens, 12:527­32, 2003.

JENTSCH  TJ,  MARITZEN  T,  ZDEBIK  AA.  Chloride  channel  diseases  resulting  from  impaired  transepithelial  transport  or vesicular function. J Clin Invest, 115:2039­46, 2005. JOOST G, HOENDEROP J, BINDELS RJM. Calciotropic and magnesiotropic TRP Channels. Physiology, 23:32­40, 2008. KNOERS NV, LEVTCHENKO EN. Gitelman syndrome. Orphanet J Rare Dis, 3:22, 2008. KÁROLYI L et al. The international collaborative study group for Bartter­like syndromes: Mutations I the gene encoding the inwardly­rectifying renal potassium channel, ROMK, cause the antenatal variant of Bartter syndrome: evidence for genetic heterogeneity. Hum Mol Genet, 6:17­26, 1997. LEMMINK HH, KNOERS NV, KAROLYI L et al. Novel mutations in the thiazide­sensitive NaCl cotransporter gene in patients with Gitelman syndrome with predominant localization to the C­terminal domain. Kidney Int, 54:720­30, 1998. LIDDLE  GW,  BLEDSOE  T,  COPPAGE  WS.  A  familial  renal  disorder  simulating  primary  aldosteronism  but  with  negligible aldosterone secretion. Trans Am Assoc Physicians, 76:199­213, 1963. LUDWIG M, UTSCH B, MONNENS LAH. Recent advances in understanding the clinical and genetic heterogeneity of Dent’s disease. Nephrol Dial Transplant, 21:2708­17, 2006. NUSING  RM,  REINALTER  SC,  PETERS  M  et  al.  Pathogenetic  role  of  cyclooxygenase­2  in  hyperprostaglandin  E syndrome/antenatal  Bartter  syndrome:  therapeutic  use  of  the  cyclooxygenase­2  inhibitor  nimesulide.  Clin  Pharmacol Ther, 70:384­90, 2001. SCHIL  L.  The  EnaC  channel  as  the  primary  determinant  of  two  human  diseases:  Liddle  syndrome  and pseudohypoaldosteronism. Nephrologie, 17:395­400, 1996. SIMON  DB,  KARET  FE,  HAMDAM  JM  et  al.  Bartter’s  syndrome,  hypokalemic  alkalosis  with  hypercalciuria,  is  caused  by mutations in the Na­K­2Cl cotransporter NKCC2. Nat Genet, 13:183­8, 1996. SIMON DB, NESON­WILLIANS C, BIA MJ et al. Gitelman’s variant of Bartter’s syndrome, inherited hypokalaemic alkalosis, is caused by mutations in the thiazide­sensitive Na­Cl cotransporter. Nat Genet, 12:24­30, 1996. STARREMANS PG, KERSTEN FF, KNOERS NV et al. Mutations in the human Na­K­Cl cotransporter (NKCC2) identified in Bartter syndrome type I consistently result in nonfunctional transporters. J Am Soc Nephrol, 14:1419­26, 2003. VARGAS­POUSSON R, FELDMANN D VOLLMER M et al. Novel molecular variants of the Na­K­2Cl cotransporter gene are responsible for antenatal Bartter syndrome. Am J Hum Genet, 62:1332­440, 1998.



Introdução

■ ■

Aspectos anatômicos Fase de armazenamento

■ ■ ■

Fase de esvaziamento Neurofisiologia Interação neuromuscular e função vesicuretral

■ ■

Avaliação da função vesicuretral com estudo urodinâmico Disfunção vesicuretral de origem neurológica

■ ■ ■

Continência urinária Receptores farmacológicos do sistema urinário inferior Considerações finais



Bibliografia

INTRODUÇÃO A  função  vesicuretral  depende  da  ação  integrada  de  vários  componentes  neurais  e  musculares.  Esses  controles  estão localizados  em  diversos  setores  cerebrais,  subcorticais,  pontino,  cerebelar,  medular,  nervos  periféricos,  gânglios intramurais,  sistema  nervoso  simpático  e  parassimpático,  musculatura  lisa  e  estriada,  bem  como  em  vários  tipos  de receptores, alguns conhecidos e bem estudados, e outros ainda em pesquisa (Andersson e Arner, 2004). A  uretra  e  a  bexiga  mantêm  não  só  relação  de  continuidade  anatômica  e  origem  embriológica,  mas  também  guardam importante relação funcional. A função vesicuretral se resume, basicamente, a duas fases: armazenamento e esvaziamento. A  fase  de  esvaziamento  ou  miccional  ocupa  menos  de  1%  do  tempo  da  função  vesicuretral.  Classicamente,  o  estudo  da função  vesicuretral  era  referido  como fisiologia da micção.  Como  a  micção  e  o  armazenamento  vesical  mantêm  estreita relação,  a  moderna  nomenclatura  utilizada  para  o  estudo  dessa  função  é  fisiologia  vesicuretral.  Contudo,  o termo fisiologia da micção se firmou e ainda é rotineiramente utilizado. Como  a  fase  miccional  mantém  íntima  relação  com  a  de  armazenamento,  distúrbios  miccionais  determinam repercussões diretas nesta fase. Exemplo disso é a situação na qual, durante a micção, ocorre esvaziamento vesical parcial, mantendo­se  resíduo  pós­miccional,  com  consequente  alteração  da  fase  de  armazenamento,  diminuindo  a  capacidade vesical  funcional.  Por  outro  lado,  distúrbios  de  armazenamento  também  interferem  na  fase  miccional.  Assim,  se  não houver continência urinária, não haverá urina para ser eliminada nem ocorrerá, por sua vez, a fase miccional. A fisiologia, bem como as funções neurológicas envolvidas na micção e no armazenamento, não estão completamente compreendidas.  O  fenômeno  simples,  e  quase  inconsciente,  da  micção  envolve  complexos  mecanismos  e  interações neurais  que  têm  sido  objeto  de  inúmeros  estudos  nas  últimas  décadas.  O  desenvolvimento  de  técnicas  histoquímicas especiais  e  de  estudos  com  estimulação  elétrica  nervosa  em  raízes  sacrais  e,  principalmente,  a  maior  difusão  e padronização de pesquisas funcionais vesicuretrais, o assim chamado estudo urodinâmico, têm permitido esclarecimentos de alguns pontos fundamentais para a compreensão da micção. Outrossim, o esclarecimento do mecanismo que mantém a suficiente contração vesical somente para a obtenção do esvaziamento vesical ainda apresenta algumas questões em aberto.

O  estudo  de  novas  vias  aferente  e  eferente,  como  o  estudo  das  fibras  C,  tem  oferecido  novos  campos  de  pesquisa  e esclarecido alguns pontos dúbios, como as vias de sensibilidade dolorosas da bexiga.

ASPECTOS ANATÔMICOS A uretra e a bexiga mantêm entre si continuidade anatômica e guardam estreita relação funcional. A parede vesical no corpo da bexiga é composta de musculatura lisa que se distribui em todos os sentidos. Próximo ao colo vesical organiza­ se  em  três  camadas  anatomicamente  distintas  (Figura 57.1).  A  camada  mais  interna  orienta­se  no  sentido  longitudinal, prolongando­se  com  a  camada  longitudinal  interna  da  uretra.  A  camada  muscular  média,  mais  espessa  e  evidente  neste nível, interrompe­se no colo vesical, não se prolongando até a uretra. A camada muscular externa tem sentido oblíquo nos mais variados graus de inclinação; apresenta, de modo geral, orientação espiralada, continuando­se com a camada externa uretral (Figura 57.2). Desse modo, apesar de fibras distintas poderem manter o mesmo nível de inervação em razão da sua orientação  e  distribuição,  podem  ter  ações  diferentes,  sendo,  portanto,  essa  distribuição  anatômica  de  grande  utilidade funcional. Fibras ureterais se prolongam na uretra e se entrecruzam com fibras contralaterais, e sua contração, durante a micção,  permite  alongamento  do  túnel  submucoso  do  ureter,  aumentando  a  eficiência  do  mecanismo  de  prevenção  do refluxo vesicuretral.

Figura 57.1 ■ Organização das fibras da bexiga no nível do colo vesical.

Existem fibras musculares estriadas que envolvem a uretra: nos homens, entre o verum montanum e a uretra bulbar; nas mulheres, principalmente a porção média. A uretra posterior masculina (que compreende a prostática e a membranosa) corresponde praticamente a toda a uretra feminina, tendo a mesma origem embriológica.

Figura 57.2 ■ Distribuição das fibras musculares lisas no nível da uretra feminina.

No homem adulto, o parênquima prostático localiza­se na porção acima do verum montanum, envolvendo a uretra por todos  os  lados;  essa  localização  dificulta  a  identificação  das  camadas  musculares  uretrais  e  leva  a  confundir  as  fibras musculares  lisas  que  envolvem  os  ácinos  prostáticos  com  as  da  musculatura  uretral.  Assim,  a  maioria  das  fibras  lisas localizadas na uretra prostática está mais relacionada com a parte sexual – de contração prostática durante ejaculação – do que com a continência. Exemplo disso pode ser observado na prática clínica, quando a próstata é retirada cirurgicamente, com  exérese  (extirpação  cirúrgica)  de  grande  maioria  das  fibras  lisas  uretrais,  e,  não  obstante,  a  continência  urinária permanece preservada. A musculatura vesicuretral tem papel fundamental na função de armazenamento e esvaziamento vesical. Durante a fase de esvaziamento, é necessário não apenas que a musculatura vesical se contraia, mas também que a musculatura uretral se relaxe.  Já  na  fase  de  armazenamento,  deve  haver  completo  relaxamento  da  musculatura  vesical  e  também  concomitante contração de todos os componentes esfincterianos – musculatura lisa e estriada.

FASE DE ARMAZENAMENTO Tanto  em  humanos  como  em  animais,  medidas  da  pressão  vesical  revelam  níveis  pressóricos  relativamente  baixos  e constantes  durante  todo  o  enchimento,  enquanto  o  volume  vesical  está  abaixo  do  volume  que  induz  a  micção.  A manutenção  das  baixas  pressões  somente  é  possível  porque  a  parede  muscular  vesical  apresenta  boa  elasticidade, distendendo­se com baixa resistência, por suas propriedades físicas e relaxamento muscular em razão da falta de estímulo neurológico  parassimpático  para  contração  dessas  fibras.  Em  algumas  espécies,  o  estímulo  simpático  durante  a  fase  de armazenamento  não  só  inibe  a  atividade  parassimpática,  como  estimula  o  fechamento  do  colo  vesical  e  a  contração  da uretra proximal (Yoshimura e De Groat, 1997). Essas  avaliações  da  pressão  intravesical  são  chamadas  de fase  cistométrica  do  estudo  urodinâmico.  A  avaliação  das pressões  intravesicais,  associada  à  medida  da  atividade  eletromiográfica  perineal  por  eletrodos  de  superfície  colocados nessa  região,  evidencia  esse  reforço  perineal  que  ocorre  proporcionalmente  ao  enchimento  vesical  (Figura  57.3).  Esse aumento da atividade eletromiográfica evidencia que ocorre um aumento da atividade elétrica do nervo pudendo, atuando como  reforço  perineal  e  consequente  elevação  da  pressão  intrauretral,  aumentando  a  resistência  à  perda.  Este  reforço também é facilmente evidenciado quando ocorre elevação da pressão vesical decorrente de esforço (ver Figura 57.3).

FASE DE ESVAZIAMENTO Em adultos normais, a micção ocorre de 4 a 7 vezes no período de 24 h. A mudança da fase de armazenamento para a fase miccional pode ocorrer voluntariamente ou de modo patológico.

Figura 57.3 ■ Gráfico obtido em um estudo urodinâmico. Note o reforço da atividade eletromiográfica durante enchimento vesical (canal  4)  e  o  relaxamento  esfincteriano  com  silêncio  eletromiográfico  na  micção  (canal  4).  *Pressão  detrusora  =  pressão abdominal – pressão vesical.

O  volume  que  desencadeia  o  ato  miccional  ou  informa  da  distensão  vesical  é  avaliado  por  receptores  do  urotélio, estrutura  que  tem  papel  fundamental  neste  mecanismo  (Birder  e  De  Groat,  2007).  O  termo  sensibilidade  refere­se  ao número  de  disparos  que  o  receptor  realiza,  o  qual  é  associado  à  distensão  vesical.  Inúmeros  fatores  interferem  na sensibilidade,  sendo  que  os  mediadores  dos  estímulos  podem  ser  liberados  pela  própria  musculatura  ou  pelo  urotélio  e envolvem  mastócitos,  miofibroblastos  e  outras  células  e  tecidos  conjuntivos.  Muitas  dessas  células  e  tecidos  podem liberar  ATP  ou  mesmo  óxido  nítrico,  tachiquininas  (substância  P,  neuroquininas  A  ou  B),  fator  de  crescimento  e  outros compostos,  interferindo  diretamente  na  sensibilidade  desses  receptores.  Existe  grande  similaridade  histológica  entre  o tecido  do  urotélio  e  o  das  fibras  C,  que  transmitem  a  sensibilidade  dolorosa  e  de  distensão  vesical.  Assim,  esses  dados sugerem  que,  apesar  de  os  neurorreceptores  serem  os  responsáveis  pela  descarga  elétrica  que  gera  a  sensibilidade  de distensão, os tecidos adjacentes têm papel fundamental na modulação dessa resposta.

NEUROFISIOLOGIA A contração vesical ocorre, basicamente, por um estímulo parassimpático. Um arco reflexo simples nos dá uma ideia objetiva  do  funcionamento  vesical.  Fibras  sensoriais  partindo  dos  proprioceptores  da  parede  vesical  atingem  os  nervos pré­sacrais. Não existe um nervo sensorial específico, mas sim um verdadeiro plexo nervoso que se localiza anteriormente ao sacro. Este plexo organiza­se nos forames sacrais S2, S3 e S4, fazendo parte das raízes nervosas sacrais S2, S3 e S4,

e, atingindo o cone medular através de ramos da cauda equina, estabelece sinapse (Figura 57.4). Deste nível partem fibras motoras  parassimpáticas  que,  também  através  das  raízes  sacrais  S2,  S3  e  S4,  passam  pelas  fibras  do  plexo  pré­sacral  e atingem  a  parede  vesical,  estabelecendo  sinapse  nos  gânglios  intramurais,  partindo  daí  as  fibras  motoras  vesicais  pós­ sinápticas. As fibras musculares vesicais, diferentemente das fibras estriadas musculares, não têm placa motora. Portanto, uma  fibra  que  está  despolarizando,  o  faz,  secundariamente,  outra,  e  assim  por  diante  (Coolsaet  et  al.,  1993).  Existem fibras que são despolarizadas até quaternariamente. A presença de células intersticiais, semelhantes às células de Cajal que coordenam  as  contrações  no  intestino  de  gatos,  parece  ter  importância  nessa  coordenação  e  despolarização  de  fibras  na parede vesical (Drake et al., 2003). Este arco reflexo também está sob influência direta cortical, com mecanismos facilitatórios e inibidores (Figura 57.5). A sensibilidade da distensão vesical, por meio da medula, também é informada ao córtex cerebral, que toma consciência da  distensão  vesical.  São  esses  mecanismos  que  permitem  ao  indivíduo  adulto  urinar  ou  não,  ao  ser  informado  pelos proprioceptores da situação de distensão vesical.

▸ Controle cerebral da micção Como  dito,  o  controle  cerebral  da  micção  é  o  que  permite  ao  indivíduo  manter  controle  voluntário  do  arco  reflexo. Anatomicamente,  a  distribuição  neural  central  é  bastante  complexa  (Morrison et  al.,  2006).  A  área  arquedutal  da  zona cinzenta  cerebral  (AZC)  é  a  região  anatômica  mais  importante  desse  controle.  Esta  área  faz  parte  do  controle  motor emocional do indivíduo. É área crucial para a sobrevivência individual e da espécie e está envolvida no controle de funções complexas  como  agressão,  defesa,  maternidade  e  reprodução  (Reichling  et  al.,  1988).  A  AZC  tem  áreas  de  projeções medulares  lombossacras  (Liu,  1983)  que  evidenciam  sua  relação  com  a  micção;  sua  função  no  controle  da  micção  já  foi evidenciada em ratos (Ding et al., 1999). Em  mamíferos,  o  cerebelo  tem  função  inibitória  da  micção  (Nishizawa  et  al.,  1989),  com  evidente  ação  inibidora durante a fase de armazenamento e alguma facilitadora durante a micção. O hipotálamo também tem papel importante no controle  miccional,  produzindo  substâncias  de  grande  importância  no  controle  central  da  micção,  como  a  ocitocina,  que aumenta a capacidade de armazenamento vesical (Pandita et al., 1998). Existe também aumento da irrigação do hipotálamo durante a micção (Blok et al., 1997).

Figura 57.4 ■ Representação esquemática do arco reflexo vesical.

Figura 57.5 ■ Representação esquemática do controle neural do esfíncter externo no arco reflexo vesical.

A  área  cortical  é  a  responsável  pela  continência  urinária  social,  em  humanos  e  mamíferos  domésticos.  No  córtex cerebral  de  ratos,  as  áreas  motora  e  sensorial  vesical  são  anatomicamente  distintas  (Marson  e  Murphy,  2006).  A  região anterior  do  lobo  frontal  é  fundamental  para  o  controle  da  micção,  tendo  sido  observadas  alterações  significativas  desse controle  em  pacientes  com  tumores  nesta  área  (Fowler,  1999).  Estudos  realizados  com  gamacâmera  para  avaliação  da irrigação cerebral evidenciaram que esta área está associada à urgência miccional do idoso (Fowler, 1999).

INTERAÇÃO NEUROMUSCULAR E FUNÇÃO VESICURETRAL Para  que  ocorra  a  micção,  não  basta  que  exista  a  contração  vesical,  mas  também  a  resistência  uretral  deve  diminuir, ocorrendo  relaxamento  esfincteriano  e,  assim,  a  micção  aconteça  com  baixa  pressão  intravesical.  A  inervação  da musculatura estriada periuretral é feita por fibras que também trafegam pelos ramos S2­S4 e compõem o nervo pudendo. Impulsos nervosos contínuos transportados pelo nervo pudendo atingem a musculatura que compõe o conjunto muscular esfincteriano  uretral,  e  o  mantêm  sob  contração  involuntária  durante  o  enchimento  vesical  (Figura  57.6).  O  aumento involuntário  dessa  contração  esfincteriana,  acompanhando  o  enchimento  vesical,  é  um  fato  normalmente  observado. Quando  ocorre  a  contração  vesical,  existe  uma  inibição  reflexa  desse  tônus,  o  que,  por  sua  vez,  causa  o  relaxamento esfincteriano. É interessante observar que essa interação depende de mecanismos neurológicos situados mais alto, no nível da ponte (a conexão entre o encéfalo e a medula). A interação entre cone medular e ponte também permite que o reflexo miccional  ocorra  até  o  completo  esvaziamento  vesical.  Nos  bebês,  essa  interação  pontinomedular  está  íntegra,  mas  as crianças não têm controle da micção por falta de integração cortical. Em pacientes com lesão medular acima do cone, esta via está interrompida, deixando de haver essa interação. Assim, frequentemente, ocorrem contrações vesicais reflexas com contrações  esfincterianas  durante  a  contração  vesical  (a  chamada  dissinergia  vesicoesfincteriana)  e  também  contrações vesicais  de  duração  insuficiente.  Esses  pacientes  apresentam,  portanto,  micção  de  alta  pressão,  com  elevado  volume  de resíduo pós­miccional. A musculatura uretral, pelo seu tônus, exerce força constritiva sobre o lúmen uretral, ocluindo­a e mantendo, durante a fase  de  armazenamento,  níveis  pressóricos  mais  elevados  na  uretra  do  que  na  bexiga,  não  ocorrendo  perda  urinária.  A atividade muscular uretral é composta de dois elementos básicos: ■ O esfíncter  muscular  liso,  genericamente  denominado  esfíncter  interno,  distribuído  por  todo  colo  vesical  e  em  todo comprimento uretral feminino e pela uretra prostática masculina ■ O esfíncter voluntário, estriado, de localização preferencial no terço médio da uretra feminina e na uretra membranosa masculina.

A atividade do esfíncter voluntário e a do esfíncter interno se sobrepõem em razoável trajeto uretral. Se o indivíduo se submeter  a  um  esforço  físico,  pode  ocorrer  aumento  da  pressão  abdominal  que  se  transmite  à  bexiga,  e,  então,  o mecanismo esfincteriano responde por duas formas: ■ Em parte aumentando sua eficiência, por reflexo neurológico que contrai a musculatura estriada (chamado reflexo da guarda) ■ Em  parte  sofrendo  transmissão  direta  da  pressão  abdominal.  O  gradiente  de  pressão  uretral  mantém­se  maior  que  a pressão vesical, não ocorrendo perda de urina. Necessária  e  fundamental  para  a  continência  urinária  é,  além  da  integridade  dos  mecanismos  esfincterianos,  a acomodação vesical durante a fase de armazenamento. As baixas pressões intravesicais, devidas à boa elasticidade vesical durante enchimento, facilitam que a ação esfincteriana seja eficiente. A  bexiga  tem  a  capacidade  de  receber  significativo  volume  de  urina,  sem  que  ocorra  expressiva  elevação  pressórica. Mesmo quando é atingida a capacidade vesical máxima, e o desejo miccional se torna imperioso, os níveis pressóricos da bexiga  mantêm­se  baixos;  portanto,  mesmo  em  tais  condições  extremas,  consegue­se  inibir  a  contração  da  musculatura vesical (detrusora). Os baixos níveis pressóricos vesicais durante a fase de armazenamento da bexiga são fundamentais para a continência. Pacientes  nos  quais  esse  fator  não  se  verifica,  em  decorrência  de  cirurgia  ou  por  alteração  da  constituição  da  parede vesical,  apresentam  intensa  polaciúria  (frequente  emissão  de  pouca  urina),  comportando­se  clinicamente  como incontinentes, ainda que o mecanismo esfincteriano se mostre normal.

Figura  57.6  ■   Diagrama  mostrando  os  circuitos  neurais  que  controlam  a  micção  e  o  armazenamento.  Armazenamento:  a distensão da bexiga leva à ativação progressiva dos receptores sensoriais da parede vesical e, consequentemente, dos nervos sensoriais  pélvicos.  Esta  ativação  é  acompanhada  pela  inibição  reflexa  da  bexiga,  via  nervo  hipogástrico,  e  estimulação simultânea do esfíncter externo, via nervo pudendo, monitorado pelo centro pontino da micção. Micção: após alcançar um nível crítico de enchimento vesical e a micção sendo desejada, a partir de impulsos da área arquedutal cinzenta, o centro pontino da micção interrompe a inibição sobre o centro sacral da micção (parassimpático), que ativa a contração vesical por meio do nervo pélvico.  Ao  mesmo  tempo,  cessa  a  influência  inibitória  sobre  a  bexiga,  feita  pelo  sistema  simpático  por  meio  do  nervo hipogástrico, e ocorre simultânea inibição da ativação somática do esfíncter, relaxando­o. Ao término da micção, interrompe­se o arco reflexo e inicia­se a fase de armazenamento. (Adaptada de De Groat, 2006.)

Quando  a  distensão  vesical  atinge  volume  ao  redor  de  150  m ℓ ,  inicia  o  desejo  miccional,  ocorrendo  disparos  de impulsos  sensoriais,  progressivamente  mais  frequentes,  que  atingem  o  máximo  quando  o  volume  acumulado  se  iguala  à capacidade vesical máxima (em torno de 500 mℓ). A musculatura vesical é, provavelmente, o único músculo liso do corpo humano  sujeito  a  algum  controle  voluntário  cortical.  Os  humanos  têm  a  capacidade  voluntária  de  inibir  e  de  iniciar  a contração  vesical,  atuando  sobre  o  arco  reflexo.  Porém,  não  têm  a  capacidade  de  contrair  a  bexiga  vazia.  Imediatamente antes da contração vesical, ocorre relaxamento esfincteriano e do assoalho pélvico, o que permite a descida do colo vesical e  entrada  de  urina  na  uretra  posterior,  sendo  este  um  provável  estímulo  para  a  contração  vesical.  A  contração  da musculatura longitudinal interna da uretra concomitante com a da bexiga leva ao encurtamento uretral e ao afunilamento do colo  vesical,  contribuindo  para  o  direcionamento  da  força  vesical  para  a  uretra  e  a  diminuição  da  resistência  uretral.  A micção  ocorre  com  baixa  resistência  uretral,  e  a  pressão  dentro  da  bexiga  mantém­se  em  níveis  baixos  (abaixo  de  15

cmH2O). A pressão uretral permanece baixa durante toda a micção, permitindo um fluxo contínuo (da ordem de 15 a 25 mℓ/s),  que  varia  com  o  volume  urinado,  o  sexo  e  a  idade.  Somente  ao  término  do  esvaziamento  da  bexiga,  a  contração vesical cessa, e o tônus uretral volta aos níveis basais (ver Figura 57.3). Quando se deseja interromper voluntariamente a micção  antes  do  total  esvaziamento  vesical,  realiza­se  a  contração  da  musculatura  perineal,  contraindo­se  as  fibras estriadas  periuretrais,  o  que  resulta  no  aumento  da  resistência  uretral  e  na  consequente  interrupção  do  fluxo.  O  reflexo miccional mantém­se ainda atuante, mantendo a contração vesical. Finalmente o arco reflexo é interrompido por controle neurológico  superior,  cessando  a  contração  vesical  em  alguns  segundos.  Portanto,  não  se  interrompe  diretamente  o  arco reflexo  miccional,  mas  interrompe­se  de  maneira  voluntária  o  fluxo  urinário,  com  contração  perineal,  levando  à interrupção do arco reflexo miccional por controle neurológico pontino. Está  bem  documentada  a  ação  simpática  na  continência;  porém,  sua  ação  na  micção  é  questionável.  Por  técnicas histoquímicas,  alguns  autores  mostraram  que  a  inervação  do  esfíncter  estriado  é  feita  por  fibras  simpáticas, parassimpáticas  e  somáticas  (Birder  et  al.,  2010).  A  ação  simpática  também  é  evidente  na  ejaculação.  A  estimulação simpática  promove  contração  das  fibras  que  envolvem  os  ácinos  prostáticos,  provocando  a  expulsão  da  secreção acumulada  para  o  lúmen  uretral.  A  contração  simultânea  de  todo  o  colo  vesical,  por  sua  localização,  irá  traduzir­se  por constrição dessa porção, direcionando o jato no sentido anterior, não permitindo a ejaculação retrógrada. Receptores beta­ adrenérgicos,  que  têm  ação  de  relaxamento  de  fibras  lisas,  foram  encontrados  em  grande  número  na  parede  vesical; provavelmente, sua ação de relaxamento, atuando com a falta de ação parassimpática na fase de armazenamento, permite que a acomodação vesical ocorra à baixa pressão.

AVALIAÇÃO DA FUNÇÃO VESICURETRAL COM ESTUDO URODINÂMICO A avaliação da função vesicuretral, na prática clínica, é feita pelo estudo urodinâmico. Esta análise realiza medidas de fluxo  urinário  e  das  pressões  intravesical  e  intra­abdominal,  associadas  a  avaliações  do  volume  infundido  e  da  atividade eletromiográfica perineal. É um exame invasivo, visto que implica a inserção de sondas vesicais e abdominal, sendo geralmente monitorado por sonda intrarretal. Porém, realizado com adequada técnica de lubrificação e anestesia uretral, é suportado pela maioria dos pacientes. Sob o aspecto emocional envolve sensações complexas, pois o paciente tem de expor suas sensações vesicais e relatar perdas, além de urinar em ambiente do laboratório, situação que não lhe é habitual. Uma infecção urinária pode ser desencadeada pela manipulação do sistema urinário ou já estar eventualmente presente antes da realização do exame, o que pode implicar dados falsos, alterando a sensibilidade vesical e mesmo desencadeando contrações vesicais involuntárias não usuais nas atividades diárias do paciente (D’Ancona, 2001). Para iniciar o exame, o paciente deve urinar em um coletor que está conectado ao aparelho de urodinâmica, obtendo­se o  registro  da  fluxometria.  Os  dados  são  calculados  eletronicamente  pelo  aparelho  e  comparados  com  nomogramas preestabelecidos, permitindo avaliar se o paciente está urinando dentro dos padrões da normalidade. Em seguida, são posicionadas as sondas vesical e retal. São inseridas, via uretral, uma sonda de duplo lúmen ou duas sondas;  tal  procedimento  permite  fazer,  por  uma  via  a  infusão,  e  por  outra  via  o  monitoramento  contínuo  da  pressão vesical durante o enchimento. Adicionalmente, é posicionada a sonda retal, com balão em uma das suas extremidades, o que  possibilita  o  monitoramento  da  pressão  abdominal.  É  de  fundamental  importância  o  monitoramento  da  pressão abdominal, pois a realização de esforço físico eleva a pressão intra­abdominal, e, consequentemente, a pressão intravesical também  se  eleva,  por  transmissão  da  pressão  abdominal  para  a  bexiga.  Com  a  contração  vesical,  eleva­se  a  pressão  na bexiga,  mas  não  dentro  do  abdome.  A  pressão  de  contração  detrusora  é  obtida  por  cálculo  eletrônico,  subtraindo­se  da pressão  vesical  a  pressão  simultânea  intra­abdominal.  Assim,  é  possível  a  avaliação  da  capacidade  de  contração  vesical, mesmo que o paciente realize esforço abdominal. Após o posicionamento das sondas, realiza­se a medida do resíduo pós­ miccional  e  inicia­se  a  distensão  vesical  com  a  infusão  de  solução  fisiológica.  À  medida  que  ocorre  o  enchimento,  a sensibilidade  informada  pelo  paciente  é  anotada.  Desse  modo,  pode  ser  diagnosticada  a  presença  de  contrações involuntárias  (hiperatividade  detrusora)  e  avaliado  o  aumento  passivo  da  pressão  com  o  enchimento  (complacência vesical).  O  paciente  deve  ser  orientado  a  informar  a  sensação  de  distensão  vesical,  sendo  anotado  o  primeiro  desejo,  o desejo normal e o forte desejo, bem como eventual sensação de urgência miccional. Quando o paciente referir forte desejo miccional, é iniciado o estudo miccional. Caso tenham sido usadas duas sondas para medida, é retirada a sonda de infusão, permanecendo a sonda que monitora a pressão vesical durante a micção. Testes de  esforço  podem  ser  realizados  para  avaliar  se  o  paciente  apresenta  perdas  por  esforço.  Aos  esforços,  a  hiperatividade

detrusora também pode ser diagnosticada. Após as provas de esforço, o paciente é solicitado a urinar, medindo­se o fluxo urinário. Com a utilização de nomogramas, pode­se avaliar a capacidade contrátil e se há ou não obstrução urinária. A curva manométrica ao longo da uretra (perfil pressórico uretral) pode ser realizada, durante ou após a micção, mas, em razão de problemas técnicos, esta curva é pouco reprodutível e de difícil interpretação (Abrams et al., 1978). A atividade elétrica da região perineal também pode ser medida, com o uso de eletrodos perineais. Esse procedimento permite  avaliar  se  durante  a  micção  há  relaxamento  do  períneo  ou  atividade  perineal  e,  portanto,  esfincteriana,  a  qual diagnostica dissinergia vesicoesfincteriana. Associado  a  essas  medidas  pode  ser  utilizado,  como  avaliação  do  enchimento  vesical,  o  contraste  radiopaco. Adicionalmente,  com  a  utilização  de  raios  X  (radioscopia),  pode  ser  obtida  a  imagem  simultânea  do  sistema  urinário durante a micção, permitindo maior precisão e segurança no diagnóstico (Figura 57.7). A  avaliação  urodinâmica  possibilita  a  análise  detalhada  da  fisiologia  da  micção  e  um  diagnóstico  mais  preciso  das disfunções miccionais.

DISFUNÇÃO VESICURETRAL DE ORIGEM NEUROLÓGICA As  disfunções  neurológicas  podem  levar  a  alterações  das  funções  vesicuretrais,  sendo  conhecidas  como  bexiga neurogênica.  Os  traumatismos  raquimedulares  são  ótimo  modelo  experimental,  pois  permitem  avaliar  as  respostas vesicuretrais na vigência de secções de diversos segmentos raquimedulares. As doenças neurológicas podem causar lesões em diferentes níveis, dificultando a interpretação da resposta patológica vesicuretral  associada  à  lesão,  que  pode  comprometer  o  sistema  nervoso  em  diversos  níveis  simultaneamente.  As  lesões neurológicas  podem  resultar  no  comprometimento  das  fibras  sensoriais  vesicais,  como  acontece,  por  exemplo,  no diabetes, situação na qual as fibras sensoriais, por serem as mais finas, são as primeiras acometidas. Como consequência desse  acometimento,  os  pacientes  inicialmente  apresentam  o  primeiro  desejo  miccional  com  grandes  distensões  vesicais. Quando solicitado, o paciente consegue urinar grandes volumes, pois a capacidade vesical se encontra bastante aumentada. Essa  distensão  vesical  crônica  acarreta  lesão  da  própria  musculatura  detrusora,  o  que,  por  sua  vez,  impede  o  correto esvaziamento  vesical;  essa  incorreção  acarreta  presença  de  resíduo  pós­miccional,  que  progressivamente  se  eleva, resultando em retenção urinária e em suas repercussões no sistema urinário superior. Ao lado disso, a progressão da lesão neurológica causa total interrupção do arco reflexo miccional, causando também retenção urinária. Quando  a  lesão  compromete  as  fibras  motoras,  aparece  o  quadro  de  bexiga  neurogênica  paralítico­motora,  como verificado  em  neurites,  poliomielite,  traumatismo  ou  tumor  medular.  Nessa  situação,  a  sensibilidade  está  preservada  e  o paciente percebe o grau de distensão vesical, porém, não consegue desencadear o reflexo miccional. A bexiga neurogênica paralítico­motora é uma situação patológica rara na prática clínica.

Figura 57.7 ■ Representação esquemática de um estudo urodinâmico.

Quando há comprometimento tanto das fibras sensoriais quanto das motoras, ou ainda do próprio cone medular, ocorre a chamada bexiga neurogênica autônoma. Nessa situação há incapacidade de se efetuar o arco reflexo. Como as mesmas vias  neurológicas  são  responsáveis  por  outros  reflexos,  o  reflexo  bulbocavernoso  e  o  reflexo  cutâneo  anal  estarão igualmente  comprometidos.  O  grau  de  comprometimento  do  esfíncter  é  relacionado  com  o  grau  de  comprometimento neurológico, podendo haver pacientes que, apesar de não terem contração vesical, são incontinentes por falta de atividade esfincteriana.  De  modo  oposto,  a  retenção  pode  ser  o  achado  clínico  neste  tipo  de  lesão,  nos  casos  em  que  não  existe contração  vesical,  porém  o  esfíncter  é  ativo.  Cabe  lembrar  que  um  paciente  com  retenção  total  de  urina  pode  apresentar incontinência clínica, pois, à medida que vai ocorrendo o enchimento vesical, a pressão intravesical vai se elevando, até o momento  que  vence  a  resistência  uretral,  ocorrendo  perda  constante  de  urina;  esta  condição  é  denominada  incontinência paradoxal. Portanto, para a correta avaliação se um paciente é retencionista ou incontinente por insuficiência esfincteriana, deve ser verificado o grau de esvaziamento vesical, e não somente se o paciente apresenta saída involuntária constante de urina  pela  uretra.  A  bexiga  autônoma  pode  ser  encontrada  em  portadores  de  tumores  medulares,  traumatismos  ou malformações congênitas, como mielomeningocele ou agenesia sacral. Outro aspecto interessante associado não só com o comprometimento  da  inervação  vesical  do  cone  medular  é  a  presença  de  contrações  autonômicas.  Mesmo  com  a denervação  total  vesical,  o  neurônio  entre  o  gânglio  intramural  e  a  fibra  muscular  está  íntegro,  podendo  ter  descargas efetoras  anômalas.  Como  as  fibras  lisas  vesicais  se  despolarizam  também  por  proximidade,  mesmo  denervada  a  bexiga apresenta fasciculações durante o enchimento. Ou seja, não ocorre contração geral das fibras, como na atividade detrusora, mas  acontecem  contrações  vesicais  localizadas,  que,  apesar  da  arreflexia  detrusora,  podem  levar  ao  espessamento  e comprometimento da parede, como na hiperatividade detrusora. Quando a lesão ocorre acima do cone medular, que, no adulto, está localizado no nível ósseo T12 – L1, o arco reflexo está  liberado,  ocorrendo  contração  vesical  reflexa  à  distensão  vesical.  Essa  contração  vesical  é  involuntária  e  sem

sensibilidade.  Nesta  situação,  pode  ocorrer  contração  esfincteriana  simultânea  à  contração  vesical,  e  o  paciente  tem micções  de  altíssima  pressão,  levando  a  repercussões  graves  do  sistema  urinário.  É  o  tipo  de  comportamento  vesical denominado bexiga neurogênica reflexa, encontrado no traumatismo medular, na mielomeningocele, na esclerose múltipla, dentre  outras  anomalias.  Nesta  situação,  além  do  reflexo  miccional,  outros  reflexos  abaixo  da  lesão  (como  bulbo cavernoso e cutâneo anal) estão também liberados e exacerbados (Figura 57.8). Cabe  registrar  um  comportamento  frequentemente  observado  em  lesões  agudas,  como  as  verificadas  logo  após  o traumatismo  medular:  o  fato  de  todos  os  reflexos  abaixo  da  lesão  encontrarem­se  bloqueados.  Este  silêncio medular abaixo  da  lesão  pode  durar  de  horas  a  meses  (fase  de  choque  medular),  evoluindo,  na  situação  crônica,  para  a liberação dos reflexos nos casos de comprometimento acima do cone medular. Após  o  traumatismo  raquimedular,  os  receptores  neurológicos  também  estão  alterados.  Nesta  situação,  o  fator  de crescimento  neural  (uma  das  neurotrofinas  mais  estudadas)  está  aumentado.  Este  fator  é,  reconhecidamente,  responsável por  sensibilizar  fibras  mielinizadas  e  desmielinizadas  sensoriais  da  bexiga,  provavelmente,  atuando  na  hiper­resposta vesical  ao  enchimento.  Nesse  caso,  o  fator  está  também  associado  a  mecanismos  de  dor,  principalmente  vesical.  No traumatismo,  como  há  interrupção  das  fibras  sensoriais  na  medula,  a  dor  não  é  um  sintoma  frequente;  porém,  em situações de inflamação vesical, como na cistite intersticial, este fator parece ser um dos elementos mais significativos no quadro doloroso destas patologias.

Figura 57.8 ■ Comportamento vesicuretral esperado no traumatismo raquimedular, na dependência do nível da lesão causada.

Outro tipo de comportamento vesical é encontrado, como exemplo típico, na doença de Parkinson, em que o paciente apresenta  o  arco  reflexo  normal,  com  sensibilidade  e  relaxamento  esfincteriano  sinérgico,  porém  com  comprometimento das  fibras  e  centros  subcorticais  responsáveis  pela  inibição  do  arco  reflexo.  Em  decorrência,  o  paciente  apresenta incapacidade  de  inibir  o  arco  reflexo,  configurando­se  um  quadro  clínico  de  urgência  miccional  com  incontinência  por urgência; ou seja, no momento em que há o desejo miccional, ocorre o arco reflexo, porém o paciente é incapaz de inibi­lo e, consequentemente, acontece a micção. O que ocorre é uma desconexão entre o córtex cerebral e a ponte, com perda da capacidade de inibição do reflexo miccional; entretanto, a função pontina é preservada, e a micção ocorre coordenada, sem dissinergia. As disfunções neurológicas podem levar a disfunções miccionais graves. Uma questão a se esclarecer é: como essas disfunções  levam  a  repercussões  no  sistema  urinário  superior?  Normalmente,  o  sistema  urinário  mantém  níveis pressóricos baixos e o armazenamento, o transporte e a eliminação da urina se fazem com níveis pressóricos abaixo de 15 cmH2O;  porém,  elevações  pressóricas  intravesicais  acima  de  35  cmH2O  causam  dificuldade  de  drenagem  do  ureter, acarretando  dilatações  ureterais.  Com  seu  progressivo  aumento,  a  pressão  intravesical  se  transmite  aos  ureteres, resultando  em  elevação  da  pressão  intrapiélica  e,  consequentemente,  no  interior  dos  túbulos  renais,  podendo  levar  ao

bloqueio da filtração glomerular. Quando a alteração ocorre de maneira crônica, a dilatação de todo sistema coletor leva à compressão  do  parênquima,  determinando  isquemia  e  comprometimento  definitivo  da  função  renal  associado  à  dilatação das vias excretoras, surgindo a situação chamada de hidronefrose. Ao lado disso, a dificuldade da drenagem vesical pode promover alterações da própria parede vesical, que podem resultar no aparecimento de refluxo vesicuretral ou, ainda, levar diretamente à obstrução ureteral, na passagem do ureter para a bexiga (no hiato ureteral). Com as alterações da parede vesical e a persistência da obstrução, a própria parede vesical (o músculo detrusor) entra em falência, propiciando o aparecimento do resíduo pós­miccional, que causa infecções urinárias de difícil controle. Como visto,  são  muitos  os  mecanismos  que  levam  a  disfunção  vesical  de  causa  neurológica  a  repercussões  diretas  da  função renal. Assim, pacientes com bexiga neurogênica requerem acompanhamento e tratamentos urológicos a longo prazo.

CONTINÊNCIA URINÁRIA Outro assunto relevante, principalmente por suas implicações clínicas, é o estudo dos mecanismos de continência. Nos homens, no nível de uretra membranosa, existe um mecanismo esfincteriano anatômico. Já  nas  mulheres,  não  existe  um  esfíncter  anatomicamente  constituído.  Classicamente,  são  descritos  alguns mecanismos de continência. A musculatura lisa uretral da mulher se distribui ao longo da uretra, como fibras espiraladas, cuja  contração  pode  ocluir  a  uretra.  O  mecanismo  de  coxim  submucoso,  atuando  como  selo,  permite  o  completo fechamento uretral. Adicionalmente, a musculatura estriada periuretral pode colaborar na oclusão uretral. O tecido elástico permite  que  os  mecanismos  de  oclusão  funcionem.  No  momento  do  esforço,  a  transmissão  da  pressão  abdominal  para  a uretra  permite  reforço  da  pressão  uretral,  principalmente,  no  terço  proximal  da  uretra  (zona  crítica  de  transmissão  da pressão).  Petros  e  Ulmsten  (1993),  em  extenso  artigo  sobre  a  continência  uretral  feminina,  entre  outros  aspectos, descrevem a presença do ligamento pubouretral que permite a compressão uretral por angulação, pela fixação da uretra no púbis (Figura 57.9). Neste artigo, são discutidos vários fatores de importância para a continência, como a distribuição das forças  na  pelve,  que  permitiriam  continência  e  estabilidade  na  uretra.  Assim,  existiriam: forças  anteriores,  diretamente relacionadas com a continência uretral; forças posteriores, relacionadas com a continência fecal e a sensibilidade vesical, bem como forças longitudinais. Para o perfeito funcionamento vesicuretral, estes autores, ainda, ressaltam a importância da  estabilidade  das  forças  presentes  em  todos  os  níveis  da  pelve.  Em  razão  da  integração  dessas  diversas  forças,  e  a consequente  necessidade  de  tratar  todas  as  alterações  que  interferem  no  seu  equilíbrio,  esta  teoria  passou  a  ser intitulada teoria integral.

Figura 57.9 ■ Esquema do ligamento pubouretral feminino, que permite a compressão uretral por angulação, pela fixação da uretra no púbis. (Adaptada de Petros e Ulmsten, 1993.)

RECEPTORES FARMACOLÓGICOS DO SISTEMA URINÁRIO INFERIOR

Os  diversos  receptores  encontrados  no  nível  do  sistema  urinário  inferior  foram  descritos  por  estudos  anatômicos, imuno­histoquímicos  e  de  estimulação  nervosa.  Essas  pesquisas  mostraram  não  só  a  localização,  mas  também  as  ações inibidoras ou estimuladoras desses receptores. Com finalidade didática, estudaremos somente os receptores relacionados com o sistema nervoso autônomo.

▸ Serotonina, núcleo de Onuf O  efetor  do  sistema  simpático  é  a  norepinefrina.  Porém,  por  meio  dos  receptores  alfa  ou  beta,  a  ação  do  sistema nervoso simpático pode ser de contração (alfa) ou de relaxamento (beta)  das  fibras  musculares.  Portanto,  por  estímulos dos receptores simpáticos com fármacos, pode­se obter contração ou relaxamento das fibras musculares, dependendo se a ação do medicamento é alfa ou beta­adrenérgica. Cabe lembrar que, quando um fármaco realiza bloqueio alfa, tem efeito semelhante ao estímulo beta, e vice­versa, quando faz o bloqueio beta, o fármaco exibe efeito semelhante ao estímulo alfa. No  sistema  urinário  inferior,  a  ação  beta­adrenérgica  não  é  tão  evidente  como  a  ação  alfa,  e  as  substâncias  beta­ adrenérgicas (ou betabloqueadoras) não têm uma ação efetiva evidente como as de ação alfa. A serotonina é um importante transmissor no sistema nervoso central; tem ação evidente no núcleo de Onuf (núcleo do pudendo),  sendo  liberada  na  sinapse  e  reabsorvida.  Inibidores  desta  reentrada  da  serotonina  causam  maior  resposta  aos estímulos,  levando  à  maior  resposta  da  musculatura  perineal  e  consequentemente  da  ação  do  esfíncter  externo  (Figura 57.10).

▸ Receptores simpáticos e parassimpáticos Os  receptores  do  sistema  parassimpático  são  intermediados  pela  acetilcolina.  Portanto,  fármacos  anticolinérgicos (parassimpaticolíticos)  têm  ação  de  relaxamento  das  fibras  musculares,  e  os  colinérgicos  (parassimpaticomiméticos) exibem ação de contração. É possível, porém, separar os receptores dos gânglios dos receptores efetores da musculatura, isolando­se  cada  tipo  de  ação.  No  nível  da  musculatura,  existem  os  receptores  colinérgicos  muscarínicos,  e,  junto  aos gânglios,  ocorrem  os  receptores  nicotínicos.  Os  fármacos  colinérgicos  que  aqui  serão  citados  têm,  basicamente,  ação muscarínica e uma fraca ação nicotínica. Para  ação  de  contração  de  uma  fibra,  realiza­se  a  estimulação  de  receptores  alfa  (fibras  simpáticas)  ou  de  receptores colinérgicos  (fibras  parassimpáticas).  Porém,  dependendo  da  localização  desse  receptor,  é  possível  obter  contração  da fibra  muscular  vesical  ou  esfincteriana,  que  exibem  efeito  exatamente  oposto  (respectivamente,  micção  ou  continência). Portanto, o conhecimento exato da localização dos receptores é fundamental para a compreensão de sua resposta. Traçando um plano entre os meatos ureterais, é possível dividir a bexiga em dois compartimentos: o superior (ou corpo vesical) e o inferior,  o  qual  pode  ser  subdividido  em  trígono,  colo  vesical  e  uretra.  No  nível  do  corpo  vesical,  há  grande  número  de receptores colinérgicos e beta­adrenérgicos. No nível inferior, ocorre grande número de receptores alfa­adrenérgicos, beta­ adrenérgicos  e  colinérgicos.  De  modo  geral,  os  receptores  colinérgicos  são  responsáveis  pela  micção,  enquanto  os receptores  alfa­adrenérgicos,  pela  continência  (Figura  57.11).  Existem  fibras  musculares  estriadas  relacionadas  com  a continência (as fibras musculares do assoalho pélvico), em que vários fármacos podem atuar; entretanto, a ação no nível dessas placas motoras será exercida de igual modo sobre toda musculatura esquelética, provocando efeitos colaterais que limitam o uso desses fármacos.

Figura 57.10 ■ Esquema do terminal de serotonina no núcleo de Onuf, indicando que os inibidores da reentrada de serotonina na sinapse, consequentemente, aumentam o tônus da musculatura do esfíncter externo. (Adaptada de Thor, 2004.)

Conforme indica o Quadro 57.1, a resposta clínica obtida com o uso de fármacos pode ser: ■ Aumento da contração vesical ■ Diminuição da contração vesical ■ Aumento da resistência uretral ■ Diminuição da resistência uretral. Assim,  a  atuação  farmacológica  pode  ser  exercida  em  todo  sistema  urinário.  Porém,  como  aplicação  clínica,  o  efeito sobre o sistema urinário inferior deve ser maior que o sistêmico. Exemplos desses fármacos são os anticolinérgicos e os alfabloqueadores. Os fármacos anticolinérgicos atuam  diminuindo  a  resposta  contrátil  vesical.  Na  prática  clínica,  são  muito  utilizados para tratar a hiperatividade detrusora. Como resultado final, determinam diminuição da contração vesical. Como resposta clínica, provocam hiperatividade detrusora com maior volume vesical; assim, causam aumento da capacidade vesical nos pacientes  que  exibem  hiperatividade  detrusora  com  baixo  volume.  O  grande  problema  clínico  da  utilização  desses fármacos  é  seu  efeito  sistêmico.  Ao  lado  do  aumento  da  capacidade  vesical,  provocam  secura  na  boca  (por  ação  nos receptores  das  glândulas  salivares)  e  obstipação  intestinal  (por  ação  sobre  as  fibras  musculares  do  sistema  digestório), sendo esses efeitos extremamente desconfortáveis aos pacientes, levando à interrupção do tratamento. Na  procura  de  uma  ação  eficiente  nos  receptores  muscarínicos  vesicais  sem  ação  nos  receptores  muscarínicos intestinais  ou  das  glândulas  salivares,  novos  fármacos  têm  sido  descritos.  O  Quadro  57.2  mostra  os  antimuscarínicos disponíveis  para  uso  comercial  no  Brasil,  com  o  grau  de  evidência  dos  trabalhos  publicados,  bem  como  o  grau  de recomendação para o seu uso. Os fármacos alfabloqueadores agem  no  nível  dos  receptores  alfa  do  sistema  simpático.  Têm  indicações  de  uso  em pacientes  que  apresentam  obstrução  urinária  decorrente  de  obstrução  prostática.  Relaxando  as  fibras  lisas,  diminuem  a resistência sobre a uretra prostática, facilitando a eliminação da urina. Parecem agir também sobre a sensibilidade uretral, aliviando igualmente os sintomas irritativos (disúria e hiperatividade) nos pacientes obstruídos, mas essa ação ainda não está completamente esclarecida. Em razão de sua ação sistêmica de relaxamento de fibras adrenérgicas, podem agir sobre a musculatura dos vasos sanguíneos, causando hipotensão; por isso, fármacos que tenham ação seletiva na musculatura do sistema urinário com ação específica sobre os receptores alfa 1a vêm sendo pesquisados. Muitos  fármacos  têm  ação  sobre  o  sistema  nervoso  autônomo.  O  Quadro  57.1  indica  alguns  mais  frequentemente utilizados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A  função  vesicuretral  envolve  mecanismos  complexos  que  se  estendem  desde  o  córtex  cerebral  até  a  musculatura vesicuretral, abrangendo mecanismos neurológicos e físicos, o sistema simpático e parassimpático, além de mecanismos voluntários e involuntários. Alterações em qualquer um desses setores implicam distúrbios que podem determinar desde incontinência urinária até repercussões graves da função renal, podendo comprometer não só a qualidade de vida como a própria vida do indivíduo.

Figura 57.11 ■ Localização dos receptores colinérgicos e adrenérgicos no sistema urinário inferior.

Quadro 57.1 ■ Principais fármacos que agem no sistema urinário inferior. 1 – Aumentam a contração vesical: Colinérgicos (parassimpaticomiméticos) Cloreto de betanecol: é administrado por via subcutânea ou oral. Por via subcutânea, pode também ser usado em testes de sensibilidade, possibilitando confirmar o diagnóstico de denervação vesical. Tem pouca ou nenhuma ação em indivíduos normais. Tem maior ação vesical e menor ação intestinal. Não deve ser usado em pacientes obstruídos. A forma injetável não se encontra no mercado farmacêutico nacional Brometo de neostigmina: mostra maior ação intestinal que vesical. Disponível no mercado nacional Betabloqueadores (não têm importância prática) 2 – Diminuem a contração vesical: Anticolinérgicos (parassimpaticolíticos)

Atropina: boa ação anticolinérgica, tendo ação vesical e periférica. Os efeitos sistêmicos limitam o seu uso Brometo de propantelina (Probanthine®) Brometo de emeprônio (Cetiprim®): boa ação anticolinérgica vesical, com ação muscarínica e menor ação nicotínica Oxibutinina: maior eficácia como antiespasmódico de ação vesical (diretamente sobre a musculatura), com menor ação anticolinérgica periférica. Maior ação antimuscarínica, com efeito preferencialmente vesical (na musculatura detrusora) Tolterodina, dariferacina, solifenacina: maior ação vesical que nas glândulas salivares, amenizando o efeito colateral de secura na boca, que é a maior causa de abandono do uso de antimuscarínico Betaestimulantes (adrenérgicos com ação beta) Efedrina: ações alfa e betaestimulantes, com muitos efeitos sistêmicos. Ação alfa evidente; ação beta não tão evidente Imipramina: antidepressivo tricíclico, com ação central antidepressiva e ações alfa e betaestimulantes periféricas, principalmente vesical. Diminui a atividade vesical e, por inibir a reentrada da serotonina, aumenta a resistência do colo vesical. Muito utilizada, inclusive em crianças, para as quais é indicada no tratamento de enurese (incontinência urinária) Isoproterenol: somente ação beta, porém com franca ação nos níveis cardíaco e pulmonar e pouco uso para disfunções vesicais 3 – Aumentam a resistência uretral: Ação alfa­adrenérgica Efedrina, imipramina (ver acima) 4 – Diminuem a resistência uretral: Ação alfabloqueadora Fentolamina: ação alfabloqueadora de curta duração Prazosin: ação alfabloqueadora. Pode ter reação de hipersensibilidade, com hipotensão na primeira dose Terazosin/Doxazosina Tansulosina: alfabloqueador de ação alfa 1a Ação na musculatura esquelética Dantrolene: relaxamento direto de musculatura estriada, implicando relaxamento de musculatura esquelética Diazepam: ação central nível do sistema límbico, do tálamo e do hipotálamo. Ação não muito eficiente sobre o esfíncter estriado; porém, é o fármaco mais utilizado para tratamento de atividade esfincteriana indesejável

Quadro 57.2 ■ Níveis de evidência e grau de recomendação dos principais fármacos antimuscarínicos. Antimuscarínico

Nível de evidência

Grau de recomendação

Solifenacina

1

A

Tolterodina

1

A

Darifenacina

1

A

Propantelina

2

B

Atropina

3

C

Oxibutinina

1

A

Flavoxato

2

D

Nível de evidência: Nível 1 – evidência baseada em ensaios clínicos randomizados ou metanálise de ensaios clínicos  –  ação  fortemente  recomendada.  Nível  2  –  evidência  baseada  em  estudos  prospectivos  não randomizados  –  ação  recomendada.  Nível  3  –  evidência  baseada  em  relatos  de  casos  ou  opinião  de especialistas  –  ação  pouco  recomendada.  Graus  de  recomendação: A  –  baseada  em  um  ou  mais  estudos nível 1. B – a melhor evidência disponível está em nível 2. C – a melhor evidência disponível está em nível 3. D – a melhor evidência disponível está menor que em nível 3 e inclui opinião de especialistas. (Segundo as recomendações de Hunt et al., 2000. Adaptada de Karl­Erik, 2005.) A  compreensão  de  alguns  desses  complexos  mecanismos  tem  permitido  a  realização  de  novos  tratamentos,  até  há pouco  tempo  limitados.  O  desenvolvimento  de  novas  técnicas  para  avaliação  da  função  vesicuretral  vem  favorecendo  a introdução  de  várias  aplicações  práticas,  permitindo  melhor  assistência  aos  pacientes.  Todavia,  vários  assuntos  ainda merecem  mais  estudos,  e  muito  ainda  será  descoberto  e  compreendido  sobre  os  complexos  mecanismos  de  micção  e  de continência urinária.

BIBLIOGRAFIA ABRAMS PH, MARTIN S, GRIFFITHS DJ. The measurement and interpretation of urethral pressures obtained by the method of Brown and Wickham. Br J Urol, 50(1):33­8, 1978. ANDERSSON  KE,  ARNER  A.  Urinary  bladder  contraction  and  relaxation:  physiology  and  pathophysiology.  Physiol Rev, 84(3):935­86, 2004. BIRDER L, DE GROAT W, MILLS I et al. Neural control of the lower urinary tract: peripheral and spinal mechanisms. Neurourol Urodyn, 29(1):128­39, 2010. BIRDER LA, DE GROAT WC. Mechanisms of disease: involvement of the urothelium in bladder dysfunction. Nat Clin Pract Urol, 4(1):46­54, 2007. BLOK BF, WILLEMSEN AT, HOLSTEGE G. A PET study on brain control of micturition in humans. Brain, 120(Pt 1):111­21, 1997. COOLSAET  BL,  VAN  DUYL  WA,  VAN  OS­BOSSAGH  P  et  al.  New  concepts  in  relation  to  urge  and  detrusor activity. Neurourol Urodyn, 12(5):463­71, 1993. D’ANCONA CAL. Aplicações práticas da urodinâmica. In: DÁNCONA CAL, NETTO Jr NR (Eds.). Avaliação Urodinâmica. 3. ed. Atheneu, São Paulo, 2001. DE GROAT WC. Integrative control of the lower urinary tract: preclinical perspective. Br J Pharmacol, 147(S2):525­40, 2006. DING  YQ,  WANG  D,  XU  JQ  et  al.  Direct  projections  from  the  medial  preoptic  area  to  spinally­projecting  neurons  in Barrington’s nucleus: an electron microscope study in the rat. Neurosci Lett, 271(3):175­8, 1999. DRAKE MJ. The integrative physiology of the bladder. Ann R Coll Surg Engl, 89(6):580­5, 2007.

DRAKE MJ, HEDLUND P, ANDERSSON KE et al. Morphology, phenotype and ultrastructure of fibroblastic cells from normal and neuropathic human detrusor: absence of myofibroblast characteristics. J Urol, 169(4):1573­6, 2003. FOWLER CJ. Neurological disorders of micturition and their treatment. Review. Brain, 122(Pt7):1213­31, 1999. HUNT DL, JAESCHKE R, McKIBBON KA. Users’ guides to the medical literature: XXI. Using electronic health information resources in evidence­based practice. Evidence­Based Medicine Working Group. JAMA, 283(14):1875­9, 2000. KARL­ERIK  AE.  Treatment  of  the  overactive  bladder  syndrome  and  detrusor  overactivity  with  antimuscarinic drugs. Continence, 1:1­8, 2005 LIU RP. Laminar origins of spinal projection neurons to the periaqueductal gray of the rat. Brain Res, 264(1):118­22, 1983. MARSON L, MURPHY AZ. Identification of neural circuits involved in female genital responses in the rat: a dual virus and anterograde tracing study. Am J Physiol Regul Integr Comp Physiol, 291(2):R419­28, 2006. MORRISON  J,  BIRDER  LA,  CRAGGS  M  et  al.  Neural  control.  In:  ABRAMS  P,  CARDOZO  L,  KHOURY  S  et  al. (Eds.). Incontinence. Vol. 1. Plymbridge Distributors, Plymouth, 2006. NISHIZAWA O, EBINA K, SUGAYA K et al. Effect of cerebellectomy on reflex micturition in the decerebrate dog as determined by urodynamic evaluation. Urol Int, 44(3):152­6, 1989. PANDITA  RK,  NYLEN  A,  ANDERSSON  KE.  Oxytocin­induced  stimulation  and  inhibition  of  bladder  activity  in  normal, conscious rats: influence of nitric oxide synthase inhibition. Neuroscience, 85(4):1113­9, 1998. PETROS  PE,  ULMSTEN  UI.  An  integral  theory  and  its  method  for  the  diagnosis  and  management  of  female  urinary incontinence. Scand J Urol Nephrol Suppl, 153:1­93, 1993. REICHLING DB, KWIAT GC, BASBAUM AI. Anatomy, physiology and pharmacology of the periaqueductal gray contribution to antinociceptive controls. Prog Brain Res, 77:31­46, 1988. THOR  KB.  Targeting  serotonin  and  norepinephrine  receptors  in  stress  urinary  incontinence.  Int  J  Gynecol  Obstet,  86(Suppl 1):38­52, 2004. YOSHIMURA N, DE GROAT WC. Neural control of the lower urinary tract. Int J Urol, 4(2):111­25, 1997.

58 Visão Geral do Sistema Digestório 59 Regulação Neuro­Hormonal do Sistema Digestório 60 Motilidade do Sistema Digestório 61 Secreções do Sistema Digestório 62 Digestão e Absorção de Nutrientes Orgânicos 63 Absorção Intestinal de Água e Eletrólitos



Formação, processos e funções



Bibliografia

FORMAÇÃO, PROCESSOS E FUNÇÕES O  sistema  digestório  é  formado  por  órgãos  ocos  em  série  que  se  comunicam  nas  duas  extremidades  com  o  meio ambiente, constituindo o denominado trato gastrintestinal (TGI),  e  pelos órgãos anexos,  que  lançam  suas  secreções  no lúmen  do  TGI.  Os  órgãos  do  TGI  são:  cavidade  oral,  faringe,  esôfago,  intestino  delgado,  intestino  grosso  ou  cólon,  e ânus.  Estes  órgãos  são  delimitados  entre  si  por  esfíncteres.  O  esfíncter  esofágico  superior,  ou  cricofaríngeo,  delimita  a faringe  da  porção  superior  do  esôfago,  que  é  delimitada  do  estômago  pelo  esfíncter  esofágico  inferior.  O  estômago  é delimitado  do  intestino  delgado  pelo  piloro,  e  o  intestino  delgado,  do  cólon  pelo  esfíncter  ileocecal.  A  porção  distal  do cólon diferencia­se no reto e no ânus com seus dois esfíncteres, o interno e o externo. No sentido cefalocaudal (ou aboral), os  órgãos  anexos  ao  TGI  são:  glândulas  salivares,  pâncreas,  fígado  e  vesícula  biliar,  que  armazena  e  concentra  a  bile secretada pelo fígado. A secreção das glândulas salivares é lançada na cavidade oral e as secreções pancreática e biliar, no intestino delgado (Figura 58.1). As  secreções  lançadas  no  lúmen  do  TGI  pelos  órgãos  anexos,  mais  as  produzidas  pelo  estômago  e  pelos  intestinos delgado  e  grosso,  processam  quimicamente  o  alimento  ingerido  na  cavidade  oral.  Este  processamento  é  facilitado  pela motilidade  do  TGI,  que  propicia  mistura,  trituração  e  progressão  do  alimento  no  sentido  cefalocaudal.  O  alimento  é reduzido  a  moléculas  que  podem  ser  absorvidas,  através  do  intestino  delgado,  para  o  meio  intersticial  vascular.  O  TGI promove a excreção anal dos produtos dos alimentos que não foram processados ou absorvidos. Os  alimentos  orgânicos  da  dieta  ou  macronutrientes  (assim  denominados  por  serem  requeridos  em  quantidades relativamente  grandes),  os  carboidratos,  as  gorduras  e  as  proteínas  são  quimicamente  quebrados,  por  hidrólise,  pelas enzimas  lançadas  no  lúmen  do  TGI  ou  pelas  enzimas  luminais.  As  enzimas  luminais  são  secretadas  por  glândulas salivares,  estômago  e  pâncreas  exócrino.  As  gorduras  da  dieta,  os  triacilgliceróis,  os  fosfolipídios  e  os  ésteres  de colesterol, após a hidrólise luminal, originam ácidos graxos livres, fosfolipídios e colesterol, e são transportados através do epitélio do intestino delgado para a linfa e para a circulação sistêmica. Os carboidratos e as proteínas, além da hidrólise efetuada  pelas  enzimas  luminais,  necessitam,  ainda,  serem  hidrolisados  pelas  enzimas  da  membrana  luminal  dos enterócitos  do  delgado,  denominadas  enzimas  da  borda  em  escova.  Os  produtos  finais  da  hidrólise  dos  carboidratos  são hexoses,  e  os  das  proteínas  são,  além  de  aminoácidos  livres,  di,  tri  e  tetrapeptídios;  esses  produtos  são  absorvidos  no delgado. O  sistema  digestório  trabalha  em  íntima  relação  com  o  sistema  circulatório,  o  qual  conduz  os  produtos  da  hidrólise dos  macronutrientes  para  o  fígado  e  para  os  diferentes  tecidos,  onde  serão  o  substrato  energético  e  plástico  das  células. Neste aspecto, o sistema digestório participa da manutenção do equilíbrio energético do organismo.

As  vitaminas  e  os  eletrólitos  ingeridos  são  considerados  micronutrientes,  pois  são  requeridos  em  quantidades  muito pequenas. Diariamente, em torno de 2 ℓ de água são ingeridos e mais 7 ℓ secretados para o interior do TGI, o que perfaz cerca  de  9  ℓ   de  água  contidos  no  lúmen  do  TGI.  Por  dia,  ingerem­se  5  a  10  g  de  NaCl  e  lançam­se  no  lúmen  do  TGI aproximadamente  25  g.  Considerando­se  que  os  7  ℓ   de  água  secretados  correspondem  a  cerca  de  25%  da  água  total  do organismo e que 25 g de NaCl equivalem a aproximadamente 15% do NaCl total do organismo, infere­se que o sistema digestório também participa da manutenção do equilíbrio hidreletrolítico do organismo, embora menos significantemente que  o  sistema  renal.  Assim,  o  sistema  digestório,  em  conjunto  com  o  sistema  circulatório,  fornece  os  substratos energéticos e plásticos, água, íons e coenzimas às células teciduais. O  sistema  digestório  apresenta  quatro  processos  básicos:  motilidade,  secreção,  digestão,  absorção  intestinal  e excreção. Estes  processos  são  altamente  coordenados  pelos  sistemas  neuroendócrinos  intrínsecos  do  sistema  digestório  e  do organismo como um todo. A motilidade é efetuada pela musculatura do TGI e propicia mistura, trituração e progressão cefalocaudal dos nutrientes, além de excreção dos produtos não digeridos e não absorvidos. As secreções compreendem as  sintetizadas  nos  órgãos  anexos  ao  TGI,  bem  como  as  produzidas  pelo  estômago  e  intestino;  elas  hidrolisam, enzimaticamente,  os  nutrientes,  gerando  ambientes  de  pH,  de  tonicidade  e  de  composição  eletrolítica  adequados  para  a digestão dos nutrientes orgânicos. A digestão refere­se à hidrólise enzimática dos nutrientes orgânicos, transformando­os em  moléculas  que  possam  atravessar  a  parede  do  TGI  e  ser  absorvidas  através  de  sua  mucosa  de  revestimento  interno. A absorção consiste  no  conjunto  de  processos  resultantes  de  transporte  dos  nutrientes  hidrolisados,  água,  eletrólitos  e vitaminas,  do  lúmen  do  TGI,  através  do  epitélio  intestinal,  para  a  circulação  linfática  e  sistêmica.  A  absorção  ocorre, predominantemente,  no  intestino  delgado,  o  qual  absorve  todos  os  produtos  da  hidrólise  dos  nutrientes  orgânicos,  as vitaminas  e  a  maior  parte  da  água  e  eletrólitos.  A  absorção  no  delgado  se  dá,  preferencialmente,  no  duodeno  e  porção proximal  do  jejuno  (nos  100  cm  iniciais).  O  íleo  absorve  alguns  substratos,  como  os  sais  bilaires  e  a  vitamina  B12.  O cólon absorve um menor volume de água, todos os eletrólitos que o alcançam, alguns produtos da fermentação bacteriana, assim como carboidratos que não foram digeridos e absorvidos no delgado, transformados em ácidos graxos voláteis. O cólon secreta K+ e HCO3– e funciona como um reservatório do material fecal, preparando­o para a excreção (Figura 58.2).

Figura 58.1 ■ Esquema do sistema digestório. Note o trato gastrintestinal com seus diferentes órgãos, esfíncteres, glândulas e órgãos anexos.

A  mucosa  de  revestimento  interno  do  TGI  é  uma  das  interfaces  entre  o  meio  ambiente  e  o  meio  interno  do organismo. O compartimento luminal do TGI comunica­se com o meio ambiente nas suas duas extremidades, a oral e a aboral (ou anal),  e,  através  da  mucosa  de  revestimento  interno,  comunica­se  também  com  o  meio  intersticial­vascular  (ou  meio interno do organismo). A composição do fluido luminal, assim, depende da ingesta, das trocas que são efetuadas entre o compartimento luminal e o meio interno do organismo, bem como da excreção fecal. O conteúdo luminal é, desse modo, um  fluido  extracorpóreo  porque,  embora  contido  no  lúmen  do  TGI,  comunica­se  diretamente  com  o  meio  exterior  e depende dele. Portanto, a mucosa de revestimento interno do TGI é uma das interfaces do organismo, como são também interfaces o epitélio dos tratos respiratório e renal e a pele. Além  das  funções  de  nutrição,  de  manutenção  da  homeostase  energética  e  de  participação  da  homeostase hidreletrolítica do organismo, o sistema digestório tem também importante função imunológica. Existe  um  extenso  sistema  imunológico  ao  longo  do  TGI,  denominado  GALT  (gut  associated  lymphoid  tissue), representado por agregados de tecido linfoide, como as placas de Peyer, e uma população difusa de células imunológicas. As  placas  de  Peyer  são  folículos  elípticos  de  tecido  linfoide  relativamente  grandes  (1  cm  de  largura  por  5  cm  de comprimento), localizados na lâmina própria, mais frequentes nas porções distais do íleo. As células linfoides da mucosa, lâmina própria e submucosa são linfócitos, mastócitos, macrófagos, eosinófilos, leucócitos polimorfonucleados etc. Esse sistema  imunológico  é  importante,  uma  vez  que  o  TGI  tem  não  só  a  maior  área  do  organismo,  como  também  contato direto com agentes infecciosos e tóxicos. A maior parte das células produtoras de imunoglobulinas do sistema digestório localiza­se  no  intestino  (80%).  O  GALT,  além  de  proteger  o  sistema  digestório  contra  agentes  infecciosos  exógenos  –

bactérias, vírus e patógenos em geral – também o faz de modo imunológico de sua flora bacteriana, que normalmente se localiza no intestino grosso, sendo mais concentrada no ceco. Os  mediadores  imunológicos  secretados  pelo  GALT  são:  histamina,  leucotrienos,  prostaglandinas,  citocininas, imunoglobulinas e outros. Estes mediadores difundem­se dos seus locais de síntese para os diferentes tecidos do sistema digestório,  agindo  como  parácrinos  que  modulam  os  processos  de  motilidade,  secreção  e  absorção.  São,  também, importantes nas doenças inflamatórias do TGI, como na doença celíaca e na de Crohn. A parede do TGI tem uma estrutura histológica básica em toda a sua extensão. A  análise  da  parede  do  TGI,  no  sentido  do  lúmen  para  a  porção  contraluminal  (serosa),  revela  as  seguintes estruturas:  mucosa,  submucosa,  tecido  muscular  (referido  como  muscular  externa),  plexos  nervosos intramurais e serosa (Figura 58.3). A mucosa compreende: (a) o epitélio – que faz contato com o fluido luminal; (b) a lâmina própria – logo abaixo do epitélio, e (c) a muscular da mucosa – mais internamente localizada na parede do TGI (Figura 58.4). O epitélio do TGI é monoestratificado e heterocelular. O  epitélio  do  TGI  apresenta  vários  tipos  celulares,  cujos  números  e  funções  variam  conforme  suas  localizações  ao longo do TGI. Estes tipos celulares são: células caliciformes ou goblet cells – secretoras de mucina, encontradas ao longo de todo o TGI; células absortivas superficiais –  encontradas  no  delgado  e  no  cólon,  absorvem  água,  íons  e  produtos  da hidrólise  dos  macronutrientes;  células  das  criptas  –  indiferenciadas,  mais  profundamente  localizadas  nas  bases  das vilosidades  do  delgado  e  nas  dobras  intestinais  do  cólon,  predominantemente  secretoras  de  eletrólitos  e  de  água;  células que sintetizam as enzimas da borda em escova – características do epitélio do delgado; células endócrinas – secretoras de hormônios e parácrinos; células do sistema imunológico e células neurais.

Figura 58.2 ■ Esquema  que  indica  os  principais  processos  do  sistema  digestório:  motilidade,  secreção,  digestão,  absorção  e excreção. Note a relação do sistema digestório com a circulação porta e sistêmica. Setas azuis, absorção gastrintestinal; setas vermelhas, secreção gastrintestinal.

Figura 58.3 ■ Representação esquemática de um corte transversal do intestino, que indica a estrutura de sua parede.

A lâmina própria localiza­se logo abaixo do epitélio. É um tecido conjuntivo, que contém fibras elásticas e colágenas de sustentação do epitélio, várias células do sistema imunológico, nodos linfáticos, glândulas e tecido neuroendócrino. É uma  região  ricamente  vascularizada,  com  uma  rede  de  capilares  sanguíneos,  que  captam  as  substâncias  absorvidas  pelo epitélio,  e  com  um  capilar  linfático  central  (capilar  lácteo),  que  apreende  especificamente  os  produtos  da  hidrólise  dos lipídios. A  muscular  da  mucosa  é  uma  camada  de  fibras  musculares  lisas,  com  espessura  de  3  a  4  células,  que,  ao  se contraírem, provocam dobras da mucosa e da submucosa. A  submucosa  é  um  tecido  conjuntivo  frouxo  que  sustenta  a  mucosa,  e  tem  fibras  elásticas  e  colágenas,  tecido glandular,  células  endócrinas,  vasos  sanguíneos  e  linfáticos,  troncos  nervosos,  fibras  amielínicas,  além  de  células imunológicas. A muscular externa é formada de duas camadas de fibras musculares lisas. A mais interna, a musculatura circular, tem as fibras dispostas perpendicularmente em relação ao eixo do TGI. Sua contração diminui o lúmen do TGI, segmentando o conteúdo  luminal,  o  que  facilita  sua  mistura  com  as  secreções  luminais.  Na  camada  mais  externa,  a  musculatura longitudinal apresenta fibras dispostas longitudinalmente em relação ao eixo do TGI. Quando estas se contraem, encurtam o TGI, movimentando o conteúdo luminal no sentido do seu comprimento. A contração simultânea das duas musculaturas propicia mistura, circulação e propulsão do conteúdo luminal. A musculatura circular é mais desenvolvida e mais inervada do  que  a  longitudinal.  No  TGI  só  existe  musculatura  estriada  na  cavidade  oral,  faringe,  terço  superior  do  esôfago  e  no esfíncter anal externo. Os plexos nervosos são agregados ganglionares de corpos celulares de neurônios motores e sensoriais, fibras nervosas amielínicas, interneurônios e sinapses entre fibras sensoriais aferentes e fibras motoras e secretoras eferentes. Os que se localizam  na  submucosa,  próximos  à  musculatura  circular,  são  chamados  de plexos  submucosos  (ou  de  Meissner).  Os localizados entre as duas camadas musculares – a circular e a longitudinal – são os plexos mioentéricos (ou de Auerbach), mais desenvolvidos que os submucosos.

Figura 58.4 ■ Esquema  que  indica  que  o  epitélio  intestinal  é  monoestratificado  e  heterocelular.  Note  a  lâmina  própria  com  o GALT (gut associated lymphoid tissue).

A serosa, também denominada adventícia, é o tecido mais externo do TGI e consiste em tecido conjuntivo com células mesoteliais escamosas.

Resumo 1. O TGI  é  formado  por:  cavidade  oral,  faringe,  esôfago,  estômago,  intestinos  delgado  e  grosso,  reto  e ânus. 2. Os órgãos anexos ao TGI são: glândulas salivares, pâncreas, vesícula biliar e fígado. 3. Os  processos  funcionais  do  sistema  digestório  são:  digestão  –  hidrólise  dos  macronutrientes  pelas enzimas  digestivas  luminais  e  da  borda  em  escova  do  delgado; secreção –  de  água,  íons  e  enzimas digestivas  pelas  glândulas  salivares  e  gástricas,  pelo  pâncreas  e  pela  vesícula  biliar;  absorção intestinal – transporte dos produtos da hidrólise dos macronutrientes, água, íons e vitaminas do lúmen intestinal para as correntes sanguínea e linfática, através da mucosa intestinal, e excreção – eliminação fecal dos produtos não digeridos e/ou não absorvidos. 4. A  função  imunológica  do  sistema  digestório  é  efetuada  por  células,  nodos  e  gânglios  linfáticos secretores  de  substâncias  imunológicas,  que  em  conjunto  formam  o  GALT  (gut  associated  lymphoid tissue). 5. A  parede  do  TGI  tem:  mucosa  –  com  epitélio,  lâmina  própria  e  muscular  da  mucosa;  submucosa; muscular  externa  –  formada  pelas  musculaturas  longitudinal  e  circular;  plexos  intramurais ganglionares  –  mioentérico  e  submucoso;  plexos  intramurais  secundários  e  terciários  aganglionares, e serosa.

BIBLIOGRAFIA BERNE RM, LEVY MN. Physiology. 4. ed. Mosby Inc., St. Louis, 1998. BERNE RM, LEVY MN, KOEPPEN BM et al. Physiology. 4. ed. Mosby Inc., St. Louis, 2004. BINDER HJ. Organization of the gastrointestinal system. In: BORON WF, BOULPAEP EL. Medical Physiology. W.B. Saunders Co., Philadelphia, 2005. JOHNSON LR. Gastrointestinal Physiology. 6. ed. The Mosby Physiology Monograph Series, 2001. JOHNSON LR (Ed.). Physiology of Gastrointestinal Tract. 3. ed. Raven, New York, 1997.



Sistema nervoso entérico

■ ■

Hormônios parácrinos e neurotransmissores do sistema digestório Bibliografia

SISTEMA NERVOSO ENTÉRICO O sistema digestório tem um sistema nervoso intrínseco autônomo com número de células tão grande quanto o da medula espinal. O  sistema  digestório  é  inervado  por  uma  rede  neural  localizada  na  parede  do  trato  gastrintestinal  (TGI), denominada sistema nervoso entérico (SNE) ou intrínseco. Esta rede neural intramural é não só bastante complexa como também intrincada e tem um número de neurônios (cerca de 108) semelhante ao existente na medula espinal. O  SNE  é  formado  pelos plexos  ganglionares  maiores –  o  submucoso  e  o  mioentérico,  que  se  intercomunicam  –  e por plexos aganglionares secundários e terciários – que se comunicam com os plexos ganglionares por feixes de fibras nervosas, conforme mostra a Figura 59.1. O  SNE  é  autônomo  e  capaz  de  regular  todas  as  funções  motoras,  secretoras  e  endócrinas  do  sistema  digestório, mesmo  na  ausência  do sistema  nervoso  autônomo  (SNA)  ou  extrínseco.  Os  neurônios  dos  plexos  intramurais  do  SNE fazem sinapses com fibras nervosas aferentes e eferentes do SNA, que desempenham função modulatória sobre o SNE. Os interneurônios do SNE fazem sinapses entre fibras sensoriais aferentes de receptores sensoriais da parede do TGI e  neurônios  eferentes  motores  ou  secretores  que  conduzem  a  informação  para  o  TGI.  As  vias  neurais  envolvidas  podem ser  multissinápticas.  Muitos  peptídios  neurotransmissores  e  neuromoduladores  (que  regulam  a  atividade  dos neurotransmissores) do SNI já foram identificados. O  sistema  nervoso  autônomo  (SNA)  faz  sinapses  nos  plexos  do  sistema  nervoso  entérico  (SNE),  modulando­o através de nervos parassimpáticos e simpáticos. As fibras neurais do SNA, parassimpático e simpático, fazem sinapses com os interneurônios dos plexos intramurais (mioentérico e submucoso) ou terminam nos plexos, modulando a atividade do SNE. A inervação parassimpática do  sistema  digestório  é  efetuada  pelo nervo vago (X  par  de  nervos  cranianos),  desde  o esôfago  até  o  cólon  transverso  inclusive,  e  pelo nervo pélvico,  que  inerva  o  TGI  desde  o  cólon  sigmoide  até  o  esfíncter anal interno. Estes nervos são constituídos de 75% de fibras aferentes e o restante, de fibras eferentes. As fibras aferentes conduzem  as  informações  sensoriais  dos  mecano­  e  quimiorreceptores  do  sistema  digestório  para  a  medula  cefálica  e sacral, e as fibras eferentes conduzem as informações da medula cefalossacral para o sistema digestório. As  fibras  eferentes  parassimpáticas  pré­sinápticas  são  relativamente  longas;  provêm  da  medula  cefálica  e  sacral, fazendo  sinapses  com  neurônios  localizados  nos  plexos  intramurais.  Destes,  partem  as  fibras  pós­sinápticas  ou  pós­

ganglionares,  relativamente  mais  curtas,  para  musculatura,  glândulas,  ductos  e  vasos  sanguíneos  do  sistema  digestório. As  fibras  parassimpáticas  pós­sinápticas  são  predominantemente  colinérgicas,  ou  seja,  o  neurotransmissor  é  a acetilcolina.  A  inervação  pós­sináptica  colinérgica  é,  em  geral,  excitatória,  aumentando  a  motilidade,  as  secreções  e  o fluxo  sanguíneo  do  sistema  digestório.  Há,  também,  fibras  parassimpáticas  pós­sinápticas  inibitórias,  mediadas  por neuropeptídios,  como  o  VIP  (peptídio  vasoativo  intestinal),  a  substância  P,  o  óxido  nítrico  (NO),  ou  por  neuropeptídios ainda não identificados. Informações adicionais sobre as ações e origens dos neurotransmissores do sistema digestório são relatadas mais adiante e no Quadro 59.1.

Figura 59.1 ■ Representação esquemática da rede neural intrínseca do trato gastrintestinal, que mostra os plexos intramurais principais ganglionares (mioentérico e submucoso) e os secundários e terciários aganglionares. A. Corte longitudinal. B. Corte transversal. (Adaptada de Berne e Levy, 1993.)

As fibras eferentes simpáticas pré­sinápticas são relativamente curtas, emergem da medula toracolombar, atravessam a  cadeia  ganglionar  paravertebral  e  fazem  sinapses  nos  gânglios  simpáticos  celíaco,  mesentéricos  superior  e  inferior  e hipogástricos  superior  e  inferior.  Destes  gânglios,  partem  as  fibras  pós­sinápticas,  relativamente  mais  longas,  para  o sistema digestório. Poucas destas fibras terminam diretamente na musculatura e glândulas do sistema digestório. Muitas o fazem  nas  fibras  musculares  lisas  dos  vasos  sanguíneos,  acarretando  vasoconstrição  e  redução  do  fluxo  sanguíneo  em vários  territórios  do  sistema  digestório.  A  grande  maioria  das  fibras  pós­sinápticas  simpáticas  termina  nos  plexos intramurais,  regulando  os  seus  circuitos  neurais.  O  neurotransmissor  simpático  das  fibras  pós­sinápticas  eferentes  é a norepinefrina, e, de um modo geral, a estimulação simpática para o sistema digestório causa diminuição da motilidade e das secreções glandulares, secundariamente à vasoconstrição. Cerca de 50% das fibras simpáticas são aferentes. A Figura 59.2 esquematiza a inervação parassimpática e simpática do sistema digestório. A faringe e o esfíncter anal externo, que têm musculatura estriada, são inervados por nervos somáticos. Esse esfíncter é inervado pelo nervo pudendo.

Quadro 59.1 ■ Neurotransmissores e neuromoduladores do sistema digestório. Neurotransmissores

Origens

Ações no sistema digestório

Acetilcolina (ACh)

SNA parassimpático,

Contração da musculatura lisa

SNE

Relaxamento do esfíncter pilórico Aumentos das secreções: salivar, gástrica, biliar e enzimática do pâncreas

Aumento de fluxo sanguíneo do sistema digestório Efeito trófico glandular Norepinefrina (NE)

SNA simpático

Relaxamento da musculatura lisa Contração do esfíncter pilórico Efeito bifásico sobre a secreção salivar Vasoconstrição e diminuição secundária das secreções Efeito trófico sobre as glândulas salivares

Peptídio vasoativo intestinal (VIP)

SNA parassimpático, SNE

Relaxamento da musculatura Relaxamento do esfíncter esofágico inferior Aumento da secreção pancreática

Peptídio liberador de gastrina (PLG) ou

SNA parassimpático

bombesina

(vago no estômago)

Encefalinas (opioides)

SNA parassimpático,

Aumento da liberação de gastrina

Contração da musculatura lisa do TGI

SNE Óxido nítrico (NO)

SNA parassimpático,

Relaxamento da musculatura

SNE Neuropeptídio Y (NPY)

SNE

Relaxamento da musculatura lisa

Substância P

SNA parassimpático

Contração da musculatura lisa Aumento da secreção salivar

SNA, sistema nervoso autônomo; SNE, sistema nervoso entérico; TGI, trato gastrintestinal.

▸ Reflexos longos e curtos (intramurais) no sistema digestório Os receptores sensoriais (mecano, quimio e osmorreceptores) localizados na parede do TGI, quando estimulados pela chegada  do  alimento,  enviam  impulsos  aferentes  ao  SNC,  via  nervos  vagos  ou  pélvicos.  Dos  corpos  celulares  destes nervos,  localizados  na  medula  espinal,  provêm  as  respostas  eferentes  transmitidas,  em  grande  parte,  pelos  mesmos nervos. Dos plexos, emergem as fibras pós­sinápticas que vão inervar a musculatura e as glândulas do sistema digestório. Os reflexos mediados deste modo são chamados de reflexos longos, uma vez que têm os corpos celulares dos neurônios aferentes  localizados  no  SNC.  Se  as  vias  aferentes  e  eferentes  forem  do  nervo  vago,  denominam­se  reflexos  longos vagovagais (Figura 59.3).

Figura 59.2 ■ Representação esquemática do sistema nervoso autônomo (SNA) extrínseco parassimpático e simpático eferente para o sistema digestório e sua inter­relação com o sistema nervoso entérico (SNE) ou intrínseco.

Quando as vias aferentes dos receptores sensoriais, localizados na parede do sistema digestório, fazem sinapses com corpos  celulares  de  interneurônios  dos  plexos  intramurais,  portanto  dentro  do  TGI,  trata­se  de  um  reflexo  curto  ou intramural. Dos plexos partem as fibras pós­sinápticas para a musculatura e as glândulas (Figura 59.4). A Figura 59.5 mostra a circuitaria neuronal de um reflexo curto peristáltico. Fibras ascendentes de mecanorreceptores sensoriais,  na  parede  do  TGI,  fazem  sinapses  com  interneurônios  nos  plexos  intramurais,  de  onde  partem  fibras  pós­ sinápticas eferentes para a musculatura, provocando contração oral e relaxamento distal. A contração é mediada por fibras colinérgicas  ou  por  um  neurotransmissor  denominado  substância  P,  e  o  relaxamento,  por  fibras  vipérgicas  ou  que  têm  o NO  como  neurotransmissor.  Desta  maneira,  o  conteúdo  luminal  é  segmentado  pela  contração  oral  e  propelido  para  o segmento  vizinho,  distalmente  localizado  e  relaxado.  A  resposta  peristáltica  foi  primeiramente  descrita  por  Bayliss  e Starling. Ela é conhecida como lei do intestino.

Figura 59.3 ■ Reflexo longo vagovagal.

Figura 59.4 ■ Reflexo curto ou intramural.

Resumo Sistema nervoso entérico 1. Inervação  intrínseca:  plexos  ganglionares  e  aganglionares  intercomunicantes.  É  autônoma,  mas modulada pelo SNA, e tem cerca de 108 neurônios. 2. SNA parassimpático Fibras pré­ganglionares eferentes: longas, emergem da medula cefalocaudal via nervos vago e pélvico, respectivamente. Sinapses: nos gânglios intramurais. Fibras pós­sinápticas eferentes: curtas, dos gânglios intramurais para musculatura, glândulas e ductos do  sistema  digestório.  Neurônios:  colinérgicos  e  peptidérgicos.  Neurotransmissores:  acetilcolina (excitatória), substância P, VIP e NO (inibitórios). Inervação  parassimpática  colinérgica:  excitatória,  aumenta  a  motilidade,  as  secreções  e  o  fluxo sanguíneo do sistema digestório. Inervação parassimpática vipérgica ou mediada pelo NO: inibitória. Fibras aferentes: 75%, correm junto aos nervos vago e pélvico. 3. SNA simpático Fibras  pré­ganglionares  eferentes:  curtas,  emergem  da  medula  toracolombar.  Sinapses:  nos  plexos intratorácicos (celíacos) e intra­abdominais (mesentéricos e hipogástricos). Fibras  pós­sinápticas  (ou  pós­ganglionares)  eferentes  noradrenérgicas:  a  maioria  termina  nos  plexos intramurais, algumas nos vasos, outras na muscular da mucosa. Inervação  simpática  noradrenérgica:  inibitória,  reduz  a  motilidade,  causa  vasoconstrição  e  diminui  as secreções, secundariamente à vasoconstrição no sistema digestório. Neurotransmissor: norepinefrina. Reflexo longo vagovagal: vias aferentes e eferentes vagais. Corpo celular no SNC. Reflexo curto intramural: Corpo celular nos plexos intramurais.

Figura  59.5  ■   Reflexo  curto  peristáltico  (intramural).  ACh,  acetilcolina;  Subs.  P,  substância  P  (neuropeptídio);  NO,  óxido nítrico; VIP, peptídio vasoativo intestinal; célula EC, célula enterocromafim.

HORMÔNIOS PARÁCRINOS E NEUROTRANSMISSORES DO SISTEMA DIGESTÓRIO O  sistema  digestório  é  regulado  tanto  por  mecanismos  neurais  intrínsecos,  como  por  mecanismos  endócrinos  e parácrinos intrínsecos. As  funções  do  sistema  digestório,  além  de  serem  reguladas  de  maneira  autônoma  pelo  SNE,  também  o  são  por hormônios  e  parácrinos  sintetizados  no  próprio  TGI.  O  esquema  apresentado  na Figura  59.6  ilustra  os  mecanismos  de ação  dos  hormônios,  parácrinos  e  neurotransmissores  do  sistema  digestório.  Os  mecanismos  regulatórios  extrínsecos  e intrínsecos atuam em conjunto, coordenando as funções do sistema digestório, conforme esquematizado na Figura 59.7.

Figura 59.6 ■ Representação esquemática da regulação endócrina, parácrina e neurócrina do sistema digestório. CA,  célula­ alvo; CE, célula endócrina; H, hormônio; NT, neurotransmissor; TA, terminal axônico; VS, vaso sanguíneo.

Figura  59.7  ■   Representação  esquemática  da  interação  do  sistema  nervoso  com  o  endócrino  e/ou  parácrino,  no  sistema digestório.

Os  neurócrinos  (ou  neurotransmissores)  do  sistema  digestório  são  sintetizados  nos  corpos  celulares  dos  neurônios pré­sinápticos  eferentes  do  SNA,  e  armazenados  em  vesículas,  nos  terminais  pré­sinápticos.  Em  resposta  a  uma estimulação,  quando  os  potenciais  de  ação  atingem  os  terminais  pré­sinápticos,  as  vesículas  sofrem  exocitose  na membrana e liberam o neurotransmissor na fenda sináptica. Os neurotransmissores difundem­se na fenda e ligam­se aos receptores  específicos  dos  neurônios  pós­sinápticos,  ativando  canais  iônicos,  diretamente,  ou  via  segundos  mensageiros intracelulares, desencadeando os potenciais excitatórios ou inibitórios pós­sinápticos. Os  neurotransmissores  das  fibras  pré­sinápticas  parassimpáticas  eferentes  do  SNA  para  o  sistema  digestório  são: acetilcolina, óxido nítrico (NO), encefalinas e os peptídios gastrintestinais: peptídio vasoativo intestinal (VIP), substância P, neuropeptídio Y (NPY) e o peptídio liberador de gastrina (PLG) ou bombesina. A  acetilcolina  é  o  neurotransmissor  tanto  das  fibras  pré­,  como  das  pós­sinápticas  eferentes  parassimpáticas  e  das fibras do SNE. A norepinefrina é o neurotransmissor das fibras pós­sinápticas simpáticas eferentes. As ações e as origens dos neurotransmissores estão resumidas no Quadro 59.1. Hormônios secretados por células endócrinas do TGI: hormônios gastrintestinais. Estes hormônios são peptídios sintetizados por células endócrinas isoladas ou agrupadas, que se distribuem na parede do  TGI.  As  células  endócrinas  não  são  concentradas  em  glândulas.  Os  peptídios  hormonais  são  levados,  pela  circulação porta, ao fígado e, posteriormente, pela circulação sistêmica, às células­alvo, as quais têm receptores específicos para cada hormônio.  As  células­alvo  localizam­se  no  próprio  sistema  digestório.  O  peptídio  inibidor  gástrico  (GIP)  ou  peptídio insulinotrópico dependente de glicose age, também, sobre as células β do pâncreas, promovendo a secreção de insulina. Os  neuropeptídios  que  têm  o  status  de  hormônios  gastrintestinais  são:  secretina,  colecistocinina  (CCK),  gastrina, peptídio inibidor gástrico (GIP), motilina e somatostatina (esta age como hormônio e parácrino). A secretina e o GIP são polipeptídios  estruturalmente  similares  ao  glucagon,  e  fazem  parte  da  sua  família,  denominada  família  da  secretina­ glucagon.  A  secretina  foi  o  primeiro  hormônio  descrito.  É  sintetizada  pelas  células  S  da  mucosa  do  delgado,  mais abundantes  no  duodeno.  Sua  secreção  é  estimulada,  principalmente,  em  resposta  ao  pH  ácido  do  quimo  gástrico  que alcança o duodeno. Suas ações são várias e sempre no sentido de neutralizar o quimo no delgado; por isso, é chamada de

antiácido  fisiológico.  Suas  ações  são:  (a)  estimulação  da  secreção  de  HCO3– pelas  células  dos  ductos  pancreáticos;  (b) estimulação  da  secreção  de  HCO3–  pelas  células  dos  ductos  biliares;  (c)  inibição  da  secreção  de  HCl  pelas  células oxínticas gástricas; (d) inibição da secreção de gastrina pelas células gástricas do antro gástrico (células G ou secretoras de  gastrina);  (e)  diminuição  do  efeito  trófico  da  gastrina  sobre  a  mucosa  gástrica;  (f)  contração  do  piloro,  diminuindo  a velocidade de esvaziamento gástrico, e (g) efeito trófico sobre o tecido exócrino do pâncreas (Quadro 59.2). O GIP (peptídio inibidor gástrico) é secretado por células endócrinas do duodeno e jejuno, em resposta à presença dos produtos  da  hidrólise  dos  três  macronutrientes  –  proteínas,  gorduras  e  carboidratos.  Os  aminoácidos  arginina,  histidina, leucina,  lisina  e  outros,  que  não  são  potentes  liberadores  de  CCK,  estimulam  a  liberação  do  GIP.  As  mais  importantes ações  do  GIP  sobre  o  sistema  digestório  são:  (a)  decréscimo  da  velocidade  de  esvaziamento  gástrico,  por  diminuição  da motilidade  gástrica,  e  (b)  redução  da  secreção  de  HCl  gástrico.  Entretanto,  a  principal  ação  fisiológica  do  GIP  é  a estimulação  da  secreção  de  insulina  pelas  células  β  das  ilhotas  pancreáticas,  na  presença  de  glicose  no  TGI.  Uma  carga oral de glicose é utilizada pelas células pancreáticas mais rapidamente que uma carga equivalente de glicose intravenosa, que só estimula a liberação de insulina por sua ação direta sobre as células β. A molécula de secretina tem 27 aminoácidos; 14 deles idênticos e com as mesmas localizações que os da molécula do glucagon. Todos os 27 aminoácidos da molécula da secretina são necessários para a sua ação fisiológica. O GIP dispõe de 42 aminoácidos; 9 deles semelhantes aos da secretina e 16, aos do glucagon, como mostrado no Quadro 59.3.

Quadro 59.2 ■ Hormônios gastrintestinais. Hormônios Famílias

Gastrina

Locais de liberação

Estímulos para a

hormonais

secreção

Gastrina­CCK Células G antrais e

Peptídios,

duodenais

aminoácidos PLG, acetilcolina, distensão gástrica

CCK

Gastrina­CCK Células I do duodeno e jejuno proximal

Ações

Efeito trófico, mucosa antral Estimulação das células parietais com liberação de HCl

Produtos da

Estimulação da secreção de

hidrólise lipídica e

enzimas do pâncreas

proteica

Contração da vesícula biliar Relaxamento do esfíncter de Oddi Diminuição da velocidade de esvaziamento gástrico Efeito trófico no pâncreas exócrino Potencialização do efeito da secretina

Secretina

Secretina­

Células S do duodeno e

glucagon

jejuno proximal

pH ácido

Estimulação da secreção de HCO3– dos ductos pancreáticos e biliares Inibição das células parietais e G

Inibição de efeito trófico da gastrina Diminuição da velocidade de esvaziamento gástrico Efeito trófico no pâncreas exócrino Potencialização do efeito da CCK

A motilina é um peptídio com 22 aminoácidos, não relacionados com as famílias secretina­glucagon ou gastrina­CCK. É  secretada  por  células  endócrinas  do  duodeno  e  jejuno  e,  como  o  nome  indica,  aumenta  a  motilidade  do  TGI.  Esse peptídio  é  correlacionado  com  o  complexo  migratório  mioelétrico  (CMM);  tal  complexo  consiste  em  surtos  de  intensa atividade  elétrica  e  motora  da  musculatura  lisa  do  estômago  e  delgado,  que  ocorre  nos  períodos  interdigestivos,  com periodicidade de 90 min. A secreção de motilina é realizada em fase com o CMM, entretanto não se conhece o estímulo que desencadeia sua secreção, a qual parece depender de uma via neural colinérgica excitatória. A  gastrina  e  a  CCK  fazem  parte  da  mesma  família  hormonal  –  a  família  gastrina­CCK.  A  gastrina  é  sintetizada  e liberada, predominantemente, pelas células G localizadas na região antral do estômago e, em menor extensão, na mucosa duodenal.  Os  principais  estímulos  para  a  sua  liberação  são  os  produtos  da  digestão  proteica,  peptídios  pequenos  e aminoácidos;  os  mais  potentes  são  a  fenilalanina  e  o  triptofano.  A  estimulação  vagal  também  promove  a  secreção  de gastrina  pelas  células  G  do  antro,  e  o  peptídio  liberador  de  gastrina  (PLG)  é  o  neurotransmissor  envolvido.  Reflexos intramurais também estimulam a secreção das células G; aqui o neurotransmissor é a acetilcolina. A secreção de gastrina é altamente estimulada pelo quimo contido no estômago, tanto por processo químico como mecânico, por causa da distensão da parede gástrica. Outras substâncias que estimulam a secreção de gastrina são: Ca2+, café descafeinado e vinho. O álcool puro ou na mesma concentração encontrada no vinho não tem efeito direto sobre a liberação de gastrina, embora estimule as células oxínticas a liberarem HCl. A liberação de gastrina é inibida por valores de pH intragástrico menores que 3,0, o que representa um mecanismo de retroalimentação negativo, mediado pela somatostatina, impedindo que o pH intragástrico atinja valores muito baixos. As principais  ações  da  gastrina  são:  (a)  efeito  trófico  sobre  a  mucosa  gástrica  e  (b)  estimulação  das  células  parietais  ou oxínticas a liberarem HCl. Há  dois  tipos  de  gastrina.  O  primeiro  corresponde  a  um  heptapeptídio,  com  17  aminoácidos,  conhecido  como G17 ou gastrina pequena,  secretado  em  resposta  a  uma  refeição;  corresponde  a  cerca  de  90%  da  gastrina  detectada  no antro.  O  segundo  tem  34  aminoácidos,  denominado  G34  ou  gastrina  grande,  e  é  predominantemente  secretado  nos períodos interdigestivos. Constitui a forma principal de gastrina detectada no plasma durante o jejum. As duas gastrinas são moléculas com vias biossintéticas distintas, uma não sendo dímero ou originária da outra. A molécula da gastrina tem um  tetrapeptídio  no  terminal  C  da  molécula  –  o  menor  fragmento  necessário  para  as  suas  ações  fisiológicas  –  e  dispõe, porém, de apenas 1/6 da atividade do polipeptídio total. Quando o aminoácido tirosina na posição 12 da gastrina pequena estiver sulfatado, a gastrina será do tipo I; caso contrário, do tipo II. Ambos os tipos ocorrem com igual frequência e são equipotentes.

A CCK tem 33 aminoácidos estruturalmente relacionados com a molécula da gastrina. Os 5 últimos aminoácidos do terminal C são idênticos aos da gastrina. A CCK, como a gastrina, tem 4 aminoácidos necessários para a ação mínima da gastrina. Por este motivo, a CCK tem alguma atividade similar à da gastrina. O hexapeptídio do terminal C da CCK é o menor  fragmento  para  a  atividade  mínima  do  hormônio.  A  localização  do  aminoácido  tirosina  no  terminal  C  é  a característica que determina se o peptídio funciona como gastrina, estimulando a secreção de HCl pelas células oxínticas, ou  como  CCK,  contraindo  a  vesícula  biliar.  O  resíduo  tirosina  da  gastrina  localiza­se  na  posição  6  do  terminal  C, enquanto na CCK ele se situa na posição 7. Na molécula de CCK, este resíduo é sulfatado; a sulfatação é essencial para a ação fisiológica da CCK, que passa a agir como gastrina do tipo I. A CCK é secretada por células denominadas I, do delgado, em resposta à presença dos produtos da hidrólise lipídica e proteica neste local. Suas ações são: (a) estimulação da secreção enzimática das células acinares do pâncreas; (b) contração do piloro, que promove diminuição da velocidade de esvaziamento gástrico; (c) contração da musculatura lisa da vesícula biliar, que provoca secreção de bile para o duodeno; (d) relaxamento do esfíncter de Oddi, que propicia a liberação da bile vesicular para o duodeno (Quadro 59.4).

▸ Candidatos a hormônios Os candidatos a hormônios são peptídios liberados de células endócrinas do sistema digestório, que não preenchem os critérios necessários para serem considerados hormônios. São descritos dois peptídios gastrintestinais nestas condições: o polipeptídio pancreático (PP) e o enteroglucagon. A entero­oxintina é também uma substância que poderia ser classificada como candidata a hormônio; sua ação tem sido descrita em cães. O polipeptídio pancreático tem 36 aminoácidos; é secretado pelo pâncreas em resposta aos produtos da hidrólise dos macronutrientes, predominantemente os produtos de hidrólise proteica. O PP inibe as secreções de enzimas e de HCO3– do pâncreas. O enteroglucagon é encontrado no íleo, em resposta à presença de glicose e gordura. Sua ação não é conhecida. Vale citar que o glucagon produzido nas ilhotas pancreáticas tem efeitos sobre o sistema digestório similares aos da secretina (como  inibição  da  secreção  ácida  gástrica  e  elevação  do  fluxo  nos  ductos  biliares),  entretanto  estes  efeitos  não  são observados em concentrações fisiológicas do hormônio. A entero­oxintina, que parece ser liberada no delgado proximal, estimula a secreção ácida gástrica.

▸ Parácrinos gastrintestinais Os parácrinos são sintetizados por células endócrinas localizadas próximas das células­alvo, alcançando­as por difusão através  do  fluido  intersticial  ou  pela  circulação  capilar.  Os  dois  parácrinos  importantes  no  sistema  digestório  são: histamina e somatostatina. A  histamina  é  secretada  por  células  enterocromafins  do  estômago,  principalmente  na  região  oxíntica.  As  células parietais têm receptores, nomeados H2, para este parácrino. A histamina estimula a secreção de HCl. A somatostatina é sintetizada por células, denominadas D, tanto da mucosa gástrica como do delgado. No estômago, ela  inibe  a  secreção  de  HCl  pelas  células  oxínticas,  as  quais  têm  receptores  específicos  para  este  parácrino.  A somatostatina  é  liberada  quando  a  concentração  hidrogeniônica  do  lúmen  gástrico  eleva­se,  correspondendo  a  valores  de pH  menores  que  3,0.  Ela  inibe  diretamente  as  células  G  antrais,  secretoras  de  gastrina.  A  estimulação  vagal  colinérgica inibe as células secretoras de somatostatina, liberando as células G da sua ação inibitória sobre a secreção de gastrina. A somatostatina age, também, como parácrino sobre as ilhotas do pâncreas, inibindo a secreção de insulina e de glucagon. A  somatostatina  foi  isolada,  primeiramente,  do  hipotálamo,  no  qual  ela  age  como  fator  inibidor  da  liberação  do hormônio  de  crescimento  (GHRIF).  De  um  modo  geral,  a  somatostatina  inibe  a  liberação  de  todos  os  hormônios peptídicos.

Resumo Hormônios, parácrinos e neurotransmissores do sistema digestório 1. Neurócrinos  (neurotransmissores),  hormônios,  candidatos  a  hormônios  e  parácrinos:  regulam  as funções  do  sistema  digestório.  Os  hormônios,  os  candidatos  a  hormônios,  os  parácrinos  do  sistema digestório e o SNI exercem regulação intrínseca das funções do sistema digestório. 2. Neurócrinos ou neurotransmissores (NT): são secretados pelos terminais de neurônios pré­sinápticos, sendo  liberados  nas  fendas  sinápticas  e,  após  interagirem  com  receptores  específicos  dos  neurônios

pós­sinápticos,  ativam  direta  ou  indiretamente  canais  iônicos,  o  que  gera  potenciais  pós­sinápticos excitatórios  ou  inibitórios.  Os  NT  mais  importantes  do  sistema  digestório  são:  acetilcolina  (ACh), norepinefrina (NE), óxido nítrico (NO), encefalinas e neuropeptídios: vasoativo intestinal (VIP), liberador de gastrina (PLG), substância P e neuropeptídio Y (NPY). ACh: NT parassimpático do SNA e do SNI – age, em geral, estimulando a motilidade e as secreções, assim como causa vasodilatação no sistema digestório. NE:  NT  das  fibras  simpáticas  do  SNA  –  diminui,  em  geral,  a  motilidade  e  as  secreções, secundariamente à vasoconstrição no sistema digestório. NO e encefalinas: agem, em geral, como NT que ativam respostas inibitórias. VIP: NT de fibras parassimpáticas – age, em geral, como inibidor da motilidade e eleva a secreção do pâncreas exócrino. PLG: NT de fibras vagais – estimulam a secreção das células G antrais, secretoras de gastrina. Substância  P:  NT  parassimpático  –  estimula  a  secreção  salivar,  agindo  em  receptores  das  células acinares, e inibe a motilidade do TGI. NPY: produz relaxamento da musculatura lisa do TGI e reduz processos de secreção intestinal. 3. Hormônios do sistema digestório: sintetizados por células ou grupos de células endócrinas da parede do  sistema  digestório;  após  serem  levados  ao  fígado  pela  circulação  porta,  atingem  as  células­alvo localizadas  no  próprio  sistema  digestório,  via  circulação  sistêmica.  São  apenas  5  peptídios  que têm  status  de  hormônio:  gastrina,  colecistocinina  (CCK),  secretina,  peptídio  inibidor  gástrico  (GIP)  e motilina. Gastrina e CCK: são peptídios de uma mesma família hormonal (família gastrina­CCK), apresentando um tetrapeptídio no terminal C, que representa o fragmento ativo do peptídio. Gastrina:  há  várias  isoformas  –  gastrina  pequena  (G17)  e  gastrina  grande  (G34).  A  G17  é  liberada durante o processo digestivo e a G34 nos períodos interdigestivos. O resíduo tirosina na posição 12, quando sulfatado, forma a GII, que não difere funcionalmente da GI, a qual não é sulfatada. A GII tem  funções  semelhantes  às  da  CCK,  cujo  grupo  tirosina  na  posição  27  é  sulfatado.  Secreção: células G do antro gástrico e células do duodeno (em menor número). Estímulos: principalmente, a chegada do quimo ao estômago, não só por distensão de sua parede, como também pela ação de peptídios e aminoácidos, principalmente fenilalanina e triptofano. Funções: estimula a secreção de HCl, tendo receptores nas células parietais. Apresenta efeito trófico, principalmente sobre a região oxíntica do estômago. CCK: tem 34 aminoácidos. Secreção: células I do duodeno e jejuno. Estímulos:  produtos  da  hidrólise lipídica e proteica. Funções: estimula a secreção enzimática do pâncreas, contrai a vesícula biliar, relaxa  o  esfíncter  de  Oddi,  retarda  o  esvaziamento  gástrico,  tem  efeito  trófico  sobre  o  pâncreas exócrino e potencializa a ação da secretina. Secretina:  faz  parte,  junto  com  o  GIP,  da  família  secretina­glucagon.  Tem  27  aminoácidos,  cuja sequência  mostra  grande  homologia  com  a  do  glucagon  e  do  GIP.  Todos  os  aminoácidos  são importantes  para  suas  ações  fisiológicas.  Secreção:  células  S  do  duodeno  e  jejuno proximal.  Estímulo:  concentração  hidrogeniônica  do  quimo  proveniente  do  estômago.  Funções: antiácidas, aumenta a secreção de bicarbonato do pâncreas e dos ductos biliares, inibe a secreção de  HCl,  agindo  nas  células  oxínticas  e  G  –  diminuindo  a  secreção  de  gastrina,  retarda  o esvaziamento gástrico, inibe o efeito trófico da gastrina, tem efeito trófico sobre o pâncreas exócrino e potencializa a ação da CCK. GIP: tem 42 aminoácidos. Secreção: células endócrinas do delgado. Estímulo: produtos da hidrólise de todos os macronutrientes. Funções no sistema digestório: reduz a secreção e a motilidade gástrica. Eleva a secreção de insulina das células β das ilhotas do pâncreas endócrino. Motilina:  tem  22  aminoácidos.  Secreção:  delgado;  é  secretada  em  fase  com  o  CMM  (complexo migratório mioelétrico). Função: aumenta a motilidade do TGI. 4. Candidatos a hormônios: polipeptídio pancreático (PP), enteroglucagon e entero­oxintina. PP: tem 36 aminoácidos. Secreção: pâncreas. Estímulos:  principalmente,  glicose. Funções:  diminui  a secreção de bicarbonato e de enzimas do pâncreas exócrino.

Enteroglucagon:  Secreção:  íleo.  Estímulos:  produtos  da  hidrólise  lipídica  e  de  carboidratos.  Função: desconhecida. Entero­oxintina: Secreção: duodeno e jejuno. Estímulos: desconhecidos. Função: eleva a secreção de HCl gástrico por via desconhecida. 5. Parácrinos  do  sistema  digestório:  secretados  por  células  endócrinas,  atingindo  as  células­alvo  nas suas proximidades, via difusão no interstício ou por circulação capilar. Dois principais – histamina e somatostatina. Histamina: Secreção: células enterocromafins do estômago, na região oxíntica. Estímulo:  chegada  do quimo ao estômago. Funções: inibe a secreção de HCl nas células oxínticas, através dos receptores H2, potencializa a ação da acetilcolina e da gastrina. Somatostatina: Secreção: células D do estômago. Estímulos: pH intragástrico menor que 3,0. Funções: inibe as células G, secretoras de gastrina, agindo como reguladora do pH intragástrico. Neurônios colinérgicos vagais inibem as células D e o efeito da somatostatina sobre as células G.

BIBLIOGRAFIA BERNE RM, LEVY MN. Physiology. 3. ed. Mosby Inc., St. Louis, 1993. BERNE RM, LEVY MN, KOEPPEN BM et al. Physiology. 4. ed. Mosby Inc., St. Louis, 2004. BORON WF, BOULPAEP EL. Medical Physiology. W.B. Saunders Co., Philadelphia, 2003. BORON WF, BOULPAEP EL. Medical Physiology. W.B. Saunders Co., Philadelphia, 2005. JOHNSON LR. Gastrointestinal physiology. The Mosby Physiology Monograph Series. 6. ed., 2001. JOHNSON LR (Ed.). Physiology of Gastrintestinal Tract. 3. ed. Raven, New York, 1997.



Introdução

■ ■

Mastigação Deglutição

■ ■ ■

Motilidade gástrica Motilidade do intestino delgado Motilidade do cólon e defecação



Bibliografia

INTRODUÇÃO A musculatura lisa visceral unitária é um sincício. A motilidade é efetuada pela musculatura da parede do trato gastrintestinal (TGI). Esse mecanismo propicia a mistura dos  alimentos  com  as  secreções  luminais  e  o  seu  contato  com  a  mucosa  de  revestimento  interna  do  trato,  otimizando  os processos  de  digestão  e  absorção  intestinal.  Além  disso,  a  motilidade  garante,  também,  a  propulsão  cefalocaudal  dos nutrientes e a excreção fecal. Musculatura lisa é encontrada em quase todo o TGI, com exceção de cavidade oral, faringe, terço superior do esôfago e esfíncter anal externo, que têm musculatura estriada inervada por motoneurônios não autônomos. A musculatura do TGI restante é denominada musculatura lisa visceral unitária, porque suas fibras intercomunicam­se por junções intercelulares de  baixa  resistência  elétrica,  representadas  pelos  canais  das  gap­junctions  que  acoplam  eletricamente  as  células.  Estes canais, além de permitirem a passagem passiva (ou eletrotônica) de corrente de íons, permitem a passagem, de uma célula à outra, de moléculas com até 1.300 Da. Assim, pode haver passagem de segundos mensageiros intracelulares através dos canais das gap­junctions, como o AMP cíclico e os inositóis­fosfato. As  fibras  musculares  lisas  formam  feixes  (faciae)  que  contêm  centenas  de  fibras,  envoltas  por  tecido  conjuntivo. Estes  feixes  são  inervados  por  um  único  neurônio,  que  dispõe  de  variculosidades  ao  longo  do  axônio,  de  onde  os neurotransmissores  são  liberados.  Um  feixe  e  o  neurônio  que  o  inerva  formam  uma unidade motora  (Figura  60.1).  Os neurotransmissores ativam as fibras musculares mais próximas a eles, mas a excitação é conduzida a todas as células do feixe pelos canais das gap­junctions, permitindo que as fibras se contraiam simultaneamente. Portanto, a musculatura lisa visceral é um sincício morfológico e funcional e, por isso, chamada de unitária. A fibra muscular lisa é bem menor que a estriada, não tem sarcômeros, e a relação actina/miosina é de 12 a 18. As fibras musculares lisas do TGI apresentam comprimentos entre 50 e 200 mm e diâmetros de 4 a 10 μm, com uma relação superfície/volume superior à das fibras musculares estriadas. Ao contrário destas, não mostram os miofilamentos organizados  em  sarcômeros,  mas  sim  formando  uma  rede  disposta  obliquamente  nas  células  e  ligada  ao  citoesqueleto. Quando  se  contraem,  distribuem  a  tensão  por  toda  a  célula.  A  relação  actina/miosina  é  de  12  a  18,  enquanto,  na

musculatura estriada, é 2. O retículo sarcoplasmático nas fibras musculares lisas tem pouco desenvolvimento, e o sistema de túbulos transversos inexiste (Figura 60.2).

Figura  60.1  ■   Feixe  de  fibras  musculares  lisas  com  os  denominados  néxus,  regiões  das  gap­junctions  intercelulares  que acoplam eletricamente as células do feixe. Note que o neurônio apresenta variculosidades, que são as regiões de liberação dos neurotransmissores. O feixe e o neurônio que o inerva formam uma unidade motora.

As  fibras  da  musculatura  circular,  além  de  serem  mais  ricamente  inervadas,  dispõem  de  maior  número  de  gap­ junctions intercelulares do que as da musculatura longitudinal. Contrações fásicas periódicas e tônicas, ou mantidas, na musculatura lisa do TGI. Há dois tipos básicos de contração na musculatura lisa do TGI: a contração fásica, em que contrações e relaxamentos são  periódicos  e  ocorrem  em  poucos  segundos  ou  minutos,  e  a  tônica,  mantida  ou  sustentada,  em  que  a  musculatura mantém­se tonicamente contraída por minutos ou horas, constituindo o que se denomina “tônus”. As musculaturas que se contraem fasicamente são as do corpo do esôfago, do corpo e antro do estômago, além daquelas dos intestinos delgado e grosso; e as que sofrem contração tonicamente são as musculaturas dos esfíncteres e da porção fúndica do estômago. O acoplamento excitação­contração na musculatura lisa visceral depende do influxo de Ca2+ do meio extracelular. Como  nos  músculos  estriados  esqueléticos  e  cardíaco,  nos  viscerais  fásicos  o  nível  de  Ca2+ intracelular  determina  o fenômeno contrátil e o acoplamento entre a excitação neural e a contração mecânica. A elevação da concentração citosólica de  Ca2+,  que  desencadeia  o  fenômeno  contrátil,  resulta  da  ativação  de  canais  para  Ca2+  dependentes  de  voltagem,  em resposta  à  despolarização  do  sarcolema.  O  Ca2+  provém  do  meio  extracelular,  estando  acumulado  nos  cavéolos  do sarcolema. O crescimento da concentração citosólica de Ca2+, dos níveis de repouso (10–7 M) para os de excitação máxima (10–6 até 10–5), desencadeia a contração.

Figura 60.2 ■ Esquema  de  uma  fibra  muscular  lisa  e  resumo  do  acoplamento  entre  excitação  e  contração,  em  uma  fibra  de contração fásica. ATP, trifosfato de adenosina; MLCK, cadeia leve de miosinoquinase. Explicação no texto.

O  Ca2+  aumentado  no  citosol  liga­se  à  calmodulina  e  ativa  uma  cadeia  leve  da  miosinoquinase  (MLCK).  A transferência  do  grupo  fosforil,  resultante  da  hidrólise  do  ATP,  à  miosina  ativa­a  e  propicia  sua  interação  com  a  actina, formando o complexo actomiosina e desenvolvendo tensão ou contração. Cessada a excitação, a concentração citosólica de Ca2+ diminui, por bombeamento deste íon para fora da célula, por uma Ca2+­ATPase e pelo contratransportador Ca2+/Na+, ambos localizados no sarcolema. Com isto, cessa a atividade da miosinoquinase, e uma fosfatase remove o grupo fosforil da miosina, desfazendo o complexo actomiosina e provocando a queda de tensão ou o relaxamento muscular (ver Figura 60.2). Nos  músculos  lisos  de  contração  tônica,  a  origem  do  Ca2+  intracelular  e  o  mecanismo  de  acoplamento excitação/contração não estão bem esclarecidos. A contração das fibras musculares lisas é rítmica e determinada pelas regiões de marca­passo, que são grupos de células intersticiais de Cajal. O  potencial  elétrico  do  sarcolema  da  fibra  muscular  lisa  visceral  não  é  estável,  embora  medidas  feitas  em  músculos geneticamente alterados indiquem que o “potencial de repouso” varia entre –40 e –58 mV, lado interno da célula negativo. Este potencial pode ser representado por: Ve – Vc = –Vm em que Ve = potencial extracelular, Vc = potencial intracelular e Vm = potencial de membrana. A magnitude da diferença de potencial de membrana é inferior à que existe através do sarcolema das fibras musculares estriadas, consequentemente a uma menor razão entre as permeabilidades a K+ e a Na+. O  potencial  de  membrana  das  fibras  lisas  viscerais  sofre  oscilações  ou  despolarizações  subliminares,  as denominadas ondas lentas, que têm frequência típica para cada região do TGI, determinada nas regiões de marca­passo. Estas  regiões,  na  parede  muscular  do  TGI,  são  formadas  por  células  com  características  de  miofibroblastos,

indiferenciadas, e de fibras musculares lisas diferenciadas; em conjunto, tais fibras são chamadas de fibras intersticiais de Cajal  (FICj).  As  FICj  comunicam­se  entre  si  e  com  as  fibras  musculares  lisas  vizinhas  da  parede  do  TGI  por  gap­ junctions,  o  que  propicia  a  propagação  da  excitação  por  toda  a  musculatura.  Assim,  as  fibras  musculares  lisas desenvolvem  ondas  lentas,  com  frequências  determinadas  pelos  marca­passos  característicos  de  cada  região  do  TGI, originando o denominado ritmo elétrico basal (REB). O REB do estômago é de 3 ondas/min; o do duodeno, 12/min; e o do íleo, 9 a 8/min. Uma representação esquemática das ondas lentas é fornecida na Figura 60.3. Estas são depolarizações subliminares do sarcolema, resultantes da variação do potencial de membrana de cerca de 10 mV. Contrações da musculatura ocorrem em fase  com  as  ondas  lentas,  desde  que  as  despolarizações  alcancem  o  que  se  conhece  por  limiar  contrátil  da  fibra.  As amplitudes das contrações são proporcionais às das ondas lentas. As contrações que ocorrem em fase com as ondas lentas resultam da ativação de canais para Na+, K+ e Ca2+ dependentes de voltagem, do sarcolema. O Ca2+, penetrando as fibras, acopla a excitação ao fenômeno contrátil. Se a despolarização é de maior amplitude, alcança­se o limiar elétrico da fibra e surgem potenciais de ação nas cristas das  ondas  lentas.  Quando  isso  acontece,  a  amplitude  das  contrações  depende  da  frequência  dos  potenciais  de  ação  nas cristas  das  ondas  lentas.  Como  a  contração  das  fibras  musculares  lisas  é  lenta,  ocorre  somação  temporal  das  contrações em resposta a um conjunto de potenciais de ação. O potencial de ação das fibras musculares lisas viscerais é muito mais lento que o das fibras musculares estriadas. Sua duração é de 10 a 20 ms e não apresenta overshoot. Na despolarização, temos ativação dos canais para Na+ e Ca2+ (canais lentos),  dependentes  de  voltagem.  Na  repolarização,  há  redução  das  condutâncias  a  Na+  e  a  Ca2+,  além  de  aumento  da condutância  a  K+ (canais  lentos).  Entre  os  potenciais  de  ação,  a  tensão  da  fibra  muscular  não  retorna  à  linha  de  base, havendo sempre uma contração mantida (tônus). O  sistema  nervoso  autônomo  (SNA)  e  o  sistema  nervoso  entérico  (SNE)  regulam  a  amplitude  das  ondas  lentas  e podem, também, alterar a frequência não só dessas ondas lentas, como ainda dos potenciais de ação que se dão nos picos de  tais  ondas.  Portanto,  a  força  contrátil  e  a  frequência  do  REB  são  reguladas  pelo  SNA  e  pelo  SNE.  Em  geral, estimulação  noradrenérgica  diminui  a  amplitude  das  contrações,  podendo  mesmo  aboli­las.  A  estimulação  colinérgica aumenta tanto a amplitude das ondas lentas como a frequência dos potenciais de ação e, portanto, a força contrátil.

Figura 60.3 ■ Esquema que indica as ondas lentas (ou REB) em fase com as contrações, e os potenciais de ação nas cristas das ondas lentas.

Resumo Musculatura do TGI 1. Músculo  liso  visceral  em  todo  o  TGI  com  exceção  da  boca,  faringe,  terço  superior  do  esôfago  e esfíncter anal externo. 2. Musculatura lisa visceral unitária: sincício funcional e anatômico por transmissão elétrica da excitação via gap­junctions (acoplamento elétrico entre as fibras). 3. Feixes ou faciae: centenas de fibras inervadas por um neurônio – unidade motora.

4. Contração fásica: rápida (s a min) – corpo do esôfago e estômago, antro gástrico e delgado. 5. Contração tônica: mantida (min a h) – fundo gástrico e esfíncteres (tônus). 6. Acoplamento excitação­contração: via Ca2+ extracelular. 7. Ondas lentas: despolarizações, em fase com as contrações após o limiar contrátil da fibra. 8. REB (ritmo elétrico basal): determinado nas regiões de marca­passo (fibras intersticiais de Cajal). 9. Potencial de membrana (Vm) das fibras musculares viscerais: instável. 10. Potenciais de ação: aparecem na crista das ondas lentas, quando é atingido o limiar elétrico; são lentos e sem overshoot. 11. Intensidade das contrações: proporcionais à amplitude das ondas lentas e à frequência dos potenciais de  ação.  Tanto  o  SNE  como  o  SNA  regulam  a  amplitude  das  ondas  lentas  e  a  frequência  dos potenciais de ação. A estimulação colinérgica eleva a força contrátil; a noradrenérgica a diminui.

MASTIGAÇÃO Os padrões motores são específicos nas várias regiões do TGI; na cavidade oral, o alimento é reduzido a pequenas porções pelos dentes e lubrificado pela saliva. A  mastigação  reduz  o  alimento  a  partículas  com  alguns  cm3  e  as  mistura  com  o  muco  secretado  pelas  glândulas salivares, lubrificando tais partículas. A redução dos alimentos a pequenas partículas não interfere no processo digestivo posterior;  ela  facilita  a  deglutição,  que  se  torna  mais  fácil  pela  lubrificação  das  partículas  alimentares.  Muitos  animais, como  cães  e  gatos,  deglutem  pedaços  grandes  de  alimentos,  mastigando­os  apenas  para  permitir  sua  passagem  pela faringe. Durante a mastigação, a mistura do alimento com a saliva inicia o processo de hidrólise dos carboidratos pela α­ amilase salivar. A presença do alimento na cavidade oral estimula químio e mecanorreceptores. Estes desencadeiam reflexos que são conduzidos ao sistema nervoso central (SNC) e que coordenam os músculos mastigatórios, tornando a mastigação um ato reflexo;  entretanto,  a  mastigação  pode,  ainda,  ser  voluntária  e  sobrepor­se,  a  qualquer  momento,  ao  ato  reflexo.  A estimulação  de  quimiorreceptores  e  de  mecanorreceptores  da  cavidade  oral  também  desencadeia  respostas  reflexas,  que estimulam as secreções salivar, gástrica e pancreática, como será analisado oportunamente.

DEGLUTIÇÃO A  deglutição  é  um  ato  parcialmente  voluntário  e  parcialmente  reflexo,  coordenado  pelo  SNC  e  pelo  SNE, ocorrendo em frações de segundo. A deglutição é simplesmente a passagem do bolo alimentar da boca para o estômago, através do esôfago. Trata­se de um ato parcialmente voluntário e parcialmente reflexo, que ocorre em frações de segundo. O  esôfago  é  um  tubo  muscular,  com  cerca  de  15  cm  de  comprimento,  que  se  estende  da  orofaringe  até  o  estômago, atravessando o tórax e penetrando no abdome pelo hiato diafragmático. No seu terço superior ou proximal, a musculatura é estriada, havendo, logo abaixo desta região, uma transição entre musculatura estriada e lisa, que se transforma em lisa ao longo dos restantes dois terços distais do esôfago. Na  porção  superior,  o  esôfago  comunica­se  com  a  orofaringe,  pelo  esfíncter  esofágico  superior  (EES)  ou cricofaríngeo,  um  espessamento  da  musculatura  estriada  do  músculo  de  mesmo  nome.  Na  porção  inferior, subdiafragmática, o esôfago comunica­se com o estômago através do esfíncter esofágico inferior (EEI), cuja musculatura é  lisa.  O  EES  é  considerado  um  esfíncter  anatômico  e  fisiológico,  enquanto  o  EEI,  um  esfíncter  fisiológico,  ou  seja, apenas um pequeno anel da musculatura, de 1 a 2 cm de comprimento, com pressão aumentada. Nos  períodos  interdigestivos,  o  esôfago  é  flácido  e  a  pressão  interna  na  sua  porção  torácica  é  igual  à  torácica  (i. e., subatmosférica),  com  exceção  da  região  do  EES,  apresentando  pequenas  variações  em  fase  com  os  movimentos respiratórios.  A  pressão  no  EES  é  de  cerca  de  40  mmHg  superior  àquela  no  esôfago  torácico  e  a  do  EEI, aproximadamente 30 mmHg superior. Como  as  pressões  de  repouso  dos  dois  esfíncteres  são  superiores  à  pressão  no  esôfago  torácico  durante  os  períodos interdigestivos, os esfíncteres funcionam como barreira, prevenindo, na porção cefálica, a entrada de ar para o interior do esôfago e, na porção distal, o refluxo gástrico. Tal prevenção evita desconforto intraesofágico e esofagite, respectivamente

nas  porções  proximais  e  distais  do  esôfago.  Assim,  este  órgão,  além  de  servir  de  conduto  para  o  bolo  alimentar  na  sua progressão da cavidade oral para o estômago, durante o processo de deglutição, funciona como uma barreira nos períodos interdigestivos. A fase reflexa da deglutição é coordenada pelo centro da deglutição, localizado no bulbo e porção posterior da ponte, no  tronco  cerebral.  Esta  fase  compreende  uma  sequência  ordenada  de  eventos,  que  propelem  o  bolo  alimentar  da orofaringe  ao  estômago,  com  inibição  da  respiração,  o  que  previne  a  entrada  de  alimentos  para  a  traqueia.  As  vias sensoriais aferentes para o reflexo partem de receptores tácteis (somatossensoriais, situados na orofaringe) e alcançam o centro da deglutição principalmente pelos nervos vago e glossofaríngeo. As vias eferentes para a musculatura estriada da orofaringe e do esôfago proximal são fibras vagais motoras e, para o restante do esôfago, fibras vagais viscerais. Costuma­se  analisar  o  processo  da  deglutição  em  fases.  Estas  são:  a  fase  oral  (voluntária),  a  faríngea  e  a  esofágica (reflexas), como ilustrado na Figura 60.4. A fase oral é  voluntária  e  se  inicia  com  a  ingestão  do  alimento.  Pressiona­se  o  bolo  alimentar  pela  ponta  da  língua contra o palato duro e ele é propelido, também pela língua, em direção à orofaringe contra o palato mole. Nesta região, tal bolo  estimula  receptores  somatossensoriais  da  orofaringe  e  começa  a  fase  faríngea  da  deglutição.  A  fase  faríngea  é totalmente  reflexa.  A  seguinte  sequência  de  eventos  ocorre  em  menos  de  1  s.  (a)  Elevação  do  palato  mole  em  direção  à nasofaringe;  as  dobras  palatofaríngeas  impedem  a  entrada  alimentar  na  nasofaringe.  (b)  As  cordas  vocais  da  laringe mantêm­se  juntas,  o  que  eleva  a  epiglote,  ocluindo  a  abertura  da  laringe,  prevenindo  assim  a  entrada  de  alimento  para  a traqueia.  (c)  Simultaneamente,  a  respiração  se  inibe  e  o  bolo  alimentar  é  propelido  ao  longo  da  faringe  por  uma  onda peristáltica  iniciada  nos  músculos  constritores  superiores,  que  se  propaga  para  os  constritores  médios  e  inferiores  da faringe. (d) À frente desta onda peristáltica, o EES relaxa­se, permitindo que o bolo entre no esôfago. Como já dito, todas estas fases duram menos de 1 s.

Figura 60.4 ■ Fases da deglutição: oral (A), faríngea (B) e esofágica (C e D).

Após a passagem do bolo alimentar para o esôfago, o EES contrai­se e começa a fase esofágica da deglutição. Inicia­ se uma onda peristáltica primária, que percorre o esôfago, relaxando o EEI à sua frente, permitindo a passagem do bolo para o estômago. Esta é a onda peristáltica primária, que percorre o esôfago com uma velocidade de 1 a 3 cm/s, levando cerca de 5 a 10 s para atingir o EEI e propelindo o bolo alimentar à sua frente; ela é regulada pelo centro da deglutição e por  reflexos  intramurais.  Caso  tal  onda  não  consiga  esvaziar  completamente  o  esôfago,  surge  uma  onda  peristáltica secundária,  em  resposta  à  distensão  da  parede  do  esôfago,  que  se  propaga  da  região  distendida  para  as  regiões  mais distais do esôfago; esta segunda onda é totalmente coordenada pelo SNE da parede do esôfago. Na Figura 60.5, existem os registros de pressão na faringe e no esôfago, obtidos por meio de uma sonda introduzida no esôfago contendo sensores de pressão. À direita, são mostradas as pressões de repouso nos períodos interdigestivos. As  pressões  intraesofágicas  de  repouso  são  iguais  às  intratorácicas,  representadas  pelo  nível  zero,  com  exceção  das pressões  de  40  mmHg  do  EES  e  de  30  mmHg  do  EEI.  Durante  a  deglutição,  podem­se  acompanhar  as  alterações transientes de pressão ao longo do esôfago, refletindo as contrações, desde o EES até o EEI.

Figura 60.5 ■ Registro das pressões intraesofágicas durante o jejum e a deglutição. Descrição da figura no texto.

Simultaneamente  ao  relaxamento  do  EEI,  a  porção  proximal  do  estômago  (denominada  fundo)  também  relaxa, permitindo  que  o  bolo  alimentar  penetre  no  estômago.  Este  relaxamento  do  fundo  gástrico,  que  persiste  durante  a deglutição, é designado relaxamento receptivo; tal relaxamento permite a acomodação do bolo alimentar no estômago sem elevar a pressão intragástrica. A regulação neural da deglutição é efetuada pelo centro da deglutição no tronco cerebral e depende da integridade do SNE do esôfago. Impulsos  aferentes  se  originam  do  esôfago  e  atingem  o  centro  de  deglutição,  principalmente  pelos  nervos  vago  e glossofaríngeo.  O  centro  da  deglutição  localiza­se  no  bulbo  e  porção  inferior  da  ponte,  no  tronco  cerebral;  tem  três núcleos: não vagal, ambíguo e motor dorsal do vago. Destes núcleos, partem os nervos motores eferentes para o esôfago, inervando  a  musculatura  estriada,  via  fibras  vagais  somáticas,  e  a  musculatura  lisa  e  seus  plexos  intramurais,  via  fibras vagais viscerais. Os plexos intramurais intercomunicam­se, coordenando a atividade motora do esôfago. Fibras eferentes para a faringe e o esôfago têm origem nos núcleos dos nervos facial, hipoglosso e trigêmeo (Figura 60.6). A  contração  tônica  do  EEI  é  regulada  pelos  nervos  vagos  e  por  fibras  simpáticas.  A  inervação  vagal  excitatória  é efetuada  por  fibras  colinérgicas,  e  a  inibitória,  por  fibras  vipérgicas  ou  tendo  o  óxido  nítrico  como  neurotransmissor. Assim,  quando  a  onda  peristáltica  atinge  o  EEI,  este  se  relaxa  por  estimulação  das  fibras  vagais  inibitórias  (FVI),  que disparam potenciais de ação com frequência aumentada. Simultaneamente, as fibras vagais excitatórias (FVE) colinérgicas estão quiescentes (Figura 60.7).

Figura 60.6 ■ Controle neural das fases faríngea e esofágica da deglutição.

Figura 60.7 ■ Regulação do esfíncter esofágico inferior. FVE, fibras vagais excitatórias; FVI, fibras vagais inibitórias.

Acalasia é  a  anomalia  que  decorre  de  aumento  do  tônus  do  EEI  ou  de  falha  no  seu  relaxamento.  As ondas peristálticas primárias, nesta situação, são fracamente propulsivas, e o material deglutido acumula­se na  porção  inferior  do  esôfago,  dilatando­o,  sendo  necessária  a  aspiração  desse  material.  O  tratamento  é cirúrgico, no sentido de enfraquecer o EEI. Azia (heartburn) é o distúrbio mais frequentemente associado à disfunção  do  esôfago.  Consiste  em  diminuição  da  pressão  no  EEI,  causando  refluxo  gástrico  ácido,  com lesão da parede do esôfago (esofagite). Esta condição pode ser consequência de anormalidades motoras do  EEI,  esvaziamento  inadequado  do  esôfago,  falha  da  peristalse  secundária  ou  elevação  da  pressão intragástrica, por dilatação do estômago após refeição volumosa ou aumento do abdome, como na gravidez ou em excesso de gordura. Espasmo esofágico difuso resulta de alterações motoras, com contrações não propulsivas da parede do esôfago, acarretando grande desconforto torácico. Outras condições que levam a distúrbios  da  deglutição  ou  disfagia  são  lesões  cerebrais,  câncer  esofágico  ou  degenerações  nervosas dos plexos intramurais, que provocam escleroderma de sua parede, como pode ocorrer no envelhecimento.

Resumo Deglutição 1. O  esôfago  apresenta  musculatura  estriada  no  terço  superior.  A  pressão  intraesofágica  na  região torácica esofágica, no período interdigestivo, é subatmosférica e igual à intratorácica, com exceção da região  do  EES.  O  EES,  ou  esfíncter  cricofaríngeo,  tem  pressão  de  40  mmHg  e  o  EEI,  ou  esfíncter subdiafragmático,  de  30  mmHg.  O  EES  é  um  esfíncter  anatômico:  um  espessamento  do  músculo estriado  cricofaríngeo.  O  EEI  é  apenas  fisiológico,  ou  seja,  uma  região  de  aumento  do  tônus  da musculatura  lisa.  Os  dois  esfíncteres  funcionam  como  barreira,  prevenindo,  na  porção  cefálica,  a entrada de ar para o esôfago e, na distal, o refluxo gástrico. 2. A fase oral da deglutição é voluntária. A estimulação dos receptores somatossensoriais da orofaringe pelo alimento inicia a fase reflexa da deglutição. As vias aferentes para o centro da deglutição (CD), no bulbo, e a porção inferior da ponte são vago e glossofaríngeo. As vias eferentes são vagais somáticas para  o  EES  e  vagais  viscerais  para  o  esôfago  torácico  e  EEI.  Os  vagos  fazem  sinapses  nos  plexos intramurais. 3. Na  fase  reflexa  da  deglutição  (fase  faríngea  e  esofágica),  há  inibição  da  respiração  e  propulsão peristáltica  do  alimento  pelas  ondas  peristálticas  primárias,  iniciadas  nos  músculos  constritores  da faringe, coordenadas pelo CD. O relaxamento receptivo do fundo gástrico ocorre em associação com o do EEI. A peristalse secundária se inicia pela distensão do esôfago e é regulada pelo SNE. 4. À  frente  da  onda  peristáltica  primária,  os  esfíncteres  relaxam­se  e  o  bolo  alimentar  alcança  o estômago. 5. A  contração  tônica  do  EES  é  regulada  pelo  CD,  via  nervos  vagais  eferentes  somáticos.  A  do  EEI  é regulada por fibras vagais viscerais, excitatórias colinérgicas e inibitórias VIPérgicas ou mediadas pelo óxido nítrico. 6. Acalasia  decorre  do  aumento  do  tônus  do  EEI,  podendo  induzir  megaesôfago.  Azia  resulta  de diminuição  do  tônus  do  EEI,  e  é  possível  ocorrer  esofagite.  Disfagias  ou  distúrbios  da deglutição podem, também, ser consequência de lesões neurais centrais ou da parede do esôfago.

MOTILIDADE GÁSTRICA O estômago armazena, mistura e tritura o alimento, propelindo­o lentamente para o duodeno, através do esfíncter pilórico. Do ponto de vista motor, o estômago exerce as seguintes funções: armazenamento, mistura e trituração do alimento, propulsão  peristáltica  e  regulação  da  velocidade  de  esvaziamento  gástrico.  Estas  funções  são  exercidas  em  regiões distintas  do  órgão,  sendo  relacionadas  com  as  diferenças  de  sua  musculatura.  A  Figura  60.8  ilustra  as  suas  diferentes regiões: fundo, corpo, antro e piloro. Também sob esse ponto de vista, costuma­se dividir o estômago em regiões oral e caudal  –  a  primeira  inclui  o  fundo  e  a  porção  proximal  do  corpo  (que  têm  musculatura  de  menor  espessura);  a  segunda compreende a porção distal do corpo e a região antral, cuja musculatura é mais espessa. O  armazenamento  do  alimento  no  estômago  ocorre  na  região  do  fundo  e  porção  proximal  do  corpo  gástrico. A  mistura  do  alimento  se  dá  na  região  média  e  distal  do  corpo,  enquanto  a  trituração  é  efetuada  na  parte  distal  do estômago, na região antral. A propulsão peristáltica inicia­se na região de marca­passo, localizada na porção proximal do corpo.  A  velocidade  de  esvaziamento  gástrico  é  regulada  por  mecanismos  neuro­hormonais,  envolvendo  a  região antropilórica e o duodeno.

Figura 60.8 ■  Regiões  do  estômago  que  mostram  o  aspecto  da  sua  parede  interna.  Note  que  a  região  do  corpo  e  a  antral apresentam musculatura mais desenvolvida, com inúmeras pregas.

O estômago é a única porção do TGI que tem, além da muscular externa, uma outra camada de fibras musculares lisas, que se dispõem obliquamente, irradiando­se da região cárdica, próxima ao EEI, para o fundo, fundindo­se com as demais fibras musculares, no limite entre o fundo e a porção proximal do corpo. O padrão motor do estômago varia nas suas diferentes regiões. Durante o processo da deglutição, à frente da onda peristáltica que percorre o esôfago e relaxa o EEI, a musculatura do fundo  e  da  porção  proximal  do  corpo  relaxa­se.  Este  processo  denomina­se  relaxamento  receptivo  e  pode  ser  abolido experimentalmente por vagotomia bilateral (secção dos vagos). O relaxamento receptivo é um reflexo longo vagovagal. As fibras  eferentes  vagais  deste  reflexo  são  inibitórias  vipérgicas.  Como  a  musculatura  do  fundo  gástrico  está  relaxada durante o processo da deglutição, o alimento acomoda­se neste local, sem elevar a pressão intragástrica; além disso, como a musculatura desta região é menos densa do que a do restante do estômago, suas contrações são relativamente fracas. Por este motivo, 1 a 1,5 ℓ de alimento acomoda­se no fundo gástrico, por 1 a 2 h, sem sofrer ação de mistura. Esta é a fase de armazenamento gástrico. As peristalses gástricas começam na região proximal do corpo gástrico, onde se localiza o marca­passo. As peristalses gástricas iniciam­se  na  região  de  marca­passo,  situada  na  porção  proximal  do  estômago.  O  REB  no estômago  é  de  3  ondas/min.  As  ondas  peristálticas  aumentam  de  intensidade  e  de  velocidade  em  direção  à  região  antro­ pilórica, em consonância com o espessamento da muscular externa. As contrações rápidas e vigorosas do corpo propiciam a mistura do  alimento  com  as  secreções  gástricas,  otimizando  a  digestão.  O  alimento,  já  parcialmente  digerido,  forma  o que se chama quimo. À frente das contrações peristálticas do corpo e do antro, o piloro relaxa­se, permitindo o escape de pequenas  quantidades  do  quimo  para  o  duodeno,  cerca  de  poucos  mℓ .  Entretanto,  a  seguir,  o  piloro  contrai­se  rápida  e abruptamente;  portanto,  uma  onda  peristáltica  antral  seguinte,  propelindo  o  quimo,  encontra  o  piloro  fechado,  o  que provoca retropropulsão do quimo. A contração antral com o piloro fechado e retropropulsão do quimo é conhecida como “sístole antral”. Estes processos repetem­se e propiciam a trituração do quimo (Figura 60.9). O  piloro  apresenta  dois  anéis  de  espessamento  conjuntivo,  designados  esfíncteres  intermediário  e  distal,  que delimitam o antro do bulbo duodenal. Nesta região, há descontinuidade da mucosa, da submucosa e das fibras musculares circulares entre o piloro e o bulbo duodenal. Apenas algumas fibras musculares longitudinais são contínuas entre as duas

regiões,  embora  seja  mantida  a  continuidade  dos  plexos  intramurais  entre  estômago  e  duodeno  (Figura  60.10).  Não  há concordância dos autores, quanto ao piloro ser um esfíncter anatômico ou fisiológico.

Figura 60.9 ■ Aspectos do estômago durante as peristalses gástricas.

Figura  60.10  ■   Representação  esquemática  do  esfíncter  pilórico,  em  secção  longitudinal.  Note  a  continuidade  de  fibras musculares  longitudinais  entre  estômago  e  duodeno.  A  musculatura  circular  é  descontínua,  formando  dois  espessamentos constituintes dos esfíncteres intermediário e distal. Este último é formado por tecido conjuntivo, em forma de anéis, seguido de

tecido  conjuntivo  que  delimita  o  estômago  do  bulbo  duodenal.  A  mucosa  e  a  submucosa  do  estômago  e  do  duodeno  são descontínuas. (Adaptada de Johnson, 1981.)

Materiais  não  esvaziados  do  estômago  durante  o  período  digestivo  são  propelidos  para  o  delgado,  por  ondas peristálticas do complexo migratório mioelétrico (CMM), nos períodos interdigestivos, que efetuam a faxina gástrica. Nos  períodos  interdigestivos,  durante  1  a  2  h,  a  musculatura  gástrica  é  quiescente.  Após  este  tempo,  ocorre  intensa atividade elétrica e contrátil, que se propaga da região média do corpo do estômago até o duodeno. Esta intensa atividade elétrica  e  motora  peristáltica,  denominada  complexo  migratório  mioelétrico  (CMM),  dura  cerca  de  10  min,  ocorrendo periodicamente  a  cada  90  min,  e,  literalmente,  empurra  qualquer  material  que  não  tenha  deixado  o  estômago  durante  o processo digestivo normal. A função dessa atividade é, portanto, de faxina.

Figura 60.11 ■ Velocidades  de  esvaziamento  gástrico  de  diferentes  materiais,  em  cães.  Note  que  a  solução  de  glicose  (1%) deixa  o  estômago  mais  rapidamente  do  que  os  pedaços  de  fígado  sólido  e  as  esferas  plásticas  (com  7  mm  de  diâmetro). (Adaptada de Hinder e Kelly, 1977; e de Berne et al., 2004.)

O quimo permanece no estômago entre 2 e 3 h, dependendo da natureza química da ingesta. Gorduras são os últimos nutrientes  a  serem  esvaziados,  seguidos  de  proteínas.  Carboidratos  esvaziam­se  mais  rapidamente,  e  soluções  salinas isotônicas  o  fazem  mais  rapidamente  do  que  as  hipo  e  hipertônicas.  O  epitélio  do  estômago  é  do  tipo  tight,  ou  seja, relativamente  pouco  permeável  pela  via  intercelular,  ao  contrário  do  epitélio  do  delgado.  O  álcool  pode  ser  absorvido através da mucosa gástrica, principalmente por via transcelular, uma vez que ele aumenta a fluidez das bicamadas lipídicas das  membranas  celulares.  Substâncias  que  não  foram  digeridas  no  estômago,  como  pedaços  de  ossos  ou  outros  objetos estranhos,  deixam  o  estômago  apenas  nos  períodos  interdigestivos,  por  ação  do  CMM.  A  Figura  60.11  mostra  as velocidades  de  esvaziamento  gástrico  em  cães  alimentados  com  solução  de  glicose  (1%),  pedaços  de  fígado  e  esferas plásticas. O estômago é ricamente inervado, tanto pelo SNA como pelo SNE. No estômago, há fibras vagais colinérgicas eferentes,  excitatórias,  que  elevam  tanto  a  motilidade  como  as  secreções gástricas. As fibras vagais vipérgicas e liberadoras de óxido nítrico são inibitórias, reduzindo a motilidade gástrica. Há, também, fibras  vagais  secretoras,  cujo  neurotransmissor  é  o peptídio  liberador  de  gastrina  (PLG)  ou  bombesina,  que estimula  as  células  produtoras  de  gastrina,  localizadas  no  antro.  As  fibras  eferentes  noradrenérgicas  para  o  estômago partem do gânglio celíaco e  induzem  diminuição  das  contrações  e  das  secreções  gástricas.  Além  da  regulação  efetuada pelo  SNA,  o  estômago  tem  o  SNE  bastante  desenvolvido,  o  qual  participa  também  da  regulação  da  motilidade  e  das secreções gástricas.

As fibras sensoriais aferentes originam­se em receptores sensoriais da parede gástrica e são estimuladas pela chegada do alimento. Estes receptores são presso, químio ou osmorreceptores, sendo estimulados, respectivamente, pela distensão da  parede  do  estômago  ou  aumento  da  pressão  intragástrica,  pela  composição  química  e  pela  tonicidade  do  quimo.  Há, também, receptores para dor. O  esfíncter  pilórico  é  densamente  inervado  por  fibras  parassimpáticas  e  simpáticas  eferentes.  Existem  fibras  vagais excitatórias colinérgicas e inibitórias vipérgicas ou mediadas pelo óxido nítrico ou metaencefalina. No piloro, ao contrário do que acontece com o restante da musculatura do TGI, as fibras simpáticas eferentes noradrenérgicas são estimulatórias, contraindo e fechando o piloro. As ondas lentas subliminares gástricas têm aspecto de um potencial de ação cardíaco ventricular de menor amplitude. Há rápida despolarização, seguida de rápida repolarização e de um platô, com duração de até 100 ms, após o qual ocorre repolarização lenta. Em fase com a onda lenta, há contração ou desenvolvimento de tensão (Figura 60.12). Se o potencial limiar ou elétrico é atingido, ocorrem potenciais de ação nas cristas das ondas lentas, o que eleva a força contrátil. Os  principais  agonistas  para  a  gênese  dos  potenciais  de  ação  gástricos  são  acetilcolina  e  gastrina,  que  elevam  a amplitude das ondas lentas, a frequência de potenciais de ação e a força contrátil. Norepinefrina e neurotensina diminuem não só a amplitude das ondas lentas como também a frequência dos potenciais de ação. Na  região  fúndica,  a  atividade  elétrica  é  baixa,  com  ausência  de  ondas  lentas.  No  corpo  proximal,  aparecem  ondas lentas,  de  pequenas  amplitudes,  que  aumentam  em  direção  ao  antro,  onde  começam  a  surgir  os  potenciais  de  ação.  A atividade  do  piloro  é  intensa  e  a  do  bulbo  duodenal,  irregular,  porque  é  afetada  pelos  dois  REB  –  do  estômago  (3 ondas/min) e do duodeno (12 ondas/min). As contrações do antro e do duodeno são, porém, coordenadas (Figura 60.13). O  esvaziamento  gástrico  é  altamente  regulado  por  mecanismos  neuro­hormonais  enterogástricos,  propiciando condições para o processamento do quimo pelo delgado. A  regulação  da  velocidade  de  esvaziamento  gástrico  é  exercida  pela  região  antropilórica  e  pelo  duodeno,  em  um processo duodenogástrico, altamente regulado por mecanismos neuroendócrinos que atuam nestas duas regiões.

Figura 60.12 ■ Relação entre atividade elétrica, ou onda lenta gástrica (traçado inferior), e a atividade contrátil (traçado superior). A contração se dá durante a despolarização da fibra muscular, após atingir o limiar contrátil, mesmo na ausência de potenciais de ação. (Adaptada de Johnson, 1981; e de Berne et al., 2004.)

Figura 60.13 ■ Regiões do estômago (à esquerda) e registros elétricos em fibras musculares lisas obtidos com microeletrodos intracelulares, em fragmentos isolados de várias porções do estômago de cão (à direita). Os números representam as seguintes regiões: 1 = fundo; 2 = corpo proximal; 3 = região mais distal do corpo proximal; 4 = região média do corpo; 5 = região caudal do corpo; 6 = região proximal e média do antro; 7 = região caudal do antro; 8 = região final do antro; 9 = região pilórica. Note que a musculatura do fundo é quiescente eletricamente. Ondas lentas começam a aparecer na região proximal do corpo gástrico e aumentam de intensidade em direção ao antro. Apenas a partir do antro distal, começam a aparecer potenciais de ação na fase de despolarização das ondas lentas. (Adaptada de Johnson, 1981; e de Berne et al., 2004.)

O  esfíncter  pilórico  tem  duas  funções  fundamentais.  (1)  Funciona  como  barreira  entre  estômago  e  duodeno  nos períodos interdigestivos, quando está contraído, evitando a regurgitação do conteúdo alcalino do duodeno para o estômago, e a do conteúdo ácido no sentido oposto. A mucosa gástrica é muito resistente a ácido mas não à bile, enquanto a duodenal pode sofrer danos por ácido. (2) Regula a velocidade de esvaziamento gástrico de acordo com a capacidade do duodeno de processar o quimo. A  atividade  motora  do  piloro,  além  de  ser  coordenada  pelo  SNA,  é  também  regulada  pelos  seguintes  hormônios gastrintestinais: gastrina (G) –  secretada  por  células  G  antrais,  secretina  (S),  colecistocinina  (CCK),  peptídio  inibidor gástrico  (GIP)  e  enterogastrona  (sintetizada  em  locais  ainda  não  determinados).  Todos  estes  hormônios  contraem  o piloro, assim como os neurotransmissores acetilcolina (ACh) e norepinefrina (NE). A mucosa do delgado tem químio, mecano e osmorreceptores que, quando estimulados pela chegada do quimo gástrico ao duodeno, enviam impulsos aferentes para o SNC. As respostas eferentes são conduzidas por fibras vagais e simpáticas, que  afetam  a  resposta  motora  do  antro  e  do  piloro.  Por  outro  lado,  o  quimo  estimula  células  endócrinas  da  parede duodenal e jejunal, ocorrendo liberação de hormônios gastrintestinais que também afetam a motilidade antropilórica. O  pH,  a  tonicidade  e  a  composição  do  quimo  gástrico  que  atinge  o  duodeno  desencadeiam  mecanismos  neurais  e hormonais que, por retroalimentação negativa, regulam a motilidade do piloro e a velocidade de esvaziamento gástrico. O quimo proveniente do estômago tem pH ácido, é hipertônico em relação ao plasma e contém produtos da hidrólise lipídica e proteica, além de carboidratos já parcialmente digeridos. Quando o quimo atinge o duodeno, estimula químio e osmorreceptores  duodenais,  que  enviam  impulsos  sensoriais  aferentes  para  o  SNC.  Vejamos,  primeiro,  quais  são  as respostas neurais. As respostas neurais parassimpáticas eferentes são: inibição das vias parassimpáticas vagais vipérgicas e estimulação das  vias  colinérgicas,  resultando  na  contração  do  piloro.  As  vias  simpáticas  noradrenérgicas  são  estimuladas  e  induzem

contração do piloro, o que diminui a velocidade de esvaziamento gástrico. A pergunta pertinente é: até quando o piloro fica contraído? E a resposta: até o quimo poder ser processado pelo delgado. Isto é, até que o pH do quimo seja tamponado, os produtos  da  hidrólise  proteica  e  lipídica  sejam  hidrolisados  e  que  ele  se  torne  isotônico  em  relação  ao  plasma.  Os mecanismos hormonais reguladores da velocidade de esvaziamento gástrico serão abordados a seguir. O  pH  ácido  do  quimo  no  duodeno  estimula  a  secreção  de  secretina,  que,  além  de  contrair  o  piloro  retardando  o esvaziamento gástrico, provoca a secreção alcalina do pâncreas, tamponando o HCl. Se os valores de pH estiverem menores que 3,0 no delgado, haverá estimulação específica das células S, endócrinas, secretoras de secretina. Este hormônio, além do seu efeito direto de contrair o piloro e retardar o esvaziamento gástrico, estimula  os  ductos  excretores  pancreáticos  a  secretarem  uma  solução  aquosa  rica  em  NaHCO3.  Esta  solução  é  lançada, pelo ducto biliar comum, no duodeno, tamponando o HCl do quimo gástrico, segundo a reação: HCl + NaHCO3 → NaCl + H2CO3 → CO2 + H2O A  dissociação  do  H2CO3  é  catalisada  pela  anidrase  carbônica,  existente  na  mucosa  intestinal.  Desta  forma,  o  HCl gástrico é neutralizado. Na  Figura  60.14,  há  o  efeito  da  introdução,  no  duodeno  de  cão,  de  uma  solução  de  HCl  0,1  N,  mostrando  que  o aumento da motilidade duodenal é simultâneo à redução da motilidade antral. Os  produtos  da  hidrólise  lipídica  estimulam  a  secreção  de  CCK,  que  não  só  contrai  o  piloro,  retardando  o esvaziamento gástrico, como também estimula a secreção enzimática do pâncreas, diminuindo a tonicidade do quimo no delgado. Os  produtos  da  hidrólise  dos  lipídios,  já  parcialmente  digeridos  no  estômago,  são  o  principal  mecanismo  para  a estimulação  de  dois  tipos  de  células  endócrinas  do  delgado: células  produtoras  do  GIP  (peptídio  inibidor  gástrico  ou peptídio  insulinotrópico  dependente  de  glicose)  e  células  I,  secretoras  da  CCK.  Estas  duas  substâncias  contraem diretamente o piloro e retardam o esvaziamento gástrico. A CCK, além da ação motora, é um hormônio gastrintestinal que tem dois efeitos: (a) estimula as células acinares do pâncreas a secretarem enzimas, que são lançadas no duodeno, hidrolisando lipídios, carboidratos e proteínas no delgado, e (b)  é  o  principal  estimulador  da  contração  da  vesícula  biliar  e  também  relaxa  o  esfíncter  de  Oddi,  permitindo  que  a  bile seja  lançada  no  duodeno  juntamente  com  a  secreção  pancreática,  pelo  ducto  biliar  comum.  A  bile  atua  como  detergente sobre  as  gorduras,  facilitando  a  ação  das  enzimas  lipolíticas  pancreáticas.  Assim,  a  digestão  dos  nutrientes  orgânicos  se processa, originando moléculas que são absorvidas pelo delgado, diminuindo a tonicidade do quimo. Os  produtos  da  hidrólise  proteica  estimulam  a  secreção  de  gastrina,  a  qual  contrai  o  piloro  e  retarda  o  esvaziamento gástrico. A secreção de gastrina duodenal é estimulada por aminoácidos e oligopeptídios.

Figura 60.14 ■ Efeito da infusão de 100 mℓ de HCl 0,1 N (a uma velocidade de 6 mℓ/min) no duodeno de cão sobre a atividade contrátil do antro gástrico e do duodeno. (Adaptada de Brick et al., 1965; e de Berne et al., 2004.)

Os  produtos  da  hidrólise  lipídica  e  de  carboidratos  estimulam  a  liberação  endócrina  do  GIP,  também  denominado peptídio insulinotrópico dependente de glicose, que contrai o piloro e retarda o esvaziamento gástrico. A isotonicidade do quimo no delgado é alcançada por processos neuro­hormonais.

O quimo gástrico que chega ao duodeno, após uma refeição balanceada, é hipertônico em relação ao plasma, devido à presença dos produtos intermediários da hidrólise proteica, lipídica e de carboidratos. No delgado, há osmorreceptores que enviam  impulsos  aferentes  para  o  SNC,  induzindo  respostas  eferentes  vagal  colinérgica  e  simpática;  estas  contraem  o piloro, o que retarda a velocidade de esvaziamento gástrico, até o quimo no duodeno se tornar isotônico relativamente ao compartimento  intersticial­vascular.  A  isotonicidade  é  alcançada  por  secreção  de  água  do  compartimento  intersticial­ vascular para o lúmen intestinal. Simultaneamente, os mecanismos neuro­hormonais regulatórios estimulam as secreções pancreática  e  biliar,  que  são  lançadas  no  duodeno.  Estas  secreções  são  isotônicas  com  o  plasma.  Os  osmorreceptores duodenais estimulados também atuam na secreção hormonal de uma enterogastrona, cuja identidade química não foi ainda determinada, e que parece participar da regulação da tonicidade do quimo no delgado. Na Figura 60.15, estão resumidos os mecanismos neuro­hormonais duodenogástricos (enterogástricos) reguladores da velocidade de esvaziamento gástrico. O vômito é um mecanismo de defesa do TGI contra agentes nocivos, mas pode ser desencadeado por mecanismos neuro­hormonais cujas vias aferentes localizam­se fora do sistema digestório. O  vômito  consiste  na  expulsão  do  conteúdo  gastrintestinal  para  o  exterior,  através  da  cavidade  oral.  Ele  é desencadeado  por  estimulação  do  sistema  digestório  por  agentes  tóxicos  e  infecciosos,  assim  como  pelo  estímulo  de diversos  tipos  de  receptores  sensoriais  do  organismo.  Precede­o  uma  descarga  do  SNA,  caracterizada  por  sudorese, taquipneia, taquicardia, dilatação pupilar (midríase), intensa salivação, sensação de desmaio, palidez por queda de pressão arterial, náuseas (nem sempre presentes) e ânsias. As ânsias se desencadeiam por peristalse reversa, que se inicia nas porções distais do intestino (em geral, no jejuno) e que  propele  o  conteúdo  intestinal  para  o  estômago,  por  relaxamento  do  piloro.  Fortes  contrações  antrais  impulsionam  o conteúdo gástrico para o esôfago, através do esfíncter esofágico inferior relaxado. As ânsias se acompanham de profunda inspiração,  com  diminuição  da  pressão  intratorácica,  e  de  intensas  contrações  da  musculatura  abdominal,  com  subida  da pressão  no  abdome.  É  gerado,  assim,  um  gradiente  de  pressão  entre  abdome  e  tórax,  favorável  à  propulsão  do  conteúdo gastrintestinal para o esôfago. Durante as ânsias, pode ocorrer passagem da porção subdiafragmática do esôfago e da porção proximal do estômago para  o  tórax,  através  do  hiato  diafragmático.  Como  o  esfíncter  esofágico  superior  fica  contraído  durante  as  ânsias,  o conteúdo  gastrintestinal  retorna  ao  estômago.  Os  ciclos  de  ânsias  repetem­se,  acentuando  a  intensidade  das  contrações abdominais e torácicas. Uma inspiração profunda, com glote fechada e diafragma elevado, aumenta a pressão intratorácica, forçando o relaxamento do esfíncter esofágico superior e a expulsão do conteúdo gastrintestinal para o exterior. Durante essa expulsão, a glote fechada impede a entrada do vômito para a traqueia e inibe a respiração. O vômito e as ânsias são regulados por centros distintos no SNC. As vias sensoriais aferentes que enviam impulsos para os denominados centros do vômito e das ânsias, localizados no bulbo,  originam­se  em  receptores  sensoriais  de  diferentes  naturezas  e  localizações.  Esses  receptores  podem  ser:  visuais, olfatórios,  auditivos  (do  labirinto),  táteis  (da  orofaringe),  além  de  mecano  e  quimiorreceptores  da  parede  do  TGI.  Os estímulos  de  centros  nervosos  superiores  alcançam  o  centro  do  vômito  e  o  das  ânsias  através  de  uma  zona quimiorreceptora no assoalho do 4o ventrículo, no SNC. Os estímulos psíquicos, como a lembrança de algo desagradável e o medo, podem, estimular o vômito. Dor intensa, principalmente no trato geniturinário, também é estimuladora do vômito. Os  estímulos  eferentes  dos  centros  do  vômito  e  das  ânsias  são  conduzidos,  por  diferentes  nervos,  não  só  para  as musculaturas do TGI como também para os músculos respiratórios e abdominais. Os dois centros – o das ânsias e o do vômito  –  são  independentes,  pois  podem  ser  estimulados  de  modo  individual,  isto  é,  há  possibilidade  de  se  induzir  o vômito, não precedido de ânsia, ou de ocorrerem apenas as ânsias, não seguidas do vômito (Figura 60.16). Eméticos são fármacos estimuladores do vômito, podendo agir diretamente na zona quimiorreceptora cerebral (p. ex., a apomorfina) ou de modo indireto em receptores do sistema digestório.

Figura  60.15  ■   Mecanismos  neuro­hormonais  duodenogástricos  que  regulam  a  velocidade  de  esvaziamento  gástrico.  +, aumento;  –,  diminuição;  hormônio  não  identificado,  enterogastrona;  GIP,  peptídio  insulinotrópico  dependente  de  glicose. (Adaptada de Berne et al., 2004.)

Figura 60.16 ■ Regulação neural do vômito. (Adaptada de Berne et al., 2004.)

Anomalias motoras do estômago As  anomalias  mais  comuns  da  motilidade  gástrica  estão  relacionadas  às  alterações  da  velocidade  de esvaziamento gástrico. Elas podem ser classificadas em: (a) falha do esvaziamento por obstrução do piloro, por  câncer  ou  úlcera;  (b)  desorganização  ou  ausência  de  motilidade,  associadas  a  outras  patologias  de origem  metabólica,  como  no  diabetes  melito  ou  na  depleção  de  potássio.  Qualquer  que  seja  a  origem,  o retardo da velocidade de esvaziamento produz náuseas, perda de apetite, sensação de saciedade e vômito. O  enfraquecimento  do  esfíncter  pilórico  leva  ao  desenvolvimento  de  úlceras,  tanto  duodenais  como gástricas, uma vez que a mucosa gástrica resiste bastante ao ácido mas não à bile, e vice­versa em relação ao  duodeno.  Em  indivíduos  que  têm  úlcera  duodenal,  existe  perda  da  regulação  da  velocidade  de esvaziamento  gástrico,  a  qual  depende  altamente  dos  mecanismos  neuro­hormonais  duodenogástricos. Neste caso, é possível a velocidade de esvaziamento gástrico aumentar. Nas situações de úlcera gástrica, pode haver diminuição da velocidade de esvaziamento gástrico, o que induz mais prejuízo ao estômago. No tratamento cirúrgico de úlceras duodenais, a vagotomia bilateral foi bastante utilizada a fim de reduzir a  secreção  ácida  gástrica.  A  vagotomia  era  frequentemente  associada  à  piloroplastia  e  à  criação  de um bypass entre estômago e jejuno. Neste caso, há perda da regulação neuro­hormonal duodenogástrica. Muitos  pacientes  podem  não  apresentar  sintomas,  mas  alguns  desenvolvem  uma  condição  conhecida como  dumping,  que  resulta  do  fato  de  o  delgado  não  conseguir  processar  adequadamente  o  quimo esvaziado com rapidez do estômago. No caso de o quimo estar hipertônico no duodeno, ocorre um fluxo resultante de água, relativamente grande, do compartimento intersticial plasmático para o lúmen intestinal. Esta condição pode acarretar sudorese e sensação de desmaio, resultantes da queda da pressão arterial sistêmica.

Resumo Motilidade gástrica 1. O relaxamento  receptivo  do  estômago,  que  existe  durante  a  deglutição,  é  mediado  por  fibras  vagais VIPérgicas.  Ele  permite  o  alimento  se  armazenar  na  região  do  fundo,  sem  elevação  da  pressão intragástrica.  Como  a  musculatura  do  fundo  e  da  porção  proximal  do  corpo  é  fraca,  não  há  ação  de mistura do quimo com as secreções gástricas. 2. A mistura do alimento ocorre nas regiões média e distal do corpo. Movimentos peristálticos iniciam­se na região de marca­passo, na porção média do corpo, com uma frequência de 3 ondas/min. 3. A peristalse gástrica aumenta de intensidade e de velocidade da porção média do corpo à região antral do estômago. 4. A  trituração  do  alimento  se  dá  na  sístole  antral,  por  contração  do  antro,  com  o  piloro  fechado, ocorrendo retropropulsão do quimo. 5. O quimo é esguichado em pequenos volumes, através do piloro, sendo a velocidade de esvaziamento gástrico altamente coordenada por mecanismos neuro­hormonais duodenogástricos. 6. Contraem o piloro: gastrina, secretina, CCK, GIP, acetilcolina (liberada pelas fibras vagais excitatórias) e norepinefrina (liberada por fibras simpáticas). 7. Gastrina é liberada tanto do antro gástrico como do duodeno; secretina, do delgado, em resposta ao pH  ácido  do  quimo  gástrico;  CCK,  do  delgado,  pelos  produtos  da  hidrólise  lipídica  e  proteica  do quimo;  GIP,  em  resposta  a  gorduras  e  carboidratos;  e  uma  enterogastrona  (?)  é  liberada  devido  à hipertonicidade do quimo gástrico no duodeno. 8. Secretina  e  CCK,  além  de  contraírem  o  piloro,  retardando  o  esvaziamento  gástrico,  estimulam  a secreção  pancreática  rica  em  bicarbonato  e  em  enzimas,  respectivamente.  A  CCK  também  provoca contração da vesícula biliar e relaxamento do esfíncter de Oddi, permitindo a secreção da bile para o duodeno, o que facilita a digestão das gorduras. 9. O  REB  no  estômago  é  de  3  ondas/min.  As  ondas  lentas  aumentam  de  amplitude  no  sentido cefalocaudal, desenvolvendo potenciais de ação na região antropilórica.

10. Nos períodos interdigestivos, ocorre CMM, com periodicidade de 90 min, propelindo qualquer resíduo que não tenha sido esvaziado do estômago no período digestivo. 11. O piloro previne o esvaziamento gástrico rápido e o refluxo do conteúdo duodenal para o estômago. A mucosa duodenal é sensível ao ácido e a gástrica, à bile.

MOTILIDADE DO INTESTINO DELGADO Os padrões motores do delgado são, fundamentalmente, de mistura do quimo com as secreções e renovação do seu contato com a mucosa, otimizando a digestão e a absorção dos nutrientes. A propulsão se dá por peristalses curtas e pelo gradiente decrescente de pressão intraluminal no sentido cefalocaudal. O delgado é a porção mais longa e convoluta do intestino; seu comprimento representa 75% do comprimento total do TGI.  Apresenta  três  segmentos  pouco  diferenciados  histologicamente:  duodeno  (que  corresponde  a  cerca  de  5%  do delgado), jejuno (40%) e íleo (60%). O duodeno distingue­se do restante do intestino pela ausência de mesentério, sendo principalmente  uma  região  de  regulação  da  tonicidade  e  do  pH  do  quimo,  enquanto  o  jejuno  e  o  íleo  são  indistinguíveis histologicamente. A digestão e a absorção dos alimentos ocorrem, predominantemente, no duodeno e no jejuno proximal. O quimo permanece no delgado cerca de 2 a 4 h. A motilidade do delgado atende a três funções: (a) mistura do  quimo  com  as  secreções,  principalmente  no  duodeno, onde  são  lançadas  as  secreções  pancreática  e  biliar,  otimizando  os  processos  de  digestão;  (b) renovação  do  contato  do quimo com a mucosa intestinal, que otimiza os processos absortivos; e (c) propulsão do quimo no sentido cefalocaudal, em  direção  ao  cólon,  que  ocorre  por  dois  processos: peristalses curtas,  de  10  a  12  cm  de  comprimento,  e gradiente  de pressão luminal decrescente no sentido cefalocaudal. As segmentações são o padrão motor mais comumente observado no delgado. Correspondem a anéis que contraem a musculatura  circular,  dividindo  o  quimo  em  segmentos  ovais.  São  eventos  locais,  que  envolvem  apenas  1  a  4  cm  do delgado  e  ocorrem  a  intervalos  de  5  s.  Estas  contrações  alternam­se  e  são  os  principais  movimentos  de  mistura  e  de renovação do quimo com a mucosa intestinal. As segmentações, esquematizadas na Figura 60.17, dividem o quimo em porções ovais com alternâncias dos locais de contração.  Os  movimentos  segmentares  são  muito  mais  efetivos  no  processo  de  mistura  do  quimo  do  que  na  sua propulsão. A taxa de propulsão no delgado é baixa, permitindo que os processos de digestão e de absorção possam se dar eficientemente.  É  possível  as  segmentações  serem  propulsivas,  quando  elas  acontecem  em  áreas  adjacentes  de  maneira sequencial no sentido cefalocaudal. A  Figura  60.18  ilustra  a  taxa  de  segmentação  em  função  do  comprimento  do  delgado,  do  piloro  ao  íleo,  em experimentos nos quais foram utilizados 30 coelhos. Como o REB no delgado decresce no sentido cefalocaudal (sendo de 12 a 13/min no duodeno, de 10 a 11/min no jejuno e de 8 a 9/min no íleo), é gerado um gradiente de pressão intraluminal decrescente no mesmo sentido, facilitando a progressão do quimo.

Figura 60.17 ■ Esquema das segmentações em delgado de gato, que apresenta a alternância dos anéis contráteis (das linhas 1 a  4;  cerca  de  18  a  21  por  min).  As  linhas  tracejadas  indicam  onde  as  contrações  ocorrerão  e  correspondem  às  regiões relaxadas; as setas, a direção do movimento do quimo. (Adaptada de Berne et al., 2004.)

Ocorrem  no  delgado,  também,  peristalses  curtas,  que  percorrem  pequenas  extensões  do  seu  comprimento,  não superiores  a  10  a  12  cm.  Em  condições  normais,  não  há  peristalse  percorrendo  todo  o  delgado.  A  muscular  da  mucosa contrai­se  de  maneira  irregular,  com  uma  frequência  de  3  vezes/min.  Estas  contrações  alteram  as  dobras  da  mucosa  e misturam também o quimo no delgado, renovando o seu contato com a mucosa.

Figura 60.18 ■ Taxa de segmentação ao longo do delgado de coelhos, até uma distância de 310 cm a partir do piloro. (Adaptada de Berne et al., 2004.)

No  delgado,  também  ocorrem  contrações  irregulares  das  vilosidades  intestinais,  principalmente  no  jejuno,  o  que facilita, em especial, a absorção das gorduras, porque aumenta o fluxo linfático por esvaziamento do capilar lácteo. Nos períodos interdigestivos, ocorre CMM, em fase com a elevação da motilina plasmática, com função de faxina e de prevenção da migração bacteriana para porções proximais do delgado.

Nos  períodos  interdigestivos,  ocorre  CMM,  que  se  inicia  no  estômago  e  percorre  todo  o  delgado.  A  Figura 60.19 mostra os registros da atividade contrátil, obtidos a várias distâncias do ligamento de Treitz, que demarca o início do jejuno. A atividade contrátil propaga­se do antro gástrico para o delgado; note que após alimentação a atividade motora passa de intermitente a contínua. A gênese do CMM ainda é pouco compreendida. Alguns autores sugeriram que ele fosse mediado  pelo  vago,  pois,  em  cão,  o  resfriamento  dos  vagos  cervicais  abole  o  CMM  no  estômago,  mas  não  o  afeta  no delgado. Experimentos indicam um papel da motilina, hormônio do sistema digestório, sobre o CMM, mostrando que o nível plasmático dela aumenta em fase com as contrações (Figura 60.20). Ainda não está esclarecido qual o sinal regulador da secreção cíclica da motilina. O CMM no delgado, além da função de faxina (como acontece no estômago) que propele para o cólon algum resíduo do quimo não devidamente digerido e/ou absorvido, também previne a migração bacteriana do ceco às porções proximais do delgado. As ondas lentas e os potenciais de ação no delgado. A ocorrência das ondas lentas depende das propriedades intrínsecas da muscular externa do TGI. Essas ondas, como já nos referimos, dependem das flutuações rítmicas, espontâneas, do potencial de membrana das fibras musculares lisas. São  despolarizações  e  repolarizações  cíclicas  de,  aproximadamente,  5  a  15  mV.  A  frequência  de  tais  ondas  determina  o REB nas várias porções do TGI. Esta frequência pode ser modulada pelo SNA ou pelo SNE. No delgado, o REB decresce no sentido cefalocaudal. Assim, em cada segmento do delgado, a frequência das ondas lentas é constante, embora elas não ocorram  simultaneamente  em  todos  os  segmentos.  Essas  ondas,  no  delgado,  não  induzem  contrações.  Elas  só  são iniciadas em resposta aos potenciais de ação que surgem na fase de despolarização das ondas lentas. Portanto, quando os potenciais de ação aparecem, o delgado se contrai. Por este motivo, a frequência das ondas lentas estabelece a frequência das  contrações  nos  diferentes  segmentos  do  delgado.  O  músculo  relaxa  na  fase  de  repolarização  das  ondas  lentas.  Nem todas  as  ondas  lentas,  porém,  se  acompanham  de  potenciais  de  ação  e,  portanto,  de  contrações.  A  ocorrência  dos potenciais de ação depende da excitabilidade da fibra muscular regulada tanto pelo SNE como pelo SNA e, também, por diversos hormônios circulantes.

Figura 60.19 ■ Atividade contrátil do delgado, medida a várias distâncias do ligamento de Treitz antes e depois da ingestão de alimento. (Adaptada de Berne e Levy, 1983.)

Figura 60.20 ■ Complexo migratório mioelétrico (CMM) no delgado, medido a várias distâncias do ligamento de Treitz. Note que os níveis plasmáticos de motilina (indicados na parte superior) ocorrem em fase com os surtos da atividade contrátil do delgado (região entre as setas). (Adaptada de Berne e Levy, 1983.)

A regulação neural da motilidade do delgado e do esfíncter ileocecal. A  motilidade  do  delgado  é  regulada  não  só  pelo  SNE  como  também  pelo  SNA.  O  parassimpático  eferente  para  o delgado é fundamentalmente colinérgico e estimulador da motilidade. O simpático eferente é noradrenérgico e inibidor da motilidade; as fibras partem dos plexos celíaco e mesentérico superior. Tanto o parassimpático como o simpático agem via plexos intramurais. O  esfíncter  ileocecal  delimita  o  íleo  do  ceco,  a  porção  inicial  do  cólon.  Este  esfíncter  normalmente  está  fechado. Entretanto,  à  frente  de  peristalses  curtas  do  íleo,  o  esfíncter  ileocecal  relaxa,  permitindo  que  pequenas  quantidades  do quimo sejam literalmente esguichadas para o ceco. A passagem do quimo ileal ao ceco é relativamente lenta, permitindo ao cólon  proximal  absorver  adequadamente  água  e  eletrólitos.  A  regulação  deste  esfíncter  é  efetuada  tanto  pelo  SNE  como pelos nervos extrínsecos do SNA, sendo, também, modulada por hormônios. A  muscular  da  mucosa  é  regulada  pelo  SNA  simpático  noradrenérgico,  que  age  estimulando  sua  motilidade,  e as vilosidades do delgado parecem ser reguladas pela motilina. Os reflexos intestinais do delgado: peristáltico, intestinointestinais e gastroileal. O  reflexo  peristáltico  ocorre  quando  o  intestino  contrai­se  em  resposta  à  presença  do  quimo  no  seu  interior,  por distensão de sua parede. À frente desta contração, na porção distal (ou caudal) do intestino a musculatura relaxa, como já descrito.  O  reflexo  peristáltico  está  sob  controle  estrito  do  SNE  e  depende  da  integridade  dos  gânglios  intramurais.  É conhecido como lei do intestino. O reflexo intestinointestinal acontece quando há distensão de uma região extensa do intestino. Esta região contrai­se e a  musculatura  do  restante  do  intestino  fica  inibida  ou  relaxada.  Trata­se  de  um  reflexo  de  largo  alcance,  abrangendo  um comprimento  mais  extenso  do  intestino.  Tal  reflexo  depende  tanto  da  integridade  do  SNA  como  dos  plexos  intramurais, sendo abolido por seccionamento da inervação extrínseca. O reflexo gastroileal consiste  no  aumento  da  motilidade  do  íleo  em  resposta  à  elevação  da  motilidade  e  da  secreção gástrica,  o  que  facilita  a  progressão  do  quimo  do  delgado  para  o  cólon,  através  do  esfíncter  ileocecal.  O  estômago  e  o intestino  delgado  distal  ou  íleo  interagem  reflexamente.  As  vias  neurais  responsáveis  por  estes  reflexos  não  são conhecidas,  e  não  se  sabe,  também,  até  que  ponto  eles  são  afetados  por  hormônios.  Por  exemplo,  a  gastrina  aumenta  a motilidade do íleo e relaxa o esfíncter ileocecal. Alterações do estado emocional afetam a motilidade do delgado. Assim, esta motilidade é regulada, também, por centros nervosos superiores.

Hormônios  e  substâncias  endógenas  e  exógenas  também  regulam  a  motilidade  do  delgado,  alterando  o  tempo  de trânsito do quimo. Hormônios gastrintestinais afetam a motilidade do delgado. Gastrina, colecistocinina (CCK) e motilina estimulam sua motilidade, ao passo que secretina a inibe. Adicionalmente, a insulina eleva sua motilidade e o glucagon a diminui. Outras substâncias  endógenas  circulantes  também  afetam  a  motilidade  do  delgado.  Assim,  a  norepinefrina,  liberada  da suprarrenal,  inibe  as  contrações.  A  serotonina,  que  existe  em  grandes  quantidades  no  sistema  digestório,  e  as prostaglandinas estimulam a motilidade do intestino delgado. Como já foi referido, a progressão cefalocaudal do quimo no delgado é lenta, de 2 a 4 h. Muitas substâncias exógenas afetam  a  motilidade  do  delgado,  alterando  não  apenas  o  tempo  de  trânsito  do  quimo  neste  segmento,  como  também  os processos de digestão e absorção de macronutrientes, além dos de absorção de água e eletrólitos. Por exemplo, codeína e opioides  diminuem  a  motilidade  do  delgado,  aumentando  o  tempo  de  trânsito,  o  que  leva,  como  consequência,  a  uma excreção  fecal  de  volume  e  frequência  reduzidos.  Muitos  laxantes  reduzem  o  tempo  de  trânsito,  propiciando  decréscimo dos  processos  de  absorção  de  água  e  de  eletrólitos  no  delgado.  Como  a  quantidade  de  líquido  que  chega  ao  cólon  pode ultrapassar a capacidade absortiva deste, ocorre diarreia em tais condições.

Alterações patológicas da motilidade no intestino delgado São  raras  as  patologias  resultantes  de  uma  alteração  primária  da  motilidade  do  delgado.  Elas  estão comumente associadas a modificações da musculatura lisa, tanto do TGI como do trato urinário. A pseudo­ obstrução  idiopática  é  uma  síndrome  que  envolve  falhas  da  motilidade  intestinal,  podendo  ocorrer alterações das células musculares lisas ou dos plexos intramurais. Desconhece­se sua causa; supõe­se que haja um componente genético. Diminuição da motilidade do delgado pode se dar em diversas condições. A mais  comum  é  o  íleo  paralítico,  que  surge  após  cirurgia  abdominal.  Pode  também  haver  redução  da motilidade  consequente  de  processos  inflamatórios  abdominais  (p.  ex.,  apendicite,  pancreatite  ou abscessos). É ainda associada a doenças metabólicas, como diabetes melito, ou a efeitos de substâncias, como  anticolinérgicos.  Trânsito  intestinal  aumentado  pode  ocorrer  em  associação  a  problemas  de  má absorção  intestinal,  infecções,  reações  alérgicas  e  ação  de  fármacos.  Não  é  claro,  nestes  casos,  se  as alterações  da  motilidade  são  causa  ou  consequência  da  presença  no  delgado  de  substâncias  não absorvidas.

Resumo Motilidade do delgado 1. O principal padrão de motilidade do delgado é a segmentação. São contrações da musculatura circular que dividem o quimo em segmentos ovais, alternados em pequenas extensões do intestino. Otimizam a digestão,  promovendo  a  mistura  do  quimo  com  as  secreções  presentes  no  delgado;  adicionalmente, facilitam a absorção dos nutrientes, porque circulam o quimo, ao fomentar seu contato com a mucosa intestinal. 2. Peristalses curtas também  ocorrem  em  extensões  não  maiores  que  10  a  12  cm  do  comprimento  do delgado. 3. A  propulsão  cefalocaudal  do  quimo  é  lenta  e  ocorre  por  segmentações  sequenciais  e  peristalses curtas. 4. O REB decresce no sentido cefalocaudal, gerando um gradiente de pressão que facilita a propulsão do quimo. 5. No  delgado,  não  acontecem  contrações  em  fase  com  as  ondas  lentas.  Elas  ocorrem  quando  são desencadeados potenciais de ação na crista dessas ondas. 6. A inervação vagal colinérgica estimula as contrações e a simpática noradrenérgica as  inibe.  As  fibras simpáticas eferentes partem dos plexos celíaco e mesentérico superior. 7. A regulação da motilidade do esfíncter ileocecal se efetua principalmente pelo SNE. 8. Contração da muscular da mucosa é regulada pelo SNE e a das vilosidades, pela motilina.

9. O  aumento  da  motilidade  e  a  secreção  gástrica  elevam  a  motilidade  do  íleo  pelo  reflexo  gastroileal, promovendo o relaxamento do esfíncter ileocecal e a entrada do quimo no cólon ascendente. 10. O  CMM  tem  função  de  faxina  e  de  prevenção  da  migração  bacteriana  para  porções  proximais  do delgado.  Propaga­se  do  estômago  ao  delgado  e  depende  da  integridade  dos  plexos  intramurais  e da motilina. 11. Gastrina, CCK e motilina aumentam a motilidade. Secretina inibe­a.

MOTILIDADE DO CÓLON E DEFECAÇÃO O cólon difere do delgado anatômica e funcionalmente. A Figura 60.21 esquematiza as diversas porções do cólon. O proximal compreende ceco, apêndice vermiforme e cólon ascendente.  Segue­se  o  cólon  transverso  e  o  distal,  que  compreende  o  cólon  descendente  e  o  sigmoide.  Este  último continua­se no reto e no canal anal. A musculatura longitudinal no cólon é concentrada em três feixes denominados taenia coli, que correm do ceco até o reto,  abaixo  dos  quais  se  concentra  o  plexo  mioentérico.  Entre  as  taeniae,  a  musculatura  longitudinal  é  tênue.  A musculatura  circular  do  cólon  é  contínua  do  ceco  ao  canal  anal,  onde  ela  se  espessa,  formando  o esfíncter  anal  interno (EAI). O esfíncter anal externo (EAE), mais distalmente localizado, tem musculatura estriada. O aspecto externo do cólon difere do apresentado pelo delgado. Sua parede apresenta dobras da mucosa que resultam de características estruturais do cólon. Há segmentos ovoides, designados haustra. Nestas regiões, a musculatura circular é  mais  concentrada.  Os haustra são  mais  frequentes  nas  regiões  do  cólon  que  têm  as  taenia  coli.  Eles  não  são  fixos; formam­se e desfazem­se, conforme ocorrem contrações da musculatura circular, segmentando o cólon.

Figura 60.21 ■ Esquema do cólon e seus vários segmentos. (Adaptada de Berne et al., 2004.)

O  cólon  está  envolvido  com  as  seguintes  funções  motoras:  (a)  movimentação  com  retropropulsão  do  conteúdo colônico,  renovando  o  seu  contato  com  a  mucosa,  otimizando  o  processo  de  absorção  de  água  e  eletrólitos,  que  se  dá predominantemente no cólon ascendente; (b) mistura, amassamento e lubrificação do  conteúdo  colônico  com  a  secreção de  muco,  efetuada  pelas  células  caliciformes,  que  existem  em  grande  número  na  mucosa  do  cólon  transverso  e descendente, principalmente; (c) propulsão cefalocaudal do conteúdo colônico, que ocorre ao longo de todo o cólon; (d) expulsão das fezes ou defecação, que envolve o reto e o canal anal. O  cólon  não  tem  enzimas  luminais  ou  da  borda  em  escova;  não  faz  absorção  de  nutrientes  orgânicos,  exceto  de ácidos graxos voláteis; absorve água e NaCl; secreta K+ e HCO3–.

O  cólon  não  processa  hidrólise  enzimática  de  nutrientes,  uma  vez  que  não  tem  enzimas  luminais  ou  da  borda  em escova.  Ele  também  não  é  local  para  absorver  os  produtos  de  hidrólise  dos  nutrientes  orgânicos.  Está,  entretanto, envolvido nos processos finais de absorção de água e de eletrólitos. Quantitativamente, o delgado efetua a maior parte da captação de água e de eletrólitos. Diariamente, dos 9 ℓ de líquido contidos no lúmen do TGI, o delgado absorve cerca de 7,5 ℓ, chegando ao cólon apenas 1,5 ℓ. Destes, o cólon absorve 1,4 ℓ, sendo excretado somente 0,1 ℓ de líquido por dia nas fezes. Assim, o cólon absorve quase toda a água e NaCl que o alcançam,  mas  secreta  K+ e HCO3–.  Embora,  comparativamente,  a  absorção  de  água  e  íons  no  cólon  seja  pequena,  este segmento  tem  importante  função  para  regular  a  absorção  final  de  volume,  que  ocorre,  sobretudo,  no  cólon  proximal  ou ascendente.  O  restante  do  cólon  é  implicado  não  só  com  a  formação,  a  lubrificação  e  o  armazenamento  das  fezes,  como também com o processo de defecação. O  ceco  é  o  principal  local  de  fermentação  bacteriana.  Alguns  produtos  dessa  fermentação  são  absorvidos  no  cólon proximal. Os ácidos graxos de cadeias curtas, ou ácidos graxos voláteis, também são absorvidos no cólon. A progressão do conteúdo luminal no cólon é lenta, cerca de 5 a 10 cm/h, podendo o material fecal permanecer por até 48 h nesta porção do intestino. Os  padrões  motores  do  cólon  são  as  haustrações  e  os  movimentos  de  massa  envolvidos  com  o  processo  da defecação. Dois padrões básicos de motilidade ocorrem no cólon: os movimentos de mistura do conteúdo colônico, que facilitam o  processo  absortivo  de  água  e  íons,  principalmente  no  cólon  ascendente,  e  o movimento  de  massa,  que  pode  percorrer toda a extensão colônica. A chegada do conteúdo luminal do íleo ao cólon proximal é regulada pela atividade do esfíncter ileocecal.  O  principal  reflexo  envolvido  na  motilidade  deste  esfíncter  é  o  reflexo  gastroileal,  no  qual  o  aumento  da atividade contrátil e secretora do estômago (que ocorre após a ingestão de alimento) provoca maior atividade contrátil do íleo  e  vice­versa;  ou  seja,  a  diminuição  da  atividade  gástrica  reduz  a  ileal.  Este  reflexo  parece  ser  regulado  tanto  por nervos extrínsecos como por hormônios gastrintestinais; entre eles, a gastrina e a CCK, que elevam a atividade contrátil do íleo e relaxam o esfíncter ileocecal. Registros  de  pressão  obtidos  com  sensores  colocados  no  esfíncter  ileocecal  são  mostrados  na Figura  60.22.  Esta  é uma região de pressão aumentada, com um nível basal ou de repouso de 20 a 40 mmHg acima da pressão no íleo. O tônus do esfíncter ileocecal parece ser predominantemente intrínseco, regulado pelo SNE intramural. A distensão do íleo induz diminuição de pressão do esfíncter (ver Figura 60.22 A), permitindo a progressão do quimo do íleo ao cólon. Por outro lado,  quando  o  cólon  proximal  se  contrai,  o  esfíncter  se  fecha,  como  mostra  o  aumento  de  sua  pressão  (ver  Figura 60.22 B), prevenindo o refluxo do conteúdo colônico para o íleo.

Figura  60.22  ■   Pressões  intraluminais  medidas  no  esfíncter  ileocecal.  Note  que  a  pressão  de  repouso  desta  região  é  de aproximadamente 20 a 40 mmHg. A. A distensão do íleo induz diminuição de pressão do esfíncter, permitindo que o conteúdo ileal  penetre  o  cólon. B. Quando  o  cólon  se  contrai,  aumenta  a  pressão  no  esfíncter  e  ele  se  fecha,  impedindo  o  refluxo  do conteúdo colônico ao íleo. (Adaptada de Berne et al., 2004.)

A  chegada  do  conteúdo  luminal  ao  cólon  ascendente  induz  contrações  segmentares,  com  durações  de  12  a  60  s,  nas quais  a  pressão  intraluminal  é  de  cerca  de  10  a  50  mmHg.  Estas  contrações  são  as  haustrações,  que  movimentam  o

conteúdo  luminal  tanto  no  sentido  cefalocaudal  como  no  oposto,  por  retropropulsão.  Estes  movimentos  são  lentos  e, fundamentalmente, de mistura e de exposição do conteúdo luminal à mucosa intestinal, otimizando a absorção de água e íons  que  se  dá  predominantemente  neste  segmento  do  cólon  (Figura  60.23).  Pode  ocorrer  esvaziamento  do  conteúdo luminal  de  um  ou  de  vários  haustra  para  outro,  no  sentido  cefalocaudal,  o  que  propele  o  conteúdo  luminal  a  curtas distâncias.  Este  processo  denomina­se propulsão  segmentar  ou  multi­haustral.  As  haustrações  cessam  quando  acontece um movimento de massa que  contrai  grandes  extensões  do  cólon,  propelindo  o  seu  conteúdo  no  sentido  cefalocaudal.  O movimento de massa ocorre 1 a 3 vezes/dia. Nos cólons transverso, descendente e sigmoide, ainda ocorre uma absorção residual  de  água  e  íons.  As  haustrações  que  surgem  no  cólon  descendente  e  sigmoide  são  mais  frequentes  que  as observadas no ascendente e transverso, embora nas porções distais do cólon não sejam propulsivas. Elas têm uma função de amassamento e lubrificação das fezes pelo muco, abundantemente secretado no cólon. Nestes locais, a consistência do conteúdo luminal é pastosa. Propulsão só ocorre no cólon distal, pelo movimento de massa. Nos períodos entre as defecações, normalmente o reto está vazio; seus movimentos segmentares são mais intensos e frequentes  que  os  do  cólon  sigmoide,  desenvolvendo,  assim,  uma  pressão  interna  maior  (esta  é  a  razão  pela  qual supositórios  retais  movem­se  para  o  sigmoide).  Os  dois  esfíncteres  anais  –  o  interno  e  o  externo  –  estão  contraídos tonicamente.  A  distensão  do  reto,  pela  chegada  das  fezes,  em  resposta  ao  movimento  de  massa,  distende  a  sua  parede  e desencadeia o reflexo da defecação. A  inervação  extrínseca  parassimpática  do  cólon  é  efetuada  pelo  nervo  pélvico,  desde  o  cólon  transverso  até  o esfíncter anal interno; a inervação simpática parte dos plexos mesentéricos e hipogástricos. No cólon, a inervação extrínseca parassimpática, tanto aferente como eferente, é feita pelo vago até a altura do cólon transverso. A inervação eferente vagal é colinérgica. O cólon descendente, o sigmoide, o reto e o canal anal, até o esfíncter anal  interno,  são  inervados  por  fibras  aferentes  e  eferentes  parassimpáticas  do  nervo  pélvico,  cujos  corpos  celulares localizam­se  na  medula  sacral.  O  esfíncter  anal  externo  tem  musculatura  estriada  e  é  inervado  pelo  nervo  pudendo, somático,  colinérgico,  que  também  inerva  tonicamente  o  músculo  puborretal,  responsável  pela  angulação  quase  reta  que ocorre entre o cólon sigmoide e o reto. A estimulação parassimpática colinérgica aumenta a motilidade do cólon, ao passo que a simpática persistente causa obstipação (ou constipação intestinal), por inibição da motilidade. A Figura 60.24 mostra o efeito de doses crescentes de acetilcolina sobre as atividades elétrica e motora da musculatura circular do cólon; indica que, no cólon, esse neurotransmissor eleva o tempo de despolarização das ondas lentas e a atividade contrátil. A  inervação  simpática,  tanto  aferente  como  eferente,  para  o  cólon  ascendente  e  ceco  parte  do  plexo  mesentérico superior; para o cólon transverso e descendente, do plexo mesentérico inferior; e, para o cólon sigmoide, reto e canal anal, dos  plexos  hipogástricos.  A  inervação  simpática  noradrenérgica  inibe  a  motilidade  do  cólon,  que  é  também  ricamente inervado pelo SNE. As fibras parassimpáticas e simpáticas eferentes fazem sinapses nos plexos intramurais. Há duas classes de marca­passo no cólon. No  cólon,  há  duas  classes  de  marca­passo.  O  que  se  localiza  próximo  à  submucosa,  no  limite  entre  a  musculatura circular  e  a  submucosa,  que  apresenta  um  REB  de  6  ondas  lentas/min,  e  o  situado  entre  as  musculaturas  longitudinal  e circular, com um REB de 20/min. A Figura 60.25 mostra registros intracelulares de ondas lentas e de potenciais de ação da musculatura circular do cólon de cão, obtidos com microeletrodos. Os registros foram feitos a diferentes profundidades na  musculatura  circular,  a  partir  do  bordo  submucoso,  expressas  em  porcentagem  da  distância  desse  local  (% representando  o  bordo  submucoso  e  100%  o  bordo  mioentérico).  Somente  ondas  lentas  são  observadas  nas  regiões próximas  ao  bordo  submucoso.  Entre  as  duas  regiões,  há  os  dois  tipos  de  atividade,  com  frequências  diferentes.  No quadro pequeno à direita da figura, estão mostradas uma onda lenta, em azul, e a contração em fase com ela, em preto.

Figura 60.23 ■ Esquema das haustrações no cólon (A) e movimento em massa conduzindo o material colôni­co ao reto (B).

Figura  60.24  ■   Efeito  de  doses  crescentes  de  acetilcolina  sobre  as  atividades  elétrica  e  motora  da  musculatura  circular  do cólon, in vitro. Registros em azul: atividade elétrica. Registros em preto: atividade motora. De cima para baixo: condição controle (sem acetilcolina), adição de 2∙10–7 M de acetilcolina, adição de 5∙10–7 M de acetilcolina e washout, ou lavagem, da acetilcolina da preparação. (Adaptada de Berne et al., 2004.)

Figura 60.25 ■ Registros  das  atividades  elétricas  e  contráteis  do  cólon,  obtidos  em  diferentes  profundidades  da  musculatura circular, expressas em porcentagem relativa à distância do bordo submucoso. Explicação da figura no texto. (Adaptada de Berne e Levy, 1983.)

O reflexo da defecação é coordenado pela medula sacral e consiste em relaxamento do EEI e contração do EEA, sendo desencadeado por movimento de massa em resposta a reflexos ortotáxico, gastrocólico e gastroileal. O movimento de massa ocorre  1  a  3  vezes/dia.  É  um  movimento  propulsivo,  que  pode  percorrer  toda  a  extensão  do cólon, desde a sua região proximal até a distal, conduzindo o conteúdo colônico para o reto. Mais frequentemente, porém, esse  movimento  acontece  no  cólon  distal.  Ele  resulta  dos  reflexos  ortotáxico,  gastrocólico  e  gastroileal.  O  primeiro consiste em aumento da motilidade do cólon em resposta à mudança da posição horizontal para a vertical; os outros dois surgem  ao  despertar,  em  resposta  ao  aumento  da  atividade  contrátil  e  secretora  gástrica,  desencadeado  pela  chegada  do alimento  ao  estômago  depois  do  desjejum.  Estes  reflexos  são  coordenados  pelo  nervo  vago,  no  cólon  proximal,  e  pelo pélvico, no distal. São afetados, também, por hormônios gastrintestinais, tanto pela gastrina como pela CCK, cujos níveis plasmáticos elevam­se após uma refeição. Quando  o  reto  se  distende  pela  chegada  das  fezes  ao  seu  interior,  devido  ao  movimento  de  massa,  se  desencadeia o reflexo da defecação. Essa distensão é passiva, e pode provocar o reflexo da defecação caso seja suficientemente grande. Nesta situação, ocorrem a distensão ativa do reto e o reflexo da defecação (Figura 60.26). O  reflexo  da  defecação  consiste  no  relaxamento  do  esfíncter  anal  interno  (EAI)  e  na  contração  do  esfíncter  anal externo  (EAE).  A Figura 60.27 mostra  os  registros  das  pressões  dentro  do  reto  e  nos  dois  esfíncteres  anais  durante  o reflexo da defecação. Quando as fezes distendem o reto, há aumento passivo de sua pressão interna, que é suficiente para ele se contrair e aumentar ainda mais a pressão, agora ativamente. Isto é acompanhado de redução da pressão do EAI, que se  relaxa,  e  por  aumento  da  pressão  do  EAE,  que  se  contrai.  Como  as  fezes  continuam  a  entrar  no  reto,  as  pressões  no EAI diminuem de amplitude e no EAE aumentam. A  distensão  do  reto,  além  de  desencadear  o  reflexo  da  defecação,  sinaliza  a  conscientização  da  necessidade  de evacuação. Se esta for protelada, os esfíncteres retomam os seus tônus normais e ocorre retropropulsão das fezes do reto ao  sigmoide.  A  perda  deste  reflexo,  que  pode  advir  de  lesões  da  medula  sacral,  induz  defecação  toda  vez  que  o  reto  é distendido, causando incontinência fecal.

Figura 60.26 ■ Alteração da pressão no reto, pela entrada das fezes no seu interior. Explicação da figura no texto. (Dados de Schuster et al., 1965; adaptada de Boron e Boulpaep, 2005.)

Figura  60.27  ■   Registros  de  pressão  no  reto  e  nos  esfíncteres  anais  durante  o  refle­xo  da  defecação.  EAI,  esfíncter  anal interno; EAE, esfíncter anal externo. Explicação no texto. (Dados de Schuster et al., 1965; adaptada de Boron e Boulpaep, 2005.)

A  defecação  é  um  processo  complexo  que  envolve  controle  reflexo  involuntário  e  regulação  voluntária.  O  centro coordenador  do  reflexo  localiza­se  na  medula  sacral,  e  as  vias  são  parassimpáticas  colinérgicas.  Centros  nervosos superiores modulatórios agem sobre a medula sacral. O simpático não participa do controle do processo de defecação. O controle  voluntário  sobre  o  processo  é  exercido  pelo  nervo  somático  pudendo,  que  inerva  o  esfíncter  anal  externo  e  o músculo puborretal. Se  a  defecação  acontecer,  há  relaxamento  voluntário  do  EAE  e  relaxamento  do  músculo  puborretal,  o  que  retifica  o cólon  sigmoide  em  relação  ao  reto,  facilitando  a  expulsão  das  fezes.  Participam  do  processo  de  expulsão  das  fezes  os músculos respiratórios e os abdominais. A evacuação é precedida de inspiração profunda, o que move o diafragma para baixo. A glote é fechada. As contrações da musculatura respiratória com os pulmões cheios e a glote fechada elevam as pressões intratorácica e intra­abdominal. As  contrações  da  musculatura  abdominal  elevam  ainda  mais  a  pressão  no  abdome,  forçando  a  expulsão  das  fezes.  O assoalho pélvico relaxa­se, provocando seu deslocamento para baixo e prevenindo o prolapso do reto.

Alterações patológicas da motilidade do cólon As  alterações  do  trânsito  intestinal  ainda  não  são  bem  compreendidas.  Diminuição  causa  constipação intestinal e aumento, diarreia. Fatores dietéticos podem afetar o tempo de trânsito intestinal. Uma dieta rica em fibras vegetais faz crescer o trânsito no cólon, por mecanismo não conhecido.

A  doença  de  Hirschsprung  ou  megacólon  congênito  caracteriza­se  por  ausência  de  SNE, frequentemente no cólon distal e no esfíncter anal interno, podendo, entretanto, atingir segmentos maiores do cólon e do reto. Os segmentos envolvidos apresentam tônus aumentado, o que reduz o lúmen intestinal, havendo ausência de atividade propulsiva. Por este motivo, o reflexo da defecação é inexistente, ocorrendo constipação  intestinal.  Há  também  dilatação  das  regiões  do  cólon  localizadas  acima  dos  segmentos contraídos, causando o megacólon. O tratamento é cirúrgico. Outra  condição  patológica  comum  é  a  síndrome  do  cólon  irritável,  caracterizada  por  alterações  da motilidade  do  cólon  sigmoide.  Em  alguns  casos,  ocorre  aumento  da  motilidade  do  cólon  sigmoide, acarretando  diarreia;  em  outros,  há  diminuição  da  sua  motilidade,  provocando  constipação  intestinal.  Em ambos  os  casos,  existe  dor  abdominal.  A  etiologia  desta  patologia  ainda  não  é  clara.  Supõe­se  que  seja consequência  de  um  condicionamento  das  respostas  autonômicas  a  condições  externas  como  estresse, medicamentos, hormônios etc. Outros autores sugerem que esta síndrome pode resultar de alterações da atividade elétrica da musculatura do cólon.

Resumo Motilidade do cólon e defecação 1. Haustrações  são  segmentações  do  cólon  resultantes  da  contração  da  musculatura  circular  mais concentrada nas taeniae coli. 2. A progressão do quimo do íleo ao ceco ocorre por regulação mioentérica do esfíncter ileocecal. Este se relaxa à frente da contração do íleo e se contrai por aumento da pressão no cólon descendente. 3. No cólon ascendente, ocorrem haustrações com retropropulsão do quimo, misturando­o e expondo­o à mucosa, o que otimiza a absorção de água e íons que ocorre, principalmente, neste segmento. 4. Nos cólons transverso, descendente e sigmoide, não há retropropulsão, e as haustrações têm função de amassamento e lubrificação das fezes. 5. Entre  as  defecações,  o  reto  e  o  canal  anal  estão  normalmente  vazios  e  relaxados,  ao  passo  que os esfíncteres anais, contraídos. A atividade motora do reto é maior que a do sigmoide. 6. Movimentos  de  massa  ocorrem  3  vezes/dia,  em  resposta  aos  reflexos  ortotáxico,  gastrocólico  e gastroileal.  São  contrações  que  podem  percorrer  grandes  extensões  do  cólon,  propelindo  as  fezes para o reto. 7. A  distensão  do  reto  desencadeia  o reflexo  da  defecação,  coordenado  na  medula  sacral,  e  sinaliza  a conscientização da necessidade de evacuar. Este reflexo consiste em relaxamento do EAI e contração do EAE. Os esfíncteres readquirem seus tônus normais se a defecação não ocorre, e as fezes sofrem retropropulsão para o sigmoide. 8. A defecação se dá por relaxamento voluntário do EAE em resposta ao reflexo da defecação. Esta fase é coordenada pela medula sacral com eferência de centros nervosos superiores. 9. O  EAE  tem  musculatura  estriada  e  é  inervado  pelo músculo  somático  pudendo,  que  inerva  também o músculo puborretal. 10. Na  evacuação,  ocorre  contração  das  musculaturas  respiratória  e  abdominal,  com  aumento  das pressões torácica e abdominal auxiliando a expulsão das fezes. Há relaxamento do músculo puborretal, com retificação do sigmoide e dos músculos do assoalho pélvico. 11. A estimulação parassimpática colinérgica aumenta a motilidade do cólon; a simpática noradrenérgica a diminui, causando constipação intestinal (obstipação).

BIBLIOGRAFIA BERNE RM, LEVY MN. Physiology. 4. ed. Mosby Inc., St. Louis, 1998. BERNE RM, LEVY MN, KOEPPEN BM et al. Physiology. 4. ed. Mosby Inc., St. Louis, 2004. BORON WF, BOULPAEP EL. Medical Physiology. W.B. Saunders Co., Philadelphia, 2005. BRICK BM, SCHLEGEL JF, CODE CF. The pressure profile of the gastroduodenal junctional zone in dogs. Gut, 6:163­71, 1965.

BUCHAN AMJ. Digestion and absorption. In: PATTON HD, FUCKS AS, HILLE B et al. (Eds.). Textbook of Physiology. 21. ed. WB Saunders Co., Philadelphia, 1989. DAVENPORT HW. Physiology of Digestive Tract. 3. ed. Year Book Medical Publishers Inc., Chicago, 1971. HINDER RA, KELLY KA. Canine gastric emptying of solids and liquids. Am J Physiol, 233:E335­40, 1977. JOHNSON LR. Gastrointestinal Physiology. The Mosby Physiology Monograph Series. 6. ed. 2001. JOHNSON LR (Ed.). Physiology of the Gastrintestinal Tract. Raven Press, New York, 1981. SCHUSTER  MM,  HOOKMAN  P,  HENDRIX  TR  et  al.  Simultaneous  manometric  recording  of  internal  and  external  anal sphincteric reflexes. Bull Johns Hopkins Hosp, 116:79­88, 1965.



Secreção salivar

■ ■

Secreção gástrica Secreção exócrina do pâncreas

■ ■

Secreção biliar Bibliografia

SECREÇÃO SALIVAR A saliva é volumosa e hipotônica em relação ao plasma. A  saliva  é  um  líquido  que  contém  eletrólitos  e  solutos  orgânicos  secretados  principalmente  pelas  glândulas  salivares maiores – parótidas, submandibulares e sublinguais. Participam, também, de sua composição o líquido gengival, detritos celulares,  microrganismos  da  cavidade  oral  e  o  líquido  secretado  por  várias  glândulas  menores,  dispersas  em  toda  a mucosa oral. A  secreção  salivar  é  extremamente  importante  na  higiene,  saúde  e  conforto  da  cavidade  oral.  A  sua  ausência,  como ocorre  na  xerostomia  (boca  seca),  é  associada  a  infecções  crônicas  da  mucosa  oral  e  ao  aumento  da  incidência  de  cáries dentárias. A secreção salivar difere das outras secreções do sistema digestório pelas seguintes características: ■ O volume da secreção salivar é grande, superando muito o peso das glândulas salivares. Por dia, secreta­se de 1 a 1,5 ℓde  saliva,  o  que  corresponde  a  uma  taxa  secretória  de  1  mℓ/min/g  de  tecido.  Considerando  os  pesos  relativos  das glândulas salivares e do pâncreas, a secreção salivar é 50 a 70 vezes superior à pancreática ■ As  glândulas  salivares  têm  elevado  fluxo  sanguíneo,  cerca  de  10  vezes  maior  que  o  do  músculo  esquelético  em atividade, e, como consequência, apresentam alta taxa metabólica ■ A  secreção  salivar  é  regulada,  principalmente,  pelo  sistema  nervoso  autônomo,  ao  contrário  das  outras  secreções  do sistema digestório, que têm regulação neuro­hormonal ■ A saliva final é hipotônica em relação ao plasma; as secreções gástrica, pancreática e biliar são isotônicas. Xerostomia é uma neuropatia congênita ou causada por lesão dos VII e IX nervos cranianos. Resulta na ausência crônica da secreção salivar ou “boca seca”. Ocasiona lesões das mucosas oral e esofágica, por ausência do efeito lubrificador da mucina; provoca, também, aumento da incidência de cáries dentárias por processos  infecciosos,  devidos  à  ausência  de  anticorpos  (imunoglobulinas)  e  de  substâncias  bactericidas (lisozima) e bacteriostáticas (lactoferrina) na secreção salivar.

Figura  61.1  ■   Localização  dos  três  pares  de  glândulas  salivares  maiores,  responsáveis  por  90%  da  saliva  total  secretada. (Adaptada de Solomon et al., 1990.)

As glândulas salivares maiores são tubuloacinares. Há  três  pares  de  glândulas  salivares  maiores  –  parótidas,  submandibulares  e  sublinguais  –  além  de  várias  pequenas glândulas espalhadas na mucosa oral. Essas três glândulas produzem, aproximadamente, 90% da secreção salivar total. As submandibulares e sublinguais são responsáveis por cerca de 70% do fluxo salivar basal, não estimulado, ao passo que as parótidas  respondem  por  15  a  20%  e  as  glândulas  salivares  menores,  por  5  a  8%.  Entretanto,  as  parótidas  e  as submandibulares se responsabilizam por 45 a 50% do fluxo salivar estimulado pela presença de alimento na cavidade oral, enquanto a contribuição das outras glândulas é menor. As glândulas parótidas são maiores que as demais e localizam­se entre  o  ângulo  da  mandíbula  e  o  poro  acústico  externo;  as  submaxilares  situam­se  abaixo  do  corpo  da  mandíbula  e  as sublinguais, anteroinferiormente ao rebordo mandibular, abaixo da língua (Figura 61.1). Estruturalmente, as glândulas salivares são tubuloacinares. Os ácinos são as unidades secretoras, contendo entre 15 e 100 células. Os grupos de ácinos são delimitados por tecido conjuntivo, formando lóbulos. As células acinares sintetizam e secretam proteínas e um líquido com composição eletrolítica semelhante à do plasma e isotônico em relação a ele. Esta secreção acinar denomina­se saliva primária; é drenada do lúmen dos ácinos para os ductos intercalares que, nas porções mais  distais,  são  chamados  de  ductos  estriados,  devido  às  dobras  das  membranas  basolaterais  das  células  epiteliais. Nestas  dobras,  aninham­se  inúmeras  mitocôndrias,  indicando  intensa  atividade  metabólica,  envolvida  em  processos  de transporte  de  íons  entre  os  compartimentos  luminal  e  intersticial­plasmático.  Os  ductos  estriados  dos  diversos  ácinos unem­se, formando os ductos intralobulares; estes se juntam aos de outros lóbulos, originando os ductos extralobulares, que,  progressivamente,  aumentam  de  diâmetro,  passando  a  formar  os  ductos  excretores  principais,  que  se  abrem  na cavidade oral (ver Figura 61.1). A saliva  primária  ou  acinar,  ao  ser  drenada  pelo  sistema  de  ductos  excretores,  sofre  alterações  de  sua  composição iônica;  isso  acontece  devido  aos  processos  de  transporte  de  íons  pelas  duas  membranas  das  células  epiteliais  dos  ductos estriados. Assim, a saliva final secretada na cavidade oral resulta da ação de distintas populações de células epiteliais, as células acinares e as dos ductos. A secreção proteica acinar resulta, também, de diferentes populações de células. As parótidas secretam uma solução denominada secreção serosa, que contém relativamente baixo conteúdo de glicoproteína (mucina) e maior conteúdo de α­ amilase  salivar  (ptialina).  A  secreção  das  sublinguais  é,  predominantemente,  mucosa.  As  submandibulares  têm  uma secreção mista de mucina e de enzima (Figura 61.2). As glândulas salivares menores, espalhadas na mucosa da cavidade oral, secretam, fundamentalmente, mucina. A Figura 61.3 é um esquema da estrutura da glândula mista submandibular humana. As células acinares são mantidas unidas pelos complexos juncionais, tendo como elementos estruturais mais apicais as tight junctions; as células acinares intercomunicam­se por gap junctions. Os ácinos são envoltos por células mioepiteliais alongadas, que contêm filamentos

de miosina e actina que, ao se contraírem, expulsam a secreção acinar (ou saliva primária), drenada do lúmen dos ácinos para o sistema de ductos excretores. As  glândulas  salivares  são  altamente  vascularizadas.  O  fluxo  sanguíneo  é  suprido  por  ramos  da  carótida  externa,  a maxilar interna, a qual forma uma rede de arteríolas e capilares que envolvem os ácinos e os ductos. O sangue arterial flui em  sentido  oposto  (ou  em  contracorrente)  ao  do  fluxo  salivar.  O  sangue  venoso  circula  por  uma  rede  de  vênulas,  sendo drenado para a circulação sistêmica. A  inervação  eferente  para  as  glândulas  salivares  é  efetuada  pelo  sistema  nervoso  autônomo  parassimpático  e simpático,  cujos  principais  neurotransmissores  são  a  acetilcolina  e  a  norepinefrina,  respectivamente.  Estes neurotransmissores  ligam­se  a  receptores  localizados  nas  membranas  basolaterais  das  células  acinares  e  nas  dos  ductos. A  inervação  aferente  sensorial  percorre  os  nervos  autônomos,  sendo  ativada  por  inflamações  ou  traumatismos  das glândulas.  O  processo  infeccioso  mais  comum  das  glândulas  salivares  é  a  parotidite  aguda,  causada  pelo  vírus  da caxumba. A saliva protege a mucosa oral e os dentes. A lubrificação do bolo alimentar é feita pela mucina (N­acetilglicosamina), que, quando hidratada, forma o muco; este é  secretado  pelas  glândulas  de  secreção  mista  e  pelas  várias  glândulas  mucosas  espalhadas  no  tecido  de  revestimento interno da cavidade oral. Durante o processo de mastigação, o muco mistura­se às partículas alimentares, lubrifica o bolo alimentar  e  protege  não  só  a  mucosa  oral  como  também  os  dentes  da  ação  mecânica  do  alimento,  além  de  facilitar  o processo da deglutição. As proteínas que a saliva secreta são ricas em prolina, tendo, também, importância na lubrificação dos alimentos na cavidade oral. A diluição e a solubilização dos alimentos pela saliva relacionam­se às seguintes funções: ■ Gustação: uma vez que a solubilização dos alimentos estimula as papilas gustativas ■ Regulação  da  temperatura  dos  alimentos:  a  diluição  dos  alimentos,  efetuada  pela  saliva,  resfria  ou  aquece  os alimentos, conforme a temperatura corporal ■ Limpeza: a saliva remove restos de alimentos que se alojam entre os dentes ■ Fonação: o umedecimento da cavidade oral facilita a fonação ■ Ação tamponante: resulta do pH alcalino da saliva; protege a mucosa oral contra alimentos ácidos e os dentes contra produtos  ácidos  da  fermentação  bacteriana  dos  resíduos  alimentares  alojados  entre  os  dentes.  Durante  as  ânsias  que precedem o vômito, a salivação é grandemente estimulada, no sentido de proteger a mucosa oral contra o quimo ácido proveniente do estômago. A saliva realiza, ainda, outras ações de proteção da cavidade oral e dos dentes, descritas a seguir. ■ Ação bactericida: a saliva secreta lisozima (enzima que lisa as paredes de bactérias), SCN– (ou sulfocianeto, que tem ação bactericida) e a proteína ligadora de imunoglobulina A (que é ativa contra vírus e bactérias) ■ Ação  bacteriostática:  desempenhada  pela  lactoferrina,  substância  quelante  de  ferro,  que  impede  o  crescimento  de bactérias dependentes deste íon ■ Ação na cicatrização de feridas ou lesões da mucosa oral: efetuada pela secreção do fator de crescimento epidérmico, razão pela qual os animais instintivamente lambem suas feridas ■ Ação antimicrobiana: executada pelas proteínas ricas em prolina, que interagem com o Ca2+ e  com  a  hidroxiapatita, participando da manutenção da integridade dos dentes ■ Incorporação  de  flúor  e  fosfato  aos  dentes:  estes  íons  são  captados  do  sangue  e  concentrados  pelas  glândulas salivares, que os secretam na saliva.

Figura 61.2 ■ Cortes histológicos dos lóbulos das glândulas parótidas, submandibulares e sublinguais. (Adaptada de Hansen e Koeppen, 2003.)

Figura 61.3 ■ Esquema da glândula submandibular humana, com base na sua aparência microscópica. (Adaptada de Berne et al., 2004.)

Digitálicos, usados em procedimentos clínicos, aumentam as concentrações de Ca2+ e de K+ na saliva, o que eleva a secreção salivar.

As enzimas salivares iniciam a digestão dos carboidratos e das gorduras. São duas as principais enzimas secretadas pelas glândulas salivares: α­amilase salivar (ou ptialina) e lipase lingual. A primeira é sintetizada pelas células acinares; consiste em uma endoamilase, que hidrolisa ligações α[1­4]­glicosídicas no interior  das  cadeias  polissacarídicas.  O  pH  ótimo  de  ação  da  α­amilase  é  7,  mas  ela  pode  agir  entre  pH  4  e  11,  sendo rapidamente inativada a valores de pH menores que 4. Da ação exaustiva dessa endoamilase sobre a cadeia polissacarídica, resultam:  (1)  maltose  (dissacarídio)  e  maltotriose  (trissacarídio),  ambas  tendo  cadeias  retilíneas  com  ligações  α[1­4]­ glicosídicas,  e  (2)  as  α­limite  dextrinas,  com  cadeias  ramificadas  α[1­6]­glicosídicas,  contendo  de  6  a  9  monômeros  de glicose (mais informações no Capítulo 62, Digestão e Absorção de Nutrientes Orgânicos). A  ação  da  α­amilase  salivar,  na  cavidade  oral,  dura  pouco.  Entretanto,  ela  continua  no  interior  do  bolo  alimentar  no estômago,  durante  a  fase  de  armazenamento  do  alimento  no  fundo,  quando  as  ondas  peristálticas  ainda  não  misturaram esse  bolo  com  a  secreção  ácida  gástrica.  Assim,  a  α­amilase  salivar  hidrolisa  até  75%  dos  carboidratos,  da  boca  ao estômago.  Esta  enzima  não  é  essencial,  uma  vez  que  sua  ação  hidrolítica  sobre  os  carboidratos  é  suprida  pela  α­amilase pancreática, secretada em grande quantidade pelas células acinares do pâncreas. A  lipase  lingual  é  secretada  pelas  glândulas  de  von  Ebner  da  língua;  esta  enzima  hidrolisa  os  triacilgliceróis, resultando em ácidos graxos livres e monoacilgliceróis. Essa lipase difere da gástrica, embora existam entre elas 80% de homologia  na  sequência  aminoacídica.  As  lipases  lingual  e  gástrica  são  denominadas  lipases  ácidas  ou  pré­duodenais, porque  são  ativas  nos  valores  de  pH  inferiores  a  4,  diferindo  da  lipase  pancreática  tanto  no  que  se  refere  ao  pH  de  ação como  ao  mecanismo  hidrolítico.  Elas  também  não  são  essenciais;  tornam­se,  porém,  importantes  na  ausência  da pancreática ou na falha de sua ação (detalhes no Capítulo 62). A  calicreína  é  outra  enzima  produzida  nas  células  mesenquimatosas,  que  envolvem  os  ácinos  e  os  ductos,  sendo liberada  no  meio  intersticial  durante  a  estimulação  neural  da  secreção  salivar.  Esta  enzima  catalisa  a  produção de bradicinina, a partir de proteínas plasmáticas específicas. A bradicinina é um potente vasodilatador, que eleva o fluxo sanguíneo e a taxa metabólica das glândulas salivares. Também  são  secretadas  na  saliva  pequenas  quantidades  de RNAases, DNAases e peroxidase.  A  saliva  é  uma  via  de excreção das substâncias dos grupos sanguíneos A, B, AB e O. A composição eletrolítica salivar varia com a taxa secretória. A  composição  iônica  da  saliva  varia  com  o  fluxo  secretor,  conforme  mostrado  na  Figura  61.4.  A  baixos  fluxos secretórios,  sua  composição  difere  fundamentalmente  da  do  plasma,  sendo  hipotônica  quanto  a  ele.  O  aumento  do  fluxo secretor aproxima a composição salivar à do plasma, elevando sua tonicidade, embora a saliva continue sendo hipotônica em  relação  ao  plasma.  Mesmo  a  altas  taxas  secretórias,  a  tonicidade  da  saliva  é  de  cerca  de  70%  a  do  plasma.  As concentrações  de  Na+  e  de  Cl–  elevam­se  com  o  aumento  do  fluxo  salivar,  mas  mantêm­se  sempre  inferiores  às plasmáticas. A concentração de K+ é sempre superior à plasmática; a baixas taxas de secreção salivar, atinge 100 mM ou mais. Quando o fluxo salivar é baixo, o pH da saliva torna­se ligeiramente ácido. Mas este eleva­se com a estimulação do fluxo  secretor,  devido  ao  crescimento  da  concentração  de  HCO3–,  que  pode  chegar  até  100  mM,  conferindo  à  saliva  pH próximo a 8. Assim, o principal ânion da saliva final é o HCO3– e o principal cátion, o Na+(este, porém, sempre está em concentração menor que a do plasma).

Figura 61.4 ■ Variações da composição iônica da saliva final, em função da magnitude do fluxo secretor. (Adaptada de Berne et al., 2004.)

A composição salivar varia com o fluxo secretor. No interior do ácino e dos ductos intercalares, a saliva apresenta composição eletrolítica e tonicidade semelhantes às plasmáticas, sendo denominada saliva primária.  As  concentrações  de  α­amilase  na  saliva  primária  dependem  do  tipo  de estimulação neural para a sua secreção. Quando a saliva primária flui para os ductos estriados e excretores, sofre alterações de sua composição. Quanto maior é  o  fluxo  secretor,  maiores  são  as  concentrações  de  Na+, Cl–  e  de  HCO3–  (ver  Figura  61.4).  Após  o  fluxo  salivar  ter atingido valores próximos a 1,0 mℓ/min, as concentrações de HCO3– e de K+ mantêm­se altas, porque as suas secreções permanecem constantes e independem da taxa secretória. A concentração de HCO3– pode alcançar valores de 100 mM ou até maiores, conferindo à saliva um pH próximo a 8. Também a concentração de K+ na saliva continua alta, cerca de 4 a 5 vezes superior à plasmática. O modelo clássico, de dois estágios, é utilizado para explicar as alterações da composição eletrolítica da saliva e de outras secreções do sistema digestório. Este  modelo  é  uma  tentativa  para  explicar  a  dependência  da  composição  iônica  salivar  com  a  magnitude  do  fluxo secretor. Tal modelo foi desenvolvido com base na composição da saliva, medida com microeletródios, em experimentos de  micropunção  do  lúmen  dos  ácinos  e  dos  ductos  intercalares  e  excretores.  Verificou­se  que  a  saliva  nestas  porções apresenta composição eletrolítica e tonicidade semelhantes às plasmáticas (saliva primária). Este é o primeiro estágio da secreção. O segundo refere­se às alterações de composição da saliva quando ela flui para os ductos estriados e secretores. Nos ductos, ocorreria reabsorção de Na+ e de Cl–,  que  retornariam  ao  plasma,  e  secreção  de  HCO3– e de K+,  do  plasma para  o  lúmen  tubular,  conforme  esquema  da  Figura  61.5.  À  medida  que  a  saliva  flui  pelos  ductos,  ela  se  tornaria hipotônica quanto ao plasma, pois o epitélio dos ductos excretores é pouco permeável à água. Este modelo propõe que as alterações da composição eletrolítica salivar dependam do fluxo de saliva nos sistemas de ductos.  Quanto  mais  rapidamente  a  saliva  flui  pelos  ductos  excretores  (quanto  maior  é  o  fluxo),  menos  tempo  estaria disponível  para  que  estas  trocas  iônicas  acontecessem,  e  as  concentrações  de  Na+ e  de  Cl–  permaneceriam  altas  e  mais

próximas  das  plasmáticas.  Quando  o  fluxo  secretor  é  menor,  mais  tempo  disponível  existiria  para  que  as  trocas  se efetuassem;  por  isso,  a  fluxos  baixos,  as  concentrações  de  Na+  e  de  Cl–  seriam  menores.  Esta  hipótese  tem  sido amplamente  publicada  em  livros­textos.  Entretanto,  ela  levanta  várias  questões.  A  mais  pertinente  delas  refere­se  à cinética e à afinidade dos transportadores com os substratos. Observa­se que as concentrações de HCO3– e de K+ mantêm­ se constantes após o fluxo secretor alcançar valores de 1 mℓ/min. Além disso, quando os processos de transporte dos íons através das células epiteliais dos ductos são propostos, fica difícil entender suas estequiometrias; assim, ainda não foram esclarecidas, principalmente, as elevadas concentrações de HCO3– e de K+ na saliva final. A regulação do fluxo salivar é apenas neural. Como  já  referido,  a  regulação  do  fluxo  salivar  é,  fundamentalmente,  neural  e  controlada  pelo  sistema  nervoso autônomo (SNA). Alguns hormônios, como o antidiurético (vasopressina) e a aldosterona, podem afetar a composição da saliva, diminuindo a secreção de Na+ e elevando a de K+, mas estes hormônios não regulam o fluxo salivar. Neste sentido, a  regulação  da  secreção  salivar  difere  daquelas  que  ocorrem  no  estômago,  no  pâncreas  e  na  vesícula  biliar,  que  são reguladas tanto pelo SNA como pelo sistema nervoso intrínseco (SNI) e por hormônios do sistema digestório.

Figura 61.5 ■   Modelo  dos  dois  estágios  para  a  secreção  salivar.  As  células  acinares  secretam  um  líquido  com  composição eletrolítica semelhante à do plasma e isotônica em relação a ele, conhecido como saliva primária. Os ductos estriados modificam essa composição eletrolítica da saliva primária, reabsorvendo NaCl e secretando K+  e HCO3–, cujas concentrações na saliva final são superiores às plasmáticas. Não estão ainda esclarecidos os mecanismos da secreção de HCO3– e de K+ .

A inervação extrínseca das glândulas é efetuada pelo SNA. A inervação eferente para as glândulas submandibular e sublingual é complexa. As fibras parassimpáticas eferentes pré­ganglionares para as glândulas submandibular e sublingual partem do núcleo salivatório superior, situado na formação reticular do tronco cerebral, e se acoplam ao nervo facial (VII par); este nervo envia,  também,  fibras  para  as  glândulas  lacrimais,  glândulas  mucosas  do  palato,  das  cavidades  nasais  e  da  língua.  Do nervo facial, origina­se o nervo corda do tímpano, cujas fibras juntam­se ao nervo lingual, ramo do nervo mandibular (V par). Nas proximidades das glândulas, estas fibras fazem sinapses no plexo submandibular, de onde partem as fibras pós­ sinápticas  para  as  glândulas  submandibular  e  sublingual.  A  inervação  simpática  eferente  pré­ganglionar  vem dos segmentos  T1,  T2  e  T3  da  medula  espinal,  fazendo  sinapses  nos  gânglios  cervicais  superiores,  de  onde  partem  as fibras pós­sinápticas para as glândulas submandibular e sublingual (Figura 61.6).

Figura 61.6 ■ Inervação parassimpática e simpática eferente para as glândulas submandibular e sublingual. Descrição da figura no texto. (Adaptada de Thomas, 1987.)

As  fibras  parassimpáticas  eferentes  pré­ganglionares  para  as  glândulas  parótidas  provêm  do  núcleo  salivatório inferior, localizado no bulbo, e se incorporam ao nervo glossofaríngeo (IX par); este, também, envia fibras para a língua e para pequenas glândulas salivares do assoalho da boca. Tal nervo atravessa o plexo timpânico, de onde segue, via  nervo petroso menor. Este faz sinapse no gânglio ótico, de onde vão para as parótidas as fibras pós­sinápticas, que se acoplam ao  nervo  auriculotemporal  (V  par).  A  inervação  simpática  das  glândulas  parótidas  é  semelhante  à  descrita  para  as glândulas submaxilar e sublingual e caminha ao longo dos vasos sanguíneos que irrigam as glândulas. A estimulação parassimpática colinérgica inicia e mantém a secreção salivar. As  fibras  pós­ganglionares  parassimpáticas  são  predominantemente  colinérgicas.  A  acetilcolina,  ligando­se  aos receptores muscarínicos (inibíveis por atropina) da membrana basolateral das células acinares, eleva o nível citosólico de Ca2+ via trifosfato de inositol (IP3) e DAG, além de ativar as proteinoquinases C (PKC), que, por meio de fosforilação de proteínas  específicas,  induzem  aumento  do  fluxo  salivar  e  também  da  secreção  proteica  acinar.  A  estimulação parassimpática  tem,  também,  efeito  trófico  sobre  as  glândulas  salivares.  O  bloqueio  parassimpático  leva  à  atrofia  das glândulas  salivares.  Alguns  medicamentos  de  uso  psiquiátrico  causam  “boca  seca”,  devido  às  suas  propriedades anticolinérgicas. A  estimulação  parassimpática  induz,  também,  crescimento  do  fluxo  sanguíneo  das  glândulas  e  aumento  da  atividade metabólica.  A  elevação  do  fluxo  sanguíneo  é  resistente  à  atropina  e  estimulada  por  fibras  parassimpáticas  peptidérgicas, que  liberam  a  substância  P  e  o  VIP  (peptídio  vasoativo  intestinal),  os  quais  induzem  vasodilatação.  As  células  acinares têm receptores para a substância P, a qual aumenta o nível de Ca2+ citosólico (Figura 61.7). A elevação do Ca2+ citosólico

ativa  canais  para  K+ e  para  Na+ da  membrana  basolateral,  o  que  faz  crescer  a  atividade  da  Na+/K+­ATPase  e  estimula  a secreção fluida. A estimulação simpática noradrenérgica tem efeito bifásico sobre a secreção salivar. As fibras pós­ganglionares simpáticas liberam norepinefrina, que se liga a dois tipos de receptores: receptores β1, cujo segundo  mensageiro  é  o  cAMP  que  estimula  predominantemente  a  secreção  enzimática,  e  receptores  α 1,  que,  via  IP3, elevam o nível de Ca2+ citosólico potencializando o efeito da acetilcolina. A interrupção da inervação simpática tem pouco efeito trófico sobre as glândulas salivares. Inicialmente,  a  estimulação  simpática  eleva  o  fluxo  secretor,  principalmente  por  estimular  a  contração  das  células mioepiteliais, via receptores adrenérgicos, e por potencializar o efeito da acetilcolina, elevando a concentração citosólica de Ca2+;  mas,  como  causa  vasoconstrição,  em  uma  segunda  fase,  diminui  a  secreção  salivar.  A  secreção  estimulada  por agonistas adrenérgicos é, portanto, de pequeno volume, viscosa (porque é rica em muco) e com alta concentração de K+ e de HCO3–. Assim, situações de estresse, medo, excitação e ansiedade provocam “boca seca”. A secreção fluida das células acinares. Vários  mecanismos  têm  sido  propostos  para  explicar  os  processos  celulares  de  transporte  iônico,  responsáveis  pela secreção  de  água  e  eletrólitos,  pelas  células  acinares  das  glândulas  salivares.  O  mecanismo  mais  fácil  de  entender  é  o ilustrado  na  Figura  61.8  A.  Neste,  as  células  acinares  contêm  na  membrana  basolateral,  além  da  Na+/K+­ATPase,  o cotransportador  eletroneutro  Na+:2Cl–:K+,  denominado  NKCC1,  ativado  por  secretagogos;  estes  elevam  a  concentração citosólica  de  Ca2+ e  incorporam  na  membrana  canais  para  K+ ativados  por  Ca2+.  A  membrana  luminal  tem  canais  para Cl–  também  ativados  por  Ca2+.  A  Na+/K+­ATPase  mantém  os  gradientes  de  Na+  e  de  K+,  entre  os  meios  intra  e extracelular.  O  cotransportador  NKCC1 efetua  o  transporte  ativo  secundário  de  K+ e  de  Cl–,  dissipando  o  gradiente  de potencial eletroquímico do Na+, mantido pela Na+/K+­ATPase. Com isso, a concentração intracelular de Cl– eleva­se acima do seu equilíbrio eletroquímico (ou de Nernst), e Cl– flui para o lúmen acinar, através dos canais ativados por Ca2+. Em condições basais, os canais para Cl– e para K+ estão fechados, sendo ativados pela elevação da concentração citosólica de Ca2+ em resposta à estimulação pelos secretagogos, particularmente pela acetilcolina, via receptores muscarínicos. Com o aumento da condutância destes canais, há fluxo de KCl (de Cl– para o lúmen do ácino e de K+ para o plasma). Devido ao fluxo secretor de Cl–, o lúmen do ácino torna­se mais eletronegativo, gerando gradiente elétrico para o fluxo transepitelial de Na+, que ocorre predominantemente por via intercelular, atravessando as tight junctions apicais. O movimento de NaCl para o lúmen do ácino gera um gradiente osmótico para o fluxo de água no mesmo sentido, que pode dar­se tanto por via intercelular  como  transcelular,  uma  vez  que  a  membrana  das  células  acinares  tem  aquaporinas  (AQP).  Uma  isoforma,  a AQP5,  tem  sido  detectada  nas  membranas  luminais  de  muitos  epitélios  secretores.  Há  evidências  da  presença  deste mecanismo em células acinares de rato, coelho, e, presumivelmente, é o que ocorre em humanos.

Figura 61.7 ■ Efeitos  parassimpático  e  simpático  sobre  a  secreção  da  célula  acinar. NE, norepinefrina;  ACh,  acetilcolina;  IP3, trifosfato  de  inositol;  cAMP,  monofosfato  de  adenosina  cíclico;  ML,  membrana  luminal;  MBL,  membrana  basolateral;  α  e  β, receptores noradrenérgicos α e β, respectivamente; M, receptor muscarínico; P, receptor peptidérgico.

Figura  61.8  ■   Modelos  para  a  secreção  fluida  das  células  acinares.  A.  Neste  modelo,  o  evento  primário  é  a  ativação  do cotransportador Na+ :2Cl–:K+  (NKCC1)  da  membrana  basolateral  (MBL).  B.  Modelo  baseado  no  contratransporte  Cl–/HCO3–  da MBL.  C.  Modelo  que  envolve  a  secreção  de  HCO3–,  através  da  membrana  luminal  (ML).  AQP5,  aquaporina  5;  AC,  anidrase carbônica; Tj, tight junction. (Adaptada de Turner e Sugiya, 2002.)

Há também evidências de outros dois mecanismos alternativos. O modelo esquematizado na Figura 61.8 B propõe que o influxo de Cl– através da membrana basolateral ocorra por um contratransporte Cl–/HCO3–. O HCO3– é proveniente da ação da anidrase carbônica sobre a hidratação do CO2, que penetra a membrana basolateral. Assim, há uma recirculação de HCO3–  nesta  membrana.  O  H+  é  trocado  com  o  Na+,  através  do  contratransporte  Na+/H  da  membrana  basolateral (transporte ativo secundário). O Cl– é secretado para o lúmen acinar via canais luminais, tornando o lúmen mais negativo e  promovendo  a  secreção  de  Na+  e  de  água.  O  terceiro  modelo  propõe  uma  secreção  luminal  de  HCO3–,  via  canais aniônicos,  provavelmente  os  mesmos  que  secretam  o  Cl–.  O  HCO3– é  proveniente  da  hidratação  do  CO2  pela  anidrase carbônica  (Figura  61.8  C).  É  possível  que  os  três  mecanismos  participem  da  secreção  fluida  das  células  acinares  e coexistam,  predominando  um  ou  outro,  na  dependência  de  mecanismos  modulatórios  ativados  nas  diversas  condições fisiológicas. Em  resumo,  a  secreção  fluida  das  células  acinares,  que  acompanha  a  proteica,  tem  composição  semelhante  à plasmática, contendo Na+, Cl– e HCO3– e é isotônica em relação ao plasma. Esses estudos se baseiam em experimentos de micropunção  do  líquido  acinar  e  dos  ductos  intercalares  e  medidas,  com  microeletrodos  específicos,  da  determinação  da sua composição. A secreção fluida é modificada pelos ductos estriados. Os  ductos  estriados  têm  alta  taxa  metabólica  e  modificam  a  composição  da  saliva  primária  acinar,  por  secreção  de HCO3– e de K+. A baixos fluxos secretórios, a saliva torna­se mais hipotônica porque o epitélio dos ductos é impermeável à água e a sua composição difere fundamentalmente da plasmática. A altas taxas secretórias, a composição da saliva final

aproxima­se  da  exibida  pela  saliva  primária,  embora  continue  hipotônica  em  relação  ao  plasma  e  com  concentrações  de HCO3– e de K+ mais elevadas que as plasmáticas. A concentração de HCO3– pode atingir valores de até 100 mM, o que confere  à  saliva  valores  de  pH  perto  de  8.  A  concentração  de  K+  é  próxima  a  20  mM,  ou  seja,  5  ordens  de  grandeza superior à do plasma. As secreções de HCO3– e de K+, após uma taxa secretória de cerca de 1 a 2 mℓ/min, independem do fluxo,  indicando  mecanismos  ativos  de  secreção.  Os  mecanismos  celulares  de  transporte  propostos  nos  ductos  estriados estão esquematizados na Figura 61.9. A secreção proteica nas células acinares. Embora  as  secreções  dos  três  pares  de  glândulas  salivares  sejam  classificadas  como  serosa,  mucosa  ou  seromucosa (de acordo com seus conteúdos relativos de mucina e α­amilase), as proteínas mais secretadas pelas células acinares são as ricas em prolina. Estas proteínas têm cerca de 1/3 de seus aminoácidos representados pela prolina, sendo secretadas nas formas acídica, básica e glicosilada. Elas exercem importantes funções protetoras, tanto da mucosa oral quanto dos ductos secretores e dos dentes, como já referido. As proteínas secretadas em menores quantidades na saliva são: lipase, nucleases, lisozima, peroxidases, lactoferrina, imunoglobulina A, fatores de crescimento epidérmico e proteases vasodilatadoras (como a calicreína e a renina), conforme mostrado no Quadro 61.1. A  característica  histológica  mais  evidente  das  células  acinares  é  a  presença  dos  grânulos  secretórios  eletrondensos, denominados grânulos de zimogênio, situados nos polos apicais das células, como mostrado no esquema da Figura 61.10. Estes grânulos são os locais de armazenamento das proteínas, secretadas em resposta à estimulação neural. As  células  acinares  apresentam  o  retículo  endoplasmático  rugoso  extremamente  desenvolvido,  caracterizando  intensa atividade  de  síntese  proteica,  além  de  terem  uma  maquinaria  bioquímica  especializada  para  o  transporte  vetorial  das proteínas  e  para  a  sua  exportação.  A  síntese  proteica  inicia­se  com  a  tomada  de  aminoácidos  pelas  células  e  a  sua incorporação  às  proteínas  nascentes  no  retículo  endoplasmático.  O  transporte  vetorial  destas  proteínas  é  realizado  por vesículas  membranosas,  do  seu  local  de  síntese  para  o  sistema  de  Golgi,  e  deste  para  as  vesículas  de  condensação  e grânulos  de  zimogênio  (cujos  diâmetros  são  aproximadamente  2/3  inferiores  aos  das  vesículas).  Em  resposta  aos estímulos,  os  grânulos  de  zimogênio  liberam  as  proteínas  no  lúmen  acinar,  por  exocitose  na  membrana  luminal.  O processo de exocitose consiste em uma série de eventos, que envolvem: fusão das membranas dos grânulos à membrana luminal, liberação das proteínas e reciclagem das membranas dos grânulos. Esse processo eleva, cerca de 30 vezes, a área superficial da membrana luminal, com participação de várias proteínas e do citoesqueleto celular.

Figura 61.9 ■ Processos de transporte nos ductos estriados das glândulas salivares. AC, anidrase carbônica;  ML,  membrana luminal; MBL, membrana basolateral. Explicações no texto. (Adaptada de Turner e Sugiya, 2002.)

A estimulação simpática induz a exocitose dos grânulos de zimogênio nas glândulas parótidas e nas submandibulares, enquanto  a  parassimpática  eleva  a  secreção  proteica  das  sublinguais  e  de  alguns  ácinos  das  parótidas.  O  cAMP  é  o principal  segundo  mensageiro  da  secreção  de  α­amilase  das  parótidas,  via  ativação  dos  receptores  β­adrenérgicos.  O Ca2+  também  estimula  a  secreção  de  α­amilase,  em  resposta  à  estimulação  parassimpática,  tanto  de  receptores muscarínicos  como  pela  substância  P  (peptidérgica),  ou  estimulação  de  receptores  α­adrenérgicos,  embora  de  maneira menos intensa que a secreção estimulada pelo cAMP (ver Figura 61.7).

Quadro 61.1 ■ Principais componentes orgânicos da saliva de mamíferos. Componentes

Células sintetizadoras

Glândulas

Funções

Proteínas ricas em

Acinares

P, SM

Formação do esmalte

prolina

Ligação ao cálcio Antimicrobiana Lubrificação

Mucina (glicoproteínas)

Acinares

SL, SM

Lubrificação Antimicrobiana

Enzimas

 

 

 

α­amilase

Acinares

P, SM

Hidrólise do amido

Lipase lingual

Glândulas de von Ebner

SL

Hidrólise lipídica

Ribonuclease

Ductais

SM

Hidrólise de RNA

Calicreína

Ductais

P, SM, SL

Protease

Outros

 

 

 

Lactoperoxidase

Acinares

SM

Antimicrobiana

Lactoferrina

Acinares

?

Antimicrobiana

Lisozima

Ductais

SM

Antimicrobiana

Receptor para IgA

Ductais

?

Antimicrobiana

IgA

Ductais

?

Antimicrobiana

Fatores de crescimento

Ductais

SM

?

P, glândula parótida; SM, glândula submandibular; SL, glândula sublingual.

Figura 61.10 ■ Esquema de um ácino da glândula salivar, secretora de α­amilase, mostrando os grânulos de zimogênio nos ápices das células acinares. As tight junctions mantêm as células acinares unidas, delimitando os espaços intercelulares. Há, também,  gap  junctions  intercelulares,  não  mostradas  no  esquema.  Note  que  células  mioepiteliais  envolvem  os  ácinos. (Adaptada de Berne et al., 2004.)

Síndrome de Sjögren primária É uma doen ça autoimune, crônica e progressiva, que afeta, predominantemente, o sexo feminino. Gera anticorpos  que  reagem  com  as  glândulas  salivares  e  lacrimais,  originando  um  processo  inflamatório,  com infiltração  de  linfócitos,  produzindo  lesões  nos  ácinos  e  nos  ductos  secretores,  com  diminuição  das secreções.  Nas  glândulas  salivares,  existe  perda  da  expressão  do  contratransportador  Cl–/HCO3–  dos ductos  estriados.  A  síndrome  pode  ser,  também,  secundária  a  uma  manifestação  sistêmica  de  doen  ças autoimunes,  como  acontece  na  artrite  reumatoide.  Os  pacientes  desenvolvem  xerostomia  e queratoconjuntivite  (olhos  secos).  As  proteí  nas­alvo  do  ataque  autoimune  não  são  determinadas;  assim, não  há  terapia  específica  para  o  tratamento  da  síndrome.  O  tratamento  é  feito  com  substâncias estimulatórias da secreção salivar, como metilcelulose. Quando o comprometimento é grave, são utilizados corticoides e imunossupressores. Fatores exógenos e endógenos atuam sobre a secreção salivar. A  salivação  é  inibida  pelos  seguintes  fatores  exógenos:  fadiga,  sono,  medo  e  desidratação.  Estimulada  por  estes: reflexos  condicionados  (de  Pavlov)  –  que,  em  humanos,  são  ativados  por  diferentes  receptores:  visuais,  auditivos, olfatórios – assim como por fatores psíquicos. O  principal  fator  endógeno  que  atua  sobre  o  fluxo  salivar  é  a  chegada  do  alimento  à  cavidade  oral,  por  ativação  de mecanorreceptores  e  quimiorreceptores  da  mucosa  oral  e  faríngea,  a  salivação,  na  denominada fase  cefálica  da  secreção salivar. As ânsias, que precedem o vômito, também estimulam intensamente a salivação. Os  mecanismos  de  ação  dos  fatores  exógenos  e  endógenos  sobre  a  secreção  salivar  estão  representados  na  Figura 61.11.

Resumo Secreção salivar

A  saliva  é  hipotônica  em  relação  ao  plasma,  a  qualquer  fl  uxo  secretório.  Sua  concentração  de 1. bicarbonato é de cerca de 120 mM a fl uxos altos, conferindo à saliva um pH perto de 8, que neutraliza os alimentos ácidos e os produtos da ação bacteriana em alimentos que se alojam entre os dentes. 2. A composição da saliva é função do fl uxo salivar. A saliva primária acinar tem composição próxima à plasmática,  mas  sofre  alterações  nos  ductos  estriados  e  excretores,  com  aumento  da  secreção  de bicarbonato e potássio, cujas concentrações elevam­se com o aumento do fl uxo salivar. 3. As funções  da  saliva são  proteção  da  mucosa  oral  e  dos  dentes,  além  de  função  digestiva.  A  saliva facilita a fonação e estimula os receptores gustativos da cavidade oral. A α­amilase salivar hidrolisa  o interior das cadeias de carboidratos; sua ação con ti nua no estômago, antes da mistura do quimo com a secreção gástrica. Cerca de 75% dos carboidratos são hidrolisados da boca ao estômago. A lipase lingual  é  deglutida  e,  como  age  em  pH  ácido,  hidrolisa  triacilglicerói  s  no  lúmen  gástrico.  As  duas enzimas não são essenciais. 4. O fl uxo salivar é alto (50 a 70 vezes maior que o pancreá tico), em consequência do alto fl uxo sanguí neo das glândulas, que, por sua vez, é superior ao do músculo esquelético em atividade. 5. A  regulação  do  fl  uxo  salivar  é  efetuada  apenas  pelo  SNA.  A  estimulação  parassimpática  para  as glândulas  sublingual  e  submandibular  é  via  nervo  corda  do  tímpano;  para  as  parótidas,  via  nervo auriculotemporal.  Aumenta  e  mantém  a  secreção.  A  estimulação  simpática  tem  efeito  bifásico: inicialmente, eleva a secreção e, posteriormente, a inibe (devido à vasoconstrição). 6. Aumentam o fl uxo salivar: estímulos psíquicos, refl exos condicionados, olfação, gustação, audição e ânsias de vômito. Diminuem­no: medo, fadiga e sono. 7. O SNA parassimpático eferente tem efeito trófi co sobre  as  glândulas,  ocorrendo  atrofi  a  em  caso  de denervação.

Figura 61.11 ■ Mecanismos  neurais,  exógenos  e  endógenos,  reguladores  da  secreção  salivar,  por  meio  da  estimulação  dos núcleos salivatórios centrais. SNA, sistema nervoso autônomo; IP3, trifosfato de inositol; DAG, diacilglicerol; cAMP, monofosfato de adenosina cíclico; (+), aumento ou estimulação; (–), diminuição ou inibição.

SECREÇÃO GÁSTRICA O  estômago  tem  funções  secretórias,  motoras  e  hormonais,  importantes  no  processo  digestivo.  Além  de  HCl,  esse órgão secreta enzimas (que continuam a hidrólise dos macronutrientes iniciada na cavidade oral), parácrinos e hormônios que  regulam  a  secreção  gástrica.  Suas  funções  motoras  são  de  extrema  importância  para:  armazenamento  do  alimento, mistura  com  as  secreções  gástricas,  trituração  e  regulação  neuro­hormonal  enterogástrica  da  velocidade  de  esvaziamento do  conteúdo  gástrico  para  o  bulbo  duodenal.  Apesar  de  todas  essas  funções,  o  estômago  não  é  um  órgão  essencial,  e indivíduos gastrectomizados podem sobreviver e manter uma nutrição adequada. O estômago tem a mesma estrutura básica da parede do TGI e exibe regiões secretoras que se diferenciam pelos tipos celulares predominantes nas glândulas gástricas. Do  ponto  de  vista  secretor,  as  diferentes  regiões  do  estômago  são:  cárdia  –  localizada  logo  abaixo  do  esfíncter esofágico inferior, contendo apenas glândulas secretoras de muco; região oxíntica – no corpo do estômago, corresponde a 80%  da  sua  área  total,  suas  glândulas  têm  grande  número  de  células  parietais  ou  oxínticas,  além  de  células principais; região antropilórica – com glândulas contendo apenas células endócrinas: as células G, que secretam gastrina, e as células D, secretoras de somatostatina (Figura 61.12 A). A estrutura básica do estômago apresenta o mesmo padrão dos demais órgãos do sistema digestório. A Figura 61.12 B é um esquema da parede gástrica, mostrando mucosa, lâmina própria, submucosa e muscular externa. A mucosa gástrica é altamente amplificada pelas glândulas gástricas. Estas se abrem na superfície luminal do estômago, em depressões ou pits, que se continuam formando o pescoço e o corpo da glândula, o qual se prolonga para o interior da mucosa até a muscular da mucosa. A Figura 61.12 C esquematiza uma glândula gástrica heterocelular. Os diferentes tipos de células encontradas são: células  mucosas  superficiais –  colunares,  envolvendo  as  aberturas  das  glândulas; células  mucosas  do  pescoço  das glândulas; células indiferenciadas ou regenerativas – mais profundamente localizadas no pescoço das glândulas, originam as células que migram para a superfície; células parietais ou oxínticas – secretoras de HCl e de fator intrínseco; células principais  ou  pépticas  –  secretoras  de  pepsinogênio;  e  células  endócrinas  –  secretoras  de  gastrina  e  de  somatostatina (Figura  61.12  D).  Durante  o  processo  digestivo,  a  mucosa  gástrica  sofre  intensa  esfoliação,  e  as  células  mucosas superficiais são substituídas por novas, a partir das células regenerativas do pescoço das glândulas. A composição do suco gástrico e suas funções. O estômago secreta 1 a 2 ℓ de líquido por dia, referido como suco gástrico. Os componentes desse suco, suas funções e locais de síntese são descritos a seguir. ■ HCl:  durante  a  estimulação,  pode  ser  secretado  a  taxas  bastante  elevadas,  alcançando  concentrações  entre  140  e  160 mM, conferindo ao suco gástrico pH próximo a 1 ou 2. Nos períodos interdigestivos, o pH luminal varia de 4 a 6. O pH  ácido  regula  a  secreção  do  pepsinogênio  e  a  sua  conversão  à  pepsina  no  lúmen  gástrico.  O  HCl  tem  importante função  bactericida  e,  na  sua  ausência,  aumenta  a  incidência  de  infecções  do  sistema  digestório.  É  produzido pelas células parietais, ou oxínticas, das glândulas gástricas do corpo do estômago ■ Pepsinogênio:  é  produzido  pelas células  pépticas  ou  principais das  glândulas  gástricas  do corpo, antro  e  cárdia.  É lançado no lúmen gástrico na forma de proenzima, sendo hidrolisado a pepsina em valores de pH  NHE3 > NHE4. No  intestino,  a  troca  eletroneutra  de  Na+  por  H+,  via  trocador  Na+/H+,  ocorre  preferencialmente  no  jejuno  (Figura 63.6). Neste segmento, a concentração de HCO3– é aumentada pela secreção das glândulas de Brünner (que se abrem logo abaixo do piloro) e pela secreção pancreática. O HCO3– secretado neutraliza o H+. Nas células epiteliais do duodeno e do jejuno,  a  isoforma  1  do  trocador  Na+/H+ (NHE1)  encontra­se  na  MBL  e  participa  do  controle  de  várias  funções  básicas celulares, como, por exemplo, a regulação do pHi. Entretanto, essa isoforma não contribui de forma significativa para o movimento transepitelial de Na+. Contrariamente, as isoformas 2 (NHE2) e 3 (NHE3) encontram­se na ML do intestino e participam tanto na regulação do pHi, como no movimento transepitelial de Na+. – – O  trocador  Cl /HCO3   é  uma  proteína  cujo  mecanismo  de  transporte  também  está  envolvido  com  o  equilíbrio acidobásico. Realiza a troca de 1 Cl– por 1 HCO3– (de  modo  eletroneutro),  independente  do  íon  Na+.  Pertence  à  família AE (anion exchangers), cuja estrutura está descrita no Capítulo 11. É expresso sob uma ou mais isoformas, e a isoforma

1 (AE1, conhecida como proteína da banda 3 de hemácias) é bem caracterizada, devido à sua importância no transporte de CO2  e  ao  seu  expressivo  número  na  membrana  (cerca  de  1  milhão  de  cópias/célula,  significando  que,  de  cada  quatro proteínas  do  eritrócito,  uma  é  AE1).  O  AE1  consiste  em  uma  proteína  com  848  a  929  aminoácidos,  cuja  estrutura  se compõe  de  14  α­hélices  transmembrânicas  ligadas  a  dois  domínios  funcionais.  O  domínio  N  terminal,  com  função basicamente  estrutural,  permite  a  interação  de  proteínas  do  citoesqueleto  com  proteínas  da  membrana  plasmática.  O  C terminal catalisa a troca de ânions através da membrana; essa troca iônica é irreversivelmente inibida pelo composto 4,4’­ di­isotiociano­2,2’­ácido estilbenedissulfônico (DIDS). Estudos com técnicas de síntese peptídica in vitro sugerem que os resíduos de aminoácidos 549 a 594, 804 a 839 e 869 a 883, localizados no domínio C terminal, são os responsáveis pela troca aniônica e pela inibição por DIDS.

Figura 63.6 ■ Distribuição das isoformas do trocador Na+ /H+  nas membranas luminal e basolateral das células do jejuno e do íleo.

No íleo e na porção proximal do cólon, o trocador Na+/H+ opera em paralelo com o Cl–/HCO3– (Figura 63.7). Neste processo, através da MBL, o CO2 difunde­se  do  plasma  para  o  interior  da  célula  intestinal,  onde  se  combina  com  H2O, formando o ácido carbônico (H2CO3). Essa reação é catalisada pela enzima anidrase carbônica (ac), que está presente na maioria das células. O H2CO3, por sua vez, dissocia­se em H+ e HCO3–. Ambas as reações são reversíveis, e a anidrase carbônica catalisa tanto a hidratação de CO2 como a desidratação de H2CO3. Assim:

O H+ deixa a célula em troca por Na+, via trocador Na+/H+ (isoforma NHE3), e o HCO3– é transportado para o lúmen do intestino em troca por Cl–, via trocador Cl–/HCO3– (isoforma AE1). A operação desses dois trocadores em taxas iguais resulta na entrada de NaCl na célula. O Na+ que penetra a célula através da ML é bombeado para o sangue pela Na+/K+­ ATPase da MBL; o Cl– que entra na célula via ML é transportado para o sangue por um cotransporte K+:Cl– conhecido como KCC (potassium chloride cotransporter), localizado na MBL.

Figura 63.7 ■ Cotransportes paralelos Na+ /H+  e Cl–/HCO3– na membrana luminal de células intestinais do íleo e do cólon, com secreção  resultante  de  HCO3–  e  H+ ,  além  de  reabsorção  transepitelial  de  NaCl.  Descrição  da  figura  no  texto.  AE1,  anion exchangers isoform; KCC, potassium chloride cotransporter; ac, anidrase carbônica.

▸ Cotransporte Na+:ânions inorgânicos A  absorção  de  sulfato  e  fosfato  ocorre  predominantemente  no  íleo.  O  influxo  desses  ânions  através  da  ML  dos ileócitos  depende  do  transporte  de  Na+  (Figura  63.8).  O  processo  é  eletroneutro:  dois  íons  Na+  movem­se  pela  ML acoplados a um ânion SO42– ou PO22–. Na MBL, o mecanismo de transporte desses ânions ainda não está esclarecido.

▸ Transporte desacoplado de Na+, mediado por canais No cólon, o Na+ é absorvido por dois mecanismos. Primeiro, por mecanismo similar ao que ocorre no íleo e jejuno, onde o Na+ é absorvido pela operação em paralelo dos trocadores Na+/H+ (NHE3) e Cl–/HCO3– (AE1) localizados na ML. Segundo,  o  Na+  entra  na  célula  de  maneira  desacoplada,  atravessando  a  ML  por  meio  de  um  canal  seletivo  para Na+ (denominado ENaC – epithelial Na+ channel, cujos detalhes estão apresentados no Capítulo 10, Canais para Íons nas Membranas  Celulares)  (Figura  63.9).  O  transporte  eletrogênico  de  Na+  via  ENaC  é  significantemente  aumentado  na presença  do  mineralocorticoide  aldosterona.  O  mecanismo  pelo  qual  a  aldosterona  atua  no  cólon  é  o  mesmo  discutido anteriormente no ducto coletor renal (ver Capítulo 53, Papel do Rim na Regulação do Volume e da Tonicidade do Líquido Extracelular, e Capítulo 55, Rim e Hormônios). De início, ela estimula a Na+/K+­ATPase da MBL, gerando um gradiente intracelular favorável à absorção eletrogênica de Na+, via ENaC através da ML. O aumento do ganho de Na+ pela célula pode  ocorrer  em  três  fases:  (1)  rápida  (dentro  de  segundos),  envolvendo  a  abertura  de  canais  já  inseridos  na  ML; (2) gradual (em  minutos),  dependente  da  inserção  de  canais  de  Na+ na  ML,  pré­formados  e  contidos  em  vesículas  do citosol; e (3) lentamente (durante horas), devido à síntese tanto de canais de Na+como da Na+/K+­ATPase. Esta última fase se caracteriza como efeito genômico.

Figura 63.8 ■ Mecanismos de transporte de ânions inorgânicos (AI) nas células intestinais.

Figura 63.9 ■ Mecanismo de absorção eletrogênica de Na+  na membrana luminal das células do cólon. ENaC, canal epitelial para Na+ .

ABSORÇÃO E SECREÇÃO DE CLORETO ▸ Absorção de Cl–. Esta absorção ao longo do intestino pode ocorrer por duas vias – a paracelular e a transcelular.

▸ Absorção de Cl–. Esta absorção ao longo do intestino pode ocorrer por duas vias – a paracelular e a transcelular. A transcelular envolve dois mecanismos. Em um deles, o influxo celular de Cl– depende da entrada de Na+ e, no outro, do contratransporte Cl–/HCO3–. No delgado, a absorção de Cl– pela ML é realizada por mecanismo de cotransporte acoplado ao Na+,  descrito  anteriormente  (ver Figura 63.5).  Na  MBL,  o  Cl– é  transportado  passivamente  a  favor  de  gradiente  de potencial  eletroquímico.  A  absorção  de  Cl– neste  segmento  intestinal  também  se  dá  por  via  paracelular,  a  favor  de  um gradiente de potencial elétrico transepitelial, de maneira desacoplada da absorção de Na+ e de HCO3–. No íleo e no cólon, a absorção  de  Cl–  pela  ML  se  faz:  (1)  por  mecanismos  de  contratransportes  paralelos  Na+/H+  e  Cl–/HCO3–  já  descritos (ver Figura 63.7), ou (2) diretamente, acoplada à secreção de HCO3–, por processo ativo secundário, mantido pela Na+/K+­ ATPase da MBL. Nesta última barreira, o transporte absortivo de Cl– é passivo, mediado pelo trocador Cl–/HCO3– (AE­ 1)  localizado  na  ML;  porém,  o  movimento  de  Cl  através  da  MBL  ainda  não  está  claramente  descrito  (para  detalhes, ver Capítulo 11). Nestes segmentos intestinais, a absorção de Cl– também pode acontecer por via paracelular. ▸ Secreção de Cl–. A regulação dos processos absortivos de Na+ e de água no intestino é altamente dependente da modulação  do  transporte  de  Cl–  pelas  células  indiferenciadas  das  criptas.  Enquanto  as  células  maduras  dos  ápices  das vilosidades  intestinais  do  delgado  e  as  células  superficiais  do  cólon  são  absortivas,  as  indiferenciadas  das  criptas  são predominantemente secretoras. Em condições fisiológicas, ocorre um balanço entre o líquido absorvido e o secretado, com manutenção de uma determinada fluidez do conteúdo luminal. Se o processo secretor elevar­se acima do absortivo, pode surgir diarreia do tipo secretor. A visão atual dos mecanismos de transporte iônico que funcionam nas células das criptas é mostrada na Figura 63.10. Neste modelo, o Cl– é ativamente captado do interstício, por meio da MBL, pelo cotransportador Na+:K+:2Cl– (NKCC1, descrito no Capítulo 11). Este transportador utiliza o gradiente de concentração do Na+ para transportar Cl– e o K+ para a célula,  contra  seus  gradientes  de  potencial  eletroquímico.  A  concentração  intracelular  de  Cl–  eleva­se  acima  do  seu equilíbrio eletroquímico (ou de Nernst), e então o Cl– deixa a célula, através da ML, por canal para Cl–. O Na+ pode ser transportado  para  o  lúmen  pela  via  paracelular,  através  das  tight­junctions,  movido  pela  eletronegatividade  do  lúmen, gerada pela secreção de Cl–. O efluxo celular de K+ previne  o  seu  acúmulo  no  citoplasma;  é  feito  através  de  canais  para potássio da MBL das células das criptas. Com isso, mantém­se uma diferença de potencial elétrico (citoplasma negativo) através  das  duas  membranas  –  ML  e  MBL,  o  que  contribui  para  a  força  eletroquímica  movente  do  efluxo  celular  de Cl– pela ML.

Figura 63.10 ■ Secreção eletrogênica de Cl– pelas células das criptas.

O  tempo  de  abertura  do  canal  luminal  para  Cl– é  modulado  pelo  cAMP  ou  pelo  monofosfato  de  guanosina  cíclico (cGMP).  Os  canais  basolaterais  para  K+  são  ativados  pelo  Ca2+  ou  pelo  aumento  de  cAMP.  Sendo  assim,  a  secreção resultante  de  Cl–  pelas  células  das  criptas  é  amplificada  por  agonistas  que  elevam  o  cAMP  intracelular  [como prostaglandinas,  peptídio  intestinal  vasoativo  (VIP),  cGMP,  ou  toxinas  bacterianas  (p.  ex.,  a  toxina  termoestável da  Escherichia  coli  (STa)  e  do  Vibrio  cholerae)]  e  pelos  agonistas  mobilizadores  de  Ca2+,  como  a  acetilcolina.  Além disso, o cAMP pode inibir a absorção de Na+ e de Cl– nos enterócitos maduros. O canal para Cl– da ML é do tipo CFTR (cystic  fibrosis  transmembrane  conductance  regulator,  descrito  no  Capítulo  10),  extremamente  importante  na fisiopatologia  da  fibrose  cística  (doença  discutida  nos  Capítulos  10  e  11  e  no  Capítulo  61,  Secreções  do  Sistema Digestório) e de muitos tipos de diarreias (discutidos mais adiante).

ABSORÇÃO E SECREÇÃO DE BICARBONATO No duodeno, o HCO3– é secretado para o lúmen intestinal. No jejuno, a absorção de HCO3– depende parcialmente do Na+.  A  presença  de  HCO3– no  lúmen  do  intestino  estimula  a  absorção  de  Na+,  e  o  Na+,  reciprocamente,  estimula  a  de HCO3–; essa reciprocidade se dá graças aos trocadores paralelos Na+/H+ e Cl–/HCO3– da ML (descritos no Capítulo 11). No processo de absorção de HCO3–, o equilíbrio da reação de hidratação e desidratação do CO2 (estimulado pela anidrase carbônica da borda em escova) se desloca no sentido de formação do CO2; isto é detectado por uma elevação da pressão parcial  de  CO2  (PCO2)  jejunal.  O  HCO3–  reabsorvido  pode  ser  originado  também  do  CO2proveniente  do  metabolismo celular  (Figura  63.11).  O  fluxo  absortivo  resultante  desses  processos  é  a  absorção  de  NaHCO3  na  MBL.  No  íleo,  o HCO3– é normalmente secretado. Se a concentração de HCO3– no lúmen do íleo ultrapassa os 45 mM, o fluxo do lúmen para o sangue excede o fluxo em sentido oposto, ocorrendo uma absorção resultante. No cólon, o transporte de HCO3– é similar ao que acontece no íleo, onde este íon é secretado. Assim,  o  jejuno  absorve  o  excesso  de  HCO3–  secretado  no  duodeno  e,  também,  o  neutraliza  pela  secreção  de  H+. Portanto, no jejuno, a absorção transepitelial resultante é predominantemente de NaHCO3. No íleo e no cólon, o Na+ e o Cl– também são absorvidos por estes contratransportadores, com secreção de HCO3–, que neutraliza, nestes segmentos, os produtos ácidos do catabolismo das bactérias. O HCO3– secretado provém do plasma e penetra na célula através da MBL, em acoplamento com o Na+. Portanto, ocorre secreção de HCO3– tanto no íleo como no cólon, sendo este ânion excretado nas fezes.

ABSORÇÃO E SECREÇÃO DE POTÁSSIO O intestino tem a capacidade não só de absorver como também de secretar K+. A absorção ocorre de preferência nos segmentos proximais, enquanto a secreção se dá principalmente nos segmentos distais do intestino. ▸ Absorção de K+ . No intestino delgado, o mecanismo proposto para a absorção de K+ é sua difusão passiva pela via paracelular, a favor de seu gradiente de potencial químico transepitelial, secundária à absorção de água. Sendo assim, no jejuno e no íleo, o fluxo resultante de K+ ocorre do lúmen para o sangue. Conforme o volume do conteúdo intestinal é reduzido  pela  absorção  hídrica,  o  K+  se  concentra  no  lúmen  intestinal,  gerando  uma  diferença  de  potencial  químico transepitelial, necessária para sua absorção. Como a absorção de K+ depende da sua concentração no lúmen do delgado e esta  é  dependente  da  absorção  de  água,  processos  que  afetam  a  absorção  deste  líquido  neste  segmento  (como  pode acontecer  em  processos  diarreicos)  podem  conduzir  a  hipopotassemia,  com  consequentes  distúrbios  da  contração muscular. No cólon,  ocorrem,  também,  tanto  absorção  como  secreção  de  K+,  dependendo  da  sua  concentração  luminal. Somente no cólon distal se observa uma absorção ativa de K+.  Neste  caso,  o  movimento  de  K+ para  o  interior  da  célula colônica se dá pela isoforma gástrica da H+/K+­ATPase, localizada na ML, sendo, portanto, um mecanismo ativo primário (Figura 63.12). Contudo, o mecanismo pelo qual o K+ deixa a célula, na MBL, ainda não é bem conhecido.

Figura 63.11 ■ Modelo para a absorção de HCO3– no jejuno. ac, anidrase carbônica.

▸  Secreção de K+ . No  cólon  (proximal  e  distal),  a  secreção  de  K+ ocorre  tanto  de  forma  passiva  como  ativa.  A passiva se dá por via paracelular, quando a concentração de K+ luminal é inferior a cerca de 25 mM. Entretanto, a ativa de K+,  através  da  ML,  depende  da  alta  concentração  intracelular  do  íon,  decorrente  de  seu  influxo  intracelular  pela  MBL, através  da  Na+/K+­ATPase  e  do  cotransportador  Na+:K+:2Cl–  (Figura  63.13),  descritos  em  detalhes  no  Capítulo  11.  A secreção de K+ pela  ML  acontece  via  mecanismo  de  eletrodifusão,  através  de  canais  específicos,  sensíveis  ao  bário  ou  à tetraetilamônia (TEA). Adicionalmente, o K+ também pode deixar a célula por canais da MBL, caracterizando assim uma reciclagem de K+.

ABSORÇÃO DE CÁLCIO O  cálcio  é  absorvido  ativamente  em  todos  os  segmentos  do  intestino,  mas,  predominantemente,  no  duodeno  e  no jejuno.  Portanto,  sua  absorção  ocorre  contra  um  gradiente  de  potencial  eletroquímico  transepitelial.  No  intestino,  a absorção de Ca2+ é maior que a de qualquer outro íon bivalente; porém, ainda cerca de 50 vezes menor que a de Na+. A capacidade absortiva de Ca2+ pelo intestino depende dos níveis deste íon na dieta. O intestino delgado absorve cálcio por dois mecanismos: (1) absorção passiva paracelular, movida pelas concentrações elevadas  de  Ca2+  no  lúmen  intestinal  (em  consequência  da  absorção  de  água)  e  pela  diferença  de  potencial  elétrico transepitelial, e (2) absorção ativa transcelular, que ocorre preferencialmente no duodeno (Figura 63.14). Por este último mecanismo,  o  cálcio  entra  na  célula,  por  canais  para  Ca2+  existentes  na  ML,  a  favor  de  seu  gradiente  de  potencial eletroquímico (esses canais estão descritos no Capítulo 10). No citoplasma, o cálcio pode ser tamponado por proteínas (p. ex.,  a  calbindina)  ou  armazenado  em  organelas  citoplasmáticas  (como  o  retículo  endoplasmático).  A  calbindina,  também conhecida como proteína intestinal ligante do cálcio, liga­se ao Ca2+ citosólico, formando o complexo Ca2+­calbindina. Na face  interna  da  MBL,  este  complexo  se  desfaz.  O  cálcio  sai  da  célula  contra  um  gradiente  de  potencial  eletroquímico, principalmente, por dois mecanismos localizados na MBL – a Ca2+­ATPase e o trocador 3Na+/Ca2+ (descritos no Capítulo 11). Este trocador utiliza a energia do gradiente transcelular de Na+ para remover o Ca2+ da célula, por um transporte ativo secundário.  O  trocador  3Na+/Ca2+  é  mais  efetivo  quando  a  concentração  de  Ca2+  é  alta,  enquanto  a  Ca2+­ATPase  é  o principal mecanismo para extrusão celular de Ca2+ quando o íon está na concentração basal.

Figura 63.12 ■ Mecanismo de absorção de K+  no intestino. A. Absorção passiva, no jejuno e no íleo. B. Absorção ativa no cólon distal.

A  vitamina  D3  (colecalciferol)  é  essencial  para  manter  os  níveis  normais  de  absorção  de  cálcio  pelo  intestino (ver Capítulo  76,  Fisiologia  do  Metabolismo  Osteomineral).  A  Figura  63.14  ilustra  os  efeitos  da  administração  dessa vitamina sobre a absorção intestinal de Ca2+. A D3 deriva da ação de radiação ultravioleta na pele sobre o seu precursor, o 7­deidrocolesterol. Uma vez sintetizada na pele, a vitamina D3 (ligada à proteína específica plasmática) é transportada para o  fígado,  onde  sofre  hidroxilação  (por  uma  hidrolase  mitocondrial  dos  hepatócitos),  originando  a  25­OH­D3  (25­ hidroxicolecalciferol);  esta  é  novamente  hidroxilada  nas  mitocôndrias  renais  e  convertida  à  sua  forma  ativa  1,25­(OH)2­ D3  (1,25­di­hidrocolecalciferol),  por  ação  reguladora  do  paratormônio.  Esta  forma  ativa  da  vitamina  D3  penetra  no enterócito e (como os hormônios esteroídicos) liga­se a receptores específicos intracelulares do núcleo ou do citosol, para estimular a síntese de mRNA e, consequentemente, a síntese de canais para Ca2+ e  de  proteínas  específicas  ligadoras  de Ca2+, como a calbindina.

Figura 63.13 ■ Mecanismo celular de secreção de K+  no cólon. TEA, tetraetila­mônia.

▸ Regulação da absorção de cálcio Como  vimos  antes,  a  vitamina  D3 é  essencial  para  a  absorção  de  cálcio  pelo  intestino.  A  carência  nutricional  dessa vitamina  ou  a  ausência  da  ação  ultravioleta  sobre  a  sua  síntese  causam,  em  crianças,  raquitismo  (diminuição  da mineralização óssea e alterações nas cartilagens das epífises) e, em adultos, osteomalacia (redução da mineralização dos osteoides).

Figura 63.14 ■ Modelo para o mecanismo absortivo do íon Ca2+  pelo enterócito. 1,25­(OH)2­D3, forma ativa da vitamina D3.

Regula­se a absorção intestinal de cálcio pelos seus níveis plasmáticos: ela é nula quando a ingestão de cálcio gira em torno de 0,1 mM (ou 4 mg/kg de peso corpóreo), e eleva­se a um máximo quando essa ingestão chega próximo a 3 mM (ou 120 mg/kg de peso corpóreo). Os níveis plasmáticos relacionam­se diretamente com a ação do paratormônio e com a hidroxilação  da  vitamina  D3  no  rim.  Assim,  a  elevação  da  concentração  plasmática  de  cálcio  inibe  a  secreção  do paratormônio e a formação de 1,25­(OH)2­D3, com consequente redução de cálcio circulante. Ocorre aumento da absorção nos períodos de lactação, gestação e crescimento. Há diminuição da absorção com o avanço da idade, nos dois sexos; ela é mais acentuada em mulheres, durante a menopausa, o que pode induzir o aparecimento da osteopenia e osteoporose.

ABSORÇÃO DE FERRO A quantidade de ferro recomendada em uma dieta balanceada é de 6 a 8 mg/1.000 cal, o que representa a ingestão de cerca  de  10  a  15  mg/dia.  Desta  quantidade,  apenas  se  absorvem  10  a  12%.  Em  mulher,  em  período  pré­menopausa  ou durante gestação, e em criança na idade de crescimento, a absorção de ferro varia de 1,0 a 2,0 mg/dia; em homem adulto, de  0,5  a  1,0  mg/dia.  Esses  valores  são  suficientes  para  repor  as  perdas  diárias,  resultantes  da  descamação  das  células intestinais  e  epidérmicas.  O  conteúdo  férrico  de  um  organismo  adulto  é  de  aproximadamente  4  g.  O  ferro  encontra­se, principalmente, ligado aos radicais prostéticos das porfirinas dos grupos heme das moléculas de hemoglobina (65%) e de mioglobina (5%), como também a enzimas (1%). O restante está sob formas de ferritina e de hemossiderina, no fígado. O ferro heme é também absorvido; cerca de 15% do que se ingere são absorvidos. A  absorção  de  ferro  ocorre,  preferencialmente,  no  duodeno  e  no  jejuno,  diminuindo  progressivamente  em  direção  ao íleo. O mecanismo celular de absorção de ferro não está ainda bem esclarecido (Figura 63.15). O ferro heme é absorvido na  ML  por  mecanismo  ainda  não  conhecido.  No  citosol  do  enterócito,  o  grupo  heme  sofre  ação  da  heme  oxigenase, liberando  o  Fe2+,  que  pode  ser  oxidado  a  Fe3+,  o  qual  é  então  reduzido  a  íon  ferroso  (Fe2+),  por  ação  da  enzima  ferro redutase. O Fe2+, por sua vez, pode ser transportado para o interior celular por duas vias distintas, descritas a seguir. (1) No lúmen do intestino, o Fe2+ interage com a transferrina (Tf), formando o complexo Fe2+­Tf, que se liga a um receptor de transferrina localizado na ML, para penetrar no enterócito por endocitose. No citosol, o baixo pH da vesícula endocítica causa  a  liberação  do  ferro  do  complexo  Tf­receptor.  Esse  complexo  é  reciclado  para  a  ML,  deixando  o  ferro  livre  no citosol.  (2)  O  Fe2+  no  lúmen  do  intestino  pode  também  ser  transportado  para  o  citosol  através  do  cotransportador

H+:Fe2+ (DCT1 – divalent  cation  transporter  1),  localizado  na  ML  do  enterócito.  Como  as  formas  de  ferro  ionizado  e livre são citotóxicas, o ferro no citosol interage principalmente com a mobilferrina para ser tamponado. Quando os níveis plasmáticos  de  ferro  são  elevados,  aumenta  a  formação  intracelular  de  mobilferrina,  com  diminuição  da  transferência  do íon  para  o  plasma.  O  oposto  ocorre  quando  esses  níveis  ficam  reduzidos.  O  transporte  de  ferro  na  MBL  ainda  é  pouco compreendido;  provavelmente,  o  ferro  é  transportado  nesta  barreira  ligado  ao  transportador  IRE  (iron­responsive element). No plasma, o Fe2+ é oxidado a Fe3+ que interage com uma transferrina plasmática, a fim de ser transportado para os tecidos; no fígado, ele é tamponado pela ferritina, formando o complexo Fe3+­ferritina.

▸ Absorção de outros íons O magnésio (Mg2+) é absorvido ao longo de todo o intestino delgado. A maior fração de absorção se dá no íleo e uma menor, no duodeno. O cólon absorve uma quantidade ainda menor, mas significante. Os mecanismos celulares da absorção de magnésio não são bem compreendidos. Grande parte deles pode ocorrer pela via paracelular, devido à concentração de Mg2+ no lúmen intestinal, quando a água é absorvida. O  fosfato,  assim  como  o  magnésio,  também  é  absorvido  em  toda  a  extensão  do  intestino  delgado.  A  capacidade intestinal  de  absorção  de  fosfato  aumenta  em  resposta  aos  baixos  níveis  de  fosfato  sérico.  Esse  processo  depende  da vitamina D, mas os mecanismos pelos quais essa vitamina eleva a absorção de fosfato ainda não são compreendidos. Em grande parte, o fosfato cruza a ML por transporte ativo secundário, energizado pelo gradiente de Na+. Ele deixa a célula a favor de um gradiente de potencial eletroquímico, por transporte facilitado na MBL.

REGULAÇÃO DOS PROCESSOS ABSORTIVOS E SECRETORES DO INTESTINO Os  processos  absortivos  e  secretores  do  intestino  são  regulados  por:  hormônios  gastrintestinais,  hormônios extrínsecos,  parácrinos,  secretagogos  (sintetizados  por  células  do  sistema  imunológico  do  intestino)  (Quadro  63.1)  e neurotransmissores (tanto do sistema nervoso entérico como do autônomo).

Figura 63.15 ■ Modelo celular para o mecanismo de absorção de ferro no duodeno e no jejuno. Descrição da figura no texto. Tf, transferrina intestinal; DCT1, divalent cation transporter 1; IRE, iron­responsive element.

Quadro 63.1 ■ Secretagogos endógenos reguladores dos processos absortivos e secretórios do intestino. Origem dos secretagogos

Aumentama secreção

Aumentama absorção

Células epiteliais

Gastrina, neurotensina

Somatostatina

Metabólitos do ácido araquidônico, histamina Células da lâmina própria

Substâncias oxidantes, fatores

(parácrinos)

ativadores de plaquetas,

Efeitos não conhecidos

bradicinina Neurotransmissores do SNA e

Acetilcolina, serotonina, VIP,

Norepinefrina, neuropeptídio Y

SNE

substância P

Via sanguínea

Calcitonina, peptídio atrial

Mineralocorticoides, angiotensina,

natriurético, prostaglandinas

epinefrina

SNA, sistema nervoso autônomo; SNE, sistema nervoso entérico.

▸ Regulação por hormônios extrínsecos Hormônios do córtex da suprarrenal ▸ Aldosterona. É um mineralocorticoide sintetizado no córtex da suprarrenal; eleva não só a absorção de água e de NaCl,  como  também  a  secreção  de  K+ no cólon e,  em  menor  extensão,  no íleo.  Este  hormônio  tem  o  mesmo  efeito  nas células epiteliais do néfron; seu papel, no intestino e no néfron, é regular a absorção de água em resposta à desidratação (ver Capítulos  53  e  55).  O  mecanismo  de  ação  da  aldosterona  consiste  na  elevação  da  incorporação  e/ou  ativação  dos canais epiteliais para Na+ na ML e no aumento do número das Na+/K+­ATPases da MBL. ▸  Glicocorticoides. Também  agem  no  intestino,  elevando  a  absorção  de  água  e  de  NaCl  tanto  no delgado como no cólon, incorporando a Na+/K+­ATPase à MBL. ▸  Epinefrina.  As  células  intestinais  têm  receptores  para  epinefrina,  do  tipo  α;  o  hormônio  eleva  a  absorção eletroneutra  de  NaCl  no  íleo  e  inibe  os  processos  de  secreção.  Ele  também  tem  efeito  sobre  os  plexos  intramurais, especialmente os submucosos, por meio de inibição dos neurônios secretores e motores do sistema nervoso entérico.

▸ Regulação parácrina ▸ Somatostatina. Inibe a secreção de íons e de água nas células das criptas, reduzindo o nível de cAMP. Estimula a absorção hídrica e de eletrólitos no íleo e no cólon. ▸  Substâncias  do  sistema  imunológico  do  intestino.  São  parácrinos  secretados  por  mastócitos, fagócitos, linfócitos, basófilos, neutrófilos, células endoteliais e fibroblastos. Estas células secretam: histamina, citocinas, serotonina,  prostaglandinas,  leucotrienos,  endotelinas,  fatores  ativadores  de  plaquetas,  tromboxanas,  adenosina  e  óxido nítrico.  Estas  substâncias  elevam  os  processos  de  secreção  de  água  e  de  eletrólitos  pelas  células  das  criptas,  podendo causar diarreia; são liberadas nos processos inflamatórios intestinais, como na doença de Crohn. Estes parácrinos podem agir diretamente sobre as células epiteliais, ou de modo indireto, aumentando a atividade dos neurônios do sistema nervoso entérico, estimulando tanto a motilidade como a secreção das células intestinais. Adicionalmente,  o  sistema  nervoso  entérico,  via  neurotransmissores  (como  a  substância  P  e  o  neuropeptídio  Y), modula a atividade de células do sistema imunológico do intestino.

▸ Regulação pelo sistema nervoso entérico (SNE)

A  chegada  do  quimo  ao  intestino  estimula  os  mecano­  e  quimiorreceptores,  que  desencadeiam  curtos  reflexos intramurais com liberação de neurotransmissores. Estes agem diretamente sobre as células epiteliais, ou indiretamente (via sistema imunológico do intestino), provocando tanto os processos secretórios como os absortivos, além da motilidade. As  células  intestinais  são  inervadas  por  neurônios  motores  e  secretores  que  se  originam  principalmente  dos  plexos submucosos,  mas  também  dos  plexos  mioentéricos.  Os  neurotransmissores  são  a  acetilcolina  e  o  VIP;  porém,  várias substâncias neuroativas agem como moduladoras.

▸ Regulação pelo sistema nervoso autônomo (SNA) Poucas  fibras  eferentes  parassimpáticas  terminam  diretamente  nas  células  epiteliais.  Porém,  elas  afetam  os  plexos intramurais  e,  predominantemente,  o  submucoso,  alterando  a  resposta  dos  neurônios  pós­ganglionares  secretores  e motores.  A  estimulação  parassimpática  colinérgica  para  os  interneurônios  e  neurônios  secretores  dos  plexos  intramurais aumenta os processos secretórios. As  fibras  simpáticas  eferentes  noradrenérgicas  terminam  diretamente  nas  células  epiteliais  ou  afetam  a  atividade  dos neurônios secretores dos plexos intramurais. Nos dois casos, a estimulação simpática noradrenérgica diminui os processos secretores  e  aumenta  os  absortivos.  Na  neuropatia  diabética  autonômica,  a  estimulação  simpática  para  o  intestino  é abolida, causando a diarreia diabética. As  catecolaminas  e  os  agentes  α­adrenérgicos  inibem  fortemente  os  processos  secretórios  provocados  pela  toxina do Vibrio cholerae.

FISIOPATOLOGIA DA ABSORÇÃO INTESTINAL DE ÁGUA E ÍONS As  deficiências  absortivas  de  água  e  de  íons  no  intestino  provocam  diarreias.  Estas  podem  ser  consequência  de diversos  fatores  que  interferem  com  os  processos  absortivos  e/ou  secretórios  do  intestino,  a  motilidade  intestinal  e  a tonicidade do lúmen intestinal. Diarreia  caracteriza­se  por  aumento  da  massa  fecal  (a  valores  superiores  a  250  g/dia),  crescimento  da  proporção hídrica  nas  fezes  (do  normal  de  67%  para  70  a  90%),  dor,  sensação  de  urgência  da  defecação,  desconforto  perineal  e incontinência fecal. Os seus diferentes tipos são descritos a seguir. ▸  Diarreias  secretoras.  Caracterizam­se  por  maior  quantidade  de  líquido  nas  fezes  (além  de  500  m ℓ /dia);  a excreção  aumentada  persiste  no  jejum.  O  líquido  excretado  é  isotônico  em  relação  ao  plasma.  Estas  diarreias  podem  ter origem  infecciosa  (causadas  pelas  enterotoxinas),  podendo  ser  neoplásicas  ou  resultantes  de  hipersecreção  de secretagogos. ▸ Diarreias osmóticas. Resultam de problemas de má absorção intestinal (p. ex., de carboidratos), defeitos nos processos  digestivos,  anormalidades  dos  enterócitos,  redução  da  área  absortiva  do  intestino,  entre  outros.  Neste  caso,  o líquido  excretado  nas  fezes  também  pode  alcançar  valores  superiores  a  500  m ℓ /dia,  mas  é  hipertônico,  e  o  processo diarreico  cessa  no  jejum.  Nestas  diarreias,  os  nutrientes  não  digeridos  e/ou  não  absorvidos  permanecem  no  lúmen intestinal,  elevando  a  tonicidade  do  conteúdo  luminal;  isso  causa  um  fluxo  secretor  de  água.  São  acompanhadas  de distensão abdominal, cólicas, flatulência (em consequência de fermentação bacteriana) e borborigmo. ▸  Diarreias  exsudativas.  Resultam  de  doenças  inflamatórias  do  intestino  e  também  podem  ter  origem infecciosa.  Os  volumes  líquidos  excretados  são  variáveis,  ocorrendo  frequentes  defecações.  Persistem  no  jejum  e  são sanguinolentas e purulentas. ▸  Diarreias  por  aumento  da  motilidade.  Caracterizam­se  por  fezes  volumosas,  com  osmolalidade aumentada por nutrientes não absorvidos e por esteatorreia. Cessam no jejum. Ocorrem por aumento do trânsito intestinal, o  que  prejudica  tanto  os  processos  digestivos  como  os  absortivos.  As  causas  da  hipermotilidade  intestinal  não  são conhecidas. ▸  Diarreia  congênita  com  excreção  de  cloreto.  Neste  caso,  há  um  defeito  ou  ausência  do contratransportador Cl–/HCO3– da ML do íleo e do cólon. Apresenta grande prejuízo da absorção de Cl–, que aparece em altas  concentrações  fecais  (excedendo  a  soma  das  concentrações  de  Na+  e  de  K+).  Como  o  contratransportador Na+/H+ continua  a  funcionar,  há  excreção  fecal  de  H+,  levando  à  eliminação  de  fezes  ácidas;  consequentemente,  ocorre perda de H+, conduzindo à alcalose metabólica.

▸ Diarreia secretora, por ação da toxina do Vibrio cholerae. Trata­se de uma diarreia tipicamente secretora.  A  toxina  colérica  é  uma  proteína  com  PM  de  11,5  kD,  contendo  5  subunidades  do  tipo  B  e  2  do  A.  As subunidades  B  da  toxina  ligam­se  ao  receptor  da  ML,  um  sialoglicogangliosídio,  presente  nas  células  das  criptas  do delgado e do cólon. As subunidades A, através da ML, atingem o citosol; daí são transportadas até a MBL, por vesículas intracelulares.  A  ligação  da  subunidade  A1  com  a  subunidade  α  de  uma  proteína  Gs  inibe  a  atividade  GTPásica  da subunidade  α.  Isso  impede  o  rearranjo  das  subunidades  da  proteína  Gs  e  induz  a  ausência  de  inativação  da  adenilato ciclase  da  membrana;  portanto,  esta  se  mantém  continuamente  ativada,  promovendo  a  síntese  contínua  de  cAMP  e estimulando os processos de secreção de Cl– pelas células das criptas. Ocorre, assim, aumento da eliminação de Na+ e de água, causando uma diarreia profusa, com excreção fecal hídrica de até 20 ℓ diários. Além da alteração dos mecanismos de transporte de Cl– nas  células  das  criptas,  por  aumento  da  síntese  de  cAMP,  a toxina da cólera induz: (a) elevação da secreção de vários secretagogos, como serotonina e prostaglandinas, que levam a um  crescimento  da  concentração  intracelular  de  Ca2+;  (b)  alterações  morfológicas  do  delgado,  com  edema  da  mucosa, encurtamento  das  vilosidades  e  destruição  dos  enterócitos,  diminuindo  a  área  absortiva;  (c)  maior  motilidade  intestinal, por aumento da amplitude dos potenciais de ação do complexo migratório mioelétrico, em consequência de alterações do sistema  nervoso  entérico;  (d)  formação  de  uma  toxina  secundária,  derivada,  que  causa  mais  permeabilidade  das  tight­ junctions,  elevando  o  transporte  transepitelial  de  água  e  íons  pela  via  intercelular.  A  toxina  secundária  é  conhecida como ZOT ou zonuale occludens toxin.

Resumo Absorção intestinal de água e eletrólitos   1. A absorção de água em todo o intestino é secundária à de solutos. A de solutos gera o gradiente osmótico transepitelial responsável pela absorção hídrica.   2. A quantidade total de água no TGI é de 9 ℓ/dia. Destes, o delgado absorve 7,5 ℓ; a maior parte é absorvida no jejuno, devido à absorção de solutos orgânicos, que ocorre de preferência neste segmento. O cólon recebe 1,5 ℓ/dia e reabsorve 1,4 ℓ, excretando diariamente apenas 0,1 ℓ.   3. A reserva funcional absortiva de água do delgado é de até 20 ℓ/dia e a do cólon, de 4 a 6 ℓ/dia.   4. Cerca de 5 a 10 g de NaCl são ingeridos por dia. A quantidade de NaCl secretada no TGI é de aproximadamente 25 g/dia, dando um total de 30 a 35 g de NaCl que atingem o lúmen intestinal. O delgado absorve praticamente todo o NaCl, sendo excretados nas fezes apenas 9 a 12 mM/dia.   5. A quantidade de água secretada no TGI por dia (7 l) representa 20% do total desse líquido do organismo. A quantidade diária de NaCl secretada no TGI (25 g) corresponde a 15% do total de sódio do corpo. Estes valores permitem concluir que as alterações absortivas de água e de sódio conduzem a distúrbios da homeostase hidreletrolítica do organismo.   6. No delgado, a absorção de água ocorre entre dois compartimentos quase isotônicos (lúmen intestinal e interstício­plasma). Essa absorção se dá pelas vias intercelular e transcelular. A transcelular tem alta permeabilidade hídrica devido às aquaporinas (canais de água) presentes tanto na ML como na MBL.   7. No cólon, o lúmen é hipotônico em relação ao compartimento intersticialplasmático. O passo limitante para a absorção de água nesse segmento é a ML, cujo número de aquaporinas é regulável.   8. Embora a absorção de sódio ocorra ao longo de todo o intestino, quantitativamente ela é maior no delgado, principalmente no jejuno, onde o sódio é absorvido também por acoplamento com hexoses e aminoácidos.   9. A absorção de potássio depende da sua concentração luminal que, por sua vez, é função da absorção hídrica. Este íon pode ser tanto absorvido como secretado. Em diarreias, aumenta a quantidade de água luminal e diminui a absorção de potássio, que passa a ser excretado nas fezes, levando à hipopotassemia. 10. O bicarbonato é absorvido apenas no jejuno. Ele é secretado no duodeno, onde participa da neutralização do quimo ácido proveniente do estômago; o jejuno absorve o excesso. O íleo e o cólon secretam bicarbonato, neutralizando os produtos ácidos da fermentação bacteriana. 11. A modulação da secreção de cloreto é importante na regulação da absorção de sódio e de água. O cloreto é secretado, através da ML das células das criptas, em resposta a neurotransmissores, parácrinos e hormônios.

A elevação da secreção de cloreto altera o fluxo transepitelial de sódio e a tonicidade luminal, tanto no delgado como no cólon. Com isso, altera a absorção de água. 13. As diarreias caracterizam­se por aumento da excreção da massa fecal (acima de 250 g/dia) e da proporção de água (de 67% para 70 a 90%). Elas podem ser osmóticas, secretoras ou exsudativas. A diarreia pelo Vibrio cholerae é secretora; resulta da ausência da inativação da adenilatociclase, o que leva à ativação contínua do cAMP e ao aumento da secreção de cloreto. 14. As absorções de cálcio e de ferro são reguladas pelas necessidades do organismo. Ocorrem, predominantemente, no jejuno. A absorção de cálcio depende de um metabólito da vitamina D (1,25­di­ hidrocolecalciferol), sintetizado na pele, por radiação UV sobre o colecalciferol. 12.

BIBLIOGRAFIA ARONSON  PS,  BORON  WF,  BOULPAEP  EL.  Physiology  of  membranes.  In:  BORON  WF,  BOULPAEP  EL  (Eds.).  Medical Physiology. W.B. Saunders, Philadelphia, 2005. BERNE RM, LEVY MN, KOPPEN BM et al. Physiology. 5. ed. Mosby, St. Louis, 2004. BINDER  HJ,  SANDLE  GI.  Electrolyte  transport  in  the  mammalian  colon.  In:  JOHNSON  LR  (Ed.).  Physiology  of  the Gastrointestinal Tract. 3. ed. vol. 2. Raven Press, New York, 1994. BORON WF, BOULPAEP EL. Medical Physiology. Intestinal Fluid and Electrolyte Movement. Elsevier Saunders, Philadelphia, 2005. COOKE  HJ,  REDDIX  RA.  Neural  regulation  of  intestinal  electrolyte  transport.  In:  JOHNSON  LR  (Ed.).  Physiology  of  the Gastrointestinal Tract. 3. ed. vol. 2. Raven Press, New York, 1994. GOYAL S, VANDER H, ARONSON PS. Renal expression of novel exchanger isoform NHE8. Am J Renal Physiol, 284:F467­73, 2003. LEHNINGER AL. Principles of Biochemistry. 3. ed. Worth Publishers, New York, 2000. SANIOTO  SML.  Fisiologia  do  sistema  digestivo.  In:  AIRES  MM  (Ed.). Fisiologia Básica.  2.  ed.  Guanabara  Koogan,  Rio  de Janeiro, 1999. STEIN WD. Channels, Carriers and Pumps: an Introduction to Membrane Transport. In: WILFRED DS (Ed.). Academic Press, San Diego, 1990. WAGNER AC, FINBERG KE, BRETON S et al. Renal vacuolar H +­ATPase. Physiol Rev, 84:1263­314, 2004. WAKABAYASHI S, PANG T, SU X et al. A novel topology model of the human Na+/H + exchanger isoform 1.  J  Biol  Chem, 275:7942­9, 2000.

64 Introdução à Fisiologia Endócrina 65 Hipotálamo Endócrino 66 Glândula Hipófise 67 Glândula Pineal 68 Glândula Tireoide 69 Glândula Suprarrenal 70 Pâncreas Endócrino 71 Gônadas 72 Moléculas Ativas Produzidas por Órgãos Não Endócrinos 73 Crescimento e Desenvolvimento 74 Controle Hormonal e Neural do Metabolismo Energético 75 Controle Neuroendócrino do Balanço Hidreletrolítico 76 Fisiologia do Metabolismo Osteomineral 77 Fisiologia da Reprodução 78 Desreguladores Endócrinos

José Antunes­Rodrigues.

Antes  de  sua  graduação  em  Medicina,  em  1959,  o  Prof.  José  Antunes­Rodrigues  optou  pelo  trabalho experimental em Fisiologia sob a orientação do Prof. Miguel Rolando Covian, quando obteve os primeiros resultados indicando a importância do controle neural da ingestão salina. Fez seu doutoramento em 1962, livre­docência  em  1968,  foi  nomeado  professor  adjunto  em  1968  e  professor  titular  em  1981  no Departamento  de  Fisiologia  da  Faculdade  de  Medicina  de  Ribeirão  Preto/USP.  Após  o  doutoramento, passou 2 anos nos EUA, onde trabalhou com o Dr. Samuel M. McCann, um dos pioneiros e expoentes na área de Neuroendocrinologia. Ao longo de sua carreira científica, Antunes fez várias contribuições sobre o papel do sistema nervoso central (SNC) no controle do equilíbrio hidromineral, com especial ênfase nas vias neurais envolvidas nessa regulação  homeostática.  Antunes­Rodrigues  foi  o  primeiro  pesquisador  a  demonstrar  a  importância  dos núcleos paraventriculares e supraópticos no controle da ingestão específica de sódio.1 Posteriormente,  avaliou  as  principais  vias  neurais,  os  neurotransmissores  sinápticos  e  os  mecanismos neuroendócrinos  envolvidos  na  mediação  dessa  resposta.  Neste  sentido,  demonstrou  que  o  controle  da ingestão  de  sódio  é  complexo  e  envolve,  além  do  hipotálamo,  o  bulbo  olfatório,  a  área  septal,  o  órgão subfornical e o complexo amigdaloide.2 A  descoberta  da  existência  do  peptídio  natriurético  atrial  (ANP)  no  corpo  celular  de  neurônios hipotalâmicos,  em  regiões  relacionadas  com  o  controle  da  ingestão/excreção  de  sódio,  levou  Antunes­ Rodrigues a investigar a participação do ANP no controle da homeostase hidreletrolítica, demonstrando que a  estimulação  osmótica,  adrenérgica,  colinérgica  e  peptidérgica  do  hipotálamo  induz  à  liberação  do  ANP. Demonstrou também que a administração do ANP em regiões restritas do SNC inibe a ingestão de água e de sódio.3,4 Além disso, indicou que a natriurese induzida pela estimulação colinérgica é acompanhada por acentuado aumento na concentração plasmática de ANP, associado a elevação do seu conteúdo no sistema neuronal ANPérgico hipotalâmico, o que sugere a ativação desses neurônios e sua liberação na circulação sistêmica.5 Antunes­Rodrigues demonstrou que a liberação do ANP, induzida pela expansão do volume extracelular (EVEC),  é  bloqueada  quando  se  destroem  os  corpos  celulares  ou  axônios  desse  sistema  neural.6  Esses resultados  o  levaram  a  concluir  que  a  liberação  do  ANP  induzida  pela  EVEC  pode  ser  decorrente  da liberação de neuropeptídios do sistema hipotálamo­hipofisário, tais como endotelina (ET­3), MSH, ocitocina, vasopressina e o próprio ANP, que, uma vez liberados na circulação sistêmica, estimulariam a liberação do ANP  diretamente  dos  miócitos  atriais.  Recentemente,  Antunes­Rodrigues  demonstrou  que  a  desnervação sinoaórtica e renal diminui a liberação do ANP induzida pela EVS,7 o que ressalta a importância do SNC em seu controle. Atualmente, conduz experimentos que procuram demonstrar modificações na expressão gênica de ANP, vasopressina e ocitocina em áreas restritas do SNC em resposta à sobrecarga salina. Sua atividade de orientação científica em nível de pós­graduação tem sido muito fértil, contando­se entre seus  orientados  vários  excelentes  docentes­pesquisadores  nas  principais  universidades  brasileiras.  Tem cerca  de  251  artigos  publicados  em  periódicos  indexados  e  já  orientou  várias  teses  de  doutorado  e mestrado. Linhas de pesquisa: Controle Neuroendócrino do Equilíbrio Hidreletrolítico e Controle Neuroendócrino da Fisiologia da Reprodução.

Margarida de Mello Aires In: Programa de Pós­Graduação em Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto   ____________ 1 COVIAN  MR,  ANTUNES­RODRIGUES  J.  Specific  alterations  in  sodium  chloride  intake  after  hypothalamic lesions in the rat. Am J Physiol, 205(5):922­6, 1963. 2 MOGENSON  GJ,  CALARESU  FR  (Eds.).  Neural  Integration  of  Physiological  Behaviour.  University  of Toronto Press, 1975. 3

ANTUNES­RODRIGUES  J,  McCANN  SM,  ROGERS  LC  et  al.  Atrial  natriuretic  factor  inhibits  dehydration and  angiotensin  II­induced  water  intake  in  the  conscious,  unrestrained  rat.  Proc  Natl  Acad  Sci  U  S A, 82(24):8720­3, 1985. 4 ANTUNES­RODRIGUES  J,  McCANN  SM,  SAMSON  WK.  Central  administration  of  atrial  natriuretic  factor inhibits saline preference in the rat. Endocrinology, 118(4):1726­8, 1986. 5 BALDISSERA  S,  MENANI  JW,  SANTOS  LF  et  al.  Role  of  the  hypothalamus  in  the  control  of  atrial natriuretic peptide release. Proc Natl Acad Sci U S A, 86(23):9621­5, 1989. 6

ANTUNES­RODRIGUES J, RAMALHO MJ, REIS LC et al. Lesions of the hypothalamus and pituitary inhibit volume­expansion­induced  release  of  atrial  natriuretic  peptide.  Proc  Natl  Acad  Sci  U  S  A,  88(7):2956­60, 1991. 7 ANTUNES­RODRIGUES  J,  MACHADO  BH,  ANDRADE  HA  et  al.  Carotid­aortic  and  renal  baroreceptors mediate  the  atrial  natriuretic  peptide  release  induced  by  blood  volume  expansion. Proc  Natl  Acad  Sci  U  S A, 89(15):6828­31, 1992.



Conceituação de hormônio

■ ■

Sistemas hormonais Classificação dos hormônios quanto à sua natureza química

■ ■ ■

Sistemas de retroalimentação Hormônios produzidos por outros órgãos Fisiopatologia



Bibliografia

CONCEITUAÇÃO DE HORMÔNIO O  sistema  endócrino  tem  a  função  de  garantir  o  fluxo  de  informações  entre  diferentes  células,  possibilitando  a integração funcional de todo o organismo. As inúmeras funções do sistema endócrino podem ser resumidas em 3 grupos: (1) garantir a reprodução, (2) promover crescimento e desenvolvimento e (3) garantir a homeostase (estado de equilíbrio) do meio interno. No  sistema  endócrino,  o  fluxo  de  informações  ocorre  a  partir  dos  efeitos  biológicos  determinados  por  moléculas, denominadas  hormônios.  Neste  fluxo  de  informação  intercelular,  que  define  uma  ação  endócrina,  participam  a  célula secretora  e  a  célula­alvo:  (1)  a  célula  secretora  é  a  responsável  pela  síntese  e  secreção  do  hormônio  que  vai  levar  a informação;  (2)  a  célula­alvo  é  aquela  que  vai  reconhecer  o  hormônio  e  modificar  alguma  função  celular  em  resposta  a esse  hormônio.  Nesse  processo,  a  célula­alvo  para  um  hormônio  é  aquela  que  expressa  um  receptor  hormonal  (R) específico  para  esse  hormônio,  o  que  ocorre  durante  a  diferenciação  da  célula­alvo.  Assim,  o  receptor  hormonal  é  um elemento  fundamental  na  resposta  endócrina  (esse  assunto  está  detalhadamente  discutido  no  Capítulo  3,  Sinalização Celular). A definição clássica de hormônio diz tratar­se de substância química produzida por tecidos especializados e secretada na corrente sanguínea, onde é conduzida até os tecidos­alvo. Entretanto, esta definição foi concebida quando a maioria dos sistemas hormonais conhecidos era restrita a vertebrados, sendo que vários princípios desta definição já foram revisados de acordo com o conhecimento atual.

▸ Exemplos Os exemplos citados a seguir impuseram uma revisão na definição clássica de hormônio: ■ Hormônios produzidos e secretados por diferentes tipos celulares do organismo já foram amplamente caracterizados, e a correlação de hormônio com tecido especializado em produzi­lo foi perdida ■ O  sangue  é  próprio  de  vertebrados,  e  sabe­se  que  em  artrópodes  vários  hormônios  circulam  por  meio  da  hemolinfa. Adicionalmente, em vertebrados, os para­hormônios difundem­se pelo líquido intersticial, alcançando as células­alvo

sem atingir a corrente sanguínea ■ Já estão bem caracterizados os ecto­hormônios (em grego, ektós designa superfície ou exterior) que atravessam o ar ou a água, comunicando diferentes indivíduos da mesma espécie (como os feromônios, responsáveis pela atração sexual) ou de espécies diferentes (como os alomônios e cairomônios, envolvidos em atrações interespécies) ■ Alguns  hormônios  produzidos  por  determinadas  células  são  capazes  de  modular  funções  na  própria  célula  secretora, sem serem secretados para o meio extracelular (ação denominada intrácrina). Assim,  atualmente,  o  melhor  conceito  para  definir  hormônio  é:  substância  química  não  nutriente  capaz  de  conduzir determinada  informação  entre  uma  ou  mais  células.  Entretanto,  mesmo  esta  definição  exclui  os  alarmônios,  que  são substâncias  produzidas  e  utilizadas  unicamente  em  uma  mesma  célula,  mas  que  preservam  a  essência  da  endocrinologia, que é uma coordenação química das funções corporais. Por outro lado, o caráter químico dos hormônios, que a princípio parece lógico, é restritivo e provavelmente deverá ser revisto em breve. Já se sabe que algumas espécies animais, como os piróforos (ou vaga­lume), podem utilizar a energia da luz para induzir padrões comportamentais entre si; portanto, excluir os  fatores  físicos  na  definição  de  hormônio  é  uma  questão  que  precisa  ser  revisada.  Finalmente,  sabe­se  que  as  rotas metabólicas  são  reguladas  pelas  concentrações  de  seus  substratos;  entretanto,  os  nutrientes  ainda  são  eliminados  do conceito de hormônio. Portanto, fica claro que, independente de dificuldades na definição de um hormônio, sua principal característica é a capacidade de induzir uma resposta celular, isto é, alterar uma função da célula.

▸ Glândulas endócrinas e hormônios secretados O  conhecimento  da  endocrinologia  evoluiu  a  partir  de  sistemas  macroscópicos  para  sistemas  microscópicos  e, posteriormente, moleculares, de acordo com a evolução da tecnologia. Sendo assim, é natural que os primeiros sistemas endócrinos  tenham  sido  descritos  em  órgãos  que  se  mostravam  capazes  de  produzir  substâncias  que  agiriam  à  distância, modificando funções de outras estruturas. Esses órgãos foram denominados glândulas endócrinas, uma vez que o produto de secreção era lançado no meio interno. As primeiras glândulas endócrinas descritas foram: gônadas (ovário e testículo), pâncreas,  suprarrenal,  tireoide,  paratireoide  e  hipófise,  e  nessas  glândulas  foram  caracterizadas  as  células  secretoras  dos hormônios.  Foi  verificado  que  diferentes  tipos  celulares  poderiam  estar  presentes  em  uma  mesma  glândula  e  que,  na maioria das vezes, cada um era responsável pela síntese e secreção de um hormônio específico. Notou­se também que um mesmo tipo celular poderia produzir mais de um hormônio. Posteriormente,  foram  caracterizadas  células  secretoras  que  se  encontram  dispersas  em  um  determinado  local,  sem formar  um  tecido  especializado,  e  muito  menos  ainda  um  órgão  (ou  glândula).  Por  exemplo,  no  parênquima  da  glândula tireoide foram identificadas células dispersas, especializadas na síntese e secreção do hormônio calcitonina, importante na regulação da homeostase da calcemia. Além disso, à medida que a capacidade de demonstrar­se a atividade hormonal de uma molécula evoluiu, observou­se que praticamente todos os tipos celulares do organismo são capazes de produzir um ou mais  hormônios;  esta  observação  expandiu  o  sistema  endócrino  para  muito  além  das  clássicas  glândulas  endócrinas, inicialmente caracterizadas. Exemplos relacionados a esse item são o coração, que secreta o hormônio/peptídio natriurético atrial; os rins, que secretam a renina; e até o endotélio dos vasos, que secretam as endotelinas, entre outros. Não  podemos  deixar  de  falar  sobre  as  interações  do  sistema  nervoso  e  o  sistema  endócrino.  Claude  Bernard, considerado  o  pai  da  Fisiologia  e  quem  lançou  o  conceito  de  homeostase  na  segunda  metade  do  século  XIX,  já demonstrara  que  a  manutenção  do  meio  interno  dependia  da  atividade  coordenada  de  dois  sistemas  essenciais:  o  sistema endócrino  e  o  sistema  nervoso  autônomo,  salientando  que  a  acetilcolina  e  a  norepinefrina  podiam  circular  no  sangue agindo  como  verdadeiros  hormônios.  Surgiu  então  a  ideia  de  que  o  sistema  nervoso  interage  com  o  endócrino, confundindo­se  às  vezes,  e  o  que  se  conhece  hoje  é  uma  completa  interação  neuroendócrina,  especialmente  em  sistemas localizados  no  sistema  nervoso  central  (SNC),  onde  não  existem  barreiras  separando  o  “nervoso”  do  “endócrino”.  A medula  suprarrenal,  um  dos  primeiros  sistemas  definido  como  neuroendócrino,  é  sabidamente  glândula  e  gânglio  pós­ ganglionar ao mesmo tempo. Na evolução do conhecimento, a caracterização dos sistemas neuroendócrinos gerou a criação do  termo  neuro­hormônio  para  referir­se  às  moléculas  neles  envolvidas.  Entretanto,  esse  termo  pouco  contribuiu  para clarear  o  conhecimento.  O  importante  hoje  é  saber  que  há  moléculas  como  a  epinefrina,  por  exemplo,  que  agem  como hormônio e como neurotransmissor na transmissão sináptica.

SISTEMAS HORMONAIS

▸ Sistemas hormonais clássicos Uma vez que o conceito de hormônio evoluiu, novos e distintos sistemas hormonais foram caracterizados. São três os clássicos  sistemas  (ou  ações)  hormonais  (Figura  64.1):  (1)  sistema  endócrino  –  o  hormônio  age  em  uma  célula­alvo distante, na qual ele chega por meio do sangue; (2) sistema parácrino – o hormônio difunde­se no interstício agindo em células  vizinhas  da  célula  secretora;  e  (3)  sistema autócrino –  o  hormônio,  uma  vez  secretado,  volta  a  agir  na  própria célula secretora. Embora os termos sistema ou ação endócrina possam ser utilizados genericamente para qualquer fenômeno endócrino, atualmente esta designação refere­se ao primeiro tipo de ação caracterizada que envolve uma ação do hormônio à distância. Esse conhecimento surgiu a partir de experimentos de parabiose. A parabiose é uma técnica experimental desenvolvida no laboratório de Claude Bernard em 1862, na qual se suturam dois animais lado a lado, por intermédio da parede lateral da região  abdominal;  a  região  da  ligadura  entre  os  animais  (pele  e  tecido  subcutâneo)  revasculariza,  proporcionando  a comunicação  sanguínea  entre  os  dois  organismos.  Esta  técnica  possibilita  demonstrar  a  existência  de  fatores  humorais circulantes  (hormônios)  que,  produzidos  em  um  animal,  determinam  efeito  biológico  no  outro,  demonstrando  a  ação  do hormônio  à  distância.  Thales  Martins,  fisiologista  e  endocrinologista  brasileiro  de  importância  internacional  (ver  “As Origens da Fisiologia no Brasil”, na parte inicial deste livro), contribuiu muito à endocrinologia entre os anos de 1920 e 1940 utilizando esta técnica. Thales Martins demonstrou a masculinização do animal pré­púbere colocando­o em parabiose com  o  animal  adulto,  concluindo  que  os  hormônios  do  adulto  passavam  para  o  jovem,  masculinizando­o.  Também demonstrou  a  existência  de  hormônios  hipofisários  reguladores  da  função  gonádica,  utilizando  a  parabiose  entre  animais adultos  normais  e  castrados.  Neste  caso,  sabe­se  que  a  castração  induz  a  um  aumento  na  produção  de  hormônios hipofisários estimuladores do trofismo (ou desenvolvimento) das gônadas (razão pela qual esses hormônios são chamados gonadotrofinas).  Assim,  quando  um  animal  castrado  é  colocado  em  parabiose  com  um  normal  (que  tem  a  gônada) observa­se,  após  alguns  dias,  uma  hipertrofia  da  gônada  do  animal  normal,  em  consequência  do  aumento  de gonadotrofinas do castrado, mais uma vez caracterizando a clássica ação endócrina na qual o hormônio, deslocando­se pela corrente sanguínea, age em células­alvo distantes.

Figura 64.1 ■ Ações endócrinas clássicas. Na parte inferior da figura está desenhada a célula secretora produtora de hormônio (representado pelas estrelas). Na ação endócrina, o hormônio se desloca pela circulação sanguínea e age em uma célula­alvo distante. Na ação parácrina, o hormônio age em célula­alvo próxima da célula secretora, sem alcançar a circulação. Na  ação autócrina, o hormônio secretado no meio extracelular volta a agir na própria célula secretora.

Além  dos  sistemas  endócrinos  descritos  anteriormente,  a  interação  das  funções  endócrina  e  nervosa  provoca  as ações neuroendócrinas, tanto a partir de neurotransmissores como de peptídios secretados por neurônios.

▸ Sistemas hormonais não clássicos Atualmente, vários sistemas hormonais distintos têm sido descritos, o que vem sendo designado como endocrinologia não  clássica.  Esses  sistemas  são  operados  por  hormônios  frequentemente  sintetizados  em  múltiplos  locais  e  que  podem agir  localmente.  São  características  desses  sistemas:  grande  repertório  de  ações,  intercruzamento  de  suas  ações  e, ocasionalmente,  ações  contrárias.  Geralmente  tais  hormônios  são  fatores  de  crescimento,  e  alguns  têm  ações  opostas, como estimulação e inibição de crescimento, conforme o estágio de diferenciação da célula­alvo. Entre os sistemas hormonais não clássicos, em mamíferos, destacam­se três (Figura 64.2): ■ Criptócrino:  a  secreção  e  ação  do  hormônio  ocorrem  em  um  sistema  fechado,  que  envolve  diferentes  células, intimamente relacionadas. Como exemplo, há as interações da célula de Sertoli e as espermátides, em que a membrana basal do túbulo seminífero impede que os hormônios se difundam para o interstício testicular ■ Justácrino: o hormônio sintetizado passa a integrar a membrana plasmática (com parte da proteína localizada no meio extracelular) e, embora possa ser clivado formando um peptídio solúvel que se distancia da célula secretora, em geral permanece  aderido  à  membrana  plasmática  da  célula  secretora,  mantendo  sua  capacidade  de  ação  restrita  às  células vizinhas,  cujo  alcance  depende  do  tamanho  de  sua  haste  de  sustentação.  Agem  desta  maneira  fatores  de  crescimento como EGF, TGF­α, TNF­α, entre outros ■ Intrácrino: a síntese do hormônio e a ligação ao seu receptor específico ocorrem dentro da mesma célula. O principal exemplo é o receptor Ah (hidrocarbonos aromáticos). Entretanto, uma variante deste tipo de sistema inclui a geração de  metabólitos  ativos  dentro  da  célula­alvo,  como  a  síntese  do  T3  (a  partir  do  precursor  T4)  dentro  da  célula­alvo, onde vai agir sem ao menos sair da célula. Outro exemplo é a síntese de estrógeno a partir da testosterona na célula­ alvo.  A  ação  intrácrina  diferencia­se  da  autócrina  pelo  fato  de  que  o  hormônio  não  sai  da  célula  secretora,  sendo, portanto, restrito a hormônios que tenham receptores intracelulares, conforme será descrito adiante.

Figura  64.2  ■   Exemplos  dos  3  tipos  de  ações  endócrinas,  em  que  os  hormônios  estão  representados  por  estrelas. (1) Criptócrina – túbulo seminífero no qual observam­se algumas células de Sertolli (junto à membrana basal) e espermátides; as  células  de  Sertoli  produzem  o  fator  de  diferenciação  celular  (TGF),  que  é  importante  para  o  desenvolvimento  da espermatogênese. (2) Justácrina – a célula secreta o hormônio (o fator de crescimento TNF­α) que pode permanecer ligado na membrana celular, agindo somente em células­alvo próximas, ou pode romper­se indo para a circulação. (3) Intrácrina – a célula utiliza como precursor o T4 para transformá­lo em T3, hormônio que vai agir na própria célula.

Um  sistema  hormonal  pode  ainda  ser  designado  como  não  clássico  por  envolver  hormônios  recentemente caracterizados, cuja produção ou é disseminada por vários territórios ou é proveniente de células até então não definidas ou caracterizadas como células endócrinas. Exemplos desses sistemas/hormônios serão detalhados adiante.

CLASSIFICAÇÃO DOS HORMÔNIOS QUANTO À SUA NATUREZA QUÍMICA Alguns princípios físico­químicos são fundamentais para se compreender a classificação dos hormônios quanto à sua natureza química. Uma  vez  que  os  hormônios  são  moléculas  sintetizadas  em  células  e  secretadas  para  o  meio  extracelular,  de  onde muitas vezes alcançam a circulação sanguínea, é importante lembrar que o solvente desses meios é a água, cuja molécula tem um caráter polar (com um polo positivo e outro negativo), o que possibilita que toda e qualquer molécula de caráter polar solubilize­se nesse meio. Consequentemente, tanto o meio intra como o extracelular são hidrofílicos, possibilitando a solubilização de qualquer molécula polar, caracterizando essas moléculas como hidrossolúveis (ou moléculas hidrofílicas ou  lipofóbicas).  Adicionalmente,  a  membrana  plasmática,  que  delimita  tanto  a  célula  secretora  como  a  célula­alvo,  tem componentes  lipídicos  que  são  moléculas  apolares.  Portanto,  na  membrana  plasmática,  as  moléculas  hidrossolúveis  são incapazes  de  se  solubilizar  (a  membrana  é  hidrofóbica  ou  lipofílica),  de  maneira  que  a  membrana  plasmática  representa uma  barreira  à  passagem  de  moléculas  hidrofílicas.  Obviamente,  o  inverso  é  verdadeiro;  isto  é,  moléculas  lipídicas  (ou lipofílicas) solubilizam­se na membrana plasmática, podendo atravessá­la facilmente. Compreende­se  então  que,  dependendo  da  sua  composição  química,  um  hormônio  é  hidro  ou  lipossolúvel  e, consequentemente,  várias  de  suas  características  decorrerão  dessas  suas  qualidades  físico­químicas.  Assim,  embora estruturalmente  os  hormônios  possam  ser  bastante  diversos,  didaticamente  é  conveniente  classificá­los  em  2  grandes grupos:  os  hidrossolúveis  e  os  lipossolúveis.  A  importância  do  caráter  de  hidrossolubilidade  dos  hormônios  repousa  na determinação  de  uma  série  de  características  hormonais  comuns  nos  processos  de  síntese,  secreção,  transporte  e metabolização, assim como o tipo de receptor e o mecanismo de ação.

▸ Hormônios hidrossolúveis São a maioria, sendo também conhecidos como o grupo dos hormônios proteicos, por incluírem todos os hormônios que  são  proteínas.  As  proteínas  são  constituídas  por  cadeias  de  aminoácidos  que  se  unem  por  ligações  peptídicas, preservando  a  característica  polar  das  moléculas  dos  aminoácidos  e,  assim,  definindo­se  como  hidrossolúveis.  A composição desses hormônios varia desde um único aminoácido modificado, passando por peptídios simples, até grandes proteínas  (com  centenas  de  aminoácidos).  Podem  ser  ainda  maiores,  quando  forem:  (1)  constituídos  por  várias subunidades  (ou  cadeias  de  proteínas);  (2)  glicosilados  (com  um  radical  açúcar  ligado  em  um  aminoácido)  ou  (3) fosforilados (com um fosfato – PO4, ligado em um aminoácido).

Síntese dos hormônios hidrossolúveis Os menores hormônios hidrossolúveis são aminoácidos modificados, por exemplo: a tirosina origina a epinefrina e a norepinefrina; a histidina origina a histamina; e o triptofano origina a serotonina. A síntese desses hormônios depende da disponibilidade intracelular do aminoácido e do conteúdo e atividade das enzimas­chave no processo de metabolização (ou modificação) da molécula do aminoácido. Os  demais  hormônios  (desde  peptídios  até  proteínas)  são  codificados  por  genes  específicos;  portanto,  sua  síntese segue  os  princípios  básicos  da  síntese  de  proteínas.  Em  resumo,  na  célula  secretora,  fatores  transcricionais  específicos (definidos no processo de diferenciação celular) são responsáveis por agirem na região promotora do gene, determinando que  este  seja  transcrito.  O  RNA  mensageiro  (mRNA)  transcrito  migra  para  o  retículo  endoplasmático  rugoso  e,  nos ribossomos,  ocorre  a  tradução  desse  mRNA  em  proteína.  Entretanto,  importantes  regulações  pós­transcricionais  e  pós­ traducionais podem ocorrer (Figura 64.3).

Após  a  transcrição  do  gene,  no  processamento  do  RNA  primário,  por  exemplo  quando  os  íntrons  são retirados,  splicing  alternativo  pode  ocorrer  dando  início  a  2  diferentes  RNAs,  que  consequentemente  gerarão  duas proteínas  diferentes  (p.  ex.,  variantes  da  cadeia  beta  do  hormônio  estimulador  da  tireoide  –  TSH).  Após  a  etapa  da tradução,  ocorrem  processos  de  metabolização  pós­traducional.  Primeiro,  as  proteínas  perdem  o  peptídio  sinal  (primeira sequência  de  aminoácidos  que  indica  o  início  do  processo  de  tradução);  depois,  peptidases  específicas  clivam  essa proteína, até chegar à forma biologicamente ativa do hormônio. Adicionalmente, pode ocorrer glicosilação ou fosforilação da molécula proteica, processos fundamentais para a atividade biológica de alguns hormônios (ver Figura 64.3).

Figura 64.3 ■ Esquema da síntese dos hormônios proteicos, de acordo com os princípios de síntese de qualquer proteína (que tem  um  gene  codificador).  À  esquerda,  dentro  de  boxes,  são  indicadas  as  etapas  do  processo  de  expressão  de  um  gene. À direita, em negrito, estão indicados os territórios celulares em que os processos ocorrem. As possibilidades de processamento pós­traducional para geração de hormônios ativos são múltiplas em termos de clivagem e ainda podem incluir outros processos, como glicosilação e fosforilação. A linha tracejada representa a membrana nuclear. RER, retículo endoplasmático rugoso; PS, peptídio sinal.

Quanto  aos  hormônios  de  dupla  cadeia  peptídica  ou  proteica,  duas  possibilidades,  completamente  distintas,  podem estar envolvidas: ■ Apenas  um  gene  codifica  o  hormônio,  o  qual  expressa  uma  molécula  precursora,  que  sofre  processamento  pós­ traducional,  quebrando­se  em  várias  sequências;  algumas  delas  ligam­se  posteriormente,  e  constituem  a  forma  final ativa  do  hormônio.  Exemplo:  o  gene  da  insulina  codifica  uma  proteína,  a  proinsulina,  a  qual,  após  processamento, forma as cadeias A, B e C; as cadeias A e B ligam­se e constituem a molécula final da insulina ■ Dois  genes  estão  envolvidos  na  síntese  do  hormônio,  os  quais  expressam  duas  proteínas  distintas,  que  se  ligam posteriormente para constituir a forma final ativa do hormônio. Exemplo: para a síntese do hormônio TSH, um gene codifica a cadeia α e outro é responsável pela cadeia β, as quais posteriormente se ligam, constituindo o hormônio.

Secreção dos hormônios hidrossolúveis Na  produção  dos  hormônios,  é  importante  que  se  compreenda  claramente  a  distinção  entre  síntese  e  secreção  de  um hormônio.  A  síntese,  antes  descrita,  envolve  todas  as  etapas  que  determinam  a  “fabricação”  da  molécula  do  hormônio, enquanto a secreção envolve os mecanismos que determinam a “saída” do hormônio da célula secretora. Os processos de síntese  e  secreção,  frequentemente,  são  estimulados  ou  inibidos  de  maneira  paralela,  e  por  isso  é  comum  a  utilização indiscriminada desses dois termos. Devido  ao  caráter  hidrossolúvel  da  molécula,  conforme  já  discutido,  a  membrana  plasmática  é  impermeável  aos hormônios  hidrossolúveis.  Portanto,  todos  os  hormônios  hidrossolúveis  utilizam­se  do  mesmo  mecanismo  de  secreção, que envolve o empacotamento das moléculas em vesículas (chamadas vesículas ou grânulos secretórios). Essas vesículas formam­se paralelamente ao processo de síntese do hormônio, a partir de pequenos fragmentos de membranas do retículo endoplasmático  ou  do  sistema  de  Golgi.  Sendo  assim,  mecanismos  secretórios,  em  geral  envolvendo  aumento  da concentração  intracelular  de  cálcio  livre,  ativam  a  contração  de  estruturas  do  citoesqueleto  celular,  promovendo  a mobilização  (ou  translocação)  dessas  vesículas  para  a  superfície  celular.  Uma  vez  que  ocorra  o  contato  da  membrana  da vesícula com a membrana plasmática, ambas de caráter lipofílico, essas membranas se fundem, e o conteúdo das vesículas é exposto ao meio extracelular (este fenômeno é chamado de extrusão do conteúdo do grânulo ou exocitose). Durante  o  processo  de  formação  da  vesícula,  é  comum  que  proteases  específicas  (enzimas  que  degradam  ligações peptídicas, clivando as proteínas em locais específicos) sejam empacotadas junto com o conteúdo intravesicular; e, então, processos  de  finalização  da  síntese  hormonal  (ou  processamento  pós­traducional)  podem  ocorrer  dentro  da  vesícula secretória.  Consequentemente,  é  comum  detectarem­se  pequenas  quantidades  de  pró­hormônio  na  circulação,  que correspondem a moléculas que não chegaram a ser clivadas, assim como quantidades equimolares (com mesmo número de moléculas) de peptídio (que fazia parte da molécula do pró­hormônio) e de hormônio. É importante destacar que no processo de evolução a natureza desenvolveu mecanismos extremamente econômicos, a partir  dos  quais  um  único  gene  pode  ser  responsável  pela  produção  de  vários  hormônios.  Isto  é  possível  desde  que múltiplos processos de clivagem da proteína precursora gerem vários peptídios, cada um deles com ação biológica própria. Um  exemplo  magnífico  desse  tipo  de  processamento  pós­traducional  ocorre  com  o  gene  da  pró­opiomelanocortina (POMC), que se expressa em vários territórios, principalmente no SNC, na hipófise, de modo que o seu processamento pós­traducional provoca a liberação de diferentes hormônios, com ações distintas (Figura 64.4).  Especificidades  de  cada célula secretora, tais como a presença de determinadas proteases, possibilitam que esse gene seja responsável pela síntese de  diferentes  hormônios,  de  acordo  com  o  tipo  celular  ou  a  espécie  animal.  Ainda  é  possível  que  uma  mesma  célula secretora, em diferentes condições fisiológicas, altere a expressão ou a atividade das proteases, modificando o padrão final de geração de hormônios a partir da molécula precursora. Finalmente,  é  importante  que  se  ressalte  a  ocorrência  de  fusão  entre  vesículas  secretoras  dentro  da  célula  secretora, misturando os seus conteúdos. Portanto, fisiologicamente, frente a um estímulo secretório, não é verdadeira a ideia de que primeiramente é secretado o hormônio que já estava sintetizado e armazenado, para apenas posteriormente ser secretado o hormônio  designado  como  recentemente  sintetizado.  Entretanto,  é  claro  que  se  um  estímulo  secretório  intenso  persistir durante  horas,  observa­se  uma  predominância  de  moléculas  recentemente  sintetizadas,  assim  como  começa  a  aumentar  a quantidade de pró­hormônio secretado, podendo até mesmo evoluir para uma situação de exaustão da célula secretora, na qual  a  velocidade  de  síntese  hormonal  não  consegue  acompanhar  a  demanda  de  secreção.  Essas  situações  somente ocorrerão em estados patológicos ou experimentais.

Circulação, metabolização e mecanismo de ação dos hormônios hidrossolúveis Devido à sua característica polar, os hormônios hidrossolúveis solubilizam­se facilmente tanto no interstício como no sangue,  tornando  possível  a  livre  circulação  (como  moléculas  isoladas,  solúveis  no  meio  aquoso).  Entretanto,  exceções começam  a  ser  demonstradas,  como  o  hormônio  do  crescimento  e  os  IGF  (insulin­like  growth  factors),  que  costumam circular ligados a uma proteína carregadora. Alguns  territórios  do  organismo  são  ricos  em  enzimas  proteolíticas,  como  o  fígado  e  o  rim,  sendo  locais  de degradação  de  hormônios  proteicos.  Uma  vez  que  a  cadeia  peptídica  seja  quebrada,  a  atividade  biológica  do  hormônio  é perdida.  Além  disso,  na  célula­alvo  da  ação  hormonal  ocorre  um  contínuo  processo  de  internalização  do  complexo hormônio­receptor;  e,  por  ação  de  lisossomos,  ocorre  a  metabolização/degradação  dos  hormônios.  Alguns  desses hormônios  têm  meia­vida  (definida  como  tempo  necessário  para  degradar  50%  da  quantidade  secretada  em  um  dado momento) extremamente curta, como a da insulina, que é de 5 a 8 minutos.

Sobre  seu  mecanismo  de  ação  (detalhado  no  Capítulo  3),  é  importante  destacar  que,  em  consequência  do  caráter hidrossolúvel da molécula, ela não poderá entrar na célula­alvo, pois não pode atravessar a membrana celular lipoproteica. Portanto,  é  característico  dos  hormônios  hidrossolúveis  apresentarem  receptor  localizado  na  membrana  plasmática  da célula­alvo, com o local de reconhecimento (ou ligação) ao hormônio exposto ao meio extracelular.

Figura 64.4 ■ Processamento pós­traducional da pró­opiomelanocortina (POMC). A sequência da POMC inclui um fragmento N­ terminal  e  os  hormônios  corticotrofina  (ACTH)  e  betalipotrofina  (β­LPH).  O  ACTH  inclui  a  alfamelanotrofina  (α­MSH)  e  um peptídio semelhante à corticotrofina (CLIP). A β­LPH inclui a gamalipotrofina (α­LPH) e a betaendorfina (β­endorfina), cada uma contendo em sua sequência os subprodutos betamelanotrofina (β­MSH) e a metaencefalina (Met­Enk), respectivamente. Entre parênteses encontra­se a sequência de aminoácidos que compõem cada um desses subprodutos.

▸ Hormônios lipossolúveis A característica básica dos hormônios lipossolúveis é ter uma molécula precursora lipídica, cujo caráter lipofílico está preservado na forma ativa do hormônio.

Síntese dos hormônios lipossolúveis A síntese dos hormônios lipossolúveis depende: (1) do aporte do substrato lipídico precursor à célula secretora e (2) da presença, na célula secretora, de enzimas específicas que metabolizam a molécula precursora até chegar à forma ativa. A  grande  maioria  desses  hormônios  deriva  do  colesterol,  sendo  por  isso  chamados  de  hormônios  esteroides. Adicionalmente, podem derivar de análogos do colesterol, os calciferóis, originando as diferentes formas de vitamina D. Uma  vez  que  o  precursor  lipídico  seja  disponibilizado  para  a  célula  secretora,  por  meio  de  conversões  enzimáticas, vários  metabólitos  vão  sendo  gerados,  com  atividade  biológica  variável  tanto  na  sua  intensidade  quanto  no  tipo  de  ação. São reações simples de hidroxilação, desidrogenação, oxirredução, aromatação etc. Hormônios esteroides derivados do colesterol podem ser produzidos tanto no córtex suprarrenal como nas gônadas. O tipo de hormônio a ser sintetizado em cada território depende da presença de enzimas específicas na célula, conduzindo a

rota  da  esteroidogênese  para  determinados  produtos  finais.  Embora  bioquimicamente  estes  hormônios  sejam  bastante parecidos, sua atividade biológica pode ser bem diversa, incluindo­se desde ações no metabolismo dos carboidratos (por glicocorticoides) e no balanço hidreletrolítico (pelos mineralocorticoides), até ações na função reprodutora masculina (por andrógenos) ou feminina (pela progesterona e estrógenos). Um  hormônio  como  a  vitamina  D  depende  da  metabolização  do  precursor  lipídico  em  diferentes  territórios  do organismo. A síntese completa necessita de conversões na pele, no fígado e finalmente nos rins.

Secreção dos hormônios lipossolúveis Diferentemente  dos  hormônios  hidrossolúveis,  os  lipossolúveis  não  são  armazenados  em  grânulos,  sendo  secretados por  difusão  na  membrana  plasmática,  à  medida  que  vão  sendo  sintetizados.  Dessa  maneira,  não  há  estoque  desses hormônios  na  célula  secretora,  e  a  secreção  hormonal  é  regulada  diretamente  pela  maior  ou  menor  atividade  da  enzima­ chave do processo de síntese hormonal.

Circulação, metabolização e mecanismo de ação dos hormônios lipossolúveis Os hormônios lipossolúveis são facilmente secretados por difusão através da membrana plasmática da célula secretora. Entretanto,  essas  moléculas  encontram  dificuldade  para  se  deslocarem  no  interstício  e  no  espaço  intravascular,  onde tenderiam a se ligar, formando gotículas gordurosas, que poderiam agir como verdadeiros trombos, obstruindo capilares de pequeno diâmetro. Assim, é fundamental a ligação dos hormônios lipossolúveis a proteínas (estas hidrossolúveis) que, englobando  a  molécula  lipídica,  lhes  confere  hidrossolubilidade,  possibilitando  a  mobilização  através  desses  meios hidrofílicos. Existem  proteínas,  em  geral  de  formato  globular,  e,  portanto,  chamadas  de  globulinas,  que  são  ligadoras  específicas dos  vários  hormônios  lipossolúveis.  Designadas  como  binding  globulin  (BG),  podem  ligar  andrógenos  (denominadas ABG), estrógenos (EBG), glicocorticoides (GBG), dentre outros hormônios. Além disso, a albumina, proteína encontrada em  maior  quantidade  no  plasma,  também  é  um  importante  ligante  de  hormônios  lipossolúveis.  Assim,  os  hormônios lipossolúveis circulam ligados a proteínas carregadoras (ou carreadoras). Apesar do que foi descrito no Quadro 64.1, há também proteínas transportadoras de hormônios tireoidianos (TBG), cuja função está detalhada no Capítulo 68, Glândula Tireoide. As  proteínas  carregadoras,  ao  englobarem  a  molécula  do  hormônio,  impedem  a  sua  disponibilidade  à  célula­alvo, impossibilitando a ação do hormônio. Entretanto, a ligação hormônio­proteína carregadora é um processo dinâmico regido por  leis  de  afinidade,  sendo  que  nesse  processo  uma  pequena  fração  do  hormônio  pode  ser  encontrada  temporariamente livre. São essas moléculas livres que, ao entrarem em contato com a membrana plasmática das células, imediatamente se difundem  para  o  meio  intracelular,  tornando­se  disponíveis  para  desencadear  sua  atividade  biológica.  Dessa  maneira,  é característica dos hormônios lipossolúveis apresentarem receptores intracelulares em suas células­alvo. Em  geral,  1%  ou  menos  do  hormônio  total  presente  no  plasma  está  na  forma  livre,  sendo,  portanto,  biologicamente ativo. Essa característica é extremamente importante, pois o efeito biológico dos hormônios lipossolúveis depende da sua quantidade  na  forma  livre.  Algumas  situações  fisiológicas  (como  a  gravidez)  ou  patológicas  (como  na  doença  hepática) podem  aumentar  ou  diminuir  a  quantidade  de  proteínas  carregadoras;  consequentemente,  aumentando  ou  diminuindo  a quantidade  total  de  hormônio,  sem  que  isso  signifique  alteração  na  sua  quantidade  livre,  e,  portanto,  na  magnitude  do efeito biológico do hormônio. Além  disso,  mais  recentemente  foram  descritos  alguns  sistemas  de  transporte  (feito  por  proteínas)  para  moléculas lipídicas,  tanto  no  meio  intracelular  como  na  membrana  plasmática;  isso  explica  o  tráfego  intracelular  dos  hormônios lipofílicos,  assim  como  sugere  que  tanto  sua  secreção  como  seu  acesso  à  célula­alvo  não  sejam  fenômenos  dependentes apenas de difusão. Quanto à metabolização, esses hormônios são passíveis de inúmeros processos de metabolização (ou de conversão da molécula), podendo formar tanto metabólitos inativos como ativos. Processos de conjugação com ácido glicurônico ou de sulfatação  ocorrem  principalmente  no  fígado,  e,  em  geral,  inativam  os  hormônios  esteroides.  Adicionalmente,  pode ocorrer a geração de metabólitos ainda biologicamente ativos. Veja a Figura 64.5: a testosterona, um andrógeno, no tecido adiposo pode ser convertida a estrógeno (por uma enzima tipo aromatase) e, nos tecidos­alvo de ação androgênica, a di­ hidrotestosterona (por uma enzima tipo 5 alfarredutase), outro potente andrógeno.

Quadro 64.1 ■ Alguns enfoques conceituais. Alguns hormônios podem derivar de ácidos graxos, como as prostaglandinas (PG); no entanto, elas não são consideradas  como  lipossolúveis,  já  que  a  maior  parte  dos  seus  efeitos  é  mediada  pela  interação  com receptores de membrana acoplados à proteína G. Todavia, as PG da série J2 (PGJ2) e seus derivados se ligam aos receptores ativados por proliferadores de peroxissomos α (PPAR α) e γ (PPAR γ), o que indica que  elas  possam  exercer  seus  efeitos  por  meio  de  interação  com  receptores  intracelulares.  Se  são lipossolúveis ou carreadas para o interior das células por transportadores presentes na membrana celular, ainda é motivo de especulação. Também é importante comentar que os hormônios tireoidianos (HT), apesar de serem constituídos por duas tirosinas acopladas e iodadas, ou seja, por aminoácidos hidrossolúveis que originam outros hormônios hidrossolúveis  (como  as  catecolaminas),  foram  por  muito  tempo  considerados  lipossolúveis,  uma  vez  que seus receptores estão localizados no interior da célula, mais especificamente no núcleo. Acreditava­se que os  HT  entravam  nas  células­alvo  por  difusão  passiva.  No  entanto,  hoje  se  sabe  que  há  transportadores específicos na membrana para esses hormônios, os quais determinam sua concentração intracelular. São eles  os  transportadores  de  monocarboxilato  8  (MCT8)  e  10  (MCT10)  e  vários  membros  da  família  dos transportadores de ânions orgânicos (OATP). Maiores detalhes estão presentes no Capítulo 68. Finalmente,  é  importante  destacar  que  o  mecanismo  de  ação  dos  hormônios  lipossolúveis  é  desencadeado  a  partir  da sua  ligação  a  receptores  intracelulares,  cujo  complexo  hormônio­receptor  termina  por  se  ligar  em  locais  específicos  da região  promotora  de  genes­alvo,  agindo  como  fatores  transcricionais  da  expressão  gênica.  Entretanto,  recentes observações  demonstram  que  esses  hormônios  também  têm  ações  biológicas  imediatas,  independentes  do  controle  de transcrição gênica e utilizando­se de segundos mensageiros, sugerindo a existência de receptores na membrana plasmática e/ou intracelulares.

SISTEMAS DE RETROALIMENTAÇÃO A produção hormonal baseia­se no equilíbrio entre estímulo e inibição da síntese e secreção do hormônio. Este padrão de  equilíbrio  tem  uma  importante  base  funcional:  o  mecanismo  de  feedback  (ou  retroalimentação),  negativo  na  grande maioria dos sistemas hormonais. Mesmo em concentrações fisiológicas, os hormônios que são regulados por mecanismo de feedback negativo  já  exercem  um  certo  tônus  inibitório  sobre  os  mecanismos  envolvidos  na  sua  síntese  e  secreção,  o que  determina  a  sua  concentração  basal  na  circulação.  Uma  vez  que  a  concentração  do  hormônio  aumente,  esse  tônus inibitório  aumenta,  provocando  redução  de  sua  síntese  e  secreção,  ocorrendo  o  contrário  quando  a  concentração  do hormônio diminui, situação em que ocorre menor inibição desses mecanismos, com consequente aumento da sua síntese e secreção.  Dessa  maneira,  ao  longo  do  tempo,  a  concentração  do  hormônio  se  mantém  oscilando  em  torno  de  um  valor constante, o que chamamos de manutenção do equilíbrio de secreção.

Figura  64.5  ■   Metabolização  do  hormônio  lipossolúvel  testosterona  (um  andrógeno)  em  hormônios  ativos  com  ação  de andrógeno (di­hidrotestosterona)  ou  de  estrógeno  (estradiol).  Dentro  dos  quadros,  estão  indicadas  as  enzimas  responsáveis pela  metabolização  da  testosterona.  Na  parte  superior,  à  direita,  está  indicada  a  metabolização  em  produtos  sem  atividade biológica.  No  fígado,  metabólitos  da  testosterona  são  inativados  por  conjugação  com  ácidos  glicurônico  ou  sulfúrico,  sendo depois excretados na urina como 17­cetoesteroides.

Entretanto, para alguns hormônios a manutenção do equilíbrio de secreção hormonal pode variar, determinando o que chamamos  de  ritmo  de  secreção.  Este  pode  variar  tanto  ao  longo  de  1  dia  (a  secreção  de  cortisol  é  maior  pela  manhã, diminuindo  à  noite;  a  isto  chamamos  de  ritmo  circadiano  de  secreção),  como  pode  variar  ao  longo  de  vários  dias  (a secreção de gonadotrofinas hipofisárias na mulher eleva­se durante cerca de 24 h a cada 28 dias, a isto chamamos de ritmo infradiano  de  secreção).  Além  disso,  mesmo  a  chamada  secreção  constante  de  hormônio,  em  geral,  é  obtida  a  partir  de pulsos  secretórios,  de  intervalos  curtos  (20  a  30  minutos),  e  que  proporcionam  ao  longo  do  tempo  (dia  ou  meses)  uma concentração  média  constante  de  hormônio.  Sabe­se  que  o  caráter  pulsátil  da  secreção  hormonal  é  fundamental  para preservar o efeito biológico do hormônio, seja por proporcionar momentos de maior repouso para a célula secretora, seja por determinar o padrão de expressão de seus receptores específicos, fundamentais para concretizarem a ação hormonal. Os  mecanismos  de  retroalimentação  podem  ser  regulados  tanto  por  hormônios  como  por  substratos  metabólicos, podendo envolver vários níveis de regulação. Algumas  funções  endócrinas  estão  sob  um  controle  que  chamamos  de  eixo  hipotálamo­hipófise­glândula  periférica (incluem­se  aqui  as  gônadas,  a  tireoide  e  o  córtex  suprarrenal).  Tomando­se  como  exemplo  o  eixo  da  glândula  tireoide (Figura  64.6),  o  hipotálamo  produz  um  hormônio  (denominado  TRH,  que  é  o  hormônio  estimulador  do  TSH)  que estimula  a  hipófise  a  liberar  a  tireotrofina  (ou  TSH,  que  é  o  hormônio  estimulador  da  tireoide),  a  qual,  por  sua  vez, estimula a tireoide a produzir seus hormônios, T3 e T4. Desses, o T3 é o mais ativo e inibe a produção hipotalâmica de TRH  e  a  hipofisária  de  TSH,  determinando  a  retroalimentação  negativa.  Ao  longo  do  tempo,  a  secreção  de  todos  os hormônios envolvidos permanece constante. O desequilíbrio de algum desses hormônios proporciona indícios de defeitos em determinados territórios. Por exemplo, se a tireoide apresentar um defeito primário (intrínseco da glândula) que leve à baixa produção de seus hormônios (ou hipotireoidismo), o TSH deverá se elevar; mas, se o T3 estiver baixo na vigência de TSH também baixo, o problema deve estar na hipófise ou no hipotálamo. Além  disso,  a  produção  hormonal  no  hipotálamo  é  frequentemente  modulada  por  sinais  oriundos  do  SNC.  É  assim que o funcionamento do eixo hipotálamo­hipófise­suprarrenal é regulado ao longo do dia, relacionando­se com o ciclo de sono e vigília determinado no SNC.

Por  outro  lado,  mecanismos  de  retroalimentação  podem  implicar  apenas  a  secreção  de  um  hormônio  e  um  substrato metabólico  diretamente  envolvido  na  sua  ação.  Por  exemplo:  o  maior  estímulo  para  secreção  de  insulina  pelas  células  B pancreáticas  é  a  elevação  da  concentração  plasmática  de  glicose.  Uma  vez  que  a  concentração  de  insulina  se  eleve  em consequência da elevação de glicose, um de seus efeitos é estimular a captação de glicose por várias células, diminuindo a concentração de glicose, e, consequentemente, voltando a diminuir a concentração de insulina. Assim se estabelece o que chamamos de homeostase (ou estado de equilíbrio) da glicemia (concentração de glicose no sangue).

Figura  64.6  ■   Exemplo  de  funcionamento  do  eixo  hipotálamo­hipófise­glândula  periférica.  O  eixo  da  tireoide  envolve  os hormônios produzidos pela tireoide (T3 e T4), o hormônio estimulador da tireoide, denominado tireotrofina (ou TSH), produzido pela hipófise, e o hormônio liberador do TSH (denominado TRH), produzido pelo hipotálamo. Os símbolos + e – indicam ações estimuladoras e inibidoras, respectivamente.

HORMÔNIOS PRODUZIDOS POR OUTROS ÓRGÃOS Em relação aos sistemas hormonais, a endocrinologia moderna foi além das grandes glândulas conhecidas há décadas, passando a envolver muitos outros órgãos e tecidos secretores de hormônios. O conhecimento atual revela­nos a presença de sistemas hormonais em determinadas estruturas que passaram a ser consideradas verdadeiros órgãos endócrinos. A  célula  endotelial  dos  vasos  sanguíneos  representa  mais  do  que  uma  barreira  na  difusão  de  substâncias  do  sangue para  os  tecidos.  Ela  é  uma  célula  endócrina  que  sintetiza  e  libera  substâncias  vasoativas  (hormônios),  tais  como:  (1) fatores  relaxantes  derivados  do  endotélio  (denominados  EDRF),  que  incluem  as  prostaciclinas,  o  óxido  nítrico  e  o  fator hiperpolarizante derivado do endotélio (ou EDHF) e (2) fatores constritores derivados do endotélio (denominados EDCF), que incluem as prostaglandinas vasoconstritoras (PGH­2 e PGF­2α), o tromboxano A2, as endotelinas, a angiotensina II e as espécies reativas do oxigênio (tais como o ânion superóxido). Originalmente, o tecido adiposo branco foi descrito apenas como um isolante térmico em mamíferos; posteriormente, foi considerado como o tecido­alvo da insulina, capaz de armazenar substrato energético na forma de lipídios. Atualmente, também  já  é  considerado  um  órgão  endócrino,  pois  secreta:  (1)  substâncias  com  ação  parácrina,  como  PAI­1,  TGF­β, TNF,  angiotensina,  adipsina,  leptina,  IL­6  e  hormônios  esteroides  e  (2)  substâncias  com  ação  endócrina,  tipo  leptina, hormônios esteroides, angiotensina, entre outras a serem mais adequadamente caracterizadas.

Além  desses  dois  tecidos  comentados  (capazes  de  produzir  hormônios  que  terão  ação  sistêmica),  praticamente  todos os demais territórios do organismo são capazes de produzir hormônios com atividade pelo menos autócrina ou parácrina. Muitos destes hormônios foram caracterizados apenas recentemente, e por isso são frequentemente designados como hormônios  não  clássicos.  Um  breve  comentário  desses  grupos  hormonais  é  suficiente  para  evidenciar  a  abrangência  da ação dos hormônios. No Capítulo 72, Moléculas Ativas Produzidas por Órgãos Não Endócrinos, esse assunto é discutido em detalhe.

▸ Famílias de fatores de crescimento genéricos Este grupo engloba várias famílias, descritas a seguir: ■ EGF:  fatores  de  crescimento  epidermal.  Estão  envolvidos  na  proliferação  epitelial  e  neovascularização.  Dentre  eles incluem­se EGF, TGF­α e anfirregulina (purificada a partir de células de câncer de mama) ■ TGF­β:  fatores  de  crescimento  e  diferenciação.  São  homodímeros  capazes  tanto  de  inibir  como  de  estimular  o crescimento,  além  de  promover  a  diferenciação;  por  isso,  têm  importante  papel  na  embriogênese.  Incluem­se o MIH (hormônio inibidor dos ductos müllerianos), a activina e a inibina, assim como várias proteínas morfogênicas ósseas ■ PDGF:  fatores  de  crescimento  derivados  de  plaquetas.  São  homo­  ou  heterodímeros  envolvidos  na  quimiotaxia  e  na proliferação  de  tecido  conectivo,  especialmente  no  reparo  tecidual  à  lesão.  Este  grupo  inclui  o  VEGF  (fator  de crescimento endotelial vascular), capaz de estimular a mitogênese no endotélio vascular e aumentar a permeabilidade vascular ■ FGF: fatores de crescimento de fibroblasto. Incluem­se os FGF, KGF (fator de crescimento de queratinócitos) e IL­1 (interleucina­1). Estão envolvidos no crescimento de fibroblastos e também participam da diferenciação de neurônios e adipócitos ■ IGF:  fatores  de  crescimento  insulina­símile.  Incluem  o  IGF­1  (secretado  principalmente  pelo  fígado  em  resposta  ao GH,  mas  também  por  vários  tecidos  quando  estimulados  por  fatores  tróficos)  e  o  IGF­2  (importante  no  crescimento fetal) ■ NGF:  fatores  de  crescimento  do  nervo.  Incluem  vários  peptídios  com  ação  sobre  o  crescimento  neural,  que  diferem quanto aos locais de síntese e de ação.

▸ Famílias de fatores de crescimento específicos do sistema hematopoético ■ Eritropoetina:  é  produzida  por  células  renais  peritubulares;  estimula  a  proliferação  de  células  progenitoras  de eritrócitos, assim como a liberação de eritrócitos da medula óssea ■ CSF: fatores estimuladores de colônias. São produzidos em vários tipos celulares; estimulam a proliferação de várias linhagens leucocíticas. Incluem o G­CSF (granulócito­CSF) e o M­CSF (macrófago­CSF), entre outros ■ Interleucinas:  primariamente  envolvidas  na  proliferação  e  diferenciação  de  linfócitos;  mas  também  modulam  a proliferação e a diferenciação de megacariócitos e eosinófilos.

▸ Famílias de fatores de crescimento relacionados com as respostas imune e inflamatória ■ Hormônios  relacionados  com  a  imunidade  humoral  e  celular:  incluem  os  hormônios  já  citados,  como  os  CSF  e  as interleucinas, além dos MHC (complexos principais de histocompatibilidade) ■ Miscelânea: grupo de hormônios relacionados com a resposta imune­inflamatória que inclui: •



TNF α e β  (fator  de  necrose  tumoral):  têm  capacidade  de  induzir  regressão  e,  algumas  vezes,  total  destruição  de alguns tumores. Também podem agir em células normais, em geral induzindo a síntese de proteínas protetoras da célula.  O  LIF  (fator  inibidor  da  leucemia)  é  estruturalmente  diferente;  entretanto,  funcionalmente  é  similar, podendo causar caquexia Interferons: têm capacidade de interromper a síntese proteica, mostram alta atividade antiviral e são indutores de MHC, entre outras ações.

Adicionalmente, o universo atual dos hormônios amplia­se quando analisamos os invertebrados ou o reino vegetal.

Nos  invertebrados,  vários  hormônios  já  foram  demonstrados,  a  maioria  deles  em  insetos,  relacionados  com  os processos  de  metamorfose  e  muda  (ou  ecdisis),  chamados ecdisonas,  ou  relacionados  com  os  processos  de  reprodução, chamados de hormônios juvenis.  Em  crustáceos  e  moluscos,  muitos  hormônios  são  similares  aos  de  insetos;  entretanto, destaca­se a ocorrência de um hormônio insulin­like, homólogo à insulina de mamíferos, capaz de estimular a síntese de glicogênio, o que determina o marco evolucionário no aparecimento filogenético da insulina. Em plantas, vários hormônios importantes (auxinas, citocinas e giberelinas) estão relacionados com os processos de crescimento,  nas  suas  mais  variadas  características.  Além  destes,  outros  exemplos  de  hormônios  do  reino  vegetal,  entre tantos, são: o ácido abscícico (atua no estresse em resposta à água), as oligossacarinas (atuam no estresse em resposta à infecção  e  à  lesão), o ácido salicílico (agente  termogênico  importante  na  polinização)  e  o  ácido  jasmônico  (inibidor  de germinação). Esta  breve  descrição  da  endocrinologia  não  clássica  deixa  evidente  a  imensa  abrangência  da  fisiologia  endócrina. Muitas dessas substâncias químicas são conhecidas há décadas, outras foram apenas recentemente descritas e outras tantas deverão  ainda  ser  caracterizadas.  Envolvidas  com  sistemas  funcionais  específicos,  muito  do  conhecimento  dessas substâncias  se  desenvolveu  e  progride  em  territórios  e  ações  específicos.  Entretanto,  conhecê­las  como  hormônios  é fundamental do ponto de vista conceitual e serve, entre outras coisas, para reiterar o caráter sistêmico da endocrinologia.

FISIOPATOLOGIA As alterações patológicas que podem acometer os mais diferentes sistemas hormonais constituem um amplo espectro de  doenças  endócrinas.  Consequentemente,  a  população  acometida  por  doenças  endócrinas  é  enorme.  O diabetes  melito, decorrente  de  falha  na  secreção  ou  na  ação  do  hormônio  insulina,  atualmente  é  uma  doença  endêmica.  Os  dados  atuais (2017) apontam que 425 milhões de adultos no mundo têm diabetes, e a estimativa para 2045 é de cerca de 629 milhões de pessoas com diabetes. Além  disso,  algumas  alterações  metabólicas  incluem­se  na  endocrinologia,  como  a  obesidade,  também  com características  endêmicas  na  atualidade.  Finalmente,  há  o  problema  do  uso  indevido  de  hormônios,  que  ao  exacerbar algumas de suas ações, às vezes desejadas, provoca uma série de complicações paralelas. É exemplo dessa situação o uso de  determinados  hormônios  para  aprimorar  o  desenvolvimento  muscular,  emagrecer  ou  combater  o  envelhecimento,  que não apresenta fundamentação científica sólida que o justifique como terapêutica segura. Geralmente, as doenças endócrinas envolvem diminuição ou aumento da atividade de um determinado hormônio, e as abordagens terapêuticas devem visar à correção desse desequilíbrio. Assim, é importante lembrar que se pode aumentar ou diminuir uma determinada atividade hormonal tanto por elevar ou abaixar a concentração hormonal no sangue, como por estimular ou inibir os fenômenos envolvidos no mecanismo de ação do hormônio, que são os determinantes do seu efeito biológico final. O tratamento das deficiências hormonais evoluiu paralelamente à evolução do conhecimento sobre hormônios, e várias propostas terapêuticas surgiram para prover uma deficiência hormonal. Por definição literal e conceitual, a terapia de reposição hormonal refere­se a toda e qualquer terapia que vise repor uma  deficiência  hormonal.  Para  isso,  glândulas  de  animais  foram  amplamente  utilizadas  para  delas  se  extraírem  grandes quantidades de hormônios. Entretanto, devido à heterologia entre as moléculas de humanos e animais, alguns hormônios somente  se  mostraram  eficazes  quando  obtidos  a  partir  de  humanos,  cuja  fonte  nem  sempre  é  abundante.  Um  exemplo bem  conhecido  é  o  hormônio  do  crescimento  (GH),  extraído  de  hipófises  humanas post­mortem,  cuja  produção  sempre permaneceu restrita e de custo elevado. Um grande passo foi o desenvolvimento de tecnologia para a obtenção de moléculas sintéticas, que tornou possível o desenvolvimento  de  hormônios  a  baixo  custo.  A  síntese  de  hormônios  de  estrutura  molecular  mais  simples  é  feita  há décadas;  mas  a  síntese  de  hormônios  de  estrutura  mais  complexa,  como  as  grandes  proteínas,  permaneceu  um  desafio. Entretanto,  as  modernas  técnicas  de  biologia  molecular  já  possibilitam  a  criação  de  DNA  recombinante  que,  contendo  a sequência  gênica  responsável  pela  transcrição  do  gene  de  um  hormônio  proteico,  é  inserido  em  bactérias,  que  passam  a produzir  o  hormônio  em  grande  escala  (é  um  exemplo  a  produção  de  GH,  FSH  e  LH  humanos).  Além  disso,  foram desenvolvidos fármacos que agem como estimuladores da secreção hormonal, úteis nas situações em que a deficiência de síntese/secreção do hormônio não é total; adicionalmente, foram criados os análogos hormonais, moléculas semelhantes a determinados hormônios, que são capazes de induzir as ações hormonais. Um aspecto importante no tratamento de doenças endócrinas com hormônios é a via de administração do hormônio. O epitélio absortivo intestinal representa uma grande barreira à absorção de moléculas biologicamente ativas, especialmente

proteínas. O processo de absorção intestinal envolve uma primeira etapa que é a digestão, na qual as macromoléculas são degradadas  até  suas  unidades  mais  simples  para,  então,  serem  absorvidas.  No  caso  das  proteínas  ingeridas,  apenas produtos da sua degradação são absorvidos; a maior parte como aminoácidos e no máximo alguns oligopeptídios. Assim, hormônios proteicos perdem sua atividade biológica quando administrados pela via oral, necessitando ser injetados. Para isso, pequenas bombas de infusão, com cateteres inseridos no subcutâneo do organismo, já são uma opção para liberar um hormônio continuamente na circulação, imitando sua secreção endógena. O transplante de glândulas é uma tentativa de tratamento que vem sendo desenvolvida há anos, mas ainda com pouco sucesso.  O  grande  problema  é  preservar  a  viabilidade  funcional da  glândula,  contornando  os  processos  da  rejeição.  Por outro  lado,  a  terapia  gênica  é  bastante  promissora,  e  uma  esperança  a  ser  consolidada  no  futuro.  Pela  terapia  gênica poderiam ser implantadas no organismo células geneticamente modificadas e especializadas na produção de um hormônio (que  é  uma  proteína).  Espera­se  que  os  estudos  com  células­tronco  possibilitem  que  a  geração  de  células  secretoras  de hormônios possa evoluir sem proibições, para que a terapia gênica seja uma realidade em breve. A caracterização dos receptores hormonais e das etapas do mecanismo de ação dos hormônios gerou um grande campo de  tratamento  para  as  doenças  endócrinas,  tornando  possível  que  se  mimetize  a  ação  do  hormônio  com  o  emprego  de moléculas  que  estimulem  seu  receptor  ou  eventos  após  sua  ligação  ao  receptor.  Por  exemplo,  atualmente  existem  vários medicamentos  que  são  ligantes  de  receptores  com  atividade  agonista,  ou  ainda  fármacos  que  agem  em  eventos  após  a ligação ao receptor. Finalmente,  as  doenças  endócrinas  podem  envolver  a  produção  excessiva  de  hormônio.  Esta  situação,  menos frequente, decorre de alteração neoplásica da célula secretora (com perda das características funcionais normais da célula), que passa a produzir o hormônio descontroladamente. Na maioria das vezes, envolve tumores glandulares que devem ser tratados cirurgicamente. Quando não for necessária a retirada do tecido glandular hipersecretor, a hipersecreção hormonal pode  ser  tratada  com  substâncias  inibidoras  da  secreção  hormonal  ou  com  ligantes  do  receptor  hormonal  com  atividade antagonista.

BIBLIOGRAFIA AHIMA RS, FLIER JS. Adipose tissue as an endocrine organ. Trends Endocrinol Metab, 11:327­32, 2000. BAXTER JD, RIBEIRO RCJ, WEBB P. Introduction to Endocrinology. In: GREENSPAN FS, GARDNER DG (Eds.). Basic  & Clinical Endocrinology. 7. ed. Lange Medical Books/McGraw­Hill, New York, 2004. BERN HA. The “new” endocrinology: its scope and its impact. Am Zool, 30:877­85, 1990. BOLANDER FF. Molecular Endocrinology. 2. ed. Academic Press Inc, San Diego, 1994. JANSEN J, FRIESEMA EC, MILICI C et al. Thyroid hormone transporters in health and disease. Thyroid, 15:757­68, 2005. KLIEWER  SA,  LENHARD  JM,  WILLSON  TM  et  al.  A  prostaglandin  J2  metabolite  binds  peroxisome  proliferator­activated receptor y and promotes adipocyte differentiation. Cell, 83:813­9, 1995. LODISH H, BALTIMORE D, BERK A et al. Molecular Cell Biology. 3. ed. Scientific American Books, Nova York, 1995. MACHADO UF. Evolução do conceito de hormônio e opoterapia – Análise crítica do conhecimento em 2001. Uma homenagem a  Thales  de  Martins,  nos  50  anos  de  ABE&M  e  100  anos  de  Endocrinologia.  Arquivos  Brasileiros  de  Endocrinologia  e Metabologia, 45(Suppl 2):S679­97, 2001. MILLER  JW.  Drugs  and  the  endocrine  and  metabolic  systems.  In:  PAGE  CP,  CURTIS  MJ,  SUTTER  MC  et  al.  Integrated Pharmacology. Mosby, London, 1997. OUT HJ, LINDENBERG S, MIKKELSEN AL et al. A prospective, randomized, double­blind clinical trial to study the efficacy and  efficiency  of  a  fixed  dose  of  recombinant  follicle  stimulating  hormone  (Puregon)  in  women  undergoing  ovarian stimulation. Hum Reprod, 14:622­7, 1999. RASMUSSEN  H.  Organization  and  control  of  endocrine  systems.  In:  WILLIAMS  RH  (Ed.). Textbook  of  Endocrinolgy.  W.B. Saunders, Philadelphia, 1968. VANHOUTTE PM. Endothelial dysfunction in hypertension. J Hypertension, 14:583­93, 1997. WILSON JD, FOSTER DW, KRONENBERG HM et al. Williams Textbook of Endocrinology. 9. ed. W.B. Saunders, Philadelphia, 1998.



Introdução

■ ■

Relações anatomofuncionais Hormônios hipotalâmicos

■ ■

Controle neuroendócrino do ritmo de secreção hormonal Bibliografia

INTRODUÇÃO O  hipotálamo  é  uma  estrutura  do  sistema  nervoso  central  (SNC)  que  está  envolvida  em  uma  série  de  processos fisiológicos,  tais  como  controle  da  temperatura  e  ingestão  alimentar.  Apresenta  também  grupamentos  neuronais  que  se relacionam ao controle da função endócrina, os quais, em conjunto, constituem o chamado hipotálamo endócrino. De fato, o hipotálamo endócrino representa, funcionalmente, uma interface entre os sistemas nervoso e endócrino. A eminência mediana hipotalâmica é o ponto de convergência e integração final de informações criadas em diferentes regiões  do  organismo.  Após  processamento  e  ajuste  fino,  essas  informações  são  transmitidas  à  glândula  hipófise,  por mecanismos que envolvem a liberação de hormônios específicos, o que resulta em modificações de, basicamente, todas as secreções  endócrinas  do  indivíduo.  Os  objetivos  finais  desse  sistema  de  controle  integrado  são:  (1)  manutenção  da constância  do  meio  interno,  isto  é,  regulação  da  temperatura,  concentração  e  disponibilidade  de  substratos  energéticos  e estruturais, de acordo com a situação fisiológica vigente; (2) interação do organismo com o meio ambiente, isto é, geração de padrões funcionais integrados de ajustes ao tipo de estresse e (3) controle da reprodução.

RELAÇÕES ANATOMOFUNCIONAIS O  hipotálamo  e  a  glândula  hipófise  formam  uma  unidade  que  exerce  controle  sobre  a  função  de  várias  glândulas endócrinas,  tais  como  tireoide,  suprarrenais  e  gônadas  e,  por  conseguinte,  sobre  uma  série  de  funções  orgânicas.  O controle que o sistema nervoso exerce sobre o sistema endócrino e a modulação que este efetua sobre a atividade do SNC constituem os principais mecanismos reguladores de, basicamente, todos os processos fisiológicos. A íntima associação entre o hipotálamo e a hipófise foi reconhecida, inicialmente, por Galeno no século XI d.C. Ele observou  que  o  prolongamento  ventral  do  hipotálamo,  em  formato  de  funil,  termina  em  uma  massa  glandular  envolvida por  rico  aporte  sanguíneo.  Entretanto,  o  verdadeiro  significado  do  hipotálamo  como  controlador  de  todas  as  secreções hipofisárias  só  foi  descoberto  no  século  XX.  Em  1920,  o  trato  hipotálamo­neuro­hipofisário  foi  identificado  por  Lewi  e Greving; pouco depois, em 1930, a ligação vascular existente entre o hipotálamo e a hipófise foi claramente demonstrada por Popa e Fielding, e o seu significado fisiológico elucidado por Green e Harris, em 1947. No  hipotálamo,  além  dos  elementos  neurais  característicos,  encontramos  neurônios  especializados  em  secretar hormônios  peptídicos,  conhecidos  como neurônios peptidérgicos. Esses  neurônios  apresentam  as  mesmas  propriedades elétricas  das  outras  células  nervosas,  como  a  deflagração  de  potenciais  de  ação  quando  estimulados;  o  potencial  de  ação provocado  no  corpo  celular  trafega  até  a  terminação  do  axônio,  onde,  por  determinar  influxo  de  cálcio,  desencadeia  a secreção  dos  hormônios  que  se  encontram  em  vesículas  de  armazenamento.  Os  produtos  de  secreção  dos  neurônios

peptidérgicos são: (1) peptídios liberadores ou inibidores dos vários hormônios da hipófise anterior (ou adeno­hipófise), que  agem,  respectivamente,  estimulando  ou  inibindo  a  secreção  dos  hormônios  adeno­hipofisários,  e  (2)  os  peptídios neuro­hipofisários: vasopressina (AVP) ou hormônio antidiurético (ADH) e ocitocina, que são sintetizados por neurônios hipotalâmicos  e  armazenados  em  terminações  axônicas  presentes  no  interior  da  hipófise  posterior  ou  neuro­hipófise (Figura 65.1). Os  neurônios  hipotalâmicos  que  se  relacionam  com  a  adeno­hipófise  constituem  o  sistema parvicelular  ou  tuberoinfundibular.  Fazem  parte  desse  sistema  neurônios  curtos  cujos  corpos  celulares  encontram­se difusamente  distribuídos  em  certas  regiões  do  hipotálamo,  tais  como  nos  núcleos  peri­  e  paraventriculares  (porção parvicelular),  arqueado  e  área  pré­óptica  medial.  Dessas  regiões  partem  axônios  que  convergem  para  a  eminência mediana do  hipotálamo,  onde  os  vários  hormônios  liberadores  e  inibidores  são  secretados.  Devido  à  existência  de  um sistema  vascular  altamente  especializado,  que  conecta  a  eminência  mediana  à  adeno­hipófise  (sistema  porta­hipotálamo­ hipofisário), os neuro­hormônios hipotalâmicos alcançam a hipófise anterior em altas concentrações, antes de se diluírem na circulação sistêmica. Esse arranjo permite economia no sistema, já que os hormônios hipotalâmicos são direcionados às suas células­alvo. O emprego de técnicas tais como a imuno­histoquímica e a hibridização in situ possibilitou a identificação de áreas do hipotálamo endócrino em que se concentram neurônios que expressam os mesmos peptídios. Assim, temos as áreas: (1) tireotrófica,  que  apresenta  neurônios  cujo  produto  de  secreção  é  o  TRH  (thyrotropin  releasing  hormone),  (2) corticotrófica,  que  secreta  o  CRH  (corticotropin  releasing  hormone),  (3)  gonadotrófica,  cuja  secreção  é  o  GnRH (gonadotropin releasing hormone)  etc.  No  entanto,  mais  de  30  peptídios  distintos  foram  identificados  em  neurônios  de núcleos  como  o  arquea­do  e  os  paraventriculares,  muitos  deles  coexistindo  em  uma  mesma  célula,  porque  derivam  do mesmo  pró­hormônio,  que  é  codificado  por  um  único  gene.  Contudo,  existem  células  que  expressam  dois  peptídios relacionados com genes diferentes, como é o caso de alguns neurônios que se originam na porção parvicelular dos núcleos paraventriculares e que coexpressam ADH e CRH. Os  peptídios  neuro­hipofisários  são  sintetizados  por  neurônios  hipotalâmicos  específicos,  que  apresentam  corpos celulares  de  dimensões  maiores  que  as  dos  neurônios  parvicelulares,  e  longos  axônios  que  se  projetam  na  hipófise posterior.  Esses  neurônios  localizam­se  em  dois  núcleos  hipotalâmicos  bem  definidos:  (1)  supraópticos  e  (2) paraventriculares.  Desses  núcleos  é  que  partem  os  axônios  que  passam  pela  haste  hipofisária  e  se  dirigem  à  neuro­ hipófise,  onde  estabelecem  contatos  sinápticos  nas  proximidades  dos  capilares  sinusoides;  esses  neurônios  constituem  o trato  hipotálamo­neuro­hipofisário  ou  trato  supraóptico­hipofisário,  ou  ainda  o  sistema  magnocelular.  Esse  sistema recebe, também, contribuições de pequenos grupos de neurônios magnocelulares acessórios localizados em outros núcleos do  hipotálamo.  Por  outro  lado,  alguns  neurônios  que  expressam  ADH  ou  ocitocina,  provenientes  do  núcleo paraventricular, não fazem parte do sistema magnocelular, projetando­se para outras regiões do sistema nervoso.

▸ Interações do hipotálamo endócrino com outras áreas do SNC Os  neurônios  que  compõem  os  sistemas  parvi­  e  magnocelular  estão  sob  a  influência  de  fibras  nervosas  originárias das mais variadas regiões do sistema nervoso, como, por exemplo, a formação reticular mesencefálica e componentes do sistema  límbico.  Isto  faz  com  que  o  ritmo  de  secreção  dos  neuro­hormônios,  causado  a  partir  do  padrão  interno hipotalâmico,  seja  influenciado  fortemente  pelo  restante  do  sistema  nervoso  por  meio  de  aferências  noradrenérgicas, colinérgicas  e  serotoninérgicas,  principalmente.  Neurotransmissores  tais  como  epinefrina  (adrenalina),  dopamina,  ácido gama­aminobutírico (GABA) e opioides também participam desse controle. Essa influência pode ser exercida por meio de sinapses axodendríticas, realizadas com os próprios núcleos hipotalâmicos (locais de síntese dos neuro­hormônios), bem como  por  sinapses  axoaxônicas,  efetuadas  nas  terminações  axônicas  da  eminência  mediana  (local  de  armazenamento  e secreção  dos  neurônios  do  sistema  parvicelular).  Alguns  neurotransmissores  podem,  ainda,  ser  liberados  diretamente  no sangue  portal,  o  que  os  caracteriza  como  hormônios,  influenciando,  por  si  sós,  a  secreção  dos  hormônios  adeno­ hipofisários.  Dessa  maneira,  o  hipotálamo  pode  ser  considerado  como  uma  via  final  comum  por  meio  da  qual  os  sinais oriundos de múltiplos sistemas convergem à adeno­hipófise.

Figura 65.1 ■ Organização do sistema hipotálamo­hipofisário. Observe que o hipotálamo e a hipófise encontram­se conectados, anatomicamente,  pela  haste  hipofisária  e,  funcionalmente,  por  neurônios  provenientes  de  distintos  núcleos  hipotalâmicos. Os neurônios parvicelulares (indicados pelos números 2, 3 e 4) se dirigem à rede de capilares presente na eminência mediana do  hipotálamo,  pertencente  ao  sistema  porta­hipotálamo­hipofisário,  por  meio  do  qual  os  hormônios  por  eles  produzidos (hormônios hipofisiotróficos) são conduzidos à adeno­hipófise, onde estimulam ou inibem a síntese e secreção dos hormônios hipofisários.  Os  neurônios  magnocelulares  (representados  pelo  número  5)  se  dirigem  à  neuro­hipófise,  onde  os  hormônios produzidos no hipotálamo (hormônios neuro­hipofisários) ficam armazenados em vesículas de secreção até serem liberados por estímulos  específicos  que  deflagram  potenciais  de  ação  nos  mesmos.  Neurônios  provenientes  de  outras  áreas  do  sistema nervoso (representados pelo número 1) podem, ainda, interagir sinapticamente com os neurônios hipotalâmicos que guardam relação com a hipófise, e podem interferir na secreção hormonal hipofisária. Note que o sistema porta­hipotálamo­hipofisário é constituído  por  capilares,  derivados  das  artérias  hipofisárias  superior  e  inferior,  que  se  confluem  aos  vasos  portais  longos  e curtos, respectivamente. (Adaptada de Leichan, 1987.)

Em  linhas  gerais,  a  aferência  dopaminérgica  é  constituída  por  neurônios  localizados  no  núcleo  arqueado  do hipotálamo.  Deste,  partem  axônios  em  direção  à  camada  externa  da  eminência  mediana,  na  qual  terminações  nervosas

estabelecem  íntima  relação  com  os  capilares  porta­hipofisários,  por  meio  dos  quais  a  dopamina  exerce  controle  direto sobre  a  secreção  de  hormônios  adeno­hipofisários.  Porém,  ainda  na  eminência  mediana,  algumas  fibras  dopaminérgicas fazem  sinapses  axoaxônicas  com  neurônios  peptidérgicos,  e  participam  dessa  maneira  do  controle  da  liberação  dos peptídios  hipotalâmicos.  Fibras  dopaminérgicas  provenientes  do  núcleo  arqueado  também  são  identificadas  na  neuro­ hipófise,  na  qual  exercem  um  possível  controle  sobre  a  secreção  de  ADH  e/ou  ocitocina,  bem  como  na  hipófise intermediária, onde controlam a secreção de hormônio melanotrófico (MSH). As fibras noradrenérgicas que afluem ao hipotálamo originam­se, principalmente, na ponte e no bulbo. As principais áreas  do  hipotálamo  que  recebem  essas  terminações  são  os  núcleos  dorsomedial,  paraventricular  e  arqueado.  A  camada mais  interna  da  eminência  mediana  (ver  adiante)  também  recebe  aferentes  noradrenérgicos.  Da  mesma  maneira,  fibras serotoninérgicas,  originárias  dos  núcleos  da  rafe,  dirigem­se  ao  hipotálamo,  distribuindo­se,  entre  outras  regiões,  ao núcleo  supraquiasmático,  ao  terço  médio  do  núcleo  retroquiasmático,  à  área  pré­óptica  e  à  região  anterior  da  eminência mediana, de maneira similar às fibras noradrenérgicas. O sistema límbico exerce influências sobre a atividade dos sistemas magno­ e parvicelular por meio de vias córtico­ hipotalâmicas provenientes da amígdala, região septal, tálamo e retina. A  relação  funcional  do  hipotálamo  com  outras  estruturas  do  SNC  garante  a  integração  do  sistema  endócrino  com outros sistemas efetores do sistema nervoso, tais como o motor e o autônomo. Essa integração se completa com a chegada de informações provenientes da periferia, via sistema circulatório, representadas por fatores metabólicos, bem como pelos hormônios  hipofisários  e  aqueles  produzidos  pelas  glândulas­alvo  dos  hormônios  hipofisários,  nos  quais  baseiam­se  os mecanismos de feedback negativo  e  positivo  existentes  entre  o  hipotálamo  e  as  glândulas  endócrinas.  Dessa  maneira,  os neurônios  dos  sistemas  magno­  e  parvicelular  mantêm­se  sob  influências  diversas,  neuronais  e  endócrinas,  as  quais, conjuntamente,  fazem  com  que  a  secreção  de  neuro­hormônios  seja  regulada  momento  a  momento  de  acordo  com  as flutuações do meio interno (Figura 65.2). Apesar de os sistemas magno­ e parvicelular terem sido apresentados de maneira independente, existem evidências de uma  estreita  relação  entre  eles:  (1)  alguns  neurônios  colaterais,  que  compõem  o  sistema  magnocelular,  projetam­se  à eminência  mediana  modificando  a  secreção  da  hipófise  anterior;  (2)  terminações  nervosas  que  secretam  GnRH,  TRH, somatostatina,  leucina­encefalina,  neurotensina  e  dopamina,  pertencentes  ao  sistema  parvicelular,  projetam­se  para  a neuro­hipófise, e podem, da mesma maneira, influenciar a secreção dos hormônios neuro­hipofisários.

▸ Eminência mediana A eminência mediana hipotalâmica é a estrutura que representa funcionalmente a interface entre o sistema nervoso e a adeno­hipófise,  e  é  o  ponto  de  convergência  de  informações  que  partem  das  diferentes  áreas  do  SNC  em  direção  ao sistema endócrino. A eminência mediana está limitada, ventralmente, pela porção tuberal do lobo anterior da hipófise (que envolve a haste hipofisária e porções da base do encéfalo) e grandes vasos porta­hipofisários e, cranialmente, pelo recesso ventricular.  Ela  é  ricamente  vascularizada  pelas  artérias  hipofisárias  superiores,  que  dão  origem  a  um  sistema  capilar responsável pela coleta dos neuropeptídios secretados. Toda essa região permanece fora da barreira hematencefálica, o que indica que substâncias presentes na corrente sanguínea, como hormônios, são capazes de exercer alguma sinalização nessa região. Estruturalmente, a eminência mediana pode ser dividida em três camadas: (1) a camada ependimal (mais interna), que forra  o  assoalho  do  terceiro  ventrículo,  constituída  basicamente  por  células  ependimais,  as  quais  estabelecem  contatos entre  o  terceiro  ventrículo  e  vasos  porta­hipofisários;  (2)  a  camada  fibrosa,  que  é  atravessada  pelos  axônios  do  trato supraóptico­hipofisário  em  trânsito  para  a  neuro­hipófise;  e  (3)  a  zona  paliçada  (mais  externa),  onde  as  fibras  do  trato tuberoinfundibular liberam a maior parte dos neuropeptídios. Os neurônios peptidérgicos que constituem o trato tuberoinfundibular alcançam o espaço perivascular do sistema porta hipotálamo­hipofisário  (zona  paliçada),  onde  liberam  os  neuro­hormônios.  Nota­se  que,  à  medida  que  penetram  na eminência  mediana,  essas  fibras  estabelecem  sinapses  com  células  ependimais  e  contatos  com  o  terceiro  ventrículo, indicando: (1) possível interferência das células ependimais no processo neurossecretório e (2) que a liberação dos neuro­ hormônios possa acontecer também no líquido cerebrospinal (LCE). O papel fisiológico das células ependimais ainda está por  ser  esclarecido.  Alguns  estudos  sugerem  que,  por  serem  conectadas  por  meio  de  tight  junctions,  essas  células representam uma barreira entre o LCE e o sangue portal; outros estudos, no entanto, indicam exatamente o contrário, ou seja,  que  elas  são  uma  ponte  de  comunicação  entre  o  LCE  e  o  sistema  porta­hipofisário.  Aliás,  a  demonstração  de  que após 10 minutos da injeção intracerebroventricular de 3H­TRH esse peptídio é detectado nas camadas média e externa da EM, assim como nos capilares do sistema portal, fortalece este último conceito (Figura 65.3).

Figura 65.2 ■ Organização geral do sistema hipotálamo­hipofisário e suas relações com a periferia e o sistema nervoso central (SNC). Note que a atividade desse sistema (e, portanto, da secreção dos hormônios adeno­ e neuro­hipofisários) é controlada por sinais hormonais e neuronais, que o integram com a periferia; deste modo, garante­se que quaisquer alterações de pressão arterial, volemia, temperatura, luminosidade, glicemia, dentre outras, gerem respostas endócrinas apropriadas para manutenção da homeostase do indivíduo.

▸ Sistema porta­hipotálamo­hipofisário O  sistema  vascular  porta­hipotálamo­hipofisário  (ou  sistema  porta­hipofisário)  é  responsável  pelo  transporte  de hormônios  do  hipotálamo  para  a  adeno­hipófise.  Duas  redes  capilares  estão  interligadas,  fazendo  com  que  o  sangue coletado na eminência mediana perfunda a hipófise anterior. Na  eminência  mediana  e  nas  porções  mais  superiores  da  haste  hipofisária,  cujo  suprimento  sanguíneo  provém  das artérias  hipofisárias  superiores  (ramos  da  carótida  interna),  observa­se  uma  densa  rede  de  capilares,  os  quais  se distribuem  formando  grandes  alças,  algumas  penetrando  cranialmente  na  eminência  mediana,  até  as  proximidades  do líquido cerebrospinal do terceiro ventrículo, o que sugere possíveis trocas de moléculas entre eles. Esses capilares drenam para  vasos  que  trafegam  por  toda  a  haste  hipofisária  em  direção  aos  capilares  sinusoides  da  adeno­hipófise,  sendo,  por essa razão, denominados vasos portais longos. Uma segunda rede de capilares está presente nas porções mais ventrais da eminência mediana, na haste hipofisária e neuro­hipófise (processo infundibular). Essas regiões recebem suprimento sanguíneo das artérias hipofisárias inferiores e são drenadas por capilares portais que se dirigem à adeno­hipófise, passando pela hipófise intermédia; esses capilares, por serem mais curtos que os anteriores, são denominados vasos portais curtos (ver Figura 65.1). Por meio dessa via, altas concentrações dos hormônios neuro­hipofisários (o ADH e a ocitocina) alcançam a adeno­hipófise, e podem influenciar a secreção local dos hormônios. Em humanos, cerca de 80% a 90% do sangue que se dirige à adeno­hipófise provêm dos vasos portais longos, sendo o restante conduzido pelos vasos portais curtos. Estudos  dinâmicos  da  microcirculação  local  revelaram  que  o  sangue  dos  vasos  portais  flui,  principalmente,  do hipotálamo  para  a  adeno­hipófise  (sendo,  pois,  denominado  fluxo  anterógrado),  em  que  os  hormônios  hipotalâmicos exercem  suas  ações.  No  entanto,  há  evidências  da  existência  de  um  fluxo  sanguíneo  retrógrado,  por  meio  do  qual  os hormônios  adeno­  e,  possivelmente,  neuro­hipofisários  têm  acesso  ao  SNC,  onde  podem  influenciar  a  secreção  dos hormônios hipofisiotróficos (ver adiante).

HORMÔNIOS HIPOTALÂMICOS No  hipotálamo  podemos  distinguir  basicamente  duas  classes  de  neurônios:  (1)  os  que  secretam  seus  hormônios  na circulação  porta­hipofisária  e  (2)  os  que  secretam  hormônios  diretamente  na  circulação  geral,  mais  especificamente  nos capilares sinusoides da neuro­hipófise. Os que secretam seus hormônios na circulação porta­hipofisária são responsáveis pela regulação da síntese e liberação dos  hormônios  da  adeno­hipófise,  sendo,  por  essa  razão,  também  conhecidos  como  hormônios  hipofisiotróficos.  Estes foram  designados  há  muito  tempo  como  fatores  liberadores  hipotalâmicos,  quando  a  sua  estrutura  química  ainda  não havia sido definida. O isolamento, a determinação da estrutura química e a síntese desses neuro­hormônios em laboratório proporcionaram um grande avanço no campo da endocrinologia experimental e clínica.

Figura 65.3 ■ Representação  esquemática  das  relações  anatômicas  existentes  entre  as  vias  peptidérgicas,  bioaminérgicas  e eminência mediana. Os componentes estão identificados e descritos no texto. (Adaptada de Reichlin, 1992.)

Desde o início do século passado, inúmeras evidências clínicas e experimentais indicavam a importância das relações existentes entre o hipotálamo e a glândula hipófise. Isto levou ao desencadeamento de uma verdadeira corrida entre vários laboratórios  de  pesquisa  com  o  objetivo  de  identificar  os  fatores  hipotalâmicos  responsáveis  pelo  funcionamento  normal da  adeno­hipófise.  Basicamente,  a  técnica  empregada  envolvia  extração  de  grandes  quantidades  de  tecido  hipotalâmico  e seu fracionamento em enormes colunas de sephadex; esse procedimento era seguido de subfracionamentos, em função do tamanho reduzido dos peptídios hipotalâmicos (ver adiante). O primeiro hormônio hipotalâmico a ser isolado foi o TRH (hormônio liberador de TSH), que estimula a síntese e a liberação  de  hormônio  tireotrófico  (TSH)  e  prolactina  (Prl).  Seguiu­se  o  isolamento  do  GnRH  (hormônio  liberador  de gonadotrofinas), que estimula a síntese e a liberação dos hormônios gonadotróficos foliculestimulante (FSH) e luteinizante (LH); da somatostatina (SS) ou GHRIH, que inibe a síntese e liberação tanto de hormônio de crescimento (GH) quanto de TSH; do CRH (hormônio liberador de ACTH), que estimula a síntese e liberação de corticotrofina (ACTH); e, no início dos  anos  1970,  do  GHRH  (hormônio  liberador  de  GH),  que  estimula  a  síntese  e  liberação  de  GH.  O  sexto  hormônio

hipotalâmico  é  a  dopamina,  também  conhecido  como  hormônio  inibidor  da  liberação  de  prolactina  (Prl),  importante neurotransmissor, aqui chamado de hormônio por ser liberado na circulação porta­hipofisária. Um  aspecto  que  surpreendeu  os  investigadores  é  que  vários  desses  neuro­hormônios  hipotalâmicos  também  foram encontrados  em  outras  regiões  do  SNC  não  relacionadas  com  a  função  hipofisária,  em  que,  provavelmente,  exercem  o papel  de  neuromoduladores  (ou  substâncias  capazes  de  alterar  o  grau  de  excitabilidade  de  conjuntos  de  neurônios  por tempo  prolongado,  de  alguns  minutos).  Esses  peptídios  também  se  encontram  presentes,  em  grandes  quantidades,  ao longo  do  tubo  digestivo,  no  qual  participam  como  moduladores  do  sistema  nervoso  local  (sistema  entérico).  A  própria somatostatina  também  é  encontrada  no  pâncreas,  onde  exerce  efeito  inibitório  parácrino  sobre  a  secreção  de  insulina  e glucagon. Esses fatos revelam que, além da regulação da secreção dos hormônios adeno­hipofisários, esses peptídios, por se acharem amplamente distribuídos pelo organismo, exercem várias outras funções em diferentes sistemas biológicos. Os estudos iniciais indicaram que a maior parte dos peptídios hipotalâmicos age nas células­alvo e ativam o sistema adenililciclase/cAMP. Outros, tais como a somatostatina, ao interagir com o receptor, que está acoplado a uma proteína G inibitória  (proteína­Gi),  induzem  diminuição  da  produção  de  cAMP,  sendo  observados  efeitos  inibitórios  na  célula­alvo. Verificou­se, ainda, que alguns peptídios hipotalâmicos agem por meio do fosfatidilinositol, que em última análise leva a mudanças na concentração citosólica de cálcio e à ativação da proteinoquinase/cinase C. Mais recentemente, demonstrou­ se a existência de interações desses sistemas de sinalização intracelular, de modo que alguns peptídios hipotalâmicos, tais como o GHRH, podem mobilizar mais de uma via de sinalização (mais detalhes no Capítulo 64, Introdução à Fisiologia Endócrina).

Quadro 65.1 ■ Hormônios hipotalâmicos e sua relação com a adeno­hipófise. Hormônios hipotalâmicos

Hormônios adeno­hipofisários

Hormônio liberador de tireotrofina (TRH)

+ Hormônio tireotrófico (TSH) e prolactina (Prl)

Hormônio liberador de corticotrofina (ACTH)

+ Hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) e peptídios derivados da pró­opiomelanocortina (POMC) = melanocortinas

Hormônio liberador de hormônio luteinizante (LHRH) ou hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRH) Hormônio liberador de hormônio de crescimento

+ Hormônio luteinizante (LH) e + Hormônio foliculestimulante (FSH) + Hormônio do crescimento (GH)

(GHRH) Hormônio inibidor da liberação de hormônio de

– GH e TSH

crescimento (GHRIH = GIH) ou somatostatina (SS) Fator inibidor da liberação de Prl (PIF) = dopamina

– Prl

(DA), GABA, peptídio associado às gonadotrofinas (GAP) Fator liberador de Prl (PRF) = peptídio intestinal

+ Prl

vasoativo (VIP), peptídio histidina­isoleucina (PHI), TRH Os sinais + e – indicam estimulaçáo e inibiçáo, respectivamente. No Quadro 65.1 estão  indicados  os  hormônios  hipotalâmicos  identificados  até  o  momento  e  suas  ações  específicas sobre a adeno­hipófise.

▸ Hormônio liberador de tireotrofina (TRH)

O TRH foi o primeiro hormônio hipotalâmico a ser isolado, a ter a sua estrutura química definida e a ser sintetizado em  laboratório.  Esse  tripeptídio  (piroglutamil­histidil­prolinamida)  foi  isolado  por  Schally  em  1968,  após  a  análise  de 165.000  hipotálamos  suínos.  Logo  após,  estudos  in  vitro  confirmaram  que  esse  peptídio  apresentava  a  capacidade  de provocar a liberação de TSH de hipófises de camundongos e ratos. No ano seguinte, Guillemin conseguiu o mesmo feito em  ovinos.  Esses  achados  fizeram  com  que  ambos  fossem  laureados  com  o  Prêmio  Nobel  de  Fisiologia  e  Medicina  em 1977. Após  a  síntese  do  TRH  em  laboratório  verificou­se  que,  surpreendentemente,  o  TRH  também  apresentava  a capacidade  de  induzir  a  liberação  de  Prl.  Posteriormente  verificou­se  que,  em  ratas  hipotireóideas,  cujos  níveis  de  TRH estão  elevados,  a  sucção  da  mama  leva  a  um  aumento  acentuado  da  liberação  de  Prl  e  que  pacientes  hipotireóideos apresentam  ocasionalmente  hiperprolactinemia.  Estudos  mais  recentes  demonstraram  ainda  que,  em  uma  linhagem  de tumor de células hipofisárias, o TRH estimula a síntese de mRNA que codifica a Prl. Apesar desses achados, por motivos que serão discutidos a seguir, o TRH não é considerado como o fator fisiológico da liberação de Prl. Vale ainda comentar que o TRH, sob certas condições, também é capaz de estimular a secreção de GH.

Biossíntese O TRH é sintetizado a partir de uma grande molécula precursora constituída de 242 aminoácidos, o pré­pró­TRH. O gene que codifica o pré­pró­TRH humano está localizado no cromossomo 3, apresenta comprimento de 3,3 e uma unidade de transcrição que no 3o éxon contém sequências repetidas que variam em número segundo a espécie (6 no ser humano e 5 no rato), e cada uma delas dá origem a uma molécula de TRH. Em outras palavras, uma única cópia desse gene dá início a 6  moléculas  de  TRH  no  ser  humano  e  5  no  rato  (Figura 65.4).  Esse  gene  também  codifica  outros  neuropeptídios  que podem  ser  biologicamente  importantes.  O  gene  do  TRH  é  expresso,  principalmente,  nos  núcleos  paraventriculares  (na porção parvicelular) do hipotálamo, em neurônios distintos daqueles que compõem o sistema magnocelular, e também em neurônios  específicos  da  área  periventricular  do  hipotálamo  (no  núcleo  periventricular  anterior,  principalmente).  Dessas regiões, que constituem a área tireotrófica do hipotálamo, partem axônios que transportam o TRH por fluxo axoplasmático em direção à eminência mediana, onde ele é liberado no sistema porta­hipofisário. Detecta­se também imunorreatividade para o TRH em outras regiões do SNC, onde ele desempenha o papel de neurotransmissor ou neuromodulador.

Regulação da síntese e secreção A  atividade  dos  neurônios  que  sintetizam  TRH  é  influenciada,  basicamente,  por  aferências  provenientes  de  várias regiões do SNC e pelas concentrações plasmáticas dos hormônios tireoidianos. A  secreção  de  TRH  é  estimulada  por  aferências  noradrenérgicas  que  partem  do  tronco  encefálico.  O  bloqueio  de receptores α 1­adrenérgicos  inibe  a  liberação  de  TSH  que  ocorre  durante  exposição  ao  frio,  resposta  que  é  observada  em vários animais e no ser humano recém­nascido, sabidamente, secundária à liberação de TRH. A secreção de TRH também é estimulada pelo hormônio antidiurético (ADH). Por outro lado, os opiáceos endógenos, os glicocorticoides, a dopamina e  a  somatostatina  inibem  a  liberação  de  TRH.  O  neuropeptídio  Y  e  o  AGRP  (Agouti­related peptide)  também  exercem profundos efeitos inibitórios sobre a síntese de TRH. O papel da serotonina e histamina sobre a secreção de TRH ainda é controverso, já que tanto efeitos estimuladores quanto inibitórios podem ser encontrados na literatura. No jejum, a liberação de TRH encontra­se reduzida em função do aumento da atividade dos neurônios que  secretam  o  neuropeptídio  Y  (NPY).  Este  peptídio  exerce  um  tônus  inibitório  sobre  os  neurônios TRHérgicos  e,  por  conseguinte,  sobre  a  atividade  do  sistema  hipotálamo­hipófise­tireoide  (HPT),  o  que  é fundamental  para  a  preservação  de  energia  que  deve  acontecer  nessa  condição.  Isso  ocorre  porque,  no jejum,  há  redução  da  concentração  plasmática  de  leptina,  que  é  um  potente  inibidor  da  atividade  dos neurônios que secretam NPY. A diminuição da atividade do eixo HPT no jejum leva à redução da secreção dos  hormônios  tireoidianos  que,  como  será  evidenciado  no  Capítulo  68,  Glândula  Tireoide,  atuam aumentando a taxa metabólica basal, o que não é desejável nessa situação. Quanto ao T3, foi demonstrado que ele inibe diretamente a transcrição do gene do pré­pró­TRH e, portanto, a síntese de  TRH  no  hipotálamo,  o  que  constitui  a  base  molecular  para  o  mecanismo  de feedback  negativo  do  eixo  hipotálamo­ hipófise­tireoide existente no nível hipotalâmico (Figura 65.5). Esse efeito parece ser restrito aos neurônios TRHérgicos dos  núcleos  paraventriculares  (NPV),  embora  atualmente  haja  evidências  de  que  neurônios  TRHérgicos  localizados  no

tronco  encefálico,  que  estão  envolvidos  com  a  atividade  vagal  e,  possivelmente,  com  o  controle  da  ingestão  alimentar, também sejam regulados pelo T3. Na verdade, o T4 plasmático é o principal envolvido na resposta de retroalimentação negativa sobre o TRH; no entanto, sabe­se que ele deve ser desiodado a T3, que é o hormônio que será reconhecido pelos receptores nucleares de hormônios tireoidianos, os THR, e que reduzirá a expressão do gene que codifica o TRH. Embora seja consenso que a retroalimentação negativa seja exercida pelo T3 produzido localmente a partir do T4, a presença da desiodase do tipo 2 (D2), enzima que catalisa essa reação, não foi demonstrada nos núcleos paraventriculares do hipotálamo, o que sugere que a desiodação ocorra em outro local no SNC ou que a retroalimentação negativa também possa ser exercida pelo próprio T3 circulante. É possível que células do núcleo arqueado estejam envolvidas nesse processo, uma vez que se evidenciou expressão de mRNA da D2 nessa região do hipotálamo, bem como conexões monossinápticas entre células deste núcleo e neurônios dos núcleos paraventriculares diretamente relacionados com o controle da secreção de TSH. Demonstrou­se  também  marcação  para  mRNA  da  D2  na  área  periventricular  do  hipotálamo,  mais especificamente  na  camada  ependimal  do  3o  ventrículo,  bem  como  na  eminência  mediana,  em  que numerosas células contendo o mRNA da D2 foram localizadas na camada interna adjacente ao assoalho do 3o ventrículo  e  na  camada  externa  adjacente  à  superfície  do  cérebro.  Mais  recentemente  foi  evidenciado que  células  gliais,  astrócitos  e  tanicitos  do  hipotálamo  médio  basal  expressam  a  D2,  indicando  que  a interação entre a glia, células ependimais e neurônios é de fundamental importância para que haja o efeito de retroalimentação negativa exercido pelo T3 sobre a síntese de TRH e, portanto, para que a regulação da função tireoidiana ocorra de modo efetivo. Outro aspecto importante a salientar é que a isoforma β do THR (THRβ) é a que predomina no SNC e hipófise. Assim, na síndrome da resistência ao hormônio tireoidiano, na  qual  o  gene  THRβ  apresenta  uma  mutação  inativadora,  a  elevada  concentração  de  hormônios tireoidianos no plasma não é capaz de reduzir a secreção do TRH, bem como a de TSH. Para  que  os  hormônios  tireoidianos  desencadeiem  seus  efeitos  biológicos,  eles  devem  ser transportados  através  da  membrana  de  seus  tecidos­alvo  por  proteínas  específicas,  que  incluem  os transportadores  de  monocarboxilato  8  (MCT8)  e  10  (MCT10)  e  o  polipeptídio  transportador  de  ânions orgânicos  1C1  (OATP1C1).  O  OATP1C1  é  expresso  predominantemente  nos  capilares  cerebrais  e transporta preferencialmente T4, enquanto o MCT8 e o MCT10 são expressos em vários tecidos e capazes de transportar diferentes iodotironinas. Há uma elevada expressão de MCT10 e OATP1C1 no hipotálamo humano,  o  que  indica  a  possibilidade  de  participarem  da  regulação  da  atividade  do  eixo  hipotálamo­ hipófise­tireoide (detalhes no Capítulo 68).

Figura 65.4 ■ Esquema  ilustrativo  do  gene  do  pré­pró­TRH  humano.  O  gene  apresenta  em  sua  região  promotora  elementos responsivos ao hormônio tireoidiano (TRE), aos glicocorticoides (GRE), ao fator de crescimento epidermal (EGFRE), ao cAMP (CRE), além de sítios de ligação às proteínas transcricionais AP1 e SP1, dentre outros, o que sugere participação dos mesmos

no controle da expressão desse gene. O gene apresenta 3 éxons (representados pelos números 1, 2 e 3 escritos em ocre) que codificam um cDNA que apresenta 6 cópias do TRH. (Adaptada de Stratakis e Chrousos, 1997.)

Figura 65.5 ■ Representação esquemática dos principais fatores envolvidos na regulação da síntese e secreção do hormônio liberador  de  tireotrofina  (TRH)  e,  consequentemente,  do  eixo  hipotálamo­hipófise­tireoide.  NPV  representa  o  núcleo paraventricular,  onde  são  encontrados  os  neurônios  TRHérgicos;  NARQ  representa  o  núcleo  arqueado,  de  onde  partem neurônios dopaminérgicos (DA) que secretam os neuropeptídios Y (NPY) e AGRP (Agouti­related peptide),  os  quais  exercem profundos efeitos inibitórios sobre a síntese de TRH. NSQ representa o núcleo supraquiasmático relacionado com a ritmicidade circadiana observada na secreção de TRH/TSH. Os glicocorticoides, além de reduzirem a expressão do gene do pré­pró­TRH, diminuem a expressão de receptores de TRH no tireotrofo. (Adaptada de Cone et al., 2003.)

Mecanismo de ação Os efeitos biológicos do TRH resultam da interação desse peptídio com receptores de alta afinidade e especificidade, localizados na membrana das células tireotróficas e lactotróficas hipofisárias, processo que leva à estimulação da síntese e secreção  de  TSH  e  Prl.  Desse  modo,  um  fator  importante  que  influencia  a  resposta  do  TSH  ao  TRH  é  o  número  de receptores  de  TRH  nessas  células.  A  expressão  desses  receptores  é  regulada  por  uma  série  de  fatores  tais  como  os hormônios tireoidianos e glicocorticoides que, quando aumentados na circulação, levam à diminuição do seu número. Por outro  lado,  os  estrógenos  parecem  induzir  a  expressão  desses  receptores,  o  que  contribuiria  para  explicar  o  fato  de  a resposta do TSH ao TRH ser maior nas mulheres do que nos homens. A  resposta  do  tireotrofo  ao  TRH  é  bimodal,  ou  seja,  ele  provoca  inicialmente  a  liberação  do  hormônio  armazenado para,  a  seguir,  estimular  a  atividade  gênica,  aumentando  a  síntese  de  TSH.  Na  verdade,  esses  processos  são  iniciados simultaneamente;  a  diferença  de  fase  entre  eles  decorre  da  ação  do  TRH  sobre  o  processo  de  síntese,  que,  por  envolver várias etapas, é mais lento.

O receptor de TRH (TRH­R) é um membro da família dos receptores acoplados à proteína G. Apresenta 7 domínios transmembrânicos, sendo que o TRH se liga ao 3o. Após sua interação com o receptor, o TRH ativa a proteína Gq, cuja consequência  é  a  ativação  da  fosfolipase  C  que  hidrolisa  o  fosfatidilinositol  (PIP2)  a  trifosfato  de  inositol  (IP3)  e diacilglicerol (DAG). O IP3 provoca liberação de Ca2+ dos seus estoques intracelulares (no retículo endoplasmático); este íon interage com os microtúbulos conduzindo ao primeiro pulso de liberação do TSH armazenado, enquanto o DAG ativa a  proteinoquinase  C  (PKC),  processo  que  é  potencializado  pelo  Ca2+.  Segue­se  uma  segunda  fase  de  secreção  hormonal sustentada,  que  se  acredita  ser  dependente  do  influxo  de  Ca2+ extracelular  por  meio  de  canais  de  Ca2+  dependentes  de voltagem.  Acredita­se  que  a  PKC  possa  estar  envolvida  neste  processo,  já  que  há  uma  rápida  translocação  dela  para  a membrana em resposta ao TRH. A elevação do Ca2+ intracelular associada à ativação da PKC também estimula a taxa de transcrição dos genes que codificam as duas cadeias polipeptídicas do TSH, efeito que resulta da fosforilação de proteínas nucleares  envolvidas  na  expressão  destes  genes.  Além  do  efeito  transcricional,  o  TRH  estimula  a  glicosilação  do  TSH, importante  passo  para  que  este  hormônio  apresente  sua  total  atividade  biológica  (detalhes  no  Capítulo  66,  Glândula Hipófise). Em suma, a interação do TRH com seu receptor leva à ativação da PKC, cujo resultado é a fosforilação de uma série de proteínas intracelulares, mecanismo pelo qual o efeito biológico do hormônio se manifesta. O TRH parece não interagir com o sistema adenililciclase/cAMP, pelo menos diretamente. De fato, o cAMP estimula a secreção de TSH, contudo esse efeito pode não ser TRH­dependente. O  TRH  é  rapidamente  inativado  por  ação  de  uma  peptidase  e  uma  desaminase  plasmáticas.  Acredita­se  que  os hormônios tireoidianos participem da regulação desse processo, já que ratos hipertireóideos apresentam aumento da taxa de inativação do TRH, sendo o contrário observado nos hipotireóideos.

Outras ações A vasta distribuição de TRH pelo SNC, em áreas distintas da área tireotrófica, além de sua presença em outras regiões muito  distantes,  tais  como  ilhotas  pancreáticas  e  sistema  digestório,  sugerem  ações  que  muito  diferem  das  que  foram mencionadas. O mesmo pode ser deduzido da sua presença em certos animais inferiores, os quais nem sintetizam TSH. A presença de receptores de TRH também foi demonstrada em células do corno intermediolateral da medula espinal, local de origem  dos  neurônios  simpáticos  pré­ganglionares,  o  que  poderia  explicar  o  aumento  da  pressão  arterial  observado  após administração  de  TRH  em  animais  e  no  ser  humano  (Quadro 65.2).  Na  verdade,  2/3  do  TRH  presentes  no  SNC  estão localizados  fora  do  hipotálamo,  o  que  sugere  que  ele  exerça  um  papel  de  neurotransmissor,  além  de  ser  um  hormônio liberador de TSH.

Quadro 65.2 ■ Ações do hormônio liberador de tireotrofina (TRH) sobre o sistema nervoso central. Aumenta a atividade espontânea Altera o padrão de sono Produz anorexia Inibe comportamento condicionado de esquiva Induz rotação cabeça­cauda Opõe­se às ações dos barbituratos sobre o tempo de sono, hipotermia e letalidade Opõe­se às ações do etanol, hidrato de cloral, clorpromazina e diazepam sobre o tempo de sono e hipotermia Aumenta o tempo de convulsão e letalidade da estricnina Aumenta a atividade motora de animais tratados com morfina Potencializa os efeitos DOPA­pargilina

Melhora os distúrbios comportamentais humanos Provoca inibição central da secreção do hormônio de crescimento (GH) e da prolactina (Prl) induzida pela morfina Altera a atividade elétrica das membranas celulares cerebrais Aumenta o turnover de norepinefrina (NE) Libera NE e dopamina (DA) de preparações sinaptossômicas Aumenta a velocidade de desaparecimento da NE das terminações nervosas Potencializa as ações excitatórias da acetilcolina (ACh) sobre os neurônios corticais cerebrais Aumenta a pressão arterial Protege contra o choque espinal Melhora a função motora na esclerose amiotrófica lateral Fonte: Reichlin, 1992.

▸ Fatores/hormônios hipotalâmicos inibidores da liberação de TSH Estudos in vitro e in vivo evidenciaram que a somatostatina (hormônio inibidor da liberação de GH) inibe a liberação basal e induzida de TSH, bem como a liberação de TRH. Acredita­se que um dos mecanismos pelos quais os hormônios tireoidianos  controlam  a  liberação  de  TSH  é  via  somatostatina.  As  evidências  são  as  seguintes:  (1)  em  ratos hipotireóideos,  o  conteúdo  hipotalâmico  de  somatostatina  encontra­se  diminuído,  sendo  prontamente  normalizado  após administração  de  T3,  e  (2)  a  exposição  de  fragmentos  de  hipotálamo  ao  T4  provoca  a  estimulação  da  secreção  de somatostatina.  Acredita­se  que  a  diminuição  concomitante  de  TSH  e  GH  observada  em  alguns  tipos  de  estresse  seja  o resultado da elevação de somatostatina que ocorre nessas condições. Assim  como  ocorre  com  a  secreção  de  prolactina,  a  dopamina  também  inibe  a  liberação  de  TSH;  sua  administração leva à diminuição da concentração plasmática de TSH em indivíduos normais e hipotireóideos. Essa ação parece ocorrer diretamente na hipófise, uma vez que, após infusão de dopamina, observa­se diminuição da resposta de liberação de TSH ao  TRH.  Estudos in vitro que  empregam  concentrações  de  dopamina  similares  às  detectadas  no  sangue  portal  também demonstraram efeito direto dessa amina sobre a hipófise, sugerindo que a dopamina é um agente inibidor “fisiológico” da secreção de TSH.

▸ Hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRH, LHRH) O  GnRH  é  um  decapeptídio,  isolado  a  partir  de  tecido  hipotalâmico,  que  foi  assim  chamado  por  apresentar  a capacidade  de  induzir  a  liberação  de  LH  e  FSH.  Sua  estrutura  primária  também  foi  determinada  por  Schally  (em  1971), após extensas purificações de extratos hipotalâmicos de porcinos. Os primeiros estudos que levaram ao conhecimento de sua  atividade  biológica  foram  realizados  a  partir  da  administração  de  extratos  hipotalâmicos  em  animais  de experimentação. Inicialmente, em coelhas, foi caracterizada uma elevação da concentração sérica de LH seguida de indução da  ovulação  (por  processo  dependente  de  LH),  razão  pela  qual  esse  hormônio  foi  denominado  LHRH.  Os  estudos subsequentes mostraram que a administração de LHRH também causava elevação do FSH sérico, o que levou à utilização de uma terminologia mais genérica para esse hormônio: GnRH. Apesar de o GnRH induzir liberação tanto de LH quanto de FSH, existem alguns estudos que sugerem a existência de dois  hormônios  hipotalâmicos  específicos  para  a  liberação  desses  hormônios,  pois  em  algumas  situações  fisiológicas  e fisiopatológicas ocorre nítida dissociação da secreção das gonadotrofinas. Por outro lado, os que defendem a existência de apenas um hormônio liberador para ambas as gonadotrofinas justificam essas diferenças como decorrentes de variações no padrão  de  descargas  de  GnRH  e  de  flutuações  nos  níveis  circulantes  de  hormônios  gonadais.  Assim,  no  período  pré­ ovulatório,  os  altos  níveis  circulantes  de  estrógenos  induzem  um  aumento  da  frequência  de  descargas  de  GnRH,  que

poderia  ser  decorrente  de  uma  inibição  de  vias  endorfinérgicas,  ou  ativação  de  neurônios  que  secretam  kisspeptina  (ver adiante). Ao mesmo tempo, os altos níveis circulantes de estrógenos diminuem a resposta de liberação de FSH ao GnRH, o que resulta na secreção preferencial de LH. Outro hormônio gonádico, a inibina, pode, igualmente, favorecer a secreção de  LH  frente  a  um  aumento  de  GnRH,  uma  vez  que  exerce  efeito  seletivo  inibitório  sobre  a  secreção  de  FSH  (detalhes no Capítulo 66 e no Capítulo 71, Gônadas).

Biossíntese O  GnRH  é  sintetizado  por  neurônios  localizados  na  área  pré­óptica  e  hipotálamo  basal,  como  parte  de  um  pró­ hormônio que sofre processamento enzimático em seus grânulos de secreção. Esse precursor, além de GnRH, dá origem a um peptídio de 56 aminoácidos denominado GAP (peptídio associado ao GnRH). O GAP apresenta atividade inibidora da secreção de Prl, dado que ainda não foi confirmado in vivo, e seu papel fisiológico ainda permanece desconhecido. A  estrutura  química  do  GnRH  varia  de  espécie  para  espécie,  de  forma  semelhante  ao  que  ocorre  com  todos  os hormônios  liberadores  maiores  que  o  TRH.  Em  uma  mesma  espécie,  podemos  ainda  ter  GnRH  produzidos  em  locais diferentes,  com  estruturas  químicas  diferentes,  o  que  sugere  que  o  pró­GnRH  seja  processado  de  maneira  distinta  nos diversos  tecidos  em  que  o  gene  é  expresso.  Contudo,  os  primeiros  4  resíduos  de  aminoácidos  do  GnRH,  que  são fundamentais para a liberação de FSH e LH, são altamente conservados na evolução. O gene do GnRH está localizado no cromossomo  8  p  apresentando,  em  todos  os  mamíferos,  4  éxons.  O  2o  codifica  o  pré­pró­GnRH  até  os  11  primeiros aminoácidos  do  GAP.  Esse  gene  foi  bastante  estudado  no  rato,  tendo  sido  identificadas  na  região  flanqueadora  5’  várias sequências às quais diferentes fatores de transcrição podem se ligar, bem como elementos responsivos ao estrógeno (pelo menos no gene do GnRH humano), e a outros esteroides, o que sugere que a regulação da expressão desse gene é bastante complexa. A  secreção  dos  neuropeptídios  hipotalâmicos  é  pulsátil.  Essa  característica  secretória,  que  é  observada  em  maior  ou menor intensidade de acordo com a natureza do neuropeptídio, é um componente obrigatório do funcionamento normal do eixo  hipotálamo­hipófise­gônadas;  a  liberação  hipotalâmica  de  pulsos  de  GnRH  resulta  em  flutuações  ultradianas  da concentração  de  gonadotrofinas  no  sangue  periférico.  Acredita­se  que  esse  tipo  de  secreção  seja  importante  na  regulação do  número  de  receptores  hipofisários  para  o  GnRH,  uma  vez  que  após  a  formação  do  complexo  hormônio­receptor  uma fração  substancial  desses  complexos  é  internalizada  e  destruída.  Desta  maneira,  durante  o  intervalo  entre  os  pulsos,  o gonadotrofo  hipofisário  restabeleceria  o  pool  de  receptores  internalizados  e  destruídos  durante  o  pulso  anterior (ver  Capítulo  64).  O  resultado  desse  mecanismo  regulador  é  que  a  exposição  contínua  ao  GnRH  leva  à  supressão  da liberação  de  gonadotrofinas,  a  qual  é  restabelecida  após  início  de  injeção  intermitente  de  GnRH.  Sabe­se  que, fisiologicamente, essa liberação pulsátil permanece bloqueada durante: (1) a maior parte do desenvolvimento pré­púbere, (2) a amenorreia observada na lactação e (3) a restrição alimentar.

Regulação da secreção Os neurônios que expressam o GnRH recebem aferências de vias adrenérgicas e peptidérgicas de opiáceos endógenos, as quais participam da regulação da secreção de gonadotrofinas que agem diretamente no hipotálamo. A secreção de GnRH é  estimulada  pela  norepinefrina  por  meio  da  ativação  de  receptores  alfa­adrenérgicos;  portanto,  o  bloqueio  destes  por utilização  de  antagonistas  específicos  provoca  inibição  da  ovulação.  Por  outro  lado,  a  ativação  de  receptores  beta­ adrenérgicos  provoca  inibição  da  secreção  de  GnRH.  A  dopamina  também  exerce  efeito  inibitório  sobre  a  liberação  de GnRH. Demonstrou­se que a morfina inibe a secreção de gonadotrofinas em ambos os sexos, sendo causa de infertilidade, anovulação  e  diminuição  dos  níveis  de  testosterona.  Admite­se  que  esse  quadro  de  hipogonadismo  resulte  de  uma diminuição  da  frequência  de  pulsos  de  GnRH,  o  que  levaria  a  uma  maior  diminuição  da  secreção  de  LH  em  relação  ao FSH. Juntamente  com  as  aferências  neurais,  os  neurônios  GnRHérgicos  são  marcadamente  influenciados  pelos  esteroides sexuais circulantes. Dessa maneira, em macacos, as evidências de que a castração (ou orquiectomia) leva à aceleração da secreção  pulsátil  de  LH  e,  presumivelmente,  de  GnRH  sugerem  fortemente  que  a  testosterona  exerça  um  controle inibitório  sobre  a  liberação  deste  hormônio  hipotalâmico.  Nesse  sentido,  estudos  realizados  em  macacos  castrados, submetidos  a  injeção  intraventricular  de  [3H]DHT  (di­hidrotestosterona),  demonstram  a  presença  desse  hormônio  em frações  nucleares  de  homogeneizados  de  hipotálamo;  esses  experimentos  indicam  também  uma  marcação  extensa  de neurônios nos núcleos arqueado, ventromedial e pré­mamilares ventrais do hipotálamo basal, possíveis locais de geração dos pulsos de GnRH. Há indícios de que a testosterona aja nesse sistema indiretamente, via modulação da atividade de um sistema opioide.

A progesterona exerce uma ação similar à da testosterona tanto sobre a frequência de pulsos de GnRH, diminuindo­a, quanto  sobre  os  opioides  endógenos.  No  entanto,  sob  certas  circunstâncias,  a  progesterona  é  capaz  de  exercer  efeitos facilitatórios sobre a secreção de gonadotrofinas agindo tanto no nível do SNC quanto da hipófise. Enquanto a testosterona, a progesterona e também a prolactina, em concentrações fisiológicas, diminuem a frequência de pulsos do GnRH, os estrógenos promovem diminuição da amplitude deles. Entretanto, no período pré­ovulatório, eles causam um aumento na frequência de pulsos do GnRH, o que leva ao aumento da secreção de LH. O mecanismo pelo qual os estrógenos provocam esse efeito de retroalimentação positiva parece envolver a inativação de um sistema opioide, que age  cronicamente  inibindo  a  liberação  do  GnRH  e  kisspeptina  (mais  detalhes  no  Capítulo  66).  Deve­se  ressaltar,  no entanto, que ao longo do ciclo menstrual normal predomina o efeito de retroalimentação negativa dos esteroides ovarianos sobre o GnRH (Figura 65.6). É  bastante  conhecido  o  fato  de  ocorrer  inibição  da  função  reprodutiva  em  mamíferos  em  situações  de  estresse.  Esse efeito  parece  resultar  da  inibição  da  secreção  de  GnRH  induzida  por  neurônios  CRHérgicos,  via  sinapses  axodendríticas na  área  pré­óptica  medial.  Os  opioides  endógenos  exercem  efeito  similar  sobre  a  secreção  de  GnRH,  participando,  em conjunto  com  o  CRH,  da  inibição  da  função  reprodutiva  no  estresse.  As  citocinas,  proteínas  mediadoras  da  resposta inflamatória  e  da  imunidade  celular,  também  regulam  a  secreção  de  GnRH.  A  injeção  central  de  interleucina  1  inibe  a atividade  dos  neurônios  GnRHérgicos,  e  provoca  diminuição  da  síntese  e  liberação  de  GnRH.  As  citocinas  também exercem efeito estimulante sobre a secreção de CRH, mecanismo paralelo pelo qual reforçam seus efeitos inibitórios sobre o eixo hipotálamo­hipófise­gônadas. Assim, seu efeito inibitório sobre a atividade GnRHérgica, em associação ao CRH e opioides endógenos, contribui com a inibição da função reprodutiva na inflamação e resposta imunológica.

Mecanismo de ação A  ação  do  GnRH  sobre  a  regulação  da  síntese  e  secreção  de  LH  e  FSH  ocorre  por  meio  da  sua  interação  com receptores localizados na membrana, da qual resulta a ativação da fosfolipase C e, subsequentemente, da proteinoquinase C  (PKC).  Demonstrou­se  que  o  complexo  GnRH­receptor  pode  acoplar­se  a  diferentes  proteínas  G  e  que  a  ligação  do GnRH  provoca  oscilações  na  concentração  de  Ca2+ no  gonadotrofo.  O  sistema  Ca2+/calmodulina  parece  ser  igualmente importante para que o gonadotrofo responda ao GnRH.

Figura 65.6 ■ Representação esquemática da regulação neuroendócrina da atividade do sistema hipotálamo­hipófise­gônadas. Observe  que  os  neurônios  GnRHérgicos  (que  secretam  GnRH:  hormônio  liberador  de  gonadotrofinas)  recebem  várias aferências neuronais que secretam: CRH (hormônio liberador de corticotrofina), β­endorfina, NE (norepinefrina), GABA (ácido

gama­aminobutírico), NPY (neuropeptídio Y), além de outros neurotransmissores. Essas substâncias atuam estimulando (+) ou inibindo  (–)  a  sua  atividade,  levando,  por  conseguinte,  a  repercussões  na  secreção  de  gonadotrofinas  (FSH:  hormônio foliculestimulante  e  LH:  hormônio  luteinizante)  e  de  hormônios  gonadais  (estradiol,  progesterona,  testosterona  e  inibina).  Na eminência mediana do hipotálamo e na hipófise são encontrados receptores dos hormônios gonadais, que constituem a base do mecanismo de feedback exercido por esses hormônios sobre a atividade deste sistema. (Adaptada de Cone et al., 2003.)

Embora os níveis intracelulares de cAMP aumentem sob ação deste hormônio, não está claro se esse efeito é essencial para  a  ação  hormonal.  Há  evidências  de  interações  múltiplas  nos  sistemas  de  sinalização  intracelulares  para  vários hormônios, o que poderia explicar uma série de efeitos paralelos desencadeados quando da interação do hormônio com o seu receptor. A ação do GnRH é limitada por vários mecanismos, dentre os quais temos: (1) a degradação por proteases associadas à  membrana  logo  após  sua  ligação  com  receptores  hipofisários  e  (2)  a  proteólise  lisossômica  após  internalização  do complexo hormônio­receptor. O GnRH pode também ser metabolizado por degradação enzimática e excreção renal, já que se  apresenta  amplamente  distribuído  no  líquido  extracelular.  Ainda,  há  evidências  de  que  a  inativação  primária  deste hormônio ocorra no hipotálamo por ação de uma endopeptidase, cuja atividade apresenta­se diminuída pela gonadectomia e aumentada na presença de estrógenos ou testosterona, de modo que grande parte dos efeitos tipo feedback dos hormônios gonadais sobre a secreção de LH e FSH poderia ser exercida por meio desse mecanismo.

Outras ações Assim como os outros neuropeptídios hipotalâmicos, os neurônios que sintetizam o GnRH distribuem­se amplamente em várias outras regiões do sistema nervoso, onde exercem, provavelmente, um papel neuromodulador. O GnRH também é  sintetizado  na  placenta,  de  onde  foi  isolado  o  mRNA  específico  que  codifica  a  sua  síntese.  Há  evidências  de  que  esse hormônio  possa  estimular  a  produção  de  gonadotrofina  coriônica  humana  (CGH)  na  placenta,  estabelecendo  relações parácrinas nessa estrutura. Alguns  estudos  apontam  o  GnRH  como  um  importante  mediador  do  impulso  sexual,  já  que  a  injeção  intra­ hipotalâmica desse peptídio em ratas aumenta a resposta sexual, mesmo quando elas são previamente hipofisectomizadas. Adicionalmente, a presença de receptores de GnRH em ovário e testículo de ratos sugere uma possível ação do hormônio nesse nível; de fato, estudos in vitro demonstram estimulação da secreção de esteroides sexuais pelo GnRH. Contudo, a sua  baixa  concentração  plasmática  deixa  certa  dúvida  quanto  à  possibilidade  de  exercer  um  efeito  fisiológico,  in  vivo, nesses tecidos.

▸ Hormônio liberador do hormônio de crescimento (GHRH) Deuben e Meites demonstraram em 1964 a existência de um fator hipotalâmico, em ratos, que promovia a liberação de GH in vitro. A partir dessa data, vários esforços infrutíferos foram realizados com o objetivo de caracterizá­lo. Porém, foi somente em 1982 que o GHRH foi isolado e caracterizado, por dois grupos distintos liderados por Rivier e Guillemin, a partir  de  extratos  de  um  tumor  pancreático  que,  por  secretar  grandes  quantidades  de  GHRH,  causava  acromegalia.  A presença  de  atividade  liberadora  de  GH  em  tumores  não  hipofisários  (bronquiais  e  pancreáticos)  vem  sendo  relatada  há mais de quatro décadas por vários investigadores. Foi demonstrado que o GHRH produzido por tumores era idêntico ao encontrado no hipotálamo, sendo então caracterizado o GHRH hipotalâmico.

Biossíntese O gene do GHRH humano está localizado no cromossomo 20 p, apresentando 10 kb de comprimento e 5 éxons. Como os  outros  peptídios  hipotalâmicos,  o  GHRH  é  sintetizado  na  forma  de  pré­pró­GHRH.  Basicamente,  três  isoformas  de GHRH foram identificadas, com 37, 40 e 44 aminoácidos, apresentando atividade biológica liberadora de GH. Uma quarta isoforma, constituída de 27 aminoácidos, também foi identificada; entretanto, não se detectou nenhuma atividade biológica desse peptídio. Esses distintos GHRH derivam de dois grandes polipeptídios precursores, o pré­pró­GHRH 107 e o 108, que sofrem processamento proteolítico pós­transcricional. Esses hormônios também são conhecidos como somatoliberina ou somatocrinina, por sua capacidade de induzir liberação de GH. A secreção episódica de GHRH também é fundamental para  a  manifestação  do  seu  efeito  biológico,  uma  vez  que  infusões  constantes  desse  peptídio  levam  à  diminuição  dos níveis de GH (pelo fenômeno da down­regulation). Os  neurônios  que  sintetizam  GHRH  apresentam­se  distribuídos  na  borda  ventrolateral  do  núcleo  ventromedial  e  no núcleo arqueado do hipotálamo; no entanto, é do núcleo arqueado que parte o maior contingente de fibras nervosas que se dirigem  à  eminência  mediana,  em  que  estabelecem  uma  íntima  relação  com  os  capilares  do  sistema  porta­hipotálamo­

hipofisário,  sendo,  portanto,  esse  núcleo  considerado  a  fonte  primária  de  GHRH.  O  mRNA  do  pré­pró­GHRH  humano também  é  expresso  em  outras  áreas  do  SNC,  tais  como  tálamo,  hipocampo,  amígdala  (onde  possivelmente  o  GHRH exerce  o  papel  de  neurotransmissor  ou  neuromodulador),  bem  como  nas  células  germinativas  dos  testículos  e  em  vários tecidos neuroendócrinos e tumorais.

Regulação da síntese e secreção A expressão do gene do GHRH está primariamente sob o controle do GH. Observa­se diminuição da expressão desse gene pelo tratamento com GH e aumento dela na deficiência deste hormônio. Essas alterações parecem decorrer do efeito direto  do  GH,  já  que  receptores  para  este  hormônio  são  encontrados  no  núcleo  arqueado.  O  IGF­I  (insulin­like  growth factor­I),  fator  de  crescimento  induzido  pelo  GH,  também  exerce  efeito  inibitório  sobre  a  expressão  do  GHRH,  via somatostatina,  a  qual  também  inibe  a  liberação  de  GHRH  (Figura  65.7).  Sabe­se  que  as  endorfinas,  glucagon  e neurotensina, entre outros hormônios, são capazes de estimular a liberação de GH, provavelmente por interferirem com a secreção  de  GHRH,  pois  esse  efeito  não  é  observado  quando  esses  peptídios  são  aplicados  diretamente  na  hipófise.  O mesmo  ocorre  com  a  dopamina,  serotonina  e  norepinefrina  (via  receptores  α 2),  que  são  potencialmente  capazes  de estimular a liberação de GH somente quando injetados no hipotálamo e não por aplicação direta na hipófise. Acredita­se que  os  efeitos  da  dopamina  ocorram  indiretamente,  já  que  ela  é  convertida  a  norepinefrina  (Figura  65.8).  O  peptídio intestinal vasoativo (VIP) também exerce um efeito estimulante sobre a secreção de GH, porém há evidências de que esse efeito ocorra por inibição da secreção da somatostatina nos núcleos periventriculares (ver adiante). A somatostatina, como afirmado  anteriormente,  é  um  peptídio  que  inibe  a  liberação  de  GH.  Esse  efeito  é  exercido  por  meio  de  ação  direta  no hipotálamo, reduzindo a liberação de GHRH, bem como sobre a hipófise, onde provoca diminuição da resposta ao GHRH (Figura 65.9).

Figura  65.7  ■   Representação  esquemática  da  regulação  da  síntese  e  secreção  do  hormônio  de  crescimento  (GH)  e  da somatostatina (SS) pelo hormônio liberador de GH (GHRH). Notar o controle positivo do GHRH sobre a síntese e secreção de GH  e  o  controle  negativo  da  somatostatina  tanto  sobre  a  secreção  de  GHRH  quanto  de  GH.  Em  paralelo  são  mostrados  os

efeitos  do  GH,  inibindo  a  expressão  gênica  de  GHRH  e  estimulando  a  secreção  de  somatostatina,  bem  como  do  fator  de crescimento  induzido  pelo  GH  (IGF­I  ou  insulin­like  growth  factor­I),  que  também  atua  estimulando  a  secreção  de somatostatina. aa, aminoácidos.

Figura 65.8 ■ Representação esquemática dos mecanismos neurais envolvidos no controle da secreção do hormônio liberador do GH (GHRH) e da somatostatina (SS), bem como dos efeitos de substâncias agonistas e antagonistas largamente utilizadas para avaliar a capacidade secretora de hormônio de crescimento (GH) pela hipófise.

A  hipoglicemia  é  um  potente  indutor  da  secreção  de  GH.  Admitia­se  que  essa  resposta  fosse  resultado  direto  de  um aumento da secreção de GHRH pelos neurônios GHRHérgicos localizados no núcleo hipotalâmico ventromedial, já que há muito  tempo  sabe­se  que  esses  neurônios  são  sensíveis  a  variações  da  glicemia,  participando,  entre  outras  funções,  do controle  da  ingestão  alimentar.  No  entanto,  observou­se  que  a  liberação  de  somatostatina  se  eleva  em  situações  de hiperglicemia, e ocorre diminuição da mesma na hipoglicemia, o que poderia explicar o aumento da liberação de GH nesta situação.  Ainda,  em  situações  de  hipoglicemia  ocorre  ativação  de  vias  noradrenérgicas  (por  receptores  α),  o  que,  em paralelo, eleva a secreção de GH. A secreção de GHRH também é estimulada por outras situações de estresse, tais como o exercício  físico.  Nesta  condição,  a  sua  liberação  também  parece  ser  induzida  por  ativação  de  receptores  α­adrenérgicos (via norepinefrina, ou NE). Durante a fase do sono caracterizada por ondas lentas no EEG, observa­se um pico de secreção de GH dependente da liberação de GHRH, o qual é induzido principalmente por fibras serotoninérgicas e colinérgicas (ver Figura 65.9). Demonstrou­se também que um peptídio que apresenta propriedades orexígenas (estimulantes do apetite), isolado do estômago  de  ratos,  estimula  a  liberação  de  GH,  razão  pela  qual  foi  denominado  grelina.  Essa  propriedade  decorre principalmente  da  indução  da  secreção  de  GHRH,  já  que  os  neurônios  que  secretam  este  hormônio  apresentam  elevada expressão de receptores de grelina (GHS­R) (mais detalhes no Capítulo 66).

Mecanismo de ação Assim  como  os  outros  neuropeptídios  hipotalâmicos,  o  GHRH  interage  com  receptores  de  membrana  das  células hipofisárias, e os somatotrofos são as suas principais células­alvo. Seus efeitos, refletidos pela liberação e síntese de GH, são mediados pela ativação tanto do sistema adenilciclase­cAMP, quanto pela via do fosfatidilinositol. A participação do sistema  Ca2+/calmodulina  na  resposta  hipofisária  ao  GHRH  também  foi  demonstrada.  Embora  a  ação  do  GHRH  se restrinja basicamente ao somatotrofo, também se observa certa resposta do lactotrofo a esse peptídio.

Figura 65.9 ■ Representação esquemática da regulação da atividade do eixo hipotálamo­GH­IGF­I. Os fatores que participam do controle da secreção de GH estão aqui identificados e descritos no texto. (Adaptada de Reichlin, 1992.)

▸ Hormônio inibidor da liberação de GH (GHRIH, SRIF, somatostatina ou SS) A  somatostatina  (S­14)  é  um  tetradecapeptídio  que  foi  isolado  e  caracterizado  em  1973,  a  partir  de  hipotálamos  de ovinos.  Foi  à  procura  do  isolamento  do  GHRH,  em  extratos  de  hipotálamo,  que  Krulich  demonstrou  a  existência  de  um fator que inibia a liberação de GH in vitro. A somatostatina S­14 pertence a uma família de peptídios que inclui moléculas que  apresentam  12  (S­12),  28  (S­28),  bem  como  um  número  maior  de  aminoácidos,  variando  o  seu  peso  molecular  em diferentes tecidos e espécies (a S­14 é o modo predominante no cérebro e a S­28 no sistema digestório). A  somatostatina  é  um  hormônio  pan­inibidor.  Além  de  seu  papel  na  regulação  da  secreção  de  GH,  também  inibe  a secreção de TSH. Sua distribuição em várias regiões do sistema nervoso (no qual certamente atua como neurotransmissor ou  neuromodulador),  no  pâncreas  (nas  células  delta,  onde  inibe  a  secreção  tanto  de  insulina  quanto  de  glucagon),  no

intestino,  na  placenta  e  em  outros  tecidos  indica  que  é  secretada  por  diferentes  tipos  de  células  e  desempenha  diferentes funções, não sendo apenas a que o seu próprio nome sugere (ver Figuras 65.5, 65.7 e 65.9).

Biossíntese O  gene  da  somatostatina  está  localizado  no  cromossomo  3q,  contém  2  éxons  e,  nos  mamíferos,  apresenta  1,2  kb  de comprimento.  Esse  gene  é  altamente  conservado  na  evolução,  ao  contrário  do  gene  do  GHRH,  e  a  sua  expressão  leva  à síntese de um mRNA de 600 nucleotídios de comprimento, que codifica uma proteína precursora de 116 aminoácidos, a pré­pró­somatostatina. O processamento da pré­pró­somatostatina dá origem às formas S­14 e S­28, predominantemente (Figura 65.10). Os neurônios somatostatinérgicos envolvidos na regulação da secreção de GH encontram­se distribuídos nos núcleos periventriculares  do  hipotálamo  anterior,  de  onde  partem  em  direção  à  eminência  mediana  do  hipotálamo.  Terminações nervosas  somatostatinérgicas  também  se  encontram  presentes  nos  núcleos  ventromedial  e  arqueado  do  hipotálamo,  nos quais  estabelecem  sinapses  com  neurônios  GHRHérgicos,  arranjo  que  possibilita  um  segundo  tipo  de  controle  sobre  a secreção de GH.

Figura 65.10 ■ Esquema representativo do processamento da proteína pré­pró­somatostatina, precursora de somatostatina, em seus derivados: somatostatina 28 (que representa a pró­somatostatina), 12 e 14, sendo esta última o modo mais abundante na circulação. aa, aminoácidos. (Adaptada de Karam, 1997.)

Regulação da síntese e secreção Basicamente  a  somatostatina  é  regulada  pelo  GH  e  IGF­I,  os  quais  estimulam  sua  síntese  e  secreção.  O  CRH,  os glicocorticoides  e  a  NE  (por  interação  com  receptores  β­adrenérgicos)  também  estimulam  a  secreção  de  somatostatina, razão  pela  qual  em  alguns  tipos  de  estresse  (condição  em  que  a  secreção  de  CRH  encontra­se  bastante  elevada)  ocorre inibição  da  secreção  de  GH.  Por  outro  lado,  a  acetilcolina  inibe  a  liberação  de  somatostatina,  induzindo,  dessa  maneira, liberação  de  GHRH.  O  TRH  também  inibe  a  secreção  de  somatostatina.  Os  estrógenos,  a  progesterona  e  os  hormônios tireoidianos parecem estimular a expressão gênica e/ou a liberação de somatostatina (Figura 65.11). A grelina também reduz a secreção de somatostatina, o que reforça seus efeitos estimulantes sobre a secreção de GH. Demonstrou­se,  ainda,  que  um  peptídio  derivado  do  mesmo  precursor  da  grelina,  a  obestatina,  antagoniza  os  efeitos secretagogos do GH induzidos pela grelina, o que indica que ambos os peptídios atuam em neurônios GHRHérgicos.

Mecanismo de ação A  somatostatina  interage  com  receptores  de  membrana  acoplados  à  proteína  G  inibitória  (Gi)  e  ao  sistema adenililciclase,  provocando  inibição  da  atividade  desta  enzima  e,  consequentemente,  redução  do  conteúdo  intracelular  de cAMP  nas  células­alvo.  Todavia,  quando,  experimentalmente,  se  provoca  um  aumento  do  conteúdo  de  cAMP  na  célula­ alvo,  a  somatostatina  impede  os  efeitos  estimulantes  do  cAMP,  o  que  sugere  sua  participação,  também,  em  etapas subsequentes  da  sinalização  intracelular.  Sabe­se  ainda  que  esse  hormônio  estimula  o  efluxo  celular  de  potássio,  o  que causa hiperpolarização do somatotrofo, e reduz o influxo de Ca2+ pelos canais sensíveis a voltagem, de modo que parte de seus efeitos inibitórios sobre a secreção de GH pode ser decorrente desse mecanismo. Alguns estudos apontam que suas ações inibitórias também podem ser mediadas via inibição da expressão dos genes c­fos e c­jun.

A somatostatina é metabolizada por ação de endopeptidases no SNC, no tecido hepático e no plasma.

▸ Hormônio liberador de prolactina (PRH) Várias  substâncias  obtidas  em  frações  purificadas  de  extratos  hipotalâmicos  têm  se  mostrado  capazes  de  promover liberação de prolactina (Prl). As primeiras suspeitas com referência à existência de um fator hipotalâmico liberador de Prl recaíram sobre o TRH, já que havia consideráveis evidências de que ele era um potente agente fisiológico que estimulava a secreção de Prl e que mantinha o tônus basal de estímulo da secreção desse hormônio (ver anteriormente).

Figura  65.11  ■   Representação  esquemática  do  controle  neuroendócrino  da  síntese  e  secreção  de  somatostatina  (SS)  pelo núcleo periventricular do hipotálamo anterior (NPeV). Note as influências excitatórias (GH, IGF­I, CRH, glicocorticoides, T3 e NE – via receptores β­adrenérgicos) e inibitórias (TRH e acetilcolina – ACh) sobre esse sistema. (Adaptada de Cone et al., 2003.)

Sendo assim, temos que: (1) a sucção da mama, potente estímulo para a liberação de Prl, promove também aumento da liberação  de  TSH,  em  ratas;  (2)  os  níveis  de  TRH  na  circulação  porta­hipotálamo­hipofisária  encontram­se  aumentados em  resposta  à  sucção  da  mama  ou  à  estimulação  dos  nervos  mamários;  (3)  ratas  hipotireóideas,  nas  quais  o  tônus inibitório exercido pelos hormônios tireoidianos sobre a liberação de TRH encontra­se diminuído, apresentam lactogênese bastante estimulada frente à sucção da mama; (4) frente ao teste de estímulo da liberação de TSH por TRH, observa­se, concomitantemente,  aumento  da  liberação  de  Prl;  (5)  no  hipotireoidismo  primário  se  observa  exagerada  resposta  de liberação  de  TSH  e  Prl  frente  à  administração  de  TRH,  havendo  ausência  de  resposta  destes  hormônios  no hipertireoidismo. Apesar dessas evidências, o papel fisiológico do TRH como hormônio liberador de Prl ainda é questionável, visto que, em  algumas  espécies,  essa  ação  não  está  bem  caracterizada  e  que  em  situações  como  estresse  e  sono,  em  que  ocorre aumento da secreção de Prl, não acontece concomitante elevação da liberação de TRH, nem de TSH. Estudos in vitro demonstraram  que  o  peptídio  intestinal  vasoativo  (VIP)  é  capaz  de  induzir  liberação  de  Prl,  mesmo em  baixas  concentrações.  Esse  peptídio,  que  foi  isolado  a  partir  do  intestino  delgado,  está  presente  na  circulação  porta­ hipofisária em concentrações que, quando testadas in vitro, induzem liberação de Prl. A administração de antissoro anti­

VIP em animais  de  experimentação  bloqueia  ou  reduz  a  secreção  de  Prl  que  ocorre  no  estresse.  Dando  suporte  a  esses achados, a presença de receptores de VIP foi evidenciada em membranas de células lactotróficas. Outro fator que induz liberação de Prl é o peptídio histidina­isoleucina (HIP). O HIP e o VIP são sintetizados a partir de uma proteína precursora comum e coexistem com o CRH nos neurônios parvicelulares dos núcleos paraventriculares, o que poderia, inclusive, explicar a liberação paralela de ACTH e Prl no estresse. Igualmente,  vários  outros  neurotransmissores  ou  neuromoduladores  e  hormônios  têm  sido  apontados  como estimulantes  da  secreção  de  Prl.  Dentre  eles,  temos:  serotonina  (que  exerce  controle  sobre  a  secreção  de  Prl  durante  a lactação),  bombesina,  substância  P,  neurotensina,  β­endorfina,  encefalina,  angiotensina  II,  ocitocina,  histamina  e melatonina. Há  estudos  que  sugerem  a  presença  de  um  fator  liberador  de  Prl  na  hipófise  posterior,  uma  vez  que  a  sua  remoção diminui ou abole a secreção de Prl induzida pela sucção da mama em algumas espécies. Experimentos in vitro, em que se estudou  a  liberação  hipofisária  de  Prl,  confirmaram  a  presença  de  um  potente  PRF  na  hipófise  posterior.  A  identidade desse PRF ainda não é conhecida; porém, as evidências indicam que não se trata da ocitocina, TRH nem angiotensina II, peptídios que se apresentam em grande quantidade na neuro­hipófise e que também exercem efeitos estimulantes sobre a secreção  de  Prl.  No  entanto,  há  evidências  de  uma  população  de  neurônios  ocitocinérgicos  provenientes  dos  núcleos supraópticos e paraventriculares que se dirigem à eminência mediana, que teriam um papel na liberação de Prl durante a lactação.

▸ Fatores inibidores da secreção de prolactina (PIF) O fato de a hipófise apresentar capacidade de secretar espontaneamente Prl quando transplantada para outra região ou mesmo quando em meio de cultura, somado aos estudos que demonstraram que extratos de hipotálamo inibiam a secreção de Prl, desencadearam uma série de pesquisas com o propósito de identificar o fator inibidor da liberação de Prl, o PIF. Várias  evidências  indicaram  que  essa  atividade  inibidora  da  liberação  de  Prl  era  determinada  pela  dopamina,  amina biogênica  com  ampla  distribuição  e  diferentes  funções  no  SNC.  No  hipotálamo,  os  neurônios  dopaminérgicos  são encontrados  principalmente  no  núcleo  arqueado,  de  onde  partem  terminações  nervosas  em  direção  à  eminência  mediana, região  em  que  a  dopamina  é  liberada  para  alcançar  a  adeno­hipófise,  via  sistema  porta­hipotálamo­hipofisário.  Uma segunda via pela qual a dopamina tem acesso à adeno­hipófise é através dos vasos portais curtos provenientes da neuro­ hipófise, uma vez que os neurônios dopaminérgicos também se dirigem do núcleo arqueado para a neuro­hipófise. Dentre as várias evidências de que a dopamina é o PIF fisiológico, temos que: (1) a dopamina é encontrada no sangue portal em concentrações superiores às observadas na circulação periférica, sendo suficiente para inibir a secreção de Prl in vitro e in vivo; (2) a administração de dopamina, de modo a alcançar concentrações semelhantes às encontradas no sangue portal, leva à inibição da secreção de Prl in vitro, o mesmo ocorrendo in vivo quando da sua infusão direta em um vaso portal;  (3)  receptores  de  dopamina  apresentam­se  amplamente  distribuídos  na  hipófise,  particularmente  nos  lactotrofos; (4)  inibidores  de  síntese  de  dopamina,  como  a  alfametil­paratirosina,  elevam  os  níveis  circulantes  de  Prl,  os  quais diminuem com a infusão de dopamina e (5) agonistas dopaminérgicos levam à diminuição dos níveis circulantes de Prl.

Biossíntese de dopamina A  dopamina  é  sintetizada  a  partir  da  hidroxilação  da  tirosina,  pela  tirosina  hidroxilase  (ou  TH),  seguindo­se  a descarboxilação do produto (L­Dopa). A TH é a enzima­chave da reação de síntese de dopamina. Seu gene está localizado no  cromossomo  11  p,  em  neurônios  catecolaminérgicos  e  células  neuroendócrinas.  Múltiplos  mRNA  para  TH  foram identificados, sugerindo regulação tecidual específica, enquanto a L­Dopa descarboxilase apresenta distribuição em vários tecidos. Há quatro vias dopaminérgicas no SNC, no entanto, é a que se projeta do núcleo arqueado à eminência mediana ou, em algumas espécies, ao lobo intermediário (sistema tuberoinfundibular) que exerce controle sobre a secreção de Prl.

Regulação da secreção Os neurônios dopaminérgicos do sistema tuberoinfundibular fazem parte do sistema de controle da secreção de Prl por retroalimentação de alça curta; eles apresentam receptores de Prl, mas não têm os de dopamina.

Mecanismo de ação A  dopamina  atua  no  lactotrofo  via  receptores  do  tipo  2  (D2­R).  Eles  pertencem  à  família  de  receptores  acoplados  à proteína  G  e  parecem  se  acoplar,  na  sua  terceira  alça  citoplasmática,  à  proteína  Gi  e  Go,  que  inibem  a  atividade  da

adenilciclase,  e  Gq,  que  se  acopla  à  fosfolipase  C.  Há  duas  isoformas  de  D2­R  com  igual  poder  de  inibição  sobre  a adenilciclase, e de ativação de canais de K+. A interação da dopamina com o receptor D2 leva à diminuição do conteúdo intracelular de cAMP e de Ca2+ e, por conseguinte, à diminuição da síntese e secreção de Prl. A relação da dopamina com a  fosfolipase  C  permanece  ainda  obscura,  embora  a  dissociação  da  dopamina  de  seu  receptor  provoque  ativação  desta enzima. Apesar  de  a  dopamina  ser  amplamente  aceita  como  o  PIF  fisiológico,  vários  outros  fatores  hipotalâmicos  têm  sido apontados como potencialmente capazes de inibir a liberação de Prl. Estudos in vitro demonstraram que o GABA é capaz de inibir a liberação espontânea de Prl, embora seja necessário em quantidades bem maiores do que as de dopamina para produzir  o  mesmo  efeito.  A  presença  de  receptores  GABAérgicos  em  membranas  hipofisárias  e  a  existência  de terminações nervosas GABAérgicas na eminência mediana do hipotálamo sugerem fortemente que esse aminoácido possa exercer algum tipo de controle sobre a secreção de Prl. Contudo, a sua baixa concentração no sangue portal (com valores semelhantes  aos  detectados  na  circulação  periférica)  é  um  forte  indício  de  que  não  tenha  um  papel  funcional  importante, pelo menos em condições fisiológicas. Demonstrou­se  a  existência  de  um  segundo  PIF,  que,  em  concentrações  fisiológicas,  inibe  a  secreção  de  Prl  in vitro. Esse peptídio, constituído de 56 aminoácidos, foi denominado GAP (peptídio associado ao GnRH), por fazer parte da porção carboxiterminal da molécula de pró­GnRH. Após o processamento do pró­GnRH, esse peptídio é secretado na eminência mediana do hipotálamo no qual alcança a circulação porta­hipofisária. O fato de o GnRH e o GAP apresentarem um precursor comum indica que a secreção das gonadotrofinas e Prl estão acopladas e relacionadas de maneira inversa, de modo que quando os neurônios hipotalâmicos são estimulados a secretar GnRH de um modo regular, os níveis de gonadotrofinas circulantes estariam elevados e os de Prl suprimidos; isto poderia ocorrer durante os ciclos reprodutivos. Por outro lado, a liberação de Prl e a inibição da secreção de gonadotrofinas, que ocorre por ocasião da lactação, poderiam ser explicadas como resultado da frequência irregular de descargas dos neurônios GnRHérgicos.  Nesse  sentido,  distúrbios  como  o  hipogonadismo  e  a  amenorreia  estão  frequentemente  associados  à hiperprolactinemia, quando então a secreção pulsátil de GnRH está alterada e baixa e, portanto, inibindo insuficientemente a  secreção  de  Prl.  Por  fim,  a  ação  dos  estrógenos  sobre  o  hipotálamo  aumenta  agudamente  a  secreção  de  Prl  enquanto diminui a de LH (Figura 65.12).  Contudo,  falta  a  comprovação in vivo do  efeito  inibitório  do  GAP  sobre  a  secreção  de Prl.

▸ Hormônio liberador de corticotrofina (CRH) O  CRH  é  um  peptídio  de  41  aminoácidos,  caracterizado  a  partir  de  hipotálamo  de  ovinos,  que  tem  a  propriedade  de estimular  as  células  corticotróficas  a  expressarem  o  gene  da  pró­opiomelanocortina  (POMC).  A  proteína  resultante, POMC,  é  então  processada,  gerando  ACTH  e  outros  produtos  (as  melanocortinas).  Apesar  de  somente  ter  sido caracterizado  em  1981,  a  existência  de  um  fator  liberador  de  ACTH  foi  proposta  em  1955,  após  a  evidência  de  que  a coincubação de fragmentos de tecido hipotalâmico e adeno­hipofisário levava a um aumento da secreção de ACTH para o meio  de  incubação.  Alguns  peptídios  hipotalâmicos,  tais  como  ADH,  angiotensina  II  e  colecistocinina  (CCK),  também apresentam ação estimulante sobre a liberação de ACTH; contudo, o CRH se mostrou muito mais potente em estimular a liberação  de  ACTH,  tanto  in  vitro  como  in  vivo,  que  qualquer  um  desses  peptídios,  razão  pela  qual  é  considerado  o hormônio liberador de ACTH. O CRH circula ligado a proteínas transportadoras (CRHBP), as quais determinam a sua meia­vida plasmática (que é em torno de 1 h). Essas proteínas também se apresentam em outros tecidos nos quais têm participação, provavelmente, na modulação das ações do CRH (ver adiante). O  ADH  foi  por  algum  tempo  considerado  como  um  CRH,  uma  vez  que  se  demonstrou  que  a  adição  de  extratos  de neuro­hipófise  em  meio  de  incubação  contendo  células  adeno­hipofisárias  levava  à  liberação  de  ACTH.  No  entanto,  o ADH exerce pequeno efeito liberador de ACTH, quando adicionado isoladamente a células hipofisárias, embora apresente efeitos  marcantes  quando  associado  ao  CRH  (Figura  65.13).  De  fato,  há  populações  de  corticotrofos  que  apresentam receptores  para  ADH,  embora  a  maioria  deles  expresse,  predominantemente,  receptores  para  CRH.  Ainda,  algumas terminações nervosas presentes na eminência mediana do hipotálamo apresentam tanto CRH quanto ADH, o que poderia representar  um  potente  mecanismo  de  potencialização  da  secreção  de  ACTH  sob  determinadas  circunstâncias.  Apesar dessas evidências, o papel do CRH como fator hipotalâmico primário envolvido na liberação de ACTH está bem definido, uma vez que a imunização passiva utilizando­se antissoro anti­CRH leva a uma redução marcante dos níveis plasmáticos de ACTH.

Figura 65.12 ■ Regulação neuroendócrina da secreção de prolactina (Prl). Os fatores estimulantes e inibidores da liberação da Prl estão descritos no texto. (Adaptada de Reichlin, 1992.)

Biossíntese O CRH é sintetizado em neurônios localizados na porção parvicelular dos núcleos paraventriculares, como parte de um pró­hormônio que sofre processamento enzimático até alcançar a sua forma amidada. A secreção desse peptídio se dá ao nível da eminência mediana do hipotálamo, na circulação porta­hipofisária. Vários tecidos de mamíferos expressam o CRH, e embora o seu papel ainda não tenha sido caracterizado, acredita­se que  ele  atue  ativando  a  transcrição  gênica  da  POMC,  participando  assim  do  controle  autócrino/parácrino  da  produção  de opioides e melanocortinas (MSH). Células que expressam POMC estão distribuídas na derme, no folículo piloso, no qual as  melanocortinas  regulam  a  produção  de  pigmentos.  Sabe­se  que  os  opioides  apresentam  ações  analgésicas  e  que  as melanocortinas também exercem efeitos na modulação da resposta inflamatória e imune. O  gene  do  CRH  está  localizado  no  cromossomo  8  e  apresenta  2  éxons.  Uma  característica  interessante  desse  gene  é que ele tem vários locais de poliadenilação na sua região 3’ não tradutível, o que indica que, dependendo do tecido em que é expresso, seu mRNA pode ter diferentes comprimentos e, portanto, apresentar graus variados de estabilidade e taxa de tradução, processos que, na maioria das vezes, estão relacionados diretamente com o grau de poliadenilação do transcrito.

Figura 65.13 ■ Efeito potencializador da arginina vasopressina (AVP ou hormônio antidiurético) sobre a secreção do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH ou corticotrofina) induzida pelo hormônio liberador de corticotrofina (CRH), em células hipofisárias isoladas  de  ratos.  A.  Curvas  que  representam  a  liberação  de  ACTH  em  resposta  ao  CRH,  à  AVP  e  a  ambos  os peptídios. B. Resposta de liberação de ACTH frente à administração de extratos de eminência mediana do hipotálamo. Note que essa curva se assemelha à curva dose­resposta observada quando da combinação da administração de AVP e CRH, sugerindo que esse efeito seja resultado de uma ação combinada do CRH e AVP. (Adaptada de Gillies et al., 1982.)

Regulação da síntese e secreção A  participação  dos  glicocorticoides  como  importantes  sinalizadores  no  controle  da  secreção  de  CRH  pode  ser evidenciada  por  meio  de  estudos  em  animais  adrenalectomizados,  em  que  os  altos  níveis  de  ACTH  apresentam  pronta redução  após  administração  de  antissoro  anti­CRH.  Ademais,  o  conteúdo  hipotalâmico  de  CRH,  bem  como  do  seu mRNA, aumenta após adrenalectomia e diminui após administração de glicocorticoides, o que aponta a existência de um mecanismo  de  retroalimentação  negativa  exercido  pelos  glicocorticoides  a  nível  hipotalâmico  (Figura  65.14).  Os glicocorticoides também exercem uma importante ação na hipófise: na vigência de altos níveis de glicocorticoides, além de menor secreção de CRH, ocorre supressão da resposta hipofisária ao CRH. Porém, mesmo altas doses de dexametasona não conseguem abolir totalmente a capacidade do CRH em induzir alguma secreção de ACTH, o que pode ser importante para a nossa compreensão a respeito da secreção de ACTH no estresse. Em regiões como amígdala (no SNC) e placenta, os  glicocorticoides  estimulam  a  síntese  de  CRH;  contudo,  o  mecanismo  molecular  envolvido  nessas  ações  dos glicocorticoides  continua  desconhecido.  Os  estrógenos  também  estimulam  a  expressão  gênica  de  CRH,  o  que  pode  ser demonstrado  pelo  maior  conteúdo  de  mRNA  do  CRH  em  hipotálamos  de  fêmeas,  em  relação  aos  de  machos.  É interessante comentar que fatores como angiotensina II, citocinas e mediadores lipídicos da inflamação alteram a atividade dos  neurônios  CRHérgicos  e,  portanto,  a  liberação  de  CRH,  contribuindo  com  a  ativação  do  eixo  hipotálamo­hipófise­ suprarrenais que ocorre durante o estresse induzido pela inflamação. Da  mesma  maneira  que  os  outros  neurônios  hipotalâmicos  que  secretam  hormônios,  os  neurônios  CRHérgicos recebem uma série de terminações nervosas provenientes de várias regiões do sistema nervoso, tais como: (1) do núcleo do  trato  solitário,  que  por  sua  vez  recebe  impulsos  nervosos  viscerais  (via  nervos  vago  e  glossofaríngeo)  do  coração, pulmões  e  sistema  digestório;  (2)  de  vias  adrenérgicas  provenientes  da  formação  reticular, locus coeruleus e  núcleo  do trato  solitário;  (3)  de  vários  núcleos  hipotalâmicos  e  de  várias  regiões  do  sistema  límbico.  Vale  comentar  que  o  bed nucleus  da  estria  terminal  (BST)  é  a  única  região  do  sistema  límbico  que  apresenta  projeções  diretas  aos  neurônios CRHérgicos do núcleo paraventricular (NPV). O fato de o BST receber projeções da amígdala, hipocampo e núcleo septal sugere que ele seja um centro integrativo de fundamental importância para a transmissão de informações límbicas ao NPV. Todas  essas  aferências  sinalizam  impulsos  provocados  por  estresse,  hipovolemia,  hipoxia,  hiperosmolaridade  e  dor. Não  obstante,  no  rato,  a  desaferentação  do  hipotálamo  leva  a  um  aumento  dos  níveis  plasmáticos  de  corticosterona,

sugerindo  que,  em  condições  basais,  o  somatório  das  influências  exercidas  pelo  SNC  sobre  a  secreção  de  CRH  seja predominantemente inibitório. No entanto, algumas estruturas, tais como a amígdala, têm­se mostrado predominantemente facilitatórias sobre a secreção de ACTH, principalmente na resposta ao estresse neurogênico. À  semelhança  do  GHRH,  a  hipoglicemia  também  é  um  potente  indutor  da  secreção  de  CRH.  Isso  ocorre  porque  a hipoglicemia é reconhecida pelo hipotálamo como uma forma de estresse (ver adiante). Nessa resposta à hipoglicemia há o envolvimento de vias α­adrenérgicas, já que a utilização de antagonistas alfa­adrenérgicos inibe esse efeito. Vários  outros  neurotransmissores  estão  envolvidos  nas  respostas  fisiológicas  dos  neurônios  que  produzem  CRH:  a acetilcolina e a serotonina facilitam a secreção de CRH; a administração intracerebroventricular de norepinefrina provoca elevação da concentração de CRH, AVP e ACTH, ocorrendo o mesmo após administração de neuropeptídio Y (NPY).

Figura  65.14  ■   Esquema  representativo  da  regulação  neuroendócrina  do  eixo  hipotálamo­hipófise­suprarrenais.  Note  os diversos componentes que interferem na sua atividade (hormônios como cortisol e leptina, citocinas e sinais periféricos gerados em  resposta  a  variados  tipos  de  estresse  fisiológicos  e  neurogênicos).  ACTH,  hormônio  adrenocorticotrófico  ou corticotrofina; AVP, arginina vasopressina; BST, bed nucleus da estria terminal; SNC, sistema nervoso central; CRH,  hormônio liberador de corticotrofina; GABA, ácido gama­aminobutírico; 5­HT, serotonina; IL­1, 2 e 6, interleucinas 1, 2 e 6; TNFα, fator de necrose  tumoral  α;  MeA,  amígdala  medial;  MePO,  área  pré­óptica  medial;  NPY,  neuropeptídio  Y;  NTS,  núcleo  do  trato solitário; OVLT, órgão vasculoso da lâmina terminal (osmorreceptor); POMC, pró­opiomelanocortina. (Adaptada de Cone et al., 2003.)

Resposta ao estresse A  secreção  de  ACTH  é  sensível  ao  estresse.  O  estresse  causa  elevação  dos  níveis  plasmáticos  de  ACTH  acima  dos valores  normais:  a  magnitude  dessa  elevação  está  relacionada  com  o  tipo  e  a  intensidade  do  estresse.  As  suprarrenais respondem ao aumento da secreção de ACTH induzido pelo estresse produzindo maiores quantidades de glicocorticoides. A  elevação  dos  glicocorticoides  circulantes  atua  regulando  a  secreção  de  ACTH  por feedback  negativo.  No  entanto,  na maior  parte  dos  casos,  isso  não  ocorre.  Acredita­se  que  durante  o  estresse,  devido  às  aferências  provenientes  de  outras partes do SNC, os neurônios hipotalâmicos produtores de CRH apresentam uma elevação do seu set­point de secreção, o que faz com que mesmo concentrações elevadas de glicocorticoides não sejam capazes de bloquear a secreção de CRH e ACTH.

Mecanismo de ação O  CRH  se  liga  a  receptores  específicos  localizados  na  membrana  celular  das  células  corticotróficas,  o  que  provoca aumento da geração intracelular de cAMP e consequente síntese e processamento de POMC, com liberação de ACTH. A seguir, verifica­se elevação da secreção de cortisol, cujos níveis circulantes são importantes sinalizadores para a regulação negativa  da  secreção  de  CRH;  os  glicocorticoides,  quando  em  altas  concentrações  plasmáticas,  reduzem  ou  abolem  a secreção do CRH, bem como a sua ação a nível hipofisário. O receptor de CRH também se encontra expresso em outras regiões do SNC, tais como hipotálamo, córtex cerebral, sistema límbico e medula espinal, o que explica certos efeitos centrais do CRH, como estimulação da atividade simpática, elevação  da  pressão  arterial,  taquicardia,  alteração  dos  pulsos  de  liberação  de  GnRH  (causando  hipogonadismo hipotalâmico) e inibição do comportamento de ingestão alimentar e sexual, característicos do estresse.

CONTROLE NEUROENDÓCRINO DO RITMO DE SECREÇÃO HORMONAL Em todos os sistemas fisiológicos, sem exceção, constata­se ritmicidade, principalmente circadiana. Qualquer variável fisiológica  não  se  mantém  estável  e  constante  ao  longo  das  24  h,  mas  apresenta  uma  flutuação  diária  regular, filogeneticamente  incorporada  e  geneticamente  determinada,  cuja  finalidade  é  preparar  o  organismo  antecipadamente  às alterações previsíveis da alternância do dia e da noite. A  secreção  de  qualquer  hormônio  também  apresenta  ritmicidade  circadiana.  O  perfil  secretório  dos  principais hormônios  ao  longo  das  24  h  mostra  que,  para  alguns,  como  o  ACTH,  a  variação  entre  os  valores  mínimos  (nadir)  e máximos (acrofase) pode ser de 14 vezes, enquanto para outros, tais como os hormônios da tireoide, essa variação é quase imperceptível. Essa enorme variabilidade deve­se principalmente a uma variação rítmica circadiana endógena. Os  glicocorticoides  apresentam  uma  secreção  circadiana  tal  que,  em  seres  humanos,  por  exemplo,  alcança  seu  pico máximo coincidentemente com o terceiro terço do sono noturno, precedendo imediatamente a vigília. Essa mesma relação entre  o  ritmo  circadiano  dos  glicocorticoides  e  o  ciclo  circadiano  de  atividade  e  repouso  pode  ser  notada  em  um  grande número de espécies de vertebrados, e é exclusivamente temporal e não causal: indivíduos que são forçados a dormir a cada três horas continuam apresentando uma distribuição circadiana na concentração plasmática de cortisol. Outra secreção hormonal que apresenta distribuição circadiana bem evidente é a do GH. Em humanos, o pico máximo do  GH  ocorre  no  primeiro  terço  da  noite  de  sono,  coincidindo  com  a  maior  incidência  de  sono  sincronizado  de  ondas lentas.  Da  mesma  maneira  que  para  os  glicocorticoides,  as  relações  entre  os  ciclos  circadianos  vigília­sono  e  de concentração plasmática de GH são principalmente temporais, e não causais. Várias  outras  secreções  endócrinas  também  apresentam  ritmicidade  circadiana:  TSH,  Prl,  LH,  FSH,  aldosterona, renina e testosterona. No entanto, para o LH e para o GnRH, são muito mais evidentes e fisiologicamente importantes as suas  secreções  infradianas  (obedecendo  aos  ciclos  estrais)  e  pulsáteis  (caracterizando  um  ritmo  ultradiano  que,  no  ser humano, tem um período de aproximadamente 2,3 h).

▸ Origem da ritmicidade circadiana No começo da década de 1970, empregando­se técnicas neuroanatômicas de coloração de terminações degeneradas pela prata e autorradiografia, foi possível identificar em várias espécies animais, incluindo roedores e primatas, a existência de uma projeção retiniana direta para o hipotálamo anterior, mais especificamente para os núcleos supraquiasmáticos (SQN). Os  experimentos  mostraram  que  a  lesão  do  SQN  eliminava,  em  roedores,  a  ritmicidade  circadiana  de  vários  eventos fisiológicos  e  comportamentais:  (1)  atividade  e  repouso,  (2)  comportamento  exploratório  e  de  autolimpeza,  (3)  comer  e beber,  (4)  sono  e  vigília,  (5)  flutuação  circadiana  da  frequência  cardíaca,  (6)  temperatura,  assim  como  (7)  ritmos  de secreção hormonal de glicocorticoides e melatonina. A partir desses experimentos, tem­se fixado o conceito de que o SQN constitui o oscilador circadiano por excelência em  todos  os  mamíferos.  Sendo  assim,  verificou­se  que  o  SQN  capta,  com  um  ciclo  de  24  h,  glicose  marcada,  o  que evidencia  um  ritmo  circadiano  de  atividade  metabólica  celular  de  seus  neurônios;  esses  neurônios  apresentam,  ainda, seja in vivo ou in vitro, um  ritmo  circadiano  de  atividade  elétrica  celular;  há,  também,  evidências  de  que  se  um  animal adulto  que  foi  tornado  arrítmico  por  lesão  do  SQN  receber  um  transplante  de  células  do  SQN  de  um  feto,  ele  recupera parcialmente a ritmicidade circadiana de eventos fisiológicos e comportamentais. No  entanto,  em  primatas,  o  SQN  não  parece  ser  o  único  oscilador  circadiano,  uma  vez  que  sua  lesão  não  abole  a totalidade  dos  ritmos  circadianos,  persistindo  o  ritmo  de  temperatura  central,  a  secreção  de  cortisol  e  a  incidência circadiana  de  sono  REM.  Em  humanos,  existem  evidências  da  presença  de  dois  grandes  osciladores  circadianos relacionados  com:  (1)  ciclo  sono­vigília,  secreção  de  GH,  excreção  urinária  de  cálcio,  ritmos  comportamentais  de desempenho,  comer  e  beber;  (2)  sono  REM,  temperatura  central,  secreção  de  glicocorticoides  e  excreção  urinária  de potássio. O oscilador que regula o primeiro grupo parece ser o SQN, caracterizado por um free­running de cerca de 32 h. O  oscilador  responsável  pelo  segundo  grupo  tem  um  período  endógeno  de  aproximadamente  25  h;  sua  localização anatômica não está determinada, sabendo­se apenas que não se localiza, como o SQN, no hipotálamo anterior. Nas  aves,  ao  lado  do  SQN,  existem  fortes  evidências  que  apontam  para  a  glândula  pineal  como  um  oscilador circadiano  de  grande  importância.  Ao  longo  da  evolução  nos  vertebrados,  a  glândula  pineal  passa  de  um  órgão essencialmente  fotorreceptor  (em  peixes,  anfíbios,  répteis  e  aves)  para  um  órgão  exclusivamente  endócrino  (em mamíferos). Seu produto de secreção mais importante é a melatonina, um hormônio produzido a partir da serotonina pela ação de duas enzimas importantes: a hidroxi­indol­metil­transferase e a N­acetil­transferase. A melatonina, apesar de não ser  responsável  pelo  controle  da  ritmicidade  circadiana,  tem,  nessa  classe,  ações  extremamente  importantes:  (1)  surtos sazonais  de  reprodução,  (2)  regulação  da  secreção  de  vários  hormônios,  principalmente  dos  glicocorticoides,  e  (3)  ações sobre o sistema imunológico. Mais  recentemente,  genes  (denominados  clock  genes)  que  codificam  proteínas  relacionadas  com  a  ritmicidade circadiana  (como  as  Per1  e  Per2),  foram  identificados  em  vários  tecidos,  bem  como  no  núcleo  supraquiasmático.  Tais genes parecem estar envolvidos com a sincronização para a luz; a avaliação da expressão deles nos tecidos e em diferentes condições fisiológicas vem trazendo contribuição importante para a compreensão da origem desses ritmos. Outros detalhes a respeito desse assunto encontram­se no Capítulo 5, Ritmos Biológicos.

BIBLIOGRAFIA AGUILERA G, HARWOOD JP, WILSON JX et al. Mechanisms of action of corticotropin­releasing factor and other regulators of corticotropin release in rat pituitary cells. J Biol Chem, 258:8039­45, 1983. AGUILERA G. Regulation of pituitary ACTH secretion during chronic stress. Front Neuroendocrinol, 15(4):321­50, 1995. ANDERSON K, ENEROTH P. Thyroidectomy and central catecholamine neurons of the male rat. Evidence for the existence of an  inhibitory  dopaminergic  mechanism  in  the  external  layer  of  the  median  eminence  and  for  a  facilitatory  noradrenergic mechanism in the paraventricular hypothalamic nucleus regulating TSH secretion. Neuroendocrinology, 45:14, 1987. ARON DC, FINDLING JW, TYRRELL JB. Hypothalamus and pituitary. In: GREENSPAN FS, STREWLER GJ (Eds.). Basical and Clinical Endocrinology. 5. ed. Appleton & Lange, Stamford, 1997. BEN­JONATHAN N. Dopamine: a prolactin­inhibiting hormone. Endocrine Rev, 6:564­89, 1985. BLOCH  B,  BRAZEAU  P,  LING  N  et  al.  Imunohistochemical  detection  of  growth  hormone­releasing  factor  in brain. Nature, 30:607­8, 1983. BUNNEY WE et al. Basic and clinical studies of endorphins. Ann Int Med, 91:239­50, 1979. CHALLET E, POIREL VJ, MALAN A et al. Light exposure during daytime modulates expression of Per1 and Per2 clock genes in the suprachiasmatic nuclei of mice. J Neurosci Res, 72(5):629­37, 2003.

CHENG  SI.  Thyroid  hormone  receptor  mutations  and  disease:  beyond  thyroid  hormone  resistance.  Trends  Endocrinol Metab, 16(4):176­82, 2005. CHROUSOS  GP.  The  hypothalamic­pituitary­adrenal  axis  and  immune­mediated  inflammation.  N  Engl  J  Med,  332:1351­62, 1995. CLAYTON  RM,  CATT  KJ.  Gonadotropin­releasing  hormone  receptors:  characterization,  physiological  regulation,  and relationship to reproductive function. Endocrine Rev, 2:186­209, 1981. CONE RD, LOW MJ, ELMQUIST JK et al. Neuroendocrinology. In:  LARSEN  PR,  KRONENBERG  HM,  MELMED  S et  al. (Eds.). Williams Textbook of Endocrinology. 10. ed. Saunders, Philadelphia, 2003. CONN  PM,  MARIAN  J,  McMILLIAN  M  et  al.  Gonadotropin­releasing  hormone  action  in  the  pituitary:  a  three  step mechanism. Endocrine Rev, 2:174­85, 1981. CONN PM, HSUEH AJW, CROWLEY Jr WF. Gonadotropin­releasing hormone: molecular and cell biology, physiology and clinical applications. Fed Proc, 43:2351­61, 1984. DOUGLAS WW. How do neurones secrete peptides? Exocytosis and its consequences, including synaptic vesicle formation, in the hypothalamus­neurohypophyseal system. Progr Brain Res, 39:21­38, 1973. FEKETE C, KELLY J, MIHÁLY E et al. Neuropeptide Y has a central inhibitory action on the hypothalamic­pituitary­thyroid axis. Endocrinology, 142(6):2606­13, 2001. FLIERS  E,  UNMEHOPA  UA,  ALKEMADE  A.  Functional  neuroanatomy  of  thyroid  hormone  feedback  in  the  human hypothalamus and pituitary gland. Mol Cel Endoc, 251:1­8, 2006. FROHMAN  LA,  DOWNS  TR,  CHOMCZYNSKI  Neuroendocrinol, 13(4):344­405, 1992.

P. 

Regulation 

of 

growth 

hormone 

secretion. 

Front

GILLIES  GE,  LINTON  EA,  LOWRY  PJ.  Corticotropin­releasing  activity  of  the  new  CRF  is  potentiated  several  times  by vasopresin. Nature, 299:355­7, 1982. HARRIS AC, CHRISTIANSON D, SMITH MS et al. The physiological role of thyrotropin releasing hormone in the regulation of thyroid­stimulating hormone and prolactin secretion in the rat. J Clin Invest, 61:441­8, 1978. HERSHMAN JM, PITMAN Jr JA. Control of thyrotropin secretion in man. N Engl J Med, 285:997­1006, 1971. JONES MT, HILLHOUSE EW. Neurotransmitter regulation of corticotropin­releasing factor in vitro. Ann NY Acad Sci, 297:536­ 60, 1977. KALRA  SP.  Mandatory  neuropeptide­steroid  signaling  for  the  preovulatory  luteinizing  hormone­releasing  hormone discharge. Endocrine Rev, 14(5):507­37, 1993. KARAM  JH.  Pancreatic  hormones  &  diabetes  melito.  In:  GREENSPAN  FS,  STREWLER  GJ  (Eds.).  Basic  &  Clinical Endocrinology. Prentice­Hall International, Stamford, 1997. KRULICH L. Neurotransmitter control of thyrotropin secretion. Neuroendocrinology, 35:139­47, 1982. LABRIE F, DROUIN J, FERLAND L et al. Mechanism of action of hypothalamic hormones in the anterior pituitary gland and specific modulation of their activity by sex steroids and thyroid hormones. Rec Prog Horm Res, 34:25­93, 1978. LARSEN  PR,  KRONENBERG  HM,  MELMED  S  et  al.  (Eds.).  Williams  Textbook  of  Endocrinology.  10.  ed.  Saunders, Philadelphia, 2003. LEICHAN RM. Neuroendocrinology of pituitary hormone regulation. Endocrinol Metab Clin North Am, 16:475­501, 1987 LIU  JH,  YEN  SSC.  Induction  of  mydcycle  gonadotropin  surge  by  ovarian  steroids  in  women:  a  critical  evaluation.  J  Clin Endocrinol Metab, 57:797­802, 1982. McCANN  SM,  MIZUNUMA  H,  SAMSON  WK.  Diferential  hypothalamic  control  of  FSH  secretion:  a  review. Psychoneuroendocrinology, 8:299­308, 1983. NIKOLICS  K,  MASON  AJ,  SZÖNYI  E  et  al.  A  prolactin­inhibiting  factor  within  the  precursor  for  human  gonadotropin­ releasing hormone. Nature, 316:511­7, 1985. NUNES MT. Regulação neuroendócrina da função tireoidiana. In: ANTUNES­RODRIGUES J, MOREIRA AC, ELIAS LLK et al. (Eds.). Neuroendocrinologia Básica e Aplicada. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 2005. REICHLIN  S.  Neuroendocrinology.  In:  WILSON  JD,  FOSTER  DW  (Eds.).  Williams  Textbook  of  Endocrinology.  8.  ed.  W.B. Saunders, Philadelphia, 1992. STEVENSON B, LEE SL. Hormonal regulation of the thyrotropin releasing­hormone (TRH) gene. Endocrinologist, 5:286, 1995. STRATAKIS CA, CHROUSOS GP. Hypothalamic hormones: GnRH, TRH, GHRH, SRIF, CRH and dopamine. In: CONN PM, MELMED S (Eds.). Endocrinology Basic and Clinical Principles. Humana Press Inc, Totowa, 1997. VAMVAKOPOULOS NC, CHROUSOS GP. Hormonal regulation of human corticotropin releasing­hormone gene expression: implications for the stress response and immune/inflammatory reaction. Endoc Rev, 15:409­20, 1994.



Introdução



Relações anatomofuncionais



Adeno­hipófise

■ ■ ■

Neuro­hipófise Hormônios neuro­hipofisários Ocitocina

■ ■

Agradecimento Bibliografia

INTRODUÇÃO Há mais de um século sabia­se que a remoção ou destruição de uma estrutura localizada na base do encéfalo – em uma concavidade do osso esfenoide denominada sela túrcica – leva a alterações no desenvolvimento, crescimento e reprodução dos  seres  humanos  e  animais.  Hoje,  sabe­se  que,  devido  à  multiplicidade  dos  hormônios  secretados  pela  hipófise,  esta glândula está envolvida em praticamente todas as funções endócrinas do organismo, desde a manutenção da constância do meio interno até a reprodução. A falência da hipófise (ou hipopituitarismo) está associada a uma diminuição da qualidade de vida e, nos casos mais graves, à morte.

RELAÇÕES ANATOMOFUNCIONAIS A hipófise, na espécie humana, apresenta proporções diminutas: 10 × 13 × 6 mm. Mantém­se conectada, por meio da haste  hipofisária  ou  pedúnculo  hipofisário,  ao  sistema  nervoso  central  (SNC),  mais  precisamente  ao  hipotálamo,  com  o qual guarda importantes relações anatômicas e funcionais. Em humanos, a hipófise apresenta­se dividida em basicamente duas porções: (1) hipófise anterior ou adeno­hipófise e (2) hipófise posterior ou neuro­hipófise. Na  maioria  dos  vertebrados,  porém,  a  adeno­hipófise  apresenta,  além  da  pars distalis, região secretora de grande parte dos hormônios adeno­hipofisários, a pars intermedia, cujo principal produto de secreção  é  o  hormônio  melanotrófico  ou  α­melanotrofina  (α­MSH).  Este  peptídio  origina­se  a  partir  da  pró­ opiomelanocortina  (POMC),  cujo  gene  é  expresso  em  vários  tecidos.  Este  hormônio  induz  a  dispersão  dos  grânulos  de melanina dos melanócitos em peixes e anfíbios, o que leva ao escurecimento da pele, fazendo com que sejam confundidos com os elementos do seu hábitat, como troncos das árvores. Esse fenômeno, denominado mimetismo, é fundamental para a proteção desses animais no meio ambiente, uma vez que dificulta a ação de possíveis predadores. Em humanos, a pars intermedia é fisiologicamente ativa durante o desenvolvimento fetal, e o α­MSH importante para o crescimento fetal, em particular para o desenvolvimento do sistema nervoso. No entanto, após o nascimento, essa região praticamente deixa de ser funcional, e o hormônio α­MSH é indetectável na circulação. A adeno e a neuro­hipófise são constituídas de células de distintas origens embriológicas. A adeno­hipófise deriva de uma evaginação do teto da cavidade oral, a bolsa de Rathke, e apresenta características morfológicas de células epiteliais. A neuro­hipófise, por outro lado, deriva de uma projeção do assoalho do terceiro ventrículo (hipotálamo) (Figura 66.1), e

possui  uma  população  de  células  gliais,  conhecida  por  pituícitos,  e  axônios,  cujos  corpos  celulares  encontram­se agrupados em núcleos específicos do hipotálamo. A vascularização da hipófise é feita pelas artérias hipofisárias superior e inferior (ramos da carótida interna) e por um complexo  sistema  vascular  especializado,  denominado sistema  porta  hipotálamo­hipofisário. Por  meio  deste  sistema,  o sangue  venoso  proveniente  da  eminência  mediana  do  hipotálamo  se  dirige  à  adeno­hipófise,  trazendo  neuropeptídios secretados por neurônios hipotalâmicos, como será visto adiante. O papel desses neuropeptídios é controlar (ativando ou inibindo) a secreção dos hormônios adeno­hipofisários. Por outro lado, o suprimento sanguíneo da neuro­hipófise é feito pelas  artérias  hipofisárias  inferiores,  e  totalmente  independente  do  suprimento  sanguíneo  da  adeno­hipófise.  Entretanto, devido  à  existência  de  capilares  curtos  que  partem  da  neuro­hipófise  e  dirigem­se  à  adeno­hipófise,  admite­se  que  os hormônios  neuro­hipofisários  também  possam  influenciar  o  funcionamento  da  adeno­hipófise  (ver  Figura  65.1, no Capítulo 65, Hipotálamo Endócrino).

ADENO­HIPÓFISE A  adeno­hipófise  é  constituída  de  cinco  tipos  celulares  fenotipicamente  distintos  que,  durante  o  desenvolvimento, surgem na seguinte ordem temporal: corticotrofos, tireotrofos, gonadotrofos, somatotrofos e lactotrofos. Essas células são responsáveis pela síntese e secreção, respectivamente, de: hormônio adrenocorticotrófico (ACTH), hormônio tireotrófico (TSH),  gonadotrofinas  (hormônio  luteinizante  ou  LH  e  hormônio  foliculestimulante  ou  FSH),  hormônio  do  crescimento (GH)  e  prolactina  (Prl).  Algumas  células  hipofisárias,  reconhecidas  como  somatomamotrofos,  têm  a  capacidade  de secretar  tanto  GH  quanto  Prl.  Tanto  os  somatomamotrofos  como  os  lactotrofos  derivam  de  células  produtoras  de  GH. Entretanto,  alguns  peptídios  biologicamente  ativos,  como  as  lipotrofinas  e  os  opiáceos  endógenos,  que  são  derivados  do processamento pós­traducional da molécula da POMC, também têm sua origem na adeno­hipófise.

Figura 66.1 ■  Ilustração  da  origem  embriológica  da  neuro­  e  da  adeno­hipófise.  Observa­se  que  a  neuro­hipófise  deriva  da evaginação  do  assoalho  do  diencéfalo,  razão  pela  qual  é  constituída  de  células  gliais  (pituícitos)  e  apresenta  terminações nervosas  provenientes  de  corpos  celulares  de  neurônios  localizados  em  núcleos  hipotalâmicos  específicos  (núcleos supraópticos  e  paraventriculares),  daí  a  origem  de  sua  denominação.  A  adeno­hipófise  deriva  da  evaginação  do  teto  da cavidade bucal, razão pela qual suas células são de origem epitelial, apresentando retículo endoplasmático desenvolvido, o que sugere elevada capacidade de síntese proteica.

É  interessante  comentar  que  ocorrem  intensas  interações  parácrinas  entre  as  células  adeno­hipofisárias,  o  que  sugere um  plano  horizontal  de  controle  da  secreção  hipofisária  que  atuaria  em  paralelo  ao  vertical,  representado  pelo  eixo hipotálamo­hipófise.  Deste  controle  participam  as  células  foliculestelares  (células  FS),  que  compreendem  cerca  de  5%  a 10%  das  células  da  adeno­hipófise.  Essas  células  são  agranulares  e  apresentam  uma  morfologia  típica  de  estrela, formando folículos na adeno­hipófise, e se interdigitando com as demais células endócrinas. Essa organização favorece a comunicação  dinâmica  entre  os  dois  tipos  celulares.  Elas  apresentam  atividade  fagocítica,  produzem  vários  fatores  de crescimento e citocinas; mais recentemente, é atribuído a elas um possível papel de célula­tronco.

▸ Histofisiologia

Tradicionalmente,  as  células  da  adeno­hipófise  são  classificadas,  de  acordo  com  suas  características  tintoriais,  em cromófilas  (que  englobam  as  basófilas  e  as  acidófilas)  e  cromófobas.  Atualmente,  a  classificação  existente  se  baseia  em técnicas  que  incluem  microscopia  eletrônica,  imuno­histoquímica  e  hibridização  in  situ.  As  células  tireotróficas, gonadotróficas  e  corticotróficas  são  basófilas,  enquanto  as  somatotróficas  e  lactotróficas  são  acidófilas.  Admite­se  que, funcionalmente,  as  células  cromófobas  possam  representar  populações  celulares  que  estão  em  alto turnover  de  secreção hormonal, e que permanecem, transitoriamente, sem grandes estoques hormonais e, portanto, sem grande afinidade pelos corantes. Evidências mais recentes, contudo, as colocam como células foliculestelares. Estudos  minuciosos  da  distribuição  dos  diferentes  tipos  celulares  no  parênquima  hipofisário  mostram  que  as  células acidófilas (produtoras de GH e Prl), mais abundantes, tomam a maior parte das asas laterais da glândula; por sua vez, os gonadotrofos  e  tireotrofos  localizam­se  central  e  anteriormente,  enquanto  os  corticotrofos  dispõem­se  próximo  à  neuro­ hipófise,  podendo,  dessa  maneira,  receber  grande  influência  dos  hormônios  neuro­hipofisários.  De  fato,  entre  os corticotrofos  e  a  neuro­hipófise  localizam­se  células  que  também  expressam  a  POMC,  cujo  processamento  pós­ traducional é distinto do que ocorre nos corticotrofos: o resultado é a secreção de MSH (ver adiante).

▸ Hormônios adeno­hipofisários De acordo com sua constituição química, os hormônios adeno­hipofisários são classificados em: glicoproteicos (TSH, LH  e  FSH), proteicos (GH  e  Prl)  e peptídicos  [os  peptídios  relacionados  com  a  POMC  –  ACTH  e  as  melanocortinas (MSH, lipotrofina e opiáceos endógenos)].

Hormônios glicoproteicos (TSH, LH e FSH) Os  hormônios  glicoproteicos  são  constituídos  por  duas  subunidades  polipeptídicas  denominadas  alfa  e  beta.  A subunidade  alfa  é  comum  aos  três  hormônios,  sendo,  portanto,  a  subunidade  beta  que  confere  especificidade  biológica  a cada  um  deles,  ou  seja,  a  especificidade  de  ligação  aos  receptores.  A  especificidade  imunológica  desses  três  hormônios, todavia, depende de ambas as cadeias. Cada uma das cadeias é codificada por um gene distinto, e o gene da cadeia alfa é superexpresso. O gene que codifica a cadeia beta é regulável por mecanismos de feedback negativo e há evidências de que o da cadeia alfa também o seja, no entanto, por mecanismos ainda pouco conhecidos. Dessa maneira, a biossíntese dessas glicoproteínas  se  dá  no  retículo  endoplasmático  pelo  acoplamento  de  quantidades  limitantes  de  cadeias  beta  com  igual número  de  moléculas  da  cadeia  alfa.  A  interação  entre  essas  duas  moléculas  é  do  tipo  eletro­hidrofóbica,  não  existindo ligações  covalentes  entre  as  duas  cadeias.  A  inserção  de  moléculas  de  carboidratos  ocorre  após  a  união  das  subunidades alfa  e  beta,  e  dela  depende  a  atividade  biológica  e  a  meia­vida  (t1/2)  desses  hormônios.  Deve­se  salientar  que  a  placenta também  expressa  um  hormônio  glicoproteico,  homólogo  aos  hormônios  adeno­hipofisários:  a  gonadotrofina coriônica (GCH),  cujo  efeito  biológico  é  similar  ao  do  LH.  A  construção  de  moléculas  híbridas  (p.  ex.,  cadeia  alfa  do TSH com cadeia beta do LH) confere efeito biológico indistinguível ao do hormônio doador da cadeia beta (no exemplo, LH).  Pequenas  quantidades  de  cadeias  alfa  e  beta  são  secretadas  sem  estarem  acopladas;  essas  moléculas  não  exibem efeito biológico, sendo rapidamente degradadas. Hormônio tireotrófico (TSH) O  TSH,  hormônio  tireotrófico,  também  conhecido  como  hormônio  tireoestimulante  ou  tireotrofina,  é  uma glicoproteína  de  28  kDa  sintetizada  nos  tireotrofos,  que  representam  5%  das  células  hipofisárias.  A  glicosilação  de  suas subunidades  ocorre  no  retículo  endoplasmático  rugoso  e  Golgi,  no  qual  os  resíduos  de  glicose,  manose,  fucose  e  ácido siálico  incorporados  à  sua  molécula  conferem  atividade  biológica  ao  hormônio,  bem  como  alteram  sua  taxa de clearance metabólico. Dessa maneira, alterações nesta etapa pós­transcricional de regulação da expressão gênica, que é a glicosilação, comprometem a atividade biológica do TSH. A  função  primária  do  TSH  consiste  em  induzir  alterações  morfológicas  e  funcionais  nas  células  foliculares tireoidianas, que se caracterizam por: (1) hipertrofia e hiperplasia das mesmas, (2) estímulo da síntese de tireoglobulina e (3) estímulo da síntese de proteínas­chave envolvidas na síntese e secreção dos hormônios tireoidianos – tiroxina (T4) e tri­iodotironina  (T3)  –  mecanismo  pelo  qual  participa  do  controle  do  metabolismo  em  geral  (mais  detalhes  no  Capítulo 68, Glândula Tireoide). A secreção deste hormônio ocorre em pulsos, a cada 2 ou 3 h, que se superpõem à sua secreção basal. Apresenta um padrão circadiano de secreção que se caracteriza por níveis noturnos aproximadamente 2 vezes superiores aos apresentados durante o dia.

▸  Efeitos  biológicos.  Os  efeitos  do  TSH  sobre  a  glândula  tireoide  podem  ser  claramente  evidenciados  em situações  de  hiper­  e  hipossecreção  desse  hormônio.  Quando  seus  níveis  circulantes  estão  elevados,  observa­se  que  o epitélio folicular tireoidiano sofre hipertrofia, tornando­se cilíndrico (originalmente é cúbico simples), e passa a apresentar um maior número de células (ou hiperplasia). A glândula torna­se bastante vascularizada, provavelmente como reflexo dos efeitos  metabólicos  que  o  TSH  exerce  sobre  o  tecido,  que  estimula  o  consumo  de  oxigênio,  de  glicose  e  a  síntese  de mRNA  e  fosfolipídios.  Como  reflexo  do  aumento  da  atividade  metabólica  das  células  foliculares  tireoidianas,  ocorre aumento  do  número  e  atividade  das  microvilosidades  na  sua  região  apical,  o  que  promove  maior  endocitose  de  coloide. Portanto, nessa condição, a quantidade de coloide intrafolicular sofre redução, em virtude do maior estímulo da atividade secretora. Já na diminuição ou ausência de TSH, evidenciam­se sinais de hipofunção glandular: o epitélio folicular torna­ se  pavimentoso,  ocorre  aumento  do conteúdo  do  coloide  intrafolicular,  por  redução  da  secreção  hormonal,  e  a  tireoide torna­se menos vascularizada (Figura 66.2). Além  dessas  ações  gerais,  o  TSH  ativa  todas  as  etapas  que  envolvem  a  biossíntese  e  secreção  dos  hormônios tireoidianos (ver Capítulo 68), a saber: (1) transporte ativo do iodeto do líquido extracelular para as células foliculares; (2) oxidação  do  iodeto  e  incorporação  do  iodo  à  molécula  de  tireoglobulina  –  proteína  presente  em  grande  quantidade  no interior do coloide, cuja síntese também é estimulada pelo TSH; (3) conjugação das iodotirosinas e consequente formação das iodotironinas (T3 e T4, principalmente) e (4) secreção hormonal, que se inicia com a endocitose de coloide (processo que  envolve  a  captura  de  coloide  intrafolicular  por  microvilosidades  existentes  no  polo  apical  das  células  foliculares)  e posterior  proteólise  da  tireoglobulina  iodada,  por  aumento  da  atividade  lisossomal.  O  TSH  também  ativa  a  enzima 5’desiodase  do  tipo  I  tireoidiana,  que  leva  à  geração  de  T3  a  partir  da  desiodação  do  T4,  efeito  que  possibilita  a conservação do iodo na tireoide, e que uma parcela do T3 produzido na tireoide provenha do próprio T4. O resultado final dessas ações do TSH é a liberação dos hormônios tireoidianos para o citoplasma das células foliculares e, a seguir, para a circulação. Nem  sempre  a  concentração  plasmática  e  a  atividade  biológica  dos  hormônios  glicoproteicos  se correlacionam. Por exemplo, na síndrome de Sheehan, a hipófise, que se encontra hiperplásica em função da  gravidez,  fica  com  sua  perfusão  reduzida  por  ocasião  de  uma  hemorragia  pós­parto,  seguindo­se  a diminuição  da  atividade  do  eixo  hipotálamo­hipófise­tireoide.  Assim,  em  consequência  à  queda  da concentração de hormônios tireoidianos no plasma, ocorre elevação da concentração plasmática de TSH, o que  não  reverte  o  hipotireoidismo,  uma  vez  que  sua  atividade  biológica  intrínseca  encontra­se  diminuída. Acredita­se que o TSH plasmático apresente mais ácido siálico na sua molécula (isoforma alcalina), o que aparentemente o torna menos biologicamente ativo, porém mais estável (com aumento da sua meia­vida ou t1/2). ▸ Mecanismo de ação. As ações biológicas do TSH são deflagradas por meio da sua interação com receptores, acoplados à proteína Gs, localizados na membrana das células foliculares tireoidianas. Dessa interação resulta a ativação do  sistema  enzimático  adenililciclase  e  consequente  aumento  da  geração  intracelular  de  cAMP.  Segue­se  a  ativação  da proteinoquinase  A  (PKA)  e  fosforilação  de  elementos  proteicos  da  membrana,  do  citosol  e  do  núcleo,  eventos  que resultam  em  proliferação  e  diferenciação  das  células  foliculares  tireoidianas,  bem  como  em  secreção  hormonal.  O  TSH também interage com receptores de membrana acoplados à proteína Gq, que levam à ativação da via fosfatidilinositol e da proteinoquinase C (PKC), mecanismo pelo qual exerce controle sobre a síntese hormonal. Vale salientar que o receptor de TSH  (TSH­R)  apresenta  locais  de  ligação  não  somente  para  o  TSH,  mas  também  para  autoanticorpos  estimulantes  do TSH­R, os quais são encontrados em pacientes com hipertireoidismo autoimune (ou doença de Graves), bem como para autoanticorpos  que,  quando  se  ligam  ao  TSH­R,  bloqueiam  a  ação  do  TSH,  os  quais  são  encontrados  em  pacientes  com tireoidite  atrófica,  que  apresentam  grave  grau  de  hipotireoidismo.  Obviamente  a  ligação  desses  autoanticorpos  se  dá  em resíduos de aminoácidos diferentes na molécula do TSH­R.

Figura 66.2 ■ Cortes histológicos da glândula tireoide de ratos, em diferentes estados funcionais. A. Tireoide normal, em que os folículos  tireoidianos  se  apresentam  revestidos  por  epitélio  cúbico  simples,  que  encerra  o  coloide  intrafolicular,  cuja  principal proteína é a tireoglobulina. As setas apontam as células foliculares (f) e as parafoliculares (I), também conhecidas como células C,  as  quais  secretam  calcitonina. B.  Tireoide  de  rato  hipofisectomizado  (portanto,  sem  sofrer  influência  do  TSH),  em  que  se observa  que  as  células  foliculares  tornaram­se  pavimentosas,  encerrando  grande  quantidade  de  coloide  no  lúmen  folicular, caracterizando uma tireoide inativa. C. Glândula tireoide de rato sob intensa estimulação pelo TSH, em que se observa que o epitélio tornou­se colunar, encerrando pequena quantidade de coloide, o que sugere intensa reabsorção do mesmo e, portanto, maior secreção tireoidiana. (Adaptada de Greep e Weiss, 1973.)

▸  Regulação  da  secreção.  O  controle  da  secreção  de  TSH  é  realizado  basicamente  por  mecanismos  que envolvem:  (1)  os  hormônios  tireoidianos  circulantes,  que  atuam  sobre  tireotrofos  e  neurônios  hipotalâmicos  específicos por mecanismo de retroalimentação negativa, e (2) os hormônios produzidos no hipotálamo, liberadores e inibidores, cujo transporte à adeno­hipófise se dá por meio da circulação porta­hipotálamo­hipofisária (ver Capítulo 65). ▸  Hormônios  tireoidianos.  A  regulação  da  secreção  de  TSH  exercida  pelos  hormônios  tireoidianos  se  dá predominantemente  sobre  a  hipófise,  e  o  T4  é  o  principal  hormônio  envolvido  no  processo.  Este  penetra  no  tireotrofo, onde  sofre  desiodação  a  T3,  e  mistura­se  com  iguais  quantidades  de  T3  proveniente  da  circulação,  para  formar um pool comum de T3 que alimenta o compartimento nuclear. A interação do T3 com os receptores nucleares (1) inibe a expressão do gene que codifica a cadeia beta do TSH e em menor extensão a alfa e (2) induz a expressão de uma ou mais proteínas  não  identificadas  que  inibem  a  secreção  dos  grânulos  de  TSH  já  armazenados,  levando,  consequentemente,  à queda dos níveis circulantes deste hormônio. Estudos recentes também apontam ações não genômicas do T3 reduzindo a meia­vida  e  a  taxa  de  tradução  do  mRNA  que  codifica  a  cadeia  beta  do  TSH,  bem  como  a  redução  da  secreção  deste hormônio. Essa ação do T3 parece resultar, ao menos em parte, da sua interação com a integrina de membrana (αvβ3). Os hormônios tireoidianos, ainda, controlam a síntese e secreção de TSH, via hipotálamo, no qual atuam em áreas específicas inibindo  a  síntese  e  secreção  de  TRH  (porção  parvicelular  dos  núcleos  paraventriculares),  bem  como  estimulando  a secreção de somatostatina (área periventricular), o que leva a uma diminuição dos níveis circulantes de TSH (Figura 66.3). Deve­se, entretanto, salientar que o mecanismo mais potente de controle da secreção de TSH pelos hormônios tireoidianos ocorre  na  hipófise,  o  que  pode  ser  evidenciado  claramente  pela  ausência  de  liberação  de  TSH,  frente  à  administração  de grandes quantidades de TRH, em indivíduos que apresentam hipertireoidismo (ver Figura 65.5, no Capítulo 65). ▸ Hormônios hipotalâmicos. O TRH exerce ações estimulantes sobre a síntese e liberação de TSH, além de ser também  um  potente  estimulante  da  liberação  de  Prl.  Geralmente,  o  TRH  age  no  tireotrofo,  por  meio  de  receptores  de membrana,  que  ativa  a  via  fosfatidilinositol.  O  sistema  adenililciclase­cAMP  parece  não  estar  envolvido,  pelo  menos diretamente,  nas  ações  do  TRH  sobre  o  tireotrofo.  O  resultado  dessa  ação  se  reflete  (1)  na  mobilização  de  Ca2+  dos estoques  intracelulares  e  consequente  elevação  da  concentração  deste  íon  nos  tireotrofos,  o  que  leva  à  secreção  do  TSH armazenado,  e  (2)  no  aumento  da  síntese  de  TSH,  a  qual  se  deve  à  fosforilação,  pela  PKC,  de  elementos  proteicos citosólicos  que  atuam  sobre  a  transcrição  gênica.  O  TRH  também  é  importante  para  a  etapa  de  glicosilação  do  TSH (ver Capítulo 65).

Figura 66.3 ■ Organização geral do sistema hipotálamo­hipófise­tireoide e sua integração com o sistema nervoso e a periferia. Os  núcleos  NPV  (paraventriculares)  e  NPeV  (periventriculares)  representam  as  regiões  hipotalâmicas  cujos  neurônios expressam,  respectivamente,  o  TRH  e  a  SS.  As  linhas  tracejadas  representam  inibição,  e  as  contínuas,  estimulação  dos respectivos hormônios/sinais sobre os seus alvos específicos. (Adaptada de Nunes, 2005.)

A somatostatina (SS), hormônio hipotalâmico inibidor da liberação de GH, apresenta também ação inibitória sobre a secreção  de  vários  hormônios,  entre  os  quais  o  TSH.  Esse  efeito  se  dá  diretamente  sobre  os  tireotrofos,  nos  quais  os receptores de SS estão acoplados à proteína Gi; deste modo a interação da SS com os seus receptores promove diminuição dos níveis intracelulares de cAMP e redução da síntese e secreção de TSH. Tem sido cogitada uma ação indireta da SS no controle da secreção de TSH, via hipotálamo, em vista de estudos em que se demonstra íntima relação entre neurônios que secretam  SS  e  os  que  secretam  TRH,  acreditando­se  que  a  SS  iniba  a  expressão  e/ou  secreção  de  TRH.  Vale  ainda salientar que altos níveis circulantes de GH também reduzem a secreção de TSH frente à administração de TRH. Acredita­ se que esse efeito do GH seja secundário ao seu efeito estimulante sobre a secreção de SS. A dopamina (DA) também exerce efeito inibitório sobre a secreção de TSH, o que pode ser comprovado por meio da administração  de  agonistas  e  antagonistas  dopaminérgicos,  os  quais,  respectivamente,  inibem  e  aumentam  a  secreção  de TSH em humanos. Aliás, estudos in vitro demonstram que quando hipófises são expostas à dopamina, em concentrações similares às detectadas no sangue portal, ocorre inibição da secreção de TSH, o que sugere fortemente que a dopamina é um agente fisiológico do controle da liberação desse hormônio. Demonstrou­se, ainda, que a transcrição das subunidades alfa e beta do TSH é inibida por DA. Os glicocorticoides e estrógenos também influenciam a secreção de TSH por alterarem a sensibilidade do tireotrofo ao TRH. Os glicocorticoides, além de exercerem outros efeitos sobre o eixo hipotálamo­hipófise­tireoide (ver Capítulo 68), inibem a secreção basal de TSH, bem como a liberação desse hormônio frente à administração de TRH, quando em níveis suprafisiológicos.  O  contrário  ocorre  com  os  estrógenos,  os  quais  parecem  elevar  a  expressão  de  receptores  para  TRH, razão pela qual a administração de TRH leva a uma maior liberação de TSH nas mulheres (ver Figura 65.5, no Capítulo 65). Gonadotrofinas (LH e FSH)

Os dois hormônios gonadotróficos ou gonadotrofinas, conhecidos por hormônio foliculestimulante (FSH) e hormônio luteinizante  (LH)  ou  hormônio  estimulante  das  células  intersticiais  (ICSH),  são  glicoproteínas  com  peso  molecular  em torno  de  33  e  28  kDa,  respectivamente,  produzidas  nos  gonadotrofos,  os  quais  constituem  cerca  de  10%  das  células hipofisárias. Em geral, esses hormônios são expressos na mesma célula, embora alguns gonadotrofos apresentem apenas um desses hormônios. Os fatores que determinam, em algumas condições fisiológicas, a secreção preferencial de um ou outro  hormônio  ainda  não  são  completamente  conhecidos.  Esses  hormônios  agem  fundamentalmente  sobre  as  gônadas, estimulando o seu crescimento e diferenciação, tornando­as aptas para sua função reprodutiva e endócrina. Vale  comentar  que  a  atividade  biológica  da  gonadotrofina  coriônica  (GCH)  se  assemelha  muito  à  do  LH  e  que  a  das menotrofinas  (mistura  de  gonadotrofinas  alteradas  que  são  recolhidas  na  urina  de  mulheres  após  a  menopausa)  se assemelha à do FSH, o que tem levado à sua utilização na clínica para indução da espermatogênese e ovulação. ▸  Efeitos biológicos. As  ações  do  FSH  sobre  as  gônadas  femininas  refletem­se  no  estímulo  do  crescimento  e maturação dos folículos ovarianos, bem como na síntese dos esteroides sexuais femininos, conhecidos como estrógenos, pelas  células  da  granular.  Essas  células,  sob  a  ação  do  FSH,  também  sintetizam  peptídios  como  inibina,  ativina  e folistatina, que são importantes fatores para a regulação endócrina, parácrina e autócrina da síntese de esteroides ovarianos e  maturação  do  gameta  feminino.  A  inibina,  como  será  visto  posteriormente,  também  é  um  importante  regulador  da secreção de FSH pelo gonadotrofo, no qual exerce influências inibitórias. Os esteroides ovarianos apresentam várias ações: (1) agem em conjunto com o FSH nas próprias células foliculares, que participam do processo de maturação folicular; (2) atuam na hipófise, participando da regulação da secreção do FSH e LH  por  feedback  negativo  e  positivo;  (3)  são  importantes  para  o  desencadeamento  do  processo  de  ovulação,  que  se completa com  a  ação  do  LH  sobre  o  folículo  ovariano  maduro  (aliás,  o  FSH,  que  atua  em  conjunto  com  os  estrógenos, induz  a  síntese  de  receptores  de  LH  nas  células  da  granular);  4)  exercem  importantes  efeitos  sobre  o  sistema  genital feminino, preparando­o para a concepção; 5) agem sobre a mama, preparando­a para a lactação, e 6) são responsáveis pelo aparecimento  dos  caracteres  sexuais  secundários.  Ainda,  exercem  efeitos  em  tecidos  periféricos  não  diretamente relacionados  com  a  reprodução,  como  os  ossos,  nos  quais  participam  da  regulação  da  massa  óssea  (ver  Capítulo 76, Fisiologia do Metabolismo Osteomineral, e Capítulo 77, Fisiologia da Reprodução). O LH age conjuntamente com o FSH durante o período de desenvolvimento dos folículos ovarianos. Os receptores de LH são encontrados predominantemente nas células da teca. Nessas células, o LH atua induzindo a síntese de precursores androgênicos,  que  se  difundem  até  as  células  da  granular,  onde  são  convertidos  a  estrogênios  sob  ação  da  aromatase induzida  pelo  FSH.  No  entanto,  estudos  realizados  em  primatas  sugerem  que  a  maioria  dos  estrógenos  produzidos  no período  pré­ovulatório  é  de  origem  tecal.  O  LH  é  também  responsável  pelo  processo  de  ovulação  que  ocorre aproximadamente  na  metade  do  ciclo  sexual  feminino  e  também  pelo  estímulo  da  síntese  de  outro  esteroide  sexual,  a progesterona,  que,  antes  da  ovulação,  é  sintetizada  nas  células  da  teca  e,  depois  da  ovulação,  no  corpo  lúteo.  Esse esteroide,  basicamente,  estimula  as  funções  secretoras  do  endométrio  e  inibe  a  contratilidade  uterina,  ações,  portanto, intimamente relacionadas com a manutenção do feto no útero (mais detalhes no Capítulo 71, Gônadas, no item “Sistema Genital Feminino”). Nas gônadas masculinas (testículos), o FSH é responsável pela espermatogênese, em cuja etapa final participa também o  esteroide  sexual  masculino  testosterona,  cuja  síntese  se  dá  nas  células  intersticiais  de  Leydig,  sob  estímulo  do  LH.  O FSH  atua  nas  células  de  Sertoli  que,  em  resposta,  secretam  fatores  de  crescimento  e  de  diferenciação  das  células  da linhagem  germinativa,  que  promovem  a  espermatogênese,  bem  como  a  síntese  de  uma  proteína  ligante  de  andrógenos (ABP, ou androgen binding protein). Essa proteína possibilita que altas concentrações de testosterona sejam mantidas nos túbulos  seminíferos,  o  que  garante  a  maturação  completa  dos  espermatozoides.  Além  da  ABP,  as  células  de  Sertoli secretam a inibina, que, como mencionado anteriormente, exerce efeito de feedback negativo específico sobre a liberação de FSH. A  testosterona  também  age  nas  estruturas  que  compõem  o  sistema  genital  masculino,  e,  no  homem,  é  o  hormônio responsável  pelo  aparecimento  dos  caracteres  sexuais  secundários.  Age  também  em  tecidos  periféricos,  tais  como  o músculo esquelético, exercendo importantes efeitos sobre o metabolismo proteico (mais detalhes no Capítulo 71, no item “Sistema Genital Masculino”). ▸  Mecanismo  de  ação.  As  gonadotrofinas  exercem  seus  efeitos  biológicos  interagindo  com  receptores  de membrana, acoplados à proteína Gs, localizados nas células­alvo. Assim, os efeitos do LH no tecido ovariano e testicular (células  de  Leydig)  resultam  de  um  aumento  dos  níveis  intracelulares  de  cAMP,  o  qual  afeta  uma  série  de  processos intracelulares que serão traduzidos, por exemplo, pela síntese de progesterona e testosterona, respectivamente. Quanto ao

FSH, mecanismo similar parece estar envolvido no desencadeamento de suas ações fisiológicas. No entanto, há evidências de que o FSH desencadeia algumas ações por meio da ativação da PI3­K e da MAPK. ▸  Regulação  da  secreção.  De  maneira  similar  ao  TSH,  a  secreção  das  gonadotrofinas  é  regulada  pela concentração  plasmática  dos  produtos  de  secreção  das  glândulas­alvo  (esteroides  sexuais  e  peptídios)  e  também  pelos neuropeptídios  produzidos  no  hipotálamo.  Dessa  maneira,  o  controle  da  secreção  de  FSH  e  LH  depende,  respectiva  e principalmente,  das  concentrações  de  estrógenos  e  progesterona  na  mulher,  da  testosterona  no  homem,  da  inibina  (esta agindo  especificamente  sobre  a  secreção  de  FSH)  em  ambos  os  sexos,  como  também  da  secreção  do  hormônio hipotalâmico GnRH (o qual mantém a secreção basal de gonadotrofinas, causa a liberação fásica de gonadotrofinas para a ovulação e determina o início da puberdade). Embora o GnRH provoque a liberação tanto de FSH quanto de LH, ainda se especula a existência de um hormônio hipotalâmico específico para cada gonadotrofina (ver Capítulo 65). O feedback negativo que os esteroides sexuais exercem no eixo hipotálamo­hipófise­gônadas ocorre tanto na hipófise, onde  é  mais  efetivo,  quanto  no  hipotálamo,  onde  promove  inibição  da  secreção  de  GnRH  (ver Figura 65.6, no  Capítulo 65).  Essa  relação  existente  entre  os  esteroides  sexuais  e  a  secreção  de  gonadotrofinas  fica  bastante  evidente  em  duas situações:  (1)  na  menopausa,  período  em  que,  por  falência  ovariana,  os  hormônios  sexuais  femininos  deixam  de  ser sintetizados,  o  que  ocasiona  elevação  dos  níveis  de  gonadotrofinas  na  corrente  sanguínea  e  na  urina;  (2)  quando  da utilização de contraceptivos orais, condição em que os níveis plasmáticos suprafisiológicos de estrógenos e progesterona levam à inibição da secreção de gonadotrofinas, razão pela qual os ciclos passam a ser anovulatórios. No  homem,  a  falência  primária  das  gônadas,  situação  em  que  baixos  níveis  de  testosterona  são  encontrados  na circulação,  também  está  associada  à  elevação  das  gonadotrofinas  circulantes.  Já  a  destruição  seletiva  dos  túbulos seminíferos provoca elevação específica de FSH (falta de inibina). No  entanto,  durante  o  período  pré­ovulatório  do  ciclo  normal,  os  estrógenos  exercem  um  mecanismo de  feedback  positivo  na  secreção  de  GnRH  que  culmina  com  a  ovulação  (ver  Capítulo  71,  no  item  “Sistema  Genital Feminino”).  Em  linhas  gerais,  a  elevação  dos  níveis  circulantes  de  estrógenos  no  período  que  antecede  a  ovulação,  ao mesmo tempo em que inibe a síntese e liberação de FSH, induz alterações na frequência e magnitude dos pulsos de GnRH, o que resulta na liberação de uma grande quantidade de GnRH pelo hipotálamo. Como a resposta hipofisária do FSH está parcialmente  inibida  pelos  estrógenos  e  inibina,  uma  secreção  preferencial  de  LH  acaba  ocorrendo  nesse  período,  o  que leva  à  ovulação.  Vale  salientar  que  essa  é  uma  das  maneiras  pelas  quais  podemos  ter  secreção  preferencial  de  um determinado hormônio gonadotrófico em resposta a um único hormônio liberador hipotalâmico, o GnRH. Os estrógenos também  aumentam  a  expressão  de  receptores  de  GnRH  na  hipófise,  o  que  também  contribui  com  o  pico  secretor  de  LH por ocasião da ovulação (mais detalhes no Capítulo 77). A  participação  da  progesterona  no  mecanismo  de feedback positivo  que  culmina  com  a  secreção  de  LH  e  ovulação ainda é motivo de controvérsia. Enquanto alguns investigadores não detectaram nenhuma alteração nos níveis circulantes desse hormônio nas horas que antecedem o pico ovulatório de LH, outros observaram exatamente o oposto. Estes últimos argumentam que, como a progesterona é capaz de estimular a liberação de GnRH pelos terminais sinápticos na eminência mediana  do  hipotálamo,  quando  em  concentrações  fisiológicas,  os  incrementos  na  sua  concentração  plasmática  antes  do pico ovulatório de LH poderiam facilitar os eventos neurais que antecedem esse fenômeno, por provocar hipersecreção de GnRH. De qualquer maneira, o mecanismo pelo qual os esteroides ovarianos exercem efeitos inibitórios e excitatórios sobre os  neurônios  produtores  de  GnRH  ainda  não  está  completamente  esclarecido.  Acredita­se  que  haja  uma  complexa circuitaria  hipotalâmica  composta  de  células­alvo  de  esteroides  que  produzem  moléculas  mensageiras  inibitórias  e excitatórias para a secreção de GnRH, e que no pico de secreção de esteroides predominaria a atividade destas últimas. As endorfinas  e  o  GABA  têm  sido  apontados  como  as  moléculas  envolvidas  no  mecanismo  de  feedback  negativo protagonizado  pelos  esteroides  gonadais  sobre  a  secreção  de  GnRH.  Há  evidências  de  que,  no  período  que  antecede imediatamente  a  ovulação,  vias  alternativas  seriam  acionadas  pela  secreção  exponencial  de  estrógenos,  para  inibição  da liberação de endorfinas e DA, o que provocaria o pico ovulatório de secreção de GnRH. Achados  recentes  sugerem  que  o  estradiol  (E2)  e  sinais  circadianos  regulem  circuitos  peptidérgicos específicos  no  hipotálamo,  que  incluem  populações  neuronais  que  sintetizam  a  kisspeptina.  Esses neurônios  exibem  um  padrão  de  atividade  diário  dependente  de  estrógenos,  que  sugere  sua  participação no controle circadiano da liberação de GnRH/lH. Outros estudos evidenciaram também que o E2 aumenta a expressão  de  receptores  de  kisspeptina  em  cultura  de  células  secretoras  de  GnRH.  Dessa  maneira,  a

elevação dos estrógenos ovarianos (E2) poderia aumentar a atividade dos neurônios kisspeptidérgicos, ao mesmo tempo em que aumenta a sensibilidade dos neurônios GnRHérgicos à kisspeptina, mecanismo que poderia contribuir para o pico ovulatório de GnRH/lH. O  LH  secretado  por  ocasião  da  ovulação  apresenta  resíduos  de  carboidratos  diferentes  daqueles presentes  no  LH  ao  longo  do  ciclo  menstrual  (com  menor  conteúdo  de  ácido  siálico),  o  que  lhe  confere maior  atividade  biológica  e  menor  t1/2.  Na  menopausa,  em  função  da  falência  ovariana,  altos  níveis  de gonadotrofinas  são  encontrados  na  circulação,  porém  com  potência  biológica  reduzida.  Na  verdade, encontramos uma variedade de isoformas de hormônios glicoproteicos na circulação, com variados graus de glicosilação e, portanto, com potências biológicas diferentes.

Hormônios proteicos (GH e Prl) Os  hormônios  GH  e  Prl  são  proteínas  que  apresentam  191  e  198  aminoácidos,  respectivamente.  Há  uma  íntima correspondência na sequência de aminoácidos de certas regiões da cadeia peptídica de ambos os hormônios, o que explica algumas ações biológicas em comum. Durante a gravidez a placenta expressa uma isoforma de GH, o hGH­V, conhecido como  somatotrofina  coriônica,  bem  como  o  lactogênio  placentário  (hPL)  que  apresentam  parte  da  sequência  de aminoácidos  comum,  o  que  lhes  confere  ações  fisiológicas  semelhantes.  Acredita­se  que  esses  hormônios  tenham­se originado de um mesmo gene ancestral, que sofreu várias mutações há aproximadamente 400 milhões de anos. Hormônio do crescimento (GH) O  GH  (hormônio  do  crescimento),  STH  (hormônio  somatotrófico)  ou  somatotrofina,  é  um  hormônio  de  peso molecular em torno de 22 kDa sintetizado nos somatotrofos, os quais compreendem 40% a 50% das células hipofisárias. Uma  forma  de  GH  menos  abundante,  de  aproximadamente  20  kDa,  resultante  de  um splicing alternativo  da  molécula  de mRNA,  também  é  encontrada  na  circulação.  A  forma  mais  abundante  de  GH  é  constituída  por  uma  cadeia  polipeptídica única  contendo  191  aminoácidos  e  duas  pontes  dissulfeto  (Figura 66.4).  Desses  aminoácidos,  161  apresentam  sequência idêntica  à  somatotrofina  coriônica.  A  sua  identificação  e  caracterização  decorreram  de  constatações  de  distúrbios  do crescimento, em animais de experimentação e seres humanos, associados a alterações na estrutura da glândula hipófise. Estudos  iniciais,  realizados  em  animais  de  experimentação,  demonstraram  que  a  remoção  cirúrgica  da  hipófise  (ou hipofisectomia) levava a um comprometimento do crescimento e desenvolvimento, cujo grau era extremamente dependente da  fase  da  vida  em  que  esses  animais  se  encontravam.  Assim,  quando  a  hipofisectomia  ocorria  antes  da  puberdade,  o animal  apresentava  o  quadro  de  nanismo,  o  qual  podia  ser  revertido  por  meio  da  administração  de  extratos  de  hipófise. Porém, em animais adultos (ou pós­púberes), os efeitos da hipofisectomia sobre o crescimento e o desenvolvimento eram menos  pronunciados.  Já  a  administração  crônica  de  extrato  hipofisário  levava  a  alterações  opostas,  aparecendo:  (1)  em animais pré­púberes, o quadro de gigantismo, em que um crescimento generalizado de todos os tecidos era evidenciado de maneira  uniforme,  ou  (2)  no  animal  adulto,  a  acromegalia,  em  que  se  observava  um  crescimento  desproporcional  de alguns ossos do corpo, como também de alguns tecidos. Esses estudos foram fundamentais, uma vez que trouxeram à luz o fato de que alguma substância presente na hipófise era  responsável  pelo  crescimento  e  desenvolvimento  dos  tecidos  em  geral.  A  partir  de  então,  essa  substância  foi caracterizada e reconhecida como o hormônio do crescimento, embora hoje se saiba que, além desses efeitos, o GH exerce ações importantes no metabolismo intermediário. ▸ Mecanismo de ação. O GH interage com receptores pertencentes à superfamília dos receptores de citocinas, os quais se apresentam dimerizados na membrana plasmática, e se caracterizam por não apresentar atividade tirosinoquinase intrínseca.  No  entanto,  as  regiões  de  seus  domínios  citoplasmáticos  próximas  à  membrana  interagem  com  uma  ou  mais tirosinoquinases citoplasmáticas, as Janus quinases (Jak), o que provoca uma alteração conformacional na Jak2 e ativação da sua atividade catalítica. Segue­se a fosforilação do receptor de GH e a ativação das proteínas Stat1 e Stat3, as quais se translocam ao núcleo estimulando a transcrição de genes específicos. Outra via de sinalização também ativada pelo GH é a da MAP quinase (MAPK), em que a interação de uma proteína adaptadora, tal como a Shc, com o receptor fosforilado ou com  a  própria  Jak2  leva  à  ativação  da  via  Ras  e  Raf  e,  consequentemente,  à  estimulação  da  via  mitogênica  da  MAP quinase (Figura 66.5).  O  envolvimento  do  sistema  fosfolipase  C­PKC  também  tem  sido  sugerido  em  algumas  ações  do GH, o que demonstra a grande complexidade dos eventos intracelulares que culminam com a ação deste hormônio. ▸  Efeitos biológicos do GH. A  seguir  serão  apresentados  alguns  efeitos  biológicos  do  GH,  inclusive  sobre  o crescimento e sobre o metabolismo de proteínas, carboidratos e lipídios.

▸  Sobre  o  crescimento.  Sabe­se  que  o  crescimento  dos  ossos  longos  resulta  da  multiplicação  das  células cartilaginosas que compõem o disco epifisário. Deste modo, as ações do GH sobre o crescimento do esqueleto se devem à proliferação celular e ao estímulo da síntese de colágeno, principal componente da matriz orgânica, na placa epifisária. Os  primeiros  estudos  realizados  demonstraram  que  essas  ações  do  GH  não  se  reproduziam  in  vitro,  sugerindo, portanto,  que  o  GH  não  atuaria  diretamente  sobre  esse  tecido  e  sim  por  intermédio  de  geração  de  um  mensageiro,  que agiria  causando  a  proliferação  do  tecido  cartilaginoso.  Esse  mensageiro  foi  inicialmente  denominado  fator  de  sulfatação, uma vez que levava à incorporação de 35S em fragmentos de cartilagem in vitro. Atualmente, sabe­se que esse mensageiro pertence  a  uma  família  de  fatores  de  crescimento,  alguns  dos  quais  dependentes  de  GH,  que  apresentam  propriedades semelhantes às da insulina, sendo chamados genericamente de insulin­like growth factors (IGF; também conhecidos como somatomedinas).  Até  o  momento  admite­se  que  o  IGF­I  (somatomedina  C)  seja  o  principal  fator  com  atividade estimulante sobre a cartilagem e regulável pelo GH.

Figura 66.4 ■ Representação esquemática da estrutura do GH humano. (Adaptada de Fryklund et al., 1986.)

Os  IGF  são  expressos  em  virtualmente  todos  os  tecidos  do  organismo,  estando  sob  o  controle  de  fatores  sistêmicos (p. ex., GH) e locais, específicos de cada órgão (ver adiante). Admite­se que o GH estimule a síntese hepática e renal (e possivelmente de outros órgãos ricos em fibroblastos) de IGF, os quais, por meio da circulação sistêmica, atingem seus tecidos­alvo  exercendo  suas  ações.  Entretanto,  atualmente  se  acredita  que  cada  tecido  secrete  um  conjunto  próprio  de fatores  de  crescimento  que  podem  incluir  os  IGF,  EGF,  PDGF  e  outros.  Demonstrou­se  que  a  própria  placa  epifisária (com pré­condrócitos) sintetiza IGF­I, em resposta ao GH. O IGF­I aí produzido age autócrina e paracrinamente sobre as demais células do disco epifisário. O  principal  efeito  biológico  dos  IGF  é  a  ativação  da  mitogênese.  Os  efeitos  do  IGF­I  sobre  a  cartilagem  são evidenciados pelo estímulo do transporte de aminoácidos, pela síntese de DNA, RNA e proteínas e pela incorporação de sulfato  nos  proteoglicanos  e  de  prolina  no  colágeno  (Figura  66.6).  A  ação  no  disco  epifisário  justifica  o  fato  de  o gigantismo ocorrer apenas quando o excesso de GH se apresenta antes da puberdade, já que nessa fase ainda não houve a “soldadura” das epífises com as diáfises, induzida pelos esteroides sexuais. No entanto, a presença de receptores de IGF­I, não  só  em  condrócitos  mas  também  em  hepatócitos,  adipócitos,  células  musculares  e  outros  tecidos  faz  com  que,  com exceção dos condrócitos, virtualmente todos os tecidos respondam a um excesso de GH, mesmo após a puberdade. Além do mais, alguns ossos planos, irregulares e curtos, que ainda apresentam resquícios de tecido cartilaginoso (tais como os ossos frontais, a mandíbula, as falanges distais), podem sofrer alterações no seu comprimento frente a um excesso de GH, mesmo após a puberdade. Desse modo, na acromegalia observam­se, entre outras alterações, deformações na face (como o prognatismo  –  projeção  do  queixo  adiante  do  plano  frontal)  e  crescimento  da  cartilagem  nasal  e  das  falanges  distais  das mãos e pés. Tecidos tais como fígado, baço e língua também apresentam aumento de sua massa, resultante tanto da ação do IGF­I, como pela ação direta do GH, já que ambos estimulam a síntese proteica nesses tecidos.

Figura 66.5 ■ Representação esquemática do mecanismo de ação do GH. Mais detalhes estão descritos no texto. (Adaptada de Mayo, 1997.)

▸  Sobre  o  metabolismo  das  proteínas.  Após  a  administração  de  GH  observa­se  um  nítido  balanço nitrogenado positivo no indivíduo, reflexo de um estímulo da síntese proteica provocada por esse hormônio. Esse efeito, mediado pelo GH (diretamente) e pelo IGF­I (indiretamente), se dá por dois mecanismos: (1) estímulo do transporte de aminoácidos  em  algumas  células  e  (2)  elevação  do  conteúdo  intracelular  de  RNA  mensageiros  específicos,  o  que  leva  à síntese  de  proteínas.  Em  outras  palavras,  o  GH  também  exerce  efeitos  estimulantes  sobre  a  síntese  proteica  em  alguns tecidos, independentemente do IGF­I. Essa ação metabólica leva a repercussões teciduais importantes.

Os  tecidos  musculares  esquelético  e  cardíaco  são  importantes  órgãos­alvo  do  GH  e  do  IGF­I,  os  quais  são responsáveis  primários  pelo  controle  de  sua  massa.  Dessa  maneira,  observa­se  na  deficiência  de  GH  redução  da  massa muscular esquelética e cardíaca, que é revertida com o tratamento de reposição hormonal. Além de alterações estruturais, a reposição  com  GH  promove  substancial  melhora  no  desempenho  sistólico  e  diastólico  cardíaco.  O  oposto  (ganho  de massa)  ocorre  na  acromegalia,  quando  efeitos  deletérios  sobre  o  coração  são  observados,  tais  como:  hipertrofia concêntrica,  comumente  associada  à  disfunção  diastólica,  seguindo­se  o  comprometimento  da  função  sistólica. Anormalidades no automatismo cardíaco e na função das válvulas cardíacas também são usuais, nesta condição. Os  efeitos  do  GH/IGF­I  sobre  a  musculatura  esquelética  ganharam  destaque  nas  últimas  décadas  em função  do  uso  inapropriado  destes  hormônios  como  anabolizantes  por  alguns  atletas,  bem  como  por frequentadores de academias. Essa prática, obviamente, promove aumento da massa e da força muscular esquelética; porém, em paralelo, provoca os efeitos deletérios já descritos na musculatura cardíaca, além de alterações no metabolismo dos carboidratos e lipídios (ver adiante). Como apontado no texto, os efeitos sobre o ganho de massa também ocorrem em outros tecidos tais como fígado (causando hepatomegalia) e baço  (provocando  esplenomegalia),  sendo  observada,  em  alguns  casos,  a  macroglossia  (crescimento anormal da língua).

Figura  66.6  ■   Ação  dos  IGF  sobre  a  cartilagem.  Os  componentes  estão  identificados  e  descritos  no  texto.  (Adaptada  de Daughaday, 1981.)

▸  Sobre  o  metabolismo  dos  carboidratos  e  lipídios.  As  ações  do  GH  sobre  o  metabolismo  dos carboidratos  e  lipídios  são  bastante  complexas,  já  que  efeitos  similares  e  antagônicos  à  insulina  foram  demonstrados  in vitro e in vivo em vários modelos experimentais. É interessante o fato de que o GH exerce efeitos semelhantes à insulina

somente em tecidos que não tenham sido expostos ou que tenham sido submetidos apenas a pequenas doses de GH. Isto pode ser verificado nos estudos in vitro em  que  tecidos  de  animais  previamente  hipofisectomizados  são  utilizados  como modelo. A adição de GH em meio de incubação contendo tecido adiposo de ratos hipofisectomizados leva ao aumento da captação,  oxidação  e  conversão  de  glicose  a  ácidos  graxos,  como  também  à  diminuição  da  lipólise.  Essas  ações  são observadas  apenas  por  curto  espaço  de  tempo  (1  a  2  h),  e  são  substituídas  por  diminuição  da  oxidação  da  glicose  e aumento da lipólise. Somente quando inibidores da síntese proteica são adicionados ao meio de incubação é que os efeitos insulina­símiles  do  GH  perduram,  o  que  sugere  que  as  ações  do  GH,  antagônicas  à  insulina,  sejam  devidas  à  síntese  de proteína(s) específica(s). Uma vez que, em condições normais, ocorrem pulsos frequentes de secreção de GH, essas ações semelhantes à insulina acabam por não ter um significado biológico importante. Sendo assim, os efeitos observados quando da administração de GH são: (1) diminuição da utilização da glicose pelos tecidos,  (2)  supressão  da  resposta  tecidual  aos  seus  efeitos  insulina­símiles  e  (3)  aumento  da  lipólise.  A  administração crônica de GH, mesmo em animais hipofisectomizados, leva à diminuição da oxidação da glicose e da sua conversão para lipídios  nos  adipócitos,  o  que  resulta  em  hiperglicemia.  É  interessante  o  fato  de  que  esses  efeitos  ocorrem  mesmo  na presença  de  insulina.  Aliás,  devido  a  essas  ações  hiperglicemiantes  do  GH,  durante  a  hipersecreção  desse  hormônio observa­se  aumento  da  síntese  e  secreção  da  insulina,  o  que  indica  claramente  que  os  dois  hormônios  são  antagônicos. Parte  dessa  ação  hiperglicemiante  resulta  do  seu  efeito  lipolítico  e  gliconeogênico  (ver  adiante)  e  parte,  por  indução  de resistência periférica à insulina. A resistência insulínica foi, inicialmente, cogitada como resultante da redução do número e afinidade dos receptores de insulina induzida pelo GH. No entanto, atualmente está bem estabelecido que ela decorre de eventos intracelulares desencadeados pelo GH, após ligação com seus receptores (efeito pós­receptor), que interferem na via de sinalização da insulina, reduzindo a sensibilidade a esse hormônio. Vários  eventos  pós­receptor  são  compartilhados  entre  GH  e  insulina,  e  essa  interação  de  vias  de sinalização poderia estar envolvida nos efeitos diabetogênicos do GH. Há evidências experimentais de que na vigência de hiperinsulinemia ou da administração de GH ocorre fosforilação do substrato I do receptor de insulina  (ou  IRS­I)  em  serina,  o  que  impediria  seu  recrutamento  ao  receptor  de  insulina  e, consequentemente, a ativação da cascata de sinais intracelulares desencadeada pela ligação da insulina ao seu receptor, dentre outros eventos. A  ação  lipolítica  do  GH  se  deve  ao  estímulo  da  atividade  da  enzima  lipase  hormônio­sensível  (LHS),  bem  como  do seu efeito em antagonizar as ações lipogênicas e antilipolíticas da insulina. Dessa maneira, o GH determina a hidrólise de triglicerídios, promovendo mobilização de gordura de seus depósitos, com aumento de glicerol e dos ácidos graxos livres (AGL) circulantes; o primeiro é convertido à glicose no fígado, já que o GH estimula a atividade da fosfoenol­piruvato­ carboxiquinase  (PEPCK),  enzima­chave  da  gliconeogênese,  enquanto  os  AGL  são  convertidos  à  acetil  CoA  e  utilizados pelas  células  como  fonte  de  energia.  Deve­se  ressaltar  que  a  maior  utilização  de  AGL  como  fonte  de  energia  reduz  a utilização  tecidual  (muscular)  de  glicose  (pelo  ciclo  de  Randle),  o  que  contribui  também  para  o  aumento  da  glicemia observado quando o GH encontra­se elevado na circulação. Ao contrário do GH, os IGF apresentam ações similares à insulina em alguns tecidos. Eles aumentam a oxidação da glicose  em  adipócitos,  estimulam  a  captação  de  glicose  no  diafragma  e  músculo  cardíaco,  estimulam  a  incorporação  de glicose em glicogênio no diafragma e a captação de glicose e produção de lactato em coração perfundido. Apesar de o GH ser um importante regulador da síntese de IGF­I, outros fatores também estão envolvidos nesse processo. O mecanismo de  ação  dos  IGF  é  semelhante  a  todos  os  outros  fatores  de  crescimento,  e  o  próprio  receptor  apresenta  atividade tirosinoquinase  e  se  autofosforila  quando  interage  com  os  IGF.  Segue­se  a  fosforilação  intracelular  de  um  substrato  de peso  molecular  em  torno  de  185  kDa,  o  IRS­I  (insulin­receptor substrate­I),  proteína  que  apresenta  múltiplos  locais  de fosforilação.  Resulta  daí  a  fosforilação  de  várias  outras  proteínas  intracelulares,  mecanismo  pelo  qual  o  efeito  biológico desses peptídios se manifesta (ver Capítulo 64, Introdução à Fisiologia Endócrina, e Capítulo 70, Pâncreas Endócrino). ▸  Outras  ações.  Sabe­se  que  a  administração  de  GH  em  animais,  ou  mesmo  como  terapia  de  reposição  em humanos,  promove  múltiplos  efeitos  sobre  o  SNC,  como  melhora  das  funções  cognitivas,  do  humor,  da  memória  e  do sono;  sabe­se  também  que  várias  regiões  do  SNC,  tais  como  tronco  encefálico,  medula  espinal  e  hipocampo,  expressam receptores  de  GH.  Esses  achados,  embora  pareçam  incongruentes  (considerando  que  o  GH  é  uma  proteína  de  22  kDa,  o que à primeira vista impediria sua passagem pela barreira hematencefálica), têm recebido maior atenção em função do que

foi  recentemente  demonstrado,  em  modelo  animal,  que  o  GH  atravessa  a  barreira  hematencefálica,  por  mecanismo  que ainda não está completamente esclarecido. O  GH  também  exerce  importantes  efeitos  sobre  o  sistema  imunológico.  A  interação  do  GH  com  seus  receptores  em macrófagos  e  linfócitos  leva  a  um  aumento  da  resposta  dessas  células  aos  antígenos,  o  que  explica,  em  parte,  a  menor resposta do sistema imunológico em indivíduos com deficiência de GH. ▸ Regulação da secreção do GH. A regulação da secreção de GH é complexa e envolve, virtualmente, todas as  interações  possíveis  entre  os  quatro  componentes  hormonais  que  constituem  a  sua  alça  de  feedback,  a  saber:  os hormônios  hipotalâmicos  GHRH  e  somatostatina,  que  por  sua  vez  são  regulados  por  fatores  neurais,  metabólicos  e hormonais, o GH e IGF­I (ver Figura 65.7, no Capítulo 65). ▸ Peptídios hipotalâmicos e outros. O hipotálamo, classicamente, interfere na síntese e liberação de GH por meio de dois neuropeptídios: o hormônio liberador de GH (GHRH) e o hormônio inibidor da liberação de GH (GHRIH ou somatostatina  –  SS).  O  GHRH  estimula  a  síntese  e  secreção  de  GH,  enquanto  a  SS  provoca  redução  da  secreção  de  GH (ver Capítulo 65). No entanto, outros fatores hipotalâmicos exercem influências sobre a secreção de GH, e interferem com a  secreção  desses  neuropeptídios.  Dessa  maneira,  endorfinas,  VIP  (polipeptídio  intestinal  vasoativo),  glucagon  e neurotensina, entre outros, são capazes de estimular a liberação de GH, provavelmente por intermédio do GHRH, já que esse  efeito  não  é  observado  quando  da  aplicação  direta  desses  peptídios  na  hipófise.  O  mesmo  ocorre  com  a  dopamina (DA),  serotonina  (5  HT)  e  norepinefrina  (NE),  que  são  potencialmente  capazes  de  estimular  a  liberação  de  GH  somente quando injetados no hipotálamo. O conhecimento do papel desses neurotransmissores (NT) embasa uma série de testes clínicos que são realizados para avaliação  da  secreção  de  GH.  A  Figura  66.7  resume  essas  relações,  apontando  a  clonidina  (agonista  α­adrenérgico), a bromocriptina (agonista dopaminérgico) e o propranolol (antagonista beta­adrenérgico) como indutores da secreção de GHRH  e,  portanto,  de  GH,  e  a  metisergida  (bloqueador  de  5  HT)  e  o  isoproterenol  (agonista  β­adrenérgico),  como inibidores da liberação de GHRH/GH. Demonstrou­se  que  o  TRH,  em  certas  condições  especiais,  como  na  deficiência  de  hormônios tireoidianos, é capaz de estimular a secreção de GH; assim, acredita­se que os somatotrofos apresentem receptores  de  TRH,  cuja  expressão  seria  normalmente  suprimida  pelos  hormônios  tireoidianos,  e  que  a eliminação  desse  efeito  inibitório,  nos  estados  de  hipotireoidismo,  possibilitaria  a  observação  dessa resposta.  Foi  demonstrado,  também,  que  o  próprio  TRH,  bem  como  o  GnRH,  provocam  secreção  de  GH em  pacientes  acromegálicos.  Outros  peptídios  tais  como  ADH,  ACTH  e  α­MSH  podem  agir  como  fatores liberadores  de  GH,  quando  presentes  em  quantidades  farmacológicas.  Ainda  se  desconhece  se  esses efeitos decorrem de ações destes hormônios sobre o hipotálamo ou a hipófise.

Figura 66.7 ■ Representação esquemática das vias neurais (α e β­adrenérgicas e colinérgicas) e dos neurotransmissores (NE, DA, GABA e 5 HT) que participam do controle da secreção de GHRH e SS. As linhas contínuas identificam as ações estimulantes e as linhas tracejadas identificam as ações inibitórias. Em azul, os agonistas dos neurotransmissores; em rosa, os antagonistas dos neurotransmissores.

Kojima  et  al.  (1999)  isolaram  um  peptídio  de  28  aminoácidos,  a  partir  do  estômago  de  ratos,  que  apresenta  uma atividade liberadora de GH. Esse peptídio, que foi denominado grelina, interage com receptores acoplados à proteína Gq, presentes na membrana plasmática de somatotrofos, que promovem liberação do Ca2+ dos seus reservatórios intracelulares (via  IP3),  com  consequente  elevação  da  secreção  de  GH.  Na  verdade,  esses  receptores  já  haviam  sido  identificados anteriormente,  ocasião  em  que  foram  considerados  órfãos,  já  que  seus  ligantes  endógenos  ainda  não  haviam  sido encontrados.  Sabia­se,  contudo,  que  peptídios  sintéticos  (GHRP1,  2,  6  e  hexarrelina)  interagiam  com  esses  receptores, promovendo  secreção  de  GH,  o  que  abriu  perspectivas  terapêuticas  para  o  uso  desses  peptídios  na  deficiência  de  GH. Posteriormente,  demonstrou­se  que  a  grelina  também  é  expressa  no  núcleo  arqueado  do  hipotálamo,  região  em  que  os neurônios que secretam GHRH estão presentes, e que interage com eles, promovendo liberação de GHRH. A grelina, mais do que um hormônio liberador de GH, é um importante peptídio regulador da ingestão alimentar,  pois:  (1)  interage  com  neurônios  hipotalâmicos  do  núcleo  arqueado  que  secretam  os  peptídios que estimulam a ingestão alimentar (ou peptídios orexígenos), o neuropeptídio Y (NPY) e o agouti­related peptide (AgRP), estimulando­os, mecanismo pelo qual leva ao aumento da ingestão alimentar, e (2) inibe neurônios  que  secretam  as  melanocortinas  (α,  β,  γ2,  γ3  MSH  e  γ­lipotrofina),  peptídios  que  inibem  a ingestão alimentar (ou anorexígenos). ▸ Hormônio do crescimento (GH). O GH controla sua própria secreção e atua no hipotálamo, onde estimula a síntese  e  liberação  de  somatostatina  (SS),  e  inibe  a  expressão  e  liberação  do  GHRH.  Estudos  anteriores  já  haviam sugerido esta última possibilidade, já que demonstravam que o GH suprime a elevada expressão do GHRH que ocorre em ratos  hipofisectomizados  e  em  ratos  anões  com  deficiência  isolada  de  GH.  Esses  dados  passaram  a  ganhar  destaque  em função  de  evidências  recentes  indicando  que  o  GH  atravessa  a  barreira  hematencefálica,  conforme  mencionado anteriormente. Ainda, o núcleo arqueado, local de síntese de GHRH, encontra­se nas proximidades da eminência mediana do hipotálamo, no qual a barreira hematencefálica é permeável. ▸  Insulin growth factor­1 (IGF­I). Ao contrário do que ocorre com os hormônios hipofisários já estudados, o GH  não  atua  em  uma  glândula­alvo  específica,  de  modo  que  a  clássica  regulação  por  retroalimentação  negativa  exercida pelos hormônios da glândula­alvo fica inviabilizada. Contudo, demonstrou­se que o IGF­I, cuja síntese é estimulada pela

ação  do  GH  no  fígado,  exerce  esse  papel,  e  atua  tanto  sobre  o  hipotálamo,  onde  estimula  a  liberação  de  somatostatina  e inibe a liberação e síntese de GHRH, quanto sobre a hipófise, onde suprime a secreção e a expressão gênica do GH. ▸ Fatores metabólicos | Hipoglicemia. Sabe­se que um dos mais potentes estímulos para a secreção de GH é a  hipoglicemia.  Inclusive,  uma  das  manobras  mais  utilizadas  para  se  determinar  a  reserva  de  GH  de  um  indivíduo  é provocar  hipoglicemia  por  meio  da  administração  de  insulina.  As  evidências  atuais  são  de  que,  nessa  condição, provavelmente  em  função  de  uma  citoglicopenia,  ocorre  diminuição  da  liberação  de  somatostatina,  o  que  resulta  na liberação de GH. Na situação oposta, hiperglicemia, ocorreria o inverso, ou seja, aumento da liberação de somatostatina e diminuição da liberação de GH. Esta seria uma maneira pela qual a glicemia seria regulada via GH. Em  paralelo  a  esse  mecanismo,  na  hipoglicemia,  considerada  uma  situação  de  estresse,  ocorre  ativação  de  vias  α­ adrenérgicas, as quais estimulam a liberação de GHRH, o que resulta na liberação de GH. O  exercício  físico  é  um  importante  indutor  da  secreção  de  GH.  Vários  fatores  contribuem  para  esse processo. A simples preparação para o início do exercício promove um aumento da atividade adrenérgica e consequente  elevação  do  tônus  secretor  de  GHRH  e  de  GH,  dentre  outros  hormônios.  A  liberação  de endorfinas  que  ocorre  durante  o  exercício  (ver  adiante)  também  colabora  para  a  elevação  do  GH,  via estimulação  da  liberação  de  GHRH.  Considerando,  ainda,  que  40%  da  massa  corporal  corresponde  à musculatura  esquelética,  a  qual  apresenta  elevada  expressão  do  transportador  de  glicose  GLUT4,  que  é translocado para a membrana plasmática (ou sarcolema) por ocasião da contração muscular, fica evidente que o influxo de glicose para esse tecido aumenta por ocasião do exercício físico. Essa redução glicêmica é proporcional  ao  grau  de  atividade  física  empregado  e  é  rapidamente  corrigida  por  mecanismos homeostáticos  que  envolvem  alterações  na  secreção  de  vários  hormônios,  dentre  eles,  elevação  da liberação de GH. (Mais detalhes no Capítulo 70.) ▸ Fatores metabólicos | Aminoácidos. O efeito estimulante da secreção de GH induzido pelos aminoácidos, em especial a arginina, também é muito conhecido. A infusão ou mesmo a administração oral da arginina provoca potente estimulação  da  secreção  de  GH,  efeito  que  decorre  de  uma  ação  inibitória  deste  aminoácido  sobre  a  liberação  de somatostatina.  Há  evidências  experimentais  de  que  a  arginina  também  promove  aumento  da  expressão  gênica  do  GH. Paradoxalmente, observa­se elevação da secreção de GH na desnutrição proteico­calórica, o que, na verdade, é reflexo da diminuição da síntese de IGF­I que ocorre nessa condição. ▸ Fatores metabólicos | Ácidos graxos. Os ácidos graxos suprimem a resposta do GH a certos estímulos, tais como hipoglicemia e administração de arginina; contudo, ainda se desconhece o mecanismo envolvido neste efeito. ▸ Outros fatores. Outros fatores que desencadeiam a liberação de GH são as situações de estresse, o exercício físico e o sono (nos estágios III e IV). Nas duas primeiras condições, a liberação de GH parece ser induzida por ativação de vias alfa­adrenérgicas  (norepinefrina),  enquanto  no  sono  o  neurotransmissor  envolvido  seria  a  serotonina.  Estudos  recentes também evidenciaram que a administração de lactato promove ativação do eixo somatotrófico em ratos. Esse dado sugere que,  além  dos  fatores  próprios  do  exercício  que  são  reconhecidos  por  aumentarem  a  secreção  de  GH,  o  lactato  possa contribuir com esse processo, já que sua concentração se eleva na circulação sanguínea por ocasião da atividade física. Prolactina (Prl) A Prl é um polipeptídio que apresenta 198 aminoácidos e um peso molecular em torno de 22 kDa. É sintetizada nos lactotrofos,  que  são  as  últimas  células  a  se  diferenciarem  na  hipófise  fetal  humana.  Essa  diferenciação  ocorre, principalmente,  a  partir  dos  somatotrofos.  Os  lactotrofos  constituem  cerca  de  15%  das  células  hipofisárias,  e  chegam  a representar cerca de 70% delas na gravidez e lactação. A Prl é um hormônio que tem importante participação no processo de lactação, exercendo ações fundamentais na preparação e manutenção da glândula mamária para a secreção de leite. Suas ações  sobre  o  desenvolvimento  da  mama  durante  a  gravidez  ocorrem  conjuntamente  com  a  ação  dos  estrógenos, progesterona, lactogênio placentário, insulina e cortisol (mais detalhes no Capítulo 77). No  entanto,  a  sua  presença  em  peixes,  em  que  participa  da  regulação  do  equilíbrio  hidreletrolítico,  assim  como  em aves,  nas  quais  estimula  o  crescimento  e  a  secreção  de  material  nutritivo  das  inglúvias  (ou  “papos”),  entre  outros exemplos, demonstra que esse hormônio também desempenha papéis que muito se distanciam do que sugere o seu próprio nome.

A Prl, o GH e o lactogênio placentário (hPL) se originam de um gene ancestral comum, apresentando, por essa razão, certa homologia, conforme citado anteriormente. ▸ Efeitos biológicos da Prl. A seguir serão apresentados os efeitos biológicos da Prl na reprodução, na lactação e no metabolismo intermediário. ▸  Na reprodução. Ao  contrário  da  espécie  humana,  em  que  suas  ações  sobre  a  reprodução  parecem  não  ter  um significado  funcional  importante,  a  participação  da  Prl  é  de  fundamental  importância  nos  processos  reprodutivos  de roedores. Sabe­se que nesses animais a Prl induz ovulação e mantém a atividade do corpo lúteo, estimulando­o a secretar progesterona,  razão  pela  qual  foi,  por  algum  tempo,  conhecida  como  hormônio  luteotrófico  (LTH).  Existem  ainda evidências  de  que  a  Prl  exerce  uma  ação  esteroidogênica  não  luteínica  sobre  o  ovário,  o  que  precipitaria  o desencadeamento da puberdade. Na espécie humana, essas ações da Prl ainda não estão totalmente esclarecidas. Variações na secreção de Prl ocorrem durante o ciclo menstrual, porém elas parecem ser decorrentes de variações dos níveis circulantes de estrógenos, os quais exercem importante ação estimulante sobre a secreção desse hormônio. Ainda, existem evidências de que, in vitro, a Prl inibe a secreção de progesterona pelas células da granular. No entanto, o fato de que mulheres hipofisectomizadas tratadas com FSH ou LH apresentam crescimento folicular normal, ovulação e corpo lúteo funcionante, mesmo na ausência de Prl, descarta um papel relevante deste hormônio nesse processo. As correlações entre Prl e ciclo menstrual tornam­se mais claras em situações nas quais ocorre hipersecreção de Prl. Nelas, ocorre uma supressão dos pulsos de GnRH hipotalâmico, da secreção pulsátil das gonadotrofinas e da liberação de estrógenos e progesterona. Há ainda evidências de que a Prl exerça um efeito inibitório sobre a expressão dos receptores de  LH  e  FSH  nas  gônadas,  levando,  quando  em  excesso,  à  diminuição  do  seu  número,  com  consequente  diminuição  da sensibilidade  desses  tecidos  às  gonadotrofinas,  sendo  causa  frequente  de  esterilidade  feminina.  Pode­se  ainda,  por  meio deste  mesmo  argumento,  justificar  a  ocorrência  de  ciclos  anovulatórios  em  mulheres  em  fase  de  amamentação  (mais detalhes no Capítulo 71, no item “Sistema Genital Feminino”). Estudos  em  animais  hipofisectomizados  indicam  que  a  Prl  exerce  pouco  efeito  no  sistema  genital  masculino.  Há evidências de que, em doses fisiológicas, ela potencializa o efeito do LH sobre as células de Leydig e de que, em conjunto com a testosterona, exerce efeitos anabólicos nos tecidos responsivos a andrógenos. Todavia, o mesmo efeito sobre o eixo hipotálamo­hipófise­gônadas,  descrito  anteriormente  para  mulheres,  também  ocorre  no  homem,  em  situações  de hipersecreção  de  Prl,  cuja  consequência  é  a  diminuição  da  síntese  de  testosterona  e  da  espermatogênese,  o  que  está associado aos casos de impotência e infertilidade relatados nessa circunstância. ▸  Na  lactação.  A  lactação  compreende  um  processo  integrado  no  qual  a  mama  passa  por  diversos  processos  de preparo, nas várias etapas da vida da mulher, com o objetivo de proliferar ductos e estruturas lóbulo­alveolares e acúmulo de  substratos  energéticos,  para  posterior  síntese  de  leite.  A  primeira  fase,  que  ocorre  durante  a  puberdade,  também conhecida  por  mamogênese,  recebe  importante  contribuição  dos  hormônios:  estrógenos,  progesterona,  hormônios tireoidianos,  corticosteroides,  insulina  e  da  própria  Prl.  Basicamente  os  estrógenos  promovem  o  crescimento  do  sistema de ductos galactóforos, enquanto a Prl e a progesterona atuam com o objetivo de promover o desenvolvimento do sistema lóbulo­alveolar.  A  Prl  ainda  é  necessária  para  induzir  a  expressão  de  enzimas  relacionadas  com  a  síntese  de  lactose  e caseína  e  a  lactação  propriamente  dita.  Durante  a  gestação,  todos  esses  hormônios,  associados  ao  lactogênio  placentário, estimulam ainda mais a proliferação do parênquima mamário, sem que, contudo, ocorra a galactogênese. Sabendo­se  que  a  Prl  é  capaz  de  induzir  a  galactogênese  após  o  preparo  prévio  da  mama,  é  intrigante  o  fato  de  que durante as últimas semanas de gestação, quando esta condição está totalmente estabelecida e os níveis plasmáticos de Prl estão muito elevados, não ocorra a síntese de leite. Todavia, a constatação de que este fenômeno acontece somente após o parto nos leva a considerar o quadro hormonal resultante como o possível responsável pela ação lactogênica da Prl. Dessa maneira,  acredita­se  que  a  queda  acentuada  dos  níveis  circulantes  de  estrógenos  e  progesterona  tenha  um  papel fundamental  nesse  processo.  As  evidências  são  de  que,  na  gravidez,  os  altos  níveis  de  progesterona  inibam  a  expressão dos receptores de Prl, limitando o seu número. Com a remoção dessa inibição, proporcionada pela dequitação da placenta (fonte  de  estrógenos  e  progesterona),  a  Prl,  então,  exerceria  o  seu  efeito  estimulante  sobre  a  galactogênese.  Ainda,  a elevação  dos  níveis  de  cortisol  livre  no  plasma  observada  após  o  parto,  em  virtude  da  queda  do  nível  circulante  de globulinas  transportadoras  de  corticosteroides  (cuja  síntese  é  estimulada  pelos  estrógenos),  também  parece  ser  um  fator importante  para  a  liberação  da  ação  lactogênica  da  Prl.  A  manutenção  da  lactogênese  ocorre  em  função  de  um  reflexo neurogênico desencadeado pela sucção da mama pela criança. Esses aspectos estão detalhadamente descritos no Capítulo 77.

▸ No metabolismo intermediário. A Prl, por mostrar uma semelhança estrutural com o GH, apresenta algumas ações metabólicas em comum com este hormônio. Assim, observa­se que a Prl exerce efeito estimulante sobre a síntese proteica  em  vários  tecidos,  aumenta  a  formação  de  sulfato  de  condroitina  na  cartilagem  e  também  apresenta  uma  ação diabetogênica. Tem­se ainda descrito uma ação imunomoduladora deste hormônio, já que nos estados de hipoprolactinemia ocorre  menor  proliferação  de  linfócitos  e  uma  resposta  imunitária  deficiente,  a  qual  é  prontamente  restabelecida  pela administração de Prl. ▸  Controle da secreção de Prl. O  transplante  da  hipófise  anterior  para  a  câmara  anterior  do  olho  ou  para  a cápsula  renal,  bem  como  a  secção  da  haste  hipofisária,  desencadeia  um  aumento  da  secreção  de  Prl  enquanto  causa  uma diminuição  acentuada  na  secreção  dos  outros  hormônios  hipofisários.  Isto  sugere  que  o  hipotálamo  exerça, predominantemente, um tônus inibitório sobre a secreção de Prl. ▸  Hormônios  hipotalâmicos.  A  secreção  hipofisária  de  Prl  está  sob  o  controle  de  fatores  hipotalâmicos inibidores  e  estimulantes  que  alcançam  a  adeno­hipófise  via  sistema  porta­hipofisário  (ver  Capítulo  65);  o  resultado integrado do efeito desses fatores é a manutenção de um tônus inibitório sobre a secreção de Prl, mediado pela dopamina e possivelmente outros neuropeptídios (ver Figura 65.11, no Capítulo 65). No entanto, alguns peptídios hipotalâmicos, bem como certas aminas, apresentam a propriedade de estimular a secreção de Prl. A Prl é secretada em pulsos, que aumentam em amplitude durante o sono. O padrão pulsátil de liberação de Prl, que guarda relação com a liberação pulsátil de GnRH, é originado no hipotálamo. No entanto, as evidências de que os pulsos de  Prl  podem  originar­se  dentro  da  própria  hipófise  sugerem  um  controle  interno  paralelo  bastante  desenvolvido,  que implica, certamente, a existência de uma ampla rede comunicante de lactotrofos. A dopamina é considerada o fator fisiológico inibidor da secreção de Prl, já que estudos in vitro demonstraram que a utilização desta amina, em concentrações similares às detectadas no sangue portal, leva à inibição da secreção de Prl. Ela provoca a sua ação interagindo com receptores D2 no lactotrofo, o que leva à inibição da geração de cAMP, abertura de canais de K+ e diminuição do influxo de Ca2+; a consequência destes eventos é a inibição da secreção de Prl, bem como da sua transcrição gênica. O GABA também inibe a liberação de Prl, embora sua baixa concentração no sangue portal não dê suporte  para  que  seja  considerado  um  fator  fisiológico  do  controle  da  secreção  desse  hormônio.  Ainda,  o  GAP,  peptídio que é liberado conjuntamente com o GnRH, como resultado do processamento pós­traducional do pró­hormônio precursor do GnRH, apresenta ação inibitória sobre a liberação de Prl, o que poderia explicar as variações recíprocas dos níveis de gonadotrofinas e de Prl encontradas na circulação em várias situações. Fatores hipotalâmicos que estimulam a secreção de Prl também têm sido descritos, tais como o TRH e a serotonina. Esta última parece ser o mediador da liberação de Prl desencadeada pela sucção da mama. Peptídios como HIP (peptídio histidinaisoleucina),  VIP,  neurotensina,  angiotensina  II,  vasopressina,  ocitocina  e  substância  P,  entre  outros,  exercem igualmente efeitos estimulantes sobre a secreção de Prl. A administração de morfina ou peptídios opioides também eleva a secreção de Prl, provavelmente por inibir a liberação de dopamina. ▸ Outros fatores. Os estrógenos estimulam a secreção de Prl, atuando diretamente sobre os lactotrofos, e aumentam o seu número e também a síntese de Prl. Os glicocorticoides, assim como os hormônios tireoidianos, tendem a suprimir a secreção de Prl induzida por TRH. Em alguns tipos de estresse, a Prl também tem a sua liberação aumentada, mecanismo que  parece  depender  da  liberação  de  serotonina.  Esta  amina,  como  comentado  anteriormente,  é  um  dos  componentes  do reflexo  neurogênico  de  liberação  de  Prl  desencadeado  pela  sucção  do  mamilo  durante  a  amamentação.  A  estimulação  do mamilo  também  provoca  liberação  de  Prl  em  mulheres  não  grávidas.  Existem,  ainda,  evidências  de  que  a  própria  Prl regule  a  sua  secreção  agindo  diretamente  no  hipotálamo,  estimulando  a  secreção  de  dopamina  (por  mecanismo  de retroalimentação negativa de alça curta).

Peptídios derivados da pró­opiomelanocortina (POMC) Os hormônios derivados da POMC apresentam na sua cadeia peptídica um número de aminoácidos (aa) que varia de 13  (como  o  MSH)  a  91  (como  a  betalipotrofina).  Da  mesma  maneira  que  o  GH  e  a  Prl,  muitos  desses  peptídios compartilham algumas ações, já que apresentam sequências de aa comuns. O conceito da existência de um precursor para a molécula de ACTH ficou fortalecido a partir de: (1) o isolamento e a caracterização  de  um  peptídio  no  lobo  intermediário  da  hipófise,  o  CLIP,  estruturalmente  similar  ao  ACTH,  e  (2)  a identificação de várias formas de ACTH imunorreativas, que apresentam pesos moleculares maiores que o próprio ACTH nativo.  Subsequentemente,  a  betaendorfina,  um  peptídio  com  alta  atividade  opioide,  foi  isolada  de  hipófises  de  vários animais,  sendo  constituída  de  31  aa  cuja  sequência  correspondia  exatamente  à  dos  31  aa  da  porção  carboxiterminal  da

betalipotrofina  (β­LPH).  Ainda,  estudos  imuno­histoquímicos  utilizando  antissoro  anti­ACTH,  antialfa­MSH  e  antibeta­ LPH  demonstraram  a  presença  desses  três  peptídios  em  uma  mesma  célula  hipofisária.  Finalmente,  utilizando  uma linhagem  de  células  hipofisárias  de  camundongos  (células  AtT2O),  dois  grupos  independentes  de  pesquisadores demonstraram simultaneamente que o ACTH e a β­LPH estavam presentes em uma mesma molécula precursora. Estudos subsequentes, por meio do fracionamento por eletroforese seguido de tradução in vitro de mRNA isolados dessas células, revelaram  a  presença  de  uma  glicoproteína  (com  31  kDa),  que  apresentava  determinantes  antigênicos  para  ACTH  e  β­ LPH. Seguiu­se o isolamento dessa molécula precursora, a partir de hipófises de ratos e camelos, a qual foi denominada de pró­opiomelanocortina (POMC) (Figura 66.8). A POMC é codificada por um único gene que é expresso em uma variedade de tecidos, por exemplo: hipófise, SNC (no  núcleo  arqueado  do  hipotálamo  e  no  tronco  encefálico),  tireoide  (nas  células  C),  pâncreas,  sistema  digestório, placenta,  sistema  genital,  derme,  sistema  imunológico  e  glândula  suprarrenal.  Dependendo  do  tecido  em  que  o  gene  é expresso, o processamento pós­traducional dá origem a diferentes peptídios. Em outras palavras, a expressão do gene da POMC é regulada por processos específicos de cada tipo celular. Na adeno­hipófise a POMC é expressa nos corticotrofos, células que constituem cerca de 15% a 20% da população de células  hipofisárias,  sendo  as  primeiras  células  a  se  desenvolverem  na  hipófise  fetal.  Os  principais  reguladores  da  sua transcrição são o CRH e glicocorticoides, que exercem efeitos opostos sobre a mesma. O CRH estimula a transcrição do gene  da  POMC  e,  consequentemente,  a  síntese  dessa  proteína,  via  ativação  do  sistema  adenililciclase­cAMP.  Os glicocorticoides  inibem  a  transcrição  desse  gene,  por  meio  da  interação  do  complexo  hormônio­receptor  com  elementos responsivos presentes em sua região promotora. No lobo intermediário da hipófise, os glicocorticoides e CRH apresentam pequeno ou nenhum efeito sobre a transcrição desse gene, enquanto a dopamina reduz o conteúdo do mRNA que codifica a POMC. Da mesma maneira, no SNC, a expressão da POMC não é regulada por CRH nem por glicocorticoides.

Figura 66.8 ■ Representação  esquemática  da  estrutura  da  molécula  de  POMC  e  seus  derivados.  (Adaptada  de  Daughaday, 1981.)

Conforme  citado  anteriormente,  o  processamento  pós­transcricional  da  molécula  de  POMC  é  tecido­específico,  ou seja, dependendo do tecido, a POMC dará origem a diferentes peptídios: ■ Hipófise anterior: em humanos, o processamento da POMC gera um peptídio N­terminal, um peptídio de ligação, o ACTH  e  a  β­LPH;  adicionalmente,  há  evidências  de  que  uma  pequena  fração  do  ACTH  seja  processada  a  α­MSH (com 1 a 17 aa) e a CLIP (ou corticotropin­like imunoreactive peptide, com 18 a 39 aa) e que uma fração significativa da β­LPH seja processada até β­endorfina (com 1 a 31 aa) (Figura 66.9) ■ Sistema nervoso central (SNC):  no  SNC,  os  neurônios  que  expressam  a  POMC,  dos  quais  derivam  seus  peptídios, também  conhecidos  como  melanocortinas,  se  encontram  no  núcleo  arqueado  do  hipotálamo  e  no  tronco  encefálico.

Nestes locais, quase todo o ACTH produzido é hidrolisado em α­MSH e CLIP, enquanto a β­LPH é processada em β­ endorfina  e  γ­LPH.  As  melanocortinas  participam  do  controle  da  ingestão  alimentar,  constituindo­se  em  importantes peptídios anorexígenos, e apresentam também uma importante ação anti­inflamatória ■ Lobo intermediário da hipófise:  Na  maioria  dos  vertebrados,  incluindo  o  homem  na  fase  fetal,  90%  das  células  do lobo  intermediário  da  hipófise  expressam  o  gene  da  POMC.  Ao  contrário  dos  corticotrofos,  nos  melanotrofos  quase todo o ACTH que é produzido é hidrolisado em α­MSH e CLIP, enquanto a β­LPH é processada em β­endorfina e γ­ LPH. Ainda, a porção aminoterminal da POMC é processada posteriormente a γ­MSH. Assim, os principais produtos do  melanotrofo  são  o  α­MSH  e  as  endorfinas.  Pouco  se  conhece  sobre  o  papel  biológico  da  γ­  e  β­MSH  provocado nesse local; no entanto, sabe­se que, no SNC, essas melanocortinas atuam diminuindo a ingestão alimentar. Em vista de  todos  esses  processos,  o  lobo  intermediário  da  hipófise  de  ratos  e  outros  roedores  tem  sido  extensivamente utilizado para o estudo da biossíntese e processamento pós­traducional da POMC (Figura 66.10). Hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) O  ACTH  é  um  polipeptídio  constituído  de  39  aa,  sintetizado  nas  células  corticotróficas  da  hipófise  anterior.  Os corticotrofos  ficam  especialmente  evidentes  em  várias  espécies  animais  após  adrenalectomia,  situação  em  que  se apresentam  hiperfuncionantes  em  consequência  da  ausência  do  tônus  inibitório  exercido  pelos  corticosteroides.  Nessa condição, a síntese, a secreção e a concentração deste hormônio no plasma apresentam­se aumentadas. Acredita­se que haja consideráveis estoques de ACTH na adeno­hipófise, já que após adrenalectomia ocorre liberação de ACTH suficiente para elevar a sua concentração plasmática muitas centenas de vezes. O ACTH é rapidamente depurado do plasma (sua t1/2 é de 20 a 25 min), sendo o fígado e os rins os principais locais de sua metabolização.

Figura 66.9 ■ Principais produtos derivados do processamento da POMC na adeno­hipófise e sua regulação. Mais detalhes no texto.

Figura 66.10 ■ Principais produtos derivados do processamento da POMC no lobo intermediário da hipófise e sua regulação. Mais detalhes no texto.

▸  Efeitos  biológicos  do  ACTH.  O  ACTH  exerce  seus  efeitos  nas  células­alvo  por  meio  da  interação  com receptores específicos localizados na membrana plasmática. A ocupação desses receptores resulta na ativação do sistema adenililciclase­cAMP  e  da  via  fosfatidilinositol;  segue­se  a  fosforilação  de  proteínas  específicas  e  a  consequente manifestação  de  seus  efeitos  biológicos,  que  se  resumem  na  estimulação  da  síntese  e  secreção  de  glicocorticoides, mineralocorticoides e esteroides androgênicos pelo córtex da suprarrenal. A porção aminoterminal (1 a 19) da molécula de ACTH  é  a  responsável  por  quase  toda  sua  atividade  esteroidogênica,  a  qual  é  evidenciada  principalmente  na  etapa  de conversão  do  colesterol  a  pregnenolona  nas  células  das  camadas  glomerular,  fasciculada  e  reticular.  Além  do  mais,  há evidências indicativas de que o ACTH pode atuar em outras etapas críticas da esteroidogênese, como na 11 β­hidroxilação. A  corticotrofina  também  estimula  a  síntese  de  mRNA  e  de  novas  proteínas  suprarrenais,  o  que  é  traduzido  pelo crescimento do córtex suprarrenal (principalmente as zonas reticular e fasciculada). Ações  do  ACTH  também  são  relatadas  em  outros  tecidos:  no  tecido  adiposo  (promove  lipólise),  no  tecido  muscular (estimula o processo de captação de aminoácidos e glicose), nas células somatotróficas (promove a secreção de GH) e nas células beta pancreáticas (estimula a secreção de insulina). Essas ações, contudo, somente são evidenciadas na vigência de níveis extremamente altos de ACTH, não sendo consideradas, portanto, como ações fisiológicas. O papel fisiológico da β­LPH e dos peptídios relacionados com ela, como β­endorfinas, ainda não está completamente esclarecido. Contudo, eles apresentam dinâmica de secreção igual à do ACTH, ou seja, aumentam em resposta ao estresse e à hipoglicemia (ver adiante), sendo suprimidos pelos glicocorticoides. As evidências são de que as β­endorfinas atuem como opiáceos endógenos, tendo um papel relevante, induzindo analgesia e euforia. ▸  Regulação  da  secreção  do  ACTH.  A  secreção  de  ACTH  é  influenciada,  basicamente,  pelos neuropeptídios  hipotalâmicos  e  pelo  sistema  de  retroalimentação  negativa,  representado  pelos  glicocorticoides.  O  padrão de  secreção  dos  neuropeptídios  representa  a  integração  de  uma  série  de  influxos  excitatórios  neurais  endógenos  (p.  ex., ritmos circadianos) e exógenos (p. ex., estresse) (ver Figura 65.13, no Capítulo 65). O  CRH  estimula  a  síntese  e  secreção  de  ACTH.  Uma  evidência  bastante  elucidativa  desse  fato  é  que  os  níveis circulantes  de  ACTH  caem  dramaticamente,  tanto  em  condições  fisiológicas  quanto  sob  estresse,  quando  se  utiliza antissoro  anti­CRH.  Do  mesmo  modo,  o  hormônio  antidiurético,  ADH,  exerce  também  efeitos  estimulantes  sobre  a síntese e secreção de ACTH, embora com uma potência mil vezes menor que a do CRH. Contudo, na presença de baixas

concentrações  de  CRH,  a  administração  de  ADH  eleva  acentuadamente  a  secreção  de  corticotrofina,  ou  seja,  o  ADH potencializa a resposta secretória de ACTH ao CRH. Atualmente se sabe que há corticotrofos que apresentam receptores para ADH, o que explica os efeitos descritos. Sabe­se também que algumas células CRHérgicas da porção parvicelular do núcleo  paraventricular  expressam  também  o  ADH,  o  que  demonstra  a  interação  desses  dois  hormônios  na  resposta  de liberação  de  ACTH.  A  norepinefrina  e  a  epinefrina  também  ativam  a  secreção  de  CRH,  razão  pela  qual  elas  induzem secreção de ACTH e β­endorfinas. Por outro lado, os glicocorticoides circulantes inibem a síntese e secreção de ACTH. Esses efeitos são exercidos tanto em  nível  hipofisário  quanto  hipotalâmico.  Sabe­se  que  esses  hormônios  diminuem  a  sensibilidade  hipofisária  ao  CRH hipotalâmico, muito provavelmente por inibirem a síntese de receptores de CRH nesse tecido, assim como a liberação de ACTH, o que foi demonstrado por estudos in vitro realizados em hipófises em meio de incubação ou células hipofisárias em cultura. Dentre as várias evidências de que os glicocorticoides exercem influências inibitórias sobre o hipotálamo, temos que injeções  locais  ou  implantes  de  corticosterona  ou  dexametasona  na  eminência  mediana,  ou  no  hipotálamo  ventromedial (nos  núcleos  paraventriculares),  suprimem  a  atividade  do  eixo  hipófise­suprarrenal.  Desse  modo,  verificou­se recentemente que os níveis de CRH na circulação porta­hipofisária se elevam em resposta à hemorragia em ratos, mas não se  alteram  nessa  condição  quando  os  animais  são  previamente  tratados  com  dexametasona.  Ainda,  o  conteúdo hipotalâmico  de  CRH  aumenta  após  adrenalectomia  e  diminui  após  administração  de  corticosteroides.  Contudo,  mesmo altas doses de dexametasona não são capazes de bloquear completamente a capacidade do CRH em induzir certa secreção de  ACTH  em  algumas  condições  (como  no  estresse),  fato  que  pode  ser  bastante  importante  para  que  compreendamos alguns mecanismos envolvidos no estresse. ▸  Resposta  ao  estresse.  A  manutenção  da  constância  do  meio  interno  (ou  homeostase)  é  crítica  para  a sobrevivência dos organismos superiores. Dessa maneira, há necessidade de adaptações contínuas a estímulos externos e internos  (estressores),  que  envolvem  alterações  comportamentais,  viscerais  e  endócrinas,  para  garantir  a  preservação  da homeostase.  O  principal  mecanismo  endócrino  que  participa  desses  ajustes  envolve  o  eixo  hipotálamo­hipófise­ suprarrenal, que é ativado nessas circunstâncias, em que uma grande liberação de CRH ocorre em função da ativação de vias α­adrenérgicas. Segue­se um rápido aumento da liberação de ACTH, com subsequente elevação dos níveis circulantes de glicocorticoides, os quais desempenham importante papel na mobilização de substratos energéticos e na modulação de respostas cognitivas, imunitárias  e  cardiovasculares,  o  que  é  crítico  para  o  sucesso  da  resposta  ao  estresse  (para  mais detalhes, ver Capítulo 69, Glândula Suprarrenal). β­lipotrofina (β­LPH) A  β­LPH  é  um  peptídio  constituído  de  91  aa,  isolado  a  partir  de  hipófises  de  carneiros.  Esse  peptídio  apresenta pequena  atividade  corticotrófica  e  melanotrófica,  e,  embora  o  seu  papel  fisiológico  ainda  esteja  por  ser  elucidado,  há estudos que demonstram que a β­LPH: (1) provoca liberação de ácidos graxos em vários tecidos, (2) diminui a calcemia por  aumentar  o  volume  de  distribuição  do  cálcio  e  (3)  ativa  o  processo  de  coagulação  sanguínea.  Embora  esses  efeitos tenham  sido  descritos,  a  β­LPH  tem  sido  apenas  considerada  como  o  precursor  do  β­MSH,  da  metencefalina  e  da  β­ endorfina. Recentemente, tem sido atribuído à β­LPH um papel estimulador da secreção de mineralocorticoides a partir do córtex suprarrenal (zona glomerulosa); contudo, são necessários estudos adicionais para estabelecer se esse efeito resulta da ação da β­LPH ou de alguns de seus produtos de processamento, e se ela tem alguma importância fisiológica. Como  o  ACTH  e  a  β­LPH  são  produzidos  a  partir  da  mesma  molécula  precursora  (a  POMC),  no  homem,  os  níveis plasmáticos  desses  hormônios  encontram­se  em  paralelismo  em  uma  série  de  circunstâncias,  apresentando­se:  (1) aumentados  ou  diminuídos  frente  a  alterações  nos  níveis  de  glicocorticoides,  (2)  aumentados  na  hipoglicemia  ou  por estresse cirúrgico e (3) com variações ao longo do dia devido à existência de um ritmo circadiano na secreção de CRH. O CRH, como é conhecido, estimula a secreção concomitante de ACTH, β­LPH e β­endorfina, já que estimula a síntese e o processamentopós­transcricional da POMC. Hormônio melanotrófico (MSH) O  MSH  é  encontrado  nas  formas  alfa,  beta  e  gama.  A  alfa  é  a  biologicamente  ativa,  sendo  constituída  de  13  aa,  os quais  são  os  aa  iniciais  da  molécula  de  ACTH.  O  α­MSH  induz  o  escurecimento  rápido  da  pele  de  peixes,  anfíbios  e répteis, fundamental para mimetismo e termorregulação desses animais. Essa adaptação cromática rápida é possível graças à  dispersão  (no  escurecimento)  ou  agregação  (no  clareamento)  de  grânulos  de  melanina  dentro  de  células  pigmentares

dendríticas, os melanócitos ou melanóforos, derivados da crista neural. Nesses vertebrados e na maioria dos mamíferos, o α­MSH  é  produzido  pela  pars  intermedia  e  liberado  na  circulação.  No  homem,  ele  é  produzido  por  neurônios  do hipotálamo, onde atua como neurotransmissor ou neuromodulador, e pelas células de Langerhans e queratinócitos da pele, onde atua paracrinamente. Nos  mamíferos,  inclusive  o  homem,  os  melanócitos  perderam  a  capacidade  de  translocação  rápida  dos  grânulos  de melanina, e o escurecimento da pele depende da síntese de melanina (ou melanogênese) e de sua injeção nos queratinócitos vizinhos. Esse processo, o chamado bronzeamento, é ativado pelo α­MSH e pela radiação ultravioleta B (UVB), que, por mecanismos ainda desconhecidos, estimula a produção de melanina a partir do aa tirosina. Em roedores, a UVB estimula a exteriorização de receptores para α­MSH, tornando os melanócitos mais sensíveis a esse hormônio local. Em melanócitos humanos  em  cultura,  o  α­MSH  estimula  a  síntese  de  novo  de  várias  enzimas  envolvidas  na  melanogênese,  mesmo  na ausência de UVB. O receptor humano de α­MSH já foi clonado e pertence a uma família de 5 receptores de melanocortinas, acoplados à proteína Gs, que inclui o receptor de ACTH, e é expresso por um gene do cromossomo 8. Nos melanócitos encontra­se presente  o  tipo  MC1,  que  reconhece  preferencialmente  o  α­MSH.  O  subtipo  MC2  do  córtex  suprarrenal  reconhece exclusivamente  o  ACTH,  enquanto  os  subtipos  MC3  e  MC4  do  SNC  reconhecem  ACTH  e  MSH.  Um  quinto  tipo  de receptor foi identificado em inúmeros outros tecidos, tais como músculos, fígado e pulmões. β­endorfinas A identificação de locais ligantes para substâncias narcóticas opiáceas no SNC forneceu importante substrato para que se postulasse a existência de substâncias endógenas com a propriedade de se ligarem nesses receptores. Abriu­se, assim, um  campo  extenso  de  investigação  para  que  tais  substâncias  fossem  identificadas.  No  sistema  nervoso,  identificaram­se dois  pentapeptídios,  a  metionina­encefalina  (ou  met­encefalina),  componente  da  β­LPH,  e  a  leucina­encefalina (ou leuencefalina); subsequentemente, foram identificadas as endorfinas, peptídios que correspondem aos aa 61 a 91 das β­LPH (Figura 66.11). Sabe­se que esses opiáceos endógenos têm um papel importante na analgesia, modulação da dor e no estresse, além de participarem de mecanismos envolvidos no sono, atividade sexual, memória e regulação endócrina. Além  da  hipófise,  os  opioides  derivados  da  POMC  também  são  encontrados  no  SNC,  quase  exclusivamente  no pericário  de  neurônios  localizados  no  hipotálamo  basal,  especificamente  no  núcleo  arqueado,  daí  se  distribuindo  ao hipotálamo e outras regiões do SNC. A ocupação de receptores opioides por essas substâncias leva ao bloqueio do influxo de  sódio  desencadeado  por  neurotransmissores  excitatórios.  Estudos  adicionais  demonstraram  que  um  dos  efeitos farmacológicos agudos dos opiáceos in vivo é causar diminuição dos níveis intracelulares de cAMP. Isso poderia alterar o potencial  de  membrana  ou  a  condutância  a  certos  íons  nesses  neurônios,  o  que  modularia  a  resposta  celular  a  estímulos excitatórios ou inibitórios, modificando marcadamente a função neuronal. Há  consideráveis  evidências  de  que  os  opiáceos  endógenos  promovam  inibição  da  atividade  nervosa  nas  regiões  que representam  o  ponto  final  das  vias  ascendentes  relacionadas  com  a  dor,  assim  como  de  que  eles  possam  ativar  vias descendentes  espinais,  relacionadas  com  o  processamento  da  dor,  que  atuam  inibindo  as  células  do  corno  posterior  da medula. A injeção intracerebroventricular e intraventricular de β­endorfina provoca analgesia em pacientes que apresentam dores  crônicas  intratáveis.  Além  do  mais,  tem  sido  atribuído  à  β­endorfina  um  papel  na  regulação  neuroendócrina,  uma vez que sua administração em animais causa elevação dos níveis circulantes de GH e Prl e diminuição dos de LH e FSH, estes consequentes à sua ação inibitória sobre a secreção de GnRH.

Figura 66.11 ■ Representação esquemática da estrutura da β­LPH, met­encefalina, leu­encefalina e β­endorfina. (Adaptada de Bunney Jr., 1979.)

O exercício físico se constitui em um potente estímulo estressor, o que faz com que vias β­adrenérgicas sejam  acionadas  com  consequente  ativação  do  eixo  hipotálamo­hipófise­suprarrenais  e  liberação  de quantidades  equimolares  de  ACTH  e  β­endorfinas.  Acredita­se  que  a  β­endorfina  liberada  atue  com  o objetivo de promover analgesia e certo grau de euforia, o que garantiria a progressão da atividade física por períodos  mais  prolongados.  Com  relação  aos  glicocorticoides  liberados  em  resposta  ao  ACTH,  deve­se salientar  que,  além  de  seus  efeitos  metabólicos  (ver  Capítulo  69),  exercem  potentes  efeitos  anti­ inflamatórios, que seriam igualmente importantes para a manutenção da atividade física prolongada. Sabe­ se  que  muitas  fibras  musculares  sofrem  lesões  durante  a  atividade  física,  do  que  resulta  a  liberação  de citocinas inflamatórias, com subsequente edema e dor, processos que são minimizados pelos efeitos anti­ inflamatórios dos glicocorticoides. Vale comentar que as citocinas são, inclusive, potentes estimuladoras do eixo hipotálamo­hipófise­suprarrenais. A  β­endorfina  também  está  envolvida  no  controle  da  secreção  de  GnRH,  sendo  um  conhecido neurotransmissor inibitório da secreção deste hormônio. É por essa razão que, não raramente, atletas do sexo  feminino  de  alto  nível,  que  se  submetem  a  sessões  diárias  de  exercício  intenso,  apresentam  ciclos anovulatórios.

NEURO­HIPÓFISE O estudo da fisiologia da neuro­hipófise baseou­se, inicialmente, em experimentos clássicos em que extratos de neuro­ hipófise foram administrados por via intravenosa em animais de experimentação, observando­se, em seguida, aumento da pressão  arterial  e  diminuição  do  volume  urinário.  Esses  efeitos  foram  igualmente  observados  quando  os  extratos administrados continham apenas a porção posterior da hipófise. A observação adicional de que o efeito pressor continuou a ocorrer em sapos, mesmo quando estes foram submetidos previamente à destruição do SNC, sugeriu a presença, nesses extratos,  de  um  fator  que  agisse  perifericamente,  ou  seja,  diretamente  sobre  os  vasos  sanguíneos,  surgindo  daí  o  termo vasopressina, hoje conhecida como arginina­vasopressina (AVP), no caso de humanos. Adicionalmente,  a  hipofisectomia  em  animais  de  experimentação  resultou  em  um  aumento  do  volume  urinário  (ou poliúria)  que  foi  revertido  após  administração  de  extratos  neuro­hipofisários.  Todavia,  a  poliúria  decorrente  de  um comprometimento  da  função  renal  (induzido  por  administração  de  sais  de  urânio)  não  foi  inibida  por  esses  extratos, sugerindo  a  importante  participação  do  rim  como  órgão­alvo  desses  extratos.  Subsequentemente,  verificou­se  que,  em condições  fisiológicas,  a  vasopressina  exercia  um  efeito  estimulante  sobre  o  processo  de  reabsorção  tubular  de  água.  O termo hormônio antidiurético (ADH) passou então, também, a ser utilizado. Paralelamente a esses estudos, Dale, em 1906, verificou um efeito estimulante dos extratos neuro­hipofisários sobre a atividade contrátil do útero de mamíferos. Referiu, então, a presença nesses extratos de um agente ocitócico. A partir daí, vários estudos foram realizados, inclusive na espécie humana, demonstrando a eficácia desses extratos em induzir o parto, assim como no tratamento da hemorragia pós­parto. O termo ocitocina foi, então, designado para esse agente presente na neuro­hipófise,  por  se  tratar  de  substância  que  induzia  contrações  rítmicas  e  regulares  da  musculatura  uterina. Posteriormente,  demonstrou­se  um  efeito  estimulante  da  ocitocina  sobre  a  musculatura  lisa  que  reveste  os  alvéolos mamários  que,  após  contração,  leva  à  ejeção  do  leite.  Atualmente,  a  ocitocina  também  é  considerada  um  hormônio envolvido com a natriurese (mais detalhes no Capítulo 75, Controle Neuroendócrino do Balanço Hidreletrolítico).

▸ Relações anatomofuncionais A  neuro­hipófise  pode  ser  dividida  em  três  porções:  (1)  lobo  neural,  pars  nervosa  ou  lobo  posterior,  localizado posteriormente  à  adeno­hipófise;  (2)  haste  hipofisária  ou  infundibular,  a  qual  se  acha  envolvida  pela  porção  tuberal  da adeno­hipófise; e (3) eminência mediana do tuber cinereo (ou infundíbulo) (Figura 66.12). O lobo neural apresenta grande quantidade  de  terminações  nervosas  que  pertencem  ao  trato  hipotálamo­neuro­hipofisário,  intimamente  associadas  a  uma rica rede de capilares. Nessas terminações nervosas encontram­se armazenados os hormônios neuro­hipofisários, ADH e ocitocina,  cujo  processo  de  liberação  é  desencadeado  por  potenciais  de  ação  provocados  nos  corpos  celulares  desses neurônios, por mecanismos que serão detalhados adiante. A descoberta da continuidade entre a neuro­hipófise e o sistema nervoso foi feita por Ramon y Cajal, observando que as fibras nervosas presentes na haste hipofisária e no lobo neural tinham seu ponto de origem em uma região localizada

posteriormente  ao  quiasma  óptico,  mais  especificamente,  nos  núcleos  supraópticos  (NSO)  e  paraventriculares  (NPV)  do hipotálamo.  Além  de  se  projetarem  para  a  neuro­hipófise,  tanto  as  fibras  ADHérgicas  quanto  as  ocitocinérgicas, originárias do NPV, também se distribuem a outras regiões do sistema nervoso. Entretanto, essas fibras comportam­se de forma  independente  daquelas  que  se  projetam  para  a  neuro­hipófise,  já  que  os  níveis  de  ADH  no  líquido  cerebrospinal apresentam  flutuações  diferentes  das  observadas  no  plasma;  em  outras  palavras,  elas  apresentam  um  ritmo  circadiano próprio  que  independe  do  estado  de  hidratação  do  indivíduo.  Existem  ainda  terminações  nervosas  contendo  ADH  em associação  ao  plexo  capilar  da  circulação  porta­hipotálamo­hipofisária,  cuja  possível  função  é  modular  a  secreção  dos hormônios da adeno­hipófise, como o ACTH, conforme comentado. No  lobo  neural  observa­se,  ainda,  a  presença  de  fibras  pertencentes  ao  sistema  tuberoinfundibular,  contendo, principalmente, TRH, CRH e somatostatina, cuja função ainda está por ser esclarecida. Fibras aminérgicas e colinérgicas também  são  encontradas  nessa  porção  da  hipófise,  as  quais  poderiam  desempenhar  uma  função  vasomotora  ou  ainda participar de alguma maneira do controle da secreção dos hormônios neuro­hipofisários. Quanto a este último aspecto, há evidências de que a acetilcolina estimula a secreção de ADH. Além dos axônios neuronais, cujos corpos celulares se encontram no hipotálamo, a neuro­hipófise apresenta células de origem  glial,  denominadas  pituícitos,  e  outros  elementos  celulares,  tais  como  os  mastócitos,  os  quais  se  localizam frequentemente  próximos  aos  vasos  sanguíneos.  Pouco  se  sabe  sobre  o  papel  funcional  dos  pituícitos.  Provavelmente,  a função dessas células não deve ser muito diferente das células gliais existentes no SNC, ou seja, nutrição e proteção dos neurônios.  No  entanto,  é  possível  que  os  pituícitos  desempenhem  funções  locais  mais  específicas,  uma  vez  que,  após  a liberação  dos  hormônios  neuro­hipofisários,  essas  células  apresentam  elevação  da  sua  taxa  metabólica,  assim  como aumento  da  atividade  mitótica.  Especula­se  que  elas  possam  contribuir  para  o  processo  de  secreção  hormonal  por  um mecanismo de retroalimentação negativa, em virtude da sua íntima associação às fibras nervosas. Assim, há evidências de que, em situações de aumento da osmolaridade plasmática, diminui a associação dos pituícitos às fibras nervosas, o que facilitaria  a  secreção  do  ADH  para  os  vasos  sanguíneos,  ocorrendo  o  contrário  quando  da  redução  da  osmolaridade. Acredita­se também que os pituícitos possam participar do processo de remoção dos hormônios neuro­hipofisários.

Figura 66.12 ■ Representação anatômica do eixo hipotálamo­hipofisário. Os componentes estão descritos no texto. (Adaptada de Reichlin, 1985.)

HORMÔNIOS NEURO­HIPOFISÁRIOS O  ADH  e  a  ocitocina  apresentam  alta  homologia  estrutural,  o  que  explica  algumas  ações  fisiológicas  em  comum. Ambos  são  constituídos  por  nove  aa,  dos  quais  sete  são  idênticos,  e  apresentam  uma  ponte  Cys­Cys  entre  os  aa  1  e  6 (Quadro  66.1).  Os  dois  hormônios  são  sintetizados  no  pericário  das  células  que  constituem  os  núcleos  supraópticos (NOS)  e  paraventriculares  (NPV),  como  parte  de  um  pró­hormônio,  e  armazenados  em  grânulos,  que  são  transportados por  fluxo  axoplasmático  em  direção  às  terminações  nervosas  localizadas  no  lobo  neural.  Neste  local,  permanecem armazenados  até  que  potenciais  de  ação,  criados  nos  corpos  celulares  em  resposta  a  estímulos  específicos,  provoquem suas liberações. A secreção desses hormônios envolve a fusão da membrana granular com a neuronal, processo conhecido como exocitose, o qual é dependente do influxo de íons cálcio (Figura 66.13). No  interior  dos  grânulos  de  secreção,  o  ADH  e  a  ocitocina  encontram­se  associados  às  neurofisinas,  às  quais  se atribuiu,  inicialmente,  o  papel  de  proteínas  carreadoras  destes  hormônios.  Todavia,  atualmente  se  reconhece  que  a neurofisina  I  e  a  II  constituem  parte  da  molécula  precursora  de  ocitocina  (pró­oxifisina)  e  ADH  (pró­pressofisina), respectivamente. Assim, as neurofisinas e os hormônios neuro­hipofisários são codificados no mesmo gene, fazendo parte de  um  pró­hormônio  que  é  sintetizado  nos  ribossomos  e  processado  enzimaticamente,  dentro  dos  grânulos,  ao  longo  do trato hipotálamo­neuro­hipofisário. Acredita­se que essa molécula precursora constituída pela associação das neurofisinas aos  hormônios  neuro­hipofisários  dentro  dos  grânulos  de  secreção  possa  representar  um  mecanismo  protetor  que impediria a difusão do hormônio do grânulo e, portanto, sua liberação prematura ou inativação.

Figura 66.13 ■ Mecanismo de secreção dos hormônios neuro­hipofisários. Detalhes no texto. (Adaptada de Douglas, 1973.)

Desse  processamento  enzimático  resulta  a  liberação  do  ADH,  bem  como  de  ocitocina  de  suas  moléculas  precursoras (Figura 66.14). Esses hormônios são, então, secretados, embora não ligados, com suas respectivas neurofisinas; estas não apresentam  papel  biológico  conhecido,  mas  como  são  secretadas  em  quantidades  equimolares  em  relação  aos  hormônios da neuro­hipófise, suas concentrações plasmáticas refletem a taxa de secreção hormonal. Os  neurônios  magnocelulares  do  trato  hipotálamo­neuro­hipofisário  expressam  apenas  um  dos  hormônios  da  neuro­ hipófise: ADH ou ocitocina. Tanto os NSO quanto os NPV apresentam células que sintetizam ADH e ocitocina, embora a maioria  (mais  que  70%)  sintetize  o  ADH.  Uma  das  primeiras  evidências  indicativas  da  especificidade  celular  quanto  à expressão dos neuro­hormônios decorreu de estudos realizados em ratos da cepa Brattleboro, os quais apresentam diabetes insípido  hipotalâmico  hereditário.  Apesar  de  esses  animais  apresentarem  deficiência  na  expressão  de  ADH,  a  ocitocina encontra­se em níveis normais. Ainda, os exames histológicos da hipófise mostram áreas escuras que representam grupos de  axônios  de  neurônios  produtores  de  ocitocina,  entremeadas  com  áreas  mais  claras  correspondentes  às  regiões  das terminações nervosas de neurônios que contêm ADH. Nos  NPV,  existe  ainda  uma  população  de  neurônios  cujos  corpos  celulares  apresentam  características  morfológicas distintas dos que pertencem ao trato hipotálamo­neuro­hipofisário. São pequenos e apresentam axônios que se dirigem à eminência  mediana  do  hipotálamo,  constituindo  a  chamada  porção  parvicelular  dos  NPV.  Nessa  porção  encontramos neurônios que sintetizam distintamente TRH, CRH, somatostatina, substância P e, também, ADH. É interessante ressaltar que  há  colocalização  de  CRH  e  ADH  em  alguns  neurônios,  conforme  demonstrado  por  métodos  imuno­histoquímicos, sugerindo  que  a  presença  desses  dois  peptídios  possa  representar  um  importante  mecanismo  de  potencialização  da secreção de ACTH, conforme citado anteriormente (ver Figura 65.13, no Capítulo 65).

▸ Hormônio antidiurético (ADH) A  pressão  osmótica  dos  líquidos  corporais  mantém­se  dentro  de  rígidos  limites  compatíveis  com  a  vida.  A manutenção  da  osmolaridade  plasmática  é  assegurada  graças  a  ajustes  que  ocorrem  no  balanço  hídrico  do  organismo,  o qual  é  resultado  de  um  equilíbrio  existente  entre  a  ingestão  e  a  eliminação  de  água.  A  ação  do  ADH  é  fundamental  para esse equilíbrio (para mais detalhes, ver Capítulo 53, Papel do Rim na Regulação do Volume e da Tonicidade do Líquido Extracelular, e Capítulo 75). Esse neuropeptídio age nos túbulos renais estimulando o processo de reabsorção de água do filtrado glomerular, diminuindo, dessa maneira, as perdas de água do organismo. Pacientes portadores de diabetes insípido (com  deficiência  na  secreção  de  ADH  ou  alterações  funcionais  nos  seus  receptores)  apresentam  um  aumento  brutal  do

volume  urinário  (que  alcança  cerca  de  10  a  15  ℓ   por  dia),  o  que  pode  levar  o  indivíduo  à  morte  em  poucas  horas  se  o tratamento com ADH não for rapidamente instituído ou se o indivíduo não dispuser de água suficiente para beber.

Efeitos biológicos do ADH Os efeitos biológicos do ADH podem ser divididos em: (1) ações renais, que levam à reabsorção de água do filtrado glomerular,  e  (2)  ações  na  musculatura  lisa  dos  vasos,  que  resultam  em  contração  da  parede  arteriolar  e  aumento  da resistência periférica total. A ação antidiurética ocorre graças à interação do ADH com receptores denominados V2, os quais estão acoplados ao sistema  adenilciclase/cAMP.  Esses  receptores  encontram­se  presentes  na  superfície  das  membranas  basolaterais  das células  epiteliais  responsivas  ao  ADH  (células  principais  dos  ductos  coletores  e  alça  de  Henle  ascendente  –  segmento espesso).  Como  resultado  dessa  interação,  ocorre  elevação  do  conteúdo  intracelular  de  cAMP,  o  que  leva  à  ativação  da proteinoquinase  A,  fosforilação  de  proteínas  específicas,  levando  ao  aumento  da  permeabilidade  à  água  nos  ductos coletores e transporte de cloreto de sódio na alça de Henle ascendente (detalhes no Capítulo 53). Por  outro  lado,  a  interação  do  ADH  com  os  receptores  V1,  localizados  na  musculatura  arteriolar,  ativa  a  via fosfatidilinositol, que resulta na formação de diacilglicerol (DAG) seguida da ativação da proteinoquinase C. O resultado final é a contração da musculatura lisa dos vasos sanguíneos e aumento da resistência periférica total. Mais recentemente, foi demonstrada a existência de receptores V1 nas membranas luminal e basolateral do túbulo distal, com participação na regulação do trocador Na+/H+. Ação nos rins ▸  Transporte de água. O  ADH  aumenta  a  reabsorção  de  água  do  filtrado  glomerular  por  meio  da  inserção  de canais de água na membrana luminal das células do ducto coletor. A aquaporina 2 (AQP2) é o canal de água regulado pelo ADH  nos  ductos  coletores  renais;  ela  está  presente,  exclusivamente,  nas  células  principais  dos  ductos  coletores  mais profundos.  Estudos  eletromicroscópicos  têm  demonstrado  que  essas  células  apresentam,  próximo  à  superfície  apical, vesículas difusamente distribuídas pelo citoplasma, que contêm canais de água prontos para serem inseridos na membrana plasmática.  Após  ativação  do  sistema  adenilciclase/cAMP,  desencadeada  pela  interação  do  ADH  com  receptores  do  tipo V2  localizados  na  membrana  basolateral,  essas  vesículas  fundem­se  com  a  membrana  luminal,  que  resulta  na  inserção desses canais para passagem da água. O aumento do número de canais de água favorece a passagem de água, por difusão simples,  do  lúmen  tubular  para  o  interstício  medular  (hipertônico),  resultando  na  concentração  da  urina  (Figura  66.15). Sabe­se também que o cAMP promove elevação da transcrição do gene que codifica a AQP2, o que eleva o seu conteúdo intracelular.  Evidências  recentes  indicam,  ainda,  que  o  aumento  do  conteúdo  de  AQP2  também  se  deve  a  uma  ação inibitória  do  ADH  sobre  a  degradação  proteassomal  desta  proteína  por  meio  da  ativação  da  PKA  e  p38­MAPK.  (Mais detalhes desse assunto são dados no Capítulo 53.)

Figura 66.14 ■ Representação esquemática do modelo de biossíntese, transporte e liberação de hormônios neuro­hipofisários. (Adaptada de Hope e Pickup, 1974.)

▸ Transporte de cloreto de sódio. O transporte de cloreto de sódio na porção espessa ascendente da alça de Henle também é ativado pelo ADH, por meio de mecanismos que envolvem aumento da produção de cAMP. O transporte de cloreto nesse segmento é mediado por um mecanismo de cotransporte elétron­neutro que movimenta 1Na+:1 K+:2Cl– através da membrana apical. A energia para a passagem do cloreto pela membrana apical é fornecida pelo gradiente eletroquímico de Na+, criado e mantido pela atividade da bomba de Na+/K+ da membrana basolateral. Acredita­se

que  a  saída  do  Cl– da  célula  tubular  seja  por  difusão  simples  a  favor  do  gradiente  elétrico.  Nesse  segmento  do  néfron ocorre  ainda  secreção  de  íons  K+.  No  entanto,  a  maioria  do  K+ secretado  para  o  lúmen  retorna  às  células  por  meio  de canais  específicos.  Verifica­se  que  esse  sistema  de  cotransporte  fornece  às  células  1Na+:2Cl–,  mas,  na  realidade, quantidades  iguais  de  Na+  e  Cl–  são  reabsorvidas  para  o  sangue  peritubular.  Isto  sugere  que  parte  da  reabsorção  de Na+  ocorra  paracelularmente,  sendo  a  voltagem  transepitelial  positiva  e  a  elevada  condutância  ao  Na+, via shunt paracelular, os principais determinantes da reabsorção desse íon (detalhes no Capítulo 51, Função Tubular).

Figura 66.15 ■ Representação esquemática da ação do hormônio antidiurético (AVP) provocando a inserção de canais de água (aquaporina 2 – AQP2) na membrana luminal dos ductos coletores renais. Descrição da figura no texto. (Adaptada de Bichet, 1997.)

O ADH atua no segmento espesso ascendente da alça de Henle aumentando: (1) a reabsorção de NaCl, (2) a voltagem transepitelial  e  (3)  a  secreção  de  K+.  Assim  como  nos  túbulos  coletores,  o  ADH  atua  nas  células  da  alça  de  Henle ascendente que promove a inserção de novas proteínas na membrana celular. É possível que a secreção de K+induzida pelo ADH decorra de uma maior inserção de canais de K+ na membrana apical dessas células e que o aumento da reabsorção de NaCl decorra de um aumento de unidades de cotransportadores de Na+:K+:2Cl– causado pelo ADH. Por intermédio dessas ações, o ADH contribui de maneira importante para o mecanismo de multiplicação por contracorrente e, portanto, para: (1) a hipertonicidade da medula renal e (2) a diluição do líquido intratubular, condições essenciais para que ocorra reabsorção de água nos ductos coletores (mais informações no Capítulo 53). Ação na musculatura lisa arteriolar A clássica ação vasoconstritora do ADH manifesta­se em concentrações plasmáticas de 10 a 100 vezes maiores que as necessárias  para  a  sua  ação  antidiurética,  o  que  sugere  que,  fisiologicamente,  o  ADH  atuaria  apenas  em  nível  renal.  No entanto,  experimentos  mais  recentes  indicam  que  o  ADH,  mesmo  em  concentrações  fisiológicas,  apresenta  efeito vasoconstritor, o qual não é facilmente identificado devido à rápida resposta reflexa cardiovascular que mantém a pressão arterial  inalterada.  Porém,  existem  algumas  situações  em  que  se  verifica  mais  facilmente  a  importância  do  ADH  na regulação fisiológica do tônus vasomotor: (1) a administração de ADH acelera o desenvolvimento da hipertensão induzida pelos  mineralocorticoides,  (2)  ratos  Brattleboro,  que  apresentam  diabetes  insípido  hipotalâmico  familiar  (pois  não produzem  ADH),  não  desenvolvem  hipertensão  induzida  pelos  mineralocorticoides,  porém  podem  tornar­se  hipertensos

quando  tratados  com  ADH,  e  (3)  uma  cepa  de  ratos  que  apresentam  hipersecreção  familiar  de  ADH  também  apresenta hipertensão arterial volume­independente. Além  dessas  evidências  indiretas,  o  choque  hipovolêmico  é  uma  situação  em  que  se  pode,  facilmente,  verificar  a importância do ADH na manutenção do tônus vasomotor. Nessa condição, observam­se elevações acima de 100 vezes nos níveis  plasmáticos  de  ADH,  que  indicam  uma  ação  predominantemente  cardiovascular.  Desse  modo,  cães hipofisectomizados morrem frente a pequenas hemorragias, facilmente contornadas por animais normais; isto é revertido por meio da administração de ADH. Conforme  citado  anteriormente,  o  ADH  também  atua  estimulando  a  secreção  de  ACTH  (ver,  neste  capítulo,  o  item “Regulação da secreção do ACTH”).

▸ Regulação da secreção de ADH Osmolaridade plasmática No  início  do  século  passado,  Verney  demonstrou  que  a  infusão  de  salina  hipertônica  na  artéria  carótida  de  cães anestesiados  levava  à  antidiurese,  que  era  abolida  após  remoção  da  neuro­hipófise.  Essa  observação,  somada  ao  fato  de que após sobrecarga hídrica ocorre maior eliminação de água pela urina, levaram Verney a postular uma relação importante entre  a  osmolaridade  plasmática  e  a  secreção  de  ADH.  Demonstrou­se  posteriormente  no  ser  humano  que  a  infusão  de salina concentrada (850 mmol/ℓ) leva a um aumento progressivo da osmolaridade e da concentração plasmática de ADH. Em  adultos  saudáveis,  a  osmolaridade  plasmática  média  é  cerca  de  280  mOsm/kg.  Nessas  condições  a  concentração plasmática  de  ADH  varia  de  0,5  a  1,5  pg/m ℓ .  Acima  de  280  mOsm/kg  a  secreção  de  ADH  aumenta  rápida  e progressivamente  com  a  elevação  da  osmolaridade  plasmática,  obedecendo  à  seguinte  função  linear:  [ADH]  =  0,38 (osmolaridade  plasmática  –  280).  Desta  maneira,  o  valor  plasmático  de  280  mOsm/kg  é  considerado  como  o  limiar osmótico de secreção do ADH (ver adiante), acima do qual alterações da osmolaridade levam a alterações concomitantes na  secreção  de  ADH  e  do  volume  plasmático,  embora  a  sensibilidade  deste  sistema  se  altere  frente  a  modificações  do volume  plasmático  e  da  pressão  arterial  (PA),  conforme  será  discutido  adiante.  Observa­se,  também,  uma  relação  direta entre concentração plasmática de ADH e osmolaridade urinária. Assim, um aumento de 0,3 pg/mℓ nos níveis plasmáticos de  ADH  é  traduzido  por  uma  elevação  na  osmolaridade  urinária  de  cerca  de  95  mOsm/kg;  concentrações  urinárias máximas são atingidas com uma osmolaridade plasmática de 294 mOsm/kg e níveis plasmáticos de ADH de 5 pg/mℓ.

Ativação dos osmorreceptores Em seus estudos iniciais, Verney propôs que as alterações da pressão osmótica do meio interno seriam detectadas por neurônios  diferenciados  que  funcionariam  como  osmorreceptores.  Seus  estudos  sugeriram  que  os  osmorreceptores localizam­se no hipotálamo anterior, nas proximidades ou nos próprios núcleos supraópticos e paraventriculares. Estudos subsequentes mostraram que lesões na região anteroventral do terceiro ventrículo abolem a liberação de ADH, assim como a  sede  induzida  pelo  aumento  da  osmolaridade  plasmática.  O  mesmo  ocorre  no  cão,  após  pequenas  lesões  do  órgão vasculoso  da  lâmina  terminal  (OVLT),  uma  estrutura  circunventricular  situada  na  região  anteroventral  do  terceiro ventrículo.  Lesões  em  áreas  vizinhas  a  esta  não  alteram  a  resposta  osmótica  do  ADH,  sugerindo  que  o  OVLT  seja,  ou influencie de forma importante, os osmorreceptores. Alguns estudos têm sugerido que os osmorreceptores centrais seriam, na realidade, receptores que detectam variações na  concentração  de  Na+  do  líquido  cerebrospinal,  já  que  a  infusão  intracerebroventricular  de  salina  hipertônica  leva  à antidiurese,  enquanto  a  infusão  de  sacarose  hipertônica  a  suprime  (ver  adiante).  Essa  supressão  foi  interpretada  como  o resultado de uma diluição da concentração de Na+ provocada pela sacarose hipertônica, o que reduziria o estímulo para a secreção de ADH. No entanto, a infusão intracarotídea de ureia, apesar de aumentar a concentração liquórica de Na+, não desencadeia a resposta antidiurética, o que fortalece a hipótese de que a secreção de ADH em resposta à administração de soluções  hiperosmolares  é  resultado  da  ativação  de  osmorreceptores  localizados  fora  da  barreira  hematencefálica,  hoje reconhecidamente presentes em órgãos circunventriculares, tais como o OVLT e o órgão subfornicial (OSF). O mecanismo pelo qual os osmorreceptores são ativados envolve o efluxo de água dessas células, em decorrência do aumento  da  osmolaridade  plasmática.  Essa  perda  de  água  provoca  uma  deformação  estrutural  (diminuição  do  volume) celular,  levando  a  um  aumento  da  frequência  de  disparo  de  potenciais  de  ação.  Presume­se  que  a  frequência  dessas descargas seja proporcional ao grau de desidratação celular. Essas descargas, por sua vez, atingem os NSO e NPV, cujas células,  igualmente,  passam  a  deflagrar  um  maior  número  de  potenciais  de  ação  por  unidade  de  tempo,  o  que  resulta  na secreção de maiores quantidades de ADH.

Como  os  osmorreceptores  são  estimulados  por  alterações  no  seu  conteúdo  de  água,  fica  clara  a  razão  pela  qual  esse sistema não apresenta sensibilidade igual para todos os solutos do plasma. Por exemplo, esse sistema é altamente sensível a  variações  na  concentração  de  Na+  e  seus  ânions  (ver  anteriormente);  admite­se  que  isso  seja  decorrente  da  baixa permeabilidade  da  membrana  plasmática  ao  Na+,  cuja  presença  no  plasma  cria  um  gradiente  osmótico  que  resulta  em efluxo de água dos osmorreceptores. Por outro lado, solutos que penetram com maior facilidade nas células, como glicose e ureia, apesar de aumentarem a osmolaridade plasmática, causam pequena ou nenhuma alteração nos níveis circulantes de ADH. Do mesmo modo, aumentos na osmolaridade plasmática devidos ao Na+ ou manitol são dipsogênicos, enquanto os devidos à ureia ou glicose não são ou são pouco dipsogênicos (ver adiante) (Figura 66.16).

Osmorreceptores periféricos A observação de que cães desidratados apresentam redução da secreção de ADH após poucos minutos da ingestão de água  e  antes  mesmo  que  a  osmolaridade  plasmática  tenha  se  reduzido  sugere  a  presença  de  osmorreceptores  em  outros locais, além do SNC. De fato, hoje se sabe que alguns desses sensores osmóticos estão localizados na região da veia porta hepática, um local estratégico que possibilita a detecção precoce do impacto osmótico dos alimentos e líquidos ingeridos. Tanto  é  que  o  aumento  da  osmolaridade  nesta  região  estimula  a  ingestão  de  água  e  a  secreção  de  ADH  mesmo  em  ratos hidratados.  Acredita­se  também  que  essa  inibição  da  liberação  de  ADH  relacionada  com  o  ato  de  beber  tenha  alguma ligação com fatores orofaríngeos ou relacionados com a saciedade, os quais influenciariam a secreção de ADH.

Volemia e pressão arterial Há  quase  cinco  décadas,  foi  sugerido  o  envolvimento  de  mecanorreceptores  no  controle  da  excreção  de  água  e liberação  de  ADH  em  resposta  a  variações  do  volume  sanguíneo.  Esses  receptores  correspondem  aos  receptores  de estiramento  atriais,  localizados  no  átrio  esquerdo  (volorreceptores,  ou  receptores  de  volume),  assim  como aos barorreceptores localizados nos seios carotídeos e arco da aorta. A distensão do átrio esquerdo, por meio da inflação de um balão, leva à diminuição dos níveis circulantes de ADH, efeito que é abolido pela hipofisectomia. Observou­se que o estiramento do átrio esquerdo em cães e gatos anestesiados leva à diminuição da frequência de descargas dos neurônios do  NSO  e  NPV,  que  se  projetam  para  a  neuro­hipófise.  Adicionalmente,  a  desnervação  cardíaca  abole  a  inibição  da secreção de ADH em resposta ao aumento da pressão atrial, embora não seja capaz de bloquear a diurese ou a queda dos níveis  circulantes  de  ADH  que  se  segue  à  expansão  do  volume  sanguíneo;  isso  sugere  que  tais  receptores,  embora contribuam para a regulação do volume sanguíneo via ADH, não representam o mecanismo mais importante do sistema. Aliás,  em  primatas  e  no  homem  não  há  muitas  evidências  de  que  esses  sensores  sejam  responsáveis  pela  liberação  de ADH  quando  da  queda  do  volume  sanguíneo;  acredita­se  que  nessa  situação  os  barorreceptores  arteriais  sejam  os principais mediadores da elevação dos níveis plasmáticos de ADH.

Figura  66.16  ■   Mecanismo  hipotético  da  resposta  de  um  osmorreceptor  (OR)  exposto  a  solução  hipertônica  com  soluto impermeável, semipermeável ou permeável. Note que há maior efluxo celular de água quando o soluto é impermeável do que quando é semipermeável. Porém, quando o soluto é permeável, não ocorre efluxo celular de água e a concentração do soluto no meio intracelular fica igual à do meio extracelular. Consulte o texto para mais detalhes. (Adaptada de Robertson, 1985.)

Os  barorreceptores  arteriais  têm  uma  participação  importante  no  controle  da  secreção  de  ADH.  As  evidências  a  esse favor são: (1) a perfusão dos barorreceptores do seio carotídeo com pressão de pulso constante, mesmo em uma situação de  hemorragia,  atenua  a  secreção  de  ADH;  (2)  a  secção  dos  neurônios  aferentes  do  seio  carotídeo  abole  a  elevação  do ADH  que  ocorre  em  resposta  à  hemorragia.  Desta  maneira,  tanto  os  receptores  de  estiramento  atriais  quanto  os barorreceptores aórticos e carotídeos exercem uma inibição tônica sobre a liberação de ADH, de modo semelhante ao que fazem  no  controle  da  pressão  arterial;  o  aumento  da  secreção  de  ADH  observado  durante  a  hipovolemia  é  decorrente  da diminuição desse tônus inibitório. As fibras aferentes do IX e X pares cranianos são as responsáveis pela transmissão de informações sobre as variações de  pressão,  dos  seios  carotídeos  e  crossa  da  aorta,  respectivamente,  para  o  tronco  encefálico,  onde  fazem  sinapses  com neurônios do núcleo do trato solitário (NTS). Dessa região, várias fibras projetam­se para o NSO e NPV, onde exercem, predominantemente,  um  efeito  inibitório.  Parte  dessas  fibras  inibitórias  foi  caracterizada  como  fibras  noradrenérgicas. Presume­se que os principais sistemas ativadores que se projetam a esses núcleos sejam colinérgicos (Figura 66.17).

Integração dos sinais osmóticos e de volume na regulação da secreção do ADH A interação existente entre os sistemas baro e osmorreguladores sobre a secreção de ADH é evidenciada por ocasião da  instalação  de  hipovolemia,  quando  se  observa  diminuição  do  limiar  do  sistema  osmorregulador  para  o  estímulo osmótico. Nessa condição, osmolaridades plasmáticas menores que 280 mOsm/kg, insuficientes para ativar o mecanismo de secreção de ADH na vigência de normovolemia, passam a induzir secreção significativa de ADH; entretanto, mesmo na presença de um estímulo hemodinâmico, a secreção de ADH pode ser totalmente suprimida se a osmolaridade plasmática cair abaixo do novo limiar. Da mesma maneira, situações de hipervolemia fazem com que o limiar osmótico da secreção de ADH seja deslocado para a direita, isto é, são necessários maiores incrementos da osmolaridade plasmática para induzir secreção de ADH (Figura 66.18).

Sistema renina­angiotensina A  angiotensina  II  (ANGII)  é  um  agente  estimulante  da  liberação  de  ADH.  Dessa  maneira,  o  aumento  da  sua concentração plasmática em resposta à hipovolemia, que decorre da ativação do sistema renina­angiotensina, contribui para a normalização da volemia, não só em função de seus efeitos vasoconstritores e estimulantes da secreção de aldosterona,

mas  também  porque  eleva  a  secreção  de  ADH.  De  fato,  alguns  fatores  que  levam  ao  aumento  da  renina  no  plasma,  tais como a estenose da artéria renal e a ativação simpática, são igualmente capazes de elevar a secreção de ADH.

Figura 66.17 ■ Anatomia  da  neuro­hipófise  e  de  suas  principais  aferências  reguladoras. npv,  núcleos  paraventriculares;  nso, núcleos supraópticos; or, osmorreceptores; qo, quiasma óptico; ah, adeno­hipófise; nh, neuro­hipófise;  ap,  área  postrema;  nts, núcleo do trato solitário; br, barorreceptores. (Adaptada de Robertson, 1985.)

Figura 66.18 ■ Efeito da variação da volemia ou da pressão arterial sobre a regulação da osmolaridade plasmática na liberação de  vasopressina.  Cada  linha  representa  a  relação  entre  a  concentração  de  vasopressina  e  a  osmolaridade  plasmática  na presença de vários graus de hipovolemia ou hipotensão aguda (à esquerda) e de hipervolemia ou hipertensão (à direita). Mais detalhes poderão ser encontrados no texto. (Adaptada de Robertson, 1985.)

A  existência  de  um  sistema  renina­angiotensina  cerebral,  com  a  detecção  de  mRNA  para  o  angiotensinogênio  e  a presença  de  receptores  de  ANGII  no  hipotálamo,  indicam  a  possibilidade  de  uma  ação  da  ANGII  central  no  controle  da secreção do ADH. Esses receptores seriam igualmente sensíveis à ANGII circulante (periférica), a qual poderia alcançar o sistema  nervoso  via  órgão  subfornicial  localizado  fora  da  barreira  hematencefálica.  A  presença  de  receptores  de  ANG  II

em neurônios do OSF e OVLT indica que eles são importantes alvos da ANG II, cuja sinalização é integrada com a dos neurônios sensíveis ao Na+ dessas estruturas, para elevação da secreção de ADH. Demonstrou­se ainda que a aplicação iontoforética de ANGII no NSO estimula a atividade de suas células e a secreção de  ADH,  e  que  a  administração  liquórica  de  renina  ou  ANGII  desencadeia  potente  liberação  de  ADH  e  antidiurese  (ou queda  do  volume  urinário).  Todavia,  a  administração  liquórica  de  saralasina  (bloqueador  de  receptor  de  ANGII)  ou  de captopril (inibidor da enzima que converte ANGI em ANGII) bloqueia a liberação de ADH em apenas algumas situações fisiológicas,  de  modo  que  até  o  momento  não  há  um  consenso  a  respeito  do  papel  fisiológico  do  sistema  renina­ angiotensina sobre a regulação da secreção de ADH.

Náuseas A sensação de náuseas é um estímulo potente para a liberação de ADH em humanos. Acredita­se que esse efeito seja decorrente  da  ativação  da  área  quimiorreceptora  da  região  bulbar  conhecida  como  o  centro  do  vômito,  área  postrema,  a qual se apresenta conectada aos NSO e NPV. É por esta razão que vários agentes estimulantes do centro do vômito, tais como morfina e nicotina, promovem aumento da secreção de ADH. O efeito das náuseas em estimular a secreção de ADH pode ser mascarado pela sobrecarga hídrica, que sugere a interação dos mecanismos de regulação osmótico e emético.

Estresse A secreção de ADH aumenta em resposta ao estresse inespecífico, tal como dor, estresse emocional e exercício físico. Desconhece­se, contudo, o mecanismo dessa relação e a sua importância fisiológica. Em ratos, o aumento da secreção de ADH em resposta a estresse somente ocorre quando, concomitantemente, se estabelece uma queda de volume sanguíneo. Na espécie humana não se tem ideia se um mecanismo semelhante está envolvido nessa resposta.

Glicocorticoides A secreção de ADH é modulada pelos glicocorticoides, os quais exercem um efeito inibitório direto sobre a expressão gênica desse hormônio.

Hipoxia A  hipoxia  estimula  a  liberação  de  ADH  em  vários  animais.  Porém,  em  humanos,  esse  efeito  é  observado  somente quando  hipotensão  e/ou  náuseas  estão  associados,  sugerindo,  portanto,  que  essa  ação  seja  indireta.  Como  já  foi mencionado,  a  maioria  dos  medicamentos,  neurotransmissores  e  hormônios  que  influenciam  a  secreção  de  ADH  age indiretamente  por  alterações  da  pressão  arterial,  do  volume  sanguíneo  ou  da  atividade  das  células  que  constituem  o “centro” do vômito (área postrema). Os opiáceos ou baixas doses de morfina inibem a secreção de ADH por aumentarem o  limiar  osmótico  para  a  sua  liberação.  O  efeito  inibitório  do  álcool  sobre  a  secreção  de  ADH  parece  ser  mediado,  em parte,  via  opiáceos  endógenos,  já  que  pode  ser  parcialmente  bloqueado  por  naloxona  (antagonista  opiáceo).  Como comentado  anteriormente,  deve­se  ressaltar  que  altas  doses  de  morfina  estimulam  a  secreção  de  ADH,  via  “centro”  do vômito.

▸ Metabolismo do ADH A  metabolização  do  ADH  ocorre  principalmente  no  fígado  e  nos  rins  e  envolve  a  redução  da  ponte  dissulfeto  e  ação posterior de aminopeptidases. O  ADH  também  é  excretado  pelos  rins,  o  que  corresponde  a  1/4  do clearance metabólico  total  desse  hormônio.  A meia­vida do ADH é de 30 a 40 min, sendo, portanto, este o período necessário para que se observe aumento da diurese quando sua secreção basal é abolida.

▸ Regulação da sede A  sensação  de  sede  é  influenciada  por  muitos  dos  mecanismos  envolvidos  na  regulação  da  secreção  de  ADH.  A resposta  de  sede  a  estímulos  osmóticos  é  suficientemente  potente  para  evitar  alterações  da  osmolaridade  plasmática,  na ausência  de  ADH,  em  indivíduos  que  tenham  livre  acesso  à  água.  O  limiar  osmótico  para  sede  é  alcançado  com  um aumento  de  2%  a  3%  na  osmolaridade  plasmática,  um  valor  apenas  discretamente  maior  que  o  limiar  para  secreção  de ADH.  A  estimulação  da  sede  também  é  desencadeada  por  depleções  do  volume  plasmático,  mesmo  na  vigência  de  baixa osmolaridade plasmática.

Com a descoberta de osmorreceptores centrais envolvidos no controle da secreção de ADH, verificou­se que a injeção de  soluções  hipertônicas  no  hipotálamo  também  desencadeava  o  aparecimento  da  sede  em  cabras,  indicando  o envolvimento  de  osmorreceptores  na  regulação  da  ingestão  de  água.  Subsequentemente,  verificou­se  que  a  destruição  do tecido  que  circunda  o  OVLT  diminui  a  sede  desencadeada  por  injeções  hipertônicas  intracarotídeas,  sugerindo  que,  da mesma maneira que os osmorreceptores ligados à secreção de ADH, aqueles envolvidos com a ingestão de água também se encontram próximos a essa região. A  ANGII  é  um  potente  agente  dipsogênico  quando  injetada  no  terceiro  ventrículo.  Além  do  mais,  no  OVLT  existem receptores  para  a  ANGII,  o  que  sugere  sua  participação  também  no  mecanismo  de  sede  ativado  pelo  aumento  da osmolaridade plasmática, conforme citado anteriormente.

OCITOCINA As  propriedades  ocitócicas  e  antidiuréticas  de  extratos  neuro­hipofisários  testados  em  vários  animais  em  diferentes situações fisiológicas levaram à completa separação de dois princípios ativos na neuro­hipófise – ADH e ocitocina – e à identificação  química,  síntese  e  preparação  de  análogos  sintéticos  desses  hormônios;  deste  modo  se  tornou  possível  o estudo das ações desses compostos em separado, sobre os diferentes tecidos. Embora existam ações bastante específicas da ocitocina nos diferentes tecidos, devemos ter claro que a homologia entre esses dois hormônios possibilita a existência de  ações  comuns.  Além  do  mais,  a  regulação  da  secreção  desses  peptídios  também  pode  apresentar  semelhanças:  por exemplo,  a  secreção  de  ocitocina  também  é  estimulada  pelo  aumento  da  osmolaridade  plasmática  em  cães  (ver  Capítulo 75).

▸ Efeitos biológicos da ocitocina As ações fisiológicas da ocitocina (OT) são exercidas principalmente sobre a musculatura lisa uterina e da que reveste os  alvéolos  da  mama.  Por  meio  desses  mecanismos  a  ocitocina participa,  respectivamente,  do  mecanismo  do  parto  e  da ejeção de leite durante a lactação. No  entanto,  deve­se  ressaltar  que  a  ocitocina  exerce  ações  fisiológicas  diversas  das  classicamente  descritas.  Por exemplo, há evidências de que esse hormônio exerça controle sobre a secreção de Prl e gonadotrofinas; efeitos parácrinos desse hormônio sobre tuba uterina e ductos espermáticos também foram descritos.

Ação sobre o útero A  administração  de  ocitocina  leva  a  um  aumento  da  frequência  e  duração  dos  trens  de  potenciais  de  ação  na musculatura  uterina,  mecanismo  que:  (1)  inicia  contração  na  musculatura  uterina  previamente  inativa  e  (2)  aumenta  a frequência, força e duração das contrações em músculos já ativos. A administração de estrógenos a animais imaturos traz o potencial de membrana das células uterinas a níveis mais próximos do seu limiar de disparo. Sendo assim, o potencial de  membrana  dessas  células  declina  gradualmente  da  metade  até  o  término  da  gestação,  quando  os  níveis  de  estrógenos estão bastante elevados. Essa queda do potencial de membrana facilita a ação da ocitocina sobre o útero, que, por aumentar a  excitabilidade  do  miométrio  e  por  facilitar  a  condução  dos  potenciais  de  ação,  ativa  as  células  uterinas  que  estavam quiescentes, aumentando assim o número de células participantes e a força de cada contração. Acredita­se que a ocitocina exerça  esses  efeitos  por  meio  de  um  aumento  generalizado  da  permeabilidade  iônica  da  membrana  celular.  A  ocitocina, entre outras ações, é responsável por aumentar: (1) o número de canais de sódio no sarcolema, durante a fase de potencial em espícula, e (2) o cálcio intracelular, devido à mobilização de cálcio dos estoques intracelulares e ao seu influxo a partir do meio extracelular.

Papel da ocitocina no parto A  ação  da  ocitocina  no  parto  está  bem  definida,  tendo  em  vista  as  seguintes  evidências  clínicas:  (1)  aumento  da secreção  de  ocitocina  durante  o  parto;  (2)  correlação  positiva  entre  a  concentração  plasmática  de  ocitocina  e  o prosseguimento  do  trabalho  de  parto;  (3)  o  trabalho  de  parto  é  difícil  em  pacientes  hipofisectomizadas,  com  secção cirúrgica da haste hipofisária ou com bloqueio da liberação de ocitocina. Em algumas espécies, tais como rato e coelho, a ocitocina é o fator desencadeante do parto, enquanto, no ser humano, ela apenas contribui, embora com importância, para o desenvolvimento do trabalho de parto e a expulsão fetal.

A  secreção  de  ocitocina  durante  o  trabalho  de  parto  é  decorrente  de  um  reflexo  neuroendócrino  desencadeado  por estimulação mecânica de estruturas componentes do trato genital inferior (cérvice e vagina). A distensão da cérvice uterina provocada  pelas  primeiras  contrações  do  útero,  as  quais  independem  da  ocitocina  na  espécie  humana,  leva  à  estimulação dos  receptores  de  estiramento  aí  localizados;  os  potenciais  de  ação  aí  causados  se  propagam  por  fibras  aferentes específicas  que  chegam  aos  NPV  e  NSO  (via  medula  espinal  e  tronco  encefálico),  onde  fazem  sinapse  com  neurônios ocitocinérgicos. O resultado desse processo é aumento da secreção de ocitocina que, ao atuar na musculatura uterina, induz novas  contrações  e  realimenta  o  processo  que  leva  à  sua  secreção  por  um  mecanismo  de  feedback  positivo;  esse mecanismo perdura até a expulsão do feto.

Ação sobre a glândula mamária As ações da ocitocina sobre a glândula mamária estão relacionadas com o processo de ejeção do leite dos alvéolos e ductos  galactóforos  menores.  Estas  estruturas  são  envolvidas  por  células  mioepiteliais,  alvos  da  ocitocina;  a  contração dessas células leva à ejeção do leite armazenado. Este processo também é regulado por um mecanismo reflexo, conhecido como  reflexo  de  ejeção  do  leite,  desencadeado  em  resposta  à  sucção  do  mamilo.  O  reflexo  envolve  a  estimulação  de terminações  nervosas  presentes  no  mamilo  (mecanorreceptores),  de  onde  potenciais  de  ação  são  transmitidos  à  medula espinal,  tronco  encefálico  e  hipotálamo,  onde  então  atingem  os  neurônios  ocitocinérgicos.  A  ativação  desses  neurônios leva à secreção de ocitocina e contração das células mioepiteliais; segue­se um aumento da pressão intramamária e ejeção do leite para os ductos galactóforos maiores e cisternas, de onde pode ser obtido passivamente por sucção. Esse processo não  deve  ser  confundido  com  o  da  lactogênese,  o  qual  é  controlado  pela  prolactina.  O  aleitamento  depende  totalmente desse reflexo que, na espécie humana, pode ser condicionado ao choro de um bebê.

Outras ações Durante  o  ato  sexual,  a  estimulação  mecânica  dos  componentes  do  trato  genital  feminino  inferior  também  eleva  a secreção  de  ocitocina,  por  mecanismo  similar  ao  descrito  por  ocasião  do  parto  (com  ativação  de  mecanorreceptores  e liberação de ocitocina). Especula­se que a ocitocina liberada nessa ocasião tenha um papel estimulante sobre a atividade da musculatura lisa que envolve tais estruturas, o que “facilitaria” a propulsão dos espermatozoides em direção ao útero. No ser humano, a função desse hormônio ainda é motivo de especulação. Há evidências de que, no coelho, a ocitocina ative o transporte de esperma pelo epidídimo. Apesar  de  ser  tradicionalmente  associada  a  funções  reprodutivas,  vem  sendo  demonstrado  que  a  ocitocina  também participa  da  regulação  da  função  cardiovascular,  uma  vez  que  se  detectou  a  presença  de  receptores  de  OT  em  todos  os compartimentos  do  coração  e  na  vasculatura.  Também  foi  demonstrado  que  a  OT  induz  a  liberação  do  peptídio  atrial natriurético  e  óxido  nítrico  (NO)  de  coração  perfundido  e  secções  de  átrios.  As  ações  cardiovasculares  da  OT  incluem: natriurese, queda da pressão arterial, efeitos inotrópicos e cronotrópicos negativos, neuromodulação parassimpática, bem como vasodilatação desencadeada pelo NO (detalhes no Capítulo 75). Mais recentemente tem sido apontado que a ocitocina exerce importante papel no desenvolvimento e função do sistema imunológico,  participando  do  desenvolvimento  do  timo  e  da  medula  óssea,  aumentando  as  defesas  imunológicas, desempenhando  efeitos  semelhantes  aos  antibióticos  e  reprimindo  distúrbios  imunológicos  associados  ao  estresse. Contudo, mais estudos são necessários para melhor explorar o papel da ocitocina na regulação neuroendócrina do sistema imunológico. Já há algum tempo, as vias centrais ocitocinérgicas têm sido relacionadas com o desencadeamento do comportamento maternal, receptividade sexual da fêmea e com a resposta da prole à separação social, em ratos.  Estudos  recentes  têm  revelado  que  as  vias  ocitocinérgicas  e  ADHérgicas  centrais  exercem importantes  efeitos  comportamentais  relacionados  com  seletivos  laços  de  longa  duração  entre  machos  e fêmeas  (monogamia).  Na  maioria  dos  mamíferos,  a  ocitocina  é  liberada  durante  a  cópula,  acreditando­se que,  com  repetidas  e  prolongadas  sessões  de  cópula,  esse  hormônio  exerça  um  efeito  importante  no estabelecimento desses laços afetivos seletivos. Contudo, essa ação da ocitocina é verificada em fêmeas; em machos é o ADH, e não a ocitocina, que desempenha esse papel. Sabe­se que a inervação ADHérgica (vasopressinérgica) é sexualmente dimórfica e parece ser importante para o comportamento paternal. Vias centrais vasopressinérgicas também têm sido implicadas na marcação dos territórios e na memória social.

▸ Regulação da secreção de ocitocina A  estimulação  de  mecanorreceptores  localizados  na  cérvice  uterina,  canal  vaginal  e  mamilo  leva  a  um  aumento  da liberação de ocitocina. As evidências experimentais sugerem que o neurotransmissor envolvido nesses mecanismos seja a acetilcolina.  Por  outro  lado,  as  catecolaminas  exercem  efeitos  inibitórios  sobre  a  liberação  de  ocitocina.  Isto  pode  ser evidenciado  em  situações  de  estresse,  em  que  ocorre  inibição  da  ejeção  de  leite.  A  administração  de  ocitocina  nessa condição é capaz de restabelecer o fornecimento de leite, o que sugere que essa inibição decorra de um bloqueio central da liberação da ocitocina. Aliás, a aplicação iontoforética de norepinefrina em corpos celulares de neurônios localizados nos NPV leva a uma inibição da atividade deles. Existem  evidências  de  que  a  inibição  da  ejeção  de  leite  causada  pelo  estresse  também  possa  ser  o  resultado  da constrição de vasos sanguíneos da glândula mamária, o que dificultaria o acesso da ocitocina ao seu local de ação (detalhes desses processos no Capítulo 77).

AGRADECIMENTO Agradecemos  à  Profª  Drª  Ana  Maria  de  Lauro  Castrucci  pelas  sugestões  dadas  no  item  relativo  ao  hormônio melanotrófico (MSH).

BIBLIOGRAFIA ABDEL­MALEK ZA, SWOPE VB, SUZUKI I et al. The mitogenic and melanogenic stimulation of normal human melanocytes by melanotropic peptides. Proc Natl Acad Sci, 92:1789­93, 1995. AGUILERA G. Regulation of pituitary ACTH secretion during chronic stress. Front Neuroendocrinology, 15(4):321­50, 1995. ANOBILE CJ, TALBOT JA, MCCANN SJ et al. Glycoform composition of serum gonadotrophins through the normal menstrual cycle and in the post­menopausal state. Mol Hum Reprod, 4(7):631­9, 1998. ARON DC, FINDLING JW, TYRRELL JB. Hypothalamus and pituitary. In: GREENSPAN FS, STREWLER GJ (Eds.). Basical and Clinical Endocrinology. 5. ed. Appleton & Lange, Stamford, 1997. BARGI­SOUZA  P,  GOULART­SILVA  F,  NUNES  MT.  Novel  aspects  of  T3  actions  on  GH  and  TSH  synthesis  and  secretion: physiological implications. J Mol Endocrinol, 59(4):R167­78, 2017. BICHET  DG.  Posterior  pituitay  hormones.  In:  CONN  PM,  MELMED  S  (Eds.). Endocrinology  Basic  and  Clinical  Principles. Humana Press Inc., Totowa, 1997. BOURQUE  CW,  OLIET  SHR,  RICHARD  D.  Osmoreceptors,  osmoreception,  and  osmoregulation.  Front Neuroendocrinol, 15:231­74, 1994. BUNNEY Jr WE. Basical and clinical studies of endorphins. Ann Intern Med, 91:239­50, 1979. CHO  Y,  ARIGA  M,  UCHIJIMA  Y  et  al.  The  novel  roles  of  liver  for  compensation  of  insulin  resistance  in  human  growth hormone transgenic rats. Endocrinology, 147(11):5374­84, 2006. COLAO  A,  DI  SOMMA  C,  SAVANELLI  MC et al.  Beginning  to  end:  cardiovascular  implications  of  growth  hormone  (GH) deficiency and GH therapy. Growth Horm IGF Res, 16(1):41­8, 2006. CONE  RD,  MOUNTJOY  KG,  ROBBINS  LS  et  al.  Cloning  and  functional  characterization  of  a  family  of  receptors  for  the melanotropic peptides. Ann NY Acad Sci, 680:342­63, 1993. COSTA C, SOLANES G, VISA J et al.  Transgenic  rabbits  overexpressing  growth  hormone  develop  acromegaly  and  diabetes melito. Faseb J, 12:1455­60, 1998. CROWLEY WR, ARMSTRONG WE. Neurochemical regulation of oxytocin secretion in lactation. Endocrine  Rev,  13:33­65, 1992. DAUGHADAY  WH.  The  adenohypophysis.  In:  WILLIAMS  RH  (Ed.).  Textbook  of  Endocrinology.  6.  ed.  W.B.  Saunders, Philadelphia, 1981. DAVIDSON MS. Effect of growth hormone on carbohydrate and lipid metabolism. Endocrine Rev, 8:115­31, 1987. DIEGUEZ C, PAGE MD, SCANLON MF. Growth hormone neuroregulation and its alterations in disease states. Clin Endocrinol (Oxf), 28:109­43, 1988. DOUGLAS WW. How do neurons secrete peptides? Exocytosis and its consequences, including synaptic vesicle formation, in the hypothalamo­neurohypophyseal system. Progr Brain Res, 39:21­38, 1973. FOGLIA VG, MOUSSAY AB. Glândulas endócrinas. Hipófise. Tireoide. In: Fisiologia Humana.  Guanabara  Koogan,  Rio  de Janeiro, 1984.

FROHMAN LA, DOWNS TR, CHOMCZYNSKI P. Regulation of growth hormone secretion. Front Neuroendocrinol, 13:344­ 405, 1992. FRYKLUND LM, BIERICH JR, RANKE MB. Recombinant human growth hormone. Clin Endocrinol Metab, 15:511­35, 1986. GIL­CAMPOS M, AGUILERA CM, CANETE R et al. Ghrelin: a hormone regulating food intake and energy homeostasis. Br J Nutr, 96(2):201­26, 2006. GREEP RO, WEISS L (Eds.). Histology, McGraw­Hill, New York, 1973. HERBERT SC, ANDREOLI TE. Control of NaCl transport in the thick ascending limb. Am J Physiol, 246:F745­56, 1984. HOPE  DB,  PICKUP  JC.  Neurophisins.  In:  KNOBIL  E,  SAWYER  WH  (Eds.).  Handbook  of  Physiology.  v.  IV.  American Physiological Society, Washington, 1974. INSEL TR, WINSLOW JT, WANG ZX et al. Oxytocin and the molecular basis of monogamy. Adv Exp Med Biol, 395:227­34, 1995. KALRA  SP.  Mandatory  neuropeptide­steroid  signaling  for  the  preovulatory  luteinizing  hormone­releasing  hormone discharge. Endocrine Rev, 14:507­38, 1993. KELLER­WOOD ME, DALLMAN MF. Corticosteroid inhibition of ACTH secretion. Endocrine Rev, 5:1­24, 1984. KELLY PA, DJIANE J, POSTEL­VINAY MC et al. The prolactin/growth hormone receptor family. Endocr Rev, 12:235­51, 1991. KOCK A, SCHAUER E, SCHWARZ T et al. Alpha­MSH and ACTH production by human keratinocytes: a link between the neuronal and the immune system. J Invest Dermatol, 94:543, 1990. KOJIMA M, KANGAWA K. Ghrelin: structure and function. Physiol Rev, 85(2):495­522, 2005. KRULICH L. Central neurotransmitters and the secretion of prolactin, GH, LH and TSH. Ann Rev Physiol, 41:603­15, 1979. LARON Z, ANIN S, KLIPPER­AURBACH Y et al. Effects of insulin­like growth factor on linear growth, head circumference, and body fat in patients with Laron­type dwarfism. Lancet, 339(8804):1258­61, 1992. LARSEN  PR,  KRONENBERG  HM,  MELMED  S  et  al.  (Eds.).  Williams  Textbook  of  Endocrinology.  10.  ed.  Saunders, Philadelphia, 2003. LECHAN RM. Neuroendocrinology of pituitary hormone regulation. Endocrinol Metab Clin North Am, 16:475­501, 1987. LI T, WANG P, WANG SC et al. Approaches mediating oxytocin regulation of the immune system. Front Immunol, 7:693, 2017. LUNDBLAD  JR,  ROBERTS  JL.  Regulation  of  proopiomelanocortin  gene  expression  in  pituitary.  Endocrine  Rev,  9:135­58, 1988. MARTIN JB, REICHLIN S. Clinical Neuroendocrinology. 2. ed. Davis Company, Philadelphia, 1987. MAURAS N, O’BRIEN KO, WELCH S et al. Insulin­like growth factor I and growth hormone (GH) treatment in GH­deficient humans:  differential  effects  on  protein,  glucose,  lipid,  and  calcium  metabolism.  J  Clin  Endocrinol  Metab,  85(4):1686­94, 2000. MAYO KE. Receptors. Molecular mediators of hormone action. In: CONN PM, MELMED S (Eds.). Endocrinology Basic and Clinical Principles. Humana Press Inc., Totowa, 1997 McKINLEY MJ. Volume regulation of antidiuretic hormone secretion. Current Topics in Neuroendocrinology, 4:61­100, 1985. NEILL  JD.  Neuroendocrine  regulation  of  prolactin  secretion.  In:  MARRINI  L,  GANONG  WF  (Eds.).  Frontiers  in Neuroendocrinology. v. 6. Raven Press, New York, 1980. NUNES MT. Regulação neuroendócrina da função tireoidiana. In: ANTUNES­RODRIGUES J, MOREIRA AC, ELIAS LLK et al. (Eds.). Neuroendocrinologia Básica e Aplicada. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 2005. OLIVEIRA  JH,  PERSANI  L,  BECK­PECCOZ  P  et  al.  Investigating  the  paradox  of  hypothyroidism  and  increased  serum thyrotropin  (TSH)  levels  in  Sheehan’s  syndrome:  characterization  of  TSH  carbohydrate  content  and  bioactivity.  J  Clin Endocrinol Metab, 86(4):1694­9, 2001. PAN W, YU Y, CAIN CM et al. Permeation of growth hormone across the blood­brain barrier. Endocrinology, 146(11):4898­904, 2005. PAWELEK JM, CHAKRABORTY AK, OSBER MP et al. Molecular cascades in UV­induced melanogenesis: a central role for melanotropins? Pigment Cell Res, 5:348­56, 1992. REICHLIN  S.  Neuroendocrinology.  In:  WILLIAMS  RH,  WILSON  JD,  FOSTER  DW  (Eds.).  Williams  Textbook  of Endocrinology. W.B. Saunders, Philadelphia, 1985. ROBERTSON  GL.  Regulation  of  vasopressin  secretion.  In:  SEIDIN  DW,  GIEBISCH  G  (Eds.).  The  Kidney:  Physiology  and Pathophysiology. Raven Press, New York, 1985. SALGUEIRO  RB,  PELICIARI­GARCIA  RA,  DO  CARMO  BONFIGLIO  D  et  al.  Lactate  activates  the  somatotropic  axis  in rats. Growth Horm IGF Res, 24(6):268­70, 2014. SCHWARTZ J, CHERNY R. Intercellular communication within the anterior pituitary influencing the secretion of hypophysial hormones. Endocr Rev, 13:453­74, 1992.

SHIMON I, MELMED S. Anterior pituitary hormones. In: CONN PM, MELMED S (Eds.). Endocrinology  Basic  and  Clinical Principles. Humana Press Inc., New Jersey, 1997. SLOMINSKI A. A POMC gene expression in mouse and hamster melanoma cells. FEBS, 291:165­8, 1993. SMITH  AI,  FUNDER  JW.  Proopiomelanocortin  processing  in  the  pituitary,  central  nervous  system  and  peripheral tissues. Endocrine Rev, 9:159­79, 1988. WEINDL A, SOFRONIEW M. Neuroanatomical pathways related to vasopressin. Current Topics in Neuroendocrinology, 4:137­ 96, 1985. WINSLOW  JT,  HASTINGS  N,  CARTER  CS  et  al.  A  role  for  central  vasopressin  in  pair  bonding  in  monogamous  prairie voles. Nature, 365:545­8, 1993.



Introdução

■ ■

Melatonina Bibliografia

INTRODUÇÃO O  estudo  da  glândula  pineal  passou  por  diversos  momentos  na  história  da  ciência  e,  a  cada  momento,  uma  de  suas características  funcionais  foi  enfatizada,  atribuindo­se­lhe  importância  de  acordo  com  as  concepções  filosóficas  e científicas predominantes. Desde a clássica atribuição cartesiana de “sede da alma”, centro, portanto, da regulação de toda função sensorial, motora e cognitiva, até a mais recente de “órgão vestigial”, ou seja, sem a menor importância, a glândula pineal ressurge, na história científica contemporânea, a partir do livro de Kitay e Altschule, de 1954, que por uma revisão extensa da literatura, recoloca­a como objeto de estudo das ciências biológicas e das ciências médicas. O marco seguinte deu­se  em  1958  e  1959,  com  o  isolamento  e  caracterização  molecular  da  melatonina,  seu  hormônio.  A  partir  daí,  surge uma série enorme de trabalhos, congressos e simpósios que procuraram estudar e esclarecer o papel funcional da pineal e de seus produtos de secreção, principalmente da melatonina. A análise da literatura contemporânea mostra, ainda, que a glândula pineal e, em particular, a melatonina podem agir, praticamente,  sobre  qualquer  sistema  fisiológico  e,  às  vezes,  aparentemente,  com  efeitos  contraditórios,  como  ser antigonadotrófica  em  roedores  noturnos  e  pró­gonadotrófica  em  ovelhas,  por  exemplo.  A  solução  dessa  aparente contradição surge quando se passa a estudar a glândula pineal sob a ótica da análise filogenética e da fisiologia comparada. Constata­se  que  esse  órgão  faz  parte  do  plano  geral  de  organização  de  todos  os  vertebrados.  De  mesma  origem embriológica  que  os  olhos  laterais,  o  órgão  pineal  de  peixes,  anfíbios,  répteis  e  algumas  aves  (passariformes)  é diretamente  fotossensível,  sendo  os  pinealócitos  estruturas  semelhantes  aos  fotorreceptores  da  retina  de  mamíferos. Nessas  mesmas  classes,  além  de  suas  características  de  fotossensibilidade  e  de  secreção  endócrina,  a  glândula  pineal mantém  conexões,  tanto  aferentes  quanto  eferentes,  com  o  sistema  nervoso  central  através  do  pedúnculo  pineal.  Em mamíferos, no entanto, apesar de manter seu caráter endócrino, os pinealócitos perdem sua capacidade fotorreceptiva, e a pineal,  perdendo  grande  parte  de  suas  conexões  diretas  com  o  sistema  nervoso  central,  passa  a  estar  sob  o  comando  do ciclo  de  iluminação  ambiental,  de  modo  indireto,  por  meio  de  projeções  da  retina  para  estruturas  diencefálicas  que, projetando­se para o simpático cervical, atingem a glândula pineal. Comum  a  todos  os  vertebrados,  portanto,  é  o  caráter  de  órgão  endócrino  cuja  produção  hormonal  é  controlada  pelo ciclo  de  iluminação  ambiental  característico  do  dia  e  da  noite.  Esse  controle  é  tal  que,  qualquer  que  seja  a  espécie considerada  (seja  de  atividade  diurna,  noturna  ou  crepuscular),  a  produção  de  melatonina  é  predominantemente  noturna (Figura 67.1 e 67.2 A), e a duração do episódio secretório e de sua concentração no extracelular depende estritamente da duração  do  período  de  escuro  (escotoperíodo)  da  alternância  dia­noite.  Como  corolário  dessa  sua  flutuação  diária,  a melatonina  circulante  tem,  também,  seu  perfil  plasmático  variável  de  acordo  com  as  noites  mais  longas  ou  mais  curtas típicas das diversas estações do ano (Figura 67.2 B).

Essas  características  de  produção  e  secreção  de  melatonina  determinam,  portanto,  o  papel  fisiológico  da  glândula pineal:  sinalizar  para  o  meio  interno,  pela  presença  (ou  maior  concentração)  e  ausência  (ou  menor  concentração)  da melatonina na circulação e nos diversos líquidos corpóreos, se é noite ou dia no meio exterior e, pelas características do seu perfil plasmático noturno (duração do episódio secretório de melatonina), qual é a estação do ano.

Figura 67.1 ■ Alocação, dentro das 24 horas, dos momentos de pico de algumas variáveis fisiológicas em animais de hábitos diurnos  e  noturnos.  Repare  que,  independentemente  dos  hábitos  comportamentais  típicos  da  espécie,  a  melatonina  tem  sua secreção máxima à noite.

Figura 67.2 ■ Perfis esquemáticos de secreção de melatonina. A. Perfil circadiano. B. Variação sazonal da duração do período secretório  de  melatonina.  Note  que,  no  inverno,  em  que  as  noites  são  mais  longas,  a  duração  do  episódio  de  secreção  de melatonina é maior do que nas outras estações.

Isso significa que o papel da glândula pineal, pela produção de melatonina, é de sinalizar para o organismo se é dia ou noite e o sentido da mudança de estações. Em função desse sinal temporal, estruturas do sistema nervoso central, principal e  eventualmente  órgãos  periféricos,  disparam  os  mecanismos  adaptativos  para  a  noite  ou  o  dia  e  para  a  estação  do  ano correspondente,  mecanismos  estes  que  são  típicos  da  espécie  considerada.  Assim,  por  exemplo,  noites  crescentes (fotoperíodos decrescentes) provocam o bloqueio do eixo hipotálamo­hipófise­gonádico em roedores noturnos, enquanto o mesmo sinal ativa o mesmo eixo funcional em ovelhas. Ou seja, a melatonina, no caso, não tem como função ser ou não

antigonadotrófica.  Sua  função  é  sinalizar  qual  a  estação  do  ano,  e,  de  acordo  com  a  história  filogenética  adaptativa  da espécie, uma ou outra resposta reprodutiva é disparada pelos sistemas fisiológicos integradores. Desse  modo,  a  glândula  pineal,  associadamente  a  estruturas  neurais  –  como  os  núcleos  supraquiasmáticos hipotalâmicos  –  e  endócrinas,  constitui  o  sistema  neuroendócrino  responsável,  em  última  instância,  pela  organização temporal  dos  diversos  eventos  fisiológicos  e  comportamentais,  necessária  à  adaptação  do  indivíduo  e  da  espécie  às flutuações temporais cíclicas do meio ambiente. Deve­se assinalar que estudos mais recentes mostraram correlatos fisiológicos celulares e mecanismos de transdução diferencial  para  diversos  tipos  de  episódios  secretórios  de  melatonina  (períodos  de  secreção  curtos  ou  longos),  assim como para estimulações circadianas repetidas, indicando pois que os sistemas biológicos adaptaram­se filogeneticamente no sentido de “ler” o sinal melatoninérgico variável de acordo com o dia e a noite e as estações do ano. Em função desse papel de mediador entre fenômenos cíclicos ambientais e processos regulatórios fisiológicos, não é de estranhar, portanto, que a glândula pineal, pela secreção de melatonina, possa estar envolvida na modulação das mais diversas funções fundamentais para a sobrevivência do indivíduo e da espécie: regulação endócrina e metabólica, em geral, e da reprodução, em particular; regulação dos ciclos atividade­repouso e sono­vigília; regulação do sistema imunológico; regulação cardiovascular, entre outras.

MELATONINA A  melatonina  (Figura  67.3)  é  uma  indolamina  (N­acetil­5­metoxitriptamina)  derivada  do  aminoácido  triptofano  e, portanto, não pertence às categorias clássicas de hormônios peptídicos ou esteroides. As  presenças  dos  grupamentos  acetil  e  metoxi  conferem  à  molécula,  respectivamente,  hidrossolubilidade  e lipossolubilidade, ou seja, no seu conjunto, anfifilicidade. Assim, graças a essas características próprias de solubilidade, a melatonina  pode  atingir  todos  os  compartimentos  do  organismo,  atravessando,  inclusive,  as  membranas  celulares  e  de organelas de modo a poder interagir com vários sistemas funcionais subcelulares, em particular com a mitocôndria. Adicionalmente, os carbonos 2 e 3 do grupo pirrólico do grupamento indólico conferem à molécula da melatonina alto poder  redutor  e,  portanto,  uma  grande  capacidade  antioxidante.  De  fato,  a  melatonina  é  considerada  um  dos  mais poderosos antioxidantes naturais, mais potente até, em alguns sistemas, do que as vitaminas C e E.

▸ Síntese de melatonina pela glândula pineal Como visto anteriormente, em todos os vertebrados o metabolismo da glândula pineal está sob o controle dos ciclos diário  e  sazonal  de  iluminação  ambiental.  Em  mamíferos,  a  luminosidade  típica  da  flutuação  de  claro­escuro  ambiental diária,  agindo  através  da  retina,  cumpre  o  papel  clássico  de  arrastador  da  ritmicidade  circadiana  na  produção  de melatonina,  fazendo  com  que  seu  pico  diário  coincida  sempre  com  a  noite,  independentemente  da  espécie  considerada. Diferentemente, no entanto, do que acontece com outros ritmos endógenos, a luz, que incide sobre a retina de mamíferos durante  o  período  de  escuro  da  noite  circadiana,  pode  bloquear,  dependendo  de  sua  intensidade  e  comprimento  de  onda, completa e instantaneamente, a produção de melatonina, fazendo com que sua concentração plasmática caia a níveis basais em poucos minutos (Figura 67.4).

Figura 67.3 ■ Molécula de melatonina.

O  sistema  neural  envolvido  no  controle  do  metabolismo  da  glândula  pineal  origina­se  no  núcleo  paraventricular hipotalâmico  que,  de  forma  direta  e  indireta,  projeta­se  sobre  a  coluna  intermediolateral  da  medula  torácica  alta  e, consequentemente,  sobre  neurônios  pré­ganglionares  do  sistema  nervoso  autônomo  simpático.  Estes  neurônios  se projetam para os gânglios cervicais superiores que, através dos ramos carotídeos internos e nervos conários, projetam­se para a glândula pineal. Por  outro  lado,  o  ritmo  diário  da  produção  de  melatonina  depende  do  sistema  neural  que  classicamente  controla  a ritmicidade circadiana e começa na retina, projetando­se, através da via retino­hipotalâmica, para as regiões hipotalâmicas periquiasmáticas,  principalmente  o  núcleo  supraquiasmático,  que,  por  sua  vez,  conecta­se  com  o  núcleo  paraventricular hipotalâmico,  controlando,  ao  longo  das  24  h,  a  atividade  da  via  neural  responsável  pela  síntese  de  melatonina  (Figura 67.5). Dessa  maneira,  o  controle  noradrenérgico  simpático  sobre  a  glândula  pineal  varia  circadianamente,  de  modo  que  a atividade  dos  nervos  conários  se  torna  mais  intensa  na  imediata  transição  da  parte  clara  para  a  parte  escura  do  ciclo  de iluminação  diário.  Neste  momento  circadiano,  a  densidade  e  a  afinidade  dos  receptores  β­adrenérgicos  (subtipo  β1)  na membrana  das  células  da  glândula  pineal  (pinealócitos)  são  máximas.  Esses  fatos,  associados  à  maior  capacidade  de síntese  de  norepinefrina  pelos  terminais  noradrenérgicos  simpáticos  no  mesmo  momento  circadiano,  determinam,  em consequência, a máxima eficiência desse sistema de neurotransmissão nesse momento muito particular do ciclo diário. Na membrana dos pinealócitos encontram­se, ainda, adrenorreceptores do tipo α 1 (subtipo α 1B).  Esses  receptores,  apesar  de extremamente importantes por seu efeito potenciador da acumulação intracelular de AMP cíclico induzida pela estimulação β­adrenérgica, não apresentam variação circadiana, a não ser em certas circunstâncias particulares. A cadeia bioquímica de síntese de melatonina (Figura 67.6) começa com o aminoácido triptofano, que, através da enzima triptofano­hidroxilase, é convertido  em  5­hidroxitriptofano  (5­HTP).  Este,  sob  a  ação  da  descarboxilase  de  l­aminoácidos  aromáticos,  é transformado  em  serotonina  (5­HT).  A  serotonina  é  convertida  em  N­acetilserotonina  (NAS)  pela  ação  da  enzima arilalquilamina­N­acetiltransferase  (NAT).  A  NAS,  oximetilada  pela  enzima  hidroxi­indol­O­metiltransferase  (HIOMT), dá origem à 5­metoxi­N­acetiltriptamina (melatonina).

Figura 67.4 ■ Fenômeno  da  fotoinibição  da  secreção  noturna  de  melatonina  quando  o  animal  é  exposto  a  uma  estimulação luminosa. No inserto, está representada a curva intensidade vs. resposta, para seres humanos adultos jovens.

Figura  67.5  ■   Vias  neurais  responsáveis  pelo  controle  diário  da  produção  de  melatonina  pineal.  RHP,  via  retino­ hipotalâmica; SCN, núcleo supraquiasmático; PVH, núcleo paraventricular hipotalâmico; IML,  porção  intermediolateral  torácica alta  da  medula  espinal;  SCG,  gânglio  simpático  cervical  superior;  NCI,  nervo  carotídeo  interno;  NC,  nervo  conário;  NOR, norepinefrina; P, pineal.

Todas  as  substâncias  envolvidas  na  síntese  e  na  degradação  da  melatonina  apresentam  uma  flutuação  diária  na  sua concentração (Figura 67.7). A  atividade  da  enzima  triptofano­hidroxilase  (E.C.1.14.16.4)  é  dependente  de  oxigênio  e  de  um  cofator  pteridínico reduzido,  apresentando,  no  rato,  um  ritmo  circadiano  de  atividade,  com  pico  noturno  dependente  da  estimulação noradrenérgica, mediada pelos receptores β e produção de AMP cíclico, em um processo dependente de síntese proteica. Deve­se  lembrar,  no  entanto,  que  dado  o  Km do  triptofano­hidroxilase,  sua  capacidade  de  síntese  de  5­hidroxitriptofano está  limitada  pelas  concentrações  habituais  de  triptofano  plasmático,  indicando  assim  que  aumentos  eventuais  nessa concentração poderiam resultar em aumentos dos níveis de serotonina na pineal.

Figura 67.6 ■ Vias bioquímicas representativas da síntese e degradação da melatonina e outros metabólitos pineais.

Figura 67.7 ■ Perfis diários dos produtos intermediários da via de síntese de melatonina.

O passo bioquímico seguinte, na síntese de melatonina, é a descarboxilação do 5­HTP pela enzima descarboxilase de l­ aminoácidos aromáticos (E.C.4.1.1.28), produzindo serotonina. Essa enzima, que requer piridoxal fosfato como cofator, parece ser a mesma que atua na descarboxilação da DOPA, produzindo dopamina. Desse modo, a reação mais importante, na  síntese  de  serotonina,  é  a  hidroxilação  do  triptofano,  uma  vez  que  o  5­HTP  é  imediatamente  descarboxilado  em  um processo bioquímico controlado pelo substrato. A  concentração  de  serotonina,  na  glândula  pineal,  por  grama  de  tecido,  é  a  mais  alta  do  organismo.  A  serotonina apresenta  uma  variação  diária,  com  altas  concentrações  durante  o  período  de  claro  e  baixas  concentrações  no  período  de escuro do ciclo de iluminação ambiental. A  taxa  de  renovação  de  serotonina  é  máxima  durante  a  noite,  quando,  ao  lado  de  uma  síntese  mais  acentuada,  está aumentada também sua metabolização. A queda observada nos níveis de serotonina na glândula pineal durante o início da noite  deve­se  a  2  fatores:  à  ativação  da  NAT  pela  estimulação  noradrenérgica,  transformando  serotonina  em  N­ acetilserotonina; e a um processo ativo de secreção de serotonina induzido pela estimulação α 1­noradrenérgica. Durante  o  dia,  ou  na  ausência  de  estimulação  noradrenérgica,  a  serotonina  dos  pinealócitos  é  desviada,  quase exclusivamente,  para  a  via  desaminativa­oxidativa,  onde  sofre  ação  da  MAO  B  (E.C.1.4.3.4.;  monoamina: O2 oxidorredutase), sendo transformada em 5­hidroxi­indolaldeído, que, sob ação da aldeído desidrogenase (E.C.1.2.1.3), transforma­se  em  ácido  5­hidroxi­indolacético,  ou,  sob  ação  da  álcool  desidrogenase  (E.C.1.1.1.2),  transforma­se  em  5­

hidroxitriptofol. Estes dois produtos podem ser oximetilados sob a ação da HIOMT produzindo, respectivamente, o ácido 5­metoxi­indolacético e 5­metoxitriptofol. A  enzima  arilalquilamina  N­acetiltransferase  (E.C.2.3.1.87),  que  é  responsável  pela  transformação  de  serotonina  em N­acetilserotonina, é a mais importante na cadeia de síntese de melatonina, apresentando um ritmo circadiano de atividade dependente  da  estimulação  noradrenérgica.  À  noite,  o  aumento  na  quantidade  de  cAMP  intracelular  decorrente  da estimulação  simultânea  dos  receptores  β1  e  α 1­adrenérgicos  aumenta  a  atividade  da  enzima  em  dezenas  de  vezes.  A estimulação β­adrenérgica aumenta a quantidade de cAMP intracelular pela ativação da enzima adenilatociclase através de uma proteína G estimulatória (Gs). A potenciação desse efeito pela estimulação dos receptores α 1­adrenérgicos envolve a mobilização de uma proteína G estimulatória, que, ativando a fosfolipase C, promove a hidrólise do fosfatidilinositol (PI), com  consequente  produção  de  diacilglicerol  e  trifosfato  de  inositol  (IP3).  A  ativação  dos  receptores  α 1  adrenérgicos promove,  ainda,  um  aumento  da  concentração  do  Ca2+  intracelular,  dependente  tanto  de  um  aumento  do  influxo  de Ca2+ quanto da liberação de Ca2+ de estoques intracelulares pelo IP3. O papel dos canais de Ca2+ dependentes de voltagem do tipo L, neste mecanismo, não está bem esclarecido, havendo na literatura dados contraditórios. No entanto, esse tipo de corrente  parece  ser  de  extrema  importância  no  efeito  potenciador  do  cálcio  sobre  a  estimulação  noradrenérgica.  O  Ca2+, juntamente  com  o  diacilglicerol,  promove  a  ativação  da  quinase  proteica  C  (PKC).  É  possível  que  a  potenciação,  pela PKC, da estimulação β­adrenérgica, na produção do cAMP, se dê por meio da fosforilação da proteína Gs ou da unidade catalítica  da  própria  adenilatociclase.  Há  dados  ainda,  em  outros  sistemas,  mostrando  um  papel  potenciador  direto  do complexo Ca2+/calmodulina na ativação da enzima adenilatociclase, fato que poderia estar ocorrendo, também, na glândula pineal. Os  eventos  subsequentes  ao  aumento  do  cAMP  que  levam  à  ativação  da  NAT  são,  hoje  em  dia,  razoavelmente  bem conhecidos.  Sabe­se  que,  em  ratos,  o  cAMP  inicia  processos  de  transcrição  e  tradução  gênicas  e  síntese  da  própria  N­ acetiltransferase. O cálcio também parece exercer um papel importante nesses fenômenos, uma vez que o aumento de sua concentração  no  intracelular  potencializa  os  efeitos  de  análogos  do  cAMP  sobre  a  atividade  enzimática  da  NAT,  e,  ao contrário, a sua depleção por EGTA inibe a estimulação da enzima pelo dibutiril cAMP. O Ca2+ e o cAMP poderiam atuar sinergicamente sobre os processos de transcrição, tradução ou eventos subsequentes, por meio da fosforilação de um fator de  transcrição  dependente  de  AMP  cíclico  (CREB).  Os  fatores  de  transcrição  interagem  com  elementos  de  controle específico  do  DNA  localizados  nas  regiões  promotoras  dos  genes,  ativando  ou  inibindo  a  transcrição  gênica.  Como  os efeitos do cAMP são mediados por uma quinase dependente de cAMP (PKA) e os do Ca2+ parecem ser mediados por uma quinase  dependente  do  complexo  Ca2+/calmodulina,  a  fosforilação  do  CREB  por  esses  dois  elementos  poderia  produzir alterações  conformacionais,  modificando  a  sua  função  e  influenciando  a  expressão  gênica.  Ainda,  as  quinases  reguladas por  Ca2+  e  cAMP  poderiam  fosforilar  a  NAT  diretamente  em  diferentes  locais  ou  poderiam  atuar  indiretamente fosforilando  proteínas  citosólicas  que  regulam  a  síntese,  atividade  ou  estabilidade  da  NAT.  O  Ca2+  poderia  ter, adicionalmente, um papel pós­síntese do mRNA, uma vez que a sua ausência tem um efeito na reindução da NAT no meio da noite, fenômeno que, sabidamente, independe de síntese adicional de mRNA. O cAMP aumenta rapidamente após a estimulação noradrenérgica, alcançando níveis máximos (aumento de 60 vezes em relação ao controle) em 10 min. Em seguida, ocorre um declínio gradual até os níveis do controle. Essa síntese inicial bastante elevada de cAMP deve­se à estimulação simultânea pela norepinefrina dos receptores β e α 1, e a redução que se segue  é,  em  grande  parte,  provocada  pela  imediata  dessensibilização  dos  receptores  α 1 pela  PKC.  Ainda,  essa  resposta celular  inicial  elevada,  na  síntese  do  cAMP,  seguida  de  redução,  deve­se  a  um  aumento  da  densidade  de  receptores  β­ adrenérgicos  no  início  do  período  escuro,  seguida  de  uma  dessensibilização  lenta  desses  receptores  e  de  um  aumento  no metabolismo do cAMP pela fosfodiesterase. Por outro lado, a indução máxima de atividade da NAT ocorre aproximadamente 4 a 6 h após o início da estimulação noradrenérgica, quando os níveis de cAMP já não se encontram tão elevados. É possível que a alta quantidade inicial de cAMP seja necessária para induzir processos de transcrição e tradução gênicos, enquanto concentrações menores de cAMP sejam  adequadas  para  manter  a  atividade  da  NAT.  O  término  da  estimulação  simpática,  a  administração  de  antagonistas adrenérgicos  ou  a  fotoestimulação  noturna  produzem  uma  queda  na  atividade  da  NAT  com  uma  meia­vida  de aproximadamente  3  min.  Esse  processo  de  inativação  enzimática  parece  depender,  em  grande  parte,  de  mecanismos  de destruição proteossomal. A  NAS  é  convertida  em  melatonina  pe­la  enzima  hidroxi­indol­O­metiltransfera­se,  que  mantém  sua  atividade relativamente  constante  ao  longo  das  24  h.  A  regulação  noradrenérgica  da  HIOMT,  diferentemente  da  NAT  e  do triptofano­hidroxilase,  parece  ocorrer  a  longo  prazo.  Por  exemplo,  ratos  expostos  à  luz  constante  ou  que  tiveram removidos  os  seus  gânglios  cervicais  superiores  apresentam  uma  redução  de  aproximadamente  70%  na  atividade  da

HIOMT, após um período de 3 semanas. No entanto, foram descritas evidências apontando para a regulação circadiana da HIOMT e sua importância na síntese de melatonina. Está  demonstrado  que  outras  substâncias,  sejam  neurotransmissores,  neuromoduladores  ou  hormônios,  podem modular  a  síntese  de  melatonina:  neuropeptídio  Y,  peptídio  intestinal  vasoativo,  vasopressina,  angiotensina  II,  insulina, acetilcolina,  dopamina,  GABA,  glutamato,  prostaglandinas,  adenosina,  ATP,  peptídio  delta  indutor  de  sono,  peptídio histidina  N­terminal  e  leucina  C­terminal  (PHI),  peptídio  ativador  da  adenilatociclase  da  pituitária  (PACAP),  pteridinas, entre outras. A Figura 67.8 mostra  um  esquema  resumindo  as  principais  vias  metabólicas  intracelulares  responsáveis  pela  síntese de melatonina pelos pinealócitos.

▸ Secreção de melatonina e sua metabolização periférica Costuma­se  considerar  que  toda  melatonina  produzida  é  imediatamente  secretada,  seja  pela  sua  alta  solubilidade  nos meios  biológicos,  seja  pelo  fato  de  ela  não  poder  ser  detectada  por  métodos  histoquímicos  celulares  em  grânulos  de secreção  nos  pinealócitos.  No  entanto,  há  evidências  de  que  a  secreção  de  melatonina  poderia  ser  regulada  de  modo independente  da  sua  síntese.  Assim,  demonstra­se  em  várias  espécies  que  a  secreção  de  melatonina  (cuja  concentração plasmática  é  medida  tanto  na  grande  confluência  venosa  posterior  quanto  perifericamente)  tem  caráter  pulsátil,  com  a frequência,  em  ratos,  de  aproximadamente  2,9  ciclos  por  hora.  Apesar  de  esse  ritmo  de  secreção  poder  ser  atribuído  a eventuais  alças  bioquímicas  envolvidas  na  síntese  da  melatonina  ou  outros  fatores,  poderia,  também,  ser  atribuído  a  um processo  de  armazenagem  transitória,  uma  vez  que  parece  independer  do  padrão  de  descarga  das  fibras  simpáticas aferentes. Mesmo em glândulas mantidas em cultura e submetidas à técnica de perfusão, há evidências de secreção pulsátil de  melatonina  induzida  por  agonistas  β­adrenérgicos.  Além  disso,  algumas  substâncias  como  adenosina  e  dopamina  e bloqueadores  de  canais  de  cálcio  parecem  regular  o  próprio  processo  de  secreção  de  melatonina  pelos  pinealócitos.  A melatonina  é  liberada  nos  espaços  perivasculares  da  glândula,  difundindo­se,  daí,  para  a  circulação.  O  transporte plasmático  se  dá  principalmente  ligado  a  proteínas,  em  especial  a  albumina.  A  meia­vida  da  melatonina  circulante  é  de cerca  de  20  min,  e  sua  metabolização  periférica  se  dá  essencialmente  pela  transformação  hepática  (em  torno  de  90%  da melatonina  circulante)  em  6­OH­melatonina,  que  após  conjugação  com  sulfatos  (a  maior  parte  gerando  a  6­ sulfatoximelatonina)  ou  com  glucuronídeos  é  excretada  na  urina.  Deve­se  ressaltar  que  a  melatonina  pode  ser  secretada diretamente  no  terceiro  ventrículo  cerebral,  através  do  recesso  pineal,  no  qual  sua  concentração  chega  a  ser  de  10  a  20 vezes maior que no plasma. No sistema nervoso central e na própria glândula pineal a melatonina pode ser transformada em quinuraminas sob a ação da 2,3 indolamina dioxigenase (ver Figura 67.6). O cAMP aumenta rapidamente após a estimulação noradrenérgica, alcançando níveis máximos (aumento de 60 vezes em relação ao controle) em 10 min. Em seguida, ocorre um declínio gradual até os níveis do controle. Essa síntese inicial bastante elevada de cAMP deve­se à estimulação simultânea pela norepinefrina dos receptores β e α 1, e a redução que se segue  é,  em  grande  parte,  provocada  pela  imediata  dessensibilização  dos  receptores  α 1 pela  PKC.  Ainda,  essa  resposta celular  inicial  elevada,  na  síntese  do  cAMP,  seguida  de  redução,  deve­se  a  um  aumento  da  densidade  de  receptores  β­ adrenérgicos  no  início  do  período  escuro,  seguida  de  uma  dessensibilização  lenta  desses  receptores  e  de  um  aumento  no metabolismo do cAMP pela fosfodiesterase. Por outro lado, a indução máxima de atividade da NAT ocorre aproximadamente 4 a 6 h após o início da estimulação noradrenérgica, quando os níveis de cAMP já não se encontram tão elevados. É possível que a alta quantidade inicial de cAMP seja necessária para induzir processos de transcrição e tradução gênicos, enquanto concentrações menores de cAMP sejam  adequadas  para  manter  a  atividade  da  NAT.  O  término  da  estimulação  simpática,  a  administração  de  antagonistas adrenérgicos  ou  a  fotoestimulação  noturna  produzem  uma  queda  na  atividade  da  NAT  com  uma  meia­vida  de aproximadamente  3  min.  Esse  processo  de  inativação  enzimática  parece  depender,  em  grande  parte,  de  mecanismos  de destruição proteossomal. A  NAS  é  convertida  em  melatonina  pe­la  enzima  hidroxi­indol­O­metiltransfera­se,  que  mantém  sua  atividade relativamente  constante  ao  longo  das  24  h.  A  regulação  noradrenérgica  da  HIOMT,  diferentemente  da  NAT  e  do triptofano­hidroxilase,  parece  ocorrer  a  longo  prazo.  Por  exemplo,  ratos  expostos  à  luz  constante  ou  que  tiveram removidos  os  seus  gânglios  cervicais  superiores  apresentam  uma  redução  de  aproximadamente  70%  na  atividade  da HIOMT, após um período de 3 semanas. No entanto, foram descritas evidências apontando para a regulação circadiana da HIOMT e sua importância na síntese de melatonina. Está  demonstrado  que  outras  substâncias,  sejam  neurotransmissores,  neuromoduladores  ou  hormônios,  podem modular  a  síntese  de  melatonina:  neuropeptídio  Y,  peptídio  intestinal  vasoativo,  vasopressina,  angiotensina  II,  insulina,

acetilcolina,  dopamina,  GABA,  glutamato,  prostaglandinas,  adenosina,  ATP,  peptídio  delta  indutor  de  sono,  peptídio histidina  N­terminal  e  leucina  C­terminal  (PHI),  peptídio  ativador  da  adenilatociclase  da  pituitária  (PACAP),  pteridinas, entre outras. A Figura 67.8 mostra  um  esquema  resumindo  as  principais  vias  metabólicas  intracelulares  responsáveis  pela  síntese de melatonina pelos pinealócitos.

▸ Secreção de melatonina e sua metabolização periférica Costuma­se  considerar  que  toda  melatonina  produzida  é  imediatamente  secretada,  seja  pela  sua  alta  solubilidade  nos meios  biológicos,  seja  pelo  fato  de  ela  não  poder  ser  detectada  por  métodos  histoquímicos  celulares  em  grânulos  de secreção  nos  pinealócitos.  No  entanto,  há  evidências  de  que  a  secreção  de  melatonina  poderia  ser  regulada  de  modo independente  da  sua  síntese.  Assim,  demonstra­se  em  várias  espécies  que  a  secreção  de  melatonina  (cuja  concentração plasmática  é  medida  tanto  na  grande  confluência  venosa  posterior  quanto  perifericamente)  tem  caráter  pulsátil,  com  a frequência,  em  ratos,  de  aproximadamente  2,9  ciclos  por  hora.  Apesar  de  esse  ritmo  de  secreção  poder  ser  atribuído  a eventuais  alças  bioquímicas  envolvidas  na  síntese  da  melatonina  ou  outros  fatores,  poderia,  também,  ser  atribuído  a  um processo  de  armazenagem  transitória,  uma  vez  que  parece  independer  do  padrão  de  descarga  das  fibras  simpáticas aferentes. Mesmo em glândulas mantidas em cultura e submetidas à técnica de perfusão, há evidências de secreção pulsátil de  melatonina  induzida  por  agonistas  β­adrenérgicos.  Além  disso,  algumas  substâncias  como  adenosina  e  dopamina  e bloqueadores  de  canais  de  cálcio  parecem  regular  o  próprio  processo  de  secreção  de  melatonina  pelos  pinealócitos.  A melatonina  é  liberada  nos  espaços  perivasculares  da  glândula,  difundindo­se,  daí,  para  a  circulação.  O  transporte plasmático  se  dá  principalmente  ligado  a  proteínas,  em  especial  a  albumina.  A  meia­vida  da  melatonina  circulante  é  de cerca  de  20  min,  e  sua  metabolização  periférica  se  dá  essencialmente  pela  transformação  hepática  (em  torno  de  90%  da melatonina  circulante)  em  6­OH­melatonina,  que  após  conjugação  com  sulfatos  (a  maior  parte  gerando  a  6­ sulfatoximelatonina)  ou  com  glucuronídeos  é  excretada  na  urina.  Deve­se  ressaltar  que  a  melatonina  pode  ser  secretada diretamente  no  terceiro  ventrículo  cerebral,  através  do  recesso  pineal,  no  qual  sua  concentração  chega  a  ser  de  10  a  20 vezes maior que no plasma. No sistema nervoso central e na própria glândula pineal a melatonina pode ser transformada em quinuraminas sob a ação da 2,3 indolamina dioxigenase (ver Figura 67.6).

Figura  67.8  ■   Vias  de  transdução  intracelulares  responsáveis  pela  síntese  de  melatonina  como  resultado  da  estimulação noradrenérgica dos pinealócitos. Descrição no texto. (Adaptada de Ganguly et al., 2002.)

▸ Mecanismos de ação da melatonina A  melatonina  expressa  sua  ação  nos  diversos  tecidos  agindo  por  meio  de  2  grandes  mecanismos:  (1)  ações  não mediadas por receptores e (2) ações mediadas por receptores (Figura 67.9). As ações não mediadas por receptores expressam­se pela interação da melatonina diretamente com outras moléculas, caracterizando  o  que  se  chama  de  ação  intracelular  direta  da  melatonina  (Quadro 67.1).  Por  exemplo,  parte  de  sua  ação antioxidante deve­se à sua capacidade de reagir diretamente com espécies ativas de oxigênio (p. ex., radical hidroxila), de nitrogênio  e  de  cloreto.  Sabe­se,  também,  que  a  melatonina  pode  ligar­se  à  cálcio­calmodulina,  bloqueando  a  ação  de quinases que dela dependem. Um outro exemplo da ação direta da melatonina é sua capacidade de ligar­se aos complexos I e IV da cadeia fosforilativa mitocondrial, estabilizando o processo de transporte de elétrons e síntese de ATP. Além  dessas  ações  intracelulares  diretas,  a  melatonina  pode  agir  nos  diversos  tecidos  através  de  receptores específicos.  Diferentemente  da  maioria  dos  outros  hormônios,  a  melatonina  tem  tanto  receptores  de  membrana  quanto nucleares. Dois tipos de receptores de membrana (MT1 e MT2), tipicamente de 7 alças e ligados, principalmente, à proteína Gi, foram  clonados  e  tiveram  seus  mecanismos  de  transdução  adequadamente  estudados  (ver  adiante).  Receptores  de  alta afinidade  foram  clonados  pela  primeira  vez  de  melanóforos  de  Xenopus.  Seguiu­se  a  clonagem  em  mamíferos, especificamente em ovelhas, a partir de RT­PCR de mRNA da pars tuberalis, e em humanos por PCR de DNA genômico. As  proteínas  nas  3  espécies  são  homólogas  e  formam,  como  dito  antes,  receptores  de  7  alças  que,  caracteristicamente, ativam proteínas Gi/G0. Os clones foram expressos em sistemas heterólogos, formando receptores que ligam derivados da melatonina e que, em geral, inibem, por mecanismo sensível à toxina pertussis, a ativação da adenilatociclase induzida por

forskolin. Experimentos de coprecipitação mostraram que os receptores específicos para melatonina podem, ainda, ligar­se a vários tipos de proteínas G, entre as quais as proteínas Gq e G11, e, com isso, ativar as vias de transdução dependentes da fosfolipase C, IP3 e diacilglicerol.

Figura 67.9 ■ Mecanismos de ação da melatonina. Descrição no texto.

Quadro 67.1 ■ Alguns efeitos e ações intracelulares diretas da melatonina. ■ Ação antioxidante: reação química com ROS e RNS, aumentando a eficiência da cadeia de transporte de elétrons mitocondrial ■ Estimulação dos mecanismos protetores e reparadores do DNA: diretamente, pela ação oxidante ou pela mobilização dos mecanismos de reparação por excisão (DNA polimerases e DNA ligases) ■ Regulação enzimática direta: quinases dependentes de cálcio­calmodulina; ciclo­oxigenase ■ Regulação de mecanismos motores celulares e da divisão celular: fuso micótico; mecanismos motores e microtúbulos (dineínas etc.) ■ Regulação da apoptose celular: modificação da permeabilidade mitocondrial ■ Regulação da função mitocondrial: permeabilidade; eficiência da cadeia oxidativa e síntese de ATP; interação com o complexo do citocromo p450; divisão mitocondrial ■ Permeabilidade de canais iônicos: cálcio, potássio e sódio A melatonina pode agir, também, por meio de receptores nucleares. Recentemente, demonstrou­se que a melatonina é o  ligante  natural  de  um  receptor  nuclear  órfão  pertencente  à  categoria  de  receptores  do  ácido  retinoico  tipo  RZR­ROR, subtipos  α  e  β.  Entre  os  efeitos  demonstrados  para  a  ligação  da  melatonina  a  esses  receptores,  está  a  diminuição  da expressão da enzima 5­lipo­oxigenase, o aumento da expressão de enzimas antioxidantes e a síntese de interleucina 2 e seu receptor. Em mamíferos, e no rato, em particular, demonstra­se a presença de receptores de melatonina nas seguintes áreas do sistema  nervoso  central:  núcleo  do  trato  olfatório  lateral,  núcleo  septo­hipotalâmico,  área  pré­óptica  medial,  núcleo supraquiasmático,  área  hipotalâmica  anterior,  núcleo  ventromedial  hipotalâmico,  núcleo  arqueado,  pars  tuberalis  da

hipófise  anterior,  núcleo  mamilar  lateral,  núcleos  paraventricular,  anteroventral  e  intermediodorsal  do  tálamo,  região medial da habênula lateral, núcleo da estria medular, núcleos basolateral e medial do complexo amigdaloide, subículo da formação  hipocampal,  cerebelo,  área  postrema  e  núcleo  espinal  do  nervo  trigêmeo,  além  das  artérias  cerebrais  anterior  e posterior e células ependimárias. Demonstra­se, ainda, a presença de receptores ou locais de ligação específicos para a melatonina em células de vários sistemas periféricos, como rim, pulmão, coração, intestino, gônadas, vasos sanguíneos, fígado, baço, timo, em células do sistema imunológico (linfócitos e macrófagos) e do tecido adiposo (branco e marrom), células β das ilhotas pancreáticas etc.

▸ Papel da melatonina na regulação de processos fisiológicos Desde  que  a  glândula  pineal,  em  particular  através  da  produção  e  secreção  de  melatonina,  é  vista, contemporaneamente,  como  responsável  pela  transmissão  da  informação fotoperiódica  circadiana  e  sazonal  para  todo  o organismo,  ela  deve,  de  forma  direta  ou  indireta  (diretamente  sobre  os  órgãos  alvos  ou  indiretamente  através  de  uma mediação neural e/ou endócrina), exercer um papel regulatório sobre os mais diversos eventos fisiológicos, metabólicos e comportamentais (Quadro 67.2).  Dessa  maneira,  não  é  de  estranhar  que,  nas  últimas  décadas,  tem­se  demonstrado  sua ação  sobre  os  mais  diversos  fenômenos  biológicos.  Classicamente,  ela  esteve  vinculada  ao  fenômeno  de  clareamento  da pele de anfíbios. Mais contemporaneamente demonstra­se sua enorme importância na regulação de fenômenos circadianos e  sazonais  associados  à  reprodução;  na  regulação  de  outros  fenômenos  endócrinos  não  dependentes  do  eixo  hipotálamo­ hipófise­gonádico;  na  termorregulação;  na  regulação  do  sistema  cardiovascular,  em  particular,  da  pressão  arterial;  na regulação dos fenômenos ligados a ciclos de atividade­repouso e vigília­sono, além de fenômenos de torpor e hibernação; na  regulação  do  sistema  imunológico;  na  temporização  do  feto,  gestação  e  parto,  crescimento  e  envelhecimento,  assim como na regulação do metabolismo de carboidratos, entre outros. Assim, a melatonina, agindo sobre os núcleos supraquiasmáticos hipotalâmicos (sede do relógio biológico circadiano) regulariza grande parte dos ritmos diários, principalmente os ritmos de sono e vigília. Dessa forma, é a única substância conhecida  que  é  capaz  de,  em  seres  humanos  e  se  administrada  na  hora  certa  e  em  dosagens  adequadas,  provocar  o surgimento  de  episódios  diários  de  sono  com  a  mesma  arquitetura  do  sono  fisiológico  noturno.  Assim,  tem  sido  usada, clinicamente, em certos distúrbios particulares de sono e na correção da dessincronose associada ao chamado efeito do jet lag. Verifica­se que injeções diárias de melatonina, em animais em livre­curso, sincronizam ritmos de atividade­repouso e que, quando se aplica melatonina em culturas de fatias de cérebro, ela é capaz de imediatamente mudar a fase de atividade elétrica de neurônios dos núcleos supraquiasmáticos. Nestas circunstâncias experimentais, a melatonina afeta a expressão dos  genes  do  relógio.  As  expressões  de  per1  e  bmal1  foram  significativamente  afetadas.  Da  mesma  maneira,  pela administração  diária  de  melatonina,  é  possível  regularizar  a  ritmicidade  diária  de  pacientes  humanos  que,  por  diversas circunstâncias (p. ex., cegueira), não são capazes de sincronizar seus ritmos endógenos ao claro­escuro ambiental. Por ter ação imunoestimulante (principalmente da resposta imune celular) e antitumoral (principalmente nos cânceres dependentes  de  estrógeno),  além  de  ser  antioxidante,  a  melatonina  tem  sido  utilizada  como  coadjuvante  na  terapia antitumoral (terapias imunoestimulantes, quimioterapia, radioterapia e previamente a cirurgias de tumores). Por sua ação antigonadotrófica  em  seres  humanos,  tem  sido  utilizada  em  associação  aos  fármacos  tradicionais  em  pílulas anticoncepcionais.

Quadro 67.2 ■ Alguns efeitos fisiológicos da glândula pineal e da melatonina. ■ Regulação dos ritmos circadianos e sazonais ■ Regulação do ciclo vigília­sono ■ Regulação dos processos reprodutivos e mediação materno­fetal ■ Regulação do sistema imunológico ■ Regulação antitumoral (em tumores dependentes de estrógenos reduz a expressão de E2α) ■ Regulação do sistema cardiovascular

■ Regulação de mecanismos sensoriais da dor ■ Regulação do desenvolvimento neural e plasticidade ■ Regulação de processos antienvelhecimento ■ Regulação do metabolismo energético Um  papel  importante  da  melatonina,  evidenciado  recentemente,  está  na  sua  capacidade  de  regular  o  metabolismo energético  tanto  sazonal  quanto  circadianamente.  Sazonalmente  –  na  metade  do  ano  com  noites  crescentes  e  perfis noturnos  curtos  e  crescentes  de  melatonina  –  é  um  dos  marcadores  importantes  para  sinalizar  o  aumento  da  ingesta alimentar,  elevar  a  sensibilidade  insulínica  e,  portanto,  aumentar  os  depósitos  energéticos,  elevando  o  peso  corpóreo  e  a síntese  de  leptina.  A  partir  do  solstício  de  inverno  –  e,  portanto,  na  metade  do  ano  com  noites  decrescentes  –,  o  perfil noturno de melatonina mais longo provoca redução da ingesta alimentar, e sua queda gradativa, acompanhando as noites decrescentes,  leva  a  um  estado  de  resistência  insulínica,  consumo  dos  estoques  energéticos  e  redução  do  peso  corpóreo. Circadianamente,  a  melatonina  está  intimamente  associada  ao  aumento  da  sensibilidade  insulínica,  mostrando  uma  ação antidiabetogênica importante. Como  perspectivas  promissoras  de  uso  terapêutico  da  melatonina  ou  de  seus  análogos  sintéticos,  está  seu  uso  na regulação do sistema cardiovascular (ação anti­hipertensiva), como droga antidepressiva, na prevenção de certos tipos de enxaqueca e como coadjuvante eventual na terapia do diabetes benigno (ação pró­insulínica e reguladora da secreção e ação diárias da insulina).

BIBLIOGRAFIA BARRETT P, MacLEAN A, DAVIDSON G et al. Regulation of the Mel 1a melatonin receptor mRNA and protein levels in the ovine  pars  tuberalis:  Evidence  for  a  cyclic  adenosine  3’,5’­monophosphate­independent  Mel  1a  receptor  coupling  and  an autoregulatory mechanism expression. Mol Endocrinol, 10: 892­902, 1996. BARTOL  I,  SKORUPA  AL,  SCIALFA  JH  et  al.  Pineal  metabolic  reaction  to  retinal  photostimulation  in  ganglionectomized rats. Brain Res, 744:77­82, 1995. BORJIGIN  J,  WANG  MM,  SNYDER  SH.  Diurnal  variation  in  mRNA  encoding  serotonin  N­acetyltransferase  in  pineal gland. Nature, 378:783­5, 1995. BOWERS CW, ZIGMOND RE. Electrical stimulation of the cervical sympathetic trunks mimics the effects of darkness on the activity of serotonin: N­acetyltransferase in the rat pineal. Brain Res, 185:435­40, 1980. CARLBERG  C,  WIESENBERG  I.  The  orphan  receptor  family  RZR/ROR,  melatonin  and  5­lipoxygenase:  An  unexpected relationship. J Pineal Res, 18:171­8, 1995. CIPOLLA­NETO  J,  AFECHE  SC.  Glândula  pineal:  Fisiologia  celular  e  função.  In:  WAJCHENBERG  BL  (Ed.).  Tratado  de Endocrinologia Clínica. Roca, São Paulo, 1992. COON  SL,  ROSEBOOM  PH,  BALER  R  et  al.  Pineal  serotonin  N­acetyltransferase:  Expression  cloning  and  molecular analysis. Science, 270:1681­3, 1995. DUBOCOVICH ML. Melatonin receptors: are there multiple subtypes. Trends Pharmacol Sci, 16:50­6, 1955. EBISAWA T, KARNE S, LERNER MR et al.  Expression  cloning  of  a  high­affinity  melatonin  receptor  from  Xenopus  dermal melanophores. Proc Natl Acad Sci EUA, 91:6133­7, 1994. EVERED D, CLARK S (Eds.). Photoperiodism, Melatonin and the Pineal. Pitman, London, 1985. FISCHER B, MUSSHOFF U, FAUTECK JD et al. Expression and functional characterization of a melatonin­sensitive receptor in Xenopus oocytes. Febs Letters, 381:98­102, 1996. FUKAWA E, TANAKA H, MAKINO I. Identification and characterization of guanine nucleotide­sensitive melatonin receptors in chicken brain. Neuropharmacology, 34:767­76, 1995. GANGULY  S,  COON  SL,  KLEIN  DC.  Control  of  melatonin  synthesis  in  the  mammalian  pineal  gland:  the  critical  role  of serotonin acetylation. Cell Tissue Res, 309:127­37, 2002. GAUER,  F,  MASSON­PEVET  M,  STEHLE  J  et  al.  Daily  variations  in  melatonin  receptor  density  of  rat  pars  tuberalis  and suprachiasmatic nuclei are distinctly regulated. Brain Res, 641:92­8, 1994. GILLETTE MU, McARTHUR AJ. Circadian actions of melatonin at the suprachiasmatic nucleus. Behav Brain Res, 73:135­9, 1995.

GODSON  C,  REPPERT  SM.  The  Mel1a  melatonin  receptor  is  coupled  to  parallel  signal  transduction pathways. Endocrinology, 138:397­404, 1997. GONZALEZ  BRITO  A,  JONES  DJ,  ADEME  RM  et  al.  Characterization  and  measurements  of  [125]  I­iopindol  binding  in individual rat pineal glands: existence of 24 h rhythm in beta adrenergic receptor density. Brain Res, 438:108, 1998. HARDELAND  R,  BALZER  I,  POEGGELER  B  et  al.  On  the  primary  functions  of  melatonin  in  evolution:  Mediation  of photoperiodic signals in a unicell, photooxidation, and scavenging of free radicals. J Pineal Res, 18:104­11, 1995. HARDELAND  R,  REITER  RJ,  POEGGELER  B  et  al.  The  significance  of  the  metabolism  of  the  neurohormone  melatonin: antioxidative protection and formation of bioactive substances. Neurosci Biobehav Rev, 17:347­57, 1993. HASTINGS  MH,  HERBERT  J.  Neurotoxic  lesions  of  the  paraventriculo­spinal  projection  block  the  nocturnal  rise  in  pineal melatonin synthesis in the Syrian hamster. Neurosci Lett, 69:1­6, 1986. HO  AK,  CHIK  CL,  KLEIN  DC.  Permissive  role  of  calcium  in  alpha  1­adrenergic  stimulation  of  pineal  phosphatidylinositol phosphodiesterase (phospholipase C) activity. J Pineal Res, 5:553­64, 1988. ILLNEROVA  H,  VANECEK  J.  Response  of  rat  pineal  serotonin  N­acetyltransferase  to  one  min  light  pulse  at  different  night times. Brain Res, 167:431­4, 1979. JOHNSON  RF,  SMALE  L,  MOORE  RY  et  al.  Paraventricular  nucleus  efferents  mediating  photoperiodism  in  male  golden hamsters. Neurosci Lett, 98:85­90, 1989. KAPPERS JA. The development, topographical relations and innervation of the epiphysis cerebri in the albino rat. Zeitschrift für Zellforschung, 52:163­215, 1960. KAPPERS JA. Short history of pineal discovery and research. Prog Brain Res, 52:3­22, 1979. KITAY  JL,  ALTSCHULE  MD.  The  Pineal  Gland,  a  Review  of  Physiologic  Literature.  Harvard  University  Press,  Cambridge, 1954. KLEIN  DC,  BERG  GR,  WELLER  J.  Melatonin  synthesis:  adenosine  3’,5’­monophosphate  and  norepinephrine  stimulate  N­ acetyltransferase. Science, 168:979­80, 1970. KLEIN DC, BUDA MJ, KAPOOR CL et al.  Pineal  serotonin  N­acetyltransferase  activity:  abrupt  decrease  in  adenosine  3’,5’­ monophosphate may be signal for “turnoff”. Science, 199:309­11, 1978. KLEIN  DC,  SMOOT  R,  WELLER  JL  et  al.  Lesions  of  the  paraventricular  nucleus  area  of  the  hypothalamus  disrupt  the suprachiasmatic­spinal cord circuit in the melatonin rhythm generating system. Brain Res Bull, 10:647­52, 1983. KLEIN DC, WELLER JL. Indole metabolism in the pineal gland: a circadian rhythm in N­acetyltransferase. Science, 169:1093­5, 1970. KLEIN  DC,  WELLER  JL.  Rapid  light­induced  decrease  in  pineal  serotonin  N­acetyltransferase  activity.  Science,  177:532­3, 1972. LERNER AB, CASE JD. Pigmented cell regulatory factors. J Invest Dermatol, 32:2111, 1959. LERNER AB, CASE JD, TAKAHASHI Y. Isolation of melatonin, the pineal gland factor that lightens melanocytes. J Am Chem Soc, 80:2587, 1959. MAYWOOD  ES,  BITTMAN  EL,  EBLING  FJP  et  al.  Regional  distribution  of  iodomelatonin  binding  sites  within  the suprachiasmatic nucleus of the Syrian hamster and the Siberian hamster. J. Neuroendocrinol, 7:215­23, 1995. MORGAN PJ, BARRETT P, HOWELL HE et al. Melatonin receptors: Localization, molecular pharmacology and physiological significance. Neurochem Int, 24:101­46, 1994. MORGAN PJ, WILLIAMS LM, BARRETT P et al. Differential regulation of melatonin receptors in sheep, chicken and lizard brains by cholera and pertussis toxins and guanine nucleotides. Neurochem Int, 28:259­69, 1996. PANG SF, DUBOCOVICH ML, BROWN GM. Melatonin receptors in peripheral tissues: a new area of melatonin research. Biol Signals, 2:177­80, 1993. PARFITT A, WELLER JL, KLEIN DC. Beta adrenergic­blockers decrease adrenergically stimulated N­acetyltransferase activity in pineal glands in organ culture. Neuropharmacology, 15:353­8, 1976. PARK  HT,  KIM  YJ,  YOON  S  et  al.  Distributional  characteristics  of  the  mRNA  for  retinoid  Z  receptor  β(RZRβ),  a  putative nuclear melatonin receptor, in the rat brain and spinal cord. Brain Res, 747:332­7, 1997. POEGGELER  B,  SAARELA  S,  REITER  RJ  et  al.  Melatonin  –  A  highly  potent  endogenous  radical  scavenger  and  electron donor: New aspects of the oxidation chemistry of this indole accessed in vitro. Ann NY Acad Sci, 738:419­20, 1994. REITER RJ. Melatonin: the chemical expression of darkness. Mol Cell Endocrinol, 79:C153­8, 1991. REITER RJ, OH CS, FUJIMORI O. Melatonin – Its intracellular and genomic actions. Trends Endocrinol Metab, 7:22­7, 1996. REPPERT SM, GODSON C, MAHLE CD et al. Molecular characterization of a second melatonin receptor expressed in human retina and brain: The Mel1b melatonin receptor. Proc Nat Acad Sci EUA, 92:8734­8, 1995. REPPERT SM, WEAVER DR, CASSONE VM et al. Melatonin receptors are for the birds: molecular analysis of two receptor subtypes differentially expressed in chick brain. Neuron, 15:1003­15, 1995.

REPPERT  SM,  WEAVER  DR,  GODSON  C.  Melatonin  receptors  step  into  the  light:  cloning  and  classification  of subtypes. Trends Pharmacol Sci, 17:100­2, 1996. SUGDEN D. Melatonin biosynthesis in the mammalian pineal gland. Experientia, 45:922­32, 1989. VOLLRATH L. The Pineal Organ. Springer­Verlag, Berlin, 1981. YANOVSKI  J,  WITCHER  J,  ADLER  N  et  al.  Stimulation  of  the  paraventricular  nucleus  area  of  the  hypothalamus  elevates urinary 6­hydroxymelatonin during daytime. Brain Res Bull, 19:129­33, 1987.



Introdução

■ ■

Estrutura e morfologia da glândula tireoide Iodo, componente essencial na biossíntese do HT

■ ■ ■

Biossíntese do HT Regulação da função da tireoide HT no tecido periférico

■ ■

Captação e ação celular Ação fisiológica do HT



Bibliografia

INTRODUÇÃO A glândula tireoide sintetiza os hormônios tireoidianos (HT), tiroxina (T4) e 3,5,3’­L­tri­iodotironina (T3), compostos biologicamente ativos que contêm molécula de iodo em sua estrutura. O HT exerce importante papel no desenvolvimento, crescimento e metabolismo. Ele atua na função normal de quase todos  os  tecidos,  sendo  essencial  no  consumo  do  oxigênio  e  no  metabolismo  celular.  O  mecanismo  molecular  do  HT ocorre pela ligação de T3 aos receptores nucleares de HT, cuja interação modifica a expressão gênica de diferentes genes positiva ou negativamente nas células­alvo, ou ainda pela atuação direta de T3 e T4 em vias de sinalização intracelular. A  função  da  glândula  tireoide  está  sob  o  controle  hipotalâmico­hipofisário­tireóideo,  no  modelo  clássico de feedback negativo. Além da regulação neuroendócrina, os efeitos fisiológicos dos hormônios tireoidianos são regulados por  complexo  mecanismo  extratireoidiano,  resultante  do  metabolismo  periférico  dos  hormônios,  exercido  pela  ação enzimática das selenoproteínas desiodases, e da disponibilidade de iodo no organismo. O  iodo  é  um  elemento  essencial  para  a  síntese  de  HT.  A  deficiência  crônica  na  ingestão  de  iodo  ocasiona  bócio endêmico  com  hipotireoidismo  grave,  sendo  um  problema  grave  de  saúde  pública,  ainda  hoje,  em  muitos  países  no mundo.

ESTRUTURA E MORFOLOGIA DA GLÂNDULA TIREOIDE ▸ Aspectos anatômicos A glândula tireoide tem seu nome derivado do grego thyreós, que significa escudo, e foi assim chamada por Wharton, em  1656.  No  entanto,  a  visão  anterior  da  glândula  tireoide  humana  lembra  o  formato  de  borboleta,  em  que  dois  lobos lateralizados,  direito  e  esquerdo,  estão  unidos  por  um  istmo  de  parênquima  glandular  que  se  apoia  frouxamente  sobre  a traqueia anterior na altura da cartilagem cricoide (Figura 68.1). Esta situação permite a avaliação clínica da glândula pela palpação da região cervical. A  glândula  tireoide  é  um  dos  maiores  órgãos  endócrinos  e  no  homem  adulto  pesa  em  torno  de  15  a  25  g;  cada  lobo mede  aproximadamente  2  a  2,5  cm  de  largura  e  3  a  5  cm  de  comprimento,  sendo  o  lobo  direito  um  pouco  maior  que  o

esquerdo. Este tamanho é mantido por um turnover celular muito discreto, e calcula­se que cada célula se renove somente cerca  de  5  vezes  durante  a  vida  adulta.  Entretanto,  sob  estímulos  específicos  pode  ocorrer  proliferação  celular  com consequente aumento do volume da glândula (de 50 até 800 g), denominado bócio. Os  lobos  laterais  da  glândula  tireoide  estão  cobertos  pelos  músculos  esterno­hioide  e  esternotireoide.  Ela  apresenta, ainda,  uma  relação  anatômica  com  os  músculos  esterno­cleidomastóideos  e  as  artérias  carótidas,  que  se  situam  mais lateralmente; os nervos laríngeos recorrentes, que a percorrem posteriormente na interface entre a traqueia; e os dois pares de  glândula  paratireoide  (superior  e  inferior),  apoiados  na  face  dorsal  do  parênquima  tireoidiano.  A  glândula  recebe inervação  parassimpática  e  simpática  do  sistema  nervoso  autônomo.  As  fibras  simpáticas  derivam  do  gânglio  cervical  e chegam  à  glândula  acompanhando  os  vasos  sanguíneos,  enquanto  as  parassimpáticas,  derivadas  do  nervo  vago,  são ramificações dos nervos laríngeos. A irrigação sanguínea é proveniente das artérias tireóideas superiores e inferiores, que são ramos da carótida. Sua drenagem sanguínea é feita pelas veias tireóideas, que desembocam na veia jugular. A tireoide apresenta um fluxo sanguíneo de 4 a 6 mℓ/min/g, um dos mais altos do organismo, que supera até o fluxo sanguíneo do rim (em torno de 3 mℓ/min/g). A rica vascularização confere uma coloração avermelhada à glândula.

▸ Desenvolvimento embrionário A tireoide é a primeira glândula endócrina a surgir no embrião humano. Na terceira semana de vida intrauterina, ocorre a invaginação do assoalho da faringe primitiva, na região entre a primeira e a segunda bolsa branquial (ou faringiana), que se desenvolve como um ducto com a extremidade distal bifurcada. O local da origem embrionária persiste como o foramen cecum na  região  posterior  da  língua.  A  estrutura  primitiva  migra  em  direção  caudal  ainda  ligada  ao  local  primitivo  pelo ducto  tireoglosso.  Quando  atinge  a  posição  abaixo  da  cartilagem  cricoide,  o  tecido  adquire,  gradualmente,  um  formato bilobulado e sólido. Geralmente, o ducto tireoglosso atrofia sem deixar resquício, mas uma parte do segmento distal pode remanescer  próximo  ao  istmo,  constituindo  o  lobo  piramidal.  Na  sétima  semana,  o  broto  embrionário  recebe  células  da bolsa ultimobranquial, que se diferenciam em células C (ou parafoliculares), que se integram ao parênquima tireoidiano. Além  disso,  na  mesma  época  as  células  derivadas  da  terceira  e  quarta  bolsas  faringianas,  que  formam  as  glândulas paratireoides, se aproximam à tireoide em migração (Figura 68.2).

Figura 68.1 ■ Relação anatômica da tireoide humana (visão anterior). (Adaptada de Greenspan e Forsham, 1990.)

Figura  68.2  ■   Desenvolvimento  embrionário  da  glândula  tireoide.  Representação  esquemática  da  face  ventral  da  faringe primitiva  com  os  arcos  branquiais  (I  a  V),  a  origem  e  trajeto  de  migração  caudal  da  tireoide  e  os  locais  de  origem  das paratireoides superior e inferior e do timo.

A  histogênese  da  tireoide  envolve  a  diferenciação  da  massa  celular  sólida,  que  por  volta  da  10a  semana  adquire  o aspecto folicular. Nesta época, o tecido começa a sintetizar tireoglobulina (TG), formar coloide, captar e organificar iodo e,  em  torno  da  12a  semana,  a  glândula  acumula  tiroxina  (ver  mais  detalhes  no  item  sobre  síntese  hormonal).  O aparecimento destas funções específicas da glândula tireoide, isto é, a diferenciação da célula folicular, está intimamente relacionado  com  a  ativação  progressiva  da  expressão  dos  genes  essenciais  para  a  biossíntese  dos HT:  TG,  TPO,  DUOX,  NIS,  pendrina  e  receptor  de  TSH  (ou  TSHR),  durante  a  formação  da  glândula.  A  ativação  da transcrição destes genes ocorre pela atuação de fatores transcricionais nas regiões promotoras destes genes (Figura 68.3). Estão  reconhecidas  as  atuações  múltiplas  e  combinadas  de:  proteína  homeótica  TTF  1  (thyroid­specific  transcriptional factor 1), proteína FOXE1 (forkhead box E1, designada previamente como TTF 2) e proteína PAX8 (paired box gene 8). Estes  fatores  transcricionais  se  ligam  em  locais  específicos  dos  genes  da  TG,  TPO,  NIS,  TSHR  e  pendrina.  O  TTF 1 exerce ainda um papel importante na determinação da migração do broto embrionário, visto que na ausência de TTF 1 a glândula não se forma (Quadro 68.1). A tireoide fetal pesa 0,2 g em torno da 20a semana de gestação, e o tecido cresce paralelamente ao aumento do peso corporal. Ao nascimento, a glândula tireoide pesa cerca de 1,5 g.

▸ Estrutura celular e histológica O folículo é a unidade funcional da glândula, onde ocorre o processo de biossíntese, armazenamento e secreção do HT. Ele é formado por uma camada única de células foliculares tireoidianas ou tireócitos,  que  delimitam  um  espaço  interno chamado de lúmen, que habitualmente está preenchido por um material coloidal. Os folículos são estruturas esferoidais de aspecto cístico, que variam de 50 a 500 μm no diâmetro. A glândula tireoide é formada por aproximadamente três milhões de folículos, e os agrupamentos de 30 a 40 folículos formam os lóbulos. Os limites entre os lóbulos estão preenchidos por tecido conjuntivo, fibras reticulares, capilares sanguíneos e vasos linfáticos.

Figura 68.3 ■ Representação esquemática dos estágios de desenvolvimento da tireoide relacionados com a ativação de genes essenciais. Explicações no texto.

Quadro 68.1 ■ Principais proteínas da célula folicular da tireoide. Localização no Proteína*

Gene humano

Consequência do

cromossomo

Tecidos onde se

humano

expressam

defeito genético

Proteínas relacionadas com a ativação de genes funcionais da tireoide Fator 1 de

TTF 1

14q13

Embrião: tireoide,

Agenesia de

transcrição da

pulmão, cérebro e

tireoide e pulmão

tireoide

hipófise Adulto: tireoide e pulmão

Forkhead box E1

Paired box gene 8

FOXE1 (ou TTF 2)

PAX8

9q22

2q12­q14

Embrião: tireoide e

Tireoide ectópica e

hipófise

disgenesia

Adulto: tireoide

Fenda palatina

Embrião: tireoide,

Tireoide ectópica e

rim e cérebro

disgenesia

Adulto: tireoide

Proteínas funcionais da tireoide relacionadas com a biossíntese do HT Receptor de TSH

TSHR

14q31

Predominantemente Mutação ativadora: na tireoide

hipertireoidismo congênito, adenoma hiperfuncionante

Tireoglobulina

Peroxidase

TG

TPO

8q24

2p25

tireoidiana

Exclusivamente na

Defeito de síntese

tireoide

hormonal

Exclusivamente na

Defeito de síntese

tireoide

hormonal

Dual oxidase

DUOX

15q15.3

Tireoide

 

Natrium iodide

NIS

19p13.2­p12

Tireoide, mama em

 

symporter

lactação, intestino e outros tecidos

Pendrina (ou solute carrier family 26, member 4)

PDS (ou SLC26A4) 7q31

Tireoide, ouvido e

Surdez e

outros tecidos

hipotireoidismo congênito

*Algumas destas proteínas não dispõem de nomenclatura padronizada na língua portuguesa e são mais conhecidas pela sua sigla ou pela nomenclatura em inglês (em itálico).

A  estrutura  folicular  confere  polaridade  às  células  foliculares,  com  a  membrana  basal  fazendo  limite  externo  do folículo  em  contato  próximo  aos  capilares  e  a  membrana  apical  com  microvilosidades  voltadas  para  o  lúmen.  A micrografia  eletrônica  mostra  junções  intercelulares  que  asseguram  o  confinamento  de  coloide  no  interior  do  folículo, principalmente pela presença de zônula de oclusão na extremidade apical, seguida de zônula de adesão, onde se ancoram filamentos  de  actina  formando  um  cinturão  (Figura 68.4).  Apresenta  ainda  desmossomos  esparsamente  distribuídos,  em que se ancoram filamentos de queratina que compõem o citoesqueleto celular, e junções de comunicação gap constituídas por conexinas 32 e 43.

Figura  68.4  ■   Representação  esquemática  das  junções  celulares  na  célula  folicular  da  tireoide:  zônula  de  oclusão  (ZO)  na porção apical próximo ao lúmen, zônula de adesão (ZA) e desmossomo (D). (Adaptada de Ekholm, 1995.)

A  organização  intracelular  também  contribui  para  a  polaridade  da  célula  folicular.  Tanto  o  retículo  endoplasmático rugoso  quanto  o  complexo  de  Golgi  são  bastante  desenvolvidos  e  ocupam  posição  intracelular,  de  maneira  a  favorecer  a síntese e o direcionamento das proteínas essenciais para a síntese do HT. A tireoglobulina e a peroxidase tireoidiana, entre outros,  são  direcionadas  à  região  apical  da  célula  folicular,  enquanto  o  NIS  e  o  receptor  de  TSH  (TSHR)  vão  para  a membrana plasmática do polo basal. O processo de biossíntese dos HT se inicia na célula folicular (no meio intracelular) e termina  no  espaço  luminal  (extracelular)  (Figura  68.5),  de  tal  modo  que  a  T3  e  a  T4,  os  principais  HT  elaborados, permanecem no interior do folículo como material coloidal, ligadas à molécula de tireoglobulina até se iniciar o processo de secreção hormonal. O acúmulo de coloide no lúmen folicular confere suficiência de hormônio tireoidiano por algumas semanas, garantindo ao organismo níveis adequados de hormônio tireoidiano, mesmo quando não há suprimento contínuo de iodo (ver “Biossíntese do HT”, adiante). O  tamanho  das  células  foliculares  varia  conforme  a  atividade  da  glândula  e  a  espécie  animal.  Histologicamente,  os folículos da glândula tireoide normal apresentam células foliculares de formato cúbico. No entanto, a morfologia do tecido é  prontamente  modulada  pelo  estado  funcional  da  glândula  controlado  predominantemente  pelo  TSH  hipofisário  (ver “Regulação  da  função  da  tireoide”,  adiante).  Deste  modo,  no  hipotireoidismo  a  glândula  recebe  grande  estímulo  de  TSH hipofisário e o epitélio folicular se hipertrofia, passando a apresentar células de formato cilíndrico, diminuição do espaço luminal  e  aumento  de  vasos  sanguíneos  nos  espaços  interfoliculares.  O  estímulo  crônico  de  TSH  pode  levar  à  resposta hiperplásica do tecido. Por outro lado, quando houver diminuição de TSH circulante, por exemplo, por ingestão de HT, as células foliculares se tornarão pavimentosas e o lúmen, amplo (Figura 68.6).

Figura 68.5 ■ Esquema geral de um folículo e da célula folicular tireoidiana. Na célula folicular, estão representadas a entrada do  iodo  pela  membrana  da  porção  basal  da  célula  (através  do  transportador  de  iodo  [IT]  ou  cotransportador  Na+ ­I–)  e  a organificação do iodo e formação de DIT, MIT, T4 e T3 ligados  à  molécula  de  tireoglobulina  (TG)  na  porção  apical  voltada  ao lúmen. A membrana apical com microvilosidade (MV) incorpora o material coloidal contendo TG pelos pseudópodes (PP) e por vesículas  (V)  micropinocíticas  que  se  fundem  com  lisossomos  (L),  formando  fagolisossomos  (FL);  nestes,  a  TG  é  hidrolisada, liberando as moléculas de iodotirosinas (MIT e DIT), T3 e T4 que são secretadas para a circulação pela porção basal da célula folicular.

Além  das  células  foliculares,  o  parênquima  tireoidiano  apresenta  grupos  de  células  mais  claras  e  de  tamanho  maior entre  os  espaços  interfoliculares,  ou  ainda  ocupando  a  parede  folicular,  mas  sem  atingir  o  lúmen.  São  as  células parafoliculares  ou  células  C  que  surgem  como  proliferação  das  células  do  corpo  ultimobranquial,  portanto  de  origem embriológica distinta, e agregam­se ao tecido tireoidiano durante a migração caudal da tireoide (ver Figura 68.2).  Como será  visto  no Capítulo  76,  Fisiologia  do  Metabolismo  Osteomineral,  as  células  C  participam  da  homeostase  do  cálcio secretando calcitonina em resposta ao aumento da calcemia.

Figura 68.6 ■ Modificação  morfológica  do  tecido  tireoidiano  pela  influência  do  TSH,  em  ratos. A.  Tireoide  com  supressão  de TSH,  mostrando  folículos  amplos  e  células  foliculares  planas.  B.  Tireoide  normal,  com  folículos  formados  por  células cúbicas. C. Tireoide com estímulo de TSH, apresentando folículos de células cilíndricas, pouco material coloidal e aumento da vascularização.

IODO, COMPONENTE ESSENCIAL NA BIOSSÍNTESE DO HT A  ingestão  de  iodo  é  indispensável  para  a  síntese  dos  hormônios  tireoidianos  T3  e  T4,  compostos  biologicamente ativos que têm iodo em sua molécula (Figura 68.7). A maior fonte de iodo no planeta é o mar; assim sendo, os alimentos ricos nesse elemento são os produtos derivados do ambiente marinho. Nas regiões próximas ao litoral, acumula­se iodo no solo, pela chuva proveniente da evaporação da água  marítima.  Desta  maneira,  frutas  e  vegetais  cultivados  nesses  locais  absorvem  significativas  concentrações  de  iodo. Recomenda­se  uma  dieta  alimentar  de  pelo  menos  150  μg/dia  para  um  adulto  normal  (Quadro  68.2).  Entretanto,  em regiões  geográficas  com  solo  pobre  em  iodo,  devido  à  distância  do  mar  aliada  aos  efeitos  do  desgaste  da  terra  por antiguidade,  congelamento  e  lavagem  por  chuvas  recorrentes,  a  ingestão  desse  elemento  pode  não  atingir  10  μg/dia.  A carência persistente de ingestão de iodo e a consequente falta de HT durante o período fetal ocasionam um quadro grave de déficit  do  crescimento  e  do  desenvolvimento  neurológico,  que  foi  denominado cretinismo,  termo  utilizado  pela  primeira vez nos Alpes suíços. A consequência clínica da falta da ingestão de iodo não se restringe aos períodos fetal e neonatal, refletindo­se  em  todas  as  faixas  etárias;  em  conjunto,  caracterizam  as  doenças  associadas  à  deficiência  do  iodo  (Quadro 68.3),  sendo  proeminente  a  presença  de  aumento  do  tamanho  da  glândula  tireoide,  chamado  de  bócio  endêmico.  O crescimento  da  glândula  ocorre  em  consequência  do  estímulo  sustentado  do  TSH  hipofisário  para  compensar  a  falta  de síntese de HT (ver adiante).

Figura 68.7 ■ Estrutura dos hormônios T3 e T4.

Quadro 68.2 ■ Recomendação de ingestão diária de iodo. Estágio de vida

Iodo (µg/dia)

Recém­nascido e criança

90

Idade escolar e adolescência

120 a 150

Adulto

150 a 200

Gravidez e lactação

200 a 300

Ao longo do último século, diferentes estratégias foram utilizadas para adequar a ingestão de iodo pela população, tais como: administração oral de lugol (solução rica em iodo), injeção de óleo iodado, suplementação de iodo na água e adição de  iodo  nos  alimentos  (sal,  pão  e  leite).  Dentre  estas  medidas,  devido  a  facilidade,  estabilidade  e  custo  econômico,  a adição de iodo no sal alimentar tem sido o método de preferência e difundido pelo Programa de Erradicação da Deficiência de  Iodo  da  Organização  Mundial  de  Saúde.  Apesar  desta  intensa  campanha  de  erradicação  da  carência  de  iodo  na população nas últimas décadas do século XX, ainda hoje cerca de 15% da população mundial têm nutrição insuficiente em iodo (Figura 68.8).  No  Brasil,  a  iodação  do  sal  vem  sendo  realizada  desde  1953,  e  a  legislação  atual  do  Ministério  da Saúde estabelece que todo o sal comercial deve receber uma suplementação de pelo menos 40 mg de iodo por kg de NaCl. A população brasileira que tem acesso ao sal comercial mostra ingestão adequada, e até maior do que a recomendada, mas persistem focos regionais de carência de iodo em locais onde não há consumo de sal comercial. O termo “iodo” se refere não somente à molécula I2, mas inclui o iodo inorgânico (I–) e aquele ligado à tirosina por ligação covalente (organificado); o termo “iodeto” se restringe ao íon I–. Na dieta ocidental com suplementação de iodo no sal, um adulto ingere cerca de 500 μg de iodo/dia, na forma orgânica e inorgânica. Quando ingerida, a forma orgânica é convertida  em  iodeto  pela  flora  intestinal,  sendo  o  iodeto  absorvido  no  intestino  delgado  e  transportado  para  o  plasma. Pouco  é  eliminado  pelas  fezes.  Na  circulação,  concentra­se  um  pool  de  aproximadamente  250  μg  de  iodeto  que  é absorvido,  predominantemente,  pela  tireoide  e  pelos  rins.  A  tireoide  concentra  em  torno  de  8.000  μg  de  iodo,  e  90% ligados ao aminoácido tirosina (organificado) e 10% como iodeto. O turnover do iodo da glândula é muito lento, por volta de 1% ao dia; em contrapartida, o clearance renal do iodo é de 30 a 40 mℓ/min, sendo resultante da filtração glomerular e da  reabsorção  tubular  passiva.  Cerca  de  500  mg  de  iodo  são  eliminados  pela  urina.  A  concentração  urinária  de  iodo possibilita  estimar  a  ingestão  desse  iodo  (Figura 68.9),  método  utilizado  na  avaliação  do  estado  nutricional  de  iodo  na população.

Quadro 68.3 ■ Consequências da deficiência crônica de iodo. Estágio de vida

Consequências

Feto

Aborto/Natimorto Anomalias congênitas Crescimento da mortalidade perinatal Cretinismo endêmico Surdo­mudez

Neonato

Bócio neonatal Hipotireoidismo neonatal Retardo mental endêmico Aumento da suscetibilidade da tireoide à radiação nuclear

Criança e adolescente

Bócio Hipotireoidismo Diminuição da função mental

Retardo do desenvolvimento físico Aumento da suscetibilidade da tireoide à radiação nuclear Adulto

Bócio Hipotireoidismo Diminuição da função mental Aumento da suscetibilidade da tireoide à radiação nuclear

Fonte: WHO Global Database on Iodine Deficiency, 2004.

BIOSSÍNTESE DO HT Os dois principais hormônios tireoidianos são a tiroxina (3,5,3’,5’­tetraiodo­L­tironina), ou T4, e a 3,5,3’­tri­iodo­L­ tironina, ou T3 (ver Figura 68.7). O  processo  de  síntese  dos  HT  no  folículo  tireoidiano  envolve:  (1)  transporte  do  iodeto  pela  captação  ativa, direcionamento e transporte apical do iodo para o lúmen folicular; (2) oxidação do iodeto; (3) iodação dos resíduos tirosil da  molécula  de  tireoglobulina  formando  iodotirosinas;  (4)  acoplamento  oxidativo  de  duas  iodotirosinas  formando iodotironinas ainda ligadas à tireoglobulina (Figura 68.10).

▸ Transporte do iodo A  tireoide  concentra  o  iodeto  inorgânico  circulante  por  um  processo  ativo  dependente  de  energia.  Este  processo  de captação  é  realizado  pela  proteína  NIS  (sodium  iodide  symporter  ou  cotransportadora  de  Na+­I–),  que  se  localiza  nas superfícies  basal  e  basolateral  da  célula  folicular.  A  NIS  é  uma  proteína  de  643  aminoácidos  que  apresenta  13  domínios transmembrana com as duas extremidades, carboxi e amino, situadas intracelularmente. Ela promove a entrada de iodeto extracelular  contra  um  gradiente  eletroquímico  negativo,  devido  à  maior  concentração  de  iodo  no  interior  da  célula folicular; esse processo se dá pelo cotransportador Na+­I–, na proporção de 2Na+:1I–. A atividade concomitante da bomba Na+/K+­ATPase  mantém  o  gradiente  elétrico  negativo  no  interior  celular,  que  facilita  o  influxo  de  Na+  na  célula.  O transporte  ativo  de  iodo  não  se  limita  à  glândula  tireoide.  Outros  tecidos,  tais  como  as  glândulas  salivares  e  a  mucosa gástrica, expressam a proteína NIS e concentram iodeto; adicionalmente, na glândula mamária a expressão de NIS ocorre durante a fase de lactação, permitindo a concentração de iodo no leite materno.

Figura 68.8 ■ Avaliação  nutricional  do  iodo  no  mundo,  baseada  na  medida  de  iodo  urinário  (μg  iodo/ ℓ ).  (Adaptada  de  WHO Global Database on Iodine Deficiency, 2004.)

Figura 68.9 ■ Metabolismo e balanço do iodo. Estimativa diária para ingestão de 500 μg de iodo. Sist. dig., sistema digestório.

O  transporte  do  iodo  é  inibido  por  ânions  monovalentes  tipo  perclorato  (ClO4–),  tiocianato  (SCN–)  e  pertecnetato (TcO4), que competem com o iodo pelo transporte via NIS. O perclorato tanto inibe a captação do iodo pela glândula como facilita  sua  difusão  para  fora  (efluxo)  da  glândula;  o  tiocianato  aumenta  principalmente  o  efluxo  do  iodo.  Ambos  são utilizados na prática clínica para diminuir a síntese de HT, enquanto o Tc99m­pertecnetato é utilizado para obter imagens da glândula tireoide para fins diagnósticos. Uma  vez  dentro  da  célula  folicular,  o  iodeto  difunde­se  em  direção  ao  ápice  e  atinge  o  lúmen  folicular  transportado pela proteína pendrina (PDS),  um  canal  de  ânions  (cloro/iodeto)  de  780  aminoácidos  localizado  na  membrana  apical  da célula folicular. Existe pouco iodo inorgânico no folículo, devido à rápida oxidação e organificação do iodeto que ocorre na superfície apical (ver Figura 68.10).

▸ Oxidação do iodeto O  iodeto  é  oxidado  pela  tireoperoxidase  (TPO),  enzima  de  103  kDa  com  933  aminoácidos,  localizada  na  membrana apical e com a face catalítica voltada para o lúmen folicular; o processo é catalisado pelo peróxido de hidrogênio (H2O2) como  doador  de  oxigênio.  O  peróxido  é  gerado  pela  enzima  oxidase  tireoidiana  DUOX  (ou  dual  oxidase),  conhecida também  como  THOX,  glicoproteína  igualmente  localizada  na  membrana  apical,  que  apresenta  atividade  NADPH  oxidase (Figura 68.11). Existem duas isoformas de DUOX, DUOX1 e DUOX2, caracterizadas na tireoide humana.

Figura  68.10  ■   Biossíntese  e  secreção  do  hormônio  tireoidiano  (à  direita)  e  as  principais  vias  de  sinalização  estimulatórias geradas pelo TSH (à esquerda). Mais detalhes no texto. (Adaptada de Vono­Toniolo e Kopp, 2004.)

▸ Iodação da TG ou organificação do iodo O  iodo  oxidado  é,  então,  incorporado  aos  resíduos  tirosina  (por  iodação)  da  molécula  da  tireoglobulina  (TG)  em reação  catalisada  pela  TPO.  A  TG  é  uma  grande  molécula,  com  peso  molecular  de  660  kDa,  formada  por  duas subunidades  de  300  kDa  e  10%  de  açúcares.  O  gene  da  TG  se  estende  por  cerca  de  300  kb  no  DNA  genômico  e  é codificado  por  um  mRNA  de  9,7  kb  que  contém  37  éxons.  Na  glândula  tireoide  normal,  quase  toda  a  TG  está  presente como uma proteína solúvel no lúmen do folículo tireoidiano. Quando uma molécula de iodo é incorporada à tirosina, gera­ se uma monoiodotirosina (MIT); quando dois iodos se incorporam, temos a di­iodotirosina (DIT) (ver Figura 68.11).

Figura  68.11  ■   Organificação  do  iodo  na  membrana  apical  da  célula  folicular  e  formação  de  MIT  e  DIT  na  molécula  de tireoglobulina, pela incorporação de iodo no aminoácido tirosina (Tir). Descrição no texto. (Adaptada de Vaisman et al., 2004.)

▸ Acoplamento das iodotirosinas A  reação  de  acoplamento  ocorre  separadamente  da  iodação  e  também  é  catalisada  pela  TPO.  Ainda  ligadas  à tireoglobulina,  algumas  das  tirosinas  (MIT  e  DIT)  se  acoplam  e  geram  tironinas  iodadas.  O  acoplamento  de  MIT  com DIT  leva  à  formação  de  dois  tipos  de  tironinas:  a  tri­iodotironina  (ou  T3)  e  a  tri­iodotironina  reversa  (ou  T3 reversa  ou rT3), que diferem quanto à posição de iodação, enquanto o acoplamento de duas DIT resulta na geração de tiroxina (T4, ou tetraiodotironina) (Figura 68.12). Pode haver o acoplamento de duas MIT, gerando di­iodotironina (T2), que, como a rT3, apresenta efeito biológico distinto de T3 e T4. O  acoplamento  ocorre  entre  as  iodotirosinas  que  continuam  ligadas  à  TG  por  ligações  peptídicas,  e  os  passos moleculares  deste  processo  ainda  não  estão  totalmente  definidos.  Sugere­se  que  ocorra  a  formação  de  radicais  livres  ou formação  de  radicais  Io ou I+ na  molécula  de  DIT  doador,  o  qual  formaria  éter­difenila  com  o  grupo  hidroxila  do  DIT aceptor,  enquanto  o  DIT  doador  seria  clivado,  deixando  uma  porção  alanina  que  permaneceria  ligada  à  TG  como desidroalanina (ver Figura 68.12). Desta maneira, as iodotironinas formadas permanecem no lúmen folicular presas à TG. O  homodímero  de  TG  apresenta  132  tirosinas,  mas  nem  todas  sofrem  iodação  e  acoplamento.  Apenas  1/3  é  iodado, formando  MIT,  DIT,  T3,  T4  ou  rT3.  Certas  tirosinas  são  favorecidas  na  iodação  e  no  processo  de  acoplamento, observando­se que as 5 e 2747 são locais predominantes de formação de T4 e a 1291, de T3. Estudos in vitro indicam que a  tirosina  da  posição  130  seria  um  doador  preferencial  para  a  formação  de  T4  na  tirosina  5.  Apenas  três  ou  quatro moléculas  de  tiroxina  são  formadas  por  uma  tireoglobulina,  e,  se  a  captação  de  iodo  é  adequada,  a  tireoide  produz normalmente mais T4 que T3.

Figura 68.12 ■ Reação de acoplamento e potencial evento na formação de T4 e T3 na molécula de tireoglobulina. Resíduos de DIT são oxidados a radicais livres pela peroxidase. Os radicais livres se unem com MIT ou DIT gerando T3 ou T4. Mais detalhes no texto.

▸ Secreção do HT

Ao contrário da maioria das glândulas endócrinas, as quais não estocam grandes quantidades de hormônio, a tireoide consegue manter o fornecimento de HT graças ao pool de tireo­globulina armazenado no lúmen. Uma glândula normal de 20  g  acumula  cerca  de  5.000  μg  de  T4  (ou  250  μg  de  T4/g  de  tecido),  o  que  assegura  uma  autonomia  de  T4por aproximadamente 50 dias. A tireoglobulina deve ser hidrolisada para liberar T4 e T3 no interior da célula folicular (Figura 68.13). Em condições fisiológicas, a reabsorção do coloide para o interior da célula folicular ocorre por micropinocitose e formação de vesículas endocíticas.  Ou  ainda  por  macropinocitose,  em  resposta  ao  estímulo  de  TSH,  quando  formam­se  pseudópodes  na superfície  apical  da  célula  folicular  que  engolfam  gotículas  maiores  de  coloide,  constituindo  vesículas  de  coloide  no interior  da  célula.  Em  ambos  os  processos,  as  vesículas  se  fundem  com  os  lisossomos  compondo  endossomos  ou fagossomos com função proteolítica, com digestão da TG e desprendimento das moléculas de MIT, DIT, rT3, T3 e T4. Como MIT e DIT não são biologicamente ativos e a secreção para o plasma seria ineficaz, o iodo destas moléculas é removido  pela  ação  da  enzima  iodotirosina­desiodase,  dependente  de  NADPH,  denominada  desalogenase  de  tirosina (DHAL) (ver Figura 68.10). A enzima DHAL, presente especificamente na célula folicular, remove o iodo de MIT e DIT, mas  não  realiza  desiodação  das  iodotironinas  (T4, T3 e  rT3).  O  pool  de  iodo  liberado  das  moléculas  de  MIT  e  DIT  é reutilizado  para  nova  síntese  hormonal  no  próprio  folículo.  Em  condições  fisiológicas,  cerca  de  10%  de  tiroxina  são convertidos em T3 pela ação da enzima 5’­desiodase ainda no interior da célula folicular, e o iodo removido é reutilizado para nova síntese hormonal. T4 e T3 livres deixam a célula folicular através do transportador de membrana MCT8 (transcrito do gene SLC16A2), localizado  na  membrana  plasmática  do  polo  basal,  próximo  à  rede  capilar  do  estroma  interfolicular  (ver  Figuras  68.5  e 68.10). Este tipo de transportador de membrana, específico para o transporte de hormônio tireoidiano, promove o efluxo e o influxo do hormônio tireoidiano em diferentes tipos celulares (ver adiante em “Captação e ação celular”). A glândula tireoide de um adulto normal libera cerca de 100 μg de T4/dia e 10 μg de T3/dia na circulação sanguínea. Uma pequena quantidade de TG atinge a circulação sanguínea (até 50 ng/mℓ) e pode ser detectada no sangue periférico da maioria  dos  indivíduos  normais.  No  entanto,  quando  a  glândula  sofre  processo  patológico  destrutivo  do  folículo tireoidiano, como na tireoidite, uma quantidade significativa de TG pode escapar para a circulação.

REGULAÇÃO DA FUNÇÃO DA TIREOIDE A  tireoide  é  regulada  por  mecanismos  extratireoidianos,  exercidos  pelo  TSH  hipofisário,  e  por  mecanismo intratireoidiano,  denominado  efeito  autorregulatório,  que,  em  conjunto,  controlam  a  síntese,  a  secreção  do  HT  e  a proliferação da célula folicular tireoidiana.

▸ Hormônio tireotrófico (TSH) O  TSH  hipofisário  é  o  principal  modulador  da  função  tireoidiana.  O  TSH  é  um  hormônio  glicoproteico heterodimérico, de meia­vida efêmera (cerca de 1 h), com peso molecular de 28 a 30 kDa e que tem 16% de carboidrato na molécula. O dímero é formado pela combinação da subunidade α (que é idêntica à subunidade α das gonadotropinas – LH, FSH e hCG) com a β (que confere especificidade à molécula de TSH). O gene da α está localizado no cromossomo 6 e o da β, no 1. A  regulação  da  secreção  de  TSH  pela  hipófise  é  controlada  pelo  hormônio  hipotalâmico  TRH  (TSH  releasing hormone)  e  pelo  HT,  que  formam  a  tríade  da  alça  de  feedback  negativa  (Figura  68.14).  Como  outros  hormônios hipotalâmicos,  o  TRH  chega  à  hipófise  anterior  via  sistema  porta­hipotálamo­hipófise.  Ele  interage  com  receptores específicos  da  adeno­hipófise  estimulando  a  secreção  de  TSH  nas  células  tireotróficas  e  de  prolactina  nas  células lactotófricas. É liberado de maneira pulsátil, e a sensibilidade das células tireotróficas em responder a ele depende do nível de T4 circulante.

Figura  68.13  ■   Representação  esquemática  da  internalização  da  tireoglobulina  (TG)  acumulada  no  espaço  luminal  por micropinocitose (à direita) e por macropinocitose ou fagocitose (à esquerda). Formação de lisossomos e de fagolisossomos no interior da célula folicular e digestão e liberação de T3 e T4, que são secretados para a circulação. Pseudópodes (Pp), gotícula de coloide (GC), lisossomo (L), fagolisossomo (FL), vesícula (V) e endossomo (E). Mais detalhes no texto. (Adaptada de Thyroid disease manager, Capítulo 2 [www.thyroidmanager.org].)

Figura 68.14 ■  Representação  esquemática  da  alça  de  feedback  negativo  formada  pelo  eixo  hipotálamo­hipófise  e  tireoide, regulada pelos níveis de hormônio tireoidiano (T3 e T4). Mais informações no texto.

Na  hipófise  e  no  núcleo  paraventricular  do  hipotálamo,  a  maior  parte  da  T3  intracelular  (80%)  é  composta  pela desiodação de T4 pela desiodase 2 na própria célula. Quando a concentração de T4 circulante é baixa, ocorre um aumento no número de receptores de TRH no tireotrofo e, consequentemente, há síntese e liberação de TSH; o inverso acontece em situação  de  alta  concentração  de  HT  circulante.  A  implicação  fisiológica  decorrente  desse  fato  é  que  uma  queda  do T3 plasmático  pouco  afetará  a  concentração  intracelular  de  T3 na  hipófise  e  a  ocupação  dos  receptores  de  HT.  Por  outro lado, a queda da T4 plasmática diminuirá o aporte nuclear de T3, ativando a transcrição dos genes de TSHα, TSHβ e de TRH. Adicionalmente, uma pequena elevação de T4 circulante é suficiente para bloquear por completo a secreção de TSH, mesmo sob estímulo máximo de altas doses de TRH. Além do TRH e do HT, outras substâncias de origem hipotalâmica regulam  a  secreção  de  TSH.  A  somatostatina  hipotalâmica  e  a  dopamina  inibem  a  secreção  de  TSH,  assim  como  os glicocorticoides e algumas interleucinas (ver Capítulo 66, Glândula Hipófise). O TSH estimula a célula folicular da tireoide quando interage com um receptor específico, o receptor de TSH (TSHR) localizado  na  membrana  externa  do  folículo  tireoidiano.  O  TSHR  é  um  receptor  com  sete  domínios  transmembrânicos, três  alças  externas  e  três  internas  (Figura  68.15).  O  TSH  se  liga  à  alça  extracelular  aminoterminal,  e  a  região carboxiterminal localiza­se intracelularmente. Cerca de 1.000 receptores TSHR estão ancorados na superfície basal de uma única célula folicular. A  ligação  de  TSH  com  o  domínio  aminoterminal  extracelular  do  TSHR  estimula  várias  vias  de  sinalização, intermediada pela proteína G que se encontra associada ao receptor. A GDP ligada à proteína G é substituída por GTP, o que ocasiona a dissociação da subunidade α da proteína G. Esta subunidade irá ativar a adenililciclase, enquanto a proteína

Gq fosforila e ativa a fosfolipase C (ver Figura 68.15). A adenililciclase estimula a conversão de ATP para cAMP, que, por  sua  vez,  fosforila  e  ativa  a  proteinoquinase  A  (PKA).  Por  outro  lado,  a  fosfolipase  C  estimula  a  conversão  de  4,5­ bifosfato  de  fosfatidilinositol  (PIP2)  para  1,4,5­trifosfato  de  inositol  (IP3)  e  diacilglicerol  (DAG),  com  consequente liberação do Ca2+ do seu estoque intracelular, o que ativa a proteinoquinase C (PKC). Estudos in vitro indicam que estas vias de sinalização atuam de maneira seletiva nos diferentes processos atribuídos ao TSH na regulação da célula folicular tireoidiana  (ver  Figura  68.10  e  Quadro  68.4).  Os  efeitos  do  TSH  incluem  a  estimulação  nos  processos  de  síntese  e secreção do HT e também no crescimento e proliferação celular. Adicionalmente, promove o efluxo do iodo, a iodação da TG e a secreção de HT, estimulando a formação de pseudópodes. Na região promotora dos genes de NIS, TG e TSHR, há locais  responsivos  à  sinalização  via  cAMP  (locais  CRE),  que,  quando  ocupados,  ativam  a  transcrição  destes  genes.  Por isso,  o  efeito  do  TSH  na  captação  do  iodo  ocorre  de  modo  indireto,  isto  é,  promovendo  o  aumento  da  proteína transportadora de iodo (NIS).

Figura 68.15 ■ Molécula do receptor de TSH ancorado na membrana da célula folicular (no topo). Representação da ligação de TSH  ao  receptor  de  TSH  (TSHR)  e  consequente  ativação  das  vias  de  sinalização  do  cAMP  e  Ca2+ /PKC  (intermediadas  pela proteína G) e estimulação da síntese e secreção do hormônio tireoidiano. Mais detalhes no texto.

O  valor  do  TSH  circulante  reflete  a  função  tireoidiana,  e  por  isso  é  utilizado  amplamente  na  prática  médica.  O  TSH sérico tem uma variação conforme a idade, sendo importante ressaltar os valores bastante altos no recém­nascido (Quadro 68.5) quando comparados aos do adulto. Pequenas modificações do T4 livre plasmático alteram rapidamente os valores do TSH;  assim,  seu  nível  elevado  é  um  potente  indicador  da  hipofunção  tireoidiana.  No screening neonatal,  para  detectar  o hipotireoidismo  congênito  (conhecido  como  “teste  do  pezinho”,  ver  adiante)  e  também  no  hipotireoidismo  do  adulto, realiza­se a dosagem de TSH sérico. Por outro lado, com os métodos bioquímicos atuais é possível avaliar a hiperfunção tireoidiana, situação em que a concentração de TSH está abaixo do nível normal.

Quadro 68.4 ■ Efeito da sinalização TSH na tireoide humana. Via cAMP

Via fosfolipase C

Captação de iodo

Geração de H2O2

Síntese de NIS, TG, TSHR

Efluxo do iodo

Iodação da TG Reabsorção do coloide Secreção de T4/T3 Proliferação celular

Quadro 68.5 ■ Concentração sérica de TSH de acordo com a idade. Idade

Valores de TSH sérico

Recém­nascido (1a semana)

Até 15 mUI/ℓ

1a semana até 1 ano

0,80 a 6,3 mUI/ℓ

De 1 a 5 anos

0,70 a 6,0 mUI/ℓ

De 6 a 10 anos

0,60 a 5,4 mUI/ℓ

De 11 a 20 anos

0,50 a 4,9 mUI/ℓ

Acima de 20 anos

0,45 a 4,5 mUI/ℓ

Na  doença  autoimune  da  tireoide,  o  organismo  sintetiza  imunoglobulinas  que  se  ligam  ao  TSHR  e  estes  anticorpos podem: (1) ser estimuladores, ocasionando hiperfunção e quadro clínico de hipertireoidismo, ou (2) ocupar o TSHR sem gerar sinalização e acarretar hipofunção da glândula tireoide e hipotireoidismo no paciente. O  TSH  é  um  potente  estimulador  do  crescimento  da  tireoide.  O  tecido  tireoidiano  tem  baixo  índice  de  proliferação, mas  o  estímulo  sustentado  do  TSHR  aumenta  o  tamanho  da  célula  folicular  e  o  índice  de  proliferação  celular,  com consequente  crescimento  global  da  glândula  (Figura  68.16).  Mutação  no  gene  do  TSHR  que  ativa  o  receptor constitutivamente,  independente  da  ligação  com  o  TSH,  eleva  tanto  a  função  tireoidiana  quanto  a  proliferação,  com decorrente quadro de hipertireoidismo e bócio.

▸ Autorregulação da tireoide

O  iodo,  além  de  ser  um  elemento  essencial  na  composição  do  HT,  também  influencia  diversos  aspectos  da  função  e crescimento  da  tireoide  por  processo  denominado  mecanismo  autorregulatório.  Neste  processo,  a  hormonogênese  da glândula é controlada conforme a disponibilidade de iodo na célula, mas de maneira independente do TSH. O  mecanismo  autorregulatório  procura  manter  um  fino  equilíbrio  do  estoque  de  HT  na  glândula.  Em  um  estado  de deficiência  do  iodo,  o  transporte  deste  é  aumentado,  e,  em  casos  de  maior  disponibilidade  dele,  ocorre  o  oposto.  Esta resposta  acontece  sem  uma  mudança  detectável  nos  níveis  de  TSH  e  pode  ser  observada  também  em  animais hipofisectomizados. O efeito mais dramático da autorregulação é observado em situação de grande excesso de iodo, sendo conhecido como efeito  inibitório  do  iodo  na  glândula  tireoide.  Nessa  situação,  ocorrem:  (1)  diminuição  da  atividade  do  transportador  de iodo, (2) redução da organificação do iodo (ou efeito Wolff­Chaikoff) e (3) inibição da secreção de T4 e T3armazenados no coloide; esses efeitos em conjunto levam ao decréscimo do HT liberado pela glândula para a circulação. O iodo bloqueia a enzima DUOX, essencial na geração de H2O2 utilizado  na  organificação,  e  interfere  nos  processos  dependentes  de  TSH, inibindo a atividade da sinalização via cAMP no folículo tireoidiano. O  ponto  crucial  do  efeito  inibitório  parece  ser  a  quantidade  de  iodo  organificado  no  interior  da  glândula;  por  isso, assim  que  o  patamar  desse  iodo  diminui,  a  inibição  exercida  pelo  processo  autorregulatório  cessa.  Este  fenômeno  é conhecido como escape ou adaptação à inibição do iodo (escape ao efeito Wolff­Chaikoff) e observado poucos dias depois (2 a 3 dias), mesmo com a manutenção do excesso de iodo. Outro mecanismo atribuído ao escape é mostrado no modelo experimental,  em  que  o  excesso  de  iodo  inibe  a  expressão  gênica  e  proteica  de  NIS;  em  consequência,  diminui acentuadamente  a  captação  desse  elemento  pela  célula  folicular,  ainda  que  grande  quantidade  dele  esteja  disponível  no meio extracelular.

Figura 68.16 ■ Glândula tireoide normal (no centro), bócio multinodular (à esquerda) e bócio difuso (à direita).

O efeito inibitório do excesso de iodo é aplicado para auxiliar no tratamento de pacientes com hipertireoidismo muito grave.  A  administração  de  compostos  iodados  IV  (p.  ex.,  iopodato  de  sódio)  diminui  agudamente  a  secreção  de  HT  e  a função tireoidiana, efeito que se pode observar por alguns dias até o desencadeamento do escape ao efeito Wolff­Chaikoff.

HT NO TECIDO PERIFÉRICO ▸ Transporte plasmático do HT A concentração total de T4 plasmática no adulto é de aproximadamente 8 μg/dℓ (ou 103 nmol/ℓ), e a de T3 plasmática é de 0,15 μg/dℓ (ou 2,3 nmol/ℓ). No entanto, apenas uma pequena fração se encontra na forma de hormônio livre, pois no plasma o HT se mostra ligado com grande afinidade, mas de maneira reversível, a várias proteínas transportadoras. As  proteínas  transportadoras  são  sintetizadas  no  fígado  e  as  principais  delas  são:  (1)  proteína  ligadora  de  tiroxina (TBG ou thyroid binding protein);  (2)  TTR  (ou transthyretin),  conhecida  anteriormente  como  pré­albumina  ligadora  de tiroxina (TBPA); (3) albumina; e (4) lipoproteínas (Quadro 68.6). Somente o hormônio livre entrará na célula para exercer a ação fisiológica. O HT ligado às proteínas transportadoras é um reservatório que armazena o HT liberado pela tireoide, e disponibiliza apenas uma pequena fração de T4 e T3 na forma livre para as células. Cerca de 99,96% da T4 estão ligados e só 0,04% está na forma de T4 livre; quanto à T3, 99,6% estão ligados e 0,4% está como T3 livre. Os hormônios ligados e os livres se encontram em equilíbrio segundo a lei da ação das massas, em que uma mudança da fração livre modifica a fração de hormônios ligados. Tomando como exemplo a interação de T4 e TBG, temos:

(T4) + (TBG) ↔ (TBG – T4) em que (T4) representa a T4 livre; (TBG), a TBG não ligada à T4; e (TBG­T4), a T4 ligada à TBG. Como no plasma as frações  de  TBG  e  T4  ligadas  e  não  ligadas  estão  em  equilíbrio,  podemos  expressar  a  constante  de  associação  (κa)  de T4 pela equação: κaT4 = (TBG – T4)/(T4)(TBG) Desta maneira, temos a seguinte relação de T4 livre: T4 = (TBG – T4)/κaT4(TBG) A  fração  livre  total  de  T4  e  de  T3  é  a  soma  das  frações  livres  dos  hormônios  com  cada  uma  das  proteínas transportadoras. Devido  a  esta  cinética  das  frações  ligada  e  livre  dos  hormônios,  quando  ocorre  um  aumento  da  concentração  da proteína transportadora, a concentração do hormônio livre no plasma irá diminuir. Esta mudança, no entanto, é temporária, pois a redução da concentração plasmática do hormônio livre irá estimular a secreção de TSH, que promoverá um aumento compensatório da produção de HT pela tireoide para que os níveis de HT livre voltem ao normal. Deste modo, estabelece­ se um novo patamar de equilíbrio, em que a quantidade total de HT no sangue estará alta, mas a fração livre de HT estará em concentração normal. Em condições fisiológicas de equilíbrio, 70 a 80% de T4 e T3 estão ligados à TBG. Cerca de 20% da T4 estão ligados à  TTR,  mas  pouco  de  T3  se  liga  à  TTR.  A  albumina  transporta  aproximadamente  10%  de  T4  e  T3  circulante,  e  uma pequena fração de T3 e T4 está ligada a lipoproteínas (ver Quadro 68.6).

TBG A TBG é a principal proteína transportadora; corresponde a uma glicoproteína globular com cadeia peptídica única de 54  kDa,  sendo  produto  do  gene  localizado  no  cromossomo  X.  Ela  tem  um  único  local  de  ligação  ao  HT  por  molécula, onde T4 e T3 se ligam com afinidades diferentes. Em condições fisiológicas, T4 se une mais avidamente à TBG (κaT4 = 15 × 109 M–1) que T3 (κaT3 = 1 × 109 M–1), e cerca de 30% das TBG se encontram ocupadas. A TBG é sintetizada no fígado, tendo meia­vida de 6 dias. A síntese de TBG é regulada por níveis de estrógeno; assim, ocorre um aumento dos níveis de TBG na gravidez e pela ingestão de substâncias contendo estrógeno, como os anticoncepcionais. Por outro lado, andrógenos  e  L­asparaginase  diminuem  a  síntese  de  TBG.  Alguns  fármacos  como  fenitoína,  barbitúrico,  salicilato, furosemida e diclofenaco podem interferir no transporte de HT, ocupando o local de ligação de T4 com baixa afinidade, e assim aumentam a fração livre do hormônio no plasma. A deficiência congênita de TBG, por mutação, incide em um em cada 5.000 nascimentos.

Quadro 68.6 ■ Proteínas transportadoras do hormônio tireoidiano. Quantidade de hormônio

Gene e localização no

Concentração

circulante ligado (%)

cromossomo

Peso molecular

plasmática (µmol/

Proteína

humano

(kDa)

ℓ)

T4

T3

TBG

TBG

54

0,27

68

80

Xq22.3

homômero

4,6

20

1

640

10

13

glicosilado TTR

Albumina

TTR

55

18q12.1

tetrâmero

ALB

66

4q11­q13 Lipoproteína HDL

APOA1

28

11q23­q24

dímero



2

6

TTR A TTR é uma proteína tetramérica de 55 kDa, formada por quatro peptídios idênticos. Tem dois locais de ligação para T4,  onde  um  deles  apresenta  alta  afinidade  para  T4  e  o  outro  geralmente  se  encontra  desocupado.  T3  tem  baixíssima afinidade  para  estes  locais.  A  TTR  apresenta  um  local  adicional  com  afinidade  para  retinol  (vitamina  A)  que  serve  de transportador  para  esta  molécula.  A  meia­vida  da  proteína  é  de  2  dias.  A  concentração  de  TTR  é  alta  no  plexo  coroide, sugerindo que este local é um importante meio de distribuição de HT no SNC. No estado de desnutrição, a síntese de TTR está  inibida,  mas  há  pouca  influência  no  transporte  de  T4,  pois  a  contribuição  da  TTR  no  transporte  é  muito  pequena quando comparada à da TBG.

Albumina Apresenta baixa afinidade de ligação para T4 e T3. Tem um local principal para T4 e vários outros locais secundários de  ligação;  porém,  menos  que  1%  dos  locais  estão  ocupados  por  T4.  Sugere­se  que  o  local  de  ligação  de  T4  seja compartilhado por outras moléculas, como a bilirrubina. Sendo responsável por pequena fração do transporte de T3e T4, a mudança na concentração de albumina altera pouco a concentração de HT no plasma.

Lipoproteínas HDL Diversas delas atuam como transportadores de HT. As apolipoproteínas das subclasses A­I, A­II, A­IV, C­I, C­II, C­ III e E apresentam locais de ligação ao HT, característica evolutivamente conservada na espécie animal. Dentre estas, se reconhece a afinidade de T4 para apoliproteínas A1; no entanto, esta afinidade é muito menor que para a TBG.

▸ Metabolismo do HT A forma predominante de HT liberada pela glândula tireoide na circulação é a tiroxina (T4). A tireoide secreta 80 μg de T4 diariamente, e 40% de T4 são metabolizados nos tecidos periféricos pela remoção de um iodo (ou monodesiodação), produzindo cerca de 80% do T3 total (30 μg) por dia. Os 20% restantes da T3 vêm da secreção direta da glândula tireoide (Quadro 68.7). A desiodação inicial de T4 que remove o iodo do anel externo gera T3 (3,3’,5­T3), ou a que remove o anel interno gera T3 reversa (rT3; 3,3’,5’­T3) (Figura 68.17).  Quase  toda  a  rT3 é  produzida  fora  da  glândula  tireoide,  e  cerca  de  30%  da T4 secretada são convertidos em rT3. A desiodação de T3 e rT3 resulta em di­iodotironinas (T2), e a remoção subsequente gera  monoiodotironinas.  O  único  produto  fisiologicamente  ativo  gerado  por  esta  cascata  de  monodesiodação  é  a  T3.  O organismo  depende  desta  via  metabólica  de  degradação  em  cascata  para  remoção  do  HT,  pois  somente  uma  quantidade mínima de HT é excretada pela urina. Além da via metabólica de desiodiação, pode haver outras modificações do HT. Há incorporação do ácido glicurônico ou de sulfato ao anel fenólico. A glicuronidação é uma via metabólica importante para T4 e  a  sulfatação  para  T3,  ocorrendo  predominantemente  no  fígado,  sendo  ambos  os  produtos  excretados  para  a  bile  e eliminados  nas  fezes.  E  ainda,  podem  ocorrer  desaminação  ou  descarboxilação  no  local  alanina  das  iodotironinas, transformando T4 em  ácido  tetraiodotiroacético  (Tetrac)  e  T3  em  ácido  tri­iodotiroacético  (Triac)  (Quadro  68.8).  Estes metabólitos  são  rapidamente  degradados  tanto  na  circulação  quanto  na  célula.  Embora  não  se  conheça  o  papel fisiológico in vivo, estudos in vitro mostram atividade destes compostos na ação não genômica do HT (ver adiante). A maior parte do tecido periférico tem a capacidade de remover uma molécula de iodo de T4 (por monodesiodação) e transformá­lo em T3, o hormônio biologicamente ativo. Este processo enzimático é catalisado pelas desiodases, proteínas da família selênio­cisteína.

Figura 68.17 ■ Desiodação das iodotironinas. A desiodação do anel interno está indicada pelas setas amarelas e a desiodação do anel externo, pelas roxas. (Adaptada de Green, 1987.)

Quadro 68.7 ■ Hormônio tireoidiano e os principais metabólitos.    

Concentração sérica mg/dℓ

nmoles/ℓ

Meia­vida Dia

Fonte Tireoide

Tecido periférico

T4

7,8

100

7

100%



T3

0,12

2

0,8

20%

80%

rT3

0,04

0,7

 

Traços

100%

3,3′­T2

0,005

 

 

Traços

100%

▸ Ativação e inativação do HT pela selênio­desiodase A  transformação  metabólica  do  HT  nos  tecidos  periféricos  estabelece  sua  potência  biológica  e  sua  função.  A  T3 é  o hormônio  tireoidiano  ativo,  e  grande  parte  da  T3 plasmática  e  tecidual  é  produto  metabólico  da  monodesiodação  de  T4, processo  catalisado  pela  enzima  desiodase.  Nos  mamíferos,  existem  três  tipos  de  enzimas  desiodases,  denominadas desiodase  1  (D1),  desiodase  2  (D2)  e  desiodase  3  (D3)  (Quadro 68.9).  Estas  enzimas  apresentam  em  sua  estrutura  um aminoácido raro, a selênio­cisteína, codificado pela sequência UGA (o mesmo do stop codon) e situado no local ativo da proteína. A tradução não usual deste códon para selênio­cisteína é facilitada pela presença de uma alça do nucleotídio que forma  o  elemento  SECIS  (selenocysteine  insertion  sequence)  na  região  3’  não  traduzida  do  gene  das  desiodases, auxiliadas por proteínas acessórias EFsec (selenocystyl­tRNA­specific elongation factor) e SBP2 (SECIS­binding factor) (Figura 68.18). A deficiência de selênio no organismo pode interferir na síntese e na atividade das desiodases e também no metabolismo do HT. A falta de selênio pode ser observada: nos pacientes que recebem dieta parenteral total por longo período, na dieta para fenilcetonúria, na fibrose cística ou na nutrição não balanceada em crianças e idosos. As desiodases D1 e D2 catalisam a desiodação do anel externo de T4, gerando T3 (5’­desiodação). A D1 está presente no tecido periférico, como fígado e rim, sendo responsável pela conversão de T4 em T3 presente na circulação. Além da atividade  de  5’­desiodação,  a  D1  tem  uma  fraca  atividade  catalítica  para  a  remoção  do  iodo  do  anel  interno  de  T3  e  de T4 (5­desiodação). A enzima D3 não produz T3, pois dispõe de atividade exclusivamente de 5­desiodação, e o seu papel é inativar T4 e T3, convertendo­as em rT3 e T2, respectivamente (ver Quadro 68.9 e Figura 68.19).

Quadro 68.9 ■ Desiodases e suas principais características. Proteína e

Preferência de

Localização

peso

substrato e

predominante

molecular

local de

Papel

Gene

(kDa)

atuação

fisiológico

DIO1

D1

rT3>>T4≥T3

Gera T3 no

Fígado, rim,

Altamente

1p33­p32

Desiodase 1

Anel externo e

tecido e libera

tireoide, SNC

sensível

29

anel interno

nos tecidos

Inibição pelo PTU

para o plasma Inativa T3 e T4

(homodímero)

Degrada rT3 DIO2

D2

T4$rT3

14q24.2­3

Desiodase 2

Anel externo

Gera T3 utilizado SNC, adeno­ na própria célula hipófise, tecido Contribui com

30,5

Muito baixa

o pool de T3 plasmático

adiposo, placenta, tireoide, músculo esquelético, coração

DIO3

D3

T3>T4

14q32

Desiodase 3

Anel interno

Inativa T3 e T4

SNC, placenta,

Muito baixa

pele

31,5

Figura 68.18 ■ Incorporação da selênio­cisteína nas desiodases. O aminoácido selênio­cisteína é incorporado no códon UGA pelo transportador RNA, auxiliado pelo complexo S de proteínas acessórias (SBP2 e EFsec) ancorado na alça (SECIS) da região 3’UTR do mRNA. (Adaptada de Bianco et al., 2002.)

Figura 68.19 ■ Hormônio tireoidiano no tecido periférico. Esquema do transporte de T4 e T3, desiodação do hormônio tireoidiano pelas enzimas desiodases (D1, D2 e D3) e ação nuclear de T3. (Cortesia do Dr. Theo Visser.)

No excesso de hormônio tireoidiano (ou hipertireoidismo), ocorre aumento da atividade de D1, e, na deficiência desse hormônio (ou hipotireoidismo), há diminuição de sua atividade. Em outras situações, como o jejum prolongado e doenças sistêmicas  graves  (septicemia,  choque,  cirurgias  extensas),  observa­se  queda  da  atividade  de  D1  e  consequente  alteração do  metabolismo  do  HT,  ocasionando  redução  do  nível  sérico  de  T3 total  e  elevação  de  rT3,  quadro  clínico  reconhecido como  síndrome  do  T3  baixo  com  eutireoidismo  em  doença  sistêmica  grave.  A  D1  é  a  única  das  três  isoformas  que  é inibida pela propiltiouracila (ou PTU). A  D2  é  responsável  pela  geração  intracelular  de  T3,  sendo  encontrada  no  cérebro,  hipófise,  tecido  adiposo  marrom, músculo e coração. A D2 apresenta alta afinidade pela T4 quando comparada à D1, tendo meia­vida de apenas 20 min. A atuação  da  D2  é  particularmente  importante  onde  a  T3  gerada  intracelularmente  é  imprescindível,  como  no  controle do feedback hipotálamo­hipófise­tireoide. T4 é metabolizada nos tireotrofos da adeno­hipófise pela D2, e a T3  resultante regula  negativamente  a  transcrição  do  gene  de  TSH  (por  efeito  dominante  negativo,  ver  adiante).  Desta  maneira,  o tireotrofo responde prontamente à flutuação de T4 circulante e à T3 gerada  intracelularmente,  mas  é  menos  responsivo  à T3  plasmática.  Outra  contribuição  importante  provém  da  evidência  de  que  o  tratamento  com  PTU,  que  inibe especificamente a isoforma D1, não é capaz de reduzir a T3 plasmática, sugerindo um papel importante de D2 na geração de T3 circulante. A atividade da D2 se encontra aumentada no estado de hipotireoidismo. A  D3  está  presente  predominantemente  na  placenta,  no  sistema  nervoso  central  e  na  pele.  A  principal  função  desta enzima  consiste  em  proteger  o  tecido  do  excesso  de  HT  ativo,  expressando­se  de  modo  seletivo  e  temporalmente determinado  nos  diferentes  tecidos.  Ocorre  aumento  da  atividade  da  D3  em  paralelo  ao  aumento  de  T3.  No  SNC,  a  D3 contribui, no mecanismo homeostático, para a manutenção constante de T3. Na placenta, a D3 evita a passagem de excesso de  T4  e  T3  materno  para  o  feto,  protegendo  seletivamente  os  tecidos  em  formação  contra  a  exposição  precoce  ao  HT durante a embriogênese.

CAPTAÇÃO E AÇÃO CELULAR ▸ Transportadores de membrana do HT A  entrada  do  HT  na  célula  é  uma  etapa  importante  para  a  ação  biológica  do  HT.  Nos  tecidos  periféricos,  tanto  a ativação do HT (i. e., a conversão de T4 em T3) como a ação hormonal ocorrem intracelularmente. A passagem do HT do meio  extra  para  o  intracelular  pela  membrana  plasmática  era  atribuída  a  um  processo  de  difusão  passiva,  por  causa  de  o HT ser lipofílico (e, portanto, solúvel na membrana lipoproteica). No entanto, pelo fato de esse processo ser saturável e dependente  de  energia,  havia  indícios  de  que  o  transporte  de  HT  para  a  célula  seria  realizado  por  transportadores membranais. Recentemente, vários transportadores de membrana que realizam a captação de HT nos diferentes tecidos do organismo  foram  identificados  e  agrupados  em  duas  categorias:  (1)  transportadores  de  ânions  orgânicos  e  (2) transportadores de aminoácidos.

Transportadores de ânions orgânicos

Vários  membros  da  família  NTCP  (Na+/taurocholate  cotransporting  polypeptide)  e  OATP  (organic  anion transporting polypeptide) transportam iodotironina de modo não específico, pois outros compostos também atravessam a membrana  plasmática  via  estes  transportadores.  A  proteína  transmembrana  NTCP  tem  cerca  50  kDa,  apresenta  sete domínios transmembrânicos e é codificada pelo gene SLC10A1 localizado no cromossomo 14q24.1 humano, captando T4, T3, rT3, 3,3’­T2 e as isoformas sulfatadas de maneira dependente de Na+. A NTCP se expressa apenas no fígado e, além do  HT,  transporta  ácido  bílico.  As  proteínas  da  família  OATP  estão  presentes  na  maioria  dos  tecidos  e  teriam  um  papel multifuncional.  Seriam  importantes  na  destoxificação  do  organismo,  facilitando  a  troca  de  ânions  orgânicos  com  o bicarbonato  intracelular.  Dentre  as  proteínas  da  família  OATP,  as  das  subfamílias  OATP1,  OATP4  e  OATP6  apresentam função  mais  seletiva,  transportando  iodotironinas  nas  diferentes  formas,  inclusive  sulfatadas.  Dentre  todas  estas,  a OATP1C1,  uma  proteína  de  712  aminoácidos  codificada  pelo  gene SLCO1C1,  realiza  captação  específica  de  T4 e  rT3  e está altamente expressa no cérebro, principalmente nos capilares, sugerindo ser crítica para a passagem de T4 na barreira hematencefálica.

Transportadores de aminoácidos Devido à característica da composição das iodotironinas (aminoácidos com resíduo tirosina), não seria estranho se os transportadores  de  aminoácidos  estivessem  envolvidos  na  captação  de  TH.  Foi  identificado  recentemente  que  o  MCT8, uma  proteína  transmembrana  da  família  MCT  (monocarbox­ylate  transporter)  que  transporta  aminoácidos  aromáticos, tem  função  ativa  e  específica  na  captação  de  HT  pelas  células.  Estudos in vitro mostraram  que  o  MCT8  transporta  T4, T3  e  rT3,  e  T3,  rT3  e  T2  competem  com  a  captação  de  T4.  Em  humanos,  o  MCT8  é  um  transportador  com  alta especificidade  para  o  transporte  de  T3.  A  expressão  de  MCT8  é  particularmente  alta  no  fígado,  cérebro  e  coração.  No cérebro, o MCT8 é importante como fonte de T3 no neurônio. No SNC, os astrócitos expressam desiodase 2 (D2), mas os neurônios  não  expressam  D2.  Desta  maneira,  a  T3  formada  pela  desiodação  de  T4  pela  enzima  D2  nos  astrócitos  é transferida  para  os  neurônios  através  do  transporte  realizado  pelo  MTC8  na  membrana  do  neurônio  (Figura  68.20).  O gene de MCT8, SLC16A2, está localizado no cromossomo Xq13.2, e o transcrito de seis éxons codifica uma proteína de cerca de 67 kDa. A proteína MCT8 se ancora na membrana através de 12 domínios transmembrânicos e permite tanto o influxo quanto o efluxo do HT pela membrana plasmática de diferentes tipos celulares, inclusive na glândula tireoide. A deleção  ou  mutação  no  gene MCT8 está  associada  à  síndrome  de  Allan­Herndon­Dudley,  uma  grave  doença  neurológica ligada  ao  cromossomo  X,  em  que  o  paciente,  além  do  quadro  de  retardo  psicomotor  grave,  apresenta  nível  elevado  de T3 plasmático.

Figura 68.20 ■ Metabolismo e ação do hormônio tireoidiano no cérebro. No astrócito, o T4 é desiodado pela enzima D2 gerando T3 que será transportado para o neurônio pela proteína transportadora MCT8. O T3 intracelular irá se ligar ao receptor nuclear TR e ativar a transcrição de gene alvo ou será metabolizado pela D3, transformando­se na forma inativa T2. (Cortesia do Dr. Theo Visser.)

▸ Mecanismo de ação do HT Após a entrada do HT na célula, não existe dúvida quanto ao fato de que a maioria dos efeitos do HT ocorre pela via de  interação  com  os  receptores  nucleares  regulando  a  transcrição  de  genes­alvo,  mecanismo  conhecido  como  ação

genômica (ou nuclear).  Entretanto,  existem  evidências  crescentes  de  que  o  HT  (T4  e  T3)  também  atue  via  mecanismo de ação  não  genômica (ou não nuclear),  cujos  efeitos  aparecem  em  frações  de  segundo  e  não  são  inibidos  pela  ciclo­ hexamida,  substância  que  bloqueia  a  síntese  proteica.  Estes  dois  aspectos  distintos  do  mecanismo  de  ação  do  HT  são abordados a seguir.

Ação genômica A  ação  genômica  do  HT  promove  modificação  da  transcrição  de  genes  na  célula­alvo.  O  HT  entra  na  célula  e  a  T3, proveniente  do  plasma  ou  o  produto  da  conversão  intracelular  de  T4,  liga­se  ao  receptor  de  HT  (ver  Figuras  68.18  e 68.19). O receptor de HT é nuclear e se encontra ligado a regiões específicas do DNA do gene­alvo, denominadas regiões TRE (thyroid hormone reponsive element). A este complexo, agregam­se diversas proteínas correguladoras que auxiliam na ativação ou na inativação da transcrição dos genes­alvo. TRE São  sequências  específicas  de  DNA  localizadas  predominantemente  na  região  upstream  (a  montante)  do  local  de inicialização  da  transcrição  do  gene.  O  TRE  caracteriza­se  pela  presença  da  sequência  de  seis  nucleotídios  AGGT(C/G), organizados  em  três  orientações  diferentes:  (1)  na  forma  de  repetição  direta  espaçada  por  quatro  nucleotídios  quaisquer (DR­4), (2) na forma de palíndromo invertido espaçado por seis nucleotídios quaisquer (F2) e (3) na forma de palíndromo sem nenhum espaçamento (TREpal) (Quadro 68.10). A maioria dos TRE identificados é de DR4, seguida pelo F2, sendo o TREpal mais raramente encontrado. Receptores nucleares de HT Os  receptores  de  HT  foram  caracterizados,  em  1986,  por  dois  grupos  distintos  de  investigadores  que  buscavam identificar  proto­oncogenes  homólogos  à  proteína  oncogênica  viral  v­erb­A.  Foram  identificados  dois  genes  similares, denominados  atualmente  THRA  e  THRB,  cujas  proteínas  apresentavam  alta  afinidade  e  especificidade  de  ligação  ao  T3. Estas  proteínas  foram  reconhecidas  como  receptores  de  HT  (TR,  thyroid  hormone  receptor),  com  função  de  fator transcricional e intermediando a ação nuclear do HT na regulação da expressão gênica. Os RT apresentam alta homologia com os receptores de esteroides, vitamina D e ácido retinoico, tendo sido incluídos na superfamília de receptores nucleares (ver Capítulo 3, Sinalização Celular).

Quadro 68.10 ■ Sequência gênica do elemento responsivo ao hormônio tireoidiano (TRE) e as orientações e espaçamentos comumente observados no gene responsivo ao HT. Sequência consenso TRE

 

AGGTCA ou AGGTGA

Repetição direta

DR4

AGGTCANNNNAGGTCA

Palíndromo invertido

F2

TGACCTNNNNNNGGTCA

Palíndromo

TREpal

AGGTCATGACCT

Nos  mamíferos,  existem  três  isoformas  de  TR  com  atividade  funcional.  A  TRα1,  codificada  pelo  gene  TRHA localizado  no  cromossomo  17,  e  as  TRβ1  e  TRβ2,  codificadas  pelo  gene  TRHB  situado  no  cromossomo  3.  Essas  três isoformas ligam­se ao T3 de maneira similar. O splicing alternativo do gene TRHA gera ainda a TRα2, também conhecida como c­erbAα2. A isoforma TRα2 tem homologia estrutural com as outras isoformas, mas não apresenta afinidade com a T3;  no  entanto,  pode  ocupar  o  local  TRE  do  DNA,  competindo  com  as  isoformas  TRα1  e  TRβ1  na  formação  de heterodímeros com RXR, inibindo a ação mediada por essas isoformas e influenciando na transcrição do gene­alvo. As isoformas de TR têm alta homologia de aminoácidos, e os diferentes segmentos são identificados pelos domínios gênicos (A/B, C, D e E) ou proteicos (N­terminal, DBD, H e LBD). Enquanto os domínios A/B apresentam tamanho e homologia variável, os domínios D e E mostram grande homologia entre as diferentes isoformas (Figura 68.21). Mutação e deleção nos domínios D e E são críticas para a atividade transcricional. Na  proteína,  à  extremidade  aminoterminal  (N­terminal)  segue­se  uma  região  central  de  ligação  do  DNA  (DBD ou DNA­binding domain), composta por: (1) duas estruturas dedo de zinco (formadas por um zinco central ligado a quatro

cisteínas), (2) domínio H (ou hinge, que constitui uma dobradiça que confere mobilidade às extremidades da molécula) e (3) uma porção C­terminal denominada LBD (ou ligand­binding domain, que se liga à T3). Mecanismo molecular da ação do TR Diferentemente dos receptores de esteroides que se ligam ao DNA compondo homodímeros, o TR se liga ao DNA do gene­alvo como monômero, homodímero ou heterodímero. A situação predominante é a formação de heterodímero de TR com  o  receptor  nuclear  RXR.  O  TR  pode  ainda  dimerizar­se  com  o  receptor  do  ácido  retinoico,  com  o  receptor  de vitamina  e  com  o  PPARγ  (peroxisome  proliferator  activated  receptor).  O  heterodímero  TR:RXR  é  o  mais  importante complexo (ver Figura 68.19).  Existe  maior  afinidade  na  união  TR:RXR  que  entre  homodímeros  de  TR,  além  de  maior estabilidade da ligação TR:RXR com o local TRE que com monômeros ou homodímeros de TR, e ainda melhor ativação transcricional de TR quando associado ao RXR, atuando na forma heterodimérica. O  HT  transmite  diversos  sinais  que  variam  conforme  o  tecido  e  os  genes,  e,  ao  contrário  dos  hormônios  esteroides que só ativam, o HT regula a ativação ou a repressão da transcrição de RNA mensageiros específicos em células­alvo. Repressão da transcrição na ausência do HT A  ligação  de  TR  ao  TRE  acontece  independentemente  da  presença  de  T3;  e,  na  ausência  de  T3 ligada  ao  TR,  ocorre repressão  da  transcrição  deste  gene.  Diversas  proteínas  corregulatórias  se  unem  ao  homo  (TR:TR)  ou  heterodímero (TR:RXR):  (1)  as  proteínas  correpressoras  da  família  NCoR  (nuclear  receptor  co­repressor),  (2)  a  SMRT  (silencing mediator  for  retinoic  acid  receptor  and  TR),  (3)  a  Sin3  e  (4)  as  HDAC  (desacetilases  de  histona).  Este  complexo repressor promove a desacetilação das histonas, compactando a cromatina e impedindo a atuação dos fatores de transcrição basal TAFII/TBP e da RNA polimerase II (Figura 68.22). Ativação da transcrição na presença de HT A  ligação  de  T3 ao  TR,  previamente  ligados  ao  TRE,  ativa  a  transcrição  de  mRNA.  Quando  o  T3 se  liga  ao  TR,  o complexo  repressor  se  desliga,  ocorrendo  interação  subsequente  de  diversas  proteínas  coativadoras.  As  proteínas  que atuam como coativadores de TR são membros da família de proteínas SRC (steroid receptor co­activator) e de proteínas que formam o complexo DRIP/TRAP (vitamin D receptor interacting protein/TR associated protein, composto por cerca de  15  subunidades).  As  proteínas  SRC  têm  em  geral  peso  molecular  em  torno  de  160  kDa  e  por  isso  são  conhecidas também  como  proteínas  p160.  Três  isoformas  de  SRC  (SRC­1,  2  e  3)  atuam  no  aumento  da  transcrição  de  vários receptores  nucleares,  inclusive  de  TR.  A  interação  de  SRC­1  com  CBP/p300  e  PCAF  (p300/CBP  associated  factor) promove  a  acetilação  das  histonas,  por  isso  estas  duas  proteínas  em  conjunto  são  chamadas  de  HAT  (histone acetiltransferase). A HAT tem um papel importante na ativação da transcrição, pois a acetilação das histonas ocasiona o afrouxamento da cromatina, facilitando a atuação dos fatores de transcrição basal (TAFII/TBP) e da RNA polimerase II na transcrição de RNA mensageiro (ver Figura 68.22).

Figura 68.21 ■  Representação  esquemática  do  receptor  do  hormônio  tireoidiano  (TR)  com  indicação:  dos  domínios  gênicos (letras A a E), do segmento proteico correspondente, das características de homologia e número de aminoácidos, e da atividade biológica das isoformas de TR e do oncogene c­erbAα2. (Adaptada de Yen, 2001.)

Figura 68.22 ■ Modelo molecular da repressão (–T3) e da ativação (+T3) pelo hormônio tireoidiano e as proteínas reguladoras envolvidas na transcrição do gene­alvo. Descrição da figura no texto. (Adaptada de Yen, 2006.)

As isoformas de TR são expressas de maneira específica em diferentes tecidos e de modo distinto nas várias fases de desenvolvimento embrionário, fetal e pós­natal. Os receptores TRα1 e TRα2 são encontrados principalmente no epitélio do intestino delgado, pulmão e durante os estágios precoces do desenvolvimento. No músculo esquelético, no miocárdio e no tecido adiposo, são abundantes o TRα1 e, no cérebro, o TRα2. O receptor TRβ1 é altamente expresso no fígado e no rim,  e  em  menor  extensão  no  músculo  esquelético,  no  miocárdio  e  no  cérebro;  e  o  receptor  TRβ2  é  expresso  no hipotálamo  e  na  hipófise.  A  expressão  variada  dos  TR  é  um  mecanismo  regulatório  de  atuação  seletiva  dos  HT  nos tecidos.  A  mutação  nos  genes  do  TR,  predominantemente  observada  no  gene  TRβ,  pode  causar  resistência  à  ação  do hormônio tireoidiano; tal anomalia é conhecida como síndrome da resistência ao HT, que se caracteriza pela falta de ação do HT nos tecidos onde predomina o TRβ. O T3, uma vez ligado ao seu receptor no núcleo da célula­alvo, induz mudanças na expressão gênica, aumentando ou diminuindo  a  atividade  transcricional.  Alguns  exemplos  de  genes  regulados  pelo  HT  estão  listados  no Quadro 68.11.  O produto  dos  genes  modulados  pelo  HT  participa  de  uma  ampla  gama  de  funções  que  incluem:  vias  de  sinalização  da glicogênese, lipogênese, sinalização da insulina, apoptose e proliferação celular. A caracterização da ação genômica inclui o reconhecimento de sequência TRE no gene­alvo.

Ação não genômica A maioria dos efeitos do HT (T3 e T4) ocorre pela ligação de T3 aos receptores nucleares (TR), modulando a atividade transcricional  de  genes  regulados  pelo  HT.  No  entanto,  T3  e  T4  podem  exercer  seus  efeitos  por  mecanismos  não genômicos. A ação não nuclear do HT é observada rapidamente, em segundos ou minutos, ocorre na membrana plasmática e na mitocôndria, não depende de síntese proteica e não envolve os TR nucleares. A  existência  de  sítios  de  ligação  para  o  HT  na  superfície  celular  era  conhecida  há  muitos  anos,  mas  relutava­se  em utilizar  o  termo  receptor  de  membrana  para  a  ação  local  do  HT  na  membrana.  Descobertas  mais  recentes  indicam  que a integrina αVβ3, uma proteína estrutural heterodimérica localizada na membrana plasmática, liga­se ao HT na região que

se superpõe ao local de seu ligante clássico, o peptídio RGD (arginina­glicina­asparagina). A conformação espacial deste sítio da integrina é propícia não somente para a ligação do peptídio RGD, mas também para a ligação de T4 ou de Tetrac, que  competem  na  ligação  neste  domínio  extracelular  formado  pelas  cadeias  αV  e  β3.  A  ligação  do  HT,  T4  ou  T3,  ao receptor  de  membrana  integrina  αVβ3  pode  ser  um  dos  mecanismos  que  ativam  a  cascata  de  sinalização  intracelular MAPK (mitogen­activated protein kinase) (Figura 68.23). Além disso, existe uma interface de atuação não genômica do HT,  influenciando  sua  ação  genômica.  Neste  processo,  a  ativação  da  via  MAPK  por  efeito  não  genômico  de  HT desencadeia uma cascata de sinalização intracelular, que fosforila os TR nucleares. A fosforilação dos resíduos lisina de TR altera a interação destes com as proteínas correguladoras e acelera o tráfego intracelular de proteínas coativadoras. Na ação não genômica, nota­se um efeito mais potente de T4 que de T3, sugerindo um papel hormonal importante de T4, que desta maneira se expande além da condição de pró­hormônio.

Quadro 68.11 ■ Genes regulados pela T3. Genes regulados positivamente Sintetase de ácidos graxos

Enzima lipogênica Spot14

Enzima málica

Desiodase tipo1 (D1)

Hormônio do crescimento

UCP1

Miosina – cadeia pesada α

Mielina básica

Genes regulados negativamente Receptor de EGF

TRH

Miosina – cadeia pesada β

TSH cadeia α e cadeia β

Prolactina

Desiodase tipo 2 (D2)

Figura 68.23 ■ Esquema representativo da ação não genômica do hormônio tireoidiano. A ligação de T4 e T3 com a proteína de membrana integrina αVβ3 ativa  a  sinalização  MAPK  (ERK1/ERK2),  que  ativará  uma  série  de  proteínas  (TRβ1,  ERα,  STAT1α) pela  fosforilação  de  serinas  que  atuarão  na  mobilização  das  proteínas  de  tráfego,  contribuindo  indiretamente  para  a  ação genômica  do  hormônio  tireoidiano  (ver  texto).  A  ativação  da  via  MAPK  aumenta  a  atividade  das  proteínas  transportadoras (trocador Na+ /H+  e transportador de aminoácidos). Sugere­se que o T3 atue ativando a via de sinalização PKC e PI3 K/Akt/PKB. (Adaptada de Davis et al., 2005.)

A  ativação  da  via  MAPK  pelo  HT  promove  a  alteração  do  tráfico  intracelular  e  a  fosforilação  dos  receptores estrogênicos (ER) e da proteína p53. São ainda atribuídos à ação não genômica do HT: (1) o rápido aumento da atividade das  calmodulinas  e  dos  transportadores  iônicos  (trocador  Na+/H+,  canal  de  Na+  e  Ca2+­ATPase)  nos  miócitos  e cardiomiócitos, (2) o aumento de captação de glicose e (3) o controle do transporte de cálcio e da remodelação da actina, modificando o citoesqueleto em vários tecidos.

AÇÃO FISIOLÓGICA DO HT A presença de receptores de HT (TR) em virtualmente todos os tecidos do organismo ressalta a importância do papel vital do HT na função celular. O amplo espectro de sua ação pode ser inferido pela variabilidade na expressão e regulação dos TR e dos genes responsivos nos diferentes tecidos e em fases distintas da vida. Deste modo, além de sua participação na regulação do metabolismo celular, exerce efeito em órgãos específicos durante o período de desenvolvimento e após o nascimento  (Quadro  68.12).  Embora  o  reconhecimento  de  um  número  crescente  de  genes  regulados  pelo  HT  tenha  se expandido  nos  últimos  anos,  não  temos  ainda  a  compreensão  global  da  implicação  destes  achados  na  função  do  HT. Muitos  dos  efeitos  fisiológicos  do  HT  foram  constatados  a  partir  de  modelos  experimentais  de  hipertireoidismo (administrando T4 ou T3)  e  de  hipotireoidismo  (removendo  a  glândula  ou  utilizando  fármacos  que  bloqueiem  a  síntese hormonal).

▸ Efeito na termogênese Nos  animais  homeotérmicos,  inclusive  humanos,  a  temperatura  corporal  é  mantida  em  limite  bastante  estreito, próximo  a  37°C,  independente  da  extrema  variabilidade  da  temperatura  do  ambiente.  Para  manter  esta  temperatura  e  as funções  vitais  da  célula,  os  animais  homeotérmicos  produzem  calor,  por  um  mecanismo  designado  termogênese obrigatória  (ou  termogênese  basal),  que  costuma  ser  avaliada  pela  taxa  de  metabolismo  basal  (TMB),  medindo­se  o consumo de oxigênio do indivíduo em repouso. Em ambiente de termoneutralidade, a termogênese obrigatória é suficiente, mas,  em  ambiente  extremamente  frio,  é  necessário  ativar  a  termogênese  facultativa.  A  função  termogênica  do  HT  foi incorporada  como  um  processo  evolutivo  nos  animais  homeotérmicos,  ao  contrário  dos  animais  de  sangue  frio  (ou poiquilotérmicos), sendo essencial na termogênese obrigatória e na termogênese facultativa. As  primeiras  evidências  de  que  o  HT  exerce  importante  papel  na  termogênese  foram  observadas  pela  intolerância  ao frio  no  estado  de  hipotireoidismo  e  ao  calor  no  de  hipertireoidismo.  Experimentos  realizados  há  mais  de  60  anos mostraram que nos animais com tireotoxicose ocorria elevação da TMB, avaliada pelo consumo de oxigênio, na maioria dos tecidos (exceto cérebro, baço e testículo).

Quadro 68.12 ■ Função fisiológica do hormônio tireoidiano. Molécula ou tecido­alvo

Função

Ação fisiológica

Músculo esquelético e tecido adiposo

Metabolismo

Termogênese obrigatória e

marrom Coração

facultativa Cronotrópico

Potencializa a ação dos receptores β­adrenérgicos

Inotrópico

Aumenta a resposta das catecolaminas Aumenta as miosinas de maior atividade ATPase

Sistema nervoso

Desenvolvimento

Desenvolvimento normal do SNC

Osso

Desenvolvimento e

Crescimento normal e

remodelação

maturação Síntese e reabsorção óssea

Tecido adiposo

Diferenciação e catabolismo

Maturação de pré­adipócito Lipogênese

Ácidos graxos

Metabolismo

Síntese e degradação de colesterol Síntese de receptores LDL

Proteína

Metabolismo

Síntese e proteólise

Carboidrato

Metabolismo

Gliconeogênese Glicogenólise

Incorporação da glicose nas células Um dos mecanismos atribuídos à geração de calor pelas células dos diferentes tecidos é o aumento do desacoplamento mitocondrial.  As  proteínas  mitocondriais  UCP  (uncoupling  protein)  facilitam  o  retorno  do  próton  do  espaço intramembranoso  para  a  matriz  mitocondrial,  processo  conhecido  como  desacoplamento  fisiológico  da  mitocôndria,  que produz calor. O HT aumenta a expressão das proteínas UCP1 (no tecido adiposo marrom), UCP2 (no fígado e no tecido adiposo) e UCP3 (no músculo esquelético, no coração e no tecido adiposo marrom). Entretanto, até o momento, não foi evidenciada a capacidade desacopladora da UCP2. O HT estimula a lipólise, fazendo crescer a disponibilidade de lipídio, outro componente essencial do desacoplamento mitocondrial. A importância da UCP na termogênese de humanos adultos consolidou­se com a identificação da isoforma UCP3, verificando­se que está presente extensivamente no tecido muscular esquelético, ao contrário da UCP1, que, em humanos, está praticamente restrita ao período neonatal. Outro  mecanismo  fisiológico  atribuído  ao  HT,  que  contribui  para  a  termogênese  obrigatória,  seria  a  estimulação  do consumo  de  ATP.  O  HT  promove,  direta  ou  indiretamente,  o  influxo  celular  de  Na+ e  o  efluxo  de  K+;  assim,  restitui  o gradiente destes íons através da membrana celular, o que aumenta a atividade e a expressão da Na+/K+­ATPase, que ocorre predominantemente  no  tecido  epitelial  de  grande  atividade  transportadora,  como  rim  e  intestino.  Além  disso,  na transferência  de  Ca2+  do  citosol  para  o  retículo  sarcoplasmático,  o  HT  eleva  o  consumo  de  ATP  pelo  crescimento  da atividade da Ca2+­ATPase. A termogênese facultativa é ativada pelo sistema nervoso autônomo simpático, mas é modulada de maneira importante pelo  HT.  Na  ausência  de  HT,  os  animais  expostos  ao  frio  ficam  hipotérmicos,  pois  não  conseguem  sustentar  o  estímulo noradrenérgico para geração de calor suplementar; esse quadro se reverte com a administração de HT.

▸ Efeito no metabolismo lipídico O  HT  acelera  a  diferenciação  dos  pré­adipócitos  em  adipócitos,  exercendo  múltiplos  efeitos  no  metabolismo  de lipídios. A síntese de colesterol e a conversão/degradação metabólica encontram­se deprimidas na deficiência do HT. No entanto, como a degradação é afetada em maior extensão que a síntese, no estado hipotireóideo o nível sérico de colesterol total aumenta, devido principalmente à elevação do colesterol e da lipoproteína de baixa densidade (LDL). A intensificação do metabolismo de colesterol pelo HT seria, ainda, pelo crescimento do número de receptores de LDL na superfície das células. Quanto aos ácidos graxos, sabe­se que o HT intensifica a lipólise no tecido adiposo.

▸ Efeito no metabolismo proteico Tanto a síntese como a degradação proteicas são estimuladas pelo HT. O estímulo da síntese pode ser responsável por parte  do  efeito  termogênico  do  HT.  A  influência  do  HT  no  crescimento  normal  do  indivíduo  está  relacionada  com  a promoção  dessa  síntese.  No  excesso  de  HT,  o  catabolismo  proteico  fica  acelerado,  levando  ao  aumento  na  excreção  de nitrogênio.

▸ Efeito no metabolismo de carboidratos O  HT  intensifica  a  ação  da  epinefrina  na  promoção  da  glicogenólise  e  gliconeogênese;  adicionalmente,  o  HT potencializa  a  ação  da  insulina  na  utilização  da  glicose  e  na  síntese  de  glicogênio.  O  HT  aumenta  a  taxa  de  absorção intestinal  e  a  entrada  da  glicose  nos  diferentes  tecidos,  estimulando  a  expressão  e  a  disponibilidade  das  proteínas transportadoras de glicose (GLUT) na superfície celular.

▸ Efeito nos sistemas simpático e cardíaco Muitos  dos  efeitos  do  HT,  particularmente  no  sistema  cardíaco,  são  similares  aos  induzidos  pelas  catecolaminas.  O HT  apresenta  acentuado  efeito  cronotrópico  e  inotrópico  no  coração.  O  excesso  de  HT  aumenta  a  responsividade adrenérgica cardíaca, provavelmente amplificando a ação pós­receptora das catecolaminas. Os inibidores beta­adrenérgicos revertem alguns dos efeitos do hipertireoidismo clínico, como a taquicardia; no entanto, outras ações do hipertireoidismo não  são  alteradas  pelo  bloqueio  beta­adrenérgico,  como  a  elevação  do  consumo  de  O2.  O  HT  aumenta  a  expressão  da miosina  MHCα  que  predomina  na  região  atrial,  resultando  na  subida  da  velocidade  da  contração  cardíaca,  ocorrendo  o oposto com a diminuição do HT.

▸ Efeito no músculo esquelético Pela extensa distribuição no organismo e abundância de UCP3, o músculo esquelético contribui de maneira importante para a manutenção da temperatura corporal. O HT regula a expressão dos genes que codificam as diferentes isoformas da cadeia  pesada  da  miosina  (MHC)  e  do  transportador  de  cálcio  SERCA,  que  em  conjunto  ocasionam  maior  atividade  da Ca2+­ATPase  e  mobilização  do  cálcio  nos  miócitos.  No  hipertireoidismo,  pode  ocorrer  grave  fraqueza  muscular (denominada miopatia tireotóxica) que se agrava em pacientes com alterações no genes transportadores de K+ (que passam a apresentar a paralisia periódica hipopotassêmica tireotóxica); mas ambos os quadros se revertem quando os níveis de HT retornam ao normal.

▸ Efeito no tecido ósseo O  HT  tem  atuação  direta  na  remodelação  óssea,  influenciando  tanto  a  formação  como  a  reabsorção  ósseas.  Nos osteoblastos, o HT aumenta a fosfatase alcalina e a osteocalcina; nos osteoclastos, o HT eleva os marcadores de atividade, tais como a hidroxiprolina e o piridínio urinário. O excesso de HT encurta o intervalo de tempo entre a formação óssea e a subsequente desmineralização, o que ocasiona crescimento da porosidade óssea cortical e afinamento das trabéculas. Nas mulheres pós­menopausa, o efeito do excesso de HT se potencializa devido à falta de estrógeno, acarretando a aceleração da perda da densidade mineral óssea (chamada de osteoporose), o que faz crescer o risco de fratura óssea.

▸ Efeito na hematopoese O HT aumenta a eritropoese, estimulando a expressão gênica da eritropoetina induzida pelo HIF­1 (hypoxia­inducible factor 1).  Nos  eritrócitos,  o  HT  eleva  o  nível  de  2,3­difosfoglicerato  (2,3­DPG),  que  promove  a  dissociação  de  O2  da hemoglobina, e assim aumenta a disponibilidade de O2 nos tecidos. Estes mecanismos ocorrem como uma compensação ao crescimento do consumo de O2 induzido pelo HT. No hipotireoidismo, acontece o inverso, havendo menor consumo de O2 e diminuição da eritropoese.

▸ Efeito no sistema endócrino O HT tem um efeito geral que aumenta o metabolismo e o clearance de vários hormônios e agentes farmacológicos. Ele estimula o crescimento do clearance dos hormônios esteroides, o que leva à elevação compensatória das suas sínteses. Como tanto a síntese quanto a degradação estão aumentadas, o nível plasmático de cortisol permanece inalterado. Grande parte dos pacientes com hipotireoidismo apresenta elevação da prolactina decorrente do aumento do TSH hipofisário, que volta ao nível normal quando recebem tratamento com HT. No hipotireoidismo, há menor secreção de LH e de FSH, sendo comum  ocorrer  falta  de  ovulação  e  distúrbios  menstruais,  como  a  menorragia  (menstruação  mais  prolongada).  A necessidade de insulina geralmente está aumentada em pacientes com hipertireoidismo. A diminuição do clearance da água no  hipotireoidismo  pode  ser  secundária  à  elevação  da  atividade  do  hormônio  antidiurético,  mas  também  pode  estar relacionada com a alteração da hemodinâmica intrarrenal.

▸ Crescimento e desenvolvimento O HT é essencial para o crescimento normal e a maturação óssea. Em algumas espécies animais, ele regula o gene do hormônio de crescimento (GH), mas, no gene do GH humano, não existem elementos responsivos ao HT. Em humanos, mesmo  sem  alteração  do  GH,  na  falta  de  HT  há  atraso  no  desenvolvimento  e  no  crescimento.  Em  crianças,  o hipotireoidismo  atrasa,  ao  passo  que  o  hipertireoidismo  acelera  a  maturação  óssea  e  o  fechamento  da  epífise  óssea.  Nos anfíbios, o HT promove a metamorfose induzindo a apoptose da cauda do girino; na ausência de HT, ocorre interrupção drástica  da  transformação  do  girino  em  sapo,  evidenciando  a  importância  do  HT  na  diferenciação  celular  e  no desenvolvimento.

▸ Efeito no desenvolvimento do sistema nervoso O  HT  é  criticamente  importante  no  desenvolvimento  fetal,  particularmente  do  sistema  nervoso.  O  HT  materno  não atravessa  a  placenta  em  quantidade  suficiente  para  manter  o  eutireoidismo  fetal;  assim,  o  feto  no  período  intrauterino depende do hormônio sintetizado pela sua própria glândula, que se inicia a partir da 10a­11a semana de gestação. O  termo  cretinismo  caracteriza  o  intenso  retardo  mental  e  déficit  de  crescimento  decorrentes  do  hipotireoidismo intrauterino e materno, em regiões de grave carência de iodo. Nessas regiões, o suprimento inadequado de iodo persistirá

após  o  nascimento,  pois  o  leite  materno  não  conterá  iodo  suficiente  para  a  síntese  de  HT  pelo  recém­nascido, comprometendo  ainda  mais  seu  desenvolvimento  neurológico.  Mesmo  em  regiões  suficientes  em  iodo,  recentes investigações constataram que o hipotireoidismo materno na fase inicial da gravidez (ainda que de moderada intensidade) afeta o desenvolvimento neurológico e intelectual da criança a longo prazo. No sistema nervoso central, o déficit de HT atinge o córtex cerebral, o gânglio basal e a cóclea. No cerebelo de animal hipotireóideo,  ocorrem  redução  na  arborização  dendrítica  das  células  de  Purkinje  e  atraso  na  migração  das  células granulares para a camada granular interna. No  recém­nascido  com  hipotireoidismo  (denominado  hipotireoidismo  congênito),  que  aparece  em  1  de  cada  3.000 nascimentos, o dano permanente no desenvolvimento neurológico pode ser evitado se a reposição do HT for iniciada nas primeiras 2 semanas de vida. Este tratamento previne o potencial déficit intelectual decorrente da falta de HT no primeiro ano de vida. No Brasil, assim como em outras partes do mundo, o TSH é dosado na gota de sangue obtido do calcanhar do  recém­nascido  (colhido  em  papel­filtro);  essa  avaliação,  conhecida  como  teste  do  pezinho,  é  utilizada  para  o diagnóstico precoce do hipotireoidismo no recém­nascido.

BIBLIOGRAFIA BIANCO AC, SALVATORE D, GEREBEN B et al. Biochemistry, cellular and molecular biology, and physiological roles of the iodothyronine selenodeiodinases. Endocr Rev, 23(1):38­89, 2002. DAVIS PJ, DAVIS FB, CODY V. Membrane receptors mediating thyroid hormone actions. Trends Endocrinol Metab, 16(9):429­ 35, 2005. DE  FELICE  M,  DI  LAURO  R.  Thyroid  development  and  its  disorders:  genetics  and  molecular  mechanisms.  Endocr Rev, 25(5):722­46, 2004. DOHAN O, DE LA VIEJA A, PARODE V et al. The sodium/iodide symporter (NIS): characterization, regulation, and medical significance. Endocr Rev, 24(1):48­77, 2003. EKHOLM R. Anatomy and development. In: DeGROOT L (ed.). Endocrinology. v. 1. 3. ed. W.B. Saunders, Philadelphia, 1995. FAGMAN H, NILSSON M. Morphogenetics of early thyroid development. J Mol Endocrinol, 46(1):R33­42, 2011. GREEN WL (Ed.). The Thyroid. Elsevier, New York, 1987. GREENSPAN FS, FORSHAM PH (Eds.). Basic & Clinical Endocrinology. Lange Medical Publications, Los Altos, 1990. JANSEN J, FRIESEMA EC, MILICI C et al. Thyroid hormone transporters in health and disease. Thyroid, 15(8):757­68. 2005. KOPP P. Pendred’s syndrome: identification of the genetic defect a century after its recognition. Thyroid, 9(1):65­9, 1999. KIMURA T, VAN KEYMEULEN A, GOLSTEIN J et al. Regulation of thyroid cell proliferation by TSH and other factors: a critical evaluation of in vitro models. Endocr Rev, 22(5):631­56, 2001. REFETOFF S, DUMITRESCU AM. Syndromes of reduced sensitivity to thyroid hormone: genetic defects in hormone receptors, cell transporters and deiodination. Best Pract Res Clin Endocrinol Metab, 21(2):277­305, 2007. SILVA JE. Thermogenic mechanisms and their hormonal regulation. Physiol Rev, 86(2):435­64, 2006. VAISMAN  M,  ROSENTHAL  D,  CARVALHO  DP.  Enzymes  involved  in  thyroid  iodide  organification.  Arq  Bras  Endocrinol Metab, 48(1):9­15, 2004. VASSART  G,  DUMONT  JE.  The  thyrotropin  receptor  and  the  regulation  of  thyrocyte  function  and  growth.  Endocr Rev, 13(3):596­611, 1992. VONO­TONIOLO  J,  KOPP  P.  Thyroglobulin  gene  mutations  and  other  genetic  defects  associated  with  congenital hypothyroidism. Arq Bras Endocrinol Metabol, 48(1):70­82, 2004. YEN PM. Physiological and molecular basis of thyroid hormone action. Physiol Rev, 81(3):1097­142, 2001. YEN PM. Thyroid hormone action at the cellular, genomic and target gene levels. Mol Cell Endocrinol, 246:121­7, 2006. ZIMMERMANN MB. Iodine deficiency. Endocr Rev, 30(4):376­408, 2009.



Introdução

■ ■

Esteroidogênese suprarrenal Metabolismo dos esteroides suprarrenais

■ ■ ■

Ações dos glicocorticoides Ações da aldosterona Ações dos andrógenos suprarrenais

■ ■

Medula suprarrenal Bibliografia

INTRODUÇÃO As  glândulas  suprarrenais  estão  localizadas  acima  dos  rins,  assim  sua  denominação,  também,  de  glândulas suprarrenais.  Cada  glândula  é  revestida  por  uma  cápsula  de  tecido  conjuntivo  denso  e  apresenta  uma  região  interna – córtex – e outra interna – medula (Figura 69.1). O córtex suprarrenal deriva de células mesenquimais ligadas à cavidade celômica. A suprarrenal fetal é evidenciada a partir de 6 a 8 semanas de gestação. Na vida intraútero e até 12 meses pós­ natal,  duas  zonas  suprarrenais  são  observadas,  uma  zona  fetal,  e  uma  zona  definitiva  que  se  diferenciará  na  glândula suprarrenal  do  adulto  em  zona  glomerulosa  (mais  externa)  e  fasciculada  (intermediária),  enquanto  a  zona  reticular  (mais interna) só é evidente após 1 ano de vida. As três zonas do córtex suprarrenal secretam diferentes hormônios esteroidais e estão  sob  diferente  regulação.  A  zona  glomerulosa  da  glândula  suprarrenal  constitui  cerca  de  15%  do  córtex,  sendo responsável  pela  síntese  de  mineralocorticoides.  A  fasciculada  abrange  aproximadamente  75%  do  córtex  e  produz  os glicocorticoides. A zona reticular representa 10% do córtex, sendo responsável pela síntese de esteroides C19, chamados andrógenos  suprarrenais.  As  células  cromafins  da  medula  renal  produzem  epinefrina  e  quantidades  variáveis  de norepinefrina (ver Figura 69.1). A  divisão  do  córtex  suprarrenal  por  zonas  é  crítica  para  a  diferenciação  da  regulação  da  síntese  de  glico­  e mineralocorticoides,  que  pode  ser  exemplificada  pela  quantidade  de  aldosterona  necessária  para  o  controle  do  balanço salino  cerca  de  100  a  1.000  vezes  menor  que  a  quantidade  de  cortisol  necessária  para  o  controle  do  metabolismo  dos carboidratos. Assim, sem a divisão funcional haveria um excesso de mineralocorticoide, caso os precursores progesterona e  11­desoxicorticosterona,  que  são  também  sintetizados  na  camada  fasciculada  em  quantidades  elevadas,  fossem convertidos a aldosterona. As glândulas suprarrenais recebem sua irrigação sanguínea de ramos das artérias renais ou da porção lombar da aorta e seus ramos principais. Estas artérias penetram as cápsulas suprarrenais e se dividem para formar o plexo subcapsular, do qual pequenos ramos seguem em direção à medula suprarrenal e drenam em vênulas nesta região da glândula (ver Figura 69.1).  À  direita,  a  veia  suprarrenal  entra  diretamente  na  veia  cava  inferior,  enquanto,  à  esquerda,  a  drenagem  da suprarrenal  ocorre  pela  veia  renal  esquerda.  O  fluxo  sanguíneo  do  córtex  suprarrenal  para  a  medula  permite  a  síntese  e secreção de epinefrina em grandes concentrações, por exemplo, durante o estresse, pois a atividade da enzima envolvida na

síntese de epinefrina (feniletanolamina­N­metiltransferase) é especificamente induzida pelo glicocorticoide, como descrito adiante.

Figura 69.1 ■ Anatomia da glândula suprarrenal. A. A suprarrenal é dividida em 2 regiões: córtex e medula; o córtex tem 3 zonas que  envolvem  a  medula:  glomerulosa  (mais  externa),  fasciculada  (intermediária)  e  reticular  (mais  interna).  B.  Hormônios sintetizados pelas zonas corticais e pela medula. O suprimento sanguíneo entra pela região subcapsular da glândula e flui pelo leito capilar do córtex até a medula. (Adaptada de Barrett, 2005.)

ESTEROIDOGÊNESE SUPRARRENAL

O precursor para todos os hormônios adrenocorticais é o colesterol, que pode ser sintetizado a partir da acetilcoenzima A;  mas  a  maior  fonte  do  colesterol  para  a  esteroidogênese  é  o  colesterol  transportado  no  plasma  pelas  lipoproteínas  de baixa densidade (LDL). Estas lipoproteínas são captadas pelas células adrenocorticais por meio de receptores específicos de  LDL  presentes  na  membrana  celular.  Após  sua  entrada  na  célula,  o  colesterol  é  esterificado  e  estocado  em  vacúolos citoplasmáticos. O ACTH regula a hidrólise dos ésteres de colesterol pela ativação da esterase de colesterol e inibindo a colesterol aciltransferase. Para  que  a  esteroidogênese  ocorra,  o  colesterol  deve  ser  transportado  para  a  membrana  interna  da  mitocôndria.  A proteína StAR (steroidogenic acute regulatory protein) desempenha um papel essencial na esteroidogênese, facilitando o transporte  da  molécula  de  colesterol  para  a  membrana  interna  da  mitocôndria.  Evidências  do  envolvimento  da  proteína StAR  na  produção  de  hormônios  esteroides  são  constatadas  pela  observação  de  que  mutações  no  gene  StAR  causam hiperplasia  congênita  suprarrenal  lipoídica,  em  que  a  síntese  de  esteroides  nas  suprarrenais  e  gônadas  é  diminuída  e  há acúmulo intracelular de colesterol em grandes vacúolos. A proteína StAR interage com outras proteínas ancoradas na membrana externa da mitocôndria, como o canal de ânion dependente  de  voltagem  (VDAC, voltage­dependent  anion  channel)  e  a  proteína  translocadora  de  80  kDa  (translocator protein,  TSPO,  inicialmente  denominada  receptor  periférico  de  benzodiazepínicos).  O  complexo  formado  por  essas proteínas permite a translocação do colesterol para a membrana interna da mitocôndria, onde estão localizadas CYP11A1, adrenotoxina e adrenotoxina redutase, que realizam a clivagem inicial do colesterol.

▸ Síntese de glicocorticoides, mineralocorticoides e andrógenos Para  que  o  córtex  suprarrenal  sintetize  os  glicocorticoides,  os  mineralocorticoides  e  os  esteroides  sexuais,  são necessários vários passos enzimáticos. A Figura 69.2 esquematiza  as  etapas  da  esteroidogênese  suprarrenal,  e  o  Quadro 69.1  apresenta  as  enzimas  necessárias  para  a  síntese  de  cortisol,  aldosterona  e  andrógenos  suprarrenais.  Após  o  seu transporte  para  a  membrana  interna  da  mitocôndria,  a  molécula  de  colesterol  sofre  clivagem  de  sua  cadeia  lateral  e conversão  para  pregnenolona,  pela  enzima  CYP11A1  (P450scc).  Este  passo  inicial  na  síntese  de  hormônios  esteroides envolve  3  reações:  20α­hidroxilação,  22­hidroxilação  e  clivagem  da  cadeia  lateral.  A  clivagem  da  cadeia  lateral  da molécula de colesterol constitui o passo limitante na esteroidogênese. Na via de síntese dos glicocorticoides, a pregnenolona so­fre desidrogenação na posição 3 β pela ação da enzima 3β­ hidroxiesteroide  desidrogenase  (3β­HSD),  levando  à  formação  de  progesterona.  Tanto  a  pregnenolona  quanto  a progesterona  são  hidroxiladas  na  posição  C17α  pela  enzima  microssomal  17α­hidroxilase  (CYP17),  formando  17α­ hidroxipregnenolona  (17α­OHPreg)  e  17α­hidroxiprogesterona  (17α­OHP),  respectivamente.  Uma  via  alternativa  para  a síntese da 17α­OHP pode ocorrer a partir da 17­OHPreg pela ação da 3β­HSD. A seguir, ocorre uma 21­hidroxilação pela enzima 21­hidroxilase (CYP21A2), convertendo 17­OHP em 11­desoxicortisol. As reações que envolvem a formação de 11­desoxicortisol a partir da pregnenolona ocorrem no retículo endoplasmático. O 11­desoxicortisol é, então, transportado do retículo endoplasmático de volta para a membrana interna da mitocôndria, onde sofre 11­hidroxilação pela enzima 11β­ hidroxilase (CYP11B1), dando origem ao cortisol. A síntese da aldosterona é realizada na zona glomerulosa do córtex suprarrenal, está sob controle do sistema renina­ angiotensina e, de forma mais direta, sob influência das concentrações de angiotensina II e potássio. A produção de renina pelo  aparelho  justaglomerular  é  estimulada  em  condições  nas  quais  ocorrem:  diminuição  das  concentrações  de  sódio  no organismo,  queda  da  pressão  arterial  renal  e  perda  de  volume  e  eletrólitos.  Na  via  de  síntese  de  mineralocorticoides,  a progesterona  é  formada  a  partir  do  colesterol,  como  ocorre  na  zona  fasciculada  na  via  de  síntese  de  cortisol.  A progesterona  na  zona  glomerulosa  sofre  hidroxilação  no  carbono  21,  pela  ação  da  CYP21A2,  formando  a  11­ desoxicorticosterona.  Este  composto  dá  origem  à  corticosterona  pela  ação  da  enzima  CYP11B2,  também  chamada  de aldosterona sintase. A corticosterona pode ser formada, também, pela ação da CYP11B1, cuja expressão ocorre tanto na zona fasciculada como na glomerulosa. Pela ação da aldosterona sintase, a corticosterona sofre 18­hidroxilação e 18­metil oxidação, formando a aldosterona. A secreção de andrógenos pela suprarrenal corresponde a mais de 50% das concentrações de andrógenos circulantes na mulher. No homem, a principal fonte de andrógenos é fornecida pelos testículos, sendo pequena a contribuição suprarrenal em condições fisiológicas. A síntese de andrógenos ocorre na zona reticular e é estimulada pelo ACTH. No citoplasma, a pregnenolona formada a partir do colesterol é transformada em progesterona pela 3β­HSD. Em seguida, a progesterona é hidroxilada  pela  17α­hidroxilase  (CYP17),  formando  a  17­hidroxiprogesterona.  A  remoção  da  cadeia  lateral  C20­21  é catalisada  pela  enzima  CYP17,  que  também  tem  atividade  17,20­liase,  levando  à  formação  de  desidroepiandrosterona (DHEA)  e  androstenediona.  No  ser  humano,  no  entanto,  a  17­hidroxiprogesterona  não  é  um  substrato  eficiente  para  a

CYP17, portanto ocorre pouca conversão deste esteroide em androstenediona. A síntese de androstenediona é dependente da  conversão  de  DHEA  catalisada  pela  3β­HSD.  Mais  de  99%  da  DHEA  é  sulfatada,  originando  o  composto  sulfato  de desidroepiandrosterona (SDHEA), e este processo é catalisado pela DHEA sulfotransferase. Esteroides sulfatados não são substratos para as enzimas de degradação, possibilitando concentrações mais elevadas e meia­vida mais longa do SDHEA. A  androstenediona  e  a  DHEA  são  andrógenos  pouco  potentes,  porém,  pela  ação  da  enzima  periférica,  17­cetoesteroide redutase,  a  androstenediona  pode  ser  convertida  em  testosterona.  Deve  ser  ressaltado  que  a  suprarrenal  produz  apenas pequenas quantidades de testosterona.

Figura 69.2 ■ Síntese de esteroides na suprarrenal. Em itálico, estão apresentados os cofatores envolvidos nas diferentes etapas da  esteroidogênese.  DHEA,  desidroepiandrosterona;  3β­HSD,  3β­hidroxiesteroide  desidrogenase;  POR,  P450 oxidorredutase; Adx, adrenotoxina; Adx/AdxR, adrenotoxina/adrenotoxina redutase. Descrição no texto.

Além  das  enzimas,  outros  fatores  são  necessários  para  a  síntese  de  esteroides  (ver  Figura  69.2).  As  enzimas envolvidas  na  esteroidogênese  suprarrenal  fazem  parte  da  classe  do  citocromo  P450,  subdividida  em  tipos  1  e  2.  As enzimas P450 tipo 1 estão localizadas na mitocôndria e incluem a P450 scc e as isoenzimas 11β­hidroxilase P450c11β e P450c11AS.  Por  outro  lado,  as  enzimas  P450  tipo  2  estão  localizadas  no  retículo  endoplasmático  e  incluem  P450c17  e P450c21.  As  enzimas  P450  tipo  1  não  recebem  os  elétrons  diretamente  da  forma  reduzida  de  NADPH;  inicialmente,  2 elétrons  do  NADPH  são  transferidos  para  uma  proteína  denominada  adrenotoxina  redutase  e  desta  para  a  adrenotoxina  e finalmente para a enzima P450. A enzima transfere, então, os elétrons para os esteroides. As enzimas P450 tipo 2 recebem 2  elétrons  do  NADPH  via  uma  flavoproteína  P450  oxidorredutase  (POR)  e  catalisam  a  17α­hidroxilação  e  21­ hidroxilação.  Adicionalmente,  a  presença  do  citocromo  b5  como  cofator  facilita  a  interação  de  POR  e  P450c17, favorecendo a atividade 17,20­liase desta enzima.

Quadro 69.1 ■ Enzimas envolvidas na esteroidogênese suprarrenal. Enzima

Sinônimo

Gene

Clivagem da cadeia lateral do colesterol

P450scc

CYP11A1

3β­hidroxiesteroide desidrogenase

HSD3B2

HSD3B2

17α­hidroxilase

P450c17

CYP17

17,20­liase

P450c17

CYP17

21α­hidroxilase

P450c21

CYP21

11β­hidroxilase

P450c11β

CYP11B1

Aldosterona sintase

P450c11AS

CYP11B2

▸ Regulação da esteroidogênese suprarrenal Secreção dos glicocorticoides Os  glicocorticoides  são  sintetizados  na  zona  fasciculada  do  córtex  suprarrenal  pela  ação  do  hormônio adrenocorticotrófico  (ACTH)  (Figura 69.3).  Não  há  produção  de  glicocorticoides  na  zona  glomerulosa  ou  reticular  pela ausência  das  enzimas  CYP17  e  CYP11B1,  respectivamente.  O  ACTH  é  o  principal  hormônio  estimulador  da  síntese  e secreção  do  cortisol,  sendo  sintetizado  na  hipófise  anterior  a  partir  de  um  precursor  denominado  pró­opiomelanocortina (POMC).  A  POMC  é  clivada  dando  origem  a  hormônios  peptídicos  menores,  com  formação  de  ACTH,  hormônios melanócito­estimulantes  (MSH  α,  β  e  γ)  e  β­endorfina.  Um  importante  local  de  regulação  da  secreção  do  ACTH  está localizado nos neurônios hipotalâmicos do núcleo paraventricular nos quais o hormônio liberador da corticotrofina (CRH) e  a  arginina  vasopressina  (AVP)  são  produzidos  e  posteriormente  liberados  nos  vasos  portais  hipofisários,  de  onde atingem  a  hipófise  anterior.  A  ligação  do  CRH  e  da  AVP  aos  seus  receptores  específicos, CRH­R1 e receptor  tipo  3  da AVP, respectivamente, nos corticotrofos, estimula a síntese e maturação da POMC, resultando na secreção do ACTH.

Figura 69.3 ■ Regulação da secreção de glicocorticoides pela glândula suprarrenal. A secreção de glicocorticoides é estimulada pelo ACTH, cuja secreção é ativada principalmente por CRH e AVP; estes, por sua vez, são inibidos pelos glicocorticoides por retroalimentação  negativa.  Outras  características  deste  eixo  são  a  presença  de  ritmo  circadiano  e  ativação  em  resposta  a diferentes  tipos  de  estresse.  NE,  norepinefrina;  IL,  interleucina;  ACh,  acetilcolina;  5HT,  serotonina;  GABA,  ácido  gama­ aminobutírico.

Os glicocorticoides inibem a transcrição do gene da POMC na hipófise e também a síntese e secreção do CRH e AVP no hipotálamo. Esta retroalimentação negativa é dependente da dose, potência, meia­vida e duração da administração dos glicocorticoides e tem consequências fisiológicas importantes. A retroalimentação negativa depende, também, de variações individuais de sensibilidade aos glicocorticoides, diferenças entre os sexos e idade. A secreção pulsátil de ACTH e a secreção do cortisol obedecem a um padrão de ritmo circadiano endógeno. O ritmo circadiano  é  gerado  no  núcleo  supraquiasmático  cujos  sinais,  por  meio  de  vias  eferentes  para  o  núcleo  paraventricular, modulam a secreção do CRH. O ritmo circadiano do glicocorticoide é caracterizado por um pico que ocorre no horário ou pouco antes do despertar, coincidindo com o início de atividades da espécie e com declínio no restante das 24 h. Assim, no  homem,  as  concentrações  basais  de  ACTH  e  cortisol  são  mais  elevadas  pela  manhã  (das  6  às  9  h)  com  queda progressiva  ao  longo  do  dia  e  nadir  noturno  (das  23  às  3  h)  (ver Figura 69.3).  O  ritmo  circadiano  do  eixo  hipotálamo­ hipófise­suprarrenal é dependente do ciclo dia­noite, do padrão de sono e vigília e do hábito alimentar, sendo alterado por ritmos  de  trabalho  que  trocam  o  dia  pela  noite  e  em  viagens  que  modificam  os  fusos  horários.  O  sistema  circadiano representa  uma  rede  de  comunicações  complexas,  em  que  um  grupo  de  neurônios  no  núcleo  supraquiasmático  do hipotálamo responde ao ciclo diário claro/escuro e transmite sinais sincronizadores para sensores oscilatórios em tecidos periféricos. A  secreção  dos  glicocorticoides  é  regulada,  também,  por  fatores  como  estresse  e  citocinas  inflamatórias.  Estresse físico, febre, cirurgia, queimadura, hipotensão arterial e hipoglicemia aumentam a secreção de cortisol e ACTH, por meio de  ações  centrais  mediadas  pelo  CRH  e  pela  AVP.  Adicionalmente,  o  eixo  hipotálamo­hipófise­suprarrenal  (HPA) responde a estímulos inflamatórios. Essa interação endócrino­imune ocorre pela ação estimulatória sobre o CRH e ACTH por citocinas inflamatórias como interleucina­1, interleucina­6 e fator de necrose tumoral α. O estresse fisiológico agudo leva  a  um  aumento  na  concentração  plasmática  de  cortisol;  entretanto,  a  secreção  de  cortisol  é  normal  em  pacientes  com ansiedade  crônica.  Por  outro  lado,  a  depressão  é  associada  a  altas  concentrações  de  interleucina­6  e  de  cortisol, confirmando a interação endócrino­imune. Ações do ACTH A principal função do ACTH é a estimulação da esteroidogênese suprarrenal, que resulta na produção de cortisol no homem e corticosterona nos roedores. Nas células adrenocorticais, o ACTH regula a captação de lipoproteínas do plasma, controlando  a  síntese  de  receptores  de  lipoproteína.  O  transporte  do  colesterol  para  a  mitocôndria  é  estimulado  pelo ACTH,  que  resulta  do  aumento  da  expressão  da  proteína  StAR,  proteína  reguladora  da  esteroidogênese  aguda.  O  passo

limitante  da  esteroidogênese  é  a  clivagem  da  cadeia  lateral  na  conversão  de  colesterol  para  pregnenolona  pela  enzima CYP11A, cuja síntese é regulada pelo ACTH. Os  efeitos  do  ACTH  sobre  a  esteroidogênese  podem  ser  agudos  ou  crônicos.  O  efeito  a  longo  prazo  resulta  no aumento da transcrição dos genes das enzimas envolvidas na biossíntese de esteroides. O aumento dos RNA mensageiros das enzimas esteroidogênicas (CYP11A, CYP17, CYP21, CYP11B1) pode ser observado em culturas primárias de células suprarrenais  várias  horas  após  a  estimulação  com  ACTH.  O  ACTH  também  tem  um  efeito  sobre  a  expressão  de  seu próprio receptor, aumentando a expressão do RNA mensageiro em linhagem de células adrenocorticais. O  ACTH  é,  também,  um  importante  fator  envolvido  na  manutenção  do  trofismo  do  córtex  suprarrenal,  como  bem evidenciado pela atrofia da glândula suprarrenal em animais hipofisectomizados. Adicionalmente, a produção excessiva de ACTH por um tumor de células corticotróficas causa hiperplasia suprarrenal. O efeito trófico do ACTH ocorre nas zonas fasciculada  e  reticular,  como  pode  ser  observado  pela  hipoplasia  dessas  zonas  com  preservação  da  zona  glomerulosa  na deficiência de glicocorticoide familiar, em que há resistência à ação do ACTH. O ACTH aumenta a síntese de proteínas que estimulam a angiogênese e a hiperplasia das células suprarrenais, como fator de crescimento de endotélio vascular e o fator de crescimento insulina­símile II, fator de crescimento de fibroblasto e fator de crescimento epidermal. As  ações  do  ACTH  são  mediadas  por  receptor  de  membrana  específico  (Figura  69.4).  Este  receptor,  também denominado  receptor  da  melanocortina  2  (MC2R),  é  membro  da  superfamília  de  receptores  acoplados  à  proteína  G.  O MC2R  interage  com  a  proteína  acessória  do  receptor  de  melanocortina  2  (MRAP,  melanocortin  2  receptor  acessory protein)  e  subsequentemente  é  direcionado  para  a  membrana  plasmática.  Atualmente  sabe­se  que  a  proteína  MRAP  é essencial para o tráfego do MC2R do retículo endoplasmático para a superfície da membrana plasmática e, portanto, para as ações do ACTH. A ligação do ACTH com o seu receptor resulta na estimulação da produção de AMP cíclico. Esta ação é  mediada  pela  ativação  da  proteína  Gsβ,  que  por  sua  vez  ativaria  a  adenilatociclase.  Trabalhos  mais  recentes  relataram uma outra ação rápida do ACTH, inibindo a guanilatociclase, que por sua vez inibiria a fosfodiesterase tipo 2 nas células suprarrenais  da  glomerulosa.  Assim,  o  aumento  de  AMP  cíclico  induzido  pelo  ACTH  seria  decorrente  de  sua  maior produção  estimulada  pela  adenilatociclase  e  menor  degradação  pela  fosfodiesterase.  A  ativação  da  proteinoquinase  A (PKA)  pelo  AMP  cíclico  resulta  na  fosforilação  de  diversas  proteínas,  incluindo  a  proteína  ligadora  ao  elemento responsivo  ao  AMP  cíclico  (CREB).  Esses  eventos  de  fosforilação  são  responsáveis,  direta  ou  indiretamente,  pelo aumento  da  expressão  dos  genes  que  codificam  as  enzimas  da  esteroidogênese  CYP11A,  CYP17,  CYP21,  CYP11B1  e proteína  StAR.  Ainda,  o  ACTH  estimula  a  transcrição  dos  genes  do  seu  próprio  receptor,  bem  como  dos  receptores  de HDL e LDL.

Figura 69.4 ■ Representação esquemática do receptor de ACTH. O receptor de ACTH está acoplado à proteína G, e sua ligação com o ACTH resulta na dissociação desta proteína heterotrimérica, que é constituída pelas subunidades α, β e γ. A subunidade α dissociada estimula a adenilatociclase a sintetizar AMP cíclico, que por sua vez fosforila e ativa a proteinoquinase A, levando à dissociação  de  suas  subunidades  catalíticas  (C)  e  regulatórias  (R).  A  subunidade  catalítica  fosforila  outras  proteínas,  como  a

proteína  ligadora  aos  elementos  responsivos  ao  AMP  cíclico  (CREB),  que  ativa  a  transcrição  de  genes  envolvidos  na esteroidogênese. StAR,  proteína  reguladora  da  esteroidogênese  aguda; CYP11A, P450 scc; CYP17,  17α­hidroxilase;  CYP21, 21­hidroxilase; CYP11B1, 11β­hidroxilase.

Outros  fatores  de  transcrição  específicos,  tais  como  o  receptor  nuclear  órfão  SF­1  (steroidogenesis  factor­1)  ou Ad4BP e nur77, estão envolvidos na regulação de expressão das enzimas P450. O Nur77 liga­se a sequências específicas no  DNA  e  desempenha  papel  fundamental  na  regulação  do  gene  da  pró­opiomelanocortina,  ligando­se  em  uma  região específica, denominada elemento negativo responsivo aos glicocorticoides (nGRE), promovendo a ativação da transcrição gênica. O Nur77 regula, ainda, a transcrição do gene CYP11B2 e, consequentemente, a síntese de aldosterona.

Controle da secreção de aldosterona A  síntese  de  aldosterona  é  regulada  por  vários  fatores,  sendo  seus  principais  reguladores  o  sistema  renina­ angiotensina­aldosterona (SRAA) e a concentração do íon potássio (Figura 69.5). Outros fatores como ACTH, íon sódio, prostaglandinas,  hormônio  antidiurético,  dopamina,  peptídio  atrial  natriurético,  agentes  beta­adrenérgicos,  serotonina  e somatostatina também regulam a síntese de aldosterona, porém são considerados reguladores menos importantes. A  molécula  precursora  do  SRAA  é  o  tetradecapeptídio  angiotensinogênio,  secretado  pelo  rim  e  hidrolisado  a decapeptídio  angiotensina  I,  pela  ação  proteolítica  da  enzima  renina.  A  síntese  de  renina  ocorre  em  uma  porção especializada do néfron, o aparelho justaglomerular, um complexo de elementos vasculares e tubulares localizados no hilo do  glomérulo.  Os  elementos  vasculares  do  aparelho  justaglomerular  recebem  inervação  simpática,  que  desempenha  um papel importante no controle da secreção de renina (para mais detalhes, ver Capítulo 53, Papel do Rim na Regulação do Volume e da Tonicidade do Líquido Extracelular). A secreção de renina é controlada pela pressão arterial renal, concentrações de sódio no fluido tubular e atividade do sistema  nervoso  simpático.  Fatores  que  diminuem  o  fluxo  sanguíneo  renal,  como  hemorragia,  estenose  da  artéria  renal, desidratação  e  restrição  salina,  aumentam  a  concentração  plasmática  de  renina;  por  sua  vez,  fatores  que  aumentam  a pressão  arterial,  como  aumento  da  ingestão  de  sal,  vasoconstrição  periférica  e  posição  supina,  diminuem  a  concentração plasmática  da  renina.  A  redução  do  volume  circulante  (que  ocorre,  por  exemplo,  com  a  hemorragia)  estimula  os barorreceptores renais, presentes na arteríola aferente, que resulta no aumento da secreção de renina. Ainda, com a redução do  volume  circulante,  os  barorreceptores  de  alta  pressão  localizados  no  seio  carotídeo  e  arco  aórtico  sinalizam  para  o sistema  nervoso  (núcleo  do  trato  solitário  e  bulbo),  resultando  no  aumento  da  atividade  simpática  junto  ao  aparelho justaglomerular,  que  por  sua  vez  aumenta  a  secreção  de  renina.  A  carga  de  sódio  liberada  para  a  mácula  densa  também regula  a  secreção  de  renina,  de  tal  maneira  que  a  redução  de  sódio  aumenta  a  ativação  do  sistema  renina­angiotensina, aumentando, assim, a liberação de aldosterona, que por sua vez atua aumentando a reabsorção de sódio pelo rim. Por outro lado, a autorregulação da secreção de renina ocorre, pois a secreção aumentada de aldosterona resulta em maior reabsorção de sódio pelo rim e aumento da pressão sanguínea, que inibem a secreção de renina.

Figura 69.5 ■ Regulação da síntese de aldosterona. Ang, angiotensina; ECA, enzima conversora da angiotensina.

A angiotensina I é convertida a angiotensina II (ANG II) pela enzima conversora da angiotensina (ECA), largamente distribuída  no  pulmão  e  também  na  superfície  de  células  endoteliais,  epiteliais  e  neuronais  dos  rins,  cérebro,  glândulas suprarrenais e ovários. A ANG II age por meio de receptores de membrana específicos ligados à proteína G. A ANG II se liga  a  pelo  menos  2  subtipos  de  receptores  diferentes,  designados  AT1  e  AT2.  Virtualmente,  todas  as  ações  biológicas conhecidas  da  ANG  II,  incluindo  vasoconstrição,  liberação  de  aldosterona  e  crescimento  celular,  são  mediadas  pelos receptores  AT1.  A  ANG  II  estimula  a  secreção  de  aldosterona,  aparentemente,  de  3  maneiras:  indução  de  enzimas necessárias para a síntese de aldosterona (CYP11A1, CYP11B2), estimulação à proliferação de células adrenocorticais e indução de receptores AT1. Os  mecanismos  pelos  quais  a  ANG  II  estimula  a  síntese  de  aldosterona  não  estão  totalmente  estabelecidos,  mas estudos realizados nos últimos 20 anos têm contribuído para avanços no conhecimento destes mecanismos. Sabe­se que a ligação  da  ANG  II  com  o  receptor  AT1  estimula  a  produção  intracelular  de  1,4,5­trifosfato  de  inositol  (IP3)  e  1,2­ diacilglicerol  (DAG),  com  ativação  subsequente  da  proteinoquinase  C  (PKC).  O  IP3 se  liga  ao  seu  receptor  (IP3R)  no retículo endoplasmático, liberando cálcio e elevando as concentrações de cálcio citosólico. O aumento da concentração de cálcio  intracelular  ativa  quinases  I/II  dependentes  de  cálcio/calmodulina  (CaMK).  Ambas  as  vias  podem  modular  a fosforilação  e  a  expressão  de  StAR,  mas  também  ativar  fatores  de  transcrição,  como  o  fator  ativador  de  transcrição  1 (ATF­1)  e  a  proteína  ligadora  ao  elemento  responsivo  ao  AMP  cíclico  (CREB).  A  via  DAG/PKC  ativa  igualmente  a proteinoquinase D (PKD), que também pode fosforilar e ativar CREB. O aumento da atividade de fatores de transcrição (CREB,  ATF­1,  NURR1,  ATF1,  ATF2)  estimula  a  transcrição  de  CYP11B2  e  a  produção  da  aldosterona.  Além  da estimulação da síntese e secreção de aldosterona pelo córtex suprarrenal, a ANG II tem ação de vasoconstrição arteriolar – o  que  eleva  a  pressão  arterial,  aumenta  a  reabsorção  de  sódio  pelo  túbulo  proximal  e,  no  sistema  nervoso  central,  atua estimulando a sede e a secreção de hormônio antidiurético. A concentração extracelular de potássio é outro fator que participa no controle da secreção de aldosterona. O potássio aumenta a secreção de aldosterona diretamente na zona glomerulosa do córtex suprarrenal, por mecanismos não totalmente estabelecidos.  Em  condições  fisiológicas,  sem  estimulação,  diferentes  canais  de  potássio  e  a  Na+/K+­ATPase  mantêm  a membrana  plasmática  das  células  da  zona  glomerulosa  em  um  estado  hiperpolarizado.  As  concentrações  elevadas  de potássio levam ao fechamento desses canais de potássio, induzindo a despolarização da membrana plasmática, o que ativa canais de cálcio dependentes de voltagem (tipo T e tipo L), permitindo o influxo de cálcio extracelular. Esse aumento do cálcio no citosol ativa quinases dependentes de cálcio e calmodulina que fosforilam fatores que estimulam a transcrição do gene CYP11B2, aumentando a conversão da corticosterona em aldosterona nas células suprarrenais da zona glomerulosa. Portanto,  a  ANG  II  e  as  concentrações  elevadas  de  potássio  regulam  a  transcrição  do  gene CYP11B2  por  meio  de  um mecanismo  comum  dependente  de  cálcio.  A  confirmação  do  papel  desempenhado  pelo  potencial  de  membrana  e  da concentração  de  cálcio  intracelular  das  células  da  zona  glomerulosa  sobre  a  produção  de  aldosterona  foi  estabelecida recentemente com a descrição dos mecanismos patológicos dos adenomas suprarrenais produtores de aldosterona (APA). Os  APA  ocorrem,  entre  outros  defeitos  genéticos,  devido  a  mutações  em  canais  de  potássio  ou  na  Na+/K+­ATPase, ocasionando  uma  despolarização  constante  da  membrana  plasmática,  ou  em  canais  de  cálcio  dependentes  de  voltagem, ocasionando a abertura desses canais mesmo com variações pequenas de polaridade da membrana. Em ambos os casos, a produção de aldosterona ocorre devido a um aumento das concentrações intracelulares de cálcio, com ativação de vias de sinalização do cálcio/calmodulina e consequente estimulação da transcrição de CYP11B2. O  efeito  do  ACTH  sobre  a  secreção  de  aldosterona  é  discreto,  resultando  no  aumento  de  10  a  20%  de  seus  valores basais.  O  estímulo  agudo  com  ACTH  eleva  a  secreção  de  aldosterona  pelo  aumento  de  precursores  para  a  sua  síntese,  e não por efeito direto, pois não tem efeito sobre a atividade ou na transcrição do gene CYP11B2. No entanto, a estimulação crônica  com  ACTH  diminui  a  secreção  de  aldosterona,  por  mecanismos  não  conhecidos.  Os  possíveis  mecanismos envolvidos neste efeito do ACTH a longo prazo incluem as ações mineralocorticoides do cortisol e da corticosterona e a redução da expressão do receptor de ANG II nas células da zona glomerulosa.

Secreção de andrógenos suprarrenais O  ACTH  estimula  a  secreção  de  andrógenos  suprarrenais  como  a  DHEA  e  a  androstenediona,  que  apresentam  ritmo circadiano  semelhante  ao  do  cortisol.  Entretanto,  evidências  (como  a  não  supressão  da  DHEA  após  uso  crônico  de corticosteroides, a elevação androgênica entre 6 e 8 anos de idade sem alteração das concentrações de cortisol e diminuição da  secreção  de  DHEA  na  velhice  com  manutenção  da  concentração  do  cortisol)  sugerem  a  existência  de  outro  fator  ou

fatores  estimuladores  da  secreção  de  andrógenos  suprarrenais.  Derivados  da  POMC,  prolactina  e  fator  de  crescimento insulina­símile  tipo  I  (IGF­I)  foram  sugeridos  como  possíveis  hormônios  estimuladores  dos  andrógenos  suprarrenais, porém sem evidência comprovada. A  secreção  de  andrógenos  é  variável  nas  diferentes  fases  da  vida  do  indivíduo.  Na  vida  intraútero,  a  glândula suprarrenal  fetal  produz  grandes  quantidades  de  SDHEA,  que  são  convertidas  em  estrógenos  na  placenta.  Após  o nascimento, a produção de SDHEA é bem reduzida, mantendo­se baixa durante os primeiros anos de vida. A secreção de andrógenos  suprarrenais  apresenta  um  aumento  que,  em  humanos,  ocorre  entre  6  e  8  anos  de  idade.  Este  é  um  evento bioquímico denominado adrenarca. A produção de andrógenos pelas suprarrenais continua a aumentar durante a segunda década  de  vida  e  se  mantém  elevada  na  vida  adulta,  decaindo  no  idoso.  Como  mencionado  anteriormente,  no  homem,  a contribuição das suprarrenais para as concentrações circulantes de andrógenos é muito pequena em condições fisiológicas, pois  a  maior  fonte  de  andrógenos  decorre  de  sua  secreção  pelos  testículos.  Por  outro  lado,  na  mulher  adulta  antes  da menopausa a suprarrenal contribui com 50% dos andrógenos circulantes. Porém, a produção de andrógenos suprarrenais pode tornar­se excessiva em algumas situações, como na hiperplasia suprarrenal congênita, em que um defeito genético na produção  de  cortisol  resulta  em  um  acúmulo  de  precursores  e  produção  aumentada  de  andrógenos  pela  suprarrenal, levando a um quadro de virilização, em ambos os sexos.

METABOLISMO DOS ESTEROIDES SUPRARRENAIS A  maior  parte  do  cortisol  (mais  de  80%)  circula  ligada  a  uma  globulina  transportadora  de  cortisol  (CBG),  proteína sintetizada no fígado e que apresenta alta afinidade pelo cortisol. Cerca de 10 a 15% do cortisol está ligado à albumina, e perto de 5% circulam em sua forma livre, sendo esta a responsável pelas ações fisiológicas deste hormônio. A  bioatividade  dos  glicocorticoides  é  regulada  pela  ação  das  isoformas  tipo  1  e  2  da  11β­hidroxiesteroide desidrogenase  (11β­HSD).  A  metabolização  do  cortisol  envolve  a  sua  conversão  em  cortisona,  um  metabólito  inativo,  e esta reação é mediada pela 11β­HSD tipo 2 (Figura 69.6), cuja expressão é observada no rim, cólon e glândula salivar. No rim, a coexpressão desta enzima com o receptor de mineralocorticoide é essencial, pois evita a ligação do cortisol a este receptor,  permitindo,  assim,  a  ligação  da  aldosterona  a  seu  receptor.  A  importância  da  expressão  da  11β­HSD  tipo  2  é evidenciada  pela  deficiência  congênita  ou  adquirida  desta  enzima  que  produz  um  excesso  aparente  de  mineralocorticoide com hipopotassemia e hipertensão arterial, com atividade da renina plasmática e concentrações de aldosterona reduzidas, devido à ativação do receptor de mineralocorticoide pelo cortisol no rim. A  11β­HSD  tipo  1  é  expressa  no  fígado,  testículo,  pulmão  e  tecido  adiposo.  Esta  é  uma  enzima  bidirecional  que + catalisa  a  oxidação  do  cortisol,  utilizando  NADP  como  cofator,  bem  como  a  redução  da  cortisona  a  cortisol,  utilizando NADPH como cofator. Nas condições in vivo, predomina  a  atividade  de  redução  da  11β­HSD  tipo  1,  que  é  determinada pela  maior  disponibilidade  de  NADPH  nas  células.  Portanto,  uma  atividade  normal  da  11β­HSD  tipo  1  –  regulando  as concentrações tissulares de glicocorticoides – é necessária para manter as condições fisiológicas; além disso, a atividade da  11β­HSD  tipo  1  pode  ser  considerada  um  fator  modulador  da  sensibilidade  aos  glicocorticoides,  de  forma  tecido­ específico. Mais recentemente, tem sido sugerido que a expressão de 11β­HSD tipo 1 e as concentrações intrateciduais de glicocorticoides – por terem algumas ações opostas às da insulina no metabolismo de carboidratos, lipídios e proteínas – podem contribuir para a patogenia da resistência insulínica, da obesidade e da síndrome metabólica.

Figura 69.6 ■ Conversão do cortisol em seu metabólito inativo, cortisona, pela enzima 11β­hidroxiesteroide desidrogenase (11β­ HSD) tipo 2. A conversão da cortisona em cortisol é realizada pela 11β­HSD tipo 1.

O  cortisol  e  a  cortisona  são  reduzidos  no  fígado  em  seus  derivados  tetra­hidro  e,  então,  conjugados  a  glicuronídios, que  são  excretados  na  urina.  A  excreção  urinária  de  cortisol  pode  ocorrer  também  em  sua  forma  não  metabolizada,

constituindo o cortisol livre urinário, que pode ser utilizado, também, como indicador da secreção diária de cortisol pela suprarrenal. A  aldosterona  apresenta  meia­vida  mais  curta  (15  a  20  min)  que  a  do  cortisol  (70  a  90  min),  pois  circula  livre  no sangue.  Sua  metabolização  ocorre  principalmente  no  fígado,  formando  o  derivado  tetra­hidroaldosterona  que  é  excretado na urina como um glicuronídio. Cerca de 10% da aldosterona produzida diariamente é excretada conjugada a glicuronídio, porém em sua forma não metabolizada. A metabolização dos andrógenos ocorre, também, no fígado com a formação de androsterona e etiocolanolona, porém a  excreção  de  SDHEA  é  realizada  em  sua  forma  intacta.  Os  metabólitos  androgênicos  e  o  SDHEA  excretados  na  urina constituem  os  17­cetoesteroides  urinários.  Deve  ser  ressaltado  que  a  excreção  urinária  de  17­cetoesteroides  reflete  a produção de andrógenos não só pela suprarrenal, mas também pela gônada.

AÇÕES DOS GLICOCORTICOIDES ▸ Metabolismo de carboidratos Os glicocorticoides regulam o metabolismo dos carboidratos agindo como contrarreguladores da insulina, protegendo o organismo contra a hipoglicemia. Desta maneira, os glicocorticoides estimulam a gliconeogênese hepática e aumentam a mobilização de substratos neoglicogênicos de tecidos periféricos e a glicogenólise. A neoglicogênese hepática é estimulada pelos glicocorticoides pelo aumento de atividade de enzimas­chave como fosfoenolpiruvato carboxiquinase (PEPCK), que catalisa  a  conversão  de  oxaloacetato  em  fosfoenolpiruvato,  e  glicose­6­fosfatase,  que  converte  a  glicose­6­fosfato  em glicose.  O  aumento  da  neoglicogênese  induzido  pelos  glicocorticoides  é  decorrente  do  aumento  de  substratos  para  o fígado,  como  aminoácidos  derivados  do  tecido  muscular  e  glicerol  do  tecido  adiposo.  Os  glicocorticoides  diminuem, ainda, a utilização periférica de glicose, atuando sobre o receptor da insulina e reduzindo os transportadores de glicose. A síntese  de  glicogênio  no  fígado  é  estimulada  pelos  glicocorticoides  como  fonte  de  estoque  de  glicose  que  pode  ser rapidamente liberada quando necessário, pela glicogenólise induzida pelo glucagon e epinefrina.

▸ Metabolismo lipídico Os  glicocorticoides  estimulam  a  diferenciação  dos  adipócitos,  promovendo  adipogênese  por  meio  de  ativação  da transcrição de diversos genes, incluindo a lipase lipoproteica, a glicerol­3­fosfato desidrogenase e a leptina, contribuindo para  a  obesidade  visceral.  Em  situações  de  excesso  de  glicocorticoides,  a  deposição  preferencial  de  lipídios  na  cavidade intra­abdominal parece ser decorrente de maior número de receptores de glicocorticoide nesta região, quando comparado a tecido adiposo de outras áreas. Há também evidências do importante papel do metabolismo local do cortisol no acúmulo da  gordura  visceral.  Os  principais  reguladores  das  concentrações  intracelulares  dos  glicocorticoides  são,  em  parte,  as  2 isoformas  da  11β­HSD.  A  isoforma  11β­HSD1  é  estimulada  por  glicocorticoide  e  insulina  e,  no  tecido  adiposo,  esta atividade é maior no adipócito do omento que do subcutâneo. Outra evidência do importante papel do metabolismo local do  cortisol  na  gordura  visceral  foi  demonstrada  pelo  modelo  experimental  de  camundongo  com  hiperexpressão  de  11β­ HSD1, que apresenta obesidade visceral e aumento das concentrações de corticosterona no tecido adiposo mesenquimal. ▸ Pele. Os glicocorticoides inibem a divisão dos queratinócitos e dos fibroblastos e diminuem a matriz extracelular da pele,  reduzindo  a  síntese  de  ácido  hialurônico  e  de  glicosaminoglicanas.  Adicionalmente,  o  excesso  de  glicocorticoides inibe a divisão das células da epiderme, reduzindo a síntese e a produção de colágeno. ▸ Tecido muscular. Os glicocorticoides causam alterações catabó­licas no tecido muscular, com inibição de síntese proteica e de captação de aminoácidos pelo músculo, levando à atrofia muscular. Além disso, os glicocorticoides induzem atrofia  muscular,  aumentando  os  mecanismos  de  proteólise  muscular,  mediada  pelo  sistema  ubiquitina­proteossomo, estimulando a expressão de atrogenes (genes envolvidos com atrofia), como atrogina­1 e MuRF­1 (muscle ring finger 1). Sabe­se também que a redução da produção de IGF­I (insulin­like growth factor I) e o aumento da produção de miostatina (fator catabólico) também podem contribuir para a atrofia muscular induzida pelos glicocorticoides. ▸ Imunomodulação. Os efeitos anti­inflamatórios e de imunossupressão exercidos pelos glicocorticoides ocorrem por meio de diversos sítios. No sangue periférico, os glicocorticoides reduzem a contagem de eosinófilos e de linfócitos, redistribuindo estes últimos no compartimento intravascular do baço, dos linfonodos e da medula óssea. Por outro lado, aumentam o número de neutrófilos. Os glicocorticoides atuam por meio de receptor específico presente no citoplasma, que é translocado para o núcleo após a sua ligação com o ligante. No núcleo, o receptor de glicocorticoide pode interagir com

genes  que  modulam  a  resposta  imune.  Estes  genes,  geralmente,  não  apresentam  em  seus  promotores  os  elementos responsivos  aos  glicocorticoides;  portanto,  para  que  os  efeitos  do  glicocorticoide  ocorram,  outros  fatores  nucleares estariam  envolvidos  e  interfeririam  negativamente  com  a  transativação  gênica  mediada  pelo  receptor  do  glicocorticoide. Estes  fatores  são  denominados  inibidores  negativos  dominantes  e,  provavelmente,  representam  os  mais  importantes reguladores  endógenos  da  sensibilidade  aos  glicocorticoides.  A  inibição  da  produção  de  citocinas  pelos  linfócitos  é mediada  por  interação  do  receptor  do  glicocorticoide  com  outros  fatores  de  transcrição,  como  o  NFκB  e  a  proteína ativadora­1  (AP­1).  A  AP­1  é  o  mais  estudado  fator  de  transcrição  que  interfere  negativamente  com  o  receptor  do glicocorticoide.  É  composta  por  homo  ou  heterodímeros  dos  produtos  dos  proto­oncogenes  jun  e  fos;  sua  atividade  é modulada  por  fatores  de  crescimento  e  citocinas  ativadoras  da  proteinoquinase  C  e  por  outras  tirosinoquinases.  A subunidade  p65  do  fator  de  transcrição  NFκB  ativa  muitos  genes  do  sistema  imune  e  apresenta  o  mesmo  padrão  de transrepressão em relação ao receptor de glicocorticoide. ▸  Rins.  Os  glicocorticoides  estimulam  a  síntese  de  angiotensinogênio,  aumentam  a  taxa  de  filtração  glomerular,  o transporte de sódio no túbulo proximal e o depuramento de água livre. Ainda nos rins, dependendo da atividade da 11β­ HSD2,  o  cortisol,  por  meio  do  receptor  para  mineralocorticoides,  pode  agir  nos  túbulos  distais,  causando  retenção  de sódio e excreção de potássio. ▸  Cardiovasculares. Em  condições  fisiológicas,  a  ação  cardiovascular  mais  importante  dos  glicocorticoides  é  o seu efeito permissivo à reatividade vascular de fatores vasoativos, como a ANG II e a epinefrina, que contribuem para a manutenção  da  pressão  sanguínea.  Os  mecanismos  envolvidos  neste  papel  permissivo  dos  glicocorticoides  não  são  bem conhecidos,  mas  parecem  envolver  um  aumento  na  expressão  de  receptores  adrenérgicos  em  células  da  musculatura  lisa vascular.  Adicionalmente,  os  glicocorticoides  aumentam  a  captação  de  cálcio  por  estas  células,  contribuindo,  também, desta maneira, para maior contratilidade vascular. A  exposição  crônica  a  concentrações  elevadas  de  glicocorticoides  resulta  em  hipertensão  arterial,  provavelmente  por diferentes mecanismos. O excesso de glicocorticoide pode não ser inativado pela 11β­HSD2 nos túbulos renais, resultando em  maior  efeito  mineralocorticoide.  As  altas  concentrações  de  glicocorticoides  podem  levar  a  uma  maior  reatividade vascular aos fatores vasoativos endógenos. Além disso, os glicocorticoides inibem a atividade da sintase do óxido nítrico induzida, diminuindo a síntese de óxido nítrico, potente fator vasodilatador. ▸  Osso.  Os  glicocorticoides  têm  efeitos  marcantes  sobre  o  esqueleto.  A  exposição  prolongada  ou  crônica  a glicocorticoides  resulta  em  osteopenia  ou  osteoporose.  Os  glicocorticoides  apresentam  efeitos  diretos  sobre  os osteoblastos,  evidenciados  pela  inibição  de  várias  funções,  como  diferenciação  e  multiplicação  celular,  atividade  da fosfatase alcalina e produção de colágeno tipo I e de osteocalcina. Além disso, os glicocorticoides inibem a produção do fator  de  crescimento  insulina­símile  1  (IGF­I)  e  IGF­II  pelos  osteoblastos.  Os  glicocorticoides  diminuem  a  absorção intestinal  de  cálcio,  inibindo  as  ações  da  vitamina  D  no  enterócito  e  a  hidroxilação  hepática  da  vitamina  D.  A  secreção compensatória de paratormônio pode resultar no aumento da atividade osteoclástica. A ressorção óssea está aumentada no hipercortisolismo,  porém  os  mecanismos  envolvidos  neste  efeito  não  estão  completamente  estabelecidos.  A  ativação  dos osteoclastos  é  modulada  por  meio  de  fatores  produzidos  pelos  osteoblastos,  como  a  osteoprotegerina  e  o  ligante  do receptor  ativador  de  NFκB  (RANKL).  A  ligação  de  RANKL  a  receptores  específicos  presentes  nos  osteoclastos, denominados  RANK,  estimula  a  diferenciação  e  ativação  destas  células.  Os  glicocorticoides  aumentam  a  expressão  do mRNA de RANKL e, por outro lado, diminuem a expressão de osteoprotegerina, aumentando a ativação de osteoclastos e favorecendo a ressorção óssea. ▸  Sistema nervoso central. O  sistema  nervoso  central  é  local  de  ação  de  glicocorticoides,  apresentando  tanto receptores  para  glico  como  para  mineralocorticoides.  Os  glicocorticoides  influenciam  o  comportamento  e  o  humor  do indivíduo.  Os  receptores  de  glicocorticoides  (GR)  estão  presentes  em  todo  encéfalo,  mas  são  mais  abundantes  em neurônios  hipotalâmicos  que  expressam  CRH  e  nos  corticotrofos  hipofisários.  A  expressão  do  receptor  para mineralocorticoide  (MR)  pode  ser  observada  em  estruturas  cerebrais  relacionadas  com  o  controle  do  apetite  ao  sal  e  da atividade cardiovascular, como órgão subfornicial, OVLT (organum vasculosum of lamina terminalis), núcleo pré­óptico mediano,  núcleo  supraóptico  e  divisão  magnocelular  do  núcleo  paraventricular.  Porém,  a  maior  expressão  de  MR  no sistema  nervoso  central  é  observada  no  hipocampo  (onde  há  coexpressão  com  o  GR),  estrutura  relacionada  com  o aprendizado e o processo de memória. Síndrome de Cushing

O  quadro  clínico  decorrente  do  excesso  de  glicocorticoides,  denominado  síndrome  de  Cushing,  pode ser decorrente da ingestão de glicocorticoides ou de causas endógenas, como tumor hipofisário produtor de  ACTH  ou  tumor  suprarrenal  produtor  de  cortisol.  As  principais  manifestações  de  hipercortisolismo incluem  a  presença  de  face  em  lua  cheia,  obesidade  de  distribuição  predominantemente  abdominal, preenchimento  de  fossas  supraclaviculares,  fraqueza  muscular,  osteoporose,  pele  fina  com  presença  de estrias  largas  violáceas  e  equimoses  (causadas  por  sangramento  na  pele  devido  à  fragilidade  capilar).  A síndrome de Cushing caracteriza­se pela perda do ritmo circadiano do eixo hipotálamo­hipófise­suprarrenal (HHA), isto é, os valores de cortisol são elevados mesmo no horário noturno (às 23 h), em que no indivíduo normal são baixos. Outro mecanismo fisiológico do eixo HHA que está alterado na síndrome de Cushing é o  mecanismo  de  retroalimentação  negativa  exercido  pelos  glicocorticoides.  Isto  é,  no  indivíduo  com síndrome  de  Cushing  não  há  redução  da  produção  endógena  de  cortisol  com  a  dose  de  1  mg  de dexametasona,  glicocorticoide  sintético  que  habitualmente  suprime  as  concentrações  de  cortisol  no indivíduo normal.

▸ Mecanismo de ação dos glicocorticoides Os  glicocorticoides  exercem  seus  efeitos  pela  ligação  a  receptores  citosólicos  específicos  pertencentes  a  uma superfamília de receptores nucleares, filogeneticamente bem conservada. Esta superfamília inclui não somente o receptor do  glicocorticoide  (GR),  mas  também  o  receptor  dos  mineralocorticoides,  dos  andrógenos,  do  hormônio  tireoidiano,  da vitamina  D,  do  ácido  retinoico,  além  de  outros  receptores  órfãos,  cujos  ligantes  ainda  não  foram  identificados.  Os receptores  da  progesterona,  dos  mineralocorticoides,  e  dos  glicocorticoides  formam  a  subfamília  dos  receptores esteroidais. Todos os membros desta família, incluindo o GR, apresentam 5 a 6 regiões (A­F) com 3 domínios funcionais principais em sua estrutura (Figura 69.7). A porção aminoterminal (região A/B) contém o domínio de transativação (τ1) e apresenta  sequências  responsáveis  pela  ativação  dos  genes­alvo,  além  de,  provavelmente,  interagir  com  os  componentes básicos  da  transcrição  gênica.  A  região  central  da  molécula  (região  C)  apresenta  2  sequências  altamente  conservadas, chamadas  de  dedos  de  zinco,  que  constituem  o  domínio  de  ligação  ao  ácido  desoxirribonucleico  (DNA)  e  participam  da dimerização, da translocação nuclear e da transativação. O domínio de ligação ao ligante (região E), localizado na região carboxiterminal (C­terminal) da molécula, é responsável pela ligação do hormônio específico ao seu respectivo receptor. Contém, ainda, importantes sequências que são responsáveis pela ligação do receptor às proteínas de choque térmico, para estabilização do receptor na ausência do hormônio, para a translocação nuclear, para a dimerização e para a transativação. Em 1985, dois diferentes DNA complementares para o GR humano foram clonados: o GRh­α e GRh­β, que codificam as  isoformas  α  e  β  do  receptor  e  são  produzidos  por  um splicing alternativo  de  um  único  gene.  A  isoforma  β  difere  da isoforma  α  na  região  C­terminal  da  molécula,  em  15  aminoácidos.  Entretanto,  esta  diferença  confere  à  isoforma  GRβ  a incapacidade  de  se  ligar  ao  glicocorticoide  e  de  ser  ativa  na  transcrição  gênica;  esta  isoforma  age  como  um  inibidor dominante  negativo  da  isoforma  α.  A  existência  de  várias  isoformas  do  GR  torna  mais  complexo  o  entendimento  dos mecanismos da transcrição dos genes mediada pelo GR. O GR em sua forma não ativada é parte de um complexo multiproteico (Figura 69.8) que consiste em uma molécula do  receptor,  duas  moléculas  da  proteína  de  choque  térmico  90  (hsp  90),  uma  molécula  da  hsp  70  e  uma  da  hsp  56.  A principal  função  do  complexo  GR/hsp  é  manter  o  receptor  no  citoplasma  das  células,  estabilizando­o  em  sua  forma inativa, isto é, livre da ligação ao hormônio. A ligação do glicocorticoide ao GR induz alterações na conformação da molécula do receptor, sendo a mais importante a dissociação do receptor do complexo das hsp, tornando­o incapaz de reassociação. Após ligação com o agonista, ocorre hiperfosforilação do receptor, que facilita a translocação do complexo hormônio­receptor do citoplasma para o núcleo. Dentro  do  núcleo,  o  receptor  ativado  pelo  hormônio  pode  agir  por  três  diferentes  mecanismos:  ligação  direta  do  GR em  sua  forma  dimerizada  à  sequência  específica  presente  nos  genes­alvo,  ligação  do  GR  ancorada  a  outros  fatores  de transcrição e ligação do GR ao DNA composta com outras sequências. O primeiro mecanismo é a forma clássica de ação e caracteriza­se pela interação direta do GR com sequências específicas de DNA (ver Figura 69.8), denominadas elemento responsivo aos glicocorticoides (GRE). Estes dímeros ligados diretamente aos GRE, pelo contato físico com os domínios de  transativação,  estimulam  a  transcrição  dos  genes  responsivos  aos  glicocorticoides.  A  ligação  dos  receptores  ao  DNA facilita  o  recrutamento  de  fatores  coativadores  da  maquinaria  de  transcrição  gênica  ou,  ainda,  remodelam  a  cromatina, possibilitando aumento da transcrição gênica.

Além da propriedade de ativar a transcrição gênica, o GR pode também reprimi­la. Esta repressão poderia ocorrer pela ligação  do  GR  aos  elementos  responsivos  negativos  aos  glicocorticoides  (nGRE),  localizados  na  região  promotora  de genes específicos, onde causariam inibição da transcrição gênica. Um exemplo seria o promotor localizado no gene da pró­ opiomelanocortina (POMC) que, por mecanismos ainda não bem definidos, reprimiria a transcrição do gene da POMC.

Figura  69.7  ■   Representação  esquemática  da  estrutura  dos  receptores  de  glicocorticoide  (GR)  e  mineralocorticoide  (MR) humanos, indicando a porcentagem de homologia entre a sequência de aminoácidos em cada domínio. A região aminoterminal A/B corresponde à função ativadora; domínio C ao domínio de ligação ao DNA (DBD); o domínio D corresponde à região que liga o DBD com a região carboxiterminal E, denominada domínio de ligação ao ligante (LBD).

Figura  69.8  ■   Mecanismo  de  ação  dos  glicocorticoides  por  meio  de  seu  receptor  (GR).  hsp90,  proteína  de  choque  térmico 90; GRE, elemento responsivo aos glicocorticoides; nGRE,  elemento  responsivo  negativo  aos  glicocorticoides; NFkB,  fator  de transcrição nuclear κB; STAT, sinal de tradução e ativação da transcrição.

A  ligação  ancorada  do  GR  tem  sido  associada  à  repressão  ou  ativação  transcricional  exercida  pelos  glicocorticoides, por meio de sua interação com outros fatores de transcrição como NFκB e STAT3. Neste caso, não há ligação direta do GR  ao  DNA.  Por  outro  lado,  sítios  de  ligação  do  GR  no  genoma  podem  estar  adjacentes  a  sequências  que  reconhecem outros  fatores  de  transcrição,  por  exemplo,  STAT5  e  AP­1,  propiciando  a  ligação  do  GR  ao  DNA  composta  com  os mesmos,  que  resulta  em  efeitos  sinérgicos  ou  antagônicos.  Os  efeitos  anti­inflamatórios  e  imunossupressores  dos glicocorticoides envolvem a regulação negativa da transcrição gênica. A proteína ativadora­1 (AP­1) – composta por homo ou  heterodímeros  dos  produtos  dos  proto­oncogenes  jun  e  fos,  cuja  atividade  é  modulada  por  fatores  de  crescimento  e citocinas  ativadoras  da  proteinoquinase  C  e  por  outras  tirosinoquinases  –  é  o  fator  de  transcrição  mais  extensivamente estudado  que  interfere  negativamente  com  a  transativação  pelo  GR.  Um  outro  exemplo  é  a  subunidade  p65  do  fator  de transcrição nuclear κB (NFκB), o qual é um ativador de muitos genes do sistema imune e apresenta o mesmo padrão de transrepressão em relação ao GR. Nas  últimas  décadas,  tem  sido  demonstrado  que  os  glicocorticoides  também  agem  por  meio  de  mecanismos  não genômicos, iniciados na membrana celular, por meio de receptor GR de membrana (GRm) ou ainda pela ligação a outras proteínas  presentes  na  membrana.  Estas  ações  seriam  independentes  de  transcrição/tradução  gênica  e  teriam  um  início rápido, em minutos ou mesmo segundos após a estimulação, em oposição às ações genômicas que se iniciam após horas. O  componente  rápido  de  contrarregulação  do  eixo  hipotálamo­hipófise­suprarrenal  exercido  pelos  glicocorticoides constitui  um  exemplo  de  ação  não  genômica  desses  hormônios.  As  ações  não  genômicas  dos  glicocorticoides  envolvem múltiplas  vias  intracelulares  de  tradução  de  sinal,  como  a  interação  com  a  via  da  MAPK  e  dos  receptores endocanabinoides CB1.

AÇÕES DA ALDOSTERONA Os  mineralocorticoides  estão  implicados  na  regulação  de  sódio  e  água  por  meio  da  regulação  do  transporte  de  sódio em tecidos epiteliais. Apresentam também efeitos importantes sobre o sistema cardiovascular e sistema nervoso central. A aldosterona,  principal  mineralocorticoide  humano,  exerce  um  papel  crucial  na  regulação  da  pressão  arterial  e  na homeostase  eletrolítica.  O  efeito  principal  da  aldosterona  é  promover,  em  tecidos  epiteliais,  a  reabsorção  de  sódio  e  a secreção  de  potássio  e  hidrogênio.  Nas  células­alvo  da  aldosterona,  tais  como  as  células  do  néfron  distal  sensível  à aldosterona  (ASDN),  que  inclui  o  túbulo  contorcido  distal  (DCT),  túbulo  de  conexão  (CNT)  e  o  ducto  coletor  (CD),  a ligação da aldosterona ao receptor mineralocorticoide (MR) é seguida por dimerização do receptor, translocação nuclear e ligação  a  regiões  reguladoras  de  genes  sensíveis  aos  hormônios  esteroides  (GRE,  elementos  responsivos  aos glicocorticoides).  Os  dímeros  de  MR  recrutam  correguladores  transcripcionais  para  ativar  a  maquinaria  transcricional (GTP,  fatores  de  transcrição  gerais),  estimulando  a  expressão  de  genes­alvo  da  aldosterona  que  codificam  proteínas envolvidas  principalmente  no  transporte  de  sódio.  Estas  proteínas  incluem  as  subunidades  do  canal  de  sódio  epitelial sensível à amilorida ENaC e a Na+/K+­ATPase, bem como várias proteínas reguladoras, entre elas a sgk1 (quinase sérica induzida pelo glicocorticoide), GILZ (glucocorticoid induced leucine zipper), NDRG2 (N­myc downregulated 2) e CHIF (fator  indutor  de  canal).  A  aldosterona  confere  a  principal  regulação  hormonal  do  equilíbrio  de  sódio,  potássio  e hidrogênio  no  néfron  distal.  Enquanto  dois  terços  do  sódio  filtrado  são  reabsorvidos  no  túbulo  proximal  e  mais  de  20  a 25% na alça de Henle, o ASDN desempenha um papel importante no ajuste fino da excreção renal de Na+, reabsorvendo cerca  de  5  a  10%  da  carga  de  Na+ filtrada.  O  transporte  celular  é  facilitado  pelo  potencial  eletroquímico  na  membrana apical e mecanismo de transporte ativo através da membrana basolateral. O transporte de sódio pela membrana apical de tecidos epiteliais é mediado pelo canal de sódio (ENaC) e representa o passo limitante no transporte iônico regulado pela aldosterona.  O  ENaC  é  uma  proteína  heterotrimérica  constituída  por  3  subunidades  (  α,  β  e  γ).  A  meia­vida  do  ENaC  é curta e é regulada pela ligação dos resíduos de prolina e tirosina no segmento carboxiterminal das subunidades α, β e γ à Nedd4­2,  ubiquitina­ligase  que  direciona  a  degradação  proteossomal  do  ENaC.  A  aldosterona  aumenta  a  expressão  de sgk1,  que  fosforila  resíduos  de  serina  e  treonina  (serina  221,  treonina  246,  serina  327)  da  molécula  de  Nedd4­2, bloqueando  a  sua  ligação  ao  ENaC,  reduzindo,  dessa  maneira,  a  degradação  deste  último.  Em  paralelo,  a  aldosterona estimula a regulação transcricional da enzima de deubiquitinação Usp2­45, que leva a um aumento da expressão do ENaC na membrana apical e também de sua ativação. Adicionalmente, a aldosterona aumenta a expressão de GILZ, que age em paralelo ao sgk1, aumentando a localização do ENaC na membrana apical pela inibição de ERK. Portanto, a aldosterona aumenta a expressão e estabilidade do ENaC na membrana apical, aumentando a reabsorção de sódio. O transporte ativo pela membrana basolateral é mediado pela bomba de sódio e potássio dependente de ATP (Na+/K+­ATPase). Esta é muito sensível à concentração intracelular de sódio, sugerindo que o aumento de sua atividade é secundário ao influxo deste íon

pela  membrana  apical.  A  aldosterona  aumenta  a  expressão  do  RNA  mensageiro  de  subunidades  da  Na+/K+­ATPase  e também  a  sua  atividade.  Este  efeito  da  aldosterona  parece  ser  mediado  pela  proteína  CHIF,  que  aumenta  a  afinidade  da Na+/K+­ATPase ao sódio. A aldosterona aumenta também a absorção de sódio em outros tecidos, como glândula salivar e cólon.  O  exercício  físico  em  ambiente  quente  pode  resultar  em  perda  de  grande  quantidade  de  sódio  pelo  suor,  com consequente redução do volume circulante e ativação do sistema renina­angiotensina­aldosterona. O aumento na secreção de  aldosterona  induz  maior  retenção  de  sódio  com  menor  perda  deste  íon  pelo  suor  (outros  comentários  a  respeito  do efeito da aldosterona no epitélio renal estão no Capítulo 53 e no Capítulo 55, Rim e Hormônios). A aldosterona eleva a excreção renal de potássio pelo seu efeito sobre a Na+/K+­ATPase na membrana basolateral, que resulta  na  entrada  deste  íon  para  a  célula.  A  reabsorção  de  sódio  pela  membrana  apical  cria  um  gradiente  eletroquímico transmembranal  que  favorece  a  secreção  tubular  de  potássio.  O  transporte  de  K+ pela  membrana  apical  é  mediado  pelo canal de potássio apical ROMK. Alguns estudos sugerem que o sgk1 poderia mediar o efeito da aldosterona na secreção renal  de  K+ aumentando  a  exportação  de  canais  ROMK  do  retículo  endoplasmático  e  suprimindo  o  efeito  inibitório  da proteinoquinase  WNK4  serina/treonina  sobre  esses  canais.  A  aldosterona  participa  também  do  transporte  acidobásico renal.  O  transporte  acidobásico  ocorre  nas  células  intercaladas  do  CNT,  CCD  e  CD.  As  células  intercaladas  do  tipo  A secretam  prótons  na  urina  através  de  uma  bomba  H+­ATPase  localizada  na  membrana  apical,  e  liberam  bicarbonato  no sangue  através  do  transportador  cloro/bicarbonato  (AE1)  localizado  na  membrana  basolateral.  As  células  intercaladas  do tipo  B  excretam  bicarbonato  na  urina  através  do  canal  cloreto­bicarbonato  localizado  na  membrana  apical,  enquanto  os prótons  são  secretados  no  sangue  por  H+­ATPases  basolaterais.  Acredita­se  que  a  secreção  de  prótons  através  de  H+­ ATPases  seja  indiretamente  acoplada  à  reabsorção  de  Na+ pelo  EnaC,  esta  mesma  induzida  pela  aldosterona  nas  células principais,  o  que  criaria  um  potencial  luminal  negativo,  levando  a  um  aumento  da  secreção  de  H+.  Além  disso,  a aldosterona estimula diretamente a atividade H+­ATPase  por  meio  de  uma  cascata  de  sinalização  composta  por  proteínas G, fosfolipase C, proteinoquinase C, ERK1/2 quinases, bem como de elementos da via de sinalização da proteinoquinase A. A aldosterona exerce efeitos importantes sobre o sistema cardiovascular. Ela induz hipertensão arterial, em parte pelos efeitos diretos sobre o sistema cardiovascular, modulando o tônus vascular, aumentando a sensibilidade às catecolaminas, ou  ainda  aumentando  a  expressão  de  receptores  para  a  ANG  II.  Estudos  transversais  avaliaram  marcadores  de  doença cardiovascular  em  pacientes  com  hiperaldosteronismo  primário  (HAP),  apresentando  uma  produção  excessiva  de aldosterona,  comparados  com  pacientes  hipertensos  essenciais  apresentando  valores  de  pressão  arterial  equivalentes. Pacientes com HAP apresentaram maiores dimensões do ventrículo esquerdo, aumento da íntima carotídea e da velocidade da  onda  de  pulso  femoral.  Adicionalmente,  pacientes  com  HAP  apresentaram  aumento  de  eventos  cardiovasculares, incluindo  arritmias,  infartos  do  miocárdio,  acidentes  vasculares  cerebrais  e  mortalidade  quando  comparados  com indivíduos hipertensos sem HAP. A  aldosterona  e  o  MR  vascular  contribuem  para  a  disfunção  e  a  remodelagem  vascular  independentes  da  pressão arterial  e  da  ingestão  de  sódio.  Por  outro  lado,  o  MR  endotelial  pode  ter  efeitos  antitrombóticos  protetores.  Os mecanismos envolvidos na resposta vascular à aldosterona incluem a expressão da molécula de adesão intercelular ICAM­ 1 e do receptor da proteína C endotelial, do fator de von Willebrand (vWF), da infiltração de macrófagos, da produção de óxido nítrico e da deposição de colágeno. A aldosterona estimula, também, a fibrose perivascular e cardíaca e a hipertrofia cardíaca,  independentemente  das  alterações  da  pressão  sanguínea.  Estes  dados  são  comprovados  pela  melhora  da  função cardíaca  em  indivíduos  com  insuficiência  cardíaca  e  uso  de  antagonistas  do  MR,  mesmo  na  ausência  de  alteração  da pressão arterial. O mecanismo pelo qual a aldosterona induz fibrose parece envolver a síntese de colágeno e é dependente da ingestão aumentada de sódio, independente da alteração da pressão sanguínea. Estudos histológicos de tecido cardíaco com  fibrose  induzida  pela  aldosterona  demonstram  a  presença  de  proliferação  de  cardiomiócitos  e  fibroblastos,  além  de inflamação  perivascular.  A  aldosterona  pode  induzir  a  proliferação  de  fibroblastos  cardíacos  pela  ativação  da  cascata  de sinalização  da  MAPK  e  Ki­Ras  (Kirsten  Ras).  O  efeito  mitogênico  da  aldosterona  parece  ser  sinérgico  aos  efeitos  da ANG II sobre a proliferação de fibroblastos no coração. A  maior  parte  dos  efeitos  dos  corticosteroides  no  sistema  nervoso  central  –  como  a  manutenção  da  homeostase  do indivíduo  em  condições  basais,  homeostase  do  sódio,  regulação  da  pressão  arterial,  regulação  do  eixo  hipotálamo­ hipófise­suprarrenal, aprendizado e memória – é mediada pelo MR. Ao contrário dos tecidos epiteliais, o sistema nervoso central, com exceção de algumas regiões, não apresenta atividade da11β­HSD tipo 2; portanto, no cérebro, o MR pode se ligar tanto a mineralocorticoide como glicocorticoide. A ação seletiva dos mineralocorticoides no sistema nervoso pode ser observada em algumas regiões em que há expressão da atividade da 11β­HSD tipo 2, como o hipotálamo anterior, hipófise anterior, hipocampo e tronco cerebral. A ação da aldosterona altera a função do hipocampo, contribuindo para adaptações

do comportamento em resposta ao estresse. A aldosterona pode induzir a elevação da pressão arterial por meio da ativação de  MR  em  regiões  circunventriculares  no  sistema  nervoso  central,  que  é  acompanhada  do  aumento  do  tônus  simpático para  rim,  coração  e  musculatura  lisa  vascular.  A  ativação  do  MR,  na  amígdala,  aumenta  o  apetite  ao  sódio,  fator importante para a hipertensão arterial induzida pelo mineralocorticoide. Estudos  prévios  mostraram  que  a  aldosterona  é  capaz  de  regular  a  diferenciação  de  adipócitos  e  a  termogênese, sugerindo um papel dos mineralocorticoides na regulação do balanço energético. A aldosterona pode induzir à resistência insulínica, por diminuir a secreção de insulina, a afinidade de insulina ao seu receptor e a expressão de transportadores de glicose.  O  excesso  de  aldosterona  resulta  em  hipopotassemia  (queda  da  concentração  de  potássio  no  plasma),  a  qual diminui  a  secreção  de  insulina  pela  célula  beta  pancreática.  Estudos  recentes  demonstraram  que  a  aldosterona  estimula diretamente  a  expansão  dos  adipócitos,  aumenta  a  expressão  da  leptina  e  altera  a  função  dos  adipócitos  em  sistemas  de cultura  celular.  Adicionalmente,  foi  demonstrado  que  a  aldosterona  diminui  a  expressão  de  adiponectina  em  cultura  de adipócitos  e,  em  modelos  animais,  o  uso  de  antagonistas  do  MR  normaliza  a  adiponectina  e  diminui  a  infiltração  de macrófagos e de citocinas inflamatórias no tecido adiposo. A diminuição da concentração de adiponectina circulante está associada a resistência à insulina, obesidade e disfunção endotelial. Hiperaldosteronismo primário O excesso de produção de aldosterona pela glândula suprarrenal, que pode ser devido a um tumor, é chamado  de  hiperaldosteronismo  primário  e  pode  corresponder  a  5  a  10%  das  causas  de  hipertensão arterial.  Além  da  hipertensão  arterial,  o  hiperaldosteronismo  caracteriza­se  pela  redução  das concentrações  séricas  de  potássio  (hipopotassemia),  que  leva  às  manifestações  de  cãibras,  fraqueza muscular,  parestesias  (formigamento)  e,  nos  casos  mais  acentuados,  paralisia  intermitente.  Ainda,  em consequência  da  hipopotassemia,  podem  ocorrer  arritmia  cardíaca,  intolerância  à  glicose  e  hipo­ osmolalidade  urinária  com  poliúria  (aumento  do  fluxo  urinário).  Como  resultado  da  produção  primária  de aldosterona  pela  suprarrenal,  há  inibição  do  sistema  renina­angiotensina;  portanto,  em  indivíduos hipertensos,  com  ou  sem  hipopotassemia,  a  presença  de  elevação  da  relação  aldosterona:atividade  de renina plasmática é indicativa de hiperaldosteronismo primário.

▸ Mecanismo de ação da aldosterona A aldosterona exerce seus efeitos por meio de receptor específico, chamado de receptor de mineralocorticoide (MR), que tem 94% de homologia com o receptor de glicocorticoide em seu domínio de ligação ao DNA e 57% de homologia em seu domínio de ligação ao ligante (ver Figura 69.7). A maior expressão de MR é observada no néfron distal, cólon distal e hipocampo.  A  ativação  do  MR  induz  resposta  semelhante  à  ativação  do  GR,  isto  é,  uma  resposta  de  ação  genômica.  O receptor de mineralocorticoide ligado à aldosterona atua, portanto, como um fator de transcrição, utilizando 2 mecanismos distintos. O mecanismo clássico envolve a ativação ou repressão da transcrição gênica por um efeito direto da interação do receptor  de  mineralocorticoide  ativado  com  regiões  específicas  do  DNA,  denominadas  elementos  responsivos  aos esteroides.  Baseado  nos  efeitos  dos  glicocorticoides,  a  aldosterona  poderia,  também,  interferir  na  transcrição  gênica  por um mecanismo de interação proteína­proteína entre o receptor ativado e outros fatores, na ausência do contato direto com o  DNA.  Esta  interação  pode  evitar  a  ligação  direta  com  os  respectivos  elementos  responsivos,  resultando  em  uma transrepressão  mútua,  como  descrito  nos  mecanismos  anti­inflamatórios  dos  glicocorticoides.  A  interação  do  MR  com NFκB foi descrita, porém não se conhece o seu papel fisiológico. Na Figura 69.8 está descrito o mecanismo de ação dos glicocorticoides por meio de seu receptor (GR). O  MR  não  ligado  encontra­se  no  citoplasma  formando  um  complexo  com  HSP90  e  HSP70;  após  a  ligação  com  a aldosterona, há a dissociação do receptor do complexo proteico, mudança de conformação, dimerização e translocação ao núcleo, onde se liga a segmentos palindrômicos de DNA na região promotora dos genes­alvo, estimulando o recrutamento de  cofatores  e  aumentando  a  transcrição  gênica  (Figura 69.9).  Assim,  a  aldosterona  aumenta  a  transcrição  de  genes  que codificam proteínas estimuladoras da atividade dos canais de sódio, principalmente os genes da sgk, GILZ, NDRG2 e Ki­ Ras­2A.  Em  uma  fase  mais  tardia,  o  MR  estimula  a  transcrição  de  genes  que  codificam  subunidades  do  canal  de  sódio sensível à amilorida (ENaC) e de componentes da Na+/K+­ATPase. A especificidade da ação da aldosterona pode ser regulada de várias maneiras, como expressão tecido­específica de seu receptor e afinidade de ligação ao receptor. O MR tem alta afinidade pela aldosterona, bem como pelo glicocorticoide e é distinto  do  receptor  de  glicocorticoide  que  tem  maior  afinidade  pelos  glicocorticoides.  Na  maioria  das  espécies,  a

concentração  plasmática  de  glicocorticoides  é  100  a  1.000  vezes  maior  do  que  a  da  aldosterona;  portanto,  torna­se necessária a presença de um mecanismo que permita a ação seletiva da aldosterona nos tecidos­alvo. Para esta finalidade, existe colocalização do MR com a enzima 11β­HSD tipo 2, que catalisa a conversão do cortisol em seu metabólito inativo, cortisona,  que  tem  pouca  afinidade  por  aquele  receptor.  Assim,  nos  tecidos­alvo,  a  ação  da  11β­HSD  tipo  2  impede  a ocupação  dos  receptores  de  mineralocorticoides  pelos  glicocorticoides.  Contudo,  vários  tecidos  não  epiteliais,  como alguns grupamentos neuronais e cardiomiócitos, não expressam a atividade da enzima 11β­HSD, indicando a existência de outros mecanismos que garantam a seletividade das ações da aldosterona. Estudos mais recentes têm demonstrado que a alteração  da  conformação  do  receptor  de  mineralocorticoide  é  variável  de  acordo  com  o  ligante,  de  tal  maneira  que  a ligação com a aldosterona induz uma conformação ativa do receptor mais estável do que a ligação com o glicocorticoide. Ainda,  a  ligação  da  aldosterona  com  o  MR  pode  influenciar  a  interação  com  os  fatores  coativadores,  após  a  ligação  aos elementos responsivos presentes nos genes­alvo. A aldosterona, em tecidos epiteliais e não epiteliais, também apresenta efeitos rápidos e que, portanto, não devem ser mediados pelo seu mecanismo clássico de ação genômica. Estes efeitos não genômicos são induzidos em menos de 5 min e não são bloqueados por antagonistas do MR (aldactone) ou por drogas que bloqueiam a transcrição gênica (actinomicina D).  Em  estudos  in  vitro,  utilizando  células  mononucleares,  cardiomiócitos  e  células  da  musculatura  lisa  de  vasos sanguíneos,  a  aldosterona  induz  um  aumento  rápido  de  IP3  e  cálcio  citosólicos  e  ativação  da  Na+/K+­ATPase.  A administração  intravenosa  de  aldosterona  em  humanos  induz,  em  menos  de  5  min,  alterações  cardiovasculares,  como aumento na resistência vascular e redução do débito cardíaco. No Capítulo 55, são dadas várias informações a respeito das ações renais genômicas e não genômicas da aldosterona.

Figura 69.9 ■ Receptor do mineralocorticoide (MR). Aldo, aldosterona; AIP, proteínas induzidas pela aldosterona; ENaC, canal de  sódio  sensível  à  amilorida;  sgk,  serum  and  glucocorticoid  induced  kinase;  Nedd4­2,  ligante  que  direciona  a  degradação lisossomal do ENaC; CHIF: fator de indução de canal; Ras (Kirsten Ras), ativador da cascata de sinalização intracelular; PI3K, fosfoinositídio 3 quinase; ML, membrana luminal; MBL, membrana basolateral.

Alguns grupos defendem a hipótese de que o próprio MR seria responsável pelos efeitos rápidos da aldosterona por meio de vias de sinalização alternativas, independentes da transcrição. Foi sugerida a existência de uma intensa interação entre  o  MR  e  outros  componentes  de  sinalização  não  nucleares,  incluindo  diferentes  receptores  de  membrana,  como receptores tirosinoquinases e o receptor de angiotensina 1. Um exemplo seria a ativação da proteinoquinase D (PKD) pela

aldosterona,  via  interação  do  MR  com  o  receptor  do  fator  de  crescimento  epidermal  (EGFR),  modulando  o  tráfego  de subunidades do ENaC pré­expressas e, desta forma, mediando a fase rápida de ação da aldosterona sobre o transporte de sódio.  Estes  efeitos  não  genômicos  também  poderiam  afetar  indiretamente  a  transcrição  gênica.  Outros  estudos, entretanto, sugerem a existência de um receptor de membrana ainda não conhecido capaz de mediar os efeitos rápidos da aldosterona.  Recentemente  foi  sugerido  que  o  receptor  de  membrana  GPER­1  (G  protein­coupled  estrogen  receptor  1) poderia  ser  este  receptor  e  seria  responsável  por  alguns  dos  efeitos  rápidos  da  aldosterona  em  células  endoteliais vasculares e no coração, respectivamente. Recentemente,  vários  estudos  demonstraram  que  o  MR,  adicionalmente  às  ações  sobre  a  regulação  hidreletrolítica,  é mediador  dos  efeitos  de  mineralocorticoides  e  glicocorticoides  no  tecido  adiposo.  Entre  as  ações  do  MR  no  tecido adiposo, um efeito pró­adipogênico poderia contribuir para a acumulação de lipídios em resposta a um balanço energético positivo.  Embora  a  correlação  entre  glicocorticoides,  MR  e  acúmulo  de  gordura  visceral  ainda  não  esteja  formalmente estabelecida, um dos fatores associados ao acúmulo preferencial de gordura visceral e resistência insulínica seria um perfil neuroendócrino  relacionado  com  uma  resposta  desfavorável  ao  estresse.  Neste  contexto,  recentemente  foi  sugerido  que variações  genéticas  no  MR  poderiam  predispor  a  anormalidades  metabólicas,  ao  modular  esta  resposta.  De  acordo  com estes  trabalhos,  o  MR  exerceria  um  papel  central  na  homeostase  metabólica,  envolvendo  o  controle  hidreletrolítico  e  o balanço  energético.  Como  resultado,  em  um  ambiente  caracterizado  por  alta  ingestão  calórica  e  dieta  hipersódica,  a ativação  do  MR  poderia  desencadear  respostas  deletérias  em  diferentes  tecidos,  ocasionando  o  desenvolvimento  de hipertensão arterial, obesidade e lesão cardiovascular. Estudos em modelos animais transgênicos apresentando aumento da expressão  do  MR  no  tecido  adiposo,  similar  ao  que  ocorre  em  humanos  obesos,  forneceram  pistas  sobre  o  papel específico do MR nesses tecidos. Esses estudos permitiram a identificação de um novo alvo do MR no tecido adiposo, a prostaglandina  D2  sintase,  proteína  necessária  às  ações  do  MR  no  tecido  adiposo  em  estudos  ex  vivo.  De  maneira interessante,  a  expressão  do  MR  no  tecido  adiposo  humano  é  correlacionada  com  a  expressão  da  prostaglandina  D2 sintase. Estudos clínicos realizados em pacientes adultos portadores de mutações ocasionando uma haploinsuficiência do MR, levando  a  uma  resistência  tecidual  aos  mineralocorticoides,  permitiram  a  confirmação  de  ações  do  MR  no  SNC,  no sistema  cardiovascular  e  no  metabolismo.  Pacientes  adultos  com  resistência  aos  mineralocorticoides  apresentam concentrações  elevadas  de  aldosterona  e  de  renina  plasmática  ao  longo  da  vida.  Entretanto,  as  concentrações  elevadas  de aldosterona  não  ocasionam,  nestes  indivíduos,  eventos  cardiovasculares  adversos.  Isto  sugere  que  as  consequências cardiovasculares  do  excesso  de  aldosterona  necessitam  de  uma  sinalização  completa  do  MR.  Adicionalmente,  pacientes portadores de haploinsuficiência do MR apresentam uma ativação do eixo hipotálamo­hipófise­suprarrenal, resultando em hipercortisolismo.  Esta  ativação  do  eixo  hipotálamo­hipófise­suprarrenal  resulta  em  efeitos  adversos  no  metabolismo lipídico hepático e na distribuição do tecido adiposo, provavelmente mediados pelo GR, mas sem efeitos negativos sobre o remodelamento cardíaco e vascular, provavelmente mediado pelo MR. Embora a ativação do MR pela aldosterona no sistema cardiovascular e no tecido adiposo seja geralmente considerada deletéria, em algumas condições patológicas a ativação do MR pode resultar em efeitos benéficos. O aumento da produção cardíaca  de  aldosterona  em  tecido  cardíaco  murino  é  acompanhado  por  efeitos  benéficos  sobre  a  capilarização  periférica em diabetes melito tipo I e tipo II. A aldosterona também melhora a neovascularização em um modelo murino de isquemia de membros. A expressão do MR em neutrófilos conduz a uma resposta anti­inflamatória mediada pela inibição de NFκB. Finalmente,  a  ativação  do  MR  parece  ter  propriedades  anticoagulantes  em  camundongos.  Esses  dados  sugerem  que  a ativação da via de sinalização do MR pode ser benéfica em algumas situações patológicas específicas.

AÇÕES DOS ANDRÓGENOS SUPRARRENAIS O  papel  fisiológico  dos  andrógenos  suprarrenais  não  é  bem  conhecido.  Os  andrógenos suprarrenais, DHEA, SDHEA e androstenediona, são pouco potentes e não efetivos até serem convertidos em testosterona e 5α­di­hidrotestosterona em tecidos periféricos. A associação da pubarca (aparecimento de pelos pubianos, que pode ser acompanhado de pelos axilares) com o processo de adrenarca (elevação dos andrógenos suprarrenais) sugere um possível papel  dos  andrógenos  suprarrenais  como  precursores  dos  andrógenos.  Na  mulher,  somada  a  uma  pequena  produção ovariana,  a  conversão  periférica  dos  andrógenos  suprarrenais  contribui  significativamente  para  os  níveis  circulantes  de testosterona;  entretanto,  no  homem,  esse  hormônio  é  produzido  predominantemente  pelos  testículos.  Alguns  estudos sugerem que o DHEA pode atuar como um neuroesteroide, sendo importante para o crescimento neuronal e diferenciação; adicionalmente,  poderia  ter  ação  antigabaérgica  e  atuar  como  um  fator  antidepressivo.  Outros  estudos  sugerem  que  o

DHEA  e  o  SDHEA  possam  ter  um  papel  no  controle  da  competência  imunológica,  na  manutenção  da  integridade musculoesquelética e no processo aterosclerótico. A redução das concentrações plasmáticas de DHEA e SDHEA, a menos de 20% dos valores de pico do indivíduo adulto, observadas no idoso, parece contribuir para a redução da função imune, depressão,  osteoporose  e  aterosclerose.  Contudo,  deve  ser  ressaltado  que  a  associação  dos  efeitos  desses  andrógenos  e alterações metabólicas, como resistência insulínica e risco cardiovascular, ainda não está completamente elucidada. As ações fisiológicas dos andrógenos podem ser mediadas de 3 maneiras: (1) a testosterona livre liga­se ao receptor de  andrógenos,  determinando  suas  ações  no  cérebro,  hipófise  e  rins;  (2)  a  testosterona  livre  nas  células  dos  tecidos andrógeno­responsivos,  pela  ação  da  5α­redutase,  é  transformada  em  di­hidrotestosterona,  que  se  liga  ao  receptor  de andrógenos,  induzindo  suas  ações  na  próstata,  vesícula  seminal,  epidídimo  e  pele;  (3)  a  testosterona,  pela  ação  da aromatase,  é  transformada  em  estradiol,  induzindo  suas  ações  no  hipotálamo,  hipófise,  osso  e  mamas.  O  receptor  dos andrógenos é essencial para o desenvolvimento e diferenciação sexual no sexo masculino. No sexo masculino, a falta dos andrógenos  ativos  ou  defeitos  no  receptor  resultam  em  diferentes  graus  de  ambiguidade  genital;  por  outro  lado,  no  sexo feminino, o excesso androgênico acarreta virilização da genitália externa. Durante a puberdade, há o desenvolvimento dos folículos  pilosos  terminais  nas  regiões  da  pele  responsivas  aos  andrógenos,  como  axilas  e  região  pubiana.  Nos  casos clínicos  de  hiperandrogenismo,  outras  áreas  da  pele,  como  tórax,  aréola,  dorso,  segmento  proximal  dos  membros superiores,  linha  alba  e  coxas,  podem  apresentar  hiperatividade  dos  folículos  pilosos,  caracterizando  hirsutismo.  O hiperandrogenismo  pode  progredir  para  virilização,  caracterizada  por  voz  grave,  distúrbios  menstruais,  infertilidade, clitoromegalia,  hipotrofia  mamária,  alopecia  (ausência  de  cabelos)  e  hipertrofia  muscular.  Na  criança,  acrescentam­se pubarca prematura, aumento da velocidade de crescimento, alta estatura e avanço da idade óssea. As  ações  dos  andrógenos  são  mediadas,  também,  por  receptor  nuclear.  O  receptor  dos  andrógenos  se  liga  tanto  à testosterona  quanto  à  di­hidrotestosterona  e  está  presente,  em  altas  concentrações,  em  órgãos  acessórios  da  função reprodutiva masculina e algumas áreas do sistema nervoso central e, em pequenas concentrações, no músculo esquelético, no  coração,  na  musculatura  lisa  de  vasos  sanguíneos  e  na  placenta.  Como  o  receptor  de  glico  e  mineralocorticoide,  o receptor  de  andrógenos,  após  a  formação  do  complexo  hormônio­receptor,  interage  diretamente  com  genes­alvo  para regular  a  sua  transcrição.  Os  andrógenos  produzidos  pela  suprarrenal  –  DHEA,  SDHEA  e  androstenediona  –  não  têm afinidade pelo receptor de andrógenos, porém atuam em tecidos periféricos como precursores e podem ser convertidos em testosterona, um andrógeno mais potente. Hiperplasia suprarrenal congênita A  hiperplasia  suprarrenal  congênita  constitui  um  conjunto  de  doenças  autossômicas  recessivas decorrentes da deficiência de 1 das 5 enzimas envolvidas na síntese de cortisol pela glândula suprarrenal. A  forma  mais  comum  é  a  deficiência  da  21­hidroxilase,  que  corresponde  a  mais  de  95%  dos  casos  de hiperplasia suprarrenal congênita. Em sua forma mais grave, denominada forma clássica, em dois terços dos casos há deficiência da 21­hidroxilase na zona fasciculada e glomerulosa, afetando tanto a síntese de cortisol  como  a  de  aldosterona.  Esta  forma  é  chamada  de  forma  perdedora  de  sal,  pois,  devido  à deficiência das ações da aldosterona, ocorrem desidratação, hiponatremia e hiperpotassemia (pouco sódio e muito potássio no plasma, respectivamente). No restante da forma clássica da doença, a deficiência de 21­hidroxilase  está  presente  apenas  na  zona  fasciculada,  afetando  somente  a  síntese  de  cortisol,  sendo denominada  forma  virilizante  simples.  A  deficiência  na  síntese  de  cortisol  resulta  em  maior  secreção  de ACTH pela hipófise anterior, causando hiperplasia da glândula suprarrenal e acúmulo do substrato da 21­ hidroxilase,  a  17­hidroxiprogesterona,  que  será  convertida  a  androstenediona  e,  posteriormente,  a testosterona. A deficiência da 21­hidroxilase é, portanto, uma doença virilizante, ou seja, com excesso de andrógenos desde o período intrauterino. O menino, ao nascimento, apresenta pênis aumentado e, quando não  tratado,  evolui  com  aparecimento  de  pelos  pubianos  precocemente,  voz  grave,  acne,  crescimento exagerado  e  idade  óssea  avançada.  No  feto  feminino,  a  deficiência  da  21­hidroxilase  acarreta  diferentes graus  de  masculinização  da  genitália  externa  ao  nascimento,  com  clitoromegalia  e  fusão  da  prega  labial com a rafe mediana. Deve­se ressaltar que a menina com deficiência da 21­hidroxilase apresenta genitália interna  compatível  com  o  sexo  feminino,  isto  é,  com  presença  de  derivados  müllerianos  (útero,  trompa  e terço superior da vagina) e ausência de desenvolvimento de derivados do ducto de Wolff (epidídimo, ducto deferente  e  ducto  ejaculatório).  Para  o  desenvolvimento  do  ducto  de  Wolff,  são  necessárias  altas concentrações  locais  de  testosterona,  que  são  atingidas  somente  pela  produção  deste  andrógeno  pelas células de Leydig do testículo.

MEDULA SUPRARRENAL A  medula  suprarrenal  é  constituída  por  células  chamadas  de  cromafins,  caracterizadas  pela  coloração  pelo  cromo devido à presença de catecolaminas produzidas nestas células. As células cromafins da medula suprarrenal são derivadas da  crista  neural  e  migram  para  o  centro  da  glândula  suprarrenal.  Essas  células  sintetizam  e  secretam  principalmente epinefrina, mas também norepinefrina, que atingem a circulação sistêmica e atuam em diferentes tecidos­alvo. Elas atuam como  equivalentes  estruturais  e  funcionais  de  neurônios  pós­ganglionares  do  sistema  nervoso  simpático.  Os  nervos esplâncnicos atuam como fibras pré­ganglionares e liberam acetilcolina, constituindo o principal regulador da secreção da medula suprarrenal. A  medula  suprarrenal  recebe  irrigação  sanguínea  dos  vasos  do  plexo  subcapsular  do  córtex  suprarrenal,  que  se ramificam  em  uma  rede  de  capilares  (ver  Figura  69.1),  expondo  a  medula  suprarrenal  a  elevadas  concentrações  de glicocorticoides, necessárias para a ativação do processamento enzimático da norepinefrina em epinefrina.

▸ Biossíntese das catecolaminas A  síntese  de  catecolaminas  é  realizada  a  partir  do  aminoácido  tirosina,  proveniente  da  dieta  ou  da  hidroxilação  da fenilalanina  no  fígado.  O  passo  limitante  na  biossíntese  de  catecolaminas  é  a  conversão  da  tirosina  em  di­ hidroxifenilalanina (L­DOPA), reação catalisada pela ação da enzima citosólica tirosina hidroxilase (TH), na presença do cofator tetraidropterina (Figura 69.10). Portanto, a produção de catecolaminas é dependente da presença desta enzima, cuja expressão se restringe principalmente a neurônios dopaminérgicos e noradrenérgicos do sistema nervoso central e nervos simpáticos,  células  cromafins  da  medula  suprarrenal  e  gânglios  extramedulares.  A  DOPA  sofre  a  ação  de  uma decarboxilase,  formando  a  dopamina.  A  dopamina  formada  nos  neurônios  e  nas  células  cromafins  é  translocada  do citoplasma  para  vesículas  de  estoque.  Em  neurônios  dopaminérgicos,  a  dopamina  assim  estocada  será  liberada  como neurotransmissor nas fendas sinápticas. Alguns tecidos periféricos, como o tecido gastrintestinal e os rins, também podem produzir dopamina. A dopamina presente na urina é derivada principalmente da decarboxilação da DOPA plasmática, que ocorre no rim.

Figura 69.10 ■ Síntese das catecolaminas. DOPA, di­hidroxifenilalanina; PNMT, feniletanolamina­N­metiltransferase.

A dopamina formada em neurônios noradrenérgicos e células cromafins é convertida em norepinefrina pela dopamina β­hidroxilase.  Esta  enzima  está  presente  apenas  nos  tecidos  que  sintetizam  norepinefrina  e  epinefrina.  Nas  células cromafins  da  medula  suprarrenal,  a  norepinefrina  é  metabolizada  pela  enzima  citosólica  feniletanolamina­N­ metiltransferase  (PNMT),  formando  a  epinefrina,  que  será  estocada  em  grânulos  de  secreção.  A  atividade  da  PNMT  é dependente de altas concentrações de glicocorticoides, fornecidas pela irrigação sanguínea da medula suprarrenal. O  transporte  das  catecolaminas  sintetizadas  para  as  vesí­culas  de  estoque  é  mediado  pelos  transportadores  de monoaminas.  As  células  cromafins  apresentam  vesículas  com  características  morfológicas  e  estoques  distintos  de norepinefrina  ou  epinefrina,  que  são  liberadas  diferencialmente  em  resposta  a  estímulos  específicos.  O  processo  de exocitose  das  vesículas  contendo  catecolaminas  é  estimulado  pelo  influxo  de  cálcio,  que,  no  neurônio,  é  primariamente controlado  pela  despolarização  de  membrana  e,  na  medula  suprarrenal,  pela  liberação  de  acetilcolina  dos  nervos esplâncnicos. Vários peptídios, neurotransmissores e fatores humorais podem estimular, também, o processo de exocitose de  catecolaminas  diretamente  ou  modulando  a  despolarização  dos  neurônios  catecolaminérgicos.  A  norepinefrina  inibe  a sua própria liberação, pela ocupação de receptores α 2 pré­sinápticos. Adicionalmente, a liberação de catecolaminas implica também o aumento de sua síntese para reposição de seus estoques.

▸ Metabolismo das catecolaminas O metabolismo das catecolaminas é realizado por enzimas de localização intracelular; assim, a sua meia­vida depende da  captação  que  é  facilitada  por  transportadores  específicos  presentes  em  neurônios  e  células  não  neuronais.  O transportador  neuronal  de  norepinefrina  constitui  o  principal  mecanismo  de  término  rápido  da  transmissão simpatoneuronal,  enquanto  os  transportadores  de  localização  extraneuronal  são  mais  importantes  para  a  limitação  dos efeitos  e  clearance  das  catecolaminas  circulantes.  Cerca  de  90%  da  catecolamina  liberada  pelos  nervos  simpáticos  é removida pela recaptação neuronal, 5% pela captação não neuronal e apenas 5% atingem a circulação sistêmica. Por outro lado,  90%  da  epinefrina  liberada  para  a  circulação  pela  suprarrenal  é  metabolizada  pelo  processo  de  transporte  de

monoaminas  extraneuronal,  principalmente  no  fígado.  Este  processo  de  metabolização  das  catecolaminas  circulantes apresenta uma meia­vida de cerca de 2 min. As catecolaminas circulantes são degradadas, principalmente no fígado, pelas enzimas catecolamina­O­metiltransferase (COMT) e monoamina oxidase. A O­metilação e desaminação oxidativa podem ocorrer em qualquer ordem. Pela ação da COMT,  a  epinefrina  é  convertida  em  metanefrina  e  a  norepinefrina,  em  normetanefrina  (Figura  69.11).  Pela  ação  da monoamina  oxidase,  estes  compostos  são  convertidos  em  ácido  vanililmandélico  (VMA).  Pela  ação  da  monoamina oxidase  sobre  a  epinefrina  e  norepinefrina,  há  formação  de  ácido  di­hidromandélico,  que  pela  O­metilação  realizada  pela COMT  leva  à  formação  de  VMA.  A  determinação  das  concentrações  de  catecolaminas  e  metanefrinas  no  plasma  ou  na urina  e  a  concentração  de  VMA  na  urina  refletem  a  produção  de  catecolaminas  pela  medula  suprarrenal  e  pelo  sistema simpático.

Figura 69.11 ■ Metabolismo das catecolaminas. COMT, catecolamina­O­metiltransferase; MAO, monoamina oxidase; VMA, ácido vanililmandélico; DOMA, ácido di­hidroximandélico.

▸ Ações das catecolaminas ▸ Manutenção do estado de alerta. Os efeitos da epinefrina no estado de alerta incluem: dilatação da pupila, piloereção, sudorese, dilatação brônquica, taquicardia, inibição da musculatura lisa do sistema digestório e contração dos esfíncteres intestinal e vesical. ▸  Ações metabólicas. As ações metabólicas da epinefrina resultam em maior produção de substrato energético. Assim, a epinefrina aumenta a produção de glicose, estimulando a glicogenólise e a gliconeogênse, inibindo a secreção de insulina  e  aumentando  a  secreção  de  glucagon.  No  tecido  adiposo,  a  epinefrina  estimula  a  lipólise  mediada  pela  lipase hormônio­sensível,  que  converte  os  triglicerídios  em  ácidos  graxos  livres  e  glicerol.  Portanto,  os  efeitos  metabólicos  da epinefrina resultam em aumento da glicose, lipidemia, consumo de oxigênio, bem como em aumento da termogênese. ▸  Ações cardiovasculares. Os  efeitos  cardiovasculares  das  catecolaminas  são  determinados  pela  ativação  de diferentes  receptores  adrenérgicos.  A  epinefrina  atua  principalmente  em  receptores  α 2­adrenérgicos,  presentes  na musculatura  dos  vasos,  causando  vasodilatação.  Por  outro  lado,  a  norepinefrina  liberada  localmente  nos  vasos  induz vasoconstrição,  mediada  pelos  receptores  α 1­adrenérgicos.  Este  efeito  de  vasoconstrição,  associado  aos  efeitos cronotrópicos e inotrópicos da norepinefrina liberada por via neural no coração (mediados por receptores β­adrenérgicos), são  responsáveis  pela  função  do  sistema  simpatoneural  na  regulação  cardiovascular,  incluindo  a  manutenção  da  pressão sanguínea. Feocromocitoma Tumores secretores de catecolaminas podem desenvolver­se na medula suprarrenal (feocromocitomas) ou  a  partir  de  células  cromafins  extrassuprarrenais  (paragangliomas  secretores).  Sua  prevalência  é  de cerca  de  0,1%  dos  pacientes  com  hipertensão  e  4%  dos  pacientes  com  tumor  suprarrenal  descobertos acidentalmente. O aumento da produção de catecolaminas é responsável por sinais e sintomas refletindo os efeitos da epinefrina e norepinefrina sobre os receptores alfa e receptores beta­adrenérgicos: cefaleia, taquicardia, sudorese, hipertensão arterial, perda de peso e diabetes. Os tumores podem ser esporádicos

ou parte de doenças genéticas, como feocromocitoma/paraganglioma familiar, neoplasia endócrina múltipla tipo 2, neurofibromatose tipo 1 e doença de Von Hippel­Lindau. O teste diagnóstico mais específico e mais sensível  é  a  dosagem  de  metanefrinas  plasmáticas  ou  urinárias,  e  o  tratamento  é  a  remoção  do  tumor. Cerca de 10% dos feocromocitomas são malignos, diagnosticados imediatamente ou durante uma recidiva revelando metástase linfática, óssea ou visceral.

▸ Receptores adrenérgicos As  catecolaminas  podem  se  ligar  a  vários  tipos  de  receptores  adrenérgicos  denominados  α  e  β.  Atualmente,  são conhecidos 2 tipos de receptores tipo α (α 1 e α 2) e 3 tipos de receptores tipo β (β1, β2 e β3). Os receptores β­adrenérgicos são acoplados à proteína estimulatória Gαs, que estimula a adenilatociclase; portanto, o AMP cíclico é o principal segundo mensageiro da ativação β­adrenérgica. Os receptores α­adrenérgicos são acoplados à proteína Gαq, que ativa a fosfolipase C, resultando no aumento do cálcio citosólico. Os  receptores  α 1­adrenérgicos  têm  localização  pós­sináptica,  enquanto  o  subtipo  α 2  está  presente  nos  neurônios simpáticos  pré­sinápticos.  Assim,  os  receptores  α 1­adrenérgicos  são  responsáveis  pelos  efeitos  α  agonistas,  como  a vasoconstrição, enquanto os receptores α 2­adrenérgicos  inibem  a  liberação  de  norepinefrina  pelos  nervos  simpáticos.  Os receptores  β1­adrenérgicos  são  mediadores  das  respostas  inotrópica  e  cronotrópica  do  coração,  da  lipólise  no  tecido adiposo  e  do  aumento  da  secreção  de  renina  pelo  rim.  Quando  estimulados,  os  receptores  β2­adrenérgicos  causam broncodilatação, glicogenólise e relaxamento da musculatura lisa uterina e intestinal.

BIBLIOGRAFIA Desenvolvimento da glândula suprarrenal BARRETT EJ. The adrenal gland. In: BORON WF, BOULPAEP EL (Eds.). Medical Physiology. Saunders, New York, 2005. MESIANO S, JAFFE RB. Developmental and functional biology of the primate fetal adrenal cortex. Endocr Rev,  18:378­403, 1997. XING  Y,  LERARIO  AM,  RAINEY  W  et  al.  Development  of  adrenal  córtex  zonation.  Endocrinol  Metab  Clin  North Am, 44(2):243­74, 2015. VINSON GP. Functional zonation of the adult mammalian adrenal cortex. Front Neurosci, 10:238, 2016.

ACTH ANTONI FA. Vasopressinergic control of pituitary adrenocorticotropin secretion comes of age. Front Neuroendocrinol, 14:76­ 122, 1993. BROWNIE  AC,  SIMPSON  ER,  JEFCOATE  CR  et  al.  Effect  of  ACTH  on  cholesterol  side­chain  cleavage  in  rat  adrenal mitochondria. Biochem Biophys Res Commun, 46:483­90, 1972. DROUIN  J.  60  years  of  POMC:  transcriptional  and  epigenetic  regulation  of  POMC  gene  expression.  J  Mol Endocrinol, 56(4):T99­112, 2016. ELIAS  LLK,  CASTRO  M.  Controle  neuroendócrino  do  eixo  hipotálamo­hipófise­adrenal.  In:  ANTUNES­RODRIGUES  J, MOREIRA AC, ELIAS LLK et al. Neuroendocrinologia Básica e Aplicada. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 2004. GALLO­PAYET N. 60 years of POMC: adrenal and extra­adrenal functions of ACTH. J Mol Endocrinol, 56(4):T135­56, 2016. HEIKKILA  P,  AROLA  J,  LIU  J  et  al.  ACTH  regulates  LDL  receptor  and  CLA­1  mRNA  in  the  rat  adrenal  cortex.  Endocr Res, 24:591­3, 1998. JONES  MT,  GILLHAM  B.  Factors  involved  in  the  regulation  of  adrenocorticotropin/betalipotropic  hormone.  Physiol Rev, 68:743­818, 1988. KELLER­WOOD M. Hypothalamic­pituitary­adrenal axis­feedback control. Compr Physiol, 5(3):1161­82, 2015. LEHOUX JG, FLEURY A, DUCHARME L. The acute and chronic effects of adrenocorticotropin on the levels of messenger ribonucleic acid and protein of steroidogenic enzymes in rat adrenal in vivo. Endocrinology, 139:3913­22, 1998. NOVOSELOVA  TV,  JACKSON  D,  CAMPBELL  DC  et  al.  Melanocortin  receptor  accessory  proteins  in  adrenal  gland physiology and beyond. J Endocrinol, 217(1):R1­11, 2013. PEDERSEN  RC,  BROWNIE  AC,  LING  N.  Pro­adrenocorticotropin/endorphin­derived  peptides:  coordinate  action  on  adrenal steroidogenesis. Science, 208:1044­6, 1980.

VALE W, SPIESS J, RIVIER C et al. Characterization of a 41­residue ovine hypothalamic peptide that stimulates secretion of corticotropin and beta­endorphin. Science, 213(4514):1394­7, 1981. WHITNALL MH, MEZEY E, GAINER H. Co­localization of corticotropin­releasing factor and vasopressin in median eminence neurosecretory vesicles. Nature, 317:248­50, 1985.

Esteroidogênese BORNSTEIN SR, RUTKOWSKI H, VREZAS I. Cytokines and steroidogenesis. Mol Cell Endocrinol, 215:135­41, 2004. BOSE HS, SUGAWARA T, STRAUSS JF 3rd et al. The pathophysiology and genetics of congenital lipoid adrenal hyperplasia. International Congenital Lipoid Adrenal Hyperplasia Consortium. N Engl J Med, 335:1870­8, 1996. CLARK BJ. ACTH action on StAR biology. Front Neurosci, 10:547­53, 2016. CRIVELLO JF, JEFCOATE CR. Intracellular movement of cholesterol in rat adrenal cells. Kinetics and effects of inhibitors. J Biol Chem, 255:8144­51, 1980. GARNIER  M,  BOUJRAD  N,  OGWUEGBU  SO  et  al.  The  polypeptide  diazepam­binding  inhibitor  and  a  higher  affinity mitochondrial  peripheral­type  benzodiazepine  receptor  sustain  constitutive  steroidogenesis  in  the  R2C  Leydig  tumor  cell line. J Biol Chem, 269:22105­12, 1994. KELLER­WOOD ME, DALLMAN MF. Corticosteroid inhibition of ACTH secretion. Endocr Rev, 5:1­24, 1984. KELLY SN, MCKENNA TJ, YOUNG LS. Modulation of steroidogenic enzymes by orphan nuclear transcriptional regulation may control diverse production of cortisol and androgens in the human adrenal. J Endocrinol, 181:355­65, 2004. KRUEGER KE, PAPADOPOULOS V. Peripheral­type benzodiazepine receptors mediate translocation of cholesterol from outer to inner mitochondrial membranes in adrenocortical cells. J Biol Chem, 265:15015­22, 1990. LIN  D,  SUGAWARA  T,  STRAUSS  JF  3rd  et  al.  Role  of  steroidogenic  acute  regulatory  protein  in  adrenal  and  gonadal steroidogenesis. Science, 267:1828­31, 1995. MERMEJO  LM,  ELIAS  LL,  MARUI  S  et  al.  Refining  hormonal  diagnosis  of  type  II  3beta­hydroxysteroid  dehydrogenase deficiency  in  patients  with  premature  pubarche  and  hirsutism  based  on  HSD3B2  genotyping.  J  Clin  Endocrinol Metab, 3:1287­93, 2005. MIDZAK  A,  PAPADOPOULOS  V.  Adrenal  mitochondria  and  steroidogenesis:  from  individual  proteins  to  functional  protein assemblies. Front Endocrinol, 7:106, 2016. MILLER WL. Regulation of steroidogenesis by electron transfer. Endocrinology, 146:2544­50, 2005. MILLER WL, TEE MK. The post­translational regulation of 17,20 lyase activity. Mol Cell Endocrinol, 408:99­106, 2015. NAKAE J, TAJIMA T, SUGAWARA T et al. Analysis of the steroidogenic acute regulatory protein (StAR) gene in Japanese patients with congenital lipoid adrenal hyperplasia. Hum Mol Genet, 6:571­6, 1997. PARKER  KL,  SCHIMMER  BP.  Transcriptional  regulation  of  the  genes  encoding  the  cytochrome  P­450  steroid hydroxylases. Vitam Horm, 51:339­70, 1995. RAINEY WE. Adrenal zonation: clues from 11beta­hydroxylase and aldosterone synthase. Mol Cell Endocrinol,  151:151­60, 1999. RUGGIERO  C,  LALLI  E.  Impact  of  ACTH  signaling  on  transcriptional  regulation  of  steroidogenic  genes.  Front  Endocrinol (Lausanne), 7:24­38, 2016. SIMARD J, RICKETTS ML, GINGRAS S et  al.  Molecular  biology  of  the  3beta­hydroxysteroid  dehydrogenase/delta5­delta4 isomerase gene family. Endocr Rev, 26:525­82, 2005. SIMPSON  ER.  Cholesterol  side­chain  cleavage,  cytochrome  P450,  and  the  control  of  steroidogenesis.  Mol  Cell Endocrinol, 13:213­27, 1979. STOCCO DM, CLARK BJ. Regulation of the acute production of steroids in steroidogenic cells. Endocr Rev, 17:221­44, 1996. TURCU  AF,  AUCHUS  RJ.  Adrenal  steroidogenesis  and  congenital  adrenal  hyperplasia.  Endocrinol  Metab  Clin  North Am, 44(2):275­96, 2015.

Secreção e ações dos glicocorticoides AUBOEUF  D,  HONIG  A,  BERGET  SM  et  al.  Coordinate  regulation  of  transcription  and  splicing  by  steroid  receptor coregulators. Science, 298(5592):416­9, 2002. BAMBERGER CM, BAMBERGER AM, DE CASTRO M et al. Glucocorticoid receptor beta, a potential endogenous inhibitor of glucocorticoid action in humans. J Clin Invest, 95:2434­41, 1995. BAMBERGER CM, SCHULTE HM, CHROUSOS GP. Molecular determinants of glucocorticoid receptor function and tissue sensitivity to glucocorticoids. Endocr Rev, 17:245­61, 1996.

BLEDSOE  RK,  STEWART  EL,  PEARCE  KH.  Structure  and  function  of  the  glucocorticoid  receptor  ligand  binding domain. Vitam Horm, 68:49­91, 2004. CAIN DW, CIDLOWSKI JA. Specificity and sensitivity of glucocorticoid signaling in health and disease. Best Pract Res Clin Endocrinol Metab, 29(4):545­56, 2015. CARRASCO GA, VAN DE KAR LD. Neuroendocrine pharmacology of stress. Eur J Pharmacol, 463:235­72, 2003. CASTRO M, ELLIOT S, KINO T et al.  The  nonligand­binding  isoform  of  the  human  glucocorticoid  receptor  (hGRβ):  tissue levels, mechanism of action and potential physiological role. Molecular Medicine, 5:597­607, 1996. CHEN  YZ,  QIU  J.  Pleiotropic  signaling  pathways  in  rapid,  nongenomic  action  of  glucocorticoid.  Mol  Cell  Biol  Res Commun, 2:145­9, 1999. CHROUSOS  GP.  Stressors,  stress,  and  neuroendocrine  integration  of  the  adaptive  response.  The  1997  Hans  Selye  Memorial Lecture. Ann N Y Acad Sci, 30:851:311­35, 1998. DALLMAN MF, AKANA SF, CASCIO CS et al. Regulation of ACTH secretion: variations on a theme of B. Recent Prog Horm Res, 43:113­73, 1987. FRANCI CR. Estresse: processos adaptativos e não adaptativos. In: ANTUNES­RODRIGUES J, MOREIRA AC, ELIAS LLK et al. (Eds.). Neuroendocrinologia Básica e Aplicada. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 2005. GEER EB, ISLAM J, BUETTNER C. Mechanisms of glucocorticoid­induced insulin resistance: focus on adipose tissue function and lipid metabolism. Endocrinol. Metab Clin North Am, 43(1):75­102, 2014. GIGUERE  V,  HOLLENBERG  SM,  ROSENFELD  MG  et  al.  Functional  domains  of  the  human  glucocorticoid receptor. Cell, 46:645­52, 1986. GLASS CK, ROSENFELD MG. The coregulator exchange in transcriptional functions of nuclear receptors. Genes Dev, 14:121­ 41, 2000. HABIB KE, GOLD PW, CHROUSOS GP. Neuroendocrinology of stress. Endocrinol Metab Clin North Am, 30:695­728, 2001. HOLLENBERG  SM,  EVANS  RM.  Multiple  and  cooperative  trans­activation  domains  of  the  human  glucocorticoid receptor. Cell, 55:899­906, 1988. HUA  SY,  CHEN  YZ.  Membrane­receptor  mediated  electrophysiological  effects  of  glucocorticoid  on  mammalian neurons. Endocrinology, 124:687­91, 1989. KRIEGER DT, ALLEN W, RIZZO F et al. Characterization of the normal temporal pattern of plasma corticosteroid levels. J Clin Endocrinol Metab, 32:266­84, 1971. LEAL AM, MOREIRA AC. Feeding and the diurnal variation of the hypothalamic­pituitary­adrenal axis and its responses to CRH and ACTH in rats. Neuroendocrinology, 64:14­9, 1996. LOU SJ, CHEN YZ. The rapid inhibitory effect of glucocorticoid on cytosolic free Ca2+ increment induced by high extracellular K + and its underlying mechanism in PC12 cells. Biochem Biophys Res Commun, 244:403­7, 1998. MAKARA  GB,  HALLER  J.  Non­genomic  effects  of  glucocorticoids  in  the  neural  system:  evidence,  mechanisms  and implications. Prog Neurobiol, 65:367­90, 2001. PATEL  R,  WILLIAMS­DAUTOVICH  J,  CUMMINS  CL.  Minireview:  new  molecular  mediatorsof  glucocorticoid  receptor activity in metabolic tissues. Mol Endocrinol, 28(7):999­1011, 2014. QIU J, LOU LG, HUANG XY et al. Nongenomic mechanisms of glucocorticoid inhibition of nicotine­induced calcium influx in PC12 cells: involvement of protein C. Endocrinology, 139:5103­8, 1998. RHEN  T,  CIDLOWSKI  JA.  Anti­inflammatory  action  of  glucocorticoids–new  mechanisms  for  old  drugs.  N  Engl  J Med, 353:1711­23, 2005. ROSE  AJ,  HERZIG  S.  Metabolic  control  through  glucocorticoid  hormones:  an  update. Mol  Cell  Endocrinol,  380(1­2):65­78, 2013. SAPOLSKY  RM,  ROMERO  LM,  MUNCK  AU.  How  do  glucocorticoids  influence  stress  responses?  Integrating  permissive, suppressive, stimulatory, and preparative actions. Endocr Rev, 21:55­89, 2000. STAHN  C,  BUTTGEREIT  F.  Genomic  and  nongenomic  effects  of  glucocorticoids.  Nat  Clin  Pract  Rheumatol,  4(10):525­33, 2008. TASKER  JG,  DI  S,  MALCHER­LOPES  R.  Minireview:  rapid  glucocorticoid  signaling  via  membrane­associated receptors. Endocrinology, 147:5549­56, 2006. TSAI  MJ,  O’MALLEY  BW.  Molecular  mechanisms  of  action  of  steroid/thyroid  receptor  superfamily  members.  Annu  Rev Biochem, 63:451­86, 1994. YUDT  MR,  CIDLOWSKI  JA.  The  glucocorticoid  receptor:  coding  a  diversity  of  proteins  and  responses  through  a  single gene. Mol Endocrinol, 16:1719­26, 2002.

XIAO  L,  FENG  C,  CHEN  Y.  Glucocorticoid  rapidly  enhances  NMDA­evoked  neurotoxicity  by  attenuating  the  NR2A­ containing NMDA receptor­mediated ERK1/2 activation. Mol Endocrinol, 24:497­510, 2010. ZILLIACUS  J,  WRIGHT  AP,  CARLSTEDT­DUKE  J  et  al.  Structural  determinants  of  DNA­binding  specificity  by  steroid receptors. Mol Endocrinol, 9:389­400, 1995.

Metabolização dos glicocorticoides CHAPMAN K, HOLMES M, SECKL J. 11β­hydroxysteroid dehydrogenases: intracellular gate­keepers of tissue glucocorticoid action. Physiol Rev, 93(3):1139­206, 2013. DRAPER N, STEWART PM. 11beta­hydroxysteroid dehydrogenase and the pre­receptor regulation of corticosteroid hormone action. J Endocrinol, 186:251­71, 2005. MORTON  NM.  Obesity  and  corticosteroids:  11beta­hydroxysteroid  type  1  as  a  cause  and  therapeutic  target  in  metabolic disease. Mol and Cell Endocrinol, 316:154­64, 2010. TOMLINSON JW, WALKER EA, BUJALSKA IJ et al. 11beta­hydroxysteroid dehydrogenase type 1: a tissue­specific regulator of glucocorticoid response. Endocr Rev, 25:831­66, 2004.

Secreção e ações da aldosterona BARAJAS L. Anatomy of the juxtaglomerular apparatus. Am J Physiol, 237:F333­43, 1979. BASSETT MH, WHITE PC, RAINEY WE. The regulation of aldosterone synthase expression. Mol Cell Endocrinol, 217:67­74, 2004. BHALLA  V,  SOUNDARARAJAN  R,  PAO  AC  et  al.  Disinhibitory  pathways  for  control  of  sodium  transport:  regulation  of ENaC by SGK1 and GILZ. Am J Physiol Renal Physiol, 291:F714­21, 2006. CONNELL JM, DAVIES E. The new biology of aldosterone. J Endocrinol, 186:1­20, 2005. CHOI  M,  SCHOLL  UI,  YUE  P  et  al.  K +  channel  mutations  in  adrenal  aldosterone­producing  adenomas  and  hereditary hypertension. Science, 331(6018):768­72, 2011. DE KLOET ER, VAN ACKER SA, SIBUG RM et al. Brain mineralocorticoid receptors and centrally regulated functions. Kidney Int, 57:1329­36, 2000. DERIJK  RH,  WÜST  S,  MEIJER  OC  et  al.  A  common  polymorphism  in  the  mineralocorticoid  receptor  modulates  stress responsiveness. J Clin Endocrinol Metab, 91(12):5083­9, 2006. DRUILHET RE, OVERTURF M, KIRKENDALL WM. Action of a human plasma fraction on tetradecapeptide, angiotensin I and angiotensin II. Life Sci, 20:1213­25, 1977. ESCOUBET  B,  COUFFIGNAL  C,  LAISY  JP  et  al.  Cardiovascular  effects  of  aldosterone:  insight  from  adult  carriers  of mineralocorticoid receptor mutations. Circ Cardiovasc Genet, 6(4):381­90, 2013. FARMAN N, RAFESTIN­OBLIN ME. Multiple aspects of mineralocorticoid selectivity. Am J Physiol Renal Physiol, 280:F181­ 92, 2001. FERNANDES­ROSA FL, WILLIAMS TA, RIESTER A et al. Genetic spectrum and clinical correlates of somatic mutations in aldosterone­producing adenoma. Hypertension, 64(2):354­61, 2014. FERNANDES­ROSA FL, BUENO AC, DE SOUZA RM et al. Mineralocorticoid receptor p.I180V polymorphism: association with body mass index and LDL­cholesterol levels. J Endocrinol Invest, 33(7):472­7, 2010. FUNDER JW. The nongenomic actions of aldosterone. Endocr Rev, 26:313­21, 2005. FUNDER  JW,  CAREY  RM,  MANTERO  F  et  al.  The  management  of  primary  aldosteronism:  case  detection,  diagnosis,  and treatment: an Endocrine Society Clinical Practice Guideline. J Clin Endocrinol Metab, 101(5):1889­916, 2016. HATTANGADY  NG,  OLALA  LO,  BOLLAG  WB  et  al.  Acute  and  chronic  regulation  of  aldosterone  production.  Mol  Cell Endocrinol, 350(2):151­62, 2012. HERMIDORFF MM, DE ASSIS LV, ISOLDI MC. Genomic and rapid effects of aldosterone: what we know and do not know thus far. Heart Fail Rev, 22(1):65­89, 2017. JAISSER  F,  FARMAN  N.  Emerging  roles  of  the  mineralocorticoid  receptor  in  pathology:  toward  new  paradigms  in  clinical pharmacology. Pharmacol Rev, 68(1):49­75, 2016. LISUREK  M,  BERNHARDT  R.  Modulation  of  aldosterone  and  cortisol  synthesis  on  the  molecular  level.  Mol  Cell Endocrinol, 215:149­59, 2004. LUTHER JM. Aldosterone in vascular and metabolic dysfunction. Curr Opin Nephrol Hypertens, 25(1):16­21, 2016. MEINEL S, GEKLE M, GROSSMANN C. Mineralocorticoid receptor signaling: crosstalk with membrane receptors and other modulators. Steroids, 91:3­10, 2014.

PASCUAL­LE  TALLEC  L,  LOMBES  M.  The  mineralocorticoid  receptor:  a  journey  exploring  its  diversity  and  specificity  of action. Mol Endocrinol, 19:2211­21, 2005. PEARCE D, VERREY F, CHEN SY et al. Role of SGK in mineralocorticoid­regulated sodium transport. Kidney Int, 57:1283­9, 2000. PENFORNIS  P,  VIENGCHAREUN  S,  LE  MENUET  D  et  al.  The  mineralocorticoid  receptor  mediates  aldosterone­induced differentiation of T37i cells into brown adipocytes. Am J Physiol Endocrinol Metab, 279:E386­94, 2000. QUINN  SJ,  WILLIAMS  GH,  TILLOTSON  DL.  Calcium  oscillations  in  single  adrenal  glomerulosa  cells  stimulated  by angiotensin II. Proc Natl Acad Sci USA, 85:5754­8, 1988. SARTORATO P, LAPEYRAQUE AL, ARMANINI D et al. Different inactivating mutations of the mineralocorticoid receptor in fourteen families affected by type I pseudohypoaldosteronism. J Clin Endocrinol Metab, 88:2508­17, 2003. SOUNDARARAJAN R, ZHANG TT, WANG J et al. A novel role for glucocorticoid­induced leucine zipper protein in epithelial sodium channel­mediated sodium transport. J Biol Chem, 280:39970­81, 2005. SPAT  A,  HUNYADY  L.  Control  of  aldosterone  secretion:  a  model  for  convergence  in  cellular  signaling  pathways.  Physiol Rev, 84:489­539, 2004. STOCKAND JD. New ideas about aldosterone signaling in epithelia. Am J Physiol Renal Physiol, 282:F559­76, 2002. STOWASSER  M,  GORDON  RD.  Primary  aldosteronism:  changing  definitions  and  new  concepts  of  physiology  and pathophysiology both inside and outside the kidney. Physiol Rev, 96(4):1327­84, 2016. SYNDER PM, OLSON DR, THOMAS BC. Serum and glucocorticoid­regulated kinase modulate Nedd4­2 mediated inhibition of the epithelial Na+ channel. J Biol Chem, 277:5­8, 2002. THOMAS  W,  MCENEANEY  V,  HARVEY  BJ.  Aldosterone­induced  signalling  and  cation  transport  in  the  distal nephron. Steroids, 73:979­84, 2008. URBANET R, NGUYEN DINH CAT A, FERACO A et al. Adipocyte mineralocorticoid receptor activation leads to metabolic syndrome and induction of prostaglandin D2 synthase. Hypertension, 66(1):149­57, 2015. VAN LEEUWEN N, CAPRIO M, BLAYA C et al. The functional c.­2 G>C variant of the mineralocorticoid receptor modulates blood pressure, renin, and aldosterone levels. Hypertension, 56(5):995­1002, 2010. VERREY  F,  FAKITSAS  P,  ADAM  G  et  al.  Early  transcriptional  control  of  ENaC  (de)ubiquitylation  by  aldosterone.  Kidney Int, 73:691­6, 2008. VIENGCHAREUN S, LE MENUET D, MARTINERIE L et al. The mineralocorticoid receptor: insights into its molecular and (patho)physiological biology. Nucl Recept Signal, 30;5:e012, 2007. WALKER  BR,  ANDREW  R,  ESCOUBET  B  et  al.  Activation  of  the  hypothalamic­pituitary­adrenal  axis  in  adults  with mineralocorticoid receptor haploinsufficiency. J Clin Endocrinol Metab, 99(8):E1586­91, 2014. YANG J, YOUNG MJ. The mineralocorticoid receptor and its coregulators. J Mol Endocrinol, 43:53­64, 2009. ZENNARO  MC,  CAPRIO  M,  FÈVE  B.  Mineralocorticoid  receptors  in  the  metabolic  syndrome.  Trends  Endocrinol Metab, 20(9):444­51, 2009. ZENNARO MC, HUBERT EL, FERNANDES­ROSA FL. Aldosterone resistance: structural and functional considerations and new perspectives. Mol Cell Endocrinol, 350(2):206­15, 2012. ZENNARO  MC,  BOULKROUN  S,  FERNANDES­ROSA  F.  An  update  on  novel  mechanisms  of  primary  aldosteronism.  J Endocrinol, 224(2):R63­77, 2005.

Andrógenos suprarrenais ARLT W. Dehydroepiandrosterone and ageing. Best Pract Res Clin Endocrinol Metab, 18:363­80, 2004. AUCHUS RJ. Overview of dehydroepiandrosterone biosynthesis. Semin Reprod Med, 22:281­8, 2004. BAULIEU  EE,  ROBEL  P.  Dehydroepiandrosterone  (DHEA)  and  dehydroepiandrosterone  sulfate  (DHEAS)  as  neuroactive neurosteroids. Proc Natl Acad Sci USA, 95:4089­91, 1998. DHARIA S, PARKER CR Jr. Adrenal androgens and aging. Semin Reprod Med, 22:361­8, 2004. IBANEZ  L,  DIMARTINO­NARDI  J,  POTAU  N  et  al.  Premature  adrenarche  –  normal  variant  or  forerunner  of  adult disease? Endocr Rev, 21(6):671­96, 2000. MILLER WL. Androgen biosynthesis from cholesterol to DHEA. Mol Cell Endocrinol, 198(1­2):7­14, 2002. PIHLAJAMAA P, SAHU B, JÄNNE OA. Determinants of receptor­ and tissue­specific actions in androgen signaling. Endocr Rev, 36(4):357­84, 2015. RAINEY WE, CARR BR, SASANO H et al. Dissecting human adrenal androgen production. Trends Endocrinol Metab, 13:234­ 9, 2002. STROTT CA. Steroid sulfotransferases. Endocr Rev, 17:670­97, 1996.

Medula suprarrenal EISENHOFER  G.  The  role  of  neuronal  and  extraneuronal  plasma  membrane  transporter  in  the  inactivation  of  peripheral catecholamines. Pharmacol Ther, 91:35­62, 2001. HODEL A. Effects of glucocorticoids on adrenal chromaffin cells. J Neuroendocrinol, 13:216­20, 2001. NAGATSU T, STJARNE L. Catecholamine shynthesis and release. Overview. Adv Pharmacol, 42:1­14, 1998. TANK AW, LEE WONG D. Peripheral and central effects of circulating catecholamines. Compr Physiol, 5(1):1­15, 2015. ZIGMOND  RE,  SCHWARZSCHILD  MA,  RITTENHOUSE  AR.  Acute  regulation  of  thyrosine  hydroxylase  by  nerve  activity and by neurotransmitters via phosphorylation. Annu Rev Neurosci, 12:415­61, 1989.



Introdução

■ ■

Pâncreas Mecanismo de ação dos hormônios pancreáticos

■ ■

Sinalização tecidual da insulina Bibliografia

INTRODUÇÃO O  pâncreas  é  uma  glândula  classicamente  designada  como  mista  por  ser  responsável  tanto  pela  produção  de  enzimas digestivas  (ou  secreções  exócrinas),  secretadas  no  lúmen  do  duodeno  (meio  externo  ao  organismo),  como  pela  produção de  hormônios  (ou  secreções  endócrinas),  secretados  no  interstício,  de  onde  alcançam  a  circulação  sanguínea  (ou  meio interno).  Alterações  nas  secreções  endócrinas  do  pâncreas,  especialmente  da  insulina,  determinam  importantes modificações  na  homeostase  do  meio  interno,  as  quais  se  relacionam  com  doenças  de  alta  prevalência  (atualmente consideradas de caráter endêmico), como o diabetes melito (DM), a obesidade e a síndrome metabólica, razões pelas quais é  um  dos  mais  estudados  sistemas  endócrinos,  em  toda  a  história  da  investigação  científica.  Relatos  de  indivíduos portadores  de  DM  remontam  à  antiguidade  egípcia,  despertando,  desde  então,  a  curiosidade  sobre  os  mecanismos envolvidos no aumento excessivo da concentração de glicose no sangue e na urina. Na  metade  do  século  XIX  (em  1843),  Claude  Bernard  (médico  e  fisiologista  francês)  estabeleceu  os  princípios  da investigação  científica  baseada  em  evidências  e  demonstrou  que  o  fígado  tinha  essencial  papel  na  manutenção  da homeostase (estado de equilíbrio da concentração) da glicose. Mais do que isso, esse estudioso afirmou que a homeostase da  glicose  era  regulada  por  mecanismos  neuro­humorais.  Já  na  época  havia  a  suspeita  de  que  o  pâncreas,  cuja  atividade exócrina  fora  claramente  confirmada  pela  conexão  anatômica  com  o  intestino,  desempenhasse  importante  papel  na regulação  da  homeostase  glicêmica.  Em  1869,  Paul  Langerhans  descreveu  a  existência  de  grupamentos  de  células pancreáticas que não se relacionavam com o sistema de ácinos e ductos do pâncreas exócrino, e que, portanto, poderiam representar  o  pâncreas  endócrino.  Na  sequência  (em  1886),  von  Mering  e  Minkowski  alcançam  sucesso  na  cirurgia  de extirpação do pâncreas de um cão, demonstrando a imediata perda da homeostase da glicose (pois ocorria hiperglicemia) e evidenciando  que  o  fator  humoral  que  participava  desse  controle  era  de  origem  pancreática.  No  século  XX,  Frederick Banting e Charles Best isolaram e caracterizaram o hormônio insulina, pelo que foram laureados com o Prêmio Nobel de Fisiologia  e  Medicina,  em  1923.  (Comentários  adicionais  a  respeito  de  Claude  Bernard  são  feitos  na  parte  inicial  deste livro – Uma Breve História da Fisiologia, em Claude Bernard: o fundador da fisiologia moderna.) A  investigação  dos  hormônios  pancreáticos,  especialmente  da  insulina,  trouxe  grande  contribuição  ao  conhecimento sobre  o  DM,  assim  como  proporcionou  tratamento  aos  portadores  dessa  doença,  permitindo  a  sua  sobrevivência  com  a terapia de reposição do hormônio. Entretanto, na segunda metade do século XX, ocorreu enorme crescimento na incidência de  DM,  e  nessa  evolução  observou­se  que  o  número  de  indivíduos  que  desenvolvem  o  DM  por  falência  pancreática primária  permanece  relativamente  baixo  (não  mais  que  10%  dos  portadores  da  doença).  A  compreensão  da  perda  da homeostase glicêmica na grande maioria dos portadores de DM, que a princípio produzem o hormônio, adveio da evolução do conhecimento sobre o mecanismo de ação do hormônio, quando então se percebeu que um número crescente de pessoas

desenvolve  ao  longo  da  vida  um  estado  de  resistência  à  ação  da  insulina.  Assim,  os  mecanismos  que  envolvem  tanto  os eventos  localizados  no  receptor  hormonal  quanto,  principalmente,  aqueles  chamados  de  pós­receptor,  vêm  sendo intensivamente  investigados,  visando  a  contribuir  para  o  conhecimento  do  DM  e  de  futuras  medidas  preventivas  e/ou terapêuticas. Dessa  maneira,  este  capítulo  aborda  de  início  o  conhecimento  sobre  a  produção  pancreática  de  hormônios  e,  depois, seus  mecanismos  de  ação,  focalizando  principalmente  a  insulina,  por  ser  o  principal  fator  endócrino  regulador  da homeostase  da  glicose.  Além  disso,  são  comentados  os  efeitos  biológicos  dos  hormônios  pancreáticos,  com  especial atenção  para  as  suas  interações  nos  estados  fisiológicos,  aspectos  complementados  com  os  mecanismos  bioquímicos  do metabolismo  intermediário  (apresentados  no  Capítulo  74,  Controle  Hormonal  e  Neural  do  Metabolismo  Energético). Finalmente,  são  discutidas  as  bases  fisiopatológicas  das  principais  disfunções  endócrinas  que  envolvem  os  hormônios pancreáticos.

PÂNCREAS ▸ Origem e diferenciação A formação do pâncreas no embrião humano inicia­se a partir de um primeiro brotamento dorsal e um segundo ventral do  intestino  primitivo,  entre  a  quarta  e  a  sétima  semanas  do  desenvolvimento.  Essas  duas  estruturas  se  unem,  sendo inicialmente  constituídas  por  um  sistema  de  túbulos  e  ácinos  contendo  células  protodiferenciadas,  que  vão  originar  as células endócrinas agrupadas. Esses agrupamentos são envoltos por uma membrana basal, e capilares são formados dando origem  às  primeiras  ilhotas  pancreáticas.  As  células  protodiferenciadas  também  originam  as  células  exócrinas  e,  em determinadas  situações,  podem,  no  adulto,  dar  lugar  à  neoformação  insular.  No  pâncreas  fetal,  a  massa  total  das  ilhotas corresponde a aproximadamente 10% da massa total do órgão, enquanto no adulto esse valor cai para apenas 1 a 2%. As células das ilhotas, no ser humano, são capazes de se duplicar e aumentar a massa de tecido endócrino até por volta da maturidade, quando então a atividade mitótica cai a valores muito baixos.

▸ Ilhotas pancreáticas A primeira alusão ao tecido insular pancreático foi feita em 1869 por Paul Langerhans, que descreveu aglomerados de células formando estruturas arredondadas ou ovoides, dispersas no tecido acinar pancreático. Essas estruturas chegaram à literatura  com  o  nome  de  ilhotas  de  Langerhans  ou  simplesmente  ilhotas  pancreáticas  (Figura  70.1).  Verificou­se posteriormente,  em  roedores,  que  tais  estruturas  eram  constituídas  por  pelo  menos  quatro  tipos  de  células:  as  A  ou  α, dispostas  perifericamente  formando  um  revestimento  das  ilhotas  e  perfazendo,  em  média,  25%  do  total  das  células  da ilhota, sendo responsáveis pela síntese e secreção de glucagon; as B ou β, produtoras e secretoras de insulina, ocupando a parte  central  da  ilhota  e  compondo  o  núcleo  desta,  perfazendo,  em  média,  60%  do  número  total  de  células;  as  D  ou  δ, produtoras de somatostatina, em torno de 10% das células da ilhota, localizadas mais na periferia e próximo a capilares; as F ou PP, produtoras do polipeptídio pancreático, que ocupam em torno de 5% da massa celular e têm a mesma distribuição das células D. Recentemente demonstrou­se que nos primatas a distribuição das células das ilhotas é aleatória com menor diferença porcentual entre as células B e A. Na maioria das espécies animais, inclusive a humana, encontramos de 1 a 2 milhões de ilhotas dispersas pelo tecido acinar, perfazendo aproximadamente 2% do peso total do órgão. A irrigação das ilhotas  é  centrífuga,  sendo  as  células  B  as  primeiras  a  receberem  o  sangue  arterializado  que  depois  irriga  a  periferia  da ilhota.  Entretanto,  como  nos  primatas  a  distribuição  das  células  das  ilhotas  é  aleatória  (sem  o  acúmulo  de  células  B  na parte  central  da  ilhota),  não  ocorre  a  irrigação  centrífuga,  como  observada  nos  roedores.  As  ilhotas  pancreáticas  são ricamente  inervadas  tanto  por  fibras  provindas  do  sistema  nervoso  simpático  como  do  parassimpático.  Norepinefrina, acetilcolina, peptídio intestinal vasoativo (VIP), galanina e GABA já foram identificados como mediadores químicos nas ilhotas.

Figura 70.1 ■ Distribuição das diferentes células da ilhota pancreática (ilhota de Langerhans).

▸ Insulina Síntese A  insulina  humana  é  um  hormônio  peptídico  constituído  por  duas  cadeias  de  resíduos  de  aminoácidos  e  com  peso molecular de 5.808 kDa. Em humanos, é expressa por um gene localizado no braço curto do cromossomo 11 das células B das  ilhotas  pancreáticas.  A  cadeia  A  contém  21  resíduos  de  aminoácidos  e  é  interligada  por  duas  pontes  dissulfeto  entre resíduos  de  cisteína  à  cadeia  B,  que  dispõe  de  30  resíduos  de  aminoácidos.  Uma  terceira  ponte  de  dissulfeto  liga  outros dois resíduos de cisteína pertencentes à própria cadeia A. A  síntese  da  insulina  inicia­se  no  retículo  endoplasmático  rugoso  (RER),  constituindo­se  inicialmente  a  pré­ proinsulina,  contendo  cadeia  única  de  aminoácidos  que,  após  perder  o  peptídio  sinal  que  dispõe  de  23  resíduos  de aminoácidos,  origina  a  proinsulina,  composta  por  86  resíduos  de  aminoácidos  dispostos  inicialmente  em  cadeia  única. Durante o transporte dessa molécula através do complexo de Golgi para ser empacotada na forma de grânulo, a proinsulina dá origem à insulina e ao peptídio conector (peptídio C), que conecta as agora formadas cadeias A e B (Figura 70.2). Nos grânulos prontos para a secreção, as moléculas de insulina se agregam, formando um exâmero estabilizado por dois íons zinco. Além da insulina e peptídio C, o grânulo contém várias outras proteínas e peptídios. Como  ocorre  com  outros  hormônios  peptídicos,  a  insulina  permanece  armazenada  até  que  um  estímulo  deflagre  sua exocitose do grânulo.

Secreção O  processo  de  secreção  de  insulina  pelas  células  B,  resumido  na  Figura  70.3,  é  bastante  complexo,  tendo  como estímulo  mais  importante  a  concentração  da  glicose  no  interstício,  que  varia  em  paralelo  à  concentração  do  substrato  no sangue.  Essa  substância  é  transportada  através  da  membrana  das  células  B  pelo  GLUT2,  que  tem  baixa  afinidade  pela glicose, mas alta capacidade de transporte, com um Km em torno de 15 a 20 mM. Uma vez no interior das células B, ela é rapidamente  metabolizada,  dando  inicialmente  origem  à  glicose­6­fosfato,  pela  ação  da  hexoquinase,  quando  a concentração de glicose no meio é baixa. Na presença de altas concentrações do açúcar, a enzima mais importante passa a ser a glicoquinase, visto que o fator limitante para a metabolização da glicose é a sua fosforilação. Assim, a glicoquinase, que  dispõe  de  baixa  afinidade,  porém  alta  capacidade  enzimática,  funciona  como  um  sensor  da  concentração  desse carboidrato  nas  células  B,  regulando  a  secreção  de  insulina  de  acordo  com  a  demanda.  Ressalte­se  que  mutações  dessa enzima, alterando a sua eficiência, levam a um quadro de diabetes tipo 2 denominado MODI 2 (ver adiante). A posterior metabolização  da  glicose  conduz  à  formação  de  ATP  e  aumenta  a  relação  ATP/ADP,  que  diminui  a  probabilidade  de abertura dos canais de potássio ATP­dependentes (KATP). Esses canais são proteínas de alto peso molecular que, quando não  ativados,  permitem  a  livre  movimentação  de  cátions  através  da  membrana  celular,  mantendo  um  potencial  de

membrana em torno de –70 mV. A ligação do ATP às subunidades específicas desses canais promove o seu fechamento, com  consequente  retenção  de  K+  no  interior  das  células  e  despolarização  parcial  da  membrana.  Atingido  o  limiar  de despolarização  dos  canais  de  cálcio  sensíveis  à  voltagem  (CCSV),  em  particular  os  do tipo L (ver Capítulo  10,  Canais para Íons nas Membranas Celulares), estes aumentam a probabilidade de abertura, permitindo maciça entrada de Ca2+ a favor  de  seu  gradiente  eletroquímico  e  desencadeamento  de  um  potencial  de  ação.  Ocorre  rápido  acúmulo  de  cálcio próximo  à  face  interna  da  membrana.  Como  acontece  em  outros  tecidos,  as  células  B  expressam  adenilciclase  (AC), fosfolipase  C  (PLC),  fosfolipase  A2  (PLA2)  e  fosfolipase  D  (PLD),  todas  enzimas  ancoradas  à  membrana,  que  são ativadas por estímulos via receptores acoplados às proteínas G e por aumento da concentração do Ca2+ citosólico. Assim, o  acúmulo  do  Ca2+  nas  proximidades  da  membrana  favorece  a  ativação  destas  enzimas,  induzindo  a  formação  de mensageiros citoplasmáticos, como, por exemplo, as proteinoquinases (PK) (ver Capítulo 3, Sinalização Celular). A AC promove  a  geração  de  cAMP,  que  ativa  a  proteinoquinase  A  (PKA).  A  PLC  atuando  sobre  componentes  do  ciclo  dos fosfatidilinositóis  induz  a  constituição  de  1,4,5­trifosfato  de  inositol  (IP3)  e  diacilglicerol  (DAG).  Este  último,  por  sua vez,  ativa  a  proteinoquinase  C  (PKC).  A  PLA2  aumenta  a  formação  de  ácido  araquidônico,  que  dá  origem  às prostaglandinas,  que  inibem  a  secreção  de  insulina,  e  aos  leucotrienos,  que  a  estimulam.  Por  último,  a  PLD  leva  à composição  de  ácido  fosfatídico,  que  facilita  a  entrada  de  Ca2+  pela  membrana  por  desenvolver  atividade  ionófora. Existem evidências de que a PKA e a PKC elevam o número e a responsividade dos CCSV, intensificando a entrada de Ca2+ a partir do meio extracelular. O IP3, provocando a abertura de canais de Ca2+ do RE, leva a um aumento ainda maior da concentração citosólica de Ca2+. Esse aumento, por sua vez, facilita a união dos íons cálcio a quatro locais específicos de  uma  proteína  citoplasmática,  a  calmodulina  (CaM),  formando  a  Ca2+­CaM,  que,  por  seu  turno,  ativa  uma proteinoquinase  dependente  de  calmodulina  (PK  dependente  de  CaM).  A  PK  dependente  de  CaM,  a  PKC  e  a  PKA induzem a fosforilação de diferentes componentes do citoesqueleto, favorecendo a ativação dos mecanismos que redundam na exocitose dos grânulos de insulina.

Figura 70.2 ■ A. Sequência da conversão da proinsulina humana em insulina que ocorre durante o processo de maturação dos grânulos. B. Esquema da formação, transporte e exocitose dos grânulos de insulina. Descrição no texto. (Adaptada de Cingolani e Houssay, 2004.)

Figura 70.3 ■ Esquema representativo dos fenômenos bioquímicos envolvidos no processo de secreção de insulina.

É importante destacar que todas as substâncias já citadas são de grande importância para o mecanismo de secreção de insulina. Porém, note­se que são coadjuvantes ao aumento da concentração de Ca2+ no citosol, que é fundamental para a indução  da  ativação  das  proteínas  do  citoesqueleto  envolvidas  no  mecanismo  de  exocitose,  sem  o  qual  não  ocorre  o fenômeno secretório. Deve  ser  lembrado  ainda  que,  nas  proximidades  da  membrana  citoplasmática  das  células  B  e  a  ela  conectada,  existe uma  fina  rede  de  microfilamentos  de  actina  que  desempenham  papel  fundamental  no  processo  de  secreção  de  insulina, regulando a passagem dos grânulos do citosol para o meio extracelular. Muitos  outros  fatores  modulam  a  secreção  de  insulina,  interferindo  nos  mecanismos  anteriormente  descritos  para  a glicose.  Entre  eles,  podemos  citar  os  metabólitos  como  aminoácidos  e  ácidos  graxos,  o  sistema  nervoso  autônomo  e vários outros hormônios circulantes. Os  aminoácidos  são  importantes  para  o  processo  de  secreção  de  insulina  pelas  células  B  e,  na  maioria  das  vezes, elevam a secreção do hormônio, ou por serem metabolizados, ou por ativarem o metabolismo de substâncias energéticas, com consequente aumento da produção de ATP e ativação dos mecanismos previamente descritos. Os  ácidos  graxos,  principalmente  os  saturados,  como  o  palmitato  e  o  estearato,  são  potencializadores  da  secreção  de insulina.  Esse  efeito,  no  entanto,  é  nítido  após  exposição  aguda  de  ilhotas  isoladas  a  esses  metabólitos,  desde  que  haja glicose no meio. Depois de algumas horas, os ácidos graxos passam a ser tóxicos, levando ao que se conhece clinicamente como lipotoxicidade. O  sistema  nervoso  autônomo  desempenha  importante  papel  na  regulação  da  secreção  de  insulina.  A  acetilcolina secretada pela estimulação da inervação parassimpática age em receptor Gq ativando a PLC e, como já descrito, culmina

com o aumento da formação de IP3 e  PKC,  facilitando  ou  potencializando  o  desencadeamento  do  processo  secretório  de insulina, dependendo da concentração de glicose presente no meio. A  epinefrina  circulante  e  a  norepinefrina  secretada  pelas  terminações  nervosas  adrenérgicas  inibem  a  secreção  de insulina, por ativar uma proteína Gi inibidora da AC, com consequente diminuição da ativação da PKA. Há evidências de que essa mesma proteína Gi reduza a ativação dos canais CCSV. Vários hormônios agem sobre as células B e participam ativamente da regulação da secreção da insulina. Os principais deles e seus efeitos são descritos a seguir. A insulina secretada pelas células B das ilhotas pancreáticas passa, através da circulação êntero­hepática, diretamente para  o  fígado,  onde  mais  de  50%  do  total  secretado  é  degradado  por  insulinases  específicas.  Os  rins  retiram aproximadamente  40%  da  quantidade  total  da  insulina  que  atinge  o  órgão  em  uma  primeira  circulação.  A  insulina circulante normalmente não se liga a outras substâncias, permanecendo na forma livre e apresentando meia­vida em torno de 5 min.

Regulação da secreção de insulina A  regulação  da  secreção  de  insulina  é  feita  fundamentalmente  pela  glicose  circulante.  De  modo  bastante  resumido, pode  ser  dito  que  o  aumento  da glicemia  (nível  de  glicose  no  plasma)  causa  elevação  da  secreção  de  insulina,  a  qual, agindo nos diferentes tecidos do organismo, eleva o transporte de glicose para os mesmos tecidos, diminuindo a glicemia. Com a redução desta, desaparece o estímulo secretório e consequentemente decresce a secreção do hormônio. Estabelece­ se  assim  um  mecanismo  regulador  importantíssimo  dos  valores  glicêmicos,  fundamental  para  a  manutenção  da homeostase. O  teste  de  tolerância  à  glicose  (GTT)  ilustra  prática  e  claramente  o  mecanismo  já  descrito  (Figura  70.4).  Para  a execução do GTT, após um jejum de 12 h o paciente ingere glicose na dose fixa de 75 g. Antes de ele ingeri­la, obtém­se uma amostra de sangue para a dosagem da chamada glicemia basal. Depois da ingestão, a cada 30 min vão sendo colhidas sucessivas amostras sanguíneas para a dosagem da glicemia. Dessa maneira, é obtida uma curva da variação da glicemia ao longo do tempo, como mostrado na Figura 70.4. Como  descrito  anteriormente,  além  da  glicose,  outros  substratos,  hormônios  e  o  sistema  nervoso  interferem  nos mecanismos  secretórios  de  insulina  e,  portanto,  participam  da  regulação  da  sua  secreção.  Destacamos  inicialmente a  participação  do  sistema  nervoso  autônomo,  que  ativamente  modula  a  secreção  da  insulina.  Podemos  tomar  como exemplo a chamada fase cefálica da secreção de insulina, que ocorre antes do início de uma alimentação. O aroma de um determinado alimento provoca um reflexo condicionado que determina intensa estimulação vagal. A acetilcolina secretada pelas  terminações  nervosas  parassimpáticas  nas  ilhotas  induz,  como  já  descrito,  à  formação  de  PKC,  que  neste  caso “sensibiliza” as células B para uma resposta secretória mais eficiente quando do aumento da concentração de nutrientes­ secretagogos  provindos  da  “suposta”  alimentação.  Outro  exemplo  importante  é  a  estimulação  adrenérgica  que  ocorre  em estados  de  alerta:  neste  caso,  a  norepinefrina  secretada  pelos  nervos  simpáticos  age  nas  células  B  causando  inibição  da secreção de insulina, propiciando assim aumento da glicose plasmática necessária para a reação do indivíduo, envolvendo sempre maior atividade muscular e nervosa. Vários hormônios participam da modulação da secreção de insulina. Alguns atuam diretamente nas células B, como o glucagon e a somatostatina (secretados pela própria ilhota). Outros, como o cortisol e o GH, agem elevando a resistência periférica à insulina; consequentemente, há crescimento da concentração da glicose circulante, o que conduz a um aumento da secreção de insulina. Os hormônios gastrintestinais, como GLP­1 (glucagon­like peptide 1), secretina, colecistoquinina, gastrina e GIP (gastro­intestinal peptide), estimulam a secreção de insulina, sendo os responsáveis pelo maior aumento da secreção do hormônio logo depois da ingestão do alimento, antes mesmo de sua absorção.

Figura 70.4 ■ Curvas típicas do teste de tolerância à glicose (GTT) em indivíduos: normais, com rápida absorção intestinal de glicose ou com doença hepática.

▸ Glucagon Síntese O glucagon humano é um hormônio peptídico (29 resíduos de aminoácidos) com peso molecular de 3.485 kDa (Figura 70.5), produzido nas células A das ilhotas pancreáticas, constituído por uma única cadeia de resíduos de aminoácidos. O gene do pró­glucagon está localizado no cromossomo 2 humano e se expressa não apenas na célula A pancreática, mas também em células do intestino delgado. Após a transcrição do gene, o seu mRNA é traduzido no RER, formando­se inicialmente  o  pré­pró­glucagon,  que  origina  o  pró­glucagon  (160  resíduos  de  aminoácidos).  Durante  o  transporte  dessa molécula através do complexo de Golgi para ser empacotada no grânulo, o pró­glucagon é clivado, dando origem a várias sequências peptídicas, entre as quais o glucagon que permanece armazenado até que a exocitose seja deflagrada. O sistema enzimático de clivagem do pró­glucagon difere entre as células A e as do intestino, de maneira que distintos produtos são gerados  de  acordo  com  o  local  em  que  o  gene  se  expressa,  muitos  deles  ainda  de  atividade  biológica  desconhecida.  Na célula A, o glucagon é o principal produto biologicamente ativo; entretanto, em células intestinais, geram­se a glicentina e os GLP­1 e 2. Estudos mais recentes indicam que a secreção de GLP­1 e GLP­2 cresce após a refeição, e estes hormônios têm  sido  relacionados  tanto  com  a  modulação  da  secreção  de  insulina,  como  com  o  controle  metabólico­energético  do organismo.

Secreção Como acontece com a insulina, o principal estímulo regulador da secreção de glucagon é a glicemia. Porém, o aumento da  concentração  de  glicose  no  sangue  inibe  a  secreção  do  glucagon,  que  tem  a  sua  supressão  máxima  quando  os  valores glicêmicos chegam próximos de 200 mg/dℓ. As maiores concentrações sanguíneas de glucagon ocorrem quando a glicemia está em torno de 50 mg/dℓ. Há evidências de que a elevação da glicemia faz esta regulação secundariamente à secreção da insulina,  que  reconhecidamente  é  um  potente  inibidor  da  secreção  do  glucagon.  No  entanto,  dados  mais  recentes  deixam claro que, do mesmo modo que as células B, as A expressam canais KATP, e o aumento do metabolismo da glicose leva à diminuição da probabilidade de abertura desses canais e à despolarização dessas células. A diferença reside no fato de as células A não terem canais de cálcio do tipo L tão eficientes como os das células B. Na realidade, a atividade elétrica das células A depende da abertura de pelo menos três diferentes canais iônicos: dos canais de Ca2+ do  tipo  T,  dos  canais  de Na+ dependentes  de  voltagem,  e  dos  canais  retificadores  de  K+ do  tipo  A.  Todos  são  desativados  quando  o  potencial  de membrana se eleva até próximo de –50 mV. Portanto, quando as células A são despolarizadas pela ação da glicose sobre os KATP, o potencial de membrana vai acima de –50 mV, reduzindo a probabilidade de abertura desses canais, diminuindo assim o influxo de Ca2+ e, consequentemente, a secreção do hormônio.

Regulação da secreção

Muitos fatores interferem na secreção de glucagon. Entre eles, podemos citar: sistema nervoso autônomo, hormônios, ácidos graxos e aminoácidos (Quadro 70.1).

▸ Somatostatina Síntese A somatostatina (SS) é um hormônio sintetizado nas células D das ilhotas pancreáticas, composto por uma sequência de 14 resíduos de aminoácidos dispostos em uma única cadeia, com peso molecular de 1.640 dáltons. O gene da pró­somatostatina está localizado no cromossomo 3 e codifica uma proteína precursora de 116 aminoácidos, que, por processamento pós­traducional (ou clivagem), gera a somatostatina (que inclui a sequência carboxílica terminal). Ele foi identificado primeiramente no hipotálamo, onde se observou que o hormônio gerado era capaz de inibir a secreção do  GH  hipofisário  (ou  somatotrofina),  daí  a  origem  do  nome.  Semelhante  ao  gene  do  pró­glucagon,  o  gene  da  pró­ somatostatina  é  transcrito  em  diferentes  locais  do  organismo  (algumas  áreas  do  sistema  nervoso  central,  sistema digestório e pâncreas) com processamentos pós­traducionais distintos. Duas somatostatinas biologicamente ativas podem ser  geradas:  SS­14  (com  14  aminoácidos  carboxiterminal)  e  SS­28  (formada  pela  SS­14  mais  14  aminoácidos  da sequência aminoterminal da pró­somatostatina). O pâncreas secreta exclusivamente SS­14; o SNC, preferencialmente SS­ 14;  o  intestino,  preferencialmente  SS­28.  A  SS­28  é  muito  mais  potente  como  inibidora  do  GH,  enquanto  a  SS­14,  bem mais potente como inibidora do glucagon e da insulina.

Secreção Recentemente, foram identificados canais KATP nas  células  D  que  respondem  ao  aumento  do  metabolismo  da  glicose nestas células. Assim, a resposta secretória de somatostatina é bastante similar àquela descrita para a insulina, pelo menos no que concerne aos eventos iônicos relacionados com os canais KATP.

Quadro 70.1 ■ Fatores reguladores da secreção de glucagon. Estimuladores

Inibidores

Aminoácidos (alanina, serina, glicina, cisteína e treonina)

Glicose

CCK, gastrina

Somatostatina

Cortisol

Secretina

Estresse

AGL

β­adrenérgicos

Insulina

Acetilcolina

α­adrenérgicos



GABA

Figura 70.5 ■ Representação esquemática da sequência de aminoácidos do glucagon suíno.

▸ Polipeptídio pancreático Trata­se de um polipeptídio formado por 36 resíduos de aminoácidos, tendo sua secreção aumentada pela acetilcolina e infusão  intravenosa  de  mistura  de  aminoácidos.  Sua  função  ainda  não  foi  esclarecida,  acreditando­se  que  disponha  de algumas ações parácrinas.

▸ Inter­relações dos hormônios da ilhota pancreática

Atualmente, considera­se certo que um determinado hormônio secretado pela ilhota interfira sobre outro secretado pela mesma  ilhota.  É  evidente  a  presença  de  junções  do  tipo  gap  entre  as  diferentes  células  secretoras  que  constituem  as ilhotas,  havendo,  portanto,  troca  de  íons  e  outras  substâncias  entre  elas.  É  notório  que  a  insulina  inibe  a  secreção  de glucagon,  enquanto  este  estimula  a  secreção  de  insulina  e  de  somatostatina.  Já  a  somatostatina  inibe  a  secreção  de glucagon,  de  insulina  e  do  polipeptídio  pancreático.  Em  ilhotas  isoladas  de  ratos,  foi  verificado  que  a  inibição  da expressão  de  somatostatina  favorece  a  resposta  secretória  das  células  B  à  glicose.  Apesar  dessas  e  de  outras  evidências, não há ainda uma ideia consistente sobre a interação fisiológica que ocorre entre as células A, B, D e F. Finalmente,  é  preciso  ressaltar  que  a  circulação  sanguínea  particular  da  ilhota  pancreática,  observada  em  algumas espécies  animais,  como  nos  roedores  (mas  não  nos  primatas),  determina  um  importante  controle  na  secreção  de  seus hormônios. Como a primeira região a ser irrigada pelo sangue arterial que chega à ilhota é a região central, rica em células B, a concentração de insulina eleva­se muito no sangue que perfunde essa região, que posteriormente irá irrigar a periferia da  ilhota,  local  onde  se  localizam  as  células  A  produtoras  de  glucagon.  Portanto,  existe  um  efeito  tônico  inibitório  da insulina sobre a secreção de glucagon.

MECANISMO DE AÇÃO DOS HORMÔNIOS PANCREÁTICOS O mecanismo de ação do hormônio glucagon envolve o seu receptor de membrana nas células­alvo, uma proteína de sete domínios transmembrânicos, a qual está associada à proteína G estimulatória (Gs). Este é um clássico mecanismo de ação que opera principalmente por aumento da concentração intracelular de cAMP. Entretanto, estudos mais recentes não descartam  a  possibilidade  de  que  mecanismos  secundários,  utilizando  outros  segundos  mensageiros,  possam  também participar como efetores de algumas ações do glucagon. A somatostatina pode ligar­se, com afinidade variável, em cinco isoformas  de  receptor,  designadas  como  SSTR1­5,  e  com  distribuição  tecidual  específica.  Os  SSTR  são  proteínas  com sete domínios transmembrânicos, associadas à proteína G inibitória (Gi), e a ligação do hormônio ao receptor determina redução na concentração intracelular de cAMP, podendo ainda promover ativação de fosfatases. Já o mecanismo de ação da insulina é uma área de conhecimento em contínua expansão, envolvendo muitas proteínas transdutoras  do  sinal  insulínico,  cuja  importância  no  desenvolvimento  de  alterações  fisiológicas  está  claramente demonstrada.  Assim,  passamos  agora  a  comentar  o  conjunto  de  mecanismos  envolvidos  na  ação  da  insulina  e  que  são designados como etapas iniciais da sinalização insulínica.

SINALIZAÇÃO TECIDUAL DA INSULINA Para exercer seus efeitos biológicos, a insulina se liga a um receptor específico expresso em vários tecidos, incluindo músculo,  fígado,  coração,  tecido  adiposo,  células  endoteliais,  neurônios,  entre  outros.  Os  efeitos  mediados  pela  insulina são tecido­específicos e incluem: aumento da captação de glicose, principalmente nos tecidos muscular e adiposo; aumento da síntese de proteínas, ácidos graxos e glicogênio; bem como bloqueios da produção hepática de glicose (via diminuição da  gliconeogênese  e  glicogenólise),  da  lipólise  e  da  proteólise.  Além  disso,  a  insulina  exerce  efeitos  na  expressão  de genes, proliferação e diferenciação celulares. Outras ações da insulina incluem o aumento da produção de óxido nítrico no endotélio, a prevenção de apoptose, a promoção da sobrevida celular e o controle da expressão de neuropeptídios ligados ao balanço energético no hipotálamo.

▸ Receptor da insulina e seus substratos O receptor de insulina (IR) pertence a uma família de receptores tirosinoquinase (RTK) que inclui o IGF1R (insulin growth  factor­1  receptor)  e  um  receptor  órfão  conhecido  como  IRR  (IR­related  receptor).  O  IR  é  uma  proteína tetramérica  formada  por  duas  subunidades  α  e  duas  subunidades  β,  em  que  a  subunidade  α  inibe  a  atividade tirosinoquinase  da  subunidade  β.  Quando  a  insulina  se  liga  à  subunidade  α  do  IR,  permite  que  a  subunidade  β  adquira atividade  quinase,  levando  à  alteração  conformacional  e  autofosforilação  do  receptor  nas  subunidades  β  em  múltiplos resíduos de tirosina (1158, 1162, 1163), o que implementa sua atividade quinase (Figura 70.6). Uma vez fosforilado em tirosina,  o  IR  torna­se  ativado,  promovendo  a  fosforilação  em  tirosina  de  substratos  proteicos  intracelulares.  Vários substratos  do  IR  já  foram  descritos,  incluindo  Shc,  Gab­1,  Cbl  (Casitas  B­lineage  lymphoma  proto­oncogene)  e,  de importância  crucial,  a  família  dos  substratos  do  receptor  de  insulina,  conhecidos  pela  sigla  IRS  (insulin  receptor substrate). Os IRS­1 (ver Figura 70.6) e 2 têm funções fisiológicas mais relevantes em relação ao controle glicêmico. A

fosforilação  em  tirosina  das  proteínas  IRS,  principalmente  nas  sequências  YMXM  e  YXXM  (em  que  Y  é  tirosina,  M  é metionina e X representa qualquer aminoácido), cria locais de reconhecimento para moléculas que contêm domínios com homologia a Src 2 (SH2), dentre as quais se destaca a PI3q (fosfatidilinositol 3­quinase).

▸ Via PI3q/AKT A ativação da PI3q em resposta à insulina é uma etapa da sinalização considerada crucial para os efeitos fisiológicos da insulina. A PI3q é uma enzima formada por uma subunidade regulatória (p85) e uma subunidade catalítica (p110). A subunidade p85 possui o domínio SH2 que reconhece os sítios de tirosina fosforilados nos IRS, promovendo a ativação da subunidade p110 da PI3q. É importante destacar que os IRS­1 e 2 se ligam e ativam a PI3q, mas não a fosforilam (esses substratos  do  receptor  de  insulina  não  têm  atividade  quinase).  Uma  vez  ativada,  a  PI3q  catalisa  a  fosforilação  de fosfolipídios  de  membrana,  promovendo  a  fosforilação  na  posição  3  do  4,5­bifosfato  de  fosfatidilinositol  (PIP2), convertendo­o  em  3,4,5­trifosfato  de  fosfatidilinositol  (PIP3).  Este  último  produto  liga­se  a  PDK­1  (phosphoinositide­ dependent kinase 1), uma serina/treoninoquinase que fosforila o resíduo treonina 308 da proteinoquinase B (PKB ou Akt), sendo essa uma das etapas importantes para a ativação da Akt. Entretanto, para a plena ativação da Akt, é necessário que seu  resíduo  serina  473  também  seja  fosforilado,  o  que  é  mediado  pelo  complexo  proteico  2  denominado  mTORC2 (ver Figura 70.6) pertencente à via da mTOR (mammalian target of rapamycin), que será descrita a seguir.

Figura  70.6  ■   Sinalização  de  insulina.  Após  a  ligação  da  insulina  ao  seu  receptor  (IR),  ocorrem  autofosforilação  do  IR  em múltiplos  resíduos  tirosina,  fosforilação  em  tirosina  dos  substratos  do  receptor  de  insulina  (IRS)  e  sua  associação  com  a fosfatidilinositol  3­quinase  (PI3q);  ocorre  a  ativação  da  proteinoquinase  B  (Akt)  envolvendo  as  quinases  PDK1 (phosphoinositide­dependent kinase 1) e mTORC2. São descritas as vias ligadas à ativação da sinalização da insulina: via da mTOR (mammalian target of rapamycin), que, por meio do seu complexo proteico mTORC1, está ligada ao aumento da síntese proteica, de lipídios e de nucleotídios, ou por meio do seu complexo proteico mTORC2 está ligada ao aumento da sobrevida e proliferação celular; via da Akt/Foxo1, que está ligada à redução da produção hepática de glicose; via da Akt/Foxa2, que está ligada à redução da oxidação de ácidos graxos e da produção de corpos cetônicos; via PI3q/SREBP1 c/ACC, que está ligada ao aumento  da  síntese  de  ácidos  graxos;  via  IR/CAP/Cbl  e  vias  PI3q/aPKC  e  PI3q/AS160,  que  estão  ligadas  ao  aumento  da captação de glicose envolvendo o transportador de glicose (GLUT4); e, por fim, via da MAPK (mitogen­activated protein kinase), que  envolve  a  fosforilação  do  IR/Shc/Grb2,  ativando  as  MEK/ERK  (extracellular  signal  regulated  kinase)  para  aumentar  a proliferação e crescimento celular. mTORC1, mTOR complex 1; mTORC2, mTOR complex 2; TSC, tuberous sclerosis complex 1 and 2; G­Rheb, Ras homologue enriched in brain; aPKC,  isoformas  atípicas  da  proteinoquinase  C; AS160,  GTPase  activating protein; Cbl, Casitas B­lineage lymphoma proto­oncogene; CAP, Cbl­associated protein; TC10,  small  GTP  binding  protein;  C3

G,  guanine  nucleotide  exchange  factor;  Crk,  chicken  tumor  virus  regulator  of  kinase;  Shc,  src  homology  and  collagen protein;  SOS,  Son  of  Sevenless;  Grb2,  growth  factor  receptor­bound  protein  2;  GSK3,  glycogen  synthase  kinase 3;  FoxO1,  forkhead  box­containing  gene  O1;  SREBP1  c,  sterol  regulatory  element  binding  protein  1  c;  ACC,  acetil­CoA carboxilase; Foxa2, forkhead box protein A2.

▸ Vias de crescimento estimuladas pela insulina Similar a outros fatores de crescimento, a insulina ativa vias de crescimento celular como a via mTOR e a via MAPK (mitogen­activated protein kinase). A  mTOR  é  descrita  como  uma  quinase  de  resíduos  serina  e  treonina,  tem  aproximadamente  289  kDa  e  forma  a subunidade  catalítica  de  dois  complexos  proteicos  distintos,  conhecidos  como  mTORC1  e  mTORC2.  O  mTORC1  é  o complexo que inclui a proteína Raptor (regulatory associated protein of mTOR) e é sensível à rapamicina. No momento em que a Akt é fosforilada pela PDK1, inicia­se a fosforilação de TSC2 (tuberous sclerosis complex 1 and 2) em serina e treonina, inativando a proteína G­Rheb (Ras homologue enriched in brain), culminando na ativação do mTORC1. Foram descritas  várias  funções  para  o  complexo  mTORC1;  dentre  essas,  alterações  no  metabolismo,  tradução  de  mRNA  e de turnover proteico. Em relação à síntese proteica, é importante destacar que o mTORC1 fosforila e ativa a proteína S6 K1  (70  kDa  ribosomal  protein  S6  kinase)  e  também  fosforila  e  promove  a  dissociação  entre  o  4EBP  (eukaryotic translation initiation factor 4B Binding Protein) e o eIF4E, sinais estes que vão promover o início da tradução de mRNA. O mTORC2 é formado por Rictor (rapamycin­insensitive companion of mTOR) e não possui sensibilidade à rapamicina. Como  descrito  anteriormente,  mTORC2  fosforila  a  Akt  em  serina  473  que,  em  paralelo  à  fosforilação  em  treonina  308, induzida  pela  PDK1,  produz  plena  ativação  da  Akt.  Paralelamente  a  essa  função,  mTORC2  também  regula  a  família  de proteinoquinases C (PKC) envolvidas no controle do remodelamento do citoesqueleto e da migração celular (Figura 70.7). Outra  via  de  crescimento  estimulada  pela  insulina  é  a  via  MAPK.  A  ativação  da  via  MAPK  inicia­se  com  a fosforilação  de  proteínas  que  são  substratos  do  receptor  de  insulina,  como  IRS1  e  Shc.  Estas  se  ligam  e  ativam  o complexo  Grb2/SOS,  que  ativa  a  Ras  e  a  cascata  da  MAPK,  incluindo  MEK/ERKs  (extracellular  signal  regulated kinase). Para que haja uma transmissão adequada do sinal, os componentes da MAPK devem estar colocalizados na célula. As  ERK1/2,  também  conhecidas  como  p44/p42  MAPK,  são  consideradas  os  principais  controladores  das  respostas mitogênicas  induzidas  pela  insulina  devido  à  regulação  da  expressão  de  diversos  genes  (ver Figura  70.6).  Em  algumas doenças  que  cursam  com  resistência  à  insulina,  a  via  da  MAPK  pode  estar  superativada  nas  artérias,  ao  passo  que  a  via PI3q/Akt  pode  estar  desativada,  favorecendo  uma  desregulação  na  produção  de  óxido  nítrico  e  contribuindo  para  o desenvolvimento de aterosclerose associada a resistência à insulina.

Figura 70.7 ■ Mecanismos de resistência à insulina na obesidade. A alteração da microbiota intestinal, culminando na maior absorção  de  LPS  (lipopolissacarídios)  e  a  infiltração  de  células  no  estroma  vascular  do  tecido  adiposo,  destacando  os macrófagos com fenótipo M1, desencadeiam uma inflamação subclínica, levando à resistência à insulina tecidual. No fígado e no músculo, essa resistência à insulina é caracterizada pela redução da ativação da Akt, que, por sua vez, leva ao aumento da produção hepática de glicose e, no músculo, leva à redução da captação de glicose.

▸ Captação de glicose mediada pela insulina Um  importante  mecanismo  celular  para  o  controle  da  glicemia  é  o  transporte  de  glicose  no  músculo  esquelético mediado  pela  insulina.  Esse  transporte  é  realizado  pelo  GLUT4  (glucose  transporter  protein)  por  meio  de  difusão facilitada independente de ATP (ver Figura 70.7) significativamente, além de ocorrer uma redução na taxa de endocitose desse transportador. Esses dois efeitos da insulina contribuem para o aumento da captação de glicose. A ativação da PI3q em resposta à insulina é um elemento­chave para estimular a translocação de GLUT4 em tecidos muscular e adiposo, porém não é o único. A ativação da PI3q, pela insulina, influencia a translocação de GLUT4 por meio da  ativação:  (1)  da  PDK­1,  que,  por  sua  vez,  fosforila  isoformas  atípicas  da  proteinoquinase  C  (PKCλ/ζ)  envolvidas  na síntese  proteica  e  no  transporte  de  vesículas  de  GLUT4  para  a  membrana  celular;  e  (2)  da  Akt,  que  fosforila  a  proteína AS160 (GTPase activating protein),  promovendo  a  translocação  do  GLUT4  para  a  membrana  celular  (ver Figura  70.6). No caso da Akt, a ativação da isoforma 2 (Akt2), e não das isoformas 1 e 3 (Akt1 e Akt3), parece aumentar a translocação do GLUT4 e, por conseguinte, a captação de glicose em células adiposas e musculares. É descrita também a captação de glicose estimulada pela insulina, porém independente da ativação da PI3q, por meio da via Cbl/CAP/TC10, principalmente no tecido adiposo. Para a ativação dessa via, é necessário que o receptor de insulina esteja  ativado  (fosforilado  em  resíduos  tirosina),  sendo  esse  capaz  de  fosforilar  o  proto­oncogene  c­Cbl  que,  na  maioria dos tecidos sensíveis à insulina, está associado à proteína adaptadora CAP (Cbl­associated protein). Após a fosforilação, o complexo Cbl/CAP migra para a membrana celular e interage com as proteínas CrkII/C3G. A C3G catalisa a troca de GDP  por  GTP  de  outra  proteína  denominada  TC10,  tornando­a  ativada.  A  ativação  de  TC10  induz  translocação  de vesículas contendo GLUT4 para a membrana celular, favorecendo a captação de glicose (ver Figura 70.7). Portanto, essa via é ativada pela insulina, porém independente da ativação da PI3q. Em  conjunto,  dada  a  importância  fisiológica  de  se  promover  a  captação  de  glicose  celular,  o  organismo  dispõe  de diversas  vias  que  culminam  no  transporte  de  glicose  na  tentativa  de  criar  mecanismos  compensatórios  em  casos  de alterações, como, por exemplo, mutações que afetam a Akt ou isoformas atípicas da PKC.

▸ Síntese de glicogênio mediada pela insulina A  insulina  estimula  o  armazenamento  de  glicose  na  forma  de  glicogênio  no  fígado  e  no  músculo.  Esse  efeito  é mediado pela ativação da Akt. A Akt ativada em resposta à insulina fosforila e inativa a GSK3 (glycogen synthase kinase 3), reduzindo a fosforilação da GS (glycogen synthase),  o  que  torna  essa  enzima  mais  ativa  para  catalisar  o  aumento  da síntese  de  glicogênio  (ver Figura 70.6).  Outro  mecanismo  pelo  qual  a  insulina  desfosforila  e  ativa  a  GS  é  por  meio  da ativação  da  proteína  fosfatase  1,  processo  este  dependente  da  PI3q.  Em  paralelo  ao  estímulo  da  síntese  de  glicogênio,  a insulina também bloqueia a glicogenólise, facilitando a manutenção de seu estoque.

▸ Inibição da gliconeogênese mediada pela insulina A  gliconeogênese  hepática,  ou  seja,  a  produção  de  glicose  pelo  fígado  a  partir  de  substratos  não  glicídicos,  como lactato, piruvato, glicerol e aminoácidos, tem uma função essencial para a manutenção da glicemia em condições de jejum. Portanto, a gliconeogênese hepática será estimulada quando a concentração circulante de insulina estiver reduzida (caso do jejum)  e/ou  a  concentração  de  hormônios  contrarreguladores  da  insulina,  como  epinefrina,  glucagon,  GH  ou glicocorticoides,  estiver  elevada.  No  estado  pós­prandial,  ocorre  elevação  da  concentração  circulante  de  insulina  e,  por conseguinte, inibição da gliconeogênese hepática. Em doenças como diabetes melito, quando há redução da concentração circulante  de  insulina  e/ou  resistência  a  suas  ações,  a  gliconeogênese  hepática  encontra­se  desregulada,  contribuindo  de forma significativa para a hiperglicemia de jejum desses indivíduos. A  inibição  ou  supressão  da  gliconeogênese  hepática  em  resposta  à  insulina  envolve  ativação  da  via  PI3q/Akt  e regulação  da  transcrição  de  genes  que  codificam  enzimas­chave  desse  processo,  como  fosfoenolpiruvato  carboxiquinase (PEPCK, gene Pck1), frutose­1,6­bifosfatase e glicose 6­fosfatase (gene G6pc). O  PGC1α  (peroxisome  proliferator  activated  receptor­γ  coactivator­1α)  é  um  fator  de  transcrição  que,  durante  o jejum,  estimula  a  expressão  de  genes  ligados  à  gliconeogênese  hepática  por  meio  da  coativação  de  outros  fatores  de

transcrição, como os da família FoxO (forkhead box­containing gene O), HNF4α ou CREB. No estado pós­prandial, com o aumento da concentração circulante da insulina, o PGC1α é desativado. A ativação da Akt em tecido hepático suprime diretamente a atividade do PGC1α por meio da fosforilação do resíduo serina 570 do domínio serina­arginina do PGC1α. A insulina também inibe o PGC1α por mecanismo indireto. Nesse caso, a Akt ativada por insulina leva à fosforilação do resíduo serina 253 do fator de transcrição conhecido pela sigla FoxO1 (forkhead box­containing gene O1), mantendo­o no citosol. Isso permite que ocorra uma redução da gliconeogênese, porque o FoxO1 fosforilado fica desativado (ver Figura 70.6). Por outro lado, quando o FoxO1 está desfosforilado, permanece no núcleo celular e se liga ao PGC1α e Cbp/p300, promovendo  a  transcrição  dos  genes  Pck1  e  G6pc,  que  aumentam  a  gliconeogênese.  Recentemente,  a  proteína  CLK2 (Cdc2­like kinase 2) foi descrita em tecido hepático como substrato da Akt e, em resposta à insulina, induz fosforilação do domínio SR do PGC1 α, contribuindo para a repressão da expressão de genes do programa gliconeogênico. No entanto, os efeitos  da  insulina  via  Akt/CLK2  parecem  ser  mais  tardios  quando  comparados  aos  efeitos  da  insulina  via  Akt/FoxO1  e PGC1 α, que suprimem rapidamente a gliconeogênese hepática.

▸ Síntese e degradação de lipídios mediados pela insulina Classicamente, a insulina tem funções lipogênicas e antilipolíticas. A lipogênese ocorre como resultado da regulação de  fatores  de  transcrição  da  família  SREBP  (sterol  regulatory  element  binding  proteins)  pela  insulina.  Essa  família  de fatores está envolvida no aumento da transcrição de genes implicados na síntese e na captação de colesterol, ácidos graxos, triglicerídios e fosfolipídios, assim como de NADPH, que é um cofator essencial para a síntese dessas moléculas. Em tecido hepático, a ativação da PI3q, em resposta à insulina, estimula a síntese de ácidos graxos quando ocorre um excesso de ingestão de carboidratos. Isso decorre do aumento da expressão de SREBP­1 c, favorecendo a transcrição de genes  envolvidos  na  síntese  de  ácidos  graxos,  como  o  gene  que  codifica  a  enzima  acetil­CoA  carboxilase  (ACC) (ver Figura 70.6).  A  ACC  tem  um  papel­chave  na  síntese  de  ácido  graxo,  pois  converte  a  acetil­CoA  em  malonil­CoA, que, posteriormente, por meio da enzima ácido graxo sintetase (FAS), forma palmitato. Em modelos animais, a superexpressão de SREBP­1 c no fígado de camundongos transgênicos previne a redução do mRNA  das  enzimas  lipogênicas.  De  maneira  semelhante,  em  camundongos  ob/ob  que  apresentam  obesidade  grave  e resistência  à  insulina,  foi  observado  aumento  da  expressão  de  SREBP­1  c  no  fígado.  Em  indivíduos  com  obesidade  e resistência  à  insulina,  é  muito  comum  ocorrer  esteatose  hepática,  ou  seja,  acúmulo  de  lipídios  no  fígado.  Um  dos mecanismos  descritos  como  causadores  da  esteatose  hepática  é  o  aumento  da  expressão  de  SREBP­1  c  decorrente  da hiperinsulinemia.  Portanto,  apesar  de  esses  indivíduos  apresentarem  resistência  à  insulina  nos  tecidos  periféricos,  a insulina continua a ativar a transcrição do SREBP­1 c no fígado, aumentando a expressão de genes lipogênicos, a síntese de ácidos graxos e o acúmulo de triglicerídios. Outro fator de transcrição que participa do controle do metabolismo de lipídios hepáticos pertence à família forkhead box,  denominado  Foxa2.  No  jejum  ou  na  redução  dos  níveis  de  insulina,  o  Foxa2  fica  localizado  no  núcleo  celular, promovendo a transcrição de genes envolvidos na oxidação de ácidos graxos e na produção de corpos cetônicos. Por outro lado,  na  presença  de  insulina  ou  no  estado  pós­prandial,  de  forma  similar  ao  FoxO1,  o  Foxa2  é  fosforilado  pela  Akt  e mantido  no  citosol,  impedindo  sua  atividade  transcricional  no  núcleo  celular  e  reduzindo  a  oxidação  de  ácidos  graxos  e produção de corpos cetônicos (ver Figura 70.7). Em camundongos com resistência à insulina e hiperinsulinemia, o Foxa2 permanece no citoplasma de hepatócitos, onde fica inativo. Estudos comparativos de dose­resposta sugerem que o Foxa2 requer  doses  menores  de  insulina  para  ser  fosforilado  comparativamente  ao  FoxO1,  e  esse  fenômeno  parece  ser dependente do IRS­2. Com  relação  ao  seu  efeito  antilipolítico,  a  insulina,  através  da  via  PI3q/Akt,  ativa  a  fosfodiesterase  AMP  cíclico específico  (PDE3B),  que  reduz  os  níveis  de  AMP  cíclico  nos  adipócitos.  Esse  efeito  reduz  a  ativação  da  PKA (proteinoquinase A), que está envolvida na ativação da enzima lipase hormônio­sensível que medeia parte do processo de lipólise no tecido adiposo.

▸ Sinalização de insulina | Lições de animais knockout tecido­específicos A partir do desenvolvimento de animais knockouts condicionais por meio do sistema Cre­LoxP, permitiu­se um grande avanço no entendimento das funções tecido­específicas da insulina, bem como se revelou a real importância de cada tecido nas situações de resistência à insulina. Camundongos knockout para o IR especificamente no fígado, conhecido como LIRKO (liver specific insulin receptor knockout), apresentam redução da tolerância à glicose e acentuada hiperinsulinemia. Essa hiperinsulinemia é consequência

de  secreção  de  insulina  elevada  associada  à  redução  do clearence desse  hormônio.  Como  esperado,  o  LIRKO  apresenta redução da supressão da produção hepática de glicose e aumento da expressão de PEPCK e glicose 6 fosfatase. A deleção dupla de Irs1/Irs2 (LIrs1/LIrs2KO), especificamente no fígado de camundongos, também leva a um fenótipo semelhante ao do LIRKO. Entretanto, a deleção específica no fígado de IRS1 leva à resistência à insulina hepática quando o animal está realimentado, e a deleção específica de IRS2 no fígado leva à resistência à insulina quando o animal está em jejum. Os  resultados  foram  surpreendentes  quando  foram  gerados  os  camundongos  knockout  do  IR  especificamente  no músculo.  Esperava­se  que  esses  animais  apresentassem  franca  resistência  à  insulina,  uma  vez  que  a  captação  de  glicose mediada  pela  insulina  é  extensa  no  tecido  muscular.  No  entanto,  no  animal  conhecido  como  MIRKO  (muscle  specific insulin  receptor  knockout),  encontraram­se  sensibilidade  à  insulina  e  tolerância  à  glicose  normais.  Esse  fenótipo  foi explicado, ao menos parcialmente, como resultado do redirecionamento da captação de glicose para o tecido adiposo, uma vez  que  o  MIRKO  apresentou  um  aumento  da  adiposidade.  Posteriormente,  verificou­se  que  a  deleção  do  IRS1  ou  do IRS2  especificamente  em  músculo  gerou  animais  com  o  fenótipo  semelhante  ao  MIRKO  em  termos  de  sensibilidade  à insulina e tolerância à glicose. Camundongos knockout adiposo­específicos do IR, conhecidos como FIRKO (fat specific insulin receptor knockout), apresentam  lipodistrofia,  redução  da  tolerância  à  glicose,  resistência  à  insulina  e,  surpreendentemente,  hiperinsulinemia. Não  obstante,  os  camundongos knockout específicos  do  IR  em  células  beta,  chamados  de  βIRKO  (pancreatic  beta  cell specific insulin receptor knockout), não apresentam alteração no conteúdo de insulina, no tamanho da ilhota pancreática ou na  razão  entre  células  beta  e  não  beta,  apesar  de  apresentarem  um  defeito  acentuado  na  primeira  fase  de  secreção  de insulina estimulada por glicose, semelhante ao observado no diabetes tipo 2. No  caso  da  deleção  específica  do  IR  em  neurônios,  os  animais  conhecidos  como  NIRKO  (neuron  specific  insulin receptor knockout) exibem obesidade, aumento da ingestão alimentar, resistência à insulina, aumento da produção hepática de  glicose,  assim  como  redução  da  fertilidade  em  decorrência  de  hipogonadismo  hipotalâmico.  Posteriormente,  foi realizada  a  deleção  de  IRS2  em  células  beta  e  alguns  neurônios  do  hipotálamo,  a  qual  gerou  um  fenótipo  de  obesidade, aumento na ingestão alimentar e redução da expressão gênica de POMC (pró­opiomelanocortina), neuropeptídio ligado a reduzida ingestão alimentar. Em conjunto, os estudos que utilizaram animais condicionalmente knockouts envolvendo moléculas determinantes da sinalização  de  insulina  sugerem  uma  hipótese  unificadora  para  o  diabetes  tipo  2,  na  qual  a  resistência  à  insulina  em órgãos­alvo  clássicos  (fígado,  músculo  e  tecido  adiposo),  combinada  à  resistência  à  insulina  na  célula  beta,  cérebro  e outros tecidos, pode resultar no diabetes tipo 2.

▸ Regulação do ciclo jejum­alimentado por hormônios pancreáticos O metabolismo humano oscila entre os ciclos de alimentação e jejum. Os hormônios insulina e glucagon participam da manutenção  do  equilíbrio  energético  durante  a  mudança  desses  ciclos.  A  razão  entre  as  concentrações  sanguíneas  de insulina  e  glucagon  regula  fisiologicamente  o  estoque  e/ou  a  utilização  dos  nutrientes  absorvidos  pelo  intestino  após  a alimentação. Nesse contexto, o fígado atua como órgão central, integrando os efeitos da insulina e glucagon sobre a metabolização de nutrientes para manter a homeostase da glicemia. Observam­se  elevadas  concentrações  de  insulina  e  reduzidas  concentrações  de  glucagon  durante  uma  refeição  e algumas horas depois. Esse estado é conhecido como período pós­prandial ou alimentado. De forma contrária, durante o jejum, observam­se elevadas concentrações de glucagon e reduzidas concentrações de insulina. O jejum realizado por 6 a 12 horas é considerado como um estado pós­absortivo e será discutido a seguir. O jejum que perdura por mais de 12 horas é  conhecido  como  “jejum  prolongado”  ou  “fome  ou  inanição”  e  terá  implicações  metabólicas  específicas  envolvendo adaptações moleculares e fisiológicas mais significativas.

Período pós­prandial Nutrientes  como  glicose  e  aminoácidos  são  absorvidos  no  intestino,  ganham  a  corrente  sanguínea  e  estimulam  a secreção  de  insulina,  e  ao  mesmo  tempo  ocorre  inibição  da  secreção  de  glucagon.  A  razão  elevada  entre  insulina  e glucagon afeta o metabolismo do fígado, do tecido adiposo e do músculo esquelético. A  insulina  aumenta  a  captação  de  glicose  pelo  músculo  esquelético  e  cardíaco  e  também  pelo  tecido  adiposo.  A oxidação  da  glicose  e  a  síntese  de  glicogênio  são  estimuladas,  e  a  oxidação  lipídica  é  inibida  nos  tecidos  insulino­ sensíveis.

Apesar de o hepatócito captar glicose de forma independente de insulina, via GLUT2, esse hormônio é essencial para a metabolização da glicose no interior dessas células. Assim, a insulina ativa a enzima glicoquinase que fosforila a glicose, produzindo  glicose  6­fosfato.  A  partir  da  formação  de  glicose  6­fosfato,  na  presença  de  insulina,  ocorre  a  síntese  de glicogênio,  forma  pela  qual  a  glicose  é  armazenada.  A  glicose  captada  pelo  fígado  é  em  parte  direcionada  para  a  via  das pentoses, gerando NADPH+H+, que será utilizado na biossíntese de ácidos graxos e colesterol, e pentoses para a síntese de nucleotídios. Os  quilomícrons  formados  a  partir  da  absorção  intestinal  de  lipídios  da  alimentação  sofrem  a  ação  da  enzima  lipase lipoproteica, ativada pela insulina, liberando ácidos graxos livres e glicerol. Dessa forma, os ácidos graxos são captados pelo tecido adiposo, formando novos triglicerídios para serem estocados. A  insulina  também  estimula,  no  período  pós­prandial,  a  síntese  de  ácidos  graxos  e  proteica,  a  captação  de aminoácidos, bem como a diminuição da sua degradação nos tecidos.

Jejum Durante  o  jejum,  o  fígado  passa  a  ser  produtor  e  provedor  de  glicose  para  o  organismo.  Para  tanto,  a  secreção  de insulina  diminui  e  a  secreção  de  glucagon  aumenta,  resultando  em  glicogenólise  e  reduzida  síntese  de  glicogênio.  A glicose produzida pelo fígado é lançada na circulação sanguínea, pois o fígado é o principal órgão que expressa a enzima glicose 6­fosfatase, capaz de desfosforilar a glicose 6­fosfato, liberando­a para a circulação. Assim, mesmo em jejum, o indivíduo saudável consegue manter sua glicemia em uma concentração adequada à sobrevivência. Nas  primeiras  12  horas  de  jejum,  a  maior  parte  da  glicose  circulante  é  captada  por  tecidos  que  não  dependem  de insulina, como cérebro e eritrócitos. Os tecidos muscular e adiposo utilizam relativamente pouca glicose no jejum. Após 12  horas  de  jejum,  as  reservas  de  glicogênio  vão  se  esgotando,  e  a  gliconeogênese  se  torna  a  principal  fonte  de  glicose, usando como substratos lactato, alanina e glicerol. Se o jejum se prolongar, a contribuição da gliconeogênese aumenta de forma constante para a produção de glicose hepática. O músculo auxilia a gliconeogênese fornecendo lactato, que é captado pelo fígado e oxidado a piruvato para entrar no processo de gliconeogênese. Por sua vez, a glicose liberada pelo fígado retorna ao músculo esquelético, fechando o ciclo conhecido como ciclo de Cori. A reduzida concentração de insulina, no jejum, estimula a proteólise e leva à liberação de aminoácidos (principalmente alanina e glutamina) pelo músculo. A alanina liberada é captada pelo fígado e convertida em piruvato, que será processado pela gliconeogênese. Esse ciclo de glicose­alanina ocorre em paralelo ao ciclo de Cori. A concentração elevada de glucagon e outros hormônios (GH, cortisol e catecolaminas) e principalmente as reduzidas concentrações  de  insulina  estimulam  a  hidrólise  de  triglicerídios  pela  lipase  hormônio­sensível,  liberando  ácidos  graxos livres e glicerol no processo conhecido como lipólise. O glicerol é usado na gliconeogênese para produção de glicose, e os ácidos  graxos  livres  são  oxidados  nas  mitocôndrias  dos  hepatócitos  por  meio  da  betaoxidação,  produzindo  corpos cetônicos  pelo  processo  denominado  cetogênese.  Durante  o  jejum  prolongado,  os  corpos  cetônicos  servem  como substratos energéticos pelo cérebro e pelos músculos esquelético e cardíaco, provendo energia para a manutenção da vida.

▸ Alteração da sinalização de insulina na obesidade e no diabetes melito tipo 2 Diabetes  melito  é  um  grupo  heterogêneo  de  doenças  que  têm  em  comum  a  hiperglicemia  com  as  consequentes complicações vasculares. O diagnóstico de diabetes é exclusivamente laboratorial e é feito quando: (1) a glicose plasmática de  jejum  é  maior  ou  igual  a  126  mg/d ℓ ;  ou  (2)  a  hemoglobina  glicada  (A1C)  é  maior  que  6,4%;  ou  (3)  a  glicose plasmática 2 horas após uma sobrecarga oral de glicose de 75 g (teste oral de tolerância à glicose) é maior que 200 mg/dℓ; ou (4) há sintomas típicos de diabetes e a glicemia aleatória é maior que 200 mg/dℓ. É importante ressaltar que números intermediários entre esses apresentados e os valores normais estabelecem o diagnóstico de pré­diabetes. No  passado,  com  o  conhecimento  fisiopatológico  ainda  incipiente,  a  classificação  do  diabetes  melito  era  baseada  na idade  dos  grupos  acometidos  ou  na  forma  convencional  de  tratamento.  Entretanto,  hoje,  o  diabetes  é  classificado  em  4 grupos:  (1)  diabetes  melito  tipo  1,  (2)  diabetes  melito  tipo  2,  (3)  outros  tipos  específicos  de  diabetes,  e  (4)  diabetes gestacional. O diabetes melito tipo 1 é consequência de um processo autoimune que destrói as células beta do pâncreas, levando a uma  falência  absoluta  na  produção  de  insulina.  Apresenta­se  com  mais  frequência  em  pré­adolescentes,  mas  pode  se iniciar em adultos, principalmente entre 30 e 35 anos. As manifestações do diabetes, como polidipsia, poliúria, polifagia e emagrecimento,  são  evidentes  e  de  instalação  rápida.  Caso  esses  indivíduos  não  sejam  rapidamente  tratados,  podem evoluir  para  quadros  de  cetoacidose  diabética.  O  tratamento  inclui,  em  geral,  várias  doses  de  insulina  ao  dia,  simulando

um  processo  fisiológico  de  secreção  desse  hormônio,  chamado basal­bolus (insulina  de  liberação  lenta,  para  simular  a secreção  basal,  associada  a  insulinas  de  ação  rápida  antes  das  refeições,  para  simular  a  secreção  estimulada  por  essas refeições). O  diabetes  gestacional  é  a  forma  da  doença  que  aparece  exclusivamente  na  gestação,  e  tem  critérios  diagnósticos específicos e mais estritos. A razão para se ter um critério diagnóstico mais rigoroso e um tratamento mais cuidadoso na gestação é prevenir as graves complicações para a mãe e para o feto, que podem aparecer nessa situação. Outros  tipos  específicos  compreendem  grupos  etiológicos  diversos,  com  causas  estabelecidas  ou  parcialmente conhecidas. As causas incluem: defeitos genéticos conhecidos que alteram a função da célula beta ou a ação da insulina; doenças do pâncreas endócrino; endocrinopatias; medicamentos ou agentes que alteram a função pancreática; e doenças ou condições  nas  quais  a  incidência  de  diabetes  é  muito  elevada,  mas  a  etiologia  ainda  não  foi  estabelecida.  Os  tipos específicos  respondem  por  aproximadamente  1  a  2%  dos  casos  da  síndrome  diabetes.  Nas  formas  genéticas  conhecidas, deve  ser  destacado  o  MODY  (Maturity­Onset  Diabetes  of  the  Young),  que  se  inicia  no  adulto  jovem,  com  grande associação  familiar,  e  em  geral  é  consequência  de  mutações  na  enzima  glicoquinase  ou  em  fatores  de  transcrição  nas células beta. O  diabetes  melito  tipo  2  (DM2)  é  a  forma  mais  comum  da  doença  e  acomete  aproximadamente  10%  da  população mundial.  A  maior  parte  dos  pacientes  apresenta  sobrepeso  ou  obesidade,  e  a  etiopatogenia  inclui  fatores  genéticos provavelmente  poligênicos.  Entretanto,  os  fatores  ambientais,  como  redução  da  atividade  física  e  ingestão  calórica excessiva,  entre  outros,  são  determinantes  para  a  instalação  da  doença.  Em  termos  fisiopatológicos,  o  DM2  é consequência  de  uma  associação  entre  resistência  à  insulina  e  alteração  da  secreção  desse  hormônio.  Aparentemente,  a alteração  de  secreção  de  insulina  tem  um  componente  genético  determinante,  mas  a  resistência  à  insulina  é predominantemente secundária a fatores ambientais. Na  obesidade  e  no  DM2,  há  alteração  da  microbiota  intestinal  que  parece  ter  um  papel  etiopatogênico  relevante  na instalação da resistência à insulina nessas situações. A microbiota intestinal, na obesidade e no DM2, apresenta alterações de phylos,  com  predomínio  de  firmicutes  em  relação  a  bacteroidetes  (inverso  do  magro),  e  uma  redução  importante  da diversidade bacteriana. Essas alterações causam rompimento da integridade da barreira intestinal, aumentando a absorção de um lipídio de membrana das bactérias gram­negativas – o LPS (lipopolissacarídio) – e/ou desregulando a produção de metabólitos  produzidos  por  bactérias,  como  os  ácidos  graxos  de  cadeia  curta  (acetato,  butirato  e  propionato),  que contribuem para o desenvolvimento da resistência à insulina (ver Figura 70.7). Durante a instalação da obesidade, o aumento da massa de tecido adiposo ocasiona infiltração de células imunes nesse tecido,  como  neutrófilos  e  macrófagos  M1  inflamatórios,  contribuindo  decisivamente  para  o  processo  inflamatório subclínico que havia se iniciado com a alteração da microbiota intestinal (Figura 70.8). No plano celular e molecular na obesidade e no DM2, a resistência à insulina é secundária ao fenômeno inflamatório subclínico que desencadeia modulação molecular negativa das vias de sinalização desse hormônio (ver Figura 70.7). Em geral, esse processo é consequência da ativação de fosfatases que desfosforilam proteínas da via de sinalização da insulina ou fosforilações ou modificações pós­translacionais que reduzem a atividade dessas proteínas. No caso de alterações pós­ translacionais,  ressalta­se  a  ativação  de  serinas  quinases,  como  JNK  (cJun­N­terminal­kinase),  IKK  beta  (inhibitor  of nuclear  factor  kappa­B  kinase  subunit  beta), PKC (protein  kinase  C  subunit)  beta  e  teta,  PKR  (double­stranded  RNA­ dependent  protein  kinase)  e  outras  que  induzem  fosforilação  em  serina  (sítio  inibitório)  de  substratos  do  receptor  de insulina, como IRS1 e 2. Essa fosforilação em serina reduz a capacidade do IRS­1 e 2 de interagir com o IR, bloqueando sua  fosforilação  em  tirosina  (sítio  de  ativação),  bem  como  induz  a  degradação  proteassômica  do  IRS­1,  resultando  em resistência  à  insulina.  A  ativação  de  serinas  quinases  pode  ser  consequência  de  estresse  oxidativo,  estresse  de  retículo endoplasmático,  acúmulo  de  lipídios  intracelulares,  ativação  de  TLR4  (toll  like  receptor  4)  por  LPS,  ativação  de receptores de citocinas por IL (interleucinas)­1 beta, IL­6 e TNF­α (tumor necrosis factor alpha) (ver Figura 70.8). Merece  destaque  também  na  modulação  da  sinalização  de  insulina  o  aumento  de  atividade  de  fosfatases  que  regulam proteínas  dessa  via.  Na  obesidade  e  no  DM2,  ocorre  aumento  da  expressão  e  atividade  da  enzima  fosfatase  PTP1B (protein  tyrosine  phosphatase  1B),  que  desfosforila  o  IR  e  os  IRS,  contribuindo  para  a  resistência  à  insulina.  Outras fosfatases, como a PHLPP1 (pleckstrin homology domain and leucine­rich repeat protein phosphatase), que desfosforila a Akt, também têm atividade aumentada na obesidade (ver Figura 70.8). Outros  mecanismos  de  resistência  à  insulina  incluem  o  aumento  de  expressão  das  proteínas  iNOS  (inducible  nitric oxide  synthase)  e  SOCS  (suppressors  of  cytokine  signaling).  A  expressão  da  iNOS  é  estimulada  pelo  TNF­α  e  está elevada na obesidade. O óxido nítrico produzido pela iNOS pode induzir resistência à insulina no músculo por meio de um

mecanismo que envolve a S­nitrosação do IR, IRS­1 e Akt, reduzindo a atividade dessas proteínas e induzindo resistência à insulina.

Figura 70.8 ■ Mecanismos moleculares que reduzem o sinal intracelular da insulina na obesidade. A inflamação subclínica que ocorre  na  obesidade,  representada  nessa  figura  pelas  interleucinas,  TNF­α  (tumor  necrosis  factor  alpha)  e  pela  ativação  do receptor  da  imunidade  inata  TLR4  (toll  like  receptor  4),  ativa  serinas  quinases  como  JNK  (cJun­N­terminal­kinase),  IKK  beta (inhibitor of nuclear factor kappa­B kinase subunit beta), PKC (protein kinase C subunit) beta e teta, PKR (double­stranded RNA­ dependent protein kinase), que fosforilam o substrato do receptor de insulina (IRS1) em serina, levando à inibição do sinal de insulina.  A  sinalização  de  insulina  também  pode  ser  comprometida  pelo  aumento  da  atividade  de  fosfatases  no  contexto  da obesidade. A fosfatase PTP1B (protein tyrosine phosphatase 1B) desfosforila resíduos tirosina do IR e dos IRS, inibindo o sinal de  insulina  e  a  PHLPP1  (pleckstrin  homology  domain  and  leucine­rich  repeat  protein  phosphatase),  e  desfosforila  resíduos serina e treonina da Akt, desativando­a. Assim, tanto a PTP1B quanto a PHLPP1 contribuem para a resistência à insulina na obesidade.

A expressão de várias isoformas de SOCS, especialmente da SOCS­3, aumenta na presença de TNF­α e na obesidade e  pode  induzir  resistência  à  insulina  provavelmente  por  meio  do  aumento  da  degradação  do  IRS­1  mediada  por proteossomos.

BIBLIOGRAFIA BAYNES JW, DOMINICZAK MH. Medical Biochemistry. 3. ed. Elsevier, Edinburgh, 2009. BEDINGER DH, ADAMS SH. Metabolic, anabolic, and mitogenic insulin responses: a tissue­specific perspective for insulin receptor activators. Mol Cell Endocrinol, 415:143­56, 2015. CINGOLANI HE, HOUSSAY AB (Eds.). Fisiologia Humana de Houssay. 7. ed. Artmed, Porto Alegre, 2004. DeFRONZO RA, FERRANNINI E, GROOP L et al. Type 2 diabetes mellitus. Nat Rev Dis Primers, 1:15019, 2015. HOTAMISLIGIL GS. Inflammation, metaflammation and immunometabolic disorders. Nature, 542(7640):177­85, 2017. KUBOTA  T,  KUBOTA  N,  KADOWAKI  T.  Imbalanced  insulin  actions  in  obesity  and  type  2  diabetes:  key  mouse  models  of insulin signaling pathway. Cell Metab, 25(4):797­810, 2017. LACKEY DE, OLEFSKY JM. Regulation of metabolism by the innate immune system. Nat Rev Endocrinol, 12(1):15­28, 2016. McCUE MD, TERBLANCHE JS, BENOIT JB. Learning to starve: impacts of food limitation beyond the stress period. J  Exp Biol, 220:4330­8, 2017.

SAAD MJ, SANTOS A, PRADA PO. Linking gut microbiota and inflammation to obesity and insulin resistance.  Physiology (Bethesda), 31(4):283­93, 2016. SAMUEL VT, SHULMAN GI. The pathogenesis of insulin resistance: integrating signaling pathways and substrate flux. J Clin Invest, 126(1):12­22, 2016. SAXTON RA, SABATINI DM. mTOR signaling in growth, metabolism, and disease. Cell, 168(6):960­76, 2017. VELLOSO LA, FOLLI F, SAAD MJ. TLR4 at the crossroads of nutrients, gut microbiota, and metabolic inflammation. Endocr Rev, 36(3):245­71, 2015. ZANOTTO TM, QUARESMA PG, GUADAGNINI D et al.  Blocking  iNOS  and  endoplasmic  reticulum  stress  synergistically improves insulin resistance in mice. Mol Metab, 6(2):206­18, 2016.

■ Sistema Genital Masculino Poli Mara Spritzer | Fernando Marcos dos Reis ■

Organização estrutural e funcional do testículo

■ ■

Espermatogênese Androgênios

■ ■ ■

Eixo hipotálamo­hipófise­testículo Maturação e função sexual Métodos de avaliação e restauração da função endócrina e reprodutiva masculina

■ Sistema Genital Feminino Celso Rodrigues Franci | Janete Aparecida Anselmo­Franci ■ ■

Estrutura ovariana Hormônios ovarianos

■ ■ ■

Puberdade e menarca Climatério (perimenopausa) e menopausa Bibliografia

Sistema Genital Masculino Poli Mara Spritzer | Fernando Marcos dos Reis Os  testículos  são  responsáveis  pela  espermatogênese  e  síntese  de  hormônios  sexuais.  Estes  processos  asseguram  a fertilidade e o desenvolvimento e manutenção das características sexuais masculinas. A função testicular é regulada pelo sistema nervoso central (SNC) por meio principalmente das alças de retrocontrole com o GnRH (gonadotropin releasing hormone)  hipotalâmico  e  gonadotrofinas  hipofisárias.  Fatores  parácrinos,  neurais  e  endócrinos  contribuem  para  esta complexa  regulação  do  sistema  genital  masculino.  Este  sistema  está  organizado  a  partir  dos  testículos,  do  pênis  e  das glândulas acessórias que compreendem a próstata e as vesículas seminais.

ORGANIZAÇÃO ESTRUTURAL E FUNCIONAL DO TESTÍCULO Os  testículos  são  constituídos  de  novelos  de  tubos  finíssimos,  em  cujas  paredes  os  espermatozoides  são  formados  a partir de células germinativas indiferenciadas. Os túbulos, conhecidos como espermatogênicos ou seminíferos, convergem para uma rede de ductos chamada de rete testis que, por sua vez, conduz os espermatozoides a um tubo único e fortemente enovelado,  o  epidídimo,  responsável  pela  etapa  final  de  maturação  do  gameta  masculino.  Ainda  nas  paredes  dos  túbulos seminíferos, encontram­se as células de Sertoli, que se estendem da lâmina basal até o lúmen tubular e servem de suporte para  as  células  germinativas.  Adicionalmente,  exercem  ação  regulatória  sobre  o  eixo  hipotálamo­hipófise  a  partir  da secreção de inibina. Junções estreitas formadas pelas células de Sertoli criam uma barreira com permeabilidade restrita a macromoléculas,  similar  àquela  existente  no  sistema  nervoso.  Esta  barreira  forma  um  ambiente  bioquímico  e  hormonal propício  nas  camadas  internas  e  no  líquido  luminal  dos  túbulos  seminíferos,  de  composição  diferente  do  plasma

sanguíneo,  o  que  favorece  a  regulação  local  da  gametogênese  e  protege  as  células  germinativas  de  agentes  nocivos.  No tecido que conecta os túbulos seminíferos, existem ninhos de células contendo grânulos lipídicos, as células intersticiais de Leydig, que secretam testosterona na rede capilar adjacente. A  organização  dos  túbulos  seminíferos  é  espécie­dependente.  Na  maioria  dos  mamíferos,  as  células  germinativas agrupam­se de acordo com o estágio de maturação, de tal modo que um corte histológico de determinado ponto do túbulo seminífero mostra predominantemente um tipo de célula germinativa, enquanto outro corte mais acima ou abaixo exibe o predomínio do tipo celular precedente ou sucessivo na ordem de maturação. O testículo humano é exceção a essa regra. No homem, as células germinativas amadurecem dessincronizadas e por isso, em um mesmo ponto do túbulo seminífero, são encontradas células em estágios variados de maturação (Figura 71.1).

ESPERMATOGÊNESE As  células  germinativas,  presentes  na  gônada  masculina  desde  o  nascimento,  são  chamadas  de  células  germinativas primordiais. Durante toda a infância, elas se dividem lentamente por mitose e dão origem a espermatogônias. Na época da puberdade, cada testículo tem aproximadamente 6 milhões de espermatogônias. A partir de então, essas células começam a se diferenciar: cada espermatogônia dá origem a 16 espermatócitos primários, que por sua vez entram em meiose e geram, cada um, quatro espermátides (Figura 71.2 A). A etapa final da espermatogênese denomina­se espermiogênese e consiste na transformação de espermátides arredondadas em espermatozoides maduros. Isso se dá pelo reposicionamento do núcleo da  célula,  que  passa  do  centro  para  uma  das  extremidades,  onde  surgirá  a  cabeça  do  espermatozoide,  e  também  pelo aparecimento do flagelo (Figura 71.2 B). A transformação celular desde o espermatócito até o espermatozoide móvel leva cerca de 70 dias, sendo seguida pelo amadurecimento dos espermatozoides durante seu trajeto pelo epidídimo até os ductos ejaculatórios, ao longo de outros 14 dias. Nessa fase, o espermatozoide adquire o máximo de motilidade e torna­se capaz de fecundar. Ao  alcançar  os  ductos  ejaculatórios,  os  espermatozoides  são  enriquecidos  pelas  secreções  das  vesículas  seminais, compostas principalmente de frutose e prostaglandinas. Finalmente, quando o sêmen chega à uretra prostática, produtos do líquido prostático são lançados ao sêmen. Portanto, o líquido seminal nessa etapa irá conter ainda zinco, espermina, ácido cítrico e fosfatase ácida.

Figura 71.1 ■ A. Fotomicrografia de um túbulo seminífero humano em pequeno aumento. Observe o lúmen, o epitélio seminífero, a túnica própria e o compartimento intertubular ou intersticial, que abriga as células de Leydig. B. Detalhe do mesmo túbulo com

o epitélio seminífero em grande aumento. C. Desenho esquemático da foto B com a localização de núcleos de células de Sertoli (roxo), espermatogônias (verde), espermatócitos primários (azul) e espermátides arredondadas (ocre). (As fotos são cortesia dos Drs. Marcelo de Castro Leal e Fabiano Condé Araújo.)

Figura 71.2 ■ Divisões e transformações celulares na espermatogênese. A. Principais células precursoras, com destaque para primeira  e  segunda  divisões  meióticas  (D1  e  D2)  que  geram,  respectivamente,  espermatócitos  secundários  e espermátides. B. Espermiogênese.

ANDROGÊNIOS Androgênios são hormônios capazes de promover e manter características secundárias masculinas. O androgênio mais abundante  na  circulação  é  a  testosterona.  Embora  encontrada  em  menores  concentrações  na  circulação,  a  di­ hidrotestosterona  (DHT)  é  produzida  a  partir  da  própria  testosterona  nos  tecidos  que  expressam  a  enzima  5α­redutase, como a próstata e o folículo pilossebáceo (Figura 71.3). Sua ação é mais potente que a da testosterona, e seus efeitos são indispensáveis  para  a  diferenciação  sexual  masculina.  Outros  androgênios,  com  ação  mais  fraca,  incluem  a androstenediona, a desidroepiandrosterona (DHEA) e seu sulfato (DHEA­S).

▸ Síntese e secreção No  homem,  as  principais  fontes  de  androgênios  são  a  suprarrenal  e  o  testículo.  Em  ambos  os  locais  de  síntese,  a molécula  precursora  dos  androgênios  é  o  colesterol,  que  pode  ser  captado  do  plasma  por  meio  de  endocitose  de lipoproteínas ou sintetizado na própria glândula.

Figura 71.3 ■ Etapas da síntese de testosterona a partir do colesterol e conversão da testosterona em outros esteroides ativos. Cada etapa envolve a seguinte enzima: (1) complexo enzimático de clivagem da cadeia lateral do colesterol (CYP11A1); (2) 3β­ hidroxiesteroide  desidrogenase  (3β­HSD);  (3)  17α­hidroxilase  (CYP17);  (4)  17,20­liase  (CYP17);  (5)  17β­hidroxiesteroide desidrogenase (17β­HSD); (6) aromatase; e (7) 5α­redutase.

A  transformação  do  colesterol  em  testosterona  requer  cinco  etapas,  todas  elas  catalisadas  por  enzimas  (ver  Figura 71.3).  A  clivagem  da  cadeia  lateral  do  colesterol  ocorre  na  mitocôndria,  enquanto  as  demais  reações,  no  retículo endoplasmático. A  testosterona  produzida  nas  células  de  Leydig  é  secretada  no  líquido  dos  túbulos  seminíferos  e  nos  capilares intersticiais,  de  onde  atinge  a  circulação  sistêmica  para  posteriormente  exercer  seus  efeitos  endócrinos.  Embora  em quantidade  muito  menor,  alguns  precursores  androgênicos,  tais  como  androstenediona  e  DHEA,  também  são  liberados pelo testículo na circulação.

▸ Transporte e metabolismo Um homem adulto normalmente produz por dia cerca de 5 a 9 mg de testosterona, que circula, em grande proporção, acoplada  à  proteína  ligadora  de  hormônios  sexuais  (SHBG)  e  à  albumina  (Figura  71.4).  Apenas  cerca  de  2%  da testosterona circulante ficam disponíveis na forma livre, isto é, não ligada à albumina ou à SHBG. A testosterona livre é captada  pelas  células­alvo  e,  à  medida  que  isso  ocorre,  novas  moléculas  do  hormônio  se  desprendem  das  proteínas ligadoras e recompõem o estoque de testosterona livre. A maior parte da testosterona é metabolizada na forma de glucuronídeo de testosterona e 17­cetoesteroides, dotados de pouca  ou  nenhuma  ação  androgênica,  que  são  excretados  na  urina.  Uma  pequena  quantidade  de  testosterona  (menos  que 1%) é convertida em estradiol por ação da aromatase, seja nas próprias células de Leydig, seja nas células de Sertoli, que secretam o estrogênio no líquido tubular ou no sangue periférico. Regiões do SNC, tecido adiposo, tecido ósseo e próstata também são ricos em aromatase e produzem estradiol. Contudo, o principal derivado da testosterona é a DHT, resultante de sua conversão pela 5α­redutase em tecidos­alvo específicos.

Figura 71.4 ■ Transporte e mecanismo de ação dos androgênios. A testosterona (T) circula acoplada a uma proteína específica ou  à  albumina  (Prot)  e,  ao  entrar  na  célula,  pode  ser  convertida  pela  5α­redutase  em  di­hidrotestosterona  (DHT)  em determinadas  células­alvo.  T  e  DHT  ligam­se  ao  receptor  androgênico  (AR),  no  citoplasma  ou  no  núcleo,  e  o  complexo hormônio­receptor  liga­se  ao  elemento  responsivo  de  androgênios  no  DNA,  iniciando  a  transcrição  de  genes­alvo.  A subsequente síntese de proteínas promove as ações androgênicas específicas.

▸ Mecanismo de ação Assim como outros hormônios esteroides, os androgênios exercem seus efeitos por meio de receptores intracelulares, que são fatores de transcrição e regulam a produção de mRNA de genes­alvo, por mecanismo dependente da ligação com o hormônio. Desta maneira, a partir da ligação do androgênio ao seu receptor, ocorre uma modificação conformacional que resulta na dissociação do receptor de proteínas de choque térmico (hsp). O complexo hormônio­receptor forma, então, um homodímero  com  outra  molécula  hormônio­receptora  de  androgênio  e  interage  com  uma  série  de  coativadores  ou correpressores para constituir um complexo transcricional ativado. Este complexo irá acoplar­se a uma região aceptora no DNA  da  célula­alvo,  denominada  elemento  responsivo  aos  androgênios  e  composta  por  uma  sequência  específica  de nucleotídios (ver Figura 71.4). O processo resulta no recrutamento de uma RNA polimerase e na transcrição (mRNA) e posterior tradução (proteína) de genes específicos, que serão o alvo preciso da ação androgênica. Além desse mecanismo clássico,  evidências  recentes  indicam  que,  à  semelhança  do  observado  com  receptores  estrogênicos,  também  haja  o envolvimento de receptores androgênicos de membrana em ações rápidas, não genômicas, em diversos tecidos.

▸ Efeitos fisiológicos Os  hormônios  androgênios  são  fundamentais  para  a  diferenciação  sexual,  o  amadurecimento  sexual  e  a  fertilidade masculina.  A  ativação  do  receptor  androgênico  promove  a  transcrição  de  determinados  genes  e  inibe  a  expressão  de outros. Isso ocorre em grande variedade de tipos celulares e tecidos, o que resulta em ampla gama de efeitos fisiológicos. Esses  efeitos  são  evidentes  durante  a  diferenciação  sexual  no  feto  masculino  (sendo  denominados  caracteres  sexuais primários)  e  a  partir  da  puberdade  (sendo,  então,  chamados  de  caracteres  sexuais  secundários).  Algumas  dessas transformações  são  definitivas,  mesmo  que  cesse  a  produção  de  testosterona,  enquanto  outras  podem  ser  revertidas  por uma eventual castração ou insuficiência gonádica no homem adulto. Os principais efeitos fisiológicos da testosterona são ilustrados  no  Quadro  71.1.  Alguns  são  exercidos  diretamente  pela  ligação  da  testosterona  ao  receptor  androgênico, enquanto  outros  envolvem  a  conversão  da  testosterona  em  DHT  ou  estradiol,  que  atuam,  respectivamente,  sobre  os receptores androgênico e estrogênico.

EIXO HIPOTÁLAMO­HIPÓFISE­TESTÍCULO

O hipotálamo controla a função testicular por meio da secreção intermitente (em “pulsos”) de hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRH), que por sua vez estimula a hipófise a liberar, no mesmo ritmo, o hormônio luteinizante (LH) e o hormônio foliculestimulante (FSH) (para mais detalhes, ver Capítulo 65, Hipotálamo Endócrino, e Capítulo 66, Glândula Hipófise). Ambas as gonadotrofinas atuam diretamente no testículo e controlam tanto a espermatogênese como a produção de hormônios (Figura 71.5). O  FSH  estimula  o  crescimento  testicular  durante  a  puberdade  e  aumenta  a  produção  de  uma  proteína  ligadora  de androgênios  (ABP)  pelas  células  de  Sertoli.  Essa  proteína  assegura  altas  concentrações  locais  de  testosterona,  um  fator imprescindível para a espermatogênese normal. O FSH também estimula a atividade de aromatase nas células de Sertoli, o que  favorece  a  produção  local  de  estradiol.  Indiretamente,  a  maturação  das  células  de  Leydig  e  sua  produção  de androgênios  também  podem  ser  influenciadas  pelo  FSH,  que  modula  os  efeitos  do  LH  por  intermédio  de  fatores autócrinos e parácrinos.

Quadro 71.1 ■ Efeitos fisiológicos da testosterona e/ou de seus derivados ativos di­ hidrotestosterona (DHT) e estradiol. Ações

Esteroide ativo

Diferenciação sexual: crescimento e diferenciação dos ductos de Wolff

Testosterona

Diferenciação sexual: masculinização da genitália externa

DHT

Maturação sexual na puberdade

DHT

Promoção e manutenção da espermatogênese

Testosterona

Desenvolvimento embrionário da próstata e crescimento e atividade no

DHT, estradiol

adulto Inibição do desenvolvimento mamário

Testosterona

Efeito anabólico sobre músculos

Testosterona

Efeito anabólico sobre a medula óssea aumentando a eritropoese

Testosterona

Produção renal de eritropoetina Alongamento das cordas vocais, crescimento da laringe e agravamento da

Testosterona

voz Atividade das glândulas sebáceas

DHT

Desenvolvimento de pelos corporais terminais

DHT

Padrão masculino de distribuição de pelos do escalpo

DHT

Indução enzimática e regulação da síntese proteica hepática

Testosterona, DHT

Regulação da secreção de gonadotrofinas e GnRH

Testosterona, estradiol

Efeitos sobre a libido

Testosterona, DHT, estradiol

Figura  71.5  ■   Eixo  hipotálamo­hipófise­testículo.  Linhas  contínuas  representam  secreção  de  hormônios;  linhas tracejadas  indicam  retrocontrole  negativo.  T,  testosterona;  GnRH,  hormônio  liberador  de  gonadotrofinas;  LH,  hormônio luteinizante; FSH, hormônio foliculestimulante.

Em homens com supressão da produção de gonadotrofinas, a espermatogênese cessa na sua fase inicial e nem mesmo espermatócitos  são  formados.  Para  que  a  espermatogênese  seja  restaurada,  é  necessário  administrar  medicamentos  com atividade de ambas as gonadotrofinas. A seguir, o processo pode ser mantido artificialmente apenas com a administração de um hormônio com atividade de LH, mas a quantidade de espermatozoides produzidos será inferior ao normal. Portanto, a produção e a maturação de espermatozoides requerem a presença e a ação combinada das duas gonadotrofinas. A  secreção  de  testosterona  é  regulada  pelo  LH,  que  atua  nas  células  de  Leydig  tendo  como  segundo  mensageiro  o cAMP.  Este  estimula  a  mobilização  de  colesterol  a  partir  dos  ésteres  colesterol  e  sua  conversão  à  pregnenolona.  A testosterona,  por  sua  vez,  inibe  a  secreção  de  GnRH  pelo  hipotálamo  e  atua  diretamente  nos  gonadotrofos  hipofisários, inibindo a secreção de LH. No entanto, um efeito inibitório da testosterona sobre a secreção de FSH só é obtido com altas concentrações.  De  outra  parte,  as  células  de  Sertoli  produzem  inibina  B,  que  atua  especificamente  na  retroalimentação negativa da secreção hipofisária de FSH (ver Figura 71.5). As  inibinas  são  glicoproteínas  constituídas  por  duas  subunidades,  α  e  β.  Cada  subunidade  é  uma  cadeia  proteica codificada por um gene específico e, portanto, sujeita a mecanismos independentes de controle da sua produção. Tal como em outros hormônios glicoproteicos, a subunidade β é a que confere especificidade às inibinas. Dois tipos de subunidade β têm importância fisiológica comprovada: βA e βB, que unidas à subunidade α constituem, respectivamente, as inibinas A e B. As subunidades de inibina estão presentes no testículo humano desde a vida fetal. Na metade da gestação, as células de  Sertoli  exprimem  as  subunidades  α  e  βB,  enquanto  as  células  de  Leydig  exibem,  além  dessas  duas,  também  a subunidade βA, mas esta última não é utilizada para formar inibina. Assim, o principal produto liberado pelo testículo é a inibina B (α/βB). As  células  de  Sertoli  são  capazes  de  produzir  as  subunidades  α  e  βB  antes  da  puberdade,  mas  depois  dela  passam  a fabricar apenas a subunidade α, enquanto a subunidade βB começa a ser produzida pelas células germinativas em processo de maturação e, em menor quantidade, pelas células de Leydig. Para que haja produção adequada de inibina B no testículo do adulto, é preciso haver células de Sertoli em número suficiente, estímulo do FSH e espermatogênese. Quando se injeta FSH em homens adultos, não ocorre um aumento imediato da inibina B na circulação, mas apenas da proteína precursora

da  subunidade  α,  que  é  liberada  agudamente  pelas  células  de  Sertoli.  Posteriormente,  em  decorrência  do  estímulo  à espermatogênese, aumentam também a produção da subunidade βB e a consequente secreção de inibina B. Estudos  avaliando  amostras  de  sangue  da  veia  espermática  indicam  que  a  inibina  é  liberada  em  ritmo  de  pulsos, coincidentes  com  os  pulsos  de  testosterona,  o  que  sugere  que  ambos  os  hormônios  respondam  ao  estímulo  intermitente das gonadotrofinas. Todavia, experimentos em primatas demonstraram que o efeito das gonadotrofinas sobre a produção de  inibina  deriva  do  estímulo  do  FSH  sobre  as  células  de  Sertoli,  enquanto  o  efeito  sobre  a  produção  de  testosterona resulta do estímulo do LH sobre as células de Leydig (ver Figura 71.5).

MATURAÇÃO E FUNÇÃO SEXUAL ▸ Puberdade Puberdade é o conjunto de transformações que marcam o amadurecimento sexual e o início da fertilidade. Um evento que precede a puberdade é o aumento da secreção de androstenediona e desidroepiandrosterona (DHEA) pela suprarrenal (adrenal), que recebe o nome de adrenarca e ocorre, em meninos, por volta dos 6 a 8 anos. Esse aumento na produção de androgênios suprarrenais é em parte responsável pelo aparecimento dos primeiros pelos axilares e pubianos. Durante  o  período  da  adrenarca,  a  concentração  plasmática  de  testosterona  ainda  é  baixa  e  sofre  apenas  ligeiro aumento, em grande parte pela conversão de androstenediona e DHEA de origem suprarrenal. No entanto, neste período, a testosterona circulante já é suficiente para exercer retroalimentação negativa sobre o LH, como sugere a observação de que a retirada dos testículos, nesta fase da vida, resulta em aumento do LH plasmático. O  início  da  puberdade  é  marcado  pelo  surgimento  da  secreção  pulsátil  de  LH  durante  o  sono,  sinalizando  uma reativação  da  pulsatilidade  de  GnRH,  como  havia  ocorrido  nos  períodos  de  vida  intrauterina  e  primeiros  anos  pós­natal. Os mecanismos responsáveis por este processo de despertar hipotalâmico da puberdade não estão ainda bem estabelecidos, embora  a  influência  de  alguns  neurotransmissores,  neuromoduladores  e  hormônios  tenha  sido  postulada  (como  leptina, melatonina,  endorfina,  peptídio  Y,  óxido  nítrico  e  kisspeptina).  Com  o  passar  do  tempo,  percebe­se  um  aumento  do  LH também  no  período  diurno,  seguido  pelo  aumento  da  testosterona.  Esse  aumento  da  secreção  de  LH  deve­se  tanto  à liberação mais intensa de GnRH pelo hipotálamo, quanto à maior sensibilidade da hipófise ao estímulo hipotalâmico. A  etapa  seguinte  é  o  crescimento  e  amadurecimento  testicular,  com  incremento  significativo  na  produção  de testosterona  e  início  da  espermatogênese.  Como  resultado  do  aumento  da  testosterona,  segue­se  o  surgimento  dos caracteres sexuais secundários.

▸ Maturidade e senescência A maturidade sexual é obtida por volta dos 16 aos 18 anos, quando os níveis circulantes de testosterona encontram­se entre  3  e  10  ng/m ℓ .  Neste  período,  a  produção  de  espermatozoides  é  ótima  e  a  maior  parte  dos  caracteres  sexuais secundários já se completou. A partir dos 40 anos, os níveis circulantes de testosterona diminuem gradualmente. Aos 50 anos, observa­se também uma  redução  na  produção  espermatogênica.  O  declínio  nos  níveis  de  testosterona  é  da  ordem  de  1  ng/m ℓ   por  década; porém,  suas  repercussões  clínicas  não  estão  ainda  bem  estabelecidas.  No  entanto,  em  alguns  indivíduos  a  queda  da testosterona  pode  ser  compatível  com  níveis  observados  no  hipogonadismo.  Um  estudo  longitudinal  demonstrou  que  a frequência  de  indivíduos  com  valores  de  testosterona  compatíveis  com  hipogonadismo  pode  ser  de  20,  30  e  50%  para homens com mais de 60, 70 e 80 anos, respectivamente.

MÉTODOS DE AVALIAÇÃO E RESTAURAÇÃO DA FUNÇÃO ENDÓCRINA E REPRODUTIVA MASCULINA A história clínica e o exame físico permitem obter dados sobre o desenvolvimento sexual, sintomas atuais referentes à função  gonádica  e  possíveis  causas  de  doença.  Entre  os  sintomas  atuais,  podem­se  mencionar  a  infertilidade  e  a diminuição da libido e da função sexual. Exemplos de fatores associados à disfunção gonádica masculina incluem, entre outros, história de quimioterapia ou radioterapia, consumo abusivo de álcool, dor ou aumento de volume testicular ou uso de  fármacos  que  interferem  com  a  função  testicular.  O  exame  físico  permite  determinar  se  o  desenvolvimento  sexual  é compatível com a idade do indivíduo e informa sobre a presença de sinais inflamatórios no testículo.

▸ Espermograma A  análise  do  sêmen  permite  determinar  o  número,  a  morfologia  e  a  motilidade  dos  espermatozoides  ejaculados.  São considerados valores normais aqueles iguais ou superiores a 15 milhões de espermatozoides/mℓ de líquido ejaculado ou acima de 39 milhões por ejaculação, e mais que 32% dos espermatozoides devem ter motilidade progressiva. O percentual de células morfologicamente normais deve ser superior a 4%, utilizando­se critérios estritos de avaliação morfológica. Um espermograma  alterado  deve  ser  repetido  mais  de  uma  vez,  em  meses  subsequentes,  antes  que  esta  alteração  seja considerada de relevância clínica.

▸ Avaliação endócrina A  dosagem  de  testosterona  é  o  teste  mais  importante  de  avaliação  da  função  endócrina  testicular,  e  valores  baixos indicam,  em  geral,  um  quadro  de  hipogonadismo.  Quando  a  dosagem  de  testosterona  e/ou  o  espermograma  estiverem alterados, a avaliação será complementada pela determinação de FSH e LH. Níveis aumentados de gonadotrofinas indicam disfunção  primária  testicular  (hipogonadismo  primário),  enquanto  concentrações  normais  ou  subnormais sugerem hipogonadismo secundário de  causa  central.  Finalmente,  uma  situação  em  que  ao  espermograma  o  número  de espermatozoides  está  diminuído,  a  testosterona  e  o  LH  são  normais  e  o  FSH  aumentado  indica  lesão  nos  túbulos seminíferos, com produção normal de testosterona pelas células de Leydig. Na suspeita de hipogonadismo secundário, será importante completar a investigação por meio de exame de imagem do SNC.

▸ Biopsia testicular A biopsia testicular é indicada quando o espermograma mostra ausência de espermatozoides (azoospermia). A biopsia permite definir se a azoospermia é puramente obstrutiva ou se decorre de alterações histológicas nos túbulos seminíferos. As alterações podem ser leves, como a hipoespermatogênese; moderadas, como a parada de maturação; ou graves, como o padrão Sertoly only e a fibrose testicular. O padrão histológico do epitélio seminífero pode definir se há possibilidade de recuperar espermatozoides viáveis para fertilização in vitro através de punção do testículo ou do epidídimo.

▸ Tratamento do hipogonadismo O  tratamento  do  hipogonadismo  masculino  baseia­se  na  prescrição  de  testosterona,  em  formulações  injetáveis  ou transdérmicas,  em  gel,  adesivo  ou  solução.  Essas  formulações,  em  doses  fisiológicas,  mantêm  concentrações relativamente estáveis de testosterona sérica. A terapia de reposição com testosterona suprime gonadotrofinas e o processo de  espermatogênese,  embora  seus  efeitos  sobre  indivíduos  com  hipogonadismo  que  têm  alguma  função  de espermatogênese  ainda  não  tenham  sido  bem  estudados.  Assim,  outros  tratamentos  devem  ser  considerados  para indivíduos  hipogonádicos  com  desejo  de  fertilidade,  como  o  uso  de  gonadotrofinas,  bomba  de  infusão  com  GnRH  e técnicas de reprodução assistida.

▸ Reprodução assistida na infertilidade masculina A  fertilização  natural  do  óvulo  humano  requer  milhões  de  espermatozoides  móveis  depositados  no  sistema  genital feminino  para  que  haja  probabilidade  de  um  único  espermatozoide  concluir  o  processo.  Na  fertilização  artificial, realizada in vitro, basta um espermatozoide viável, ainda que imóvel, pois ele é injetado dentro do citoplasma do oócito. Essa técnica de reprodução assistida, conhecida como intracytoplasmic sperm injection (ICSI), contorna o problema mais comum  na  infertilidade  masculina,  que  é  o  número  insuficiente  de  espermatozoides  móveis  e  progressivos  no  ejaculado, apesar  de  não  tratar  as  causas  do  problema.  Como  a  ICSI  permite  a  geração  de  embriões  a  partir  de  espermatozoides potencialmente  imperfeitos,  que  não  passaram  pela  seleção  natural  da  corrida  pela  fertilização,  pode  haver  a  transmissão de  genes  defeituosos  que  a  seleção  natural  teria  descartado.  Contudo,  estudos  a  longo  prazo  verificaram  que  crianças nascidas a partir de ICSI apresentam desenvolvimento normal.

▸ Criopreservação seminal O  espermatozoide  é  uma  célula  com  citoplasma  relativamente  pequeno  e,  portanto,  com  baixo  teor  de  água.  Essa característica favorece a sua conservação em baixa temperatura com dano mínimo às estruturas celulares, pois com menor teor  de  água  há  menor  probabilidade  de  formação  de  cristais  de  gelo  no  interior  da  célula  durante  o  processo  de

congelamento.  Mantidos  em  nitrogênio  líquido  à  temperatura  de  –196°C,  os  espermatozoides  permanecem  vivos  por tempo indeterminado e, uma vez descongelados, recobram a vitalidade e a motilidade. O congelamento permite a formação de bancos de esperma de doadores anônimos, bem como a preservação de sêmen para uso futuro do próprio indivíduo. É uma  técnica  de  preservação  da  fertilidade  de  homens  que  precisam  submeter­se  a  radioterapia  ou  a  quimioterapia  com fármacos que podem lesar o epitélio seminífero e comprometer a espermatogênese.

▸ Contracepção Na atualidade, as opções para contracepção masculina restringem­se ao uso de condom (preservativos) e à vasectomia. No  entanto,  novos  métodos  reversíveis  de  contracepção  masculina  estão  em  fase  de  desenvolvimento  e  poderão  estar disponíveis no futuro.

Sistema Genital Feminino Celso Rodrigues Franci | Janete Aparecida Anselmo­Franci O  sistema  genital  feminino  compreende  as  gônadas  femininas  (ovários)  e  o  trato  genital  feminino  (constituído  por tubas uterinas, útero e vagina) (Figura 71.6).  Esse  sistema  apresenta  características  estruturais  e  funcionais  distintas  em cada  fase  da  vida:  fetal,  infantil,  juvenil,  adulta  reprodutiva,  climatério  ou  perimenopausa,  menopausa  e  pós­menopausa. Na fase fetal, ocorrem a diferenciação e o desenvolvimento do sistema genital. Na primeira etapa da vida extrauterina, a fase infantil, ele é mantido quiescente, sem dimensão estrutural e funcionalidade adequadas para atividade reprodutiva. A fase  juvenil  (ou  puberdade)  é  uma  transição  entre  as  fases  infantil  e  adulta  em  que  acontece  uma  série  de  alterações estruturais e funcionais para estabelecer a capacidade reprodutiva. A fase adulta reprodutiva (ou menacme) é caracterizada por  um  processo  repetitivo  de  alterações  estruturais  e  funcionais  conhecido  como  ciclo  menstrual,  que  ocorrem  com periodicidade  relativamente  constante  com  duração  mais  comum  de  28  dias,  podendo  variar  entre  25  e  35  dias.  Nos primeiros 2 anos após a menarca (ou primeira menstruação) e no climatério, geralmente, ocorrem ciclos menstruais mais longos e anovulatórios. A cada ciclo, o organismo é preparado para uma gestação; se não se der a implantação no útero do óvulo  fecundado  pelo  espermatozoide,  o  ciclo  é  encerrado  e  outro  é  iniciado  para  repetir  a  preparação  do  organismo  na expectativa  de  uma  gestação.  A  exaustão  desta  capacidade  reprodutiva  é  marcada  pela  interrupção  desse  processo repetitivo, a menopausa,  a  qual  é  diagnosticada  1  ano  após  a  última  menstruação.  Essa  interrupção  é  precedida  por  uma fase transitória (climatério ou perimenopausa), marcada por irregularidades do ciclo menstrual, diminuição de fertilidade, alterações de humor, ondas de calor, entre outros sintomas. Todas as modificações estruturais e hormonais que ocorrem nas diferentes fases da vida reprodutiva estão sob controle de uma sequência de eventos que acontecem de modo sincronizado e envolvem diversos fatores centrais e periféricos. Em essência,  o  ovário  é  responsável  pelo  desenvolvimento  dos  folículos  que  contêm  os  gametas  e  pela  ovulação,  bem  como pela  produção  de  hormônios  sexuais  que  agem  no  trato  reprodutivo.  A  secreção  destes  hormônios  está  sob  controle  das gonadotrofinas  adeno­hipofisárias,  o  hormônio  luteinizante  (LH)  e  o  hormônio  foliculestimulante  (FSH),  os  quais obedecem à ação estimuladora do hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRH) produzido em neurônios hipotalâmicos, que  constituem  a  via  final  comum  de  uma  rede  neural  complexa  com  participação  de  inúmeros  neurotransmissores  e neuropeptídios.

ESTRUTURA OVARIANA Os ovários são constituídos por: córtex, onde se encontram os folículos em diferentes estágios de desenvolvimento ou em regressão, ou atresia (no período entre menarca e menopausa), circundados por tecido conjuntivo do estroma e células hilares, semelhantes às células de Leydig do testículo, que têm atividade secretora; medula, onde estão presentes células estromais, células hilares, fibras musculares lisas e elementos vasculares e nervosos; e hilo, onde predominam as células hilares  e  trafegam  a  inervação  e  os  vasos  sanguíneos  e  linfáticos  (Figura  71.7).  O  ovário  recebe  inervação  de  origem predominantemente simpática, proveniente dos plexos renal e hipogástricos superior e inferior (ou pélvico) e dos nervos intermesentéricos. A irrigação ovariana é feita por ramos das artérias ovarianas e uterinas que atingem a medula e depois o córtex. O sangue capilar passa para veias que formam o plexo pampiniforme, que origina a veia ovariana.

▸ Ciclo ovariano | Foliculogênese, ovulação e formação e regressão do corpo lúteo Na mulher em menacme, o ciclo ovariano normal regular corresponde ao período entre duas ovulações sucessivas. O período pré­ovulatório dura de 9 a 23 dias e é chamado de fase folicular. Nesta  fase,  ocorre  o  desenvolvimento  final  do folículo  ovariano  e  predominam  as  ações  dos  estrogênios,  no  preparo  do  trato  genital  feminino  para  o  transporte  de gametas  e  a  fertilização.  A fase ovulatória dura  de  1  a  3  dias;  trata­se  da  fase  em  que  ocorre  o  pico  pré­ovulatório  de gonadotrofinas  e  que  culmina  com  a  ovulação.  O  período  pós­ovulatório  é  denominado fase lútea,  que  se  inicia  após  a ovulação, dura em média 14 dias e termina com o início da menstruação; nesta fase, predominam as ações da progesterona na preparação do trato genital feminino para implantação e manutenção do embrião.

Desenvolvimento folicular (foliculogênese) Embora  muitos  dos  processos  envolvidos  na  reprodução  feminina  sejam  cíclicos,  o  crescimento  e  a  atresia  dos folículos ocorrem de maneira contínua desde a vida intrauterina até o final da vida reprodutiva. Estes eventos são descritos a seguir e ilustrados nas Figuras 71.8 a 71.10.

Figura 71.6 ■ O sistema genital feminino.

Figura 71.7 ■ Ciclo ovariano. (Adaptada de Netter, 1997.)

Folículo primordial Entre a 6a e a 8a semanas  de  gestação,  inicia­se  um  processo  acelerado  de  divisão  mitótica  das  células  germinativas primordiais do feto originando as oogônias, que atingem um número máximo de 6 a 7 milhões ao redor da 20a  semana. Paralelamente, a partir da 11a à 12a semana, começa a divisão meiótica das oogônias, interrompida em prófase, originando os  oócitos  cujo  número  máximo,  em  torno  de  5  milhões,  é  atingido  ao  redor  da  24a  semana.  Estes  oócitos  ficam quiescentes em prófase I até o momento da ovulação. Eles vão sendo envolvidos por uma camada de células aplanadas e fusiformes  do  estroma  (células  foliculares  ou  pré­granulosas).  O  invólucro  mais  externo,  que  completa  o  conjunto, denominado  folículo  primordial,  é  a  lâmina  basal.  Durante  os  diferentes  estágios,  desde  a  divisão  mitótica  das  células germinativas até a constituição dos folículos primordiais, ocorre perda de material germinativo. Posteriormente, ainda na vida intrauterina, parte dos folículos primordiais que inicia o desenvolvimento não atinge a fase pré­antral e sofre atresia, de  modo  que  ao  nascimento  o  número  destes  folículos  está  reduzido  a  cerca  de  2  milhões,  dos  quais  apenas  400  mil estarão  presentes  no  ovário  ao  iniciar­se  a  puberdade.  Ou  seja,  durante  a  infância  também  se  dá  depleção  contínua  de folículos primordiais, pelo mesmo processo de início de desenvolvimento seguido de atresia. Durante a vida reprodutiva da mulher, em geral iniciada na primeira metade da segunda década de vida e finda na segunda metade da quinta década de vida, totalizando aproximadamente 35 anos, somente 400 a 500 folículos primordiais terão desenvolvimento completo até a  ovulação.  O  processo  de  crescimento  e  de  atresia  folicular  é  contínuo  desde  a  infância  até  a  menopausa,  não  sendo interrompido por gestação, ovulação ou períodos anovulatórios. Assim, mesmo que a mulher tome contraceptivo oral por longos  períodos  ou  tenha  várias  gestações,  continua  perdendo  seus  oócitos  e  atinge  a  menopausa  na  mesma  época  que mulheres nulíparas (que nunca pariram) ou que não fizeram uso de contraceptivos. Esse folículo não secreta hormônios e sua formação independe da ação das gonadotrofinas. Folículo primário A primeira etapa do desenvolvimento folicular é a transformação do folículo primordial em folículo primário, que se caracteriza  pelo  aumento  do  tamanho  do  oócito,  formação  da  zona  pelúcida  e  alteração  das  células  pré­granulosas fusiformes  do  formato  achatado  para  cuboide  com  núcleo  arredondado,  constituindo  a  primeira  camada  de  células  da granulosa.  A  zona  pelúcida  é  uma  camada  de  mucopolissacarídios  produzidos  pelas  células  da  granulosa  que  adere  ao

oócito, envolvendo­o completamente. As células da granulosa estabelecem pontes (gap junctions) através da zona pelúcida para manter o contato com o oócito e, assim, preservar a comunicação com ele. Folículo secundário Na transformação de folículo primário para secundário, o oócito aumenta de tamanho, e ocorre proliferação das células da granulosa, constituindo­se múltiplas camadas e pontos de comunicações entre elas (gap junctions), além de acúmulo de líquido entre estas. Nesta fase inicia­se a organização de outra camada celular, mais externa à granulosa, que se dispõe ao redor  de  toda  a  lâmina  basal,  e  sustenta  a  camada  granulosa.  Essa  nova  camada  celular  é  composta  de  células mesenquimais  estromais,  de  forma  alongada,  constituindo  a  camada  tecal.  As  células  da  teca  mais  próximas  da  lâmina basal  tornam­se  epitelioides  e  adquirem  características  secretoras,  formando  a  teca  interna,  que  responde  ao  LH.  As células  mais  distantes  da  lâmina  basal  compõem  a  teca  externa,  que  recebe  inervação  do  sistema  nervoso  simpático.  Na teca,  ocorre  um  processo  de  angiogênese  para  promover  o  suprimento  sanguíneo  do  folículo.  A  camada  de  células  da granulosa mantém­se avascular, sendo suprida por substâncias que se difundem da camada tecal. Os folículos secundários maduros constituem o conjunto de folículos chamados de pré­antrais de 1a ordem. Esses folículos têm diâmetro de 120 a 200  μm.  As  células  da  granulosa,  estimuladas  pelo  FSH,  começam  a  secretar  líquido  folicular  nos  espaços  entre  elas, formando  os  folículos  pré­antrais,  um  estágio  mais  avançado  dos  folículos  secundários.  O  líquido  folicular  é  composto não  somente  por  produtos  do  metabolismo  das  células  da  granulosa,  mas  também  de  fatores  plasmáticos  transferidos através da barreira folicular. À medida que os folículos crescem, esses espaços com líquido folicular se unem, formando o antro folicular. Cada conjunto de folículos pré­antrais de 1a ordem formado inicia uma onda de desenvolvimento folicular (ver Figura 71.8).

Figura  71.8  ■   Representação  esquemática  da  sequência  de  eventos  de  uma  das  várias  ondas  foliculares,  na  qual  um  dos folículos passou por todas as etapas de desenvolvimento e atingiu a ovulação. Na mulher em menacme, várias ondas foliculares iniciam­se continuamente a partir de um grupo de folículos secundários e ocorrem simultaneamente no ovário, de modo que são encontrados  folículos  em  diferentes  estágios  de  desenvolvimento.  A  duração  da  sequência  de  eventos  desde  o  folículo secundário até a ovulação gira em torno de 85 dias.

Figura 71.9 ■ Fotomicrografia de um corte histológico do ovário contendo folículos em diferentes estágios do desenvolvimento.

Figura 71.10 ■ Fotomicrografia de um folículo antral.

Folículo antral Na formação do antro folicular, as células da granulosa se reorganizam. Nesse processo, o oócito e parte das células da granulosa que o envolve deslocam­se gradualmente em direção à periferia do folículo. Algumas células se concentram na parede do folículo formando o cumulus oophorus, que serve de apoio para o oócito. Assim, o cumulus oophorus mantém o  oócito  flutuando  no  líquido  folicular,  que  se  acumula  de  maneira  crescente  durante  o  desenvolvimento  folicular  e

promove  o  crescimento  do  antro  associado  ao  aumento  da  parede  folicular.  As  células  do cumulus  oophorus  estão  em continuidade à coroa radiada, que consiste em duas ou três camadas de células que envolvem o oócito. Este é denominado folículo maduro, folículo pré­ovulatório ou folículo de Graaf (ver Figura 71.10). Onda folicular Cada conjunto de folículos pré­antrais de 1a ordem formado inicia uma onda de desenvolvimento folicular (ver Figura 71.8). Uma onda completa de desenvolvimento folicular, desde os folículos pré­antrais de 1a ordem até a ovulação de um de seus folículos, dura cerca de 85 dias. Portanto, o folículo que atinge a ovulação em um determinado ciclo iniciou seu desenvolvimento  cerca  de  três  ciclos  antes.  Assim,  o  ovário  em  idade  reprodutiva  apresenta  conjuntos  de  folículos  em diferentes estágios de desenvolvimento (ver Figura 71.9). A onda de desenvolvimento folicular tem duas fases distintas. A primeira, a fase de desenvolvimento tônico ou lento, dura 65 a 70 dias e depende da ação de FSH. Nessa fase, o folículo secundário  pré­antral  (ou  folículo  de  1a  ordem)  é  transformado  em  folículo  antral  (ou  folículo  de  2a  ordem)  e sucessivamente  em  folículo  de  3a, 4a e 5a ordens.  O  surgimento  do  antro  ocorre  durante  a  transformação  do  folículo  de 1a ordem em folículo de 2a ordem, pela coalescência (ou junção) do líquido que se acumula e abre espaços entre as células granulares. Recrutamento folicular Das coortes (ou legiões) de folículos de 5a ordem de mesmas características, com diâmetro de 2.000 μm (2 mm), uma delas  será  recrutada  no  final  da  fase  lútea  de  um  ciclo  menstrual,  para  o  processo  de  maturação  folicular  no  ciclo menstrual  subsequente,  em  que  um  dos  folículos  da  coorte  recrutada  atingirá  a  ovulação.  As  coortes  de  folículos  em desenvolvimento que não foram recrutadas sofrerão atresia. Esse recrutamento depende de FSH e marca a primeira etapa da segunda fase de uma onda de desenvolvimento folicular, a fase de desenvolvimento rápido ou exponencial. As outras três  etapas  desta  segunda  fase  são,  em  sequência:  seleção,  dominância  e  maturação  para  ovulação.  Nessas  etapas,  os folículos  de  5a  ordem  transformam­se  sequencialmente  em  folículos  de  6a,  7a  e  8a  ordens,  atingindo  nesta  última  um diâmetro  aproximado  de  20  mm.  A  segunda  fase  dura  em  torno  de  15  dias  e  depende  extremamente  de  gonadotrofinas (FSH e LH). Seleção e dominância folicular Na  coorte  de  folículos  de  5a ordem,  que  inicia  a  fase  de  desenvolvimento  rápido,  um  dos  folículos  tem  crescimento maior  que  os  demais.  Essa  seleção  vai  desencadear  um  processo  para  estabelecer  a  dominância  desse  folículo  sobre  os outros  folículos  de  ambos  os  ovários.  Não  é  claro  o  mecanismo  pelo  qual  acontece  a  seleção,  mas  esse  folículo  é diferenciado  estrutural  e  funcionalmente.  Ele  apresenta  maior  capacidade  de  proliferação  de  células  granulares  e  de produção de estrogênios e, em consequência, armazena mais estrogênio no líquido antral, tem maior sensibilidade ao FSH, expressa os receptores para LH nas células da granulosa e produz outros fatores, entre os quais a inibina e o VEGF (ou fator de crescimento endotelial vascular). Com a seleção e o início do processo de dominância folicular, ocorre diminuição da  secreção  de  FSH,  devido  à  retroalimentação  negativa,  exercida  neste  caso  principalmente  pelo  estrogênio,  e  auxiliada pela  inibina.  O  aumento  do  estrogênio,  associado  à  queda  na  secreção  de  FSH,  parece  ser  o  mecanismo  crítico  para  o processo  de  dominância  folicular.  Isso  porque  os  folículos  menos  desenvolvidos  ainda  são  dependentes  de  FSH  e  a redução  deste  hormônio  provoca  nos  folículos  menores  o  decréscimo  da  produção  de  estrogênios  e  da  sensibilidade  ao próprio  FSH,  além  de  acúmulo  de  androgênios.  Como  consequência  dessa  situação,  acontece  atresia.  Por  outro  lado,  o folículo que começa a estabelecer dominância produz mais estrogênios, o que parece ser determinado, entre outros fatores, por  maior  proliferação  de  vasos  neste  folículo  que  nos  folículos  antrais  menores.  O  VEGF,  produzido  pelas  células  da granulosa  estimuladas  pelo  FSH,  induz  aumento  de  vascularização  ao  redor  do  folículo  em  maturação.  Dados experimentais indicam que a deficiência de VEGF interrompe o desenvolvimento folicular pré­ovulatório. O maior aporte sanguíneo permite que o folículo dominante tenha acesso a maiores quantidades de gonadotrofinas. Isso poderia explicar por que, na presença de concentrações idênticas de gonadotrofinas séricas, apenas um folículo matura enquanto os demais sofrem atresia. Além disso, há evidências de que o folículo dominante produz fatores inibidores de crescimento folicular que  contribuem  para  o  processo  de  atresia  dos  outros  folículos.  O  processo  de  dominância  culmina  com  a  formação  do folículo de 8a ordem, que sofrerá ruptura geralmente em torno de 10 a 12 h após os picos pré­ovulatórios de LH e de FSH.

Ovulação

É o processo de ruptura folicular com a expulsão do oócito, juntamente com a zona pelúcida, o cumulus oophorus e parte do líquido folicular. O LH promove a continuidade da meiose no oócito, que será completada depois da fertilização pelo espermatozoide. Além disso, o LH promove expansão do cumulus oophorus, estimula a síntese de progesterona e de prostaglandinas, além de  iniciar  o  processo  de  luteinização  das  células  da  granulosa,  importante  para  a  futura  formação  do  corpo  lúteo.  As prostaglandinas  promovem  angiogênese,  hiperemia  e  contração  de  células  musculares  do  ovário,  que  contribuem  para expulsão  do  oócito  e  elementos  agregados.  A  progesterona  aumenta  a  distensão  da  parede  do  folículo,  que  passa  a acumular maior volume de líquido. O FSH e o LH estimulam a produção de plasminogênio pelas células da granulosa e da teca para formar plasmina, que ativa a colagenase. Esta enzima dissolve o colágeno da parede folicular, principalmente da lâmina basal. O FSH também aumenta a expressão de receptores para LH nas células da granulosa, essencial para o corpo lúteo  futuro,  e  estimula  a  formação  de  ácido  hialurônico,  que  dispersa  as  células  do cumulus  oophorus,  liberando­o  da parede folicular e tornando­o flutuante no líquido folicular. A ação de enzimas proteolíticas provoca também a ruptura das pontes de comunicação (gap junctions) entre o oócito e as células granulares. As alterações no processo final de maturação do  folículo  causam  na  superfície  do  ovário  uma  protuberância  de  forma  cônica,  o  chamado  estigma  folicular.  O rompimento desse estigma permite a extrusão do oócito e dos elementos agregados (Figura 71.11).

Formação e regressão do corpo lúteo Após a expulsão do oócito, a cavidade antral do folículo é invadida por uma rede de fibrina, por vasos sanguíneos e por células da granulosa e da teca interna, embora a maioria das células da teca se dispersem pelo estroma ovariano. As células da granulosa param de se dividir e sofrem hipertrofia, formando as células luteínicas grandes; estas são ricas em mitocôndrias,  retículo  endoplasmático  liso,  gotículas  de  lipídios  e,  em  muitas  espécies,  de  um  pigmento  carotenoide,  a luteína, responsável pela coloração amarelada do corpo lúteo. As células da teca compõem as células luteínicas menores. A transformação  destas  células  é  chamada  de  luteinização,  que  se  dá  sob  a  ação  do  LH,  daí  seu  nome  de  hormônio “luteinizante”, que significa “tornar amarelo”. O corpo lúteo é uma glândula endócrina temporária cuja formação começa poucas horas após a expulsão do oócito; sua secreção  hormonal  máxima  acontece  ao  redor  de  7  a  8  dias  após  a  ovulação.  Se  não  ocorre  fecundação  do  óvulo  pelo espermatozoide e início do processo de implantação do concepto, inicia­se a regressão do corpo lúteo, que se completa no 12o dia  depois  da  ovulação,  ou  seja,  2  dias  antes  da  menstruação.  A  fase  lútea  tem  duração  constante,  de  modo  que  as variações  na  duração  do  ciclo  em  mulheres  são  devidas  a  variações  na  duração  da  fase  de  desenvolvimento  folicular. Portanto,  pode­se  determinar  com  precisão  o  dia  da  ovulação  subtraindo­se  14  dias  do  1o  dia  da  menstruação  (Figura 71.12). O  processo  de  regressão  do  corpo  lúteo  é  chamado  de  luteólise  e  consiste  em  isquemia  e  necrose  progressiva  das células  endócrinas,  acompanhada  por  infiltração  de  leucócitos,  macrófagos  e  fibroblastos.  Forma­se  assim  um  tecido cicatricial avascular, o corpo albicans.  O  mecanismo  que  induz  a  luteólise  não  é  bem  entendido.  Presume­se  que  ocorra uma  redução  da  sensibilidade  das  células  luteínicas  às  concentrações  baixas  de  LH  durante  a  fase  lútea.  Outra  hipótese sugere que não é a falta de suporte luteotrófico, mas a produção de um fator luteolítico, que induz a regressão do corpo lúteo. Em algumas espécies, tem sido descrita uma sinalização de natureza química do endométrio uterino para o ovário, motivada pela falta de fertilização e implantação, para desencadear a luteólise no ovário. A prostaglandina F2α (de origem endometrial),  a  inibina  e  a  ocitocina  (produzidas  pelo  corpo  lúteo)  têm  sido  identificadas  como  possíveis  fatores luteolíticos. No entanto, estes mecanismos não foram confirmados em humanos.

Figura  71.11  ■   A.  Representação  esquemática  do  estigma  ovulatório.  B.  Fotografia  de  estigma  em  folículo  ovulatório  de mulher.  C.  Representação  esquemática  da  ovulação.  (Fotografia  gentilmente  cedida  pelo  Departamento  de  Ginecologia  e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP.)

Figura 71.12 ■ Representação esquemática de ciclos menstruais de duração mais frequente (28 dias), mais curta (24 dias) e mais longa (32 dias). Os dias de 1 a 5 são os da menstruação. Nota­se que o período pós­ovulatório, da ovulação (indicada pela seta) até a menstruação, corresponde à fase lútea, constante em todos os ciclos. Portanto, a variação na duração dos ciclos menstruais decorre da variação na duração da fase folicular.

O processo de crescimento folicular e a diferenciação posterior para corpo lúteo são complexos, e somente 0,1% dos folículos  completam  todos  os  estágios  com  sucesso.  Atresia  folicular  é  o  mecanismo  de  eliminação  de  folículos  que iniciaram o processo de desenvolvimento, mas não conseguiram completá­lo para atingir a ovulação. A grande maioria dos folículos sofre atresia em alguma etapa do desenvolvimento. A atresia folicular ocorre continuamente desde a vida fetal até a menopausa, e há várias evidências de que envolva apoptose, um mecanismo fisiológico de morte celular programada. A inversão  da  relação  estrogênio/androgênio  no  folículo,  provocando  hiperandrogenismo  folicular,  pode  ser  o  fator desencadeante da atresia. A atresia folicular se caracteriza por picnose, degeneração do oócito e uma série de alterações das células da granulosa e da teca, que dependem do estágio de desenvolvimento atingido pelo folículo. Entre estas alterações, ocorrem: redução do número  de  receptores  para  gonadotrofinas  e  estrogênios  nas  células  da  granulosa,  picnose  dos  núcleos  das  células granulares, luteinização das células da granular (mais frequente em ovários de gestantes), esfoliação de células granulares para  o  líquido  antral,  regressão  de  células  tecais  até  tornarem­se  indistinguíveis  de  células  estromais  do  ovário,  além  de invasão do antro por fibroblastos e vascularização.

HORMÔNIOS OVARIANOS Além da função gametogênica, representada por desenvolvimento folicular e liberação do óvulo, o ovário tem a função de secretar várias substâncias, entre as quais se destacam os hormônios esteroides sexuais: estrogênios, progestógenos e androgênios.

▸ Estrogênios Três estrogênios são importantes na mulher: β­estradiol, estrona e estriol. O mais importante é o estradiol, secretado pelo ovário e em pequena quantidade pela suprarrenal. A estrona, embora secretada em pequenas quantidades pelo ovário,

origina­se  principalmente  da  conversão  de  androgênios  em  tecidos  periféricos;  tem  1/12  da  potência  do  estradiol.  No fígado, ambos – estradiol e estrona – podem ser convertidos em um estrogênio mais fraco, o estriol, que apresenta 1/80 da potência do estradiol. Por este motivo, várias vezes, para nos referirmos aos estrogênios, citaremos apenas o estradiol.

▸ Progestógenos O mais importante deles, e que está em mais altas concentrações na circulação, é a progesterona, produzida no ovário e também  na  zona  reticulada  da  glândula  suprarrenal.  Pequenas  quantidades  de  17α­hidroxiprogesterona  são  também secretadas juntamente com a progesterona. Pela sua importância, muitas vezes a progesterona será o único progestógeno citado neste capítulo.

▸ Biossíntese dos esteroides sexuais Estes esteroides são produzidos a partir de colesterol, um precursor comum, que pode ser originado da dieta e captado do  sangue  circulante  ou  formado  no  fígado  a  partir  de  acetilcoenzima  A.  As  células  ovarianas  também  podem  sintetizar colesterol  de  novo.  A  síntese  desses  hormônios  pode  se  dar  em  diferentes  tipos  de  células  ovarianas  em  função  da presença das enzimas necessárias e suas respectivas quantidades. Assim, o principal hormônio produzido varia de acordo com o tipo de célula onde acontece sua síntese. O  colesterol  é  transportado  por  uma  proteína  reguladora  aguda  da  esteroidogênese  (proteína  StAR,  sigla  inglesa referente  ao  nome  da  proteína)  para  dentro  da  mitocôndria.  O  primeiro  passo  para  a  síntese  de  esteroides  ovarianos  é  a conversão,  na  mitocôndria,  do  colesterol  (com  27  átomos  de  carbono)  em  pregnenolona  (com  21  carbonos)  pela  enzima P450, conhecida como scc (side­chain­cleavage) ou 20,22­desmolase, que cliva a cadeia lateral do colesterol, de 6 carbonos (Figura 71.13). Estas duas etapas são dependentes da ação do LH e ocorrem nas células da teca interna durante toda a fase folicular, nas células da granulosa durante a fase folicular tardia e também nas células luteínicas. A partir da pregnenolona, as demais reações acontecem no citoplasma. Ela pode ser utilizada por duas vias distintas: pela  via  delta­4  (δ4),  em  que  será  transformada  em  progesterona,  17­hidroxiprogesterona  (ambas  com  21  carbonos)  e androstenediona (com 19 carbonos), ou pela via delta­5 (δ5), na qual será modificada em 17α­hidroxipregnenolona (com 21 carbonos), desidroepiandrosterona (DHEA) e androstenediona (ambas com 19 carbonos). A predominância de uma ou outra  via  depende  da  atividade  enzimática  presente  na  célula.  Nas  células  da  teca  interna  predomina  a  via  δ5  e  nas luteínicas, a via δ4. A  androstenediona  consiste  no  principal  androgênio  produzido  pelo  ovário.  Em  parte,  é  secretada  para  a  circulação sistêmica,  podendo  ser  convertida  em  testosterona  e  estrona  nos  tecidos  periféricos.  Outra  parte  da  androstenediona  se converte  em  testosterona  no  próprio  ovário.  Por  ação  da  enzima  aromatase,  a  androstenediona  e  a  testosterona  podem converter­se,  respectivamente,  em  estrona  e  em  estradiol  (ambos  com  18  carbonos).  A  estrona  pode  ser  convertida  em estradiol e vice­versa. Finalmente, no fígado o estradiol e a estrona se convertem em estriol.

▸ Transporte dos esteroides sexuais Os  esteroides  ovarianos  liberados  no  sangue  têm  afinidade  variável  por  proteínas  plasmáticas,  principalmente globulinas  e  albuminas.  Assim,  eles  circulam  na  forma  livre,  a  que  apresenta  atividade  biológica,  e  na  forma  ligada  a proteínas plasmáticas denominadas proteínas transportadoras ou ligantes. Menos de 10% da concentração plasmática dos hormônios  esteroides  ovarianos  circulam  na  forma  livre.  Para  cada  hormônio,  há  um  equilíbrio  dinâmico  entre  a  fração livre  e  a  ligada.  Essa  relação  pode  variar  em  condições  fisiológicas  e  patológicas.  A  fração  ligada  funciona  como  uma reserva circulante de hormônio, que pode ser mobilizada rapidamente à medida que se rompa a ligação do hormônio com a proteína transportadora e o hormônio torne à forma livre. Os estrogênios têm grande afinidade por uma proteína chamada globulina  ligante  de  esteroides  sexuais  (SHBG),  cuja  síntese  ocorre  no  fígado,  estimulada  pelos  estrogênios  e  inibida pelos androgênios. A progesterona tem mais afinidade pela transcortina ou proteína ligante de cortisol (CBG).

Figura 71.13 ■ Biossíntese dos hormônios sexuais femininos, com identificação das vias δ4 e δ5. As enzimas envolvidas em cada etapa estão indicadas por números e identificadas na parte inferior esquerda da figura.

A  proporção  entre  a  fração  livre  e  a  ligada  dos  estrogênios  não  tem  variação  significativa  durante  o  ciclo  menstrual, mas  modifica­se  no  decurso  da  gestação  devido  à  elevação  da  síntese  de  SHBG  estimulada  pelos  estrogênios.  A disponibilidade  maior  de  SHBG  aumenta  a  possibilidade  de  ligação  de  estrogênios  na  circulação  e,  por  conseguinte,  da fração ligada. A proporção também se altera após a menopausa ou em distúrbios ovarianos em que se verifica aumento da secreção de androgênios. A síntese de SHBG também pode crescer no hipertireoidismo ou diminuir por ação de insulina, GH,  IGF­I  e  progesterona.  Há  uma  relação  inversa  entre  SHBG  e  peso  corporal,  e  na  obesidade  pode  ocorrer  alteração significativa  da  fração  livre  de  esteroides  sexuais.  A  elevação  de  SHBG  pode  ser  indicação  de  quadro  de  resistência  à insulina (ou hiperinsulinemia), enquanto a diminuição, indicação de diabetes tipo 2.

▸ Síntese dos hormônios não esteroides Além  dos  hormônios  esteroides,  o  ovário  produz  outras  substâncias  que  apresentam  ações  endócrinas,  parácrinas  e autócrinas já identificadas. Porém, os significados funcional e fisiopatológico de algumas destas substâncias não são bem conhecidos. As ativinas  (A,  B  e  AB)  e  as  inibinas  (A  e  B)  são  glicoproteínas  formadas  pela  combinação  de  duas  subunidades ligadas por duas pontes dissulfídicas. Há três tipos de subunidades que se combinam: uma de tipo alfa e duas de tipo beta (beta A e beta B). A combinação de duas cadeias beta, homólogas ou heterólogas, constitui a ativina A (duas cadeias beta A), a ativina B (duas cadeias beta B) e a ativina AB (uma cadeia beta A e outra beta B). As combinações da cadeia alfa com cada uma das cadeias beta compõem a inibina A (uma cadeia alfa e uma beta A) e a inibina B (uma cadeia alfa e outra

beta B). A secreção de um ou outro tipo de inibina varia durante o ciclo menstrual. A secreção de inibina pelas células da granulosa do ovário é estimulada pelo FSH. Por sua vez, a inibina faz retroalimentação negativa sobre a síntese e secreção de  FSH.  A  ativina  tem  ação  oposta  à  da  inibina  sobre  a  secreção  de  FSH.  O  estudo  da  inibina  tem  despertado  interesse pela possibilidade de este hormônio ser um indicador de climatério (ou perimenopausa), desde que haja evidências de uma relação  inversa  entre  concentrações  plasmáticas  de  inibina  (menores)  e  de  FSH  (maiores),  na  fase  folicular  de  mulheres neste período. A folistatina,  outra  substância  de  natureza  peptídica  produzida  pelo  ovário,  tem  ação  inibitória  sobre  a  secreção  de FSH, provavelmente por impedir a ação da ativina. A relaxina é  um  polipeptídio  sintetizado  principalmente  pelas  células  da  granulosa  luteinizadas  do  corpo  lúteo,  com estrutura  química  semelhante  à  da  insulina,  mas  sem  mostrar  atividade  insulínica.  Sua  secreção  é  estimulada  pela gonadotrofina coriônica e apresenta como ação mais conhecida o relaxamento dos ligamentos pélvicos e amolecimento do colo  uterino  na  gestação.  A  deficiência  de  relaxina  não  tem  sido  relacionada  com  alterações  na  gestação;  no  entanto,  sua hipersecreção  tem  se  associado  ao  parto  prematuro.  A  relaxina  também  é  produzida  no  útero  e  na  placenta,  entre  outros órgãos. Sua presença no sêmen parece facilitar a motilidade dos espermatozoides. Outras ações referidas desse hormônio são: aumento da síntese de glicogênio e da captação de água pelo miométrio, além de diminuição da contratilidade uterina. Um pico de relaxina ocorre imediatamente após o pico pré­ovulatório de LH e durante a menstruação, mas seu significado funcional não está esclarecido. Outras substâncias provavelmente  com  ações  parácrinas  e  autócrinas,  ainda  pouco  esclarecidas,  são  produzidas  pelo ovário,  como:  fatores  de  crescimento  (EGF,  TGF,  FGF,  PDGF,  TNF­alfa,  IL­1,  IGF­I),  pró­renina,  derivados  da  pró­ opiomelanocortina (ACTH, betalipotrofina, betaendorfina), CRH, endotelina, ocitocina.

▸ Controle da secreção de esteroides ovarianos pelas gonadotrofinas Modelo duas células–dois hormônios A síntese dos esteroides ovarianos ocorre de maneira coordenada e envolve obrigatoriamente os dois tipos de células foliculares,  da  granulosa  e  da  teca  (Figura  71.14).  Na  fase  folicular  do  último  ciclo  (em  que  um  grupo  de  folículos desenvolve­se para obter a dominância e atingir a ovulação), por volta do 5o ao 7o dia, acontece um aumento da síntese de estrogênios e de receptores para FSH nas células da granulosa e de receptores para o LH nas células da teca interna, o que torna  estas  células  mais  sensíveis  às  gonadotrofinas.  Isso  é  essencial  para  o  crescimento  adicional  do  folículo,  que  é totalmente  dependente  de  controle  hormonal;  além  disso,  o  aumento  de  receptores  para  o  FSH  confere  ao  folículo  a capacidade  de  manter  a  resposta  a  este  hormônio  à  medida  que  suas  concentrações  plasmáticas  diminuem  a  partir  desse momento.  Agora,  sob  a  influência  do  LH  as  células  da  teca  interna,  que  têm  baixa  atividade  da  enzima  aromatase,  irão produzir  androgênios  (testosterona  e  androstenediona).  Uma  vez  que  a  camada  granulosa  é  avascular,  os  androgênios produzidos na teca difundem­se para as células granulosas, nas quais o FSH não só estimula a proliferação celular como induz  a  síntese  da  enzima  aromatase,  que  converte  os  androgênios  provenientes  da  teca  interna  em  estrogênios.  Por  sua vez,  os  estrogênios  aumentam  a  expressão  de  receptores  para  o  FSH,  tornando  as  células  da  granulosa  mais  sensíveis  a este hormônio, que se encontra em baixas concentrações nessa fase do ciclo. O FSH, por sua vez, induz proliferação das células da granulosa e ativa a aromatase, com consequente crescimento do folículo e aumento na produção de estrogênios.

Figura 71.14 ■ Modelo duas células–dois hormônios. Durante a fase folicular, as células da teca interna expressam receptores para o LH e as da granulosa, receptores para o FSH. Nas células da teca interna, o LH, via cAMP, induz síntese da enzima side chain cleavage (scc) e a conversão do colesterol em androgênios (androstenediona e testosterona), principalmente pela via δ5 (setas  mais  espessas).  Uma  vez  que  estas  células  não  sintetizam  aromatase  e  a  camada  da  granulosa  é  avascular,  os androgênios produzidos na teca interna difundem­se para as células da granulosa, onde são convertidos pela aromatase em estradiol e estrona. O FSH, agindo também via cAMP, além de estimular a síntese de aromatase, induz proliferação das células da granulosa e crescimento folicular. No final da fase folicular, as células da granulosa passam a expressar receptores para o LH que,  via  cAMP,  estimula  a  síntese  de  scc,  convertendo  o  colesterol  em  progesterona.  Este  hormônio  não  é  metabolizado  a androgênios (linha pontilhada), pois essas células não produzem 17α­hidroxilase e 17,20­liase. As etapas compreendidas na chave  (*)  tornam­se  significativas  somente  no  final  da  fase  folicular  e  na  fase  lútea.  StAR,  proteína  reguladora  aguda  da esteroidogênese; DHEA, desidroepiandrosterona.

Assim, é gerado um mecanismo intraovariano de retroalimentação positiva responsável pelo aumento lento e gradual da produção de estrogênios. Entretanto, as concentrações de progesterona e androgênios permanecem baixas, uma vez que a maior parte da progesterona é convertida em androgênios, os quais são convertidos em estrogênios. Com o crescimento exponencial do folículo, a secreção de estrogênios, que aumenta lentamente na primeira metade da fase  folicular,  passa  a  se  elevar  de  modo  mais  acelerado  na  segunda  metade  desta  fase.  Neste  período,  isto  é,  na  fase folicular tardia, um dos folículos atinge a condição de dominância, cuja principal característica é a atividade aumentada da aromatase  e,  portanto,  maior  capacidade  de  produzir  estrogênios  quando  comparado  aos  folículos  antrais  menores.  Esta característica  dos  folículos  dominantes  parece  ser  determinada,  entre  outros  fatores,  por  um  aumento  mais  acentuado  da vascularização  que  o  verificado  nos  folículos  antrais  menores,  permitindo  ao  folículo  dominante  ter  acesso  a  maiores quantidades de gonadotrofinas. No final da fase folicular, de 2 a 3 dias antes do pico pré­ovulatório de LH e durante o pico de estrogênios, as células da granulosa do folículo ovulatório passam a sintetizar receptores para LH por ação do FSH e dos estrogênios. O LH ativa a  adenilciclase,  promovendo  a  formação  de  cAMP  a  partir  do  ATP,  e  desencadeia  uma  série  de  reações  que  induzem  a síntese da enzima scc, e portanto de esteroides a partir do colesterol. Devido a essas células apresentarem baixa atividade da  enzima  17,20­liase  (que  converte  a  17α­hidroxiprogesterona  em  androstenediona),  passam  a  produzir  quantidades aumentadas de progesterona e de 17α­hidroxiprogesterona, além de manterem a conversão dos androgênios provenientes da  teca  em  estrogênios.  A  concentração  plasmática  destes  progestógenos  aumenta  mais  rapidamente  nas  12  h  que

precedem o pico pré­ovulatório de gonadotrofinas (Figuras 71.15 e 71.16). No período pré­ovulatório, além da síntese de receptores para o LH nas células da granulosa, o fato de a camada de células da granulosa, que era avascular, passar a ser invadida  por  vasos  provenientes  da  teca  contribui  também  para  o  aumento  da  síntese  de  progestógenos.  Esta neovascularização  da  camada  da  granulosa  resulta  em  maior  exposição  às  gonadotrofinas  e  em  crescimento  do  aporte  do substrato (colesterol) para a síntese de esteroides, o que constitui um fator decisivo para o aumento agudo da secreção de progestógenos  na  fase  pré­ovulatória.  Embora  muitos  autores  proponham  que  o  aumento  da  secreção  de  progesterona ocorra  somente  após  o  pico  de  gonadotrofinas  e  da  ovulação,  pelo  corpo  lúteo,  uma  elevação  pré­ovulatória  de progesterona foi claramente demonstrada em um estudo clássico realizado em mulheres. Nesse estudo, durante 5 dias no período  periovulatório,  foram  medidas,  a  cada  2  h,  as  concentrações  plasmáticas  de  gonadotrofinas,  estradiol  e progesterona (ver Figura 71.16).  Este  estudo  mostra  que  a  secreção  de  progesterona  aumenta  no  final  da  fase  folicular, cerca de 12 horas antes da deflagração do pico pré­ovulatório de LH, sugerindo que este está relacionado com o aumento da secreção de progesterona. À  medida  que  iniciam  a  produção  de  progesterona,  as  células  da  granulosa  começam  a  perder  seus  receptores  para FSH e para os estrogênios, o que resulta em menor produção de estrogênios que de progesterona. Assim, a fase ovulatória é  caracterizada  por  concentrações  plasmáticas  elevadas  de  estrogênios  e  pelo  início  do  aumento  da  secreção  de progesterona  (e  de  17α­hidroxiprogesterona),  que  coincide  com  o  início  da  queda  do  pico  de  estrogênios  (ver  Figura 71.15). Nesse período, há também um crescimento, de menor magnitude, das concentrações plasmáticas de testosterona e de androstenediona.

Figura 71.15 ■ Perfil da secreção de gonadotrofinas (LH e FSH), estradiol (E2) e progesterona (P4) em um ciclo menstrual de 28 dias. O dia zero indica o dia do pico pré­ovulatório de gonadotrofinas. Na fase folicular (–14 a 0), ocorre um aumento gradativo de  estradiol.  Cerca  de  4  a  5  dias  antes  do  pico  de  LH,  o  crescimento  folicular  é  acelerado,  elevando  mais  rapidamente  a produção de estradiol, que atinge o máximo cerca de 1 dia antes do pico de LH. Na fase folicular tardia, 2 a 3 dias antes do pico de LH, inicia­se um aumento da secreção de progesterona. O aumento da secreção de estradiol e de progesterona induz os picos de LH e de FSH. Na fase lútea (0 a 14), o corpo lúteo secreta grande quantidade de progesterona e menor quantidade de estradiol. Depois de atingir a secreção máxima, ao redor do 7o dia, se não houve concepção, o corpo lúteo degenera, diminuindo a  produção  de  esteroides,  o  que  culmina  com  o  início  da  menstruação,  que  acontece  no  dia  14.  (Adaptada  de  Roseff  et  al., 1989.)

A elevação da produção de estrogênios e progesterona no final da fase folicular induz os picos pré­ovulatórios de LH (de grande magnitude) e de FSH (de menor magnitude). O aumento agudo de LH induz uma grande elevação da produção

do  líquido  antral  no  folículo  dominante,  acelerando  seu  crescimento  e  culminando  com  a  ruptura  da  parede  folicular  e  a expulsão do oócito. Assim, completa­se a primeira fase do ciclo ovariano, que é seguida pela fase lútea. Na  fase  lútea,  as  células  da  granulosa  luteinizadas  produzem  grande  quantidade  de  progestógenos,  principalmente progesterona,  embora  quantidades  significantes  de  17α­hidroxiprogesterona  sejam  secretadas.  Essas  células  produzem também estrogênios, em menor quantidade, principalmente o 17β­estradiol. Portanto, esta fase é caracterizada por grande pico  de  progesterona  e  um  pico  menor  de  estrogênios.  As  células  da  teca  interna  luteinizadas  produzem  progesterona  e androgênios  (androstenediona  e  testosterona).  Além  dos  esteroides  sexuais,  o  corpo  lúteo  secreta  também  inibina  e ocitocina. As concentrações plasmáticas de LH e FSH diminuem após os picos pré­ovulatórios e permanecem baixas até o final  da  fase  lútea,  quando  ocorre  outro  aumento  de  FSH.  A  formação  do  corpo  lúteo  é  inteiramente  dependente  do  pico pré­ovulatório  de  LH;  adicionalmente,  embora  os  fatores  que  asseguram  a  sua  manutenção  ainda  não  estejam  bem estabelecidos, sabe­se que concentrações basais de LH são importantes e suficientes para manter a função lútea.

Figura 71.16 ■ Dinâmica da secreção de gonadotrofinas (LH e FSH), estradiol (E2) e progesterona (P4) no período periovulatório, em mulheres. As amostras sanguíneas foram colhidas a cada 2 horas durante 5 dias. Os pontos de interseção (círculos rosa) das duas retas traçadas nos gráficos do LH e da progesterona (tracejadas em rosa) correspondem ao momento de mudança do ritmo (angulação da reta) de secreção e indicam o início dos picos desses hormônios. Observa­se que o pico de progesterona começa cerca de 12 horas antes do início do pico de LH (indicado no tempo zero), sugerindo que a progesterona seja responsável pela deflagração do pico pré­ovulatório de LH. (Adaptada de Hoff et al., 1983.)

Alterações na esteroidogênese na teca e síndrome do ovário policístico A produção excessiva de androgênios pelas células da teca é uma das principais características da síndrome do ovário policístico (SOP), que pode atingir 18% da população feminina e é a principal causa de infertilidade feminina. A SOP é um  distúrbio  complexo  com  manifestações  clínicas  muito  heterogêneas,  tais  como  cistos  foliculares,  distúrbios menstruais,  menor  frequência  de  ovulação  e  menstruação,  hiperandrogenismo  com  consequente  hirsutismo,  além  de obesidade  e  resistência  à  insulina  que  predispõem  a  diabetes  melito  tipo  2,  síndrome  metabólica  e  doenças cardiovasculares.  É  estabelecido  (Consenso  de  Rotterdam,  2003)  que  o  seu  diagnóstico  depende  da  presença  de  pelo menos dois dos seguintes critérios: (1) ovários com cistos foliculares, (2) hiperandrogenismo clínico ou laboratorial e (3) anovulação  ou  oligo­ovulação,  com  a  exclusão  de  outras  causas.  O  presumível  caráter  hereditário  é  de  modelo desconhecido.  Os  mecanismos  fisiopatológicos  reconhecidos  na  SOP  são:  (1)  alteração  intrínseca  na  esteroidogênese  da teca  ovariana  que  leva  ao  hiperandrogenismo;  (2)  aumento  na  frequência  e  amplitude  dos  pulsos  de  LH,  com  secreção normal  ou  reduzida  de  FSH;  e  (3)  alteração  da  ação  da  insulina  que  leva  à  resistência  insulínica  com  hiperinsulinemia compensatória.  O  hiperandrogenismo  resultaria  da  hipertecose  folicular  (hiperplasia  da  teca)  provocada  pelo  aumento  da secreção  de  LH,  e  da  menor  metabolização  de  androgênios  em  estrogênios  na  camada  da  granulosa  pela  aromatase,  cuja atividade é reduzida pela menor ação da insulina, quando na presença de resistência a esse hormônio. Estresse e aumento da  atividade  do  sistema  nervoso  simpático  podem  ser  relacionados  ao  desenvolvimento  da  SOP.  Na  camada  tecal,  os corpos celulares pré­ganglionares simpáticos recebem aferências de áreas cerebrais relacionadas ao estresse, e os terminais simpáticos  liberam  norepinefrina  (NE),  principal  neurotransmissor  envolvido  na  regulação  da  esteroidogênese  e foliculogênese e capaz de aumentar a secreção de andrógenos. Em mulheres com SOP, é observado aumento da densidade de fibras simpáticas no ovário, da atividade dos nervos simpáticos periféricos e da concentração de metabólitos urinários da  NE,  e  o  aumento  da  NE  está  diretamente  relacionado  com  aumento  plasmático  de  testosterona.  Por  outro  lado, eletroacupuntura  e  exercícios,  que  diminuem  a  atividade  simpática  periférica,  melhoram  o  quadro  de  SOP.  Dados experimentais  em  ratas  mostram  que  estresses  crônicos  ativam  o  sistema  simpático  central  e  periférico,  aumentam  o conteúdo  de  NE  no  ovário,  alteram  o  ciclo  estral,  diminuem  a  taxa  ovulatória  e  induzem  formação  de  cistos  foliculares com hipertecose, bem como hiperandrogenismo. Portanto, parece que a hiperatividade do sistema nervoso simpático pode predizer a vulnerabilidade da mulher para o desenvolvimento da SOP.

Controle da secreção de gonadotrofinas pelos esteroides ovarianos e pelo GnRH Assim como as gonadotrofinas controlam a secreção de esteroides ovarianos, os estrogênios e a progesterona regulam a  secreção  de  LH  e  FSH  por  retroalimentação  ora  positiva  (no  período  pré­ovulatório),  ora  negativa  (na  maior  parte  do ciclo  menstrual).  Além  dos  esteroides  ovarianos,  a  secreção  de  gonadotrofinas  é  controlada  diretamente  pelo  neuro­ hormônio hipotalâmico GnRH. Origem do GnRH As  células  que  produzem  GnRH  têm  origem  na  placa  olfatória  e  migram  durante  a  embriogênese  para  o  hipotálamo médio basal, especialmente para o núcleo arqueado. A migração inadequada dos neurônios GnRH explica a deficiência de gonadotrofinas  no  quadro  de  infertilidade  do  hipogonadismo  gonadotrófico  associado  à  anosmia  (perda  ou enfraquecimento  do  olfato),  que  constitui  a  denominada síndrome  de  Kallmann.  Em  humanos,  neurônios  produtores  de GnRH concentram­se no núcleo arqueado, embora também estejam presentes, por exemplo, na área pré­óptica medial. A maioria destes neurônios projeta­se para a eminência mediana, em que o GnRH é secretado no plexo primário do sistema porta  hipofisário,  de  onde  alcança  os  gonadotrofos  via  vasos  porta  longos.  Nos  gonadotrofos,  o  GnRH  liga­se  a  seus receptores, e estimula a síntese e a secreção de gonadotrofinas.

Secreção pulsátil de GnRH e gonadotrofinas A secreção de LH e FSH ocorre de maneira pulsátil após a puberdade, nas diferentes condições da vida reprodutiva. O padrão  pulsátil  da  liberação  de  gonadotrofinas  é  mantido  pela  secreção  também  pulsátil  do  GnRH  (Figura  71.17).  Esta forma de secreção do GnRH mantém a sensibilidade dos gonadotrofos a este neuropeptídio e assim assegura a secreção de gonadotrofinas.  Por  outro  lado,  a  exposição  dos  gonadotrofos  a  frequência  muito  alta  de  pulsos  de  GnRH,  bem  como  a concentrações elevadas e constantes (não pulsáteis) de GnRH, inibe a expressão de receptores de GnRH nos gonadotrofos (pelo  mecanismo  de  down­regulation),  dessensibilizando  o  sistema  e  consequentemente  diminuindo  a  secreção  de gonadotrofinas (Figura 71.18).  O  conhecimento  deste  mecanismo  deu  origem  aos  tratamentos  atualmente  utilizados  para

controle de tumores de próstata, de liomiomas uterinos e de endometriose; essas terapias consistem na administração de GnRH  (ou  análogos)  em  doses  altas  para  reduzir  a  resposta  dos  gonadotrofos  a  este  hormônio  (por  dessensibilização). Assim,  a  secreção  de  gonadotrofinas  é  diminuída  e  consequentemente  a  produção  de  hormônios  sexuais,  que  têm  ação trófica sobre a próstata e o endométrio, resultando em atrofia dos tecidos em questão nas três patologias. Por outro lado, o desenvolvimento folicular e a ovulação podem acontecer em pacientes com síndrome de Kallmann, tratadas com análogos sintéticos de GnRH liberados de modo pulsátil (por bomba de infusão programada). Embora os mecanismos envolvidos na geração destes pulsos não estejam ainda bem estabelecidos, tem sido proposta a existência  de  um  “gerador  de  pulsos  de  GnRH”  no  hipotálamo.  Neurônios  deste  gerador  de  pulsos  disparam sincronicamente,  resultando  na  secreção  de  pulsos  de  GnRH  nos  vasos  porta­hipofisários;  estes  pulsos,  por  sua  vez, impõem  aos  gonadotrofos  um  perfil  pulsátil  semelhante  de  secreção  de  gonadotrofinas,  em  especial  do  LH.  Este mecanismo  gerador  de  pulsos  parece  contar  com  grupos  de  neurônios  que  funcionam  como  marca­passo,  cuja  atividade elétrica rítmica é seguida, de maneira sincronizada, pelos demais neurônios GnRH. Há controvérsia se o pico de GnRH e de gonadotrofinas é consequência de um aumento de amplitude, de frequência, ou de ambos.

Figura  71.17  ■   Correlação  dos  pulsos  de  GnRH  no  sangue  portal  com  os  pulsos  de  LH  plasmático,  em  uma  ovelha ovariectomizada. As amostras foram colhidas a cada 2,5 minutos. (Adaptada de Clarke, 1992.)

Figura  71.18  ■   Relação  do  tipo  de  secreção  de  GnRH  (pulsátil  ou  contínua)  com  a  secreção  de  LH  e  FSH.  Em macacas rhesus ovariectomizadas e com lesão no hipotálamo, a infusão de GnRH de modo pulsátil induz secreção de LH e FSH, a qual é inibida pela infusão contínua de GnRH (após o dia zero). A secreção de gonadotrofinas é restabelecida (depois do dia 20) com a infusão de GnRH em pulsos. (Adaptada de Belchetz et al., 1978.)

Controle da liberação de GnRH por neurotransmissores/neuromoduladores A  liberação  pulsátil  de  GnRH,  embora  dotada  de  um  ritmo  intrínseco,  é  mediada  por  neurotransmissores  e neuromoduladores  por  meio  de  contatos  sinápticos  de  neurônios  intra­  e  extra­hipotalâmicos  (que  produzem  estas substâncias)  com  os  corpos  celulares  e  terminais  dos  neurônios  GnRH.  Os  aminoácidos  excitatórios  (especialmente  o glutamato), a norepinefrina, a serotonina, a kisspeptina e o neuropeptídio Y (NPY), entre outros, estimulam a secreção de GnRH, enquanto os peptídios opioides, a dopamina e o ácidoα­aminobutírico (GABA) a inibem. De fato, descreve­se uma sincronia entre o padrão de pulsos de GnRH e a liberação de norepinefrina, NPY e GABA, que também ocorre de modo pulsátil.  A  observação  de  que  a  lesão  de  neurônios  noradrenérgicos  induz  completo  desaparecimento  dos  pulsos  de  LH sugere  que  a  atividade  pulsátil  dos  neurônios  GnRH,  se  não  comandada  por  neurotransmissores,  é,  no  mínimo, amplificada por eles. O reconhecimento de que muitos desses neurotransmissores agiam de forma indireta nos neurônios GnRH  e  de  que  a  deleção  de  genes  de  vários  neurotransmissores  não  produziram  fenótipos  reprodutivos  com  evidentes alterações  despertou  o  sentimento  na  comunidade  científica  de  que  algo  estava  faltando  (o  “elo  perdido”).  Em  2003,  um grande avanço na compreensão dos mecanismos centrais que controlam a secreção de GnRH surgiu da observação de que a  perda  de  função  do  gene  da  kisspeptina  ou  de  seu  receptor  (GPR54)  estava  associada  a  hipogonadismo hipogonadotrópico,  condição  rara  associada  à  deficiência  na  secreção  de  gonadotrofinas  que  acarreta  atrasos  ou  mesmo ausência da puberdade. Desde então, foi demonstrado que os neurônios produtores de kisspeptina se projetam diretamente para os corpos celulares e axônios dos neurônios GnRH, modulando sua atividade por meio de seus receptores, expressos nos  neurônios  GnRH.  Por  sua  vez,  síntese  e  secreção  dos  neurônios  kisspeptinérgicos  são  reguladas  direta  ou indiretamente  pelos  esteroides  ovarianos.  A  regulação  indireta  desses  neurônios  se  dá  por  neurotransmissores  centrais que,  por  sua  vez,  têm  sua  síntese  e  liberação  reguladas  pelos  esteroides  ovarianos.  Assim,  esses  neurônios  parecem  ser um importante centro de convergência de sinais centrais e periféricos que modulam os neurônios GnRH.

Controle da liberação de gonadotrofinas por retroalimentação dos esteroides Os esteroides ovarianos regulam a secreção de gonadotrofinas por intermédio de dois mecanismos de efeitos opostos: o de retroalimentação (feedback)  positiva  e  o  de  retroalimentação  negativa.  A  retroalimentação  negativa  ocorre  na  maior parte  de  um  ciclo  reprodutivo  e  mantém  baixas  as  concentrações  de  gonadotrofinas.  Este  mecanismo  inibitório  pode  ser facilmente  demonstrado  pelo  aumento  da  secreção  de  LH  e  FSH  que  se  dá  após  a  menopausa  ou  a  ovariectomia,  em consequência  da  queda  acentuada  da  secreção  de  esteroides  ovarianos.  Este  mecanismo  inibitório  pode  também  ser demonstrado  pela  queda  de  secreção  destas  gonadotrofinas  observada  após  a  administração  de  estrogênios  e/ou progesterona  na  menopausa,  ou  após  o  uso  de  contraceptivos  orais.  Por  outro  lado,  o  mecanismo  de  retroalimentação positiva  acontece  tipicamente  no  período  pré­ovulatório,  quando  os  estrogênios,  seguidos  da  progesterona,  promovem

aumento  agudo  da  secreção  de  gonadotrofinas  que  induz  a  ovulação.  A  ocorrência  destes  dois  tipos  de  regulação  que  se intercalam  durante  o  ciclo,  de  maneira  que  o  controle  negativo  é  substituído  em  determinado  momento  pelo  positivo  e vice­versa, envolve mecanismos bastante complexos e ainda não totalmente elucidados. Estes mecanismos são descritos a seguir. Retroalimentação positiva Ao  longo  da  fase  folicular,  a  elevação  gradual  da  secreção  de  estrogênios  pelas  células  da  granulosa,  que  acontece durante  o  crescimento  dos  folículos  antrais,  provoca  alterações  morfológicas  e  fisiológicas  em  vários  níveis  do  eixo reprodutivo para preparar o pico pré­ovulatório de gonadotrofinas. No hipotálamo, o estradiol aumenta a densidade de fibras e de espinhas dendríticas dos neurônios GnRH e aproxima os  terminais  GnRH  ao  espaço  perivascular,  onde  esse  hormônio  será  liberado,  facilitando  a  absorção  desse  neuro­ hormônio  no  plexo  primário.  Além  disso,  estimula  a  síntese  de  GnRH  ao  mesmo  tempo  que  inibe  a  sua  degradação  e liberação, aumentando, assim, os estoques intracelulares. É importante considerar que os efeitos positivos do estradiol nos neurônios GnRH são exercidos de forma indireta, uma vez que receptores do tipo alfa, relacionados ao feedback positivo, não  são  expressos  nesses  neurônios.  Nos  neurônios  kisspeptinérgicos,  o  estradiol  aumenta  a  síntese  de  kisspeptina, embora  iniba  sua  liberação,  sugerindo  a  produção  de  estoques  desse  peptídio  para  a  ocorrência  do  pico.  A  expressão  de receptores  para  a  progesterona  é  aumentada  em  áreas  hipotalâmicas  e  extra­hipotalâmicas  pelo  estradiol,  sensibilizando, dessa forma, o sistema a uma ação posterior desse esteroide. Na  hipófise,  o  estradiol  estimula  a  proliferação  de  gonadotrofos  e,  nessas  células,  aumenta  a  síntese  de  LH  e  FSH, bem  como  a  expressão  de  receptores  para  GnRH  e  para  os  próprios  estrogênios.  Esse  aumento  de  síntese  de gonadotrofinas  não  é  acompanhado  por  aumento  de  liberação  desses  hormônios,  permanecendo  suas  concentrações plasmáticas  baixas  até  o  final  da  fase  folicular.  Consequentemente,  há  elevação  nos  estoques  intracelulares  desses hormônios,  o  que  permite  que  grandes  quantidades  sejam  liberadas  agudamente  no  momento  do  pico  pré­ovulatório.  O aumento  de  síntese  de  receptores  para  o  GnRH  nos  gonadotrofos  garante  que  essas  células  respondam  com  capacidade máxima  ao  GnRH,  a  fim  de  gerar  um  pico  pré­ovulatório  de  gonadotrofinas  de  grande  magnitude.  Além  disso,  esse aumento  de  sensibilidade  dos  gonadotrofos  ao  GnRH  causado  pelos  estrogênios  é  potenciado  pelo  GnRH,  que  eleva  a síntese  de  receptores  para  o  próprio  GnRH,  em  um  mecanismo  denominado  self­priming,  amplificando  assim  a sensibilidade  hipofisária  ao  GnRH.  Ainda,  o  aumento  de  receptores  para  os  estrogênios  nos  gonadotrofos  é  importante para aumentar a sensibilidade dessas células às ações positivas desse esteroide. Em  áreas  hipotalâmicas  e  extra­hipotalâmicas,  o  estradiol  inibe  a  liberação  de  neurotransmissores  excitatórios  e estimula  a  de  neurotransmissores  inibitórios,  de  forma  a  manter  a  secreção  de  GnRH  inibida.  O  estradiol  aumenta  a síntese  e  inibe  a  degradação  de  neurotransmissores  excitatórios  como  serotonina  e  norepinefrina,  bem  como  a  expressão de seus receptores promovendo uma sensibilização de áreas hipotalâmicas à ação posterior desses neurotransmissores. No sistema  noradrenérgico,  cujo  aumento  de  atividade  é  importante  para  a  deflagração  do  pico  pré­ovulatório,  embora  o estradiol induza síntese de norepinefrina, ele inibe a atividade elétrica desses neurônios, inibindo assim a liberação desse neurotransmissor,  de  forma  que  uma  maior  quantidade  fica  disponível  para  o  momento  de  deflagração  do  pico  pré­ ovulatório.  Além  disso,  o  estradiol  aumenta  a  expressão  de  receptores  para  a  progesterona,  cuja  ação  é  importante  no momento do pico de gonadotrofinas. Esses  efeitos  positivos  dos  estrogênios  ocorrem  via  receptores  estrogênicos  do  tipo  alfa,  portanto  em  neurônios  não GnRH, e têm longa latência quando comparados com o mecanismo de retroalimentação negativa, que ocorre em minutos. Esse tempo longo é necessário para todo o preparo do sistema que permite a ocorrência de um evento de grande magnitude (o  pico  de  gonadotrofinas),  uma  vez  que  envolve  mecanismos  genômicos  de  síntese  de  hormônios,  receptores  e neurotransmissores,  bem  como  alterações  morfológicas  no  eixo  reprodutivo.  Portanto,  uma  vez  que  sem  toda  essa preparação  do  eixo  não  seria  possível  a  ocorrência  de  um  pico  de  gonadotrofinas  de  grande  magnitude,  é  essencial  a compreensão  de  que  todos  esses  mecanismos  anteriormente  descritos,  que  ainda  não  se  traduzem  em  aumento  das concentrações plasmáticas de LH e FSH (período considerado de feedback negativo), são partes integrantes do mecanismo de retroalimentação positiva. A exposição prévia e por longo tempo dos componentes do eixo reprodutivo aos estrogênios é estritamente necessária para a ação da progesterona no final da fase folicular, visto que os estrogênios são os principais indutores da síntese de receptores  para  progesterona.  Isso  pode  ser  confirmado  por  estudos  que  demonstram  que  a  progesterona  per  se  não  é capaz de induzir elevação de secreção de gonadotrofinas sem a exposição prévia aos estrogênios. No final da fase folicular (fase ovulatória), o aumento na secreção de estrogênios é acelerado, e suas concentrações plasmáticas são máximas. Nesse

período,  considerado  como  “período  crítico”,  o  folículo  dominante  passa  a  expressar  receptores  para  LH  nas  células  da granulosa  e  a  sintetizar  progesterona,  que,  como  já  descrito,  parece  ser  responsável  pela  deflagração  dos  picos.  Há  um aumento  adicional  e  rápido  de  síntese  de  GnRH  e  LH,  e  os  picos  pré­ovulatórios  desses  hormônios  são  deflagrados. Assim, parece que o folículo dominante, quando já em condições de ovular, sinaliza o momento de deflagração do pico de GnRH por meio da secreção aguda de progesterona folicular. Por outro lado, dados mais recentes sugerem fortemente que a  secreção  de  progesterona  no  final  da  fase  folicular  não  seja  apenas  de  origem  folicular,  mas  também  de  origem suprarrenal e glial. De fato, astrócitos produzem progesterona, pregnenolona e alopregnanolona em resposta ao estradiol, e o  bloqueio  da  síntese  desses  neuroesteroides  bloqueia  o  pico  de  LH,  o  que  sugere  que  a  progesterona  de  origem  central seja essencial para o mecanismo de retroalimentação positiva. Embora  o  mecanismo  pelo  qual  a  progesterona  dispara  o  pico  pré­ovulatório  não  seja  ainda  bem  esclarecido,  esta parece  estimular  neurônios  que  liberam  neurotransmissores  estimuladores  da  secreção  de  GnRH.  De  fato,  em  neurônios noradrenérgicos,  a  progesterona  age  nos  seus  receptores  induzidos  pela  exposição  prévia  ao  estradiol,  aumentando  a frequência  de  disparos  desses  neurônios  e,  desta  forma,  induzindo  a  liberação  de  norepinefrina  nas  áreas  contendo neurônios GnRH/kisspeptina. Uma vez que o bloqueio da ação da norepinefrina bloqueia o pico pré­ovulatório de LH por meio  da  redução  da  síntese  e  liberação  de  kisspeptina  nas  áreas  cerebrais  onde  estão  localizados  corpos  celulares  e terminais  axonais  dos  neurônios  GnRH,  a  ação  da  norepinefrina  na  liberação  parece  ser  indireta,  via  sistema kisspeptinérgico. Desse modo, os estoques de norepinefrina, kisspeptina, GnRH, LH e FSH produzidos pelo estradiol são depletados para compor o pico de gonadotrofinas que induzirá a ovulação. Retroalim entação negativa Após  o  pico  de  gonadotrofinas  e  a  expulsão  do  óvulo,  o  folículo  dá  origem  ao  corpo  lúteo  que  produzirá  grandes quantidades de estradiol e de progesterona, com predominância da ação da progesterona. Durante toda a fase lútea, esses hormônios  inibem  o  eixo  reprodutivo  a  nível  central  e  hipofisário,  mantendo  as  concentrações  de  gonadotrofinas  baixas. Os esteroides em altas concentrações na fase lútea inibem o sistema de várias formas: (1) diminuindo a frequência e/ou a amplitude  dos  pulsos  de  GnRH  por  ação  direta  e  rápida  nos  neurônios  GnRH,  via  receptores  do  tipo  beta;  (2)  inibindo essa secreção indiretamente, por estimular neurônios produtores de neurotransmissores inibitórios dos neurônios GnRH; e (3) modificando a interação anatômica dos neurônios GnRH com as células gliais que os envolvem, a fim de diminuir os contatos sinápticos desses neurônios com outros que modulam sua atividade. Essas formas de inibição perduram por toda a  fase  lútea  até  o  final  da  fase  folicular.  No  entanto,  é  importante  lembrar  que,  a  partir  da  segunda  semana  da  fase folicular, a atividade do mecanismo de retroalimentação negativa ocorre paralelamente à preparação dos fatores essenciais para estabelecimento do mecanismo de retroalimentação positiva descrito anteriormente. A Figura 71.19 sumariza o eixo reprodutivo e seu controle, ou seja, a produção de hormônios pelas células do folículo ovariano  e  seu  controle  pelas  gonadotrofinas,  bem  como  a  retroalimentação  dos  hormônios  ovarianos  na  hipófise,  no hipotálamo e em estruturas extra­hipotalâmicas.

▸ Ciclo uterino e menstruação A  secreção  cíclica  sincronizada  de  hormônios  ovarianos  e  de  gonadotrofinas  tem  a  função  de:  (1)  induzir  o crescimento do folículo e a ovulação, (2) aumentar a receptividade sexual no período ovulatório e (3) preparar o sistema genital  feminino  para  a  gestação.  A  fim  de  ocorrer  a  fertilização  do  óvulo  pelo  espermatozoide  e  ser  estabelecido  o processo gestacional, há necessidade de preparação do trato genital feminino. O acesso do óvulo ao trato genital feminino se dá pela trompa, enquanto o dos espermatozoides pela vagina. Parte dos espermatozoides é destruída na vagina e parte atinge o colo do útero, onde passam pelo processo de capacitação para em seguida  iniciarem  a  migração  pela  cavidade  uterina  até  atingirem  as  trompas;  nesse  local  é  onde,  idealmente,  acontece  a fertilização do óvulo, que foi captado pelas fímbrias e caminhou pelas trompas em direção aos espermatozoides. O zigoto resultante  inicia  um  processo  de  várias  etapas  de  transformação  e  simultânea  migração  para  o  útero,  em  cuja  parede (geralmente, na região posterior superior) ocorrerá sua implantação. Portanto, o útero deve estar adequadamente preparado para  facilitar  a  migração  dos  espermatozoides  e  manter  a  migração  e  a  implantação  do  zigoto.  Nessa  preparação,  o  ciclo uterino acontece em sincronia com o ovariano. Se não há implantação do zigoto, ocorre interrupção sincronizada do ciclo ovariano (com a regressão do corpo lúteo) e do ciclo uterino (dependente de estrogênio e progesterona do corpo lúteo). A diminuição  da  ação  desses  hormônios  no  útero  provoca  alterações  vasculares  devidas  ao  aumento  da  síntese  de prostaglandinas,  que  induzem  isquemia  (com  vasospasmo  das  arteríolas  espirais)  e  necrose  do  revestimento  uterino.  A

descamação deste revestimento acompanhada de sangue constitui a menstruação, cujo fluxo dura de 2 a 5 dias. O primeiro dia dessa hemorragia marca o início de um novo ciclo. A fase folicular ovariana acontece paralelamente à menstruação e à fase proliferativa no útero. Terminada a menstrua­ ção por volta do 4o dia do ciclo, o endométrio encontra­se afinado. Então, inicia­se a proliferação endometrial, por ação do estrogênio  produzido  pelos  folículos  ovarianos  em  desenvolvimento,  acompanhada  pelo  processo  de  vascularização (denominado  angiogênese)  e  pelo  desenvolvimento  das  glândulas  endometriais.  Após  a  ovulação,  paralelamente  à  fase lútea no ovário começa a fase secretora no útero, caracterizada por atividade secretora das glândulas endometriais (que se tornam  tortuosas),  pelo  formato  espiralado  das  arteríolas  endometriais  e  pela  condição  edematosa  do  endométrio.  As características  endometriais  na  fase  secretora  são  conservadas  pela  ação  de  estrogênio  e  progesterona,  hormônios secretados pelo próprio corpo lúteo, o qual é mantido pela ação do LH. Se ocorrer a implantação do óvulo fecundado, haverá aumento da secreção de progesterona e alteração do endométrio (conhecida como decidualização). Não acontecendo implantação, inicia­se a regressão do corpo lúteo ao redor do 10o dia depois  da  ovulação;  consequentemente,  há  queda  na  secreção  de  estrogênio  e  progesterona,  hormônios  responsáveis  pela manutenção do endométrio desenvolvido.

▸ Ações dos esteroides ovarianos em órgãos reprodutivos Os estrogênios agem no trato genital feminino (útero, trompas e vagina), nas glândulas mamárias, e em outros órgãos e  tecidos  não  integrantes  do  sistema  genital  (às  vezes  não  diretamente  relacionados  com  a  função  reprodutiva  e  com  os caracteres  sexuais  secundários).  Durante  o  ciclo  menstrual,  as  variações  na  secreção  dos  esteroides  ovarianos  induzem alterações  fisiológicas  e  cíclicas  no  sistema  genital  feminino,  com  intuito  de  adequá­lo  a  uma  possível  gestação.  As principais alterações são descritas a seguir.

Útero As  alterações  mais  importantes  que  ocorrem  neste  órgão  são  induzidas  pelos  estrogênios  no  endométrio.  Este  é composto de 2 camadas: (1) a camada basal (em contato com o miométrio), que sofre poucas alterações durante o ciclo e não  descama  no  decorrer  da  menstruação,  e  (2)  a  camada  funcional,  que  reveste  internamente  o  útero.  A  camada  basal  é irrigada pela artéria reta (correspondente à porção proximal das artérias espirais), que não sofre influência dos hormônios sexuais.  No  entanto,  as  artérias  espirais  desenvolvem­se  e  degeneram­se  ciclicamente,  de  acordo  com  as  mudanças  na secreção  hormonal.  Após  a  menstruação,  resta  apenas  uma  camada  basal  fina  na  qual  se  encontram  brotamentos  de glândulas  e  artérias.  No  início  da  fase  folicular  ovariana,  as  quantidades  crescentes  de  estrogênios  aumentam  a  síntese proteica, a musculatura uterina (ou miométrio) e também a proliferação das células do estroma e da camada epitelial; isso faz com que o endométrio se reepitelize rapidamente. Também sob ação dos estrogênios, a partir da parte remanescente da camada  basal  se  desenvolvem  glândulas  endometriais  e  novos  vasos  sanguíneos.  As  glândulas  endometriais  são inicialmente  estreitas  e  retas,  mas,  no  decurso  da  fase  proliferativa,  tornam­se  tortuosas  e  secretoras  de  muco  fino  e filamentoso. Há também aumento da retenção de água e eletrólitos, que tornam o órgão edemaciado. Assim, no decorrer da  fase  folicular  o  endométrio  torna­se  cada  vez  mais  espesso  (3  a  5  mm),  ondulado,  hiperemiado  e  edemaciado.  Os estrogênios elevam a contratilidade e a excitabilidade do miométrio (pelo menos em parte, pelo aumento da expressão de receptores  para  ocitocina)  e  induzem  a  expressão  de  receptores  para  progesterona.  No  colo  uterino,  os  estrogênios promovem relaxamento muscular causando sua abertura (Figura 71.20), tornam o epitélio secretor e aumentam o volume de muco imediatamente antes e depois da ovulação; todas essas ações facilitam a penetração dos espermatozoides. Na fase secretora,  grandes  quantidades  de  estrogênios  e  progesterona  são  secretadas  após  a  ovulação.  Os  estrogênios  promovem crescimento  adicional  do  endométrio,  de  modo  que  na  metade  da  fase  secretora  o  endométrio  atinge  5  a  6  mm  de espessura. A progesterona estimula a atividade das glândulas endometriais, que passam a produzir uma secreção rica em proteínas,  aminoácidos  e  açúcares;  esta  secreção,  denominada  “leite  uterino”,  tem  a  função  de  nutrir  o  embrião.  A progesterona  também  promove  o  desenvolvimento  pleno  das  artérias  espiraladas,  tornando­as  bastante  tortuosas  e provocando  aumento  da  irrigação  endometrial.  Além  disso,  ela  diminui  a  contratilidade  e  a  excitabilidade  do  miométrio, pelo menos em parte, pela redução da expressão dos receptores para ocitocina, além de tornar o colo uterino mais firme, fechado (ver Figura 71.20) e com secreção reduzida, dificultando a penetração de espermatozoides. Todas essas alterações resultam em um endométrio altamente secretor e irrigado, adequado para a implantação do ovo, que ocorre cerca de 7 a 9 dias após a ovulação, bem como para a nutrição do embrião. Em caso de não haver fertilização, a secreção de estrogênios e  progesterona  do  corpo  lúteo  decresce.  Como  consequência,  a  camada  funcional  do  endométrio  atrofia,  as  glândulas

endometriais ficam com aspecto serrilhado e as artérias espirais sofrem espasmo, causando isquemia na camada funcional. Devido  a  essas  modificações,  a  camada  funcional  do  endométrio  não  se  sustenta  e  descama,  no  processo  conhecido  por menstruação.

Figura 71.19 ■ Eixo reprodutivo feminino. Em azul: sob influência de neurotransmissores hipotalâmicos e extra­hipotalâmicos, neurônios  do  núcleo  arqueado  do  hipotálamo  e  da  área  pré­óptica  secretam  GnRH  na  eminência  mediana,  que  alcança  os gonadotrofos por meio dos vasos do sistema porta­hipofisário. Em ocre: o GnRH estimula os gonadotrofos a secretar LH e FSH. No decorrer da fase folicular do ciclo menstrual, o LH estimula as células da teca folicular a produzirem androgênios a partir do colesterol, que se difundem para as células da granulosa. Baixas quantidades de progesterona são produzidas, uma vez que a maior parte desse hormônio é convertida em androgênios. O FSH ativa as células da granulosa e elas passam a sintetizar a enzima  aromatase,  que  converte  os  androgênios  originados  da  teca  interna  em  estrogênios.  Além  disso,  o  FSH  estimula  a síntese de ativinas e inibinas. No final da fase folicular, as células da granulosa passam a expressar receptores para LH. Esse hormônio  estimula  as  células  da  granulosa  a  produzirem  progesterona  (linha  pontilhada),  a  qual  desencadeia  os  picos  pré­ ovulatórios de gonadotrofinas. Em roxo: as ativinas e as inibinas agem na hipófise estimulando e inibindo, respectivamente, a secreção de FSH. Os estrogênios e os progestógenos, além de atuarem em todo o sistema genital, exercem retroalimentação negativa (na maior parte do ciclo menstrual) ou positiva (no final da fase folicular e na fase ovulatória) sobre a secreção de LH e

FSH em 3 níveis: (1) nos gonadotrofos, (2) em neurônios hipotalâmicos que controlam os neurônios GnRH e (3) em neurônios de outros  locais  do  sistema  nervoso  central  que  modulam  direta  ou  indiretamente  a  atividade  secretora  dos  neurônios  GnRH. (Adaptada de Boron e Boulpaep, 2005.)

Figura 71.20 ■ Aspecto do colo uterino no final da fase folicular (aberto) e na fase lútea (fechado), indicando, respectivamente, a ação  dos  estrogênios  e  da  progesterona.  (Fotos  gentilmente  cedidas  pelo  Departamento  de  Ginecologia  e  Obstetrícia  da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP.)

Tubas As tubas uterinas (ou trompas) têm uma camada muscular fina revestida externamente por tecido seroso e peritônio. Internamente,  elas  se  revestem  de  epitélio  secretor  colunar  ciliado.  As  tubas  têm  função  na  captação  e  no  transporte  do óvulo,  processos  influenciados  pelos  esteroides  ovarianos.  Os  estrogênios  causam  proliferação  do  tecido  glandular  e  do revestimento epitelial, elevam o número de células e de cílios do revestimento epitelial, promovem o movimento ciliar que ocorre em direção ao útero e aumentam as atividades secretora e contrátil muscular da tuba. Assim, na fase periovulatória, quando as concentrações de estrogênios são altas, o transporte do óvulo (desde sua captação pelas fímbrias até o útero) é facilitado  por  batimentos  dos  cílios  e  pela  contração  espontânea  das  fibras  musculares.  Após  a  ovulação,  a  progesterona provoca diminuição na quantidade de células de revestimento, no número e na atuação dos cílios, assim como na atividade secretora,  de  maneira  que  o  volume  e  as  quantidades  de  açúcar  e  proteína  do  líquido  são  diminuídos.  Mais  ainda,  a progesterona  reduz  a  atividade  contrátil  muscular  da  tuba.  Assim,  variações  nas  concentrações  desses  esteroides  podem acarretar  distúrbios  no  transporte  dos  gametas  e  do  concepto.  Por  exemplo,  altas  doses  de  estrogênios  podem  impedir  a gestação por expulsar prematuramente da tuba um óvulo recém­fertilizado; ou então, a administração de elevadas doses de estradiol,  imediatamente  antes  da  concepção,  pode  impedir  a  passagem  do  concepto  ao  útero,  devido  ao  aumento  da contração muscular. Da mesma maneira, a progesterona em grandes dosagens, como se utiliza na “pílula do dia seguinte”, pode  impedir  a  gestação  por  diminuir  os  batimentos  ciliares  e  a  atividade  contrátil,  dificultando  assim  o  encontro  dos gametas.

Vagina Quatro  tipos  de  células  compõem  o  epitélio  vaginal:  superficiais,  intermediárias,  parabasais  e  basais.  Na  infância, assim  como  depois  da  menopausa,  há  somente  as  camadas  de  células  basais  e  parabasais.  As  células  do  epitélio  vaginal respondem  com  muita  sensibilidade  aos  esteroides  sexuais.  Por  conseguinte,  na  puberdade  e  na  fase  folicular,  os estrogênios  aumentam  a  atividade  mitótica  do  epitélio  colunar,  induzindo  proliferação,  o  que  resulta  em  elevação  do número  de  camadas  do  epitélio  vaginal  e,  portanto,  do  espessamento  da  mucosa  vaginal.  As  células  mais  superficiais ficam  com  o  núcleo  picnótico,  queratinizam­se,  tornam­se  acidófilas  e  descamam  individualmente.  Além  disso,  os estrogênios induzem aumento na produção de glicogênio pelas células epiteliais, o qual é fermentado em ácido láctico pela flora  bacteriana  vaginal,  provocando  um  pH  vaginal  ácido.  Todas  estas  ações  estrogênicas  conferem  mais  resistência  a traumatismos  e  infecções,  o  que  explica  a  maior  incidência  de  infecções  na  infância  e  na  puberdade.  Sob  ação  da progesterona,  as  células  do  epitélio  vaginal  tornam­se  basófilas,  apresentam  bordas  dobradas  (daí  o  nome  de  células naviculadas) e descamam em blocos. A análise ao microscópio do tipo de células esfoliadas é útil para a identificação do estado hormonal da mulher. Assim, na citologia esfoliativa: (1) a presença de células superficiais denota ação estrogênica, (2)  as  células  intermediárias  predominam  sob  concentrações  estrogênicas  elevadas  (como  na  gestação  ou  na  fase  lútea

média) e (3) a presença de células basais ou parabasais indica concentrações estrogênicas baixas (como as observadas na menopausa ou no período pré­puberal).

Muco cervical O muco cervical é produzido pelas glândulas do colo uterino, sendo composto por 92 a 98% de água, sais, açúcares, polissacarídios,  proteínas  e  glicoproteínas.  Tem  pH  alcalino  e  funciona  como  uma  barreira  para  impedir  o  acesso  de microrganismos  e  regular  o  acesso  de  espermatozoides  da  vagina  para  o  útero.  As  características  desse  muco  são facilmente influenciadas pelos hormônios ovarianos, de modo que o exame dessas características pode em geral fornecer informações sobre o estado hormonal da mulher. Os estrogênios estimulam a produção de quantidade abundante de muco fluido, liso, transparente e com poucas células. Uma característica importante do muco estrogênico é a distensibilidade; na fase  periovulatória,  quando  as  concentrações  plasmáticas  de  estrogênios  são  máximas,  pode­se  distender  entre  duas lâminas uma amostra do muco em mais de 10 cm, sem que o fio formado pelo muco se rompa (Figura 71.21). A grande quantidade (até 700 mg/dia) de muco cervical com as características anteriormente citadas é um bom indicativo do período ovulatório, de maneira que o dia da menstruação pode ser estimado para 14 ou 15 dias depois da observação desse muco. O muco fluido é importante para facilitar o coito e a penetração dos espermatozoides, propiciando seu acesso às tubas. Se for  deixado  sobre  uma  lâmina,  ele  secará,  formando  figuras  semelhantes  a  folhas  de  samambaia,  que  resultam  da cristalização  dos  sais  inorgânicos.  Pode­se  observar  este  padrão  de  folha  de  samambaia  na  última  parte  da  fase folicular, sendo máximo no período periovulatório. Na fase lútea ovariana (fase secretória uterina), quando predominam as ações  da  progesterona  sobre  as  dos  estrogênios,  o  muco  cervical  é  secretado  em  menor  quantidade  (20  a  60  mg/dia), tornando­se espesso, turvo, granulado, viscoso e celular. Este tipo de muco dificulta, sobremaneira, a movimentação dos espermatozoides em direção às tubas uterinas; de fato, a penetração do espermatozoide é máxima no período ovulatório e mínima  na  fase  lútea.  A  administração  contínua  de  progesterona,  ou  o  uso  de  cápsulas  uterinas  com  liberação  local  de progesterona, impede a penetração dos espermatozoides mesmo durante o período ovulatório, quando as concentrações de estrogênios são altas. Isso justifica, em parte, o uso da “pílula do dia seguinte”, ou seja, de altas doses de progesterona. Após  a  ovulação,  à  medida  que  a  secreção  de  progesterona  cresce,  desaparece  o  padrão  de  samambaia  apresentado  pelo muco quando seco. Novamente, a observação deste muco pode fornecer informações importantes; por exemplo, a ausência do  padrão  de  samambaia  pode  sugerir  uma  secreção  diminuída  de  estrogênios  ou  aumentada  de  progesterona. Contrariamente, a persistência do padrão de samambaia no muco pode indicar ciclos anovulatórios.

Figura  71.21  ■   Aspecto  do  muco  secretado  pelas  glândulas  endocervicais  durante  a  fase  ovulatória.  À  esquerda,  muco secretado pelo colo uterino. Ao centro, teste de distensibilidade. À direita, formação do padrão de folhas de samambaia do muco depois de secagem em lâmina. (Fotos gentilmente cedidas pelo Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP.)

Glândulas mamárias Sob ação dos estrogênios, as mamas ficam maiores por aumento do estroma, crescimento dos ductos e deposição de gordura.  Além  disso,  os  estrogênios  aumentam  a  pigmentação  da  aréola  em  torno  do  mamilo  e  induzem  a  expressão  de receptores  para  progesterona.  A  progesterona  aumenta  a  arborização  e  o  comprimento  dos  ductos,  acelera  o desenvolvimento  dos  alvéolos  e  causa  retenção  de  líquido  edemaciando  as  mamas.  Na  fase  lútea  do  ciclo  menstrual,  as glândulas atingem seu tamanho máximo, o que justifica a mastalgia referida pelas mulheres no período pré­menstrual.

▸ Ações pró­conceptivas e anticonceptivas Os estrogênios e a progesterona produzidos pelo ovário durante o ciclo menstrual têm algumas ações antagônicas no que  se  refere  à  facilitação  ou  dificuldade  para  concepção.  O Quadro 71.2  sumariza  as  principais  ações  fisiológicas  dos

estrogênios  e  da  progesterona,  no  processo  de  concepção  e  anticoncepção,  respectivamente.  A  chamada  pílula  do  dia seguinte, usada como contraceptivo de emergência, contém doses elevadas de progesterona, cujas ações anticonceptivas se contrapõem  às  pró­conceptivas  dos  estrogênios  endógenos.  Assim,  procura­se  impedir  o  encontro  do  óvulo  com  o espermatozoide, e consequentemente a fertilização. É importante ressaltar que a progesterona não interrompe um processo gestacional  iniciado,  ou  seja,  a  progesterona  não  é  uma  substância  abortiva.  Pelo  contrário,  a  progesterona  é  um  dos agentes  utilizáveis  em  situações  de  ameaça  de  aborto  espontâneo.  O Capítulo 77, Fisiologia  da  Reprodução,  analisa  os diversos métodos contraceptivos.

▸ Outras ações dos esteroides ovarianos Temperatura corporal Logo após a ovulação, a progesterona eleva a temperatura corporal em torno de 0,5 a 0,6°C durante toda a fase lútea do  ciclo  menstrual  (Figura 71.22).  Embora  o  mecanismo  dessa  regulação  não  seja  devidamente  identificado,  é  provável estar relacionado com a alteração do ponto de ajuste (set point) dos circuitos hipotalâmicos termorreguladores. Esta subida de  temperatura  serve  como  um  indicativo  da  ovulação;  portanto,  poderá  ser  utilizada  como  método  coadjuvante  de contracepção,  se  a  temperatura  corporal  da  mulher  for  verificada  assim  que  ela  acordar  e  antes  de  começar  qualquer atividade física, pois a contração muscular produz calor. Alterações no controle da temperatura também ocorrem durante a menopausa. Nessa fase da vida, cerca de 75% das mulheres apresentam ondas de calor (ou fogachos, que correspondem a episódios de elevação de temperatura central), seguidas de vasodilatação periférica reflexa e sudorese (que leva à perda de aproximadamente 0,2°C). Em mais de 90% dos casos, esses sintomas são revertidos com estrogenioterapia. Os episódios de fogacho são imediatamente seguidos por liberação de LH, que parece ocorrer secundariamente ao aumento da liberação de  GnRH.  Assim,  ambos  os  esteroides  sexuais  parecem  atuar  em  neurônios  hipotalâmicos  que  regulam  a  temperatura corporal.

Quadro 71.2 ■ Ações pró­conceptivas dos estrogênios e anticonceptivas da progesterona. Local de ação dos

Ações pró­conceptivas dos estrogênios

hormônios Cílios da tuba uterina

Ações anticonceptivas da progesterona

Aumenta o movimento ciliar, auxiliando a

Diminui o movimento ciliar

movimentação do óvulo em direção ao útero Musculatura da tuba

Contrai­se, empurrando o óvulo em direção ao

uterina

útero

Miométrio

Contrai­se, auxiliando a movimentação dos

Relaxa as fibras musculares

Relaxa as fibras musculares

espermatozoides em direção à tuba uterina Muco cervical

Fluido, facilita a movimentação do

Espesso, dificulta a

espermatozoide em direção à tuba uterina

movimentação do espermatozoide em direção à tuba uterina

Figura 71.22 ■ Variação da temperatura corporal basal durante o ciclo menstrual.

Tecido ósseo Durante  a  puberdade,  os  estrogênios  atuam  nas  cartilagens  epifisárias  dos  ossos  longos,  inicialmente  acelerando  o crescimento  linear  e,  em  seguida,  promovendo  o  fechamento  dessas  cartilagens.  Neste  período  de  crescimento,  eles constituem o fator mais importante para estimular a maturação de condrócitos e de osteoblastos e a subsequente fusão das cartilagens  epifisárias.  Agem  primariamente  por  inibição  da  ressorção  óssea  e  não  por  aumento  da  formação  de  osso; antagonizam a ação do paratormônio no tecido ósseo, o qual estimula a ressorção óssea; inibem a síntese de interleucina 6, a qual eleva a atividade osteoclástica e portanto a ressorção de osso; podem indiretamente aumentar a formação óssea pela estimulação  da  síntese  de  fatores  de  crescimento  (como  o  TGF­β,  ou transforming  growth  factor),  que  são  importantes para fazer crescer a atividade osteoblástica e a densidade óssea. Assim, os estrogênios protegem o organismo feminino no processo  contínuo  de  remodelação  óssea.  A  deficiência  estrogênica,  no  climatério  e  depois  da  menopausa,  altera  essa modulação protetora do tecido ósseo, aumentando a perda óssea; no início, há perda de osso trabecular e, em seguida, de osso cortical, facilitando, pois, o estabelecimento de osteoporose. Adicionalmente,  no  rim,  os  estrogênios  parecem  facilitar  a  ação  do  paratormônio,  causando  maior  produção  de vitamina D [1,25(OH)2D3], a qual eleva a absorção intestinal de cálcio.

Sistema cardiovascular Os  vasos  sanguíneos  também  são  alvos  da  ação  dos  estrogênios,  pois  receptores  para  estradiol  são  expressos  em células  endoteliais.  Estes  hormônios  induzem  aumento  de  óxido  nítrico  e  provocam  vasodilatação.  Além  disso,  causam alterações no metabolismo de lipídios que diminuem os riscos de alterações vasculares, o que será abordado adiante. Os estrogênios  modificam  a  permeabilidade  vascular,  facilitando  a  transferência  de  líquido  para  o  interstício  (daí  sua  ação edemaciante), reduzindo o volume plasmático, o que induz retenção de água e de sódio. Essa ação edemaciante pode ser observada  durante  o  ciclo  menstrual,  a  gestação  e  o  uso  de  pílulas  anticoncepcionais.  Além  disso,  os  estrogênios aumentam  o  fluxo  sanguíneo  e  reduzem  a  fragilidade  capilar  e  a  concentração  de  endotelina,  um  potente  vasoconstritor. Após a menopausa ou a ooforectomia (extirpação do ovário), observa­se maior gravidade da aterosclerose. Por outro lado, estudo  mais  recente  em  mulheres  menopausadas  com  doença  cardiovascular  já  estabelecida,  submetidas  à  reposição hormonal pela combinação de estrogênios e progesterona, mostrou crescimento do número de eventos tromboembólicos. Este estudo acrescentou uma controvérsia no emprego de terapia de reposição hormonal, que continua sob investigação.

Sistema nervoso central Embora  os  estrogênios  sejam  mais  conhecidos  por  seus  efeitos  na  função  reprodutiva,  suas  ações  vão  muito  além. Sabe­se  atualmente  que  estes  hormônios  não  são  produzidos  apenas  nos  ovários  e  no  tecido  adiposo,  mas  também  no cérebro, onde agem em receptores específicos também expressos aí. Eles são responsáveis pela diferenciação do cérebro, modulam  funções  motoras,  sensibilidade  à  dor  e  diversas  funções  cognitivas,  entre  outras.  Na  mulher,  os  períodos  de transição biológica (como puberdade, regressão pré­menstrual do corpo lúteo, gestação/pós­parto, climatério/menopausa)

se  caracterizam  por  significativas  alterações  da  secreção  e  da  atividade  de  hormônios  esteroides  sexuais,  principalmente estrogênios.  Isso  gera  situações  de  vulnerabilidade  para  alterações  de  atividade  nervosa  e  expressões  comportamentais, além  de,  até  mesmo,  distúrbios  psíquicos.  Os  estrogênios  afetam  os  sistemas  colinérgicos,  serotoninérgicos, noradrenérgicos  e  dopaminérgicos,  os  quais  afetam  o  humor.  A  variação  na  secreção  dos  estrogênios  parece  ser responsável,  pelo  menos  em  parte,  pelos  distúrbios  de  humor  que  caracterizam  a  chamada  tensão  pré­menstrual  (TPM), pois  a  supressão  da  atividade  ovariana  (como  durante  o  uso  de  contraceptivos  orais)  reduz  as  alterações  de  humor.  Os estrogênios  têm  ação  antidepressiva  per  se,  além  de  afetarem  a  resposta  a  drogas  antidepressivas.  Por  outro  lado,  a progesterona  apresenta  efeitos  ansiolítico  e  tranquilizante;  a  regressão  do  corpo  lúteo  reduz  estes  efeitos,  promovendo ansiedade e excitabilidade durante o período de TPM. No entanto, os mecanismos envolvidos nessas alterações ainda não são  bem  conhecidos.  A  falta  de  estrogênios  tem  sido  relacionada  com  o  estabelecimento  de  quadros  depressivos, manifestação de sintomas psicóticos, prevalência maior da doença de Alzheimer (depois da menopausa) e manifestação de esquizofrenia.  Essas  alterações  e  manifestações  têm  sido  mencionadas  com  a  ação  do  estrogênio  na  atividade  de  vários sistemas  de  neurotransmissão,  no  controle  do  fluxo  sanguíneo  cerebral  e  do  metabolismo  de  glicose.  A  terapia  de reposição  hormonal  em  mulheres  na  menopausa  tem  demonstrado  eficácia  em  diminuir  entre  30  e  40%  a  incidência  da doença  de  Alzheimer  e  de  retardar  sua  instalação  em  mulheres  com  predisposição  a  desenvolvê­la.  No  entanto,  o tratamento com estrogênios não é efetivo quando a doença já está estabelecida. Muitas das ações centrais dos estrogênios diferem  qualitativa  e  quantitativamente  entre  os  sexos,  o  que  pode  explicar  as  distinções  observadas  entre  os  sexos  na incidência de psicopatologias, como, por exemplo, o fato de síndromes depressivas serem mais comuns em mulheres que em homens e, por outro lado, o abuso de drogas e comportamentos antissociais serem mais prevalentes em homens; ainda, podem explicar o fato de geralmente as mulheres apresentarem menor sensibilidade à dor que os homens. A  progesterona  em  altas  doses  tem  efeitos  anestésicos;  ela  também  dispõe  de  ação  anticonvulsivante,  enquanto  os estrogênios  são  pró­convulsivantes.  Sabe­se  que  convulsões  epilépticas  variam  em  função  do  ciclo  menstrual,  e  a  maior frequência  de  episódios  de  convulsões  ocorre  nos  períodos  de  menor  razão  progesterona/estrogênios.  Estes  dados contraindicam, fortemente, o uso de estrogênios em pacientes com histórico de crises convulsivas. Os  estrogênios  melhoram  funções  cognitivas  (como  memória  e  aprendizado),  motoras  e  sensoriais  (p.  ex.,  olfação, audição e visão, importantes no período de acasalamento, na maioria dos animais). Vários estudos e observações clínicas correlacionam  diminuição  da  secreção  de  estrogênios  com  dificuldades  de  memória  e  pior performance  no  aprendizado. Em humanos, estudos que utilizam técnicas de neuroimagem verificaram correlações entre ação estrogênica e alterações de estruturas cerebrais. Em ratas, os estrogênios aumentam a arborização dendrítica e o número de espinhas dendríticas em neurônios  piramidais  hipocampais  (Figura  71.23),  especializados  em  receber  aferências  excitatórias  importantes  para  o aprendizado  e  a  memória.  Portanto,  a  elevação  significativa  na  quantidade  de  sinapses  estabelecidas  pelos  neurônios  em resposta aos estrogênios promove significativa melhoria nestas funções. Os  estrogênios  também  influenciam  na  organização  de  células  gliais  ao  redor  de  corpos  celulares  e  de  terminais  de neurônios  GnRH;  além  disso,  atuam  nas  características  estruturais  da  eminência  mediana,  de  modo  a  aproximar  os terminais de neurônios GnRH ao sistema vascular do plexo primário, o que contribui para maior eficiência da descarga de GnRH.

Metabolismo de lipídios Os estrogênios aumentam a deposição de gorduras, principalmente na região dos quadris e das mamas. Este padrão de distribuição de gordura induzido pelo estradiol é responsável pela mudança do formato corporal observado na puberdade. Esses  hormônios  promovem  a  elevação  de  lipoproteínas  de  densidade  alta  (HDL)  e  de  triglicerídios,  diminuição  do colesterol  e,  ligeiramente,  de  lipoproteínas  de  densidade  baixa  (LDL).  Estas  ações  metabólicas  protegem  o  organismo contra a arteriosclerose.

Síntese de proteínas Os  estrogênios  estimulam  a  síntese  de  várias  proteínas,  entre  as  quais  as  transportadoras  de  hormônios  sintetizadas pelo fígado, como globulina ligante a hormônios sexuais (SHBG), globulina ligante a cortisol (CBG) e proteína ligante a hormônios tireoidianos (TBG). Os estrogênios são levemente anabólicos e reduzem o apetite, enquanto a progesterona é fracamente catabólica.

Rim

A progesterona compete pelos receptores para aldosterona nos túbulos renais, diminuindo a reabsorção de sódio que, em determinadas situações, como na gestação, pode induzir aumento da secreção de aldosterona e de angiotensinogênio.

Respiração A progesterona aumenta a resposta ventilatória ao CO2. Na gestação e na fase lútea do ciclo menstrual, há redução da pCO2 arterial e alveolar.

Figura 71.23 ■ Ação dos estrogênios nas espinhas dendríticas de neurônios piramidais do hipocampo durante o ciclo estral. No diestro  e  no  estro  (ou  fase  pós­ovulatória),  as  concentrações  de  estrogênios  são  baixas,  enquanto,  no  proestro  (ou  fase  pré­ ovulatória), são as mais altas de todo o ciclo estral. Observe o acentuado aumento das espinhas dendríticas na fase de proestro (B), quando comparada à de diestro (A), e a reversão do efeito dos estrogênios no estro (C). (Adaptada de Woolley, 1999.)

Coagulação sanguínea Os  estrogênios  aumentam  a  disponibilidade  de  plasminogênio  e  de  fatores  de  coagulação  II,  VII,  IX  e  X; adicionalmente, provocam diminuição da antiprotrombina e da adesão plaquetária.

▸ Ações da prolactina na função reprodutiva A ação da prolactina na glândula mamária está descrita no Capítulo 77. Enquanto em ratas foram descritos picos pré­ e pós­ovulatórios  de  prolactina,  na  mulher  o  perfil  de  secreção  de  prolactina  durante  o  ciclo  menstrual  ainda  não  é  bem estabelecido;  as  concentrações  plasmáticas  de  prolactina  na  mulher  crescem  na  puberdade  e  geralmente  diminuem  na menopausa.  Alguns  autores  também  descrevem  discreto  aumento  das  concentrações  plasmáticas  desse  hormônio  no período pré­ovulatório. Em ratas e em primatas não humanos, a prolactina pode ter ação luteotrófica, que não está comprovada em mulheres. As  células  foliculares  humanas  expressam  receptores  para  prolactina,  que  pode  ser  de  origem  plasmática  ou  local;  neste último caso, caracterizando um controle parácrino ou autócrino. As células da granulosa, em cultura, liberam estrogênio e progesterona  sob  estímulo  da  prolactina.  Mulheres  com  insucesso  em  tentativas  de  fertilização  in  vitro,  quando submetidas  à  hiperprolactinemia  transitória,  são  mais  bem­sucedidas  em  termos  de  qualidade  de  oócitos,  taxa  de fertilização e gestação. Isso indica uma possível ação da prolactina na maturação folicular e no desenvolvimento oocitário.

▸ Estresse e função reprodutiva A alteração do ciclo menstrual por estímulos estressores e distúrbios psicológicos, latentes ou evidentes, é reconhecida há  longo  tempo.  Observações  experimentais  e  clínicas  indicam  que  determinadas  situações  agudas  de  estresse  podem

facilitar  a  ovulação,  enquanto  situações  crônicas  podem  impedi­la.  Porém,  os  mecanismos  envolvidos  nessas  situações ainda  não  são  totalmente  entendidos.  Estímulos  estressores  crônicos  de  diversos  tipos  e  distúrbios  como  ansiedade, anorexia nervosa e esquizofrenia, entre outros, estão associados à hiperatividade do eixo hipotálamo­hipófise­suprarrenal (HPS);  nessas  situações,  ocorre  aumento  da  secreção  de  cortisol,  que  tem  ação  catabólica,  visando  a  mobilizar  substrato energético  para  atender  à  maior  demanda  de  energia  requerida  pelo  organismo.  Dados  experimentais  mostram  que  os hormônios  do  eixo  HPS  podem  alterar  a  secreção  de  hormônios  do  eixo  hipotálamo­hipófise­gonádico  (HPG).  Em mulheres,  a  hiperatividade  do  eixo  HPS  pode  causar  supressão  do  ciclo  menstrual,  conhecida  como  amenorreia hipotalâmica funcional ou anovulação crônica hipotalâmica funcional, caracterizada por quiescência ovariana, amenorreia e  infertilidade.  Há  evidências  de  que  essa  hiperatividade  do  eixo  HPS  está  associada  à  diminuição  da  atividade  do  pulso gerador  de  GnRH.  Mulheres  com  anorexia  nervosa,  que  pode  estar  associada  à  amenorreia  hipotalâmica  funcional, apresentam  concentrações  elevadas  de  CRH  no  líquido  cerebroespinal.  Estudos  experimentais  mostraram  que  a administração de CRH provoca diminuição da pulsatilidade de GnRH e da liberação de LH; entretanto, essa relação nem sempre  é  direta,  o  que  dificulta  a  caracterização  dos  limites  de  ativação  do  eixo  HPS  supressores  da  atividade  do  eixo HPG. A  situação  crônica  de  estresse  pode  envolver  alterações  dos  eixos  HPS,  HPG,  hipotálamo­hipófise­tireoide  e  do hormônio somatotrófico (GH), resultando em um quadro de síndrome metabólica, no qual se observa obesidade visceral ou central, caracterizada pela deposição de gordura na cintura e diminuição da massa magra (redução da massa muscular). Essa  obesidade  visceral  também  ocorre  em  pacientes  com  síndrome  de  Cushing,  depressão  melancólica  e  ansiedade crônica,  que  têm  como  característica  comum  o  hipercortisolismo.  Mulheres  com  obesidade  visceral  apresentam modificações  na  secreção  de  vários  esteroides  gonadais  associadas  a  deficiência  ovulatória  e  oligomenorreia.  Existem divergências de interpretação sobre a alteração da função reprodutiva provocada pela situação de estresse: se é decorrente da  ação  direta  de  hormônios  do  eixo  HPS  no  eixo  HPG  ou  resultante  das  alterações  metabólicas  provocadas  pelos hormônios  do  eixo  HPS.  Há  evidências  de  que  a  atividade  de  neurônios  GnRH  e  a  pulsatilidade  de  LH  podem  ser reguladas  pela  disponibilidade  energética,  ou,  mais  especificamente,  de  glicose.  A  liberação  de  determinadas  citocinas durante  processos  inflamatórios  e  infecciosos,  que  constituem  uma  situação  de  estresse,  também  pode  alterar  a  função reprodutora, pela redução da secreção de LH e pela inibição da atividade de enzimas da esteroidogênese gonadal. Por  outro  lado,  há  evidências  de  que  situações  agudas  de  estresse  podem  estimular  a  liberação  de  LH,  que  seria resultante  de  um  efeito  sinérgico  de  estrogênio  endógeno  (na  fase  folicular  média)  ou  exógeno  (por  terapia  substitutiva) com  progesterona  de  origem  suprarrenal  (cuja  secreção  seria  induzida  pela  ativação  do  eixo  HPS).  Isso  mimetizaria  o sinergismo  que  acontece  na  indução  do  pico  pré­ovulatório.  Assim,  estímulos  estressores  agudos,  associados  à  pré­ condição  hormonal  favorável  à  ovulação,  poderiam  antecipar  a  ovulação.  Ainda  carente  de  outras  evidências confirmatórias,  esta  poderia  ser  a  explicação  do  maior  índice  de  gestação  em  mulheres  que  sofrem  violência  sexual, quando comparadas à população em geral.

PUBERDADE E MENARCA A  hipófise  e  o  ovário  infantis  adquirem  atividade  plena  desde  que  estimulados  adequadamente,  indicando  que  na infância falta estimulação e não competência funcional desses órgãos. A idade de instalação da puberdade pode variar em função  de  fatores  endógenos  e  exógenos,  tais  como  condições  ambientais  e  nutricionais,  além  de  fatores  emocionais, genéticos, raciais etc. A puberdade se caracteriza como uma fase de transição biológica em que acontece uma série de alterações estruturais e funcionais  para  estabelecer  a  capacidade  reprodutiva  e  os  caracteres  sexuais  secundários.  Entre  essas  alterações  estão: crescimento  linear,  brotamento  e  desenvolvimento  das  mamas,  aumento  dos  pequenos  e  grandes  lábios  da  genitália externa, produção de secreção vaginal transparente ou ligeiramente esbranquiçada antes da menarca, surgimento de pelos pubianos e axilares, além de crescimento do útero e do ovário. A  instalação  da  puberdade  envolve  alterações  de  atividade  secretora  da  suprarrenal  (adrenarca),  pelo  aumento  da secreção  de  precursores  androgênicos,  e  do  ovário,  principalmente  pela  secreção  de  estrogênios  e  progesterona.  Os principais  precursores  androgênicos  são  desidroepiandrosterona  (DHEA)  e  desidroepiandrosterona  sulfato  (DHEA­S). Embora  a  adrenarca  geralmente  anteceda  em  alguns  anos  a  ativação  da  secreção  ovariana,  não  existe  indicação  de sincronização entre os dois eventos, que parecem ter controles independentes. A ativação da função ovariana depende da secreção de gonadotrofinas hipofisárias (LH e FSH) e de GnRH pelo hipotálamo.

O período da infância até o início da puberdade é de quiescência do eixo hipotálamo­hipófise­ovário, de modo que as secreções  de  LH,  FSH  e  esteroides  ovarianos  são  muito  baixas  ou  indetectáveis.  Uma  série  de  observações  mostra  que esta  quiescência  não  representa  formação  estrutural  incompleta  ou  incapacidade  funcional  do  eixo.  O  que  mantém  este sistema  inativo  (“desligado”)  durante  a  infância?  E  o  que  faz  este  sistema  ser  ativado  (“ligado”)  na  puberdade?  Estas questões  não  têm  respostas  conhecidas.  O  mecanismo  que  conduz  ao  início  da  puberdade  continua  desconhecido.  Na tentativa de explicar esse mecanismo, há algumas hipóteses, geradas por observações experimentais e/ou clínicas, que não necessariamente se excluem. Uma das hipóteses admite que na infância o eixo hipotálamo­hipófise seria mais sensível à retroalimentação  negativa  pelos  esteroides  ovarianos;  assim,  as  quantidades  pequenas  desses  esteroides  que  inibiriam  o eixo na infância tornar­se­iam insuficientes com a idade e então o eixo iria sendo mais ativado, aumentando a estimulação ovariana.  Uma  segunda  hipótese  advoga  que  durante  a  infância  existiria  um  mecanismo  neural  de  inibição  do  eixo hipotálamo­hipófise e que a supressão desse mecanismo estaria relacionada com o início da puberdade. Outra hipótese diz que o início da puberdade seria desencadeado pela ativação de vias estimuladoras de neurônios GnRH, ou pelo aumento de atividade de uma dessas vias ou de algumas delas. Segundo uma quarta hipótese, o processo de crescimento do organismo ou de alguma de suas partes emitiria uma sinalização, provavelmente um hormônio, para ativação dos neurônios GnRH. Recentemente,  um  conjunto  consistente  de  dados  clínicos  e  experimentais  tem  implicado  o  peptídio  kisspeptina, produzido em algumas regiões cerebrais, como elemento relevante no mecanismo de controle da puberdade. A deficiência de  kisspeptina  ou  da  atividade  de  seu  receptor  (GPr­54)  está  associada  ao  quadro  patológico  de  hipogonadismo hipogonadotrófico  caracterizado  pela  ausência  de  puberdade.  Apesar  dos  avanços  representados  pela  descoberta  da kisspeptina, o entendimento do mecanismo de controle da puberdade ainda permanece incompleto.

CLIMATÉRIO (PERIMENOPAUSA) E MENOPAUSA Vários  termos  têm  sido  empregados  para  definir  o  estágio  do  envelhecimento  reprodutivo  imediatamente  anterior  à menopausa,  incluindo:  climatério,  perimenopausa  e  transição  para  menopausa.  Considerando  a  definição  proposta  pela Organização  Mundial  da  Saúde,  as  expressões  “transição  para  a  menopausa”  e  “perimenopausa”  são  as  mais recomendadas. Assim, a perimenopausa pode ser definida como o período de tempo que se inicia na quarta década de vida, antes  da  menopausa,  quando  os  sintomas  clínicos  começam  a  se  manifestar,  e  se  estende  até  12  meses  após  a  última menstruação.  A  duração  média  da  perimenopausa  é  de  5  anos,  mas  pode  se  estender  até  por  10  anos.  O  perfil  hormonal desse período difere daquele da menopausa. As concentrações de LH e FSH são normais na maior parte do período. No entanto,  ao  final  dele,  quando  a  menopausa  se  aproxima,  há  aumento  nas  concentrações  de  FSH  associado  a  queda  de inibina  B,  enquanto  as  de  LH  permanecem  baixas,  sugerindo  controle  independente  dessas  duas  gonadotrofinas.  Esse aumento mais tardio do FSH em relação ao LH é atribuído a: (1) diminuição na frequência de pulsos de GnRH que ocorre nesse período e favorece a secreção de FSH, mas não de LH; e (2) uma queda na secreção de inibina B, que resulta em aumento  exclusivamente  do  FSH.  Por  essa  razão,  o  aumento  nas  concentrações  plasmáticas  de  FSH  é  o  parâmetro  mais utilizado para se diagnosticar a menopausa. As concentrações de progesterona e de hormônio antimulleriano (AMH) são baixas desde o início desse período e compõem a principal característica dessa fase. Por outro lado, as concentrações de estradiol  encontram­se  inalteradas  ou  mesmo  elevadas  durante  a  perimenopausa,  contrariando  a  dogmática  teoria  do hipoestrogenismo. Além disso, as flutuações desses hormônios tornam­se maiores e imprevisíveis. Essa  razão  aumentada  de  estrogênios/progesterona  parece  explicar  o  aumento  de  fluxo  menstrual  (hipermenorreia) observado  em  muitas  mulheres  na  perimenopausa.  Nesse  período,  há  ciclos  menstruais  irregulares  (mais  curtos  ou  mais longos) decorrentes da alteração da duração da fase folicular, principal determinante da duração do ciclo menstrual. Como consequência,  pode  ocorrer  alteração  do  padrão  menstrual  com  redução  (oligomenorreia)  ou  aumento  da  frequência  de episódios  (polimenorreia)  ou  mesmo  hemorragia  uterina  não  relacionada  com  a  menstruação  (metrorragia).  Há  também ciclos anovulatórios com consequente queda da fertilidade. Outros  sintomas  típicos  da  perimenopausa  são  alterações  vasculares,  com  aumentos  de  temperatura  central  e vasodilatação periférica, provocando ondas de calor principalmente na parte superior do tronco e na face, aparecimento de rubor e sudorese, comprometimento de funções cognitivas, distúrbios do sono, atrofia nos tecidos vaginais, afinamento e enrugamento da pele, redução de pelos axilares e pubianos, dores de cabeça, ganho de peso, aumento na predisposição ao câncer de mama e endometrial, osteoporose e risco de fraturas, perda do interesse e disposição sexual e exacerbação dos sintomas pré­menstruais. Os transtornos afetivos (ansiedade, depressão, irritabilidade) também são prevalentes na perimenopausa, e o risco de depressão  nesse  período  é  o  mais  alto  de  toda  a  vida  reprodutiva.  Essa  maior  vulnerabilidade  aos  transtornos  afetivos,

exibida  pelas  mulheres  na  perimenopausa,  pode  ser  reflexo  das  flutuações  de  estrogênios  no  cérebro  e/ou  da  redução  na sua  responsividade,  mediada  pela  redução  na  densidade  de  receptores  aos  estrogênios,  mas  não  pelo  declínio  de  suas concentrações  plasmáticas.  Por  outro  lado,  a  redução  na  secreção  de  progesterona  pode  também  estar  associada  aos distúrbios afetivos, uma vez que essas reduções têm sido associadas a alterações de humor observadas na síndrome pré­ menstrual  e  na  depressão  pós­parto.  De  fato,  ambos  os  esteroides  afetam  o  sistema  serotoninérgico  central  de  modo  a aumentar a disponibilidade de serotonina em áreas importantes para o controle do humor. Assim, uma possível redução da ação dos estrogênios no sistema serotoninérgico e/ou a menor secreção de progesterona podem ser os fatores responsáveis pelos transtornos afetivos na perimenopausa. De fato, na impossibilidade do uso de terapia hormonal, os efeitos benéficos nos transtornos afetivos podem ser alcançados com o uso de antidepressivos inibidores de recaptação de serotonina. O  último  episódio  de  menstruação  (ou  menopausa)  ocorre,  em  média,  aos  51  anos  de  vida,  embora  haja  uma variabilidade  grande  na  faixa  etária  entre  40  e  60  anos.  O  diagnóstico  da  menopausa  é  retrospectivo,  ou  seja,  é  feito  12 meses  após  a  última  menstruação.  Depois  da  menopausa,  a  mulher  perde  os  efeitos  protetores  do  estrogênio.  Ocorrem alterações  no  processo  de  remodelação  óssea  por  perda  de  osso  trabecular  e  redução  do  cálcio  ósseo,  facilitando  a incidência de osteoporose, com consequente fragilidade mecânica dos ossos e suscetibilidade a suas fraturas. Além disso, há  aumento  da  concentração  de  colesterol  e  de  LDL,  do  risco  de  infarto  do  miocárdio,  e  maior  vulnerabilidade  para  a doença de Alzheimer. A terapia hormonal pode evitar ou minimizar os efeitos negativos da perimenopausa e menopausa, mas  somente  deve  ser  feita  após  avaliação  criteriosa  dos  benefícios  e  riscos,  em  função  de  fatores  específicos  de  cada indivíduo relacionados com antecedentes individuais e familiares. Os benefícios da terapia estrogênica incluem: diminuição da ressorção óssea, decréscimo da osteoartrite, da incidência de  doenças  das  coronárias,  de  acidentes  cerebrovasculares,  do  risco  de  doença  de  Alzheimer,  alívio  das  ondas  de  calor, preservação  da  elasticidade  da  pele,  manutenção  da  matriz  colágena,  redução  de  ressecamento,  atrofia  e  infecções  do epitélio  vaginal,  além  de  diminuição  da  incidência  de  cáries  e  de  perda  dentária.  Contrariamente,  a  terapia  de  reposição estrogênica na menopausa pode constituir um fator de aumento da incidência de câncer de mama, carcinoma endometrial, adenomas hepáticos, trombose, tromboflebite e êmbolo pulmonar. Vários desses riscos causados pelos estrogênios podem decrescer com a associação de progesterona na terapia hormonal.

BIBLIOGRAFIA Sistema genital masculino ANDERSON RA, MITCHELL RT, KELSEY TW et al.  Cancer  treatment  and  gonadal  function:  experimental  and  established strategies for fertility preservation in children and young adults. Lancet Diabetes Endocrinol, 3:556­67, 2015. BASARIA S. Male hypogonadism. Lancet, 383:1250­63, 2014. BELVA  F,  BONDUELLE  M,  ROELANTS  M  et  al.  Semen  quality  of  young  adult  ICSI  offspring:  the  first  results.  Hum Reprod, 31:2811­20, 2016. HARMAN SM, METTER EJ, TOBIN JD et al. Longitudinal effects of aging on serum total and free testosterone levels in healthy men. Baltimore longitudinal study of aging. J Clin Endocrinol Metab, 86:724­31, 2001. HEEMERS HV, TINDALL DJ. Androgen receptor (AR) coregulators: a diversity of functions converging on and regulating the AR transcriptional complex. Endocr Rev, 28:778­808, 2007. MATTHIESSON  KL,  MCLACHLAN  RI,  O’DONNELL  L  et  al.  The  relative  roles  of  follicle­stimulating  hormone  and luteinizing  hormone  in  maintaining  spermatogonial  maturation  and  spermiation  in  normal  men.  J  Clin  Endocrinol Metab, 91:3962­9, 2006. MEIJERINK AM, RAMOS L, JANSSEN AJ et al. Behavioral, cognitive, and motor performance and physical development of five­year­old  children  who  were  born  after  intracytoplasmic  sperm  injection  with  the  use  of  testicular  sperm.  Fertil Steril, 106:1673­82, 2016. PLANT TM, MARSHALL GR. The functional significance of FSH in spermatogenesis and the control of its secretion in male primates. Endocr Rev, 22(6):764­86, 2001. RAHMAN F, CHRISTIAN HC. Non­classical actions of testosterone: an update. Trends Endocrinol Metab, 18:371­7, 2007. SAKKAS D, RAMALINGAM M, GARRIDO N et al. Sperm selection in natural conception: what can we learn from Mother Nature to improve assisted reproduction outcomes? Hum Reprod Update, 21:711­26, 2015. WALKER WH. Molecular mechanisms of testosterone action in spermatogenesis. Steroids, 74:602­7, 2009.

Sistema genital feminino

ADASHI  EY.  The  ovarian  follicular  apparatus.  In:  ADASHI  EY,  ROCK  JA  (Ed.).  Reproductive  Endocrinology,  Surgery  and Technology. Lippincott­Raven, Philadelphia, 1996. ANSELMO  FRANCI  JA,  SZAWKA  RE.  Controle  neuroendócrino  da  reprodução  feminina.  In:  ANTUNES­RODRIGUES  JA (Ed.). Neuroendocrinologia Básica e Aplicada. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 2005. BELCHETZ PE, PLANT TM, NAKAI Y et al. Hypophysial responses to continuous and intermittent delivery of hypopthalamic gonadotropin­releasing hormone. Science, 202(4368):631­3, 1978. BORON WF, BOULPAEP EL. Medical Physiology. Elsevier Saunders, Philadelphia, 2005. BULUM SE, ADASHI EY. The physiology and pathology of the female reproductive axis. In: LARSEN PR, KRONENBERG HM, MELMED S et al. Williams Textbook of Endocrinology. Saunders, Philadelphia, 2003. CLARKE IJ. Exactitude in the relationship between GnRH and LH secretion. In: CROWLEY WF Jr, CONN PM (Eds.). Modes of action of GnRH and its analogs. Springer­Verlag, New York, 1992. CUTTER WJ, CRAIG M, NORBURY R et al. In vivo effects of estrogen on human brain. Ann N Y Acad Sci, 1007:79­88, 2003. FRANCI CR. Estresse: processos adaptativos e não adaptativos. In: ANTUNES­RODRIGUES JA (Ed.).  Neuroendocrinologia Básica e Aplicada. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 2005. GREESPAN FS, STREWLER GJ. Endocrinologia Básica & Clínica. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 2000. HAMEED S, JAYASENA CN, DHILLOI W. Kisspeptin and fertility. J Endocrinol, 208:97­105, 2011. HOFF JD, QUILEY ME, YEN SSC. Hormonal dynamics at midcycle: a reevaluation. J Clin Endocrinol Metab, 57:792­6, 1983. JOHNSON MH, EVERITT BJ. Essential Reproduction. Blackwell Science, London, 2000. NETTER FH. Atlas de Anatomia Humana. 2. ed. Elsevier, Rio de Janeiro, 1997. PIMILLA  L,  AGUILAR  E,  DIEGUEZ  C  et  al.  Kisspeptin  and  reproduction:  physiological  roles  and  regulatory mechanisms. Physiol Rev, 95:1235­316, 2012. PLANT T, ZELEZNIK A. Knobil and Neill’s Physiology of reproduction. Academic Press, New York, 2014. ROSEFF  SJ,  BANGAH  ML,  KETTEL  LM  et  al.  Dynamic  changes  in  circulating  inhibin  levels  during  the  luteal­follicular transition of the human menstrual cycle. J Clin Endocrinol Metab, 69:1033­9, 1989. SPEROFF  L,  GLASS  RH,  KASE  NG.  Clinical  Gynecologic  Endocrinology  and  Infertility.  Lippincott  Williams  &  Wilkins, Baltimore, 1999. WOOLLEY CS. Effect of estrogen in the CNS. Curr Opin Neurobiol, 12:349­54, 1999. YEN J, ADASHI EY. The ovarian life cycle. In: YEN SSC, JAFFE RB, BARBIERI RL. Reproductive Endocrinology. Phisiology, Pathophysiology, and ClinicalManagement. W.B. Saunders, Philadelphia, 1999. ZELEZNIK AJ. Follicle selection in primates: “many are called but few are chosen”. Biology of Reproduction, 65:655­9, 2001.



Introdução

■ ■

Citocinas Interleucina­1

■ ■ ■

Interleucina­2 Interleucina­6 Interleucina­10

■ ■

Interleucina­17 Interferona­γ

■ ■ ■

Citocinas produzidas pelo tecido adiposo Considerações finais Bibliografia

INTRODUÇÃO O conceito que apenas glândulas endócrinas produzem e secretam hormônios para a corrente sanguínea foi descartado nas  últimas  duas  décadas.  Atualmente,  sabemos  que  vários  tecidos  não  glandulares  geram  hormônios  e  moléculas  ativas que  apresentam  valioso  papel  no  controle  da  função  de  outras  glândulas,  sistemas,  tecidos  e  mesmo  do  metabolismo intermediário. Dentre esses fatores bioativos, os mais estudados são as citocinas. Os leucócitos são produtores naturais de citocinas, mas atualmente se sabe que elas são também liberadas pelo tecido adiposo e músculo esquelético. As citocinas exercem efeitos sistêmicos importantes, atuando na modulação do controle das respostas imune e inflamatória, bem como na cicatrização e na hematopoese. Além disso, em vários tecidos, elas agem localmente, exercendo uma função autacoide. Atualmente sabe­se que existe um papel importante das citocinas na regulação dos diferentes tipos de leucócitos residentes nos tecidos.

CITOCINAS Até  agora  foram  identificadas  mais  de  100  citocinas.  A  maioria  consiste  em  peptídios  ou  glicoproteínas,  com  pesos moleculares variando de 6.000 a 60.000 dáltons. São moléculas com efeito biológico potente, que atuam em concentrações de  10–9­10–15  M  e  que  se  ligam  a  receptores  de  superfície  específicos  nas  células­alvo.  Elas  não  são  produzidas  por glândulas  especializadas,  mas  sim  por  diferentes  tecidos  e  células  individuais.  As  produzidas  por  linfócitos  são  também conhecidas como linfocinas, enquanto aquelas criadas por monócitos e macrófagos são denominadas monocinas. Algumas citocinas, como o fator β transformador de crescimento (TGFβ), a eritropoetina (EPO), o fator de células­tronco (SCF) e o  fator  de  estimulação  de  colônias  de  monócitos  (MCSF),  estão  normalmente  presentes  em  quantidades  detectáveis  no

sangue e podem influenciar a função de células­alvo distantes. A maioria das outras citocinas, no entanto, atua localmente de maneira parácrina (i. e., em células adjacentes) ou autócrina (i. e., na própria célula que as produz). As  citocinas  são  secretadas  por  células  particulares  em  resposta  a  vários  estímulos,  causando  efeitos  sobre crescimento, motilidade e diferenciação celulares. Uma determinada citocina pode ser secretada isolada ou juntamente com outras  não  relacionadas  como  parte  de  uma  resposta  coordenada.  Muitas  apresentam  superposição  de  suas  atividades. Além disso, uma citocina pode induzir a secreção de outras citocinas ou mediadores, provocando, assim, uma sequência de efeitos em cascata que amplificam a resposta final. A  nomenclatura  das  citocinas  tem  pouco  em  comum  com  as  relações  estruturais  de  suas  moléculas.  Algumas  delas foram  chamadas  de  interleucinas  (IL)  e  receberam  um  número  em  sequência.  Entretanto,  muitas  outras  mantêm  seus nomes históricos descritivos mesmo que sejam errôneos, pois estes não refletem seus efeitos principais, como o fator de necrose tumoral (TNF). As  citocinas  geralmente  não  são  armazenadas  como  moléculas  pré­formadas.  Sua  síntese  inicia­se  por  novas transcrições  gênicas  como  consequência  da  ativação  ou  supressão  de  uma  determinada  resposta  celular.  Essa  ativação transcricional é transitória, e os RNA mensageiros que codificam a maioria das citocinas são instáveis. Desta maneira, a síntese de citocinas também é transitória. A produção de algumas delas pode ser controlada também por processamento do RNA  e  por  mecanismos  pós­transcricionais.  Um  desses  mecanismos  é  a  formação  de  um  produto  ativo  a  partir  de  um precursor inativo, como ocorre para a IL­1β. Após serem sintetizadas, as citocinas são rapidamente secretadas, resultando em uma explosão de liberação quando necessária. Os  efeitos  das  citocinas  são  na  sua  maioria  pleiotrópicos  (atuam  em  diferentes  tipos  celulares)  e  intensos.  Este  fato limita  o  seu  uso  terapêutico,  pois  elas  podem  afetar  a  função  de  inúmeros  tecidos  ao  mesmo  tempo.  Portanto,  além  dos efeitos desejados, ocorrem respostas colaterais indesejáveis. Adicionalmente, muitas citocinas apresentam o mesmo efeito funcional. Esta redundância de efeitos faz com que o uso de antagonistas, ou mesmo a mutação de determinada citocina, possa não ter consequências funcionais observáveis, pois outras citocinas podem compensar a sua falta. Como  já  dito,  a  maioria  das  citocinas  age  perto  do  local  onde  são  produzidas.  Assim,  podem  atuar  na  mesma  célula que as secretam (efeito autócrino) ou em uma célula vizinha (efeito parácrino). Por exemplo, os linfócitos T normalmente secretam  citocinas  no  local  de  contato  com  as  células  apresentadoras  de  antígenos,  o  que  é  conhecido  como  sinapse imunológica.  Por  outro  lado,  quando  as  citocinas  são  produzidas  em  grande  quantidade,  elas  podem  entrar  na  circulação atuando em locais distantes do local de sua produção (efeito endócrino). O efeito de determinada citocina inicia­se pela sua ligação a receptores de membrana específicos presentes nas células­ alvo.  Esta  ligação  deve  ser  de  alta  afinidade.  Desta  maneira,  quantidades  pequenas  de  uma  determinada  citocina  são suficientes  para  ocupar  os  receptores  e  desencadear  efeitos.  A  maioria  das  células  expressa  quantidades  pequenas  de receptores  de  citocinas,  cerca  de  100  a  1.000  receptores  por  célula.  Este  número  de  receptores  é  suficiente  para  induzir respostas biológicas. Sinais externos regulam a expressão dos receptores e, portanto, o potencial de resposta das células às citocinas. Por exemplo, a estimulação de linfócitos T e B por antígenos aumenta a expressão de receptores de citocinas. Durante  uma  resposta  imune,  os  linfócitos  antígeno­específicos  são  os  que  respondem  melhor  às  citocinas  secretadas. Esse  efeito  assegura  a  especificidade  da  resposta  imune,  apesar  de  as  citocinas  em  si  não  serem  antígeno­específicas.  A síntese de receptores também é regulada por citocinas de modo geral, além de o ser pela própria citocina, à qual o receptor se  liga.  Este  fato  determina  a  amplificação  de  uma  resposta  positiva  ou  mesmo  o  estabelecimento  de  retroalimentação negativa. A maioria das citocinas altera a função das células­alvo, como, por exemplo, a regulação da proliferação celular, por alteração  na  expressão  de  genes  específicos.  Elas  se  ligam  a  receptores  de  membrana  e  induzem  a  fosforilação  de  uma cascata  de  proteínas  que  resulta  na  ativação  de  fatores  de  transcrição  específicos  que  atuam  na  regulação  da  expressão desses  genes.  Um  mesmo  fator  de  transcrição  pode  estar  relacionado  com  a  expressão  de  diferentes  citocinas,  como  o fator nuclear kappa B (NF­κB). Os receptores de citocinas consistem em uma ou mais proteínas transmembrânicas, cujas porções  citoplasmáticas  são  responsáveis  por  dar  início  às  vias  de  sinalização  intracelular.  Essas  vias  são  ativadas  pela ligação da citocina ao receptor. Os  receptores  de  citocinas  são  classificados  de  acordo  com  as  homologias  estruturais  no  domínio  de  ligação  às citocinas, sendo divididos em 5 famílias, descritas a seguir.

▸ Receptores de citocina do tipo I São  também  chamados  de  receptores  de  hemopoietina.  Contêm  uma  ou  mais  cópias  de  um  domínio  com  dois  pares conservados de resíduos de cisteína e uma sequência triptofano­serina­X­triptofano­serina próxima da membrana, em que

X  é  um  aminoácido  qualquer.  Esses  receptores  ligam­se  a  citocinas  que  se  dobram  em  quatro  filamentos  alfa­hélices.  O efeito celular desses receptores ocorre por ativação da via JAK/STAT.

▸ Receptores de citocina do tipo II De  modo  semelhante  aos  receptores  do  tipo  I,  contêm  domínios  extracelulares  com  cisteínas  conservadas,  mas  não apresentam a sequência triptofano­serina­X­triptofano­serina. Esses receptores apresentam uma única cadeia polipeptídica de ligação ao ligante e uma cadeia transdutora de sinal. O efeito dos receptores do tipo II também ocorre por ativação da via JAK/STAT.

▸ Receptores da superfamília das imunoglobulinas São receptores de citocinas que apresentam domínio extracelular de imunoglobulinas.

▸ Receptores do TNF São  receptores  com  domínio  extracelular  rico  em  cisteína.  Ativam  proteínas  intracelulares  associadas  que  induzem apoptose ou estimulam a expressão de genes, ou ambos. Entre os membros da família do receptor de TNF, está a proteína Fas, que ativa o processo de morte celular por apoptose.

▸ Receptores transmembrânicos de 7 alfa­hélices São  também  denominados  receptores  em  serpentina,  pois  apresentam  várias  cadeias  polipeptídicas  que  atravessam  a membrana  de  um  lado  a  outro.  São  acoplados  à  proteína  G.  Membros  dessa  classe  de  receptores  medeiam  respostas rápidas e transitórias de uma família de citocinas chamadas de quimiocinas. Neste  capítulo,  será  apresentada  uma  breve  descrição  das  citocinas  e  de  seus  efeitos  mais  evidentes  e  bem estabelecidos. As IL­1α e β, e a IL­2, a IL­17, a IL­10 e o INF­γ foram selecionadas para uma abordagem mais detalhada a fim de introduzir o assunto. Não temos a pretensão de aprofundar o tema, pois este assunto é extenso e mais estudado em Imunologia. Algumas  citocinas,  as  células  que  as  produzem  e  os  seus  efeitos  principais  sobre  as  células­alvo  estão  relacionados no Quadro 72.1.  Muitas  citocinas  estimulam  a  proliferação  celular  e,  portanto,  poderiam  ser  também  classificadas  como fatores  de  crescimento.  Outras  são  importantes  mediadores  de  comunicação  entre  tecidos  e  células  circulantes.  Além disso, várias delas atuam conjuntamente para estimular ou intensificar as funções efetoras de leucócitos.

INTERLEUCINA­1 A interleucina­1 (IL­1) compreende duas proteínas distintas, IL­1α e IL­1β, que são codificadas por genes diferentes. Ambas  dispõem  de  aproximadamente  25%  de  homologia  em  sua  sequência  de  aminoácidos  e  são  estruturalmente semelhantes. Sintetizam­se a partir de precursores de 31 kDa, clivados por proteases específicas em formas maduras de 17 kDa, sendo a pró­IL­1β clivada por uma protease chamada de enzima conversora de interleucina 1β (ICE, interleukin­1β­ converting enzyme),  também  conhecida  como  caspase­1,  gerando  a  IL­1β  madura.  A  expressão  da  pró­IL­1β  é  induzida pelo  fator  de  transcrição  NF­κB,  o  qual  é  ativado  por  sinais  inflamatórios.  Posteriormente,  a  clivagem  dessa  citocina  é induzida pela ativação de inflamassomas. Os inflamassomas são complexos citoplasmáticos multiproteicos que estimulam a  maturação  de  citocinas  da  família  da  IL­1  e  induzem  a  morte  celular,  denominada  piroptose.  Os  inflamassomas consistem em uma proteína com característica de sensor, como o receptor Nodlike (NOD), a protease caspase­1, e muitas vezes  a  proteína  adaptadora  ASC.  A  ativação  do  inflamassoma  induz  a  clivagem  de  caspase­1,  que  se  torna  ativa  e promove  o  processamento  da  pró­IL­1β,  levando  à  secreção  da  citocina  madura.  Esses  inflamassomas  são  ativados  por uma grande variedade de moléculas estruturalmente não relacionadas, incluindo agentes patogênicos, toxinas bacterianas, produtos  metabólicos,  moléculas  insolúveis  (partículas,  cristais  e  agregados  de  proteínas)  e  alarminas  liberados  pelo tecido danificado. Os  monócitos  e  os  macrófagos  ativados  são  as  principais  fontes  de  IL­1.  Entretanto,  outros  tipos  celulares  também podem  produzir  IL­1,  como  osteoblastos  (um  tipo  de  célula  óssea),  queratinócitos  (principal  tipo  de  célula  na  pele), hepatócitos (células do fígado) e células nervosas e endoteliais. As  IL­1α  e  IL­1β  ligam­se  aos  mesmos  dois  receptores  de  superfície  celular.  Ambos  os  receptores,  denominados receptor da IL­1 tipo I (IL­1RI, IL­1 receptor type I) e receptor da IL­1 tipo II (IL­1RII, IL­1 receptor type II), exibem

uma homologia de aminoácidos de cerca de 28% em seus domínios extracelulares e são membros da superfamília das Ig. O IL­1RI é encontrado em quase todas as células, porém ocorre em maior quantidade em: células epiteliais, hepatócitos, queratinócitos,  linfócitos  T  e  fibroblastos.  Esse  receptor  liga­se  à  IL­1α  com  maior  afinidade  que  à  IL­1β  e  tem  uma longa cauda citoplasmática que participa na ativação da via de sinalização intracelular. IL­1RII é visto principalmente nos linfócitos  B,  monócitos  e  neutrófilos.  Esse  receptor  liga­se  à  IL­1β  com  maior  afinidade  que  à  IL­1α  e  dispõe  de  um domínio  citoplasmático  curto  que  não  participa  na  transdução  de  sinais.  Como  consequência  da  ativação,  IL­1RII  é liberado das células. Acredita­se que essa forma solúvel de IL­1RII atue como modulador da função dessa citocina, pois, ligando­se à IL­1β (a principal forma liberada das células produtoras), impede a estimulação excessiva das células­alvo. A  IL­1  provoca  vários  efeitos  em  diferentes  tipos  de  células  e  em  diferentes  órgãos.  Trata­se,  portanto,  de  uma citocina pleiotrópica. A ligação da IL­1 a seus receptores estimula vias intracelulares que induzem a ativação dos fatores de  transcrição  NF­κB  e  AP­1,  que  estão  relacionados  com  a  expressão  de  citocinas  inflamatórias.  A  IL­1  estimula localmente: (a) os monócitos e os macrófagos para aumentar a produção de IL­1, bem como de outras citocinas, como o fator  de  necrose  tumoral  (TNF,  tumor­necrosis  factor)  e  IL­6;  (b)  a  proliferação  dos  linfócitos  B  e  a  síntese  de imunoglobulinas; e (c) os linfócitos T a gerarem citocinas, como IL­2 e o seu receptor. A IL­1 é frequentemente produzida em altas concentrações e na circulação apresenta efeitos sobre os sistemas nervoso e endócrino, assim como sobre o fígado. Esses efeitos são descritos sucintamente a seguir: ■ A  febre  é  um  quadro  clínico  caracterizado  por  tempe­raturas  acima  de  37°C  que  inibem  o  crescimento  de  alguns microrganismos.  As  substâncias  que  são  criadas  peloorganismo  e  podem  causar  febre  são  denominadas  pirógenos endógenos. A IL­1 é um pirógeno endógeno ■ A IL­1 aumenta a síntese de proteínas pelos hepatócitos e por outras células do fígado. Muitas dessas proteínas, como o  componente  do  complemento  e  as  proteínas  da  fase  aguda,  participam  na  defesa  do  hospedeiro  contra microrganismos e outros antígenos ■ A IL­1 eleva a produção de alguns hormônios, como o hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) pela hipófise.

Quadro 72.1 ■ Principais propriedades de algumas citocinas. Citocinas

Principais células produtoras

Principais efeitos

IL­1α e β

Monócitos/macrófagos, osteoblastos,

Coestimulação das APC e linfócitos T

queratinócitos, hepatócitos, células nervosas, células endoteliais e apresentadoras de antígenos (APC)

Função de linfócitos B e produção de Ig Resposta de fase aguda do fígado Ativação dos fagócitos Inflamação e febre Hematopoese Atua sobre o sistema nervoso central e o sistema endócrino

IL­2

Linfócitos TH2 ativados, linfócitos TC,

Proliferação e diferenciação de linfócitos

células NK

T Função das células NK e linfócitos TC Proliferação dos linfócitos B e expressão de IgG2

IL­3

Linfócitos T, células epiteliais do timo,

Crescimento das células progenitoras

queratinócitos, células nervosas,

hematopoéticas imaturas

mastócitos

Produção e diferenciação de células mieloides

IL­4

Linfócitos TH2, mastócitos, macrófagos,

Proliferação dos linfócitos B, expressão

basófilos, linfócitos B e células do

de IgE e expressão do MHC de classe II

estroma da medula óssea

Proliferação dos linfócitos TH2 e TC Função dos eosinófilos e mastócitos Expressão de moléculas de adesão celular em células endoteliais

IL­5

Linfócitos TH2, mastócitos

Crescimento, diferenciação e função dos eosinófilos

IL­6

Linfócitos TH2 ativados, APC, monócitos/macrófagos, fibroblastos, hepatócitos, células endoteliais e células nervosas

Efeitos sinérgicos com a IL­1 ou o TNF Induz febre Resposta de fase aguda do fígado Proliferação de linfócitos T e B, hepatócitos, queratinócitos e células nervosas, e produção de Ig Ativa células progenitoras hematopoéticas

IL­7

Células corticais do timo e do estroma

Linfopoese T e B no timo e na medula

medular e células hepáticas fetais

óssea, respectivamente Funções dos linfócitos TC

IL­8

Macrófagos, linfócitos T, fibroblastos,

Efeito quimioatraente para neutrófilos,

células endoteliais, queratinócitos,

linfócitos T e basófilos

hepatócitos, condrócitos, neutrófilos e células epiteliais

Liberação de enzimas lisossomais por neutrófilos Adesão dos neutrófilos às células endoteliais Angiogênese

IL­9

Linfócitos T

Efeitos hematopoéticos e timopoéticos Efeito sinérgico com a eritropoetina na proliferação e diferenciação de células progenitoras de eritrócitos

IL­10

Linfócitos TH2, T CD8 e B ativados,

Inibição da produção de citocinas por

macrófagos e queratinócitos

linfócitos TH1, células NK e APC Promoção da proliferação das células B e respostas humorais Supressão da imunidade celular

IL­11

Fibroblastos do estroma e trofoblastos

Hematopoese e trombopoese Efeitos sinérgicos com a IL­3 na indução da proliferação e maturação dos megacariócitos

IL­12

Linfócitos B e macrófagos

Proliferação e função dos linfócitos TC ativados e células NK Produção de INF­ℓ?α?αℓ? Indução dos linfócitos TH1 e supressão dos TH2

IL­13

Linfócitos TH2

Proliferação/diferenciação dos linfócitos B Inibe a produção de citocinas pró­ inflamatórias por monócitos/macrófagos

IL­14

Linfócitos T e B e células tumorais

Proliferação dos linfócitos B ativados

IL­15

Células epiteliais, monócitos e

Proliferação dos linfócitos T

células não linfocíticas

Intensifica a atividade citotóxica dos linfócitos T e células LAK

IL­16

Linfócitos CD8+ e CD4+, células epiteliais

Efeito quimioatraente para células CD4+

e eosinófilos

(linfócitos T, eosinófilos e monócitos) Comitogênico para células T CD4+

INF­α e β

Monócitos/Macrófagos, fibroblastos, neutrófilos e linfócitos T e B

Efeitos antivirais Induz MHC da classe I em células somáticas Ativação de macrófagos, células NK e células T CD8+ Inibe a proliferação celular

INF­γ

Linfócitos TH1 e NK ativadas

Indução do MHC da classe I em todas as células somáticas Indução do MHC da classe II nas APC e células somáticas

Ativação de macrófagos, neutrófilos e células NK Promoção da imunidade celular (inibe as células TH2) Efeitos antivirais Diferenciação de linfócitos T TNF­α

Macrófagos ativados, neutrófilos, linfócitos B, mastócitos, basófilos, eosinófilos e células NK, algumas células tumorais, astrócitos, células endoteliais e células musculares lisas

Citólise de células tumorais Produção de citocinas e de PAF em diferentes tipos celulares Estimula a expressão de moléculas de adesão sobre as células endoteliais Atua de modo endócrino para estimular a produção de citocinas em monócitos e células endoteliais, assim como para produzir febre e proteínas da fase aguda nos hepatócitos

G­CSF

Linfócitos T, monócitos/macrófagos

Intensifica a proliferação, a diferenciação e a ativação da linhagem neutrofílica de células hematopoéticas

GM­CSF

Linfócitos T e B, macrófagos, mastócitos,

Promove a proliferação, a maturação e a

células endoteliais, neutrófilos, eosinófilos

ativação de diferentes células

e fibroblastos

hematopoéticas em vários estágios de desenvolvimento

Eritropoetina

Células renais e células hepáticas

Produção de eritrócitos ao estimular a diferenciação e a proliferação das células progenitoras destes

IL, interleucinas; APC, células apresentadoras de antígenos; NK, células natural killer; Ig, imunoglobulinas; TNF, fator de necrose tumoral; INF, interferona; G­CSF, fator estimulador de colônias de granulócitos; GM­CSF, fator estimulador de granulócitos e monócitos; PAF, fator ativador de plaquetas; MHC, complexo de histocompatibilidade.

INTERLEUCINA­2 A interleucina­2 (IL­2) é um fator de crescimento autócrino e parácrino, secretado por linfócitos T ativados, essencial para  a  proliferação  clonal  de  células  T.  A  interleucina­2  foi  descoberta  em  1976,  devido  à  sua  capacidade  de  aumentar  a mitogênese  de  linfócitos  T  humanos  e  sustentar  o  crescimento  contínuo  de  células  T  em  cultura.  A  descoberta  da  IL­2 (então  denominada  fator  de  crescimento  das  células  T)  permitiu,  pela  primeira  vez,  a  propagação  e  o  estudo  de  clones individuais de células T. Seu papel essencial na proliferação dessas células e seus efeitos sobre a produção de citocinas e sobre as propriedades funcionais dos linfócitos B, macrófagos e células NK indicam que a IL­2 é muito importante. Esta é a razão por a termos escolhido como exemplo para discutir o mecanismo de ação das citocinas neste capítulo. A molécula de IL­2 é um polipeptídio com PM de 15.400 dáltons e apresenta 133 aminoácidos, sendo codificada por um único gene localizado no cromossomo 4 humano. Pode ser glicosilada em vários graus, produzindo espécies de peso

molecular  maior.  Contudo,  as  cadeias  laterais  glicosiladas  não  são  necessárias  para  a  sua  função.  A  sua  sequência  de aminoácidos não tem qualquer semelhança com aquela de outras citocinas conhecidas. Entretanto, a análise cristalográfica com raios X indica que ela dispõe de estrutura tridimensional que lembra a da IL­4 e do GM­CSF. A IL­2 é uma proteína globular composta de duas α­hélices que se dispõem de modo a formar faces planares hidrofóbicas ao redor de um cerne muito  hidrofóbico.  Esta  configuração  é  mantida,  em  parte,  pela  única  ponte  dissulfeto  intracadeia,  essencial  para  a atividade biológica. Os  linfócitos  T  em  repouso  não  sintetizam  nem  secretam  IL­2,  mas  podem  ser  induzidos  a  fazê­lo  por  meio  das combinações  apropriadas  de  antígeno  e  fatores  coestimuladores  ou  por  exposição  a  mitógenos.  A  produção  de  IL­2 induzida  por  antígenos  ocorre,  principalmente,  nas  células  THCD4.  Porém,  os  linfócitos  CD8  e  algumas  células  NK também  podem  ser  induzidos  a  secretar  IL­2  em  certas  condições.  Quando  linfócitos  humanos  são  expostos  a  um mitógeno de células T, a expressão do mRNA da IL­2 torna­se detectável depois de 4 h, atinge concentração máxima em 12  h  e,  em  seguida,  declina  rapidamente.  O  desaparecimento  abrupto  do  mRNA  reflete  não  apenas  a  cessação  da transcrição do gene da IL­2, como também a instabilidade do seu mRNA, cuja meia­vida é de menos de 30 min. A síntese e  a  liberação  da  IL­2  seguem  um  curso  cronológico  semelhante,  resultando  em  um  pico  transitório  de  secreção  que rapidamente  desaparece.  Como  a  IL­2  tem  meia­vida  muito  curta  na  circulação,  ela  atua  apenas  sobre  a  célula  que  a secretou ou sobre células presentes na vizinhança imediata.

▸ Mecanismos de ativação de linfócitos T por IL­2 A IL­2 liga­se a receptores de superfície, nas células (IL­2R), ativando vias de sinalização intracelulares que resultam na ativação dos linfócitos T. A ligação da IL­2 ao seu receptor promove o início da proliferação da célula T, regulando a transição da fase G1 para a S do ciclo celular. O IL­2R é composto pelas cadeias α (CD25), β (CD122) e γ (CD132), que se  ligam  a  IL­2  com  diferentes  afinidades;  a  afinidade  máxima  ocorre  quando  as  três  cadeias  estão  presentes;  a intermediária, quando apenas as cadeias β e γ estão presentes; e pouca afinidade, quando só a subunidade α está presente. O  IL­2R  é  modificado  pelo  estado  de  ativação  da  célula  T,  visto  que  no  estado  de  repouso  apenas  as  cadeias  β  e  γ  são expressas. Quando estimulada por antígeno, a cadeia α é expressa combinando com as cadeias β e γ para formar o receptor de alta afinidade. A  principal  via  de  sinalização  ativada  pela  ligação  da  IL­2  ao  seu  receptor  (IL­2R)  é  a  JAK/STAT.  A  sinalização intracelular  pelo  IL­2R  também  envolve  ativação  de  tirosinoquinase  p56lck,  regulação  da  atividade  da  GTPase  p21ras, serina/treonina quinase Raf1, Map quinase ERK2 e fosfatidilinositol­3 quinase (PI3K). Após a ligação da IL­2 ao receptor, acontece heterodimerização das subunidades β e γ, ativando a transfosforilação das proteínas  associadas  Janus  quinase  1  e  3  (JAK1  e  JAK3),  respectivamente  (Figura  72.1).  As  JAK  ativadas  fosforilam tirosinas do receptor, criando locais de ligação para os fatores ativadores de transcrição STAT5a/b que têm domínio SH2. As  JAK  fosforilam  as  STAT  nos  resíduos  de  tirosina,  promovendo  a  sua  dissociação  do  receptor.  A  seguir,  as  STAT dimerizam­se e translocam­se para o núcleo, ligando­se a sequências específicas do DNA e estimulando a transcrição do gene.  Esses  fatores  regulam  a  transcrição  gênica,  resultando  no  controle  do  crescimento  e  diferenciação  celular.  No interior do núcleo, há atividade de tirosina fosfatase bloqueando o processo de ativação da transcrição pela desfosforilação das  STAT,  as  quais  são  exportadas  novamente  para  o  citoplasma.  Embora  a  fosforilação  de  tirosina  das  STAT  seja fundamental  para  a  sua  ativação,  há  evidências  de  que  a  fosforilação  da  serina  também  regula  a  sua  atividade transcricional.  A  fosforilação  dos  resíduos  de  serina  das  STAT5a  e  5b  pode  modular  a  sua  atividade  transcricional, alterando  a  expressão  de  genes  ativados  por  este  fator  de  transcrição.  A  STAT5a  pode  ser  fosforilada  em  dois  locais  de serina Ser725 e Ser779; a STAT5b, na Ser730. A fosforilação de serina das STAT5a e 5b foi observada em células e tecidos estimulados por ligantes como GH, prolactina e IL­2. O tratamento de linfócitos T com inibidor de serina quinase H7, que bloqueia a fosforilação de serina da STAT5, abole a atividade transcricional de STAT5 estimulada por IL­2. A ativação de STAT pode ser inibida por fatores antagonistas, sugerindo que existem vias responsáveis pela inibição da  sinalização  JAK/STAT.  Os  mecanismos  responsáveis  pela  inibição  da  atividade  de  STAT  incluem  desfosforilação, degradação  proteolítica  ou  associação  com  moléculas  inibitórias.  Estímulos  que  promovem  a  inibição  da  sinalização  de JAK/STAT foram descritos. Alguns deles ocorrem por meio da ativação da proteinoquinase A ou C, ativação de fluxos de cálcio  e  ação  de  citocinas  antagonistas,  como  TGFβ.  Os  mecanismos  de  inibição  da  sinalização  de  JAK­STAT  por  estes agentes ainda não estão bem definidos. As  JAK  ativadas  fosforilam  os  resíduos  de  tirosina  na  subunidade  β  do  IL­2R,  que  também  servem  de  locais  de ligação  para  a  Shc.  A  Shc  recruta  dois  importantes  complexos  proteicos:  o  Grb2/Sos,  que  ativa  a  via  da  Ras/ERK,  e  o Grb2/Gab­2, que ativa a via da PI3K. A proteína Shc é recrutada pelo IL­2Rβ ativado, tornando­se tirosilfosforilada em

três locais. Estes locais de fosforilação permitem a ligação dos domínios SH2 da proteína Grb2. Através do seu domínio SH3, o Grb2 liga­se à proteína Sos, que ativa as Ras e, consequentemente, promove a ativação da via das MAP quinases. A proteína Sos é responsável por catalisar a ligação de GTP às proteínas Ras, que são ativas quando estão ligadas ao GTP e  inativas  se  ligadas  ao  GDP.  A  proteína  Sos  pertence  aos  fatores  conhecidos  como  GEF  (fatores  de  troca  de  GTP)  que catalisam esta ligação de GTP às proteínas Ras.

Figura  72.1  ■   Via  de  sinalização  do  receptor  de  interleucina­2  (IL­2R).  Essa  citocina  liga­se  ao  seu  receptor,  levando  à fosforilação das JAK1 e 3. A JAK3 ativa a STAT5, que regula a transcrição de genes específicos. A ativação do receptor de IL­2 também ativa a proteína SHC, que, em conjunto com GRB2, ativa o SOS­1. Este, por sua vez, ativa a RAS, que ativa a RAF1, e esta, o MEK, e então o ERK. A partir deste, é ativado o ELK­1, assim como os fatores de crescimento c­FOS e c­JUN, que juntos constituem o complexo AP­1. Descrição da figura no texto. (Figura idealizada pela Dra. Renata Gorjão.)

A  ativação  de  Grb2  também  medeia  a  fosforilação  em  tirosina  da  Gab2,  formando  um  complexo  que  promove  a ativação  de  PI3K.  A  proteína  Akt  contém  um  domínio  PH,  que  se  liga  ao  PIP3 na  membrana  quando  a  PI3K  é  ativada. Depois da ligação ao PIP3, a conformação da Akt pode ser alterada e ativada por um processo que requer fosforilação, por uma  proteinoquinase  dependente  de  fosfatidilinositol,  processo  que  ocorre  na  membrana  celular.  Quando  ativada,  a  Akt retorna para o citoplasma e fosforila várias proteínas envolvidas com o processo de sobrevivência das células. Apesar das diferenças  nos  mecanismos  de  sinalização,  tanto  Shc  quanto  STAT5  são  capazes  de  induzir  a  expressão  de  genes  como bcl­2,  bcl­xL  e  c­myc,  que  são  proteínas  antiapoptóticas,  promovendo  a  proliferação  das  células  T.  As  ERK  (quinases reguladas  por  sinal  extracelular)  constituem  uma  família  de  MAP  quinases  que  participam  da  fase  final  desta  via  de sinalização e que fosforilam outras quinases e proteínas regulatórias da transcrição. As ERK podem também participar na sinalização  de  JAK/STAT  em  vários  sistemas.  A  fosforilação  de  serina  de  STAT1  é  substrato  para  a  ERK2 in vitro.  Na sinalização de GH que também envolve a ativação de STAT5, a via da ERK é fundamental para a atividade transcricional da  STAT.  Nesses  estudos,  foi  mostrado  que  a  fosforilação  de  serina  da  STAT5  pode  variar  com  o  hormônio  ou  com  a citocina ativadora. As ERK participam da fosforilação dos fatores de transcrição como Elk­1, Fos, AP­1, NF­AT e c­myc, aumentando a capacidade proliferativa das células. A  ativação  da  via  da  PI3K  pode  potencializar  a  sinalização  proliferativa  por  STAT5,  por  intermédio  de  eventos paralelos à via convencional das ciclinas G1. Esta potencialização não é resultado de um aumento da quantidade de STAT5 ativada nem da elevação da atividade transcricional de STAT5. Isto é demonstrado pela indução máxima da expressão de c­myc, ciclina D2, ciclina D3, ciclina E e bcl­xL promovida pela via da PI3K. A via de sinalização da PI3K isoladamente

não é capaz de induzir proliferação, mas atua potencializando os sinais mitogênicos de outras vias. Células com atividade da PI3K elevada podem ser mais sensíveis aos estímulos mitogênicos que aquelas cuja atividade da PI3K foi inibida.

INTERLEUCINA­6 A interleucina­6 (IL­6) é uma proteína de 20,5 kDa que contém 184 resíduos de aminoácidos. A IL­6 pertence a uma família  de  citocinas  que  se  ligam  a  um  receptor  formado  por  uma  subunidade  α,  que  não  participa  da  sinalização intracelular  devido  à  sua  porção  citoplasmática  curta,  e  de  uma  subunidade  β  (molécula  gp130),  que  tem  a  função  de transdutor de sinal intracelular. Após a ligação à subunidade α, forma­se um complexo hexamérico que consiste em dois ligantes,  duas  subunidades  α  e  duas  moléculas  gp130.  Subsequentemente,  ocorre  a  fosforilação  dos  resíduos  de  tirosina em gp130 levando à fosforilação das proteínas JAK. Dessa forma, como descrito para a IL­2, também são ativadas as vias JAK/STAT, MAPK/ERK e PI3K/AKT. A IL­6 é uma citocina produzida por monócitos, macrófagos, linfócitos, fibroblastos, tecido adiposo e muscular. Essa citocina  estimula  a  proliferação  de  linfócitos  T,  a  ativação  da  apoptose  e  a  citotoxicidade.  O  aumento  da  IL­6  ativa  o sistema  imune,  induz  síntese  hepática  de  proteínas  de  fase  aguda  e  aumenta  a  atividade  do  eixo  hipotálamo­hipófise­ suprarrenal, e esse aumento altera respostas metabólicas. Assim como o TNF­α, a IL­6 tem correlação com a obesidade e com a resistência à insulina. A IL­6 suprime a expressão de adiponectina e receptores e sinalizadores de insulina. A IL­6 está associada a doenças inflamatórias por diferentes vias de atuação, como sobrevivência celular, sinalizando contra a apoptose, equilíbrio entre células Th1 e Th2 por meio da diferenciação de células Th2, reforçando a produção de IL­4 e IL­13, e inibição da diferenciação de células Th1. Além disso, possui papel importante, bloqueando a diferenciação de células Treg e estimulando a diferenciação de Th17, produção de IL­21 e de anticorpos por células B. A IL­6 é produzida em maior quantidade pelo tecido adiposo aumentado e pode inibir a diferenciação para linfócitos T reguladores (Treg), que são células que inibem a produção de citocinas que promovem respostas inflamatórias.

INTERLEUCINA­10 A citocina interleucina­10 (IL­10) é a molécula com maior característica imunossupressora. A IL­10 exerce um papel importante  na  prevenção  de  patologias  inflamatórias  e  autoimunes,  limitando  a  resposta  aos  patógenos.  As  citocinas  da família IL­10 compreendem IL­10, IL­19, IL­20, IL­22, IL­24, IL­26, IL­28A, IL­28B e IL­29. Essas citocinas ligam­se a um receptor formado por um complexo heterodimérico. A IL­10 liga­se a um complexo tetramérico formado por duas subunidades IL10R1 e duas IL10R2. A subunidade IL­10R1 leva à ativação de Jak1, e a IL­10R2, à Tyk2 (outro membro da família de proteínas JAK). A fosforilação  dos  resíduos  de  tirosina  nas  porções  citoplasmáticas  desses  receptores  cria  sítios  de  ligação  para  STAT3  e, em menor extensão, para STAT1 e STAT5. A ativação dessas vias de sinalização também está relacionada com a inibição da  translocação  nuclear  do  fator  de  transcrição  NF­κb,  sendo  esta  inibição  da  sua  atividade  transcricional  um  dos principais mecanismos de atividade imunossupressora da IL­10. A expressão dessa citocina está relacionada com diferentes mecanismos de controle que são específicos para cada tipo celular. Esses mecanismos incluem a regulação epigenética, a expressão e ativação de fatores de transcrição e a regulação pós­transcricional. A produção da IL­10 foi originalmente evidenciada em linfócitos auxiliares (Th) do tipo 2. No entanto, hoje se sabe que diversas células são capazes de secretar essa citocina, como macrófagos, células dendríticas, neutrófilos, eosinófilos e outros  tipos  de  linfócitos,  além  de  células  de  origem  não  hematopoética,  como  as  células  epiteliais.  Os  linfócitos  T reguladores  (Treg)  também  produzem  grandes  quantidades  dessa  citocina.  Essa  células  são  fundamentais  no  controle  de praticamente  todas  as  respostas  imunes,  atuando  sobre  todos  os  subtipos  celulares  da  imunidade  inata  e  adaptativa.  Os linfócitos  Treg  podem  ser  originados  no  timo  ou  sofrer  um  processo  de  diferenciação  na  periferia,  dependendo  dos estímulos aos quais são expostos, e tornam­se células capazes de produzir IL­10. De  característica  anti­inflamatória,  a  IL­10  é  uma  citocina  cujo  principal  efeito  é  inibir  a  produção  de  INF­γ  pelas células  Th1  (de  características  inflamatórias),  contribuindo  para  o  desenvolvimento  de  células  Th2.  Esses  efeitos imunossupressores  podem  ser  clinicamente  úteis  em  doenças  autoimunes  mediadas  por  células  T.  Por  ser  uma  das citocinas  anti­inflamatórias  mais  potentes,  tem  sido  extensivamente  estudada  em  adultos  no  tratamento  de  várias

desordens  inflamatórias,  tais  como  psoríase  e  doença  inflamatória  do  intestino.  Estudos  mostram  que  a  IL­10  inibe  a proliferação de células T e liberação de citocinas com propriedades antibacterianas. A IL­10 inibe a capacidade dos monócitos e macrófagos de apresentarem antígenos às células T por meio de supressão da  expressão  da  molécula  de  histocompatibilidade  de  classe  II  (MHCII),  assim  como  das  moléculas  coestimulatórias CD80 (B7.1) e CD86 (B7.2). Dessa forma, essa citocina também promove a redução da expressão de IL­1, IL­6, IL­8, IL­12 e do TNF­α.

INTERLEUCINA­17 A  IL­17  é  uma  citocina  cujo  gene  foi  isolado  de  células  de  hibridoma  em  1993.  Em  1995,  ela  foi  reconhecida  como uma nova citocina, e atualmente seis moléculas homólogas são conhecidas (IL­17A até IL­17F). A IL­17A é a molécula mais estudada e de importantes efeitos imunológicos. Embora diversas células do sistema imunológico possam produzir IL­17A, as células Th17 merecem especial atenção, pois qualquer alteração de sua função promove efeitos importantes na fisiologia de diversos tecidos, como, por exemplo, o tecido adiposo. As  citocinas  da  família  IL­17  são  potentes  indutoras  da  inflamação,  promovendo  infiltração  celular  e  produção  de outras  citocinas  inflamatórias.  Estudos  mostram  que  a  IL­17  está  aumentada  nos  sítios  inflamatórios  em  doenças autoimunes e amplifica a inflamação em sinergismo com TNF­α. Diversas doenças autoimunes, como artrite reumatoide, psoríase,  esclerose  múltipla  e  lúpus,  possuem  como  característica  uma  produção  desregulada  de  IL­17.  As  células  Th2 produzem citocinas antagonistas à diferenciação de Th17, mostrando­se, assim, protetoras ao desenvolvimento de doenças autoimunes por essas células. A principal função de IL­17 é induzir a produção de quimiocinas e outras citocinas (como o TNF­α), as quais recrutam neutrófilos e monócitos para o sítio da ativação de células T. A IL­17 também contribui para a granulopoese,  aumentando  a  produção  e  secreção  de  GM­CSF,  assim  como  de  seus  receptores.  Além  disso,  a  IL­17 estimula  a  produção  de  proteínas  antimicrobianas,  como  LL­37  e  proteases  remodeladoras  de  matriz  por  neutrófilos  e outras  células.  A  IL­17A  também  induz  a  produção  de  metaloproteinases  de  matriz  que  podem  causar  danos  aos  tecidos por  degeneração  proteolítica  de  colágeno  e  proteoglicanas,  um  fenômeno  de  grande  importância  na  destruição  da cartilagem  observada  na  artrite  reumatoide,  por  exemplo.  No  entanto,  a  produção  exacerbada  de  IL­17  pode  promover danos em outros tecidos, dependendo do nível de ativação. A diferenciação de linfócitos Th naive (que não tiveram contato com o antígeno) para células Th17, com capacidade de secretar  IL­17A,  é  estimulada  pela  IL­6.  Em  condições  de  obesidade,  o  tecido  adiposo  contribui  para  uma  significativa proporção de IL­6 circulante tanto em modelos experimentais como em humanos obesos, afetando, assim, a expressão de IL­17A. A diferenciação para linfócitos produtores de IL­17A pode ser modulada por outras adipocinas, como a leptina, que será abordada posteriormente.

INTERFERONA­γ A interferona­γ (INF­γ) é uma proteína dimérica com subunidades de 146 aminoácidos. Essa citocina é essencial para a  imunidade  contra  patógenos  intracelulares  e  contra  células  tumorais.  O  receptor  de  INF­γ  é  composto  por  duas subunidades, IFNGR1 e IFNGR2. A ligação dessa citocina ao seu receptor induz a oligomerização e ativação do mesmo por meio da indução de fosforilação de JAK1 e JAK2. Assim como descrito anteriormente, ocorre a ativação da proteína da  família  STAT,  que  neste  caso  é  STAT1.  Esse  fator  de  transcrição  dimeriza­se  e  migra  para  o  núcleo,  regulando  a expressão gênica por ligação à sequência ativadora gama (GAS), que se refere à sequência presente na região promotora dos  genes  regulados  por  INF­γ.  A  INF­γ  também  induz  a  fosforilação  da  proteína  fosfolipase­C­gama­2  (PLC­γ­2) através  de  JAK1/2.  O  diacilglicerol  (DAG)  é  o  produto  da  atividade  enzimática  da  PLC­γ­2,  o  qual  pode  ativar  algumas isoformas da proteinoquinase C (PKC), incluindo a PKC­γ. Esta, por sua vez, estimula a proteína tirosinoquinase SRC­1 (c­Src).  A  c­Src  ativa  a  fosforilação  do  resíduo  de  tirosina  702,  ativando­o.  Essa  via  ativada  por  INF­γ,  PLC­γ­2/PKC­ α/c­Src/STAT1 leva à expressão da molécula de adesão intercelular ICAM­1. Essa molécula atua favorecendo a migração e  a  adesão  monocitária  para  o  foco  inflamatório  e  também  está  relacionada  com  a  dinâmica  da  lesão  endotelial característica da aterosclerose, por exemplo. Existem vários outros alvos para STAT1, cuja ativação é mediada por INF­γ, como SMAD7, fator regulador de INF1 (IRF1) e proteínas envolvidas na regulação do ciclo celular (c­Myc e p21). A  INF­γ  também  ativa  vias  independentes  de  JAK­STAT,  como  a  cascata  MEKK1/MEK1/ERK1/2,  que  regula  a atividade da proteína C/EBP­β e IRF9.

INF­γ é produzida por células que medeiam tanto as respostas inatas como adaptativas. As células natural killer (NK) são parte da imunidade inata e produzem rapidamente grandes quantidades dessa citocina após a ativação. Por outro lado, essa citocina é liberada principalmente por linfócitos Th1 que recrutam leucócitos para o sítio da infecção, resultando em desenvolvimento  da  inflamação.  De  fato,  os  linfócitos  T  CD4  podem  diferenciar­se  em  várias  linhagens  efetoras,  das quais  as  células  Th1  são  responsáveis  pela  secreção  de  grandes  quantidades  dessa  citocina.  Já  os  linfócitos  T  CD8  não produzem grandes quantidades de INF­γ, mas, após o estímulo do receptor de células T (TCR), essas células diferenciam­ se  em  linfócitos  T  citotóxicos  (CTL)  e  células  de  memória,  os  quais  são  capazes  de  produzir  elevados  níveis  dessa citocina  em  resposta  à  ativação  pelo  TCR  ou  outras  citocinas  inflamatórias,  como  IL­12  e  IL­18.  A  INF­γ  também estimula  a  função  de  macrófagos,  como  a  fagocitose  e  a  capacidade  de  apresentação  de  antígenos.  A  estimulação  dos macrófagos pela INF­γ resulta na produção de TNF­α, o qual, juntamente com INF­γ, contribui com o aumento da função dessas células. No entanto, níveis elevados de ambas as citocinas podem levar à exacerbação da resposta inflamatória.

CITOCINAS PRODUZIDAS PELO TECIDO ADIPOSO Além  das  células  do  sistema  imune,  outros  tecidos  (adiposo,  muscular,  hepático,  renal  etc.)  são  capazes  de  produzir substâncias biologicamente ativas. Falaremos especialmente do adiposo, uma vez que descobertas relativamente recentes, das décadas de 1980 e 1990, mostraram que esse tecido tem uma habilidade altamente desenvolvida de sintetizar e secretar substâncias de alto poder biológico, muitas delas profundamente eficazes na regulação de processos metabólicos diversos. O  conhecimento  do  seu  real  papel  fisiológico  será  de  extrema  valia  no  entendimento  e  na  intervenção  terapêutica  em doenças  de  alta  prevalência  demográfica,  como  o  diabetes  melito,  a  obesidade,  a  hipertensão  arterial  e  as  síndromes correlacionadas. Estas substâncias são genericamente denominadas adipocitocinas ou, simplesmente, adipocinas. Entre  os  hormônios  que  ganharam  destaque  por  sua  participação  na  regulação  metabólica,  serão  objeto  de  maior atenção neste capítulo a leptina (LEP), a adiponectina (adipoQ, apM1 ou ACRP30), o fator α de necrose tumoral (TNF­ α),  o  inibidor  1  do  ativador  de  plasminogênio  (PAI­1)  e  a  resistina  (FIZZ3).  O Quadro 72.2 mostra  uma  série  grande, ainda que parcial, de outros produtos identificados como expressos, sintetizados e liberados pelas células adiposas; além disso,  estas  células  são  capazes  de  metabolizar  hormônios  esteroides,  transformando­os  em  outros  esteroides  com atividade  biológica  importante.  Como  exemplo  desta  última  habilidade,  citamos  a  capacidade  do  tecido  adiposo  em expressar  a  enzima  citocromo  P450  aromatase,  que  transforma  andrógenos  em  estrógenos  (especialmente,  a  testosterona em estradiol no homem e a androstenediona em estrona na mulher após a menopausa).

Quadro 72.2 ■ Proteínas secretadas pelo tecido adiposo na corrente sanguínea. Molécula

Função/efeito

Leptina (LEP)

Sinaliza para o cérebro sobre os estoques corporais de gordura Regulação do apetite e do gasto energético

Fator α de necrose tumoral (TNF­α)

Interfere na sinalização da insulina e é uma possível causa de resistência à insulina na obesidade

Interleucina­6 (IL­6)

Implicada na defesa do hospedeiro e no metabolismo de carboidratos e lipídios

Inibidor 1 do ativador de plasminogênio (PAI­1)

Potente inibidor do sistema fibrinolítico

Fator tecidual (FT)

Principal iniciador tecidual da cascata de coagulação

Angiotensinogênio (ATG)

Precursor da angiotensina II. Regulador da pressão sanguínea e da homeostase hidreletrolítica

Adiponectina (AdipoQ, apM1, ACRP30)

Papel como inibidor do processo de aterogênese e sensibilizador da insulina Adipsina

Possível elo entre a ativação da via alternativa de complemento e o metabolismo do tecido adiposo

Proteína estimuladora de acilação (ASP)

Influencia a taxa de síntese de TAG no tecido adiposo

Adipofilina

Possível marcador para o acúmulo lipídico nas células

Prostaglandinas (PGI2 e PGF2α)

Papel regulador na inflamação, ovulação, menstruação, coagulação e secreção ácida

Fator β transformador do crescimento (TGF­β)

Regulador de grande variedade de respostas biológicas: proliferação, diferenciação, apoptose e desenvolvimento

Fator I de crescimento insulina­símile (IGF1)

Estimula a proliferação de grande variedade de células e medeia ações do GH

Fator inibidor de macrófagos (MIF)

Envolvido em processos pró­inflamatórios e de imunorregulação

▸ Leptina A  leptina  foi  inicialmente  descrita  por  Coleman  em  1973  como  “fator  de  saciedade”  em  camundongos  portadores  da mutação do gene OB. Em 1994, Zhang et al. identificaram o defeito da proteína de 16 kDa responsável pela síndrome da obesidade  em  camundongos  ob/ob.  A  proteína  codificada  pelo  gene  OB  recebeu  mais  tarde  o  nome  de  leptina,  do grego leptos, que significa magro. A partir de sua descoberta, intensificou­se o interesse sobre a leptina, gerando grande aumento no número de publicações em curto espaço de tempo.

Estrutura A leptina (Figura 72.2) produzida nos adipócitos é uma proteína pequena, com 167 resíduos de aminoácidos e 16 kDa. Camundongos  com  duas  cópias  defeituosas  desse  gene  (homozigotos  para  este  genótipo,  ou ob/ob)  têm  comportamento alimentar  compulsivo  como  se  estivessem  em  estado  permanente  de  jejum.  Seus  níveis  séricos  de  corticosterona  são elevados,  mostram  déficit  de  crescimento,  são  incapazes  de  manter  a  temperatura  corporal  dentro  da  faixa  normal  (em torno  de  37°C),  não  se  reproduzem  (por  desenvolver  um  hipogonadismo  hipogonadotrófico)  e  apresentam  apetite  voraz. Em  consequência,  tornam­se  patologicamente  obesos,  com  perturbações  metabólicas  muito  semelhantes  àquelas características de animais com diabetes melito do tipo 2 (T2DM), resistentes à insulina.

Síntese e secreção O  gene  OB  humano  está  localizado  como  uma  única  cópia  no  cromossomo  7q31.3,  expandindo­se  por  650  kb,  e consiste  em  três  éxons  e  dois  íntrons.  A  região  codificada  da  proteína  OB  se  estende  pelos  éxons  2  e  3.  A  região promotora tem elementos como TATA box, elementos responsivos (sequências específicas de bases do DNA às quais se ligam  fatores  de  transcrição)  a  C/EBPα  (CCAAT/enhancer  binding  protein  α),  GRE  (elemento  responsivo  a glicocorticoides)  e  CRE  (elemento  responsivo  ao  cAMP).  Vários  tecidos  além  do  adiposo  expressam  leptina  (como placenta,  mucosa  do  fundo  gástrico,  musculatura  esquelética,  adeno­hipófise  e  epitélio  mamário),  embora,  em  termos globais, sua maior ou menor produção esteja diretamente relacionada com a massa de tecido adiposo.

Figura 72.2 ■ Modelo tridimensional da estrutura molecular da leptina.

Os  níveis  de  leptina  circulantes  parecem  estar  diretamente  relacionados  com  a  quantidade  de  mRNA  para  LEP  no tecido adiposo. Adicionalmente, vários fatores metabólicos e endócrinos contribuem para regular a transcrição do gene da LEP  em  adipócitos.  Por  exemplo,  na  queda  de  insulina  (ou  hipoinsulinemia)  ocorre  diminuição  de  LEP,  havendo  uma correlação  direta  entre  as  concentrações  desses  dois  hormônios.  Glicocorticoides  (como  o  cortisol),  infecções  agudas  e citocinas  inflamatórias  elevam  os  níveis  de  LEP,  enquanto  baixas  temperaturas,  estimulação  adrenérgica,  hormônio  do crescimento (GH), hormônios tireoidianos e tabagismo têm a propriedade de diminuir os níveis de LEP. Durante a noite, as concentrações plasmáticas de leptina aumentam; embora não seja conhecida a influência da melatonina neste fenômeno, ela parece sensibilizar o tecido adiposo à ação de outros hormônios, como, por exemplo, a insulina. Várias  citocinas  (como  TNF­α,  LIF  e  IL­1),  processos  infecciosos  e  endotoxinas  estimulam  a  síntese  de  LEP.  Essa resposta  contribui  para  a  anorexia  e  a  perda  de  peso  que  acompanham  essas  condições  inflamatórias.  Por  outro  lado,  os níveis  de  LEP  caem  rapidamente  com  a  restrição  calórica  e  a  perda  de  peso.  Essa  redução  é  interpretada  como  uma resposta  fisiológica  adaptativa  à  queda  das  reservas  energéticas  e  se  acompanha  de  aumento  do  apetite  e  diminuição  da utilização de energia. Existem  diferenças  sexualmente  determinadas  na  expressão  desse  gene,  pois,  com  a  mesma  quantidade  de  gordura corporal,  mulheres  secretam  mais  LEP  que  homens.  A  LEP  humana  tem  uma  meia­vida  biológica  de  cerca  de  25  min, independente de haver ou não obesidade. Essa curta meia­vida da LEP circulante é determinada pela sua depuração renal por filtração glomerular.

Mecanismo de ação A  leptina  exerce  seus  efeitos  biológicos  mediante  a  sua  interação  com  receptores  de  membrana  específicos.  Os receptores da LEP (OB­R) pertencem à família I de receptores de citocinas, que inclui os receptores para IL­2, 3, 4, 5, 6, 7,  LIF,  GM­CSF,  GRH,  prolactina  e  eritropoetina.  Foram  descritas  seis  isoformas  do  OB­R:  OB­Ra,  OB­Rb,  OB­Rc, OB­Rd,  OB­Re  e  OB­Rf.  Essas  isoformas  têm  a  porção  aminoterminal  extracelular  similar,  diferindo  quanto  à  porção intracelular.  A  isoforma  OB­Rb,  com  1.162  aminoácidos,  é  considerada  o  receptor  completo;  a  ela  são  atribuídos  os efeitos  do  hormônio,  estando  envolvida  na  via  de  sinalização  da  leptina,  induzindo  a  ativação  de  proteínas  JAK  (Janus kinase)  e  STAT  (signal  transducers  and  activators  of  transcription).  Foi  descrita  também  a  ativação  de  MAP  quinases sem  envolver  a  ativação  de  STAT.  Na  ausência  de  leptina,  o  receptor  OB­Rb  forma  homodímeros,  e  não  está  claro  se ocorre a formação de heterodímeros com as outras isoformas. A isoforma OB­Ra, em menor extensão, também é capaz de

desencadear  efeitos  intracelulares,  mediante  ativação  de  JAK2,  mas  não  ativa  STAT,  e  não  está  clara  a  sua  importância para a ação da LEP. A isoforma OB­Re (com 805 aminoácidos), por não conter nem o segmento transmembrânico nem o domínio intracelular, circula no plasma, sendo considerada um receptor solúvel do hormônio. A transdução de sinal da LEP é feita através da via JAK/STAT. O receptor OB­Rb tem um segmento transmembrana e dimeriza  quando  a  leptina  se  liga  ao  domínio  extracelular.  Ambos  os  monômeros  do  receptor  são  fosforilados,  em resíduos de tirosina do domínio intracelular, por uma Janus quinase 2 (JAK2). Os resíduos fosforilados passam a ancorar três  proteínas  transdutoras  de  sinal  e  ativadoras  da  transcrição  (STAT3,  5  e  6).  As  STAT  ancoradas  são,  então, fosforiladas em resíduos de tirosina pela mesma JAK2. Após a fosforilação, as STAT dissociam­se do receptor e formam homo­ ou heterodímeros que se movimentam para o núcleo, onde se ligam a sequências específicas de DNA e estimulam a expressão de genes alvos e específicos. Por esse mecanismo, são regulados os genes para NPY, CRH e POMC. Além  desta,  outras  vias  de  sinalização  pela  LEP  são  conhecidas,  como  as  que  incluem  JNK  (NH2­terminal  C­Jun kinase), p38 (p38 MAP kinase)  ERK,  SHP­2  (domínio  contendo  proteína  tirosina  fosfatase),  PLC  (fosfolipase  C),  NO (óxido nítrico), DGK­ζ (diacylglycerol kinase zeta), PGE2/PGF2 (prostaglandinas E2/F2), PDE (fosfodiesterase), cAMP (AMP  cíclico),  SOCS­3  (sinalização  supressora  de  citocina  3),  JAK,  STAT,  PI3K  (fosfatidilinositol­3  quinase),  IRS (substrato  do  receptor  de  insulina),  PKB  (proteinoquinase  B  ou  AKT),  PKC  (proteinoquinase  C),  p70S6K  (ribossomal p70 S6 kinase) e ROS (espécies reativas de oxigênio).

Efeitos biológicos A  leptina  transporta  a  mensagem  de  que  as  reservas  de  gordura  são  suficientes  e  promove  a  redução  da  ingestão  de metabólitos,  além  do  aumento  do  gasto  de  energia.  Ela  está  envolvida  na  regulação  direta  do  metabolismo  do  tecido adiposo, inibindo a lipogênese e estimulando a lipólise e a oxidação lipídica. Além de agir sobre o metabolismo do tecido adiposo, a LEP também exerce vários outros efeitos sobre: reprodução, angiogênese, resposta imune, controle da pressão sanguínea e osteogênese. A  LEP  é  necessária  para  a  maturação  do  eixo  reprodutivo,  como  evidenciado  na  sua  habilidade  em  restaurar  a puberdade e a fertilidade em ratos ob/ob, acelerar a puberdade em ratos selvagens e facilitar o comportamento reprodutor em roedores. A deficiência ou a insensibilidade à LEP está associada ao hipogonadismo hipotalâmico, em humanos e em roedores. O ciclo menstrual não ocorre espontaneamente em pacientes com mutação do gene da LEP. Enquanto a LEP é essencial  na  puberdade  e  no  ciclo  reprodutivo,  estudos  em  ratos ob/ob mostraram  que  ela  não  é  requerida  na  gestação  e lactação. O receptor OB­R participa da sinalização para o crescimento, proliferação e diferenciação celular, e a LEP parece ser capaz  de  aumentar  a  produção  de  citocinas  em  macrófagos,  estimular  a  adesão  e  mediar  processos  de  fagocitose.  Essa atividade  requer  upregulation  (suprarregulação)  dos  seus  receptores  em  macrófagos.  A  leptina  tem  efeito  direto  na proliferação dos linfócitos T. Uma adaptação, caracterizada por crescimento da competência imune do organismo contra a imunossupressão associada à falta de energia, foi obtida em resposta à LEP. A  LEP  está  incluída  na  lista  de  fatores  angiogênicos  secretados  pelo  tecido  adiposo.  A  estimulação  de  células endoteliais  por  esse  hormônio  aumenta  a  sobrevivência  e/ou  proliferação  celular,  com  elevação  da  angiogênese,  marcada pela formação de tubos capilares. Também tem sido observado que a LEP acelera a cicatrização, um processo dependente do crescimento de vasos sanguíneos. Com relação à homeostase pressórica, o efeito regulador da LEP se manifesta como uma resposta pressora atribuída à ativação do sistema simpático e uma depressora atribuída à síntese de NO. Portanto, a LEP está envolvida de modo dual nesta regulação, produzindo simultaneamente ação pressora neurogênica e resposta humoral contrária mediada pelo NO. Entre outros efeitos da LEP, já foi demonstrada sua ação como potente inibidor da formação óssea e como estimulante da proliferação das células linfo­hematopoéticas e da atividade fagocitária de macrófagos. Além  disso,  a  leptina  modifica  o  padrão  funcional  de  sistemas  hormonais  clássicos.  Por  exemplo,  na  deficiência  ou insensibilidade  à  LEP  elevam­se  as  concentrações  de  glicocorticoides,  enquanto  sua  administração  reduz  a corticosteroidemia,  indicando  que  o  eixo  hipotálamo­hipófise­suprarrenal  foi  afetado,  independente  do  seu  papel  sobre  o metabolismo  energético.  Também,  o  eixo  hipotálamo­hipófise­tireoide  é  atingido  pela  LEP.  Sua  deficiência  diminui  a eficiência do feedback negativo dos hormônios tireoidianos. A LEP modula a secreção do hormônio do crescimento (GH), agindo através da via da JAK/STAT, pois, em roedores, sua deficiência prejudica a síntese e secreção de GH.

A leptina como hormônio antiobesidade

Graças à sua habilidade em inibir a ingestão alimentar e em reduzir o peso corporal, a leptina é vista como um fator antiobesidade.  Apoiam  esta  visão  os  estudos  que  relatam  hiperfagia  e  obesidade  mórbida  em  roedores  e  humanos  com deficiência  deste  hormônio  ou  de  seu  receptor.  No  entanto,  o  insucesso  na  prevenção  de  obesidade  em  humanos  e  em outros mamíferos tratados com LEP diminuiu sua importância no combate à obesidade. A ocorrência de hiperleptinemia em tais pacientes é admitida como um sinal de resistência, um fenômeno que tem participação na patogenia da obesidade. Os  mecanismos  que  podem  influir  nessa  resistência  incluem:  dano  no  transporte  de  leptina  para  o  tecido  cerebral, anomalias nos seus receptores e defeitos na sinalização pós­receptor. A  queda  na  razão  LEP  liquórica/LEP  plasmática  pode  indicar  prejuízo  no  transporte  intracerebral  do  hormônio. Camundongos  New  Zealand  obesos,  resistentes  à  LEP  injetada  perifericamente,  respondem  com  redução  de  peso  e diminuição  da  ingestão  alimentar  quando  o  hormônio  é  injetado  por  via  intracerebroventricular.  Em  contrapartida, camundongos Agouti, que desenvolvem obesidade com hiperleptinemia, como resultado do antagonismo ao receptor MC4 de melanocortina (αMSH), não respondem nem à LEP periférica nem à centralmente injetada. A  resistência  pode  ser  consequência  de  defeitos  na  sinalização  ao  hormônio.  Por  exemplo,  a  LEP  que  age  via JAK2/STAT3 induz a formação de SOCS3, que inibe a fosforilação de tirosina de OB­R. Essa inibição é capaz de impedir múltiplos  aspectos  de  sinalização  pelo  domínio  intracelular  de  OB­Rb  e  outros  receptores.  Além  disso,  as  mudanças  na expressão de SOCS3 foram correlacionadas ao fenômeno da resistência à leptina. A hiperalimentação (overfeeding) ou a infusão  subcutânea  contínua  de  LEP,  situações  que  induzem  hiperleptinemia,  causam  inibição  alimentar,  perda  de  peso  e aumento  do  gasto  energético  em  roedores  normais  (não  geneticamente  modificados,  ou  selvagens).  Este  efeito,  contudo, não ocorre em humanos que ingerem dietas ricas em gordura e desenvolvem obesidade. Admite­se que a obesidade dieta­ induzida envolva a participação de outros fatores que acabam por interferir com a ação da LEP. Embora esta cause perda de peso, redução de apetite e de adiposidade em crianças deficientes do hormônio, tal efeito é discreto em adultos normais. O pouco resultado obtido com leptinoterapia em humanos adultos obesos, somado a problemas com a aplicação local do hormônio desestimularam o seu uso terapêutico como medicamento antiobesidade.

Controle da ingestão alimentar e a leptina Outro modo de considerar o papel fisiológico da LEP é fundamentado em estudos que sugerem sua participação como importante  sinalizador  para  o  jejum.  O  traço  mais  marcante  da  resposta  a  um  jejum  prolongado  é  a  mudança  metabólica baseada no uso do lipídio como fonte energética em lugar do carboidrato. Esta resposta é mediada por redução na insulina e  aumento  nos  hormônios  contrarreguladores  –  glucagon,  epinefrina  e  glicocorticoides.  Outros  aspectos  incluem: supressão da atividade dos eixos tireoidiano e gonádico, elevação dos glicocorticoides, redução da temperatura e aumento do  apetite.  O  gasto  energético  está  em  parte  diminuído  pela  redução  da  termogênese  tireoidiana.  Os  hormônios contrarreguladores  estimulam  a  gliconeogênese  e  a  lipólise,  para  suprir  de  glicose  e  ácidos  graxos  a  musculatura esquelética.  A  hiperfagia  que  se  observa  pós­jejum  depende,  em  parte,  da  ação  permissiva  dos  glicocorticoides. Juntamente com as alterações no metabolismo de substratos energéticos e na função neuroendócrina, o jejum prolongado é também caracterizado por imunossupressão. Há  notáveis  semelhanças  entre  as  respostas  metabólica,  neuroendócrina  e  imune  ao  jejum  e  o  perfil  observado  em roedores portadores de deficiência ou insensibilidade à LEP, uma vez que acontece acentuada queda da leptinemia com o jejum.  Assim,  a  hipoleptinemia  de  camundongos  ob/ob  seria  percebida  como  um  permanente  estado  de  jejum.  O tratamento  com  LEP  durante  o  jejum  abranda  a  hiperativação  do  eixo  hipotálamo­hipófise­suprarrenal  e  impede  a supressão  dos  eixos  tireoidiano,  reprodutivo  e  do  hormônio  de  crescimento.  Além  disso,  a  LEP  impede  a  supressão  do sistema imune, mantendo a resposta inflamatória e a função normal de linfócitos T, habitualmente suprimidos no jejum.

Ações da leptina no sistema nervoso central As principais ações da LEP (antiobesidade, reguladora do comportamento alimentar, ativadora do sistema simpático e pró­gonadotrófica) são decorrentes de processos que ocorrem no SNC, mais notadamente no hipotálamo. Embora tenham sido  descritas  ações  extraneurais  (afetando  fígado,  musculatura  esquelética  e  pâncreas  endócrino),  é  no  SNC  que  seus principais efeitos são descritos. Para  a  sua  completa  ação,  a  leptina  deve  interagir  com  a  isoforma  completa  do  seu  receptor,  ObRb.  No  SNC,  esses receptores já foram descritos em diversas estruturas, hipotalâmicas e extra­hipotalâmicas. No hipotálamo, neurônios que expressam  receptores  ObRb  foram  descritos  nos  núcleos  ventro  e  dorsomediais,  arqueado  e  pré­mamilar  ventral,  entre outros. No núcleo arqueado, foram encontradas duas populações de neurônios responsivos à LEP. Uma destas populações é  formada  pelos  neurônios  produtores  do  neuropeptídio  Y  (NPY)  e  do  peptídio  afim  da  proteína Agouti (AgRP,  agouti­

related peptide).  Estes  neurônios  têm  conexões  com  neurônios  hipotalâmicos  produtores  de  hormônio  concentrador  de melanina  (MCH)  e  de  orexinas,  potentes  estimulantes  do  apetite.  A  outra  população  é  constituída  dos  neurônios produtores  de  pró­opiomelanocortina  (POMC,  pró­hormônio  precursor  do  hormônio  melanócito  estimulante  –  αMSH)  e de  CART  (cocaine­amphetamine  regulated  transcript),  que,  contrariamente  aos  outros  dois  mencionados,  são  potentes inibidores  do  apetite.  A  leptina  é  inibidora  da  primeira  população  de  neurônios,  mas  ativadora  da  segunda.  Assim,  em síntese, a LEP desativa circuitos neurais orexigênicos e estimula circuitos anorexigênicos.

Ações da leptina na resposta imunológica A  leptina  é  capaz  de  modular  o  sistema  imune  tanto  através  de  efeitos  diretos  na  resposta  inata  como  na  adaptativa (Figura 72.3). De forma geral, a maior parte dos estudos mostra que a leptina é uma adipocina pró­inflamatória, fator que contribui  para  a  chamada  “inflamação  de  baixo  grau”  e  para  a  maior  ativação  de  células  com  perfil  inflamatório  em pessoas obesas e com excesso de peso. A  produção  de  leptina  é  afetada  por  estímulos  inflamatórios  que  podem  aumentar  os  níveis  de  mRNA  de  leptina  no tecido  adiposo  e,  consequentemente,  os  níveis  de  leptina  na  circulação.  Em  relação  à  resposta  inata,  a  leptina  aumenta  a atividade  das  células  natural  killer  (NK).  A  deficiência  do  receptor  de  leptina  gerou  um  aumento  da  taxa  de  apoptose dessas células em camundongos. Por outro lado, em células NK humanas, a exposição à leptina aumentou a produção de INF­γ e a sua citotoxicidade. Também foi observado que a exposição a altas concentrações de leptina, semelhante ao que é observado em indivíduos obesos, gerou uma resistência à leptina nessas células, diminuindo sua função metabólica. A  leptina  promove  ativação  e  aumento  de  monócitos  circulantes  e  induz  a  produção  de  citocinas  pró­inflamatórias, como  IL­1β,  TNF­α  e  IL­6,  ajudando  na  quimiotaxia  de  macrófagos  e  monócitos  para  os  tecidos.  O  tratamento  com leptina  em  macrófagos  residentes  no  tecido  adiposo  induziu  a  expressão  de  marcadores  específicos  para  uma  resposta inflamatória. Em células dendríticas a leptina atua como um ativador, quimioatraente, além de também aumentar sua sobrevivência. Além disso, há indícios de que a leptina possa atuar na migração e maturação dessas células, contribuindo para a resposta inflamatória.

Figura  72.3  ■   Mecanismo  central  de  ação  da  leptina.  A  leptina  (LEP)  secretada  pelos  adipócitos,  ao  atingir  o  hipotálamo, estimula os neurônios que expressam a pró­opiomelanocortina (POMC) e a CART (cocaine­amphetamine regulated transcript), que  por  sua  vez  inibem  neurônios  produtores  de  substâncias  orexígenas  (a  orexina  –  ORX  e  o  hormônio  concentrador  de melanina  –  MCH).  Desta  maneira,  interrompe­se  o  comportamento  de  ingestão  alimentar.  Opostamente,  a  LEP  inibe  os neurônios  produtores  do  neuropeptídio  Y  (NPY)  e  do  peptídio  similar  à  proteína  Agouti  (AgRP),  que  são  orexígenos.  SNA, sistema nervoso autônomo.

A leptina também promove mudanças no controle das respostas imunes adaptativas. Camundongos obesos deficientes do receptor de leptina apresentavam atrofia do timo e linfopenia de células T. A leptina exerce um efeito negativo sobre a

proliferação  de  linfócitos  T  reguladores  (Treg),  que  são  células  importantes  para  o  controle  do  processo  de  ativação  da resposta imune, exercendo papel supressor. Esse efeito da leptina sobre as células Treg envolve a ativação de uma proteína conhecida como mTOR, que está envolvida com maior diferenciação para linfócitos Th1 (células produtoras das citocinas inflamatórias  TNF­α  e  INF­γ)  e  menor  polarização  para  Treg.  Os  linfócitos  Th1  são  caracterizados  por  uma  grande produção de IL­2, que induz a ativação e proliferação de outros linfócitos, além de aumentar a capacidade citotóxica dos linfócitos  T  CD8+.  Outra  citocina  secretada  por  essas  células  é  o  INF­γ,  responsável  pela  ativação  de  macrófagos. Portanto,  a  leptina  pode  desempenhar  um  papel  importante  na  regulação  do  equilíbrio  de  linfócitos  relacionados  com  a ativação da resposta inflamatória e de linfócitos inibidores desse processo. A leptina também estimula a resposta de células Th17. Células T CD4+ deficientes em OB­R apresentaram redução da  capacidade  de  diferenciação  para  Th17  por  meio  da  redução  da  ativação  de  STAT3.  Os  linfócitos  Th17  produzem  as citocinas  IL­22,  IL­26  e  da  família  IL­17.  As  citocinas  da  família  IL­17  são  potentes  indutoras  da  inflamação, promovendo infiltração celular e produção de outras citocinas inflamatórias.

▸ Fator α de necrose tumoral (TNF­α) O tecido adiposo sintetiza várias citocinas e fatores de crescimento, incluindo o fator α de necrose tumoral, que é uma citocina imunomodulatória e pró­inflamatória. Inicialmente, foi descrito como um polipeptídio induzido no soro por uma endotoxina, caracterizada por induzir a caquexia em animais e promover a inibição da lipogênese em adipócitos. O TNF­α tem a capacidade de induzir a necrose em células tumorais, por isso o nome. O  TNF­α  possui  muitas  atividades  biológicas,  entre  elas:  respostas  imunológicas,  indutor  de  morte  celular  e neovascularização. Atualmente, sabe­se que se trata de uma citocina reguladora multifuncional, implicada em inflamação, apoptose,  citotoxicidade,  produção  de  outras  citocinas  (como  IL­1  e  IL­6)  e  indução  de  resistência  à  insulina.  Funciona como  um  modulador­chave  do  metabolismo  dos  adipócitos,  com  ação  direta  em  diversos  processos  dependentes  de insulina,  incluindo  a  homeostase  do  metabolismo  de  carboidratos  e  de  lipídios.  Seu  efeito  mais  intenso  é  a  inibição  da lipogênese e a estimulação da lipólise. Além disso, chama a atenção o seu efeito na regulação da massa adiposa, que pode estar associada a mudanças no número ou volume dos adipócitos.

Síntese e secreção A  forma  solúvel  do  TNF­α  compreende  os  dois  terços  da  porção  C­terminal  de  uma  proteína  precursora,  que  se encontra  inicialmente  ancorada  à  membrana  e  é  secretada  no  espaço  extracelular.  Esta  proteína  é  formada  por  clivagem proteolítica na ligação entre os resíduos Ala­76 → Val­77 da proteína precursora, executada por uma enzima chamada de enzima  conversora  de  TNF­α  (TACE,  TNF  alpha  converting  enzyme).  Esta  enzima  é  uma  proteinase,  recentemente identificada  como  uma  Zn­endopeptidase,  que  tem  uma  porção  extracelular,  uma  hélice  transmembrânica  e  uma  porção intracelular  C­terminal  (Figura  72.4).  A  sequência  polipeptídica,  principalmente  a  que  forma  o  domínio  catalítico  da enzima, apresenta alguma similaridade com várias metaloproteínas de matriz (MMP), diferindo destas porque a sequência polipeptídica da TACE é mais longa e estável na ausência de cálcio, e insensível aos inibidores de metaloproteinase 1.

Mecanismo de ação e biossíntese O TNF­α exerce sua ação ligando­se a receptores de membrana. Existem dois tipos de receptores, TNFR­1 e TNFR­2, que medeiam a transdução de sinal desencadeada pela ligação ao TNF­α, por intermédio da formação de complexos com proteínas adaptadoras citoplasmáticas. Os  registros  de  que  o  tecido  adiposo  expressa  esta  proteína  datam  do  início  da  década  de  1990.  Embora  o  tecido adiposo  seja  formado  por  uma  variedade  de  tipos  celulares  (adipócitos,  células  estromais,  células  do  sistema  imune  e células endoteliais) capazes de produzir citocinas, os adipócitos são os principais secretores de TNF­α e expressam ambos os tipos de receptores.

Efeito na resposta imune O TNF­α é uma citocina que está diretamente envolvida com o aumento da expressão de todas as outras citocinas pró­ inflamatórias,  e  nas  reações  de  fase  aguda  nos  processos  de  infecções  sistêmicas.  O  TNF­α  é  uma  importante  citocina produzida  por  linfócitos  Th1  que  está  relacionada  com  a  imunidade  natural  diretamente  envolvida  com  o  aumento  da expressão de todas as citocinas pró­inflamatórias e nas reações de fase aguda nos processos de infecções sistêmicas.

O TNF­α é secretado por monócitos e por macrófagos ativados, além de neutrófilos, linfócitos T e B e tecido adiposo. Entre outras, a principal função do TNF­α é estimular o recrutamento de leucócitos para o foco inflamatório e ativar essas células.  Uma  vez  ativados,  os  macrófagos  secretam  mediadores,  exacerbando  a  resposta  inflamatória  e  a  resistência insulínica. Outra informação pertinente diz respeito à correlação positiva de índice de massa corporal (IMC), porcentagem de  gordura  corporal  e  hiperinsulinemia  com  a  concentração  de  TNF­α  e  que  a  redução  de  massa  corporal  diminui  a concentração circulante dessa adipocina.

Figura 72.4 ■ Modelo esquemático do complexo pró­TNF­α TACE. A enzima TACE é composta por um domínio catalítico, um domínio de desintegrina, um segmento rico em cisteína (Cys), uma porção transmembrana e um domínio citoplasmático. O pró­ TNF­α  consiste  em  segmentos  intracelulares  e  transmembrânicos  e  um  cone  trimérico  de  TNF­α.  A  TACE  e  o  pró­TNF­α  são ancorados  na  membrana  de  modo  que  o  cone  de  TNF­α  é  fixado  no  lado  direito  do  domínio  catalítico  para  que  ocorra  a proteólise na ligação Ala­76→Val­77. M, membrana. (Adaptada de Maskos et al., 1998.)

A  estimulação  de  células  estromais  mesenquimais  pela  citocina  pró­inflamatória  TNF­α  aumenta  o  potencial regenerador  dessas  células,  reafirmando  a  função  dessa  citocina  em  recrutar  leucócitos  e  ativar  células.  Esse  processo pode ser importante para a progressão da cicatrização de tecidos.

Efeito na adipogênese O  TNF­α  tem  recebido  particular  atenção  devido  ao  seu  efeito  na  regulação  da  massa  de  tecido  adiposo,  atuando  na função dos adipócitos tanto de modo parácrino quanto autócrino. O  TNF­α  exerce  um  efeito  inibitório  sobre  a  adipogênese  (Figura 72.5),  que  é  desencadeado  por  meio  da  ligação  ao TNFR­1,  por  um  mecanismo  envolvendo  a  ativação  da  via  das  quinases  reguladas  extracelularmente (ERK1/2, extracellular  regulated  kinases).  Acredita­se  que  a  ativação  desta  via  iniba  a  adipogênese  por  intermédio  da fosforilação  e,  então,  por  inibição  funcional  do  PPARγ.  Entretanto,  outros  estudos  têm  sugerido  que  a  ativação  da  via ERK1/2  promova  adipogênese  em  vez  de  inibi­la.  Um  outro  conjunto  de  estudos  sugere  que  o  tempo  de  ativação  da  via ERK1/2 pode ser crítico para os efeitos finais desencadeados pelo TNF­α. Assim, a ativação da via ERK1/2 no início do processo de diferenciação é indutora de adipogênese, enquanto a ativação tardia inibe este processo. Outro mecanismo que pode estar envolvido na regulação da adipogênese é a ligação diferencial do TNF­α ao TNFR­1 ou ao TNFR­2, uma vez que  estes  dois  receptores  desencadeiam  efeitos  distintos  na  função  dos  adipócitos.  O  primeiro  parece  interferir primariamente  com  a  sinalização  do  receptor  de  insulina  e  o  transporte  de  glicose,  enquanto  o  segundo  parece  estar envolvido  com  a  patogênese  da  resistência  à  insulina  induzida  pelo  seu  ligante.  Estudos  desenvolvidos  em  humanos mostraram que a expressão de TNFR­1 está fortemente correlacionada com o índice de massa corporal, ao passo que a de

TNFR­2,  com  as  concentrações  plasmáticas  de  triacilgliceróis.  Aparentemente,  a  ativação  seletiva  de  TNFR­1  inibe preferencialmente  a  diferenciação  de  adipócitos  humanos  enquanto  a  ativação  de  TNFR­2  promove  aumento  desta diferenciação.

Figura 72.5 ■ Mecanismos de ação do TNF­α na diminuição do volume e número de adipócitos. O TNF­α promove a apoptose de pré­adipócitos  e  adipócitos  maduros,  inibe  o  processo  da  adipogênese  e  lipogênese,  além  de  estimular  a  lipólise.  Setas contínuas, estimulação; setas tracejadas, inibição.

Efeito na apoptose Foi  verificado  que  concentrações  crescentes  de  TNF­α  aumentam  a  ocorrência  de  apoptose  de  pré­adipócitos  e adipócitos  do  tecido  adiposo  subcutâneo  e  omental  (do  epíploo).  Os  mecanismos  envolvidos  neste  processo  ainda  não estão esclarecidos, mas estudos em ratos concluíram que as células envolvidas são os adipócitos e não os pré­adipócitos, e que a apoptose ocorre mediante mecanismo envolvendo a caspase 3. Entretanto, pesquisas com tecido adiposo subcutâneo humano  mostraram  que  o  TNF­α  estimula  a  expressão  de  genes  pró­apoptóticos,  como  bcl­2  e  caspase  1,  tanto  em adipócitos como em pré­adipócitos.

Efeito no metabolismo lipídico O metabolismo de lipídios compreende uma sequência complexa de eventos que determinam: (1) quando o depósito de triacilgliceróis  dentro  do  adipócito  se  eleva,  devido  a  um  aumento  da  captação  de  ácidos  graxos  livres  ou  ocorrência  da lipogênese,  ou  (2)  quando  diminui,  em  decorrência  do  processo  de  lipólise.  O  TNF­α  atua  em  diversas  destas  etapas, estimulando a lipólise e inibindo a lipogênese. Por exemplo, o TNF­α inibe a atividade da lipase de lipoproteína (LPL) em tecido adiposo mamário de humanos. Esta enzima é secretada pelos adipócitos e atua na etapa inicial de captação de ácidos graxos,  pois  hidrolisa  os  triacilgliceróis  contidos  nas  lipoproteínas  (quilomícrons  e  VLDL),  originando  ácidos  graxos livres,  que  entram  na  célula  diretamente  ou  por  proteínas  transportadoras.  No  interior  da  célula,  os  ácidos  graxos  são

novamente  convertidos  em  triacilgliceróis.  O  aumento  dos  níveis  de  mRNA  de  TNF­α  estão  correlacionados  com  o decréscimo da atividade da LPL, em tecido adiposo subcutâneo de humanos. Em tecido adiposo de hamster, observou­se que o TNF­α também reduz a expressão de proteínas transportadoras de ácidos graxos. Adicionalmente, o TNF­α leva à diminuição  de  enzimas  envolvidas  na  lipogênese,  como  a  acetil­CoA  carboxilase  (ACC)  e  a  ácido  graxo  sintase  (FAS), enzimas­chaves  do  processo  de  síntese  de  ácidos  graxos.  Entretanto,  ainda  não  está  claro  se  estes  últimos  efeitos acontecem também em adipócitos maduros. Embora  não  esteja  muito  bem  compreendida  a  maneira  como  o  TNF­α  promove  a  lipólise,  estudos  realizados  em tecido  adiposo  subcutâneo  humano  mostraram  que,  concomitantemente  com  o  aumento  da  produção  de  TNF­α,  ocorre ativação da via da MAP quinase e da ERK1/2. Estas duas vias não estão acopladas e, portanto, alterações em ambas não estão relacionadas diretamente com a ocorrência de lipólise. Por outro lado, o TNF­α altera a expressão de enzimas­chaves da via lipolítica. Este conjunto de eventos faz com que o TNF­α reduza o acúmulo de lipídios nos adipócitos, contribuindo para a diminuição da massa total do tecido adiposo.

Obesidade Os níveis de mRNA de TNF­α em tecido adiposo subcutâneo são maiores em mulheres obesas que em magras, mas retornam  ao  normal  após  emagrecimento.  Com  a  obesidade,  também  se  observa  aumento  na  expressão  de  TNFR­2  no tecido adiposo e nos níveis circulantes de TNF­α. Esta elevação pode modular as ações do TNF­α. Entretanto, não se nota uma correlação clara entre os níveis de mRNA de TNF­α e o índice de massa corporal (BMI) em homens e em mulheres analisados em conjunto. Acredita­se que possa haver um dimorfismo sexual na expressão gênica e secreção de TNF­α na obesidade. Esta pode ser  a  razão  da  perda  de  qualquer  forte  associação  entre  os  níveis  de  mRNA  de  TNF­α  e  o  BMI  em  estudos  que envolveram mistura de grupos sexuais. O BMI pode não ser um suficiente indicativo da gordura total. Um estudo mostrou que, embora não exista correlação entre os níveis de mRNA e BMI, há correlação positiva entre gordura corpórea total e mRNA. Tanto em humanos quanto em camundongos, parece que a expressão gênica de TNF­α está aumentada apenas nos casos extremos de obesidade. Resistência à insulina O  TNF­α  está  classificado  como  um  fator  associado  ao  desenvolvimento  de  resistência  à  insulina  na  obesidade. Observou­se  uma  correlação  positiva  entre  os  seus  níveis  de  mRNA  no  tecido  adiposo  subcutâneo  e  as  concentrações plasmáticas  de  insulina,  em  mulheres.  Foi  demonstrado  aumento  da  secreção  de  TNF­α  em  pacientes  obesos  com resistência  à  insulina.  Entretanto,  esses  efeitos  são  mais  evidentes  em  mulheres,  e  estudos  realizados  em  homens  não apresentaram correlação entre os níveis de mRNA e a sensibilidade à insulina. Vários mecanismos pelos quais o TNF­α induz  a  resistência  à  insulina  têm  sido  sugeridos,  entre  eles:  lipólise  acelerada  com  elevação  concomitante  de  ácidos graxos livres, redução da síntese de GLUT4, diminuição da expressão do receptor de insulina e do substrato do receptor de insulina 1 (IRS­1). As ações do TNF­α na função de adipócitos são diversas e, em conjunto, podem promover a perda de peso. O TNF­α pode prevenir um aumento no número de adipócitos (pela inibição da adipogênese) e promover uma diminuição do volume dos  adipócitos  (pela  redução  da  reserva  de  triacilgliceróis).  Ele  também  pode  apresentar  uma  correlação  positiva  com  a obesidade. As suas ações na obesidade podem variar conforme o sexo e o tipo de depósito de tecido adiposo. Está claro, entretanto, que o TNF­α é um importante membro da lista de fatores que modulam as funções dos adipócitos.

▸ Adiponectina A adiponectina (AdipoQ, apM1, ACRP30) é uma proteína de 30 kDa, relativamente abundante, produzida pelo tecido adiposo  e  encontrada  no  plasma,  em  concentrações  que  giram  ao  redor  de  2  a  10  μg/m ℓ ;  seu  cDNA,  localizado  no cromossomo  3q27  que  codifica  a  sequência  do  ACRP30,  foi  descrito  em  1995  por  Scherer  et  al.  Neste  capítulo,  nos referiremos à adiponectina como ADP. Vários efeitos têm sido atribuídos à ADP, tais como aumento da sensibilidade à insulina, efeitos moduladores do fator nuclear  κB  (NFκB)  e  inibição  do  TNF­α.  Obesidade,  resistência  à  insulina  e  doenças  cardiovasculares  têm  correlação negativa  com  a  ADP,  ou  seja,  há  uma  associação  inversa  entre  os  níveis  circulantes  do  hormônio  e  o  risco  do desenvolvimento dessas patologias.

Estrutura molecular

A ADP é uma proteína que contém 244 aminoácidos. Em sua estrutura molecular, foram descritos vários segmentos com as seguintes características (Figura 72.6): um domínio globular (gADP), um domínio colágeno (cADP), uma região variável e uma sequência sinalizadora (esta sequência é clivada por ocasião da síntese do hormônio). A  adiponectina  apresenta  similaridade  com  C1q,  membro  da  família  de  proteínas  do  complemento  e  uma  inesperada homologia estrutural com TNF­α, sugerindo um elo entre membros das duas famílias. O hormônio não circula isoladamente; ao contrário, os monômeros se agrupam formando trímeros. Entretanto, vários experimentos  têm  comprovado  que  os  trímeros  se  agrupam  na  circulação,  compondo  oligômeros  constituídos  de  4  a  6 trímeros (Figura 72.7).  Os  oligômeros  são  constituídos  por  interações  das  hélices  triplas  da  fração  colágeno,  resultando em  um  agrupamento  molecular  de  alta  complexidade.  Sem  o  domínio  colágeno,  o  globular  permanece  trimerizado,  mas não  associado.  Assim,  os  trímeros  são  formados  por  interações  dos  domínios  globulares,  enquanto  os  oligômeros  se associam pelos domínios colágenos.

Figura  72.6  ■   A.  Estrutura  monomérica  da  adiponectina.  B.  Estrutura  molecular  tridimensional  da  fração  globular  da adiponectina. (Adaptada de Chandran et al., 2003.)

Figura 72.7 ■ Modelo da estrutura da adiponectina. Três monômeros, unidos por seus domínios globulares, formam um trímero. Quatro a seis trímeros, unidos por seus domínios colágenos, constituem oligômeros que circulam no plasma.

Os  mecanismos  moleculares  precisos  que  participam  na  manutenção  da  estabilidade  dos  trímeros  não  são  bem conhecidos. Investigações sobre a bioatividade da adiponectina íntegra, ou de seu domínio globular isolado, demonstraram que os domínios globulares encerram praticamente toda a atividade biológica do hormônio.

Receptores Foram  identificados  os  receptores  1  e  2  de  adiponectina.  Os  receptores  contêm  7  domínios  transmembrana,  mas  são estrutural  e  funcionalmente  diferentes  de  receptores  acoplados  a  proteínas  G.  O  receptor  1  ou  ADP­R1  é  expresso primariamente  no  músculo  e  funciona  com  alta  afinidade  para  gADP  e  baixa  para  adiponectina  completa,  fADP  (full­ length).  O  2  ou  ADP­R2 é  expresso  no  fígado  e  age  como  receptor  de  afinidade  intermediária,  para  as  formas  gADP  e fADP.  Os  efeitos  biológicos  dependem  não  somente  das  concentrações  sanguíneas,  mas  também  da  especificidade tecidual.

Síntese A adiponectina é produzida em abundância e exclusivamente pelo tecido adiposo, fruto da expressão do gene apM1. A sua  concentração  é  alta,  tanto  no  tecido  adiposo  como  no  plasma.  As  concentrações  plasmáticas  correspondem  a aproximadamente 0,01% de toda a proteína circulante, o que significa que a adiponectina tem uma concentração centenas de vezes maior que a dos demais hormônios; suas concentrações plasmáticas são mais elevadas em indivíduos magros e diminuem paulatinamente com o aumento de peso e o grau de obesidade. Assim, a redução da expressão do gene apM1 e dos níveis plasmáticos da proteína tem sido implicada na patogênese da obesidade e do T2DM (diabetes melito do tipo 2). A  ADP  não  exibe  grandes  flutuações  de  concentração  na  circulação,  sugerindo  que  sua  liberação  ocorre  não  de  modo agudo,  mas  regulada  por  mudanças  metabólicas  de  mais  longo  prazo.  Mulheres  apresentam  níveis  sanguíneos  mais elevados que homens, caracterizando um dimorfismo sexual.

Efeitos biológicos Adiponectina e ação da insulina Vários  estudos  demonstram  forte  correlação  negativa  entre  o  grau  de  adiposidade  e  os  níveis  circulantes  de  ADP. Estudos  adicionais  indicam  que  há  forte  relação  entre  aumento  dos  níveis  de  insulina  e  diminuição  dos  de  ADP.  Além disso,  foi  descrita  uma  associação  muito  forte  entre  os  níveis  de  ADP  e  o  grau  de  captação  de  glicose  estimulada  pela insulina,  sugerindo  que  a  ADP  é  um  forte  sensibilizador  da  insulina in vivo. Níveis  baixos  de  adiponectina  ocorrem  em paralelo  com  a  progressão  da  resistência  à  insulina.  Em  estudos  realizados  com  macacos  rhesus,  a  diminuição  da concentração  plasmática  de  adiponectina  precedeu  a  hiperglicemia  e  a  resistência  à  insulina.  Para  explicar  esse  fato,  foi aventada a hipótese de que o aumento dos níveis de insulina pode ter atuado como repressor da expressão e secreção de ADP.  Em  alguns  casos,  os  animais  apresentavam  forte  resistência  à  insulina,  hiperglicemia,  perda  de  peso  e  queda  dos níveis de ADP. Isso indica que a maior sensibilidade à insulina está mais associada à hiperadiponectinemia que ao baixo peso  corporal.  Estudos  em  índios  pimas  (indígenas  do  Arizona,  que  apresentam  peso  corporal  muito  elevado)  e  em caucasianos  (pessoas  de  pele  branca,  especialmente  as  de  origem  europeia)  obesos  reforçaram  a  ideia  de  uma  forte correlação entre hipoadiponectinemia e resistência à insulina. A  utilização  de  tiazolidinedionas  (TZD),  fármacos  conhecidos  como  sensibilizadores  de  insulina,  produz  melhora  na sensibilidade à insulina acompanhada de aumento da secreção de ADP. Adiponectina e efeitos vasculares A  ADP  tem  vários  efeitos  vasculares:  (1)  aumento  da  vasodilatação  endotélio­dependente;  (2)  aumento  da vasodilatação endotélio­independente; (3) efeito antiaterosclerótico; (4) supressão da expressão de receptores de moléculas de  adesão  vascular,  conhecidos  como  scavengers;  (5)  redução  da  expressão  de  TNF­α  e  diminuição  dos  efeitos  desta adipocina  sobre  a  resposta  inflamatória  do  endotélio;  (6)  abrandamento  do  efeito  de  fatores  de  crescimento  sobre  a musculatura  lisa  vascular;  (7)  inibição  dos  efeitos  de  LDL  oxidadas  (oxLDL)  sobre  o  endotélio,  isto  é,  supressão  da proliferação  celular,  da  geração  de  superóxidos  e  da  ativação  de  MAP  quinase;  (8)  crescimento  da  produção  de  NO;  (9) estimulação da angiogênese; (10) redução do espessamento da íntima e da musculatura lisa que se segue à lesão da parede de artérias; (11) inibição de migração e proliferação de células endoteliais. Existe uma associação da ADP e a vasodilatação dependente do endotélio. Nas células endoteliais, a adiponectina tem como função gerar óxido nítrico (NO). Foi proposto que esse efeito salutar está associado ao aumento da geração de eNOS (óxido nítrico sintase endotelial).

Estudos  mais  recentes  demonstram  que  a  ADP  também  tem  significante  efeito  na  angiogênese  de  pequenos  vasos, exibe propriedades quimioatrativas e estimula não só a diferenciação de células endoteliais humanas extraídas de veias do cordão umbilical, como também o crescimento vascular in vivo. Em  células  musculares  lisas  vasculares,  a  ADP  atenua  a  proliferação  induzida  por  fatores  de  crescimento,  como  o fator de crescimento epidermal (EGF) e o fator de crescimento derivado das plaquetas­BB (PDGF­BB). Possivelmente, a redução  dos  efeitos  da  sinalização  do  PDGF­BB  é  causada,  ao  menos  em  parte,  pela  ligação  da  adiponectina  ao  PDGF­ BB,  o  que  impede  a  associação  de  PGDF  com  seus  receptores  celulares.  Como,  dependendo  da  situação,  a  angiogênese pode ser reparadora ou patológica, em experimentos realizados em células em cultura é difícil prever quais efeitos da ADP podem correlacionar­se melhor com sua observada função na proteção contra a aterosclerose. Adiponectina e aterosclerose A  proteína  C  reativa  de  alta  sensibilidade  (hs­CRP)  é  bem  conhecida,  por  ser  um  marcador  de  risco  para  a  doença aterosclerótica  coronariana.  Essa  proteína  é  expressa  pelo  tecido  adiposo.  Em  humanos  com  aterosclerose,  foi  descrita uma correlação negativa significante entre os níveis plasmáticos de ADP e CRP. A associação negativa entre a ADP e a CRP,  nos  níveis  plasmáticos  e  na  massa  de  tecido  adiposo,  dá  suporte  para  a  hipótese  de  que  a  ADP  seja  um  hormônio que age contra o desenvolvimento de aterosclerose e inflamação vascular. A adesão dos monócitos ao endotélio vascular e a consequente transformação em foam cells são consideradas cruciais para  o  desenvolvimento  de  doenças  vasculares.  A  ADP  tem  efeitos  na  adesão  dos  monócitos  ao  endotélio,  diferenciação mieloide, produção de citocinas nos macrófagos e fagocitose. A ADP inibe a produção e a ação de TNF­α. Provavelmente, a  ADP  atua  como  supressora  da  transformação  dos  macrófagos  em  foam  cells,  que  pode  ser  o  elo  entre  a  inflamação vascular e a aterosclerose. Tem sido registrado que na presença de ADP há relação da capacidade de inibição de fatores de crescimento  na  musculatura  lisa  vascular  e  a  migração  de  macrófagos.  Portanto,  a  ADP  tem  efeitos  celulares  diretos antiateroscleróticos. Sinalização intracelular pela adiponectina Estudos da resposta metabólica de células do fígado, músculo esquelético e tecido adiposo indicam que a ativação de AMP  quinase  (AMPK)  é  essencial  para  os  efeitos  da  ADP  (Figura  72.8).  A  AMPK  é  ativada  por  uma  variedade  de condições, como o estresse celular associado ao acúmulo de AMP gerado a partir de ATP. Tem sido implicada na ação da metformina no fígado e da TZD na sensibilização à insulina, o que sugere uma ação mediadora desses dois medicamentos antidiabéticos reforçando os efeitos da ADP. Ela parece também mediar a sinalização em células endoteliais; sua ativação no endotélio aumenta a oxidação e a síntese de ATP. Como a AMPK ativa a eNOS, este sistema enzimático parece ser uma sinalização potencial entre a ADP e a geração de NO. A apoptose também se relaciona com a AMPK nas células endoteliais, sugerindo que o aumento da produção de NO obtido em células endoteliais pela ADP requer a participação da Akt e de seu mediador fosfatidilinositol­3 quinase (PI3K). Os efeitos na angiogênese dependem também de Akt e AMPK. Na sinalização, a AMPK parece atuar a jusante (upstream) da Akt. Quando há inibição da ativação de AMPK, é inibida a fosforilação de Akt. Os receptores da adiponectina (tanto o ADP­R1 como o ADP­R2) estão expressos em células endoteliais, sendo possível que sua diferenciação se deva à ativação de  várias  cascatas  relacionadas  com  as  quinases  endoteliais.  Alguns  sistemas  de  sinalização  adicionais  parecem  estar implicados  nos  efeitos  endoteliais  da  ADP.  Seu  efeito  inibitório  sobre  a  sinalização  do  TNF­α  em  células  endoteliais  se acompanha  de  acúmulo  de  cAMP  e  é  bloqueado  por  inibidores  da  PKA.  Isso  sugere  que  a  modulação  da  sinalização inflamatória se dê mediante um crosstalk (sinalização cruzada) entre a PKA e o fator nuclear κB (NFκB). Como a geração de superóxidos estimulada por LDL oxidada (oxLDL) culmina na ativação de NADPH oxidase, a supressão destas reações pela  gADP  pode  envolver  a  regulação  da  atividade  de  isoformas  de  NADPH  oxidases  ou  de  suas  subunidades  proteicas. Finalmente, em células endoteliais, a ativação da apoptose pela ADP é mediada por caspases celulares específicas (3, 8 e 9) que podem estar acopladas a cascatas de sinalização especiais e específicas.

Figura 72.8 ■ Potenciais vias de sinalização para a adiponectina (ADP) em células endoteliais. Ambas as isoformas do receptor de adiponectina (ADP­R1,  2) são expressas em células endoteliais. ADP­R1 é  mais  expressa  e  tem  maior  afinidade  por  gADP. Nessa célula, um dos principais efeitos da ADP é a ativação da AMPK, que ativa a eNOS por uma via que parece depender de PI3K/Akt.  Akt  e  eNOS  contribuem  para  a  angiogênese.  A  ADP  também  inibe  a  ativação  da  NAD(P)H  oxidase  por  oxLDL, reduzindo  a  geração  de  ROS  e  facilitando  a  síntese  de  NO.  oxLDL,  forma  oxidada  de  LDL;  ROS,  espécies  reativas  de oxigênio;  NO,  óxido  nítrico;  eNOS,  óxido  nítrico  sintase  endotelial;  AMPK,  quinase  proteica  ativada  por  AMP;  PI3K, fosfatidilinositol­3 quinase; M, membrana celular.

▸ Inibidor do ativador do plasminogênio (PAI­1) Estrutura molecular O PAI­1 é uma glicoproteína de cadeia única (Figura 72.9), com peso molecular entre 45 e 50 kDa e 379 aminoácidos. Por  apresentar  30%  de  homologia  com  a  α1­antitripsina  e  com  a  antitrombina  III,  considera­se  que  este  inibidor  do ativador  de  plasminogênio  (PAI)  faça  parte  de  uma  superfamília  de  inibidores  de  serina­proteases  (serpina),  a  qual pertence a um subgrupo que tem um resíduo arginina característico no centro reativo (arg­serpin). Outros inibidores fazem parte  desta  superfamília:  o  PAI­2,  a  protease  nexina  1  e  o  inativador  da  proteína  C  (PCI).  Em  geral,  as  serpinas  são específicas  (com  características  biológicas  distintas),  apresentam  ação  rápida  e  se  encontram  na  maioria  dos  líquidos corpóreos, tecidos e linhagens de células. As serpinas mostram­se dispostas em uma estrutura terciária, que consiste em três β­planos A, B e C, nove α­hélices e  um  sítio  reativo  (P4­P10’)  na  porção  C­terminal.  Esta  proteína  se  caracteriza  por  formar  ligações  peptídicas  com proteases­alvo. A  inibição  dos  ativadores  de  plasminogênio  pelos  PAI  ocorre  de  maneira  rápida,  resultando  na  formação  de  uma ligação covalente entre as duas moléculas. Na sua forma latente (inativa), os locais de ligação secundários dos ativadores de plasminogênio tornam­se pouco acessíveis à serina­protease, o que explica a sua estabilidade e a falta da sua atividade inibitória. Na forma ativa, o sítio reativo fica exposto e pronto para a complexação com a serina­protease.

Regulação da expressão gênica, transcrição e produção proteica O  gene  do  PAI­1  está  localizado  na  região  q21.3­q22  do  cromossomo  7,  próximo  aos  locais  da  eritropoetina,  da paraoxonase e da fibrose cística. A região reguladora 5’ contém vários elementos reguladores cis conhecidos, os quais se ligam a fatores de transcrição, como Sp1, proteína ativada­1 (AP­1), fator nuclear κB (NFκB), Smad3, Smad4 e TFE3.

Figura 72.9 ■ Estrutura molecular do inibidor do ativador de plasminogênio (PAI­1). A. Forma latente. B. Forma ativa. P1, região de cisão; P15­P4, margem A4; Lys214­Ser215, local de clivagem da plasmina.

A  transcrição  gênica  é  ativada  por  citocinas  inflamatórias  (IL­1  e  TNF­α),  fatores  de  crescimento  (TGF­β,  EGF, PDGF  e  bFGF),  angiotensina  II,  hormônios  (glicocorticoides  e  insulina),  produtos  metabólicos  (triacilgliceróis,  ácidos graxos  livres  e  glicose)  e  ativadores  não  específicos  da  proteinoquinase  C  (PKC),  como  o  forbol  acetato  e  miristato (PMA).  A  insulina  e  a  angiotensina  II  estimulam  a  expressão  de  PAI­1  através  da  via  MAPK.  Entretanto,  outras  vias parecem  estar  envolvidas  na  sua  regulação.  O  mecanismo  pelo  qual  estes  fatores  alteram  a  sua  expressão  ainda  não  foi completamente  entendido,  assim  como  pouco  se  sabe  sobre  os  elementos  cis­  e  trans­ativadores,  necessários  para promover a indução da sua expressão gênica pelos fatores de crescimento. Devido à ausência de resíduos cisteína, esta proteína apresenta instabilidade biológica quando em solução, o que leva à sua forma secretada (ativa) ser rapidamente submetida a uma conformação inativa, incapaz de formar complexos com os PA  (ativadores  de  plasminogênio).  A  conformação  ativa  é  adquirida  pela  estabilização  com  cofatores  fisiológicos,  como vitronectina e heparina. Vários tipos celulares produzem PAI­1, como células endoteliais, do músculo liso, hepatócitos, fibroblastos e células inflamatórias.  Quanto  à  origem  do  PAI­1  plasmático,  até  agora  não  é  conhecida  qual  seria  a  região  com  a  maior concentração desta proteína. Recentemente,  vem  ganhando  destaque  a  possibilidade  de  o  tecido  adiposo  per  se  contribuir  diretamente  para  uma elevada  expressão  de  PAI­1  na  obesidade.  Observações  iniciais,  utilizando  tecido  adiposo  de  camundongos,  mostraram elevados níveis de mRNA de PAI­1. Posteriormente, estudos clínicos constataram que, em indivíduos obesos, a redução de peso diminuía significantemente os níveis plasmáticos dessa proteína. Experimentos com camundongos geneticamente obesos  (ob/ob)  apontaram  uma  atividade  5  vezes  maior  do  PAI­1  em  relação  aos  animais­controle,  sugerindo  que,  na obesidade,  apesar  do  aumento  generalizado  no  mRNA  do  PAI­1  em  outros  tecidos,  estes  efeitos  eram  expressivamente maiores no tecido adiposo. A expressão de PAI­1 está presente nas gorduras subcutânea e visceral. Nesta última, a maior concentração de células da fração vascular do estroma e de pré­adipócitos contribui para o aumento da produção desta proteína; isso explicaria o fato de a adiposidade visceral estar particularmente associada a níveis aumentados de PAI­1 e à síndrome metabólica. Em camundongos submetidos a uma dieta rica em gordura, a superexpressão do mRNA do PAI­1 no tecido adiposo branco  atenua  a  hipertrofia  deste  tecido.  Ao  mesmo  tempo,  a  ablação  do  seu  gene  reduz  a  adiposidade  em  camundongos geneticamente obesos, porém não tem efeito significante na massa de tecido adiposo na obesidade induzida pela dieta; esse fato  indica  que  os  elevados  níveis  de  PAI­1  na  obesidade,  apesar  de  prejudiciais  para  a  regulação  da  fibrinólise,  podem exercer efeito protetor contra um excessivo crescimento do tecido adiposo branco. O tecido adiposo também secreta fatores que podem regular a expressão sistêmica de PAI­1. Um exemplo é a secreção de  TNF­α,  o  qual  estimula  a  expressão  de  PAI­1  em  adipócitos,  células  da  musculatura  lisa  vascular  e  outros  tecidos. Merece ser notado que agentes que inibem a TNF­α também suprimem a expressão de PAI­1. Estes dados sugerem que as

citocinas e outras proteínas produzidas pelos adipócitos podem atuar no local (de uma maneira autócrina) ou distante do local (como hormônio endócrino), para regular a produção de PAI no tecido adiposo. Apesar  de  o  PAI­1  estar  presente  em  baixas  concentrações  no  plasma,  sua  meia­vida  relativamente  curta  (menor  que 10  min)  sugere  elevada  taxa  de  biossíntese.  Além  disso,  sua  concentração  aumenta  rapidamente  em  resposta  a  vários agentes ou mudanças no estado fisiológico, indicando uma possível regulação dinâmica da quantidade de PAI­1. Concentrações  fisiológicas  de  glicocorticoides  estimulam  a  expressão  e  a  liberação  de  PAI­1  no  tecido  adiposo  in vitro. Assim, similaridades observadas no ritmo circadiano do cortisol plasmático e dos níveis de PAI­1, com picos pela manhã, parecem indicar um papel regulador do cortisol na expressão diurna de PAI­1, que poderia também estar associado a um aumento na incidência de infarto no miocárdio pela manhã. A  insulina  pode  estimular  a  liberação  de  PAI­1  no  tecido  adiposo  e  em  outros  tecidos.  O  consumo  de  uma  refeição altamente  calórica  e  rica  em  carboidratos,  que  estimula  a  secreção  de  insulina,  está  associado  ao  aumento  nos  níveis  de PAI­1; enquanto o jejum, ou a administração de metformina ou sensibilizadores de insulina (glitazonas) estão associados a decréscimo nos níveis de insulina circulante e nos níveis de PAI­1. Apesar de a insulina estimular a expressão de mRNA de PAI­1 em hepatócitos em cultura e em células endoteliais, foi demonstrado que seu maior efeito ocorre em adipócitos, em  que  o  aumento  é  expressivo;  isso  explicaria  os  resultados  contraditórios  que  envolvem  o  efeito  da  insulina  sobre  a expressão de PAI­1 em cultura de vários tipos de células. Uma forte correlação também foi vista entre o PAI­1 e as concentrações circulantes de leptina, independentemente do índice  de  massa  corporal,  indicando  que  a  leptina  per  se  poderia  aumentar  potencialmente  os  níveis  de  PAI­1  em indivíduos obesos.

Efeitos biológicos Duas  grandes  cascatas  de  reações  bioquímicas  envolvendo  proteases  (as  da  coagulação  e  as  da  fibrinólise)  estão presentes  no  plasma,  atuando  no  processo  que  previne  a  perda  de  sangue  do  organismo.  O  equilíbrio  entre  esses  dois processos abrange a participação do endotélio da parede dos vasos, células sanguíneas circulantes, plaquetas e leucócitos. A  coagulação  se  inicia  a  partir  da  expressão  na  superfície  celular  de  um  fator  tecidual,  que  atua  como  base  para  os fatores de coagulação plasmática, levando à formação da trombina, que, então, converte fibrinogênio em fibrina. Os  principais  componentes  fibrinolíticos  são  o  ativador  de  plasminogênio  tecidual  e  o  da  uroquinase  (t­PA  e  u­PA, respectivamente), além de fatores endógenos responsáveis pela degradação da fibrina. O PAI­1 é um potente inibidor do t­ PA e do u­PA, ao passo que a α2­antiplasmina inibe diretamente a plasmina (Figura 72.10). As  células  endoteliais  vasculares  sintetizam  e  secretam  t­PA  para  a  circulação  sanguínea,  na  qual  este  promove  a conversão  do  plasminogênio  (forma  inativa)  em  plasmina,  o  fator  endógeno  responsável  pela  degradação  da  fibrina.  O PAI­1,  produzido  principalmente  no  endotélio  vascular,  rapidamente  se  liga  a  moléculas  trombolíticas  endógenas, formando complexos estáveis e inibindo o processo fibrinolítico. No plasma, o equilíbrio essencial depende da atividade proteolítica dos ativadores de plasminogênio (t­PA e u­PA) e o seu  inibidor,  PAI­1.  Geralmente,  este  último  se  encontra  em  uma  concentração  4  a  5  vezes  maior,  favorecendo  a estabilização  da  fibrina.  A  formação  da  fibrina  é  um  mecanismo  defensivo  essencial,  que  protege  o  organismo  da hemorragia. Ao  mesmo  tempo  que  o  papel  do  PAI­1  e  dos  agentes  fibrinolíticos  no  processo  de  coagulação/fibrinólise  é  bem conhecido, várias evidências sugerem que o sistema fibrinolítico pode contribuir para o desenvolvimento e progressão da aterosclerose.  Estudos  clínicos  associam  elevados  níveis  de  PAI­1  com  presença  de  doenças  coronarianas,  assim  como alguns  estudos  fisiológicos  demonstram  que  alterações  na  atividade  dos  ativadores  de  plasminogênio  e  PAI­1  em  vasos contribuem para o processo aterosclerótico. Complicações  cardiovasculares  na  obesidade  estão  envolvidas  com  concentrações  elevadas  de  PAI­1.  Uma  íntima correlação  positiva  entre  obesidade  do  tipo  visceral  e  outros  componentes  da  síndrome  de  resistência  à  insulina  (como índice  de  massa  corporal,  gordura  visceral,  pressão  sanguínea,  níveis  plasmáticos  de  insulina  e  proinsulina,  LDL­ colesterol  e  ácidos  graxos  livres)  também  foi  demonstrada;  isso  permite  afirmar  que,  além  do  seu  papel  no  sistema fibrinolítico,  o  PAI­1  influencia  a  migração  celular  e  a  angiogênese,  prejudicando  a  migração  de  pré­adipócitos,  o  que consequentemente afeta o crescimento do tecido adiposo. Alguns  estudos  relacionam  a  expressão  de  PAI­1  com  resistência  à  insulina.  Como  citado,  o  TNF­α  estimula  a biossíntese  de  PAI­1.  O  tecido  adiposo  sintetiza  essa  citocina,  e  sua  expressão  é  cronicamente  elevada  em  adipócitos  de camundongos  e  indivíduos  obesos.  A  expressão  aumentada  de  TNF­α  pode  interferir  com  certos  aspectos  da  sinalização de insulina (como a atividade tirosinoquinase do receptor de insulina) e, assim, contribuir para a resistência à insulina.

Outra citocina que provavelmente colabora para um aumento nos níveis de PAI­1 e no quadro de obesidade é a TGF­β. Vários  estudos  constataram  seu  efeito  em  promover  a  biossíntese  de  PAI­1,  especificamente  no  tecido  adiposo.  Além disso,  a  TGF­β  também  exerce  papel  mitogênico  em  pré­adipócitos  e  inibe  a  diferenciação  de  pré­adipócitos  para adipócitos  in  vitro,  o  que  pode  aumentar  a  proliferação  do  precursor  celular  e  contribuir  para  excessivo  depósito  de gordura  nas  células.  Assim,  estas  observações  sugerem  que  a  expressão  aumentada  de  TGF­β  no  tecido  adiposo  pode cooperar para patologias associadas à obesidade. Em  resumo,  além  do  papel  regulador  no  sistema  fibrinolítico,  o  PAI­1  está  associado  a  doenças  cardiovasculares  e síndrome da resistência à insulina; o tecido adiposo desempenha um papel determinante nos níveis plasmáticos de PAI­1; a  perda  de  peso  e  a  atividade  física  apresentam­se  como  importantes  abordagens  para  a  redução  dos  seus  níveis;  a  sua expressão  gênica  é  regulada  por  citocinas  inflamatórias,  fatores  de  crescimento,  hormônios,  produtos  metabólicos  e angiotensina  II,  porém  o  mecanismo  pelo  qual  estes  fatores  alteram  sua  expressão  ainda  é  pouco  conhecido;  a  maior produção de PAI­1 pela gordura visceral pode explicar o fato de a adiposidade visceral estar associada a elevados níveis de PAI­1  e  síndrome  metabólica;  é  provável  que  os  elevados  níveis  de  PAI­1  observados  em  indivíduos  obesos  tenham  um efeito protetor contra um excessivo crescimento do tecido adiposo branco.

Figura  72.10  ■   Sistema  fibrinolítico.  t­PA,  ativador  do  plasminogênio  tecidual;  u­PA,  ativador  do  plasminogênio  da uroquinase; PAI­1, inibidor do ativador de plasminogênio.

▸ Resistina A resistina é uma proteína rica em cisteína, com 12,5 kDa, secretada pelo tecido adiposo e que se encontra presente na circulação. Sua descoberta e importância funcional foram descritas em trabalho publicado na revista Nature, em 2001, no qual  foi  indicada  uma  relação  entre  a  resistina  e  a  resistência  à  insulina  induzida  pela  obesidade  e  o  T2DM.  Intensa pesquisa  se  seguiu,  e  muitos  aspectos  explorados  confirmaram  as  primeiras  impressões,  embora  outros  estudos  tenham mostrado inconsistências com as pesquisas iniciais. A resistina pertence a uma família de proteínas, genericamente denominadas resistin­like molecules ou RELM, todas caracterizadas  pela  presença  consistente  de  um  segmento  rico  em  cisteína  (11  cisteínas)  na  extremidade  C­terminal.  O protótipo  desta  família  é  a  RELMα  (também  conhecida  como  FIZZ1  ou  found­in­inflammatory­zone),  descoberta  em exsudato  inflamatório  broncoalveolar  desencadeado  por  processo  alérgico.  A  RELMβ  (FIZZ2)  foi  descoberta  em intestino, onde se expressa de modo abundante, especialmente em tumores do cólon, sendo relacionada com o processo de tumorigênese. A resistina (FIZZ3) se mostra mais intensamente em tecido adiposo. Devido ao seu segmento rico em cisteína, a resistina e a RELMβ se dimerizam, formando homodímeros. A RELMα, por  não  dispor  da  Cys­26,  não  circula  formando  homodímeros;  entretanto,  as  três  RELM  podem  formar  heterodímeros entre si. Há estudos que confirmam a existência destes compostos na forma de oligo­heterodímeros circulantes.

Mecanismos celulares na formação e ação da resistina A  exposição  de  adipócitos  3T3­L1  diferenciados  à  insulina  suprime  a  expressão  gênica  de  resistina.  Este  efeito  da insulina parece ser independente da ativação de vias que envolvem PI3K, ERK ou p38­MAPK, descritas na propagação do sinal intracelular da insulina. Porém, embora seja admitido que a insulina reduza a expressão de resistina, os estudos são inconsistentes, havendo alguns que relatam aumento da expressão desta proteína, e outros, com estimulação insulínica in vivo, chegam a resultados inconclusivos.

Os  estímulos  inflamatórios  alteram  a  expressão  de  resistina.  A  dexametasona  aumenta  a  expressão  de  resistina  em tecido  adiposo,  e  os  lipopolissacarídios  também  provocam  o  mesmo  efeito.  Por  outro  lado,  o  TNF­α,  um  importante causador  de  resistência  à  insulina,  inibe  de  modo  consistente  a  expressão  de  resistina,  enquanto  a  estimulação  β­ adrenérgica, atuando via proteína G estimulatória (Gs), reduz a expressão de resistina. A regulação da expressão de resistina parece depender de alguns fatores de transcrição nucleares – CCAAT/enhancer binding  protein  α  (C/EBPα)  e  PPARγ.  O  primeiro  parece  atuar  estimulando  a  expressão  de  resistina  e  o  segundo  a inibindo, ambos atuando de maneira balanceada.

Efeitos biológicos da resistina Este  hormônio  foi  estudado  tanto  em  experimentos  in  vivo  como  in  vitro.  Os  primeiros  estudos,  realizados  em camundongos  obesos  com  resistina  neutralizada  mediante  utilização  de  anticorpos,  relataram  melhora  na  tolerância  à glicose  e  na  sensibilidade  à  insulina.  Em  contrapartida,  estudos  feitos  em  camundongos  normais  evidenciaram  que injeções  intraperitoneais  de  resistina  provocam  intolerância  à  glicose  e  hiperinsulinemia.  Trabalhos  executados  em adipócitos 3T3­L1 indicaram que o uso de soro antirresistina induz aumento de captação de glicose, enquanto a resistina produz efeitos anti­insulínicos. Assim, este conjunto de trabalhos iniciais apontam que a resistina tem um efeito indutor de  resistência  à  insulina,  cujo  mecanismo  não  está  claro,  mas  não  afeta  o  receptor  de  insulina  nem  sua  capacidade  de  se autofosforilar, nem etapas pós­receptor na via de sinalização (como fosforilação em tirosina do IRS1, sua associação com PI3K, a fosforilação em serina da Akt ou da p38­MAPK) e muito menos o conteúdo de GLUT1, assim como a capacidade de translocação de GLUT4 em miócitos L6. Outras vias alternativas da propagação intracelular do sinal insulínico foram propostas como estando afetadas, como é o caso da via CAP/Cbl associada a lipid rafts ou cavéolas (regiões da membrana plasmática, ricas em colesterol, onde se ancoram certas proteínas de membrana como a flotilina). Portanto, este tema ainda não está completamente esclarecido. Para  complicar  a  compreensão  do  papel  da  resistina,  estudos  com  camundongos ob/ob (obesos) e db/db  (diabéticos) revelaram  que  estes  animais  apresentam  níveis  elevados  de  resistina  circulante  e  que  o  tratamento  deles  com  TZD  ou insulina provoca aumento dos níveis de resistina, muito embora o quadro de resistência tenha melhorado. A expressão da resistina foi investigada em vários modelos de resistência à insulina. Assim, na lactação, exposição ao frio ou caquexia por câncer (situações que mostram resistência à insulina) não há aumento da expressão de resistina. Em oposição, tratamentos voltados a diminuir a resistina (como a remoção da gordura visceral em ratos obesos) atenuam ou impedem o desenvolvimento de resistência. A gordura visceral constitui o local de maior expressão da resistina, que é 15 vezes  mais  intensa  que  na  gordura  subcutânea.  Tratamentos  com  prolactina  ou  testosterona  conduzem  a  aumento  de resistência à insulina e elevação da expressão de resistina. Adicionalmente, situações patológicas (como hipertireoidismo) ou fisiológicas (p. ex., gestação a meio termo, puberdade ou emprego de hormônios esteroides) evoluem com aumento da expressão de resistina. Em seres humanos, os estudos são ainda mais controversos. O gene da resistina foi localizado no cromossomo 19 e a sua expressão, determinada em estudos populacionais. Na maioria dessas pesquisas, não se encontra uma correlação muito forte entre a expressão deste gene e a obesidade, exceto em um estudo realizado na China. Além disso, a biossíntese e a secreção de resistina no tecido adiposo humano têm sido objeto de muito debate. Algumas pesquisas concluíram que essa proteína  se  expressa  mais  em  pré­adipócitos  que  em  adipócitos  maduros,  nos  quais  é  desprezível.  Por  outro  lado,  a  sua expressão  tem  maior  intensidade  na  gordura  visceral  que  na  subcutânea,  o  que  corrobora  a  hipótese  do  seu  papel  na geração de resistência à insulina. Finalmente, a pesquisa nesta área tem mostrado que não existe uma clara relação entre obesidade  e  resistina,  embora  mesmo  nesta  questão  haja  intensa  controvérsia.  Portanto,  muitos  estudos  devem  ser desenvolvidos para esclarecer o papel da resistina na gênese da resistência à insulina.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Considerando  o  recente  e  intenso  avanço  da  pesquisa  no  campo  de  moléculas  bioativas  produzidas  por  células classicamente não pertencentes ao sistema endócrino, notadamente as citocinas, este capítulo não teve a pretensão de ser abrangente.  Entretanto,  é  preciso  ficar  claro  que  além  das  células  do  sistema  imune  e  do  tecido  adiposo,  vários  outros órgãos  apresentam  esta  habilidade.  Entre  eles,  ressaltamos  o  tecido  muscular,  que  expressa  genes  da  interleucina­6,  do TNF­α  e  de  um  peptídio  denominado musculina.  Este  peptídio  mostra  semelhanças  com  o  fator  natriurético  atrial,  está expresso  em  maior  intensidade  em  musculatura  esquelética  de  camundongos  geneticamente  obesos,  além  de  atuar

diminuindo  a  sensibilidade  muscular  à  insulina  e  reduzindo  a  capacidade  muscular  de  sintetizar  glicogênio.  Embora  a musculina  e  muitos  outros  peptídios  biologicamente  ativos  venham  sendo  bastante  pesquisados,  o  real  entendimento  de sua ação ainda requer mais pesquisas. É inegável, contudo, que este campo de estudo vem florescendo e novas concepções deverão ser geradas à medida que for sendo desvendado o papel fisiológico desse tipo de moléculas bioativas.

BIBLIOGRAFIA ABELLA  V,  SCOTECE  M,  CONDE  J  et  al.  Leptin  in  the  interplay  of  inflammation,  metabolism  and  immune  system disorders. Nat Rev Rheumatol, 13(2):100­9, 2017. ACEDO SC, GAMBERO S, CUNHA FG et al. Participation of leptin in the determination of the macrophage phenotype: an additional role in adipocyte and macrophage crosstalk. In Vitro Cell Dev Biol Anim, 49:473­8, 2013. AHIMA RS, FLIER JS. Adipose tissue as an endocrine organ. Trends Endocrinol Metab, 11(8):327­32, 2000. ALBERTS B, JOHNSON A, LEWIS J et al. Molecular Biology of The Cell. 4. ed. Garland Science, New York, 2002. BERG AH, COMBS TP, SCHERRER PE. ACRP 30/Adiponectin: an adipokine regulating glucose and lipid metabolism. Trends Endocrinol Metab, 13(2):84­9, 2002. BOST F, CARON L, MARCHETTI I et al.  Retinoic  acid  activation  of  the  ERK  pathway  is  required  for  embryonic  stem  cell commitment into the adipocyte lineage. Biochem J, 361(Pt 3):621­7, 2002. CHANDRAN  M,  CIARALDI  T,  PHILIPS  SA  et  al.  Adiponectin:  more  than  just  another  fat  cell  hormone?  Diabetes Care, 26(8):2442­9, 2003. CHOROSTOWSKA­WYNIMKO  J,  SKRZYPCZAK­JANKUN  E,  JANKUN  J.  Plasminogen  activator  inhibitor  type­1:  its structure, biological activity and role in tumorigenesis (Review). Internatl J Mol Med, 13:759­66, 2004. COLEMAN D. Effects of parabiosis of obese with diabetes and normal mice. Diabetologia, 9:294­8, 1973. DE ARAÚJO­SOUZA PS, HANSCHKE SC, VIOLA JP. Epigenetic control of interferon­gamma expression in CD8 T cells.  J Immunol Res, 2015:849573, 2015. DIEZ  JJ,  IGLESIAS  P.  The  role  of  the  novel  adipocyte­derived  hormone  adiponectin  in  human  disease.  Eur  J Endocrinol, 148:293­300, 2003. FAIN NJ, CHEEMA PS, BAROUTH SW et al. Resistin release by human adipose tissue explants in primary culture.  Biochem Biophys Res Comm, 300:674­8, 2003. FRUHBECK  G,  GÓMEZ­AMBROSI  J,  MURUZÁBAL  FJ  et  al.  The  adipocyte:  a  model  for  integration  of  endocrine  and metabolic signaling in ener­gy metabolism regulation. Am J Phisiol Endocrinol Metab, 280:E827­47, 2001. GOLDESTEIN  BJ,  SCALIA  R.  Adiponectin:  a  novel  adipokine  linking  adipocytes  and  vascular  function.  J  Clin  Endocrinol Metab, 89(6):2563­8, 2004. GUERRE­MILLO M. Adipose tissue and adipokines: for better or worse. Diabetes Metab, 30:13­9, 2004. HAUNER H, PETRUSCHKE T, RUSS M et al. Effects of tumour necrosis factor alpha (TNF alpha) on glucose transport and lipid metabolism of newly­differentiated human fat cells in cell culture. Diabetologia, 38(7):764­71, 1995. HE Y, HARA H, NÚÑEZ G. Mechanism and regulation of NLRP3 inflammasome activation. Trends Biochem Sci, 41(12):1012­ 21, 2016. HOTAMISLIGIL GS, ARNER P, ATKINSON RL et al. Differential regulation of the p80 tumor necrosis factor receptor in human obesity and insulin resistance. Diabetes, 46(3):451­5, 1997. HU X, PAIK PK, CHEN J et al. INF­gamma suppresses IL­10 production and synergizes with TLR2 by regulating GSK3 and CREB/AP­1 proteins. Immunity, 24:563­74, 2006. HUBE  F,  HAUNER  H.  The  role  of  TNF­a  in  human  adipose  tissue:  prevention  of  weight  gain  at  the  expense  of  insulin resistence? Horm Metab Res, 31:626­31, 1999. IRIGOYEN JP, MUNOZ­CÁNOVES P, MONTERO L et al. The plasminogen activator system: biology and regulation. Cell Mol Life Sci, 56:104­32, 1999. ISAILOVIC N, DAIGO K, MANTOVANI A et al. Interleukin­17 and innate immunity in infections and chronic inflammation. J Autoimmun, 60:1­11, 2015. JENS,  L,  KNOECHEL  B,  CARETTO  D et al.  Balance  of  Th1  and  Th17  effector  and  peripheral  regulatory  T  cells.  Microbes Infect, 11:589­93, 2009. JUHAN­VAGUE I, ALESSI MC, MAVRI A et al.  Plasminogen  activator  inhibitor­1,  inflammation,  obesity,  insulin  resistance and vascular risk. J Thrombosis Hemostasis, 1:1575­9, 2003. KERN PA, RANGANATHAN S, LI C et al. Adipose tissue tumor necrosis factor and interleukin­6 expression in human obesity and insulina resistance. Am J Physiol Endocrinol Metab, 280(5):E745­51, 2001.

KERSHAWE, FLIER J. Adipose tissue as an endocrine organ. J Clin Endocrinol Metab, 89(6):2548­56, 2004. KOISTINEN HA, BASTARD JP, DUSSERRE E et al. Subcutaneous adipose tissue expression of tumour necrosis factor­alpha is not  associated  with  whole  body  insulina  resistance  in  obese  nondiabetic  or  in  type­2  diabetic  subjects.  Eur  J  Clin Invest, 30(4):302­10, 2000. KUWABARA  T,  ISHIKAWA  F,  KONDO  M  et  al.  The  role  of  IL­17  and  related  cytokines  in  inflammatory  autoimmune diseases. Mediators Inflamm, 2017:3908061, 2017. LOBO­SILVA D, CARRICHE GM, CASTRO AG et al. Balancing the immune response in the brain: IL­10 and its regulation. J Neuroinflammation, 13(1):297, 2016. LOSKUTOFF DJ, SAMAD F. The adipocyte and hemostatic balance in obesity. Arterioscler Thromb Vasc Biol, 18:1­6, 1998. LYON  CJ,  HSUEH  WA.  Effect  of  plasminogen  activator  inhibitor­1  in  diabetes  melito  and  cardiovascular  disease.  Am  J Med, 115(8A):62S­8S, 2003. MASKOS K, FERNANDEZ­CATALAN C, HUBER R et al. Crystal structure of the catalytic domain of human tumor necrosis factor­α­converting enzyme. PNAS, 95(7):3408­12, 1998. MINER JL. The adipose as an endocrine cell. Am Soc Animal Sci, 82:935­41, 2004. MUTCH NJ, WILSON HM, BOOTH NA. Plasminogen activator inhibitor­1 and haemostasis in obesity. Proc Nutr Soc, 60:341­ 7, 2001. NGUYEN  PM,  PUTOCZKI  TL,  ERNST  M.  STAT3­activating  cytokines:  a  therapeutic  opportunity  for  inflammatory  bowel disease? J Interferon Cytokine Res, 35(5):340­50, 2015. NISHIZAWA  H,  MATSUDA  M,  YAMADA  Y  et  al.  Musclin,  a  novel  skeletal  muscle­derived  secretory  factor.  J  Biol Chem, 279:19391­5, 2004. REA R, DONNELLI R. Resistin: an adipocyte­derived hormone. Has it a role in diabetes and obesity? Diab Obes Metab, 6:163­ 70, 2004. ROITT I, BROSTOFF J, MALE D. Immunology. 6. ed. Mosby, New York, 2001. SHARON J. Imunologia Básica. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 2000. WAJCHENBERG  BL.  Subcutaneous  and  visceral  adipose  tissue:  their  relation  to  the  metabolic  syndrome.  Endocrine Rev, 21:697­738, 2000. WALI JA, THOMAS HE, SUTHERLAND AP. Linking obesity with type 2 diabetes: the role of T­bet. Diabetes Metab Syndr Obes, 7:331­40, 2014. WARNE JP. Tumour necrosis factor alpha: a key regulator of adipose tissue mass. J Endocrinol, 177:351­5, 2003. WOLF G. Insulin resistance and obesity: resistin, a hormone secreted by adipose tissue. Nutr Rev, 62:389­99, 2004. ZHANG  HH,  HALBLEIB  M,  AHMAD  F  et  al.  Tumor  necrosis  factor­alpha  stimulates  lipolysis  in  differentiated  human adipocytes through activation of extracellular signal­related kinase and elevation of intracellular cAMP. Diabetes, 51:2929­ 35, 2002. ZHANG  Y,  PROENCA  R,  MAFFEI  M  et  al.  Positional  cloning  of  the  mouse  obese  gene  and  its  human homologue. Nature, 372:425­32, 1994.



Introdução

■ ■

Período embrionário Período pós­natal



Bibliografia

INTRODUÇÃO Ao  longo  da  vida,  desde  o  momento  da  concepção,  os  processos  de  crescimento  e  desenvolvimento  coexistem harmoniosamente,  contribuindo  para  o  estabelecimento  de  padrões  de  expressão  de  proteínas  que  conferem  aumento  de massa bem como especificidade aos diferentes tecidos e órgãos que, coordenadamente, garantem a manutenção da vida do organismo  como  um  todo.  Todavia,  a  contribuição  de  cada  um  desses  processos  varia  em  proporções  diferentes  nas diversas  fases  da  vida,  ora  predominando  o  crescimento  ora  o  desenvolvimento,  com  exceção  ao  período  embrionário, quando ambos os processos cursam, praticamente, em proporções similares. O sistema endócrino participa ativamente de todos  esses  processos,  coordenando­os  e  ajustando­os  às  necessidades  de  cada  fase  da  vida,  de  modo  a  garantir  sua continuidade e qualidade. Crescimento,  por  definição,  implica  aumento  de  massa,  o  qual  pode  ocorrer  por  aumento  do  número  de  células (aumento  do  número  de  mitoses;  hiperplasia)  ou  por  aumento  do  conteúdo  proteico  por  célula,  o  que  é  definido  por hipertrofia. Um exemplo do primeiro caso é o que ocorre no período embrionário, no qual uma única célula, por meio de sucessivas  divisões  celulares,  dá  origem  a  um  organismo,  o  feto;  o  segundo  caso  pode  ser  exemplificado  pelo  exercício físico continuado (treinamento físico), o qual, como se sabe, induz hipertrofia muscular. Estima­se que, da concepção ao nascimento,  ocorra  um  aumento  de  massa  da  ordem  de  440  milhões  de  vezes  e  um  ganho  do  comprimento  em  torno  de 3.850  vezes.  Sem  dúvida,  é  o  período  da  vida  em  que  ocorre  a  maior  aquisição  de  massa,  por  aumento  no  número  de células.  O  indivíduo  após  o  nascimento,  até  tornar­se  adulto,  continua  ganhando  massa  (em  torno  de  20  vezes)  e comprimento (de 3 a 4 vezes), embora nesse período a obtenção de massa ocorra predominantemente por hipertrofia. Desenvolvimento  implica  aquisição  de  funções,  diferenciação  dos  tecidos  e  expressão  de  proteínas  específicas  que determinarão  as  características  funcionais  dos  diferentes  tecidos,  processo  que  tem  sua  maior  expressão  também  no período  embrionário.  Assim,  o  tecido  ósseo  apresenta  células  que  expressam  proteínas  específicas  que  determinam  sua característica ímpar de resistir às forças mecânicas que lhe são aplicadas a cada movimento e pela força gravitacional. O tecido  muscular  expressa  proteínas  que  determinam  suas  características  mecânicas  de  contração  e  relaxamento.  Quando nos referimos ao tecido muscular esquelético, essas características são fundamentais para o estabelecimento da postura e da  movimentação  do  corpo  no  espaço.  Entretanto,  quando  nos  referimos  ao  músculo  cardíaco,  essas  características  são primordiais para o estabelecimento da diferença de pressão que possibilita a circulação sanguínea e a nutrição tecidual. Vários fatores contribuem para o crescimento e o desenvolvimento do organismo; eles diferem dependendo da fase da vida em que o organismo se encontra, razão pela qual se torna importante discorrer sobre os principais determinantes do crescimento e do desenvolvimento no período pré­ e pós­natal.

PERÍODO EMBRIONÁRIO Conforme  salientado,  é  no  período  intrauterino  que  ocorre  o  maior  ganho  de  massa  e  desenvolvimento  fetal,  e  a placenta é o órgão diretamente responsável pelo fornecimento de um ambiente que garante a harmonia desses processos. A placenta  transfere  nutrientes  da  mãe  para  o  feto  e  produtos  finais  do  metabolismo  do  feto  para  a  mãe;  age  como  uma barreira  contra  patógenos  e  células  do  sistema  imune  da  mãe,  é  um  órgão  endócrino  ímpar,  que  sintetiza  e  secreta hormônios proteicos, esteroides, fatores de crescimento e outras moléculas bioativas, que interferem tanto no metabolismo materno  quanto  no  fetal.  Dessa  maneira,  um  retardo  do  crescimento  intrauterino  se  deve,  em  geral,  principalmente  a fatores maternos, fetais ou placentários, enquanto os fatores endócrinos representam a grande minoria das causas do baixo peso e estatura ao nascer. Todavia, fatores endócrinos, maternos, nutricionais e genéticos contribuem, em graus variáveis, para o crescimento e o desenvolvimento normais do feto (Figura 73.1).

▸ Fatores endócrinos Hormônio do crescimento (GH) O  conhecimento  da  importância  do  GH  para  o  crescimento  linear  no  período  pós­natal  fez  com  que  esse  hormônio fosse um dos primeiros a serem propostos como possível mediador do crescimento fetal, até porque se evidenciou que a concentração  plasmática  de  GH  encontra­se  elevada  no  feto,  alcançando  o  seu  pico,  aproximadamente,  na  metade  da gestação.  No  entanto,  a  posterior  constatação  de  que  fetos  anencefálicos,  os  quais  não  sintetizam  GHRH  nem  GH, apresentam crescimento normal descartou a possibilidade de que este hormônio tivesse participação importante na fase de crescimento intrauterino. No entanto, apesar de o GH plasmático fetal se apresentar elevado, os níveis plasmáticos de IGF­I não acompanham esse aumento, apresentando­se, inclusive, reduzidos. Acredita­se que nesse período do desenvolvimento fetal a expressão de receptores funcionais de GH (GHR) esteja comprometida, já que há evidências da existência de locais alternativos de iniciação da tradução do mRNA que codifica o GHR, sugerindo que sejam produzidos fragmentos peptídicos menores, em vez de receptores funcionais. Porém, a expressão de GHR na hipófise é marcante no período fetal, o que sugere um papel ainda desconhecido deste hormônio no desenvolvimento desta glândula.

Figura 73.1 ■ Representação esquemática dos fatores determinantes do crescimento. A espessura das setas indica o grau de contribuição de cada componente neste processo. (Adaptada de Martinelli e Aguiar­Oliveira, 2005.)

Nos  estágios  mais  tardios  da  gestação,  os  níveis  de  GH  do  feto  diminuem,  o  que  parece  se  dever  ao  efeito  de retroalimentação negativa exercida pelo IGF­I, que, conforme veremos adiante, é de origem parácrina, graças ao estímulo de sua síntese por outros hormônios que não o GH. Conclui­se, portanto, que o crescimento intrauterino independe de GH fetal. Para mais esclarecimentos da relação entre GH e IGF­I, consulte o Capítulo 66, Glândula Hipófise.

Prolactina (Prl) A  detecção  de  receptores  de  Prl  na  maioria  dos  tecidos  fetais,  já  no  início  da  gravidez,  sugere  a  sua  participação  no crescimento fetal (ver adiante o item hPL); no entanto, a secreção de Prl pelo feto é significativa apenas no último terço da gravidez.  O  fato  de  o  desenvolvimento  e  o  ganho  de  massa  do  tecido  adiposo  ocorrerem  em  paralelo  à  expressão  de receptores de Prl nesse tecido levanta a possibilidade de que a Prl exerça papel importante nesses processos (Figura 73.2).

Hormônios placentários | Somatotrofina coriônica/lactogênio placentário Durante  a  gravidez  a  placenta  elabora  vários  hormônios;  alguns  atuam  no  organismo  materno  e  promovem  ações fisiológicas  de  fundamental  importância  para  o  crescimento  e  desenvolvimento  do  feto,  enquanto  outros  atuam  mais especificamente  sobre  o  feto,  promovendo  o  seu  crescimento.  Assim,  temos  a  somatotrofina  coriônica  (hGH­V)  e  o lactogênio placentário (hPL) que apresentam parte da sequência de aminoácidos comum, o que lhes confere algumas ações fisiológicas semelhantes. Esses hormônios são provenientes de um gene ancestral comum, mas são codificados por genes distintos (ver boxe adiante). Dessa maneira, distúrbios na secreção destes hormônios durante a gravidez podem provocar repercussões adversas no crescimento fetal e na função metabólica do período pós­natal.

Figura 73.2 ■ Variações da concentração plasmática de IGF­II, IGF­I, lactogênio placentário (hPL), hormônio do crescimento (GH) e prolactina (Prl) no feto, durante a gestação e no período neonatal. As variações das concentrações fetais plasmáticas do hPL estão apresentadas na área hachurada. (Adaptada de Fisher, 2003.)

Somatotrofina coriônica (hGH­V) A  placenta  produz  uma  gama  de  hormônios,  dentre  os  quais  uma  variante  do  GH,  o  hGH­V,  que  é  o  principal hormônio  somatotrófico  da  mãe,  já  que  na  gravidez  a  secreção  hipofisária  de  GH  encontra­se  suprimida.  O  hGH­V apresenta  semelhança  estrutural  com  o  GH  e  a  Prl  e  atua  no  organismo  materno  promovendo  aumento  da  síntese  e

secreção  de  IGF­I  e  modulando  o  metabolismo  intermediário,  uma  vez  que  promove  ativação  da  gliconeogênese  e  da lipólise, do que resulta um aumento da oferta de glicose, ácidos graxos e, também, de aminoácidos para o feto. O hGH­V não é liberado na circulação fetal e, portanto, não atua no feto, embora este dependa dos substratos energéticos liberados pela ação desse hormônio no organismo da mãe. A reduzida importância do hGH­V para o crescimento fetal é sustentada pelo  fato  de  que  a  deleção  do  gene  que  codifica  este  hormônio  não  altera  o  crescimento  fetal,  já  que  nessa  condição  o recém­nascido apresenta peso e altura normais. Lactogênio placentário (hPL) O hPL pertence à família dos genes que codificam o GH e a Prl; no entanto, ao contrário do GH e da Prl, parece ter participação  importante  no  crescimento  fetal.  Ele  é  secretado  para  a  circulação  materna  e  fetal,  por  meio  da  qual  tem acesso  aos  tecidos,  nos  quais  atua  interagindo  com  receptores  de  Prl,  e  possivelmente  com  receptores  específicos, promovendo efeitos tanto na mãe quanto no feto. Há evidências de que, no feto, o hPL seja importante para a síntese de IGF­I,  cuja  relevância  para  o  crescimento  foi  demonstrada  em  experimentos  com  camundongos  que  apresentam  deleção deste gene (camundongos knockout para IGF­I), conforme será explicitado adiante. Na  mãe,  o  hPL  exerce  efeitos  anti­insulínicos,  do  que  resulta  o  aumento  da  concentração  de  glicose,  ácidos  graxos livres e aminoácidos circulantes. Dessa maneira, ocorre maior aporte de substratos metabólicos para o feto, os quais são importantes estímulos para o seu crescimento. No  feto,  o  hPL  estimula  a  síntese  de  IGF­I  e  de  insulina,  e  o  resultado  dessa  ação  conjunta  é  a  maior  captação  de aminoácidos  e  o  estímulo  da  síntese  proteica,  o  que  é  observado  em  células  musculares  e  fibroblastos  fetais.  Nestes,  a síntese  de  DNA  também  é  incrementada  graças  aos  efeitos  mitogênicos  do  IGF­I.  Ainda,  o  hPL  é  importante  para  a produção  de  hormônios  adrenocorticais  e  de  surfactante  pulmonar  (ver Figura 73.2).  Adicionalmente,  o  hPL  estimula  a proliferação  das  células  beta  pancreáticas  e  estudos  in  vitro  mostram  que  ele  também  inibe  a  apoptose  em  ilhotas pancreáticas humanas, o que indica o seu envolvimento na regulação da atividade das células beta pancreáticas. O atraso na ossificação  da  calvária  em  camundongos  com  deficiência  de  receptores  de  Prl  indica  que  o  hPL  também  participa  da condrogênese fetal. Acredita­se  que  o  GHRH  produzido  pela  placenta  atue  paracrinamente,  controlando  a  secreção  do  hPL,  uma  vez  que sua concentração plasmática se correlaciona positivamente com a concentração plasmática de hPL, no último trimestre da gravidez. Os genes que codificam o hPL pertencem à família dos genes do GH e da Prl. Os que codificam o hPL e o hGH estão presentes no cromossomo 17, em um cluster de 55 kb que apresenta cinco genes, cada um composto de 5 éxons e 4 íntrons. Esse cluster de genes consiste em dois genes do GH e três de hPL na seguinte  ordem:  hGH­N,  hPL1,  hPL4,  hGH­V  e  hPL3.  Dos  três  genes  hPL,  apenas  o  hPL3  e  hPL4  são transcricionalmente ativos na placenta. A diferença dos peptídios codificados pelos genes hPL3 e hPL4 é de um único aminoácido presente no peptídio sinal. O hGH­N é expresso na hipófise anterior, enquanto o hGH­V  e  os  três  hPL  são  expressos  na  placenta  pelos  sinciciotrofoblastos.  Dois  transcritos  podem  ser gerados do gene do hGH­V, os quais originam um polipeptídio com peso molecular de 22.000 Da e outro que retém o íntron 4 e codifica um polipeptídio de 26.000 Da, que fica ancorado à membrana. As isoformas de hGH­N e V apresentam 22.000 Da de peso molecular e diferem entre si em 13 aminoácidos. O hGH­V apresenta ainda um local de glicosilação. Na 22a semana de gestação essa é a isoforma mais abundante na circulação materna.

Grelina A  perda  funcional  do  gene  que  codifica  a  grelina  não  afeta  o  peso  ao  nascer  e  nem  as  fases  iniciais  do  crescimento pós­natal.  Contudo,  há  evidências  de  que  a  grelina  esteja  envolvida  com  o  processo  de  maturação  de  vias  metabólicas relacionadas com o controle da homeostase energética. O  pâncreas  é  a  principal  fonte  de  grelina  no  período  perinatal.  Nesse  órgão  também  se  detecta  a  presença  de  seus receptores em células β pancreáticas, bem como na ilhota em geral, o que sugere que a grelina tenha alguma participação no desenvolvimento e na função da ilhota.

Insulina

A insulina passou a ser considerada um hormônio importante para o crescimento fetal, a partir da observação de que fetos de mães diabéticas são macrossômicos. Assim, a elevada glicemia da mãe diabética aumenta o aporte de glicose para o feto, que, em resposta, eleva a sua secreção de insulina. A hiperinsulinemia resultante leva ao aumento da captação de aminoácidos e da síntese proteica pelos tecidos fetais, tanto por interação direta da insulina com seus receptores, quanto por interação dela com os receptores de IGF­I, bem como por meio da estimulação da síntese de IGF­I, o que reforça os efeitos anabólicos sobre o metabolismo proteico e sobre o crescimento fetal. Nessa  fase  de  hiperinsulinemia,  que  ocorre  nos  dois  primeiros  trimestres  de  gestação,  a  sensibilidade  à  insulina encontra­se inalterada ou aumentada na mãe, sendo o resultado disso o aumento da lipogênese e da deposição de gordura. Nesta fase, os estrógenos parecem ter participação importante, pois aumentam a expressão do receptor de insulina (IR) em adipócitos,  o  que  possivelmente  aumenta  a  sensibilidade  à  insulina  nesse  tecido  durante  essa  fase.  Segue­se  uma progressiva  resistência  insulínica,  que  leva,  no  último  trimestre  da  gestação,  ao  aumento  da  lipólise,  gliconeogênese hepática e cetogênese. O crescimento excessivo do feto está associado a aumento da incidência de complicações perinatais e desenvolvimento  de  obesidade,  diabetes  e  doenças  cardiovasculares  na  idade  adulta.  Estudos  recentes, desenvolvidos em ratas grávidas com sobrepeso por ingestão de dieta rica em gordura, demonstraram que nessa  condição  dietética  ocorre  aumento  da  atividade  da  mTORC1  (mTOR  complex  1)  e  diminuição  da fosforilação  do  fator  de  iniciação  da  tradução,  o  eIF2α,  alterações  que  elevam  a  síntese  proteica, contribuindo com o excessivo crescimento da placenta e do feto. O contrário ocorre quando há redução da atividade  da  mTORC1,  situação  em  que  ocorre  redução  do  crescimento  fetal,  o  que  foi  avaliado  em humanos.

Insulin­like growth factors (IGF) Como dito anteriormente, o crescimento fetal é influenciado pelo hPL, que atua na mãe e no feto, e pela insulina fetal. Ambos exercem seus efeitos, pelo menos em parte, por meio do estímulo da síntese e secreção de IGF­I, o que demonstra a importância deste peptídio para o crescimento somático do feto (ver Figura 73.2). A  expressão  do  mRNA  e  da  proteína  IGF­I  e  II  é  detectada  em  praticamente  todos  os  tecidos  fetais,  já  nas  fases iniciais  da  gestação,  sendo  o  IGF­II  a  isoforma  que  predomina.  Receptores  de  IGF  encontram­se  também  largamente distribuídos nos tecidos fetais. Os  IGF  pertencem  a  uma  família  de  peptídios  que  dependem,  em  parte,  da  ação  do  GH,  mas  também  de  outros hormônios, tais como os citados anteriormente (hPL e insulina). Eles foram, inicialmente, chamados de somatomedinas, pois sua concentração plasmática reflete a secreção de GH, promovem a incorporação de sulfato na cartilagem e estimulam a  síntese  de  DNA  e  a  multiplicação  celular,  promovendo  assim  o  crescimento.  Após  o  isolamento  das  somatomedinas, verificou­se  que  elas  apresentam  grande  homologia  estrutural  com  a  proinsulina,  razão  pela  qual  hoje  são  denominadas fatores  de  crescimento  semelhantes  à  insulina  (IGF).  De  fato,  elas  têm  uma  atividade  semelhante  à  insulina  em  vários tecidos e se ligam a receptores de insulina; do mesmo modo, a insulina também se liga aos receptores de IGF do tipo I, sob determinadas condições (ver adiante). Há  duas  isoformas  reconhecidas  de  IGF,  IGF­I  e  IGF­II,  que  apresentam,  respectivamente,  70  e  67  aminoácidos. Existem, contudo, algumas isoformas de IGF­II que são maiores e de significado funcional pouco conhecido; sabe­se que estas  são  produzidas  por  tumores  mesenquimais  e  provocam  hipoglicemia.  De  fato,  o  mRNA  que  codifica  o  IGF­II apresenta­se constitutivamente expresso em uma série de tumores mesenquimais e embrionários. Os genes que codificam o IGF­I e o II apresentam múltiplos locais de iniciação da transcrição, splicing alternativo de vários  éxons  e  vários  locais  de  poliadenilação.  Essas  peculiaridades  indicam  o  alto  grau  de  complexidade  existente  na regulação da expressão desses genes e possibilitam compreender sua expressão diferencial nos tecidos do embrião, feto, criança e indivíduo adulto. Os IGF são sintetizados na grande maioria dos tecidos em que atuam, principalmente, por via parácrina. Eles também são  produzidos  no  fígado  em  resposta  ao  GH,  no  período  pós­natal,  e  a  maioria  do  IGF­I  hepático  é  secretada  para  a circulação. Assim, a maior fração de IGF­I circulante resulta da ação hepática do GH, embora parte do IGF­I plasmático seja proveniente de tecidos em que é produzido e em que atua, sobretudo, paracrinamente. A  expressão  do  mRNA  e  da  proteína  IGF­I  e  II  é  detectada  em  praticamente  todos  os  tecidos  fetais  já  nas  fases iniciais  da  gestação,  sendo  predominante  a  isoforma  IGF­II.  Os  receptores  de  IGF  encontram­se  também  largamente

distribuídos nos tecidos fetais. A  importância  dos  IGF  para  o  crescimento  somático  foi  determinada  em  experimentos  que  demonstraram  que  a mutação inativadora do gene que codifica o IGF­I afeta profundamente o crescimento fetal e pós­natal, enquanto a do IGF­ II  afeta  apenas  o  crescimento  fetal,  o  que  indica  que  ambos  os  IGF  são  essenciais  para  o  crescimento  no  período intrauterino. O mesmo ocorre por ocasião da mutação do gene que codifica o receptor de IGF­I (cujos ligantes são o IGF­I e II). Quanto ao IGF­II, sua expressão cai logo após o nascimento, exceto no cérebro, em que a expressão do mRNA do IGF­II permanece elevada até a vida adulta. Tais mutações não resultam apenas em baixo peso e altura ao nascimento, mas também em hipoplasia de vários órgãos e atraso no desenvolvimento ósseo, com alterações na progressão da mineralização óssea. Ainda, na deficiência de IGF­I ou de seus receptores, alguns camundongos morrem ao nascer, o que reforça o conceito de que o IGF­I exerça um papel crítico no desenvolvimento fetal, e que os animais que sobrevivem apresentam déficit no crescimento pós­natal. A mutação inativadora do gene que codifica o receptor de IGF­II (IGF­IIR) resulta em elevação do peso ao nascimento, mas também em morte, a qual ocorre no final da gestação ou ao nascimento. Na verdade, há  evidências  de  que  o  receptor  de  IGF­II  degrada  o  próprio  IGF­II,  regulando  seus  níveis  plasmáticos. Sendo  assim,  na  condição  de  mutação  do  IGF­IIR,  os  níveis  de  IGF­II  apresentam­se  elevados,  o  que resulta no aumento do peso ao nascimento, efeito decorrente da interação do IGF­II com o IGF­IR. Os  IGF  circulam  no  plasma  associados  a  proteínas,  conhecidas  como  proteínas  ligantes  de  IGF  (IGF­BP).  Seis isoformas de IGF­BP foram descritas, as quais são numeradas de I a VI. A IGF­BPI é a principal IGF­BP do soro fetal no  início  da  gestação;  sua  concentração  se  eleva  a  um  valor  máximo  no  último  trimestre  da  gravidez.  Seus  níveis circulantes, portanto, determinam a concentração de IGF livre no soro. Assim, elevações transitórias da sua concentração reduzem  a  disponibilidade  de  IGF­I  livre  para  os  tecidos.  A  IGF­BPII  também  é  altamente  expressa  em  tecidos  fetais, principalmente no SNC, em que o seu papel não é ainda conhecido.

Hormônios tireoidianos (HT) Os HT são importantes para o crescimento, o desenvolvimento e o metabolismo dos vertebrados. Sua participação no processo de metamorfose em  anfíbios  é  fundamental,  e  essa  talvez  seja  uma  das  ações  mais  explícitas  deste  hormônio sobre o desenvolvimento. A metamorfose ocorre em torno do 14o dia de vida do girino. Ela é retardada quando o girino é exposto  a  inibidores  de  síntese  de  HT  (tais  como  propiltiouracila,  metimazol  e  perclorato;  ver  Capítulo  68,  Glândula Tireoide) e antecipada quando ocorre exposição ao T3 ou T4. Nesse estágio do desenvolvimento, o HT atua estimulando a expressão  de  genes  específicos  que  induzem  alterações  drásticas,  que  incluem  a  reabsorção  de  órgãos  e  tecidos  larvais, remodelamento  dos  órgãos  larvais  para  a  forma  juvenil,  e  o  desenvolvimento  de  novos  órgãos  e  tecidos.  Observa­se degeneração da cauda, em paralelo ao surgimento dos membros, processos que envolvem intensa proteólise e anabolismo proteico, respectivamente. O  SNC  participa  ativamente  desse  processo,  uma  vez  que  vias  neuronais  e  prolongamentos  neuríticos  devem  ser estabelecidos conjuntamente, para garantir a eficiência do processo. HT e SNC A  observação  de  que  crianças  nascidas  hipotireóideas  não  apresentam  déficit  de  crescimento,  mas  sim  um  acentuado grau de retardo mental, demonstra que os HT são fundamentais para o desenvolvimento do SNC. Os  HT  são  essenciais  para  que  ocorram  adequadamente  os  processos  de  proliferação  neuronal,  sinaptogênese, desenvolvimento de dendritos, mielinização, migração celular e diferenciação de oligodendrócitos, dentre outros. Sabe­se que  esses  processos  dependem  de  proteínas  tais  como:  o  fator  de  crescimento  neuronal  (NGF),  o  fator  neurotrófico derivado do cérebro (BNDF),  e  neurotrofina­3  (NT­3),  cuja  expressão  é  induzida  pelos  hormônios  tireoidianos.  Sabe­se também que os HT induzem a expressão de IGF­I, mecanismo pelo qual exercem seus efeitos sobre a vascularização do tecido nervoso. É por essa razão que, no hipotireoidismo congênito, o indivíduo apresenta reduzido número de neurônios ao nascimento, associado a uma organização deficitária da árvore neural e da vascularização do SNC, em decorrência do comprometimento de todos esses processos, quadro que caracteriza o cretinismo. A  identificação  precoce  do  hipotireoidismo  congênito,  por  meio  da  detecção  de  níveis  séricos  elevados  de  TSH  (um dos  hormônios  avaliados  no teste do pezinho, detalhes no Capítulo 68),  e  o  tratamento  imediato  do  recém­nascido  com

hormônio tireoidiano levam, praticamente, à reversão do quadro, já que a sinaptogênese, mielinização e vascularização do SNC podem ser induzidas após o nascimento. Os  principais  hormônios  produzidos  pela  tireoide  são  a  tiroxina  (T4)  e  a  tri­iodotironina  (T3).  O  T4  corresponde  a aproximadamente  70%  da  secreção  tireoidiana,  e  o  T3,  a  cerca  de  30%  (ver  Capítulo  68).  A  maior  parte  do  T4  é convertida em T3 por ação de desiodases e este dado, associado ao fato de que os receptores de HT (THR) têm 10 vezes mais  afinidade  para  o  T3  do  que  para  o  T4,  fizeram  com  que  o  T4  fosse  considerado  um  pró­hormônio,  cujo  papel principal  seria  o  de  gerar  T3,  o  hormônio  biologicamente  ativo.  Entretanto  este  conceito  deve  ser  revisto,  já  que  o  T4 exerce ações não genômicas muito importantes, inclusive no período fetal, conforme será explicitado adiante. Com  relação  ao  T3,  ainda  não  está  claro  se  ele  é  o  principal  hormônio  envolvido  no  desenvolvimento  do  SNC  no período fetal, uma vez que nesta fase há elevada expressão tecidual da enzima desiodase tipo III (D3), que converte os HT considerados de maior atividade biológica em produtos menos ativos (T3 a T2 e T4 a rT3, ver Capítulo 68), bem como de THRα2,  isoforma  de  receptor  de  HT  (THR)  que  não  apresenta  domínio  de  ligação  ao  T3.  Contudo,  o  THRβ,  principal isoforma presente no SNC, já se encontra bastante expresso nesse período do desenvolvimento. Ainda, vale comentar que animais  knockout  para  THRβ,  bem  como  para  THRα,  não  apresentam  anormalidades  morfológicas  e  funcionais significativas  no  desenvolvimento  do  cérebro  nem  alterações  comportamentais  ou  na  mielinização  das  fibras  nervosas. Acrescenta­se  a  esses  dados  o  fato  de  que  é  crescente  na  literatura  o  número  de  trabalhos  que  demonstram  que  os  HT, principalmente T4 e rT3, exercem ações não genômicas, sendo uma delas a organização do citoesqueleto de actina, o que é fundamental para a formação de neuritos e, portanto, para a plasticidade neuronal. O  desenvolvimento  do  SNC  do  feto  se  inicia  por  ação  dos  HT  de  origem  materna.  Embora  o  T3  seja considerado  o  principal  HT  a  exercer  um  efeito  nuclear,  sabe­se  que  a  fração  de  T4  transferida  da  mãe para  o  feto  é  até  maior  do  que  a  de  T3,  o  que  coloca  o  T4  como  o  hormônio  mais  importante  para  esta ação  fisiológica.  O  processo  de  desenvolvimento  do  SNC  do  feto  prossegue  à  custa  da  sua  própria produção  hormonal.  Porém,  além  de  T3  e  T4,  o  hormônio  T3  reverso  (rT3)  também  se  apresenta  em elevadas  concentrações  na  circulação  fetal,  superando  as  de  T3  e  T4.  Pouca  consideração  se  deu  à presença deste hormônio, uma vez que ele, até há pouco tempo, era considerado biologicamente inativo, em função da baixíssima afinidade dos THR a ele (ver Capítulo 68). No entanto, evidências atuais apontam que,  em  ratos,  o  rT3,  assim  como  o  T4,  exercem  ações  não  genômicas  em  células  gliais  e  neurônios cerebrais, que promovem organização de microfilamentos que constituem o citoesqueleto, mecanismo pelo qual  interferem  com  a  migração  neuronal  e  direcionamento  de  neuritos  a  diferentes  locais  (plasticidade neuronal),  exercendo,  dessa  maneira,  profundos  efeitos  no  cérebro  em  desenvolvimento.  Este  dado  é duplamente relevante, uma vez que revela uma ação importantíssima de um hormônio considerado inativo, o  rT3,  no  desenvolvimento  do  SNC  de  ratos,  e  ainda,  por  um  mecanismo  não  genômico,  ou  seja, independe  da  expressão  de  genes  específicos.  Reforça  esse  dado  a  observação  de  que camundongos knockout para os THR apresentam poucas anormalidades no desenvolvimento do SNC. HT e tecido muscular O tecido muscular esquelético é um importante alvo do HT. O T3 age reprimindo ou induzindo a expressão de genes que codificam as diferentes isoformas da cadeia pesada de miosina (MHC), dentre outros, por meio da sua interação com THR  específicos  que  são  diferencialmente  expressos  nos  tecidos  (detalhes  no Capítulo 68).  Assim,  o  músculo  extensor digital  longo  (EDL)  apresenta  fibras  com  elevada  expressão  da  MHC­II  (fibras  rápidas)  e  poucas  fibras  que expressam  MHC­I  (fibras  lentas),  o  que  o  caracteriza  como  um  músculo  de  contração  rápida.  Demonstrou­se  que camundongos que não expressam as isoformas THRα1 e THRβ, ou THRα1­/β­, apresentam diminuição da expressão da MHC­IIB e aumento da MHC­I no EDL, o que altera o seu fenótipo, uma vez que ele se torna lento. O músculo sóleo, que  expressa  mais  fibras  lentas  (MHC­I)  e  poucas  rápidas  (MHC­II),  quando  estudado  nesses  camundongos,  apresenta hiperexpressão da MHC­I e redução da expressão da MHC­II, o que o torna ainda mais lento. Essas  alterações  são  semelhantes  às  que  ocorrem  na  transição  das  isoformas  de  miosina  de  camundongos hipotireóideos, que apresentam mutação autossômica recessiva com déficit de secreção de TSH, GH e Prl (anões). Nestes, o aparecimento das isoformas adultas de MHC no músculo esquelético é bastante retardado e as isoformas fetais de MHC não  são  totalmente  eliminadas,  e  ocorre  um  aumento  no  número  de  fibras  que  expressam  a  MHC­I  (lenta).  No  músculo cardíaco, onde as isoformas de MHC­α e β correspondem, respectivamente, às de MHC­II e I do músculo esquelético, o

fenótipo adulto de expressão de MHC nunca é adquirido, de modo que a MHC­β permanece como a isoforma dominante. Contudo,  a  administração  de  uma  única  dose  de  T4  é  capaz  de  provocar  o  aparecimento  das  isoformas  adultas  de  MHC tanto  no  músculo  esquelético  (MHC­II),  quanto  no  cardíaco  (MHC­α),  embora  em  tempos  diferentes  (no  músculo esquelético o efeito do T4 aparece mais tardiamente), sugerindo que o mecanismo de ação do T4 é diferente nesses dois tecidos. Outras ações No  período  fetal,  o  HT,  junto  com  a  insulina  e  o  cortisol,  contribui  para  a  síntese  da  substância  surfactante,  a  qual desempenha  importante  papel  no  processo  de  expansão  pulmonar,  por  ocasião  do  nascimento,  por  reduzir  a  tensão superficial da água nos alvéolos (ver Capítulo 42, Mecânica Respiratória).

Paratormônio (PTH) e calcitonina (CT) A concentração de cálcio na circulação fetal é bastante elevada, graças ao seu transporte ativo através da placenta, por meio de uma Ca2+­ATPase cuja atividade é estimulada por um peptídio relacionado com o PTH (PTHrP), secretado pela paratireoide fetal e pela placenta. Acredita­se que esse peptídio interaja com receptores de PTH do feto, e também module o  fluxo  de  cálcio  do  esqueleto,  a  excreção  renal  de  cálcio,  a  produção  renal  de  1,25(OH)2  Vit  D  e,  provavelmente,  a reabsorção de cálcio do líquido amniótico. A elevada calcemia do feto parece ser o fator desencadeador da secreção de CT, hormônio produzido pelas células C da tireoide (detalhes no Capítulo 76, Fisiologia  do  Metabolismo  Osteomineral)  e  também  pela  placenta  e  que  apresenta importante papel no crescimento do esqueleto nesta fase do desenvolvimento, pois além de contribuir com a deposição de cálcio  e  fósforo  no  osso  (mineralização),  inibe  o  processo  de  reabsorção  óssea.  O  papel  importante  desse  hormônio  no período embrionário contrasta com o papel limitado que apresenta no período pós­natal. A ausência materna de CT ou do peptídio relacionado ao gene da calcitonina (CGRPα), em camundongo knockout para CT/CGRPα, leva à redução do número de fetos viáveis. A ausência fetal de CT e CGRP α reduz o conteúdo de magnésio no  soro  e  no  esqueleto,  fatos  que  sugerem  que  esses  peptídios  participem  da  regulação  do  metabolismo  de  magnésio  no feto. Na  atualidade,  o  crescente  número  de  casos  de  deficiência  de  vitamina  D  na  gestante  tem  se constituído  em  um  problema  significativo.  Estima­se  que  entre  18  e  84%  das  gestantes  no  mundo apresentem  deficiência  de  vitamina  D.  Esse  hormônio,  que  está  envolvido  com  a  manutenção  da  massa óssea  e  o  controle  da  calcemia  (ver  Capítulo  76),  participa  de  processos  importantíssimos  como: proliferação  e  diferenciação  celulares,  função  vascular  e  regulação  do  sistema  imunológico,  sendo elemento­chave  para  a  decidualização,  modulação  da  função  imunológica  materna  e  formação  óssea  do feto.  Nesse  sentido,  a  deficiência  de  vitamina  D  nesse  período  pode  levar  a  complicações  na  gestação, como pré­eclâmpsia, prematuridade e diabetes melito gestacional. Essa deficiência também está associada a  restrição  do  crescimento  intrauterino  e  complicações  para  a  saúde  do  recém­nascido,  como  asma, hipertensão e atraso no desenvolvimento do SNC. A deficiência de vitamina D na gestante também altera parâmetros relacionados com os glicocorticoides, aumentando a exposição placentária e fetal a eles, o que pode promover disfunção placentária e restrição do crescimento fetal. Assim, precaução deve ser tomada com os filtros solares UV, que vêm sendo cada vez mais usados pelas gestantes, em função do possível impacto dos mesmos sobre o desenvolvimento fetal e a saúde das crianças.

Outros fatores Angiotensina II (ANG II) Duas  evidências  sugerem  a  participação  da  ANG  II  no  crescimento  fetal:  (1)  detecção  de  receptores  de  ANG  II  do tipo AT2 no músculo esquelético e no tecido conectivo de embriões de ratos, no final da gestação, e (2) a administração de ANG  II  em  fetos  de  ratos  promove  incorporação  de  aminoácidos  em  proteínas  na  pele.  Acredita­se  que  a  ANG  II  seja produzida a partir da renina placentária. Glicocorticoides

As suprarrenais do feto secretam cortisol, que é convertido em cortisona pela 11β­hidroxiesteroide desidrogenase 11β­ HSD,  a  qual  é  bastante  expressa  nos  tecidos  fetais.  Essa  conversão  é  fundamental  neste  período  da  vida,  no  qual  o anabolismo  deve  predominar,  considerando­se  que  a  cortisona  é  um  glicocorticoide  relativamente  inativo.  Próximo  ao nascimento, alguns tecidos fetais passam a expressar atividade 11­cetoesteroide redutase, que promove conversão local da cortisona  em  cortisol.  A  importância  dos  glicocorticoides  no  período  embrionário  pode  ser  depreendida  pelo  fato  de  que camundongos  que  não  expressam  receptores  de  glicocorticoides  apresentam  aumento  do  tamanho  e  desorganização  do córtex das suprarrenais, atrofia da medula suprarrenal, hipoplasia do pulmão e gliconeogênese alterada; esses animais não sobrevivem sem tratamento adequado. Mais  recentemente,  tem  aumentado  o  número  de  estudos  que  tentam  explorar  se  as  questões  de identidade  ou  orientação  sexual  estão  relacionadas  com  fatores  pré­natais  que  poderiam  moldar  o desenvolvimento  do  sistema  nervoso  central  e  a  expressão  de  comportamentos  sexuais  em  animais  e humanos. Estudos buscando avaliar se a exposição hormonal nesse período influenciaria a identidade de gênero e orientação sexual têm aumentado consideravelmente. De fato, há evidências de que a identidade de  gênero  e  orientação  sexual  podem  ser  alteradas  (masculinizadas)  pela  exposição  prénatal  à testosterona ou feminizadas na ausência desse hormônio. Contudo, há exceções, e muitas questões ainda estão a ser resolvidas.

PERÍODO PÓS­NATAL Do nascimento até os 2 anos de vida, o crescimento ocorre em uma velocidade em torno de 15 cm/ano, reduzindo­se a cerca  de  6  cm/ano  até  a  metade  da  infância.  Por  ocasião  da  puberdade,  há  aumento  da  velocidade  de  crescimento,  que ocorre  mais  precocemente  (2  a  3  anos)  no  sexo  feminino,  embora  apresente  magnitude  maior  no  sexo  masculino.  O crescimento linear cessa após a fusão das epífises com as diáfises, ou seja, quando ocorre ossificação do disco epifisário. No  entanto,  logo  após  o  nascimento  (período neonatal),  nem  todos  os  tecidos  apresentam  o  grau  de  maturação  que terão  na  vida  adulta.  Neste  período,  o  padrão  de  expressão  de  vários  genes  ainda  está  sendo  estabelecido,  de  modo  que qualquer interferência, seja hormonal, ambiental ou nutricional, é capaz de alterar esse padrão de expressão gênica, o qual persistirá na vida adulta, levando a repercussões fisiológicas permanentes, a que denominamos reprogramação gênica. No período neonatal ocorre a transição de várias isoformas de proteínas para as isoformas que predominarão na vida adulta. Assim, dentre outras alterações, o trocador Na+/Ca2+,  principal  mantenedor  da  concentração  intracelular  de  cálcio no  período  fetal,  sofre  redução  da  sua  expressão,  enquanto  aumenta  a  expressão  da  SERCA;  as  miosinas  fetais  são substituídas  pelas  isoformas  adultas;  as  desiodases  do  tipo  III  (D3)  apresentam  redução  da  sua  expressão,  enquanto aumenta a expressão da D1 e D2, e os receptores de GH passam a ser funcionais. Em ratos, a indução de hipertireoidismo transitório neste período leva a menor expressão gênica do GH, bem como à redução da massa magra e da densidade mineral óssea no animal adulto. Portanto, este período do desenvolvimento deve ser  especialmente  considerado,  uma  vez  que  representa  uma  janela  passível  de  ser  manipulada,  com  repercussões funcionais  importantes  na  vida  adulta.  Assim,  distúrbios  nutricionais  perinatais  não  apenas  promovem  consequências  a curto  prazo  na  velocidade  de  crescimento  do  feto,  como  também  predispõem  para  o  desenvolvimento  de  doenças metabólicas no adulto (detalhes no Capítulo 78, Desreguladores Endócrinos). Essasalterações podem ser transmitidas por várias gerações, sugerindo que essas consequências a longo prazo podem ser herdadas por mecanismos epigenéticos. Diversos  hormônios  participam,  em  graus  variáveis,  do  processo  de  crescimento  e  desenvolvimento  pós­natal,  como descrito a seguir.

▸ Hormônio do crescimento (GH) Conforme discutido no Capítulo 66, grande parte dos efeitos do GH sobre o crescimento ocorre por intermédio de sua ação  estimulante  da  síntese  e  secreção  hepática  do  fator  de  crescimento  semelhante  à  insulina,  o  IGF­I,  o  qual  atua  na placa  epifisária,  promovendo  multiplicação  dos  condrócitos.  O  GH  também  estimula  a  síntese  de  IGF­I  na  própria  placa epifisária, na qual este também atua autocrinamente, reforçando os efeitos endócrinos do IGF­I circulante. Na infância, a deficiência de GH provoca o nanismo e a sua hipersecreção causa o gigantismo. Após a puberdade, a hipersecreção de GH determina o quadro de acromegalia (mais detalhes no Capítulo 66).

O  GH  exerce  efeitos  diretos  nos  tecidos  (tais  como  gliconeo­gênese,  lipólise  e  estímulo  da  síntese  proteica)  e indiretos, via IGF­I. Como os receptores de IGF­I apresentam­se expressos em praticamente todos os tecidos, os efeitos do  GH/IGF­I  são  amplos  e  redundam  em  estímulo  da  síntese  proteica,  o  que  é  benéfico  para  a  manutenção  da  massa muscular esquelética e cardíaca. Por outro lado, a hipersecreção de GH leva à hipertrofia muscular esquelética e cardíaca, além de efeitos que estão apresentados em mais detalhes no Capítulo 66. Ao contrário da insulina, os IGF circulam associados a proteínas transportadoras de IGF (IGFBP), as quais conferem maior meia­vida (t1/2) aos IGF, possibilitam que os IGF atinjam todas as suas células­alvo e modulem a interação dos IGF com os seus receptores, regulando, portanto, a sua atividade biológica. Em  geral,  as  IGFBP  inibem  a  ação  dos  IGF  por  competir  com  o  seu  receptor  por  esses  fatores  de  crescimento.  No entanto,  há  evidências  de  que  as  IGFBP  também  exercem  ações  próprias,  independentes  de  sua  interação  com  os  IGF. Sabe­se, por exemplo, que a IGFBP3, principal ligante de IGF­I, e que depende de GH, interage com receptores presentes em  vários  tipos  celulares,  como  células  de  câncer  de  mama  e  condrócitos,  inibindo  o  crescimento  delas  (Figura  73.3); portanto, o estudo da regulação transcricional da IGFBP3 poderá trazer importante contribuição para os estudos de câncer. Sendo assim, é possível que os efeitos antiproliferativos do transforming growth factor beta 2 (TGFβ­2) e ácido retinoico sobre as células de câncer de mama sejam via ativação da transcrição do gene que codifica a IGFBP3.

Figura 73.3 ■ Esquema da participação do IGF e da IGFBP3 no crescimento celular. Observe que a IGFBP3 participa duplamente desse processo, já que, além de controlar a disponibilidade de IGF para as células, é capaz de interagir com locais específicos (prováveis  receptores)  na  membrana  plasmática,  por  meio  do  que  parece  se  contrapor  às  ações  de  estímulo  do  crescimento celular promovido pelo IGF. (Adaptada de Reiter e Rosenfeld, 2003.)

A  IGFBP1  tem  sua  expressão  aumentada  em  estados  catabólicos.  Assim,  o  cortisol  aumenta  a  sua  expressão  e  a insulina  a  inibe,  de  modo  que  a  elevação  do  cortisol  reduz  a  disponibilidade  de  IGF­I  para  os  tecidos,  ocorrendo  o contrário com a elevação da insulinemia.

▸ Tri­iodotironina (T3) O T3 é um dos principais hormônios reguladores da expressão do gene do GH. Na infância, o hipotireoidismo leva a um déficit de crescimento, não só pela ausência das importantes ações do T3 sobre o anabolismo proteico, mas também pela reduzida expressão gênica do GH. O T3 também aumenta a expressão gênica de IGF­I em alguns tecidos, nos quais este fator de crescimento atua parácrina e autocrinamente.

T3 e desenvolvimento do sistema muscular esquelético A  aquisição  de  características  específicas  do  tecido  muscular,  tais  como  velocidade  de  contração  e  tempo  de relaxamento,  também  depende  da  ação  dos  HT.  No  tecido  muscular  esquelético,  o  T3  induz  a  expressão  dos  genes  que codificam: (1) a isoforma II da cadeia pesada da miosina (MHC­II), a qual confere maior velocidade de contração a esse

tecido, e (2) a isoforma I da bomba de cálcio do retículo sarcoplasmático (SERCA I), a qual apresenta elevada atividade ATPásica e cujo papel é remover o cálcio do citosol, direcionando­o ao retículo sarcoplasmático e desencadeando, assim, o processo  de  relaxamento  muscular.  Ao  mesmo  tempo,  o  T3  inibe  a  expressão  dos  genes  que  codificam  a  MHC­I  e  a SERCA  II,  expressas  predominantemente  nos  músculos  de  contração  lenta,  e  a  de  fosfolambam  (proteína  que  inibe  a atividade  da  SERCA).  Ainda,  o  T3  induz  a  expressão  das  enzimas  oxidativas  succinato  desidrogenase  (SDH)  e  citrato sintase (CS) e de mioglobina no músculo esquelético. Assim,  a  presença  de  concentrações  fisiológicas  de  T3  determina  a  composição  de  proteínas  que  conferirão  as características  funcionais  deste  tecido.  Quando  o  T3  é  encontrado  em  excesso,  todavia,  predomina  seu  efeito  catabólico proteico,  com  perda  de  massa  magra,  o  que  se  traduz  em  fraqueza  muscular.  É  interessante  que,  no  hipotireoidismo,  a redução da síntese proteica também determina fraqueza muscular.

T3 e desenvolvimento do sistema muscular cardíaco Da mesma maneira que no músculo esquelético, no músculo cardíaco o T3 induz a expressão da isoforma MHC­α e reprime a da MHC­β, que correspondem, funcionalmente, a MHC­II e MHC­I do músculo esquelético, respectivamente. O  T3  também  determina  a  expressão:  (1)  de  canais  de  sódio  de  vazamento  no  nodo  sinusal,  conhecidos  por  causarem correntes  denominadas  funny,  bem  como  (2)  dos  HCN­2  e  4  (hyperpolarization­activated  cyclic  nucleotide­gated channels),  proteínas  que  são  essenciais  para,  respectivamente,  conferir  e  controlar  a  atividade  marca­passo  do  nodo sinusal do coração. Portanto, a elevação da expressão dos mesmos no hipertireoidismo é fator determinante do aumento da frequência  cardíaca  observada  nesses  estados.  A  SERCA  II  (única  isoforma  presente  no  músculo  cardíaco)  também  tem sua  expressão  aumentada  pelo  T3.  Assim,  o  T3  é  um  dos  mais  importantes  determinantes  do  débito  cardíaco.  Ele  ainda induz  a  expressão  de  receptores  β­adrenérgicos  no  coração,  determinando,  portanto,  a  responsividade  deste  órgão  às catecolaminas.

▸ Hormônios sexuais O  estirão  de  crescimento  que  ocorre  na  puberdade  revela  a  importância  dos  esteroides  gonadais  no  crescimento puberal. Parte de sua ação ocorre por estímulo da secreção de GH e parte por propiciar aumento da síntese de IGF­I, por ação direta. No entanto, eles aceleram a maturação do esqueleto, de modo que a hipersecreção destes hormônios faz com que  a  fusão  das  epífises  com  as  diáfises  ocorra  mais  precocemente,  fazendo  com  que  a  altura  prevista  pelo  programa genético não seja alcançada (Figura 73.4). Essa ação depende dos estrógenos, os quais, no sexo masculino, são produzidos a partir da ação de aromatases sobre os andrógenos. A importância dessa ação pode ser evidenciada em indivíduos do sexo masculino portadores de mutação dos receptores de estrógenos, ou de aromatases, os quais apresentam elevada estatura e deficiência  da  soldadura  das  epífises.  Os  estrógenos  também  são  responsáveis  pela  deposição  de  cálcio  no  osso,  o  que propicia  o  aumento  da  massa  óssea  que  ocorre  por  ocasião  da  puberdade.  Assim,  esses  indivíduos  apresentam  reduzida massa óssea, alto turnover ósseo e epífises não soldadas. O atraso da menarca e da puberdade é considerado fator de risco para  o  desenvolvimento  de  osteopenia,  na  vida  adulta.  Todavia,  a  obtenção  do  pico  de  massa  óssea  depende  não  só  dos esteroides gonadais, mas também do GH e do IGF­I.

▸ Cortisol O cortisol reduz a taxa de crescimento, por sua potente ação indutora de catabolismo proteico, bem como por aumentar a expressão de IGFBP1, mecanismo pelo qual, conforme comentado, reduz a disponibilidade de IGF­I para os tecidos. Os glicocorticoides  também  estimulam  a  síntese  de  somatostatina,  e  assim  interferem  negativamente  no  crescimento  (mais detalhes no Capítulo 65, Hipotálamo  Endócrino).  Ainda,  há  evidências  de  que,  in  vitro,  os  glicocorticoides  reduzam  a secreção de IGF­I.

Figura 73.4 ■ Taxa  de  crescimento  (altura  em  cm/ano)  em  função  da  idade  (em  anos)  e  do  sexo.  Observa­se  que  a  taxa  de crescimento decai ao longo do tempo de modo semelhante em ambos os sexos e que se eleva no sexo feminino ao redor dos 12 anos de idade, precedendo o ganho de altura do sexo masculino, que é um pouco maior e ocorre ao redor dos 15 anos de idade.

BIBLIOGRAFIA ANTHONY RV, PRATT SL, LIANG R et al. Placental­fetal hormonal interactions: impact on fetal growth. J Anim Sci, 73:1861­ 71, 1995. CARREL AL, ALLEN DB. Effects of growth hormone on body composition and bone metabolism. Endocrine, 12:163­72, 2000. CLEMMONS DR. Insulin­like growth factor­I and its binding proteins. In: DeGROOT LJ, JAMESON JL (Eds.). Endocrinology. 4. ed. W.B. Saunders, Philadelphia, 2001. FARWELL AP, DUBORD­TOMASETTI SA, PIETRZYKOWSKI AZ et al. Dynamic nongenomic actions of thyroid hormone in the developing rat brain. Endocrinology, 147(5):2567­74, 2006. FISHER DA. Endocrinology of fetal development. In: LARSEN PR, KRONENBERG HM, MELMED S et al. (Eds.). Williams Textbook of Endocrinology. 10. ed. Saunders Company, Philadelphia, 2003. FISHER DA. Fetal and neonatal endocrinology. In: DeGROOT LJ, JAMESON JL (Eds.). Endocrinology. 4. ed. W.B. Saunders, Philadelphia, 2001. GACCIOLI  F,  WHITE  V,  CAPOBIANCO  E et al.  Maternal  overweight  induced  by  a  diet  with  high  content  of  saturated  fat activates placental mTOR and eIF2alpha signaling and increases fetal growth in rats. Biol Reprod, 89(4):96, 2013. GÖTHE  S,  WANG  Z,  NG  L et al.  Mice  devoid  of  all  known  thyroid  hormones  receptors  are  viable  but  exhibit  disorders  of pituitary­thyroid axis, growth and bone maturation. Genes Devel, 13:1329­41, 1999. HANDWERGER S, FREEMARK M. The role of placental growth hormone and placental lactogen in the regulation of human fetal growth and development. J Pediatr Endocrinol Metab, 13(4):343­56, 2000. HILL DJ, MILNER RDG. Insulin as a growth factor. Pediatr Res, 19:879­86, 1985. JUUL  A,  DALGAARD  P,  BLUM  WF et  al.  Serum  levels  of  insulin­like  growth  factor  (IGF)­binding  protein­3  (IGFBP­3)  in healthy infants, children, and adolescents: The relation to IGF­I, IGF­II, IGFBP­1, IGFBP­2, age, sex, body mass index, and pubertal maturation. J Clin Endocrinol Metab, 80:2534­42, 1995. KRAUSE M, FREDERIKSEN H, SUNDBERG K et al.  Maternal  exposure  to  UV  filters  and  associations  to  maternal  thyroid hormones and IGF­I/IGFBP3 and birth outcomes. Endocr Connect, 7(2):334­46, 2018. MARTINELLI  Jr,  AGUIAR­OLIVEIRA  MH.  Crescimento  normal:  avaliação  e  regulação  endócrina.  In:  ANTUNES­ RODRIGUES J, MOREIRA AC, ELIAS LLK et al. (Eds.). Neuroendocrinologia Básica e Aplicada. Guanabara Koogan, Rio

de Janeiro, 2005. MEHLS  O,  TÖNSHOFF  B,  KOVÁCS  G  et  al.  Interaction  between  glucocorticoids  and  growth  hormone.  Acta  Paediatrica Scandinavica, 388:77­82, 1993. MIAO  D,  HE  B,  KARAPLIS  AC  et  al.  Parathyroid  hormone  is  essential  for  normal  fetal  bone  formation.  J  Clin Invest, 109(9):1173­82, 2002. MORISHIMA A, GRUMBACH MM, SIMPSON ER et al. Aromatase deficiency in male and female siblings caused by a novel mutation and the physiological role of estrogens. J Clin Endocrinol Metab, 80:3689­98, 1995. PETRAGLIA F, SANTUZ M, FLORIO P et al. Paracrine  regulation  of  human  placenta:  control  of  hormonogenesis.  J  Reprod Immunol, 39:221­33, 1998. PIERSON M, DESCHAMPS JP. In: JOB JC, PIERSON M (Eds.). Pediatric Endocrinology. Wiley, New York, 1981. REITER  EO,  ROSENFELD  RG.  Normal  and  aberrant  growth.  In:  LARSEN  PR,  KRONENBERG  HM,  MELMED  S  et  al. (Eds.). Williams Textbook of Endocrinology. 10. ed. Saunders Company, Philadelphia, 2003. ROSELI CE. Neurobiology of gender identity and sexual orientation. J Neuroendocrinol. 2017. doi: 10.1111/jne.12562. [Epub ahead of print] SMITH EP, BOYD J, FRANK GR et al. Estrogen resistance caused by a mutation in the estrogen­receptor gene in a man. N Eng J Med, 331:1056­61, 1994. SPAVENTI  R,  ANTICA  M,  PAVELIC  K.  Insulin  and  insulin­like  growth  factor  I  (IGF)  in  early  mouse embryogenesis. Development, 108:491­5, 1990. STYNE D. Growth. In: GREENSPAN FS, STREWLER GJ (Eds.). Basic & Clinical Endocrinology. 5. ed. Appletown and Lange, Stamford, 1997. SUN  LY,  D’ERCOLE  J.  Insulin­like  growth  factor­I  (IGF­I)  stimulates  histone  H3  and  H4  acetylation  in  the  brain  in vivo. Endocrinology, 147(11):5480­90, 2006. THISSEN JP, PUCILOWSKA JB, UNDERWOOD LE. Differential regulation of insuline­like growth factor­I (IGF­I) and IGF­ binding  protein­1  messenger  ribonucleic  acid  by  amino  acid  availability  and  growth  hormone  in  rat  hepatocytes  primary culture. Endocrinology, 134:1570­6, 1994. WHITE P, BURTON KA, FOWDEN AL et al. Developmental expression analysis of thyroid hormone receptor isoforms reveals new insights into their essential functions in cardiac and skeletal muscles. FASEB J, 15(8):1367­76, 2001. YATES  N,  CREW  RC,  WYRWOLL  CS.  Vitamin  D  deficiency  and  impaired  placental  function:  potential  regulation  by glucocorticoids? Reproduction, 153:R163­71, 2017.



Introdução

■ ■

Metabolismo hepático Metabolismo do tecido adiposo

■ ■ ■

Metabolismo do tecido muscular Ajuste neuroendócrino do metabolismo em situações de demanda energética Bibliografia

INTRODUÇÃO Os  três  principais  sistemas  integradores  do  organismo,  o  sistema  endócrino,  o  sistema  nervoso  e  o  sistema  imune, interagem  de  diversas  maneiras  para  assegurar  a  manutenção  de  níveis  adequados  de  fornecimento,  armazenamento  e utilização  de  substratos  energéticos  em  diferentes  condições  fisiológicas.  Neste  capítulo  será  revisto  exclusivamente,  de maneira  sucinta,  o  controle  neuroendócrino  das  vias  metabólicas  (de  carboidratos,  lipídios  e  proteínas)  dos  tecidos  que têm  importância  fundamental  na  homeostase  calórica.  Não  será  abordado,  por  exemplo,  o  controle  neuroendócrino  da ingestão  de  alimentos  ou  o  papel  das  citocinas  produzidas  pelo  tecido  adiposo,  assuntos  que  têm  despertado  grande interesse  pelas  implicações  no  tratamento  da  obesidade  (esses  temas  estão  expostos  no  Capítulo  26,  Controle Neuroendócrino  do  Comportamento  Alimentar,  e  no  Capítulo  72,  Moléculas  Ativas  Produzidas  por  Órgãos  Não Endócrinos). Os principais substratos diretamente utilizados pelos tecidos para produção de energia são a glicose e os ácidos graxos livres  (AGL,  não  esterificados)  que  circulam  no  plasma  ligados  à  albumina.  Apesar  de  sua  baixa  concentração,  os  AGL plasmáticos  têm  uma  velocidade  de  renovação  (turnover)  muito  alta,  e  a  quantidade  diária  de  calorias  derivadas  de  sua oxidação é maior que a da glicose, mesmo em condições de repouso e no estado alimentado. Por outro lado, os AGL do plasma não são utilizados pelo cérebro, que têm um requerimento absoluto de glicose, embora possa, em certas condições, satisfazer  parcialmente  suas  necessidades  energéticas  oxidando  corpos  cetônicos.  O  sistema  nervoso  central  (SNC)  é responsável  por  cerca  de  50%  da  glicose  consumida  diariamente  para  fins  energéticos.  O  suprimento  adequado  de substratos  energéticos,  para  os  diversos  tecidos  do  organismo  em  condições  basais  e  em  situações  de  demanda  alterada por fatores internos ou externos, depende principalmente do controle endócrino e neural do metabolismo de três tecidos: hepático,  adiposo  e  muscular.  O  fígado  é  o  principal  responsável  pela  manutenção  da  glicemia  e  o  tecido  adiposo  é  o fornecedor  dos  AGL  plasmáticos.  O  tecido  muscular,  pela  sua  massa  (de  40%  a  45%  do  peso  corporal)  é  um  grande consumidor de substratos energéticos, e suas proteínas constituem importante fonte de aminoácidos. O  SNC,  por  intermédio  do  sistema  nervoso  autônomo  simpático  ou  parassimpático,  pode  alterar  o  fluxo  em  vias metabólicas do fígado ou dos tecidos adiposo e muscular. As ações dos nervos nesses tecidos podem ser amplificadas por meio  da  secreção  indireta  de  hormônios  tais  como  a  epinefrina  proveniente  da  medula  da  suprarrenal,  a  insulina  e  o glucagon (Figura 74.1).  Por  esse  motivo,  nos  itens  seguintes  deste  capítulo,  nos  quais  será  examinado  separadamente  o

controle  neuroendócrino  do  metabolismo  de  cada  um  daqueles  três  tecidos,  a  descrição  das  alterações  que  podem  ser induzidas  pela  inervação  autonômica  e  das  áreas  centrais  envolvidas  será  precedida  por  um  resumo  das  principais  vias metabólicas  do  tecido  abordado  e  sua  regulação  por  hormônios.  Embora  as  vias  metabólicas  básicas  sejam  comuns  aos diversos tecidos, sua diferenciação e especialização funcional acarretam o predomínio de determinados processos. O tecido hepático  é  o  tecido  funcionalmente  mais  diversificado,  mantendo  ativas  diversas  vias  metabólicas  importantes  para  a homeostase calórica, e será o primeiro a ser examinado. Não faz parte do escopo deste capítulo a descrição detalhada dos mecanismos  celulares  da  transdução  dos  sinais  hormonais  ou  neurais  pertinentes.  Na  parte  final  serão  apresentadas situações  (jejum,  exercício  e  exposição  ao  frio)  que  ilustram  como  o  SNC  e  o  sistema  endócrino  agem  de  maneira coordenada para atender adequadamente às novas demandas energéticas, ativando ou inibindo o fluxo em vias metabólicas do fígado e dos tecidos adiposo e muscular.

METABOLISMO HEPÁTICO ▸ Regulação hormonal Metabolismo de carboidratos As principais vias do metabolismo de carboidratos no fígado e os pontos de sua regulação hormonal estão resumidos nas Figuras 74.1 e 74.2. Durante o período digestivo, grandes quantidades de glicose chegam ao fígado pelo sistema porta e  são  captadas  pela  célula  hepática  por  um  processo  de  difusão  facilitada.  O  transportador  de  glicose  predominante  no hepatócito  é  o  GLUT2,  que  não  é  sensível  à  insulina  e  tem  um  Km  (constante  de  afinidade)  para  a  glicose  elevado, operando,  portanto,  abaixo  do  limiar  de  saturação,  mesmo  sob  altas  concentrações  da  hexose.  Esta  característica  e  o grande  número  de  GLUT2  na  membrana  conferem  ao  hepatócito  uma  alta  capacidade  de  captação  de  glicose.  Dessa maneira,  ao  contrário  dos  tecidos  adiposo  e  muscular,  o  transporte  de  glicose  pela  membrana  do  hepatócito  não  é  um passo  limitante  (regulável)  e  as  concentrações  de  glicose  livre  (não  fosforilada)  dentro  e  fora  do  hepatócito  são praticamente iguais, mesmo em condições de hiperglicemia. No interior do hepatócito, a glicose é fosforilada a glicose­6­ P pela glicoquinase, que se diferencia das outras hexoquinases por ter um alto Km para a glicose e por não ser inibida pelo seu  produto,  a  glicose­6­P.  Essas  características  da  enzima  tornam­na  bem  adequada,  não  apenas  para  operar  nas concentrações  relativamente  altas  de  glicose  existentes  na  célula  hepática,  como  para  direcionar  o  fluxo  de  carbonos  da glicose para a via glicolítica e para a síntese de glicogênio. A fosforilação da glicose pela glicoquinase é o passo limitante da utilização da hexose pelo fígado. A insulina ativa a glicoquinase e acelera a fosforilação da glicose. Esta ação, acoplada à  ativação  da  glicogênio­sintase,  estimula  a  síntese  e  armazenamento  de  glicogênio,  efeitos  ainda  reforçados  por  uma inibição  simultânea  da  glicogênio  fosforilase,  reduzindo  a  glicogenólise.  O  fluxo  na  via  glicolítica  também  é  estimulado pela  insulina,  que,  além  de  acelerar  a  fosforilação  da  glicose,  ativa  a  fosfofrutoquinase  e  a  piruvato  quinase,  enzimas­ chave dessa via (ver Figura 74.2). Além disso, a insulina ativa a piruvato desidrogenase e com isso favorece a oxidação do piruvato (produto final da glicólise) na mitocôndria produzindo acetil­CoA. Paralelamente, a ativação da glicose­6­fosfato desidrogenase leva a um aumento do fluxo na via das pentoses, formando NADPH para a lipogênese (ver adiante). O  papel  principal  do  fígado  no  controle  da  homeostase  glicídica  é  devido,  em  grande  parte,  à  sua  capacidade  de sintetizar glicose a partir de moléculas menores, principalmente aminoácidos, lactato e glicerol. Este processo, conhecido como neoglicogênese ou gliconeogênese, consiste em uma reversão da via glicolítica (ver Figuras 74.1 e 74.2). A piruvato carboxilase  e  a  P­enolpiruvato  carboxiquinase  (PEPCK)  são  enzimas­chave  da  neoglicogênese,  pois  convertem, respectivamente, o piruvato a oxaloacetato, e este, a P­enolpiruvato. Dessa forma, a etapa da via glicolítica catalisada pela piruvato  quinase  é  contornada  pela  ativação  dessas  enzimas.  Em  seguida,  a  etapa  catalisada  pela  fosfofrutoquinase  é revertida  pela  enzima  neoglicogenética  frutose­1,6­bifosfatase.  A  glicose­6­fosfato  assim  formada  pode  ser  direcionada para a síntese de glicogênio ou pode produzir, pela ação da glicose­6­fosfatase, glicose livre que passa para a circulação. A insulina exerce um importante efeito inibitório no fluxo neoglicogênico. Além de inibir a piruvato carboxilase, a PEPCK e a glicose­6­fosfatase, o hormônio reduz o fornecimento de P­enolpiruvato para a neoglicogênese, pois aumenta a atividade da  piruvato  desidrogenase,  que  utiliza  o  piruvato  para  produção  de  acetil­CoA.  As  inibições  da  glicogenólise  e  da neoglicogênese  são  as  principais  responsáveis  pela  redução  da  produção  hepática  de  glicose  promovida  pela  insulina.  A glicogenólise e a neoglicogênese são ativadas em situações de reduzida disponibilidade de glicose, aumentando a produção hepática  da  hexose.  O  glucagon  tem  um  importante  papel  nessa  adaptação.  Este  hormônio  estimula  a  glicogenólise ativando  a  fosforilase  e  inibindo,  simultaneamente,  a  glicogênio  sintase;  adicionalmente,  aumenta  o  fluxo  na  via neoglicogênica  de  várias  maneiras:  (a)  aumentando  a  capacidade  da  célula  hepática  captar  aminoácidos,  os  principais

substratos  neoglicogênicos;  (b)  ativando  a  piruvato  carboxilase,  a  PEPCK,  a  frutose­1,6­bifosfatase  e  a  glicose­6­ fosfatase;  e  (c)  inibindo  as  enzimas  da  via  glicolítica,  fosfofrutoquinase  e  piruvato  quinase.  A  inibição  desta  última impede a formação do piruvato a partir do P­enolpiruvato formado na etapa inicial da neoglicogênese.

Figura 74.1 ■ Representação esquemática das principais vias metabólicas, com indicação dos pontos de ação hormonal. (+), estimulação; (–), inibição. (Descrição da figura no texto.)

Metabolismo lipídico Além  de  sua  participação  fundamental  no  controle  da  homeostase  glicídica,  o  fígado  tem  um  importante  papel  no controle  da  síntese  e  da  oxidação  de  ácidos  graxos.  Em  situações  de  abundância  de  substratos  energéticos,  os  ácidos graxos são sintetizados no citosol a partir de acetil­CoA, proveniente em sua maior parte da descarboxilação do piruvato (produzido  na  via  glicolítica  ou  a  partir  de  outros  metabólitos,  especialmente  aminoácidos)  pelo  complexo intramitocondrial da piruvato desidrogenase. Além dessa síntese de novo, o fígado capta da circulação ácidos graxos pré­ formados:  AGL,  mobilizados  do  tecido  adiposo,  ou  ácidos  graxos  incorporados  em  triacilgliceróis  de  lipoproteínas.  Os ácidos graxos sintetizados ou captados são esterificados com glicerol­3­fosfato, formado a partir da di­hidroxiacetona na via glicolítica ou por fosforilação do glicerol pela gliceroquinase. Os triacilgliceróis podem ser armazenados no hepatócito ou  incorporados  em  lipoproteínas  de  muito  baixa  densidade  (VLDL)  secretadas  pelo  fígado  (ver  Figura  74.2).  Esta recirculação em VLDL dos ácidos graxos que chegam ao fígado contribui para o fornecimento de material energético em situações de demanda aumentada (p. ex., durante o jejum). Evidências indicam que, além da glicose, via di­hidroxiacetona

na via glicolítica, e do glicerol via gliceroquinase, compostos de 3 carbonos (piruvato, lactato e aminoácidos glicogênicos) podem  ser  utilizados  pelo  fígado  para  produzir  o  glicerol­3­fosfato  necessário  para  a  formação  de  triacilgliceróis  e posterior  incorporação  em  VLDL.  Esta  via,  denominada  gliceroneogênese,  é  mais  estudada  no  tecido  adiposo  (ver adiante). A célula hepática tem um ativo sistema enzimático mitocondrial de β­oxidação de ácidos graxos com produção de acetil­CoA. Se o afluxo de ácidos graxos para o fígado for excessivo, ocorre acúmulo de acetil­CoA e produção de corpos cetônicos (ácidos acetoacético e β­hidroxibutírico), que podem levar à acidose. Em condições normais, existe uma relação inversa  entre  a  atividade  lipogênica  e  a  β­oxidação.  Isto  se  deve  ao  fato  de  o  malonil­CoA,  formado  pela  acetil­CoA carboxilase  na  primeira  etapa  da  síntese  de  ácidos  graxos,  ser  um  inibidor  da  carnitina­aciltransferase  I,  enzima responsável  pela  ligação  dos  ácidos  graxos  com  a  carnitina  e  seu  transporte  para  o  interior  da  mitocôndria.  A  insulina estimula a síntese de ácidos graxos (lipogênese) no fígado, que se deve em parte ao aumento do fluxo glicolítico por ela produzido, associado à ativação do sistema da piruvato desidrogenase mitocondrial, aumentando o fornecimento de acetil­ CoA  oriundo  da  glicose.  Além  disso,  a  insulina  ativa  a  acetil­CoA  carboxilase,  que  parece  ser  a  enzima  limitante  desse processo, e também a ácido graxo sintase. Aumentando o fornecimento de glicerol­3­fosfato derivado da via glicolítica, o hormônio  favorece  ainda  a  esterificação  e  o  armazenamento  dos  ácidos  graxos  sintetizados.  Em  virtude  da  ativação  da acetil­CoA carboxilase e do aumento da concentração intracelular de malonil­CoA, inibidor da carnitina aciltransferase I, a insulina reduz a entrada e a β­oxidação de ácidos graxos dentro da mitocôndria, tendo, portanto, um efeito anticetogênico. O  glucagon,  por  outro  lado,  inibe  a  acetil­CoA  carboxilase  e  a  síntese  de  ácidos  graxos.  A  consequente  redução  do conteúdo  intracelular  de  malonil­CoA  ativa  a  carnitina  aciltransferase  I,  estimulando  a  oxidação  de  ácidos  graxos  e  a produção de corpos cetônicos.

Figura 74.2 ■ Representação esquemática do metabolismo de carboidratos e lipídios no fígado, com indicação dos pontos de ação  hormonal.  (+),  estimulação;  (–),  inibição; INS, insulina; GLU, glucagon;  EPI,  epinefrina;  GLUT2,  transportador  de  glicose (tipo 2); TG, triacilgliceróis; VLDL, lipoproteínas de muito baixa densidade; AG, ácidos graxos. As linhas tracejadas representam a  utilização  do  NADPH  como  fonte  de  energia  redutora  para  a  síntese  dos  ácidos  graxos.  Os  números  entre  parênteses representam  as  enzimas  reguladoras  que  atuam  no  passo  metabólico  indicado.  (1), glicoquinase; (2),  glicogênio  sintase;  (3), glicogênio fosforilase; (4), fosfofrutoquinase; (5), frutose­1,6­bifosfatase; (6), piruvato quinase; (7),  piruvato  desidrogenase;  (8), piruvato carboxilase; (9), fosfoenolpiruvato carboxiquinase (PEPCK); (10), citrato liase; (11), acetil­CoA carboxilase; (12), enzima málica. Descrição da figura no texto.

▸ Regulação neural Como  referido  anteriormente,  o  SNC  não  utiliza  ácidos  graxos  de  cadeia  longa  e  tem  um  requerimento  absoluto  de glicose como fonte de energia. Em situações em que há tendência à redução da concentração plasmática de glicose, o SNC, por  intermédio  do  sistema  nervoso  autônomo,  intervém  para  impedir  uma  queda  no  seu  suprimento  de  hexose,  agindo especialmente no fígado, que é o principal controlador da produção desse substrato. O SNC pode alterar o fluxo nas vias metabólicas  hepáticas  diretamente,  mediante  a  inervação  simpática  e  parassimpática  do  hepatócito,  ou  indiretamente, ativando  ou  inibindo  a  secreção  de  hormônios  que  agem  sobre  as  mesmas  vias.  A  ativação  de  adrenorreceptores  α  pela inervação  simpática  do  pâncreas  estimula  a  secreção  de  glucagon  pelas  células  α  das  ilhotas  de  Langerhans  e  inibe  a secreção  de  insulina  pelas  células  β.  A  ativação  simpática  também  resulta  em  maior  síntese  e  secreção  de  catecolaminas (principalmente  epinefrina)  pela  medula  suprarrenal.  No  fígado,  a  epinefrina,  de  modo  semelhante  ao  glucagon,  leva  à ativação  da  glicogenólise  e  da  neoglicogênese.  Os  mecanismos  intracelulares  envolvidos  na  resposta  glicogenolítica  à

epinefrina  são  desencadeados,  principalmente,  pela  ativação  de  adrenorreceptores  β2  e  aumento  das  concentrações  de cAMP,  com  consequente  ativação  da  PKA  (proteinoquinase  dependente  de  cAMP).  Isto  leva  à  ativação  da  glicogênio fosforilase e inibição da glicogênio sintase, que resulta na degradação do glicogênio. A estimulação de adrenorreceptores α 1 também  promove  aumento  da  glicogenólise  hepática  e  facilita  a  captação  de  aminoácidos  pelo  fígado,  aumentando  a disponibilidade  de  substratos  para  a  neoglicogênese.  Esses  efeitos  das  catecolaminas,  associados  à  maior  secreção  de glucagon  e  inibição  da  secreção  de  insulina  pelo  simpático,  resultam  em  maior  produção  hepática  de  glicose  e  ajudam  a evitar  os  danos  irreversíveis  dos  neurônios  resultantes  de  uma  queda  abrupta  da  glicose  no  sangue.  Efeitos  idênticos  na glicogenólise e neoglicogênese, com ativação das enzimas correspondentes, podem ser obtidos pela estimulação direta dos terminais  simpáticos  do  fígado.  O  aumento  da  atividade  simpática  para  as  glândulas  ou  para  o  hepatócito  é  devido  à ativação  de  neurônios  sensíveis  à  concentração  de  glicose,  localizados  no  SNC.  Neurônios  sensíveis  à  glicose  foram localizados  em  diversas  regiões  do  SNC,  tais  como:  os  núcleos  ventromedial,  arqueado,  supraquiasmático  e paraventricular no hipotálamo; a substância nigra, a área postrema e o núcleo do trato solitário no tronco cerebral. Esses neurônios são também sensíveis a outros metabólitos e a diversos tipos de peptídios e citocinas, participando, portanto, do controle de outros aspectos do metabolismo energético. No entanto, sua capacidade de ativar as vias simpáticas eferentes para o fígado (e para o pâncreas, medula suprarrenal etc.) passa a ser a atividade predominante em situações de redução do suprimento  de  glicose.  Sinapses  colinérgicas  centrais  também  parecem  estar  envolvidas  no  controle  da  produção  de glicose;  sua  estimulação,  que  aumenta  o  fluxo  simpático  eferente,  leva  a  uma  acentuada  hiperglicemia  por  ativação  da neoglicogênese  hepática.  Ao  contrário  do  simpático,  o  parassimpático  estimula  a  secreção  da  insulina,  via  liberação  de acetilcolina  e  ativação  da  PKC  (proteinoquinase  dependente  de  cálcio)  nas  células  β  do  pâncreas,  com  a  consequente redução  da  produção  hepática  de  glicose,  por  inibição  da  glicogenólise  e  da  neoglicogênese  (ver  anteriormente).  Isto  é  o que acontece, por exemplo, durante a fase cefálica da digestão (ver Capítulo 61, Secreções do Sistema Digestório), quando estímulos sensoriais relacionados ao alimento (visão, olfação, audição etc.) aumentam a secreção de insulina mesmo antes de  o  alimento  chegar  ao  estômago.  O  papel  da  inervação  parassimpática  direta  dos  hepatócitos  no  controle  das  vias metabólicas não está bem esclarecido, embora haja evidências de que a estimulação do vago aumente a atividade da enzima glicogênio  sintase.  O  papel  de  fibras  aferentes  do  vago  na  transmissão  sensorial,  para  o  SNC,  de  informações  sobre  a concentração hepática de metabólitos, inclusive da glicose, é mais bem conhecido.

METABOLISMO DO TECIDO ADIPOSO ▸ Regulação hormonal Metabolismo de carboidratos O  metabolismo  de  carboidratos  no  tecido  adiposo  está  diretamente  ligado  às  duas  funções  básicas  desse  tecido: armazenar gordura (triacilgliceróis) e mobilizar ácidos graxos de acordo com a demanda calórica. Ao contrário da célula hepática,  o  transporte  de  glicose  pela  membrana  do  adipócito  é  um  passo  limitante  da  utilização  da  hexose.  O transportador  predominante  é  o  GLUT4,  que  é  sensível  à  insulina.  Ao  promover  a  síntese  e  a  translocação  para  a membrana de moléculas de GLUT4 presentes no retículo endoplasmático, a insulina estimula o transporte de glicose para o interior da célula, onde é imediatamente fosforilada. A insulina estimula o fluxo na via glicolítica e na via das pentoses, gerando  NADPH  para  a  síntese  de  ácidos  graxos.  Pelo  fato  de  o  adipócito,  ao  contrário  do  hepatócito,  apresentar quantidades relativamente pequenas de gliceroquinase, o tecido adiposo é muito dependente do fluxo na via glicolítica para fornecimento do glicerol­3­fosfato necessário para a esterificação de ácidos graxos (ver adiante).

Metabolismo lipídico Tal  como  ocorre  no  hepatócito,  no  tecido  adiposo  os  ácidos  graxos  são  sintetizados de  novo  no  citosol  a  partir  de acetil­CoA,  proveniente,  em  sua  maior  parte,  da  descarboxilação  do  piruvato  (produzido  na  via  glicolítica  ou  a  partir  de outros metabólitos) pelo complexo intramitocondrial da piruvato desidrogenase. Esse processo é estimulado pela insulina, que  além  de  aumentar  o  fluxo  na  via  glicolítica,  ativa  o  sistema  da  piruvato  desidrogenase  e  as  enzimas  acetil­CoA carboxilase e ácido graxo sintase (Figura 74.3). O tecido adiposo pode também captar ácidos graxos já formados que se encontram  na  circulação  incorporados  em  triacilgliceróis  de  lipoproteínas  (especialmente,  no  período  pós­absortivo,  em quilomícrons  e  VLDL).  Essa  captação  é  estimulada  pela  insulina,  que  ativa  a  lipase  lipoproteica,  enzima  localizada  na membrana basal do endotélio dos capilares próximos dos adipócitos, cuja ação resulta na hidrólise dos triacilgliceróis de lipoproteínas (ver Figura 74.3)  gerando  glicerol  e  ácidos  graxos.  A  esterificação  e  o  armazenamento  dos  ácidos  graxos,

sintetizados  de  novo  ou  captados  da  circulação,  requerem  fornecimento  adequado  de  glicerol­3­fosfato.  Em  virtude  da pequena quantidade de gliceroquinase, esse fornecimento depende de um fluxo glicolítico ativo (e, portanto, da insulina) para  produção  de  glicerol­3­fosfato  a  partir  da  di­hidroxiacetona,  pela  ação  da  glicerofosfato  desidrogenase.  Evidências indicam  que,  em  situações  de  pouca  disponibilidade  de  glicose  e  baixas  concentrações  de  insulina,  o  glicerol­3­fosfato pode também ser formado via gliceroneogênese; esta consiste em uma reversão parcial da glicólise, até di­hidroxiacetona, a  partir  de  piruvato  ou  de  outros  produtores  de  piruvato,  como  lactato  e  aminoácidos  glicogênicos  (Figura  74.4).  A gliceroneogênese  é  semelhante  à  neoglicogênese  hepática,  com  formação  intramitocondrial  de  oxaloacetato,  que  é transportado  para  o  citosol,  onde  é  descarboxilado  pela  PEPCK.  O  fosfoenolpiruvato  assim  formado  segue  as  etapas inversas da glicólise até di­hidroxiacetona. Semelhante à neoglicogênese, a enzimachave da gliceroneogênese é a PEPCK, a qual está presente no tecido adiposo e é inibida pela insulina. A atividade desta via aumenta, portanto, em situações em que  a  concentração  plasmática  desse  hormônio  encontra­se  reduzida  (como  no  jejum),  com  consequente  aumento  da geração  de  glicerol­3­fosfato.  A  formação  de  glicerol­3­fosfato  seria  importante  para  assegurar  a  síntese  e  o  estoque  de triacilgliceróis  no  tecido  adiposo  (ver Figura 74.4).  Outro  efeito  importante  da  insulina  é  a  inibição  da  mobilização  de ácidos  graxos  do  tecido  adiposo,  que  é  devida  a  um  aumento  da  fração  de  ácidos  graxos  que  são  reesterificados  com glicerol­3­P  produzido  pela  via  glicolítica  e  a  uma  redução  da  velocidade  de  lipólise,  devida  ao  efeito  inibitório  do hormônio  na  atividade  da  lipase  hormônio­sensível  (LHS).  O  glucagon  e  as  catecolaminas,  especialmente  a  epinefrina, ativam  a  LHS  e  são  potentes  estimuladores  da  lipólise.  Esse  efeito  do  glucagon,  que  aumenta  o  fluxo  de  ácidos  graxos para  o  fígado,  potencia  sua  ação  cetogênica  hepática.  Durante  muitos  anos,  a  LHS  foi  considerada  a  única  enzima­chave reguladora  da  mobilização  de  ácidos  graxos  do  tecido  adiposo.  Entretanto,  outra  enzima  denominada  lipase  dos triglicerídios  do  adipócito  (ATGL),  ou  desnutrina  ou  fosfolipase  A2Ú,  foi  encontrada  principalmente  no  tecido  adiposo branco.  Esta  enzima  usa  os  triacilgliceróis  como  substrato  e  o  produto  desta  hidrólise,  o  diacilglicerol,  é  o  principal substrato fisiológico da LHS. A diferença na preferência dos substratos pelas ATGL e LHS sugere que a mobilização de ácidos graxos envolve uma ação coordenada dessas duas enzimas. A ATGL parece ser regulada pelos mesmos hormônios que  a  LHS  e,  embora  também  seja  fosforilada,  diferente  da  LHS,  esta  reação  de  fosforilação  não  ocorre  pela  PKA.  No tecido adiposo há também outra proteína estrutural denominada perilipina, que se localiza na superfície da gota de gordura. Quando fosforilada pela PKA, a perilipina altera sua estrutura tridimensional e possibilita que a LHS, também ativada por fosforilação  pela  PKA,  tenha  acesso  ao  seu  substrato,  o  triacilglicerol,  e  promova  a  sua  hidrólise  em  ácidos  graxos  e glicerol.

Figura 74.3 ■ Representação esquemática do metabolismo de carboidratos e lipídios no tecido adiposo branco, com indicação dos pontos de ação hormonal. (+), estimulação; (–) inibição. Os números entre parênteses representam as enzimas reguladoras que atuam no passo metabólico indicado. (1), hexoquinase; (2), glicogênio sintase; (3), piruvato desidrogenase; (4), acetil­CoA carboxilase; (5), lipase lipoproteica (LPL); LHS, lipase hormônio sensível; GLUT4,  transportador  de  glicose  (tipo  4)  sensível  à insulina; AGL, ácidos graxos livres. Descrição da figura no texto.

▸ Regulação neural Talvez  pela  falta  de  métodos  mais  sensíveis,  não  há,  até  o  momento,  evidências  claras  da  existência  de  inervação parassimpática do tecido adiposo. Comparada a de outros tecidos, a inervação simpática do tecido adiposo é relativamente pequena,  e  sua  importância  fisiológica  foi  posta  em  dúvida  por  muitos  anos.  Em  situações  de  aumento  da  demanda  de substratos energéticos pelos tecidos periféricos, o tecido adiposo contribui para atender essa demanda ativando, por meio do simpático, o processo de lipólise e mobilização de ácidos graxos. O simpático pode ativar a lipólise agindo diretamente no  adipócito  ou  indiretamente,  inibindo  a  secreção  de  insulina  e  estimulando  a  secreção  de  glucagon,  e  especialmente  de epinefrina. Como antes referido, estes dois últimos são hormônios lipolíticos, ao contrário da insulina. Fibras simpáticas inervam  tanto  o  parênquima  (adipócitos)  do  tecido  como  a  vasculatura,  inclusive  os  capilares,  e  sua  estimulação,  em condições  de  completa  ausência  de  fatores  hormonais,  produz  ativação  da  lipólise.  Esta  ativação,  com  aumento  da atividade da LHS, é devida à liberação de norepinefrina nos terminais simpáticos próximos aos adipócitos. Por outro lado, existem evidências de que o processo de mobilização para a circulação dos AGL resultantes da lipólise pode ser facilitado pela  inervação  simpática  dos  capilares.  Estudos  mostram  que  a  estimulação  simpática  aumenta  a  permeabilidade  (o coeficiente  de  filtração)  de  capilares  do  tecido  adiposo,  facilitando  a  penetração  da  albumina  no  espaço  intercelular.  A albumina  é  a  transportadora  dos  AGL  formados  pela  lipólise,  e  a  facilitação  de  seu  trânsito  pelo  espaço  intercelular possibilitaria uma eficiente remoção dos ácidos graxos para a circulação, evitando seu acúmulo, que poderia ter um efeito inibitório  sobre  a  lipólise.  Diversas  regiões  do  SNC  fazem  conexão  com  o  sistema  nervoso  simpático  e  podem  estar envolvidas  no  processo  de  ativação  da  lipólise  pelo  tecido  adiposo:  núcleos  da  rafe  e  núcleo  do  trato  solitário  no  tronco cerebral,  núcleos  supraquiasmático,  dorsomedial  e  paraventricular  do  hipotálamo,  área  hipotalâmica  lateral  e  área  pré­ óptica medial. Independentemente de sua possível contribuição para a ativação da lipólise no tecido adiposo, essas regiões

centrais participam do controle de outros aspectos do metabolismo energético. Por exemplo, há evidências de que, além de sua ação lipolítica, o simpático iniba no tecido adiposo os processos de diferenciação e proliferação de adipócitos. Esses processos  ocorrem  com  diferente  intensidade  nos  diversos  depósitos  de  tecido  adiposo  e  parecem  ser  controlados,  em parte,  pelas  áreas  centrais  conectadas  ao  simpático.  Vale  ressaltar  que  existem  diferenças  de  resposta  a  estímulos hormonais  ou  neurais  entre  os  diferentes  depósitos  de  tecido  adiposo  branco,  dependendo  de  sua  localização  no organismo.

Figura  74.4  ■   Representação  esquemática  da  formação  do  glicerol­3­fosfato  na  célula  adiposa  pela  via  glicolítica  e  pela gliceroneogênese  e  formação  dos  triacilgliceróis.  TAG,  triacilgliceróis;  AG,  ácidos  graxos;  SNS,  sistema  nervoso simpático; PEPCK, fosfoenolpiruvato carboxiquinase; (+), estimulação; (↑), aumento; (↓), diminuição. Descrição da figura no texto.

METABOLISMO DO TECIDO MUSCULAR

▸ Regulação hormonal Metabolismo de carboidratos A captação da glicose pela célula muscular ocorre principalmente por difusão facilitada pelos transportadores do tipo 4 (GLUT4), sensíveis à insulina, semelhante ao que ocorre na célula adiposa. Assim que a glicose atravessa a membrana, é rapidamente  fosforilada  pela  hexoquinase  a  glicose­6­fosfato,  de  tal  maneira  que  a  quantidade  de  glicose  livre  dentro  da célula é praticamente nula. Pelo fato de o tecido muscular representar quase a metade do peso corporal, ele é o principal responsável pelo clearance da  glicose  circulante  após  uma  refeição.  Uma  vez  dentro  da  célula  muscular,  a  glicose  pode seguir a via de síntese do glicogênio (glicogênese), a qual em condições normais encontra­se ativada, principalmente pela ação da insulina, que estimula a atividade da glicogênio sintase e inibe a glicogênio fosforilase, semelhante ao que ocorre

no hepatócito (Figura 74.5). Enquanto no fígado a quantidade de glicose armazenada na forma de glicogênio é em torno de 5%, no músculo este valor é da ordem de 2%. Entretanto, o tecido muscular é o maior reservatório de glicogênio, devido à grande  quantidade  deste  tecido  existente  no  organismo  dos  mamíferos.  A  glicose  pode  também  seguir  a  via  glicolítica, fornecendo ATP e lactato, principalmente em músculos brancos, de contração rápida, ricos em fibras do tipo II, que são pobres em mitocôndrias e trabalham em condições de anaerobiose. Já em músculos vermelhos, ricos em fibras do tipo I, de contração lenta e ricos em mitocôndrias, a glicose pode ser totalmente oxidada a CO2, ATP e H2O, fornecendo energia pela fosforilação oxidativa na cadeia respiratória mitocondrial. O músculo pode também utilizar, dependendo da situação fisiológica, outros substratos energéticos, principalmente os AGL, corpos cetônicos e o próprio lactato. Tanto os AGL como os corpos cetônicos podem ser oxidados nas células musculares, fornecendo moléculas de acetil­ CoA e citrato, que podem, respectivamente, inibir a piruvato desidrogenase e a fosfofrutoquinase, o que leva ao acúmulo de  glicose­6­fosfato,  que  bloqueia  a  atividade  da  hexoquinase,  levando  à  inibição  da  utilização  da  glicose  pelo  tecido muscular. Este mecanismo é conhecido como ciclo de Randle ou ciclo glicose­ácido graxo, podendo parcialmente explicar a resistência à utilização da glicose observada em situações de diabetes, quando os níveis de AGL e corpos cetônicos estão elevados.  As  células  musculares  também  apresentam  receptores  para  as  catecolaminas,  principalmente  os adrenorreceptores β2,  que  uma  vez  ativados  podem  estimular  a  glicogenólise  (via  PKA),  pela  fosforilação  da  glicogênio fosforilase,  e  inibir  a  glicogênio  sintase.  Como  no  músculo  não  existe  a  enzima  glicose­6  fosfatase,  a  glicose­6­fosfato formada pela glicogenólise é oxidada pela via glicolítica (ver Figura 74.5), podendo ainda fornecer lactato. Já no músculo esquelético  não  são  encontrados  receptores  para  o  glucagon,  o  qual  não  tem  nenhuma  importância  fisiológica  para  o controle do metabolismo muscular. Outra  via  metabólica  que  pode  ocorrer  em  músculos  esqueléticos,  ainda  não  muito  explorada,  é  a  glicogeniogênese, que consiste na síntese de glicogênio a partir de outros substratos diferentes da glicose, principalmente do lactato. Quando produzido  pelo  músculo  em  grande  quantidade,  o  lactato  pode  ser  utilizado  pelas  próprias  células  musculares  para sintetizar  glicogênio,  havendo,  em  parte,  a  participação  da  enzima  PEPCK,  mas  principalmente  a  reversão  da  reação catalisada  pela  enzima  piruvato  quinase.  O  lactato  liberado  pelas  células  musculares,  principalmente  as  de  tipo  II,  pode também ser utilizado tanto pelas células vizinhas do tipo I, dentro de um mesmo músculo de natureza mista; além disso, ao  ser  liberado  na  corrente  sanguínea,  pode  ser  utilizado  por  fibras  musculares  esqueléticas  oxidativas  e  cardíacas,  pela conversão do lactato em piruvato (pela presença da desidrogenase láctica intramitocondrial) e, posteriormente, em acetil­ CoA, sendo oxidado pelo ciclo de Krebs para a produção de energia. Esses processos metabólicos ocorrem principalmente em situações de exercício, quando há formação de grande quantidade de lactato.

Figura 74.5 ■ Representação esquemática do metabolismo de carboidratos, lipídios e proteínas no músculo, com indicação dos pontos de ação hormonal. (+), estimulação; (–), inibição. Os números entre parênteses representam as enzimas reguladoras que atuam em cada passo indicado. (1), hexoquinase; (2), fosfofrutoquinase­1; (3), piruvato desidrogenase; AA, aminoácidos; AGL, ácidos graxos livres. Descrição da figura no texto.

Metabolismo lipídico Sabe­se  que  os  processos  metabólicos  de  síntese  e  degradação  dos  triacilgliceróis  não  são  os  mais  importantes  no músculo,  embora  haja  considerável  quantidade  de  gordura  interfibras,  dependendo  do  tipo  de  músculo  considerado.  O estudo do metabolismo lipídico em músculo deve ser analisado com cautela, uma vez que os achados experimentais podem ser decorrentes dos processos metabólicos que ocorrem no tecido adiposo que existe entre as fibras e não propriamente no interior  das  células  musculares.  Desse  modo,  principalmente  por  problemas  metodológicos,  pouco  se  sabe  a  respeito  do papel  de  fatores  hormonais  no  metabolismo  de  lipídios  na  célula  muscular  de  indivíduos  adultos.  Entretanto,  acredita­se que os principais substratos energéticos das células musculares são os ácidos graxos de cadeia longa. Uma vez dentro das células, estes são acilados com coenzima A pela ação das acil­CoA sintetases e, após ligação com a carnitina, pela ação da carnitina­acil­transferase I, são transportados para o interior da mitocôndria para serem oxidados. Já é bastante conhecido que a oxidação dos ácidos graxos inibe a oxidação da glicose, pelos mecanismos enzimáticos já explicados. Tanto  em  células  musculares  esqueléticas  como  em  cardíacas,  são  encontradas  proteínas  transportadoras  de  ácidos graxos  (FAT/CD36  e  FABPpm),  que  podem  ser  translocadas  de  um  pool  intracelular  para  a  membrana  plasmática, aumentando o transporte de ácidos graxos durante a contração muscular, por exemplo. Estudos em humanos indicam que músculos de indivíduos com obesidade abdominal ou diabetes tipo 2 apresentam baixa capacidade de oxidação de ácidos graxos. Os ácidos graxos captados e não adequadamente oxidados podem levar ao acúmulo de triacilglicerol e formação de outros tipos de lipídios no músculo, o que tem sido associado à resistência à insulina observada no músculo esquelético desses indivíduos.

Metabolismo de proteínas

O músculo é o tecido que contém a maior quantidade de proteínas do organismo e é certamente o tecido especializado na  síntese  e  na  degradação  das  proteínas.  Embora  nos  mamíferos  não  existam  proteínas  de  reserva,  estas  biomoléculas estão em constante renovação, tendo cada proteína uma meia­vida diferente, variando de minutos até dias. Os aminoácidos resultantes  da  degradação  dessas  moléculas,  dependendo  da  situação  fisiológica,  podem  ser:  (1)  reutilizados  para  síntese de  novas  proteínas;  (2)  precursores  de  glicose,  pela  neoglicogênese  hepática  (são  os  aminoácidos  glicogênicos);  (3) precursores  de  ácidos  graxos/corpos  cetônicos  (são  os  aminoácidos  cetogênicos)  ou  (4)  oxidados  a  CO2,  ATP  e  H2O. Embora nos últimos trinta anos tenha ocorrido grande avanço no conhecimento dos mecanismos envolvidos no controle da síntese  e  degradação  de  proteínas,  pouco  ainda  se  sabe  sobre  a  regulação  da  proteólise  intracelular.  No  tecido  muscular, assim como na maioria das outras células, estão descritas, pelo menos, três vias proteolíticas: (1) a lisossomal (sendo as catepsinas as principais enzimas envolvidas); (2) a dependente de cálcio (com a participação das enzimas calpaínas I e II e o inibidor endógeno destas enzimas, a calpastatina); (3) a dependente de ATP, ubiquitina (Ub) e proteassoma (UPS), com o  envolvimento  do  complexo  enzimático  do  proteassoma.  O  acesso  do  substrato  proteico  ao  lisossomo  depende  de  um processo  descrito  como  autofagia,  descoberta  que  mereceu  o  Nobel  em  Medicina  e  Fisiologia,  em  2016  (outorgado  ao biólogo  japonês  Yoshinori  Ohsumi,  de  71  anos,  professor  do  Instituto  Tecnológico  de  Tóquio,  Japão).  Neste  processo, ocorre  a  formação  de  uma  vesícula  com  membrana  dupla  (autofagossomo  ou  vacúolo  autofágico),  que  envolve  parte  do citosol  juntamente  com  o  substrato  (proteína  danificada,  organela,  vírus  etc.),  a  qual  se  funde  ao  lisossomo  formando  o autolisossoma,  onde  os  substratos  serão  degradados  pelas  catepsinas.  A  autofagia  é  um  processo  de  “autolimpeza”  ou renovação celular, e sua deficiência pode causar miopatias e problemas relacionados com a idade, como o Alzheimer e o Parkinson. É descrito que a insulina estimula a captação dos aminoácidos pelas células musculares, assim como estimula os  processos  de  síntese  proteica  (como  transcrição  de  genes,  formação  dos  polissomas,  a  velocidade  de  tradução  dos mRNA  e  síntese  dos  fatores  de  iniciação  e  elongação).  Os  mecanismos  pelos  quais  a  insulina  inibe  os  processos  de degradação das proteínas ainda são pouco conhecidos. Há evidências de que a insulina reduz a formação dos lisossomos e o  fluxo  autofágico,  assim  como  inibe  a  atividade  da  via  dependente  de  cálcio  e  a  síntese  dos  componentes  da  via proteolítica  UPS  (tais  como  a  síntese  das  subunidades  α  e  β  do  proteassoma  e  da  própria  ubiquitina.  Este  é  um polipeptídio  de  76  aminoácidos,  existente  em  todas  as  células  e  que  marca  as  proteínas  que  serão  degradadas  pela proteassoma. No músculo esquelético, o glucagon não apresenta efeito biológico, pois neste tecido os receptores para este hormônio  são  praticamente  inexistentes.  Os  glicocorticoides  são  potentes  inibidores  da  síntese  e  estimuladores  da degradação  de  proteínas,  especialmente  nos  músculos  brancos  ricos  em  fibras  glicolíticas,  onde  agem  ativando principalmente  o  sistema  UPS.  Em  situações  de  demanda  energética,  como  durante  o  jejum,  quando  as  concentrações plasmáticas  de  insulina  caem  e  as  dos  glicocorticoides  aumentam,  o  músculo  constitui  o  tecido  mais  relevante  para  o fornecimento  de  aminoácidos  para  a  formação  de  glicose  pela  neoglicogênese  hepática.  Os  hormônios  tireoidianos  são muito  importantes  no  controle  do  metabolismo  de  proteínas  no  músculo  esquelético,  estimulando  tanto  os  processos  de síntese  como  os  de  degradação  dessas  moléculas.  Durante  o  jejum  prolongado,  por  exemplo,  a  baixa  secreção  dos hormônios  tireoidianos  proporciona  uma  diminuição  na  síntese,  mas,  principalmente,  uma  redução  na  degradação  das proteínas, fazendo com que as proteínas musculares sejam preservadas e o indivíduo possa sobreviver um maior período de tempo sem alimento. O papel das catecolaminas no metabolismo de proteínas musculares está discutido mais adiante.

▸ Regulação neural O músculo esquelético é inervado pelo sistema nervoso somático que libera o neurotransmissor acetilcolina na região da  placa  motora  e  desencadeia  a  resposta  contrátil  do  músculo.  Recentemente,  foi  descoberto  que  as  fibras  musculares esqueléticas  também  são  diretamente  inervadas  por  terminações  simpáticas  noradrenérgicas,  independentemente  da inervação dos vasos sanguíneos desse tecido. Diferentemente dos seus efeitos catabólicos no metabolismo de carboidratos e de lipídios (que promove glicogenólise e lipólise, respectivamente), o sistema simpático exerce uma ação anabólica no metabolismo  de  proteínas  do  músculo  esquelético,  por  meio  da  epinefrina  secretada  pela  medula  da  suprarrenal  e  pela norepinefrina  liberada  pelo  terminal  simpático  que  inerva  tanto  o  sarcolema  como  a  região  da  placa  motora.  Estudos  in vivo  em  ovinos,  suínos  e  roedores  mostram  que  simpatomiméticos  (como  os  β2­agonistas  cimaterol  ou  clembuterol) promovem  aumento  da  massa  muscular  esquelética  e  atenuam  a  atrofia  muscular  normalmente  observada  em  diferentes situações  catabólicas,  como  câncer,  septicemia,  desuso  e  distrofias.  Além  disso,  estudos  recentes  indicam  que  o tratamento com simpatomiméticos mantém a estrutura da placa motora e melhora a atividade locomotora em pacientes com síndromes miastênicas congênitas. A epinefrina, tanto em humanos como em ratos, promove redução das concentrações plasmáticas de aminoácidos e da proteólise muscular. Estudos in vitro realizados em músculos esqueléticos isolados demonstraram que tanto a epinefrina

como  o  clembuterol  reduzem  as  atividades  das  vias  proteolíticas  dependentes  de  cálcio  e  UPS,  por  um  processo dependente da via de sinalização do cAMP/PKA. Além  da  inibição  da  proteólise  muscular,  a  inervação  simpática  pode  atuar  diretamente,  via  adrenorreceptores  β2, estimulando a velocidade de síntese de proteínas em músculos oxidativos. Os efeitos antiproteolíticos e pró­sintéticos das catecolaminas são observados durante o jejum e o diabetes, e são fisiologicamente importantes para contrabalançar o alto catabolismo proteico induzido pelos glicocorticoides e/ou pela perda da ação anabólica da insulina e IGF­1. Portanto, as catecolaminas parecem fazer parte de um sistema regulador de ajuste fino do metabolismo de proteínas, proporcionando ao organismo submetido a uma situação de estresse a capacidade de sobrevivência, devido à preservação de sua massa muscular esquelética e, consequentemente, de sua postura e locomoção, componentes estes imprescindíveis para o comportamento de defesa e busca de alimentos.

AJUSTE NEUROENDÓCRINO DO METABOLISMO EM SITUAÇÕES DE DEMANDA ENERGÉTICA

▸ Situações de estresse Quando  o  organismo  é  submetido  a  situações  de  estresse,  entendido  como  estímulos  nocivos  ou  potencialmente nocivos que tendem a provocar desequilíbrio de suas funções fisiológicas, pode ocorrer a mobilização de suas reservas de carboidratos  e  de  lipídios.  De  uma  maneira  geral,  essas  respostas  de  aumento  da  glicemia  e/ou  dos  AGL  do  plasma  são mediadas  pelo  SNC.  A  hiperglicemia  resulta  da  ativação  da  glicogenólise  por  catecolaminas  provenientes  da  ativação simpática  da  medula  da  suprarrenal,  ao  passo  que  o  aumento  de  AGL  resulta,  geralmente,  da  ativação  direta  de  fibras simpáticas do tecido adiposo, com liberação local de norepinefrina e aceleração da lipólise. Embora  o  SNC  seja,  de  maneira  geral,  independente  da  insulina,  estudos  recentes  mostram  a  existência  de  áreas restritas no hipotálamo, como por exemplo, o núcleo arqueado, que são sensíveis à insulina e à glicose. O mecanismo da excitação  destes  neurônios  pela  glicose  parece  ser  bastante  semelhante  ao  das  células  β  pancreáticas  e  envolve  o fechamento  de  canais  de  K+ sensíveis  ao  ATP.  Quando  ocorrem  alterações  da  glicose  circulante,  essas  áreas  contribuem para  a  manutenção  da  oferta  adequada  de  substratos  energéticos  no  plasma,  tanto  modulando  a  secreção  de  hormônios pancreáticos (insulina e glucagon) ou suprarrenais (catecolaminas e glicocorticoides), quanto atuando diretamente, por via neural, nos tecidos periféricos, como o hepático, o adiposo e o muscular.

▸ Jejum A  manutenção  da  homeostase  glicêmica  nos  mamíferos  é  de  fundamental  importância  para  o  SNC,  que  não  utiliza ácidos  graxos  de  cadeia  longa.  Quando  o  jejum  se  inicia,  a  tendência  à  queda  da  concentração  plasmática  de glicose  estimula  a  glicogenólise  hepática  que  representa  o  mecanismo  inicial  para  a  correção  da  glicemia.  Como  as reservas  de  glicogênio  hepático  (cerca  de  75  g,  em  humanos)  tendem  a  se  esgotar  rapidamente,  ocorre  aumento  da atividade  neoglicogenética.  Os  principais  substratos  para  a  neoglicogênese  são  aminoácidos  provenientes  da  proteólise muscular, principalmente de músculos brancos ricos em fibras glicolíticas. Dessa maneira, a excreção de ureia pela urina aumenta. Os mecanismos hormonais de defesa contra a hipoglicemia estão organizados de uma forma hierárquica, sendo que o primeiro deles é a redução da secreção de insulina pela célula β pancreática. Essa alteração é seguida pelo aumento das  concentrações  plasmáticas  de  glucagon,  epinefrina,  cortisol  e  hormônio  do  crescimento.  Os  hormônios  cujas concentrações  aumentam  em  resposta  à  hipoglicemia  são  conhecidos  como  hormônios  contrarregulatórios  da  insulina  e podem agir de forma sinérgica nas respostas metabólicas adaptativas ao jejum. Sabe­se que o cortisol aumenta a expressão de  receptores  de  outros  hormônios  em  diferentes  tecidos  e,  dessa  forma,  potencializa,  por  exemplo,  a  sua  ação hiperglicêmica  e  da  epinefrina.  A  queda  da  relação  insulina/glucagon  durante  o  jejum,  além  de  promover  as  alterações metabólicas  aqui  descritas,  ativa  o  processo  de  lipólise  no  tecido  adiposo.  Enquanto  o  glicerol  resultante  servirá  como substrato  para  a  neoglicogênese  hepática,  a  elevação  dos  AGL  do  plasma  provocará  um  aumento  de  sua  utilização  por tecidos  periféricos,  principalmente  pela  massa  muscular  esquelética  e  cardíaca.  Nos  músculos,  que  representam  cerca  de 40% do peso corporal total, a utilização aumentada dos AGL inibe a utilização de glicose, substituindo, dessa maneira, o consumo  de  glicose  pelo  dos  ácidos  graxos.  Desse  modo,  o  processo  de  neoglicogênese  fica  menos  sobrecarregado  pela redução  da  velocidade  de  degradação  das  proteínas  musculares,  com  a  preservação  de  proteínas  neste  tecido,  que,  caso fossem  excessivamente  degradadas,  poderiam  comprometer  funções  de  músculos  importantes,  como  o  diafragma  e  os intercostais,  responsáveis  pela  respiração.  No  caso  de  o  jejum  se  prolongar  por  mais  de  alguns  dias,  ocorrem  outras

alterações  neurohormonais,  sendo  que  a  principal  delas  é  a  redução  da  atividade  tireoidiana  com  queda  no  metabolismo basal  e  maior  conservação  das  reservas  metabólicas.  A  redução  da  atividade  simpática  noradrenérgica  em  tecidos metabolicamente  ativos,  como  o  coração  e  os  músculos  esqueléticos,  também  contribui  para  a  redução  do  metabolismo basal.  Por  outro  lado,  o  SNC  passa  a  utilizar  como  substrato  energético  os  corpos  cetônicos,  produzidos  em  grande quantidade pelo aumento do afluxo de AGL para o fígado. Os corpos cetônicos, substituindo a glicose como sua principal fonte  de  energia,  levam  a  uma  redução  da  proteólise  muscular  e  uma  acentuada  diminuição  da  neoglicogênese  hepática, com grande economia de proteínas musculares. A diminuição da proteólise é acompanhada de acentuada queda da excreção de  ureia  na  urina.  No  jejum  mais  prolongado,  além  da  queda  dos  níveis  de  hormônios  tireoidianos,  as  catecolaminas plasmáticas,  mais  precisamente  a  epinefrina,  também  parecem  ter  importância,  promovendo  redução  da  proteólise, principalmente em músculos esqueléticos glicolíticos, auxiliando, assim, a manutenção da massa muscular. Para garantir a utilização de glicose pelos tecidos totalmente dependentes da oxidação desta hexose (tais como hemácias, medula renal e cérebro),  o  rim  passa  a  produzir  glicose,  pela  neoglicogênese  renal,  utilizando  glutamina  como  principal  substrato  desta via metabólica com significante aumento da atividade da PEPCK (Figura 74.6). A  sobrevivência  ao  jejum  prolongado  parece  ser  determinada  pela  reserva  de  tecido  adiposo;  quando  esses  estoques são  depletados  pela  continuação  da  lipólise  e  redução  da  lipogênese,  há  uma  repentina  perda  da  massa  proteica,  com fraqueza dos músculos respiratórios, podendo advir pneumonia e morte. O  fato  de  o  nosso  organismo  ser  capaz  de  sobreviver  por  cerca  de  2  a  3  meses  sem  a  ingestão  de  alimentos,  ilustra claramente  a  precisa  e  coordenada  regulação  do  seu  metabolismo,  orquestrada  pela  participação  sincronizada  de hormônios, metabólitos e o sistema nervoso (ver Figura 74.6).

Figura 74.6 ■ Principais  fluxos  de  metabólitos  no  jejum.  Os  aminoácidos  (principalmente  oriundos  da  proteína  muscular)  e  o glicerol  são  precursores  de  glicose  em  situações  de  jejum  pela  via  da  neoglicogênese.  A  completa  oxidação  da  glicose  é reduzida pela produção de corpos cetônicos, que são utilizados como combustível alternativo, por exemplo, pelo SNC. Tecidos que  utilizam  quase  exclusivamente  glicose  (p.  ex.,  hemácias  e  medula  renal)  produzem  lactato,  que  é  reciclado  na neoglicogênese.  A  maior  fonte  de  combustível  para  oxidação  são  os  triacilgliceróis  (TG),  advindos  do  tecido  adiposo,  que disponibilizam combustível na forma de ácidos graxos não esterificados e corpos cetônicos (via hepática). Descrição da figura no texto.

▸ Exercício Durante  o  exercício,  há  necessidade  de  suprir  os  músculos  esqueléticos  com  substratos  energéticos  adicionais, mantendo  ao  mesmo  tempo  um  fornecimento  adequado  de  glicose  para  o  SNC.  A  contribuição  desses  substratos  para  a produção  de  ATP  muscular  varia  de  acordo  com  a  intensidade  e  a  duração  da  atividade  física.  Em  repouso,  o  tecido muscular  utiliza  relativamente  pouca  glicose.  Iniciado  um  exercício  muito  intenso  e  de  curta  duração  (no  máximo  de  30 segundos), os níveis de ATP são mantidos, principalmente, pela transferência de fosfatos de alta energia de moléculas de creatinafosfato para o ADP. Com a continuidade da atividade física, o aumento da atividade contrátil e da concentração de cálcio  intracelular  ativa  tanto  a  hidrólise  do  glicogênio  muscular  como  a  captação  da  glicose,  promovendo  aumento  na oferta  de  glicose  intracelular  que  passa  a  ser  metabolizada  na  via  glicolítica  gerando  ATP  e  lactato.  Este  aumento  da utilização  de  glicose  pelo  músculo  promovida  pelo  exercício,  que  pode  aumentar  em  até  30  vezes,  é  mediado  pela proteinoquinase  dependente  de  AMP  (AMPK)  e  ocorre  por  um  mecanismo  independente  da  insulina.  Esta  é  a  fase anaeróbia  da  atividade  física  que  se  caracteriza  por  altas  concentrações  de  lactato  no  sangue.  Em  situações  de  esforço físico mais prolongado, os AGL plasmáticos aumentam e passam a ser o substrato energético preferencial utilizado pelos músculos.  Durante  essa  fase,  caracterizada  pela  aerobiose,  cerca  de  2/3  da  energia  despendida  provêm  da  oxidação  de ácidos graxos e 1/3 da glicose. Quanto maior for a capacidade de oxidação de ácidos graxos pelo músculo, menor será o risco  do  desenvolvimento  de  resistência  à  insulina  periférica.  A  insulina  e  o  glucagon  intervêm  na  regulação  do fornecimento  dos  dois  substratos.  Durante  o  exercício,  a  insulinemia  diminui,  provocando  um  aumento  da  produção hepática de glicose, que pode elevar­se 4 a 5 vezes, dependendo da intensidade e da duração do exercício. Nos exercícios de  curta  duração,  predomina  o  aumento  da  glicogenólise.  À  medida  que  este  se  prolonga  e  se  esgotam  as  reservas  de glicogênio hepático, aumenta a contribuição da neoglicogênese. A atividade da PEPCK, enzima­chave desta via, é também aumentada  pela  ação  do  sistema  nervoso  simpático.  O  aumento  dos  AGL,  durante  o  exercício,  resulta  da  elevação  da lipólise  causada  pela  queda  da  relação  I/G  e  da  ativação  simpática.  O  lactato  liberado  do  músculo  durante  a  fase  de anaerobiose  do  exercício:  (1)  em  grande  parte  é  reciclado  para  glicose,  por  meio  da  neoglicogênese  no  fígado  (ciclo  de Cori);  (2)  pode  ser  reutilizado  no  próprio  músculo  para  a  síntese  de  glicogênio,  pela  glicogeniogênese  (quando  a lactacidemia  é  muito  elevada);  ou  (3)  pode  ser  utilizado  pelas  fibras  musculares  esqueléticas  oxidativas  e  cardíacas  para geração de energia, por sua conversão a piruvato (pela desidrogenase láctica) e posterior oxidação pelo ciclo de Krebs. Durante  o  exercício,  o  catabolismo  de  aminoácidos  contribui  pouco  no  fornecimento  de  ATP  para  o  músculo.  Com relação  ao  turnover  de  proteínas,  admite­se,  atualmente,  que  a  síntese  proteica  muscular  está  reduzida,  muito provavelmente por uma via de sinalização dependente de cálcio/calmodulina. Embora alguns trabalhos demonstrem que a proteólise  muscular  possa  estar  aumentada  durante  os  primeiros  minutos  da  atividade  física,  o  efeito  do  exercício  na degradação  de  proteínas  musculares  ainda  permanece  pouco  conhecido.  Essas  alterações  do turnover proteico,  durante  a realização do exercício, são importantes para a renovação das proteínas musculares. Uma importante resposta fisiológica durante o exercício é o aumento do débito cardíaco (com aumento da frequência e da  força  de  contração),  da  ventilação  e  do  fluxo  de  sangue  para  o  músculo  esquelético;  há  dilatação  específica  de  vasos sanguíneos por efeitos locais de produtos do metabolismo com propriedades vasodilatadoras como, por exemplo, os íons hidrogênio produzidos como ácido láctico, a adenosina e o CO2. Além da ativação do sistema nervoso simpático, outros hormônios,  como  o  cortisol  e  o  hormônio  de  crescimento,  assim  como  fatores  parácrinos  como  o  IGF­1  podem  ser secretados  em  resposta  ao  exercício.  A  ação  anabólica  no  metabolismo  de  proteínas  do  sistema  nervoso  simpático, hormônio de crescimento e IGF­1 certamente contribui para o ganho de massa muscular durante o exercício a longo prazo. Todos os eventos fisiológicos aqui resumidos são importantes para garantir a oferta e distribuição adequada de glicose ao organismo,  principalmente  ao  SNC,  que  constitui  o  fator  limitante  do  desempenho  e  da  resistência  do  organismo  ao esforço físico (Figura 74.7).

▸ Frio O organismo possui uma extraordinária capacidade de realizar ajustes metabólicos necessários à sobrevivência em um clima hostil. Quando expostos a baixas temperaturas, os animais homeotermos utilizam diversos mecanismos fisiológicos com o objetivo de manter a temperatura corporal constante. Os dois principais mecanismos utilizados pelo homem são a redução  da  perda  de  calor,  pelo  aumento  da  vasoconstrição  da  pele,  e  o  aumento  da  produção  endógena  de  calor desencadeado pelo aumento da taxa metabólica basal de alguns tecidos, como: (1) da musculatura esquelética, na chamada termogênese  dependente  do  tremor  muscular,  e  (2)  do  tecido  adiposo  marrom  (TAM),  no  processo  denominado termogênese independente de tremor muscular (Figura 74.8). Por muito tempo, acreditou­se que a importância fisiológica

da  termogênese  do  TAM  estava  restrita  a  pequenos  roedores  e  durante  o  período  neonatal  em  humanos.  No  entanto, estudos  recentes  com  tomografia  de  emissão  de  pósitrons  demonstram  que  este  tecido  está  localizado  nas  regiões supraclavicular e cervical e é extremamente ativo em indivíduos adultos. O TAM recebe uma densa inervação simpática e é constituído por células multiloculares caracterizadas pela presença de várias gotículas lipídicas contendo triacilglicerol e um grande número de mitocôndrias. Os dois tipos facultativos de termogênese (dependente e independente do tremor) são regulados  pelo  SNC  e  utilizam  como  fontes  principais  de  energia,  para  a  produção  de  calor,  a  glicose  proveniente  da glicogenólise  e  neoglicogênese  hepática  e  a  oxidação  dos  ácidos  graxos  oriundos:  (1)  da  hidrólise  dos  triacilgliceróis armazenados no próprio tecido (músculo e TAM) e (2) principalmente da hidrólise dos triacilgliceróis estocados no tecido adiposo  branco  e  captados  da  circulação.  A  ativação  da  neoglicogênese  que  ocorre  durante  a  exposição  a  baixas temperaturas é favorecida pelo grande afluxo de aminoácidos para o tecido hepático provenientes da ativação da proteólise e redução da síntese proteica muscular (ver Figura 74.8). Este efeito no catabolismo proteico induzido pelo frio depende tanto da ação dos glicocorticoides como dos hormônios tireoidianos, assim como pela redução da secreção de insulina. O  aumento  da  lipólise  e,  consequentemente,  da  concentração  plasmática  de  ácidos  graxos  durante  o  frio,  parece  ser mediado  pela  inervação  simpática  direta  do  tecido  adiposo  branco,  com  a  participação  da  área  pré­óptica  medial  e  do hipotálamo  lateral,  uma  vez  que  lesões  eletrolíticas  dessas  áreas  reduzem  significativamente  a  mobilização  dos  ácidos graxos  nesta  situação.  A  região  medular  da  suprarrenal  não  interfere  nesta  resposta  ao  frio.  Na  exposição  ao  frio,  há também  elevação  da  atividade  dos  nervos  simpáticos  do  tecido  adiposo  marrom  (com  aumento  da  liberação  local  de norepinefrina e ativação dos adrenorreceptores β3­adrenérgicos) e hidrólise dos triacilgliceróis armazenados, o que leva à liberação dos ácidos graxos para a oxidação pelos adipócitos marrons e à produção de calor. O fluxo simpático ao TAM é regulado,  principalmente,  por  neurônios  “promotores”  da  termogênese,  localizados  no  hipotálamo  dorsomedial.  A produção de calor induzida pela ativação simpática do TAM é resultado da ineficiência relativa da cadeia respiratória em produzir ATP devido ao desacoplamento da fosforilação oxidativa mitocondrial induzido por uma enzima conhecida como UCP­1  ou  termogenina.  A  isoforma  do  tipo  3  (UCP­3)  também  é  expressa  no  tecido  muscular  esquelético  e  adiposo branco.  A  expressão  destas  proteínas  é  diretamente  regulada  pelos  hormônios  tireoidianos,  cuja  secreção  é  bastante elevada  em  situações  de  exposição  aguda  a  baixas  temperaturas.  Além  de  promover  a  lipólise  e  aumentar  a  atividade  da UCP­1,  a  estimulação  do  SNS  durante  o  frio  reduz  a  secreção  de  insulina  e  promove  o  aumento  da  captação  de  glicose pelo tecido muscular e adiposo (branco e marrom). Devido à intensa capacidade de ativação da termogênese do TAM e da captação  muscular  de  glicose  de  uma  forma  independente  da  insulina,  a  exposição  aguda  ao  frio  tem  sido  testada, recentemente, como uma nova estratégia terapêutica em pacientes com diabetes melito tipo 2. Além disso, o fato de que a quantidade  de  TAM  é  inversamente  proporcional  ao  índice  de  massa  corporal  em  humanos  sugere  uma  função  potencial deste  tecido  no  controle  do  metabolismo  corporal  e  abre  a  possibilidade  de  um  novo  alvo  terapêutico  no  tratamento  da obesidade.

Figura 74.7 ■ Controle do metabolismo pelo sistema nervoso central (SNC) durante o exercício físico. A epinefrina liberada pela medula da suprarrenal pode ser responsável ou pode intensificar os efeitos da inervação simpática, aumentando a lipólise e suprimindo a secreção de insulina. TG, triacilgliceróis; NOR, norepinefrina. Descrição da figura no texto.

Figura  74.8  ■   Principais  ajustes  metabólicos  no  frio.  A  glicose  produzida  pela  ativação  da  neoglicogênese  e  glicogenólise hepática e os ácidos graxos provenientes da lipólise do tecido adiposo branco são os substratos energéticos preferenciais dos músculos  (tremor)  e  tecido  adiposo  marrom  para  a  produção  de  calor.  Os  aminoácidos  plasmáticos  derivados  do  intenso catabolismo proteico muscular e o glicerol da lipólise são precursores da glicose na via da neoglicogênese. Descrição da figura no texto.

BIBLIOGRAFIA BELL GI, KAYANO T, BUSE JB et al. Molecular biology of mammalian glucose transporters. Diabetes Care, 13:198­208, 1990. BLAAK  EE.  Basic  disturbances  in  skeletal  muscle  fatty  acid  metabolism  in  obesity  and  type  2  diabetes  mellitus.  Proc  Nutr Soc, 63:323­30, 2004. BONEN A, LUIKEN JJ, GLATZ JF. Regulation of fatty acid transport and membrane transporters in health and disease. Mol Cell Biochem, 239:181­92, 2002. CYPESS AM, LEHMAN S, WILLIAMS G et al. Identification and importance of brown adipose tissue in adult humans. N Engl J Med, 360:1509­17, 2009. FESTUCCIA  WT,  KAWASHITA  NH,  GARÓFALO  MAR  et  al.  Control  of  glyceroneogenic  activity  in  rat  brown  adipose tissue. Am J Physiol Regul Integr Comp Physiol, 285:R177­82, 2003. FRAYN KN. Frontiers in Metabolism. Metabolic Regulation. A Human Perspective. Portland Press, London, 1996. GONCALVES  DAP,  LIRA  EC,  BAVIERA  AM  et  al.  Mechanisms  involved  in  cAMP­mediated  inhibition  of  the  ubiquitin­ proteasome system in skeletal muscle. Endocrinology, 150:5395­404, 2009. GOODMAN HM. Basic Medical Endocrinology. 2. ed. Raven Press, New York, 1994. GOODPASTER BH, KELLEY DE. Skeletal muscle triglyceride: marker or mediator of obesity­induced insulin resistance in type 2 diabetes mellitus? Curr Diab Rep, 2:216­22, 2002. GRAÇA  FA,  GONÇALVES  DA,  SILVEIRA  WA  et  al.  Epinephrine  depletion  exacerbates  the  fasting­induced  protein breakdown in fast­twitch skeletal muscles. Am J Physiol Endocrinol Metab, 305:E1483­94, 2013. IBRAHIM N, BOSCH MA, SMART JL et al. Hypothalamic proopiomelanocortin neurons are glucose responsive and express K(ATP) channels. Endocrinology, 144:1331­40, 2003. KAWASHITA NH, MOURA MAF, BRITO MN et al. Relative importance of sympathetic outflow and insulin in the reactivation of brown adipose tissue lipogenesis in rats adapted to a high protein diet. Metabolism, 51(3):343­9, 2002.

KETTELHUT  IC,  WING  SS,  GOLDBERG  AL.  Endocrine  regulation  of  protein  breakdown  in  skeletal  muscle.  Diabetes Metabolism Rev, 4:751­72, 1988. KHAN MM, LUSTRINO D, SILVEIRA WA et al. Sympathetic innervation controls homeostasis of neuromuscular junctions in health and disease. Proc Natl Acad Sci, 113:746­50, 2016. McGARRY TD, FOSTER DW. Hormonal control of ketogenesis. Arch Int Med, 137:495­501, 1977. MORRISON SF, NAKAMURA K, MADDEN CJ. Central control of thermogenesis in mammals. Exp Physiol, 93:773­97, 2008. NAVEGANTES LCC, MIGLIORINI RH, KETTELHUT IC. Adrenergic control of protein metabolism in skeletal muscle. Curr Opin Clin Nutr Metab Care, 5:281­6, 2002. NEDERGAARD J, BENGTSSON T, CANNON B. Unexpected evidence for active brown adipose tissue in adult humans. Am J Physiol Endocrinol Metab, 293:E444­52, 2007. NELSON DL, COX MM. Hormonal regulation and integration of mammalian metabolism. In: Principles of Biochemistry. 4. ed. Lehninger, Freeman WH and Company, New York, 2005. RANDLE  PJ.  Regulatory  interactions  between  lipids  and  carbohydrates:  the  glucose  fatty  acid  cycle  after  35  years.  Diabetes Metab Rev, 14:263­83, 1998. ROSE AJ, RICHTER EA. Regulatory mechanisms of skeletal muscle protein turnover during exercise. J Appl Physiol, 106:1702­ 11, 2009. TAKESHIGE K, BABA M, TSUBOI S et al. Autophagy in yeast demonstrated with proteinase­deficient mutants and conditions for its induction. J Cell Biol, 119:301­11, 1992. XAVIER AR, ROSELINO JES, RESANO NMZ et al. Glyconeogenic pathway in isolated skeletal muscles of rats. Can J Physiol And Pharmacol, 80:162­7, 2002. ZIMMERMANN  R,  STRAUSS  JG,  HAEMMERLE  G  et  al.  Fat  mobilization  in  adipose  tissue  is  promoted  by  adipose triglyceride lipase. Science, 306:1383­6, 2004.



Introdução

■ ■

Sinais aferentes e integração central Controle peptidérgico do balanço hidreletrolítico

■ ■ ■

Sede e controle da ingestão de água e sal Sistema nervoso autônomo e controle do balanço hidreletrolítico Reabsorção renal de sódio e água, controle do volume e da osmolalidade do LEC

■ ■

Controle do balanço hidreletrolítico em idosos Perspectivas



Bibliografia

INTRODUÇÃO Este  capítulo  trata  do  controle  neuroendócrino  do  balanço  hidreletrolítico  sob  a  perspectiva  da  ação  integrativa  do sistema  nervoso  central  (SNC)  determinando  respostas  fisiológicas  e  comportamentais.  Na  Introdução  forneceremos  um panorama geral sobre esse controle, seguido por uma seção sobre aferências e integração no SNC. Depois abordaremos a função de vários peptídios, seus receptores, ações celulares e interações com neurotransmissores. O capítulo continua com papel  da  sede,  sistema  nervoso  autônomo  e  dos  rins  sobre  o  controle  do  balanço  hidreletrolítico,  sendo  então  encerrado com um resumo sobre este controle no idoso. O balanço entre ganho e perda de água determina a hidratação – composição hídrica ou volume adequado – dos dois principais compartimentos do corpo: meio interno ou líquido extracelular (LEC) e líquido intracelular (LIC). A hidratação está  associada  à  composição  eletrolítica  desses  compartimentos,  sendo  ambas  basicamente  mantidas  pelo  controle  da ingestão e excreção renal de sal e água. A hidratação permite o transporte eficiente de nutrientes (para as células) e dejetos (para longe das células) necessário para que o animal desempenhe suas funções. A  desidratação  ou  redução  do  LEC  e  LIC  resulta  de  perda  de  água  e/ou  aumento  na  concentração  de  soluto, principalmente  sódio,  em  situações  de  privação  hídrica,  perdas  insensíveis  –  através  da  excreção  renal,  transpiração  e evaporação (principalmente através da pele) –, pelo ar expirado durante a ventilação pulmonar, ou pelo consumo de sódio na  alimentação.  A  desidratação  de  cada  um  dos  dois  compartimentos  ativa  mecanismos  com  diferentes  graus  de sensibilidade.  Por  exemplo,  o  controle  tanto  da  secreção  de  arginina  vasopressina  ou  AVP  (hormônio  que  aumenta  a reabsorção renal de água) como da indução de sede resulta de alterações de 1 a 2% na tonicidade e de 10% no volume do LEC. Um aumento na tonicidade do LEC também ativa mecanismos neuroendócrinos complementares, tais como secreção de  ocitocina  (OT)  e  peptídio  natriurético  atrial  (ANP),  hormônios  que  aumentam  a  excreção  renal  de  sódio  e  inibem  a ingestão de sódio.

Osmolalidade e tonicidade Definida  pela  quantidade  total  de  soluto  dissolvido  em  um  quilograma  de  água,  a  osmolalidade  dos líquidos  corporais  em  geral  varia  entre  285  e  290  mOsm/kg  de  H2O.  O  sódio  é  o  principal  soluto determinante  da  osmolalidade  do  LEC.  A  magnitude  do  efeito  osmótico  do  sódio  em  relação  a  outros solutos fica evidente na fórmula que define de modo aproximado a osmolalidade plasmática: POsm = 2 × [Na+] + [glicose]/18 + [nitrogênio ureico]/2,8. O confinamento do sódio no LEC, resultante da ação da bomba sódio­potássio ATPase, explica o grau de influência do sódio tanto na osmolalidade como na tonicidade do LEC. Tonicidade é a capacidade que os solutos têm de gerar uma força osmótica que provoca o movimento de  água  de  um  compartimento  para  outro.  Para  que  ocorra  aumento  da  tonicidade  do  LEC (hipertonicidade),  por  exemplo,  é  necessário  que  solutos  permaneçam  confinados  no  espaço  extracelular sem  atravessar  livremente  as  membranas  celulares  e  sem  migrar  para  os  demais  compartimentos.  Tal confinamento provocará o movimento de água do compartimento intracelular para o extracelular (osmose) para  estabelecer  um  equilíbrio  osmótico  entre  LEC  e  LIC.  O  resultado  é  uma  diminuição  do  volume  das células  (desidratação  intracelular).  A  glicose  é  um  osmol  efetivo,  mas,  por  ser  normalmente  metabolizada no  interior  das  células,  não  contribui  significativamente  para  a  tonicidade.  Entretanto,  no  diabetes  melito descontrolado,  a  concentração  elevada  de  glicose  no  plasma  pode  levar  a  aumento  significativo  da osmolalidade e da tonicidade, causando, assim, desidratação intracelular. A ureia também potencialmente contribui  para  a  osmolalidade  do  LEC,  mas,  como  atravessa  livremente  a  membrana  plasmática,  sua influência sobre a tonicidade é também mínima. Os efeitos osmóticos normais de glicose e ureia mostram que  nem  sempre  hiperosmolalidade  é  sinônimo  de  hipertonicidade.  Entretanto,  neste  capítulo  os  dois termos serão usados com o mesmo significado porque estaremos levando em conta os efeitos de solutos, particularmente  sódio,  quando  confinados  no  LEC.  (Ver  também  Capítulo  8,  Difusão,  Permeabilidade  e Osmose, e Capítulo 53, Papel do Rim na Regulação do Volume e da Tonicidade do Líquido Extracelular.) Os sinais eletroquímicos gerados a partir da ativação dos receptores sensoriais sensíveis a alterações no LEC e LIC convergem através de vias específicas para áreas do SNC responsáveis pela integração entre mecanismos neuroendócrinos e respostas comportamentais e fisiológicas (renais, cardiovasculares etc.). Um  importante  exemplo  de  área  integrativa  do  prosencéfalo  é  a  lâmina  terminal,  que  constitui  a  parede  rostral  do terceiro ventrículo. Dois órgãos circunventriculares (OCV) presentes na lâmina terminal, o vasculoso da lâmina terminal (OVLT), mais abaixo, e o subfornicial (OSF), mais acima, ambos tipicamente fora da barreira hematencefálica, fazem dela uma  área  de  função  sensorial  que  monitora  a  composição  do  sangue.  O  núcleo  pré­óptico  mediano  (MnPO),  interposto entre  os  dois  órgãos,  completa  a  lâmina,  conectando­a  a  áreas­chave  do  prosencéfalo.  O  OVLT  e  o  MnPO,  juntamente com  os  núcleos  pré­óptico­periventriculares  imediatamente  rostrais  ao  hipotálamo,  constituem  a  região  tecidual  que margeia  a  parede  anteroventral  do  terceiro  ventrículo  encefálico  (AV3V).  Essa  região  forma  um  importante  nodo  que conecta  a  lâmina  terminal  a  outros  núcleos  importantes  presentes  no  prosencéfalo,  entre  eles  os  núcleos  paraventricular (NPV)  e  supraóptico  (NSO)  hipotalâmicos.  No  romboencéfalo  encontramos  outras  áreas  importantes,  entre  elas  a  área postrema  (AP),  outro  OCV,  além  do  locus  coeruleus  (LC),  e  os  núcleos:  dorsal  da  rafe  (NDR),  parabraquial  lateral (NPBL) e do trato solitário (NTS). Tais áreas ou núcleos, quando ativadas ou inibidas adequadamente, podem determinar respostas  que  envolvem:  (1)  indução  de  sede,  apetite  ao  sódio,  ou  ambos;  (2)  mudanças  na  atividade  autonômica;  (3) ativação do sistema renina­angiotensina­aldosterona; (4) secreção de AVP e OT e de peptídios natriuréticos (Figura 75.1). O recrutamento dessas diversas respostas acoplado à função dos sistemas cardiovascular e renal culmina com ajustes no balanço de água e/ou de sódio. No Quadro 75.1, estão indicadas as principais siglas usadas neste capítulo.

SINAIS AFERENTES E INTEGRAÇÃO CENTRAL Os  mecanismos  envolvidos  no  controle  do  balanço  hidreletrolítico  são  complexos,  sensíveis  e  precisos,  envolvendo respostas  emanadas  do  SNC  que  promovem  ajustes  cardiovasculares,  endócrinos,  renais  e  comportamentais.  As  vias aferentes que ativam esses ajustes são representadas por: (1) osmorreceptores e receptores de sódio na periferia e no SNC, e  (2)  mecanorreceptores  (barorreceptores  e  receptores  de  volume)  no  sistema  cardiovascular.  As  informações  oriundas desses sistemas sensoriais são encaminhadas para áreas específicas do SNC, onde o sistema hipotálamo­neuro­hipofisário constitui uma via final comum.

Figura 75.1 ■ Representação esquemática dos estímulos aferentes, da integração pelo sistema nervoso central e das respostas efetoras envolvidos na regulação do volume e osmolalidade dos líquidos orgânicos.

Quadro 75.1 ■ Principais siglas usadas neste capítulo. ACTH

Hormônio adrenocorticotrófico

ADH

Hormônio antidiurético

ANG I

Angiotensina I

ANG II

Angiotensina II

ANP

Peptídio natriurético atrial

AP

Área postrema

APO

Área pré­óptica medial

ASM

Área septal medial

AVP

Arginina vasopressina (vasopressina ou hormônio antidiurético ou ADH)

AV3V

Região pré­óptica­periventricular anteroventral ao terceiro ventrículo

BD

Banda diagonal de Broca

BNP

Peptídio natriurético cerebral

CA

Comissura anterior

CNP

Peptídio natriurético tipo C

ECA

Enzima conversora da ANG I

ET­1

Endotelina 1

HAL

Hipotálamo anterior lateral

HAM

Hipotálamo anterior medial

LC

Locus coeruleus

LCR

Líquido cefalorraquidiano

LEC

Líquido extracelular

LHA

Área hipotalâmica lateral

LIC

Líquido intracelular

MnPO

Núcleo pré­óptico mediano

NBST

Núcleo do leito da estria terminal

NDR

Núcleo dorsal da rafe

nNOS

Óxido nítrico­sintase neuronal

NO

Óxido nítrico

NPBL

Núcleo parabraquial lateral

NPO

Núcleo pré­óptico

NPR

Receptor do peptídio natriurético

NPV

Núcleo paraventricular

NSO

Núcleo supraóptico

NTS

Núcleo do trato solitário

OCV

Órgão circunventricular

OSF

Órgão subfornicial

OT

Ocitocina

OVLT

Órgão vasculoso da lâmina terminal

QO

Quiasma óptico

RVLM

Região ventrolateral rostral do bulbo

SNC

Sistema nervoso central

SRA

Sistema renina­angiotensina

SRAA

Sistema renina­angiotensina­aldosterona

▸ Osmorreceptores Estudos  clássicos  concluídos  na  primeira  metade  do  século  XX  introduziram  o  conceito  de  osmolalidade  efetiva  (ou aumento  da  osmolalidade  do  LEC  resultante  do  acúmulo  de  solutos  não  permeantes,  tais  como  o  sódio),  associado  à existência  de  um  mecanismo  osmorreceptor.  O  conceito  de  osmolalidade  efetiva,  de  mesmo  significado  prático  que tonicidade,  implica  que  o  osmorreceptor  seja  sensível  à  desidratação  intracelular.  A  desidratação  celular  seria,  assim,  o mecanismo  a  partir  do  qual  o  osmorreceptor  sinalizaria  as  vias  que  se  projetam  do  OSF  e  OVLT  para  o  hipotálamo  que libera  AVP  na  neuro­hipófise.  Mecanismo  semelhante  foi  posteriormente  proposto  por  outros  autores  para  a  ativação  da sede.  Além  do  osmorreceptor,  estudos  iniciais  também  sugeriam  um  sensor  de  sódio  localizado  nos  OCV,  que  poderia estar  envolvido  no  controle  do  apetite  e  da  excreção  de  sódio  em  resposta  às  variações  da  concentração  desse  soluto  no líquido cefalorraquidiano. Estudos eletrofisiológicos sugerem que os osmorreceptores são células especializadas capazes de converter variações no  gradiente  osmótico  entre  LEC  e  LIC  em  variações  de  potenciais  elétricos  transmembrana.  Essa  conversão  é  efetuada por canais iônicos presentes na membrana plasmática e sensíveis ao estiramento da mesma. Esse dado é consistente com a proposta  de  que  a  desidratação  intracelular  causada  por  hipertonicidade,  e  não  a  concentração  de  soluto  no  LEC,  é  o estímulo para ativar o osmorreceptor. A transdução resultante da abertura de canais iônicos seria responsável por produzir os potenciais de ação que trafegam no sentido de ativar neurônios de áreas do SNC envolvidas no controle da secreção de AVP  e  sede.  Neurônios  com  essa  característica  podem  ser  encontrados  no  OVLT  ou  OSF,  mas  também  nos  neurônios magnocelulares do NSO ou NPV dentro da barreira hematencefálica. Além disso, a hiperosmolalidade crônica aumenta o volume  celular  dos  neurônios  magnocelulares  devido  ao  aumento  na  razão  de  transcrição  e  expressão  de  proteínas envolvendo metilação de resíduos de citosina­fosfato­guanina.

Hipotálamo, um integrador neuroendócrino O  sistema  hipotálamo­neuro­hipofisário  exerce  importante  função  na  manutenção  da  homeostase  dos líquidos  corporais  pela  secreção  de  AVP  e  OT  em  resposta  a  estímulos  osmóticos  e  não  osmóticos.  Foi realizada em cabras a primeira demonstração de que a estimulação elétrica ou por microinjeções de salina hipertônica  na  porção  anterior  do  hipotálamo  (drinking  center)  induzia  polidipsia,  sendo,  assim,  uma estrutura fundamental do SNC para a regulação da composição dos líquidos corporais e renais. A importância dessa região anterior do hipotálamo na regulação do volume e osmolalidade do LEC pode ser evidenciada pelos efeitos observados após a sua lesão: ■ Adipsia  e  hipernatremia;  bloqueio  de  ingestão  de  água  e  da  secreção  de  AVP  em  resposta  à  salina hipertônica e à angiotensina II (ANG II) ■ Bloqueio da recuperação da pressão arterial em resposta à salina hipertônica, em ratos submetidos a choque hemorrágico ■ Atenuação da resposta secretora de ANP, induzida por aumento de volume e osmolalidade do LEC ■ Diminuição no número de neurônios imunorreativos associados à atividade c­Fos no MnPO, no NPV e no NSO, em resposta à infusão intravenosa de salina hipertônica ■ Interrupção de atividade neuronal de disparo de liberação de AVP no NSO. Os osmorreceptores não devem ser confundidos com canais sensíveis ao sódio, do tipo Na(x) ou ENaC, por exemplo, presentes em astrócitos ou neurônios tanto de OCV do NPV quanto do NTS, e que recentemente têm sido sugeridos como mediadores do controle da ingestão de água ou sódio. Além  do  SNC,  os  osmorreceptores  podem  estar  presentes  em  terminais  neurais  aferentes  localizados  nas  regiões periféricas  ao  longo  da  parte  superior  do  sistema  digestório  (orofaringe),  região  mesentérica  e  esplâncnica,  veia  porta, fígado  e  vasos  sanguíneos  renais  e  intestinais.  Informações  oriundas  desses  locais  seguem  pelo  nervo  vago  ou  nervos sensoriais espinais/craniais para NTS, NPBL, substância cinzenta periaquedutal e tálamo. Os osmorreceptores periféricos podem  ter  o  importante  papel  de  ativar  respostas  antecipatórias  a  alterações  que  ocorrem  no  sistema  digestório,  o  que explica  o  fenômeno  da  redução  na  secreção  de  AVP  e  sede  antes  mesmo  de  que  a  água  ingerida  seja  absorvida  para  o sangue a partir do lúmen intestinal.

▸ Receptores de volume/pressão

Os  receptores  de  volume  ou  de  baixa  pressão  são  mecanorreceptores  localizados,  principalmente,  nas  paredes  das grandes veias e dos átrios. Sensíveis ao estiramento das paredes dos tecidos causado por aumento no volume plasmático, eles desencadeiam respostas para corrigir o excesso de volume sanguíneo. As veias são bastante distensíveis, tendo grande capacitância,  de  maneira  que  grandes  modificações  do  diâmetro  delas,  causadas  por  elevação  de  volume,  induzem pequenas  modificações  da  pressão  intravenosa.  Talvez  por  essa  razão  os  mecanismos  que  controlam  o  volume  do  LEC sejam  menos  sensíveis  do  que  aqueles  que  o  fazem  em  relação  ao  volume  do  LIC,  conforme  mencionado  na  Introdução deste capítulo. A  ativação  dos  mecanorreceptores  de  volume  aumenta  os  impulsos  neurais  aferentes  dos  vasos,  via  nervo  vago,  ao NTS.  Deste  núcleo,  partem  sinais  para  o  hipotálamo,  que  determina  diminuição  da  atividade  simpática  e  do  sistema reninaangiotensina  (SRA),  e  da  secreção  de  AVP.  Por  outro  lado,  o  hipotálamo  comanda  a  secreção  dos  peptídios natriuréticos  (ANP,  e  encefálico,  BNP).  Esses  peptídios,  uma  vez  na  circulação,  determinam  vasodilatação, extravasamento de líquido para o espaço intersticial, e aumento da excreção renal de sódio (natriurese) e de água (diurese). Esses  efeitos  decorrem  de  uma  ação  direta  de  tais  peptídios  nas  arteríolas  e  túbulos  renais,  ou  de  suas  ações  inibitórias indiretas sobre a atividade simpática e síntese de ANG II, aldosterona e AVP. O resultado é a correção do volume do LEC e da pressão intravascular. Além  dos  receptores  de  volume,  há  também  os  receptores  de  alta  pressão  situados  no  arco  aórtico,  seio  carotídeo  e aparelho justaglomerular. A ativação desses receptores resulta em sinais aferentes ao NTS, de onde são conduzidos para o hipotálamo. Ambos controlam a resistência vascular periférica, modulando as ações que a atividade simpática exerce sobre as arteríolas do sistema circulatório sistêmico e renal. Além disso, também modificam a secreção de AVP. Os  receptores  de  pressão  localizados  na  parede  das  arteríolas  do  aparelho  justaglomerular  são  também  importantes para regular o volume do LEC. Eles são ativados principalmente quando ocorre queda da pressão arterial ou ativação β­ adrenérgica  e  consequente  diminuição  da  pressão  de  perfusão  renal.  Nessas  condições,  acontece  aumento  na  secreção  de renina  e  produção  de  ANG  II.  O  resultado  inclui  vasoconstrição  sistêmica  e  renal,  aumento  na  secreção  de  aldosterona, reabsorção tubular de sódio, excreção renal de potássio e produção renal de prostaglandinas.

Estruturas e circuitos neurais envolvidos Nas últimas décadas, foi realizada uma série de estudos na tentativa de identificar as áreas encefálicas especificamente envolvidas  com  a  regulação  da  osmolalidade  plasmática  e  o  controle  da  ingestão  e  excreção  de  água  e  eletrólitos.  A estimulação  hipotalâmica  com  agonistas  colinérgicos  e  noradrenérgicos  induz  aumento  na  ingestão  de  água  e  alimento, respectivamente.  Em  animais  normo­hidratados,  a  estimulação  colinérgica  e  angiotensinérgica  da  AV3V  e  área  septal determina rápida elevação na ingestão de água, seguida de natriurese. Esses efeitos, tanto na ingestão como na excreção de água  e  de  eletrólitos,  são  bloqueados  por  tratamento  prévio  com  antagonistas  específicos  (atropina  e  fentolamina).  A administração  de  isoproterenol  (agonista  β­adrenérgico)  resulta  em  redução  da  excreção  renal  de  sódio  e  potássio.  Um efeito  inverso  é  obtido  pela  administração  isolada  de  propranolol  (betabloqueador),  que  também  potencializa  a  resposta natriurética  quando  associado  ao  carbacol,  um  agonista  colinérgico.  O  bloqueio  colinérgico  com  atropina  diminui  a resposta à norepinefrina e suprime a resposta natriurética à salina hipertônica. Experimentos com lesões focais de áreas encefálicas permitiram na década de 1960 o estabelecimento de um primeiro circuito  neural  hipotético  que  controla  a  ingestão  e  excreção  de  sódio.  Nesse  circuito,  o  hipotálamo  funcionaria  com  um centro  integrador  análogo  a  uma  balança  equilibrada  por  forças  estimuladoras  ou  inibidoras.  A  “balança”  hipotalâmica estaria dividida em duas áreas: hipotálamo anterior medial (HAM), facilitadora da reposição de sal, e hipotálamo anterior lateral  (HAL),  redutora  da  quantidade  de  sódio  no  organismo.  Estruturas  externas  ao  hipotálamo,  preponderantemente límbicas, controlariam essa balança por meio de projeções diretas e indiretas. Uma estrutura límbica, a amígdala, exerceria o  controle  por  meio  de  projeções  provenientes  de  dois  núcleos  principais:  (complexo)  basolateral,  ativando  o  HAM  e inibindo  o  HAL,  e  corticomedial,  fazendo  o  inverso.  Outras  duas,  área  septal  e  bulbo  olfatório,  reforçariam  as  ações inibitórias, comandando o HAL e o núcleo corticomedial da amígdala. As estruturas que compõem os OCV apresentam conexões diretas com NPV, NSO e, também, com NDR, LC e NTS (Figura  75.2).  Essas  conexões  são  importantes  para  transmitir  informações  envolvidas  no  controle  da  secreção  de hormônios,  tais  como  AVP,  OT  e  ANP,  na  ativação  do  sistema  nervoso  simpático  e  do  SRA  e  nas  modificações comportamentais que visam restaurar o balanço dos líquidos corporais. Interessante acrescentar que parte de tais conexões forma um eixo do prosencéfalo à medula espinal que converge para eferências simpáticas aos rins, conforme deduzidas a partir de infecções virais retrógradas originadas em rins de rato. A inervação motora renal de origem simpática aumenta a secreção de renina e reduz a excreção de sódio na urina.

CONTROLE PEPTIDÉRGICO DO BALANÇO HIDRELETROLÍTICO

▸ Sistema hipotálamo­neuro­hipofisário O  sistema  hipotálamo­neuro­hipofisário  está  localizado  na  parte  medial  do  hipotálamo  anterior,  compreendendo  dois núcleos  bilaterais,  NPV,  próximo  e  dorsolateral  ao  terceiro  ventrículo,  e  NSO,  distal  ventrolateralmente  ao  terceiro ventrículo.  Ambos  possuem  neurônios  magnocelulares  cujos  pericários  são  responsáveis  pela  síntese  e  liberação  dos hormônios AVP e OT. Dois  tratos  axonais  partem  desses  dois  núcleos  transportando  AVP  e  OT  para  a  hipófise.  Um  mais  denso,  o  trato hipotálamo­hipofisário, termina na neuro­hipófise. Os hormônios liberados na neuro­hipófise são, em parte, transportados pelos vasos portais curtos ao lobo anterior da hipófise e de lá, partindo de ambos os lobos hipofisários, conduzidos pelas veias hipofisárias para a circulação sistêmica. Os axônios dos neurônios parvocelulares do PVN terminam na zona externa da  eminência  mediana,  onde  a  AVP  e  OT  são  secretadas  para  a  circulação  porta  hipotálamo­hipofisária  e  transportadas pelos vasos portais longos ao lobo anterior da glândula hipofisária, onde ativam a liberação de ACTH. Além disso, a OT também poderá atuar estimulando a liberação de prolactina pelos lactotrofos.

Estrutura química da AVP e OT Os peptídios OT e AVP são sintetizados sob a forma de pré­pró­hormônio pelos neurônios magnocelulares do NPV e NSO.  A  maioria  dos  neurônios  magnocelulares  coexpressam  RNA  mensageiros  para  ambos  os  peptídios,  sendo  essas expressões encontradas em praticamente todos os neurônios magnocelulares do NSO. A AVP é o hormônio antidiurético da maioria dos mamíferos, embora a do porco seja a lisina­AVP. A AVP e a OT são constituídas  por  9  aminoácidos  com  peso  molecular  de  1.084  e  1.007  kDa,  respectivamente  (Figura  75.3),  diferindo apenas  nos  aminoácidos  das  posições  3  (fenilalanina  para  a  AVP  e  isoleucina  para  a  OT)  e  8  (arginina  para  a  AVP  e leucina para a OT). A parte cíclica da molécula, com uma ligação dissulfeto (–S–S–), é fundamental para que elas exerçam seus efeitos biológicos, e o aminoácido da posição 8 determina a especificidade desses efeitos.

Figura 75.2 ■ Corte  sagital  do  cérebro  de  rato  mostrando  localização  dos  órgãos  circunventriculares  (área sombreada)  (A)  e detalhe  da  parede  anterior  do  terceiro  ventrículo  cerebral,  indicando  os  órgãos  circunventriculares  pertencentes  à  lâmina terminal (área pontilhada) (B). OVLT,  órgão  vasculoso  da  lâmina  terminal; OSF, órgão subfornicial; MnPOv,  núcleo  pré­óptico mediano  ventral;  MnPOd,  núcleo  pré­óptico  mediano  dorsal;  BD,  banda  diagonal  de  Broca;  ASM,  área  septal  medial;  CA, comissura anterior; QO, quiasma óptico. (Adaptada de McKinley et al., 1999.)

Figura 75.3 ■ Representação esquemática da sequência de aminoácidos da vasopressina e ocitocina.

Receptores de AVP As ações da AVP são mediadas por receptores de membrana acoplados a uma proteína G, que, por sua vez, estimula a adenilatociclase a produzir um segundo mensageiro, o AMP cíclico. Esses receptores são caracterizados pela presença de sete hélices transmembrana conectadas por três alças extracelulares e três alças intracelulares. Três diferentes subtipos de receptores  de  AVP  foram  clonados,  V1,  V2  e  V3  (previamente  denominado  V1b).  A  expressão  de  receptor  V1  tem  sido observada em músculo liso, fígado e encéfalo, de V2 nos rins, e de V3 na hipófise anterior e encéfalo. Os receptores V1 estão envolvidos no controle da pressão sanguínea e outras funções conhecidas da AVP. A presença de receptores V1 foi detectada  em  estruturas  do  sistema  límbico  (área  septal,  amígdala,  NBST  e  núcleo  accumbens),  nas  regiões supraquiasmática e dorsal tuberal do hipotálamo, e no NTS. Mais recentemente, foi detectada a presença de receptores V1 também nos rins. Receptores V3 foram detectados não apenas em corticotrofos hipofisários, mas também no hipotálamo, na  amígdala,  no  cerebelo  e  em  áreas  relacionadas  com  os  OCV  (habênula  medial,  OSF,  AV3V,  eminência  mediana  e núcleos ao redor do quarto ventrículo), assim como na zona externa da eminência mediana. Os dados sugerem que tanto os receptores V1 como V3 podem mediar diferentes funções da AVP no encéfalo. A sinalização da AVP mediada pelo receptor V1 está associada à ativação do influxo celular de cálcio, e fosfolipases A2,  C  e  D.  A  expressão  do  receptor  V1  na  célula  muscular  lisa  do  vaso  é  alta  e  sua  ativação  causa  vasoconstrição  pelo aumento de cálcio citosólico, mediado pela cascata do bifosfato de fosfatidilinositol. Nas plaquetas, a ativação do receptor V1 induz, também, aumento do cálcio intracelular, facilitando o processo trombogênico. Os efeitos antidiuréticos da AVP são  mediados  pelo  receptor  V2  presente  na  membrana  basolateral  das  células  principais  do  ducto  coletor,  cuja  ativação resulta  na  produção  de  cAMP  via  proteína  Gs.  A  concentração  aumentada  de  cAMP,  por  sua  vez,  promove  a  fusão  das vesículas  contendo  aquaporina  2  na  membrana  apical  das  células  principais  do  ducto  coletor,  elevando  a  reabsorção  de água.  A  AVP  estimula  a  síntese  do  RNA  mensageiro  da  aquaporina  2  e  o  transporte  desta  proteína  para  a  superfície  da célula (esse assunto é apresentado também no Capítulo 53).

Receptores de OT O receptor de OT apresenta conservação estrutural interespécies e diversidade de localização tecidual, estando presente em  útero,  glândula  mamária,  hipófise  anterior,  cérebro,  rins,  timo,  ovários,  testículos,  coração  e  vasos  sanguíneos.  Sua densidade  pode  variar  em  algumas  condições  fisiológicas,  por  exemplo,  aumentando  no  útero  ao  longo  do  período gestacional.  No  encéfalo,  diferenças  marcantes  na  distribuição  anatômica  dos  receptores  de  OT  em  relação  aos  de  AVP foram  observadas  no  tubérculo  olfatório,  no  núcleo  hipotalâmico  ventromedial,  no  núcleo  amigdaloide  central  e  no hipocampo ventral. O receptor de OT é um membro da superfamília de receptores acoplados à proteína G. A ativação do receptor de OT, localizado na musculatura lisa do miométrio ou das células mioepiteliais da glândula mamária, induz a contração muscular desencadeada  pelo  aumento  do  cálcio  intracelular,  pela  ativação  da  fosfolipase  C  mediada  pela  proteína  Gαq/11.  A  OT apresenta outra via de sinalização que resulta em vasodilatação, natriurese e liberação de ANP, mediada pelo receptor de OT presente nas células endoteliais dos vasos, nas células epiteliais renais e nos cardiomiócitos, respectivamente. Essa via envolve  a  ativação  da  óxido  nítricosintase  induzida  pela  proteinoquinase  C  e  pelo  aumento  de  cálcio  intracelular.  Na vasculatura, o óxido nítrico assim produzido induz vasodilatação pela ativação da guanililciclase. No rim, onde o receptor de  OT  está  localizado  nas  células  da  mácula  densa  e  do  túbulo  proximal,  a  ativação  da  guanililciclase  leva  a  fechamento

dos canais de sódio e possivelmente dos canais de potássio, mediado pelo cGMP. Nos cardiomiócitos, a liberação de ANP também parece ser mediada pelo cGMP.

Ativação da secreção de AVP e OT No hipotálamo, aminas biogênicas e peptídios atuando como neurotransmissores exercem efeitos sobre a secreção de AVP  e  OT.  As  catecolaminas  (dopamina  e  norepinefrina)  e  a  acetilcolina  estimulam  preponderantemente  a  secreção  de AVP.  Os  aminoácidos  excitatórios  (glutamato  e  aspartato)  estão  envolvidos  na  resposta  induzida  pela  ativação  osmótica, elevando a produção do RNA mensageiro e a secreção de AVP. Os peptídios opioides, por sua vez, determinam inibição da secreção desses neuropeptídios, sendo as interleucinas e a ANG II agentes estimuladores. A  visualização  imuno­histoquímica  da  proteína  c­Fos,  um  marcador  de  excitação  neuronal,  tem  sido  uma  ferramenta amplamente usada para investigar a ativação hipotalâmica resultante da estimulação osmótica ou de alterações de volume circulante.  Dessa  maneira,  foi  verificado  que  a  privação  de  água  aumenta  a  expressão  de  proteína  c­Fos  no  NPV  e  no NSO.  A  expressão  da  proteína  c­Fos  foi  também  detectada  em  neurônios  magnocelulares  desses  núcleos  após  a  injeção sistêmica  ou  intracerebroventricular  de  salina  hipertônica,  ANG  II  ou  agonista  colinérgico.  A  ativação  dos  núcleos hipotalâmicos  pode  ser  mantida  por  estímulo  osmótico  crônico,  induzido  pela  ingestão  de  salina  hipertônica,  ou  por privação  de  água,  sendo  revertida  pela  ingestão  de  água.  Essa  ativação  é  seguida  pela  elevação  da  síntese  e  liberação  de AVP e, possivelmente, de OT. Privação hídrica aumenta a imunorreatividade à proteína c­Fos também no MnPO, OVLT e OSF. Lesões que envolvem a AV3V suprimem a ingestão de água resultante da privação hídrica, assim como a expressão de c­Fos no NSO e, em menor intensidade, no NPV. Esses resultados indicam que as respostas dos neurônios do NSO a estímulos  osmóticos  podem  depender  de  sinais  provenientes  da  região  AV3V,  enquanto  o  NPV  parece  ser  menos dependente dessa área. Como esperado, a estimulação osmótica crônica (por hipernatremia) aumenta a expressão de mRNA para AVP, OT e neurofisinas no NSO e NPV, enquanto a hiposmolalidade prolongada reduz a expressão de mRNA da AVP no hipotálamo em cerca de 5 a 10% dos níveis­controle. Além disso, a estimulação hiperosmótica aguda ou crônica aumenta a expressão de  proteína  de  ligação  ao  elemento  responsivo  a cAMP  3  like  1 (CREB3  L1),  fator  de  transcrição  sensível  a  cAMP  e glicocorticoides, capaz de regular a expressão do gene da AVP no hipotálamo O tronco encefálico também está envolvido no controle do balanço hidreletrolítico. Projeções ascendentes originárias na região ventrolateral rostral do bulbo (RVLM) estão associadas a esse controle. Estimulação elétrica dessa região induz expressão de proteína c­Fos e mRNA para AVP no NSO. Além disso, a infusão intravenosa de salina hipertônica aumenta a atividade de c­Fos em neurônios da RVLM.

Participação de astrócitos, endocanabinoides e canais catiônicos de potencial receptor transiente na mediação das respostas integrativas do balanço hidromineral Neurônios magnocelulares interagem com a glia presente no NPV e NSO. Astrócitos do NSO, por exemplo, liberam taurina  tonicamente  em  resposta  a  hipotonicidade  e/ou  hiponatremia.  A  taurina  liberada  atua  em  receptores  glicinérgicos presentes na membrana plasmática dos neurônios magnocelulares reduzindo a atividade neurossecretora dos mesmos. Os astrócitos, por sua vez, expressam uma gama de receptores, incluindo receptores CB1 de endocanabinoides (ECB). Recentemente, foi proposto que os astrócitos restringem as ações retrógradas dos ECB sobre as sinapses de glutamato em células neuroendócrinas magnocelulares. Além disso, em decorrência da estimulação osmótica, há diminuição da cobertura glial  sobre  os  neurônios  magnocelulares,  e,  assim,  os  ECB  passam  a  modular  também  as  sinapses  de  GABA.  Esses achados destacam as células gliais como elementos dinâmicos no controle da função endócrina, importantes para controlar a excitabilidade dos neurônios magnocelulares, por meio tanto de alterações morfológicas entre as sinapses dos neurônios do  NPV  e  NSO  quanto  da  produção  e  liberação  de  gliotransmissores,  entre  eles  citocinas  e  glutamato,  ou  de  outros mediadores, incluindo os ECB. Os OCV estão estrategicamente localizados entre o líquido cefalorraquidiano e o parênquima encefálico, constituindo o primeiro  local  de  ação  no  SNC  a  partir  do  sangue,  sensível  às  alterações  na  osmolaridade  bem  como  a  concentração  de sódio  extracelular.  Nos  OCV  encontramos  CB1  e  as  enzimas  envolvidas  na  síntese  dos  ECB.  Os  CB1  também  são expressos  no  bulbo  olfatório,  zona  cerebral  importante  que  participa  da  via  sensorial  do  controle  do  balanço  de  sódio  e água. Assim, foram demonstradas, no SNC, várias ações específicas dos componentes do sistema dos ECB na integração de  respostas  comportamentais  e  neuroendócrinas  que  participam  desse  controle.  No  NPV  e  NSO,  os  CB1  parecem  ser expressos  predominantemente  nos  terminais  axonais  dos  neurônios.  Considerando  a  localização  pré­sináptica  desses receptores, vários estudos têm proposto que os ECB agem como moduladores retrógrados, sendo liberados da célula pós­

sináptica para o espaço extracelular. Além de atuar diretamente na excitabilidade neuronal como mensageiros retrógrados, os  ECB  também  medeiam  as  ações  de  peptídios  liberados  dendriticamente.  Neste  sentido,  verificou­se  que  a  liberação somatodendrítica  de  OT  ativa  autorreceptores  em  neurônios  ocitocinérgicos  e  desencadeia  a  produção  do  ECB  para modular a neurotransmissão GABAérgica e glutamatérgica. Estudos  recentes  também  mostram  que  os  TRP,  particularmente  aqueles  do  tipo  TRPV1  (“V”  de  vaniloide),  são expressos  em  neurônios  do  OVLT  e  NSO,  onde  interagem  com  proteínas  (F­actina  e  microtúbulos)  do  citoesqueleto.  A importância  dos  TRPV1  para  a  resposta  à  hiperosmolalidade  é  reforçada  por  animais  nocaute  para  o  TRPV1  que  não respondem  ao  aumento  da  osmolalidade  do  LEC.  Neurônios  vasopressinérgicos  também  expressam  TRPV1,  essenciais para  osmorrecepção  nestas  células  e  para  a  interação  das  mesmas  com  os  ECB.  Por  exemplo,  animais  alimentados  com uma  dieta  rica  em  sódio  durante  3  semanas  exibem  uma  sensibilidade  aos  efeitos  inibitórios  dos  ECB,  efeitos  estes bloqueados quando os receptores CB1, bem como os receptores TRPV1, são bloqueados farmacologicamente.

Participação dos neuromoduladores gasosos na mediação das respostas integrativas O  conceito  de  neurotransmissão  foi  recentemente  revisado  por  evidências  que  sugerem  que  os  neuromoduladores gasosos,  tais  como  óxido  nítrico  (NO),  monóxido  de  carbono  (CO)  e  sulfeto  de  hidrogênio  (H2S),  modificam  a excitabilidade neuronal. NO, CO e H2S são moléculas altamente difusíveis, permeáveis à membrana, com meia­vida curta, sendo produzidos sob demanda, presumivelmente por neurônios. Essas características fazem parte das ações autócrinas e parácrinas  atribuídas  a  esses  mediadores.  Além  de  produzir  efeitos  vasodilatadores  nas  células  do  músculo  liso,  essas moléculas gasosas participam ativamente no processo de neurotransmissão no SNC. Ao nível hipotalâmico em particular, tem sido sugerido que esses compostos modulam a produção de AVP e OT ativada por estímulo osmótico. O NO, por exemplo, é sintetizado a partir de L­arginina por uma NO­sintase neuronal (nNOS). A nNOS está presente em  neurônios  vasopressinérgicos  e  ocitocinérgicos  do  NPV  e  do  NSO,  e  seu  conteúdo  nessas  células  aumenta  após estimulação  osmótica  ou  desidratação.  Essa  hipótese  é  reforçada  pelo  fato  de  a  nNOS  ter  sido  detectada  por  imuno­ histoquímica em outras estruturas neurais envolvidas na regulação da secreção de AVP, como o OSF, o OVLT e o MnPO. No  entanto,  a  função  do  NO  na  liberação  de  OT  e  AVP  não  está  totalmente  definida.  O  NO  pode  atuar  centralmente, estimulando  a  liberação  de  AVP,  bem  como  pode  servir  como  neuromodulador,  controlando  a  liberação  desse  peptídio. Embora a guanilatociclase (GC) seja o mediador da maioria das ações de NO, sua participação nas vias de sinalização que controlam o equilíbrio hidromineral não foi totalmente elucidada.

Ações da AVP e OT A ação antidiurética da AVP é o principal efeito fisiológico desse hormônio, determinando aumento da permeabilidade das  células  principais  do  ducto  coletor  à  água.  Como  já  comentado,  AVP  circulante  ativa  receptores  V2  localizados  na membrana  tubular  basolateral,  resultando  em  elevação  da  síntese  de  cAMP  e  fosforilação  da  região  C­terminal  da aquaporina  2  (canal  de  água)  nas  células  tubulares  principais  do  néfron  distal  (túbulo  distal  e  coletor).  O  número  e  a distribuição  de  canais  de  aquaporina  2  na  membrana  apical  dessas  células  são  regulados  por  receptores  V2:  ratos desidratados e tratados com antagonista de receptor V2 apresentam diminuição da osmolalidade urinária e da expressão de aquaporina 2 no ducto coletor da região medular interna dos rins. A AVP estimula a síntese de mRNA para aquaporina 2, bem  como  a  inserção  dessa  proteína  na  membrana  apical  de  células  dos  túbulos  coletores  renais  por  intermédio  de  uma rápida exocitose da membrana plasmática. A presença dessa aquaporina na membrana apical aumenta sua permeabilidade à água, permitindo movimento de água livre de soluto a partir do lúmen do ducto coletor para dentro da célula tubular e, por conseguinte,  para  a  membrana  basolateral.  O  efluxo  hídrico  para  o  interstício  é,  então,  facilitado  pela  expressão constitutiva  de  aquaporinas  3  e  4  (canais  de  água  não  sensíveis  à  AVP)  na  membrana  basolateral.  Vários  fatores  podem diminuir  a  ação  antidiurética  da  AVP:  ANP,  cortisol,  prostaglandina  E,  redução  do  potássio  ou  aumento  do  cálcio plasmático, lítio e certos antibióticos (p. ex., tetraciclinas). Está  bem  estabelecido  que  a  OT  aumenta  a  excreção  renal  de  sódio  e  potássio  em  várias  espécies  animais independentemente  da  AVP.  A  OT  e  a  AVP  são  secretadas  simultaneamente  em  resposta  à  hiperosmolalidade  e  à hipovolemia. A OT é um hormônio natriurético mais potente que a AVP. Esses efeitos podem ser explicados por uma ação direta de ambos os peptídios sobre receptores específicos comprovadamente presentes nas células tubulares renais. Essas diferentes  potências  podem  ser  atribuídas  à  relativa  afinidade  da  OT  ao  seu  receptor  individualmente,  ou  à  sua  baixa afinidade  para  os  receptores  da  AVP  (tanto  para  V2  como  para  V1).  A  administração  central  de  OT  também  diminui  a ingestão  de  sódio.  A  destruição  de  neurônios  centrais  que  têm  receptores  para  OT,  assim  como  injeções intracerebroventriculares  de  antagonista  da  OT,  também  aumentam  a  ingestão  de  sódio.  O  papel  inibitório  da  OT  no

controle  do  apetite  ao  sódio  foi  confirmado  por  estudos  em  camundongos  nocaute  para  OT  (camundongos  OT  –/–), mostrando que eles apresentam um apetite elevado para sal em relação aos normais (camundongos OT +/+).

Deficiência na secreção de AVP ou de suas ações renais resulta em diabetes insípido Esta condição, caracterizada pela produção excessiva de urina hiposmolar, contrasta com o quadro de diabetes melito. Nesta última, o fluxo urinário também é aumentado devido à diurese osmótica decorrente da  filtração  de  quantidades  de  glicose  que  excedem  a  capacidade  máxima  de  reabsorção  tubular.  As alterações  centrais  de  síntese  ou  secreção  de  AVP  que  resultam  na  deficiência  desse  hormônio caracterizam o diabetes insípido central. Este quadro pode ser provocado por traumatismos, infecções ou tumores  que  atingem  a  região  hipotalâmica,  podendo  também  ser  causado  por  alterações  genéticas  com mutações no gene da AVP­neurofisina II. As  alterações  funcionais  do  receptor  V2  ou  da  aquaporina  2  decorrem  de  uma  insensibilidade  renal  à AVP,  quadro  clínico  chamado  de  diabetes  insípido  nefrogênico.  Essa  doença  pode  ser  provocada  por mutações  no  gene  do  receptor  V2  ou  da  aquaporina  2,  constituindo  a  forma  familiar  de  diabetes  insípido nefrogênico.  Ainda,  esse  diabetes  pode  ser  secundário  ao  uso  de  substâncias,  como  lítio,  e  à hipopotassemia (redução de potássio sérico). As manifestações clínicas, tanto do diabetes insípido nefrogênico como central, incluem a presença de polidipsia (sede aumentada) e poliúria (diurese elevada) com hiposmolalidade urinária. A diurese diária em um  indivíduo  adulto  normal  é  de  aproximadamente  1,5  l  e,  nos  pacientes  com  diabetes  insípido,  pode ultrapassar  10  l.  Nestes  indivíduos,  o  aumento  da  sede  é  um  mecanismo  de  compensação  para  a manutenção da osmolalidade plasmática. Quando o paciente não tem acesso livre à adequada ingestão de água, ocorre desidratação e hipernatremia. No  indivíduo  com  diabetes  insípido  central,  as  concentrações  plasmáticas  de  AVP  não  aumentam adequadamente  a  estímulos  osmóticos,  durante  teste  de  restrição  hídrica  ou  de  infusão  de  salina hipertônica  (NaCl  5%).  Porém,  quando  tratado  com  desmopressina  (análogo  específico  da  AVP  que  atua no  receptor  V2),  esse  paciente  mostra  pronta  resposta  com  normalização  da  diurese.  No  indivíduo com  diabetes  insípido  nefrogênico,  ocorre  resposta  exagerada  às  concentrações  plasmáticas  de  AVP durante  o  estímulo  osmótico;  porém,  devido  à  perda  de  função  do  receptor  V2  ou  da  aquaporina  2,  a administração  de  desmopressina  não  corrige  o  quadro  de  poliúria.  Este  assunto  é  comentado  também no Capítulo 53.

Conexões adrenérgicas do tronco encefálico ao NPV e ao NSO A  divisão  magnocelular  posterior  do  NPV  e  do  NSO  é  densamente  inervada  por  um  grupo  de  neurônios noradrenérgicos  do  grupo  A1  presente  na  RVLM.  O  NPV  recebe  densa  inervação  noradrenérgica  a  partir  de:  (1)  corpos celulares  A1  da  RVLM,  (2)  corpos  celulares  A2  do  NTS,  e  (3)  corpos  celulares  A6  do  LC.  Os  neurônios  do  grupo  A1 enviam projeções neurais para a maioria dos neurônios parvocelulares do NPV, principalmente para suas regiões dorsal e medial,  assim  como  para  os  neurônios  magnocelulares  do  NPV  e  do  NSO,  produtores  de  AVP.  Os  neurônios  do  LC projetam­se  principalmente  para  a  porção  medial  da  região  parvocelular  do  NPV.  Não  foram  descritas  projeções  dos neurônios das regiões A2 e A6 para os neurônios magnocelulares do NPV e do NSO. Neurônios noradrenérgicos no LC participam da ativação barorreflexa da banda diagonal de Broca (BD), constituindo assim um componente da via barorreceptora inibitória da liberação de AVP e, possivelmente, estimuladora da liberação de OT.

Controle da liberação de AVP por estímulo osmótico Neurônios  osmorreceptores  localizados  no  OVLT  apresentam  projeções  diretas  para  neurônios  neurossecretores magnocelulares  e  parvocelulares  do  NPV  e  do  NSO,  podendo,  assim,  funcionar  como  osmorreceptores.  Adicionalmente, outras  áreas  encefálicas  (como  o  OSF,  a  AP  e  o  NTS)  estão  também  envolvidas  na  mediação  das  respostas  ao  estímulo osmótico.  Várias  estruturas  situadas  próximo  ou  em  contato  direto  com  o  terceiro  ventrículo  (MnPO,  OSF,  área  septal medial, HAL, NSO, NPV, habênula medial e estria medular) formam um circuito neuronal relacionado com a regulação da ingestão  e  excreção  de  água  e  de  sódio.  Neurônios  no  NPV,  MnPO,  núcleo  pré­óptico  (NPO),  núcleo  hipotalâmico

periventricular,  eminência  mediana  e  OVLT  também  contêm  ANP,  como  determinado  por  reações  imuno­histoquímicas; tais evidências sugerem que os neurônios ANPérgicos podem funcionar como um dos moduladores envolvidos no controle da ingestão de água e de sal. Foi também demonstrado que o OSF e o OVLT projetam fibras ANP imunorreativas para o NPV e para o NSO. Embora a regulação osmótica mais importante para a liberação de AVP seja integrada no SNC envolvendo as regiões anteriormente listadas, foram descritos osmorreceptores localizados no fígado, na boca e no estômago, que podem detectar efeitos  imediatos  da  ingestão  de  alimentos  sólidos  e  líquidos.  De  fato,  a  infusão  intragástrica  de  salina  hipertônica  que induz aumento da osmolalidade do sangue da veia porta (sem interferir na osmolalidade do plasma sistêmico) é capaz de elevar a imunorreatividade a c­Fos em AP, NTS, NPBL, NSO e NPV. Outro importante fator indutor da liberação de AVP é oriundo dos receptores da parede gástrica. A distensão gástrica determina  diminuição  da  atividade  elétrica  de  neurônios  do  NSO  e  do  NPV,  que  é  completamente  abolida  pela  secção bilateral  dos  nervos  vagos.  Aferências  semelhantes  ativam  os  neurônios  secretores  de  OT.  Esses  dados  indicam  que  os mecanorreceptores gástricos inibem, seletivamente, a atividade dos neurônios vasopressinérgicos do NSO e do NPV; esse fato sugere que essas informações aferentes de origem gástrica são importantes para a rápida inibição da liberação de AVP após a ingestão hídrica. A  secreção  de  AVP  é  também  influenciada  por  uma  série  de  outros  fatores:  dor,  estresse  emocional,  temperatura elevada, náuseas, vômito e processo inflamatório. Nesse caso, a liberação de IL­6 e várias citocinas ativam a liberação de AVP. Bebidas alcoólicas inibem a liberação de AVP e elevam a diurese. Além disso, pessoas mais idosas secretam mais AVP, provavelmente pela diminuição da sensibilidade dos túbulos renais à ação da AVP.

Controle da liberação de AVP por alterações do volume sanguíneo O controle da secreção de AVP por alterações de volume é mediado por reflexos envolvendo os receptores de volume ou pressão do sistema cardiovascular. A ativação desses mecanorreceptores envia impulsos aferentes, por meio dos nervos vago  e  glossofaríngeo,  ao  NTS.  Do  NTS,  um  caminho  polissináptico  via  LC,  NPBL,  NBST  e  BD,  conecta­se  com neurônios  magnocelulares  do  NSO  e  do  NPV,  levando  à  inibição  da  liberação  de  AVP.  Os  neurônios  do  NSO  e  do  NPV também  recebem  projeções  do  OVLT,  NDR,  arqueado,  bulbo  olfatório  e  núcleo  septal  lateral.  Por  outro  lado,  a estimulação do vago induz expressão de c­Fos em neurônios noradrenérgicos A1 da RVLM e excita células produtoras de AVP. Receptores de baixa pressão no átrio inibem tonicamente a liberação de AVP, por intermédio de uma via que envolve o NTS. A liberação de AVP induzida pela hipovolemia ocorre por uma redução na atividade dessa via inibitória. A queda da pressão arterial conduz à ativação dos neurônios da região A1 que se projetam para os neurônios vasopressinérgicos do NSO. Dentro  do  NSO  e  do  NPV,  foi  identificada  uma  série  de  neurotransmissores:  acetilcolina,  dopamina,  GABA, norepinefrina, glutamato, somatostatina, substância P, serotonina, ANG II e ANP. Isso indica que o controle da secreção de  AVP  e  OT  é  muito  mais  complexo  do  que  se  supunha  inicialmente,  envolvendo  a  interação  moduladora  de  vários neurotransmissores junto aos neurônios do NSO e do NPV. As alterações no volume sanguíneo e/ou na pressão conduzem a mudanças apropriadas na excreção renal de água e de eletrólitos,  com  respostas  adaptativas  endócrinas  e  neurais.  A  hipovolemia  induz  aumento  da  liberação  de  AVP  dos neurônios  magnocelulares,  que  eleva  a  reabsorção  de  água  no  néfron  distal  pela  inserção  de  aquaporina  2  na  membrana luminal das células tubulares principais. Em algumas espécies animais, o limiar para a estimulação da liberação de AVP na hipovolemia é cerca de 10% de redução do volume sanguíneo. Em humanos, a diminuição de 6% no volume sanguíneo (ou  de  10%  no  plasmático),  provocada  por  injeção  do  diurético  furosemida,  é  suficiente  para  aumentar  a  concentração plasmática de AVP. Por outro lado, a expansão isotônica de volume sanguíneo resulta no decréscimo da concentração de AVP no plasma (Figura 75.4). Embora  os  neurônios  vasopressinérgicos  e  ocitocinérgicos  sejam  mais  sensíveis  às  variações  de  osmolalidade plasmática,  o  estímulo  hipotensor  eleva  muito  mais  a  concentração  plasmática  de  AVP  do  que  o  osmótico.  Talvez,  essa diferença  de  resposta  se  deva  à  maior  sensibilidade  dos  túbulos  coletores  à  ação  da  vasopressina  e  não  ao  sistema vascular. Outro dado importante é que existe uma interação do estímulo osmótico com o hipotensor. Assim, as variações do  volume  circulante  modificam  o  limiar  osmótico  para  a  liberação  do  AVP:  o  aumento  do  volume  circulante  eleva  o limiar osmótico para a liberação de AVP, enquanto a hipotensão o diminui (Figura 75.5).

Síndrome de secreção inapropriada de hormônio antidiurético (SIADH)

A SIADH é um quadro oposto ao de diabetes insípido, havendo secreção de AVP mesmo na presença de osmolalidade plasmática baixa. Os portadores dessa síndrome apresentam maior reabsorção renal de água,  diminuição  da  osmolalidade  e  sódio  sanguíneos,  hiponatremia  e  inchaço  celular.  O  resultado  é cefaleia,  náuseas,  vômito,  estupor,  podendo  evoluir  para  coma  e  morte.  Essa  síndrome  é  causada  por tumores  broncogênicos,  linfoma,  pneumonia,  tuberculose,  doenças  do  sistema  nervoso  central  (como meningite  e  tumor  cerebral)  e  uso  de  alguns  fármacos  (como  carbamazepina,  clorpropamida  e fenotiazídicos). O  tratamento  da  SIADH  inclui  restrição  hídrica  e  uso  de  substâncias  que  bloqueiem  a  ação  da  AVP, como a demeclociclina e o antagonista específico do receptor V2.

Figura 75.4 ■ Representação  esquemática  das  respostas  adaptativas  ao  aumento  da  osmolalidade  plasmática  e  redução  do volume circulante. SNC,  sistema  nervoso  central; AVP,  arginina  vasopressina;  ANP,  peptídio  natriurético  atrial;  seta  contínua, estimulação; seta tracejada, inibição.

Figura  75.5  ■   A.  Efeito  comparativo  da  diminuição  da  pressão  arterial  e  do  aumento  da  osmolalidade  plasmática  sobre  a secreção  de  vasopressina.  •,  pressão  arterial;  ∘,  volume  sanguíneo;  Δ,  osmolalidade  plasmática. B. Efeitos  das  alterações  do volume sanguíneo ou da pressão arterial sobre a relação da osmolalidade e vasopressina plasmáticas. N, normal. (Adaptada de Robertson e Berl, 1986.)

▸ O sistema renina­angiotensina (SRA) Sistema renina­angiotensina periférico A  molécula  precursora  do  SRA  é  o  angiotensinogênio,  originado  no  fígado  e  secretado  na  circulação  sistêmica.  O angiotensinogênio  é  clivado  pela  renina,  enzima  proteolítica  produzida  pelas  células  da  parede  da  arteríola  aferente  do glomérulo  renal  (células  justaglomerulares),  dando  origem  ao  decapeptídio  angiotensina  I  (ANG  I),  essencialmente inativo.  As  células  da  musculatura  lisa  das  arteríolas  aferentes  são  as  que  sintetizam,  estocam  e  liberam  renina.  Essas células produtoras de renina são anatômica e fisiologicamente associadas às células da parede do túbulo contornado distal (mácula densa), sendo esse conjunto denominado aparelho justaglomerular (para mais informações, ver Capítulo 49, Visão Morfofuncional  do  Rim).  A  ANG  I,  na  circulação  sistêmica,  é  convertida  no  octapeptídio  ANG  II  pela  ação  da  enzima conversora  (ECA),  produzida  principalmente  nos  pulmões,  mas  também  nos  rins  e  no  sistema  vascular  sistêmico.  É recomendável  a  leitura  das  descobertas  feitas  ultimamente,  referentes  ao  sistema  renina­angiotensina  (conceito contemporâneo), que admite a existência do heptapeptídio angiotensina­(1­7), descrito no Capítulo 55, Rim e Hormônios.

Mecanismos de controle da secreção de renina Os  principais  estímulos  que  ativam  a  secreção  de  renina  pelo  aparelho  justaglomerular  são:  (1)  redução  da  perfusão sanguínea  renal,  (2)  estimulação  da  inervação  renal  β1­adrenérgica  simpática,  (3)  diminuição  do  conteúdo  de  sódio  que alcança as células da mácula densa. A ANG II, o ANP e a AVP são inibidores da síntese e liberação de renina. A  atividade  dos  nervos  renais  (responsável  pelo  controle  reflexo  da  secreção  de  renina)  é  inversamente  associada  às alterações de volume monitoradas pelos mecanorreceptores atriais. A diminuição da pressão de perfusão sanguínea renal pode ser decorrente de hemorragia, hipotensão ou decréscimo do volume do LEC, normalmente observado após depleção de  sódio.  Esses  estímulos  determinam  a  ativação  do  SRA  e  da  secreção  de  aldosterona,  promovendo  aumento  da reabsorção tubular de sódio, expansão do volume e recuperação da pressão arterial.

Mecanismos celulares envolvidos na síntese de renina A  secreção  e  síntese  de  renina  pelas  células  do  aparelho  justaglomerular  são  ativadas  pelo  cAMP  e  diminuídas  pela elevação do cálcio no citosol. A adenosina e o ATP são liberados pelas células da mácula densa em resposta à sobrecarga salina no túbulo distal e estiramento das células justaglomerulares, e aumento da perfusão renal e de cálcio citosólico. Por outro lado, a norepinefrina (liberada nas terminações simpáticas renais) e as prostaglandinas (produzidas pelas células da mácula densa em resposta à redução tubular do sódio) aumentam o cAMP, que estimula a produção do mRNA da renina, atuando nos níveis transcricional e pós­transcricional. Fatores  locais  (como  prostaglandinas,  endotelinas  e  NO)  produzidos  nas  imediações  das  células  justaglomerulares exercem  efeitos  importantes  sobre  a  secreção  de  renina  e  a  expressão  do  seu  gene.  As  prostaglandinas  estimulam  a produção  de  renina  e  sua  expressão  gênica,  pelo  aumento  do  cAMP  formado  nas  células  justaglomerulares.  Já  as endotelinas têm efeitos opostos.

Sistema renina­angiotensina encefálico O SRA encefálico aumenta a pressão sanguínea, a sede, o apetite ao sódio e a secreção de AVP e de ACTH. A ANG II encefálica  aumenta  a  pressão  sanguínea  independentemente  do  SRA  sistêmico,  por  interferir  na  secreção  de  AVP  e  de ACTH ou por modulação do reflexo barorreceptor e de eferências simpáticas. O acesso da ANG II circulante ao encéfalo é limitado aos OCV. Todos os componentes do SRA sistêmico, incluindo precursores e enzimas requeridas para produção e degradação de ANG II, assim como seus receptores (AT1, AT2, AT3 e AT4), estão identificados no encéfalo. Embora os SRA encefálico e periférico sejam compartimentalizados, ainda não está estabelecido o quanto um sistema é independente do outro do ponto de vista funcional.

Receptores de ANG II Os receptores AT1 e AT2, mas principalmente os AT1, são os que melhor caracterizam as ações celulares da ANG II associadas ao controle do balanço hidreletrolítico. Estes receptores têm sete domínios transmembrana acoplados à proteína G. Ações periféricas e centrais da ANG II são mediadas pelo seu receptor AT1, levando à vasoconstrição e ao aumento na pressão arterial, formando o chamado eixo vasoconstritor do SRA. A própria ANG II, entretanto, participa também de um eixo vasodilatador e redutor da pressão arterial. O peptídio atua em seu receptor AT2, produzindo bradicinina e NO. Além disso,  a  ECA2  converte  ANG  I  e  ANG  II  em  ANG­(1­7),  a  qual  produz  vasodilatação,  natriurese,  diurese  e  modulação central do barorreflexo. A ANG­(1­7) atua em receptores Mas que, por sua vez, interagem com os receptores AT1 e AT2, modulando a ação celular da ANG II. Por meio dos receptores AT1, a ANG II também facilita a transmissão sináptica e proliferação celular, enquanto através dos receptores AT2facilita a diferenciação celular e apoptose (Figura 75.6). No  SNC  de  humanos  adultos,  a  distribuição  de  receptores  AT1,  determinada  pelo  uso  de  autorradiografia quantitativa in vitro,  foi  encontrada  nas  seguintes  regiões:  OCV,  diencéfalo,  mesencéfalo,  ponte,  bulbo,  medula  espinal, pequenas  e  grandes  artérias  adjacentes  às  meninges  e  no  plexo  coroide.  Esse  padrão  de  distribuição  dos  receptores AT1sugere  que  a  ANG  II  possa  atuar  como  um  neuromodulador  ou  um  neurotransmissor  no  SNC  de  humanos, influenciando a liberação de hormônios hipofisários e o controle autônomo.

Efeitos fisiológicos da ANG II A seguir são apresentados os principais efeitos fisiológicos da ANG II: ■ Exerce potente ação vasoconstritora nas arteríolas, induzindo elevação da pressão arterial

■ Por  sua  ação  nas  células  da  zona  glomerulosa  da  suprarrenal,  estimula  a  secreção  de  aldosterona  que,  por  sua  vez, aumenta a reabsorção de sódio e a secreção de potássio e hidrogênio no nível do néfron distal ■ Tem um efeito direto estimulador da reabsorção de sódio no túbulo contornado proximal. Esses efeitos da ANG II se devem  à  sua  ação  sobre  receptores  específicos  (AT1),  localizados  nas  células  da  musculatura  vascular  e  nos  túbulos renais ■ Estimula centralmente a secreção do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) e a liberação de AVP e de catecolaminas ■ Apresenta importantes efeitos pró­inflamatórios e indutores de crescimento celular ■ Por sua ação no SNC (lâmina terminal), exerce potente ação estimuladora da ingestão de água e sódio.

Figura  75.6  ■   Esquema  geral  do  sistema  renina­angiotensina  (SRA).  PreProR,  préprórenina;  ProR,  pró­renina;  ANG  I, angiotensina I; ANG II, angiotensina II; ECA, enzima conversora de ANG I; ECA2, enzima conversora de ANG II; AT1R e AT2R, receptores 1 e 2 da ANG II.

Interações da ANG II com outros hormônios A  ANG  II  ativa  neurônios  AVP,  como  demonstrado  por  estudos  in  vivo  usando  a  expressão  da  proteína  c­Fos  e secreção  do  AVP.  Adicionalmente,  distúrbios  do  balanço  hidromineral  (como  desidratação  ou  estímulo  osmótico) aumentam  a  densidade  de  receptores  de  ANG  II  e  a  expressão  de  mRNA  para  AT1A e  de  mRNA  para  AVP  no  SNC.  A administração  intracerebroventricular  de  ANG  II  induz  aumento  da  secreção  plasmática  de  AVP  e  OT,  que  parece  ser dependente da ativação da ciclo­oxigenase e da produção de prostaglandinas. O peptídio apelina – cujo receptor tem 54% de homologia com o receptor AT1 e também está presente em neurônios do NPV – tem ações antagônicas sobre os efeitos da ANG II na pressão arterial e na secreção de AVP. As ações encefálicas da ANG II sobre a ingestão e a excreção de água são  também  antagonizadas  por  ANP  e  OT,  o  que  parece  depender  pelo  menos  em  parte  da  ativação  de  receptores adrenérgicos α 2.

▸ Sistema de peptídios natriuréticos

Em  meados  do  século  IX,  os  romanos  descreveram,  em  mergulhadores,  um  efeito  diurético  (denominado  caesarea urinatores) induzido pela imersão do corpo em água. Esse efeito também se dá em banhos térmicos. A diurese induzida por  imersão  corporal  pode  ser  explicada  pela  pressão  hídrica  exercida  sobre  extremidades,  abdome  e  tórax,  aumentando, assim, o retorno venoso ao coração e dilatando o átrio. O aumento da diurese devido à expansão do átrio direito por meio de um balão intra­atrial constitui a primeira evidência experimental para a existência de um hormônio natriurético, como aventado nos anos 1950. Experimentos adicionais mostraram que a natriurese pode acontecer em resposta à expansão de volume  sanguíneo,  mesmo  que  não  ocorra  elevação  da  taxa  de  filtração  glomerular  nem  alterações  na  secreção  de aldosterona. A presença de grânulos de secreção em cardiomiócitos atriais de cobaia, indicando uma função endócrina, foi descrita, por microscopia eletrônica, na década de 1950. Posteriormente, foi confirmada a presença de células com função endócrina  em  átrios  provindos  de  indivíduos  cardíacos,  possivelmente  envolvidos  no  controle  da  homeostase hidromineral. A  descoberta  mais  importante  nesse  tema  foi  feita  pela  demonstração  de  que  extratos  atriais  têm  efeito  natriurético. Isso  levou  rapidamente  à  determinação  da  estrutura  do  peptídio  natriurético  atrial.  A  ação  miorrelaxante  dos  extratos atriais  sobre  a  parede  vascular  foi  determinada  posteriormente.  Depois,  foi  postulado  que  o  peptídio  liberado  de cardiomiócitos atriais circula até os rins, induzindo diurese e natriurese. Esses achados iniciais conduziram à identificação e  caracterização  de  outros  hormônios  da  família  de  peptídios  natriuréticos  que  estão  também  envolvidos  no  controle  da homeostase dos líquidos corporais. Embora a AVP e a OT sejam também hormônios natriuréticos, elas tradicionalmente não fazem parte do que podemos chamar de família dos peptídios natriuréticos. Esta é constituída pelos seguintes peptídios: (1) peptídio natriurético atrial [ANP,  de  28  aminoácidos  (aa)],  (2)  peptídio  natriurético  tipo  B  ou  encefálico  (BNP,  de  32  aa),  (3)  peptídio  natriurético tipo  C  (CNP,  de  22  aa)  e  (4)  urodilatina.  A  forma  biologicamente  ativa  dos  peptídios  natriuréticos  compartilha  uma estrutura comum, que consiste em uma alça de 17 aminoácidos ligados por uma ponte de –S–S– entre os dois resíduos de cisteína. Essa alça e suas extensões N­ e C­terminais são essenciais para a atividade biológica dos peptídios. A sequência de aminoácidos dos três tipos de peptídios natriuréticos da espécie humana está apresentada na Figura 75.7. No tecido cardíaco, o α­ANP é sintetizado como um próhormônio, sendo clivado em dois fragmentos: o fragmento N­ terminal de 98 aa (ANP 1 a 98) e o fragmento C­terminal de 28 aa (ANP 99 a 126), o qual é a forma ativa e circulante. O RNA mensageiro do ANP foi encontrado em diversos tecidos, entretanto é mais abundante nos cardiomiócitos. O BNP foi originalmente isolado do encéfalo (brain) de porco, daí o seu nome. Posteriormente, verificou­se que ele é também  sintetizado  e  secretado  pelos  cardiomiócitos,  principalmente  do  ventrículo  esquerdo.  Foi  observado  que  sua concentração plasmática se eleva em pacientes com doenças cardiovasculares e renais, servindo como um dos indicadores precoces de alterações cardíacas, como, por exemplo, infarto e insuficiência cardíaca. O  CNP  é  sintetizado  pelas  células  endoteliais  vasculares,  sendo  encontrado  principalmente  no  encéfalo.  Sua concentração  plasmática  é  baixa  e  dispõe  de  moderada  ação  natriurética,  quando  comparada  com  a  dos  outros  peptídios natriuréticos (ANP e BNP). Sua ação principal é como agente vasodilatador. A  urodilatina,  peptídio  natriurético  sintetizado  no  túbulo  distal,  aumenta  a  natriurese  e  a  diurese,  agindo  de  maneira parácrina sobre as células tubulares renais. Contém em sua estrutura uma extensão de quatro aminoácidos correspondentes à  porção  N­terminal  do  ANP,  característica  esta  que  assegura  sua  grande  resistência  à  degradação  enzimática.  Por  este motivo, a urodilatina exógena alcança o túbulo distal e o coletor sem ser degradada. A urodilatina tem importante papel na função renal, especialmente no controle da excreção de sódio e água. Alguns estudos mostraram que a sobrecarga aguda de volume  ou  dilatação  do  átrio  esquerdo  é  seguida  por  um  aumento  na  excreção  de  sódio  e  de  urodilatina.  Ainda  que  em humanos a urodilatina não seja detectada na circulação sanguínea ou no pulmão, esse peptídio também produz significante relaxamento da árvore traqueobrônquica.

Receptores dos peptídios natriuréticos Os peptídios natriuréticos atuam por meio de três tipos de receptores presentes na membrana celular: NPR­A, NPR­B e NPR­C. Os receptores NPR­A e NPR­B têm um domínio intracelular ligado à guanililciclase, que catalisa a conversão do  GTP  em  cGMP,  que  ativa  a  proteinoquinase  G.  Esses  dois  receptores  são  compostos  por  um  local  de  ligação extracelular,  um  domínio  transmembrana  e  uma  porção  intracelular.  O  receptor  NPR­A  é  mais  abundante  nos  grandes vasos, o NPR­B predomina no encéfalo, e ambos estão presentes nas suprarrenais e no tecido renal. O NPR­C, por sua vez, atua como um receptor de depuração do ANP plasmático (sua inicial C significa clearance).  Esse  receptor  não  tem em sua estrutura a guanililciclase e desempenha importante papel em remover os peptídios natriuréticos circulantes, pois estes aumentam a vida média e a concentração plasmática do ANP endógeno, estimulando a natriurese in vivo. A afinidade

dos  receptores  varia  com  os  peptídios.  Por  exemplo,  para  o  receptor  NPR­A,  a  sequência  de  afinidade  é  ANP,  BNP  e CNP. Já para o NPR­B, é CNP, BNP, ANP. Por outro lado, o BNP tem muito menor afinidade que o ANP para o NPR­C, o que pode explicar a maior vida média do BNP em relação ao ANP. As endopeptidases circulantes são responsáveis pela clivagem dos três tipos de peptídios natriuréticos, inativando­os; elas estão também presentes nas células tubulares renais e vasculares.

Figura 75.7 ■ Representação esquemática da sequência de aminoácidos dos peptídios natriuréticos. ANP, peptídio natriurético atrial; BNP, peptídio natriurético tipo B ou cerebral; CNP, peptídio natriurético tipo C.

Efeitos fisiológicos dos peptídios natriuréticos O principal estímulo para a liberação cardíaca dos peptídios natriuréticos é o estiramento das fibras de cardiomiócitos atriais, que ocorre quando existe hipervolemia, ou seja, aumento do volume do sangue circulante. Está demonstrado que o controle da liberação dos peptídios natriuréticos é também exercido pelo sistema nervoso central. Esses peptídios desempenham um papel fundamental no controle do volume e da osmolalidade dos líquidos corporais e da pressão arterial, por meio das ações descritas a seguir: ■ Vasodilatação,  por  efeito  direto  sobre  as  fibras  musculares  das  arteríolas  e  inibição  dos  efeitos  vasoconstritores induzidos por ANG II e catecolaminas ■ Indução  do  aumento  da  permeabilidade  capilar,  aumentando  a  saída  de  líquidos  do  espaço  intravascular  para  o intersticial ■ Elevação  da  taxa  de  filtração  glomerular,  induzindo  vasodilatação  dos  capilares  glomerulares  (por  atuação  nos mesângios), com consequente aumento da área de filtração glomerular e da carga filtrada de sódio ■ Subida  da  pressão  hidrostática  glomerular,  por  sua  ação  vasodilatadora  da  arteríola  aferente  e  vasoconstritora  da arteríola eferente

■ Aumento da natriurese e diurese por: • Efeito  direto  nos  seus  receptores  do  túbulo  contornado  proximal,  induzindo  o  aumento  da  produção  do  cGMP que,  por  sua  vez,  fecha  os  canais  de  sódio  dependentes  de  voltagem,  produzindo  aumento  da  excreção  de  sódio (natriurese) • •

Inibição da síntese da renina no aparelho justaglomerular, bem como dos receptores β­adrenérgicos Inibição da ação da ANG II na estimulação da reabsorção de sódio nos túbulos contornados proximais



Inibição da ação da aldosterona nos túbulos contornados distais e coletores, bloqueando a reabsorção de sódio e o aumento da excreção de potássio e hidrogênio Inibição  da  ação  da  AVP  sobre  as  células  do  ducto  coletor,  diminuindo  a  formação  e  a  inserção  luminal  da aquaporina 2, com consequente queda da reabsorção renal de água

• •

Vasodilatação  e  aumento  do  fluxo  sanguíneo  dos  vasos  retos  da  medula  renal,  induzindo  lavagem  papilar  e consequente diminuição do gradiente osmótico corticomedular (ver Capítulo 53) ■ Ações endócrinas causadas por: • • •

Inibição da liberação da AVP, bem como de sua ação no nível do ducto coletor Inibição da síntese da renina, bem como de sua ação sobre o angiotensinogênio Inibição da ECA responsável pela conversão da ANG I em ANG II



Inibição da síntese da aldosterona, bem como de sua ação estimuladora da reabsorção de sódio e da secreção de potássio e hidrogênio no néfron distal ■ Ações inibitórias sobre ingestão de água e sódio. As  concentrações  plasmáticas  do  ANP  e  do  BNP  aumentam  em  resposta  à  expansão  do  volume  circulante  e  à sobrecarga  pressórica  cardíaca.  Esses  hormônios  exercem  ações  antagônicas  aos  efeitos  do  SRA.  Assim,  atuam  como antagonistas fisiológicos da ação da ANG II sobre o tônus vascular, secreção de aldosterona e de AVP, e reabsorção renal de água e sódio. Em  suma,  essa  família  de  peptídios  exerce  importante  papel  na  regulação  da  osmolalidade  e  volume  dos  líquidos corporais, como também da pressão arterial. In vivo, o ANP determina diminuição da pressão arterial, reduzindo o débito cardíaco  e  a  resistência  periférica.  Em  animais  transgênicos,  o  aumento  do  número  de  receptores  de  ANP  resulta  em hipotensão  arterial,  enquanto  animais  nocaute  para  ANP  são  hipertensos  e  apresentam  hipertrofia  cardíaca.  O  ANP  e  o BNP  elevam  a  natriurese  e  a  diurese  diretamente,  por  suas  ações  tubulares,  e  indiretamente,  por  seus  efeitos  na hemodinâmica  renal.  Ambos  os  hormônios  determinam  vasodilatação  das  arteríolas  aferentes  e  vasoconstrição  das eferentes,  aumentando  a  pressão  hidrostática  no  capilar  glomerular,  com  consequente  crescimento  da  taxa  de  filtração glomerular e da oferta de sódio aos túbulos renais.

Peptídio natriurético atrial (ANP) e peptídio natriurético tipo B (BNP) ANP e BNP são hormônios produzidos pelo átrio e ventrículo cardíacos, respectivamente, com grande potencial  cardioprotetor.  Ambos  respondem  à  distensão  das  câmaras  cardíacas  com  ações  endócrinas, parácrinas e autócrinas. As ações incluem natriurese e diurese – atenuando, assim, a expansão do LEC, em oposição à aldosterona, e inibição da secreção ou ação de sistemas vasoativos (SRA e AVP); em altas doses,  podem  também  promover  vasodilatação.  Essas  ações  contribuem  para  reduzir  a  carga hidrodinâmica  sobre  o  coração  e  aumentar  o  fluxo  sanguíneo  coronariano  com  aumento  na  oxigenação tecidual  local.  Ainda,  a  síntese  e  secreção  do  ANP  e  BNP  está  aumentada  na  insuficiência  cardíaca  e ambos  antagonizam  a  hipertrofia  cardíaca  dependente  de  ANG  II.  Os  efeitos  protetores  podem  estar associados  à  interação  com  outros  hormônios.  A  OT,  por  exemplo,  atua  diretamente  no  coração, aumentando a secreção de ANP, e estudos recentes enfatizam o papel cardioprotetor da OT em modelos experimentais  de  lesão  cardíaca  isquêmica.  Essa  atuação  da  OT  também  tem  potencial  parácrino  e autócrino na secreção dos peptídios natriuréticos, pois coração e vasos possuem toda a maquinaria para a síntese de OT e seus receptores. Apesar da secreção elevada de ANP e BNP na insuficiência cardíaca, a ativação  de  sistemas  com  ações  opostas  às  suas,  como  o  SRA,  culmina  com  a  evolução  para  a descompensação cardíaca. Embora o emprego efetivo dos efeitos fisiológicos dos peptídios natriuréticos na terapêutica  da  insuficiência  cardíaca  requeira  mais  pesquisa  (usando,  por  exemplo,  peptídio  natriurético humano  recombinante),  o  uso  da  concentração  plasmática  dos  peptídios  natriuréticos  tem  um  potencial

mais  imediato  como  marcador  prognóstico  e  de  monitoramento:  pacientes  com  maiores  concentrações plasmáticas de BNP apresentam maior risco de descompensação cardíaca e morte.

Transdução de sinal nas células cardíacas Os  peptídios  natriuréticos  (ANP  e  BNP)  atuam  por  meio  de  receptores  específicos  que  contêm  em  suas  estruturas domínios  com  atividade  guanililciclase,  que  catalisa  a  transformação  do  GTP  em  cGMP.  Para  surgirem  os  seus  efeitos biológicos,  após  a  formação  do  segundo  mensageiro,  ocorre  a  ativação  das  proteinoquinases.  No  coração,  essas proteinoquinases  (PKA  e  PKC)  estão  envolvidas  em  regulação  da  contração  cardíaca,  transporte  de  íons,  metabolismo tissular, expressão gênica e proliferação celular.

Controle da secreção do ANP O maior estímulo para a secreção do ANP é o estiramento dos cardiomiócitos atriais (um fator mecânico). Entretanto, outros  fatores  interferem  na  sua  liberação,  como:  frequência  de  contração  cardíaca,  hormônios  e  vários  peptídios vasoativos. O estiramento dos cardiomiócitos in vitro, bem como o induzido pela expansão do volume sanguíneo in vivo, aumenta  a  liberação  tanto  do  ANP  como  do  BNP.  Ainda  não  está  esclarecido  se  essa  liberação  hormonal  se  deve  ao estiramento  das  fibras  musculares  ou  à  liberação  local  de  ET­1,  óxido  nítrico  ou  ANG  II  liberados  pela  distensão  das fibras  musculares  ou  células  endoteliais.  Um  aumento  da  frequência  ou  da  contratilidade  cardíaca  induz  elevação  da liberação do ANP, tanto in vitro como in vivo. Em humanos, a taquicardia ventricular eleva a liberação desse peptídio, fato que parece estar associado a alterações hemodinâmicas, como, por exemplo, subida da pressão arterial média. A liberação do ANP também é estimulada pela hipoxia. Estiramento atrial, taquicardia, aumento da atividade simpática e alterações metabólicas podem ser fatores que participam na mediação dos efeitos da hipoxia sobre a liberação do ANP. Sendo assim, a liberação do ANP pode ser modulada por alterações do metabolismo da fibra cardíaca.

SEDE E CONTROLE DA INGESTÃO DE ÁGUA E SAL Fica  evidente  desde  o  início  do  capítulo  que  os  vertebrados  conquistaram  o  ambiente  terrestre  graças  a  um  sistema neural que coordena as respostas que previnem e corrigem a desidratação. A sede é uma sensação que motiva a procura, a obtenção  e  o  consumo  de  água,  sendo  desencadeada  pela  desidratação  celular  e  extracelular.  Associadas  a  esse  sistema, encontramos  uma  grande  capacidade  de  concentração  de  urina  pelo  rim  e  a  produção  de  comportamentos  dirigidos  à conservação  ou  aquisição  de  água  e  sal,  atividades  controladas  por  mecanismos  que  envolvem  hormônios  e  circuitos neurais.  A  perda  de  água  ou  de  volume  corporal  pode  ocorrer  do  LIC  (desidratação  celular),  LEC  (desidratação extracelular)  ou  ambos  (desidratação  absoluta).  A  desidratação  seletiva  de  um  ou  de  outro  compartimento  ativa  os mecanismos  específicos  já  mencionados  de  osmorrecepção  e  desativação  de  receptores  de  volume,  que  acionam mecanismos  que  atenuam  a  desidratação  e  eventualmente  a  corrigem.  Os  mecanismos  renais  e  comportamentais  atuam conjuntamente  para  corrigir  a  desidratação  absoluta.  Entre  os  mecanismos  comportamentais,  encontram­se  aqueles  que levam à procura, obtenção e ingestão de água (sede) e de sódio (apetite ao sódio) (Figura 75.8).

▸ Desidratação intracelular e sede A ativação dos osmorreceptores originada por redução do LIC, conforme comentado anteriormente, leva à ativação de vias  neurais  que  se  projetam  para  áreas  límbicas  responsáveis  por  comportamentos  de  sobrevivência  como  a  sede.  A desidratação intracelular e a ingestão de água aumentam a atividade elétrica de neurônios hipotalâmicos e corticolímbicos (em animais) e elevam o fluxo sanguíneo no giro do cíngulo (conforme mostrado por tomografia de emissão de pósitrons em humanos). A água ofertada a um animal que se encontra com restrição hídrica é, em geral, ingerida em um período de 3 a 10 min, quando, gradativamente, sua sede será saciada sem, no entanto, ocorrer, nesse mesmo período, a total regularização da sua osmolalidade  plasmática.  Isso  sugere  antecipação  da  medida  da  quantidade  exata  de  água  necessária  para  a  correção  da osmolalidade, simplesmente pela mensuração do volume de água que passou pela boca até o estômago. De fato, estímulos gerados na boca, na faringe e no estômago são convertidos em impulsos aferentes para estruturas do SNC envolvidas na resposta integrativa de inibição da sede.

Figura 75.8 ■ Esquema dos efeitos das alterações do volume de líquido extra e intracelular e da concentração intracelular de sódio sobre a sede e o apetite ao sódio. LEC, líquido extracelular; LIC, líquido intracelular; ↑, aumento; ↓, diminuição. As linhas tracejadas indicam os volumes normais do LEC e do LIC. (Adaptada de De Luca et al., 2005.)

Além  de  ativar  a  sede,  a  desidratação  intracelular  também  inibe  a  fome,  provavelmente  a  partir  da  ativação  dos osmorreceptores.  Essa  inibição  reduz  o  aporte  de  partículas  osmoticamente  ativas,  contribuindo,  assim,  para  atenuar  a elevação da tonicidade.

▸ Desidratação extracelular e sede A  redução  excessiva  do  LEC  leva  a  um  quadro  progressivo  de  fraqueza,  palidez,  náuseas,  hipotensão  e  choque.  O compartimento  intravascular  tem  continuidade  com  o  intersticial,  e  os  mecanismos  ativados  para  a  compensação  da redução  do  LEC  dependem  de  mecanorreceptores  situados  nas  paredes  dos  vasos  sanguíneos  (sensíveis  à  redução  da pressão intravascular) e de receptores de volume e de natremia (localizados no aparelho justaglomerular renal) que liberam renina, conduzindo consequentemente à produção de ANG II. Os mecanismos de compensação, mediados principalmente pelo  SRA­aldosterona,  ativados  a  partir  do  decréscimo  de  5  a  10%  da  volemia,  aumentam  a  reabsorção  renal  de  água  e sódio, assim como a pressão arterial, por um lado, e induzem a sede e o apetite ao sódio, por outro. A redução na descarga dos  mecanorreceptores  cardiopulmonares  (de  baixa  pressão)  e  arteriais  (alta  pressão)  removendo  a  inibição  do  tronco encefálico sobre os circuitos de sede, mais a ANG II, leva à ingestão de água e de sódio. O efeito dipsogênico da ANG II é demonstrado em quase todas as classes de vertebrados, de peixes a mamíferos. Esse efeito  é  marcante  quando  a  ANG  II  é  injetada  no  ventrículo  intraencefálico  de  rato,  em  doses  de  picomoles.  O  modelo atual da ação fisiológica da ANG II sobre a sede admite que, estando aumentada sua concentração na circulação sanguínea em resposta a uma hipovolemia, ela se difunda para o espaço extracelular parenquimal, ativando a descarga de neurônios do OSF. Esses neurônios então se projetam para a primeira estação sináptica em estruturas com barreira hematencefálica na  região  pré­óptica­hipotalâmica,  de  onde  partem  sinais  em  direção  aos  circuitos  neurais  límbicos  que  comandam  a

ingestão  de  água.  A  ANG  II  liga­se  a  receptores  do  tipo  AT1 acoplados  à  proteína  G,  ativando  segundos  mensageiros (fosfolipídios  e  proteinoquinases)  que  causam  a  abertura  de  canais  de  cálcio  na  membrana  plasmática,  permitindo  um influxo de cálcio e consequente descarga neural. A  diminuição  do  volume  circulante,  que  resulta  de  hemorragia  ou  desidratação,  estimula  a  liberação  de  renina  pelos rins,  com  consequente  aumento  da  concentração  de  ANG  II  circulante.  Como  dito  anteriormente,  o  acesso  da  ANG  II circulante  ao  encéfalo  é  restrito  às  estruturas  dos  OCV,  os  quais  podem  interagir  com  outras  áreas  encefálicas.  Efeito oposto ocorre em resposta ao aumento na atividade de barorreceptores cardiopulmonares e arteriais. Aumento da pressão arterial inibe ingestão de água estimulada pela ANG II, hiperosmolalidade ou hipovolemia (ver Figura 75.8). O OSF não é o único local para a ação dipsogênica da ANG II no encéfalo. Outras estruturas envolvidas na sede e no apetite  ao  sódio  estão  localizadas  em  áreas  protegidas  pela  barreira  hematencefálica,  não  podendo  ser  estimuladas diretamente  pela  ANG  II  circulante,  incluindo  o  MnPO  na  lâmina  terminal,  o  NPV,  a  área  pré­óptica  e  a  substância cinzenta do tronco encefálico que recebe projeções da área pré­óptica. Essas estruturas podem ser ativadas indiretamente, via conexões aferentes com o OSF.

▸ Desidratação extracelular e apetite ao sódio Sódio  e  água  são  fundamentais  para  a  compensação  adequada  da  hipovolemia.  A  reposição  apenas  hídrica  não  é suficiente  para  corrigir  o  volume  extracelular,  uma  vez  que  a  água  pura  dilui  o  LEC,  reduzindo  a  secreção  de  AVP  e, consequentemente,  levando  à  diurese.  Assim,  parte  da  água  ingerida  é  eliminada,  de  modo  que  o  volume  é  apenas parcialmente corrigido. Uma eventual redução da osmolalidade do LEC pela ingestão de água pura também pode acarretar dano celular, relacionado com uma excessiva entrada de água na célula. Daí a importância da reabsorção renal de água e sódio induzida pela aldosterona, e também do apetite ao sódio. A  primeira  demonstração  de  que  o  apetite  ao  sódio  teria  uma  base  hormonal  ocorreu  nos  anos  1930,  em  ratos adrenalectomizados.  Esses  animais  desenvolviam  intenso  apetite  a  esse  íon,  que  posteriormente  se  compreendeu  ser resultante  da  deficiência  da  reabsorção  renal  de  sódio  decorrente  da  falta  de  aldosterona.  O  apetite  ao  sódio  envolve  um comportamento, inato e específico, de ingestão de minerais contendo sódio. Esse comportamento é bem desenvolvido em animais  que  vivem  em  ambiente  pobre  em  sódio,  ou  cuja  dieta  tem  baixos  teores  desse  íon.  Tal  apetite  é  também demonstrado  em  pombos  e  em  diversas  ordens  de  mamíferos,  inclusive  primatas.  Em  humanos,  embora  alguns  estudos questionem a presença de apetite ao sódio (pelo fato de boa parte do sódio ingerido estar vinculada à alimentação), existem várias  descrições  de  aumento  de  preferência  ao  sabor  do  sódio  como  consequência  de  desidratação,  insuficiência suprarrenal  e,  no  caso  da  mulher,  em  fases  do  ciclo  reprodutivo  relacionadas  com  a  gestação.  Ratas  adultas  apresentam apetite  ao  sódio  mais  intenso  do  que  machos,  em  função  da  ação  organizadora  de  hormônios  sexuais  na  fase  perinatal. Eventos  que  surgem  nessa  fase  parecem  também  determinar  o  grau  de  preferência  a  esse  íon.  Entretanto,  deve­se  notar que o apetite ao sódio das ratas é reduzido durante o estro provavelmente em resposta ao pico de estradiol. Ao  que  tudo  indica,  a  evolução  conduziu  à  utilização  dos  mesmos  mecanismos  para  ativar  a  sede  extracelular  e  o apetite ao sódio, como a redução na descarga de receptores de pressão vascular e a ANG II. Esse hormônio atua nos OCV, ativando os circuitos de apetite ao sódio, e pode agir em sinergismo com a aldosterona para reforçar esse comportamento. Esse  sinergismo  hormonal  depende,  provavelmente,  de  receptores  de  mineralocorticoides  presentes  no  hipocampo, amígdala e NTS, constituindo o substrato de ação da aldosterona no encéfalo. A partir dos OCV, os circuitos de apetite ao sódio  devem  passar  por  estações  integradoras  de  funções  viscerais  e  motivacionais  (como  amígdala,  hipotálamo  e  área septal), conforme descrito anteriormente e na Introdução deste capítulo. Além disso, estruturas do tronco encefálico (NTS, NDR e NPBL) participam retransmitindo e modulando as informações viscerais ascendentes para as estações. A  administração  central  do  ANP  determina  inibição  da  ingestão  de  água,  normalmente  induzida  pela  desidratação  ou pela  ANG  II.  Além  disso,  o  ANP  também  é  capaz  de  reduzir  a  ingestão  de  sódio  em  ratos  depletados  de  sal.  O  efeito antidipsogênico do ANP se deve provavelmente a uma ação direta no OSF, uma vez que esta estrutura circunventricular é uma região bastante sensível à ação dipsogênica da ANG II.

▸ Sede e apetite ao sódio, estados motivados complementares Enquanto  a  desidratação  intracelular  (produzida,  por  exemplo,  pela  sobrecarga  de  sódio  na  dieta  ou  pela  infusão intravenosa de NaCl hipertônico) causa preferencialmente sede, ativando mecanismos para estimular a ingestão de água e inibir  a  de  sódio,  a  desidratação  absoluta  (que  ocorre  no  caso  da  privação  hídrica)  ou  a  desidratação  extracelular

(produzida,  por  exemplo,  pela  depleção  de  sódio  ou  hemorragia)  ativam  mecanismos  capazes  de  estimular  a  ingestão  de água e de sódio. Qual é a proporção de sódio em relação à água que um animal com desidratação extracelular deve ingerir? A resposta imediata  é  uma  concentração  isotônica,  fato  bem  conhecido  por  fabricantes  e  consumidores  de  bebidas  esportivas.  Na natureza,  nem  sempre  o  sódio  se  encontra  diluído  na  água;  ao  contrário,  muitas  vezes  ele  está  presente  em  formações rochosas,  e  a  ingestão  isotônica  deve  então  se  dar  como  uma  mistura  final  do  líquido  e  do  sal.  Além  do  mais,  a desidratação  pode  piorar  caso  a  correção  de  volume  se  inicie  com  ingestão  de  sal  puro.  Em  animais  de  laboratório, mantidos com ração normossódica, foi demonstrado que, a partir do momento em que acontece a desidratação extracelular, o apetite ao sódio se manifesta com uma latência maior que a sede. Assim, em um primeiro instante, a ingestão de água permite  uma  reposição  de  volume,  ainda  que  parcial,  ao  mesmo  tempo  evitando  uma  desidratação  intracelular.  Em seguida, a ingestão de sal pode ocorrer até mesmo no estado hipertônico, porque em parte o líquido extracelular foi diluído na primeira fase e em parte porque, mantido o acesso à água, o animal alterna entre os dois comportamentos, ingestões de água e de sal, garantindo um aporte isotônico de sódio para o sistema digestório e daí para o meio interno.

▸ Hipótese da facilitação­inibição Segundo  o  parágrafo  anterior,  em  um  animal  com  desidratação  extracelular,  a  expressão  da  sede  deve  preceder  a ingestão  de  sódio;  essa  sequência  comportamental  é  explicada  pela  hipótese  do  mecanismo  de  facilitação­inibição.  De acordo  com  essa  hipótese,  os  fatores  facilitadores  da  sede  e  do  apetite  ao  sódio  produzem,  em  um  primeiro  momento, ativação  dos  circuitos  de  sede,  enquanto,  ao  mesmo  tempo,  ativam  os  circuitos  que  inibem  o  apetite  ao  sódio,  freando assim  a  ingestão  de  sal.  A  diluição  do  LEC  resultante  da  ingestão  de  água  atuaria,  então,  como  um  fator  desativador  da inibição sobre o apetite ao sódio, liberando a ingestão de sal. Tomemos  como  exemplo  de  fator  facilitador  a  ANG  II,  que  está  aumentada  tanto  na  desidratação  absoluta  como  na desidratação  extracelular.  Considerando­se  que  esse  peptídio  origina  dois  comportamentos  distintos,  surge  a  questão  de como  eles  são  produzidos  a  partir  da  ação  do  peptídio  sobre  as  mesmas  estruturas  encefálicas.  Podemos  assumir  a existência  de  vias  divergentes,  cada  uma  dirigida  para  um  comportamento  a  partir  dos  OCV  responsivos  a  ANG  II.  De acordo  com  a  hipótese  da  facilitação­inibição,  a  ANG  II  ativaria  primeiro  a  sede,  enquanto  inibiria  o  apetite  ao  sódio, resultando  apenas  na  ingestão  de  água.  Depois,  seria  liberada  a  ingestão  de  sal.  Duas  evidências  dão  suporte  a  essa hipótese. Uma mostra que a ANG II em dose exclusivamente dipsogênica ativa neurônios do NPV que contêm o peptídio inibitório  OT.  Esses  neurônios  são  desativados  pela  ingestão  hídrica.  Comprovando  essa  ideia,  existem  experimentos indicando que a ingestão de NaCl hipertônico ocorre quando os receptores de OT são inativados farmacologicamente antes da  administração  da  dose  dipsogênica  de  ANG  II.  A  outra  evidência  provém  da  ativação  de  neurônios  do  NPBL  em resposta  à  desidratação.  A  inativação  farmacológica  de  neurônios  desse  núcleo  pontino  promove  a  ingestão  de  NaCl hipertônico em animais tratados com doses dipsogênicas de ANG II, ou antecipa a ingestão desse sal para a fase de sede em animais com desidratação extracelular. Além disso, existe uma correlação positiva entre a produção de c­Fos em áreas facilitadoras (OVLT, OSF) da ingestão de sódio e o apetite ao sódio. Essa produção diminui nessas áreas, aumentando em áreas inibidoras (NDR), conforme o animal sacia o apetite ingerindo sódio.

▸ Plasticidade neural e ingestão hidromineral Embora  inatos  e  presentes  precocemente  na  ontogênese,  a  sede  e  o  apetite  ao  sódio  envolvem  comportamentos motivados  e,  portanto,  passíveis  de  serem  influenciados  pelo  aprendizado.  Animais  desidratados  aprendem  a  mover alavancas,  ou  correr  para  locais  predeterminados,  a  fim  de  poderem  obter  água  ou  soluções  contendo  sódio.  Efeitos  de longo  prazo,  provocados  por  desidratação  extracelular  ou  privação  hídrica,  têm  sido  mostrados  na  ingestão  de  sódio  de animais.  A  depleção  de  sódio  na  fase  intrauterina  leva  ao  consumo  aumentado  de  sal  no  animal  adulto.  O  mesmo incremento  tem  sido  observado  após  episódios  repetidos  de  depleção  de  sódio  ocorridos  apenas  na  fase  adulta.  Esse incremento parece decorrer de um efeito organizador da ANG II sobre o encéfalo, possivelmente modificando a expressão gênica  neural.  O  incremento  na  ingestão  de  sódio  em  resposta  ao  mesmo  estímulo  da  ANG  II  é  semelhante  ao  que  se conhece por sensibilização comportamental, considerada um tipo de aprendizado não associativo. Corroborando teorias de que os comportamentos motivados associados a um reforço positivo possuem uma base neural comum no SNC, histórico de  depleção  de  sódio  produz  sensibilização  cruzada  nos  efeitos  de  drogas  de  abuso  ou,  ao  menos  transitoriamente,  na ingestão de açúcar, um reforçador natural.

SISTEMA NERVOSO AUTÔNOMO E CONTROLE DO BALANÇO HIDRELETROLÍTICO

▸ Papel da inervação simpática renal sobre a excreção de sódio O  rim  participa  do  controle  cardiovascular  e  do  equilíbrio  hidrossalino  por  meio  de  3  mecanismos  principais:  (1) excreção de sódio, (2) excreção de água e (3) secreção de renina. Essas funções renais são controladas principalmente por fatores humorais e pela porção simpática do sistema nervoso autônomo. Os nervos simpáticos renais inervam os túbulos, os  vasos  e  as  células  do  aparelho  justaglomerular,  exercendo  importante  controle  sobre  fluxo  sanguíneo  renal,  taxa  de filtração glomerular, transporte tubular de água e solutos, e produção e secreção hormonal. Esses efeitos se dão a partir de informações provenientes de várias estruturas do SNC e periféricas, via atividade eferente do nervo simpático renal. Os  nervos  simpáticos  renais  são  estimulados  quando  ocorre  queda  da  pressão  arterial  renal  (também  denominada pressão  de  perfusão  renal),  sempre  associada  à  diminuição  do  volume  do  LEC.  A  atividade  simpática  renal  é  tônica  e modulada  pelas  variações  do  volume  sanguíneo.  Nas  situações  de  aumento  do  volume  do  LEC,  observa­se  redução  da atividade simpática renal e aumento da excreção de sódio e de água. Os nervos renais simpáticos participam dos mecanismos de conservação de água, atuando: ■ Na reabsorção tubular de cloreto de sódio ■ Na vasoconstrição das arteríolas aferentes, determinando diminuição da taxa de filtração glomerular ■ No aumento da liberação de renina pelas células granulares das arteríolas aferentes. A  estimulação  dos  nervos  simpáticos  renais,  originários  principalmente  no  plexo  celíaco,  ocorre  por  meio  dos adrenorreceptores beta1 das  células  granulares  justaglomerulares  produtoras  de  renina,  presentes  na  arteríola  aferente.  A liberação de norepinefrina pelas fibras adrenérgicas induz vasoconstrição, antinatriurese e elevação da secreção de renina. A diminuição da excreção urinária de água e sódio se deve, principalmente, ao aumento da reabsorção tubular de sódio e água, à queda do fluxo sanguíneo renal e da taxa de filtração glomerular (causada por constrição da vasculatura renal) e ao aumento  da  atividade  do  SRA  (após  a  liberação  de  renina  a  partir  das  células  granulares  justaglomerulares).  A  ANG  II formada, atuando via receptores AT1 localizados  nos  segmentos  vasculares  e  tubulares,  aumenta  a  reabsorção  tubular  de sódio, cloreto e água, bem como contrai a vasculatura renal. A estimulação do SRA também pode ser induzida mantendo o animal sob uma dieta pobre em sódio, e essa resposta é bloqueada pela ação do captopril, inibidor da enzima conversora para ANG II. Por outro lado, a diminuição da atividade do SRA pode ser obtida por uma dieta rica em sódio. Esses dados sugerem uma estreita interação do SRA com o sistema simpático renal. Independentemente  do  SRA­aldosterona  sistêmico,  o  túbulo  proximal  tem  a  capacidade  de  sintetizar  e  secretar elevadas  quantidades  de  ANG  II  para  o  lúmen  tubular,  a  qual  modula  a  reabsorção  tubular  proximal  de  sódio  e  água. Vários estudos demonstram que os nervos renais modulam um componente do transporte tubular proximal mediado pela ANG II intraluminal. A norepinefrina produzida pelas fibras simpáticas estimula a reabsorção de sódio e água no túbulo proximal, no segmento espesso de alça de Henle, no túbulo distal e no ducto coletor. Em cães, o ANP causa potente natriurese e suprime a secreção de renina induzida por estimulação do nervo renal e a vasoconstrição renal, sem afetar a liberação de norepinefrina. Esses achados são consistentes com a hipótese de que esse peptídio  ativa  seus  receptores  no  aparelho  justaglomerular  e  nos  vasos  renais  para  liberar  cGMP,  o  qual  se  opõe  à liberação de renina ativada por cAMP induzida pela norepinefrina. A atividade do nervo renal pode ser registrada por meio de eletrodo especialmente adaptado em sua volta, permitindo avaliar sua atividade em várias condições experimentais no animal intacto e com livre mobilidade. Em resposta à expansão de  volume  sanguíneo,  observa­se  diminuição  na  atividade  do  nervo  simpático  renal,  associada  a  aumento  do  fluxo plasmático renal e da liberação de ANP pelo coração, redução da atividade do SRA­aldosterona e inibição na secreção de AVP pela hipófise posterior. Por conseguinte, a natriurese e a diurese observadas após a expansão são consequências da liberação  de  ANP  cardíaco  e  da  redução  da  atividade  do  nervo  simpático  renal,  que  resultam  em  aumento  do  fluxo plasmático renal, da taxa de filtração glomerular e da carga filtrada, e diminuição da reabsorção tubular de sódio.

▸ Regulação da atividade simpática renal pelo SNC Áreas diencefálicas específicas e do tronco encefálico participam da regulação da atividade simpática renal, por meio de  projeções  diretas  para  neurônios  pré­ganglionares  simpáticos,  localizados  na  coluna  intermediolateral  da  medula espinal.  Além  disso,  essas  áreas  do  SNC  podem  participar  dos  principais  reflexos  que  modulam  a  atividade  do  nervo simpático  renal,  como  aqueles  provenientes  das  artérias  periféricas,  mecanorreceptores  cardíacos,  quimiorreceptores  e

receptores  somáticos.  A  ANG  II  pode  modular  a  atividade  encefálica,  atuando  como  um  neurotransmissor  ou  como  um hormônio. A ANG II circulante modula a atividade neural simpática periférica agindo na AP, uma vez que a ablação dessa área encefálica inibe a hipertensão induzida pela administração intravenosa crônica de ANG II. A AP estabelece conexões eferentes  com  o  NTS  e  o  NPBL,  os  quais  proveem  aferências  aos  neurônios  pré­ganglionares  simpáticos  da  coluna intermediolateral  da  medula  espinal.  Lesões  do  NPBL  também  impedem  a  hipertensão  crônica  induzida  por  ANG  II.  A ativação  da  AP  pela  ANG  II  circulante  pode  elevar  a  atividade  neural  simpática  periférica  por  uma  conexão  excitatória direta  com  a  RVLM.  A  ativação  ou  a  inibição  da  RVLM  aumenta  ou  diminui,  respectivamente,  a  pressão  arterial  e  a atividade do nervo simpático renal. Trabalhos recentes mostram que aferências renais para o encéfalo também exercem um papel importante na atividade do NPV e no controle da pressão arterial e na excreção de sódio. Outros  estímulos  endógenos  também  contribuem  para  a  atividade  do  nervo  simpático  renal.  A  estimulação  de diferentes  subtipos  de  receptores  purinérgicos  localizados  no  NTS  provoca  alterações  na  hemodinâmica  regional  e respostas simpáticas eferentes. A estimulação de receptores 2a da adenosina (A2a) diminui a atividade do nervo simpático renal e a atividade do nervo simpático suprarrenal pré­ganglionar.

▸ Papel de receptores α­adrenérgicos e colinérgicos centrais no controle da natriurese Em  experimentos  que  usam  a  técnica  de  micropunção  de  túbulo  proximal  renal,  foi  observado  que  a  estimulação colinérgica  (por  carbacol)  da  área  hipotalâmica  lateral  (LHA)  induz  diurese  e  natriurese,  sem,  contudo,  alterar  a  taxa  de filtração  glomerular  ou  o  fluxo  plasmático  renal.  Por  outro  lado,  foram  também  estudados  os  efeitos  promovidos  pela estimulação  da  LHA  em  ratos  com  rins  intactos  ou  denervados.  A  denervação  renal,  por  si  só,  já  leva  à chamada natriurese e diurese da denervação. A estimulação da LHA determina uma elevação ainda maior da natriurese e diurese  em  ratos  com  rins  denervados.  Esses  efeitos  sobre  o  volume  urinário  e  a  excreção  renal  de  sódio  foram observados  sem  alterações  no  ritmo  de  filtração  glomerular  ou  no  fluxo  plasmático  renal,  em  ratos  com  rins  intactos  ou denervados.  Estudos  por  micropunção  tubular  em  rins  denervados  mostraram  que,  após  administração  de  carbacol  na LHA, a reabsorção tubular de água diminui de forma significativa ao final do túbulo proximal sem alterações na filtração glomerular do mesmo néfron. Além disso, a natriurese induzida pela injeção intra­hipotalâmica de carbacol independe de alterações  na  atividade  neural  eferente  renal,  pois  esse  efeito  não  é  abolido  em  animais  com  denervação  renal  prévia. Posteriormente,  foi  comprovado  que  a  estimulação  colinérgica  da  LHA  conduz  à  liberação  de  hormônios  neuro­ hipofisários, AVP e OT, responsáveis por parte dos efeitos renais observados. A estimulação colinérgica central também leva ao aumento da liberação de ANP.

REABSORÇÃO RENAL DE SÓDIO E ÁGUA, CONTROLE DO VOLUME E DA OSMOLALIDADE DO LEC Conforme detalhado no Capítulo 53, as variações de volume determinam modificações, no nível dos túbulos renais, da pressão  hidrostática  e  osmótica  (fatores  físico­químicos),  da  atividade  simpática  (fator  neural)  e  da  secreção  de  vários hormônios  (fatores  endócrinos).  As  fibras  do  simpático  renal  inervam  as  arteríolas  aferentes  e  eferentes  do  aparelho justaglomerular, bem como as células dos túbulos renais. Assim, em resposta à expansão isotônica de volume sanguíneo, ocorre,  ao  nível  dos  túbulos  renais  (túbulo  proximal,  ramo  ascendente  espesso  da  alça  de  Henle,  túbulo  distal  e  ducto coletor), uma redução da reabsorção de sódio. O oposto acontece na queda da volemia. Um  dos  fatores  importantes  intrínsecos  ao  rim  e  que  pode  ser  controlado  pelo  sistema  nervoso  é  o  balanço  entre  a pressão hidrostática e a osmótica (as chamadas forças de Starling) nos capilares glomerulares e peritubulares. Quando há queda do volume do LEC, os barorreceptores (de baixa e de alta pressão) induzem, como resposta integrada, aumento da atividade dos nervos simpáticos renais; com isso, acontece elevação da vasoconstrição das arteríolas aferentes e eferentes, além de diminuição da pressão hidrostática dentro do capilar glomerular, da taxa de filtração glomerular e da quantidade de sódio oferecida aos túbulos proximais. Com a redução da filtração glomerular, há queda da carga filtrada de sódio e, consequentemente, menos sódio tubular chega no setor das células da mácula densa. Como essas células são sensíveis às concentrações tubulares de sódio, por um sistema de retroalimentação glomerulotubular, aumenta a filtração glomerular e também  a  secreção  de  renina.  Adicionalmente,  com  a  queda  da  pressão  de  perfusão  renal,  é  estimulada  a  secreção  de renina pelas células musculares das arteríolas aferentes, desencadeando uma reação em cascata que determina o aumento da produção de ANG II e de aldosterona, ambas ativadoras da reabsorção tubular de sódio. Ao mesmo tempo que acontece

diminuição da pressão de perfusão renal, ocorre redução da pressão hidrostática peritubular e elevação da pressão oncótica peritubular,  favorecendo  a  reabsorção  proximal  de  líquido.  Essas  ações  combinadas  determinam  um  decréscimo  da excreção renal de sódio, que modula a restauração do volume do LEC. O  sistema  nervoso  simpático  também  participa  da  regulação  do  volume  do  LEC,  em  resposta  à  expansão  aguda  do volume  sanguíneo.  Uma  expansão  aguda  do  LEC  induz  diminuição  da  atividade  simpática  acompanhada  de  expansão aguda de volume sanguíneo que estimula a liberação de ANP (em resposta ao estiramento dos cardiomiócitos atriais) e de urodilatina (secretada pelas células tubulares renais e que, por uma ação parácrina, diminui a reabsorção tubular de sódio). Esses peptídios reduzem a reabsorção tubular de sódio nos ductos coletores (provocando natriurese), por uma ação direta ou  indireta,  ao  inibirem  a  síntese  de  renina  e,  consequentemente,  de  ANG  II  e  de  aldosterona  e  suas  ações  tubulares.  O ANP inibe também a ação da AVP na reabsorção de água (aumentando a diurese). Em resumo, em resposta a uma expansão aguda de volume sanguíneo, os sensores de volume geram sinais dirigidos para  o  SNC,  onde  são  integrados  e  enviam  informações  neurais,  hormonais  e  físicas  aos  rins.  Tais  informações  são: diminuição da liberação de AVP e da atividade simpática; aumento da liberação de ANP e da urodilatina; subida da pressão de  perfusão  renal,  queda  da  produção  de  renina,  ANG  II  e  aldosterona.  As  ações  integradas  dessas  informações  sobre  a reabsorção renal de água e de sódio visam corrigir a modificação do volume dos líquidos corporais causada pela expansão. O oposto ocorre quando o organismo é submetido à redução do volume extracelular.

CONTROLE DO BALANÇO HIDRELETROLÍTICO EM IDOSOS As  alterações  na  regulação  da  homeostase  da  água  em  idosos  resultam  de  múltiplas  alterações  que  ocorrem  com  o envelhecimento.  Entre  elas  destacam­se:  alterações  na  composição  corporal,  função  renal  diminuída  e  alterações  na regulação hipotálamo­pituitária, nos mecanismos indutores da sede e secreção de arginina AVP. Como  resultado  destas  múltiplas  alterações  sistêmicas,  os  idosos  têm  um  aumento  da  frequência  e  gravidade  da hipoosmolalidade  e  hiperosmolalidade,  manifestada  por  hiponatremia  e  hipernatremia,  bem  como  hipovolemia  e hipervolemia. Com  o  envelhecimento,  podem  ocorrer  alterações  hemodinâmicas  renais:  diminuição  progressiva  na  taxa  de  filtração glomerular e no fluxo renal sanguíneo. Essas alterações hemodinâmicas podem ocorrer associadas às mudanças estruturais: perda de massa renal; hialinização de  arteríolas  aferentes  e,  em  alguns  casos,  desenvolvimento  de  arteríolas  aglomerulares;  aumento  na  porcentagem  de glomérulos escleróticos; e fibroses tubulointersticiais. As mudanças na atividade do SRA e NO parecem ser particularmente importantes. Além  disso,  no  idoso  ocorre  diminuição  da  atividade  do  SRA,  o  que  leva  à  diminuição  da  produção  de  renina  em resposta aos estímulos fisiopatológicos. Os níveis sistêmicos de renina e aldosterona diminuem com a idade. Ocorre também diminuição da produção do NO com o envelhecimento, fato que determina aumento da vasoconstrição renal, retenção de sódio e hipertensão.

PERSPECTIVAS O  desenvolvimento  associado  da  engenharia  genética  e  bioinformática  tem  resultado  nos  últimos  anos  em  uma expansão  considerável  de  nosso  conhecimento  sobre  dois  aspectos­chave  da  neuroendocrinologia  da  osmorregulação  de mamíferos. Estamos começando a entender, em detalhes moleculares, como é feita a transdução de pequenas alterações na osmolalidade  dos  líquidos  corporais  e  como  esse  tipo  de  transdução  altera  a  atividade  neuronal  encefálica  para  produzir neurossecreção.  Além  disso,  graças  à  aplicação  de  tecnologias  transcriptômicas,  temos  agora  um  catálogo  abrangente  da expressão  gênica  em  núcleos  encefálicos­chave  para  a  osmorregulação.  Sabemos  como  essa  expressão  muda  após  um desafio  osmótico,  mas  ainda  falta  uma  apreciação  detalhada  da  sequência  de  eventos  que  ligam  osmorrecepção  aos circuitos neurais que controlam a modulação transcripcional dentro dos neurônios magnocelulares.

BIBLIOGRAFIA ANTUNES­RODRIGUES  J,  CASTRO  M,  ELIAS  LL  et  al.  SM.  Neuroendocrine  control  of  body  fluid  metabolism.  Physiol Rev, 84:169­208, 2004.

ANTUNES­RODRIGUES J, McCANN SM, ROGERS LC et al. Atrial natriuretic factor inhibits dehydration­ and angiotensin II­ induced water intake in the conscious, unrestrained rat. Proc Natl Acad Sci USA, 82:8720­3, 1985. ANTUNES­RODRIGUES J, PICANÇO­DINIZ DLW, VALENÇA MM et al. Controle neuroendócrino da homeostase dos fluidos corporais. In: ANTUNES­RODRIGUES J, MOREIRA AC, ELIAS LLK et al. (Eds.). Neuroendocrinologia Básica e Aplicada. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 2005. BIANCARDI  VC,  SON  SJ,  SONNER  PM  et  al.  Contribution  of  central  nervous  system  endothelial  nitric  oxide  synthase  to neurohumoral activation in heart failure rats. Hypertension, 58:454­63, 2011. BOURQUE CW. Central mechanisms of osmosensation and systemic osmoregulation. Nature Reviews/Neuroscience, 9:519­31, 2008. BURRELL LM, LAMBERT HJ, BAYLISS PH. Atrial natriuretic peptide inhibits fluid intake in hyperosmolar subjects. Clin Sci (Lond), 83:35­9, 1992. CASTRO CH, SANTOS RA, FERREIRA AJ et al. Evidence for a functional interaction of the angiotensin­(1­7) receptor Mas with AT1 and AT2 receptors in the mouse heart. Hypertension, 46(4):937­42, 2005. De LUCA Jr LA, VENDRAMINI RC, PEREIRA DTB et al. Water deprivation and the double­depletion hypothesis: common neural mechanisms underlie thirst and salt appetite. Braz J Med Biol Res, 40:707­12, 2007. De LUCA Jr LA, VIVAS LM, MENANI JV. Controle neuroendócrino da ingestão de água e sal. In: ANTUNES­RODRIGUES J, MOREIRA AC, ELIAS LLK et al. Neuroendocrinologia Básica e Aplicada. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 2005. DENTON  D,  SHADE  R,  ZAMARIPPA  F  et  al.  Correlation  of  regional  cerebral  blood  flowand  change  of  plasma  sodium concentration during genesis and satiation of thirst. Proc Natl Acad Sci U S A, 96:2532­7, 1999. DENTON DA. The Hunger for Salt. Springer­Verlag, Nova York, 1982. EGAN G, SILK T, ZAMARRIPA F et al. Neural correlates of the emergence of consciousness of thirst. Proc Natl Acad Sci U S A, 100:15241­6, 2003. FITZSIMONS JT. Angiotensin, thirst, and sodium appetite. Physiol Rev, 78:583­686, 1998. GIRONACCI MM, CERNIELLO FM, LONGO CARBAJOSA NA et al. Protective axis of the renin­angiotensin system in the brain. Clin Sci (Lond), 127(5):295­306, 2014. GIRONACCI MM, LONGO CARBAJOSA NA, GOLDSTEIN J et al. Neuromodulatory role of angiotensin­(1­7) in the central nervous system. Clin Sci (Lond), 125(2):57­65, 2013. GODINO A, De LUCA LA Jr, ANTUNES­RODRIGUES J et al. Oxytocinergic and serotonergic systems involvement in sodium intake regulation: Satiety or hypertonicity markers? Am J Physiol Regul Integr Comp Physiol, 293:R1027­36, 2007. GRAY  DA.  Role  of  endogenous  atrial  natriuretic  peptide  in  volume  expansion  diuresis  and  natriuresis  of  the  Pekin  duck.  J Endocrinol, 140:85­90, 1994. GREENWOOD  M,  BORDIERI  L,  GREENWOOD  MP  et  al.  Transcription  factor  CREB3  L1  regulates  vasopressin  gene expression in the rat hypothalamus. J Neurosci, 34:3810­20, 2014. GREENWOOD  MP,  GREENWOOD  BT,  GILLARD  SY  et  al.  Epigenetic  Control  of  the  vasopressin  promoter  explains physiological  ability  to  regulate  vasopressin  transcription  in  dehydration  and  salt  loading  states  in  the  rat.  J Neuroendocrinol, 28(4). HUSSY N, DELEUZE C, PANTALONI A et al. Agonist action of taurine on glycine receptors in rat supraoptic magnocellular neurones: possible role in osmoregulation. J Physiol, 502:609­21, 1997. JOHNSON AK, THUNHORST RL. The neuroendocrinology of thirst and salt appetite: visceral sensory signals and mechanisms of central integration. Front Neuroendocrinol, 18:292­353, 1997. KASCHINA E, UNGER T. Angiotensin AT1/AT2 receptors: regulation, signalling and function. Blood Press, 12(2):70­88, 2003. KOSTENIS E, MILLIGAN G, CHRISTOPOULOS A et al. G­protein­coupled receptor Mas is a physiological antagonist of the angiotensin II type 1 receptor. Circulation, 111(14):1806­13, 2005. MANCUSO C, KOSTOGLOU­ATHANASSIOU I, FORSILING ML et al. Activation of heme oxygenase and consequent carbon monoxide formation inhibits the release of arginine vasopressin from rat hypothalamic explants. Molecular linkage between heme catabolism and neuroendocrine function. Mol Brain Res, 50:267­76, 1997. McKINLEY MJ, MATHAI ML, PENNINGTON GL et al. The effect of individual or combined ablation of the nuclear groups of the lamina terminalis on water drinking in sheep. Am J Physiol Regul Integr Comp Physiol, 276:R673­83, 1999. MENANI JV, DE LUCA Jr LA, JOHNSON AK. Role of the lateral parabrachial nucleus in the control of sodium appetite. Am J Physiol Regul Integr Comp Physiol, 306:R201­10, 2014. NEHME B, HENRY M, MOUGINOT D et al. The expression pattern of the Na(+) sensor, Na(X) in the hydromineral homeostatic network: a comparative study between the rat and mouse. Front Neuroanat, 6:26, 2012. NODA M, SAKUTA H. Central regulation of body­fluid homeostasis. Trends Neurosci, 36:661­73, 2013.

OTAKE K, KONDO K, OISO Y. Possible involvement of endogenous opioid peptides in the inhibition of arginine vasopressin release by gammaaminobutyric acid in conscious rats. Neuroendocrinol, 54:170­4, 1991. PHILLIPS  PA,  ROLLS  BJ,  LEDINGHAM  JG  et  al.  Reduced  thirst  after  water  deprivation  in  healthy  elderly  men.  N  Engl  J Med, 311:753­9, 1984. PRAGER­KHOUTORSKY M, BOURQUE CW. Mechanical basis of osmosensory transduction in magnocellular neurosecretory neurones of the rat supraoptic nucleus. J Neuroendocrinol, 27:507­15, 2015. PRAGER­KHOUTORSKY  M,  KHOUTORSKY  A,  BOURQUE  CW.  Unique  interweaved  microtubule  scaffold  mediates osmosensory transduction via physical interaction with TRPV1. Neuron, 83:866­78, 2014. RAMSAY DJ. The importance of thirst in maintenance of fluid balance. Baillieres Clin Endocrinol Metab, 3(2):371­91, 1989. ROBERTSON GL, BERL T. Water metabolism. In: BRENNER BM, RECTOR FC Jr (Eds.). The Kidney.  3.  ed.  WB  Saunders, Philadelphia, 1986. SANTOS  RA,  CAMPAGNOLE­SANTOS  MJ.  Central  and  peripheral  actions  of  angiotensin­(1­7).  Braz  J  Med  Biol Res, 27(4):1033­47, 1994. SIMERLY RB, SWANSON LW. Projections of the medial preoptic nucleus: a Phaseolus vulgaris leucoagglutinin anterograde tract­tracing study in the rat. J Comp Neurol, 270:209­42, 1988. SLY DJ, MCKINLEY MJ, OLDFIELD BJ. Activation of kidney­directed neurons in the lamina terminalis by alterations in body fluid balance. Am J Physiol Regul Integr Comp Physiol, 281:R1637­46, 2001. SOARES  TJ,  COIMBRA  TM,  MARTINS  RA  et  al.  Atrial  natriuretic  peptide  and  oxytocin  induce  natriuresis  by  release  of GMPc. Proc Natl Acad Sci U S A, 96:278­83, 1999. STELLWAGEN D, MALENKA RC. Synaptic scaling mediated by glial TNFalpha. Nature, 440:1054­9, 2006. TAKEI  Y.  Comparative  physiology  of  body  fluid  regulation  in  vertebrates  with  special  reference  to  thirst  regulation.  Jpn  J Physiol, 50:171­86, 2000. THRASHER TN. Osmoreceptor mediation of thirst and vasopressin secretion in the dog. Fed Proc, 41:2528­32, 1982. THRASHER TN, BROWN CJ, KEIL LC et al. Thirst and vasopressin release in the dog: an osmoreceptor or sodium receptor mechanism? Am J Physiol Regul Integr Comp Physiol, 238:R333­9, 1980. VERBALIS JG. Disorders of body water homeostasis. Best Pract Res Clin Endocrinol Metab, 17(4):471­503, 2003. VERBALIS  JG,  BLACKBURN  RE,  HOFFMAN  GE  et  al.  Establishing  behavioral  and  physiological  functions  of  central oxytocin:insights from studies of oxytocin and ingestive behaviors. Adv Exp Med Biol, 395:209­25, 1995. WATANABE E, FUJIKAWA A, MATSUNAGA H et al. Nav2/NaG channel is involved in control of salt­intake behavior in the CNS. J Neurosci, 20(20):7743­51, 2000. WATANABE E, HIYAMA TY, SHIMIZU H et al. Sodium­level­sensitive sodium channel Na(x) is expressed in glial laminate processes in the sensory circumventricular organs. Am J Physiol Regul Integr Comp Physiol, 290: R568­76, 2006. WEINSTEIN JR, ANDERSON S. The aging kidney: physiological changes. Adv Chronic Kidney Dis, 17(4):302­7, 2010. WINAVER J, HOFFMAN A, ABASSI Z et al. Does the heart’s hormone, ANP, help in congestive heart failure? News Physiol Sci, 10:247­53, 1995.





Introdução

■ ■

Metabolismo mineral Absorção e excreção

■ ■ ■

Distribuição Metabolismo ósseo Crescimento, modelação e remodelação óssea

■ ■

Paratireoides PTH­related peptide

■ ■ ■

Células parafoliculares | Calcitonina Vitamina D Regulação hormonal integrada da homeostase mineral

Os Dentes Priscilla Morethson ■ ■

Esmalte Complexo dentinopulpar



Cemento

■ ■

Ligamento periodontal Osso alveolar

■ ■

Erupção dentária | Odontogênese Irrupção dentária

■ ■

Dentes e fisiologia osteomineral e nervosa | A odontologia na fronteira da ciência Bibliografia

INTRODUÇÃO Durante  o  desenvolvimento  das  primeiras  formas  de  vida,  o  aparecimento  de  membranas  lipídicas  semipermeáveis  – que  envolvem  todas  as  células  vivas  –  permitiu  a  compartimentalização  de  reações  bioquímicas  em  um  ambiente intracelular  de  composição  controlada.  Para  manter  uma  composição  iônica  citoplasmática  compatível  com  os  processos vitais,  as  células  desenvolveram  mecanismos  capazes  de  reconhecer  e  reagir  a  alterações  na  concentração  iônica intracelular  por  meio  de  mudanças  na  permeabilidade  da  membrana  celular  e  ativação  de  transportadores  dependentes  de energia.  O  aparecimento  de  seres  multicelulares  fez  com  que  mecanismos  adicionais  fossem  desenvolvidos  visando  à manutenção  da  concentração  iônica  dos  líquidos  extracelulares.  Hoje,  sabe­se  que  esses  mecanismos  relacionam­se  de maneira  complexa  e  envolvem  múltiplos  órgãos  e  tecidos  –  paratireoides,  células  parafoliculares  da  tireoide,  pele,  rins  e ossos – e diferentes classes de hormônios que, por modificarem o grau de diferenciação de seus tecidos­alvo, mantêm a homeostase mineral dentro de estreitos limites compatíveis com a vida.

METABOLISMO MINERAL O cálcio é o íon mineral mais abundante no ser humano e o quinto elemento mais encontrado no organismo (Quadro 76.1).  Participa  de  modo  importante  em  múltiplos  processos  celulares  e  extracelulares,  incluindo  a  proteólise  de componentes  do  plasma  (p.  ex.,  coagulação  sanguínea  e  geração  de  cininas  vasoativas),  sinalização  intracelular, manutenção do potencial de membrana celular, contração muscular e exocitose, além de, juntamente com o fosfato, ser um elemento  fundamental  na  composição  dos  cristais  de  hidroxiapatita  que  dão  resistência  ao  tecido  ósseo.  Da  mesma maneira, muitas reações celulares são dependentes da disponibilidade de fosfato, que serve ainda como um dos principais tampões citoplasmáticos, a base para a troca de energia e um componente essencial de membranas e ácidos nucleicos. O cálcio e o magnésio estão presentes em quantidades abundantes nos tecidos mineralizados, com grande predomínio do primeiro sobre o segundo. No nível intracelular, entretanto, o magnésio é o segundo cátion mais abundante, depois do potássio, com concentrações até 1.000 vezes superiores às do cálcio, enquanto somente 5% do magnésio do organismo é encontrado  nos  líquidos  extracelulares.  A  concentração  sérica  normal  de  magnésio  varia  de  1,5  a  2,0  mEq/ ℓ .  Ele  é essencial à vida e está envolvido em inúmeros processos metabólicos. Atua como cofator em várias reações enzimáticas, incluindo a adenilciclase, que catalisa a formação de cAMP, e a ATPase, que propicia a transferência de grupos fosfato de nucleotídios trifosfatados com alta energia. Já se encontra bem definido seu papel na transmissão dos impulsos nervosos, na contração muscular, na manutenção dos potenciais de membranas, assim como na função e estrutura dos DNA e RNA. Sua deficiência implica manifestações clínicas que envolvem os sistemas nervoso central e cardiovascular, além de estar relacionada com diabetes melito e hipertensão arterial.

Quadro 76.1 ■ Composição dos elementos do corpo humano. Elemento

% No total de átomos

% Peso

Hidrogênio

63,0

10,0

Oxigênio

25,5

64,5

Carbono

  9,5

18,0

Nitrogênio

  1,4

  3,1

Cálcio

  0,31

  1,96

Fósforo

  0,22

  1,08

Cloro

  0,08

  0,45

Potássio

  0,06

  0,37

Enxofre

  0,05

  0,25

Sódio

  0,03

  0,11

Magnésio

  0,01

  0,04

Fonte: Lehninger, 1975.

ABSORÇÃO E EXCREÇÃO

▸ Cálcio O fosfato de cálcio é um dos principais constituintes do esqueleto, que retém cerca de 99% do cálcio do organismo. A entrada do sal de cálcio no corpo envolve uma série de transformações de estado – de sólido para líquido (na digestão e

absorção intestinal), novamente para mineral sólido (durante o depósito no osso) e de volta a líquido (na reabsorção óssea) –  para  manutenção  dos  níveis  plasmáticos  (Figura  76.1).  Como  outros  cátions,  o  cálcio  pode  atravessar  membranas celulares  e  se  mover  por  diversos  compartimentos  com  diferentes  gradientes  de  concentração.  As  concentrações intracelulares de cálcio são por volta de 100 a 100.000 vezes inferiores às dos compartimentos extracelulares, e variações não superiores a 5% durante as 24 h do dia podem ser observadas nas concentrações plasmáticas de cálcio. Isso significa que todas estas reações se mantêm em um complexo equilíbrio, à custa de controles na sua absorção intestinal, evitando picos plasmáticos pós­prandiais excessivos do íon, na sua excreção renal, assim como na sua deposição e reabsorção no osso. Esta manutenção de níveis mais ou menos constantes é fundamental para o adequado funcionamento do organismo, uma vez que o cálcio atua como mediador de uma série de fenômenos biológicos vitais ao organismo (Quadro 76.2). Tanto seu  excesso  como  sua  falta  podem  ocasionar  distúrbios  em  vários  sistemas  (neurológico,  cardíaco,  gastrintestinal  etc.), podendo, quando em graus extremos, causar morte. O  cálcio  ingerido  com  os  alimentos  comumente  se  encontra  ligado  ou  na  forma  sólida,  necessitando  ser  modificado (solubilizado)  para  que  seja  absorvido.  Sua  velocidade  de  absorção  e  redistribuição  no  organismo  deve  ser  tal  que  não comprometa as concentrações plasmáticas de cálcio, que se mantêm por volta de 2,5 mmol/ℓ de cálcio total, e 1,25 mmol/ ℓ  da  fração  ionizada.  Assim  que  o  quimo  entra  no  intestino,  é  sujeito  à  ação  mecânica  devido  ao  peristaltismo  e  à  ação química das enzimas intestinais, principalmente das peptidases. Desta maneira, o cálcio é solubilizado e absorvido para a linfa  ou  sangue  através  do  epitélio  intestinal.  Existem  basicamente  dois  mecanismos  envolvidos  neste  transporte.  O primeiro  é  saturável  (ativo),  via  transcelular,  sujeito  à  regulação  hormonal  (pela  vitamina  D)  e,  portanto,  também  à retrorregulação. Ocorre principalmente na porção proximal do intestino delgado, isto é, duodeno e porção inicial do jejuno. O  segundo  mecanismo  é  não  saturável,  dependente  do  gradiente  de  concentração  entre  o  lúmen  intestinal  e  líquidos corporais, provavelmente via paracelular. Este mecanismo não está sujeito a qualquer controle endócrino e pode ocorrer ao longo de todo o intestino, porém corresponde a uma proporção menor do cálcio total absorvido (para mais informações, ver Capítulo 63, Absorção Intestinal de Água e Eletrólitos).

Figura  76.1  ■   Modelo  esquemático  da  homeostase  diária  de  cálcio  no  homem  adulto  que  ingere  1.000  mg  de  cálcio.  Pelo intestino,  são  secretados  300  mg/dia.  A  média  da  absorção  no  nível  intestinal  é,  em  condições  habituais,  de  cerca  de  30%; portanto, dos 1.300 mg que estão no lúmen intestinal são absorvidos 400 mg. Levando­se em consideração que 300 mg são de origem endógena, apenas 100 mg do cálcio ingerido foram absorvidos. Todos os compartimentos permanecem em equilíbrio

constante, e aproximadamente 10.000 mg de cálcio são filtrados pelos glomérulos renais/dia. A maior parte desse cálcio (99%) é reabsorvida nos túbulos, sendo excretados na urina apenas 100 mg/dia. LEC, líquido extracelular.

O intestino secreta cerca de 300 mg do cálcio de origem endógena para o lúmen intestinal pela bile e outras secreções, que  se  soma  ao  cálcio  da  dieta.  Desde  que  a  máxima  fração  de  absorção  seja  ao  redor  de  70%,  em  caso  de  dieta completamente sem cálcio a absorção apenas restauraria ao organismo 200 mg do cálcio endógeno secretado, induzindo a um balanço negativo de 100 mg/dia. Sendo assim, a dieta mínima para que se alcance balanço zero nestas condições seria de 200 mg/dia. Em dietas pobres em cálcio, a absorção ocorre predominantemente pelo processo ativo, mas, à medida que a  oferta  de  cálcio  aumenta,  este  processo  torna­se  saturado,  e  quantidades  adicionais  de  cálcio  são  então  absorvidas somente pelo mecanismo de difusão não saturável (Figura 76.2).

Quadro 76.2 ■ Fenômenos biológicos relacionados com modificações das concentrações de cálcio ionizado intracelular. ■ Excitação e contração muscular ■ Liberação de neurotransmissores ■ Movimentação das estruturas citoplasmáticas ■ Movimento ciliar ■ Secreção exócrina ■ Liberação de hormônios pelas glândulas endócrinas ■ Fertilização ■ Divisão celular ■ Comunicação entre as células ■ Atividade enzimática ■ Excitação de cones e bastonetes ■ Movimento cromossômico ■ Iniciação da síntese de DNA Diversos fatores, no entanto, podem influir na quantidade de cálcio disponível para ser absorvido ou no mecanismo de absorção propriamente dito. A formação de complexos insolúveis está associada a dietas ricas em fósforo, fitatos ou ácido oxálico.  Em  uma  dieta  habitual,  encontra­se  fósforo  em  quantidade  abundante,  mas  aparentemente  apenas  quando  a proporção fósforo:cálcio ultrapassa 3:1 é que se observa interferência na quantidade de cálcio absorvida. Provavelmente, devido ao fato de o leite humano ter menor proporção fósforo:cálcio que o leite de vaca, a quantidade de cálcio absorvida é maior no primeiro. A existência de pH excessivamente alcalino no lúmen intestinal também interfere na solubilização do cálcio  ingerido,  quer  por  um  problema  intrínseco  do  intestino  (nas  síndromes  mal­absortivas),  quer  por  uma  deficiente acidificação  do  conteúdo  gástrico  (ou  acloridria).  Por  outro  lado,  alguns  açúcares,  notavelmente  a  lactose,  aumentam  a absorção  intestinal  de  cálcio,  por  um  mecanismo  ainda  não  esclarecido.  Desde  que  a  vitamina  D  é  o  maior  regulador  da absorção intestinal ativa de cálcio, distúrbios associados a menor oferta ou ação deste hormônio também induzem a menor absorção  deste  cátion;  ao  passo  que,  quando  em  quantidades  excessivas,  a  absorção  intestinal  está  aumentada,  como  no hiperparatireoidismo primário ou na intoxicação pela vitamina D. Em condições habituais, apenas 2% da carga de cálcio filtrado pelos glomérulos é excretada, e 98% são reabsorvidos pelos túbulos renais. O mecanismo de controle da reabsorção tubular de cálcio é feito de maneira a proteger o indivíduo de potencial  hipercalcemia  no  caso  de  ingestão  excessiva.  Há  uma  correlação  linear  positiva  entre  elevação  de  ingesta  e aumento da excreção renal de cálcio, quando esta excreção supera 150 mg. Abaixo destes níveis de excreção, entretanto, esta correlação é perdida, apesar da atuação do paratormônio aumentando a reabsorção tubular do cálcio filtrado. Portanto, em condições de dieta pobre em cálcio a excreção não se reduz proporcionalmente, levando o indivíduo a um balanço de cálcio  negativo.  Além  disso,  a  excreção  renal  de  cálcio  está  intimamente  relacionada  com  a  quantidade  de  sódio  e  de proteínas da dieta. Para cada mmol de sódio excretado, excreta­se juntamente 0,1 mmol de cálcio. Do mesmo modo, existe forte correlação entre a quantidade de proteínas ingeridas na dieta e a de cálcio excretada na urina, independentemente da quantidade de cálcio ingerida (Quadro 76.3).

Figura 76.2  ■   Relação  entre  ingesta  de  cálcio  e  porcentagem  de  absorção  do  cálcio  ingerido.  A  avaliação  foi  feita  em  212 balanços em 84 indivíduos normais. (Adaptada de Nordin, 1988.)

As recomendações diárias de cálcio variam de acordo com a fase da vida. Para um adulto normal, o recomendado deve preservar o conteúdo de cálcio do organismo, mantendo­o em balanço zero. Esta condição depende não só da porcentagem de cálcio absorvida, mas também da quantidade de cálcio excretada pelos rins. Esta quantidade foi repetidamente calculada para  indivíduos  normais  e  varia,  na  maioria  dos  estudos,  de  400  a  800  mg  (ou  6  a  12,5  mg/kg)  diários.  Condições especiais como durante a fase do estirão puberal, a gestação e a lactação necessitam de doses mais elevadas, variando de 1.200 a 1.500 mg/dia, assim como no climatério, quando para a mulher se preconizam 800 a 1.000 mg/dia.

Quadro 76.3 ■ Média da excreção urinária de cálcio para diferentes quantidades de cálcio e proteínas ingeridas na dieta. Ingesta de cálcio (mg/dia)

Ingesta de proteína (g/dia)

Cálcio urinário (mg/dia)

100

6

51

78

99

150

161

6

105

24

131

78

155

6

80

78

163

900

1.300

1.600

2.300

150

274

6

46

78

92

387

318

78

81

300

176

600

380

Fonte: Linkswiler et al., 1981; Margen et al., 1974.

▸ Fósforo e magnésio Grandes  quantidades  de  fosfato  (800  mg)  e  magnésio  (350  mg)  também  devem  ser  ingeridas  diariamente  pelo organismo.  Ao  contrário  do  cálcio,  a  absorção  intestinal  de  fosfato  e  magnésio  se  dá  por  meio  de  processo  único  não saturável (por transporte passivo), que varia linearmente com a carga alimentar destes elementos. O fósforo não é somente um  dos  principais  componentes  minerais  do  osso  na  composição  da  hidroxiapatita,  mas  também  é  um  mediador  de transferência de energia, além de participar de uma série de reações metabólicas intracelulares. Devido a este papel crítico, o  organismo  desenvolveu  mecanismos  eficientes  para  a  obtenção  e  manutenção  das  quantidades  necessárias  de  fósforo, que são exercidos basicamente pelo intestino e pelos rins. Existe uma relação direta entre o conteúdo alimentar de fósforo, a quantidade absorvida pelo sistema digestório e a excretada pelos rins. Afortunadamente, o fósforo é abundante em uma série de alimentos, onde se apresenta na forma de fosfatos, de tal maneira que sua deficiência nutricional é extremamente rara. O intestino delgado é o local mais importante para absorção de fosfatos, cujo transporte se faz predominantemente no jejuno e íleo, e em menor parcela no duodeno. Em uma dieta de 4 a 30 mg/kg/dia de fósforo inorgânico, a absorção fica por  volta  de  60  a  65%  do  ingerido.  Esta  absorção  se  faz  por  dois  mecanismos:  por  transporte  celular  ativo  e  por  fluxo difusional,  a  favor  do  gradiente  elétrico  e  de  concentração,  especialmente  através  de  passagem  paracelular  pelas membranas  basolaterais  dos  enterócitos.  Apenas  em  casos  de  deficiência  de  fosfatos  é  que  a  via  ativa  de  absorção intestinal  passa  a  ter  relevância,  responsiva  à  1,25­di­hidroxivitamina  D.  Apesar  disso,  nos  casos  de  deficiência  de vitamina  D,  a  absorção  intestinal  de  fosfato  está  reduzida  em  apenas  15%.  Como  as  dietas,  de  maneira  geral,  são abundantes  em  fosfatos,  a  quantidade  de  fósforo  absorvida  frequentemente  excede  as  necessidades  diárias.  Entretanto,  a formação  de  sais  insolúveis  com  cálcio,  alumínio  ou  magnésio  no  lúmen  pode  reduzir  em  até  50%  a  absorção  intestinal dos fosfatos. Ambos, o fosfato e a vitamina D ativa, delineiam um típico sistema endócrino de retrorregulação, pois a redução dos níveis  plasmáticos  de  fosfato  é  um  dos  mais  potentes  estimuladores  da  atividade  da  enzima  renal  1­α­hidroxilase,  que converte a 25­hidroxivitamina D no seu metabólito ativo, a 1,25­di­hidroxivitamina D. Esta, por sua vez, eleva os níveis de  fosfatos  circulantes  por  aumento  na  sua  liberação  a  partir  do  osso  e,  principalmente,  estimulando  sua  absorção intestinal,  juntamente  com  o  cálcio.  O  aumento  das  concentrações  de  fósforo  diminui  a  atividade  da  1­α­hidroxilase, reduzindo os níveis da 1,25­di­hidroxivitamina D circulantes, e hoje se sabe que essa inibição é intermediada pelo fator de crescimento  fibroblástico  23  (FGF­23).  A  vitamina  D,  entretanto,  parece  não  ser  a  única  responsável  pela  elevação  dos níveis  de  fosfato.  Em  condição  de  privação,  o  fosfato  é  poupado  nos  seus  três  compartimentos  fundamentais  (osso, intestino  e  rins),  mesmo  na  ausência  de  vitamina  D,  sugerindo  a  presença  de  outros  fatores  reguladores.  O  rim  reage imediatamente  a  modificações  nos  conteúdos  de  fósforo  plasmático  e  dietético.  O  balanço  entre  a  taxa  de  filtração glomerular  e  a  reabsorção  tubular  determina  uma  adaptação  renal.  A  concentração  de  fosfatos  no  filtrado  glomerular  é aproximadamente  90%  do  plasmático,  uma  vez  que  não  é  todo  fosfato  que  é  ultrafiltrável.  Sendo  assim,  a  regulação  da reabsorção tubular de fosfato é fundamental para que as concentrações de fosfato se mantenham em valores adequados. O hormônio da paratireoide (PTH) reduz a reabsorção tubular de fósforo do filtrado, atuando no túbulo contornado proximal e túbulo distal por vias que ativam a adenilciclase com a produção de AMP cíclico, mas também por vias não dependentes de  adenilciclase.  No  túbulo,  a  reabsorção  de  fósforo  pode  ocorrer  por  difusão  passiva  através  da  membrana  basolateral, comandada  provavelmente  por  gradiente  elétrico,  ou  por  meio  de  transportadores  de  fósforo  intracelulares.  Mais

recentemente,  três  famílias  de  cotransportadores  Na+­P  (Npt)  foram  identificadas:  tipos  I,  II  e  III.  Estas  famílias  não apresentam alta homologia em sua sequência primária de aminoácidos e variam substancialmente quanto à afinidade pelo substrato,  dependência  do  pH  e  expressão  tecidual.  Trabalhos  mais  atuais  mostram  que  o  cotransportador  Na­Pi  tipo  II (Npt2) tem um papel crucial no fluxo de fosfato através das bordas em escova das células tubulares renais (Npt2a e Npt2 c) e no intestino (Npt2b). Outros  hormônios  e  alterações  metabólicas  também  modulam  a  reabsorção  de  fosfato  pelo  rim.  Dentre  estes, PTH, PTH­related protein (PTHRP), calcitonina, TGF­β, glicocorticoides e a carga de fosfato inibem a reabsorção tubular renal de fosfato, enquanto IGF­I, insulina, hormônios da tireoide, 1,25(OH)2D, EGF e depleção de fosfatos aumentam sua reabsorção renal. O alvo comum para ação destes hormônios são as células do túbulo proximal.

Fosfatoninas A  ocorrência  de  doenças  ósseas  com  raquitismo  e  osteomalacia  associadas  a  hipofosfatemia  por aumento da excreção renal de fosfatos reforça a ideia da existência de mecanismos específicos de controle dos níveis de fosfato. Dentre essas moléstias, há o raquitismo hipofosfatêmico ligado ao cromossomo X, o raquitismo  hipofosfatêmico  autossômico  dominante,  o  raquitismo  hipofosfatêmico  com  hipercalciúria  e  a osteomalacia  oncogênica.  Esta  última  é  uma  doença  óssea  grave  que  acomete  em  geral  adultos previamente  sadios,  caracterizada  por  múltiplas  fraturas,  deformidades  e  dor  óssea  intensa  que  podem levar  à  dependência  física,  provocada  por  pequenos  tumores  mesenquimais  que,  quando  localizados  e retirados,  promovem  a  cura  completa  da  doença.  Isso  sugeria  fortemente  a  existência  de  substâncias produzidas  por  esses  tumores,  capazes  de  promover  fosfatúria.  Pelo  menos  quatro  peptídios  fosfatúricos foram  isolados  desses  tumores:  fator  de  crescimento  de  fibroblastos  23  (FGF­23),  proteína secretada  frizzle­relacionada  4  (sFRP­4),  fosfoglicoproteína  de  matriz  extracelular  (MEPE)  e  o  fator  de crescimento de fibroblastos 7 (FGF­7). Destes, FGF­23 e sFRP­4 também têm a capacidade de inibir a 1­α­ hidroxilase,  que  normalmente  deveria  estar  aumentada  em  situações  de  hipofosfatemia,  agravando  ainda mais  o  quadro  de  osteomalacia.  Por  esse  motivo,  esses  dois  peptídios  vêm  sendo denominados fosfatoninas.  Eles  atuam  inibindo  a  reabsorção  tubular  proximal  de  fosfatos,  provavelmente por regulação do Npt2, provocando a internalização destes cotransportadores para o meio intracelular. FGF­23  vem  sendo  considerado  atualmente  como  o  principal  regulador  das  concentrações  de  fosfato inorgânico  plasmático.  É  membro  da  família  do  fator  de  crescimento  de  fibroblastos,  produzido predominantemente pelos osteócitos e osteoblastos, regulado pelas concentrações plasmáticas de fósforo e pelo  conteúdo  de  fosfatos  na  dieta.  Sua  ação  nos  túbulos  renais  depende  da  presença  do  correceptor Klotho, e seu efeito fosfatúrico é produzido pela redução da expressão dos cotransportadores Na­Pi 2a e 2c nas bordas em escova das células tubulares renais.

DISTRIBUIÇÃO Uma vez no compartimento plasmático, uma parte substancial do cálcio (45%), magnésio (31%) e fosfato (13%) liga­ se  a  proteínas  circulantes,  principalmente  a  albumina  (70%),  fazendo  com  que  apenas  a  fração  ionizada  participe diretamente  nos  processos  biológicos.  Não  obstante,  esses  minerais  apresentam  grande  volume  de  distribuição, abandonando  rapidamente  a  circulação  para  os  compartimentos  extra  e  intracelular.  Mesmo  assim,  devido  à  importância fisiológica  desses  minerais,  suas  concentrações  plasmáticas  ionizadas  (livres)  são  mantidas  dentro  de  limites  muito restritos  por  uma  série  de  sistemas  de  feedback  que  envolvem  múltiplas  glândulas  e  tecidos.  Isso  é  particularmente necessário  para  o  cálcio  porque,  devido  à  sua  participação  na  manutenção  do  potencial  de  membrana,  variações  da calcemia, em ambos os sentidos, podem levar a arritmias cardíacas graves, convulsão, coma e morte.

▸ Cálcio, magnésio e fosfato no citosol A matriz mineralizada é bastante rica em cálcio e magnésio, os dois cátions mais abundantes, com grande predomínio do  primeiro  sobre  o  segundo.  No  meio  intracelular,  entretanto,  as  concentrações  de  magnésio  chegam  a  ser  1.000  vezes maiores  que  as  de  cálcio.  Como  acontece  com  o  cálcio,  o  magnésio  intracelular  está  compartimentalizado  em  diferentes organelas celulares. A maioria se encontra no núcleo, nas mitocôndrias e nos microssomos. Os fosfolipídios da membrana

carregados  negativamente  permitem  a  união  do  Mg2+  intracelular  à  membrana,  apesar  de  a  maior  parte  do  magnésio intracelular  estar  ligado  ao  ATP  e  a  outras  substâncias  celulares  com  cargas  negativas  (citratos,  ADP,  RNA,  DNA, proteínas, lipídios etc.). As  concentrações  citosólicas  de  fosfato  são  cerca  de  10  vezes  menores  que  no  plasma.  O  fosfato  apresenta­se incorporado  covalentemente  a  muitas  proteínas,  lipídios  e  ácidos  nucleicos.  Como  discutido  no Capítulo  3,  Sinalização Celular, essa incorporação é bem importante no controle do metabolismo celular, já que muitas enzimas sofrem alterações acentuadas de sua atividade após modificação por fosforilação ou desfosforilação. A  concentração  citosólica  de  cálcio  ionizado  encontra­se  na  faixa  de  10  a  100  nM,  podendo  apresentar  elevações acentuadas e transitórias após despolarização da membrana plasmática ou mobilização dos depósitos intracelulares durante a  contração  muscular.  É  interessante  que  o  resultado  de  pequenos  influxos  de  cálcio,  originários  de  porções  restritas  da membrana  plasmática,  faz  com  que  o  aumento  da  concentração  desse  íon  possa  ser  delimitado  a  pequenos  volumes  de citosol.  Isso  se  dá  graças  à  pequena  mobilidade  do  cálcio  no  citoplasma  e  à  alta  eficiência  de  vários  sistemas sequestradores  de  cálcio,  que  restauram  rapidamente  a  concentração  de  cálcio  ionizado  aos  níveis  normais,  sem  que  o restante do citosol seja perturbado. A manutenção de baixa concentração citosólica de cálcio ionizado é o resultado do controle rígido entre a entrada e a saída  de  cálcio  do  citosol.  A  primeira  depende  da  magnitude  e  frequência  dos  influxos  de  cálcio  a  partir  do  meio extracelular  e  de  compartimentos  intracelulares,  isto  é,  retículo  endoplasmático  e  mitocôndrias;  a  segunda  é  diretamente relacionada  com  a  eficiência  dos  transportadores  de  cálcio  para  fora  do  citosol.  Existem  transportadores  de  cálcio dependentes  de  energia  (Ca2+­ATPases)  na  membrana  plasmática,  no  retículo  endoplasmático  e  sarcoplasmático,  assim como nas mitocôndrias. Portanto,  a  concentração  citosólica  de  cálcio  aumenta  transitoriamente  em  alguns  processos  bem  caracterizados:  (a) durante o processo de contração muscular, a despolarização do sarcolema leva à liberação maciça de cálcio armazenado no retículo  sarcoplasmático;  (b)  alguns  hormônios,  após  interagirem  com  seus  receptores  de  membrana,  levam  à  liberação intracelular de trifosfato de inositol (IP3), que ocasiona aumento da permeabilidade do retículo endoplasmático ao cálcio; (c) a excitação de qualquer célula secretora aumenta a permeabilidade da membrana plasmática ao cálcio, fazendo com que quantidades  substanciais  desse  íon  movam­se,  a  favor  de  seu  gradiente  de  concentração,  para  o  interior  da  célula, desencadeando  o  processo  de  secreção/exocitose.  Em  qualquer  uma  dessas  circunstâncias,  entretanto,  graças  à  imediata ativação  dos  transportadores  de  cálcio,  o  aumento  do  cálcio  citosólico  é  apenas  transitório,  o  que  faz  as  alterações intracelulares desencadeadas por esse íon serem fugazes e reversíveis, isto é, relaxamento muscular, fim da ação hormonal e parada da exocitose.

METABOLISMO ÓSSEO

▸ Organização estrutural do osso O  esqueleto  pode  ser  funcionalmente  dividido  em  axial  e  apendicular.  Por  esqueleto  axial,  entendem­se  os  ossos  do crânio,  da  coluna  vertebral  e  da  bacia.  Do  esqueleto  apendicular,  fazem  parte  os  ossos  dos  membros  inferiores  e superiores.  Esta  divisão  apresenta  aspectos  práticos  importantes,  uma  vez  que  estes  dois  setores  podem  responder  de maneiras diferentes a uma série de estímulos. O tecido ósseo pode ainda ser dividido, sob o aspecto morfológico, em cortical e trabecular. Esta caracterização é feita já no nível macroscópico, sendo o cortical um osso compacto, enquanto o trabecular, como o próprio nome diz, é formado por  inúmeras  traves  ósseas,  levando  a  um  aspecto  esponjoso.  O  osso  cortical  é  encontrado,  predominantemente,  nas diáfises dos ossos longos (apendiculares) e recobrindo como uma fina camada a superfície do esqueleto axial, como bacia e vértebras. O trabecular pode ser encontrado nas metáfises dos ossos longos, mas predomina entre as camadas corticais dos ossos chatos, como vértebras, bacia e escápula.

▸ Composição do osso O tecido esquelético é constituído de uma matriz extracelular que contém componentes orgânicos (35%) e inorgânicos (65%). As células correspondem a uma pequena parte da massa óssea, mas são responsáveis: ■ Pela  função  de  regulação  da  distribuição  e  do  conteúdo  do  componente  inorgânico  e,  portanto,  pela  manutenção  dos níveis circulantes de cálcio e fósforo (homeostase mineral)

Pela  contínua  reabsorção  e  formação  (modelação  e  remodelação)  da  matriz  óssea,  fazendo  com  que  o  sistema ■ esquelético responda a forças mecânicas geradas pela sustentação de pesos e atividade física (homeostase esquelética). A  síntese  de  matriz  proteica  (osteoide),  que  posteriormente  será  mineralizada  graças  à  deposição  de  cristais  de hidroxiapatita,  é  feita  por  células  que  evoluem  por  diferentes  estágios  de  maturação  e  diferenciação.  Este  processo  se inicia nas células indiferenciadas provenientes da medula óssea (mesenquimais e fibroblastos), que se tornam fusiformes, proliferam e apresentam atividade de fosfatase alcalina (pré­osteoblastos), chegando a células maduras; então, param de se multiplicar e passam a produzir matriz óssea (osteoblastos), para finalmente serem aprisionadas em meio à matriz óssea mineralizada (osteócitos).

▸ Matriz extracelular | Componentes orgânicos A  matriz  orgânica  extracelular  é  quase  exclusivamente  (90%)  composta  por  uma  proteína,  o  colágeno,  que  tem importante  participação  no  processo  de  mineralização  óssea.  Os  outros  10%  correspondem  a  glicoproteínas, mucopolissacarídios e lipídios cujo papel na fisiologia óssea permanece, em grande parte, obscuro (Quadro 76.4).

Quadro 76.4 ■ Composição da matriz orgânica do osso. ■ Colágenos: predominantemente tipo I, traços dos tipos III, V, XI e XIII ■ Proteoglicanos: biglican, decorina, hialurinan ■ Glicoproteínas: osteonectina, sialoproteína óssea, osteopontina, trombospondina e fibronectina ■ Proteínas com ácido gamacarboxiglutâmico (GLA): osteocalcina, gla­proteína da matriz ■ Enzimas: fosfatase alcalina, colagenase, proteinases cisteínas, ativador do plasminogênio ■ Fatores  de  crescimento:  fibroblast  growth  factors  (FGF),  insulin­like  growth  factors  (IGF),  transforming growth factors beta (TGF­β), proteínas ósseas morfogenéticas (BMP) ■ Proteolipídios O colágeno é o principal componente orgânico da matriz extracelular. O gene dessa proteína contém mais de 50 éxons e  inúmeros  íntrons,  sendo  um  dos  mais  complexos  que  se  conhece.  O  processamento  pós­transcricional  da  molécula  de mRNA nascente dá origem a moléculas diferentes de mRNA que, após tradução, levarão à formação de cadeias peptídicas diferentes. No osso, a molécula do colágeno do tipo I, rica em glicina, hidroxiprolina e hidroxilisina, é composta por três cadeias  peptídicas  (duas  alfa­1  e  uma  alfa­2)  que  se  mantêm  ligadas  por  interações  eletrostáticas.  O  colágeno  do  tipo  I também  pode  ser  encontrado  na  pele,  mas  é  diferente  do  colágeno  da  cartilagem  (tipo  II),  tecido  elástico  (tipo  III)  e membrana  basal  (tipo  IV).  Após  serem  sintetizadas  e  secretadas  pelos  osteoblastos,  múltiplas  moléculas  de  colágeno  do tipo I organizam­se em série (terminação com terminação) e em paralelo (lado a lado) para formar fibrilas com espessura de 5 a 7 moléculas que permanecem unidas por ligações covalentes. A sobreposição, em paralelo, da extremidade de uma molécula  de  colágeno  sobre  a  outra  e  a  existência,  em  série,  de  um  pequeno  gap  (espaço)  entre  a  terminação  de  uma molécula e o início da outra, dá origem a regiões periódicas tridimensionais conhecidas por hole zones ou buracos; essas regiões são os locais de início da mineralização óssea (Figura 76.3). Defeitos nos genes que determinam as moléculas do colágeno  do  tipo  I  acarretam  doença  óssea  grave,  com  aumentado  risco  de  fraturas  e  deformidades, denominada osteogenesis imperfecta. A osteocalcina (proteína GLA) corresponde a 1 a 2% de toda a proteína no osso. Essa proteína (peso molecular de 6 kDa) contém três resíduos de ácido gamacarboxiglutâmico (gla), resultantes de modificações pós­traducionais catalisadas por uma enzima dependente da vitamina K. A osteocalcina liga­se fracamente ao cálcio, mas apresenta alta afinidade pela hidroxiapatita  (1  mg  de  osteocalcina  liga  17  mg  de  hidroxiapatita).  A  osteocalcina  é  sintetizada  pelos  osteoblastos  e também  está  presente  no  plasma  em  concentrações  de  cerca  de  5  ng/m ℓ .A  vitamina  D  estimula  a  secreção  de osteocalcina in vivo e in vitro; os níveis plasmáticos de osteocalcina elevam­se após administração de vitamina D e estão drasticamente  reduzidos  em  animais  deficientes  dessa  vitamina.  Até  o  momento,  é  difícil  estabelecer  de  que  modo  a osteocalcina participa no processo de mineralização óssea. A  osteonectina  é  uma  glicoproteína  de  peso  molecular  de  32  kDa,  presente  em  tecido  ósseo  que  está  sendo mineralizado. Ela se liga fracamente ao colágeno e apresenta uma alta afinidade pela hidroxiapatita. In vitro, ela facilita a mineralização do colágeno do tipo I, podendo, dessa maneira, participar de modo importante na osteogênese.

As proteínas chamadas de osteoindutoras merecem destaque especial por terem grande significado na diferenciação e na  formação  do  tecido  ósseo.  Dentre  elas  estão  os  transforming  growth  factors  β  (TGF­β),  os  insulin­like  growth factors  (IGF­I  e  II)  e  os  fibroblast  growth  factors  (FGF).  Os  TGF­β  pertencem  a  uma  superfamília  de  fatores multifuncionais  que  participam  de  crescimento,  diferenciação  e  morfogênese.  Esta  família  é  constituída  por  cinco membros,  TGF­β  1  a  5,  que  são  expressos  por  vários  tecidos,  incluindo  osso,  cartilagem,  placenta,  plaquetas  e  rins.  A descoberta de que os TGF­β induzem formação óssea quando injetados sobre o periósteo de fêmur de ratos recém­natos, e que  são  sintetizados  nas  placas  epifisárias  de  crescimento  ósseo,  fala  a  favor  de  sua  importância  no  crescimento,  na diferenciação  e  na  formação  óssea.  Estudos in vitro também  apontam  para  a  importância  dos  IGF  e  FGF  na  indução  do crescimento ósseo, talvez via controle dos TGF­β.

Figura 76.3 ■ Eventos extracelulares da síntese, maturação e mineralização do colágeno ósseo.

Uma  outra  família  de  proteínas  osteoindutoras,  cuja  ação  primordial  é  na  indução  da  formação  do  tecido  ósseo,  foi denominada  proteínas  osteomorfogênicas  (bone morphogenetic proteins,  BMP).  Estas  proteínas  induzem  a  formação  de cartilagem  e  osso  in  vivo.  Sua  atividade  está  contida  na  matriz  óssea  desmineralizada,  podendo  somente  ser  extraída através de agentes dissociativos potentes. Parecem ser de fundamental importância na diferenciação embriológica do osso, no  seu  crescimento  e  na  reparação  de  fraturas.  Quando  injetadas  em  locais  não  ósseos  do  organismo,  elas  iniciam  a formação de cartilagem e osso, atuando na diferenciação das células mesenquimais progenitoras.

▸ Matriz extracelular | Componentes inorgânicos

O  componente  inorgânico  da  matriz  óssea  é  constituído,  fundamentalmente,  de  cálcio  e  fosfato.  Inicialmente,  ambos são  depositados  como  sais  amorfos  para  mais  tarde  serem  rearranjados  em  uma  estrutura  cristalina  semelhante  à hidroxiapatita  [Ca10(PO4)6(OH)2].  Devido  à  grande  superfície  de  troca  iônica  da  microestrutura  cristalina  da  matriz mineral,  muitos  outros  íons,  como  Na+,  K+,  Mg2+  e  CO3–,  também  podem  ser  encontrados  em  diferentes  proporções; dependendo da ingestão de flúor, quantidades variáveis de fluoroapatita também estão presentes.

▸ Matriz celular O  componente  celular  do  tecido  ósseo  é  constituído  de  três  tipos  distintos  de  células:  osteoblastos,  osteócitos  e osteoclastos.  Os  osteoblastos  estão  localizados  na  superfície  de  formação  óssea,  sendo  responsáveis  pela  elaboração  dos componentes  orgânicos  da  matriz  extracelular.  São  originados  a  partir  da  proliferação  de  células  mesenquimais osteoprogenitoras, sob a influência de fatores de crescimento locais, como fatores de crescimento dos fibroblastos (FGF), proteínas  morfogenéticas  ósseas  (BMP)  e  proteínas  Wnt,  necessitando  dos  fatores  de  transcrição  Runx2  e  Osterix. Caracterizam­se por apresentarem retículo endoplasmático e complexo de Golgi muito desenvolvidos, devido à biossíntese e  secreção  da  matriz  orgânica.  A  membrana  plasmática  destas  células  é  particularmente  rica  em  fosfatase  alcalina  (cujas concentrações  plasmáticas  são  utilizadas  como  marcadores  de  formação  óssea)  e  tem  receptores  para  PTH,  citoquinas  e prostaglandinas,  mas  não  para  calcitonina.  Possuem  ainda  receptores  intracelulares  para  hormônios  esteroides,  como estrogênios  e  vitamina  D.  Expressam  citoquinas  em  suas  membranas,  em  particular  o  fator  estimulador  de  colônia  1 (CSF­1) e o ligante do receptor NF kappa B (RANKL), que podem ser clivados para ativar a osteoclastogênese, por ação parácrina. Cerca de 10 dias após ser secretada, a matriz orgânica assume sua estrutura tridimensional e forma o osteoide, dando início à mineralização. Durante esse intervalo de 10 dias, o colágeno é processado por peptidases, originando as ligações covalentes  intermoleculares  que  vão  assegurar  a  estrutura  da  fibrila  de  colágeno  e  facilitar  a  calcificação.  Essa  região situada entre o osso mineralizado e o osteoide em via de mineralização é conhecida por frente de mineralização óssea. Os  osteócitos  são  as  células  ósseas  mais  numerosas  e  resultantes  de  osteoblastos  diferenciados,  que,  durante  a produção  e  mineralização  da  matriz  osteoide  ao  seu  redor,  acabam  sepultados  dentro  das  lacunas  ósseas.  Isso  não significa,  entretanto,  que  eles  apresentem  modificações  acentuadas  de  suas  propriedades  funcionais  ou  estejam  isolados dos  osteoblastos.  Os  osteócitos  jovens  ainda  guardam  algumas  das  características  ultraestruturais  osteoblásticas,  sofrem modificações em sua estrutura, de maneira a adquirirem prolongamentos citoplasmáticos que formam uma grande rede no interior do tecido ósseo. Isso os coloca em contato entre si e com os osteoblastos, através de uma vasta rede de extensões citoplasmáticas  que  caminham  dentro  de  canalículos  ósseos.  Na  realidade,  possuem  numerosas  mitocôndrias  e  vacúolos, sugerindo  alta  atividade  biológica.  Os  osteócitos  participam  ativamente  na  remodelação  óssea;  a  elevação  dos  níveis  de PTH  resulta  em  aumento  do  espaço  perilacunar  que  encarcera  o  osteócito  (ver  adiante).  Admite­se  que  esse  processo, conhecido como osteólise osteocítica,  seja  responsável  pela  transferência  rápida  de  cálcio  da  matriz  óssea  para  o  espaço extracelular. Além disso, os osteócitos são considerados mecanossensores, capazes de detectar deformidades exercidas por forças mecânicas, orientando o processo de remodelamento de maneira a provocar a adaptação da estrutura óssea segundo as exigências definidas pelas linhas de força. Curiosamente, os osteócitos são os principais responsáveis pela produção do FGF­23, principal fosfatonina reguladora das concentrações plasmáticas de fósforo. Os  osteoclastos  são  células  gigantes  multinucleadas  originadas  de  um  precursor  monocítico  circulante,  derivado,  em última  análise,  de  uma  célula  hematopoética  precursora  localizada  na  medula  óssea  (Figura  76.4).  Os  osteoclastos caracterizam­se pela alta mobilidade e, como os osteoblastos, também são encontrados na superfície óssea, em frentes de reabsorção  óssea;  esse  tipo  celular  move­se  ao  longo  da  superfície  óssea,  reabsorvendo  osso  e  deixando  uma  lacuna  de reabsorção no seu rastro (ver adiante). Seu citoplasma contém abundantes mitocôndrias, vacúolos e vesículas envolvidas no processo de reabsorção.

CRESCIMENTO, MODELAÇÃO E REMODELAÇÃO ÓSSEA O  tecido  ósseo  é  um  tecido  dinâmico,  que  está  em  constante  modificação  basicamente  devido  a  três  principais processos: crescimento, modelação e remodelação óssea. Durante  o  desenvolvimento  dos  vertebrados,  o  osso  pode  ser  formado  por  dois  diferentes  mecanismos  –  ossificação intramembranosa  ou  ossificação  endocondral.  A  primeira  é  efetuada  por  osteoblastos  originários  diretamente  da

diferenciação de células mesenquimais primitivas. O tecido ósseo primordialmente desenvolvido é desorganizado (chama­ se osso woven), sendo gradativamente substituído por um osso de conformação lamelar. A  ossificação  endocondral  ocorre  a  partir  de  um  molde  cartilaginoso  feito  por  condrócitos  e  é  o  mecanismo  mais comum, responsável pelo aparecimento de ossos longos, coluna vertebral, bacia e base do crânio. Este molde cartilaginoso sofre  erosões  em  centros  primários  de  ossificação,  sendo  substituído  por  tecido  ósseo  pela  síntese  e  mineralização  da matriz  óssea  pelos  osteoblastos.  Após  a  ossificação,  surge  a  placa  epifisária,  uma  camada  cartilaginosa  na  região  de epífise  óssea  responsável  pelo  crescimento  longitudinal  do  osso.  Esse  crescimento  é  um  processo  coordenado  entre proliferação  e  maturação  da  cartilagem,  reabsorção  da  cartilagem  calcificada  e  substituição  por  tecido  ósseo  que posteriormente  também  será  calcificado.  Inúmeros  fatores  estão  envolvidos  na  regulação  do  desenvolvimento  e crescimento ósseos; dentre eles, os mais importantes parecem ser os transforming growth factors­β (TGF­β), insulin­like growth factors (IGF­I e IGF­II) e fibroblast growth factors (FGF), que serão descritos com mais detalhes adiante.

Figura 76.4 ■ Representação esquemática de um osteoclasto em ação. Note que é uma célula multinucleada com borda em escova, por onde são secretados radicais ácidos pela bomba de prótons e proteases pelos lisossomos, que degradam a matriz óssea. A matriz digerida, provavelmente, é transportada via transcelular em vesículas, ou por vazamento por baixo da zona de aderência.

Embora o crescimento ósseo cesse a partir de uma determinada idade com o desaparecimento das placas epifisárias, os processos  de  modelação  e  remodelação  persistem  durante  toda  a  vida.  Estes  processos  são  extremamente  bem sincronizados e coordenados entre si, envolvendo vários tipos celulares e regidos por uma série de fatores, dos quais se conhece apenas uma pequena parte. A  modelação  óssea  é  a  responsável  pela  arquitetura  óssea,  que  envolve  forma,  tamanho,  quantidade  e  disposição estrutural  de  seu  tecido,  e  obedece  a  estímulos  mecânicos  externos  e  não  mecânicos  locais  ou  sistêmicos.  Embora alterações na forma e no tamanho do osso tendam a desaparecer com a parada de crescimento ósseo, as alterações em sua estrutura  microscópica  (como  a  orientação  espacial  das  fibras  de  colágeno)  persistem  ao  longo  da  vida,  sempre  com  o objetivo  de  melhorar  a  resistência  mecânica  do  osso.  Neste  aspecto,  as  forças  mecânicas  às  quais  o  osso  é  submetido rotineiramente  são  de  fundamental  importância  para  a  formação  de  um  osso  resistente.  A  tensão  e  a  deformação  a  que  é submetido um osso em resposta a uma carga mecânica são fatores fundamentais desencadeadores de uma resposta celular, induzindo  a  formação  ou  reabsorção  de  determinados  pontos  do  esqueleto.  Inúmeros  dados  apontam  para  a  importância

dos  osteócitos  no  controle  desta  função,  por  meio  da  deformidade  dos  canalículos  ósseos  e  de  suas  comunicações  com outros tipos celulares. Sabe­se que, a uma determinada força exercida, existe uma reação do organismo com o objetivo de formar mais osso no local que sofre maior tensão, enquanto no local de menor tensão predomina a reabsorção óssea. Há várias  teorias  que  tentam  justificar  tais  achados,  como  mudança  de  cargas  elétricas  ou  modificações  da  passagem  dos líquidos dentro dos canalículos ósseos. A própria força da gravidade é fundamental para a manutenção do esqueleto, e um dos principais problemas enfrentados pelos astronautas que permanecem por longos períodos no espaço é a intensa perda óssea a que são submetidos, pela ausência de cargas sobre o próprio esqueleto. A  remodelação  óssea  é  um  processo  contínuo,  caracterizado  pela  sequência  de  ativação­reabsorção­formação  nas chamadas unidades de remodelação óssea, cujo ciclo demora cerca de 3 a 5 meses para se completar. Tem como função a renovação  do  tecido  ósseo  sem  necessariamente  alterar  sua  arquitetura,  além  de  participar  da  homeostase  do  cálcio  e outros íons presentes no esqueleto, e será descrita com mais detalhes adiante. Por este processo, calcula­se que a cada 10 anos o esqueleto de um adulto seja completamente renovado. Forças  mecânicas  e  outros  fatores  físicos  também  influenciam  a  remodelação  óssea  (formação  e  reabsorção)  por intermédio  de  mecanismos  ainda  não  esclarecidos.  Acredita­se  que  correntes  de  baixa  energia,  geradas  pela  resposta piezoelétrica  do  cristal  de  hidroxiapatita  à  tensão  mecânica,  possam  estar  envolvidas.  Nesse  sentido,  atletas  apresentam aumento da massa óssea que pode chegar a 20 a 30% do observado em indivíduos normais. Por outro lado, a imobilização de um membro leva, em curto espaço de tempo (dias ou semanas), ao aumento intenso da reabsorção óssea e à osteopenia regional.  A  interpretação  para  tais  fatos  seria  a  de  que  o  esqueleto  se  adapta  às  suas  necessidades,  em  termos  de resistência para as cargas que carrega constantemente. Existe a tendência do organismo de procurar sempre a menor massa óssea necessária para suportar o corpo e suas atividades habituais.

▸ Remodelação óssea A remodelação óssea acontece tanto no osso cortical como no trabecular, porém é mais intensa nesse último. Isso se deve à grande superfície existente neste tecido, graças à enorme quantidade de trabéculas ósseas. A remodelação se dá a uma taxa de 10% ao ano e continua por toda a vida em resposta a forças mecânicas e fatores do meio interno; deste modo, como  já  dito,  acredita­se  que,  a  cada  10  anos,  todo  o  esqueleto  tenha  sido  renovado.  O  equilíbrio  entre  formação  e reabsorção  óssea,  isto  é,  a  homeostase  óssea,  se  mantém  até  próximo  dos  40  anos  de  idade.  A  partir  daí,  entretanto, observa­se  um  discreto  predomínio  da  reabsorção  sobre  a  formação  óssea,  caracterizando  um  estado  de  osteopenia fisiológica.  Devido  à  redução  dos  níveis  estrogênicos  que  ocorre  na  pós­menopausa,  essa  condição  é  mais  dramática  em mulheres, que chegam a perder cerca de 40 a 50% da massa óssea até o final da vida. O  processo  de  remodelação  óssea  pode  ser  dividido  em  quatro  fases:  ativação,  reabsorção,  reversão  e  formação (Figura 76.5). Esta divisão é baseada na predominância de determinados tipos e atividades celulares observados em cada fase.

Figura  76.5  ■   Representação  esquemática  das  fases  da  remodelação  óssea.  (1)  Fase  quiescente.  (2)  Recrutamento  de osteoclastos. (3) Reabsorção pelos osteoclastos formando a lacuna de Howship. (4) Fase de reversão, quando a lacuna é limpa

e ocupada pelos osteoblastos. (5) Formação óssea com preenchimento da lacuna por tecido osteoide que, posteriormente, será mineralizado, retornando à fase inicial.

Ativação A cada 10 segundos, um novo local de remodelação é ativado. Os fenômenos iniciais que levam à ativação ainda são pouco  conhecidos.  Tanto  estímulos  sistêmicos  (pelo  PTH)  como  locais  (por  tensão  mecânica  ou  microfraturas)  podem iniciar  a  ativação.  Este  papel  tem  sido  atribuído  aos  osteócitos,  que  determinariam  o  local  de  remodelação.  Células mononucleares são recrutadas do tecido hematopoético, sofrem diferenciação e fundem­se para finalmente transformarem­ se em osteoclastos, caracteristicamente células multinucleadas. A remoção da matriz óssea não mineralizada é feita antes que os osteoclastos se fixem na superfície óssea, provavelmente pelas células que recobrem o osso. Os osteoclastos são macrófagos policarióticos tecido­específicos, formados a partir das células precursoras localizadas na medula óssea, de origem hematopoética. A presença de células do estroma ou da medula óssea é fundamental para que ocorra esta diferenciação, o que sugeria que fatores produzidos por estas células estimulariam esse processo. Atualmente, sabe­se  que  dois  fatores  são  necessários  e  suficientes  para  desencadear  este  processo:  a  citocina  RANKL  e  o  fator  de crescimento CSF­1 (fator estimulador de colônia tipo 1). Juntos, CSF­1 e RANKL são capazes de induzir a expressão de genes que tipificam o osteoclasto, incluindo aqueles que codificam a fosfatase ácida tartarato­resistente, a catepsina K, o receptor de calcitonina e de β3­integrina.

Reabsorção Esta fase inclui o atracamento dos osteoclastos ativados ao local determinado para ser reabsorvido, além da digestão e degradação  da  matriz  óssea  mineralizada.  Depois  de  atracados,  os  osteoclastos  desenvolvem  uma  borda  em  escova  na superfície em contato com o osso, e a cavidade formada pela reabsorção logo abaixo desta borda é chamada de lacuna de Howship.  Inicialmente,  a  matriz  inorgânica  é  solubilizada  por  acidificação  do  meio  promovida  pela  liberação  de  prótons pelo osteoclasto. Por esse motivo, o atracamento deve ser forte e produzir tal intimidade entre a membrana plasmática do osteoclasto e a superfície do tecido ósseo, de maneira a impedir o extravasamento dos prótons secretados para a digestão da matriz. A degradação da matriz orgânica é promovida por uma série de hidroxilases e colagenases lançadas para dentro da  lacuna.  O  material  degradado  é  removido,  provavelmente,  por  transporte  através  da  célula  (transcitose)  ou  eliminado por baixo da camada de adesão (ver Figura 76.4). Não  se  conhecem  até  o  momento  todos  os  mecanismos  controladores  que  regulam  a  quantidade  de  tecido  a  ser reabsorvido. A regulação da reabsorção pode ser feita por fatores que controlam a atividade e o número dos osteoclastos. Foram  descritas  três  substâncias  relacionadas  com  a  família  do  TNF  (fator  de  necrose  tumoral)  e  seus  receptores envolvidas  neste  mecanismo  de  controle  da  diferenciação  e  ativação  dos  osteoclastos:  RANK,  seu  ligante  (RANKL)  e  a osteoprotegerina (OPG) (Figura 76.6). Os osteoblastos produzem RANKL, que é o ligante do receptor ativador do fator nuclear κB (RANK) existente nas membranas das células hematopoéticas. Sua ligação produz a diferenciação e mantém a função fagocitária dos osteoclastos. Os osteoblastos, por outro lado, produzem e secretam também a OPG, que funciona como  uma  armadilha  que  captura  o  RANKL.  Trata­se  de  uma  forma  solúvel  correspondente  à  fração  extracelular  do receptor  da  família  dos  TNF,  que  se  liga  ao  RANKL,  impedindo  sua  ligação  com  o  RANK  nas  células  precursoras  e, consequentemente,  a  sua  diferenciação  para  osteoclastos.  Foi  demonstrado  que  substâncias  sabidamente  indutoras  da reabsorção  óssea  estimulam  a  expressão  do  RANKL,  enquanto  diminuem  a  síntese  de  OPG.  Estudos  em  ratos transgênicos  que  hiperexpressam  a  OPG  mostram  que  esses  animais  desenvolvem  osteopetrose,  ao  passo  que ratos knockout para OPG desenvolvem osteoporose grave com fraturas, além de calcificações vasculares. Citoquinas  e  fatores  de  crescimento  estimulam  diretamente  a  reabsorção  pelos  osteoclastos,  como  IL­1,  IL­2,  IL­6, TNF­α,  TGF­α  e  PDGF.  O  PTH  e  a  1,25­di­hidroxivitamina  D,  assim  como  uma  série  de  citoquinas  (IL­1,  IL­3,  IL­6, TNF­α e β, TGF­α) e fatores de crescimento (PDGF), atuam primordialmente aumentando o número de osteoclastos, por induzirem sua diferenciação a partir de seus precursores. É muito provável que a ação destes mediadores se faça por meio do balanceamento entre a produção pelos osteoblastos dos fatores RANKL e OPG. Já está demonstrada a ação reabsortiva (induzida  por  estímulo  da  síntese  de  RANKL  pelos  osteoblastos)  pela  1,25­di­hidroxivitamina  D,  PTH,  PTHrp,  PGE2, IL­1, IL­6 e TNF. Por outro lado, fatores antirreabsortivos, como estrogênios e algumas BMP, estimulam a produção de OPG, enquanto suprimem a expressão de RANKL pelos osteoblastos. A calcitonina atua diretamente sobre os osteoclastos por  receptores  específicos  de  membrana,  impedindo  a  fusão  celular  prévia  à  formação  dos  osteoclastos  e  inibindo  a reabsorção óssea por atuar provavelmente sobre o citoesqueleto destas células.

Figura 76.6 ■ Esquema do controle da reabsorção óssea. Hormônios e substâncias – como PTH, PTHrp, 1,25(OH)D, entre outras – induzem aumento na produção de RANKL pelos osteoblastos, que se ligam ao receptor RANK nas membranas das células hematopoéticas precursoras, estimulando a diferenciação para osteoclastos ativos. Substâncias inibidoras da reabsorção (como estrogênios, BMP etc.) estimulam a produção de OPG, que funciona como uma armadilha, capturando o RANKL disponível e impedindo  sua  ligação  ao  receptor,  o  que  diminui  o  número  de  osteoclastos  ativos  e  induz  a  apoptose  dos  osteoclastos maduros.

Reversão Inclui  o  período  de  tempo  entre  o  fim  da  reabsorção  e  o  início  da  formação  óssea,  durando  cerca  de  1  a  2  semanas. Durante  este  período,  a  superfície  da  lacuna  é  recoberta  por  células  mononucleares  constituídas  por  uma  população heterogênea, que promovem a limpeza do local e recobrem a superfície com uma camada de substância tipo cimento. Esta fase  parece  ser  fundamental  no  acoplamento  entre  reabsorção  e  formação  óssea;  especula­se  se  este  cimento  produzido pelas células não teria como função guiar os osteoblastos para a superfície a ser formada.

Formação Inicia­se com a diferenciação dos pré­osteoblastos em osteoblastos. Admite­se que existam proteínas liberadas durante a degradação da matriz orgânica, como o transforming growth factor­b, capazes de recrutar células osteoprogenitoras para os locais de formação óssea e induzir a diferenciação até osteoblastos e osteócitos. Mais recentemente, novos mediadores da diferenciação dos osteoblastos foram descritos, com destaque para a via de sinalização do Wnt existente na membrana dos seus precursores. Um complexo de três proteínas compõe um receptor de membrana que, quando ativado, desencadeia uma série de reações intracelulares responsáveis pelo acúmulo da β­catenina. Esta proteína se desloca para o núcleo, onde atuará  como  fator  de  transcrição  de  vários  genes,  induzindo  a  diferenciação  e  atividade  dos  osteoblastos.  A  proteína relacionada  com  o  receptor  de  lipoproteínas  de  baixa  densidade,  o  LRP­6,  interage  com  o  receptor  Frizzled  e  com  os ligantes  do  Wnt,  formando  a  estrutura  quaternária  deste  complexo  receptor  de  membrana.  Estudos  em  animais  e  in vitro  indicam  que  a  via  de  sinalização  do  Wnt  é  crítica  para  a  diferenciação  e  função  dos  osteoblastos.  O  mecanismo preciso  de  ação  da  sinalização  do  Wnt  sobre  a  função  osteoblástica  não  está  totalmente  esclarecido,  mas  existem evidências de que a via canônica da β­catenina também está envolvida neste processo, e de que existe uma interação desta via com a proteína morfogenética 2 (BMP­2). Alguns inibidores da ativação destas vias da BMP­2 e Wnt, dentre elas a esclerostina,  são  um  produto  do  gene  SOST.  Esta  proteína  é  produzida  aparentemente  apenas  pelos  osteócitos  e  tem  a capacidade  de  inibir  a  ativação  da  via  das  BMP  e  da  via  canônica  de  ativação  do  Wnt,  inibindo  a  diferenciação  dos

osteoblastos. A perda da atividade da esclerostina em humanos está relacionada com doenças de alta massa óssea, como Van Buchen e esclerosteose. Mutações  ativadoras  do  LRP­5  foram  associadas  a  um  fenótipo  de  aumento  de  massa  óssea,  mas  sem  histórico  de fraturas. Alterações que levam à perda de função do LRP­5, por outro lado, estão associadas ao fenótipo de osteoporose grave com múltiplas fraturas e alterações oculares. Estudos em camundongos sugerem que a elevação de massa óssea em animais  com  mutação  ativadora  do  LRP­5  decorra  de  um  aumento  à  resposta  do  osso  à  carga  mecânica,  mas  o  exato mecanismo biológico ainda não foi decifrado. Estudos recentes abrem uma nova perspectiva, associando a ação do LRP­5 à inibição da secreção de serotonina pelas células intestinais. A serotonina atuaria por via endócrina sobre os osteoblastos, inibindo sua diferenciação e atividade. Caso seja confirmada a relevância deste mecanismo endócrino sobre a fisiologia da remodelação  óssea,  muitos  conceitos  terão  que  ser  revistos.  Sendo  assim,  a  partir  de  agora  um  novo  horizonte  para pesquisa se abriu, no sentido de se reconhecer a existência de um eixo osteointestinal e de todas as implicações que esta nova descoberta poderá trazer para o conhecimento das doenças ósseas. Durante  a  formação  óssea,  os  osteoblastos  ativados  recobrem,  então,  a  lacuna  de  reabsorção  e  iniciam  seu preenchimento  com  matriz  orgânica,  predominantemente  constituída  por  colágeno  do  tipo  I.  Esta  matriz  é  altamente organizada,  e  acredita­se  que  as  ligações  de  uma  série  de  proteínas  não  colágenas  às  fibrilas  de  colágeno  sejam  cruciais para a posterior organização dos cristais de mineralização. A  matriz  osteoide  inicialmente  depositada  pelos  osteoblastos  levará  aproximadamente  3  semanas  para  ser mineralizada. Sobre este processo, pouco se conhece, mas sabe­se que a fosfatase alcalina e a osteocalcina são proteínas fundamentais relacionadas com esta fase da formação óssea. O  colágeno  é  vital  para  que  a  mineralização  aconteça  normalmente.  Sua  estrutura  tridimensional  única  cria  espaços ordenados  intermoleculares  (denominados hole zones)  grandes  o  suficiente  para  acomodar  os  cristais  de  hidroxiapatita, sem rompimento da estrutura da fibrila de colágeno; o eixo longo do cristal corre paralelamente ao da fibrila, e o mineral apresenta a mesma periodicidade da fibrila de colágeno (64 a 70 nm). O mecanismo de mineralização da matriz óssea não é totalmente conhecido. Admite­se que o início da mineralização do osteoide se dê com a exocitose de vesículas osteoblásticas ricas em cálcio e fosfato. Na matriz óssea, os íons cálcio e fosfato permanecem em equilíbrio, ou seja, suas concentrações excedem o produto de solubilidade (CaXP), e a formação dos  cristais  de  hidroxiapatita  é  evitada  pela  presença  de  inibidores  da  calcificação,  como  o  pirofosfato  inorgânico.  O osteoblasto contém grandes quantidades de fosfatase alcalina cuja atividade encontra­se aumentada nos estados de ativação da  formação  óssea.  Dessa  maneira,  acredita­se  que  a  fosfatase  alcalina  possa  facilitar  o  processo  de  mineralização  pela clivagem dos grupamentos fosfato, levando tanto à diminuição da efetividade dos inibidores locais da calcificação quanto a um aumento ainda maior da concentração de fosfato nos locais de mineralização. Para  que  a  lacuna  seja  completamente  preenchida  e  mineralizada,  são  necessários  3  a  5  meses.  A  sua  completa restauração  é  fundamental  para  a  manutenção  de  uma  massa  óssea  constante.  Em  determinadas  situações,  tanto fisiológicas  (pós­menopausa,  senilidade)  como  patológicas  (corticoterapia,  hiperparatireoidismo),  o  preenchimento  final não  restaura  a  quantidade  de  osso  que  foi  retirada,  quer  por  uma  reabsorção  exagerada,  quer  por  uma  formação insuficiente. Isso acarretará um balanço negativo do esqueleto, induzindo, ao longo do tempo, um aumento da fragilidade óssea, com maior chance de fraturas. Muitos  outros  hormônios  e  fatores  de  crescimento  sistêmicos  podem  regular,  direta  ou  indiretamente,  a  formação óssea  por  intermédio  da  estimulação  da  proliferação  dos  precursores  osteoblásticos  (IGF,  EGF,  FGF,  PDGF)  e/ou  da modulação  da  formação  da  matriz  óssea  (PTH,  1,25(OH)2D,  insulina,  hormônio  do  crescimento,  esteroides  sexuais, calcitonina,  hormônio  tireoidiano,  glicocorticoides).  Muitos  desses  fatores  atuam  indiretamente,  talvez  pela  ativação  de mecanismos locais acopladores da reabsorção e formação óssea. Por exemplo, tanto o PTH quanto a 1,25(OH)2D  atuam diretamente  nos  osteoblastos,  diminuindo  a  síntese  de  colágeno  e  reduzindo  a  formação  óssea;  entretanto,  ambos  os agentes  aumentam  a  formação  óssea  in  vivo,  por  meio  de  mecanismos  ainda  não  estabelecidos.  A  calcitonina  não  age diretamente nos osteoblastos, mas aumenta a formação óssea indiretamente por intermédio de efeitos inibitórios sobre os osteoclastos.  Os  glicocorticoides  reduzem  a  formação  óssea,  enquanto  a  insulina  estimula  a  síntese  de  colágeno  e  a multiplicação  dos  osteoblastos.  As  prostaglandinas,  especialmente  as  da  série  E,  podem  ser  importantes  reguladores  da formação óssea; em altas concentrações, elas inibem a síntese de colágeno, mas, em concentrações mais baixas, estimulam a função osteoblástica.

PARATIREOIDES

▸ Relações anatomofuncionais As  glândulas  paratireoides  têm  origem  endodérmica  a  partir  do  terceiro  (as  duas  inferiores)  e  quarto  (as  duas superiores)  arcos  branquiais.  As  superiores  estão  em  geral  situadas  próximo  à  junção  da  artéria  tireoidiana  média  e  o nervo  laríngeo  recorrente,  enquanto  o  par  inferior  apresenta  localização  variável,  perto  dos  polos  inferiores  da  glândula tireoide.  As  glândulas  têm  um  formato  elipsoide,  chegando  a  pesar  em  média  30  a  40  mg  cada  uma.  O  suprimento sanguíneo é feito, na maioria dos casos, a partir da artéria tireoidiana inferior. Ao  microscópio,  verifica­se  que  as  células  principais  são  as  mais  abundantes,  sendo  responsáveis  pela  síntese  e secreção  do  paratormônio  (PTH).  Normalmente,  essas  células  arranjam­se  em  cordões  epiteliais,  podendo  também apresentar arranjos foliculares e acinares. As células principais podem ser divididas em dois grupos, de acordo com suas características ultraestruturais. As células principais ativas caracterizam­se por um proeminente retículo endoplasmático e complexo de Golgi, onde o PTH está sendo sintetizado e processado. Normalmente, elas têm poucos grânulos secretórios, já  que  o  PTH  não  é  armazenado  em  grandes  quantidades.  A  secreção  do  PTH  ocorre  quando  os  grânulos  de  secreção fundem­se  com  a  membrana  plasmática  após  serem  transportados  à  periferia  da  célula  com  ajuda  dos  microtúbulos.  As células principais inativas apresentam um retículo endoplasmático disperso e um complexo de Golgi menos proeminente, além de uma grande quantidade de vacúolos que contêm glicogênio e lipídios. Normalmente, existe um ciclo contínuo das células do estado ativo para o inativo e vice­versa. Em glândulas normais, a relação inativa/ativa é cerca de 3:1, podendo chegar  até  10:1  em  glândulas  suprimidas  funcionalmente  (na  hipercalcemia).  Um  terceiro  tipo  celular  presente  nas paratireoides são as células oxifílicas. Elas surgem após a puberdade e caracterizam­se por apresentar um núcleo pequeno, citoplasma  eosinófilo  e  mitocôndrias  abundantes,  além  de  ausência  de  características  secretórias.  Admite­se  que  essas células, cujo número aumenta com a idade, possam representar uma forma degenerada das células principais.

▸ Biossíntese do PTH Por  estudos  que  envolvem  a  análise  do  DNA  complementar  (cDNA)  do  PTH,  verificou­se  que  esse  hormônio  é sintetizado inicialmente como um polipeptídio de 110 aminoácidos conhecido como pré­pró­PTH. Os 21 aminoácidos que constituem o peptídio sinalizador são clivados da molécula de PTH no interior do retículo endoplasmático, ainda durante o processo  de  tradução  do  mRNA,  dando  origem  ao pró­PTH.  Essa  sequência  sinalizadora  é  altamente  hidrofóbica  e  está envolvida  na  transferência  do  peptídio  nascente  para  o  interior  do  retículo  endoplasmático.  Após  ser  sintetizado  e processado parcialmente, o pró­PTH é transportado para o complexo de Golgi, onde é transformado em PTH antes de ser secretado. O pró­PTH contém seis aminoácidos adicionais na extremidade aminoterminal da molécula de PTH e apresenta atividade biológica desprezível (menor que 0,2% da do PTH), o que faz com que a conversão de pró­PTH em PTH seja um  processo  ativador  do  peptídio  hormonal.  Portanto,  o  hormônio  intacto  em  sua  forma  final  ativa  tem  84  aminoácidos (Figura 76.7). No entanto, pode ocorrer ainda dentro do citoplasma celular uma clivagem do hormônio ativo em posições que variam entre os aminoácidos 33 a 40, produzindo fragmentos que também são secretados pelas células. Inicialmente, pensava­se  que  tanto  fragmentos  amino  como  carboxiterminais  produzidos  pela  clivagem  poderiam  ser  secretados,  mas estudos mais recentes falharam em demonstrar a presença de fragmentos aminoterminais circulantes. Portanto, parece que apenas  os  fragmentos  carboxiterminais  são  secretados  para  a  circulação.  Demonstrou­se  aumento  na  quantidade  de fragmentos carboxiterminais secretada em situações de hipercalcemia, sugerindo que a metabolização intracelular também contribua para a diminuição dos níveis circulantes de PTH intacto diante de elevações da calcemia.

Figura  76.7  ■   Síntese  e  secreção  do  PTH  pela  célula  da  paratireoide.  A  forma  inicial  pré­pró­PTH  é  sintetizada  no  retículo endoplasmático a partir do mRNA e contém 110 aminoácidos (aa). A porção pré­pró é clivada no retículo e no Golgi, formando as vesículas secretoras com a constituição final de 84 aa. Ainda dentro das vesículas, o PTH pode ser degradado em fragmentos carboxi  e  aminoterminais,  em  geral  entre  os  aa  33  e  40.  Os  fragmentos  carboxiterminais  também  podem  ser  secretados juntamente  com  as  formas  intactas.  Os  aminoterminais,  provavelmente,  são  degradados  ainda  no  interior  das  células,  não chegando à circulação.

O  hormônio  intacto  circulante  é  rapidamente  metabolizado,  predominantemente  no  rim  e  no  fígado,  sendo  sua  meia­ vida de 4 a 8 min. O grande volume de hormônio circulante corresponde a fragmentos carboxiterminais da molécula, que têm meia­vida cerca de 20 vezes superior à da molécula intacta. Até o momento, considera­se desprezível a ação biológica deste fragmento. A porção de ligação ao receptor localiza­se na extremidade aminoterminal da molécula, entre os aminoácidos 18 e 25. Para  manter  a  atividade  biológica  do  hormônio,  é  necessária  a  sequência  mínima  de  1  a  27  aminoácidos.  A  retirada  dos dois  primeiros  aminoácidos  destrói  completamente  sua  atividade  biológica  sem  impedir  sua  ligação  ao  receptor,  e  o fragmento 3 a 34 funciona como um inibidor competitivo in vitro.

▸ Controle da secreção de PTH A concentração de cálcio circulante na forma ionizada (calcemia) é o principal fator que controla a secreção de PTH. As variações do cálcio plasmático são transmitidas para o citoplasma da célula, refletindo­se na secreção e na síntese de PTH. As  células  da  paratireoide  são  singulares  no  sentido  de  que  a  diminuição  das  concentrações  intracelulares  de  cálcio estimula a secreção do PTH, funcionando de maneira oposta ao que ocorre na grande maioria das células secretoras. Um aumento da calcemia, por outro lado, leva a uma rápida inibição da síntese e secreção do PTH. O mecanismo preciso por intermédio  do  qual  o  cálcio  exerce  seus  efeitos  nas  células  principais  ainda  não  está  totalmente  esclarecido.  Mais recentemente,  foi  descrita,  em  paratireoide  bovina,  a  existência  de  um  receptor  ou  sensor  de  cálcio  na  membrana plasmática.  Este  receptor  pertence  à  superfamília  de  receptores  acoplados  à  proteína  G,  ativando  a  fosfolipase  C  e provavelmente  inibindo  a  adenilciclase  nos  tecidos­alvo.  O  receptor­sensor  de  cálcio  contém  sete  domínios transmembrana,  característica  dos  receptores  acoplados  à  proteína  G.  Está  ligado  à  fosfolipase  C  por  meio  de  uma proteína  G  sensível  à  toxina  pertussis  (portanto,  a  uma  proteína  Gi).  Quando  entra  em  contato  com  íons  Ca2+,  Mg2+, Gd3+ ou  neomicina,  é  desencadeado  um  aumento  do  cálcio  intracelular  proveniente  de  compartimentos  citoplasmáticos, com inibição da secreção do PTH. Este receptor sensor de cálcio foi identificado em vários tecidos cálcio­sensíveis, como as células C da tireoide e as células do túbulo contornado distal. Diversas mutações ativadoras ou inibidoras do receptor já foram descritas e associadas ao hipoparatireoidismo e à hipercalcemia hipocalciúrica familiar, respectivamente.

A participação do cAMP no controle da secreção de PTH é sugerida a partir de experimentos que mostram ativação in vivo da  secreção  de  PTH  por  substâncias  que  sabidamente  elevam  o  cAMP  intracelular  (como  dopamina,  isoproterenol, prolactina, secretina e PGE2), mesmo na ausência de cálcio extracelular. Por outro lado, substâncias que inibem a secreção de  PTH  (como  cálcio,  agonistas  alfa­adrenérgicos  e  PGF2­alfa)  diminuem  a  concentração  de  cAMP  nas  células  da paratireoide. Dessa maneira, acredita­se que a secreção de PTH esteja intimamente relacionada com o conteúdo de cAMP das células principais. O  magnésio  parece  exercer  importante  papel  na  regulação  da  secreção  de  PTH.  Os  estudos  demonstram  um comportamento bifásico do Mg2+ sobre  a  secreção  de  PTH.  Tanto  concentrações  elevadas  como  extremamente  reduzidas inibem  a  secreção  de  PTH,  provavelmente  por  mecanismos  diferentes.  Enquanto  altas  concentrações  de  magnésio  ou  de cálcio se comportam do mesmo modo, inibindo, como seria esperado, a secreção de PTH, concentrações muito diminuídas provavelmente interferem nas reações enzimáticas intracelulares de geração de energia, prejudicando a função das células da paratireoide, também com redução da secreção de PTH como resultado final. Além  destes  agentes  secretores,  sabe­se  que  a  1,25(OH)2D3,  o  metabólito  ativo  da  vitamina  D,  inibe  diretamente  a síntese de PTH. Receptores de vitamina D já haviam sido identificados nas paratireoides, sugerindo estas glândulas como órgãos­alvo  desse  esteroide.  Posteriormente,  demonstrou­se  uma  redução  do  conteúdo  de  pró­pré­PTH  mRNA  em paratireoides  de  ratos  tratados  com  vitamina  D,  de  maneira  dose­dependente.  De  maneira  inversa,  os  glicocorticoides parecem estimular a síntese de PTH, baseando­se nos achados obtidos in vitro em cultura de células de paratireoide.

▸ Efeitos biológicos do PTH A principal função do PTH é controlar a concentração plasmática de cálcio, evitando a hipocalcemia. Como discutido anteriormente,  a  calcemia  é  uma  função  da:  (1)  taxa  de  transferência  de  cálcio  do  e  para  o  tecido  ósseo,  (2)  taxa  de filtração  glomerular,  e  (3)  absorção  intestinal  de  cálcio.  O  PTH  estimula  a  reabsorção  de  cálcio  do  filtrado  glomerular, aumenta a taxa de reabsorção de cálcio dos ossos e eleva indiretamente (por intermédio do aumento da produção renal da vitamina D3) a taxa intestinal de absorção de cálcio (Figura 76.8). Embora o resultado da ação do PTH nesses três tecidos (rins, osso e sistema digestório) seja o aumento da calcemia, essas ações não ocorrem simultaneamente. O efeito renal é o mais rápido, seguido da reabsorção de cálcio do tecido ósseo, composta de duas fases: (1) a fase precoce, que se manifesta dentro de 2 a 3 h e é independente de síntese proteica, e (2) a fase  tardia,  que  envolve  a  biossíntese  de  novas  proteínas,  provavelmente  enzimas  lisossomais  (colagenase  e  outras enzimas  hidrolíticas),  durando  tanto  quanto  permanecer  o  estímulo  do  PTH.  O  aumento  da  absorção  intestinal  de  cálcio demora para se manifestar (cerca de 24 h), pois depende da formação renal de vitamina D3 que alcança a mucosa intestinal através  da  circulação;  nessas  células,  a  vitamina  D3  induz  a  biossíntese  de  novas  unidades  transportadoras  de  cálcio  e fosfato  que  levam  a  um  aumento  da  fração  absorvida  desses  minerais.  Ainda,  em  nível  renal,  o  PTH  causa  maior eliminação de fosfato que resulta em hipofosfatemia.

Figura  76.8  ■   Representação  esquemática  do  controle  da  síntese  da  1,25(OH)2D3.  Elevações  do  PTH  em  consequência  da redução dos níveis de cálcio plasmático, assim como reduções nos níveis plasmáticos de fosfato, estimulam a enzima25(OH)D1­ α­hidroxilase renal a produzir o metabólito ativo da vitamina D. Esta, por sua vez, estimula a reabsorção óssea, assim como a absorção  intestinal  de  cálcio  e  fósforo,  aumentando  seus  níveis  plasmáticos,  que  retrorregularão  o  sistema,  suprimindo  a

secreção de PTH e a própria atividade da enzima renal. A 1,25(OH)2D3 também é fundamental para que ocorra mineralização normal do esqueleto, por mecanismos ainda não esclarecidos.

▸ Mecanismo de ação do PTH O PTH age nas células­alvo por meio da interação com receptores específicos localizados na membrana plasmática de alguns tipos celulares renais e ósseos. A porção aminoterminal da molécula liga­se ao receptor de membrana acoplado a uma proteína G, com estimulação da adenilciclase e fosfolipase C.O receptor de PTH, tal qual outros receptores ligados à proteína  G,  tem  grande  homologia  em  sua  sequência  de  aminoácidos  e  estrutura  espacial  como  os  receptores  de calcitonina,  secretina,  glucagon,  hormônio  liberador  do  hormônio  de  crescimento  e  outros.  A  interação  com  esses receptores  resulta  em  ativação  da  adenilciclase  e  aumento  do  conteúdo  intracelular  de  cAMP,  levando  à  ativação  de sistemas  intracelulares  dependentes  do  cAMP.  Esses  sistemas  envolvem  quinases  proteicas  que,  quando  ativadas, fosforilam proteínas envolvidas no metabolismo celular e transporte de íons, modificando suas funções. O PTH também induz a ativação da fosfolipase C, resultando em um influxo celular de cálcio e aumento do cálcio citosólico, com ativação de proteínas dependentes de cálcio e modificação da função celular.

▸ Ações renais do PTH Reabsorção tubular de cálcio A  ação  direta  do  PTH  sobre  os  rins  decorre  do  aumento  da  reabsorção  tubular  de  cálcio,  independente  da  sua  carga filtrada.  Algumas  horas  após  a  paratireoidectomia,  observa­se  aumento  da  eliminação  renal  de  cálcio,  que  perdurará  até que  se  desenvolva  hipocalcemia,  proveniente  da  falta  de  PTH.  Não  obstante,  um  excesso  de  PTH  pode  levar  à hipercalciúria, secundária ao aumento da carga filtrada de cálcio provinda da hipercalcemia. Sabe­se que a maior parte da reabsorção renal de cálcio ocorre no túbulo proximal e é independente do PTH. Acredita­ se que nessa porção do néfron o transporte de cálcio esteja acoplado ao de sódio, uma vez que a substituição experimental de sódio por colina ou a inibição da Na+/K+­ATPase com ouabaína resultam no bloqueio da reabsorção de cálcio. As ações do PTH na reabsorção de cálcio ocorrem, predominantemente, no ramo ascendente da alça de Henle e na porção mais final do  túbulo  contornado  distal.  Nessas  células,  o  PTH  interage  com  receptores  de  membrana,  ativando  a  adenilciclase  e levando ao aumento dos níveis intracelulares de cAMP.

Efeito fosfatúrico O efeito fosfatúrico do PTH está entre os primeiros descobertos, entretanto os mecanismos envolvidos ainda não são completamente  conhecidos.  Em  cães,  o  PTH  causa  diminuição  de  30  a  40%  na  reabsorção  proximal  de  sódio  e  fosfato. Infusões de dibutiril­cAMP, um análogo do cAMP, conduzem a efeitos semelhantes, indicando que nessas células o PTH também  age  por  meio  do  sistema  adenilciclase/cAMP.  Evidências  sugerem  que  o  PTH  atue  nos  túbulos  contornados diminuindo a expressão do cotransportador Na­P tipo 2a (Npt2a).

Outros efeitos na função renal A ação do PTH nos rins resulta em alcalinização da urina com aumento da eliminação de bicarbonato. Isso é devido à inibição  direta  do  PTH  sobre  a  reabsorção  de  bicarbonato  no  túbulo  proximal,  levando  a  uma  espécie  de  acidose  tubular renal proximal. O PTH também conduz à inibição da reabsorção de líquidoss isotônicos no túbulo proximal; nesse caso, o sódio  não  reabsorvido  carrega  água  para  o  túbulo  distal,  aumentando  o  fluxo  urinário  e  o clearance de  água  livre.  Esse efeito  é  semelhante  ao  das  catecolaminas  que  também  atuam  nos  rins  por  meio  de  mecanismos  que  envolvem  o  sistema adenilciclase/cAMP. Para outras informações a respeito desse assunto, ver Capítulo 52, Excreção Renal de Solutos.

▸ Ações ósseas do PTH O PTH age de maneira importante nos ossos, o principal reservatório de cálcio do organismo, no sentido de estimular a  reabsorção  óssea,  direcionando  cálcio  para  o  compartimento  plasmático.  Inicialmente,  o  PTH  leva  a  um  aumento  da reabsorção da matriz óssea (osteólise), ação esta que, como mencionado anteriormente, pode ser dividida em duas fases, precoce e tardia. Em nível celular, esse efeito se caracteriza pela diminuição da atividade dos osteoblastos e pela ativação da função osteoclástica, seguida, tardiamente, da ativação reacional da formação óssea. Como o efeito principal do PTH é

estimular a função osteoclástica, tanto a matriz inorgânica quanto a orgânica são igualmente reabsorvidas, conduzindo, em última análise, à redução da massa óssea como um todo, situação conhecida como osteopenia. A administração de PTH a animais de experimentação leva ao aumento da relação osteoclastos/osteoblastos. Originalmente, acreditava­se que o PTH promovesse  a  conversão  dos  osteoblastos  em  osteoclastos  ou  estimulasse  a  transformação  das  células  osteoprogenitoras ósseas em osteoclastos. Entretanto, como discutido anteriormente, os osteoclastos não se originam de células ósseas; eles migram para o osso a partir de medula óssea, timo e outras fontes de tecido reticuloendotelial. Os osteócitos também são alvo do PTH. A administração de PTH provoca um aumento das lacunas ósseas imediatamente adjacentes aos osteócitos, ocasionando  a  osteólise  osteocítica.  Sob  a  ação  do  PTH,  essas  células  apresentam  um  alongamento  com  extensão  de processos celulares, adquirindo um aspecto estrelado. O  PTH  estimula  a  síntese  de  mRNA  nos  osteoclastos,  aumenta  o  número  de  núcleos  por  osteoclasto,  assim  como  a quantidade  de  osteoclastos.  Além  do  mais,  ele  induz  um  aumento  no  conteúdo  e  na  secreção  de  enzimas  lisossomais, ativação da anidrase carbônica e um crescimento na incorporação de uridina, todos mecanismos dependentes da transcrição gênica  e  da  síntese  proteica.  A  adição  de  PTH  a  fragmentos  ósseos  em  cultura  resulta  em  secreção  imediata  de betaglicuronidase e hialuronidase antes mesmo da liberação de cálcio. Esses efeitos são acompanhados por uma inibição da síntese de colágeno e um importante aumento da fosfatase alcalina. Acredita­se que os mecanismos envolvidos nesses efeitos do PTH englobem aumento do conteúdo celular de cAMP. O espectro de ações do PTH no tecido ósseo (inibição vs. estimulação) sugere que o PTH possa agir em mais de um tipo celular desse tecido. Por intermédio de uma técnica capaz de isolar células ósseas, verificou­se que a maior parte das ações estimulatórias do PTH se dá nos osteoclastos e se caracteriza pela ativação das enzimas lisossomais. Por outro lado, as  ações  inibitórias  (via  citrato  descarboxilase,  fosfatase  alcalina  e  síntese  de  colágeno)  são  restritas  aos  osteoblastos. Apesar  de  esses  resultados  indicarem  que,  no  tecido  ósseo,  mais  de  um  tipo  celular  pode  apresentar  receptores  para  o PTH, com base em estudos ultraestruturais admite­se que apenas os osteoblastos mostrem tais receptores. Nesse caso, as ações  do  PTH  sobre  os  osteoclastos  deveriam  ser  mediadas  por  fatores  locais  (prostaglandinas)  liberados  a  partir  dos osteoblastos, para assegurar a homeostase óssea.

PTH­RELATED PEPTIDE Há  alguns  anos,  foi  identificada  uma  proteína  isolada  a  partir  de  tumores  malignos  de  linhagem  epitelial,  que  se relaciona com a instalação de uma manifestação paraneoplásica muito frequente: a hipercalcemia humoral da malignidade. Já  se  sabia  que  tal  quadro  clínico  era  caracterizado  por  hipercalcemia  associada  a  hipofosfatemia  e  a  níveis  elevados  de cAMP  nefrogênico,  quadro  laboratorial  idêntico  ao  decorrente  do  excesso  de  PTH  observado  no  hiperparatireoidismo primário.  Ao  se  isolar  e  identificar  a  proteína,  observou­se  enorme  semelhança  em  sua  porção  aminoterminal  com  a molécula de PTH. Dentre os primeiros 13 aminoácidos, 9 são idênticos e utilizam o mesmo receptor de membrana. Este peptídio  foi  então  denominado PTH­related peptide  ou  PTHrp.  Posteriormente,  uma  série  de  descobertas  foram  feitas, como sua localização genética no cromossomo 12, enquanto o gene do PTH situa­se no cromossomo 11. Já se acreditava, por uma série de outros genes correlatos encontrados nestes dois cromossomos, que o cromossomo 11 tenha decorrido de uma duplicação no cromossomo 12 durante a evolução das espécies. A localização do gene do PTHrp no cromossomo 12 corrobora esta teoria. Este  peptídio  parece  ser  de  fundamental  importância  na  manutenção  dos  níveis  calcêmicos  do  feto,  ativando  a  Ca2+­ ATPase existente na placenta, sendo o responsável pelos elevados níveis de cálcio do feto em relação aos níveis maternos. Depois  do  nascimento,  o  PTH  assume  suas  funções  reguladoras,  e  os  níveis  circulantes  de  PTHrp  se  reduzem drasticamente.  Seus  efeitos  sistêmicos  sobre  a  calcemia  somente  retornam  quando  tumores  malignos  se  desenvolvem, voltando  a  ser  secretado  em  grandes  quantidades  e  induzindo  a  hipercalcemia.  Embora  seus  níveis  plasmáticos  sejam extremamente reduzidos após alguns dias do nascimento, esta fetoproteína está presente em inúmeros tecidos, porém seus efeitos ainda permanecem desconhecidos.

CÉLULAS PARAFOLICULARES | CALCITONINA A  calcitonina  é  produzida  principalmente  pelas  células  parafoliculares  ou  células  C  da  tireoide,  embora imunorreatividade  para  calcitonina  também  possa  ser  observada  em  outros  tecidos,  como  pulmão,  timo,  suprarrenais  e sistema  nervoso  central.  Isso  explica  por  que  se  podem  encontrar  níveis  circulantes  de  calcitonina  em  indivíduos

tireoidectomizados.  As  células  C  originam­se  embriologicamente  da  crista  neural,  mais  precisamente  do  quarto  arco branquial,  e  incorporam­se  à  glândula  tireoide  nos  mamíferos  ou  concentram­se  no  corpo  ultimobranquial  em  peixes, anfíbios,  répteis  e  aves.  Essas  células  situam­se  na  região  central  do  terço  médio  de  ambos  os  lobos  da  tireoide, correspondendo  a  cerca  de  0,1%  da  massa  de  células  epiteliais.  As  células  parafoliculares  estão  localizadas  entre  os folículos  tireoidianos,  permanecendo  separadas  do  lúmen  folicular  e  coloide  pelo  epitélio  de  células  foliculares.  Elas fazem  parte  do  grupo  de células APUD  (amine  precursor  uptake  and  decarboxylation),  que  implica  células  que  têm  a capacidade  de  captar  os  precursores  de  aminas,  como  dopa  e  5­hidroxitriptofano,  decarboxilá­los  e  convertê­los  em dopamina e serotonina, respectivamente, empacotando­as em grânulos citoplasmáticos. Deste grupo, fazem parte também as células produtoras de insulina, glucagon e gastrina. A análise ultraestrutural das células parafoliculares mostra grânulos de  secreção  (contendo  calcitonina  e  próximos  à  membrana  celular),  extensa  rede  de  microtúbulos,  complexo  de  Golgi desenvolvido e mitocôndrias abundantes.

▸ Biossíntese e secreção da calcitonina A calcitonina é sintetizada inicialmente na forma de um pré­pró­hormônio (15 kDa) e em seguida sofre processamento enzimático,  com  a  liberação  de  fragmentos  carboxi  e  aminoterminais,  até  a  forma  madura  de  32  aminoácidos  (Figura 76.9);  então,  é  empacotada  em  grânulos  citoplasmáticos  e  secretada  para  a  circulação.  Apresenta  aspectos  peculiares  em sua  síntese,  pois,  a  partir  da  transcrição  de  seu  gene,  podem  originar­se  dois  peptídios  diferentes,  com  funções aparentemente muito diversas. Sua síntese é determinada a partir do gene localizado no cromossomo 11, que tem 6 éxons. A cada ativação deste gene, os 6 éxons são transcritos e a molécula de RNA formada sofre o que se chama processamento alternativo,  quando,  juntamente  com  os  íntrons,  alguns  dos  éxons  são  retirados  (Figura  76.10).  Conforme  os  éxons restantes,  podem­se  obter  dois  peptídios  diferentes:  a  calcitonina  propriamente  dita  e  o  CGRP  (calcitonin­gene  related peptide),  de  maneira  não  equimolar.  Esta  síntese  preferencial  é  tecido­específica,  e  a  calcitonina  é  produzida principalmente pelas células C da tireoide, enquanto o CGRP, pelas células do SNC. Este último peptídio é descrito como potente vasodilatador, sem ações importantes no que diz respeito à homeostase do cálcio.

Figura  76.9  ■   Gene  da  calcitonina.  A  partir  de  6  éxons,  por  meio  do  processamento  do  mRNA,  2  diferentes  peptídios  são formados, a calcitonina e o CGRP (calcitoningene related peptide). Ambos os pré­peptídios liberam fragmentos amino (NTP) e carboxiterminais (CTP).

Figura  76.10  ■   Sequência  dos  aminoácidos  da  molécula  de  calcitonina  humana.  O  anel  da  extremidade  aminoterminal  é formado por uma ponte dissulfídica entre os dois resíduos cisteínicos. Para haver atividade biológica, é necessário o resíduo prolina ligado a um radical amida na porção carboxiterminal.

A  estrutura  molecular  da  calcitonina  já  foi  determinada  em  várias  espécies  animais,  apresentando­se  relativamente conservada durante a evolução. É constituída por 32 aminoácidos (PM 3.500 Da). Dentre os 9 primeiros aminoácidos, 7 são idêntidos em todas as espécies animais estudadas, além de uma molécula de glicina na posição 28 e de um resíduo de prolina  amidada  na  extremidade  carboxiterminal.  Um  anel  na  extremidade  aminoterminal,  determinado  por  uma  ponte dissulfídica  entre  os  resíduos  de  cisteína  nas  posições  1  e  7,  também  é  observado  em  todas  as  formas  de  calcitonina estudadas (ver Figura 76.10).

▸ Controle da secreção e síntese da calcitonina Quando  os  níveis  de  cálcio  se  elevam  agudamente  no  sangue,  ocorre  elevação  proporcional  das  concentrações  de calcitonina circulante. Esta é a base do teste de estímulo utilizado na prática clínica para detecção de carcinoma das células C, chamado de carcinoma medular de tireoide. Por outro lado, os efeitos de uma hipercalcemia ou hipocalcemia crônicas sobre  suas  concentrações  são  bastante  controversos  na  literatura.  Em  humanos  portadores  de  hiperparatireoidismo  com hipercalcemia, foram descritos níveis de calcitonina elevados, normais ou diminuídos. Em ratos paratireoidectomizados, a hipocalcemia  está  associada  a  aumento  do  conteúdo  tireoidiano  de  calcitonina  e  de  seus  níveis  circulantes,  enquanto  a hipercalcemia  crônica  leva  a  depleção  dos  grânulos  de  calcitonina  e  diminuição  do  conteúdo  tireoidiano  de  calcitonina, porém seus níveis circulantes basais encontram­se nos limites da normalidade. Os  hormônios  gastrintestinais,  depois  do  cálcio,  são  os  mais  importantes  secretagogos  da  calcitonina,  dentre  eles  a gastrina, a colecistoquinina, o glucagon e a secretina, sendo a gastrina o mais potente deles. Outro teste de estímulo para detecção  do  carcinoma  medular  de  tireoide  baseia­se  justamente  na  resposta  da  calcitonina  a  uma  injeção  intravenosa  de pentagastrina, um derivado sintético da gastrina. Em homens, durante o período pós­prandial podem­se observar elevações nos níveis plasmáticos de calcitonina, e a instilação de cálcio no estômago de ratos normais quase não altera a calcemia, enquanto em ratos tireoidectomizados o mesmo procedimento leva à hipercalcemia. Estes achados indicam que hormônios gastrintestinais interferem nos níveis basais de calcitonina. Existe uma nítida diferença desses níveis em relação ao sexo.

Na espécie humana, os homens têm níveis aproximadamente duas vezes mais elevados que os das mulheres. Devido a esta diferença sexual, especula­se se os hormônios sexuais teriam algum papel na determinação deste dimorfismo. Em ratos, pode­se  demonstrar  uma  nítida  correlação  positiva  entre  níveis  plasmáticos  de  estrógenos  e  de  calcitonina,  mostrando queda de seus níveis após castração, assim como elevação depois de reposição estrogênica. Em ratos, no entanto, os níveis mais  elevados  de  calcitonina  são  encontrados  nas  fêmeas,  prejudicando  a  transferência  destes  achados  para  a  espécie humana.  Em  mulheres,  alguns  trabalhos  mais  antigos  sugeriam  também  a  existência  de  uma  correlação  direta  entre estrógenos e calcitonina, mas a maioria dos trabalhos mais recentes, realizados tanto in vitro como in vivo e que utilizaram métodos  mais  sensíveis  e  específicos  para  dosar  calcitonina,  não  demonstraram  qualquer  correlação  entre  ambos  os hormônios.  O  que  se  constatou  foi  uma  diminuição  dos  níveis  basais  de  calcitonina  com  o  envelhecimento,  nos  dois sexos.  Outros  períodos  relacionados  com  elevação  dos  níveis  basais  de  calcitonina  são  gestação  e  lactação,  mas  o mecanismo  que  rege  esta  elevação  temporária  permanece  desconhecido.  A  1,25­di­hidroxivitamina  D  inibe,  enquanto  os glicocorticoides  estimulam,  a  síntese  de  calcitonina,  já  demonstrado  não  só in vivo (em ratos) como também in vitro.  A importância  fisiológica  destes  achados  ainda  permanece  desconhecida.  Um  dado  interessante  é  a  constatação  de  que  a dexametasona não apenas estimula a produção de CTmRNA como inibe a produção do CGRPmRNA, provavelmente por atuar no processamento do RNA pós­transcricional. Os estudos in vitro  demonstram  a  existência  de  pelo  menos  três  vias  de  controle  da  secreção  aguda  da  calcitonina (Figura 76.11). A primeira delas é a elevação aguda dos níveis de cálcio intracelular. As células C da tireoide se mostram sensíveis a pequenas variações de concentração de cálcio extracelular, mesmo que dentro de limites fisiológicos, que são transmitidas  para  o  interior  das  células  por  meio  de  mecanismos  não  totalmente  esclarecidos.  Os  canais  de Ca2+ dependentes de voltagem parecem desempenhar importante papel neste controle, pois já se demonstrou que agonistas desses  canais,  assim  como  elevações  das  concentrações  de  K+  extracelular,  aumentam  a  secreção  de  calcitonina  pelas células  C.  Mas  este  parece  não  ser  o  único  mecanismo  responsável  por  aumentos  intracelulares  de  Ca2+ nestas  células, principalmente  por  aumentos  mantidos  observados  mesmo  na  vigência  de clamps  de  voltagem.  Elevações  crônicas  dos níveis de Ca2+, ao contrário do esperado, não levam à subida dos níveis de calcitonina. Isso já foi observado in vivo, em pacientes  portadores  de  hipercalcemia  crônica  devido  a  hiperparatireoidismo  primário.  Estudos  in  vitro  não  apenas confirmam  estes  dados,  mas  mostram  ainda  uma  diminuição  dos  níveis  secretados  e  intracelulares  de  calcitonina,  após incubação  prolongada  com  níveis  elevados  de  Ca2+.  Parece  ocorrer  uma  dessensibilização  das  células  C  com  níveis aumentados mantidos de Ca2+ no meio de cultura. Já foi constatado também que o Ca2+ não é suficiente, por si só, para promover um incremento nos níveis de calcitonina mRNA, não estimulando, portanto, a sua síntese (ver Figura 76.11).

Figura  76.11  ■   Prováveis  vias  intracelulares  do  controle  da  secreção  de  calcitonina  e  seus  segundos­mensageiros.  CT, calcitonina; FLC, fosfolipase C; PIP2, 4,5­difosfato de fosfatidilinositol; DAG, diacilglicerol; IP, fosfato de inositol; IP3, 1,4,5­trifosfato de inositol; G, proteína G; i, inibidora; s, estimuladora.

Uma  outra  via  também  envolvida  na  secreção  de  calcitonina  é  a  do  cAMP.  Um  aumento  dos  níveis  de  cAMP  se acompanha de elevações paralelas dos níveis de calcitonina secretada in vitro. Alguns peptídios envolvidos na secreção de calcitonina  sabidamente  atuam  promovendo  elevação  dos  níveis  intracelulares  de  cAMP  (como  glucagon,  GHRH, histamina,  isoproterenol  e  PGE2)  ou  diminuição  (p.  ex.,  somatostatina).  Somente  hormônios  peptídicos  ou neurotransmissores que se ligam a um receptor específico na membrana celular têm a capacidade de ativar a adenilciclase. Esta  ativação  se  faz  através  da  unidade  G  localizada  na  membrana  celular.  A  geração  de  cAMP  pela  célula  exerce  seu efeito  regulatório  por  intermédio  da  ativação  de  quinases  proteicas  intracelulares  (ver  Figura  76.11).  Ao  contrário  dos aumentos  intracelulares  de  cálcio,  as  elevações  das  concentrações  citoplasmáticas  de  cAMP  são  seguidas  de  ativação  da proteinoquinase A (PKA), com consequente ativação da transcrição gênica de calcitonina, constatada por uma subida dos níveis de mRNA específico. A  terceira  via  de  controle  da  secreção  e  síntese  de  calcitonina  se  faz,  provavelmente,  por  meio  do  metabolismo  dos inositóis­lipídios  contidos  na  membrana  celular  (ver  Figura  76.11).  O  4,5­difosfato  de  fosfatidilinositol  localiza­se  na membrana  celular  e,  sob  ação  da  fosfolipase  C,  é  degradado  em  diacilglicerol  (DAG)  e  IP3.  O  DAG  ativa  a proteinoquinase  C  existente  no  citoplasma  (PKC),  desencadeando  uma  série  de  reações  que  culminam  com  aumento  da secreção de peptídios e efeitos sobre a proliferação celular. O IP3, por outro lado, promove aumento dos níveis de cálcio citoplasmático  vindo  de  compartimentos  intracelulares,  levando  à  fosforilação  de  proteínas  por  quinases  proteicas dependentes de cálcio. Há evidências sugerindo que a intermediação do receptor celular e fosfolipase C é realizada também por uma proteína G específica. A existência desta outra via de controle foi verificada por trabalhos in vitro que utilizam ésteres de forbol, produtos que ativam diretamente a proteinoquinase C, com consequente aumento na secreção e síntese de calcitonina. No entanto, ainda não foram identificados os peptídios que atuam fisiologicamente por esta via.

▸ Efeitos biológicos da calcitonina O  principal  efeito  da  calcitonina  é  o  de  reduzir  os  níveis  circulantes  de  cálcio  e  fósforo,  principalmente  por  uma inibição da saída destes minerais do osso.

Receptores  de  calcitonina  foram  identificados  em  diferentes  tecidos,  como  rim,  osso,  sistema  nervoso  central  e hipófise. Sua presença no rim e no osso pode justificar seu papel no metabolismo mineral; no entanto, sua ação no sistema nervoso central e na hipófise ainda necessita ser esclarecida. No osso, seus receptores já foram identificados nos osteoclastos e em células da medula óssea. Seu principal efeito é inibir  a  reabsorção  óssea  pelos  osteoclastos,  inclusive  induzindo  modificações  morfológicas  na  célula,  reduzindo  sua característica  borda  em  escova.  Os  efeitos  inibitórios  da  calcitonina  sobre  a  reabsorção  óssea  são  amplos.  Virtualmente, todas as alterações induzidas pelo PTH ou outros agentes (prostaglandinas, cAMP, vitamina D e vitamina A), tais como mudanças da atividade de enzimas lisossomais, liberação de minerais e degradação do colágeno, são abolidas na presença da  calcitonina.  Além  do  mais,  quando  estudada in vitro,  a  calcitonina  causa  inibição  da  reabsorção  óssea  induzida  pelo PTH, caracterizada pela diminuição da liberação de 45Ca2+ para o meio de incubação, associada à diminuição da fosfatase alcalina e pirofosfatase alcalina, e queda na produção de hidroxiprolina. Sua ação se faz por meio da ligação a estes receptores específicos, sendo mediada, pelo menos em parte, pelo sistema adenilciclase/cAMP. No tecido ósseo, a calcitonina leva à ativação da adenilciclase, resultando em um aumento dos níveis intracelulares  de  cAMP  que  mostra  paralelismo  com  seus  efeitos  biológicos.  Após  o  tratamento  com  doses  elevadas  de calcitonina  por  certo  período  de  tempo,  pode  ser  observado  o  aparecimento  de  um  fenômeno  de  escape  ou  resistência, tanto  em  estudos  in  vitro  como  no  uso  terapêutico  da  calcitonina.  Este  fenômeno  vem  sendo  atribuído  a  uma contrarregulação por redução do número de receptores ou de sua sensibilidade, ou ainda ao desenvolvimento de linhagens de osteoclastos resistentes à sua ação. Receptores  específicos  da  calcitonina  foram  identificados  em  rins  de  humanos  e  de  roedores,  estando  localizados  no segmento ascendente da alça de Henle, na porção terminal do túbulo contornado distal e na porção cortical do tubo coletor. Sua  ativação  implica  a  elevação  dos  níveis  de  cAMP,  por  ativação  da  adenilciclase  renal,  independente  da  ação  do  PTH. Seu papel em nível renal, entretanto, ainda permanece obscuro, uma vez que tem apenas um fraco poder calciúrico e de se envolver,  em  algum  grau,  na  excreção  de  outros  eletrólitos  e  de  água.  Dispõe  ainda  da  capacidade  de  estimular  a  1α­ hidroxilase renal, elevando a produção de 1,25­di­hidroxivitamina D. Este esteroide tem por função aumentar a absorção intestinal  de  cálcio,  o  que  estimularia  ainda  mais  a  secreção  rápida  de  calcitonina.  Por  outro  lado,  ocorre  uma  ação supressiva da 1,25­di­hidroxivitamina D sobre a síntese de calcitonina, atuando diretamente sobre as células C. Alta densidade de locais de ligação de calcitonina foi identificada no SNC, principalmente na hipófise, no hipotálamo e nos  núcleos  da  base.  Além  de  interagir  com  hormônios  hipofisários,  como  o  hormônio  de  crescimento  e  a  prolactina,  a calcitonina  parece  estar  relacionada  com  controle  da  percepção  da  dor,  apetite,  iniciação  da  lactação,  e  em  nível  de hipotálamo, deve ter um papel de neurotransmissor, embora a comprovação desta hipótese seja difícil de conseguir.

VITAMINA D Desde  a  descoberta  da  vitamina  D,  no  início  do  século  passado,  fracassam  as  tentativas  de  classificá­la  em  uma categoria  química  ou  biológica.  Foi  inicialmente  descrita  como  um  nutriente  lipossolúvel,  que  prevenia  e  curava  o raquitismo.  Depois,  descobriu­se  que  essa  vitamina  poderia  ser  sintetizada  na  pele,  sob  a  influência  da  luz  ultravioleta, mas  a  importância  da  capacidade  desta  síntese  foi  subestimada,  permanecendo­se  na  crença  de  que  a  fonte  alimentar exógena  seria  a  principal  via  de  obtenção  de  vitamina  D  do  organismo.  A  partir  da  constatação,  já  no  fim  da  década  de 1970,  de  que  a  síntese  na  pele  é  a  responsável  pela  maior  parte  da  vitamina  D  circulante,  ela  deixou  de  ser  vista  como um nutriente,  e  também,  por  definição,  não  poderia  ser  considerada  uma  vitamina,  porém  a  nomenclatura  persiste.  Nos idos de 1960, descobriu­se que essa vitamina necessita de metabolização prévia para tornar­se biologicamente ativa, e que ela  atua  em  tecidos­alvo  a  distância,  de  maneira  semelhante  aos  hormônios  esteroides;  desde  então,  é  considerada  como tal,  cuja  função  relaciona­se  com  a  manutenção  do  metabolismo  de  cálcio  do  organismo.  Entretanto,  uma  série  de  novas ações da vitamina D não relacionadas com o metabolismo de cálcio vêm sendo descritas, demonstrando que estamos longe de uma compreensão total sobre seu papel biológico.

Figura  76.12  ■   Síntese  epidérmica  da  vitamina  D3.  A  irradiação  ultravioleta  penetra  na  pele  e  atua  sobre  o  precursor  7­ deidrocolesterol,  provocando  uma  cisão  entre  os  C9  e  C10  do  núcleo  ciclopentano­peridrofenantreno  da  molécula, transformando­o na vitamina D3.

As  vitaminas  D  (calciferóis)  formam  uma  família  de  seco­esteroides  lipossolúveis  e  biologicamente  ativos.  Os secoesteroides  são  semelhantes  aos  esteroides,  mas  apresentam  uma  clivagem  entre  os  carbonos  C9  e  C10,  em  um  dos anéis do núcleo básico dessas moléculas, o ciclopentano­peridrofenantreno (Figura 76.12). Entretanto, o metabolismo e o mecanismo de ação dessas moléculas são análogos aos dos esteroides.

▸ Metabolismo da vitamina D Dois compostos diferentes são chamados de “vitamina D”: o ergocalciferol (vitamina D2) e o colecalciferol (vitamina D3).  Eles  diferem  em  dois  aspectos:  na  origem  (os  compostos  D2  são  de  origem  vegetal,  enquanto  os  D3,  de  origem animal) e na estrutura de suas cadeias laterais. Na realidade, os índices utilizados na nomenclatura da vitamina D refletem apenas  a  ordem  com  que  os  compostos  foram  decobertos;  as  vitaminas  D2  e  D3  são  metabolizadas  igualmente  e  têm potência biológica equivalente, podendo ser denominadas indistintamente vitamina D (Figura 76.13). Os precursores da vitamina D são produzidos em vegetais (ergosterol) e animais (7­deidrocolesterol), por intermédio de uma série de condensações da acetilcoenzima­A. O lanoesterol é o precursor do ergosterol e do 7­deidrocolesterol; este último consiste em um produto alternativo de uma via envolvida na biossíntese do colesterol, principalmente na derme e epiderme  humana.  Radiações  na  faixa  ultravioleta  (230  a  313  nm)  penetram  a  pele,  levando  à  transformação  de  7­ deidrocolesterol em pré­vitamina D3; a pré­vitamina D3 e a vitamina D3 são isômeros que permanecem em um equilíbrio físico­químico que favorece a vitamina D3 (ver Figura 76.12). Quanto menor o comprimento de onda da luz UV e quanto maior a pigmentação da pele, menor a penetração e, consequentemente, menor a formação de vitamina D. Por outro lado, inexiste o risco de um indivíduo desenvolver intoxicação por essa vitamina em caso de exposição solar prolongada, pois um mecanismo de proteção passa a converter a pré­vitamina D3em um isômero inativo, o lumisterol. Nas  zonas  tropicais,  existe  luz  solar  adequada  para  garantir  a  síntese  epidérmica  e  a  liberação  de  quantidades suficientes  de  colecalciferol,  fazendo  com  que  os  indivíduos  sejam  independentes  das  fontes  alimentares  de  ergo  ou colecalciferol.  Em  zonas  temperadas,  entretanto,  a  concentração  plasmática  de  vitamina  D  apresenta  variação  sazonal, atingindo os níveis mais altos após os meses de verão e mais baixos depois do inverno. A produção dessa vitamina varia em função da latitude, das estações do ano, da pigmentação da pele e da superfície corporal exposta à luz UV. Devido a estes  aspectos,  alguns  países  (p.  ex.,  EUA  e  Canadá)  enriquecem  seus  alimentos,  como  o  leite  e  seus  derivados,  com vitamina D. A necessidade diária varia de 400 a 800 UI/dia ou 10 a 20 μg/dia (1 UI = 0,025 μg vitamina D).

Figura 76.13 ■ Estrutura das moléculas de vitamina D2 e D3. Note que diferem apenas com respeito ao radical ligado ao carbono 17.

A  vitamina  D  é  encontrada  apenas  em  pequenas  quantidades  na  dieta  habitual.  Grandes  quantidades  são  obtidas  em óleos  de  fígado  de  peixes.  Normalmente,  60  a  90%  do  calciferol  presente  na  dieta  é  absorvido  através  do  intestino delgado, por mecanismos semelhantes àqueles que permitem a absorção do colesterol. Logo após sua absorção, a vitamina D é transportada em quilomícrons pelo ducto torácico; em seguida, no sangue, é associada a uma proteína transportadora específica  (transcalciferina).  Quando  administrada  por  via  intravenosa  em  ratos  com  deficiência  de  vitamina  D,  cerca  de 30% da vitamina D é captada pelo fígado para ser liberada horas mais tarde como 25(OH)D3(ver adiante). Durante excesso de  ingestão  de  vitamina  D,  entretanto,  mais  da  metade  da  vitamina  D  administrada  deposita­se  no  tecido  adiposo,  sendo liberada lentamente para a circulação durante meses.

▸ Hidroxilação da vitamina D A vitamina D é biologicamente inativa. Para ela se tornar ativa, é transformada em metabólitos mais polares por meio de  hidroxilações  que  ocorrem  no  fígado  e  nos  rins.  Após  sua  administração  a  um  animal  deficiente  em  vitamina  D, observa­se  um  intervalo  de  6  a  12  h  até  que  respostas  biológicas  sejam  notadas.  Esse  período  de  tempo  reflete  a necessidade  de  ativação  das  moléculas  de  calciferol  antes  que  possam  agir  em  seus  tecidos­alvo.  As  reações  envolvidas nessa  ativação  foram  caracterizadas  pelo  emprego  de  traçadores  radioativos.  Depois  de  administração  de  vitamina  D, percebe­se  o  aparecimento  de  uma  série  de  metabólitos  mono­  e  di­hidroxilados,  e,  nos  tecidos­alvo,  observa­se  o acúmulo da forma di­hidroxilada, a 1,25(OH)2D (Figura 76.14).

25­hidroxilação Uma análise sequencial das modificações sofridas pela molécula de vitamina D indica que a etapa inicial é a introdução de um grupamento hidroxila no carbono 25. Quando injetada em animais deficientes nessa vitamina, a 25(OH)D age mais rapidamente que seus precursores, mostrando certa atividade biológica intrínseca nos tecidos­alvo. O fígado é o principal local  de  25­hidroxilação  da  vitamina  D,  embora  essa  reação  também  possa  ocorrer,  em  menor  escala,  no  intestino  e  nos rins.  A  enzima  25­hidroxilase  está  presente  nas  frações  microssomais  e  mitocondriais  dos  hepatócitos,  sendo  pouco regulável;  apenas  a  fração  microssomal  pode  ser  discretamente  inibida  pelo  acúmulo  do  produto  25­hidroxilado.  Em consequência, o maior determinante da quantidade circulante de 25(OH)D é a porção de vitamina D disponível no plasma, quer de origem endógena ou exógena. Portanto, a determinação dos níveis plasmáticos de 25(OH)D reflete precisamente a reserva  de  vitamina  D  do  organismo.  Seus  níveis  plasmáticos  normais  variam  de  10  a  50  ng/m ℓ .  Sinais  clínicos  de hipovitaminose  D  surgem  com  níveis  de  25(OH)D  inferiores  a  5  ng/m ℓ .  Como  a  25(OH)D  apresenta  baixa hidrossolubilidade,  cerca  de  50%  do  estoque  corporal  permanece  circulando  ligado  a  uma  alfa2­globulina  hepática,  a transcalciferina, de 55 kDa; o restante é mantido no interior das células ligado a proteínas citoplasmáticas.

1α­hidroxilação

A  1,25(OH)2D  é  o  metabólito  mais  potente  da  vitamina  D  (ver  Figura  76.14).  No  ser  humano,  a  concentração plasmática da 1,25(OH)2D varia entre 30 e 50 pg/mℓ, cerca de um milésimo da concentração de 25(OH)D. A conversão da 25(OH)D em 1,25(OH)2D,  o  principal  ponto  de  controle  do  metabolismo  da  vitamina  D,  ocorre  nos  rins  sob  a  ação  da enzima  25(OH)D  1α­hidroxilase,  situada  nas  mitocôndrias  dos  túbulos  contornados  proximais;  a  placenta,  o  osso  e, provavelmente,  as  células  hematopoéticas  também  são  capazes  dessa  conversão.  Apesar  de  a  maior  parte  dos  estudos empregar a 25(OH)D3 como  substrato  dessa  enzima,  acredita­se  que  25(OH)D2, 24,25(OH)2D3,  25,26(OH)2D3  e  outros metabólitos 25­hidroxilados também sejam bons substratos para a 25(OH)D 1α­hidroxilase. Esta  enzima  é  uma  mono­oxigenase  que  se  localiza  na  membrana  interna  das  mitocôndrias.  Na  verdade,  trata­se  de uma  cadeia  de  transporte  eletrônico  formado  por  três  componentes  proteicos:  ferredoxina  redutase,  ferredoxina  e citocromo  P450.  A  ferredoxina  redutase  recebe  elétrons  do  fosfato  de  nicotinamida­dinucleotídio  (NADPH),  que  são transportados  até  a  ferredoxina,  uma  ferrossulfoproteína.  A  ferredoxina  é  o  componente  regulador,  que  transporta  os elétrons até o citocromo P450, o qual, na presença de oxigênio molecular, produzirá a hidroxilação do substrato 25(OH)D na  posição  1α.  Ao  contrário  da  25­hidroxilase,  a  atividade  da  25(OH)D  1α­hidroxilase  é  finamente  modulada,  ou  seja, pode aumentar ou diminuir de acordo com o momento homeostático do organismo. Nesse sentido, o déficit alimentar de vitamina D leva ao aumento de 5 a 20 vezes na atividade da 25(OH)D 1α­hidroxilase, retornando ao normal após alguns dias  de  reposição  da  vitamina  D;  da  mesma  maneira,  a  administração  de  excesso  de  vitamina  D  resulta  em  elevação marcante  nos  níveis  plasmáticos  de  25(OH)D,  enquanto  os  níveis  de  1,25(OH)2D  permanecem  dentro  da  normalidade. Diversos  fatores  foram  identificados  como  controladores  da  atividade  da  1α­hidroxilase  (ver  Figura  76.14),  porém  os mais  importantes  são  o  PTH,  o  fosfato  e  os  próprios  níveis  de  1,25(OH)2D  circulantes.  Quando  os  níveis  de  cálcio ionizado  caem,  as  paratireoides  reagem  imediatamente,  liberando  paratormônio.  Este  hormônio  eleva  a  mobilização  de cálcio do osso e aumenta a fração reabsorvida de cálcio, assim como a excretada de fósforo pelo rim, produzindo efeitos rápidos  sobre  a  calcemia.  Como  o  PTH  é  um  potente  estimulador  da  1α­hidroxilase,  aumenta  a  síntese  de  1,25(OH)2D, com consequente incremento da absorção intestinal de cálcio e fósforo, evitando, assim, a evolução para hipocalcemia. A 1,25(OH)2D, por sua vez, atua sobre as paratireoides, suprimindo diretamente a síntese de PTH, caracterizando uma típica alça de retrorregulação endócrina.

Figura 76.14 ■ Estrutura da forma ativa da vitamina D, a 1α­25­di­hidroxivitamina D3. Na passagem pelo fígado, a vitamina D sofre hidroxilação na posição 25. No rim, por intermédio da 1α­hidroxilase, transforma­se na vitamina D ativa pela adição de uma hidroxila na posição 1.

A fosfatemia também modula a atividade da 25(OH)D 1α­hidroxilase por intermédio de mecanismos independentes do PTH. A depleção do fosfato leva ao aumento dos níveis circulantes de 1,25(OH)2D3 e à maior absorção intestinal de cálcio e de fosfato. Elevando­se os níveis de cálcio, também a secreção de PTH será suprimida, diminuindo consequentemente a

excreção de fosfato pelo rim, o que contribui para a subida de seus níveis plasmáticos. O aumento dos níveis de fosfato, por outro lado, inibe a atividade da 1α­hidroxilase, reduzindo a síntese de 1,25(OH)2D.

24­hidroxilação Outro  metabólito  importante  da  vitamina  D  é  a  24,25(OH)2D.  Em  condições  normais,  os  níveis  plasmáticos  de 24,25(OH)2D  são  cerca  de  10  vezes  inferiores  aos  de  25(OH)D  e  100  vezes  superiores  aos  de  1,25(OH)2D.  O  principal local  da  24­hidroxilação  da  25(OH)D  é  o  tecido  renal,  embora  indivíduos  anéfricos  ainda  apresentem  24,25(OH)2D circulante  em  menor  quantidade.  Como  a  25(OH)D  1α­hidroxilase,  a  25(OH)D  24­hidroxilase  também  está  presente  nas mitocôndrias  e  dispõe  de  estrutura  semelhante;  ambas  sofrem  influências  de  fatores  em  comum,  porém  respondem  em sentidos opostos. A atividade da 25(OH)D 1α­hidroxilase e os níveis de 1,25(OH)2D diminuem progressivamente com o aumento  da  concentração  plasmática  de  fosfato;  por  outro  lado,  a  atividade  da  25(OH)D  24­hidroxilase  e  os  níveis circulantes de 24,25(OH)2D  aumentam  de  modo  direto  com  a  fosfatemia.  A  administração  de  1,25(OH)2D  para  frangos deficientes em vitamina D inibe, em questão de horas, a transformação de 25(OH)D3 para 1,25(OH)2D; ao mesmo tempo, ativa  a  produção  de  24,25(OH)2D.  Células  renais  em  cultura  mostram  diminuição  da  24­hidroxilação  da  25(OH)D  na presença de PTH; por outro lado, na presença de cálcio e 1,25(OH)2D a 24­hidroxilação é aumentada. Todos  os  metabólitos  da  vitamina  D  circulam  ligados  a  transcalciferina,  que  tem  maior  afinidade  pela  25(OH)2D, seguida pela 1,25(OH)2D, e menor afinidade pela vitamina D. A vitamina D distribui­se pelo organismo, acumulando­se principalmente nas células adiposas, e apresenta meia­vida biológica de cerca de 30 dias, com produção diária de 15 μg. A forma 25­hidroxilada dispõe de meia­vida de 15 dias e de taxa de produção diária de 7 μg, enquanto a 1,25(OH)2D tem um volume circulante (pool) de 0,5 μg, meia­vida de 0,2 dia e produção de aproximadamente 1 μg/dia.

▸ Mecanismo de ação da vitamina D O  mecanismo  clássico  de  ação  da  1,25(OH)2D,  e  o  mais  estudado,  é  o  efeito  genômico,  descrito  para  todos  os hormônios esteroides. A 1,25(OH)2D interage especificamente com um receptor nuclear. Este complexo esteroide­receptor (VDR)  associa­se  à  molécula  de  DNA  no  núcleo  da  célula,  alterando  o  comportamento  metabólico  da  célula,  pela repressão  ou  estimulação  de  determinados  genes  responsivos  à  vitamina  D  (Quadro  76.5).  Estes  receptores  já  foram caracterizados  bioquimicamente  em  várias  espécies  animais;  são  proteínas  intracelulares,  cujo  tamanho  varia  de  50  a  60 kDa, que se ligam com alta afinidade à 1,25(OH)2D (Kd = 1 a 50 × 10–11 M). Sua sequência primária de aminoácidos foi deduzida por amostras de DNA complementar e demonstrou alta homologia de sua porção ligadora ao DNA com a mesma região de outros receptores de hormônios esteroides e, principalmente, do receptor de hormônio tireoidiano, confirmando que estas moléculas pertencem à mesma família de genes. A presença de receptores de 1,25(OH)2D foi demonstrada em todos os tecidos onde foi investigada, como glândulas endócrinas, rins, intestino, osso, pele, músculo, mamas, linfócitos e monócitos  circulantes,  útero,  placenta,  cólon,  pâncreas,  timo,  e  em  diversos  tecidos  tumorais.  A  região  do  DNA  que  se liga  ao  complexo  receptor­hormônio,  denominado  elemento  responsivo  à  vitamina  D  (VDRE),  foi  identificada  na posição  up­stream  em  alguns  genes  como  da  osteocalcina,  da  osteopontina,  da  calbindina  D  e  da  24­hidroxilase.  Há evidências de que o VDRE consiste em uma repetição direta de 6 pares de bases (AGGTCA), separadas por um espaço de 3 pares de bases, que se liga a heterodímeros formados por VDR e pelo complexo receptor­ácido retinoico (RAR).

Quadro 76.5 ■ Efeito da 1,25(OH)2D3 sobre os genes em que já foi estudada. Gene

Tecido (animal)

Efeito na regulação

PTH

Paratireoides (rato)

Suprime

PTH­related proteine

Tireoide (humano)

Suprime

Calcitonina

Tireoide (rato, humano)

Suprime

Colágeno tipo I

Calvária (rato)

Suprime

Fibronectina

Fibroblastos (humano)

Estimula

Osteocalcina

Osteossarcoma (rato)

Estimula

Interleucina­2

Linfócitos (humano)

Suprime

Interferona­gama

Linfócitos (humano)

Suprime

Receptor de 1,25(OH)2D

Fibroblastos (humano)

Estimula

Calbindina­D 28K

Intestino (galinha)

Estimula

Calbindina­D 9K

Intestino (rato)

Estimula

Prolactina

Hipófise (rato)

Estimula

c­myc

Leucemia mieloide (humano)

Suprime

c­fos

Leucemia mieloide (humano)

Estimula

Entretanto, efeitos extremamente rápidos da 1,25(OH)2D têm sido relatados em diferentes tecidos, como na liberação de enzimas lisossomais em células epiteliais, na redistribuição de calmodulina nas células musculares e no transporte de cálcio nas células intestinais. Em perfusão de alça duodenal de galinhas, foi observado um efeito rápido da 1,25(OH)2D, aumentando o transporte de cálcio do lúmen intestinal para o perfusato vascular após apenas alguns minutos de exposição, caracterizando um efeito não genômico. Este processo parece depender da ligação do esteroide a um receptor de membrana diferente  do  receptor  nuclear  já  identificado,  que  produziria  elevações  das  concentrações  de  cálcio  intracelular  por intermédio,  provavelmente,  da  ativação  dos  canais  de  cálcio  dependentes  de  voltagem,  e  iniciando  a  fosforilação  das proteinoquinases A e C. Este efeito não genômico, chamado de transcaltaquia,  necessita  de  maiores  pesquisas  para  que possa ser inteiramente compreendido.

Ações no intestino O  intestino  apresenta  receptores  para  a  1,25(OH)2D3 e  mostra  respostas  dramáticas  à  administração  de  vitamina  D, com  grande  aumento  da  absorção  de  cálcio  e  discreta  elevação  na  de  fosfato  e  de  magnésio.  O  transporte  de  cálcio  nos intestinos delgado e grosso é regulado pela vitamina D. No rato, observa­se uma hierarquia determinada, duodeno > jejuno > íleo > cólon; já a absorção de fosfato mostra uma hierarquia diferente, jejuno > duodeno > íleo. As ações da vitamina D nas  células  intestinais  são  totalmente  independentes  do  PTH.  Essas  células  contêm  uma  proteína  ligadora  de  cálcio denominada  calbindina  D,  cuja  concentração  corresponde  à  capacidade  transportadora  de  cálcio.  A  concentração  dessa proteína aumenta cerca de 2 h após administração in vivo ou in vitro de 1,25(OH)2D3 a animais ou preparações deficientes de vitamina D; sua ação direta sobre o gene já foi identificada em ratos e em camundongos, inclusive com a determinação do  elemento  responsivo  ao  complexo  vitamina  D­receptor  (VDRE).  Um  efeito  rápido,  não  genômico,  da  1,25(OH)2D sobre  o  transporte  de  cálcio  do  lúmen  intestinal  para  o  espaço  intravascular  também  foi  identificado;  esse  efeito  é designado transcaltaquia, parecendo estar relacionado com a ligação do hormônio a um receptor de membrana.

Ações no esqueleto A vitamina D é fundamental para o crescimento e a mineralização óssea. Seu papel já está bem definido na regulação da mineralização de osso recém­formado, assim como seu potente efeito indutor da reabsorção óssea. O que, no entanto, permanece  não  esclarecido  é  o  mecanismo  de  ação  para  chegar  a  estes  efeitos.  Seu  papel  sobre  o  crescimento  ósseo  e mineralização, provavelmente, não se faz diretamente sobre os osteoblastos, embora já se tenha demonstrado a presença de receptores de 1,25(OH)2D nestas células. Sabe­se também que a 1,25(OH)2D modula uma série de reações nestas células, como  o  aumento  da  produção  de  fosfatase  alcalina,  da  síntese  de  osteocalcina  e  do  número  dos  receptores  do  fator  de crescimento  epidérmico,  além  de  inibir  a  síntese  de  colágeno  do  tipo  I.  Portanto,  a  1,25(OH)2D  parece  tomar  parte  da regulação  da  função  osteoblástica;  entretanto,  a  relevância  fisiológica  destes  efeitos  sobre  o  metabolismo  ósseo  ainda precisa  ser  mais  bem  definida.  Indiretamente,  a  vitamina  D  provê  o  organismo  dos  elementos  necessários  para  que  a mineralização óssea ocorra, aumentando a absorção intestinal de cálcio e de fósforo. Seus  efeitos  sobre  a  reabsorção  óssea  podem  ser  divididos  em  rápidos  e  lentos,  e  evidências  experimentais  sugerem que nenhum destes efeitos é exercido diretamente sobre os osteoclastos maduros. Ratos tratados com 1,25(OH)2D passam

a  apresentar  um  número  maior  de  osteoclastos  que  persiste  por  alguns  dias.  Este  maior  número  poderia  explicar  o aumento na reabsorção óssea induzida pela 1,25(OH)2D. Além disso, a 1,25(OH)2D estimula a fusão e a diferenciação de células  hematopoéticas  precursoras  de  osteoclastos,  existentes  na  medula  óssea,  em  osteoclastos  maduros.  Esta diferenciação, no entanto, somente ocorre na presença do estroma mesenquimal precursor de osteoblastos, que parece estar relacionado com a produção de interleucina 11 e 6 por estas células. Ao contrário dos osteoblastos, em que o receptor de vitamina  D  já  foi  identificado,  ainda  não  se  demonstrou  a  presença  destes  receptores  em  osteoclastos.  Apesar  disso,  em culturas primárias de tecido ósseo de fetos de camundongos tratadas com 1,25(OH)2D demonstrou­se um incremento na secreção  do  ácido  hialurônico  e  da  fosfatase  ácida,  produtos  característicos  de  células  osteoclásticas.  Todos  estes  dados levam a concluir que o efeito sobre os osteoclastos deva ser indireto, por meio de produtos de outras células existentes no mesmo ambiente, induzidos pela 1,25(OH)2D. Um efeito rápido de aumento da reabsorção óssea também foi demonstrado em  culturas  de  tecido  ósseo,  em  que  uma  liberação  de  cálcio  pôde  ser  observada  algumas  horas  após  a  incubação  com 1,25(OH)2D,  período,  provavelmente,  não  suficiente  para  ser  explicado  pela  indução  de  diferenciação  celular.  Este  fato sugere a produção de fatores estimuladores da atividade osteoclástica por osteoblastos.

Ações no rim O  efeito  mais  importante  exercido  pela  1,25(OH)2D  no  rim  é  a  inibição  da  enzima  1α­hidroxilase,  diminuindo  com isso  a  sua  própria  produção  e  aumentando,  em  contrapartida,  a  atividade  da  24R­hidroxilase.  Alguns  trabalhos  sugerem um efeito direto sobre a excreção renal de cálcio e de fósforo, mas os resultados são ainda controversos.

Ações sobre a paratireoide O  PTH  é  um  importante  estimulador  da  síntese  renal  de  1,25(OH)2D.  Este  esteroide,  por  sua  vez,  atua  inibindo  a secreção  de  PTH  por  meio  de  dois  mecanismos.  O  primeiro,  indireto,  pelo  aumento  da  calcemia  induzida  por  maior absorção intestinal, e o segundo, suprimindo diretamente a síntese de PTH por inibição da transcrição do seu gene.

Outras ações da vitamina D Alguns  efeitos  da  1,25(OH)2D  não  relacionados  com  a  manutenção  da  homeostase  do  cálcio  vêm  sendo  descritos  e intensivamente  estudados,  como  seu  efeito  antiproliferativo  e  diferenciador  celular  (ver Quadro  76.5),  assim  como  seu efeito  modulador  da  resposta  imune.  Muito  se  tem  investido  no  desenvolvimento  de  derivados  sintéticos  que  tenham menor poder hipercalcemiante, uma vez que este é um efeito indesejável que limita seu uso clínico em diversas patologias em  que  seu  efeito  benéfico  já  é  comprovadamente  demonstrado,  como  na  psoríase,  na  imunologia  dos  transplantes  ou como fator antineoplásico (Figura 76.15).

Figura 76.15 ■ Possíveis ações da vitamina D em diferentes sistemas e suas potenciais aplicações terapêuticas.

REGULAÇÃO HORMONAL INTEGRADA DA HOMEOSTASE MINERAL

No  ser  humano,  as  glândulas  paratireoides  são  as  principais  responsáveis  pela  manutenção  da  homeostase  dos minerais.  Embora  a  secreção  de  calcitonina  também  seja  regulada  pela  calcemia,  a  calcitonina  não  funciona  como  um importante  regulador  do  conteúdo  plasmático  de  minerais.  Pode­se  constatar  isso  em  indivíduos  tireoidectomizados,  nos quais  o  controle  da  calcemia  não  é  alterado  pela  ausência  de  calcitonina.  Como  discutido  em  detalhes  nos  parágrafos precedentes, o PTH regula a concentração plasmática de cálcio por meio de suas ações diretas nos ossos e nos rins, assim como por intermédio de efeitos intestinais indiretos mediados pela vitamina D.

▸ Respostas desencadeadas pela hipocalcemia A deficiência de produção ou ação de PTH induz hipocalcemia acompanhada de hiperfosfatemia. Na ausência do PTH, a calcemia é mantida entre 5 e 6 mg/dℓ pela combinação de reabsorção tubular renal máxima mais influxo plasmático de cálcio  a  partir  do  osso  e  do  intestino.  Na  ausência  de  PTH,  a  hipocalcemia  e/ou  a  hipofosfatemia  são  individualmente suficientes  para  ativar  apenas  modestamente  a  produção  de  1,25(OH)2D3,  se  comparadas  com  a  ativação  da  produção induzida  pela  elevação  do  PTH.  Por  outro  lado,  a  concentração  plasmática  de  PTH  pode  elevar­se  cerca  de  5  a  10  vezes como resultado da hipocalcemia aguda (Figuras 76.16 e 76.17).

Figura 76.16 ■ Incremento nas concentrações de PTH (ensaio aminoterminal da molécula) durante hipocalcemia induzida pela infusão de EDTA (ácido etilenodiamino­tetra­acético; quelante de cálcio, formando complexo estável). Pesquisa realizada em 10 indivíduos  normais.  Note  que,  mesmo  antes  de  haver  uma  queda  detectável  do  cálcio  total  plasmático,  o  PTH  já  se  eleva significantemente.

Figura 76.17 ■ Curva de resposta da secreção de PTH em função do cálcio plasmático, em vacas. Os dados foram obtidos pela infusão de cálcio ou EDTA intravenoso, com dosagens concomitantes de PTH colhido por cateterização de veias de drenagem da paratireoide. A área C da curva marcada é a variação dentro dos limites fisiológicos. A redução dos níveis de cálcio abaixo de 9 mg/dℓ produz marcante elevação das taxas de secreção de PTH (B). A área A representa a resposta aguda máxima de PTH após redução extrema da calcemia. Elevações dos níveis de cálcio acima de 11 mg/d ℓ suprimem a secreção de PTH, embora não completamente (D). A secreção que persiste em condições de hipercalcemia é, no entanto, principalmente por fragmentos carboxiterminais da molécula. (Adaptada de Avioli e Krane, 1990.)

Durante a hipocalcemia, o aumento dos níveis plasmáticos de PTH é responsável pela parada completa de eliminação renal de cálcio e por um aumento ainda maior do influxo de cálcio a partir dos ossos. A resposta óssea reflete a ativação de osteócitos quiescentes e osteoclastos, que não justificariam a resposta rápida obtida após infusão de PTH. Esta resposta é  interpretada  como  a  mobilização  de  cálcio  de  compartimentos  ósseos  intersticiais,  por  alguns  chamados  de  membrana óssea, que responderiam prontamente ao PTH e a variações rápidas da calcemia. Se a hipocalcemia persistir por mais de 1 a 2 dias, a resposta óssea aumenta ainda mais devido à elevação do número e da atividade dos osteoclastos desencadeada pelo PTH, pelo 1,25(OH)2D3 ou por ambos. Ao nível renal, uma outra consequência do aumento do PTH plasmático é o crescimento do clearance de fosfato. Embora o PTH mobilize o fosfato dos ossos para o plasma, isso é compensado pelo efeito fosfatúrico do PTH, que resulta na manutenção dos níveis plasmáticos de cálcio e queda progressiva da fosfatemia. O PTH e a hipofosfatemia estimulam, individualmente, a 25(OH)D 1α­hidroxilase, levando ao aumento de 3 a 5 vezes na produção renal de 1,25(OH)2D3 após cerca de 24 a 78 h. Além  de  agir  no  nível  ósseo  juntamente  com  o  PTH,  a  1,25(OH)2D3  desencadeia  no  intestino  o  crescimento substancial da fração de absorção de cálcio, partindo de um basal de 25% para chegar até um máximo de 75%.

▸ Respostas desencadeadas pela hipercalcemia As alterações que seguem a hipercalcemia constituem praticamente o contrário daquilo que é observado em resposta à hipocalcemia  (ver  Figura  76.17).  Enquanto  o  tecido  ósseo  é  o  principal  tampão  acionado  contra  a  hipocalcemia,  a hipercalcemia  é  controlada  basicamente  com  alterações  do  transporte  mineral  pelos  túbulos  renais.  A  secreção  de  PTH diminui  segundos  depois  da  instalação  da  hipercalcemia.  Mesmo  após  administração  de  grandes  doses  de  cálcio (aproximadamente 1 g VO), a calcemia eleva­se apenas cerca de 1 mg/dℓ, levando à supressão da secreção de PTH e ao aumento do clearance renal  de  cálcio.  A  queda  do  PTH  circulante  também  conduz  à  diminuição  do  clearance  renal  de fosfato,  resultando  em  elevação  da  fosfatemia.  Baixos  níveis  de  PTH  e  hiperfosfatemia  provocam  inibição  da  produção renal de 1,25(OH)2D3 e  diminuição  da  absorção  intestinal  de  cálcio.  A  hipercalcemia  aguda  também  causa  o  aumento  da secreção de calcitonina; entretanto, a calcitonina não participa de maneira importante na resposta à hipercalcemia, exceto se esta estiver associada ao aumento da atividade osteoclástica.

▸ Regulação do fosfato plasmático O  controle  da  concentração  plasmática  de  fosfato  é  menos  rígido  que  o  da  calcemia.  Os  principais  determinantes  da fosfatemia  são  o  limiar  para  excreção  renal  e  a  carga  filtrada  de  fosfato.  A  retirada  do  fosfato  da  alimentação  não desencadeia uma resposta imediata; uma hipofosfatemia que perdure por vários dias é seguida de aumento da produção de 1,25(OH)2D3.  Isso  leva  ao  aumento  da  absorção  intestinal  de  cálcio,  que  aumenta  discretamente  a  calcemia  e  suprime  a secreção  de  PTH.  Essa  supressão  da  secreção  de  PTH  diminui  o  clearance  renal  de  fosfato  e  eleva  o  do  cálcio. O clearance renal  de  fosfato  também  diminui  de  modo  independente  do  PTH,  por  mecanismos  autorregulatórios  renais. Dentro de 3 a 4 dias da retirada de fosfato da alimentação, a sua excreção renal pode cair de cerca de 1 g/dia para valores desprezíveis. Não se conhecem respostas metabólicas agudas à hiperfosfatemia. Uma a duas horas após uma carga oral de fosfato  (1,5  g),  a  fosfatemia  atinge  o  pico  máximo;  o  excesso  de  fosfato  é  basicamente  eliminado  pelos  rins, provavelmente pela ação das fosfatoninas, em especial do FGF­23.

Os Dentes Priscilla Morethson O órgão dentário é constituído por diferentes tecidos, mineralizados e não mineralizados. Os tecidos mineralizados do órgão dentário são esmalte, dentina e cemento, os quais diferem significativamente entre si tanto em sua porção orgânica quanto  mineral.  Os  tecidos  não  mineralizados  que  compõem  o  órgão  dentário  são  a  polpa  dentária  ou  estruturas  do periodonto, como o ligamento periodontal, que mantém a ancoragem do dente no osso alveolar. Os tecidos dentários e periodontais – esmalte, dentina, polpa, cemento, osso alveolar e ligamento periodontal – de um dente completamente formado estão representados na Figura 76.18 e serão brevemente apresentados a seguir.

ESMALTE Trata­se  do  tecido  de  revestimento  externo  da  coroa  dentária  e  do  tecido  mais  duro  do  organismo.  O  esmalte  é  um tecido  acelular,  que  apresenta  o  maior  conteúdo  mineral  dentre  todos  os  tecidos  mineralizados.  O  alto  teor  mineral  do esmalte  confere  rigidez;  no  entanto,  o  esmalte  é  um  tecido  friável,  cujo  suporte  é  dado  pela  resiliência  da  dentina subjacente. A  porção  orgânica  do  esmalte  dentário  corresponde  a  4%  do  peso  do  dente  e  constitui­se  principalmente  de  água  e proteínas não colágenas sintetizadas e secretadas pelos ameloblastos, células de origem ectodérmica. A  matriz  orgânica  do  esmalte  é  formada  por  amelogeninas  e  enamelinas.  As  amelogeninas  constituem  o  principal grupo de proteínas do esmalte. A matriz macromolecular aniônica secretada pelos ameloblastos é o substrato para o processo de biomineralização. As amelogeninas  formam  agregados  de  estruturas  quaternárias  de  cerca  de  20  nm,  as  nanosferas,  que  direcionam  o crescimento de cristais de hidroxiapatita, definindo sua arquitetura. Há evidências de que, durante a formação e maturação do esmalte, ocorra a remoção de proteínas da matriz de forma ordenada. As enamelinas, glicoproteínas ácidas hidrofílicas, perfazem 5% das proteínas da matriz.

Figura 76.18 ■ Tecidos dentários e periodontais de um dente completamente formado. (Adaptada de Favus, 2003.)

Sobre a matriz orgânica, os cristais de hidroxiapatita depositados darão origem às porções prismática e interprismática do  esmalte.  A  porção  prismática  é  composta  por  cristais  dispostos  paralelamente  ao  longo  do  eixo  dos  ameloblastos;  o esmalte interprismático posiciona­se em ângulo de 65° em relação ao esmalte prismático. Interessantemente, entre as duas porções, há um acúmulo de proteínas residuais em delgada camada de matriz, sem cristais, o que torna o esmalte dessas regiões mais suscetível à desmineralização pelos ácidos bacterianos em lesões de cárie.

COMPLEXO DENTINOPULPAR No interior do dente, encontra­se a polpa dentária, tecido conjuntivo frouxo vascularizado e ricamente inervado, com sofisticada função neurossensorial. A  polpa  acomoda­se  na  câmara  pulpar  e  no  interior  dos  canais  radiculares,  compartimentos  que  se  intercomunicam envoltos  por  dentina,  tecido  mineralizado.  Dada  a  íntima  relação  entre  a  polpa  e  a  dentina,  os  dois  tecidos  podem  ser analisados  como  um  complexo  com  respostas  que  se  manifestam  em  ambos  diante  de  agressões,  como  a  cárie,  por exemplo. A  polpa  é,  didaticamente,  dividida  nas  regiões  odontoblástica,  subodontoblástica,  camada  rica  em  células  e  camada central. Os  odontoblastos,  células  derivadas  da  crista  neural,  destacam­se  dentre  os  tipos  celulares  presentes  na  polpa.  Estão localizados  na  periferia  da  polpa,  em  contiguidade  com  a  dentina.  Os  odontoblastos  possuem  prolongamentos  dentro  de estruturas tubulares, os túbulos dentinários. Na odontogênese, os odontoblastos são responsáveis pela produção de dentina, que envolve toda a cavidade da coroa dentária  e  os  canais  radiculares.  A  matriz  inicialmente  produzida  pelos  odontoblastos  não  é  mineralizada  e  se  denomina pré­dentina. Após  a  erupção  do  dente,  os  odontoblastos  continuam  a  secretar  dentina,  então  denominada  dentina  secundária,  em resposta  a  traumatismo  ou  lesão  de  cárie,  por  exemplo.  Os  odontoblastos  são,  ainda,  capazes  de  sintetizar  dentina  em regiões  focais  da  câmara  pulpar  ou  de  canais  radiculares  frente  a  agressões  físicas,  químicas  e,  mais  comumente, biológicas,  como  as  bactérias  causadoras  da  cárie.  Nesses  casos,  a  dentina  depositada  focalmente  é  denominada  dentina

terciária,  a  qual  não  possui  contiguidade  com  a  dentina  primária  e  secundária,  o  que  protege  os  odontoblastos  e  outras células da polpa de agressores provenientes do meio bucal. A  dentina  é  constituída  por  cristais  de  hidroxiapatita,  que  perfazem  70%  do  seu  peso,  por  colágeno  tipo  I  e  água. Devido ao seu elevado teor de cálcio, é mais dura que o osso. Recentemente,  demonstrou­se  que  a  polpa  dentária  humana  expressa  osteoprotegerina  (OPG)  e  RANKL,  fatores  que inibem  ou  estimulam  as  funções  clásticas.  Portanto,  é  possível  que  o  sistema  OPG/RANKL/RANK  esteja  ativamente envolvido na diferenciação de células clásticas durante processos patológicos de reabsorção radicular. Outro  fato  relevante,  e  de  interesse  para  o  conhecimento  da  fisiologia  dental,  é  a  existência  de  mecanorreceptores intradentais na polpa dentária, os quais atuam na detecção de uma ampla gama de frequências de vibração. Essa aferência sensorial  é  fundamental  para  a  coordenação  da  atividade  das  unidades  neuromusculares  no  complexo  craniomandibular durante a mastigação. Diferentes  tipos  celulares  estão  implicados  na  inervação  da  polpa  dentária,  os  quais  exibem  complexa  relação  com vasos  sanguíneos  e  odontoblastos.  Há  evidências  de  que  os  próprios  odontoblastos  estejam  implicados  nas  funções neurossensoriais  da  polpa.  Atualmente,  o  papel  sensorial  dos  odontoblastos  e  a  interação  dessas  células  com  elementos neurais são um importante tópico que vem sendo investigado. Estudos  elegantemente  conduzidos  por  Farahani et al.  (2011,  2012)  buscam  examinar  essa  questão  baseando­se  em lógica  evolucionária.  Segundo  esses  autores,  a  polpa  dentária  é  um  órgão  sensorial  vestigial;  sendo  assim,  os  elementos essenciais dos órgãos neurossensoriais poderiam persistir na polpa dentária. Por meio de análises moleculares, os autores identificaram células análogas à glia radial, astrócitos e micróglia dos órgãos do sistema nervoso central na polpa dentária. De acordo com esses dados, há uma rede interconectada envolvendo axônios não mielinizados e terminações extensas ao redor dos capilares em uma zona rica em células da polpa dentária, com aspecto de uma estrutura neurossensorial madura, e microcirculação com características daquela do sistema da barreira hematencefálica (Figura 76.19). Adicionalmente,  a  função  odontoblástica  evidencia­se  por  respostas  imunológicas  adaptativas,  como  a  produção  de citocinas  pró­inflamatórias  por  ativação  de  receptores  tipo  Toll,  a  partir  de  interação  odontoblástica  com  componentes bacterianos. Portanto, os odontoblastos são capazes de detectar sinais ambientais e reagir de forma correta, o que torna o complexo dentinopulpar  dinâmico,  além  de  possivelmente  comporem  a  interface  neurossensorial  proprioceptiva  e  nociceptiva. Atualmente, apesar de alguns avanços, a base neural para a atividade sensorial odontoblástica permanece pouco explorada e compreendida.

CEMENTO Trata­se  do  tecido  de  revestimento  externo  da  raiz  dentária.  O  cemento  é  formado  por  cementoblastos,  células  de origem ectomesenquimal que se diferenciam em contato com a dentina recém­formada. O  cemento,  o  ligamento  periodontal  e  o  osso  alveolar  constituem  um  complexo  funcional  denominado  periodonto  de sustentação, envolvido na manutenção do dente no alvéolo ósseo. O  cemento  apresenta  semelhanças  com  o  tecido  ósseo,  com  conteúdo  mineral  de  cerca  de  45  a  50%  de  seu  peso, consistindo em cristais de hidroxiapatita. O componente orgânico do cemento é representado por fibras colágenas tipo I.

LIGAMENTO PERIODONTAL O ligamento periodontal promove uma ligação dos dentes entre si, e destes com a gengiva e o osso alveolar. Embora ricamente celularizado, o ligamento é constituído de muitas fibras colágenas tipos I e III, elásticas e reticulares, próprias dos tecidos conjuntivos, além de vasos e nervos. O ligamento periodontal tem espessura mínima e máxima de cerca de 0,2 a 0,4 mm, respectivamente, e permite a mobilidade fisiológica do dente no alvéolo ósseo.

Figura 76.19 ■ Diferentes tipos celulares envolvidos na inervação da polpa dentária. A polpa central compreende os principais feixes  neurovasculares  e  tecido  conjuntivo  associado  (não  mostrado).  A.  Na  polpa  sensorial  periférica,  diferentes  regiões anatômicas  são  caracterizadas:  (I)  dentina  (Dn;  GFAP,  verde);  (II)  a  camada  odontoblástica,  que  inclui  odontoblastos  (Od), seracitos (células gliais multipotentes) e corpos celulares de alacitos (células tipo micróglia na interface dentária); (III) uma zona livre de células (Cf) que separa a camada odontoblástica e a zona rica em células; (IV) uma zona rica em células (Cr;  S100, vermelho) contendo telacitos (células de glia tipo astrócito) e microvasculatura, os quais formam a barreira hematodentária. O detalhe mostra a comunicação entre os processos dessas células na zona rica em células. Barra de escala = 20 μm em A; 10 μm no detalhe de A. B. Representação esquemática de zonas anatômicas da região neurossensorial periférica da polpa dentária. C. Representação esquemática da estrutura neurossensorial da polpa dentária humana. (Adaptada de Farahani et al., 2011.)

As  células  presentes  no  ligamento  periodontal  são  os  fibroblastos;  no  entanto,  cordões  e  ilhotas  epiteliais interconectados  também  estão  presentes.  Essa  rede  de  epitélio  interposta  entre  o  osso  e  o  dente  no  tecido  ligamentar  foi descrita  por  Malassez;  é  conhecida  como restos  epiteliais  de  Malassez  e  tem  relevância  clínica,  dada  sua  relação  com patogenia de doenças císticas do complexo maxilomandibular muito prevalentes. Interessantemente, as células epiteliais no ligamento periodontal continuadamente liberam mediadores, especialmente o fator de crescimento epitelial (EGF). Em estudos com movimentação dentária por dispositivos ortodônticos, observou­se

que áreas com EGF na superfície do tecido ósseo coincidem com estimulação da reabsorção, o que sugere um papel das células  epiteliais  do  ligamento  na  indução  da  reabsorção  óssea  por  osteoclastos  e  na  fisiologia  osteomineral  do  osso alveolar. A  primeira  descrição  do  EGF  foi  feita  pelo  bioquímico  americano  Cohen,  que  o  identificou  nas  glândulas submandibulares de ratos e o relacionou à aceleração da erupção dos dentes incisivos e na abertura dos olhos dos recém­ nascidos. Esses estudos lhe renderam o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia, em 1986. O papel do EGF na regulação do desenvolvimento e da erupção dentária é conhecido desde 1962; desde então, o EGF tem  revelado  uma  potente  atividade  na  indução  à  reabsorção  óssea.  Em  ratos  deficientes  de  receptores  para  EGF,  a ossificação  endocondral  mostra­se  severamente  alterada  pela  deficiência  no  recrutamento  de  osteoclastos  e  na osteoclastogênese.

OSSO ALVEOLAR O  sistema  do  fator  de  transcrição  OPG/RANKL/RANK  controla  as  funções  clásticas  no  remodelamento  ósseo  por toda a vida do indivíduo. Esse sistema é responsável pela diferenciação de células clásticas a partir dos seus precursores e pela manutenção do equilíbrio entre os processos de formação e reabsorção óssea. Notoriamente,  a  polpa  dentária  e  o  ligamento  periodontal  parecem  modular  a  atividade  osteoclástica,  por  meio  da expressão de fatores que atuam tanto na formação como na função de osteoclastos. Dessa maneira, o órgão dentário em si pode modificar o tecido ósseo adjacente. Isso realmente ocorre. É fato reconhecido na clínica que a perda de dentes traz, como consequência, a perda óssea da maxila e da mandíbula. A  perda  dentária  ocasiona  hipofunção  mastigatória  e  perda  da  aferência  proprioceptiva  proveniente  da  polpa  e  do ligamento  periodontal,  com  remodelamento  neural  em  estruturas  do  sistema  nervoso  central,  incluindo  o  córtex. Adicionalmente, é amplamente conhecido que a perda dentária ocasiona perda óssea. Em situação de hipofunção, a redução do fluxo sanguíneo e do metabolismo locais causa atrofia do tecido ósseo, com expressão de citocinas e outros fatores que estimulam a formação e a diferenciação de osteoclastos, como RANKL e EGF. Além  dos  estímulos  moleculares,  a  interrupção  de  fluxo  de  líquido  extracelular  per  se  constitui  um  estímulo  à reabsorção óssea, uma vez que coincide exatamente com o início da secreção de ácido pelo osteoclasto, como demonstrado por Morethson (2015). Dessa maneira, pode­se concluir que, após perda dentária, a redução do fluxo sanguíneo local age como fator ativador direto da função de osteoclastos.

ERUPÇÃO DENTÁRIA | ODONTOGÊNESE A  erupção  dentária  é  um  processo  que  compreende  a  odontogênese,  a  irrupção  dos  dentes  na  cavidade  bucal  e  seu correto posicionamento em oclusão com os dentes antagonistas. A  odontogênese,  ou  seja,  a  formação  de  dentes  inicia­se  na  6a semana  de  vida  intrauterina  para  os  dentes  decíduos (conhecidos  também  como  da  dentição  infantil,  primeira  dentição  ou  dentes  de  leite),  e  ao  redor  da  32a semana  de  vida intrauterina para os dentes permanentes. Decíduos ou permanentes, os dentes são formados a partir do epitélio oral, de origem ectodérmica, e do mesênquima das proeminências maxilares e mandibulares originados no primeiro arco branquial embrionário. Interações  sequenciais  na  interface  ectomesênquima  (derivado  de  células  migratórias  da  crista  neural)  e  ectoderma desempenham  papel  fundamental  no  desenvolvimento  dentário.  De  acordo  com  dados  recentes,  as  células ectomesenquimais são alvo da sinalização parácrina, proveniente das células epiteliais de origem ectodérmica. Presume­se, portanto, que a odontogênese seja iniciada no epitélio e, posteriormente, transferida para o ectomesênquima. Assim,  inicialmente,  o  epitélio  oral  primitivo  prolifera  e  invade  o  ectomesênquima  subjacente,  evento  que  coincide com  a  formação  de  uma  estrutura  epitelial  em  forma  de  ferradura:  a  banda  epitelial  primária.  Posteriormente,  a  banda epitelial primária subdivide­se nas lâminas vestibular e dentária. Os germes dentários surgem a partir da lâmina dentária. Anomalias na formação da banda epitelial primária podem resultar na ausência de dentes ou no desenvolvimento de dentes supranumerários, não raros na clínica odontológica. Os  germes  dentários  sofrem  modificação  histomorfológica  contínua,  sendo  possível  identificar  as  fases  da  formação dentária: fase de botão, capuz, campânula, coronogênese e rizogênese. A Figura 76.20 apresenta a disposição dos tecidos ectodérmicos e mesenquimais durante as fases de capuz e campânula da odontogênese.

O  germe  dentário  embrionário  encontra­se  parcialmente  envolto  por  osso  alveolar  em  desenvolvimento,  que  sofre remodelamento  pela  ação  dos  osteoclastos,  para  acomodar  o  dente  em  crescimento.  O  folículo,  estrutura  em  forma  de bolsa  de  tecido  conjuntivo  frouxo,  separa  o  dente  em  desenvolvimento  de  sua  cripta  óssea,  além  de  desempenhar  papel essencial na erupção dentária. Durante o desenvolvimento da raiz, o folículo dentário dá origem a ligamento periodontal, cemento e osso alveolar, os quais  suportam  o  dente,  mantendo­o  ancorado  ao  tecido  ósseo,  além  de  proporcionar  nutrição  e  mecanossensação,  e permitir o movimento dental fisiológico dentro do alvéolo. Durante  o  processo  de  formação  dentária,  a  indução  da  diferenciação  celular  depende,  em  parte,  de  moléculas sinalizadoras,  cuja  expressão  varia  continuamente  nos  diferentes  tipos  celulares  que  dão  origem  aos  tecidos  dentários mineralizados e não mineralizados do órgão dentário. As  moléculas  sinalizadoras  mais  importantes  no  processo  de  odontogênese  são  membros  das  famílias  das  proteínas Hedgehog, morfogenética óssea (BMP, do inglês bone morphogenetic protein), fator de crescimento de fibroblastos (FGF, do inglês fibroblast growth factor), Wnt e fator de necrose tumoral (TNF, do inglês tumoral necrosis factor). A expressão temporal e espacial das moléculas sinalizadoras é controlada por: (1) genes reguladores da odontogênese, os  quais  determinam  também  o  tipo  de  dente  a  ser  formado:  incisivos,  caninos,  pré­molares  ou  molares,  e  (2)  por modificações  epigenéticas  em  células­tronco  precursoras.  Os  diferentes  aspectos  anatômicos  dos  dentes  humanos  estão representados na Figura 76.21.

IRRUPÇÃO DENTÁRIA Os  dentes  são  importantes  no  sistema  mastigatório.  A  área  onde  os  alimentos  serão  fragmentados  depende  da  área oclusal de cada dente e do número de dentes com capacidade de oclusão. Dessa maneira, a mastigação somente é possível se  a  dentição  estiver  estabelecida.  Pronunciada  mudança  no  comportamento  oromotor  ocorre  com  a  transição  da  sucção para mastigação, que em humanos acontece entre o quinto e o oitavo mês de vida, período da irrupção dos dentes incisivos decíduos.

Figura 76.20 ■ Esquema da interação do epitélio e ectomesênquima e das modificações desses dois tecidos entre as fases de botão  e  capuz  da  odontogênese.  A.  Fase  de  botão.  1,  epitélio  oral;  2,  capuz  inicial;  3,  depressão;  4,  ectomesênquima condensado. B. Fase de capuz. 1, Epitélio externo; 2, epitélio oral; 3, lâmina dentária; 4, retículo estrelado; 5, epitélio interno; 6, papila dentária; 7, folículo dentário. (Adaptada de Farahani et al., 2011.)

Figura  76.21  ■   A.  Morfologia,  nomenclatura  e  posição  dos  dentes  humanos  permanentes  nos  arcos  dentários.  B.  Relação oclusal dos dentes permanentes superiores e inferiores. (Adaptada de Farahani et al., 2011.)

Um dos aspectos fisiológicos de maior relevância na clínica médica e odontológica refere­se à sequência e à idade de irrupção dos dentes decíduos e permanentes. A  cronologia  de  irrupção  dos  dentes  decíduos  (Quadro  76.6),  ou  seja,  a  idade  em  que  os  dentes  irrompem,  é relativamente variável, sendo que um atraso ou antecipação de 6 meses em relação à média são considerados normais. A sequência de irrupção, no entanto, geralmente é preservada. A dentadura decídua completa­se entre os 24 e os 30 meses de idade. A sequência de irrupção dos dentes permanentes é apresentada no Quadro 76.7. À medida que o dente irrompe na cavidade bucal, o osso alveolar é reabsorvido para permitir sua passagem, e a raiz dentária se desenvolve. A formação completa da raiz dentária ocorre nos 18 meses posteriores à irrupção do dente decíduo e em até 3 anos após a irrupção do dente permanente. Logo após a formação da raiz dos dentes decíduos, inicia­se a sua reabsorção. A reabsorção radicular ocorre de forma mais evidente nas regiões adjacentes à coroa do dente permanente em processo de formação. Então,  a  coroa  formada  perfura  a  mucosa  oral,  evento  que  posteriormente  contribui  para  a  formação  de  um  selo  em forma  de  anel,  ao  redor  da  coroa  dental,  constituído  por  células  epiteliais  na  região  limítrofe  entre  esmalte  e  dentina. Acredita­se  que  esse  selo  epitelial  possa  modificar  a  reabsorção  óssea  e,  assim,  definir  a  altura  da  crista  óssea  alveolar, por meio da secreção de citocinas, como EGF, que estimulam a função de osteoclastos.

Quadro 76.6 ■ Cronologia da irrupção dos dentes decíduos (ver aspectos anatômicos dos dentes humanos na Figura 76.21).

Dente

Idade de irrupção (meses)

Incisivo central inferior

6

Incisivo central superior

7,5

Incisivo lateral superior

9

Incisivo lateral inferior

7

Primeiro molar superior

14

Primeiro molar inferior

12

Canino superior

18

Canino inferior

16

2o molar inferior

20

2o molar superior

24

Quadro 76.7 ■ Sequência da irrupção dos dentes permanentes (ver aspectos anatômicos dos dentes humanos na Figura 76.21). Sequência

Maxila

Mandíbula

1o

Primeiro molar

Primeiro molar

2o

Incisivo central

Incisivo central

3o

Incisivo lateral

Incisivo lateral

4o

Primeiro pré­molar

Canino

5o

Segundo pré­molar

Primeiro pré­molar

6o

Canino

Segundo pré­molar

7o

Segundo molar

Segundo molar

DENTES E FISIOLOGIA OSTEOMINERAL E NERVOSA | A ODONTOLOGIA NA FRONTEIRA DA CIÊNCIA É fato reconhecido na clínica odontológica que a perda de dentes traz, como consequência, a perda óssea da maxila e mandíbula.  Essa  questão,  além  da  estética  e  harmonia  faciais,  envolve  a  capacidade  mastigatória  e,  portanto,  tem repercussão  direta  no  estado  nutricional.  Assim,  em  diversas  áreas  da  odontologia,  são  empreendidos  esforços  com finalidade restauradora e protética para a manutenção dos dentes em função na cavidade oral e, portanto, para a saúde do periodonto de sustentação. Ademais,  a  perda  de  dentes  tem  implicações  e  consequências  que  estão  além  da  homeostase  osteomineral  ou  da fisiologia  do  sistema  estomatognático.  Em  odontologia,  um  novo  e  estimulante  campo  de  investigação  neurofisiológica vem associando as perdas dentárias a comprometimento de funções sensoriais, motoras, cognitivas e emocionais. Avivi­Arber et al.  (2017)  usaram  ressonância  magnética  para  detectar  diferenças  volumétricas  quantificáveis  em  160 regiões  cerebrais  de  camundongos,  pós­extração  dentária.  Os  autores  relatam  que  a  extração  dentária  associou­se  a

volumes  significativamente  reduzidos  de  regiões  cerebrais  corticais  envolvidas  no  processamento  de  funções somatossensoriais,  motoras,  cognitivas  e  emocionais,  além  de  volumes  aumentados  nas  regiões  subcortical  sensorial  e temporais do prosencéfalo límbico, incluindo a amígdala. Enfim,  esses  achados  sugerem  que,  após  perda  dentária  ou  lesão  orofacial,  a  plasticidade  neural  pode  ter  outras implicações mais sérias que o estrito comprometimento estético, mastigatório e nutricional, até então reconhecidos. Pode­ se  dizer  que,  em  um  futuro  próximo,  novos  conhecimentos  acerca  da  neuroplasticidade  por  perda  dentária  colocarão  a odontologia restauradora e preventiva em um novo patamar: a de uma especialidade com resultados de interesse médico.

BIBLIOGRAFIA AVIOLI LV, KRANE SM (Eds.). Metabolic Bone Disease. Saunders, Philadelphia, 1990. BARON  R,  RAWADI  G.  Targeting  the  Wnt/beta­catenin  pathway  to  regulate  bone  formation  in  the  adult skeleton. Endocrinology; 148(6):2635­43, 2007. BARON R, VIGNERY A, JOROWITZ M. Lymphocytes, macrophages and the regulation of bone remodeling. In: PECK WA (Ed.). Bone and Mineral Research. Annual 2. Elsevier, New York, 1984. BOYLE WJ, SIMONET WS, LACEY DL. Osteoclast differentiation and activation. Nature, 423:337­42, 2003. BURTIS WJ. Parathyroid hormone­related protein: structure, function and measurement. Clin Chem, 38(11):2171­83, 1992. CANALIS E. Effect of growth factors on bone cell replication and differentiation. Clin Orthop Rel Res, 193:246­63, 1985. CHATTOPADHYAY  N,  MITHAL  A,  BROWN  EM.  The  calcium­sensing  receptor:  a  window  into  the  physiology  and pathophysiology of mineral ion metabolism. Endocr Rev, 17(4):289­307, 1996. COHN DV, ELTING JJ. Synthesis and secretion of parathyroid hormone and secretory protein­I by parathyroid gland. In: PECK WA (Ed.). Bone and Mineral Research. Annual 2. Elsevier, New York, 1984. ELIMA K. Osteoinductive proteins. Ann Med, 25:395­402, 1993. FINKELMAN RD, BUTLER WT. Vitamin D and skeletal tissues. J Oral Pathol, 14:191­215, 1985. JONES S, BOYDE A. Development and structure of teeth and periodontal tissues. In: FAVUS M (Ed.). Primer on the Metabolic Bone Diseases and Disorders of Mineral Metabolism. 5. ed. American Society for Bone and Mineral Research, 2003. LAZARETTI­CASTRO M, GRAUER A, MEKONNEN Y et al. Effects of 17β­estradiol on calcitonin secretion and content in a human medullary thyroid carcinoma cell line. J Bone Min Res, 6(11):1191­5, 1991. LAZARETTI­CASTRO  M,  GRAUER  A,  RAUE  F  et  al.  1,25­dihydroxyvitamin  D3  suppresses  dexamethasone  effects  on calcitonina secretion. Mol Cel Endocrinol, 71:R13­8, 1990. LAZARETTI­CASTRO M, KASAMATSU TS, FURLANETTO RP et al. Dinâmica da secreção de paratormônio biologicamente ativo em indivíduos normais durante hipocalcemia induzida por EDTA. Arq Bras Endocrinol Metabol, 32(3):65­8, 1988. LEHNINGER AL. Biochemistry. The Molecular Basis of Cell Structure and Function. 2. ed. Worth Publ. Inc., New York, 1975. LINKSWILER HM, ZEMEL MB, HEGSTED M et al. Protein­induced hypercalciuria. Fed Proc, 40(9):2429­33, 1981. MANOLAGAS SC, JILKA RL. Bone marrow, cytokines and bone remodeling. N Engl J Med, 332(5):305­11, 1995. MARGEN S, CHU JY, KAUFMANN NA et al. Studies in calcium metabolism. I. The calciuretic effect of dietary protein. Am J Clin Nutr, 27(6):584­9, 1974. NORDIN BEC (Ed.). Calcium in Human Biology. Springer­Verlag, Heidelberg, 1988. PARSONS JA (Ed.). Endocrinology in Calcium Metabolism. Raven Press, New York, 1983. PEDROSA  MAC,  LAZARETTI­CASTRO  M.  Papel  da  vitamina  D  na  função  neuromuscular.  Arq  Bras  Endocrinol Metab, 49(4):495­502, 2005. POCOTTE SL, EHRENSTEIN G, FITZPATRICK LA. Regulation of parathyroid hormone secretion. Endocrine Rev, 12(3):291­ 301, 1991. RAISZ LG. Pathogenesis of osteoporosis: concepts, conflicts, and prospects. J Clin Investig, 115(12):3318­25, 2005. REICHEL  H,  KOEFFLER  HP,  NORMAN  AW.  The  role  of  the  vitamin  D  endocrine  system  in  health  and  disease.  N  Eng  J Med, 320:980­91, 1989. RISTELI L, RISTELI J. Biochemical markers of bone metabolism. Ann Med, 25:385­93, 1993. SUDA T, TAKAHASHI N, MARTIN TJ. Modulation of osteoclast differentiation. Endocrine Rev, 13(1):66­80, 1992. TALMAGE  RV,  COOPER  CW,  TOVERUD  SU.  The  physiological  significance  of  calcitonin.  Bone  and  Mineral  Research. Annual 1. Excerpta Medica, New York, 1982. VÄÄNÄNEN HK. Mechanism of bone turnover. Ann Med, 25:353­9, 1993.

YADAV VK, OURY F, SUDA N et al. A serotonin­dependent mechanism explains the leptin regulation of bone mass, appetite, and energy expenditure. Cell Sep 4;138(5):976­89, 2009.

Os Dentes AVIVI­ARBER L, SELTZER Z, FRIEDEL M et al. Alterações volumétricas generalizadas do cérebro após a perda de dentes em ratos fêmeas. Neuroanat Front, 10:121, 2017. BOISSONADE  FM,  MATTHEWS  B.  Responses  of  trigeminal  brain  stem  neurons  and  the  digastric  muscle  to  tooth­pulp stimulation in awake cats. J Neurophysiol, 69:174­86, 1993. CHAI  Y,  JIANG  X,  ITO  Y  et  al.  Fate  of  the  mammalian  cranial  neural  crest  during  tooth  and  mandibular morphogenesis. Development, 127:1671­9, 2000. COHEN S. Isolation of a mouse submaxillary gland protein accelerating incisor eruption and eyelid opening in the newborn animal. J Biol Chem, 237:1555­62, 1962. CONSOLARO A, CONSOLARO MFMO. As funções dos Restos Epiteliais de Malassez, o EGF e o movimento ortodôntico ou Por que o movimento ortodôntico não promove a anquilose alveolodentária? Dental Press J Orthod, 15(2):24­32, 2010. DENG  P,  CHEN  QM,  HONG  C  et  al.  Histone  methyltransferases  and  demethylases:  regulators  in  balancing  osteogenic  and adipogenic differentiation of mesenchymal stem cells. Int J Oral Sci, 7(4):197­204, 2015. DONG WK, CHUDLER EH, MARTIN RF. Physiological properties of intradental mechanoreceptors. Brain Res,  334:389­95, 1985. DUNCAN HF, SMITH AJ, FLEMING GJ et al. Epigenetic modulation of dental pulp stem cells: implications for regenerative endodontics. Int Endod J, 49(5):431­46, 2016. DURAND SH, FLACHER V, ROMEAS A et al. Lipoteichoic acid increases TLR and functional chemokine expression while reducing dentin formation in in vitro differentiated human odontoblasts. J Immunol, 176:2880­7, 2006. FAGNOCCHI L, MAZZOLENI S, ZIPPO A. Integration of signaling pathways with the epigenetic machinery in the maintenance of stem cells. Stem Cells Int, 2016:8652748, 2016. FAN  Y,  ZHOU  Y,  ZHOU  X  et  al.  Epigenetic  control  of  gene  function  in  enamel  development.  Curr  Stem  Cell  Res Ther, 10(5):405­11, 2015. FARAHANI  RM,  SARRAFPOUR  B,  SIMONIAN  M  et  al.  Directed  glia­assisted  angiogenesis  in  a  mature  neurosensory structure:  pericytes  mediate  an  adaptive  response  in  human  dental  pulp  that  maintains  blood­barrier  function.  J  Comp Neurol, 520:3803­26, 2012. FARAHANI RM, SIMONIAN M, HUNTER N. Blueprint of an ancestral neurosensory organ revealed in glial networks in human dental pulp. J Comp Neurol, 519:3306­26, 2011. FAVUS M (Ed.). Primer  on  the  Metabolic  Bone  Diseases  and  Disorders  of  Mineral  Metabolism.  5.  ed.  American  Society  for Bone and Mineral Research, 2003. FINCHAM  AG.  Evidence  for  amelogenin  “nanospheres”  as  functional  components  of  secretory­stage  enamel  matrix.  J  Struc Biol, 115(1):50­9, 1995. HILDEBRAND C, FRIED K, TUISKU F et al. Teeth and tooth nerves. Prog Neurobiol, 45:165­222, 1995. HUI T, WANG C, CHEN D et al. Epigenetic regulation in dental pulp inflammation. Oral Dis, 23(1):22­8, 2017. LARSSON L, CASTILHO RM, GIANNOBILE WV. Epigenetics and its role in periodontal diseases: a state­of­the­art review. J Periodontol, 86(4):556­68, 2015. MAGLOIRE H, MAURIN JC, COUBLE ML et al. Topical review. Dental pain and odontoblasts: facts and hypotheses. J Orofac Pain, 24:335­49, 2010. MARTINS MD, JIAO Y, LARSSON L et al. Epigenetic modifications of histones in periodontal disease. J Dent Res, 95(2):215­ 22, 2016. MORETHSON P. Extracellular fluid flow and chloride content modulate H+ transport by osteoclasts. BMC Cell Biology, 16:20, 2015. OLGART  L,  GAZELIUS  B,  SUNDSTROM  F.  Intradental  nerve  activity  and  jaw­opening  reflex  in  response  to  mechanical deformation of cat teeth. Acta Physiol Scand, 133:399­406, 1988. PARTANEN AM, THESLEFF I. Growth factor and tooth development. Int J Dev Biol, 33:165­72, 1989. PARTANEN  AM,  THESLEFF  I.  Localization  and  quantization  of  I125­epidermal  growth  factor  binding  in  mouse  embryonic tooth and other embryonic tissues at different developmental stages. Dev Biol, 120:186­97, 1987. PEREZ­CAMPO  FM,  RIANCHO  JA.  Epigenetic  mechanisms  regulating  mesenchymal  stem  cell  differentiation.  Curr Genomics, 16(6):368­83, 2015. RAISZ  LG,  SIMMONS  HA,  SANDBERG  AL  et  al.  Direct  stimulation  of  bone  resorption  by  epidermal  growth factor. Endocrinology, 107(1):270­3, 1980.

ROADMAP  EPIGENOMICS  CONSORTIUM,  KUNDAJE  A,  MEULEMAN  W  et  al.  Integrative  analysis  of  111  reference human epigenomes. Nature, 518(7539):317­30, 2015. ROBERTSON LT, LEVY JH, PETRISOR D et al. Vibration perception thresholds of human maxillary and mandibular central incisors. Arch Oral Biol, 48:309­16, 2003. SCHULZ  S,  IMMEL  UD,  JUST  L  et  al.  epigenetic  characteristics  in  inflammatory  candidate  genes  in  aggressive periodontitis. Hum Immunol, 77(1):71­5, 2016. SEO  JY,  PARK  YJ,  YI  YA  et  al.  Epigenetics:  general  characteristics  and  implications  for  oral  health.  Restor  Dent Endod, 40(1):14­22, 2015. TASHJIAN  AH  Jr,  LEVINE  L.  Epidermal  growth  factor  stimulates  prostaglandin  production  and  bone  resorption  in  cultured mouse calvaria. Biochem Biophys Res Commun, 85(3):966­75, 1978. TERMINE  JD.  Properties  of  dissociatively  extracted  fetal  tooth  matrix  proteins.  Princiapal  molecular  species  in  developing bovine enamel. J Biol Chem, 20: 9760­8, 1980. THESLEFF I, PARTANEN AM, RIHTNIEMI L. Localization of epidermal growth factor receptors in mouse incisors and human premolars during eruption. Eur J Orthod, 9(1):24­32, 1987. TOPHAM  RT,  CHIEGO  DJ  Jr,  SMITH  AJ et al.  Effects  of  epidermal  growth  factor  on  tooth  differentiation  and  eruption.  In: DAVIDOVITCH A (Ed.). The Biological Mechanisms of Tooth Eruption and Root Resorption. Ebsco, Birmingham, 1988. UCHIYAMA  M,  NAKAMICHI  Y,  NAKAMURA  M  et  al.  Dental  pulp  and  periodontal  ligament  cells  support  osteoclastic differentiation. J Dent Res, 88:609, 2009. VICENTE  R,  NOEL  D,  PERS  YM et al.  Deregulation  and  therapeutic  potential  of  microRNAs  in  arthritic  diseases.  Nat  Rev Rheumatol, 12(4):211­20, 2016. WANG  J,  SUN  K,  SHEN  Y  et  al.  DNA  methylation  is  critical  for  tooth  agenesis:  implications  for  sporadic  non­syndromic anodontia and hypodontia. Sci Rep, 6:19162, 2016. YI T, LEE HL, CHA JH et al. Epidermal growth factor receptor regulates osteoclast differentiation and survival through cross­ talking with RANK signaling. J Cell Physiol, 217(2):409­22, 2008.c



Introdução

■ ■

Movimentação do óvulo e espermatozoides, fertilização e implantação Gestação

■ ■ ■

Parto Puerpério Lactação



Bibliografia

INTRODUÇÃO A  fisiologia  da  reprodução  envolve  um  dos  sistemas  reguladores  mais  complexos.  A  partir  de  uma  sucessão  de eventos coordenados, ocorrem a maturação e a movimentação dos gametas pelo sistema genital feminino, culminando no processo  de  fertilização.  A  implantação  do  concepto  no  útero  envolve  interações  profundas  entre  células  embrionárias  e células  endometriais.  O  desenvolvimento  do  feto  e  da  placenta  provoca  modificações  na  secreção  dos  hormônios  da reprodução e outros não diretamente relacionados. Esta sequência de fenômenos fisiológicos completa­se com o parto, o período  puerperal  e  o  processo  de  lactação.  (Para  o  estudo  do  assunto  exposto  no  presente  capítulo,  é  recomendável  a leitura prévia do Capítulo 71, Gônadas, que aborda os sistemas genitais masculino e feminino.)

MOVIMENTAÇÃO DO ÓVULO E ESPERMATOZOIDES, FERTILIZAÇÃO E IMPLANTAÇÃO

▸ Maturação e movimentação do óvulo O processo de maturação do óvulo é regulado principalmente pelos hormônios: FSH, LH e estradiol. Pouco antes da ovulação,  o  óvulo  completa  sua  primeira  divisão  meiótica  e  forma  o  primeiro  corpo  polar.  A  segunda  divisão  meiótica inicia­se  durante  a  ovulação,  mas  só  se  completa  após  a  fertilização  pelo  espermatozoide.  No  momento  da  ovulação,  o óvulo  liberado  e  as  células  da  granulosa  aderidas,  conhecidas  como cumulus oophorus,  são  coletados  pelas  terminações ciliadas das fímbrias da tuba uterina. Na mulher, a movimentação do óvulo ao longo da tuba uterina se dá já nos minutos seguintes  e  desenvolve­se  em  diferentes  etapas.  O  óvulo  passa  das  terminações  das  fímbrias  à  região  ampular,  onde permanece  por  1  a  2  dias,  período  em  que  poderá  acontecer  a  fertilização.  O  óvulo  fertilizado  atravessa  o  istmo  da  tuba uterina  e  fica  retido  na  junção  istmo­útero,  completando  o  período  de  3  dias  desde  a  ovulação.  Durante  este  estágio, estrogênios  e,  principalmente,  progesterona  vão  agir  sobre  o  endométrio,  na  preparação  à  implantação.  A  etapa  final  da movimentação surge 3 a 4 dias após a ovulação, quando o óvulo fertilizado chega à cavidade uterina (Figura 77.1).

Figura 77.1 ■ Movimentação do óvulo antes e depois da fertilização.

▸ Movimentação e capacitação dos espermatozoides Após  a  ejaculação,  os  espermatozoides  deixam  a  vagina  em  direção  ao  colo  uterino.  Eles  atravessam  a  cavidade  do útero, a junção istmo­útero, o istmo e finalmente a junção istmo­ampular. Na região ampular é onde ocorre a fertilização. A movimentação dos espermatozoides é muito mais rápida que a do óvulo, alcançando a região ampular da tuba uterina em 5  a  10  min  depois  da  ejaculação.  Dos  milhões  de  espermatozoides  depositados  na  vagina,  apenas  50  a  100  conseguem migrar por todo o sistema genital feminino para alcançar o oócito, na junção istmo­ampular da tuba uterina. A  capacitação  do  espermatozoide  o  habilita  a  fertilizar  um  óvulo.  O  contato  do  espermatozoide  com  a  zona  pelúcida induz  o  início  da  reação  acrossômica,  requerida  para  a  penetração  do  espermatozoide.  Esta  reação  envolve  a  fusão  do acromossoma com a membrana plasmática do espermatozoide e a exocitose do seu conteúdo enzimático (rico em proteases e glicosidases). Durante a capacitação, os espermatozoides apresentam aumento de motilidade.

▸ Fertilização Os espermatozoides mantêm a capacidade de fertilização por cerca de 48 a 72 h depois de adentrarem o sistema genital feminino. O óvulo, por sua vez, mantém­se viável para fertilização por cerca de 24 a 48 h após a ovulação. Se não ocorre fertilização, tanto o óvulo quanto os espermatozoides degeneram no sistema genital feminino. A  fusão  da  cabeça  do  espermatozoide  com  o  óvulo  completa  a  segunda  divisão  meiótica  deste  e  também  dispara mecanismos que impedem a fertilização por múltiplos espermatozoides. Com a fertilização, reconstitui­se o número de 46 cromossomas, sendo esta célula diploide denominada zigoto. A partir daí, inicia­se o desenvolvimento de um embrião. Durante  a  migração  do  zigoto  pela  tuba  uterina  em  direção  ao  local  de  implantação  na  cavidade  do  útero,  mitoses sucessivas formam a mórula cerca de 96 h após a fertilização (ver Figura 77.1). A mórula deixa a tuba uterina e alcança o útero  em  torno  de  4  dias  depois  da  fertilização;  permanece  suspensa  na  cavidade  uterina  enquanto  se  desenvolve  em blastocisto e é nutrida por constituintes do líquido uterino neste período. As células externas do blastocisto, denominadas trofoblastos, participam do processo de implantação e formam os componentes da placenta.

▸ Implantação O blastocisto implanta­se na parede uterina aproximadamente 7 a 8 dias após a fertilização. Este período caracteriza­se pela  receptividade  uterina  para  a  implantação  e  é  referido  como  janela  de  implantação.  A  maior  parte  dos  eventos fisiológicos  fundamentais  para  o  sucesso  da  implantação  decorre  de  alterações  cíclicas  nas  concentrações  de  hormônios

ovarianos  e  de  seus  receptores,  levando  à  maturação  morfológica  e  funcional  do  endométrio.  A  implantação  apresenta características  similares  às  de  um  processo  inflamatório,  incluindo  a  indução  de  moléculas  de  adesão  no  endométrio, seguida de invasão e angiogênese. Antes  da  implantação,  o  blastocisto  separa­se  da  zona  pelúcida;  assim,  as  células  trofoblásticas,  agora  desnudas, tornam­se  carregadas  negativamente  e  aderem  ao  endométrio,  via  glicoproteínas  de  superfície.  Microvilos  das  células trofoblásticas interdigitam­se e formam complexos juncionais com as células endometriais. Na presença de progesterona proveniente  do  corpo  lúteo,  o  endométrio  sofre  a  decidualização,  propiciando  as  condições  para  a  implantação.  Desse modo, 8 a 12 dias depois da ovulação o embrião penetra no epitélio uterino estando embebido no estroma endometrial. A partir do 13o dia de desenvolvimento, o mesoderma somático extraembriônico surge na superfície dos trofoblastos e juntos  formam  o  saco  coriônico.  Os  trofoblastos  do  córion  mantêm  contato  direto  com  as  células  decidualizadas  do endométrio,  formando  duas  populações  celulares  distintas:  (1)  o citotrofoblasto,  que  vai  compor  as  células  do  vilo  no início da gestação, e (2) o sinciciotrofoblasto, uma camada de células constituídas pela fusão da membrana de células do citotrofoblasto. Este sincício multinuclear é altamente diferenciado e inicia a secreção de gonadotrofina coriônica (hCG), que será fundamental para a manutenção do corpo lúteo (Figura 77.2). No  final  da  segunda  semana  de  fertilização,  os  vilos  coriônicos  desenvolvem­se  como  cordões  epiteliais  dos citotrofoblastos.  A  vascularização  desses  cordões  ocorre  a  partir  do  sistema  vascular  embrionário.  Do  lado  materno, formam­se  os  sinusoides  sanguíneos  em  torno  destes  cordões  trofoblásticos,  cujas  células  desenvolvem  as  vilosidades placentárias que são invadidas por capilares fetais. Nesta interface, acontecem as trocas gasosas entre o sangue materno e o fetal. O sangue fetal chega aos capilares das vilosidades placentárias pelas duas artérias umbilicais e, após as trocas com o  sangue  materno  através  da  membrana  placentária,  retorna  ao  feto  pela  veia  umbilical  (mais  informações  sobre  esse assunto são dadas no Capítulo 36, Circulações Regionais). Desde a fertilização até a formação completa da placenta, depois das primeiras 7 a 9 semanas, o corpo lúteo mantém­ se funcional, secretando esteroides ovarianos e garantindo assim a manutenção do embrião.

GESTAÇÃO A  gestação  é  mantida  por  hormônios  peptídicos  e  esteroides  provenientes  dos  ovários  maternos  e  da  placenta.  O sistema endócrino materno desempenha ação fundamental, adaptando­se para permitir o crescimento e o desenvolvimento adequados do feto.

▸ Placenta A  gestação  humana  prolonga­se,  em  média,  por  280  dias  (40  semanas)  a  partir  da  data  da  última  menstruação. Entretanto, considerando­se o dia da fertilização, a gestação dura cerca de 2 semanas menos. Na prática clínica, considera­ se a data da última menstruação como ponto de referência, enquanto a abordagem embriológica prefere referenciar a data da fertilização. A  placenta  é  um  órgão  transitório  e  funciona  como  interface  entre  os  organismos  materno  e  fetal.  Esta  estrutura complexa é constituída por um componente materno (a decídua), formada por células endometriais, e um componente fetal constituído por células trofoblásticas. Ela desempenha várias funções indispensáveis ao desenvolvimento fetal: nutricional (transferência  de  nutrientes  da  mãe  para  o  feto),  respiratória  (trocas  gasosas  de  O2  e  CO2),  excretora  (eliminação  de metabólitos  fetais)  e  endócrina  (síntese  de  hormônios  com  ações  na  mãe  e  no  feto).  Através  da  membrana  placentária, ocorre difusão de nutrientes e O2 da mãe para o feto, e de metabólitos e CO2 do feto para a mãe. Assim,  a  endocrinologia  da  gestação  envolve  três  etapas  distintas:  a  primeira,  em  que  é  indispensável  a  atividade  do corpo lúteo; a segunda, na qual há a transição luteoplacentária; e a terceira, em que se estabelece o predomínio da placenta em estreita relação funcional com o feto, constituindo a chamada unidade fetoplacentária.

Figura 77.2 ■ Etapas do processo de implantação do blastocisto no útero. Descrição no texto.

Função endócrina da placenta A  função  endócrina  da  placenta  é  diversificada  e  complexa.  Envolve  a  produção  de  substâncias  com  atividades biológica e imunológica similares aos hormônios hipotalâmicos (como o hormônio liberador de gonadotrofinas – GnRH, o hormônio  liberador  de  corticotrofina  –  CRH  e  o  hormônio  liberador  de  hormônio  de  crescimento  –  GHRH)  e  aos hipofisários  (como  a  tireotrofina  –  TSH,  a  prolactina  –  PRL,  o  hormônio  de  crescimento  –  GH  e  o  pró­hormônio  pró­ opiomelanocortina  –  POMC).  A  placenta  secreta  também  fatores  de  crescimento,  citocinas  e  hormônios  esteroides.  A função,  a  regulação  da  produção  e  o  significado  funcional  de  várias  substâncias  da  placenta  ainda  não  estão  totalmente esclarecidos. Dentre todos os hormônios produzidos pela placenta, os principais são a gonadotrofina coriônica – hCG, a somatotrofina coriônica – hPL, o estrogênio e a progesterona. Gonadotrofina coriônica humana (hCG) É o primeiro hormônio detectável resultante da atividade trofoblástica no processo de formação da placenta. Assim, o aparecimento  de  hCG  no  sangue  e  na  urina  24  h  após  a  implantação  do  embrião  constitui  o  primeiro  sinal  detectável  de gestação. Este hormônio é uma glicoproteína de peso molecular 38.000 dáltons, constituída por duas cadeias ligadas por uma ponte dissulfídica: (1) a cadeia alfa espécie­específica, idêntica à cadeia alfa dos hormônios glicoproteicos produzidos pela  adenohipófise  (TSH,  LH  e  FSH);  (2)  uma  cadeia  beta  que  apresenta  cerca  de  dois  terços  de  homologia  com  a sequência de aminoácidos da cadeia beta do hormônio luteinizante produzido pela adeno­hipófise. Ensaios imunobiológicos com anticorpo específico contra hCG (cadeia beta) não apresentam reações cruzadas com os hormônios  glicoproteicos  produzidos  pela  adeno­hipófise  e  permitem  o  diagnóstico  precoce  de  gestação.  Atualmente, testes comerciais simples baseados no princípio de imunoaglutinação são de fácil acesso e têm elevado índice de precisão diagnóstica. A secreção de hCG aumenta gradativamente até atingir valores máximos de concentração plasmática durante o terceiro mês  de  gestação,  quando  começa  a  diminuir  paulatinamente  até  estabilizar­se  no  último  trimestre  de  gestação.  Este hormônio  tem  vida  média  longa,  cerca  de  24  h,  devido  à  presença  de  ácido  siálico  na  molécula,  e  age  por  meio  de receptores com afinidade elevada, que se expressam em células do corpo lúteo. A ação luteotrófica da hCG é fundamental para manutenção da gestação, especialmente no primeiro trimestre, já que neste período a placenta não está completamente desenvolvida.  Tal  ação  promove  aumento  da  secreção  de  estrogênios  e  progesterona,  hormônios  indispensáveis  na manutenção  de  condições  adequadas  no  endométrio  para  implantação  e  manutenção  do  futuro  embrião.  A  concentração plasmática  de  hCG  pode  apresentar­se  mais  elevada  em  situações  de  gestação  múltipla,  diabetes,  coriocarcinoma,  entre outras.

Em fetos masculinos, a hCG estimula células intersticiais responsáveis pela secreção de testosterona, que em parte é convertida  pela  ação  da  enzima  5α­redutase  em  outro  androgênio,  a  di­hidrotestosterona.  Estes  dois  androgênios  são responsáveis pela diferenciação das estruturas genitais masculinas internas e externas. Somatotrofina coriônica (hPL) Este hormônio, também chamado de lactogênio placentário, começa a ser produzido mais tardiamente que a hCG, por volta  da  sexta  semana  de  gestação.  Seu  peso  molecular  é  de  22.000  dáltons  e  sua  estrutura  química  apresenta  grande homologia  com  dois  hormônios  produzidos  pela  adeno­hipófise,  prolactina  e  GH.  Há  evidências  de  que  tenha  ações metabólicas  semelhantes  a  estes  dois  hormônios  hipofisários,  porém  com  potência  reduzida.  As  ações  da  somatotrofina coriônica teriam o objetivo de disponibilizar quantidade maior de substrato energético ao feto. Neste sentido, poderiam ter influência em alterações metabólicas na gestante, como a diminuição de sensibilidade à glicose e de sua utilização, lipólise e inibição da neoglicogênese. Estrogênios e progesterona A  placenta  não  dispõe  da  maquinaria  enzimática  completa  para  vias  biossintéticas  esteroides.  Assim,  a  síntese  de esteroides  placentários  depende  de  esteroides  produzidos  pela  gestante  e  pelo  feto  (Figura  77.3).  Apesar  de  a  placenta produzir  muita  progesterona,  ela  é  incapaz  de  convertê­la  em  estrogênio  devido  à  deficiência  da  enzima  17α­hidroxilase. Os estrogênios placentários são sintetizados a partir da conversão dos androgênios desidroepiandrosterona (DHEA) e 16­ hidroxidesidroepiandrosterona  (16OH­DHEA),  secretados  pelas  suprarrenais  fetais  e  maternas.  Entre  as  principais  ações estrogênicas,  incluem­se:  aumento  do  útero  materno  pelo  aumento  do  miométrio  (estímulo  da  síntese  de  proteínas), acúmulo  de  líquido  (retenção  de  água  e  eletrólitos)  e  aumento  da  vascularização  (indução  de  angiogênese).  Outras  ações significativas  ocorrem  nas  glândulas  mamárias,  principalmente  no  crescimento  e  desenvolvimento  do  sistema  de  ductos, preparando­as para a lactação pós­parto.

Figura  77.3  ■   Via  biossintética  dos  esteroides  placentários  dependente  da  interação  com  a  gestante  e  o  feto.  DHEA, desidroepiandrosterona;  DHEA­S,  desidroepiandrosterona­sulfatada;  16α  OH­DHEA,  16­alfa­ hidroxidesidroepiandrosterona;  16α  OH­DHEA­S,  16­alfa­hidroxidesidroepiandrosterona­sulfatada;  16α  OH­androstenediona, 16­alfa­hidroxiandrostenediona.

A  progesterona  facilita  a  manutenção  do  embrião  no  útero,  impedindo  as  contrações  uterinas  para  evitar  o  aborto espontâneo.  Também  tem  ação  significativa  nas  glândulas  mamárias,  principalmente  no  crescimento  e  desenvolvimento dos alvéolos, onde ocorre a produção pós­parto do leite por ação estimuladora da prolactina.

▸ Outras alterações estruturais e funcionais na gestação A  gestante  apresenta  um  significativo  aumento  de  peso  corporal,  em  média  de  10  a  12  kg.  O  ganho  de  peso  é representado  por  feto,  placenta  e  anexos  fetais,  líquido  amniótico  e  aumentos  do  útero  e  das  mamas.  Além  disso,  o crescimento de outros tecidos não relacionados especificamente à gestação e a retenção de líquidos são também fatores que contribuem para o aumento de peso corporal. A  hipófise  aumenta  cerca  de  duas  vezes  na  gestação  tardia,  principalmente  por  causa  do  aumento  dos  lactotrofos  em tamanho e número; esse efeito é atribuído à ação dos estrogênios, que estimulam a síntese e a liberação de prolactina de modo dose­dependente. Em mulheres em idade reprodutiva, a administração de estrogênios, que mimetize a concentração plasmática no período pré­ovulatório, provoca elevação de secreção noturna de prolactina. Em ratas, foi demonstrado que o  efeito  de  estrogênios  se  deve  à  ativação  de  mRNA  para  prolactina,  inibição  do  tônus  dopaminérgico  e  facilitação  da expressão de receptores para TRH. As  concentrações  totais  de  hormônios  tireoidianos  e  cortisol  também  se  elevam,  mas  não  as  frações  livres  desses hormônios.  Portanto,  essas  alterações  normalmente  não  implicam  estados  de  hipertireoidismo  ou  hipercortisolismo.  As elevações  das  concentrações  totais  desses  hormônios  são  devidas  ao  aumento  da  produção  de  proteínas  transportadoras dos  hormônios  tireoidianos  e  cortisol,  respectivamente,  TBG  e  CBG;  o  crescimento  da  produção  dessas  proteínas  é também induzido pela ação dos estrogênios. Outros  parâmetros  funcionais  estão  aumentados,  como  ventilação,  retenção  de  água  e  eletrólitos,  taxa  de  filtração glomerular, ingestão de água, metabolismo basal (consumo maior de energia), volume sanguíneo, metabolismo de cálcio e fosfato, demanda de ferro, além de vitaminas D e K.

PARTO O parto é o processo durante o qual ocorre a expulsão do feto, placenta e anexos fetais do interior da cavidade uterina. Embora os mecanismos desencadeantes do trabalho de parto em humanos não estejam completamente esclarecidos, sabe­ se que eles envolvem fatores hormonais e mecânicos de origem materna e fetal. A contratilidade uterina durante a gestação e o parto compreende três fases distintas. A fase 0 é aquela em que o útero é  mantido  em  quiescência  durante  a  gestação,  principalmente  por  efeito  da  progesterona.  Outros  fatores  incluem: prostaciclina, relaxina e hormônio liberador de corticotrofina (CRH). O início do parto corresponde à transição da fase 0 para a fase 1. A fase 1 relaciona­se com a ativação da função uterina ocasionada por: estiramento e tensão provocados pelo crescimento  do  feto,  ativação  do  eixo  hipotálamo­hipófise­suprarrenal  fetal  e  aumento  de  prostaglandinas,  entre  outros fatores. A fase 2 caracteriza­se  por  contrações  uterinas  mais  intensas,  estimulada  por  ocitocina,  CRH  e  prostaglandinas, especialmente  as  produzidas  intraútero.  Estas  são  fundamentais  no  início  e  progressão  do  parto,  que  ocorrem  na  fase  2. Finalmente, a fase 3 corresponde à involução uterina no pósparto, que está associada principalmente à ação da ocitocina. Além das contrações uterinas, os primeiros sinais do trabalho de parto incluem também alterações do colo uterino, que se torna amolecido e mais fino. A dilatação do colo uterino ajusta­se a outras alterações anatômicas, como afrouxamento de ligamentos de ossos da bacia, elasticidade vaginal e maior distensibilidade dos músculos da região vulvar­perineal para constituir o chamado canal do parto. As contrações provocam, ainda, ruptura da bolsa amniótica, com perda de líquido; isso  facilita  o  acesso  do  feto  ao  canal  de  parto,  contribuindo  para  distensão  do  colo  uterino.  Esta  estimulação  do  colo uterino  aciona  uma  via  sensorial  ascendente,  através  da  medula  espinal  até  os  neurônios  ocitocinérgicos  do  hipotálamo, cujos terminais na neuro­hipófise liberam ocitocina para a circulação sistêmica. Este hormônio aumenta a contratilidade do miométrio uterino, o que impulsiona o feto no sentido do colo uterino, gerando mais estímulos para secreção de ocitocina. Forma­se assim um mecanismo de retroalimentação positiva interrompido pela expulsão do feto.

A  secreção  de  ocitocina  não  aumenta  na  mãe  e  no  feto  antes  de  iniciado  o  trabalho  de  parto,  mas  sim  durante  este. Assim,  além  da  função  indutora  do  trabalho  de  parto,  a  ocitocina  parece  ter  funções  mais  significativas  na  regulação  da fase  de  expulsão  do  feto  e  na  contração  uterina  hemostática  depois  do  parto.  A  contração  uterina  pós­parto,  além  de reduzir o sangramento, tem o efeito de cisalhamento e deslocamento da placenta da parede uterina, para que seja também expulsa.  A  administração  de  ocitocina  exógena  para  facilitar  o  trabalho  de  parto  é  procedimento  frequente  nos  serviços obstétricos. Entretanto, é contraindicada em mulheres previamente submetidas a cesárea ou miomectomia, com história de gestações  múltiplas  e  em  caso  de  desproporção  cefalopélvica,  entre  outras  situações.  Por  outro  lado,  a  presença  de ocitocina  materna  parece  não  ser  indispensável  para  o  trabalho  de  parto,  visto  que  este  pode  ocorrer  normalmente  em mulheres com deficiência de ocitocina. O  estrogênio  e  a  progesterona  têm  ações  inversas  sobre  o  miométrio.  A  progesterona  causa  hiperpolarização  do miométrio  e  reduz  a  síntese  de  receptores  para  ocitocina,  inibindo  a  contratilidade.  O  estrogênio  promove  contratilidade uterina  associada  ao  aumento  de  receptores  para  ocitocina.  Assim,  a  alteração  da  razão  estrogênio:progesterona  pode facilitar ou dificultar a expressão de receptores para ocitocina, influenciando portanto a ação da ocitocina na expulsão do feto. Outras  substâncias  estão  envolvidas  no  trabalho  de  parto,  como  prostaglandinas  e  catecolaminas.  O  ácido araquidônico, presente no âmnion e no córion em concentrações elevadas, é precursor das prostaglandinas. O aumento da produção  de  prostaglandinas  está  associado  à  facilitação  do  trabalho  de  parto.  A  administração  de  prostaglandinas  a gestantes  causa  amaciamento  e  dilatação  do  colo  uterino,  além  de  induzir  contrações  uterinas.  Por  outro  lado,  a progesterona  inibe  a  formação  de  prostaglandinas,  e  inibidores  destas  impedem  o  parto  prematuro.  As  catecolaminas atuantes em receptores alfa2 estimulam as contrações uterinas, enquanto em receptores beta2 inibem o trabalho de parto. A progesterona aumenta a razão entre receptores beta e receptores alfa no miométrio, favorecendo a manutenção da gestação.

PUERPÉRIO O  puerpério  é  o  período  de  6  semanas  pós­parto  no  qual  o  organismo  retorna  progressivamente  à  condição  pré­ gestacional.  Diversas  modificações  funcionais  e  algumas  estruturais  que  ocorreram  durante  a  gestação  são  revertidas  no puerpério,  por  exemplo,  afrouxamento  dos  ligamentos  pélvicos,  aumento  do  volume  sanguíneo  e  da  metabolização hepática  e  renal  de  várias  substâncias,  assim  como  das  concentrações  plasmáticas  totais  de  hormônios  tireoidianos  e corticoides, além do crescimento do útero. Neste  período  de  transição  biológica,  ocorre  uma  série  de  ajustes  dos  mecanismos  homeostáticos,  que  em  mulheres suscetíveis  pode  elevar  a  vulnerabilidade  a  estados  depressivos  transitórios  ou  persistentes  e  a  doenças  autoimunes. Evidências  sugerem  uma  associação  destes  distúrbios,  mais  frequentes  no  puerpério,  e  desajustes  no  eixo  hipotálamo­ hipófise suprarrenal pela deficiência de secreção de CRH. Durante o período de puerpério, há ausência de menstruação (amenorreia), que pode prolongar­se por mais ou menos tempo,  na  dependência  de  a  mulher  estar  amamentando  ou  não.  A  maioria  das  mulheres  que  não  amamentam  retoma  o ciclo  menstrual  normal,  com  ovulação  em  torno  de  6  semanas  pós­parto.  A  amamentação  pode  prolongar  a  amenorreia pós­parto, devido à ação antigonadotrófica indireta da prolactina, inibindo a secreção de GnRH pelo hipotálamo. Algumas evidências  indicam  ainda  uma  ação  direta  da  prolactina  sobre  o  ovário,  inibindo  o  crescimento  folicular.  O  tempo decorrido depois do parto e o número de amamentações influenciam a manutenção da anovulação e amenorreia. Entretanto, a amamentação não garante um estado de anovulação, mesmo que a mulher puérpera esteja em amenorreia, principalmente se não é fonte exclusiva de alimentação do lactente e portanto o número de mamadas é menor.

LACTAÇÃO A  lactação  é  a  fase  final  do  ciclo  reprodutivo  completo  dos  mamíferos.  Tem  a  importante  função  de  assegurar  a sobrevivência  dos  recémnascidos  por  oferecer  os  nutrientes  essenciais  para  o  seu  crescimento,  uma  vez  que,  após  o nascimento,  a  criança  perde  a  sua  fonte  de  alimento  através  da  placenta.  Juntamente  com  os  cuidados  que  protegem  o recém­nascido  das  adversidades  ambientais,  que  no  ser  humano  ocorrem  por  um  período  relativamente  longo,  a  lactação permite que o neonato cresça e gradualmente adquira independência. O processo de lactação pode ser dividido em três estágios: (1) a mamogênese ou o crescimento e desenvolvimento da glândula mamária, que ocorre durante todo o período gestacional e a torna capaz de produzir leite; (2) a lactogênese, que é

a síntese de leite pelas células alveolares e a sua secreção no lúmen do alvéolo, iniciando­se com a queda dos esteroides placentários depois do parto, e a lactopoese, que é a manutenção da lactação já estabelecida e que depende da duração e da frequência do ato de amamentar; (3) a ejeção de  leite,  ou  seja,  a  passagem  do  leite  do  lúmen  alveolar  para  o  sistema  de ductos até ductos maiores e a ampola, culminando com a liberação do leite para o neonato. Este assunto também é apresentado no Capítulo 78, Desreguladores Endócrinos.

▸ Mamogênese A  unidade  fundamental  secretória  da  mama  é  o  alvéolo  (Figura  77.4),  formado  por  uma  única  camada  de  células epiteliais cuboidais que dispõem de toda a maquinaria intracelular para a produção de leite, que é aí produzido e secretado para  o  lúmen  do  alvéolo  por  ação  da  prolactina.  Os  alvéolos  mamários  são  rodeados  por  células  mioepiteliais,  que  têm função  contrátil,  e  se  reúnem  em  grupos  que  formam  os  lóbulos  mamários.  Cada  alvéolo  drena  o  seu  conteúdo  para  um pequeno  ducto;  os  ductos  de  vários  alvéolos  confluem  em  ductos  maiores  que  se  abrem  nas  ampolas,  pequenos reservatórios  de  leite  de  onde  saem  os  ductos  lactíferos,  pelos  quais  o  leite  é  ejetado.  Lóbulos,  ductos,  tecido  fibroso  e gordura são componentes básicos da mama. A ejeção do leite dos alvéolos para os ductos, e então para o exterior, acontece como consequência da contração de células mioepiteliais em resposta à ocitocina.

Figura 77.4 ■ Estrutura da mama lactante. Os alvéolos mamários se reúnem em grupos que formam os lóbulos. Cada alvéolo secreta o leite do lúmen para pequenos ductos que se reúnem em ductos maiores até as ampolas, que desembocam no mamilo, de onde é expulso o leite durante a sucção. O destaque mostra a estrutura de um alvéolo; observe que este se compõe de uma camada  única  de  células  alveolares  produtoras  de  leite  e  é  envolto  por  uma  rede  de  células  mioepiteliais  com  capacidade contrátil, que o comprimem expulsando o leite para o ducto alveolar.

Ao nascimento, a mama consiste quase inteiramente em ductos com poucos ou nenhum alvéolo, e assim permanece até a  puberdade,  quando  começa  a  desenvolver­se  por  ação  de  vários  hormônios,  mas  especialmente  os  estrogênios  e  a progesterona. Durante a instalação da puberdade, a aréola aumenta e torna­se pigmentada, e o crescimento da mama se dá à custa do estroma. A elevação dos estrogênios causa desenvolvimento da mama, com deposição de gordura e crescimento dos sistemas de ductos e alvéolos. Quando se iniciam os ciclos menstruais, a exposição contínua da mama aos estrogênios e  à  progesterona  promove  aumento  adicional  da  arborização  e  do  comprimento  dos  ductos,  além  de  acelerar  o desenvolvimento  dos  alvéolos.  Outros  hormônios,  tais  como  insulina,  cortisol  e  GH,  são  também  importantes  para  o crescimento  do  sistema  de  ductos.  Durante  os  ciclos  menstruais,  o  aumento  das  concentrações  de  estrogênio  e progesterona, que ocorre na fase lútea, causa alterações evidentes na mama, como aumento do seu volume no período pré­ menstrual e a consequente mastalgia pré­menstrual. Durante  a  gestação,  a  glândula  mamária  passa  por  um  processo  de  preparação  para  a  lactação.  A  mama  cresce  sob influência  de  estrogênios,  progesterona,  glicocorticoides,  prolactina,  hPL,  GH,  IGF­1  e  insulina.  Há  aumento  do  tecido adiposo,  da  vascularização  e  da  rede  de  células  mioepiteliais  que  envolvem  os  alvéolos.  O  sistema  de  ductos  cresce  e arboriza­se, o número de alvéolos aumenta e formam­se muitos lóbulos. Embora os estrogênios e a progesterona sejam os principais hormônios para o desenvolvimento das glândulas mamárias durante a gestação, a prolactina tem ação crucial no mesmo. Juntamente com os estrogênios, a prolactina causa, principalmente, desenvolvimento de ductos, mas também de alvéolos;  na  presença  de  progesterona,  o  efeito  da  prolactina  no  crescimento  alveolar  é  muito  aumentado.  As  células epiteliais  dos  alvéolos  apresentam  vacúolos  que  indicam  atividade  secretora.  No  entanto,  a  produção  de  leite  não  ocorre antes  do  parto,  devido  às  concentrações  elevadas  de  estrogênios  e  progesterona,  que  impedem  a  ação  da  prolactina  nas células alveolares. Durante a amamentação, há proliferação adicional dos alvéolos e do sistema de ductos que, associada ao acúmulo de leite nos alvéolos, promove o aumento das mamas. Após cessar a amamentação, a glândula regride rapidamente, mas os alvéolos persistem. Portanto, as mamas de mulheres que já amamentaram são diferentes das mamas de nulíparas.

▸ Lactogênese e lactopoese Lactogênese Após a eliminação da placenta, as concentrações dos estrogênios e da progesterona caem abruptamente (Figura 77.5), permitindo assim o início da lactação, que acontece 36 a 48 h depois do parto, estimulada principalmente pela prolactina. A composição do leite varia no período pós­parto. Nos primeiros dias, há uma secreção amarelada e mais espessa. Trata­ se do colostro, que contém menos vitaminas hidrossolúveis (C e complexo B), gordura e açúcar que o leite, mas que tem maiores  quantidades  de  proteínas  e  vitaminas  lipossolúveis  (A,  D,  E  e  K)  e  imunoglobulinas  (IgG).  No  decorrer  das seguintes  2  a  3  semanas,  as  concentrações  das  IgG  e  proteínas  diminuem,  enquanto  as  de  lactose  e  gordura  aumentam, tornando o leite com valor calórico maior que o do colostro. Após este período de transição, o leite é uma solução aquosa que  contém  água,  açúcar  (o  principal  é  a  lactose),  gordura  (principal  fonte  energética),  aminoácidos  (incluindo  os essenciais), proteínas (a caseína é a principal proteína do leite), minerais (cálcio, ferro, magnésio, potássio, sódio, fósforo e enxofre) e vitaminas (A, B1, B2, B12, C, D, E e K). Para a secreção destes componentes do leite, da célula epitelial para o lúmen do alvéolo, são utilizadas várias rotas, descritas a seguir. Via secretória (exocitose) As  proteínas,  os  açúcares  e  as  imunoglobulinas  são  secretados  no  lúmen  do  alvéolo  por  exocitose  (Figura 77.6). As proteínas do leite são sintetizadas no retículo endoplasmático rugoso e vão para o aparelho de Golgi; aí são empacotadas em vesículas, as quais são secretadas no lúmen do alvéolo. Também no aparelho de Golgi, a lactose sintetase induz síntese de lactose, que é igualmente secretada para o lúmen em vesículas, por exocitose. Como o açúcar é osmoticamente ativo, a água  entra  nas  vesículas  por  osmose.  Assim,  o  volume  do  leite  é  diretamente  relacionado  com  o  conteúdo  da  lactose. Cálcio,  fosfato  e  citrato  também  são  secretados  por  esta  via.  A  secreção  das  imunoglobulinas  por  exocitose  é  precedida por um processo de endocitose. A membrana basal das células alveolares capta imunoglobulinas (especialmente a IgA) da mãe,  por  um  processo  de  endocitose  mediado  por  receptor.  O  complexo  IgA­receptor  internaliza­se  em  vesículas,  sendo estas  transportadas  pela  célula  até  a  membrana  apical,  onde  são  secretadas  por  exocitose.  Estas  imunoglobulinas  são absorvidas pelo sistema digestório do recém­nascido e são importantes para conferir imunidade para o neonato até que o seu sistema imune esteja maduro.

Figura 77.5 ■ Liberação de prolactina em reposta à sucção. A. Após o parto, as concentrações plasmáticas de estrógenos e de progesterona caem abruptamente, permitindo o início da lactação. Quando há amamentação, a secreção de prolactina continua alta,  exibindo  um  pico  de  secreção  em  resposta  à  sucção  durante  cada  período  de  amamentação.  Sem  amamentação,  as concentrações  de  prolactina  diminuem  rapidamente  e  voltam  aos  seus  níveis  basais.  B.  A  sucção  provoca  um  aumento  da secreção de prolactina que se inicia cerca de 10 min depois do início da sucção e se mantém durante o período que a sucção durar, diminuindo aos níveis basais cerca de 60 min após terminado o estímulo.

Figura 77.6 ■ Representação  esquemática  das  vias  usadas  na  produção  de  leite  pelas  células  alveolares. Via  secretória:  as proteínas  do  leite  são  sintetizadas  no  retículo  endoplasmático  rugoso  (RER)  e  migram  para  o  aparelho  de  Golgi,  onde  são empacotadas  em  vesículas  secretórias,  as  quais  são  secretadas  no  lúmen  do  alvéolo  por  exocitose.  A  lactose  também  é secretada  por  exocitose  após  sua  síntese  no  aparelho  de  Golgi.  As  imunoglobulinas  (Ig)  são  captadas  por  endocitose  na membrana basolateral e atravessam a célula alveolar até a membrana apical, onde são secretadas por exocitose no lúmen do alvéolo. Os eletrólitos também são excretados por exocitose. Via dos lipídios: os ácidos graxos de cadeia curta são sintetizados no retículo endoplasmático liso (REL), formando gotículas que aumentam de tamanho à medida que se movem em direção à membrana apical, a qual envolve as gotículas e as elimina para o lúmen do alvéolo. Via transcelular: a água se move através da célula  por  gradiente  osmótico  gerado  pela  lactose  e  pelos  eletrólitos.  Os  íons  monovalentes  seguem  a  água  por  gradiente

eletroquímico.  Via  paracelular:  várias  substâncias  e  tipos  celulares  passam  para  o  leite  por  entre  as  células,  atravessando as tight junctions, que se tornam mais frouxas durante a sucção. (Adaptada de Jones e DeCherney, 2005.)

Via dos lipídios Os ácidos graxos de cadeia longa, os mais abundantes no leite, originam­se da dieta ou de depósitos de gordura. Já os ácidos graxos de cadeia curta são sintetizados no retículo endoplasmático liso das células epiteliais alveolares. Os ácidos graxos  formam  gotículas  que  se  movem  em  direção  à  membrana  apical  ao  mesmo  tempo  em  que  vão  aumentando  de tamanho. A gotícula empurra a membrana, que se distende e perde suas microvilosidades no local; em seguida, a gotícula é envolvida pela membrana. Por fim, a membrana pinça o citoplasma e se funde de modo a envolver totalmente a gotícula, que  é  então  eliminada  para  o  lúmen  do  alvéolo  envolta  em  membrana.  Estes  ácidos  graxos  são  quase  completamente digestíveis, uma vez que estão emulsificados no leite na forma de pequenos glóbulos. Transporte transcelular de água e sal Vários processos de transporte na membrana apical e basolateral movimentam eletrólitos do líquido intersticial para o lúmen  do  alvéolo.  A  água  se  move  através  da  célula  por  gradiente  osmótico,  gerado  primariamente  pela  lactose  e  em menor extensão pelos eletrólitos. Os íons monovalentes seguem a água por gradiente eletroquímico. Via paracelular A rota paracelular é diferente das vias transcelulares. Por causa das tight junctions, as substâncias, normalmente, não passam  entre  as  células  dos  alvéolos.  Mas,  durante  a  sucção,  estas  junções  se  tornam  mais  frouxas,  permitindo  a passagem de sais e água para o leite, bem como de células tipo leucócitos e imunoblastos que secretam IgA. Este processo é dependente de estradiol, progesterona e prolactina, que favorecem esta migração. Água e sais também podem se mover para o lúmen do alvéolo via gap junctions. Estes  mecanismos  responsáveis  pela  formação  do  leite  nas  células  alveolares  são  mediados  primariamente  pela prolactina,  mas  também  são  influenciados  por  estrogênios,  progesterona,  insulina,  glicocorticoides,  hormônios tireoidianos,  prostaglandinas  e  fatores  de  crescimento.  A  prolactina  é  um  hormônio  polipeptídico  com  198  aminoácidos, peso molecular 22.000 dáltons, produzido por lactotrofos da adeno­hipófise. Uma vez secretado, este hormônio alcança a circulação  sistêmica  e  se  liga  a  seus  receptores  de  membrana,  localizados  nas  células  secretoras  dos  alvéolos,  induzindo assim a síntese de componentes do leite e a sua secreção para o lúmen alveolar (lactogênese). A secreção de prolactina é tonicamente inibida pelo hipotálamo. Várias substâncias têm sido identificadas como inibidores da secreção de prolactina; no entanto, até o momento, a dopamina é a mais estudada e aceita como principal fator inibidor. A dopamina é liberada na eminência  mediana  por  terminais  neuronais  próximos  ao  plexo  primário  de  capilares  do  sistema  porta­hipofisário, alcançando, via vasos porta longos, a adeno­hipófise, onde inibe a secreção de prolactina nos lactotrofos. Na mulher não grávida,  as  concentrações  plasmáticas  de  prolactina  são  normalmente  abaixo  de  25  ng/m ℓ .  Ao  longo  da  gestação,  a liberação  de  dopamina  diminui  e  a  secreção  de  prolactina  aumenta.  Durante  o  terceiro  trimestre  da  gestação,  as concentrações plasmáticas de prolactina são cerca de 15 vezes mais altas, alcançando 200 a 450 ng/mℓ (ver Figura 77.5). Por ocasião do parto, este hormônio alcança suas concentrações máximas no plasma, mas a mama produz apenas pequenas quantidades  de  colostro.  Não  há  lactogênese  porque  as  células  alveolares  não  respondem  à  prolactina  até  que  as concentrações plasmáticas de estrogênios e principalmente de progesterona caiam no momento do parto. Estes esteroides parecem inibir a lactogênese por agir diretamente nas células alveolares. Outras informações a respeito da prolactina são fornecidas no Capítulo 66, Glândula Hipófise.

Lactopoese Após  o  parto,  grandes  quantidades  de  prolactina  são  secretadas  pelos  lactotrofos  em  resposta  à  sucção  do  mamilo (ver  Figura  77.5).  Se  não  houver  sucção,  as  concentrações  deste  hormônio  caem  lentamente,  e  apenas  uma  pequena quantidade de leite pode ainda ser secretada por 3 a 4 semanas depois do parto. No entanto, se houver o aleitamento, as concentrações  de  prolactina  se  manterão  elevadas.  Em  2  a  5  dias,  a  produção  láctea  estará  plenamente  estabelecida,  e  a manutenção da secreção copiosa de leite (lactopoese) dependerá estritamente do estímulo frequente da sucção. Neste caso, a sucção manterá as concentrações plasmáticas de prolactina altas durante as primeiras 8 a 12 semanas. No entanto, com o passar  do  tempo,  a  secreção  basal  de  prolactina  diminui,  e  a  sucção  já  não  provoca  aumentos  desta  secreção  na  mesma magnitude;  mesmo  que  a  mulher  continue  amamentando,  a  produção  de  leite  cai  gradativamente,  e  a  reposição  de prolactina  é  inefetiva  para  restaurá­la.  Apesar  disso,  este  hormônio,  ainda  que  em  concentrações  mais  baixas,  continua sendo importante à lactopoese.

▸ Ejeção do leite A sucção, além de induzir a liberação de prolactina garantindo a lactogênese, constitui o estímulo mais importante para a  liberação  de  ocitocina,  responsável  pela  ejeção  do  leite.  Este  hormônio  é  produzido  nos  neurônios  magnocelulares  dos núcleos paraventricular (PVN) e supraóptico (SON) do hipotálamo. No PVN, a síntese de ocitocina se dá nos neurônios da região  mais  ventral,  enquanto,  no  SON,  ela  ocorre,  predominantemente,  na  região  mais  dorsal.  Após  sua  síntese  nos corpos celulares, a ocitocina é transportada em grânulos até os terminais desses neurônios, localizados na neuro­hipófise, onde é armazenada. O processo de liberação de ocitocina é desencadeado pela despolarização dos neurônios do PVN e do SON, e a sucção é um dos estímulos mais poderosos para que ela ocorra (Figura 77.7). Em consequência à despolarização desses  neurônios,  a  ocitocina  é  liberada  por  exocitose  junto  aos  capilares  da  neuro­hipófise,  onde  não  há  barreira hematencefálica.  O  hormônio  então  atravessa  a  parede  destes  capilares  fenestrados  e  alcança  a  circulação  sistêmica.  Nas células mioepiteliais que envolvem os alvéolos mamários, a ocitocina se liga aos seus receptores de membrana, induzindo a  contração  destas  células,  o  que  força  o  leite  a  sair  dos  alvéolos  para  os  ductos.  Mais  comentários  sobre  ocitocina  são feitos no Capítulo 66.

▸ Reflexo neuroendócrino da lactação Durante a sucção, os sinais sensoriais originados nos mecanorreceptores presentes no mamilo trafegam pelos nervos torácicos 4, 5 e 6 e entram no sistema nervoso central pela raiz dorsal da medula espinal; daí, em uma via polissináptica através da coluna anterolateral, ascendem para o tronco cerebral e então para o hipotálamo (ver Figura 77.7).

Prolactina No  hipotálamo,  terminais  de  neurônios  desta  via  estimulada  pela  sucção  inibem  os  neurônios  dopaminérgicos  do núcleo arqueado, reduzindo assim a secreção de dopamina. A diminuição da liberação de dopamina remove a inibição que ela exerce sobre os lactotrofos da adeno­hipófise. Consequentemente, há aumento da secreção de prolactina. Em relação a este controle neuroendócrino da secreção de prolactina, foi sugerido que somente a desinibição do tônus dopaminérgico parece não ser capaz de produzir aumentos agudos na secreção de prolactina. Portanto, a gênese de picos de secreção  deste  hormônio  aparenta  depender  também  da  ação  estimulatória  de  fatores  liberadores  de  prolactina  (PRF). Contudo,  pouco  se  sabe  a  respeito  da  regulação  da  secreção  de  prolactina  pelos  PRF  e  tampouco  acerca  dos  sistemas neuroquímicos  que  modulam  a  atividade  dos  PRF  de  modo  a  gerar  picos  de  secreção  de  prolactina.  Vários  neuro­ hormônios  apresentam  atividade  PRF,  cada  qual  podendo  ser  ativado  em  condições  distintas,  que  resultam  em  aumentos marcantes  na  secreção  de  prolactina.  Entre  outros,  peptídios  como  a  ocitocina,  o  peptídio  vasoativo  intestinal  (VIP)  e  o hormônio  liberador  de  tireotrofina  (TRH)  podem  atuar  como  PRF.  Os  mecanismos  neurais  que  controlam  a  liberação destes  PRF,  influindo  assim  na  liberação  de  prolactina,  não  são  conhecidos.  É  possível  que  estes  fatores  possam  agir diretamente  nos  lactotrofos,  ou  indiretamente,  alterando  a  secreção  de  dopamina.  Sabe­se,  por  exemplo,  que  o  VIP  atua nos  lactotrofos  e  que  esta  ação  é  modulada  pela  dopamina,  uma  vez  que  a  redução  da  sua  secreção  (que  ocorre  após  a sucção)  sensibiliza  os  lactotrofos  à  ação  do  VIP.  Deste  modo,  parece  que  esses  mecanismos  podem  agir  sinergicamente para aumentar a produção de prolactina. A  sucção  depleta  os  estoques  hipofisários  de  prolactina  em  1  a  2  min,  porém  o  aumento  das  concentrações  da prolactina no plasma só é observado 10 a 20 min após (ver Figura 77.5). Na circulação sistêmica, este hormônio alcança as células epiteliais dos alvéolos, onde, ao se ligar em seus receptores, induz a síntese de leite. Há que ficar claro que a lactogênese  é  um  processo  demorado  e  que,  portanto,  o  leite  produzido  em  resposta  a  um  aumento  da  secreção  de prolactina não é o mesmo ejetado durante este estímulo. A síntese láctea induzida pela sucção será, assim, importante para as  próximas  sessões  de  amamentação.  A  quantidade  de  prolactina  liberada  depende  da  força  e  da  duração  da  sucção  do mamilo. Quando os dois mamilos são estimulados, como, por exemplo, no caso de amamentação simultânea de gêmeos, o pico de secreção de prolactina induzido pela sucção é bem maior que quando apenas uma mama é estimulada.

Ocitocina Os  mesmos  sinais  sensoriais  gerados  pela  sucção,  que  inibem  a  secreção  de  dopamina  no  hipotálamo,  estimulam  os neurônios  do  PVN  e  do  SON  a  sintetizarem  e  liberarem  a  ocitocina  (ver  Figura  77.7).  Ao  ser  liberada  nos  vasos neurohipofisários  e  então  na  circulação  sistêmica,  a  ocitocina  se  liga  aos  seus  receptores  na  membrana  das  células mioepiteliais, contraindo­as. Consequentemente, há um aumento da pressão intra­alveolar que provoca a expulsão do leite do lúmen dos alvéolos para os ductos. Já foi demonstrado que a pressão negativa que decorre da sucção do mamilo não é

eficiente  para  a  ejeção  do  leite,  enquanto  a  ação  da  ocitocina  (que  comprime  os  alvéolos,  gerando  uma  pressão  positiva nestes e também nos ductos) é essencial para que ocorra a ejeção do leite.

Figura 77.7 ■ Reflexo neuroendócrino da lactação. (1) A sucção deforma os mecanorreceptores presentes no mamilo, ativando­ os. (2) Os sinais sensoriais aí originados trafegam por nervos torácicos, entrando no sistema nervoso central pela raiz dorsal da medula espinal. (3)  Esses  sinais  ascendem  via  coluna  anterolateral  para  o  tronco  cerebral,  onde  estabelecem  sinapses.  Os neurônios que participam dessa via polissináptica se projetam: (4) para os núcleos paraventricular (PVN) e supraóptico (SON), estimulando­os a secretar ocitocina dos seus terminais na neuro­hipófise; (5) para os neurônios dopaminérgicos, em especial do núcleo arqueado (ARC), inibindo a liberação de dopamina (DA) na eminência mediana; e (6) para os neurônios que produzem fatores liberadores de prolactina (PRF), estimulando­os a secretarem seus produtos que irão, direta ou indiretamente, estimular a secreção de prolactina. (7) Sem o controle inibitório, os lactotrofos secretam prolactina, que alcança a circulação sistêmica. (8) Nas células alveolares, a prolactina liga­se aos seus receptores de membrana, induzindo a síntese de leite e sua secreção para o lúmen do alvéolo. (9) A ocitocina liberada pelos terminais neuronais na neuro­hipófise alcança a circulação sistêmica. (10) A ocitocina liga­se aos seus receptores nas membranas das células mioepiteliais do alvéolo mamário, induzindo sua contração e expulsão do leite do lúmen para os ductos alveolares.

Reflexos condicionados para a ejeção do leite A sucção é o estímulo primário para ativar o reflexo de ejeção do leite, e o uso da bomba de sucção é eficaz em elevar a  secreção  de  prolactina,  como  na  sucção  pelo  neonato.  No  entanto,  o  reflexo  neuroendócrino  da  ejeção  láctea  pode também  ser  condicionado.  Estímulos  visuais,  auditivos  ou  psicológicos  podem  induzir  a  liberação  de  ocitocina  e  de prolactina.  Como  exemplo,  constata­se  que  o  som  do  choro  do  bebê  induz  aumento  na  secreção  de  prolactina  e  de ocitocina.  Em  vacas,  sabe­se  que  o  ruído  do  balde  utilizado  diariamente  na  ordenha  é  capaz  de  desencadear  a  ejeção  de

leite, induzida pela secreção de ocitocina. O simples fato de a lactante brincar com o bebê antes de amamentá­lo é capaz de induzir  aumento  na  secreção  de  prolactina.  Estes  exemplos  ilustram  o  envolvimento  de  centros  neurais  superiores  no controle da secreção de ocitocina e de prolactina.

Inibição da lactação por estresse Estresses  físicos  e  psicológicos  podem  inibir  a  lactação.  Dores  e  desconfortos  no  período  pós­parto  podem  trazer inibição  ao  início  da  lactação.  No  entanto,  os  mecanismos  pelos  quais  o  estresse  desestimula  a  lactação  não  são  bem conhecidos. A ativação do sistema adrenérgico central e periférico parece, respectivamente, inibir a secreção de ocitocina e causar  constrição  dos  vasos  da  mama,  diminuindo  assim  a  lactação.  A  angiotensina  liberada  em  situações  de  estresse também  parece  mediar  a  inibição  da  secreção  de  prolactina  durante  a  lactação  por  meio  do  aumento  da  secreção  de dopamina do núcleo arqueado, e essa ação é facilitada pela progesterona.

Amenorreia durante a lactação Como  abordado  anteriormente,  em  Puerpério,  no  início  do  período  de  lactação  ocorre  amenorreia.  A  duração  da amenorreia pós­parto parece estar diretamente relacionada com a duração, a frequência e a intensidade da amamentação. No que se refere à duração, estudos realizados com grupos de mulheres de culturas diferentes e sem uso de contraceptivos mostram,  por  exemplo,  que,  enquanto  em  uma  tribo  primitiva  da  África,  na  qual  os  filhos  são  amamentados  por  3  a  4 anos,  o  intervalo  entre  os  filhos  é  de  4  anos,  em  outro  grupo  cultural  da  América  do  Norte,  no  qual  é  dado  suplemento alimentar  ao  bebê  poucos  meses  depois  do  seu  nascimento,  o  intervalo  entre  os  filhos  é  de  2  anos.  Finalmente,  em mulheres  que  não  amamentam  a  amenorreia  dura  apenas  2  a  3  meses.  Além  da  duração  do  período  de  aleitamento, a frequência com  que  a  mulher  amamenta  é  importante  para  determinar  a  retomada  dos  ciclos  menstruais.  O  número  de vezes que ela amamenta pode variar, por exemplo, de 15 a 18 por dia (como em Bangladesh), 13 por dia (em uma tribo africana),  mas  raramente  é  maior  que  6  vezes/dia  na  América  do  Norte  e  na  Europa,  onde  é  comum  3  ou  4  vezes/dia. Sugere­se que 6 vezes/dia seja o número mínimo de amamentações requerido para que ocorra hiperprolactinemia capaz de inibir  a  ovulação.  Além  disso,  a  dieta  suplementar  implementada  poucos  meses  após  o  nascimento  constitui  outro  fator que reduz ainda mais a frequência e também a intensidade da sucção, permitindo assim que os ciclos ovulatórios voltem a ocorrer mais precocemente. Portanto, o efeito inibitório da amamentação nos ciclos reprodutivos explica a cultura popular de  que  a  amamentação  funciona  como  um  contraceptivo  natural;  entretanto,  na  vida  moderna  em  muitos  países  isso  não mais corresponde à realidade, uma vez que houve diminuição da intensidade, da frequência e da duração da amamentação.

▸ Métodos contraceptivos O  uso  de  métodos  contraceptivos  apresenta  implicações  clínicas  e  sociais  óbvias  e  relevantes.  A  fertilidade  pode  ser controlada,  seja  bloqueando  a  ovulação  ou  a  implantação,  seja  impedindo  o  contato  do  espermatozoide  com  o  óvulo.  Os métodos contraceptivos podem ser também classificados como reversíveis ou irreversíveis. Os métodos que se baseiam em prevenir o acesso dos espermatozoides à vizinhança do óvulo incluem, basicamente, os de  barreira:  condom  e  diafragma.  Quando  associados  a  agentes  espermicidas,  estes  métodos  apresentam  eficácia praticamente similar à dos anticoncepcionais orais. São incluídos também nesta categoria métodos menos eficazes, como o coitus interruptus e o método do ritmo (abstinência no período provável em que o óvulo esteja na tuba uterina). Os  anticoncepcionais  hormonais  contêm  estrogênios  sintéticos  em  combinação  com  diferentes  classes  de progestógenos.  O  mecanismo  de  ação  é  o  bloqueio  da  ovulação  pelos  componentes  hormonais  do  anticoncepcional, inibindo o pico pré­ovulatório do LH. Embora os anticoncepcionais orais sejam os mais populares e mais frequentemente usados,  diferentes  formulações  utilizando  outras  vias  de  administração  que  não  a  oral  estão  disponíveis,  como  os adesivos, o anel vaginal ou os injetáveis. É possível a administração subcutânea, em que os hormônios são liberados de maneira  constante,  durante  até  5  anos.  Alguns  anticoncepcionais  podem  conter  apenas  o  progestógeno  em  doses  mais baixas, sendo denominados minipílulas. Seu mecanismo de ação não é bloquear a ovulação, mas sim tornar mais espesso o  muco  cervical  e  diminuir  a  peristalse  da  tuba  uterina,  dificultando  a  movimentação  dos  espermatozoides  ao  longo  do sistema  genital.  Esta  classe  de  anticoncepcional  é  recomendada  para  mulheres  com  contraindicação  para  o  uso  de estrogênios, como aquelas que estão amamentando, entre outros exemplos. Outros anticoncepcionais atuam interferindo no transporte do zigoto ou no processo de implantação. São exemplos as preparações com progestógenos de ação prolongada, estrogênios em doses altas e antagonistas do receptor de progesterona (mifepristona).  Os  dispositivos  intrauterinos  (DIU)  também  se  enquadram  na  categoria  dos  métodos  que  impedem  a

implantação,  promovendo  inflamação  do  endométrio  e  produção  de  prostaglandinas.  A  eficácia  deles  também  é  elevada, especialmente nos que contêm cobre, zinco ou progestógeno. Os anticoncepcionais ditos pós­coitais são formulações com doses elevadas de progestógenos; devem ser utilizados até 72  h  após  a  atividade  sexual  não  protegida,  em  duas  doses  no  intervalo  de  12  h.  Como  descrito  no  Capítulo  71,  os progestógenos  alteram  as  condições  intrauterinas  e  tubárias,  dificultando  o  movimento  do  óvulo  e  do  espermatozoide  e, com isso, a fecundação. A  vasectomia  corresponde  à  secção  dos  dois  ductos  deferentes,  impedindo  a  passagem  dos  espermatozoides  para  o ejaculado. A ligadura tubária é realizada pela ligação das tubas uterinas. Cirurgias para promover a restauração dos ductos deferentes  ou  das  tubas  uterinas  podem  ser  realizadas,  mas  com  sucesso  limitado.  Por  isso,  ambos  os  métodos  são considerados irreversíveis.

BIBLIOGRAFIA BUHIMSCHI CS. Endocrinology of lactation. Obstet Gynecol Clin North Am, 31(4):963­79, 2004. CARR  BR,  KHURRAM  SR.  Fertilization,  implantation,  and  endocrinology  of  pregnancy.  In:  GRIFFIN  JE,  OJEDA  SR (Eds.). Textbook of Endocrine Physiology. 5. ed. Oxford University Press, New York, 2004. GRATTAN DR. 60 years of neuroendocrinology: the hypothalamo­prolactin axis. J Endocrinol, 226(2):T101­22, 2015. JAFFE RB. Neuroendocrine­metabolic regulation of pregnancy. In: YEN SSC, JAFFE RB, BARBIERI RL (Eds.). Reproductive Endocrinology. 4. ed. W.B. Saunders, Philadelphia, 1999. JOHNSON MH, EVERITT BJ. Essential Reproduction. 5. ed. Blackwell Science, Oxford, 2000. JONES  EE,  DeCHERNEY  AH.  Fertilization,  pregnancy,  and  lactation.  In:  BORON  WF,  Boulpaep  EL  (Eds.).  Medical Physiology. Elsevier Saunders, Philadelphia, 2005. SPEROFF L, GLASS RH, KASE NG. Clinical Gynecologic Endocrinology and Infertility. 6. ed. Lippincott Williams & Wilkins, Baltimore, 1999. STRAUSS JF, BARBIERI RL. Yen and Jeffe’s Reproductive Endocrinology. 7. ed. Saunders, Philadelphia, 2013. TAYLOR  RN,  MARTIN  MC.  A  endocrinologia  da  gravidez.  In:  GREENSPAN  FS,  STREWLER  GJ  (Eds.).  Endocrinologia Básica e Clínica. 5. ed. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 2000. WEISS G. Endocrinology of parturition. J Clin Endocrinol Metab, 85(12):4421­5, 2000. WILSON  Jr  L,  PARSONS  M.  Endocrinology  of  human  gestation.  In:  ADASHI  EY,  ROCK  JA,  ROSENWAKS  Z (Eds.). Reproductive Endocrinology, Surgery, and Technology. Lippincott­Raven, Philadelphia, 1996.



Considerações gerais

■ ■

Fontes e características principais Desreguladores endócrinos clássicos

■ ■ ■

Desreguladores endócrinos não clássicos Mecanismos de ação Janelas de exposição

■ ■

Efeitos no organismo Considerações finais



Bibliografia

CONSIDERAÇÕES GERAIS Nas  últimas  décadas  um  crescente  número  de  estudos  demonstrou  que  a  exposição  humana  a  algumas  substâncias químicas,  naturais  ou  artificialmente  produzidas,  presentes  em  alimentos  e  no  meio  ambiente,  provoca  alterações  no sistema  endócrino,  contribuindo  de  forma  relevante  para  o  desenvolvimento  de  doenças.  Essas  substâncias  foram classificadas como desreguladores endócrinos. Várias  classes  de  desreguladores  endócrinos  encontram­se  descritas  na  literatura,  e  as  mais  conhecidas  serão discutidas adiante. Entretanto, estudos recentes descrevem que, em determinadas doses, iodo e folato, fundamentais para a manutenção  de  vários  processos  biológicos,  bem  como  fitoestrógenos,  hormônios  sintéticos  encontrados  em  pílulas anticoncepcionais, metais pesados e lítio, são potenciais desreguladores de diferentes eixos endócrinos. Conforme será descrito neste capítulo, muitos estudos epidemiológicos e com modelos animais já foram realizados e descreveram  os  potenciais  efeitos  deletérios  da  exposição  aos  desreguladores  endócrinos  no  organismo.  Contudo,  ainda existe  um  grande  conflito  de  interesses  entre  a  indústria  química,  farmacêutica,  organizações  não  governamentais  e  os órgãos  públicos  responsáveis  pelo  controle  da  liberação  de  contaminantes  no  meio  ambiente.  Adicionalmente,  os desreguladores  endócrinos  desencadeiam  uma  complexa  rede  de  mecanismos  de  ação  no  organismo.  Todos  esses  fatores aliados  limitam  consideravelmente  o  desenvolvimento  e  a  implementação  de  estratégias  eficientes  de  intervenção.  Ainda assim,  várias  iniciativas  em  todo  o  mundo  estão  em  andamento  com  o  intuito  de  diminuir  a  contaminação  ambiental  e, consequentemente, a exposição humana e animal aos desreguladores endócrinos.

FONTES E CARACTERÍSTICAS PRINCIPAIS Desreguladores  endócrinos  –  também  conhecidos  como  interferentes  endócrinos,  disruptores  endócrinos  ou  toxinas endócrinas  –  são  substâncias  químicas  (naturais  ou  sintéticas)  que  interferem  na  função  endócrina,  produzindo  efeitos adversos  sobre  crescimento,  desenvolvimento,  reprodução  e  metabolismo,  com  repercussões  sistêmicas  em  variados graus, dependendo do tempo de exposição e da fase do desenvolvimento na qual o indivíduo é exposto. A interferência exercida pelos desreguladores endócrinos no sistema endócrino é ampla e inclui alterações na síntese, secreção, transporte, ligação, ação, metabolização e/ou eliminação dos hormônios no organismo. De maneira geral, quando

o  desregulador  endócrino  tem  origem  natural,  o  mesmo  é  classificado  como  um  fito­hormônio;  quando  sua  origem  é sintética, diz­se que o desregulador é um xeno­hormônio. A  Agência  de  Proteção  Ambiental  norte­americana  (United  States  Environmental  Protection  Agency  –  US  EPA) descreveu  cerca  de  87.000  compostos  químicos  com  potencial  de  desregulador  endócrino.  As  principais  fontes  desses desreguladores  são  a  indústria  química  e  farmacêutica,  por  meio  da  produção  de  pesticidas  e  agrotóxicos,  cosméticos, plásticos, embalagens e aditivos de alimentos, assim como suplementos nutricionais. Os desreguladores endócrinos clássicos possuem algumas características básicas como: ■ Adsorção em partículas suspensas e sedimentação em ambientes aquáticos ■ Degradação lenta ■ Alta persistência no ambiente ■ Substancial potencial de bioacumulação e biomagnificação. A  bioacumulação  consiste  em  absorção  e  armazenamento  dos  desreguladores  endócrinos  em  tecidos  (normalmente tecido adiposo) ou órgãos específicos, em concentrações maiores do que aquelas encontradas no meio ambiente. De fato, a bioacumulação decorre do contato direto com um ambiente contaminado (solo, água, ar) ou pela ingestão de alimentos que contenham os desreguladores endócrinos. Já a biomagnificação envolve o acúmulo progressivo de desreguladores endócrinos de um nível trófico para outro ao longo  da  cadeia  alimentar.  Dessa  maneira,  os  predadores  do  topo  da  cadeia  alimentar  possuem  concentrações  séricas maiores de desreguladores endócrinos do que aquelas presentes em suas presas. A Figura 78.1 exemplifica um clássico exemplo de bioacumulação e biomagnificação. Nesta figura demonstra­se que a concentração  de  diclorodifeniltricloroetano  (DDT;  um  agrotóxico  que  será  descrito  posteriormente)  em  um  ambiente aquático  é  de  0,000.003  ppm.  Essa  é  a  mesma  concentração  encontrada  em  um  conjunto  de  organismos  aquáticos microscópicos, o fitoplâncton. Ao se alimentarem de fitoplâncton, a concentração de DDT encontrada em organismos do zooplâncton  atinge  0,04  ppm.  De  maneira  semelhante,  por  se  alimentarem  do  zooplâncton,  peixes  pequenos  apresentam concentrações  séricas  de  DDT  ainda  maiores  (0,5  ppm).  Esse  efeito  de  magnificação  é  progressivo  ao  longo  da  cadeia alimentar, atingindo níveis de 25 ppm em predadores do topo da cadeia alimentar – no caso da Figura 78.1, a águia. Conforme destacado, esse é um clássico exemplo demonstrado na cadeia alimentar que inclui peixes e aves. Contudo, processos semelhantes de bioacumulação e biomagnificação são observados em cadeias alimentares que incluem os seres humanos.  Como  exemplo,  os  casos  de  contaminação  por  mercúrio  (desregulador  endócrino  da  tireoide,  suprarrenal  e sistema genital), cuja concentração sérica aumenta progressivamente nos níveis tróficos da cadeia alimentar, que incluem: fitoplâncton → zooplâncton → peixes → seres humanos. Os  primeiros  indícios  dos  efeitos  nocivos  dos  desreguladores  endócrinos  foram  descritos  no  livro  Primavera Silenciosa (Silent Spring,  1962)  de  Rachel  Carson.  Nesse  livro,  a  autora  criticou  o  uso  indiscriminado  de  agrotóxicos  e pesticidas,  principalmente  após  a  Segunda  Guerra  Mundial.  A  autora  também  alertou  para  os  efeitos  a  longo  prazo  da contaminação  ambiental  com  esses  pesticidas.  O  nome  do  livro  foi  uma  referência  à  morte  de  pássaros  em  regiões altamente  contaminadas,  e  que  estava  intimamente  relacionada  com  a  diminuição  da  espessura  das  cascas  dos  ovos  das aves  pela  interferência  hormonal  provocada  pelo  DDT.  De  fato,  esse  foi  um  dos  primeiros  livros  que  abriu  a  discussão sobre o uso descontrolado de agrotóxicos e culminou com a proibição do uso de DDT nos EUA, em 1970. Em 1996, a Dra. Theo Colborn publicou o livro O Futuro Roubado (Our Stolen Future). Nesse livro, a pesquisadora descreveu os resultados de diferentes estudos científicos que demonstravam as interferências de diferentes desreguladores endócrinos sobre as ações hormonais no controle do crescimento e desenvolvimento. A autora ainda ressaltou o potencial efeito deletério da exposição de fetos e recém­nascidos aos desreguladores endócrinos. Finalmente, Colborn sugeriu que a exposição  aos  desreguladores  endócrinos  estaria  envolvida  no  desenvolvimento  de  anomalias  do  sistema  genital, problemas comportamentais e diminuição da fertilidade da população mundial.

Figura 78.1 ■ Desreguladores endócrinos, bioacumulação e biomagnificação. De acordo com a figura, a concentração ambiental de  DDT  é  muito  menor  do  que  aquela  encontrada  em  predadores  do  topo  da  cadeia  alimentar.  Esse  fenômeno  se  deve  à bioacumulação  desse  desregulador  endócrino  nos  tecidos  dos  diferentes  organismos  que  compõem  a  cadeia  alimentar,  e também  à  biomagnificação,  que  promove  um  aumento  considerável  da  concentração  do  desregulador  endócrino  nos predadores  do  topo  das  cadeias  alimentares  à  medida  que  eles  se  alimentam  de  presas  contaminadas.  (Adaptada de www.bethbiologia.com.br/p/causasda­poluicao­das­aguas­do­planeta.html.)

Desde  a  publicação  do  livro  da  escritora  Rachel  Carson,  inúmeros  trabalhos  epidemiológicos  (com  humanos),  in vivo (com animais) e in vitro (com células) foram publicados com a intenção de alertar para os efeitos deletérios de alguns agentes  químicos  liberados  indiscriminadamente  no  meio  ambiente.  De  fato,  alguns  desses  estudos  sugerem  uma correlação  direta  entre  a  exposição  aos  desreguladores  endócrinos  e  o  aumento  de  incidência  e  prevalência  de  doenças crônicas  não  transmissíveis  (como  cânceres  de  mama,  próstata  e  testículo,  diabetes,  obesidade).  Dessa  maneira,  a relevância desses estudos se pauta no embasamento científico que garante, em última instância, o controle, por agências de proteção  ambiental,  da  produção,  do  uso  e  da  liberação  no  meio  ambiente  de  inúmeros  pesticidas  e  agentes  químicos comprovadamente nocivos para animais e seres humanos.

DESREGULADORES ENDÓCRINOS CLÁSSICOS Conforme  ressaltado  anteriormente,  os  desreguladores  endócrinos  caracterizam­se  como  compostos  de  degradação lenta,  alta  persistência  no  ambiente  e  substancial  potencial  de  bioacumulação.  Inúmeros  desreguladores  endócrinos  já foram descritos na literatura; contudo, neste capítulo, discutiremos os efeitos de alguns deles, principalmente aqueles com grande  quantidade  de  dados  descritos  na  literatura  –  tanto  em  estudos  com  modelos  animais,  quanto  em  estudos epidemiológicos. Todos  os  desreguladores  endócrinos  destacados  aqui  são  classificados  como  poluentes  orgânicos  persistentes,  ou simplesmente POP.  As  principais  características  dos  POP  incluem  seu  transporte  por  longas  distâncias  através  do  solo, água  e  ar,  e  seu  acúmulo  em  tecidos  gordurosos  dos  organismos  vivos  (bioacumulação).  Por  esse  motivo,  os  POP  são classificados como toxicologicamente preocupantes para a saúde humana e para o meio ambiente. Nesse sentido, ainda que o  enfoque  deste  capítulo  seja  discorrer  sobre  os  efeitos  dos  desreguladores  endócrinos  em  humanos,  é  muito  relevante

destacar  que  inúmeros  estudos  demonstraram  o  comprometimento  da  ação  hormonal  em  diferentes  classes  de  animais como peixes, anfíbios, répteis, aves e outros mamíferos (além dos humanos). Pesticidas. Neste grupo temos os pesticidas organoclorados (POC), dentre os quais se destaca o DDT (Figura 78.2). Este pesticida foi sintetizado pela primeira vez em 1874, e graças a suas propriedades inseticidas foi largamente utilizado a partir da Segunda Guerra Mundial para o combate dos vetores de febre amarela, malária e tifo. Foi banido na década de 1970 em muitos países desenvolvidos, e apenas em 2009 no Brasil. Ainda assim, esses pesticidas continuam a ser usados em muitos países da África para combater doenças transmitidas por insetos. O  DDT  e  seus  metabólitos,  como  o  DDE,  são  estáveis,  persistentes  no  meio  ambiente  e  altamente  lipofílicos, acumulando­se  no  tecido  adiposo  de  seres  humanos  e  de  outros  animais.  De  fato,  estudos  demonstram  que  praticamente todos os seres vivos do planeta possuem DDT incorporado em seus organismos. A clorotriazina, por sua vez, é outro pesticida amplamente usado no mundo, em plantações de milho e cana­de­açúcar. Assim  como  o  DDT,  a  clorotriazina  apresenta  alta  persistência  no  meio  ambiente  e  já  foi  previamente  associada  a disfunções do metabolismo intermediário e de alguns parâmetros reprodutivos.

Figura 78.2 ■ Estrutura química dos principais pesticidas organoclorados.

A exposição humana aos pesticidas se dá principalmente pelo consumo de alimentos e água contaminados. De maneira preocupante,  estudos  demonstram  que  os  metabólitos  de  pesticidas  organoclorados  atravessam  a  placenta,  atingindo  o compartimento  fetal,  e  também  são  transferidos  para  o  leite  materno,  aumentando  a  exposição  de  recém­nascidos. Conforme  será  destacado  posteriormente  neste  capítulo,  a  exposição  aos  pesticidas  organoclorados  já  foi  previamente associada a diferentes tipos de câncer, como o de mama, pâncreas e testículos. ▸  Bisfenol  A  (BPA).  Foi  descoberto  em  1891  pelo  russo  Aleksander  Dianin.  O  BPA  é  um  composto  químico industrial normalmente usado para endurecer resinas epóxi e plásticos policarbonatos, conferindo alta resistência a esses produtos.  É  altamente  empregado  em  revestimentos  internos  de  latas  de  alimentos  e  selantes  dentais,  aumentando  a exposição humana a esse desregulador endócrino. A produção global anual de plásticos policarbonatos e de resinas epóxi é

de  3  milhões  e  1,5  milhão  de  toneladas,  respectivamente,  o  que  demonstra  o  potencial  contaminante  do  BPA  no  meio ambiente.  A  transferência  do  BPA  para  água  e  alimentos  se  dá  principalmente  pelo  aquecimento  dos  recipientes  que  o contêm, e a exposição humana a esse composto é considerada ubíqua. De fato, a meia­vida do BPA em seres humanos é curta (4 a 5 horas), e sua estrutura química é muito semelhante à de alguns hormônios esteroides e hormônios tireoidianos (Figura 78.3). Apenas  em  2011  ocorreu  a  proibição  no  Brasil  do  uso  de  BPA  em  mamadeiras  plásticas,  graças  a  uma  campanha criada pela Sociedade Brasileira de Endocrinologia Metabologia (SBEM) em 2010. Dada a proibição da produção e do uso de BPA em muitos países, alguns substitutos desse composto foram elaborados pela indústria química, como bisfenol S (BPS),  bisfenol  F  (BPF)  e  bisfenol  E  (BPE).  Vale  ressaltar  que  estudos  recentes  da  literatura  apontam  que  esses substitutos industriais apresentam efeitos adversos muito semelhantes ou ainda piores do que aqueles desencadeados pelo BPA.

Figura 78.3 ■ Estrutura química do bisfenol A (BPA).

▸ Bifenilas policloradas (PCB) e bifenilas polibromadas (PBB). Os PCB são compostos usados como  fluidos  para  refrigeração  e  lubrificação  de  transformadores,  capacitores  e  outros  equipamentos  eletrônicos empregados  nas  indústrias  de  forma  geral.  Além  disso,  são  usados  como  plastificantes  na  produção  de  resinas  e borrachas,  adesivos  e  tintas.  Já  os  PBB  são  usados  em  retardantes  de  chamas,  muito  empregados  em  equipamentos eletrônicos, na indústria têxtil, em móveis e plásticos de maneira geral. Conforme demonstrado na Figura 78.4, a estrutura química desses compostos é muito semelhante àquela apresentada pelos hormônios esteroides e hormônios tireoidianos.

Figura 78.4 ■ Estrutura química geral dos PCB (A) e dos PBB (B).

Figura 78.5 ■ Estrutura química geral dos ftalatos.

Tanto os PCB quanto os PBB são altamente persistentes, lipofílicos e bioacumuláveis. A contaminação humana se dá principalmente  pelo  consumo  de  água  e  alimentos  contaminados,  como  peixes  de  origem  marinha.  Estudos  demonstram que, por serem lipofílicos, esses compostos concentram­se no tecido adiposo, com meia­vida biológica (em humanos) de aproximadamente 7 anos. ▸ Ftalatos. São compostos químicos derivados do ácido ftálico e amplamente usados como aditivos para aumentar a maleabilidade, flexibilidade e transparência de plásticos. De maneira geral, são encontrados em recipientes plásticos, tubos PVC, brinquedos infantis, cosméticos e tubos/embalagens empregados em procedimentos médicos. Pela sua fraca ligação aos  compostos  usados  na  fabricação  de  plásticos  e  cosméticos,  os  ftalatos  são  facilmente  transferidos  para  o  meio ambiente, aumentando o seu potencial de contaminação. Esses compostos são normalmente produzidos como diésteres e são rapidamente metabolizados a monoésteres ao entrarem no organismo (Figura 78.5).

DESREGULADORES ENDÓCRINOS NÃO CLÁSSICOS ▸  Iodo. É  um  micronutriente  fundamental  para  a  síntese  de  hormônios  tireoidianos,  sendo  principalmente  encontrado em  alimentos  de  origem  marinha  e  no  sal  iodado.  Como  as  glândulas  mamárias  expressam  o  transportador  de  iodeto,  o leite  possui  concentrações  relevantes  de  iodo,  e  por  esse  motivo  os  laticínios  são  também  uma  fonte  natural  desse micronutriente. O iodo é amplamente usado como estabilizante em alimentos processados e como componente de corantes vermelhos,  sendo  em  geral  encontrado  em  alimentos  que  contêm  corantes  artificiais.  Vale  ressaltar  que  o  iodo  apresenta propriedades microbicidas, de modo que alguns desinfetantes de pele e medicamentos (p. ex., lugol) também o apresentam em sua composição química. O efeito desregulador endócrino do iodo se dá principalmente pelo consumo excessivo desse micronutriente e está intimamente relacionado com o comprometimento da função tireoidiana. ▸  Fitoestrógenos. São  substâncias  de  origem  vegetal  com  atividade  estrogênica.  De  fato,  os  fitoestrógenos  são amplamente  usados  por  várias  mulheres  como  terapia  alternativa  à  reposição  hormonal  estrogênica,  em  função  das controvérsias que ainda existem quanto aos efeitos nocivos desencadeados por esta última. Contudo, estudos em fêmeas de camundongos ovariectomizadas demonstraram que a genisteína, um fitoestrógeno presente na soja com baixa potência estrogênica, estimula o crescimento do câncer mamário. Ainda, é importante destacar que alguns estudos descreveram que o  período  de  exposição  aos  fitoestrógenos  está  intimamente  relacionado  com  o  tipo  de  efeito  desencadeado  por  essas substâncias.  Dessa  maneira,  os  fitoestrógenos  exercem  efeitos  deletérios  ou  benéficos,  dependendo  da  fase  na  qual  o indivíduo é exposto. Além do seu efeito estrogênico, os fitoestrógenos também são usados como cardioprotetores, ainda que possam promover efeitos pró­arrítmicos, e já foram descritos como potenciais agentes antitireoidianos. ▸  Lítio. É  um  metal  empregado  na  produção  de  ligas  metálicas  condutoras  de  calor  e  em  baterias  elétricas,  mas  seus sais  representam  o  principal  tratamento  profilático  de  distúrbios  afetivos,  como  o  transtorno  bipolar.  Porém,  há  várias evidências  de  que  o  lítio  afete  profundamente  a  função  tireoidiana,  por  meio  do  comprometimento  da  secreção  de hormônios tireoidianos. Dessa maneira, é comum observar o desenvolvimento de hipotireoidismo em pacientes logo nos primeiros anos de tratamento.

MECANISMOS DE AÇÃO O mecanismo de ação dos desreguladores endócrinos mais conhecido envolve sua ligação em receptores de hormônios, como  estrógenos,  andrógenos,  progesterona  ou  hormônios  tireoidianos.  Além  disso,  os  desreguladores  endócrinos  em geral  se  ligam  em  outros  receptores  nucleares,  receptores  de  membrana,  receptores  de  neurotransmissores  (como serotonina,  dopamina,  norepinefrina)  e/ou  receptores  órfãos.  Adicionalmente,  descreve­se  que  os  desreguladores endócrinos  também  atuam  por  meio  da  ativação  ou  inativação  de  vias  enzimáticas  envolvidas  no  metabolismo  e/ou biossíntese  de  hormônios.  A  Figura  78.6  sumariza  os  principais  mecanismos  de  ação  decorrentes  da  ligação  dos desreguladores endócrinos em receptores de membrana ou receptores nucleares. De  maneira  geral,  a  partir  da  sua  ligação  nos  receptores  hormonais,  os  desreguladores  endócrinos  mimetizam  ou bloqueiam a ação hormonal (Figura 78.7). Novos estudos da literatura demonstram que os desreguladores endócrinos também interferem com vias de sinalização não genômicas, como aquelas desencadeadas por hormônios esteroides e tireoidianos. Além disso, alguns desreguladores

endócrinos  agem  em  receptores  da  família  PPAR  alfa  e  gama,  que  são  expressos  em  várias  células  do  organismo, especialmente em tecidos/órgãos do sistema genital.

Figura 78.6 ■ Mecanismos de ação dos desreguladores endócrinos por meio de sua ligação em receptores de hormônios. Os desreguladores  endócrinos,  dada  sua  similaridade  estrutural,  normalmente  se  ligam  em  receptores  de  membrana  e/ou nucleares de hormônios produzidos endogenamente. A partir dessa ligação, estes compostos ativam ou inativam a transcrição gênica, regulando os níveis de expressão de mRNA e proteínas nas células­alvo. (Adaptada de Schug et al., 2013.)

Figura  78.7  ■   Possíveis  efeitos  desencadeados  pela  ligação  dos  desreguladores  endócrinos  em  receptores  de  hormônios. Conforme  demonstrado  em  A,  um  hormônio  desencadeia  seus  efeitos  biológicos  e  uma  resposta  celular,  por  meio  da  sua ligação  em  receptores  (nucleares  ou  de  membrana).  No  caso  de  um  desregulador  endócrino  que  mimetize  os  efeitos  do hormônio  (B),  a  resposta  celular  é  mantida  e  pode  ser  mais  potente  ou  menos  potente  em  relação  àquela  originalmente desencadeada  pela  ligação  do  hormônio.  No  caso  de  um  desregulador  que  bloqueie  a  ação  hormonal  (C),  a  ligação  deste composto  no  receptor  hormonal  impede  que  o  efeito  biológico  naturalmente  desencadeado  pelo  hormônio  endógeno  seja observado. (Adaptada de www.niehs.nih.gov/health/topics/agents/endocrine.)

O  mecanismo  de  ação  dos  desreguladores  endócrinos  é  considerado  complexo,  uma  vez  que  nem  sempre  há  relação direta  entre  a  dose  de  exposição  e  a  intensidade  da  resposta  (curva  monotônica).  Vale  ressaltar  que,  em  relação  direta, quanto  maior  a  dose/concentração  do  desregulador,  maior  será  o  efeito  decorrente  observado.  Não  obstante,  é  muito comum  observar  uma  resposta  significativa  frente  à  exposição  a  doses  muito  baixas  ou  muito  altas  de  determinado desregulador  endócrino,  e  não  observar  qualquer  efeito  em  doses  intermediárias.  Ou,  ainda,  não  observar  efeitos significativos  em  doses  muito  baixas  ou  muito  altas,  e  sim  em  doses  intermediárias  de  exposição  (curvas  não monotônicas) (Figura 78.8). A complexidade do mecanismo de ação desses compostos químicos torna­se ainda mais relevante quando se leva em consideração  a  interferência  de  diferentes  vias  de  sinalização  hormonal  por  um  mesmo  desregulador  endócrino.  Isso  se deve à estrutura química peculiar desses compostos, que em geral se assemelham estruturalmente a mais de um hormônio produzido  no  organismo.  De  fato,  essa  característica  dificulta  a  determinação  dos  potenciais  receptores­alvo  dos desreguladores  endócrinos  no  organismo.  Nesse  sentido,  um  mesmo  desregulador  endócrino  pode  mimetizar  os  efeitos desencadeados  por  um  tipo  de  hormônio,  ao  mesmo  tempo  que  antagoniza  a  ação  de  outros  hormônios  no  organismo. Como  exemplo  temos  as  ações  desencadeadas  pelo  DDT,  que  apresenta  tanto  uma  atividade  estrogênica  como antiandrogênica (a partir de seus metabólitos). A mimetização de efeitos de diferentes hormônios, assim como o bloqueio de diferentes vias hormonais, também podem ser observados (Figura 78.9). De maneira geral, por meio dos mecanismos de ação desencadeados pelos desreguladores endócrinos, esses compostos alteram: ■ A síntese, a metabolização e a excreção de hormônios e/ou ■ O nível de proteínas carreadoras de hormônios e, consequentemente, o transporte de hormônios na circulação e/ou ■ A interação hormônio­receptor e a transcrição gênica decorrente dessa interação e/ou ■ As vias de sinalização intracelular e/ou ■ A expressão de receptores e sua responsividade aos hormônios em tecidos­alvo.

JANELAS DE EXPOSIÇÃO Conforme  destacado  em  itens  anteriores,  os  seres  humanos  estão  expostos  a  diversos  desreguladores  endócrinos presentes  no  meio  ambiente  (Figura  78.10).  Ainda  assim,  a  resposta  ou  efeito  decorrente  dessa  exposição  pode  ser diferente dependendo da fase na qual o indivíduo é exposto.

Figura  78.8  ■   Os  efeitos  desencadeados  pelos  desreguladores  endócrinos  podem  seguir  curvas  monotônicas  ou  não monotônicas de dose­resposta.

Figura 78.9 ■ Ação  de  um  mesmo  desregulador  endócrino  sobre  diferentes  vias  de  sinalização  hormonais.  GR,  receptor  de glicocorticoides; ER, receptor de estrógeno; TR, receptor de hormônio tireoidiano; RXR, receptor do retinoide X; PPARγ, receptor ativado por proliferador de peroxissoma gama. (Adaptada de Casals­Casas e Desvergne, 2011.)

Inúmeros estudos científicos apontam que a exposição aos desreguladores endócrinos é ainda mais prejudicial quando ocorre  durante  fases  específicas  do  desenvolvimento  humano,  denominadas janelas de exposição.  Essas  janelas  incluem período intrauterino, período neonatal, infância e puberdade. Dessa maneira, o momento da exposição do organismo torna­ se decisivo para determinar o impacto de determinado desregulador e o seu potencial efeito deletério futuro. O  período  de  exposição  influencia  também  o  tipo  de  efeito  resultante  da  interação  com  o  desregulador  endócrino. Dessa  maneira,  estudos  da  literatura  já  demonstraram  que  determinado  desregulador  endócrino  pode  desencadear respostas/efeitos diferentes em embriões, fetos, indivíduos pré­púberes e adultos. É  interessante  destacar  também  que,  durante  a  gestação  e  a  lactação,  a  exposição  materna  aos  desreguladores endócrinos  não  necessariamente  desencadeia  efeitos  nocivos  na  mãe,  mas  pode  exercer  efeitos  nocivos  significativos  na sua  progênie.  A  maior  suscetibilidade  aos  efeitos  deletérios  induzidos  por  esses  interferentes  em  fases  iniciais  do desenvolvimento  se  justifica  pela  falta  da  maturação  de  vias  de  metabolização  dessas  substâncias  em  fetos  e recémnascidos. Vale acrescentar que, além da exposição direta aos desreguladores endócrinos presentes no meio ambiente, esses  indivíduos  mais  suscetíveis  também  são  expostos  indiretamente,  pela  transferência  materna  dessas  substâncias através da placenta, durante a vida intrauterina, ou pelo leite materno, durante o período de amamentação. Sendo assim, a exposição de grávidas e lactantes aos desreguladores endócrinos deve ser intensamente monitorada e evitada. Do  mesmo  modo,  a  exposição  paterna  aos  desreguladores  endócrinos  não  necessariamente  se  relaciona  com  efeitos negativos no pai, mas pode induzir efeitos nocivos em sua prole, por meio de modificações em suas células germinativas (Figura 78.11). A  exposição  de  indivíduos  que  se  encontram  nas  fases  pré­puberal  e  pu­beral  são  críticas,  uma  vez  que  os  mesmos apresentam  alterações  hormonais  significativas  durante  esses  períodos,  e  que  são  claramente  afetadas  por  agentes

agonistas ou antagonistas da ação de hormônios esteroides. Sendo  assim,  durante  as  chamadas  janelas  de  exposição,  os  indivíduos  encontram­se  mais  vulneráveis  aos  insultos moleculares, hormonais, imunológicos e/ou neurológicos desencadeados pelos desreguladores endócrinos.

Figura 78.10 ■ Exposição humana a diferentes desreguladores endócrinos presentes no meio ambiente.

Figura 78.11 ■ Efeitos em múltiplas gerações induzidos pela exposição materna e paterna aos desreguladores endócrinos. A exposição materna aos desreguladores endócrinos, seja por via dermal, inalatória ou oral, pode ou não provocar alterações em sua homeostase. Contudo, estudos sugerem que essas substâncias são transferidas para o feto, através da placenta, e para o recémnascido,  pelo  leite.  Nesses  indivíduos,  os  efeitos  nocivos  dos  desreguladores  endócrinos  são  potencializados  pela imaturidade  de  seus  sistemas  de  depuração  dessas  substâncias.  É  importante  destacar  que  a  exposição  paterna  aos desreguladores  endócrinos  também  pode  não  ocasionar  efeitos  deletérios  sintomáticos  no  seu  organismo,  mas  induzir  a programação de suas células germinativas e, dessa maneira, comprometer suas gerações futuras. (Adaptada de Shahidehnia, 2016.)

Conforme  destacado  anteriormente,  a  exposição  aos  desreguladores  endócrinos  está  intimamente  relacionada  com perturbações  da  expressão  gênica.  Muitos  estudos  sugerem  que  essas  alterações,  em  fases  críticas  do  desenvolvimento, parecem contribuir de maneira significativa para a programação de doenças na vida adulta. De fato, inúmeros mecanismos epigenéticos  estão  envolvidos  na  programação  da  expressão  gênica  que  é  induzida  pela  exposição  aos  desreguladores endócrinos durante períodos críticos do desenvolvimento. Os mecanismos epigenéticos são responsáveis por induzir mudanças na expressão gênica sem que ocorram alterações na sequência do DNA. Dentre os mecanismos epigenéticos mais conhecidos destacam­se: metilação/desmetilação de DNA, modificações  pós­traducionais  em  histonas  e  expressão  diferencial  de  RNA  não  codificantes,  conforme  demonstrado na Figura 78.12. Essas alterações moleculares podem ser mantidas por toda a vida do indivíduo e, inclusive, comprometer o desenvolvimento e a expressão gênica de gerações seguintes, nos chamados efeitos multigeracionais e transgeracionais, principalmente  quando  essas  alterações  moleculares  ocorrem  nas  células  germinativas  dos  indivíduos  progenitores (ovócitos e espermatozoides). É importante destacar que, embora estudos com animais e células apresentem dados relativamente reprodutíveis sobre os efeitos deletérios de desreguladores endócrinos específicos, muitos estudos epidemiológicos são conflitantes e refletem a  complexidade  da  exposição  humana  a  esses  compostos.  Deve­se  também  levar  em  consideração  que  os  seres  humanos estão expostos a diversos desreguladores endócrinos ao mesmo tempo, por diferentes períodos de tempo e em diferentes fases  do  desenvolvimento.  Todos  esses  fatores  refletem  na  dificuldade  do  estabelecimento  dos  reais  efeitos  nocivos associados  à  exposição  aos  desreguladores  endócrinos.  Dessa  maneira,  serão  cada  vez  mais  necessários  novos  estudos

científicos  que  investiguem  os  efeitos  decorrentes  da  exposição  humana  aos  desreguladores  endócrinos  em  diferentes fases/períodos  do  desenvolvimento.  Os  resultados  desses  estudos  serão  de  suma  importância  para  determinar  com precisão quais desreguladores endócrinos devem ser evitados especificamente em cada fase do desenvolvimento humano.

Figura 78.12 ■ Efeitos  epigenéticos  e  regulação  da  expressão  gênica.  Os  principais  mecanismos  epigenéticos  responsáveis pela  alteração  da  expressão  gênica  incluem:  metilação/desmetilação  do  DNA,  modificações  pós­traducionais  em  histonas  e expressão diferencial de RNA não codificantes, como os miRNA. (Adaptada de Shahidehnia, 2016.)

EFEITOS NO ORGANISMO A cada dia, novos estudos apontam para novos efeitos nocivos, sobre diversos sistemas e tecidos do organismo, que decorrem  da  exposição  humana  aos  desreguladores  endócrinos  (Figura 78.13).  Entretanto,  neste  capítulo  serão  descritos os  efeitos  de  diferentes  desreguladores  endócrinos  sobre  a  tireoide,  o  sistema  reprodutor,  o  metabolismo  energético,  a função cardiovascular e a função neuroendócrina.

▸ Efeitos na tireoide A glândula tireoide produz hormônios tireoidianos (HT), que têm um papel fundamental durante o desenvolvimento e maturação  fetal,  em  especial  do  sistema  nervoso  central  (SNC).  Esses  hormônios  também  desempenham  importantes papéis sobre o crescimento e o metabolismo.

Figura  78.13  ■   Principais  impactos  biológicos  sistêmicos  observados  a  partir  da  exposição  humana  aos  desreguladores endócrinos.

Em humanos, o principal hormônio produzido pela tireoide é a tiroxina, ou T4. Apesar de a T4 exercer efeitos diretos em  inúmeros  tecidos,  ela  também  pode  ser  convertida  a  tri­iodotironina  ou  T3,  a  partir  da  ação  de  desiodases,  que  são expressas em tecidos periféricos, conforme detalhado em capítulos anteriores. Além disso, os níveis circulantes de HT são finamente  regulados  por  um  eixo  de  retroalimentação  negativa  (eixo  hipotálamo­hipófise­tireoide).  Dessa  maneira,  o hipotálamo sintetiza e secreta o hormônio liberador de tireotrofina (TRH), que estimula a síntese e secreção da tireotrofina (TSH) pela adeno­hipófise. O TSH, por sua vez, é o principal hormônio estimulador da função tireoidiana, estimulando a síntese  de  HT  e  a  expressão/atividade  das  proteínas  envolvidas  nesse  processo.  Os  HT  secretados  agem  sobre  seus tecidos­alvo  e  também  regulam  de  maneira  negativa  a  expressão,  síntese  e  secreção  de  TRH  e  TSH  pelo  hipotálamo  e hipófise, respectivamente. A interferência dos desreguladores endócrinos sobre o eixo hipotálamo­hipófise­tireoide pode ocorrer em qualquer um dos componentes do eixo. Nesse sentido, foram descritos na literatura compostos capazes de comprometer a ação do TRH na hipófise, e também do TSH na tireoide. Além disso, já foi descrito que diferentes desreguladores endócrinos alteram síntese,  secreção,  transporte,  metabolismo  periférico  e/ou  ação  dos  HT  em  seus  tecidos­alvo.  Neste  último  caso,  a interferência  se  dá  principalmente  pela  similaridade  estrutural  entre  alguns  desreguladores  endócrinos  e  os  HT.  Ainda assim, estudos sugerem que alguns desses compostos regulam a expressão de receptores e/ou transportadores de HT nos tecidos­alvo, interferindo na ação periférica desses hormônios. Os principais efeitos desencadeados pelos desreguladores endócrinos no eixo hipotálamo­hipófise­tireoide são demonstrados na Figura 78.14. As janelas de exposição também são importantes para determinar os efeitos deletérios dos desreguladores endócrinos sobre a função tireoidiana. Sabe­se, por exemplo, que, até a 16a semana de gestação, o feto depende exclusivamente dos HT  produzidos  pela  mãe.  Sendo  assim,  qualquer  variação  dos  níveis  maternos  de  HT  nesse  período  gera  drásticas consequências  no  desenvolvimento  fetal,  principalmente  do  SNC.  A  passagem  de  HT  maternos  para  o  feto  durante  a gestação se faz através da placenta, graças à expressão de transportadores específicos de HT nas vilosidades coriônicas. É importante  ressaltar  que,  além  de  seu  papel  direto  sobre  o  desenvolvimento  fetal,  os  HT  também  exercem  importantes ações sobre o metabolismo, diferenciação e desenvolvimento da placenta. Sendo assim, o transporte de HT pela placenta é um passo crítico tanto para o desenvolvimento fetal quanto para o desenvolvimento do próprio tecido placentário. Dada a similaridade  estrutural  entre  alguns  desreguladores  endócrinos  e  os  HT,  postula­se  que  esses  compostos  possam  ser transportados através da placenta e interferir no desenvolvimento desse tecido e também nos estágios do desenvolvimento fetal que dependem da ação dos HT. Além da produção materna de HT, os hormônios produzidos pela tireoide do feto também apresentam importante papel no seu desenvolvimento. Conforme descrito em capítulos anteriores, a tireoide fetal encontra­se plenamente desenvolvida e  diferenciada  a  partir  da  16a semana  de  gestação  em  humanos,  e  do  16o dia  gestacional  em  camundongos/ratos.  Nesse período, a tireoide fetal é capaz de concentrar iodeto (I–), passo inicial para a biossíntese de HT, por meio da expressão e

da atividade do cotransportador sódio­iodeto (NIS). Além disso, a glândula também expressa outras proteínas essenciais para a síntese e secreção dos HT. Sendo assim, a exposição do feto, durante a gestação, a desreguladores endócrinos que comprometam  a  diferenciação  da  glândula  fetal,  assim  como  a  produção  de  HT  por  essa  glândula,  podem  desencadear graves consequências no desenvolvimento do organismo.

Figura 78.14 ■ Efeitos  dos  desreguladores  endócrinos  sobre  o  eixo  hipotálamo­hipófise­tireoide  e  em  diferentes  estágios  de produção,  metabolização  e  ação  dos  HT.  TTR,  transtirretina;  Tg,  tireoglobulina;  TSH,  hormônio  tireoestimulante  ou tireotrofina; TRH, hormônio liberador de TSH; TPO, tireoperoxidase; NIS, cotransportador sódio­iodeto; TR, receptor de hormônio tireoidiano. (Adaptada de Patrick, 2009.)

Cerca  de  100  diferentes  desreguladores  endócrinos,  naturais  e  sintéticos,  já  foram  descritos  como  potenciais interferentes  da  função  tireoidiana.  Conforme  destacado  anteriormente,  uma  vez  que  os  HT  são  essenciais  para  o desenvolvimento  normal  in  utero  e  durante  a  infância,  alterações  mediadas  por  desreguladores  endócrinos  são particularmente  preocupantes  em  grávidas  e  crianças.  Além  disso,  é  importante  destacar  que  um  levantamento  feito  pela União Europeia demonstrou que os custos relacionados ao comprometimento do desenvolvimento neural e a perda de QI atribuídos a apenas duas classes de disruptores da função tireoidiana (retardantes de chamas e pesticidas) ultrapassariam 150 bilhões de euros por ano. Sabe­se que o BPA, os PCB e a triclosana possuem semelhança estrutural com os HT, e, por esse motivo, sugere­se que esses compostos sejam capazes de se ligar e interagir com os receptores dos HT, interferindo no seu efeito biológico nos tecidos­alvo (Figura 78.15). De  fato,  estudos  indicam  que  o  BPA,  encontrado  em  amostras  de  urina,  tecido  e  soro  de  humanos  (em  adultos  e recém­nascidos),  atua  como  um  antagonista  dos  HT  ao  se  ligar  em  seus  receptores  nucleares.  Além  disso,  já  foi demonstrado  que  a  exposição  de  ratas  prenhes  ao  BPA  reduziu  os  níveis  séricos  de  T3  e  T4  e  aumentou  os  níveis circulantes  de  TSH  nos  animais  da  prole,  e  ainda  promoveu  alterações  morfológicas  significativas  nos  folículos

tireoidianos desses animais logo após o seu nascimento. Alguns estudos in vitro, por sua vez, demonstraram que o BPA interfere na função tireoidiana ao diminuir a expressão de genes/proteínas relacionados com a produção hormonal (como NIS,  TPO,  TSHR  e  Tg),  além  de  aumentar  a  expressão  de  genes/proteínas  relacionados  com  a  morte  celular  e  danos  ao DNA. A exposição de ratos aos PCB é constantemente associada a níveis séricos reduzidos de T4 na literatura. Contudo, os dados  obtidos  em  estudos  com  humanos  são  muito  controversos.  Dessa  maneira,  alguns  estudos  já  demonstraram  uma correlação negativa entre os níveis séricos de PCB e as concentrações séricas de T3, T4 e TSH em grávidas; e uma relação negativa  entre  a  exposição  pré­natal  aos  PCB  e  um  déficit  cognitivo  em  crianças.  Enquanto  isso,  outros  trabalhos  não demonstraram qualquer alteração da função tireoidiana frente a esses interferentes endócrinos. A  triclosana,  por  sua  vez,  não  altera  a  expressão  gênica  dos  tireócitos,  mas  reduz  a  atividade  da  TPO  e  do  NIS, interferindo,  assim,  na  biossíntese  dos  HT.  Além  disso,  estudos  sugerem  que  a  triclosana  reduz  os  níveis  séricos  de T4  por  aumentar  sua  metabolização  hepática,  induzindo  hipotiroxinemia  em  animais.  É  importante  destacar  que  a hipotiroxinemia, que se caracteriza pela redução dos níveis séricos de T4 sem alterações significativas nos níveis de T3 ou TSH,  já  foi  previamente  associada,  principalmente  em  grávidas,  a  comprometimento  do  desenvolvimento  do  sistema nervoso central fetal. Os  ftalatos  também  já  foram  previamente  associados  a  alterações  na  função  tireoidiana.  De  fato,  parece  haver  uma correlação negativa entre o nível de ftalatos e os níveis séricos de T3 e T4 em humanos. Por meio de estudos com modelos animais, por sua vez, demonstrou­se que a exposição aos ftalatos interfere na função da tireoide em diferentes vertentes, por meio da redução dos níveis séricos de T3 e T4 (de maneira dose­dependente), da diminuição da expressão e atividade da NIS, da indução de alterações morfológicas na tireoide e da redução da expressão de receptores e transportadores para HT em tecidos­alvo. Estudos  epidemiológicos  também  relataram  uma  relação  negativa  entre  os  níveis  séricos  do  pesticida  organoclorado DDE e as concentrações séricas de HT. De maneira coerente, já foi demonstrada uma correlação positiva entre os níveis desse metabólito do DDT e os níveis séricos de TSH em humanos expostos.

Figura 78.15 ■ Similaridade  estrutural  entre  os  hormônios  tireoidianos  (A)  e  os  desreguladores  endócrinos  BPA,  triclosana  e PCB (B).

Finalmente, existem alguns desreguladores endócrinos que não são orgânicos, mas que são conhecidos interferentes da função  tireoidiana,  principalmente  por  inibirem  a  captação  de  iodeto  mediada  pela  NIS.  Enquadram­se  nesses

desreguladores  endócrinos  inorgânicos  perclorato,  nitrato,  tiocianato,  dentre  outros  compostos,  que  inibem  de  maneira significativa a função do NIS, e consequentemente a síntese de HT (Figura 78.16). O  perclorato  é  um  íon  inorgânico  usado  na  fabricação  de  propelentes,  fogos  de  artifício,  foguetes,  mísseis  e fertilizantes, além de ser formado naturalmente na atmosfera, especialmente em regiões de clima árido. Essa combinação entre  a  produção  humana  e  os  processos  naturais  resulta  em  uma  acentuada  presença  de  perclorato  no  meio  ambiente, principalmente em países com intensa atividade da indústria bélica. A presença de perclorato em água de irrigação, solo e fertilizantes resulta na acumulação desse ânion em frutos, vegetais e outros alimentos, aumentando ainda mais a exposição humana  a  esse  composto  químico.  O  perclorato  é  um  conhecido  inibidor  da  captação  de  iodeto  pelo  NIS  em  tireócitos, dada  a  similaridade  de  tamanho  e  carga  entre  esse  ânion  e  o  iodeto.  Os  efeitos  nocivos  do  perclorato  sobre  a  função tireoidiana em humanos são especialmente relatados em populações com aporte deficiente de iodo pela dieta. É relevante destacar que o meio ambiente apresenta níveis de contaminação com nitrato muito maiores do que aqueles observados  para  o  perclorato.  Em  concordância,  nas  últimas  décadas,  houve  um  aumento  significativo  dos  níveis  de nitrato  na  água  para  consumo  humano  e  nos  alimentos,  pelo  uso  exacerbado  de  fertilizantes  e  pesticidas  nitrogenados. Nesse sentido, alguns estudos associaram a exposição exacerbada ao nitrato com o aumento do risco de desenvolvimento de cânceres e problemas reprodutivos. Embora a inibição exercida pelo nitrato sobre a função do NIS seja menor do que aquela induzida pelo perclorato (ver Figura 78.16), os níveis de nitrato encontrado no soro de humanos são muito maiores. Adicionalmente,  estudos  demonstraram  que  esse  composto  age  sinergicamente  tanto  com  o  perclorato  como  com  o tiocianato,  potencializando  seus  efeitos  inibitórios  sobre  a  atividade  do  NIS  e,  consequentemente,  sobre  a  função tireoidiana.

Figura 78.16 ■ Inibição  da  captação  de  iodeto  pelos  tireócitos  na  presença  de  perclorato  (ClO4–), nitrato (NO3–)  ou  tiocianato (SCN–). (Adaptada de Tonacchera et al., 2004.)

A maior parte dos estudos sobre os efeitos nocivos dos desreguladores endócrinos concentra­se em suas ações sobre o sistema  genital,  dada  a  similaridade  estrutural  entre  esses  compostos  e  os  hormônios  esteroides  e  as  ações  estrogênicas, androgênicas,  antiestrogênicas  ou  antiandrogênicas  desencadeadas  por  muitos  desses  compostos.  Não  obstante,  vale destacar que os receptores de HT encontram­se expressos em praticamente todos os tecidos do organismo. Dessa maneira, desreguladores  endócrinos  que  alterem  a  produção  de  HT  ou  suas  ações  no  organismo  potencialmente  interferirão  na homeostase  de  vários  sistemas  do  organismo.  Nesse  sentido,  é  importante  pautar  que  as  disfunções  tireoidianas  são  em geral seguidas de distúrbios cardiovasculares, metabólicos, reprodutivos, neurológicos e comportamentais. Por  esse  motivo,  novos  estudos  serão  fundamentais  para  determinar  o  real  impacto  dos  diferentes  desreguladores endócrinos sobre a função dessa glândula tão importante para a manutenção da homeostase do organismo.

▸ Efeitos no sistema genital Sistema genital feminino Os órgãos sexuais femininos incluem os ovários, tubas uterinas, útero e vagina (Figura 78.17). Conforme destacado em capítulos anteriores, os órgãos componentes do sistema genital feminino são responsáveis pela produção e transporte de gametas, produção e secreção de hormônios sexuais e manutenção adequada do feto durante o período de gestação. A estrutura e a função de cada um dos órgãos que compõem o sistema genital feminino são reguladas por hormônios produzidos  pelo  hipotálamo  (especialmente  o  GnRH)  e  pela  hipófise  (LH  e  FSH).  Dessa  maneira,  o  eixo  hipotálamo­ hipófise­ovário  é  o  principal  regulador  hormonal  do  sistema  genital  feminino  e  o  principal  alvo  da  ação  dos desreguladores endócrinos. De fato, muitos estudos da literatura demonstram que os desreguladores endócrinos interferem na  ação  dos  hormônios  hipotalâmicos,  hipofisários  e/ou  ovarianos,  causando  efeitos  adversos  sobre  o  sistema  genital feminino,  como  infertilidade,  puberdade  precoce,  falência  ovariana  prematura,  endometriose,  síndrome  do  ovário policístico, menopausa precoce, aumento da incidência de cânceres etc.

Figura 78.17 ■ Órgãos que compõem o sistema genital feminino e que potencialmente sofrem as consequências da exposição aos desreguladores endócrinos.

Um dos exemplos mais emblemáticos da ação de desreguladores endócrinos sobre o sistema genital feminino foi o uso de  dietilestilbestrol  (DES)  por  gestantes  nas  décadas  de  1940  a  1970.  Nessa  época,  esse  composto  sintético,  com  ação estrogênica, era prescrito para gestantes com o objetivo de diminuir o enjoo matinal e evitar abortamentos (Figura 78.18). Contudo,  estudos  realizados  nos  anos  1980  demonstraram  que  as  filhas  das  gestantes  tratadas  com  DES  apresentavam maior propensão ao desenvolvimento de cânceres de mama, útero e vagina do que as filhas de gestantes não expostas ao tratamento com esse composto. Embora  muitos  estudos  sugiram  uma  correlação  entre  a  exposição  aos  desreguladores  endócrinos  e  problemas reprodutivos, o mecanismo de ação desses compostos sobre o sistema genital feminino precisa ser melhor caracterizado. Outra  dificuldade  é  estabelecer  o  papel  de  cada  desregulador  endócrino  sobre  esse  sistema,  uma  vez  que,  conforme destacado  anteriormente,  os  seres  humanos  estão  expostos  concomitantemente  a  diferentes  desreguladores  endócrinos. Nesse  sentido,  frente  a  essas  ações  conjuntas,  devemos  levar  em  consideração  que  mecanismos  sinérgicos  e/ou antagônicos  serão  desencadeados,  promovendo  efeitos  distintos  daqueles  observados  frente  à  exposição  de  um  único desregulador endócrino.

Descreveremos aqui os principais achados da literatura sobre os efeitos dos desreguladores endócrinos sobre o sistema genital feminino. Ovário É  a  gônada  feminina  responsável  pela  produção  dos  gametas  femininos  e  pela  produção  dos  hormônios  sexuais, estrógeno  e  progesterona.  A  maior  parte  dos  estudos  que  avaliam  os  efeitos  dos  desreguladores  endócrinos  sobre  os ovários envolve o uso de modelos animais (in vivo) ou cultura de células (in vitro). Sendo assim, a descrição dos efeitos em humanos ainda é escassa na literatura.

Figura  78.18  ■   Propaganda  em  jornal  norte­americano  incentivando  o  uso  de  DES  –  um  composto  sintético  com  ação estrogênica – por gestantes. Anos depois, estudos correlacionaram o uso de DES ao aumento no número de casos de câncer de mama, útero e vagina nas filhas das gestantes expostas. É importante destacar que o tratamento também provocou alterações na genitália masculina e hipospadia nos filhos das gestantes expostas.

No  ovário  em  desenvolvimento,  demonstra­se  que  BPA,  ftalatos  e  pesticidas,  ao  interferirem  nas  vias  de  ação hormonal, principalmente dos estrógenos, comprometem a viabilidade e a maturação das células germinativas em modelos animais e modelos in vitro.  No  ovário  maduro,  ainda  que  os  mecanismos  de  ação  não  estejam  completamente  descritos, sugere­se  que  a  exposição  aos  desreguladores  endócrinos  (BPA,  ftalatos,  PCB,  pesticidas)  altera  a  expressão  gênica ovariana,  diminui  o  número  e  o  crescimento  dos  folículos  ovarianos  e/ou  induz  atresia  folicular.  Adicionalmente,  a exposição ao BPA já foi relacionada com aumento de cistos ovarianos em ratas. Dados  de  diferentes  estudos  com  modelos  animais  e  in  vitro  demonstraram  que  os  desreguladores  endócrinos aumentam a necrose e/ou apoptose de células da granulosa. Outros estudos sugerem que a esteroidogênese ovariana seja comprometida frente à exposição aos desreguladores endócrinos. Conforme destacado em capítulos anteriores, a produção de esteroides sexuais é um processo complexo, que depende da expressão e atividade de diferentes enzimas. Dessa maneira, a interferência promovida pelos desreguladores endócrinos nas  enzimas­chave  do  processo  de  esteroidogênese  ovariana  reflete­se  diretamente  na  produção  de  estrógenos  e progesterona, e indiretamente sobre os efeitos controlados por esses hormônios nos diferentes tecidos do organismo. Estudos  sugerem  tanto  uma  interferência  direta  quanto  indireta  dos  desreguladores  endócrinos  sobre  a  produção  de hormônios esteroides pelos ovários.

As  ações  diretas  incluem  a  interferência  em  células  da  teca  e  da  granulosa,  regulando  a  expressão  e  a  atividade  de enzimas esteroidogênicas (Figura 78.19). As  ações  indiretas  incluem  os  efeitos  dos  desreguladores  endócrinos  sobre  a  hipófise,  por  meio  da  alteração  da síntese,  secreção  e/ou  sinalização  dos  hormônios  FSH  e  LH,  e/ou  sobre  o  hipotálamo,  através  da  regulação  da  produção e/ou  ação  do  GnRH.  Alguns  estudos  sugerem,  inclusive,  que  a  interferência  promovida  pelos  desreguladores  endócrinos na hipófise e no hipotálamo esteja envolvida tanto no início precoce da puberdade como na diminuição da fertilidade em indivíduos adultos. É importante destacar que, ao alterar a produção dos hormônios esteroides no organismo e/ou interferir nas suas vias de  sinalização,  os  desreguladores  endócrinos  não  comprometem  apenas  o  adequado  funcionamento  do  sistema  genital feminino,  como  também  outras  funções  controladas  pelos  hormônios  esteroides  femininos,  como  a  atividade  cardíaca,  o metabolismo ósseo, a função cognitiva etc. Sendo  assim,  ao  interferir  no  desenvolvimento,  maturação  e/ou  função  dos  ovários,  os  desreguladores  endócrinos desencadeiam alterações sistêmicas relevantes, não apenas relacionadas com a reprodução. Útero Os  estudos  que  descrevem  os  efeitos  nocivos  dos  desreguladores  endócrinos  sobre  a  estrutura  e  função  do  útero  se concentram  principalmente  em  modelos  animais  e  in  vitro.  Nesse  sentido,  os  principais  efeitos  descritos  incluem  a interferência promovida pelos desreguladores endócrinos na ação dos esteroides hormonais sobre as células uterinas e/ou sobre a morfologia do útero. As consequências da interferência hormonal induzida por esses compostos incluem: aumento do  peso/volume  uterino,  alteração  na  expressão  de  genes  envolvidos  na  regulação  da  função  uterina,  redução  da receptividade endometrial ao embrião, diminuição dos sítios de implantação embrionária etc.

Figura  78.19  ■   Enzimas  envolvidas  na  síntese  dos  esteroides  ovarianos  e  o  impacto  da  exposição  aos  desreguladores endócrinos sobre essa via de biossíntese hormonal. Conforme destacado na figura, a síntese dos hormônios ovarianos depende do  aporte  adequado  de  colesterol  e  da  expressão  e  atividade  de  uma  série  de  enzimas  presentes  tanto  nas  células  da  teca quanto nas células da granulosa. Os X vermelhos indicam os hormônios ou enzimas que já foram descritos na literatura como alvos da ação dos desreguladores endócrinos. (Adaptada de Gore et al., 2015.)

Embora  sejam  escassos,  alguns  estudos  epidemiológicos  já  correlacionaram  a  exposição  humana  aos  desreguladores endócrinos durante os períodos pré­natal, neonatal e pós­natal com o aumento na incidência de câncer de útero durante a vida adulta. Puberdade, ciclo ovariano, ciclo menstrual, menopausa É nestes parâmetros que se concentra a maior parte dos estudos epidemiológicos, ou seja, estudos gerados a partir de dados obtidos com diferentes populações humanas ou grupos de indivíduos. Por esse mesmo motivo, os dados sobre os efeitos dos desreguladores endócrinos na puberdade, alterações no ciclo menstrual/ovariano e início precoce da menopausa ainda são conflitantes tanto em humanos quanto em animais. Os  resultados  contraditórios  se  justificam  especialmente  pelas  diferenças  na  concentração  dos  desreguladores endócrinos aos quais os indivíduos foram expostos, no tempo de exposição, assim como na fase do desenvolvimento na qual o indivíduo foi exposto. Além disso, adicionam­se outras variáveis, como diferenças na coleta e no tipo das amostras humanas  (sangue,  urina,  entre  outras),  a  predisposição  genética  dos  indivíduos  de  diferentes  populações,  a  presença  de múltiplos interferentes endócrinos no ambiente, as condições socioeconômicas de cada população etc. Sendo  assim,  enquanto  alguns  estudos  sugerem  uma  correlação  direta  entre  o  início  precoce  da  puberdade  e  da menopausa, alterações nos ciclos ovariano/menstrual e a exposição a diferentes desreguladores endócrinos, outros estudos questionam  essas  relações  de  causa  e  efeito.  Dessa  maneira,  estudos  adicionais  devem  ser  realizados  para  identificar  o papel dos desreguladores endócrinos sobre esses parâmetros do sistema genital feminino, assim como os mecanismos de ação que estão relacionados com esses efeitos. Fertilidade A diminuição da fertilidade feminina induzida pela exposição aos desreguladores endócrinos é consideravelmente mais descrita em modelos animais do que em populações humanas. De fato, estudos com ratos e camundongos já sugeriram que a exposição humana a esses compostos promove a diminuição de fertilidade, infertilidade, diminuída taxa de implantação de embriões, e até um comprometimento da manutenção da gestação. Ainda assim, os mecanismos de ação pelos quais os desreguladores endócrinos induzem esses efeitos nos modelos experimentais não estão completamente esclarecidos. Alguns  poucos  estudos  em  populações  humanas  demonstraram  uma  correlação  positiva  entre  níveis  aumentados  de desreguladores endócrinos no soro e maior dificuldade para engravidar, aumento no número de abortos e/ou diminuição da eficiência de implantação de embriões em tratamentos de reprodução assistida. Contudo, outros estudos contrapõem esses resultados, por não demonstrarem nenhuma correlação específica entre a diminuição da fertilidade feminina e a exposição aos  desreguladores  endócrinos.  Dessa  maneira,  futuros  estudos  serão  essenciais  para  estabelecer  os  reais  efeitos  desses compostos sobre a fertilidade feminina.

Sistema genital masculino Os  órgãos  sexuais  que  compõem  o  sistema  genital  masculino  incluem  testículos,  epidídimo,  canais  deferentes, próstata, vesícula seminal e pênis (Figura 78.20). Conforme descrito detalhadamente em capítulos anteriores, esses órgãos são basicamente responsáveis pela produção, maturação e transporte dos gametas masculinos, assim como pela síntese e secreção de hormônios sexuais masculinos, que possuem os mais variados efeitos sistêmicos no organismo. Muitos estudos demonstram que os desreguladores endócrinos, ao interferirem na produção e/ou ação dos andrógenos, comprometem  a  função  do  sistema  genital  masculino.  Essa  interferência  endócrina  seria  responsável  por  alterações  no desenvolvimento embrionário do sistema genital e na função sexual masculina. É  interessante  destacar  que  a  interferência  endócrina  promovida  por  agentes  com  atividade  estrogênica  também compromete  o  sistema  genital  masculino.  De  fato,  os  efeitos  deletérios  observados  nos  órgãos  sexuais  masculinos desencadeados  pela  exposição  materna  a  um  composto  sintético  estrogênico,  como  o  DES,  descrito  anteriormente  neste capítulo, comprovam que desreguladores endócrinos com atividade estrogênica também interferem de maneira relevante no desenvolvimento e na função sexual masculina.

Figura 78.20 ■ Órgãos que compõem o sistema genital masculino e que potencialmente sofrem as consequências da exposição aos desreguladores endócrinos.

Dentre as principais consequências negativas desencadeadas pela exposição aos desreguladores endócrinos no sistema genital masculino destacam­se: comprometimento da espermatogênese, criptorquidismo, hipospadia, infertilidade ou baixa fertilidade, diminuída qualidade do sêmen e cânceres em diferentes estruturas sexuais. É importante destacar que muitos estudos com outras classes de animais, como peixes, répteis, anfíbios, aves e outros mamíferos, consistentemente demonstram o efeito deletério que os desreguladores endócrinos presentes no meio ambiente exercem  sobre  o  sistema  genital  masculino.  Contudo,  mais  estudos  epidemiológicos  serão  necessários  para  estabelecer quais são as fases críticas, as doses e o tempo de exposição necessários para que os efeitos deletérios sejam observados no sistema genital humano. Aqui  serão  descritos  os  principais  achados  da  literatura  sobre  os  efeitos  dos  desreguladores  endócrinos  no  sistema genital masculino. Testículos Os  testículos  são  funcional  e  anatomicamente  divididos  em  duas  partes:  tecido  intersticial,  responsável  pela biossíntese dos esteroides gonadais, e os túbulos seminíferos, responsáveis pela produção do espermatozoides. O  desenvolvimento  embrionário  dos  testículos  é  de  fundamental  importância  para  uma  série  de  outras  cascatas  de desenvolvimento, que dependem da produção e da ação da testosterona. De fato, a síndrome de disgenesia testicular, que envolve  o  comprometimento  do  desenvolvimento  dos  testículos  por  agentes  químicos  ou  genéticos,  foi  associada  a  uma série  de  problemas  relacionados  com  o  sistema  genital  masculino,  como  criptorquidismo,  hipospadia,  oligospermia  e câncer de testículo. Alguns  estudos  sugerem  que  a  síndrome  de  disgenesia  testicular  decorra  de  uma  ação  androgênica  insuficiente,  que resulta em disfunções nas células de Sertoli e de Leydig, comprometendo, assim, o adequado desenvolvimento da gônada

e dos outros órgãos do sistema genital masculino. Nesse sentido, substâncias químicas, naturais ou sintéticas, capazes de interferir  na  produção/ação  da  testosterona  durante  o  desenvolvimento  embrionário,  potencialmente  desencadearão  uma série  de  problemas  reprodutivos.  Ainda  que  a  correlação  entre  a  exposição  aos  desreguladores  endócrinos  e  essas disfunções não esteja completamente comprovada, muitos trabalhos demonstram a indução de anomalias anatômicas e/ou funcionais  nos  testículos  de  humanos  e  outros  animais  expostos  aos  interferentes  endócrinos  em  fases  iniciais  do desenvolvimento. O criptorquidismo,  por  exemplo,  é  um  problema  relacionado  ao  desenvolvimento  dos  testículos  e  que  em  geral  está associado  na  literatura  à  exposição  aos  desreguladores  endócrinos.  Sabe­se  que,  após  desenvolvimento  embrionário  dos testículos, os mesmos são alocados na bolsa escrotal, fora da cavidade abdominal, e mantidos em temperatura inferior à corporal.  O  criptorquidismo  se  caracteriza  pela  manutenção  dos  testículos  na  cavidade  abdominal,  seja  por  uma  falha  no processo  de  descida  dos  testículos  até  a  bolsa  escrotal  durante  o  período  embrionário,  seja  pela  ascensão  de  um  ou  dos dois testículos para a cavidade abdominal durante a infância (Figura 78.21). As  principais  consequências  da  manutenção  do  testículo  fora  da  bolsa  escrotal  são  a  degeneração  das  células germinativas e, consequentemente, a infertilidade. É relevante destacar que a incidência de criptorquidismo nas diferentes populações  aumentou  consideravelmente  nos  últimos  anos.  De  maneira  interessante,  a  maior  parte  dos  estudos  descritos na literatura sobre essa disfunção envolve dados epidemiológicos.

Figura  78.21  ■   Ilustração  esquemática  do  criptorquidismo,  ou  seja,  a  manutenção  dos  testículos  nas  cavidades  abdominal, inguinal ou pré­escrotal.

Nesse  sentido,  alguns  estudos  demonstraram  uma  correlação  positiva  entre  o  aumento  dos  casos  de  criptorquidismo em meninos com altos níveis de pesticidas no tecido adiposo. Outros trabalhos descreveram uma associação entre níveis aumentados de pesticidas organoclorados, PCB, ftalatos e/ou dioxinas na placenta, urina e leite maternos e o aumento da incidência de criptorquidismo em recémnascidos. Além disso, outros trabalhos demonstraram que o ftalato dietil­hexilftalato (DHEP) exerce uma ação antiandrogênica muito  significativa  e  que  seu  metabólito,  o  monoetil­hexilftalato  (MHEP),  gerado  por  ação  de  enzimas  intestinais, apresenta  uma  ação  antiandrogênica  10  vezes  mais  potente  que  seu  precursor.  Em  concordância,  alguns  estudos  já sugeriram que essa potente ação antiandrogênica justificaria a alta incidência de criptorquidismo em indivíduos expostos, durante a gestação, a altas concentrações de ftalatos. A hipospadia é  outra  anomalia  do  sistema  genital  na  qual  a  abertura  da  uretra  não  fica  na  extremidade  da  glande  do pênis, e sim situada em um ponto variável da face inferior do pênis, entre a glande e o períneo (Figura 78.22).

Figura 78.22 ■ Ilustração sistemática sobre a hipospadia, na qual a abertura da uretra se situa em diferentes posições ao longo do pênis e da bolsa escrotal.

Dada  a  raridade  dessa  condição,  poucos  são  os  trabalhos  epidemiológicos  que  relatam  de  maneira  consistente  a associação  entre  a  hipospadia  e  a  exposição  aos  desreguladores  endócrinos.  Ainda  assim,  alguns  estudos  sugeriram fortemente  o  aumento  do  risco  de  desenvolvimento  de  hipospadia  em  filhos  de  homens/mulheres  expostos  a  pesticidas, metais pesados, PCB e/ou outros desreguladores endócrinos. Contudo,  conforme  destacado  anteriormente,  existem  algumas  disparidades  e  incongruências  nos  resultados  obtidos em  diferentes  estudos  epidemiológicos  que  buscaram  relacionar  a  ocorrência  de  hipospadia  ou  criptorquidismo  e  a exposição aos desreguladores endócrinos. Por esse motivo, estudos futuros serão fundamentais para delinear com precisão os  mecanismos,  os  períodos  críticos  e  as  doses  necessárias  para  a  ocorrência  dessas  anomalias  do  sistema  genital masculino frente à exposição aos desreguladores endócrinos Qualidade do sêmen O  sêmen  constitui­se  basicamente  do  líquido  seminal,  produzido  pelas  secreções  seminais  e  prostáticas,  e  dos espermatozoides,  gerados  e  maturados  no  testículo  e  epidídimo.  O  sêmen  é  rico  em  frutose,  enzimas,  como  a  fosfatase ácida  e  alcalina.  Os  níveis  de  cada  componente  do  sêmen  constituem  um  excelente  indicador  bioquímico  da  função androgênica. Dessa maneira, alterações provocadas por desreguladores endócrinos na produção das secreções da próstata e/ou  vesículas  seminais,  assim  como  na  geração  e  proliferação  das  células  germinativas  ou  na  maturação  dos espermatozoides, interferem diretamente na qualidade do sêmen. Muitos  trabalhos  relatam  que  a  exposição  das  células  germinativas  dos  fetos  aos  desreguladores  endócrinos  (como pesticidas,  ftalatos,  PCB)  esteja  associada  à  diminuição  do  número  e  da  mobilidade  dos  espermatozoides.  Em concordância,  outros  estudos  sugerem  que  a  exposição  embrionária  ou  mesmo  de  indivíduos  adultos  aos  desreguladores endócrinos  induz  alterações  morfológicas  nos  espermatozoides,  compromete  a  integridade  do  DNA  dos  gametas  e promove alterações significativas na condensação da cromatina dos espermatozoides presentes no sêmen. Ainda assim, os dados  obtidos  em  estudos  epidemiológicos  continuam  muito  contraditórios  e  alguns  estudos  não  descrevem  esse  tipo  de correlação em algumas populações. Próstata A  próstata  é  um  órgão  altamente  dependente  da  ação  hormonal.  Nesse  sentido,  o  desenvolvimento  embrionário,  a função  e  a  morfologia  da  próstata  estão  intimamente  relacionados  com  os  níveis  circulantes  de  hormônios  esteroides, especialmente os andrógenos. O papel e a importância dos hormônios sobre a próstata se refletem na grande quantidade de receptores e enzimas associadas ao metabolismo de andrógenos e estrógenos nesse tecido. Dada  a  ação  androgênica  de  alguns  desreguladores  endócrinos,  inúmeros  estudos  já  demonstraram  uma  correlação positiva  entre  o  crescimento  prostático  e  a  exposição  a  diferentes  interferentes.  Nesse  sentido,  cada  vez  mais  trabalhos sugerem  que  a  exposição  humana  aos  desreguladores  endócrinos,  como  pesticidas,  herbicidas,  PCB,  BPA  e/ou  metais pesados,  está  diretamente  relacionada  com  o  aumento  da  incidência  de  câncer  de  próstata.  Ainda  assim,  essa  incidência também  tem  uma  forte  associação  com  predisposições  genéticas  dos  indivíduos.  Alguns  estudos  realizados  em  modelos

experimentais  e  culturas  de  células  fortalecem  os  dados  epidemiológicos  apresentados  na  literatura.  Apesar  disso,  os períodos críticos de exposição e os mecanismos de ação desencadeados pelos desreguladores endócrinos sobre a próstata ainda  precisam  ser  mais  bem  elucidados.  Futuros  trabalhos  seguramente  contribuirão  de  maneira  significativa  para  a resolução dessas deficiências.

▸ Efeitos no metabolismo energético A  obesidade  e  o  diabetes  são  os  maiores  problemas  endócrinos  de  saúde  pública  no  mundo,  e  o  número  de  novos casos cresce consideravelmente a cada ano. Nesse sentido, a Organização Mundial da Saúde (OMS) sugere que atualmente presenciamos  uma  epidemia  de  obesidade  e  diabetes  em  escala  global.  Entender  os  mecanismos  associados  à  etiologia tanto da obesidade como do diabetes contribuirá de maneira significativa para a prevenção e a redução desses problemas metabólicos na população mundial. Aqui  serão  descritos  os  efeitos  da  exposição  aos  desreguladores  endócrinos  sobre  alterações  metabólicas desencadeadoras de quadros de obesidade e/ou diabetes.

Obesidade A  obesidade  resulta  de  uma  elevada  ingestão  alimentar  em  relação  ao  gasto  energético.  A  etiologia  da  obesidade  é complexa e envolve tanto fatores genéticos quanto fatores ambientais. Além disso, há um amplo conhecimento acerca dos mecanismos  neurais  e  endócrinos  que  controlam  a  ingestão  e  o  comportamento  alimentar,  que  estão  intimamente relacionados  com  a  origem  da  obesidade.  Sabe­se  também  da  íntima  relação  entre  a  obesidade  e  o  desenvolvimento  do diabetes. Todos esses aspectos foram detalhadamente descritos em capítulos anteriores. Contudo, o crescimento global da incidência  de  obesidade,  diabetes  e  suas  comorbidades  tem  gerado  muitas  reflexões  relacionadas  à  etiologia  dessas doenças.  Uma  vertente  dos  estudos  busca  entender  o  impacto  da  exposição  humana  aos  desreguladores  endócrinos  e  a ocorrência  de  obesidade  em  indivíduos  em  diferentes  faixas  etárias.  Interessantemente,  os  interferentes  endócrinos associados ao desenvolvimento de obesidade são conhecidos como “obesogênicos”. Nesse  sentido,  a  exposição  aos  desreguladores  endócrinos  no  período  intrauterino  e  perinatal  tem  sido  considerada como um fator de risco importante para o desenvolvimento de obesidade e doenças metabólicas durante a vida adulta. Em concordância, há estudos que demonstram que a exposição a alguns desreguladores endócrinos diminui o crescimento fetal intrauterino  e  o  peso  ao  nascer  de  recém­nascidos,  e  ambos  os  fatores  apresentam  uma  correlação  importante  com  o desenvolvimento de obesidade durante a vida adulta. O  aumento  de  peso  na  idade  adulta  induzido  por  desreguladores  endócrinos  também  foi  observado  em  camundongos tratados com baixas concentrações de DES durante o período neonatal. Sendo assim, além dos problemas reprodutivos que foram destacados anteriormente neste capítulo, a exposição ao DES também induz modificações metabólicas relevantes. Um  grande  número  de  estudos  epidemiológicos  e  com  modelos  animais  destacam  o  papel  obesogênico  de  alguns desreguladores  endócrinos,  graças  aos  efeitos  desencadeados  por  esses  compostos  estimulando  a  adipogênese,  ou  seja, promovendo  um  aumento  no  número  de  adipócitos  e  no  armazenamento  de  gordura  em  adipócitos  preexistentes  (Figura 78.23). Além disso, alguns estudos relatam que os desreguladores endócrinos alteram a taxa metabólica basal, favorecendo o armazenamento  de  gordura  ou  alterando  o  controle  hormonal  do  apetite  e  saciedade.  Todas  essas  ações,  em  conjunto, poderiam justificar os estudos que associam a exposição aos desreguladores endócrinos e o desenvolvimento de obesidade tanto em humanos quanto em animais. De fato, já foi sugerida uma correlação positiva entre a concentração urinária de ftalatos e o aumento do diâmetro da cintura  e  do  índice  de  massa  corporal  (IMC)  em  crianças  e  adultos.  Além  disso,  diferentes  trabalhos  sugeriram  uma associação  entre  os  níveis  urinários  de  BPA  e  obesidade.  Adicionalmente,  DDT,  DDE,  DPEP  e  PBDE  já  foram positivamente correlacionados com o desenvolvimento de obesidade em homens e mulheres. Ainda, há relatos na literatura de que a exposição a organotinas, que estão presentes em fungicidas e são ingeridas pelo consumo de frutos do mar contaminados, está associada ao desenvolvimento da obesidade. Demonstrou­se que duas delas, TBT  e  TPT,  se  ligam  com  alta  afinidade  aos  receptores  nucleares  RXR  e  PPARγ,  que  são  essenciais  para  o desenvolvimento dos adipócitos. Estudos in vitro demonstraram que, ao se ligarem a esees receptores, as organotinas, e também outros desreguladores endócrinos, induzem a proliferação dos adipócitos. Em consonância, alguns trabalhos com modelos  animais  demonstraram  que  a  exposição  intrauterina  ao  TBT  promove  o  aumento  de  gordura  nos  depósitos adiposos, no fígado e nos testículos de camundongos neonatos e o aumento dos depósitos adiposos nos animais adultos.

Trabalhos relataram que a exposição perinatal de camundongos a retardantes de chamas (PBB) provoca alterações na expressão  de  genes  do  fígado  relacionados  ao  metabolismo,  bem  como  elevação  dos  níveis  de  triglicerídios  circulantes. Outros estudos demonstraram que ratos expostos ao BPA no período perinatal também apresentaram alterações hepáticas significativas  na  vida  adulta,  como  esteatose  hepática  não  alcoólica  e  aumento  dos  níveis  plasmáticos  de  triglicerídios  e colesterol.  Por  fim,  alguns  estudos  sugeriram  que  a  exposição  materna  ao  DDT  reduz  a  taxa  metabólica  basal  de  suas proles. Esse efeito justificaria o ganho de peso exacerbado dos animais expostos, que curiosamente apresentaram a mesma ingestão energética de animais do grupo­controle, ou seja, que não foram expostos a qualquer tipo de tratamento.

Figura 78.23 ■ Papel dos desreguladores endócrinos (DE) obesogênicos na diferenciação de adipócitos e desenvolvimento da obesidade. (Adaptada de Heindel et al., 2015.)

Outros estudos da literatura relatam os efeitos diretos de desreguladores endócrinos em neurônios hipotalâmicos que expressam neuropeptídios relacionados com o controle da ingestão alimentar, como o neuropeptídio Y (NPY), a proteína relacionada  ao  Agouti  (AgRP),  o  transcrito  regulado  por  anfetamina  e  cocaína  (CART)  e  o  hormônio  melanotrófico (MSH).  Esses  circuitos  que  regulam  a  ingestão  alimentar  são  estabelecidos  muito  precocemente  durante  a  vida intrauterina.  Dessa  maneira,  a  exposição  precoce  aos  desreguladores  endócrinos  e  suas  ações  sobre  esses  circuitos envolvidos  no  controle  da  ingestão  e  comportamento  alimentar  também  têm  sido  apontadas  como  potenciais desencadeadores da obesidade nos modelos animais e em humanos. Conclui­se,  assim,  que  a  exposição  intrauterina  ou  perinatal  aos  desreguladores  endócrinos  é  um  fator  de  risco considerável para o desenvolvimento de obesidade e doenças metabólicas na vida adulta.

Diabetes Além  de  todos  os  efeitos  descritos  anteriormente  sobre  a  programação  e  indução  da  obesidade,  que  por  si  só  está intimamente  relacionada  com  a  ocorrência  de  diabetes,  muitos  trabalhos  sugerem  um  papel  direto  e  relevante  dos desreguladores  endócrinos  sobre  o  desenvolvimento  do  diabetes,  principalmente  o  diabetes  melito  tipo  2  (DM2),  e também  de  outras  doenças  relacionadas  com  a  resistência  insulínica.  De  fato,  o  diabetes  resulta  de  uma  alteração  na produção e/ou na ação da insulina no organismo. Assim  como  no  caso  da  obesidade,  o  diabetes  possui  alguns  fatores  genéticos  e  ambientais  predisponentes.  Ainda assim,  os  desreguladores  endócrinos  que  induzem  a  resistência  à  insulina  são  classificados  como  diabetogênicos  e  são considerados  fatores  de  risco  para  o  desenvolvimento  da  síndrome  metabólica  e  do  DM2.  Conforme  destacado anteriormente, desreguladores endócrinos obesogênicos potencialmente desencadeiam o desenvolvimento de DM2. Nesse sentido, algumas evidências científicas sugerem que a exposição intrauterina e perinatal ao BPA, por exemplo, altere  a  expressão  de  genes  envolvidos  na  regulação  do  crescimento  e  função  das  células  beta  pancreáticas  de  maneira dose­dependente. Assim, o BPA em doses baixas provoca proliferação dessas células e aumento da insulinemia, enquanto, em  doses  altas,  reduz  a  massa  de  células  beta  pancreáticas  e  altera  a  glicemia  de  jejum.  Em  resumo,  esses  estudos sugerem que as alterações promovidas pela exposição precoce ao BPA contribuem para o desenvolvimento de quadros de intolerância à glicose na vida adulta. Estudos  epidemiológicos  sugeriram  que  a  exposição  humana  aos  POP,  incluindo  pesticidas  organoclorados,  PCB  e dioxinas, apresenta uma sólida correlação com o aumento da prevalência de DM2. Em adição, os níveis de BPA, arsênico e  ftalatos  em  urina  também  já  foram  positivamente  correlacionados  com  a  incidência  de  DM2  em  diferentes  estudos epidemiológicos. Conforme  descrito  anteriormente,  grande  parte  dos  desreguladores  endócrinos  são  lipofílicos  e  permanecem armazenados  nos  adipócitos  por  longos  períodos.  Dessa  forma,  alguns  estudos  descrevem  que  a  presença  de

desreguladores endócrinos nos adipócitos está diretamente relacionada com menor responsividade dessas células à ação da insulina. Interessantemente, outros trabalhos demonstraram que a presença de dioxinas, BPA e os PCB no tecido adiposo induz  a  inflamação  dos  adipócitos,  um  outro  fator  predisponente  para  o  desenvolvimento  de  resistência  insulínica  e diabetes.  Por  todos  os  dados  apresentados  na  literatura,  muitos  estudos  relatam  que  os  indivíduos  que  apresentam desreguladores  endócrinos  armazenados  em  seus  depósitos  adiposos  são  mais  suscetíveis  ao  desenvolvimento  de resistência insulínica, e consequentemente de DM2. A  Figura  78.24  sumariza  os  efeitos  desencadeados  pelos  desreguladores  endócrinos  aqui  descritos  e  seu  papel  na indução de doenças metabólicas.

▸ Efeitos no sistema cardiovascular As  doenças  cardiovasculares  são  a  principal  causa  de  óbito  no  mundo  e  resultam  de  vários  fatores  combinados  que incluem causas genéticas, estilo de vida e fatores ambientais. Dentre os principais fatores de risco para o desenvolvimento dessas doenças, incluem­se o fumo, a obesidade e o diabetes, conforme já destacado. Contudo,  cada  vez  mais  trabalhos  têm  associado  o  aumento  da  incidência  de  doenças  cardiovasculares  à  exposição humana  aos  desreguladores  endócrinos.  De  fato,  o  sistema  cardiovascular  é  considerado  um  alvo  direto  e  indireto  das ações  promovidas  pelos  desreguladores  endócrinos,  uma  vez  que  muitos  desses  compostos  interferem  na  ação  dos hormônios que agem sobre os vasos e o coração. Demonstrou­se, por exemplo, que altas concentrações de BPA estão associadas a aumento da prevalência de doenças coronarianas e que esse efeito aparentemente independe das ações desse desregulador endócrino sobre o desenvolvimento das  doenças  metabólicas  (obesidade  e  diabetes).  Dessa  maneira,  alguns  dados  sugerem  que  o  BPA  apresenta  um  efeito direto  sobre  o  coração.  Em  consonância,  o  BPA  exerce  efeitos  pró­arrítmicos  ao  interagir  com  o  receptor  de  estrógenos tipo  2  (ESR2).  Ainda,  a  conhecida  ação  inibitória  dos  estrógenos  sobre  a  motilidade  da  musculatura  lisa  dos  vasos,  que ocorre  via  interação  com  o  ESR2,  também  é  comprometida  pela  exposição  ao  BPA.  Esses  resultados  foram  obtidos  em estudos  que  usaram  ratas  como  modelo  experimental  e  que  sugeriram  a  maior  suscetibilidade  das  fêmeas  aos  impactos promovidos  por  esse  desregulador  endócrino.  Vale  ressaltar  que,  além  do  BPA,  os  fitoestrógenos  agonistas  do  ERS2 também  provocam  alterações  na  função  do  coração,  como  arritmias  cardíacas.  Sendo  assim,  os  riscos  associados  ao  uso desses compostos, principalmente em terapias de reposição hormonal, devem ser muito bem avaliados. O  BPA,  conforme  mencionado  anteriormente,  também  interage  com  o  receptor  de  hormônios  tireoidianos,  atuando como seu antagonista. Conforme descrito em capítulo específico, os HT controlam a expressão de vários genes cardíacos, que codificam proteínas essenciais para a função do coração, como a isoforma A da cadeia pesada da miosina, SERCA, receptores β­adrenérgicos, GLUT4 etc. Dessa maneira, sugere­se que a exposição ao BPA comprometa de forma relevante o  metabolismo  e  a  mecânica  cardíaca,  por  mecanismos  indiretos  que  envolvem  a  interferência  na  ação  dos  HT  sobre  o sistema cardiovascular. Adicionalmente,  ratos  expostos  ao  BPA  por  48  semanas  após  o  desmame  apresentaram  hipertrofia  cardíaca  e comprometimento  significativo  da  função  do  coração;  alterações  que  foram  precedidas  pela  diminuição  da  função mitocondrial e consequente redução da produção de ATP. Por  sua  vez,  a  exposição  ao  ftalato  DHEP,  presente  em  tubos  plásticos  de  equipamentos  de  hemodiálise,  bolsas  de sangue  e  em  outros  produtos  médicos  utilizados  em  UTI,  já  foi  correlacionada  com  a  diminuição  da  expressão  de receptores  de  angiotensina  II  (ATIIR­1b),  expressos  seletivamente  na  zona  glomerulosa  do  córtex  da  suprarrenal, responsável  pela  produção  de  aldosterona.  Dessa  maneira,  sugere­se  um  potencial  comprometimento  da  regulação  do equilíbrio  hidreletrolítico  e  da  pressão  arterial  em  indivíduos  expostos  aos  ftalatos.  Esse  risco  aumentado  se  pauta  no importante  papel  que  a  angiotensina  II  e  a  aldosterona  desempenham  sobre  esses  parâmetros.  Em  consonância,  estudos descreveram  que  a  exposição  fetal  ao  DHEP  reduz  a  síntese  de  aldosterona,  afetando  a  pressão  arterial  sistêmica  em indivíduos adultos.

Figura 78.24 ■ Efeito de diferentes desreguladores endócrinos sobre o desenvolvimento da obesidade e do diabetes melito tipo 2  (DM2).  Os  efeitos  obesogênicos  estão  diretamente  relacionados  com  o  estímulo  de  proliferação  de  células  adiposas  por alguns  desreguladores.  Adicionalmente,  os  agentes  obesogênicos  também  interferem  de  maneira  relevante  nos  efeitos comportamentais e de ingestão alimentar que são controlados principalmente no hipotálamo. Os compostos diabetogênicos, por sua  vez,  estão  especialmente  relacionados  com  alterações  na  secreção  de  insulina  pelas  células  beta  pancreáticas  e  com interferências  na  ação  insulínica  no  organismo.  Indiretamente,  a  partir  da  interferência  na  síntese  e  ação  da  insulina  no organismo,  os  desreguladores  endócrinos  são  responsáveis  por  outros  efeitos  deletérios  sistêmicos,  como  doenças cardiovasculares (DCV), dislipidemias, esteatose hepática, entre outros. (Adaptada de Gore et al., 2015.)

Somando­se a esses dados, alguns pesticidas organoclorados já foram relacionados com o desenvolvimento de doenças arteriais  periféricas,  principalmente  em  indivíduos  obesos.  Em  concordância,  a  exposição  ao  pesticida  DDT  já  foi previamente  correlacionada  com  o  desenvolvimento  de  hipertensão.  Além  disso,  a  partir  de  sua  ação  agonista  em receptores de estrógenos do tipo 1 (ESR1), os pesticidas organoclorados foram associados ao estímulo de angiogênese em tumores e suas metástases. Uma  correlação  positiva  entre  os  níveis  plasmáticos  de  PCB  e  o  aumento  da  pressão  arterial  também  já  foi estabelecida em alguns estudos epidemiológicos. Além disso, a exposição perinatal de ratos aos PBB, como o PBDE, foi previamente relacionada com o aumento da resposta de pressão arterial frente a um estímulo osmótico. Sugeriu­se nesse estudo que a exposição dos animais ao PBDE interferiu nos mecanismos responsáveis pelo controle do sistema arginina vasopressina, uma vez que se observou aumento significativo da concentração plasmática de arginina vasopressina (AVP) nos animais expostos. Finalmente,  estudos  recentes  apontaram  que  os  desreguladores  endócrinos  também  interferem  na  ação  das prostaglandinas,  que,  por  sua  vez,  apresentam  importantes  efeitos  vasculares.  Assim,  sugere­se  que  essas  ações

interferentes  adicionais  dos  desreguladores  endócrinos  contribuam  de  maneira  significativa  para  desencadeamento  de doenças cardiovasculares.

▸ Efeitos na função neuroendócrina O controle da homeostase do organismo depende da integridade do sistema hipotálamo­hipófise­glândula/órgão­alvo, que,  por  meio  da  produção  e  ação  de  hormônios,  participa  ativamente  do  controle  de  processos  como  crescimento, desenvolvimento, reprodução, resposta ao estresse, metabolismo energético e equilíbrio hidreletrolítico. De fato, sabe­se que os desreguladores endócrinos atuam por diferentes mecanismos e em diferentes componentes dos eixos  do  hipotálamo­hipófise­glândula,  bem  como  interferem  na  ação  de  neurotransmissores  centrais  que  atuam  na regulação desses eixos (Figura 78.25).

Figura 78.25 ■ Impacto da exposição aos desreguladores endócrinos (DE) sobre a função e atividade dos eixos hipotálamo­ hipófise­glândula.  Estudos  mostram  que  a  ação  interferente  dos  desreguladores  endócrinos  atinge  diferentes  níveis  de regulação  dos  eixos  hipotalálamo­hipófise­glândula,  comprometendo  o  adequado  funcionamento  do  sistema  endócrino  dos organismos expostos.

Dessa maneira, são evidentes as repercussões negativas desencadeadas pela exposição humana e animal aos diferentes desreguladores  endócrinos,  principalmente  quando  essa  exposição  ocorre  em  períodos  críticos  do  desenvolvimento, conforme explicitado anteriormente. Os  hormônios  hipotalâmicos  são  diretamente  secretados  no  sistema  porta­hipotalâmico­hipofisário,  descrito  em capítulos anteriores. Sendo assim, esses hormônios não são em geral detectados em amostras de soro ou urina. Por esse motivo,  a  maior  parte  dos  estudos  epidemiológicos  sobre  as  interferências  neuroendócrinas  promovidas  pelos desreguladores endócrinos se limita aos estudos comportamentais. Nesse  sentido,  alguns  estudos  epidemiológicos  e  com  modelos  animais  relataram  que  a  ação  hormonal  envolvida  na diferenciação  sexual  do  SNC  sofre  potencial  interferência  induzida  pela  presença  de  desreguladores  endócrinos, particularmente  quando  a  exposição  ocorre  durante  o  período  embrionário  ou  no  período  perinatal.  De  fato,  sabe­se  que esse  processo  depende,  em  grande  parte,  da  ação  dos  hormônios  maternos  e  fetais  sobre  os  receptores  de  hormônios esteroides,  bem  como  da  metabolização  desses  hormônios  por  enzimas  expressas  no  SNC  –  como  a  aromatase,  que converte a testosterona a estradiol. Sendo assim, por ser um processo altamente dependente da ação hormonal, o potencial

efeito  deletério  da  ação  de  desreguladores  endócrinos  não  pode  ser  ignorado.  Muitos  estudos  recentes  visam  elucidar  de maneira consistente quais são os mecanismos de ação desses interferentes endócrinos e quais são as fases mais críticas de exposição. Como  exemplo,  já  foi  demonstrado  que  o  pesticida  organoclorado  clordecona,  um  agonista  estrogênico,  quando administrado no 16o dia da gestação de ratas, provoca a alteração permanente do comportamento sexual de ratos e ratas de suas  proles  durante  a  vida  adulta.  As  principais  modificações  observadas  foram  a  masculinização  das  ratas  e hipermasculinização  dos  ratos,  caracterizadas  pelo  aumento  significativo  no  número  de  montas.  Além  disso,  estudos demonstraram  que  a  exposição  perinatal  e  pós­natal  precoce  ao  BPA  regula  a  expressão  gênica  e  proteica  de  receptores estrogênicos no hipotálamo e em outras estruturas cerebrais, tanto em ratos quanto em camundongos. Os  efeitos  nocivos  dos  desreguladores  endócrinos  sobre  o  sistema  hipotálamo­hipófise­tireoide  (HHT)  também  vêm sendo cada vez mais descritos na literatura. Os principais dados já foram extensivamente descritos neste capítulo. Quanto  ao  eixo  hipotálamo­hipófise­gônadas  (HHG),  inúmeros  estudos  da  literatura  descreveram  o  impacto  negativo da  exposição  aos  desreguladores  endócrinos  sobre  a  função  de  neurônios  que  produzem  GnRH  e  kisspeptina.  Contudo, muitos trabalhos apresentam dados contraditórios e ainda faltam dados epidemiológicos consistentes. Por exemplo, alguns estudos demonstraram que o BPA reduz a expressão gênica do mRNA de GnRH. Enquanto isso, outros  trabalhos  demonstraram  um  efeito  estimulatório  desse  desregulador  endócrino  tanto  sobre  o  mRNA  de  GnRH quanto sobre a expressão de kisspeptina. Adicionalmente, efeitos contraditórios já foram descritos para as ações dos PCB e os ftalatos sobre a atividade do eixo HHG. Dessa maneira, já foi descrito que esses interferentes inibem, aumentam ou não  alteram  a  expressão  do  GnRH  e  da  kisspeptina  em  animais,  dependendo  do  período  e  da  dose  de  exposição.  Esses resultados reforçam a importância das janelas de exposição na ocorrência de efeitos nocivos relacionados com a exposição aos desreguladores endócrinos. Assim  como  descrito  para  os  outros  eixos  endócrinos,  o  eixo  hipotálamo­hipófise­adrenal  (HHA)  também  é  um importante alvo dos desreguladores endócrinos, ainda que muitos estudos sejam contraditórios. Nesse sentido, alguns estudos demonstraram que a exposição de ratas ao BPA durante a gestação e lactação aumenta a concentração sérica de corticosterona, sem que alterações significativas na expressão do receptor de glicocorticoides sejam observadas. Enquanto isso, outro estudo reportou que a exposição de ratas ao BPA aumentou o peso de suas adrenais, mas reduziu  a  concentração  sérica  de  corticosterona,  tanto  em  condições  basais  quanto  em  reposta  a  um  estímulo  estressor. Reportou­se,  ainda,  na  literatura  que  a  exposição  materna  ao  BPA  antes  e  durante  a  gestação  não  induziu  efeitos significativos sobre os níveis de corticosterona na sua prole durante a vida adulta. Além  do  BPA,  os  PCB  também  já  foram  descritos  como  potenciais  desreguladores  do  eixo  HHA.  Alguns  estudos demonstraram  que  a  exposição  de  ratos  aos  PCB  durante  a  gestação  reduz  a  secreção  de  corticosterona  basal  e  induzida por CRH ou ACTH no início da vida pós­natal. Outro estudo demonstrou que a exposição materna aos PCB aumenta os níveis  séricos  de  corticosterona  nas  fêmeas  da  prole  durante  a  vida  adulta.  Não  houve  alteração  significativa  desse parâmetro nos machos da prole. Efeitos interferentes do desregulador endócrino TBT sobre o eixo HHA já foram descritos na literatura. Sendo assim, a  exposição  ao  TBT  foi  previamente  correlacionada  com  alterações  nos  níveis  séricos  de  corticosterona  e  ACTH,  e  na expressão de CRH e da óxido nítrico sintase induzível (iNOS) no hipotálamo. De  fato,  os  dados  sobre  o  impacto  da  exposição  aos  desreguladores  endócrinos  no  eixo  HHA  ainda  são  conflitantes. Contudo, grande parte dos estudos sugere que os desreguladores endócrinos promovam uma dissociação funcional do eixo HHA, interferindo nos seus papéis na regulação da homeostase do organismo. Ao  contrário  das  ações  nocivas  dos  desreguladores  endócrinos  sobre  o  eixo  hipotálamo­adeno­hipófise,  as repercussões  da  exposição  a  esses  compostos  sobre  o  sistema  hipotálamo­neuro­hipófise  são  menos  conhecidas.  Nesse sentido, existem registros na literatura de aumentos significativos na concentração sérica da arginina vasopressina (AVP) em  ratos  hiperosmóticos  que  foram  expostos  aos  PCB,  em  relação  a  animais  hiperosmóticos  não  expostos.  Dados similares  foram  registrados  por  outros  grupos,  que  demonstraram  que  a  exposição  materna  aos  PCB  durante  o  período intrauterino aumenta a osmolaridade plasmática dos ratos da prole frente a um desafio osmótico em comparação aos ratos que  não  foram  expostos.  Esses  resultados  sugerem  que  ocorre  uma  programação  intrauterina  do  eixo  hipotálamo­neuro­ hipófise nos animais expostos a desreguladores endócrinos, promovendo alterações significativas na responsividade desse eixo a diferentes estímulos. Mais ainda, esses efeitos parecem persistir durante a vida adulta dos animais. Adicionalmente,  sabe­se  que  o  óxido  nítrico  (NO)  tem  um  papel  fundamental  na  liberação  de  AVP  em  reposta  a estímulos  osmóticos.  Em  concordância,  os  neurônios  magnocelulares,  responsáveis  pela  produção  e  secreção  de  AVP,

apresentam  elevada  expressão  da  NOS.  Essa  expressão,  por  sua  vez,  é  estimulada  frente  a  alguns  estímulos,  como aumento da osmolaridade plasmática ou hipovolemia. De  fato,  estudos  recentes  sugerem  que  tanto  a  expressão  quanto  a  atividade  de  NOS  são  alvos  da  ação  de  alguns desreguladores endócrinos. Nesse sentido, sugere­se que vários outros processos biológicos dependentes da produção de NO, como a secreção de GnRH, de CRH, além de funções neuroendócrinas, cardiovasculares, de aprendizado e memória, podem potencialmente sofrer alterações frente à exposição aos desreguladores endócrinos. No que se refere ao impacto comportamental dos desreguladores endócrinos, sabe­se que a ocitocina e a AVP exercem vários  efeitos  em  processos  mnemônicos  e  sociais.  No  hipocampo  ventral,  por  exemplo,  a  AVP  está  envolvida  no processamento  e  consolidação  da  memória  social,  que  é  muito  importante  para  a  reprodução,  defesa  territorial  e estabelecimento de hierarquias. Esses circuitos também estão envolvidos com o comportamento de ansiedade. Levando­se em  consideração  os  efeitos  dos  desreguladores  endócrinos  sobre  a  produção  e  ação  da  ocitocina  e  da  AVP,  conforme ressaltado  anteriormente,  pode­se  sugerir  que  a  exposição  a  esses  compostos  potencialmente  induza  alterações  nas diferentes  funções  biológicas  e  comportamentais  controladas  por  esses  hormônios.  Em  concordância,  alguns comportamentos  mediados  pelo  sistema  AVP  central,  como  sociabilidade,  comunicação  e  cuidados  com  a  prole,  também são comprometidos pela exposição aos desreguladores endócrinos. Por exemplo, a exposição de ratas ao PCB77 diminuiu a preferência desses animais por machos sexualmente ativos e aumentou sua preferência por fêmeas. Ainda, a exposição de  ratas  durante  a  gestação  aos  PCB,  bem  como  ao  BPA,  reduziu  significativamente  o  tempo  de  cuidados  das  genitoras com a suas proles, comparando­se com os comportamentos apresentados pelos grupos­controle.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste capítulo discutimos as principais características, as diferentes classes e os mecanismos de ação conhecidos dos desreguladores endócrinos. Fica claro que alguns pontos sobre o estudo dos efeitos desencadeados por essas substâncias precisam ser mais bem esclarecidos. Dessa forma, ainda que os sistemas endócrinos e os hormônios produzidos por eles sejam conservados em diferentes espécies de mamíferos, o uso de ratos e camundongos como modelo experimental ainda é  uma  limitação  para  determinar  o  real  impacto  da  exposição  humana  aos  desreguladores  endócrinos.  É  importante ressaltar  que  esses  modelos  animais  são  de  extrema  importância  na  determinação  dos  mecanismos  de  ação  e  para  a investigação  dos  efeitos  de  programação  dos  eixos  endócrinos  desencadeados  por  esses  interferentes.  Contudo,  ainda faltam  na  literatura  dados  consistentes  sobre  os  efeitos  de  alguns  desreguladores  endócrinos  em  seres  humanos.  Dessa maneira,  mais  estudos  epidemiológicos  serão  necessários.  Ainda  assim,  essa  área  de  estudo  é  relativamente  nova  e seguramente dados mais embasados surgirão nos próximos anos. Embora  existam  essas  limitações,  os  dados  descritos  até  o  momento  na  literatura  permitem  inferir  que  os desreguladores endócrinos apresentam um potencial efeito nocivo nas gerações tanto direta quanto indiretamente expostas. Além  disso,  conforme  descrito,  os  mecanismos  epigenéticos  de  programação  gênica  adicionam  uma  variável  importante, que  deve  ser  levada  em  consideração.  Ou  seja,  ainda  que  um  indivíduo  não  seja  diretamente  exposto  aos  desreguladores endócrinos,  a  exposição  materna  e/ou  paterna  a  esses  compostos  potencialmente  induz  modificações  significativas  na expressão de seus genes, tornando­o mais ou menos suscetível ao desenvolvimento de doenças durante a vida adulta. A  contaminação  ambiental  com  desreguladores  endócrinos  é  uma  realidade.  Infelizmente,  não  há  como  impedir  a exposição humana a esses contaminantes. Dessa forma, estudos científicos serão necessários para elucidar o real impacto dessa  exposição  nos  indivíduos  e  em  futuras  gerações.  Identificar  potenciais  desreguladores  endócrinos,  compreender  o complexo mecanismo de ação dessas substâncias, assim como elucidar os períodos mais críticos de exposição colaborarão efetivamente  para  o  estabelecimento  de  políticas  de  saúde  pública,  com  o  intuito  de  reduzir  a  exposição  humana  e ambiental  a  essas  substâncias.  Além  disso,  o  conhecimento  científico  aliado  a  medidas  preventivas  poderá  contribuir  de maneira significativa para a promoção da saúde e para a redução dos custos relacionados com o tratamento das disfunções endócrinas decorrentes dessa exposição.

BIBLIOGRAFIA CASALS­CASAS C, DESVERGNE B. Endocrine disruptors: from endocrine to metabolic disruption. Annu Rev Physiol, 73:135­ 62, 2011. DIAMANTI­KANDARAKIS  E,  BOURGUIGNON  JP,  GIUDICE  LC  et  al.  Endocrine­disrupting  chemicals:  an  Endocrine Society scientific statement. Endocr Rev, 30(4):293­342, 2009.

GORE  AC,  CHAPPELL  VA,  FENTON  SE  et  al.  EDC­2:  the  Endocrine  Society’s  second  scientific  statement  on  endocrine­ disrupting chemicals. Endocr Rev, 36(6):E1­150, 2015. HEINDEL JJ, NEWBOLD R, SCHUG TT. Endocrine disruptors and obesity. Nat Rev Endocrinol, 11(11):653­61, 2015. PATRICK L. Thyroid disruption: mechanism and clinical implications in human health. Altern Med Rev, 14(4):326­46, 2009. SCHUG  TT,  ABAGYAN  R,  BLUMBERG  B  et  al.  Designing  endocrine  disruption  out  of  the  next  generation  of chemicals. Green Chem, 15(1):181­98, 2013. SHAHIDEHNIA M. Epigenetic effects of endocrine disrupting chemicals. J Environ Anal Toxicol, 6:381, 2016. TONACCHERA M, PINCHERA A, DIMIDA A et al. Relative potencies and additivity of perchlorate, thiocyanate, nitrate, and iodide on the inhibition of radioactive iodide uptake by the human sodium iodide symporter. Thyroid, 14(12):1012­9, 2004.

79 Fisiologia do Neonato 80 Fisiologia do Envelhecimento Humano



Balanço hídrico

■ ■

Considerações gerais sobre crescimento fetal Perda de peso inicial no recém­nascido

■ ■ ■

Líquido amniótico Função pulmonar Eritropoese fetal

■ ■

Fisiologia cardiovascular Fisiologia renal

■ ■ ■

Fisiologia gastrintestinal Considerações sobre o metabolismo energético Bibliografia

BALANÇO HÍDRICO A regulação do volume e da concentração iônica do meio interno do feto deve­se primariamente à mãe e à placenta; ao nascimento, quando termina a função placentária, o rim deve assumir a responsabilidade da homeostase do organismo. No feto, a água corporal é distribuída em compartimentos bem definidos e esta distribuição sofre modificações com o desenvolvimento  fetal.  À  medida  que  a  gestação  progride,  a  água  corporal  total  e  a  água  do  compartimento  extracelular gradualmente diminuem, enquanto a água intracelular aumenta. No recém­nascido, há uma expansão natural do volume do meio  extracelular,  que  vai  sendo  compensada  até  o  final  da  primeira  semana  de  vida.  Durante  o  primeiro  ano  de  vida,  a tendência é uma gradual diminuição do conteúdo de água corporal, quando expresso por porcentagem de peso corpóreo. A porcentagem  de  água  em  cada  compartimento  varia  de  acordo  com:  ritmo  de  crescimento  fetal,  sexo,  presença  de patologias durante a gestação, tipo de parto, volume hídrico fornecido para a mãe durante o parto e função renal neonatal. Na fase precoce de gestação, a água constitui 85% do peso corpóreo, 2/3 dos quais no meio extracelular. Ao nascimento, 75% do peso corporal são constituídos de água, sendo que 50% estão no espaço extracelular. Aos 3 meses, 60% do peso são devidos à água, dos quais 2/3 estão no meio intracelular (Figura 79.1). A redistribuição perinatal dos líquidos dos compartimentos corporais está associada a mudanças na composição iônica da água tecidual. Assim, no início do desenvolvimento fetal, o corpo tem alto teor de sódio e baixo de potássio, proporção que vai se alterando de acordo com o progresso da gestação. Embora os fetos humanos possam exibir acentuadas variações de peso, um feto normal contém cerca de 3.000 mℓ de água, dos quais 350 mℓ estão no compartimento vascular. A placenta contém cerca de 500 mℓ de água. Tanto o volume hídrico fetal como o da placenta são proporcionais ao peso fetal, enquanto o volume do líquido amniótico não parece ter relação com o peso corpóreo do feto. Neonatos com retardo de crescimento tem maior volume extracelular (VEC) em relação ao peso corpóreo do que os de mesma  idade  gestacional  sem  retardo.  Recém­nascidos  cujas  mães  receberam  sobrecarga  hídrica,  ou  os  que  nascem  de parto cesariano, também têm expansão do VEC.

A interação dinâmica da circulação materna, circulação fetal e líquido amniótico assegura a homeostase fetal e fornece nutrientes,  solutos  e  água  necessários  para  o  crescimento  fetal.  A  placenta  e  as  membranas  fetais  exercem  papel fundamental  na  regulação  do  transporte  dessas  substâncias,  uma  vez  que  se  comportam  como  epitélios  de  baixa permeabilidade  e  têm  transportadores  trancelulares  específicos.  Em  geral,  minerais  tais  como  K+, Mg2+, Ca2+  e  fosfato, que exibem baixa concentração plasmática e que são contidos intracelularmente ou em compartimentos como o osso, são transportados ativamente, enquanto o Na+ e o Cl– podem ser transportados ativa ou passivamente. Entre a 18a e a 40a semana de idade gestacional, a concentração de Na+ plasmático fetal é estável e similar à materna. É interessante  mencionar  que  o  sinciciotrofoblasto  placentário  é  capaz  de  transferir  de  10  a  100  vezes  mais  Na+ do  que  o acréscimo diário de Na+ do feto (necessário para seu crescimento), indicando que o Na+ excedente retorna para a mãe por difusão paracelular, de tal modo que o fluxo de Na+ transplacentário é bidirecional e praticamente simétrico.

CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE CRESCIMENTO FETAL O  crescimento  fetal  depende  de  vários  fatores,  tais  como:  determinantes  genéticos,  condições  gerais  de  saúde  e alimentação maternas e presença de hormônios ou fatores de crescimento. É relativamente lento nas primeiras 8 semanas de gestação e então acelera. O ritmo de crescimento máximo é alcançado do quarto para o oitavo mês, quando o feto cresce de 5% a 9% por semana. A maior parte do peso fetal é adquirido da 20a semana até o término da gestação, aumentando de cerca de 5 g/dia na 15a semana para 15 a 20 g/dia na 20a semana e chegando até 30 a 35 g/dia na 34a semana de gestação. A  nutrição  materna  adequada  possibilita  o  aporte  de  nutrientes  para  o  feto,  que  farão  com  que  o  crescimento  e desenvolvimento  fetal  ocorram  adequadamente.  Se  o  fornecimento  de  nutrientes  para  o  feto  for  insuficiente,  quer  por condições que afetem a saúde materna (desnutrição, diabetes, hipertensão etc.) ou por insuficiência no aporte placentário de sangue, o crescimento e desenvolvimento fetal estará em risco. O  conceito  de  programação  fetal  vem  sendo  enfatizado  nas  duas  últimas  décadas;  e,  cada  vez  mais,  condições patológicas  que  aparecem  no  adulto  são  correlacionadas  com  situações  adversas  sofridas  durante  sua  gestação.  Como exemplo,  a  desnutrição  intrauterina  ou  a  presença  de  diabetes  melito  na  gestante  têm  sido  descritas  como  condições  que levam ao aparecimento de hipertensão, diabetes, doença coronariana e obesidade na prole. Estes estudos indicam que, além da carga genética, as condições impostas durante a gestação podem determinar o aparecimento e/ou deflagar patologias que surgirão em diferentes fases do crescimento do indivíduo ou no adulto. Atualmente, os chamados fatores epigenéticos são objeto de intensa investigação.

Figura 79.1 ■ Mudança na composição dos líquidos corporais durante o desenvolvimento normal do feto e do recém­nascido. Note  que  durante  a  vida  fetal  há  considerável  compartimento  de  água  extracelular  (uma  extensão  do  espaço  do  líquido amniótico). (Adaptada de Costarino e Baumgart, 1986.)

PERDA DE PESO INICIAL NO RECÉM­NASCIDO Logo após o nascimento, ocorre uma redistribuição dos líquidos dos compartimentos corporais; nos primeiros dias há perda  de  peso,  que  corresponde  à  retração  isotônica  do  VEC  e  à  eliminação  de  excesso  de  Na+ e  água  pelos  rins.  Neste

período  de  perda  rápida  de  peso,  o  balanço  nitrogenado  permanece  positivo,  mostrando  que  o  crescimento  e desenvolvimento estão ocorrendo. A  perda  rápida  de  líquido  do  espaço  extracelular  sempre  foi  tida  como  a  responsável  pela  queda  do  peso  corpóreo exibida  pelos  neonatos.  Todavia,  recentemente,  alguns  estudos  evidenciam  que  o  conteúdo  de  água  intracelular  diminui paralelamente à queda do peso corpóreo, enquanto o volume plasmático pode permanecer constante. Também é conhecido que,  no  recém­nascido,  a  maior  parte  da  água  corpórea  e  dos  solutos  está  contida  nos  músculos  e  no  tecido  subcutâneo. Assim,  haveria  um  componente  do  líquido  intravascular,  localizado  na  pele  e  nos  músculos,  que  seria  mais  facilmente eliminado  de  acordo  com  as  necessidades  fisiológicas  do  recém­nascido.  No  entanto,  o  exato  papel  que  a  variação  do componente intracelular exerce na perda fisiológica de peso do recém­nascido ainda é pouco conhecido. Em prematuros de baixo peso, a perda de 15% do peso inicial está mais restrita ao compartimento extracelular. Estas crianças  têm  baixo  conteúdo  de  queratina  na  pele  e  alto  teor  de  água  no  espaço  extracelular,  em  equilíbrio  com  o compartimento  intravascular.  Exibem  também  uma  superfície  corporal  aumentada,  que  está  exposta  à  evaporação. Comparada  à  de  adultos,  a  superfície  corporal  nos  prematuros  de  baixíssimo  peso  é  cerca  de  seis  vezes  maior.  Assim, quanto  menor  o  peso  da  criança,  a  perda  insensível  de  água  aumenta  de  maneira  exponencial.  Consequentemente,  a probabilidade de hipernatremia é elevada nestas crianças. Nos  primeiros  dias  de  vida  da  criança  prematura,  suas  suprarrenais  não  respondem  adequadamente  a  estímulos;  ou seja, há dissociação entre a atividade da renina plasmática e o estímulo à produção ou à sensibilidade a aldosterona. Isto, juntamente  com  o  baixo  ritmo  de  filtração  glomerular,  contribuem  para  que  a  perda  renal  de  Na+  e  água  seja  mais acentuada e, por vezes, mais prolongada.

LÍQUIDO AMNIÓTICO O  volume  e  a  composição  do  líquido  amniótico  variam  ao  longo  da  gestação.  Seu  volume  aumenta  de  20  m ℓ   na 10   semana  gestacional  para  700  m ℓ   na  25a,  alcançando  um  máximo  de  920  m ℓ   na  35a  semana.  Posteriormente,  sua quantidade  diminui  e,  na  época  do  parto,  está  em  torno  de  720  mℓ,  podendo  variar  de  500  mℓ  a  1.200  mℓ  mesmo  em gestações  normais.  Em  fetos  pós­maduros,  acima  de  41a semana,  pode  ocorrer  um  declínio  do  volume  de  até  33%  por semana, com incidência aumentada de oligoidrâmnio (baixa produção de líquido amniótico). Durante o primeiro semestre de gestação, a osmolalidade e a composição iônica do líquido amniótico são similares às do plasma fetal. Quando o feto começa a urinar, ao redor da 11a semana de gestação, a osmolalidade do líquido amniótico diminui  progressivamente  e,  perto  do  término  gestacional,  chega  a  entre  85%  e  90%  da  osmolalidade  sérica  materna.  A concentração de Na+ urinário fetal diminui e contribui para a geração de um líquido amniótico hipotônico. Nos períodos finais da gestação, o volume e a composição do líquido amniótico são determinados pela urina fetal e a secreção de líquido pulmonar (como componentes primários) e pela deglutição fetal e a absorção intramembranosa (como rotas de depuração do líquido amniótico) (Figura 79.2). Quando  sobrecarga  ou  restrição  hídrica  é  imposta  à  mãe,  o  feto  consegue  adaptar­se  adequadamente.  Estudos experimentais mostram que fetos de ovelhas, infundidas com salina, exibem aumento no volume do líquido amniótico e no fluxo urinário. Durante retenção hídrica e hiponatremia materna, o feto também apresenta lento declínio no Na+ plasmático e aumento no fluxo urinário. Em ratas grávidas com hiponatremia grave, há aumento na transferência de Na+ para o feto mesmo  contra  gradiente  de  Na+ entre  mãe  e  feto.  Por  outro  lado,  fetos  de  ovelhas  infundidas  cronicamente  com  NaCl hipertônico exibem aumento no Na+ plasmático e grande excreção urinária de Na+ e Cl. a

FUNÇÃO PULMONAR Os  pulmões  ocupam  uma  posição  especial  no  desenvolvimento  se  comparados  a  outros  órgãos.  Para  a  vida intrauterina, eles são desnecessários. No entanto, eles devem estar de tal modo desenvolvidos que, ao nascimento, entrem logo  em  ação.  O  feto  tem  de  vencer  um  desafio  enorme  ao  nascimento;  ou  seja,  ele  deve  rapidamente  ter  seus  pulmões esvaziados do líquido pulmonar secretado durante todo o período intrauterino. Em adição, o epitélio pulmonar deve estar pronto  para  esta  mudança  radical,  a  fim  de  que  as  trocas  gasosas  ocorram  adequadamente;  isto  é,  os  espaços  alveolares devem  estar  disponíveis  e  o  fluxo  sanguíneo  pulmonar  deve  se  adequar  para  a  relação  ventilação–perfusão.  Qualquer alteração destes processos pode resultar em situação de risco para o recém­nascido e, em crianças prematuras, a síndrome do desconforto respiratório não é rara.

Figura 79.2 ■ Representação esquemática dos diversos fluxos de volume (em mℓ) do feto para o líquido amniótico ou vice­versa. (Adaptada de Gilbert e Brace, 1993.)

O desenvolvimento pulmonar inicia­se ao redor da 3a semana de gestação (período embriônico) e continua ao longo de todo o período fetal. Cinco fases são descritas no desenvolvimento pulmonar – embrionária, pseudoglandular, canalicular, sacular e alveolar (Figura 79.3). Na fase embrionária, são formados os brônquios e as primeiras divisões de bronquíolos. Na fase pseudoglandular, são identificados os bronquíolos e suas divisões sucessivas; esta fase se estende até ao redor da 16a semana  de  gestação.  A  fase  canalicular  –  que  vai  da  16a até  a  26a semana  –  caracteriza­se  pela  formação  inicial  do parênquima pulmonar. Os canalículos são formados, derivados de subdivisões (de terceira ordem) da árvore pulmonar, há diferenciação  do  epitélio  e  a  formação  da  barreira  ar­sangue.  Os  capilares  começam  a  se  arranjar  ao  redor  dos  espaços aéreos. Na fase sacular – da 24a semana até o nascimento – as estruturas saculares vão produzir a última geração de vias respiratórias:  alguns  ductos  alveolares  e  os  alvéolos.  Vários  autores  chamam  esta  fase  de  transitória,  pois  os  sáculos  se transformam em alvéolos até bem após o nascimento. Concomitantemente, inicia­se a formação do fator surfactante. Ao nascimento, 1/3 dos alvéolos estão formados. O número total de alvéolos (300 milhões) é alcançado ao final do primeiro ano de vida. A fase alveolar continua após o nascimento e, logicamente, há superposição entre uma fase e outra. A  maturação,  funcional  e  anatômica,  do  sistema  respiratório  continua  ao  longo  da  infância  e  pode  ser  paralela  à maturação  da  caixa  óssea  torácica.  O  desenvolvimento  funcional  é  essencialmente  secundário  ao  desenvolvimento anatômico.  Ao  nascimento,  de  20  a  70  milhões  de  espaços  aéreos  funcionais  estão  formados;  estes  são  constituídos  de estruturas saculares, ainda existentes, e de alvéolos. A partir daí, os alvéolos vão se formando e, entre 1 e 2 anos, ocorrem grandes mudanças. Até o final dos primeiros 6 meses, de 85% a 90% dos alvéolos estão formados, e o restante formado até  o  final  do  segundo  ano  de  vida.  Desta  idade  em  diante,  o  crescimento  pulmonar  é  proporcional  ao  crescimento corporal. Entre 5 e 13 anos, o número final de 300 milhões de alvéolos está formado.

▸ Dinâmica de transporte do líquido pulmonar Os primeiros movimentos respiratórios após o nascimento são difíceis, pois os pulmões ainda estão preenchidos com líquido  e  os  alvéolos  estão  colapsados.  A  maneira  pela  qual  os  alvéolos  se  livram  do  líquido  ainda  está  longe  de  ser totalmente  compreendida.  A  maior  parte  de  conhecimentos  sobre  a  dinâmica  pulmonar  do  neonato  vem  de  estudos experimentais em ovelhas. Durante o parto normal e após as primeiras horas de vida extrauterina, o líquido intra­alveolar é  retirado  por  diversas  vias,  incluindo:  sistema  linfático,  vasos  sanguíneos,  vias  respiratórias  superiores,  mediastino  e espaço pleural. As características de transporte de líquido e de íons ao longo da vida fetal vão sofrendo transformações, e três estágios podem  ser  identificados.  No  primeiro,  o  epitélio  pulmonar  permanece  secretor,  devido  à  secreção  ativa  de  Cl–  e  à relativamente baixa reabsorção de Na+; o motivo da inatividade de canais de Na+ nesta fase é pouco conhecido. O segundo estágio,  transicional,  envolve  uma  mudança  na  direção  de  transporte  de  volume  e  íons;  múltiplos  fatores  podem  estar envolvidos  nesta  mudança:  exposição  das  células  epiteliais  ao  ar,  alta  concentração  de  esteroides  e  nucleotídios  cíclicos,

além da presença de outros fatores hormonais. Esta fase não só inclui aumento na expressão de canais de Na+ no epitélio pulmonar,  mas  também  mudança  da  baixa  seletividade  de  canais  catiônicos  para  alta  seletividade  de  canais  de  Na+.  O aumento da entrada de Na+ para a célula pode resultar em mudança no potencial de membrana, com diminuição na secreção de Cl– e até reversão de secreção para reabsorção de Cl. O terceiro estágio, final adulto, caracteriza­se por alta reabsorção de  Na+  e  possível  reabsorção  de  Cl–  via  canais  (Figura  79.4).  O  que  regula  estas  fases?  Vários  fatores  parecem  estar envolvidos nestas mudanças de fases, e os reguladores fundamentais são: glicocorticoides, oxigênio, beta­adrenérgicos e surfactante. Interessante notar que a aldosterona – regulador importante do transporte de Na+ no rim e intestino – parece exercer pouca influência no pulmão.

Figura 79.3 ■ Estágios da formação do pulmão embrionário e fetal.

Figura 79.4 ■ Representação esquemática dos compartimentos fluidos do pulmão fetal, destacando o epitélio pulmonar, formado por células tipo 1, que ocupam a maior parte da superfície do lúmen pulmonar, e células tipo 2, que produzem e secretam o fator surfactante. Essas células também secretam Cl– por um processo que envolve o cotransporte Na+ :K+ :2Cl– e a Na+ /K+ ­ATPase. Esse  processo  dependente  de  energia,  que  pode  ser  bloqueado  pelos  diuréticos  furosemida  e  bumetanida,  aumenta  a concentração de Cl– dentro da célula, fazendo com que o Cl– seja secretado para dentro do futuro espaço aéreo, pelos canais luminais CFTR e CLC, ânion­seletivos. A água (através das aquaporinas 5 – AQP5) e o Na+  (via canais tipo ENaC) seguem o Cl–.

As  mudanças  nas  forças  físicas  exercidas  na  árvore  respiratória  estão  demonstradas  na  Figura  79.5.  No  feto,  a secreção  deixa  o  pulmão  via  traqueia  e  laringe,  mas  devido  à  resistência  da  laringe,  o  líquido  permanece  na  via respiratória. No recém­nascido, o movimento em vez de secretório se torna absortivo, o que livra a árvore respiratória de líquido. Com o início da aeração, e o aumento da tensão de alvéolos perfundidos, aumenta a remoção do líquido, que retorna para o sistema circulatório da criança. O aumento no fluxo sanguíneo pulmonar contribui para que essa retirada de líquido ocorra de maneira eficiente; como os capilares sanguíneos formam uma rede em torno dos alvéolos, o aumento do fluxo sanguíneo os torna menos enrodilhados e isto retifica os alvéolos, o que contribui para a sua expansão.

Figura 79.5 ■ Representação das forças envolvidas na formação e reabsorção de líquido pulmonar no feto e no recém­nascido. Note  que,  no  recém­nascido,  as  mudanças  dessas  forças  fazem  com  que  haja  reabsorção  do  líquido  pulmonar  formado anteriormente, limpando a superfície aérea.

Durante o parto, a estrutura da caixa torácica da criança se amolda, dificultando fraturas ou compressão inadequada na sua estrutura óssea e no seu sistema respiratório. Com o passar do tempo, a ossificação se intensifica, o tônus muscular intercostal melhora e a pressão negativa do lado abdominal do diafragma se estabelece.

▸ Papel da secreção de cloreto Como  mencionado  anteriormente,  a  secreção  do  líquido  intrapulmonar  ocorre  ao  longo  da  vida  intrauterina;  esta secreção  acontece  graças  ao  transporte  de  Cl–,  cuja  força  motriz  é  similar  ao  mecanismo  descrito  para  o  transporte  de Cl–  por  outros  epitélios.  Ou  seja,  o  Cl–  entra  para  a  célula  através  da  membrana  basolateral,  via  cotransportador Na+:2Cl–:K+  (processo  que  pode  ser  inibido  por  diuréticos  específicos).  O  Cl–  é  assim  mantido  alto  dentro  da  célula, sendo  extruído  passivamente  para  o  lúmen,  por  canais  de  cloreto.  A  Na+/K+­ATPase,  situada  também  na  membrana basolateral,  possibilita  a  entrada  passiva  de  Na+ para  a  célula  pela  membrana  luminal.  A  concentração  de  Cl– no  líquido pulmonar  é  cerca  de  50%  maior  do  que  a  do  plasma,  enquanto  a  do  Na+ é  similar.  A  água  pode  fluir  entre  as  células epiteliais  ou  através  de  canais  de  água,  aquaporinas,  especialmente  a  aquaporina  5,  que  é  abundantemente  expressa  nas células  pulmonares  do  tipo  I.  Estudos  experimentais  indicam  que  neste  epitélio  também  existe  uma  H+­ATPase acidificando  o  líquido;  com  isto,  a  secreção  de  Cl–  e  a  formação  de  líquido  parecem  ser  estimuladas.  O  líquido intraluminal impede que os espaços alveolares colabem e é também necessário para promover o crescimento do pulmão. No feto, a pequena fração do débito cardíaco que chega aos pulmões é suficiente para suprir os substratos necessários para a formação do surfactante e para a secreção de líquido, que pode alcançar até 5 mℓ/kg/h perto do final da gestação. O aumento  do  líquido  intraluminal  reflete  uma  vascularização  crescente  do  epitélio  pulmonar  e  um  aumento  da  própria superfície pulmonar. Alguns  estudos  mostram  que  a  produção  e  o  volume  de  líquido  pulmonar  diminuem  antes  do  nascimento,  e, particularmente, durante o trabalho de parto. Contudo, se o parto ocorre prematuramente, ou é cesariano, é esperado que o volume  de  líquido  pulmonar  esteja  maior,  pois  estas  duas  situações  dificultam  a  eliminação  de  líquido.  Além  disso,  o

parto  prematuro,  ou  por  via  não  vaginal,  dificultam  também  o  transporte  de  gases  e  a  ventilação  e,  consequentemente, podem prejudicar o equilíbrio acidobásico.

▸ Transporte de Na+ O  transporte  ativo  de  Na+  através  do  epitélio  pulmonar  direciona  o  líquido  do  pulmão  para  o  interstício.  Como mencionado  anteriormente,  no  pulmão,  o  transporte  de  Na+  ocorre  em  duas  etapas.  Na  primeira,  o  Na+  é  movido passivamente do lúmen para a célula, através de canais iônicos. A segunda etapa envolve o transporte ativo de Na+, através da Na+/K+­ATPase da membrana basolateral, sendo o Na+ extruído da célula para o espaço seroso. O epitélio pulmonar muda suas características de transporte rapidamente, passando de um epitélio predominantemente secretor de cloreto para um predominantemente reabsorvedor de Na+. Esta capacidade de reabsorver Na+ está relacionada com  a  maior  presença  de  canais  luminais  de  Na+,  os  chamados  ENaC  (epithelial sodium channel,  descritos  no  Capítulo 10, Canais para Íons nas Membranas Celulares). Confirmando esses achados, outros trabalhos experimentais mostraram que  a  amilorida  (diurético  inibidor  dos  ENaC)  inibe  o  transporte  de  Na+  e  água.  Muitas  informações  são  oriundas  de estudos em células do tipo ATII. Estas células cuboides são responsáveis pela secreção do surfactante, pelo transporte de Na+ do lúmen para o interstício e pelo processo de reparação após lesão. Durante o desenvolvimento pulmonar, elas são também progenitoras de células escamosas tipo I. O transporte de Na+ nestas células obedece à mesma dinâmica descrita anteriormente,  ou  seja,  difusão  pela  membrana  luminal  e  transporte  ativo  pela  membrana  basolateral,  graças  à  Na+/K+­ ATPase.  Os  canais  ENaC,  na  superfície  luminal,  constituem  o  processo  limitante  do  transporte  de  Na+.  O  ENaC  é constituído  de  3  subunidades,  não  idênticas,  α,  β  e  γ.  No  rato,  tanto  o  pulmão  fetal  como  o  do  adulto  expressam  estas isoformas. Animais geneticamente modificados e que não expressam a unidade α, por exemplo, tornam­se inviáveis. A  expressão  do  ENaC  é  regulada  ao  longo  do  desenvolvimento  do  feto,  e  crianças  prematuras  nascem  com  pulmões com  baixa  expressão  de  ENaC,  o  que  dificulta  a  eliminação  de  líquido  do  alvéolo.  Altas  doses  de  corticosteroides aumentam  a  transcrição  do  ENaC  em  diversos  epitélios,  inclusive  no  pulmão.  Por  outro  lado,  os  corticosteroides diminuem a degradação dos ENaC existentes e estimulam a resposta dos pulmões a agentes beta­adrenérgicos.

▸ Fator surfactante As  pesquisas  acerca  do  fator  surfactante  (SUR)  iniciaram­se  na  primeira  metade  do  século  XX.  Em  1959,  Avery  e Mead  aventaram  a  hipótese  de  que,  em  prematuros,  a  deficiência  de  algum  fator  que  alterasse  a  tensão  superficial  intra­ alveolar, levaria a quadros graves tais como a síndrome de desconforto respiratório (SDR). Nas  décadas  seguintes,  a  composição  do  surfactante  foi  elucidada  e,  a  partir  daí,  inúmeros  trabalhos  clínicos  e experimentais têm sido elaborados com o intuito de não só tratar, mas também evitar a SDR. O SUR é produzido nas células alveolares do tipo II e armazenado em dois principais compartimentos: um contendo o pool intracelular e outro, o extracelular. O intracelular consiste em corpúsculos lamelares nas células tipo II. Sua função é armazenar o SUR antes que seja liberado para o espaço alveolar. A  coleta  do  SUR  é  feita  facilmente  no  lavado  traqueobrônquico.  Em  diferentes  espécies  de  mamíferos,  sua composição  mostra  grande  similaridade.  Cerca  de  90%  é  constituído  de  lipídios,  dentre  os  quais  os  fosfolipídios predominam. A fosfatidilcolina é identificada como seu componente mais abundante; constitui entre 70% e 80% do SUR, sendo  50%  a  70%  saturada.  Outros  lipídios  são:  fosfatidiletanolamina,  fosfatidilinositol,  fosfatidilserina,  colesterol, triacilglicerol e ácidos graxos livres. O colesterol corresponde a 2,4% em peso da composição total do SUR. Embora a maior parte do SUR seja constituída de lipídios, há cerca de 10% de proteínas. Foram descritos quatro tipos de  proteínas  associadas  ao  SUR.  Elas  podem  ser  divididas  em  2  grupos:  as  proteínas  hidrofílicas  SP­A  e  SP­D  e  as hidrofóbicas SP­B e SP­C. Elas ocorrem apenas no pulmão, e a SP­A e SP­D parecem exercer a primeira linha de defesa contra patógenos inalados. As proteínas associadas ao SUR são fundamentais para que o efeito do SUR seja exercido na sua totalidade. Os  corpúsculos  lamelares  das  células  tipo  II  contêm  todos  os  componentes  do  SUR.  Diversos  fatores  influenciam  a síntese e a secreção do SUR: estresse mecânico, agonistas beta­adrenérgicos e receptores purinérgicos ou de vasopressina. A  estimulação  está  associada  ao  Ca2+  citosólico,  AMP  cíclico  e  ativação  de  proteinoquinases.  A  composição  de fosfolipídios do SUR pode ser influenciada por dieta, idade e esforço físico. Após  ser  secretado,  o  SUR  é  transformado  em  estruturas  chamadas  de  mielina  tubular  que  são  as  responsáveis  pela inserção dos fosfolipídios na interface ar­líquido.

As  moléculas  de  fosfolipídios  são  posicionadas  com  sua  parte  hidrofóbica  de  ácidos  graxos  voltada  para  o  lúmen alveolar, e sua face polar para a subfase. Os fosfolipídios do SUR formam uma camada estável, ou filme, com uma tensão de  superfície  baixa  em  resposta  à  compressão.  Quando  as  proteínas  hidrofóbicas  estão  presentes,  a  adsorção  de fosfolipídios  da  subfase  para  o  filme  é  altamente  acelerada.  A  adsorção  de  fosfolipídios  é  requerida  para  assegurar  a ocupação molecular da interface ar­água durante a inflação do pulmão. Durante a expiração, a tensão de superfície diminui na interface ar­água, e a monocamada fica rica em fosfatidilcolina na forma saturada.

▸ Controle respiratório no neonato Os quimiorreceptores periféricos e centrais são cruciais para o controle respiratório. Os quimiorreceptores carotídeos, aórticos e centrais são funcionais mesmo na vida fetal; mas a transição para a necessidade de respiração contínua faz com que ajustes rápidos e precisos sejam deflagrados em resposta a estímulos hipóxicos (que causam queda da O2 arterial) ou em situações de hipercapnia (que provocam elevação da pCO2 arterial). Ao  nascimento,  o  aumento  acentuado  na  pO2  arterial  provoca  um  ajuste  na  sensibilidade  dos  quimiorreceptores carotídeos  e  aórticos,  que  ocorre  durante  os  primeiros  dias  de  vida  e  pode  durar  por  semanas.  A  flutuação  no  equilíbrio acidobásico em prétermos é comum. Isto se deve à imaturidade no controle respiratório e, como consequência, prematuros podem estar expostos a episódios de hipercapnia e/ou hipoxia. Crianças pré­termo exibem resposta inadequada a estímulos hipercapneicos  que  pode  perdurar  nos  primeiros  dias  de  vida.  Os  efeitos  combinados  de  pCO2,  pO2  e  pH  arterial determinam o nível de ventilação. Uma interação não linear entre pCO2 e pO2, isto é, aumento da quimiossensibilidade ao CO2 a  valores  aumentados  de  hipoxia,  foram  descritos  em  nervos  carotídeos  e  aórticos.  Em  crianças  a  termo,  padrões respiratórios  diferentes  podem  ocorrer,  em  que  períodos  de  apneia  podem  se  seguir  de  movimentos  respiratórios  com maior amplitude e/ou frequência. Por  exibirem  relativa  imaturidade  cerebral  nos  primeiros  dias  de  vida,  os  ratos  são  utilizados  como  modelo experimental  similar  a  humanos  pretermos.  Quando  expostos  a  prévia  hipercapnia,  esses  animais  exibem  sensibilidade aumentada  na  resposta  ventilatória  à  hipoxia.  Duas  vias  diferentes  podem  estar  envolvidas  nesta  resposta:  a  hipercapnia estimula  receptores  centrais,  enquanto  a  hipoxia  altera  a  sensibilidade  do  corpo  carotídeo.  Assim,  períodos  de  apneia (parada  da  respiração),  frequentemente  vistos  em  prematuros,  podem  ser  resultantes  da  resposta  inadequada  do  controle quimiorreceptor  à  hipoxia  ou  à  hipercapnia.  É  provável  que  a  interação  do  aumento  na  pCO2  e  diminuição  da pO2 contribua para os padrões respiratórios alterados em prematuros.

▸ Volumes pulmonares A  capacidade  funcional  residual  (CFR)  é  estabelecida  durante  as  primeiras  respirações  e,  normalmente,  compreende entre  30%  e  40%  da  capacidade  total  pulmonar.  Após  o  parto,  a  CFR  é  baixa,  aumentando  rapidamente  depois  dos primeiros  movimentos.  O  papel  da  CFR  é  fundamental,  uma  vez  que  ela  minimiza  o  trabalho  respiratório  e  otimiza  a complacência do sistema, mantendo uma reserva de gás durante a expiração. A relação ventilação–perfusão deve ser adequada para possibilitar uma troca eficiente de gases. A má distribuição do fluxo  sanguíneo  pulmonar  é  a  causa  mais  frequente  de  oxigenação  reduzida  na  infância.  Alvéolos  ventilados,  mas  não perfundidos,  têm  perfil  de  pCO2  e  pO2  similar  ao  do  ar  inspirado.  Por  outro  lado,  alvéolos  perfundidos,  mas  não ventilados, têm pCO2 e pO2 similar às do sangue venoso. Os principais volumes pulmonares na criança e no adulto estão indicados no Quadro 79.1.

ERITROPOESE FETAL Durante  o  desenvolvimento  embrionário,  a  eritropoese  fetal  ocorre,  sequencialmente,  em  3  diferentes  locais:  saco vitelínico, fígado e medula óssea. Entre a 2a e a 10a semana de gestação, a formação de hemácias ocorre no saco vitelínico e depois no fígado; por volta da 18a semana, inicia­se na medula óssea, onde atinge o ápice na 30asemana. No momento do nascimento,  as  hemácias  são,  em  sua  maioria,  produzidas  na  medula  óssea,  embora  a  eritropoese  hepática  persista  nos primeiros dias de vida. Na vida extrauterina, a eritropoese é controlada pela eritropoetina renal.

Quadro 79.1 ■ Principais volumes pulmonares.  

Criança (mℓ/kg)

Adulto (mℓ/kg)

Capacidade pulmonar total

63

82

Capacidade inspiratória

33

52

Capacidade funcional residual

30

30

Capacidade vital

40

66

Volume total

6

7

Volume de reserva expiratório

7

14

Volume residual

23

16

O  teor  de  hemoglobina,  hematócrito  e  hemácias  aumenta  ao  longo  da  vida  fetal.  Hemácias  grandes,  com  elevado conteúdo  de  hemoglobina  (Hb),  são  produzidas  logo  no  início  da  vida  fetal.  No  decorrer  da  gestação,  o  tamanho  e  o conteúdo de Hb diminuem, mas a concentração corpuscular média de Hb é mantida. Quando  o  recém­nascido  respira  pela  primeira  vez,  mais  oxigênio  torna­se  disponível  para  ligação  com  a  Hb  e  a saturação  de  oxigênio  da  Hb  aumenta  entre  50%  e  95%.  Após  o  nascimento,  o  aumento  do  conteúdo  de  oxigênio  no sangue  e  nos  tecidos  faz  com  que  a  síntese  de  eritropoetina  e  a  eritropoese  também  diminuam.  A  concentração  de  Hb diminui até que a necessidade de oxigênio esteja maior do que a chegada de oxigênio tecidual, o que ocorre entre a 6a e a 12a semana de vida, quando a concentração de Hb está em torno de 9,5 a 11 g/dℓ. Quando a hipoxia é detectada pelo tecido renal e hepático, a produção de eritropoetina aumenta e a eritropoese é retomada. Interessante notar que o teor de ferro é suficiente para a adequada síntese de Hb, mesmo na ausência de sua ingestão até ao redor de 20a semana de vida. No  caso  de  crianças  prematuras,  poderá  ocorrer  anemia.  Uma  das  causas  comuns  dessa  situação  é  a  retirada  de amostras de sangue em quantidade e frequência altas, o que leva à perda de considerável volume de sangue. Outra causa é a  falta  da  resposta  eritropoética  adequada  frente  aos  estímulos  normais.  Por  exemplo,  a  eritropoetina,  cuja  maior  fonte durante  a  vida  fetal  é  o  fígado,  não  é  suficientemente  sintetizada  frente  à  hipoxia.  Este  déficit  é  maior  quanto  mais prematura  é  a  criança.  A  deficiência  em  folato,  vitamina  B12  e  vitamina  E  pode  também  ser  causa  de  anemia  em prematuros. A anemia é também agravada pelo menor tempo de vida das hemácias, em média de 40 a 60 dias, contra 120 dias no adulto.

FISIOLOGIA CARDIOVASCULAR O  sistema  cardiovascular  é  o  primeiro  a  entrar  em  funcionamento  no  concepto.  A  exigência  de  substratos,  para embasar o rápido crescimento e desenvolvimento do embrião, requer um eficiente sistema que transporte nutrientes para as células e que retire delas os resultantes metabólitos. Inicialmente, o embrião é tão pequeno que processos difusionais são suficientes para suprir suas demandas. No entanto, ao redor da 3a semana de gestação, já é possível detectar o sangue fluindo. O conceito de que o coração é como uma bomba muscular dominou a ciência cardiovascular por quase um século. O coração, no entanto, é muito mais do que uma bomba, possuindo diferentes tipos de músculos, tecidos valvulares, células endoteliais e estruturas que têm a função de originar e manter o ritmo cardíaco (ou função marca­passo). Para a formação de  um  coração  amplamente  funcional,  um  conjunto  de  células  precursoras  deve  originar  estes  diferentes  tecidos  que, posicionados em locais precisos, fazem com que a complexa máquina cardíaca exerça suas funções a contento. O estudo e a identificação de diferentes sinais e moléculas que fazem com que o tecido muscular cardíaco, os vasos coronarianos e o sistema  de  condução  elétrica  do  coração  funcionem  adequadamente,  não  só  têm  esclarecido  os  passos  da  embriogênese cardiovascular, mas também têm contribuído para que as novas técnicas utilizadas na medicina moderna, tais como o uso de célulastronco, possam ser aplicadas ao coração, para restaurar sua função em caso de doença. O coração e os vasos sanguíneos se desenvolvem de maneira harmônica, de tal modo que o produto final resulte em um sistema fechado que faz com que o sangue seja adequadamente provido a diferentes órgãos, com diferentes demandas metabólicas.

A troca da circulação fetal para a neonatal está diretamente ligada a mudanças da função pulmonar. O sangue que iria até  a  placenta  não  mais  circula  naquele  leito  e  tem  de  ser  redirecionado  para  o  sistema  arterial.  Como  mencionado anteriormente, quando a respiração começa, há expansão dos pulmões e a ventilação pulmonar aumenta a disponibilidade de  oxigênio  com  elevação  concomitante  da  pO2.  Como  a  resistência  pulmonar  cai  dramaticamente,  após  o  parto  há aumento  da  circulação  pulmonar  e  queda  no shunt do  ducto  arterioso,  e  90%  do  fluxo  do  ventrículo  direito  vai  para  as artérias  pulmonares.  Assim,  o  ducto  arterioso  começa  a  se  fechar  quase  imediatamente  após  o  nascimento,  revertendo  a direção  do  fluxo  sanguíneo  que  era  do  ventrículo  direito  para  o  esquerdo.  Seu  fechamento  funcional  ocorre  antes  de  seu fechamento anatômico, que só se completa entre o 2o e o 3o mês  de  idade.  O  fechamento  funcional  do  ducto  arterioso  é influenciado por oxigênio e substâncias vasoativas, particularmente, prostaglandinas e endotelina­1. O ventrículo esquerdo deve, então, ser capaz de bombear cerca de 350 mℓ/kgde sangue. Os ventrículos começam a trabalhar em série, como no adulto. Poucos segundos após o nascimento, o fluxo sanguíneo umbilical reduz­se a menos de 20% dos valores fetais. Os vasos umbilicais se contraem rapidamente e o ducto venoso se oblitera até o final da 1a e a 2a semana de vida. Em crianças pré­termo, o ducto venoso mantém­se aberto por mais tempo. Provavelmente, seu fechamento deve­se ao aumento do teor de endotelina e tromboxano. No  recém­nascido,  a  capacidade  funcional  cardíaca  trabalha  perto  do  limite  máximo,  e  adaptações  a  aumento  de volume ou de pressão são menos eficientes. Comparado ao coração adulto, o miocárdio do neonato requer maior pressão de enchimento, que é alcançada com menores volumes. Ao nascimento, o débito do ventrículo direito aumenta em cerca de 1/3,  enquanto  o  do  ventrículo  esquerdo  triplica.  As  catecolaminas  estimuladas  levam  a  um  aumento  no  débito  cardíaco esquerdo,  necessário  para  a  vida  pós­natal.  Assim,  o  aumento  no  débito  do  ventrículo  esquerdo  pode  ser  explicado  por: aumento no ritmo cardíaco e retorno venoso, aumento da resposta inotrópica a agentes tróficos e estimulação simpática e queda na carga sistólica e diastólica do ventrículo direito.

▸ Ritmo cardíaco O ritmo cardíaco é maior no recém­nascido e cai paulatinamente nas primeiras 6 semanas de vida. Ele é determinado pelo ritmo de despolarização do nodo sinoatrial, que é tonicamente regulado pelo sistema parassimpático. Ao nascimento, a  inervação  simpática  não  está  completamente  ativa.  Assim,  os  efeitos  vagais  predominam  e  as  respostas  a  receptores beta­adrenérgicos  induzidos  por  catecolaminas  são  limitadas.  Com  o  passar  do  tempo,  o  ritmo  cardíaco  diminui,  e encontra­se taquicardia (mais de 160 bpm) em eventos que levam à liberação de catecolaminas, estimulação do simpático ou inibição do parassimpático.

▸ Alterações estruturais nas fibras cardíacas As alterações maturacionais na força de contração miocárdica começam a ser vistas no final da gestação e continuam após  o  nascimento  e  durante  o  desenvolvimento.  Os  miócitos  cardíacos  passam  por  três  processos  de  maturação, determinados  pelo  desenvolvimento:  proliferação,  binucleação  e  hipertrofia.  Durante  a  vida  fetal,  os  miócitos  proliferam rapidamente; mas, no período perinatal, a proliferação cessa e os miócitos sofrem episódios adicionais de síntese de DNA e mitose nuclear sem citocinese (mitose acinética) que, na maioria das espécies, deixa os miócitos binucleados. Até pouco tempo,  pensava­se  que  os  miócitos  adultos  fossem  incapazes  de  repetir  o  ciclo  celular  quando  expostos  a  estímulos, acreditando­se  que  seu  aumento  celular  seria  conseguido  por  processo  hipertrófico.  Desta  maneira,  a  capacidade  de regeneração  dos  miócitos  parecia  ser  limitada.  Atualmente,  dados  experimentais  mostram  que,  sob  certas  condições,  os miócitos podem repetir o ciclo celular e exibir regeneração. No  primeiro  mês  de  vida,  há  aumento  no  número  de  miócitos  e  depois  há  hipertrofia  dos  já  existentes.  Como mencionado  anteriormente,  um  aumento  na  força  de  contração  faz  parte  do  processo  de  maturação.  Não  há  um  aumento brusco  na  força  de  contração,  mas  um  aumento  gradual  com  o  passar  do  tempo.  A  maior  parte  dos  processos  está relacionada  com  mudanças  estruturais  na  anatomia  miocárdica.  A  forma  do  miócito  e  o  tamanho  se  alteram  com  o desenvolvimento. Ele passa de uma forma esférica no embrião para uma forma retangular no adulto. No recém­nascido, as dimensões do miócito são de 40 μm em comprimento e 5 μm em largura, enquanto no adulto o tamanho pode exceder 150 μm por 25 μm. A organização interna do miócito imaturo é diferente da do adulto; ele é constituído de um core de mitocôndria, núcleo e  material  membranoso  circundado  por  uma  fina  camada  de  miofibrilas;  estas  parecem  não  assumir  uma  direção determinada  enquanto,  no  adulto,  as  miofibrilas  estão  organizadas  em  filas  paralelas  ao  eixo  longitudinal  da  célula. Durante  a  fase  de  transição,  de  imaturo  para  maduro,  as  miofibrilas  se  orientam,  situando­se  em  uma  fina  camada  da

região subsarcolemal. Estas mudanças, juntamente com a diminuição do número de sarcômeros por grama de músculo e aumento  no  conteúdo  aquoso,  limitam  a  força  cardíaca  por  unidade  de  área  no  feto  e  recém­nascido.  Com  o  aumento  de miofibrilas, há elevação do número de pontes de ligação (cross bridge attachments) e da força de contração. Nas  semanas  que  se  seguem  ao  nascimento,  aumenta  a  massa  ventricular,  com  o  ventrículo  direito  crescendo  menos que o esquerdo. A mudança pós­natal do ventrículo esquerdo é, em grande parte, relacionada com o aumento do tamanho e número de miócitos. Após o nascimento, estes processos são dirigidos por uma série de fatores tróficos estimulados por catecolaminas e por estimulação simpaticomimética. Por exemplo, a estimulação de α­adrenorreceptores induz aumento no tamanho do miócito e no conteúdo de miofibrilas, mas não tem efeito aparente no miócito adulto. No período perinatal, o miócito expressa receptores alfa­adrenérgicos em grande número. Em adição, efeitos autócrinos e parácrinos dos fatores de  crescimento  de  fibroblastos,  fatores  insulina­símile  e  outros  estímulos  tróficos  contribuem  para  o  crescimento  do número e tamanho de miócitos. A  contratilidade  miocárdica  no  neonato  é  alterada,  devido  à  diminuição  na  complacência  ventricular  e  à  redução  na massa contrátil. O miocárdio fetal tem pequena quantidade de tecido contrátil, restrito ao subsarcolema. No feto, cerca de 60% do tecido miocárdico é não contrátil, contrastando com o do adulto, no qual esta porcentagem é de 30%. O miócito adulto contrai mais rapidamente e com maior frequência do que o fetal. Nos períodos fetal e perinatal, eventuais mudanças hemodinâmicas desencadeiam respostas ligadas ao aumento do ritmo cardíaco. Todavia, esta resposta é limitada devido ao predomínio do sistema parassimpático e à imaturidade do simpático. A acidose, a hipercarboxemia e a hipoxia alteram a permeabilidade celular e a atividade da Na+/K+­ATPase, que induzem a menor capacidade de contratilidade miocárdica.

▸ Características das proteínas contráteis durante o desenvolvimento Miosina Em  todos  os  estágios  de  desenvolvimento,  a  contração  miocárdica  resulta  na  alteração  do  cálcio  citosólico,  o  qual regula a interação miosina­actina. A miosina de cadeia pesada dominante no músculo cardíaco é do tipo β e, na passagem da  vida  fetal  para  a  adulta,  não  há  grandes  mudanças  na  sua  expressão.  O  coração  expressa  dois  genes  para  miosina  de cadeia  leve:  MCL1  e  MCL2.  MCL1  atrial  (MCL1a)  é  expresso  no  ventrículo  fetal  e  no  átrio  fetal  e  de  adulto.  Com  o desenvolvimento, ocorre uma mudança no ventrículo do adulto, com diminuição na expressão de MLC1a e aumento na de MCL1 ventricular (MCL1v). Já o gene MCL2 ventricular é expresso predominantemente no ventrículo, desde a vida fetal até  a  adulta;  enquanto  o  gene  MCL2  atrial  é  expresso  no  átrio.  A  função  ventricular  depende  da  fosforilação  da  MCL2 ventricular, que aumenta a sensibilidade dos miofilamentos ao Ca2+.

Actina Durante a vida embrionária, fetal e pósnatal, a expressão de actina no músculo cardíaco muda. No início da vida pós­ natal,  a  expressão  da  actina  cardíaca  diminui  no  ventrículo,  enquanto  a  expressão  de  actina  de  músculo  esquelético aumenta. A partir dos 6 meses de vida até a idade adulta, o tipo de actina dominante no sarcômero do coração humano é a actina de músculo esquelético. As diferenças estruturais destas duas actinas são pequenas, sugerindo que, funcionalmente, elas  possam  ter  ações  fisiológicas  similares.  No  primeiro  ano  de  vida,  parece  que  há  correlação  do  aumento  na contratilidade e mudança na expressão da actina cardíaca para a actina de músculo esquelético. A capacidade de adaptação a defeitos congênitos pode ser também devida a esta alteração na expressão do tipo de actina.

Tropomiosina O músculo cardíaco expressa duas tropomiosinas, a α e a β. A tropomiosina α predomina no coração fetal, pós­natal e adulto.

Troponina C Um único tipo de troponina, a cardíaca, é expressa no coração ao longo do desenvolvimento. Em miofilamentos que expressam diferentes isoformas de troponina cardíaca, é relatada uma mudança na ligação com o cálcio.

Troponina I Duas  isoformas  de  troponina  I  são  expressas  no  miocárdio  ventricular:  a  de  músculo  esquelético  (do  tipo  lento)  e  a troponina I cardíaca. No coração humano adulto, a expressão da troponina I cardíaca é a predominante, e alguns anos de

vida  são  necessários  para  que  esta  predominância  seja  alcançada.  A  alta  expressão  perinatal  de  troponina  I  de  músculo esquelético parece proteger o coração durante episódios de acidose respiratória.

▸ Sensibilidade ao Ca2+ A sensibilidade dos miofilamentos ao cálcio e a habilidade do miocárdio em modular o cálcio citosólico conferem uma importante  característica  fisiológica  ao  miocárdio:  embora  a  contração  seja  um  fenômeno  tudo  ou  nada,  a  força  de contração pode variar de um batimento ao outro. Esta propriedade fundamental de sensibilidade ao cálcio é vista ao longo do desenvolvimento, desde o período embrionário até a fase adulta. Dois tipos de canais de cálcio são descritos: do tipo T e do tipo L. No coração fetal, existe a expressão de isoformas do canal do tipo T, que vai diminuindo com o desenvolvimento. Já no coração do adulto, os canais predominantes são do tipo L, dependentes de voltagem e sensíveis a di­hidropiridina. O retículo sarcoplasmático no miocárdio fetal é reduzido e menos organizado, alterando o transporte de cálcio e a contratilidade.

▸ Outras características do miocárdio no feto e no neonato Estudos  realizados  há  décadas  sugeriram  que  o  coração  fetal  poderia  mostrar  uma  rigidez  passiva  aumentada,  o  que levaria à disfunção diastólica, um fator de risco para a mortalidade perinatal. Com a descrição de uma proteína gigante, a titina,  que  funciona  como  um  elástico  e  que  define  as  propriedades  mecânicas  passivas  do  miócito,  as  pesquisas  se concentraram para elucidar se alteração na composição desta proteína poderia estar relacionada com mudança nas respostas hemodinâmicas vistas nos neonatos. Duas isoformas de titina podem ser coexpressas no mesmo sarcômero, possibilitando ajustes na resistência passiva: uma curta, menos complacente (N2B) e outra mais longa, mais complacente (N2BA). Um único gene é o responsável pela expressão dessas duas isoformas da titina, que podem ser expressas em maior ou menor proporção, dependendo das respostas necessárias. Assim, quanto maior a expressão da isoforma N2B, maior a rigidez do miócito.  O  miocárdio  fetal  e  neonatal  exibem  uma  forma  particular  da  N2BA,  incorporada  no  sarcômero,  e  que  confere baixa rigidez ao miocárdio. Durante o desenvolvimento pós­natal, a titina fetal é substituída por isoformas mais rígidas, dando origem a um miocárdio com resposta passiva aumentada. Isto possibilitaria um ajuste ao volume diastólico, de certa maneira protegendo a fibra miocárdica.

▸ Perfil pressórico na infância Assim  como  no  adulto,  a  determinação  de  níveis  pressóricos  na  infância  é  um  procedimento  que  deve  ser  realizado sistematicamente,  a  fim  de  serem  detectados  possíveis  casos  de  hipertensão  ou  quadros  clínicos  pré­hipertensivos.  É recomendado  que  a  partir  de  3  anos  de  idade  a  criança  tenha  sua  pressão  arterial  (PA)  determinada,  quando  da  visita  a postos  de  saúde.  A  definição  de  hipertensão  é  baseada  em  dados  obtidos  em  grandes  estudos  populacionais  de  crianças normais; como a PA varia de acordo com idade, sexo e peso, foram construídos tabelas e gráficos, que estão disponíveis nos  locais  pertinentes.  A  PA  varia  também  de  acordo  com  a  metodologia  utilizada  para  a  sua  avaliação.  O  método auscultatório  ainda  é  bastante  utilizado;  porém,  atualmente,  o  método  oscilométrico  é  o  mais  usado,  e  vários  estudos mostram que este método é menos sujeito a erros. Trabalho publicado em 2007, por Kent et al., indica que entre o 6o e o 12o meses de vida não se verificam diferenças significantes na PA sistólica e diastólica; entretanto, aos 2 dias de vida, as médias para as pressões diastólicas e sistólicas são  menores  do  que  as  vistas  em  crianças  mais  velhas  (Figura  79.6).  A  PA  tende  a  subir  na  adolescência,  tanto  em meninos  quanto  em  meninas,  e  ao  redor  de  18  anos  alcança  os  valores  vistos  em  adultos.  Estudos  populacionais evidenciam, também, que há correlação positiva entre peso corpóreo e PA; ou seja, para a mesma idade e sexo, crianças com maiores pesos mostram tendência a exibir níveis pressóricos mais elevados.

FISIOLOGIA RENAL

▸ Desenvolvimento anatômico Os  rins  de  mamíferos  desenvolvem­se  de  uma  região  localizada  entre  a  região  axial  e  a  placa  lateral  do  mesoderma. Três  estágios  sucessivos  são  identificados  neste  desenvolvimento,  e  os  dois  primeiros  são  transientes.  No  primeiro estágio,  próximo  da  3a semana,  há  a  formação  de  estruturas  não  funcionais,  os  pronefros  ou  ductos  néfricos  primários, derivados da região cervical. Cada pronefro consiste em 7 a 10 grupos celulares compactos, que degeneram no início da

4a  semana.  Com  o  crescimento,  um  arranjo  linear  de  túbulos  epiteliais  é  formado,  derivado  de  células  mesenquimais adjacentes, constituindo os mesonefros. Estes aparecem ao término da 4a semana, formando órgãos ovoides em forma de S,  próximo  das  gônadas  em  formação.  O  ducto  mesonéfrico,  no  sexo  masculino,  origina  o  ducto  wolfiano.  Os metanéfrons  ou  rins  permanentes  originam­se  do  botão  uretérico  na  porção  caudal  do  mesonefro.  A  formação  do  rim definitivo envolve dois processos separados e inter­relacionados. O botão uretérico cresce, invade o mesênquima e começa a sofrer subdivisões; em seguida, células mesenquimais se agregam ao redor destas, iniciando a conversão mesênquima­ epitélio, enquanto outras células mesenquimais se transformam para formar o estroma intersticial. Os agregados celulares originam uma vesícula renal polarizada, tendo, em uma das partes, contato com o botão ureteral (Figura 79.7). Uma única fenda se forma na vesícula, provocando uma estrutura em S. A porção distal deste S, que ficou em contato com o botão ureteral,  se  funde  para  se  tornar  um  túbulo  único,  epitelial.  A  parte  proximal  deste  forma  o  tufo  glomerular,  quando células  endoteliais  invadem  a  fenda  proximal.  A  interação  da  célula  endotelial  com  as  células  glomerulares  dá  origem  à membrana  basal  glomerular,  uma  estrutura  altamente  especializada,  com  função  de  exercer  uma  barreira  à  passagem  de determinadas moléculas e proteínas. A  formação  do  néfron  inicia­se  ao  redor  da  5a  semana,  na  porção  justamedular,  e  progride  para  o  córtex.  Na 20a  semana,  a  divisão  dos  ductos  coletores  está  completa  e  cerca  de  1/3  dos  néfrons  está  formado.  Os  néfrons  se desenvolvem  até  a  35a  ou  36a  semana  (correspondendo,  normalmente,  a  um  peso  fetal  de  2.100  a  2.500  g  e  um comprimento de 46 a 49 cm), quando o número final de néfrons é alcançado. Nas crianças pré­termo, o desenvolvimento renal continua até a 34a ou 35a semana pósconcepcional. A maturação dos néfrons e sua hipertrofia continuam durante os primeiros anos de vida. A vascularização renal é paralela à nefrogênese. Inicialmente, os rins situam­se na área pélvica; mas, com o crescimento e alongamento do feto, eles migram para áreas mais superiores. Durante este processo, os rins mostram um movimento de rotação de 90°, de tal modo que a pelve renal se posiciona na frente da linha mediana. O  peso  renal  aumenta  nas  últimas  20  semanas  de  gestação,  linearmente  com  o  aumento  do  peso  e  da  superfície corporais. Antes do 5o mês de gestação, o crescimento renal ocorre primariamente na região medular, que contém a maior parte dos ductos coletores. A partir do 5o mês, ocorre maior crescimento na região cortical e na medula externa. Após o nascimento, o crescimento renal se dá, principalmente, nos túbulos e na alça de Henle. O ritmo de crescimento tubular se reflete nas mudanças da relação das superfícies glomerular:tubular; ou seja, 27:1 ao nascimento, 8:1 aos 6 meses e 3:1 em adultos.

Figura  79.6  ■   Evolução  das  pressões  arterial  diastólica,  média  e  sistólica  em  crianças  durante  o  primeiro  ano  de  vida.  PA, pressão arterial; n, número de crianças observadas. (Adaptada de Kent et al., 2007.)

Figura 79.7 ■ Estágios  na  formação  dos  néfrons  de  mamíferos.  Após  interações  do  mesênquima  e  metanefro,  são  induzidas novas  divisões  no  botão  uretérico.  Posteriormente,  e  em  cada  ponta  da  árvore  ureteral,  há  condensação  de  tecido  e aparecimento de vesículas renais que formarão os néfrons individuais. (Adaptada de Yu et al., 2004.)

▸ Desenvolvimento funcional O feto é composto primordialmente de água, em sua maioria contida no compartimento extracelular; com a progressão da gestação, a água total do corpo e o volume do meio extracelular diminuem lentamente, e o volume do meio intracelular cresce (ver Figura 79.1). A  filtração  glomerular  e  a  produção  de  urina  iniciam  na  9a ou  10a  semana  de  gestação.  A  alça  de  Henle  começa  a funcionar na 14a semana e a reabsorção tubular, entre a 9a e a 12a semana. Ao longo da gestação, o fluxo plasmático renal (FPR)  e  o  ritmo  de  filtração  glomerular  (RFG)  são  baixos,  devido  à  alta  resistência  vascular  e  à  baixa  pressão  arterial sistêmica;  contudo,  aumentam  a  partir  da  20a  semana  até  o  final  da  gestação.  Este  aumento  é  paralelo  à  elevação  no número  e  tamanho  dos  néfrons.  No  adulto,  cerca  de  25%  do  débito  cardíaco  vão  para  os  rins,  enquanto  no  feto,  40%  a 50%  vão  para  a  placenta  e  apenas  3%  para  os  rins.  Assim,  o  balanço  hidreletrolítico  do  feto  é  devido,  primariamente,  à placenta. Embora  o  FPR  e  o  RFG  sejam  baixos  no  feto,  o  débito  urinário  contribui  bastante  para  o  volume  do  líquido amniótico. A bexiga fetal se esvazia a cada 20 a 30 min, e o débito urinário cresce com o desenvolvimento fetal. Embora o volume exato de produção de urina ao longo da gestação não esteja estabelecido, ele é calculado em torno de 25% do peso corpóreo, ou cerca de 100 mℓ/dia perto do final da gestação. Como no adulto, o RFG do feto depende da pressão de ultrafiltração, que é a diferença entre os gradientes de pressão hidrostática e oncótica dos capilares glomerulares. A baixa pressão de perfusão e o baixo fluxo plasmático glomerular são, pelo menos em parte, responsáveis pelo baixo ritmo de filtração glomerular durante a gestação. O RFG depende também do coeficiente de ultrafiltração, ou Kf, que depende da área e da permeabilidade da membrana filtrante. Durante os últimos meses de gestação, o RFG aumenta em paralelo à idade gestacional até o término da nefrogênese, ao redor da 35a semana de gestação. Este padrão de desenvolvimento reflete o número crescente de néfrons funcionantes. Próximo da 35a semana, a  velocidade  de  aumento  do  RFG  diminui  até  o  nascimento.  As  mudanças  do  RFG  de  acordo  com  a  idade  concepcional estão indicadas na Figura 79.8.

▸ Maturação pós­natal A  maturação  pós­natal  é  caracterizada  por  aumento  acentuado  no  FPR,  que  tem  seu  valor  dobrado  até  o  final  do primeiro mês de vida. Os valores do FPR no adulto, de cerca de 600 mℓ/min, são alcançados próximo ao segundo ano de vida. Estudos  acerca  da  distribuição  do  fluxo  sanguíneo  no  rim  de  recém­nascidos  mostram  que  o  fluxo  sanguíneo  é, predominantemente,  levado  para  os  néfrons  mais  profundos  do  córtex  renal;  mas,  com  a  maturação  renal,  devido  à diminuição nas resistências vasculares, o sangue é redistribuído para o córtex externo.

A capacidade de autorregulação do fluxo sanguíneo renal é menor em crianças do que em adultos. O  RFG  tem  seu  valor  duplicado  nas  primeiras  2  semanas  de  vida  (ver  Figura  79.8).  Este  acréscimo  é  devido  ao aumento da superfície disponível para a filtração; além disso, elevações adicionais do RFG podem ser relacionadas com: (1)  elevação  do  Kf,  (2)  aumento  na  pressão  efetiva  de  ultrafiltração  e  (3)  diminuição  nas  resistências  das  arteríolas aferentes  e  eferentes.  No  1o  ano  de  idade,  o  RFG  é  cerca  de  90%  do  valor  no  adulto  e,  no  2o  ano,  alcança aproximadamente 98% desse valor. Em termos absolutos, do nascimento até a idade adulta, o RFG aumenta cerca de 25 vezes.

Figura  79.8  ■   Desenvolvimento  do  ritmo  de  filtração  glomerular  (RFG)  como  função  da  idade  gestacional  durante  o  último trimestre da gestação e no primeiro mês da vida pós­natal. Notar o aumento do RFG pós­natal observado nos pré­termo (•—•) e nos recém­nascidos a termo (∘—∘). (Adaptada de Guignard e John, 1986.)

O  balanço  glomerulotubular,  definido  como  a  relação  dos  valores  absolutos  de  reabsorção  tubular  e  a  filtração  por néfron, é adequado no recém­nascido, a fim de manter a reabsorção de solutos, água e íons em valores compatíveis com o seu  crescimento.  Em  prematuros  nascidos  antes  da  30a  semana  gestacional,  o  balanço  glomerulotubular  pode  não  ser adequado, levando, por exemplo, à glicosúria (aumento de glicose na urina).

▸ Homeostase de Na+ em condições fisiológicas O aporte de sódio é baixo em lactentes, se comparado ao de adultos. O leite é uma fonte pobre de Na+ e, para que o crescimento do neonato ocorra satisfatoriamente, é necessário um balanço positivo desse íon. Parte deste balanço positivo é  devida  ao  baixo  RFG  observado  neste  período  da  vida.  Adicionalmente,  no  neonato,  o  baixo  nível  de  fatores natriuréticos  (fatores  que  aumentam  a  excreção  renal  de  sódio,  tais  como  peptídio  atrial  natriurético,  dopamina,  óxido nítrico) também limitam a excreção de Na+. Apesar disso, na primeira semana de vida, a excreção fracional de Na+ é alta, e inversamente proporcional à maturidade fetal (Figura 79.9). Por  outro  lado,  no  recém­nascido,  a  resposta  à  sobrecarga  de  Na+ é  prejudicada  quando  comparada  à  do  adulto,  em parte devido ao baixo RFG. Estudos clínicos e experimentais mostram que, quando a maturidade progride, o túbulo distal é  o  local  onde  ocorre  aumento  da  fração  de  reabsorção  de  Na+,  provavelmente  devido  ao  aumento  na  resposta  à  ação  da aldosterona. Em rins de prematuros, tanto os segmentos proximais como os distais são menos eficientes no manejo de Na+. Assim, uma  porcentagem  do  Na+ filtrado  escapa  da  reabsorção  proximal,  pois  a  relação  entre  o  volume  filtrado  e  a  superfície proximal  disponível  para  a  reabsorção  é  maior  do  que  em  crianças  nascidas  a  termo.  Por  outro  lado,  a  pressão  oncótica peritubular  (que  favorece  a  reabsorção  de  líquido  isotônico  no  proximal)  está  diminuída.  As  porções  distais  exibem também  alta  permeabilidade  e  baixa  capacidade  de  resposta  à  ação  de  mineralocorticoides  e  baixas  atividades  dos transportadores iônicos membranais e dos canais apicais de Na+. Esta perda renal de Na+, que leva a um balanço negativo do íon, pode ser fisiológica para as condições extrauterinas, pois o rim tem de eliminar o excesso de Na+ contido no meio extracelular. Estes fatos são reforçados em várias patologias, quando grandes volumes de água e íons são infundidos no

prematuro,  na  tentativa  de  reposição  de  volume.  Nestas  condições,  é  frequente  a  ocorrência  de  ducto  patente  arterioso, insuficiência cardíaca, enterocolite necrosante, displasia broncopulmonar e hemorragia intracraniana.

Figura 79.9 ■ Gráfico indicando a relação inversamente proporcional entre a excreção fracional de Na+  e a idade gestacional. (Adaptada de Siegel e Oh, 1976.)

Em resposta a esta perda de Na+, a atividade da renina plasmática é elevada em prematuros de maneira mais acentuada que em crianças nascidas a termo. Porém, há uma dissociação entre a renina plasmática e os níveis de aldosterona, o que mostra que as suprarrenais de prematuros não respondem adequadamente a estímulos na primeira semana de vida. O  desenvolvimento  da  resposta  pós­natal  à  sobrecarga  de  Na+  está  relacionado  também  com  o  tipo  de  dieta.  Em crianças recebendo dietas com alto conteúdo de Na+, a resposta à sobrecarga de Na+ é mais eficaz. O transporte intestinal de Na+ é eficiente, e a maturação no transporte colônico de Na+ precede a maturação renal. Este mecanismo serve como defesa contra a natriurese observada em recém­nascidos e crianças prematuras.

▸ Sistema renina­angiotensina­aldosterona Em  humanos,  os  genes  relacionados  com  a  angiotensina  são  ativados  ao  redor  do  23o  ou  24o  dia  de  gestação.  Os receptores  AT1  e  AT2  são  expressos  ao  redor  do  24o  dia,  indicando  que  a  angiotensina  II  pode  ser  importante  na organogênese.  O  receptor  AT2  é  maximamente  expresso  na  8a  semana  de  gestação,  tendo  sua  expressão  diminuída posteriormente.  Perto  do  28o dia,  o  angiotensinogênio  é  expresso  na  parte  proximal  do  túbulo  primitivo  e  a  renina  no glomérulo  e  aparelho  justaglomerular.  Entre  o  31o  e  35o  dias,  todos  os  componentes  do  SRAA  estão  expressos  no mesonefro embrionário, incluindo a enzima conversora de angiotensina. O SRAA é mais ativado no período neonatal e na infância do que posteriormente. A aldosterona alcança o máximo de ativação duas horas após o nascimento.

▸ Características do túbulo proximal A  maior  parte  do  transporte  no  túbulo  proximal  depende  do  gradiente  luminal  de  sódio,  provocado  e  mantido  pela Na+/K+­ATPase basolateral. Solutos orgânicos e bicarbonato são reabsorvidos em preferência ao Cl–, o que deixa o líquido luminal com alto teor deste íon. Em relação ao espaço peritubular, estudos experimentais mostram que, no rato, cerca de

1/3  do  transporte  de  NaCl  é  ativo  e  transcelular,  sendo  os  2/3  restantes  passivos  e  paracelulares.  O  transporte  ativo  de NaCl é mediado pela operação paralela dos trocadores Na+/H+ e Cl–/HCO3–. O maior volume de água é transportado no túbulo proximal pela via transcelular, graças à presença das aquaporinas do tipo 1. No feto, pouca aquaporina 1 é detectável; mas, ao nascimento, há aumento substancial no conteúdo de aquaporina 1, tanto na membrana apical como na basolateral. No neonato, a atividade da Na+/K+­ATPase é menor, como também, provavelmente, a força movente para a entrada de Na+ na célula, resultando em baixo influxo celular de NaCl através da membrana apical. Há evidências de que a maturação da  entrada  de  Na+  apical  estimula  (e  precede)  a  atividade  da  Na+/K+­ATPase  basolateral.  O  transportador  NHE3,  que predominantemente medeia a troca Na+/H+ na  membrana  luminal  do  túbulo  proximal,  sofre  maturação  com  o  transcorrer do tempo. Em vesículas extraídas da borda em escova de túbulos proximais de animais imaturos, foi demonstrado que a reabsorção de bicarbonato e as atividades da Na+/K+­ATPase e do NHE3 estão diminuídas. A  acidificação  tubular  proximal  é  efetuada,  em  sua  maior  parte,  pela  isoforma  NH3  do  trocador  Na+/H+  luminal. Estudos recentes, em alguns mamíferos recém­nascidos, indicam que outras isoformas do trocador Na+/H+ também estão presentes.  Por  exemplo,  a  isoforma  NHE8  foi  encontrada  em  túbulos  proximais  de  ratos  recém­nascidos;  mas,  em humanos, o seu papel é desconhecido. A  maturação  pós­natal  e  a  reabsorção  de  bicarbonato  podem  ser  estimuladas  por  hormônios  da  suprarrenal  ou  por estímulo  direto  da  angiotensina  II  sobre  a  NHE3  e/ou  a  Na+/K+­ATPase. Adicionalmente, foram descritos outros fatores que  influenciam  positivamente  a  resposta  tubular  na  conservação  do  Na+,  como  a  melhora  nas  respostas  a  hormônios tireoidianos e a catecolaminas e o aumento da atividade simpática. Outro  modo  de  transporte  de  Na+  no  proximal  é  através  do  cotransportador  Na­fosfato  (denominado  Na­Pi).  O transporte  é  eletrogênico  e  envolve  o  cotransporte  de  3  Na+  e  1  íon  fosfato.  Três  isoformas  deste  transportador  são descritas, mas, o Na­Pi2 é localizado exclusivamente na borda em escova. Alguns trabalhos mostram que este transporte é, proporcionalmente, maior em rins de neonatos quando comparados a rins de adultos. O hormônio da paratireoide inibe este transporte, enquanto o hormônio de crescimento e o fator insulinasímile o estimulam. A  reabsorção  de  Na+  no  túbulo  proximal  também  ocorre  pelo  cotransporte  com  aminoácidos  e  glicose.  Durante  o período fetal e neonatal, estes transportadores exibem baixa atividade; devido a essa característica, nos primeiros dias de vida podem ser encontradas aminoacidúria e glicosúria (aminoácidos e glicose na urina, respectivamente).

▸ Algumas características do trocador Na+/H+ Como  citado  anteriormente,  no  túbulo  proximal  ocorre  reabsorção  de  água,  glicose,  NaCl,  bicarbonato,  citrato  e secreção de H+ (o qual é excretado na forma do íon amônio e de acidez titulável). Solutos orgânicos, como aminoácidos, oligopeptídios e proteínas são também reabsorvidos por essa porção tubular. O  trocador  Na+/H+  (NHE,  sodium­hydrogen  exchanger),  direta  ou  indiretamente,  contribui  para  cada  um  desses processos  de  transporte  que  ocorrem  no  túbulo  proximal.  O  NHE  faz  parte  de  uma  grande  família  de  trocadores monovalentes  cátion­próton.  Atualmente,  são  conhecidas  nove  isoformas  de  NHE,  de  1  a  9,  com  diferentes  localizações teciduais e subcelulares. No Capítulo 11, Transportadores de Membrana, são dadas mais informações a respeito do NHE em humanos adultos. O NHE3 é a isoforma predominante no túbulo de mamíferos adultos, enquanto o NHE8 predomina no rim fetal. Ao longo  do  desenvolvimento,  há  uma  mudança  na  expressão  destas  2  isoformas,  já  estabelecida  em  algumas  espécies.  A alteração na expressão destas isoformas pode ser intrínseca do órgão ou dependente de fatores circulantes. Por exemplo, o grande aumento do hormônio da tireoide e dos corticosteroides no período pós­natal eleva a expressão luminal do NHE3. É possível que no rim prematuro a função de acidificação seja exercida pela isoforma NHE8, enquanto a NHE3 não está ainda  desenvolvida.  Com  o  progredir  do  tempo,  a  NHE8  passa  a  ter  uma  localização  primordialmente  intracelular, utilizando o Na+ vesicular para a troca com o H+ celular, levando à acidificação intravesicular.

▸ Reabsorção de cloreto Como previamente mencionado, a reabsorção ativa de Cl– no túbulo proximal é feita conjuntamente pelos trocadores Na+/H+ e Cl–/HCO3–. Estudos experimentais indicam que ambos os trocadores têm menor atividade no neonato. A reabsorção paracelular de Cl– depende da permeabilidade desta via a cloretos. Em coelhos adultos, a permeabilidade a Cl– em túbulos contorneados proximais é baixa. Em animais recém­nascidos, esta permeabilidade é menor ainda e esta porção do néfron mostra uma alta resistência elétrica quando comparada à do adulto. Tais propriedades biofísicas apontam

para uma mudança maturacional na região da tight­junction (pontos especiais de junções entre as células, na parte apical próxima do lúmen tubular). A  tight­junction  é  composta  de  fibrilas  cujas  proteínas  são  as  ocludinas  e  uma  família  de  proteínas  chamadas  de claudinas. A ocludina tem distribuição ubíqua, enquanto as isoformas de claudina e sua abundância diferem entre os vários segmentos  tubulares,  conferindo  características  elétricas  e  permeabilidades  diferentes  para  a  via  paracelular  de  cada segmento. Por exemplo, a claudina 16, presente no ramo grosso ascendente da alça de Henle, determina as características peculiares de permeabilidade desta região. Em coelhos, as claudinas 6, 9 e 13 são expressas apenas nos recém­nascidos, enquanto nos animais adultos, estão ausentes. As causas destas diferenças ainda são desconhecidas e, em rins humanos, estes dados ainda não foram obtidos.

▸ Características do néfron distal Alguns trabalhos mostram que o ducto coletor cortical sofre mudanças importantes de acordo com a idade. Em ductos isolados  perfundidos  em  três  diferentes  idades  após  o  nascimento,  duas  mudanças  relevantes  foram  descritas:  (1)  a  alta permeabilidade vai diminuindo até alcançar os níveis vistos em adultos e (2) aumentam a atividade dos transportes ativos e a resposta a mineralocorticoides. A imaturidade no transporte de Na+ pode ser devida a: (1) polarização incompleta das células  principais,  (2)  diminuição  na  atividade  da  Na+/K+­ATPase,  (3)  diminuição  no  número  e/ou  atividade  dos  canais apicais de Na+ e (4) diminuição nos canais de condutância existentes. O canal apical de Na+ (tipo ENaC, sensível à amilorida) é composto de 3 subunidades: α, β e γ. O perfil de expressão do  mRNA  da  subunidade  α  é  similar  ao  da  subunidade  α  da  Na+/K+­ATPase.  Durante  a  gestação,  existe  um  aumento gradual de ambos mRNA que alcança uma constante após o nascimento. Assim, parece que as regulações tanto do ENaC como  da  Na+/K+­ATPase  possam  ter  passos  comuns.  Em  um  estudo  realizado  por  Delgado  et  al.,  foi  verificado  que crianças  nascidas  entre  a  21a e a 31a semana  de  gestação  só  alcançam  um  estado  de  balanço  positivo  de  Na+ a  partir  da idade correspondente à 32a semana de gestação. Coincidentemente, de maneira bastante interessante, nesse mesmo estudo os  autores  notaram  que,  entre  a  21a e  a  36a semana  de  gestação,  ocorre  um  aumento  de  cerca  de  25%  na  expressão  da unidade α do mRNA do ENaC. Foi  estudada  também  a  ontogenia  da  expressão  de  outros  transportadores  de  Na+,  além  do  canal  ENaC.  Por  meio detécnicas  de  imuno­histoquímica  e  hibridização  in  situ,  foi  verificado  que  esses  transportadores  aparecem  cedo  no período de desenvolvimento tubular, mas que aumentam em abundância com a maturação. Assim, os transportadores Na+: K+: 2Cl– e Na+: Cl– e o contratransportador Na+/Ca2+ são localizados precocemente nas porções mais distais. Acredita­se que, durante expansão volumétrica nos neonatos, pode ocorrer uma incapacidade na excreção da sobrecarga de Na+ devido à  atividade  inadequada  destes  transportadores,  que  funcionariam  mais  adequadamente  durante  processos  de  retração  de volume do meio extracelular.

▸ Manejo do potássio Diferentemente  do  adulto,  no  qual  o  balanço  de  K+ requer  que  o  ganho  absoluto  de  K+ seja  zero,  no  feto  e  recém­ nascido o ganho de K+ tem de ser positivo para que o crescimento e desenvolvimento ocorram satisfatoriamente. A  relação  entre  o  potássio  total  do  corpo  e  peso  corpóreo  é,  pelo  menos  em  parte,  reflexo  do  aumento  da  massa muscular e do K+ intracelular. O K+ é transportado ativamente da mãe para o filho, através da placenta. No feto humano, ao redor da 40a semana de gestação,  o  K+ plasmático  é  ligeiramente  maior  do  que  o  da  mãe,  mostrando  que  o  balanço  de  K+ deve  ser  positivo  ao longo do crescimento e desenvolvimento fetal. Com  o  aumento  da  idade  gestacional,  a  reabsorção  tubular  de  K+  aumenta  em  paralelo  ao  aumento  da  sua  carga filtrada.  Estudos  experimentais  mostram  que,  mesmo  durante  carência  materna  de  K+,  o  concepto  não  mostra  alterações importantes no K+ plasmático. Por outro lado, o feto parece se proteger menos nos processos de hiperpotassemia materna. O  túbulo  proximal  do  neonato  é  capaz  de  reabsorver  50%  do  K+  filtrado;  porém,  a  alça  de  Henle  mostra  um decréscimo na capacidade de reabsorver K+. Assim, uma carga aumentada de K+ vai chegar às porções distais do néfron. Trabalhos utilizando diferentes métodos de estudo, tais como depuração plasmática, micropunção in vivo e segmentos tubulares isolados perfundidos in vitro, indicam que o néfron distal exerce papel preponderante na regulação da excreção de K+ em crianças, assim como em adultos. Mesmo crianças nascidas com baixo peso são capazes de excretar K+ durante sobrecarga de K+ ou HCO3–.  No  entanto,  se  calculada  por  unidade  de  peso  corpóreo  ou  por  peso  renal,  a  capacidade  de excretar  K+  é  menor  no  prematuro;  porém,  esta  capacidade  se  normaliza  entre  a  3a  e  a  5a  semana  de  vida.  Como

mencionado, é provável que, nestes casos, uma insensibilidade à ação da aldosterona esteja presente, uma vez que níveis plasmáticos  de  aldosterona  são  maiores  no  pré­termo  e  em  neonatos  quando  comparados  aos  de  crianças  mais  velhas. Estudos  em  rim  de  coelhos  em  desenvolvimento  mostram  que  o  número  de  canais  de  K+  do  tipo  ROMK  (com  baixa condutância e alta probabilidade de abertura) que secretam K+ no ducto coletor cortical está diminuindo; assim como está diminuído  o  número  dos  maxicanais  para  K+,  cuja  resposta  depende  do  fluxo  nas  porções  distais  do  néfron.  Com  a maturação renal, há aumento de ambos os tipos de canais de K+. Há poucos trabalhos científicos referentes à maturação do transporte intestinal de K+.  O  intestino  do  neonato  é,  com certeza, capaz de reabsorver o K+ da dieta; todavia, o seu papel na regulação da excreção de K+ ainda não está esclarecido.

▸ Acidificação urinária A  placenta  exerce  papel  fundamental  na  manutenção  do  equilíbrio  acidobásico  do  feto.  No  final  da  gestação,  a  mãe mostra um pH sanguíneo ligeiramente básico, que pode ter efeito protetor caso o pH fetal sofra súbito declínio. Se no feto houver  acidose  metabólica,  causada  por  distúrbios  maternos  (diabetes  descompensado,  sepse  etc.)  ou  por  problemas  de perfusão uteroplacentária que levem à hipoxemia fetal, quantidade anormal de ácido orgânico pode ser originada, levando à queda  do  bicarbonato  fetal.  Inicialmente,  por  causa  da  difusão  de  CO2 pela  placenta,  a  porção  ácida  volátil  é  eliminada pelo pulmão materno. Entretanto, o lactato e outros ácidos fixos são menos difusíveis pela placenta. Foi  demonstrado  que  a  excreção  de  ácidos  cresce  com  a  progressão  da  gestação,  quer  por  aumento  do  RFG  ou  da excreção  de  amônia  e  de  acidez  titulável.  Portanto,  quanto  menor  o  RFG  do  feto,  mais  difícil  será  a  eliminação  de  sua sobrecarga  ácida.  Porém,  poucos  são  os  estudos  realizados  em  fetos  e  prematuros  humanos  com  relação  à  habilidade  de excreção de ácidos. No recém­nascido, a capacidade de eliminar cargas ácidas só é adequadamente adquirida após o primeiro mês de vida. O limiar de reabsorção de HCO3– no túbulo proximal é diminuído em relação ao do adulto, apesar de a anidrase carbônica estar presente e ativa na vida fetal. No pré­termo, o limiar é de 18 mEq/ℓ e na criança a termo é de cerca de 21 mEq/ℓ. O valor  de  24  a  26  mEq/ ℓ   só  é  desenvolvido  ao  final  do  primeiro  ano  de  vida.  É  provável  que  a  redução  do  limiar  de reabsorção  de  HCO3–  no  túbulo  proximal,  observada  em  pré­termos  e  neonatos,  seja  devida  à  imaturidade  de  seus transportadores iônicos. Em  adultos,  2/3  da  secreção  apical  de  prótons  são  mediados  pelo  trocador  Na+/H+  e  1/3  pela  H+­ATPase.  A  força movente  para  a  troca  Na+/H+ é  a  baixa  concentração  intracelular  de  Na+,  provocada  pela  atividade  da  Na+/K+­ATPase da membrana basolateral. No adulto, o efluxo celular de HCO3– pela membrana basolateral ocorre por meio do cotransporte Na+ HCO3–. Portanto, a queda da capacidade de acidificação tubular proximal poderá ser decorrente de alterações desses transportadores.  Vários  estudos  experimentais  evidenciam  que  tanto  o  trocador  Na+/H+  como  a  H+­ATPase  sofrem maturação com o passar do tempo; portanto, provavelmente, a capacidade limitada de reabsorção proximal de bicarbonato dos neonatos seja devida à maturação mais tardia desses transportadores. No  túbulo  distal  de  adultos,  em  condições  fisiológicas,  há  reabsorção  de  10%  a  15%  do  bicarbonato  que  escapou  da reabsorção  proximal;  e  parte  da  secreção  de  íon  H+ no  epitélio  distal  é  dependente  da  ação  da  aldosterona.  Já  no  túbulo distal de prematuros, pode ocorrer uma relativa insensibilidade à ação deste hormônio, o que dificulta a excreção renal de sua carga ácida. Em  adição  à  reabsorção  de  bicarbonato,  o  rim  deve  excretar  uma  quantidade  de  ácidos  equivalente  à  quantidade  de ácidos provocada pelo metabolismo. O indivíduo em crescimento necessita eliminar prótons liberados durante a formação do  osso,  que  são,  em  parte,  compensados  pela  reabsorção  de  radicais  alcalinos  no  trato  gastrintestinal  (TGI).  Devido  ao alto ritmo metabólico presente durante o crescimento, calcula­se que o rim do ser em crescimento deve excretar de 50% a 100% a mais de ácidos, por quilograma de peso, do que o do adulto. Para  a  adequada  excreção  renal  de  ácidos,  tampões  urinários  devem  estar  presentes  em  quantidade  suficiente  para evitar  que  o  pH  urinário  caia  a  valores  incompatíveis  com  a  integridade  dos  túbulos  renais.  A  excreção  renal  de  ácidos (resultante da soma da acidez titulável mais a excreção de amônio) é significantemente menor em rins de neonatos; mas, em crianças alimentadas com leite de vaca, a excreção de ácidos aos 7 dias de vida é similar à de adultos, se normalizada por  quilo  de  peso  corpóreo.  Crianças  alimentadas  com  leite  materno  exibem  teores  menores  de  acidez  titulável,  o  que reflete uma menor quantidade de fosfato na dieta. Crianças submetidas à sobrecarga de ácidos mostram menor capacidade de  excretar  amônio;  provavelmente,  isso  acontece  por  imaturidade  na  cadeia  metabólica  da  glutamina  (aminoácido responsável pela produção mitocondrial de amônio; mais detalhes no Capítulo 54, Papel do Rim na Regulação do pH do Líquido  Extracelular).  Esses  fatores  contribuem  para  que  prematuros  e  neonatos  lidem  mal  com  sobrecargas  ácidas, estando mais sujeitos a desenvolver quadros de acidose metabólica.

▸ Considerações sobre acidose tubular renal Embora  na  prática  clínica  a  maior  parte  das  acidoses  metabólicas  seja  decorrente  de  causas  não  renais,  em  algumas eventualidades  o  rim  torna­se  incapaz  de  excretar  cargas  ácidas.  A  acidose  tubular  renal  (ATR)  é  caracterizada  pela incapacidade de excretar cargas ácidas mesmo na presença de função glomerular normal ou perto da normalidade. Nestas condições,  ocorre  a  acidose  metabólica  hiperclorêmica  (com  elevação  de  Cl– no  plasma).  Estudos  funcionais  e  clínicos possibilitaram  a  descrição  de  quatro  tipos  de  ATR,  conforme  a  localização  do  defeito  tubular:  clássica,  distal  ou  tipo  1; proximal ou tipo 2; proximal e distal ou tipo 3 e acidose tubular renal hipercalcêmica (com elevação de K+ no plasma) ou tipo 4. Algumas  ATR  podem  ser  adquiridas  (p.  ex.,  em  intoxicações  medicamentosas  ou  por  metais)  e  outras  têm  origem genética, as chamadas ATR inerentes. Estudos em modelos experimentais e em ATR de causas genéticas possibilitaram o esclarecimento  não  apenas  das  bases  moleculares  destas  doenças,  mas  também  dos  processos  fisiológicos  que  regem  a acidificação urinária.

▸ Capacidade de concentração e diluição urinária O  rim  do  adulto  é  capaz  de  produzir  urina  concentrada  de  até  cerca  de  1.300  mOsm.  No  recém­nascido,  esta osmolalidade  fica  entre  400  e  600  mOsm.  Aos  6  meses,  há  um  incremento  na  capacidade  de  concentração  urinária  que, próximo  aos  18  meses,  alcança  os  níveis  vistos  no  adulto.  Em  crianças  a  termo,  a  capacidade  de  diluição  urinária  é próxima à do adulto, mas é limitada predominantemente pelo baixo RFG, que limita a formação de água livre. Vários  fatores  limitam  a  capacidade  de  concentração  urinária  do  recém­nascido.  No  adulto,  esta  capacidade  é dependente  do  gradiente  osmótico  encontrado  entre  as  diversas  estruturas  da  medula  renal,  o  qual  é  devido, primordialmente,  à  ureia  e  ao  cloreto  de  sódio.  No  neonato,  a  concentração  de  ureia  é  relativamente  baixa,  em  parte, devido  à  sua  pouca  ingestão  de  proteína.  Além  disso,  no  neonato,  o  transporte  de  NaCl  no  ramo  ascendente  espesso  da alça de Henle é menor, e isso também limita sua capacidade de concentrar a urina. O recém­nascido responde a mudanças do volume e da osmolalidade plasmática com adequada secreção de hormônio antidiurético (ADH). Por outro lado, a permeabilidade osmótica do ducto coletor, dependente da ação do ADH, parece ser menor  em  neonatos.  É  sabido  que  as  prostaglandinas  têm  um  papel  depressor  da  resposta  do  ducto  coletor  ao  ADH;  ou seja,  elas  inibem  a  adenilciclase,  impossibilitando  que  seja  originado  cAMP  a  partir  do  ATP,  etapa  fundamental  para  a ação  antidiurética  do  ADH  (para  mais  informações,  consulte Capítulo 53, Papel  do  Rim  na  Regulação  do  Volume  e  da Tonicidade do Líquido Extracelular). Em ductos coletores de neonatos, expostos ao ADH, a geração do cAMP é menor do que a provocada em ductos de adultos. Assim, é provável que a deficiência na ação antidiurética do ADH encontrada em neonatos  seja  devida  à  presença  de  altos  níveis  da  expressão  para  receptores  de  prostaglandinas  verificada  nesses indivíduos.

FISIOLOGIA GASTRINTESTINAL

▸ Ontogenia do sistema digestório do neonato O  sistema  digestório  no  neonato  e  nos  primeiros  anos  de  vida  caracteriza­se  por  peculiaridades  anatômicas, fisiológicas  e  funcionais  que  o  distinguem  do  sistema  digestório  do  adulto.  O  suprimento  de  aporte  nutricional  para  o neonato, principalmente para os prematuros, representa um desafio a ser enfrentado. Na  fase  de  gestação,  o  sistema  digestório  está  envolvido,  principalmente,  com  a  remoção  de  líquido  amniótico; enquanto a parte digestiva e absortiva é realizada pela placenta. Com o nascimento, o trato digestivo da criança, ainda que imaturo, tem de assumir a responsabilidade de suprir suas necessidades hidreletrolíticas e energéticas. O sistema digestório desenvolve­se, anatomicamente, até o final da 20a semana de gestação. No embrião, esse sistema é  um  dos  primeiros  a  exibir  polaridade,  ou  seja,  o  transporte  de  substâncias  do  feto  ou  para  o  feto  ocorre  de  maneira  a garantir  seu  crescimento  e  desenvolvimento.  Os  enterócitos  se  diferenciam,  há  a  delimitação  de  membrana  da  borda  em escova na porção luminal e formação da membrana basolateral. A seguir, formam­se as criptas intestinais e, no cólon do feto, aparecem algumas estruturas similares a vilos, com células capazes de transportar certas moléculas. Todos os 4 tipos de células presentes na mucosa intestinal – enterócitos, células de Paneth, células caliciformes e células neuroendócrinas – se originam de uma única linhagem celular, pluripotente.

O  plexo  nervoso  entérico  consiste  em  neurônios  que  se  situam  nas  camadas  do  trato  digestivo,  modulando  sua motilidade,  microcirculação,  secreção  e  respostas  imunológicas.  O  plexo  nervoso  inicia  sua  implantação  no  sistema digestório  ao  redor  da  13a semana  de  gestação  e  a  motilidade  intestinal  está  desenvolvida  no  3o  trimestre  da  gestação. Algumas alterações neste processo podem acarretar doenças como a doença de Hirschsprung. Nesta condição, o intestino deixa  de  exibir  motilidade  normal,  podendo  aparecer  quadros  de  obstipação  (constipação  intestinal  renitente)  intestinal, com  gravidade  variável.  Em  algumas  crianças,  a  própria  eliminação  do  mecônio  (fezes  do  recém­nascido)  pode  estar comprometida.  Em  outros  casos,  graus  de  obstipação  intestinal  podem  se  manifestar  mais  tarde,  durante  ou  após  a lactação ou mesmo na adolescência. O  desenvolvimento  funcional  do  sistema  digestório  inicia­se  durante  a  vida  fetal,  com  o  aparecimento  de  enzimas digestivas e hepáticas e com o desenvolvimento da superfície absortiva do intestino. A maioria dos processos necessários para  absorção  e  digestão  está  pronta  ao  redor  da  33a semana  de  gestação.  O  funcionamento  adequado  do  TGI  do  feto  é importante  para  a  homeostase  do  líquido  amniótico;  este,  por  sua  vez,  contém  nutrientes,  hormônios  e  fatores  de crescimento, que estimulam a secreção de peptídios regulatórios que controlam a maturação do TGI. A maior parte dos polipeptídios – incluindo gastrina, motilina e somatostatina – está presente no final do 1o trimestre de gestação; esses polipeptídios agem como indutores do crescimento e desenvolvimento do TGI. O transporte intestinal de  aminoácidos  aparece  ao  redor  da  14a  semana,  o  de  glicose  cerca  da  18a  semana  e  o  dos  ácidos  graxos  próximo  da 24a semana. Os  vilos  intestinais  começam  a  se  desenvolver  ao  redor  da  9a  semana,  estão  presentes  no  intestino  delgado  na 14a semana e têm criptas e vilos bem desenvolvidos na 19a semana. Ao nascimento, os vilos e microvilos aumentaram a superfície  absortiva  intestinal  de  até  100.000  vezes  em  relação  à  exibida  no  1o trimestre  da  gestação.  A  motilidade  e  a peristalse desenvolvem­se gradualmente, e amadurecem no 3o trimestre de gestação. O mecônio é encontrado ao redor da 11a semana de gestação e se move para o cólon ao redor da 16a semana. A  circulação  intestinal  dos  recém­nascidos  difere  da  dos  adultos.  No  período  imediatamente  após  o  nascimento,  a resistência vascular basal intestinal é baixa, possivelmente devido à produção de óxido nítrico. Esta queda da resistência pode  proteger  as  alças  intestinais  em  períodos  de  hipoxia  ou  hipotensão.  Crianças  nascidas  pré­termo  podem  não  exibir esta  vasodilatação  –  a  qual  é  a  resposta  necessária  à  hipoperfusão  das  alças  intestinais  –  podendo  apresentar,  então, isquemia de alças intestinais até atingir necrose. Os principais eventos do desenvolvimento do TGI estão mostrados no Quadro 79.2.

▸ Características gerais do intestino A mucosa intestinal permanece relativamente imatura nos primeiros 4 a 6 meses, e exibe aumento na permeabilidade a macromoléculas.  Durante  este  período,  antígenos  e  outras  macromoléculas  podem  ser  transportados  pelo  epitélio intestinal, deixando a criança vulnerável a processos alérgicos ou infecciosos. Com  a  maturação,  o  transporte  de  macromoléculas  diminui.  Ao  nascimento,  o  intestino  é  estéril;  mas  é  rapidamente colonizado, e a colonização depende do tipo de alimentação, se por leite materno ou leites industrializados. A colonização ocorre  em  2  estágios.  No  primeiro  estágio,  do  nascimento  até  o  final  da  1a  semana,  a  criança  entra  em  contato  com microrganismos  durante  e  imediatamente  após  o  parto.  No  segundo  estágio,  o  tipo  de  dieta  influencia  a  colonização.  A flora normal do TGI provê um importante mecanismo de proteção contra infecções intestinais, por ocupar possíveis locais de  colonização  indesejável.  Os  oligossacarídios  do  leite  humano  se  ligam  a  receptores  na  mucosa  e,  assim,  impedem  a colonização  inadequada.  Em  geral,  o  intestino  delgado  é  estéril  e  pouco  colonizado,  possivelmente  graças  aos  seguintes fatores:  pH  gástrico,  propriedades  bactericidas  da  bile,  imunoglobulinas  secretadas  e  sua  própria  motilidade.  A colonização por coliformes desta região pode ocorrer em crianças prematuras ou com alimentação enteral ou transpilórica. Em crianças prematuras, a queda da motilidade intestinal pode ser um dos fatores que facilitam esta colonização (Figura 79.10).

▸ Maturação anatômico­funcional do trato gastrintestinal A  maturação  anatômico­funcional  do  TGI  pode  ser  estudada  tendo  em  vista  quatro  assuntos:  o  reflexo  de  sucção  e deglutição, a motilidade do esôfago, o esvaziamento gástrico e a motilidade intestinal.

▸ Sucção e deglutição

Entre a 13a e a 15a semana, os fetos respondem à estimulação oral com movimentos da língua e reflexo de sucção. A deglutição inicia­se ao redor da 12a semana do feto; na 16a semana, é de 2 a 6 mℓ de líquido amniótico por dia e no feto a termo ela aumenta para 200 a 600 mℓ/dia. Ao redor da 34a semana, o reflexo e a frequência de deglutição estão perto do normal.  O  reflexo  de  sucção  está  mais  relacionado  com  a  idade  gestacional  do  que  com  a  idade  pós­natal.  Próximo  da 37a semana, a sucção está já desenvolvida. Estes  dois  processos,  sucção  e  deglutição,  podem  não  estar  adequadamente  coordenados  em  crianças  prematuras; interessante notar que, em crianças que são amamentadas, esta coordenação parece ser mais precoce do que nas crianças alimentadas com mamadeiras. Após as primeiras 24 a 48 h de vida extrauterina, é estabelecido o padrão de frequência de sucção e deglutição, que é mantido ao longo dos primeiros meses de vida.

Quadro 79.2 ■ Principais eventos do desenvolvimento do trato gastrintestinal. Desenvolvimento

Semanas de gestação

anatômico

Desenvolvimento

Semanas de gestação

funcional

Esôfago

 

Deglutição

10 a 14

Epitélio escamoso

28

Reflexo sucção­

32 a 35

deglutição Estômago

 

Glândulas gástricas piloro 14

Estômago

 

Motilidade e secreção

20

e fundo gástrico Pâncreas

 

Pâncreas

 

Diferenciação de tecido

14

Grânulos de zimogênio

20

Fígado

 

Fígado

 

Identificação da

11

Metabolismo biliar

11

Secreção biliar

22

exócrino e endócrino

lobulação hepática Intestino delgado

 

Intestino delgado

 

Criptas e vilos

14

Transporte de

14

aminoácidos Transporte de glicose Absorção de ácidos graxos

18 24

Figura 79.10 ■ Possíveis  fatores  que  predispõem  crianças  prematuras  à  enterocolite  necrosante.  (Adaptada  de  Neu  e  Weiss, 1999.)

O  reflexo  de  sucção  e  deglutição  deve  estar  adequadamente  coordenado  com  a  respiração.  A  partir  da  38a semana de gestação,  as  crianças  facilmente  coordenam  estes  processos.  A  posição  da  laringe  no  recém­nascido,  situada  de  maneira mais alta em relação à faringe, facilita o fechamento da epiglote e o acesso de líquidos para o esôfago. Até os 3 meses de idade, os sólidos colocados na boca da criança serão forçados pela língua contra o palato e, então, deglutidos ou colocados para fora da boca. Após esta idade, as crianças conseguem posicionar pequenas porções sólidas para a parte posterior da cavidade oral e, assim, ocorre a deglutição normal.

▸ Motilidade esofágica, gástrica e intestinal Nas primeiras 12 h após o nascimento, a motilidade esofágica está diminuída. O tamanho da parte inferior do esfíncter esofágico está reduzido e seu posicionamento, acima do diafragma, pode facilitar o refluxo. O refluxo também é facilitado em  lactentes,  devido  ao  ângulo  entre  esôfago  e  estômago  ser  menos  agudo.  Em  algumas  crianças,  o  tônus  do  esfíncter esofágico permanece diminuído até os 12 meses de vida, o que explica o fato de algumas crianças apresentarem episódios de regurgitação até esta idade. A  motilidade  gástrica  e  o  tempo  de  esvaziamento  gástrico  estão  diminuídos  no  recém­nascido,  principalmente  nas primeiras  72  h.  Esta  ocorrência  pode  estar  baseada  em  uma  falta  de  resposta  a  hormônios  e  fatores  locais.  Nos  recém­ nascidos,  a  gastrina  elevada  dificulta  o  esvaziamento  gástrico.  Outros  fatores  também  podem  influenciar  o  esvaziamento gástrico, tais como: presença de muco, líquido amniótico, tônus do esfíncter pilórico e tipo de alimento. Os carboidratos aceleram o esvaziamento, enquanto as gorduras o atrasam. O leite humano é esvaziado duas vezes mais rápido do que as fórmulas lácteas comercialmente disponíveis. A capacidade gástrica de uma criança é cerca de 6 mℓ/kg de peso corpóreo;

em  pré­termos,  grandes  volumes  residuais  podem  causar  distensão  gástrica  e  interferência  na  capacidade  de  ingestão alimentar. Em adultos, a ingestão de leite desencadeia aumento da motilidade intestinal. Entretanto, em pré­termos, a ingestão de leite  pode  causar  queda  na  motilidade  ou  pode  não  ter  qualquer  efeito  sobre  ela.  Esta  resposta  inadequada  parece  ser devida à não maturidade à resposta vagal. Em pré­termos, a alteração na motilidade pode levar a diminuição da propulsão de alimento, maior tempo de esvaziamento gástrico e diminuição no trânsito intestinal, o que pode dificultar a capacidade de ingestão e absorção de alimento.

▸ Digestão e absorção de carboidratos A glicose materna é a principal fonte energética para o feto. As dissacaridases estão presentes a partir da 9a semana de gestação, aumentando bastante após a 20a semana. As amilases, salivar e pancreática, são detectadas no líquido amniótico entre a 16a e a 18a semana de gestação. Ao nascimento, a amilase salivar é cerca de 1/3 da dos adultos; seu aumento – que acontece, principalmente, a partir do 40o mês de vida infantil – pode ser devido à presença de outros tipos de alimentos na dieta da criança. A amilase pancreática está diminuída nos recém­nascidos, e seus níveis adequados são alcançados entre o 4o e o 6o mês de vida. Os  recém­nascidos  mostram  níveis  adequados  das  alfaglucosidases  sucrase,  maltase  e  isomaltase.  Algumas  semanas antes do nascimento, a sucrase e a maltase já exibem níveis altos. A enzima glicoamilase – presente na borda em escova da célula intestinal – digere alguns compostos presentes em fórmulas artificiais; ela está distribuída ao longo do intestino delgado e facilita a digestão e absorção de carboidratos. O mais importante carboidrato presente no leite humano e no de vaca é a lactose. Entre a 8a e a 9a semana de gestação, a lactase – enzima fundamental na clivagem da lactose em glicose e galactose – é detectada no início do intestino delgado; posteriormente, esta enzima é encontrada ao longo de todo o delgado. A atividade da lactase aumenta rapidamente no final da gestação e, no recém­nascido, sua atividade é de 2 a 4 vezes maior do que em crianças adultas. Em crianças pré­termo, a quantidade de lactase é diminuída, mas aumenta com a exposição à lactose. A lactose que não é absorvida pelo intestino delgado  vai  para  o  intestino  grosso,  onde  ocorre  fermentação.  A  fermentação  bacteriana  dos  carboidratos  produz  lactato, acetato  e  propionato,  que  são  fonte  calórica  e  aumentam  a  absorção  de  líquido  e  de  eletrólitos.  O  tratamento  com antibióticos  pode  alterar  a  flora  intestinal,  impedindo  a  absorção  de  lactose.  Após  o  desmame,  a  lactase  diminui  na infância e adolescência, principalmente, em regiões em que o consumo de leite é menor. Por vezes, esta queda na lactase ocasiona a síndrome de intolerância à lactose. Outra  dissacaridase  que  aparece  ao  redor  da  9a  semana  de  gestação  é  a  sucrase­isomaltase;  a  sucrase  hidrolisa  a sacarose em glicose e frutose. Próximo ao nascimento, esta enzima mostra um aumento significativo. O transporte de glicose pelo transportador situado na borda em escova do intestino, o SGL1, aparece juntamente com a diferenciação das células colunares do epitélio intestinal. Um sistema alternativo de transportador de glicose e frutose em humanos, o GLUT2, tem menor afinidade e alta capacidade de transporte; ao nascimento, esse transportador é altamente expresso na membrana basolateral. O transportador GLUT1 também aparece precocemente na gestação, mas sua expressão diminui com a progressão da gestação. A  frutose  é  pouco  reabsorvida  no  recém­nascido  e  na  infância.  Se  houver  sobrecarga  desse  carboidrato  na  dieta, alguma frutose escapa da reabsorção e aparece no intestino grosso, podendo causar diarreia osmótica.

▸ Digestão e absorção de proteínas O  pH  gástrico  do  recém­nascido  é  neutro  ou  levemente  alcalino.  Os  fatores  que  contribuem  para  o  aumento  do  pH gástrico  durante  o  desenvolvimento  fetal  são  a  diminuição  da  secreção  ácida  e  do  ritmo  de  esvaziamento  gástrico  e  a presença  de  líquido  amniótico.  As  mudanças  do  pH  gástrico  reduzem  a  atividade  da  pepsina  e  a  hidrólise  péptica.  A secreção ácida aumenta nas primeiras 24 h após o nascimento e dobra em 2 meses. A produção de pepsinogênio é baixa nos primeiros meses de vida. Embora os níveis de gastrina sejam elevados, os receptores para este hormônio podem ser não sensíveis ou em número diminuído. Nos recém­nascidos, os níveis de atividade da tripsina e de outros hormônios proteolíticos pancreáticos podem estar diminuídos;  também  a  quimiotripsina,  a  carboxipeptidase  B  e  a  enteroquinase  apresentam  menor  atividade.  Como  a enteroquinase  ativa  a  tripsina,  que,  por  sua  vez,  ativa  outras  enzimas  proteolíticas,  o  nível  de  enteroquinase  é  o  fator limitante  para  a  digestão  proteica.  Em  recém­nascidos  a  termo,  estas  deficiências  enzimáticas  parecem  não  ter  grande

repercussão sobre a absorção de proteínas; mas, em pré­termos, a ingestão de grandes quantidades de proteínas pode ser problemática, principalmente das presentes nas fórmulas comercialmente disponíveis. No  recém­nascido,  são  bem  desenvolvidas  as  peptidases  da  borda  intestinal  e  as  citosólicas,  das  quais  depende  a absorção de aminoácidos. O transporte de aminoácidos aumenta consideravelmente após o nascimento. Todos os sistemas de transporte de aminoácidos – neutros, ácidos, básicos e imino – são funcionais entre a 17a e a 20a semana de gestação; mas, o transporte de lisina e fenilalanina aparece mais tarde do que o de alanina, leucina, taurina e valina.

▸ Digestão e absorção de gorduras No  recém­nascido,  principalmente  se  prematuro,  a  digestão  de  gorduras  é  diminuída,  pois  depende  da  lipase pancreática e dos sais biliares. Em  humanos,  a  atividade  da  lipase  pancreática  é  detectada  ao  redor  da  32a semana  de  gestação.  Ao  nascimento,  ela permanece  baixa  e  aumenta  na  10a  semana  após  o  parto.  O  baixo  nível  da  lipase  pancreática  e  dos  ácidos  biliares  é compensado  pela  lipase  presente  no  leite  humano  (lipase  mamária  ou  lipase  digestora  de  leite)  e  pelas  lipases  lingual  e gástrica.  Estas  duas  últimas  são  detectadas  na  26a  semana  de  gestação;  ao  nascimento  têm  alta  atividade,  hidrolisando entre 50% e 60% da gordura da dieta. Após  o  nascimento,  a  pinocitose  dos  lipídios  pelas  células  intestinais  é  importante.  Uma  vez  tomados  pelos enterócitos,  os  lipídios  são  transformados  em  triglicerídios,  fosfolipídios  e  ésteres  de  colesterol.  As  crianças  têm  maior capacidade de reabsorver triglicerídios de cadeias curta e média, que não dependem da formação de micelas que, por sua vez, necessitam da presença de ácidos biliares no lúmen intestinal. Entre a 14a e a 16a semana de gestação, a bile pode ser identificada no fígado e vesícula biliar; mas, mesmo no fim da gestação, o pool de ácidos biliares permanece baixo. A conjugação hepática de ácidos biliares é dependente de taurina, em vez de glicina, como no adulto. A queda na reserva de ácidos biliares é devida a menor síntese, recirculação e conservação de sais biliares pelo shunt êntero­hepático, como resultado da imaturidade do fígado e dos transportes intestinais.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O METABOLISMO ENERGÉTICO

▸ Metabolismo fetal Antes do nascimento, o feto é inteiramente dependente da transferência contínua de nutrientes maternos pela placenta; e a produção de glicose pelo feto parece ser insignificante. A concentração de glicose fetal é muito próxima da materna; e o pool de  glicose  fetal  encontra­se  em  equilíbrio  com  o pool de  glicose  materna.  Embora  as  enzimas  necessárias  para  a gliconeogênese  estejam  bem  desenvolvidas  ao  redor  da  8a semana  de  gestação,  ela  não  ocorre  em  uma  gestação  normal. Cerca de 60% da glicose utilizada pela placenta são convertidos em lactato; chega em proporção considerável para o feto, e é  utilizada  como  fonte  para  o  metabolismo  energético  e  não  energético  (p.  ex.,  síntese  de  glicogênio),  sendo  a  principal fonte  energética  para  o  feto,  sob  condições  fisiológicas.  No  terceiro  trimestre  de  gestação,  a  glicose  é  armazenada  como tecido adiposo, em preparação para o metabolismo após o nascimento. As enzimas necessárias para a formação de glicogênio estão desenvolvidas ao final do 20o mês de vida intrauterina e a deposição de glicogênio começa cedo durante a gravidez. Aminoácidos são ativamente transportados para o feto; a placenta humana também é permeável a triglicerídios, ácidos graxos, glicerol e cetoácidos.

▸ Mudanças metabólicas após o nascimento Nas primeiras horas após o nascimento, a produção de glicose endógena é em torno de 4 a 5 mg/kg/min. Existe uma relação linear entre produção de glicose e peso do cérebro, uma vez que a massa cerebral corresponde entre 10% e 12% do peso  total  do  corpo.  A  glicose  entra  no  tecido  cerebral  por  difusão  facilitada,  mediada  pelos  transportadores  GLUT1  e GLUT3. No entanto, no neonato humano em jejum, a oxidação da glicose pode suprir apenas 70% da demanda energética do  cérebro;  as  fontes  suplementares  são  o  lactato  e  os  corpos  cetônicos.  É  interessante  notar  que  o  cérebro,  nestas circunstâncias,  é  capaz  de  utilizar  corpos  cetônicos  em  um  ritmo  4  a  40  vezes  maior  do  que  aquele  exibido  por  crianças mais velhas ou adultos. Imediatamente após o nascimento, o lactato também é uma importante fonte energética. Estudos do perfil glicêmico em neonatos mostram que, após o parto, os níveis de glicose caem rapidamente, chegando ao mínimo entre 30 e 90 min após o nascimento. No entanto, por volta da 12a à 24a hora de vida, mesmo na ausência de

alimentação,  a  glicose  começa  a  subir  e  estabiliza  entre  2,4  e  5  mmol/ ℓ .  Em  crianças  amamentadas  adequadamente,  os níveis de glicose permanecem estáveis, mesmo se um prazo maior se estabelecer entre as mamadas. Estes  níveis  normais  de  glicose  são  em  pequena  parte  devidos  à  glicogenólise,  mas  a  gliconeogênese  assume  um importante  papel.  No  neonato,  a  capacidade  gliconeogênica  é  limitada  devido  à  baixa  atividade  da  fosfoenolpiruvato carboxiquinase,  mas  esta  atividade  aumenta,  influenciada  pela  queda  na  relação  insulina/glucagon.  Logo  após  o nascimento, a gliconeogênese aumenta graças ao uso do lactato, alanina e glicerol como fontes de glicose. Durante  as  primeiras  8  h  de  vida,  os  corpos  cetônicos  são  baixos,  apesar  de  haver  níveis  plasmáticos  adequados  de ácidos  graxos  livres,  seus  precursores.  No  entanto,  após  as  primeiras  12  h  de  vida,  crianças  saudáveis  já  exibem  níveis elevados de corpos cetônicos e, após 72 h, os níveis de corpos cetônicos são similares aos de crianças mais velhas. Esta fonte  pode  ser  responsável  por  cerca  de  25%  das  necessidades  energéticas  basais,  em  recém­nascidos,  sendo  que  uma vigorosa cetogênese faz parte das adaptações metabólicas da vida extrauterina. A insulina plasmática permanece baixa por alguns dias após o nascimento; porém, em comparação com a de crianças mais  velhas,  ela  é  relativamente  alta  se  correlacionada  com  os  níveis  de  glicemia.  A  baixa  na  glicemia  não  é  capaz  de ativar uma resposta supressora de insulina similar à encontrada em crianças mais velhas ou em adultos. Em neonatos de 1 a 3 dias de idade, os níveis de glucagon estão elevados, permanecendo assim durante a primeira semana de vida.

BIBLIOGRAFIA Balanço hídrico COSTARINO A, BAUMGART S. Modern fluid and electrolyte management of the critically ill premature infant. Pediatr Clin North Am, 33:153­78, 1986.

Função pulmonar CREUWELS  LAJM,  VAN  GOLDE  LMG,  HAAGSMAN  HP.  The  pulmonary  surfactant  system:  biochemical  and  clinical aspects. Lungs, 175:1­39, 1997. GILBERT WM, BRACE RA. Amniotic fluid volume and normal flows to and from the amniotic cavity. Semin Perinatol, 17:150­ 7, 1993. JAIN L, EATON DC. Physiology of fetal lung fluid clearance and the effect of labor. Semin Perinatol, 30:34­43, 2006. STEGGERDA  J,  MAYER  CA,  MARTIN  RJ  et  al.  Effect  of  intermittent  hypercapnia  on  respiratory  control  in  rat pups. Neonatology, 97:117­23, 2010. SOVIK  S,  LOSSIUS  K.  Development  of  ventilatory  response  to  transient  hypercapnia  and  hypercapnic  hypoxia  in  term infants. Pediatr Res, 55:302­9, 2009. WERT SE. Normal and abnormal structural development of the lung. In: POLIN RA, FOX WW, ABMAN SH (Eds.). Fetal and neonatal physiology. 3. ed. Saunders, Philadelphia, 2004.

Fisiologia cardiovascular ANDERSON PAW. The heart and development. Semin Perinatol, 20:482­509, 1996. DE SWIET M, FAYERS P, SHINEBOURNE EA. Blood pressure in first 10 years of life: the Brompton study. BMJ,  304:23­6, 1992. JACKSON LV, THALANGE NKS, COLE TJ. Blood pressure centiles for Great Britain. Arch Dis Child, 92:298­303, 2007. KENT AL, KECSKES Z, SHADBOLT B et al. Blood pressure in the first year of life in healthy infants born at term.  Pediatr Nephrol, 22:1743­50,2007. LAHMERS S, WU Y, CALL DR et al. Development control of titin isoform expression and passive stiffness in fetal and neonatal myocardium. Circ Res, 94:505­13, 2004. The Fourth Report on the Diagnosis, Evaluation, and Treatment of High Blood Pressure in Children and Adolescents. National High  Blood  Pressure  Education  Program.  Working  Group  on  High  Blood  Pressure  in  Children  and Adolescents. Pediatrics, 114:555­76, 2004. WIERNINCK RF, COJOC A, ZEIDENWEBER CM et al. Force frequency relationship of the human ventricule increases during early posnatal development. Pediatr Res, 65:414­9, 2009.

Fisiologia renal BAUM M. Development changes in proximal tubule NaCl transport. Pediatr Nephrol, 23:185­94, 2008.

BAUM  M,  QUIGLEY  R,  SATLIN  L.  Postnatal  Renal  Development.  In:  ALPERN  RJ,  HERBERT  SC,  SELDIN  DW  et  al. (Eds.). Seldin and Giebisch’s the Kidney: Physiology & Pathophysiology. 4. ed. Elsevier Academic Press, Boston, 2008. BECKER AM, ZHANG J, GOYAL S et al. Ontogeny of NHE8 in the rat proximal tubule. Am J Physiol, 293:F255­61, 2007. BOBULESCU A, MOE OW. Luminal Na/H exchange in the proximal tubule. Eur J Physiol, 458:5­21, 2009. DRESSLER GR. The cellular basis of kidney development. Annu Rev Cell Dev Biol, 22:509­29, 2006. GUIGNARD JP, JOHN EG. Renal function in the tiny, premature infant. Clin Perinatol, 13:377­401, 1986. OH  W,  GUIGNARD  JP,  BAUMGART  S  et  al.  Nephrology  and  Fluid/Electrolyte  Physiology:  Neonatology  Questions  and Controversies. Saunders/Elsevier, Philadelphia, 2008. RHODIN MM, ANDERSON BJ, PETERS AM et al. Human renal function maturation: a quantitative description using weight and posmenstrual age. Pediatr Nephrol, 24:67­76, 2009. SIEGEL SR, OH W. Renal function as a marker of human fetal maturation. Acta Pedriatr Scand, 65:481­5, 1976. YU J, McMAHON AP, VALERIUS MT. Recent genetic studies of mouse kidney development. Curr Opin Genet Dev, 14:550­7, 2004.

Fisiologia gastrintestinal BERSETH  C.  Developmetal  anatomy  and  physiology  of  the  gastrintestinal  tract.  In:  HW  TAEUSCH,  RA  BALLARD,  CA GLEASON (Eds.). Avery’s diseases of the newborn. 8. ed. Saunders, Philadelphia, 2005. DROZDOWSKI  LA,  CLANDININ  T,  THOMSON  ABR.  Ontogeny,  growth  and  development  of  the  small  intestine: understanding pediatric gastroenterology. World J Gastroent, 21:787­99, 2010. LEBENTHAL A, LEBENTHAL E. The ontology of the small intestinal epithelium. J Parent Enteral Nutr, 23:S5, 1999. NEU J. Gastrintestinal maturation and feeding. Seminars Perinatol, 30:77­80, 2006. NEU J, WEISS MD. Necrotizing enterocolitis: pathophysiology and prevention. JPEN J Parenter Enteral Nutr, 23:S13­7, 1999. PLATT MW, DESHPANDE S. Metabolic adaptation at birth. Semin Fetal Neonatal Med, 10:341­50, 2005.



Introdução

■ ■

Alterações na estrutura corporal Alterações no sistema imunológico

■ ■ ■

Alterações no sistema endócrino Alterações no sistema nervoso central Alterações no sistema cardiovascular

■ ■

Alterações no sistema respiratório Alterações no sistema renal

■ ■ ■

Alterações no sistema digestório Sistema hematopoético Bibliografia

INTRODUÇÃO O  envelhecimento  humano  é  caracterizado  por  declínio  lento  e  insidioso  na  estrutura  e  na  função  orgânica  que  se desenvolve após a maturação sexual e o fenótipo adulto jovem. O  processo  fisiológico  de  envelhecimento,  denominado  senescência,  pode  ser  entendido  como  declínio  ou  mesmo deterioração das propriedades funcionais em níveis celulares, teciduais e orgânicos. Essas alterações funcionais produzem diminuição na capacidade do organismo em manter a homeostase e a adaptação a situações de estresse, tanto interno como externo, aumentando assim a sua vulnerabilidade às doenças e à morte. No envelhecimento, há um desequilíbrio orgânico que dificulta a manutenção de estruturas moleculares específicas e de suas vias metabólicas, o que dificulta a manutenção das  condições  homeostáticas  e  homeodinâmicas.  Em  resumo,  a  senescência  é  caracterizada  pela  redução  das  reservas funcionais orgânicas e, em situações de sobrecarga sistêmica, os mecanismos fisiológicos de compensação podem não ser tão eficientes.

Senescência Redução  das  reservas  funcionais  em  conjunto  com  alterações  do  mecanismo  de  controle  da  atividade das células, tecidos e sistemas, que ocorrem com o envelhecimento normal. Há  uma  variabilidade  individual  quanto  ao  início,  ritmo,  velocidade  e  extensão  da  progressão  do  processo  de envelhecimento.  Diferenças  nessas  manifestações  dependem  das  divergências  na  capacidade  funcional  dos  indivíduos. Essa capacidade funcional é uma medida direta da habilidade das células, dos tecidos e dos sistemas orgânicos em operar apropriada  e  otimamente,  sendo  influenciada  por  genes  e  pelo  ambiente.  As  funções  celulares,  teciduais  e  orgânicas adequadas  refletem  em  bom  funcionamento  dos  mecanismos  homeodinâmicos  e  de  suas  vias  de  manutenção.  Esses

mecanismos de manutenção incluem: a reparação de danos ao ácido desoxirribonucleico (DNA), a detecção e depuração de proteínas defeituosas e lipídios, a depuração de células e organelas defeituosas, bem como a defesa contra patógenos e aos danos por eles causados. Muitas  das  teorias  fisiológicas  sobre  o  envelhecimento  se  baseiam,  conceitualmente,  nesses  mecanismos  de manutenção homeodinâmicos, pois estes interferem nas respostas celulares induzindo: a apoptose, a senescência, o reparo e a resposta sistêmica da ativação imune e da inflamação. Por exemplo, quando o dano ao DNA é muito grande para ser reparado,  a  célula  entra  em  apoptose.  Ou  ainda,  as  células  podem  responder  aos  danos  causados  por  radicais  livres  ao DNA  induzindo  à  senescência  ou,  então,  iniciando  o  processo  de  apoptose.  O  dano  oxidativo  e  a  apoptose  celular correlacionam­se  negativamente  com  o  mecanismo  autofágico  de  reparo  e,  quando  há  acúmulo  de  uma  variedade  de alterações  bioquímicas  não  reparadas,  a  função  de  ácidos  nucleicos,  de  proteínas  e  de  membranas  lipídicas  torna­se prejudicada. Sabe­se também que as proteínas aberrantemente modificadas, devido à glicação não enzimática ou a radicais livres,  podem  induzir  à  inflamação;  e  esta,  associada  à  resposta  imune,  desencadeia  em  grande  parte  o  processo  de apoptose celular. Muitas dessas proteínas podem exercer uma ação regulatória na atividade da enzima telomerase e, assim, influenciar  a  sobrevivência  e  a  senescência  celular,  uma  vez  que  a  destruição  do  telômero  é  o  principal  determinante  do envelhecimento sistêmico. As alterações epigenéticas, tais como a metilação do DNA e a acetilação de histonas, também participam  dos  mecanismos  indutores  da  senescência.  A  extensão  na  qual  as  células  diferenciadas  são  afetadas  pelo envelhecimento  determina  a  função  fisiológica;  enquanto  a  extensão  na  qual  as  células  pluripotenciais  (stem  cells)  são afetadas determina a capacidade de substituir as células danificadas e reparar os tecidos. Um fenômeno bem documentado do envelhecimento é a amplamente distribuída deterioração da eficiência do sinal de transdução. Exemplos disso incluem: (1) a redução na resposta de vasodilatação do endotélio ao estrógeno, possivelmente relacionada  com  a  progressiva  metilação  do  gene  receptor  de  estrógeno  (uma  alteração  epigenética)  e  (2)  a  redução  da responsividade  das  células  de  Leydig  à  estimulação  gonadocoriônica,  provavelmente  devido  a  alteração  bioquímica  na membrana celular. Assim, no envelhecimento biológico há uma progressiva e, de certo modo, previsível perda da coordenação celular e da função tecidual, de tal maneira que o organismo se torna gradualmente menos capaz de se reproduzir e de sobreviver. A velocidade desse processo é espécie­específica, e as alterações são manifestadas por meio de múltiplos órgãos e sistemas. A deterioração da função é heterogênea entre os sistemas e os indivíduos; inicialmente, é detectável como uma perda da capacidade  e  da  habilidade  de  restaurar  a  homeostase  sob  condições  de  estresse  e,  posteriormente,  é  detectável  pela alteração de função em repouso.

ALTERAÇÕES NA ESTRUTURA CORPORAL No transcorrer do envelhecimento, ocorrem significativas alterações na composição corpórea do indivíduo, como, por exemplo, redução no volume de água do organismo, principalmente aquele instalado no compartimento intracelular. Essa redução de água é observada ao longo das diversas fases do desenvolvimento humano (Figura 80.1). Essa  alteração  no  volume  hídrico  deve  ser  considerada  ao  se  avaliarem  parâmetros  clínicos  de  um  idoso,  tanto  com finalidade  diagnóstica  como  terapêutica,  para  evitar  que  procedimentos  indevidos  resultem  em  iatrogenia  (ou  efeitos deletérios provocados pelo tratamento) a essas pessoas. Com  o  envelhecimento,  ocorre  também  uma  alteração  na  massa  magra  do  indivíduo,  com  importante  perda  de musculatura estriada esquelética. Estima­se uma perda de 10% dessa massa muscular entre os 30 e os 50 anos e de cerca de 1% ao ano a partir dessa idade, o que ocasiona uma redução da taxa metabólica basal de aproximadamente 4% ao ano, nessa fase da vida. Há redução no número e volume das fibras musculares do tipo II, envolvidas no processo de contração muscular rápida e, também, redução no número de neurônios alfa motores espinais, principal razão para a perda de fibras musculares. Essas alterações acarretam um prejuízo funcional aos idosos, principalmente pelas perdas da massa e da força muscular, essenciais para a realização de suas atividades no dia a dia. Vários medicamentos utilizados pelos idosos, para tratamento  de  suas  possíveis  doenças,  também  atuam  no  tecido  muscular  e  devem  ser  administrados  com  cautela.  A musculatura  esquelética  é  o  tecido  corporal  que  contém  mais  de  50%  das  proteínas  orgânicas.  Adicionalmente,  o  tecido muscular está entre os principais alvos da ação de insulina, hormônio que promove ativamente o anabolismo proteico, o qual ocorre na presença de concentrações normais ou elevadas de aminoácidos sistêmicos.

Figura 80.1 ■ Porcentagem de água corporal no transcorrer da vida do indivíduo.

A sarcopenia é definida como redução na massa magra e na força muscular, sendo considerada uma marca do processo de envelhecimento. Vários mecanismos podem ser implicados no seu aparecimento: perda dos neurônios alfa motores na medula,  deficiência  nas  secreções  de  hormônio  do  crescimento  (GH)  e  de  fator  de  crescimento  insulina­símile  (IGF­I), deficiência  na  produção  de  andrógenos  e  de  estrógenos,  inadequada  ingestão  proteica,  desregulação  na  produção  de citocinas  catabólicas  e  reduzida  atividade  física  (Figura  80.2).  Geralmente,  é  aceito  que  as  alterações  da  composição corporal  relacionadas  com  o  envelhecimento  dependem  dos  baixos  níveis  de  hormônios  anabólicos,  de  alterações neuromusculares e do declínio do turnover na proteína muscular. Essa alteração na quantidade e na qualidade de proteína contrátil contribui para a debilidade física e perda de independência funcional. Portanto, a redução na massa muscular e a prolongada inatividade física nos idosos pode diminuir a sensibilidade à insulina e, consequentemente, impedir a utilização adequada de glicose, seu armazenamento e seu uso em tecidos periféricos, principalmente no músculo. Outro  tecido  que  sofre  alteração  com  a  idade  é  o  tecido  gorduroso,  que  tende  a  aumentar  percentualmente  no organismo  ao  longo  dos  anos,  principalmente  após  os  65  anos  de  idade;  funcionando  como  um  importante  reservatório para  a  distribuição  de  drogas  lipofílicas  que  nele  ficam  acumuladas,  representa  uma  modificação  de  significância  clínica para  o  idoso.  O  acúmulo  desproporcional  desse  tecido  tende  a  ocorrer  nas  regiões  abdominal,  visceral  e  intramuscular (Figura 80.3).

Características da sarcopenia ↓ Massa muscular esquelética ↓ VO2 máx, força e tolerância ao exercício ↓ Termorregulação ↓ Gasto energético ↑ Resistência insulínica VO2 máx = máxima concentração de oxigênio no sangue venoso

Figura 80.2 ■ Fatores responsáveis pelo aparecimento da sarcopenia. Descrição no texto.

ALTERAÇÕES NO SISTEMA IMUNOLÓGICO A  maioria  dos  mecanismos  imunológicos  desenvolve  adaptações  durante  o  processo  de  envelhecimento,  havendo redução  em  algumas  funções  do  sistema  imune  adaptativo  e,  por  outro  lado,  um  aumento  em  funções  do  sistema  imune inato. O  sistema  imune  inato  é  a  primeira  linha  de  defesa  orgânica  contra  patógenos;  consiste  em  mecanismos  de  defesa celulares  e  bioquímicos  que  respondem  rapidamente  a  infecções,  funcionando  de  maneira  semelhante  nas  diferentes situações infecciosas. Seus principais componentes são: as barreiras físicas e químicas, as células fagocíticas (neutrófilos e  macrófagos),  as  células  natural  killer  (NK),  as  proteínas  sanguíneas  que  incluem  os  componentes  do  sistema complemento,  além  de  outros  mediadores  inflamatórios  tais  como  as  citocinas,  que  regulam  e  coordenam  diversas atividades celulares da imunidade inata. Durante o envelhecimento, ocorre um desequilíbrio na produção e na liberação de citocinas. Com isto, há um estado pró­inflamatório que contribui para: desorganização das respostas imunológicas, maior predisposição a doenças infecciosas e aparecimento ou agravamento de doenças crônicas, tão prevalentes nos idosos. A imunidade adaptativa, por sua vez, é estimulada pela exposição a agentes infecciosos, que aumenta sua magnitude e sua  capacidade  defensiva  a  cada  exposição  sucessiva  a  determinado  patógeno.  A  característica  que  a  define  é  sua especificidade para moléculas distintas e também sua capacidade em responder mais vigorosamente a repetidas exposições ao mesmo patógeno. Seus principais componentes são os linfócitos que empregam diferentes estratégias de defesa, como a produção de imunoglobulinas ou anticorpos.

Mecanismos envolvidos na imunidade inata ↓ Quimiotaxia de polimorfonucleares ↓ Capacidade fagocitária de polimorfonucleares ↓ Lise celular: mediada pelo complemento e pelas células natural killer ↓ Citocinas: IL­2 e também sua responsividade, IL­10 ↑ Citocinas pró­inflamatórias: IL­1b, IL­3, IL­6, IL­8, IL­15, TNF­α

Figura 80.3 ■ Variação da composição corporal de acordo com idade e sexo.

Mecanismos envolvidos na imunidade adaptativa ↑ IgA e IgG, anticorpos monoclonais e ↓ IgM ↓ Respostas a antígenos específicos ↓ Afinidade do anticorpo específico e ↑ produção de anticorpo não específico Imunizações primárias: menor titulação anticórpica Respostas secundárias mais efetivas e curtas

Um importante marcador da desorganização que se desenvolve no sistema imunológico durante o envelhecimento é a desregulação entre os tipos de resposta imune inata e adaptativa.

Exemplo de desorganizacao que se desenvolve no sistema imunologico durante o envelhecimento: desregulacao entre os tipos de resposta imune inata e adaptativa Imunossenescencia Desregulacao das respostas Th1 e Th2 ↑ Th2: producao de anticorpos (inclusive autoanticorpos) ↓ Th1: ativacao de celulas citotoxicas, NK, macrofagos ↑ Citocinas pro­inflamatorias: ↑ resposta Th2 ↓ IL­2, interferona­g: ↓ resposta Th1 A imunidade primaria esta alterada no idoso O  principal  marcador  da  imunossenescência  é  a  alteração  nas  populações  de  células  T,  tipos  celulares  fundamentais para a resposta imune e cujo repertório se reduz progressivamente. Essa redução na diversidade das células T diminui as respostas imunes perante antígenos novos, com os quais o indivíduo ainda não entrou em contato. A  imunossenescência  também  é  devida  à  atrofia  do  timo  durante  o  envelhecimento  pois,  com  sua  involução,  ocorre redução na diferenciação das células T e B, além de queda na eficiência e regulação das respostas imunes. Como resultado dessas alterações, são observados: redução na proliferação de células T, acúmulo de células T de memória (ou células T clones)  e  exaustão  de  células  T  naive.  As  células  T  de  memória  são  geralmente  menos  competentes,  respondem  de maneira  mais  lenta  e  requerem  um  estímulo  mais  intenso  para  reagir  com  uma  resposta  inflamatória,  tornando  os mecanismos de defesa menos eficientes.

Alteração de alguns parâmetros imunológicos responsáveis pela imunossenescência Sangue periférico: ↓ 10% a 15% de linfócitos circulantes ↓ Capacidade de proliferação de linfócitos T ↑ Linfócitos T imaturos: CD2+ e CD3­ ↑ Linfócitos T CD45 RO: ↑ memória imunológica ↓ Células CD3+: ↑ células natural killer ↑ Linfócitos T citotóxicos (CD8+) e ↓ linfócitos simples (CD45 RA)

ALTERAÇÕES NO SISTEMA ENDÓCRINO Considerando a função do eixo hipotálamo­hipófise­suprarrenal, durante a senescência ocorrem alterações, de tempo e magnitude,  no  ritmo  circadiano  do  hormônio  de  crescimento  (GH),  da  corticotropina  (ACTH)  e  da  tireotropina  (TSH). Embora  muitas  dessas  alterações  sejam  discretas,  particularmente  as  que  envolvem  o  GH  e  o  ACTH  podem  apresentar relevância clínica.

▸ Hormônio do crescimento (GH) A  secreção  e  as  concentrações  séricas  de  GH  diminuem  com  a  idade,  tanto  no  estado  basal  como  em  resposta  aos estímulos;  e,  em  paralelo,  há  redução  das  concentrações  séricas  do  fator  de  crescimento  induzido  pelo  GH,  insulin­like growth  fator  1 (IGF­I),  fenômeno  conhecido  como  somatopausa.  No  envelhecimento,  a  diminuição  na  secreção  de  GH está  associada  à  redução  na  secreção  do  hormônio  de  liberação  do  GH  hipotalâmico  (GHRH)  e  à  diminuição  na responsividade  somatotrófica  ao  GHRH.  Acredita­se  que  a  redução  da  atividade  física,  da  massa  muscular,  da  função imune e da concentração de estrógenos e andrógenos, além do aumento da adiposidade, observados em idosos, contribuem para a diminuição da secreção de GH nesses indivíduos. Normalmente,  a  secreção  de  GH  ocorre,  principalmente,  durante  o  sono  em  suas  fases  de  ondas  lentas.  Portanto,  a presença  de  distúrbios  do  sono,  tão  comum  em  idosos,  também  pode  afetar  negativamente  esse  processo.  Os  idosos mantêm  um  ritmo  diurno  de  secreção  de  GH  com  amplificação  de  picos  noturnos,  mas  com  mais  baixas  amplitudes  se

comparados  a  adultos  jovens.  A  restauração  farmacológica  dos  estágios  III  e  IV  do  sono  (ondas  lentas)  aumenta  os episódios de pulso do GH.

▸ Hormônio antidiurético (ADH) Nos idosos, a responsividade renal ao ADH encontra­se reduzida, tornando­os mais vulneráveis à privação de água. A secreção  de  ADH  frente  à  elevação  da  osmolalidade  plasmática  (mediada  por  osmorreceptores)  pode  ou  não  estar aumentada  em  idosos,  enquanto  a  resposta  à  depleção  volumétrica  (mediada  por  barorreceptores)  está  aumentada. Paralelamente, a diminuição da sensação de sede em resposta à estimulação osmótica, associada à menor responsividade renal ao ADH, possibilita que os indivíduos idosos possam se desidratar com mais facilidade, mesmo quando a secreção de ADH estiver aumentada. A  hiponatremia  é  uma  condição  clínica  frequente  em  idosos,  particularmente  do  sexo  feminino,  provavelmente, decorrente:  (1)  da  hipersecreção  de  ADH  que,  consequentemente,  acarreta  retenção  hídrica  (levando  à  síndrome  de secreção inapropriada de hormônio antidiurético) e (2) da disfunção tubular renal.

▸ Melatonina A  secreção  de  melatonina  pela  glândula  pineal  diminui  durante  o  processo  de  envelhecimento,  sendo  menor  nos indivíduos  idosos  quando  comparados  aos  indivíduos  adultos  jovens;  particularmente,  quando  se  avalia  a  secreção  que ocorre  durante  o  sono  noturno.  Essa  diminuição  pode  estar  associada  à  pior  qualidade  de  sono  nos  idosos,  fato  que  é suportado pela melhora do sono observada naqueles idosos que ingerem pequena dose diária de melatonina (0,3 a 2 mg), algumas horas antes de dormir.

▸ Função adrenocortical A  glândula  suprarrenal  envelhecida  não  apresenta  significantes  aspectos  de  atrofia,  embora  se  observe  aumento  de tecido  fibroso  em  seu  parênquima.  Entretanto,  em  idosos,  podem  ocorrer  algumas  alterações  na  secreção  dos  três principais hormônios adrenocorticais, descritas a seguir.

Cortisol e ACTH As  taxas  de  secreção  de  cortisol  diminuem  com  a  idade,  mas  não  há  alterações  significativas  em  sua  concentração sérica, mesmo em indivíduos muito velhos, devido à redução na taxa de sua depuração metabólica. Os  níveis  séricos  basais  do  hormônio  adrenocorticotrófico  (ACTH)  também  permanecem  inalterados,  assim  como  a frequência  dos  seus  pulsos  secretores.  O  ritmo  circadiano  da  secreção  de  ACTH  e  de  cortisol  não  se  altera  em  idosos saudáveis, embora a amplitude do ritmo de secreção de cortisol esteja reduzida e o nadir noturno esteja aumentado, quando comparados a adultos jovens. Na resposta do cortisol ao estresse, muitos estudos reportam alterações relacionadas com a idade. Após um estímulo estressor, tal como doença aguda ou cirurgia, os níveis de pico sérico de cortisol são maiores e permanecem elevados por mais  tempo  nos  idosos,  quando  comparados  aos  adultos  jovens.  Após  infusão  de  dexametasona,  a  supressão  dos  níveis séricos  de  cortisol  e  de  ACTH  é  mais  lenta  e  menos  efetiva  em  idosos.  Possivelmente,  a  sensibilidade  ao  mecanismo de feedback negativo do eixo hipotálamo­hipófise­suprarrenal esteja diminuída com a idade. Embora não estejam claras as implicações clínicas dessa alteração, tem sido proposto que a resultante exposição crônica ao aumento de glicocorticoide possa  danificar  os  neurônios  hipocampais  reguladores  de  sua  secreção,  e  tão  importantes  para  a  função  cognitiva,  o  que induz  a  um  posterior  ciclo  vicioso  entre  a  hipersecreção  glicocorticóidea  e  os  danos  aos  mecanismos de feedback inibitórios do eixo hipotálamo­hipófise­suprarrenal.

Aldosterona As taxas de secreção de aldosterona e também suas concentrações séricas se reduzem com a idade, em tal magnitude que,  próximo  aos  70  anos,  essa  queda  pode  se  aproximar  de  50%.  Provavelmente,  essas  alterações  são  secundárias  à diminuição  da  secreção  de  renina  e,  quando  acentuadas,  podem  resultar  em  um  quadro  de  hipoaldosteronismo, particularmente naqueles indivíduos com leve falência renal, com perda urinária de sódio, hiponatremia e hiperpotassemia. A  elevada  concentração  sérica  de  hormônio  atrial  natriurético  também  pode  contribuir  para  a  perda  urinária  de  sódio  em idosos.

Com  a  idade,  a  diminuição  nas  concentrações  de  aldosterona  sérica  e  urinária  é  intensa  o  suficiente  para  possibilitar confusão com o diagnóstico de hipoaldosteronismo primário.

Deidroepiandrosterona (DHEA) Os  esteroides  suprarrenais  –  DHEA  e  sua  forma  sulfatada  (DHEAS)  –  são  os  principais  esteroides  encontrados  na circulação  humana.  Secretados  pelo  córtex  suprarrenal,  são  precursores  dos  hormônios  esteroides  sexuais  masculinos  e femininos,  que  incluem  a  testosterona,  o  estradiol  e  a  progesterona.  Devido  a  sua  menor  secreção,  seus  níveis  séricos, bem  como  os  de  todos  os  andrógenos,  declinam  com  a  idade  em  tal  monta  que,  por  volta  dos  75  anos,  alcançam  uma redução de 20%. Entretanto, o significado clínico dessa diminuição ainda é controverso.

▸ Função adrenomedular Enquanto  as  concentrações  séricas  de  epinefrina  são  semelhantes  ou  até  levemente  inferiores  em  idosos  quando comparadas às de adultos jovens, as de norepinefrina são mais elevadas. Esses altos níveis de norepinefrina refletem um aumento  da  atividade  do  sistema  nervoso  simpático  e  não  da  medula  suprarrenal  e,  provavelmente,  são  respostas compensatórias à diminuição na responsividade de alguns tecidos a esse hormônio.

▸ Função hipotalâmico­hipofisário­tireoidiana Durante o processo de envelhecimento há discreto aumento do volume da glândula tireoide, com maior predisposição à formação  nodular,  além  de  maior  quantidade  de  tecido  fibroso  e  infiltração  linfocítica.  Entretanto,  não  são  detectadas quaisquer alterações com significância clínica relacionadas com as concentrações séricas de tiroxina (T4) total e livre, bem como de tri­iodotironina (T3). Embora ocorra um leve declínio na concentração sérica da globulina carreadora de tiroxina, não  se  observa  qualquer  alteração  no  carreamento  de  tiroxina.  Contudo,  tanto  a  produção  quanto  o  clearance  (ou depuração  plasmática)  de  tiroxina  diminuem  modestamente  com  a  idade.  A  redução  do  clearance  de  tiroxina  pode interferir  no  tratamento  de  reposição  hormonal,  diminuindo  a  dose  requerida  para  o  controle  do  hipotireoidismo  nos idosos. Nos  indivíduos  saudáveis  muito  idosos  (longevos),  as  concentrações  séricas  de  T3  são  discretamente  inferiores àquelas encontradas em adultos jovens, entretanto, são superiores às encontradas nos demais idosos; tal achado sugere que os níveis séricos de T3 possam ser marcadores do envelhecimento fisiológico. Dessa maneira, em idosos as medidas de T3 sérico devem ser menos utilizadas para a identificação de hipotireoidismo. Em  idosos,  está  diminuída  a  resposta  secretória  de  hormônio  tireoestimulante  (TSH)  ao  estímulo  do  hormônio liberador  de  tireotropina  (TRH);  provavelmente,  esta  queda  pode  representar  um  mecanismo  adaptativo  para  a  menor necessidade de hormônio tireoidiano nessa fase da vida. A média dos valores das concentrações séricas de TSH em idosos que têm concentrações séricas normais de T4 livre é levemente maior do que as de adultos jovens, especialmente no sexo feminino (Figura 80.4). Nas  mulheres  após  a  menopausa,  há  também  um  aumento  na  prevalência  de  elevados  níveis  séricos  de  TSH  com  a idade,  que  reflete  uma  incidência  de  hipotireoidismo  subclínico.  Mesmo  quando  discretos,  os  quadros  de  insuficiência tireoidiana  no  idoso  têm  sido  associados  a  depressão,  queda  de  memória  e  perda  cognitiva.  A  amplitude  dos  pulsos noturnos  de  secreção  de  TSH  também  é  menor  nos  idosos,  sendo  talvez  secundária  à  diminuição  na  secreção  de  T4  que ocorre em resposta à diminuição no clearance de tiroxina.

▸ Função hipotalâmico­hipofisário­gonádica Na 6a década  de  vida  das  mulheres,  as  secreções  ovarianas  de  estrógenos,  e  em  menor  extensão  a  de  androgênios, diminuem  abruptamente;  entretanto,  aumentam  as  secreções  de  hormônio  foliculoestimulante  (FSH)  e  luteinizante  (LH). Após a menopausa, as mulheres apresentam elevadas concentrações séricas de FSH e LH até aproximadamente os 75 anos de idade, quando então esses níveis hormonais começam a declinar gradualmente.

Figura 80.4 ■ Relação dos níveis das concentrações séricas de hormônio tireoestimulante (TSH) ao longo da vida, em homens e mulheres (estudo em 17.353 pessoas). Explicação da figura no texto. (Adaptada de Hollowell et al., 2002.)

Na  maioria  dos  homens,  a  função  testicular  declina  gradualmente  durante  o  envelhecimento,  havendo  redução  dos níveis séricos de testosterona total e livre. Estudos longitudinais sugerem que esse declínio seja constante a partir dos 25 anos,  obedecendo  a  um  ritmo  de  1%  ao  ano  para  a  testosterona  total  e  de  2%  ao  ano  para  a  forma  livre.  Como  a concentração sérica da globulina carreadora de hormônio sexual (SHBG) aumenta com a idade, os homens idosos têm um maior  declínio  nas  concentrações  séricas  de  testosterona  livre.  Diferentemente  da  menopausa,  situação  em  que  há  uma deficiência  completa  de  estrógenos,  o  declínio  androgênico  nos  homens  varia  de  moderado  a  grave.  Aproximadamente 70% dos homens com mais de 70 anos de idade apresentam concentrações séricas de testosterona livre compatíveis com hipogonadismo. A partir dessa idade, progressivamente, também começa a declinar a produção de esperma que, por volta dos  90  anos  de  idade,  chega  a  50%.  Esse  declínio  está  associado  a:  fibrose  tubular,  redução  do  volume  testicular  e modestas elevações séricas de FSH.

▸ Regulação alimentar Na  senescência,  a  regulação  alimentar  depende  também  de  alterações  endócrinas  encontradas  durante  o envelhecimento, particularmente, associadas aos hormônios insulina, leptina e adiponectina. Em  idosos,  por  exemplo,  a  sensibilidade  à  ação  da  insulina  está  reduzida,  podendo­se  constatar,  com  frequência, estados  de  hiperinsulinemia  e  de  diminuição  na  tolerância  à  glicose.  Essa  observada  resistência  insulínica  encontra­se, pelo menos parcialmente, relacionada com a diminuição da proteína carreadora de glicose (GLUT 4) no tecido muscular. Com o aumento da idade há diminuição das concentrações séricas de leptina, um hormônio que promove diminuição do  apetite  e  é  produzido  pelo  tecido  adiposo  de  modo  proporcional  à  massa  de  gordura  corporal  existente  no  organismo que, como comentado anteriormente, diminui na senescência.

É conhecido que a adiponectina é um hormônio proteico secretado pelos adipócitos, que produz redução na resistência insulínica, apresenta propriedades anti­inflamatórias e diminui o risco aterogênico. Contudo, seus índices de secreção são inversamente  proporcionais  à  quantidade  de  gordura  visceral  abdominal,  a  qual,  como  já  dito,  aumenta  com  a  idade. Portanto, em idosos há diminuição das concentrações séricas de adiponectina.

ALTERAÇÕES NO SISTEMA NERVOSO CENTRAL Vários aspectos celulares e moleculares do envelhecimento cerebral são comuns aos encontrados em outros sistemas orgânicos,  incluindo  um  maior  dano  oxidativo  às  proteínas,  aos  ácidos  nucleicos  e  às  membranas  lipídicas.  Também  é observado  prejuízo  no  metabolismo  energético  e  acúmulo  de  agregados  proteicos  nos  compartimentos  intra  e extracelulares. Entretanto, como resultado da complexidade molecular e estrutural dos neurônios, que expressam 50 a 100 vezes  mais  genes  que  as  células  dos  outros  tecidos,  há  alterações  relacionadas  com  a  idade  que  são  únicas  ao  sistema nervoso  central.  Por  exemplo,  as  vias  de  transdução  de  sinais  ao  complexo  celular,  que  envolvem  neurotransmissores, fatores tróficos e citocinas e participam na regulação da excitabilidade e da plasticidade neuronal. Durante  o  envelhecimento,  os  principais  tipos  de  células  cerebrais  sofrem  alterações  estruturais  que  resultam  em: morte  neuronal,  retração  e  expansão  dendrítica,  perda  e  remodelação  sináptica,  além  da  reatividade  da  célula  glial (astrócitos  e  micróglia).  Essas  alterações  estruturais  podem  ter  origem  nas  modificações  que  ocorrem  nas  proteínas citoesqueléticas  e  na  deposição  de  proteínas  insolúveis,  tais  como  a  proteína tau  no  interior  das  células  e  a  substância amiloide no espaço extracelular. Assim, com o envelhecimento há perda de massa e de volume cerebral que pode chegar a 20% ao redor dos 80 anos. Nesse processo, a substância negra e a região temporal mesial no hipocampo são as áreas mais afetadas, sofrendo perda de cerca de 50% e 25% de massa cerebral, respectivamente. As sinapses são estruturas dinâmicas nas quais a neurotransmissão e outras sinalizações intercelulares eventualmente ocorrem. No cérebro senescente, há considerável evidência de remodelação sináptica que, provavelmente, se relaciona às alterações  na  árvore  dendrítica  e  no  número  de  neurônios.  Por  exemplo,  em  algumas  regiões  do  cérebro  pode  haver diminuição  no  número  de  sinapses,  mas  elas  podem  ser  supridas  pelo  aumento  da  área  de  sinapses  remanescentes;  além disso, em outras regiões cerebrais pode não ocorrer perda sináptica.

Envelhecimento cerebral: síntese das modificações estruturais e funcionais Cérebro Redução: ■ Volume ■ Peso Perda neuronal seletiva: ■ Substância negra: 50% ■ Temporal mesial: 25% Diminuição da reserva funcional

Envelhecimento cerebral: perdas neuronais e alteracoes nos mecanismos moleculares Cerebro Perdas neuronais: ■ Diminuicao das sinapses e do fluxo axoplasmatico ■ Diminuicao da plasticidade Alteracoes nos mecanismos moleculares: ■ Estresse oxidativo ■ Apoptose No processo de envelhecimento, os sistemas neurotransmissores também sofrem várias alterações, como as citadas a seguir (Figura 80.5).

▸ Sistemas colinérgicos. A acetilcolina desempenha a função de neurotransmissor para uma seleta população de neurônios cerebrais, proeminentes dos neurônios basais do cérebro frontal que inervam amplas regiões do neocórtex e do hipocampo. Esses neurônios, denominados neurônios colinérgicos, desempenham funções nos processos de aprendizado e de  memória.  Durante  o  envelhecimento  pode  ocorrer  deficiência  em  um  ou  mais  aspectos  dos  sinais  de  transdução colinérgica,  incluindo:  transporte  de  colina,  síntese  e  liberação  de  acetilcolina,  além  do  acoplamento  dos  receptores muscarínicos a seus carreadores proteicos à base de trifosfato de guanosina (GTP). ▸ Sistemas dopaminérgicos. No decorrer do envelhecimento cerebral há relevantes reduções nos aspectos pré e  pós­sinápticos  da  neurotransmissão  dopaminérgica.  Com  o  avançar  da  idade,  ocorrem  diminuições  nos  níveis  de dopamina, de transportadores dopaminérgicos e de locais carreadores dos receptores D2 no striatum. ▸  Sistemas  monoaminérgicos.  Os  principais  neurotransmissores  monoaminérgicos  cerebrais  são  a norepinefrina  e  a  serotonina.  Os  neurônios  noradrenérgicos  estão  localizados,  principalmente,  no  locus  ceruleus  e  os neurônios serotoninérgicos na raphe nucleus. O envelhecimento é associado à diminuição dos níveis de liberação evocada de serotonina e dos locais de ligação serotoninérgicos, que podem contribuir para distúrbios como a depressão. ▸  Sistemas  de  aminoácidos  transmissores.  No  cérebro  humano,  o  glutamato  é  o  principal neurotransmissor  excitatório.  Esse  aminoácido  estimula  os  receptores  inotrópicos  envolvidos  no  fluxo  de  cálcio  e  de sódio,  e  sua  ativação  excessiva  pode  auxiliar  na  degeneração  neuronal.  Entretanto,  não  está  bem  estabelecida  a contribuição da disfunção na transmissão glutamatérgica para as deficiências da função cerebral relacionadas com a idade. No cérebro humano, o principal neurotransmissor inibitório é o ácido gama­aminobutírico (GABA); porém, pouco se sabe sobre o impacto causado pelo envelhecimento fisiológico em suas vias de transmissão.

ALTERAÇÕES NO SISTEMA CARDIOVASCULAR Durante  o  envelhecimento  desenvolvem­se  várias  modificações  no  sistema  cardiovascular  como,  por  exemplo,  o enrijecimento das grandes artérias, decorrente de deposição aumentada de colágeno associada a alterações qualitativas nas fibras  de  elastina.  Esse  aumento  na  rigidez  arterial  conduz  à  elevação  gradual  da  pressão  arterial  sistólica  e  também  ao aumento da impedância para a ejeção ventricular esquerda; assim, aumenta a denominada pós­carga. Um marcador desse enrijecimento  vascular  é  o  aumento  da  velocidade  da  onda  de  pulso  arterial  observado  nos  idosos;  lembre­se  de  que  a reflexão precoce dessa onda de pulso na periferia resulta em maior impedância para a ejeção ventricular na sístole tardia.

Alterações arteriais que ocorrem no envelhecimento ↑ Rigidez arterial ↑ Lúmen dos vasos ↑ Espessura da parede ↑ Pressão sistólica e pressão de pulso ↑ Velocidade de onda de pulso Disfunção endotelial Aumento da pós­carga

Figura 80.5 ■ Envelhecimento cerebral: exemplo de alteração de alguns sistemas neurotransmissores.

O relaxamento miocárdico, um processo ativo que envolve gasto de energia, encontra­se atenuado no envelhecimento; possivelmente, isso acontece pela dificuldade na liberação de cálcio por parte das proteínas contráteis no fim da sístole e também pelo retardo na recaptação de cálcio pelo retículo sarcoplasmático. No  interstício  do  tecido  miocárdico  há  aumento  tanto  de  colágeno  como  de  tecido  adiposo;  essas  modificações resultam em maior rigidez tecidual, situação que é potencializada pela hipertrofia miocítica compensatória em resposta ao aumento da pós­carga e também à apoptose dos miócitos.

Alteracoes estruturais cardiacas que aparecem no envelhecimento ↓ Numero de miocitos (necrose e apoptose) ↑ Volume dos miocitos Alteracao das propriedades do colageno Relacao miocito/colageno inalterada ↑ Espessura e massa do ventriculo esquerdo ↑ Atrio esquerdo A  resultante  da  combinação  de  alteração  do  relaxamento  ventricular  e  de  redução  da  complacência  miocárdica  é  a diminuição  do  enchimento  sanguíneo  do  ventrículo  esquerdo,  durante  os  2/3  iniciais  da  diástole.  Essas  alterações  são acompanhadas  de  dilatação  e  de  hipertrofia  atrial  esquerda,  e  também  do  aumento  da  força  de  contração  atrial;  isso preserva o volume diastólico final do ventrículo esquerdo, o principal determinante do volume ejetado a cada sístole, bem como  o  débito  cardíaco.  Essas  alterações  na  função  diastólica  do  ventrículo  esquerdo  e  no  átrio  esquerdo  predispõem  as pessoas  idosas  ao  desenvolvimento  de  insuficiência  cardíaca  do  tipo  diastólico;  ou  seja,  predispõem  os  idosos  àquela insuficiência  cardíaca  em  que  há  a  preservação  da  fração  de  ejeção  ventricular  esquerda,  bem  como  a  arritmias supraventriculares, tais como a fibrilação atrial.

Modificacoes da funcao diastolica do ventriculo esquerdo que acontecem no envelhecimento ↑ Rigidez VE: fibrose, desarranjo e hipertrofia ↓ Relaxamento: assincronia, ↑ pressao, isquemia e fluxo Ca2+ ↑ Pressao diastolica final

Nos  idosos  também  é  observada  menor  resposta  à  estimulação  β­adrenérgica;  portanto,  há  diminuição  da  frequência cardíaca máxima (FC máx) alcançada em ritmo sinusal, quase de modo linear, como demonstrado na seguinte fórmula: FC máx = 220 – idade (anos) O  débito  cardíaco  (DC)  é  avaliado  pelo  produto  da  frequência  cardíaca  (FC)  e  o  volume  de  ejeção  do  ventrículo esquerdo (Vs); assim, pode­se estimar que o débito cardíaco máximo declina progressivamente com a idade, pois: DC = FC × Vs Outras  alterações  que  se  associam  à  redução  do  débito  cardíaco  máximo  durante  o  envelhecimento  são  o  declínio  do pico  de  contratilidade  ventricular  (mediado  por  receptores  β1­adrenérgicos)  e  da  vasodilatação  periférica  (mediada  pelos receptores β2­adrenérgicos).  Essas  condições  resultam  em  redução  do  fluxo  sanguíneo  aos  músculos  e  à  pele  durante  os exercícios, trazendo uma dificuldade adicional ao idoso para o controle de sua temperatura corpórea. Ocorrem,  ainda,  alterações  degenerativas  na  área  tecidual  onde  se  localiza  o  nodo  sinusal;  isso  resulta  em  perda progressiva das células com função de marca­passo, que cria uma separação parcial ou completa entre o nodo sinusal e o restante  do  tecido  atrial.  Estima­se  que,  por  volta  dos  75  anos,  mais  de  90%  dessas  células  com  função  de  marca­passo perdem  sua  capacidade  de  iniciar  um  impulso  elétrico.  Essas  alterações  acarretam  um  declínio  gradual  e  progressivo  da função do nodo sinusal; frequentemente culminam no desenvolvimento de uma síndrome sintomática de disfunção desse seio que se constitui na principal indicação de colocação de marca­passo em idosos. A condução do estímulo elétrico por meio do nodo atrioventricular também se torna mais lenta e a calcificação da estrutura cardíaca resulta em um aumento da prevalência  de  anormalidades  de  condução  infranodular,  tais  como  o  bloqueio  fascicular  anterior  esquerdo  e  o  bloqueio completo de ramo. Há  declínio  no  mecanismo  de  vasodilatação  dependente  do  endotélio;  primariamente,  isso  é  devido  à  diminuição  na atividade  da  enzima  óxido  nítrico  sintase  constitutiva  e,  portanto,  na  disponibilidade  de  óxido  nítrico,  que  é  o  principal mediador da vasodilatação endotelial. Devido a esse mecanismo ser básico para o aumento do fluxo sanguíneo coronário em resposta ao aumento da demanda miocárdica, o fluxo sanguíneo máximo coronário é reduzido com a idade. As  pessoas  idosas  são  propensas  à  isquemia  miocárdica  precipitada  pelo  aumento  súbito  da  demanda  miocárdica  de oxigênio,  devido  à  taquicardia  ou  à  hipertensão  grave,  mesmo  na  ausência  de  doença  arterial  coronária.  A  disfunção endotelial  contribui  para  a  patogênese  e  para  a  progressão  da  aterosclerose.  A  vasodilatação  independente  do  endotélio parece  não  ser  afetada  no  processo,  ainda  que  a  resposta  vascular  aos  nitratos  exógenos,  tal  como  a  nitroglicerina,  seja semelhante à de jovens. Durante  o  envelhecimento  ocorrem  várias  alterações  nas  respostas  periféricas  à  estimulação  neuro­humoral. Provavelmente, a mais importante é a diminuição dessa resposta aos barorreceptores carotídeos. Em resposta a alterações abruptas  no  fluxo  sanguíneo  cerebral,  como  as  observadas  durante  as  alterações  posturais,  os  idosos  têm  menor capacidade  para  o  ajuste  rápido  da  frequência  cardíaca,  da  pressão  arterial  e  do  débito  cardíaco.  Portanto,  os  idosos apresentam predisposição à hipotensão ortostática e, consequentemente, às quedas e à síncope. Durante  o  repouso,  as  alterações  no  sistema  cardiovascular  decorrentes  da  senescência  produzem  modestos  efeitos clínicos na hemodinâmica cardíaca e no rendimento cardíaco; ou seja, mesmo nos muito idosos, durante o repouso estão preservados a frequência cardíaca, a fração e o volume de ejeção do ventrículo esquerdo e o débito cardíaco. Entretanto, progressivamente, com o avançar da idade, declina a capacidade do sistema cardiovascular em responder ao aumento das demandas associadas ao exercício ou às doenças (cardíacas ou não).

Modificações da reserva miocárdica no envelhecimento ↓ Relaxamento e distensibilidade do ventrículo esquerdo ↑ Espessura do ventrículo esquerdo ↓ Resposta ao estímulo β­adrenérgico ↓ Débito cardíaco no exercício Alterações do ritmo cardíaco Diminuição da reserva miocárdica

ALTERAÇÕES NO SISTEMA RESPIRATÓRIO

Durante a senescência, ocorrem alterações anatômicas e funcionais no sistema respiratório, que podem afetar a função pulmonar;  particularmente,  quando  associadas  a  fatores  agravantes  tais  como  tabagismo,  poluição  ambiental,  exposição profissional  e  doenças  pregressas.  A  redução  dos  parâmetros  respiratórios  funcionais  no  idoso  saudável  é  de aproximadamente 20%. No indivíduo senil, devido a alterações no tecido conectivo, há redução no tamanho das vias respiratórias, e os sacos alveolares  tornam­se  mais  superficiais.  A  complacência  da  parede  torácica  diminui  como  consequência  de  modificações esqueléticas,  tais  como:  acentuação  da  cifose  dorsal,  calcificações  das  cartilagens  condrocostais  e  degenerações costovertebrais. A  capacidade  pulmonar  total  (CPT)  depende  do  equilíbrio  de  forças  entre  a  máxima  ativação  da  musculatura inspiratória  e  a  retração  elástica  do  pulmão  e  da  parede  torácica.  Com  a  idade,  a  retração  elástica  do  tecido  pulmonar diminui,  o  que  facilita  a  expansão  pulmonar  durante  a  inspiração  profunda  e,  assim,  tenderia  a  aumentar  a  CPT. Entretanto, devido à rigidez da parede torácica durante o processo de envelhecimento, o esforço inspiratório máximo não é capaz de alcançar alto volume pulmonar; portanto, a CPT, geralmente, encontra­se estável. Na  velhice,  a  diminuição  da  retração  elástica  pulmonar  também  determina  o  aumento  do  volume  residual  (VR)  e  da relação VR/CPT, que ocasiona um estado de hiperinsuflação pulmonar e uma redução na capacidade vital (CV). No envelhecimento, o volume de ar exalado durante o 1o segundo de expiração forçada (VEF1) tende a se reduzir mais intensamente  que  a  capacidade  vital  forçada  (CVF).  Em  indivíduos  não  fumantes,  essas  alterações  resultam  em  um declínio do fluxo de volume corrente (VC) e de VEF1 da ordem de 25 a 30 mℓ/ano. A redução na relação VEF1/CVF é indicativa de obstrução das vias respiratórias. Outros  componentes  relevantes  para  a  adequada  função  respiratória  são  a  força  e  a  resistência  da  musculatura respiratória, sendo importante a observação de que a força da musculatura diafragmática é aproximadamente 25% menor em pessoas idosas saudáveis quando comparadas aos adultos jovens. A desproporção da relação ventilação/perfusão (V/Q), decorrente do fechamento das pequenas vias respiratórias e da limitação  de  fluxo  aéreo,  contribui  para  o  aumento  do  gradiente  alveoloarterial  de  oxigênio  (gradiente  Aa  O2).  Esse gradiente pode ser estimado em função da idade, pela equação: Gradiente Aa O2 = 2,5 + 0,21 × idade (anos) A  redução  da  área  de  superfície  alveolar  dificulta  a  difusão  pulmonar  de  monóxido  de  carbono  (DPCO).  A  pressão parcial  de  oxigênio  arterial  (PaO2)  também  diminui  com  a  idade,  podendo  ser,  aproximadamente,  avaliada  pelo  seguinte cálculo: PaO2 estimada = 110 – (0,4 × idade) Nos  idosos,  os  mecanismos  de  clareamento  pulmonar  encontram­se  menos  eficientes,  devido  à  atrofia  do  epitélio colunar ciliado e também das glândulas da mucosa brônquica, predispondo­os a um maior risco de contraírem infecções. A  redução  do  reflexo  da  tosse,  associada  à  queda  de  força  da  musculatura  respiratória,  corroboram  para  o comprometimento do clareamento de suas vias respiratórias inferiores.

Resumo das alterações respiratórias que aparecem com o envelhecimento ↓ Complacência torácica, ↑ complacência pulmonar ↓ Força dos músculos respiratórios ↓ Capacidade vital, ↑ volumes residuais Manutenção da CPT ↓ VEF1/CVF ↓ Fluxo expiratório ↑ Gradiente AVO2, ↓ paO2 ↓ Difusão pulmonar CO2 ↓ Sensibilidade respiratória: hipoxia/hipercapnia CPT,  capacidade  pulmonar  total;  VEF1,  volume  de  ar  exalado  durante  o  1o  segundo  de  expiração forçada; CVF, capacidade vital forçada; AVO2,  gradiente  arteriovenoso  de  oxigênio; paO2,  pressão  parcial de oxigênio arterial; hipoxia, baixa concentração de oxigênio no sangue; hipercapnia, alta concentração de dióxido de carbono no sangue.

ALTERAÇÕES NO SISTEMA RENAL O envelhecimento renal também é caracterizado por alterações estruturais e fisiológicas que afetam a homeostase, isto é,  a  manutenção  corporal  de  líquidos,  de  eletrólitos  e  do  equilíbrio  acidobásico.  Em  condições  normais,  os  rins senescentes mantêm o equilíbrio homeostático; mas, sob condições de estresse, a resposta adaptativa dos rins já é menos eficiente. Na 4a  década  da  vida  humana,  os  rins  alcançam  peso  máximo  de  cerca  de  400  g  (ou  12  cm  de  extensão);  depois, sofrem um declínio de peso e de volume, aproximadamente, correspondente à perda de 10% da massa total de néfrons a cada  10  anos,  com  tendência  de  maior  redução  no  sexo  masculino.  A  perda  ocorre  principalmente  no  córtex  renal, reduzindo a área para filtração glomerular. Nesse processo degenerativo, a região medular fica, relativamente, preservada. Esses  órgãos  são  extremamente  vascularizados,  recebendo  cerca  de  25%  do  débito  cardíaco  a  cada  minuto, particularmente, na região cortical. Importante lembrar que é nesse local que o sangue circulante sofre filtração através dos glomérulos para, então, os rins fazerem a depuração de substâncias oriundas do metabolismo, procurando assim contribuir na  manutenção  da  homeostase  orgânica.  Entretanto,  com  o  avançar  da  idade,  os  vasos  intrarrenais,  principalmente  as artérias  interlobulares  e  as  arqueadas,  desenvolvem  progressiva  esclerose  e  passam  a  apresentar  redução  em  seu  lúmen; essas  alterações  vasculares  determinam  modificações  no  fluxo  laminar  de  sangue  e  facilitam  a  deposição  de  lipídios  na parede vascular. Adicionalmente, há substituição de suas células musculares lisas por depósitos de colágeno, que ocasiona perda da elasticidade tecidual. A  redução  do  fluxo  sanguíneo  renal  (FSR)  é  acompanhada  de  aumento  da  resistência  nas  arteríolas  aferentes  e eferentes,  independentemente  do  débito  cardíaco  ou  de  reduções  na  massa  renal.  Essa  alteração  contribui  para  a  menor eficiência dos rins envelhecidos na resposta à sobrecarga ou à perda de líquidos e de eletrólitos. A redução linear no número de néfrons ao longo da vida é notória e, provavelmente, é o principal fator para o menor ritmo  de  filtração  glomerular  observado  no  decorrer  da  senescência  renal.  Os  glomérulos  que  se  mantêm  preservados, frequentemente, desenvolvem aumento da sua área filtrante além de espessamento de sua membrana basal; possivelmente, essas anomalias são devidas a uma hipertrofia glomerular compensatória com hiperfiltração, na tentativa de responder ao aumento de pressão intraglomerular. Com  a  perda  glomerular,  a  área  tubular  do  néfron  também  se  degenera,  sendo  recomposta  por  tecido  conectivo. Desenvolve­se  o  mesmo  mecanismo  compensatório,  com  hipertrofia  e  hiperplasia  tubular  nos  néfrons  remanescentes, principalmente, na região do túbulo contornado proximal. Devido ao adelgaçamento do córtex renal, ocorre diminuição da extensão tubular e é frequente o desenvolvimento de divertículos no túbulo contornado distal. Com a progressão da idade, a  perda  de  néfrons  possibilita  o  desenvolvimento  de  uma  fibrose  tubular  intersticial  generalizada,  embora  a  estrutura  do túbulo contornado distal não pareça se alterar significativamente. O  ritmo  de  filtração  glomerular  (RFG)  pode  ser  determinado  pela  medida  da  depuração  da  creatinina  endógena  e  é considerado  normal  quando  seus  valores  se  encontram  entre  80  e  120  mℓ /min,  para  uma  superfície  corpórea  padrão  de 1,73 m2. Estima­se que a partir da 4a década de vida haja um decréscimo anual nessa medida, de 1 mℓ/min; ou seja, parece haver  perda  de  cerca  1%  da  função  glomerular  a  cada  ano.  Porém,  a  creatinina  é  um  metabólito  muscular  e,  como mencionado  anteriormente,  há  redução  da  massa  muscular  durante  o  envelhecimento.  Assim,  os  níveis  plasmáticos  de creatinina  podem  não  refletir  a  real  função  glomerular  do  idoso,  sendo  necessária  a  determinação  do clearance  renal  de creatinina,  para  avaliar  o  seu  RFG.  O  clearance  renal  de  creatinina  pode  ser  estimado  em  idosos,  utilizando­se o nomograma de Cockroft e Gault, descrito a seguir (Figura 80.6).

No sexo feminino, devido à menor massa muscular, é necessário multiplicar o resultado por 0,85. A  função  tubular  renal  modifica  o  filtrado  glomerular  transformando­o  em  urina,  essencialmente,  pela  reabsorção tubular  de  água  e  eletrólitos  e,  ainda,  titula  o  pH  sanguíneo,  pela  reabsorção  de  HCO3–  e  secreção  de  H+.  Com  o envelhecimento, ela encontra­se relativamente preservada. Os  mecanismos  envolvidos  na  concentração  e  diluição  urinária  dependem  de  alguns  fatores  integrados,  como:  (1)  a atividade do centro hipotalâmico da sede, que regula a ingestão de água, (2) o ciclo efetivo de produção, liberação e ação tubular do hormônio antidiurético (ADH) e (3) a hipertonicidade da medula renal. Nos idosos, a sensibilidade à sede está diminuída,  fato  que  os  torna  mais  propensos  à  desidratação.  Embora  a  produção  de  ADH  encontre­se  aumentada  com  a

idade,  há  menor  sensibilidade  dos  receptores  renais  de  ADH  (receptor  V2),  prejudicando  a  ação  desse  hormônio  na reabsorção tubular de água. A participação da região medular nos mecanismos de concentração e diluição urinária depende de  sua  vascularização,  que  é  responsável  pela  maior  perfusão  do  interstício  medular  e  consequente  diminuição  de  sua hipertonicidade. Na  senilidade,  há  também  prejuízo  no  mecanismo  de  acidificação  urinária  e  tendência  à  acidose  metabólica  leve,  do tipo tubular renal, com compensação respiratória.

Resumo das alterações renais que acontecem na velhice ↓ Peso e volume dos rins ↓ Área de filtração glomerular (córtex) ↓ Fluxo sanguíneo renal e filtração glomerular ↓ Capacidade de concentração e diluição da urina ↓ Renina e aldosterona ↑ Fator natriurético atrial ↓ Acidificação urinária ↓ Clearance renal

Figura  80.6  ■   Cálculo  do  ritmo  de  filtração  glomerular  no  idoso,  pelo  nomograma  de  Cockroft  e  Gault  (1976).  FG,  filtração glomerular; FSR, fluxo sanguíneo renal.

ALTERAÇÕES NO SISTEMA DIGESTÓRIO Durante  a  senescência,  diminui  o  número  de  botões  gustativos  na  superfície  lateral  da  língua,  responsáveis  pela detecção dos sabores doce e salgado, em que predominam os botões gustativos centrais que identificam apenas os sabores amargo  e  azedo.  O  olfato  também  tende  a  diminuir  e  a  combinação  das  perdas  gustativa  e  olfatória  pode  promover  o desinteresse  do  idoso  pela  comida.  Há  redução  do  fluxo  salivar  e  da  força  mastigatória,  podendo  haver  limitação  na quantidade e variedade de alimentos a serem ingeridos.

Modificações que promovem o desinteresse do idoso pela comida Diminuição de olfato, paladar e fluxo salivar Diminuição do apetite

Diminuição da eficiência mastigatória Alterações de saciedade Alterações visuais que dificultam comer Aumento do esforço respiratório para comer Retardo no esvaziamento gástrico Na  mucosa  gástrica  senil  passa  a  haver  predominância  das  células  não  parietais,  modificação  que  proporciona diminuição na acidez gástrica. Com isso, cerca de 25% dos idosos desenvolvem acloridria e têm prejuízo na absorção de nutrientes essenciais, tais como a vitamina B12, o ácido fólico, o ácido ascórbico e o ferro. Geralmente, a capacidade de absorção  intestinal  não  se  encontra  alterada,  embora  possa  haver  um  declínio  no  metabolismo  e  na  absorção  de  cálcio, ferro e carboidratos (especialmente lactose).

Alterações digestórias no envelhecimento Acloridria: presente em 25% dos idosos Diminuição da acidez gástrica: diminuição da absorção de vitamina B12, folato, vitamina C e Fe2+ Diminuição da absorção intestinal de lactose, Ca2+ e Fe2+ Digestão mais lenta Redução na capacidade de regular o metabolismo O processo digestório tende a se processar mais lentamente no idoso, observando­se redução na capacidade de regular o metabolismo, como, por exemplo, mais tempo requerido para a indução hormonal de enzimas, secundário à redução no número de receptores hormonais na superfície celular. Esses fatores podem ser significativamente importantes quando na presença de condições patológicas que, comumente, se associam ao processo de envelhecimento, tais como hérnia hiatal, refluxo gastresofágico e gastrite atrófica. Observa­se  também,  durante  o  envelhecimento,  redução  no  número  de  neurônios  mioentéricos,  além  do desenvolvimento de divertículos colônicos; estes são secundários à redução da tensão produzida pela camada muscular da parede do cólon. Há, ainda, redução no fluxo sanguíneo esplâncnico, mais significativa após os 75 anos de idade.

Modificações do sistema digestório na senescência Sistema digestório ↓ Produção de saliva e função das papilas gustativas ■ Alteração no paladar e deglutição ↓ Produção de HCl, enzimas digestivas ■ Modificação na ionização e solubilidade ↓ Fluxo sanguíneo esplâncnico ■ Dificuldade na absorção e isquemia ↓ Esvaziamento gástrico ■ Dificuldade na degradação e absorção ↓ Divertículos colônicos ■ Queda da absorção ↓ Número de neurônios mioentéricos ■ Alteração na motilidade intestinal

SISTEMA HEMATOPOÉTICO O  envelhecimento  humano  é  associado  a  uma  menor  capacidade  de  reserva  para  hematopoese,  por  provável  exaustão das células­tronco hematológicas pluripotenciais. Anormalidades funcionais, não evidenciadas no estado basal, tornam­se aparentes em situações de estímulo dirigido. Adicionalmente, além de ser menor, essa resposta é mais variável.

O  envelhecimento  parece  não  afetar  a  concentração  de  eritropoetina  circulante  (EPO)  e  nem  de  outros  fatores  de crescimento hematopoético. Entretanto, a produção de certos fatores de crescimento, particularmente a interleucina 6 (IL­ 6),  o  fator  de  necrose  tumoral  alfa  (TNF­α)  e  interferona­γ  (INF­γ),  parece  aumentar  com  o  envelhecimento.  Essas observações  levam  à  noção  de  que  a  idade  é  acompanhada  da  desregulação  da  produção  desses  fatores  do  crescimento, causando  produção  excessiva  de  algumas  citocinas  e  subprodução  de  outras  e  interferindo,  também,  na  geração  de glóbulos vermelhos. Há consistência nas publicações científicas de que o avançar da idade não modifica o número absoluto das populações celulares e o número de leucócitos e de neutrófilos circulantes se mantém. Presume­se, maximamente, um descenso leve no número de neutrófilos. Embora o número de plaquetas também não se altere com o envelhecimento, o fibrinogênio, os fatores de coagulação (V,  VII,  VIII  e  IX),  o  cininogênio  de  alto  peso  molecular  e  a  pré­calicreína  aumentam,  assim  como  os  fragmentos  da degradação da fibrina (dímero D), produzindo um estado pró­coagulante de risco para eventos trombogênicos.

BIBLIOGRAFIA BALES CW, LOCHER JL, SALTZMAN E. Handbook of Clinical Nutrition and Aging. 3. ed. Springer, New York, 2015. CRUZ­JENTOFT AJ, MORLEY JE. Sarcopenia. Wiley­Blackwell, Hoboken, 2012. FEDARKO NS. The biology of aging and frailty. Clin Geriatr Med, 27:27­37, 2011. FREITAS EV, PY L (Eds.). Tratado de Geriatria e Gerontologia. 4. ed. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 2016. HALTER  JB,  OUSLANDER  JG,  TINETTI  ME  et  al.  Hazzard’s  Geriatric  Medicine  and  Gerontology.  7.  ed.  McGraw­Hill Education Medical, New York, 2017. HOLLOWELL, STAEHLING NW, FLANDERS WD JG et al. J Clin Endocrinol Metab, 2002. NAGARATNAM N, NAGARATNAM K, CHEUK G. Diseases in the Elderly. Springer, New York, 2016. SINCLAIR  AJ,  MORLEY  JE,  VELLAS  B.  Pathy’s  Principles  and  Practice  of  Geriatric  Medicine.  5.  ed.  Wiley­Blackwell, Hoboken, 2012.