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Portuguese Pages [1996] Year 2018
■ A autora deste livro e a EDITORA GUANABARA KOOGAN LTDA. empenharam seus melhores esforços para assegurar que as informações e os procedimentos apresentados no texto estejam em acordo com os padrões aceitos à época da publicação, e todos os dados foram atualizados pela autora até a data da entrega dos originais à editora. Entretanto, tendo em conta a evolução das ciências da saúde, as mudanças regulamentares governamentais e o constante fluxo de novas informações sobre terapêutica medicamentosa e reações adversas a fármacos, recomendamos enfaticamente que os leitores consultem sempre outras fontes fidedignas, de modo a se certificarem de que as informações contidas neste livro estão corretas e de que não houve alterações nas dosagens recomendadas ou na legislação regulamentadora. ■ A autora e a editora se empenharam para citar adequadamente e dar o devido crédito a todos os detentores de direitos autorais de qualquer material utilizado neste livro, dispondose a possíveis acertos posteriores caso, inadvertida e involuntariamente, a identificação de algum deles tenha sido omitida. ■ Direitos exclusivos para a língua portuguesa Copyright © 2018 by EDITORA GUANABARA KOOGAN LTDA. Uma editora integrante do GEN | Grupo Editorial Nacional Travessa do Ouvidor, 11 Rio de Janeiro – RJ – CEP 20040040 Tels.: (21) 35430770/(11) 50800770 | Fax: (21) 35430896 www.grupogen.com.br | [email protected] ■ Reservados todos os direitos. É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, no todo ou em parte, em quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico, gravação, fotocópia, distribuição pela Internet ou outros), sem permissão, por escrito, da EDITORA GUANABARA KOOGAN LTDA. ■ Capa: Editorial Saúde Produção digital: Geethik ■ Ficha catalográfica A255f 5. ed. Aires, Margarida de Mello Fisiologia / Margarida de Mello Aires. 5. ed. Rio de Janeiro : Guanabara Koogan, 2018. : il. ISBN 9788527734011 1. Fisiologia humana. I. Título. 1849076 Meri Gleice Rodrigues de Souza Bibliotecária CRB7/6439
CDD: 612 CDU: 612
Editores Convidados
Fernando Abdulkader
Professor Doutor do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Luciana Venturini Rossoni
Professora Associada do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Marcus Vinícius C. Baldo
Professor Associado do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Maria Oliveira de Souza
Professora Associada do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Maria Tereza Nunes
Professora Titular do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Sonia Malheiros Lopes Sanioto
Professora LivreDocente do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Thiago S. Moreira
Professor Associado do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo.
Colaboradores
Adalberto Vieyra
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro Nacional de Biologia Estrutural e Bioimagem (Cenabio/UFRJ). Programa de PósGraduação em Biomedicina Translacional da Unigranrio/Inmetro/UEZO. Adriana Castello Costa Girardi
Professora Associada do Departamento de Cardiopneumologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Ana C. Takakura
CirurgiãDentista. Mestre e Doutora em Farmacologia pela Universidade Federal de São Paulo. Professora Doutora do Departamento de Farmacologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Ana Maria de Lauro Castrucci
Professora Titular (Sênior) do Departamento de Fisiologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Ana Paula Davel
Professora Doutora do Departamento de Biologia Estrutural e Funcional do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas. André L. AraujodosSantos
Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro Nacional de Biologia Estrutural e Bioimagem (Cenabio/UFRJ). Andréa S. Torrão
Professora Associada do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Angelo Rafael Carpinelli
Professor Titular do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Aníbal Gil Lopes
Professor Titular aposentado do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Antonio Carlos Bianco
Professor of Medicine – Division of Endocrinology, Diabetes and Metabolism – Rush University Medical Center, Chicago, IL. Antonio Carlos Campos de Carvalho
Professor Titular do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Antonio Carlos Cassola
Professor Associado do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Antonio J. Magaldi
Médico Assistente Doutor do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) – Laboratório de Investigação Médica (LIM 12). Departamento de Clínica Médica – Disciplina Nefrologia da FMUSP. Beatriz de Carvalho Borges Del Grande
Jovem Pesquisadora do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Caroline Serrano do Nascimento
Pesquisadora do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, do Hospital Albert Einstein. Doutora em Fisiologia pelo Departamento de Fisiologia e Biofísica da Universidade de São Paulo. Celso Rodrigues Franci
Professor Titular do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Cesar TimoIaria (in memoriam)
Professor Titular de Fisiologia, Laboratório de Neurocirurgia Funcional da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Christina Joselevitch
Professora Doutora do Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Claudia F. Dick
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis da UFRJ. Centro Nacional de Biologia Estrutural e Bioimagem (Cenabio/UFRJ). Cláudio A. B. Toledo (in memoriam)
Professor Associado Doutor do Núcleo de Pesquisa em Neurociências da Universidade Cidade de São Paulo. Clineu de Mello Almada Filho
Professor Afiliado da disciplina Geriatria e Gerontologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. Dalton Valentim Vassallo
Doutor em Biofísica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Emérito da Universidade Federal do Espírito Santo. Titular de Fisiologia do Departamento de Ciências Fisiológicas da Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória. Dayane Aparecida Gomes
Professora Adjunta do Departamento de Fisiologia e Farmacologia da Universidade Federal de Pernambuco. Débora Souza Faffe
Professora Associada de Fisiologia do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Deise Carla A. Leite Dellova
Professora Doutora do Departamento de Medicina Veterinária da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da Universidade de São Paulo. Dora F. Ventura
Professora Titular do Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Edna T. Kimura
Professora Titular do Departamento de Biologia Celular e do Desenvolvimento do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Eduardo Rebelato
Professor Adjunto do Departamento de Biofísica da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. Elisardo Corral Vasquez
Doutor em Fisiologia pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Professor Emérito pela Universidade Federal do Espírito Santo. Professor Titular nível 3 da Universidade Vila Velha. Emiliano Horacio Medei
Professor Associado do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fábio Bessa Lima
Professor Titular do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Fabio Fernandes Rosa
Pesquisador Associado do Paris Centre de Recherche Cardiovasculaire, Institut National de la Santé et de la Recherche Médicale, Paris, França. Fernando Marcos dos Reis
Professor Associado do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Frida Zaladek Gil
Professora Associada do Departamento de Fisiologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. Fulgencio Proverbio
Philosophus Scientiarum en Fisiología y Biofísica. Investigador Titular Emérito del Instituto Venezolano de Investigaciones Científicas. Miembro de la Academia de Ciencias de la América Latina. Gerhard Malnic
Professor Emérito do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Professor Titular do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Giovanne Baroni Diniz
Bacharel em Ciências Moleculares pela Universidade de São Paulo. Doutorando em Ciências pelo Programa de Ciências Morfofuncionais do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Glaucia Helena Fortes
Doutora em Fisiologia pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Professora Associada do Departamento de Fisiologia da Universidade de Uberaba. Guiomar Nascimento Gomes
Professora Associada do Departamento de Fisiologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. Hamilton Haddad Junior
Professor Assistente Doutor do Departamento de Fisiologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Helio Cesar Salgado
Professor Titular do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Hilton Pina
Professor Titular de Ginecologia da Universidade Federal da Bahia. Humberto MuziFilho
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro Nacional de Biologia Estrutural e Bioimagem (Cenabio/UFRJ). Isis do Carmo Kettelhut
Professora Titular do Departamento de Bioquímica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Ivanita Stefanon
Professora Titular de Fisiologia do Departamento de Ciências Fisiológicas do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Espírito Santo. Jackson Cioni Bittencourt
Professor Titular do Departamento de Anatomia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Janete Aparecida AnselmoFranci
Professora Associada do Departamento de Morfologia, Fisiologia e Patologia Básica da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Jennifer Lowe
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro Nacional de Biologia Estrutural e Bioimagem (Cenabio/UFRJ). Joaquim Procopio
Professor Associado do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. José AntunesRodrigues
Professor Emérito do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. José CipollaNeto
Professor Titular do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. José Geraldo Mill
Professor Titular do Departamento de Ciências Fisiológicas da Universidade Federal do Espírito Santo. José Hamilton Matheus Nascimento
Professor Associado do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. José Vanderlei Menani
Professor Titular do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Odontologia de Araraquara da Universidade Estadual Paulista. Juliana Dias
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro de Transplante de Medula Óssea do Instituto Nacional do Câncer José Alencar Gomes da Silva. Centro Nacional de Biologia Estrutural e Bioimagem (Cenabio/UFRJ). Juliano Zequini Polidoro
Mestre em Fisiologia Humana pelo Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Doutorando em Ciências Médicas pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Karina Thieme
PósDoutoranda na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Doutora em Fisiologia Humana pelo Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Kleber Gomes Franchini
Professor Titular do Departamento de Clínica Médica da Universidade Estadual de Campinas. Laura M. Vivas
Pesquisadora Principal do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas. Instituto de Investigación Médica Mercedes y Martín Ferreyra (INIMEC/CONICET/Universidad Nacional de Córdoba). Professora da Facultad de Ciencias Exactas Físicas y Naturales da Universidad Nacional de Córdoba, Argentina. Laurival Antonio De Luca Junior
Professor Titular de Fisiologia do Departamento de Fisiologia e Patologia da Faculdade de Odontologia de Araraquara da Universidade Estadual Paulista. Lisete Compagno Michelini
Professora Titular do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Lucienne S. Lara
Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro Nacional de Biologia Estrutural e Bioimagem (Cenabio/UFRJ). Lucila Leico Kagohara Elias
Professora Associada do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Lucília Maria Abreu Lessa Leite Lima
Professora Adjunta de Fisiologia Humana do Curso de Medicina da Universidade Estadual do Ceará. Pesquisadora do Instituto Superior de Ciências Biomédicas da Universidade Estadual do Ceará. Luiz Carlos Carvalho Navegantes
Professor Associado do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Luiz R. G. Britto
Professor Titular do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo.
Manassés Claudino Fonteles
Pesquisador do CNPq. ExReitor da Universidade Estadual do Ceará. ExReitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor Emérito da Universidade Estadual do Ceará. Marcio Josbete Prado
Doutor em Urologia pela Universidade de São Paulo. Professor Associado do Departamento de Ginecologia, Obstetrícia e Reprodução Humana da Universidade Federal da Bahia. Margaret de Castro
Professora Titular do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Maria Cláudia Irigoyen
Professora LivreDocente do Departamento de Cardiopneumologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Médica Pesquisadora da Unidade de Hipertensão do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. Maria Jose Campagnole dos Santos
Professora Titular do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Maria Luiza Morais BarretoChaves
Professora Associada do Departamento de Anatomia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Mariana Souza da Silveira
Professora Adjunta do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mário José Abdalla Saad
Professor Titular do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas. Marise LazarettiCastro
LivreDocente. Professora Adjunta de Endocrinologia. Chefe do Setor de Doenças Osteometabólicas da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. Masako Oya Masuda
Professora Adjunta IV aposentada do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mauro César Isoldi
Professor Associado Doutor do Departamento de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Ouro Preto. Maysa Seabra Cendoroglo
Professora Adjunta da disciplina Geriatria e Gerontologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. Newton Sabino Canteras
Professor Titular do Departamento de Anatomia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Patrícia Chakur Brum
Professora Associada do Departamento de Biodinâmica do Movimento do Corpo Humano da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo. Patrícia de Oliveira Prada
Professora Associada do Curso de Nutrição da Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas. Patricia Rieken Macedo Rocco
Professora Titular de Fisiologia do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Chefe do Laboratório de Investigação Pulmonar. Membro Titular da Academia Nacional de Medicina. Membro Titular da Academia Brasileira de Ciências. Poli Mara Spritzer
Professora Titular do Departamento de Fisiologia do Instituto de Ciências Básicas da Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenadora da Unidade de Endocrinologia Ginecológica do Serviço de Endocrinologia do Hospital das Clínicas de Porto Alegre.
Priscilla Morethson
CirurgiãDentista pela Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo. Doutora em Fisiologia Humana com Pós Doutorado em Morfofisiologia Óssea pelo Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Professora da Universidade Nove de Julho. Editora em Ciências Médicas e Odontológicas. Rafael Linden
Professor Titular do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Reinaldo Marín
Philosophus Scientiarum en Fisiología y Biofísica. Investigador Titular Emérito del Instituto Venezolano de Investigaciones Científicas. Miembro de la Academia de Ciencias de la América Latina (ACAL). Renata Gorjão
Professora Adjunta do Programa de PósGraduação Interdisciplinar em Ciências da Saúde da Universidade Cruzeiro do Sul. Renato de Oliveira Crajoinas
Doutor em Ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Renato Hélios Migliorini (in memoriam)
Professor Titular do Departamento de Bioquímica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Robson Augusto Souza dos Santos
Professor Emérito do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Rubens Fazan Júnior
Professor Associado do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Rui Curi
FarmacêuticoBioquímico pela Universidade Estadual de Maringá. Professor Titular do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Professor Titular da Universidade Cruzeiro do Sul. Sergio Luiz Cravo
Professor Associado do Departamento de Fisiologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. Silvia Lacchini
Professora Doutora do Departamento de Anatomia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Affiliate Professor, Institute of Cardiovascular and Medical Sciences, University of Glasgow. Silvia Passos Andrade
Professora Titular do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Solange Castro Afeche
Doutora em Fisiologia Humana pelo Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Pesquisadora nível VI do Laboratório de Farmacologia do Instituto Butantan. Ubiratan Fabres Machado
Professor Titular do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Valdo José Dias da Silva
Doutor em Fisiologia pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Professor Titular de Fisiologia do Instituto de Ciências Biológicas e Naturais da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Wagner Ricardo Montor
Professor Adjunto do Departamento de Ciências Fisiológicas da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Walter Araujo Zin
Professor Titular de Fisiologia do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Chefe do Laboratório de Fisiologia da Respiração. Wamberto Antonio Varanda
Professor Titular aposentado do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
Prefácio
É uma grande satisfação lançar a quinta edição de Fisiologia. Temos orgulho de, neste período, termos colaborado para a sólida formação básica de nossos estudantes de graduação e pósgraduação, ensinandolhes o raciocínio e o julgamento científico exato a partir de dados experimentais criteriosos para que sejam profissionais relevantes em seu meio de ação. O texto de Fisiologia é didático e objetivo, porém não superficial. Visa fornecer um ensino mais formativo que informativo, em que os mecanismos fisiológicos são apresentados e discutidos para serem realmente entendidos e aplicados na futura vida profissional dos estudantes. Entretanto, a abrangência do texto tenta ser adequada ao tempo que os alunos dispõem para o estudo. No mundo contemporâneo, o capital moderno é o conhecimento – base para uma diferença de tecnologia que ajudará nosso país a alcançar a tão desejada maturidade científica, cultural e social. Como tudo o que acontece hoje é rápido e intenso, a tarefa de elaborar um conteúdo atual temse mostrado cada vez mais árdua, e por isso decidimos convidar novos editores responsáveis, escolhidos pela competência científica e didática em vários sistemas fisiológicos, que se empenharão para que nossos alunos sempre recebam informações imediatas sobre as importantes descobertas que surgem em seu campo de conhecimento. Além disso, capítulos e seções foram inteiramente revisados, atualizados ou reescritos, como é o caso de Excitabilidade Celular e Potencial de Ação; ATPases de Transporte; Controle da Ventilação; Contratilidade Miocárdica; Visão Contemporânea do Sistema ReninaAngiotensina II e Angiotensina(17); Fisiologia do Metabolismo Osteomineral | Dentes; Circulação Arterial e Hemodinâmica | Física dos Vasos Sanguíneos e da Circulação; e Desreguladores Endócrinos. Para que os alunos se entusiasmem ao descobrir o empenho e a dedicação de alguns de nossos mais importantes fisiologistas, também apresentamos nesta edição os currículos dos mais destacados fisiologistas brasileiros contemporâneos. Agradecemos a todos os que colaboraram para a elaboração desta obra e, em especial, aos autores convidados, à Guanabara Koogan, integrante do GEN | Grupo Editorial Nacional, representada por Juliana Affonso, Tatiane Carreiro e Priscila Cerqueira no Rio de Janeiro, e por Dirce Laplaca e Renata Giacon em São Paulo, e aos estudantes e professores que contribuíram com novas ideias e sugestões. Críticas e novas informações serão bem acolhidas e tornarão possível o aprimoramento de futuras edições. Manifesto também profunda gratidão ao meu querido esposo, Fernando da Cruz Lopes, pela compreensão, carinho e ajuda que vem me oferecendo durante a quimioterapia para recuperação do linfoma que me acometeu nos últimos quatro anos. Agradeço igualmente aos componentes do Laboratório de Oncologia do Hospital SírioLibanês, liderado pela Dra. Yana Augusta Novis Zogbi, e à sua competente e dedicada equipe: Dra. Mariana Gomes Serpa, Dr. Erick Menezes Xavier, Dra. Michelly Kerly Sampaio de Melo e Dr. Guilherme Brasil Amarante. Tudo o que fizerdes, fazeio de coração, como para o Senhor, e não para os homens. (Colossenses 3:23) Margarida de Mello Aires
Material Suplementar
Este livro conta com o seguinte material suplementar: ■ Ilustrações da obra em formato de apresentação (restrito a docentes). O acesso ao material suplementar é gratuito. Basta que o leitor se cadastre e faça seu login em nosso site (www.grupogen.com.br), clicando em GENIO, no menu superior do lado direito. É rápido e fácil. Caso haja alguma mudança no sistema ou dificuldade de acesso, entre em contato conosco ([email protected]).
Sumário
Homenagem a Fisiologistas Brasileiros Contemporâneos Uma Breve História da Fisiologia Coordenador: Marcus Vinícius C. Baldo História Geral da Fisiologia Hamilton Haddad Junior
As Origens da Fisiologia no Brasil Marcus Vinícius C. Baldo | Cesar TimoIaria (in memoriam) | Margarida de Mello Aires
Seção 1 Meio Interno e Homeostase Coordenadora: Maria Oliveira de Souza 1
Homeostase, Regulação e Controle em Fisiologia Gerhard Malnic
2
Compartimentalização dos Líquidos do Organismo Gerhard Malnic
3
Sinalização Celular Mauro César Isoldi | Ana Maria de Lauro Castrucci
4
Fisiologia dos Compartimentos Intracelulares | Via Secretora Karina Thieme
5
Ritmos Biológicos Solange Castro Afeche | José CipollaNeto
6
Fisiologia do Músculo Esquelético Andréa S. Torrão | Luiz R. G. Britto
Seção 2 Transporte Através da Membrana Coordenador: Fernando Abdulkader 7
Membrana Celular Wamberto Antonio Varanda
8
Difusão, Permeabilidade e Osmose Fulgencio Proverbio | Reinaldo Marín
9
Gênese do Potencial de Membrana, Excitabilidade Celular e Potencial de Ação Gênese do Potencial de Membrana Joaquim Procopio Excitabilidade Celular e Potencial de Ação Fernando Abdulkader
10
Canais para Íons nas Membranas Celulares Antonio Carlos Cassola
11
Transportadores de Membrana Maria Oliveira de Souza
12
ATPases de Transporte Adalberto Vieyra | Jennifer Lowe | Lucienne S. Lara | Humberto MuziFilho | Claudia F. Dick | André L. Araujodos Santos | Juliana Dias
Seção 3 Equilíbrio Acidobásico Coordenador: Fernando Abdulkader 13
Regulação do pH do Meio Interno Gerhard Malnic | Wagner Ricardo Montor
Seção 4 Neurofisiologia Coordenador: Marcus Vinícius C. Baldo 14
Sinalização Neuronal Rafael Linden
15
Transmissão Sináptica Rafael Linden | Mariana Souza da Silveira
16
Organização Geral dos Sistemas Sensoriais Marcus Vinícius C. Baldo
17
Somestesia Marcus Vinícius C. Baldo
18
Propriocepção Marcus Vinícius C. Baldo
19
Audição Marcus Vinícius C. Baldo
20
Gustação e Olfação Marcus Vinícius C. Baldo
21
Visão Marcus Vinícius C. Baldo | Dora F. Ventura | Christina Joselevitch
22
Sistemas Geradores de Movimento Luiz R. G. Britto
23
Cerebelo, Núcleos da Base e Movimento Voluntário Cláudio A. B. Toledo (in memoriam) | Luiz R. G. Britto
24
Sistemas Neurovegetativos Sergio Luiz Cravo
25
Bases Neurais dos Comportamentos Motivados e das Emoções Newton Sabino Canteras
26
Controle Neuroendócrino do Comportamento Alimentar Beatriz de Carvalho Borges Del Grande | Giovanne Baroni Diniz | Jackson Cioni Bittencourt
Seção 5 Fisiologia Cardiovascular
Coordenadora: Luciana Venturini Rossoni 27
Estrutura e Função do Sistema Cardiovascular Silvia Lacchini | Maria Cláudia Irigoyen | Luciana Venturini Rossoni
28
Eletrofisiologia do Coração José Hamilton Matheus Nascimento | Emiliano Horacio Medei | Antonio Carlos Campos de Carvalho | Masako Oya Masuda
29
Bases Fisiológicas da Eletrocardiografia José Geraldo Mill
30
Contratilidade Miocárdica Dalton Valentim Vassallo | Ivanita Stefanon
31
O Coração como Bomba José Geraldo Mill | Elisardo Corral Vasquez
32
Circulação Arterial e Hemodinâmica | Física dos Vasos Sanguíneos e da Circulação Eduardo Rebelato | Ana Paula Davel | Helio Cesar Salgado
33
Vasomotricidade e Regulação Local de Fluxo Lisete Compagno Michelini | Luciana Venturini Rossoni | Ana Paula Davel
34
Aspectos Morfofuncionais da Microcirculação Robson Augusto Souza dos Santos | Maria Jose Campagnole dos Santos | Silvia Passos Andrade
35
Veias e Retorno Venoso Helio Cesar Salgado | Rubens Fazan Júnior | Valdo José Dias da Silva
36
Circulações Regionais Circulação Coronariana Kleber Gomes Franchini | Luciana Venturini Rossoni Circulação Renal Renato de Oliveira Crajoinas | Adriana Castello Costa Girardi | Juliano Zequini Polidoro Circulação para a Musculatura Esquelética Patrícia Chakur Brum Circulação Esplâncnica Patrícia Chakur Brum Circulação Cerebral Glaucia Helena Fortes | Valdo José Dias da Silva Circulação Cutânea Valdo José Dias da Silva | Glaucia Helena Fortes Circulação Pulmonar Margarida de Mello Aires Circulação Fetal Luciana Venturini Rossoni
37
Regulação da Pressão Arterial | Mecanismos NeuroHormonais Lisete Compagno Michelini
38
Regulação a Longo Prazo da Pressão Arterial Lisete Compagno Michelini | Kleber Gomes Franchini
Seção 6 Fisiologia da Respiração
Coordenador: Thiago S. Moreira 39
Organização Morfofuncional do Sistema Respiratório Walter Araujo Zin | Patricia Rieken Macedo Rocco | Débora Souza Faffe
40
Movimentos Respiratórios Walter Araujo Zin | Patricia Rieken Macedo Rocco | Débora Souza Faffe
41
Volumes e Capacidades Pulmonares | Espirometria Walter Araujo Zin | Patricia Rieken Macedo Rocco | Débora Souza Faffe
42
Mecânica Respiratória Walter Araujo Zin | Patricia Rieken Macedo Rocco | Débora Souza Faffe
43
Ventilação Alveolar, Distribuição da Ventilação, da Perfusão e da Relação VentilaçãoPerfusão Walter Araujo Zin | Patricia Rieken Macedo Rocco | Débora Souza Faffe
44
Difusão e Transporte de Gases no Organismo Walter Araujo Zin | Patricia Rieken Macedo Rocco | Débora Souza Faffe
45
Controle da Ventilação Thiago S. Moreira | Ana C. Takakura
46
Regulação Respiratória do Equilíbrio Acidobásico Walter Araujo Zin | Patricia Rieken Macedo Rocco | Débora Souza Faffe
47
Mecanismos de Defesa das Vias Respiratórias Walter Araujo Zin | Patricia Rieken Macedo Rocco | Débora Souza Faffe
48
Fisiologia Respiratória em Ambientes Especiais Walter Araujo Zin | Patricia Rieken Macedo Rocco | Débora Souza Faffe
Seção 7 Fisiologia Renal Coordenadora: Maria Oliveira de Souza 49
Visão Morfofuncional do Rim Margarida de Mello Aires
50
Hemodinâmica Renal Margarida de Mello Aires
51
Função Tubular Margarida de Mello Aires
52
Excreção Renal de Solutos Margarida de Mello Aires
53
Papel do Rim na Regulação do Volume e da Tonicidade do Líquido Extracelular Margarida de Mello Aires
54
Papel do Rim na Regulação do pH do Líquido Extracelular Margarida de Mello Aires
55
Rim e Hormônios Sistema ReninaAngiotensina Maria Luiza Morais BarretoChaves | Margarida de Mello Aires Aldosterona | Ações Renais Genômicas e Não Genômicas Deise Carla A. Leite Dellova Peptídios Natriuréticos
Maria Luiza Morais BarretoChaves | Dayane Aparecida Gomes Outras Substâncias Vasodilatadoras com Ação Renal | Óxido Nítrico, Prostaglandinas e Bradicinina Guiomar Nascimento Gomes Hormônio Antidiurético (ADH) Antonio J. Magaldi Hormônio Paratireoidiano (PTH) Frida Zaladek Gil Eritropoetina Aníbal Gil Lopes Uroguanilina Lucília Maria Abreu Lessa Leite Lima | Manassés Claudino Fonteles Endotelinas Maria Oliveira de Souza 56
Distúrbios Hereditários e Transporte Tubular de Íons Aníbal Gil Lopes
57
Fisiologia da Micção Marcio Josbete Prado | Hilton Pina
Seção 8 Fisiologia do Sistema Digestório Coordenadora: Sonia Malheiros Lopes Sanioto 58
Visão Geral do Sistema Digestório Sonia Malheiros Lopes Sanioto
59
Regulação NeuroHormonal do Sistema Digestório Sonia Malheiros Lopes Sanioto
60
Motilidade do Sistema Digestório Sonia Malheiros Lopes Sanioto
61
Secreções do Sistema Digestório Sonia Malheiros Lopes Sanioto
62
Digestão e Absorção de Nutrientes Orgânicos Sonia Malheiros Lopes Sanioto
63
Absorção Intestinal de Água e Eletrólitos Maria Oliveira de Souza | Sonia Malheiros Lopes Sanioto
Seção 9 Fisiologia Endócrina Coordenadora: Maria Tereza Nunes 64
Introdução à Fisiologia Endócrina Ubiratan Fabres Machado | Maria Tereza Nunes
65
Hipotálamo Endócrino Maria Tereza Nunes
66
Glândula Hipófise Maria Tereza Nunes
67
Glândula Pineal José CipollaNeto | Solange Castro Afeche
68
Glândula Tireoide Edna T. Kimura
69
Glândula Suprarrenal Lucila Leico Kagohara Elias | Fabio Fernandes Rosa | José AntunesRodrigues | Margaret de Castro
70
Pâncreas Endócrino Angelo Rafael Carpinelli | Patrícia de Oliveira Prada | Mário José Abdalla Saad
71
Gônadas Sistema Genital Masculino Poli Mara Spritzer | Fernando Marcos dos Reis Sistema Genital Feminino Celso Rodrigues Franci | Janete Aparecida AnselmoFranci
72
Moléculas Ativas Produzidas por Órgãos Não Endócrinos Fábio Bessa Lima | Renata Gorjão | Rui Curi
73
Crescimento e Desenvolvimento Maria Tereza Nunes
74
Controle Hormonal e Neural do Metabolismo Energético Isis do Carmo Kettelhut | Luiz Carlos Carvalho Navegantes | Renato Hélios Migliorini (in memoriam)
75
Controle Neuroendócrino do Balanço Hidreletrolítico José AntunesRodrigues | Lucila Leico Kagohara Elias | Margaret de Castro | Laurival Antonio De Luca Junior | Laura M. Vivas | José Vanderlei Menani
76
Fisiologia do Metabolismo Osteomineral Marise LazarettiCastro | Antonio Carlos Bianco | Priscilla Morethson
Os Dentes Priscilla Morethson 77
Fisiologia da Reprodução Janete Aparecida AnselmoFranci | Poli Mara Spritzer | Celso Rodrigues Franci
78
Desreguladores Endócrinos Caroline Serrano do Nascimento | Maria Tereza Nunes
Seção 10 Fisiologia do Desenvolvimento Humano Coordenadora: Margarida de Mello Aires 79
Fisiologia do Neonato Frida Zaladek Gil
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Fisiologia do Envelhecimento Humano Clineu de Mello Almada Filho | Maysa Seabra Cendoroglo
Homenagem a Fisiologistas Brasileiros Contemporâneos
Prof. Pedro Gaspar Guertzenstein (in memoriam) Prof.ª Maria Marques Prof. Gerhard Malnic Prof. Eduardo Moacyr Krieger Prof. Robson Augusto dos Santos Prof. José AntunesRodrigues
História Geral da Fisiologia Hamilton Haddad Junior
As Origens da Fisiologia no Brasil Marcus Vinícius C. Baldo Cesar TimoIaria (in memoriam) Margarida de Mello Aires
História Geral da Fisiologia Hamilton Haddad Junior
INTRODUÇÃO
▸ Por que estudar a história da fisiologia? Todos conhecemos ou pelo menos já ouvimos falar de cientistas como Galileu, Newton ou Einstein. Aprendemos na escola as contribuições para a química de Boyle e Lavoisier. Mas será que nomes de grandes fisiologistas, tais como William Harvey ou Claude Bernard, nos são também tão familiares? Será que levamos em conta que Boyle e Lavoisier também realizaram importantes descobertas para a fisiologia? Provavelmente não. Estas comparações simples refletem uma enorme discrepância entre o valor que normalmente damos à história da física e da química em relação à história de outras ciências naturais, como a fisiologia. Na verdade, a história da fisiologia tem sofrido uma sistemática negligência tanto por parte dos historiadores quanto por parte dos que a praticam: os próprios fisiologistas. Essa negligência não se justifica por vários motivos. Primeiro, porque a fisiologia ocidental é tão antiga quanto a física e a química – todas com origem nos primeiros pensadores gregos. Segundo, porque essas disciplinas provavelmente tinham e têm equivalente relevância para a sociedade ao longo da história. Por fim, a história da fisiologia é tão interessante e instigante que, ao nos debruçarmos sobre ela, nos deparamos com uma aventura digna de qualquer romance épico. Este, por si só, seria um motivo para estudála. O que fazemos hoje dentro dos laboratórios de pesquisa foi e é determinado historicamente, estando inexoravelmente inserido em uma tradição de pesquisa que possui suas raízes em épocas remotas. Olhando para o passado, podemos aguçar
a visão crítica sobre a pesquisa atual, procurando sempre evitar cometer os erros de nossos predecessores. Estudar a história de qualquer ciência é dar a ela uma dimensão temporal; é inserila dentro da história da sociedade, abrindo as portas para uma compreensão mais ampla de suas práticas atuais. Além disso, ao contrastar essa imagem dinâmica do projeto científico contra a imagem de uma ciência estática e ahistórica, nos damos conta de que nossas descobertas e contribuições serão também um dia substituídas por outras, em um processo que provavelmente nunca findará. Antes de iniciarmos nossa jornada, convêm alguns esclarecimentos. Não se pretende aqui contar a história da fisiologia (considerandose que isso fosse possível), mas uma história da fisiologia. Para tanto, uma angustiante seleção de fatos, personagens e teorias teve de ser realizada, de modo que o que será apresentado constitui uma fina fatia do imenso bolo de acontecimentos dessa disciplina. Procurouse dar relevância às ideias e teorias por trás dos cientistas e suas descobertas, em vez de uma simples cronologia de fatos e datas. Procurouse também, na medida do possível, relacionar as principais descobertas fisiológicas com o contexto social e cultural da época, bem como sua relação com as descobertas ocorridas em outras ciências e em outros ramos do saber, tais como a filosofia e a arte. Obviamente, a intenção do presente texto não é, de longe, esgotar o assunto em questão, mas incentivar o gosto e a pesquisa dessa fascinante área, na esperança de que no futuro possamos corrigir a dívida que temos para com a história da disciplina.
▸ Antiguidade clássica Primeiros pensadores: os physiologói “A água é o princípio de tudo”, teria dito o primeiro filósofo da história ocidental: Tales de Mileto. Outros o seguiram, como Anaxímenes, que identificou o princípio de todas as coisas no ar, ou Heráclito, que disse que tudo vinha do fogo. Esses primeiros pensadores são alguns dos chamados filósofos présocráticos, que viveram na Grécia entre os séculos VII e IV antes de Cristo. O centro de suas investigações foi a natureza. A busca por uma explicação racional para os fenômenos naturais os levou a tentar descobrir a origem, o princípio absoluto do qual tudo deriva; em grego, o arkhé. Sabemos atualmente que água, ar e fogo não são a origem de tudo o que existe. Entretanto, longe de serem soluções ingênuas, a ideia de que pode ser possível explicar a complexidade dos fenômenos naturais com base em princípios simples e universais é um objetivo incansavelmente buscado pela ciência até os dias atuais. Quando utilizamos um conjunto de equações que descreve a queda de um lápis e, ao mesmo tempo, é capaz de colocar um satélite em órbita, estamos, de certa maneira, fazendo isso. Esses primeiros investigadores estavam, portanto, imbuídos do mais puro espírito científico, de modo que podemos considerálos tanto os primeiros filósofos quanto os primeiros cientistas. A palavra grega phýsis designa a totalidade da natureza, isto é, tudo o que existe (incluindo o ser humano). Ela deu origem tanto à palavra física quanto à fisiologia. No entanto, a distinção entre essas duas disciplinas, uma relacionada com o funcionamento do universo e a outra relacionada com o funcionamento do organismo, só foi realizada séculos mais tarde. Dessa maneira, os filósofos présocráticos, interessados no estudo da natureza como um todo, podem ser considerados os primeiros physiologói, ou fisiólogos: os “estudantes da natureza”. Citamos alguns filósofos que conceberam a phýsis como unitária, isto é, propuseram um princípio único para a natureza. Entretanto, outros pensadores présocráticos adotaram soluções pluralistas, como foi o caso do filósofo e médico Empédocles. Para ele, tudo o que existe seria composto por uma mistura de quatro elementos: ar, água, terra e fogo, as “raízes de todas as coisas”. Estas quatro essências fundamentais seriam unidas e separadas por duas forças opostas, o amor (philía) e o ódio (neîkos), atração e repulsão. Outros filósofos, como Leucipo e Demócrito, sugeriram a ideia, tão ousada quanto fabulosa, de que tudo seria constituído de espaço vazio, no qual se movimentariam partículas sólidas indivisíveis: os átomos (do grego tomo, que significa divisão; atomo: aquilo que não se divide). A teoria atômica era uma teoria materialista e mecanicista, pois tentava explicar a complexidade dos fenômenos naturais em termos de matéria e movimento. O perpétuo movimento inerente aos átomos no vácuo era concebido como o resultado de um mecanismo de causa e efeito, resultado das colisões entre eles. A mecanicidade, esse aspecto fundamental da proposta atomista, presente também na teoria de Empédocles, provocou uma grande reação nos pensadores que o sucederam.
▸ Medicina grega A medicina grega floresceu na mesma época dos présocráticos. Além da escola de Empédocles, outras duas importantes escolas médicas surgiram nesse período. A primeira foi fundada por Alcmeão, nativo de Crotona, uma colônia grega situada no litoral da Itália. Consta que Alcmeão realizou algumas dissecções em animais e que concebia a saúde como um equilíbrio de forças dentro do organismo. Essa ideia de balanço, ou igualdade de potências (isonomia),
também presente no pensamento de Empédocles, representa provavelmente uma influência do présocrático Pitágoras, que identificava a natureza com números, em um sistema ordenado e harmonioso de proporções. A fundação da medicina como uma disciplina racional e científica está associada, no entanto, principalmente à figura de Hipócrates (Figura 1). Pouco se sabe a seu respeito; provavelmente nasceu na ilha de Cós, onde fundou uma escola, e viveu entre os anos 460 e 370 a.C. O conjunto de sua extensa obra forma o Corpus Hippocraticus, embora se admita que grande parte dela tenha sido escrita por seus colegas e seguidores. Na famosa obra Sobre a Natureza dos Homens, é exposto o pensamento fisiológico da escola hipocrática. Ele se baseava na doutrina dos “quatro humores” ou sucos (khymós). Segundo essa teoria, o corpo humano seria constituído por uma mistura de quatro fluidos, ou humores: o sangue, a fleuma, a bile amarela e a bile negra. Cada um desses humores estaria associado a um dos elementos essenciais (fogo, água, ar e terra, respectivamente) e possuiria um par dentre quatro características: quente, frio, seco e úmido. Assim, o sangue seria quente e úmido; a fleuma, fria e úmida; a bile amarela, quente e seca, e a bile negra, fria e seca (Figura 2). Em um organismo saudável esses quatro humores estariam misturados de maneira equilibrada; já a doença seria o excesso ou a falta de um desses fluidos, ou seja, um desequilíbrio. Na saúde, o organismo estaria, portanto, em eukrasia (eu: boa, krásis: fusão, mistura); na doença, em dyskrasia. Posteriormente, essa doutrina deu origem à ideia dos quatro temperamentos, de acordo com a predominância de um desses humores no organismo. Uma pessoa poderia ter um temperamento sanguíneo, fleumático, colérico (em caso de excesso de bile amarela, ou kholé) ou melancólico (excesso de bile negra, a atrabílis, chamada em grego de mélaina kholé). Hipócrates e a doutrina dos quatro humores exerceram enorme influência na medicina ocidental – mesmo após a Renascença – avançando até meados do século XVIII. Podemos ainda hoje observar seus ecos em nossa linguagem cotidiana, quando dizemos, por exemplo, que alguém está bem humorado ou de mau humor.
Figura 1 ■ Hipócrates, representado por um artista bizantino. Nas mãos, o médico grego carrega um livro contendo um de seus mais famosos aforismos: “A vida é curta, a arte é longa.” (Adaptada de Inglis, 1968.)
Figura 2 ■ Esquema da doutrina humoral, ponto central na fisiologia hipocrática.
▸ Platão e Aristóteles Antes de continuarmos nossa jornada, é imprescindível examinarmos de maneira mais detida as ideias de dois filósofos que, juntos, representam o apogeu e a síntese do pensamento grego: Platão e Aristóteles. Ambos devotaram suas pesquisas a praticamente todos os ramos do conhecimento, incluindo a cosmologia, a física, a teologia, a lógica, a matemática, a política, a ética e a estética. Apesar de ambos terem escrito sobre o assunto, a fisiologia não foi o foco principal de suas investigações. Entretanto, suas ideias teóricas e metodológicas praticamente dominaram o panorama científico e filosófico dos dois milênios seguintes, consequentemente influenciando de maneira marcante a prática fisiológica desse período. Platão (427347 a.C.) viveu em Atenas, principal polo político e cultural da época, e foi discípulo de Sócrates.1 Praticamente toda sua obra é constituída por diálogos, nos quais Sócrates é, quase sempre, o personagem principal. O diálogo em que Platão apresenta sua física e sua fisiologia é o Timeu, escrito já na sua maturidade. A primeira coisa que nos chama a atenção nesse diálogo, no qual Timeu expõe a Sócrates sua cosmologia, é o paralelismo entre o macrocosmo (universo) e o microcosmo (ser humano). O organismo seria um pequeno universo; este, por sua vez, é concebido como um grande organismo vivo, um “animal dotado de alma e de razão”. Segundo Platão, o ser humano e o universo seriam cópias moldadas por um artífice divino, um demiurgo que utilizou como molde formas ideais e eternas. Tanto o mundo quanto o ser humano teriam uma alma que comandaria a matéria, esta formada pelos quatro elementos: terra, fogo, água e ar. A fisiologia contida no Timeu é baseada em uma divisão tripartida da alma humana, que teria uma porção imortal e outra mortal. A porção imortal seria divina e a mais nobre, uma reprodução microcósmica da alma do mundo; estaria situada na cabeça, resultando daí seu formato esférico. Essa parte da alma seria racional e capaz de aquisição de conhecimento, além de ser responsável por comandar a porção mortal. Situada no tronco, a alma mortal seria dividida em duas partes. Uma porção irascível, ou colérica, situada acima do diafragma, em torno do coração e dos pulmões; ela seria
capaz de sentir ira, participando, assim, da coragem do ser humano para enfrentar seus inimigos. A outra porção da alma mortal seria a apetitiva, situada entre o diafragma e o umbigo (distante da porção racional), e buscaria alimentos e bebidas, cuidando das funções nutricionais do corpo. O estômago, o intestino, o fígado e o baço seriam comandados por essa parte da alma. Utilizando esse esquema, Platão construirá sua fisiologia, na qual a respiração desempenha um papel central. O ar inspirado servirá para resfriar o coração, que possui um calor inato e ferve em momentos de cólera. Osmovimentos de inspiração e expiração seriam responsáveis pela circulação do sangue nas artérias e veias. Esses movimentos seriam o resultado de um complexo processo mecânico causado por correntes dos elementos fogo e ar. O sangue seria produzido no estômago, pela transformação (digestão) dos alimentos por meio da ação do fogo, e subiria em direção à cabeça em dois grandes vasos. É interessante notarmos que Platão, como seus contemporâneos, não fazia distinção entre artérias e veias, e não conhecia a contração muscular do coração como propulsora do movimento sanguíneo. A medula espinal desempenha um papel fundamental no esquema platônico. É a partir dela, que contém as três espécies de alma, que seriam formadas as outras partes do organismo humano. Ela seria o elemento primordial, a ligação da alma com o corpo, a “semente universal de toda espécie sujeita a morte”. Platão indica a existência de um canal, ligando a medula aos órgãos sexuais, por onde passariam as sementes (o sêmen) do homem. Essa ideia ganhou adeptos até na Renascença, como podemos observar em alguns desenhos de Leonardo da Vinci (ver Figura 6, adiante). Aristóteles (384321 a.C.) nasceu na cidade de Estagira, situada na península da Calcídica, território macedônico. Aos dezoito anos, foi para Atenas estudar na Academia de Platão, tornandose seu discípulo por vinte anos. Após a morte do mestre, deixa a Academia e realiza algumas viagens. Em uma delas, aceita a tarefa de ir à Macedônia ser preceptor do jovem Alexandre, futuro imperador. De volta a Atenas, o estagirita funda sua própria escola, o Liceu. Sem dúvida alguma, Aristóteles foi o maior biólogo da Antiguidade. O fato de seu pai ter sido médico na corte macedônica certamente contribuiu para que esse assunto se tornasse um de seus principais interesses. Sua obra contém a descrição de centenas de espécies animais, nalgumas das quais ele provavelmente realizou dissecções. Também foi pioneiro na realização de uma extensa e detalhada classificação dos seres vivos, formando uma scala naturae (escala natural). Assim como nos pré socráticos, o estudo da phýsis foi uma preocupação central em suas investigações. A Terra ocupa o centro de seu universo, que é dividido em duas grandes regiões: supralunar e sublunar. Tudo que está acima da Lua seria composto por uma quintaessência: o éter. Nessa região, caracterizada pela perfeição, os corpos celestes estariam em eterno movimento circular, formando esferas concêntricas em torno da Terra. Já abaixo da Lua, tudo seria composto por uma mistura dos quatro elementos (terra, fogo, água e ar), e estaria sujeito à geração e à destruição, a um começo e um fim. No mundo sublunar, o movimento natural do fogo e do ar tenderia para o alto. Já os corpos pesados, que conteriam os elementos terra e água, tenderiam a ir para o centro do universo, que coincidiria com o centro da Terra. Uma característica central da filosofia natural aristotélica é o problema do movimento e da mudança. Por que as coisas mudam de lugar, de qualidade ou de quantidade? Por que as coisas aparecem e desaparecem, nascem e perecem? Na principal obra em que trata desse tema, a Física, Aristóteles afirma que só podemos conhecer a natureza quando conhecermos as causas da permanência e da mudança: “conhecer é conhecer as causas”. Aristóteles admitia a existência de quatro tipos de causas. A causa material seria responsável pela matéria da qual um ser é constituído, isto é, aquilo de que uma coisa é feita. A causa formal corresponderia à essência, ou natureza do ser. A causa eficiente seria responsável pela presença de uma forma em uma determinada matéria, ou seja, uma causa mecânica, origem imediata de um movimento ou repouso. Finalmente, causa final representaria o motivo, a finalidade da existência de alguma coisa. Essas quatro causas apresentariam uma hierarquia de importância, sendo o conhecimento das causas finais e formais superior e mais valioso do que o das causas materiais e eficientes. No caso dos animais, por exemplo, Aristóteles considera que a presença de uma determinada forma na matéria devese a uma causa mecânica imediata (eficiente), mas que obedece a uma finalidade última presente na natureza (Quadro 1). A teleologia está, assim, no centro de sua fisiologia. Na obra As Partes dos Animais, Aristóteles marca posição contra explicações fisiológicas mecanicistas, como as de Empédocles e Demócrito, afirmando categoricamente que, para o fisiólogo, as causas finais são mais importantes que as eficientes. Ao estudar uma parte de um animal – um órgão, por exemplo – o fisiólogo deve buscar explicar “em vista de que” aquele órgão existe, ou seja, qual a sua finalidade, qual a sua função. Como exemplo, ele nos diz que quando analisamos o trabalho de um carpinteiro, não estamos interessados na força e no ângulo com o qual ele desfere seus golpes na madeira (causa eficiente), mas sim na razão, no objetivo final pelo qual ele está esculpindo. Para Aristóteles, a reprodução tem importância fundamental, visto que ela garante a perpetuação da forma, da essência da espécie, consistindo em uma das evidências mais claras a favor da existência da finalidade na natureza. Dessa maneira, ele investigou arduamente o problema da reprodução e do crescimento, analisando o desenvolvimento de diversas espécies de embriões. Em sua teoria, o calor vital – inato ao organismo – desempenhava uma
função central, sendo o instrumento do desenvolvimento. No macho, o calor vital transformaria o excesso de sangue em sêmen; na fêmea, que possuiria um calor vital inferior, o excesso de sangue seria escoado na menstruação. Não ocorreria, segundo ele, transferência de matéria do macho para a fêmea. O esperma conteria apenas a forma do animal, e seu papel seria o de produzir movimento, imprimindo essa forma na matéria fornecida pela fêmea; assim, o sêmen agiria como causa formal e eficiente. No organismo adulto, o calor vital teria sua sede no coração, considerado por Aristóteles o principal órgão do organismo, uma vez que era o primeiro órgão a ser observado funcionando no crescimento embrionário e o último a parar de funcionar na morte. O coração seria também a sede da sensibilidade e do pensamento; a função do cérebro seria simplesmente a de resfriar o excesso de calor vital. Em 338 a.C., Felipe da Macedônia conquista a Grécia, que perde sua autonomia. Dois anos depois, seu filho Alexandre, exdiscípulo de Aristóteles, assume o trono. Alexandre, o Grande, conquistará um imenso império, que fundirá a cultura grega com as culturas egípcia e orientais. Com isso, ocorre uma difusão da cultura helênica. Atenas deixa de ser o centro científico e cultural do mundo antigo, que se transfere para uma cidade fundada no Egito pelo jovem imperador: Alexandria, o “empório do mundo”.
Quadro 1 ■ Teleologia. Em grego, o termo télos significa fim, finalidade, pleno desenvolvimento. A palavra teleologia, inicialmente o “estudo dos fins”, acabou por designar qualquer doutrina que identifica a presença de metas, fins ou objetivos últimos guiando a natureza e a humanidade, considerando a finalidade como princípio explicativo fundamental na organização e nas transformações de todos os seres. A teleologia pode ser transcendente, quando os propósitos e os fins estão na mente de Deus, como é o caso do demiurgo em Platão, ou imanente, quando essa finalidade é inerente a todos os seres da natureza, como em Aristóteles. O télos pode também estar presente na consciência humana, quando agimos deliberadamente. Talvez devido à imensa presença aristotélica na biologia, a explicação teleológica tem sido identificada como típica da fisiologia, caracterizando a busca da finalidade, ou da função de um determinado órgão, estrutura ou sistema. A moderna fisiologia, entretanto, na medida em que a teoria darwiniana forneceu um algoritmo pelo qual os seres vivos e suas partes evoluíram, tende a considerar a função como a atividade exercida por uma estrutura na manutenção de estados de equilíbrio, chamados estados homeostáticos. Uma vez que esses estados foram selecionados ao longo do processo evolutivo, a função de uma estrutura pode ser definida como uma atividade selecionada pelo processo evolutivo. No século XX, o termo teleonomia foi criado para denominar processos guiados por um programa preestabelecido, como é o caso do controle genético dos mecanismos fisiológicos.
▸ Escola de Alexandria Com a morte prematura de Alexandre, aos 33 anos, seu império é desmembrado, e o controle do Egito fica a cargo de um de seus generais, Ptolomeu I Sóter, dando origem à dinastia ptolomaica. O rei Ptolomeu I constrói em Alexandria um centro de estudos de proporções fabulosas. Dotado de um museu e uma vasta biblioteca, que chegou a contar com mais de 500 mil obras, o centro se transforma no grande ponto de confluência científica do mundo antigo. Homens como Euclides e Arquimedes lá trabalharam. Foi lá também que Cláudio Ptolomeu (que não era parente dos reis ptolomaicos) realizou suas observações astronômicas, sintetizadas na obra Almagesto. Esta obra consolidará a visão geocêntrica aristotélica do universo, até ser contestada na Renascença por Copérnico e Galileu. Alexandria contava também com uma importante escola médica, que fundiu o pensamento médico hipocrático com os conhecimentos da medicina egípcia. O clima de liberdade científica que dominava a cidade possibilitou que a dissecção de cadáveres humanos fosse prática comum entre seus integrantes, e é provável que até algumas vivissecções humanas tenham sido por eles realizadas! Essa escola foi responsável por enormes avanços no conhecimento anatômico e fisiológico; nela, destacamse os nomes de Herófilo e de Erasístrato. Considerado por alguns como o pai da anatomia, Herófilo viveu por volta de 300 a.C. Foi um dos primeiros professores a realizar dissecções em público, e sua fama atraía para Alexandria estudantes de várias regiões. Foi pioneiro no estudo sistemático da anatomia do sistema nervoso humano. Discordando de Aristóteles, ele identificou o cérebro
como a sede das sensações e da inteligência, além de diferenciálo do cerebelo. Descreveu as meninges, o quarto ventrículo e vários nervos cranianos; de acordo com Erasístrato, foi também o primeiro a distinguir os nervos sensoriais dos motores. Herófilo descreveu diversos órgãos, tais como o fígado e o intestino (devemos a ele o termo “duodeno”), além de redigir detalhadas descrições dos órgãos genitais masculino e feminino. Já no sistema cardiovascular, sua contribuição foi extraordinária: foi o primeiro a diferenciar claramente as artérias das veias. Utilizando uma clepsidra (relógio d’água), mediu o pulso de diversos pacientes. Embora considerasse a pulsação como um processo ativo das próprias artérias, procurou exaustivamente uma explicação racional para as medidas encontradas, tentando relacionálas com a saúde e a doença. Contemporâneo um pouco mais jovem que Herófilo, Erasístrato tinha uma inclinação mais fisiológica do que anatômica, sendo, por isso, considerado um dos pais da fisiologia. Foi o primeiro a realizar necropsias para estudar as causas da morte. Não aceitou a doutrina hipocrática dos quatro humores, como havia feito Herófilo; em vez disso, adotou uma maneira modificada do atomismo de Demócrito. Considerou os tecidos como uma malha formada por veias, artérias e nervos, que continuavam a se subdividir além dos limites da visão; uma dedução genial, em uma época em que o microscópio havia sequer sido cogitado. Erasístrato foi também o primeiro a propor de maneira clara que a ação dos músculos era responsável pela produção de movimento. Dessa maneira, abandonou a crença, adotada até então, de que a digestão era uma espécie de cozimento, ou fermentação dos alimentos, e propôs que ela se devia à ação dos músculos do estômago. Depois de digeridos, os alimentos dariam origem ao sangue, no fígado, que seria distribuído pelas veias para o resto do organismo. Por meio de passagens minúsculas, o sangue passaria das veias para as artérias; Erasístrato, assim, antecipa a existência dos capilares. O ar (pneûma) absorvido nos pulmões atingiria o coração, onde seria transformado em um espírito vital, distribuído pelas artérias para o resto do organismo. O coração foi reconhecido por Erasístrato como responsável pelo bombeamento do sangue: o lado direito bombearia o sangue produzido no fígado e o esquerdo, o sangue misturado com o ar proveniente dos pulmões. A ideia de que as artérias conduziam ar, crença comum na época, foi posteriormente derrubada por Galeno. Assim como Herófilo, Erasístrato realizou pesquisas detalhadas sobre o sistema nervoso. Supôs, por exemplo, que a inteligência superior do ser humano deviase ao maior número de circunvoluções observadas, quando comparado ao cérebro de outros animais. Seguindo sua teoria pneumática, concluiu que, ao chegar no cérebro, o espírito vital contido no sangue era transformado no espírito animal. Isso ocorreria dentro dos ventrículos; daí, esse espírito seria transportado pelos nervos para o resto do organismo. Apesar de esses dois homens lançarem as bases da anatomia e da fisiologia ocidentais, Herófilo e Erasístrato não deixaram discípulos imediatos importantes, e, com suas mortes, a escola de medicina de Alexandria entrou em declínio. Na verdade, pouco saberíamos a respeito de suas realizações, não fosse a visita ilustre de Galeno a Alexandria no século II d.C. Nessa ocasião, Galeno teve a oportunidade de registrar os incríveis feitos dessa escola, antes que sucessivos incêndios e saques destruíssem definitivamente o museu e a biblioteca, em uma das maiores perdas culturais que a humanidade conheceu.2 Outras informações sobre a ciência da Antiguidade, incluindo o período alexandrino, devemos a dois grandes enciclopedistas latinos: Celso (século I a.C.) e Plínio, o Velho (século I d.C.).
▸ Galeno e o legado da Antiguidade Cláudio Galeno (129200 d.C.) foi uma das mais influentes figuras médicas da Antiguidade (Figura 3), equiparável somente a Hipócrates. Nascido em Pérgamo, cidade grega situada na Ásia Menor, estudou filosofia e medicina na juventude, alcançando o importante posto de médico de gladiadores. Posteriormente, transferiuse para Roma, onde obteve fama, tornandose médico do imperador e filósofo romano Marco Aurélio. Escritor incansável, Galeno nos legou uma obra incrivelmente volumosa, em que trata de uma vasta gama de assuntos, tais como anatomia, fisiologia, patologia e terapêutica. A autoridade que os séculos posteriores lhe atribuíram fez com que suas opiniões sobre essas disciplinas chegassem praticamente inquestionadas até a Renascença. Seu pensamento incorpora as filosofias platônica e, principalmente, aristotélica; sua medicina julgase herdeira de Hipócrates. Complementando essa tradição teórica, Galeno dissecou vários animais e realizou inúmeros experimentos, motivo pelo qual alguns o consideram o pai da fisiologia experimental. Assim como em Aristóteles, a teleologia perfaz toda a anatomia e a fisiologia galênica. A natureza não faria nada em vão, e agiria sempre com um propósito em vista, determinando a morfologia das várias estruturas do organismo; estas possuiriam sempre a forma ideal para que melhor executassem a função a que foram destinadas. Seguindo esse princípio, Galeno realizou uma detalhada descrição do corpo humano, sobretudo no que diz respeito aos ossos e aos músculos, de onde derivam alguns dos nomes que utilizamos ainda hoje, como, por exemplo, o do músculo masseter. Investigou
também o sistema nervoso, descrevendo sete dos doze pares de nervos cranianos. Em experimentos sobre a fisiologia da coluna vertebral, relacionou a altura de lesões com os déficits por elas produzidos.
Figura 3 ■ Cláudio Galeno (129200 d.C.). (Adaptada de www.uaemex.mx/fmedicina/Galeno.html.)
A fisiologia de Galeno baseiase na doutrina humoral hipocrática, e, apesar de ser um grande crítico de Erasístrato, adota um sistema parecido com o do mestre alexandrino. Esse sistema baseiase em três centros, sede das três partes da alma humana conforme Platão: o fígado, o coração e o cérebro. A estes centros, estariam relacionados três tipos de pneuma, ou espíritos, respectivamente: o pneûma physicón (espírito natural), o pneûma zoticón (espírito vital) e o pneûma phychicón (espírito animal). Assim como Platão, Galeno acreditava que o corpo era apenas um instrumento da alma; o pneuma seria a essência da vida, o espírito do mundo, incorporado ao homem no ato da respiração.3 Pela trachea arteria, o ar inspirado chegaria aos pulmões e, dali, pelas veias pulmonares, o ventrículo esquerdo do coração, onde seria misturado ao sangue. O sangue seria produzido no fígado – os alimentos absorvidos no intestino seriam transportados para lá pela veia porta. Também no fígado, o sangue venoso recémproduzido seria impregnado com o espírito natural, e daí distribuído para todo o organismo. O lado direito do coração era considerado um importante ramo do sistema venoso. No ventrículo direito, uma pequena parte do sangue atravessaria o septo interventricular através de minúsculos canais, penetrando o ventrículo esquerdo. A esse sangue seria incorporado o espírito vital, proveniente do ar absorvido nos pulmões. Ao alcançar o cérebro, o sangue receberia o terceiro tipo de pneuma, o espírito animal, distribuído para o restante do organismo pelos nervos, que seriam ocos. Esse esquema (Figura 4) dominou a fisiologia cardiovascular até o Renascimento, quando Vesálio contestou a existência das passagens no septo interventricular e William Harvey propôs sua teoria da circulação sanguínea. A teleologia galênica possibilitou realizações extraordinárias na anatomia e na fisiologia. Ao mesmo tempo, tornouse uma barreira para o avanço dessas disciplinas, uma vez que ela desmotivava a busca de causas eficientes, centrando o problema na determinação de causas finais; cada estrutura do organismo possibilitaria desvendar a mente do Criador. Apesar de não ser judeu nem cristão, Galeno acreditava, como Platão, que o mundo era obra divina. Não é difícil, por esse motivo, entendermos a ampla aceitação e o enorme prestígio que sua obra alcançou na Idade Média, período em que a cultura ocidental foi dominada pelo pensamento cristão. Com o desmoronamento do Império Romano, por volta do século V d.C., a Europa mergulha na chamada “Idade das Trevas”. Durante esse período, marcado por um exacerbado sentimento
místico e religioso, a cultura ocidental será confinada nos mosteiros medievais. O estudo do corpo humano dá lugar ao estudo da alma, no intuito de obter sua salvação. A teologia passa a ocupar o lugar da ciência, que emigra para o mundo árabe.
Figura 4 ■ Esquema geral da fisiologia galênica. (Adaptada de Singer, 1996.)
RENASCIMENTO CULTURAL
▸ Os precursores: a medicina árabe e o surgimento das universidades Enquanto a Europa encontravase devastada por guerras, pela miséria e pela fome, o mundo assistia ao florescer de uma civilização exuberante. Entre os séculos VII e XIII d.C., os árabes chegaram a dominar um território que ia das fronteiras da Índia e China ao Cáucaso, ocupando todo o norte da África e o sul da Espanha. Graças ao mecenato proporcionado pelas dinastias dos Abássidas, em Bagdá, e dos Omíadas, em Córdoba, a ciência e a filosofia encontraram
solo fértil para continuar os trabalhos dos mestres gregos. As figuras de Aristóteles, Hipócrates e Galeno foram sem dúvida o norte da filosofia e da medicina islâmica. Os árabes não apenas traduziram para seu idioma as obras gregas, mas também realizaram comentários e análises rigorosas a partir delas. Dentre os primeiros nomes da medicina árabe, podemos destacar AlRazi, conhecido no ocidente como Rhazes (865925), médico de origem persa que viveu em Bagdá e realizou importantes avanços a partir da obra de Galeno, sobretudo nos estudos sobre a varíola. Durante os séculos XI, XII e XIII, um importante centro de estudos funcionou em Córdoba, situada na Andaluzia (AlAndaluz), sul da Espanha. Ali trabalharam Abu’lQasim, famoso cirurgião conhecido como Abulcasis (9361013), e Ibn Rushd, médico e filósofo aristotélico conhecido como Averróis (11261198), cujo pensamento exerceu forte influência em toda a Europa. No entanto, a maior autoridade médica árabe foi Ibn Sina, que o Ocidente conheceu como Avicena (9801037). Sua principal obra, o Cânon, pode ser vista como uma tentativa de articulação dos sistemas de Hipócrates e Galeno com a filosofia biológica aristotélica. É uma obra dogmática, apoiada na brilhante exposição de uma cultura extremamente vasta. A lógica e a eloquência de seu estilo conferiramlhe autoridade praticamente indiscutível dentro das ciências médicas medievais e renascentistas. O Cânon de Avicena foi traduzido para o latim por Gerardo de Cremona, que, junto com Constantino, o Africano, foram os principais tradutores das obras da ciência árabe para o Ocidente. Podemos, assim, traçar um tortuoso caminho, no qual as obras gregas foram traduzidas para o árabe e depois para o latim. No entanto, apesar da fundamental importância árabe para o renascimento científico europeu, não devemos nos esquecer de que muitas obras dos antigos foram preservadas por padres nos mosteiros medievais, vindo à tona por ocasião do Renascimento. Nos primeiros séculos desse segundo milênio, outro fenômeno capital para o futuro das ciências ocorreu no continente europeu: o nascimento das universidades. Fruto do crescimento da vida urbana, as universidades têm sua origem nas escolas que existiam junto às catedrais. O direito de lecionar, a princípio nas mãos do clero, foi entregue posteriormente aos mestres leigos. Entretanto, a vigilância sobre o ensino dentro das universidades permaneceu sob intenso controle do Papa. Na maioria das vezes, o ensino básico era constituído das sete artes liberais: o trivium (gramática, retórica e dialética) e o quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música). Além dessas disciplinas, lecionavase medicina, direito e teologia. Das principais universidades fundadas entre os séculos XII e XIII, estão as de Oxford e Cambridge, na Inglaterra; as de Paris e Montpellier, na França; e as de Bolonha e Pádua, na Itália. As duas últimas, como veremos, desempenharam um papel fundamental no desenvolvimento da anatomia e da fisiologia na Renascença. Na universidade de Bolonha, funcionou uma importante escola cirúrgica, que está ligada aos primórdios da prática da dissecção no fim da Idade Média. Dessa escola, destacase Mondino de Luzzi (12701326). O nome de Mondino está ligado à consolidação da anatomia como uma disciplina independente no quadro universitário nascente. Sua principal obra, o Anathomia, um manual de dissecção escrito em 1316, sintetiza o estado da arte dos conhecimentos anatômicos de sua época, e tornouse referência obrigatória entre os professores que o sucederam; foi amplamente utilizado até o século XVI. Embora essa obra seja fruto de várias dissecções, Mondino não possuía o espírito científico crítico e contestador que encontraremos em seus colegas do Renascimento. Em vez disso, suas observações e comentários procuravam, sobretudo, confirmar as autoridades árabes. Sua fisiologia baseavase quase inteiramente na de Galeno. De acordo com uma crença comum da época, ele descrevia o cérebro com três ventrículos (Figura 5): o anterior, para onde confluíam todos os sentidos (por isso recebia o nome de sensus communis, ou senso comum); o médio, onde se localizava a imaginação, e o posterior, sede da memória.
▸ Origem da era moderna Durante os séculos XV, XVI e XVII, a Europa assistiu a uma quantidade de mudanças sociais, econômicas e culturais sem paralelo na história até então. Essas mudanças representaram o rompimento com a Idade Média, dando início ao que se convencionou chamar de Idade Moderna. A intensificação do comércio deslocou o centro da vida cotidiana dos campos para as cidades, fazendo surgir uma nova classe de artesãos e comerciantes: a burguesia. As cidadesestados italianas, tais como Florença, Gênova e Veneza, desfrutavam as riquezas proporcionadas pela retomada do comércio. O ciclo das grandes navegações – incentivado pela busca de novas rotas comerciais para o Oriente, sobretudo após a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, em 1453 – ampliou o horizonte do homem europeu de um modo antes inimaginável, além de incentivar pesquisas técnicas e astronômicas. Em 1492, Cristóvão Colombo descobria um novo continente, a América, fonte de mistério e riquezas inesgotáveis. As artes e as ciências revisitaram os gregos, mas de uma maneira crítica, o que culminou com um rompimento com a tradição antiga, dando origem a uma nova arte e a uma nova ciência. A difusão desses saberes contava agora com a imprensa de tipos móveis, inventada por Gutenberg, que possibilitava a reprodução de livros em grande escala, popularizando o conhecimento e tirando sua exclusividade das mãos
da Igreja. Fruto desse ambiente efervescente, um novo ser humano nasceu na Europa, especialmente na Itália, epicentro desse fenômeno.
Figura 5 ■ Ilustração do século XV, atribuída a Gregor Reisch. Biblioteca Nazionale Centrale, Florence. (Adaptada de Bennett, 1999.)
▸ A ciência nos estúdios No Renascimento, talvez mais do que em qualquer outra época, observamos a sinérgica união da arte com a ciência. Estudos sobre a óptica foram incorporados à pintura, em um movimento iniciado por Giotto (12661337), que começou a utilizar a perspectiva em seus quadros. Esse movimento culminou no naturalismo: a tentativa de recriar o mundo em uma tela da maneira mais fiel possível. Não demorou até que os artistas percebessem o quanto o estudo do corpo humano poderia favorecer sua arte. Os grandes gênios da arte renascentista, como Michelangelo, Rafael, Dürer e Leonardo da Vinci, estudaram anatomia e acompanharam dissecções humanas junto aos médicoscirurgiões da época. Alguns, como Michelangelo e da Vinci, fizeram mais do que isso, realizando, eles próprios, dissecções em seus estúdios. Os estudos concentravamse na anatomia superficial, especialmente dos ossos e músculos, uma vez que o interesse principal era estético. Leonardo da Vinci (14521519), contudo, foi um caso à parte. Seus interesses iam muito além da arte, e seu incrível gênio dedicouse a diversos ramos da ciência. Até hoje ele é considerado um dos maiores anatomistas da história; seus desenhos anatômicos e suas especulações fisiológicas (Figura 6) têm uma riqueza de detalhes e uma precisão que estavam muito à frente de sua época. É difícil calcular qual teria sido o futuro da anatomia e da fisiologia se Marcantonio della Torre (14811512), professor de anatomia de Pávia com o qual da Vinci pretendia publicar um tratado, não tivesse morrido prematuramente. Foi um pequeno passo para que a arte renascentista deixasse os estúdios e fosse aproveitada pelos professores acadêmicos, o que ocorreu sobretudo na Universidade de Pádua, o grande centro de ensino médico da Itália na época. A primeira grande figura paduana foi o holandês Andreas Vesalius (15141564). Sua obraprima, o De Humani Corporis Fabrica (1543), é considerada por muitos como a maior contribuição isolada para a medicina de todos os tempos, assim como são os Principia, de Newton, para a física. Para entender a revolução instaurada por Vesalius, devemos analisar as características do ensino anatomofisiológico realizado em Pádua e na maioria das universidades europeias da época. Pelo menos desde o século XIV, uma aula universitária de anatomia consistia na leitura do manual de Mondino (o Anathomia), seguida geralmente da leitura de um texto de Galeno. Enquanto o professor, do alto de sua cátedra, realizava a leitura do texto em latim, um cirurgiãobarbeiro – inculto e iletrado – dissecava um cadáver, apontando as
estruturas anatômicas aos alunos (Figura 7). Não é difícil imaginarmos as confusões decorrentes dessa prática, uma vez que o professor não se aproximava do cadáver e seu assistente não entendia latim. Além disso, essas demonstrações, assim como a maioria das dissecções realizadas nas Universidades, tinham como principalobjetivo confirmar as descrições de Galeno. A autoridade galênica era tamanha que Iacobus Sylvius (14781553), professor de Vesalius, chegou a dizer que “qualquer estrutura encontrada no ser humano contemporâneo cuja descrição divergisse daquela feita por Galeno seria apenas o resultado de posterior decadência e degeneração da espécie humana” (Saunders e O’Malley, 2003). Vesalius, por sua vez, já tinha experiência em dissecção quando se tornou professor de anatomia e cirurgia em Pádua. Suas aulas passaram a ser extremamente concorridas, pois todos queriam assistir ao novo mestre, que inusitadamente descia de sua cátedra para demonstrar diretamente no cadáver as estruturas descritas nos textos (Figura 8). Não tardou para que Vesalius, inicialmente grande seguidor da anatomia e fisiologia galênica, encontrasse discordâncias entre os textos e o cadáver – isso graças à sua nova arma metodológica: a observação direta dos fenômenos.
Figura 6 ■ Desenhos de Leonardo da Vinci (14521519). À direita, em uma representação do coito, da Vinci indica a existência de um canal ligando a medula aos órgãos sexuais masculinos, por onde passaria o sêmen – de acordo com uma teoria platônica. (Adaptada de Crispino, 2000.)
Em suas aulas, Vesalius desenhava em um quadro grandes esquemas anatômicos, fato que agradou muito aos alunos, e a cópia desses desenhos passou a circular entre os estudantes. Temendo que desenhos de qualidade inferior fossem utilizados nos estudos, Vesalius publica, em 1538, as Tabulae Anatomicae Sex (Seis Pranchas de Anatomia), que se tornaram sucesso imediato. As três primeiras pranchas são diagramas da anatomia e da fisiologia de Galeno. As três últimas são esqueletos desenhados por um pintor da época. O sucesso dessa obra serviu como estímulo para que, 5 anos mais tarde, ele publicasse o De Humani Corporis Fabrica (A Estrutura do Corpo Humano). Essa obra, ricamente ilustrada (Figura 9), marca o início da anatomia e fisiologia modernas. Com ela, foi quebrada a longa tradição que supunha que a transmissão do conhecimento estaria ligada exclusivamente ao texto escrito. Até a publicação do De Humani, todo o ensino científico era realizado com base nos textos clássicos, que não apresentavam figuras. Dessa maneira, o uso de ilustrações era visto com desconfiança pelos professores europeus, uma vez que “a figura degradaria a erudição do texto”. Vesalius transfere a cultura visual ligada ao naturalismo desenvolvido nos ateliês renascentistas para os livros de anatomia. O uso da ilustração na transmissão do conhecimento, juntamente com a observação direta dos
fenômenos naturais, colocam Andreas Vesalius e o De Humani Corporis Fabrica nos pilares da nova ciência nascente. Contudo, a Revolução Científica iniciada no Renascimento agregaria ainda a quebra de muitas outras tradições clássicas e medievais.
▸ A nova ciência A ciência moderna surgiu ao longo dos séculos XVI e XVII, no que se convencionou chamar de Revolução Científica. A grande marca dessa revolução é a ruptura com a visão de mundo e com a ciência de Aristóteles, que, como vimos, havia dominado o panorama científico até então. A Revolução Científica engloba duas revoluções: uma astronômica (física celeste), em que o geocentrismo aristotélicoptolomaico é substituído pelo heliocentrismo copernicano, e outra mecânica (física terrestre), na qual a mecânica aristotélica dá lugar à mecânica galilaiconewtoniana. Essas mudanças ocorreram concomitantemente a uma virada metodológica: o método experimental foi definitivamente incorporado às ciências naturais. Em 1543, mesmo ano em que Vesalius publicou sua principal obra, um astrônomo polonês chamado Nicolau Copérnico (14731543) publicou a De Revolucionibus Orbium Coelestium (As Revoluções da Órbita Celeste), na qual expunha a tese de que os planetas girariam em órbita em torno do Sol. Para termos uma ideia do impacto da proposta heliocêntrica, devemos recordar que a concepção geocêntrica de Aristóteles e Ptolomeu era adotada pela ciência e pela Igreja há mais de mil anos. Se recordarmos também algumas características da física aristotélica, veremos que ela é incompatível com o heliocentrismo. Essas incompatibilidades foram exploradas pelo italiano Galileu Galilei (15641642). Utilizando o recémdescoberto telescópio, Galileu realizou uma série de observações, como as luas de Júpiter e as fases de Vênus. Essas observações concordavam com o sistema copernicano, que ele passou a defender (Figura 10). Do movimento dos corpos celestes, Galileu passa a estudar o movimento dos corpos na superfície da Terra, introduzindo o conceito de inércia. Suas investigações sobre o movimento o levaram a romper definitivamente com a física aristotélica, em um processo que culminou com o surgimento da nova física. Nessa nova física, que é a que utilizamos hoje, os fenômenos naturais são explicados segundo suas causas imediatas, ou mecânicas (que corresponderiam à causa eficiente de Aristóteles). O finalismo, ou a busca de causas finais na natureza, passa a ser evitado; com o tempo, as ciências biológicas também adotariam essa postura, principalmente após Darwin. Outra característica da nova física iniciada com Galileu é o uso da matemática:4 os fenômenos naturais, que antes eram estudados de maneira essencialmente qualitativa, passam a ser analisados de maneira quantitativa.
Figura 7 ■ Gravuras do final do século XV, indicando como era uma aula de anatomia no começo da renascença: enquanto o professor lia um texto clássico, seu assistente apontava as estruturas anatômicas aos alunos. À esquerda, uma ilustração do Fasciculus Medicinae, de Johannes de Kethan (Veneza, 1495). À direita, a páginatítulo de uma edição de Mondino, realizada por Martin von Mellerstadt (Leipzg, 1493). (Adaptadas de Kickhöfel, 2003.)
Figura 8 ■ Página de rosto da primeira edição do De Humani Corporis Fabrica, de 1543. Podemos observar Vesalius no centro da gravura, junto ao cadáver. (Adaptada de Saunders e O’Malley, 2003.)
Figura 9 ■ Gravuras do livro de Andreas Vesalius De Humani Corporis Fabrica, de 1543. (Adaptada de Saunders e O’Malley, 2003.)
Figura 10 ■ Capa da obra de Galileu Galilei Diálogos Sobre os Dois Sistemas de Mundo, de 1632. Nela, observamos um diálogo imaginário entre Copérnico (à direita), Ptolomeu e Aristóteles, os dois últimos defensores do sistema geocêntrico. Por defender o sistema heliocêntrico copernicano, Galileu sofreu um grave processo imposto pela Igreja, sendo levado a renunciar publicamente a suas posições. (Adaptada de Ronan, 1987.)
Outro traço fundamental marca a nova ciência nascente: a experimentação, o recurso que, nos dias de hoje, imediatamente associamos às ciências naturais. A atitude experimental foi veementemente enfatizada pelo filósofo britânico Francis Bacon (15611626), que defendia a ideia de que a aquisição de conhecimento deve necessariamente partir de observações empíricas. Na sua obra mais famosa, o Novo Organon, publicada em 1620, Bacon critica o método aristotélico, que dava um grande valor às deduções de conclusões científicas a partir de princípios axiomáticos (o Organon é uma das obras em que Aristóteles expõe a lógica e o método científico). Bacon propõe “trocar os livros pelas coisas, a biblioteca pelo laboratório, o mundo teórico pelo universo prático” (Zaterka, 2004); ou seja, substituir a ênfase que os gregos davam ao raciocínio puramente teórico e dedutivo pela experimentação prática. Não devemos, no entanto, descartar completamente a observação da agenda científica dos antigos. O próprio Aristóteles insiste, em várias passagens de sua obra, na necessidade da observação cuidadosa para a confirmação de novos fatos e teorias. Entretanto, devemos distinguir observação de experimentação. Entre os antigos, a observação tinha um caráter essencialmente contemplativo – era um processo passivo diante da natureza. Ao longo da Idade Média, o papel da observação passa a ser o de confirmar as teorias e descrições realizadas na Antiguidade, e não o de possibilitar a descoberta de novos fatos.5 Já os adeptos da proposta baconiana não estavam, todavia, interessados em confirmar o que já
era conhecido, mas de ver como a natureza se comportaria em condições ainda não observadas. Essa investigação baseada em experiências empíricas deveria ser realizada de acordo com um método sistemático e controlado. Esse traço experimental da Revolução Científica, juntamente com a virada explanatória (a mudança em direção da busca de causas eficientes) iniciada por Galileu, constituirá as bases da ciência moderna. Antes de investigarmos como a fisiologia incorporou essas novas ideias, convém analisarmos ainda dois outros aspectos da nova ciência: o materialismo e o mecanicismo.
▸ A constituição da matéria Um traço marcante da Revolução Científica foi a retomada da antiga teoria atomista de Leucipo e Demócrito. Essa ideia havia sido desenvolvida por pensadores grecoromanos posteriores, com Epicuro e Lucrécio. Porém, a adoção do paradigma platônicoaristotélico ofuscou completamente as ideias desses pensadores. Como vimos, o atomismo era uma proposta materialista, isto é, o mundo poderia ser explicado em termos de matéria e movimento. Durante o século XVII, diversas teorias oriundas do atomismo grego surgiram na Europa, principalmente na Inglaterra e na França; chamaremos essas teorias de corpusculares porque as versões dessa ideia mudam de pensador para pensador. Galileu e Bacon eram corpuscularistas, mas podemos apontar o químico Robert Boyle (16271691) e o filósofo Pierre Gassendi (15921655) como os principais divulgadores dessa ideia. O corpuscularismo tem uma importância fundamental dentro da formação da ciência moderna, pois, além de alinharse à tradição experimental, ele abre caminho para a explicação dos fenômenos naturais em termos mecânicos. Resumindo: a mudança na natureza seria resultado dos choques entre esses microscópicos corpúsculos em movimento. A filosofia mecânica foi um dos pilares na Revolução Científica e foi desenvolvida por diversos pensadores do século XVII; dentre eles, o filósofo francês René Descartes (15961650).
▸ O universo mecânico de Descartes Ao contrário de Bacon, Descartes afirmava que a gênese do conhecimento estava na razão e não na experiência. De acordo com ele, o raciocínio dedutivo matemático forneceria um substrato seguro para a ciência. Contrastando Bacon e Descartes, observamos a formação de duas tendências epistemológicas:6 uma empirista e outra racionalista. A oposição entre essas duas tradições diz respeito ao papel que tanto a experiência quanto a razão ocupam na formação do conhecimento científico. Para o empirista, o conhecimento originase na experiência e é organizado e confirmado pela razão. Para o racionalista, o conhecimento fundase na razão, mas é confirmado pelos resultados obtidos pela experiência. Para Descartes, o universo seria uma grande máquina em movimento. Essa visão contrastava com a de Platão e Aristóteles, que concebiam o universo como um organismo vivo. Na verdade, a analogia cartesiana caminha no sentido oposto: os seres vivos (homens e animais) são concebidos como máquinas. Para explicar um fenômeno natural, portanto, é necessário desvendar os mecanismos dessa máquina, substituir o fenômeno real pelo modelo mecânico subjacente. A realidade última das coisas não é identificada com o que é observável, com a experiência imediata, mas sim com a matéria e o movimento das partículas que constituem a matéria; ambos devem ser, na medida do possível, medidos e quantificados. Segundo o historiador da ciência Paolo Rossi (2001), a “filosofia mecânica”, da qual Descartes era um dos expoentes, partia de alguns pressupostos: (1) a natureza não é a manifestação de um princípio vivo, mas é um sistema de matéria em movimento governado por leis; (2) tais leis podem ser determinadas com exatidão pela matemática; (3) um número muito reduzido dessas leis é suficiente para explicar o universo; (4) a explicação dos comportamentos da natureza exclui em princípio qualquer referência às causas vitais ou às causas finais.
Entre as várias áreas da ciência a que Descartes se dedicou, estava a fisiologia, que foi totalmente determinada pela sua concepção materialista e mecanicista da natureza. A organização e a estrutura dos órgãos determinariam sua função, de maneira que o organismo agiria de forma mecânica. Ao tomar conhecimento dos trabalhos de Harvey sobre a circulação sanguínea, Descartes vê uma confirmação de suas ideias. No entanto, ele rejeita a ideia de que o coração funcionaria como uma bomba; em vez disso, propõe que o coração funcionaria como um forno, produzindo calor que fermentaria e dilataria o sangue, provocando o batimento cardíaco e sua expulsão pelas artérias. Descartes propôs também uma teoria dualista para dar conta da relação entre a substância material e a substância do pensamento. Nessa teoria, a glândula pineal tem uma importância fundamental, servindo como interface entre o mundo físico e o mundo psíquico, entre o corpo e a alma, entre a res extensa e a res cogitans. Os nervos conduziriam as informações sensoriais até a pineal, sede das sensações (Figura 11).
Figura 11 ■ Figura do livro de Descartes O Tratado do Homem, de 1664. (Adaptada de Rothschuh, 1973.)
O italiano Giovanni Alfonso Borelli (16081679) tentou levar às últimas consequências a aplicação da filosofia mecânica ao mundo da vida. Fiel seguidor de Galileu e Descartes, Borelli considerou a respiração, a circulação e todos os demais movimentos do corpo humano como resultado de ações determinadas por leis mecânicas. Isso o levou ao sistemático estudo dos músculos, ossos e articulações envolvidos no movimento, publicado no tratado De Motu Animalium (Sobre o Movimento dos Animais), em 1681. Esse estudo está repleto de cálculos matemáticos a respeito da força muscular, além da explicação do movimento em termos de alavancas (Figura 12). Os músculos seriam comandados pelos nervos, que conteriam um fluido nervoso e funcionariam de maneira hidráulica – como os freios de um automóvel. Dentre várias observações importantes, Borelli ressaltou a participação do diafragma e dos músculos intercostais na mecânica da respiração.
▸ William Harvey e a circulação do sangue A Revolução Científica não poupou Galeno. Ao longo do século XVII, uma sucessão de descobertas, que culminou com a teoria da circulação sanguínea proposta por William Harvey (15781657), derrubou o núcleo central da fisiologia galênica. Lembremos que esta baseavase na tríade fígadocoraçãocérebro. O lado direito do coração transportaria sangue venoso produzido no fígado a partir dos alimentos vindos dos intestinos. A porção esquerda do coração, juntamente com as artérias, seria responsável por transmitir o espírito vital – absorvido nos pulmões – para todo o organismo. Uma fração do sangue venoso atravessaria o septo interventricular em direção ao ventrículo esquerdo para tornarse arterial. A grande descoberta de Harvey está diretamente ligada à fantástica escola anatomofisiológica deixada por Vesalius após sua saída de Pádua. Dela participaram grandes nomes, tais como Realdo Matteo Colombo (15161559), Gabriel Fallopio (15231562) e Girolamo Fabrici d’Aquapendente (15331619). Colombo foi discípulo e sucessor de Vesalius na cadeira de anatomia de Pádua. A principal descoberta atribuída a ele é a da pequena circulação (circulação pulmonar),
embora conste que ela tenha sido descrita anteriormente pelo médico espanhol Miguel Servet (15111553). Servet, no entanto, a descreve ao longo de poucas páginas inseridas dentro de um tratado teológico. Esse tratado foi queimado na fogueira, juntamente com seu autor, por conter ideias heréticas – como a negação da Santíssima Trindade. Colombo, no entanto, demonstrou experimentalmente que o sangue passava do ventrículo direito para os pulmões e, daí, através das veias pulmonares, de volta para o coração. Como Vesalius e Servet, Colombo não acreditava que o sangue atravessava o septo interventricular. Colombo foi sucedido por Fallopio, que, além de outras descobertas importantes, descreveu o canal auditivo e a trompa feminina que durante muito tempo levaram seu nome. O principal discípulo de Fallopio foi Fabrici d’Aquapendente, que foi professor de Harvey. Embora já houvessem sido descritas por diversos anatomistas, as válvulas venosas foram extensa e sistematicamente estudadas por d’Aquapendente. Dessa maneira, percebemos que já havia em Pádua um intenso clima intelectual em torno das pesquisas acerca da circulação sanguínea na época em que Harvey inicia suas investigações.
Figura 12 ■ Figura do livro de Borelli Sobre os Movimentos dos Animais, de 1681. (Adaptada de Hankins, 1985.)
Vindo da Inglaterra, William Harvey passa os anos de 15991602 em Pádua sob a supervisão de d’Aquapendente, a fim de obter seu doutoramento em medicina. De volta à sua terra natal, Harvey continua suas pesquisas como membro do London College of Physicians. Durante mais de duas décadas, ele realiza uma série de observações e experimentos com pacientes e com animais, que são publicados no pequeno tratado Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis in Animalibus (Estudo Anatômico sobre o Movimento do Coração e do Sangue nos Animais), em 1628. Harvey observou que quando seguramos um coração com as mãos, sentimos que ele enrijece ao funcionar, do mesmo modo que acontece quando um músculo, como o bíceps, por exemplo, se contrai – razão para se considerar a ação do coração como a de qualquer músculo. Também observou que a expansão das artérias, sentida na pulsação, se dá concomitantemente à
contração ventricular, descartando a ideia de que a dilatação das artérias fosse um processo ativo independente do coração. Além disso, viu que quando o sangue penetra em uma das grandes artérias (pulmonar ou aorta), ele é impedido de voltar pelas válvulas arteriais, fato que já era conhecido por Galeno, da Vinci e Colombo, entre outros. Seguindo a escola paduana, Harvey insistiu na impossibilidade de o sangue atravessar o septo cardíaco; não só por sua espessura, mas pelo fato de os dois ventrículos contraíremse ao mesmo tempo, o que não provoca pressão suficiente para movimentar o sangue de um ventrículo ao outro. Harvey também levou a cabo alguns experimentos cruciais. Em um deles, comprimiu a veia cava de serpentes com um fórceps, observando que o coração não se enchia mais de sangue e tornavase pálido. Já se a compressão fosse feita na aorta, a região entre a compressão e o coração dilatavase a ponto de quase explodir, além de adquirir uma cor profundamente avermelhada. Em outro experimento, ele utilizou o conhecimento de que as artérias situamse em profundidade em relação às veias, que ficam mais próximas à superfície da pele. Se um garrote colocado acima do cotovelo de um ser humano fosse muito apertado, o sangue arterial não conseguia chegar até a mão, que perdia a pulsação e esfriava, enquanto a região acima do torniquete inchava. Já se o garrote fosse levemente apertado, era o sangue venoso que não conseguia retornar da extremidade do braço, que inchava (Figura 13). Esses experimentos foram seguidos de astuciosas análises quantitativas. Multiplicando a quantidade de sangue ejetada do ventrículo esquerdo a cada contração pelo número de batimentos cardíacos por minuto, percebeu que a quantidade de sangue que passa pelo coração em uma hora excede muito o peso de um ser humano.7 Como, então, poderia todo esse sangue ser continuamente produzido a partir dos alimentos? A única conclusão a que se pode chegar é que o sangue circula em vez de ser continuamente produzido no fígado. Com base em todas essas evidências, Harvey propôs a teoria de que o sangue circula pelo organismo, impulsionado pelos movimentos de contração muscular do coração. Essa ideia coadunavase com a nova filosofia mecânica, uma vez que atribuía o movimento do sangue a causas mecânicas. É interessante notarmos que, apesar disso, Harvey era um aristotélico convicto, o que o levou a buscar incessantemente a finalidade para o movimento circular do sangue. Lembremos que o movimento circular, de acordo com Aristóteles, era privilégio do mundo supralunar, ou seja, do mundo celeste. Possivelmente, a fidelidade à cosmologia do grande mestre grego impediu Galeno e seus sucessores de procurar movimentos circulares na esfera terrestre. Desse modo, o movimento sanguíneo no sistema galênico apresentava, como os demais movimentos sublunares, início e fim. Harvey utiliza a velha analogia entre macrocosmo e microcosmo para resolver o problema. Assim como o movimento circular dos astros celestes garantiria coesão ao universo, o movimento circular do sangue seria responsável pela manutenção do organismo. O centro do microcosmo humano seria o coração, que é identificado com o Sol – refletindo provavelmente a nova concepção heliocêntrica de Copérnico. Isso é colocado de maneira clara na dedicatória do De Motu Cordis ao rei Charles da Inglaterra. “Sereníssimo Rei”, escreve ele:
Figura 13 ■ Experimentos com o uso de torniquete realizados por Harvey, descritos na obra Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis in Animalibus, de 1628. (Adaptada de Singer, 1996.)
O coração dos animais é o fundamento de suas vidas, o soberano de todos os seus órgãos, o sol do microcosmo, fonte a partir da qual todo crescimento depende, todo poder e força emanam. O Rei, da mesma maneira, é o fundamento do seu reino, o sol do seu microcosmo e o coração do seu Estado, dele todo o poder emana e toda graça provém […]
Esse fragmento reflete também o clima político na época das monarquias absolutistas, em que o rei detinha poderes quase ilimitados. Alguns anos mais tarde, na França, Luís XIV seria conhecido como o “Rei Sol”. A partir dos trabalhos de Harvey, a concepção do funcionamento do corpo animal foi radicalmente alterada. O De Motu Cordis foi o primeiro tratado da era moderna dedicado a um tema estritamente fisiológico, o que não acontecia desde a Antiguidade. Nele estão presentes vários dos métodos utilizados pela fisiologia moderna, como, por exemplo, a extrapolação de conclusões tiradas a partir de animais para os seres humanos. Podemos nos arriscar a dizer que, a partir de Harvey, a fisiologia começou a tomar a forma que conhecemos hoje.
▸ A época de ouro da microscopia Havia ainda um elo a ser completado na teoria da circulação: Harvey havia teorizado a existência de passagens microscópicas entre as artérias e as veias, mas foi apenas em 1661 que um discípulo de Borelli conseguiu observálas. Esse homem foi o italiano Marcello Malpighi (16281694). Utilizando o microscópio, ele observou a existência dos capilares nos pulmões de uma rã. Malpighi pertenceu a uma geração de grandes microscopistas que revolucionou vários ramos da biologia, como a zoologia, a botânica, a anatomia, a fisiologia e a embriologia. Essa geração, que contou com nomes como Robert Hooke (16351703), Antoni van Leeuwenhoeck (16321723) e Jan Swammerdan (16371680), praticamente fundou a histologia e a microbiologia. O início do uso do microscópio está ligado à Academia de Lincei (Quadro 2), em que o termo microscopia aparece pela primeira vez, em 1625. Ao longo do século XVII, o instrumento foi aperfeiçoado e novos usos foram incorporados. Um dos primeiros a realizar observações sistemáticas ao microscópio foi o holandês van Leeuwenhoeck, que, entre outras coisas, mediu o diâmetro dos glóbulos vermelhos no sangue e observou as fibras musculares em contração. O inglês
Robert Hooke foi o primeiro a observar pequenos poros presentes no tecido da cortiça, que ele chamou de células. No entanto, de maneira alguma se pode atribuir a Hooke a descoberta da célula, ainda que tenha sido ele o primeiro a observá la, pois o fundamento conceitual do que chamamos hoje de célula só será construído no século XIX. A importância de Hooke, porém, está na publicação de sua principal obra: a Micrographia, de 1665, em que ele descreve uma série de observações realizadas com o auxílio do microscópio (Figura 14). As ilustrações contidas nessa obra são riquíssimas e, a exemplo do que aconteceu com a obra de Vesalius, serviram como padrão para obras posteriores. O uso do microscópio foi um dos avanços tecnológicos de maior impacto na fisiologia e na anatomia. Com ele, um novo mundo se mostrou aos pesquisadores, e a expansão do conhecimento proporcionada por ele dificilmente encontra paralelo na história dessas disciplinas.
SÉCULO DAS LUZES
▸ Ousar saber A Revolução Científica iniciada nos séculos XVI e XVII foi levada a cabo no século XVIII. A física de Galileu e a cosmologia de Copérnico culminaram nos trabalhos de Isaac Newton (16421727), expostos no Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (Princípios Matemáticos de Filosofia Natural), de 1687. A teoria exposta nos Principia era baseada em princípios relativamente simples, como os de inércia, de ação e reação e de gravitação, e fornecia uma explicação precisa e unificada para os fenômenos naturais. Não bastasse isso, Newton desenvolveu um poderoso método matemático: o cálculo diferencial – que também foi desenvolvido, de maneira independente, pelo filósofo alemão Gottfried Leibniz (16461716). O sucesso da teoria newtoniana foi enorme e ela exerceu hegemonia na física até o início do século XX, quando foi questionada por Einstein. Pela primeira vez depois de Aristóteles, um sistema teórico completo era capaz de explicar, com precisão matemática, tanto os fenômenos celestes quanto os terrestres. E o século XVIII soube prestar as devidas homenagens ao trabalho de Newton, como lemos nos versos do poeta Alexander Pope: Nature and Nature’s law lay hid in night, God said: “Let Newton be” and all was light […] 8
Quadro 2 As academias científicas. O surgimento das Academias de Ciência, ao longo do século XVII, foi um dos frutos da Revolução Científica. Não encontrando espaço nas conservadoras universidades europeias, a nova ciência alojouse em torno dessas organizações. Livres da autoridade e do dogmatismo teológico da universidade, os cientistas ali trocavam informações e apresentavam suas novas descobertas. Além disso, experimentos eram realizados, cujos resultados eram analisados e discutidos em conjunto. Desse modo, as Academias constituíram um esforço coletivo para o avanço das ciências naturais. A submissão dos novos resultados experimentais obtidos por esses pesquisadores à crítica de seus pares mostrouse um rigoroso instrumento de controle, imprescindível à ciência nascente. As primeiras sociedades científicas surgiram na Itália. A Accademia dei Lincei foi fundada em 1603 pelo nobre e amante das ciências Federico Cesi. O nome da Academia faz alusão à aguçada visão do lince, e esse espírito marcou seus integrantes: olhar e entender o mundo como ele realmente é. Para esse fim, não foi poupado o uso de instrumentos como o microscópio e o telescópio, aperfeiçoados por um de seus mais ilustres sócios: Galileu Galilei. Outra associação italiana de destaque foi a Accademia del Cimento (Academia do Experimento), fundada pelos irmãos Medici, Leopoldo e Ferdinando II, em 1657. Grande divulgadora da nova ciência galilaica, ela contou, entre outros, com integrantes do porte de Torricelli e Borelli. O fim das reuniões dessa sociedade aconteceu após a nomeação de Leopoldo de Medici para cardeal, em 1667. Na Inglaterra, a Royal Society (Sociedade Real) de Londres foi fundada em 1662, pelo Rei Carlos II. Assim como suas irmãs italianas, uma forte tendência experimentalista marcou suas atividades. Inspirada nas ideias de Francis Bacon (Figura 15) sobre a instauração de uma nova ciência, a sociedade tinha como moto a afirmação “Nullius in verba” – contração de uma citação de Horácio, “nullius addictus iurare in verba magistri”, isto é, não prestar juramento às palavras dos antigos mestres, como Aristóteles. As disciplinas
tratadas nas reuniões da sociedade incluíam a física, a química e a fisiologia. O químico Robert Boyle foi um dos mais proeminentes dentre os primeiros membros da sociedade. Ele e Robert Hooke, o primeiro secretário, realizavam experimentos e demonstrações semanais aos demais integrantes. Dentre eles, destacase a utilização de uma bomba de vácuo em investigações sobre a constituição do ar atmosférico e da fisiologia respiratória. Ao contrário do que sugere seu nome, a Royal Society exercia suas atividades com independência do governo, pois não recebia subvenção da coroa; esse fato garantiu uma grande autonomia a seus membros. Os avanços científicos obtidos pela sociedade eram divulgados no Philosophical Transactions (Negócios Filosóficos), jornal que, assim como a Royal Society, existe até hoje. Criada em 1666 por Colbert – ministro da economia de Luís XIV – a Académie Royale des Sciences (Academia Real de Ciências), sediada em Paris, logo se tornou o ponto de convergência da ciência francesa. Buffon, d’Alembert, Laplace e Lavoisier são alguns dos homens que integraram seus quadros. Ao contrário da Royal Society, a Academia de Paris era financiada diretamente pela monarquia francesa. Durante a Revolução, foi considerada um símbolo do Ancient Régime, sendo fechada pela Convenção em 1793. A Académie des Sciences serviu de modelo para outras sociedades científicas europeias, como a Academia de Berlim, criada por Frederico I em 1700. Reorganizada por Frederico II em 1711, ela passou a se chamar Königliche Preussische Akademie der Wissenschaften (Academia Real Prussiana de Ciências).
Figura 14 ■ À esquerda, um dos microscópios utilizados por Robert Hooke. À direita, uma das ilustrações de sua obra Micrographia, de 1665. (Adaptada de Harris, 1999.)
Assim, lançado da escuridão para a luz, nasceu o século XVIII: o siècle des lumières. O Iluminismo, como ficou conhecido o movimento científicofilosófico associado a esse século, pretendia esclarecer, iluminar, clarear o pensamento humano; e a ferramenta escolhida para essa tarefa foi o uso da razão. Somente a razão poderia libertar o ser humano da ignorância. Ela seria o ponto de amarração das diversas propostas científicas e filosóficas do século XVIII. Os métodos racionais utilizados na lógica formal foram transferidos às ciências naturais, e o uso da razão foi definitivamente incorporado pela ciência experimental. O filósofo alemão Immanuel Kant (17241804), ao tentar responder à pergunta sobre o que foi o Iluminismo, nos descreve o lema que motivou os homens desse período: sapere aude! – ousar saber! A filosofia mecânica e o materialismo invadiram o século XVIII. Os trabalhos fisiológicos de Descartes e Borelli incentivaram a busca de compreensão do funcionamento da máquina humana. Os seres vivos, considerados agora parte
integraldo universo físico, estavam sujeitos às mesmas leis que regiam o mundo newtoniano. Os trabalhos sobre a química darespiração realizados por Lavoisier e a descoberta da eletricidade animal executada por Galvani são exemplos da tentativa de integração do mundo vivo ao domínio físicoquímico. Em 1749, um filósofo e médico francês chamado Julien Offray de la Mettrie (17091751) publicou um livro chamado L’homme machine (O Homemmáquina), em que expunha uma visão puramente materialista e ateísta do mundo. La Mettrie reduzia a fisiologia humana a seus componentes mecânicos, negando inclusive o dualismo corpoalma cartesiano: mesmo as funções mentais como o livrearbítrio e a moral seriam resultados de interações da matéria. Essa obra tornouse muito popular e provocou escândalo entre seus contemporâneos. Na verdade, apesar de racionais, materialistas e mecanicistas, os homens do século XVIII buscavam incessantemente uma maneira de conciliar ciência e religião. Negar a existência de Deus e da alma humana era uma atitude que tendia a provocar repulsa na maioria dos fisiologistas da época. Fenômenos fisiológicos tais como o crescimento, a nutrição e a atividade mental revelaramse mais difíceis de explicar em termos puramente mecânicos e materiais do que supuseram mesmo os maisentusiasmados mecanicistas. A matéria tornouse um conceito extremamente abrangente e variável. Como veremos a seguir, ela poderia, por exemplo, ter qualidades especiais, como sensibilidade e irritabilidade.
Figura 15 ■ Frontispício da History of the Royal Society of London de Thomas Sprat, 1667. Do lado direito do busto do Rei Charles II, patrono da academia, está Francis Bacon, pai da nova filosofia experimental. A referência ao caráter experimental da sociedade está também nos diversos instrumentos científicos espalhados ao fundo. (Adaptada de Ronan, 1987.)
▸ O grande Albrecht von Haller O maior e mais influente fisiologista do século XVIII foi o suíço Albrecht von Haller (17081777). Escritor profícuo, publicou uma obra volumosa, na qual destacamse os oito volumes dos Elementa Physiologiae Corporis Humani (Elementos de Fisiologia do Corpo Humano), lançados entre 1757 e 1766. Nessa obra, Haller sintetiza o “estado
da arte” da fisiologia de sua época, coordenando em bases científicas as várias teorias e observações realizadas por ele e por seu pares, com os quais mantinha intensa correspondência. Dois conceitos centrais da fisiologia de Haller eram os de irritabilidade e sensibilidade. No século anterior, o francês Francis Glisson (15971677), ao estudar a liberação de bile pela vesícula biliar, havia proposto que as fibras que a compunham teriam a capacidade de sofrer irritação frente a um estímulo externo. A irritabilidade, de acordo com Glisson, seria a capacidade da matéria orgânica de reagir a uma perturbação, sendo a geradora dos movimentos no organismo e a grande responsável pela possibilidade da vida. Haller continuou os experimentos de Glisson, sendo um dos primeiros a determinar a função da bile na digestão de gorduras. Além disso, ele estudou a propriedade de irritabilidade e a distinguiu de outra propriedade da matéria orgânica: a sensibilidade. Para Haller, o organismo seria composto de elementos básicos, as fibras, que foram divididas em três classes. A primeira seria a tela cellulosa (tecido celular), que formaria o tecido conectivo e de sustentação do corpo. A segunda seria a fibra muscularis, que formaria os músculos, e teria a propriedade intrínseca de irritabilidade: contrairse em resposta a um estímulo. Por fim, a fibra nervosa, capaz de sentir e de transmitir essas sensações para outras partes do organismo. As noções de irritabilidade e de sensibilidade obtiveram grande adesão nos anos que se seguiram às publicações de Haller, como observaremos, por exemplo, nos trabalhos de Galvani. A ideia de que o organismo fosse constituído, em última instância, por tipos diferentes de fibras com propriedades especiais culminou na elaboração da influente “doutrina do tecido”, que emergiu dos trabalhos do francês Xavier Bichat (17711802). Esse médico – que foi a principal figura na fisiologia francesa da virada do século – identificou vinte e um tipos de tecidos, que seriam formadores dos órgãos humanos. Sua classificação foi tanto anatômica quanto fisiológica; cada tecido desempenharia uma função no organismo, consequência do tipo de “propriedade vital” presente em cada um deles (como a sensibilidade, por exemplo). Segundo Bichat, essas propriedades vitais seriam um impedimento para que a fisiologia fosse explicada em termos puramente físicoquímicos. Com base nesse tipo de raciocínio, diversas propostas vitalistas surgiram nos séculos XVIII e XIX. O vitalismo introduzia a existência de uma “força vital” (também chamada de vis vitalis ou élan vital), responsável pelas peculiaridades observadas nos processos orgânicos.
▸ Origem da eletrofisiologia: Galvani e Volta As pesquisas sobre os fenômenos elétricos avançaram muito no século XVIII, graças aos trabalhos de homens como Benjamin Franklin, Henry Cavendish e vários outros pesquisadores. Os artefatos desenvolvidos nessa época, tais como a garrafa de Leyden (capaz de armazenar energia elétrica), propiciaram as pesquisas sobre a presença da eletricidade nos seres vivos. Em 1791, o professor de anatomia da Universidade de Bolonha, Luigi Galvani (17371798), publicou a primeira obra sobre esse assunto, o De Viribus Electricitatis in Motu Musculari Commentarius (Comentário Sobre o Poder da Eletricidade no Movimento Muscular). Nessa obra, fruto de mais de dez anos de experimentação, Galvani propõe a existência da “eletricidade animal”. Utilizando vários tipos de preparações experimentais, ele estimulou eletricamente nervos de rãs e observou a contração muscular que ocorria em suas patas (Figura 16). Sua conclusão foi que o corpo desses animais era capaz de produzir e armazenar um tipo de fluido elétrico que era responsável pela contração muscular. O Commentarius obteve enorme sucesso quando foi publicado, mas também gerou críticas intensas. A principal delas veio de um professor de física da Universidade de Pavia: Alessandro Volta (17451827). Lendo atentamente a obra de Galvani e repetindo alguns de seus experimentos, ele concluiu que, apesar de reagir à eletricidade externa, as rãs não eram capazes de produzir eletricidade intrinsecamente. De acordo com Volta, os resultados encontrados por Galvani deviamse à eletricidade provocada pelos metais utilizados para conectar os nervos e músculos da rã. A disputa entre esses dois brilhantes cientistas tornouse um dos grandes debates da história da ciência, e gerou experimentos valiosos de ambos os lados. Os experimentos de Volta, por exemplo, culminaram na invenção da pilha voltaica, isto é, da bateria elétrica.
Figura 16 ■ Figura da obra de Galvani De Viribus Electricitatis in Motu Musculari Commentarius, de 1791. (Adaptada de Piccolino, 1998.)
Com o sucesso obtido por Volta e a morte de Galvani em 1798, os anos posteriores atribuíram a Volta o fato de haver interpretado corretamente os resultados dos trabalhos experimentais iniciados por Galvani. No entanto, uma análise mais detida revela a importância dos trabalhos do bolonhês na fundação e no desenvolvimento posterior da eletrofisiologia. A teoria de Galvani (que, ao contrário de Volta, tinha sólida formação médica) sobre a eletricidade animal estava diretamente ligada à tradição fisiológica de sua época. Essa tradição derivava dos trabalhos de Haller, sobretudo de suas teorias sobre a irritabilidade do tecido muscular, sendo um dos arcabouços conceituais utilizados por Galvani na concepção de seus experimentos. O fato de utilizar rãs recentemente sacrificadas, em vez de animais vivos, por exemplo, evitava qualquer possível interferência da alma ou de forças vitais em suas preparações. A irritabilidade era uma propriedade intrínseca do músculo, assim como era a eletricidade animal. A reação do organismo a um agente externo dependia de sua organização interna. O fenômeno da contração não era, dessa maneira, diretamente causado pelo estímulo elétrico externo; a noção de irritabilidade supunha que o organismo já estava previamente preparado para reagir de uma maneira específica, com um tipo de energia que já possuía dentro de si. Atualmente, poderíamos associar esse tipo de raciocínio a diversos fenômenos fisiológicos, como, por exemplo, aqueles mecanismos que envolvem “cascatas bioquímicas”. A perturbação causada por um estímulo, nessas situações, é amplificada muitas vezes, e a resposta final depende apenas muito indiretamente do estímulo inicial. São impressionantes, portanto, as conclusões a que chegou Galvani, em uma época em que nem a célula nem sua membrana – local onde sabemos atualmente ser provocada e armazenada a energia elétrica do organismo – haviam sido descobertas.
▸ A combustão e a química da vida Como vimos, a relação entre vida e calor, assim como a dependência do ar nos fenômenos vitais, foi estabelecida desde a Antiguidade. Durante os séculos XVIII e XIX, a determinação dos processos químicos por trás dessas observações ocupou a mente de grande parte da comunidade fisiológica. Esses pesquisadores procuraram relações quantitativas entre o consumo de oxigênio e nutrientes pelo organismo e a produção de calor e subprodutos de suas atividades metabólicas. Podemos, entretanto, encontrar precursores desse tipo de investigação ainda na Renascença. O italiano Santorio Santorio (15611636) foi um dos pioneiros no estudo do metabolismo. Ao longo de mais de trinta anos de pesquisas, utilizando diversos instrumentos – como termômetros e balanças – Santorio introduziu uma série de medidas quantitativas sobre o funcionamento do corpo humano (Figura 17). A descoberta do oxigênio e sua participação na combustão provocaram uma revolução na química durante o século XVIII, formando as bases modernas dessa disciplina. A aplicação da nova química à fisiologia deuse pelas mesmas mãos do líder dessa revolução: o francês Antoine Lavoisier (17431794). A estreita relação do processo de combustão com a respiração animal logo foi estabelecida por Lavoisier, que percebeu que os seres vivos absorvem oxigênio e liberam gás carbônico, da mesma maneira que faz uma substância quando em combustão. Ele percebeu, também, que ambos os
processos produziam calor. Utilizando o calorímetro de gelo (Figura 18), instrumento que desenvolveu em parceria com o físico Pierre Simon de Laplace (17491827), realizou diversas medidas sobre a produção de calor animal. A partir dessas experiências, e de muitas outras (Figura 19), Lavoisier concluiu que a respiração era um lento processo de combustão que ocorriadentro dos pulmões. Ao propor esse primeiro esquema da fisiologia respiratória, Lavoisier dava um imenso passo em direção da inserção dos organismos vivos no reino físicoquímico, jornada que continuou no século XIX, com a descoberta dos princípios da conservação de energia.
Figura 17 ■ Balança metabólica utilizada por Santorio Santorio. (Adaptada de Rothschuh, 1973.)
Figura 18 ■ Calorímetro de gelo de Lavoisier e Laplace. O espaço entre as duas paredes (isolante térmico), assim como o espaço entre a parede interna e a cesta experimental, eram preenchidos com gelo. Um animal experimental era então colocado dentro da cesta. O calor produzido pelo animal derretia o gelo da parte interna, e a água produzida era captada pelo vaso inferior. A quantidade de água servia como um índice do calor produzido pelo animal, que era verificado em diversas situações experimentais. O calor animal era também comparado ao calor produzido pela chama de uma vela colocada dentro da cesta. (Adaptada de Coleman, 1971.)
A revolução francesa, iniciada em 1789, pôs fim à era moderna e inaugurou a era contemporânea. Pôs fim também à vida de Lavoisier, guilhotinado pelos revolucionários em 1794. Sua proposta de que a respiração fosse um processo de combustãodentro dos pulmões logo era contestada. As observações eram simples: os pulmões não apresentavam qualquer indício de conter um processo de queima. Sua temperatura não era superior à de qualquer outra parte do corpo, e nenhum sinal de lesão tecidual, como se poderia esperar, foi encontrado. Foi proposto, então, que o sangue passava pelos pulmões simplesmente para absorver o oxigênio do ar; o sangue, então, passou a ser o local da combustão. A pri mazia do sangue nos processos vitais já contava com muitos adeptos desde os trabalhos de Harvey. O influente John Hunter, por exemplo, criou a noção de “vitalidade do sangue” – ele acreditava que o sangue continha a essência da vida, sendo o componente mais importante do organismo. A hegemonia do sangue nos processos fisiológicos durou até a segunda metade do século XIX, apesar de vários trabalhos indicarem a importância da atividade tissular, como a do músculo, por exemplo, no consumo de oxigênio. Mas foi a partir de 1870, com a publicação dos trabalhos de Eduard Pflüger (18291910), que ficou estabelecido que o consumo de oxigênio pelo organismo dependia da atividade metabólica dos tecidos.
▸ Fisiologia versus anatomia Olhamos para o passado com as lentes do presente. É inevitável a tentação de analisar fatos ocorridos em outras épocas do ponto de vista atual. Isso é especialmente flagrante quando olhamos para a história das ciências: intuitivamente temos o impulso de aplicar nosso ponto de vista privilegiado ao pensamento dos nossos predecessores científicos. Afinal, supostamente somos mais esclarecidos, visto que dispomos de teorias e tecnologias mais avançadas. Contudo, se o nosso objetivo é o de entender as reais motivações dessas pessoas, devemos observálas sob o prisma da época em que elas
viveram. Devemos nos colocar na posição das personagens que investigamos e tentar enxergar uma época como a viam os homens desse período. A fisiologia como a praticamos hoje, isto é, a fisiologia experimental, tem data e locais de nascimento: século XIX, na França e, posteriormente, na Alemanha. Entre os anos de 1500 e 1800, no entanto, a fisiologia possuía uma identidade um tanto distinta da atual. A coleta de dados empíricos e a realização de experimentos nesse período eram feitas pelos anatomistas. Segundo o historiador Andrew Cunningham, enquanto a anatomia lidava com a prática (como etimologicamente podese deduzir do termo anatomia: dividir em partes, dissecar, ou seja, uma prática), a fisiologia lidava exclusivamente com a teoria. O fisiologista era um filósofo natural; ele teorizava a partir dos dados da anatomia, mas também poderia utilizar dados de outras disciplinas, como fez Lavoisier com a química. Um fisiologista nunca realizava um experimento; o anatomista o fazia. O anatomista preocupavase com os o quês? e comos? do organismo, isto é, com suas causas materiais e eficientes. O fisiologista estava interessado nascausas últimas (finais), nos por quês? – inacessíveis aos anatomistas. A anatomia criava fatos, a fisiologia tirava conclusões. A diferença entre essas duas disciplinas remonta à distinção, na Antiguidade, entre ciência e arte. Os antigos não valorizavam o trabalho manual (técnico ou artístico) tanto quanto o conhecimento teórico e contemplativo. O filósofo natural estava, assim, distante e acima do artesão. Aristóteles, por exemplo, distinguia as chamadas ciências teoréticas das ciências produtivas. Enquanto as primeiras visavam o conhecimento teórico, com um fim em si mesmo, as últimas lidavam com a produção de algo útil ou belo. Essa dicotomia chegou até os modernos, alocando a anatomia no campo das artes e a fisiologia no campo das ciências. Podemos ilustrar isso analisando a obra dos cientistas desse período.
Figura 19 ■ Investigações sobre a respiração realizadas no laboratório de Lavoisier. Enquanto seu marido realizava os experimentos, Madame Lavoisier tomava as notas; devemos a ela este desenho. (Adaptada de Hankins, 1985.)
O médico francês Jean Fernel (14971558) foi o primeiro moderno a utilizar o termo Fisiologia no sentido antes descrito. Em 1554, o termo Physiologia aparece como título de um dos livros que compunha sua obra Universa Medicina. Segundo Fernel, a fisiologia era parte da filosofia e deveria buscar as causas dos fenômenos naturais com base na demonstração lógica e não na demonstração experimental ou visual. De acordo com essa concepção, a fisiologia deveria dar conta de três classes de coisas, com as quais a anatomia não conseguiria lidar: (1) das menores unidades que constituiriam o corpo humano, e de como essas porções minúsculas e invisíveis estariam relacionadas com as porções visíveis; (2) das causas últimas do movimento e da mudança no organismo; (3) da explicação das grandes funções do organismo, tais como a nutrição, o crescimento e a geração. O conceito fisiológico de Fernel foi seguido por Haller, que ao longo de sua vida executou uma enorme quantidade de experimentos com animais vivos e mortos, além de seres humanos. Todavia, quando estava realizando esses experimentos, Haller usava seu “chapéu” de anatomista e não de fisiologista (Figura 20). Segundo ele, “physiologia est animata anatome” (fisiologia é anatomia animada). A fisiologia deveria ir além das evidências fornecidas pelos sentidos; deveria incorporar a busca pelo propósito, ou finalidade da
existência da estrutura estudada. É a teleologia biológica de Aristóteles, acrescida da ideia cristã de um criador infinitamente sábio e benevolente. A anatomia seria uma espécie de serva da fisiologia; a forma de um órgão seria consequência da função para qual aquela estrutura foi criada por Deus. Com base nessa noção, o francês Georges Curvier (17691832) criaria mais tarde o termo anatomia funcional. Por fim, o exemplo mais marcante dessa dicotomia anatomia/fisiologia vem de William Harvey. A obra em que expõe sua teoria da circulação do sangue, o Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis in Animalibus, é, como o título indica, um exercício, um estudo anatômico, não fisiológico. Todos os experimentos descritos nessa obra são, na concepção de Harvey, experimentos anatômicos. A despeito de considerarmos hoje uma obra tipicamente fisiológica, seu autor consideravase praticando uma anatomia analítica. Como veremos, a criação da fisiologia experimental alterou a identidade da fisiologia, incorporando definitivamente a investigação empírica aos seus objetivos e métodos. Não devemos, entretanto, utilizar os conceitos da nova fisiologia ao olharmos para a velha fisiologia e para a velha anatomia se quisermos ter uma visão fiel do que constituíam essas disciplinas no passado.
SÉCULO XIX
▸ Sob a luz da evolução Foi graças aos enormes desenvolvimentos ocorridos na Alemanha e na França durante o século XIX que a fisiologia adquiriu os contornos atuais. Mas antes de analisarmos as peculiaridades das tradições de pesquisa fisiológica nesses dois países, devemos nos voltar para a Inglaterra, onde viveu Charles Darwin (18091882). Em 1859, Darwin publicou a obra Origin of Species (Origem das Espécies), que contém sua teoria da evolução por meio da seleção natural. Essa teoria – segundo a qual os seres vivos se modificam por meio de pequenas mutações aleatórias que são selecionadas pelo ambiente – revolucionou e unificou todos os campos da biologia. A seleção natural forneceu, enfim, o mecanismo pelo qual os organismos e suas partes se modificam, o que possibilitou aos cientistas entenderem o porquê de uma determinada estrutura ser do jeito que ela é. Foi o golpe letal na presença da teleologia aristotélica e um grande passo para a expulsão das explicações finalísticas na biologia (ver Quadro 1). Não devemos, no entanto, imaginar que a teoria darwinista desfrutou de vida fácil nos primeiros anos de sua existência. A Inglaterra e o restante da Europa foram palco de fervorosos debates na segunda metade do século XIX. Foi apenas na primeira metade do século XX, quando um movimento que ficou conhecido como “síntese” uniu a teoria evolutiva à genética mendeliana, que os conceitos darwinistas foram plenamente aceitos na biologia – a ponto de um dos líderes desse movimento, o russo Theodosius Dobzhansky (19001975), dizer: “Nada faz sentido na biologia, a não ser sob a luz da evolução.”
Figura 20 ■ O frontispício do Volume II dos Elementa Physiologiae Corporis Humani (17571766), de Albrecht von Haller, nos dá uma ideia da diferença entre a anatomia e a fisiologia nessa época. À esquerda, observamos o anatomista exercendo sua prática; com a ajuda de instrumentos, ele realiza seus experimentos, sua arte. À direita, o fisiologista, em reflexão, escreve. Ao lado de outras ciências, como a astronomia e a geometria (representadas pelos anjos à sua direita), ele alinhase com os filósofos naturais. Enquanto o anatomista lida com os meios, o fisiologista interessase pelos fins, pelas causas últimas. (Adaptada de Cunningham, 2002.)
▸ Três concepções da fisiologia Ao analisarmos a fisiologia do século XIX, devemos ter em mente que três pontos de vista sobre o que era a vida, e de como a ciência poderia ter acesso a esse fenômeno, permeavam as pesquisas dentro dos laboratórios. O primeiro deles era a perspectiva vitalista. Existiram diversos tipos de vitalismo ao longo do desenvolvimento da fisiologia, de maneira que esse termo está longe de delimitar um conceito preciso. De uma maneira geral, os adeptos dessa posição concebiam a matéria orgânica como possuidora de um tipo de “força vital”, responsável pela presença da vida na matéria. Os dois fisiologistas mais influentes do começo do século – Xavier Bichat, na França, e Johannes Müller, na Alemanha – eram vitalistas. Entretanto, com o passar dos anos e com o desenvolvimento científico que ocorreu ao longo do século, a interferência de uma força externa não física – uma “mão estranha” – na corrente causal das explicações fisiológicas passou a ser vista com desconfiança pelas gerações seguintes. O entusiasmo causado pelos avanços da física e da química no século XIX impulsionou a retomada de um projeto iniciado por Descartes, Borelli e La Mettrie: o reducionismo materialista. O objetivo era reduzir os fenômenos fisiológicos em termos de matéria e movimento, seguindo os preceitos da mecânica. A descoberta dos princípios de conservação de energia e da presença de fenômenos elétricos nos seres vivos proporcionaram novas e promissoras perspectivas aos reducionistas. Como veremos, um influente grupo de fisiologistas adotou essa visão na Alemanha a partir da segunda metade do século. Esses cientistas representaram uma reação aos Naturphilosophen (filósofos da natureza) germânicos (Quadro 3), assim como aos vitalistas. Desse grupo reducionista, conhecido como “grupo de Berlim”, participaram homens tais como Emil du BoisReymond, Hermann von Helmholtz e Carl Ludwig.
Quadro 3 A naturphilosophie alemã. A visão materialista e mecanicista do mundo desenvolvida pelos franceses encontrou forte resistência em alguns segmentos do pensamento alemão. Esses teóricos estavam alinhados a outra concepção do universo, que ficou conhecida como Naturphilosophie, ou Filosofia da Natureza. Associada ao movimento romântico, a Naturphilosophie possuiu diversas formulações entre os séculos XVIII e XIX. No entanto, sua forma mais acabada pode ser encontrada nos escritos do filósofo Friedrich Schelling (17751854). Os Naturphilosophen concebiam o mundo como um organismo vivo em evolução, e não como uma máquina, como queria Descartes e a tradição mecanicista. Mesmo as leis da física e da química estariam sujeitas às leis desse processo evolutivo, que seriam leis de caráter biológico, tais como as que regulam o desenvolvimento ontogenético de um organismo vivo. A meta desse processo contínuo e dinâmico de transformação da natureza seria a realização da autoconsciência. A evolução do universo seria orientada na direção da formação do ser humano, que seria capaz de tomar consciência do processo. Dessa maneira, no ser humano a natureza alcançaria a consciência de si mesma. Apesar da postura idealista e um tanto especulativa, a Naturphilosophie exerceu grande influência na filosofia e na ciência alemã e de países vizinhos. Entre seus principais representantes estavam o zoologista Lorenz Oken (17791851) e o poeta Wolfgang Goethe (17491832). Ambos realizaram várias descobertas anatômicas guiados pelos princípios dessa filosofia natural. Na física, Hans Oersted (17771851), discípulo de Schelling, descobriu a conexão fundamental entre eletricidade e magnetismo baseado na ideia de unidade na natureza e na existência de uma “força universal”, das quais as demais forças físicas seriam apenas manifestações. Uma terceira concepção da fisiologia, mais cética e cautelosa do que a reducionista, ficou conhecida como positivista. Ela concentravase nos fenômenos fisiológicos e nas suas relações entre si, considerando como metafísica a busca pelas causas últimas desses fenômenos. Para esses homens, a análise físicoquímica do organismo poderia fornecer uma valiosa ferramenta para a fisiologia. No entanto, o fisiologista deveria concentrarse nos fenômenos fisiológicos, em vez de preocuparse com suas causas últimas; ou com a essência do que era, afinal, a vida. Essa concepção está ligada ao nascimento da fisiologia experimental na França, a partir dos trabalhos de François Magendie e Claude Bernard.
▸ A fisiologia experimental dá seus primeiros passos
O que presenciaremos ao longo do século XIX é o nascimento de uma nova disciplina: a fisiologia experimental. Isso aconteceu primeiro na França, e, logo depois, na Alemanha. Em seguida, os discípulos dos grandes mestres franceses e germânicos incumbiramse de espalhar essa nova disciplina para o restante do mundo. Os primeiros praticantes dessa nova visão constituem uma reação contra: (1) a concepção de que a fisiologia era uma ciência puramente teórica, ou um ramo da filosofia; (2) a presença de “forças vitais” no funcionamento dos organismos vivos, ou seja, a recusa de explicações vitalistas. Um dos primeiros defensores da fisiologia experimental foi François Magendie (17831855). Sua obra Précis Élémentaire de Physiologie (Compêndio Elementar de Fisiologia), de 18161817, é uma espécie de manifesto a favor da nova disciplina. Nela, Magendie defende entusiasticamente a adoção do “método baconiano da indução nas ciências fisiológicas”. Segundo ele, ao contrário de outras ciências naturais – tais como a física e a química – a fisiologia, até aquele momento, teria sido “um longo e enfadonho romance”. Para alcançar o sucesso daquelas disciplinas, a fisiologia deveria, assim como elas, ser reduzida “inteiramente ao experimento”. Além disso, ele critica severamente as concepções vitalistas de seu professor, Xavier Bichat – na época, a figura mais influente na fisiologia francesa. Magendie observou que certas propriedades e fenômenos fisiológicos não eram explicáveis de acordo com as leis da física e da química; ele as denominou atividades vitais. No entanto, essas propriedades vitais seriam mais fruto da ignorância dos cientistas, que lançavam mão delas quando não conseguiam reduzir um fenômeno biológico a termos físicoquímicos, do que propriedades intrínsecas aos seres vivos. Ele assumia, dessa maneira, uma posição agnóstica com relação às causas vitais – e anuncia, em tom quase profético: A fisiologia está, no momento, precisamente no ponto em que estavam as ciências físicas antes de Newton: ela espera apenas que um gênio de primeira ordem venha para descobrir as leis da força vital do mesmo modo que Newton desvendou as leis da atração.
▸ Claude Bernard: o fundador da fisiologia moderna A possibilidade da existência de um Newton nas ciências da vida era questão frequente entre os pensadores do início do século XIX. A expectativa era de que um sucesso equivalente ao que a teoria newtoniana havia alcançado nas ciências exatas acontecesse nas ciências biológicas. Alguns chegavam a duvidar que isso fosse possível, como foi o caso de Kant. Em sua obra Crítica do Juízo, de 1790, ele assegura a impossibilidade de o ser humano vir a conhecer suficientemente os seres vivos a ponto de explicálos segundo “simples princípios mecânicos da natureza”: […] e isso é tão certo que podemos ter a ousadia de dizer que é absurdo para os homens se entregarem a tal projeto, ou esperar que possa nascer um dia algum Newton que faça compreender a simples produção de um ramo de erva […]
Por trás dessa afirmação está a convicção de que as possibilidades do mundo vivo são tais que, ainda que os homens venham a conhecer todas as suas condições físicas e materiais de existência, algo ainda escapará. Isso significa dizer que as leis da física nunca explicariam totalmente os organismos vivos. O “Newton do ramo de erva” teria, assim, a tarefa de vencer o abismo entre o reino físico e o reino biológico. Foi esse o desafio que o fisiologista francês Claude Bernard (18131878) aceitou enfrentar; ao fazer isso, ele lançou as pedras fundamentais da fisiologia moderna (Figura 21). A primeira constatação de Bernard foi a de que realmente existem fenômenos que ocorrem nos organismos vivos que não ocorrem nos corpos inanimados. Assim, são as leis que regem esses fenômenos que o fisiologista deve tentar desvendar; essas leis não são físicas nem químicas, mas leis fisiológicas. Não se trata de negar que a vida depende de fenômenos físicoquímicos, mas de dizer que ela não se reduz a esses fenômenos. Bernard não era, portanto, um reducionista ou um materialista: ele tentava limitar o escopo da fisiologia ao estudo dos fenômenos fisiológicos. Ao buscar o que é próprio da fisiologia, Bernard acaba propondo uma virada na concepção da disciplina. A fisiologia, segundo ele, deveria constituirse em uma ciência autônoma. Uma vez que Bernard buscava afirmar essa nova visão da fisiologia como disciplina independente, ele não podia, de modo algum, admitir que esta fosse reduzida à física e à química. Além disso, ele busca separar a nova fisiologia das outras ciências da vida, em um rompimento com a história da antiga fisiologia e de sua relação com a anatomia. Bernard não concebe mais a fisiologia como uma continuação da anatomia (uma animata anatome). Ao contrário, ele afirma que “em vez de proceder do órgão para a função”, o fisiologista deve “começar a partir do fenômeno fisiológico e procurar sua explicação no organismo”.
Figura 21 ■ Claude Bernard (18131878), aos 53 anos, Bibliothèque de l’Académie Nationale de Médicine, Paris. (Adaptada de Fulton, 1966.)
Apesar de distinguirse das ciências físicoquímicas, a fisiologia deve, no entanto, nelas se espelhar no que concerne ao método experimental. Discípulo de Megendie, Bernard exalta a fisiologia experimental defendida por seu professor. Segundo ele, o objetivo da investigação experimental não é a essência, a natureza da vida, mas a determinação experimental dos fenômenos vitais. Por meio de experimentos cuidadosamente controlados, o fisiologista deve buscar as “condições do fenômeno”, isto é, as condições experimentais em que um determinado fenômeno fisiológico é observado. A experimentação fisiológica deve, ainda, ser um processo ativo; o pesquisador deve provocar a ocorrência do fenômeno que deseja investigar: “experimentação é observação provocada”, ensina ele. É interessante notarmos a importância que Bernard (1872) concede à distinção entre observação e experimentação. O “observador”, segundo ele, aceita os fenômenos apenas da maneira como a natureza os coloca diante dele; o experimentador os faz aparecerem sob condições nas quais ele é o mestre.
Como consequência dessa visão, o santuário do fisiologista não deve ser o hospital. De acordo com Bernard, o clínico e o patologista apenas observam os fenômenos vitais. Essas observações podem, é claro, servir como ponto de partida, mas apenas isso. A partir daí, o verdadeiro fisiologista deve entrar em seu reino: o laboratório. E foi no laboratório que Bernard realizou muitas descobertas fundamentais para a fisiologia; dentre elas estão a participação do pâncreas na digestão e a função glicogênica do fígado. Certo dia, Bernard trabalhava em seu laboratório examinando fígados de coelho. Seu objetivo era descobrir qual ou quais seriam os órgãos responsáveis pela digestão do açúcar ingerido na alimentação. De acordo com a teoria de seu professor JeanBaptiste Dumas (18001884) – aceita na época –, plantas e animais apresentariam fisiologias distintas: os vegetais seriam produtores de nutrientes, enquanto os animais seriam apenas consumidores. Portanto, a glicose encontrada no sangue de animais teria origem direta nos alimentos por eles ingeridos. Tendo observado, entretanto, a presença de glicose no sangue de animais que não a ingeriram (em jejum), Bernard pôsse a examinar diversos órgãos, incluindo fígados de coelho, dosando o nível dessa substância em várias situações experimentais. Estando apressado, por algum motivo, nesse dia ele dosou o nível de glicose logo após o sacrifício do animal, e guardou o órgão para terminar suas análises no dia seguinte. Surpreendentemente, o nível de glicose encontrado no dia seguinte foi muito superior ao encontrado logo após o sacrifício, a despeito do fato de o animal já estar morto há várias horas. Essa observação deu origem ao famoso experimento do “fígado lavado”. Bernard, após sacrificar o animal, lavava cuidadosamente o fígado para remover toda a glicose presente, e o armazenava em condições adequadas. Algumas horas depois, ele dosava o nível de glicose, encontrando uma grande quantidade dessa substância, que só poderia ter sido produzida desde a lavagem. Outros órgãos, quando submetidos a essa operação, não apresentavam esse comportamento. Bernard havia, assim,
descoberto a função glicogênica do fígado. Os animais, assim como as plantas, eram capazes de produzir glicose. Mais ainda, a digestão não era um processo simples e direto como se supunha, em que o organismo simplesmente utiliza os alimentos que ingere. Antes, é um processo indireto e complexo, em que o organismo é capaz de armazenar, modificar e fabricar seus próprios nutrientes. Outro conceito importante deduzido desses experimentos – e de vários outros – é o de secreção interna. O fígado, além de secretar bile, é capaz de secretar glicose diretamente no sangue. A descoberta da capacidade de um órgão ou glândula secretar, no ambiente interno, substâncias essenciais para seu funcionamento lançou as bases para a fundação da endocrinologia. A noção de secreção interna também levou Bernard (1978) à sua teoria que unificaria definitivamente a fisiologia moderna: a teoria do meio interno. Vamos ouvilo: Creio ter sido o primeiro a insistir nessa ideia de que para o animal há realmente dois meios: um meio externo no qual está colocado o organismo e um meio interno (milieu intérieur), no qual vivem os elementos dos tecidos. A existência do ser se dá não no meio externo, o ar atmosférico para o ser aéreo, a água doce ou salgada para os animais aquáticos, mas no meio líquido interno formado pelo líquido orgânico circulante que envolve e banha todos os elementos anatômicos dos tecidos. […] A conservação do meio interno é a condição de vida livre, independente: o mecanismo que a possibilita é aquele que assegura no meio interno a manutenção de todas as condições necessárias para a vida dos elementos.
Podemos notar que Bernard compara o organismo a uma sociedade, em que os vários elementos, vivendo no meio interno, trabalham conjuntamente para a manutenção do todo. Para ele, “o organismo forma, por si próprio, uma unidade harmônica, um pequeno mundo (microcosmo) contido em um grande mundo (um macrocosmo)”. A explicação dos fenômenos que governam o meio interno passa, então, a ser o objetivo do fisiologista. Em 1929, Walter B. Cannon (18711945) retomará essa teoria ao propor a ideia de homeostase. Os elementos citados por Bernard correspondem às células, e um de seus objetivos será unir sua teoria do meio interno a uma teoria proposta na Alemanha algumas décadas antes, a teoria celular.
▸ A teoria celular Enquanto a teoria da evolução de Darwin fornecia o arcabouço explicativo sobre a formação das estruturas presentes nos seres vivos, e a teoria do meio interno de Bernard unificava a fisiologia, outra teoria terminou de unir a biologia vegetal e animal, e tornouse também um dos pilares da fisiologia moderna. A teoria celular, como ficou conhecida, surgiu na Alemanha, com os trabalhos de Matthias Schleiden (18041881) e Theodor Schwann (18101882). O desenvolvimento dessa ideia, porém, tem início quase duzentos anos antes, com as primeiras observações com o auxílio do microscópio feitas por Hooke, Leeuwenhoeck, Malphigi e vários outros. Esses pesquisadores, e os que os seguiram, observaram que tanto os tecidos vegetais quanto os tecidos animais apresentavam uma grande variedade de glóbulos e corpúsculos. Dessa maneira, no início do século XIX a existência das “células” era fato conhecido da comunidade europeia de microscopistas. Qual foi, então, a grande novidade introduzida por Schleiden e Schwann? Como veremos, mais do que acrescentar novas descrições às já muitas existentes na época, foi a insistência na ideia de que a célula é a unidade fundamental de todos os organismos vivos que os colocou no centro dessa importante descoberta. Isto é, a grande mudança foi conceitual e não metodológica. Dentre os muitos precursores da teoria celular, podemos citar os franceses Henri Dutrochet (17761847) e François Raspail (17941878), o tcheco Jan Evangelista Purkinje (17871869) e seus discípulos, e o alemão Lorenz Oken (1779 1851). Purkinje liderou um importante centro de pesquisas microanatômicas e fisiológicas em Breslau e posteriormente em Praga. Suas investigações lhe renderam diversas descobertas, tais como as grandes células observadas no cerebelo que hoje levam seu nome, sendo considerado um dos principais pioneiros da teoria celular. De acordo com alguns historiadores, os trabalhos de Purkinje e seu grupo – muitos deles publicados em tcheco – foram eclipsados por rivalizarem com o grupo dominante na fisiologia germânica liderado por JohannesMüller. Já o caso de Lorenz Oken representa um capítulo interessante no desenvolvimento da doutrina da célula. Oken era adepto da Naturphilosophie, um movimento científicofilosófico que exerceu grande influência no ambiente cultural alemão no final do século XVIII e começo do século XIX (ver Quadro 3). Na obra Die Zeugung (Sobre a Geração), de 1805, Oken propõe que todas as formas vivas, das mais simples às mais complexas, seriam constituídas de “infusorianos”: pequenas vesículas que se formariam a partir de um fluido original amorfo e indiferenciado. As afirmações de Oken baseavamse excessivamente em argumentos metafísicos e não em observações diligentes e sistemáticas ao microscópio, o que lhe rendeu inúmeras críticas
por parte dos seus contemporâneos. No entanto, para muitos, sua importância na formação da teoria celular residiu na sua insistência de que os organismos vivos eram formados por minúsculas unidades funcionais. Em 1833, Johannes Müller (18011858) assumiu a cadeira de anatomia e fisiologia da Universidade de Berlim, formando em torno de si um importante grupo de pesquisas. Entre os primeiros alunos de Müller estavam dois exímios microscopistas: Schleiden, um exadvogado que virou botânico, e Schwann, um microanatomista. Ao investigar o tecido embrionário de plantas, Schleiden concluiu que o tecido vegetal era constituído de uma “sociedade” de células, que, juntas, formavam a base estrutural das plantas. Além disso, concluiu que todas as células eram causadas pelo mesmo mecanismo. Suas descobertas foram publicadas na monografia Beiträge zur Phytogenesis (Contribuições para a Fitogênese), em 1838. Durante um jantar, Schleiden compartilhou suas ideias com Schwann, que ficou muito entusiasmado, pois viu grande semelhança com o trabalho que ele mesmo desenvolvia com tecidos cartilaginosos e de notocorda. Em 1839, Schwann publicou suas conclusões sob o título Mikroskopische Untersuchunger über die Uebereinstimmung in der Struktur und dem Wachstum der Thiere und Pflanzen (Pesquisas Microscópicas sobre a Conformidade na Estrutura e Crescimento entre Plantas e Animais). Essa obra, que incorporou os trabalhos de Schleiden, obteve grande sucesso e marca, enfim, o nascimento da teoria celular (Figura 22). Nela, Schwann propõe, de forma coesa e baseada em diversas e sólidas evidências empíricas, a teoria de que as células constituiriam as unidades fundamentais dos animais e dos vegetais. Elas seriam a sede das atividades metabólicas do organismo. Tanto Schleiden quanto Schwann não reconheceram o processo de divisão celular, e acreditavam que as novas células se formavam a partir de um fluido nutritivo, em um processo análogo ao de cristalização. Esses erros, no entanto, não impediram que a teoria celular, aliada à teoria do meio interno, funcionasse como grande ponto de convergência para a fisiologia, assim como para diversas outras disciplinas biológicas. Rudolf Virchow (18211902), por exemplo, transferiu para a fisiologia da célula a sede das doenças, fundando a patologia celular.
Figura 22 ■ Desenhos de células feitos por Schwann. À esquerda, um retrato de Matthias Schleiden (18041881); à direita, de Theodor Schwann (18101882). (Adaptada de Coleman, 1971; e de http://vlp.mpiwgberlin.mpg.de.)
▸ A conservação de energia aplicada ao mundo da vida O projeto de inserir os seres vivos no universo físicoquímico foi a motivação que levou Lavoisier a investigações sobre a química da respiração, no século XVIII. Esse mesmo espírito norteou grande parte da pesquisa fisiológica do
século XIX. O trabalho do químico Justus Liebig (18031873) sobre a química animal foi um dos principais responsáveis por isso. Sua proposta era oferecer à fisiologia as novas descobertas da química, de modo que podemos considerálo um dos precursores da bioquímica – esta, uma disciplina do século XX. Liebig propunha que era possível descobrir que tipo de transformações químicas aconteciam dentro do organismo, analisando quimicamente o que entrava e o que saía do corpo. Além disso, a descoberta do princípio da conservação de energia – sistematizado de maneira independente por Robert Mayer (18141878), James Joule (18181889) e Hermann von Helmholtz (18211894) – criava o conceito de energia como moeda de troca entre diversos processos físicos. O intercâmbio de energia era observado em diversos fenômenos durante o século XIX, como, por exemplo, nas baterias voltaicas, que transformavam energia química em elétrica, e nas máquinas a vapor, que convertiam calor em energia mecânica. Não demorou até esse raciocínio ser aplicado ao mundo vivo, já que os organismos poderiam ser encarados como uma máquina química produtora de calor e movimento. Dessa maneira, diversos cientistas procuraram a confirmação de que o princípio de conservação de energia aplicavase também ao reino biológico. Um aperfeiçoamento dos calorímetros de gelo, os calorímetros respiratórios (Figura 23) tornaramse um clássico nesses estudos. Com a ajuda desses aparelhos, buscavase medir a quantidade total de substâncias e gases ingeridos e excretados por um animal, assim como a quantidade de calor produzido. Em Munique, Carl Voit (18311908) e Max von Pettenkofer (18181901) realizaram uma série de experimentos utilizando esse tipo de aparato, verificando, entre outras coisas, que a quantidade de oxigênio consumido variava em função do tipo de alimento ingerido. Max Rubner (1854 1932), um discípulo de Voit e Pettenkofer, continuou essa investigação, realizando uma longa série de experimentos que se tornaram muito famosos. Graças a eles, Rubner verificou definitivamente que a conservação de energia estava presente nos seres vivos.
Figura 23 ■ Calorímetro respiratório. (Adaptada de Coleman, 1971.)
▸ O grupo de Berlim
Dois alunos de Johannes Müller promoveram uma revolução nas pesquisas eletrofisiológicas iniciadas por Galvani. Esses alunos, junto com alguns outros, formaram o que ficou conhecido como o grupo de Berlim: um grupo de fisiologistas de sólida formação em física e matemática, e também com forte tendência reducionista e materialista. O primeiro deles foi Emil du BoisReymond (18181896), que começou suas pesquisas após ler o tratado do físico Carlo Matteucci (18111865) sobre eletricidade animal. Du BoisReymond começou replicando os resultados do italiano. Convencido de que os seres vivos estavam sujeitos às leis da física e da química, ele realizou uma série de experimentos utilizando o galvanômetro, um instrumento capaz de medir pequenas alterações elétricas. Graças à sua grande paciência e habilidade experimental, du BoisReymond aperfeiçoou muito a sensibilidade desse instrumento, além de desenvolver vários outros aparatos para aferição elétrica. Esses equipamentos possibilitaram a descoberta da “corrente de repouso”, um fluxo de cargas presente nas fibras nervosas e musculares mesmo na ausência de estímulos elétricos. Além disso, du BoisReymond observou que essa corrente diminuía, e era até revertida, quando um estímulo era aplicado a essas fibras. Ele chamou esse fenômeno de “variação negativa”. O próximo passo na descoberta da transmissão do impulso nervoso foi dado por seu grande amigo: o médico e físico Hermann von Helmholtz (18211894) (Figura 24), provavelmente o mais brilhante dentre os alunos de Müller. Johannes Müller, assim como a maioria da comunidade fisiológica da época, acreditava que o “princípio nervoso” fosse um “fluido imponderável”. Por ter velocidade infinita, ou imensamente grande, qualquer tentativa de se medir a velocidade de transmissão do sinal neural estaria fadada ao fracasso. Utilizando uma preparação relativamente simples, porém engenhosa (Figura 25), Helmholtz foi capaz, em 1850, de medir a velocidade de um potencial de ação em uma fibra nervosa. Ela era de algumas dezenas de metros por segundo. A importância desses experimentos vai muito além do campo da eletrofisiologia, pois, pela primeira vez, um fenômeno imaterial e etéreo como a transmissão nervosa – normalmente tratada como manifestações do espírito ou da alma – foi medida com precisão por meio de instrumentos físicos. Dessa maneira, foi dado um grande passo para explicar em termos materialistas o funcionamento do organismo, expurgando a presença de espíritos e forças vitais operando dentro dos seres vivos. Coube a um aluno de Helmholtz e du Bois Reymond, Julius Bernstein (18391917), desvendar os mecanismos de polarização, despolarização e propagação do potencial elétrico na membrana das células excitáveis, graças ao excesso de íons positivos no exterior e negativos no interior dessas células. Os trabalhos de Bernstein culminaram no modelo proposto por Hodkgin e Huxley no século XX. A importância de Helmholtz para a ciência ultrapassa os limites da fisiologia, alcançando os campos da matemática, física, psicologia e filosofia. Ao lado de Leonardo da Vinci, ele foi uma das grandes mentes científicas da história. Na psicofisiologia, por exemplo, Helmholtz fez importantes descobertas sobre a percepção auditiva e visual (dentre elas, a percepção de cores), relatadas no Estudo das Sensações de Tom como uma Base Fisiológica para a Teoria da Música (1863) e no Tratado sobre Ótica Fisiológica (18571866).
Figura 24 ■ Hermann von Helmholtz (18211894). (Adaptada de http://vnl.cps.utexas.edu/timeline.html.)
Figura 25 ■ Reconstrução atual do aparato experimental utilizado por Helmholtz para medir a velocidade de condução de um estímulo elétrico em um nervo. Para mais detalhes sobre este experimento, consulte: http://blog.sbnec.org.br/2008/10/na velocidadedopensamento. (Adaptada de Schimidgen, 2002.)
▸ Carl Ludwig e o Instituto de Leipzig
Se a fisiologia francesa contou com Claude Bernard, a alemã contou com um cientista de qualidade similar: Carl Ludwig (18161895). Vimos que na primeira metade do século, Johannes Müller formou em Berlim uma grande quantidade de alunos, como Schwann, Henle, du BoisReymond e Helmholtz. Na segunda metade do século, contudo, a fisiologia germânica foi associada à figura de Ludwig. Após lecionar em Marburg, Zurique e Viena, Carl Ludwig se estabeleceu em Leipzig, onde fundou um Instituto de Fisiologia (Figura 26). O Instituto logo se tornou o grande centro de referência da nova fisiologia experimental europeia, atraindo estudantes do mundo todo. O efeito disso foi que grande parte dos fundadores da fisiologia experimental em outros países, tais como a Inglaterra, EUA e Canadá, passaram pelas mãos de Ludwig. Sua capacidade de lecionar e sua dedicação junto aos alunos se tornaram famosas. Consta que muitas de suas descobertas foram publicadas apenas com o nome dos estudantes junto aos quais elas foram realizadas, apesar da participação direta de Ludwig nos trabalhos. A orientação teórica do Instituto, assim como a de seu idealizador, era antivitalista, e seus métodos experimentais eram físicoquímicos. Essa tendência fisicista norteou os grandes avanços metodológicos levados a cabo por Ludwig. O principal deles provavelmente foi a invenção do quimógrafo, instrumento que virou um dos símbolos da pesquisa fisiológica durante várias décadas (Figura 27). Capaz de medir diversas variáveis fisiológicas ao longo do tempo, o quimógrafo foi um dos responsáveis por tornar a fisiologia uma disciplina dinâmica, possibilitando pensar os fenômenos da vida em termos de processos que variam com o tempo. Outra inovação introduzida por Ludwig foi a técnica de manter um órgão isoladamente vivo, por meio da perfusão de uma solução nutriente. Essa técnica possibilitou o estudo do funcionamento do coração. Em preparações com rãs, Ludwig e seus estudantes Adolf Fick, Elias Cyon, Joseph Coats e Henry Bowditch começaram a descobrir as leis que regem a contração cardíaca, trabalho que seu outro aluno, Otto Frank, continuou em Munique. A fisiologia cardiovascular foi a área mais conspícua à qual se dedicou Carl Ludwig. Dentre suas principais descobertas estão a do centro vasomotor bulbar, a da permeabilidade capilar e a lei do “tudo ou nada” e a do período refratário cardíaco. Além disso, graças à invenção da bomba de gás sanguínea, Ludwig e seus discípulos puderam realizar diversas observações sobre a saturação de oxigênio e gás carbônico no sangue.
Figura 26 ■ Instituto de Fisiologia de Carl Ludwig, em Leipzig. O prédio foi destruído na Segunda Guerra Mundial. (Adaptada de Zimmer, 1997.)
Figura 27 ■ Quimógrafo utilizado por Carl Ludwig. (Adaptada de http://vlp.mpiwgberlin.mpg.de. Originais: Cyon E. Atlas zur Methodik der Physiologischen Experimente und Vivisectionen, 1876.)
Além do sistema cardiovascular, a fisiologia renal foi alvo de intensas pesquisas no Instituto. À época de Ludwig, muitas descobertas acerca da anatomia e da fisiologia dos rins já haviam sido realizadas por homens como Jacob Henle (18091885) e William Bowman (18161892). Em suas primeiras investigações, Ludwig dedicouse aos princípios que governam a formação da urina: a filtração glomerular e a reabsorção tubular. Enquanto a pressão hidrostática nas arteríolas aferente e eferente foi reconhecida como a força responsável pela filtração, a força química responsável pela reabsorção foi sugerida, mas não totalmente esclarecida por Ludwig. Essa proposta, que buscava explicar os fenômenos de formação da urina em termos físicoquímicos, ia de encontro às ideias de Johannes Müller, que defendia uma visão vitalista do funcionamento renal. De acordo com os partidários de Müller, os rins agiriam como uma glândula secretora, sendo que forças vitais seriam responsáveis pela secreção de urina nos túbulos renais. Em 1874, Rudolph Heidenhain (18341926) propôs uma teoria da secreção renal, que ficou conhecida como teoria de BowmanHeidenhain. Essa disputa entre a “teoria da filtração”, de orientação mecanicista, e a “teoria da secreção”, de orientação vitalista, só seria resolvida no século XX, quando os mecanismos da formação da urina foram desvendados.
SÉCULO XX
▸ Os grandes grupos de pesquisa
Em 4 anos sucessivos, o fisiologista russo Ivan Pavlov (18491936) foi indicado para o prêmio Nobel por suas pesquisas sobre a fisiologia da digestão (Figura 28). No entanto, sua indicação suscitava sempre a mesma pergunta: as descobertas de Pavlov eram frutos originais de seu próprio trabalho, ou representavam uma espécie de compilação dos trabalhos realizados no grande laboratório que ele liderava? Pavlov comandava, desde 1891, a divisão de fisiologia do Instituto Imperial de Medicina Experimental, e possuía, de longe, o mais bem equipado laboratório de fisiologia da Rússia. Assim como o Instituto de Leipzig, liderado por Carl Ludwig (com quem Pavlov estudou entre 1884 e 1886), seu laboratório possuía várias salas e muitos ajudantes e colaboradores. Essa nova forma de praticar a fisiologia contrastava diretamente com a maioria das pesquisas até então. Claude Bernard, por exemplo, por quem Pavlov nutria grande respeito e de quem se declarava discípulo intelectual, trabalhava geralmente sozinho, ou com um ajudante ou colaborador, e sempre em um pequeno laboratório. A fisiologia praticada por Ludwig e Pavlov constituiuse em uma tendência nos principais centros de pesquisa nos anos seguintes. Grandes laboratórios, com muitas pessoas trabalhando (o que envolve divisão de trabalho) e grandes investimentos financeiros, caracterizarão a maneira como a fisiologia será praticada no século XX. Dentro dessa nova organização social da ciência, os fisiologistas, além das atividades científicas, passaram a lidar também com atividades de administração e gerenciamento de recursos. A obtenção desses recursos passou, ao longo do tempo, a depender da publicação dos trabalhos executados no laboratório.
Figura 28 ■ Ivan Pavlov (18491936), em 1904. (Adaptada de Todes, 1997.)
▸ Um século de descobertas A proximidade no tempo torna qualquer tentativa de síntese do século XX uma tarefa extremamente perigosa. Somente os desdobramentos e as consequências decorrentes das descobertas e teorias atuais tornarão possível uma avaliação criteriosa. Além disso, a quantidade de informação adicionada ao corpo da fisiologia nesse século provavelmente supera em muito a soma de todos os anteriores. A lista dos laureados com o prêmio Nobel em Fisiologia e Medicina (ver http://nobelprize.org) pode nos fornecer uma vaga ideia desse fato. A simples tentativa de listar essas descobertas ocuparia um espaço muito superior ao do presente capítulo, fugindo às nossas reais intenções. Podemos tentar destacar alguns poucos eventos que marcaram as diversas áreas da fisiologia no século que passou, sabendo, no entanto, que uma enorme injustiça estará inevitavelmente sendo cometida.
A partir de um novo método de corar tecidos com prata, desenvolvido pelo histologista italiano Camillo Golgi (1843 1926), o espanhol Santiago Ramón y Cajal (18521934) propôs que o sistema nervoso era composto por células ligadas entre si, não sendo uma rede contínua como alguns propunham (Figura 29). Essa ideia deu origem à doutrina do neurônio, o pilar sobre o qual se ergueu a moderna neurofisiologia. Em 1906, o neurologista inglês Charles Sherrington (18571952) publicou sua famosa monografia The Integrative Action of the Nervous System (A Ação Integrativa do Sistema Nervoso), fundada sobre o conceito de sinapse, criado por ele. Esses três cientistas foram laureados com o prêmio Nobel, assim como o neurofisiologista australiano John Eccles (19031997) – premiado em 1963, por suas pesquisas sobre o mecanismo de transmissão na sinapse química. Nesse mesmo ano, dois eletrofisiologistas dividiram o prêmio com Eccles, por desvendarem os processosresponsáveis pela bioeletrogênese na membrana de células excitáveis: Alan Hodgkin (19141998) e Andrew Huxley (1917). Utilizando técnicas de fixação de voltagem, eles deram continuidade às pesquisas iniciadas por Galvani no século XVIII, propondo um modelo que revolucionou a neurofisiologia e a eletrofisiologia. Diversas técnicas recentemente desenvolvidas, como o “patchclamp”, a imunohistoquímica e a neuroimagem, estão atualmente alargando esses dois campos de maneira espetacular.
Figura 29 ■ Da esquerda para a direita, Camillo Golgi (18431926), Santiago Ramón y Cajal (18521934) e Charles Sherrington (18571952). (Adaptada de http://nobelprize.org.)
Vimos que o século XIX termina com uma intensa disputa na fisiologia renal entre adeptos da “teoria da filtração” e da “teoria da secreção”. Em 1916, o inglês Arthur Cushny (18661926) propôs sua “teoria moderna” sobre o assunto. Segundo ele, a urina seria formada por ultrafiltração glomerular, sendo sua composição posteriormente modificada pela reabsorção seletiva no túbulo renal. Nos anos que se seguiram, duas técnicas experimentais contribuíram para desvendar os mecanismos por trás dos processos de filtração e reabsorção. A primeira foi a micropunção tubular, criada por Alfred Richards (18761966). A segunda foi a medida da taxa de filtração glomerular por meio da determinação do clearance (depuração) renal de uma substância, como a creatinina ou a inulina. Em 1935, James Shannon e Holmer Smith determinaram o clearance da inulina em animais e em humanos, inaugurando um enorme campo de investigação nessa área. Já o mecanismo de contracorrente, entre os ramos ascendente e descendente da alça de Henle, foi proposto pelo físicoquímico Werner Kuhn (18991968), sendo que o primeiro a encontrar evidências a favor dessa “estranha” ideia foi o suíço Heinrich Wiz (19141993). A endocrinologia pode ser considerada uma ciência essencialmente do século XX. Fundada a partir das noções de meio interno e de secreção interna formuladas por Claude Bernard, essa disciplina conheceu um avanço extraordinário ao longo do século. Em 1902, William Bayliss (18801924) e Ernest H. Starling (18661927) demonstraram que a secretina era capaz de estimular a secreção pancreática. A partir desses resultados, eles introduziram o conceito de hormônio como um fator químico capaz de controlar a ação de um órgão a distância. Embora os efeitos da extirpação do pâncreas na produção de diabetes já fossem conhecidos desde 1889, com os trabalhos de Mering e Minkowski, foi apenas em 1920 que os canadenses John Macleod (18731935), Frederick Banting (18911941) e Charles Best (18991978) conseguiram isolar a insulina. Já a interação do sistema endócrino com o sistema nervoso foi estabelecida a partir dos trabalhos de Herbert Evans (18821971) sobre a glândula hipófise. A fisiologia cardiovascular adentrou o século XX já em estágio avançado de conhecimento, graças, em grande parte, aos progressos do grupo de Carl Ludwig em Leipzig. Em 1913, Willem Einthoven (18601927) desenvolveu um novo tipo de galvanômetro, capaz de registrar pequenos sinais elétricos projetados pelo coração na superfície do corpo. Era a origem do eletrocardiograma, método de crucial importância clínica e fisiológica ao longo do século XX. As estruturas de condução dos potenciais elétricos no coração foram descobertas por His e Purkinje ainda no século XIX. Já os nós
sinoatrial e atrioventricular foram descritos nos primeiros anos do novo século. Em 1914, o já citado Ernest Starling, utilizando uma preparação de coração e pulmão isolados de cachorro, observou que a força de contração sistólica era diretamente proporcional ao grau de estiramento do músculo cardíaco no final da diástole. Como esse fenômeno já havia sido observado antes por Otto Frank em corações de rãs, esse mecanismo recebeu o nome de lei de FrankStarling. Antes disso, Starling já havia realizado importantes descobertas sobre a permeabilidade capilar, determinando as forças (hidrostática e coloidosmótica) que agem na passagem de líquido através da parede capilar – razão pela qual essaspressões passaram a ser conhecidas como “forças de Starling”. A interação da regulação do fluxo capilar local com a atividade metabólica tecidual foi intensamente estudada por August Krogh nas primeiras décadas do século XX. No início desse século, o também já citado William Bayliss observou que os vasos sanguíneos respondiam à distensão contraindose. Era o início das teorias miogênicas de controle local de fluxo. Na década de 1980, Robert Furchgott demonstrou a capacidade modulatória do endotélio. Já os mecanismos subjacentes a esse fenômeno – que conta com a participação do óxido nítrico – foram descobertos apenas mais recentemente. A incorporação da química à fisiologia, formando a química fisiológica ou bioquímica, foi um longo processo que ocorreu desde o final do século XIX. Durante o século XX, sobretudo a partir da segunda metade, o centro de gravidade da fisiologia deslocouse para a bioquímica celular e molecular. As novas descobertas teóricas e metodológicas proporcionadas pelos avanços desses campos revolucionaram praticamente todos os ramos da fisiologia. O horizonte investigativo da disciplina ampliouse e atravessou a membrana citoplasmática, alcançando o interior do núcleo celular. Nesse contexto, devemos destacar a que provavelmente foi a maior descoberta das ciências biológicas do século XX: a elucidação da estrutura do DNA, por James Watson (1928) e Francis Crick (19162004) (Figura 30), baseada nos trabalhos de cristalografia de Rosalind Franklin (19251955) e Maurice Wilkins (19162004). A partir dessa descoberta, os mecanismos genômicos responsáveis pelos processos fisiológicos puderam começar a ser desvendados. Mais um importante passo foi dado para explicar as bases físicas e químicas dos processos envolvidos no que chamamos de vida.
Figura 30 ■ Da esquerda para a direita, Francis Crick (19162004) e James Watson (1928). (Adaptada de http://nobelprize.org.)
CONCLUSÃO Assistimos às várias mudanças teóricas e metodológicas que a fisiologia sofreu ao longo desses mais de dois milênios de história. Vimos também as relações que ela, assim como outras ciências, travou com as concepções filosóficas vigentes em uma determinada época. Acompanhamos o caminho percorrido pela fisiologia, desde seu desmembramento como um ramo da filosofia natural, até seu estabelecimento como uma ciência autônoma e, sobretudo, experimental. Assim, aceitamos hoje que toda ideia científica deve ser posta em confronto com a experiência, isto é, somente depois de confirmada por fatos experimentais uma teoria deve ser aceita. Após essa longa jornada, algumas perguntas imediatamente saltam à nossa frente: podemos aprender algo olhando para o passado de uma disciplina científica? Em caso afirmativo, que “lição de moral” podemos tirar da história da fisiologia? Ao defender a fisiologia experimental nascente, vimos François Magendie proclamar que a fisiologia deveria ser reduzida “inteiramente ao experimento”. Aparentemente, esse conselho tem sido seguido nos dias de hoje. No entanto,
devemos ficar atentos para que o “fetiche do experimento” não seduza nossas mentes, e que, no afã da produtividade e obtenção de recursos, a realização ansiosa de experimentos e a obtenção de novos fatos, de maneira quase obsessiva, não se torne praxe. Muitas vezes, a importante pergunta “qual a ideia por trás da pesquisa?”, que deveria anteceder a experimentação, está esquecida. Do mesmo modo, a análise criteriosa e o embasamento teórico dos dados experimentais também são tratados com um perigoso desdém. A ciência não é feita com fatos, mas com ideias moldadas pelos fatos cuidadosamente analisados. Esta é uma das lições que Claude Bernard, o fundador da fisiologia moderna, nos ensina. Em sua principal obra metodológica, Introduction à l’Étude de la Médicine Expérimentale (Introdução ao Estudo da Medicina Experimental), lemos: “A simples verificação de fatos nunca poderá chegar a constituir uma ciência.” Mais adiante, “toda a iniciativa experimental reside na ideia, porque é ela que provoca a experiência”. E finalmente: “O homem que perdeu a razão, o alienado, não se instrui pela experiência, já não raciocina experimentalmente.” Nunca é tarde para aprendermos com os grandes mestres. Abordagens reducionistas e integrativas têm formado um pêndulo sob o qual oscilou a fisiologia ao longo dos anos. Aparentemente, períodos de grandes avanços em outras áreas da ciência, tal como a física e a química, suscitam a esperança dos fisiologistas de que os fenômenos responsáveis pela vida serão enfim resolvidos em conceitos como matéria, movimento, força e energia. Já períodos de maior ceticismo estão associados a concepções mais holísticas, em que a fisiologia é tratada de maneira mais fenomenológica ou positivista. Testemunhamos que Carl Ludwig e Claude Bernard representaram a coexistência dessas duas visões dentro de um mesmo período. Recentemente, os avanços promovidos pela biologia molecular e pela genômica novamente colocam o reducionismo materialista na pauta do dia. Será que um dia afisiologia será reduzida à bioquímica? Quando os homens tiverem conhecimento suficiente da genômica e da proteômica, serão dispensáveis os conceitos fisiológicos sobre a vida? É inegável que entender o funcionamento das partes é fundamental para a compreensão do todo. Todavia, ao percorrer o tortuoso caminho até as partes, até os mecanismos íntimos responsáveis pelos fenômenos estudados, pensamos que o fisiologista não deve nunca esquecer o caminho de volta. Estudar as árvores não deve impedir que se tente compreender a floresta. Qual seria, então, a verdadeira identidade da fisiologia? Qual seria seu real escopo e quais seriam seus métodos? As respostas a essas inquietações provavelmente só virão com o tempo. Enquanto isso, podemos tentar buscar alguma luz na história. Há mais de um século, o grande neurofisiologista Charles Sherrington (1906) dizia a uma atenta plateia em Oxford, a respeito da fisiologia: Podese dizer dela que ela não possui métodos próprios, ou que todos os métodos são seus: ambas as expressões são verdadeiras. O que é dela, e apenas dela, é o escopo do seu problema, a saber, a decifração de como os organismos vivos vivem.
As Origens da Fisiologia no Brasil Marcus Vinícius C. Baldo | Cesar TimoIaria (in memoriam) | Margarida de Mello Aires
Aperto sua mão, que sente a minha, mas não pode retribuir a força. Já são várias as visitas que lhe tenho feito, nas tardes de sábado, em que a conversa flui à deriva. Mas nesta tarde trago um gravador que saberá guardar, sem a neblina da memória, o fio que vai nos conduzir por muitas histórias. A voz que fala sem muito fôlego é de alguém que não apenas sabe essas histórias, ou que apenas participou delas, mas de alguém que ajudou a escrevêlas. Essa personagem, testemunha e cúmplice da construção de nossa Fisiologia, é Cesar TimoIaria, um dos últimos dos poucos eruditos da ciência brasileira. Pouco tempo depois dessas conversas ele nos deixaria, órfãos atônitos, mas que reconhecem estampado em suas próprias ideias, em seus argumentos e atos, o reflexo de um pai que caminha invisível e sólido em nossas vidas. Sua voz apenas nos ilude, parecendo hesitante e entrecortada nas gravações que ainda guardo, mas é forte e cristalina nas ideias que carrega. Dessas conversas surgiu este texto. Desembaraçado o novelo que guarda quase um século de memórias, retificados os rumos e ordenadas as datas, sua voz vai se desdobrando em uma nítida linha do tempo, sobre a qual se desvenda a história de nossa Fisiologia. Cesar contava essa história como quem fala da própria família: dos pais científicos que amou, dos muitos filhos acadêmicos que criou, e de antepassados com os quais agora convive, em uma enorme casa assombrada por almas iluminadas. Casa que, ainda hoje, poderia pairar evanescente em uma tranquila esquina de uma cidade encantada, talvez no insólito cruzamento das ruas Almirante Tamandaré e Machado de Assis. Vamos, pois, entrar e percorrer juntos esta casa iluminada, em nada silenciosa e vazia, para que possamos saudar seus habitantes e ouvir suas histórias.
Foi junto ao Museu Nacional, no Rio de Janeiro, que nasceu o primeiro laboratório brasileiro de Fisiologia Experimental. Impressionado com o que ouvira de Claude Bernard (18131878) e Du BoisReymond (18181896) em suas visitas à Europa, D. Pedro II planejara a criação de um Instituto de Fisiologia. Embora jamais criado, o plano de D. Pedro II já prenunciava o germe que, possivelmente, contribuiria para dar origem ao Laboratório de Fisiologia Experimental do Museu Nacional. Primitivo e improvisado, foi inicialmente montado na segunda metade da década de 1870, com parcos recursos, e oficialmente inaugurado em 1880, por João Batista de Lacerda (18461915) (Figura 31). Lacerda, formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, carecia, no entanto, de uma sólida formação em fisiologia. Louis Couty (18541884) (Figura 32), um jovem pesquisador francês, foi assim convidado pelo Governo Imperial para assumir, como primeiro diretor, em 1880, o Laboratório de Fisiologia Experimental, tendo Lacerda como subdiretor. Sob os olhos entusiasmados do Imperador, a intensa motivação de Lacerda e Couty fez do Laboratório o berço da Fisiologia em nosso país.
Figura 31 ■ João Batista de Lacerda (18461915). (Adaptada de http://pt.wikipedia.org/wiki.)
Embora reconhecido internacionalmente, o Laboratório iniciou sua decadência com a morte precoce de Couty, em 1884, e com a ausência de um fisiologista na cátedra da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, já que Lacerda fora preterido em um concurso para aquela disciplina. A dispersão dos discípulos, a inexistência de um verdadeiro ensino defisiologia e um cenário acadêmico nada favorável foram os principais elementos que definiram o fim dessa etapa. O renascimento da fisiologia brasileira teria de aguardar a iniciativa de Álvaro Ozório de Almeida (18821952), considerado por muitos o nosso verdadeiro “patriarca” (Figura 33). Recémformado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, parte em 1906 para Paris, indo estagiar no Institut Pasteur e no Collège de France. De volta ao Brasil, já professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, não encontraria as condições que desejava para a pesquisa fisiológica, instalando no porão da residência dos pais, na rua Almirante Tamandaré, o seu próprio laboratório. Fez assim surgir no Brasil, nas primeiras décadas do século XX, um tempo heroico das ciências fisiológicas. Modesto, um tanto improvisado, o laboratório ganharia logo a colaboração de um discípulo, Miguel Ozório de Almeida (18901953) (Figura 34), irmão de Álvaro. Em 1915, o laboratório mudouse para a residência da rua Machado de Assis, onde a irmã de ambos, Branca de Almeida Fialho, dividiase como laboratorista e dona de casa. Pelo laboratório dos irmãos Ozório passaram alguns dos que se tornariam importantes semeadores da fisiologia brasileira, como Thales Martins (18961979) e Paulo Galvão (19021968). Passaram também turistas curiosos, em rápidas visitas, anônimos ou majestosos, tais como Albert Einstein e Madame Curie.
Figura 32 ■ Louis Couty (18541884). (Adaptada de www.bbk.ac.uk/ibamuseum/texts/Andermann01E.htm.)
Álvaro dedicavase, na fase inicial de seu laboratório, a estudos sobre metabolismo e calorimetria, e à ação de fármacos, como o curare, sobre a regulação metabólica tanto do ser humano quanto de animais silvestres. Posteriormente, concentrouse nos efeitos do oxigênio sob alta pressão como terapia do câncer. Já Miguel Ozório, com sólida formação em física e matemática, tinha grande inclinação para a abordagem biofísica, tendo se dedicado à fisiologia de tecidos excitáveis, crioepilepsia, reflexos labirínticos e tônus muscular. Vários neurofisiologistas, ao longo dos anos 30 e 40 do século passado, formaramse direta ou indiretamente sob a influência de Miguel Ozório, notadamente Hayti Moussatché (19101998), Mário Vianna Dias (19142001), Tito Cavalcanti (19051990) e Carlos Chagas Filho (19102000) (Figura 35).
Figura 33 ■ A. Álvaro Ozório de Almeida (18821952). B. Álvaro Ozório em sua posse como conselheiro do CNPq, em 1951. (Adaptada de http://centrodememoria.cnpq.br/fotogaleria51.html.)
Figura 34 ■ Miguel Ozório de www.ioc.fiocruz.br/personalidades/MiguelOzorioDeAlmeida.htm.)
de
Almeida
(18901953).
(Adaptada
Chagas Filho criaria, em 1937, o Laboratório de Biofísica da Universidade do Brasil, anexo à disciplina de Física Médica. Em 1945, este Laboratório transformase no Instituto de Biofísica, hoje Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF), integrante da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Além de Carlos Chagas Filho, o IBCCF contou e tem contado com outros também brilhantes cientistas, como Aristides Azevedo Pacheco Leão (19141993), Hiss Martins Ferreira (19202009), Antonio Paes de Carvalho, Eduardo OswaldoCruz Filho e Carlos Eduardo Guinle da RochaMiranda. Hoje, a herança deste grupo espalhase por muitos outros estados do Brasil, incluindo Pará, Espírito Santo, Distrito Federal, São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco, Sergipe e Rio Grande do Sul. O sucesso científico obtido pelo laboratório dos irmãos Ozório (que encerraria suas atividades somente em 1932) motivara Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas (18791934) (Figura 36), então diretor do Instituto Oswaldo Cruz, a criar, em 1919, uma Seção de Fisiologia em Manguinhos (Figura 37), convidando Miguel Ozório para chefiála. Ali, em 1926, também ingressaria Thales César de Pádua Martins (18961979), formado pela Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil (atual UFRJ).
Figura 35 ■ Carlos Chagas Filho (19102000). (Adaptada de www.abc.org.br/sjbic/curriculo.asp?consulta=ccf.)
Figura 36 ■ Carlos Ribeiro Justiniano de www.ioc.fiocruz.br/personalidades/CarlosChagas.htm.)
das
Chagas
(18791934).
(Adaptada
Thales Martins (Figura 38), tendo estudado inicialmente aspectos da fisiologia muscular, em colaboração com Miguel Ozório, em Manguinhos, voltase para questões de fisiologia endócrina (alguns de seus importantes experimentos nesta área estão descritos no Capítulo 64, item “Sistemas hormonais clássicos”). Em 1934, ao se mudar para São Paulo, estabeleceu novos núcleos de estudos fisiológicos, com ênfase em endocrinologia experimental, em uma faculdade então privada, a recémcriada Escola Paulista de Medicina (atualmente integrante da Universidade Federal de São Paulo, Unifesp), e no Instituto Butantã. Em meados da década de 1950 fundou, ao lado de outros importantes fisiologistas brasileiros, a Sociedade Brasileira de Fisiologia (SBFis). No Instituto Butantã, Thales Martins contou com a colaboração daquele que viria a ser um de nossos mais importantes farmacologistas, José Ribeiro do Valle (19082000) (Figura 40), posteriormente Professor Emérito da Escola Paulista de Medicina. Thales Martins assumiu, então, a cadeira de Fisiologia da Escola Paulista de Medicina, sendo sucedido por Paulo Enéas Galvão (19021968), após retornar ao Rio de Janeiro. Galvão, também discípulo de Álvaro Ozório, estabeleceuse inicialmente no Instituto Biológico de São Paulo, criado em meados de 1920. Ao longo dos anos 1930 e 1940, o Instituto Biológico atrairia, além de Galvão, uma grande leva de cientistas, dentre eles Wilson Teixeira Beraldo (19171998) (Figura 41) e Maurício Oscar da Rocha e Silva (19101983) (Figura 42), que, com a colaboração de Gastão Rosenfeld (19121990), foram os descobridores da bradicinina. Rocha e Silva iria estabelecerse, posteriormente, em Ribeirão Preto, e Wilson Beraldo iria alavancar, em Belo Horizonte, a fisiologia mineira. O Instituto Oswaldo Cruz foi fundado em 1900, originalmente como “Instituto Soroterápico Municipal”. Já sob a direção de Oswaldo Gonçalves Cruz (18721917) (Figura 39), tornase, em 1901, uma instituição federal, passando a denominarse, em 1907, “Instituto de Medicina Experimental de Manguinhos” e recebendo, no ano seguinte, o nome de seu efetivo criador. Com a morte de Oswaldo Cruz, o Instituto passa, então, a ser dirigido por Carlos Chagas. Chagas e seu mestre Oswaldo Cruz, de quem foi brilhante discípulo, protagonizaram alguns dos mais importantes momentos da história científica brasileira. Com eles, e com os herdeiros científicos que formaram, as ciências médicas, no Brasil, deixam a “fase escolar” e ingressam em sua “fase científica”, que hoje testemunhamos.
Figura 37 ■ Manguinhos e arredores, no Rio de Janeiro, em 1927. (Adaptada de www.coc.fiocruz.br/manguinhos.)
O “Instituto Butantã”, tal como o “Instituto Manguinhos” (atual Instituto Oswaldo Cruz), surgiu como reação dos dirigentes públicos a graves epidemias que irromperam na transição do século XIX ao XX. O Instituto Butantã foi dirigido, de 19011919, por Vital Brasil Mineiro da Campanha (18651950), contemporâneo e colaborador de Adolfo Lutz (18551940), diretor, de 18931908, do Instituto Bacteriológico de São Paulo (hoje Instituto Adolfo Lutz).
Figura 38 ■ Thales César de Pádua Martins (18961979). (Adaptada de RibeirodoValle, 1979.)
Figura 39 ■ Oswaldo Gonçalves de www.ioc.fiocruz.br/personalidades/OswaldoGoncalvesCruz.htm.)
Cruz
(18721917).
(Adaptada
Figura 40 ■ José Ribeiro do Valle (19082000). (Adaptada de www.sbhm.org.br/index.asp?p=medicos_view&codigo=151.)
Figura 41 ■ Wilson Teixeira Beraldo (19171998). (Adaptada de http://en.wikipedia.org/wiki.)
Figura 42 ■ Maurício Oscar da Rocha e Silva (19101983). (Adaptada de www.fmrp.usp.br/rfa/Depto.htm.)
Octávio Coelho Magalhães (18901972), doutor em Fisiologia pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, estagiara em Manguinhos, sendo influenciado por cientistas da estatura de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas. Aceitou, em 1913, o cargo de professor de fisiologia na recémcriada Faculdade de Medicina, em Belo Horizonte, introduzindo a medicina experimental em Minas Gerais. Em razão de sua aposentadoria compulsória, em 1960, Magalhães seria substituído por um de seus antigos alunos, Wilson Beraldo. Para retornar a Belo Horizonte e assumir a cátedra de fisiologia da Universidade Federal de Minas Gerais, Beraldo seria obrigado a interromper sua carreira no Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina da USP, em São Paulo, onde era livredocente e membro de um grupo de fisiologistas liderado por Franklin Augusto de Moura Campos (18961962) (Figura 43). A Faculdade de Medicina de São Paulo fora fundada em 19 de dezembro de 1912, e teve como primeiro diretor Arnaldo Vieira de Carvalho (18671920). Em 1929, Moura Campos, que estagiou em Harvard sob a influência de Walter Cannon (18711945), tornouse catedrático de Fisiologia, e iniciou as pesquisas fisiológicas na Faculdade de Medicina. Moura Campos teve como notável discípulo, além de Beraldo, o fisiologista Alberto Carvalho da Silva (19162002) (Figura 44), seu legítimo sucessor na Faculdade de Medicina da USP.
Figura 43 ■ Franklin Augusto de Moura Campos (18961962). (Adaptada de RibeirodoValle, 1979.)
Figura 44 ■ Alberto Carvalho da Silva (19162002). (Adaptada de www.iea.usp.br/iea/contato/contato31.html.)
Alberto Carvalho da Silva, assumindo a cátedra do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina, em 1964, reestruturou e diversificou suas linhas de pesquisa. Foi o responsável, direto ou indireto, pela formação de uma grande e importante geração de fisiologistas brasileiros que se fixaram na própria USP ou se estabeleceram em outros centros, irradiando o ensino e a pesquisa de fisiologia para diversas universidades brasileiras. Dentre esses fisiologistas, egressos do Departamento de Fisiologia da USP e responsáveis pela disseminação da fisiologia, podemos citar Gerhard Malnic, Thomas Maack, Maurício da Rocha e Silva Jr., Margarida de Mello Aires, Francisco Lacaz Vieira, Rebeca de Angelis (19252007), Núbio Negrão, Oswaldo Ubríaco Lopes, Sônia Lopes Sanioto, Massako Kadekaro, Pedro Guertzenstein (19381994) (Quadro 4) e Cesar TimoIaria (19242005). Com a reforma universitária, o Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina fundese, em 1970, com departamentos de fisiologia e farmacologia de outras faculdades da USP, culminando com a formação do atual Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, instalado na Cidade Universitária.
Quadro 4 Pedro Gaspar Guertzenstein (19381994).
A disciplina de Fisiologia Cardiovascular e Respiratória da Unifesp/EPM (atual Centro de Pesquisas Prof. Dr. Pedro Gaspar Guertzenstein) se iniciou em 1987, com a ida para a Escola Paulista de Medicina do Prof. Pedro Guertzenstein, aprovado em concurso público para o provimento de uma vaga para Professor Titular no Departamento de Fisiologia. Formado na EPM, o Prof. Guertzenstein inicialmente foi docente do Departamento de Fisiologia e Biofísica do ICB/USP, no grupo de Fisiologia Cardiovascular, e tinha como linha de pesquisa o controle central do sistema cardiovascular, particularmente o estudo dos mecanismos responsáveis pela manutenção do tônus vasomotor. Numerosas evidências experimentais obtidas nas quatro últimas décadas demonstravam que a medula oblonga contém os principais circuitos responsáveis pela geração e manutenção do tônus vasomotor e a regulação da pressão arterial. A visão atual que possuímos desses circuitos deriva, em grande parte, dos estudos pioneiros do Prof. Guertzenstein. Em 1970, o jovem cientista chegou aos laboratórios do Prof. Feldberg, renomado pesquisador inglês, para bolsa de pósdoutorado, permanecendo por 3 anos. Segundo as próprias palavras de Feldberg: “Nós, isto é, Guertzenstein e eu, tropeçamos na superfície ventral do cérebro até 1972. Nossa história começou com um experimento simples, com queda na pressão arterial após a injeção de alguns miligramas de pentobarbitônio sódico (Nembutal®) no ventrículo cerebral lateral” (Feldberg, 1982). Durante esses 3 anos, sozinho ou em colaboração com muitos colegas, Guertzenstein produziu o número impressionante de quatro comunicações para a Physiological Society (Guertzenstein, janeiro de 1971; Feldberg e Guertzenstein, janeiro de 1972; Guertzenstein, abril de 1972; Guertzenstein e Silver, junho de 1973) e cinco artigos completos publicados no Journal of Physiology ou no British Journal of Pharmacology (Feldberg e Guertzenstein, 1972; Guertzenstein, 1973; Bousquet e Guertzenstein, 1973; Guertzenstein e Silver, 1974; Edery e Guertzenstein, 1974). Juntamente com seus trabalhos publicados muito mais tarde, após seu retorno ao Brasil, e incluindo alguns desenvolvidos durante seus últimos anos na Unifesp, esses experimentos estabeleceram os alicerces da visão atual dos núcleos vasomotores medulares ventriculares e seu papel na regulação da pressão arterial. Suas publicações foram citadas em média 33 vezes/ano, em um total de quase 1.300 citações. A publicação mais citada e reconhecida como um documento clássico é aquela que ele publicou com a colaboração de Ann Silver (Guertzenstein e Silver, 1974). Nesse artigo, definiram, pela primeira vez, a localização precisa do que é claramente reconhecido, até hoje em dia, como a medula ventrolateral rostral (RVLM), a fonte mais importante de excitação tônica para os neurônios simpáticos préganglionares na coluna celular intermediária da medula espinal. Seus resultados demonstraram inequivocamente que, após uma destruição eletrolítica bilateral de uma área pequena, não maior que 1 mm2 na medula ventrolateral, a pressão arterial não é mantida e permanece baixa durante pelo menos 6 horas. Em 1976, Feldberg e Guertzenstein publicaram outro documento fundamental que mostrava a existência de uma área diferente, caudal à já descrita, sobre a qual a aplicação tópica de nicotina produz queda acentuada da pressão arterial devido à inibição do tônus vasoconstritor. Supondo que a nicotina atuasse como uma substância excitadora, eles propuseram: “Com a evidência até agora disponível [...] existem pelo menos duas regiões separadas: uma mais rostral e outra mais caudal, e também a ação em si é, provavelmente, de um centro excitatório que se exerce sobre neurônios inibitórios que formam conexões com a via vasomotora.” Com essas sugestões, eles descreveram o que
conheceríamos como a medula ventrolateral caudal (CVLM) e avançaram nas principais propriedades dessa região: seu papel vasodepressor, por meio da inibição tônica e reflexa do RVLM. Uma caracterização adicional dessa área, na regulação das funções cardiovasculares, e particularmente nos reflexos cardiovasculares modulantes, foi desenvolvida após o retorno de Guertzenstein ao Brasil, apresentada pioneiramente em uma comunicação à Sociedade de Fisiologia e posteriormente publicada (Guertzenstein e Lopes, 1980, 1984). Assim, a rota para a compreensão do CVLM e suas implicações na regulação do tônus simpático e nos reflexos cardiovasculares estava totalmente aberta e pronta para ser entendida. Alguns anos mais tarde, com base em um conjunto de observações experimentais, Guertzenstein e Feldberg passaram a propor a existência de uma área vasomotora na terceira vascular da medula ventrolateral. Mais uma vez, sua visão estava muito à frente de seu tempo. O desenvolvimento e a caracterização da área que previram levaram mais 10 anos. Essa foi também a sua empreitada final, por causa de sua morte prematura, em 1994. No entanto, em seus últimos trabalhos, ele e seus colegas do Departamento de Fisiologia da Unifesp puderam mostrar que a terceira área, a área pressora caudal (CPA), contém células com uma atividade pressora tônica que contribuiu para a manutenção dos níveis basais de pressão arterial e, além disso, que as respostas cardiovasculares induzidas por CPA são mediadas pelo CVLM, com o envolvimento de sinapses glutamatérgicas e GABAérgicas (Possas et al., 1994; Campos et al., 1994). Margarida de Mello Aires Informações dadas pelo Prof. Sérgio Cravo, Departamento de Fisiologia da Unifesp A Universidade de São Paulo, criada em janeiro de 1934, teve a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras como sua verdadeira primogênita, elemento de integração das diversas áreas da atividade universitária. Em 1939, Paulo Sawaya (19031995) (Figura 45), formado pela Faculdade de Medicina de São Paulo, tornouse catedrático da disciplina de Fisiologia Geral e Animal, destinada ao ensino e pesquisa de fisiologia animal comparativa. Além da herança científica e intelectual deixada ao atual Instituto de Biociências da USP, o antigo Departamento de Fisiologia Geral e Animal da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP ajudou a semear a fisiologia comparativa em outros centros brasileiros. Pelas mãos de discípulos de Sawaya, como Erasmo Garcia Mendes (19162001) e Maria Marques, a fisiologia comparativa irradiouse, por exemplo, para o interior de São Paulo e também para Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. A cátedra de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Porto Alegre foi exercida, intermitentemente, por Raul Pilla (18921973). Engajado na militância política, Pilla encontrou em seu assistente, Pery Riet Correa, a dedicação necessária à criação da pesquisa em fisiologia no Rio Grande do Sul. Por intermédio de Riet Correa, estabeleceuse fecunda colaboração com o Instituto de Biología y Medicina Experimental, em Buenos Aires, criado pelo grupo de Bernardo Houssay (18871971, Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia em 1947) (Figura 46). Em meados de 1950, a experiência de ensino e pesquisa de Houssay e seus colaboradores foi trazida para o recémcriado Instituto de Fisiologia Experimental, em Porto Alegre. A influência argentina fez com que os estudos de fisiologia endócrina e cardiovascular se tornassem, a partir de então, o foco da atenção na pesquisa fisiológica gaúcha. Neste grupo formouse Eduardo Moacyr Krieger, logo se transferindo para a recémcriada Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Miguel Rolando Covian (19131992), assistente de Houssay, estabeleceuse em Ribeirão Preto, em 1955, como chefe do Departamento de Fisiologia e Biofísica da Faculdade de Medicina, criada em 1952. Foi mestre, dentre outros, de Cesar TimoIaria (Quadro 5), um de nossos neurocientistas mais importantes e prolíferos. Covian contribuiu para a formação e disseminação de uma importante geração de fisiologistas por todo o Brasil. Ilustres fisiologistas do grupo de Ribeirão incluem Eduardo Krieger (atualmente no Instituto do Coração, em São Paulo), José AntunesRodrigues e Renato Hélios Migliorini (19262008) (Quadro 6) – ambos permaneceram em Ribeirão Preto –, e Carlos Eduardo Negreiros de Paiva, que, em 1964, transferiuse para Campinas para montar o Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina da Unicamp. Antes da chegada de Covian a Ribeirão Preto, o único fisiologista da Faculdade de Medicina era José Venâncio de Pereira Leite (19201980), cuja formação fisiológica fora adquirida no Rio de Janeiro, ao lado de Álvaro Ozório e Thales Martins. Autodidata em eletrônica, Venâncio incumbiuse, nos primeiros anos, de preparar os demais professores recémchegados a Ribeirão, os quais possuíam majoritariamente experiência clínica.
Figura 45 ■ Paulo Sawaya (19031995). (Adaptada de www.abc.org.br/sjbic/curriculo.asp?consulta=PS.)
Figura 46 ■ Bernardo Houssay (18871971). (Adaptada de www.biblioteca.anm.edu.ar/houssay.htm.)
Quadro 5 Cesar TimoIaria (19242005).
É com profunda emoção que externo meus agradecimentos ao Prof. Dr. Cesar TimoIaria, um dos maiores incentivadores para que eu publicasse este livro e autorcolaborador nas suas três primeiras edições. Em sua homenagem, transcrevo a seguir o texto escrito pelos Profs. Drs. José AntunesRodrigues, Renato
Hélios Migliorini e Eduardo Moacyr Krieger, publicado em junho de 2005, na Newsletter da Sociedade Brasileira de Fisiologia (SBFis). – Margarida de Mello Aires A família dos fisiologistas brasileiros perde um dos seus mais ilustres Mestres: Professor Cesar TimoIaria. Cesar graduouse pela Escola Paulista de Medicina em 1952. Iniciou a sua carreira acadêmica no Departamento de Fisiologia de Ribeirão Preto, onde exerceu as funções de Instrutor (1953), Doutor (1961) e LivreDocente da FMRP/USP (1962). Transferiuse para São Paulo em 1964; primeiro para a Faculdade de Medicina/USP e, depois, com a reforma universitária (1970), foi para o departamento de Fisiologia e Farmacologia do Instituto de Ciências Biomédicas/USP), onde continuou sua intensa atividade científica e formadora de inúmeros discípulos, tornandose, logo em seguida, Professor Titular de Fisiologia do ICB/USP. Exerceu também função docente na State University of New York, onde ministrou aulas no Departamento de Fisiologia. Mais do que um neurofisiologista (área mais específica de suas atividades de pesquisa), foi um dos maiores fisiologistas do país, tendo contribuído decisivamente para o avanço científico e tecnológico nesta área do conhecimento. Foi um dos principais responsáveis pela criação dos laboratórios de Neurofisiologia do Departamento de Fisiologia da FMRP/USP, do ICB/USP e da Faculdade de Medicina/USP. Exerceu na FMRP/USP uma grande liderança políticouniversitária desde os pioneiros anos da criação desta Escola, trabalhando em problemas básicos e aplicados. Sempre defendeu uma universidade de alto nível, a nossa contribuição para o desenvolvimento de ciência e tecnologia no país, bem como a qualidade dos nossos pesquisadores. Orientou mais de 120 estudantes estagiários e pósgraduandos, além de pós doutores brasileiros, argentinos e americanos, dos quais dois são professores titulares nos EUA e um na Alemanha. Foi um dos primeiros eletrencefalografistas do Brasil, e em seu laboratório em Ribeirão Preto foram feitos os primeiros registros de sono experimental em gatos na América Latina. Sua produção científica é de mais de 80 artigos em revistas e livros internacionais, da qual resultaram algumas descobertas relevantes, devendose destacar: ■ A primeira demonstração experimental de uma substância, ativada por estimulação da área septal, que produz vasodilatação e hipotensão, mais tarde identificada como fator natriurético atrial ■ A região do sistema nervoso central em que é gerado o sono, campo investigado por muitos laboratórios no Brasil e no exterior ■ Os mecanismos neurais de regulação da glicemia, originados em três sistemas de glicorreceptores sensíveis à citoglicopenia, situados no fígado, nos núcleos do trato solitário e no fascículo prosencefálico do hipotálamo médio e anterior ■ O mecanismo de desencadeamento da fome, que demonstrou ser devido não à hipoglicemia de jejum, que não ocorre de fato, e sim ao trabalho metabólico do fígado, acionado pelos glicorreceptores sensíveis à citoglicopenia. Essas pesquisas permitiramlhe enunciar a teoria de que os comportamentos se caracterizam, sob o aspecto de expressão, por componentes motores e por componentes vegetativos ■ Introdução definitiva do rato como objeto de estudo do sono, hoje preferencial, após descrever minuciosamente em 1970 os estados e as fases do sono desse animal, tema que pesquisava, abordando as manifestações e a gênese da atividade onírica desse animal ■ Descoberta de uma região localizada na borda medial do fascículo prosencefálico medial do hipotálamo médio e posterior do rato, que regula rigidamente o sistema imunológico. Ministrou quase cem conferências no Brasil e vinte no exterior, e organizou dois congressos internacionais, um simpósio internacional e quinze de âmbito nacional. Foi membro de numerosas sociedades e academias nacionais e internacionais. Recebeu várias homenagens como reconhecimento dos relevantes trabalhos prestados para a ciência brasileira: Membro da Academia Brasileira de Ciências, Comendador (1995) e GrãCruz da Ordem Nacional do Mérito Científico (1998). Prêmio Paulino Longo (1970) e Prêmio R. HernandezPeón (1990) pelos seus trabalhos sobre o sono. O Prof. Cesar foi um modelo de cientista para todos nós, particularmente para um de nós (José AntunesRodrigues), que teve o privilégio de ser o seu primeiro aluno de iniciação científica nos idos de
1955. Foi um dos principais responsáveis pelo direcionamento de sua vida universitária. Como líder da nossa comunidade científica, sempre questionou a especialização precoce dos nossos jovens pesquisadores, bem como a desastrosa divisão de nossa ciência. Assim ele dirigiu um apelo aos novos membros da Academia Brasileira de Ciência em 3 de junho de 2002: [...] para que almejem tornarse linces, como eram considerados os membros da primeira academia do mundo. Que enxerguem muito longe, abrangendo um ângulo acadêmico de saber muito amplo e passando essa atitude para seus alunos. Precisamos deixar de ser formiguinhas, treinadas para carregar pedacinhos de folhas de um lugar a outro quase que cegamente, e voltar a formar linces. Tinha uma vasta cultura e era portador de uma capacidade intelectual invejável. Gostava de discutir física, astronomia, música, fisiologia e demais especialidades da medicina, bem como humanidades. O Prof. Cesar TimoIaria será sempre lembrado como um dos pioneiros da Neurofisiologia brasileira e um ser humano de inestimável valor. Sua sabedoria, cultura e visão humanística da ciência fizeram dele um modelo a ser seguido por todos nós. José AntunesRodrigues, Renato Hélios Migliorini, Eduardo Moacyr Krieger Colegas que trabalharam com o Prof. Cesar noDepartamento de Fisiologia da FMRP/USP
Quadro 6 Renato Hélios Migliorini (19262008).
Uma brevíssima notícia, divulgada online pela Universidade de São Paulo, comunicou o falecimento, em 16 de janeiro de 2008, de Renato Hélios Migliorini, sepultado em Ribeirão Preto, onde viveu a maior parte de seus 82 anos. Nascido em Jaú em 1926, graduouse pela Faculdade de Medicina da USP em 1949 e obteve seu doutoramento com a tese Efeito de estrógenos no diabetes produzido por pancreatectomia total em ratos, que prenunciava sua sistemática futura atividade. Em 1953, foi o primeiro contratado em dedicação exclusiva pelo Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Fez pósdoutorado na Universidade da Califórnia, como bolsista da Fundação Rockefeller em 1959/1960, uma distinção só outorgada por inquestionável mérito na era préFAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) a talentos muito especiais. Dizer que foi vicediretor e diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP; que produziu mais de uma centena de trabalhos em revistas internacionais de destaque, principalmente no American Journal of Physiology; que foi citado mais de mil vezes e homenageado em vários fóruns –prêmio SBEM de 1996, comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico do governo brasileiro e membro titular da Academia Brasileira de Ciências –, entre outras distinções; ou que formou considerável número de mestres e doutores é pouco por não traduzir o caráter, o âmago do homem, seu devotado amor à ciência e à sua Faculdade que o mantiveram ativo por mais de dez anos como professor emérito, período em que publicou parte substancial de sua obra científica.
Parar, não podia! Impensável para este homem que se inquietava com o que produzia, eterno insatisfeito, crítico mais severo de sua própria obra – como confessava sem cerimônia, com a mais natural simplicidade –, não por insegurança pessoal ou timidez, mas por sentir que pesquisa, principalmente biológica, é repleta de incertezas inerentes e sempre sujeitas às armadilhas experimentais. Percebêlas era privilégio de mentes agudamente alertas, como a do Migliorini que conhecemos. Crítico de si próprio, também não tolerava a mediocridade; foi assim que o ouvi comentar, como de costume, a voz baixa, após uma conferência científica à qual havíamos assistido de um clínico de fama, também professor: “Teria sido uma palestra compreensível se ousasse fazer perguntas com clareza.” Isso, como tudo o mais, dizia em frases lúcidas precedidas por um fugaz instante de silêncio, como se hesitante, pausado, calmo, despretensiosamente carregando seu meio sorriso suave em uma fisionomia austera e tranquila. O legado de Migliorini para a ciência foi o caminhar coerente, metódico, buscando elucidar cada processo fisiológico, etapa por etapa, dos mecanismos neurais de regulação do metabolismo plasmático e tissular de ácidos graxos e glicose, o papel dos estados de jejum e alimentar nessa regulação, seu controle no tecido adiposo marrom, além do metabolismo de proteínas no tecido muscular, as interações da proteína e da glicose alimentar na glicólise no tecido adiposo, as ações metabólicas nesse tecido por exposição ao frio e fármacos, e muitas mais variações sobre o tema. Quem pensaria, senão uma mente incontrolavelmente curiosa, em usar tantas espécies animais distintas – ratos, codornas, peixes, sapos, serpentes – como modelos experimentais úteis para compreensão da fisiologia/bioquímica humana, incluindo investigar a neoglicogênese em um animal estritamente carnívoro, como os abutres? Migliorini mostrounos que isso só é possível com uma equipe coesa, unida em propósitos e ideais, edificada sobre mútuo respeito, na qual se contavam muitos e leais companheiros, como Isis do Carmo Kettelhut, José AntunesRodrigues, José Ernesto dos Santos, Itamar Vugman, Cecílio Linder, Jorge Gross, Ingrid Dick de Paula, Vera Lúcia Teixeira, além dos já falecidos Cesar TimoIaria, André Ricciardi Cruz, Cássio Botura e Miguel Rolando Covian, apenas para citar alguns de meu limitado conhecimento, claro que sob o risco de ter omitido tantos outros igualmente cruciais ao seu trabalho. Essa obra ímpar foi coroada pela vida afetiva familiar. Casado desde 1953 com Emília Blat Migliorini, viveu inconsolável viuvez depois de 40 anos, tendo gerado quatro filhos: Renato, Maria Cecília, Vera Lúcia e Valéria, e destes, seis netos. Vera Lúcia confidencioume que Renato aprendeu a amar a música com o piano de Emília Blat, colaborou na Fundação PróMúsica de Ribeirão Preto para a realização de concertos com músicos consagrados e dedicouse com afinco à vinda da Escola de Música da USP para Ribeirão Preto, no topo de ser ouvinte assíduo. Soubessem dessas outras qualificações, seus amigos e admiradores, ainda que distantes de Ribeirão Preto, teriam usufruído melhor ainda de seu convívio. Por tudo isso, inimaginável passar despercebida a passagem deste exemplar e dedicado operário da ciência. Eder C. R. Quintão Professor Emérito de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), extitular da Disciplina de Endocrinologia da FMUSP Relembro, comovida, quando conversei com o professor Migliorini pela última vez, em uma palestra da Federação de Sociedades de Biologia Experimental (FeSBE), e ele, emocionado, me apresentou os originais de seu texto para a quarta edição deste livro, comentando, com lágrimas nos olhos, que ele e seus assistentes (Isis do Carmo Kettelhut e Luiz Carlos Carvalho Navegantes) tinham se dedicado muito na redação do texto, e que ele tinha a certeza de que a visão que eles deram sobre o Controle Hormonal e Neural do Metabolismo Energético não será encontrada em outro livro didático. Meu agradecimento a todos. – Margarida de Mello Aires Tendo a fisiologia brasileira enraizadose, inicialmente no Rio de Janeiro e sucessivamente em São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte e Ribeirão Preto, consolidouse uma rede fecunda de pesquisa e ensino de fisiologia que, além do intenso intercâmbio mútuo, promoveria uma importante irradiação do conhecimento fisiológico para outros centros do país. Contando com a dedicação de fisiologistas utópicos, e com a experiência dos centros de pesquisa já existentes no sul e sudeste, assistimos à Fisiologia multiplicarse pelo país pelas mãos de pioneiros como, dentre outros, Wilson Beraldo, Nelson Chaves e Azor Oliveira e Cruz. Beraldo, como vimos, deixou a Faculdade de Medicina da USP em 1960, tomando
as rédeas do Departamento de Fisiologia, em Belo Horizonte, e moldando o que se constituiu em um centro de excelência em pesquisa e ensino de fisiologia. Nelson Chaves (19061982), médico da Faculdade de Medicina do Recife, assumiu, em 1943, a cátedra de Fisiologia, aprimorandose como fisiologista sob a orientação de Álvaro Ozório, no Rio de Janeiro. Chaves aglutinou um produtivo grupo dedicado à pesquisa e ao ensino de fisiologia, focalizando particularmente a fisiologia da nutrição e contando com a colaboração de importantes fisiologistas, tais como a médica Naíde Teodósio (19152005) (Figura 47). A partir de 1970, no entanto, o grupo pernambucano sofreria duros golpes, sob os efeitos da reforma universitária, empreendida em todo o país, recuperandose posteriormente a partir dos esforços de uma nova geração de fisiologistas, com destaque para as atuações de Waldemar Ladosky e Carlos Peres da Costa. Foi com Azor Oliveira e Cruz que a pesquisa em fisiologia iniciouse, verdadeiramente, em Curitiba. Oliveira e Cruz se torna, em 1937, regente em Fisiologia da então Universidade do Paraná, passando a manter intenso contato com centros de pesquisa cariocas e paulistas, e se caracterizando como um pioneiro da fisiologia paranaense. É assim que, em função de um íntimo contato de jovens pesquisadores com núcleos já estabelecidos, e da experiênciaherdada dos grupos pioneiros, a fisiologia brasileira temse disseminado, ainda que de maneira lenta e irregular, pela maior parte de nosso território. Em Vitória, a pesquisa em fisiologia floresceu na Universidade Federal do Espírito Santo, tendo em Dalton Valentim Vassallo um de seus pioneiros. Outros pioneiros, que perdoarão a nossa provisória omissão, incumbiramse de semear a fisiologia nos que são, hoje, expressivos grupos de pesquisa e ensino em Belém, Brasília, Florianópolis, Salvador e ainda outros centros que deveriam ser lembrados.9
Figura 47 ■ Naíde Teodósio (19152005). (Adaptada de http://revista.cremepe.org.br/01/somepe1.php.)
Devemos manter em nossas mentes que a história da Fisiologia, não só no Brasil mas em todo o mundo, está visceralmente ligada à história da medicina e da biologia, e das demais disciplinas que as compõem. É assim que as mesmas personagens que protagonizaram as aventuras da fisiologia poderão ser encontradas nas aventuras da farmacologia, microbiologia, zoologia e epidemiologia, citando algumas. Vemos, portanto, a história da fisiologia fundir se com as vidas de cientistas tais como Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Álvaro e Miguel Ozório, personagens que não podem ser definidas por um rótulo único e óbvio. Percebemos, então, que o germe da curiosidade científica não se divide em disciplinas estanques, e não é barrado pelas paredes que dividem os departamentos. Uma única pergunta científica, se relevante e bem posta, sempre envolve múltiplos métodos de abordagem, diferentes níveis de interpretação, variadas consequências teóricas e inusitadas aplicações. Jamais poderemos entender a história da fisiologia olhandoa em isolamento, sem ponderar não só a trajetória percorrida pelas outras disciplinas com as quais se relaciona, mas também o caminho pessoal traçado pelos indivíduos que a constroem. E saibamos que o caminho a ser tomado é sempre incerto e tortuoso, porém ungido por cruzes e chagas.
É chegada a hora de deixarmos esta casa iluminada. Vamos sair em silêncio, ouvindo ao longe a animada conversa de seus habitantes, deixandoa ecoar livre pelos cantos da casa. Assim, quando uma voz incógnita soprar em nossos ouvidos uma súbita e luminosa ideia ou, entrecortada, murmurar a solução óbvia que não víamos, saberemos de onde ela vem.
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Maria Marques.
Nascida em 1924, Maria Marques vive atualmente em Porto Alegre, na companhia de sua sobrinha, Maria Flávia. Natural de Jaguarão, cidade de fronteira com o Uruguai, recebeu desde cedo de seu pai, engenheiro agrônomo com especialização em universidades americana e europeia, fundamental incentivo para seus estudos. Fez o curso científico em Porto Alegre, onde teve o privilégio de ser aluna de Biologia do Prof. Pery Riet Corrêa, também docente de Fisiologia na Faculdade de Medicina da UFRGS e de Biologia na Faculdade de Filosofia da PUCRS. Como sempre sonhou ser professora, optou por inscreverse no bacharelado em História Natural na PUCRS. Voltou, assim, a ser aluna do Prof. Riet Corrêa, que a convidou para ser assistente ao término do curso, em 1950. Decorridos 3 anos, a cátedra de Fisiologia da Faculdade de Medicina foi transformada em Instituto de Fisiologia Experimental, voltado ao ensino e à pesquisa, e Maria Marques foi logo convidada para nele ingressar como auxiliar de pesquisa. Nesse instituto, teve a oportunidade ímpar de trabalhar diretamente com o Prof. Bernardo A. Houssay, renomado cientista argentino, Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina, e com vários de seus discípulos, os quais muito contribuíram em sua formação e entusiasmo pela Fisiologia e dedicação à pesquisa. Em 1965, concluiu o doutorado em Ciências na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, sob a orientação do Prof. Paulo Sawaya, introdutor da Fisiologia Comparada na USP. Em sua longa carreira universitária na UFRGS, onde se tornou Professora Titular de Fisiologia em 1983, orientou alunos de iniciação científica, mestrado e doutorado. Com seu perseverante trabalho e incansável dedicação, ajudou a criar e consolidar o Curso de PósGraduação em Fisiologia, tornandoo um dos três no país que ofereciam programas de doutorado específicos na área de Fisiologia credenciados pelo CFE. O conselho que ela dava aos alunos era trabalhe, trabalhe, trabalhe. Para ela, passar o fim de semana debruçada sobre um trabalho científico era uma delícia. Mas deixar para amanhã o que pode ser feito hoje era um horror. Portanto, não foi sem motivos que ganhou entre os colegas o apelido de Maria Pé de Boi. Quando se aposentou, as pessoas lhe diziam: Estás aposentada, agora aproveita a vida. E ela respondia: Mas eu sempre aproveitei a vida. Aposentada em 1994, continuou pesquisando e orientando estudantes como bolsista IA do CNPq. Muitos de seus discípulos são hoje docentes e ativos pesquisadores no Departamento de Fisiologia da UFRGS e em outras universidades de seu estado. Suas linhas de pesquisa envolvem: aspectos comparativos da ação da insulina; receptores e ação da insulina em glândulas endócrinas; e insulina extrapancreática em vertebrados e invertebrados. Sua produção científica no campo da Fisiologia Endócrina, em especial sobre aspectos comparativos da produção e ação da insulina, inclui dois capítulos em livros editados no exterior, numerosos artigos publicados em periódicos internacionais, alguns em revistas locais e uma centena de comunicações em congressos nacionais e internacionais. Em suas pesquisas em tartaruga, identificou receptores para insulina em glândulas endócrinas, o que confirmou em ratos, e demonstrou que esse hormônio atua diretamente sobre as glândulas adrenais e tireoide. Investigou
a produção de insulina na mucosa gastrintestinal da tartaruga e sua possível função, e a ação desse hormônio em invertebrados. Desempenhou várias funções de liderança na UFRGS e em sociedades científicas. Foi presidente da Sociedade de Fisiologia do Rio Grande do Sul (19761980), secretária regional da SBPC (19771978) e presidente da Sociedade Brasileira de Fisiologia (19911994). Em reconhecimento à sua contribuição como cientista e professora, a Sociedade de Fisiologia do Rio Grande do Sul instituiu um prêmio a jovens pesquisadores, denominado Prêmio Maria Marques. Na década de 1970, esteve no Canadá, tendo a honra de ser recebida por Charles Best, descobridor da insulina e ganhador do Prêmio Nobel da Ciência em 1921, junto com seu colega Banting, do Instituto Beste & Banting. Margarida de Mello Aires Fonte: Jornal da Universidade, 12 de setembro de 1997;Ademar Vargas de Freitas (jornalista) ___________ 1
Sócrates, que viveu em Atenas provavelmente entre os anos 470 e 399 a.C., é considerado o fundador da filosofia ocidental.
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Um esforço internacional liderado pela UNESCO possibilitou a construção da Nova Biblioteca de Alexandria, inaugurada em 2002. Ver www.bibalex.org. 3 De origem présocrática, a doutrina pneumática é uma das teses centrais do estoicismo, corrente filosófica muito influente no Império Romano. Fundada por Zenão de Cício (século III a.C.), teve no imperador Marco Aurélio um de seus principais representantes. 4 Em uma famosa passagem da obra O Ensaiador, Galileu escreve: “O livro da natureza está escrito na linguagem matemática.” 5
Podemos ter uma ideia da autoridade que Aristóteles tinha nas universidades renascentistas quando lemos no estatuto da Universidade de Oxford na época de Bacon: “Aqueles Bacharéis e Mestres que não seguirem Aristóteles fielmente estão sujeitos a uma multa de cinco xelins para cada ponto de divergência, e para cada falta cometida contra a Lógica do Organon.” (Zaterka, 2004.) 6 A epistemologia é o estudo da aquisição e da justificação lógica do conhecimento pelo ser humano. 7 Harvey calculou o que hoje chamamos de débito cardíaco. Tomando o volume sistólico como 75 ml e a frequência cardíaca como 75 bpm, 5,6 l de sangue passarão pelo ventrículo esquerdo por minuto. Em 1 h, passarão 337,5 lde sangue, ou seja, várias vezes o volume de um homem médio! 8
A Natureza e as leis da Natureza permaneciam ocultas na noite, Deus disse: “Façase Newton”, e tudo foi luz… Nessa breve história da fisiologia brasileira, deixamos voluntariamente de incluir seu desenvolvimento mais recente, focalizando, de maneira incompleta e fragmentária, eventos e personagens cuja relevância é anterior aos anos 1970. 9
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Homeostase, Regulação e Controle em Fisiologia Compartimentalização dos Líquidos do Organismo
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Sinalização Celular Fisiologia dos Compartimentos Intracelulares | Via Secretora
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Ritmos Biológicos Fisiologia do Músculo Esquelético
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Introdução
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Classificação dos sistemas Níveis de regulação
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Bibliografia
INTRODUÇÃO O organismo vivo depende de um grande número de processos regulatórios para manter constantes as condições de seu meio interno, o milieu intérieur de Claude Bernard. Este meio interno, no qual estão imersas todas as células do organismo, corresponde, no mamífero, ao líquido extracelular, basicamente uma solução de cloreto de sódio com concentrações menores de outros íons, como bicarbonato, potássio e cálcio. Uma série de propriedades deste líquido, incluindo pressão, volume, osmolalidade, pH, concentrações iônicas e de outros componentes, devem ser mantidas dentro de faixas estreitas de variação para permitir que as células sobrevivam em condições normais de funcionamento. Essas propriedades, em seu conjunto, são denominadas homeostase e definem as condições normais de vida de determinado organismo. Os processos encarregados de sustentar essa homeostase são mecanismos de regulação, e seu estudo constitui um dos principais objetivos da Fisiologia. Grande parte dos sistemas de órgãos de um organismo está destinada a conservar sua homeostase. Assim, o sistema digestório mantém a constituição do meio interno por meio da ingestão, digestão e absorção de alimentos como hidratos de carbono, proteínas e gorduras, importantes para a constância dos níveis extracelulares de glicose, aminoácidos e ácidos graxos, por exemplo. O sistema endócrino contribui para a manutenção da disponibilidade de substratos energéticos (p. ex., glicose, ácidos graxos) e do equilíbrio hidreletrolítico, entre muitas outras funções. O sistema respiratório mantém a homeostase do gás oxigênio e do gás carbônico no meio interno. O rim é um órgão homeostático por excelência, mantendo o nível interno de grande número de componentes, incluindo concentração dos íons, osmolalidade, pH etc. Antes de entrar na discussão de aspectos mais relacionados com os mecanismos dos quais os organismos biológicos lançam mão para regular as suas funções e manter sua homeostase, vamos discutir alguns princípios gerais de mecanismos de regulação com base em um método de estudo denominado análise de sistemas, que, mesmo aplicado ao nosso caso de maneira muito elementar, pode trazer uma visão mais clara e sistematizada dos processos que nos propomos a investigar (Stolwijk e Hardy, 1974). Um processo regulatório pode ser representado por um mecanismo básico chamado de sistema, consistindo em um grupo de componentes interconectados que interagem, sistema este que apresenta, para uma dada entrada (input), uma saída (output) previsível. Os componentes do sistema podem ser mecânicos, elétricos, eletrônicos, químicos ou biológicos. No último caso, que é o que nos interessa, esses componentes podem ser constituídos por: (1) células nervosas interligadas por dendritos e axônios; (2) células capazes de produzir substâncias (humores ou hormônios) que atuam sobre outras células a distância; (3) células que detectam modificações da homeostase diretamente ou por meio de
outras, especializadas em receptores específicos, e que, por sua vez, ativam mecanismos neurais que levam a determinadas respostas mecânicas (ação muscular) ou químicas (secreção). As possibilidades relativas à constituição de sistemas em um organismo são muito amplas, e, frequentemente, não se conhecem bem os componentes de um dado sistema, mas, apesar disso, existe a possibilidade de estudar, de algum modo, suas características. Por isso, às vezes convém tratar esses sistemas como “caixapreta”, analisando suas características, isto é, a relação entre entrada e saída (ou estímulo e reação do sistema) independentemente, ou mesmo antes, de um conhecimento mais aprofundado de sua constituição. Esse tipo de análise está esquematizado na Figura 1.1. Notase que cada sistema tem determinadas propriedades ou segue determinadas leis. Tais propriedades ou leis nada mais são que relações fixas de entrada e saída do sistema, determinadas empiricamente. Frequentemente, é difícil, ou mesmo impossível, atingir o ideal de conhecer com detalhes todos os componentes e seus mecanismos de interação em um sistema, para deduzir daí suas propriedades. Por isso, é muito utilizada, especialmente em processos biológicos, a técnica empírica de analisar um dado sistema observando as relações entre sua entrada e respectiva saída. Há diversas técnicas de estudo apropriadas que permitem conhecer melhor as características de dado sistema. A primeira delas seria a análise detalhada dos componentes do sistema, deduzindose daí seu conhecimento e seu funcionamento. Pelos motivos já indicados, tal técnica é, especialmente no caso de sistemas mais complexos, um ideal de realização bastante longínqua. Outra técnica, já mais indireta, é a que visa a um diagnóstico, ou seja, com base em um dado de saída do sistema, tirar conclusões a respeito da entrada e do funcionamento do próprio sistema. Tomemos, por exemplo, o caso de um organismo que esteja apresentando hiperglicemia. Tratase de uma saída de um sistema encarregado da manutenção da homeostase quanto à concentração de glicose no sangue, saída esta que, no caso, estaria desregulada. O que se quer saber é: por que o sistema não está regulando o nível de glicose de maneira correta? Tratarseia de uma alteração na sua entrada, ou do próprio mecanismo de regulação? Para obtermos uma resposta a essas perguntas, podemos submeter o sistema a uma entrada alterada (p. ex., um teste de sobrecarga de glicose), fornecendo ao sistema uma entrada conhecida e diferente da normal, verificando o que acontece com a saída nessas condições. Tratase de um teste do sistema, que pode levar a conclusões, isto é, a um diagnóstico. Para obtermos sucesso nesse diagnóstico, temos que ter conhecimento das leis e propriedades do sistema. Para obtermos essas leis, temos que lançar mão de métodos de pesquisa, ou seja, estudar o sistema propondo a ele entradas diferentes, porém conhecidas, e observando as saídas consequentes. Mesmo com um conhecimento deficiente dos componentes do sistema, podemos obter as relações entre entrada e saída que definem o funcionamento do sistema, pelo menos nas condições que foram testadas. Com base nessas observações, podese tentar generalizar o comportamento do sistema, estabelecendo suas leis. No caso da pesquisa biológica, o estabelecimento dessas leis apresenta problemas muito grandes, devido à dificuldade de isolar os sistemas estudados, que estão intimamente ligados a outros, formando supersistemas que utilizam componentes comuns e que funcionam de maneira encadeada. A dificuldade, pois, consiste em isolar dado sistema e manter os demais sem alteração durante o período de pesquisa.
Figura 1.1 ■ Análise de sistemas: representação esquemática.
CLASSIFICAÇÃO DOS SISTEMAS
▸ Sistemas passivos Tomemos como exemplo uma situação em que a energia (calor) dirigida para o sistema não é regulada por ele próprio, ou seja, a entrada não é modulada pelo sistema. O crescimento de microrganismos como função da temperatura do meio constitui um sistema desse tipo, isto é, um sistema passivo, pois a sua saída (ritmo de crescimento) depende da entrada (calor fornecido), mas os microrganismos não dispõem de meios de limitar ou controlar o calor que é fornecido a eles, ao contrário de organismos mais complexos, que podem manter uma temperatura interna controlada na vigência de considerável variação de entrada, ou seja, do calor fornecido.
▸ Sistemas controlados O exemplo mais simples seria um banho (recipiente de água) aquecido por uma resistência regulada por termostato. Nesse caso, o sistema tem um mecanismo capaz de regular a quantidade de energia que é fornecida a ele e que constitui sua entrada, de modo a manter a saída, no caso, a temperatura do banho, em níveis desejados. Um sistema passivo seria um banho com resistência aquecedora, mas sem termostato: qualquer fornecimento de energia se traduz em saída elevada, ou melhor, em um aumento da temperatura do banho. Esses sistemas podem também ser classificados da maneira a seguir.
Sistemas de alça aberta (open loop) São sistemas em que a saída não tem efeito sobre a entrada. Um sistema de medida de pressão arterial, por exemplo, é deste tipo: a entrada é a pressão arterial, o sistema consiste em um transdutor, sistema de detecção, de amplificação e de registro, e a saída é o registro da pressão. Nesse sistema, obviamente, a saída deverá espelhar a entrada, sem ter influência sobre ela. No caso, podemos definir uma função de transferência ou acoplamento do sistema do seguinte modo:
em que o valor numérico de K equivale ao ganho do sistema, quando a relação entre saída (S) e entrada (E) é linear. Podemos exemplificar essa relação com o sistema de detecção de variações de pressão arterial (PA) do bulbo carotídeo, que relaciona PA com frequência de estímulo dos nervos do seio carotídeo (Fr):
Nesse caso, temos uma função de acoplamento que permite calcular o nível de PA desde que seja conhecida a frequência de impulsos nervosos nos nervos carotídeos, ou viceversa. Como nesse sistema não é só a frequência que afeta isoladamente a PA, tratase de sistema aberto. Esse sistema, no entanto, está inserido em outro mais amplo, de regulação de pressão arterial, em que essa frequência, através dos centros nervosos bulbares, vai atuar sobre a pressão arterial, ou seja, a entrada do próprio sistema, constituindo um sistema de alça fechada.
Sistemas de alça fechada São também chamados de sistemas com realimentação (feedback), nos quais há um controle da saída sobre a entrada. Um exemplo típico é a produção de hormônios por glândulas endócrinas. Consideremos a glândula tireoide. A entrada seria o hormônio tireotrófico (TSH), produzido pela hipófise sob controle hipotalâmico. O sistema seria a glândula tireoide, e a saída, seu hormônio, a tiroxina (T4). Nesse caso, a saída vai afetar a entrada, ou melhor, o nível de tiroxina vai regular a liberação de TSH pela hipófise, de modo que uma elevação do nível de tiroxina reduzirá o de TSH. Tratase aqui de uma realimentação negativa, isto é, a uma elevação da saída corresponde um efeito de redução da entrada. O sistema de alça fechada pode ser esquematizado pelo diagrama da Figura 1.2. De acordo com essa figura, F é o sistema efetor, cuja função de transferência é S/E, e R é o subsistema de realimentação, cuja função de transferência é E2/S.
Figura 1.2 ■ Sistema de alça fechada, com realimentação. S, saída; E1, entrada; E2, entrada por realimentação; E, entrada resultante; F, efetor; R, sistema de realimentação.
Temos, pois,
Daí obtemos a relação entre a saída (S) e a entrada (E1) do sistema todo, que é dada por:
Note que FR = E2/E indica a efetividade do controle de realimentação, pois, quanto maior for FR, tanto maior o efeito de S sobre E1.
▸ Sistemas de controle Os sistemas anteriormente descritos podem ter a função de regular ou controlar determinados parâmetros da constituição do meio interno. Um sistema com realimentação, especialmente negativa, é um sistema de controle, pois se regula sua saída pelo próprio nível dessa saída. Quanto maior a saída, maior a redução da entrada, o que vai diminuir a saída; quando a saída se reduz, a entrada é menos afetada, tendendo a elevar novamente a saída. O sistema impede, portanto, que a sua saída se desvie de um determinado nível, característico do balanço entre o sistema efetor e o subsistema de realimentação. É costume classificar os sistemas de controle de acordo com sua maneira de responder a desvios do parâmetro controlado. A relação entre a saída produzida pelo sistema e o desvio do parâmetro controlado de seu valor normal, que deve ser mantido, é que vai distinguir os diferentes tipos de sistemas de controle.
Controle contínuo proporcional Tratase de sistema de controle em que há uma relação constante e contínua entre o desvio (D) do parâmetro controlado e a saída do sistema (S):
Quanto maior o desvio, maior a resposta do sistema. Esse sistema pode levar a uma regulação bastante estável de um dado parâmetro, mas necessita de certo erro ou desvio para ativar o mecanismo de correção. Detectado o desvio, estabelecerseá uma resposta constante e proporcional a este, que vai diminuindo continuamente à medida que o próprio desvio for reduzido. Podemos exemplificar esse tipo de controle com um aspecto, embora muito parcial, do mecanismo de regulação da glicemia, que é a perda de glicose pelo rim. Esse órgão tem uma capacidade máxima de reabsorver glicose (Tm) e, quando esta é ultrapassada, há perda de glicose na urina. O rim seria, então, um sistema cuja função é a manutenção da glicose sanguínea abaixo de um dado máximo, o limiar renal de glicose. A eliminação da glicose filtrada em excesso ao Tm representaria a resposta, S, do sistema de controle. Essa eliminação é proporcional ao desvio (da glicemia do valor normal), pois, quanto maior o desvio, maior a quantidade filtrada e excretada e, portanto, maior a resposta do sistema. Em contraposição, poderíamos citar um sistema de controle não proporcional, como, por exemplo, o sistema de aquecimento de um banho com termostato. Nesse caso, sendo o desvio detectado, o sistema de aquecimento é ligado por um relé, havendo aquecimento do banho pela resistência do sistema até a temperatura voltar à faixa desejada. Aqui, a intensidade do aquecimento não é proporcional ao desvio, mas constante, embora aplicada por tempo variável.
Controle integral É um sistema de controle que permite manter um dado parâmetro em seu nível desejado, com erro ou desvio praticamente nulo. Aqui, o ritmo de saída será proporcional ao desvio:
em que: β = constante D = desvio. Neste caso, na ausência do desvio, a saída do sistema não será zero, mas permanecerá constante. Além disso, não há relação fixa entre o desvio e a ação efetora, como existia no caso anterior.
Esse sistema é capaz de manter uma situação estacionária (steadystate), como, por exemplo, a glicemia (nível de glicose no sangue). Esta é mantida por um sistema extremamente complexo, em que a adição de glicose ao meio interno é balanceada pela retirada dessa substância por todos os tecidos. O ritmo de produção de glicose ou de sua retirada do meio é proporcional ao desvio em relação à glicemia normal. Esse desvio tende a ser infinitesimal, próximo à situação de steadystate.
Controle de ritmo (rate control) Neste caso, a ação efetora (saída do sistema) é proporcional ao ritmo de variação da variável controlada, e não à sua magnitude:
em que: S – So = magnitude da resposta do sistema γ = constante dv/dt = velocidade de variação da variável controlada. Esse sistema aumenta a velocidade de resposta a alterações da variável controlada. No entanto, não chega a regular o nível da variável controlada em termos absolutos, mas só atua enquanto esta varia. Por outro lado, tal sistema pode ser utilizado juntamente com outros sistemas que controlam o valor absoluto da variável, tendo então a vantagem de ser um elemento estabilizador, impedindo desvios de um nível estável. Um exemplo desse tipo de controle é o fenômeno da acomodação observado em células nervosas. Na presença de um estímulo, que é uma alteração brusca da entrada do sistema, ocorre um incremento da saída. Entretanto, com a continuação do estímulo, a resposta da célula se atenua, voltando com o tempo ao nível normal, apesar da manutenção do estímulo. Tratase, pois, de um sistema em que a saída só se eleva com dD/dt e não com D, o valor absoluto do desvio da variável controlada.
Outros sistemas de controle Em organismos biológicos, frequentemente são encontrados sistemas mais complexos que os até aqui descritos. Trata se principalmente de sistemas não lineares, isto é, a relação entre causa e efeito ou o ganho do sistema não são lineares. Neste caso, as constantes K, β ou γ não são constantes, mas proporcionais, em alguns casos, à entrada do sistema. Qual o valor de uma análise de sistemas em geral e de sistemas de controle em particular? Podemos, com essas técnicas, levantar questões mais objetivas quanto aos mecanismos de regulação que desejamos estudar. Tais questões permitirão a realização de pesquisas mais precisas e quantitativas a respeito da relação entre as causas e efeitos envolvidos em processos de regulação, permitindo ainda avaliar, de um ponto de vista mais quantitativo, a importância dos diversos fatores reguladores.
NÍVEIS DE REGULAÇÃO Em sistemas biológicos, podemos encontrar mecanismos de regulação ou (adotando a terminologia da análise de sistemas) sistemas de controle, em praticamente todos os níveis, incluindo o molecular, o celular, o dos órgãos e, finalmente, o correspondente ao organismo como um todo.
▸ Regulação ao nível molecular Podemos considerar que, em qualquer reação química reversível, o acúmulo de produtos inibe a reação, de acordo com a lei da ação das massas: A + B ↔ C + D e
Do ponto de vista da análise de sistemas, uma reação reversível corresponde a um sistema com realimentação negativa. Como a razão entre o produto das substâncias resultantes da reação (C e D) e o dos reagentes (A e B) é constante, um acúmulo de resultantes vai elevar também a concentração dos reagentes, e isso vai inibir a reação.
Enzimas reguladoras Uma série de características contribui para o comportamento regulador de reações catalisadas por enzimas (Koshland, 1973). Podemos incluir neste tópico características reguladoras gerais de enzimas, como, por exemplo, sua sensibilidade ao pH do meio, à concentração de substrato, à presença de determinados íons, como Mg2+ e K+, e outras que contribuem para regular determinadas reações com base em características gerais do meio no qual essas reações estão ocorrendo (Holzer e Duntze, 1971; Brown e Stow, 1996; Lehninger et al., 1993). Quando se fala em enzimas reguladoras, no entanto, é costume ter em mente essencialmente três formas de participação de processos enzimáticos nos mecanismos reguladores em nível molecular. Esses três modos de participação dos processos enzimáticos são descritos a seguir. Enzimas alostéricas Em certos sistemas multienzimáticos, isto é, em sequências de reações do metabolismo celular dependentes da catálise por uma série de enzimas, ocorre frequentemente que o produto terminal dessa sequência é inibidor da enzima no início da sequência. Um exemplo desse tipo de mecanismo é a cadeia de enzimas que catalisa a conversão de ltreonina em l isoleucina, um passo do metabolismo de aminoácidos (Monod et al., 1965; Lang et al., 1998):
A primeira reação dessa sequência, catalisada pela ltreonina desidratase, é inibida pelo produto final, a lisoleucina. Tratase, pois, de uma enzima que tem, além do local ativo para seu substrato normal, a ltreonina, um local ativo adicional para outra substância denominada moduladora. Daí o nome de enzima alostérica, isto é, portadora de outro local ativo. A ligação com o modulador altera a conformação da molécula, modificando a sua atividade catalisadora para com a sua reação original. Dessa maneira, a concentração do modulador, no caso a lisoleucina, regula toda a sequência de reações, incluindo toda a série de enzimas E1, E2, E3 … En. Note que a enzima alostérica é especificamente sensível ao produto final da série, e não aos produtos intermediários. A ligação entre enzima e modulador não é covalente, e sim reversível. Podemos ter moduladores negativos, como no exemplo precedente, que inibem a atividade enzimática da enzima alostérica, mas também ocorrem moduladores positivos. Por outro lado, enzimas alostéricas com um único modulador são chamadas de monovalentes; com mais de um modulador, são designadas polivalentes. A mesma enzima pode ter moduladores positivos ou negativos. Um bom exemplo de enzima alostérica polivalente e com moduladores tanto positivos como negativos é o da fosfofrutoquinase. Essa enzima catalisa um pontochave da glicólise: ATP + Dfrutose6fosfato → ADP + Dfrutose1,6difosfato É este o ponto de controle mais importante de toda a sequência. Tem diversos moduladores alostéricos: ■ Negativos (inibidores): concentração alta de trifosfato de adenosina (ATP), citrato, ácidos graxos ■ Positivos (estimuladores): difosfato de adenosina (ADP), monofosfato de adenosina (AMP). Por meio dessa reação, a glicólise pode ser praticamente desligada perante uma geração de elevadas concentrações de ATP ou da disponibilidade de outras fontes energéticas que não glicose, como citrato e ácidos graxos: é o substrato bioquímico do efeito Pasteur, ou seja, a redução do consumo de glicose e da formação de lactato quando o meio é oxigenado, permitindo o funcionamento do metabolismo oxidativo. A reação catalisada pela fosfofrutoquinase é irreversível; aliás, a maior parte das enzimas reguladoras catalisa reações irreversíveis. Enzimas regulatórias de modulação covalente
Certos mecanismos de regulação em nível enzimático se processam pela conversão da forma ativa em inativa, ou vice versa, por modificações estruturais que envolvem ligações covalentes. Tais alterações de estrutura são, em geral, catalisadas pela ação de outras enzimas. Um bom exemplo desse tipo de regulação enzimática é o controle da degradação do glicogênio: Glicogênio = (glicose)n + Pi ↔ (glicose)n1 + glicoselfosfato Essa reação é catalisada pela glicogêniofosforilase, enzima que tem duas formas: a fosforilase a, ativa, e a b, inativa. A Figura 1.3 mostra que a fosforilase a consta de quatro subunidades, cada qual ligada a um radical fosfato no resíduo serina14. A hidrólise dessa enzima, catalisada pela fosforilase, leva à sua desfosforilação e à quebra em duas moléculas de fosforilase b e quatro íons fosfato inorgânicos (Pi): Fosforilase a + 4 H2O ↔ 2 fosforilase b + 4 Pi
Figura 1.3 ■ Esquema da transformação de fosforilase a em b pela fosforilase fosfatase, e da conversão inversa pela fosforilase quinase. (Adaptada de Lehninger et al., 1993.)
Essa reação é reversível e sua reversão é feita com a ajuda de outra enzima, a fosforilase quinase, e de ATP, que fornece os radicais fosfato. Tratase, pois, de uma transformação completa da estrutura da enzima, o que não acontece no caso de enzimas alostéricas. Como será visto adiante, essa reação está inserida no mecanismo de ação de epinefrina sobre a célula hepática, correspondendo à ação glicogenolítica desse hormônio, processo no qual o AMP cíclico funciona como intermediário, induzindo a formação de fosforilase quinase. Essas enzimas, por outro lado, também apresentam regulação alostérica: em sua forma muscular, a fosforilase b é inativa em repouso, com ATP elevado. A enzima tem local alostérico, que é inibido por ATP e ativado por AMP, o que acontece durante o exercício. A fosforilase a, no entanto, é ativa independentemente do nível de ATP ou AMP. Já no fígado, o local alostérico da fosforilase b não é sensível a ATP ou AMP. Processos enzimáticos são, de maneira geral, processos amplificadores, pois uma molécula enzimática é capaz de catalisar a transformação de muitas moléculas de substrato. O mecanismo anteriormente descrito representa, no entanto, um sistema de amplificação adicional. Poucas moléculas de fosforilase quinase podem transformar muitas de fosforilase b em a, e esta, por sua vez, age na transformação de muitas moléculas de substrato.
Outro processo de interesse fisiológico que se baseia em mecanismo semelhante é a ativação covalente de zimogênios. Precursores inativos de enzimas, denominados zimogênios, são ativados por mecanismo covalente, isto é, por mudança de estrutura, por ação de outras enzimas. Importante exemplo são as enzimas digestivas:
Tratase de remoção de sequências de aminoácidos da estrutura de zimogênios em uma reação de natureza irreversível. Dessa maneira, impedese a ação proteolítica dessas enzimas até ocorrer a necessidade de seu uso. Regulação genética de enzimas A ocorrência de diversas formas de uma dada enzima pode também funcionar com finalidade regulatória. Neste caso, tratase de uma regulação com base genética, pois a indução de uma ou outra das isoenzimas de um grupo enzimático pode levar a funções diferentes, de acordo com as situações biológicas das células em que atuam. Apesar de terem estrutura muito semelhante, diferindo apenas quanto à presença de alguns aminoácidos ou pH isoelétrico, isoenzimas diferentes têm propriedades cinéticas diferentes, isto é, podem ter km (constante de Michaelis) e Vmáx (velocidade máxima), parâmetros da cinética de MichaelisMenten, diferentes. Exemplifica esse tipo de regulação a reação seguinte (Fine et al., 1963; Philp et al., 2005):
Há cinco isoenzimas da desidrogenase láctica, um tetrâmero de 140 kD. Em músculo esquelético, predomina a forma M4, mais ativa, com km mais baixa e Vmáx mais alta para piruvato, seu substrato, permitindo então o uso eficiente da glicólise nesse tecido, com formação de lactato. Por outro lado, o músculo cardíaco, um tecido que normalmente não forma lactato, mas oxida piruvato a CO2 e água pelo ciclo aeróbio dos ácidos tricarboxílicos, apresenta predominância da desidrogenase láctica de forma H4, menos ativa, com km, mais elevada, e Vmáx, mais baixa. O músculo cardíaco, dessa maneira, tem capacidade de converter piruvato a lactato só a elevadas concentrações do primeiro. Verificase que a síntese de determinada isoenzima mais apropriada para dado tecido vai regular o metabolismo dessas células e depende de premissas genéticas, por meio das quais cada célula sintetiza as isoenzimas que são peculiares a ela.
▸ Regulação do pool energético celular As diversas reações do metabolismo energético celular levam a um acúmulo de ATP ou de outros reservatórios energéticos, como fosfocreatina. Por outro lado, o consumo de energia por parte dos diversos processos vitais da célula, como síntese, secreção, transporte etc., vai depletar esses reservatórios de energia, e os componentes do sistema adenilato estarão presentes de preferência na forma de AMP e ADP. Já vimos que a situação do pool energético celular, isto é, a predominância de ATP ou de AMP/ADP, é um importante fator regulador do metabolismo celular, regulando alostericamente a enzima fosfofrutoquinase e, através dela, toda a via glicolítica. De forma semelhante, os níveis dos componentes do sistema adenilato afetam a atividade de diversas enzimas na sequência de reações do metabolismo de carboidratos, como é demonstrado na Figura 1.4. Temos aqui um sistema de realimentação negativa, representado pela ação inibitória de níveis elevados de ATP sobre os passos fundamentais dessa sequência de reações que leva a uma elevação do teor energético celular. Por outro lado, ocorre também um processo de sinalização positiva, representado pela ação estimulante de AMP e ADP sobre alguns dos mesmos passos. A análise dessa figura demonstra que o estado do sistema adenilato em termos energéticos, ou o pool energético celular, exerce importante função reguladora de todo o metabolismo celular. Por esse motivo, temse tentado exprimir o grau de depleção ou preenchimento deste pool por meio da avaliação quantitativa dos componentes desse sistema. De acordo com Atkinson (1977), é possível avaliar a carga energética do sistema adenilato por intermédio da determinação das concentrações de AMP, ADP e ATP. Considera este autor que a carga energética máxima (CE = 1) ocorre quando todo o sistema está na forma de ATP. Por outro lado, a carga energética mínima, CE = 0, ocorre quando todo o sistema adenilato está na forma de AMP. Finalmente, se o sistema está todo na forma de ADP ou sob a forma de quantidades equimolares de AMP e ATP, teríamos uma carga energética de 0,5. Consequentemente, podese exprimir esta carga da seguinte maneira:
Com base no valor obtido para essa carga energética do sistema adenilato, podese prever o funcionamento dos sistemas de geração de ATP e de utilização de ATP. Essa relação está esquematizada na Figura 1.5, que demonstra que, na presença de uma CE = 1, a geração de ATP atinge um mínimo, enquanto o seu consumo, um máximo. A interseção das linhas que definem as velocidades dos processos de geração e de utilização de ATP, isto é, o equilíbrio entre esses processos, encontrase a uma CE de 0,85, que, em consequência, é a situação de muitos tipos de células em condições normais, e de jejum e em repouso. Esse nível corresponde a um steadystate ótimo. Abaixo do valor de 0,85, haverá incremento de geração de ATP e redução de sua utilização, mas a tendência para cada tecido será dirigirse para o estado de equilíbrio descrito, resistindo a qualquer tendência de se desviar desse nível.
Figura 1.4 ■ Locais de regulação no metabolismo de carboidratos. São indicados os locais de inibição por ATP e de estimulação por AMP, ADP e dinucleotídio de nicotinamida e adenina (NAD). São demonstrados também os locais de realimentação negativa por parte de glicose6fosfato, citrato e NAD reduzido (NADH).
Com base na reação: ADP + Pi ↔ ATP + H2O podemos definir ainda o potencial de fosforilação de uma célula, que é equivalente à constante de equilíbrio, Γ, desta reação:
Essa é uma medida termodinamicamente mais adequada e bem mais sensível do balanço energético da célula, diretamente relacionada com a energia livre disponível a partir de ATP, indicando a sua capacidade de fornecer radicais fosfato ricos em energia. Sobre a carga energética de Atkinson, tem ainda a vantagem de incluir a concentração de fosfato inorgânico (Pi) do meio, componente importante desse processo. Na ausência de qualquer fonte de energia, o potencial de fosforilação é extremamente baixo, apresentando um valor de 5 μM–1 a 25°C. Nas células vivas, o valor desse potencial é normalmente da ordem de 200 a 800 μM–1. Enquanto a carga energética costuma variar pouco ao redor do valor de equilíbrio de 0,85, o potencial de fosforilação, uma medida do nível energético da célula, varia consideravelmente de acordo com o estado metabólico da célula.
Figura 1.5 ■ Variação da carga energética do sistema AMP/ADP/ATP com o ritmo de produção e consumo de ATP.
▸ Regulação a distância em organismos pluricelulares Regulação nervosa Organismos multicelulares têm a necessidade de reagir como um todo a estímulos e a mudanças provenientes do meio em que vivem. Para isso, necessitam de mecanismos de integração, ou seja, daqueles que permitam a atividade de um determinado número de células em conjunto. O mesmo tipo de atividade conjugada pode ser necessário não como resposta a estímulos externos ao organismo, mas também para garantir um funcionamento em conjunto, harmonioso, das células desse organismo. Para permitir tal tipo de funcionamento, tornase necessária a existência de sistemas de controle mais amplos, supracelulares, que conjuguem o funcionamento de certo grupo de células diferentes ou iguais e, mesmo, de um conjunto de órgãos cuja função se torna necessária para atingir determinado objetivo. Essa integração funcional de órgãos e células pode ser obtida, em linhas gerais, essencialmente por dois tipos de sistemas. O primeiro é o sistema nervoso, conjunto de células distribuído por todo o organismo, mas apresentando aglomerações regionais e centrais de extrema complexidade, capaz de analisar e armazenar informações e de elaborar as respostas adequadas a estímulos externos e internos, a fim de, por meio dessas respostas, manter a homeostase desse organismo. O segundo sistema é o humoral ou endócrino, constituído de glândulas produtoras de substâncias denominadas hormônios, que atuarão a distância, sem continuidade física, e que será analisado adiante. O primeiro sistema, o sistema nervoso, tem mecanismos ou subsistemas de detecção de estímulos externos e de alterações das condições do meio interno, chamados de receptores, que enviam as
informações colhidas a centros que integram e elaboram essas informações e, por sua vez, mandam ordens a subsistemas efetores, por intermédio dos quais se efetuam as alterações necessárias para responder aos estímulos do meio exterior ou às alterações do meio interno. O conjunto de receptores, vias aferentes, centros nervosos e vias eferentes é denominado arco reflexo, que pode apresentar vários graus de complexidade. O sistema nervoso funciona com base em continuidade física entre seus componentes, que é garantida por prolongamentos celulares, as fibras nervosas, que, por meio de diferentes processos, transmitem informações entre os subsistemas já esquematizados aqui. Por tratarse de estudo extremamente amplo e complexo, não iremos abordar em nossas explanações a importância do sistema nervoso para a regulação do meio interno. Podemos somente exemplificar, pela descrição sumária do processo da regulação nervosa da pressão arterial. Os receptores de pressão estão localizados no bulbo carotídeo e na crossa da aorta, que darão origem às fibras nervosas aferentes, que transitarão, por nervos específicos ou junto com o nervo vago, para os centros vasomotores do bulbo. As vias efetoras seguem pelos sistemas simpático e parassimpático até os efetores, as células musculares lisas da parede de arteríolas, e aumentarão sua tensão sob estímulo das vias simpáticas e a reduzirão quando as vias parassimpáticas forem estimuladas. É interessante notar que as vias aferentes levam suas mensagens aos centros por meio de uma codificação de frequência de descargas nervosas, como é demonstrado na Figura 1.6. Quando a pressão no bulbo carotídeo ou na crossa da aorta se eleva, os receptores locais são estimulados, elevandose a frequência dos potenciais de ação nas fibras aferentes, acontecendo o oposto quando cai a pressão nesses locais. A elevação de frequência dos potenciais de ação nas fibras aferentes vai estimular os centros vasodepressores do bulbo, e, em consequência, aumentar a frequência de descargas nas vias eferentes parassimpáticas. Uma redução das descargas nas vias aferentes irá, por sua vez, inibir os centros vasodepressores, elevando a frequência de descarga das fibras do sistema nervoso simpático com a consequente vasoconstrição sistêmica, com elevação da pressão arterial. É necessário acentuar que essa descrição da regulação nervosa da pressão arterial é bastante esquemática. Há outros receptores que participam desse sistema; por outro lado, os centros relacionados com a regulação cardiovascular têm amplas conexões com outros setores do sistema nervoso central, em particular com o hipotálamo, que é um centro de integração e regulação neurovegetativa, ou seja, de processos relacionados com a manutenção das funções responsáveis pela higidez funcional do organismo, das quais a regulação da constituição do meio interno é uma das mais importantes.
Figura 1.6 ■ Atividade de impulsos nervosos medidos em fibra isolada de nervo aórtico (2), sendo o gráfico de pressão arterial na carótida comum esquerda (1) sobreposto ao registro anterior. Pressões médias: (A) 125 mmHg; (B) 80 mmHg; (C) 62 mmHg; (D) 55 mmHg; (E) 42 mmHg. (Adaptada de Neil, 1954.)
Regulação humoral Uma parte importante dos sistemas de controle de um organismo multicelular é composta por mecanismos humorais, dos quais participam substâncias produzidas por células especializadas e por estas transferidas à corrente circulatória. Tais substâncias, dessa maneira, atingem as células (célulasalvo), nas quais desencadeiam a mensagem regulatória. Esse tipo de substância é denominado hormônio. Não trataremos aqui da descrição de todos os sistemas de controle que funcionam à base de hormônios, mas apenas de alguns princípios básicos comuns a todos eles. Regulação da produção de hormônios
É um processo que varia muito de acordo com o tipo de hormônio considerado. Há, no entanto, um grupo de hormônios que apresentam certas características comuns, as quais serão aqui discutidas. Tratase dos hormônios liberados pela hipófise, glândula que depende, em sua função, da atividade hipotalâmica. Na porção ventral do hipotálamo, existe uma série de núcleos nervosos cujos neurônios produzem neurossecreções que são transferidas à hipófise. Nos núcleos paraventriculares e supraópticos do hipotálamo, originamse neurossecreções que se dirigem, pelos axônios dessas células, à hipófise posterior ou neurohipófise, onde essas neurossecreções (a vasopressina ou hormônio antidiurético e a ocitocina) são armazenadas nas terminações dos neurônios hipotalâmicos. A liberação desses hormônios depende da atividade dos neurônios dos citados núcleos. Por outro lado, os hormônios produzidos nas células da hipófise anterior ou adenohipófise estão igualmente sob dependência do hipotálamo, mas por mecanismo diferente. Os neurônios de diversos núcleos hipotalâmicos produzem, por um processo de neurossecreção, fatores liberadores dos hormônios produzidos na hipófise anterior. Tais fatores são liberados pelo axônio desses neurônios na eminência média, a região hipotalâmica mais próxima à hipófise. Nesse local se encontra um sistema porta, isto é, uma capilarização dupla, responsável pela transferência dos fatores liberadores à hipófise. A primeira capilarização desses vasos está localizada na eminência média, formandose, a partir desses capilares, vasos de tipo portal que se dirigem à adenohipófise e aí se capilarizam novamente. Dessa maneira indireta, os fatores liberadores atingem as células produtoras dos hormônios pituitários anteriores. Assim, por exemplo, o fator liberador de tireotrofina, um tripeptídio originado no núcleo paraventricular do hipotálamo e liberado na eminência média, atua sobre a liberação de hormônio tireotrófico produzido por células basófilas da adenohipófise. Esse hormônio, por sua vez, atua sobre a glândula tireoide, constituindose em seu fator trófico, isto é, um fator que estimula seu crescimento e funcionamento. Sua ação, a longo prazo, determina hipertrofia (excesso de hormônio) e, a curto prazo, regula a produção diária dos hormônios dessa glândula, as iodotironinas (tri e tetraiodotironina [tixorina], T3 e T4, ver Capítulo 68, Glândula Tireoide). O nível de T4 (tiroxina) circulante, mas também do T3, por um processo de realimentação negativa, vai reduzir a produção de hormônio tireotrófico, bem como do fator liberador hipotalâmico correspondente. Assim, temos um sistema de controle da produção de iodotironinas caracterizado por realimentação negativa, capaz de manter níveis constantes e adequados desses hormônios. Além disso, a interface com o sistema nervoso central por meio do fator liberador produzido no hipotálamo permite manter influências centrais sobre a produção desses hormônios; por exemplo, em pequenos mamíferos, incluindo o recémnascido da espécie humana, o mecanismo de termorregulação sediado no próprio hipotálamo pode lançar mão de variações dos níveis desses hormônios, responsáveis pelo nível do metabolismo energético celular e, portanto, também pela liberação de calor a partir das reações metabólicas. Outro aspecto de interesse geral é a maneira pela qual os hormônios atuam ao nível das célulasalvo. Certo número de hormônios, especialmente os lipossolúveis, atravessa com facilidade a membrana celular, dirigindose diretamente ao seu local de ação intracelular. É o caso, por exemplo, da tiroxina, a que já nos referimos, e dos hormônios esteroides, como a aldosterona. Esses hormônios, de maneira geral, são transportados tanto no plasma sanguíneo como no citosol por ligação a moléculas proteicas ou lipoproteicas que formam um complexo hidrossolúvel. A aldosterona se liga a um receptor citoplasmático nas célulasalvo, uma proteína de 107 kD. O complexo aldosteronareceptor se dirige ao núcleo celular, onde se liga ao promotor de alguns genes. Essa ligação causa o recrutamento de maquinaria que ativa a ação hormonal. Tem sido demonstrado que essa ligação nuclear é específica, por meio do deslocamento da aldosterona (marcada com 3H) por outros esteroides que atuam em transporte de sódio e competem com a aldosterona, como a desoxicorticosterona (DOCA – um esteroide de ação semelhante à da aldosterona) e as espironolactonas (compostos que competem com a aldosterona), e, dessa maneira, impedem sua ação. Por outro lado, esteroides que não têm ação do tipo mineralocorticoide não deslocam a aldosterona de receptores nucleares. A formação de RNA mensageiro induz a síntese de proteínas específicas, responsáveis pela elevação do transporte de sódio. Existem três hipóteses relativas ao mecanismo da elevação do transporte de sódio. Em primeiro lugar, Edelman e Fimognari (1968) sugeriram a possibilidade do estímulo da síntese de enzimas do metabolismo energético, ocorrendo a elevação do transporte de sódio devido ao maior fornecimento de energia na forma de ATP. Outra possibilidade seria a síntese e/ou incorporação de canais iônicos na membrana apical, particularmente de células principais do ducto coletor renal; estes canais (designados ENaC, epithelial Na channels) são moléculas proteicas responsáveis pela elevação da permeabilidade da membrana luminal (ou apical) da célula epitelial ao sódio. Finalmente, há estímulo da atividade da Na+/K+ATPase, que pode ocorrer por elevação do teor de sódio na célula ou por estímulo da biossíntese deste transportador. Atualmente, sabese que a aldosterona pode atuar por vários mecanismos, alguns mais rápidos, outros em mais longo prazo. Entre os mecanismos que agem a curto prazo (minutos a horas), denominados não genômicos, estão a fosforilação reversível da subunidade catalítica da Na+/K+ATPase e a redistribuição subcelular e inserção na membrana celular, das bombas Na+/K+ATPase e H+ATPase, do trocador Na+/H+ e dos canais de Na+ e K+. Em mais longo prazo
(dias e semanas), ocorrem os efeitos genômicos, devidos a alterações da expressão gênica que regulam a biossíntese desses elementos (Bastl e Hayslett, 1992). Mecanismos de sinalização celular Hormônios hidrossolúveis, como vasopressina (ou hormônio antidiurético), epinefrina, paratormônio, insulina, glucagon e a maioria dos hormônios tróficos (ACTH, tireotrófico, foliculestimulante etc.), em sua maior parte polipeptídios, não penetram diretamente na célula para exercer sua ação, mas têm mecanismos comuns, pelos quais as célulasalvo são informadas de sua presença. Estes são designados mecanismos de sinalização celular, que estão discutidos em maior detalhe no Capítulo 3, Sinalização Celular. Esses sistemas são constituídos por um primeiro mensageiro (extracelular), por receptores deles (inseridos na membrana celular) e por um ou mais segundos mensageiros, como o AMP cíclico. Como exemplo, apresentaremos a seguir o sistema adenilatociclase/AMP cíclico, o primeiro a ser descoberto. O primeiro mensageiro, que é o hormônio em questão, interage na membrana celular da célulaalvo com um receptor específico para esse hormônio, exemplificado na Figura 1.7 pelo receptor betaadrenérgico. Esse receptor é uma proteína de 64 kD, inserida na membrana por meio de sete segmentos hidrofóbicos que, devido a essa característica, têm disposição transmembranal. A sua extremidade Cterminal, citoplasmática, ativa outra molécula incluída na membrana celular, a adenilatociclase. Essa ativação se dá por meio de uma proteína G (proteína que se liga a guanilnucleotídios). Na forma inativa, essa proteína está ligada ao difosfato de guanosina (GDP). Sua ativação se dá quando o hormônio se une ao receptor. Nessas condições, a proteína G perde imediatamente sua afinidade pelo GDP e se liga a uma molécula de trifosfato de guanosina (GTP). Em seguida, essa proteína se dissocia em duas subunidades, sendo a forma Gsα responsável pela ativação da adenilatociclase. Esta, por sua vez, catalisa a transformação de ATP em monofosfato de adenosina cíclico (cAMP), responsável pela ativação de uma série de processos intracelulares que, por fim, levarão à ação do hormônio. Esse nucleotídio cíclico, comum à via de sinalização intracelular de diversos hormônios hidrossolúveis, é, por essa razão, denominado segundo mensageiro. O cAMP formado nesse processo irá ativar uma proteinoquinase A, que, por sua vez, ativará os efetores do processo. Como exemplo, podemos citar: (1) a incorporação de vesículas (contendo canais de água em sua parede) à membrana apical da célula tubular renal, sensível ao hormônio antidiurético, e (2) a separação de moléculas de glicose do glicogênio na célula hepática ou muscular, por ação da epinefrina (Abramow et al., 1987). Um exemplo da ação de uma substância não hormonal sobre esse sistema, causando sua disfunção, é o da toxina da cólera, agente causador de modificação irreversível da proteína Gs. Sua ação implica formação exagerada de cAMP e ativação dos canais de cloreto da mucosa intestinal, levando a prolongada elevação da secreção de líquido por essa mucosa, provocando grave diarreia e consequente desidratação do organismo. Vários outros sistemas de sinalização foram descobertos mais recentemente, dentre os quais a cascata de fosfoinositídios é de grande importância. Outros sistemas relevantes incluem: o guanilato ciclase/monofosfato de guanosina cíclico (que atua no processo da visão e do peptídio atrial natriurético), o sistema das tirosinoquinases (ativadoras de processos de crescimento e da ação da insulina) e o íon cálcio (um dos mediadores mais onipresentes, de papel central na contração muscular). No Capítulo 3, esses sistemas são descritos em maiores detalhes.
Figura 1.7 ■ Componentes do sistema adenilatociclase e sua interação. A. Receptor betaadrenérgico e sua estrutura de sete hélices transmembrana. O hormônio se liga às unidades de oligossacarídio e ativa o receptor. Essa ativação corresponde a uma mudança conformacional das alças citoplasmáticas, particularmente da terceira a partir da extremidade Nterminal da molécula do receptor, interagindo então com a proteína G. A extremidade Cterminal é moduladora, e sua fosforilação inativa o complexo. B. Ativação da adenilatociclase por meio da proteína G, através de sua subunidade α. M, membrana celular. (Adaptada de Berg et al., 2002.)
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Introdução
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Propriedades estruturais da água Distribuição da água no organismo
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Compartimentos de distribuição da água no organismo Constituição iônica dos compartimentos do organismo Bibliografia
INTRODUÇÃO A água é o solvente biológico por excelência e, portanto, constitui a maior parte, em peso, de praticamente todas as estruturas biológicas, à exceção de estruturas esqueléticas. Assim, cerca de 45 a 75% do peso corporal humano são formados de água, dependendo da quantidade de gordura do indivíduo e de sua idade. Por conseguinte, indivíduos mais jovens e mais magros têm maior teor hídrico. Os demais componentes do organismo estão dissolvidos neste meio, ou então representam fases separadas, como as gorduras, que estão presentes em células especializadas sob forma de gotículas imiscíveis com a água celular, e como as próprias membranas celulares, que são compostas de lipídios e, portanto, também constituem uma fase insolúvel em água. A água é um componente muito particular do meio interno. E não apenas do ponto de vista quantitativo, mas também devido a várias de suas propriedades, que a tornam um meio fundamental para a manutenção da vida. É sabido que a vida se originou nos oceanos, dependendo essencialmente da presença de água na Terra. A constituição iônica atual das células é um reflexo da constituição dos oceanos primevos. Apesar de ser considerada a mais comum das moléculas que ocorrem em estado líquido, e realmente um paradigma de líquido, a água é o líquido mais anômalo que existe sob o ponto de vista químico. Tem, de longe, os pontos de fusão (do gelo) e de ebulição mais elevados em comparação com os de outros líquidos, como a amônia (NH3), o ácido fluorídrico (HF), o ácido clorídrico (HCl) e o ácido sulfídrico (H2S). Ela tem rigidez e densidade menores que as de outros líquidos, por exemplo, gases nobres em estado líquido, considerados líquidos ideais, que apresentam maior proximidade entre suas moléculas. Isso porque a água dispõe de uma estrutura relativamente aberta, com poucas (4 a 5) moléculas de água em volta de cada uma delas, e com pouca rigidez, por ausência de regularidade em sua estrutura. Aplicando pressão a este líquido, haverá fluxo de líquido, pois o movimento de moléculas não resiste ao estresse aplicado.
PROPRIEDADES ESTRUTURAIS DA ÁGUA A molécula de água é polarizada, ou seja, ela tem um momento de dipolo, pois parte da molécula é levemente positiva e parte, levemente negativa. Isso decorre da distribuição assimétrica de carga elétrica. O ângulo entre os dois átomos de hidrogênio é de 104,5°, de modo que estes dois átomos estão de um lado da molécula, dando a ela carga positiva, enquanto o átomo de oxigênio está do outro lado, fornecendo carga negativa. A polaridade da água permite a formação
de ligações de hidrogênio (hydrogen bonds) com outras moléculas hídricas e com outras moléculas vizinhas. A energia da ligação hidrogeniônica é de somente 5% da ligação covalente, por exemplo, da ligação HO da própria molécula de água. Apesar disso, determina de forma importante as interações e orientações de outras moléculas dissolvidas na água, bem como da própria água. Este líquido tem uma condutividade elétrica mensurável. Mesmo em gelo, tal condutividade é significante, o que levou à suposição da possibilidade de dissociação da água com liberação de íons H+. No entanto, estes íons H+ não estão livres em solução, mas formam íons mais complexos, por sua ligação a outras moléculas hídricas, constituindo íons hidroxônio e hidroxila. Ou seja: H2O + H2O ↔ H3O+ + OH– O íon H+ pode ligarse a moléculas de água diferentes em curto espaço de tempo, podendo haver, portanto, um movimento em saltos de íons H+ de uma molécula de água a outra. Esta é também uma maneira importante de movimento de ácido não só em meio aquoso, mas também ao longo de moléculas proteicas, que funcionariam como condutores elétricos para H+. Do mesmo modo, os íons H+ dissociados quando da dissolução de ácidos (como HCl em água) estariam na forma de H3O+ e não de H+.
DISTRIBUIÇÃO DA ÁGUA NO ORGANISMO A água, uma vez ingerida, atinge as regiões mais distantes do ponto de ingestão por meio de dois mecanismos: convecção e difusão. Na convecção, esse líquido se move em bloco, juntamente com os outros constituintes do sangue, impulsionado pela bomba cardíaca, isto é, há um movimento de volume. Em regiões mais periféricas do organismo, a água deve atravessar diferentes tipos de membranas. Incluemse aqui tanto aquelas que envolvem as células (formadas por bicamadas lipídicas), como as paredes de capilares (constituídas de uma membrana basal e endotélio capilar) e as epiteliais (que são membranas compostas por camadas unicelulares de células polarizadas). A estrutura básica das membranas celulares é a bicamada lipídica. Constituise de duas camadas de moléculas lipídicas apostas, com sua cabeça hidrofílica (a molécula de glicerol) dirigida para fora, isto é, para o meio aquoso, e sua cauda, formada por longas cadeias hidrofóbicas (ácidos graxos), direcionada para o centro da bicamada (Figura 2.1). Moléculas proteicas, correspondentes a canais para a passagem de íons ou transportadores de membrana, estendemse por toda a espessura da membrana; outras dessas moléculas, por exemplo, enzimas, podem estar parcialmente inseridas ou apostas externamente à bicamada lipídica (mais detalhes a respeito desse assunto estão no Capítulo 7, Membrana Celular). De maneira geral, em todos os tipos de membranas estudados não foi detectado nenhum movimento de transporte ativo da água, isto é, diretamente ligado ao metabolismo celular. Ao nível dos capilares, ocorrem ultrafiltração e difusão. A ultrafiltração é um processo que permite passagem de água e solutos de tamanho molecular pequeno por estruturas microscópicas, descontinuidades, canais ou poros; a água e os solutos são movidos por diferença de pressão hidrostática entre a luz capilar e o espaço entre as células, o interstício tecidual. Estes poros não deixam passar macromoléculas (proteínas) nem elementos figurados do sangue (glóbulos brancos e vermelhos e plaquetas). Já ao nível das células, a água se move por difusão, tanto através da bicamada lipídica como através de poros bem menores que os dos capilares, os canais de água (aquaporinas).
Figura 2.1 ■ Esquema da membrana celular: bicamada lipídica e molécula proteica.
Os mecanismos mais importantes responsáveis pela distribuição da água nos vários setores do organismo são: difusão, osmose e/ou pressão hidrostática; esses mecanismos são capazes de mover água através de membranas de qualquer espécie. A difusão depende da diferença de concentração de uma substância entre dois pontos de uma solução ou através de uma membrana; nesse tipo de mecanismo, ocorre movimento da substância do local onde sua concentração é maior para o local em que ela é menor. Osmose é um movimento particular de difusão para a água, que depende de uma diferença de osmolalidade entre dois compartimentos separados por uma membrana. Osmolalidade (concentração de solutos por kg de água) consiste no somatório das concentrações de todas as moléculas e íons independentes que existe em uma solução aquosa. A osmose é também um movimento de água do local de sua maior concentração para o de menor, usandose o termo osmolalidade simplesmente porque a água é enorme maioria em qualquer solução aquosa. A concentração de NaCl em uma solução como o plasma sanguíneo é de cerca de 0,15 mol por litro, enquanto a de água de aproximadamente 55,5 moles por litro (1.000 g divididos pelo peso molecular da água, 18). O movimento de água devido à osmose pode ser contrabalançado por uma pressão hidrostática. A pressão hidrostática que contrabalança determinada osmolalidade através de uma membrana é chamada de pressão osmótica (letra grega pi, π), dada pela equação de Van t’Hoff:
em que R é a constante dos gases; T, a temperatura absoluta; e ΣC, o somatório das concentrações das substâncias (moléculas e íons independentes) dissolvidas na solução, somatório esse denominado osmolalidade. A equação 2.1 é válida para uma situação em que a(s) substância(s) dissolvida(s) não possa(m) atravessar a membrana, isto é, em que a membrana seja impermeável a ela(s), o que é chamado de membrana semipermeável. Como foi dito, a diferença de osmolalidade entre duas soluções corresponde a uma diferença de concentração de água entre elas. O movimento hídrico se dá, então, como no caso dos solutos, de um compartimento de concentração de água maior para outro de concentração de água menor, ou de um compartimento de osmolalidade ou pressão osmótica menor para outro com osmolalidade ou pressão osmótica maior. O balanço destas forças através da parede dos capilares sanguíneos é responsável pela nutrição tecidual. As forças descritas são denominadas forças de Starling, famoso fisiologista inglês do século XIX; elas mantêm o equilíbrio do líquido que passa pelos capilares com o líquido que se encontra fora dos capilares e entre as células (líquido intersticial). Este balanço depende do equilíbrio entre a pressão hidrostática interna aos capilares (que impele o líquido para fora destes) e a força osmótica das moléculas que constituem o líquido capilar (que impulsiona o líquido de volta aos capilares). Do lado arterial dos capilares, predomina a pressão hidrostática capilar, levando à ultrafiltração de líquido. Do lado venoso, com a pressão hidrostática capilar já mais baixa, predomina a pressão osmótica, conduzindo parte do líquido de volta para o capilar. Com isso, há trocas de líquido entre capilar e interstício, que permitem a nutrição tecidual. Dois
aspectos adicionais devem ser discutidos aqui. Em primeiro lugar, boa parte das trocas entre capilares e interstício é decorrente de substâncias sem movimento de líquido, difusão de nutrientes dos capilares ao interstício e difusão de produtos do metabolismo celular do interstício aos capilares. A pressão osmótica efetiva é característica de uma solução e das substâncias nela dissolvidas, bem como da membrana que separa as soluções. No caso da parede capilar, sua permeabilidade a íons e pequenas moléculas (glicose, aminoácidos) é muito alta, de modo a impedir que esta parede distinga entre estas substâncias e a própria água. Só as moléculas que não podem passar pela parede capilar exercem pressão osmótica, e são principalmente as proteínas do plasma, como a albumina e a globulina. A pressão osmótica devida a elas é chamada de pressão coloidosmótica ou oncótica; é ela que determina uma das forças de Starling, aquela que retém líquido dentro dos capilares. Por isso, a equação de Van t’Hoff precisa ser ampliada para a situação mais complexa da maioria das membranas biológicas, incluindose o termo σ (sigma), que corresponde ao coeficiente de reflexão. Ou seja:
O coeficiente de reflexão varia de 0 a 1. O coeficiente 0 corresponde à situação em que existe alta permeabilidade da membrana em relação ao soluto, isto é, apesar de haver determinada concentração de soluto, a pressão osmótica é 0, ou seja, a membrana não distingue entre a água e o soluto. O coeficiente de reflexão 1 corresponde à situação em que ocorre impermeabilidade total da membrana ao soluto, situação na qual a pressão osmótica é máxima. No caso da parede do capilar, o coeficiente de reflexão é próximo a 1 para proteínas do plasma e próximo a zero para íons como Na+ e Cl–. Uma solução é chamada de solução hipertônica quando apresenta pressão osmótica efetiva maior que aquela de uma célula viva, por exemplo, o glóbulo vermelho; a célula imersa nessa solução sofre retração (ou diminuição de volume). Uma solução hipotônica tem pressão osmótica efetiva menor que a célula; a célula imersa nessa solução incha (ou aumenta de volume). Os aspectos biofísicos a respeito dessa matéria estão no Capítulo 8, Difusão, Permeabilidade e Osmose.
COMPARTIMENTOS DE DISTRIBUIÇÃO DA ÁGUA NO ORGANISMO A água está subdividida em uma série de compartimentos, em geral separados por membranas celulares ou epiteliais que são, em grande parte, responsáveis pelas diferentes características dos compartimentos que limitam. A Figura 2.2 mostra, esquematicamente, a magnitude dos principais compartimentos onde se distribui esse líquido no organismo humano. A determinação dos volumes e da constituição desses compartimentos tem considerável importância, tanto do ponto de vista fisiológico como do patológico. Por exemplo, o aumento do volume extracelular levará a situações como hipertensão (subida da pressão hidrostática do sangue) e edema (elevação do volume de líquido intersticial).
Figura 2.2 ■ Representação esquemática dos principais compartimentos do organismo, indicando seu volume relativo.
▸ Determinação do volume dos compartimentos O método mais utilizado para esta finalidade é o método da diluição, que corresponde à medida dos espaços de distribuição de certas substâncias. De maneira geral, um volume pode ser medido a partir da definição de concentração, isto é: Concentração = massa/volume, C = M/V e daí:
em que: V = volume do compartimento a ser medido M = massa de uma substância que foi adicionada a este volume C = concentração resultante desta substância após sua distribuição homogênea pelo volume a ser medido. É claro que este método se baseia, essencialmente, no uso de substâncias que se distribuam pelo compartimento que se deseja avaliar, e só nele. Como exemplo, vamos descrever a medida do volume do sangue contido no espaço vascular, denominado volemia, delimitado pela parede dos vasos sanguíneos; esse espaço corresponde ao volume do plasma sanguíneo (parte aquosa do sangue, subtraído o volume dos elementos figurados do sangue, os glóbulos vermelhos e brancos, que fazem parte do volume intracelular). No caso da medida do volume plasmático, devemos utilizar uma substância que não possa atravessar os limites deste compartimento, isto é, as paredes dos capilares sanguíneos. Para preencher estas condições, a substância em questão deverá ter peso molecular bastante grande, a fim de não ser perdida através dos poros dos capilares, que têm um diâmetro equivalente de cerca de 40 Å em capilares musculares e por volta de 100 Å em capilares do glomérulo renal. As substâncias que têm sido utilizadas são: (1) albuminas plasmáticas (macromoléculas de peso molecular da ordem de 66.000) marcadas com 131I, um átomo radioativo (RISA, radioiodosoroalbumina) ou (2) azul de Evans (T 1824), um corante que se liga às albuminas plasmáticas e, portanto, se comporta como macromolécula. A determinação da concentração destas substâncias não apresenta problemas. Porém, devese levar em conta a possibilidade de perda lenta das substâncias do compartimento, por certo vazamento através da parede capilar, e mesmo por destruição das substâncias ou desacoplamento do marcador (131I ou azul de Evans). A perda das substâncias, de maneira geral, ocorre de modo exponencial. Assim, inicialmente, injetamos neste espaço conhecida quantidade da substância escolhida (ou seja, em uma
veia) e esperamos algum tempo para haver distribuição homogênea dela no líquido deste compartimento. A seguir, são retiradas várias amostras de sangue, em um período de cerca de 1 h. Projetando, em escala logarítmica, os valores de concentração da substância obtidos nas diferentes amostras de sangue contra o tempo de coleta da amostra após a injeção, é possível extrapolar a curva obtida de volta ao tempo zero, quando se tem presente no compartimento a totalidade da substância injetada e, portanto, uma concentração mais perfeitamente representativa do volume a ser estimado. Por outro lado, quando as perdas desta substância forem pequenas e não se necessitar de grande precisão nas medidas, podese fazer somente uma determinação da concentração sanguínea desta substância, após um período de 10 a 20 min, necessário para sua completa distribuição pelo compartimento. Podese também medir o volume do sangue total usandose glóbulos vermelhos marcados com 32P ou 51Cr e daí calcular o volume de plasma, conhecendo a proporção de glóbulos em uma amostra de sangue (ou o hematócrito). Este método dá valores um pouco menores que o anterior, devido à distribuição diferente de glóbulos e plasma nos pequenos vasos e capilares. Os glóbulos têm distribuição axial nos vasos, e a camada estacionária de plasma (sem glóbulos), situada junto às paredes dos vasos, apresenta praticamente a mesma espessura nos grandes e pequenos vasos; em consequência, no sangue em pequenos vasos se encontra maior proporção de plasma que no sangue em grandes vasos em que são coletadas as amostras. A água total do organismo, que corresponde à soma hídrica de todos os compartimentos, pode ser medida por metodologia semelhante. Usamse, neste caso, substâncias de peso molecular pequeno que se espalham por todo o organismo, isto é, que, uma vez injetadas, deixam o espaço vascular, distribuemse pelo líquido intersticial e penetram nas células. Uma das substâncias utilizadas há mais tempo para esta finalidade é a antipirina. Mais recentemente, deuse preferência ao uso de água marcada com isótopos, como o D2O (à base de deutério, D) ou HTO (com trítio, T), que têm uma cinética de distribuição muito semelhante à da água comum. Foi visto que esta proporção hídrica corresponde a 45 a 75% do peso corporal. A considerável variabilidade desta proporção está ligada essencialmente ao diferente teor de gordura de determinado organismo ou tecido, uma parcela praticamente isenta de água. É costume, pois, com frequência expressar concentrações de água e outros componentes de tecidos em termos de peso magro (lean body mass ou lean tissue mass), após extração dos lipídios. Com base no peso corporal de um organismo vivo e admitindose que a proporção média de água no peso magro é de 0,73 (73%) desse valor, podese calcular seu peso magro pela seguinte relação:
O volume extracelular corresponde à água do organismo que se encontra fora das células, a cerca de 20% do peso corporal. Inclui o líquido intersticial e a água plasmática. O líquido intersticial banha todas as células do organismo, correspondendo ao chamado milieu intérieur (meio interno) de Claude Bernard, isto é, ao meio em que estas células vivem. O compartimento extracelular se compõe de dois outros: o vascular, contendo a água plasmática, cuja medida já foi discutida, com um volume de 4 a 5% do peso corporal, e o intersticial, correspondendo a 15 a 16% deste peso. O compartimento extracelular pode ser medido injetandose em uma veia alguma substância que atravesse a parede capilar, mas que não possa penetrar na célula. Várias substâncias são usadas com esta finalidade, porém não levam a volumes iguais quando se aplica o método da diluição. Este fato se deve às suas características particulares, pois são utilizadas desde substâncias que penetram nas células em pequena proporção até substâncias que, por terem diâmetro molecular considerável, não se distribuem por todos os recantos do extracelular. As usadas com mais frequência, na ordem da magnitude do volume medido, ou seja, de seu volume de distribuição, são as seguintes: 24Na > 36Cl > SO4 > tiossulfato > manitol > sacarose > inulina. Em tecidos isolados in vitro, são muito empregados manitol, sacarose e inulina marcados com 14C. Para organismos in vivo, estas substâncias são perdidas bem rapidamente por filtração glomerular, preferindose utilizar substâncias reabsorvidas pelos túbulos renais, como o SO4–2 e Cl– marcados, apesar de penetrarem, ainda que em pequena proporção, no interior das células. O volume do líquido intersticial é medido por diferença entre volumes extracelular e vascular (plasmático). Pertencem ainda ao espaço extracelular os chamados compartimentos transcelulares, que estão em cavidades delimitadas por epitélios, como as mucosas digestivas, ou por mesotélio, como os que revestem as cavidades pleural e peritoneal. O volume destes líquidos é pequeno, correspondendo a 1 a 3% do peso corporal; sua constituição, de maneira geral, assemelhase à do líquido extracelular, modificado pela ação das camadas celulares que os delimitam.
O volume do líquido intracelular corresponde a 30 a 40% do peso corporal, constituindo assim o maior dos compartimentos do organismo. Não é um compartimento homogêneo, pois, de um lado, corresponde à soma de grande número de células que podem variar de constituição de órgão para órgão ou de tecido para tecido, e, de outro lado, uma dada célula é formada de grande variedade de estruturas subcelulares, de ultraestrutura e constituição bastante diferentes. Assim, este compartimento é, na realidade, uma abstração, correspondendo à média de grande número de estruturas bastante heterogêneas. A sua magnitude pode ser determinada pela diferença entre água total e volume extracelular, por meio da metodologia anteriormente descrita. O Quadro 2.1 mostra o volume relativo dos subcompartimentos de uma célula representativa de mamífero, a célula hepática, indicando que quase a metade de seu volume é composta de compartimentos subcelulares delimitados por membranas (Alberts et al., 2002). Nestas células, o maior volume após o citosol é o de mitocôndria, das quais há cerca de 1.700 por célula. No Quadro 2.1, há também a distribuição das membranas da mesma célula, em termos de superfície. É claro que estas proporções variam em células de tecidos diferentes. Por exemplo, em células exócrinas de pâncreas, capazes de secretar volumes consideráveis de líquido contendo enzimas e sais, a área de membrana predominante é a do retículo endoplasmático rugoso, que corresponde a 60% da área total de membrana.
▸ Regulação do volume celular O volume celular depende não só do conteúdo de água, sais, proteínas e outras substâncias intracelulares, como também do equilíbrio osmótico entre a célula e o meio extracelular. Se colocarmos a célula em meio hipotônico, ela inchará, por entrada de água, e poderá mesmo romperse caso a hipotonicidade externa seja exagerada (p. ex., água destilada). Em meio hipertônico, a célula reduzirá seu volume. No entanto, mantendoa por algum tempo nestes meios modificados, ela retornará gradativamente ao seu volume original, o que é denominado, no caso de soluções hipotônicas, redução regulatória de volume (RRV). Isto é claramente demonstrado na Figura 2.3, que mostra ainda que, continuando em meio hipotônico, a célula mantém seu volume até o retorno a meio extracelular normal. Com a volta à situação normal, a variação de volume se inverte, ou seja, a célula sente a solução normal como hipertônica, reduzindo seu volume, e depois volta gradativamente ao seu volume original. Estudos com inibidores de transporte iônico mostraram que em meio hipotônico vários mecanismos de transporte são ativados, de modo a transportar solutos para fora da célula. Este é o caso do cotransportador K+/Cl–, que elimina KCl da célula reduzindo a osmolalidade dela; desta forma, permite a saída de água, reduzindo o volume celular. Mecanismos em direção oposta são ativados quando se retorna ao meio extracelular normal (que consiste essencialmente em NaCl). Quando a célula é colocada em meio hipertônico, ocorrem saída de água e redução rápida de volume, seguida de entrada de água com retorno ao volume normal (ARV, aumento regulatório de volume). Neste caso, o movimento de água (e sal) se dá em direção ao interior da célula. Para isso, são ativados mecanismos como o cotransporte Na+:K+:2Cl–, que transporta NaCl e KCl para dentro da célula. Assim, percebe se que as células têm mecanismos de detecção de modificações de seu volume, bem como mecanismos capazes de manter esse volume na faixa normal. Entretanto, no caso do meio hipertônico, nem sempre acontece uma regulação de volume perfeita, sendo a variação de volume muito retardada ou inexistente em alguns tipos celulares.
Quadro 2.1 ■ Volumes relativos de compartimentos intracelulares e áreas relativas de membranas em célula hepática de mamífero. Compartimento (estrutura)
Volume total (%)
Membrana total (%)
Membrana plasmática
–
2
Citosol
54
–
Mitocôndria
22
–
Membrana externa
–
7
Membrana interna
–
32
9
35
RE rugoso
RE liso e Golgi
6
23
Núcleo
6
0,2
Peroxissomos
1
0,4
Lisossomos
1
0,4
Endossomos
1
0,4
RE, retículo endoplasmático. Fonte: Alberts et al., 2002. Esses dados permitem deduzir o que acontecerá quando são infundidas certas soluções na veia de um indivíduo normal. Injetandose água destilada, o que pode acarretar hemólise (ruptura das hemácias) se isso for realizado de maneira muito rápida, ela se distribuirá tanto no meio extra como no intracelular, já que as membranas celulares e a parede capilar são permeáveis à água. No caso da infusão de solução de NaCl (solução fisiológica), esta permanecerá no líquido extracelular, causando expansão de seu volume, já que o sódio é, em sua maioria, mantido fora das células. Por outro lado, infundindose KCl, desde que não ultrapasse uma concentração sanguínea da ordem de 8 mM, tóxica, deverá haver principalmente aumento do líquido intracelular, apesar de ocorrer grande excreção renal deste sal. Se infundirmos uma solução que contém proteínas ou então sangue total, estas soluções permanecerão, em boa parte, dentro dos vasos sanguíneos, já que seu soluto não poderá sair dos vasos, constituindo o melhor meio de recuperar a situação fisiológica após uma hemorragia (perda de sangue).
Figura 2.3 ■ Regulação do volume celular. A. Quando a célula é colocada em meio hipotônico, aumenta rapidamente de volume e, em seguida, volta, mais lentamente, ao volume normal (redução regulatória de volume); posteriormente, quando ela retorna à solução isotônica, as variações de volume se invertem. B. Quando a célula é colocada em meio hipertônico, inicialmente sofre redução rápida de volume e, em seguida, apresenta aumento regulatório de volume. Há células em que este aumento não é observado.
CONSTITUIÇÃO IÔNICA DOS COMPARTIMENTOS DO ORGANISMO Os líquidos que constituem os diferentes compartimentos do organismo se caracterizam por diferentes concentrações iônicas. Neste ponto, é apropriado falar de algumas das medidas de concentração mais usadas. Vamos partir da definição do conceito de concentração: é a relação entre quantidade de soluto por volume de solvente, que no caso biológico é a água. Concentração = massa/volume Essa relação pode ser dada como gramas por litro ou gramas por 100 mℓ. A molalidade é uma medida mais ligada à função da molécula dissolvida e é definida como o número de moléculasgrama do soluto por quilograma de água. Molécula grama (mol) consiste no peso molecular de uma substância em gramas. Por exemplo, o cloreto de sódio, NaCl, tem peso molecular de 58,44 (a soma do peso atômico do Na+ = 23,0 e do Cl– = 35,44). Uma solução 1 M (molar)
de NaCl apresenta então 58,44 gramas por litro. Um mol de qualquer substância dispõe sempre do mesmo número de moléculas (ou átomos), o número de Avogadro (6,0 × 1023), e pesa mais ou menos somente em função de seu peso molecular e não do número de moléculas presente. O sal NaCl é composto por dois íons, Na+ e Cl–, e o peso atômico de Na+, em gramas (23,0 gramas), é chamado de equivalente. Uma solução 1 M de NaCl contém então um equivalente de Na+ (1 Eq) e outro de Cl–. A concentração de Na+ do plasma sanguíneo é de 140 miliequivalentes por litro (140 mEq/ℓ). No caso do cloreto de cálcio, CaCl2, um mol deste sal contém um equivalente de Ca2+ (bivalente) e dois de Cl– (monovalente); assim, um mol de CaCl2 é composto de três equivalentes iônicos, um de Ca2+ e dois de Cl–. A composição do meio intracelular é, em essência, diferente daquela do meio extracelular. Esta diferença pode ser verificada na Figura 2.4, em que são comparados os líquidos plasmático e intracelular. Notase que o líquido intracelular é rico em potássio (cerca 150 mEq/ ℓ ) e pobre em sódio e cloreto. Por outro lado, o líquido extracelular se constitui predominantemente de Na+ (140 mEq/ℓ) e Cl– (100 mEq/ℓ), contendo uma concentração baixa de potássio (4 mEq/ℓ). O segundo ânion do líquido extracelular em importância é o bicarbonato, presente na concentração de cerca de 25 mEq/ ℓ . O líquido intersticial difere do plasmático praticamente pela presença de concentração relativamente elevada de proteínas no plasma (cerca de 70 g por litro ou 16 mEq/ℓ), além de pequenas diferenças de concentrações iônicas devidas ao efeito Donnan através das paredes dos capilares (relacionadas com a presença de proteínas apenas do lado plasmático). Desta maneira, haverá concentrações cerca de 5% mais elevadas de ânions difusíveis do lado intersticial, com nível baixo de proteínas, enquanto os cátions difusíveis terão concentração mais elevada, na mesma proporção, do lado plasmático (para maiores detalhes, consulte o Capítulo 9, Gênese do Potencial de Membrana, Excitabilidade Celular e Potencial de Ação). Quando se trata da composição iônica dos compartimentos do organismo, dois problemas fundamentais devem ser considerados. O primeiro diz respeito aos métodos utilizados para a medida destas concentrações, e o segundo, relacionado com o primeiro, é relativo à atividade dos íons presentes nos vários compartimentos. Como o meio extracelular é uma solução relativamente diluída e de acesso bastante fácil, já que amostras de plasma são obtidas diretamente por punção venosa e amostras de líquido intersticial podem ser obtidas pela coleta de linfa em linfáticos de calibre maior ou menor (o sistema linfático é uma rede de delicados vasos que drenam o líquido intersticial), estes problemas dizem respeito, principalmente, às características do meio intracelular. Para determinar as concentrações iônicas em dado tipo de célula, será necessário analisar amostras de tecido que, além de conterem as células em questão, ainda incluem uma determinada proporção de líquido extracelular, isto é, de líquido intersticial que se encontra entre as células deste tecido. Na análise química deste tecido, será preciso levar em conta esta contaminação, já que serão medidos também os íons deste espaço. A fim de avaliar esta contaminação, necessitamos conhecer a massa de dado íon encontrada no interstício de uma amostra de tecido. Para isso, precisamos conhecer o volume de líquido extracelular presente na amostra e a concentração do íon neste volume. O volume de líquido extracelular será dado por:
Figura 2.4 ■ Composição iônica do meio interno de mamífero: plasma (representando o meio extracelular) e célula. Ác. org., ácido orgânico.
em que inulina, no caso, foi usada para avaliação do espaço extracelular. Para tanto, será necessário determinar a massa de inulina contida na amostra, bem como a concentração no líquido intersticial, que será igual à do plasma em experimentos in vivo, ou do banho em que foi incubada a amostra em experimentos in vitro. A quantidade de íon X proveniente do extracelular será dada então por:
Por outro lado, a quantidade de íon na célula será dada por:
em que Xt é a quantidade total do íon determinada quimicamente na amostra de tecido. De (2.6) e (2.7), obtémse facilmente a concentração do íon na célula, representada por [Xc]:
em que Vt = volume total da amostra.
Notase que os íons com concentração elevada na célula e baixa no líquido intersticial (como o potássio) serão determinados com maior precisão que aqueles com concentrações intracelular baixa e intersticial alta (como Na+ e Cl–), já que, neste caso, os erros na avaliação da contaminação extracelular são mais importantes, reduzindose obviamente aqueles quando a concentração extracelular for baixa. Essa discussão se refere à determinação química das concentrações intracelulares de íons. É possível, no entanto, determinar as atividades (concentração efetiva do íon na solução do ponto de vista termodinâmico) intracelulares por meio de microeletrodos sensíveis a determinados íons. Estes microeletrodos podem ser construídos de vidro, com propriedades de permeabilidade específica a determinado íon (como H+, Na+, K+), ou podem conter em sua ponta quantidade pequena de resina de troca iônica íonespecífica. Há resinas específicas para um grande número de íons, incluindo Na+, K+, H+, Cl–, HCO3– etc. Poderseiam esperar valores de atividade, medidos por meio destes eletrodos, diferentes da concentração estabelecida quimicamente, quando a água celular não estiver toda disponível como solvente, ou quando os íons em questão não tiverem propriedades semelhantes às encontradas em solução livre e diluída. Já a partir de concentrações da ordem de 0,1 M para cima, começa a haver interações entre os íons em solução que alteram suas características, reduzindo sua liberdade, o que equivale a uma atividade inferior à sua concentração. No meio intracelular, podem existir interações adicionais com as macromoléculas (proteínas) aí presentes, ou seja, poderia haver ligação mais ou menos firme da água ou dos íons com cargas elétricas destas macromoléculas. O grau destas interações tem sido objeto de considerável controvérsia, existindo, de um lado, os pesquisadores partidários de uma situação intracelular semelhante às condições de solução livre, em que se baseia grande parte da teoria iônica dos fenômenos de membrana (Hodgkin, 1951). Segundo esta teoria, os fenômenos elétricos observados em membranas de células excitáveis ou não excitáveis dependem de movimentos iônicos através da membrana celular, baseandose na capacidade de estes íons se moverem com considerável liberdade de ambos os lados desta membrana. Por outro lado, outro grupo de pesquisadores é favorável à ideia de ligação bastante rígida dos íons às macromoléculas intracelulares, explicando inclusive a distribuição característica de íons entre compartimentos intra e extracelulares desta maneira (Ling, 1965). Estudos mais recentes com técnicas de ressonância magnética (RM), condutividade iônica e medidas de coeficiente de difusão no meio intracelular mostraram que a maior parte do potássio intracelular se comporta, do ponto de vista de sua atividade, como se estivesse em solução livre; seu coeficiente de difusão intracelular é cerca de metade daquele em solução, o que pode estar ligado ao grande número de “obstáculos” intracelulares, como mitocôndria, vesículas subcelulares e vários tipos de macromoléculas (Edzes e Berendsen, 1975). De maneira geral, íons monovalentes apresentam comportamento semelhante ao potássio. O sódio, no entanto, mostra na célula atividade 20 a 50% inferior àquela em solução de concentração igual. Já íons bivalentes, como o cálcio, têm mobilidade acentuadamente menor no meio intracelular, sendo seu coeficiente de difusão, em músculo de anfíbio e axônio gigante de lula, 50 vezes menor que o observado em solução aquosa; provavelmente, essa diferença se deve a seu sequestramento pelo retículo endoplasmático, uma estrutura subcelular membranosa tubular que transporta íons cálcio para seu interior. A concentração intracelular de cálcio é muito mais baixa (100 nanomolar, 100 × 10–9 M) que a extracelular (1 a 2 mM), permitindo que este íon funcione como mensageiro da sinalização celular. Do ponto de vista da heterogeneidade de distribuição de íons no meio intracelular, demonstrouse que o nível de cálcio é consideravelmente mais elevado (da ordem de 20% maior) na região do aparelho de Golgi que no citoplasma e no núcleo (Chandra et al., 1991). Por outro lado, o cálcio nuclear de uma maneira geral não é diferente do citoplasmático, o que também ocorre com os íons Na+ e K+. Somente quando ocorre sobrecarga celular por cálcio há limitação da entrada deste íon no núcleo (AlMohanna et al., 1994). É bem conhecido que mitocôndrias apresentam pH mais alcalino que o citoplasma, que tem pH da ordem de 6,9 a 7 em células musculares (que podem produzir ácido láctico em seu metabolismo) e de 7,2 a 7,4 em células epiteliais (que muitas vezes transportam H+ para o exterior, por exemplo, no caso das células da mucosa gástrica). Em mitocôndria, o pH alcalino é devido à extrusão de íons H+ através da sua membrana interna. Esta extrusão é consequência da fosforilação oxidativa mitocondrial. O gradiente de íons H+ (criado pelo metabolismo mitocondrial por meio da extrusão destes íons do interior da matriz mitocondrial pela cadeia de citocromos) é o responsável pela criação do gradiente eletroquímico que irá gerar ATP pelas H+ATPases mitocondriais. Entretanto, a concentração iônica celular não é necessariamente constante com o tempo no caso de todos os íons. Em tecido muscular, bem como em outros tecidosalvo de ação nervosa ou hormonal, a concentração de cálcio varia amplamente, funcionando como mensageiro da ação nervosa ou humoral. O mesmo acontece com a concentração celular de sódio em nervo e músculo; ela se eleva transitoriamente com a estimulação nervosa, devido ao aumento da permeabilidade da membrana celular a este íon.
Além das variações da atividade intracelular de cálcio que descrevemos, ocorrem oscilações ou ondas nesta atividade em grande número de células, como as musculares cardíacas, as da musculatura lisa de vasos e as secretoras e epiteliais (Berridge, 1990). Estas oscilações podem ser bastante regulares e percorrer as células em um sentido constante, sendo inicialmente desencadeadas por agentes externos, como vasopressina ou acetilcolina, mas sua manutenção intracelular depende de trifosfato de inositol (IP3), que faz parte de um dos sistemas sinalizadores intracelulares, como será visto no Capítulo 3, Sinalização Celular. Estas ondas de cálcio podem também depender do próprio nível intracelular de cálcio (ondas de cálcio dependentes de cálcio) (Blatter e Wier, 1992). Tais ondas têm importante papel na excitabilidade celular e na regulação de processos secretórios. Em conclusão, podese dizer, com bastante confiança, que a distribuição iônica característica dos seres vivos não é devida à ligação específica a macromoléculas, mas deve ser causada por fenômenos de transporte ao nível da membrana celular, bem como em membranas de estruturas subcelulares. Por outro lado, os íons intracelulares não deixam de sofrer certa ação de seu meio, embora esta ação não seja capaz de alterar decisivamente suas características físicoquímicas.
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Unicelularidade/multicelularidade e homeostase
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Comunicação intercelular | Células “conversando” com células
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Receptores de membrana
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Receptores intracelulares Modulação de sinal Finalização de sinal
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Bibliografia
UNICELULARIDADE/MULTICELULARIDADE E HOMEOSTASE A vida na Terra é cercada de mistérios que vêm motivando descobertas desde os primórdios das civilizações. O próprio aparecimento de vida em nosso planeta, provavelmente, seja o maior mistério de todos. Questões do tipo quando e, principalmente, como ela surgiu permanecem ainda cobertas de dúvidas e especulações. Neste cenário, a ciência tenta retroceder ao máximo, usando muitas vezes ferramentas sofisticadas, como a análise comparativa de sequências de aminoácidos em proteínas de diferentes grupos, para tentar traçar perfis evolutivos compatíveis com o que podemos ter nos dias atuais. Hoje conseguimos, pelo menos em teoria, vislumbrar o mundo imediatamente antes do aparecimento da primeira célula. Nele, moléculas com capacidade replicativa, provavelmente RNA, já ensaiavam os primeiros passos do que denominaríamos vida em uma distância de aproximadamente 3,8 bilhões de anos. Este então chamado mundo do RNA perdurou por cerca de 200 milhões de anos, quando provavelmente apareceram as primeiras unidades de vida separadas por membranas e, portanto, mantendo um meio intracelular próprio, o que viríamos a conhecer por célula. Neste ponto, a vida recémsurgida tinha grande desafio: perceber variações do meio externo e promover ajustes internos, de modo a adaptarse às novas condições ambientais. Percepção, hierarquização das informações, integração e ajuste homeostático eram exercidos pela mesma entidade. O agrupamento de células, fazendo com que a vida saísse da situação de mono para a de pluricelularidade, apresentou desafios de tão grande complexidade quanto os que fizeram moléculas comuns tornaremse tão complexas como os ácidos ribonucleicos, capazes de se multiplicarem. O agrupamento de células em um novo organismo exigia que essas células pudessem comunicarse entre si, a fim de que os ajustes homeostáticos ocorressem de modo integrado, conduzindo o organismo em um único sentido de resposta. A sinalização inter e intracelular foi a base que permitiu às diferentes células de um mesmo organismo comunicarem se, integrando assim funções e coordenando eventos.
COMUNICAÇÃO INTERCELULAR | CÉLULAS “CONVERSANDO” COM CÉLULAS Como os seres unicelulares, certamente os primeiros a comporem o cenário biológico da Terra primitiva, agregaram se em direção a uma maior complexidade? Evidentemente, relações harmônicas cooperativas trouxeram grandes benefícios às células anteriormente isoladas, como, por exemplo, economia de energia nos ajustes osmóticos, na busca de alimentos etc. Provavelmente, a união de
células com características distintas possibilitou, no início, divisão de tarefas para o bem comum, dando a estas “uniões” maior capacidade adaptativa. Porém, estas “uniões” de diferentes células necessitariam coordenar funções. Sem esta coordenação, seria totalmente impossível sincronizar tarefas, e a evolução teria fatalmente atingido no máximo seres formados por poucas células, pouco diferenciadas, que continuariam se dividindo independentemente e se agregando ou não, dependendo de vários fatores ambientais. Para que essa coordenação se efetivasse, foi necessária a especialização de (1) células para percepção do meio ambiente (receptores sensoriais), (2) centro(s) integrador(es) dessas informações, onde a hierarquização e coordenação central (sistema nervoso) fossem realizadas, e (3) efetuadores de respostas de ajuste homeostático (sistemas muscular, exócrino e endócrino). Adicionalmente, para que essas funções fossem eficientemente realizadas, surgiram moléculas de sinalização entre as células e, nas membranas celulares, apareceram moléculas capazes de seletivamente perceberem um desses sinais químicos e passarem essa informação para dentro das células. Uma das transições iniciais de organismos unicelulares para pluricelulares foi a evolução de uma única molécula de superfície celular, essencial para a interação de células vizinhas. Neste sentido, o aparecimento de estruturas de ligação e, principalmente, de comunicação entre as diferentes células deste “organismo primitivo” foi decisivo para o sucesso e a diversificação da vida. Entre estas estruturas, tiveram grande importância as junções comunicantes (gap). Além desses canais de comunicação entre células adjacentes, a conversa entre duas células pode ser estabelecida por moléculas presas às membranas de ambas as células, a sinalização dependendo de contato entre essas moléculas. E, finalmente, por mensageiros extracelulares produzidos por uma célula, que vão atuar em célulasalvo que os possam reconhecer e que, para tanto, têm moléculas de superfície ou intracelulares (os receptores), aos quais esses sinalizadores se ligam especificamente (Figura 3.1).
Figura 3.1 ■ As principais estratégias de comunicação entre células se dão por: (A) mensageiros intercelulares: o mensageiro é secretado por uma célula e vai atuar em células que o reconheçam. Essas células são denominadas célulasalvo e o reconhecimento é feito por meio de receptores específicos para os mensageiros; (B) comunicação por junções comunicantes: são canais nas membranas de duas células adjacentes, que permitem a passagem de pequenas moléculas, de maneira não seletiva; e (C) comunicação por contato: estabelecese entre proteínas de células adjacentes ou entre proteínas celulares e proteínas da matriz intercelular. (Adaptada de Krauss, 2003.)
▸ Junções comunicantes A primeira imagem de microscopia eletrônica de junções comunicantes, feita em meados da década de 1960, sugeria uma simples estrutura formada por duas membranas justapostas, que continham um arranjo uniforme de conexões (conexons) posicionadas de cada lado das membranas. Este arranjo entre as membranas forma um poro, sendo o conjunto estrutural denominado junção comunicante (gap). Esse tipo de junção permite a passagem de íons e pequenas moléculas, como 3∦ ,5∦ monofosfato de adenosina cíclico (cAMP), Ca2+, Na+, trifosfato de inositol (IP3) etc., entre células adjacentes. Os conexons são formados por proteínas transmembrânicas chamadas de conexinas. O arranjo de seis destas moléculas forma na membrana o hemicanal (conexon). O encontro destas estruturas na membrana celular de ambas as células comunicantes constitui o canal ou junção comunicante (Figura 3.2). Esses canais não estão constantemente abertos como se imaginava a princípio. Muitos deles apresentam a capacidade de fechamento, o que pode ocorrer, por exemplo, com a variação da voltagem da membrana plasmática, com extremos de pH, Ca2+ ou por fosforilações. Porém, existem evidências de que nem todos os tipos de junções comunicantes são formados por conexinas. Outras moléculas com o mesmo perfil químico das conexinas, ou seja, possuidoras de quatro domínios transmembrânicos, aparecem como formadoras das junções comunicantes em invertebrados. A proposta vigente é que a inexina, uma molécula distinta da conexina, seja a formadora de junções comunicantes nesta classe de animais. Nos invertebrados, as inexinas (proteínas bifuncionais de membrana) podem formar tanto as junções comunicantes (gap) como os canais de membrana (inexons). A estrutura análoga dos vertebrados, panexina, perdeu a capacidade para organizar junções gap, formando apenas os canais de membrana não juncionais conhecidos como panexons. Tanto inexons quanto panexons são permeáveis ao ATP, liberando ATP ao meio extracelular, o que originou uma nova forma de comunicação intracelular, independente de uma comunicação citoplasmática direta. Essa comunicação intercelular foi descoberta com as chamadas “ondas” de Ca2+. Notouse que essas variações de Ca2+ podiam “saltar” entre as células, ou mesmo entre tecidos, sem a necessidade de serem transmitidas de célula a célula. Esses “saltos” eram possíveis pela liberação de ATP do citoplasma para o meio extracelular, o que ocasionava a abertura de hemicanais de conexina dispostos na membrana de outras células teciduais. Hemicanais são estruturas formadas apenas pelo arranjo das conexinas na membrana sem estarem acoplados a outra conexina da célula adjacente, o que a princípio formaria o conexon.
Figura 3.2 ■ Junções comunicantes: seis moléculas de conexinas constituem um hemicanal; a união de dois hemicanais de duas células adjacentes forma a junção comunicante, que permite a passagem de íons e nucleotídios cíclicos. (Adaptada de www.academic.brooklyn.cuny.edu.)
Propriedades químicas e físicas dos inexons e dos panexons assemelhamse às da conexina, demonstrando que os primeiros foram provavelmente a base evolutiva para as conexinas. Independentemente da composição química que tenham, os conexons são importantes na comunicação entre células adjacentes. A passagem de íons pode iniciarse em qualquer dos lados da junção, ou seja, a comunicação é bidirecional. Este fluxo de íons tem importância vital, por exemplo, na ritmicidade da contração do músculo cardíaco, na transmissão da mensagem nervosa pelos neurônios e no movimento peristáltico intestinal encontrado nos vertebrados. Junções comunicantes neuronais são também denominadas sinapses elétricas, pela função específica que desempenham na propagação da corrente elétrica entre células nervosas. Na embriogênese, estas comunicações têm papel fundamental, não só para a transmissão da informação necessária à diferenciação celular, mas também para a distribuição de metabólitos, antes da formação do sistema circulatório. Estas passagens também apresentam a capacidade de se fecharem em determinadas condições, por exemplo, em altas concentrações de Ca2+ ou em extremos de pH. Esta propriedade protege as células que estão se comunicando por junções comunicantes dos danos causados pela morte de alguma das células pertencentes ao circuito.
▸ Sinalizadores dependentes de contato Dentro desse conceito, enquadramse as integrinas, proteínas transmembrânicas heterodiméricas que se conectam, via proteínas de ancoragem, ao citoesqueleto cortical de actina. A afinidade que elas apresentam por ligantes extracelulares como fibronectina, fibrinogênio e colágeno é regulada por sinalização intracelular, resultando em uma peculiar ativação das integrinas de “dentro para fora”. Essa ativação controla a força de adesão e migração celular. Mas as integrinas também se comportam como receptores tradicionais, respondendo a ligantes extracelulares com cascatas intracelulares que modulam a polaridade celular, citoesqueleto, expressão gênica e proliferação. As integrinas são encontradas por toda a história evolutiva dos metazoários, sendo essenciais para o desenvolvimento de, possivelmente, todos os organismos multicelulares. As regiões extracelulares das porções alfa e beta das integrinas se unem não covalentemente para formarem uma “cabeça” globular, com capacidade para ligarse em domínios específicos
da matriz extracelular (Figura 3.3 A). Enquanto somente poucas integrinas existem nos invertebrados, até o momento são conhecidas, por sequenciamento em humanos, 24 subunidades alfa e nove beta. Cada combinação alfa/beta tem seu próprio ligante com características exclusivas de sinalização. Uma das funções das integrinas é estrutural. Elas são a ponte de ligação entre a matriz extracelular e o citoesqueleto. A maioria das integrinas reconhece muitas proteínas da matriz extracelular; e proteínas individuais dessa matriz podem ligarse a muitas integrinas. Este reconhecimento das proteínas da matriz extracelular, por parte das integrinas, possibilita a percepção do meio extracelular e consequente ajuste a sinais externos. A importância destas moléculas no desenvolvimento se dá não só pelo fato de promoverem adesão celular, mas também por terem capacidade de modular a cascata de transdução de sinais, regulando grande número de atividades celulares, incluindo a expressão de genes. A adesão celular mediada por integrinas pode envolver: (1) influxo de Ca2+, (2) ativação de enzimas que adicionam grupos fosfato a tirosinas, serinas e treoninas (tirosina e serina/treoninoquinases), como PKC e Akt, (3) ativação da família das Rho e Ras (pequenas GTPase monoméricas, ver “Receptores tirosinoquinases”) e (4) mobilização de fosfoinositídios, pela ativação de fosfolipases (Figura 3.3 B). A resultante ativação de fatores de transcrição como ERK, JNK e p38 induz proliferação celular. Na ausência de sinalização por integrinas, caspases ativas levam a célula à apoptose. A capacidade de as células crescerem e proliferarem na ausência de adesão mediada por integrina (ancoramento independente) está fortemente relacionada com tumorigênese, podendo capacitar células tumorais a metástase e a crescimento em regiões inapropriadas do organismo.
▸ Mensageiros extracelulares Os mensageiros químicos intercelulares devem atingir células, denominadas célulasalvo, que possam interpretar esses sinais. Para reconhecer esses mensageiros, essas célulasalvo precisam ter elementos, os chamados receptores, que mudam de configuração quando o mensageiro a eles se liga. Em alguns casos, a célulaalvo modifica quimicamente o ligante, transformandoo em um composto para o qual ela dispõe de receptores. Clássico exemplo é a testosterona, que, enquanto atua como tal em tecidos da genitália interna masculina, é transformada em estradiol por outros tecidosalvo (no hipotálamo masculino, graças à enzima aromatase) ou em dihidrotestosterona (na genitália externa masculina), para então sinalizar por intermédio desses receptores.
Figura 3.3 ■ A. As integrinas são receptores transmembrânicos constituídos por duas subunidades α e β, cujas extremidades extracelulares ligamse a proteínas da matriz ou de células vizinhas. B. A porção citoplasmática das integrinas pode acoplarse a quinases (FAK), resultando na ativação de uma variedade de moléculas promotoras de proliferação, incluindo: PI3K, ERK, JNK e p38, ou pode interagir com proteínas do citoesqueleto, modulando a adesão e a motilidade celular. (Adaptada de Alberts et al., 2002.)
Outro bom exemplo é o receptor de aldosterona, denominado de mineralocorticoide ou simplesmente MR, que apresenta afinidade similar aos glicocorticoides. Além disso, a concentração plasmática dos glicocorticoides é de pelo menos 100 vezes a concentração plasmática da aldosterona. Tecidos nos quais a aldosterona evoca resposta biológica sintetizam a enzima 11betahidroxiesteroide desidrogenase do tipo II, capaz de degradar cortisol (forma ativa) em cortisona (forma inativa), protegendo assim a ligação da aldosterona ao seu receptor. Nesses tecidos, portanto, a aldosterona pode se ligar a seu receptor, uma vez que não haverá a competição com glicocorticoides pelo seu receptor MR. Os sistemas ligante/receptor são específicos, ao mesmo tempo que apresentam flexibilidade e são altamente conservados. A mesma molécula sinalizadora pode ligarse a muitos tipos de receptores na mesma célula ou em diferentes tecidos, além de ativálos; por exemplo, epinefrina produzida pela glândula suprarrenal é ligante para, no mínimo, nove tipos de receptores (Figura 3.4), acetilcolina para cinco e serotonina para 15. As vias de sinalização podem ser distintas e a resposta celular será um balanço entre esses inputs (Figura 3.5). Por outro lado, diferentes ligantes podem ativar diversos receptores específicos; ainda assim, a via de sinalização estimulada pode ser a mesma (ver Figura 3.5).
Figura 3.4 ■ Quatro diferentes subtipos de adrenorreceptor reconhecem a epinefrina como mensageiro extracelular. A ligação de epinefrina a dois deles, β1 e β2, ativa a mesma via de sinalização (adenililciclase/AMP cíclico); a ligação ao terceiro, α2, inibe essa mesma via, e ao quarto, α1, ativa uma via diversa (fosfolipase C/IP3/DAG). IP3, trifosfato de inositol; DAG, diacilglicerol. (Adaptada de Hadley, 2000.)
Então, o que confere especificidade da resposta de determinado tipo celular a um ligante? Durante a diferenciação de uma célula embrionária em um tecido específico, certos genes são silenciados e outros ativados, de maneira específica, para aquele tipo celular, que então expressará proteínas específicas. Desse modo, esse tipo celular terá, por exemplo, proteínas X participando de eventos terminais da sinalização, enquanto um outro terá proteínas Y; isso levará a respostas muito distintas a um mesmo ligante ativando um mesmo tipo de receptor. A complexidade de sinais que chegam a uma célula, com múltiplas vias intracelulares sendo ativadas, é extraordinária. Não está claro como as células discriminam e hierarquizam os sinais, emitindo respostas específicas. Aparentemente, proteínas denominadas ancoradoras organizam os elementos sinalizadores em complexos, guiando a sucessão de eventos e evitando que outras vias sejam ativadas. Uma das proteínas ancoradoras mais bem estudadas é a AKAP, proteína ancoradora da PKA (ver “Receptores acoplados a proteínas Gs e Gi, cAMP e PKA”). Os mensageiros químicos intercelulares podem ser classificados de acordo com a distância que percorrerão do local de sua síntese para a célulaalvo da mensagem, bem como do tipo de interrelação da célula produtora com a célulaalvo (Figura 3.6). Provavelmente, os primeiros mensageiros químicos comunicavam células adjacentes; eram sinalizadores presos à membrana de uma célula atuando em receptores da membrana da célula adjacente, ou presos às proteínas da matriz intercelular, como as integrinas. Quando esses sinalizadores passam a ser secretados pela célula produtora e a atuar em células adjacentes próximas, são denominados parácrinos. Caso atuem na própria célula produtora, são chamados de autócrinos. Sinalizadores parácrinos produzidos por células nervosas são nomeados neurotransmissores. Estes são lançados na região entre neurônios, entre neurônio e fibra muscular ou entre neurônio e glândula exócrina ou endócrina; essa região é designada fenda sináptica. Sinalizadores lançados na corrente sanguínea, cuja célulaalvo encontrase distante, são conhecidos como hormônios (em senso estrito).
Os ligantes podem ainda ser classificados, quanto à sua solubilidade, em hidrossolúveis e lipossolúveis. Mensageiros intercelulares hidrossolúveis são incapazes de atravessar o meio altamente hidrofóbico formado pelos lipídios que constituem a membrana celular; devem, assim, ser reconhecidos por receptores que estejam na membrana. Por outro lado, compostos lipossolúveis apresentam alta afinidade química por membranas biológicas; portanto, podem atravessar a membrana e atuar dentro das células, chegando muitas vezes até o núcleo. Seus receptores são, assim, intracelulares. Dentre os mensageiros hidrossolúveis, podemos citar as aminas e os derivados de aminoácidos, peptídios e proteínas; e, quanto aos lipossolúveis, os esteroides, os hormônios da tireoide, a vitamina D, os eicosanoides e o óxido nítrico (Quadro 3.1).
Figura 3.5 ■ Esquema da multiplicidade de sinais recebidos por uma célula por meio de diferentes receptores, evocando a ativação de uma variedade de vias intracelulares, enquanto outras vias são inibidas. A resposta homeostática celular será o balanço de todos esses eventos. PKA, proteinoquinase A (dependente de AMP cíclico); IP3, trifosfato de inositol; PKC, proteinoquinase C (dependente de cálcio); Ras, proteína G monomérica; PKB, proteinoquinase B (Akt). (Adaptada de Alberts et al., 2002.)
Apresentamos, a seguir, alguns exemplos das vias de síntese desses mensageiros. Como exemplo de aminas, a via de produção das catecolaminas é notável. A partir do aminoácido tirosina, são produzidos os mensageiros dopamina, norepinefrina ou epinefrina (Figura 3.7). A definição de qual desses compostos é o produto final dessa via depende do tipo celular em que ela ocorre e do microambiente onde essa célula se diferenciou. Ou seja, tecido nervoso produtor de catecolaminas, que permaneceu no sistema nervoso, terá como produto final, dependendo da região, dopamina, norepinefrina ou epinefrina. Já células de mesma origem, mas que, ao longo da ontogênese migraram para outra região extranervosa (como a glândula suprarrenal), por estímulos locais (p. ex., a presença de cortisol) passam a ter a enzima feniletanolamina Nmetil transferase funcional; portanto, têm a capacidade de transformar norepinefrina em epinefrina. Assim, a natureza, com uma única proposta biossintética, é capaz de propiciar a produção de três mensageiros químicos.
Figura 3.6 ■ Tipos de sinalizadores. A. Parácrino: o mensageiro químico atua localmente, em célulasalvo vizinhas à célula secretora. B. Neuronal: o parácrino é produzido por um neurônio e secretado na fenda sináptica, de onde atinge a célula alvo. C. Endócrino: o hormônio é secretado na corrente sanguínea, indo atuar em célulaalvo distante da célula produtora. (Adaptada de Alberts et al., 2002.)
Quadro 3.1 ■ Exemplos de mensageiros extracelulares. Aminas e derivados Dopamina, epinefrina, norepinefrina, glutamato, ácido gamaaminobutírico (GABA), melatonina, serotonina, tiroxina (T4) e triiodotironina (T3) Peptídios e proteínas Hormônio estimulante de melanócitos (MSH), hormônio adrenocorticotrófico (ACTH), endorfinas, tireotrofinas, gonadotrofinas, hormônio do crescimento (GH), insulina Esteroides Progesterona, estradiol, testosterona, cortisol, aldosterona, vitamina D Eicosanoides Tromboxano, leucotrieno, prostaglandina, prostaciclina Gases Óxido nítrico (NO)
Figura 3.7 ■ Via de síntese de catecolaminas. A última etapa depende da expressão da enzima PNMT, cujo gene é desreprimido na presença de cortisol, nas células da medula da glândula suprarrenal. (Adaptada de Hadley, 2000.)
Peptídios e proteínas sinalizadores, geralmente, se originam da clivagem de grande proteína sintetizada em uma variedade de tipos celulares; entretanto, novamente, dependendo da maquinaria enzimática expressa, a grande proteína será clivada, de preferência, neste ou naquele produto. Por exemplo, a partir da POMC (próopiomelanocortina) podem ser produzidos mensageiros químicos peptídicos como ACTH (hormônio adrenocorticotrófico), MSH (hormônio estimulante de melanócitos) ou endorfinas (Figura 3.8). Se a POMC for expressa na pars distalis da glândula endócrina hipófise, os produtos finais são ACTH e endorfinas. Estes sinalizadores são secretados em condições de estresse crônico, preparando o organismo para enfrentálo: o ACTH estimula a produção e a secreção do hormônio do estresse ou cortisol (pelo córtex da glândula suprarrenal), ao passo que as endorfinas promovem analgesia e sensação de bemestar (pois são opioides endógenos). Entretanto, se a expressão de POMC se dá na pars intermedia da hipófise do embrião humano ou na pele de adultos, o ACTH também é produzido, mas imediatamente clivado, dele resultando αMSH, estimulador do crescimento neural (durante a embriogênese) e da produção de melanina pela pele (em resposta à radiação ultravioleta). Quanto aos mensageiros lipossolúveis, a maioria é constituída de esteroides, que derivam estruturalmente do colesterol (Figura 3.9), sendo sua síntese restrita a poucos tecidos esteroidogênicos. Neste caso, mais uma vez, a natureza encontrou soluções econômicas para a produção de vários mensageiros químicos, com alvos e ações extremamente diferentes. A partir do colesterol, é sintetizada a pregnenolona, que sai da mitocôndria em que é formada e é transformada em diferentes compostos, dependendo do tecido no qual está ocorrendo a síntese. Se a síntese se der no córtex da glândula suprarrenal, os produtos finais serão aldosterona ou cortisol. Caso ela aconteça nos testículos, a via é desviada para a produção de testosterona, hormônio sexual masculino. Se a síntese se der nos ovários, é expressa uma nova enzima, a
aromatase, sendo toda testosterona formada imediatamente convertida em estradiol, o hormônio sexual feminino, ou, dependendo do momento do ciclo ovariano, a via termina em progesterona. Os eicosanoides são sinalizadores de natureza lipídica, derivados do ácido araquidônico, formado a partir da quebra de fosfolipídios de membrana por fosfolipases, principalmente a fosfolipase A2. Esse ácido é um ácido graxo de 20 carbonos, que pode ser oxidado não só pela ação catalítica de ciclooxigenases a prostaglandinas, prostaciclinas e tromboxanos, como também, alternativamente, por lipooxigenases a leucotrienos e lipoxinas (Figura 3.10). Esses eicosanoides são secretados e atuam paracrinamente, muitas vezes em respostas locais de inflamação, causando constrição das vias respiratórias, vasodilatação, agregação plaquetária e migração de leucócitos. O uso de ácido acetilsalicílico como agente antiinflamatório decorre de sua ação inibitória das ciclooxigenases, enquanto a utilização terapêutica de corticosteroides para o mesmo fim devese à inibição desses hormônios sobre as fosfolipases A2. Alguns receptores de eicosanoides foram clonados; eles pertencem à família dos receptores de membrana acoplados à proteína G.
Figura 3.8 ■ Via de produção de hormônios peptídicos derivados da próopiomelanocortina (POMC), encontrada na pars intermedia e pars distalis da adenohipófise, no hipotálamo e na pele. Os produtos finais dependem do local de produção. CLIP, peptídio semelhante à corticotrofina; ACTH, hormônio adrenocorticotrófico; βLPH, βlipotrofina; γMSH, hormônio estimulante de melanócito γαMSH, hormônio estimulante de melanócito α;βMSH, hormônio estimulante de melanócito β. (Adaptada de Hadley, 2000.)
Hoje se sabe que gases, como o óxido nítrico (NO), podem ser mensageiros intercelulares. A capacidade de difusão desse gás é imensa, mas ele age apenas localmente, pois sua meiavida é de somente alguns segundos. O NO é sintetizado a partir do aminoácido arginina, pela atividade de NO sintase; a atividade desta enzima é aumentada em alguns tecidos, em resposta a estímulos provenientes do sistema nervoso. Sabese que o NO está presente já em plantas; é o responsável pelo relaxamento da musculatura lisa de vasos sanguíneos, levando à vasodilatação observada em muitas respostas fisiológicas (Figura 3.11), inclusive na ereção peniana. Além disso, muitos tipos neuronais secretam NO para sinalizar para neurônios vizinhos. Foram identificadas três isoformas de sintase de óxido nítrico (NOS). Todas têm locais de ligação para: (1) resíduo heme na porção Nterminal, (2) NADPH na Cterminal e (3) calmodulina entre essas duas regiões. A NOS catalisa a conversão de arginina para citrulina e NO. O óxido nítrico produzido nas células endoteliais está envolvido no relaxamento de vasos, na agregação de plaquetas e na homeostase cardiovascular. A sintase de óxido nítrico endotelial (eNOS, cNOS, tipo III) é constitutivamente expressa em células endoteliais e alguns outros tipos celulares. A miristoilação e a palmitoilação mantêm a eNOS restritamente localizada nas cavéolas da membrana plasmática, ligada à caveolina, o que deixa a eNOS inativa. A ativação de receptores de acetilcolina no endotélio estimula a fosfolipase C (PLC); esta enzima catalisa a produção de 1,4,5trifosfato de inositol (IP3) e diacilglicerol (DAG), a partir de 4,5 bifosfato de fosfatidilinositol (PIP2). O aumento de Ca2+ induzido por IP3 ativa a calmodulina, que se liga à eNOS, a qual
se dissocia da caveolina e translocase para o citoplasma. A fosforilação da eNOS por proteinoquinase A (PKA) inativa a enzima, que então se realoca nos cavéolos da membrana plasmática. Sintase de óxido nítrico do tipo II (iNOS, macNOS) pode ser induzida em macrófagos, após exposição a certas citocinas, como a interferona γ (IFNγ). Os macrófagos são importantes para a resposta imunitária a curto prazo a microrganismos invasores, e a geração de NO é central nessa função. O receptor de IFNγ sinaliza por meio das quinases Janus (JAK) e de proteínas transdutoras de sinal e ativadoras de transcrição (STAT). A ocupação do receptor e sua dimerização induzem a fosforilação das STAT associadas. As STAT ativadas dimerizamse e translocamse para o núcleo, onde aumentam a expressão do fator de transcrição, IRF1; este, por sua vez, ligase a elementos específicos do DNA no promotor do gene da iNOS, elevando sua expressão. iNOS é uma enzima solúvel que, diferentemente da eNOS e nNOS, não requer crescimento intracelular de Ca2+ para sua ativação. A sintase de NO neuronal (nNOS, bNOS, cNOS, tipo I) está associada à proteína de densidade póssináptica (PSD95) na membrana neuronal. Em resposta ao aumento intracelular de Ca2+, a nNOS interage com a CaM. O complexo Ca2+ CaM, em combinação com a biotetrapterina (BH4), ligase à nNOS e induz sua translocação da membrana para o citoplasma. A desfosforilação da nNOS pela calcineurina inicia a produção de NO. A nNOS é inativada por fosforilação pela proteinoquinase A (PKA) ou proteinoquinase C (PKC).
Figura 3.9 ■ Via de síntese de hormônios esteroides. O colesterol, proveniente da dieta ou produzido pelo fígado, é utilizado por tecidos esteroidogênicos (como gônadas e córtex da glândula suprarrenal) para a produção de hormônios sexuais masculino (testosterona) e femininos (progesterona e estradiol), aldosterona e cortisol. A primeira etapa da via, a produção de pregnenolona, acontece dentro da mitocôndria, compartimento em que se encontra a enzima responsável por essa conversão, a desmolase; as etapas seguintes ocorrem no retículo endoplasmático liso. (Adaptada de Hadley, 2000.)
RECEPTORES DE MEMBRANA
Conforme já mencionado, a passagem da condição de mono para a de pluricelularidade envolveu uma série de adaptações que possibilitaram que as células se comunicassem e, com isso, regulassem suas funções em uma divisão sincronizada de tarefas. Entre estas adaptações, o aparecimento de receptores de membrana foi o passo decisivo para o sucesso do estabelecimento da condição de pluricelularidade. Esta condição teve origem temporal independente em cada um dos reinos da natureza, apresentandose repetidas vezes dentro de alguns filos; consequentemente, no curso da evolução, receptores de superfície celular são únicos em animais, plantas e fungos, apesar de compartilharem alguns domínios proteicos em comum.
Figura 3.10 ■ Via de síntese de eicosanoides. O ácido araquidônico, derivado da clivagem de fosfolipídios de membrana, pode tomar duas rotas bioquímicas: (1) pela ação de ciclooxigenases pode converterse em prostaglandinas, prostaciclinas e tromboxanos, ou (2) pela ação de lipooxigenases pode originar leucotrienos e lipoxinas. (Adaptada de Hadley, 2000.)
Figura 3.11 ■ Síntese de óxido nítrico (NO) em uma célula endotelial, a partir de arginina, pela ação catalítica da enzima NO sintase, estimulada por acetilcolina liberada por terminais nervosos nos vasos sanguíneos. A rápida difusão desse gás causa relaxamento da fibra muscular que reveste os vasos, levando à sua dilatação. (Adaptada de Alberts et al., 2002.)
A necessidade de comunicação intercelular em metazoários coincide com o aparecimento evolutivo de múltiplos receptores de membrana (Figura 3.12). Esses receptores contêm regiões intracelulares com propriedades únicas, que podem ser: enzimáticas, de recrutamento ou de translocação nuclear. Provavelmente, no processo evolutivo, os receptores de membrana surgiram após as junções comunicantes. Eles são glicoproteínas integrantes da membrana, cujo domínio extracelular reconhece um ligante; assim, percebem mudanças nas características do ambiente. O resultado dessa interação com o ligante é o desencadear de reações intracelulares, responsáveis pela transmissão dessa informação para o meio intracelular, possibilitando respostas de ajuste celulares. A maioria dos receptores de membrana plasmática transmite sinais extracelulares para o interior das células, permitindo o reconhecimento de células e estruturas extracelulares, bem como de condições físicas e químicas do ambiente. Na tentativa de explicar o fenômeno da sinalização, foram surgindo múltiplas definições, para facilitar o entendimento das várias etapas do processo. A transmissão do sinal iniciase quando um mensageiro ou ligante extracelular, chamado de primeiro mensageiro (podendo ser hormônio, neurotransmissor ou um parácrino), ligase a seu receptor específico, promovendo neste uma mudança conformacional. Com esta mudança, o receptor passa de sua condição inativa à ativa e inicia a transdução do sinal, desencadeando a denominada cascata de sinalização. Esta ativação do receptor levará, dependendo do tipo de receptor em questão, à formação de segundos mensageiros intracelulares (como AMP cíclico [cAMP], GMP cíclico [cGMP] ou óxido nítrico [NO]) ou à liberação do íon Ca2+ (proveniente de estoques intracelulares ou do meio extracelular, entrando na célula graças à abertura de canais da membrana plasmática). A presença de segundos mensageiros no meio intracelular irá, por sua vez, ativar vias bioquímicas específicas. Eles amplificam o sinal vindo do meio externo, pois a ativação de um único receptor gera a formação de grande número de moléculas do segundo mensageiro que ativarão, na maioria das vezes, quinases que fosforilarão um número ainda maior de moléculasalvo, antes de serem inativadas.
Figura 3.12 ■ Principais classes de receptores de membrana. A. Receptores canais iônicos, que se abrem quando o mensageiro extracelular se liga a eles, permitindo a passagem de íons, com uma certa seletividade. B. Receptores acoplados à proteína G, enzima trimérica com atividade GTPásica (daí seu nome), que desencadeia uma cascata de sinalização ao ser ativada pela mudança de conformação do receptor, quando o mensageiro extracelular se liga a ele. C. Receptores enzimáticos, que têm
atividade quinásica ou fosfatásica em seu domínio citoplasmático, ou que se associam diretamente a enzimas citoplasmáticas. (Adaptada de Alberts et al., 2002.)
A amplificação do sinal recebido pelo receptor, pelas vias de sinalização aos quais está acoplado, ocorre em vários níveis da cascata de sinalização (Figura 3.13) e é uma importante característica da transmissão de sinais entre células.
▸ Receptores canais Proteínas de canal formam poros nas membranas que, diferentemente das junções comunicantes que são permissivas, podem ser abertos ou fechados, sendo seletivos para determinados íons. Há quatro tipos básicos de canais nas células dos organismos atuais: aqueles modulados por voltagem, os canais receptores modulados por ligante extracelular (mensageiro intercelular), os modulados por ligante intracelular (segundo mensageiro) e os operados mecanicamente (Figura 3.14).
Canais receptores abertos por ligante extracelular Este sistema de comunicação celular é largamente empregado pelo sistema nervoso; ocorre entre duas células nervosas ou entre um neurônio e uma célula efetuadora (como a muscular ou glandular exócrina ou endócrina). A região de transmissão, denominada sinapse química, é onde os neurotransmissores são liberados, indo atuar em receptores de membrana na célula póssináptica. Canais receptores modulados por ligante extracelular são especializados para, rapidamente, converterem um sinal químico em mudança no potencial de membrana da célula póssináptica, a qual é eletricamente excitável. Dependendo do íon para o qual o canal é seletivo, essa alteração no potencial de repouso da célula poderá: (1) levar à despolarização celular, como é o caso de alguns subtipos de receptores de acetilcolina e glutamato, que são canais de Na+ ou Ca2+, ou (2) dificultar eventual resposta de despolarização a um estímulo excitatório, como é o caso dos receptores do ácido gamaaminobutírico (GABA) e de glicina, que são canais de Cl–. Neurotransmissores que despolarizam as célulasalvo são denominados excitatórios (p. ex., acetilcolina e glutamato), ao passo que aqueles que aumentam o limiar para a excitação, inibitórios (p. ex., glicina e GABA).
Figura 3.13 ■ Esquema dos mecanismos de amplificação do sinal (H) nas vias intracelulares. Para cada receptor ativado (R*), muitas moléculas (E1) podem ser recrutadas na etapa seguinte da cascata. Adicionalmente, para cada molécula de enzima catalisadora (E2) da produção do segundo mensageiro, muitas moléculas do segundo mensageiro podem ser produzidas. (Adaptada de Krauss, 2003.)
O canal receptor de acetilcolina está presente na membrana da fibra muscular esquelética; ele é aberto por esse neurotransmissor, o qual é liberado por terminais axônicos de fibras nervosas motoras. Esse receptor tem cinco subunidades que se dispõem em anel rodeando o poro do canal (Figura 3.15) e dispõe de dois locais de ligação para acetilcolina. Quando esses locais são ocupados pelo neurotransmissor, o canal se abre, permitindo grande influxo de Na+, que despolariza a fibra muscular e, em última instância, leva à sua contração (para mais detalhes, consulte a Figura 6.5). Relaxantes musculares, amplamente utilizados durante cirurgias, baseiamse na estrutura do curare (veneno extraído de plantas, usado por índios brasileiros para paralisar a caça). O curare ligase ao receptor de acetilcolina, alterandoo para uma conformação inapropriada à ligação do neurotransmissor. Os canais receptores de glutamato são responsáveis pelo fenômeno conhecido como potenciação de longo termo, que resulta em formação de memória e aprendizado (Figura 3.16). O glutamato liberado pelo neurônio présináptico ligase aos dois receptores canais, o não NMDA e o NMDA, que se abrem. O não NMDA permite influxo de Na+, o que despolariza a membrana do neurônio póssináptico. Essa mudança de voltagem da membrana expele íons Mg2+ que bloqueavam o canal NMDA, fazendo com que este agora permita o influxo de íons Ca2+. Esse aumento de Ca2+ citoplasmático causa a inserção de mais receptores não NMDA na membrana e ativa a síntese de óxido nítrico no neurônio póssináptico, que retroalimenta positivamente o neurônio présináptico, estimulando a liberação de mais glutamato. Alguns tranquilizantes, como, por exemplo, diazepam, ligamse aos canais de Cl– receptores de GABA, colocandoos em conformação mais favorável à sua ativação pelo neurotransmissor.
▸ Receptores acoplados à proteína G Os receptores acoplados à proteína G (GPCR) são de origem remota; provavelmente, evoluíram de receptores sensoriais de organismos unicelulares. Têm, tipicamente, sete domínios transmembrânicos, discretas e previsíveis alças transmembrânicas, consistindo em domínios hidrofóbicos. Os estímulos extracelulares capazes de ativar os receptores dos sete domínios incluem: fótons (opsinas), íons, odorantes, aminoácidos, peptídios etc. Um exemplo interessante é o que ocorre no Dictyostelium discoideum, que pode existir como um simples organismo ou como uma colônia social de amebas. Neste eucarioto, a percepção de folato e de AMP cíclico é mediada por dois diferentes receptores de sete domínios transmembrânicos. Esta dicotomia pode representar a primeira divergência entre detecção de ligantes de origem externa (folato) e ligantes produzidos pelo próprio organismo multicelular (cAMP). As classes de GPCR dispõem de sequências únicas nas regiões transmembrânicas; por isso, não podem ser consideradas com única origem evolutiva.
Figura 3.14 ■ Tipos de canais iônicos: canais abertos por mudança de voltagem da membrana – são típicos de células eletricamente excitáveis, como neurônios e fibras musculares; canais abertos por ligante extracelular – são receptores de membrana; canais abertos por ligante intracelular, como AMP cíclico (cAMP) e GMP cíclico (cGMP) e canais abertos mecanicamente. (Adaptada de Alberts et al., 2002.)
Figura 3.15 ■ O receptor canal para acetilcolina. A. O receptor é constituído de duas subunidades α, uma subunidade β, uma subunidade γ e uma subunidade δ; há dois locais de ligação para acetilcolina nas duas subunidades α do receptor. B. Quando o neurotransmissor está ligado a seu receptor, as subunidades se movem abrindo o canal para o íon Na+ , que penetra na fibra muscular esquelética, despolarizando a membrana e causando a contração muscular. (Adaptada de Alberts et al., 2002.)
Os mensageiros extracelulares ligantes de GPCR induzem mudanças conformacionais no receptor, que recruta e ativa diferentes proteínas G; estas são assim chamadas por ligaremse a nucleotídios de guanina, GDP e GTP. As proteínas G são heterotrímeros, constituídos por subunidades α, β e γ. Há pelo menos 20 subtipos de subunidade α, pois é ela que confere especificidade à cascata de reações subsequentes. No estado inativo, Gα está acoplada a GDP, do lado interno da membrana plasmática; quando o ligante ligase ao receptor, este sofre mudança conformacional (alostérica), promovendo uma alteração alostérica também na proteína G. Esta libera GDP e ligase a GTP, o que faz com que Gα seja ativada e desliguese do dímero β. Agora, Gα ligase a uma enzima, podendo acarretar estimulação ou inibição de sua atividade catalítica (Figura 3.17). Essas enzimas catalisam a geração de mensageiros intracelulares, como: 3’,5’monofosfato de adenosina cíclico (cAMP), fosfoinositídios, diacilglicerol e outros segundos mensageiros. Estes segundos mensageiros, por sua vez, ativam cascatas quinásicas e fosforilam fatores citosólicos e de transcrição nuclear. O dímero βγ também é capaz de modular a atividade de enzimas, de canais e de receptores de membrana. Conforme dito, a estimulação do receptor acoplado à proteína G (GPCR) promove a translocação da proteína Gα à membrana plasmática, seguida por uma rápida dessensibilização mediada por betaarrestina, levando à internalização do receptor em endossomos. No entanto, foi demonstrado que alguns GPCR apresentam a capacidade de ativar as proteínas Gα no interior desses endossomos, resultando em uma sinalização positiva sustentada, descoberta que colocou em cheque o modelo clássico para ativação de receptores.
Figura 3.16 ■ Os dois subtipos de receptor canal de glutamato no sistema nervoso central: receptor NMDA e receptor não NMDA. O glutamato, liberado pelo neurônio présináptico, ligase aos dois receptores canais, que se abrem. O receptor NMDA, apesar de aberto, não permite passagem de íons, pois se encontra bloqueado por Mg2+ . É necessária a entrada de cargas positivas na célula, pelo canal não NMDA, para expulsar o Mg2+ do canal NMDA e permitir o influxo de Ca2+ . A elevação do Ca2+ citoplasmático promove o aumento de receptores não NMDA na membrana e, também, ativa a síntese de óxido nítrico (NO) no neurônio póssináptico, que retroalimenta, positivamente, o neurônio présináptico, estimulando a liberação de mais glutamato. Ambos os eventos reforçam essa sinapse positivamente, favorecendo seu estabelecimento. (Adaptada de Alberts et al., 2002.)
Figura 3.17 ■ Receptores acoplados à proteína G. São receptores com sete domínios transmembrânicos (I a VII), cuja mudança conformacional (causada pela ligação do mensageiro extracelular) ativa a proteína G trimérica, que dissocia sua subunidade α (com atividade GTPásica) do dímero formado pelas subunidades βγ. As subunidades α podem ser dramaticamente diferentes e específicas, para a ativação ou inibição de determinadas enzimas, enquanto o dímero βγ, muito semelhante nas várias proteínas G, pode também modular canais e enzimas. (Adaptada de www.sigmaaldrich.com.)
O modelo clássico assumia que a ligação de um agonista ao receptor GPCR promoveria ativação por meio de um único mecanismo, o que implicaria uma única conformação ativa para este receptor após ligação ao agonista. Trabalhos recentes vêm evidenciando que receptores GPCR podem apresentar espontaneamente conformações múltiplas antes de sua ligação ao primeiro mensageiro. Seletividade funcional referese então à capacidade de um primeiro mensageiro de ativar apenas um determinado subconjunto de conformações de um determinado receptor perante todo o conjunto de conformações possíveis. Entre as várias moléculas intracelulares capazes de se ligar a um receptor acoplado ou não a proteínas G, induzindo assim mudanças conformacionais do mesmo, as betaarrestinas têm sido as mais estudadas. Arrestinas apresentam quatro isoformas, duas das quais referidas como arrestinas visuais por se limitarem principalmente ao sistema visual. As outras duas isoformas, betaarrestinas 1 e 2, são altamente expressas em praticamente todos os tecidos e desempenham papéis importantes na função e regulação dos receptores GPCR. GPCR ativados também recrutam quinases de receptores (GRK), que fosforilam os próprios receptores, facilitando, assim, o término do sinal. A finalização do sinal será discutida com maiores detalhes ao final deste capítulo.
Receptores acoplados a proteínas Gs e Gi, cAMP e PKA O papel do cAMP como segundo mensageiro começou a ser elucidado já no final da década de 1950. Nessa data, foi verificado, em homogeneizados de fígado de camundongo, um aumento da concentração da enzima fosforilase na sua forma ativa (fosforilada), quando o tecido era tratado com catecolaminas, na presença de ATP. Enquanto em bactérias a variação da concentração de cAMP está relacionada com a regulação da expressão gênica, em células eucarióticas este segundo mensageiro é capaz de mediar uma grande variedade de respostas rápidas de ajuste, que independem de alteração da expressão de genes.
Após a ativação do receptor, a adenililciclase é ativada pela subunidade α da proteína trimérica Gs e passa a sintetizar cAMP a partir de ATP. A interação do receptor com a proteína G, e desta com a ciclase, assim como a produção de cAMP, ocorrem muito próximo à superfície interna da membrana plasmática (Figura 3.18). Depois da estimulação da Gαs, os níveis de cAMP podem aumentar em até 20 vezes o nível basal. Existem dez tipos conhecidos de adenililciclases em mamíferos, algumas ativadas pelo complexo Ca2+/calmodulina, outras inibidas por baixas concentrações de Ca2+ e ainda outras que são inibidas por calcineurina (uma proteína fosfatase dependente de Ca2+) ou pela fosforilação da proteinoquinase II dependente do complexo Ca2+/calmodulina (CAMK II). Alguns tipos de adenililciclase também podem ser ativados após fosforilação por proteinoquinases C. Esses dez tipos estão sendo agrupados em duas classes distintas: nove deles ligados à membrana plasmática (TmAC1 a TmAC9) e um solúvel (ACs). Logo após a descoberta da ACs, verificouse que sua localização não se restringia apenas ao citoplasma, mas podia ser encontrada também no núcleo e nas mitocôndrias.
Figura 3.18 ■ Cascata de sinalização de receptores acoplados à proteína Gs. A subunidade αs ativa a adenililciclase, que catalisa a conversão de ATP em AMP cíclico. Este se liga a quatro locais nas duas subunidades reguladoras da proteinoquinase dependente de AMP cíclico (PKA). Isto faz com que as duas subunidades catalíticas desliguemse uma da outra e do dímero regulatório e fosforilem substratos específicos, inclusive o fator de transcrição CREB (elemento responsivo a cAMP), no núcleo da célula. O CREB fosforilado unese à proteína ligante de CREB; então, o complexo formado ativa genes específicos, causando sua transcrição. (Adaptada de Alberts et al., 2002.)
Em alguns casos, a subunidade α da proteína G é inibitória de adenililciclase, e o resultado da ativação de um receptor acoplado a Gi é a diminuição de cAMP; na maioria dos casos, Gi ligase a canais e os modula e não regula a adenililciclase. Em receptores de acetilcolina do tipo muscarínico, a subunidade αi inibe a adenililciclase, diminuindo o
nível de cAMP, enquanto a subunidade βγ ligase a canais de K+ (ver Figura 3.17), abrindoos, hiperpolarizando a fibra muscular cardíaca e inibindo sua contração. É interessante mencionar que duas toxinas de bactérias, bem conhecidas, exercem seus efeitos orgânicos por atuarem sobre proteínas G. Gαs é o alvo da toxina liberada pela bactéria Vibrio cholerae, que causa a cólera. A toxina de cólera adiciona riboses à subunidade α da proteína Gs, que fica impedida de hidrolisar GTP, permanecendo constantemente ativa, o que mantém a adenililciclase também ativa e os níveis de cAMP elevados. No epitélio intestinal, isso provoca aumento de efluxo de cloro e água, sob forma de diarreia, que pode levar à morte. A outra toxina é a toxina de pertússis, ou da popularmente conhecida coqueluche. Sua ligação à proteína Gi impede a dissociação da subunidade αi, prevenindo a continuação da cascata de sinalização que se seguiria. O cAMP ligase e ativa as proteinoquinases dependentes de cAMP (PKA), as primeiras quinases a serem descobertas. Em sua forma inativa (na ausência de cAMP), a PKA é uma holoenzima tetramérica formada por duas subunidades reguladoras R e duas subunidades catalíticas C. Sua ativação dáse quando duas moléculas de cAMP se ligam de forma cooperativa a cada uma das duas subunidades R, causando um decréscimo de afinidade entre as porções catalíticas (C) e reguladoras (R) da molécula da quinase. Esta perda de afinidade leva à dissociação das partes, com a formação de um dímero da subunidade R e de dois monômeros das subunidades C, agora ativos, cada um pela ligação a duas moléculas de cAMP (ver Figura 3.18). A subunidade C ativa catalisa a transferência de gamafosfato (P) do complexo Mg2+trifosfato de adenosina (ATP) para resíduos de serina e treonina de substratos proteicos específicos, especificidade essa conferida por sequências particulares de aminoácidos. A PKA, preferencialmente, fosforila locais onde haja uma sequência dibásica separada do aminoácido fosforilável (serina ou treonina), por um aminoácido qualquer e um resíduo hidrofóbico adjacente ao carboxiterminal. Foram descritas até o momento em mamíferos duas classes de isoformas de PKA, denominadas PKA tipos I e II. Além disso, as subunidades C e R têm grande heterogeneidade. Cinco isoformas são conhecidas para a subunidade R (RI alfa, RI beta, RII alfa, RII beta) e três para a C (C alfa, C beta e C gama), todas codificadas por genes distintos. Estas diferentes isoformas apresentam padrões próprios de distribuição entre os tecidos, o que explicaria a grande diversidade de respostas mediadas por cAMP. Uma vez ativada, a PKA, dependendo do tipo celular, pode atuar em diferentes substratos e eliciar enorme variedade de respostas. As subunidades C livres podem migrar para o núcleo, onde são capazes de fosforilar o fator de transcrição CREB, levando a célula a um aumento de transcrição de genes específicos, que têm a sequência CRE em seus promotores (ver Figura 3.18). Um importante ponto de controle da ação catalítica da PKA é exercido pelos inibidores termoestáveis de proteinoquinases (PKI). Estas proteínas ligamse, com alta especificidade, ao local catalítico da subunidade C, por disporem de uma sequência de aminoácidos semelhante à sequência reconhecida pela subunidade C em seus substratos. Proteínas ancoradoras de PKA ou AKAP já eram conhecidas desde a década de 1970. Inicialmente, achavase que elas eram contaminantes que apareciam durante o processo de purificação da quinase. Só na década de 1990 é que foi descoberto que tais moléculas são, muitas vezes, essenciais para a atividade da enzima. As AKAP ligamse às subunidades reguladoras das PKA e à membrana ou citoesqueleto, fixando a quinase a locais específicos da membrana celular. Esta distribuição especial faz com que a enzima exerça sua função catalítica junto a seu substrato específico, ou mesmo direcionando e modulando a resposta. Estas proteínas adaptadoras formam grandes complexos moleculares, em que não somente existem locais de ligação para PKA, mas também para proteinoquinases C e fosfatases (Figura 3.19), como a PP2A e a calcineurina (PP2B), por exemplo.
Figura 3.19 ■ Esquema do complexo sinalizador organizado pela proteína ancoradora dependente de PKA (AKAP). O complexo organiza elementos como PKA, PKC e fosfatase (no exemplo, dependente de Ca2+ /calmodulina), de modo a integrálos, em termos de localização e de funcionalidade, para evocar a resposta celular. C, subunidade catalítica da PKA; R, subunidade reguladora da PKA; PPase, fosfatase; PKC, proteinoquinase C; DAG, diacilglicerol. (Adaptada de Krauss, 2003.)
É comum que, dependendo do tipo celular, o cAMP, em vez de ativar a PKA, liguese diretamente a canais iônicos, abrindoos. Ao catalisar a fosforilação (ativação ou desativação) de enzimas intracelulares, as quinases dependentes de cAMP eliciam uma ampla variedade de processos celulares. A regulação negativa da via ocorre quando as fosfodiesterases (PDE) catalisam a hidrólise de cAMP a 5’monofosfato de adenosina (5’AMP). Várias famílias de fosfodiesterases (PDE I a VI) atuam como reguladores: a PDE II pode clivar tanto cAMP como cGMP, a PDE III é inibida por cGMP e está envolvida na regulação da musculatura lisa e do músculo cardíaco, e a PDE IV é altamente seletiva para cAMP, sendo a fosfodiesterase mais comum. Atualmente são conhecidas oito famílias de PDE, cada uma podendo apresentar genes múltiplos e uma grande variedade de splices, o que aumenta em muito a quantidade possível de isoformas.
Receptores acoplados a proteínas Gq, fosfoinositídios, Ca2+ e PKC A família das proteínas Gq é uma das mais bem caracterizadas entre as proteínas G. Quando a proteína Gq é estimulada (normalmente, por mensageiros extracelulares mobilizadores de Ca2+), promove a ativação da enzima fosfolipase Cβ (PLCβ). Uma vez ativada, a PLCβ promove a catálise do fosfolipídio de membrana 4,5bifosfato de fosfatidilinositol, gerando 1,4,5trifosfato de inositol (IP3) e diacilglicerol (DAG) (Figura 3.20). As isoformas da fosfolipase C (PLC) que catalisam a quebra de polifosfoinositídios (PI) em trifosfato de inositol (IP3), com subsequente liberação de Ca2+ de estoques intracelulares, e diacilglicerol (DAG), foram caracterizadas e classificadas em três tipos: β, ϒ e δ. É cada vez mais evidente que a via de sinalização por cAMP utiliza a compartimentalização como uma estratégia para a coordenação de um grande número de funções celulares. O confinamento espacial permite a formação de “pontos quentes” de sinalização de cAMP em discretas regiões do domínio
subcelular em resposta a estímulos específicos. Essas regiões, primeiramente, permitem que diferentes vias que utilizam cAMP como segundo mensageiro possam atuar simultaneamente. Em segundo, essas microrregiões agrupam uma série de enzimas e proteínas relacionadas à via de transdução do sinal em questão, otimizando assim a resposta. O conhecimento cada vez maior dos componentes dessas microrregiões aumenta as possibilidades de exploração terapêutica das mesmas. As isoformas β são conhecidas por mediarem a hidrólise de PI após ativação de receptores acoplados a proteínas G por certos hormônios, neurotransmissores e agonistas relacionados. Em contraste, as isoformas ϒ medeiam a hidrólise de PI induzida por atividade intrínseca de receptores tirosinoquinases ligados a fatores de crescimento (ver “Receptores tirosinoquinases”, adiante) ou tirosinoquinases citoplasmáticas solúveis que são elementos de vias de sinalização de certos receptores. Finalmente, as isoformas do tipo δ catalisam a hidrólise de fosfatídios da esfingomielina (SM) e da fosfatidiletanolamina (PE), fazendo parte das vias da fosfolipase C fosfatidilcolinaespecífica (PCPLC).
Figura 3.20 ■ Cascata de sinalização de receptores acoplados à proteína Gq. A subunidade αq ativa a fosfolipase C, que catalisa a clivagem de fosfolipídios de membrana, como 4,5bifosfato de fosfatidilinositol em trifosfato de inositol (IP3) e diacilglicerol (DAG). O IP3ligase a (e abre) canais de Ca2+ modulados por ligante intracelular, localizados no retículo endoplasmático liso, permitindo a saída de íons Ca2+ para o citosol. O DAG ligase a um local na proteinoquinase dependente de Ca2+ (PKC) já ligada a Ca2+ , ativandoa e permitindo que fosforile substratos específicos, inclusive MAPquinases. Então, inicia se uma cascata de fosforilações por MAPquinases que, em última instância, induz a fosforilação do fator de transcrição Elk1, que se liga ao elemento responsivo a soro (SRE), em genes específicos, causando sua transcrição (esta última cascata de eventos não está indicada na figura). (Adaptada de Alberts et al., 2002.)
IP3 é hidrossolúvel, difundindose da membrana para o interior da célula, onde se ligará aos chamados receptores de IP3 (IP3R); estes são canais de Ca2+ existentes na membrana do retículo endoplasmático/retículo sarcoplasmático (RE/RS). Esta ligação levará à abertura desses canais de Ca2+, liberando os estoques deste íon do RE/RS para o citoplasma. Além do citado receptor de IP3 utilizado para a liberação de Ca2+ do retículo, outro tipo de receptor, conhecido como rianodina (RyR), pode ser ativado para este fim. Estes dois tipos de canais intracelulares (IP3R e RyR) apresentam grande homologia em seus domínios de formação de canais transmembrânicos, e ao menos três isoformas distintas de ambos são conhecidas.
Em muitos tipos celulares, a liberação do Ca2+ de estoques intracelulares (promovida por IP3) induz a abertura de canais de Ca2+ da membrana celular, promovendo assim um influxo de Ca2+ do meio extracelular para o interior da célula. Esse influxo iônico pode também ser estabelecido pela abertura de canais de Ca2+ de membrana dependentes de voltagem, que se abrem quando células eletricamente excitáveis (como as células endócrinas, exócrinas, musculares ou nervosas) se despolarizam. Em células excitáveis, o principal meio para influxo de Ca2+ é a via do canal de Ca2+ voltagemseletivo (VGCC). Indiretamente, a voltagem também modula a quantidade de Ca2+ que passa através de todos os canais de Ca2+ voltagemindependentes, pela modificação da direção da força para o influxo de Ca2+. Os canais permeáveis a Ca2+ independentes de voltagem compreendem as mais numerosas e variadas rotas de influxo celular de Ca2+. Com poucas exceções (canais modulados por ligantes e canais mecanossensitivos), as rotas independentes de voltagem são em geral ativadas por cascatas de sinalização. A mais comum envolve a já mencionada ativação de PLCβ, com geração de IP3 e diacilglicerol. A mudança da concentração de Ca2+ citosólico é um sinal versátil que pode regular muitos processos celulares. Esta variação pode se dar também em outros compartimentos celulares, como nas mitocôndrias ou mesmo no núcleo. O Ca2+ é, tradicionalmente, descrito como um segundo mensageiro liberado de estoques intracelulares. Entretanto, ele mesmo pode liberar mais Ca2+ desses estoques, adicionando assim um passo a mais na cascata de sinalização. Dentro das organelas que estocam Ca2+, estes íons encontramse ligados a proteínas tamponantes especiais. Entre estas, incluemse calsequestrinas, calreticulinas e calnexinas. Já no citosol, existem proteínas tamponantes móveis que, ao se ligarem a Ca2+, impedem aumentos bruscos deste, além de auxiliarem na redistribuição deste íon e de transmitirem o sinal adiante na cascata. São exemplos destas proteínas citosólicas: calbindinas, paravalbuminas, troponinas, calmodulinas e proteínas da família S100. A troponina C é a molécula sinalizadora de Ca2+ na célula muscular esquelética, enquanto a calmodulina é a mais comum nos vários tipos celulares. Ambas têm quatro locais de ligação para cálcio. A calmodulina, uma vez ligada a cálcio, muda de conformação, podendo então ligarse a enzimas e a proteínas de membrana de transporte, ativandoas. A mais conhecida é a proteinoquinase dependente de Ca2+/calmodulina, a CAMquinase, uma Ser/Trequinase que se autofosforila e fosforila outros substratos. Na interação Ca2+/calmodulina, a enzima apresenta sua conformação alterada, liberando sua porção catalítica quinásica da inibição. Sua autofosforilação permite que a enzima continue ativa, mesmo depois de os níveis intracelulares de Ca2+caírem e de o complexo Ca2+/calmodulina se dissociar da quinase (Figura 3.21). Essa propriedade, na CAMquinase II cerebral, constitui a base da memória e do aprendizado. Ao contrário da grande variedade de mecanismos encontrados para o influxo de Ca2+, a perda de Ca2+ para o espaço extracelular é limitada à ação de duas famílias de proteínas da membrana plasmática: Ca2+ATPase (PMCA) e o trocador Na+/Ca2+. As concentrações de Ca2+ também são controladas no interior das organelas celulares, por uma variedade de bombas e transportadores específicos para cada organela. No RE, a captação de Ca2+ é controlada por uma família de Ca2+ATPase de retículo sarco/endoplasmático (a SERCA), enquanto na mitocôndria isso é feito por um transportador de Ca2+ mitocondrial. O outro produto da hidrólise de fosfolipídios de membrana pela PLCβ, o DAG, permanece na membrana, podendo: (1) promover ativação de proteinoquinase C (PKC) (desencadeando, assim, uma cascata de fosforilação) ou (2) ser clivado, gerando ácido araquidônico (que dará início à via de síntese dos eicosanoides). A PKC é uma quinase que fosforila resíduos serina e treonina em proteínas substratos, resultando em modulaçãofuncional destas. A existência dessas quinases foi evidenciada, pela primeira vez, no final da década de 1970, quando a PKC foi identificada como uma proenzima que requer concentrações milimolares de cálcio para sua atividade, daí seu nome.
Figura 3.21 ■ A calmodulina, molécula citosólica, ao ligarse a quatro átomos de Ca2+ muda de conformação, interagindo com uma quinase dependente de Ca2+ /calmodulina (a CAMquinase), que se autofosforila e passa a exercer sua atividade catalítica quinásica sobre substratos específicos. Com o retorno dos íons Ca2+ para o retículo endoplasmático, a quinase desligase da calmodulina, mas ainda retém cerca de 70 a 80% de sua plena atividade, prolongando, assim, sua permanência no estado ativo. No cérebro, essa sinalização é essencial para o mecanismo de memória e aprendizado. (Adaptada de Alberts et al., 2002.)
A PKC é uma enzima amplamente distribuída no organismo, tendo sido encontrada em praticamente todos os tecidos de mamíferos testados. É particularmente abundante no sistema nervoso (SN), desempenhando importante papel no controle da atividade do SN e da propagação do sinal neural. Sua ampla distribuição nos diferentes tecidos, tanto de vertebrados quanto de invertebrados, evidencia seu papel crucial no controle ou modulação de vários outros processos biológicos. Entre os mais conhecidos, podemos citar: regulação de secreções celulares, liberação de neurotransmissores, condutância de membrana e contração muscular. Atualmente, sabese que a PKC faz parte de uma grande família de proteínas, com várias isoformas que apresentam características enzimológicas sutilmente individuais. Alguns membros da família apresentam padrões distintos de expressão tecidual e localização intracelular. A família PKC é classificada em quatro grupos: ■ Convencionais ou cPKC: α, βI, βII e γ, as quais são ativadas por Ca2+, fosfatidilserina (PS), diacilglicerol (DAG) ou éster de forbol ■ Novas ou nPKC: δ, ε, η, μ e θ, as quais são ativadas por PS e DAG ou éster de forbol, mas independentes de Ca2+ ■ Atípicas ou aPKC: ξ, ι e λ, as quais são Ca2+independentes e insensíveis a DAG e a éster de forbol, porém são ativadas por PS ■ PRK: semelhantemente às atípicas, são insensíveis a Ca2+, a DAG e a éster de forbol, sendo ativadas pelas proteínas G monoméricas, Rho. As isoformas de PKC consistem em um domínio catalítico (carboxiterminal) e um domínio regulatório (aminoterminal). O domínio catalítico contém sequências incluindo o local de ligação para ATP, que são homólogas a outras proteinoquinases. Os domínios regulatórios de algumas isoformas apresentam locais para ligação de cálcio. Todas
as isoformas apresentam no seu domínio regulatório um motivo denominado pseudossubstrato, que pode interagir com o local ativo da enzima, inativandoa na ausência de fatores ativadores. O fato de a ativação de PKC ser uma resposta comum a quase todos os mitógenos, e de promotores tumorais serem mitogênicos para certos tipos celulares, levou a uma intensiva busca de seus substratos ao longo das últimas duas décadas. Ao contrário da proteinoquinase A (PKA), não foi ainda determinada uma sequência consenso para a fosforilação pela PKC. Todas as PKC requerem resíduos básicos, mas há uma variação considerável na justaposição e escolha de arginina ou lisina ao redor do local de fosforilação. Além da fosforilação de serina ou treonina, a isoforma δ de PKC também tem capacidade de fosforilar tirosina. PKC também é capaz de se autofosforilar em três regiões diferentes de sua sequência primária, o que provavelmente implica uma autorregulação de sua função biológica. A organização espacial e temporal da transdução de sinal é fundamental para direcionar diferentes estímulos extracelulares para distintas respostas celulares. Um exemplo clássico é a interação que ocorre entre hormônios e fatores de crescimento, com a grande família de serinas/treoninoquinases conhecidas como proteinoquinases C (PKC). Os requisitos moleculares para promover a translocação da PKC a específicos domínios da membrana plasmática envolvem sua ativação por diacilglicerol (DAG) e cálcio (Ca2+). A interação de isoformas de PKC com proteínas como receptores para quinases C ativadas (RACKS), AKAP, proteína 1433, proteínas de choque térmico (HSP) e importinas transloca o complexo para localizações celulares específicas, aproximando a PKC a seus substratos. Várias anexinas (Anx), incluindo AnxA1, A2, A5 e A6, também interagem e conduzem PKC para a membrana, possibilitando a fosforilação de substratos específicos. A ativação da PKC, frequentemente, resulta em sua translocação para a membrana citoplasmática, não sendo pois surpreendente que vários de seus substratos sejam proteínas associadas à membrana. Na realidade, diferentes isoformas de PKC podem translocarse para locais celulares distintos, o que explica a variedade de respostas celulares por elas controladas. Há vários substratos de PKC localizados no citoesqueleto; estes podem servir de instrumento para as rápidas modificações morfológicas documentadas em células tratadas com fatores de crescimento ou ésteres de forbol. Uma proteína ácida foi identificada como um dos substratos majoritários para a PKC. Esta proteína foi denominada MARCKS (myristoylated, alaninerich Ckinase substrate). MARCKS é uma proteína ligante de actina e de calmodulina, cuja ligação à membrana plasmática durante a adesão a substrato é regulada pela PKC. Sendo assim, representa uma molécula candidata ideal através da qual a PKC poderia regular a associação reversível do citoesqueleto de actina com a membrana plasmática, que é um prérequisito para a locomoção, assim como para outras alterações morfológicas celulares. A cascata desencadeada por Gq, através de PKC, também parece regular muitas isoformas de fosfolipase D (PLD), podendo ativar o fator transcricional NFκB. PLD é uma enzima de ubiquitinação (ver adiante, “Receptores de TNF” e “Finalização de sinal”) que hidrolisa fosfatidilcolina a ácido fosfático e colina. O fator transcricional NFκB, uma vez ativado no citoplasma, migra para o núcleo da célula, onde poderá ativar a transcrição de grande número de genes, como, por exemplo, os relacionados com processos inflamatórios e estresse.
Receptores acoplados a proteínas Gt e Go Como já tivemos a oportunidade de ver, os estímulos externos geram uma resposta intracelular por alterarem os níveis dos chamados segundos mensageiros. Entre estes estímulos, podemos ter os mensageiros químicos (p. ex., odores) e, além destes, a luz. Ambas as vias de transdução do sinal luminoso e do odorífero estão baseadas em um tipo especial de canal catiônico, aberto por nucleotídios cíclicos, conhecido por CNG (cyclic nucleotide gated). Mais de 10.000 odores são detectados por receptores olfatórios celulares localizados na cavidade nasal. Estes receptores estão acoplados a uma proteína Golf, cuja ativação leva ao crescimento da atividade de adenililciclase, promovendo assim um aumento intracelular de cAMP. O cAMP produzido promove a despolarização destas células, ao ligarse a um tipo específico de canal altamente permeável ao íon Ca2+. A abertura destes canais pelo cAMP conduz a uma grande elevação da concentração de cálcio no citoplasma que promove, por sua vez, uma despolarização celular por saída de Cl– (a qual é Ca2+dependente), amplificando assim a corrente gerada pelo cAMP (Figura 3.22). Por experiência própria, sabemos que o sistema olfatório, bem como todos os nossos sistemas sensoriais, adaptase rápida e eficientemente a estímulos persistentes. Esta adaptação, parcialmente, realizase por um mecanismo interessante de retroalimentação no neurônio
olfatório. Quando a célula é estimulada e os canais CNG se abrem, ocorre grande influxo celular de íons Ca2+, que se ligam à calmodulina (CaM). O complexo Ca2+/CaM ligase a locais nos canais CNG, que reduzem sua afinidade por cAMP e se fecham, novamente. Além disso, o complexo Ca2+/CaM ativa a fosfodiesterase (PDE), que destrói o cAMP. Assim, embora a substância odorífera ainda esteja presente, a sensibilidade da célula é altamente reduzida. Outros mecanismos adicionais de adaptação existem no cérebro, durante as várias etapas do processamento da informação olfatória.
Auroras quinases As auroras formam uma conservada família de serina/treoninoquinases, que apresentam funções essenciais na divisão celular. As auroras quinases são quinases mitóticas, frequentemente associadas a cromossomos e complexadas a outras proteínas. Elas interagem com componentes do citoesqueleto, na divisão celular. Existem três tipos em mamíferos: auroras quinases A, B e C, cada qual apresentando uma localização específica durante a mitose celular. A aurora quinase A, também conhecida como “quinase polar”, está primariamente associada à separação dos centrossomos, enquanto a B, chamada de “quinase equatorial”, é uma proteína cromossômica passageira. A C aparece localizada no centrossomo, desde a anáfase até a telófase; é altamente expressa nos testículos. Os três tipos de auroras quinases têm forte associação a câncer. A aurora A vem sendo mapeada em regiões do cromossomo humano que estão amplificadas em células cancerosas e tumores primários. Os níveis de expressão das auroras B e C apresentamse também elevados em algumas linhagens celulares tumorais. A aurora C se localiza em uma porção cromossômica associada a câncer ovariano e pancreático. Curiosamente, a fototransdução promovida por cones e bastonetes, da retina dos vertebrados, também utiliza canais CNG para gerarem uma resposta eletrofisiológica. Nestas células receptoras, no entanto, o cGMP está ligado ao canal de Na+, mantendoo aberto no escuro (o que provoca despolarização da membrana); sob iluminação, a proteína Gt (ou transducina), ativada pelo receptor de fótons (agora em nova configuração), estimula uma fosfodiesterase que degrada cGMP, baixando os níveis desse nucleotídio, que se desliga dos canais de Na+, que se fecham (causando hiperpolarização da membrana) (Figura 3.23). Além disso, a adaptação de fotorreceptores, como ocorre nos receptores olfatórios, é causada pelas mudanças nas concentrações intracelulares de Ca2+ que acompanham a resposta ao estímulo, dependentes de calmodulina e da afinidade de cGMP pelos canais CNG. Entretanto, os efeitos dos nucleotídios cíclicos e do Ca2+ são opostos: nas células olfatórias, cAMP e Ca2+ aumentam com o estímulo, ao passo que nos fotorreceptores dos cones e bastonetes o cGMP e o Ca2+ diminuem em resposta à luz. Nos fotorreceptores, a ativação pela luz promove diminuição da ação do Ca2+ pela sua ligação à calmodulina, restaurando assim o estado aberto dos canais CNG. Os baixos níveis intracelulares de Ca2+ também contribuem para a ativação da guanililciclase, o que novamente resulta no aumento da abertura dos canais CNG.
Receptores frizzled e a sinalização por bcatenina Semelhantemente aos receptores acoplados à proteína G, os receptores frizzled também têm sete domínios transmembrânicos; mas, embora possam sinalizar através de proteínas Gq, na sua maioria atuam independentemente de proteínas G, utilizando a proteína citoplasmática dishevelled. Seu ligante, Wnt, é proteico e foi inicialmente descrito em Drosophila. Hoje, sabese que o sistema Wnt/receptor frizzled existe em todos os animais estudados e está relacionado com muitos aspectos de desenvolvimento. O genoma dos mamíferos codifica 19 proteínas Wnt e 10 receptores transmembrânicos frizzled, os quais, em teoria, poderiam perfazer 190 combinações, cada uma evocando uma diferente resposta biológica. Esses genes são altamente conservados com genes Wnt ortólogos encontrados em várias espécies de poríferos, cnidários, insetos e vertebrados, abrangendo 600 milhões de anos de evolução. Nesses organismos, o gene Wnt é a principal via de controle da proliferação e morte celular, diferenciação durante o desenvolvimento embrionário e homeostase na fase adulta.
Figura 3.22 ■ Cascata de sinalização de receptores (RO) acoplados à proteína Golf, em neurônios olfatórios. A subunidade aolf ativa a adenililciclase tipo III, que catalisa a conversão de ATP em AMP cíclico. Este se liga a um canal catiônico operado por nucleotídio (o CNG) na membrana citoplasmática, que se abre, permitindo a entrada de íons Na+ (que despolarizam a membrana, transformando o sinal químico em elétrico) e íons Ca2+ (que se ligam à calmodulina). A Ca2+ /calmodulina (CaM) ativa uma fosfodiesterase (PDE), que catalisa a transformação de AMP cíclico (cAMP) em não cíclico (AMP), atenuando o sinal, fenômeno conhecido como adaptação sensorial. (Adaptada de www.utdallas.edu.)
Figura 3.23 ■ Cascata de sinalização de receptores acoplados à proteína Gt (transducina) nos bastonetes da retina. A luz fotoisomeriza a rodopsina, cuja mudança conformacional ativa a proteína Gt. A subunidade αt ativa a fosfodiesterase (PDE), que catalisa a conversão de GMP cíclico (cGMP) em não cíclico (GMP). No escuro, o cGMP encontrase ligado a canais catiônicos
operados por nucleotídio (CNG) na membrana citoplasmática, mantendo os canais abertos e a célula despolarizada. Na luz, com a diminuição dos níveis de cGMP, os canais se fecham e a célula se hiperpolariza. GC, guanililciclase. (Adaptada de www.utdallas.edu.)
Estudos iniciais direcionaram para a existência das chamadas rotas Wnt canônicas (incluindo Wnt1, Wnt3a e Wnt8) e não canônicas (incluindo Wnt5a e Wnt11), que ativariam vias de sinalização canônicas e não canônicas, respectivamente. No entanto, as inúmeras possibilidades teóricas e vias de sinalização encontradas nos últimos anos sugerem que a subdivisão de Wnt extrapolaria em muito essas duas categorias inicialmente propostas. Em vez disso, o postulado de que os Wnt são capazes de ativar múltiplos caminhos determinados por conjuntos distintos de receptores parece hoje o mais correto. Ligantes Wnt são únicos, na medida em que podem ativar diferentes receptores, mediando assim inúmeras vias de transdução de sinal. Essa diversificação tornase ainda maior, pois Wnt ativa distintas cascatas, que por sua vez apresentam intersecções com outros sinais no meio intracelular. A ativação de algumas dessas sinalizações depende de correceptores, como lipoproteínas de baixa densidade, por exemplo. Uma vez ligado ao seu receptor, o Wnt ativa pelo menos cinco cascatas de sinalização intracelulares diferentes, já conhecidas (Figura 3.24): Wnt/βcatenina (rota canônica), rota canônica divergente ou não canônica, Wnt/polaridade celular planar (Wnt/PCP via), Wnt/Ca2+ e rota da translocação nuclear do receptor frizzled. Nas primeiras quatro cascatas, a mudança conformacional do receptor frizzled conduz à ativação da proteína dishevelled, o que modula componentes seguintes da via. Outros sistemas, ainda pouco estudados em mamíferos, também relacionados com embriogênese e diferenciação, são os receptores notch e hedgehog.
Receptores notch A cascata de sinalização por receptor notch, inicialmente descrita em Drosophila, é altamente conservada. Mamíferos têm quatro receptores nocth que podem ser ativados por cinco ligantes diferentes: Delta 1, 3 e 4 e Jagged 1 e 2. O receptor é um heterodímero, consistindo em uma subunidade extracelular covalentemente ligada a uma segunda subunidade que contém o domínio de heterodimerização extracelular, o domínio transmembrânico e a região citoplasmática. Uma estrutura comum a todos os ligantes de notch é o domínio aminoterminal denominado DSL (Delta, Serrate e Lag2), envolvido na ligação ao receptor. A sinalização é iniciada pela ligação ligantereceptor entre células vizinhas, o que leva a duas clivagens proteolíticas sucessivas do receptor. Dessa forma, é liberado o domínio intracelular do receptor, que trafega para o núcleo e heterodimeriza com fatores de transcrição, conduzindo à indução de expressão de genesalvo (Figura 3.25). Há evidências de que notch pode conversar ou cooperar com outras vias de sinalização, como NFκB e TGFβ, ampliando o espectro de genesalvo. Nos seres humanos, o anormal ganho ou a perda de componentes da sinalização notch provoca um grande número de patologias, entre elas a síndrome de Alagille (displasia artériohepática que pode atingir o fígado e o coração), doenças da válvula aórtica e cânceres.
Receptores de hedgehog A via de hedgehog, também descoberta em Drosophila, é um regulador importante de diferenciação celular, polaridade tecidual e proliferação. No início da década de 1990, foram identificados em vertebrados três homólogos de hedgehog, Sonic, Indian e Desert, que são secretados e atuam em tecidos em desenvolvimento, tanto em células próximas como distantes. Recentemente, foi demonstrado que ocorre a ativação desta via em uma variedade de cânceres humanos, incluindo carcinomas, meduloblastomas, leucemia e tumores de próstata, mamas, ovários e pulmões. A sinalização por hedgehog também é altamente conservada. Na ausência de ligantes hedgehog, a proteína smoothened (de sete domínios transmembrânicos) encontrase inibida por outra proteína transmembrânica patched. A ligação de hedgehog ao seu receptor patched remove essa inibição, permitindo que smoothened inicie a cascata de sinalização que leva à ativação de fatores de transcrição.
Figura 3.24 ■ Cascata de sinalização de receptores frizzled. A. Via canônica é a cascata de sinalização mais bem estudada. A ligação de Wnt aos receptores frizzled ativa a proteína ancoradora dishevelled (DVL), resultando na estabilização de βcatenina e seu transporte para o núcleo, onde regula expressão gênica por meio de sua associação ao fator de transcrição LEF/TCF. B. Via canônica divergente: DVL ligase a microtúbulos e regula a fosforilação de proteínas associadas a microtúbulos (MAP). C. Via da polaridade celular: nesta sinalização, DVL ativada estimula as pequenas GTPases RhoA e Rac1, que por sua vez ativam a quinase JNK para a regulação dos citoesqueletos de actina e de microtúbulos. D. Via de cálcio: nesta via, a ativação de DVL induz um aumento nos níveis intracelulares de Ca2+ e a ativação de proteinoquinase C (PKC) e quinase
dependente de Ca2+ /calmodulina II (CaMKII), resultando na migração do fator de transcrição de células T (NFAT) para o núcleo. E. Via de importação nuclear de frizzled: nesta via alternativa, os receptores de Wnt são internalizados, clivados e levados ao núcleo. Este tráfego depende da ligação do fragmento do receptor frizzled 2 (FZ2) à proteína ligante do receptor de glutamato (GRIP). (Adaptada de Korkut e Budnik, 2009.)
Figura 3.25 ■ Sinalização por notch. Proteínas notch são sintetizadas como precursores que, após clivagem, geram um heterodímero cujas subunidades se ligam não covalentemente. A sinalização é iniciada pela interação ligantereceptor, que induz duas outras clivagens. A última proteólise libera o domínio citoplasmático do receptor Notch, que se transloca para o núcleo, onde se liga ao fator de transcrição CSL, que se converte de repressor em ativador transcricional. (Adaptada de Radtke et al., 2010.)
Receptores de TNF (fator de necrose tumoral) Esses fatores são massivamente liberados por mastócitos; atuam em tecidos envolvidos em resposta inflamatória, estimulandoos a produzirem mais TNF, em uma retroalimentação positiva que, rápida e eficientemente, amplifica a resposta. Os receptores de TNF são homotrímeros de proteínas transmembrânicas que reconhecem TNFα e TNFβ. A ligação de TNF a seu receptor desencadeia a fosforilação de uma proteína IκB, que é ubiquitinada e destruída por proteassomos (ver adiante, “Finalização de sinal”). A proteína IκB normalmente inibe o fator de transcrição NFκB, que agora, desinibido, movese para o núcleo, onde atua como fator de transcrição (Figura 3.26), ligandose ao promotor de mais de 60 genes, como os que produzem interleucinas e outras citocinas promotoras de inflamação. A ação anti inflamatória de glicocorticoides devese à sua atividade estimuladora da produção de IκB, além de eles inibirem a via de síntese dos eicosanoides.
Figura 3.26 ■ Cascata de sinalização de receptores de fator de necrose tumoral α (TNFα). Após a ativação por TNFα, proteínas adaptadoras associam o receptor trímero à ativação de uma quinase que fosforila IKK β que, por sua vez, fosforila o elemento IκB. Esta proteína, na ausência dessa sinalização, encontrase associada ao fator de transcrição NFκB, inibindoo. Depois da fosforilação de IκB, ele se dissocia de NFκB, que migra para o núcleo, onde ativa genesalvo, enquanto seu inibidor é ubiquitinado e degradado no proteassomo. (Adaptada de Alberts et al., 2002.)
▸ Receptores com atividade enzimática intrínseca Quatro tipos de domínios enzimáticos (tirosinoquinase, serina/treoninoquinase, tirosinofosfatase e guanililciclase) são encontrados como receptores de membrana (Figura 3.27), a maioria deles ativada após dimerização. Os receptores tirosinoquinases, os receptores semelhantes a tirosinofosfatase e os receptores guanililciclase do peptídio atrial natriurético formam homodímeros, ao passo que os receptores serina/treoninoquinases e a única classe de receptores de fatores de crescimento epidérmico (EGF) formam heterodímeros.
Receptores tirosinoquinases
Os mensageiros extracelulares (geralmente fatores de crescimento, como a insulina e o fator de crescimento de fibroblasto), ao ligaremse ao receptor tirosinoquinase, ativam sua autofosforilação sobre um resíduo Cys; então, o receptor se dimeriza, desencadeando uma cascata de fosforilação de proteínas, muitas delas tirosinoquinases citosólicas. Algumas delas entram no núcleo e fosforilam fatores de transcrição. Os receptores tirosinoquinases podem ter sido vitais no estabelecimento do primeiro metazoário. Embora estes receptores estejam ausentes em leveduras ou plantas (fosforilação em tirosinas ocorre em plantas e leveduras, mas não por meio da ação de uma tirosinoquinase de membrana), eles estão presentes nas esponjas. Muitos ortólogos para as cinco maiores classes de receptores tirosinoquinases humanos [receptores de FGF, EGF, insulina, fator de crescimento endotelial vascular (VEGF) e fator de crescimento derivado de plaquetas (PDGF)] já estão presentes em Caenorhabditis elegans e Drosophila melanogaster.
Figura 3.27 ■ Representação esquemática de receptores de membrana cuja porção Nterminal tem atividade quinásica ou fosfatásica, comparados com enzimas equivalentes citoplasmáticas. (Adaptada de Alberts et al., 2002.)
A ativação do receptor pelo ligante leva à ativação da porção quinásica do receptor, resultando em autofosforilação e fosforilação de substratos SHC, o que culmina com a ativação da proteína G Ras. A Ras é uma proteína G monomérica, com capacidade de ligarse a GTP e GDP, tendo atividade GTPásica; essas propriedades são semelhantes às da subunidade α das proteínas G triméricas. O interesse despertado por essa pequena proteína, de 21 kDa, devese a seu papel central, multifuncional, na sinalização do crescimento e da proliferação celular, na diferenciação e na apoptose. As proteínas Ras processam os sinais – advindos de: (1) receptores tirosinoquinases, (2) receptores associados a enzimas quinases e (3) receptores acoplados a proteínas G – para o interior das células, afetando a transcrição gênica. Para tanto, os componentes comumente ativados pelas Ras são as quinases Ser/Tre, Raf, MEK e PI3K, ocasionando uma cascata de fosforilações que culmina em fatores de transcrição, principalmente ERK e JNK.
Nas vias de sinalização de receptores monoméricos, a cascata de MAPquinases (MAPK) é recrutada, resultando na ativação de fatores de transcrição como CREB, cFos e Elk1, envolvidos na transcrição de genes relacionados com a proliferação celular (Figura 3.28). Os receptores de fatores de crescimento, por exemplo a insulina, podem muitas vezes dimerizarse, como início da sinalização. Nesse caso, é ativada a fosfoinositídio 3quinase (PI3K), aumentando a concentração intracelular de PIP2 e PIP. Este, por sua vez, ativa a quinase dependente de fosfato de fosfatidilinositol (PDK1), que subsequentemente ativa a Akt/PKB. A PI3K pode ser ativada por receptores de fatores de crescimento, diretamente ou através da proteína G monomérica Ras; a subunidade βγ (liberada das proteínas G após a estimulação de receptores acoplados à proteína G) também constitui um outro mecanismo de ativação de PI3K. Pequenas GTPases formam uma família de proteínas de ligação ao GTP, com um peso molecular de aproximadamente 21 kDa. Entre elas podemos destacar Ras, Rho, Rab e Arf. Essas GTPases estão envolvidas em relevantes processos celulares, como a síntese e o tráfico de proteínas, a transdução de sinais da membrana plasmática em resposta a estímulos externos e a regulação do citoesqueleto, entre outros. Ras GTPases, expressas por três genes, regulam proliferação, apoptose, senescência e diferenciação. Uma das principais vias de sinalização ativadas por Ras é a RafMEKERK (cascata de MAPquinases, MAPK), capaz de sinalizar alvos no citosol, bem como no núcleo. A família das Rho GTPases é constituída por mais de 20 membros que funcionam como reguladoreschave do citoesqueleto, modulando assim a migração de células, o tráfego de vesículas e a citocinese. Os três principais grupos dentro da família são Rho, Rac e Cdc42. A maior família de proteínas relacionadas a Ras é a das Rab GTPases com 11 componentes em levedura e, pelo menos, 60 em mamíferos. Rab GTPases desempenham papelchave na regulação do tráfego de membrana em diferentes locais do sistema de membranas internas. Enquanto Arf GTPases controlam a biogênese de vesículas, Rab GTPases são importantes para o transporte dirigido a membranas específicas. Arf GTPases estão implicadas no controle do tráfego por membrana e arquitetura de organelas. Em mamíferos, existem seis ARFs divididas em três classes: classe I, composta por Arf 1 e 3; classe II, composta por Arf 4 e 5; e classe III, composta pela ARF6, a proteína mais divergente deste grupo. Em seres humanos, Arf2 e Arf4 são idênticas. A família inclui também Arf Sar1 e mais de 20 proteínas Arflike (ARL). A Akt/PKB é uma serina/treoninoquinase que, em mamíferos, se apresenta sob três isoformas conhecidas: Akt1, Akt2 e Akt3. A Akt ativada promove a sobrevivência celular através de duas vias distintas, descritas a seguir. Por uma das vias – inibe a apoptose ao fosforilar o componente Bad do complexo Bad/BclXL. O Bad fosforilado ligase a 1433, causando a dissociação do complexo Bad/BclXL, o que permite a sobrevivência celular. Pela outra via – ativa a IKKα que, em última instância, conduz à ativação de NFκB e à sobrevivência celular (Figura 3.29).
Figura 3.28 ■ Cascata de sinalização de receptores tirosinoquinases monoméricos. A ativação de receptores monoméricos por fatores de crescimento (FC) leva à autofosforilação do receptor e à fosforilação de substratos específicos (SHC, PLCγ). Isso resulta na ativação da proteína G monomérica Ras, desencadeando fosforilações em cascata de MAPquinases (MEK) e ativação dos fatores de transcrição ELK1, CREB ou cFOS. (Adaptada de www.sigmaaldrich.com.)
Figura 3.29 ■ Cascata de sinalização de receptores tirosinoquinases diméricos. A ativação de receptores tirosinoquinases por fatores como a insulina, por exemplo, pode induzir sua dimerização. Nessa sinalização, a fosfoinositídio 3quinase (PI3K) é ativada, geralmente através da proteína G monomérica Ras, causando a ativação da quinase dependente de fosfato de fosfatidilinositol. A Akt inibe a apoptose, ao fosforilar o componente Bad do complexo Bad/BclXL. O Bad fosforilado ligase a 14 33, provocando a dissociação do complexo Bad/BclXL, o que permite a sobrevivência celular. A Akt também ativa a quinase IKK, que fosforila o fator inibidor de NFkB, o qual, liberado da inibição, estimula transcrições de genes relacionados com a sobrevivência celular. (Adaptada de www.sigmaaldrich.com.)
Receptores serina/treoninoquinases O ligante conhecido para receptores serina/treoninoquinases é o fator de crescimento transformante beta (TGFb), cuja ligação ativa a capacidade quinásica do receptor que fosforila proteínas Smad citoplasmáticas. Estas se movem para o núcleo, onde formam dímeros com outra proteína Smad, os quais agora se ligam ao DNA, reprimindo ou estimulando a transcrição do genealvo (Figura 3.30). Essa via de sinalização inibe o ciclo celular; portanto, não é de estranhar que mutações nos genes do receptor ou das proteínas Smad estejam associadas a câncer (p. ex., de pâncreas e de cólon).
Receptores tirosinofosfatases Em contrapartida, os receptores semelhantes a tirosinofosfatases, quando ativados por ligantes, desfosforilam proteínas celulares. Seu domínio catalítico na porção citoplasmática da molécula é muitas vezes duplo. Só recentemente, foram identificados uns poucos ligantes para esses receptores. Por exemplo, no tecido nervoso, a contactina parece ser o parácrino responsável pela ativação de um subtipo de receptor tirosinofosfatase. Esses receptores vêm sendo implicados na angiogênese e na adesão celular.
Receptores guanililciclases O hormônio peptídico denominado peptídio atrial natriurético (ANP), produzido preferencialmente pelas células musculares cardíacas atriais e ventriculares, é lançado na circulação e vai ativar receptores de membrana que são guanililciclases (GC) de membrana. A ativação da GC leva à conversão de trifosfato de guanosina (GTP) em 3’,5’ monofosfato de guanosina cíclico (cGMP). Existem outros dois hormônios análogos ao ANP: o BNP, produzido também
no coração (cardiomiócitos ventriculares, principalmente), e o CNP, formado nas células endoteliais dos vasos. Os três hormônios exibem atividade vasodilatadora e abaixam a pressão arterial por aumentar a excreção renal de sódio e água. Os receptores NPRA/B e NPRNPRC são os principais tipos de receptores para os peptídios atriais natriuréticos. NPRA e B são receptores guanililciclase de membrana, ao passo que o receptor NPRC não apresenta essa atividade. A ligação do ANP ao receptor NPRA leva à conversão de GTP a cGMP, um segundo mensageiro intracelular. O receptor NPRA ativo é um homodímero; cada monômero contém um domínio extracelular de ligação ao ANP na sua porção aminoterminal e um domínio intracelular guanililciclase na sua porção carboxiterminal. Como dito, o cGMP recém sintetizado pode se ligar a proteinoquinases dependentes de cGMP (PKG I ou II), além de atuar sobre canais iônicos dependentes de nucleotídios cíclicos (CNG). Até o momento, dois subtipos diferentes de NPRC foram identificados que podem se ligar a uma ampla gama de agonistas, incluindo ANP, BNP e CNP.
Figura 3.30 ■ Cascata de sinalização de receptores serina/treoninoquinases. Ao ligaremse ao mensageiro extracelular, esses receptores dimerizamse, desencadeando uma sequência de fosforilações e ativações de proteínas Smad. Essas proteínas são ancoradouros de fatores de transcrição que podem, então, exercer ativação gênica, resultando em inibição da proliferação e apoptose. (Adaptada de www.sigmaaldrich.com.)
O cGMP serve como um segundo mensageiro (Figura 3.31), de uma forma similar àquela observada com o cAMP; ele pode ser constituído pela ação da GC, que é a porção intracelular do receptor de membrana, ou de GC solúveis citosólicas.
RECEPTORES INTRACELULARES
Os receptores intracelulares regulam a expressão gênica de modo direto, pois são fatores de transcrição ativados por ligantes, situados no citoplasma ou no núcleo. Incluem os receptores de: hormônios esteroides (cortisol, hormônios sexuais), hormônio da tireoide (T3), vitamina D e os receptores órfãos. Estes últimos são receptores nucleares para os quais nenhum ligante foi, até o momento, identificado.
▸ Receptores de esteroides Receptores de esteroides são proteínas com afinidade por determinado esteroide que, uma vez complexados com o ligante, irão se dimerizar e se ligar a elementos responsivos localizados no promotor do genealvo. Essa família de receptores tem em comum três domínios funcionais: o domínio em dedo de zinco (Figura 3.32) (necessário para ligação ao DNA), a região Nterminal de ligação ao promotor e a região Cterminal (responsável pela ligação ao hormônio e à segunda unidade do dímero) (Figura 3.33). O domínio em dedo de zinco é assim chamado por dispor quatro átomos de zinco, cada um preso a quatro cisteínas (ver Figura 3.32). É característico de muitos fatores de transcrição; entre eles, os receptores de esteroides. Alguns receptores de esteroides estão no núcleo, associados a desacetilases, mantendo a expressão do gene reprimida, a ele ligados mesmo na ausência do hormônio. Após a ligação do hormônio ao seu receptor, o complexo se separa da desacetilase; então, recruta acetilases e ligase a regiões específicas responsivas a esteroides, ativando a expressão gênica. Em outros casos, a ligação do complexo ao promotor pode reprimir o gene. Outros receptores, como os de glicocorticoides, estão no citoplasma. O cortisol, por exemplo, atravessa a membrana plasmática e ligase ao seu receptor. O complexo resultante tem o domínio de ligação ao DNA comprometido por ligação a proteínas, como o dímero heat shock protein 90 (hsp 90), o heat shock protein 70 (hsp 70) e o FKB P52 (Figura 3.34). A dissociação do complexo libera a subunidade receptor/cortisol, agora na forma ligante ao DNA. O receptor ativado forma um homodímero e se transloca para o núcleo, onde se liga a elementos responsivos específicos ao cortisol (GRE) no DNA, para ativar a transcrição gênica. As respostas rápidas (em cerca de alguns minutos), chamadas de respostas primárias, são consequentes do aumento da expressão de genes comuns, como cfos, independente do tipo de célulaalvo. As respostas tardias (de longo termo), denominadas secundárias, são específicas ao tecidoalvo.
Figura 3.31 ■ Cascata de sinalização de receptores guanililciclases. Os ligantes conhecidos para esse subtipo de receptor enzimático pertencem à família do peptídio natriurético atrial. Com o aumento de cGMP intracelular, causado pela ação catalítica da guanililciclase sobre o GTP, uma proteinoquinase dependente de cGMP (a PKG) é ativada, desencadeando fosforilações que evocam a resposta biológica final. GC, guanililciclase; NO, óxido nítrico; PDE, fosfodiesterase. (Adaptada de www.sigma aldrich.com.)
Figura 3.32 ■ Domínio de ligação ao DNA, presente nos receptores de esteroides, com a característica estrutura em dedos de zinco, na qual o Zn4+ pode estar ligado a quatro cisteínas (Cys) ou a duas cisteínas e duas histidinas (His). (Adaptada de Krauss, 2003.)
▸ Óxido nítrico, guanililciclases, cGMP e proteinoquinases dependentes de cGMP (PKG) O óxido nítrico (NO) é uma das mais importantes moléculas sinalizadoras, em neurônios e no sistema imunológico, seja atuando dentro das células onde é produzido ou penetrando as membranas plasmáticas de células adjacentes. Por ser um gás, o NO difundese livremente através de membranas celulares. No entanto, sua meiavida é muito curta, transformandose rapidamente em nitratos e nitritos. Por isso, ele, geralmente, atua próximo de onde é sintetizado, de modo parácrino, ou mesmo autócrino. A sinalização evocada por NO depende de sua ligação a proteínas intracelulares receptoras, que tenham um íon metálico (p. ex., ferro) ou um átomo de enxofre (p. ex., cisteínas). Mudanças alostéricas nessa proteína levam à formação de um segundo mensageiro, que desencadeia uma cascata de reações. O receptor de NO mais conhecido é a guanililciclase; a estimulação das enzimas guanililciclases, solúveis no citosol ou ligadas à membrana plasmática, leva à formação de GMP cíclico (Figura 3.35).
Figura 3.33 ■ Os receptores dos esteroides e do hormônio tireoidiano possuem três domínios: a porção mais próxima do terminal carboxílico (de reconhecimento do ligante), a intermediária (de ligação ao DNA) e a mais perto do terminal amina (ativadora de transcrição). (Adaptada de Alberts et al., 2002.)
Figura 3.34 ■ Cascata de sinalização do receptor de glicocorticoides. Este receptor (R) encontrase no citoplasma; ao ligarse ao cortisol, o domínio de ligação ao DNA, que estava comprometido por ligação a proteínas (como o dímero heat shock protein 90 [hsp 90], o heat shock protein 70 [hsp 70] e o FKB P52), fica livre. O complexo receptor/cortisol forma um homodímero, que se transloca para o núcleo, onde se liga a elementos responsivos ao cortisol (GRE) no DNA, para ativar a transcrição gênica. (Adaptada de www.sigmaaldrich.com.)
O cGMP pode, por sua vez, atuar de três maneiras diferentes, dependendo do ambiente celular em questão. Uma destas atividades conhecidas é a da modulação da concentração de cAMP, ativando ou inibindo uma fosfodiesterase específica para cAMP. Na retina, ou no sistema olfatório, o cGMP abre canais catiônicos modulados por nucleotídios cíclicos, os quais são essenciais para a geração de sinal nestes sistemas sensoriais. Finalmente, o cGMP ativa proteinoquinases dependentes de cGMP (PKG), eliciando uma grande gama de respostas celulares (ver Figura 3.35). Várias famílias de fosfodiesterases (PDE I a VI) agem como switches reguladores, ao catalisar a degradação de cGMP a 5’monofosfato de guanosina (5’GMP). Dentre elas, a PDE II é estimulada por cGMP e a PDE III, inibida por cGMP; a PDE V ligase a cGMP e é importante na regulação da contração de músculo liso, e a PDE VI é altamente seletiva para cGMP, localizandose nos fotorreceptores. Em mamíferos, as PDE são classificadas em 11 superfamílias, resultantes da expressão de 21 genes. As proteinoquinases dependentes de cGMP emergiram como importantes quinases componentes de cascatas de sinalização. A possibilidade da existência desta enzima já era cogitada na década de 1960, porém a referida enzima só foi descoberta na década seguinte, em músculo de cauda de lagosta. Ela está largamente difundida nas células eucarióticas, tendo sido altamente conservada durante a evolução, desde organismos unicelulares (como o protozoário Paramecium) até o homem.
Em mamíferos, sua expressão é controlada por dois genes, originando os subtipos PKGII e PKGI; este último, por sua vez, por splice gênico, pode originar duas isoformas (PKGI alfa e PKGI beta). As PKG pertencem à família de proteinoquinases que fosforilam, preferencialmente, resíduos de serina/treonina, dispondo de três domínios funcionais: ■ Um domínio Nterminal ■ Um domínio regulatório R, contendo dois locais para ligação do cGMP ■ Um domínio catalítico C, apresentando dois domínios: um para a ligação do complexo Mg2+ATP e outro de ligação a peptídios. Este último catalisa a transferência da ligação do fosfato gama do ATP para o resíduo de serina/treonina da proteínaalvo.
Figura 3.35 ■ Mecanismo proposto para potenciação de longo termo. Os receptores NMDA (canais de cálcio presentes na membrana do neurônio póssináptico) são abertos por glutamato (secretado pelo neurônio présináptico), permitindo grande influxo de íons Ca2+ . O complexo Ca2+ /calmodulina, então formado, ativa a enzima sintase de óxido nítrico (NOS), que catalisa a conversão de arginina em citrulina e óxido nítrico (NO). Este ligase ao átomo de ferro da enzima guanililciclase, ativandoa e aumentando os níveis de cGMP e a atividade de PKG, tanto no neurônio póssináptico como no présináptico. Em resposta, há aumento da secreção de glutamato e dos receptores NMDA, fortalecendo a relação sináptica entre esses neurônios. (Adaptada de Hadley, 2000.)
A ligação de cGMP em ambos os locais da subunidade C leva a mudanças conformacionais, que revertem a inibição do centro catalítico pela porção Nterminal, e resulta na fosforilação do substrato proteico. Em baixas concentrações de cGMP, a ativação da heterofosforilação pode ser precedida pela autofosforilação da porção Nterminal. A PKG é direcionada a locais específicos subcelulares de atuação, orientada por esta porção. Em neurônios, os canais de Ca2+ receptores de glutamato abremse após a ligação ao neurotransmissor, aumentando os níveis de Ca2+ citosólico por influxo celular. A Ca2+/calmodulina ativa a sintase de óxido nítrico, que catalisa a produção de NO. Este estimula a guanililciclase, tanto no neurônio onde foi produzido como no présináptico, elevando os níveis de GMP cíclico; isso acarreta, respectivamente, o aumento de receptores de glutamato e de secreção de mais neurotransmissor (ver Figura 3.35). O NO apresenta efeitos no sistema nervoso central, tanto sobre a transmissão neuronal como sobre a plasticidade sináptica. Outra das funções mais bem estudadas da PKG é o controle do tônus da musculatura lisa. As células dessa musculatura são o componente principal dos vasos sanguíneos; elas controlam seu tônus e detêm papel central na
patogênese da aterosclerose e de outras doenças vasculares. Há pouco mais de duas décadas, tornouse evidente que o nitroprussiato de sódio e outros nitratos orgânicos, usados como vasodilatadores há mais de um século, relaxavam a musculatura lisa por aumentarem os níveis de cGMP. A descoberta seguinte foi que este efeito está associado à produção local de óxido nítrico por estes nitratos, o que aumenta os níveis de cGMP por ativar uma guanililciclase e, em última instância, uma PKGI. O NO reage com o íon ferro do local ativo da enzima guanililciclase (GC), estimulandoa a produzir GMP cíclico (cGMP), resultando no relaxamento da musculatura lisa que reveste os vasos e na vasodilatação. A ereção do pênis é mediada por NO liberado pelo endotélio dos vasos sanguíneos penianos, depois de estimulação dos terminais nervosos que controlam esses vasos. Os fármacos modernos (como Viagra®, Levitra® e Cialis®) aumentam essa resposta, por inibirem a fosfodiesterase que degrada o cGMP, mantendo alto o nível desse nucleotídio, o que faz os vasos ficarem relaxados e o pênis túrgido de sangue. Camundongos, com deleção do gene para PKGI, tornamse hipertensos entre quatro e seis semanas de vida. A geração de ondas peristálticas no sistema digestório é controlada por neurônios noradrenérgicos, os quais liberam NO após estimulação, relaxando o músculo liso intestinal. Os camundongos com deleção de PKGI apresentam o chamado pylorus stenosis, quadro que mostra grave distensão do estômago e peristaltismo irregular, com retardo da passagem do conteúdo intestinal.
MODULAÇÃO DE SINAL
▸ Regulações negativa e positiva do receptor Os receptores são elementos dinâmicos da membrana e seu número pode mudar em função do ciclo celular, do estágio de diferenciação celular e das condições fisiológicas. Assim, uma célula pode tornarse menos ou mais responsiva a um mensageiro extracelular, em função da flutuação de sua quantidade de receptores. O número de um dado receptor pode ser modulado, de modo negativo ou positivo, diretamente por seu ligante extracelular (regulação homoespecífica) ou por mensageiros seletivos para outros receptores (regulação heteroespecífica). Por exemplo, o hormônio da tireoide (T3) é indispensável para a manutenção do número de adrenorreceptores (receptores de epinefrina e norepinefrina) no músculo cardíaco (regulação heteroespecífica); quando existe T3 em excesso (em indivíduos hipertireóideos), ocorre a taquicardia típica dessa patologia. Opostamente, quando a insulina é secretada em excesso (em obesos), há diminuição do número de seus receptores, na maioria dos tecidos (regulação homoespecífica). A afinidade com que um mensageiro extracelular ligase a seu receptor também pode ser alterada positivamente; assim, quando a ligação inicial de uma molécula do ligante a um receptor facilita a união das moléculas seguintes aos outros receptores, dizse que o cooperativismo é positivo. Porém, quando a afinidade é reduzida pela ligação inicial, dizse que o cooperativismo é negativo (p. ex., a insulina).
▸ Proteinoquinases e fosfatases Quase todas as grandes rotas intracelulares são reguladas, de alguma maneira, por fosforilação. A adição ou subtração de grupos fosfato em substratos proteicos representa a maneira mais comum utilizada pela maioria das células dos eucariotos para regularem suas atividades, pelo delicado balanço entre fosfatases e quinases. Estas modificações pós traducionais de proteínas apresentam a propriedade de serem transientes e reversíveis. Elas viabilizam a propagação do sinal vindo do meio extracelular (p. ex., na forma de um hormônio que ativa um específico receptor de membrana), desencadeando, por sua vez, uma cascata de transdução intracelular. O caráter rápido e reversível desta reação possibilita à célula ajustarse aos inúmeros sinais que se propagam a todo momento nas suas diversas cadeias bioquímicas. Esta rede de sinais, ao mesmo tempo caótica e altamente organizada, regula praticamente todas as funções celulares: desde mitogênese, diferenciação, secreção, síntese, até morte celular. Neste contexto, as enzimas responsáveis pela fosforilação, em conjunto representadas pela grande família das proteinoquinases, são as mais diversificadas conhecidas. As responsáveis pela subtração de grupos fosfato, ou seja, as da família das fosfatases, geralmente sinalizam o término da resposta. Há três grandes famílias de fosfatases: as tirosinofosfatases, as serina/treoninofosfatases e aquelas que atuam em resíduos tirosina, serina e treonina. Ao contrário das quinases (que são inúmeras e diferem na estrutura de seus locais catalíticos), as fosfatases são poucas e adquirem especificidade por se ligarem a cofatores proteicos, que facilitam sua translocação e sua ligação seletiva a proteínas fosforiladas.
As proteínas serina/treoninofosfatases compreendem duas famílias de genes denominados PPP e PPM. As fosfatases que catalisam a remoção de grupos fosfato de serinas ou treoninas podem ser classificadas em seis subtipos: PP1, PP2A, PP2B (fosfatase dependente de Ca2+/calmodulina conhecida como calcineurina), PP4, PP5, PP6 e PP2C (fosfatase dependente de ATP/Mg2+), cada uma com múltiplas isoformas. Os três primeiros subtipos apresentam alto grau de homologia, enquanto PP2C é estruturalmente distinta, além de ser a única representante pertencente à família PPM. PP1 e PP2A são importantes reguladores negativos do ciclo celular. PP1 desfosforila substratos de PKA, como o CREB; PP2A consiste em uma fosfatase genérica para substratos fosforilados por quinases de Ser/Tre. PP2B é ativada por cálcio, tem alta atividade em tecido cerebral e parece estar envolvida em mecanismos de memória. Algumas das anormalidades neurofisiológicas encontradas em portadores da síndrome de Down (trissomia do cromossomo 21) parecem decorrer da expressão aumentada de proteínas codificadas por genes situados no cromossomo 21, que inibem a calcineurina. PP2B também desempenha importante papel na inflamação e na imunossupressão; tanto que a ciclosporina, substância inibidora de PP2B, é amplamente utilizada para prevenir a rejeição do órgão transplantado. PP4 é um membro da subfamília PP2A, encontrada no citoplasma, centrômero e núcleo, possuindo diferentes funções, dentre as quais duplicação do centrômero. PP5, encontrada praticamente em todos os tecidos, é uma serina/treoninofosfatase que possui homologia catalítica com a calcineurina (PP2B) e com as fosfatases PP1A e PP2A. PP6 é encontrada principalmente no núcleo, onde participa da regulação da transcrição. PP2C é abundante nos músculos cardíaco e esquelético, participando de vias de MAPquinases. As enzimas tirosinofosfatases (PTP) hidrolisam resíduos de fosfato ligados à tirosina e estão envolvidas em várias vias de sinalização. Nos últimos anos, mais de 112 PTP foram isoladas e sequenciadas a partir de diversos organismos, incluindo bactérias, leveduras, nematoides, insetos e vertebrados. Essa família é subdividida em dois grupos: proteínas tirosinofosfatases ligadas à membrana (tipo receptor) e citoplasmáticas. As PTP são enzimas ligadas à membrana (CD45, PTPα e PTPγ), que consistem em um segmento extracelular, semelhante àqueles presentes em domínios de moléculas de adesão, como a fibronectina, seguido de um segmento transmembranar simples, com um ou dois domínios catalíticos intracelulares. As PTP citosólicas (PTP1B, VH1 e SHP) frequentemente contêm domínios extracatalíticos, que podem estar envolvidos diretamente na regulação da atividade catalítica ou no direcionamento e reconhecimento do substrato. Como exemplo, podemos citar um par de domínios SH2 que conferem alta capacidade de ligação com proteínas contendo tirosina fosforilada.
▸ Conversas cruzadas As vias de sinalização interferem umas com as outras, de modo que a resposta final do ajuste homeostático de uma célula a sinais extracelulares dependerá do balanço das estimulações e inibições que determinada enzima, fator de transcrição ou, em última instância, o promotor gênico recebe. Por exemplo, existem adenililciclases que são inibidas por Ca2+; assim, um ligante que estimula um receptor acoplado à proteína Gs evocará uma resposta maior se a célula não estiver, ao mesmo tempo, sendo estimulada por um outro ligante que evoca aumento intracelular de Ca2+ (Figura 3.36). Outro exemplo interessante é o de receptores nucleares que são fosforilados por PKA ou por MAPquinases, acoplando a sinalização por receptor nuclear a outras vias de sinalização.
Figura 3.36 ■ Exemplo de conversas cruzadas entre vias de sinalização de receptores acoplados a proteínas Gs e Gq, receptores enzimáticos tirosinoquinase e receptores nucleares. AC, adenililciclase; PKA, proteinoquinase A; PKC, proteinoquinase C; Cam KII, proteinoquinase dependente de cálcio/calmodulina; DAG, diacilglicerol; PLC, fosfolipase C; PIP2, fosfatidilinositol; IP3, trifosfato de inositol; RE, retículo endoplasmático; PTK, receptor tirosinoquinase. (Adaptada de www.sigma aldrich.com.)
FINALIZAÇÃO DE SINAL Tão importante quanto iniciar uma “conversa” química é saber terminála. Principalmente, quando lembramos que inúmeros sinais estão sendo recebidos pela mesma célula, simultaneamente; e, portanto, centenas de mensagens estão sendo processadas pelas células em um dado momento. Os processos mais conhecidos de finalização de sinal incluem: fosforilação/desfosforilação proteica, dessensibilização do sistema receptor/via de sinalização, ubiquitinação e inibição por proteínas reguladoras de proteínas G.
▸ Fosforilação/desfosforilação de proteínas A fosforilação de substratos por proteinoquinases é terminada pela retirada do grupo fosfato, por fosfatases. Como já discutido anteriormente, tratase de um mecanismo fisiológico ágil, na medida em que a regulação da resposta é feita com rapidez e refinamento.
▸ Dessensibilização Consiste em um processo de atenuação do sinal, desencadeado, sob condições de estimulação longa, por muitos hormônios e neurotransmissores. Mesmo com a continuidade do sinal extracelular, este não é mais passado para dentro da célula. A dessensibilização pode ocorrer ao nível do receptor ou de componentes da via de sinalização. Ao nível do receptor, geralmente envolve internalização do complexo receptor/ligante, por endocitose; ou pode englobar mudança conformacional do receptor, por sua fosforilação ou pela ligação a uma proteína citoplasmática. Esta mudança
conformacional coloca o receptor em uma conformação inadequada para ele se ligar novamente ao ligante ou ativar a proteína G. Em ambas as situações, participam, como elemento central, as βarrestinas (Figura 3.37). βarrestinas são importantes para a sinalização da degradação de receptores acoplados à proteína G (GPCR). Isso ocorre devido ao fato de as βarrestinas aproximarem esses receptores de segundos mensageiros, como cAMP e diacilglicerol (DAG), fazendo então com que estes entrem em contato com fosfodiesterases ou enzimas dependentes de DAG. A ativação dessas enzimas promoveria a degradação desses receptores. Outra maneira de participação da βarrestina no processo de inativação desses receptores é a seguinte: a ativação de receptores GPCR geralmente resulta em sua rápida fosforilação por quinases específicas (GRK), normalmente sobre resíduos de serina ou treonina localizados no seu domínio intracelular. Essa fosforilação proporciona uma superfície de ligação para proteínas adaptadoras, como as βarrestinas que são recrutados a partir do citoplasma para o receptor fosforilado na membrana plasmática. Essa ligação desacopla o receptor da proteína G associada por meio de um processo que envolve o impedimento estereoquímico, encerrando assim a ativação da proteína G pelo receptor e culminando no processo conhecido como dessensibilização.
Figura 3.37 ■ Papel das arrestinas na dessensibilização e finalização do sinal. As arrestinas ligamse ao receptor de membrana fosforilado por uma quinase específica, modificando sua conformação e, dessa forma, impedem sua ativação pelo mensageiro extracelular. Em uma segunda instância, o complexo ligante/receptor/arrestina é internalizado por endocitose; o receptor pode,
então, ser reciclado de volta à membrana celular ou ser degradado dentro de lisossomos. L, ligante; GRK, quinase de receptor acoplado à proteína G. (Adaptada de Krauss, 2003.)
Muitos tipos de receptores acoplados à proteína G são alvos de fosforilações por GRK, uma família de serina/treonina proteinoquinases que, especialmente, fosforilam estes receptores após sua ativação por ligantes. Essa fosforilação possibilita, então, a ligação da arrestina à porção citoplasmática do receptor fosforilado. É possível duas rotas serem seguidas a partir desse evento: (1) o receptor pode ter sua conformação modificada, o que impede a ativação da proteína G ou (2) ele, agora, está apto a associarse a componentes da maquinaria endocitótica e ser internalizado (ver Figura 3.37). Neste caso, a arrestina atua como uma proteína adaptadora, por ligar os receptores aos componentes da maquinaria de transporte, como as clatrinas e as proteínas adaptadoras AP2. Em mamíferos, são conhecidos quatro membros desta família. As arrestinas 1 e 4, visuais, são encontradas apenas em células fotorreceptoras visuais, os cones e bastonetes da retina; ao passo que as 2 e 3, em praticamente todos os tecidos. O resultado final do processo acaba sendo a internalização destes receptores em vesículas, denominadas endossomos. Duas rotas podem ocorrer a seguir: a reciclagem do receptor à membrana ou a degradação do receptor (ver Figura 3.37). Ainda é pouco conhecido o que faz a célula escolher uma das duas rotas bioquímicas possíveis, mas, aparentemente, processos que envolvem ubiquitinação estão nessa decisão.
▸ Ubiquitinação Os sistemas proteolíticos intracelulares reconhecem e destroem as proteínas danificadas ou com erros de configuração, as cadeias peptídicas incompletas e as proteínas regulatórias. Há vários mecanismos para a degradação proteica dentro das células. Os dois mais importantes, em resposta a estresse celular, são: as proteases da família das calpaínas e a via ubiquitinaproteassomo. Proteassomos consistem em grandes complexos com múltiplas subunidades, localizados no núcleo e no citosol. Têm atividade peptidásica e funcionam como uma máquina catalítica que, seletivamente, degrada proteínas intracelulares. A via ubiquitinaproteassomo atua, amplamente, na reciclagem de proteínas. Ela desempenha um papel central na degradação de proteínas regulatórias importantes, em uma variedade de processos de sinalização celular, incluindo: ciclo celular, transcrição, modulação de receptores de membrana e de canais iônicos, ou processamento e apresentação de antígenos. A via emprega uma cascata enzimática, pela qual múltiplas moléculas de ubiquitina são covalentemente acopladas ao substrato proteico (Figura 3.38). A poliubiquitinação marca a proteína para a destruição e a direciona ao complexo 26S, a fim de sua degradação. A ubiquitina é uma proteína de 76 aminoácidos, altamente conservada ao longo da evolução, encontrada em todos os organismos. A ubiquitinação e a desubiquitinação estão envolvidas na modulação da atividade de quinases e no reparo de DNA. Por exemplo, o NFκB, normalmente em células não estimuladas, está sequestrado no citoplasma, por estar associado a seu inibidor, o IκB. Após a estimulação por mensageiros extracelulares, o IκB é fosforilado por uma quinase, transformandose em alvo para a ubiquitinação e subsequente degradação pelo proteassomo 26S. Como resultado, o NF κB está liberado para entrar no núcleo e atuar como fator de transcrição em muitos genesalvo. Assim, a ubiquitinação proteica emergiu como importante modificação que não só marca certas proteínas para serem degradadas pelos proteassomos, mas, também, regula funções de outras proteínas de maneira independente da proteólise, tendo participação ativa na sinalização celular.
Figura 3.38 ■ A ubiquitinação de proteínas as transforma em alvo de destruição nos proteassomos 26S. Esse mecanismo é de extrema importância na modulação da sinalização celular. E1, enzima ativadora de ubiquitinas; E2, enzima conjugadora de ubiquitinas; E3, ligase de ubiquitinas. (Adaptada de Krauss, 2003.)
▸ Proteínas reguladoras de proteínas G O sinal evocado por proteínas G pode ainda ser finalizado pela ação das proteínas reguladoras de proteínas G (RGS). Essa família de mais de 30 proteínas intracelulares modula negativamente a cascata intracelular sinalizada pela ativação de receptores acoplados a proteínas G. Embora a atividade GTPásica endógena da proteína Gα seja lenta, sua taxa é acelerada dramaticamente pelas proteínas RGS, que se ligam à subunidade Gα acoplada a GTP, aumentando sua atividade GTPásica. Com isso, as subunidades Gα retornam ao estado inativo ligado a GDP, reassociandose aos dímeros Gβγ. Ao acelerar o retorno da proteína G ao estado inativo de heterotrímero, as RGS terminam a ativação dos efetores pelas subunidades Gα e Gβγ, regulando dessa maneira a cinética e a amplitude do sinal.
RGS e dependência química Sabese hoje que a dependência química é um resultado de adaptações na sinalização dos receptores acoplados a proteínas G no cérebro. Na maioria dos casos, não há alterações significantes nos níveis do neurotransmissor ou na quantidade de seus receptores, o que sugere que as mudanças devem estar ocorrendo na cascata intracelular de sinalização. Algumas dessas modificações incluem superativação do sistema do cAMP, alterações na taxa de fosforilação de ERK, de reciclagem do receptor ou da função de canais iônicos. Por exemplo, a dependência de morfina tem sido associada à atividade aumentada da via do cAMP, resultando em atividade de disparo elevada nos neurônios do locus coeruleus. Como se sabe que o receptor de opioides atua via Gi/o, portanto diminuindo a produção de cAMP, essa ação da morfina deve se dar além da ativação da proteína G pelo receptor. De fato, ativação de adrenorreceptores α2, que medeiam inibição da produção de cAMP, aliviam os sintomas de retirada da morfina do dependente químico. Uma possibilidade interessante é que drogas que causam dependência podem estar controlando a expressão das proteínas RGS, que constituem, assim, potenciais alvos na terapêutica do dependente químico.
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Introdução
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Endereçamento de novas proteínas para a via secretora Transporte e localização de proteínas na via secretora
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Transporte de proteínas na rede transGolgi Papel do cálcio na via secretora Importância do pH na via secretora
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Considerações finais Bibliografia
INTRODUÇÃO Para o correto funcionamento do organismo, as células precisam comunicarse umas com as outras e ser capazes de responder rapidamente às mudanças no ambiente em que vivem. A membrana plasmática, composta por uma bicamada lipídica e proteínas acessórias, é de suma importância para que a célula seja capaz de responder a diferentes estímulos. Além da membrana plasmática, as células possuem um complexo sistema de membranas internas, que formam diversos compartimentos intracelulares funcionais, as organelas. Cada organela é envolta por membrana e possui um conjunto de proteínas que lhe confere propriedades funcionais e estruturais características. A compartimentalização das células permite a separação de espaços do citosol, o que aumenta a capacidade da célula de ter locais específicos para a realização de diferentes processos. No entanto, apesar dessa compartimentalização, as organelas possuem ampla comunicação entre si e com a membrana plasmática, por meio de vesículas de transporte. Assim, por meio de um processo denominado exocitose, a via biossintéticosecretora faz a entrega de proteínas, carboidratos e lipídios recémsintetizados na célula para a membrana plasmática ou para o meio extracelular. Já por meio do processo denominado endocitose, as células fazem a remoção de componentes da membrana plasmática ou então capturam moléculas do compartimento extracelular e as entregam aos endossomos, organelas responsáveis pela reciclagem e/ou degradação. O transporte dessas moléculas é feito por meio de vesículas transportadoras, que brotam de uma membrana e se fundem a outra, em um processo regulado, equilibrado e organizado. As vesículas transportadoras devem ser capazes de direcionar corretamente as moléculas a serem transportadas, fusionandose apenas às membranasalvo adequadas. Neste capítulo serão discutidos os mecanismos de organização, função, regulação e interação das diferentes organelas da via biossintéticosecretora.
ENDEREÇAMENTO DE NOVAS PROTEÍNAS PARA A VIA SECRETORA A maioria das proteínas é sintetizada nos ribossomos citoplasmáticos e então translocadas para o retículo endoplasmático (RE), onde a cadeia polipeptídica será corretamente dobrada. Quando uma proteína se dobra, forma uma estrutura compacta, com a maioria dos resíduos hidrofóbicos voltados para a região central. Além disso, as ligações não covalentes entre as diversas partes da molécula participam do dobramento final da cadeia polipeptídica, e assim a proteína
adquire a sua conformação tridimensional característica e funcional. O destino final de cada proteína dependerá da sua sequência de aminoácidos e dos sinais de endereçamento que possui. As proteínas secretadas e as proteínas de membrana plasmática são coletadas por vesículas no RE e enviadas ao aparelho de Golgi inicial, também denominado cisGolgi (Brandizzi e Barlowe, 2013). As proteínas podem então permanecer no aparelho de Golgi como residentes permanentes ou ser distribuídas na rede transGolgi (TGN), de onde serão direcionadas para os endossomos, lisossomos ou membrana plasmática (Glick e Luini, 2011; Papanikou e Glick, 2014) (Figura 4.1). O transporte entre os diferentes compartimentos é bidirecional – simultaneamente ao transporte do RE para o aparelho de Golgi (transporte anterógrado), há o transporte no sentido contrário, ou seja, de proteínas do aparelho de Golgi para o RE (transporte retrógrado) (Spang, 2013). Portanto, o transporte intracelular de proteínas envolve um sensível equilíbrio entre as vias anterógradas e retrógadas, isto é, existem vesículas de transporte que levam as proteínas para o próximo compartimento, enquanto outras fazem o recolhimento de proteínas perdidas, levandoas para o compartimento anterior (Spang, 2013).
TRANSPORTE E LOCALIZAÇÃO DE PROTEÍNAS NA VIA SECRETORA
▸ Transporte anterógrado entre o RE e o aparelho de Golgi A via secretora é essencial para as atividades celulares e envolve a síntese, a modificação, a seleção e a secreção de proteínas para outros locais, como as organelas e a membrana plasmática, bem como para o meio extracelular. Alterações na regulação dessa via estão implicadas em uma ampla gama de doenças, como doenças neurodegenerativas (Milosevic et al., 2011) e neuromusculares (GonzalezJamett et al., 2014), entre outras, e por isso têm ganhado mais atenção (Otomo et al., 2015). Durante o transporte do RE para o aparelho de Golgi e deste para a superfície celular, as proteínas passam por diferentes compartimentos, onde serão maturadas e processadas (Benham, 2012). As proteínas são primeiramente sintetizadas nos ribossomos e então translocadas para o lúmen do RE, onde são dobradas e modificadas pós traducionalmente, por exemplo, por glicosilação (Braakman e Bulleid, 2011). As proteínas recémsintetizadas atravessam a membrana do RE e são direcionadas para regiões especializadas denominadas regiões de transição do RE ou sítios de saída do RE (ERES) (Bevis et al., 2002; Shindiapina e Barlowe, 2010; Barlowe e Miller, 2013). Os ERES fazem parte de uma grande estrutura denominada complexos de exportação (Bannykh et al., 1996), que compreendemum ou mais elementos de ERES, que emitem brotos voltados para uma cavidade central contendo várias vesículas e túbulos, conhecidos como agregados tubulovesiculares (VTC, tubulovesicular clusters) (Schweizer et al., 1991; Balch et al., 1994). Em células de mamíferos, os ERES estão distribuídos ao longo de todo o citoplasma; no entanto, estão mais concentrados próximo ao aparelho de Golgi (Watson e Stephens, 2005). Nesses locais brotam as chamadas vesículas revestidas com proteína COPII (vesículas COPII) (Johnson et al., 2015; Ujike e Taguchi, 2015), que farão o empacotamento das proteínas recémsintetizadas e processadas e as direcionarão para o compartimento intermediário entre o RE e o aparelho de Golgi, também conhecido como ERGIC (Schweizer et al., 1991; Hauri et al., 2000; Appenzeller Herzog e Hauri, 2006) (ver Figura 4.1). O RE é uma rede interconectada de túbulos e cisternas que se estendem por todo o citoplasma (Voeltz et al., 2002). Já o aparelho de Golgi consiste em uma gama de subcompartimentos achatados, denominados cisternas, que variam em composição (Papanikou e Glick, 2009; 2014). Basicamente, o aparelho de Golgi é formado por três tipos de subcompartimentos, denominados cisGolgi, Golgi intermediário e transGolgi (Schoberer e Strasser, 2011). As proteínas provenientes do RE/ERGIC entram pela face cisGolgi, por um processo que envolve o direcionamento e a fusão das vesículas COPII (Hauri et al., 2000; AppenzellerHerzog e Hauri, 2006;Barlowe e Miller, 2013). De fato, COPII participa do processo de deformação da membrana e geração das vesículas transportadoras (Barlowe et al., 1994; Bonifacino e Glick, 2004).
Figura 4.1 ■ Via secretora biossintética. As proteínas e lipídios sintetizados no retículo endoplasmático (RE) são transportados em vesículas COPII para o compartimento intermediário entre o RE e o aparelho de Golgi, denominado ERGIC. Seguem, então, para a porção cis do aparelho de Golgi, e depois são transportadas ao longo das porções medial e trans, até alcançarem a rede transGolgi (TGN), onde serão selecionados para seu destino: lisossomos, membrana plasmática ou meio extracelular. O transporte retrógrado entre o aparelho de Golgi e o RE é mediado pelas vesículas COPI. (Adaptada de Kienzle e Von Blume, 2014.)
A subsequente passagem pelo aparelho de Golgi expõe as proteínas a maturação e processamento, até a sua saída pela face transGolgi. O direcionamento final da proteína ocorre na rede transGolgi (TGN), e as proteínas podem então seguir para outras organelas, para a membrana plasmática ou para o meio extracelular (RodriguezBoulan e Musch, 2005; Papanikou e Glick, 2014). Na TGN ocorre a separação de duas vias secretoras: a constitutiva e a regulada. Todas as células realizam a secreção constitutiva, também denominada secreçãopadrão, que ocorre continuamente e faz o aporte de proteínas e lipídios para a membrana plasmática. Essa via não parece depender de um sinal definido e, assim, as proteínas são automaticamente carregadas do lúmen do aparelho de Golgi para a superfície celular e secretadas por exocitose (Zhang et al., 2010). As células secretoras especializadas, além da secreção constitutiva, fazem uma secreção mais complexa e específica, denominada secreção regulada. Na TGN, proteínas que serão secretadas são selecionadas por meio de sinais específicos e então distribuídas para vesículas secretoras, onde serão concentradas e armazenadas até que um estímulo extracelular estimule a fusão das vesículas à membrana e a secreção de seu conteúdo (Otte e Barlowe, 2004).
Formação das vesículas COPII
O transporte de proteínascarga do RE para o aparelho de Golgi é feito por meio de vesículas COPII (Figura 4.2). As vesículas COPII são compostas de cinco proteínas, Sar1, Sec23, Sec24, Sec13 e Sec31, que formam a maquinaria mínima para a sua formação (Barlowe e Miller, 2013). A montagem das vesículas COPII na membrana do RE ocorre em diferentes estágios, começando pelo recrutamento da Sar1. A Sar1 é uma GTPase da família das proteínas Arf e desempenha um papel central no recrutamento da proteínacarga e na formação das vesículas COPII (Budnik e Stephens, 2009). A montagem do revestimento COPII (COPIIcoat) depende da ativação da GTPase Sar1 por Sec12 (GEF, fator de troca nucleotídio guanina). Essa ativação causa a exposição, na região Nterminal de Sar1, de uma alfahélice anfifática que leva à inserção da Sar1 na membrana do RE (Bi et al., 2002; Bielli et al., 2005; Lee et al., 2005). Essa inserção gera a curvatura inicial da membrana, crucial na formação da vesícula. Logo em seguida, a Sar1, que se encontra ligada ao trifosfato de guanosina (GTP), recruta o heterodímero Sec23/24 para a região interna da vesícula em formação (Matsuoka et al., 1998; 2001; Bi et al., 2002). A Sec24 é a principal proteína adaptadora para o revestimento COPII (Miller et al., 2003). Já a Sec23 possui um resíduo de arginina que leva à sua inserção no sítio catalítico de Sar1 (Bi et al., 2002), resultando na estimulação da atividade GTPase de Sar1, por meio da estabilização de grupos fosfato. Após o recrutamento de todos os elementos, formase uma vesícula prébrotamento. Outro complexo, o Sec13/Sec31 é posteriormente recrutado, agora para a região externa da vesícula. A ligação de Sec31 a Sec23/Sar1 reorienta o resíduo de arginina de Sec23 e aumenta a atividade GTPase de Sar1 em 4 a 10 vezes (Antonny et al., 2001; Bi et al., 2007). Além disso, o complexo Sec13/Sec31 forma a camada externa da vesícula COPII (Matsuoka et al., 2001), direciona ainda mais a curvatura da membrana para a formação da vesícula e auxilia a formação de uma estrutura rígida, que facilita o próximo passo na formação das vesículas COPII, ou seja, a fissão da membrana. Esse processo é mediado pela habilidade da hélice anfifática Nterminal de Sar1 de se inserir na membrana e induzir uma assimetria entre as camadas internas e externas, promovendo a curvatura e criando agregados de lipídios que resultam em fissão e brotamento da vesícula COPII (Brown et al., 2008; Long et al., 2010). Logo após o brotamento, as vesículas COPII perdem o seu revestimento, em razão da hidrólise de GTP mediada por Sar1 (Oka e Nakano, 1994).
Figura 4.2 ■ Formação de vesículas COPII. A montagem das vesículas COPII na membrana do retículo endoplasmático iniciase com a ativação da GTPase Sar1, por meio de Sec12, um fator de troca de nucleotídio guanina. A Sar1 ativada interage com o heterodímero Sec23/24. O complexo Sec13/Sec31 também é recrutado, favorecendo a estrutura rígida da vesícula. A fissura da vesícula é mediada pela habilidade da hélice anfifática Nterminal de Sar1 de se inserir na membrana e induzir uma assimetria entre as camadas interna e externa, promovendo a curvatura da membrana e criando agregados de lipídios que resultam na fissão e no brotamento da vesícula COPII. (Adaptada de Venditti et al., 2014.)
Apesar de as proteínas descritas representarem a maquinaria mínima necessária para o transporte das vesículas COPII, há diversos complexos e proteínas adicionais e acessórias responsáveis por modular o recrutamento do revestimento das vesículas e o seu transporte. Dentre esses fatores, destacase a Sec16, que se localiza nos sítios de saída do RE (os ERES), sendo importante para a manutenção destes (Watson et al., 2006; Hughes et al., 2009). A Sec16 interage fisicamente com todas as proteínas das vesículas COPII, bem como com proteínas da membrana do RE (Whittle e Schwartz, 2010; Montegna et al., 2012; Yorimitsu e Sato, 2012). Algumas proteínas do RE também participam ativamente do processo de formação das vesículas COPII. Um exemplo é a proteína transmembrana TANGO1 (Budnik e Stephens, 2009). Tem sido sugerido que TANGO1, complexado ao seu
par cTAGE5, interage com o colágeno no lúmen do RE e com o complexo Sec23/24, favorecendo assim o recrutamento de Sec31, a hidrólise de GTP por Sar1 e a excisão da vesícula (Saito et al., 2009) (ver Figura 4.2). Além disso, as proteínas que serão carregadas pelas vesículas também influenciam diretamente na sua biogênese. As proteínas podem, assim, influenciar a formação das vesículas por meio de vários fatores, como quantidade e tamanho das proteínascarga a serem transportadas; ligação de peptídios sinais às proteínas formadoras da vesícula COPII; estabilização das vesículas; regulação da atividade de GTPase da Sar1; e geometria (tamanho e forma) das vesículas (Sato e Nakano, 2007; Quintero et al., 2010; Dong et al., 2012; Venditti et al., 2014). Os sinais que direcionam a saída das proteínas solúveis para fora do RE em direção ao aparelho de Golgi não foram completamente elucidados. Sabese, no entanto, que algumas proteínas transmembrana de RE servem como receptores de carga para empacotar algumas proteínas de secreção nas vesículas revestidas de COPII. Os principais receptores são lectinas que se ligam a oligossacarídios. Um dos principais, denominado ERGIC53, faz a ligação das proteínascarga a serem transportadas com a maquinaria da vesícula, assegurando o correto endereçamento dessas moléculas para as vesículas nascentes e então para o ERGIC. ERGIC53 é uma lectina ligada à manose, necessária para a exportação de várias proteínas de carga do RE (Nichols et al., 1998; Appenzeller et al., 1999). O seu recrutamento para as vesículas COPII é realizado por meio da ligação a Sec23 (Kappeler et al., 1997); em seguida, são reciclados de volta ao RE quando a vesícula chega ao ERGIC (Schindler et al., 1993). As vesículas nascentes perdem seus revestimentos e se fundem para formar o compartimento intermediário entre o RE e o Golgi, ou seja, o ERGIC ou agregados tubulovesiculares (VTC). Há muito tempo discutese na literatura se o ERGIC e o VTC são dois compartimentos diferentes ou apenas variantes de um mesmo compartimento. De fato, há evidências da existência de ambos coexistindo em células de mamíferos, com diferentes dinâmicas, porém funções semelhantes (Verissimo e Pepperkok, 2013). Desse modo, formamse os chamados agrupamentos tubulares de vesículas, que perduram por um curto período de tempo e se movem ao longo de microtúbulos em direção ao aparelho de Golgi, onde se fusionarão para entregar as proteínascarga. Após o ancoramento da vesícula contendo as proteínascarga à membranaalvo no ERGIC ou VTC, ocorrerão aproximação e fusão das membranas, permitindo assim o descarregamento do conteúdo das vesículas. Para que esse processo ocorra de maneira adequada, proteínas de ligação do NSF sináptico alfassolúvel (SNARE) catalisam a reação. SNARE são proteínas transmembrana e existem como conjuntos complementares, ou seja, tSNARE encontramse na membranaalvo enquanto vSNARE encontramse na membrana das vesículas (Bonifacino e Glick, 2004; Spang, 2013; Verissimo e Pepperkok, 2013).
▸ Transporte retrógrado entre o RE e o aparelho de Golgi Como mencionado anteriormente, o tráfego entre o RE e o aparelho de Golgi também pode ocorrer no sentido inverso, ou seja, as proteínas podem fazer o caminho retrógrado e serem devolvidas para o compartimento anterior. O transporte retrógrado é responsável pela manutenção das proteínas residentes do aparelho Golgi. Neste caso, as proteínas residentes do aparelho de Golgi se reciclam, permanecendo na organela, enquanto as proteínas sintetizadas se movem anterogradamente (Glick e Luini, 2011; Morriswood e Warren, 2013; Papanikou e Glick, 2014). Esse transporte também é mediado por vesículas, porém agora revestidas de outra proteína, a COPI (Watson e Stephens, 2005).
Formação das vesículas COPI Assim que os agrupamentos tubulares de vesículas se formam, vesículas derivadas deles próprios também começam a brotar, porém estas são revestidas de COPI em vez de COPII. Essas vesículas fazem o transporte retrógrado de proteínas residentes, bem como de proteínas que participaram da própria reação de brotamento de vesículas do RE. De fato, a montagem do revestimento COPI dessas vesículas iniciase logo após a remoção de COPII. Como ocorre com COPII, o heptâmero COPI é recrutado para a membrana do aparelho de Golgi por uma GTPase, a Arf1, e tem a dupla função de favorecer a curvatura da membrana e ligarse a proteínascarga ou receptores por meio do reconhecimento de sinais em suas alças citoplasmática (Dancourt e Barlowe, 2010). Apesar de o transporte anterógrado do RE para o aparelho de Golgi ser mediado sempre por vesículas COPII, há mais de um mecanismo envolvido no transporte retrógrado. Além do transporte dependente de vesículas cobertas com o complexo proteico COPI, há outros mecanismos que envolvem transporte independente de COPI. As vias independentes de COPI têm sido muito menos estudadas e caracterizadas. Estudos indicam ser uma via envolvida na reciclagem constitutiva de enzimas do aparelho de Golgi, bem como no transporte retrógrado de proteínas de membrana. Essa via é
regulada por uma pequena GTPase pertencente à família Rab, a Rab6A, e parece envolver estruturas tubulares e não vesículas carregadoras (Pfeffer, 2013). Essa via retrógrada, de recuperação de proteínas, depende de sinais de recuperação do RE para acelerar o processo. Para as proteínas de membrana do RE, o sinal mais bem caracterizado chamase sequência KKXX. Ele consiste em duas Lys (lisina, letra K do código de aminoácidos), seguidas por outros dois aminoácidos quaisquer, e encontrase na extremidade Cterminal das proteínas. Já para as proteínas solúveis do RE, a sequência mais conhecida é a KDEL, que consiste em uma sequência de LysAspGluLeu (lisina, aspartato, glutamato e leucina). Algumas proteínas, porém, não dependem desses sinais e entram aleatoriamente nas vesículas COPI. No entanto, a sua taxa de recuperação é muito mais lenta (Spang, 2013).
TRANSPORTE DE PROTEÍNAS NA REDE TRANSGOLGI Por muito tempo se acreditou que o aparelho de Golgi, juntamente com RE, lisossomos, endossomos, vesículas de transporte e membranas nucleares e plasmática, formava um complexo integrado, de compartimentos estáveis, denominado sistema endomembranas (Mollenhauer e Morre, 1974). Atualmente, esse conceito tem sido substituído pelo tráfego através da via secretora/endossomal (LippincottSchwartz et al., 2000; Lowe e Barr, 2007; Glick e Nakano, 2009). Ao longo da passagem pelas diferentes cisternas do aparelho de Golgi, as moléculas carregadas sofrem sucessivas modificações covalentes. Cada cisterna possui um aparato próprio e complexo de enzimas de processamento. Assim, cada etapa é importante, e a molécula somente evoluirá em seu processamento se tiver sido adequadamente processada na etapa anterior. Hoje se sabe que as etapas de processamento ocorrem em uma sequência tanto bioquímica como espacial – ou seja, as enzimas que fazem o processamento inicial das moléculas encontramse na face cis, enquanto as envolvidas no processamento final encontramse próximas à face trans das cisternas. Existem dois modelos que tentam explicar o transporte através do aparelho de Golgi: modelo de transporte vesicular e modelo de maturação de cisternas (Figura 4.3). De acordo com o modelo de transporte vesicular, o aparelho de Golgi seria uma estrutura relativamente estática. As suas enzimas seriam mantidas no lugar, enquanto as moléculascarga seriam transportadas nas vesículas de transporte. O fluxo retrógrado recuperaria proteínas que tivessem escapado do aparelho de Golgi e do RE.
Figura 4.3 ■ Transporte através do aparelho de Golgi. De acordo com o modelo de transporte vesicular (à esquerda), o aparelho de Golgi seria uma estrutura relativamente estática e as suas enzimas seriam mantidas no lugar, enquanto as moléculascargo seriam transportas nas vesículas de transporte COPI. Já de acordo com o modelo de maturação de cisternas, mais aceito na atualidade, o aparelho de Golgi teria uma estrutura dinâmica e, assim, as suas próprias cisternas se moveriam. Neste modelo, o tráfego anterógrado no aparelho de Golgi, da face cis para a face trans, ocorreria pela síntese de novo de cisternas, que sofreriam progressiva maturação. O fluxo retrógrado seria mediado pelas vesículas COPI, encarregadas de trazer de volta as enzimas das cisternas finais para as iniciais. (Adaptada de McDermott e Mousley, 2016.)
Já no segundo modelo, mais aceito na atualidade, o aparelho de Golgi teria uma estrutura dinâmica e, assim, as suas próprias cisternas se moveriam. Nesse modelo, o tráfego no aparelho de Golgi, da face cis para a face trans, ocorreria pela
síntese de novo de cisternas, que sofreriam progressiva maturação (Day et al., 2013). O fluxo retrógrado, mediado pelas vesículas COPI, carregaria de volta as enzimas das cisternas iniciais. Após a sua passagem pelo aparelho de Golgi, as moléculas são direcionadas para a TGN, onde terão seu destino final definido. Dependendo do tipo de célula, os destinos incluem: membranas apical e basolateral, endossomos, lisossomos, grânulos de secreção, dentre outros (Traub e Kornfeld, 1997). Na maioria das células, a TGN apresentase como uma estrutura que emerge das duas últimas cisternas trans (De Matteis e Luini, 2008) (Figura 4.4). Em contraste com a exportação do RE, que ocorre em domínios estáveis, os ERES, a exportação da TGN parece ser bem mais complexa. Estudos têm demonstrado a existência de domínios de saída, compostos por diversos tipos de lipídios, vesículas e agrupamentos tubulares, enriquecidos com moléculascarga e maquinaria de brotamento, porém desprovidas de proteínas residentes do aparelho de Golgi (Gleeson et al., 2004). Esses domínios de saída são formados por microambientes únicos, sendo sua formação altamente dinâmica e dependente de influxo das moléculascarga (De Matteis e Luini, 2008). Os principais atuantes nesse processo de distribuição das moléculas da TGN incluem adaptadores citosólicos que são recrutados até a membrana da TGN para, direta ou indiretamente, ligaremse às moléculascarga. Algumas proteínas, em particular as luminais, associamse aos adaptadores indiretamente por meio de receptores transmembrana (ver Figura 4.4). A saída da TGN ocorre principalmente por vesículas revestidas por clatrina, a mesma proteína que faz o revestimento de vesículas endocíticas. Em geral, a clatrina não se associa diretamente às moléculascarga, por isso a importância dos adaptadores (Ladinsky et al., 2002). A polimerização da clatrina associada aos adaptadores forma regiões cobertas na membrana, que facilitam então a sua deformação e a formação das vesículas (Guo et al., 2014). Uma vez que as vesículas cobertas de clatrina são liberadas, as proteínas ancoradas à membrana da vesícula se dissociam para participar de novos ciclos de distribuição de proteínas na TGN. Dentre as proteínas adaptadoras, as mais conhecidas são os complexos heterotetraméricos de proteínas adaptadoras (AP), fosfatidilinositóis (PIP), fator de ribosilação do ADP (ARF), proteínas ligadoras de ARF (GGA) e as proteínas epsin (Guo et al., 2014). A família dos complexos AP, que incluem AP1, AP2, AP3, AP4 e AP5, participa do tráfego intracelular, incluindo as vias de transporte para os endossomos, bem como para a membrana basolateral de células epiteliais (Hirst et al., 2013). Apesar da importância dos PIP para o processo de distribuição, eles sozinhos não fornecem especificidade sem as GTPases da família ARF (Yorimitsu et al., 2014). Já as GGA contribuem para o recrutamento da clatrina pela interação com a região Nterminal da cadeia pesada da clatrina (Puertollano et al., 2001; Stahlschmidt et al., 2014).
PAPEL DO CÁLCIO NA VIA SECRETORA Diversos aspectos da vida celular são afetados e dependem do cálcio (Ca2+), que é considerado uma molécula sinalizadora evolutivamente conservada. Esse íon possui funções na transmissão sináptica, contração muscular, secreção de grânulos, expressão gênica, reparo da membrana celular, autofagia, entre outros (Parys et al., 2012). O Ca2+ adiciona carga às proteínas ligadoras de Ca2+ e, assim, leva à mudança conformacional destas e tornaas sensores de Ca2+. Existem centenas de proteínas que atuam como sensores de Ca2+ com propriedades de afinidade de ligação ao íon variando de nanomolar (nM) a milimolar (mM) (Distelhorst e Bootman, 2011; Parys et al., 2012). O citosol apresenta concentrações de Ca2+ na ordem de 100 nM, enquanto no espaço extracelular chega a 2 mM e, nos compartimentos intracelulares, varia entre 0,5 e 1 mM. Portanto, existem elevados gradientes de Ca2+ entre esses locais (Distelhorst e Bootman, 2011; Van Petegem, 2015), que são estabelecidos por transportadores de Ca2+ localizados na membrana plasmática e nas membranas das organelas (Decuypere et al., 2015). Assim, após um estímulo celular, ocorre o aumento do Ca2+ citosólico tanto pela sua entrada através dos transportadores de membrana plasmática, como pela sua liberação dos estoques intracelulares (ou seja, das organelas) (Decuypere et al., 2015).
Figura 4.4 ■ Endereçamento de proteínas na rede transGolgi (TGN). As moléculascarga a serem transportadas são inicialmente reconhecidas por receptores presentes nos domínios de saída do aparelho de Golgi. Adaptadores citosólicos são, então, recrutados para auxiliar na associação da clatrina e formação das vesículas secretoras. Após a fissura das vesículas da membrana do aparelho de Golgi, as proteínas ancoradas se dissociam para participar de novos ciclos de distribuição de proteínas na TGN. (Adaptada de Guo et al., 2014.)
O RE é a principal organela de estoque de Ca2+ e, assim, desempenha um papel central na sinalização intracelular de Ca . O conteúdo de Ca2+ no RE depende essencialmente: da sua entrada na organela, via uma ATPase denominada SERCA (Vandecaetsbeek et al., 2011); da expressão de proteínas ligadoras de Ca2+ no lúmen da organela (Prins e Michalak, 2011); e da natureza e atividade de proteínas liberadoras de Ca2+, como o receptor para 1,4,5trifosfato de inositol (IP3R) e o receptor de rianodina (RyR) (Lanner, 2012; Van Petegem, 2015). Além do RE, estudos recentes têm demonstrado a importância dos estoques intracelulares no Golgi, na mitocôndria e nos lisossomos (Clapham, 2007). Estudos utilizando sondas de Ca2+ sugerem que o aparelho de Golgi contém 2,5 a 5% do Ca2+celular, sendo que a concentração do íon nessa organela pode chegar a 300 micromolar (μM) (Pinton et al., 1998). Apesar de menos importante que o RE, o aparelho de Golgi também contribui para a sinalização do Ca2+, pela sua liberação via IP3R. Tem sido também proposto que, devido à sua proximidade com o núcleo da célula, o aparelho de Golgi deva participar da sinalização nuclear do Ca2+ (Vanoevelen et al., 2005b). Além disso, a manutenção de altas concentrações luminais de Ca2+ no aparelho de Golgi é necessária para o processamento das proteínas (Kienzle e Von Blume, 2014). 2+
▸ Transportadores de Ca2+ O sensível balanço da concentração de Ca2+ intracelular é mantido pela refinada atividade de transportadores de Ca2+ presentes nas membranas celulares, que permitem o movimento desse íon para dentro e para fora da célula e/ou das organelas que fazem o seu estoque (Brini e Carafoli, 2000). As bombas de Ca2+ pertencentes à superfamília das ATPases do tipo P (originalmente denominadas do tipo E1E2) movem íons através das membranas, contra o seu gradiente eletroquímico, utilizando a energia da hidrólise de ATP(Palmgren e Axelsen, 1998; Palmgren e Nissen, 2011). Apesar de relacionadas pela similaridade de sequência, homologia estrutural e mecanismo de transporte, existem três subtipos de bombas de Ca2+ que são filogeneticamente distintas e que possuem localizações subcelulares características: Ca2+ATPase de membrana plasmática (PMCA, presente na membrana plasmática); Ca2+ATPase do retículo sarcoplasmático (SERCA, presente no RE); e a Ca2+ATPase da via secretora (SPCA, presente nas vesículas secretoras derivadas do aparelho de Golgi).
▸ Ca2+ATPases de membrana plasmática (PMCA) Há quatro ATPases de membrana plasmática descritas, denominadas PMCA14 e codificadas pelos genes ATP2B14 (Krebs, 2015). A isoforma PMCA1 apresenta distribuição ubíqua pelos diversos tecidos e possui cinco variantes (PMCA1ae). A isoforma PMCA2 possui seis variantes, enquanto PMCA3 possui três variantes, todas expressas no sistema nervoso central e em tecidos intimamente conectados ao sistema nervoso (Chicka e Strehler, 2003; Strehler, 2015). PMCA2 é expressa na membrana apical de células acinares de glândula mamária, podendo ser substancialmente induzida durante a lactação. Estudos em camundongos knockout para PMCA2 demonstraram redução de 60% nos níveis
de Ca2+ no leite, o que sugere um importante papel de PMCA2 na secreção de Ca2+ no leite materno. Similarmente à PMCA1, a isoforma PMCA4 também é ubiquamente expressa e possui oito variantes (Chicka e Strehler, 2003; Strehler, 2015).
▸ Ca2+ATPases de retículo sarco/endoplasmático (SERCA) A Ca2+ATPase de retículo sarco/endoplasmático (SERCA) é altamente expressa na membrana do RE e é a principal responsável por sequestrar e estocar o Ca2+ intracelular. Há três genes (ATP2A13) que codificam os três subtipos de bomba de Ca2+(SERCA13), e a expressão destes é diferente nos diversos tecidos. A SERCA1 é predominantemente expressa na musculatura esquelética, enquanto SERCA2 apresenta distribuição ubíqua. A variante SERCA2b possui uma função essencial de manutenção das concentrações de Ca2+ intracelular. Já a variante SERCA2a é exclusivamente expressa em células musculares e neuronais, enquanto as variantes SERCA2cd são expressas no coração. Esses tecidos necessitam de um minucioso controle do Ca2+ para exercer as suas funções específicas, como a contração muscular e a propagação de potenciais de ação no sistema nervoso (BabaAissa et al., 1998; Vangheluwe et al., 2005). A SERCA3 foi a última isoforma a ser caracterizada, sendo expressa em células derivadas do sistema hematopoético e imune, bem como em outros tipos celulares. Há diversas variantes de SERCA3, o que sugere que esta deve exercer um papel importante na homeostase do Ca2+ celular, porém este ainda não foi completamente elucidado (Periasamy e Kalyanasundaram, 2016). Apesar de o ciclo catalítico da SERCA ainda não ter sido completamente elucidado, a maioria dos modelos baseiase na transformação entre dois estados conformacionais principais, designados E1 e E2. Na conformação E1, os dois sítios de ligação ao Ca2+ estão voltados para o citoplasma e possuem alta afinidade pelo íon. Já no estado E2, os sítios estão voltados para o lúmen do RE e possuem baixa afinidade pelo íon. O ciclo iniciase pela ligação de dois íons Ca2+ e um ATP, pelo lado citoplasmático, determinando a forma 2Ca2+E1ATP, que é então fosforilada, formando 2Ca2+E1P, um intermediário de alta energia, sensível a ADP, no qual os íons Ca2+ ligados ficam oclusos. A conversão para um intermediário de baixa energia é acompanhada por uma mudança conformacional para a forma 2Ca2+E2P (insensível a ADP), na qual a afinidade pelo Ca2+ é baixa e que se orienta para o lúmen do RE. O ciclo se completa com a liberação dos íons Ca2+ e do fosfato no lúmen do RE e a mudança conformacional do estado E2 para o estado E1 (Wuytack et al., 2002).
▸ ATPases transportadoras de Ca2+ na via secretora associada ao Golgi (SPCA) Recentemente, uma nova classe de bombas de Ca2+ tem sido demonstrada, sendo que o primeiro membro foi descoberto em levedura S. cerevisiae e nomeado Pmrf1 (Rudolph et al., 1989). Os homólogos em mamíferos, denominados SPCA1 e SPCA2, são codificados pelos genes ATP2C1 e ATP2C2, respectivamente (Shull, 2000). A SPCA1 é expressa de forma ubíqua em todos os tecidos, enquanto SPCA2 está restrita a epitélios absortivos (epitélio intestinal) e secretores (pâncreas, glândulas salivares e glândulas mamárias) (Vanoevelen et al., 2005a; Dode et al., 2006). Já foram descritas cinco variantes de SPCA1, que diferem na sua região Cterminal (Fairclough et al., 2003), enquanto nenhuma variante foi descrita para SPCA2 (Pestov et al., 2012). Ambas, SPCA1 e SPCA2, apresentam 65% de identidade, diferindo prioritariamente na região Nterminal. Além disso, ambas apresentam propriedades cinéticas semelhantes (Xiang et al., 2005; Dode et al., 2006). Em leveduras, as proteínas SPCA estão localizadas no aparelho de Golgi intermediário, onde têm papel fundamental na via secretora (Antebi e Fink, 1992; Dürr et al., 1998). O Ca2+ no lúmen do aparelho de Golgi controla importantes funções, incluindo o tráfego de proteínas luminais e de membrana, a condensação das cargas e o processamento de precursores (Chanat e Huttner, 1991; Oda, 1992; Carnell e Moore, 1994). De fato, a maior fração do Ca2+ no lúmen do aparelho de Golgi não fica livre, e sim ligada a proteínas como a CALNUC, a Cab45 e a GRP94 (Scherer et al., 1996; Lin et al., 1998; Vorum et al., 1999; Brunati et al., 2000). Além das SPCA, as SERCA também participam da captação de Ca2+ para o aparelho de Golgi (Van Baelen et al., 2003). A contribuição relativa das bombas SPCA e SERCA para a captação total de Ca2+ pelo Golgi depende do tipo celular, e as porcentagens variam em cada descrição experimental (Van Baelen et al., 2004). Vale ressaltar ainda que as SPCA participam não apenas do aporte de Ca2+, mas também de Mn2+ (Lapinskas et al., 1995) e podem fazer isso com a mesma eficiência (Van Baelen et al., 2004). O Mn2+ presente no lúmen do aparelho de Golgi é necessário para o processo de glicosilação de proteínas (Kaufman et al., 1994; Varki, 1998) e para a atividade da caseína quinase, abundantemente expressa em glândulas mamárias (West e Clegg, 1984; Lasa et al., 1997).
▸ Efeitos do cálcio citosólico na secreção Douglas e Rubin, em 1961, foram os primeiros a propor que o Ca2+ intracelular controla o acoplamento estímulo secreção em células endócrinas (Douglas e Rubin, 1961). Mais tarde, Katz e Miledi sugeriram que o Ca2+ intracelular controla a rápida liberação de neurotransmissores nas sinapses (Katz e Miledi, 1965; 1967). Portanto, esses foram os primeiros indícios da participação e da dependência do Ca2+ no processo de exocitose/secreção regulada. A elevação da concentração de Ca2+ livre no citosol desencadeia diretamente a exocitose regulada, por meio da estimulação da fusão completa das vesículas secretoras à membrana plasmática ou a fusão transitória do tipo kissandrun, na qual a integridade da vesícula é mantida e apenas o seu conteúdo é liberado (Alabi e Tsien, 2013). Apesar de estudos demonstrarem que os mesmos complexos proteicos parecem participar da fusão de vesículas em todas as células exocíticas, os complexos participantes das sinapses são os mais caracterizados. Assim, sabese que o complexo denominado SNARE de quatro hélices é formado pela união de três proteínas de ligação do NSF sináptico alfassolúvel (SNARE), sintaxina, proteína da membrana associada à vesícula (VAMP) e proteína de 25 kDa associada ao sinaptossomo (SNAP25) (Sutton et al., 1998). A formação desse complexo é desencadeada por concentrações micromolares de Ca2+ (Hu et al., 2002). As três SNARE parecem ser a maquinaria mínima para a exocitose (Brini e Carafoli, 2000; Brini et al., 2012), porém as proteínas acessórias aumentam a precisão espacial e temporal da exocitose. Durante elevados níveis de atividade, o que é comum no sistema nervoso, a estimulação repetitiva leva ao aumento cumulativo na concentração de Ca2+ intracelular présináptica, favorecendo a exocitose. Na sinapse, uma grande maioria de proteínas ligadoras de Ca2+ ligase a ele por meio de motivos de domínio C2, que são estruturalmente semelhantes ao presente na proteinoquinase C (PKC). Em adição à ligação ao Ca2+, as proteínas ligamse também a fosfolipídios de membrana e às proteínas SNARE (direta ou indiretamente) (Barclay et al., 2005), modulando o processo de exocitose. Dentre as proteínas ligadoras de Ca2+, as mais importantes são: sinaptotagmina, Munc13, RIM, Piccolo, Rabphilin e Doc2 (Barclay et al., 2005). A sinaptotagmina parece atuar como sensor para ativar a rápida exocitose (Verkhratsky, 2005; Bergner e Huber, 2008; Periasamy e Kalyanasundaram, 2016), enquanto Munc13 regula, além da exocitose, a plasticidade sináptica (Ashery et al., 2000; Junge et al., 2004). Já RIM está envolvida na probabilidade de liberação do conteúdo das vesículas (Schoch et al., 2002), e Piccolo participa da organização da maquinaria exocítica (Garner et al., 2000). Outras proteínas, como a calmodulina e o sensor neuronal de cálcio (NCS), também se ligam ao Ca2+ na sinapse. A calmodulina pode exercer seus efeitos de maneira dependente e independente de Ca2+. No processo de exocitose, a calmodulina tem um papel Ca2+dependente bem estabelecido. A ligação Ca2+calmodulina leva à ativação da proteinoquinase II dependente de cálciocalmodulina (CaMKII), que então promove a fosforilação de sinapsinas. Estas promovem o recrutamento das vesículas sinápticas que terão seu conteúdo secretado (Hilfiker et al., 1999). Além disso, a calmodulina também se liga a sinaptotagmina, complexo SNARE, Rab3 (Burgoyne e Clague, 2003) e Munc13 (Junge et al., 2004).
IMPORTÂNCIA DO pH NA VIA SECRETORA A manutenção do pH luminal em organelas da via secretora é outro elemento necessário para o apropriado direcionamento e processamento proteolítico nesses locais. Mesmo pequenas diferenças de pH entre as organelas podem ser críticas para diferenciar eventos celulares. Além disso, até mesmo o direcionamento entre a via secretora constitutiva e regulada parece depender do pH luminal das organelas (Yoo e Albanesi, 1990; Chanat e Huttner, 1991; Colomer et al., 1996). Há diversos fatores que cooperativamente regulam o pH das organelas. As bombas de prótons vacuolares, também denominadas VATPases, são determinantes nesse processo. Elas realizam a transferência de prótons do citosol para o lúmen das organelas, sendo esse processo dependente de ATP. Uma vez que são eletrogênicas, a atividade dessas bombas é afetada pelo potencial transmembrana, que em contrapartida depende da permeabilidade de outros íons. Além disso, a homeostase do pH na organela também é alterada pela taxa de “vazamento” de H+ e seus equivalentes (OH–, HCO3–) em direção ao citosol (Paroutis et al., 2004). Estudos de diversos grupos, usando diferentes técnicas experimentais, demonstraram que as organelas da via secretora tornamse mais acídicas do RE para o Golgi (Figura 4.5). O pH luminal do RE varia entre 7,1 e 7,2, sendo similar ao pH citosólico, enquanto o pH luminal no aparelho de Golgi é de 6,2 a 6,5 (Kim et al., 1996; Llopis et al., 1998; Wu et al., 2000), e, nos grânulos secretores, pode ser de apenas 5,2 (Urbe et al., 1997; Wu et al., 2000). Essa acidificação das
organelas ao longo da via secretora é determinada pelo aumento da atividade de proteínas VATPases e pela menor perda de prótons para o citosol (Wu et al., 2001).
Figura 4.5 ■ Diferenças de pH entre as organelas. As organelas da via secretora tornamse mais ácidas do retículo endoplasmático (RE) para o aparelho de Golgi. O pH luminal do RE varia entre 7,1 e 7,2, sendo similar ao pH citosólico, enquanto o pH luminal no aparelho de Golgi é de 6,2 a 6,5 e nos grânulos secretores pode ser de apenas 5,2. (Adaptada de Casey et al., 2010.)
▸ VATPases A VATPase é composta por 14 subunidades organizadas em dois domínios: V0, um complexo integral da membrana que é constituído por seis subunidades, e V1, um complexo citosólico composto de oito diferentes tipos de subunidades. O domínio V0é responsável pela translocação de prótons H+ através da bicamada, enquanto o domínio V1 está envolvido na conversão da energia derivada da hidrólise do ATP em força mecânica necessária para a translocação de prótons (Forgac, 2007). A regulação da atividade da VATPase é realizada de diversas maneiras, incluindo dissociação reversível dos complexos V1V0, controle da localização celular e alterações na eficiência do acoplamento entre o transporte de prótons e a hidrólise de ATP (Cotter et al., 2015). As VATPases desempenham um importante papel na acidificação dos endossomos, o que possibilita a dissociação do complexo internalizado, permitindo a reciclagem dos receptores para a superfície celular e a degradação da molécula internalizada. Além disso, a atividade das enzimas de degradação também depende de pH ácido. Por último, em vesículas secretoras, o gradiente de prótons e o potencial de membrana estabelecido pelas VATPases são utilizados para favorecer o uptake de pequenas moléculas como os neurotransmissores (Forgac, 2007). Alguns patógenos se beneficiam desse papel acidificador das VATPases. O pH ácido facilita a entrada de RNA mensageiro (mRNA) de vírus e porções de toxinas por poros que são formados em membranas endossomais (Gruenbergj e van Der Goot, 2006). Além disso, a atividade das VATPases tem sido relacionada a diversas patologias, como osteoporose e câncer (Cotter et al., 2015).
CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste capítulo buscamos entender o processo de exocitose/secreção desempenhado pelas células. Foram estudadas as principais organelas participantes desse processo, com ênfase no RE e no aparelho de Golgi. Além disso, as principais proteínas envolvidas na formação, translocação e fusão das vesículas secretoras também foram descritas. Por fim, foram enfatizados o papel do Ca2+ e do pH das organelas na regulação de todo esse processo.
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Cronobiologia e ritmos biológicos
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Classificação dos ritmos biológicos Origem e evolução da ritmicidade circadiana
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Características gerais da ritmicidade circadiana Organização celular e multicelular do sistema circadiano de temporização Núcleos supraquiasmáticos
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Ritmos circadianos nos diversos sistemas fisiológicos e conceito de homeostase Ritmos das secreções hormonais
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Ritmos da função renal Termorregulação Ritmos dos elementos figurados do sangue
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Ritmos no sistema cardiovascular Ritmos no sistema respiratório Variação circadiana na ação de medicamentos | Cronofarmacologia e cronoterapêutica
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Bibliografia
CRONOBIOLOGIA E RITMOS BIOLÓGICOS A cronobiologia é um ramo das ciências biológicas contemporâneas que tem como objeto de estudo a organização temporal dos seres vivos. Um dos pressupostos básicos dos estudos cronobiológicos é que tenham ocorrido, ao longo do processo evolutivo, fenômenos adaptativos nos seres vivos em resposta à pressão seletiva exercida pela organização temporal de fenômenos geofísicos ambientais. Supõese, ainda, que as sequências de eventos ambientais, recorrentes e periódicos, como a alternância entre o dia e a noite, os ciclos de gravitação, as estações do ano e os fenômenos físicoquímicos a elas associados (luminosidade, temperatura, tensão de oxigênio), possam ter sido fatores poderosos de pressão seletiva desde o momento da própria organização original do material biológico. Assim, como uma maneira de adaptação aos fatores cíclicos ambientais, os seres vivos teriam desenvolvido, ao longo da evolução, uma distribuição temporal de suas funções ao longo do dia e da noite, do mês ou do ano. Os eventos biológicos que apresentam uma repetição periódica recebem o nome de ritmos biológicos. Ao fenômeno de recorrência sistemática, regular e periódica de eventos biológicos, dáse o nome de ritmicidade biológica.
CLASSIFICAÇÃO DOS RITMOS BIOLÓGICOS Os ritmos biológicos podem ser classificados em 3 grandes grupos, de acordo com o período de recorrência do evento considerado: ■ Ritmos circadianos: cujas flutuações se completam a cada 24 h aproximadamente (período de 24 ± 4 h). Praticamente todas as variáveis fisiológicas e comportamentais de um mamífero apresentam ritmicidade circadiana
Ritmos ultradianos: que apresentam mais de um ciclo completo a cada 24 h (período menor do que 20 h). Muitas variáveis fisiológicas apresentam ritmicidade ultradiana, como, por exemplo, as secreções hormonais ■ Ritmos infradianos: cujo período de repetição é maior do que 28 h. O ciclo menstrual feminino, assim como outros processos reprodutivos, na maioria das espécies, apresenta uma flutuação anual ou sazonal. ■
ORIGEM E EVOLUÇÃO DA RITMICIDADE CIRCADIANA Várias teorias discutem a origem e a evolução dos processos rítmicos biológicos, postulando que a ritmicidade circadiana tenha sido resultante de: ■ Um processo de acoplamento entre ritmos ultradianos e/ou alteração gradativa de seus períodos, originariamente sincronizados aos ciclos geofísicos da Terra primitiva ■ Organização de uma ordenação temporal, internamente referenciada, de processos metabólicos e de divisão da célula e de organelas primitivas, dentro da hipótese de surgimento dos eucariotos por endossimbiose ■ Um processo de temporização de fenômenos vitais, necessário para adaptar os organismos primitivos ao ciclo de iluminação ambiental diário e à alta tensão de oxigênio presente na atmosfera terrestre. Esta hipótese está baseada no fato de, tanto em procariotos como em eucariotos, a irradiação solar na faixa do visível e do ultravioleta poder afetar, diretamente ou por meio de reações fotooxidativas, processos como: a replicação do DNA e a indução gênica, os fenômenos de membrana responsáveis pela respiração mitocondrial e as funções metabólicas celulares. Não importando qual a teoria que melhor explica a origem dos ritmos biológicos, o fato é que, hoje em dia, para a maioria das espécies conhecidas, os ritmos biológicos são gerados pelos próprios organismos e são determinados geneticamente.
CARACTERÍSTICAS GERAIS DA RITMICIDADE CIRCADIANA As estruturas biológicas capazes de gerar os períodos dos diversos ritmos observados são denominadas osciladores endógenos, marcapassos ou relógios biológicos. Os osciladores endógenos circadianos têm a propriedade de poderem ser sincronizados por fatores cíclicos ambientais, fenômeno chamado de sincronização ou arrastamento. Estes fatores ambientais capazes de ajustar o período e a fase dos osciladores endógenos são denominados agentes sincronizadores, agentes arrastadores ou zeitgebers (um neologismo alemão que significa doador de tempo). O sincronizador ambiental mais poderoso para a maioria dos seres vivos é a alternância entre o claro e o escuro, o dia e a noite. Mesmo em condições especiais, em que não ocorram flutuações cíclicas dos possíveis agentes sincronizadores ambientais, os ritmos circadianos continuam a se expressar. Esta situação é conhecida por livrecurso, e, nela, os ritmos expressam, de modo relativamente fiel, as características endógenas dos osciladores. Os períodos dos ritmos circadianos em livrecurso tornamse ligeiramente diferentes do período expresso em condições de arrastamento (que é de exatamente 24 h). Tanto em condições de arrastamento quanto em determinadas situações de livrecurso, os ritmos endógenos mantêm entre si relações temporais constantes. Essa relação temporal estável entre todas as funções de um organismo é chamada de ordem temporal interna. Há muitas evidências na literatura indicando que a sincronização dos ritmos endógenos com o meio ambiente e a manutenção da ordem temporal interna são necessárias para a expressão funcional normal de qualquer organismo, seja unicelular ou pluricelular. No caso do ser humano, a ordenação temporal interna dos fenômenos fisiológicos é précondição para a manutenção da saúde de qualquer indivíduo. A ruptura desses padrões (como em situações de trabalho noturno ou em turnos alternantes ou em voos transmeridiânicos frequentes) resulta em ameaça para a saúde e, possivelmente, em redução na expectativa de vida do indivíduo. Os ritmos biológicos se caracterizam por alguns parâmetros básicos: ■ Período: intervalo de tempo entre repetições (ciclos) do evento considerado ■ Amplitude: diferença entre o valor médio da variável e seus valores de máxima ou mínima ■ Ciclo: todos os valores de uma variável biológica assumidos ao longo de um período ■ Fase ou ângulo de fase: qualquer instante ao longo de um ciclo.
Dependendo dos modelos matemáticos utilizados para representar o ritmo biológico, alguns outros parâmetros são empregados para caracterizálo. Se o modelo utilizado for o de ajuste de uma curva cosseno aos dados reais (método do Cosinor), denominase mesor ao valor médio da curva ajustada e acrofase ao instante de ocorrência do valor máximo da curva ajustada.
ORGANIZAÇÃO CELULAR E MULTICELULAR DO SISTEMA CIRCADIANO DE TEMPORIZAÇÃO Quando se discute a organização do sistema circadiano de temporização e, eventualmente, os seus aspectos bioquímicos e moleculares, devemse ter em mente as distinções existentes entre organismos unicelulares, organismos pluricelulares e células isoladas de seres pluricelulares. No primeiro caso, a célula é o maior nível de organização biológica do ser vivo considerado. Desta maneira, é, ao nível da organização intrinsecamente celular, bioquímica e molecular, que podem ser entendidos os fenômenos típicos das expressões rítmicas circadianas: os mecanismos geradores de tempo (os relógios circadianos), as estruturas e vias que garantem os efeitos sincronizadores de agentes físicos ambientais sobre os osciladores celulares, assim como as vias bioquímicas que acoplam esses osciladores aos diferentes sistemas funcionais da célula, garantindo sua temporização circadiana. No caso de seres multicelulares, devese considerar que o nível de organização celular está, necessariamente, subordinado aos níveis de organização hierarquicamente superiores, como os tecidos e os sistemas fisiológicos. Assim, apesar de as células isoladas poderem apresentar expressões rítmicas circadianas, comandadas pelos clock genes (p. ex., quanto a atividade enzimática, divisão celular, crescimento, respiração, síntese e secreção etc.), no conjunto do organismo, estas não são autônomas, pois dependem de agentes moleculares extracelulares, neurais e/ou humorais, que trazem a informação dos osciladores mestres do organismo. As únicas células de seres pluricelulares que, com algumas restrições, apresentam similaridades com os seres unicelulares, quanto à sua organização rítmica, são as células dos marcapassos centrais. Os osciladores centrais de vertebrados e invertebrados, enquanto estruturas multicelulares, têm a capacidade de gerar tempo, de sincronizarse, direta ou indiretamente, com agentes cíclicos ambientais e de temporizar os sistemas fisiológicos e comportamentais do organismo. Em alguns casos, a capacidade de relógio circadiano é intrínseca a cada célula do oscilador mestre, como parece ser o caso da pineal de aves, do núcleo supraquiasmático de mamíferos e das células dos olhos de alguns moluscos, como Aplysia e Bulla. No entanto, a sincronização e a geração final do período de aproximadamente 24 h pelos osciladores mestres de seres pluricelulares podem estar, também, na dependência de uma relação funcional entre um conjunto de células, como parece ser o caso dos núcleos supraquiasmáticos de mamíferos. Além disso, em alguns organismos, as células do marcapasso central são diretamente sensíveis aos zeitgebers, como é o caso da maioria dos relógios de invertebrados e da pineal de vertebrados não mamíferos. Em outros, no entanto, a ação sincronizadora dos zeitgebers se dá por meio de sistemas sensoriais organizados, como é o caso do sistema visual de mamíferos, cujo órgão receptor e vias e estruturas centrais podem comunicarse com os núcleos supraquiasmáticos, levando a eles a informação sobre o ciclo de iluminação ambiental. Finalmente, uma outra diferença está no fato de o relógio circadiano de um ser unicelular temporizar, diretamente, por intermédio de vias bioquímicas, as funções celulares, enquanto as células de um oscilador central de seres multicelulares têm que lançar mão de transformações bioquímicas e moleculares que coloquem em ação sistemas neurais e/ou endócrinos de modo a comandar funções a distância distribuídas por todo o organismo.
NÚCLEOS SUPRAQUIASMÁTICOS Na década de 1970, demonstrouse a importância dos núcleos supraquiasmáticos (NSQ) hipotalâmicos na geração da ritmicidade circadiana em mamíferos. A partir de estudos de lesões desses núcleos, verificouse a perda da ritmicidade circadiana em muitas variáveis fisiológicas e comportamentais. O passo seguinte para a confirmação do papel dos NSQ como marcapasso central foi a demonstração da presença de atividade elétrica multiunitária rítmica nesses núcleos e a sua persistência mesmo quando os núcleos eram isolados de suas conexões com o restante do sistema nervoso central, utilizando uma preparação chamada de “ilha hipotalâmica”. Ainda, com relação às oscilações in vivo dos NSQ, foi
demonstrado um ritmo circadiano de atividade metabólica na captação de 2desoxiglicose marcada, com atividade metabólica elevada durante o dia, e que persiste mesmo na ausência do ciclo de iluminação ambiental. Estudos in vitro da atividade elétrica dos NSQ evidenciaram a autonomia desses núcleos como marcapassos circadianos. Mais recentemente, as abordagens para estudar os processos de geração da ritmicidade circadiana têm incluído métodos de biologia molecular e genética molecular. Foram identificados hamsters mutantes em que o período endógeno de seus ritmos difere do período encontrado nos animais “selvagens” ou normais. Esses animais mutantes, denominados mutantes tau, apresentam um período em livrecurso menor (22 h para os heterozigotos tau/+ e 20 h para os homozigotos tau/tau) do que o dos animais normais (período de 24 h). Transplantes de tecidos dos NSQ desses mutantes em hamsters selvagens com seus núcleos supraquiasmáticos lesados restauram a ritmicidade no hospedeiro com o período do ritmo do doador. Mutações induzidas que afetam a função do relógio têm sido identificadas em outros mamíferos (camundongos – mutante clock) e não mamíferos (Drosophila melanogaster, Neurospora crassa, Cyanobacteria). Nessa perspectiva de compreensão dos mecanismos do relógio biológico ao nível celular, a demonstração da presença de ritmicidade circadiana na atividade elétrica de neurônios isolados dos NSQ, com períodos diferentes, reforçou a busca por mecanismos geradores da ritmicidade circadiana ao nível molecular. Alças regulatórias da transcrição e tradução gênicas dos chamados genes do relógio (clock genes) têm sido postuladas como modelo para a geração dos ritmos circadianos. Assim, a ritmicidade circadiana, em nível celular, parece depender de ciclos bioquímicos que envolvem processos de transcrição, tradução, interação proteica, processos de fosforilação, degradação proteica, translocação para o núcleo e interação com o material genômico, fechando alças de regulação positiva ou negativa da expressão gênica. Esses processos estão organizados temporalmente de tal modo que são capazes de gerar ciclos de aproximadamente 24 h. Muitos são os denominados genes do relógio, dentre os quais se destacam os genes clock, bmal1, período per1, per2, per3), criptocromo (cry1, cry2), tim. Como produto da transcrição de cada um desses genes e da tradução dos respectivos RNA mensageiros, geramse as proteínas correspondentes CLOCK, BMAL1, PER1, PER2, PER3, CRY1, CRY2 e TIM. O gene clock expressase continuamente, enquanto o bmal1 apresenta uma expressão rítmica circadiana. As proteínas CLOCK e BMAL1 dimerizamse no citoplasma e se translocam para o núcleo, onde, agindo sobre os elementos reguladores do DNA responsáveis pela expressão dos genes per e criptocromos, estimulam esse processo de transcrição, resultando, assim, em um aumento das proteínas correspondentes no citoplasma. As proteínas PER e CRY, por sua vez, formam complexos heterodiméricos que se translocam para o núcleo e vão inibir a ação estimulatória do complexo proteico CLOCK:BMAL1, fechandose um ciclo que dura aproximadamente 24 h. O ciclo descrito anteriormente é o ciclo básico da expressão circadiana dos genes do relógio. No entanto, devese ter em conta que a realidade é mais complexa, uma vez que outros genes, proteínas e processos bioquímicos celulares estão envolvidos. Assim, as proteínas PER1 e PER2, por exemplo, podem ser fosforiladas por uma caseínaquinase (CKIɛ) e, nessa forma fosforilada, são rapidamente degradadas. Dessa maneira, processos de fosforilação podem controlar as concentrações das proteínas e, consequentemente, a formação dos complexos ativadores e negativadores da expressão gênica dos genes do relógio. Recentemente, foram descobertas proteínas secundárias que interferem com esse ciclo, podendo regular o período e a amplitude do ritmo, que são as proteínas REVERBα e β, PAR (proteínas ricas em aminoácido prolina), incluindo a HLF (fator leucocitário hepático), a TEF (fator tireotrófico embrionário) e a DBP (proteína ligante do elemento D albumina).
RITMOS CIRCADIANOS NOS DIVERSOS SISTEMAS FISIOLÓGICOS E CONCEITO DE HOMEOSTASE Os estudos cronobiológicos demonstram que praticamente todas as variáveis fisiológicas apresentam flutuações regulares e periódicas em sua intensidade ao longo das 24 h do dia. Demonstram, também, que, além dessa variação quantitativa, os diversos sistemas fisiológicos respondem de forma diferente a um mesmo estímulo de acordo com a hora do dia. Essa ritmicidade circadiana, filogeneticamente incorporada e endogenamente gerada, teria a finalidade de preparar, antecipadamente, os organismos para enfrentar as alterações e estimulações ambientais estreitamente vinculadas às flutuações do dia e da noite. A essa capacidade regulatória, cuja qualidade e intensidade são ritmicamente moduladas, dá se o nome de homeostase preditiva. Já o fenômeno homeostático clássico, isto é, a capacidade que os sistemas
fisiológicos têm de ajustar uma determinada variável em torno de um certo valor médio, é denominado homeostase reativa. A vantagem da complementação do conceito de homeostase com a chamada homeostase preditiva é entender que o “valor médio”, em torno do qual se dá a regulação fisiológica clássica, varia de modo rítmico ao longo das 24 h do dia. Da mesma maneira, varia também a própria capacidade regulatória dos diversos sistemas fisiológicos.
RITMOS DAS SECREÇÕES HORMONAIS Ao se fazerem várias dosagens plasmáticas dos diversos hormônios humanos, intervaladas ao longo das 24 h, notase uma variação considerável entre os seus valores mínimos e máximos. Mesmo quando os fatores habituais, como sexo, idade, estado nutricional e alimentar etc., são controlados, grande parte dessa variabilidade permanece e demonstra ser devida a uma variação rítmica circadiana endógena. Cada um dos hormônios circulantes apresenta seu pico de máxima produção e secreção em momentos diferentes do dia, de acordo com as necessidades típicas da espécie. Assim, para a espécie humana, tipicamente de atividade diurna, os corticosteroides suprarrenais, que no conjunto de suas funções preparam o organismo para a vigília e a interação ativa com o meio ambiente, têm seu pico máximo de produção e secreção no fim da noite de sono, precedendo o despertar. Da mesma maneira, a insulina é produzida e liberada em maior quantidade, além de agir mais intensamente, de manhã e no começo da tarde, quando as necessidades energéticas na espécie humana são maiores. Além da variação circadiana na produção e secreção desses hormônios, demonstrase, também, que a reatividade de seus sistemas funcionais é diferente em distintos momentos do dia. Assim, estímulos estressantes produzem seu máximo efeito nos momentos circadianos de menor produção de corticosteroides e efeitos mínimos nos instantes de sua máxima produção e secreção. Da mesma maneira, a quantidade de insulina liberada por uma carga oral de glicose é máxima de manhã e mínima à noite, de que se pode inferir que a glicemia resultante será maior e mais duradoura à tarde e à noite do que de manhã. Outra secreção hormonal que apresenta uma distribuição circadiana bem evidente é a do hormônio de crescimento. Seu pico de máxima para os seres humanos se dá no primeiro terço da noite de sono, coincidentemente com a maior incidência de sono sincronizado de ondas lentas (fases 3 e 4), momento este em que o metabolismo proteico cerebral é máximo. Vale ressaltar que, da mesma maneira que para os corticosteroides suprarrenais, as relações entre os ciclos circadianos de vigíliasono e a concentração plasmática de hormônio de crescimento são principalmente temporais e não causais. Também, para várias outras secreções hormonais, está demonstrada a existência de ritmicidade circadiana: tireotropina, prolactina, aldosterona, renina e testosterona. Quanto aos hormônios foliculestimulante (FSH) e luteinizante (LH), notase, igualmente, uma tendência circadiana na sua concentração plasmática. No entanto, para o LH e o hormônio liberador de LH (LHRH), são muito mais evidentes e fisiologicamente importantes as suas produções e secreções infradianas (obedecendo aos ciclos estrais) e pulsátil (obedecendo a um ritmo ultradiano que, no ser humano, tem um período entre 1 e 2 h).
RITMOS DA FUNÇÃO RENAL A excreção renal de água e eletrólitos apresenta nítidas flutuações circadianas. Nos seres humanos, a excreção urinária de água, potássio, cálcio e hidrogênio é máxima de manhã e no começo da tarde, enquanto a excreção de sódio é maior à tarde. Da mesma maneira, as regulações do volume de líquido extracelular e da concentração de eletrólitos plasmáticos pelos mecanismos renais variam de acordo com a hora do dia. É possível demonstrar que, quando todos os outros fatores interferentes estão controlados, a resposta diurética humana à ingestão de água é consideravelmente maior de manhã do que à tarde. Demonstrase, em seres humanos, que o aumento do retorno venoso provocado pela passagem da posição ereta para a posição deitada causa, de dia, um aumento imediato da diurese e da natriurese e, de madrugada, uma resposta quase 5 vezes menor. Mostrase, ainda, que o organismo humano tem uma capacidade maior de livrarse de uma sobrecarga de potássio de dia do que de noite.
TERMORREGULAÇÃO
A temperatura corpórea apresenta um dos mais conspícuos ritmos circadianos em mamíferos, e no ser humano em particular. Em indivíduos adequadamente sincronizados a um esquema social de trabalho diurno e repouso noturno, a temperatura corpórea central apresenta seu valor máximo por volta das 17 a 18 h e seu valor mínimo por volta do segundo terço do sono noturno. Esse valor mínimo da temperatura corpórea aparece após o período de maior incidência de sono sincronizado com ondas lentas e de máxima secreção do hormônio de crescimento e precede os momentos de maior incidência de sono com movimentos oculares rápidos e de máxima secreção de corticosteroides suprarrenais. Nas mulheres, a ritmicidade circadiana da temperatura corporal está modulada por um ritmo infradiano de aproximadamente 1 mês, que atinge o seu valor máximo concomitantemente com a ovulação.
RITMOS DOS ELEMENTOS FIGURADOS DO SANGUE Em seres humanos, vários parâmetros hematológicos, quando medidos ao longo das 24 h, mostram uma variação considerável que pode, quando excluídos os outros fatores, ser atribuída ao fenômeno da ritmicidade circadiana. Assim, a título de exemplo, o momento de máxima no número de hemácias, na quantidade de hemoglobina e no hematócrito ocorre por volta das 12 h. Já o número total de glóbulos brancos tem seu maior valor imediatamente antes ou mesmo no início do período de repouso (aproximadamente das 23 às 24 h). Essa curva circadiana dos leucócitos pode ser decomposta para cada um de seus componentes: neutrófilos têm sua maior ocorrência por volta das 18 às 19 h, e linfócitos totais, em torno das 24 h (e linfócitos do tipo B têm seu valor máximo no fim da noite de sono). Por outro lado, as plaquetas têm seu número máximo perto das 18 h.
RITMOS NO SISTEMA CARDIOVASCULAR Praticamente todos os parâmetros cardiovasculares humanos apresentam uma flutuação circadiana regular. Assim, a frequência cardíaca, o débito cardíaco, o volume sistólico e as pressões arteriais sistólica e diastólica, além do volume circulante, apresentam valores máximos por volta das 17 às 18 h. Já o tempo de ejeção ventricular, o intervalo entre sístoles, a resistência capilar e a viscosidade sanguínea ou plasmática apresentam seus valores máximos entre 5 e 8 h da manhã. Por meio de uma análise dessas flutuações circadianas, podemse inferir os momentos de maior risco para acidentes vasculares do tipo isquêmico (de madrugada e início da manhã) e do tipo hemorrágico (fim da tarde e noite).
RITMOS NO SISTEMA RESPIRATÓRIO Os valores das variáveis ligadas à função respiratória apresentam uma flutuação circadiana, em seres humanos, de tal forma que a capacidade respiratória é mínima à noite e de madrugada e máxima durante o dia. Além do mais, demonstra se que a responsividade máxima da árvore brônquica a agentes parassimpaticomiméticos ocorre à noite, e a agentes simpaticomiméticos, durante o dia. Este fato, associado à maior resposta alergênica, menor resposta antiinflamatória, além de um maior contato com o antígeno, explicaria a maior incidência de crises de asma alérgica à noite.
VARIAÇÃO CIRCADIANA NA AÇÃO DE MEDICAMENTOS | CRONOFARMACOLOGIA E CRONOTERAPÊUTICA Como a fisiologia do organismo humano oscila de modo qualitativo e quantitativo nas 24 h do dia, é de se esperar que a interação do organismo com fármacos a ele administrados também apresente a mesma variação. O fato de um medicamento apresentar efeito diferente em razão do horário da sua administração devese a diversos fatores que variam de acordo com o ciclo circadiano, tipo: absorção, capacidade de metabolização, armazenamento, excreção, bem como número e afinidade de receptores em órgãosalvo.
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Introdução
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Estrutura geral da célula muscular esquelética Junção neuromuscular
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Transmissão sináptica na junção neuromuscular Acoplamento excitaçãocontração Regulação da atividade muscular
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Tipos de fibras musculares “Plasticidade” muscular
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Doenças neuromusculares Bibliografia
INTRODUÇÃO Uma das grandes conquistas evolutivas dos animais, principalmente no que diz respeito aos vertebrados, foi a possibilidade de se locomover e assim explorar territórios novos e cada vez maiores. Essa aquisição possibilitou, entre outras vantagens, maior interação dos indivíduos de uma mesma espécie, busca por abrigos seguros, fuga de predadores e repertório mais variado no comportamento alimentar. A espécie humana, em particular, adquiriu com a postura bípede a possibilidade de utilizar as mãos nas mais diversas atividades, como confeccionar utensílios para as tarefas diárias. Além disso, os movimentos precisos das mãos permitiram o desenvolvimento da escrita e, juntamente com os da face, criaram todo um repertório sofisticado de comunicação que é um dos exemplos mais complexos de interação social. A execução de movimentos, comportamentos que podem ser dos mais simples (como o reflexo miotático patelar gerado quando se percute o tendão do joelho) aos mais complexos (p. ex., o de tocar uma peça ao piano, que exige movimentos coordenados e precisos), é vista como a principal resposta do sistema nervoso a uma série de sinais neurais, periféricos e centrais, sendo discutida neste capítulo em termos de contração muscular. O sistema motor somático apresenta, além do próprio músculo esquelético, vários elementos neurais que controlam e planejam as diversas etapas do processo que culmina com a contração muscular. Esses elementos, que têm características e funções específicas, podem ser classificados como efetuadores (músculos esqueléticos), ordenadores (motoneurônios da medula espinal e do tronco encefálico), controladores (cerebelo e núcleos da base) e planejadores (córtex motor). Neste capítulo, trataremos mais especificamente do elemento efetuador, o músculo estriado esquelético, que dispõe em sua estrutura, de uma organização de proteínas contráteis capazes de deslizar umas sobre as outras, promovendo o encurtamento (contração) da fibra muscular e gerando o movimento. É importante mencionar que a contração muscular pode servir a outros propósitos, como os calafrios, que podem aumentar por até cinco vezes a produção de calor muscular, sendo assim fundamental na homeostase térmica. A contração muscular resulta de uma sequência de sinalização molecular, iniciada por potenciais de ação em um motoneurônio, que conduz à liberação de um neuromediador na região de contato entre o neurônio e o músculo. Esse
neuromediador interage então com receptores específicos presentes na membrana da célula muscular, o que leva posteriormente à ativação de proteínas do citoesqueleto. Assim, dizemos que a célula muscular é excitável como os neurônios, ou seja, sofre variações de suas propriedades elétricas promovidas pelo potencial de ação. Porém, antes de descrevermos os eventos moleculares da contração muscular esquelética (que se inicia com um impulso nervoso gerado em um motoneurônio que estabelece sinapse com uma fibra muscular), precisamos entender as características morfofuncionais das células musculares em geral, considerando, no entanto, as especificidades do tecido muscular seja ele liso ou estriado. Em seguida, trataremos da região de contato entre neurônio e músculo, uma estrutura denominada junção neuromuscular.
ESTRUTURA GERAL DA CÉLULA MUSCULAR ESQUELÉTICA Tanto as células musculares, como as nervosas, apresentam a característica de serem excitáveis e especializadas em converter sinais químicos e elétricos em energia mecânica (ou trabalho). Essa conversão pode resultar, por exemplo, em movimentos peristálticos, como ocorre nos órgãos do sistema digestório que contêm grande quantidade de músculo liso. Pode, também, levar à contração sincronizada de um sincício, como no músculo cardíaco, responsável pela ejeção do sangue no sistema vascular. Ou, ainda, causar movimentos complexos e voluntários, como em sequências específicas de encurtamento e relaxamento de fibras musculares esqueléticas que resultam nos atos de caminhar e falar. Nessa conversão de sinais, as células musculares usam o ATP como fonte de energia para a realização de trabalho, por terem uma série de proteínas relacionadas ao citoesqueleto, com filamentos finos e grossos, cuja complexa organização, que inclui proteínas sensíveis ao íon Ca2+, permite a contração muscular. Os músculos estriados esqueléticos são conjuntos de centenas ou milhares de células alongadas, multinucleadas, também chamadas de fibras musculares agrupadas em feixes e envoltas por uma cápsula de tecido conjuntivo. Esse tecido é mais rígido nas extremidades e forma os tendões que ligam os músculos aos ossos. Cada fibra muscular apresenta sua própria membrana celular (sarcolema), sendo formada por unidades menores denominadas miofibrilas, em que estão as moléculas contráteis. As miofibrilas são cilíndricas, têm 1 a 2 mm de diâmetro e são organizadas longitudinalmente dentro da fibra muscular (Figura 6.1). Cada uma delas é envolta por uma especialização do retículo endoplasmático liso (retículo sarcoplasmático), que apresenta, como principal função, armazenar íons Ca2+, que serão liberados no citosol durante o processo de contração muscular. Muito próximo ao retículo sarcoplasmático, existem estruturas tubulares formadas pela invaginação do sarcolema, designadas túbulos transversos ou túbulos T, que contêm canais de Ca2+ dependentes de voltagem (ver Figura 6.1). O conjunto constituído pelo túbulo T e os dois lados do retículo forma uma estrutura conhecida por tríade. É justamente na região da tríade que ocorre o acoplamento entre a excitação da membrana e os sinais químicos necessários à contração muscular. Cada miofibrila é formada por conjuntos longitudinais de filamentos finos e grossos delimitados por bandas perpendiculares chamadas de linhas Z, que aparecem organizados em unidades repetidas ditas sarcômeros (Figura 6.2). É essa organização morfológica que confere ao músculo o aspecto estriado ao microscópio. Os filamentos finos e grossos dos sarcômeros são justamente as proteínas contráteis, responsáveis pela contração muscular; portanto, poderíamos dizer que os sarcômeros são as unidades morfofuncionais do músculo esquelético. Os filamentos grossos contêm principalmente moléculas de miosina, e os finos, actina, tropomiosina e troponina. A miosina e a actina, juntas, representam aproximadamente 55% das proteínas do músculo. Os filamentos grossos e finos são também dispostos longitudinalmente nas miofibrilas, com uma distribuição simétrica e paralela. A molécula de miosina é grande e complexa, sendo formada por dois peptídios enrolados em hélice. Em uma de suas extremidades, mais próxima da linha Z, a miosina apresenta uma saliência globular ou cabeça que dispõe de enzimas ATPase, locais específicos de ligação com moléculas de ATP, tendo, portanto, atividade ATPásica (Figura 6.3). É nessa porção da molécula que também se encontra o local de combinação com a molécula de actina. A molécula de actina é longa e formada por duas cadeias de monômeros globulares torcidas uma sobre a outra, em hélice dupla (ver Figura 6.3). Cada monômero de actina globular tem uma região de combinação com a molécula de miosina. Os filamentos finos contêm ainda moléculas de tropomiosinae troponina associadas aos de actina (ver Figura 6.3). A molécula de tropomiosina é longa e fina; contém duas cadeias polipeptídicas em αhélice enroladas uma na outra e que se unem pelas extremidades para formar filamentos longos, que se enrolam ao longo dos dois filamentos globulares de actina. Cada molécula de tropomiosina contém um local específico onde se localiza uma molécula de troponina associada; esse local é na verdade um complexo de três polipeptídios globosos chamados de subunidades TnT, TnC e TnI. A TnT se liga fortemente à tropomiosina, a TnC apresenta alta afinidade por íons Ca2+ e a TnI inibe a interação entre actina e miosina.
Figura 6.1 ■ Estrutura de uma fibra muscular. Descrição no texto. Note que os túbulos T conduzem a atividade elétrica a partir da superfície da membrana para o interior da fibra muscular. (Adaptada de Bear et al., 2001.)
Os sarcômeros apresentam (ver Figura 6.2), em uma das extremidades delimitada pelas linhas Z, bandas claras constituídas de moléculas de actina, seguidas por faixas escuras que contêm sobreposições de moléculas de actina e de miosina, uma região central contendo principalmente miosina (banda H), novamente faixas escuras seguidas de bandas claras e finalmente, na outra extremidade, linhas Z. Vale lembrar que, durante o processo de contração muscular, os filamentos grossos e finos mantêm seus comprimentos originais; portanto, a contração (ou encurtamento) de um músculo é resultado de aumento da zona de sobreposição entre os filamentos. Adicionalmente, outras proteínas participam da organização dos filamentos miofibrilares, como, por exemplo, filamentos de desmina, que unem as miofibrilas umas às outras. O conjunto de miofibrilas é, ainda, ancorado ao sarcolema por outras proteínas, como a distrofina, que liga os filamentos de actina às proteínas integrais da membrana plasmática. Tem sido dada muita importância também a duas proteínas de elevado peso molecular: a titina (conhecida também por conectina) e a nebulina (antes denominada proteína da banda 3), que parecem ter papel fundamental na manutenção da estrutura e controle da elasticidade do sarcômero. Além disso, é sabido que mutações nos genes que codificam essas proteínas também estão envolvidas em doenças neuromusculares, como as alterações dos genes que codificam as chamadas “proteínas contráteis”.
JUNÇÃO NEUROMUSCULAR A junção neuromuscular, como o próprio nome diz, é a região de contato entre o terminal axônico de um neurônio motor présináptico (motoneurônio) que se divide em vários ramos e uma região especializada da fibra muscular pós
sináptica chamada de placa motora (Figura 6.4). Em geral, cada fibra muscular é inervada por apenas um axônio, o que faz dessa sinapse exemplo simples e muito útil no entendimento da transmissão sináptica química, mas um mesmo motoneurônio pode inervar grande número de fibras musculares. A fibra nervosa e a(s) fibra(s) muscular(es) por ela inervada(s) formam uma unidade motora. Cada ramo desse axônio motor, que não é mielinizado na região próxima à fibra muscular, apresenta diversas varicosidades conhecidas como botões sinápticos, que contêm os componentes relacionados com a liberação do neuromediador. Esses componentes incluem grande número de vesículas cheias do neuromediador acetilcolina (ACh), mitocôndrias, canais de Ca2+dependentes de voltagem (fundamentais para os processos de fusão das vesículas com a membrana présináptica e liberação do neuromediador) e regiões especializadas da membrana (zona ativa) relacionadas com a liberação vesicular do neuromediador.
Figura 6.2 ■ Miofibrila: uma visão mais detalhada. Descrição no texto. (Adaptada de Bear et al., 2001.)
Figura 6.3 ■ Bases moleculares da contração muscular. A ligação do Ca2+ à troponina permite que a cabeça da miosina liguese ao filamento de actina. Daí, as cabeças de miosina fazem um movimento de rotação, induzindo o deslizamento dos filamentos um em direção ao outro. (Adaptada de Bear et al., 2001.)
Figura 6.4 ■ Junção neuromuscular. No músculo, o axônio motor dividese em vários ramos finos de aproximadamente 2 mm de espessura. Cada ramo forma múltiplas dilatações chamadas de botões sinápticos, que são cobertos por fina camada de células de Schwann. Os botões ficam sobre uma região especializada da membrana da fibra muscular, a placa motora, e são separados dela por uma fenda sináptica de 100 nm. Cada botão sináptico contém mitocôndrias e vesículas sinápticas agrupadas ao redor das zonas ativas, onde o transmissor acetilcolina (ACh) é liberado. Sob cada botão na placa motora, estão várias dobras juncionais, que contêm alta densidade de receptores de ACh em suas cristas. A fibra muscular é coberta por uma camada de tecido conjuntivo, a membrana basal, que consiste em colágeno e glicoproteínas. Tanto o terminal présináptico como a fibra muscular secretam proteínas na membrana basal, incluindo a enzima acetilcolinesterase, que torna inativa a ACh liberada pelo
terminal présináptico, quebrandoa em acetato e colina. A membrana basal também organiza a sinapse, alinhando os botões sinápticos com as dobras juncionais póssinápticas. (Adaptada de Kandel et al., 2000.)
A fenda sináptica existente entre as membranas présináptica (do axônio motor) e póssináptica (da fibra muscular) tem aproximadamente 100 nm, uma distância muito maior quando comparada àquela das sinapses do sistema nervoso central (de 20 a 40 nm). Na fenda existe uma membrana basal composta por várias proteínas da matriz extracelular que contém ancorada às suas fibrilas de colágeno a enzima de degradação da ACh, a acetilcolinesterase, que é sintetizada tanto pelo terminal axônico présináptico como pela fibra muscular póssináptica e que hidrolisa rapidamente o neuromediador. Os botões sinápticos do axônio motor, por sua vez, estabelecem contato com a região da placa motora que apresenta invaginações profundas da membrana, as dobras juncionais. A crista dessas dobras tem grande quantidade de receptores de acetilcolina do tipo nicotínico (cerca de 10.000 receptores/μm2!), e as regiões mais profundas das dobras são ricas em canais de Na+ dependentes de voltagem (ver Figura 6.4). Os receptores de acetilcolina do tipo nicotínico (AChR) são macromoléculas constituídas de cinco proteínas organizadas ao redor de um canal iônico que atravessa a membrana celular e que contém os locais de ligação da ACh, ou seja, o próprio receptor é o canal iônico (Figura 6.5).
TRANSMISSÃO SINÁPTICA NA JUNÇÃO NEUROMUSCULAR O potencial de ação que atinge o terminal axônico motor promove a abertura dos canais de Ca2+ dependentes de voltagem, presentes nos botões sinápticos; o influxo desse íon inicia uma sequência de eventos bioquímicos que leva à fusão das vesículas contendo ACh com a membrana présináptica e liberação do neuromediador na fenda sináptica. Quando liberada na fenda sináptica, a ACh se difunde rapidamente em direção aos receptores da membrana póssináptica. Porém, nem todas as moléculas de ACh se ligam aos receptores, porque dois processos de remoção do neuromediador da fenda atuam rapidamente. Uma parte desse contingente de moléculas de ACh se difunde para fora da fenda e outra é rapidamente hidrolisada pela acetilcolinesterase. As moléculas de ACh que alcançam a membrana póssináptica se ligam aos receptores, e a ligação desse neuromediador com os receptores nicotínicos na membrana póssináptica muscular promove uma movimentação coordenada de cada uma das proteínas que constituem esses receptores. Uma vez que o receptor contém dois locais de ligação do neuromediador, acreditase que sejam necessárias duas moléculas de ACh para promover a abertura do canal do receptor (ver Figura 6.5 A). Essa mudança conformacional da macromolécula receptora resulta na abertura do canal formado em sua região central, permitindo o influxo de íons Na+ e o efluxo de íons K+, levando a uma despolarização da membrana da placa motora. Esse potencial póssináptico excitatório na célula muscular é chamado de potencial da placa motora. O potencial da placa motora gerado pela abertura dos receptores de ACh é o resultado do fluxo de íons Na+ e K+ através do mesmo canal, diferente do observado para canais iônicos dependentes de voltagem, que apresentam uma seletividade a íons. Isso talvez se explique pelo fato de o diâmetro do canal do receptor nicotínico da ACh ser muito maior que o de canais iônicos dependentes de voltagem, formando um ambiente repleto de água que permite, assim, o fluxo dos dois cátions. Adicionalmente, estudos eletrofisiológicos realizados na placa motora mostraram que o potencial da membrana no qual a corrente iônica é zero (ou seja, no qual se estabelece um equilíbrio entre os fluxos iônicos) difere daquele esperado para o íon Na+. O valor encontrado para o potencial da placa motora parece mais refletir uma combinação dos potenciais de equilíbrio dos íons Na+ e K+.
Figura 6.5 ■ A. Modelo tridimensional do canal iônico nicotínico ativado pela ACh. O complexo receptorcanal consiste em cinco subunidades (2α, 1β, 1δ e 1γ), todas contribuindo para formar o poro do canal. Quando duas moléculas de ACh se ligam às porções das subunidades α expostas na superfície da membrana, o canal do receptor muda de conformação. Isso abre um poro na parte do canal embutida na bicamada lipídica; então, tanto o K+ como o Na+ fluem através do canal aberto, a favor de seus gradientes eletroquímicos (havendo influxo de Na+ e efluxo de K+ ). B. Modelo molecular das subunidades transmembrânicas do receptorcanal nicotínico da ACh. Cada subunidade é composta de quatro domínios transmembrânicos em αhélices (denominados M1 a M4). C. As cinco subunidades são arranjadas de tal modo que formam um canal aquoso, com o segmento M2 de cada subunidade voltado para dentro e constituindo a parede do poro. Note que a subunidade γ fica entre as duas subunidades α. (Adaptada de Kandel et al., 2000.)
Na década de 1950, o potencial da placa motora foi estudado em detalhes por Paul Fatt e Bernard Katz, que realizaram registros intracelulares de voltagem. Esse potencial apresenta uma amplitude de cerca de 70 mV (passando de –90 mV, no potencial de repouso, para –20 mV com a despolarização) com a estimulação de uma única fibra e é restrito à região da placa motora, decaindo progressivamente com a distância (Figura 6.6). Essa amplitude é muito grande, quando comparada à de menos de 1 mV dos potenciais póssinápticos gerados na maioria dos neurônios no sistema nervoso central. O potencial póssináptico excita então as regiões vizinhas da placa motora, mas ainda não é um potencial de ação. Porém, nas regiões mais internas das dobras juncionais, a membrana muscular é rica em canais de Na+ dependentes de voltagem, que, quando ativados pela despolarização, geram mais influxo de Na+, suficiente para ultrapassar o limiar da célula muscular, convertendo assim o potencial da placa motora em um potencial de ação no músculo, que se espalha por toda a membrana da célula muscular.
Figura 6.6 ■ A. O potencial sináptico no músculo é maior na região da placa motora e se propaga passivamente a partir deste ponto. A amplitude do potencial sináptico decai e sua evolução temporal diminui com a distância do local de seu início na placa motora. B. O decaimento resulta do vazamento da membrana da fibra muscular. Como o fluxo de corrente deve completar um circuito, na placa motora a corrente sináptica para dentro gera um fluxo de retorno da corrente para fora através dos canais de repouso e da membrana (o capacitor). É esse fluxo de retorno da corrente para fora que produz a despolarização. Como a corrente vaza para fora ao longo de toda a membrana, o fluxo de corrente diminui com a distância da placa motora. Assim, diferentemente do potencial de ação regenerativo, a despolarização local produzida pelo potencial sináptico da membrana se reduz com a distância. (Adaptada de Kandel et al., 2000.)
ACOPLAMENTO EXCITAÇÃOCONTRAÇÃO Conhecendo as estruturas da junção neuromuscular e do músculo esquelético propriamente dito, descritas previamente, podemos descrever a sequência de eventos que conduzem à contração do músculo esquelético. Seja para um movimento reflexo ou para um movimento mais elaborado que dependa de comandos superiores do encéfalo, como os movimentos voluntários, os eventos que vamos descrever são os mesmos. A sequência iniciase com um potencial de ação no motoneurônio que acaba por liberar grandes quantidades de acetilcolina na fenda sináptica, entre o neurônio e o músculo. A acetilcolina, então, se liga aos AChR presentes nas dobras juncionais, resultando na abertura do canal formado pelos próprios receptores. Essa abertura permite o influxo de íons Na+ e Ca2+ e o efluxo de íons K+, provocando uma alteração no potencial da membrana da célula muscular, levando a uma hipopolarização. Esse potencial excitatório póssináptico na célula muscular, o potencial da placa motora, é suficiente para ativar rapidamente canais de Na+ dependentes de voltagem, presentes nas porções mais profundas das dobras juncionais, gerando mais entrada de íons Na+; isso causa uma despolarização ainda maior que, quando atinge o limiar da célula muscular, gera um potencial de ação que se propaga ao longo da fibra muscular. A propagação desse potencial de ação na fibra muscular chega, então, ao interior dos túbulos T. Assim, a despolarização alcança os túbulos T, que contêm canais de Ca2+ dependentes de voltagem do tipo L (de longa duração) que, desse modo, se abrem e permitem o influxo de
íons Ca2+. Esses canais, por sua vez, estão muito próximos a outro tipo de canais de Ca2+ presentes na membrana do retículo sarcoplasmático, que são sensíveis à abertura dos canais de Ca2+ do tipo L. A abertura desse outro tipo de canal de Ca2+ causa a liberação no citosol de mais íons Ca2+ provenientes agora do retículo sarcoplasmático. Esse contingente extra de Ca2+ citosólico atinge então as moléculas contráteis das miofibrilas. Em seguida, o Ca2+ citosólico se liga à subunidade TnC da molécula de troponina, o que conduz a uma mudança conformacional do complexo troponina tropomiosina, expondo os locais de ligação da actina e possibilitando assim o seu ancoramento com a região da cabeça da molécula de miosina e formando pontes transversas entre os filamentos (ver Figura 6.3). Esse acoplamento leva ao deslizamento dos filamentos finos e grossos entre si, aproximando as linhas Z e encurtando o sarcômero, resultando na contração das fibras musculares. Antes de a contração ocorrer, a atividade ATPásica da cabeça da molécula de miosina cliva ATP em ADP + Pi, que é utilizado como fonte de energia para puxar os filamentos acoplados depois que o Ca2+ expõe os locais de ligação da actina. Assim, podemos dizer que há uma transformação de energia química em energia mecânica, que provoca um tracionamento entre as moléculas de filamentos. Ao final do processo de contração, as condições iniciais se restabelecem: o Ca2+ é bombeado de volta para o retículo sarcoplasmático, o efeito inibitório do complexo troponinatropomiosina sobre a molécula de actina volta a existir, ocorre o desacoplamento da miosina com a actina e nova molécula de ATP se liga à cabeça da molécula de miosina. É interessante mencionar que a concentração de cálcio no citosol das células musculares é baixa em condições de repouso (menor que 10–7 M), o que garante o estado de relaxamento muscular. Por outro lado, após a ativação pelos motoneurônios, que desencadeia a sequência de reações anteriores, a concentração de cálcio citosólico pode chegar a 2 × 10–4 M. A redução dessa concentração a níveis de repouso é fundamental para o relaxamento muscular, o que se obtém pela atividade intensa da bomba de cálcio na parede do retículo sarcoplasmático (que possibilita o bombeamento de cálcio de volta para o retículo) e ligação do cálcio a proteínas como a sequestrina. Uma informação interessante neste ponto é a persistência de uma contratura pósmorte (o rigor mortis), resultante da perda da fonte energética necessária para o relaxamento muscular. Assim, até 25 h pósmorte a musculatura pode permanecer contraída, já que o relaxamento só vai acontecer depois da degradação das proteínas musculares por autólise. Em temperaturas mais altas, a autólise é mais rápida, e a contratura pode ceder em 10 a 15 h após a morte. Deste modo, a contração muscular resulta do acoplamento excitaçãocontração, que é o conjunto de alterações eletroquímicas que explicam o vínculo entre o potencial de ação na membrana da célula muscular e o encurtamento do músculo. Na realidade, o mecanismo contrátil do músculo esquelético é essencialmente o mesmo quando não existe encurtamento, na denominada contração isométrica. Esse tipo de contração ocorre, por exemplo, quando o músculo está fixado em suas extremidades. Neste caso, os elementos não contráteis são estirados, gerando tensão. A chamada contração isotônica acontece quando há encurtamento real do músculo, contra uma carga constante.
REGULAÇÃO DA ATIVIDADE MUSCULAR A força de contração muscular é um fenômeno que deve ser analisado como sendo a ação de diversas fibras musculares que se contraem praticamente ao mesmo tempo, todas estimuladas pelo mesmo motoneurônio, que por sua vez irá regular a frequência e a intensidade de contração das fibras musculares. Durante a contração, nem todas as fibras de um músculo contraemse ao mesmo tempo: enquanto alguns grupos de fibras musculares estão contraídas, outras ficam relaxadas. A Figura 6.7 ilustra os principais mecanismos de regulação da força contrátil. A força de contração depende de alguns parâmetros, como os apresentados a seguir. ▸ Comprimento inicial do músculo. A explicação para esse efeito depende em grande parte da organização muscular esquelética. Para que a força seja máxima, a contração deve iniciarse com o músculo em um comprimento inicial característico, o comprimento ideal. Em geral, este comprimento é o mantido pelo músculo em questão na postura normal da espécie. Quando a contração iniciase em comprimentos maiores ou menores que o comprimento ideal, existe perda na força resultante. A curva tensãocomprimento resultante (ver Figura 6.7 A) revela claramente o comprimento ideal, para a maior efetividade da contração muscular, e sugere uma dependência estrita da situação mecânica do sarcômero em cada situação como fator preponderante na gênese desses efeitos. ▸ Somação de contrações musculares. A somação de abalos musculares isolados ocorre a fim de determinar movimentos musculares fortes e combinados. Em geral, isto acontece de duas maneiras diferentes (ver Figura 6.7 B):
Pelo aumento do número de unidades motoras que se contraem simultaneamente (somação espacial). O crescimento ■ do número de unidades motoras recrutadas é proporcional ao do número de motoneurônios que estão ativados. Este mecanismo é conhecido como recrutamento. Uma célula muscular individualizada não é capaz de graduar de maneira significante sua contração, por causa da natureza tudo ou nada do potencial de ação. As variações na força de contração de um músculo podem ser, então, variações do número de fibras musculares que se contraem em determinado momento. Como os músculos são constituídos por unidades motoras, a força ou intensidade de contração de um deles pode ser proporcional ao número de fibras musculares inervadas por uma fibra nervosa; ou seja, pode depender do tamanho da unidade motora estimulada e/ou do número de unidades motoras estimuladas em determinado momento. O tamanho da unidade motora, que reflete o nível de divergência da fibra nervosa sobre o músculo, também se relaciona com a delicadeza e a precisão de movimentos. Por exemplo, uma única fibra nervosa se ramifica muitas vezes e inerva várias fibras musculares de grandes músculos, como os músculos apendiculares da perna utilizados na execução de movimentos pouco precisos. Por outro lado, uma fibra nervosa inerva somente uma fibra muscular ou se ramifica pouco e inerva apenas algumas fibras musculares em músculos que executam movimentos mais precisos e delicados, como os dos dedos da mão ou os músculos oculares ■ Pelo aumento da eficiência de contração de unidades motoras (somação temporal), gerado pela elevação da frequência de potenciais de ação. Se a frequência crescer, contrações sucessivas irão se fundir, deixando de ser distinguidas umas das outras (ocorrendo o fenômeno denominado tetania). Os potenciais de ação sucessivos atingem o músculo antes de o relaxamento alcançar um percentual importante do relaxamento total, e assim a contração subsequente será maior, até chegar a um platô para cada frequência. Possivelmente, um acúmulo de cálcio citosólico (remanescente da estimulação anterior) tem um papel na contração aumentada que é induzida pela alta frequência de potenciais, mas claramente também estão envolvidos fenômenos mecanoelásticos. Na estimulação com frequências médias ou altas suficientes para produzir essa somação temporal, os números de fibras musculares que estão se contraindo serão sempre os mesmos, mas a força resultante será progressivamente maior, em função da frequência, até um valor máximo, característico de cada músculo. É importante mencionar que essa somação é possível porque o período refratário das células musculares está na dependência de suas propriedades elétricas (especificamente, do potencial de ação), sendo, portanto, muito mais curto que o componente mecânico.
Figura 6.7 ■ Regulação da força de contração do músculo esquelético. A. Relação tensãocomprimento, mostrando que há um comprimento inicial ótimo para desenvolvimento máximo de tensão. Esse comprimento corresponde ao comprimento de repouso na postura típica da espécie. B. Efeito da somação espacial (recrutamento por estímulos de intensidades crescentes) e temporal (somação por frequências de estimulação crescentes) sobre a força de contração.
TIPOS DE FIBRAS MUSCULARES Os músculos não são tecidos homogêneos, mas sim, em sua imensa maioria, constituídos por vários tipos de fibras musculares. Essas fibras podem ser agrupadas em dois tipos principais: as do tipo 1, especializadas para movimentos lentos, tônicos e aeróbicos, com metabolismo predominantemente oxidativo, e as do tipo 2, especializadas para contrações rápidas, com metabolismo glicolítico. As fibras do tipo 1, ou vermelhas, têm irrigação abundante, muitas mitocôndrias e níveis de mioglobina altos. As características metabólicas dessas fibras limitam a sua velocidade de contração e relaxamento, mas propiciam condições ideais para um trabalho muscular sustentado. As do tipo 2 incluem, na realidade, dois subtipos de fibras musculares, as fibras 2a e 2b, sendo estas últimas conhecidas como fibras brancas, que contêm poucas mitocôndrias e uma irrigação limitada. Todavia, suas características metabólicas, incluindo influxos grandes de cálcio e alta atividade ATPásica, propiciam condições de alta velocidade, ainda que por tempos reduzidos. As fibras do subtipo 2a, por outro lado, têm características intermediárias entre os tipos 1 e 2b, representando, de certa maneira, fibras mistas, com propriedades metabólicas que garantem velocidade e resistência à fadiga.
As propriedades metabólicas e contráteis das diferentes fibras musculares implicam propriedades particulares de suas unidades motoras, como a sua frequência de fusão. Quando uma unidade motora recebe impulsos em frequências tais, que o intervalo entre eles é menor que o tempo de relaxamento, ocorre uma somação, e as contrações podem fundirse (contração tetânica). Assim, como as contrações das fibras do tipo 1 são mais lentas, é possível elas fundiremse em frequências mais baixas, entre 12 e 15 Hz. As fibras do tipo 2 têm frequências de fusão acima de 40 Hz. É importante comentar que as diferentes propriedades metabólicas das várias fibras musculares dependem da expressão de uma família de genes que codificam distintas isoformas de miosina, cálcioATPase e troponina, por exemplo, e que a regulação da expressão desses genes tem estrita dependência de interações tróficas dos motoneurônios com as células musculares. De fato, os motoneurônios que inervam as diversas fibras musculares apresentam propriedades particulares, além das que determinam as propriedades das fibras musculares. Os motoneurônios que controlam as fibras do tipo 1 têm, de modo geral, diâmetros pequenos e excitabilidade alta, possivelmente em função do maior impacto que os potenciais sinápticos podem ter sobre sua atividade elétrica (ver Capítulo 15, Transmissão Sináptica). Os motoneurônios que inervam as fibras do tipo 2, opostamente, apresentam diâmetros grandes e excitabilidade mais baixa. Nos dois tipos de motoneurônios, há altas velocidades de condução dos impulsos nervosos, mas a velocidade de condução dos motoneurônios que inervam as fibras do tipo 2 é sistematicamente mais elevada, coerente com a maior velocidade de contração dessas fibras.
Adaptabilidade das fibras musculares esqueléticas As fibras musculares esqueléticas podem se adaptar a novas necessidades, mudando suas características metabólicas e contráteis no sentido de manter a homeostase. Por exemplo, quando um músculo é submetido à imobilização por períodos prolongados (procedimento frequente em indivíduos que sofreram fraturas), existe uma conversão de fibras do tipo I em tipo II. Isso ocorre porque as fibras do tipo I têm metabolismo mais “caro”, em função de este ser predominantemente aeróbio (com muitas enzimas oxidativas e grande quantidade de mitocôndrias, entre outros fatores). A exposição a elevadas quantidades de certos hormônios também pode modular a composição das fibras dos músculos esqueléticos. Por exemplo, o hormônio tireoidiano converte fibras do tipo I para tipo II; em indivíduos hipertireóideos, esse fenômeno contribui para a sensação de cansaço excessivo, normalmente relatado pelo paciente antes do tratamento adequado. O exercício físico também pode levar à conversão de fibras musculares, tanto para tipo I quanto para II. Exercícios resistidos (aqueles em que o indivíduo levanta pesos) provocam alguma conversão para fibras do tipo II, enquanto exercícios aeróbios (os que envolvem atividades de longa duração) causam certa conversão para fibras do tipo I. É interessante notar que essa conversão trazida pelo exercício é limitada e o componente genético parece ser muito importante. Em atletas de alto nível de desempenho, pode haver união do componente genético favorável para determinada atividade física com o efeito do treinamento. Na Figura 6.8 A, há a fotografia de um nadador de elite, especializado em provas de 50 m (atividade que exige “explosão”). A análise da composição das fibras musculares de seu quadríceps (Figura 6.8 C) apresenta predominância de fibras do tipo II (claras). É difícil demonstrar, com precisão, o efeito do treinamento nesse indivíduo na conversão para fibras do tipo II, mas estimase que seja da ordem de 10%. Pode parecer pouco, mas esse efeito do treinamento específico é capaz de ser um importante diferencial competitivo. Entretanto, já está estabelecido que o componente genético é fundamental para determinar grande aptidão a certas atividades físicas. Na Figura 6.8 B, aparece um ciclista de alto nível, especializado em longas distâncias. A análise do seu músculo quadríceps (Figura 6.8 D) mostra uma composição de fibras radicalmente diferente daquela do atleta anterior: quase a totalidade das suas fibras musculares são do tipo I (escuras), garantindo a esse atleta altíssima capacidade de contração por longos períodos sem fadiga significativa. Atualmente, não se sabe quais são os genes envolvidos nessa determinação de tipos de fibra muscular e, possivelmente, algumas moléculas estão envolvidas, como PGC1. Essa proteína faz parte da biogênese mitocondrial e da estimulação da síntese de enzimas oxidativas. Camundongos transgênicos para PGC1 têm músculos com proporção muito aumentada de fibras do tipo I e mostram maior desempenho em atividades de longa duração, quando comparados com animais selvagens. Anselmo Sigari Moriscot. Prof. Associado do Departamento de Biologia Celular e do Desenvolvimento do Instituto de Ciências Biomédicas – USP.
“PLASTICIDADE” MUSCULAR O músculo estriado esquelético está sujeito a uma série de forças que impõem mudanças plásticas, adaptativas, em sua estrutura e função. Essas mudanças envolvem o diâmetro, o comprimento, a irrigação e os tipos de fibras musculares, determinando a força contrátil. As mudanças que surgem em função do treinamento físico ou da denervação podem ilustrar esses fenômenos. A hipertrofia muscular se caracteriza pelo aumento dos filamentos de actina e miosina em cada fibra muscular, com crescimento do número de miofibrilas, produzindo, assim, uma elevação do tamanho das células musculares. Esse fenômeno, em geral, é produzido por algum regime de contrações máximas ou submáximas, como o exigido durante o treinamento físico. A hipertrofia muscular pode também ocorrer por estiramento pronunciado, o que produz a adição de novos sarcômeros na extremidade das células musculares. Os mecanismos exatos pelos quais a hipertrofia muscular é produzida não são totalmente conhecidos, mas eles envolvem neurotrofinas de origem nos motoneurônios e alterações de expressão gênica na célula muscular.
Figura 6.8 ■ Análise da composição das fibras do músculo quadríceps em atletas de alto nível de desempenho. Em nadador de elite especializado em natação de curta distância (A), há predominância de fibras do tipo II, claras (C). Em ciclista de elite especializado em provas de longa distância (B), predominam fibras do tipo I, escuras (D). (Adaptada de Billeter e Hoppeler, 2003.)
Do mesmo modo, a atrofia muscular, que surge por denervação ou por uso diminuído da massa muscular, depende da menor oferta de neurotrofinas, o que impõe reduzida produção de proteínas contráteis.
Em algumas poucas situações, pode ocorrer hiperplasia muscular, com crescimento do número de células musculares e não só de seu tamanho. Esse mecanismo não parece muito importante quanto à hipertrofia descrita anteriormente, em termos do aumento da força contrátil resultante.
O controle da massa muscular Como mencionado, o músculo esquelético pode sofrer hipertrofia por crescimento em diâmetro ou em comprimento. O primeiro é conhecido como hipertrofia radial enquanto o segundo, como hipertrofia longitudinal. Essas respostas hipertróficas são disparadas por estresse mecânico, de naturezas diferentes. Na hipertrofia radial, o estímulo mecânico envolve contração muscular contra resistência; portanto, com gasto de ATP. Nesse tipo de hipertrofia, existe aumento de sarcômeros em paralelo, principalmente formando novas miofibrilas e também, em menor grau, elevando o diâmetro das miofibrilas preexistentes. Estas adaptações provocam mais capacidade contrátil e, consequentemente, maior geração de força pela fibra muscular. O grau da hipertrofia radial varia consideravelmente em função de vários fatores. Estudos que envolvem treinamento resistido, em humanos, demonstram que a área de secção transversal pode crescer: (1) cerca de 30% em pessoas sedentárias que se engajaram em programa de treinamento com exercícios resistidos ou (2) perto de 60% em fisiculturistas de elite quando comparados com indivíduos destreinados com igual idade. Além do aumento por estresse mecânico provocado pela contração com gasto de ATP, também se pode estimular mecanicamente o músculo simplesmente estirandoo de modo passivo. Neste caso, é necessário que o estiramento persista por certo tempo (minutos), não seja lesivo e tenha determinada frequência (em torno de três seções semanais, por período de 2 semanas, já é possível observar ganhos de comprimento muscular e, portanto, de amplitude articular). Na hipertrofia longitudinal, existe também acréscimo de novos sarcômeros na fibra muscular, como na hipertrofia radial; no entanto, esses sarcômeros são adicionados nas extremidades das miofibrilas preexistentes. Esse fenômeno implica miofibrilas mais longas e, portanto, também fibras musculares mais longas, que têm como consequência aumento da amplitude articular sem ganho de força. Existem modalidades esportivas em que a hipertrofia longitudinal é um componente extremamente importante, como, por exemplo, a ginástica olímpica. Quando pensamos em hipertrofia, devemos levar em consideração a quantidade de proteínas presentes em determinado músculo; esta é controlada pelo balanço entre sua síntese e sua degradação. No processo hipertrófico, o nível de proteína na fibra muscular se eleva, o que pode ser fruto do aumento da síntese ou diminuição da degradação proteica. Apesar de os mecanismos envolvidos na degradação de proteínas terem grande importância na atrofia muscular (ver adiante), na hipertrofia não existe importante mudança da taxa de degradação de proteínas, pelo menos na hipertrofia induzida por exercícios resistidos. Porém, a taxa de síntese proteica sofre grandes alterações em resposta ao exercício resistido; mesmo certos nutrientes, especialmente aminoácidos, são capazes de aumentar a síntese proteica no músculo esquelético. Embora ainda não esteja claro como o estímulo mecânico aumentado, provocado pela contração muscular (em um programa de treino com exercícios de força), pode resultar na ativação de moléculas sinalizadoras no interior da fibra muscular esquelética, é consenso que microlesões na fibra muscular desempenham importante papel. Essas microlesões, decorrentes da sobrecarga mecânica, podem acometer a membrana plasmática e a estrutura sarcomérica, sinalizando para célulassatélite que estão na proximidade. Estas são pequenas células mononucleadas, localizadas sob a lâmina basal da fibra muscular e em íntimo contato com ela. As célulassatélite ativadas proliferam gerando célulasfilhas; então, a minoria delas continua proliferando e a maioria se funde à fibra muscular, contribuindo com um novo núcleo. A adição deste novo núcleo proporciona maior capacidade de produção de RNA mensageiros de proteínas contráteis e, assim, novos sarcômeros são construídos. Um fator de crescimento, chamado de MGF (mechano growth factor) é produzido e liberado pela fibra muscular em resposta ao estimulo mecânico, tendo efeito estimulador sobre as célulassatélite. Mais recentemente, foi descoberto outro fator, a miostatina, que parece ser bastante importante para o controle da massa muscular, sendo forte inibidor dessa massa. Mutações naturais dessa proteína ocorrem em certas raças de gado, como, por exemplo, no azul belga; nestes animais, a miostatina é funcionalmente deficiente, ocorrendo crescimento extremo da musculatura. Atualmente, descobriuse que seres humanos também podem ter mutações no gene da
miostatina, em hetero ou homozigose. Indivíduos que apresentam essa mutação, em homozigose, manifestam massa muscular mais elevada que a média da população. A miostatina é secretada pela fibra muscular esquelética e se liga a receptores da própria membrana plasmática dessa fibra; portanto, é um efeito predominantemente parácrino/autócrino. Além da miostatina, a fibra muscular secreta um fator denominado folistatina, que se une a essa proteína, inibindo a capacidade de ligação dela ao seu receptor. Ainda não são bem conhecidos os mecanismos celulares pelos quais a miostatina inibe o crescimento da fibra muscular; até o momento, sabese que tal proteína é capaz de antagonizar a ação de MGF, um importante fator hipertrófico. Além disso, ela aciona processos de proteólise na fibra muscular. Outro aspecto importante no controle negativo da massa muscular é o sistema proteassomal, principal controlador da proteólise no músculo esquelético. Quando esse músculo é imobilizado por curto período de tempo, a expressão de certas enzimas (atrogenes) chave desse sistema é aumentada, induzindo proteólise e, portanto, perda de sarcômeros. Em roedores, que apresentam alta taxa metabólica, em apenas 12 h após imobilização de uma pata, a expressão dos atrogenes aumenta de 5 a 10 vezes o normal. É bem conhecido que a testosterona tem efeito anabólico, elevando a síntese proteica em fibras musculares esqueléticas. As célulassatélite dispõem de receptores para testosterona cuja atividade é aumentada com níveis suprafisiológicos do hormônio. Esse efeito contribui, sobremaneira, para o crescimento do número de núcleos nas fibras musculares de indivíduos submetidos a treinamento de força, pois este tipo de treinamento promove elevação transitória dos níveis séricos de testosterona. Além disso, esse hormônio é importante para o desenvolvimento muscular durante a fase de crescimento rápido na adolescência, em que os músculos esqueléticos precisam acompanhar o aumento dos ossos longos. Anselmo Sigari Moriscot. Prof. Associado do Departamento de Biologia Celular e do Desenvolvimento do Instituto de Ciências Biomédicas – USP.
DOENÇAS NEUROMUSCULARES Uma série de doenças que afetam a unidade motora, como aquelas que envolvem o corpo celular do neurônio motor ou os axônios periféricos (neurogênicas), ou as que englobam a junção neuromuscular e as fibras musculares (miopatias), têm sido extensivamente estudadas e caracterizadas. Em geral, essas doenças da unidade motora causam fraqueza e atrofia dos músculos esqueléticos, mas as características de cada patologia dependem de qual componente da unidade motora é diretamente afetado. Entre as muitas doenças relacionadas com a unidade motora, discutiremos, de início, uma que atinge a transmissão sináptica da junção neuromuscular (miastenia gravis) e, posteriormente, falaremos sobre outra que afeta diretamente as fibras musculares (distrofia muscular de Duchenne), lembrando que há inúmeras outras doenças nessas categorias, algumas das quais têm a sua etiologia totalmente desconhecida.
▸ Miastenia gravis Das doenças que afetam a transmissão sináptica, a miastenia gravis (myasthenia gravis) é a mais bem estudada. Caracterizase por uma disfunção da transmissão sináptica química entre os motoneurônios e os músculos esqueléticos. A miastenia gravis se tornou também o modelo de doença autoimune (o tipo mais comum da doença), em que anticorpos são produzidos contra os AChR presentes no músculo, reduzindo o número de receptores funcionais ou impedindo a interação do neuromediador acetilcolina com esses receptores. Há também outras formas, congênitas e hereditárias, de miastenia que não apresentam o caráter autoimune e que parecem ser heterogêneas em suas características, já que incluem deficiência de acetilcolinesterase, diminuição da capacidade ligante dos AChR e mesmo número reduzido de AChR. A característica principal desta doença é a fraqueza muscular que quase sempre afeta os músculos cranianos (pálpebras, músculos do olho e orofaríngeos) e que pode ser revertida, em alguns casos, com o uso de fármacos inibidores da acetilcolinesterase (a enzima de degradação da ACh), como a neostigmina. Duas observações importantes ajudaram a definir o caráter autoimune da miastenia gravis. Uma delas foi a de que a remoção do timo, ou de timomas, provocava uma redução dos sintomas em pacientes com miastenia gravis, o que ficou mais claro, posteriormente, com o advento dos conhecimentos acerca do papel imunológico do timo. A outra descoberta relevante emergiu com a caracterização e localização dos AChR do músculo, a partir do uso de ferramentas farmacológicas, que possibilitou a observação de que em pacientes miastênicos há diminuição de AChR (resultado indireto de alterações dos mecanismos de reciclagem e degradação) e presença de anticorpos no soro.
Como já citado (ver Figura 6.5), os AChR são macromoléculas constituídas de cinco proteínas organizadas ao redor de um canal iônico que atravessa a membrana celular e que contém os locais de ligação da ACh. O local de interação da ACh com o complexo receptor está presente na subunidade α, e, no caso da miastenia gravis, os autoanticorpos parecem ser dirigidos contra a região imunogênica principal presente na porção extracelular dessa subunidade. O tratamento de pacientes com miastenia gravis do tipo autoimune se baseia no uso de agentes anticolinesterásicos que prolongam a disponibilidade de ACh na fenda sináptica da junção neuromuscular, gerando um alívio sintomático pelo menos parcial. Além disso, as terapias imunossupressivas que inibem a síntese de anticorpos, a timectomia e a plasmaférese (que removem do sangue os anticorpos contra o receptor) também são tratamentos utilizados. O tratamento para o tipo congênito da miastenia gravis também tem como base o uso de agentes anticolinesterásicos.
▸ Distrofia muscular de Duchenne Esta distrofia é uma miopatia hereditária que se manifesta apenas em indivíduos do sexo masculino (transmitese como fator recessivo ligado ao cromossomo X). Tem início com fraqueza muscular nas pernas e progride relativamente rápido, levando à morte por volta de 30 anos de idade. Os indivíduos portadores da distrofia muscular de Duchenne não têm a proteína distrofina ou a apresentam em quantidade muito pequena. Como citado, a distrofina desempenha um papel fundamental na manutenção da integridade da membrana plasmática muscular, já que ela ancora os filamentos de actina às proteínas integrais da membrana plasmática.
BIBLIOGRAFIA BEAR MF, CONNORS BW, PARADISO MA. Neuroscience: Exploring the Brain. 2. ed. Lippincott Williams & Wilkins, Philadelphia, 2001. BERNE RM, LEVY MN, KOEPPEN BM et al. Physiology. Elsevier, Philadelphia, 2004. BILLETER R, HOPPELER H. Muscular basis of strength. In: Strength and Power in Sport. Blackwell Science, Oxford, 2003. COSTANZO LS. Physiology. Elsevier, Philadelphia, 2002. KANDEL ER, SCHWARTZ JH, JESSELL TM. Principles of Neural Science. 4. ed. McGrawHill, New York, 2000. LENT R. Cem Bilhões de Neurônios – Conceitos Fundamentais de Neurociência. Atheneu, São Paulo, 2004.
7 8
Membrana Celular Difusão, Permeabilidade e Osmose
9 Gênese do Potencial de Membrana, Excitabilidade Celular e Potencial de Ação 10 Canais para Íons nas Membranas Celulares 11 Transportadores de Membrana 12 ATPases de Transporte
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Introdução
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Lipídios estão presentes na membrana celular Proteínas na membrana
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Bibliografia
INTRODUÇÃO Um dos pressupostos básicos para o aparecimento da vida, como a conhecemos hoje, é, sem dúvida, a possibilidade de individualizarse um certo volume que mantivesse características físicoquímicas distintas do ambiente. A compartimentalização desse volume aquoso, dentro de um ambiente também francamente aquoso, é que permitiu a ocorrência de reações químicas diversas, de forma ordenada, características dos seres vivos. Nesse processo, as membranas surgem como primeira estrutura no estabelecimento de uma interface entre dois meios que necessariamente devem ter características próprias, tanto do ponto de vista de composição, como termodinâmico. Na verdade, as membranas biológicas definem não só compartimentos macroscópicos e celulares, mas também aqueles subcelulares, representados pelas organelas. Como interfaces, as membranas biológicas geram e mantêm gradientes químicos e elétricos, suportam reações químicas vetoriais, geram e transmitem informações elétricas em células excitáveis, servem como substrato para reconhecimento imunológico, funcionam como arcabouço para receptores para hormônios e fármacos etc. Embora tenham funções múltiplas e algumas de grande complexidade, todas as membranas biológicas apresentam várias características comuns, como flexibilidade, composição e estrutura supramolecular. A presença de uma membrana delimitando o citoplasma de células pode ser evidenciada por meio de experimentos muito simples, como a observação de plasmólise em células vegetais, detecção de resistência e capacitância elétrica entre intra e extracelular e visualização através de microscopia eletrônica. A imagem microeletrônica revela um arranjo bastante característico com duas linhas eletrodensas separadas por uma região mais transparente, com espessura ao redor de 60 a 70 Å (6 a 7 nm). Esse arranjo trilamelar é encontrado em todas as membranas biológicas, sejam elas plasmáticas ou de organelas. A Figura 7.1 mostra uma microfotografia eletrônica de duas membranas plasmáticas separadas pelo espaço intercelular. Como se pode observar, o aspecto de bicamada é claramente definido, e as regiões mais eletrodensas devem refletir as regiões polares das moléculas de fosfolipídios. Neste capítulo, a membrana biológica será abordada do ponto de vista de composição e estrutura básica, e nos seguintes serão descritos os sistemas funcionais mais específicos.
LIPÍDIOS ESTÃO PRESENTES NA MEMBRANA CELULAR A observação de que células podem ser lisadas quando na presença de detergentes e/ou solventes orgânicos (éter, hexano, pentano, decano etc.) permite postular a presença de lipídios na membrana plasmática. Além disso, está bem estabelecido que as membranas celulares são mais permeáveis a substâncias lipossolúveis e neutras que àquelas com carga elétrica e hidrossolúveis, como sugerido desde longa data por Ernest Overton (1899). Adicionalmente, sabese que os
detergentes funcionam como agentes antissépticos devido à capacidade de interação com gorduras. Em certos organismos, as gorduras servem como moléculas para estocagem intracelular de energia, isolamento térmico, proteção de superfície ou, ainda, podem servir como hormônios, regulando processos metabólicos, como é o caso dos esteroides. O que torna os lipídios interessantes enquanto agentes formadores de membranas? Para responder a esta questão, passaremos a analisar o problema do ponto de vista bioquímico. O arranjo molecular da membrana plasmática é assunto que tem intrigado os cientistas há muito tempo, e uma das demonstrações mais engenhosas da estruturação da membrana como uma bicamada lipídica é, seguramente, a de Gorter e Grendel, datada de 1925. Esses pesquisadores extraíram de glóbulos vermelhos as membranas e as trataram com um solvente orgânico volátil para extrair os lipídios. Essa solução de lipídios foi, então, colocada sobre a superfície de uma solução aquosa, tendo se dado tempo suficiente para a evaporação do solvente orgânico. Como será detalhado mais adiante, os lipídios são moléculas anfipáticas e, portanto, na superfície aquosa distribuemse com suas regiões hidrofóbicas voltadas para o ar. Assim, por meio de manipulação experimental adequada, é possível fazer com que as moléculas lipídicas se disponham lado a lado, formando uma camada molecular simples (monocamada) sobre a superfície da água. Foi o que Gorter e Grendel fizeram, medindo a área (A) ocupada pelos lipídios nessa monocamada. Em seguida, como conheciam a área de membrana em cada glóbulo vermelho e o número de glóbulos que haviam utilizado no experimento, calcularam a área total de membrana (S) dos glóbulos vermelhos. Comparando essas duas áreas, Gorter e Grendel verificaram que:
Embora os experimentos de Gorter e Grendel possam ser hoje criticados, entre outras coisas, por não terem levado em conta que parte da área das membranas é ocupada por proteínas, seus resultados levaram à conclusão de que os lipídios em uma membrana plasmática assumem um arranjo de bicamada. Desde então, vários modelos foram propostos para descrever as propriedades das membranas biológicas. O de Singer e Nicolson (1972), conhecido como modelo do mosaico fluido, é um ponto de referência. Baseado em dados funcionais e termodinâmicos, o modelo incorpora o papel das proteínas, como elementos essenciais nos processos de transdução de sinais e de transporte através das membranas. Para entendermos as propriedades de estabilidade e a forma das bicamadas lipídicas, basta entendermos o chamado caráter anfipático das moléculas lipídicas que, em última instância, determina suas propriedades de agregação, quando em um ambiente aquoso.
Figura 7.1 ■ Duas membranas plasmáticas separadas pelo espaço intercelular. (Adaptada de Fawcett e Bloom, 1994.)
▸ Ácidos graxos são componentes importantes dos lipídios Como veremos adiante, os lipídios podem ser agrupados em diferentes classes. Porém, preservam várias propriedades comuns que são derivadas, essencialmente, da presença de um esqueleto hidrocarbônico em suas moléculas, o que lhes confere propriedades de isolantes elétricos com uma constante dielétrica a cerca de 2. Essa característica é contrária à da água, cuja molécula é polarizável e apresenta uma constante dielétrica de 80. O interessante é que os lipídios da bicamada conferem às membranas celulares uma propriedade de capacitor. Ou seja, as membranas conseguem armazenar cargas
entre os lados intra e extracelular, e essa propriedade confere uma dependência intrínseca do tempo aos fenômenos elétricos (p. ex., despolarizações) que aí ocorrem. A Figura 7.2 ilustra essa propriedade da membrana. Como se pode observar na Figura 7.2, ao ser ligado o pulso de voltagem, a corrente apresenta um transiente direcionado para baixo, que decai com o tempo, mesmo mantendose a voltagem constante. A área sob a curva de corrente é diretamente proporcional à quantidade de cargas armazenadas entre os 2 lados da bicamada. Outro fato interessante é que, devido à pouca variabilidade na espessura da bicamada de célula para célula (ou mesmo de organelas), o valor da capacitância é praticamente o mesmo para todas as membranas e igual a 1 μF/cm2. Portanto, medidas de capacitância podem ser utilizadas para a avaliação da área da membrana celular. Esse experimento ainda traz uma outra informação: a membrana (bicamada) apresenta uma resistência relativamente alta (da ordem de 108 Ω ꞏ cm2), já que a resposta mantida de corrente é muito pequena frente ao pulso de voltagem (observe a diferença entre o traçado de corrente estacionária e a linha pontilhada que representa corrente igual a zero). De modo geral, os lipídios complexos (aqueles que podem sofrer saponificação) são derivados de ácidos graxos. Estes, por sua vez, são compostos quimicamente simples, formados por cadeias hidrocarbônicas de extensão variável e terminadas por uma carboxila, existindo uma centena de tipos diferentes de ácidos graxos. Tais cadeias podem ser saturadas, isto é, apresentam somente ligações simples entre seus carbonos, ou insaturadas, caso em que existem uma ou mais duplas ligações ao longo da cadeia. A maioria dos ácidos graxos tem um pK ao redor de 4,5, estando, portanto, ionizados em pH fisiológico. Do ponto de vista de nomenclatura, os ácidos graxos recebem seus nomes baseados no número de carbonos na cadeia e na presença ou ausência de insaturações. Rotineiramente, no entanto, os seus nomes populares são mais utilizados. O Quadro 7.1 enumera alguns deles, com o nome científico e o popular.
Figura 7.2 ■ Resposta de corrente (traçado superior, em roxo) de uma célula CHO (chinese hamster ovary) a um pulso de voltagem hiperpolarizante (de –60 para –80 mV, em amarelo). Note que: (1) a resposta de corrente não acompanha temporalmente o pulso de voltagem, que se instala instantaneamente, e (2) os transientes da corrente têm sentidos contrários ao ligamento ou desligamento do pulso de voltagem.
Os dados do Quadro 7.1 mostram que a presença de insaturações do tipo cis na cadeia hidrocarbônica de um ácido graxo faz com que seu ponto de fusão se desloque para temperaturas mais baixas, atingindo inclusive valores abaixo de zero, como no caso dos ácidos linoleico e linolênico. Ou seja, à temperatura ambiente, enquanto os ácidos graxos cis saturados comportamse como ceras, os insaturados encontramse no estado líquido. Isso se deve ao fato de as cadeias saturadas serem flexíveis, permitindo um maior alinhamento e empacotamento entre cadeias vizinhas, já que rotações podem ocorrer ao nível de cada carbono. Por outro lado, a presença de duplas ligações cis torna a cadeia angulada naqueles pontos onde elas ocorrem. Com isso, diminui a possibilidade de interações do tipo van der Waals entre as cadeias vizinhas, impedindo um empacotamento maior das moléculas. Poucos são os exemplos de ácidos graxos transsaturados na natureza, mas, como esse tipo de dupla ligação não insere ângulos na cadeia hidrocarbônica, suas propriedades físico químicas assemelhamse às dos ácidos graxos saturados de mesmo tamanho. A geração de ácidos graxos saturados trans era comum em processos industriais para a solidificação de gorduras vegetais a partir de óleos ricos em ácidos graxos saturados cis, cujas insaturações eram hidrogenadas para formação de ácidos saturados, portanto, com
maior temperatura de fusão. Porém, o restrito arsenal metabólico das células para metabolizar os ácidos graxos trans parece estar associado a doenças metabólicas, motivo pelo qual a indústria alimentícia tem procurado processos diferentes de hidrogenação de gorduras vegetais que não levem à formação de ácidos graxos trans como subprodutos. Em animais, os ácidos graxos mais comuns são o oleico (18 carbonos e uma insaturação, ou seja, um ácido graxo 18:1), o palmítico (16 carbonos) e o esteárico (18 carbonos). Os mamíferos requerem na dieta a presença de alguns ácidos graxos poliinsaturados, como o ácido linoleico (18:2) e o alinolênico (18:3), encontrados somente em plantas e peixes. Esses ácidos graxos são denominados essenciais. Dependendo de onde ocorre a primeira insaturação a partir do carbono mais distante da carboxila do ácido graxo insaturado (carbono ω), os ácidos graxos poliinsaturados são classificados como pertencentes à família ω9 (p. ex., oleico), ω7 (palmitoleico), ω6 (linoleico) e ω3 (αlinolênico).
Quadro 7.1 ■ Nomenclatura de alguns ácidos graxos. Número de
Ligações
Nome científico
Nome comum
Ponto de fusão,
carbonos
insaturadas
12
0
ndodecanoico
Láurico
44,2
14
0
ntetradecanoico
Mirístico
53,9
16
0
nhexadecanoico
Palmítico
63,1
18
0
noctadecanoico
Esteárico
69,6
20
0
neicosanoico
Araquídico
76,5
16
1
Palmitoleico
–0,5
18
1
Oleico
13,4
18
2
Linoleico
–5,0
18
3
Linolênico
–11,0
°C
A Figura 7.3 exemplifica a estrutura química de dois desses ácidos graxos. Você pode dizer qual deles é saturado ou insaturado? Por quê?
▸ Lipídios são derivados de ácidos graxos com glicerol Os ácidos graxos podem combinarse com o glicerol para formar uma classe de compostos chamada de acilgliceróis ou glicerídios. A reação fazse por esterificação de uma ou mais hidroxilas originando moléculas conhecidas como monoglicerídio, diglicerídio ou triglicerídio (na dependência do número de hidroxilas esterificadas). Esta última classe de compostos constitui a forma mais comum de armazenagem de gorduras em animais. A Figura 7.4 ilustra a estrutura química desses compostos.
▸ Fosfolipídios têm uma das hidroxilas esterificada por um grupamento fosfato Suponha agora que, em vez de 3, apenas 2 ácidos graxos se ligam ao glicerol e que na hidroxila terminal se ligue um grupamento fosfato, como exemplificado na Figura 7.5. Haverá então a formação de uma nova molécula, um fosfolipídio, que, no exemplo dado, é um ácido – ácido fosfatídico. Note que esta última molécula apresenta duas cargas resultantes negativas, decorrentes do grupamento fosfato. Uma dessas cargas, por sua vez, pode ser neutralizada por uma outra esterificação através de grupos hidroxila provenientes de pequenos alcoóis, resultando em diferentes fosfolipídios. Assim, se for ligada uma colina ao fosfato, teremos a formação de fosfatidilcolina; caso seja ligado um grupamento serina, se formará a fosfatidilserina; se for ligada a etanolamina, vai ser formada a fosfatidiletanolamina, e assim por diante. A
estrutura química desses lipídios pode ser vista na Figura 7.5. As moléculas resultantes podem ter carga total neutra ou negativa, dependendo do álcool esterificado com o fosfato. Existem outros fosfolipídios, além dos citados, que se distinguem não só pelos ácidos graxos que os compõem, mas também pelos grupamentos ligados ao fosfato. Um exemplo é a cardiolipina, um fosfolipídio típico da membrana interna de mitocôndrias que, por possuir apenas 2 hidroxilas esterificadas por fosfatos, constituise em um difosfatidilglicerol. Em razão de os grupos fosfato terem, cada, uma carga negativa livre, a molécula apresenta 2 cargas negativas resultantes. Como dito no início do capítulo, as moléculas de lipídios (gorduras) são insolúveis em água, porém dissolvemse facilmente em solventes orgânicos, como éter, hexano, benzeno etc. Esta propriedade pode ser mais bem entendida se olharmos para a estrutura química das moléculas anteriormente descritas: em todas, é possível encontrar uma extensa região apolar, formada pelas cadeias hidrocarbônicas dos ácidos graxos. No entanto, os fosfolipídios têm uma região (hidroxila esterificada pelo fosfato) onde predominam grupamentos com cargas, ou seja, o que se convencionou chamar de cabeça polar, cuja interação preferencial se faz com a água. Esta região é, portanto, hidrofílica. Desse modo, as moléculas de lipídios são denominadas anfipáticas, já que parte da molécula é altamente hidrofóbica e parte, altamente hidrofílica. Como consequência, quando moléculas anfipáticas são colocadas em água tendem a se estruturar de modo a minimizarem as interações das cadeias carbônicas com a água, possibilitando o aparecimento de estruturas distintas, como exemplificado na Figura 7.6: (1) micelas, preferencialmente formadas por moléculas que têm uma única cadeia hidrocarbônica, resultando em um arranjo em que as cadeias apolares ficam voltadas para o centro de estruturas tubulares ou esféricas e protegidas do ambiente aquoso. Isto é, o centro da micela é francamente hidrofóbico, ou (2) bicamadas, situação em que 2 moléculas lipídicas, com cadeias hidrocarbônicas duplas, tendem a associarse espontaneamente, de modo a ter suas regiões apolares protegidas pelos grupos polares, que estão voltados para o ambiente hidrofílico. Um grande número de lipídios tende a se estruturar em uma bicamada, quando colocado em contato com água. Para minimizar ao máximo a interação das cadeias hidrocarbônicas com a água, tais bicamadas fechamse, formando pequenas esferas que contêm solução aquosa em seu interior, conhecidas como lipossomos ou vesículas, e podem ser delimitadas por uma única bicamada ou apresentar várias bicamadas arranjadas concentricamente. Dependendo do método utilizado na sua preparação, os lipossomos podem ter diâmetros que variam desde alguns poucos angstroms até micrômetros. Em laboratório, é também possível produzir bicamadas planas, com área da ordem de milímetros quadrados. Estas bicamadas constituem material de fundamental importância para o estudo de sistemas transportadores, particularmente canais iônicos, por técnicas eletrofisiológicas, já que é possível terse acesso aos dois lados das bicamadas.
Figura 7.3 ■ Estrutura química de dois ácidos graxos. A título de ilustração, um deles tem insaturações na cadeia carbônica. Observe que a ocorrência de ligações duplas tende a angular a cadeia, dificultando o acoplamento de outras moléculas de ácido graxo.
Figura 7.4 ■ Formação de um triglicerídio. A esterificação das hidroxilas do glicerol, por um ácido graxo, resulta na formação de mono, di ou triglicerídios. Em cada posição, os ácidos graxos podem ser iguais ou diferentes. R indica as cadeias carbônicas dos ácidos graxos.
Figura 7.5 ■ Fosfolipídios. A ligação de um grupamento fosfato a um dos carbonos do glicerol origina um ácido fosfatídico (A) com carga resultante negativa. A ligação subsequente de outros grupamentos ao fosfato pode originar diversos fosfolipídios, aqui exemplificados por fosfatidilserina (B), fosfatidiletanolamina (C) e fosfatidilcolina (D), com carga resultante negativa ou neutra.
A bicamada lipídica pode ser considerada como um protótipo simples da membrana celular que, no entanto, guarda uma de suas propriedades básicas, a fluidez. Os lipídios, em uma bicamada, podem sofrer vários tipos de movimentos, desde rotação ao redor de seu próprio eixo, até movimentarse lateralmente no plano da bicamada; podem, também, trocar de monocamada, indo de uma a outra, movimento este conhecido com o nome de flipflop. Nos últimos anos, a movimentação de moléculas lipídicas em uma membrana tem sido estudada por uma técnica em que marcadores moleculares são acoplados à cabeça polar e seus movimentos seguidos por espectroscopia de ressonância eletrônica.
▸ O colesterol é um lipídio que influencia as propriedades físicoquímicas da membrana Como descrito, a fluidez de uma membrana é dependente do tipo de fosfolipídio que a compõe (saturado ou insaturado). Além disso, essa propriedade também é tremendamente influenciada pelo seu conteúdo de colesterol (Figura 7.7), um lipídio simples da classe dos esteroides que está presente na maioria das membranas de animais e plantas. O colesterol é responsável por cerca de 20% do total de lipídios presentes em glóbulos vermelhos de várias espécies animais e, também, na mielina. Como a molécula de colesterol é composta por vários anéis hidrocarbônicos interligados e apenas uma curta cadeia hidrocarbônica linear, ela se apresenta com uma estrutura bastante rígida, interpondose entre as moléculas de fosfolipídios e interagindo com as cabeças destes, através de sua única hidroxila. Esta interação resulta em uma relativa imobilização e “empacotamento” dos fosfolipídios, formando uma bicamada com reduzida permeabilidade à água e a não eletrólitos de baixo peso molecular. Obviamente, a temperatura também é importante na determinação do estado de fluidez de uma bicamada. Isto é devido a uma propriedade chamada de transição de fase dos lipídios, que
podem assumir um estado cristalino rígido (gel) ou um estado cristalino líquido, dependendo da temperatura. Como regra, os lipídios com ácido graxo de cadeia mais curta, ou possuidora de ligações duplas, formam estruturas rígidas em temperaturas mais baixas que as requeridas por lipídios com cadeias mais longas e totalmente saturadas (ver Quadro 7.1). O ácido graxo de cadeia curta tem reduzida chance de interação com o seu vizinho, o que pode ser mais acentuado se também possuir duplas ligações, já que nestes pontos a cadeia estará angulada.
Figura 7.6 ■ Principais arranjos estruturais assumidos por moléculas anfipáticas em ambiente aquoso. Devido, essencialmente, ao chamado efeito hidrofóbico, essas moléculas tendem a formar estruturas em que as cabeças polares estão voltadas para o ambiente aquoso, e as cadeias hidrocarbônicas, protegidas desse ambiente.
Figura 7.7 ■ Estrutura química do colesterol. A região do anel esteroide forma uma estrutura com pouca mobilidade, e sua interação com os fosfolipídios tende a tornar a bicamada mais “empacotada”.
Interessantemente, o colesterol, apesar de aumentar a rigidez da bicamada por aumentar o empacotamento dos lipídios, abaixa a temperatura de transição de fase ao dificultar que fosfolipídios saturados empacotem entre si, garantindo assim que a membrana encontrese em estado líquido cristalino nas temperaturas usuais em que vive o organismo. O fato de o colesterol aumentar o empacotamento e deixar a membrana em um estado mais fluido pode parecer um contrassenso à
primeira vista. Todavia, ao manter a membrana como um líquido cristalino, impede que essa estrutura tão delgada tornese “quebradiça” em estado sólidogel (uma analogia pode ser aqui feita com a casca de um ovo), ao mesmo tempo que se torna mais coesa (graças ao maior empacotamento e à rigidez consequente).
▸ Os lipídios são assimetricamente distribuídos entre as duas faces de uma bicamada Em 1972, Bretscher formulou a hipótese (hoje amplamente confirmada) de que os lipídios distribuemse de modo diferencial entre as duas monocamadas componentes da bicamada. Este pesquisador observou que certas substâncias químicas, que reagem especificamente com os grupos amino da fosfatidilserina e da fosfatidiletanolamina, não apresentavam efeito quando em contato com glóbulos vermelhos intactos, mas sim, quando em contato com fragmentos de membranas desses glóbulos. Estudos posteriores, e em várias outras células, demonstraram que a fosfatidilserina e a fosfatidiletanolamina (possuidoras de grupos amino primários) tendem a localizarse preferencialmente na monocamada voltada para o intracelular, enquanto a fosfatidilcolina e a esfingomielina localizamse, preferencialmente, na monocamada cujos grupos polares estão voltados para o extracelular. Como a fosfatidilserina possui carga resultante negativa, a bicamada apresenta uma diferença significativa de cargas entre suas faces intra e extracelular (não confunda com diferença de potencial entre as soluções intra e extracelular, assunto que será estudado em vários outros capítulos). Outra consequência é que algumas enzimas ligadas à membrana requerem fosfatidilserina e sua negatividade para funcionarem adequadamente, como é o caso da proteinoquinase C, importante na fosforilação de proteínas presentes nas células. Interessante notar que, devido à movimentação das moléculas de lipídios entre as monocamadas (flipflop), já referida, não seria de esperar tal assimetria lipídica na bicamada; no entanto, há que se considerar que tais movimentos são muito lentos, processandose na escala de horas a dias. Já o colesterol pode mudar de monocamada em uma escala de tempo de segundos. De qualquer forma, há evidências de que a distribuição assimétrica dos lipídios encontrase sobre controle metabólico, já que células espoliadas de ATP tendem a perder essa assimetria, que é refeita quando os estoques de ATP são repostos. Com efeito, existem enzimas ATPases presentes na membrana das células que medeiam o rápido transporte vetorial de fosfolipídios de um folheto da bicamada para o outro, denominadas de flipases. Curiosamente, mais recentemente foram descritas outras proteínas de membrana independentes de ATP que simplesmente aceleram o flip flop de fosfolipídios indistintamente, dissipando a assimetria usual dos fosfolipídios nas membranas. Tais proteínas, conhecidas como scramblases (do inglês scramble, desorganizar), são ativadas por sinais intracelulares de sofrimento celular, como, por exemplo, o aumento da concentração intracelular de cálcio. Esse é provavelmente um dos mecanismos que levam células em sofrimento em certas situações a exteriorizar fosfatidilserina (que normalmente é encontrada no folheto intracelular da membrana plasmática), o que, por sua vez, recruta células do sistema imunológico que, em última análise, ativam um processo de morte celular programada. Uma consequência interessante da distribuição assimétrica de lipídios carregados na membrana celular é a alteração de excitabilidade muscular verificada, por exemplo, no hipoparatireoidismo. Nessa situação de concentração de cálcio plasmática anormalmente baixa, observase um estado de hiperexcitabilidade muscular que leva a contrações involuntárias. Esse estado tem a ver com a excitabilidade intrínseca dos canais para sódio presentes na membrana plasmática das células musculares. Como já conhecido, esses canais abremse com as despolarizações do potencial de repouso da célula e são responsáveis pela gênese do potencial de ação que se propaga pela célula toda, condição inicial indispensável para que se inicie o processo de contração muscular. A explanação para o fenômeno baseiase no fato de que o íon cálcio forma uma camada difusa na face externa da membrana celular, afetando desta forma o campo elétrico existente através da membrana. Este mecanismo pode ser mais bem entendido analisandose a Figura 7.8. Como descrito no Capítulo 9, Gênese do Potencial de Membrana, Excitabilidade Celular e Potencial de Ação, todas as células apresentam uma diferença de potencial elétrico entre os meios intra e extracelular, dada pela eletrodifusão de íons. Essa diferença de potencial pode ser medida com microeletrodos colocados nas soluções. No entanto, devido a presença de lipídios com carga negativa (p. ex., esfingomielina) no folheto de lipídios voltado para a face extracelular da membrana, essa região adquire um potencial negativo que, em condições de cálcio normal, está indicado por ψ1 na Figura 7.8. Note que nesta situação este potencial é bastante reduzido, já que o cálcio funciona como uma blindagem, anulando a carga resultante que ali existe. No entanto, quando a concentração de cálcio diminui, as cargas negativas dos lipídios ficam mais evidentes e o potencial na face extracelular da membrana tende a ficar mais negativo, indo para ψ2. Como o canal para sódio encontrase embutido na membrana, ele “percebe” esse potencial de interface e o “interpreta” como uma
despolarização, que o leva a se abrir. Desse modo, a célula fica com sua excitabilidade automaticamente aumentada, levando o músculo a contrairse involuntariamente.
Figura 7.8 ■ Efeito da carga de lipídios sobre a excitabilidade do canal para sódio. Vm é diferença de potencial de repouso da célula, medida com microeletrodos nas soluções banhantes intra e extracelular. A curva em roxo indica o perfil de potencial à medida que o microeletrodo se aproxima da face externa da membrana. Note que, na situação controle, junto à membrana existe uma negatividade dada pelos lipídios carregados negativamente, dada por Ψ1. Perceba que, quando a concentração de cálcio cai na solução externa, o potencial na face da membrana tornase Ψ2. M é a fase da membrana. O desenho não está em escala. Mais explicações no texto.
▸ Outros lipídios presentes em membranas celulares Embora os fosfolipídios derivados do glicerol sejam os mais frequentemente encontrados, tanto em animais como em plantas, existe uma segunda classe que corresponde aos esfingolipídios, cujo representante mais conhecido é a esfingomielina, abundante em células do sistema nervoso central de mamíferos. São primordialmente derivados da serina (em vez do glicerol), à qual se liga uma cadeia de ácido graxo para formar a esfingosina. A ligação de uma segunda molécula de ácido graxo ao grupamento amino da serina leva à formação de ceramida e, finalmente, a ligação de um fosfato com a colina à hidroxila C1 originará a esfingomielina (Figura 7.9). Se, em vez do fosfato com a colina, tivermos a ligação de um oligossacarídio, originarseá um glicoesfingolipídio. Destes, os melhores exemplos são os galactocerebrosídios, em que o açúcar é a galactose, abundantes na mielina e aparentemente envolvidos na interação entre a célula nervosa e a célula mielinizante.
PROTEÍNAS NA MEMBRANA Como descrito até aqui, a membrana celular mostrase efetivamente como uma barreira lipídica de alta resistência, separando dois meios aquosos: o intracelular e o extracelular. Sabemos, no entanto, que a célula troca substâncias com o meio que a circunda e, em alguns casos, essa taxa de trocas é relativamente alta, o que nos obriga a assumir a presença de regiões hidrofílicas imersas na bicamada, responsáveis por essa movimentação. O reconhecimento de que a membrana é um mosaico de regiões hidrofílicas e hidrofóbicas é devido a Collander e Bärlund, em 1933. No entanto, somente em 1972 é que Singer e Nicolson associaram, de forma definitiva, as proteínas presentes na membrana aos lipídios que a compõem. O modelo de membrana formulado por esses autores, conhecido como modelo do mosaico fluido, pressupõe a presença de proteínas imersas na fase lipídica, sugerindo que elas atravessam a bicamada lipídica, efetivamente conectando o intra e o extracelular. Atualmente, esse modelo é aceito em termos gerais, a ele tendo sido incorporados outros achados. Presentemente, sabemos que tanto as proteínas como os lipídios não estão homogeneamente distribuídos na bicamada, existindo domínios lipídicos e proteicos distintos. Algumas membranas têm uma abundância tão grande de proteínas que estas formam arranjos quase cristalinos. É o caso, por exemplo, da bacteriorrodopsina presente na membrana de halobactérias. Em outras palavras, tanto os lipídios como as
proteínas particionamse diferentemente entre as monocamadas e, dentro destas, podem ainda segregarse em regiões distintas, formando ilhas (ou rafts) com estrutura e composição diferentes. Essa distribuição não homogênea dos componentes da membrana celular é uma justificativa para a dependência de lipídios específicos que certas proteínas têm para funcionar adequadamente. Com efeito, os chamados lipid rafts são estruturas nanoscópicas ricas em colesterol e lipídios saturados, que organizam e restringem nesse domínio lipídico proteínas de membrana, que participam de vias de sinalização relacionadas, potencializando a eficiência e localização específica dessas vias em regiões distintas das células em que ocorrem.
Figura 7.9 ■ Estrutura dos esfingolipídios. Em vez do glicerol, os esfingolipídios têm um esqueleto básico de serina, à qual se ligam dois ácidos graxos. A ligação subsequente do fosfato e colina ao carbono C1 resulta na esfingomielina. Note a semelhança estrutural entre a esfingomielina e a fosfatidilcolina (Figura 7.5). Ambas possuem carga total neutra, porém são zwiteriônicos.
As proteínas de membrana são classificadas, de acordo com sua localização na bicamada, em três grupos essenciais, mencionados a seguir: ■ Proteínas periféricas (extrínsecas) – compreendem aquelas que não chegam a interagir fortemente com as cadeias hidrocarbônicas dos lipídios, situandose essencialmente na região dos grupos polares, com os quais interagem através de pontes de hidrogênio ou eletrostaticamente. Em consequência, podem ser removidas da membrana com tratamentos pouco agressivos, como mudança do pH ou da força iônica do meio. Tais manobras interferem, quase que exclusivamente, nas interações proteínaproteína, não introduzindo modificações nos lipídios ■ Proteínas ancoradas – normalmente, encontramse covalentemente ancoradas através de moléculas lipídicas ■ Proteínas integrais (intrínsecas) – são aquelas inseridas de tal modo na membrana celular que interagem não só em nível de cabeças polares, mas também com as regiões hidrofóbicas dos fosfolipídios. Por essa razão, podem ser vistas
também como substâncias anfipáticas, já que devem ter domínios francamente polares e outros apolares para interação com os lipídios. Sua remoção da membrana requer tratamentos mais drásticos, com substâncias que destroem a membrana, como é o caso de detergentes (triton, octilglucosídio, dodecilsulfato de sódio etc.). As proteínas integrais, por transpassarem completamente a bicamada, servem à conexão entre o intra e o extracelular, prestandose à passagem de substâncias (como é o caso de carregadores transmembranais e canais iônicos) ou à transmissão de mensagens ao intracelular (como é o caso de receptores). A Figura 7.10 apresenta uma visão atual da ultraestrutura da membrana. Uma proteína intrínseca pode atravessar a membrana uma única vez (como, por exemplo, a glicoforina) ou ter regiões que atravessam a bicamada múltiplas vezes (como é o caso do complexo receptor/canal colinérgico). Em qualquer situação, tem que ser admitido que a região mergulhada no interior da bicamada deve ser constituída por aminoácidos hidrofóbicos. Tomando a glicoforina como exemplo, há uma única região com cerca de 20 aminoácidos que têm unicamente cadeias laterais hidrofóbicas (ILE, HTR, ILE, VAL, PHE, GLY, VAL, MET, ALA, GLY, VAL, ILE, GLY, THR, ILE, LEU, LEU, ILE, SER). O número 20 não é casual; este é o tamanho esperado para uma sequência de aminoácidos em αhélice que consiga atravessar uma membrana com espessura aproximada equivalente a 2 moléculas de fosfolipídios. A glicoforina é uma glicoproteína e foi a primeira proteína a ter sua sequência de aminoácidos determinada. Seu terminal carboxílico situase na face citoplasmática, enquanto o terminal amino, juntamente com os carboidratos, na face extracelular da membrana. De modo semelhante ao da glicoforina, alguns receptores de membrana são constituídos por proteínas que têm uma única αhélice que atravessa a bicamada lipídica. Vários desses receptores levam sinais do meio extracelular para dentro da célula, por ativação das proteínas G. Outros, como, por exemplo, o receptor de insulina, atuam fosforilando resíduos de tirosina na proteínaalvo, como resposta à ligação do hormônio ao receptor.
Figura 7.10 ■ Esquema da ultraestrutura da membrana plasmática. Note cadeias de hidratos de carbono ligadas a lipídios e a proteínas. (Adaptada de Junqueira e Carneiro, 2008.)
Este achado não se restringe às proteínas que atravessam a bicamada uma única vez. As que o fazem múltiplas vezes apresentam várias regiões com sequências de aproximadamente 20 aminoácidos hidrofóbicos, repetidas ao longo da cadeia polipeptídica. Tais proteínas formam canais iônicos ou transportadores na membrana. Por exemplo, a molécula formadora do complexo receptor/canal colinérgico tem mais de 20 alças hidrofóbicas que atravessam a membrana múltiplas vezes. Como consequência da interação específica estabelecida entre lipídios e proteínas em uma membrana, é de se esperar que as proteínas assumam conformações predefinidas e dependentes do tipo de lipídio que compõe a bicamada. Na verdade, o funcionamento adequado da proteína dependerá dessa conformação. A definição desses fatores é feita quando da síntese da proteína nos polirribossomos ligados ao retículo endoplasmático, onde as várias subunidades da molécula se unem formando a estruturação necessária ao seu funcionamento. Muitas proteínas de membrana dirigemse dessa região para o aparelho de Golgi, onde são incorporadas em vesículas. Estas últimas podem fundirse, então, à membrana plasmática, transferindo a ela a proteína com seu suporte lipídico. Tal direcionamento é mediado pelo reconhecimento de
sequências consenso de aminoácidos nessas proteínas que, ao serem detectadas pela maquinaria celular, direcionaas para seus sítios de endereçamento.
BIBLIOGRAFIA ALBERTS B, JOHNSON A, LEWIS J et al. Molecular Biology of the Cell. 4. ed. Garland Publishing, New York, 2002. BRETSCHER MS. Asymmetrical lipid bilayer structure for biological membranes. Nature New Biol, 236:112, 1972. BRETSCHER MS. Membrane structure: some general principles. Science, 181:6229, 1973. DAVENPORT L, KNUTSON JR, BRAND L. Fluorescence studies of membrane dynamics and heterogeneity. In: HARRIS JR, ETÉMADI AH (Eds.). Subcellular Biochemistry, Plenum, New York, 1989. EDIDIN M. Patches, posts and fences: proteins and plasma membrane domains. Trends Cell Biol, 2:37680, 1992. FASMAN GD, GILBERT WA. The prediction of transmembrane protein sequences and their conformations: an evaluation. Trends Biochem Sci, 15:8992, 1990. FAWCETT DW, BLOOM W. Bloom and Fawcett, a Textbook of Histology. 12. ed. Chapman & Hall, New York, 1994. JUNQUEIRA LC, CARNEIRO J. Histologia Básica. 11. ed. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 2008. MONTIGNY C, LYONS J, CHAMPEIL P et al. On the molecular mechanism of flippase and scramblasemediated phospholipid transport. Biochim Biophys Acta, 1861:76783, 2016. OVERTON E. Ueber die allgemeinen osmotischen Eigenschaften der Zelle, ihre vermutlichen Ursachen und ihre Bedeutung fur die Physiologie (The Probable origin and physiological significance of cellular osmotic properties). Vierteljahrsschr Naturforsch Ges Zuerich, 44:88135, 1899. SINGER SS, NICOLSON GL. The fluid mosaic model of the structure of membranes. Science, 175:12031, 1972. TANFORD C. The Hydrophobic Effect. John Wiley & Sons, Chichester, 1973. Os sites indicados a seguir trazem informações sobre a membrana celular e podem ser consultados como material complementar: http://employees.csbsju.edu/hjakubowski/classes/ch331/bcintro/default.html http://www.whatislife.com/education/fact/history.htm http://cellbio.utmb.edu/cellbio/membrane_intro.htm http://cellbio.utmb.edu/cellbio/membran3.htm
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Membrana plasmática e sua permeabilidade seletiva
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Difusão simples Potencial químico
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Prévias considerações para o estudo do transporte de substâncias através de membranas Fluxo difusional de íons através de membranas biológicas | Equação de GoldmanHodgkinKatz Forças envolvidas no transporte de líquidos através da membrana celular
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Conceitos básicos Bibliografia
MEMBRANA PLASMÁTICA E SUA PERMEABILIDADE SELETIVA A água, os gases oxigênio e dióxido de carbono, os nutrientes e os sais minerais são elementos essenciais à matéria viva: ■ O oxigênio é necessário para que as células aeróbicas possam realizar a respiração celular e com isso obter a energia química de que necessitam para desempenhar suas funções vitais ■ O dióxido de carbono é necessário para que as células de organismos autotróficos possam produzir alimentos e liberar oxigênio pelo processo de fotossíntese ■ A água tanto é responsável por muitos dos fenômenos da natureza como absolutamente essencial para a matéria viva. De fato, um grande número de reações bioquímicas que acontecem nas células ocorrem no citoplasma (meio intracelular), o qual é de natureza aquosa. Além disso, o meio que banha as células, ou seja, o extracelular, é também da mesma natureza, nos organismos uni e pluricelulares ■ Substâncias como glicose, aminoácidos e ácidos graxos, são essenciais à nutrição das células. Do mesmo modo, íons (p. ex., Na+, K+, Cl–, Ca2+ e Mg2+) são necessários para a realização de muitas das funções celulares ■ As células devem ter a capacidade de eliminar os produtos de refugo do seu metabolismo, como o ácido úrico, a ureia e o dióxido de carbono. A membrana plasmática celular separa os mencionados meios aquosos, intra e extracelulares, cada um dos quais contém, em solução ou suspensão, grande variedade de substâncias, em geral com diferentes concentrações entre os dois meios. As características de permeabilidade seletiva da membrana celular permitem que as células possam manter ótimas concentrações dessas substâncias em seu interior. Assim, são diversas as substâncias que podem atravessar a membrana celular; por exemplo: ■ Moléculas necessárias para a vida das células, como ácidos graxos, glicose e aminoácidos do meio extracelular ■ Substâncias de refugo, como a ureia e o ácido úrico, que devem ser eliminadas
■ Moléculas hidrofóbicas pequenas, gases como oxigênio e dióxido de carbono, água, cátions (p. ex., H+, Na+, K+, Mg2+, Ca2+) e ânions (p. ex., Cl– e HCO3–). Do mesmo modo, a permeabilidade seletiva da membrana plasmática impede que moléculas, como o ATP, saiam do interior celular com facilidade. Embora algumas substâncias como os gases, diversos íons e o etanol possam atravessar a membrana celular sem grande dificuldade, devido à membrana ter maior ou menor grau de permeabilidade para essas substâncias, existem outras que não podem atravessar a membrana por si próprias e precisam de ajuda para poderem ir de um lado a outro da célula. Neste processo, intervém uma série de proteínas, conhecidas como proteínas transportadoras. Elas se encontram nas membranas e ajudam uma específica substância a atravessar a membrana celular. As proteínas de transporte das membranas plasmáticas podem ser agrupadas em três grandes tipos: canais; cotransportadores; contratransportadores e bombas (ou ATPases). No presente capítulo, será considerada a passagem de substâncias através de barreiras ou membranas ideais, sem a participação das proteínas transportadoras. Assim sendo, aqui serão apresentados os princípios fundamentais para, mais adiante, poderem ser analisados os mecanismos que permitem o desenvolvimento do potencial de repouso da membrana celular.
DIFUSÃO SIMPLES Do ponto de vista intuitivo, é muito fácil ter uma noção do que seja a difusão simples. Basta colocar uma gota de detergente líquido em um recipiente com água e observar como o detergente se move na massa deste fluido e, em pouco tempo, está completamente diluído nela. O deslocamento das moléculas do detergente na água é devido a um processo de difusão simples. Suponhamos um recipiente com água dividido em dois compartimentos, I e II, separados por um plano vertical, totalmente permeável a substâncias (Figura 8.1). Adicionemos ao compartimento I várias moléculas de uma substância qualquer, que, no exemplo inicial, era o detergente. É sabido que, a nível molecular e atômico, os átomos e as moléculas nunca estão em repouso, movimentandose contínua e aleatoriamente em qualquer direção, a menos que se encontrem no chamado zero absoluto (0°K ou –278°C; em que °K = graus Kelvin e °C = graus Celsius); nessa condição, teoricamente, nem as moléculas nem os átomos estão em movimento. No presente exemplo, as moléculas de detergente situadas no compartimento I irão se deslocar, saltando de um ponto a outro, sempre do local onde estão mais concentradas para os lugares em que se encontram menos concentradas. Ao alcançarem a membrana que separa os dois compartimentos, em vista de a membrana ser permeável a elas, as moléculas vão passando para o compartimento II, movidas pela diferença de sua concentração entre ambos os compartimentos. É evidente que, à medida que as moléculas se acumulam no compartimento II, algumas destas que estão próximas da membrana que separa os dois compartimentos, em seu movimento aleatório, podem ir do compartimento II para o I. Nos momentos iniciais, a ida de I para II é muito maior que a de II para I. Contudo, com o passar do tempo, a concentração das moléculas, em I, irá diminuindo e, ao contrário, em II, aumentando. Em consequência, a passagem de I para II irá se reduzindo, ao passo que a de II para I, crescendo, até que, quando se igualarem as concentrações da substância nos dois lados da membrana, o sistema estará em equilíbrio, e o número de moléculas que cruzam a membrana de I para II será igual ao de moléculas que o fazem em sentido contrário, ou seja, de II para I. Desta maneira, as moléculas ocuparam o máximo espaço disponível, resultando que em pouco tempo a distribuição delas ficará relativamente uniforme em todo recipiente. A diferença de concentração das moléculas de detergente estabelecida entre ambos os compartimentos nas condições iniciais produziu um movimento difusivo resultante de I para II. Cada movimento de moléculas de I para II ou de II para I é denominado fluxo unidirecional, e representado como JI → II e JII → I, respectivamente (Figura 8.2). A diferença de JI → II menos JII → I é chamada de fluxo resultante (Jresultante):
Outro aspecto a se considerar é o número de moléculas que atravessam o plano entre I e II e viceversa, entre II e I, não ser somente proporcional às suas concentrações nos compartimentos I (CI) e II (CII), mas também à área de secção transversal (A) do referido plano. Consequentemente, o fluxo resultante das moléculas de detergente no exemplo citado será proporcional à diferença de concentração do detergente em ambos os compartimentos I e II, assim como à área de secção transversal (A) do plano que os separa.
Figura 8.1 ■ Difusão de uma gota de detergente entre dois compartimentos, separados por um plano vertical permeável ao detergente. No momento inicial (tempo zero), o compartimento I tem elevada concentração do detergente (concentração B), enquanto o II não tem detergente (concentração zero). Com o passar do tempo, as moléculas de detergente, em seu movimento contínuo ao acaso, alcançam e atravessam o plano que separa ambos os compartimentos, passando do I para o II. Desse modo, vão se acumulando moléculas de detergente no II, e também passagem de moléculas de detergente de II para I, porém em quantidade bem menor (tempo 1). O resultado desse processo é, como vemos para o tempo 2, as concentrações de detergente se igualarem nos dois compartimentos, alcançandose o equilíbrio. A partir deste momento, o movimento de moléculas de detergente de I para II é igual ao de moléculas que passam de II para I. Em outras palavras, no equilíbrio o fluxo de I para II (JI → II) é igual ao de II para I (JII → I). No gráfico, a linha roxa representa a concentração de detergente no compartimento I, e a azul, no compartimento II. (Adaptada de Vander et al., 2003.)
Figura 8.2 ■ Fluxos unidirecionais de um soluto entre os compartimentos I e II. O fluxo resultante (J) é a diferença dos fluxos unidirecionais do compartimento I ao II (JI → II) e do II ao I (JII → I). (Adaptada de Vander et al., 2003.)
Quando as concentrações de detergente se igualam nos dois compartimentos I e II, os fluxos unidirecionais JI → II e JII → I ficam iguais, e, portanto, o fluxo resultante J será igual a zero. Esta condição é designada equilíbrio. A proporção descrita para a equação 8.2 pode ser transformada em uma igualdade correspondente à relação matemática que descreve o fluxo resultante das moléculas em situações como a ilustrada no exemplo da Figura 8.1, por meio do uso de uma constante de proporcionalidade (K), ficando:
Do ponto de vista prático, podemos considerar que a diferença de concentração entre os compartimentos I e II (CI – CII) representa a força indispensável necessária para que ocorra o processo de difusão simples entre dois compartimentos, resultante da agitação térmica das moléculas e que, teoricamente, não acontece no zero absoluto.
POTENCIAL QUÍMICO Do ponto de vista físico, o trabalho que uma substância m pode realizar depende dos seguintes parâmetros: ■ Concentração (Cm) ■ Carga elétrica (Zm) ■ Volume parcial molar (V–m) ■ Massa (mm) ■ Estrutura química. A somatória de todos os parâmetros que permitem a uma substância m realizar um trabalho é conhecida como seu potencial químico (μm). O potencial químico de uma substância m pode ser calculado pela seguinte equação:
em que: R = constante dos gases [8,314472 joules/(mol ꞏ °K)] T = temperatura absoluta Cm = concentração da substância Zm = valência da substância F = constante de Faraday (96.487 coulombs/equivalente) y = potencial elétrico Vm = volume parcial molar de m (aumento do volume da solução após adição de 1 mol de m) P = pressão exercida acima da pressão atmosférica mm = massa da substância m g = aceleração da gravidade padrão (9,80665 m/s2) h = altitude acima do nível do mar. O potencial químico padrão (µ0m) corresponde ao potencial químico da substância m quando sua concentração (Cm) é 1 molar (ln Cm = 0), o potencial elétrico é zero (ψ = 0), a temperatura é padrão (T = 298°K = 25°C), em condições isobáricas (P é igual em todos os pontos do meio onde se encontra a substância) e a substância está ao nível do mar (h = 0). Em vista de, para grande parte dos solutos, Vm ter um valor muito pequeno, o termo VmP contribui bem pouco no valor de μm na equação 8.4, podendo ser ignorado, particularmente nos sistemas biológicos. Logo, ao nível do mar, com a eliminação dos últimos termos, a equação 8.4 referente ao potencial químico passa a ser:
Cada termo da equação 8.5, da esquerda para a direita, representa o trabalho químico, osmótico e elétrico que a substância m pode realizar. O potencial químico é expresso em unidades de trabalho, como joules/mol ou calorias/mol. No caso do exemplo anterior, em que uma substância m colocada no compartimento I difunde para o compartimento II, o equilíbrio alcançado pode ser expresso em termos do potencial químico. Assim, o equilíbrio é alcançado quando μm é
igual em qualquer parte do sistema e não varia com o passar do tempo.
PRÉVIAS CONSIDERAÇÕES PARA O ESTUDO DO TRANSPORTE DE SUBSTÂNCIAS ATRAVÉS DE MEMBRANAS Quando uma membrana é interposta entre duas regiões de uma solução, ela cria uma barreira ao movimento das moléculas, e o fluxo de substâncias passa então a depender da sua eficiência em atravessar a membrana. Para a avaliação do transporte de substâncias através de membranas, várias considerações essenciais devem ser feitas: ■ Solubilidade da substância na membrana ■ Carga elétrica da substância ■ Diferença do gradiente de potencial químico (μm) que possa existir entre os dois compartimentos separados pela membrana ■ Permeabilidade da membrana para a substância.
▸ Solubilidade da substância na membrana | Coeficiente de partição Como as membranas biológicas têm componentes lipídicos de natureza hidrofóbica, a passagem de qualquer substância através deste ambiente vai depender diretamente da natureza química da substância, podendo ou não se dissolver no ambiente lipídico da membrana. O coeficiente de partição de uma substância X em dois meios imiscíveis (p. ex., água e óleo) pode ser calculado dividindo as concentrações da substância X em ambos os meios. Para termos uma noção operacional do coeficiente de partição, imaginemos dentro de um funil de separação: óleo vegetal, água e glicerol (Figura 8.3). O glicerol é um álcool com três grupos hidroxila; estes constituem centros hidrofílicos, que estabelecem pontes de hidrogênio com as moléculas de água, fazendo com que o glicerol se encontre em um estado energeticamente mais favorável na água que no óleo.
Por conseguinte, o glicerol tem uma solubilidade maior em água que em lipídios. Isso pode ser apreciado ao misturarmos no funil o glicerol com óleo e água e os deixarmos em repouso para que alcancem o equilíbrio. De acordo com a definição de equilíbrio, o potencial químico do glicerol no óleo (μglicerol(óleo)) é igual ao do glicerol na água (μglicerol(água)). Assim:
Como o glicerol não tem carga, o componente elétrico (ψ) da fórmula do potencial químico (equação 8.5) pode ser eliminado. Substituindo os m da equação 8.6 por seus respectivos componentes:
Ordenando,
Figura 8.3 ■ Preparação de uma mistura de glicerol, óleo e água em um funil de separação. Após misturar bem glicerol com óleo e água, a mistura é deixada em repouso para que alcance o equilíbrio. Pela definição de equilíbrio, o potencial químico do glicerol no óleo será igual ao do glicerol na água. A relação da concentração do glicerol em cada meio Cglicerol(óleo) /Cglicerol(água) é conhecida como o coeficiente de partição para a distribuição do glicerol em uma mistura de óleo e água. O coeficiente de partição dessa mistura é simbolizado como kóleo/água (lembre que glicerol e água são transparentes).
Pela regra de logaritmos,
A relação Cglicerol(óleo)/Cglicerol(água) é conhecida como o coeficiente de partição para a distribuição do glicerol em uma mistura de óleo e água no equilíbrio. O coeficiente de partição nesta mistura é simbolizado por kóleo/água e, segundo a equação 8.11, para o exemplo do glicerol, será igual a:
Portanto, o coeficiente de partição de uma molécula entre um ambiente lipídico e um aquoso depende diretamente da diferença entre o potencial químico padrão da molécula considerada, em água e em lipídios. No caso do glicerol, considerando que sua solubilidade é maior em água que em lipídios (pela presença dos três grupos hidroxila nesta molécula), seu coeficiente de partição será menor que 1 (lembre que o exponencial de um número negativo é sempre inferior a 1), pois μ0glicerol(óleo) 0). Essa diferença produzirá fluxo de solvente de I para II. Com o passar do tempo, condição (B), o aumento de volume no compartimento II ocasionará elevação da pressão hidrostática nesse compartimento, a qual se oporá ao fluxo de água de I para II. Eventualmente, a pressão hidrostática se tornará igual à osmótica, porém em sentido contrário, alcançandose um estado de equilíbrio, no qual o fluxo resultante de água entre os dois compartimentos será igual a zero. Consequentemente, podemos dizer que no equilíbrio ΔII–I = ΔPII–I. As conclusões anteriores podem ser comprovadas nas próximas condições experimentais. Consideremos o início do próximo experimento na mesma situação de (A).
Na condição seguinte, representada em (C), é colocado um pistão no compartimento II, que exercerá uma pressão não permitindo variação do volume nesse compartimento. A pressão exercida pelo pistão é igual à hidrostática desenvolvida em (B), sendo igual, porém em sentido contrário, à pressão osmótica desempenhada em (B) (ΔII–I = ΔPII–I). Na próxima condição, são colocados iguais volumes de água em ambos os compartimentos. Evidentemente, não haverá fluxo hídrico para nenhum dos compartimentos; porém, se por meio do pistão for exercida uma pressão igual à aplicada na condição anterior (C), existirá fluxo de II para I, até que a coluna de água do compartimento I atinja uma altura semelhante à alcançada pela água do II em (B). Esta condição está representada em (D). No equilíbrio, a pressão exercida pelo pistão no compartimento II (ΔPII–I) é igual à desenvolvida pela coluna de água no I, mas em sentido contrário (ΔPI–II). O fluxo hídrico do compartimento II para o I é semelhante ao produzido pela diferença de pressão osmótica (ΔπII–I) dos compartimentos I e II na condição (B).
▸ A equação de van’t Hoff
Em 1855, Jacobus Henricus van’t Hoff,12 físicoquímico holandês, formula uma expressão que relaciona a pressão osmótica com a concentração de soluto para soluções diluídas, semelhante à equação dos gases ideais, e propõe a primeira teoria para explicar a pressão osmótica. Ele propôs que a pressão osmótica é o resultado do choque das moléculas do soluto com a membrana semipermeável que separa as duas soluções, assumindo que as moléculas do solvente não contribuem para essa pressão. Por conseguinte, na proposta de van’t Hoff, a pressão osmótica de uma solução é a mesma pressão que exerceria um gás ideal que ocupasse o mesmo volume da solução. Assim, a lei dos gases ideais estabelece que:
em que: P = pressão em atmosferas V = volume em litros n = número de moles R = constante universal dos gases T = temperatura absoluta (°K). Sendo n o número de moles do gás, ou de soluto no caso de soluções, e V o volume da solução em litros, a relação n/V é igual à concentração molar do soluto (C). Por conseguinte, van’t Hoff trocou P da equação 8.52 por π (pressão osmótica), ficando a equação de van’t Hoff para o cálculo da pressão osmótica do seguinte modo:
Logo, um mol de uma substância não eletrolítica de comportamento ideal, à temperatura de 0°C (273°K), exercerá uma pressão osmótica de:
Deve ser destacado que 22,4 atm é a pressão de 1 mol de um gás ideal comprimido em um volume de 1 l, em condições de 0°C (273°K). Esta coincidência foi utilizada como critério para validar o cálculo da pressão osmótica pela equação de van’t Hoff (equação 8.53). Não obstante, deve ser mencionado que a lei dos gases foi estabelecida para gases ideais, cujas moléculas não apresentem atrações entre si e careçam de volume. Portanto, o uso desta equação é menos exato para os líquidos que para os gases. Sua aplicação seria válida para soluções bem diluídas.
▸ Diferença de pressão osmótica entre duas soluções Vamos considerar dois compartimentos separados por uma membrana semipermeável ideal. No compartimento I, é colocada solução de sacarose 0,1 molar e, no II, de sacarose 0,2 molar. A membrana deixa passar o solvente, que é água, porém não a sacarose. Nestas condições, haverá fluxo hídrico do compartimento com solução de sacarose mais diluída (I) para o compartimento com solução mais concentrada (II), impulsionado pelo desenvolvimento de maior pressão osmótica no compartimento II. O cálculo da pressão osmótica resultante, responsável pelo fluxo de solvente, é feito da seguinte maneira:
Logo,
▸ Osmolaridade e osmolalidade Para expressar a concentração osmótica de uma solução, são utilizados os termos osmolaridade ou osmolalidade. A osmolaridade é definida como: concentração das partículas osmoticamente ativas, expressas em osmoles/litro. Quando é dito partículas de soluto osmoticamente ativas, fazse referência às partículas que estão efetivamente dissolvidas no solvente e, em consequência, podem gerar pressão osmótica. É calculada pela seguinte equação:
em que: i = cada tipo de soluto presente na solução ni = constante de dissociação ideal do soluto Ci = concentração química do soluto. Caso seja preparada uma solução aquosa com um soluto não ionizável, como glicose ou sacarose, a osmolaridade da solução dependerá diretamente da concentração química da solução, já que o soluto não se dissocia. Por exemplo, se forem dissolvidos 34,23 g de sacarose13 em água, até um volume final de 1 ℓ de solução, a concentração química (molaridade) da solução será igual à osmolaridade ideal:
Se for feita uma solução aquosa com eletrólitos (ácido, base ou sal), suas moléculas vão se dissociar individualmente em dois ou mais íons. Cada íon será uma partícula osmoticamente ativa, e, por conseguinte, a osmolaridade dessa solução eletrolítica será maior que sua concentração química. Assim, a constante de dissociação ideal de NaCl ou KCl é 2: os cátions Na+ ou K+ e os correspondentes ânions Cl–. Caso se utilize CaCl2, a constante de dissociação ideal para este sal é 3: o cátion Ca2+ e dois ânions Cl–. Por exemplo, se dissolvermos 7,46 g de KCl14 em água até um volume final de 1 ℓ de solução, a osmolaridade da solução (assumindo um comportamento ideal) será o dobro de sua concentração química:
Contudo, na realidade, os eletrólitos não apresentam um comportamento ideal. Mesmo no caso dos eletrólitos fortes,15 a dissociação iônica não é completa, pois, quando os ânions e cátions estão dissolvidos, tendem a se atrair, fazendo a solução se comportar como se houvesse uma concentração de partículas osmoticamente ativas menor que a calculada quando é assumido um comportamento ideal. A equação 8.56 requer um fator que corrija a dissociação real dos eletrólitos:
em que φi é o coeficiente osmótico. O coeficiente osmótico indica a dissociação iônica real para um determinado eletrólito. No Quadro 8.2, há o valor do coeficiente osmótico de vários eletrólitos. Este fator permite corrigir o cálculo da pressão osmótica por meio da equação de van’t Hoff (equação 8.53) no caso de eletrólitos. A equação de van’t Hoff corrigida fica:
A molaridade e a osmolaridade são valores que dependem da temperatura, pois a água muda seu volume com a temperatura. Apesar de em Fisiologia, comumente, ser utilizado o termo osmolaridade, necessitase esclarecer que, do ponto de vista químico, é mais correto usar o termo osmolalidade. A osmolalidade consiste na medida do número de osmoles de soluto por quilograma de solvente (osmol/kg); é calculada pela mesma equação 8.57, porém a concentração química (Ci) é expressa em molalidade.16 Quando a concentração dos solutos é muito baixa, os termos osmolaridade e osmolalidade são praticamente equivalentes.
▸ Propriedades coligativas das soluções As propriedades das soluções que dependem do número de partículas efetivamente dissolvidas, sem considerar a natureza química dessas partículas, são denominadas propriedades coligativas das soluções. O aumento da concentração de partículas osmoticamente ativas de uma solução tende a modificar qualquer mudança do estado físico do seu solvente. As soluções apresentam quatro propriedades coligativas: ▸ Aumento da pressão osmótica. Ao ser adicionado mais soluto em uma solução, ocorre aumento da sua osmolalidade, que indica, claramente, que a solução pode exercer uma pressão osmótica maior que a exercida anteriormente. ▸ Diminuição da pressão de vapor. As partículas de um solvente puro estão unidas por forças intermoleculares. Na superfície do líquido, as partículas do líquido interagem com as moléculas que se encontram sob elas, mas na parte superior se encontram com o ar (ou outra fase gasosa). Assim, as partículas do solvente na superfície do líquido podem passar para a fase de vapor, sendo este processo reversível. Em uma solução aquosa que contém um soluto não volátil, as partículas desse soluto estão ocupando um certo espaço, que originalmente estava ocupado só pelo solvente. Por conseguinte, as partículas não voláteis de soluto diminuem o número de partículas de solvente disponíveis na interfase entre a solução e o ar, e, com isso, ocorre uma diminuição da pressão de vapor da solução (Figura 8.11). A lei de Raoult17 estabelece que a pressão do vapor de uma solução, Psolução, é igual à fração molar do solvente XW multiplicada pela pressão do vapor do solvente puro, P0W:
Quadro 8.2 ■ Valores do coeficiente osmótico (φi) para alguns eletrólitos em solução.
Concentração molal (m)
Eletrólito
0,02 (φi)
0,10 (φi)
0,10 (φi)
CaCl2
2,673*
2,601
2,573
KCl
1,919
1,857
1,827
KNO3
1,904
1,784
1,698
LiCl
1,928
1,895
1,884
MgCl2
2,708*
2,658
2,679
MgSO4
1,393*
1,212
1,125
NaCl
1,921
1,872
1,843
*0,025 molal. Fonte: Heilbrunn, 1952.
Figura 8.11 ■ A presença de partículas de soluto não volátil em uma solução diminui a pressão de vapor da solução. A pressão de vapor de uma solução, Psolução, é igual à fração molar do solvente XW multiplicada pela pressão do vapor do solvente puro, Pw o.
A fração molar do solvente (XW) é definida como a relação entre o número de moles do solvente (nW) e o número total de moles presentes na solução (nT), ou seja, o número de moles do solvente mais os do soluto:
▸ Aumento do ponto de ebulição. As partículas de um soluto não volátil interferem na passagem massiva das moléculas do solvente para o ar e alcançam o ponto de ebulição do solvente. Isso faz com que o ponto de ebulição da solução seja mais elevado que o do solvente puro. O aumento do ponto de ebulição de uma solução aquosa (ΔTB) corresponde ao quanto ele difere de 100°C (o ponto de ebulição da água):
Em que: TB é o ponto de ebulição da solução aquosa e TB0, o ponto de ebulição do solvente, neste caso a água (100°C). Admitindo que o ponto de ebulição de uma solução aquosa 1 molal de um não eletrólito ideal seja 100,51°C,18 a equação 8.61 permite calcular o ΔTB dessa solução ideal: ΔTB = 100,51°C – 100°C = 0,51°C Com este valor de referência, é possível calcular a osmolalidade de uma solução aquosa diluída, determinando apenas sua ΔTB:
▸ Diminuição do ponto de congelamento. As partículas do soluto presentes na solução interferem no processo de aproximação mínima necessária para que as moléculas do solvente possam congelar e alcançar o estado sólido. Em consequência, para a solução congelar, é necessário que a temperatura diminua mais. Em outras palavras, se aumenta a concentração de partículas, é preciso que a temperatura seja mais baixa para que o solvente passe do estado líquido ao sólido, havendo uma queda do ponto de congelamento. A diminuição desse ponto de uma solução aquosa (ΔTF) é o quanto ele difere de 0°C (o ponto de congelamento da água):
Em que: TF0 é o ponto de congelamento do solvente, que neste caso é água (0°C), e TF, o ponto de congelamento da solução aquosa. O ponto de congelamento de uma solução aquosa 1 molal de um não eletrólito ideal é –1,86°C.19 Assim, o ΔTF dessa solução 1 osmol ideal (aplicando a equação 8.63) é: TF = 0°C – (–1,86°C) = 1,86°C Com este valor de referência, é possível calcular a osmolalidade de uma solução aquosa diluída:
Quando é modificada a concentração de partículas osmoticamente ativas de uma solução, suas quatro propriedades coligativas variam entre si, de forma conhecida. Por conseguinte, se em uma solução for medida uma de suas propriedades coligativas, facilmente, será possível calcular as demais. Um dos métodos experimentais usados para determinar a osmolalidade de uma solução é a medida da diminuição do seu ponto de congelamento ou de sua pressão de vapor. Este é o princípio utilizado nos osmômetros modernos. Considerando que 1 mol de uma substância não eletrolítica de comportamento ideal, na temperatura de 0°C (273°K), exerce uma pressão osmótica de 22,4 atm, podemos determinar a pressão osmótica de qualquer solução não eletrolítica, pela seguinte equação:
Por exemplo, uma solução de um não eletrólito com ΔTF de 2,79°C tem 1,5 osmol e pode exercer uma pressão osmótica de 33,6 atm, a 0°C. O coeficiente osmótico de uma solução eletrolítica pode ser calculado pela divisão da diminuição do seu ponto de congelamento a uma dada molalidade (ΔTF{ionizável, molalidade}) pela diminuição do ponto de congelamento para um soluto não ionizável com a mesma molalidade (ΔTF{não ionizável, molalidade}).
A fórmula para determinar o coeficiente osmótico de uma solução eletrolítica é:
▸ Coeficiente de reflexão Para as deduções e conclusões feitas até aqui, foram utilizadas membranas semipermeáveis ideais, que deixam passar sem restrições o solvente, mas não deixam passar o soluto. Contudo, este não é o caso das membranas biológicas e de outras membranas, que não são ideais, pois apresentam permeabilidade seletiva, ou seja, não só permitem a passagem do solvente, como também podem permitir a passagem de solutos, com maior ou menor facilidade. Suponhamos uma membrana M que separa dois compartimentos, I e II, com diferentes graus de permeabilidade a um soluto S e livremente permeável à água (Figura 8.12). No início, há água no compartimento I e uma solução aquosa do soluto S no II. Caso A: A membrana é impermeável ao soluto. Ocorre um fluxo de água de I para II (Jágua (I → II)) e não há fluxo de soluto. Caso B: A membrana tem certa permeabilidade ao soluto. Além do fluxo de água de I para II (Jágua (I → II)), há fluxo de soluto de II para I (JS(II → I)), cuja magnitude dependerá, diretamente, do coeficiente de permeabilidade da membrana ao soluto S. Como a diferença de concentração de S entre os compartimentos I e II diminui, a diferença de pressão osmótica entre II e I (Δπ(II–I)) será menor que a observada no caso A e, portanto, o Jresultante de água também será menor que o do caso A. Caso C: Quando a membrana é livremente permeável ao soluto, as soluções em ambos os compartimentos se equilibram e não existe diferença de pressão osmótica entre I e II (Δπ(II–I) = 0). Estudos semelhantes realizados por Albert Jan Staverman,20 em 1951, fizeram com que ele chegasse à conclusão de que a capacidade da membrana, que separa dois compartimentos, para discriminar entre o soluto e a água pode ser descrita por um fator que denominou coeficiente de reflexão (σ).21 Este nome foi escolhido para indicar a capacidade da membrana de refletir partículas do soluto que tentam atravessála com maior ou menor facilidade, em relação à passagem do solvente.
O coeficiente de reflexão pode ser determinado experimentalmente, pela relação entre a pressão osmótica real determinada e a pressão osmótica calculada pela equação de van’t Hoff. Ou seja:
Na condição A (ver Figura 8.12), há uma membrana ideal, ou seja, que deixa passar apenas o solvente, a pressão osmótica real (πreal) é igual à calculada (πcalculada), sendo o coeficiente de reflexão (σ) igual a 1. Na condição C, em que a membrana deixa passar livremente tanto o solvente como o soluto S, não se desenvolve nenhuma pressão osmótica, sendo σ igual a 0, já que πreal = 0.
Na condição B, em que a membrana deixa passar livremente o solvente e tem certa restrição para a passagem do soluto S, o coeficiente de reflexão estará entre os valores extremos de 1 (caso A) e 0 (caso C).
Figura 8.12 ■ Fluxo de água (Jágua) e de solutos entre dois compartimentos (I e II), separados por uma membrana. Esta membrana é completamente permeável à água. Inicialmente, há água no compartimento I e solução aquosa do soluto (S) no II. No caso A, a membrana é impermeável ao soluto. Portanto, não ocorre JS (II → I) , mas é produzido um Jágua (I → II) . No caso B, a membrana tem certa permeabilidade ao soluto. Dependendo da sua permeabilidade ao soluto, é produzido um certo JS (II → I) e um certo Jágua (I → II) . Porém, o Jágua (I → II) é menor que o produzido no caso A. No caso C, a membrana deixa passar livremente tanto as moléculas de água, como as de soluto. Assim, no equilíbrio JS (II → I) = JS (I → II) → e o JS resultante é igual a zero. O Jágua (I → II) = Jágua (II → I) e não há diferença de pressão osmótica entre os dois compartimentos (Δπ(II–I) = 0).
É necessário enfatizar que o coeficiente de reflexão se refere, especificamente, a uma membrana M e a um soluto S; assim sendo, seu símbolo deve ser representado por σSM. Staverman demonstrou que o cálculo da pressão osmótica deve incluir a correção para σSM, de modo que:
sendo πefet a pressão osmótica efetiva através de uma membrana não ideal. Substituindo a equação 8.68 na 8.58 (π = φiCiRT), o cálculo de πefet será:
▸ Osmolaridade e tonicidade A osmolaridade de uma solução, segundo descrito na seção Osmolaridade e osmolalidade, referese à concentração de suas partículas osmoticamente ativas. Portanto, se duas soluções de diferentes solutos com a mesma osmolaridade, isto é, isosmolares, fossem colocadas em cada lado de uma membrana ideal para ambas as soluções, a pressão osmótica exercida por cada uma delas seria a mesma, e o sistema estaria, osmoticamente, em equilíbrio.
Figura 8.13 ■ Fluxo de água (Jágua) em eritrócitos humanos ressuspensos em soluções com diferentes tonicidades. No caso A, os eritrócitos foram ressuspensos em solução isotônica de 150 mM NaCl. O fluxo de água do interior para o exterior do eritrócito (Jágua (i → e) ) é igual ao produzido do seu exterior para o seu interior (Jágua (e → i) ). Não há variação do volume intracelular dos eritrócitos. No caso B, os eritrócitos foram ressuspensos em solução hipertônica de 300 mM NaCl. O fluxo de água do interior para o exterior do eritrócito (Jágua (i → e) ) é significativamente maior que o produzido do seu exterior para o seu interior (Jágua (e → i) ). Há diminuição do volume intracelular dos eritrócitos. No caso C, os eritrócitos foram ressuspensos em solução hipotônica de 90 mM NaCl. O fluxo de água do interior para o exterior do eritrócito (Jágua (i → e) ) é significativamente menor que o produzido do seu exterior para o seu interior (Jágua (e → i) ). Há aumento do volume intracelular dos eritrócitos, o qual pode ocasionar sua ruptura (ou hemólise).
Entretanto, segundo discutido na seção anterior, Coeficiente de reflexão, as membranas não são necessariamente ideais, podendo apresentar graus distintos de permeabilidade para os vários solutos. Deste modo, caso sejam colocadas duas soluções isosmolares de diferentes solutos em cada lado de uma membrana, sendo esta membrana impermeável ao soluto da solução I, porém tendo certo grau de permeabilidade ao da II, a pressão osmótica exercida pela solução I será maior que a exercida pela II, o que determinará um fluxo de solvente de II para I. Tal descoberta levou ao conceito de tonicidade de uma solução. A tonicidade é definida como a pressão osmótica efetiva (πefet) de uma solução, em relação a uma determinada membrana. Para definir a tonicidade de uma solução, é necessário sempre considerar uma membrana ou célula específica. Assim, as soluções podem ser classificadas como (Figura 8.13): ■ Isotônicas: quando uma célula é suspensa em uma solução isosmolar determinada e não ocorre nenhuma variação do volume intracelular, esta solução é isotônica para essa célula. Neste caso, a πefet da solução é igual à πefet do líquido intracelular ■ Hipotônicas: caso a célula seja suspensa em uma solução isosmolar e haja aumento do volume intracelular, a solução utilizada é hipotônica em relação ao líquido intracelular. A πefet da solução é substancialmente menor que a πefet do líquido intracelular ■ Hipertônicas: se a célula for suspensa em uma solução isosmolar e ocorrer uma diminuição do volume intracelular, esta solução é hipertônica para essa célula. A πefet da solução é substancialmente maior que a πefet do líquido intracelular.
Esse critério também é aplicado quando cada face de uma membrana não ideal é banhada por soluções não isosmóticas de um mesmo soluto que atravessa com certa dificuldade a membrana. Neste caso, o número de partículas osmoticamente efetivas em cada solução será diferente devido à diferença de concentração de soluto nas duas soluções, pois a solução menos concentrada será hipotônica em relação à mais concentrada, que será hipertônica.
▸ Potencial químico de um solvente Quando se adiciona certa quantidade de substância solúvel em um solvente, é evidente que a concentração do solvente em determinado volume dessa solução será menor que aquela existente no mesmo volume de solvente puro. Uma forma de expressar a concentração de um solvente é pela sua fração molar (XW), indicada anteriormente (equação 8.60). Quando se trata de um solvente puro, o valor de XW será 1, já que nW = nT. À medida que o soluto é adicionado, o valor de XW vai diminuindo. Utilizando a fórmula do potencial químico (equação 8.4), agora expressa para um solvente, temos:
Quando há solvente puro XW = 1, ln XW = 0 e VW = 0. Portanto,
É evidente que, de um ponto de vista rigoroso, em vez da fração molar, deveria ser usada a atividade do solvente, ou seja, sua concentração efetiva, parâmetro que considera as interações moleculares. Para a água, principal componente dos meios intra e extracelulares, o potencial químico total, aplicando a equação 8.70, é dado por:
▸ Diferença de potencial químico total do solvente entre duas soluções Na situação indicada no caso A da Figura 8.12, o cálculo da diferença do potencial químico total do solvente, que nesse caso é água, entre as duas soluções será: Segundo a equação 8.72,
e
Nesta situação, a diferença de potencial químico entre as duas soluções (II e I) é fornecida pela resultante da equação 8.74 menos a equação 8.73. Assim, obtemos:
Rearranjando os termos da equação 8.75, temos:
Resolvendo o primeiro termo da direita da equação 8.77:
Substituindo Xágua no primeiro termo da equação 8.78 pelo indicado na equação 8.60, fica:
Ordenando esta equação:
Como em soluções aquosas diluídas nágua >> ns e considerando que ln(1 + x) se aproxima de x na medida em que x se aproxima de zero, na equação 8.82 podemos substituir ln(1 + x)por x, ficando:
Substituindo a equação 8.83 na 8.77, resulta:
Dividindo ambos os termos por Vágua, obtemos:
Considerando que respectivamente, a equação 8.86 fica:
representam os volumes dos compartimentos II e I,
Como na equação de van’t Hoff (8.53), a diferença de pressão osmótica é fornecida por Δπ = RT ꞏ ΔC, em que ΔC é a diferença de concentração de solutos, aos quais a membrana é impermeável, entre os compartimentos II e I, a equação 8.89 pode ser expressa como:
Na situação de equilíbrio, quando uIágua = uIIágua, ΔπIIIágua total =0. Portanto, a equação 8.90 resulta em:
Em outras palavras, no equilíbrio, quando já não há fluxo de volume entre os dois compartimentos, a diferença de pressão osmótica entre os compartimentos I e II é igual à diferença de pressão hidrostática entre os compartimentos II e I, mas com sinal oposto.
▸ Movimento de água através da membrana celular Consideremos, novamente, uma membrana semipermeável ideal, que separa duas soluções, a qual deixa passar sem restrição o solvente, neste caso água, impedindo a passagem do soluto. A força envolvida no movimento hídrico através da membrana (Fágua)22 deriva da diferença da pressão hidrostática (ΔPII–I) e da diferença de pressão osmótica (RT ꞏ ΔCSII– I = ΔπII–I) entre as duas soluções que banham cada lado da membrana. Assim, podemos escrever:
Resolvendo ΔμII–Iágua total pela equação 8.90, Fágua resulta em:
Essa força imprime um movimento às moléculas de água, cuja velocidade média é dada por:
em que: vágua = velocidade média das moléculas de água Fágua = força definida na equação 8.94 Ωm = coeficiente de mobilidade modificada da água através de uma membrana específica = uáguak k = coeficiente de distribuição da água entre a solução e a membrana. O fluxo de água por unidade de área (Jágua) será igual à velocidade média das moléculas de água (vágua) multiplicada pela concentração da água (Cágua):
o qual é expresso em
ou seja, o Jágua é dado em moles ꞏ cm–2 ꞏ s–1.
Substituindo a equação 8.95 na 8.96, temos:
Considerando a equação 8.94, resulta:
Em soluções diluídas, o produto da concentração da água pelo volume parcial molar desse fluido é próximo de 1 Assim,
O coeficiente de permeabilidade para a água é definido por
Substituindo a equação 8.100 na 8.99, temos:
Para expressar a pressão osmótica de II a I, podemos escrever:
Então, a equação 8.101 resulta em:
Com base na equação 8.103, podemos tirar as seguintes conclusões: 1. 2.
3.
Se o coeficiente de permeabilidade para a água for zero (págua = 0), não há fluxo resultante desse líquido. Se o coeficiente de permeabilidade para a água for diferente de zero (págua ≠ 0), haverá fluxo resultante desse fluido sempre e quando ΔPII–I ≠ ΔπII–I, indicando que o fluxo resultante de água através da membrana depende da diferença de pressão mecânica e da diferença de concentração de soluto nos dois lados da membrana. Se o coeficiente de permeabilidade para a água for diferente de zero (págua ≠ 0) e a diferença da pressão hidrostática entre II e I, igual à diferença de pressão osmótica entre II e I (ΔPII–I = ΔII–I), não haverá fluxo resultante de água, indicando que, no equilíbrio, a pressão hidrostática é igual à pressão osmótica.
Entretanto, se a membrana não se comportar de um modo ideal, isto é, se for permeável ao solvente e, também, em maior ou menor grau, ao soluto, a situação será totalmente diferente. Neste caso, existirão fluxos cruzados de soluto e solvente, interatuando. Esta situação foi analisada por Ora Kedem23 e AharonKatzir Katchalsky,24 em 1958, utilizando critérios da termodinâmica de processos irreversíveis.
Equações de Kedem e Katchalsky Existe grande número de leis fenomenológicas que descrevem os processos irreversíveis em forma de proporcionalidade. Por exemplo, a lei de Fick – entre o fluxo de matéria de um componente de uma mistura e seu gradiente de concentração, e a lei de Ohm – entre a corrente elétrica e o gradiente de potencial aplicado. Quando dois ou mais destes fenômenos ocorrem simultaneamente, eles interferem e dão lugar a novos efeitos. Entre estes fenômenos cruzados, pode ser citado, por exemplo, o caso de uma membrana não ideal, permeável à água e com certa permeabilidade ao soluto m, que separa dois compartimentos (I e II) que contêm soluções aquosas com diferentes concentrações de m, como seja, CIIm > CIm. Nesta condição, haverá fluxo de água de I para II e de soluto de II para I Em 1931, ao estudar a diferença entre os efeitos cruzados, L. Onsager estabeleceu sua reciprocidade; isto é, a possibilidade de que tais efeitos possam intercambiar. No caso das membranas, tem particular importância a correspondência recíproca dos efeitos causados por diferenças de concentrações e de pressões. Entre 1951 e 1952, Albert Jan Staverman estabeleceu a primeira teoria para explicar o fluxo osmótico, propôs o coeficiente de reflexão σ e indicou as causas termodinâmicas daquele fluxo. Entre 1957 e 1966, Ora Kedem e AharonKatzir Katchalsky completaram a aplicação da teoria da termodinâmica de processos irreversíveis a estes processos de transporte. As equações básicas que resultaram desta aplicação em membranas em que há duas forças termodinâmicas, dadas por ΔCs e ΔP, serão discutidas a seguir. Kedem e Katchalsky, estudando o transporte de solvente e soluto através de uma membrana banhada por duas soluções, consideraram os seguintes fluxos, proporcionais à pressão hidrostática e à osmótica, respectivamente:
em que: Jv = fluxo total de volume (soluto mais solvente) JD = fluxo de soluto em relação ao solvente (fluxo de intercâmbio). Para transformar as proporções anteriores em igualdades, esses pesquisadores propuseram o uso dos coeficientes LP e LD, isto é, o coeficiente de pressãofiltração (para uma diferença de concentração igual a zero) e o coeficiente difusional (para uma diferença de pressão igual a zero), respectivamente. Deste modo, os fluxos em cada caso são fornecidos pelas expressões:
Considerando a equação de van’t Hoff (RTΔCS = Δπ), a equação anterior fica: JD = LDΔπ
Ou seja, quando ambas as forças atuam, ΔP produz variação na velocidade relativa solutosolvente e Δπ, variação no fluxo de volume, ambas devendo ser colocadas nas equações, sendo seus coeficientes de proporcionalidade – o coeficiente osmótico (LpD) e o de ultrafiltração (LDp), respectivamente. Então, as equações dos fluxos, chamadas de equações fenomenológicas de Kedem e Katchalsky, ficam da seguinte maneira: Jv = Lp ΔP + LpDΔπ JD = LDpΔP + LDΔπ O teorema de Onsager demonstra que, nas condições expressas, os dois coeficientes cruzados são iguais, isto é, LpD = LDp. Suponhamos, agora, que a membrana que separa as duas soluções se comporta como uma membrana ideal, que deixa passar livremente o solvente, porém tem total impermeabilidade ao soluto. Neste caso, Jv é apenas fluxo de solvente (impulsionado pela pressão hidrostática) e JD, também apenas fluxo de solvente, porém, como é impulsionado pela pressão osmótica, apresenta sinal contrário. Logo, se o sistema se encontra próximo do equilíbrio, podese considerar que Jv = – JD. Assim, ambas as equações se igualam, ficando:
Para que a equação anterior seja igual a zero, é necessário que os valores em parênteses sejam zero; para tanto, Lp deve ser igual a –LDp e LD, a –LpD. Além disso, como, segundo o teorema de Onsager, LpD = LDp, teremos: Lp = LD = –LpD = –LDp Com as equações de Kedem e Katchalsky, é possível avaliar, de modo experimental, o valor dos coeficientes de pressãofiltração (Lp), difusional (LD), ultrafiltração (LDp) e osmótico (LpD) para uma dada membrana. Por exemplo, se Δπ = 0, a equação de Jv ficará Jv = LpΔP, bastando determinar Jv e ΔP para se ter o valor de Lp, ou seja:
Staverman definiu o coeficiente de reflexão (s) como a relação entre –LpD (coeficiente osmótico) e Lp (coeficiente de pressãofiltração), logo:
Vamos considerar Δπ= 0. Portanto, as equações iniciais de Jv e JD serão:
Rearranjando, fica:
1. 2. 3.
Se a membrana se comporta como uma membrana ideal, impermeável ao soluto, então –LDp = Lp ou, –JD = Jv, de modo que σ = 1. Se a membrana é livremente permeável ao solvente e ao soluto, então não há fluxo relativo, de modo que σ = 0. Se a membrana é livremente permeável ao solvente e oferece certo grau de dificuldade para a passagem do soluto, s terá um valor entre 0 e 1.
CONCEITOS BÁSICOS ▸ Difusão. Processo físico em que partículas materiais passam do meio onde se encontram, para outro meio onde estão ausentes ou em menor concentração, aumentando a entropia ou desordem molecular do sistema constituído pelas partículas que difundem e o meio no qual difundem. Este processo não requer um aporte energético. A difusão de substâncias através das membranas celulares pode ser simples, quando só intervêm atores responsáveis pela mesma, como pode ser facilitada ou mediada, quando intervêm, além de proteínas de membrana como canais, cotransportadores e contratransportadores, que reconhecem especificamente as substâncias e facilitam a passagem das mesmas. ▸ Potencial químico (μm). Somatória de todos os parâmetros que permitem que uma substância m realize um trabalho. Nos sistemas biológicos, ao nível do mar, podemos calcular o potencial químico de uma substância, isto é, a capacidade de realizar um trabalho químico, osmótico ou elétrico, com a seguinte equação:
em que R é a constante de gás, T é a temperatura absoluta, Cm é a concentração da substância, Zm é a valência da substância, F é a constante de Faraday, e y ψ o potencial elétrico. O potencial químico padrão (μ0m) corresponde ao potencial químico da substância m quando a concentração (Cm) é 1 molal (ln Cm = 0), o potencial elétrico é zero (ψ = 0), temperatura (T = 298 K = 25 °C), em condições isobáricas (P igual em todos os pontos do meio onde a substância é encontrada) e a substância está ao nível do mar (h = 0). ▸ Coeficiente de partição de uma substância m em meios hidrofóbicos e hidrofílicos. Parâmetro que representa o quociente entre as concentrações de uma substância m em uma mistura bifásica formada por dois solventes imiscíveis em equilíbrio, tais como um meio lipídico e um meio aquoso. Com este parâmetro, se pode saber com que facilidade a substância se dissolve em cada um dos meios. ▸ Potencial de Nernst. A passagem de uma substância com carga elétrica, de um meio I para um meio II através de uma membrana, cria uma diferença de potencial elétrico entre os dois lados da membrana, conhecido como potencial de Nernst. Este pode ser calculado, para uma substância carregada i, com a equação de Nernst:
▸ Gradiente químico. Diferença de potencial químico de uma substância m entre dois compartimentos separados por uma membrana. ▸ Permeabilidade de uma barreira a uma substância m. De modo geral, referese à capacidade de uma barreira, como uma membrana, de permitir a passagem de uma substância sem alterar sua estrutura interna. Como existem substâncias com carga elétrica, e que podem se apresentar diferentes condições nos compartimentos, são gerados diferentes casos, a saber: ■ Primeiro caso: partículas carregadas na presença de um gradiente de concentração (dCm/dx) e um gradiente de potencial elétrico (dψ/dx) ■ Segundo caso: partículas eletroneutras na presença de um gradiente de concentração na barreira (dCm/dx) ■ Terceiro caso: partículas carregadas na presença de um gradiente de potencial elétrico (dψ/dx) na barreira, a concentrações constantes de m.
▸ Osmose. Fluxo de água produzido colocandose duas soluções aquosas de diferentes concentrações de soluto separadas por uma membrana que é apenas permeável às moléculas de água, mas não às do soluto: a água difunde da solução com menor concentração de soluto, para a solução com a maior concentração do mesmo. ▸ Pressão osmótica. Uma das quatro propriedades desenvolvidas pelas soluções, conhecidas como propriedades coligativas porque dependem do número de partículas dissolvidas nelas, e que podem ser definidas como a pressão que deveria ser aplicada a uma solução I, separada por uma membrana semipermeável de outra solução II, com menor quantidade de soluto dissolvido, para deter o fluxo resultante de solvente que é produzido a partir da solução II para a I, através da membrana que os separa. ▸ Osmolaridade e osmolalidade. A concentração osmótica de uma solução é definida pela sua osmolaridade ou osmolalidade, conforme se expresse a concentração de partículas osmoticamente ativas em osmoles/litro de solução, ou osmoles/quilo de solvente, respectivamente. Quando se fala de partículas de soluto osmoticamente ativas, é feita referência àquelas que estão efetivamente dissolvidas no solvente e, consequentemente, podem gerar pressão osmótica. Esta propriedade é calculada através da seguinte equação
em que o termo i referese a cada tipo de soluto presente na solução, ni à constante de dissociação ideal do soluto e Ci à sua concentração química. Se prepararmos uma solução aquosa com um soluto não ionizável, como glicose ou sacarose, a osmolaridade da solução dependerá diretamente da concentração. Se, em vez disso, a solução é um eletrólito (ácido, base ou sal), suas moléculas vão se dissociar individualmente em dois ou mais íons. Cada íon será uma partícula osmoticamente ativa e, portanto, a osmolaridade de uma solução de eletrólitos será maior que a da sua concentração química. Como os eletrólitos não se dissociam completamente, é necessário um fator que corrija sua dissociação real; esse fator é conhecido como o coeficiente osmótico (φ). A equação da osmolaridade seria, então:
▸ Propriedades coligativas das soluções. São as propriedades que uma solução desenvolve devido ao número de partículas dissolvidas nela. As propriedades coligativas são quatro: ■ Aumento da pressão osmótica: ao adicionar mais soluto a uma solução, há um aumento na osmolalidade da referida solução ■ Diminuição da pressão de vapor: as partículas não voláteis de soluto diminuem o número de partículas de solvente disponíveis na interface entre a solução e o ar e, assim, ocorre uma diminuição da pressão de vapor da solução ■ Aumento do ponto de ebulição: as partículas de um soluto não volátil interferem para que as moléculas do solvente possam passar maciçamente para o ar ao alcançar o ponto de ebulição do solvente. Isso faz com que o ponto de ebulição da solução seja mais alto que o do solvente sozinho ■ Diminuição no ponto de congelamento: as partículas de um soluto presente na solução interferem no processo de aproximação mínima necessário para que as moléculas do solvente congelem e atinjam o estado sólido. Isso resulta na necessidade de reduzir ainda mais a temperatura da solução para que esta possa se congelar. ▸ Coeficiente de reflexão (σ). Também chamado de coeficiente de reflexão de Staverman, indica a capacidade de uma membrana para “refletir” partículas de soluto que tentam atravessála. Este coeficiente toma valores que vão de 0, quando a membrana permite passar livremente o solvente e o soluto, para 1, quando a membrana permite passar apenas o solvente. ▸ Tonicidade. Pressão osmótica efetiva (πefet) que exerce uma solução em relação a certa membrana. De acordo com a sua tonicidade, as soluções podem ser: ■ Isotônicas: quando o (Πefet) de duas soluções são iguais ■ Hipotônicas: referese à solução que tem menor (Πefet) do que a outra solução com a qual está em contato através da membrana ■ Hipertônicas: referese à solução que possui maior (Πefet) do que a outra solução com a qual está em contato através da membrana.
BIBLIOGRAFIA BORON WF, BOULPAEP EL. Medical Physiology. W.B. Saunders, 2008. HEILBRUNN LV. An Outline of General Physiology. W.B. Saunders, Philadelphia, 1952. HODGKIN AL, HOROWICZ P. The influence of potassium and chloride ions on the membrane potential of single muscle fibres. J Physiol, 148:12760, 1959. SCHULTZ SG. Basic Principles of Membrane Transport. Cambridge University Press, New York, 1980. SNELL FM, SHULMAN S, SPENCER RP et al. Biophysical Principles of Structure and Function. AddisonWesley Publishing Co, 1965. SPERELAKIS N. Cell Physiology. Academic Press, San Diego, CA, 1998. STEIN WD. Transport and Diffusion Across Cell Membranes. Academic Press, Orlando, FL, 1986. STENKNUDSEN O. Passive transport processes. In: GIEBISH G, TOSTESON DC, USSING HH (Ed.). Membrane Transport in Biology. Vol. 1, chapter 2, 5113. SpringerVerlag, Berlin, Heildelberg, 1978. VANDER AJ, SHERMAN JH, LUCIANO DS. Human Physiology: the mechanisms of body function. 9. ed. McGrawHill, Boston, 2003. WEISS TF. Cellular Biophysics. Vol. 1, Transport. The MIT Press, Cambridge, 1996.
___________ 1
O valor 61,5 é resultante do cálculo de
, em que: R = 8,314472 joules/(mol × °K); T = 310°K, F = 96.487
coulombs/equivalente e 2,303 = fator de conversão de ln em log. Portanto,
2
O cálculo de Pm também pode ser expresso como o resultado de ΩmRT/Δx, em que Ωm é definido como o coeficiente de mobilidade modificada do soluto m através de uma barreira específica, sendo Ωm = umkm, ou seja, a mobilidade de m através de uma barreira determinada multiplicada pelo coeficiente de partição de m na dita barreira (km). 3 A lei de Ohm estabelece que a intensidade da corrente elétrica que circula por um condutor elétrico é diretamente proporcional à diferença de potencial aplicada e inversamente à resistência do condutor, podendo ser expressa matematicamente como em que I = intensidade da corrente, V = diferença de potencial (neste capítulo simbolizada como Δψ) e R = resistência. 4
É necessário esclarecer que a mobilidade iônica em uma membrana biológica depende diretamente da presença de proteínas transportadoras, específicas ou não, que permitem o transporte de íons através da porção hidrofóbica da bicamada lipídica. 5 Biofísico norteamericano que derivou a equação de campo constante, durante seu doutorado na Columbia University. 6 Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1963. 7
Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1970. A equação 8.46 também é conhecida como equação de GHK; porém, para efeitos práticos, neste texto a 8.49 será identificada como de GHK. 9 Neste caso, os compartimentos I e II, mencionados anteriormente, equivalem aos meios externo e interno à membrana, respectivamente. 8
10
Também chamados lipofílicos, por sua capacidade de dissolução em solventes orgânicos, como os lipídios. Do grego ώσμόζ (osmos), ação de empurrar, impulso. 12 Primeiro prêmio Nobel de Química, em 1901. 11
13
Peso molecular 342,30. Peso molecular 74,60. 15 Um eletrólito é definido como forte quando, em solução, alta proporção dele se dissocia para formar íons livres. Ao contrário, se a maior parte do soluto não se dissocia, o eletrólito é considerado fraco. 14
16
A molalidade de uma solução é o quociente entre o número de moles presentes na solução e a massa do solvente em quilogramas. 17 FrançoisMarie Raoult, químico francês, estudou o fenômeno da queda do ponto de congelamento e da pressão de vapor nas soluções. 18 O valor de 0,51°C também é conhecido como constante ebulioscópica (KB). 19
O valor de –1,86°C também é conhecido como constante crioscópica (K ).
19
O valor de –1,86°C também é conhecido como constante crioscópica (KF). Eminente físicoquímico holandês, que deu contribuições muito importantes para o estudo do movimento de água e solutos através de membranas. 20
21
Este coeficiente também é denominado coeficiente de reflexão de Staverman ou coeficiente sigma de reflexão. A difusão das moléculas de um soluto é causada pela força difusional que atua sobre elas. Logo, essa força é expressa como Δμ/ Δx. 23 Professora emérita do Weizmann Institute of Science e discípula do Professor AharonKatzir Katchalsky. Dedicouse ao estudo dos processos tecnológicos de dessalinização da água do mar. 22
24
Cientista israelense, pioneiro no estudo da eletroquímica de biopolímeros no Weizmann Institute of Science.
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Gênese do Potencial de Membrana Joaquim Procopio ■ Introdução
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Relação entre carga e potencial elétrico Origem das cargas elétricas Papel dos canais iônicos na geração de excessos de carga
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Geração de voltagem na membrana Aproximação da célula real
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Potencial de membrana Cálculo das forças moventes para o Na+ e para o K+ no potencial de repouso Perturbações do potencial de repouso
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Modelo hidráulico do sistema célula/membrana Perturbações do potencial de membrana produzidas pela abertura de canais iônicos Despolarização maciça da membrana | Potencial de ação
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Papel das bombas de sódiopotássio na gênese do potencial de membrana Gênese da diferença de potencial elétrico (DP) transepitelial
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Técnica de voltageclamp Corrente de curtocircuito
Excitabilidade Celular e Potencial de Ação Fernando Abdulkader ■ Variações do potencial de membrana ■ ■
Alterações do potencial de membrana em células excitáveis Importância dos potenciais de ação em células endócrinas pequenas
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Bibliografia
Gênese do Potencial de Membrana Joaquim Procopio
INTRODUÇÃO Ao longo do processo de evolução, os seres vivos desenvolveram diferentes estratégias para obtenção, armazenamento e uso da energia. Os tipos básicos de energia utilizados pelos seres vivos estão armazenados em ligações químicas (p. ex., trifosfato de adenosina [ATP], glicose), gradientes químicos (p. ex., força prótonmotiva), potencial redox (p. ex., cadeia
respiratória, dinucleotídio de nicotinamida e adenina reduzido [NADH]) e, finalmente, a energia armazenada no campo elétrico. Entre as mais importantes formas de armazenamento e processamento da energia e da informação está a energia elétrica. O objetivo deste capítulo é introduzir ao estudante as bases necessárias para compreender os fenômenos elétricos no âmbito da fisiologia celular. A percepção da bioeletricidade na ciência teve origem nos anos 1700, com os estudos de Luigi Galvani. Entre outros, Michael Faraday deu continuidade a esses estudos e iniciou a fase mais científica da Eletricidade. Curiosamente, o desenvolvimento da Bioeletricidade e o da Eletricidade Clássica ocorreram de modo mais ou menos paralelo no tempo. O grande impulso da eletricidade clássica, unificando eletricidade e magnetismo, no entanto, ocorreu já no final dos anos 1800, principalmente com os trabalhos de James Clerk Maxwell. A bioeletricidade, por sua vez, teve de esperar até meados dos anos 1900 para sofrer uma unificação importante, com os estudos de Hodgkin e Huxley (ver boxe na p. 195), entre outros. Contudo, desde o início dos anos 1900, já estava bem clara a percepção de que os seres vivos podiam ser considerados “máquinas” eletrobioquímicas, no sentido de que o armazenamento, a interconversão e a sincronização dessas formas de energia ocorriam como um processo geral, indissociável, nas células vivas. Uma percepção não muito agradável, mas bastante convincente da existência da bioeletricidade, é levar um choque de 400 volts de uma enguia elétrica, cujo nome científico, bastante adequado, é Electrophorus electricus.
RELAÇÃO ENTRE CARGA E POTENCIAL ELÉTRICO Provavelmente, uma das mais interessantes estratégias evolutivas no que se refere à bioeletricidade ocorreu no aproveitamento de uma propriedade dos objetos, que é a relação entre carga livre armazenada e o potencial elétrico. Existe uma enorme desproporção entre a quantidade de carga livre em um dado objeto e seu potencial elétrico. Para se ter uma ideia dessa desproporção, basta dizer que a carga elétrica de uma bateria de telefone celular, se distribuída em uma esfera metálica do tamanho da Terra, levaria o potencial elétrico da esfera a 10 milhões de volts, como demonstra o exercício de Aplicação 1.
Aplicação 1 Em um experimento hipotético, toda a carga elétrica armazenada em uma bateria de telefone celular (2.000 miliamperes/hora) é transferida para a superfície interna de uma esfera metálica gigante, oca e perfeitamente lisa, com o tamanho da Terra (12.800 quilômetros de diâmetro). Calcule a voltagem atingida pela esfera. Solução: Carga = 2 amperes × hora = (2 coulombs/segundo) × (3.600 segundos) = 7.200 coulombs
Claramente, observando o resultado da Aplicação 1, deduzse que a desproporção mencionada anteriormente advém do valor extremamente pequeno da constante ε0 = 8,85 × 10–12 farads/metro (permitividade elétrica do vácuo) no denominador e da enorme quantidade de elétrons em 1 coulomb. Graças a essa propriedade, a transferência de cargas extremamente pequenas aos objetos em geral leva à geração e à modificação de grandes valores de potenciais elétricos. Concluise que os objetos de modo geral são péssimos acumuladores de cargas elétricas. No entanto, é possível aumentar enormemente a capacidade de armazenamento de cargas, conforme descrito na Aplicação 2.
Aplicação 2
Se revestirmos a esfera gigante da Aplicação 1 com uma folha de plástico isolante e constante dielétrica (ε) igual a 2, com a espessura de uma sacola plástica de supermercado (0,1 mm), e cobrirmos tudo com uma folha metálica bem ajustada, a mesma quantidade de carga contida na bateria do celular (7.200 coulombs), depositada nesse novo sistema, criará agora uma voltagem de:
A diferença nos dois exemplos (Aplicações 1 e 2) é que a esfera metálica simples é um condutor esférico simples, e a esfera metálica revestida por uma membrana com uma placa por fora é um capacitor elétrico (Figura 9.1).
Figura 9.1 ■ Comparação entre um capacitor elétrico clássico (A) e o sistema celular citoplasma/membrana/meio extracelular (B). O núcleo metálico do capacitor corresponde ao citoplasma, o isolante do capacitor corresponde à membrana, e a carcaça externa do capacitor corresponde ao meio extracelular.
Dois fatos se tornam evidentes nos exemplos anteriores. Uma mesma quantidade de carga na esfera simples gerou uma voltagem absurdamente alta, enquanto no capacitor de mesmo tamanho gerou uma voltagem desprezível. O segundo fato indica que, no capacitor, é possível adicionar uma grande quantidade de carga com uma relativamente pequena variação de voltagem. O capacitor é, portanto, um dispositivo adequado para armazenar ou acumular cargas. A analogia do capacitor gigante com a célula viva é direta. No capacitor (ver Figura 9.1 A), os dois condutores metálicos correspondem ao citoplasma (a esfera interna) e ao extracelular (a capa metálica externa), enquanto o isolante entre os dois condutores corresponde à membrana celular (a célula está representada na Figura 9.1 B). As células vivas são, portanto, pequeníssimos capacitores elétricos. Dessa forma, outra estratégia desenvolvida pela natureza foi a capacidade das células em armazenarem carga elétrica, de modo a permitir sua utilização em ocasiões convenientes e impedir variações indesejáveis de voltagem na vigência de variadas perturbações elétricas. Essa propriedade de armazenamento deriva da capacitância elétrica das células, vista anteriormente, resultado da geometria particular do sistema citoplasma/membrana/extracelular, e da espessura extremamente delgada da membrana celular. Por sua vez, as cargas elétricas armazenadas na célula servem a muitas funções, entre elas: sinalização, armazenamento de energia eletroquímica, transporte através da membrana e modulação de canais iônicos.
Portanto, graças à capacitância elétrica relativamente grande da célula, a carga elétrica, na forma de íons, pode ser armazenada e manipulada, concomitantemente à geração de potenciais e variações de potencial dentro dos limites fisiológicos, ou seja, inferiores a 100 mV. Para que as células animais funcionem utilizando adequadamente os fenômenos elétricos em associação aos fenômenos químicos/bioquímicos, é necessário que a célula possa: ■ Responder de modo significativo a quantidades extremamente pequenas de carga elétrica veiculadas ao citoplasma por abertura de canais, por exemplo. Com isso, o organismo consegue sinalizar com mínimo gasto de energia ou movimentação de cargas ou, de modo equivalente, de íons. Além disso, a pequena quantidade de carga necessária para esses processos permite a rapidez de respostas, necessária à sobrevivência do indivíduo ■ Responder a essas pequenas injeções de carga com alterações de potencial de membrana suficientemente altas para sinalização e controle de outros processos, porém suficientemente baixas para não lesionarem a delicada estrutura da membrana celular ■ Armazenar a carga elétrica recebida durante tempo suficiente para interagir com outras injeções de carga (p. ex., somação de potenciais). Em condições de repouso, armazenar a carga elétrica como forma de energia potencial elétrica (ou potencial eletroquímico) ■ Permitir que as voltagens através da membrana representem diferenças de potencial elétrico da mesma ordem que as diferenças de potencial químico decorrentes dos gradientes de concentração. Dessa forma, a célula permite que a energia elétrica possa somarse à energia química com grande eficiência, fato que é rotina. Das informações anteriores fica claro que o mecanismo básico de geração de voltagens através da membrana celular é a criação de um excesso de cargas elétricas no citoplasma. Excesso de cargas positivas polariza a membrana com citoplasma positivo, enquanto um excesso de cargas negativas gera um potencial de membrana negativo. Dessa maneira, o potencial de membrana (VM) é gerado, essencialmente, por um excesso de cargas elétricas no citoplasma. A relação entre o excesso de carga (ΔQ) e o potencial elétrico do citoplasma (VM) é muito simples:
A maior parte deste capítulo visa explicar ao estudante de que modo é gerado e mantido esse excesso de cargas elétricas no citoplasma, de modo a manter a maioria das células com potenciais de membrana relativamente estáveis no tempo. Também estudaremos os processos que alteram a carga elétrica na célula e o potencial de membrana e levam ao fenômeno da excitabilidade elétrica das células. Ao final do capítulo, discutiremos também como os processos de manejo de cargas elétricas em membranas podem gerar, em epitélios, diferenças de potencial elétrico entre o meio externo e o meio interno.
Aplicação 3 Calcule a capacitância elétrica de uma célula com 10 micrômetros de diâmetro, membrana de 5 nanômetros de espessura e constante dielétrica relativa igual a 2. Solução:
ORIGEM DAS CARGAS ELÉTRICAS Nos objetos em geral existe uma igualdade quase total entre a quantidade de cargas positivas e negativas. Dessa forma, os objetos são, em condições normais, eletricamente neutros. Entretanto, dada a enorme mobilidade dos elétrons livres
que permeiam todos os sólidos, essa igualdade pode ser, e é, facilmente rompida. Por exemplo, ao andar descalço sobre um tapete em um dia seco, o corpo humano pode ganhar ou perder elétrons (dependendo do tipo de tapete), adquirindo facilmente um potencial de milhares de volts. Ao tocar uma maçaneta metálica, uma faísca pode ocorrer, descarregando rapidamente esse excesso de carga. A faísca elétrica que resulta dessa descarga veicula uma corrente elétrica tão baixa que não produz qualquer efeito nocivo ou doloroso (além de um susto), demonstrando que a quantidade de carga em excesso é muito pequena. Esse é o fenômeno da eletrização por atrito. No entanto, na água e nas soluções eletrolíticas, ou seja, nos fluidos biológicos, essa eletrização por atrito é muito menos significante, pelo fato de que a água e as soluções iônicas, sendo condutores, não permitem o desenvolvimento de diferenças de potencial elétrico significativas. A membrana celular, com sua propriedade de isolamento elétrico, permite, no entanto, a existência de diferenças de voltagem entre o citoplasma e o meio extracelular. Essa é a base para a geração e a manutenção do potencial de membrana. Outra diferença entre a geração de potenciais nas células vivas e nos objetos inanimados é que, nas células, os potenciais elétricos não se devem a um excesso ou déficit de elétrons livres, e sim a um desequilíbrio entre as concentrações de cátions e ânions no citoplasma.
PAPEL DOS CANAIS IÔNICOS NA GERAÇÃO DE EXCESSOS DE CARGA Como veremos a seguir, a abertura de um ou poucos canais iônicos, veiculando um fluxo iônico associado a uma corrente elétrica diminuta ao citoplasma, pode provocar, na célula, variações de potencial citoplasmático na faixa fisiológica. No entanto, o que move essa entrada ou saída de cátions ou ânions, e o que permite ser esse fluxo, em muitos casos, exclusivamente de cátions ou de ânions desacompanhados de seus pares? Aqui, entra em cena uma propriedade dos canais iônicos: a sua seletividade iônica. A seletividade iônica é a propriedade que permite a um dado canal iônico selecionar o sinal da carga do íon que passará por ele: cátion (+) ou ânion (–). A seletividade pode ser ainda mais restrita, permitindo ao canal selecionar entre diferentes espécies de cátions ou de ânions. É a seletividade intercatiônica ou interaniônica. Os detalhes da origem da seletividade iônica por canais serão descritos no Capítulo 10, Canais para Íons nas Membranas Celulares.
GERAÇÃO DE VOLTAGEM NA MEMBRANA Para entender como os canais iônicos podem gerar voltagem no citoplasma, consideremos uma célula hipotética (esférica e com diâmetro de 10 micrômetros), banhada em um meio aquoso contendo NaCl 140 mmol/ ℓ . Vamos supor que, no citoplasma, temos NaCl 10 mmol/ℓ. Não nos preocupemos com o mecanismo de manutenção dessa diferença de concentração entre os meios intracelular (IC) e extracelular (EC). Uma bomba iônica hipotética poderia manter indefinidamente essas concentrações, a despeito de entradas ou saídas de Na+. Vamos supor que o potencial intracelular é inicialmente igual ao potencial no EC. Ou seja, não há, inicialmente, uma diferença de potencial elétrico (DP) através da membrana. Abrindo, na membrana, um canal seletivo ao Na+, os íons Na tenderão a entrar na célula por estarem mais concentrados no meio EC (Figura 9.2 A). Como vimos no Capítulo 8, Difusão, Permeabilidade e Osmose, agirá então nos íons Na uma força difusional que impulsiona a entrada de Na+. Essa força, como vimos, é numericamente igual ao potencial de equilíbrio do Na+ (ENa). Como o canal para Na+ impede a passagem de Cl–, para cada íon Na que penetra no citoplasma, um íon Cl permanece, despareado, no meio EC. Como os íons Cl– não conseguem fluir pelo canal acompanhando o Na+, a entrada de íons Na, desacompanhados de íons Cl, gera, no citoplasma, um pequeno excesso de cargas positivas. Ao mesmo tempo, o meio EC adquire um excesso de cargas negativas, porém esse fato não é relevante para a presente discussão. À medida que mais íons Na vão entrando, o citoplasma vai se tornando cada vez mais positivo, como mostra a Figura 9.2 C. A consequência do aumento da positividade do citoplasma é o aparecimento de uma força elétrica orientada do citoplasma para o meio EC, que freia progressivamente a entrada de Na+. Até quando os íons Na continuarão a entrar? Quando a força elétrica repulsiva, orientada para fora da célula, igualase à força difusional para dentro, o fluxo de Na+ anulase. Nessa voltagem, o íon Na atinge o equilíbrio no interior do canal.
Figura 9.2 ■ Representação esquemática de células hipotéticas permeáveis somente a Na+ (vermelho) ou a K+ (azul). A e B. A entrada de Na+ desacompanhada de Cl– e a saída de K+ desacompanhada de Cl– geram separação de cargas entre o citoplasma e o meio extracelular. C e D. Os íons Na e K atingem o equilíbrio nos respectivos canais, gerando uma voltagem no citoplasma, os potenciais de equilíbrio ENa e EK, respectivamente. E e F. O canal para Na+ em equilíbrio pode ser representado por uma bateria com o polo positivo orientado em direção ao citoplasma e com uma força eletromotriz (FEM) = ENa. O canal para K+ em equilíbrio pode ser representado por uma bateria com o polo positivo orientado em direção ao meio extracelular e com uma FEM = EK.
A voltagem que anula a entrada de Na+ movida pela diferença de concentração (força difusional) e equilibra o íon Na no interior do canal nada mais é do que o potencial de equilíbrio do Na+, dado pela equação de Nernst, e designado por ENa. Neste caso, temos:
A Figura 9.2 C mostra a situação de equilíbrio, na qual a força difusional e a força elétrica se anulam. Nesta condição, o potencial de membrana (VM) é igual a ENa: Na condição de equilíbrio, VM = ENa = +68,0877 mV Como indica a Figura 9.2 C, as forças difusional e elétrica são iguais e opostas. A condição de equilíbrio pode manterse indefinidamente. O resultado desse processo pode ser visto como sendo uma transformação de energia potencial química em energia potencial elétrica. Esse é também o princípio de operação das baterias. Ao ser atingido o potencial de equilíbrio do Na+, a voltagem através da membrana estabilizase. O excesso de cargas positivas (ΔQ) (neste caso, um excesso de íons Na) associado ao potencial VM (+68,0877 mV) pode ser calculado usando a equação do capacitor e o valor da capacitância calculado na Aplicação 1. Esse valor corresponde a 1 Na+ despareado para cada 6.680 Na+ pareados com ânions Cl. Esse cálculo é demonstrado na Aplicação 4.
Aplicação 4 Calcule a fração de carga despareada em uma célula com 10 micrômetros de diâmetro e potencial citoplasmático de +68,0877 mV, contendo NaCl 10 mmol/ℓ. Solução: ΔQ = C × ΔV = (1,11 × 10–12 farads) × (68 × 10–3 volts) = 7,55 × 10–14 coulombs Esse excesso de carga corresponde a um excesso do número de íons Na em relação a íons Cl, dado por: ΔQ/q = (7,55 × 10–14 coulombs)/(1,602 × 10–19 coulombs/íon) = 4,7 × 105 íons Na, em excesso no citoplasma. O número de íons Na+ (ou Cl–), NNa/Cl, inicialmente presentes na célula antes da abertura do canal para Na , era: +
NNa/Cl = [Na+] × (volume da célula) × NAvogadro NNa/Cl = (10 moles/m3) × (5,23 × 10–16 m3) × (6,02 × 1023 íons/mol) = 3,14 × 109 íons Na (ou Cl) Isso significa que a quantidade de íons Na que entrou é apenas (3,14 × 109)/(4,7 × 105) = 6.680, ou seja, 1/6.680 avos da quantidade inicial de Na+ presente na célula. Esse cálculo reforça nossa afirmação anterior de que um mínimo desequilíbrio (neste caso, 1 íon Na desbalanceado, para 6.680 íons Na pareados com ânions Cl) entre o número de cargas positivas e negativas causa variações importantes do potencial de membrana e suficientes, neste exemplo, para interromper a entrada de íons Na no citoplasma. O canal para Na+, na sua condição de equilíbrio, pode ser representado eletricamente por meio de uma bateria com o polo positivo voltado para o citoplasma, como mostra a Figura 9.2 E. A força eletromotriz (FEM) da bateria é igual a ENa. Da mesma forma como fizemos para o íon Na, podemos agora inserir, em outra célula hipotética, de mesmo volume que a anterior, um canal seletivo aos íons K. O meio EC é agora KCl 5 mmol/ℓ, e o citoplasma contém KCl 140 mmol/ ℓ (Figura 9.2 B). O efeito da abertura do canal para K+ é permitir a saída de íons K, mais concentrados no citoplasma que no EC, e movidos pela sua diferença de concentração. Os íons Cl, acompanhantes do K+, não podem sair da célula e começam a se acumular no citoplasma, gerando, nesse local, um excesso de cargas negativas que vai progressivamente aumentando à medida que mais íons K, despareados, vão saindo do citoplasma em direção ao meio EC. Analogamente (mas opostamente) ao que ocorre com o canal para Na+, o efeito da abertura do canal para K+ é tornar o citoplasma progressivamente mais negativo, até que a força elétrica agente no K+, e que atrai o K+ para dentro da célula, anule a força difusional que tende a mover o K+ para fora da célula. Ao ser atingido o estado de equilíbrio do K+ no interior do seu canal, as forças difusional e elétrica serão iguais e de sentidos opostos. Como mostra a Figura 9.2 D, a força difusional é orientada para fora, e a força elétrica, para dentro da célula. Nesta condição de equilíbrio, o potencial de membrana (VM) igualase ao potencial de equilíbrio do potássio (EK):
Assim como no caso do Na+, o canal para K+ pode ser representado eletricamente por uma bateria voltada para fora da célula, com FEM = EK (Figura 9.2 F). Além disso, da mesma forma como foi feito para o canal para Na+, o excesso de cargas negativas, causado pela saída de íons K, pode ser calculado.
Aplicação 5 Uma célula hipotética, esférica, tem diâmetro de 10 micrômetros. A célula contém inicialmente KCl 140 mmol/ ℓ e está em um meio contendo KCl 5 mmol/ ℓ . Calcule quantos íons K devem sair da célula (desacompanhados de Cl) para que o potencial de membrana atinja o valor de –85,97 mV. Compare com a quantidade de íons K inicialmente presentes na célula e determine a proporção entre íons K livres e íons K pareados com Cl–. Solução: ΔQ = CM × ΔV = (1,11 × 10–12 farads) × (0,08597 volts) = 9,54 × 10–14 coulombs Número de íons K que devem sair = ΔQ/q = (9,54 × 10–14 coulombs)/(1,6 × 10–19 coulombs/íon) = 596.250 íons NK = [K+] × (volume celular) × (Navogadro) = (5 moles/m3) × (5,23 × 10–16 m3) × (6,02 × 1023) = 1,57 × 109 íons K A relação é (1,57 × 109)/(596.250) = 2.633 íons Na pareados para cada íon Na despareado.
APROXIMAÇÃO DA CÉLULA REAL As células vivas contêm, nas suas membranas, muitos tipos de canais iônicos, além de transportadores, bombas etc. Para tornar nosso modelo um pouco mais realista, vamos analisar o que acontece quando, na membrana celular, existem canais para Na+ e para K+ simultaneamente. Em uma primeira etapa, vamos colocar as células contendo canais para Na+ e canais para K+ em um mesmo meio, uma mistura de: NaCl = 140 mmol/ℓ + KCl = 5 mmol/ℓ. As concentrações e composições iônicas no citoplasma são idênticas aos modelos anteriores. Cada célula, contendo seu canal para Na+ ou de K+ respectivamente, está em equilíbrio, no seu respectivo potencial de equilíbrio: VM(Na) = ENa e VM(K) = EK. A segunda etapa em direção ao modelo mais realista consiste em unir as duas células, ou fundilas, permitindo uma comunicação livre entre seus citoplasmas. Com a fusão, as duas células passam a compartilhar um mesmo citoplasma e, necessariamente, deverão ter o mesmo potencial elétrico intracelular (Figura 9.3 A). Determinar o valor desse potencial comum é a nossa tarefa a seguir. Imediatamente ao ocorrer a fusão, as duas células (com canais para Na+ e com canais para K+) ainda têm polaridades elétricas opostas e composição química original. A célula do Na+é positiva, enquanto a do K+ é negativa. Dessa forma, ao darse a fusão, uma movimentação intensa de cargas ocorrerá entre os dois citoplasmas. Os cátions em excesso fluirão da célula do Na+ para a célula do K+, e ânions em excesso fluirão da célula de K+ para a célula do Na+. Em um intervalo de tempo muito curto (possivelmente microssegundos), ocorre nova estabilização de voltagem. A voltagem comum de estabilização, ou seja, o novo potencial de membrana (VM) é menos positiva do que a ENa e menos negativa do que EK, tendo, portanto, um valor intermediário entre ENa e EK (+68 > VM > –85), por exemplo, –70, –60, –50 mV, como mostra a Figura 9.3 A. O balanço de forças em cada canal é também profundamente alterado com a fusão das duas células. No canal de + Na onde havia equilíbrio entre a força elétrica (Felétrica = DP) e a força difusional (Fdifusional = ENa), a força elétrica agente no Na+ agora é menor que a força difusional (ENa) e, portanto, insuficiente para equilibrar os íons Na no interior do canal. O resultado é que a força difusional, que continua sendo numericamente igual a ENa, supera a força elétrica. Como consequência, os íons Na passam a ter fluxo resultante penetrando no citoplasma, movidos agora por sua força movente (FMNa):
Um processo análogo, porém oposto, ocorre no canal para K+. A força elétrica, agente no K+, agora é menos negativa que EK. O resultado é que a força difusional que age no potássio, orientada para fora da célula, vence a força elétrica que foi diminuída pela fusão das células. O equilíbrio de forças nos íons K é rompido, e o K+ passa a “sentir” uma força movente (FMK), orientada para fora da célula e dada por:
A nova célula, resultante da fusão, contém agora dois tipos de canais na sua membrana: um canal para Na+ e um canal para K+, e um potencial elétrico citoplasmático a ser determinado (ver Figura 9.3 A). A célula tem agora um potencial citoplasmático estável, mas, nos canais, os íons não estão mais em equilíbrio. No canal para Na+ ocorre um fluxo de íons Na para dentro da célula, e no canal para K+, um fluxo de íons K para fora. Esses fluxos iônicos veiculam correntes elétricas, respectivamente, iNa e iK. Como o potencial do citoplasma é estável, a quantidade de carga no citoplasma é constante, e, consequentemente, a corrente iNa entrando tem, necessariamente, de ser igual e de sentido contrário à corrente iK, saindo da célula: iNa = –iK
Figura 9.3 ■ A. Etapa intermediária entre a fusão das células Na+ e K+ , mostrando o novo esquema de forças difusional e elétrica nos íons Na e K. O potencial de membrana adquire um valor intermediário entre ENa e EK e, em cada canal, a força difusional vence a respectiva força elétrica. A consequência é um desbalanço de forças, com entrada de íons Na e saída de íons K. B e C. Após adquirido o potencial de membrana estável (VM), as forças difusional e elétrica em cada canal somamse, originando as forças moventes respectivas.
Essa é uma situação estacionária (que não se altera no tempo), porém não mais de equilíbrio. A entrada de íons Na na célula pode continuar indefinidamente, porque a bomba Na+/K+ ejeta continuamente íons Na para fora. O mesmo raciocínio
vale para a saída de íons potássio, que são continuamente repostos no citoplasma pela bomba Na+/K+. Cada corrente iônica é movida pela sua respectiva força movente e é dada pelas seguintes equações (Figura 9.4 A):
Observe que, agora, usamos um mesmo valor de VM no cálculo tanto das correntes de Na+ como nas de K+. Isso decorre do fato de que a nova célula contendo os dois tipos de canais tem um único citoplasma e, portanto, um único potencial de membrana. Como as correntes iNa e iK são iguais e opostas, podemos igualar os lados direitos das equações anteriores:
Figura 9.4 ■ A. Circuito elétrico equivalente da célula, contendo na membrana canais para Na+ e para K+ . B. Redução do circuito elétrico de A. O circuito reduzido em B equivale ao circuito de A.
Rearranjando os termos, obtemos:
AplicaçÃo 6 Calcule o potencial de membrana de uma célula contendo canais para Na+ e para K+ na sua membrana e banhada em um meio contendo Na+ = 140, K+ = 5 e Cl– = 145 mmol/ℓ. As concentrações intracelulares de Na+, K+ e Cl– são, em milimol/l: Na = 10, K = 140 e Cl = 150. Sabese que nessa célula a condutância da membrana ao K+ é 20 vezes maior que a condutância ao Na+. SoluçÃo:
Como as condutâncias aparecem no numerador e no denominador, seus valores reais não influenciam o resultado. Apenas é necessário colocar seus valores relativos; neste exercício, GK/GNa = 20. Nas células nervosas, usadas comumente como exemplo, efetivamente a relação entre as condutâncias GNa e GK em repouso é próxima de GK/GNa = 20. Essa grande diferença devese não ao fato de a condutância unitária dos canais para K+ ser 20 vezes maior que dos canais para Na+, e sim ao fato de haver um número maior de canais para K+ ativados, na condição de repouso. O potencial de membrana (VM) calculado na equação 9.12 e na Aplicação 6 é um potencial estacionário, ou seja, não varia com o tempo, indicando que não está ocorrendo uma variação temporal da quantidade de cargas livres no citoplasma. É o chamado potencial de repouso da membrana (EM). Muitos estudantes têm dificuldade em entender a diferença entre potencial de repouso (EM) e potencial de membrana (VM). VM é o potencial elétrico do citoplasma, medido com referência ao meio extracelular, ou seja, VM = Vcitoplasma – Vextracelular. VM é o potencial citoplasmático (potencial de membrana) em qualquer condição, esteja a célula em repouso ou durante um potencial de ação, ou durante uma perturbação artificial do potencial de membrana. Por outro lado, EM é um caso particular de VM, quando a célula encontrase em estado estacionário elétrico, ou seja, quando a célula está em repouso elétrico. No repouso elétrico, o potencial intracelular não está variando no tempo, e a célula não está sendo perturbada eletricamente. Assim, EM é sempre igual a VM, porém VM nem sempre é igual a EM. Dessa forma, o potencial de membrana definido e calculado pela equação 9.12 é, na realidade, EM, uma vez que é válido apenas na condição de estado estacionário (ou repouso), quando a corrente de Na+ entrando é igual e oposta à corrente de K+ saindo, e, consequentemente, o potencial VM não varia no tempo. Por essa razão, costumase colocar a equação na seguinte forma:
POTENCIAL DE MEMBRANA O potencial de membrana é em geral definido como sendo o potencial do citoplasma tomado como referência ao potencial do EC (VM = Vic – Vec). Normalmente, o potencial do EC é tomado como zero; dessa forma, VM = Vic. Nem sempre, no entanto, o potencial do EC é zero. No caso da pessoa andando sobre o tapete, o potencial do EC pode ser milhares de volts. Assim como no caso de um pássaro pousado sobre um fio de alta tensão. Desde que o pássaro não toque outro condutor, ele não será afetado. Em alguns países existem proteções especiais impedindo que um pássaro, pousado no fio, possa tocar com o bico qualquer outra região condutora.
Aplicação 7 Um pássaro está pousado em um fio de +10.000 volts. Sabendo que suas células nervosas têm uma DP transmembrana de 90 mV com o citoplasma negativo em relação ao EC, determine qual o potencial citoplasmático absoluto nessas células e nessa condição. Qual o potencial de membrana VM? Solução: O potencial citoplasmático absoluto é 10.000 – 0,090 = +9999,91 volts. O potencial de membrana é: VM = Vic – Vec = 9.999,91 – 10.000 = –0,09 volts. O citoplasma, sendo um meio condutor, permite a livre acomodação das cargas livres em busca da configuração de menor energia. Como as cargas se repelem e não podem atravessar livremente a membrana, elas se localizam nas bordas do citoplasma. Na superfície interna da célula, há uma camada de cargas negativas que atrai cargas positivas do meio extracelular. Dessa maneira, junto à face externa da membrana, há uma camada de cargas positivas. Isso ocorre mesmo que o potencial do meio EC seja zero.
CÁLCULO DAS FORÇAS MOVENTES PARA O Na+ E PARA O K+ NO POTENCIAL DE REPOUSO A obtenção de um valor numérico para o potencial de repouso da célula, no exemplo anterior, nos permite calcular também as forças moventes para os íons sódio e potássio, através da membrana. FMNa = (–78,634 – ENa) = [–78,634 – (+68,0878)]= = –146,7218 mV (IN) FMK = (–78,634 – EK) = [–78,634 – (–85,97)] = = +7,336 mV (OUT) Fazendo a razão entre as forças moventes para o sódio e para o potássio, obtemos: FMNa/FMK = (146,7218/7,336) = 20,0002 Isso mostra ser 20 essa razão. Sabemos que, no exemplo analisado, as correntes de Na+ e de K+ têm o mesmo valor numérico. No entanto, como a condutância da membrana ao Na+ é 20 vezes menor que ao K+, a força movente deve ser 20 vezes maior no Na+ do que no K+.
PERTURBAÇÕES DO POTENCIAL DE REPOUSO Tão importante como entender a origem do potencial de repouso da célula é compreender de que modo as células reagem às perturbações do potencial de membrana. As células vivas estão constantemente sujeitas a processos que modificam suas características elétricas. Bombas e transportadores eletrogênicos criam desequilíbrios de carga no citoplasma. Canais iônicos podem gerar, e normalmente geram, correntes despolarizantes ou hiperpolarizantes. Nos receptores sensoriais, processos físicos oriundos do meio ambiente são transformados em perturbações elétricas (potenciais geradores) que dão origem a sinais elétricos propagados (potenciais de ação) que veiculam e processam uma infinidade de informações. Dessa forma, os seres vivos podem interagir com o ambiente de modo a garantir sua sobrevivência e a perpetuação de sua espécie. Em muitos tecidos, as células encontramse quase sempre em estado de repouso elétrico, ou seja, seus potenciais de membrana flutuam pouco em torno de um valor médio. Exemplos são as células epiteliais da pele. Contudo, em outros tecidos, a rotina da célula é uma constante modificação do potencial de membrana. Nas células do nodo sinoatrial do coração, o potencial de membrana oscila ritmicamente, determinando a frequência de contração do coração. Cada vez mais estão sendo reconhecidos, como excitáveis, tecidos supostos anteriormente como não excitáveis. Existe atualmente um consenso de que praticamente todos os tipos de células possuem certo grau de excitabilidade. Assim, as células beta do pâncreas atualmente são consideradas excitáveis, demonstrando claramente potenciais de ação relacionados à secreção de insulina. De modo geral, uma célula é dita excitável quando responde de modo adequado e consistente a perturbações de seu potencial de membrana. Além disso, a resposta de uma célula excitável, a determinadas perturbações, ativa uma determinada função.
Apesar de todas as células terem maior ou menor grau de excitabilidade, as células musculares e as células nervosas fazem da excitabilidade a sua “rotina”, ou seja, são os protótipos das células excitáveis. Dessa forma, tão importante quanto compreender a origem do potencial de repouso é entender como as células respondem às perturbações de seu potencial de membrana, sejam elas naturais ou fisiológicas, ou perturbações artificiais usadas na investigação científica, usando ferramentas da eletrofisiologia. Para entender como uma célula reage a estímulos elétricos, é muito útil representar a membrana por meio de um circuito elétrico convencional. Dessa forma, a maioria dos estímulos e respostas podem ser descritos usando o formalismo da eletricidade clássica. Quando a célula é representada por um circuito elétrico, dizse que esse é o circuito elétrico equivalente da célula. Na Figura 9.4 A está o circuito elétrico equivalente da célula contendo os canais para Na+ e K+. Como existe um fluxo de cargas entrando pelos canais para Na+ e saindo pelos canais para K+, é fundamental colocar resistências elétricas (RNa e RK) em série com as forças eletromotrizes (FEM) de cada canal. Usando o circuito elétrico equivalente da Figura 9.4 A, podemos calcular o potencial de membrana por um processo independente daquele usado no modelo biológico. No modelo biológico usamos o conceito de forças moventes. Aqui, no entanto, não podemos lançar mão dos conceitos usados no modelo biológico e temos de nos ater ao circuito elétrico convencional. Ou seja, não se podem “misturar” os dois modelos. A corrente circulante, no sentido antihorário, é:
Essa corrente pode ser estimada a partir dos valores calculados para ENa e EK e da relação entre as resistências RNa e RK. Como vimos, nesse cálculo interessa apenas a relação entre as resistências (ou entre as condutâncias). Assim, podemos fazer RNa= 20 e RK =1, mantendo a relação 20:1.
Vamos então verificar que a corrente circulante vale 7,336 unidades arbitrárias de corrente (u.a.c.). O potencial na parte inferior de cada ramo do circuito corresponde a VM e é igual, em cada canal, à soma da voltagem da bateria (ENa ou EK) com a queda ôhmica em cada resistência (RNa × i ou RK × i). VM = ENa + RNa × 7,336 = 68,0877 – (20 × 7,336) = –78,632
Na Figura 9.4 B temos o que se denomina uma redução do circuito elétrico da Figura 9.4 A. Isso significa que o circuito da Figura 9.4 B tem as mesmas propriedades que o circuito da Figura 9.4 A. A vantagem é que o circuito reduzido é mais simples. No circuito elétrico equivalente reduzido, representado na Figura 9.4, a FEM da bateria é numericamente igual ao potencial de repouso EM. A resistência elétrica (RM) engloba todas as vias condutivas da membrana. Na célulamodelo contendo apenas canais para Na+ e para K+, a resistência RM é a soma em paralelo de RNa e RK. Por sua vez, a capacitância elétrica da membrana (CM) no circuito equivalente é a própria capacitância elétrica da membrana. Dessa forma, os componentes do circuito equivalente reduzido (Figura 9.4 B) podem ser resumidos como: Bateria: FEM = EM com polo positivo voltado para fora Resistência: RM = soma em paralelo de RNa e RK = (RNaRK)/(RNa + RK) A resistência RM é considerada como sendo a resistência interna ou intrínseca da bateria EM Capacitância: CM = εεo(área da membrana)/(espessura da membrana) Como está indicado na Figura 9.4 B, na célula em repouso elétrico, a bateria EM e sua resistência em série (RM) estão em circuito aberto. Ou seja, não há corrente fluindo pelo ramo EM–RM. A DP através do ramo EM–RM é igual a EM, ou seja, o próprio potencial de repouso. O capacitor, em paralelo com o ramo EM–RM, está carregado com uma voltagem
igual a EM sendo o polo interno negativo. O sistema, como mostrado na Figura 9.4 B, pode permanecer indefinidamente nesse estado. É na representação da Figura 9.4 B que temos condições de descrever as respostas da membrana aos diferentes tipos de perturbações elétricas. Em condições fisiológicas, embora existam muitas formas diferentes de perturbação elétrica da célula, todas elas convergem, essencialmente, para a produção de uma corrente transmembrana e/ou uma despolarização da membrana. Por exemplo, na abertura de canais sinápticos excitatórios, ativados por um mediador químico, o evento final é a despolarização da membrana por entrada de cátions no citoplasma, o que será mais discutido no item sobre variações no potencial de membrana em células excitáveis. Portanto, é importante compreender de que maneira a aplicação de uma corrente elétrica perturba a célula. Primeiramente, no entanto, é necessário entender como pode ser aplicada uma corrente elétrica na célula e qual o tipo de corrente que pode, efetivamente, perturbar uma célula. Essencialmente, uma corrente aplicada através da membrana vai injetar ou retirar cargas positivas no citoplasma, produzindo, respectivamente, uma despolarização ou hiperpolarização da membrana celular. O esquema usual para representar uma perturbação por corrente é mostrado na Figura 9.5 A. Uma micropipeta, conectada a uma fonte de corrente, é inserida no citoplasma da célula, impalando a célula. O equivalente fisiológico da micropipeta injetando carga é um canal iônico aberto na membrana, permitindo a entrada de cátions no citoplasma. Aplicando uma corrente que injeta cargas positivas no citoplasma, ocorrerá uma diminuição da negatividade intracelular, produzindo uma “desnegativação” ou, mais corretamente, uma despolarização da membrana. A membrana, que estava inicialmente polarizada com uma voltagem igual a EM, passa a ter agora uma voltagem menos negativa que EM. No circuito elétrico equivalente, esse processo corresponde a unir os dois polos da perna EM–RM com a fonte de corrente, como indica a Figura 9.5 B.
Figura 9.5 ■ Injeção de corrente através de uma micropipeta, despolarizando a membrana. A. Modelo biológico. B. Circuito elétrico equivalente da célula/membrana. Após atingido o estado estacionário, o novo potencial de membrana será dado por: VM = EM – RM × Iinj.
Existem duas maneiras usuais de entender por que a injeção de cargas positivas no citoplasma despolariza a membrana. Uma delas usa o modelo biológico, e a outra, o modelo elétrico. No modelo biológico, no qual desenhamos a célula, a membrana e a pipeta injetora de cargas, o potencial de repouso depende, em última análise, do excesso de cargas negativas no citoplasma. Não existem aqui baterias, resistências elétricas ou capacitores. Um fato que deve ser lembrado é que todos os tipos de potencial elétrico intracelular dependem de um excesso de cargas positivas ou negativas no citoplasma. Portanto, se a célula tem um potencial de membrana negativo no repouso, isso significa que há um excesso de cargas negativas no citoplasma. Ao injetarmos, com a pipeta, cargas positivas no citoplasma, uma parte do excesso de cargas negativas será anulada e, portanto, o excesso de cargas negativas será menor. O resultado é uma diminuição da negatividade do citoplasma e a despolarização da membrana. No modelo biológico, esse processo é intuitivo. Porém, não nos permite quantificar adequadamente os efeitos da corrente injetada. Quando uma fonte de corrente é ligada, passando a injetar uma corrente constante no citoplasma, observase que a célula não se despolariza instantaneamente, e sim vai, lentamente, diminuindo sua negatividade, para finalmente se estabilizar em outro valor de potencial, menos negativo (p. ex., passa de –80 mV para –60 mV). A partir desse momento, enquanto perdurar a corrente injetada, o potencial de
membrana mantémse constante. Ao ser desligada a corrente, o potencial de membrana não volta instantaneamente ao valor original, mas volta lentamente seguindo uma curva inversa àquela da despolarização. Outro ponto importante é o destino da corrente injetada pela pipeta. Uma parte das cargas positivas injetadas na célula permanece no citoplasma, enquanto outra parte vaza para fora da célula, através das vias disponíveis na membrana. No entanto, por que uma parte das cargas vaza para fora? Qual a fração das cargas injetadas que se acumula na célula e qual fração vaza para fora? Vamos usar o modelo elétrico (Figura 9.5 B), paralelamente ao modelo biológico, (ver Figura 9.5 A), para tentar entender o que acontece na vigência de uma injeção de cargas no citoplasma da célula. O excesso de cargas negativas que existe, inicialmente, na célula em repouso está localizado no citoplasma e, portanto, no capacitor. Ao ser ligada a fonte de corrente, uma parte da corrente injetada no citoplasma (ou no circuito) anulará uma fração do excesso de cargas negativas acumuladas anteriormente no citoplasma (ou no capacitor), diminuindo a sua negatividade. Porém, outra parte das cargas injetadas não permanece no citoplasma (ou no capacitor) e vaza pelas vias de vazamento disponíveis na membrana (ou vaza através do ramo EM – RM do circuito). À medida que passa o tempo, o citoplasma (ou capacitor) vai ficando menos negativo, a diferença entre VM e EM vai aumentando, e, devido a esse fato, o ritmo de vazamento de cargas para fora da célula vai aumentando também. Com isso, a fração da corrente que se acumula no citoplasma (ou no capacitor) diminui, e a fração que vaza pelos canais da membrana (pelo ramo EM – RM), consequentemente, aumenta. Quando a corrente de vazamento igualase à corrente injetada, a quantidade de carga entrando na célula (ou no circuito), a cada segundo, iguala se à quantidade saindo por vazamento. Não há mais acumulação de carga no citoplasma (ou no capacitor), e sua voltagem permanece constante (não há mais variação de VM). A partir desse momento, enquanto a fonte estiver injetando uma corrente constante, VM se manterá constante, indefinidamente (Figura 9.6).
Figura 9.6 ■ A imposição de uma corrente em degrau (a corrente ou é zero ou passa, instantaneamente, a um valor constante diferente de zero) através de uma micropipeta, injetando cargas positivas no citoplasma a um ritmo constante (A), resulta em uma resposta de voltagem (B) do tipo exponencial. A interrupção da corrente também resulta em uma resposta exponencial, aproximadamente inversa.
A porção da corrente injetada que se acumula no citoplasma (ou no capacitor) recebe o nome de corrente capacitiva, enquanto a parte da corrente injetada que vaza pela membrana (ou pelo ramo EM – RM) é a corrente resistiva. No início da injeção de cargas, a corrente resistiva é nula (não há diferença entre VM e EM), e a corrente capacitiva é máxima. No estado estacionário, quando VM atinge seu valor constante, a corrente capacitiva é nula, e a corrente resistiva é máxima. O modelo elétrico, no entanto, permitenos avançar ainda um pouco mais. Se a corrente injetada for I, a despolarização final da membrana, quando toda a corrente I estiver vazando para fora da célula, será ΔV = I × RM, e o novo potencial de
membrana, nesse estado estacionário, será VM = (EM – ΔV) = (EM – RMI). A corrente capacitiva (iC) entre o início e o fim do processo não é constante e é dada, a cada instante, pelo ritmo de variação do excesso de carga no citoplasma:
Ou seja, enquanto VM estiver variando, haverá corrente capacitiva. A corrente resistiva (iR) também varia ao longo do processo de despolarização e é dada por iR = (VM – EM)/RM. Então, sempre que o potencial de membrana VM for diferente de EM, existirá corrente resistiva.
Aplicação 8 Desejase manter o potencial de membrana de uma célula no valor de –95 mV. O potencial de repouso é –60 mV, e a resistência global da membrana é 15 megaohm. Qual deverá ser a corrente injetada no citoplasma e qual o seu sentido? Solução: ΔV = I × RM, em que I = ΔV/RM = (0,035 V)/(15 × 109 ohms) = 2,33 × 10–9 amperes = 2,33 nanoamperes, com cargas positivas saindo do citoplasma para o extracelular.
MODELO HIDRÁULICO DO SISTEMA CÉLULA/MEMBRANA Para facilitar a compreensão dos fenômenos descritos anteriormente, um modelo hidráulico do sistema célula/membrana é bastante eficiente. Na Figura 9.7 está representado o modelo hidráulico de uma célula com sua membrana. O modelo hidráulico consiste em dois reservatórios cilíndricos, conectados por um tubo. O reservatório EM tem seu nível fixado automaticamente no valor de EM. O nível de água em EM é numericamente igual ao potencial de repouso da célula e não varia. No reservatório VM, o nível de água é sempre igual ao potencial de membrana VM e pode variar de acordo com as perturbações ou outros fatores. As perturbações são sempre feitas no reservatório VM. No modelo hidráulico podemos ter dois tipos de perturbações: injeções de água e retiradas (ou aspirações) de água. Os dois reservatórios são unidos por um tubo (RM) cuja resistência hidráulica é RM. Como dito anteriormente, o nível EM é mantido fixo, automaticamente, em um valor abaixo do nível zero. É importante notar que a nomenclatura vale tanto para a identificação do reservatório como para o valor numérico do parâmetro representado. O nome do reservatório está em negrito. As correspondências são as seguintes:
Figura 9.7 ■ Modelo hidráulico do sistema membrana/citoplasma. A. Modelo hidráulico da célula sem perturbações, em que o potencial de membrana (VM) é igual ao potencial de repouso (EM). B. Modelo hidráulico da célula perturbada por uma injeção de corrente constante.
■ VM = valor numérico do nível de água no reservatório VM ■ EM = valor numérico do nível de água no reservatório EM ■ RM = valor numérico da resistência hidráulica do tubo RM. As analogias com a célula/membrana são as seguintes: ■ Nível de água EM (fixo) no reservatório EM corresponde ao potencial de repouso da membrana EM (fixo) ■ Nível de água VM (variável) no reservatório VM corresponde ao potencial de membrana VM (variável) ■ Resistência hidráulica (RM) do tubo de ligação corresponde à resistência elétrica (RM) da membrana ■ Quantidade de água (Q) em excesso (ou déficit) no reservatório VM, acima (ou abaixo) do nível EM, corresponde à quantidade de carga positiva (ou negativa) em excesso no citoplasma ■ Área da base (A) do reservatório VM corresponde à capacitância elétrica da membrana (CM) ■ Fluxo de água (I) lançado sobre VM corresponde à corrente elétrica (I) injetada no citoplasma por uma micropipeta ou por um canal iônico ■ Fluxo de água (iR) através do tubo de ligação entre VM e EM corresponde à corrente de vazamento através da membrana ou corrente resistiva (iR) ■ Ritmo de acúmulo de água em VM(A[dVM/dt]) corresponde ao ritmo de acúmulo de carga no citoplasma ou corrente capacitiva, iC = CM(dVM/dt) ■ Elevação do nível de água em VM corresponde à despolarização da membrana (o nível aproximase do nível zero) ■ Descida do nível de água em VM corresponde à hiperpolarização da membrana (o nível afastase do nível zero).
No modelo hidráulico da Figura 9.7, é fácil perceber que, sempre que o sistema é deixado em repouso (isso equivale ao repouso elétrico da célula), o nível VM é igual ao nível EM. Quem se encarrega de igualar os níveis, no estado de repouso, é o tubo de ligação (RM) entre os dois reservatórios. Vamos agora descrever o que acontece quando um fluxo de água constante, designado por I, é lançado sobre o reservatório VM. (Esse fluxo de água corresponde à corrente elétrica I.) Vamos impor a condição de que o fluxo I pode ter apenas dois valores: ou é zero ou passa, instantaneamente, para um valor constante igual a I. Ao ser iniciado o fluxo de água sobre o reservatório VM, ocorrerá uma elevação do nível da água (VM), aproximando o nível ao valor zero e, portanto, tornando o nível menos negativo. A elevação do nível de água em VM corresponde a uma despolarização da membrana. Tão logo o nível VM suba acima do valor EM, ocorrerá um desnível de água entre os reservatórios VM e EM e, como consequência, ocorrerá um fluxo de água de VM para EM através do tubo de ligação RM. Na célula, isso equivale a haver uma diferença entre o potencial de membrana (VM) e o potencial de repouso (EM). Essa diferença não é fácil de visualizar no modelo biológico ou no circuito elétrico equivalente da célula. No modelo hidráulico, no entanto, ela é evidente. O fluxo de água (iR) através do tubo de ligação (RM), que corresponde à corrente de vazamento na célula, decorre da diferença de pressão causada pelo desnível entre VM e EM e é diretamente proporcional a esse desnível de água e inversamente proporcional à resistência hidráulica do tubo de ligação:
Percebese claramente na equação 9.17 que, quando VM = EM, o fluxo iR é igual a zero. Mantendose constante o fluxo de água sobre o reservatório VM, o nível continua a subir, porém cada vez mais lentamente (ver também Figura 9.6). Por que a velocidade de elevação do nível cai com o tempo? À medida que o nível VM sobe, aumenta o desnível (VM – EM) entre os dois reservatórios, e o ritmo de vazamento (fluxo iR) aumenta. Como o fluxo I da torneira é constante, à medida que o vazamento aumenta, sobra menos água para encher o reservatório VM. Assim, cada vez mais água vaza de VM para EM, e cada vez menos água sobra para encher VM. A taxa de subida do nível em VM é igual a dVM/dt a cada instante. A variação da quantidade de água (Q) acumulada no reservatório VM é dQ/dt = A(dVM/dt). A correspondência entre o que ocorre no modelo hidráulico e na célula é:
Como vimos, o fluxo da torneira é mantido constante e igual a I. Pelo princípio da conservação (da água ou das cargas elétricas), o ritmo de variação da quantidade de água em VM ou do excesso de carga elétrica no citoplasma é sempre igual a um fluxo que entra (corrente ou fluxo de água) menos um fluxo que sai:
Na equação 9.19, o ritmo de subida da água em VM é dVM/dt. Contudo, à medida que VM sobe, a diferença (VM – EM) aumenta e, portanto, subtrai mais valor de I, que tem valor fixo. O resultado é uma diminuição progressiva de (dVM/dt). As equações anteriores são equações diferenciais, cuja solução é equivalente tanto para o modelo hidráulico como para a membrana celular:
O produto RMA é a constante de tempo do sistema hidráulico, e o produto RMCM é a constante de tempo da membrana celular.
Aplicação 9 Explique o significado da constante de tempo: qual o valor de ΔVM quando t = RMCM? Solução: Quando t = RMCM, o termo dentro da exponencial é –1. O valor de “e” é 2,718. Sabese que e–1 = 1/e = 1/(2.718) = 0,37. Por outro lado, 1 – 0,37 = 0,63. Assim, quando t = RMCM, ΔVM = I × RM × 0,63, ou 63% da corrente máxima final.
Aplicação 10 Em uma célula hipotética com diâmetro de 10 micrômetros, capacitância = 1,11 × 10–12 F e RM = 10 gigaohms, abrese na membrana um canal iônico veiculando ao citoplasma uma corrente de 5 picoamperes. O canal permanece aberto. O potencial de repouso da célula é –70 mV. Qual deverá ser o potencial de membrana após 5 e após 15 milissegundos? Solução: A constante de tempo dessa célula é: RMCM = (10 × 109)(1,11 × 10–12) = 11,1 ms. Colocando os valores numéricos na equação 9.20, temos: ΔVM = (5 × 10–12 amperes)(10 × 109 ohms)(1 – e–K), em que K = t/RC. Calculando o valor de K em t = 5 e 15 ms:
Calculando o valor dentro do colchete da equação 9.20:
Examinando a equação 9.20, vemos que, em t = 0, ΔVM = 0, e em t = infinito, ΔVM = I × RM. Entre t = 0 e t = infinito, podemos descrever, rigorosamente, a evolução de VM no tempo usando a equação 9.20. Porém, mesmo qualitativamente, ou seja, sem muito rigor, podemos ter uma ideia razoavelmente boa do tipo de curva que descreve a evolução de VM. Observando a equação 9.19, podemos afirmar que o maior valor de dVM/dt é quando VM = EM, ou seja, no instante t = zero. Nesse caso, dVM/dt = I/A. A partir do instante zero, dVM/dt vai diminuindo gradativamente, pois o seu valor é a subtração de I por um termo que aumenta com VM, ou seja, (VM – EM)/RM. Em t = infinito, o termo exponencial vai para zero, e o fluxo de vazamento igualase ao fluxo constante (I) injetado no reservatório VM. Ou seja, o sistema entra em estado estacionário, e o nível VM mantémse constante no tempo, enquanto o fluxo de água I para o reservatório VM for mantido constante. Portanto, a curva entre os pontos t = 0 e t = infinito tem uma máxima inclinação em t = 0 e uma inclinação zero em t = infinito. A curva de evolução de VM em função do tempo tem, na realidade, a forma de uma função exponencial. Esse tipo de comportamento exponencial da voltagem citoplasmática, em resposta a uma corrente de início súbito, é muito importante para a interação elétrica entre células nervosas. Vemos facilmente, no modelo hidráulico, que, quando o fluxo de água é interrompido bruscamente, após a estabilização do sistema, o nível VM não cai instantaneamente ao valor do repouso, e sim de forma lenta, seguindo também uma curva exponencial, que é uma imagem “especular” vertical da curva anterior. Essa “lentidão” da resposta decorre do fato de que leva certo tempo para o reservatório VM se esvaziar, após interrompida a entrada de água. Esse comportamento permite a uma célula nervosa guardar uma memória elementar do estímulo, durante poucos milissegundos. Essa é base da somação temporal dos potenciais sinápticos.
PERTURBAÇÕES DO POTENCIAL DE MEMBRANA PRODUZIDAS PELA ABERTURA DE CANAIS IÔNICOS Como mencionado anteriormente, a injeção de cargas elétricas no citoplasma (positivas ou negativas) ocorre, em condições fisiológicas, através da abertura de canais iônicos na membrana. Existem, essencialmente, as seguintes possibilidades: ■ Condição 1: canal catiônico com força movente do cátion para dentro. Resultado é entrada de cargas (+) e despolarização da membrana. Exemplo: canais para Na+ dependentes de voltagem, do neurônio ■ Condição 2: canal catiônico com força movente para o cátion orientada para fora. Resultado: saída de cargas (+) e hiperpolarização da membrana. Exemplo: canais para K+, dependentes de voltagem, do neurônio ■ Condição 3: canal aniônico com força movente do ânion para dentro. Resultado: entrada de cargas (–) e hiperpolarização da membrana. Exemplo: canal para Cl– em desequilíbrio eletroquímico através da membrana ■ Condição 4: canal de ânion com força movente para fora. Resultado: saída de cargas (–) e despolarização da membrana. Exemplo: canal para Cl– em desequilíbrio eletroquímico através da membrana.
Aplicação 11 Em uma célula temos Kic = 145 e Kec = 5 milimols/ ℓ . A célula está, inicialmente, em repouso elétrico com um potencial de membrana espontâneo igual a –90 mV. A abertura de canais para K+ na membrana produzirá uma corrente de K orientada para dentro ou para fora da célula? Irá despolarizar ou hiperpolarizar a membrana? Solução: EK = –86 mV. A força elétrica é para dentro e igual a 90 mV. A força difusional é para fora e igual a 86 mV. A força elétrica vence a força difusional, e o K+ vai entrar na célula, despolarizando a membrana.
Aplicação 12 Em uma célula temos Clic = 10 e Clec = 120 milimols/ℓ. A célula está, inicialmente, em repouso elétrico com um potencial de membrana espontâneo igual a –90 mV. A abertura de canais para Cl– na membrana produzirá uma corrente de Cl– orientada para dentro ou para fora da célula? Irá despolarizar ou hiperpolarizar a membrana? Solução:
ECl = –64 mV. Força elétrica para fora = 90 mV. Força difusional para dentro = 64 mV. A força para fora vence a força para dentro, e o Cl– sai da célula, despolarizando a membrana. No entanto, em alguns casos, particularmente com o ânion Cl, a abertura de canais para Cl– não gera fluxo de Cl– porque o Cl– encontrase em equilíbrio através da membrana (ver Figura 9.15, mais adiante). Esse caso é muito interessante. Ocorre, aqui, uma diminuição de RM, por efeito da abertura dos canais para Cl–. Se, ao mesmo tempo, são abertos canais para Na+ despolarizantes, o efeito despolarizante será menor, porque uma fração grande das cargas positivas que iriam despolarizar o citoplasma vaza para fora da célula, através dos canais para Cl–. Esse efeito diminui a eficiência da despolarização e, portanto, do processo excitatório, corresponde a uma inibição da excitação e denominase efeito de shunt da inibição. Para termos uma ideia de como a abertura de canais iônicos pode afetar o potencial de membrana, vamos resolver a Aplicação 13.
Aplicação 13 Suponha que na membrana de uma dada célula abrese, durante 10 milissegundos, um canal para Na+ com condutância de 1 pS, sendo que Naec = 140 e Naic = 10 milimols/l, respectivamente. A célula está inicialmente em um potencial de repouso de –70 mV, e sua capacitância é 1,11 × 10–12 farads. Qual será a variação de VM? Solução: A força movente nos íons Na é: FMNa = VM – ENa = –70 – (+68,0877) = –138,0877 mV A corrente unitária de Na+ (iNa) é: iNa = gNa (VM – ENa) = (1 × 10–12) mho × 0,1381 volts = 1,381 × 10–13 amperes = 0,1381 picoamperes Se esse canal permanecer aberto por 10 milissegundos, a carga que vai entrar no citoplasma é: ΔQ = (0,1381 × 10–12 coulombs/segundo) × (0,01 segundo) = 1,381 × 10–15 coulombs A variação do potencial de membrana será: ΔV = ΔQ/CM = (1,381 × 10–15 coulombs)/(1,11 × 10–12 farads) = 1,244 mV O que se depreende da Aplicação 13 é que a abertura de um único canal iônico durante um tempo muito pequeno influencia muito pouco VM. No entanto, tipicamente, em condições fisiológicas, ocorrem centenas ou mesmo milhares de aberturas de canais, intercaladamente no tempo. O efeito coletivo pode ser uma despolarização suficientemente intensa para causar um potencial de ação. Além da questão da pequena corrente veiculada por um único canal, existe ainda o fato do vazamento de cargas, que ocorre simultaneamente ao processo de despolarização. Como vimos, uma parte das cargas injetadas no citoplasma, pela abertura do canal, começa imediatamente a vazar para fora. Quanto menor for RM, maior será o vazamento e mais tempo a corrente excitatória levará para despolarizar a membrana em certa extensão. Os mecanismos biológicos para que essas variações no VM ocorram serão discutidos a seguir, no item sobre excitabilidade e potencial de ação.
DESPOLARIZAÇÃO MACIÇA DA MEMBRANA | POTENCIAL DE AÇÃO Como vimos no item anterior, a abertura de canais despolarizantes pode alterar o potencial de membrana em alguns milivolts. No entanto, em certas condições, ocorre abertura de um número muito grande de canais na membrana celular. Isso ocorre particularmente nas células excitáveis. O neurônio é um exemplo de célula excitável na qual canais para Na+ e para K+, do tipo dependente de voltagem, desempenham papel fundamental no fenômeno da excitabilidade. Os canais para Na+ e para K+, dependentes de voltagem, são estudados no Capítulo 6, Fisiologia do Músculo Esquelético. Aqui usaremos esses canais apenas como uma aplicação da equação 9.12. Como veremos na segunda parte deste capítulo, no potencial de ação (PA) ocorre a ativação maciça de canais para Na+ dependentes de voltagem, seguida pela ativação de canais para K+ também dependentes de voltagem. Durante a fase do pico do PA, o potencial de membrana permanece constante durante um período muito pequeno, mas suficiente para
aplicarmos a equação 9.12, que é válida apenas quando o potencial de membrana não varia no tempo. No pico do potencial de ação, as correntes de Na+entrando e de K+ saindo são iguais e opostas, e dVM/dt = 0, o que nos permite empregar a equação 9.12 para calcular o valor do potencial de membrana. Apenas para ilustrar, vamos supor que nessa fase de pico GNa = 20 GK, que é uma relação real para algumas células excitáveis. Colocando na equação os valores numéricos nessa condição, temos:
Percebemos que, no pico do PA dessa célula hipotética, o potencial de membrana não somente se despolariza completamente, mas ainda inverte de valor. Na realidade, esse valor não chega a ser alcançado, porque entram em jogo vários mecanismos de recuperação da voltagem ou de repolarização da membrana. Esses mecanismos serão estudados na segunda parte deste capítulo.
PAPEL DAS BOMBAS DE SÓDIOPOTÁSSIO NA GÊNESE DO POTENCIAL DE MEMBRANA A partir de toda a discussão anterior, fica claro que o valor da diferença de potencial elétrico através de membranas biológicas é função da existência de vias passivas de permeabilidade seletiva a íons, proporcionadas por canais iônicos, e da força movente atuante sobre esses íons. A força movente, por sua vez, é um balanço entre a energia elétrica (derivada do próprio VM) e a energia química (derivada da diferença de concentração do íon através da membrana ou, de forma equivalente, de seu potencial de equilíbrio). Ainda, se o potencial de membrana permanece constante (i. e., no potencial de repouso EM), a quantidade de cargas negativas em excesso sobre as positivas também é constante, a despeito de poderem fluir pelos canais iônicos. Ou seja, a corrente iônica total através da membrana é zero. Isso, porém, não quer dizer que as correntes de cada íon pelos canais sejam também zero, mas que todas, somadas, anulamse. Dado que cada íon tem uma força movente atuando sobre si se não estiver em equilíbrio eletroquímico, a corrente desses íons individuais não será zero. O problema é que, mesmo que sejam relativamente pequenas, se essas correntes por canais forem mantidas sem serem contrabalanceadas, eventualmente levarão, em uma janela de tempo de vários minutos (um tempo que é extremamente grande na escala de vida de uma célula), a uma alteração das concentrações intracelulares desses íons. Com isso, o potencial de equilíbrio e, portanto, o EM, se alteraria (ver equação 9.12). O que impede que isso ocorra é o trabalho conjunto das bombas de sódio e potássio, que ativamente bombeiam sódio para fora da célula e potássio para dentro. Assim, as bombas têm uma importância indireta fundamental para a manutenção do potencial de repouso, pois mantêm constantes os potenciais de equilíbrio para o sódio e o potássio através da membrana, enquanto esses íons passivamente vazam por canais. Considerando a estequiometria de trabalho dessas bombas, que transportam três íons sódio do meio intracelular para o extracelular e dois íons potássio a cada ATP consumido, vêse que elas mesmas, por si sós, geram uma separação de cargas através da membrana. A cada ciclo de trabalho, o saldo é de uma carga positiva sendo bombeada do meio IC para o EC. Ou seja, além de contribuírem indiretamente para o EM, pois mantêm constantes os potenciais de equilíbrio para o sódio e o potássio, as bombas também contribuem diretamente para a negatividade do meio IC. No entanto, para a maior parte das células, essa contribuição direta das bombas para o EM é mínima (algo entre 5 e 15 mV), ressaltando mais uma vez a importância primordial dos canais para o estabelecimento do EM. Há, no entanto, células em que a proporção entre bombas e canais é alta, nas quais a corrente hiperpolarizante gerada pelas bombas pode responder por quase metade do valor do EM, como é o caso da musculatura lisa vascular.
GÊNESE DA DIFERENÇA DE POTENCIAL ELÉTRICO (DP) TRANSEPITELIAL Os epitélios transportadores fornecem excelentes exemplos do jogo de correntes e potenciais elétricos em um tecido vivo. A estrutura fundamental de um epitélio transportador está esquematizada na Figura 9.8. Aqui temos um epitélio bastante simplificado, no qual são omitidos diversos aspectos estruturais e funcionais. Essencialmente, esse epitélio modelo é constituído por uma única camada de células, unidas entre si por junções do tipo tight junctions. Vamos usar
como exemplo o epitélio tubular renal, dada sua simplicidade geométrica e sua importância na fisiologia de mamíferos. O segmento discutido pode ser uma região genérica do túbulo. A discussão pode ser estendida a outros epitélios transportadores. A célula de um epitélio transportador típico é assimétrica, histologicamente e funcionalmente. A membrana apical, voltada para o lúmen tubular, é sede de sistemas de transporte bastante diversos dos transportadores presentes na membrana basolateral (MBL), voltada para o interstício. Na membrana apical de nosso exemplo, vamos supor a existência de canais seletivos ao Na+ e/ou transportadores eletrogênicos de Na+ (p. ex., SGLT). Ou seja, a membrana apical é capaz de gerar uma voltagem dependente da diferença de concentração de Na+. Na MBL, por sua vez, existem canais seletivos ao K+, além de uma bomba de Na+/K+ que vamos supor ser eletroneutra e, portanto, não geradora de voltagem. O líquido tubular contém NaCl 140 mmol/ℓ e outras substâncias não relevantes para a nossa análise. O interstício contém o íon K a uma concentração de 5 mmol/ℓ e também NaCl a uma concentração idêntica à do líquido tubular. Graças ao trabalho da bomba, as concentrações intracelulares de Na+ e K+ são mantidas em 10 e 140 mmol/ℓ, respectivamente.
Figura 9.8 ■ A. Esquema simplificado de um epitélio transportador. Na membrana apical, canais para Na e transportador Na/glicose. Na membrana basolateral, canais para K e bomba Na/K. B. Circuito elétrico equivalente do epitélio. Na membrana apical, ENa é o potencial de equilíbrio do Na. Na membrana basolateral, EK é o potencial de equilíbrio do K+ . C. Perfil de potencial elétrico através do epitélio. Os números são as variações de voltagem através de cada rampa, medidas em milivolts. TJ, tight junction.
Vamos considerar, inicialmente, que as tight junctions têm uma resistência elétrica infinita. Nesse caso, o epitélio pode ser representado eletricamente por um circuito como o da Figura 9.8. Na membrana apical, temos uma bateria com força eletromotriz (FEM) igual ao potencial de equilíbrio do Na+, ou FEMapical = ENa, com o polo positivo voltado para o citoplasma. Na MBL temos uma bateria cuja FEM é igual ao potencial de equilíbrio do K+, ou FEMbasolateral = EK, com o polo positivo voltado para o interstício. De acordo com a equação de Nernst, as forças eletromotrizes nas membranas apical e basolateral e os respectivos potenciais de equilíbrio do Na+ e K+ são dados por: FEMapical = ENa = RT/zF ln(140/10) = 68,0876 mV FEMbasolateral = EK = RT/zF ln (140/5) = 85,971 mV As baterias se somam em série, e a DP transepitelial (DPtrans) será igual a: DPtrans = ENa + EK = 68,0876 + 85,971 = 154,0586 mV Esse exemplo, embora interessante, é raramente observado na prática, uma vez que a via paracelular tem sempre certo grau de vazamento. Na Figura 9.8 observase que o citoplasma é positivo em relação ao lúmen tubular e negativo em relação ao interstício. Essa situação é aparentemente paradoxal, sendo comum a seguinte pergunta: afinal, qual é o potencial elétrico do citoplasma? +68,09 ou –85,97 mV? O interstício é normalmente ligado eletricamente à Terra no arranjo experimental, e, portanto, o potencial do interstício é considerado como zero. Portanto, considerase o potencial do citoplasma como sendo –85,97 mV. Essa situação, no entanto, não é encontrada nos epitélios transportadores de mamíferos, como o epitélio tubular renal, ou o epitélio intestinal, mas pode ser encontrada nos epitélios da pele de certos anfíbios, em condições experimentais restritas. No epitélio tubular renal e no intestino de mamíferos, as tight junctions (TJ) têm resistências elétricas relativamente pequenas. No túbulo proximal, por exemplo, a resistência elétrica das TJ é muito pequena, e, à medida que o túbulo se distaliza, ocorre um aumento gradual da resistência elétrica das TJ, culminando no ducto coletor papilar. De qualquer modo, porém, ocorre sempre um vazamento substancial de corrente elétrica através das TJ, o que diminui consideravelmente a DP transtubular, como veremos em seguida. Na Figura 9.9 está representado o mesmo epitélio tubular padrão da Figura 9.8. Entretanto, nesse caso, as TJ permitem certo grau de vazamento. Assim, a soma das FEM das duas baterias, ENa e EK, gera uma corrente que circula em sentido antihorário. A corrente atravessa o epitélio, entrando na célula pela membrana apical e saindo da célula pela MBL. Na membrana apical a corrente é carreada pelos íons Na, e na MBL a corrente é carreada pelos íons K. Na TJ a corrente é carreada por todos os íons presentes no meio, uma vez que essa estrutura não possui seletividade iônica normalmente. As TJ constituem, portanto, uma via de curtocircuito (ou de shunt) da corrente que flui por dentro da célula através de suas membranas apical e basolateral. A presença de uma corrente circulante requer a inclusão, no circuito, de resistências elétricas. Para podermos descrever quantitativamente as correntes e voltagens nesse epitéliomodelo, não há necessidade de usarmos valores de resistências semelhantes aos reais. Vamos atribuir apenas valores relativos às resistências, o que não afetará os cálculos finais das diferenças de potencial: RNa = 10, RK = 1 e Rshunt = 2
Figura 9.9 ■ A. Esquema simplificado de um epitélio transportador. Na membrana apical, os canais para Na+ e o transportador Na/glicose foram incluídos em um único sistema gerador de voltagem. Na membrana basolateral, canais para K+ e bomba Na/K. B. Circuito elétrico equivalente do epitélio. Na membrana apical, ENa e RNa são respectivamente o potencial de equilíbrio e a resistência elétrica ao Na+ . Na membrana basolateral, EK e RK são o potencial de equilíbrio do K+ e a resistência da membrana ao K+ . Rshunt é a resistência elétrica da via de shunt. C. Perfil de potencial elétrico através do epitélio. Os números são as variações de voltagem através de cada rampa, medidas em milivolts.
A corrente circulante (i) será dada por:
A DP transtubular pode ser facilmente calculada como sendo o produto da corrente circulante pela resistência da via de shunt:
Como a corrente atravessa a TJ no sentido do interstício para o lúmen tubular, ela polariza a TJ de tal modo que o lúmen tubular fique negativo em relação ao interstício. No entanto, é bastante instrutivo calcular a DP transtubular examinando as variações de voltagem através da via transcelular. Para tal, examinemos o perfil de voltagem do epitélio no quadro C da Figura 9.9. Partindo do potencial zero no interstício, e caminhando em direção ao lúmen tubular, vamos encontrar uma queda de voltagem na bateria EK, igual a 85,971 mV. A passagem da corrente através da resistência RK gera uma subida de voltagem igual a (RK × i) = 11,8506 mV. Então se chega ao citoplasma com uma voltagem igual a Vcito. = –85,971 + 11,8506 = –74,1204 mV. A passagem através da bateria ENa, na membrana apical, decai a voltagem em 68,087 mV. Porém, no nível da resistência RNa, ocorre uma elevação de voltagem dada por (RNa × i) = 118,506 mV. Assim, a passagem pela membrana apical corresponde a uma variação total de voltagem igual a: ENa – (RNa × i) = –68,087 + 118,506 = +50,419 mV
Aplicação 14 Parte 1: Usando os valores do epitélio fornecidos anteriormente e trocando a Rshunt de 2 para 0,5, calcule o valor da DP transtubular. Considere os valores: RNa = 10, RK = 1 e Rshunt = 0,5. Solução: i = (68,087 + 85,971)/(10 + 1 + 0,5) = 13,396 ΔPtrans = R × i = 0,5 × 13,396 = 6,698 mV, lúmen tubular negativo Parte 2: Admitindo que a condutância da membrana apical ao Na+ dobrou de valor, calcule a DPtranstubular, considerando os seguintes valores relativos das resistências e a DP através das membranas apical e basolateral: RNa = 5, RK = 1 e Rshunt = 0,5. Solução:
Parte 3 (teste sem solução): No mesmo epitélio das partes anteriores, bloqueando com amilorida a condutância da membrana apical ao sódio, levase RNa para 20. Os valores das resistências são agora: RNa = 20, RK = 1 e Rshunt = 0,5. Qual a DP transtubular e qual a DP apical? Qual foi o efeito de bloquear parcialmente os canais para Na+ apicais? Dessa forma, ao passar do citoplasma para o lúmen tubular, a voltagem no citoplasma (–74,1204 mV) somase à elevação de voltagem na membrana apical (+50,419 mV), chegandose ao túbulo com uma voltagem Vtub = –74,1204 + 50,419 = –23,701 mV. Observase que essa DP é exatamente igual àquela através da TJ. A sequência total de variações de voltagem entre o interstício e o túbulo pode ser resumida da seguinte maneira: Vinterstício – EK + (RK × i) – ENa + (RNa × i) = Vtúbulo 0 – 85,971 + (1 × 11,8506) – 68,087 + (10 × 11,8506) = –23,701
0 – 85,971 + 11,8506 – 68,087 + 118,506 = –23,701
TÉCNICA DE VOLTAGECLAMP A eletrofisiologia avançou consideravelmente após a introdução da técnica de voltageclamp, principalmente por Cole, na década de 1930. Essa técnica permite manter fixo o potencial de membrana e medir as correntes associadas à movimentação de íons através da membrana. O melhor arranjo experimental para compreender essa técnica consiste no voltageclamp de quatro eletrodos, de ajuste manual, esquematizado na Figura 9.10. Um par de eletrodos serve para medir o potencial de membrana, e um segundo par de eletrodos serve para injetar uma corrente elétrica no citoplasma. Nesse experimento, o experimentador ajusta o valor da corrente injetada de modo a manter o potencial de membrana no valor desejado, denominado Vclamp. Vamos supor que o potencial de repouso da célula seja EM e o experimentador deseje fixar o potencial de membrana (VM) em um valor (Vclamp) diferente de EM. Como vimos anteriormente, sabese que: VM = EM – (RM × i) Assim,
Nesse caso, a corrente iclamp (i na figura) corresponde à corrente injetada pelo pesquisador, por meio de uma micropipeta conectada a uma fonte de corrente. Como mostra a Equação 9.23, ajustando o valor de iclamp, o pesquisador consegue manter o potencial de membrana no valor Vclamp desejado. Um valor de Vclamp comumente usado é o valor zero. Vamos supor que, em uma determinada célula, EM = –70 mV e a resistência da membrana seja RM = 2 megaohm. A corrente necessária para fixar o potencial de membrana no valor zero pode ser determinada por: 0 = EM – RM × i0 Portanto, i0 = EM/RM = 0,070/(2 × 106) = 3,5 × 10–8 amperes Raciocinando de modo inverso, a medida da corrente no potencial zero serve para determinar a resistência elétrica da membrana.
Figura 9.10 ■ Arranjo experimental para fixação de voltagem (voltageclamp) em uma célula hipotética. Explicação no texto.
No entanto, ao ser iniciada a injeção de corrente, a voltagem não vai instantaneamente ao seu valor final, mas segue um decurso exponencial como visto anteriormente neste capítulo. Podemos dizer que, no início da aplicação da corrente, uma parte das cargas é usada para levar o potencial de membrana de EM para Vclamp. Após atingido Vclamp, toda a corrente injetada na célula vaza para fora, mantendo constante a despolarização da membrana. No voltageclamp manual, embora útil do ponto de vista didático, o ajuste de voltagem é limitado pelo tempo de resposta do experimentador e pela baixa rapidez dos instrumentos. Portanto, essa técnica manual não serve para estudar fenômenos rápidos, como o potencial de ação no nervo, que se processam na escala temporal de milissegundos. Nesses casos é preciso usar o voltageclamp automático, uma técnica poderosa que permitiu desvendar os fenômenos elétricos subjacentes ao potencial de ação na década de 1950. Dessa forma, como veremos a seguir, o voltage clamp automático permite medir correntes iônicas, com resolução temporal de microssegundos. O voltageclamp automático contém um sensor de voltagem acoplado eletronicamente a um dispositivo que gera corrente. O sensor de voltagem é muito sensível e rápido e compara, continuamente, a voltagem da membrana com a voltagem de clampeamento (Vclamp) desejada pelo pesquisador. Se o sensor de voltagem detecta uma diferença entre o potencial de membrana (VM) e Vclamp, ele “comanda” rapidamente (em microssegundos) o “gerador de corrente” a injetar cargas elétricas no citoplasma, de modo a anular a diferença entre VM e Vclamp. Na realidade, tanto o sensor de voltagem quando o sistema de geração de corrente fazem parte de um conjunto de dispositivos eletrônicos denominados amplificadores operacionais, acoplados em um circuito eletrônico com diferentes graus de complexidade. O uso dessa técnica, utilizada por Hodgkin e Huxley na década de 1950, permitiu um avanço considerável no entendimento do fenômeno do potencial de ação no nervo, permitindo identificar as correntes de Na+ e de K+ associadas a esse fenômeno.
CORRENTE DE CURTOCIRCUITO A corrente de curtocircuito (CCC) é um dos parâmetros elétricos obtidos pela técnica de voltageclamp, na qual a voltagem da membrana é fixada no valor zero. Para compreender o uso dessa estratégia, é conveniente descrevêla no contexto de um caso prático.
Na Figura 9.11, uma membrana seletiva ao íon Na é interposta entre duas soluções, 1 e 2, contendo NaCl. A solução 1 contém NaCl 100 mmol/ℓ, e a solução 2, NaCl 10 mmol/ℓ. A membrana tem uma área de 4 cm2. A câmara especial, que contém a membrana e as soluções, permite a medida simultânea da DP e da corrente transmembrana, que é fornecida e pode ser modificada, por um gerador de corrente. Essa configuração é um voltageclamp de quatro eletrodos. Quando a corrente transmembrana é nula, a DP espontânea é dada pelo potencial de Nernst para o Na+: DP = (RT/zF) ln(100/10) = 0,0258 × 2,302 = 0,0594 V = 59,4 mV Nessa situação, ou seja, no potencial de equilíbrio do Na+, a corrente através da membrana é igual a zero. Não há, portanto, fluxo de Na+. Isso significa que as duas forças agentes nos íons Na, a força elétrica e a força difusional, são iguais e opostas. Injetando cargas positivas no lado 1 por meio do gerador de corrente, a DP através da membrana cai, e os íons Na se desequilibram no interior da membrana, passando a moverse no sentido 1 para 2. À medida que se aumenta a corrente, o lado 1 vai ficando progressivamente menos negativo, e os íons Na vão “liberandose” gradualmente da força elétrica freadora, aumentando progressivamente seu fluxo no sentido 1 para 2. A melhor forma de descrever o efeito da aplicação da corrente sobre o movimento do Na+ é por meio da chamada curva corrente versus voltagem (curva I vs. V).
Figura 9.11 ■ Arranjo experimental para estudo da relação corrente versus voltagem em uma membrana cátionseletiva. Explicação no texto. CCC, corrente de curtocircuito.
Continuando a aumentar a corrente no sentido 1 para 2, mais cargas negativas em excesso no lado 1 vão sendo neutralizadas, e a DP vai caindo progressivamente até atingir o valor zero. Na DP zero, a corrente transmembrana e, portanto, o fluxo de Na+ são movidos exclusivamente pela força difusional agente nos íons Na. Essa é a corrente de curtocircuito (CCC). Sabemos que, de modo geral, a corrente de Na+ através dessa membrana íonseletiva é dada por: iNa = GNa(VM – ENa) Em que GNa é a condutância da membrana ao Na+. Como VM = 0, podemos escrever que:
Como essa é a corrente de curtocircuito, escrevemos:
Portanto, a medida da CCC nessa preparação permite medir a corrente carreada pelo fluxo do íon Na através da membrana. O poder dessa técnica pode ser constatado ao transformar a corrente medida em fluxo de Na+: JNa = PNa(C1 – C2) Finalmente, a permeabilidade da membrana ao íon Na pode ser determinada lembrando que: PNa = JNa /(C1 – C2) A inclinação ou coeficiente angular da curva I versus V (ΔI/ΔV) mede a condutância da membrana ao Na+. Por que a curva tem uma inclinação diferente nas diferentes voltagens? Isso se deve ao fato de que, na preparação mostrada na Figura 9.11, a condutância da membrana ao Na+ depende da voltagem. É a chamada retificação de Goldmann. A retificação de Goldmann resulta do fato de que a concentração dos íons Na no interior da membrana modificase com a voltagem aplicada e com o sentido da passagem da corrente. Quando a corrente vai de 1 para 2, a membrana é preenchida por uma população de íons Na em maior concentração, vindos do lado 1. Quando a corrente vai de 2 para 1, a membrana é preenchida por íons Na em menor concentração, vindos do lado 2. Por outro lado, a condutância da membrana ao sódio depende da concentração de Na+ no interior da membrana. Essa concentração não é a mesma em todas as camadas da membrana e, portanto, é a concentração média de Na+ que constitui o parâmetro relevante para a condutância. Assim, a membrana conduz “melhor” quando a corrente passa de 1 para 2 do que quando a corrente passa do lado 2 para o lado 1.
Aplicação 15 Uma membrana seletiva ao íon Na, com área de 4 cm2, separa duas soluções de NaCl. Lado 1: NaCl 100 mmol/ℓ. Lado 2: NaCl 10 mmol/ℓ. Calcule o potencial de equilíbrio do Na+. Sabese que, no experimento em questão, mediuse na DP zero uma corrente de 5,94 × 10–8 amperes = 59,4 nanoamperes, ou 14,85 nanoamperes/cm2. Calcule a condutância da membrana ao íon Na. Solução: ENa = RT/zF ln(Na1/Na2) = 0,0258 ln (10) = 0,0594 V CCC = GNa(VM – ENa) Como VM = 0, CCC = GNa × ENa GNa = CCC/(VM – ENa) = (14,85×10–9)/(0,0594) = 2,5 × 10–7 mho/cm2 Calcule o fluxo de Na+ na condição de curtocircuito. Solução: JNa = iNa/F = (1.485 × 10–8 coulombs × seg–1 cm–2)/(96.460 coulombs/mol) = 1,54 × 10–13 mol/(seg cm2) Um fluxo tão pequeno como esse não pode ser determinado por meios químicos. Calcule a permeabilidade da membrana ao íon Na lembrando que:
JNa = PNa(C1 – C2) Solução: PNa = JNa/(C1 – C2) = (1,54 × 10–13 mol × seg × cm–2)/(90 × 10–6 mol × cm–3) = 1,71 × 10–9 cm seg–1.
▸ Corrente de curtocircuito e transporte transepitelial de sódio A técnica de voltageclamp tornouse, a partir da década de 1950, uma poderosa ferramenta eletrofisiológica para o estudo do transporte iônico transepitelial. Os trabalhos pivotais de KoefoedJohnsen e Ussing pavimentaram o caminho para um grande número de estudos. Uma das mais importantes vertentes desses estudos foi correlacionar o transporte transepitelial de Na+ com a CCC transepitelial. Montados nas famosas “câmaras de Ussing”, epitélios transportadores como a pele e a bexiga urinária de anfíbios e o intestino de mamíferos foram extensamente estudados utilizando a técnica de voltageclamp em curtocircuito. Um dos achados importantes da técnica de curtocircuito foi a descoberta de que vários tipos de epitélios transportadores eram capazes de gerar uma corrente elétrica na ausência de uma DP transepitelial e de qualquer diferença de concentração iônica. Evidentemente, tal corrente somente poderia ser explicada pela existência de um transporte ativo. Logo no início desses estudos, essa corrente foi identificada (na maioria dos casos) com o fluxo transepitelial de Na+ e a origem do transporte ativo de Na+foi correlacionada à atividade da bomba de Na+/K+ localizada na membrana basolateral. Para entender a ideia geral em que se baseia essa técnica, consideremos o epitélio modelo esquematizado na Figura 9.12. Na condição de curtocircuito, a DP transepitelial é zero e não há corrente circulante nas TJ. Portanto, toda a corrente que passa através do epitélio flui pela via transcelular, entrando pelo lado apical e saindo pelo lado basolateral. Essa corrente, por sua vez, é idêntica (e de sentido oposto) à corrente gerada pelo aparelho de voltageclamp. Ou seja, o voltageclamp gera continuamente uma corrente, que retira as cargas positivas que vão chegando ao lado intersticial (nesse caso, íons Na+), impedindo, assim, o acúmulo de cargas positivas no lado intersticial. Dessa forma, a DP transepitelial mantémse nula. A corrente gerada pelo aparelho é, portanto, idêntica numericamente àquela gerada pelo epitélio. Na membrana apical, a corrente, indo do lado apical para o citoplasma, é transportada pelo movimento de Na+, que penetra na célula através de canais ou de transportadores. Na MBL, a corrente é mediada pelo fluxo de Na+ transportado do citoplasma para o interstício, através da bomba de Na+/K+. O potássio, por sua vez, é transportado do interstício para o citoplasma, acoplado ao Na+, na bomba de Na+/K+. Porém, ao mesmo tempo, o potássio sai da célula para o interstício, através de canais na MBL. Dessa forma, o potássio gera apenas um ciclo de corrente elétrica na MBL e não contribui para a corrente transepitelial.
Figura 9.12 ■ Origem da corrente de curtocircuito em um epitélio transportador mantido em curtocircuito elétrico. Os símbolos são idênticos aos das Figuras 9.10 e 9.11. Explicação no texto. TJ, tight junction.
Portanto, nos epitélios transportadores que obedecem a esse padrão, é possível demonstrar que a corrente de curto circuito devese, essencialmente, ao transporte transepitelial de Na+:
Dimensionalmente, temos: Coulomb s–1 cm–2 = (mol s–1 cm–2) × (coulomb mol–1) Assim, a técnica de curtocircuito é uma poderosa ferramenta para medir o fluxo transepitelial de Na+. Por meio dessa técnica, podese estudar, por exemplo, o efeito de bloqueadores de canais para Na+ sobre o transporte epitelial, o efeito da presença de glicose no lúmen, os bloqueadores do SGLT, os bloqueadores da fosforilação oxidativa, a ausência (ou requisito) de O2 e outras manobras.
Aplicação 16
Em um epitélio isolado, com área de 10 cm2, obtémse uma corrente de curtocircuito (CCC) igual a 20 microamperes. Sabendo que, nessa preparação, essa corrente é totalmente gerada pelo fluxo ativo de Na+, calcule o fluxo de Na+ através do epitélio. Solução: CCC = JNa × F, e JNa = CCC/F Unidades: CCC = coulomb × seg–1 × cm–2, e F = coulomb × mol–1 JNa = (coulomb × seg–1 × cm–2)/(coulomb × mol–1) = mol × seg–1 × cm–2 Portanto, JNa = CCC/F = (20 × 10–6/10)/96.485 = 2,073 × 10–11 mol × seg–1 × cm–2
Excitabilidade Celular e Potencial de Ação Fernando Abdulkader Uma característica distintiva da vida celular é o fato de que, por mais primitivo que seja o ser vivo, as células são dotadas de mecanismos para sensoriar o ambiente em que se encontram. Esses mecanismos levam a alterações no funcionamento das células que podem lhes permitir ajustarse às novas condições. Como discutido no Capítulo 3, Sinalização Celular, a maior parte dos mecanismos de sensoriamento extracelular envolve proteínas da membrana plasmática, por ser a membrana a interface entre os meios intra e extracelular. Uma das formas mais ancestrais de sensoriamento extracelular e consequente modulação intracelular é a variação da diferença de potencial de membrana frente a estímulos externos. A capacidade de uma célula alterar seu potencial de membrana por um dado estímulo é denominada excitabilidade celular, e, portanto, as células que respondem a um estímulo na forma de variações reguladas do seu potencial de membrana são ditas excitáveis eletricamente ou, simplesmente, excitáveis. Algumas células excitáveis (no caso dos seres humanos, neurônios, fibras musculares e certas células endócrinas) evoluíram no sentido de codificar essas variações do potencial de membrana com um evento elétrico de membrana característico e, geralmente, muito rápido (duração de poucos milissegundos), denominado potencial de ação.1 No caso de células grandes, ramificadas e extensas, como fibras (células)musculares e neurônios, a geração de potenciais de ação permite que esse sinal elétrico seja regenerado ao longo de seu comprimento, sendo a base da transmissão rápida de informação ao longo de grandes distâncias no nosso organismo. As bases biofísicas da excitabilidade celular, do potencial de ação e de sua propagação ao longo de uma célula de formato complexo serão os assuntos tratados neste capítulo.
VARIAÇÕES DO POTENCIAL DE MEMBRANA Antes de entendermos como podem ocorrer variações do potencial de membrana, é preciso definir alguns termos relacionados. Considerando que nas células a diferença de potencial estacionária através da membrana, o chamado potencial de repouso (ver “Gênese do Potencial de Membrana”), tem valores negativos no citoplasma em referência ao extracelular, há uma polarização elétrica da membrana em que a face intracelular é negativa em relação à extracelular. A partir do valor do potencial de repouso, portanto, se o valor da diferença de potencial de membrana tornase menos negativo, dizemos que houve uma despolarização. Analogamente, se o potencial de membrana tornase mais negativo do que o potencial de repouso, isso corresponde a uma hiperpolarização. Aqui é importante tomar cuidado com o uso de expressões como “o potencial de membrana aumentou” ou “diminuiu”, pois podem levar a falta de clareza sobre o conceito que se quer expressar. Isso porque dizer que “houve um aumento no potencial de membrana” pode ser interpretado tanto como o potencial ter passado de um valor mais negativo para um menos negativo (p. ex., de –60 para –55 mV), quanto haver aumentado a intensidade da diferença de potencial (o que corresponderia ao potencial ficar mais intensamente negativo, por exemplo, de –60 para –70 mV). Os biofísicos entendem um aumento no potencial de membrana como a segunda interpretação, ou seja, uma hiperpolarização. De qualquer forma, o uso dos termos “despolarização” e “hiperpolarização”, ou “mais negativo” e “menos negativo”, dirime qualquer possibilidade de malentendido.
Outro termo importante para descrevermos as possíveis variações no potencial de membrana é a repolarização, que nada mais é do que o retorno do potencial de membrana ao valor de repouso EM, seja após uma despolarização – caso em que o potencial vai ficando mais negativo até igualarse ao valor de repouso –, seja após uma hiperpolarização – quando a repolarização corresponde ao potencial de membrana ficar menos negativo, retornando ao potencial de repouso (Figura 9.13). É possível também que uma despolarização seja tão intensa que a diferença de potencial inverta sua polaridade, ou seja, o citoplasma fique positivo em relação ao extracelular. Nos casos em que isso ocorre, rigorosamente, não devemos falar de uma despolarização, pois a polaridade elétrica foi invertida. Assim, podese denominar essas variações do potencial de membrana a valores positivos, acima do valor de 0 mV, simplesmente de inversão de polaridade ou, usando o termo consagrado em inglês, overshoot (em tradução semântica livre, algo como “passar do ponto”).
▸ Como os diferentes íons variam o potencial de membrana Tendo entendido o jargão da excitabilidade, precisamos entender como essas variações na diferença de potencial elétrico podem ser causadas. Para tanto, é preciso lembrar do que foi discutido na primeira parte deste capítulo, de que o potencial de membrana é um balanço dos potenciais de equilíbrio dos íons ponderados pelas condutâncias da membrana a cada um dos íons (ver equação 9.12). Recordando que a condutância a um dado íon é reflexo do número de vias condutivas abertas na membrana (principalmente canais) em um dado instante para aquele íon, se o estímulo extracelular causar, por exemplo, a abertura de canais para sódio, o peso do potencial de equilíbrio para o sódio sobre o valor do potencial de membrana aumentará em relação aos dos outros íons (Figura 9.14 A). Como o potencial de equilíbrio para o sódio, graças à atividade da bomba de Na+/K+, é positivo no citosol em relação ao extracelular e o potencial de repouso das células é negativo (graças à maior condutância de repouso ao potássio), a abertura desses canais para sódio causará uma despolarização. Despolarizações também podem ser induzidas pela abertura de canais para cálcio (Figura 9.14 B), já que esse íon tem a maior diferença de potencial eletroquímico através da membrana plasmática das células (o potencial de equilíbrio para o cálcio é da ordem de +120 mV, positivo no citoplasma).
Figura 9.13 ■ Uso dos termos “despolarização”, “hiperpolarização”, “repolarização” e “inversão de polaridade” (overshoot) tendo um potencial de ação como exemplo.
Por outro lado, se o estímulo causar abertura de canais para potássio, considerando que o seu potencial de equilíbrio é mais negativo do que o potencial de repouso, aumentará o efluxo de íons potássio do meio intra para o extracelular, havendo, portanto, uma hiperpolarização (Figura 9.14 C superior). No entanto, há também canais para potássio que, na presença de seu estímulo específico, em lugar de se abrirem, fechamse. Dessa forma, o efluxo de potássio (e, portanto, de cargas positivas) do citoplasma para o meio extracelular diminui, despolarizando a célula (Figura 9.14 C inferior). Os canais para cloreto regulados por estímulos constituem um caso especial de modulação do potencial de membrana. Isso porque o potencial de equilíbrio para o cloreto tem valores distintos entre os diferentes tipos celulares, podendo ser
mais negativo, menos negativo, ou igual ao potencial de repouso da célula (Figura 9.15). Em grande parte dos fenótipos celulares, o íon cloreto não é alvo de transporte ativo secundário, o que faz com que sua concentração intracelular seja determinada pela diferença de potencial de membrana que é definida pela condutância (ou permeabilidade) da membrana aos íons mantidos, por transporte ativo, fora do equilíbrio eletroquímico. Ou seja, o cloreto está em equilíbrio nessas células, obedecendo, em sua distribuição através da membrana plasmática, ao potencial de repouso, determinado principalmente pelo potássio e pelo sódio, através de suas diferenças de potencial eletroquímico e a condutância relativa da membrana a eles. Esse exemplo em que o cloreto está em equilíbrio no potencial de repouso pode parecer desimportante para a ocorrência de fenômenos elétricos nas células, já que seu potencial de equilíbrio não difere do potencial de repouso. Entretanto, quanto maior for a condutância da membrana de uma célula ao cloreto, menos excitável será a célula – isto é, mais difícil será um estímulo despolarizála ou hiperpolarizála. Por que isso ocorre? Temos de considerar que nesses casos o cloreto está em equilíbrio (i. e., sem fluxo resultante através da membrana) somente no potencial de repouso. Ou seja, se qualquer excurso no potencial de membrana ocorrer em relação ao repouso – seja uma despolarização ou uma hiperpolarização –, os íons cloreto não estarão mais em equilíbrio e fluirão através da membrana no sentido que restaure o seu equilíbrio termodinâmico, que se dá, como dito anteriormente, somente no potencial de repouso. Dessa forma, o cloreto acaba funcionando como um “tampão elétrico” do potencial de membrana, o que faz com que, quanto maior for a condutância a cloreto de uma célula que não expresse transportador ativo para esse íon, menos excitável seja a célula (mais difícil seja para um estímulo despolarizante ou hiperpolarizante alterar significativamente o potencial de membrana da célula). Com efeito, há tipos celulares em que a condutância da membrana em repouso ao cloreto é maior do que a condutância ao potássio. Exemplo disso são as fibras musculares esqueléticas. Isso garante que essas células não sejam excitadas por estímulos indevidos, mas estejam sob controle estrito do sistema nervoso, já que somente com a ativação da sinapse entre motoneurônio e fibra muscular – a junção neuromuscular (discutida no Capítulo 15, Transmissão Sináptica) – alcançase uma despolarização intensa e localizada o bastante que vença o efeito estabilizador da condutância a cloreto nessas fibras.
Figura 9.14 ■ Possíveis alterações no potencial de membrana induzidas por alterações das condutâncias aos íons.
No entanto, como já se pode inferir dessa discussão, há tipos celulares igualmente relevantes que apresentam sistemas de transporte ativo, basicamente secundário, para cloreto. Com isso, nessas células os íons cloreto não estão em equilíbrio através da membrana plasmática, e variações na condutância a esses íons diretamente alteram o valor do potencial de membrana. No exemplo mais comum desses casos, as células expressam majoritariamente o cotransportador potássio cloreto (KCC) que, utilizando a diferença de potencial químico para o potássio, move íons cloreto do meio intra para o extracelular. Assim, se a condutância a cloreto aumentar, gerase uma diferença de potencial eletroquímico para o cloreto através da membrana que promove fluxo resultante de cloreto para o citoplasma, deslocando o potencial de membrana para
valores mais negativos do que o potencial de repouso, em direção ao potencial de equilíbrio do cloreto – que, neste caso, é mais negativo do que o de repouso. Assim, no caso discutido, a abertura de canais para cloreto promove hiperpolarização.
Figura 9.15 ■ Possíveis efeitos dos canais para cloreto sobre o potencial de membrana.
Por outro lado, há células em que, quanto aos transportadores de cloreto, prevalece a atividade dos cotransportadores sódiopotássio2 cloretos (NKCC), nos quais a diferença de potencial químico para o sódio move íons potássio e cloretos (2 cloretos para cada sódio e potássio) contra o sentido de seus potenciais químicos, para o meio intracelular. No caso dessas células, como há transporte ativo secundário de cloreto para o citoplasma, sua tendência termodinâmica é de saída da célula, e, como o cloreto porta uma carga negativa, sua saída promove despolarização. Interessantemente, observase que durante o desenvolvimento do sistema nervoso, neurotransmissores como o ácido gamaaminobutírico (GABA), que ativam canais para cloreto nas células póssinápticas, inicialmente têm ação despolarizante e depois adquirem atividade hiperpolarizante. O que ocorre é uma mudança no padrão de expressão gênica desses neurônios póssinápticos, em que no começo do desenvolvimento a atividade de NKCC prevalece, mas ao longo da ontogênese a atividade de KCC passa a predominar de tal forma que, no cérebro adulto, a resposta hiperpolarizante a esse neurotransmissor é a mais expressiva. Há fortes evidências de que essas sinapses precoces despolarizantes são fundamentais para a correta formação da circuitaria neural. No caso de células excitáveis que apresentam potenciais de ação, todas as possibilidades discutidas anteriormente de variações do potencial de repouso ou de excitabilidade geralmente recebem denominações alternativas para os termos “despolarizante”, “hiperpolarizante” e/ou “estabilizante”. Isso porque se considera que a expressão da excitabilidade dessas células é justamente o surgimento nelas de potenciais de ação. Assim, estímulos sobre essas células que aumentam a probabilidade de disparo de potenciais de ação, ou aumentam a frequência com que os potenciais de ação são disparados, são ditos estímulos excitatórios. Por outro lado, se um estímulo diminui a frequência de potenciais de ação ou a probabilidade de disparo destes na célula, tratase de um estímulo inibitório. Como discutiremos adiante, sabese que a geração de potenciais de ação é em geral promovida por despolarizações, enquanto inibições da excitabilidade são causadas ou por hiperpolarização ou por estabilização do potencial de repouso. Considerando os exemplos discutidos de modulação da condutância da membrana a íons inorgânicos, podemos resumir os efeitos e classificações no Quadro 9.1. Tendo entendido de que modo variações das condutâncias aos íons podem afetar o potencial de membrana, resta compreender qual seria o significado adaptativo dessas variações e quais são os mecanismos moleculares desencadeados pelos diferentes estímulos que acabam por promover as alterações a eles associadas na condutância de canais iônicos específicos.
ALTERAÇÕES DO POTENCIAL DE MEMBRANA EM CÉLULAS EXCITÁVEIS Esta parte do capítulo começou com a afirmação de que um fator fundamental para a manutenção da vida no nível das células – e, portanto, no de qualquer organismo vivo – é a capacidade de sensoriar o meio extracelular e traduzir esse sensoriamento em respostas adaptativas intracelulares, sendo alterações do potencial de membrana, a excitabilidade, uma das mais antigas formas de sensoriamento e consequente sinalização intracelular. Até aqui discutimos como são os mecanismos de sinalização elétrica por trás da excitabilidade. Isto é, havendo alterações na condutância de canais, em que sentido elas podem alterar o potencial de membrana e a excitabilidade. Todavia, para termos um quadro mais completo dessa importante propriedade celular que é a excitabilidade, ainda nos falta entender como são geradas as alterações de condutância desses canais. De forma geral, podemos entender esses canais iônicos responsáveis pela excitabilidade celular como máquinas moleculares conversoras de energia (Figura 9.16). Cada tipo de canal excitável é especializado em captar mais ou menos energia em uma ou mais das formas em que ela pode ser encontrada (mecânica, térmica, elétrica ou química)2 e investila no trabalho mecânico de alteração conformacional do canal. Essas variações da energia presente constituem aquilo que antes chamamos genericamente de estímulo. Assim, um estímulo térmico pode ser um aumento da temperatura; um mecânico, um aumento de pressão sobre a célula; um elétrico, uma variação do potencial de membrana;3 e um químico, um aumento na concentração de um neurotransmissor na fenda sináptica, por exemplo. Para que um desses estímulos module um dado canal, basta que ele tenha algum requisito estrutural que lhe permita captar/sensoriar/responder a esse estímulo. Por exemplo, no caso do neurotransmissor na fenda sináptica, se na membrana da célula póssináptica houver um canal com uma região extracelular que se ligue especificamente ao neurotransmissor e essa ligação promover uma alteração conformacional importante no canal, quanto maior for a concentração do neurotransmissor na fenda (em outras palavras, quanto maior for o seu potencial químico), maior será a probabilidade de uma molécula de neurotransmissor, em
seu movimento térmico, encontrar o seu sítio de ligação específico no canal (Figura 9.17). Dessa forma, quanto maior é a concentração do neurotransmissor, maior é a fração do tempo em que o canal permanece ligado a moléculas do neurotransmissor, e, portanto, maior o tempo em que o canal permanece com sua estrutura modificada pela interação com o neurotransmissor. O trabalho mecânico de alteração conformacional do canal frente ao seu estímulo específico, por sua vez, redunda em alteração de a probabilidade do canal encontrarse em um estado condutivo ou não condutivo, através da abertura ou fechamento das comportas (ou gates) do canal (ver Capítulo 10). Por fim, a alteração da condutância do canal promove alteração (aumento ou diminuição) do fluxo do íon através da membrana para o qual é seletivo, no sentido determinado pela do íon. Assim, essas mudanças no fluxo iônico alteram o potencial de membrana, e ambos – fluxo iônico e ΔVM – constituem um trabalho eletroquímico, consumindo Δμ do íon transportado. Porém, estando a célula viva, com mecanismos de transporte ativo para o íon funcionando, alimentados pelo metabolismo celular, a do íon mantémse constante e, consequentemente, o estado estacionário característico dos fenômenos biológicos também. Ou seja, é possível transformar a informação de que ocorreu um estímulo em algo (a ΔVM) com que a célula excitável “sabe lidar”, como um todo. Entretanto, nessa “tradução” da informação (estímulo) para essa “linguagem” que a célula entende (ΔVM), há gasto de energia.
Quadro 9.1 ■ Efeitos de alterações das condutâncias iônicas em células excitáveis que geram potenciais de ação. Íon permeante
Variação de
Sentido do
condutância
fluxo dado por
Efeito sobre VM Probabilidade/frequência de potenciais de ação
on
no repouso Na+
↑
Influxo
Despolarização
Excitatório
Ca2+
↑
Influxo
Despolarização
Excitatório
K+
↑
Efluxo
Hiperpolarização Inibitório
↓ Cl–
↑
Despolarização
Excitatório
Influxo
Hiperpolarização Inibitório
Nenhum
Estabilização
Inibitório
Efluxo
Despolarização
Excitatório
Figura 9.16 ■ Transdução de energia em variações do potencial de membrana por canais dependentes de pressão, temperatura, voltagem ou ligante.
Figura 9.17 ■ Dependência da concentração de ligante sobre a resposta de uma população de canais dependentes do ligante. As moléculas de ligante estão representadas por triângulos verdes.
Toda essa sequência de eventos de conversão de energia, desde o surgimento do estímulo até a alteração do potencial de membrana em resposta ao estímulo, constitui um exemplo do importante conceito em biologia denominado transdução de sinal. Outros mecanismos de transdução de sinal são discutidos no Capítulo 3 e na Seção 4, Neurofisiologia. Com efeito, os fenômenos de transdução de sinal são particularmente importantes no funcionamento do sistema nervoso. Por exemplo, se a transdução de sinal ocorre em uma célula especializada em expressar os canais que detectam um dado estímulo, e essa célula constitui uma porta de entrada para o sistema nervoso da informação portada pelo estímulo, essa célula inteira é denominada receptor sensorial. Dependendo da natureza do estímulo que o receptor sensorial reconhece, este será chamado de termoceptor, mecanoceptor ou quimioceptor. Continuando a discussão sobre a nomenclatura, mas retornando aos canais especializados em reconhecer os diferentes estímulos, como esses canais mudam sua atividade na dependência de haver ou não estímulo, eles podem ser chamados de canais sensíveis, ou dependentes, ou regulados ou operados pelo estímulo. Todos esses termos são sinônimos, mas diferentes textos podem usar uma ou outra denominação. Aqui preferimos usar o termo canal dependente. Assim, podemos ter canais dependentes de temperatura, dependentes de pressão ou tensão mecânica, dependentes de voltagem ou dependentes de ligante (ver Figura 9.16). Estes últimos podem ser exemplificados pelo caso discutido anteriormente, em que o neurotransmissor se liga a um canal especializado em reconhecêlo, através de um sítio de ligação específico (ver Figura 9.17).
Receptores na Fisiologia e na Farmacologia | Mesma palavra, mas diferentes significados Os canais dependentes de ligante podem causar alguma confusão para o estudante, considerando outros nomes que também podem receber. A Farmacologia, por exemplo, enxerga a interação entre uma molécula e o canal dependente dela, do ponto de vista dessa molécula que se liga especificamente ao canal. Assim, esse mesmo canal que chamamos, na Fisiologia Celular, de “canal dependente de ligante” é, para a Farmacologia, um “receptor para a molécula”, que, no caso, funciona como um canal que passa a estar aberto ou fechado na presença da molécula. Notese, portanto, que o mesmo termo “receptor” é empregado em dois contextos bem distintos. Para a Farmacologia, receptor é uma proteína que se liga a uma molécula de forma específica, ou seja, é um receptor molecular. Além disso, para a Farmacologia, se o receptor molecular é um canal modulado pela sua ligação específica à molécula em questão, este pertence a uma classe de receptores denominada receptores ionotrópicos, já que sua ativação envolve alteração nos fluxos iônicos através da membrana. Já para a Fisiologia, um receptor, se for sensorial, é uma célula. Se os usos do termo “receptor” nesses diferentes contextos não ficam claros, podemos chegar a considerações que, apesar de corretas, podem parecer extremamente confusas para um leigo. Por exemplo, é correto afirmar que um receptor para o gosto amargo (i. e., uma célula quimioceptora) tem receptores específicos para algumas aminas (ou seja, um receptor molecular que reconhece padrões moleculares específicos, associados à percepção de amargo). Algo que já deve ter sido intuído até aqui é que quanto mais intenso é o estímulo, maior é a fração do tempo em que o canal dependente dele permanece no estado de condutância determinado pela sua interação com o estímulo. Considerando que uma dada célula excitável deve expressar mais de um desses canais, quanto mais intenso é o estímulo, analogamente maior é o efeito resultante sobre o potencial de membrana da célula. Assim, a resposta sobre o potencial de membrana é
proporcional à intensidade do estímulo e é chamada de potencial graduado, independentemente de ele causar despolarização, hiperpolarização ou estabilização do potencial de membrana. Os potenciais graduados podem receber nomes diferentes dependendo da célula em que ocorrem. Por exemplo, em uma célula póssináptica de uma sinapse química (Figura 9.18), se o neurotransmissor ligarse ao seu canal dependente específico e com isso surgir um potencial graduado despolarizante, tal potencial graduado será chamado de potencial excitatório póssináptico (PEPS). Por outro lado, se o efeito da ligação do neurotransmissor ao seu canal dependente for de estabilização do potencial de membrana ou de hiperpolarização, o potencial graduado registrado será denominado potencial inibitório póssináptico (PIPS). Além desses exemplos na sinapse, se o potencial graduado ocorre em um receptor sensorial e em resposta ao seu estímulo sensorial específico, ele pode ser chamado de potencial receptor, ou potencial de receptor.4 E o que um potencial graduado causa na célula em que ele ocorre? Essa pergunta não tem uma resposta única, pois o que acontecerá depende do fenótipo celular. Ao longo dos capítulos seguintes serão explicadas algumas das consequências celulares do surgimento de um potencial graduado, nos diferentes sistemas orgânicos em que podem ocorrer. Neste capítulo discutiremos uma das possíveis consequências dos potenciais graduados que é observada em vários desses sistemas: o potencial de ação. ▸ O potencial de ação é um evento elétrico desencadeado por canais dependentes de voltagem e que se propaga no espaço. Você já se perguntou como consegue, ao pisar em uma tachinha com o dedão descalço, perceber a dor e retirar o pé em uma rápida fração de segundo? Então você examina o pé e vê que nem chegou a se machucar mesmo. Na verdade o que ocorreu é que o seu sistema nervoso, nesse ínfimo intervalo, conseguiu: ■ Sentir o contato com o objeto pontiagudo (através da geração de um potencial de receptor) ■ De alguma forma – que discutiremos nesta seção – conduzir essa sensação para a sua medula espinal ■ Processar ali, rapidamente, a sensação de pressão localizada, por neurônios medulares, que geraram um comando sobre outros neurônios ditos motores – ou motoneurônios ■ Da mesma forma, por enquanto obscura, com que a sensação de contato com a tachinha “subiu” para a medula, “descer” esse comando pelos motoneurônios, que informaram seus terminais présinápticos para que liberassem uma grande quantidade de neurotransmissor que causa PEPS muito intensos em fibras esqueléticas de vários grupos musculares.
Figura 9.18 ■ Potenciais póssinápticos que podem ser induzidos pela ligação de neurotransmissores a diferentes receptores que sejam canais dependentes do neurotransmissor. Exemplos de potenciais excitatórios póssinápticos (PEPS) e potenciais inibitórios póssinápticos (PIPS).
Considerando que as fibras musculares esqueléticas são células muito grossas e compridas (algumas com vários centímetros de comprimento), mesmo a informação de que o PEPS ocorreu deve caminhar por distâncias enormes na escala celular para a resposta de contração muscular de retirada do pé ser tão rápida a ponto de você nem se ferir com a tachinha. E, como dito, tudo isso pode acontecer um pouco antes mesmo de você perceber a dor associada à pressão sobre a tachinha.5 Como essa sequência de eventos assim complexa pode ocorrer tão rapidamente, sendo que, em um adulto de 1,80 m, a distância entre a ponta do dedão do pé e o local na medula em que a sensação de pressão é processada é de 1,30 m aproximadamente? Considerando esse arco de eventos sequenciais e automáticos (chamado de arco reflexo) – em que a informação sensorial “sobe” do dedão do pé até a medula, é ali processada, e um comando de retirada do dedão “desce” a mesma distância –, é possível estimar a velocidade com que esse trajeto todo é percorrido? Medidas em voluntários mostraram que o tempo entre o estímulo de pressão pontiaguda no pé e a resposta muscular de retirada está por volta de 0,1 s, o que corresponde a uma velocidade de 26 m/s (aproximadamente 94 km/h). Para efeito de comparação, a maior velocidade já atingida por um corredor humano até 2017 (Usain Bolt, o recordista nos 100 m rasos) é de 44,72 km/h, uma velocidade bem menor do que aquela estimada aqui para a velocidade de transmissão e processamento neural da informação. Esse exemplo simples serve para mostrar que há soluções biológicas extremamente eficientes que garantem uma enorme capacidade de transmissão rápida de informação pelo sistema nervoso e nos músculos do nosso corpo. No entanto, fica claro que essa transmissão não pode ser decorrente da difusão de moléculas de neurotransmissor ao longo de todo o trajeto, como é discutido no Capítulo 8. Com efeito, se considerássemos que são só moléculas do neurotransmissor acetilcolina que carregam a informação desde o receptor sensorial até a sinapse motora, por difusão em uma única
dimensão (o que já acelera bastante a velocidade de difusão em relação à nossa realidade 3D), como seu coeficiente de difusão D é de 4,0 × 10–4 μm2 ꞏ μs–1, a distância percorrida é de 2,6 m (≡ 2.600.000 μm) e o tempo aumenta com o quadrado da distância, uma molécula de acetilcolina conseguiria realizar esse percurso em 1.333.739 anos!6 Porém, se a mesma molécula de acetilcolina tivesse de se difundir por uma distância igual à espessura da membrana plasmática (cerca de 10 nm), ela o faria dentro de 0,6 ms. Íons Na+ e K+ são bem menores do que a acetilcolina, tendo coeficientes de difusão maiores em uma ordem de grandeza do que o do neurotransmissor (1,334 × 10–3 e 1,957 × 10– 3 μm2 ꞏ μs–1, respectivamente). Assim, podem atravessar a membrana em intervalos menores do que 0,03 ms. Isso sem considerar o efeito da diferença de potencial elétrico através da membrana. Nisso reside a resposta para a charada de como a informação pode ser transmitida tão rapidamente por células excitáveis, cobrindo longas distâncias: ela está baseada na rapidíssima movimentação de cargas iônicas através da membrana da célula excitável que perturbam instantaneamente os outros íons que já estavam no citoplasma da célula (Figura 9.19 A). Imaginando que essa célula seja aproximadamente cilíndrica e tenha um comprimento de mais de 1 metro7 e uma membrana perfeitamente impermeável aos íons, a única possibilidade que os íons citoplasmáticos têm de responder à perturbação elétrica causada pelas cargas iônicas entrantes é se repelirem ou se atraírem, dependendo de sua polaridade, ao longo do eixo da célula. Em outras palavras, uma corrente elétrica de natureza iônica seria conduzida ao longo do citoplasma da célula. Nesse exemplo hipotético de uma membrana com resistência elétrica infinita, um íon sódio faria, portanto, com que outro íon positivo monovalente qualquer presente em um dos extremos da célula se afastasse instantaneamente do íon sódio inicial, contanto que houvesse outros íons entre ambos, que seriam influenciados pelo campo elétrico do íon sódio e se influenciariam sequencialmente, através de seus próprios campos elétricos, até que o íon positivo na extremidade celular fosse alcançado. Uma analogia que cabe aqui é a de várias bolas de bilhar orientadas lado a lado em uma reta (Figura 9.19 B). Se o jogador acertar, em uma tacada, uma nova bola naquela que está em uma das pontas desse arranjo, o impulso se propagará pelas bolas intermediárias, sem estas se moverem, e somente a última bola, na outra extremidade, efetivamente se moverá. Ou seja, o movimento da bola que foi tacada pelo jogador equivale ao movimento da última bola na ponta oposta, mas o movimento inicial e o final, apesar de serem equivalentes, foram realizados por bolas de cores diferentes – mas, ainda assim, por bolas de bilhar. Fazendo aqui as correspondências dessa analogia com o fenômeno biológico, a bola tacada pelo jogador seria o íon sódio que atravessou a membrana, as bolas intermediárias seriam os íons citoplasmáticos que conduzem a corrente elétrica gerada pela entrada do íon sódio, e a última bola representa o cátion monovalente que se move no extremo distal, no sentido do eixo central dessa célula excitável cilíndrica. Esse tipo de condução de corrente elétrica por íons dentro do citoplasma de uma célula que é gerada pela movimentação de cargas através da membrana plasmática é chamada de condução (ou corrente) eletrotônica.
Figura 9.19 ■ A. Repulsão/atração entre íons citoplasmáticos como origem da corrente eletrotônica. B. Analogia do bilhar para a corrente eletrônica: a bola branca representa o íon Na que entrou no citoplasma, e as bolas coloridas, os íons citoplasmáticos com que o Na+ interage.
▸ A capacitância e a resistência da membrana limitam a velocidade e o alcance da transmissão elétrica de informação em uma célula excitável. Uma transmissão rápida de sinal elétrico ao longo de uma célula seria conseguida facilmente se: (1) o sinal em si se estabelecesse muito rapidamente, e (2) tivesse um grande alcance no espaço – isto é, com perda pequena de intensidade ao se afastar do ponto em que foi inicialmente gerado. Porém, como não existe perfeição na Biologia, não há célula com uma membrana perfeitamente impermeável às cargas elétricas dos íons. Muito pelo contrário, a membrana plasmática é um isolante bastante ineficiente, se comparada com outros materiais como plástico ou borracha. Mesmo assim, as membranas celulares são um isolante eficiente o bastante para permitir a separação de cargas iônicas entre os meios intra e extracelular, sendo por isso a região em que ocorre a diferença de potencial elétrico que chamamos de potencial de membrana e, portanto, sendo um capacitor (ver “Gênese do Potencial de Membrana”). Nesse sentido, é um capacitor muito eficiente, pois, por ser muito delgada, a membrana permite que a energia potencial elétrica associada à separação das cargas seja relativamente baixa. Isso porque as cargas em um lado e no outro da membrana estão muito próximas e seus campos elétricos praticamente se anulam, reduzindo o custo energético associado à perda da eletroneutralidade nos meios intra e extracelular (Figura 9.20). Assim, a membrana consegue armazenar uma quantidade muito grande de cargas sem que isso gere uma grande diferença de potencial elétrico. Em outras palavras, a variação da quantidade de cargas separadas pela membrana tem um efeito relativamente pequeno sobre o potencial de membrana. Essa característica tem um efeito positivo, por exemplo, em transportadores que realizam transporte acoplado, pois grandes quantidades de substância podem ser movidas sem que o potencial de membrana varie muito e, portanto, sem repercussões importantes sobre o “combustível” desse transporte, o do íon movente. Por outro lado, essa mesma característica capacitiva da membrana faz com que uma quantidade relativamente grande de cargas tenha de ser transportada através da membrana para que o potencial de membrana seja variado, o que impõe um intervalo de tempo para esse carregamento da membrana, limitando assim a velocidade com que uma variação de potencial elétrico (um potencial graduado) ocorre em dado ponto da membrana de uma célula (ver Aplicação 10). Ou seja, quanto maior a capacitância da membrana, maior o tempo para que seu potencial de membrana possa ser variado.
Figura 9.20 ■ Capacitância elétrica da membrana e o efeito da bainha de mielina sobre ela.
Como a capacitância é diretamente proporcional à área da membrana e inversamente proporcional à sua espessura (ver equação 9.4), células pequenas têm um tempo de carregamento relativamente curto. Nos vertebrados e em alguns invertebrados – como minhocas, camarões e algumas espécies de zooplâncton –, surgiu uma adaptação exclusiva do sistema nervoso que diminui a capacitância efetiva dos neurônios ao aumentar a espessura do isolante que separa os meios intra e extracelular e, portanto, diminui o efeito de neutralização mútua dos campos elétricos dos íons que constituem as cargas opostas entre os meios. Essa adaptação é a bainha de mielina (ver Figura 9.20), que é formada por células acessórias aos neurônios8 que apresentam regiões com citoplasma praticamente inexistente, delimitadas por uma membrana muito pobre em proteínas, mas rica no lipídio de membrana esfingomielina. Essas regiões se enrolam em torno de axônios (e, raramente, de dendritos), compondo assim um revestimento lipídico dos segmentos axonais, semelhante à bainha de uma espada – daí o nome dessa estrutura. Assim, a membrana do neurônio em contato com a bainha de mielina
fica “encapada” por uma grossa camada de material isolante, o que, além de diminuir a capacitância efetiva da membrana, afastando os meios intra e extracelular entre si, também aumenta a resistência efetiva de sua membrana, o que também tem repercussões sobre a transmissão elétrica nessas células, como veremos a seguir. Entre uma célula formadora de bainha e outra ao longo da fibra, há uma pequena área de membrana do axônio que fica exposta ao meio extracelular. Essas regiões são chamadas de nós de Ranvier, onde são encontrados com grande densidade canais para sódio e potássio dependentes de voltagem e canais de vazamento. Voltando à questão da ineficiência da membrana como isolante, fica claro que a resistência elétrica da membrana não pode ser infinita, pois ela contém canais que conduzem íons entre os meios intra e extracelular. Assim, comparando ao exemplo da célula cilíndrica hipotética, com membrana impermeável aos íons e sua analogia com o bilhar (ver Figura 9.19), os íons citoplasmáticos em uma célula real não estão restritos a se movimentarem somente dentro do citoplasma conduzindo corrente quando perturbados pelo influxo do sódio. Também podem movimentarse pelos canais de vazamento da membrana e saírem do citoplasma (ou íons extracelulares entrarem pelos mesmos canais), o que dissipa, ao longo do eixo da célula, a transmissão do efeito do campo elétrico do íon sódio entrante (Figura 9.21 A). Ou seja, a existência de uma resistência elétrica de membrana finita (i. e., de uma condutância de membrana mensurável) limita o alcance de um potencial graduado ao longo de uma célula excitável alongada. Todavia, quanto maior for a resistência da membrana, maior o alcance espacial da ΔVM, deflagrada pelo estímulo, na célula. Uma estratégia evolutiva que aumenta a resistência elétrica entre os meios intra e extracelular é a bainha de mielina, que, dessa forma, não só acelera a velocidade do sinal elétrico em um ponto da membrana, mas também seu alcance à distância. Entretanto, ao determinarem a resistência da membrana, os canais de vazamento não afetam somente o alcance espacial do potencial graduado. Quanto maior é a densidade de canais de vazamento no sítio de geração do potencial graduado, menor a intensidade máxima do potencial que é registrada e também menos tempo dura esse evento. Considerando que o potencial graduado é uma variação de voltagem sobre o potencial de repouso – que é uma situação estacionária, na qual a soma das correntes dos diferentes íons através da membrana é nula –, as forças moventes dos íons pelos seus canais de vazamento seletivos (VM – Eíon) são alteradas pela mudança do VM constituída pelo potencial graduado. Assim, as correntes iônicas veiculadas pelos canais de vazamento são alteradas, sem haver, no entanto, alteração da condutância intrínseca dos canais, pois:
Figura 9.21 ■ A. Efeito da resistência da membrana sobre o alcance de variações do potencial de membrana no espaço. B. Efeito da resistência da membrana sobre o intervalo de tempo para o estabelecimento de um novo patamar de
potencial de membrana frente a injeções de corrente. Os esquemas em fundo laranja e a curva laranja no gráfico correspondente à situação de alta RM. Os esquemas em fundo roxo e a curva roxa no gráfico, à de baixa RM.
Como ilustra a Figura 9.21 B, essas correntes de vazamento se contrapõem às mediadas pelos canais dependentes do estímulo. Além disso, repolarizam a membrana quando o estímulo cessa e os canais dependentes retornam para seu estado de repouso. Portanto, quanto maior for a densidade de canais de vazamento, maiores serão as correntes que tendem a trazer o potencial de membrana ao seu valor de repouso, o que limita a intensidade do potencial graduado e o repolariza ao potencial de repouso mais rapidamente, restringindo a duração do sinal elétrico. Além de afetar o alcance espacial do sinal elétrico, a resistência da membrana, como a capacitância, também afeta a velocidade de propagação do sinal na célula (ver Figura 9.21 B). Aqui, entender o que ocorre é um pouco mais complicado do que o que foi discutido para a capacitância, pois a relação entre o tempo de carregamento da membrana e a resistência de membrana é mais complexa. Com efeito, a equação que descreve quanto tempo o carregamento da membrana demora para atingir uma dada ΔVM, em função da corrente injetada e da capacitância e resistência da membrana, mostra que o tempo de carregamento depende da resistência em dois pontos:9
Inicialmente podemos pensar que, já que o potencial graduado é devido à injeção de íons através dos canais dependentes do estímulo, se houver ao redor desses canais dependentes também canais de vazamento, os íons injetados poderiam “escapar”, pelos canais de vazamento, de conduzir corrente eletrotônica. Assim, em um primeiro momento, uma membrana com menor densidade de canais de vazamento (ou revestida por bainha de mielina) retém mais eficientemente no citoplasma as cargas injetadas em decorrência do estímulo do que uma membrana com grande densidade de canais de vazamento (ou sem bainha de mielina). Isso implicaria que uma célula com poucos canais (alta resistência) tivesse uma velocidade maior de variação do seu potencial de membrana do que uma com muitos canais (alta condutância). No começo isso de fato acontece. No entanto, como a facilidade de retenção de cargas na célula com poucos canais é maior, mais tempo demora para que, ao final, a célula atinja um novo potencial de membrana estável, mais intenso do que aquele que se atinge na célula vazada. Em ambos os casos, um novo estado estacionário é alcançado nas duas células, no qual a corrente iônica que vaza pelos canais de vazamento se iguala em intensidade, mas não em sentido, àquela injetada pelos canais dependentes. Na célula com alta resistência de membrana, essa corrente é atingida à custa de mais força movente (I = VM↑/RM↑), enquanto na com baixa resistência o mesmo valor de corrente é atingido em uma força movente menor, pois a facilidade que os íons encontram para cruzar a membrana é maior (I = VM↓/RM↓). Assim, se o efeito biológico do potencial graduado depender da velocidade inicial de variaçãodo potencial de membrana, ou de uma variação final de potencial mais intensa (ainda que mais demorada), isso será conseguido em células que tenham baixa densidade de canais de vazamento ou tenham bainha de mielina. O tempo característico para que um dado ponto da membrana se carregue até certo valor de VM é produto, portanto, tanto de RMquanto de CM (ver Aplicação 9), sendo descrito pela constante de tempo da membrana (τ):
Até aqui vimos que há dois fatores que afetam a velocidade com que um sinal elétrico (uma variação no VM) se desenvolve – a capacitância e a resistência elétricas da membrana – e um fator que afeta o alcance desse sinal no espaço – novamente a resistência da membrana. Há ainda outro fator do qual o alcance do sinal elétrico depende: a dificuldade que a corrente eletrotônica encontra para ser conduzida pelo citoplasma, o que é denominado resistência elétrica axial (Figura 9.22). Se a resistência axial (RA) for alta, naturalmente será dificultado o fluxo de íons pelo citoplasma quando eles são perturbados pela entrada de cargas promovida pelos canais dependentes na presença de seus estímulos específicos. Assim, se a condução é dificultada no citoplasma, maior é a chance de os íons também “escaparem” pelos canais de vazamento na membrana. Uma analogia seria o fluxo de água por duas mangueiras com vários furos (ver Figura 9.22): se houver um entupimento em algum ponto de uma das mangueiras, maior altura a saída de água pelos furos alcançará antes do entupimento e menor essa altura nos furos que se seguem à região entupida. Isso significa que o perfil de pressão cai mais intensamente ao longo do comprimento da mangueira entupida, e justo ao redor da região entupida, em relação à mangueira desobstruída, cujo perfil de pressão cai homogeneamente ao longo de seu comprimento. Nesse exemplo
hidráulico, a mangueira é análoga à membrana; o fluxo de água, à corrente eletrotônica; os furos, aos canais de vazamento; o entupimento, à resistência axial; e a altura alcançada pela água nos furos, ao potencial de membrana em cada ponto. Entretanto, do que depende a resistência axial? Como ela pode ser reduzida, aumentando o alcance da ΔVM? O citoplasma na realidade não é um meio homogêneo, pois nele há um grande amontoamento de proteínas solúveis e insolúveis (p. ex., citoesqueleto) e de organelas que restringem em maior ou menor grau a movimentação dos íons. Se o segmento celular que estivermos considerando for muito fino, por exemplo, há grande probabilidade de os íons, em seu movimento térmico, chocaremse com o meio não condutor da membrana, dissipando parte da sua energia cinética orientada no sentido axial, que por sua vez deriva da energia potencial elétrica adquirida com o fluxo de íons na membrana através dos canais ativados pelo estímulo. Se, porém, o raio desse segmento for dobrado, a área de citoplasma por onde os íons podem conduzir corrente eletrotônica será quadruplicada, pois, lembrando que Área = π ꞏ (raio)2, temse que Áreainicial = πr2 e Áreafinal = π(2r)2 = 4(πr2) = 4(Áreainicial). Ou seja, a facilidade que os íons encontram em conduzir corrente pelo citoplasma quadruplica. Ao mesmo tempo, a área de membrana que poderia atrapalhar a condução eletrotônica é somente dobrada, pois o perímetro do segmento correspondente à membrana é função direta do raio (Perímetro = 2πr) e a área de membrana do segmento fica sendo Área de membrana = (Perímetro) ꞏ (Comprimento do segmento). Assim, o saldo de se ter um segmento de célula com diâmetro de citoplasma dobrado claramente favorece a redução da resistência axial, aumentando o alcance do potencial graduado no espaço.
Figura 9.22 ■ Analogia hidráulica para o efeito da condutância axial citoplasmática sobre a condução eletrotônica e o alcance de variações do potencial de membrana no espaço.
Como a resistência de membrana (RM) e a resistência axial (RA) afetam o alcance espacial de uma ΔVM, mas com efeitos inversos, o decaimento do VM em função do espaço pode ser descrito quantitativamente pela seguinte equação:
em que VM (x) é o valor do potencial de membrana em função do espaço (x), VM (0) é o valor do potencial de membrana no ponto x = 0 (p. ex., onde se localiza o canal dependente de estímulo que deu início à perturbação do VM), e λ é a chamada constante de espaço da membrana, sendo a distância em que VM perdeu 63% de seu valor em relação àquele no ponto x = 0 (ver Figura 9.21 A). A constante de espaço descreve os efeitos combinados de RM e RA sobre o alcance de um sinal elétrico correspondente a uma variação de VM, por ser:
Voltando agora aos dois requisitos para a rápida transmissão elétrica em células excitáveis longas com que iniciamos este tópico, podemos resumir, no Quadro 9.2, os fatores físicos e seus correspondentes biológicos que favorecem o cumprimento desses dois requisitos.
Da análise do Quadro 9.2, fica a pergunta: todas as nossas células excitáveis conseguem preencher esses requisitos, garantindo que a informação portada pelos potenciais graduados alcance rápida e amplamente todas as suas regiões, através de condução eletrotônica, e sem perdas importantes de sinal no trajeto? Alguns neurônios, como os da retina, são suficientemente curtos para que possam conduzir rapidamente, em si mesmos, informação exclusivamente na forma de potenciais graduados e correntes eletrotônicas. Isso é possível porque suas dimensões limitadas são bem menores do que a constante de espaço calculada com base nos seus valores para os fatores físicos listados no Quadro 9.2. Ademais, também porque suas dimensões são pequenas, a área de membrana é pequena, o que implica baixa capacitância e poucos canais de vazamento (alta resistência), contribuindo para uma velocidade de variação do VM em resposta ao estímulo rápida.
Quadro 9.2 ■ Requisitos para transmissão rápida, fatores físicos e seus correspondentes biológicos. Requisitos para transmissão rápida
Fatores físicos
Estruturas biológicas
Velocidade rápida de desenvolvimento do
Baixa capacitância de
Célula pequena
sinal elétrico em um ponto da membrana
membrana Alta resistência de membrana (no início do sinal) Baixa resistência de
Poucos canais de vazamento Bainha de mielina Muitos canais de vazamento
membrana (para atingir o pico do sinal, que terá baixa amplitude) Longo alcance do sinal ao longo do
Alta resistência de membrana
comprimento da membrana, sem perda
Bainha de mielina
detectável de sua intensidade conforme a distância se afasta do ponto de origem do sinal na membrana (i. e., alta λ)
Poucos canais de vazamento
Baixa resistência axial
Aumento do diâmetro celular
Porém, a imensa maioria dos neurônios e das fibras musculares tem dimensões muito maiores do que suas constantes de espaço e, pelo mesmo motivo, tem capacitância muito grande. Como no caso dos neurônios e fibras musculares discutidas no arco reflexo de retirada, a informação mediada por potenciais graduados não pode ser transmitida exclusivamente por condução eletrotônica ao longo dessas células, isto é, contando somente com eventos elétricos na membrana mediados por canais geradores do potencial graduado e canais de vazamento. Como a atividade dos canais de vazamento está sempre disponível na membrana e não é, em princípio, modificada pela ocorrência dos potenciais graduados, a condução eletrotônica de sinal é considerada uma condução passiva. De qualquer forma, não se pode escapar do fato de que o potencial graduado é o sinal elétrico que imediatamente porta, de forma analógica, a informação sobre a identidade, a intensidade e a duração do estímulo. Por outro lado, fica evidente que o potencial graduado, por si só, não consegue ter a velocidade e o alcance observados no arco reflexo aqui discutido. Disso se conclui que outras estruturas de membrana e outras formas de condução têm de estar envolvidas nessa transmissão rápida e ampla de informação, além dos canais dependentes desses estímulos. De fato isso realmente ocorre e, no caso dessas células musculares e neuronais que participam do arco reflexo, por exemplo, o potencial graduado constitui um estímulo gerado na membrana que modifica o funcionamento dessas segundas estruturas de membrana que participam da transmissão de sinal em seguida aos canais que geraram o potencial graduado. Tais estruturas também são canais dependentes, mas o que os modula é uma variação do potencial de membrana (no caso, o potencial graduado). São os canais dependentes de voltagem (ver Capítulo 10), dos quais trataremos daqui até o final deste capítulo. Porém, como canais iônicos são os principais determinantes da intensidade do potencial de membrana
momento a momento, os canais dependentes de voltagem também podem alterar o potencial de membrana, dependendo de estarem ou não conduzindo corrente iônica. Notese aqui que, com os canais dependentes de voltagem, temos uma situação de retroalimentação: uma variação de potencial de membrana modula a atividade de canais dependente de voltagem que, por isso, podem variar o potencial de membrana, modulando a atividade de outros canais dependentes de voltagem ao lado... e assim por diante, resolvendo o requisito não cumprido pela condução puramente eletrotônica de garantir um amplo alcance espacial do sinal. Podese perceber aqui que, se houver canais dependentes de voltagem relativamente próximos (i. e., em uma distância menor do que a constante de espaço λ) e distribuídos por toda a membrana da célula, essa ativação de canais dependentes de voltagem passará a ser, ao mesmo tempo, sua própria causa e efeito: o sinal elétrico agora gerado por esses canais vai sendo reproduzido (regenerado) em cada ponto onde houver outros canais dependentes de voltagem, como em uma avalanche. Ou seja, a partir do momento em que canais dependentes de voltagem ativados pelo potencial graduado conseguem ativar outros canais dependentes de voltagem, vencendo o efeito de repolarização dos canais de vazamento (ver Figura 9.21 B), o sinal elétrico gerado por eles é inevitavelmente refeito em todos os pontos que contenham canais semelhantes. Ou seja, esse sinal ou acontece, ou não acontece, sendo por isso chamado de um evento “tudo ou nada” (Figura 9.23 A). Como o sinal é refeito ponto a ponto, as dos íons através da membrana são consumidas um pouco mais em todos os pontos da membrana pelos fluxos iônicos adicionais que surgem através dos canais dependentes de voltagem, o que demanda maior consumo de energia livre por mecanismos de transporte ativo –principalmente pela Na/K ATPase – no sentido de manter essas . Há aqui, portanto, uma condução ativa de sinal, e não passiva, como na condução eletrotônica do potencial graduado. Assim, esse sinal de voltagem criado ativamente pelos canais dependentes de voltagem é chamado de potencial de ação. Não só o potencial de ação cumpre o requisito do alcance de sinal para a rápida transmissão da informação, mas também resolve o problema da velocidade de geração do sinal a cada ponto, o que emana do fato de ser um evento baseado na retroalimentação entre as atividades dos canais dependentes de voltagem. No entanto, como se trata de um evento “tudo ou nada”, a intensidade do potencial de ação não tem como relatar a intensidade do estímulo inicial analogicamente, como faz o potencial graduado de que depende para ser deflagrado. Em outras palavras, sendo algo que ou ocorre (“1”) ou não (“0”), o potencial de ação não é um sinal analógico como o potencial graduado, e sim um sinal digital. Há aí uma conversão da forma de codificação com que a informação do estímulo é veiculada por sinais elétricos de variação do VM. Como veremos adiante, inicialmente acontece a transdução analógica do estímulo em potencial graduado, pelos canais dependentes do estímulo, que a seguir leva à codificação digital do potencial graduado na forma da frequência com que ocorrem potenciais de ação, disparados pelos canais dependentes de voltagem (ver Figura 9.31, mais adiante). Tendo entendido aqui os papéis que os potenciais graduados e os potenciais de ação têm na transdução e codificação dos estímulos, veremos a seguir os mecanismos moleculares e celulares pelos quais os canais dependentes de voltagem codificam e propagam essa informação dos estímulos pelos neurônios e fibras musculares. ▸ O potencial de ação originase da retroalimentação positiva entre canais
dependentes de voltagem despolarizantes para sódio ou cálcio e é terminado pela repolarização promovida por canais para potássio dependentes de voltagem. Até aqui chegamos à conclusão de que a transmissão de informação por longas distâncias em uma célula excitável depende de canais dependentes de voltagem que medeiam uma variação “tudo ou nada” do VM que é ativamente conduzida pelas regiões da membrana que têm canais dependentes de voltagem. Esses canais são seletivos ou a sódio, ou a cálcio – que, como vimos, são íons cujo aumento da condutância causará despolarização –, ou ainda a potássio, íon cujo aumento de condutância tenderá a uma hiperpolarização em relação ao potencial de repouso. Ao evento “tudo ou nada” mediado por esses canais dependentes de voltagem demos o nome de potencial de ação, mas ainda não explicamos como é um potencial de ação, ou seja, qual é o seu perfil no tempo quando ocorre em dado ponto da membrana. Na verdade, não há um único perfil temporal de potencial de ação que seja comum a todas as células excitáveis (para alguns exemplos, ver Figura 9.24). No entanto, há, sim, algumas características comuns a todos os tipos de potencial de ação (ver Figura 9.24), a saber: ■ O início de todo potencial de ação é uma despolarização muito intensa (muitas vezes com overshoot do VM) e extremamente rápida (comumente na faixa dos μs). Como sabemos que o potencial de ação é uma consequência da atividade de canais dependentes de voltagem, chegase à conclusão de que nessa fase inicial do potencial de ação prevalece a atividade de canais para sódio e/ou cálcio dependentes de voltagem.10 Em geral são os canais para sódio dependentes de voltagem (ou Nav) que respondem por essa rápida despolarização
■ A despolarização rápida desacelera e atinge um valor máximo (o pico do potencial de ação), para logo ser sucedida por repolarização. Esse pico é um momento de duração praticamente indetectável, mas, como nesse instante a variação do VM muda de sentido (de despolarização para repolarização), no pico do potencial de ação o VM é momentaneamente estável – ou seja, não há ΔVM ocorrendo no pico do potencial de ação. Isso só é possível se, nesse brevíssimo intervalo, a soma de todas as correntes iônicas fluindo naquele ponto da membrana for nula ■ A partir do pico do potencial de ação, o “cabo de guerra” entre as correntes iônicas passa a ser vencido, mais cedo ou mais tarde, por uma corrente repolarizante catiônica ativada por voltagem, que só pode ser de potássio. Ou seja, na repolarização passa a prevalecer a atividade dos canais para potássio dependentes de voltagem (os Kv).
Figura 9.23 ■ Diagramas de blocos para os fenômenos subjacentes ao potencial de ação. A. Descrição do potencial de ação com base nas correntes iônicas envolvidas. B. Descrição do potencial de ação com base nos canais dependentes de voltagem e seus estados de condutividade.
Porém, qual é o gatilho para que toda essa sequência de eventos que compõem o potencial de ação ocorra? Os potenciais de ação iniciamse com uma despolarização da membrana, geralmente um potencial graduado, mas nem toda despolarização consegue deflagrar um potencial de ação. Em experimentos em que a despolarização é induzida artificialmente por injeção de corrente no citoplasma, observase que somente a partir de certo nível de despolarização do
potencial de membrana surge o potencial de ação no ponto de injeção da corrente (Figura 9.25). A partir desse potencial, outros estímulos elétricos que causem despolarizações ainda mais intensas também deflagrarão potenciais de ação similares. Esse potencial é, portanto, um ponto muito instável, sendo o limite a partir do qual despolarizações maiores inevitavelmente gerarão um potencial de ação e despolarizações menores não terão como deflagrar potenciais de ação. Por isso é chamado de potencial limiar de deflagração do potencial de ação.
Figura 9.24 ■ Exemplos de potenciais de ação registrados em diferentes células excitáveis e suas fases típicas: despolarização (rosa), pico (azul), platô (preto) e repolarização (verde). Note as diferenças marcantes no formato, amplitude e duração desses eventos.
O que ocorre no potencial limiar para que ele seja esse divisor de águas para a ocorrência ou não do potencial de ação? Ele é justamente o potencial de membrana que consegue abrir um número suficiente de canais para sódio11 que conseguem gerar uma corrente igual em intensidade, mas oposta em sentido, àquela repolarizante gerada concomitantemente pelos canais para potássio de vazamento e pelos eventuais canais para potássio dependentes de voltagem que já se abram em resposta à despolarização. Despolarizações maiores do que o potencial limiar, portanto, abrirão ainda mais canais para sódio dependentes de voltagem, e assim a corrente de sódio será maior, em módulo, do que as correntes de potássio simultâneas repolarizantes. Com esse saldo positivo das correntes despolarizantes mediadas por sódio, mais despolarizado se tornará o potencial de membrana, o que recrutará mais canais para sódio a saírem do estado fechado para o aberto, e assim sucessivamente, em um efeito de retroalimentação positiva de despolarização que explica a primeira característica comum a todos os potenciais de ação discutida anteriormente (ver Figuras 9.23 B e 9.25). No nível molecular, como surge a dependência de voltagem apresentada tanto pelos canais para sódio quanto pelos canais para cálcio e pelos canais para potássio dependentes de voltagem? Para que qualquer estrutura possa sofrer a influência de diferenças de potencial elétrico, ela deve ter cargas elétricas. Como os canais dependentes de voltagem são proteínas de membrana e a diferença de potencial elétrico ocorre através da membrana, a dependência de, ou sensibilidade a, voltagem desses canais necessariamente depende de terem cargas elétricas em algum de seus segmentos transmembrânicos. Como discutido no Capítulo 10, a estrutura básica dos canais dependentes de voltagem é formada por quatro arranjos (domínios) de seis segmentos proteicos transmembrânicos em alfahélice (S1 a S6) (Figura 9.26). Dentro de cada domínio, entre os segmentos S5 e S6 há uma alça reentrante na membrana sem estrutura secundária definida, o segmento P. Os quatro segmentos P dos quatro domínios formam o filtro de seletividade do canal para o seu íon permeante específico. No segmento S4 encontramse resíduos de aminoácidos polares básicos que, portanto, têm carga positiva, fazendo com que o segmento S4 seja o sensor de voltagem de todos os canais dependentes de voltagem
conhecidos nos animais. A função dos segmentos S1 a S3 ainda é bastante debatida, mas há evidências de que, ao envolverem o segmento S4, funcionam tanto como um “escudo” estabilizante das cargas do sensor frente ao efeito hidrofóbico do interior apolar da membrana, quanto “guias” para a movimentação orientada desses sensores dentro do campo elétrico da membrana que permite que as comportas (gates) intracelulares de ativação, que ocluem a passagem de íons pelo vestíbulo interno do canal, desloquemse, liberando passagem para os íons permeantes.
Figura 9.25 ■ Limiar de deflagração do evento e natureza “tudo ou nada” dos potenciais de ação.
Figura 9.26 ■ Correlação entre a estrutura molecular e a atividade de canais dependentes de voltagem para sódio (Nav) e potássio (Kv). São apresentados esquemas representativos com visões superiores de um canal dependente de voltagem qualquer e seus quatro domínios formadores do canal funcional, cada um com seis segmentos transmembrânicos (S4 sensor de voltagem, S5 e S6 compondo as paredes da via condutiva do canal). Em visão lateral, apresentase esquema de dois dos quatro domínios que compõem um Nav. Sobrepostas ao fundo amarelo estão representadas combinações possíveis para o estado aberto e inativo dos Nav e, em azul, a configuração aberta dos Kv.
Note que, para termos um canal funcional, precisamos ter quatro domínios interagindo entre si, cada um deles com uma comporta formada por S5 e S6 sob o controle dependente de voltagem de S4. No caso dos Nav, se quaisquer três dessas quatro comportas se abrirem, em princípio o canal passará de um estado não condutivo, denominado estado fechado, para um estado condutivo, ou estado aberto (ou, em nomenclatura mais antiga, mas às vezes usada, estado ativo). Já no caso dos Kv, estes só se abrem se suas quatro comportas de ativação estiverem abertas. Essa diferença, aparentemente banal, é o que explica o fato de que a população de canais para sódio de uma célula excitável responda mais rapidamente a uma despolarização do que a de canais para potássio, pois a probabilidade de quaisquer três de quatro comportas de ativação estarem abertas em um mesmo instante é maior do que todas as quatro estarem abertas no mesmo instante, no caso dos Kv, frente à mesma despolarização. Se não fosse assim, não haveria como o potencial de ação se iniciar com o predomínio da atividade dos Nav sobre a dos Kv, pois o mecanismo de sensoriamento de voltagem para os dois tipos de canais é o mesmo. Por outro lado, é importante lembrar que essas transições de conformação das comportas de ativação serão tão mais prováveis quanto maior for o seu estado intrínseco de agitação molecular; em outras palavras, quanto maior for a temperatura. Isso faz com que, quanto maior for a temperatura, menor seja a diferença no tempo de
resposta a uma despolarização supralimiar entre os Kv e os Nav, o que altera significativamente o perfil do potencial de ação em um dado ponto de uma célula excitável, que vai se tornando cada vez mais curto e com menor amplitude, dado que a velocidade de ativação dos Kv é acelerada (Figura 9.27). Até aqui explicamos as bases moleculares e funcionais responsáveis pela primeira característica comum a todos os potenciais de ação listada anteriormente: a de se iniciar com uma rápida despolarização promovida por canais Nav que se sustenta por estes canais serem mais rápidos do que os Kv para responderem à despolarização supralimiar. Entretanto, ainda não conseguimos explicar as bases moleculares para que, a partir de certo ponto – o pico do potencial de ação –, a atividade dos Kv passe a prevalecer sobre a dos Nav (i. e., |IK| > |INa|), gerando repolarização. Poderseia imaginar que a densidade e/ou condutância máxima dos Kv na membrana fosse maior do que a dos Nav. Assim, mesmo que inicialmente mais lentos, a corrente mediada pelo conjunto dos Kv superaria aquela ainda ativa pelos Nav. Estudos realizados por Alan Hodgkin e Andrew Huxley entre o fim dos anos 1940 e início dos 1950, todavia, mostraram que também a corrente de sódio dependente de voltagem (que hoje se sabe ser mediada pelos canais Nav), independentemente da atividade dos Kv, diminui (i. e., se inativa) se a membrana for mantida despolarizada pelo experimentador (Figura 9.28 A). Pelo contrário, se a mesma manobra é realizada em uma preparação em que se meça somente a corrente de potássio, esta não se inativa, e permanece ativa enquanto perdurar o estímulo despolarizante. Ao longo dos anos, vários pesquisadores após o trabalho seminal de Hodgkin e Huxley (ver Quadro 9.2) demonstraram a existência dos canais iônicos e seu papel como mediadores das correntes ativadas por voltagem registradas por esses dois pesquisadores ingleses. Ademais, hoje se tem conhecimento no nível atômico da estrutura básica dos canais dependentes de voltagem e até mesmo de algumas conformações moleculares possíveis associadas aos diferentes estados dos canais. Ou seja, como discutimos anteriormente o funcionamento das comportas de ativação e dos domínios e segmentos transmembrânicos, já temos conhecimento dos eventos moleculares que explicam os fenômenos elétricos empíricos subjacentes aos potenciais de ação que foram registrados por Hodgkin e Huxley. Dessa forma, considerase que, enquanto os Kv possam transitar somente entre dois estados – um não condutivo (fechado, predominante no potencial de repouso) e outro condutivo (aberto, mais provável quanto mais a membrana está despolarizada) –, os Nav apresentam três tipos de estados – um condutivo (aberto, desencadeado por despolarização), e dois não condutivos: o estado fechado, que, como no caso dos Kv, predomina no potencial de repouso; e o estado inativo, que corresponde à situação detectada por Hodgkin e Huxley em que a corrente de sódio ativada por despolarização vai se inativando (se desligando) ainda na presença de despolarização. Em outras palavras, os Nav têm dois estados igualmente não condutivos, mas cujas causas são diametralmente opostas: o estado fechado, associado a potenciais intracelulares negativos, e o estado inativo, associado a despolarizações mantidas. Novamente, como no caso da cinética de resposta a despolarizações, são diferenças entre as estruturas dos Kv e dos Nav que explicam a ocorrência do estado inativo nos Nav e, em uma primeira análise, sua ausência nos Kv. No caso dos Kv, os quatro domínios formadores do canal ativo não fazem parte de uma única proteína, constituindo, cada um, uma subunidade diferente. Assim, os canais para potássio dependentes de voltagem podem ser formados por múltiplas combinações possíveis de quaisquer quatro dentre várias subunidades de Kv. Isso empresta a esses canais uma variedade funcional muito grande. Já no caso de cada Nav, os quatro domínios fazem parte de uma única proteína, de um único gene. Assim, nos Nav, os quatro domínios estão conectados entre si por alças intracelulares da proteína (ver Figura 9.26). A alça intracelular entre os domínios III e IV dos Nav constitui uma estrutura globular, mas com certa mobilidade térmica e que apresenta alguns aminoácidos apolares em sua superfície. Isso confere afinidade pela abertura intracelular do vestíbulo do canal, que, por ser uma região transmembrana, também tem características apolares. Com isso, essa região intracelular constitui também uma comporta adicional do canal, ausente nos Kv: a comporta de inativação.12 Dada sua morfologia e mobilidade, como se fosse uma bola atada a um barbante (semelhante a um bilboquê), essa comporta também é conhecida como bola de inativação (mecanismo de ballandchain – bola e corrente). Note que essa comporta, ao ter seu acesso à boca do vestíbulo facilitado pela movimentação das comportas de ativação, que são diretamente controladas pelo VM, é indiretamente também dependente de voltagem. Entretanto, à diferença das comportas de ativação, cuja probabilidade de estarem abertas aumenta quanto maior for a intensidade da despolarização, a comporta de inativação funciona ao contrário.
Figura 9.27 ■ Efeito da temperatura sobre o formato do potencial de ação no axônio gigante de lula. (Traçados gerados a partir do programa NERVE, desenvolvido pelo Prof. Francisco Bezanilla, da Universidade de Chicago, e disponível em http://nerve.bsd.uchicago.edu.)
Quanto mais despolarizado o VM, maior a probabilidade de a comporta de inativação transitar de uma conformação que deixa livre a boca do vestíbulo do canal para a outra, em que a oclui.13 A essa conformação corresponde o estado inativo dos Nav. Como o fechamento da comporta de inativação é dependente em parte de sua afinidade hidrofóbica natural pelo vestíbulo do canal, e por outra parte pela facilitação de seu acesso ao vestíbulo pelo movimento das comportas de ativação, duas consequências importantes decorrem daí para o funcionamento dos Nav e, portanto, para as propriedades do potencial de ação. Em primeiro lugar, a cinética da resposta de inativação frente a uma despolarização é mais lenta do que da de ativação (Figura 9.28 B). Assim, ainda que seja possível, é menos provável que a comporta de inativação se feche antes que todas as comportas de ativação estejam abertas. Se a inativação fosse mais rápida do que a ativação, o ciclo de retroalimentação positiva entre os Nav, em que quanto mais canais se ativam, maior a despolarização e mais canais são ativados, seria impossível. Por outro lado, o fato de as comportas de ativação estarem todas fechadas no potencial de repouso, e isso dificultar o fechamento da comporta de ativação, não significa que nenhuma comporta de inativação esteja fechada no repouso. Com efeito, no axônio gigante da lula estimase que no repouso aproximadamente 40% dos Nav estejam inativos (ver Figura 9.28 B). Isso não implica que no caso dos Nav o repouso seja uma situação estática na qual um dado Nav esteja sempre inativo. Pelo contrário, essa é uma situação dinâmica: um canal que em dado instante estava inativo pode passar a estar fechado por mera oscilação térmica no instante seguinte. No entanto, momento a momento, 40% da população dos Nav naquela região de membrana se encontram no estado inativo, e o restante, no estado fechado durante todo o tempo em que o VM estiver em seu valor de repouso. Assim, os Nav que podem dar início ao potencial de ação são aqueles que estejam naquele instante no estado fechado, o que, no caso do potencial de repouso do axônio gigante da lula, corresponde a somente 60% dos canais para sódio dependentes de voltagem dessa célula. Em linguagem corriqueira, o estado fechado dos Nav é o seu único estado “abrível” e, por isso, é o único estado a partir do qual se pode iniciar um potencial de ação.
Figura 9.28 ■ A. Ilustração dos experimentos de Hodgkin e Huxley em um axônio gigante de lula. O potencial de membrana foi mantido por 4,5 ms em –4 mV (56 mV mais despolarizado que o potencial de membrana de –60 mV). À esquerda, registro da corrente iônica total da membrana (IM) durante o estímulo. Desse registro foram separados os componentes da corrente de sódio (INa – centro) e de potássio (IK – direita). Notese que a INa se ativa mais rapidamente do que a IK, mas logo se inativa, enquanto a IK, não. B. Percentual de canais para sódio inativos (roxo) e a condutância a sódio (azul) durante um potencial de ação em axônio gigante de lula. (Traçados gerados a partir do programa NERVE, desenvolvido pelo Prof. Francisco Bezanilla, da Universidade de Chicago, e disponível em http://nerve.bsd.uchicago.edu.)
Agora que já vimos como funcionam os canais dependentes de voltagem, suas semelhanças e diferenças em relação aos estados associados ao transporte, ou não, dos íons, e as velocidades com que transitam entre esses estados, podemos fazer um sumário dos eventos que caracterizam um potencial de ação durante o seu decurso em dado ponto da membrana de uma célula excitável. Os itens numerados a seguir fazem referência aos pontos numerados do mesmo modo na Figura 9.29. O fluxograma apresentado na Figura 9.23 B também pode ser acompanhado nesse resumo.
Figura 9.29 ■ Interrelações entre o potencial de membrana, sua velocidade de variação, forças moventes para os íons e as correntes e condutâncias durante um potencial de ação em axônio gigante de lula. Explicações dos rótulos numerados estão no texto. (Traçados gerados a partir do programa NERVE, desenvolvido pelo Prof. Francisco Bezanilla, da Universidade de Chicago, e disponível em http://nerve.bsd.uchicago.edu.)
A rápida (1) despolarização (2) que corresponde à primeira fase do potencial de ação é causada por um maciço influxo de cargas positivas (3) na célula ativado por voltagem. Essa corrente de influxo decorre principalmente da rápida abertura de canais para sódio dependentes de voltagem, que medeiam uma robusta corrente de íons sódio (4) que supera o paralelo aumento do efluxo de potássio (5) mediado por canais para potássio dependentes de voltagem. A maciça corrente despolarizante de sódio se deve ao aumento explosivo da condutância da membrana ao sódio (6) associada à abertura dos canais para sódio dependentes de voltagem e à grande força movente inicial para o sódio (7), que é igual a (Vrepouso – ENa). Conforme a despolarização progride, ela desacelera (8), pois a corrente de sódio tende a diminuir de intensidade (9), já que sua força movente diminui (10) com o potencial de membrana aproximandose do seu potencial de equilíbrio. Essa desaceleração da despolarização também se deve ao aumento paralelo da corrente de potássio dependente de voltagem (11), movido, por sua vez, pelo lento aumento da condutância a potássio (12) e pelo aumento da força movente (VM – EK) para esse íon (13). Um pouco antes de o potencial de ação atingir seu pico de despolarização, observase que, apesar da velocidade ainda positiva de despolarização (8), a taxa de abertura de canais para sódio dependentes de voltagem é superada pela taxa de inativação, pois a condutância a sódio começa a cair (14). A partir daí, a condutância a sódio só cairá (15), devido à progressiva inativação dos Nav. O pico do potencial de ação (16), por sua vez, é um instante brevíssimo em que o potencial de membrana fica estável novamente, isto é, a velocidade de variação do potencial de membrana tornase nula (17). Sendo o pico uma situação de estabilidade do VM, ele só pode se dever ao fato de que a soma das correntes iônicas através da membrana nesse instante tornase zero (18). Com efeito, no pico do potencial de ação as correntes de sódio (19) e de potássio (20) dependentes de voltagem igualamse em intensidade, mas têm sentidos opostos (sódio, de influxo; e potássio, de efluxo). A partir do pico, ocorre a repolarização (21), o que corresponde a uma velocidade negativa de variação do VM (22). A repolarização é movida por uma inversão no sentido do fluxo total de cátions através da membrana (23), isso porque a corrente de potássio passa, do pico em diante, a sempre ter maior intensidade (24) do que a de sódio (25). Mesmo com a redução da condutância a sódio (15) causada pela inativação dos Nav, a corrente de sódio mantémse relativamente grande durante o início da repolarização (25), pois o outro determinante de sua intensidade, a força movente para o sódio (VM – ENa), aumenta muito (26) durante a repolarização. Já a corrente para potássio vai caindo ao longo da repolarização (24), pois sua força movente (VM – EK) vai se reduzindo (27) conforme o VM fica mais negativo, o que também ajuda indiretamente a reduzir esse efluxo de potássio, pois promove fechamento progressivo dos Kv e, portanto, da condutância a potássio (28). No caso do potencial de ação do axônio gigante de lula aqui apresentado – bem como em muitos potenciais de ação registrados em nosso tecido nervoso –, observase o fenômeno da hiperpolarização póspotencial (29). Esse fenômeno se deve ao fato de que, dada a cinética mais lenta dos Kv nas suas transições entre os estados aberto e fechado, a condutância a potássio permanece maior do que o seu valor de repouso (30) por algum tempo ainda depois de o VM “passar” pelo seu valor de repouso. A repolarização que se segue à hiperpolarização (31) devese ao fato de que a membrana volta às suas condutâncias iônicas de repouso, determinada pelos canais para sódio e potássio de vazamento.14 ▸ A inativação dos canais para sódio dependentes de voltagem determina a
existência de um período após o potencial de ação em que a membrana fica refratária à geração de novos potenciais de ação. Revendo a Figura 9.28 B, observamos que a recuperação dos Nav a partir do estado inativado é lenta, bem mais lenta do que o fim do potencial de ação e do intervalo em que se pode detectar condutância a sódio dependente de voltagem. Isso significa que a ausência de condutância a sódio ao fim do potencial de ação não decorre do fato de 60% dos Nav encontraremse fechados e os outros 40% inativos, como originalmente no potencial de repouso. Há, sim, uma porcentagem significativamente maior desses canais ainda inativada, reduzindo, portanto, o número de canais Nav no estado fechado. Lembrando que é a partir do estado fechado que os canais podem abrir e gerar a despolarização adicional que se retroalimenta positivamente deflagrando o potencial de ação, se o mesmo estímulo elétrico que deflagrou o potencial de ação for novamente aplicado nesse período, a corrente total de sódio que ele conseguirá ativar pela abertura dos poucos Nav já no estado fechado será menor do que a que gerou no potencial de ação original. Essa corrente menor de sódio pode não ser suficiente para superar a corrente de potássio dependente de voltagem paralelamente ativada. Assim, não se atinge mais um potencial limiar, em que a corrente de sódio se iguala à corrente de potássio. É como se a membrana tivesse perdido sua responsividade original ao mesmo estímulo. Dizse, pois, que a membrana entra em um período refratário ao disparo de potenciais de ação (Figura 9.30). No período refratário, como a densidade de canais Nav no estado fechado é menor do que no repouso pleno, somente estímulos que levem o VM a valores menos negativos do que o potencial limiar original (ou seja, estímulos mais intensos) poderão disparar um novo potencial de ação. Em outras palavras, o potencial limiar é variável e é tão mais despolarizado
quanto mais próximo do início do potencial de ação original for aplicado um novo estímulo. Por isso, no período refratário, os Nav fechados precisam de um bônus de despolarização a mais, provindo do estímulo, para conseguir deflagrar um novo potencial de ação. Outra consequência é que esse novo potencial de ação terá um pico de menor amplitude (Figura 9.31), pois será atingido com um número menor de canais Nav abertos, já que se parte de um número menor de canais “abríveis”, isto é, aqueles canais que já se encontram no estado fechado.
Hodgkin, Huxley e a lula | Molusco tímido, cientistas audazes Alan Hodgkin e Andrew Huxley foram dois cientistas ingleses que, por meio de seus experimentos no axônio gigante da lula (uma fibra nervosa muito calibrosa, com um diâmetro que pode alcançar 1 mm) elucidaram como as condutâncias e correntes dependentes de voltagem interagem entre si na geração do potencial de ação. Nesse animal, o grande diâmetro desse neurônio garante uma rápida propagação do potencial de ação, pois sua constante de espaço é grande, devido à resistência axial baixa (as lulas não tiveram o desenvolvimento de bainha de mielina ao longo de sua evolução). Essa grande velocidade de propagação permite ao animal realizar uma contração rápida e vigorosa do seu manto, permitindo sua fuga de predadores através do jateamento retrógrado de água pelo seu sifão e liberação de tinta. Em um brilhante esforço intelectual e de computação, em uma época em que não havia computador disponível, Hodgkin e Huxley elegantemente construíram um modelo matemático cujos resultados reproduziam fidedignamente suas observações experimentais. Nesse modelo, elaborado antes mesmo de que a existência dos canais fosse comprovada, propuseram que as condutâncias a sódio e a potássio seriam regidas pela movimentação de “partículas”, movimentação cuja probabilidade seria dependente da voltagem através da membrana. Tais partículas poderiam alternar entre estados condutivos e não condutivos. No caso da condutância a sódio, esta seria ativada se três partículas de ativação (cuja probabilidade de estarem, cada uma, em estado condutivo – variando de 0 a 1 – foi denominada por Hodgkin e Huxley como “m“) se encontrassem ao mesmo tempo no estado condutivo (ou seja, a probabilidade de ativação da condutância a sódio seria dada por m3) e que outra partícula (“h“), responsável pela inativação, estivesse também em um estado condutivo. Para a condutância a potássio, a mesma estratégia de modelagem foi seguida, mas, no caso desses íons, o modelo não predizia uma partícula de inativação da corrente (já que efetivamente não observaram inativação das correntes de potássio), e sua ativação seria dependente da probabilidade de que quatro partículas de ativação da condutância (denominadas por eles como “n“) estivessem todas em um estado condutivo (ou seja, n4). Ademais, o modelo se ajustava aos dados experimentais se as constantes de velocidade de transição entre os estados condutivo e não condutivo para m fossem maiores do que para h e n. É impressionante como tal modelo concorda com o que hoje sabemos sobre o funcionamento dos canais: três comportas de ativação precisam se abrir para que um canal para sódio saia do estado fechado para o aberto (correspondendo a m3), mas o canal pode se inativar pela movimentação da bola de inativação entre os domínios III e IV (ou seja, h). No caso dos canais para potássio, sua resposta à voltagem é mais lenta à despolarização, em parte porque é preciso que todas as quatro comportas de ativação estejam abertas (n4) para o canal se abrir. Por essas contribuições, Hodgkin e Huxley ganharam o Prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia em 1964. Na verdade, o período refratário pode ser subdividido em período refratário relativo, em que um estímulo mais intenso do que o limiar original ainda consegue disparar um potencial de ação, e o período refratário absoluto, quando a porcentagem de canais no estado inativo é tão grande que há muito poucos canais no estado fechado disponíveis para se abrir e iniciar um novo potencial de ação.
Figura 9.30 ■ Períodos refratários relativo e absoluto e sua relação com a variação do potencial limiar no tempo e com o número de canais para sódio dependentes de voltagem inativos. (Traçados gerados a partir do programa NERVE, desenvolvido pelo Prof. Francisco Bezanilla, da Universidade de Chicago, e disponível em http://nerve.bsd.uchicago.edu.)
O “bônus de despolarização” disponibilizado pelo estímulo para que a membrana vença o período refratário relativo é particularmente importante no caso de estímulos longos – com duração muito maior do que a duração de um único potencial de ação –, pois possibilita a codificação da intensidade e da duração do estímulo pela frequência e duração das salvas de potenciais de ação deflagradas pelo estímulo, como mostra a Figura 9.31. Isso porque, com um estímulo mais intenso, conseguese desenvolver mais cedo uma corrente despolarizante que supere a corrente de potássio. Ou seja, apesar de o valor do potencial limiar variar após um potencial de ação, mais cedo um valor limiar é atingido pela soma da despolarização promovida pelo estímulo com a corrente de sódio dependente de voltagem mediada pelos poucos canais já no estado fechado que se abrem em resposta ao estímulo despolarizante.15
Figura 9.31 ■ Codificação da intensidade e duração de potenciais graduados supralimiares pela frequência gerada de potenciais de ação. A. Resposta graduada de um axônio de lula frente a estímulos de corrente dispolarizante (EST.) crescentes. B. Resposta do mesmo segmento aos estímulos em A, agora considerando também a atividade dos NaV e KV. Note que o número de potenciais de ação contados no intervalo de tempo aumenta com a intensidade de EST., mas a amplitude diminui. (Traçados gerados a partir do programa NERVE, desenvolvido pelo Prof. Francisco Bezanilla, da Universidade de Chicago, e disponível em http://nerve.bsd.uchicago.edu.)
Se o período refratário relativo é fundamental para a codificação da intensidade dos estímulos por potenciais de ação, o período refratário absoluto é crucial para a propagação do potencial de ação ao longo da célula excitável, como veremos a seguir. ▸ A existência do período refratário absoluto determina o sentido de propagação
autorregenerativa do potencial de ação no espaço ao impedir que um potencial de ação deflagre um novo potencial de ação por onde já passou. Até aqui, abordamos como o potencial de ação ocorre em uma única região da membrana ao longo do tempo. Como discutimos anteriormente, o
potencial de ação, uma vez deflagrado, é inevitavelmente refeito em todos os pontos da membrana que contenham canais dependentes de voltagem NaV. Já vimos antes também que o alcance espacial (dependente da constante de espaço λ) e a velocidade de variação do potencial de membrana promovida pelos canais dependentes de voltagem em cada ponto da membrana (dependente da constante de tempo τ) afetam a velocidade de propagação de sinais elétricos em uma célula. No caso dos neurônios geradores de potenciais de ação nos seres humanos, são observadas diferentes morfologias que implicam diferentes velocidades de propagação, como resume o Quadro 9.3. Como se pode ver nesse quadro, quanto maior o diâmetro da fibra (maior λ), maior a velocidade de condução do potencial de ação. Também, a presença de bainha de mielina tem efeito ainda mais pronunciado sobre a velocidade de condução (maior λ e menor τ). Como a bainha também aumenta a eficiência das cargas que se movimentam, através dos canais dependentes de voltagem, em promover variação do VM, por diminuir a capacitância e as correntes de vazamento (alta RM), a duração do potencial de ação, e por consequência a do seu período refratário, é reduzida. Isso permite que a faixa de frequências com que os potenciais de ação possam ser gerados e transmitidos nessas fibras seja grande, aumentando o poder e a sensibilidade da codificação de informação nas fibras mielínicas em relação às amielínicas. A diferença na velocidade entre as formas de condução (regeneração) do potencial de ação entre as fibras mielinizadas e aquelas sem mielinas é tão grande que a condução nas fibras com bainha de mielina recebeu o nome de condução saltatória, enquanto nas fibras não mielinizadas (fibras C, células musculares e no axônio gigante da lula) sua condução é pontual, ou condução ponto a ponto. Esses nomes distintos podem sugerir que há mecanismos fundamentalmente diferentes na propagação dos potenciais de ação entre esses dois tipos de fibra, mas isso não é verdade. Como ilustra a Figura 9.32, é o alcance espacial instantâneo (ou seja, λ) do potencial de ação a outra área de membrana que permitirá que nessa área de membrana seguinte os Navdali sejam ativados e o sinal seja refeito pelos canais dessa região, desde que chegue com amplitude tal que a despolarização que promova ainda seja superior ao potencial limiar naquela região. Esse mecanismo tem de acontecer tanto na condução ponto a ponto quanto na condução saltatória para que o potencial de ação seja propagado. A diferença entre as duas conduções é que, sem bainha de mielina, a constante de espaço decai intensamente, tendo um alcance de poucos micrômetros. Por outro lado, com a bainha de mielina, o decaimento da constante de espaço é muito menos intenso, o que faz com que potenciais de ação possam ser transmitidos eletrotonicamente entre dois nós de Ranvier que podem estar afastados entre si por até um milímetro! De qualquer forma, no segundo nó, da mesma forma que na condução ponto a ponto, empenhase tempo em regenerar o potencial de ação com os canais dependentes de voltagem dali para que, assim regenerado, o potencial de ação alcance o nó de Ranvier seguinte. Portanto, enquanto na condução ponto a ponto um potencial de ação gasta 10 ms para se propagar (i. e., ir se autorregenerando) por uma distância de 10 μm, um potencial de ação trafegando por uma fibra mielínica terá percorrido 1.000 μm (1 mm) nos mesmos 10 ms. No entanto, essa eficiência das fibras revestidas com mielina pode custar caro em doenças em que haja perda da bainha de mielina, como é o caso da esclerose múltipla e da síndrome de GuillainBarré. Isso porque, como praticamente não há canais dependentes de voltagem nas regiões de membrana da fibra envolvidas pela bainha, a perda da mielina não pode ser compensada por condução ponto a ponto. Como a mielinização é muito importante nos motoneurônios α que controlam a musculatura esquelética, essas doenças se caracterizam pela perda dos movimentos voluntários e, eventualmente, dos movimentos respiratórios. Tendo entendido como os potenciais de ação podem ser propagados por todas as regiões da membrana da célula que sejam contíguas e contenham Nav e Kv, uma questão pode surgir: será que um potencial de ação não pode voltar por onde veio e ficar reverberando em um eterno vaivém? Mais uma vez a existência de períodos refratários, neste caso do período refratário absoluto, é fundamental (Figura 9.33). Quando o potencial de ação está se desenvolvendo em certo ponto da membrana, o outro ponto que imediatamente o precedeu (e onde no milissegundo anterior estava ocorrendo o potencial de ação que levou ao desenvolvimento deste novo e mesmo potencial de ação no ponto da membrana considerado) está no seu período refratário absoluto – isto é, não há canais Nav fechados e disponíveis para serem abertos e gerarem um novo potencial de ação, pois a maioria desses canais, senão todos, estão no estado inativo. Ou seja, nesse ponto anterior da membrana neste momento não é possível que um potencial de ação seja gerado, por mais que justamente na região adjacente esteja agora acontecendo uma despolarização muito intensa – um potencial de ação. ▸ O potencial limiar também varia no espaço em função da densidade de canais para
sódio dependentes de voltagem ao longo da membrana da célula, delimitando regiões mais prováveis para o início do disparo e propagação de um potencial de ação. Sabendo como o potencial de ação se propaga pelas células excitáveis longas e se extingue ao alcançar os
terminais de um neurônio (ou o fundo dos túbulos T em uma fibra muscular esquelética), resta somente uma pergunta a ser respondida: onde na célula é mais provável que surjam os potenciais de ação?
Quadro 9.3 ■ Diferentes morfologias que implicam diferentes velocidades de propagação de sinais elétricos em fibras nervosas. Velocidade Tipo de
Período
de
Duração
refratário
Diâmetro
Bainha de
condução
do PA
absoluto
fibra
Subtipo
Função
(µm)
mielina
(m/s)
(ms)
(ms)
A
α
Propriocepção,
12 a 20
Sim
70 a 120
0,4 a 0,5
0,4 a 1
motoneurônios α β
Tato, pressão
5 a 12
(Espessa)
30 a 70
γ
Motoneurônios γ
3 a 6
Sim
15 a 30
δ
Dor localizada, frio,
2 a 5
Sim
12 a 30
> Volumecélula.
O processo associado a um Ji – e outros semelhantes que envolvem gases em lugar de partículas diluídas – recebe o nome de difusão. A difusão pode ser definida como o movimento de um componente de um dado compartimento para outro, que se realiza espontaneamente no sentido de igualar sua concentração ou, de uma perspectiva termodinâmica, de igualar seu potencial químico. Por acontecer espontaneamente, a difusão é considerada um transporte passivo. Uma vez que o termo “compartimento” implica certa quantidade de substância que se comporta de maneira homogênea, admitese de imediato que a difusão, para igualar o potencial químico de determinada espécie, deve ocorrer através de uma membrana que o separa de outro no qual o potencial químico dessa espécie seja menor. Nesse ponto, o fenômeno da difusão deve ser conceitualmente diferenciado do movimento constante dos componentes que ocorre dentro de um compartimento como resultado da agitação térmica. A expressão potencial químico de uma substância “i” (μi) requer sua definição. Tratase da medida da capacidade dessa substância de provocar uma troca física ou química, de modo que uma substância com alto potencial químico tem uma grande capacidade de tornar possíveis essas trocas, inclusive o de sua própria concentração! No caso específico deste capítulo, quanto maior o potencial químico de uma substância “i” dissolvida em um compartimento, maior será sua tendência espontânea de fluir – através de uma membrana – para outro compartimento vizinho onde seu potencial químico seja mais baixo. A partir dessa definição, tornase claro que, quanto maior a concentração de uma espécie química, maior o seu potencial químico. De maneira análoga, quanto maior a pressão parcial de um gás (uma medida de sua concentração em uma mistura), maiores seu potencial químico e sua tendência a fluir para outro compartimento: é o que ocorre no epitélio alveolar, como apresentado no Capítulo 44, Difusão e Transporte de Gases no Organismo. Quando nos referimos à difusão simples (veremos logo a diferença com relação à difusão facilitada), essa tendência de migrar espontaneamente é dada pelo potencial químico de uma substância e é a única que intervém. Não intervém o transporte do líquido onde essa substância se encontra (água nos sistemas biológicos), embora exista o fenômeno de arraste pelo solvente, importante em alguns segmentos dos túbulos renais; assim como não intervêm na difusão simples os campos elétricos ou gravitacionais. Há mais de um século foi proposto – e demonstrado 50 anos depois – que a entrada de uma substância em uma célula é mais rápida quanto mais facilmente ela se dissolve em lipídios, do que a entrada daquelas que têm menor solubilidade nestes; e, de modo geral, quanto menor for seu tamanho. O experimento apresentado na Figura 12.2 demonstra que a velocidade de entrada de diferentes substâncias não eletrolíticas nas células da alga verde Chara é maior quanto maior for seu coeficiente de partição “κ” entre azeite de oliva e água, sendo κ = solubilidade em azeite de oliva/solubilidade em água. Esse experimento não apenas ajuda a entender por que pequenas
moléculas não carregadas (incluindo gases) penetram com facilidade dentro das células ou as atravessam: ele deu uma contribuição essencial para a formulação da teoria da membrana e do modelo da bicamada lipídica. Para além do seu simples particionamento na membrana e de sua transferência para o compartimento, onde o potencial químico da substância seja menor, a difusão simples pode ocorrer através de poros, como é o caso da água, por exemplo. Os fluxos de água, que exemplificam também como a passagem de uma substância pode ser influenciada por hormônios, serão abordados no Capítulo 55, Rim e Hormônios.
Figura 12.2 ■ A velocidade de entrada de diferentes substâncias não eletrolíticas nas células da alga verde Chara ceratophylla (ordenada) é maior quanto maior for o seu coeficiente de partição azeite de oliva/água κ (abscissa). MRD é uma função da massa molecular, e os símbolos usados indicam as faixas de valores para essa função. Os valores mostrados na ordenada para velocidade de entrada (permeabilidade da membrana para cada substância; ver equações 12.2 a 12.6 no texto) correspondem à raiz quadrada daqueles determinados experimentalmente. A linha B se ajusta à maioria dos valores de P obtidos para diferentes substâncias, enquanto as linhas A e C se ajustam, respectivamente, a um número menor de valores de P, que são aproximadamente 5 vezes superiores e inferiores aos encontrados ao longo da trajetória B. No artigo original, o autor discute ainda que a solubilidade em lipídios é o fator mais importante que governa a permeação de uma substância através de uma membrana (note que há símbolos diferentes ao longo de toda a linha B), mas reconhece que “há uma influência do tamanho molecular maior do que aquela assumida em outro trabalho”. (Adaptada de Collander, 1949.)
Uma vez que já temos a definição de Ji, restanos compreender qual seu significado fisiológico para além da diferença de potencial químico/concentração. A conhecida primeira lei de Fick de 1885 estabelece que “a quantidade de uma substância ‘i’ em solução que atravessa uma barreira (p. ex., uma membrana) na unidade de tempo (ou seja Ji) é proporcional à área de superfície da barreira e ao gradiente de concentração de ‘i’ entre ambos os lados da barreira e ao coeficiente de difusão ‘Di’”. Notese que a lei menciona gradiente de concentração Δci/Δx – a força acoplada (no sentido de causadora) responsável pela ocorrência desse fluxo –, no qual Δx corresponde à espessura da barreira, assumindo que a passagem é perpendicular a ela, e não apenas Δci. Essa diferença conceitual, aparentemente sutil, é essencial para compreender como a velocidade de passagem para dentro ou para fora de uma célula depende da espessura da membrana. Uma analogia pode ser encontrada no deslizamento de água do alto de uma montanha: se a diferença de altura entre o topo e a base for estabelecida abruptamente, a água desliza mais rapidamente do que se essa mesma diferença for estabelecida suavemente ao longo de uma grande distância. Notese ainda que a lei de Fick não se refere à “membrana”. Sua existência ainda era negada por muitos àquela época. Essa lei, assim formulada, pressupõe que a substância não é carregada e que
não existem diferenças de pressão hidrostática que, ao provocar fluxo do líquido da solução, poderiam gerar um fluxo adicional de “i”. Em símbolos, podemos escrever:
em que Ji e Δci/Δx têm os significados definidos anteriormente. Notese que tanto Ji quanto Δci/Δx são magnitudes (quantidades) vetoriais porque têm direção e sentido. O sinal negativo da equação (vindo de Δci/Δx) indica que Ji implica a diminuição da Δci porque, como definido anteriormente, um fluxo espontâneo ocorre da maior para a menor concentração para que estas se igualem. O coeficiente de difusão D – uma constante de proporcionalidade – é definido como o número de moles (ou múltiplos/submúltiplos) que fluem em 1 segundo através de uma barreira com uma área de superfície de 1 cm2, quando existe uma diferença de concentração de 1 mol por cm3 estabelecida ao longo de uma distância de 1 cm entre um lado e outro dessa barreira. O coeficiente D depende da natureza química da substância que difunde, de sua massa molecular, da temperatura e de propriedades do meio como a viscosidade. Quais são as unidades em que se expressa D no sistema CGS, o sistema de unidades baseado no centímetro, na grama e no segundo? Pela definição anterior: D = 1 mol/{(1 cm2 × 1 s) × [(1 mol/cm3)/1 cm]} Disso resulta que as unidades de D são cm2 × s–1. No sistema internacional (SI) baseado no metro, no quilograma e no segundo, as unidades de D são m2 × s–1. Se à época de sua formulação a lei de Fick não requeria conceitualmente uma membrana, ela existe e o fluxo de substâncias através dela constitui o objeto do presente capítulo. Nos seres vivos encontramos a membrana sendo a estrutura através da qual os gradientes se estabelecem e os fluxos ocorrem, de modo que, assumindo (i) que a diferença de concentração através da membrana é homogênea e (ii) que a difusão é linear e perpendicular ao plano da membrana, a distância que separa os dois compartimentos (interstício e célula no caso da membrana plasmática) é a espessura da membrana “l”, de modo que a equação 12.1 pode ser escrita como:
sendo a relação –Di/l denominada coeficiente de permeabilidade Pi. Assim, a equação 12.2 pode ser inicialmente escrita como:
Todavia, as concentrações ci1 e ci2 no interior das soluções dos respectivos compartimentos não são as mesmas que as existentes nas faces (e no interior) da membrana que se encontram em contato imediato com as soluções; estas são estabelecidas dependendo do coeficiente de partição βi = solubilidade da substância “i” na membrana/solubilidade da substância “i” no líquido dos compartimentos, que no caso dos sistemas biológicos é a água, de modo que a equação 12.2 pode ser escrita como:
ou:
em que –Diβi/l ≡ Pi conforme definido anteriormente. Essa equação nos permite ampliar o conceito de “propriedades do meio dos quais depende D” anteriormente apresentado: Di depende também do coeficiente de partição de “i” na membrana. Portanto, a equação 12.3 pode ser escrita como:
Embora D e P sejam propriedades relacionadas, como o mostra o sinal de identidade (≡), o coeficiente Di é referido como sendo uma propriedade da substância “i” que flui, enquanto o coeficiente Pi é referido como uma propriedade da
membrana da qual depende a maior ou menor facilidade de passagem da substância “i”. É interessante destacar que a unidade de P no sistema CGS – como podemos ver a partir de sua relação com D e l – é cm × s–1, ou seja, uma unidade de velocidade, o que de maneira muito apropriada caracteriza a facilidade ou não com que uma substância atravessa uma membrana biológica. A Figura 12.3 ilustra, de maneira esquemática, o que as equações anteriores descrevem. A equação 12.5 descreve de forma adequada o transporte passivo de muitas substâncias não carregadas através da membrana plasmática das células. Todavia, em muitos casos, os fluxos são subestimados usando essa equação, indicando que a membrana é mais permeável do que o previsto. Entretanto, a permeabilidade aumenta para algumas substâncias e não para outras e, quando o aumento ocorre, ele é distinto para diferentes substâncias, o que permite concluir que o transporte é mediado por carreadores específicos através de processos denominados difusão facilitada. Ver mais adiante, em detalhe, “Tipos de transporte através da membrana”. Para uma substância “i” ser carreada em um processo de difusão facilitada, esta precisa inicialmente se ligar ao seu carreador específico “C” na superfície da membrana voltada para o compartimento a partir do qual será transportada, formando o complexo “iC” que se dissocia do outro lado em “i” e “C”. Podemos, então, representar um equilíbrio (para cada temperatura) da forma: iC ⇔ i + C e escrever a constante K que descreve (quantifica) a relação de concentrações de iC, i e C neste equilíbrio:
Figura 12.3 ■ Representação gráfica do fluxo passivo da substância “i” (Ji 1→2) através de uma membrana de espessura “l” que separa os compartimentos 1 e 2. A figura apresenta à esquerda o compartimento 1 e à direita o compartimento 2, sendo ci1> ci2. A barreira cinza que separa ambos os compartimentos representa a membrana, na qual β é o coeficiente de partição de “i”. O sentido do fluxo Ji 1→2 espontâneo (seta) é determinado pelo fato de c1 > c2. Sua velocidade depende da magnitude da diferença entre ambas, pelos valores de D e de β (diretamente proporcional a ambos), bem como de “l” (inversamente proporcional). O sinal negativo indica, pela convenção dos sinais em termodinâmica, que o processo é espontâneo. As linhas horizontais em ambos os compartimentos traçadas em nível de ci1 e ci2 indicam que as concentrações são iguais em qualquer parte dos compartimentos. A reta dentro da membrana indica que a concentração de “i” decresce linearmente dentro da membrana desde sua entrada pela face voltada para o compartimento 1 até sua saída pela face voltada para o compartimento 2. Para outras diferentes circunstâncias específicas, ver texto.
Como a concentração total de C ([C]t) pode ser expressa como:
teremos:
Retornando às equações de fluxo, como “i” é transportado nessa classe de processo na forma do complexo “iC” e assumindo – para simplificar – que “i” é consumido imediatamente após sua passagem para o compartimento 2 (portanto ci2 = 0), podemos escrever a equação 12.5 como:
e ainda:
Substituindo a [iC] na equação 12.11 pelo seu igual conforme a equação 12.9, chegamos a:
em que [i] é a concentração de “i” no compartimento a partir do qual o fluxo se origina (neste caso, o compartimento 1). Conforme definido anteriormente: –DiCβiC/l ≡ PiC Assim, podemos escrever, reagrupando:
Tornase evidente que, quando todos os carreadores “C” estiverem ocupados por “i” (ou seja, quando [iC] = [C]t), o fluxo de “i” será máximo (Jmáx i), e a equação 12.13 poderá ser finalmente escrita:
cuja representação gráfica é mostrada na Figura 12.4. Essa figura e a equação 12.14 (uma hipérbole retangular) nos indicam que os fenômenos de transporte mediados por carreadores podem ser tratados formalmente, em grande parte dos casos, como reações enzimáticas que seguem a cinética de MichaelisMenten. Exibem, por isso, saturação (existe uma velocidade máxima de transporte para cada temperatura) e, em muitos casos, estereoespecificidade (isômeros ópticos L e D podem ter carreadores diferentes). Por isso, também podem sofrer inibição – competitiva e não competitiva ou mista – por substâncias que interferem na ligação da espécie transportada com seu carreador e que, muitas vezes, são usadas como fármacos.
Figura 12.4 ■ Representação gráfica da magnitude do fluxo por difusão facilitada de uma substância “i” (Ji 1→2) através de uma membrana, em função da concentração de “i” [i] no compartimento a partir do qual o fluxo se origina (neste caso, o compartimento denominado “1”). Quando os carreadores encontramse saturados por “i” (i. e., todos ocupados por “i”), o fluxo Ji alcança seu valor máximo (Jmáx) indicado pela linha tracejada. Note que quanto menor for o valor da constante K, o Jmáx será alcançado com menor [i], conforme se depreende da equação 12.7. Quanto maior a afinidade do carreador pela substância “i”, maior será a concentração do complexo substância:carreador [iC] para um dado valor de [i].
O seguinte exemplo nos mostra agora como a P de uma mesma membrana biológica é diferente para substâncias distintas, tanto no caso de uma difusão simples quanto no de um transporte mediado por carreador. Esse exemplo antecipa também como os fluxos entre compartimentos são de magnitudes diferentes, dependendo da espécie transportada, e como a distribuição de espécies moleculares (ou iônicas) distintas varia quando se comparam o interior celular, os compartimentos extracelulares e o interstício. A permeabilidade da membrana plasmática para o K+ (PK) tem um valor que oscila, dependendo do tipo de célula, em torno de 10–6 cm × s–1 a 37°C, enquanto a permeabilidade para o Na+ (PNa) da membrana de uma célula em repouso oscila em torno de 10–8 cm × s–1 à mesma temperatura. As concentrações extracelulares e intracelulares de K+ são 5 e 150 mM, respectivamente. As correspondentes para Na+ são 150 e 20 mM, também dependendo do tipo de célula. Qual seria a grandeza dos respectivos fluxos espontâneos – enquanto essas concentrações se mantiverem – e seu sentido, assumindo que não há diferenças de potencial elétrico? Antes de apresentar os cálculos, mencionamos, exemplificando o funcionamento da membrana como barreira para a difusão, que a PK de uma camada de água é de 10 cm × s–1, ou seja 107 vezes maior. No caso do K+, a tendência termodinâmica espontânea é a de sair do citoplasma (compartimento 2 por convenção; 150 mM = 150 × 10–6 × mol × cm–3) para o meio extracelular (compartimento 1; 5 mM = 5 × 10–6 × mol × cm–3). Aplicando a equação 12.4:
ou seja, 1,45 × 10–10 mol de K+ haverão de fluir por cm2 de área de membrana por segundo. Aplicando o mesmo raciocínio, encontraremos JNa 1→2 = –1,30 × 10–12 mol × cm–2 × s–1 (i. e., fluindo espontaneamente do interstício para o citoplasma). Esse exemplo nos ajuda a compreender em parte o porquê da distribuição dos íons K+ e Na+ nos seres vivos. A concentração intracelular de Na+ é, em uma condição de estado estacionário, muito menor do que a do interstício circundante, apesar da tendência termodinâmica de suas concentrações se igualarem (inclusive favorecida pela diferença de potencial elétrico, interior negativo em relação ao exterior). Isso se explica em parte pela baixa permeabilidade (PNa) da
membrana plasmática e, como veremos ainda neste capítulo, pela existência de poderosas maquinarias moleculares que transportam o Na+ para fora da célula: as ATPases transportadoras de Na+. Embora as equações anteriores sejam úteis para descrever o fluxo de uma única substância, devemos levar em consideração que as membranas das células são permanentemente atravessadas por um grande número de substâncias ao mesmo tempo e que isso ocorre nas duas direções. Sobretudo, é importante destacar que muitas das espécies químicas que permeiam as membranas biológicas são carregadas e o potencial elétrico gerado pela difusão de uma delas pode favorecer ou restringir a passagem de outra(s). Por outro lado, além da carga elétrica, pressões hidrostáticas, osmóticas e oncóticas podem participar de fluxos de diferentes espécies, apesar de, por simplificação, as deixarmos de lado, como mencionado anteriormente. Um exemplo pode ser visto nos túbulos contornados proximais renais (ver Capítulo 51, Função Tubular).
TRABALHO DE CONCENTRAÇÃO Do ponto de vista energético, a difusão implica, enquanto processo espontâneo, uma variação negativa – pela convenção de sinais que se adota – de uma propriedade termodinâmica denominada energia de Gibbs (energia livre, na notação antiga). Quando isso ocorre, o processo, neste caso o fluxo através de uma membrana, é chamado de exergônico, que em grego significa “realizando trabalho”. Antecipar esse conceito é relevante porque em grande número de processos de transporte, como descreveremos mais adiante, ocorre o acoplamento molecular e termodinâmico de fluxos exergônicos com endergônicos (estes últimos “requerendo trabalho” para ocorrer). A menção anterior ao fato de que o gradiente de concentração Δci/Δx é a força responsável pela ocorrência de um fluxo passivo e que os fluxos implicam a realização de trabalho nos permite facilmente associar o fluxo de “i” do compartimento 1 para o compartimento 2 devido à existência de uma Δci, com a realização de um trabalho de concentração wc i que pode ser definido formalmente como:
em que o trabalho realizado (em joule × mol–1), ou variação de energia de Gibbs quando a substância “i” flui espontaneamente do compartimento 1 para o compartimento 2, é igual ao produto da constante geral dos gases R (8,31 joules × K–1 × mol–1), da temperatura absoluta T (em Kelvin, K) e do logaritmo natural da relação entre as concentrações de “i” nos compartimentos 1 e 2. O sinal negativo indica que a variação de energia de Gibbs será negativa (ela se “libera”), como corresponde quando ocorre um fluxo espontâneo (ci1 > ci2). Isso significa que nunca poderá ser definido um wc 1→2 quando ci1 V2, a ΔV será positiva, e se, ao mesmo tempo, o íon “i” transportado for um cátion, z terá sinal positivo e zF também. Neste caso, o Ji 1→2 terá sinal negativo e ocorrerá espontaneamente. Se V1 ci2, o sinal de z é positivo e o sinal de Em é negativo. O contrário ocorre com a entrada de K+ em uma célula: ci1 2) – evidentemente na faixa em que as enzimas preservam sua estrutura e função – indica a existência de reações químicas envolvidas e, portanto, de transporte ativo. Um Q10 > GNa (cerca de 50 vezes). Isso significa que, na equação de potencial de membrana, os termos que contêm GK são muito maiores que os que contêm GNa. É por essa razão que o potencial de repouso depende muito mais da condutância ao K+ que da ao Na+ (conforme mostrado nos resultados experimentais da Figura 28.3) e possui um valor próximo ao potencial de equilíbrio do K+. É importante ressaltar que as condutâncias para os outros íons não são nulas. Assim, o potencial de repouso do cardiomiócito não coincide exatamente com o potencial de equilíbrio do K+ (que é da ordem de –92 mV), embora esteja próximo a ele; desse modo, tal potencial está muito distante do potencial de equilíbrio do sódio (ENa), que é de +70 mV, e também do Ca2+ (ECa), ainda mais positivo. Dessa forma, fica fácil compreender que, durante o repouso, há fluxos de Na+, K+ e outros íons, pois existe uma força propulsora (Em – EK) para o K+, (Em – ENa) para o Na+, e assim por diante, desde que a membrana tenha permeabilidade a esses íons, isto é, que a condutância (G) para cada um deles não seja nula. A condutância ao K+ no miocárdio em repouso decorre da presença de um tipo de canal para K+, da subfamília Kir2.x, que conduz a corrente de K+ retificadora de influxo, IK1. Dentre as propriedades desse canal (IK1), destacase a dependência de sua condutância à [K+]e (ver Figura 28.3). Até este ponto, consideraramse apenas fluxos passivos de íons na determinação do potencial de repouso. No entanto, há uma contínua perda de K+ e ganho de Na+ pela célula, mesmo no repouso, existindo permanente reposição desses íons, o que permite manter as concentrações intracelulares dentro de uma faixa razoavelmente estreita de valores. Isso é feito pela bomba de Na+/K+. Devido à sua estequiometria, transportando em cada ciclo 3Na+ para fora da célula e 2 K+ para dentro dela, observase que há um efluxo efetivo de uma carga positiva a cada ciclo de atividade da bomba, resultando em uma bomba eletrogênica (ou geradora de potencial). A corrente de efluxo carreada pela bomba deve, portanto, ser incluída no cômputo das correntes que contribuem para o potencial de repouso, que, no caso do miocárdio, é significativa. Por meio da inibição seletiva da atividade da bomba de Na+/K+ por compostos denominados de glicosídios cardiotônicos, observase que, no coração, esse mecanismo de transporte é responsável diretamente por cerca de 5 a 10 mV do potencial de repouso. Portanto, no coração, a bomba de Na+/K+ contribui com esse potencial não só mantendo os gradientes de Na+ e K+, mas também transportando carga efetiva.
▸ Papel do potencial de repouso na excitação cardíaca A manutenção do potencial de repouso dentro de certos valores é fundamental para a ativação normal do coração, uma vez que os principais canais iônicos responsáveis pela atividade elétrica cardíaca são dependentes de voltagem. Assim, para a ativação normal do miocárdio (excetuandose as células marcapasso), é fundamental que tal potencial seja mantido na faixa de –80 a –90 mV. Isso porque o canal para Na+, responsável pela fase inicial do potencial de ação, apresenta inativação dependente de voltagem. Em –90 mV, a probabilidade de inativação do canal para Na+ é pequena; portanto, nessa faixa de potencial de membrana o miocárdio tem excitabilidade normal. Na clínica médica e experimentalmente, a hiperpotassemia e a hipopotassemia, além da intoxicação digitálica (inibição da atividade da bomba de Na+/K+), são condições que comumente alteram o potencial de repouso. Caso o Vr se torne menos negativo, há um progressivo aumento da inativação dos canais para Na+, o que deixa o miocárdio progressivamente menos excitável, podendo ocorrer desde uma propagação lenta e deficiente, até a interrupção da propagação, pelo fato de o miocárdio passar a ser completamente inexcitável. Outra situação que igualmente compromete a excitação normal do coração é o aparecimento de uma dispersão espacial de potenciais de repouso, com algumas regiões mais e outras menos despolarizadas, em locais próximos. Isso leva ao aparecimento de correntes extracelulares entre essas regiões, bloqueios de condução, formação de circuitos de reentrada etc.; essas situações favorecem o surgimento de arritmias.
POTENCIAIS DE AÇÃO CARDÍACOS Um aspecto que chama a atenção quando se fala em potencial de ação cardíaco é a grande diversidade de formas dependendo da região do coração, conforme pode ser observado na Figura 28.4. Os potenciais de ação do NSA e NAV de mamíferos dispõem de amplitudes bem menores que os de outras regiões do coração (sendo cerca de 60 mV nos
nodos versus 120 mV no miocárdio atrial e ventricular). Além disso, as células do NSA e NAV de mamíferos não têm um potencial de repouso (fase 4) estável. Outra característica marcante dos potenciais de ação cardíacos é a longa duração, quando comparados aos potenciais de ação do axônio. Conforme mostrado na Figura 28.2 B, a partir do potencial de repouso de cerca de –90 mV, percebese rápida despolarização que pode chegar a +40 mV em poucos milissegundos (fase 0). A seguir, diferentemente do observado no potencial de ação do axônio, em que a repolarização se processa em poucos milissegundos, no músculo ventricular a fase de repolarização rápida (fase 1) é interrompida por um platô de duração variável (100 a 500 ms). Durante o platô (fase 2), a célula fica despolarizada com um potencial próximo de zero mV, para só depois completar a repolarização (fase 3), voltando ao nível de repouso (fase 4). Dentro desse contexto, podese perguntar: como é possível toda essa variabilidade? Para analisar essa questão, retornase à equação de circuito equivalente:
Segundo essa equação, o potencial transmembrana é determinado basicamente pela relação entre as várias condutâncias iônicas a cada momento, já que os potenciais de equilíbrio dos diferentes íons são mantidos razoavelmente constantes.
Figura 28.4 ■ Registros de potenciais de ação obtidos em diferentes regiões do coração. Observe que cada figura tem uma escala de voltagem (vertical) e de tempo (horizontal) diferente, devido às diferenças nas amplitudes e durações dos potenciais de ação nos vários locais de registro. A. Ilustra a atividade marcapasso de uma célula do nodo sinusal de coelho. (Adaptada de Boyett et al., 2000.) B. Indica o potencial de ação de um miócito atrial humano. (Adaptada de Li e Nattel, 1997.) C. Ilustra o potencial de ação de fibra de Purkinje humana. (Adaptada de Lee et al., 2004.) D. O potencial de ação de um miócito isolado de ventrículo esquerdo humano. (Adaptada de Iost et al., 1998.) E. Indica os potenciais de ação de miócitos isolados das camadas do ventrículo direito humano: subendocárdica (Endo), subepicárdica (Epi) e mesocárdica/endocárdica (M). (Adaptada de Li et al., 1998.)
No repouso, como descrito anteriormente, uma vez que GK >> GNa, o potencial de repouso do cardiomiócito tem valor próximo ao EK. Se, em dado momento, GNa ou GCa aumentarem e se tornarem muito maiores que o GK, a situação se
inverterá completamente, ficando o potencial transmembrana mais perto do ENa ou do ECa. Assim, durante um potencial de ação, as condutâncias aos diversos íons estarão variando, e o potencial transmembrana terá, a cada momento, valores definidos pela relação entre as diferentes condutâncias, estando sempre mais próximos do potencial de equilíbrio do íon cuja condutância, naquele determinado momento, seja predominante. A seguir, será descrito como variam as condutâncias iônicas ao longo do potencial de ação e, assim, será possível compreender como é determinado o decurso temporal de um potencial de ação. Fundamentandose no potencial de repouso (fase 4 estável ou instável) e na velocidade de despolarização (fase 0 rápida ou lenta), os potenciais de ação cardíacos são classificados em dois tipos: rápido ou lento.
▸ Potencial de ação rápido Na Figura 28.5 A é apresentado o esquema de um potencial de ação rápido, característico do miocárdio de trabalho atrial e ventricular, do feixe de His e das fibras de Purkinje, em paralelo com um esquema representando a intensidade das principais correntes iônicas envolvidas no mesmo. Registros experimentais de potenciais de ação do tipo rápido foram exemplificados na Figura 28.4 B a E. Os mecanismos envolvidos na gênese do potencial de ação do tipo rápido serão descritos, a seguir, de acordo com cada fase. ▸ Fase 0. A principal corrente despolarizante, responsável pela fase 0 do potencial de ação rápido, é a corrente de influxo de Na+ (INa) que flui através de canais para Na+ dependentes de voltagem (ver Capítulo 10, Canais para Íons nas Membranas Celulares). INa é ativada quando a membrana é despolarizada até o nível limiar, levando o canal para Na+ dependente de voltagem do estado fechado para o estado aberto, tornando GNa >> GK e promovendo rápido e maciço influxo de Na+. Esse influxo, por sua vez, promoverá despolarização adicional e, consequentemente, maior aumento de GNa, pois um maior número de canais passará do estado fechado para o aberto, contribuindo com o maior influxo de Na+; e assim por diante, em um processo de retroalimentação positiva, resultando em rápida e grande despolarização (dV/dt: 150 a 800 V/s), característica da fase 0 deste tipo de potencial de ação, levando o potencial transmembrana em direção ao ENa. Pela sua grande densidade, essa corrente é fundamental para a rápida propagação do potencial de ação (1 a 5 m/s), que atinge maior velocidade nas fibras de Purkinje (tecido especializado em condução) e menor no miocárdio atrial e ventricular. Porém, como descrito no Capítulo 10, esse canal possui uma comporta de inativação, também sensível a despolarização; assim, a progressiva despolarização da membrana plasmática levará o canal para Na+ dependente de voltagem do estado aberto para o estado inativado, o que reduz a INa. ▸ Fase 1. Esta fase é marcada por uma rápida e transitória repolarização, que se segue à despolarização inicial, a qual está associada à abertura de canais para K+ (Kv1.4, Kv4.2 e Kv4.3) ativados por despolarização, que geram a corrente transiente de efluxo de K+ (Ito1). Nesta fase, portanto, há rápido e momentâneo aumento de GK, fato que traz o potencial transmembrana em direção ao EK, afastandoo do ENa. As rápidas cinéticas de ativação e inativação desses canais explicam a pronta instalação desta fase de repolarização e o seu caráter transitório, que se reflete na presença de uma incisura entre o pico da fase 0 e o platô (fase 2) do potencial de ação (ver Figura 28.5 A). Uma vez que a Ito1 se distribui heterogeneamente na parede ventricular, a incisura será mais pronunciada nos cardiomiócitos das camadas epicárdica e miocárdica, que apresentam maior expressão desses canais em comparação com os miócitos endocárdicos, que apresentam incisura reduzida ou nula (ver Figura 28.4 E). A breve repolarização causada pela Ito modula a magnitude da corrente de Ca2+ (ICa,L), regulando o acoplamento excitaçãocontração (que será descrito no Capítulo 30, Contratilidade Miocárdica). Em alguns tecidos, como nas fibras de Purkinje, existem evidências de que também ocorre uma corrente repolarizante através do canal para Cl– (Ito2), a qual também contribui com a fase 1. Devido ao seu potencial de equilíbrio (cerca de –50 mV), o Cl– tende a entrar na célula durante quase todas as fases de repolarização. ▸ Fase 2. Durante a fase de platô (fase 2), tanto as correntes despolarizantes (influxo de Na+ e Ca2+) quanto as repolarizantes (efluxo de K+ e influxo de Cl–) são pequenas e de amplitudes praticamente iguais (a soma das condutâncias ao Na+ e Ca2+praticamente se iguala à soma das condutâncias ao K+ e Cl–). Assim, o fluxo efetivo de carga durante esta fase é muito pequeno, razão pela qual o potencial transmembrana permanece relativamente estável. As correntes despolarizantes presentes nesta fase incluem a corrente de Ca2+ do tipo L (em lenta e progressiva diminuição devido à inativação do canal para Ca2+ dependente de voltagem e do aumento da concentração intracelular de Ca2+), o componente de inativação lenta de INa, além da corrente de influxo carreada pelo trocador Na+/Ca2+. Quanto às correntes repolarizantes, o canal para K+ retificador de influxo, IK1, que permanece aberto durante o repouso, fechase quase instantaneamente com
a despolarização da fase 0. Assim, durante o platô, ele permanece fechado, contribuindo para diminuir a corrente de efluxo de K+, mantendo a membrana despolarizada. Lembrese também de que a bomba de Na+/K+, pela sua estequiometria (2 K+ para dentro da célula e 3Na+ para fora dela), é eletrogênica, carreando corrente repolarizante de baixa amplitude durante todo o ciclo cardíaco. Seus efeitos são mais proeminentes durante os dois períodos em que a intensidade das demais correntes é relativamente baixa, ou seja, durante o repouso e o platô. Finalmente, como a inativação de Ito1, embora seja rápida, não é completa (apresentando um componente de inativação lenta [Ito1,s]), ela pode contribuir para o platô, sendo, pois, também importante na determinação da duração do potencial de ação. Também está envolvida nessa fase a ativação dos canais para K+ dependentes de voltagem, do tipo retificadores retardados (IKr, IKs e IKur). A abertura desses canais, de forma mais rápida ou mais lenta, é induzida pela despolarização da fase 0, a qual promove efluxo de K+. O decaimento das correntes despolarizantes e a predominância das correntes repolarizantes marcam o fim da fase 2 e a gênese da fase 3.
Figura 28.5 ■ Curso temporal dos potenciais de ação cardíacos rápido (A) e lento (B) e das principais correntes de influxo (deflexões negativas) e de efluxo (deflexões positivas) relacionadas com cada fase dos potenciais. INa, corrente de sódio dependente de voltagem; ICa,L, corrente de cálcio tipo L; ICa,T, corrente de cálcio tipo T; INa/Ca, corrente carreada pelo trocador sódio/cálcio; IK1, corrente de potássio retificadora de influxo; IKs, corrente de potássio retificadora retardada lenta; IKr , corrente de potássio retificadora retardada rápida; IKur , corrente de potássio retificadora retardada ultrarrápida; Ito, corrente transiente de efluxo com os dois componentes, Ito1 e Ito2; INa/K, corrente da bomba sódio/potássio; IKp, corrente de fuga de potássio; IK,ACh, corrente de potássio ativada por acetilcolina; IK,ATP, corrente de potássio inibida por ATP; If, corrente marcapasso; INa,bg, corrente de fuga de sódio; Ist, corrente sustentada de influxo. (A. Adaptada de Snyders, 1999. B. Adaptada de Kurata et al., 2002.)
▸ Fase 3. A fase de repolarização rápida final caracterizase pela absoluta predominância de correntes de efluxo. Portanto, volta a predominar a GK. Nesta fase, a condutância ao K+ depende de canais iônicos diferentes daqueles que determinam o potencial de repouso. Ela está diretamente associada à ativação dos canais para K+ dependentes de voltagem, retificadores retardados (IKr, IKs e IKur), induzida pela despolarização da fase 0, promovendo um grande efluxo de K+, o que leva à rápida repolarização observada nesta fase. Esse processo de repolarização permite que o canal para K+ retificador de influxo volte para o estado aberto, contribuindo com a IK1, corrente que contribui para a finalização do processo de repolarização. Isso porque, com a repolarização, os canais para K+ dependentes de voltagem retificadores retardados estão predominantemente no estado fechado, reduzindo IKr, IKs e IKur. Cabe ressaltar que as peculiaridades dos diversos tipos de canais para K+ retificadores retardados, predominantes nas diferentes regiões do coração e também em distintas espécies animais, são uma das causas da grande variabilidade na morfologia do potencial de ação antes relatada.
A fase 3 é um dos determinantes da duração do potencial de ação e, portanto, de todas as propriedades que dependem desse parâmetro. ▸ Fase 4. Durante a fase 4, nas células com potencial de repouso estável, há novamente um balanço entre correntes de efluxo e influxo, de modo que o saldo é uma corrente efetiva nula. A corrente retificadora de influxo, IK1, é responsável pela estabilização do potencial de repouso. IK1 “amortece” pequenas variações do potencial de membrana da célula em repouso. O deslocamento do potencial de membrana para valores mais negativos que o EK gera uma corrente despolarizante, de influxo de K+, que se contrapõe à hiperpolarização da membrana. Contudo, em potenciais mais positivos que o EK, a baixa condutância dos canais de IK1 permite amortizar pequenas despolarizações, tornandoas sublimiares, mas impede esses canais de se contraporem à despolarização da membrana produzida pelo influxo de Na+ durante a fase 0 do potencial de ação. Essa propriedade do canal de IK1, denominada retificação de influxo, é decorrente do bloqueio do poro desse canal pelo magnésio (Mg2+) e poliaminas (putrescina, espermidina e espermina), que entram no poro pelo lado citoplasmático quando a membrana está despolarizada. Esse bloqueio pode ser revertido por repolarização da membrana, permitindo correntes de efluxo de K+ por esse canal durante a fase 3 do potencial de ação. No coração humano, a subunidade α do canal para Na+, hNaV1.5 (hH1), é codificada pelo gene SCN5A, que está localizado no cromossomo 3p21. A localização, a densidade e as propriedades biofísicas do NaV1.5 são moduladas por subunidades β auxiliares (β1 a β4), codificadas por quatro genes (SCN1B a SCN4B). Como os genes que codificam as subunidades α e β são expressos diferencialmente nos tecidos corporais, pode haver distinções de propriedades entre os canais para Na+ de diversos tecidos. Nesse sentido, por exemplo, os canais para Na+ cardíacos são menos sensíveis à tetrodotoxina, bloqueador de canais para Na+, quando comparados aos canais para Na+ localizados no encéfalo.
▸ Potencial de ação lento Nas células do NSA e NAV, a equação de circuito equivalente se reduziria aos termos dependentes de Ca2+ e K+, uma vez que não há participação de canais para Na+ dependentes de voltagem na gênese do potencial de ação nessas células. Nessas regiões, a principal corrente despolarizante e responsável pela fase 0 é a corrente de Ca2+ do tipo L (ICa,L), através de canais para Ca2+ dependentes de voltagem, que se caracteriza por uma ativação mais lenta e uma densidade de corrente bem inferior à de INa (ver Figura 28.5 B). Disso resulta uma fase 0 mais lenta (dV/dt: 2 a 20 V/s) quando comparada à registrada nos cardiomiócitos atriais e ventriculares. Como consequência, a propagação do potencial de ação nos nodos é também mais lenta (aproximadamente 0,05 m/s). Durante o potencial de ação lento, além da própria ICa,L, também a corrente carreada pelo trocador Na+/Ca2+ contribui como corrente despolarizante, dado que sua estequiometria é de influxo de 3 íons Na+ para cada íon Ca2+transportado para fora da célula quando o potencial de membrana tem valores não muito despolarizados. O potencial de ação nas células nodais não apresenta fase 1 nem propriamente uma fase 2, no sentido de um período de platô em que o potencial de membrana permanece praticamente estável. Como se pode observar nas Figuras 28.4 A e 28.5 B, após a fase 0, na qual GCa >> GK, seguese uma repolarização contínua, fase 3, mais lenta no início e mais rápida no final, na qual a situação se inverte (GK >> GCa). Nessas células, os principais canais para K+ dependentes de voltagem, retificadores retardados, estão representados por IKr e IKs, que constituem as principais vias de correntes repolarizantes. Nas células com atividade marcapasso, NSA e NAV, a fase 4 é determinada por outros componentes, como será detalhado quando da descrição do automatismo cardíaco (mais adiante).
▸ Período refratário do potencial de ação cardíaco Do mesmo modo que outros tecidos excitáveis, o miocárdio apresenta o fenômeno da refratariedade, relacionada com a inativação dos canais iônicos responsáveis pela despolarização inicial do potencial de ação. Uma vez estimulado um potencial de ação rápido no miocárdio, por maior que seja a intensidade do estímulo, um segundo potencial de ação só poderá ser disparado depois que tenham ocorrido ao menos 50% de repolarização. Este período é denominado de período refratário absoluto (PRA) (Figura 28.6). A partir daí, iniciase o período refratário relativo (PRR), no qual um estímulo com intensidade supralimiar é capaz de disparar um segundo potencial de ação, o qual apresentará menor taxa de despolarização da fase 0 e menor velocidade de propagação quando comparado ao potencial de ação fisiológico. O intervalo de tempo mínimo necessário para que dois potenciais de ação propagados, sucessivos,
possam ser estimulados com estímulo de intensidade limiar é chamado de período refratário efetivo (PRE) (ver Figura 28.6). Uma vez que o potencial de ação no músculo cardíaco apresenta maior duração, os períodos refratários são muito mais longos quando comparados aos observados nos axônios. A consequência desse prolongamento é que no coração não se observa o fenômeno de somação temporal, o qual é observado nos neurônios e nos músculos esqueléticos, e é de fundamental importância para a função neuronal. Outra consequência desse fenômeno é a redução em cerca de três vezes da frequência máxima de ocorrência de potenciais de ação no coração quando comparada à do axônio, o que, do ponto de vista funcional, tem consequências interessantes. No axônio, a função básica do potencial de ação é transmitir rapidamente mensagens ao longo de grandes distâncias, sendo a modulação de frequência um fator importante para o conteúdo da mensagem transmitida; consequentemente, quanto mais ampla a faixa de frequência, maior a capacidade de transmissão de mensagem. Já no miocárdio, a função básica do potencial de ação é garantir uma propagação rápida e coordenada e, com isso, disparar o processo de contração e relaxamento sincronizados em todo o coração. Como cada ciclo de potencial de ação está associado a um ciclo de contração e relaxamento, frequências ventriculares muito altas reduziriam o tempo de enchimento ventricular durante a diástole, diminuindo a eficiência da bomba cardíaca. Uma observação interessante em relação ao potencial de ação lento é o longo período refratário que, neste caso, ultrapassa a própria duração do potencial de ação. Isso é uma consequência do maior tempo requerido para que o canal para Ca2+dependente de voltagem do tipo L saia do estado inativado e volte para o estado fechado. Um fenômeno relacionado a esse fato é a fadiga de transmissão através do NAV. Ela se manifesta como um bloqueio de condução pelo NAV à medida que a frequência cardíaca aumenta.
Figura 28.6 ■ Períodos refratários do potencial de ação cardíaco. O período refratário absoluto (PRA) se estende da fase 0 até, mais ou menos, a metade da fase 3. O período refratário relativo (PRR) vai do final do PRA ao início da fase 4. O período refratário efetivo (PRE) inclui o PRA e parte do PRR.
Potencial de ação cardíaco em situações especiais Miócitos atriais, do NSA e do NAV, apresentam em seu sarcolema receptores muscarínicos que interagem com acetilcolina, o neurotransmissor pósganglionar do sistema nervoso parassimpático que inerva o coração pelo nervo vago. Dentre os vários efeitos produzidos pela interação da acetilcolina com o receptor muscarínico na célula miocárdica, destacase a ativação de um canal para K+, conhecido como GIRK, que medeia a corrente IK,ACh. A ativação desse canal provoca um aumento na intensidade do potencial de repouso (hiperpolarização), bem como um encurtamento da duração dos potenciais de ação atrial e nodais, já que adiciona uma via para efluxo de K+, favorecendo e acelerando a repolarização (fase 3). Nos locais em que existem potenciais de ação lentos, como nos NSA e NAV, a atuação de IK,ACh pode ser dramática. Assim, uma ativação parassimpática intensa pode acarretar um bloqueio de condução atrioventricular por depressão do potencial de ação no NAV, já que, no jogo entre correntes despolarizantes e hiperpolarizantes mostrado antes, a adição de um componente repolarizante, representado por IK,ACh, provoca diminuição da inclinação da fase 0 e da amplitude do potencial de ação, além de, consequentemente, maior dificuldade de propagação. O mesmo ocorre no NSA: neste, além deste efeito sobre a condução, há também uma depressão da despolarização diastólica (ver “Automatismo cardíaco”, mais adiante), o que levará à redução da frequência de disparo nodal, ou seja, da frequência cardíaca.
Outra corrente de efluxo é a corrente de K+ dependente de ATP, IK,ATP. Tratase de uma corrente de K através de um canal mantido fechado em presença de concentrações fisiológicas de ATP citoplasmático. Quando esta diminui, cessa o bloqueio e o canal se abre, permitindo o efluxo de K+, causando, portanto, encurtamento da duração do potencial de ação. Admitese que, em condições de isquemia miocárdica, tal canal seja ativado e participe da gênese de arritmias. Em algumas condições patológicas nas quais há aumento anormal da concentração citoplasmática de Ca2+ livre, como acontece durante intoxicação digitálica, há evidência da ativação de um canal catiônico, não seletivo, ativado por Ca2+ citoplasmático (Iti). Nos níveis normais de potencial de repouso, esse canal carreia corrente de influxo (primordialmente, Na+), gerando as oscilações de potencial de pequena amplitude, chamados póspotenciais tardios, que sucedem um potencial de ação normal. Esses pós potenciais têm sido associados à gênese de taquiarritmias. +
Alterações de canais iônicos versus patologias cardíacas As alterações funcionais dos canais iônicos constituem importantes mecanismos fisiopatológicos de várias doenças cardíacas congênitas. Já foram identificadas inúmeras mutações do gene SCN5A associadas a arritmias cardíacas, como a síndrome do QT longo tipo 3 (LQT3). Muitas das mutações produzem ganho de função (aumento da corrente) do canal para Na+ ao removerem a inativação rápida, causando maior persistência da corrente de Na+ durante o platô do potencial de ação. O retardo na repolarização da membrana, caracterizado eletrocardiograficamente como um prolongamento do intervalo QT, predispõe o indivíduo a taquicardias ventriculares polimórficas, do tipo torsade de pointes. Outras mutações do gene SCN5A acarretam perda de função (redução da corrente) do canal para Na+, tal como nas mutações associadas à síndrome de Brugada, à doença progressiva de condução e à síndrome do nodo sinusal. Uma mutação do canal CaV1.2 foi identificada como causa da síndrome de Timothy, uma doença multissistêmica que provoca, entre outros distúrbios, arritmias cardíacas e morte súbita. Essa mutação remove a inativação dependente de voltagem, produzindo corrente sustentada de influxo de Ca2+, o que prolonga a duração do potencial de ação cardíaco e desencadeia póspotenciais tardios (potenciais de ação anômalos, acoplados aos normais, que surgem no final ou logo depois da repolarização), fatores estes que aumentam o risco de arritmias cardíacas. Adicionalmente, mudanças na expressão, densidade e função dos canais para Ca2+ tipo L estão associadas a determinadas patologias cardiovasculares, tais como: cardiomiopatia hipertrófica, insuficiência cardíaca e fibrilação atrial. Síndromes congênitas de QT longo associamse também a defeitos nos canais KV (LQT1, LQT2, LQT5 e LQT6). A síndrome do QT longo tipo 2 (LQT2) é causada por mutação no gene HERG, localizado no cromossomo 7, que codifica a subunidade α de IKr. A tipo 6 (LQT6) está ligada a mutações no gene MiRP1 (cromossomo 21), codificante da subunidade β de IKr. Já as síndromes do QT longo tipos 1 (LQT1) e 5 (LQT5) estão associadas, respectivamente, a mutações nos genes KVLQT1 (cromossomo 11) e minK (cromossomo 21), que codificam as subunidades α e β de IKs. O intervalo QT prolongado, seja ele congênito ou não, predispõe a uma arritmia ventricular característica denominada torsade de pointes. Mutação no gene KCNJ2 que codifica Kir2.1 está associada à síndrome de Andersen (LQT7), que no coração se manifesta como prolongamento do intervalo QT e arritmias ventriculares.
AUTOMATISMO CARDÍACO As células cardíacas miocárdicas do NSA, NAV e fibras de Purkinje não necessitam, em condições fisiológicas, de estímulo externo para iniciar um potencial de ação, sendo capazes de espontaneamente gerar potenciais de ação. Essa propriedade é referida como automatismo. Nesses tecidos, não existe um potencial de repouso estável, sendo a repolarização ao final de um potencial de ação seguida de uma despolarização lenta da membrana denominada despolarização diastólica lenta (DDL) ou fase 4 dos potenciais de ação automáticos (ou marcapasso). Esta fase prossegue até certo valor de potencial de membrana (potencial limiar), a partir do qual ocorrem a ativação dos canais para Ca2+ dependentes de voltagem do tipo L (ICa,L) ou dos canais para Na+ dependentes de voltagem (INa) e consequente
despolarização celular (fase 0). Enquanto nas células nodais a fase 0 se dá por ativação de ICa,L, nas fibras de Purkinje essa acontece por meio da INa (Figura 28.7). Esse padrão difere completamente do que ocorre nos miócitos atriais e ventriculares, os quais não apresentam DDL e permanecem, após o final de um potencial de ação, em seu potencial de repouso estável (fase 4) até serem estimulados novamente. Dentre os tecidos dotados de automatismo, as células do NSA são as que mostram fase 4 mais inclinada (DDL mais rápida), o que se traduz em maior frequência de disparo, garantindo a essa estrutura a condição de marcapasso cardíaco, ou seja, o comando da frequência cardíaca. Na ativação cardíaca fisiológica, o estímulo sinusal alcança o NAV e as fibras de Purkinje antes que essas estruturas atinjam seu potencial limiar (ver Figura 28.7). Desse modo, a fase 0 nessas células não é desencadeada pela despolarização diastólica própria, e sim por uma pequena despolarização supralimiar causada por correntes iônicas locais geradas em células vizinhas acopladas, durante a propagação do impulso elétrico (ver adiante). Pelo exposto, depreendese que, em condições fisiológicas, apenas o automatismo do NSA se manifesta. Entretanto, se o estímulo sinusal falhar, atrasar ou for bloqueado, outro tecido que possui automatismo poderá atingir seu potencial limiar, gerando um batimento de escape (ver Figura 28.7 B). Se a falha (ou bloqueio) no NSA persistir, a estrutura de frequência intrínseca imediatamente inferior à do NSA tende a assumir a função de marcapasso (normalmente nesta sequência: NSA > NAV > feixe de His > ramos do feixe de His, sendo os segmentos proximais mais rápidos que os distais). Por exemplo, na vigência de bloqueio do NAV, o controle dos batimentos ventriculares passa, geralmente, a ser desempenhado pelo feixe de His.
Figura 28.7 ■ A. Diagrama representativo de potenciais transmembrana do nodo sinoatrial (NSA) e de fibra de Purkinje. A inclinação da despolarização diastólica (DD) é mais acentuada, e o potencial limiar (PL) é atingido mais cedo no NSA do que na fibra de Purkinje. Assim, a fibra de Purkinje é despolarizada (fase 0) por impulsos propagados originados no NSA (setas) antes que alcance seu próprio PL. Observe as diferenças de amplitude (APA), de duração do potencial de ação (DPA) no curso temporal da repolarização (fases 1, 2 e 3) e de potencial diastólico máximo (PDM) entre os dois tipos celulares. B. Quando um segundo impulso sinusal (II) falha em alcançar o sistema HisPurkinje por bloqueio de condução (sinalizado por ⊥), ou quando a frequência sinusal é acentuadamente mais lenta (p. ex., por descarga vagal, linha tracejada), a DD da fibra de Purkinje pode então atingir seu PL e causar um batimento de escape. (Adaptada de Watanabe e Dreifus, 1968.)
A frequência de geração dos impulsos depende do tempo necessário para que a despolarização diastólica atinja o potencial limiar. Esse tempo, por sua vez, é função da diferença de voltagem entre o potencial diastólico máximo (PDM, potencial mais negativo alcançado no final da repolarização) e o potencial limiar e da inclinação da fase 4 (Figura 28.8). Sendo assim, uma redução da frequência cardíaca pode ser causada tanto por aumento da diferença de voltagem entre o PDM e o potencial limiar, quanto por redução na inclinação da fase 4, ocasionando uma diminuição da taxa de despolarização diastólica lenta. O aumento da diferença PDMpotencial limiar, por sua parte, pode ocorrer por hiperpolarização da membrana e/ou deslocamento do potencial limiar para valores mais positivos. Ao contrário, a redução da diferença PDMpotencial limiar e/ou o aumento da inclinação da fase 4 promovem aumento da frequência cardíaca. Esses ajustes serão discutidos quando da descrição dos efeitos do sistema neurovegetativo sobre a frequência cardíaca (ver adiante).
▸ Bases iônicas do automatismo cardíaco Como todas as alterações do potencial de membrana, o potencial diastólico máximo (PDM) e a despolarização diastólica lenta (DDL) são consequências diretas do somatório de correntes iônicas que atravessam a membrana nos dois sentidos ao longo do tempo. Assim sendo, as correntes de influxo tendem a despolarizar a membrana, acelerando o automatismo, ao passo que as de efluxo atuam em sentido oposto, favorecendo a hiperpolarização e a redução da frequência de disparo. Como principais correntes de influxo na fase 4 das células com automatismo cardíaco, devese destacar: corrente marcapasso (If), correntes de cálcio (ICa,T) e a corrente gerada pela atividade do trocador Na+/Ca2+ (INa/Ca) no modo normal (corrente despolarizante). No caso das correntes de efluxo, destacamse as de K+ de retificação retardada IKs e IKr. Nas fibras de Purkinje, participa também de forma decisiva a corrente de K+ retificadora de influxo (IK1), principal responsável pela condutância ao K+ na fase diastólica destas células. Menos importantes e/ou menos estudadas, destacamse a corrente de “vazamento” ou de fuga (background) carreada por Na+ (INa,bg), e a corrente (hiperpolarizante) gerada pela bomba Na+/K+ (INa/K) (ver Figura 28.5 B).
Figura 28.8 ■ Fatores determinantes da frequência de disparo. A frequência de disparo dos tecidos automáticos é função do tempo gasto para a membrana se despolarizar do potencial diastólico máximo (PDM) até o potencial limiar (TP). Este tempo depende da inclinação da fase 4 (compare as letras a e b, gráfico superior), do nível do PDM (compare as letras a e d, gráfico inferior) e do nível do potencial limiar (compare as letras b e c, gráfico inferior). (Adaptada de Hoffman e Cranefield, 1960.)
A corrente ativada por hiperpolarização, If (do inglês, funny) ou corrente marcapasso, foi caracterizada pela primeira vez há cerca de 30 anos e, desde então, as informações acerca de sua participação no automatismo cardíaco apontamna como uma das mais importantes na geração de atividade espontânea (fase 4) e no controle da frequência cardíaca. Os canais responsáveis pela If fazem parte da família de canais HCN (hyperpolarizationactivated cyclic nucleotidegated), existentes não só no coração, mas também em tecidos neurais dotados de automatismo. Do ponto de vista molecular, os canais HCN têm estrutura semelhante à dos canais para K+ ativados por voltagem, sendo constituídos pela associação de quatro subunidades proteicas homólogas (isoformas), cada uma apresentando seis segmentos transmembrana e um sítio intracelular para ligação de cAMP, próximo à extremidade carboxiterminal. No coração, os canais HCN têm conformação heteromérica, composta pelas isoformas HCN1, HCN2 e HCN4. Contudo, HCN4 é a isoforma predominante nos nodos SA e AV. Descrita em todos os tecidos cardíacos providos de atividade automática, a corrente marcapasso é catiônica carreada por Na+ e K+, e sua ativação ocorre por hiperpolarização da membrana, diferentemente de outros canais dependentes de voltagem, cujas ativações ocorrem por despolarização da membrana. A ativação da If é desencadeada a partir de voltagens mais negativas que –40 ou –45 mV, por um processo lento, e tem potencial de reversão entre –10 e –20 mV, o que se explica pelo fato de os canais HCN permitirem tanto a passagem de Na+ quanto de K+, sendo PK > PNa. Contudo, como em condições fisiológicas esses canais só se abrem no final da repolarização, ou seja, em potenciais próximos de EK e afastados de ENa, os íons Na+ permeiam o canal em proporção bem maior que os íons K+, causando, portanto, uma corrente despolarizante. Como a corrente If é predominantemente de influxo e, portanto, leva à despolarização, a simples observação de que a faixa de voltagens de ativação da If se sobrepõe aos valores de potencial atingidos durante DDL (–40 a –65 mV no NSA) já nos sugere que If é forte candidata a ser a corrente geradora da DDL (fase 4 do potencial de ação lento), agindo, portanto, como “corrente marcapasso”. Em termos fisiológicos, está bem estabelecida a grande contribuição de If para a DDL das fibras de Purkinje. No que se refere ao NSA, a hipótese de If como principal geradora do automatismo básico tem sido alvo de debate há muitos anos. Uma alternativa à hipótese do papel dominante de If no mecanismo do automatismo sinusal é que a DDL seja desencadeada essencialmente por desativação de correntes de efluxo de retificação retardada – no caso IKs ou IKr – concomitante à ocorrência de uma corrente de influxo, não necessariamente If. Essas correntes de K+ apresentam, no NSA, as mesmas propriedades descritas em outras regiões do coração. Resumidamente, IKs caracterizase por uma ativação bastante lenta, retificação de efluxo, ausência de inativação e desativação lenta. Já a ativação da IKr é mais rápida e ocorre em voltagens mais positivas que –50 mV. A comprovação da participação de IKs e IKr na gênese do automatismo é também tema de debate, embora dados sobre a cinética de desativação de IKs e IKr sugiram que essas correntes possam participar da fase 4 do potencial de ação. A Figura 28.9 mostra a evolução de IKr durante um potencial de ação sinusal. Observase que essa corrente aumenta progressivamente após a fase 0, atinge o pico na repolarização final e decai ao longo de toda a despolarização diastólica, o que condiz com sua participação nesta fase. Outra corrente envolvida na DDL foi descrita inicialmente em miócitos ventriculares e atriais, a corrente de Ca2+ do tipo T (ICa,T), a qual é considerada uma das principais correntes responsáveis pela gênese do automatismo no NSA e NAV. A designação “T” referese à pequena condutância unitária do canal (do inglês tiny) e à rápida (transient) velocidade de inativação da corrente macroscópica comparada ao descrito para ICa,L (large e long lasting). O envolvimento de ICa,T no automatismo dos nodos justificase pela ativação da corrente em potenciais mais positivos a –60 mV, ou seja, dentro da faixa de voltagem da despolarização diastólica. Além disso, a densidade de canais ICa,T no NSA revelouse maior que em células atriais e ventriculares, o que favoreceria a hipótese de sua participação na gênese do automatismo do marcapasso sinusal. A participação de ICa,T no marcapasso sinusal é evidenciada pelo efeito do bloqueio farmacológico dessa corrente. Observase que, quando ICa,T é abolida, a despolarização diastólica tornase mais lenta (principalmente em sua metade final), levando a uma diminuição da frequência de disparo.
Figura 28.9 ■ Participação da corrente de potássio de retificação retardada rápida (IKr ) na despolarização diastólica do nodo sinusal (NSA). A figura mostra um experimento com célula isolada do NSA de coelho que demonstra, por meio da técnica de action potential clamp, a participação de IKr na fase 4 do potencial de ação (PA). Na parte superior, observamse pulsostestes de voltagem que reproduzem exatamente o formato do PA da célula estudada. Na parte inferior, apresentase a corrente de compensação (equivalente à própria IKr e assim designada) durante o bloqueio de IKr pelo E4031 (3 mM). Observe que IKr aumenta lentamente depois da fase 0 e atinge seu pico pouco antes do potencial diastólico máximo, para então decair durante toda a despolarização diastólica. A queda abrupta imediatamente após a fase 0, provavelmente, devese à retificação de influxo exibida pela corrente. (Adaptada de Ono e Ito, 1995.)
Em relação ao controle da frequência cardíaca pelo sistema nervoso simpático e parassimpático, o papel relevante desempenhado pela corrente marcapasso é bastante evidente. Como mostrado na Figura 28.10, a estimulação dos receptores β1adrenérgicos do NSA por catecolaminas (epinefrina e norepinefrina, também chamadas adrenalina e noradrenalina) ou agonistas βadrenérgicos (isoproterenol) promove deslocamento da curva de ativação de If para valores menos negativos, sem alterar o valor máximo da corrente. Em consequência, ocorre aumento da corrente nos potenciais em geral atingidos na DDL, resultando em elevação da frequência de disparo (efeito cronotrópico positivo). O mesmo pode ser verificado para a estimulação adrenérgica das fibras de Purkinje. O mecanismo subjacente envolve a proteína Gs, ativação da adenilatociclase e a formação do cAMP que ativa PKA, a qual se liga ao local específico presente na porção intracelular do canal, alterando sua dependência de voltagem. Além disso, a ativação da corrente ainda é facilitada pela hiperpolarização (por aumento de IKs) resultante da estimulação adrenérgica. Além do mais, no que diz respeito à regulação autonômica da frequência cardíaca, é bem conhecida a modulação simpática de IKs. A estimulação do receptor β1adrenérgico via cAMP/PKA induz a fosforilação desses canais para K+, levando ao aumento da amplitude e desativação acelerada dessa corrente. Como resultado da elevação de IKs, o PDM tornase mais negativo e a fase 4, mais inclinada, levando a um aumento da frequência de disparo. Este último efeito poderia decorrer diretamente pela desativação mais rápida de IKs ou, indiretamente, pela maior ativação da corrente marca passo, If. Com relação à IKr, os dados são menos conclusivos, uma vez que têm sido descritos tanto aumento quanto diminuição da corrente pelo estímulo βadrenérgico, dependendo da espécie ou tecido usado nos experimentos.
Figura 28.10 ■ Efeitos de agonistas muscarínico (acetilcolina, ACh) e betaadrenérgico (isoproterenol, Iso) sobre o potencial de membrana e a corrente marcapasso (If) em miócitos isolados do nodo sinusal (NSA) de coelho. A. Potenciais de ação espontâneos registrados em condiçõescontrole (Controle) ou na presença de ACh ou Iso nas concentrações indicadas. Observe que a aceleração (na presença de Iso) ou o alentecimento (na presença de ACh) da frequência se devem a alterações na inclinação da despolarização diastólica. B. Registro da If, corrente marcapasso, ativada por pulso hiperpolarizante a –85 mV aplicado a partir de um potencial fixado em –35 mV. A perfusão com ACh promove redução da corrente, e o oposto é verificado com o uso de Iso. C. Curvas de ativação de If, refletindo a porcentagem de canais abertos em função do potencial de membrana, em condiçãocontrole ou na presença de ACh ou de Iso. ACh ou Iso deslocam a curva de ativação nos sentidos negativo e positivo, respectivamente, sem alterar a corrente total. As curvas foram calculadas dividindose as correntes obtidas por pulsos em rampa de –35 a –125 mV pelos valores teóricos máximos de corrente, admitindose uma condutância total em cada potencial. Todos os registros foram conseguidos com a técnica de patch clamp. (Adaptada de Accili et al., 2002.)
Por sua vez, mediante estimulação vagal, ocorre liberação de acetilcolina (ACh), e esta, ao interagir com receptores muscarínicos do tipo M2 em células do NSA, promove um efeito cronotrópico negativo (diminuição da frequência cardíaca). Basicamente a interação acetilcolinareceptor muscarínico M2 no NSA desloca a curva de ativação de If para potenciais mais hiperpolarizados, levando à diminuição da corrente, aumento da duração da DDL e, consequentemente, redução da frequência cardíaca (ver Figura 28.10). Acreditase que os efeitos colinérgicos sejam consequência de três processos: (1) redução da concentração de cAMP por inibição, via proteína Gi, da adenilatociclase; (2) efeito inibitório direto da subunidade α de Gi (ou de outra proteína G) sobre os canais HCN, reduzindo a If; (3) a ativação do canal para K+ ativado por acetilcolina, conhecido como IK,Ach (ver detalhes no boxe “Potencial de ação cardíaco em situações especiais”). Em fibras de Purkinje, a acetilcolina é capaz de reverter o efeito dos agonistas βadrenérgicos, sendo provavelmente destituída de ações diretas.
▸ Outras correntes iônicas envolvidas com o automatismo cardíaco. Mais recentemente, foi aventada a participação da corrente do trocador Na+/Ca2+ (INa/Ca) como componente importante do mecanismo marcapasso no NSA. Essa hipótese teve origem na observação de aumentos transitórios da concentração intracelular de Ca2+ (“ondas de Ca2+”) durante a fase 4 de potenciais sinusais. O tratamento com rianodina (substância bloqueadora dos canais de liberação de Ca2+ do retículo sarcoplasmático) aboliu as ondas de Ca2+ e, ao mesmo tempo, reduziu ou suprimiu a atividade automática. Nesse contexto, postulase que, durante a fase 4, a entrada de Ca2+ via canais ativados por voltagem (ICa,T e ICa,L) induza a liberação de Ca2+ do retículo sarcoplasmático pelo mecanismo de “liberação de Ca2+ induzida por Ca2+” (mais informações no Capítulo 30), gerando as ondas de Ca2+. Por sua vez, o aumento da concentração intracelular de Ca2+ promoveria maior ativação de INa/Ca, que, por carrear uma corrente de influxo durante a fase 4 do potencial de ação, contribuiria para acelerar a DDL. Do ponto de vista das correntes de efluxo, temos ainda INa/K e IK1. Uma evidência da participação da primeira vem do fato de que, quando a Na+/K+ATPase é inibida pelos glicosídios cardiotônicos, a frequência de disparo tende a se elevar em função de uma redução do PDM e de uma aceleração da fase 4. Isso é bem estabelecido para fibras de Purkinje e observado em vários (mas não em todos) estudos que envolvem o NSA. A participação de INa/K na despolarização diastólica do NSA foi avaliada diretamente, registrandose a corrente em miócitos nodais de coelho, quando se verificou que a densidade de corrente era suficientemente grande para influir, de modo decisivo, na despolarização diastólica. Considerandose a visão clássica de que IK1 não está presente no NSA e NAV, essa corrente será discutida a seguir, juntamente com outros aspectos particulares do automatismo das fibras de Purkinje.
▸ Automatismo nas fibras de Purkinje Em linhas gerais, os mecanismos discutidos para o automatismo sinusal aplicamse também às fibras de Purkinje. As diferenças importantes devemse à presença dos canais IK1 nessas fibras, o que determina uma permeabilidade bem maior ao K+ e, consequentemente, um PDM mais hiperpolarizado (cerca de –90 mV). Assim, a despolarização diastólica desenvolvese em voltagens mais negativas, a partir de –90 mV, até um potencial limiar em torno de –65 mV, quando tem lugar a despolarização rápida, com a ativação de INa. Estando submetidos a potenciais mais negativos, os canais envolvidos na geração do automatismo apresentam uma cinética alterada, em relação ao observado no NSA. Além disso, as propriedades de retificação de influxo e dependência do K+ extracelular exibidas por IK1 conferem às fibras de Purkinje características peculiares quanto ao automatismo. Vale lembrar que, em condições normais, a fase 0 nessas fibras não é desencadeada pela despolarização diastólica, e sim por correntes eletrotônicas geradas no processo de propagação. Segundo o modelo NobleDiFrancesco, no balanço das correntes iônicas fluindo na despolarização diastólica das células de Purkinje, destacamse If, INa,bg e INa/Ca, no sentido despolarizante, e IKs, IK1 e INa/K, no hiperpolarizante. Devido ao PDM mais negativo, a ativação de If é bastante significativa, não havendo dúvidas quanto à sua relevância no mecanismo marcapasso. É importante destacar também o maior gradiente eletroquímico para o Na+, o que eleva a amplitude de If e INa,bg. Todavia, o aumento das correntes de influxo é contrabalançado pela alta condutância ao K+ dada pelos canais IK1, o que se reflete na lenta velocidade da despolarização diastólica. Nas fibras de Purkinje, as propriedades básicas dos canais IK1 são essencialmente as mesmas descritas em células atriais e ventriculares: retificação de influxo (ativação por hiperpolarização), grande chance de abertura nos níveis do potencial de repouso, dependência da [K+]e e rápida desativação ( NAV > feixe de His > ramos do feixe de His funciona no dia a dia e como a estrutura de frequência intrínseca imediatamente inferior assume o papel de marca passo cardíaco. A Figura 28.13 mostra a sequência de ativação do coração, com os potenciais de ação típicos de cada região, bem como os retardos observados ao longo desse processo. No traçado inferior, há o eletrocardiograma equivalente a essa sequência de eventos, que será analisado em detalhe no próximo capítulo.
CONTROLE NEUROVEGETATIVO (AUTONÔMICO) DA ATIVIDADE ELÉTRICA CARDÍACA Embora o coração seja dotado de automatismo, a sua função é, de modo contínuo, ajustada às variáveis demandas do organismo em situações bem diferentes, como durante o sono, quando esses requerimentos diminuem muito, ou ao se participar de uma maratona, atividade com alto consumo metabólico. Assim, o coração responde aos mecanismos gerais de controle nervoso e hormonal. A seguir, será abordado como a ativação do sistema nervoso neurovegetativo interfere na eletrofisiologia cardíaca e nos mecanismos básicos envolvidos nesse processo.
Figura 28.13 ■ Esquema que mostra o curso temporal do potencial de ação obtido nas várias regiões do coração, em sequência temporal de ativação, iniciando no nodo sinusal. O traçado inferior representa o eletrocardiograma convencional (ECG). Observe a correspondência temporal com os potenciais transmembrana apresentados nos traçados superiores. Note a menor duração do
potencial de ação ventricular na face subepicárdica. Os registros onda P, complexo QRS e onda T identificam no ECG, respectivamente, os eventos de propagação da despolarização atrial, despolarização ventricular e da repolarização ventricular. NSA, nodo sinusal; A, átrio; NAV, nodo atrioventricular; H, feixe de His; PJ, fibra de Purkinje; VEN, tecido ventricular subendocárdio; VEPI, tecido ventricular subepicárdio. (Adaptada de Paes de Carvalho e Fonseca Costa, 1983.)
Este órgão recebe inervação do sistema nervoso tanto simpático como parassimpático. Os efeitos das ativações desses dois sistemas se fazem sentir sobre a frequência cardíaca, a condução atrioventricular, a força de contração e o relaxamento. Tais efeitos são também referidos como cronotrópico, dromotrópico, inotrópico e lusitrópico, respectivamente. No coração de mamíferos, a inervação parassimpática, por intermédio do nervo vago, é muito abundante na musculatura atrial e nos nodos sinusal e atrioventricular, mas escassa nos ventrículos. Já a inervação simpática se distribui extensamente pelas quatro câmaras: tanto nos nodos quanto nos tecidos especializados em condução e também no miocárdio de trabalho (atrial e ventricular).
▸ Sistema nervoso parassimpático A ativação vagal libera acetilcolina nas terminações pósganglionares, de modo que seus efeitos são mediados pela ação desse neurotransmissor nos receptores muscarínicos que, no caso do coração, são do tipo M2. A interação de acetilcolina com receptores M2 cardíacos promove basicamente três eventos: 1. 2.
3.
Abre, por um processo mediado por uma proteína Gi, o canal para K+ responsável pela corrente IKACh, descrito anteriormente. Pela ativação de uma proteína Gi, inibe a adenilatociclase, reduzindo as concentrações de cAMP no citoplasma, o que leva à diminuição da fosforilação de canais para Ca2+ tipo L e, consequentemente, da corrente de Ca2+ por esses canais. Ativa a guanilatociclase, elevando os níveis de cGMP no citoplasma, que pode inibir os canais de Ca2+ tipo L (via PKG – proteinoquinase dependente de cGMP) ou diminuir a concentração de cAMP (via estimulação de uma cAMP fosfodiesterase ativada por cGMP).
Essas três ações acarretam efeitos importantes na ativação cardíaca, a saber: bradicardia, redução da força de contração atrial e bloqueio de condução atrioventricular. Esses distúrbios estão relacionados com os seguintes efeitos da acetilcolina: ■ Nodo sinusal: (a) reduz a taxa de despolarização diastólica por diminuição de If e ICa,L e também (como IK,ACh é uma corrente hiperpolarizante) se opõe à despolarização, resultando em queda de frequência sinusal ou até mesmo parada sinusal; (b) provoca redução da taxa de despolarização e da amplitude do potencial de ação sinusal, pois, além de ativar IK,ACh, uma corrente hiperpolarizante, promove redução de ICa,L (conforme foi descrito em “Automatismo cardíaco”). Ambos os fatores deprimem o potencial de ação do tipo lento do nodo sinusal, ocasionando um bloqueio de condução sinoatrial ■ Miocárdio atrial: (a) aumenta o potencial de repouso (hiperpolarização), pois IK,ACh se somará a IK1; (b) reduz a duração do potencial de ação atrial, pela presença de um componente repolarizante extra (IK,ACh); e (c) diminui a força de contração da musculatura atrial, por redução de influxo de Ca2+ causado pela inibição de ICa,L ■ Nodo atrioventricular: diminui a taxa de despolarização e a amplitude do potencial de ação, pelos mesmos motivos apontados para o potencial de ação no NSA, levando a um bloqueio de condução atrioventricular. (Nota importante: falase em bloqueio de condução sempre que há dificuldade na propagação do sinal elétrico. Isso acarreta diminuição de velocidade de condução e eventualmente interrupção da condução.)
▸ Sistema nervoso simpático A ativação simpática, por outro lado, ocasiona a liberação de norepinefrina nas varicosidades dos terminais nervosos em íntimo contato com todo o miocárdio. A epinefrina circulante, liberada pela medula suprarrenal, ao atingir o coração, também irá interagir com receptores adrenérgicos aí presentes. O principal receptor adrenérgico encontrado nas células cardíacas é do tipo β e, possivelmente, a grande maioria dos efeitos descritos para ativação simpática no coração são associados à interação com esse receptor. O coração possui os três subtipos de receptores βadrenérgicos (β1, β2 e β3). A interação das catecolaminas, principalmente com o receptor β1 (como descrito anteriormente em “Automatismo cardíaco”) leva à estimulação da adenilatociclase e, consequentemente,
ao aumento das concentrações de cAMP no citoplasma, por meio da ativação de uma proteína Gs. Como consequência, ativase a PKA, aumentando, assim, a probabilidade de fosforilação de inúmeras proteínas. São efeitos da ativação βadrenérgica no coração a fosforilação de canais para Ca2+ dependentes de voltagem do tipo L e a de canais para K+ dependentes de voltagem retificador retardado (IKs), o que provoca um aumento na densidade de corrente por esses canais, bem como a ligação do cAMP ao canal HCN (If), deslocando a sua curva de dependência de voltagem para valores mais positivos. Outros efeitos importantes, via PKA, incluem aumento da sensibilidade da maquinaria contrátil, possivelmente pela fosforilação de troponina I, e a estimulação da liberação e recaptação de Ca2+ pelo retículo sarcoplasmático (como será discutido no Capítulo 30). Os principais efeitos da ativação simpática no coração são: taquicardia, facilitação da condução atrioventricular, aumento na força de contração atrial e ventricular, além de aceleração do relaxamento ventricular. Adicionalmente: ■ Nodo sinusal: notase aumento na taxa de despolarização diastólica, por deslocamento da curva de dependência de voltagem do canal HCN (If) para valores mais despolarizados. Assim, essa corrente marcapasso é ativada mais precoce e rapidamente durante a diástole, em presença de ativação do subtipo β1 do receptor adrenérgico, atingindo, portanto, o limiar para o potencial de ação de modo mais rápido, o que ocasiona aumento na frequência de disparo. Um aumento de ICa,L refletese no potencial de ação lento do nodo sinusal, com fase 0 mais rápida e maior amplitude do potencial de ação, resultando em melhora na condução sinoatrial. Também o aumento de IKs reduz a duração do potencial de ação do nodo sinusal ■ Nodo atrioventricular: os efeitos observados são basicamente sobre o potencial de ação lento; potenciação da ICaL conduz à aceleração da fase 0 e a maior amplitude, tendo, como resultado, facilitação da condução atrioventricular. Outro aspecto importante é a diminuição da duração do potencial de ação lento, por ativação de IKs. Isso reduz o período refratário, contribuindo para que haja condução atrioventricular facilitada, mesmo em frequências cardíacas maiores ■ A mesma diminuição do período refratário é percebida ao longo do tecido de condução ventricular (feixe de His e fibras de Purkinje), que são as estruturas com maiores durações dos potenciais de ação. Como esse período é mais longo nessas regiões, a redução deste parâmetro em condições de taquicardia é fundamental para garantir uma condução atrioventricular fisiológica ■ Miocárdio de trabalho atrial e ventricular: ocorre o aumento da força de contração (efeito inotrópico positivo); esse efeito pode ser associado a aumento do influxo de Ca2+ pelos canais para Ca2+ do tipo L, maior liberação de Ca2+ pelos estoques intracelulares e maior sensibilidade da maquinaria contrátil ao Ca2+ (como será discutido no Capítulo 30). Observase também redução na duração do potencial de ação, como consequência de maior ativação de IKs, o que se reflete em uma repolarização mais rápida, com relaxamento mais precoce, associado a uma contração de maior rapidez. Isso garante um tempo de diástole ventricular adequado, fundamental para o enchimento ventricular, mesmo em presença de frequência cardíaca aumentada. Além disso, a PKA ativa a bomba de Ca2+ do retículo sarcoplasmático e fosforila a troponina I, levando ao efeito lusitrópico positivo (como também será discutido no Capítulo 30). Em condições fisiológicas, os dois sistemas – simpático e parassimpático – atuam simultaneamente, com predominância de um ou outro no sentido de adequar, a cada instante, a atividade do coração à sua primordial função de bombear sangue, gerando fluxo sanguíneo adequado para a eficiente perfusão de todos os tecidos.
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Bases do eletrocardiograma
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Princípios da eletrocardiografia Geração das ondas do eletrocardiograma
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Sistema de registro do eletrocardiograma Leitura e interpretação do eletrocardiograma Bibliografia
BASES DO ELETROCARDIOGRAMA Como detalhado no capítulo anterior, o coração, a exemplo do que ocorre com outros tecidos musculares e o sistema nervoso, funciona com base em sinais elétricos. O desempenho adequado da bomba cardíaca exige perfeita sincronia entre o período em que músculo está relaxado, permitindo assim o enchimento das câmaras, e o período de contração, o que possibilita imprimir pressão (energia potencial) e velocidade (energia cinética) ao sangue, garantindo a circulação sanguínea (como será discutido no Capítulo 31, O Coração como Bomba). O sincronismo da atividade mecânica das câmaras cardíacas (contração e relaxamento) é garantido pela geração e propagação de potenciais elétricos (potenciais de ação) ao longo do sincício elétrico miocárdico, como discutido no Capítulo 28, Eletrofisiologia do Coração. Alterações na atividade elétrica do coração levam à perda de sincronia nos ciclos de relaxamento e contração, sendo deletérias para a função da bomba cardíaca. Em uma situação extrema em que a atividade elétrica nesse órgão cessa, ocorre parada cardíaca. O eletrocardiograma (ECG) constitui o examepadrão para avaliar a geração e a propagação da atividade elétrica no coração. Tratase de um exame de fácil execução, de baixo custo e potencialmente rico no fornecimento de informações sobre a atividade elétrica cardíaca e, consequentemente, o funcionamento do coração. Essa é a razão pela qual o ECG constitui elemento indispensável para a avaliação clínica de atletas, de indivíduos que vão se submeter a procedimentos cirúrgicos e, principalmente, de pacientes portadores de algum tipo de doença cardiovascular. Como visto no capítulo anterior, os cardiomiócitos, em repouso, apresentam uma diferença de potencial entre os meios extra e intracelular. O valor desta diferença, que constitui o potencial de membrana ou potencial de repouso, é variável nos diferentes tipos de células do coração, sendo encontrados menores valores nos nodos (cerca de –50 a –55 mV) e maiores nas fibras subendocárdicas de Purkinje (cerca de –85 a –90 mV). Independentemente do valor do potencial de repouso, entretanto, este sempre é negativo no meio intracelular em relação ao meio extracelular. Como o meio extracelular tem baixa resistência elétrica e todas as células são envolvidas pelo mesmo meio condutor (a solução eletrolítica que envolve as células), a diferença de potencial entre dois pontos do meio extracelular é nula quando as células estão em repouso. Quando as fibras de uma região são estimuladas e entram em atividade (sofrem despolarização), há redução no valor do potencial elétrico do meio extracelular nas vizinhanças da região ativa (o qual fica mais negativo que o potencial elétrico do meio intracelular). Em consequência, surge uma diferença de potencial entre dois pontos do meio extracelular, como mostrado na Figura 29.1. Considerandose que o meio extracelular é um fluido condutor de baixa resistência, existe
deslocamento de cargas elétricas entre os dois pontos, ou seja, aparece uma corrente elétrica entre a região já despolarizada e as demais células que ainda se encontram em repouso elétrico (ver Figura 29.1 B). Se a corrente despolarizante (corrente d, Figura 29.1 B) tem intensidade suficiente para vencer a resistência das junções intercelulares, a despolarização propagase como uma onda da região ativa para as regiões ainda inativas (no presente exemplo da esquerda para a direita). No momento em que todas as células estão igualmente despolarizadas, os fluxos de corrente entre os dois pontos de registro novamente desaparecem (ver Figura 29.1 C). Uma vez que a célula da esquerda foi a primeira a se despolarizar, ela também deverá ser a primeira a se repolarizar. Novamente aparece uma diferença de potencial entre os dois pontos de registro, só que a corrente que flui no meio extracelular (corrente r, Figura 29.1 D) deslocase da região ativa para a inativa. Tal corrente denominase corrente repolarizante porque tende a restabelecer a polaridade de repouso da membrana. Como o coração está imerso em um meio condutor, o campo elétrico gerado pelo deslocamento de correntes despolarizantes e repolarizantes no fluido extracelular propagase para todo o corpo. Desta maneira, eletrodos posicionados em diferentes regiões da superfície corporal, quando acoplados a um amplificador apropriado, podem registrar as variações do potencial elétrico. Este princípio constitui o fundamento de uma série de registros elétricos obtidos de diversos órgãos e tecidos que têm como base de seu funcionamento a geração de potenciais de ação.
Figura 29.1 ■ A figura representa quatro células do miocárdio, acopladas através das junções intercelulares. Em A, todas as células estão em repouso. Dois eletrodos situados no meio extracelular detectam diferença de potencial nula. Em B, a despolarização da célula à esquerda faz aparecer uma diferença de potencial entre os eletrodos de registro consequente ao aparecimento de uma corrente despolarizante (d). Em C, quando todas as células estiverem despolarizadas, novamente o
galvanômetro registrará diferença de potencial igual a 0. Em D, como a célula à esquerda repolariza primeiro, outra vez aparecerá diferença de potencial entre os eletrodos de registro, só que a corrente extracelular (r) fluirá agora da região repolarizada para a região ativa. O galvanômetro irá registrar esta corrente com um sinal oposto ao da corrente despolarizante.
Devese a Waller, em 1887, a primeira demonstração de que as flutuações do campo elétrico cardíaco podiam ser captadas por eletrodos posicionados na superfície do corpo. Estas flutuações correspondem ao ECG, e os princípios básicos de obtenção desse registro podem também ser aplicados a outros órgãos e tecidos que funcionam com base em potenciais de ação, originando outros tipos de registro, como o eletroencefalograma, o eletrorretinograma, o eletromiograma, dentre outros. Nestes registros, são captadas, por meio de eletrodos e sistemas especiais de filtragem e amplificação de sinais elétricos, as flutuações do potencial do meio extracelular. Por outro lado, os registros do potencial de ação (como visto no capítulo anterior) captam as mudanças do potencial transmembrana.
PRINCÍPIOS DA ELETROCARDIOGRAFIA Grande parte do desenvolvimento da eletrocardiografia como exame fundamental para a análise da atividade elétrica cardíaca foi possível graças aos trabalhos desenvolvidos pelo médico holandês Willem Einthoven na primeira década do século XX; portanto, há mais de 100 anos. Naquela época, apesar de já se saber há mais de 25 anos que o funcionamento do coração produzia flutuações periódicas no potencial elétrico da superfície corporal, o grande problema era como obter um registro confiável e reprodutível destas flutuações. Devese a Einthoven o desenvolvimento de um sistema avançado (para a época) de captação de sinais elétricos de baixa amplitude, o galvanômetro de corda, que tinha sensibilidade suficiente para captar, na superfície corporal, as flutuações do campo elétrico cardíaco. Estas flutuações eram transformadas pelo galvanômetro nas ondas do ECG. De posse deste instrumento de registro, e usando a teoria do dipolo, coube a Einthoven formular um conjunto de proposições que permitiram padronizar os registros. A teoria do dipolo estabelece que qualquer diferença de potencial existente em um meio condutor, também chamada de dipolo, pode ser representada por um vetor que aponta para o lado do potencial mais alto e cujo comprimento é proporcional à intensidade do dipolo. Desta maneira, as correntes ‘d’ e ‘r’ esquematizadas na Figura 29.1 poderiam ser representadas por dipolos, denominados, respectivamente, vetor de despolarização (Figura 29.2 A) e vetor de repolarização (Figura 29.2 B). Observase que as correntes ‘d’ e ‘r’ têm sentidos contrários, pois fluem em diferentes sentidos no meio extracelular. Se, no galvanômetro, a corrente ‘d’ for registrada como uma onda positiva, a corrente ‘r’ aparecerá como uma onda negativa. A junção das duas ondas indica as modificações elétricas do meio extracelular decorrentes da excitação das células, como ilustrado na Figura 29.2. Na verdade, o sentido das ondas depende apenas dos arranjos de entrada do sinal no galvanômetro. O que a teoria do dipolo garante, entretanto, é que as ondas tenham sinais contrários, pois representam vetores que se propagam em sentidos opostos. Além disso, a amplitude de cada onda será proporcional à intensidade do dipolo. Como o dipolo elétrico propaga se no sincício miocárdico e essa propagação não é instantânea, a duração das ondas será proporcional à velocidade de ativação da propagação de cada dipolo.
Figura 29.2 ■ Considerandose a mesma situação mostrada na Figura 29.1 (em que a onda de despolarização se propaga da esquerda para a direita e os campos elétricos gerados pelas correntes “d” e “r” passam a ser representados por vetores), o vetor de despolarização irá apontar para a direita. Assim, se o eletrodo da esquerda for ligado à referência do amplificador e o da direita for o ativo, a despolarização será registrada como uma onda positiva (A), e a repolarização, como uma onda negativa (B). A junção das duas ondas representará as flutuações do campo elétrico extracelular durante os processos de despolarização e repolarização celular.
Einthoven aplicou a teoria do dipolo na interpretação das correntes elétricas registradas na superfície corporal, formulando um conjunto de proposições que são, por vezes, chamadas de princípios da eletrocardiografia ou Leis de Einthoven. Resumidamente, estes podem ser assim enunciados: ■ O meio condutor que envolve o coração é homogêneo. Como consequência, o dipolo elétrico gerado pela ativação cardíaca propagase igualmente por toda a superfície corporal ■ O campo elétrico a cada instante é representado por um dipolo único, resultante da atividade sincronizada de um grande número de células no coração ■ Os dipolos instantâneos têm um ponto de aplicação comum, representado pelo centro elétrico do coração ■ Os pontos da superfície corporal (braço esquerdo, braço direito e perna esquerda) escolhidos para o registro do campo elétrico cardíaco formam um triângulo equilátero, cujo centro corresponde ao centro elétrico do coração. Rigorosamente falando, nenhum destes princípios é válido, uma vez que o meio extracelular não é totalmente homogêneo, a ligação de eletrodos aos membros não forma um triângulo equilátero e nem tampouco o coração ocupa o centro deste triângulo imaginário. Apesar destas restrições, esses princípios têm sido aceitos desde então no uso clínico da eletrocardiografia. A montagem do sistema de registro eletrocardiográfico, bem como a interpretação das ondas do ECG, tem por base a aceitação da validade destes princípios.
GERAÇÃO DAS ONDAS DO ELETROCARDIOGRAMA A ativação cardíaca normal se faz em uma sequência regular representada pelo ciclo da atividade elétrica do coração, como discutido no capítulo anterior. É importante ressaltar que a onda de excitação propagase no músculo cardíaco com diferentes velocidades, como mostrado no Quadro 29.1. A velocidade de propagação depende da intensidade dos circuitos locais de corrente em decorrência dos fluxos iônicos que geram o potencial de ação nos miócitos. As células que têm potencial de repouso mais negativo, como as fibras musculares dos ventrículos e as fibras de condução de Purkinje, vão apresentar correntes de influxo (entrada) de Na+ de grande amplitude. Nestas condições, a velocidade com que ocorre despolarização, fase 0 do potencial de ação, também é grande. Isso se traduz, em termos de registro, por um valor grande de dV/dt máximo (velocidade máxima de despolarização). Nestas células, o potencial de ação se propaga com grande velocidade (ver Quadro 29.1). Nos tecidos nodais, ao contrário, as células apresentam potencial de repouso menos negativo (da ordem de –50 mV). A despolarização destas células é feita por uma corrente lenta de influxo de Ca2+ através da membrana, originando um valor de dV/dt máximo de baixa amplitude. Como consequência, a amplitude dos circuitos locais de corrente é baixa e, portanto, a velocidade de propagação da onda de despolarização também é pequena quando comparada com a dos tecidos não nodais (miocárdio atrial e ventricular e sistema de HisPurkinje).
Quadro 29.1 ■ Características do potencial de ação e velocidade de propagação da onda de excitação nas diferentes regiões do coração. Região do coração
Potencial de repouso
Amplitude do potencial Velocidade de
(mV)
de ação (mV)
propagação (m/s)
Nodo sinusal
–45 a –50
50 a 60
0,01
Átrios
–70 a –80
85 a 95
0,8 a 1,2
Nodo atrioventricular
–50 a –55
60 a 65
0,01 a 0,05
Sistema HisPurkinje
–85 a –90
110 a 130
2,0 a 5,0
Ventrículos
–80 a –85
105 a 110
1,0 a 1,5
Os números indicam valores típicos encontrados em células das diferentes regiões do coração. A Figura 29.3 mostra os diferentes tipos de potencial de ação gerados durante um ciclo cardíaco e as ondas eletrocardiográficas geradas na superfície do corpo. Observase que o ciclo cardíaco originase com a despolarização das células do nodo sinusal, propagandose pelos átrios direito e esquerdo. Analisandose a equivalência temporal entre os registros de potencial em diferentes regiões do coração e as ondas do ECG, verificase que a ativação (despolarização) atrial gera uma onda denominada onda P. A despolarização ventricular gera um conjunto de ondas pontiagudas e de rápida inscrição, chamado de complexo QRS. A onda T coincide com a fase 3 do potencial de ação ventricular, representando, portanto, a repolarização ventricular. A onda U, que às vezes aparece em um registro do ECG após a onda T, parece ser determinada pela repolarização tardia das fibras ventriculares com potenciais de ação mais longos.
Figura 29.3 ■ Propagação da atividade elétrica no coração. À esquerda, esquema do coração mostrando as câmaras cardíacas, os nodos e o sistema de condução intraventricular. À direita, potenciais de ação típicos encontrados em cada uma destas estruturas e a correlação temporal com as ondas e intervalos do eletrocardiograma (ECG). Observe que a onda P coincide com o espalhamento da excitação nos átrios, o complexo QRS coincide com a ativação ventricular e a onda T coincide temporalmente com a fase 3 da repolarização dos potenciais de ação do músculo ventricular. Observe, também, as diferenças de duração de potencial de ação nos vários componentes do sistema de condução intraventricular e no miocárdio de trabalho ventricular. SA, sinoatrial (ou sinusal); AV, atrioventricular. (Adaptada de Netter, 1969.)
Imaginandose o coração em uma posição fixa, o ciclo elétrico da atividade cardíaca ocorreria sempre na mesma sequência e com velocidade de propagação uniforme em diferentes batimentos. Assim, as ondas do ECG captadas por eletrodos com posição fixa produzem sempre ondas com a mesma forma. Mudandose a posição dos eletrodos, entretanto, há grande variação da morfologia destas ondas.
Nomenclatura das ondas e intervalos do eletrocardiograma
O ECG corresponde ao registro de variações de voltagem em função do tempo. Deste modo, a voltagem ou amplitude das ondas é indicada no eixo vertical e as durações dos processos elétricos, no eixo horizontal. Para a comparação de registros feitos em diversos momentos em um mesmo indivíduo, ou registros obtidos em indivíduos diferentes, há necessidade de se obter o ECG de modo padronizado. No ECG convencional, o paciente deve estar em repouso e deitado em decúbito dorsal. O registro é realizado na velocidade de 25 mm/s e a amplificação (ganho) é de 1 mV/cm. Como consequência, cada milímetro de registro corresponde à duração de 40 ms (ou 0,04 s) e à amplitude de 0,1 mV. Os principais elementos lidos no ECG podem ser vistos na Figura 29.4. Alguns parâmetros obtidos na leitura do ECG são importantes para entendimento do texto: Intervalo PR: vai do início da onda P ao início do complexo QRS. Segmento PR: vai do final da onda P ao início do complexo QRS. Intervalo QT: vai do início do complexo QRS ao término da onda T. Segmento ST: vai do final do complexo QRS (ponto J) ao começo da onda T.
Figura 29.4 ■ Representação gráfica de um registro eletrocardiográfico padrão, mostrando a nomenclatura das ondas, intervalos e segmentos. Observe que, em condiçõespadrão, a velocidade do registro é de 0,04 s/mm (ou 25 mm/s) e de 0,1 mV/mm. (Adaptada de Netter, 1969.)
▸ Despolarização atrial e geração da onda P Quando o coração está em repouso elétrico e prestes a iniciar um novo ciclo de atividade, a primeira região a disparar potenciais de ação será o nodo sinusal (ou nodo sinoatrial), que se localiza na região de conexão das veias cavas com o átrio direito. O nodo sinusal tem as células com o grau mais elevado de automatismo no coração. A atividade elétrica desse nodo é de baixa amplitude, pelo pequeno volume de células que o compõe. Em consequência, a atividade elétrica sinusal não é captada por eletrodos situados na superfície corporal usados na eletrocardiografia convencional. A atividade gerada no nodo sinusal se propaga inicialmente pelo átrio direito, tomando o caminho descendente da crista terminalis. Em seguida, são despolarizados o septo interatrial e o átrio esquerdo. Assim, a ativação das câmaras atriais pode ser representada por dois vetores (Figura 29.5). O primeiro é voltado ligeiramente para a esquerda, para baixo, e para a frente, e resulta da ativação do átrio direito. O segundo é virado para a esquerda e para trás e tem pequena inclinação para baixo. Esses dois vetores originam um vetor resultante, denominado vetor P, que na maior parte dos indivíduos orientase para a esquerda e para baixo no plano frontal, e para trás no plano horizontal. O vetor P é, portanto, o vetor resultante da ativação dos dois átrios e o responsável pela inscrição da onda P (ver Figura 29.4). A duração da onda P (Quadro 29.2) reflete o tempo gasto para que a onda de despolarização se espalhe pelos dois átrios, situandose entre 80 e 100 ms nos indivíduos saudáveis.
Figura 29.5 ■ Posição do vetor médio de ativação atrial (vetor P) no plano frontal. Observe que o vetor P é formado pela composição dos vetores de ativação do átrio direito (AD) e do átrio esquerdo (AE). O eixo de P situase, na maioria dos indivíduos sem alterações cardíacas, em torno de +60° no plano frontal.
Quadro 29.2 ■ Duração das ondas e intervalos do eletrocardiograma no coração de adultos saudáveis. Parâmetro
Duração (ms)
Onda P
80 a 120
Intervalo PR
120 a 200
Segmento PR
80 a 100
Duração do QRS
70 a 110
Intervalo QT*
300 a 400
Segmento ST
100 a 150
Onda T
100 a 150
*O intervalo QT é fortemente influenciado pela frequência cardíaca.
Variabilidade da ativação atrial A ativação atrial não segue um padrão com o mesmo grau de regularidade normalmente observado nos ventrículos. O caminho seguido pela onda de excitação (despolarização) pode ser modificado por alterações da frequência cardíaca e pelo grau de atividade autonômica direcionada para o coração. O músculo atrial é rico em receptores colinérgicos. A descarga vagal não só reduz a frequência de disparo do marcapasso sinusal como também diminui a velocidade de condução intraatrial. Como tais efeitos não ocorrem uniformemente em toda a extensão dos átrios, o trajeto seguido pela onda de despolarização pode mudar de caminho nestas condições. Quando isso acontece, muda o padrão de inscrição da onda P. Outro fator que interfere na geração da onda P é a presença de feixes de condução rápida do impulso elétrico na musculatura atrial. Entretanto, há controvérsias a este respeito, devido ao fato de tais vias serem definidas mais do ponto de vista funcional que anatômico. Os estudos eletrofisiológicos invasivos (eletrodos de estimulação e de registro posicionados dentro do coração) detectam em muitas situações a presença de vias rápidas de condução, mas a maioria dos estudos histológicos falha em demonstrar a presença de tais
vias. Com base em estudos funcionais, foram descritas três vias de condução rápida. O trato internodal anterior dividese em dois ramos: um comunicase diretamente com o nodo atrioventricular (nodo AV) e o outro atravessa o septo interatrial e se espalha pelo átrio esquerdo. Os outros dois tratos, denominados mediano e posterior, comunicam diretamente o nodo sinusal ao nodo AV. Aparentemente, na maioria dos indivíduos os feixes internodais são muito finos, de modo que a propagação se faz através do próprio miocárdio atrial. Em situações especiais, entretanto, esses feixes podem ser funcionais, fazendo com que a excitação ventricular seja realizada de modo prematuro, isto é, sem o atraso nodal, em virtude da lenta propagação do potencial de ação ao longo do nodo AV.
▸ Condução atrioventricular O anel de tecido conjuntivo que separa os átrios dos ventrículos funciona como isolante elétrico entre as câmaras atriais e ventriculares, de maneira que a única conexão elétrica entre as câmaras atriais e as ventriculares é por meio do nodo atrioventricular (AV). Existem situações em que remanescentes de tecido atrial permanecem no anel fibroso e, se forem de calibre adequado e apresentarem conexões com fibras atriais e ventriculares, podem funcionar como elementos adicionais de conexão elétrica entre os átrios e os ventrículos. Quando essas vias “anômalas” são funcionais, fazem com que os ventrículos se despolarizem e, consequentemente, se contraiam muito precocemente, isto é, quando ainda não estão totalmente cheios de sangue. O batimento ventricular precoce determina o aparecimento de baixo débito sistólico (volume sistólico) e queda de pressão arterial. Do ponto de vista funcional, o nodo AV pode ser dividido em três regiões: atrionodal (AN), nodal propriamente dita (N) e nodalventricular (NV). O mapeamento funcional do nodo AV foi feito por Paes de Carvalho e colaboradores, no Instituto de Biofísica da UFRJ, no final dos anos 1950. Na região AN, são encontradas fibras que apresentam potenciais de ação de transição que ocorrem nas fibras atriais típicas (i. e., que têm fase 0 com alta velocidade de despolarização) e fibras com potencial de ação do tipo nodal, como mostrado na Figura 29.3. Os potenciais de ação lentos, cuja fase de despolarização é dependente quase exclusivamente do influxo de Ca2+ nas células, são encontrados apenas na região N. A condução pelo nodo AV é bastante lenta (ver Quadro 29.1). A exemplo do nodo sinusal, o nodo AV também é uma região muito pequena, razão pela qual sua atividade elétrica não gera um campo elétrico com magnitude suficiente para ser registrado na superfície do corpo. Do ponto de vista temporal, a passagem do estímulo elétrico pelo nodo AV coincide com a fase inicial do segmento PR do ECG, ou seja, a linha isoelétrica que vai do final da onda P ao início do complexo QRS (ver Figura 29.3). Assim, no registro convencional do ECG, podese apenas verificar se a condução AV está normal, lentificada (aumento do segmento PR) ou acelerada (segmento PR curto). Entretanto, o funcionamento adequado do nodo AV é crítico para o coração. Bloqueios nessa região, ou condução acelerada, podem levar a sérios distúrbios do funcionamento cardíaco e até à morte. Como será visto mais adiante, a exploração da condução atrioventricular com eletrodos intracardíacos permite acompanhar a propagação da onda através do nodo (ver eletrograma do feixe de His, Figura 29.6), exame esse de grande valor para se determinar o local exato de distúrbios de condução na junção AV. Este tipo de análise é que o orienta a colocação de marcapassos para prevenir morte súbita no caso de interrupção brusca da condução atrioventricular. Apesar de o segmento PR não conter nenhuma “onda” no ECG, durante o seu registro a onda de excitação está se propagando pelas diferentes regiões do nodo AV e pelos feixes do sistema de HisPurkinje. Como visto anteriormente, a região mais distal do nodo AV (região NH) corresponde à transição do tecido nodal propriamente dito com o tronco do feixe de His. Este percorre o trajeto na região alta do septo interventricular, dividindose em dois ramos: o direito, mais fino e longo, e o esquerdo, mais curto e grosso. O ramo direito do feixe de His caminha ao longo do septo em direção ao ápice do coração, pela parede livre do ventrículo direito. O ramo esquerdo apresenta as primeiras ramificações no terço médio do septo interventricular, distribuindose sob a forma de dois fascículos (um anterior e outro posterior) para a superfície endocárdica do ventrículo esquerdo. O registro da onda H no eletrograma do feixe de His (ver Figura 29.6) corresponde à ativação elétrica do feixe de His propriamente dito. A medida do tempo entre as ondas A (ativação atrial) e V (ativação ventricular) permite inferir o tempo necessário para que o estímulo elétrico proveniente dos átrios atravesse o nodo AV.
▸ Ativação ventricular e geração do complexo QRS A rápida ativação das fibras miocárdicas ventriculares (geralmente referidas como miocárdio de trabalho ventricular) é garantida por uma complexa rede de fibras miocárdicas organizadas anatomicamente em feixes, denominada sistema
periférico de HisPurkinje. Como as fibras de Purkinje têm diâmetro maior (em comparação com o miocárdio de trabalho atrial ou ventricular) e existe elevado grau de acoplamento intercelular no sentido longitudinal, a propagação do potencial de ação nestas fibras se faz com grande velocidade, podendo atingir até 5 m/s (nas regiões de melhor acoplamento celular) no sentido longitudinal dos feixes (ver Quadro 29.1). A rede de fibras de Purkinje se origina das ramificações periféricas dos ramos direito e esquerdo do feixe de His, distribuindose pelo endocárdio de ambos os ventrículos. Esta é a razão pela qual a excitação ventricular se propaga do endocárdio para o epicárdio, ou seja, o endocárdio se despolariza primeiro que o epicárdio, o contrário ocorrendo na repolarização, como será visto mais adiante.
Figura 29.6 ■ Equivalência entre as ondas do eletrocardiograma e os registros do eletrograma do feixe do His, obtido durante cateterismo cardíaco. O registro da passagem da onda de excitação pelo feixe de His é indicado pela espícula H. A onda A corresponde à excitação atrial e a V, à excitação ventricular.
A ativação ventricular começa no terço médio do septo interventricular, caminha rapidamente em direção ao ápice do coração e paredes livres ventriculares e termina com a excitação das regiões posterobasais de ambos os ventrículos. A duração de todo o processo de ativação dos ventrículos é dada pela duração do complexo QRS. No ECG de um indivíduo saudável, a duração do QRS não deve ultrapassar 110 ms. Quando maior que 120 ms, podese deduzir que ocorre retardo na propagação do impulso elétrico ao longo dos ventrículos. É interessante notar que a duração da onda P e do complexo QRS é praticamente a mesma, apesar de a massa dos ventrículos ser cerca de cinco vezes maior que a dos átrios. Isso significa que o tempo necessário para a onda de despolarização percorrer os átrios (tempo de ativação atrial) e os ventrículos (tempo de ativação ventricular) é praticamente o mesmo. O fator responsável pela maior eficiência dos processos de ativação e de propagação ventricular é a presença da rede subendocárdica de fibras Purkinje. Estas, como descrito anteriormente, possuem potencial de ação de grande amplitude e alta dV/dt máxima que se traduz em grande velocidade de propagação do potencial elétrico. Adicionalmente, o acoplamento celular no sentido fisiológico (que vai do feixe de His para a rede periférica de fibras de Purkinje) é muito grande, ou seja, a resistência longitudinal ao fluxo de corrente é baixa, facilitando a propagação da excitação. A ausência de uma rede semelhante de distribuição do estímulo nos átrios faz com que sua excitação seja feita mais lentamente. Por esta razão, a onda P apresentase mais arredondada, enquanto o complexo QRS é constituído por um conjunto de ondas apiculadas que traduzem a elevada velocidade de tráfego do estímulo nos ventrículos. A garantia de uma excitação ventricular rápida e uniforme é fator essencial para que os dois ventrículos se contraiam praticamente ao mesmo tempo, condição básica para a eficiência mecânica da contração e da ejeção de sangue pelos ventrículos. O alargamento do complexo QRS se dá pela redução na velocidade de propagação da onda ao longo dos ventrículos. Isso pode acontecer porque a velocidade de propagação no sistema de HisPurkinje é mais lenta, ou porque o estímulo não está se propagando no sentido fisiológico (geralmente, denominado sentido anterógrado). Sabese que a propagação do impulso elétrico no sincício miocárdico em sentido retrógrado é mais lenta.
Para fins de análise do ECG, a excitação ventricular pode ser representada por quatro vetores, assim denominados (Figura 29.8): ■ Vetor septal (ou vetor 1) ■ Vetor de parede livre de ventrículo direito (ou vetor 2) ■ Vetor de parede anterolateral de ventrículo esquerdo (ou vetor 3) ■ Vetor de parede basal (ou vetor 4). A Figura 29.7 mostra um esquema da propagação da onda de excitação ventricular. A primeira região excitada é a região média esquerda do septo interventricular, gerando o vetor septal (ver Figura 29.7 A). Como a ativação das fibras musculares do septo é feita por ramificações do ramo esquerdo do feixe de His, o vetor septal é, em geral, voltado para a direita, para baixo e para a frente. Após a ativação do septo, a onda de excitação propagase para baixo e para a frente, em direção ao ápice do coração. Em seguida, muda de direção e, caminhando pela superfície endocárdica dos ventrículos direito e esquerdo, percorre as paredes livres de ambos os ventrículos em direção à base (ver Figura 29.7 B e C). A excitação das paredes livres dos ventrículos direito e esquerdo ocorre quase simultaneamente. A excitação do ventrículo direito gera um vetor que aponta, no plano frontal, para a direita ou ligeiramente para a esquerda (na dependência de o coração ser mais horizontal ou vertical), enquanto a ativação do ventrículo esquerdo gera outro vetor sempre voltado para a esquerda (vetores 2 e 3, respectivamente, Figuras 29.7 e 29.8). Entretanto, a maior amplitude do campo elétrico gerado pela despolarização ventricular esquerda (em vista da maior massa de células existente nessa câmara) faz com que o vetor médio de ativação das paredes ventriculares seja predominantemente gerado pelo vetor 3. Esta é a razão pela qual o vetor de parede livre ventricular é, em geral, orientado para a esquerda e para baixo (no plano frontal, Figura 29.7) e da frente para trás (no plano anteroposterior, Figura 29.8). Porém, é importante ressaltar que a exata posição destes vetores em um determinado indivíduo só pode ser determinada pelo ECG, uma vez que os ângulos de cada vetor variam em função do biotipo e da posição do coração no tórax. As últimas regiões dos ventrículos a serem ativadas situamse inferiormente (em contato com o diafragma) e posteriormente (em contato com os vasos da base), gerando o vetor 4 ou vetor basal (ver Figuras 29.7 e 29.8). Normalmente, este está voltado para cima e para trás, sendo o responsável pela inscrição da última parte do complexo QRS. A Figura 29.8 mostra os vetores de ativação ventricular no plano anteroposterior, fazendo coincidir a origem de todos eles com o centro elétrico cardíaco, como preconizado pelas Leis da Eletrocardiografia.
Figura 29.7 ■ Sequência temporal de ativação dos ventrículos. A propagação da onda de excitação é representada por coloração roxa. Em A, está indicado que a primeira região a sofrer despolarização é a parte média do septo interventricular. Em B, o vetor representa a excitação da parte baixa do septo e da ponta do coração; note que, rapidamente, o vetor se dirige para a direita na ativação da parede livre do ventrículo direito. Em C, está representada a ativação do ventrículo esquerdo. Em D, é indicado que as regiões posterobasais do ventrículo esquerdo são as últimas a serem excitadas.
Figura 29.8 ■ Posição dos vetores de ativação ventricular, em corte transversal do tórax. O esquema mostra o esterno e uma vértebra, para servir de referência no eixo anteroposterior (AP). Vetor 1: ativação septal; vetor 2: ativação da parede livre do ventrículo direito; vetor 3: ativação da parede anterolateral do ventrículo esquerdo; vetor 4: ativação das regiões posterobasais dos ventrículos. Como os vetores 2 e 3 são quase simultâneos, a ativação das paredes anteriores e laterais dos ventrículos é geralmente representada por um único vetor, resultante da composição dos vetores 2 e 3. (Adaptada de Garcia, 1998.)
▸ Segmento ST e onda T | Repolarização ventricular Como descrito anteriormente, a ativação das paredes ventriculares ocorre no sentido transversal, isto é, do endocárdio para o epicárdio, gerando o complexo QRS. Quando o miocárdio ventricular está despolarizado, não há grandes diferenças de potencial entre regiões distintas dos ventrículos, pois o platô do potencial de ação situase em torno de 0 mV (ver Figura 29.3). Logo, não há fluxos de corrente no meio extracelular de uma região para outra do ventrículo, e o ECG volta para valores próximos à linha de base (ou linha isoelétrica), correspondendo ao segmento ST (ver Figura 29.4). Os fluxos de corrente gerados pela repolarização são de baixa magnitude quando comparados às correntes responsáveis pela excitação ventricular. Deste modo, a velocidade de propagação da onda de repolarização é bem mais lenta que a onda de despolarização. Essas diferenças ficam evidentes ao se compararem as morfologias do complexo QRS (ondas rápidas e apiculadas) e da onda T. Esta, por representar um fenômeno de propagação mais lento, é mais arredondada, como também acontece com a onda P. Um fato importante na eletrofisiologia celular do coração é que as fibras do epicárdio ventricular têm duração de potencial de ação ligeiramente menor que as fibras de localização endocárdica (ver Figura 28.13, no capítulo anterior). Como consequência, o epicárdio (que foi o último a se despolarizar) é o primeiro a se repolarizar, ou seja, a desenvolver a fase 3 do potencial de ação. Assim, a repolarização, enquanto fenômeno elétrico, caminha do epicárdio para o endocárdio. Entretanto, o vetor representativo da repolarização, responsável pela inscrição da onda T, dirigese do epicárdio para o endocárdio (Figura 29.9). Desta maneira, os vetores de despolarização e repolarização ventricular têm o mesmo sentido elétrico. Essa é a razão pela qual o sentido elétrico do complexo QRS é o mesmo da onda T. Este fato é consequência de os vetores elétricos representativos da despolarização (complexo QRS) e da repolarização (onda T) ventricular terem o mesmo sentido, como mostrado na Figura 29.10. Os sentidos do complexo QRS e da onda T tornamse divergentes (situação em que se diz que a onda T está invertida) quando os sentidos elétricos da despolarização e repolarização da parede ventricular são contrários. Isso ocorre, por exemplo, na vigência de extrassístole, como indicado na Figura 29.11. Assim, enquanto nos batimentos fisiológicos o complexo QRS e a onda T têm o mesmo sinal elétrico, indicando que a despolarização e a repolarização da parede ventricular ocorreram segundo o preconizado no esquema da Figura 29.9, na extrassístole a onda T é em sentido inverso ao complexo QRS, mostrando inversão na sequência da repolarização da parede. A inversão da onda T no batimento extrassistólico ocorre porque tanto a despolarização como a repolarização se iniciam no endocárdio, o que leva os vetores de despolarização e repolarização a adquirirem sentidos opostos. As diferenças de duração do potencial entre as fibras do endocárdio e do epicárdio, mostradas na Figura 28.13 (capítulo anterior), só ocorrem na vigência de ritmo cardíaco regular. Quebras no ritmo, como apresentado na Figura 29.11, alteram este comportamento eletrofisiológico peculiar das fibras ventriculares.
▸ Intervalo QT Como visto na Figura 29.4, o intervalo QT vai do início da ativação ventricular (marcado pelo início da inscrição do complexo QRS) até o final da repolarização ventricular, que coincide com o final da onda T. Sendo assim, como apresentado na Figura 29.3, o intervalo QT expressa, aproximadamente, a duração do potencial de ação ventricular. Alargamentos ou diminuições da duração do potencial de ação em fibras ventriculares, notadamente nas fibras de Purkinje, determinam alterações na duração do intervalo QT. Um dos fatores que encurtam o platô do potencial de ação cardíaco é o aumento da frequência cardíaca. Portanto, a duração do intervalo QT é muito dependente da frequência cardíaca. Esta é a razão pela qual esse intervalo, em geral, é expresso sob a forma de QT corrigido (QTc). Existem diversas fórmulas para se calcular o QTc, sendo a fórmula de Bazett a mais utilizada em clínica:
Figura 29.9 ■ Representação esquemática dos vetores de despolarização (vetor D) e de repolarização (vetor R) ventricular. Cada painel representa uma secção da parede ventricular, mostrando o endocárdio (end) e o epicárdio (epi). As setas estreitas representam as ondas de despolarização (que vão do endocárdio para o epicárdio em B) e de repolarização (que vão do epicárdio para o endocárdio em D). O painel A mostra o estado de repouso, e o C, o momento em que toda a parede ventricular encontrase despolarizada (fase de platô dos potenciais de ação). Observe que o sentido elétrico do vetor de despolarização (seta ocre em B), que gera o complexo QRS, é o mesmo do vetor de repolarização (seta ocre em D), que gera a onda T.
Figura 29.10 ■ Eletrocardiograma convencional mostrando as seis derivações do plano frontal (I, II, III, aVR, aVL e aVF) e as seis do plano horizontal, também chamadas de derivações precordiais (V1 a V6). O registro inferior, feito em D2, é estendido para se analisar a ritmicidade cardíaca. Observe a concordância entre os sentidos do complexo QRS e da onda T. Os valores numéricos à direita correspondem à leitura automatizada de algumas variáveis eletrocardiográficas, realizada por computador (mostrada em mais detalhes na Figura 29.19). bpm, batimentos por minuto.
Figura 29.11 ■ Registro eletrocardiográfico em D2, mostrando uma extrassístole ventricular. Nos batimentos normais, notar a sequência das ondas P, QRS e T e a regularidade dos segmentos e intervalos. Observe que a extrassístole não vem precedida de onda P (sugerindo sua origem ventricular) e é bastante alargada (indicando propagação intraventricular lenta). A onda T é invertida na extrassístole. Observe também a pausa compensatória pósextrassistólica.
O intervalo entre duas ondas R, expresso em segundos, fornece a frequência cardíaca. Logo, o QTc nada mais é que o ajuste da duração do intervalo QT para a frequência de 1 hertz (um batimento por segundo ou 60 batimentos por minuto).
Eletrograma do feixe de His | Detalhes da condução AV A Figura 29.3 mostra a atividade elétrica registrada por meio da sequência temporal dos potenciais de ação e sua inscrição eletrocardiográfica durante um ciclo cardíaco. O segmento PR, que vai do final da onda P até o início do complexo QRS, corresponde ao período em que a atividade elétrica propagase pelo nodo AV e pelo feixe de His. O campo elétrico produzido pelos potenciais de ação gerados nesta área é de baixa amplitude, razão pela qual não são detectadas inscrições no ECG. Assim, o segmento PR
corresponde a uma linha isoelétrica (nível 0) no ECG. O aumento da duração do segmento PR sempre sugere redução na velocidade de propagação da atividade elétrica no nodo AV, como ilustrado na Figura 29.12, em que o segmento PR apresentase bastante alargado em paciente com doença de Chagas. Detalhes da propagação do estímulo pelo nodo AV, como visto anteriormente, podem ser analisados pelo eletrograma do feixe de His, feito durante cateterismo cardíaco. O exame é feito posicionandose o eletrodo de registro no endocárdio, o mais próximo possível do feixe de His. O registro permite visualizar três espículas, denominadas A, H e V (Figura 29.13). A onda A equivale à propagação do estímulo pelas fibras atriais vizinhas à região nodal na transição atrionodal, o que pode ser deduzido pela correspondência com o final da onda P do ECG. A onda H se correlaciona com a espícula gerada pela ativação do feixe de His. Logo em seguida, aparecem as ondas V, correspondentes ao início da ativação do septo interventricular. Portanto, o segmento AH representa o tempo necessário para o estímulo atravessar o nodo AV e excitar o feixe de His, correspondendo ao principal componente do retardo (atraso) nodal (segmento PR) medido no ECG. O intervalo HV, por sua vez, determina a velocidade de propagação do estímulo desde o feixe de His até as primeiras terminações de Purkinje geradas a partir do ramo esquerdo do feixe de His. Alterações neste intervalo são importantes para indicar mais precisamente o local onde há prejuízo na condução AV, ou ainda, para determinar o mecanismo de geração de algumas arritmias cardíacas com origem no nodo AV. O registro superior da Figura 29.13, obtido em indivíduo saudável, apresenta intervalo HV de 36 ms. O registro inferior mostra condução praticamente normal no intervalo AH, indicando que a excitação do nodo AV pelos potenciais atriais é normal, mas o intervalo HV está muito aumentado (cerca de 130 ms), indicando bloqueio de condução abaixo do feixe de His. Indivíduos com distúrbios importantes da condução AV, notadamente quando o intervalo HV encontrase alargado, têm aumento de risco de morte súbita por bloqueio AV total, razão pela qual nestas situações a implantação de marcapasso artificial é muitas vezes indicada.
Figura 29.12 ■ Registro eletrocardiográfico que mostra ritmo regular, sinusal, com alargamento do intervalo e do segmento PR. Observe que a onda P tem duração normal, indicando condução lenta na junção atrioventricular. Note que há inversão da onda T nas derivações precordiais esquerdas (V5 e V6), sugerindo alteração na repolarização da parede do ventrículo esquerdo.
Figura 29.13 ■ Registro do eletrocardiograma (traço superior) e do eletrograma do feixe de His (traço inferior) em dois pacientes. Cada painel mostra o ECG (na derivação V5) e o eletrograma de His, onde a onda A corresponde à ativação atrial; a H, à ativação do feixe de His; e a V, ao complexo de ondas que indica a excitação ventricular. No painel superior, o intervalo HV mede 36 ms, e no inferior, cerca de 130 ms, indicando dificuldade de propagação na porção baixa do feixe de His. (Cortesia de J. Elias.)
SISTEMA DE REGISTRO DO ELETROCARDIOGRAMA Como discutido no capítulo anterior, a ativação elétrica do coração é feita obedecendo a uma sequência, tanto temporal como espacial, que irá propiciar condições ótimas para o processo de ativação das câmaras cardíacas. O registro do ECG permite reconstruir os passos do processo de ativação das câmaras cardíacas, tanto no domínio do tempo (por medidas precisas de duração das ondas, dos intervalos e dos segmentos) como do espaço (pelo cálculo dos vetores médios de ativação das câmaras cardíacas). Para tanto, há necessidade de registrar a atividade elétrica cardíaca a partir de diversos pontos do corpo para se atingir o segundo objetivo. Usando uma linguagem figurada, podese dizer que cada eletrodo “enxerga” o coração de um ângulo diferente. A partir das “imagens” (ondas) assim obtidas, podese reconstruir a ativação elétrica do órgão em uma perspectiva tridimensional. Denominase derivação eletrocardiográfica ao eixo elétrico que une os eletrodos usados para captar os sinais elétricos originados pelo coração. Inicialmente, Einthoven definiu três derivações, que ficaram conhecidas como as derivações bipolares (D1, D2 e D3), pois medem, a cada instante, a diferença de potencial entre dois eletrodos situados em membros
diferentes. Os princípios da eletrocardiografia, vistos anteriormente neste capítulo, referemse ao ECG registrado nessas três derivações. Posteriormente, foram propostas e padronizadas várias derivações unipolares, que medem a diferença de potencial entre um ponto da superfície corporal e outro ponto de potencial nulo. No ECG convencional, além das derivações bipolares, são registradas três derivações unipolares dos membros e seis derivações precordiais. Em registros eletrocardiográficos especiais, como no mapeamento precordial, por exemplo, o número de derivações unipolares registradas pode ser bem maior.
▸ Derivações do plano frontal São as derivações que captam as flutuações do campo elétrico no plano frontal, isto é, considerando apenas o eixo lateral (direita/esquerda) e vertical (superior/inferior) do coração. No plano frontal, são registradas as três derivações bipolares definidas por Einthoven e as três derivações unipolares dos membros.
Derivações bipolares Para o registro das derivações D1, D2 e D3, os eletrodos são posicionados nos braços direito e esquerdo e na perna esquerda. O aterramento do sistema é feito por outro eletrodo situado na perna direita (Figura 29.14). A disposição dos eletrodos na entrada do amplificador é feita de tal modo que a amplitude de um vetor registrado em D2 seja igual à soma das amplitudes registradas em D1 e D3. Essa igualdade é conhecida como a Lei de Einthoven:
É importante ressaltar que essa disposição foi proposta de maneira arbitrária, visando obter ondas positivas e de maior amplitude no complexo QRS registrados em indivíduos saudáveis. A validade desta relação é feita ao se analisar a Figura 29.15. A ativação ventricular pode ser representada pela resultante dos vetores 1, 2, 3 e 4, que formam o complexo QRS, mostrados na Figura 29.8. Na maioria dos indivíduos saudáveis, o vetor resultante da ativação ventricular aponta para a esquerda e ligeiramente para baixo no plano frontal (ver Figura 29.15). Sendo assim, esse vetor se projeta para o braço esquerdo em D1 e para a porção inferior (perna esquerda) das derivações D2 e D3. Observe que, para D2 ser igual à soma de D1 + D3, como preconizado na lei de Einthoven, a disposição dos eletrodos deve obedecer ao seguinte esquema: D1 = VL – VR D2 = VF – VR D3 = VF – VL em que: VL = potencial do braço esquerdo (L vem de left arm) VR = potencial do braço direito (R vem de right arm) VF = potencial da perna esquerda (F vem de foot). Então, de acordo com a equação 29.1, podese escrever:
Esta é a origem da convenção de sinais no triângulo de Einthoven, apresentada na Figura 29.14, ou seja, para se registrar D1, a entrada negativa do amplificador deve ser ligada ao eletrodo situado no braço direito e a entrada positiva, ao braço esquerdo. A mesma regra deve ser seguida para se obterem os registros de D2 e D3, que deve seguir o preconizado na equação 29.2. Detalhes adicionais sobre a montagem e padronização de registros eletrocardiográficos devem ser vistos em textos mais específicos. No esquema da Figura 29.15, o vetor médio de ativação ventricular origina um complexo QRS positivo e com a maior amplitude em D2, pois é praticamente paralelo a este plano de derivação. Esse mesmo vetor originaria um complexo QRS positivo em D1, pois se projeta em direção ao eletrodo explorador posicionado no braço esquerdo. Em D3 seria registrada uma onda de amplitude bem pequena, uma vez que o vetor elétrico é praticamente perpendicular ao plano da derivação D3. Vale ressaltar que, quando uma onda eletrocardiográfica é nula ou isoelétrica (a parte positiva é igual à parte negativa), isso indica que o vetor original está a 90° do plano de derivação.
Figura 29.14 ■ Esquema de ligação dos eletrodos no braço direito (R), braço esquerdo (L) e perna esquerda (F) para registro das derivações bipolares D1, D2 e D3. O aterramento é feito com o eletrodo posicionado na perna direita. (Adaptada de Garcia, 1998.)
Figura 29.15 ■ Projeções do vetor médio de ativação ventricular (cuja origem coincide com o centro elétrico do coração) sobre as derivações bipolares do triângulo de Einthoven. Na parte inferior, estão registrados os complexos QRS nas derivações D1, D2 e D3. Observe que a amplitude do QRS em D2 é igual à soma das amplitudes em D1 + D3, como preconizado pela lei de Einthoven. R, braço direito; L, braço esquerdo; F, perna esquerda. (Adaptada de Katz, 1992.)
Derivações unipolares dos membros Visando estabelecer o potencial elétrico absoluto de cada extremidade do corpo, Wilson, em 1934, desenvolveu um dispositivo, cujo potencial elétrico é nulo, que pode ser considerado um “terra virtual”, denominado central terminal de Wilson. Portanto, registrandose a diferença de potencial entre qualquer ponto da superfície corporal e a central terminal, conseguese um registro unipolar, ou seja, o potencial captado pelo eletrodo explorador é igual à variação absoluta do potencial elétrico daquele local. O ponto de potencial nulo é conseguido pela ligação dos três eletrodos conectados aos membros em um nó comum do circuito elétrico, obtendose assim um sistema fechado. Pela segunda lei de Kirchoff, a soma de potenciais em circuito elétrico fechado é igual a zero. Então:
Tendo em vista que os potenciais registrados no braço direito, no braço esquerdo e na perna esquerda apresentam baixa amplitude, o que dificulta a interpretação das ondas do ECG, Goldberger propôs uma modificação no circuito construído por Wilson. Na configuração proposta por Goldberger, o registro do potencial unipolar de um membro (p. ex., perna esquerda) é feito conectandose apenas os eletrodos dos outros dois membros ao ponto de potencial nulo, como mostrado na Figura 29.16. Com isso, os potenciais unipolares registrados nos membros têm maior amplitude, sendo mais fácil analisálos. Essas novas derivações foram incorporadas definitivamente aos registros do ECG basal, sendo denominadas aVR, aVL e aVF (a letra a indica augmented). Os eixos elétricos das derivações unipolares dos membros são definidos por linhas imaginárias que ligam o membro onde se situa o eletrodo explorador e o coração, ou seja, o centro do triângulo de Einthoven (Figura 29.17 A).
Círculo de Einthoven | Plano frontal do eletrocardiograma
As seis derivações registradas no plano frontal são comumente representadas em um círculo, chamado de círculo de Einthoven (Figura 29.17 B). Os ângulos do círculo são divididos em positivos (parte inferior) e negativos (parte superior). O círculo é dividido em quatro quadrantes, sendo o primeiro quadrante (I) compreendido entre 0 e +90°, e o segundo quadrante (II), entre +90 e ± 180°. Os quadrantes III e IV localizamse na parte superior do círculo, entre ± 180 e –90° e entre –90 e 0°, respectivamente. Como cada derivação está separada da outra por um ângulo de 30°, tornase muito útil, na interpretação do ECG, a análise de derivações perpendiculares. Assim, se o QRS é positivo nas derivações D1 e aVF, isso indica que o eixo médio de ativação ventricular situase entre 0 e +90°, ou seja, o vetor médio de ativação dos ventrículos está direcionado para a esquerda e para baixo. Se for positivo em D1 e negativo em aVF, deve estar entre 0 e – 90° (quadrante IV), portanto direcionado para a esquerda e para cima.
Figura 29.16 ■ Esquema de ligação dos eletrodos para o registro das derivações unipolares dos membros. O eletrodo explorador, ligado ao braço direito (em aVR), ao braço esquerdo (em aVL) e à perna esquerda (em aVF), é sempre lido contra um ponto de potencial nulo, denominado Central Terminal de Goldberger (CTG). Observe que o amplificador é do tipo diferencial, pois a saída mede a diferença de potencial entre a entrada positiva (ligada ao eletrodo explorador) e a negativa (V = 0). (Adaptada de Garcia, 1998.)
Figura 29.17 ■ A. Triângulo de Einthoven, mostrando as relações angulares das seis derivações do plano frontal. O centro do triângulo corresponde ao centro elétrico cardíaco. Observe que cada derivação unipolar dos membros corta o ponto médio do plano de uma derivação bipolar. As derivações bipolares são positivas desde a origem até o centro elétrico cardíaco (linhas contínuas) e negativas nas projeções além desse ponto (linhas tracejadas). B. As relações angulares formadas pelas seis derivações do plano frontal.
▸ Derivações do plano horizontal O ECG convencional é complementado pelo registro de seis outras derivações unipolares, em que a entrada negativa do amplificador é conectada a um ponto de potencial nulo e a positiva ao eletrodo explorador, o qual deve ser colocado em contato com seis pontos específicos da região precordial, conforme mostrado na Figura 29.18. Os registros assim obtidos denominamse derivações unipolares precordiais, que são numeradas de V1 a V6. Desta maneira, quando uma onda de despolarização se aproxima do eletrodo explorador, este irá registrar uma onda positiva (deflexão para cima na linha de registro). Ao contrário, será registrada uma onda negativa quando a onda de despolarização se afasta da posição em que está localizado o eletrodo explorador. Os locais onde deve ser posicionado o eletrodo explorador são os seguintes:
Figura 29.18 ■ Esquema geral de um eletrocardiograma normal, com o registro das 12 derivações. Observe as posições de colocação dos eletrodos na região precordial para o registro das derivações unipolares precordiais (V1 a V6).
■ V1 – quarto espaço intercostal, junto à borda direita do esterno ■ V2 – quarto espaço intercostal, junto à borda esquerda do esterno ■ V3 – no ponto médio entre V2 e V4 ■ V4 – quinto espaço intercostal, sobre a linha hemiclavicular esquerda ■ V5 – quinto espaço intercostal, na altura da linha axilar anterior esquerda ■ V6 – quinto espaço intercostal, na altura da linha axilar média esquerda. Comparandose a posição ocupada pelo coração na caixa torácica e o posicionamento dos eletrodos na mesma (ver Figura 29.18), observase que as derivações precordiais permitem visualizar a ativação cardíaca no eixo anteroposterior. Sendo assim, as derivações V1 e V2 são mais adequadas para identificar o processo de ativação do ventrículo direito, enquanto V5 e V6 refletem de modo mais seletivo a ativação do ventrículo esquerdo.
LEITURA E INTERPRETAÇÃO DO ELETROCARDIOGRAMA
A leitura cuidadosa do ECG permite a reconstrução dos processos de despolarização e repolarização das câmaras cardíacas. Para atingir este objetivo, entretanto, há necessidade de se verificarem, sistematicamente, os vários componentes do traçado. Atualmente são disponibilizados cada vez mais eletrocardiógrafos digitais acoplados a computadores com programas customizados para fazer a leitura automatizada de certos parâmetros do ECG (Figura 29.19). A leitura automatizada, entretanto, não prescinde da análise individual feita pelo médico, pois detalhes no padrão de ondas só podem ser detectados por meio da análise manual do registro. Para isso, há necessidade de registros de boa qualidade, sem interferência da rede elétrica (60 Hz) e sem a interferência do eletromiograma. Esta é a principal razão pela qual o ECG convencional é obtido com o paciente deitado, pois nessa condição a musculatura esquelética encontrase relaxada. Caso o paciente esteja tenso, com a musculatura contraída, ou se fizer movimentos durante o registro, o traçado eletrocardiográfico capta o registro do eletromiograma, dificultando a visualização das ondas elétricas geradas pelo coração. A leitura e a interpretação do ECG dependem de conhecimento da eletrofisiologia cardíaca e de experiência clínica do médico. Não existe uma única maneira de se fazer essa leitura. Entretanto, alguns passos são essenciais na coleta de informações, como será visto a seguir.
▸ Determinação do ritmo Apesar de a duração de cada ciclo cardíaco não ser exatamente a mesma, o intervalo entre as ondas do ECG é, aproximadamente, igual em distintos batimentos. A variação da frequência cardíaca em repouso depende de vários fatores, inclusive da respiração (aumento da frequência na inspiração e diminuição na expiração), como indicado no registro C da Figura 29.20. Quando há regularidade entre os intervalos das ondas, ocorre ritmo cardíaco regular. Se os intervalos entre as ondas variam de modo importante, ou seja, além daqueles valores esperados pela variação respiratória (que geralmente não ultrapassa 10 a 15 batimentos por minuto), temse ritmo irregular. Exemplos de ritmo cardíaco regular podem ser vistos nos registros eletrocardiográficos mostrados nas Figuras 29.10 e 29.12. A presença de extrassístoles determina irregularidade no ritmo que pode, muitas vezes, ser detectada apenas com a palpação do pulso arterial. É importante ressaltar que na ativação cardíaca normal as câmaras atriais são ativadas antes dos ventrículos. Portanto, no ECG a onda P deverá preceder o complexo QRS em todos os batimentos. Assim, no ritmo cardíaco fisiológico, também chamado de ritmo sinusal, a sequência onda P, complexo QRS e onda T é mantida em todos os ciclos cardíacos.
▸ Frequência cardíaca No ECG convencional, o registro é realizado na velocidade de 25 mm/s. Desta maneira, em 1 min há registro de 1.500 mm. Portanto, se dividirmos o número 1.500 pelo intervalo entre duas ondas simétricas, teremos a frequência de aparecimento desta onda em particular. Quando ritmo cardíaco é regular, usase o intervalo entre os picos de duas ondas R como o intervalo entre os batimentos. Dividindose 1.500 pelo espaço em milímetros entre duas ondas R, temse a frequência cardíaca instantânea, em batimentos/min.
Figura 29.19 ■ Eletrocardiograma convencional registrado em sistema para leitura computadorizada de algumas variáveis. Observe nos registros os pontos selecionados pelo programa, para realização da leitura das ondas e intervalos. bpm, batimentos por minuto.
Figura 29.20 ■ Registros eletrocardiográficos obtidos em diferentes indivíduos. Observe a regularidade do ritmo em A e B. Em B, porém, há uma bradicardia sinusal (frequência cardíaca = 43 batimentos por minuto). Em C, ocorre um ritmo sinusal com grande variação da frequência cardíaca produzida pelo ciclo respiratório. Em D e E, aparecem ritmos irregulares causados pela presença de focos extrassistólicos.
▸ Duração das ondas e dos intervalos Como discutido anteriormente, em cada região do coração há uma velocidade de propagação específica, em função das características locais do potencial de ação, do acoplamento elétrico no tecido, além de outros fatores. O aumento de
duração de uma onda (ou de um intervalo) indica diminuição da velocidade de propagação no segmento específico que o ECG representa. O Quadro 29.2 mostra as durações mínima e máxima das diversas ondas e intervalos no ECG registrado em repouso. Assim, por exemplo, o aumento de duração do segmento PR está associado à dificuldade de propagação do estímulo ao longo do nodo AV (ver Figura 29.13). A duração do complexo QRS reflete o tempo de ativação ventricular e, quando esta é feita em condições fisiológicas, a duração do complexo QRS não deve ultrapassar 110 ms. O aumento de duração deste complexo pode decorrer de duas situações: bloqueio no sistema de condução intraventricular (bloqueios nos ramos direito e/ou esquerdo etc.) ou propagação da ativação ventricular por vias não fisiológicas. Observe, por exemplo, o registro da Figura 29.11, em que os ciclos cardíacos são normais na maior parte do registro, pois obedecem à sequência onda P, complexo QRS e onda T. Nestes ciclos, as durações das ondas e intervalos também são normais e regulares, com a duração do complexo QRS de cerca de 100 ms. Entretanto, em determinado ponto há um complexo QRS fora da sequência, o que corresponde a uma extrassístole ventricular. O aparecimento dessa extrassístole indica que existe um foco anômalo (foco ectópico) no ventrículo, que dispara um estímulo que se propaga para a massa ventricular. O batimento ectópico propagase para os ventrículos por vias não fisiológicas que são, em sequência, o feixe de His, os ramos esquerdo e direito e o sistema periférico de Purkinje. Neste caso, a excitação das fibras do miocárdio ventricular se faz por vias retrógradas, nas quais a resistência à propagação do estímulo elétrico é mais elevada. Portanto, o tempo de ativação ventricular aumenta, e este fato é registrado no ECG como um aumento da duração do complexo QRS (alargamento do complexo QRS). No caso da extrassístole observada na Figura 29.11, a duração do QRS é de, aproximadamente, 160 ms. O simples fato de a morfologia do complexo QRS extrassistólico ser totalmente diferente da morfologia dos complexos QRS normais indica que a ativação ventricular ocorreu por caminhos diferentes nas duas situações.
▸ Determinação dos eixos médios de ativação das câmaras cardíacas A excitação cardíaca pode ser representada por milhares de vetores elétricos. Para efeito prático, entretanto, a ativação atrial é representada por um único vetor, o vetor P, o qual em indivíduos saudáveis dirigese para a esquerda e para baixo no plano frontal. Geralmente, situase em torno de +60°, sendo, portanto, paralelo a D2. Esta é a razão pela qual a onda P tem maior amplitude em D2, onde, em geral, ela é examinada com mais detalhes. Do mesmo modo, a ativação ventricular é fortemente influenciada pela posição do vetor 3 (ver Figuras 29.7 e 29.8), que representa a ativação da maior parte do ventrículo esquerdo. Assim, o eixo médio de ativação ventricular é em geral voltado para a esquerda e para baixo no plano frontal e para trás no horizontal. O cálculo dos vetores médios de ativação de átrios e ventrículos é parte importante da leitura e interpretação do ECG. Para tanto, são usados os diagramas mostrados na Figura 29.17 (plano frontal) e Figura 29.21 (plano horizontal). Para determinar a posição dos eixos médios de ativação no plano frontal, é mais prático usar duas derivações perpendiculares entre si, como D1 e aVF, por exemplo. Observe o ECG da Figura 29.10. A onda P é positiva em D1 e em aVF. Logo, ela se situa no quadrante I. Como a maior amplitude ocorre em D2 e a onda P não aparece em aVL, o vetor P deve situarse em torno de +60°, o que foi confirmado pela leitura automatizada feita pelo computador (que indicou o eixo de P em +62°). O mesmo procedimento pode ser feito para se encontrar o eixo médio de ativação ventricular (ÂQRS). Nesse caso, o complexo QRS é isoelétrico (parte positiva igual à parte negativa) em aVL, indicando que o eixo está a 90° (perpendicular) desta derivação. De acordo com o diagrama da Figura 29.17 B, o vetor médio de ativação ventricular deve estar sobre D2. Como o QRS é positivo nessa derivação, o ÂQRS deve localizarse também próximo a +60°.
Figura 29.21 ■ Projeções das derivações V1 a V6 no plano horizontal e a relação espacial com as câmaras ventriculares. O eixo médio de QRS projetase para trás, pois é negativo em V1 e positivo em V6.
É importante ressaltar que, quando há crescimento do ventrículo esquerdo, o eixo elétrico de QRS sofre rotação no sentido antihorário, ou seja, deslocase mais para a esquerda (indo em direção ao quadrante IV) e para trás. Isso pode ser visto no ECG da Figura 29.22, registrado em um paciente com hipertensão arterial. Observe que nesse caso a projeção do QRS sobre D1 é positiva e sobre aVF, negativa, indicando que o eixo médio da ativação ventricular encontrase no quadrante IV do plano frontal. Ao contrário, quando há sobrecarga no ventrículo direito, o ângulo médio do complexo QRS (ÂQRS) irá desviar para a direita (ou no sentido horário). Para determinar o eixo médio de ativação das câmaras cardíacas no plano horizontal, usamse, rotineiramente, as projeções dos vetores de ativação em V1 e V6. O paciente cujo registro é mostrado na Figura 29.22 tem eixo elétrico de QRS voltado para trás e para a esquerda.
Figura 29.22 ■ Eletrocardiograma registrado em homem com 53 anos de idade. Observe o deslocamento do eixo elétrico para a esquerda no plano frontal. bpm, batimentos por minuto.
▸ Análise da morfologia das ondas Como descrito no presente capítulo, a ativação atrial é um processo relativamente lento quando comparado à ativação ventricular. Em consequência, a onda P é arredondada e, em geral, sem entalhes. Tem amplitude baixa (no máximo 0,25 mV quando paralela ao eixo de derivação) e é voltada para baixo e para a esquerda no plano frontal (com limites de normalidade entre 0° e +90°). Quando há crescimento do átrio esquerdo, a duração da onda P tende a aumentar. Por outro lado, o crescimento do átrio direito determina aumento de amplitude da onda P. Um parâmetro importante na análise do QRS é sua morfologia em algumas derivações específicas. Em um ciclo cardíaco normal, a primeira região do ventrículo a se ativar é a região esquerda do septo interventricular. Tal vetor aparece como uma pequena onda R em V1, daí porque sua ausência, em associação com o aumento de duração total do QRS, pode indicar bloqueio do ramo esquerdo do feixe de His. A onda T também tem inscrição lenta, com amplitude menor que o QRS e apresentando polaridade similar à do QRS. A onda T normal também é assimétrica, com uma fase de subida mais lenta e de queda mais rápida. A inversão da onda T (complexo QRS positivo e onda T negativa) pode indicar repolarização precoce em fibras localizadas no subendocárdio. Isso acontece, por exemplo, quando o endocárdio recebe quantidade insuficiente de oxigênio (isquemia) e as células musculares sofrem lesão. A inversão da onda T também pode ocorrer quando existe aumento de espessura da parede ventricular. O segmento ST, que vai do final do complexo QRS ao pico da onda T, é fortemente influenciado pela duração média dos potenciais de ação nos ventrículos. O encurtamento deste tempo indica menor duração do platô, enquanto seu alargamento sugere aumento da duração do potencial de ação.
BIBLIOGRAFIA BARBOSA ET. O registro do campo elétrico. In: Fisiologia Cardiovascular. Fundo Editorial BykProcienx, Rio de Janeiro, 1976. BOINEAU JP, SCHUESSLER RB, MOONEY CR et al. Multicentric origin of the atrial depolarization wave: the pacemaker complex. Relation to dynamics of atrial conduction, Pwave changes and heart rate control. Circulation, 58:103648, 1978. FISCH C. Electrocardiography. In: BRAUNWALD E (Ed.). Heart Disease. A Textbook of Cardiovascular Medicine. 5. ed. WB Saunders Co, Philadelphia, 1997. GARCIA EAC. Biofísica. Sarvier, São Paulo, 1998. KATZ AM. Physiology of the Heart. Raven Press, New York, 1992.
NETTER FH. Ilustrações Médicas. Vol. 5. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 1969. PAES DE CARVALHO A, ALMEIDA DF. Spread of activity through the atrioventricular node. Circulation Research, 8:8019, 1960. SCHERF L, JAMES TN. Fine structure of cells and their histologic organization within internodal pathways in the heart: clinical and electrocardiographic implications. Am J Cardiol, 44:34569, 1979.
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Ultraestrutura da célula muscular cardíaca
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Bioquímica da contração Mecanismo da contração
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Acoplamento excitaçãocontração Mecanismos envolvidos na regulação da contratilidade miocárdica Aspectos moleculares da modulação da sensibilidade dos miofilamentos ao Ca2+
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Intervenções que afetam a responsividade miofibrilar ao Ca2+ Métodos de estudo da contração
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Bibliografia
A contratilidade é uma das propriedades do músculo cardíaco. Para entender o mecanismo da contração, é necessário compreender os diversos componentes das células musculares, que, direta ou indiretamente, contribuem para o fenômeno mecânico, ou seja, a gênese de força ou encurtamento.
ULTRAESTRUTURA DA CÉLULA MUSCULAR CARDÍACA As células miocárdicas são únicas, ramificadas e se comunicam umas com as outras. Nas regiões de contato entre células, existem inúmeras especializações, tais como: zônula aderens, desmossomos, regiões de ancoramento de miofilamentos e junções de baixa resistência elétrica, as junções comunicantes (ou gap juctions). Estas últimas permitem ao miocárdio comportarse como um sincício funcional. A membrana plasmática é de natureza lipoproteica, sendo a fração lipídica composta por moléculas fosfolipídicas que contêm duas cadeias de ácidos graxos, na parte central, ligadas a porções globulares fosfatadas, nas regiões periféricas. As proteínas estão situadas na face interna ou externa da membrana, ou transpassandoa em toda a sua espessura. São geralmente de natureza glicoproteica, com funções diversas (p. ex., receptores de membrana, enzimas, trocadores e canais iônicos). Externamente, a membrana é revestida de mucopolissacarídios, ricos em sítios aniônicos que fixam cátions como Ca2+e Na+; e, internamente, também apresentam sítios de grande afinidade pelo Ca2+, sensíveis às variações de potencial intracelular. No interior das células musculares, encontramse os sistemas tubulares. Um deles, o sistema transverso, penetra e percorre transversalmente as células e, ramificandose, envolve os sarcômeros nos discos Z. Tratase, portanto, de um sistema tubular que se abre na membrana plasmática, estando em contato com o meio extracelular. O outro, o retículo sarcoplasmático, tem localização estritamente intracelular. É composto por túbulos que correm longitudinalmente por entre as miofibrilas e, no disco Z, formam cisternas que entram em contato com o sistema transverso. A região do retículo sarcoplasmático que entra em contato com o sistema transverso, constituída por cisternas laterais, é denominada retículo juncional, e a região entre as cisternas é denominada retículo não juncional. A combinação entre um túbulo transverso e duas cisternas laterais do retículo sarcoplasmático recebe o nome de tríade (Figura 30.1). No miocárdio, também é comum
a visualização de cisternas do retículo sarcoplasmático em contato com a membrana plasmática. Como será descrito mais adiante, estes sistemas tubulares desempenham papel fundamental na ativação do processo de acoplamento excitação contração. O sistema transverso, por meio da excitação elétrica da célula (platô do potencial de ação), induz a liberação de Ca2+ armazenado no retículo sarcoplasmático, ativando assim a contração. O retículo sarcoplasmático também é fundamental para o processo de relaxamento cardíaco, ao recaptar Ca2+ativamente, por meio da bomba de Ca2+ (SERCA), o que reduz sua concentração citoplasmática. Das organelas celulares, cabe lembrar o papel das mitocôndrias. Estas funcionam como usinas geradoras de energia, sintetizando trifosfato de adenosina (ATP) a partir da atividade da cadeia respiratória. Essa energia provém da metabolização aeróbica de glicose e de ácidos graxos, sendo então utilizada para a contração. Mais recentemente, também, tem sido estudado o papel das mitocôndrias no controle da concentração de Ca2+ citoplasmático. Além das especializações de membrana e das organelas, o material contrátil é de fundamental importância para a fisiologia da contração e do relaxamento muscular. Este se encontra organizado, formando o sarcômero, considerado como a unidade contrátil básica do músculo (Figura 30.2). O sarcômero é limitado por duas linhas ou discos Z. Entre eles, há regiões claras e escuras denominadas, respectivamente, banda I e banda A. A banda I é uma região isotrópica, não desvia a luz polarizada e é composta por filamentos finos que se ligam ao disco Z. Assim, de cada lado do disco Z, temos uma hemibanda I. A banda A é anisotrópica, ou seja, desvia a luz polarizada, daí sua aparência escura quando vista ao microscópio de polarização. É constituída por filamentos grossos. Nas porções laterais da banda A, existe uma região de superposição de filamentos grossos e finos e, entre estas, temos uma região central onde só se encontram filamentos grossos. Esta última região, localizada no centro da banda A, é denominada banda H. Na porção mediana dos sarcômeros, no meio da banda A, os filamentos grossos apresentam um espessamento que forma a linha M (ver Figura 30.2). Em condição de repouso, os sarcômeros medem cerca de 2,20 μm de comprimento. Os filamentos finos, medidos a partir do disco Z até a sua extremidade, têm 1,60 μm, enquanto os grossos, em média, 1,50 μm.
Figura 30.1 ■ Esquema tridimensional da célula cardíaca e seus componentes: sarcômero, sistemas de túbulos transversos, retículo sarcoplasmático, sarcolema, disco Z que delimita o sarcômero, mitocôndria, núcleo e o detalhe de um capilar contendo um eritrócito. Observe que as tríades e díades ocorrem próximas do disco Z. (Adaptada de Lossnitzer et al., 1984.)
Nos filamentos finos e grossos encontramse as proteínas que participam do processo de contração e relaxamento do músculo cardíaco. Para a compreensão adequada do processo contrátil, é necessária a análise da composição do sarcômero e seus diversos componentes.
▸ Disco Z O disco Z é formado por um complexo de proteínas contendo, principalmente, αactinina, Cap Z (antiga βactinina), TCap e nebulete. No disco Z é feito o ancoramento das proteínas actina (filamento fino) e titina (une o filamento grosso
ao disco Z) de cada hemissarcômero (ver Figura 30.2 B). Várias são as funções do disco Z: (a) transmissão de força produzida pelos miofilamentos; (b) esqueleto para fixação do filamento fino (actina com a αactinina e a CapZ) e o filamento grosso (titina e nebulete com a αactinina e TCap); (c) interface entre a maquinaria contrátil e o citoesqueleto com os receptores de integrina e costâmeros (região de comunicação de um complexo de proteínas que faz ancoramento e comunicação de proteínas do disco Z com a matriz extracelular); e (d) receptor de estiramento, sensor de tensão, em decorrência do complexo de proteínas ali ancoradas e sua mecanotransdução com a membrana plasmática, o que modula a expressão gênica, podendo promover, por exemplo, a hipertrofia cardíaca.
Figura 30.2 ■ A. Esquema simplificado da estrutura do sarcômero. A linha M é criada pelo espessamento do filamento grosso. O filamento fino é composto principalmente de actina, troponina (C, T e I) e tropomiosina. O filamento grosso é constituído principalmente de miosina. Na ilustração, um grupo de miofibrilas está conectado ao sarcolema (membrana plasmática) por meio da rede de costâmeros. B. Esquema estrutural do sarcômero, com as suas bandas e discos, ilustrando o filamento de titina proteína estrutural que une as extremidades do filamento grosso ao disco Z. (Adaptada de Sequeira et al., 2014.)
▸ Filamentos grossos São formados pela associação de moléculas de miosina compostas de duas cadeias entrelaçadas que terminam em uma região globular (Figura 30.3). A hidrólise enzimática da miosina com tripsina a divide em duas partes: uma leve, formada por grande parte de sua cauda (denominada meromiosina leve), e outra mais pesada (meromiosina pesada), que contém a região globular. Com o prosseguimento da hidrólise, a meromiosina pesada subdividese em duas subunidades, S1 e S2 (ver Figura 30.3). A subunidade S1 corresponde à região globular propriamente dita, tendo atividade ATPásica, sendo
considerada a ATPase miosínica. Essa subunidade é composta por um par de estruturas globulares, cada uma contendo uma cadeia polipeptídica pesada e duas leves. A cadeia pesada constitui o corpo da enzima (ATPase miosínica), e as leves parecem modular a atividade dessa enzima, visto que sua remoção leva à perda da atividade de hidrólise de ATP. As cadeias pesadas existem sob duas isoformas, α e β. Como cada filamento de miosina tem duas cadeias pesadas, as associações podem ser αα, αβ e ββ. A isoforma αα é típica de músculos de contração rápida com grande velocidade de hidrólise de ATP. A isoforma ββ é típica de músculos lentos e com baixa velocidade de hidrólise de ATP, e a isoforma αβ é intermediária às duas anteriores. Essas isoformas são denominadas V1, V2 e V3, respectivamente, de acordo com a velocidade de hidrólise de ATP. No miocárdio humano, predomina a isoforma lenta ββ (V3). A relação entre a atividade da ATPase miosínica e a função contrátil é bastante intrigante, e tem sido demonstrado que, no miocárdio, alterações na contratilidade estão associadas a mudanças nas isoformas da ATPase miosínica, levando a ajustes na atividade dessa enzima, ou seja: Condições
Atividade ATPásica da miosina
Exercício físico
Aumenta
Hipertireoidismo
Aumenta
Envelhecimento
Diminui
Insuficiência corticoadrenal
Diminui
Insuficiência cardíaca
Diminui
Inatividade física
Diminui
Figura 30.3 ■ A. Filamento grosso. Esquema da estrutura da molécula de miosina. As setas indicam os pontos de clivagem por enzimas proteolíticas. MML, meromiosina leve; MMP, meromiosina pesada, com os seus respectivos pesos moleculares; S1, subfragmento da MMP que contém a cabeça da miosina, com a indicação das cadeias leves que se prendem às cadeias pesadas; S2, subfragmento da MMP que contém parte da cauda. Observe que em S1 se localiza a ATPase miosínica. B. Estrutura esquemática do filamento fino. 1, monômeros de Gactina, que, ao se polimerizarem, formam a Factina; 2, molécula de troponina; 3, molécula de tropomiosina, situada no sulco entre os filamentos de Factina e em cuja extremidade prendese uma molécula de troponina. C. Filamento de titina. A região extensível da titina, localizada na banda I, consiste em três componentes elásticos que agem como uma mola: Ig, região do domínio tipo imunoglobulina, proximal ao disco Z e distal, próximo das bandas I e A; PEVK, região rica em prolina (P), ácido glutâmico (E), valina (V) e lisina (K); segmentos N2B e N2A. (Adaptada de KobirumakiShimozawa et al., 2014.)
A associação de diversas moléculas de miosina forma o filamento grosso, estando as cabeças sempre localizadas na extremidade voltada para o disco Z e projetadas para fora do filamento. Estas correspondem às projeções dos filamentos grossos em direção aos filamentos finos. O filamento grosso tem na sua composição outras proteínas, como a proteína C, a titina, e as proteínas da linha M, algumas das quais ainda não possuem uma função perfeitamente definida. A proteína C promove a fixação das diversas moléculas de miosina entre si (na transição entre a meromiosina leve e o subfragmento S2 da meromiosina pesada) e com a titina. A titina estendese do disco Z à linha M, possuindo uma parte inextensível na banda A e outra extensível na banda I. A região extensível consiste em três componentes elásticos que agem como se fossem uma mola (ver Figura 30.3 C). A titina é a terceira proteína mais abundante nos miofilamentos, sendo uma “plataforma” para ajustar o tamanho da banda A e permitir a ligação da proteína C. Acreditase ser essa proteína o fator responsável pelas características elásticas do sarcômero, regulando o estiramento do sarcômero durante o enchimento
cardíaco e auxiliando seu retorno à posição de repouso, com a repolarização e, consequentemente, o relaxamento miocárdico. A titina também participa como um sensor de tensão juntamente com o disco Z (conectase ao disco Z por meio da interação com molécula de actina e αactinina). A linha M é a região central do sarcômero, funcionando como uma central de conexão. Nessa área, a miosina e a titina se fixam e, para tal, duas proteínas desempenham papel fundamental, a miomesina (fixa as moléculas de miosina à linha M) e a obscurina (fixa as moléculas de titina à linha M).
▸ Filamentos finos São compostos, basicamente, por quatro proteínas: actina, tropomiosina, troponina e nebulina. A actina tem como unidade básica a actina globular (Gactina), que, em presença de ATP, polimerizase formando cadeias fibrilares (F actina). As duas cadeias fibrilares de Factina associadas formam o filamento de actina presente no sarcômero. Compondo ainda o filamento fino, estão presentes a tropomiosina e a troponina, que se localizam no sulco entre as duas cadeias fibrilares de Factina (ver Figura 30.3 B).
Figura 30.4 ■ Esquema simplificado, demonstrando o mecanismo de obtenção de energia química para a contração, por meio da metabolização aeróbica de glicose e ácidos graxos.
A actina apresenta sítios ativos de interação com a miosina, durante a qual ocorre a liberação do fosfato, o qual foi gerado por meio da hidrólise do ATP pela ação da ATPase miosínica, com consequente liberação da energia necessária à contração (Figura 30.4). Em repouso o sítio de interação da actina com a miosina é bloqueado pela tropomiosina, proteína alongada e dimérica, que, por sua vez, ligase a troponina. A troponina é formada por três subunidades interconectadas: a subunidade C (TnC), que é o sítio de ligação do Ca2+; a subunidade I (TnI) que modula a afinidade da TnC ao Ca2+ e, quando interage com a actina e a tropomiosina, provoca a inibição do sítio ativo da actina; e a subunidade T (TnT), que se liga à tropomiosina, tendo sua função modulada pela ligação do Ca2+ à TnC. Quando o Ca2+ se une à TnC, a tropomiosina deslocase liberando os sítios ativos da actina, garantindo a perfeita interação actinamiosina. A nebulina tem localização central ao longo do filamento fino, e, em torno dela, as Factinas se enovelam. Ligase ao disco Z e interage com a actina. Funciona como uma plataforma que serve de base para determinar o comprimento do filamento fino. Dados recentes sugerem que a nebulina age: na transdução de sinais; na regulação da contratilidade, por definir o comprimento ideal do filamento fino, otimizando a superposição deste com os filamentos grossos; e na regulação da geração de força, por aumentar a ativação dos filamentos finos e regular a cinética da ciclagem de interação actina miosina. Compreendese aqui que as proteínas que realizam a atividade contrátil são a actina e a miosina, sendo denominadas proteínas contráteis, enquanto a tropomiosina e a troponina modulam a sua interação, daí a denominação de proteínas moduladoras da contração. Além das proteínas contráteis e moduladoras da interação actinamiosina, existem as proteínas componentes do citoesqueleto, que sustentam a estrutura espacial do sarcômero e estão envolvidas em vários outros processos
fundamentais do funcionamento celular, como: adesão celular, interações célula a célula, manutenção de especializações regionais das células e transferência de informação da superfície celular ao citoplasma (Figura 30.5).
Figura 30.5 ■ A e B. Esquemas representativos dos componentes do citoesqueleto de uma célula muscular: 1, costâmero, com FI, vinculina, talina, espectrina, anquirina, αactinina; 2, actina, vinculina, talina, espectrina e anquirina; 3, desmossomos e receptores transmembrana: integrina, complexo distroglicano; 4, matriz extracelular: colágeno, fibronectina, laminina; 5, desmina, espectrina e anquirina, ancoradas no disco Z. (A. Adaptada de Aplin et al., 1998. B. Adaptada de Morita et al., 2005.)
Para exercer suas diversas funções, as proteínas do citoesqueleto precisam ancorarse nas membranas (plasmática e de organelas). Os principais locais de ancoramento na membrana plasmática são os desmossomos e os costâmeros. Os costâmeros funcionam como ancoradouros de proteínas diversas (vinculina, talina, αactinina e espectrina) no disco Z. Ligamse ao glicocálice e à matriz extracelular, via receptores de integrina. Outras proteínas que se ligam à membrana celular são as anquirinas e a distrofina. Estas parecem desempenhar papel na regulação da estabilidade sarcolemal e na sua permeabilidade. As anquirinas pertencem a uma família de proteínas que se unem à espectrina do citoesqueleto e às proteínas integrais de membrana. Dessa maneira, podem se fixar, em locais apropriados, às proteínas da membrana plasmática envolvidas em diferentes funções, como: canais para Na+, canais para Ca2+ do retículo sarcoplasmático (que têm papel no acoplamento excitaçãocontração), trocador Na+/Ca2+, organização das tríades, dentre outras. Quanto às distrofinas, pode ser dito que o arranjo miofibrilar está ancorado a membrana plasmática por uma proteína que se liga à actina, chamada de distrofina. Sua falta, ou deficiência, resulta na distrofia muscular de Duchenne, causando fraqueza muscular progressiva e cardiomiopatia. Os receptores de adesão celular são proteínas integrais de membrana que interligam o sistema de filamentos intermediários da célula (citoesqueleto) e os elementos da matriz extracelular. Foi demonstrado que esses receptores podem ligarse com quinases intracelulares e participar de processos de sinalização celular. No músculo, algumas proteínas compõem os receptores de adesão celular. Dentre elas, merecem destaque: integrinas, caderinas, selectinas e a superfamília das immunoglobulin cell adhesion molecules (ICAM).
BIOQUÍMICA DA CONTRAÇÃO A contração muscular depende da hidrólise do ATP para fornecimento da energia necessária à geração do trabalho mecânico (Figura 30.6). Esse ATP é obtido, principalmente, por meio de mecanismos aeróbicos, que ocorrem nas mitocôndrias. As mitocôndrias, que existem em grande número nas células musculares, oxidam derivados de açúcares e ácidos graxos (acetato, obtido da glicose pelo processo de glicólise anaeróbica e dos ácidos graxos por meio dos ciclos de βoxidação) via ciclo de Krebs. Em condições fisiológicas, para a obtenção de energia, o miocárdio metaboliza 40% de açúcares e 60% de ácidos graxos, mas também é capaz de utilizar ácido láctico. O ATP, assim formado, constitui a fonte de energia para a contração, ao ser hidrolisado pela ATPase miosínica. Para subsistir aos pequenos períodos de falta de oxigênio, o músculo tem depósitos de glicogênio, que podem ser utilizados anaerobicamente, e de fosfocreatina. Esta última é composta pela combinação de um ATP + creatina, reação catalisada pela enzima creatinofosfoquinase, com formação de difosfato de adenosina (ADP), que é reutilizado. A
creatinofosfoquinase catalisa a reação em ambas as direções e, tão logo a concentração mioplasmática de ATP diminua, ela reverte a reação, formando novamente ATP e liberando creatina. Cumpre lembrar que a creatinofosfoquinase é uma enzima intracelular e parece ser específica para cada tipo de músculo, existindo diversas isoenzimas. Portanto, qualquer lesão de células cardíacas libera a creatinofosfoquinase específica do miocárdio (CPK Mb) para o meio extracelular, ocorrendo a sua presença no plasma, o que traduz uma indicação direta de lesão das células miocárdicas. Estimase que o estoque de ATP seja suficiente para cobrir as necessidades metabólicas da célula por apenas alguns segundos. A regulação da produção de ATP depende, entre outros fatores, da concentração de Ca2+ que entra pelo transportador mitocondrial de Ca2+ (MCU, mitochondrial calcium uniport) e pode regular enzimas fundamentais do metabolismo mitocondrial (ver Figura 30.6). Para manter o estado de equilíbrio, o influxo de Ca2+ na mitocôndria precisa ser balanceado com sua extrusão equivalente. Uma fonte importante de efluxo de Ca2+ da mitocôndria é o trocador Na+/Ca2+, o qual trabalha na estequiometria de 1 Ca2+ por 3 Na+. Um segundo mecanismo é dependente do poro de transição de permeabilidade (PTP), que é um canal de membrana não seletivo com alta permeabilidade. Existe uma terceira via de extrusão de Ca2+ que parece depender do trocador H+/Ca2+. A redução de Ca2+ da matriz mitocondrial depende, consequentemente, da recaptação do Ca2+ pelo retículo sarcoplasmático por meio da atividade da SERCA (ver Figura 30.6).
MECANISMO DA CONTRAÇÃO O mecanismo de contração muscular envolve três aspectos: morfológico, bioquímico e funcional. O mecanismo morfológico foi proposto ao mesmo tempo por H.E. Huxley e Hanson e por A.F. Huxley e Niedergerke, em 1954, ao se analisar o músculo com o auxílio do microscópio ótico e eletrônico. Quando comparado à condição de repouso, durante a contração muscular observavase encurtamento dos sarcômeros, o que é demonstrado por observações diretas e, mais recentemente, por ultracinematografia ou difração de laser (Figura 30.7). A teoria morfológica prevê que o encurtamento se realiza porque os filamentos finos deslizam por entre os filamentos grossos e com isso é observado aproximação das linhas ou discos Z; diminuição da banda I; diminuição da banda H; e manutenção da banda A. O mecanismo bioquímico já se conhecia desde há muito pela existência da actina e da miosina como proteínas contráteis e da necessidade de ATP, Ca2+ e Mg2+ para a contração. O avanço no conhecimento das reações químicas que estariam envolvidas no processo de gênese de força ou encurtamento levou Lymm e Taylor (1971) a proporem um modelo definindo a sequência de reações desse processo. Resumidamente, o modelo de Lymm e Taylor propõe as reações esquematizadas na Figura 30.8. Após uma contração, quando ainda estão interagindo a actina (A) e a miosina (M) (complexo AM), a disponibilidade de um ATP para a miosina desfaz o complexo AM formando a conformação miosina e ATP (M. ATP), e o sarcômero passa para o estado relaxado. A clivagem do ATP pela ATPase miosínica leva a uma segunda conformação ainda no estado relaxado, M. ADP. Pi, a qual se desfaz muito lentamente. Porém, o aumento das concentrações intracelulares de Ca2+([Ca2+]i) expõe os sítios de ligação da miosina presentes na actina, ocorrendo a interação actinamiosina, formandose o complexo AM.ADP. Pi. Em seguida, o ADP e o Pi são liberados e, neste momento, a interação entre a actina e a miosina movese, ocorrendo o processo de contração, encurtamento, mantendose o complexo AM. Como descrito no início deste parágrafo, o complexo AM será desfeito com a associação de um novo ATP (complexo M.ATP) e o ciclo recomeça.
Figura 30.6 ■ Regulação do metabolismo mitocondrial. A. Observe que o cálcio liberado pelo retículo sarcoplasmático (RS) é captado pela mitocôndria, via transportador para cálcio mitocondrial (MCU, mitochondrial calcium uniporter). A mitocôndria encontrase próximo ao receptor de rianodina (RyR2) no RS, criando um microdomínio de cálcio. A proteína Mfn2 (Mitofusion2) está envolvida com a comunicação entre o RS e a mitocôndria. É importante salientar a importância do cálcio aumentando a atividade de enzimas mitocondriais fundamentais para a produção de ATP. B. Proteínas de influxo de cálcio mitocondrial: o cálcio (Ca2+ ) é captado através do MCU, localizado na membrana interna da mitocôndria, a qual é a principal via de entrada de Ca2+ . Proteínas de efluxo de cálcio mitocondrial: o efluxo de Ca2+ ocorre principalmente por meio do trocador Na+ /Ca2+ (NCX), do trocador Ca2+ /H+ (HCX) e do poro de transição de permeabilidade mitocondrial (PTP). O PTP age como um canal reversível de Ca2+ . (A. Adaptada de SantoDomingo et al., 2015. B. Adaptada de Carley et al., 2014.)
Figura 30.7 ■ A. Esquema simplificado do encurtamento dos sarcômeros, durante a contração. No estado contraído, notase que os filamentos finos deslizaram por sobre os grossos, efeito provocado pela formação das pontes entre a actina e a miosina. B. Registro fotográfico do encurtamento do sarcômero, medido com a técnica de difração com raios laser. Observe que o encurtamento do sarcômero é entremeado por pausas (P), indicando que, neste momento, cessou o encurtamento de toda a população de sarcômeros iluminados pelo laser. CS, comprimento de sarcômero; CI, contração isométrica.
Figura 30.8 ■ Esquema simplificado das reações químicas que ocorrem durante o ciclo de contraçãorelaxamento, nas regiões de interação da actina e da miosina. M, miosina; A, actina; ATP, trifosfato de adenosina; ADP, difosfato de adenosina; Pi, fosfato inorgânico; Ca2+ , cálcio ionizado; AM, complexo actinamiosina; 1, combinação entre ATP e miosina, seguindose da desfosforilação do ATP (2), mas sem liberação de energia. Os derivados da desfosforilação permanecem presos à miosina. 3, sob ação do cálcio que se prende à troponina, ocorre a ligação entre actina e miosina (AM), a formação da ponte entre actina e miosina e, em seguida, a movimentação da cabeça da miosina (ponte) e a liberação do ADP e de Pi (4). Nesta fase, a energia é liberada para que se realize o encurtamento do sarcômero. 5, na presença de ATP, o complexo AM se desfaz, e a actina separa se da miosina, podendo ser iniciado um novo ciclo.
Outro modelo de interação entre as proteínas contráteis foi apresentado por Katz no início da década de 1970, quase ao mesmo tempo em que o modelo de Lymm e Taylor foi proposto. Entretanto, tal modelo não se preocupou com a cinética das reações de hidrólise do ATP. Este modelo surgiu com os conhecimentos resultantes da descrição das funções reguladoras da troponina e da tropomiosina, quando eram comparadas as propriedades dos filamentos naturais e sintéticos de actinamiosina (AM). Neste modelo já se considera o mecanismo de interação entre as proteínas musculares como sendo feito por meio de proteínas reguladoras (troponina e tropomiosina) e de proteínas contráteis (actina e miosina). O mecanismo básico proposto por Katz está esquematizado na Figura 30.9, no qual, em condição de repouso, a interação
entre actina e miosina é bloqueada pela tropomiosina. Esta última está associada à troponina e ambas à actina, formando um complexo actina/tropomiosina/troponina. Com o aumento das [Ca2+]i nos cardiomiócitos, o Ca2+ se une à TnC, deslocando a tropomiosina, o que expõe o sítio ativo da actina. Esta passa a interagir com a miosina, e, por meio da hidrólise do ATP, obtémse a energia para movimentação da interação entre actina e miosina. Após a movimentação, a interação actinamiosina se desfaz e pode passar a ocorrer com outro sítio ativo. A remoção do Ca2+ da TnC leva ao retorno da tropomiosina à sua posição inicial, inibindo a interação entre actina e miosina. Com isso cessa a gênese de força e ocorre o relaxamento. Um fato que demonstra como os processos bioquímicos afetam a contração está relacionado à temperatura. O aumento da temperatura promove alterações típicas na contração cardíaca. A principal característica é a aceleração de todos os processos que contribuem para a contração. Verificase uma redução nos parâmetros temporais, tempo de ativação e de relaxamento, com aumento da velocidade de desenvolvimento da força, mas com redução da força máxima desenvolvida. (Figura 30.10). As teorias funcionais que tentam explicar a geração de força e encurtamento da maquinaria contrátil são as teorias das pontes e a eletrostática. Ambas englobam a ideia de deslizamento e tentam explicálo por meio da interação entre actina e miosina.
Figura 30.9 ■ Esquema simplificado das diversas fases da contração. Observe os deslocamentos da tropomiosina e o reposicionamento da troponina entre as fases A e B e as fases C e D. Na fase C, ocorre o encurtamento, devido ao deslizamento dos filamentos finos sobre os grossos.
Figura 30.10 ■ A. Representação esquemática das ações do cálcio (Ca2+ ), da acetilcolina (ACh), agonista muscarínico, da epinefrina (adrenalina) (Epi), agonista de receptor βadrenérgico, e da temperatura (T) sobre a força de contração isométrica do músculo papilar em função do tempo. Contração controle (C). B. Registros originais obtidos em músculo papilar de rato em contração isométrica, mostrando o efeito da variação das concentrações de cálcio no meio extracelular; na vertical, eixo de força; na horizontal, eixo de tempo. C.Idem, apresentando o efeito da variação das concentrações de isoproterenol (Iso), agonista de receptor βadrenérgico. Observe as variações da força e as variações temporais da ativação e do relaxamento, produzidas por esses diversos fatores sobre a contração.
Considerando os aspectos funcionais, a teoria que primeiro foi descrita foi uma continuidade do pensamento de um dos autores da teoria do deslizamento, A.F. Huxley. Em 1957, Huxley propôs a teoria das pontes. Essa teoria prevê pontes entre actina e miosina, as quais são visualizadas nas fotomicrografias eletrônicas. Constituemse das cabeças de miosina, que são móveis e capazes de interagir com a actina. Existem inúmeros dados de literatura demonstrando a existência das pontes e a capacidade de interação da cabeça de miosina com a actina. Para que as pontes induzam o deslizamento, elas devem ser móveis. Essa capacidade é garantida por regiões na molécula de miosina que são caracterizadas por serem mais sensíveis à ação da tripsina. Como detalhando no início deste capítulo, SzentGyorgyi, em 1953, demonstrou pela primeira vez que a molécula de miosina pode ser cindida em duas partes pela ação da tripsina: meromiosina leve (MML) e meromiosina pesada (MMP). Mais tarde, foi demonstrado que a tripsina pode cindir a miosina em três partes, pois a meromiosina pesada pode ser dividida em outras duas subunidades: S1 e S2 (ver Figura 30.3 A). Como a formação das pontes só ocorre quando há superposição entre os miofilamentos e como estes têm comprimento considerado invariável, podese prever a morfologia da curva estiramentotensão. A teoria prevê uma superposição ótima com sarcômeros com comprimentos de 2,0 a 2,25 μm. A tensão ativa deve cair a partir deste ponto, tornandose nula com sarcômeros maiores do que 3,65 μm (Figura 30.11). Recentemente, Pollack propôs um novo modelo de contração. Este surgiu com as técnicas que permitem a leitura contínua do comprimento dos sarcômeros durante a contração, como a técnica de difração com laser, utilizando sensores de alto poder de resolução temporal e espacial. Supõese, pela teoria das pontes, que o deslizamento é um ato contínuo, resultado do movimento contínuo dos filamentos finos superpostos aos filamentos grossos. Entretanto, a leitura do processo de encurtamento dos sarcômeros, durante a contração, mostrou a existência de pausas (ver Figura 30.7). A existência das pausas foi evidenciada inicialmente por Pollack e colaboradores (1977) e a posteriori demonstrado com o uso de outras técnicas. Como o campo atingido pelo laser envolve uma população de 109 sarcômeros, a existência das pausas prevê que todos os sarcômeros desse campo paralisam o seu encurtamento ao mesmo tempo e também reiniciam esse encurtamento ao mesmo tempo. Este é, portanto, um processo cooperativo e altamente organizado. Pollack (2004) sugere que a interação actinamiosina apresenta natureza quantal. Esse mecanismo seria o responsável pelas pausas existentes nos registros de encurtamento dos sarcômeros durante a contração. As pausas são iguais ou múltiplos de 2,7 nm, que é a metade da distância entre duas unidades de Gactina, que é da ordem de 5,4 nm. Como o filamento fino é formado por duas fitas de Gactina que se entrelaçam uma à outra, a repetição monomérica da Gactina é a metade dessa distância. Esses e outros resultados experimentais sugerem, então, que a interação actinamiosina, que ocorre como uma repetição em degraus, constitui o mecanismo central da contração muscular.
ACOPLAMENTO EXCITAÇÃOCONTRAÇÃO
O acoplamento excitaçãocontração (AEC) é o conjunto de mecanismos que são desencadeados pela excitação elétrica gerada pelo potencial de ação e que vão promover a contração. Observase, então, que no coração a atividade mecânica é precedida e disparada pela atividade elétrica (o potencial de ação). O acoplamento entre os processos de excitação e contração depende da sinalização do íon Ca2+. O Ca2+ é um mensageiro que, em resposta à excitação elétrica, ativa o processo contrátil. Suas concentrações nos meios extra e intracelulares são definidas a seguir. Distribuição do Ca21 nas células
Cálcio extracelular
10–3 M
Cálcio intracelular
Retículo sarcoplasmático
10–4 M
Citoplasma (músculo ativado)
10–5 M
Citoplasma (músculo repouso)
10–7 M
Figura 30.11 ■ A. Curva estiramentotensão, representada por valores percentuais de força e estiramento por comprimento dos sarcômeros, conseguidos em oito experiências com músculos papilares. O comprimento dos sarcômeros foi medido pela técnica de difração com raios laser. Cada ponto representa uma medida isolada. As medidas foram feitas em preparações em funcionamento e não após fixação para avaliações histológicas. A contração máxima ocorre com sarcômeros estirados a 2,40 μm. B. Curva comprimentotensão do sarcômero, obtida em fibra muscular esquelética isolada. (Adaptada de Gordon et al., 1966.)
O papel primordial do Ca2+ para a contração cardíaca foi inicialmente descrito por Ringer, em 1882. Esse autor demonstrou, utilizando preparações de coração isolado, que a ausência de Ca2+ na solução nutridora abolia a contração. A razão desse comportamento já está elucidada e será discutida a seguir, e permite a compreensão da dinâmica da contração muscular, a qual pode ser modulada, ou por modificações das [Ca2+]i ou por interferência na cinética dos fluxos de Ca2+ através da membrana plasmática. Existem duas principais fontes de Ca2+ que podem ativar a contração do músculo cardíaco: (1) influxo de Ca2+ no cardiomiócito, proveniente do meio extracelular, durante o platô do potencial de ação, principalmente através dos canais para Ca2+dependentes de voltagem do tipo L; e (2) Ca2+ liberado do retículo sarcoplasmático, através da abertura de canais para Ca2+ sensíveis a Ca2+ (receptores de rianodina). O acoplamento excitaçãocontração iniciase com a despolarização da membrana plasmática, que, quando alcança valores em torno de –55 a –35 mV, começa a aumentar a condutância de Ca2+ pelos canais para Ca2+ dependentes de voltagem (principalmente o canal para Ca2+ dependente de voltagem do tipo L), alcançando o máximo de corrente durante o platô do potencial de ação, o que levará ao proeminente influxo do Ca2+. Esse influxo promove o aumento das [Ca2+]i, de 10–7 M, na condição de repouso, para 10–5 M durante a contração (Figura 30.12). O aumento das [Ca2+]i atuará nos canais para Ca2+ sensíveis a Ca2+ do retículo sarcoplasmático (receptores de rianodina), aumentando a probabilidade de esse canal encontrarse no estado aberto, o que levará a maior liberação de Ca2+ dessa organela. A importância do influxo de Ca2+ durante o potencial de ação no miocárdio pode ser visualizada ao se observar que o aumento da duração do potencial de ação (aumento da duração do platô) eleva a contração miocárdica, e o seu encurtamento provoca o inverso. Esta também pode ser visualizada ao se manipular a corrente de influxo de Ca2+, durante o platô do potencial de ação, uma vez que, quando essa corrente é abolida, a contração cessa, e, quando ela é amplificada, a contração aumenta. Esse aumento da [Ca2+]i irá, então, induzir a ligação do Ca2+ à TnC e disparar o mecanismo da contração.
Até o momento, podese deduzir a importância do Ca2+ para o acoplamento excitaçãocontração. O Ca2+ está compartimentalizado em uma série de locais dentro e fora do cardiomiócito. Modificações em sua concentração, nesses compartimentos, resultarão em alterações na contratilidade cardíaca. A partir desse momento, serão realizadas algumas considerações sobre os compartimentos de Ca2+ no cardiomiócito e intervenções passíveis de serem realizadas e que geram modificações da atividade mecânica (Figura 30.13). ▸ Líquido extracelular. O aumento ou a diminuição do Ca2+ sanguíneo (calcemia) e no líquido extracelular (ver Figura 30.13 A) provocam, respectivamente, elevação ou redução da força de contração do músculo cardíaco. No plasma, aproximadamente 25% do Ca2+ total encontrase sob a forma livre, ionizada, disponível para a maioria das células no nosso organismo. Os 75% restantes estão ligados a proteínas plasmáticas ou na forma sal com ânions inorgânicos. A concentração de Ca2+ depende do pH plasmático e do conteúdo de proteínas. Em condições fisiológicas, o Ca2+ plasmático e o do líquido extracelular se mantêm relativamente constantes e estáveis, por meio do fino controle hormonal induzido, principalmente, pelo hormônio paratireoidiano (PTH), pela vitamina D e pela calcitonina. Entretanto, elevações no Ca2+ do líquido extracelular podem ser observadas por meio da adição direta de sais de cálcio (cloreto de cálcio) ou no caso de um hiperparatireoidismo, e reduções do mesmo podem ocorrer com o uso de agentes quelantes de Ca2+, como EDTA e EGTA, ou no caso de um hipoparatireoidismo.
Figura 30.12 ■ Transporte de cálcio em miócito ventricular. O quadro inferior relaciona o curso temporal do potencial de ação (AP, linha preta), a variação da concentração intracelular de cálcio ([Ca2+ ]i, linha ocre) e a contração (linha tracejada roxa) medida em miócito ventricular de coelho. RyR, receptor de rianodina; NCX, trocador sódio/cálcio; SERCA, Ca2+ ATPase do retículo sarcoplasmático; PLB, fosfolambam; PLCA, Ca2+ ATPase da membrana plasmática; NKA, Na+ K+ ATPase. (Adaptada de Bers, 2002.)
Figura 30.13 ■ Esquema simplificado dos diversos compartimentos e sítios de importância no mecanismo de acoplamento excitaçãocontração. A. Compartimento do líquido extracelular contendo cálcio ionizado (Ca2+ ). B. Compartimento que corresponde aos sítios aniônicos do glicocálice da membrana, onde interagem Na+ e Ca2+ (em detalhe no quadro inferior; adaptada de Lossnitzer et al., 1984). C. Canal para cálcio dependente de voltagem na membrana plasmática, passível de fosforilação dependente da ativação pela via da adenilatociclase (AC), a qual pode ser ativada pela estimulação dos receptores βadrenérgicos (β). D. Compartimento correspondente aos locais de alta afinidade pelo Ca2+ , que existem na face interna na membrana plasmática e são sensíveis às variações de potencial de ação. E. Compartimento que corresponde ao retículo sarcoplasmático; este libera o Ca2+ armazenado pelo transporte ativo (TA) induzido pela SERCA via ação da corrente despolarizante do potencial de ação (1), atuando por meio do mecanismo liberador de Ca2+ , cálcioinduzido (seta tracejada). F. Compartimento que corresponde ao Ca2+ mioplasmático, que pode atuar sobre as proteínas contráteis do sarcômero (2) quando a sua concentração aumenta, ou ser retirado ativamente através do sarcolema (3) ou da SERCA. Em (4), indicação de que o mecanismo transarcolemal de troca Na+ /Ca2+ pode ocorrer em ambos os sentidos.
▸ Ca2+ ligado aos sítios aniônicos do glicocálice. Durante a excitação da membrana celular, o influxo
▸ Ca2+ ligado aos sítios aniônicos do glicocálice. Durante a excitação da membrana celular, o influxo de Ca2+ pelos canais e trocadores iônicos ocorre preferencialmente pelos estoques de Ca2+ localizados na membrana plasmática, no glicocálice, e este se encontra em equilíbrio com o Ca2+ extracelular (ver Figura 30.13 B). O Ca2+ e o Na+ competem pelos sítios aniônicos em uma razão: 1Ca2+ para 2Na+. Assim, o aumento das concentrações extracelulares do Na+ ([Na+]e) desloca Ca2+ desses sítios e, consequentemente, reduz a contração muscular. Por sua vez, manobras que reduzem as [Na+]e provocam respostas inversas. Outra forma de observar a importância do Ca2+ ligado aos sítios aniônicos para o acoplamento excitaçãocontração é por meio de uma série de manobras: (1) pela ação de outros cátions no meio extracelular, como La3+ ou Co2+; (2) pelo aumento da concentração de ureia no meio extracelular; (3) com o uso de fármacos como o verapamil, bloqueador de canal para cálcio dependente de voltagem; e (4) durante a acidose. Essas manobras ou reduzem o número de sítios aniônicos da membrana plasmática ou a afinidade destes pelo Ca2+ e, consequentemente, reduzem a força de contração do miocárdio. ▸ Influxo de Ca2+ . Na Figura 30.6 C, é possível observar que o influxo de Ca2+ ocorre durante a excitação elétrica, principalmente, através dos canais para Ca2+ dependentes de voltagem. A condutância pelos canais para Ca2+ dependentes de voltagem está diretamente correlacionada com a concentração intracelular de AMP cíclico (cAMP) e a ativação da proteinoquinase ativada por cAMP (PKA). Assim, neurotransmissores e hormônios que elevam as concentrações de cAMP, como as catecolaminas (norepinefrina e epinefrina) (Figura 30.14), aumentam a corrente de Ca2+ e a contração. Por sua vez, a redução da liberação de catecolaminas ou a liberação de acetilcolina, essa principalmente no músculo atrial, por meio da ativação da proteína Gi, inibe a atividade da adenilatociclase (ver Figura 30.14), reduz as concentrações de cAMP e a contração. Além de uma ação direta no canal para Ca2+ dependente de voltagem, a acetilcolina encurta a duração do potencial de ação, devido ao aumento da condutância ao K+ e, assim, acelera a repolarização e reduz a duração do platô, o que reduz também a probabilidade de o canal para Ca2+ dependente de voltagem encontrarse no estado aberto, diminuindo o influxo de Ca2+. Vale ressaltar que vários fármacos atuam sobre o influxo de Ca2+ reduzindoo, ou diretamente, como as dihidropiridinas (anlodipino e nifedipino), fenilalquilaminas (verapamil, D600) e benzodiazepinas (diltiazem), ou indiretamente, como os antagonistas βadrenérgicos (propranolol), que, por antagonizarem as ações das catecolaminas, reduzem as concentrações intracelulares de cAMP. Outro efeito indireto sobre o influxo de Ca2+ é observado modificando o potencial de membrana, por meio de modificações na concentração de K+ extracelular ([K+]e). A redução excessiva ou o aumento discreto das [K+]e acarretam uma semidespolarização das células miocárdicas, a qual inibirá o componente rápido do potencial de ação, e as fibras se tornam inexcitáveis. Nesse caso, o músculo permanece relaxado (parada do coração em diástole). Caso as [K+]e aumentem o suficiente para despolarizar a membrana (hiperpotassemia ou hipercalemia) e atingir o limiar mecânico (aproximadamente –40 mV), será observado o aumento da condutância dos canais para Ca2+ dependentes de voltagem. Além disso, ocorrerá influxo de Ca2+ e, consequentemente, o músculo entrará em contratura (parada em sístole), uma vez que a repolarização do miocárdio, nessa condição, estará dificultada pela hiperpotassemia.
Figura 30.14 ■ Os agonistas de receptores β1adrenérgicos, como a norepinefrina (NE) e a epinefrina (E), ativam a proteína Gs (estimulatória). Ao ser estimulada, a proteína Gs ativa a adenilatociclase (AC). O cAMP formado ativará a proteinoquinase A (PKA), que, resumidamente, via uma AKAP (Akinase anchoring protein), induz os seguintes efeitos inotrópico e lusitrópico positivos: 1, fosforilação (P) do canal para Ca2+ dependente de voltagem da membrana plasmática, do receptor de rianodina (RyR2); 2, fosforilação do fosfolambam (PLB), proteína inibitória da bomba de Ca2+ do retículo sarcoplasmático (SERCA2a), aumentando a recaptação do Ca2+ ; 3, fosforilação da TnI, que causa redução da sensibilidade da TnC ao Ca2+ . O primeiro efeito provoca aumento do transiente de Ca2+ e, consequentemente, aumenta a força de contração. Por sua vez, a dessensibilização da TnC acelera a velocidade de relaxamento, reduzindo o tempo gasto em cada ciclo de contração e relaxamento cardíaco. A recaptação elevada de Ca2+ para o retículo sarcoplasmático (RS) também acelera o tempo de relaxamento e, concomitantemente, contribui para o aumento do conteúdo de cálcio do RS. A acetilcolina (ACh), via ligação em receptores muscarínicos (subtipo M2), acoplados à proteína Gi, inibe a atividade da AC, dentre outros efeitos. (Adaptada de Bers, 2002.)
▸ Ca2+ ligado à face interna da membrana celular. Na face interna da membrana (ver Figura 30.13 D) existem sítios de grande afinidade pelo Ca2+, os quais são dependentes do estado de polarização da célula. A afinidade ao Ca2+ é grande quando a célula está repolarizada, em repouso, diminuindo durante a despolarização. Essa região, portanto, libera Ca2+ para o citoplasma durante o potencial de ação e enquanto a célula estiver despolarizada, favorecendo a contração. Em seguida à repolarização, parte do Ca2+ citoplasmático volta a se unir aos sítios intracelulares, propiciando o relaxamento cardíaco. ▸ Ca2+ armazenado no retículo sarcoplasmático. No miocárdio, o retículo sarcoplasmático é fundamental para o manuseio do Ca2+ intracelular (ver Figura 30.13 E) e participa de várias intervenções que alteram a força de contração (inotropismo). O Ca2+ é transportado ativamente para o retículo sarcoplasmático por meio da ATPase Ca2+Mg2+dependente (ou bomba de Ca2+ do retículo sarcoplasmático – SERCA). A SERCA é um dos principais mecanismos responsáveis pela redução das concentrações de Ca2+ citoplasmático em cardiomiócitos, que levará ao processo de relaxamento. Com a ativação da SERCA, ocorre o aumento das concentrações de Ca2+ no retículo sarcoplasmático, o qual pode ser novamente liberado para o citoplasma durante a despolarização. O microdomínio celular entre os túbulos transversos e a membrana do retículo sarcoplasmático, onde ocorre a interação entre os canais para Ca2+ dependentes de voltagem da membrana plasmática e os canais para Ca2+ sensíveis a Ca2+ do retículo sarcoplasmático (receptor de rianodina), é denominado couplon. No miocárdio, cada couplon congrega cerca de 100 receptores de rianodina para 10 a 25 canais para Ca2+ dependentes de voltagem (ver Figuras 30.12 e 30.15). Esses microdomínios auxiliam no entendimento do processo de despolarizaçãocontração e no processo de repolarizaçãorelaxamento. Como já descrito no início deste capítulo, as cisternas do retículo sarcoplasmático formam junções com os túbulos transversos (retículo juncional), por meio de estruturas denominadas feet (ou pés), que se acredita
serem os canais para Ca2+ (ver Figura 30.15). Essa região facilita a transdução do sinal elétrico de despolarização para a resposta iônica de influxo e liberação de Ca2+ do retículo sarcoplasmático. Mais recentemente foi demonstrado que os túbulos transversos apresentam “microdobras” em sua superfície. Nessa região foi descrita uma proteína denominada bridging integrator 1 (BIN1), a qual possui mecanismos regulatórios multifuncionais no túbulo transverso participando da sinalização de Ca2+. A BIN1 organiza as “microdobras” de forma a conter os canais para Ca2+ dependentes de voltagem do tipo L e recrutam o receptor de rianodina do retículo juncional, ou seja, os componentes dos couplons, exercendo seu papel fundamental no mecanismo de acoplamento excitaçãocontração e na contratilidade miocárdica (ver Figura 30.15). Já na porção medial dos sarcômeros, o retículo sarcoplasmático apresentase sob a forma de túbulos de distribuição longitudinal (chamado de retículo não juncional), sendo este o provável local onde o Ca2+ é recaptado para o interior dessa organela por meio da atividade da SERCA (ver Figura 30.12). A SERCA, fisiologicamente, tem a sua atividade inibida por um polipeptídio denominado fosfolambam ou fosfolambano (PLB). O efeito inibitório se dá por meio da associação física entre o fosfolambam e a SERCA. No entanto, quando o fosfolambam é fosforilado, perde sua funçãoinibitória sobre a SERCA; assim, a fosforilação do fosfolambam resulta em ativação da SERCA e aumento da recaptação de Ca2+ para o retículo sarcoplasmático, o que aumenta a velocidade de relaxamento do músculo cardíaco. A fosforilação do fosfolambam é mediada, principalmente, pela quinase dependente de calmodulina (CaMKII) e pela PKA (ver Figura 30.14). A atividade da SERCA pode ser inibida pela ação de fármacos como a tapsigargina, e sua atividade pode encontrarse reduzida em algumas doenças cardíacas, como a insuficiência cardíaca. Por outro lado, a ativação simpática ou o uso de agonistas badrenérgicos ativam a SERCA, assim como o treinamento físico. A liberação do Ca2+ armazenado no retículo sarcoplasmático é feita por duas populações de canais para Ca2+ na membrana do retículo sarcoplasmático, os canais para Ca2+ sensíveis a Ca2+ (receptores de rianodina – RyR) e o canal para Ca2+ sensível a IP3 (receptor para IP3). Tanto a despolarização da membrana plasmática, com o influxo de Ca2+ pelos canais para Ca2+ dependentes de voltagem, como o aumento das concentrações intracelulares de IP3 ativam canais iônicos na membrana do retículo sarcoplasmático que liberam Ca2+ para o citoplasma a favor do gradiente de concentração, uma vez que a concentração de Ca2+ no retículo sarcoplasmático é superior à observada no citoplasma do cardiomiócito. O canal para Ca2+ sensível a Ca2+ (receptor de rianodina) (Figura 30.16) é o principal mecanismo de liberação de Ca2+ do retículo sarcoplasmático dos cardiomiócitos. Os receptores de rianodina são ativados por aumento das concentrações intracelulares de Ca2+ ou pela ação de fármacos como cafeína, heparina, doxorrubicina e rianodina (em concentração abaixo de 10 mM). Por sua vez, esses são inibidos por fármacos como vermelho de rutênio e rianodina (em concentração acima de 10 mM). Existem dois subtipos de receptores de rianodina, designados RyR1 e RyR2, com predominância do subtipo 2 (RyR2) no miocárdio. O RyR2 é formado por um complexo macromolecular gigante contendo quatro monômeros de RyR2 onde podem se ancorar várias proteínas, dentre as quais calmodulina (CaM), PKA, CaMKII, fosfatases 1 e 2A (PP1 e PP2A), entre outras, as quais regulam a liberação de Ca2+ do retículo sarcoplasmático, por modificar a probabilidade de o canal para Ca2+ sensível a Ca2+ (receptor de rianodina) encontrarse no estado aberto (ver Figura 30.16 A). Cabe ressaltar que a projeção citoplasmática desse receptor está voltada para a membrana dos túbulos transversos, dando origem ao couplon, já descrito anteriormente, ou para o sarcolema. Como descrito, a modulação da atividade do receptor de rianodina é realizada por várias proteínas. A CaM ligase ao receptor de rianodina e afeta a probabilidade de abertura do canal, diminuindo a sua sensibilidade ao Ca2+. Por sua vez, a PKA e a CaMKII fosforilam o receptor de rianodina e aumentam a liberação de Ca2+ do retículo sarcoplasmático. Essas proteínas são desfosforiladas por fosfatases. No coração, mais de 90% da atividade de fosfatase é atribuída a PP1 e PP2A, as quais desfosforilam o receptor de rianodina e inibem a liberação de Ca2+ do retículo sarcoplasmático. Em direção oposta, a redução da atividade dessas fosfatases aumenta a fosforilação do receptor de rianodina e, consequentemente, ocorre o vazamento de Ca2+por essa organela (Ca2+ diastólico). Caso ocorra esse vazamento, haverá a redução das concentrações de Ca2+ no retículo sarcoplasmático ([Ca2+]RS) e, consequentemente, diminuição da liberação desse íon
durante o platô do potencial de ação. Essa redução acarretará a redução da força de contração, contribuindo para a falha de bombeamento cardíaco durante a sístole (insuficiência sistólica). Também é importante salientar que a PP1 é a principal enzima que desfosforila o fosfolambam, levando a inibição da SERCA, o que reduz ainda mais os estoques de Ca2+ no retículo sarcoplasmático, amplificando a insuficiência sistólica e gerando uma insuficiência diastólica.
Figura 30.15 ■ Ilustração esquemática da localização da proteína BIN1 no túbulo T. Em A é mostrado um cardiomiócito ventricular com as invaginações que ocorrem periodicamente na altura da linha Z. Em B a organização dos microdomínios entre os túbulos T e o retículo sarcoplasmático juncional, onde se destaca em amarelo a proteína regulatória BIN1 próxima ao canal para cálcio dependente de voltagem do tipo L da membrana plasmática (LTCC), representado em verde, e o receptor de rianodina (RyR), representado em azul. (Adaptada de Fu e Hong, 2016.)
Uma propriedade importante do receptor de rianodina é sua ativação pelo influxo de Ca2+ na membrana dos túbulos transversos ou do sarcolema. A probabilidade de o canal para Ca2+ sensível a Ca2+ (RyR2) encontrarse no estado aberto é dependente de fatores como: concentrações de Ca2+, Mg2+, ATP e pH no citosol, e da própria [Ca2+]RS (Ca2+ luminal).
Figura 30.16 ■ A. Sítios de interação para o receptor de rianodina cardíaco (RYR2). CaM, calmodulina; PKA, proteinoquinase A; CaMK, calmodulinaquinase; FKBP, proteína de ligação FK506 ou calstabina; PP1 e PP2A, isoforma 1 e 2A das fosfatases
Sorcina (soluble resistancerelated calcium binding protein), a qual reduz a atividade do receptor de RyR2. MH indica regiões de analogia com o RyR1 nas quais as mutações genéticas estão associadas a hipertermia maligna. B. Regulação do receptor de rianodina (RyR2): do lado citosólico, o receptor de rianodina (RyR2) interage com CaM, FKBP, Homer, Sorcina, PKA, CaMKII, PP1 e PP2A. Do lado luminal, o Ca2+ regula a atividade desse receptor, ligandose diretamente no canal (a). As proteínas triadina e junctina formam o sensor luminal de Ca2+ via sua interação com a proteína ligadora de Ca2+ a calsequestrina (b). O Ca2+ luminal também pode regular o receptor de rianodina de maneira indireta, ativando o sítio de ligação citosólico por um mecanismo de retroalimentação (c). (A. Adaptada de Bers, 2004. B. Adaptada de Zima e Mazurek, 2016.)
É interessante descrever que o canal para Ca2+ sensível a Ca2+ é ativado quando a concentração de Ca2+ luminal ([Ca2+]RS)é alta (10–5 M), e é inibido quando essa concentração se reduz. O mecanismo pelo qual a concentração de Ca2+ luminal regula a probabilidade de esse canal encontrarse no estado aberto não está totalmente claro, mas parece depender de sua ligação com a proteína calsequestrina (proteína do retículo sarcoplasmático ligadora de Ca2+) e/ou com um sensor no lado luminal, a proteína STIM1 (ver Figura 30.16). Alterações na estabilidade do receptor de rianodina no coração podem ter como consequência o aumento no vazamento de Ca2+ do retículo sarcoplasmático, como acontece, por exemplo, na insuficiência cardíaca ou na taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica. A taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica é uma doença grave, que leva a taquiarritmias e está associada, principalmente, a mutações congênitas, tanto na isoforma RyR2 do receptor de rianodina quanto na calsequestrina. Manifestase com taquicardia, síncope e morte súbita em jovens, podendo ser deflagrada por estresse emocional ou mesmo atividade física. Outra condição clínica grave decorrente de modificação funcional do receptor de rianodina é a hipertermia maligna. Além dos receptores de rianodina, como descrito anteriormente, o retículo sarcoplasmático também possui canais para Ca sensíveis a IP3, os chamados receptores de IP3. Os receptores de IP3 são ativados por IP3 e inibidos por heparina e cafeína. Apesar de o IP3 ser um dos principais ativadores da liberação de Ca2+ dos estoques intracelulares em células não musculares e no músculo liso vascular, no músculo cardíaco esse não é o principal mecanismo para o disparo do acoplamento excitaçãocontração. No coração foram descritos, até o momento, três subtipos de receptores para IP3 (IP3R 1, IP3R2 e IP3R3) que estão associados com a regulação da hipertrofia cardíaca em resposta a neurohormônios (como a endotelina1 e angiotensina II). O aumento das concentrações de IP3 no citosol promove a liberação de Ca2+ do retículo sarcoplasmático, através da abertura de canais para Ca2+ sensíveis a IP3, o que pode regular a contração e ativar vias de sinalização intracelulares capazes de modular a expressão gênica, como o fator de transcrição nuclear (NFAT) e de calcineurina (CnA). 2+
Fagulhas (sparks) e ondas (waves) de cálcio A liberação sincronizada de Ca2+ é fundamental para o funcionamento normal do cardiomiócito; no entanto, algumas vezes, há vazamento de Ca2+ pelo retículo sarcoplasmático, o que pode comprometer o processo de acoplamento excitaçãocontração. O fenômeno conhecido como fagulha de Ca2+ (sparks) referese à liberação de Ca2+ por um ou poucos canais para Ca2+ sensíveis a Ca2+ no retículo, no espaço entre a membrana dessa organela e a membrana dos túbulos transversos ou do sarcolema, durante a diástole. Esse pequeno aumento local da concentração de Ca2+ nem afeta a [Ca2+]i nem ativa a contração muscular. Recentemente, foi definido um papel fisiológico para esse fenômeno. Como o espaço entre as duas membranas é muito pequeno, a concentração local do Ca2+ aumenta para valores que promovem a abertura de canais para K+ dependentes de Ca2+ e, assim, induzem hiperpolarização da membrana plasmática por induzir aumento do efluxo de K+. Essa ação contribui para manter o potencial de repouso dos cardiomiócitos. Cumpre ressaltar que, quando grande número de canais de Ca2+ do retículo sarcoplasmático se ativa, pode ocorrer uma onda de Ca2+ (calcium wave). Essa onda pode ser deflagrada por somação temporal e espacial das fagulhas de Ca2+, podendo induzir resposta arritmogênica e contribuir para a disfunção mecânica do cardiomiócito. Assim, podese concluir que, interferindo na habilidade de o retículo sarcoplasmático armazenar e liberar Ca2+, é possível modular o processo contrátil: ou agindo nos canais para Ca2+ sensíveis a Ca2+ (receptor de rianodina), elevando
ou diminuindo a capacidade do retículo de liberar o Ca2+; ou na interação SERCA/fosfolambam, aumentando ou reduzindo sua capacidade de receptação de Ca2+. ▸ Influência do trocador Na+ /Ca2+ e da Na+ /K+ ATPase sobre a contratilidade cardíaca. Esses dois componentes da membrana plasmática, a bomba de Na+/K+ e o trocador Na+/Ca2+, são proteínas importantes na regulação da atividade mecânica cardíaca. O trocador Na+/Ca2+ é uma proteína de membrana que realiza um contratransporte de Na+ e Ca2+ com uma estequiometria de 3Na+:1Ca2+, isto é, o influxo de 3 íons Na+ fornece energia para o efluxo de um íon Ca2+. Nas células miocárdicas, em repouso, a troca Na+/Ca2+ pode gerar uma corrente despolarizante. Duas condições podem dificultar, ou mesmo inverter, o sentido dessa troca: a despolarização celular e o aumento da [Na+]i (ver Figura 30.12, o trocador Na+/Ca2+ localizado no túbulo T). Já foi demonstrado que, durante a despolarização, o potencial de equilíbrio da troca Na+/Ca2+ é ultrapassado e sua atividade invertese, ou seja, ocorrerá o efluxo de 3 íons Na+ e o influxo de 1 íon Ca2+, o que contribui para a elevação das [Ca2+]i no decorrer do potencial de ação, principalmente na fase inicial do platô. Em seguida, com a repolarização, esse mecanismo volta para a atividade basal, reduzindo as [Ca2+]i (ver Figura 30.12, observar o trocador Na+/Ca2+ localizado no sarcolema). Esse é um dos mecanismos importantes para a redução das [Ca2+]i durante os eventos diastólicos. Desse modo, o trocador Na+/Ca2+ pode participar tanto do processo contrátil como do relaxamento cardíaco. Por sua vez, a elevação das [Na+]i dificulta, rápida e intensamente, a troca Na+/Ca2+ no estado de repouso, basicamente porque o aumento da [Na+]i reduz o gradiente difusional do Na+ através da membrana. Além disso, o trocador dispõe de dois sítios intracelulares onde se ligam o Na+ e o Ca2+. A ligação do Na+ provoca redução da atividade da troca, enquanto a ligação com o Ca2+ a estimula. Desse modo, manobras que promovem elevação das [Na+]i, tais como os glicosídeos cardiotônicos e o aumento de frequência de estimulação, dificultam a extrusão do Ca2+ via troca Na+/Ca2+, elevando a força de contração. A Na+/K+ATPase é composta de 3 subunidades, α, β e γ. A subunidade α possui atividade ATPásica e, hidrolisando o ATP, obtém energia para o transporte de 3Na+ para fora e 2 K+ para dentro da célula. São conhecidas 4 isoformas da subunidade α: α 1, α 2, α 3 e α 4. No coração já foram detectadas as isoformas α 1, α 2 e α 3. A isoforma α 1 se distribui por toda a extensão da membrana dos miócitos, sendo responsável pela manutenção das concentrações iônicas, necessárias para a atividade elétrica da célula, e da osmolaridade. As isoformas α 2 e α 3 normalmente se localizam em região de contato com o retículo sarcoplasmático, desempenhando função na atividade contrátil da célula. Normalmente sua expressão está, em um microdomínio de membrana, colocalizada com o trocador Na+/Ca2+. A subunidade β age como uma chaperona, necessária para a inserção da Na+/K+ATPase na membrana e moduladora de sua atividade. Já a subunidade γ é uma proteína da família das fosfoleman (PLM) que também possui atividade moduladora sobre a atividade da Na+/K+ATPase. A fosfoleman desfosforilada inibe a Na+/K+ATPase, enquanto a fosforilada, tanto por PKA quanto PKC, estimula a atividade dessa enzima. Já foi demonstrado que, no microdomínio celular entre a membrana plasmática e o retículo sarcoplasmático, estão presentes o trocador Na+/Ca2+ e a isoforma α 2 da Na+/K+ATPase, na membrana plasmática, e a SERCA, na membrana do retículo. Esse microdomínio celular foi denominado de PlasmERsome. Essa região auxilia no entendimento dos efeitos inotrópicos positivos dos glicosídeos cardiotônicos, como a ouabaína. Ao inibir a atividade da isoforma α 2 da Na+/K+ ATPase, a ouabaína promove aumento local da [Na+]i sem, entretanto, afetar a concentração global desse íon no meio intracelular. Tal aumento inibe, parcialmente, a atividade do trocador Na+/Ca2+, elevando a [Ca2+]i no microdomínio onde se colocaliza com a SERCA. Por sua vez, o Ca2+ será recaptado para o retículo e, perante uma despolarização do cardiomiócito, mais Ca2+ será liberado através dos canais para Ca2+ sensíveis a Ca2+ (receptores de rianodina), aumentando a força de contração. Esse mecanismo explica como funciona um efeito amplificador de contrações, sem ocorrer aumento generalizado das [Ca2+]i, mas amplificando o estoque de Ca2+ no retículo sarcoplasmático. Também se pode observar a ação fundamental da Na+/K+ATPase no controle do inotropismo cardíaco, por meio de manobras que reduzam a [K+]e. Em uma preparação de músculo papilar de cobaia, a redução da [K+]e de 5,4 mM para 1 mM induziu aumento significativo da força de contração (Figura 30.17). Esse efeito é explicado pela inibição da atividade da bomba de Na+/K+. Como a atividade dessa bomba é dependente tanto das [K+]e como das [Na+]i, existindo sítios de ligação para o K+, na face extracelular, e para o Na+, na face intracelular, a redução da [K+]e reduz a atividade da bomba, provocando aumento da [Na+]i com consequente aumento das [Ca2+]i, o que induz aumento da força de contração (efeito inotrópico positivo).
MECANISMOS ENVOLVIDOS NA REGULAÇÃO DA CONTRATILIDADE MIOCÁRDICA
Diferente do que ocorre no músculo esquelético, em que a força de contração é regulada por recrutamento de novas fibras ou mesmo somação das contrações, no músculo cardíaco a somação das contrações não é possível devido à longa duração do potencial de ação, o qual cursa, aproximadamente, com a contração muscular. Assim, no músculo cardíaco existem três maneiras pelas quais a força de contração pode ser modulada: (1) pela alteração da [Ca2+]i, alcançada durante o potencial de ação; (2) pela mudança da sensibilidade dos miofilamentos contráteis ao Ca2+; e (3) pela mudança na força máxima ativada por Ca2+ que pode ser alcançada pelos miofilamentos, o que corresponde à variação no número de pontes cruzadas. Esses três mecanismos podem ser ativados ao mesmo tempo ou isoladamente, por meio de estímulos diversos, muito embora nem sempre seja fácil distinguir entre os dois últimos. Até pouco tempo, a maneira mais conhecida de promover intervenções inotrópicas era utilizar um mecanismo que aumentasse a [Ca2+]i. De fato, as mudanças na quantidade de Ca2+ que se liga às proteínas contráteis têm um papel central na regulação da contratilidade miocárdica. Um aspecto importante a ser esclarecido é por que a elevação da [Ca2+]i, além de determinada concentração, pode trazer prejuízo funcional para a célula e, até mesmo, sua morte. Das consequências do aumento desse íon, podese citar a situação de sobrecarga de Ca2+ (Ca2+overload), que provoca sobrecarga do retículo sarcoplasmático, causando liberações espontâneas de Ca2+ no mioplasma (as ondas de Ca2+) – ver boxe “Fagulhas (sparks) e ondas (waves) de cálcio” –, colaborando para o surgimento de correntes arritmogênicas. Em condições fisiológicas, dificilmente a [Ca2+]e alterase a ponto de provocar modificações importantes na concentração de [Ca2+]i. No entanto, a [Ca2+]i pode se elevar no decorrer da ativação simpática, via ativação do receptor β1adrenérgico, como durante uma reação de luta ou fuga, ou em condições patológicas, como durante hipoxia (queda da PO2) ou isquemia do músculo cardíaco (desbalanço entre a oferta e consumo de nutrientes e O2 para o miocárdio). Se, por um lado, o aumento da [Ca2+]i promove efeito inotrópico positivo (aumento da força de contração), por outro também é responsável pela elevação do consumo metabólico. A produção de mais força por meio do aumento da [Ca2+]i eleva o consumo energético do miocárdio, basicamente, por duas razões: (1) por aumento da atividade ATPase miosínica; e (2) porque a energia requerida para reciclar o Ca2+i é maior (transporte ativo das bombas de Ca2+ do retículo sarcoplasmático e da membrana plasmática). Desse modo, considerandose a energia metabólica consumida para dada contração, é mais vantajoso para a célula muscular cardíaca aliar maior produção de força a menores modificações na concentração livre de Ca2+ citoplasmático. Esse mecanismo pode ser possível por intermédio da alteração da responsividade miofibrilar ao Ca2+. Podese depreender desse fato que, desde que mais força seja produzida na presença de um transiente de Ca2+ constante, os problemas de sobrecarga de Ca2+ citoplasmático poderiam ser minimizados, e um menor requerimento energético passaria a ser exigido pelo miócito. De fato, existem evidências de que algumas intervenções inotrópicas são capazes de melhorar a eficiência da maquinaria contrátil, de forma que o aumento de força de contração não requer necessariamente maior consumo relativo de energia, havendo então melhor eficiência energética para a célula. Entretanto, uma possível desvantagem dos agentes que aumentam a sensibilidade do sistema contrátil ao Ca2+ é o aumento da tensão passiva ou de repouso (tensão diastólica) e o retardo no processo de relaxamento, o que, isoladamente, poderia prejudicar o enchimento ventricular e, assim, o débito cardíaco.
Figura 30.17 ■ Efeitos da redução da concentração de K+ extracelular sobre a força de contração (F) e sua primeira derivada temporal (dF/dt). Observe que a diminuição da concentração de K+ extracelular de 5,4 para 1,0 mM provoca aumento tanto da força de contração quanto da sua primeira derivada temporal positiva e negativa. Esse efeito pode ser explicado em decorrência da redução da atividade da Na+ /K+ ATPase e do trocador Na+ /Ca2+ ; consequentemente, elevamse as concentrações de Na+ e de Ca2+ intracelular, assim como a força desenvolvida. Experimentos realizados em músculo papilar isolado de rato em sistema de contração isométrica.
Tentativas no sentido de minimizar esses problemas poderiam advir da combinação de agentes inotrópicos com mais de um mecanismo de ação. Como exemplo, pode ser citado o que ocorre com alguns compostos que, muito embora elevem a sensibilidade da maquinaria contrátil ao Ca2+ e, com isso, dificultem o relaxamento muscular, também inibem a fosfodiesterase (PDE, uma enzima que hidrolisa o cAMP), consequentemente aumentando o cAMP e a ativação da PKA. Essa via é capaz de desencadear mecanismos que culminam na redução da afinidade da maquinaria contrátil ao Ca2+, fosforilando a TnI, e aceleram o processo de relaxamento muscular, por ativar a SERCA (aumentando a receptação de Ca2+ para o retículo sarcoplasmático). Os dois efeitos sobre o relaxamento potencializariam o relaxamento do músculo cardíaco (efeito lusitrópico positivo), enquanto, ao mesmo tempo, o aumento da biodisponibilidade do cAMP elevaria a condutância dos canais para Ca2+ dependentes de voltagem na membrana plasmática, aumentando a força de contração para dada concentração de Ca2+ citoplasmático (Figura 30.18).
Figura 30.18 ■ Esquema representativo dos mecanismos de ação de agentes inotrópicos que atuam no músculo cardíaco aumentando a força de contração. RS, retículo sarcoplasmático; PKA, proteinoquinase A; AC, adenilatociclase; PDE, fosfodiesterase. Os glicosídios cardiotônicos inibem a bomba de Na+ /K+ , induzindo a redução da troca Na+ /Ca2+ , o que eleva a [Ca2+ ]i. Os abridores dos canais para Ca2+ aumentam a condutância ao cálcio. Os inibidores da PDE, os agonistas β adrenérgicos e os ativadores da AC aumentam as concentrações de cAMP, que, entre outros efeitos, é capaz de elevar a [Ca2+ ]i. (Adaptada de Lee e Allen, 1993.)
ASPECTOS MOLECULARES DA MODULAÇÃO DA SENSIBILIDADE DOS MIOFILAMENTOS AO CA2+ A modulação da sensibilidade dos miofilamentos ao Ca2+ pode ocorrer de duas maneiras: (1) no filamento fino, pela modificação na afinidade da TnC; e (2) no filamento grosso, pela fosforilação da cadeia leve fosforilável da miosina (MPLC) ou da isoenzima da miosina (Figura 30.19). Os filamentos finos estão envolvidos ativamente no controle, batimento a batimento, da função cardíaca por meio de mecanismos regulatórios neurais, hormonais e locais como o mecanismo de FrankStarling. As proteínas com afinidade ao Ca2+, como a calmodulina e a TnC, dispõem em comum de regiões para ligação ao Ca2+, com afinidades variadas. A TnC cardíaca tem quatro dessas regiões. As regiões 1 e 2 (região Nterminal) são específicas para Ca2+, enquanto as regiões 3 e 4 (Cterminal), em condições fisiológicas, ligamse tanto ao Ca2+ quanto ao Mg2+. A região 1 comumente não se liga ao Ca2+; no entanto, parece que a atividade dessa região modifica as propriedades de ligação da TnC ao Ca2+, presumivelmente via região 2. Isso é possível, já que as regiões 1 e 2 são de baixa afinidade, sendo a 2 ocupada apenas acima de determinada [Ca2+]i. Para que se possa ter uma noção de como a sensibilidade do sistema contrátil ao Ca2+ pode ser alterada em condições fisiológicas, podese, por exemplo, citar o mecanismo de FrankStarling como uma condição que aumenta a sensibilidade da maquinaria contrátil ao Ca2+; adicionalmente, outras situações diminuem a sensibilidade, tais como: acidose, aumento do fosfato inorgânico intracelular, hipoxia, anoxia, elevação da atividade de quinases (PKC e PKA). Esses exemplos são úteis para demonstrar a ampla capacidade de determinadas intervenções, fisiológicas e patológicas, modularem a responsividade do sistema contrátil ao Ca2+. Muito embora o Ca2+ seja o elo essencial no mecanismo de acoplamento excitaçãocontração, outros fatores, como sua ligação na TnC e a subsequente alteração conformacional nas miofibrilas, são essenciais para a produção de força. As mudanças na sensibilidade ao Ca2+ estão baseadas nas curvas obtidas mediante a variação da [Ca2+]e a geração da força de contração (ver Figura 30.19). Sendo assim, as intervenções que resultem em deslocamento dessa relação são referidas como mudanças na sensibilidade ao Ca2+. Assim, é possível obervar que:
Figura 30.19 ■ Modulação da amplitude da força de contração por variação da concentração de cálcio e da sensibilidade dos miofilamentos. O aumento da amplitude de força (gráfico à esquerda) decorre do aumento da [Ca2+ ]i. Existe variação da sensibilidade (gráfico à direita) quando há deslocamento da curva de sensibilidade. Neste caso, a força é maior para a mesma [Ca2+ ]i. O deslocamento para a esquerda significa aumento da sensibilidade ao cálcio e, para a direita, redução. Nestes gráficos, a pCa é calculada por: pCa2+ = –log [Ca2+ ]i. (Adaptada de Lee e Allen, 1993.)
■ Aumentos na sensibilidade ao Ca2+ provocam maior força para dada [Ca2+]i; consequentemente, o relaxamento fica prejudicado, pois para as menores [Ca2+] a ligação à TnC é maior ■ Reduções na sensibilidade ao Ca2+ diminuem a força para determinada [Ca2+]i; ao mesmo tempo, aceleram a velocidade de relaxamento, justamente pelo mecanismo oposto, ou seja, para dada [Ca2+] a ligação à TnC é menor. A alteração na ocupação da TnC pelo Ca2+ parece ser o mecanismo mais conhecido, mas não o único, para alterar a sensibilidade a esse íon. Outra maneira pela qual a geração de força pode ser alterada é por intermédio da mudança na força máxima ativada pelo Ca2+, que envolve os miofilamentos grossos. Tal efeito poderia ocorrer via mudança no número de pontes cruzadas, no número de pontes cruzadas ativadas ou mesmo por meio da força produzida por cada ponte (Figura 30.20). Na prática, é difícil distinguir entre mudanças na sensibilidade e na força máxima ativada pelo Ca2+, a menos que se usem concentrações saturantes de Ca2+. O melhor termo a ser utilizado nessas circunstâncias seria, então, responsividade miofibrilar ao Ca2+, o que englobaria os dois termos.
INTERVENÇÕES QUE AFETAM A RESPONSIVIDADE MIOFIBRILAR AO CA2+ Os principais agentes que afetam a responsividade miofibrilar ao Ca2+ são: (1) estimulação dos receptores α e β adrenérgicos; (2) fosforilação da cadeia leve da miosina e mudança na isoenzima da miosina; (3) fosfato inorgânico (Pi); (4) pH intracelular; (5) hipoxia e isquemia; (6) sensibilizadores naturais e sintéticos; e (7) estiramento (mecanismo de FrankStarling).
Alguns agentes farmacológicos aumentam tanto a sensibilidade quanto a força máxima, como, por exemplo, a molécula de pimobendana, enquanto outros causam elevação na sensibilidade e queda na força máxima, como a molécula de cafeína. Essas observações suportam a hipótese de que a sensibilidade e a força máxima ao Ca2+ podem ser consideradas mecanismos independentes, os quais podem ser manipulados em separado para regular a força de contração.
Figura 30.20 ■ Esquemas representativos dos efeitos da (A) mudança na sensibilidade ao Ca2+ (p. ex., por alteração da afinidade da TnC ao Ca2+ extracelular) e (B) mudança na força máxima ativada por Ca2+ (p. ex., devido à mudança no comprimento do sarcômero, o qual altera o número de pontes cruzadas). (Adaptada de Lee e Allen, 1993.)
▸ Estimulação dos receptores adrenérgicos O efeito inotrópico positivo mediado pela ativação simpática depende do aumento da [Ca2+]i e também de sua ação sobre os miofilamentos finos. Como já descrito neste capítulo, alguns agentes inotrópicos, como os agonistas β adrenérgicos, as catecolaminas, ativam a adenilatociclase, aumentando a produção do segundo mensageiro cAMP, que ativa PKA, causando fosforilação da TnI (ver Figura 30.14). Esse mecanismo envolve interações alostéricas entre as proteínas do filamento fino, culminando na redução da afinidade da TnC pelo Ca2+. A TnI dispõe de seis regiões funcionalmente distintas. Uma delas contém o local de fosforilação dependente da PKA, nas posições Ser23 e Ser24. Esse mecanismo, aparentemente contraditório, tem importante significado funcional. Considerando a ação da ativação simpática sobre o coração como uma bomba, fica fácil entender a importância fisiológica desse mecanismo. Deve ser lembrado que os agonistas de receptores βadrenérgicos são capazes de promover efeito inotrópico positivo por meio do aumento do influxo de Ca2+, o que acontece devido à fosforilação de canais para cálcio dependentes de voltagem localizados na membrana plasmática, associada ao aumento da liberação de Ca2+ do retículo, devido ao aumento da ativação dos canais para Ca2+ sensíveis a Ca2+ (receptores de rianodina). Associado a esse fato, também ocorre aumento da frequência cardíaca, efeito cronotrópico positivo, via regulação das células do nodo sinusal (ver Capítulo 28, Eletrofisiologia do Coração). Isso significa que mais Ca2+ entrará na célula durante o processo de acoplamento excitaçãocontração, porém mais Ca2+ terá que ser expulso em um menor período de tempo. A redução das [Ca2+]i é favorecida, em parte, pela ativação da recaptação de Ca2+ pelo retículo sarcoplasmático, induzido pela fosforilação do fosfolambam e ativação da SERCA. Concomitantemente, a fosforilação da TnI reduz a afinidade das proteínas contráteis ao Ca2+. Esses mecanismos auxiliam o relaxamento do músculo cardíaco. Como já descrito, o aumento do cAMP, mediado pela ativação βadrenérgica, tem uma série de efeitos sobre o coração. Alguns desses efeitos levam ao aumento da força de contração (efeito inotrópico positivo), aceleram o relaxamento muscular (efeito lusitrópico positivo),
aumentam a velocidade de condução do estímulo elétrico (efeito dromotrópico positivo) e elevam a frequência cardíaca (efeito cronotrópico positivo). Apesar de não ser o principal receptor adrenérgico envolvido no efeito inotrópico positivo, os agonistas αadrenégicos, como, por exemplo, a fenilefrina, além de aumentarem a [Ca2+]i, via ação do IP3, também aumentam a afinidade do sistema contrátil ao Ca2+.
▸ Fosforilação da cadeia leve da miosina e expressão da isoenzima Os detalhes precisos dos mecanismos envolvidos nessa intervenção, assim como seu papel fisiológico para o músculo cardíaco, não estão totalmente elucidados. Entretanto, alguns aspectos moleculares a respeito da constituição da miosina são esclarecidos e já foram abordados neste capítulo. Relembre que a região pesada da molécula de miosina consiste em duas cadeias pesadas (MHC) e dois pares de cadeias leves (MLC). Nos ventrículos e átrios humanos, são encontradas duas variedades de MHC: αMHC e βMHC. Já as cadeias leves foram designadas como: álcali LC (LC1) e regulatória LC (LC2). Elas podem ser reversivelmente fosforiladas, sendo assim designadas MPLC (cadeia leve fosforilável da miosina). A existência de duas isoformas da MPLC no ventrículo humano sugere a possibilidade de ocorrerem três diferentes isoenzimas da miosina: LC2/LC2, LC2/LC2* e LC2*/LC2*. LC1 foi inicialmente denominada LC essencial. Atualmente, sabese que ela não é essencial para a atividade ATPase miosínica, podendo ser removida por tratamento alcalino sem qualquer alteração da função dessa enzima, daí o nome álcali LC. A função das outras três isoenzimas da cadeia leve da miosina continua obscura. A fosforilação da MPLC do músculo cardíaco aumenta a força de contração, mas não a velocidade de encurtamento. Em preparações in vivo, a fosforilação da MPLC não é alterada por catecolaminas, tampouco durante a sístole ou mesmo na diástole.
▸ Fosfato inorgânico (Pi) Sob condições basais, o Pi é mantido em concentrações baixas (alguns milimoles/litro), apesar de o Pi estar sendo continuamente produzido pela hidrólise do ATP pelas ATPases celulares. Esse controle se deve ao fato de o Pi ser um dos maiores reguladores da produção de ATP mitocondrial por fosforilação oxidativa, de modo que, se o Pi aumenta (p. ex., durante o aumento do trabalho cardíaco), a produção de ATP a partir de ADP e Pi se acelera. Normalmente, os sistemas reguladores internos mantêm certa constância nesses níveis; por exemplo, quando o trabalho cardíaco dobra, o Pi se eleva de cerca de 2 mM para 5 mM. Contudo, a eficiência do sistema circulatório tornase falha durante a isquemia miocárdica, quando a fosforilação oxidativa é severamente inibida pela hipoxia tecidual. No início da hipoxia, a demanda de ATP é mantida pela reação da creatinoquinase, a qual usa a fosfocreatina para refosforilar o ADP para ATP, liberando Pi (de 2 para 20 mM). Esse aumento do Pi tem significante ação detrimental na produção de força miofibrilar. A hipótese proposta para explicar esse mecanismo é que, durante a formação das pontes cruzadas e geração de força muscular, a cabeça da miosina se liga ao monômero de actina, havendo liberação de Pi. A presença de mais Pi deslocaria o equilíbrio da reação para a esquerda, ou seja, no sentido contrário ao da produção de força (ver Figura 30.8). O resultado disso seria a redução do número de pontes cruzadas passíveis de gerar força muscular. Os efeitos da adição de Pi na produção de força são bastante similares àqueles observados durante a acidose.
▸ Mudança no pH intracelular Normalmente, o transporte transmembranal de H+ (trocador Na+/H+) regula o pH intracelular (pHi), de modo a mantê lo próximo de 7; contudo, o pHi pode variar em certas condições designadas de acidose. A causa da acidose pode ser fisiológica (como ocorre no aumento da frequência cardíaca), farmacológica (pelo uso dos glicosídios cardiotônicos) ou mesmo patológica (tal como a acidose do infarto do miocárdio, quando o pHi pode cair até 6,2 devido à acidose láctica). Essas variações podem afetar muitos sistemas celulares, incluindo as bombas e os canais iônicos da membrana. Parece que, durante a acidose, não apenas o número de pontes cruzadas está reduzido, como também existe diminuição na força média produzida pelas pontes que estão ligadas. Ou seja, a acidose reduz a eficiência da contração muscular em termos de força produzida por molécula de ATP consumida. Apesar dessas evidências, o mecanismo exato pelo qual a acidose altera a resposta dos miofilamentos ao Ca2+ não está totalmente elucidado. Não parece que o simples fato de o íon H+ competir com o Ca2+ pelo mesmo sítio na TnC seja a única resposta, de modo que outros mecanismos já estão sendo investigados.
▸ Efeitos da hipoxia e da isquemia
Embora as variações da [Ca2+]i e de força, em função de modificações do estado hipóxico, tragam resultados controversos, o efeito final, aparentemente, devese ao aumento da [Ca2+]i subsequente à acidose. Na tentativa de explicar os efeitos da acidose, decorrentes da hipoxia ou isquemia sobre a contração, é aceita a existência de duas etapas temporalmente distintas: ■ Durante a primeira exposição à anoxia, a quebra dos estoques de glicogênio elevaria a produção de ácido láctico, e a acidose resultante aumentaria a [Ca2+]i ■ Nas exposições repetidas, os estoques de glicogênio diminuiriam, reduzindo também o ácido láctico, caindo a acidose e a [Ca2+]. Além disso, a depleção do glicogênio reduz a duração do potencial de ação, e isso também diminui a [Ca2+]i. De tais efeitos, esperase que haja alteração nas concentrações de Pi, fosfocreatina, ATP e ADP. As mudanças na concentração de qualquer desses metabólitos podem alterar a sensibilidade das proteínas contráteis ao Ca2+ e contribuir para os efeitos da acidose no desenvolvimento de força. Vale relembrar, como citado no item anterior, que a afinidade da TnC ao Ca2+ está diminuída na acidose.
▸ Sensibilizadores naturais e sintéticos Considerando que a cafeína é um agente sensibilizador dos miofilamentos ao Ca2+, foi sugerido que ela poderia mimetizar a ação de substâncias endógenas. Surgiram como candidatos os compostos que continham o grupo imidazol. Os dipeptídios da histidina, exemplificados pela carnosina, satisfazem essa exigência. Compostos que aumentam a sensibilidade do sistema contrátil ao Ca2+ geralmente dispõem também de outras ações. O sulmazol, por exemplo, afeta tanto a [Ca2+]i quanto a responsividade dos miofilamentos a esse íon. Os inibidores da fosfodiesterase (PDE) também têm ação sobre a sensibilidade ao Ca2+. A pimobendana, inibidora da PDE, aumenta a sensibilidade ao Ca2+ e prolonga a duração do potencial de ação, o que eleva o [Ca2+]i.
▸ Mecanismo de FrankStarling O coração desenvolve a função de uma bomba ejetora com capacidade de regular o seu débito cardíaco (o fluxo de sangue gerado pelo coração), de acordo com as exigências do organismo. Para tanto, necessita ser capaz de alterar seu estado contrátil dentro de uma larga escala. O débito cardíaco, que matematicamente é o produto da frequência cardíaca (minutos) pelo débito sistólico (volume sistólico, m ℓ ), pode ser regulado por mecanismos denominados intrínsecos e extrínsecos. Os intrínsecos, que determinam o desempenho do coração isolado, podem envolver a autorregulação heterométrica e homeométrica. No coração, a autorregulação heterométrica é mais comumente conhecida como Mecanismo de FrankStarling. O mecanismo de FrankStarling se baseia na propriedade fundamental do músculo de variar sua capacidade de encurtar e desenvolver tensão em função de seu comprimento de repouso. Assim, o débito sistólico está relacionado com o volume diastólico final (volume existente nos ventrículos ao final da fase de enchimento ventricular), posto que o desenvolvimento da pressão sistólica ventricular se correlaciona com o comprimento das fibras musculares em repouso. Basicamente, esse conceito estabelece que, em condições fisiológicas (considerado o fato de que a circulação é um circuito fechado), o fluxo sanguíneo que entra para a cavidade ventricular (retorno venoso) será ejetado (bombeado), garantindo, batimento a batimento, que o retorno venoso seja igual ao débito cardíaco. Uma vez que o mecanismo básico implica mudança do comprimento de repouso das fibras cardíacas, ele é também designado autorregulação heterométrica. O mecanismo de FrankStarling pode então ser considerado como uma resposta adaptativa funcional a curto prazo, no qual o estiramento causado pelo aumento do retorno venoso eleva a contratilidade miocárdica para atender à demanda de ejeção de sangue batimento a batimento. Assim, uma questão que ainda não foi completamente elucidada sobre o mecanismo de FrankStarling é como o estiramento do sarcômero aumenta a sensibilidade da maquinaria contrátil ao Ca2+. Uma das hipóteses que tem muita aceitação é a de que o maior enchimento da cavidade ventricular induz estiramento do miócito, o que reduz a distância entre os miofilamentos, aumentando assim a formação de pontes actinomiosínicas sem haver necessariamente elevação da concentração de Ca2+ citoplasmático. Essa teoria é conhecida como Efeito Lattice e parece depender grandemente da titina. Como descrito anteriormente neste capítulo, essa proteína gigante possui propriedade elástica e, normalmente, está relacionada com a geração de força passiva no sarcômero (Figura 30.21). O aumento da produção de força pelo estiramento resulta de dois efeitos, referidos como fatores físicos e efeitos da ativação.
▸ Fatores físicos. Resultam do fato de que o comprimento muscular governa o formato das fibras e a disposição das estruturas internas, notadamente o sistema de filamentos deslizantes. A redução da força contrátil, em pequenos comprimentos de sarcômero, parece ser decorrente das interações inadequadas entre os miofilamentos (dupla superposição ou compressão dos filamentos de actina); adicionalmente, parece também ser decorrente do surgimento de forças internas despertadas pelos conflitos entre os filamentos finos no centro do sarcômero, que se opõem à força que se estabelece no sentido da contração, constituindose no fator preponderante na redução da tensão ativa. Outro fato importante que ocorre durante o estiramento do músculo é a compressão lateral dos filamentos transversos, o que aumenta a interação actina miosina. ▸ Efeitos da ativação. Os efeitos da ativação resultam do fato de que o grau de ativação do sistema contrátil depende do comprimento muscular em repouso. As evidências demonstradas até aqui sugerem então que os fatores que determinam a ativação, e desse modo a força de contração, podem ocorrer de duas maneiras principais. Sendo assim, são relacionados em duas categorias: (1) aqueles que modulam o aumento transiente da [Ca2+]i que ocorre subsequente à excitação (liberação de Ca2+ no mioplasma, dependente do estiramento); e (2) aqueles que modulam o grau de interação dos miofilamentos com o Ca2+, resultando em alteração da produção de força para uma dada [Ca2+] (mudanças na sensibilidade dos miofilamentos).
Figura 30.21 ■ Esquema ilustrativo demonstrando o papel da titina na modulação do espaço Lattice entre os filamentos grossos e finos. Em maiores comprimentos de sarcômero, ocorre redução da distância entre os filamentos grossos e finos, aumentando a probabilidade de formação de pontes actinamiosina para dada concentração de cálcio intracelular. Essa teoria é conhecida como Efeito Lattice e parece depender da titina. (Adaptada de KobirumakiShimozawa F et al., 2014.)
Quanto à liberação citoplasmática de Ca2+ dependente do estiramento, uma proposta existente é a de que, com o estiramento, poderia ocorrer variação na magnitude do transiente rápido de Ca2+, iniciando a contração muscular. Até o presente, existem poucas evidências de que a liberação de Ca2+, dependente do estiramento, contribua para as alterações imediatas na contração. Considerando que o comprimento muscular afeta o mecanismo liberador de Ca2+, é importante enfatizar que variações na geometria das organelas, tanto quanto na dos miofilamentos, podem acontecer durante o estiramento muscular. Desse modo, um possível mecanismo que explicaria as alterações dependentes de estiramento poderia ser devido ao efeito do estiramento nas propriedades físicas das estruturas da membrana sarcolemal. A presença de túbulos T (dobras) e de invaginações vesiculares (cavéolas), presentes no sarcolema, tem papel de ampliar a área de superfície de membrana na célula cardíaca. A deformação dessas estruturas foi obtida com o aumento do comprimento muscular, o que poderia levar a alterações no estado funcional de canais, bombas, trocadores e receptores contidos nas cavéolas, ativando mecanismos que poderiam mediar o efeito do estiramento sobre o fluxo iônico transarcolemal. Quanto às mudanças na sensibilidade dos miofilamentos ao Ca2+, indo de encontro ao que acabou de ser descrito a respeito das variações do gradiente de Ca2+ em função do estiramento, há evidências de que a redução da ativação das miofibrilas pelo Ca2+, decorrente da diminuição do comprimento do sarcômero em repouso, devese à concomitante redução na sensibilidade das miofibrilas para esse íon. Tal fenômeno representa uma propriedade intrínseca da miofibrila cardíaca e é extremamente importante na relação comprimentotensão do sarcômero. Deve ocorrer mudança no desenvolvimento de força em função da alteração dependente do estiramento, originada nas miofibrilas, para dada [Ca2+]. As evidências para a sensibilização dos miofilamentos ao Ca2+ na dependência do comprimento do sarcômero são mostradas em experimentos de músculo sem membrana plasmática (skinned fiber). Nestes, foram determinadas a relação entre a tensão isométrica e a [Ca2+]i, em diferentes comprimentos de sarcômeros. Parece que a regiãoalvo para a
sensibilização seja a TnC, considerada o transdutor dos miofilamentos que ajusta a sensibilidade ao Ca2+ em função do estiramento. A afinidade ao Ca2+ de cada molécula de TnC varia de acordo com sua localização no filamento fino. A afinidade aumenta progressivamente, no sentido do centro do sarcômero, sugerindo que a polaridade do filamento fino possa ser a base molecular para a transdução do comprimento no mecanismo de FrankStarling. Tanto em preparações isoladas de músculo esquelético quanto de músculo cardíaco, a ativação dependente do estiramento pode ser demonstrada comparandose curvas estiramentotensão, normalizadas em relação ao desenvolvimento máximo de tensão. Caso a produção de tensão seja função apenas da superposição de miofilamentos (não ocorrendo mudanças no estado inotrópico), as curvas de função ventricular no coração isolado (obtidas sob diferentes intervenções inotrópicas) deveriam ser superponíveis quando normalizadas. Se essas curvas não se sobrepõem, podese concluir que a mudança no comprimento muscular afeta o estado inotrópico (Figura 30.22).
MÉTODOS DE ESTUDO DA CONTRAÇÃO Para melhor entendimento dos métodos utilizados na análise da contração do músculo estriado, fazse necessário considerar o músculo sob a forma de modelos musculares. Dois análogos mecânicos são comumente utilizados, os modelos de Voight e de Maxwell. Entretanto, para os conceitos que se pretende abordar, será utilizado um modelo mais simplificado, o modelo de Hill (Figura 30.23). O músculo estriado, quando em repouso, comportase como uma estrutura viscoelástica, a qual está representada simplesmente como uma mola. Quando em atividade, seus sarcômeros são capazes de desenvolver tensão e gerar trabalho, o que está representado pelo componente contrátil (CC). O presente modelo dispõe de um componente contrátil ligado a um componente elástico em série (CES). A partir desse modelo, podese analisar melhor os métodos mais comuns de estudo da atividade mecânica, as contrações isométrica e isotônica.
▸ Contração isométrica Esse tipo de contração se realiza quando uma preparação de músculo tem suas extremidades fixas e ao ser estimulado contraise, gerando força. Porém, o músculo não se encurta, daí o nome: iso = mesmo, métrico = comprimento. Nesse caso, de acordo com o modelo, os sarcômeros que compõem o componente contrátil encurtamse estirando o componente elástico em série (ver Figura 30.23), sem haver encurtamento externo. Observase, assim, que nessa contração somente é registrada a força desenvolvida pelo músculo, posto que o encurtamento externo é nulo. Podese acrescentar que a força registrada se deriva da ação conjunta dos dois componentes, o que nos impossibilita analisar, em separado, a atividade do componente contrátil. Entretanto, uma série de informações pode ser obtida desses registros isométricos, referentes às variações de amplitude da contração e de seus parâmetros temporais. A amplitude da contração traduz a quantidade de força desenvolvida pelo músculo. Esses parâmetros fornecem dados indiretos sobre a cinética de ativação e relaxamento do músculo, quais sejam:
Figura 30.22 ■ Curvas estiramentotensão, obtidas de ventrículo esquerdo isolado de rato, em diferentes concentrações de Ca2+ extracelular. Estão projetados os valores relativos de pressão sistólica isovolumétrica (PSIV, nas ordenadas) em função da variação de pressão diastólica (PD, nas abscissas). Os resultados foram normalizados para a PSIV máxima e PD desenvolvida em 25 mmHg, em concentrações extracelulares crescentes de Ca2+ : ( ⚫ ) 0,5; ( ○ ) 1,25; ( ■ ) 2,5; e ( □ ) 3,75 mM. Os dados representam a média ± EPM. (**) Valores estatisticamente significantes (P > 0,01) comparados ao seu respectivo controle (Ca2+ 0,5 mM).
Figura 30.23 ■ Esquema simplificado de uma contração isométrica, indicando as alterações dos componentes do modelo simplificado. A. Diagrama da preparação do músculo papilar isolado. T, transdutor mecanoelétrico; V, haste para fixação de uma das extremidades do músculo; M, músculo papilar; P, leito de parafina onde o músculo é fixado. B. Diagrama mostrando um potencial de ação (PA) que dispara uma contração isométrica (CI). C. Músculo na situação de repouso (relaxado). CES, componente elástico em série; CC, componente contrátil (sarcômero). D. Músculo contraído. Observe em C e D que o comprimento total do músculo não se altera com a contração, mas internamente o CES foi estirado devido ao encurtamento do CC.
■ Tempo de ativação, medido do início da contração até o seu pico máximo, reflete a cinética dos processos envolvidos na ativação da contração (processos que aumentam o Ca2+ mioplasmático) ■ Tempo de relaxamento, medido do pico da contração até o seu término, reflete a cinética dos processos envolvidos no relaxamento (processos que diminuem o Ca2+ mioplasmático). Com essas medidas, podemos interpretar os efeitos de intervenções que alteram a atividade mecânica muscular.
▸ Contração isotônica Como o próprio nome indica, é uma contração que o músculo faz contra uma carga constante. Nesse caso, no momento em que a força gerada pelo componente contrátil (armazenada no componente elástico em série) tornase igual à carga, o músculo encurtase, movimentando a carga. Como representado na Figura 30.24, podese observar que, nessa condição, a mola (componente elástico em série) permanece com um estiramento constante e que o encurtamento é, agora, uma atividade exclusiva do componente contrátil. Assim, o encurtamento permite a avaliação isolada das propriedades do componente contrátil. Para o registro do encurtamento durante a contração muscular, uma das extremidades do músculo é fixada, enquanto a outra é ligada a uma alavanca. Nessa preparação, o comprimento diastólico do músculo é obtido pela
variação da posição da alavanca com uma précarga. Impedindose, a partir daí, a variação da posição da alavanca, podese adicionar nova carga (póscarga), que só será sentida pelo músculo durante a contração. Dessa maneira, o músculo inicia sua contração com um estiramento determinado pela précarga e só a partir desse momento exerce tensão sobre a pós carga. Durante a contração, ele exerce tensão sobre a pré e a póscarga, ou seja, sobre a carga total. Enquanto a tensão exercida pelo músculo é menor que a carga total, este se contrai isometricamente, encurtandose (contração isotônica) quando a tensão é suficiente para deslocar a carga total. Nesse caso, a contração processase com tensão constante, igual àquela gerada pela carga total. Uma das características importantes, obtida a partir das contrações isotônicas, é aquela que mostra que o encurtamento diminui com o aumento da carga suportada pelo músculo. Também se observa que a velocidade máxima de encurtamento se reduz com o aumento de carga. Essa velocidade é medida pela inclinação máxima da curva de encurtamento, já que essa inclinação corresponde a uma relação L/t (espaço/tempo). Plotandose velocidade nas ordenadas contra carga nas abscissas, são construídas as curvas de velocidadecarga, que nos permitem avaliar as características do componente contrátil isoladamente. Na Figura 30.24 B, em que estão apresentadas três curvas de cargavelocidade, podese verificar que a curva B mostra um músculo capaz de mover uma carga com maior velocidade que o da curva A. Isso quer dizer que a “qualidade” do músculo avaliado na curva B é melhor que a do músculo avaliado na curva A. Tal condição é obtida sempre que o estado inotrópico do miocárdio melhora, podendo ser proporcionada por catecolaminas, aumento da [Ca2+]e, elevação da frequência de estimulação e treinamento muscular. No último caso, a melhora do estado inotrópico é acompanhada de maior velocidade de hidrólise de ATP, pela atividade da ATPase miosínica. Considerando a curva C, observase uma situação oposta, em que a contratilidade, ou inotropismo, está diminuída. Tal situação é obtida por ação da acetilcolina ou em inúmeras condições clínicas que levam a uma deficiência contrátil do coração, como nas hipertrofias e na insuficiência cardíaca. Também nessas últimas situações, observase que a ATPase miosínica alterase, passando a mostrar menor capacidade de hidrólise de ATP. No miocárdio, a curva velocidadecarga apresenta característica hiperbólica, à semelhança daquela descrita por Hill para o músculo esquelético em 1938. Esse autor, utilizando resultados obtidos de contrações isotônicas e do calor produzido durante as contrações, definiu matematicamente esta curva pela equação de uma hipérbole: (P + a) – (V + b) = b (P0 + a) em que V = velocidade de encurtamento; P = tensão desenvolvida; P0 = tensão tetânica; a = constante com dimensão de força; b = constante com dimensão de velocidade.
Figura 30.24 ■ A. Arranjo experimental para estudo de contrações isotônicas com pré e póscarga. Parte superior: por uma das extremidades, o músculo fica preso a um transdutor de força e, pela outra, a uma alavanca para medidas de encurtamento muscular. A précarga determina o estiramento muscular na condição de repouso.O uso do freio permite que a précarga determine o estiramento e que cargas adicionais (póscarga) não o façam. A póscarga somente será sentida pelo músculo depois do início da contração. A soma da pré com a póscarga equivale à carga total suportada. Parte inferior: registro de contração isotônica com póscarga, em função do tempo: acima, encurtamento (L); abaixo, força (P) que corresponde a uma tensão igual à carga total, iniciando o encurtamento. A tangente à curva de encurtamento (dl/dt) corresponde à velocidade máxima de encurtamento. (Adaptada de Sonnenblick, 1969). B. Curvas de cargavelocidade: nas ordenadas, velocidade de encurtamento; nas abscissas, carga. A velocidade máxima de encurtamento (Vmáx) é obtida pela extrapolação da curva até o cruzamento com o eixo das ordenadas; corresponde à velocidade de um músculo contraindose contra uma carga zero. P0 é a tensão máxima desenvolvida pelo músculo quando a velocidade de encurtamento é zero. Observe as diferenças entre as curvas A, B e C, indicadas pela seta. O estado inotrópico é maior no músculo B que nos demais.
No miocárdio, essa curva é usada para a definição da velocidade máxima de encurtamento (Vmáx). A Vmáx tem sido considerada como um índice de estado inotrópico; é obtida por extrapolação da curva de velocidadecarga até o eixo das ordenadas. Assim, ela seria a velocidade obtida quando a carga suportada pelo músculo fosse igual a zero. Outro valor que pode ser definido pela curva é aquele determinado pela curva velocidadecarga, quando esta cruza o eixo das abscissas. Este valor, denominado P0, corresponde à força máxima capaz de ser desenvolvida pelo músculo, quando a velocidade de encurtamento é zero. Significaria a condição em que o músculo tem capacidade de promover a máxima interação entre a actina e a miosina. No músculo esquelético, P0 corresponde à tensão tetânica; mas, no miocárdio, devido à impossibilidade de obtenção de tétano, não se consegue medir este dado experimentalmente.
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Alça pressãovolume ventricular
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Ciclo cardíaco Débito cardíaco
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Bibliografia
ALÇA PRESSÃOVOLUME VENTRICULAR No início do século passado, os fisiologistas Frank e Starling demonstraram, em animais experimentais, que o volume de sangue ejetado pelo ventrículo (volume sistólico) depende do volume de sangue presente nessa câmara cardíaca no final da diástole (volume diastólico final), ou seja, o volume sistólico era diretamente relacionado ao volume diastólico final. Portanto, segundo essa relação, denominada relação de FrankStarling, a cada ciclo cardíaco o volume ejetado pelo coração na aorta ou na artéria pulmonar durante a sístole é igual ao volume que o coração recebe pelo retorno venoso. A Figura 31.1 mostra a curva pressãovolume do ventrículo esquerdo humano, mas a mesma poderia ser aplicada ao ventrículo direito, guardadas as diferenças de pressão ventricular. As curvas sistólica e diastólica representam as pressões ativa e passiva, respectivamente, do ventrículo em função do volume diastólico final. As setas, formando uma alça no sentido antihorário, representam a relação pressãovolume no ventrículo durante as quatro fases de um ciclo cardíaco. O fim do enchimento ventricular determina o volume diastólico final, o qual ocorre sob pressão intraventricular bastante baixa, uma vez que o ventrículo encontrase relaxado. O estiramento a que as paredes ventriculares são submetidas ao final da diástole é chamado de précarga. Como dito anteriormente, o estiramento do cardiomiócito (estiramento diastólico) tem papel fundamental na regulação do desempenho sistólico das câmaras cardíacas. No início da sístole, a pressão intraventricular aumenta acentuadamente, sem haver alteração do volume, pois a elevação da pressão dentro das câmaras determina o fechamento das valvas mitral e tricúspide. Como as valvas aórtica e pulmonar ainda estão fechadas, essa fase do ciclo cardíaco é denominada contração isovolumétrica. À medida que a contração ventricular progride, chega um ponto em que a pressão intraventricular ultrapassa a pressão na aorta e na artéria pulmonar. Nesse momento, as valvas aórtica e pulmonar se abrem, e o sangue é rapidamente ejetado para o sistema arterial. Essa é a fase de ejeção. Ao término da ejeção ventricular, a pressão dentro da câmara cai, havendo então tendência do sangue a refluir para o ventrículo, e isso determina o fechamento das valvas aórtica e pulmonar. Nunca a ejeção ventricular produz esvaziamento completo da câmara, sendo que sempre uma parte do sangue ainda permanece na cavidade ventricular (volume residual), determinando o volume sistólico final (ou volume diastólico inicial). Por fim, o ventrículo relaxa acentuadamente sem variação de volume, pois as quatro valvas cardíacas estão fechadas, determinando a fase de relaxamento isovolumétrico, a qual se segue da abertura das valvas mitral e tricúspide e, assim, o enchimento ventricular.
Figura 31.1 ■ Alça pressãovolume ventricular. Demonstração gráfica das quatro fases de variações da pressão e do volume intraventricular esquerdo, durante um ciclo cardíaco.
CICLO CARDÍACO A ação bombeadora do coração refletese nas mudanças de volume e pressão que ocorrem em cada câmara cardíaca e nas grandes artérias à medida que o coração completa cada ciclo em decorrência da estimulação elétrica cardíaca. A Figura 31.2 mostra a relação temporal entre as pressões na aorta e nas cavidades atrial e ventricular esquerda, as variações do volume ventricular e as relações temporais com os registros do eletrocardiograma e o fonocardiograma. As alterações no lado direito (ou território pulmonar) são similares, exceto quanto à pressão desenvolvida na sístole, cujo valor situase em torno de 1/5 da pressão sistólica desenvolvida pelo ventrículo esquerdo. Também cabe ressaltar que a sístole atrial direita ocorre frações de segundo antes da esquerda, e, por outro lado, a contração ventricular esquerda iniciase antes da direita, embora a ejeção ventricular direita anteceda à do ventrículo esquerdo. As valvas cardíacas desempenham papel essencial no direcionamento do fluxo sanguíneo através das diferentes câmaras cardíacas e nas vias de saída dos ventrículos. Como descrito no Capítulo 27, Estrutura e Função do Sistema Cardiovascular, as valvas atrioventriculares estão fixas por anéis fibrosos na sua base e prendemse aos músculos papilares por meio das cordoalhas tendíneas. A valva que separa o átrio direito do ventrículo direito é composta de três cúspides ou folhetos, e denominase valva tricúspide, enquanto aquela que separa o átrio esquerdo do ventrículo esquerdo é composta de dois folhetos e é chamada de valva mitral. As valvas atrioventriculares abremse quando a pressão ventricular é menor que a atrial e fechamse quando as pressões se invertem. Além das valvas atrioventriculares, existem ainda as valvas semilunares, constituídas por três cúspides cada uma, inseridas no trato de saída da artéria pulmonar e da aorta. As valvas semilunares abremse quando a pressão ventricular ultrapassa a pressão arterial (pulmonar ou aórtica) e fechamse quando ocorre o inverso. Dentre os parâmetros analisados durante o ciclo cardíaco, destacamse também os ruídos cardíacos, chamados de bulhas. A primeira e a segunda bulha são normalmente audíveis em todos os indivíduos. São ouvidas (auscultadas) e distinguidas por meio do estetoscópio ou mesmo colocandose diretamente o ouvido sobre a região precordial. A primeira bulha caracterizase por ter maior duração e intensidade do que as demais e é auscultada mais facilmente na região do ápice cardíaco. Os sons da primeira bulha são gerados, principalmente, pelo fechamento das valvas atrioventriculares, possuindo, assim, um componente tricúspide (mais facilmente audível à esquerda do esterno, paraesternal, no quinto espaço intercostal) e outro mitral (audível sobre o ápice cardíaco). Além disso, o movimento do sangue dentro das câmaras cardíacas e a vibração das paredes das câmaras contribuem para gerar a primeira bulha. A segunda bulha é gerada pelo brusco fechamento das valvas semilunares pulmonar (audível no segundo espaço intercostal esquerdo) e aórtica (audível no segundo espaço intercostal direito). Assim, a segunda bulha, de modo similar ao da primeira, apresenta dois componentes distintos (aórtico e pulmonar). Na clínica médica também se pode auscultar a terceira e a quarta bulhas, as
quais nem sempre são audíveis. A terceira bulha devese à vibração produzida nas paredes ventriculares pela alta velocidade do sangue durante a fase de enchimento rápido ventricular e é mais facilmente audível em jovens. A quarta bulha coincide com a última fase do enchimento ventricular, a sístole atrial, e é audível mais raramente.
Figura 31.2 ■ Ciclo cardíaco. Relação temporal entre as pressões atrial, ventricular e aórtica, o volume ventricular, o eletrocardiograma e o fonocardiograma. Os valores de pressão, fluxo e volume ventricular referemse ao ventrículo esquerdo. (Adaptada de Guyton e Hall, 2000.)
A cada geração espontânea de um potencial de ação pelo nodo sinusal, iniciase um ciclo cardíaco que corresponde ao período compreendido entre o início de um batimento cardíaco e o início do batimento seguinte. Didaticamente, podemos dividir o ciclo cardíaco em fases (ver Figura 31.2).
▸ Sístole atrial
O ciclo cardíaco iniciase com a excitação atrial, cuja duração é de, aproximadamente, 0,11 segundo. A excitação da musculatura atrial é visualizada no eletrocardiograma pela onda P, representativa da despolarização atrial, e que levará à contração atrial. Nesse ponto, cabe ressaltar que a valva mitral já está aberta nesse instante (o que já ocorreu durante a diástole atrial), pois a mesma ocorre quando os valores de pressão no átrio ultrapassam os valores observados no ventrículo, fato esse observado ao final da fase de relaxamento isovolumétrico e início do enchimento ventricular (fases que serão descritas a seguir). A elevação da pressão atrial durante a contração origina a onda a (4 a 6 mmHg). Dessa forma, o enchimento ventricular será finalizado, porque nesse momento a valva aórtica permanece fechada e, por isso, notase a subida da curva do volume intraventricular. Enquanto o ventrículo está relaxado e se enchendo de volume, a pressão aórtica diminui progressivamente durante a diástole, porque nessa fase o sangue flui dos grandes vasos arteriais em direção à microcirculação. Em frequências cardíacas baixas, a contribuição da sístole atrial para o enchimento ventricular é pequena, uma vez que a maior parte do enchimento ocorre, de modo passivo, na parte inicial e média da diástole ventricular. Entretanto, quando a frequência cardíaca aumenta, ocorre um progressivo encurtamento da duração da diástole. Nessa condição, a contração atrial exerce um papel cada vez mais importante para o enchimento ventricular. Uma das arritmias cardíacas mais comuns, notadamente em idosos, é a fibrilação atrial. Nesse caso, a excitação atrial é totalmente desorganizada de modo que os átrios já não mais contribuem com a fase ativa do enchimento ventricular (sístole atrial). Nesses indivíduos em repouso, a fibrilação atrial é praticamente assintomática porque, como vimos, a contração dos átrios praticamente não contribui para o enchimento ventricular em frequências cardíacas baixas. Porém, quando há necessidade de frequência cardíaca mais alta, como ocorre durante exercício físico, a participação da contração atrial para o enchimento ventricular tornase essencial. Em presença de fibrilação atrial, essa não ocorrerá efetivamente, e o primeiro sintoma a aparecer será a falta de ar (dispneia).
▸ Contração isovolumétrica ventricular Quando a despolarização atinge o ventrículo esquerdo, indicado pela presença do complexo QRS no eletrocardiograma, iniciase a contração ou sístole ventricular. Observase, nesse curto intervalo de tempo, um rápido aumento da pressão intraventricular, forçando o fechamento da valva mitral e produzindo a primeira bulha. A elevação da pressão atrial, nesse momento, produz a onda c no pulso venoso. Essa onda devese à elevação do assoalho atrial e a uma pequena protrusão das valvas atrioventriculares em direção à cavidade atrial. Caso uma valva atrioventricular seja insuficiente (não se fecha direito), haverá refluxo de sangue em direção ao átrio, aumentando a amplitude da onda c. No período em que as valvas mitral e aórtica permanecem fechadas, a contração ventricular processase sem haver alteração de volume na câmara, razão pela qual essa fase da sístole é denominada contração isovolúmica ou isovolumétrica. O aumento progressivo da tensão na parede ventricular, em decorrência da ativação do componente contrátil dos sarcômeros, produz rápido aumento da pressão na cavidade. No momento em que a pressão ventricular ultrapassa a pressão na aorta (aproximadamente 80 mmHg, ver Figura 31.2), a valva semilunar abrese, começando a ejeção de sangue da cavidade ventricular para a aorta. A fase de contração isovolumétrica ventricular tem duração aproximada de 0,04 segundo.
▸ Ejeção ventricular Essa fase iniciase com a abertura das valvas semilunares (aórtica na circulação sistêmica e pulmonar na circulação pulmonar) e tem um componente inicial rápido (da ordem de 0,11 segundo) seguido por uma fase de ejeção mais lenta (0,13 segundo). No momento em que a pressão intraventricular esquerda ultrapassa a pressão aórtica, abrese a valva semilunar aórtica e iniciase a ejeção ventricular rápida, conforme se constata pelo aumento da pressão intraventricular e pelo declínio da curva de volume intraventricular (ver Figura 31.2). Como a entrada de sangue na aorta ocorre mais rapidamente do que a passagem deste para as artérias menores, a pressão aórtica, que antes estava em declínio, agora aumenta até atingir um valor máximo aproximadamente na metade do período de ejeção. Essa pressão máxima é referida como pressão arterial sistólica. Nesse momento, o miocárdio ventricular esquerdo começa a se repolarizar; observe a presença da onda T no eletrocardiograma. A pressão intraventricular tornase inferior à pressão aórtica, mas a ejeção continua ainda que reduzida em relação à primeira fase. A ejeção nesse caso é decorrente da alta aceleração imprimida ao sangue pela contração ventricular na fase anterior. Em resposta à repolarização ventricular, ocorre o relaxamento ventricular, e, assim, a rápida queda da pressão na cavidade ventricular esquerda leva ao fechamento da valva aórtica, produzindo a incisura dicrótica na curva de pressão arterial aórtica, marcando assim o fim do período de sístole, ou seja,
da ejeção ventricular. Cabe ressaltar que nem todo volume contido no ventrículo esquerdo é ejetado, ficando certa quantidade de sangue no interior da cavidade. Em uma sístole típica em indivíduos saudáveis em repouso, aproximadamente 80 mℓ de sangue são ejetados e cerca de 35 mℓ permanecem no ventrículo esquerdo, correspondendo a uma fração de ejeção da ordem de 0,7 ou 70%. Ao término da fase de contração ventricular, notase uma onda de pressão atrial, denominada v, causada pelo acúmulo de sangue nos átrios (em diástole) quando as valvas atrioventriculares estão fechadas ao longo de todo o período de contração ventricular (ver Figura 31.2).
▸ Relaxamento ventricular isovolumétrico Nesta fase, ocorre a segunda bulha cardíaca, cujo som é provocado, em grande parte, pela vibração das valvas semilunares ao passarem do estado aberto para o fechado. No caso de a valva aórtica ou pulmonar ser insuficiente (não se fecha adequadamente), certa quantidade de sangue reflui para o interior do ventrículo durante essa fase. É interessante ressaltar que a quantidade de refluxo indica o grau de insuficiência da valva. A exemplo do que ocorre na contração isovolumétrica, as quatro valvas cardíacas estão fechadas, não havendo variação de volume ventricular por uma fração de tempo, período este chamado de relaxamento ventricular isovolumétrico, que marca o início da diástole. A pressão ventricular diminui rapidamente devido ao relaxamento e à consequente queda de tensão ativa na parede ventricular. A pressão arterial aórtica decai lentamente devido à elasticidade da parede arterial, mas depois diminui progressivamente durante toda a diástole à medida que o sangue escoa da aorta para os vasos mais periféricos. A pressão atrial continua aumentada, em decorrência do retorno venoso e do fato de as valvas mitral e tricúspide estarem fechadas, até o momento em que essa supera a pressão intraventricular. Nesse ponto, abremse as valvas mitral e tricúspide (as valvas aórtica e pulmonar continuam fechadas) e termina a fase de relaxamento ventricular isovolumétrico.
▸ Enchimento ventricular No período em que a pressão atrial é superior à ventricular (devido ao retorno venoso), ocorrem a abertura das valvas mitral e tricúspide e, consequentemente, o enchimento ventricular (ou diástole ventricular), conforme pode ser observado pela rápida ascensão da curva de volume ventricular (ver Figura 31.2). O enchimento ventricular é inicialmente rápido, porque o gradiente pressórico é muito favorável à passagem do sangue da cavidade atrial para a ventricular. O enchimento rápido recebe grande influência da perda de tensão na parede do ventrículo no início da diástole. Essa perda de tensão depende tanto da eficiência do relaxamento muscular como da complacência da câmara. Assim, esse componente passivo de enchimento ocorre em menor proporção nas câmaras mais rígidas ou menos complacentes, caracterizando o quadro de insuficiência diastólica. À medida que o gradiente pressórico através da valva atrioventricular diminui na fase média da diástole (a chamada fase de enchimento ventricular lento), a velocidade de enchimento tornase menor. Dependendo do turbilhonamento causado pela abertura das valvas atrioventriculares, pode ser audível nessa fase, embora raramente, a terceira bulha cardíaca. Simultaneamente, a pressão aórtica continua caindo lentamente até atingir um valor mínimo no final da diástole (pressão diastólica) e início da sístole (fase de contração isovolumétrica) (ver Figura 31.2). O enchimento ventricular termina com a contração atrial (primeira fase descrita nesta sessão). A fase diastólica ventricular, de duração de cerca de 0,41 segundo (compreendida pelo relaxamento ventricular isovolumétrico, o enchimento ventricular rápido e lento e a sístole atrial), termina com o fechamento das valvas mitral e tricúspide. O aparecimento da onda P no eletrocardiograma e a gênese da sístole atrial indicam o início de um novo ciclo cardíaco.
DÉBITO CARDÍACO O débito cardíaco consiste na quantidade de sangue que cada ventrículo lança na circulação (pulmonar ou sistêmica) em uma unidade de tempo. Em geral, o débito cardíaco é expresso em litros de sangue/minuto, ou seja, o fluxo de sangue gerado pelo coração. É importante notar que o ventrículo direito, a circulação pulmonar, o ventrículo esquerdo e a circulação sistêmica constituem um sistema conectado em série. Dessa forma, o débito do ventrículo direito, ao longo de um tempo, é praticamente igual ao do ventrículo esquerdo. Ocorrem, normalmente, variações batimento a batimento devido ao fato de que o retorno venoso é fortemente influenciado pela respiração. O volume de sangue ejetado pelo ventrículo a cada ejeção (fase sistólica) é chamado de débito sistólico. Em um indivíduo em repouso, o débito sistólico situase em torno de 70 a 80 mℓ por batimento. Dessa forma, o débito cardíaco pode ser calculado pelo produto do débito sistólico (volume sistólico) × frequência cardíaca. Se considerarmos, por exemplo, que um indivíduo em repouso apresenta 70 batimentos por minuto, com débito sistólico médio de 70 mℓ nesse
intervalo, seu débito cardíaco será de 4.900 mℓ/min ou, aproximadamente, 5 ℓ/min. O débito cardíaco é uma variável que deve se ajustar de modo muito eficiente ao consumo de O2 pelo organismo. Como a hemoglobina do sangue arterial tem saturação de O2 próxima a 100%, é fácil compreender que, se o consumo de oxigênio aumentar (no exercício físico, por exemplo), uma oferta adequada de O2 aos tecidos só poderá ser garantida se houver aumento do débito cardíaco. Ao contrário, em situações em que o consumo total de O2estiver diminuído, o coração poderá trabalhar em regime de débito menor. Como o consumo de O2 no indivíduo em repouso depende da sua massa total de células, o débito cardíaco é, em muitos estudos comparativos, corrigido para a superfície corporal. Essa correção fornece outra variável chamada de índice cardíaco, que, nos indivíduos saudáveis em repouso, situase em torno de 3,2 ℓ /min/m2 de superfície corporal. A superfície corporal pode ser calculada por fórmulas que levam em consideração o peso e a altura do indivíduo.
▸ Medida do débito cardíaco O débito cardíaco, medido em repouso ou durante descarga do sistema nervoso simpático (como no exercício físico), constitui um parâmetro muito importante para avaliar o estado funcional do coração. Nos quadros de insuficiência cardíaca, por exemplo, é comum encontrar débito cardíaco baixo. Atletas, por outro lado, terão um desempenho aeróbico tanto melhor quanto maior o débito cardíaco que conseguirem atingir. Maior débito cardíaco, nesse caso, representa maior capacidade de ofertar O2aos tecidos, principalmente para os músculos em atividade. Consequentemente, maior será a capacidade do indivíduo de suportar cargas mais elevadas de trabalho aeróbico. Dessa forma, a medida do débito cardíaco constitui elemento importante de avaliação do desempenho da bomba cardíaca. Em animais experimentais, o débito cardíaco pode ser medido por meio do uso de transdutores de fluxo colocados em torno da aorta ascendente. Esse método, entretanto, não se aplica à investigação em humanos. A medida do débito cardíaco em humanos pode ser feita aplicandose o princípio de Fick, ou por diluição de corante e por termodiluição, ou com o uso da ecocardiografia. Esse último é de uso cada vez mais corriqueiro, uma vez que não é invasivo e de mais fácil obtenção em relação aos outros dois métodos.
Método de Fick O princípio de Fick estabelece que a quantidade de uma substância utilizada pelo corpo é proporcional à diferença arteriovenosa dessa substância (mede a remoção dessa substância da circulação) e ao fluxo sanguíneo (débito cardíaco). Em consequência, qualquer substância que seja removida da circulação no nível dos capilares poderá ser usada para o cálculo do débito cardíaco. Na prática, usase a diferença arteriovenosa de O2. Para isso, devese coletar uma amostra de sangue venoso e outra de sangue arterial e medir, ao mesmo tempo, o consumo de O2. Assim, é possível estabelecer que: Débito cardíaco = consumo O2/(O2arterial – O2venoso) Vejamos como essa fórmula pode ser aplicada. O consumo de O2 em indivíduo adulto (com 70 kg) no estado de repouso é de cerca de 250 mℓ/min. A medida de O2 no sangue arterial e venoso, nessas condições, fornece valores típicos da ordem de 190 mℓ/litro e 140 mℓ/litro, respectivamente. Logo, aplicandose o princípio de Fick, teremos: Débito cardíaco = 250 mℓ/min/(190 – 140) mℓ/ℓ = 5.000 mℓ/min ou 5 ℓ/min
Diluição do corante ou termodiluição Esse método pode ser usado para a medida do débito cardíaco ou para a avaliação do fluxo sanguíneo em determinado território vascular, como no membro inferior, por exemplo. Devese inicialmente fazer a cateterização do vaso ou da cavidade onde será promovida a injeção do corante. Uma quantidade conhecida de um corante ou de um isótopo radioativo é injetada in bolus no vaso ou cavidade. Amostras seriadas de sangue são coletadas em seguida. Se o corante for injetado no átrio direito, por exemplo, o débito cardíaco será igual à quantidade do corante injetado dividida pela concentração do corante na amostra coletada. Recentemente, passouse a usar solução salina gelada como substituto do corante, o que originou o método da termodiluição. Utilizase para esse fim um cateter de duplo lúmen. Uma amostra de solução salina gelada é injetada através do tubo mais curto. Na ponta do tubo mais longo, situase um termistor que irá medir a temperatura do sangue adiante do ponto de injeção. O fluxo sanguíneo será inversamente proporcional à diferença de temperatura entre o local de injeção (que será de 37°C) e o local onde se localiza o termistor. Isto é, se o fluxo for grande, o frio da salina será diluído mais rapidamente, e o sangue que chega ao termistor estará com sua temperatura mais próxima a 37°C.
Ecocardiograma Atualmente, o ecocardiograma vem substituindo os métodos anteriores na medida do débito cardíaco. As imagens do coração obtidas no ecocardiograma permitem as medidas dos volumes diastólico final e inicial em cada sístole. Essa diferença corresponde exatamente ao débito sistólico. Este, multiplicado pela frequência cardíaca, permite o cálculo numérico do débito cardíaco.
▸ Determinantes do débito cardíaco O débito cardíaco representa o produto do débito sistólico (volume sistólico) e da frequência cardíaca. Assim, os valores assumidos por essas duas variáveis exercerão grande influência sobre o débito cardíaco. À primeira vista, aumentos da frequência cardíaca determinarão aumento do débito cardíaco. Essa relação, entretanto, não é tão simples. Isso porque o débito sistólico não se mantém constante quando ocorrem grandes variações da frequência cardíaca. Quando há taquicardia, o intervalo entre os dois batimentos diminui, principalmente à custa de uma redução da duração da diástole. Como consequência, em frequências cardíacas muito elevadas, o tempo de enchimento ventricular diminui e, consequentemente, o volume diastólico final do ventrículo assume também valores mais baixos. Mantendose fixa a fração de ejeção, o volume ejetado em cada batimento (débito sistólico) também irá diminuir. Assim, os estudos hemodinâmicos mostram que o débito cardíaco aumenta inicialmente com o aumento da frequência cardíaca, até atingir um valor máximo. A partir desse ponto, aumentos adicionais da frequência cardíaca são acompanhados de queda progressiva do débito. A interrelação de frequência cardíaca, débito sistólico e débito cardíaco pode ser melhor observada nos registros da Figura 31.3, obtidos em indivíduo bem treinado fisicamente e submetido a uma carga de trabalho aeróbico progressivo. Observase que, no início do exercício, tanto a frequência cardíaca como o débito sistólico aumentam. Logo, o produto das duas variáveis (que é o débito cardíaco) também irá aumentar. A partir de certo valor de frequência, o débito sistólico começa a cair. O débito cardíaco ainda continuará crescendo à custa do aumento da frequência cardíaca, até que essa variável atinja valor máximo. Aumentos adicionais da frequência cardíaca determinarão queda mais acentuada do débito sistólico e, consequentemente, do débito cardíaco.
Figura 31.3 ■ Variações da frequência cardíaca (FC), débito sistólico (DS) e débito cardíaco (DC) produzidas pelo aumento gradual da carga de espaço em indivíduo sadio e em condições aeróbicas. A linha tracejada representa o momento em que ocorre o máximo consumo de O2 (VO2 máx). Observe que cargas de trabalho acima desse ponto determinam aumento menos acentuado da FC e queda do DC, secundários à progressiva queda do DS.
O valor da frequência cardíaca em que o débito cardíaco atinge índices máximos é uma característica importante do aparelho cardiovascular e varia em função da idade e do grau de performance física do indivíduo. Essa frequência não tem um valor fixo e é bastante variável de indivíduo para indivíduo. Entretanto, pode ser calculada aproximadamente pela seguinte fórmula: FCmáxima = 220 – idade (anos) × K Nessa fórmula, K pode assumir valores de 1 a 0,8, dependendo do grau de performance física do indivíduo. Em atleta de 20 anos, por exemplo, a FCmáxima prevista estará próxima a 200 bpm. Em indivíduo de mesma idade e totalmente sedentário, será de cerca de 160 bpm. Valores calculados dessa maneira constituem referência para ajustes de intensidade
de treinamento físico e para a avaliação da performance cardiovascular no teste de esforço em bicicleta ou esteira ergométrica. O outro fator que exerce grande influência no débito cardíaco é o débito sistólico, ou seja, a quantidade de sangue ejetada pela câmara ventricular em cada batimento (volume sistólico). Grosso modo, o débito sistólico é determinado por três variáveis principais: o retorno venoso, a contratilidade miocárdica e a resistência à ejeção. A Figura 31.4 ilustra graficamente como as variações da précarga (determinada pelo aumento do retorno venoso), da contratilidade miocárdica e da póscarga (produzida pela elevação da resistência à ejeção) podem influenciar o formato da alça pressãovolume ventricular. É importante salientar que a área da curva pressãovolume representa o trabalho realizado pelo ventrículo para ejetar o sangue (também chamado de trabalho sistólico). Em uma condição de póscarga aumentada, como ocorre quando existe alguma dificuldade adicional na passagem de sangue do ventrículo esquerdo para a aorta (p. ex., por estenose da valva aórtica), há aumento do trabalho total da câmara cardíaca em paralelo a uma diminuição do volume de sangue ejetado. Dessa forma, o gasto energético do músculo cardíaco para realizar a ejeção ventricular é sempre maior em condições de póscarga aumentada. Assim, o aumento da póscarga eleva o consumo de O2 pelo miocárdio e determina um maior desgaste da câmara ventricular. A situação clínica mais comum de aumento da póscarga é a hipertensão arterial. Nessa condição, o ventrículo esquerdo precisa elevar a pressão intracavitária até valores mais altos para vencer a pressão do sangue arterial (pressão arterial diastólica). Portanto, em um indivíduo com pressão elevada, o trabalho cardíaco e o gasto de trifosfato de adenosina (ATP) pelo miocárdio é mais alto. ▸ Retorno venoso (précarga). Uma das descobertas mais importantes para a compreensão da homeostase cardiocirculatória foi feita pelo fisiologista inglês E. Starling, em 1910. Trabalhando com uma preparação de coração pulmão isolados, Starling observou que, quanto maior era a pressão de enchimento da câmara ventricular, maior era o volume de sangue ejetado em cada sístole. Ou seja, quanto maior a pressão de enchimento, maior o estiramento da câmara cardíaca. Essa descoberta serviu como base para o seguinte enunciado, que é conhecido como lei do coração ou relação de FrankStarling: “A força desenvolvida por uma câmara cardíaca durante a contração é diretamente proporcional ao grau de estiramento a que as fibras miocárdicas estão submetidas no período imediatamente anterior ao início da contração.” É importante observar que essa constatação foi feita no coração isolado, isto é, desconectado das influências excitatórias ou inibitórias do sistema nervoso autônomo. Do ponto de vista funcional, a existência da relação de FrankStarling é fundamental para a homeostase cardiocirculatória, porque faz com que o coração seja capaz de ajustar seu débito, em cada batimento, em função do retorno venoso que ocorreu durante a diástole imediatamente anterior. Assim, por exemplo, os ajustes do débito sistólico em função da respiração são conseguidos apenas pela ativação da relação de FrankStarling. Essa relação também pode ser observada no músculo cardíaco isolado. Nesse caso, a força desenvolvida durante a contração é proporcional ao estiramento das fibras no estado de relaxamento imediatamente precedente ao início da contração (para maiores detalhes, ver Capítulo 30, Contratilidade Miocárdica). ▸ Retorno venoso (précarga). Uma das descobertas mais importantes para a compreensão da homeostase cardiocirculatória foi feita pelo fisiologista inglês E. Starling, em 1910. Trabalhando com uma preparação de coração pulmão isolados, Starling observou que, quanto maior era a pressão de enchimento da câmara ventricular, maior era o volume de sangue ejetado em cada sístole. Ou seja, quanto maior a pressão de enchimento, maior o estiramento da câmara cardíaca. Essa descoberta serviu como base para o seguinte enunciado, que é conhecido como lei do coração ou relação de FrankStarling: “A força desenvolvida por uma câmara cardíaca durante a contração é diretamente proporcional ao grau de estiramento a que as fibras miocárdicas estão submetidas no período imediatamente anterior ao início da contração.” É importante observar que essa constatação foi feita no coração isolado, isto é, desconectado das influências excitatórias ou inibitórias do sistema nervoso autônomo. Do ponto de vista funcional, a existência da relação de FrankStarling é fundamental para a homeostase cardiocirculatória, porque faz com que o coração seja capaz de ajustar seu débito, em cada batimento, em função do retorno venoso que ocorreu durante a diástole imediatamente anterior. Assim, por exemplo, os ajustes do débito sistólico em função da respiração são conseguidos apenas pela ativação da relação de FrankStarling. Essa relação também pode ser observada no músculo cardíaco isolado. Nesse caso, a força desenvolvida durante a contração é proporcional ao estiramento das fibras no estado de relaxamento imediatamente precedente ao início da contração (para maiores detalhes, ver Capítulo 30, Contratilidade Miocárdica).
Figura 31.4 ■ Exemplos de fatores que influenciam a configuração da alça pressãovolume. O ciclo ventricular esquerdo basal é representado pela área ocre, e os efeitos das variações são representados pelas setas, indicando: (1) a fase de enchimento ventricular, (2) a contração isovolumétrica, (3) a ejeção ventricular e (4) o relaxamento isovolumétrico.
Nos experimentos realizados no coração isolado, a relação de FrankStarling apresenta o aspecto mostrado na Figura 31.5, isto é, uma alça ascendente (ou de compensação) e uma alça descendente (ou de descompensação). Na fase ascendente, o aumento do estiramento do músculo em repouso aumenta a força de contração. Consequentemente, quanto maior o volume diastólico final, maior o débito sistólico. A Figura 31.4 (painel da esquerda) ilustra o efeito de aumento da précarga (pelo aumento do retorno venoso) sobre o débito sistólico. A partir de determinado ponto, entretanto, estiramentos adicionais levam a uma diminuição da força contrátil e, consequentemente, do volume de sangue ejetado pela câmara cardíaca. Do ponto de vista funcional, um coração que estivesse trabalhando na região da alça de descompensação estaria em estado de insuficiência, ou seja, quanto mais estivesse estirado, menos sangue ejetaria. Quanto menos sangue fosse ejetado na sístole, maior seria o volume residual sistólico. Esse círculo vicioso, se não interrompido, levaria à falência completa da bomba cardíaca e à morte do indivíduo.
Figura 31.5 ■ Relação de FrankStarling obtida em coração isolado. Na região de compensação, o aumento do volume diastólico final da câmara cardíaca determina melhoria do desempenho contrátil do miocárdio, com aumento do volume de sangue ejetado em cada sístole. A dilatação progressiva, entretanto, leva à descompensação mecânica e à falência da bomba cardíaca.
Entretanto, experimentos realizados no coração in situ, isto é, em animais íntegros, não têm evidenciado a presença da alça descendente da relação de FrankStarling, quando apenas a força de contração ventricular é analisada. Porém, quando o trabalho sistólico (débito sistólico × pressão média de ejeção) é relacionado com o volume diastólico final, a alça
descendente da relação de FrankStarling é evidente. Essas discrepâncias ocorrem porque, no indivíduo em repouso e em situação supina, o músculo ventricular funciona em um grau de estiramento próximo ao platô da curva de FrankStarling (ver Figura 31.5). Maiores estiramentos determinados pelo aumento do volume diastólico final da câmara recaem, sobretudo, sobre o componente elástico do miocárdio, não levando, portanto, a estiramentos adicionais dos sarcômeros propriamente ditos. Em vista disso, as relações entre o enchimento ventricular e o débito cardíaco têm sido mais comumente expressas em função da curva de função ventricular, em que o trabalho sistólico ou o débito cardíaco é analisado em função da pressão diastólica final. Em condições basais, para uma pressão diastólica final próxima a 5 mmHg, o coração produz um débito cardíaco da ordem de 5 ℓ/min. ▸ Contratilidade cardíaca (inotropismo). A posição da curva de função ventricular não é fixa, como mostra a Figura 31.6. Na vigência de uma estimulação simpática, por exemplo, há deslocamento dessa curva para a esquerda e para cima. Isso quer dizer que, para igual valor de estiramento, o músculo cardíaco, ao se contrair, produz maior força. O deslocamento da curva de função ventricular reflete, portanto, alterações do componente contrátil próprias do coração, ou intrínsecas ao próprio músculo cardíaco. Dizemos, nesse caso, que ocorreu aumento ou melhora da contratilidade ou do inotropismo cardíaco. As alterações da contratilidade miocárdica são determinadas por muitos fatores (como visto em detalhes no Capítulo 30). Grande parte deles atua interferindo na oferta de Ca2+ à maquinaria contrátil durante o acoplamento excitação contração (ver Capítulo 30). As catecolaminas, por exemplo, atuam nos receptores βadrenérgicos dos miócitos cardíacos, aumentando o influxo de Ca2+ para o citosol, durante o platô do potencial de ação, e a liberação de Ca2+ do retículo sarcoplasmático. O aumento do Ca2+ mioplasmático produz aumento da força de contração em cada célula individualmente. Esse efeito, se extensivo à câmara ventricular como um todo, determina o aumento do volume ejetado em cada sístole. Consequentemente, para um mesmo valor de estiramento (retorno venoso), o débito cardíaco é maior. O inverso ocorre no caso de redução da estimulação simpática. Consequentemente, para um mesmo valor de estiramento, a contração será menor, assim como o volume sistólico.
Figura 31.6 ■ Curva da função ventricular em condições basais (normal), em presença de estímulo inotrópico positivo (por estimulação simpática) ou na vigência de falência contrátil (insuficiência cardíaca). Em caso de inotropismo positivo, para um
mesmo volume (estiramento) da câmara ventricular, o rendimento da contração é maior, produzindo aumento do volume de sangue ejetado na sístole.
A determinação do estado inotrópico é um parâmetro importante na avaliação da eficiência do miocárdio em transformar a energia química resultante da hidrólise do ATP em trabalho mecânico. O deslocamento da curva de função ventricular para a esquerda e para cima (por estimulação simpática, catecolaminas exógenas, glicosídeos cardiotônicos, dentre outros) representa uma melhoria do inotropismo; ao passo que o deslocamento da curva para a direita e para baixo (por uso de bloqueadores dos canais para Ca2+, inibidores da acetilcolinesterase e consequente aumento da biodisponibilidade de acetilcolina, antagonistas dos receptores βadrenérgicos, dentre outros) traduz uma piora no estado inotrópico do miocárdio e uma diminuição da eficiência da bomba cardíaca. A avaliação do inotropismo pode ser realizada por meio da curva de função ventricular, em que são analisadas comumente: (1) a velocidade máxima de desenvolvimento de pressão durante a fase de contração isovolumétrica (dP/dtmáx) e (2) a velocidade máxima (Vmáx) de encurtamento do miocárdio durante a fase de ejeção ventricular. A Figura 31.4 (painel do meio) ilustra o efeito do aumento da contratilidade miocárdica, aumentando o débito sistólico e reduzindo o volume sistólico final, o que ocorre com o aumento do trabalho ventricular. ▸ Resistência à ejeção (póscarga). O terceiro determinante do débito sistólico é a resistência à ejeção, em geral referido como póscarga, isto é, a carga pressórica contra a qual o ventrículo deve ejetar o sangue. Com o aumento da resistência à ejeção (devido ao aumento da resistência vascular periférica ou pulmonar e/ou um estreitamento das valvas aórtica ou pulmonar), ocorre aumento da força de contração ventricular, com o intuito de manter o débito cardíaco. No coração intacto, os efeitos do aumento da póscarga são difíceis de serem separados do mecanismo de FrankStarling, uma vez que o aumento súbito da póscarga determina uma redução do volume sistólico e, consequentemente, aumento do volume diastólico inicial e/ou final nas sístoles subsequentes. A Figura 31.4 (painel da direita) ilustra o efeito do aumento da resistência arterial sobre o débito sistólico; o ventrículo desenvolverá maior pressão durante a fase de contração isovolumétrica para vencer a resistência e ejetará um volume sistólico reduzido, e consequentemente o volume sistólico final (ou volume diastólico inicial) será aumentado. Esse é outro exemplo no qual o trabalho ventricular aumenta, elevando o consumo de O2 e ATP. Em resumo, podese dizer que o volume sistólico está na dependência de três fatores básicos: o primeiro é intrínseco ao músculo cardíaco, ou seja, o grau de estiramento das fibras na diástole (précarga); o segundo, a contratilidade miocárdica, é dependente em grande parte do grau de ativação simpática, sendo, portanto, extrínseco ao coração; e o terceiro é puramente mecânico, sendo dependente da resistência hidráulica contra a qual a ejeção deve ser realizada (pós carga). Em preparações isoladas, é relativamente fácil separar esses mecanismos. Em situações operacionais, entretanto, esses três fatores encontramse relacionados de tal maneira que fica difícil, por vezes, quantificar a participação de cada um deles na regulação final do débito sistólico e do débito cardíaco. Isso pode ser observado, por exemplo, nos ajustes do débito cardíaco durante o exercício físico.
▸ Regulação do débito cardíaco durante exercício físico Durante exercício físico, o aumento do consumo de O2 é proporcional ao trabalho realizado. Portanto, o débito cardíaco se ajustará à maior demanda de O2 pelo organismo decorrente do aumento do consumo de O2 na musculatura em atividade. Ocorre aumento de atividade simpática dirigida para o coração. Consequentemente, aumentam a frequência cardíaca, a contratilidade e o relaxamento miocárdico. O aumento da frequência faz com que o tempo de enchimento ventricular fique mais curto, mas o aumento do relaxamento miocárdico permite um enchimento ventricular adequado, mesmo com o tempo mais curto entre as estimulações elétricas. Assim, as câmaras ventriculares passam a funcionar em um ponto mais baixo da curva de FrankStarling. Entretanto, o débito sistólico aumenta, porque o aumento do inotropismo cardíaco (contratilidade miocárdica) faz com que o esvaziamento sistólico, traduzido pela fração de ejeção, seja aumentado. Em intensidades baixas de exercício (quando a frequência cardíaca ainda é menor que 120 bpm), o aumento do débito cardíaco é dependente tanto de um ligeiro aumento do débito sistólico como da elevação da frequência cardíaca. Em intensidades moderadas de exercício, o débito sistólico permanece aproximadamente constante à medida que a intensidade do exercício aumenta. Consequentemente, nessa condição, os aumentos do débito cardíaco são basicamente dependentes de aumento da frequência cardíaca. Em intensidades maiores de exercício, próximas ao ponto do consumo máximo de O2, a frequência cardíaca tende a se estabilizar. Logo, aumentos adicionais da carga de trabalho determinam queda do débito cardíaco, ocorrendo o esgotamento físico, o qual é determinado pela incapacidade do aparelho cardiocirculatório em continuar aumentando a oferta de O2 aos tecidos.
▸ Contribuintes e determinantes da disfunção cardíaca Múltiplos fatores podem levar à insuficiência cardíaca, a incapacidade do coração em manter fluxo adequado aos diversos órgãos e tecidos, o que se deve a um comprometimento da função bombeadora do sangue pelo coração. A insuficiência cardíaca é uma síndrome que pode ocorrer em múltiplas doenças, e sua fisiopatologia pode variar em função da doença básica que levou ao comprometimento da bomba cardíaca. Essa pode decorrer da presença de doença arterial coronariana (o músculo cardíaco não recebe oxigenação adequada), cardiomiopatias (lesões próprias do músculo cardíaco), lesões das valvas cardíacas, hipertensão arterial, diabetes, doenças pulmonares e renais, entre outras. A insuficiência cardíaca pode ser predominantemente sistólica (a capacidade ejetora do coração está comprometida), diastólica (o enchimento ventricular está prejudicado) ou mista. Em fases mais avançadas da síndrome, as alterações estruturais e funcionais do coração resultam em diminuição da fração de ejeção ventricular e do débito cardíaco, com consequente aumento das pressões diastólica inicial e/ou final ventricular. O coração sofrerá uma série de ajustes (ativação dos sistemas neurohumorais, como o sistema nervoso simpático e sistema reninaangiotensinaaldosterona) que levarão ao remodelamento cardíaco na tentativa de manter o débito cardíaco. Caso esses ajustes não sejam efetivos e culminem com a queda do fluxo sanguíneo sistêmico, sinais e sintomas aparecerão, como edema pulmonar, falta de ar (dispneia), cianose, turgência jugular, hepatomegalia, ascite, edema de membros, redução da capacidade de realizar esforço físico, entre outros. A Figura 31.7 ilustra, simplificadamente, os vários mecanismos que progressivamente, e de modo isolado ou associado, contribuem para o desenvolvimento das alterações estruturais e funcionais do coração que caracterizam a insuficiência cardíaca.
Figura 31.7 ■ Principais mecanismos que podem favorecer ou determinar o desenvolvimento de alterações estruturais e funcionais no coração associadas ao desenvolvimento de insuficiência cardíaca.
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Introdução
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Pressão no sistema circulatório | Pressão arterial Pressão como unidade relativa de força
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A acomodação do volume ejetado na aorta ascendente do ponto de vista energético Pulso arterial Aspectos da rigidez arterial | Reflexão da onda de retorno, sua velocidade e intensidade
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Fluxo sanguíneo | Fluxo de um fluido real Determinantes da resistência vascular
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Tensão na parede dos vasos Bibliografia
INTRODUÇÃO O sistema circulatório conecta os diversos sistemas do organismo por meio do contínuo fluxo de sangue distribuído para todos os órgãos do corpo. Estabelecendo uma analogia com um sistema elétrico, o sistema circulatório em mamíferos interliga os diferentes órgãos em paralelo entre si. Essa disposição, em paralelo, das resistências dos órgãos ao fluxo sanguíneo, permite que cada uma delas esteja conectada, em série, com o órgão responsável pela homeostase gasosa do sangue, o pulmão. Por sua vez, a conexão em série com o pulmão se dá por meio da bomba geradora de fluxo (débito cardíaco) no sistema cardiovascular, o coração (ver Figura 27.3 no Capítulo 27, Estrutura e Função do Sistema Cardiovascular). Seguindo a mesma analogia elétrica, podese considerar o coração como o gerador de uma diferença de potencial, ou seja, por gerar fluxo em um sistema de tubos, o qual se opõe à passagem desse fluido, mantém uma diferença de pressão entre os segmentos iniciais e finais do sistema circulatório (para o sistema elétrico: ΔV = I ꞏ RE; para o sistema hidráulico: ΔP = F ꞏ RH, em que ΔV é a diferença de voltagem; I, corrente; RE, resistência elétrica; ΔP, diferença de pressão, F, fluxo; RH, resistência hidráulica). Assim, os ventrículos direito e esquerdo, ao ejetarem o volume sistólico no sistema de tubos, pulmonar e sistêmico, respectivamente, atuam no sentido de manter o sistema arterial pressurizado. Como a pressão se dissipa espontaneamente, conforme o sangue percorre o sistema circulatório, há sempre uma diferença de pressão entre um segmento anterior e um posterior desse sistema. Essa diferença de pressão é a força movente que impulsiona o sangue no sentido anterógrado, ou seja, saindo dos ventrículos e retornando para os átrios.
PRESSÃO NO SISTEMA CIRCULATÓRIO | PRESSÃO ARTERIAL
Classicamente, a pressão sanguínea apresenta um caráter dissipativo conforme percorre o sistema circulatório. A Figura 32.1 ilustra com clareza a redução da pressão sanguínea conforme o sangue avança pelos vasos sanguíneos; bem como mostra a atenuação progressiva do perfil oscilatório da pressão sistólica e diastólica ao longo da árvore arterial. Essa atenuação faz com que o fluxo de sangue na microcirculação seja, praticamente, contínuo. Assim, sob uma análise detalhada da variação da pressão arterial ao longo dos tubos que compõem o sistema circulatório podese observar que há um padrão oscilatório da pressão no lado arterial da circulação; o qual é, basicamente, composto por reestabelecimentos constantes da pressão arterial, devido à ejeção ventricular e pela característica elástica das grandes artérias, que receberão e acomodarão o volume sistólico ejetado. Isso se dá pela latência entre o coração receber (fases de enchimento ventricular) e devolver (ejeção) o sangue para a circulação arterial durante o ciclo cardíaco (ver Capítulo 31, O Coração como Bomba). Em uma análise simplificada, o trabalho cardíaco mantém um nível constante da pressão arterial à custa de ejeções intermitentes de sangue no sistema circulatório. Assim, a fase de ejeção ventricular gera picos de pressão no sistema circulatório (sístole) seguidos por períodos latentes, nos quais ocorrem a dissipação da pressão (diástole). Dessa forma, a pressão gerada pelo trabalho cardíaco no sistema arterial pode ser vista de duas formas: (1) uma onda de pressão que percorre o sistema arterial (onda de pulso); (2) uma unidade relativa de força que está contida no sistema circulatório responsável por deslocar o sangue no sentido anterógrado (saindo dos ventrículos, por meio de vasos, e retornando aos átrios).
Figura 32.1 ■ Perfil de pressão na circulação sistêmica. Linha vermelha, pressão sistólica; linha azul, pressão diastólica; caixas, valor médio da pressão arterial. (Adaptada de Boron e Boulpaep, 2012.)
Tomando como base a circulação sistêmica, essa unidade relativa de força contida no sistema circulatório se inicia na raiz da aorta com valor médio, aproximado, de 90 mmHg, e é denominada de pressão arterial média (PAM). Conforme a massa de sangue avança anterogradamente, a pressão contida no sistema circulatório é dissipada. Assim, na veia cava observamse valores em torno de 3 mmHg. Entretanto, apesar dessa enorme variação de pressão nos diferentes trechos do sistema circulatório, o volume que adentra o sistema arterial na raiz da aorta é, exatamente, o mesmo que deixa o sistema
venoso e chega ao átrio direito. Ou seja, a variação da pressão no sistema circulatório se dá de maneira proporcional à dificuldade de passagem do sangue, o que se denomina de resistência dos vasos, ou resistência vascular (descrito mais adiante neste capítulo).
PRESSÃO COMO UNIDADE RELATIVA DE FORÇA Em um indivíduo adulto o volume de sangue contido no sistema circulatório é de, aproximadamente, 5 ℓ . Caso o coração parasse e não ocorresse alteração no calibre dos vasos sanguíneos, a pressão interna em todo o sistema circulatório seria a mesma, e com um valor de aproximadamente 7 mmHg, o qual representa, segundo Guyton et al. (1954), a pressão média de enchimento circulatório. Assim, a pressão arterial não é gerada, simplesmente, pela restrição da massa de sangue no interior dos vasos sanguíneos, mas sim pela contração cíclica do coração, a qual injeta no sistema arterial, aproximadamente, 80 m ℓ de sangue, a cada batimento. O tônus dos vasos arteriais, por sua vez, se opõe ao deslocamento do sangue da aorta para os vasos periféricos, o que contribui para a manutenção de valores mais elevados da pressão nas artérias ao longo de todo o ciclo cardíaco. Após a pressão arterial atingir o seu valor máximo no pico da sístole, ela vai decaindo progressivamente à medida que o sangue flui dos vasos arteriais para a microcirculação, atingindo seu valor mínimo ao final da diástole. Assim, a pressão arterial sistólica corresponde à pressão máxima do sangue no pico da sístole, e a pressão arterial diastólica corresponde à pressão mínima ao final da diástole (ou início de uma nova sístole). A ejeção de sangue pelo ventrículo esquerdo para a aorta pressuriza o sistema circulatório. Como o sistema circulatório é fechado, todo sangue que sai do coração retorna ao mesmo; assim, podese olhar para o sistema circulatório como um tubo com duas extremidades, as quais conectamse com as câmaras cardíacas. Tomandose como exemplo a circulação sistêmica, uma das extremidades encontrase no lado arterial, a aorta ascendente conectada ao ventrículo esquerdo, e a outra extremidade encontrase no lado venoso, cujos segmentos finais, as veias cavas, são conectadas ao átrio direito. Assim, como a ejeção de sangue para a circulação sistêmica ocorre na aorta, esse é o primeiro local onde a pressão se eleva após a saída do sangue do ventrículo esquerdo.
Quadro 32.1 ■ Pressão e sua equivalência em mmHg. A pressão é a relação entre a força aplicada a uma unidade de área, ou seja,
Como F = massa (m) × aceleração (a), Temse que:
No sistema internacional a unidade de pressão é pascal (Pa), em que 1 pascal corresponde à força capaz de acelerar uma massa de 1 kg, em 1 metro por 1 segundo ao quadrado (kg ꞏ m/s2), sendo esta força aplicada a uma superfície de 1 m2. Entretanto, apesar de que do ponto de vista físico o conceito de pressão seja bastante claro, quando se trata de fluxo e medida de pressão podese ter diferentes formas de abordagem. Em hemodinâmica expressase a pressão em unidade de milímetros de mercúrio (mmHg). Como já mencionado, em indivíduos adultos saudáveis, a pressão arterial média (PAM) é da ordem de 90 mmHg. Essa conversão se baseia nos instrumentos de aferir pressão, os manômetros, os quais contrapõem a pressão que será aferida em um determinado sistema contra uma coluna graduada de mercúrio, ou seja, contra a força (peso) exercida pelo volume de mercúrio. O mercúrio tem densidade (r) de 13,6 g/mℓ. Considerandose a equação 32.2, a massa necessária para cobrir uma área de 1 m2, com 1 mm de altura, seria igual a 13,6 kg, os quais acelerados a 9,8 m/s2 pela gravidade (g) corresponderiam a uma pressão de 133 Pa. Assim, 1 mmHg corresponde a 133 Pa.
Em termos práticos, utilizase o peso exercido por uma coluna de mercúrio para aferir uma força que contrabalança esse peso. Para ilustrar, considere um indivíduo com 1,80 m de altura, no qual o coração se encontra a 1,30 m de altura do solo (Figura 32.2). Quando analisada somente a pressão exercida pela coluna de sangue (ρ = 1,05 g/mℓ), sem a participação do coração ou do tônus vascular, ou seja, a pressão gravitacional (PGrav), chegase à conclusão a seguir. Ao analisar a PGrav no pico (ponto A), no meio (ponto B), e na base (ponto C) da coluna de sangue representada na Figura 32.2, as profundidades se constituem em: h = 0; h = 65 cm; e h = 130 cm, respectivamente. Simplificando a equação 32.2, em ρ ꞏ h ꞏ g, temse: Ponto A: 1.050 × 0 × 9,8 = 0 Pa, ou seja, 0 mmHg Ponto B: 1.050 × 0,65 × 9,8 = 6.689 Pa, ou seja, 50 mmHg Ponto C: 1.050 × 1,3 × 9,8 = 13.347 Pa, ou seja, 100 mmHg Os cálculos mostram que a profundidade da coluna, por determinar a massa de sangue que se encontra sobre a mesma área, determina de modo diretamente proporcional a PGrav; ou seja, quanto maior a coluna de sangue, maior a força (peso) exercida por ela; e, consequentemente, maior a PGrav. Assim, a PGrav exercida nos pés do indivíduo de 1,80 m de altura, pela coluna de sangue que vai do coração até seus pés (1,30 m), corresponde à mesma pressão exercida por 100 mmHg.
Figura 32.2 ■ Diagrama representando, em vermelho, a coluna de sangue de um indivíduo cujo coração se encontra a 130 cm acima do solo. Em cinza está representada a coluna de mercúrio correspondente ao peso da coluna de sangue.
Como já discutido no capítulo anterior, a Figura 32.3 mostra a relação de pressão entre o ventrículo esquerdo e a aorta. A pressão da câmara ventricular se eleva durante a contração isovolumétrica, e no momento em que a pressão do ventrículo esquerdo ultrapassa a pressão arterial diastólica na aorta, a valva aórtica se abre e o sangue do ventrículo começa a ser ejetado para a circulação sistêmica. Percebese que o determinante para que ocorra fluxo de sangue entre essas duas regiões é a diferença de pressão (ΔP).
Dessa forma, considerandose a equação 32.3, quando o ΔP é positivo observase um fluxo de sangue no sentido anterógrado, ou seja, do ventrículo esquerdo para a aorta. Entretanto, quando o ΔP for negativo ocorrerá um fluxo retrógrado da aorta para o ventrículo esquerdo, ou seja, no sentido contrário ao da circulação sanguínea. Porém, em indivíduos saudáveis esse fenômeno não ocorre, pois ele é impedido pelo fechamento da valva aórtica, o qual ocorre no início do relaxamento da câmara ventricular, impedindo que o sangue ejetado para a circulação sistêmica retorne ao ventrículo esquerdo. O mesmo ocorre no coração direito; só que nesse caso é a valva pulmonar que impede o refluxo do
sangue para o ventrículo direito. Esse momento de ΔP negativo é marcado, na aorta, pelo que se denomina de incisura dicrótica (ver explicação mais adiante, na Figura 32.7). Assim, em decorrência do funcionamento fisiológico das valvas presentes no sistema circulatório (como discutido no capítulo anterior), só há movimentação da massa de sangue quando o valor de ΔP se torna positivo. Observandose cuidadosamente a Figura 32.3, podese notar que, no momento em que o ΔP se torna positivo, e por consequência o sangue é ejetado do ventrículo, a pressão na aorta que era em torno de 80 mmHg no fim da diástole se eleva, acompanhando o perfil de subida da pressão intraventricular. Essa relação mútua das pressões ventricular e aórtica durante a sístole se dá no exato momento em que há a transferência da massa de sangue entre esses compartimentos. Na diástole ventricular, o sangue acumulado na aorta durante a sístole flui para a circulação periférica, ou seja, no sentido anterógrado. Apesar de a sístole durar cerca de 250 ms, o tempo necessário para que o ventrículo esquerdo ejete a maior parte do sangue para a aorta é de aproximadamente 180 ms, como pode ser visto na variação do volume ventricular (ver Figura 32.3). Considerando os cálculos realizados no Quadro 32.2, para que o sangue ejetado pelo ventrículo esquerdo ocupe seu lugar na aorta, ele precisaria deslocar, anterogradamente, toda a massa de sangue que se encontra na circulação sistêmica, por uma distância de 25,4 cm. Nesse ponto, devese considerar a incompressibilidade do fluido, e o fato de que as duas massas de sangue não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. Assim, tendo em vista que aproximadamente 80% do sangue corporal se encontra na circulação sistêmica, o coração deveria gerar, durante a sístole, uma força suficiente para deslocar 4 ℓ de sangue, o que corresponde a uma massa de 4,2 kg. Considerandose a equação 32.4, a pressão necessária para realizar esse trabalho seria de 788 mmHg (ver Quadro 32.2). Porém, sabese que em indivíduos saudáveis, em repouso, o processo de ejeção ventricular resulta na geração de uma pressão em torno de 120 mmHg. Para que esse processo ocorra com a geração de pressões reativamente baixas, uma grande parte do sangue ejetado pelo ventrículo esquerdo é acomodada no sistema circulatório devido à distensão da aorta. Assim, durante a ejeção, aproximadamente 50% do volume ventricular se acomodam na aorta, de modo concomitante com o escoamento anterógrado de um mesmo volume de sanguíneo. Os 50% de volume excedente acabam por se acomodar no sistema arterial, à custa da distensão da parede da aorta. Essa resposta ocorre em consequência da elevação da pressão arterial, a qual atuando sobre a parede da aorta, promove sua distensão, e permite que todo o volume ventricular seja, então, acomodado nesse vaso.
Figura 32.3 ■ Perfil pressórico das cavidades esquerdas do coração e da aorta durante um ciclo cardíaco. Variação do volume do ventrículo esquerdo durante o ciclo cardíaco. Faixa amarela, sístole atrial; faixa laranja, contração isovolumétrica; faixa azul, ejeção; faixa verde, relaxamento isovolumétrico; faixa lilás, enchimento ventricular.
Quadro 32.2 ■ Pressão necessária para ejetar 80 mℓ de sangue do ventrículo esquerdo para aorta ascendente. Considerando que em humanos saudáveis a aorta ascendente possui um diâmetro médio aproximado de 2 cm (raio = 1 cm), sua área de secção transversal seria de 3,14 cm2. Assim, sob uma análise simplista, e considerando a aorta como um tubo rígido, para acomodar o volume ejetado pelo ventrículo esquerdo seriam necessários 25,4 cm lineares da aorta, os quais seriam preenchidos em 180 ms (Figura 32.4). Entretanto, antes do início da fase de ejeção essa área da aorta já se encontra preenchida com sangue, e sob uma pressão aproximada de 80 mmHg, ou seja, a pressão arterial diastólica. Baseado na equação 32.2 (P = m × a/A), temos que:
Assim, desconsiderando a resistência viscosa, a pressão necessária para ejetar 80 mℓ de sangue pelo ventrículo esquerdo, deslocando o sangue linearmente por 25,4 cm pela aorta, seria de:
Entretanto, mesmo durante a fase de ejeção o fluxo de sangue não se interrompe, ou seja, o sangue contido nos vasos continua escoando. Levandose em consideração que, em média, a velocidade do sangue no sistema circulatório é de 0,55 m/s, durante o período de ejeção (0,18 s) o sangue na aorta ascendente escoará, anterogradamente, cerca de 10 cm (ou seja, 31,4 mℓ de sangue), movido pela energia imposta pela sístole anterior. Assim, para acomodar os 80 m ℓ que serão ejetados na aorta pela próxima sístole é necessário gerar uma pressão suficiente para deslocar a massa de sangue na aorta ascendente por adicionais 15,4 cm. Porém, mesmo essa menor distância de deslocamento do sangue exigiria ainda que o ventrículo esquerdo desenvolvesse uma pressão elevada. Dessa forma, considerandose a equação 32.4, a pressão necessária para deslocar a massa sanguínea por 15,4 cm, em 180 ms, seria 63.576 Pa, ou seja, 478 mmHg. Entretanto, sabese que, em indivíduos saudáveis, o pico de pressão sistólica no repouso é da ordem de 120 mmHg, a qual, durante os 620 ms restantes do ciclo cardíaco (70 ms do fim da sístole mais 550 ms da diástole), é dissipada até atingir 80 mmHg. Portanto, durante a ejeção do sangue na aorta, o sistema arterial é repressurizado em 40 mmHg. Pressão essa que será dissipada pelo sistema arterial para gerar trabalho mecânico e impulsionar o sangue anterogradamente. Assim, considerandose a equação 32.4, durante os 180 ms de ejeção, a adição de 40 mmHg no sistema arterial contribuirá, adicionalmente, para o deslocamento da massa de sangue em 1,3 cm; ou seja, 4 mℓ de sangue. Dessa forma, durante a ejeção do volume sistólico (180 ms), a contínua movimentação da massa de sangue no sistema circulatório, impulsionada pelas sístoles anteriores, associada à elevação da pressão em 40 mmHg, favorece o deslocamento linear da massa sanguínea; permitindo, assim, que aproximadamente 35 mℓ, provenientes da ejeção ventricular, ocupem seu lugar na aorta, à custa do escoamento de um volume idêntico, o qual se encontrava, anteriormente, no sistema circulatório. Entretanto, sabese que a ejeção ventricular ocorre nos primeiros 180 ms da sístole, e nesse período o ventrículo ejeta 80 mℓ. Para que ocorra a ejeção completa, uma parte do volume sistólico (aproximadamente 45 m ℓ ) irá distender a parede da aorta durante o estabelecimento da pressão máxima transferida do ventrículo esquerdo para o sistema arterial (120 mmHg). Assim, parte do volume ejetado, durante a sístole, será acomodado na aorta devido à sua distensão, conferindo a esse vaso uma energia potencial elástica (EPE). A elasticidade da aorta é de vital importância para a manutenção do fluxo sanguíneo dos grandes vasos arteriais para a circulação periférica durante a diástole. O conceito de energia potencial elástica será explicado com mais detalhe adiante.
Figura 32.4 ■ Diagrama representativo da aorta ascendente e suas dimensões para acomodar um volume de 80 mℓ.
A ACOMODAÇÃO DO VOLUME EJETADO NA AORTA ASCENDENTE DO PONTO DE VISTA ENERGÉTICO Conforme descrito anteriormente, e levandose em consideração os conceitos e cálculos apresentados no Quadro 32.2, até o momento, entendese que a força que move o sangue pela circulação sistêmica deriva da contração do ventrículo esquerdo, o qual gera, em seu interior, uma força capaz de acelerar a massa de sangue em direção à aorta. Dessa forma, a contração isovolumétrica do ventrículo esquerdo comprime o sangue que é pressurizado em sua cavidade. Como descrito anteriormente, conforme a pressão sistólica ventricular ultrapassa a pressão arterial diastólica, a valva aórtica se abre e a massa de sangue que estava pressurizada é, então, acelerada em direção anterógrada (ver Figura 32.3). Nesse momento, o sangue passa de uma velocidade de 0 para cerca de 1 m/s.
Conforme a massa de sangue deixa o ventrículo, e adentra o segmento ascendente da aorta, ele é, imediatamente, desacelerado, pois a velocidade média do sangue no sistema circulatório é de 0,5 m/s. Essa perda da velocidade se dá pelo bloqueio do fluxo sanguíneo (fluxo = volume/tempo) devido à massa de sangue que já se encontra no sistema arterial, a qual precisa ser deslocada para que o volume ejetado, então, se acomode, bem como pela própria viscosidade do sangue ejetado. Como a velocidade de escoamento é menor do que a velocidade de entrada (fluxo de saída BNP). O receptor NPRC atua primariamente como um receptor de clearance ou depuração, regulando os níveis dos peptídios natriuréticos na circulação. Esse é o principal mecanismo de eliminação dos peptídios natriuréticos, uma vez que o NPRC é altamente expresso na parede vascular. Após ligação ao NPRC, que não é acompanhada por aumento dos níveis de cGMP, os peptídios são internalizados e, então, sofrem degradação lisossomal.
Figura 55.13 ■ Metabolismo dos peptídios natriuréticos e ciclagem do receptor NPRC. O NPRC, localizado na superfície celular, ligase fortemente ao ANP, BNP ou CNP, sendo posteriormente internalizado com o ligante. O complexo ligantereceptor entra na célula, é processado e depois se associa aos lisossomos; nestes é hidrolisado e, finalmente, liberado da célula na forma de aminoácidos livres. Então, o receptor NPRC é reciclado de volta para a superfície celular. (Adaptada de Samson, 1997.)
Figura 55.14 ■ Peptídios natriuréticos humanos do tipo A (ANP), B (BNP) e C (CNP) e seus respectivos receptores (NPRA, NPR B e NPRC). (Adaptada de Gardner et al., 2007.)
Embora o principal papel do receptor NPRC seja sua atuação como um receptor de clearance, trabalhos recentes apontam que pode mediar alguns efeitos biológicos dos peptídios natriuréticos, por meio da ativação de outros segundos mensageiros que não o cGMP, como monofosfato de adenosina cíclico (cAMP), trifosfato de inositol (IP3) e diacilglicerol (DAG).
ASPECTOS FISIOLÓGICOS
▸ Ações renais Embora o ANP e o BNP sejam produzidos nos átrios e ventrículos cardíacos e secretados pela distensão dessas câmaras cardíacas, seus efeitos agudos vão se manifestar, primariamente, em uma série de respostas renais que têm como resultado final o aumento da excreção de sódio (natriurese) e água (diurese), eventos que, por si sós, contribuem para a diminuição do volume extracelular e da pressão arterial, caracterizando uma típica resposta de retroalimentação negativa (Figura 55.15). A natriurese e a diurese obervadas após ação do ANP ocorrem como consequência do aumento do ritmo de filtração glomerular (RFG) e da inibição da reabsorção de sódio e água ao longo dos túbulos renais. O aumento do RFG pelo ANP se dá pela elevação da pressão nos capilares glomerulares, por meio da ação coordenada do ANP em promover dilatação da arteríola aferente e constrição da arteríola eferente. Já a queda da reabsorção de sódio acontece em decorrência da inibição que o ANP promove na Na+/K+ATPase e nos canais epiteliais de sódio (ENaC) sensíveis a amilorida. A potente ação diurética e natriurética do ANP é devida, também, em grande parte, ao seu efeito vasodilatador, responsável
pelo aumento do fluxo sanguíneo medular renal e consequente lavagem do interstício papilar renal (para detalhes desse mecanismo, consulte o Capítulo 53). Paralelamente a essas ações, o ANP age, ainda, reduzindo a secreção de renina e de Aldo e inibindo as ações renais da Ang II e da Aldo, o que acentua ainda mais o seu caráter natriurético. Todas essas suas ações renais parecem ser mediadas exclusivamente por receptores do tipo NPRA. O CNP é produzido em pequenas quantidades pelo coração e seus efeitos renais ainda são pouco compreendidos.
▸ Ações cardiovasculares O ANP e o BNP agem de várias maneiras nos mecanismos vasculares, o que também contribui para a diminuição do volume sanguíneo. Assim, esses peptídios promovem vasodilatação venosa e arterial, por mecanismos diretos e indiretos. Diretamente, após ligação aos receptores NPRA presentes no músculo liso vascular, esses peptídios elevam o cGMP, com consequente relaxamento muscular, ou vasodilatação. Indiretamente, o ANP e o BNP inibem os efeitos vasoconstritores da Ang II, das catecolaminas e da endotelina, intensificando a vasodilatação. Um segundo mecanismo deflagrado por ação desses peptídios na parede do vaso diz respeito ao aumento da permeabilidade vascular em consequência da ligação a receptores presentes no endotélio de microvasos. Este mecanismo irá propiciar a redistribuição, tanto de proteínas plasmáticas como de líquido, do espaço vascular para o espaço intersticial. O aumento da capacitância venosa em função da venodilatação e o redirecionamento do líquido intravascular para o compartimento extravascular, por aumento da permeabilidade endotelial, promovem redução na précarga cardíaca, contribuindo, de modo relevante, para a diminuição da pressão sanguínea.
Figura 55.15 ■ Ações renais do peptídio natriurético atrial (ANP). A função renal do ANP é modulada por meio de três diferentes mecanismos: aumento do ritmo de filtração glomerular, diminuição da reabsorção de sódio nos túbulos proximais e ductos coletores e diminuição da secreção de renina pelas células justaglomerulares. Estes três mecanismos juntos promovem aumento da natriurese e da diurese. (Adaptada de Potter et al., 2006.)
Em relação ao CNP, este parece ter um efeito na dilatação de veias ainda mais potente do que o do ANP e o do BNP.
Paralelamente às ações vasculares, o ANP e o BNP também exercem efeitos endócrinos e parácrinos nas células cardíacas, antagonizando a hipertrofia do cardiomiócito e promovendo efeitos antiproliferativos dos fibroblastos, o que confere a esses peptídios importantes efeitos cardioprotetores em situações patológicas.
▸ Ações no SNC Os peptídios natriuréticos também são sintetizados e secretados por neurônios no SNC (chamados neurônios ANPérgicos). No SNC, os níveis de expressão do CNP são pelo menos 10 vezes maiores em relação aos do ANP e do BNP, enquanto os de BNP são três vezes mais abundantes que os de ANP. O hipotálamo é a estrutura do SNC que contém a maior concentração de peptídios natriuréticos. O ANP é sintetizado e liberado por neurônios localizados no órgão vasculoso da lâmina terminal (OVLT), núcleo préóptico mediano, núcleo supraquiasmático, núcleo paraventricular, núcleo parabraquial, núcleo do trato solitário e área postrema. Estas regiões são conhecidas por regular uma variedade de respostas cardiovasculares e modular a homeostase hidreletrolítica (Figuras 55.16 e 55.17). Além disso, embora os peptídios natriuréticos não atravessem a barreira hematencefálica, eles atingem alguns locais do SNC fora dessa barreira, como a eminência mediana hipotalâmica e outras regiões envolvidas no controle do volume de líquidos corporais e na regulação da pressão arterial. Assim, as ações dos peptídios natriuréticos no SNC intensificam seus efeitos na periferia, já descritos. O ANP atua em núcleos do tronco encefálico, diminuindo o tônus simpático para a periferia. Como consequência, há atenuação da regulação tônica dos barorreceptores e supressão da liberação de catecolaminas nas terminações nervosas autonômicas. Por outro lado, o ANP diminui o limiar de ativação das fibras aferentes vagais, suprimindo o reflexo de taquicardia e a vasoconstrição que acompanham a redução da précarga, contribuindo para a manutenção da redução da pressão arterial. A ativação dos neurônios ANPérgicos no hipotálamo, via expansão de volume, também inibe a ingestão de água (ou ação dipsogênica) e sal, além de inibir a secreção de vasopressina (ou ADH). Portanto, os neurônios ANPérgicos desempenham papel importante, não só na modulação da ingestão de líquido, mas também na sua excreção, na tentativa de manutenção da homeostase corporal. Cada um destes efeitos implica, portanto, ações centrais e periféricas coordenadas, que agirão no controle do volume e da concentração dos líquidos do organismo, garantindo sua homeostase. (Esse assunto é também discutido no Capítulo 75.)
Figura 55.16 ■ Mecanismos envolvidos no controle neuroendócrino da liberação do peptídio natriurético atrial (ANP). OT, ocitocina; NTS, núcleo do trato solitário; AVP, vasopressina ou ADH. Descrição no texto. (Adaptada de AntunesRodrigues et al., 2004.)
Embora, como descrito, o estiramento libere o ANP dos cardiomiócitos, algumas evidências indicam que a liberação do ANP promovida pela expansão de volume é mediada por impulsos aferentes dos barorreceptores ao hipotálamo. Ou seja, a expansão de volume distenderia os barorreceptores do átrio direito, dos seios carotídeos e aórtico e dos rins, alterando a entrada aferente para o tronco encefálico e hipotálamo, resultando na estimulação da liberação de ocitocina pela hipófise posterior; este hormônio, no átrio direito, estimularia a liberação do ANP. Acreditase que o CNP apresente uma ação mais generalizada, uma vez que os seus receptores encontramse espalhados por todo o SNC, atuando, principalmente, em efeitos de anticrescimento na glia.
IMPLICAÇÕES TERAPÊUTICAS Em condições basais, os peptídios natriuréticos são pouco expressos; entretanto, sua expressão é dramaticamente alta durante o desenvolvimento embrionário e fetal, diminuindo rapidamente no período pósnatal, e em condições fisiopatológicas. Os peptídios natriuréticos são associados a uma série de doenças cardiovasculares; por esse motivo, nas
três últimas décadas, vários estudos avaliaram o seu verdadeiro papel nessas condições patológicas. Evidências clínicas e experimentais já demonstraram que os peptídios natriuréticos, em especial o BNP, encontramse significativamente aumentados na circulação sistêmica em situações de insuficiência cardíaca, de infarto do miocárdio, de hipertrofia ventricular esquerda, de aterosclerose coronariana, entre outras (Figura 55.18). Em condições normais, no coração saudável, o BNP é produzido e armazenado nos grânulos atriais, juntamente com o ANP; enquanto os cardiomiócitos ventriculares quase não produzem esses grânulos, e não contêm peptídios derivados do próBNP. Assim, indivíduos saudáveis apresentam concentrações plasmáticas de BNP da ordem de 1 fmol/m ℓ (3,5 pg/mℓ), cerca de dez vezes menores que as do ANP. Em contraste, as concentrações plasmáticas de BNP em pacientes com insuficiência cardíaca congestiva elevamse cerca de 200 a 300 vezes. Os elevados níveis de BNP sob essas condições não se restringem à circulação, uma vez que após o infarto do miocárdio há abrupto aumento nos níveis de RNA mensageiro e da proteína BNP no ventrículo esquerdo. Além disso, como as expressões cardíacas de ANP e BNP quase sempre são reguladas de forma sincrônica nas diferentes patologias cardiovasculares, a concentração plasmática aumentada de um destes peptídios é seguida pelo aumento da concentração do outro. Com base nesses estudos, atualmente, esses peptídios vêm sendo usados como potente ferramenta no diagnóstico e prognóstico dessas doenças, servindo como importante marcador do estado clínico de disfunção ventricular esquerda.
Figura 55.17 ■ Efeitos fisiológicos dos peptídios natriuréticos dos tipos A, B e C. A secreção aumentada desses peptídios promove diminuição da pressão arterial e do volume plasmático, por ações coordenadas do SNC, suprarrenais, rins e vasos. O sinal (–) indica que a queda do volume plasmático leva à diminuição do retorno venoso, a qual provoca queda da secreção
desses peptídios. NPRA, NPRB e NPRC, receptores dos peptídios natriuréticos tipos A, B e C, respectivamente; AVP, vasopressina; RFG, ritmo de filtração glomerular; UNaV, excreção urinária de sódio; VU, volume urinário. (Adaptada de Levin et al., 2004.)
Figura 55.18 ■ Síntese e estocagem cardíaca dos peptídios natriuréticos atrial (ANP) e cerebral (BNP), sob condições fisiológicas e patológicas. Em situações fisiológicas, o ANP e pequenas quantidades de BNP são liberados dos grânulos de estocagem do átrio cardíaco. Em condições patológicas, o ventrículo esquerdo passa a corresponder à principal fonte de síntese do BNP. O tamanho das setas corresponde às quantidades secretadas relativas desses peptídios. VE, ventrículo esquerdo. (Adaptada de Kim e Piano, 2000.)
Outras Substâncias Vasodilatadoras com Ação Renal | Óxido Nítrico, Prostaglandinas e Bradicinina Guiomar Nascimento Gomes A adequada perfusão sanguínea, nos diversos tecidos do organismo, é mantida graças à participação de sistemas de controle nervoso, hormonal ou parácrino, que são ativados frente a situações distintas. Quando o organismo depara com uma situação adversa como a hipovolemia, por exemplo, são acionados sistemas vasoconstritores como o sistema renina angiotensina, a ativação simpática renal e o hormônio antidiurético (ou vasopressina). Estes mecanismos contribuem para a manutenção da pressão arterial; entretanto, podem reduzir o fluxo sanguíneo renal, comprometendo a excreção urinária de água e eletrólitos. Porém, substâncias vasodilatadoras com ação renal são capazes de se contrapor a este efeito, que pode ser danoso, protegendo a função renal. Neste item serão discutidos os seguintes vasodilatadores de ação renal: óxido nítrico, prostaglandinas e bradicinina.
ÓXIDO NÍTRICO
▸ Aspectos gerais O papel do endotélio sobre o tônus vascular começou a ser estudado no início da década de 1980, quando Furchgott e Zawadski verificaram que o efeito vasodilatador da acetilcolina, em preparações vasculares, só se manifesta quando o endotélio se apresenta íntegro. Na ausência do endotélio, a acetilcolina não produz este efeito. Assim, o efeito vasodilatador foi atribuído a uma substância vasoativa, secretada pelas células endoteliais, que passou a ser chamada de fator relaxante derivado do endotélio (EDRF). Posteriormente, o óxido nítrico (NO) foi identificado como o mais importante vasodilatador derivado do endotélio. O NO é um gás com um radical livre, difusível e solúvel em água, cuja meiavida é bastante curta (1 a 5 s), sendo rapidamente decomposto a nitrito (NO2–) e nitrato (NO3–).
O NO é sintetizado a partir do aminoácido Larginina, pela atividade da enzima NO sintase (NOS), tendo como cofatores a tetraidrobiopterina e a NADPH. A NOS catalisa a conversão de arginina em citrulina e NO (Figura 55.19). Quando as células endoteliais são estimuladas pela acetilcolina ou por outro vasodilatador (bradicinina, serotonina, ATP), há produção e liberação do NO. O NO apresenta as seguintes ações: (1) ativa a guanilatociclase do músculo liso vascular, resultando no aumento da concentração intracelular de guanosina 3’, 5’monofosfato cíclico (cGMP) – que bloqueia canais para Ca2+ dependentes de voltagem, presentes na membrana celular – e (2) ativa a proteinoquinase dependente de cGMP (PKG). A PKG fosforila proteínas do retículo sarcoplasmático (SERCA) que sequestram Ca2+ no retículo sarcoplasmático. Portanto, ocorre redução na concentração intracelular de Ca2+ e, consequentemente, relaxamento do músculo liso.
Figura 55.19 ■ Esquema ilustrativo da formação do óxido nítrico (NO) a partir do metabolismo da arginina, pela ativação da enzima óxido nítrico sintase (NO sintase). (Adaptada de Nelson et al., 2000.)
Existem 3 isoformas de NOS: neuronal (nNOS), endotelial (eNOS) e induzível (iNOS). As isoformas nNOS e eNOS são constitutivas, encontrandose ancoradas na membrana plasmática. A iNOS é produzida no organismo mediante estimulação por citocinas, como o fator de necrose tumoral α (TNFα), ou outros estímulos fisiopatológicos. A geração de espécies reativas de oxigênio, como o íon superóxido (O2–), é considerada normal em processos fisiológicos, desde que os mecanismos de defesa antioxidante estejam adequados. Quando há aumento da produção de O2–, ou há redução da atividade ou expressão da superóxido dismutase (SOD) (na defesa antioxidante), o excesso de O2– reage com o NO com grande afinidade formando o peroxinitrito (ONOO–), que é um radical altamente citotóxico. O peroxinitrito é capaz de atacar proteínas (nitração de proteínas), ácidos nucleicos e lipídios, principalmente da membrana celular (peroxidação lipídica), comprometendo as suas funções. Além do importante papel como vasodilatador, o NO parece exercer relevante ação na destruição de microrganismos invasores, mediada por macrófagos e neutrófilos. O NO também tem sido apontado como um neurotransmissor, no SNC e no sistema nervoso entérico (SNE). Ele é liberado tanto em terminais pré como póssinápticos. Por ser uma molécula pequena e solúvel em membranas, difundese mais livremente que outras moléculas transmissoras, podendo, ao ser secretado pelo terminal póssináptico, modular a atividade présináptica.
▸ Efeitos do NO na função renal No rim, ocorre síntese de NO nas células mesangiais e endoteliais do glomérulo, na mácula densa, no aparelho justaglomerular, no túbulo proximal e no túbulo coletor. Entretanto, em virtude de sua alta difusibilidade, o NO produzido em um vaso ou em determinado segmento do néfron pode influenciar a atividade das estruturas renais circunvizinhas. O papel do NO na regulação da filtração glomerular foi evidenciado em estudos que indicaram que inibidores da síntese de NO causam acentuada queda no fluxo plasmático renal (FPR) e no ritmo de filtração glomerular (RFG). Este efeito foi atribuído ao aumento da resistência da arteríola aferente em paralelo ao decréscimo do coeficiente de filtração glomerular (Kf), decorrentes da menor produção de NO pelas células mesangiais na presença dos inibidores de sua síntese. Além disso, a inibição da NOS também aumenta a resposta vasoconstritora das arteríolas renais (aferentes e eferentes) em resposta à angiotensina II. De maneira semelhante, a infusão intrarrenal de norepinefrina em animais tratados com NnitroLarginine methyl ester (ou LNAME, inibidor não seletivo da NO sintase) causa acentuada queda no RFG e no FPR, alteração não observada na ausência do inibidor, sugerindo que o NO exerça um papel modulador sobre o efeito vasoconstritor da angiotensina II e da epinefrina.
A produção de NO pelas células da mácula densa parece participar do balanço tubuloglomerular (BTG). Resumidamente: em condições normais, quando ocorre aumento do RFG em um determinado néfron, há aumento do fluxo de líquido e de NaCl para o segmento distal do mesmo néfron, particularmente, na sua mácula densa. O maior influxo de NaCl nas células da mácula densa faz com que haja liberação de agentes parácrinos (ATP, adenosina, tromboxano e outras substâncias) que provocam a contração das células musculares lisas da parede da arteríola aferente do próprio néfron, aumentando a sua resistência e, consequentemente, reduzindo o seu RFG. O papel exato do NO neste mecanismo ainda não está claro. Estudos realizados em alças de Henle isoladas e perfundidas com soluções contendo diferentes concentrações de NaCl demonstraram que o aumento da concentração luminal de NaCl causa aumento da produção de NO nas células da mácula densa; assim, a maior produção de NO poderia desempenhar um papel modulador da vasoconstrição causada pelo BTG. Os efeitos do NO sobre a reabsorção de líquido no túbulo contornado proximal (TCP) são controversos. Estudos in vivo mostraram que se no lúmen tubular do TCP for adicionado (1) nitroprussiato (doador de NO) – há redução da reabsorção de líquido ou (2) LNAME – há aumento da reabsorção de líquido, sugerindo que o NO apresenta efeito inibitório sobre a reabsorção de líquido no TCP. Por outro lado, outros estudos, também realizados in vivo no TCP, demonstraram que: (1) a infusão intravenosa de LNAME reduz a reabsorção de líquido e (2) em animais knockout para nNOS há menor reabsorção de líquido que em animais wildtype, sugerindo que o NO estimula a reabsorção de líquido no TCP. Entretanto, os animais knockout apresentam alterações em outros órgãos que podem ter influenciado os resultados. Além disso, foi relatado que a administração intravenosa de LNAME causa um aumento paradoxal na produção de NO no córtex renal. Ou seja, os resultados obtidos no TCP in vivo são de difícil interpretação. Já os resultados obtidos com células de túbulo proximal, em cultura, são mais consistentes e indicam que o NO inibe a atividade do trocador Na+/H+ bem como da Na+/K+ATPase. Os estudos realizados em alças de Henle isoladas e perfundidas sugerem que nesse segmento tubular o NO inibe a reabsorção de NaCl por uma ação direta sobre o cotransporte luminal Na+:2Cl–:K+ e não por ação secundária à inibição da Na+/K+ATPase. O aumento da biodisponibilidade de NO na medula renal tem fundamental papel na regulação do fluxo sanguíneo medular, protegendo esta região de lesão isquêmica. Este aumento pode ser decorrente da grande quantidade de NOS encontrada nos ductos coletores medulares (cerca de 26 vezes maior que no córtex renal). O tratamento crônico com L NAME, em dose que não altera o fluxo sanguíneo cortical, resulta em redução de 30% do fluxo sanguíneo medular, acompanhada de queda da excreção renal de sódio e desenvolvimento de hipertensão arterial. Esses achados evidenciam a relevante ação do NO na irrigação da medula renal e no transporte iônico do ducto coletor medular. Em conclusão: o NO desempenha importante papel na regulação da função renal, tanto por seu efeito vascular, quanto pela sua ação direta sobre os transportadores tubulares.
PROSTAGLANDINAS
▸ Aspectos gerais As prostaglandinas, tromboxanos e leucotrienos são substâncias derivadas do ácido araquidônico (AA) sintetizado no fígado, a partir do ácido linoleico da dieta. O AA é transportado no plasma ligado a lipoproteínas de baixa densidade (fração esterificada) e a albumina (fração não esterificada). A fração esterificada é, posteriormente, captada pelas células e armazenada nos fosfolipídios da membrana plasmática. A liberação do AA da membrana plasmática ocorre por diversos estímulos (químico, inflamatório, traumático, mitogênico), por meio da enzima fosfolipase A2 (PLA2). O AA forma produtos distintos, dependendo da via de metabolização: (1) a via da ciclooxigenase – leva à formação das prostaglandinas (PG), (2) a via da lipooxigenase – resulta na síntese dos ácidos mono, di e trihidroxieicosatetraenoico (HETE) e dos leucotrienos (LT) e (3) a via de oxigenação pelas epoxigenases, mediada pelo citocromo P450 – leva à formação dos ácidos epóxieicosatrienoicos (ácidos graxos ωhidroxilados).
Via da ciclooxigenase (COX) Inicialmente, a COX promove a formação de compostos intermediários instáveis (PGG2 e PGH2) que, subsequentemente, são convertidos a compostos mais estáveis e biologicamente ativos: prostaglandina E2 (PGE2), prostaglandina I2 (PGI2 ou prostaciclina), prostaglandina F2α (PGF2α), prostaglandina D (PGD) e tromboxano A2 (TxA2). Estas substâncias são rapidamente metabolizadas, tendo função autócrina e parácrina (Figura 55.20).
Duas isoformas de COX já foram identificadas: COX1 e COX2. A COX1 parece ser constitutiva e estar relacionada com as funções fisiológicas. A COX2 é induzida por mediadores inflamatórios e por mitógenos, mas também parece exercer função de manutenção celular.
Figura 55.20 ■ Esquema ilustrativo da síntese das prostaglandinas. Explicações no texto.
Cada prostaglandina se liga a um receptor específico na membrana celular, acoplado a uma proteína G. Até agora, foram identificados e caracterizados os seguintes receptores: DP (PGD), EP (PGE), FP (PGF), IP (PGI) e TP (TxA). Quatro subtipos de receptores foram encontrados para a PGE: EP1, EP2, EP3, EP4. Os receptores EP1 e EP3 estão associados à contração do músculo liso, enquanto os receptores EP2 e EP4 promovem relaxamento do músculo liso, incluindo o vascular. Os diversos efeitos das PG dependem das diferentes células nas quais seus receptores estão expressos, bem como da via de sinalização que medeia seu efeito. Os receptores DP, IP, EP2 e EP4 são acoplados à proteína G estimulatória (Gs) e promovem aumento da concentração intracelular de cAMP; já o receptor EP3 está acoplado à proteína G inibitória (Gi) e reduz a síntese de cAMP. Em alguns tecidos, os receptores TP, FP e EP1 promovem mobilização de cálcio. Considerando os distintos receptores específicos para cada PG e sua ampla distribuição, é possível compreender sua diversidade de ações no organismo, desempenhando papel central na inflamação, coagulação sanguínea, ovulação, parto, metabolismo ósseo, função renal, tônus vascular, crescimento e desenvolvimento neuronal.
▸ Efeito das prostaglandinas na função renal Nos rins, as prostaglandinas são importantes moduladores do tônus vascular, do transporte tubular de sal e água e da liberação de renina. A PGE2 e a PGI2 (ou prostaciclina) são as prostaglandinas que apresentam maior síntese nos rins. No córtex renal, há maior produção de PG nos vasos, no glomérulo e no túbulo coletor cortical. Em humanos, o glomérulo e as células mesangiais produzem principalmente PGI2, além de quantidades menores de PGE2, PGF2 e TxA. A produção de PGE2 é maior na medula renal, desempenhando importante papel na regulação do transporte de sal e água na alça ascendente espessa e no ducto coletor. Tendo em vista que a COX1 é muito expressa em ductos coletores corticais e medulares, acreditase que as prostaglandinas produzidas por esta via estejam envolvidas na resposta natriurética. Há muito tempo é conhecido que a elevação do volume de líquido extracelular causa aumento agudo da pressão hidrostática intersticial e natriurese; e, atualmente, está constatado que a infusão de inibidores não seletivos da COX impede essa resposta natriurética, confirmando a participação das PG nesse mecanismo. Em rins de mamífero, a mácula densa (MD) participa do mecanismo de controle do tônus da arteríola aferente detectando alterações na concentração luminal de cloreto, por meio de modificações na atividade do cotransporte Na+:K+:2Cl–, estimulando a secreção de renina (pelo balanço tubuloglomerular, anteriormente mencionado). Estudos in vivo, em néfrons isolados e perfundidos, demonstraram que a administração de inibidores não seletivos da COX inibe a
secreção de renina mediada pela diminuição da carga de NaCl na MD. Além disso, em situações em que a secreção de renina é elevada, como na deficiência de sal, no uso de inibidores da enzima conversora de angiotensina ou na hipertensão renovascular experimental aumenta a expressão da COX2 na mácula densa. Portanto, estes experimentos demonstram que as prostaglandinas também contribuem para regulação do transporte tubular de sódio e liberação de renina nos rins. Em condições normais, as prostaglandinas parecem exercer pouca influência no fluxo sanguíneo renal e no ritmo de filtração glomerular. Entretanto, em situações em que há grande queda do volume de líquido extracelular, o aumento da secreção de catecolaminas, angiotensina II e vasopressina pode causar acentuada vasoconstrição renal, reduzindo drasticamente a filtração glomerular. Nestas situações, a ação de substâncias vasodilatadoras, tais como as prostaglandinas, é fundamental para proteger o fluxo sanguíneo renal e o ritmo de filtração glomerular (para outros detalhes, consultar o Capítulo 50). Deste modo, as prostaglandinas, particularmente a PGE2 e a PGI2, parecem agir no glomérulo contribuindo para a manutenção da filtração glomerular. As prostaglandinas também interferem na capacidade renal de concentrar a urina, devido a seu efeito inibidor da ação do hormônio antidiurético. Dados da literatura sugerem que este efeito ocorra pela ligação da PGE2 ao receptor EP1 e/ou EP3, resultando na ativação da proteinoquinase C (PKC). Também é descrito que a PGE2 se contrapõe ao hormônio antidiurético, resgatando moléculas de aquaporina 2 (AQP2) da membrana luminal do ducto coletor.
SISTEMA CALICREÍNACININAS O sistema calicreínacininas é um complexo de várias enzimas que regulam os níveis de peptídios biologicamente ativos denominados cininas. Seus principais componentes são a enzima calicreína, o substrato cininogênio, os hormônios efetores lisilbradicinina e bradicinina (BK) e as enzimas metabolizadoras cininases, dentre as quais as mais importantes são a cininase I e a cininase II (também denominada de enzima conversora de angiotensina ou ECA) e a endopeptidase neutra (Figura 55.21). A calicreína plasmática parece desempenhar relevante função no processo de ativação da via intrínseca da coagulação, utilizando como substrato um cininogênio de alto peso molecular, do qual libera um nonapeptídio, a BK. A calicreína tissular, por sua vez, age sobre cininogênios de alto ou baixo peso molecular, liberando o decapeptídio lisilbradicinina ou calidina. No rim, a forma tissular da calicreína é encontrada principalmente em células dos túbulos de conexão e do ducto coletor cortical, cuja proximidade anatômica com o aparelho justaglomerular sugere que o sistema calicreínacinina possa estar envolvido na regulação do FPR, do RFG e da liberação de renina.
Figura 55.21 ■ Esquema ilustrativo do sistema calicreínacininas. Explicações no texto.
Praticamente, todos os componentes do sistema calicreínacinina, incluindo o cininogênio de baixo peso molecular, a calicreína, os receptores de cininas e as cininases, foram encontrados nos rins, principalmente, no ducto coletor. Inicialmente, foi atribuída à BK um efeito natriurético e diurético. Posteriormente, foi reconhecido que o mecanismo responsável por estes seus efeitos poderia ser indireto, devido ao aumento do fluxo de sangue da medula renal secundário à ação da BK na vasodilatação medular, com consequente dissipação da hipertonicidade intersticial medular (graças ao mecanismo de lavagem do interstício papilar, descrito no Capítulo 53). Em experimentos mais recentes, com uso de BK exógena, foi confirmado seu aumento no fluxo sanguíneo renal papilar e medular e seu pouco efeito no fluxo sanguíneo total ou cortical ou na taxa de filtração glomerular; nesses experimentos, também foram observados efeitos opostos aos descritos, após inibição do receptor B2 da BK com Hoe 140, reforçando os dados que indicam que a BK causa vasodilatação medular. A origem das cininas encontradas nos vasos renais é dupla: (1) podem difundir do local de sua síntese, nas células do túbulo de conexão e do ducto coletor, para ir modular o tônus vascular de arteríolas glomerulares de glomérulos justamedulares e/ou dos vasos retos descendentes e (2) também podem ser sintetizadas e liberadas do endotélio. Mas, qualquer que seja a origem da BK, seu efeito sobre a vasculatura renal é o mesmo, vasodilatação. Em mamíferos, foram identificados dois receptores da BK, B1R e B2R, ambos acoplados à proteína G. O receptor B2R é constitutivamente expresso na maioria dos tecidos, sendo abundante nas células endoteliais vasculares, onde é
funcionalmente ligado à ativação da óxido nítrico sintase endotelial (eNOS ou NOS3). Em condições normais, a expressão de B1R é mínima; entretanto, é induzida pela inflamação, diabetes, isquemia/reperfusão etc. Em condições fisiológicas, o mRNA do B2R é expresso em todos os segmentos do rim; em contraste, nessas condições, nenhum mRNA de B1R é detectado no rim. A estimulação dos receptores da BK por cininas eleva a concentração intracelular de cálcio ([Ca2+]i), pela ativação do complexo fosfatidilinositol fosfolipase C (PIPLC) de maneira dependente da proteína GQ.
▸ Bradicinina e óxido nítrico A estimulação dos receptores de BK pela cininas eleva a [Ca2+]i e ativa as isoformas de NOS dependentes de Ca (eNOS e nNOS). A BK, por intermédio de seus receptores, também leva à ativação sequencial da PI3quinase, fosforilação da Akt, e fosforilação da eNOS. A expressão da isoforma da NOS independentes de Ca2+ (NOS induzível) também é aumentada pela bradicinina, tanto por meio do B1R como do B2R. Assim, o sistema cininacalicreína parece exercer seus efeitos, pelo menos em parte, pela produção de NO, e desta maneira modular a função renal. 2+
▸ Bradicinina e prostaglandinas A BK pode aumentar a produção de PG por meio de seus receptores, por mecanismos distintos. Ela promove a fosforilação e a translocação da fosfolipase A2 citosólica para a membrana celular, na dependência de cálcio, bem como estimula a fosfolipase A2 independente de cálcio. Estas fosfolipases liberam ácido araquidônico dos fosfolipídios da membrana. A BK também leva à indução da ciclooxigenase2, que converte o ácido araquidônico em PG. As PG, formadas após a estimulação dos receptores de bradicinina, vão agir por meio de seus receptores, mediando alguns dos efeitos das cininas no tônus vascular. Em resumo, o sistema calicreínacinina influencia a hemodinâmica renal por sua ação vasodilatadora, bem como o transporte tubular renal de sódio e água, com consequente ação diurética e natriurétrica. Esses efeitos são, pelo menos em parte, mediados pelo NO (causando vasodilatação) e pelas PG (provocando diurese e natriurese). Sua principal interação com o sistema reninaangiotensina é determinada pela enzima conversora de angiotensina (ECA ou cininase II), que além de liberar angiotensina II, também degrada as cininas (ver Figura 55.21).
Hormônio Antidiurético (ADH) Antonio J. Magaldi A eliminação de urina concentrada resulta da reabsorção de água pelo ducto coletor medular interno e está diretamente relacionada com dois fatos importantes: (1) formação de medula hipertônica em relação ao fluido tubular e (2) ação do ADH aumentando a permeabilidade à água e à ureia nos ductos coletores medulares. A formação da medula hipertônica está diretamente ligada ao mecanismo de contracorrente multiplicador que ocorre nos ramos finos descendente e ascendente e na porção espessa da alça de Henle. Pela diferença de permeabilidade à água e a solutos destes segmentos e pelo efeito unitário da porção espessa, que adiciona NaCl ao interstício (pelo cotransportador ativo secundário Na+:K+: 2Cl–), a medula renal tornase progressivamente hipertônica da região justamedular em direção à papila. Este aumento da osmolalidade papilar favorece a reabsorção de água nos ductos coletores medulares tornados permeáveis à água pelo hormônio antidiurético. Outras informações a respeito do ADH são fornecidas no Capítulo 53 e no Capítulo 66, Glândula Hipófise.
SÍNTESE E LIBERAÇÃO DO ADH O ADH é um peptídio que tem peso molecular 1.084 Da e nove aminoácidos, exibindo a seguinte composição:
O aminoácido arginina, localizado na posição 8, confere ao ADH humano também o nome de arginina vasopressina (ou AVP), em virtude do seu efeito vasopressor. Este nonapeptídio é sintetizado pela maioria dos
mamíferos, menos os da subordem suína; estes produzem a lisilvasopressina, em que a arginina da posição 8 é substituída pela lisina. Este hormônio produz dois efeitos fundamentais: (1) aumento da permeabilidade à água e à ureia nos ductos coletores e (2) aumento da pressão arterial, porém em uma concentração muito maior do que a necessária para produzir a antidiurese. Com a substituição da fenilalanina por isoleucina e da arginina por leucina há produção de ocitocina. Este é um hormônio encontrado em todos os mamíferos, apresentando fraca ação antidiurética, porém potente ação constritora dos músculos lisos da glândula mamária e do útero. O ADH é sintetizado em neurônios dos núcleos supraóptico e paraventricular do hipotálamo e liberado pela neuro hipófise (Figura 55.22). Quando há elevação da osmolalidade plasmática, os osmorreceptores hipotalâmicos sofrem retração celular, aumentando a atividade de canais de cálcio mecanossensíveis, localizados em suas membranas. Os íons cálcio atravessam estas membranas causando significante despolarização, com consequente aumento da frequência de seus potenciais de ação. Essas informações são transmitidas aos neurônios dos núcleos supraóptico e paraventricular do hipotálamo. O mecanismo de biossíntese do hormônio nos neurônios dos núcleos hipotalâmicos é complexo. Iniciase no núcleo da célula neuronal com a expressão da informação genética e a ativação do processo de transcrição gênica. O gene para o ADH contém aproximadamente 2.000 pares de base, encontrase no cromossomo 20 e contém três éxons, A, B e C, separados por dois segmentos intermediários, íntrons 1 e 2 (Figura 55.23). O RNA mensageiro, agindo sobre os ribossomos nas paredes do retículo endoplasmático, serve como modelo padrão para a síntese de uma macromolécula precursora chamada de prépróhormônio ou própressofisina (com peso molecular cerca de 21.000 Da). Cada éxon codifica um dos três domínios funcionais do prépróhormônio que contém a sequência do peptídio sinalizador com um NH2 terminal (a do ADH), a da neurofisina (que é a proteína transportadora do ADH), e a de um glicopeptídio (copeptina) com um terminal COOH.
Figura 55.22 ■ Esquema da neurohipófise e das suas relações anatômicas. nh, neurohipófise; ah, adenohipófise; ds, diafragma da sela; qo, quiasma óptico; nso, núcleo supraóptico; npv, núcleo paraventricular; or, osmorreceptores; br, barorreceptores; nts, núcleo do trato solitário; ap, área postrema. (Adaptada de Robertson e Berl, 1996.)
Figura 55.23 ■ Estrutura do próhormônio do ADH e do gene que o codifica. Descrição da figura no texto. c, local de glicosilação. (Adaptada de Robertson e Berl, 1996.)
Com a perda, por clivagem, da proteína sinalizadora, o prépróhormônio transformase no próhormônio. Este, no sistema de Golgi, é empacotado sob a forma de grânulos que são transportados pelos axônios neuronais até suas terminações nervosas na neurohipófise. Durante este transporte (por fluxo axoplasmático), que leva em média de 12 a 24 h, ocorre o processo de maturação no qual a molécula precursora tornase alvo de modificações enzimáticas, resultando na formação do ADH, da neurofisina e da copeptina. Os grânulos secretórios acumulados nas terminações neuronais hipofisárias são liberados na circulação por exocitose mediada por Ca2+, estimulada pelo aumento da frequência de potenciais de ação (defagrados pela estimulação dos neurônios dos núcleos hipotalâmicos supraóptico e paraventricular) que se propagam ao longo dos axônios, causando a despolarização da membrana, influxo de cálcio, fusão dos grânulos secretórios com a membrana e extrusão do conteúdo. O ADH secretado é então rapidamente captado pela rica rede capilar do sistema portahipotálamohipofisário, de onde alcança a circulação geral.
REGULAÇÃO DA SECREÇÃO DO ADH
▸ Fator osmótico A intensidade da secreção do ADH oscila sob a influência de vários fatores fisiológicos e fisiopatológicos. Entre os vários fatores conhecidos (Quadro 55.2), acreditase que, em condições fisiológicas, a variação da osmolalidade plasmática seja o mais importante. Juntamente com a secreção do ADH, a alteração da osmolalidade plasmática também provoca o aparecimento da sensação de sede. A variação da osmolalidade plasmática é percebida por neurônios especializados, chamados de osmorreceptores, localizados na região hipotalâmica próxima aos núcleos supraóptico e paraventricular, a qual não sofre restrições da barreira hematencefálica. Quando a osmolalidade plasmática, ou mais precisamente a quantidade de sódio plasmático, se eleva acima de um setpoint, a secreção de ADH ocorre em proporção a este aumento. E, inversamente, quando a osmolalidade plasmática cai abaixo deste nível de gatilho, a secreção hormonal se interrompe. O limiar osmótico está em torno de 285 mOsm/kg e variações tão pequenas quanto 1% desse valor são capazes de produzir secreção de ADH de, em média, 1 pg/mℓ, quantidade essa suficiente para alterar a concentração e o volume da urina (Figura 55.24). Esta extraordinária sensibilidade do osmorreceptor lhe confere o principal papel na mediação da resposta antidiurética decorrente da alteração da osmolalidade plasmática. Curiosamente, o limiar osmótico pode variar ligeiramente de pessoa para pessoa, mas em um mesmo indivíduo permanece praticamente constante durante toda a vida e parece ser determinado geneticamente.
Quadro 55.2 ■ Condições que influenciam a secreção de ADH. Alterações osmóticas Osmolalidade plasmática Alterações do balanço hídrico Infusão de solução hipertônica ou hipotônica
Hiperglicemia (por deficiência de insulina) Modificações hemodinâmicas Volume sanguíneo (total ou efetivo) Postura Hemorragia Deficiência ou excesso de aldosterona Gastrenterite Insuficiência cardíaca congestiva Cirrose Síndrome nefrótica Respiração com pressão positiva Diuréticos Diurese osmótica (no diabetes melito não controlado) Pressão arterial Hipotensão ortostática Reação vagovagal Substâncias (isoproterenol, norepinefrina, nicotina, nitroprussiato de sódio, trimetafam, histamina, bradicinina, morfina) Situações eméticas (que provocam vômitos) Náuseas Substâncias (apomorfina, morfina, nicotina) Cinetose (distúrbio em trajetos por avião, navio ou automóvel) Cetoacidose Hormônios (colecistocininas) Situações glicopênicas Hipoglicemia (por insulina ou 2deoxiglicose) Outras condições Estresse Temperatura Angiotensina
pCO2, pO2, pH Medicamentos (ver Quadro 55.3) A sensibilidade do osmorreceptor a variações de osmolalidade não é igual para todos os solutos plasmáticos. A velocidade com que o soluto é capaz de penetrar na célula osmorreceptora é o fator determinante para que o estímulo seja iniciado. Assim, substâncias que penetram rapidamente nessa célula não são capazes de criar um gradiente osmótico, entre ela e o plasma que a circunda, suficientemente duradouro para permitir o influxo de água no neurônio, causador do estiramento da sua membrana e iniciador do estímulo elétrico. O Na+, juntamente com o Cl– e HCO3–, solutos que contribuem com mais de 95% da pressão osmótica do plasma, penetram na célula mais lentamente do que os solutos do tipo de certos açúcares, como o manitol e a sacarose; por isso, esses íons são mais eficientes em relação à capacidade de estimular a secreção de ADH.
Figura 55.24 ■ Comparação da sensibilidade dos osmo e barorreceptores. A secreção de ADH é mais sensível às mudanças da osmolalidade plasmática do que às mudanças da pressão ou do volume de sangue. (Adaptada de Robertson e Berl, 1996.)
▸ Fatores não osmóticos O segundo importante estímulo para a liberação de ADH é a alteração do volume circulante ou da pressão arterial. Estas influências hemodinâmicas na secreção do ADH são mediadas, pelo menos em parte, por barorreceptores. Estes são classificados em dois tipos. O primeiro inclui os barorreceptores cardiopulmonares localizados no sistema circulatório de baixa pressão, ou particularmente, nos vasos pulmonares e nas paredes dos átrios esquerdo e direito. O segundo tipo está localizado no sistema arterial de alta pressão (barorreceptores sinoaórticos) e também fora da caixa torácica, no seio carotídeo e no aparelho justaglomerular renal. Projeções neuronais aferentes partem destes dois grupos de barorreceptores, via nervos vago e glossofaríngeo, alcançando o SNC, terminando nos neurônios do hipotálamo. A redução do volume plasmático ou da pressão arterial promove liberação do ADH; ao contrário, o aumento do volume plasmático ou da pressão arterial suprime a secreção de ADH. A Figura 55.24 indica que uma redução de 5% a 10% da pressão arterial média produz pequena variação no nível plasmático de ADH; mas, uma queda de 20% a 30% na pressão arterial provoca uma liberação de ADH muitas vezes maior do que a necessária para produzir uma antidiurese máxima. Portanto, comparados com os omorreceptores, os barorreceptores são menos sensíveis; isto é, há necessidade de uma variação em torno de 20% a 30% da pressão arterial para desencadear uma liberação efetiva de ADH, enquanto uma alteração de 1% a 2% da osmolalidade plasmática produz liberação efetiva do hormônio (ver Figura 55.24). A secreção de ADH pode ser
alterada por vários outros fatores (ver Quadro 55.2) e também sofrer os efeitos farmacológicos de vários medicamentos e hormônios (Quadro 55.3). A quantidade de ADH que circula normalmente no plasma varia de 1 a 12 pmol/ℓ, sendo que a máxima capacidade de concentração urinária ocorre com a maior concentração plasmática de ADH.
Quadro 55.3 ■ Fármacos ou hormônios que alteram a secreção de ADH. Estimuladores
Inibidores
Acetilcolina
Norepinefrina
Nicotina
Flufenazina
Apomorfina
Haloperidol
Morfina (em dose alta)
Prometazina
Epinefrina
Oxilorfan, butofarnol
Isoproterenol
Agonistas (kappa) do ópio
Bradicinina
Morfina (em dose baixa)
Prostaglandina
Álcool
βEndorfina
Glicocorticoide
Ciclofosfamida
Fenitoína?
Vincristina
Clonidina
Insulina
Muscinol
2deoxiglicose
Fenciclidina
Histamina Angiotensina Clorpropamida? Clofibrato? Fator de liberação da corticotrofina Naloxona Colecistocinina
AÇÃO HORMONAL
▸ Receptores O ADH exerce a sua função por meio de receptores seletivos localizados na membrana celular. O hormônio, substância que evoca a resposta celular, é chamado de primeiro mensageiro. A resposta celular induzida pelo hormônio não se dá diretamente, mas mediada por um segundo mensageiro intracelular. Este segundo mensageiro é produzido pela interação do hormônio com o seu receptor celular específico e é o pontochave na expressão da ativação hormonal. Os dois sistemas de segundos mensageiros mais importantes conhecidos na fisiologia dos hormônios são o sistema do AMP cíclico e o
sistema relacionado com a concentração de cálcio no citosol [Ca2+]. O ADH utiliza estes dois sistemas para exercer os seus efeitos. Já foram identificados quatro receptores diferentes para o ADH. Inicialmente, foram designados como receptores tipos V1 e V2. Posteriormente, foram descobertos subtipos do receptor V1 que foram designados como V1 (ou V1a) e V3 (ou V1b). O V1 é descrito no fígado, nas células lisas vasculares e na maioria dos tecidos periféricos; no entanto, em humanos, é encontrado somente na artéria mesentérica. O receptor V2 está presente no rim e nas plaquetas. O receptor V3 está presente em hipófise, rim, coração, timo, pulmão, baço, útero e glândulas mamárias. Recentemente, foi descrito um quarto receptor, V4, presente no coração, cérebro e músculos esqueléticos. Os receptores V1, V3 e V4estão, primariamente, ligados às enzimas fosfolipase C (PLC) e fosfolipase A2 (PLA2), e têm como segundo mensageiro o Ca2+, enquanto o receptor V2 está ligado à enzima adenilciclase e tem como segundo mensageiro o cAMP. Apesar de o rim possuir três tipos de receptores, somente o receptor V2 responde ao ADH.
Receptor V2 O receptor V2 está localizado principalmente na membrana basolateral das células principais dos ductos coletores, corticais e medulares, embora também exista na membrana luminal e na porção espessa ascendente da alça de Henle (Figura 55.25). Este receptor já foi totalmente clonado e sequenciado no rato e em humanos, mostrando possuir 4 domínios extramembranais, 7 domínios intramembranais e 4 domínios intracelulares. Estudos utilizando a técnica de biologia molecular mostraram que sua 3a alça intracelular é a responsável pela estimulação da proteína G, após o ADH ter ocupado o seu locus de ação situado concomitantemente na 2a e 3a alça extramembranal do receptor. A sua conformação na membrana celular não é linear, sendo que a conexão do ADH no seu locus induz uma alteração alostérica na sua estrutura, tornandoo capaz de interagir com a proteína G, que está aposta no lado interno da membrana celular. No entanto, a natureza das mudanças dinâmicas nas proteínas do receptor, que produzem a ativação do complexo G, não é ainda totalmente conhecida. O número de receptores V2 inseridos na membrana ou sua afinidade ao hormônio são regulados pela presença do próprio ADH. É conhecido que ratos da linhagem Brattleboro (cepa de animais que não produzem ADH por um defeito hereditário) apresentam número de receptores e expressão de mRNA diminuídos em 30% quando comparados com ratos normais; entretanto, depois da reposição hormonal, a expressão de mRNA volta ao normal. Após a ligação do ADH ao receptor, este se interioriza por um processo de endocitose, protegendose de uma estimulação contínua. Depois de completar o ciclo de estimulação, o receptor novamente se exterioriza, ficando pronto para um novo estímulo. O V2 é também sensível a substâncias análogas ao ADH, tanto agonistas, quanto antagonistas. Das agonistas, a mais conhecida é a dDAVP, largamente utilizada no uso terapêutico. Das antagonistas ou antirreceptores V2, classe de substâncias não peptídicas conhecidas como vaptans, existem várias em estudos, e algumas já estão disponíveis para uso clínico. Constituem um instrumento poderoso na terapêutica da hiponatremia decorrente da secreção inapropriada do ADH, secundária a inúmeras patologias. O receptor V2 possui também a capacidade de estimular fosfolipases de membrana que estimulam a síntese de prostaglandina E2 (PGE2) a partir do ácido araquidônico. Nas células principais do ducto coletor medular interno, a PGE2 é capaz de bloquear a ação da proteína G, estabelecendo um sistema de autobloqueio, ou feedback negativo do funcionamento do receptor, formando um mecanismo de controle da ação do ADH. Alterações na sequência dos aminoácidos do receptor V2 produzidas por mutações podem determinar uma não resposta do receptor ao ADH, desencadeando um estado poliúrico (com muita urina).
Figura 55.25 ■ Regulação da expressão celular de aquaporina 2 e da sua inserção na membrana luminal da célula principal do ducto coletor da medula interna. A sequência da cascata de ativação do ADH está descrita no texto. As proteínas dineína e dinactina fazem o transporte das vesículas até a membrana luminal. Acreditase que a PKA também participe na fosforilização dos fatores de transcrição CREBP, responsáveis pela síntese de aquaporina 2 no núcleo. Gprot., proteína G; Gs, proteína G estimuladora; Gi, proteína G inibidora; AC, adenililciclase; Ro, outros receptores; PKA, proteinoquinase A; CREB, cAMPresponse element binding protein; CREBP, CREB fosforilado; AP1, fator transcripcional; VAMP2 e NSF, receptores específicos da vesícula; sintaxina4, receptor da membrana. (Adaptada de Nielsen et al., 1999.)
Proteína G reguladora Esta unidade é um complexo de proteínas derivadas da guanina, que apresentam subunidades estimuladoras, chamadas de Gs, e subunidades inibidoras, chamadas de Gi. Este complexo é um heterotrímero, ou seja, é composto por três outras proteínas, α, β e γ, que contém, ligado à unidade α, um GDP. Após a ligação do hormônio ao receptor, o heterotrímero entra em contato com a 3a alça do receptor, substituindo o GDP por um GTP. Em seguida, a proteína Gs se dissocia na subunidade α, e no heterodímero βγ. A subunidade α vai então estimular outra estrutura intramembranosa, a enzima adenilciclase. Em seguida, a subunidade α hidrolisa o GTP a GDP e se reassocia ao heterodímero βγ, tornando novamente a ser um heterotrímero pronto para um novo ciclo de ativação. Já foram descritas 17 famílias de proteínas G, sendo que o receptor V2 utiliza as subfamílias Gs (estimuladora) e Gi (inibidora), e os receptores V1 utilizam as subfamílias Gq. Em mamíferos, a complexidade das proteínas G é grande, e foram identificados pela técnica de PCR pelo menos 15 tipos diferentes de genes responsáveis pela síntese da subunidade α. Entre as subunidades β e γ, também existem diversidades, pois já foram descritos 4 cDNA para a subunidade β e 5 para a subunidade γ.
Adenililciclase A enzima adenililciclase (AC) faz parte de uma superfamília de pelo menos 10 isoformas. É uma estrutura extremamente complexa que compõe a cascata de ação do ADH (ver Figura 55.25). Esta unidade catalítica está inserida na membrana celular e possui 6 domínios extracelulares, 12 intramembranosos (sendo 2 sets de 6 regiões) e 7 citosólicos. Cinco isoformas de AC (AC4 a AC9) são expressas no rim de mamífero adulto e destas, a AC6 é a predominante. Em ratos Brattleboro (que não exibem ação do ADH), a expressão de mRNA para estas AC está diminuída, sugerindo que a
presença do ADH é necessária para manter um nível basal desta enzima. Na sequência das reações da cascata do ADH, a AC é responsável pela transformação do ATP em cAMP, que é considerado o segundo mensageiro. Ela é estimulada pela subunidade αGTP da proteína G (nos seus domínios intracelulares chamados de regiões C1a e C2a), pela hidrólise da GsαGTP a GsαGDP. A AC pode ser inibida pelas unidades Gi (inibidoras) da proteína G, bem como também ser estimulada pelo forskolin, que é um composto diterpênico de origem vegetal.
AMP cíclico (3’,5’cAMP) A geração de cAMP é extremamente importante não só no sistema do ADH como também para um largo número de hormônios (glucagon, ACTH, TSH etc.). Este segundo mensageiro tem sua quantidade intracelular regulada não só pela sua síntese, mas também pela sua degradação pela enzima fosfodiesterase (ver Figura 55.25). Esta enzima degrada o 3’,5’cAMP em 5’cAMP que é um composto inativo (assim como degrada também o cGMP). A fosfodiesterase pertence a uma superfamília de enzimas, isozimas e suas isoformas que compreendem mais de 20 compostos distintos e estão divididos em 5 famílias ou tipos (de PDEI a PDEV) codificadas por um ou mais genes. Inibidores da PDE são substâncias largamente utilizadas na pesquisa básica e na terapêutica clínica, pois são substâncias que potenciam o efeito do cAMP. Os inibidores mais conhecidos são as xantinas (isobutilmetilxantina ou IBMX, teofilina, cafeína), a papaverina, a trifluoperazina e, mais recentemente, a sildenafila, usada em urologia. Acreditase que o cAMP também seja capaz de diminuir a síntese de PGE2, participando do sistema de feedback negativo ADHPGE2.
Proteinoquinase A (PKA) Conhecida como PKAdependente do cAMP, foi purificada e clonada de vários diferentes tecidos. Consiste em um tetrâmero inativo, composto por duas unidades reguladoras R e por duas unidades catalíticas C (R2C2). O tetrâmero R2C2 é dissociado e ativado pelo cAMP: R2C2 + 4cAMP → R24cAMP + C2. Pelo menos três isoformas da unidade C já foram identificadas, Cα, Cβ e Cγ. A unidade reguladora R tem dois tipos, I e II, cada um com subtipos α e β.
Aquaporinas (AQP) Estudos biofísicos iniciais efetuados na presença de ADH, em membranas de eritrócitos, vesículas de borda em escova de túbulos proximais, ductos coletores e bexiga de sapo, evidenciaram que a rápida passagem de água por estas membranas é mediada por proteínas específicas. Posteriormente, estas proteínas, ou canais de água, foram identificados em quase todos os tecidos do organismo, e foi verificado que formam um poro estreito que permite fluxo contínuo de água em fila única ou singlefile. Estes canais foram denominados genericamente de aquaporinas (AQP). Em mamíferos, até o momento, foram identificados 13 tipos de AQP. A primeira, isolada e clonada em oócito de Xenopus, foi a dos eritrócitos (CHIP 28 ou AQP1). A AQP 1, por existir em grande quantidade na membrana dessas células, é a mais estudada e usada como base para o estudo das outras AQP. Sua estrutura é complexa, contendo três domínios extracelulares (alças A, C e E), 6 intramembranosos e 2 citoplasmáticos (alças B e D) juntamente com as porções terminais NH2 e COOH (Figura 55.26). As alças B e E têm a sequência de aminoácidos asparaginaprolinaalanina (denominada motivo NPA), ambas inseridas na membrana (ver Figura 55.26). A disposição espacial da AQP na membrana não é linear; ela se dispõe em forma de ampulheta, sofrendo uma rotação que permite que os dois grupos NPA se acoplem formando um poro, com o diâmetro de aproximadamente 6Å, por onde a água passa. Uma unidade de AQP se associa a outras três, tornandose um tetrâmero que é o complexo que transporta a água. A AQP2 é o canal de água sensível à ação do ADH. Estudos utilizando a técnica de imunohistoquímica em ducto coletor da medula interna (DCMI) localizaram AQP2 na membrana luminal e em vesículas citoplasmáticas, mostrando que o ADH aumenta a permeabilidade à água, inserindo estas vesículas na membrana e expondo os canais de água por um processo de exocitose. Estas vesículas têm receptores específicos (VAMP2, sinaptotagminas6, NSF) que se ligam na membrana em outros receptores (sintaxinas e SNAP23), proporcionando a exocitose (ver Figura 55.25). O processo de translocação destas vesículas (trafficking) no citoplasma é complexo e feito por meio dos microtúbulos e microfilamentos, utilizando proteínas específicas como as dinactinas e as dineínas (proteínas motoras). Todo este processo é elicitado pela PKA, fosforilando a AQP2 inserida na vesícula. Após expor os canais de água na membrana celular, as vesículas sofrem endocitose, se fechando e voltando para o citoplasma. Acreditase que a prostaglandina E2 também tome parte na recuperação das AQP da membrana. No ciclo que envolve desde a síntese de AQP2, sua localização na vesícula, inserção da vesícula na membrana luminal e a recuperação da AQP2 por endocitose, cerca de 3% das AQP2 são secretadas para o lúmen tubular e excretadas na urina. Sua dosagem na urina pode ser utilizada no diagnóstico diferencial de patologias do metabolismo de água.
Existem dois modos de regulação da permeabilidade do DCMI. A regulação rápida (ou shortterm) ocorre de 1 a 5 min após a elevação dos níveis de ADH no plasma e corresponde ao processo descrito anteriormente. No entanto, há uma regulação lenta (ou longterm) que envolve a síntese da AQP2 e a formação das vesículas para manter um nível basal intracelular acessível no momento do estímulo pelo ADH. A síntese de AQP2 a partir do seu gene é estimulada pela presença de ADH, por meio da geração de cAMP e estímulo da PKA, que, por sua vez, provavelmente, fosforiliza a AQP2. O cAMP estaria também diretamente envolvido por intermédio do CREB (cAMPresponse element binding protein), de sua fosforilação (CREBP) e de um fator transcricional AP1, situado na região 5’não traduzida do gene da AQP2. Quando o nível de ADH na circulação é baixo, a expressão de AQP2 está diminuída.
Figura 55.26 ■ Modelo ampulheta da aquaporina. Representação esquemática da organização estrutural do monômero na membrana e a oligomerização de quatro monômeros formando o tetrâmero. As setas mostram o movimento de entrelaçamento das alças B e E, formando o poro de água, constituído por dois motivos NPA. P, prolina; A, alanina; N, asparagina; C, cisteína; Ex, extracelular; In, intracelular. (Adaptada de Jung et al., 1994.)
Podem ocorrer mutações na sequência das proteínas que compõem a AQP2, determinando um defeito do transporte de água, ocasionando distúrbios no metabolismo hídrico. A expressão das AQP1, 3, 4 e 7 já foi detectada no rim. Nas células principais do DCMI, as AQP3 e 4 estão localizadas na membrana basolateral. Estas aquaporinas tomam parte ativa no processo de reabsorção de água, pois, após entrar na célula pela AQP2 situada na membrana luminal, a água sai da célula passando para o interstício pelas AQP3 e 4. A AQP3 também pode ser regulada pelo ADH; isto é, este hormônio pode aumentar a expressão de AQP3 na membrana basolateral, e mudanças na sua expressão podem também causar alteração no mecanismo de concentração urinária. Não existe relato de que a AQP4 seja regulada pelo ADH. Algumas patologias do metabolismo de água são consequência de alterações destes canais. Diminuição da expressão de AQP1 (localizada no proximal, mas principalmente nas células da porção fina descendente da alça de Henle) foi detectada recentemente, explicando defeitos na formação da medula hipertônica que, consequentemente, causa alterações no mecanismo de concentração urinária. No Capítulo 53 há mais informações e figuras a respeito do ADH.
Transporte de ureia (receptores UT) Outra função importante exercida pelo receptor V2 é a sua ação no transporte de ureia. A ureia é um elemento essencial na formação da hipertonicidade medular, que é um dos dois fatores fundamentais para a reabsorção de água no DCMI. Como descrito no Capítulo 53, a ureia que é reabsorvida no DCMI vai para o interstício. Parte da ureia intersticial é retirada pelos vasos retos e pode penetrar nas hemácias, e a que fica no plasma pode ser novamente filtrada, voltando para os túbulos. A outra parte da ureia intersticial passa diretamente para o lúmen das alças de Henle descendente e ascendente, aumentando a sua concentração no lúmen tubular. Este processo é chamado de ciclo da ureia (apresentado em detalhes no Capítulo 52, Excreção Renal de Solutos). Dois tipos de transportadores de ureia já foram clonados e sequenciados: UTA e UTB. O UTA apresenta várias isoformas, de 1 a 4, sendo só o UTA1 localizado no DCMI e regulado pelo ADH; o UTB encontrase na hemácia e é importante na recirculação da ureia. A permeabilidade do DCMI à ureia é regulada pelo ADH por meio do receptor V2 que, ao formar PKA, estimula os transportadores de ureia UTA1 localizados na membrana apical da célula tubular, determinando a reabsorção tubular da ureia por transporte facilitado. A ureia é o produto final do metabolismo das proteínas, e o seu excesso deve ser eliminado pelo rim. Há um processo de secreção tubular de ureia que se dá principalmente no terço final do DCMI, e não é dependente da ação do ADH. Envolve um mecanismo de contratransporte ativo secundário acoplado ao sódio, localizado na membrana apical das células deste segmento, que secreta ureia para o lúmen tubular e reabsorve sódio do lúmen tubular para a célula.
Receptor V1 Pelo fato de o receptor V2 ser o predominante no rim, acreditavase que o receptor V1 não participasse no transporte de água. No entanto, trabalhos recentes mostram que o receptor V1b (ou V3) pode ter participação neste transporte. O receptor V1b, da mesma maneira que o V2, também estimula uma proteína G, porém da subfamília Gq11 (Figura 55.27). Na membrana celular, a proteína G fosforiliza a fosfolipase Cβ (PLCβ), que por sua vez estimula duas outras vias: ■ Hidrólise do fosfatidilinositol, formando o trifosfato de inositol (IP3), que libera Ca2+ dos estoques intracelulares. O Ca2+ se liga a proteínas (calmodulina e outras) que vão participar da formação dos microtúbulos e microfilamentos e ■ Estimulação do diacilglicerol (DAG), que é um potente ativador da proteinoquinase C (PKC). A PKC é um inibidor da adenilciclase, e pode regular a geração de cAMP. Outra ação do receptor V1 via PKC é estimular a fosfolipase A2 (PLA2) que, mobilizando o ácido araquidônico da membrana celular, leva à síntese de PGE2, que, como citado anteriormente, também é capaz de inibir a adenilciclase. Recentemente foi descrita uma via alternativa para a estimulação da inserção de AQP2 na membrana luminal do DCMI utilizando, não a via clássica do cAMP, mas uma via que utiliza o cGMP. A Larginina (que gera óxido nítrico), o peptídio atrial natriurético e o nitroprussiato de sódio estimulariam a enzima guanilatociclase, que transformaria o GTP (trifosfato
de guanosina) em cGMP. Este estimularia uma PKG que, por vias ainda não bem definidas, estimularia a PKA ou fosforilaria a serina 256 da AQP2, promovendo a sua inserção na membrana luminal sem a ação do ADH.
Figura 55.27 ■ Esquema indicando que a ação renal do ADH via receptor V1 se faz pela ativação da proteinoquinase C (PKC) pelo diacilglicerol (DAG). Descrição no texto. (Adaptada de Bichet, 1998.)
▸ Ação do ADH em outras células renais O ADH diminui o coeficiente de ultrafiltração do capilar glomerular (Kf), porém, sem alteração significante da filtração glomerular. Assim, o efeito do ADH na microcirculação glomerular é complexo e não totalmente entendido até o momento. Em cultura de células mesangiais, o ADH determina contração e rearranjamento de estruturas do microesqueleto, bem como estimula o crescimento celular. Desde a década de 1980, é conhecido que o ADH, por meio do receptor V2, estimula o cotransportador Na+:K+:2Cl– da membrana luminal da porção espessa ascendente da alça de Henle cortical e medular, causador do efeito unitário do mecanismo de contracorrente, responsável pela concentração do interstício medular (descrito no Capítulo 53), sendo provável que o cAMP gerado estimule a Na+/K+ATPase da membrana basolateral. Recentemente foi descrita, por estudos com imunoeletromicroscopia, a possibilidade de o ADH aumentar a atividade do cotransportador Na+:K+:2Cl–, regulando o trafficking deste cotransportador até a membrana luminal. A PGE2 estaria também envolvida, pois se ligando ao receptor EP3, inibiria a expressão desse cotransportador, por inibir a adenilciclase (tendo sido verificado que a indometacina e o diclofenaco, inibidores da PGE2, aumentam a expressão do cotransportador Na+:K+:2Cl–). Também foi demonstrado que o ADH aumenta a expressão do mRNA do transportador de glicose GLUT4, aumentando o aporte de glicose para a geração de ATP intracelular. Além destas, foram descritas outras ações da ADH neste segmento, como a participação na acidificação luminal por atuar no trocador Na+/H+ apical, como também no aumento da reabsorção dos cátions bivalentes cálcio e magnésio.
Ação extrarrenal do ADH É conhecido que o ADH também tem ação em vários outros segmentos do organismo. Participa na regulação da pressão arterial, na hemostasia, na função hipofisária, na comunicação célulacélula no SNC, na regulação da sua própria secreção no hipotálamo, no comportamento e na memória. Neste livro, sua ação extrarrenal está descrita nos capítulos correspondentes a esses sistemas fisiológicos.
▸ Regulação das aquaporinas no rim A reabsorção de água no ducto coletor pode se alterar rapidamente, em questão de minutos, em resposta ao nível de ADH circulante. A ativação aguda dos receptores V2 induz alterações nas células principais do ducto coletor, que fazem
com que a AQP2 estocada em vesículas intracelulares se desloque para a membrana apical. Quando os níveis plasmáticos de ADH diminuem, a AQP2, por um processo de endocitose, retorna ao citoplasma. Além desta regulação aguda da permeabilidade à água no ducto coletor, existem alterações a longo prazo na regulação da AQP2 e de outras aquaporinas renais em diversas patologias. A Figura 55.28 ilustra a expressão de AQP2 em várias situações fisiopatológicas e na gravidez; no boxe a seguir são dadas informações a esse respeito.
Figura 55.28 ■ Alterações na expressão de aquaporina 2 observadas em diferentes distúrbios do metabolismo de água. As patologias poliúricas podem ser adquiridas ou hereditárias e apresentam vários graus de diurese. A insuficiência cardíaca e a gravidez são associadas ao aumento de expressão de aquaporina 2 e excessiva retenção hídrica. DI central, diabetes insípido central; DI +/+ rato, diabetes insípido em rato Brattleboro; hipoK, hipopotassemia; hiperCa, hipercalcemia; IRA, insuficiência renal aguda; IRC, insuficiência renal crônica. (Adaptada de Nielsen et al., 1999.)
Alterações a longo prazo na regulação das AQP Diabetes insípido central Os ratos da linhagem Brattleboro apresentam defeito no gene da neurofisina, não produzindo ADH e, consequentemente, têm intensa poliúria (muita urina). A expressão de AQP2 nestes animais está bastante reduzida. Administração de ADH a estes ratos aumenta a expressão de AQP2 e corrige o defeito de baixa concentração urinária. É interessante observar que pacientes com diabetes insípido central apresentam baixa perda urinária de AQP2, e a injeção de ADH aumenta a excreção urinária de AQP2, porém sem atingir os níveis observados em indivíduos normais, sugerindo que nesses pacientes há redução dos estoques celulares de AQP2. Diabetes insípido nefrogênico A poliúria consequente à falta de resposta do túbulo coletor ao ADH ocorre em diversas situações clínicas. Camundongos com diabetes insípido nefrogênico hereditário apresentam defeito no gene para fosfodiesterase, resultando em atividade exagerada desta enzima que metaboliza o AMP cíclico. Consequentemente, os níveis citoplasmáticos de AMP cíclico diminuem, levando à redução dos níveis de AQP2 a um quarto do observado em cepas normais, o que explica a diurese excessiva destes animais. O diabetes insípido nefrogênico ocorre com frequência em pacientes psiquiátricos tratados com lítio, que chegam a apresentar diurese de 8 a 10 ℓ por dia. Tão intensa poliúria é explicada pela queda, de até 95%, dos níveis de AQP2 na célula do ducto coletor observada em animais tratados com lítio. Hipopotassemia e hipercalcemia Distúrbios metabólicos, como hipopotassemia e hipercalcemia, também são acompanhados por aumento da diurese; porém, esta não é tão intensa quanto a causada pelo lítio, mas é igualmente devida a
menor expressão de AQP2. Desnutrição proteica Na desnutrição proteica ocorre menor reabsorção de água no ducto coletor. Estudos com animais submetidos a dieta pobre em proteínas mostraram menor expressão de AQP2 nesse segmento tubular. Obstrução urinária É conhecido que pacientes com obstrução urinária (na maioria das vezes, idosos com hipertrofia prostática), após a desobstrução da via urinária apresentam poliúria que, de início, é devida à diurese osmótica. Entretanto, a persistência da poliúria por vários dias nesses pacientes é explicada pela menor expressão de AQP2, observada em modelos animais de obstrução ureteral. Insuficiência renal aguda pósisquêmica Na insuficiência renal aguda pósisquêmica (induzida no rato pela ligadura do pedículo renal esquerdo por 45 min e nefrectomia contralateral), a diurese aumenta nas primeiras 18 h após a isquemia e se mantém elevada por 72 h. O mecanismo responsável por tal diurese foi estudado recentemente em experimentos que demonstram que a AQP2 renal está diminuída, cerca de 45%, nas 18 h após a isquemia, retornando ao normal após 72 h. Achado semelhante foi verificado em modelos de insuficiência renal crônica por ablação renal. Retenção de água Em situações clínicas em que a volemia arterial efetiva encontrase diminuída (como na insuficiência cardíaca e na cirrose hepática), ocorre maior liberação de ADH devida à ativação de receptores de volume. Modelos experimentais de insuficiência cardíaca congestiva em ratos (induzida por ligadura das artérias coronárias), mostraram aumento tanto do mRNA quanto da proteína da AQP2. O tratamento desses animais com um antagonista de receptor V2 por 24 h reverteu o aumento dos níveis de AQP2 e aumentou a diurese. Em animais com cirrose hepática e ascite (induzidas por tetracloreto de carbono), também foi observado aumento do nível de AQP2, que diminui com tratamento por antagonista do receptor V2. Gravidez Na gravidez ocorre retenção de água, principalmente no terceiro trimestre. Estudos com ratas grávidas mostraram que a expressão de AQP2 está aumentada, o que explica a maior retenção de água e a hiponatremia observada nesta condição. O bloqueio do receptor V2 por antagonista específico suprime o aumento da AQP2. Síndrome nefrótica Na síndrome nefrótica induzida pela adriamicina ou puromicina, ocorrem retenção de água e ascite. Apesar de o ADH plasmático estar aumentado nestes modelos, os níveis de AQP2 estão diminuídos. Tal achado sugere um mecanismo de escape à ação do ADH e que outros sinais, além deste hormônio, podem alterar a expressão de AQP2. Secreção inapropriada (elevada) de ADH Em modelo animal para mimetizar a secreção inapropriada de ADH (produzido pela infusão contínua de ADH e sobrecarga de água), também foi verificada diminuição de AQP2, evidenciando o fenômeno de escape à ação do ADH descrito anteriormente. Outras aquaporinas Também têm sido descritas alterações na expressão de AQP3 e AQP4, aquaporinas que se situam na membrana basolateral do ducto coletor e que são tidas como não sensíveis ao ADH. Recentemente, foi verificado que a expressão de AQP3 varia com a atividade do ADH; entretanto, nem sempre essa variação se correlaciona com as alterações verificadas com a AQP2, sugerindo que o controle hormonal destas duas aquaporinas seja diferente. Por sua vez, a AQP4 não se altera em muitas destas condições. Diminuição na expressão da AQP1, aquaporina encontrada no túbulo proximal e na porção fina descendente da alça de Henle, tem sido descrita em situações em que ocorre defeito na concentração urinária, tais como a obstrução ureteral, insuficiência renal crônica e alguns modelos de síndrome nefrótica.
As variações na expressão das aquaporinas e seus mediadores ainda não estão bem esclarecidas, sendo necessários mais estudos para a melhor compreensão da regulação do balanço de água.
Hormônio Paratireoidiano (PTH) Frida Zaladek Gil O hormônio paratireoidiano (PTH) é um polipeptídio constituído de 84 aminoácidos, secretado pela glândula paratireoide e essencial para a homeostase do Ca2+. Ele é sintetizado como prépróPTH, que é modificado para próPTH no retículo endoplasmático, e a seguir no aparelho de Golgi para PTH; permanece neste local sob forma de vesículas até que um estímulo, em geral queda no cálcio ionizado do plasma circulante, faça com que haja sua liberação. Os alvos clássicos do PTH são os ossos e o rim. Por meio dos seus efeitos na enzima 1α hidroxilase renal, o PTH estimula a síntese da forma ativa da vitamina D – a 1,25(OH)2D3 – que age aumentando a absorção do Ca2+ no rim e no duodeno. No rim, o PTH estimula a reabsorção de cálcio pelo ramo ascendente da alça de Henle e início de túbulo distal. O PTH e seus análogos, PTHrP (peptídios PTHrelacionados) interagem com um receptor de membrana, e desencadeiam tanto a estimulação da adenilciclase e produção de cAMP, como a hidrólise do 4,5bifosfato de fosfatidilinositol, dependente de fosfolipase C, o que gera IP3 e diacilglicerol. Após a formação do segundo mensageiro, a cAMP ativa a proteinoquinase A, o IP3 leva à liberação de Ca2+ de seus depósitos intracelulares e a DAG causa ativação e translocação da proteinoquinase C do citosol para a membrana celular e ativação de canais de Ca2+. A estimulação de PTH também leva a outras vias de sinalização, como a da PLA2, e pode regular outras proteinoquinases, como a MAPK (mitogenactivated protein kinase). O Ca2+ é o principal íon regulador da secreção do PTH. Baixos níveis plasmáticos de Ca2+ ionizado estimulam a liberação de PTH pela paratireoide em minutos; enquanto altos níveis desse íon inibem a liberação do hormônio e favorecem a degradação do PTH dentro da própria glândula. Assim, a relação do Ca2+ ionizado plasmático e os níveis séricos de PTH é expressa por uma curva sigmoidal, na qual pequenas variações do Ca2+ circulante levam a grandes variações na secreção do PTH (Figura 55.29).
REGULAÇÃO DA SECREÇÃO DE PTH O efeito do Ca2+ circulante sobre o PTH é mediado por receptores específicos, denominados CaR, que pertencem à família de receptores ligados à proteína G e estão presentes na membrana das células da paratireoide. O aumento no Ca2+ plasmático é sentido pelo CaR, que deflagra uma cascata de sinais intracelulares que resulta na inibição da secreção e síntese do hormônio. Um esquema de vias de regulação da secreção do PTH está mostrado na Figura 55.30.
Figura 55.29 ■ Relação do cálcio ionizável circulante e os níveis de PTH sérico.
Embora a expressão do CaR possa ser alterada em várias circunstâncias, uma característica particular da expressão deste receptor é que ele necessita que as células tenham uma apresentação tridimensional, ou seja, em monocamadas de culturas celulares o comportamento do receptor não reproduz o que ocorre in vivo. Outra característica interessante do CaR é que a sua expressão no tecido da paratireoide não depende do nível de cálcio no meio extracelular, ou seja, o Ca2+ não tem ação direta sobre o seu receptor. Um segundo regulador da secreção do PTH é o calcitriol (forma ativa da vitamina D). Este age na paratireoide por meio do seu receptor específico VDR, que pertence à família dos receptores de esteroides/tireoide. Quando o calcitriol se liga a seu receptor, há a translocação do complexo VDRcalcitriol para o núcleo celular, formando um heterodímero com o receptor para retinoide. Este complexo promove a inibição da transcrição do gene para PTH. O calcitriol pode agir, indiretamente, por aumentar a absorção do Ca2+ no intestino e, ao mesmo tempo, estimular a reabsorção óssea. Ele também regula a própria síntese do CaR, estimulandoa. Pode haver, ainda, uma interferência do calcitriol na regulação do CaR; entretanto, estes dados ainda são controversos.
Figura 55.30 ■ Regulação da secreção de PTH pela célula da paratireoide. CaR, receptor para cálcio.
Outro fator que pode regular o CaR e o VDR é o fósforo, fora a sua própria ação no estímulo da síntese de PTH. Alguns estudos mostram que dietas ricas em fósforo são capazes de reduzir a expressão do CaR e do VDR. Outro regulador que deve ser lembrado é o alumínio, que inibe a secreção do PTH e interfere na regulação do CaR e do VDR.
▸ Relação entre fósforo e PTH O PTH é um hormônio que causa fosfatúria (aumento de fosfato na urina). A reabsorção de fosfato no túbulo proximal é o maior regulador da homeostase do fosfato. A entrada de fosfato na célula é feita por meio de um cotransporte
ativo secundário, localizado na borda em escova da membrana apical, que transporta 3Na+ e 1 íon fosfato (na forma de HPO42– ou de H2PO4–); esse cotransportador é denominado NaPi. O PTH leva à redução na expressão do cotransporte sódiofósforo, fazendo com que os cotransportadores NaPi sejam inibidos.
EFEITOS DO PTH
▸ Rins e ossos Os principais locais de ação do PTH são os rins e ossos. Informações detalhadas a respeito da atuação desse hormônio nos rins são dadas no Capítulo 52, e nos ossos, no Capítulo 76, Fisiologia do Metabolismo Osteomineral.
▸ Enterócitos O cálcio é absorvido no sistema digestório pela via transcelular – principalmente no intestino delgado – e pela via paracelular, ao longo de todo o intestino. O PTH, similarmente à sua ação no rim, estimula o influxo de Ca2+ na célula duodenal, envolvendo a ativação de canais dependentes de voltagem e também utilizando a via do cAMP. Os canais dependentes de voltagem são modulados tanto por PKC como por PKA. O hormônio induz rápida mobilização dos depósitos intracelulares de Ca2+, seguida de influxo de Ca2+ do meio extracelular para o intracelular. Dentro do enterócito, o cálcio se liga à calbindina D9k, que mantém o Ca2+ baixo e participa no transporte do Ca2+ do lúmen tubular para a região basolateral. No intestino delgado são encontrados receptores do tipo 1 para PTH (PTHR1). Vários trabalhos experimentais mostraram que este receptor encontrase tanto na borda luminal como na basolateral dos enterócitos, sendo a expressão na membrana basolateral cerca de sete vezes a da membrana luminal. O PTHR1 também foi demonstrado em citoplasma e em núcleos de enterócitos; entretanto, esta última localização ainda não tem seu significado fisiológico esclarecido. Interessante notar que, durante o envelhecimento, a expressão do PTHR1 na membrana basolateral e citoplasma tende a diminuir, talvez explicando o déficit na absorção intestinal de Ca2+ observada em indivíduos idosos. Outra ação do PTH nos enterócitos é a ativação de sinais mitogênicos, pela via das proteinoquinases ativadas por mitógenos, as MAPK. Um esquema de transporte de Ca2+ em enterócitos é mostrado na Figura 55.31 e mais informações sobre esse assunto são dadas no Capítulo 63, Absorção Intestinal de Água e Eletrólitos.
Figura 55.31 ■ Esquema do transporte de cálcio em enterócitos. A. A reabsorção transcelular de cálcio envolve três fases: (1) entrada de cálcio por canais localizados no brush border da membrana luminal; (2) difusão intracelular mediada pela proteína citoplasmática ligadora de cálcio (calbindina D9K) e por transporte vesicular; e (3) extrusão celular pela membrana basolateral, mediada principalmente pela Ca2+ ATPase e, em menor grau, pelo trocador Na+ /Ca2+ . B. Modelo proposto para os efeitos do PTH no transporte intestinal de cálcio. A interação do PTH com seu receptor resulta na estimulação dos segundos mensageiros: adenililciclase/cAMP e PLC/IP3/DAG, com subsequente ativação da PKA e PKC, abertura de canais de Ca2+ tipo L, fosforilação e liberação de Ca2+ dos seus estoques intracelulares. Esse transiente aumento de Ca2+ intracelular estimula o transporte vesicular transcelular de Ca2+ com consequente exocitose do íon. (Adaptada de Boland, 2004.)
▸ Sistema cardiovascular Uma relação entre insuficiência cardíaca congestiva e insuficiência renal crônica (IRC) é conhecida de longa data. A função ventricular pode estar prejudicada pela anormalidade na produção, utilização e transferência de energia do miocárdio. Receptores para PTH e PTHrP já foram identificados no miocárdio e a função cardíaca normal parece depender de adequado controle na secreção do PTH. O PTH é também um potente vasodilatador. O mecanismo pelo qual o PTH ou seus aminofragmentos induzem vasodilatação parece ser complexo. Uma das ações seria por inibição do canal de Ca2+ tipo L ou por indução da produção de prostaglandinas locais. Receptores para PTH estão presentes nas células de músculo liso arterial e no endotélio. Ligado a esse fato, a prevalência de hipertensão é maior em pacientes com hiperparatireoidismo (HPT).
▸ Sistemas muscular e imunológico
É verificada perda de massa muscular no HPT primário ou secundário (decorrente da IRC). É provável que o excesso de PTH leve a aumento na proteólise muscular. Na IRC, a suscetibilidade a infecções é aumentada. Este fato é devido à queda na produção de imunoglobulinas e à inibição na ação de leucócitos. Tanto os linfócitos T como os linfócitos B mostram resposta diminuída a estímulos proliferativos.
▸ Metabolismo lipídico Aumento nos triglicerídios é comum em pacientes com IRC. Nessa enfermidade, a atividade e a expressão da lipase lipoproteica estão diminuídas e a oxidação de ácidos graxos nos músculos esqueléticos e no miocárdio é prejudicada.
▸ Pele Na uremia (elevação de ureia no sangue) crônica, são comuns calcificações da pele e tecidos moles. Em pacientes com HPT secundário à IRC, a paratireoidectomia (retirada da paratireoide) diminui a deposição de cálcio na pele. Receptores para PTH já foram demonstrados nos fibroblastos da derme e em queratinócitos.
▸ Órgãos endócrinos A administração exógena de PTH pode estimular a liberação de prolactina. O PTH estimula também a liberação de aldosterona induzida pela angiotensina II. Em experimentos com animais, receptores para PTH foram identificados na própria zona cortical de glândulas suprarrenais. A secreção de insulina é prejudicada na IRC, sendo que, após paratireoidectomia, as ilhotas pancreáticas tendem a normalizar sua função.
▸ Outros órgãos Várias ações do PTH foram demonstradas em órgãos e sistemas não citados, classicamente, como alvo da ação do hormônio. Estudos clínicos e também experimentais, nos quais foi verificado excesso de PTH circulante, como na IRC, trouxeram à luz ações não conhecidas do PTH. Nestas condições, existe resistência à ação do PTH por: (1) diminuição nos receptores celulares de PTH ou PTHrP ou (2) alteração na transdução do sinal intracelular em resposta ao hormônio. Nos casos de IRC, o HPT secundário leva a aumento do Ca2+ citosólico de muitos órgãos e células. Uma das consequências sérias é a inibição das vias oxidativas mitocondriais e a inibição da produção de ATP, que trazem um desajuste em todos os sistemas que dependem de energia, inclusive da extrusão de Ca2+ da célula – quer pela troca com Na+ ou pela Ca2+ATPase. No sistema nervoso, o excesso de PTH altera o funcionamento de sinaptossomas (terminações nervosas na região subsináptica), alterando a resposta de condução nervosa e levando a alterações eletroencefalográficas.
▸ Gestação No feto, a função das paratireoides pode ser detectada ao redor da 12a semana de gestação, mas a resposta à hipocalcemia aparece ao redor da 25a semana. As necessidades minerais do feto com relação ao cálcio, fósforo e magnésio são supridas pela placenta. A partir da 25a semana de gestação, a mineralização óssea aumenta em 4 vezes e o acréscimo de Ca2+ pode chegar a 350 mg/dia. O fosfato tem seu pico de acréscimo máximo na metade da gestação e então se estabiliza até o nascimento. Os rins são capazes de converter a 25(OH)D na 1,25(OH)2D ao redor da 28a semana de gestação; mas o fígado só fica maturo com relação à 25hidroxilase ao redor da 36a semana. O PTH e os níveis de 1,25(OH)2D são baixos no feto e, provavelmente, têm um efeito limitado na sua fisiologia. O hormônio principal que regula o metabolismo do cálcio no feto é o PTHrP. O recémnascido é hipercalcêmico e hiperfosfatêmico se comparado à mãe. Como ele necessita de maiores estoques para o crescimento e desenvolvimento, a parada do fornecimento transplacentário de minerais pode ser compensada pelo aumento nos níveis sanguíneos de cálcio e de fósforo. Estes valores voltam ao normal dentro das primeiras 48 h após o nascimento, quando o PTH e a 1,25(OH)2 tomam o controle destes íons.
ALTERAÇÕES NOS PERFIS DE CÁLCIO, FOSFATO E PTH APÓS O NASCIMENTO
Nos primeiros dias após o nascimento ocorrem várias alterações metabólicas. O suprimento materno de Ca2+ não está mais disponível e o neonato deve se adaptar a estas novas condições. Então, para que os níveis plasmáticos sejam mantidos, o recémnascido inicia a mobilização do Ca2+ ósseo e aumenta sua absorção intestinal. A concentração do Ca2+ total e ionizado é maior no sangue do cordão umbilical do que no materno. O mesmo acontece com o magnésio e o fosfato. Ao nascimento, o PTH está diminuído e o PTHrP, aumentado; mas este perfil logo se modifica nas primeiras 48 h após o nascimento, quando o PTH e a vitamina D assumem seus papéis na manutenção da calcemia e da fosfatemia. Neste período, tanto o Ca2+ total como o ionizado mostram um decréscimo, tendendo a assumir valores normais a partir do 3o dia de vida.
NOVOS MECANISMOS REGULADORES DA CALCEMIA E DA SECREÇÃO DE PTH A descoberta de novos genes que têm influência na calcemia, na fosfatemia e no metabolismo da vitamina D vem adicionando novos conceitos, não só sobre a regulação do metabolismo ósseo e mineral, como do papel destes novos genes no processo de envelhecimento – que inclui alterações na epiderme, esterilidade, atrofia muscular, osteoporose, calcificação vascular, hipoglicemia e hipofosfatúria. O achado de duas novas moléculas, klotho e FGF23 (fibroblast growth factor), foi essencial para a obtenção de mais informações sobre a regulação da calcemia, fosfatemia e secreção de PTH. O FGF23 é uma proteína que contém 251 aminoácidos e é secretada por osteoblastos e osteócitos após a estimulação por fosfato ou vitamina D. O FGF23 inibe a reabsorção de fosfato no túbulo renal, a atividade da 1αhidroxilase e a síntese de calcitriol. O gene do klotho foi descrito em camundongos geneticamente modificados que exibiam envelhecimento precoce, osteopenia, hipercalcemia e hiperfosfatemia. Este gene codifica uma proteína que tem, pelo menos, quatro modos de ação: ■ O klotho age como glicuronidase, e pode atuar em diversos sistemas metabólicos, como no dos estrióis e no próprio canal de Ca2+ ■ Pode agir como fator humoral, ligandose a um receptor de membrana, ainda não identificado, deflagrando a cascata da proteinoquinase C no rim e nos testículos. A ativação deste receptor também leva à inibição da cascata intracelular da insulina e/ou IGF1. Esta atividade, provavelmente, contribui para o efeito antienvelhecimento do klotho ■ O klotho age como cofator ou correceptor de outras proteínas, tipo FGF23 ■ O klotho interage fisicamente com a Na+/K+ATPase nas células da paratireoide e regula a secreção estimulada por PTH. Em animais com deleção do gene para klotho, a Na+/K+ATPase está diminuída na paratireoide e a secreção de PTH é prejudicada. O metabolismo do fosfato é também prejudicado e há aumento na forma ativa da vitamina D no plasma, juntamente com hipercalcemia. Paralelamente, há aumento na excreção fracional de Ca2+ urinário; e o metabolismo ósseo mostra alteração tanto na osteogênese como na reabsorção óssea, resultando em osteopenia.
Eritropoetina Aníbal Gil Lopes Como visto nos Capítulos 49 a 54, os mecanismos de depuração plasmática renal desempenham importante papel na manutenção do volume do líquido extracelular, da sua composição e das suas características físicoquímicas, tais como osmolalidade e pH. Adicionalmente, os rins atuam na regulação da pressão arterial e das condições hemodinâmicas do organismo, por meio de diferentes sistemas hormonais, hormônios isolados e autacoides de origem renal, tais como o sistema reninaangiotensinaaldosterona, as cininas e as prostaglandinas. A descoberta da eritropoetina (EPO) revelou uma nova faceta do rim, a de sensor de oxigênio e regulador da eritropoese. Assim, ao lado das funções bem estabelecidas e classicamente estudadas, os rins também desempenham papel fundamental na manutenção de outros importantes parâmetros fisiológicos, tipo hematócrito, viscosidade sanguínea e capacidade do sangue de transportar O2 e CO2. Apesar de os rins exibirem elevado fluxo sanguíneo e baixa extração de oxigênio, suas tensões de oxigênio são bastante heterogêneas e atingem, na região medular, níveis inferiores aos do sangue venoso renal. O processo renal que
mais consome O2 é a reabsorção proximal de sódio; esta é proporcional à massa filtrada desse íon, razão pela qual há uma relação direta entre o consumo de O2 e o ritmo de filtração glomerular (RFG). A oferta de O2, por sua vez, é proporcional ao fluxo sanguíneo renal (FSR). Logo, nos rins, a relação entre a demanda e a oferta de O2 pode ser traduzida pela fração de filtração (FF), que é a razão entre o RFG e o FSR. Como exposto no Capítulo 50, em indivíduos saudáveis em condições normais, estes parâmetros são bem controlados, de tal modo que a FF é mantida constante. Todavia, o controle estreito desses parâmetros, denominado autorregulação do fluxo sanguíneo renal, é um fenômeno renal cortical, que não ocorre no fluxo sanguíneo renal medular. A baixa tensão de oxigênio verificada na região renal medular, alcançando níveis inferiores aos do sangue venoso renal, é devida ao fato de os ramos arteriais e venosos dos vasos retos se manterem justapostos, com contato próximo entre si, no trajeto em contracorrente que fazem ao acompanhar as estruturas descendentes e ascendentes da alça de Henle (ver Figura 49.6, no Capítulo 49, Visão Morfofuncional do Rim). Tal justaposição vascular possibilita a passagem de oxigênio do ramo arterial descendente diretamente ao ramo venoso ascendente, criando um curtocircuito antes que o sangue passe a percorrer seu leito longitudinal ao longo da medula renal em direção à papila. Portanto, como ilustrado na Figura 55.32, formase um gradiente de O2 ao longo da medula, e as tensões de oxigênio se reduzem com o aumento da distância da superfície renal, alcançando níveis abaixo de 10 mmHg na região papilar. Isto faz com que, em certas regiões do rim, o tecido possa ser submetido a grandes variações da pressão parcial de oxigênio. Assim sendo, não é de admirar que no processo evolutivo o rim tenha desenvolvido a função de sensor de oxigênio associada à produção de um fator humoral capaz de regular a produção de eritrócitos. Estas características permitem que o rim apresente a capacidade de ajustar a produção de EPO em resposta às mudanças na oferta de oxigênio que recebe. Entendese por hematopoese a formação, o desenvolvimento e a maturação dos elementos do sangue – eritrócitos, leucócitos e plaquetas – a partir de um precursor celular comum e indiferenciado, conhecido como célula hematopoética pluripotente ou célulatronco. Apesar de a EPO ser um modulador crítico da eritropoese, sua liberação não está relacionada com a concentração de glóbulos vermelhos, mas com a redução da pressão parcial de oxigênio. Por essa razão, os estudos para a compreensão do controle da secreção da EPO levaram à pesquisa dos mecanismos sensíveis à pressão parcial de O2 presentes no tecido renal, responsáveis pela regulação da produção desse hormônio. É amplamente aceito que mudanças na concentração de O2 provocam respostas tanto agudas como crônicas; entretanto, enquanto as respostas agudas implicam alterações na atividade de proteínas preexistentes, as respostas crônicas envolvem modificações na expressão gênica. Fisiologicamente, as concentrações intracelulares de O2 são mantidas dentro de uma faixa estreita, tendo em vista que o excesso de O2 (hiperoxia) leva ao dano oxidativo e o aporte insuficiente de O2 (hipoxia) leva à disfunção celular e, em última instância, à morte da célula. A hipoxia tecidual pode ser causada por: (a) redução da oxigenação do sangue (como ocorre em certas doenças pulmonares); (b) deficiência na liberação de oxigênio causada por alterações na hemoglobina (como acontece em certas hemoglobinopatias); (c) redução do número de hemácias ou de sua concentração de hemoglobina; e (d) aporte inadequado de sangue causando anemia localizada (i. e., isquemia), como resultado do baixo débito cardíaco ou obstrução vascular. Vários mecanismos fisiológicos possibilitam que os mamíferos se adaptem à hipoxia, tais como: (a) aumento da secreção de EPO, que eleva a eritropoese; (b) indução da tirosina hidroxilase, que facilita o controle da ventilação pelo corpo carotídeo; e (c) estímulo da gênese de novos vasos sanguíneos pela ação do VEGF (vascular endothelial growth factor). Em nível celular, a hipoxia induz uma série de alterações metabólicas que tornam possível a manutenção da geração de energia apesar da redução da oferta de oxigênio. Tendo em vista a amplitude do tema, neste capítulo só serão tratados seus pontos mais relevantes.
Figura 55.32 ■ Representação da formação do gradiente de oxigênio ao longo dos vasos retos. Descrição no texto.
ASPECTOS HISTÓRICOS O conceito de regulação humoral da hematopoese foi formulado em 1906 por Paul Carnot, professor de medicina em Paris, e seu assistente, Deflandre. Esses autores verificaram que o plasma retirado de animais estimulados por sangramento, quando injetado em animais controle, provoca aumento do número de glóbulos vermelhos imaturos circulantes. A partir dessa observação, propuseram a existência de um fator humoral que denominaram hemopoetina. Posteriormente, outros estudos confirmaram a existência de um fator humoral capaz de regular a formação de glóbulos vermelhos, que passou a ser chamado eritropoetina. Em 1977, a EPO foi purificada a partir da urina de indivíduos humanos anêmicos e, em 1985, com base na sua sequência de aminoácidos, foi clonada, o que levou ao desenvolvimento de EPO recombinante para uso clínico.
ERITROPOETINA | CARACTERÍSTICAS E PRINCIPAIS AÇÕES O gene EPO está localizado no cromossomo 7 e codifica uma cadeia polipeptídica que contém 193 aminoácidos que, ao longo do processo de secreção, resulta em uma proteína circulante com 165 aminoácidos. A forma madura do hormônio é uma glicoproteína com 30,4 kDa, e cerca da metade do seu peso molecular é constituída por hidratos de carbono que podem variar entre as diferentes espécies animais. Os açúcares presentes em sua estrutura contribuem para sua solubilidade, metabolismo in vivo e processamento celular. Como indicado na Figura 55.33, a EPO apresenta 3 locais de Nglicosilação (asparagina – nas posições 24, 38 e 83) e um de Oglicosilação (serina – na posição 126). Sua estrutura terciária é globular e caracterizada por 4 hélices α (A, B, C e D) e 2 folhas β antiparalelas. As quatro cadeias glicosiladas da EPO são importantes para sua atividade biológica. Esses oligossacarídios estabilizam a molécula e a protegem dos radicais ativos de oxigênio. Como outras glicoproteínas, a EPO circula como um pool de isoformas que diferem na glicosilação, massa molecular, atividade biológica e imunorreatividade.
Figura 55.33 ■ Estrutura tridimensional da eritropoetina. Note três locais de Nglicosilação (asparagina, nas posições 24, 38 e 83; indicados em amarelo) e um de Oglicosilação (serina, na posição 126; indicado em preto), 4 hélices α (A, B, C e D, em rosa) e 2 folhas β antiparalelas (em azul). (Adaptada de Boissel et al., 1993.)
Durante o período fetal a EPO é produzida nos hepatócitos. Estudos recentes mostraram que, durante a embriogênese, fibroblastos derivados da crista neural migram para os espaços peritubulares intersticiais do rim dando origem aos fibroblastos reponsáveis pela produção de EPO. Após o nascimento, em condições de normoxia, praticamente toda a EPO circulante é originada na região do interstício justamedular renal, como indicado no painel A da Figura 55.34. Como
representado no painel B dessa mesma figura, a EPO é produzida exclusivamente nos fibroblastos peritubulares 5’NT positivos (que são capazes de converter o 5’AMP em adenosina) e captada pelos capilares peritubulares. O painel C dessa figura mostra uma micrografia representativa dessa região. Na medida em que o suprimento de oxigênio renal cai, mais células são recrutadas para expressar a EPO. A indução da produção da EPO tem um ganho de resposta extremamente alto; ou seja, pequenas variações na tensão de oxigênio levam a grandes mudanças nos níveis de EPO. Em adultos, pequenas quantidades do mRNA da EPO são expressas no parênquima hepático, pulmões, testículos, útero e cérebro. Recentemente foi verificado que vários outros tecidos secretam EPO, tais como mioblastos, células produtoras de insulina e o tecido cardíaco. Ao lado do seu papel na eritropoese, descrito inicialmente, muitos estudos atuais vêm demonstrando que a EPO ocorre em diferentes partes do organismo e tem grande importância em vários órgãos e tecidos, tipo: cérebro, coração e sistema vascular. Adicionalmente, também foi verificado que a EPO atua nas vias apoptóticas e nos mecanismos cognitivos. Durante a maturação infantil, elevadas concentrações de EPO foram correlacionadas com aumento da pontuação do Índice de Desenvolvimento Mental. No sistema nervoso, locais primários de produção e secreção de EPO estão no hipocampo, cápsula interna, córtex, mesencéfalo, células endoteliais e astrócitos. A presença do receptor de EPO nos sistemas nervoso e vascular tem suscitado interesse nas potenciais aplicações clínicas da EPO, tais como em doença de Alzheimer, doença de Parkinson, insuficiência cardíaca, transplante cardíaco, cirurgia de revascularização do miocárdio e com o intuito de evitar lesão renal. Com a expansão do conhecimento sobre a EPO, foram identificadas as moléculas que controlam sua expressão gênica, principalmente os fatores de transcrição induzível por hipoxia (HIF). Também foi caracterizado como o receptor dimérico da EPO (EPOR) deflagra as vias de sinalização celular que promovem suas diferentes ações fisiológicas. A presença de EPOR em tecidos não hematopoéticos indica que a EPO é um fator pleiotrópico de viabilidade e de crescimento, com especial potencial efeito neuro e cardioprotetor. Como exposto anteriormente, a hipoxia tissular é o principal estímulo para a produção de EPO. Na maioria dos tecidos, incluindo o cérebro, a transcrição do gene EPO e do gene EPOR, responsável pela codificação do receptor de EPOR, é diretamente ativada pela via do HIF1 (hypoxiainducible factor 1) em condições de hipoxia, regulando suas expressões. A transcrição do gene EPO é mediada pelo intensificador de transcrição que se liga especificamente ao HIF1. No entanto, a hipoxia não é a única condição que pode alterar a expressão da EPO e do EPOR. A produção e a secreção de EPO nos órgãos reprodutivos femininos, por exemplo, são dependentes de estrogênio. Durante a evolução cíclica do endométrio uterino, o 17βestradiol pode levar a um aumento rápido e transitório do mRNA da EPO no útero, tubas uterinas e ovários. Entretanto, a expressão do mRNA da EPO induzida por hipoxia no tecido uterino ocorre apenas na presença de 17βestradiol e é menos pronunciada do que a que ocorre no rim e no cérebro. Vários distúrbios celulares podem alterar a expressão de EPO por meio do HIF, como hipoglicemia, exposição ao cádmio, elevação do cálcio intracelular ou intensa despolarização neuronal gerada por ROS (reactive oxygen species) mitocondrial. O estresse anêmico, a liberação de insulina e várias citocinas, incluindo o ILGF (insulinlike growth factor), o fator de necrose tumoralα (TNFα), a interleucina1β (IL1β) e a interleucina6 (IL6), também podem elevar a expressão da EPO e do EPOR.
Figura 55.34 ■ No painel A é representada a distribuição dos fibroblastos peritubulares 5’NTpositivos na região justamedular renal. No painel B é mostrada a localização desses fibroblastos nos espaços intersticiais, delimitados pelos túbulos proximais retos, e em íntimo contato com os capilares peritubulares. No painel C é apresentada uma micrografia (rim do camundongo) em que pode ser visto o interstício peritubular cortical. O espaço intersticial entre os túbulos proximais (P) e os capilares (C) é ocupado: (i) por fibroblastos (seta) e seus processos expressando 5’NT (em vermelho) e (ii) células dendríticas (asteriscos)
expressando moléculas MHC classe II – major histocompatibility complex class II (em verde). Os núcleos celulares estão marcados em azul. A estrutura do tecido é mostrada por microscopia de contraste diferencial de interferência (DIC). A borda em escova dos túbulos proximais é fracamente marcada para 5’NT. Barra 10 μm. (Adaptada de Dunn e Donnelly, 2007; Kaissling e Le Hir, 2008.)
▸ Papel do HIF no controle da expressão gênica da EPO A manutenção da homeostase do oxigênio é uma exigência fisiológica crucial que envolve a regulação coordenada de grande número de genes. Quando os níveis de oxigênio são baixos, é ativada uma via de resposta à hipoxia que foi altamente preservada ao longo da evolução. A análise molecular da resposta regulatória da produção de EPO frente a variações dos níveis de oxigênio levou à descoberta dos fatores de transcrição induzível por hipoxia (HIF), responsáveis pelas respostas genômicas à hipoxia, situação em que a demanda celular de oxigênio excede a oferta. O aporte de O2 nas células dos animais unicelulares e dos multicelulares com pequenas dimensões (tais como os nematoides, que têm cerca de 103 células) pode se dar por difusão. Em contraste, para garantir o suprimento adequado de O2 nas células dos mamíferos adultos (muitos dos quais têm mais de 1013 células), são necessárias células eritroides e complexos sistemas cardiovascular e respiratório. Originalmente, os HIF podem ter surgido em animais multicelulares, para regular o metabolismo energético celular (glicólise versus fosforilação oxidativa), de acordo com a disponibilidade de O2, passando a ser necessário para o desenvolvimento dos sistemas orgânicos nos animais multicelulares complexos. Os HIF têm um envolvimento crítico no desenvolvimento embrionário, situação na qual são necessários mecanismos rigorosos para regular a atividade transcricional; entretanto, também desempenham importantes papéis na fisiologia pós natal e estão associados à patogênese de muitas doenças humanas graves. Por isso, é importante compreender os mecanismos moleculares pelos quais o sinal fisiológico (redução da disponibilidade de O2) é transferido para o núcleo, pelo aumento da atividade transcricional dos HIF. A interação dos HIF com as regiões regulatórias dos genes induzíveis por hipoxia ocorre por meio das várias sequências regulatórias de DNA existentes na vizinhança desses genes. A sequênciachave está localizada no elemento de resposta à hipoxia (HRE – hypoxia response element), composto pelos nucleotídios nos quais o HIF pode se ligar. Mais de 70 genes foram confirmados como contendo o HRE, e mais de 200 transcrições são reguladas pela hipoxia, indiretamente pela via do HIF, ou por via independente do HIF. O número de genesalvo dos HIF conhecidos continua a aumentar, e as funções tradicionais das proteínas codificadas proporcionam uma base molecular para a compreensão de como o HIF1 controla os vários processos de desenvolvimento fisiológico. No Quadro 55.4 estão alguns exemplos de proteínas codificadas por genes regulados pelo HIF1. Os produtos desses genes respondem à hipoxia: (i) diminuindo a dependência e o consumo celular de oxigênio e (ii) aumentando a eficiência da oferta de oxigênio às células. Esses processos incluem vasculogênese e angiogênese, metabolismo, vasodilatação, proliferação e sobrevivência celular. Essa regulação dependente de oxigênio está presente em todos os tipos celulares testados até o momento, independentemente da sua capacidade de produzir eritropoetina. Os dados experimentais acumulados ao longo do tempo mostram que a capacidade de sentir o oxigênio é uma propriedade universal das células de mamíferos e a gama de genes regulados por oxigênio e HIF vai muito além do envolvimento da EPO. De fato, os HIF estão envolvidos na regulação de muitos processos biológicos que facilitam tanto a oferta de oxigênio como a redução da demanda de oxigênio. Os HIF são fatores de transcrição heterodiméricos compostos por duas proteínas, HIFα e HIFβ, membros da superfamília de proteínas bHLH/PAS que têm dois domínios, o bHLH (basic helixloophelix), de dimerização e ligação ao DNA, e um domínio de dimerização denominado PAS por apresentar proteínas PER, ARNT e SIM (PER – periodic circadian protein; ARNT – arylhydrocarbon receptor nuclear translocator; e SIM – singleminded protein family). A maioria das proteínas da superfamília PAS são moléculas presentes em procariotos, que estão envolvidas na transdução de sinal na resposta aos estímulos ambientais, tais como luz, concentração de O2 e estado redox. Isto sugere que o HIF1 pode ser diretamente regulado pelo O2, pois os domínios PAS de várias proteínas se ligam a grupos prostéticos, como o heme.
Quadro 55.4 ■ Exemplos de proteínas codificadas por genes regulados pelo HIF1 agrupados segundo sua função fisiológica Metabolismo
Enzimas glicolíticas Lactato desidrogenase A
Fosfoglicerato quinase 1 Aldolase A Aldolase C Fosfofrutoquinase L Piruvato quinase M Enolase 1 Hexoquinase 1 Hexoquinase 2 Desidrogenase gliceraldeído3fosfato Triose fosfato isomerase Transportadores de glicose (GLUT1 e GLUT3) Adenilato quinase3 Anidrase carbônica9 Proliferação e sobrevida
Ciclina G2 Eritopoetina Heme oxigenase1 IGF (insulinlike growth factor II) IGFBP dos tipos 1, 2 e 3 (insulinlike growth factor binding proteins 1, 2 e 3) NOS2 (óxido nítrico sintase 2) Proteína próapoptótica Nip3 Proteína p21 VEGF (fator de crescimento endotelial vascular)
Biologia vascular
Endotelina1 Receptor adrenérgico a1B HO1 (heme oxigenase 1) NOS2 (óxido nítrico sintase 2) Adrenomedulina PAI (inibidor do ativador do plasminogênio tipo 1) TGFb3 (transforming growth factor beta 3)
VEGF (fator de crescimento endotelial vascular) VEGFR (receptor do fator de crescimento endotelial vascular) Eritropoese/ferro
Eritropoetina Receptor de eritropoetina Transferrina Receptor de transferrina Ferroxidase
As subunidades HIFβ (ARNT1, ARNT2 e ARNT3) são proteínas nucleares constitutivas do tipo ARNT que participam de outras vias de transcrição. Em contrapartida, todas as três subunidades HIFα (HIF1α, HIF2α e HIF3α) são proteínas cujos níveis são altamente induzidos pela hipoxia. Como esquematizado na Figura 55.35, o HIF1α também apresenta um domínio denominado ODDD de degradação dependente de oxigênio e dois domínios, C e Nterminal, de ativação transcricional (TAD – transactivation domain). Mediante um sinal de localização nuclear (NLS), situado na região Cterminal, o HIF1α estabilizado pode se ligar rapidamente a proteínas do poro da membrana nuclear e se translocar para o interior do núcleo. No HIF1β também ocorre o NLS. Enquanto mudanças na oferta de oxigênio não afetam os níveis de HIF1β, a subunidade HIF1α não é detectável em células em normoxia, pois nessa condição sua meiavida é muito curta (menos de 5 min).
Figura 55.35 ■ Domínios dos fatores de transcrição HIF. Tanto o HIFα como o HIFβ têm domínios bHLH e PAS e o NLS. O HIFα contém domínios ODDDs, NTAD e CTAD. Descrição no texto.
Nos rins, são expressos o HIF1α e o HIF2α. Enquanto o HIF2α é encontrado principalmente nas células endoteliais e células intersticiais do tipo fibroblastossímile, o HIF1 é expresso na maioria das células epiteliais e nas células intersticiais e endoteliais das regiões medular interna e papilar, mas não foi detectado nas células endoteliais e intersticiais do córtex nem da medula externa. Como ilustrado na Figura 55.36, resultados obtidos em ratos submetidos à hipoxia por 5 h mostram claro aumento da expressão de HIF1α na região papilar, enquanto a expressão da subunidade HIF2α ocorre nas células peritubulares do córtex, nas células intersticiais fora dos raios medulares e nas células endoteliais dos capilares dentro dos feixes vasculares da medula externa. Foram identificados dois mecanismos primários de regulação da atividade do HIF1α pelo oxigênio, ilustrados na Figura 55.37. O primeiro deles se deve ao fato de que, sob condições de normoxia, o domínio de degradação dependente de oxigênio (ODDD) da subunidade HIF1α é reconhecido pelo produto do gene supressor de tumor de von HippelLindau (VHL). O VHL é um dos componentes do complexo multiproteico ubiquitina ligase denominado VBC (VHL/elongina B/elongina C), que liga covalentemente o HIF1α à cadeia de ubiquitina (Ub), o que causa o atracamento no complexo proteossomal que seletivamente degrada as proteínas conjugadas à ubiquitina. O reconhecimento do HIF1α pelo VHL depende da hidroxilação de resíduos de prolina. Na presença de oxigênio, essa hidroxilação se dá por meio das proteínas do domínio prolil hidroxilase – PHD (prolylhydroxylase domain protein), no resíduo de prolina 402 do domínio de degradação dependente de oxigênio – ODDD (oxigendependent degradation domain) e no resíduo de prolina 564 do domínio Nterminal. O segundo processo citado anteriormente corresponde à hidroxilação, na presença de O2, da asparagina, localizada na posição 803 do domínio de transativação Cterminal do HIF1α, catalisada pelo fator de inibição do HIF (FIH). Esta hidroxilação impede a ativação do HIF1α, pela redução da capacidade do HIF1α em se ligar aos coativadores transcricionais p300 e CBP (CREBbinding protein).
Tanto as PHD como o FIH são dioxigenases pertencentes à família das enzimas heme não oxidantes. Suas atividades são dependentes de oxigênio e de 2oxoglutarato, tendo Fe2+ (ferro não heme) como cofator. Na presença de Fe2+, as moléculas de O2 dão origem a dois átomos, um dos quais se transfere para a hidroxila do resíduo de prolina ou asparagina e o outro é transferido para o 2oxoglutarato (um intermediário do ciclo de Krebs), formando succinato e CO2. Como se ligam diretamente ao oxigênio, é atribuída a estas enzimas a função dos sensores de oxigênio envolvidos na resposta hipóxica. Assim sendo, sob condições de hipoxia, a prolil hidroxilação está bloqueada, pois um menor número de moléculas de O2 está disponível para se ligar às PHD e ao FIH. Dessa maneira, o HIF1α deixa de ser hidroxilado e degradado, resultando em sua maior estabilidade e acumulação.
Figura 55.36 ■ A. Expressão de HIF1α na papila de ratos expostos a hipoxia por 5 h. (a) Amostra controle em normoxia, não apresentando coloração de base. (b) Exemplo mostrando significativo aumento da expressão de HIF1α após exposição ao monóxido de carbono. (c e d) Detalhes em maior aumento das respectivas áreas de ponta da papila e da região papilar média, indicadas na micrografia (b). Setas, fibroblastos intersticiais. Aumentos: 20× em a e b; 160× em c e 220× em d. 3, porção fina da alça de Henle; 9, ducto coletor medular. B. Expressão de HIF2α em rins de ratos expostos a hipoxia por 5 h. (a) Labirinto cortical. (b) Zona externa da medula externa. (c e d) Zona interna da medula externa. (e) Papila. Células peritubulares no córtex com marcação positiva. Na medula externa, tanto as células intersticiais fora dos raios medulares (seta branca) como as células endoteliais dos capilares dentro dos feixes vasculares (seta preta) apresentam marcação positiva. 1, túbulo proximal convoluto; 4, porção ascendente, espessa medular da alça de Henle; 8, ducto coletor cortical; 9, ducto coletor medular; G, glomérulo. Aumentos: 100× em a; 220× em b, c e d; 120× em e.(Adaptada de Rosenberger et al., 2002.)
Figura 55.37 ■ Hidroxilação do HIFα. Detalhes explicados no texto. OH, grupo hidroxila; P, resíduo prolil; N, resíduo aspariginil; Ub, ubiquitina; 2OG, 2oxoglutarato; PHD, domínio prolil hidroxilase; FIH, fator de inibição do HIF.
O aumento da estabilidade do HIF1α também pode ocorrer por uma via independente de oxigênio, na qual o HIF1α se liga à proteína de choque térmico 90 (Hsp90). O uso de inibidores de Hsp90, que impedem sua ligação com o HIF1α, mostrou que nessa situação o receptor da proteinoquinase C ativada (RACK1) pode se ligar ao HIF1α e recrutar o sistema da ubiquitina ligase, potencializando a degradação proteossomal da subunidade α. Em algumas situações, a hipoxia leva também a aumento do acúmulo de mRNA do HIF1α. Portanto, somente em condições de hipoxia o HIF1α acumulase no citosol; isto permite que o HIF1α penetre no núcleo e forme com o HIF1β o heterodímero HIF1, o qual induz a transcrição de muitos genes, cuja expressão é dependente de hipoxia.
▸ Formação do HIF e sua ação no HRE A heterodimerização de HIF1α e de HIF1β é mediada pelos domínios bHLH e PAS de cada subunidade, e é indispensável para que ocorra ligação aos elementos de resposta à hipoxia (HRE) na região regulatória dos genesalvo. Esta ocorre por meio das regiões básicas contíguas aos motivos HLH das duas subunidades em contato com o DNA. No caso da expressão da EPO, foram descritas duas regiões essenciais para a atividade do HIF1: (i) o elemento de resposta à hipoxia (HRE), ou seja, o local de ligação do HIF (HIFbinding site – HBS), que contém uma sequência consenso (A/G)CGTG com a qual o HIF1 contata diretamente, e (ii) a sequência ancilar do HIF1 (HAS), que é uma repetição invertida imperfeita, capaz de recrutar fatores de transcrição complexos, diferentes do HIF1. Uma vez no núcleo, a ligação do HIF1 ao DNA ocorre mediante os domínios bHLH e os domínios localizados na região Nterminal de cada subunidade. As sequências específicas de DNA que são alvo do HIF, conhecidas como elementos de resposta à hipoxia (HRE), são compostas de 5’RCGTG3’ (em que R é A ou G) e são encontradas principalmente nas regiões do promotor, íntron e/ou regiões potenciadoras dos genesalvo. Ao se ligar ao elemento de resposta à hipoxia (HRE), o HIF1 recruta coativadores transcricionais para formar um complexo de iniciação, por meio de dois domínios de transativação: o domínio Cterminal regulado por oxigênio (CTAD, abrangendo os resíduos 786 a 826 do HIF1α) e o domínio Nterminal (NTAD, abrangendo resíduos 531 a 575 do HIF 1α). Tanto o NTAD como o CTAD do HIF1α são altamente conservados entre as espécies, apresentando conservação de 90% e 100% de aminoácidos, respectivamente, entre ratos e seres humanos. No entanto, em humanos, há pouca similaridade entre o NTAD e o CTAD, indicando que cada domínio deva ter papéis diferentes e importantes. Tanto o N
TAD como o CTAD recrutam coativadores CBP/p300, SRC1, e o fator intermediário de transcrição 2 (TIF2), ainda que interações diretas só tenham sido demonstradas entre o CTAD e os coativadores CBP/p300. Os coativadores transcricionais CBP e p300 são essenciais para a ligação de fatores de transcrição, como o HIF, com a maquinaria de transcrição. Além disso, têm atividade histona acetiltransferase necessária para a modificação da cromatina antes da transcrição. Como o NTAD é contíguo ao ODDD, é difícil distinguir sua regulação específica da degradação de proteína dependente de oxigênio mediada pelo ODDD. Há evidências de que o CTAD seja o domínio de transativação predominante, regulando a maioria, mas não todos, os genesalvo do HIF. No entanto, um subconjunto de genesalvo do HIF depende exclusivamente do NTAD e não é influenciado por mudanças na atividade do CTAD. Embora o HIF1β tenha seu próprio CTAD, este parece ser dispensável para a transcrição no contexto do heterodímero HIF1.
▸ Mecanismos de ação da EPO por meio do EPOR A ação da EPO decorre de sua ligação a um receptor de superfície da célulaalvo, o receptor EPO (EPOR). Em vários tipos celulares ocorre paralelamente a expressão da EPO e do EPOR. A expressão funcional do EPOR ocorre tanto nas células hematopoéticas como em vários tipos de células não hematopoéticas, incluindo endoteliais, musculares lisas, mioblastos esqueléticos, cardiomiócitos, neurônios, fotorreceptores da retina, do estroma hepático, da placenta, do rim e macrófagos. O EPOR faz parte de uma família de receptores de citocinas do tipo 1 e é ativado via homodimerização. O EPOR partilha com essa família a estrutura comum que consiste em um domínio extracelular de ligação, um domínio transmembranal e um domínio intracelular. O domínio extracelular é necessário para a ligação inicial do EPO e o domínio intracelular é responsável pela transdução de sinalização intracelular.
Interação HIF e HRE O estudo de um câncer hereditário, conhecido como síndrome de Von HippelLindau (VHL), doença descrita inicialmente em 1894, levou à descoberta do gene VHL, com comportamento típico de supressor de tumor, que apresenta distribuição ubíqua. Por splicing, esse gene dá origem a duas isoformas proteicas que se comportam de modo semelhante, denominadas pVHL. Há algum tempo, foi observado que células de carcinoma renal, que não expressam a forma selvagem da pVHL, apresentam expressivo aumento do mRNA de proteínas VEGF e GLUT1, induzível por hipoxia tanto em condições de normoxia como de hipoxia. Esta observação induziu ao estudo do seu papel na expressão de genes que codificam proteínas que medeiam respostas adaptativas à redução da disponibilidade de oxigênio. Esse estudo indicou que a pVLH também tem distribuição ubíqua e forma um complexo celular que contém, no mínimo, elongina B, elongina C, Cul2 e Rbx1 (RING Box protein 1). A arquitetura deste complexo é semelhante à dos complexos SCF (SKp1/Cdc53/Fbox), presentes em leveduras, que servem como ligase de ubiquitina E3. Nesses complexos, a proteína Fbox (assim chamada porque um primeiro motivo curto foi identificado na ciclina F) se liga ao alvo a ser destruído. Desses achados, surgiu a pergunta instigante: qual a razão de a pVHL só reconhecer o HIFα na presença de oxigênio? Foi observado que a pVHL se liga ao HIF1α só após este ser enzimaticamente hidroxilado nos resíduos prolil, conservados no domínio de degradação dependente de oxigênio (ODDD). Esta ligação é intrinsecamente dependente de oxigênio pelo fato de o átomo de oxigênio do grupo hidroxila ser derivado do oxigênio molecular. Além disso, esta reação requer os cofatores 2oxoglutarato, vitamina C e ferro. A necessidade deste último cofator explica a razão pela qual quelantes de ferro (tais como mesilato de deferoxamina) e antagonistas de ferro (tais como o cloreto de cobalto) mimetizam os efeitos da hipoxia. Três enzimas homólogas, denominadas EGLN1, EGLN2 e EGLN3, contendo domínio prolil hidroxilase, podem hidroxilar o HIF1α em um dos dois locais de prolina presentes no ODDD (Pro402 e Pro564). Resíduos prolil análogos estão presentes no HIF2a e HIF3α. Na presença de oxigênio, as proteínas EGLN são ativas e hidroxilam o domínio ODDD do HIF1a, o que permite que a pVHL se ligue e poliubiquitine o HIF. Isto, por sua vez, leva à degradação proteossomal do HIF. Sob condições de hipoxia, a enzima não pode hidroxilar o HIF, e, portanto, o HIF não é reconhecido pela pVHL. Como resultado, o HIF se acumula na célula e fica disponível para ativar a transcrição (ver Figura 55.37). Como o turnover de HIF depende da via de hidroxilação pelas prolil 4hidroxilases (PHD) e ubiquitinação por VHL, vários inibidores de PHD
foram desenvolvidos como estabilizadores de HIF para melhorar a produção de EPO e eritrócitos. Em seres humanos estão sendo desenvolvidos estudos de Fases II e III de roxadustat, AKB6548 e GSK1278863 (GlaxoSmithKline). Após a clonagem do gene da EPO em 1985, seu receptor foi observado em condições normais, bem como em células eritroides transformadas. O EPOR se expressa nas células eritroides, principalmente, nos estágios de desenvolvimento CFUE e pronormoblástico. Durante a diferenciação das células eritroides, o número de EPOR por célula diminui gradualmente, e os reticulócitos e o eritrócito maduro não apresentam EPOR. O gene do EPOR foi clonado a partir de células eritroleucêmicas murinas. O EPOR é expresso como um dímero com 66 a 78 kDa. Dois locais de ligação, um com alta e outro com baixa afinidade, foram demonstrados no domínio extracelular do EPOR. Como ilustra a Figura 55.38, ao se ligar à EPO o EPOR muda sua conformação e se autodimeriza por meio da transfosforilação da quinase JAK2, constitutivamente associada aos monômeros do receptor de EPO. Após a EPO ativar o receptor, oito resíduos de tirosina no domínio citoplasmático do EPOR são fosforilados, formando locais de ligação para proteínas com domínios SH2, iniciando a sinalização intracelular por meio da fosforilação da tirosina de diversas proteínas, ainda que o receptor EPO não tenha atividade tirosinoquinase endógena. Isso permite a ativação de várias vias de transdução de sinal, tais como as vias quinase Ras/MAP e fosfatidil inositol 3 quinase (PI3quinase), além da via que envolve membros da família de transdutores de sinal e ativadores de transcrição STAT (signal transducers and activators of transcription), por meio da fosforilação de um único resíduo de tirosina, o que leva à sua dimerização. As proteínas STAT são substratos das tirosinoquinases Janus (Jak2). Em mamíferos há sete genes que codificam proteínas STAT, que podem ser ativadas por fosforilação e são consideradas fatores de ligação ao DNA. A ativação da Jak2 pela EPO resulta em fosforilação e dimerização de STAT. O STAT dimerizado se transloca para o núcleo, onde se liga aos elementos de resposta específica nos promotores de genesalvo, e ativa transcricionalmente esses genes. Associadas a estas vias de transcrição estão as proteinoquinases ativadas por mitógenos, que incluem as quinases relacionadas com sinal extracelular (ERK, extracellular signalrelated kinases), as quinases cJun aminoterminal (JNK, c Jun Nterminal kinases), envolvidas com a apoptose, e a MAPK p38 (p38 mitogenactivated protein kinase), que pode controlar a proliferação e a diferenciação dos eritroides. No entanto, no que se refere à citoproteção, a EPO não só ativa as STAT3, STAT5 e ERK 1/2, mas também utiliza essas vias para promover o desenvolvimento e a proteção celular.
▸ Algumas vias deflagradas pela EPO por meio do EPOR Ainda que o espectro de ações conhecidas da EPO seja muito amplo, incluindo mitogênese, quimiotaxia, angiogênese, mobilização de cálcio intracelular e inibição da apoptose, diariamente são descritos novos aspectos que revelam seu importante significado na saúde e na doença. Inicialmente, foi suposto que a EPO atuasse exclusivamente em células progenitoras eritroides. Posteriormente, foi descrito um amplo espectro de ações, sendo confirmada a expressão do gene da EPO em diferentes tecidos e a presença do EPOR em grande número de tipos celulares, tendo sido evidenciadas ações autócrinas e parácrinas da EPO. A seguir serão apresentados alguns aspectos das ações da EPO na apoptose, eritropoese, angiogênese, no tecido neural e no tecido renal.
Apoptose A palavra grega apoptosis, que originalmente significava queda natural das pétalas de flores ou das folhas de árvores, por sugestão do Professor James Cormack do Departamento de Grego da Universidade de Aberdeen, Escócia, foi utilizada pela primeira vez por Kerr e colaboradores, em 1974, para designar a morte celular programada, não seguida da autólise, que ocorre em organismos multicelulares. Esse processo fisiológico de morte está envolvido no mecanismo de renovação celular, necessário para o desenvolvimento e a manutenção da higidez dos tecidos. A apoptose envolve perda do potássio intracelular com: redução do volume celular, falta da assimetria da membrana pela exteriorização de fosfatidilserina, perda da adesão celular, despolarização mitocondrial, fragmentação nuclear, condensação da cromatina e fragmentação do DNA. A apoptose está envolvida na gênese de várias doenças, tais como: acidente vascular cerebral isquêmico, demência, doença de Alzheimer, lesão medular e infarto do miocárdio. A EPO previne a apoptose induzida por diferentes estímulos, tipo hipoxia, excitotoxicidade (liberação maciça de neurotransmissores por células atingidas por um estímulo agressor) e exposição a radicais livres. Além de evitar a lesão por apoptose, a EPO atua no desenvolvimento neuronal de células progenitoras, por intermédio do fator nuclearκB, que
promove a produção de célulastronco neurais. Adicionalmente, em vários modelos experimentais, a EPO tem demonstrado papel potencial na proteção contra a fagocitose microglial e as lesões trombóticas. Como esquematizado na Figura 55.39, ao ligarse ao seu receptor EPOR, a EPO deflagra, por meio da JAK2 (tirosinoquinase Janus2), várias vias de sinalização que levam à inibição da apoptose, tais como: a proteína transdutora de sinal e ativadora de transcrição 5 (STAT5), a fosfatidilinositol3quinase (PI3K) e a Hsp70 (heat shock protein).
Figura 55.38 ■ O primeiro passo para a ativação do receptor de EPO ao se ligar à EPO (a) é sua dimerização (b), o que ocorre mediante o contato entre si das quinases JAK2, que estão associadas aos monômeros, com consequente transfosforilação. Os resíduos de tirosina do EPOR são então fosforilados (c e d), provocando locais de ligação para proteínas com domínios SH2 (e).
Figura 55.39 ■ Esquema de vias de sinalização envolvidas na apoptose. Detalhes no texto.
A fosforilação da STAT5 promovida pela JAK2 leva a sua homodimerização e translocação para o núcleo, onde ativa genes que codificam moléculas antiapoptóticas, como o BclxL, que inibe a caspase 3.
O JAK2, por intermédio da fosfatidilinositol 3quinase(PI3K) e da proteinoquinase B (PKB), promove a fosforilação em cadeia e a inativação de moléculas próapoptóticas, tais como a glicogênio sintase quinase3β (GSK3β) e o fator de transcrição FOXO3a. A GSK3β desempenha importante papel na indução de apoptose em diversos tipos celulares, inclusive neurônios, células musculares lisas vasculares e cardiomiócitos. O FOXO3a, quando inativado, é retido no citoplasma e, assim, impede a ativação de genesalvo, como o da FasL (Fas ligand – proteína da família dos fatores de necrose tumoral, TNF) que induz apoptose. Tanto a GSK3β como FOXO3a promovem processos próapoptóticos mitocondriais; assim sendo, a inibição da GSK3β ou do FOXO3a bloqueia a ativação desses processos. Consequentemente, deixa de haver liberação do citocromo C e a ativação das caspases 1, 3 e 9. As caspases são proteases de cisteína sintetizadas na forma inativa e, no início da apoptose, são proteoliticamente clivadas em subunidades. De acordo com a sequência de ativação, as caspases são classificadas como iniciadoras ou efetoras. Uma caspase iniciadora cliva e posteriormente ativa uma caspase efetora que, por sua vez, cliva diretamente substratos proteicos, levando à destruição celular. As caspases 1 e 3 são associadas às vias de apoptose por clivagem do DNA genômico e exposição de fosfatidilserina de membrana. Neste caso, fica inibida a ação da caspase 9 de clivar e ativar a caspase 3. Desse modo, a caspase 3 deixa de ativar a caspase 1, inibindo seu papel na indução de processos inflamatórios pela exposição de fosfatidilserina na membrana celular. Além disso, como a caspase 3 participa do direcionamento das células para a fagocitose, esta deixa de ocorrer por estar inibida. A PBK, por meio da fosforilação da IκB, possibilita a liberação do fator de transcrição NFκB, sua translocação para o núcleo e a ativação de genes que codificam moléculas antiapoptóticas, tais como XIAP (Xlinked inhibitor of apoptosis protein) e cIAP2 (cellular inhibitor of apoptosis 2). Por outro lado, a JAK2 ativa a Hsp70 (heat shock protein), que inativa moléculas próapoptóticas, tais como o fator ativador de proteases próapoptóticas (Apaf1) e o fator de indução de apoptose (AIF).
Eritropoese O organismo humano adulto possui mais de 30 trilhões de hemácias, o que corresponde a cerca de um quarto do número total de células. Além disso, o volume dos eritrócitos é superior a 2 ℓ , ou seja, quase 10% do volume celular total. Assim, os eritrócitos estão entre os tipos de células mais abundantes do corpo humano. Como a expectativa de vida dos eritrócitos é de 100 a 120 dias, a cada dia mais de 200 bilhões deles precisam ser substituídos, ou seja, devem ser produzidos cerca de 139 milhões de glóbulos vermelhos a cada minuto. O principal regulador desse processo, assim como outras citocinas, é a EPO. Produzido nos rins, este hormônio está presente no plasma em concentrações picomolares, ou seja, cerca de um centésimo da concentração da grande maioria dos hormônios circulantes. A EPO induz a produção de glóbulos vermelhos na medula óssea, em que se liga a células progenitoras eritroides. Estudos em cultura celular identificaram duas classes de células progenitoras eritroides, BFUE e (CFUE). Ambas têm receptores para EPO em suas superfícies. Quando a EPO se liga ao EPOR nas células BFUE, estas dão origem aos proeritroblastos (CFUE). Como ilustrado pela Figura 55.40, os proeritroblastos, pela ação da EPO, à qual são extremamente sensíveis, proliferam e se desenvolvem em eritroblastos e reticulócitos que entram na circulação periférica, onde amadurecem, dando origem às hemácias circulantes. A falta de EPO pode causar vários distúrbios fisiológicos. Se, por exemplo, seu nível plasmático é reduzido, o nível de hemoglobina pode cair para 7 ou 8 g/dℓ, em vez do nível normal de 14 a 16 g/dℓ. A anemia resultante provoca falta de ar e sensação de cansaço. Por outro lado, níveis elevados de EPO estimulam a produção das células vermelhas do sangue, causando policitemia, condição em que aumenta a viscosidade do sangue, o que pode levar, por exemplo, a danos cerebrais.
Figura 55.40 ■ Etapas da eritropoese. Detalhes no texto.
Ainda que a via de sinalização da EPO seja necessária para a eritropoese em condições de estresse, ela é dispensável para a eritropoese no estado estacionário. Por outro lado, a EPO leva à maturação dos eritrócitos por inibir a apoptose das células eritroides. A expressão do EPOR em tecidos hematopoéticos é essencial para a eritropoese normal de mamíferos durante o desenvolvimento. Foi verificado que embriões de camundongos, knockout para EPO ou EPOR, morrem no útero devido à falta de eritropoese no fígado fetal. Esses embriões também apresentam defeitos na angiogênese e morfogênese cardíaca, com aumento da apoptose das células do endocárdio e miocárdio. O processo de multiplicação e diferenciação das célulastronco hematopoéticas (HSC) é finamente regulado por um conjunto de fatores de crescimento e hormônios que determinam sua autorrenovação e/ou diferenciação. A EPO, agindo por meio do EPOR, é o principal hormônio eritropoético. A estimulação do EPOR ativa vias de sinalização necessárias para a sobrevivência, proliferação e diferenciação de eritroblastos. Outra citocina importante envolvida na eritropoese é o fator de célulatronco (SCF – stem cell factor), que se liga ao receptor de citocina cKit, retardando a diferenciação e aumentando a proliferação de células progenitoras. A ativação da Jak2 pela EPO, por intermédio do EPOR, induz a ativação da via PI3K AKT/PKB, que, pela inibição do fator de transcrição FOXO3a, reduz a expressão do inibidor do ciclo celular p27/kip1. Quando diminui a expressão de EPOR, tanto a expressão como a atividade transcricional da FOXO3a aumentam durante a maturação das células precursoras eritroides. Por outro lado, a PI3K também ativa a MAPK (proteinoquinase ativada por mitógeno), levando à proliferação dos eritroblastos. Por meio do EPOR é deflagrada cascata RasRafMEKERK que, via fatores de transcrição, regula a expressão gênica e a atividade de muitas proteínas envolvidas com a apoptose. A fosforilação da quinase Raf1 retarda a diferenciação dos eritroblastos, pela redução da ativação da caspase3. Adicionalmente, EPO e SCF ativam a JNK (JunNterminal kinase) e, assim, promovem a proliferação e a sobrevivência de células hematopoéticas. Por outro lado, a diferenciação das células eritroides induzida pela EPO também depende da via de sinalização PI3K/Akt, que age em conjunto com a proteinoquinase C (PKC)α. A PKCα medeia a diferenciação eritroide das células progenitoras CD34 da medula óssea. Na regulação da eritropoese, também está envolvida a via de sinalização Jak/STAT5, que é rapidamente ativada após a ligação da EPO ao EPOR em progenitores eritroides. A sobrevivência dos eritroblastos jovens e, consequentemente, a eritropoese normal, são controladas pela STAT5 por meio do aumento da transcrição do gene BclxL e estimulação da via antiapoptótica, que pode ser inibida pela cascata das caspases. A ativação da caspase3 leva à degradação dos fatores de transcrição SCL/TAL1 (stem cell leukemia/Tcell acute lymphoblastic leukemia 1), bem como do fator de transcrição de eritroides GATA1, que regulam a expressão gênica do BclxL. A proteína Tal1 é fosforilada em resposta à estimulação da EPO mediante a via de sinalização da MAPK ativada por PI3K. A proteína GATA1 é considerada fator crítico de transcrição na eritropoese e da megacariopoese. A atividade de transativação da GATA1 é altamente dependente da interação com vários cofatores, tais como: FOG1, EKLF, SP1, CBP/p300, LMO2, Ldb1, Runx1, Fli1 e PU1. Estes cofatores constituem uma rede muito complexa de regulação da eritropoese, promovendo ou reprimindo a atividade de GATA1. Esses vários mecanismos integrados garantem que o efeito estimulante da eritropoetina em células progenitoras eritroides seja apropriado. Se, por um lado, a ligação da EPO ao seu receptor inicia a cascata de sinalização que leva à proliferação celular e à prevenção da apoptose, esse efeito é atenuado por moléculas intracelulares, tais como supressores de sinalização de citocina, o que realmente evita a proliferação descontrolada dos glóbulos vermelhos. Os dados aqui apresentados evidenciam a complexidade da regulação da eritropoese que envolve grande número de vias de sinalização e regulação da transcrição gênica. Ao lado de outras citocinas, a EPO tem papel fundamental na multiplicação e diferenciação das célulastronco hematopoéticas e no desenvolvimento, sobrevivência, crescimento e maturação dos glóbulos vermelhos, determinando, assim, o número de eritrócitos circulantes necessários para a adequada oxigenação tissular.
Angiogênese A angiogênese é um processo complexo, em que vários tipos de células e mediadores interagem para criar um microambiente adequado para a formação de novos vasos. A angiogênese ocorre em diversas condições fisiológicas e patológicas, tais como desenvolvimento embrionário (em que está associada a vasculogênese, ou seja, a formação de vasos capilares a partir de células endoteliais diferenciadas de células mesodérmicas), cicatrização, remodelação cíclica do tecido uterino durante o ciclo menstrual, inflamações crônicas e tumores.
Como visto, na diferenciação de células hematopoéticas a ligação da EPO ao EPOR ativa vias de transdução de sinal que controlam a proliferação celular, a sobrevivência e a expressão de genes específicos. Como as células hematopoéticas e endoteliais advêm de progenitoras comuns, as citocinas e os fatores de crescimento associados à hematopoese também atuam na angiogênese. A ação angiogênica da EPO é semelhante à do VEGF (fator de crescimento endotelial vascular). Na vigência de hipoxia ou isquemia, via HIF1, ocorre aumento da expressão de EPO e VEGF e seus receptores, o que mobiliza células progenitoras endoteliais e promove a neovascularização. Em certas doenças, tais como retinopatia diabética e crescimento tumoral, a regulação da angiogênese é perdida, o que concorre para o desenvolvimento e a progressão da moléstia. Apesar de a EPO ser um fator de sobrevivência para os fotorreceptores da retina, no vítreo de diabéticos ocorre aumento significativo da expressão de EPO endógena, o que tem sido associado à gênese da retinopatia diabética proliferativa. Além disso, a administração precoce de EPO no tratamento da anemia da prematuridade é associada ao aumento significativo do risco de retinopatia, sugerindo que a ativação do EPOR de células endoteliais leve à neovascularização dos vasos da retina em desenvolvimento. No início do uso terapêutico da EPO recombinante humana (rHuEPO), em pacientes com anemia de origem renal (causada pela redução da produção de EPO pelos rins), foi observada elevação da pressão arterial como efeito colateral. Duas ações mediadas pela EPO explicam esse efeito: (1) nas células endoteliais a EPO deflagra, via fosforilação da JAK2, o aumento da transcrição de endotelina 1, um potente agente vasoconstritor e (2) em células musculares lisas vasculares a EPO estimula o influxo de cálcio, o que leva à contração. Esse aumento na mobilização de Ca2+ intracelular é inibido pela genisteína, um inibidor da via JAK2/STAT5, indicando que esta é a via envolvida nesse processo. Esses dois mecanismos explicam a hipertensão associada ao tratamento com rHuEPO.
Tecido neural A EPO circulante, produzida no rim, não atravessa a barreira hematencefálica devido ao seu elevado peso molecular (30,4 kDa); mas, em várias regiões do cérebro ocorre produção local de EPO, tornando possível sua ação parácrina. Ainda que em níveis inferiores aos encontrados nos rins, tanto o mRNA da EPO e do EPOR como suas proteínas são amplamente distribuídos em diferentes regiões do cérebro de mamíferos, incluindo córtex, hipocampo, amígdala, cerebelo, hipotálamo e núcleo caudado. Isto ocorre conjuntamente com outros fatores de crescimento hematopoéticos que são expressos e atuam no SNC. Com relação ao tipo de células neurais que expressam EPO, os astrócitos são a principal fonte de EPO no cérebro. Além dos neurônios, oligodendrócitos e células gliais, uma forte presença de EPOR foi detectada nas células endoteliais vasculares do cérebro. Essa ampla distribuição neural implica um vasto espectro de ações cerebrais da EPO. Vários efeitos da EPO foram descritos no SNC. Inicialmente, foi observado que o uso terapêutico de eritropoetina recombinante humana (rHuEPO) em pacientes anêmicos frequentemente levava a melhora da função cognitiva, o que foi atribuído à maior oxigenação cerebral decorrente do aumento do hematócrito. Posteriormente, no tecido neural, foi verificada tanto a presença de EPOR como a produção local de EPO, indicando a presença de uma ação parácrina. Coerentemente com essa ação parácrina, a EPO produzida no cérebro tem peso molecular menor (devido a menor sialização), enquanto a estabilização da EPO circulante no plasma só é possível mediante intensa sialização. Adicionalmente, as células neurais, como os astrócitos, respondem à hipoxia produzindo EPO. Em células neuronais fetais humanas foi verificado que a expressão do mRNA da EPO duplica em condições de hipoxia. Por outro lado, a presença de EPOR foi detectada em grande variedade de tecidos neurais, incluindo linhagens de células neuronais PC12 e SN6, células NT2 e HNT, células endoteliais de capilares de cérebro de ratos, neurônios hipocampais e corticais de ratos, e neurônios, astrócitos e micróglia de cérebros humanos. Também foi demonstrado que a EPO reduz a morte celular induzida por hipoxia, causando um efeito neuroprotetor. Coerentemente, a expressão de EPO e EPOR é especialmente alta nas regiões do cérebro conhecidas por serem mais sensíveis à hipoxia aguda, o hipocampo e o telencéfalo, o que é compatível com uma ação protetora contra a hipoxia. Como mencionado anteriormente, após a ligação da EPO ao EPOR, a tirosinoquinase Janus 2 (JAK2) é fosforilada e ativada. Isto leva ao recrutamento de moléculas sinalizadoras secundárias, tais como a proteína transdutora de sinal e ativadora da transcrição 5 (STAT5), seguida pela ativação de Ras/MAPK (mitogen activated protein kinase), ERK1/2 e PI3K/Akt. Além disso, EPO induz a expressão da proteína antiapoptótica BclxL. A maioria destas vias parece ser funcional no cérebro. Em experimentos realizados in vitro, a inibição de MAPK e PI3K bloqueou a proteção conferida pela EPO aos neurônios do hipocampo submetidos a hipoxia. O uso de inibidores da ERK1/2 e Akt evidenciou que a ativação dessas proteínas é essencial para o efeito neuroprotetor da EPO. Entretanto, o papel da STAT5 na neuroproteção
induzida pela EPO é controverso. Foi observado, em ratos, que a fosforilação da STAT5 ocorre em neurônios hipocampais após isquemia cerebral global transitória, indicando sua participação na neuroproteção mediada pela EPO. Por outro lado, um estudo de medida da toxicidade do glutamato em cultura de neurônios hipocampais de fetos de ratos knockout para STAT5 evidenciou que a STAT5 não é necessária para a neuroproteção mediada pela EPO, mas é indispensável para a função neurotrófica da EPO. No cérebro, parece que a ativação do EPOR induz à translocação do fator nuclear κB (NF κB) para o núcleo e que esse efeito é importante para a neuroproteção mediada pela EPO. Curiosamente, a translocação de NFκB induzida pela EPO só é observada em células neuronais e não em astrócitos. Assim, é provável que a ação nuclear do NFκB induz a expressão de proteínas neuroprotetoras e antiapoptóticas. Verificouse também que camundongos knockout para EPOR apresentam apoptose maciça e redução no número de células progenitoras neuronais, evidenciando uma ação antiapoptótica da EPO no SNC. Deve ser notado que há diferenças entre as cascatas de sinalização ativadas por EPO no SNC e nas células eritroides. Como exemplo, foi verificado que BclxL é importante na proteção mediada por EPO nas células eritroides, mas não nas neuronais. Além disso, foi visto que nos neurônios a EPO ativa a fosfolipase Cγ (PLCγ) e assim pode influenciar diretamente a atividade neuronal e a liberação de neurotransmissores. Na hipoxia é induzida a expressão da EPO, que age diretamente sobre as células estaminais neuronais do prosencéfalo, estimulando a neurogênese póshipóxica. Além disso, a EPO também age indiretamente por meio da indução da expressão do fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF) que, por sua vez, aumenta o efeito direto da EPO na neurogênese. Além dos efeitos diretos sobre os neurônios, a neuroproteção induzida pela EPO também pode ser atribuída à melhoria da perfusão cerebral pela promoção de angiogênese, que foi verificada em vários modelos experimentais. O efeito angiogênico da EPO também ocorre no cérebro, onde foi detectado o mRNA da EPO e do EPOR nas células endoteliais dos capilares, sendo verificada uma relação dosedependente entre a EPO e a atividade mitogênica. A ação angiogênica da EPO foi confirmada em camundongos knockout para EPO ou EPOR, cujos embriões apresentam graves defeitos na angiogênese. Em modelos experimentais, também foi verificado que a EPO promove a integridade da barreira hematencefálica pela regulação da permeabilidade vascular, o que protege a integridade do tecido neural. Por outro lado, a hipoxia induz, via HIF1, a expressão de diferentes proteínas, não só EPO, VEGF e seus receptores, que irão melhorar a oferta de oxigênio para os tecidos, como também as enzimas da via glicolítica, que vão adaptar o metabolismo celular à menor disponibilidade de oxigênio. Enfim, é possível afirmar que, por meio de ações parácrinas/autócrinas em diferentes tipos celulares presentes no cérebro, a EPO está envolvida não só na neuroproteção, como também na neurogênese, diferenciação e sobrevivência neuronal. O conjunto desses dados indica que a EPO pode vir a ser usada terapeuticamente para reduzir o dano tecidual da isquemia ou da hipoxia do SNC.
Tecido renal A expressão do EPOR nas células mesangiais, do túbulo proximal e do ducto coletor medular são coerentes com as ações renoprotetoras da EPO descritas na literatura. Em modelos animais, o tratamento com EPO reduz o grau da disfunção renal provocada por isquemia/reperfusão, provavelmente pela redução da morte celular por apoptose. Em cultura de células humanas de túbulo proximal, foi demonstrado que EPO reduz significativamente a apoptose induzida por hipoxia. Em roedores précondicionados com EPO e submetidos à lesão de isquemia/reperfusão, foi observada redução das lesões renais concomitante ao encontro de: diminuição da atividade da caspase3, aumento da expressão de Bcl2 e de proteínas de choque térmico 70, e redução dos marcadores de inflamação. Também foi verificado que EPO protege contra a disfunção renal induzida pela cisplatina e diminui a inflamação e fibrose intersticial renal da nefropatia crônica induzida pela ciclosporina. Entretanto, contrastando com esses efeitos renoprotetores, foi relatado que a administração concomitante de EPO e radiação leva a uma deterioração da função renal. Os mecanismos moleculares responsáveis por esses efeitos deletérios da EPO na presença de radiações ionizantes não foram adequadamente esclarecidos, havendo necessidade de novos estudos para que venham a ser compreendidos.
▸ Uso terapêutico da rHuEPO | Benefícios e riscos Antes do uso terapêutico da rHuEPO, cerca de 25% dos pacientes com doença renal crônica (DRC), em diálise, necessitavam de transfusão regular de glóbulos vermelhos. O uso da rHuEPO foi aprovado pela FDA (Food and Drug
Administration, dos EUA) com a finalidade terapêutica de elevar ou manter o nível de glóbulos vermelhos e para diminuir a necessidade de transfusões. Em 1989, foi relatado o primeiro caso de paciente com DRC tratado com EPO recombinante humana (rHuEPO). Antes do tratamento, um paciente do sexo masculino, 40 anos de idade e HIVpositivo, apresentava o seguinte quadro: hemodiálise por 7 anos; um transplante renal sem sucesso; terapia com andrógeno e recebimento de 313 bolsas de glóbulos vermelhos. Após o uso de rHuEPO por 8 semanas, seu hematócrito aumentou de 15% para 38%, deixando de necessitar transfusões de glóbulos vermelhos. Posteriormente, voltou a trabalhar e a participar de atividades esportivas. A partir daí, a rHuEPO e seus análogos, conhecidos como ESA (erythropoiesis stimulating agents) passaram a ser utilizados por milhões de pacientes com DRC e, mais recentemente, por pacientes com diferentes tipos de câncer recebendo quimioterapia e apresentando anemia grave. Esses pacientes, além de ficarem livres de transfusões de hemácias, apresentavam melhoria da qualidade de vida e da função cognitiva. Adicionalmente foi verificado que o uso da EPO prevenia a hipertrofia ventricular esquerda. Ao lado desses benefícios terapêuticos, dados laboratoriais mostraram que o EPOR é expresso em diferentes tecidos, por meio dos quais a EPO atuaria como um fator citoprotetor, aumentando a sobrevivência e o crescimento celular. Essas observações estimularam novos usos dos ESA, tais como em doenças cerebrais e cardíacas. Todavia, alguns resultados adversos foram verificados, destacandose o aumento do risco de tromboembolismo e a possibilidade de a EPO estimular o crescimento do câncer, tanto pelo aumento da sobrevivência das células tumorais como pela estimulação da angiogênese e melhor aporte de nutrientes para o tecido tumoral. A EPO é uma citocina pleiotrópica próangiogênica e induz a proteção de tecidos de diversos órgãos não hematopoéticos. A capacidade de a rHuEPO estimular a angiogênese fisiológica e patológica e a expressão do receptor EPOR em células cancerosas e do endotélio vascular têm sugerido que esse hormônio possa exercer efeitos diretos sobre o crescimento tumoral e a angiogênese. Tanto o EPOR como a EPO se expressam em células de diferentes tumores e foram detectados em várias linhagens imortalizadas de células tumorais. Estas características são compatíveis com a existência de vias autócrinas e parácrinas capazes de estimular as células cancerígenas. A expressão de EPOR no endotélio vascular de tumores indica a possibilidade de a EPO estimular a angiogênese nesse tecido e modular vários aspectos da biologia tumoral, tais como proliferação celular, apoptose e sensibilidade à quimioterapia e à radiação. Embora a angiogênese seja o processo primário que leva à formação e à expansão da vascularização do tumor, há evidências, mais recentes, de que as células progenitoras endoteliais (EPC – endothelial progenitor cells) circulantes também possam estar envolvidas nesses processos. Adicionalmente foi verificado que pacientes com anemia causada por DRC, após 2 semanas de tratamento com rHuEpo, apresentaram significante aumento do número das EPC circulantes (3 vezes maior que o observado em indivíduos saudáveis sem anemia). Contudo, até o momento, não há estudos conclusivos que permitam estabelecer que o uso da rHuEpo possa propiciar o desenvolvimento tumoral por meio dessa via. Por outro lado, foi verificado que na maioria dos cânceres humanos, e mais ainda em suas metástases, a expressão do HIF1 se encontra aumentada. Isto acontece porque a hipoxia resgata o HIF1 da degradação proteossômica, permitindo sua translocação nuclear e heterodimerização; este fato leva à ativação de genes HIF1alvo, incluindo os de codificação da EPO, VEGF e seus receptores, e de outros genes envolvidos em eritropoese, angiogênese, vasodilatação e metabolismo da glicose. Essa característica permite que as células cancerosas se adaptem à hipoxia e desenvolvam condições para sua melhor sobrevivência e proliferação. Embora vários ensaios clínicos tenham mostrado um efeito benéfico do uso de rHuEPO no tratamento de pacientes com câncer, há estudos que indicam que a sobrevida desses pacientes, em condição livre de progressão do tumor, é menor que a dos pacientes tratados com placebo. Esta controvérsia ainda não tem uma resposta definitiva, razão pela qual são necessários novos estudos para compreender melhor os mecanismos moleculares desencadeados pela EPO nos tecidos não hematopoéticos, incluindo as células cancerígenas. Mesmo que esta questão ainda seja controversa na atual literatura médica, ela foi objeto de recente metanálise realizada para verificar os dados obtidos em estudos clínicos controlados para uso dos ESA, abrangendo mais de 15.000 pacientes. Essa análise não evidenciou efeito significativo na sobrevivência ou progressão da doença em pacientes que usaram os ESA, em relação aos que receberam placebo; no entanto, detectou um aumento do risco de eventos tromboembólicos venosos com o uso dos ESA. Outro dado importante é o fato de que os resultados desfavoráveis foram encontrados nos estudos que não seguiram as diretrizes atuais para o uso dos ESA em pacientes com câncer. Tanto o hematócrito inicial como o atingido após o tratamento eram superiores aos recomendados, indicando que o aumento da viscosidade sanguínea, em combinação com elevada contagem de plaquetas, deve ser a causa do aumento da incidência de formação de trombos. Em pacientes com doença renal crônica, uma concentração de hemoglobina inferior a 100 g/ℓ é desfavorável para a saúde e
sobrevivência do paciente. No entanto, foi verificado que quando a hemoglobina alcança níveis superiores a 120 g/ℓ há maior risco de eventos tromboembólicos. E mais: um estudo que analisou o efeito neuroprotetor da rHuEPO mostrou que pacientes que receberam esse medicamento apresentaram taxa de mortalidade mais elevada do que a dos que receberam placebo, particularmente aqueles que necessitavam de terapia trombolítica. A esse respeito, deve ser lembrado que, mesmo em pessoas saudáveis, a probabilidade de um infarto cerebral aumenta com a elevação do hematócrito. Assim, concluise que, para a recomendação do uso terapêutico seguro dos ESA, mais estudos são necessários para a melhor compreensão dos fenômenos moleculares envolvidos em situações ainda não suficientemente esclarecidas. Alguns aspectos importantes a serem observados no uso terapêutico de ESA em pacientes renais crônicos: ■ Ainda que na doença renal crônica a anemia seja uma condição comum, causada principalmente pela diminuição da produção de eritropoetina pelos rins, antes de iniciar o uso de ESA é importante investigar e descartar outras condições subjacentes tratáveis, tais como deficiências de ferro ou vitaminas. A anemia da doença renal está associada a morbidade significativa, como aumento do risco de hipertrofia ventricular esquerda, infarto do miocárdio e insuficiência cardíaca, podendo ser considerada um multiplicador de mortalidade por outras causas ■ Infelizmente, até o momento, o único benefício incontestável do tratamento com ESA continua sendo a prevenção de transfusões de sangue. Por outro lado, os grandes ensaios clínicos randomizados que analisaram os benefícios de ESA mostram que seu uso pode estar associado ao aumento do risco de eventos cardiovasculares. Portanto, é recomendável que seu uso na doença renal crônica seja individualizado, não devendo ser iniciado a menos que o nível de hemoglobina seja inferior a 10 g/dℓ e a meta terapêutica não ultrapasse a obtenção de níveis de hemoglobina até 11,5 g/dℓ ■ Vários medicamentos inovadores para o tratamento da anemia renal estão em estudo, dentre os quais uma forma peguilada de rHuEPO, com meiavida prolongada, e uma nova e promissora classe de medicamentos, chamada de estabilizadores do HIF. Portanto, é esperado que a abordagem terapêutica da anemia renal evolua em um futuro próximo.
Uroguanilina Lucília Maria Abreu Lessa Leite Lima | Manassés Claudino Fonteles Ao longo dos últimos anos, foi descoberto muito sobre a regulação da excreção renal de sódio. No entanto, ainda existem mecanismos envolvidos neste processo que requerem melhor entendimento. Os rins apresentam ritmo diurno de excreção de sódio, que persiste apesar da ingestão constante desse íon. Ademais, estes órgãos têm a habilidade de variar a excreção de sódio em larga escala, em decorrência de mínimas alterações plasmáticas da concentração de sódio. O balanço deste eletrólito está ligado ao controle de volume de líquido extracelular, que envolve sensores de pressão arterial e venosa e de volume. No entanto, é difícil demonstrar esta relação em condições que ocorrem alterações mais modestas na ingestão de sódio. O conceito da existência de um mecanismo de regulação ligando o sistema digestório ao rim não é recente. A hipótese de um monitor gastrintestinal para o balanço de sódio foi proposta a partir da observação de que uma carga de sódio é mais rapidamente excretada após administração por via oral, quando comparada à administração de concentração equivalente por via intravenosa. Foi proposto que os peptídios guanilinasímile sejam os responsáveis por este mecanismo de regulação, ligando assim, a regulação intestinal e renal de sal e água, já que as guanilinas são produzidas no intestino em grandes quantidades, em resposta a uma dieta rica em sal.
FAMÍLIA DAS GUANILINAS A toxina termoestável (STa) é um pequeno peptídio secretado por cepas enterotoxigênicas da Escherichia coli, que aumenta a secreção de eletrólitos e água no lúmen intestinal, causando a conhecida diarreia infantil ou do viajante. No final da década de 1970, foi demonstrado que esta toxina age via o aumento das concentrações de cGMP nas células intestinais e, no início dos anos 1980, pesquisadores brasileiros demonstraram seus efeitos natriuréticos, caliuréticos e diuréticos. Em 1990, foi clonado um receptor do tipo guanilatociclase de membrana, GCC, do intestino de ratos, e demonstrado que o mesmo era ativado após ligação com a STa. Além disso, uma série de investigações revelou que a toxina STa ativaria
um receptor órfão (GCC) encontrado em rins, como também em outros órgãos de gambá. A busca por um análogo endógeno da STa que ativaria este receptor órfão levou à descoberta das guanilinas. Um ano após a descoberta da guanilina, um segundo peptídio similar à STa, chamado uroguanilina (UGN), foi isolado a partir de urina de gambá (Didelphis virginiana). As estruturas primárias de guanilina e uroguanilina são similares, e ambas compartilham alto grau de identidade com a toxina termoestável (STa). A guanilina humana consiste em 15 aminoácidos e possui duas pontes dissulfeto entre as cisteínas das posições de 4 a 12 e 7 a 15 (Figura 55.41). A uroguanilina humana consiste em 16 aminoácidos e também apresenta duas pontes dissulfeto nas mesmas posições (ver Figura 55.41). Estas pontes dissulfeto influenciam a conformação molecular e, desta maneira, a atividade biológica desses peptídios. A STa também apresenta 16 aminoácidos, sendo que existem três pontes dissulfídricas em sua estrutura. Os genes que codificam as guanilinas estão localizados no cromossomo 1 humano (p33 a p36) e no cromossomo 4 no rato. Guanilina e uroguanilina são codificadas por genes similares que consistem de três éxons e dois íntrons. Tanto guanilina como uroguanilina são sintetizadas como propeptídios, que estão presentes em grande quantidade no epitélio do intestino e são secretados no lúmen intestinal e na circulação, em resposta ao aumento de NaCl luminal. Além do mais, o mRNA para estes peptídios é encontrado em muitos outros tecidos como rim, cérebro, medula suprarrenal, miocárdio, pâncreas e epitélio das vias respiratórias superiores. O conhecimento da família das guanilinas vem crescendo ao longo dos anos; o último membro descoberto é a renoguanilina (RNG), isolada de enguias, e que tem similaridades estruturais com a uroguanilina. Foi sugerido que este novo peptídio seja participante ativo no processo de adaptação de peixes que migram da água doce para água salgada e viceversa.
▸ Efeitos biológicos e fisiológicos Os efeitos gerais da uroguanilina, guanilina e STa foram comparados em experimentos com células renais e intestinais, verificandose aumento na concentração intracelular de cGMP, promovido pelos três agonistas em células OK (rim de gambá/opossum) e T84 (intestinal). A ativação do receptor de guanilatociclase nestas linhagens celulares revelou uma ordem de potência distinta, ou seja: STa – uroguanilina – guanilina. Além disso, em outro estudo, utilizando a técnica de perfusão de rim isolado de rato, ficou demonstrado que o efeito natriurético estimulado pelos peptídios é mais pronunciado após o tratamento com uroguanilina do que com guanilina. Uma característica estrutural que pode estar relacionada à maior potência de STa e uroguanilina, em comparação à guanilina, seria: a uroguanilina e os peptídios ST de bactérias apresentam resíduos de asparagina conservados em suas estruturas primárias (ver Figura 55.41), os quais conferem resistência ao ataque por endopeptidases, tipo quimiotripsina. Em contraste, a guanilina é rapidamente degradada e inativada por hidrólise, em resíduos de tirosina ou fenilalanina da alça Cterminal do peptídio. Além disso, em rins perfundidos, inibidores de proteases aumentam a atividade biológica da guanilina.
Figura 55.41 ■ Estrutura primária das guanilinas em diferentes espécies animais, e de peptídios de toxinas termoestáveis bacterianas. Os peptídios estão alinhados usando os resíduos de cisteína conservados, encontrados nas quatro classes de peptídios. Note o resíduo de asparagina (N) observado na estrutura da uroguanilina e das toxinas bacterianas.
Inicialmente, foi considerado que o principal papel fisiológico dos peptídios, guanilina e uroguanilina, seria regular a secreção de líquido e eletrólitos através do epitélio intestinal. No entanto, estudos utilizando camundongos transgênicos deficientes em RGCC, em guanilina, ou uroguanilina indicam que esses animais parecem não desenvolver grandes anormalidades na secreção de líquido intestinal. Estes achados sugeriram que outros papéis fisiológicos para a guanilina e a uroguanilina poderiam existir, incluindo a regulação da função renal, com a ativação de vias paralelas, como a sinalização pela proteína G. Com a posterior demonstração de efeitos renais promovidos por estes peptídios, e sendo a uroguanilina, o peptídio endógeno com ações mais efetivas, vem sendo postulado que este peptídio atuaria nos rins através de um eixo endócrino, ligando o sistema digestório ao rim na regulação da homeostase hidrossalina, como já referido.
UROGUANILINA E HOMEOSTASE HIDROSSALINA
A uroguanilina é expressa em todo o trato intestinal, e existe em concentrações apreciáveis no plasma de humanos e de outros animais. Como mencionado anteriormente, é resistente à clivagem por proteases, sendo facilmente isolada da urina de mamíferos. Ademais, foi demonstrado que a expressão intestinal de uroguanilina pode ser regulada pela quantidade de ingestão de sal e pela hipertonicidade extracelular. Efeitos renais da uroguanilina incluem: natriurese, caliurese, clorurese, diurese e aumento da excreção de cGMP. Ademais, foi demonstrado que a dieta rica em sal aumenta a expressão da uroguanilina no rim de camundongos, como também aumenta a resposta natriurética e a excreção urinária do peptídio. Recentemente, foi observado que o tratamento de animais com dieta rica em sódio potencializa marcadamente a resposta à uroguanilina, mesmo em concentrações antes incapazes de ativar a GCC. Foi observado também que, nestas condições, aumenta a expressão deste receptor. Camundongos que não expressam uroguanilina desenvolvem aumento significativo da pressão arterial e, quando submetidos a dieta rica em sal, o efeito natriurético diminui significativamente. Além disso, estes camundongos desenvolvem alterações no processo de redistribuição da isoforma NHE3 do trocador Na+/H+, em túbulos proximais, aumentando a reabsorção proximal de sódio. É amplamente conhecido que pacientes com síndrome nefrótica apresentam aumento dos níveis plasmáticos e urinários de uroguanilina. Ademais, a expressão de mRNA para o peptídio também se encontra aumentada nos rins destes pacientes. Este achado pode estar relacionado ao fato de que na síndrome nefrótica aumenta a retenção de NaCl pelos rins, o que estimula a produção de uroguanilina. Além disso, em pacientes com retenção de sódio secundária à insuficiência cardíaca congestiva, os níveis urinários de uroguanilina estão significativamente aumentados, o que indica a participação da uroguanilina nos grandes edemas. Dessa forma, a uroguanilina participa da regulação da homeostase hidrossalina, particularmente, com relação ao manejo da dieta rica em sal. Além disso, existem mecanismos que regulam a produção e/ou secreção de uroguanilina quando a retenção de sódio ocorre secundariamente a processos patológicos nos rins, coração, ou outros órgãos. O aumento nos níveis de mRNA para uroguanilina tanto em células intestinais como em renais, em resposta a um incremento no conteúdo de NaCl na dieta, sugere que as ações endócrina e parácrina/autócrina podem participar dos mecanismos de sinalização tubular que governam o transporte de sal. O principal sítio de expressão de uroguanilina em intestinos de ratos são as células enterocromafins. Estudos recentes demonstram que a uroguanilina é estocada especialmente neste tipo celular e liberada na circulação na forma de seu precursor, a prouroguanilina. O mesmo acontece com outros peptídios hormonais, como ANP, que é estocado quase exclusivamente na forma propeptídio inativa. Foi demonstrado também que a infusão de prouroguanilina em ratos promove efeitos natriuréticos e diuréticos. O processo de conversão da prouroguanilina em sua forma ativa ocorreria no lúmen dos túbulos renais. O sítio intrarrenal onde o processo de conversão de prouroguanilina à uroguanilina ocorre ainda não foi identificado. No entanto, tem sido sugerido que o propeptídio intacto poderia passar através da barreira de filtração glomerular e o processamento para conversão ao peptídio ativo ocorreria dentro do lúmen tubular, através de proteases residentes na borda em escova epitelial do túbulo proximal. Esta hipótese é considerada pelo fato de que a prouroguanilina circula no plasma como um peptídio de 9,4 kDa, não complexado com proteínas carreadoras, e, assim, é pequena o bastante para ser livremente filtrada. Além disso, o curso de tempo do clearance de prouroguanilina do plasma é bastante similar ao da inulina, o que reforça a ideia de que o clearance renal de prouroguanilina é devido à filtração e não à secreção. Na Figura 55.42 há o desenho esquemático do modelo proposto para a ação da uroguanilina na homeostase hidrossalina. De acordo com tal modelo, a ingestão de sal estimularia a secreção apical e basolateral de prouroguanilina pelas células enterocromafins presentes principalmente no intestino delgado. A prouroguanilina, que seria secretada pela membrana apical das células, seria convertida à uroguanilina por proteases presentes no lúmen intestinal. Dessa forma, a uroguanilina regularia os mecanismos de transporte epitelial de eletrólitos. O resultado principal seria o aumento da secreção de cloreto via CFTR (cystic fibrosis transmembrane regulator) e HCO3–, através da ativação do trocador Cl–/HCO3– e supressão da absorção de sódio pela inibição do permutador NHE3 a partir do lúmen intestinal. Em paralelo, a prouroguanilina secretada pela membrana basolateral alcançaria os rins, onde seria filtrada e convertida em peptídios menores e/ou aminoácidos livres. Os aminoácidos livres retornariam à circulação, e a uroguanilina ativa atuaria nos segmentos do néfron regulando o transporte tubular de eletrólitos, resultando na diminuição da reabsorção de sal pelos túbulos proximais, por inibição do permutador NHE3 e inibição da bomba Na+/K+ATPase. Em segmentos distais, este peptídio estimula a secreção de potássio via canais MAXIK+, além de inibir a secreção de hidrogênio pela H+ATPase, como demonstrado por microperfusão renal. Vale salientar o envolvimento da via da PKG/cGMP nos mecanismos de sinalização para estes efeitos. Dessa forma, esta via endócrina poderia coordenar a atividade dos dois principais órgãos
envolvidos na homeostase de eletrólitos: o intestino, onde o sal é absorvido, e o rim, onde o sal é excretado. Além disso, a liberação de prouroguanilina poderia ocorrer também em resposta a uma expansão de volume, como já observado durante a produção e liberação de ANP. Ambos os peptídios agem de forma sinérgica, modulando a excreção de sal.
Figura 55.42 ■ Esquema do modelo para a resposta pósprandial à ingestão de sal em ratos. A descrição da figura se encontra no texto. UGN, uroguanilina; proUGN, prouroguanilina; CE, células enterocromafins. (Adaptada de Qian et al., 2008.)
Assim, no processo evolutivo, as guanilinas apareceram bem cedo, já que são encontradas em todas as espécies animais examinadas (mamíferos, aves e peixes). Este fato indica a importância desses hormônios na manutenção da homeostase de água e eletrólitos em paralelo com outros agentes regulatórios já conhecidos, como o sistema renina angiotensinaaldosterona, argininavasopressina (AVP), e peptídios natriuréticos como o ANP. Tanto os sítios das ações, como as vias de sinalização das guanilinas no rim, são objeto de pesquisas recentes, e representam um campo novo, em expansão. Novas vias de sinalização celular continuam a ser exploradas, sobretudo no que tange às grandes alterações promovidas por dietas ricas em sal, tão comuns na sociedade hodierna. Certamente a GC C continua sendo o principal receptor para os efeitos da uroguanilina no intestino. Nos rins, esta via é igualmente importante, mas, foram demonstradas outras rotas de sinalização, como a produção de eicosanoides e proteína G sensível à toxina pertussis. Não menos importantes são os outros papéis biológicos demonstrados para a uroguanilina, em que este peptídio se apresenta como potente agente indutor de apoptose em células neoplásicas de diversas linhagens. Por ações cerebrais seria um modulador da homeostase energética, regulando a saciedade e reduzindo a obesidade. Além disso, recentemente, foram sintetizados fármacos análogos da uroguanilina, agonistas da GCC, para o tratamento de distúrbios gastrintestinais, tais como constipação intestinal idiopática crônica e síndrome do intestino irritado seguida de constipação intestinal.
Endotelinas Maria Oliveira de Souza
SISTEMA ENDOTELINAS A partir de 1985, foi demonstrada a importância das células endoteliais na síntese e liberação de um fator com ação contrátil, que mais tarde foi purificado e identificado como endotelina (ET). Nas células endoteliais, a endotelina é sintetizada na forma de prépróendotelina, molécula inativa constituída por 212 aminoácidos (aa), que ao ser liberada na corrente sanguínea é clivada por endopeptidases (como a furina) para gerar o peptídio de 38 aminoácidos (próendotelina ou big endotelina), com baixa atividade vasoativa. A próendotelina, por sua vez, pode ser clivada pela enzima conversora de endotelina (ECE), e o produto dessa clivagem forma o peptídio ativo endotelina, com apenas 21 aminoácidos. A endotelina pode ser sintetizada a partir de três genes diferentes, dando origem a três isoformas distintas: ET1, ET2, e ET3 (Figura 55.43). A transcrição gênica das endotelinas é sensível a diversos fatores, como angiotensina II, vasopressina, interleucina1 e peptídios natriuréticos. As endotelinas são sintetizadas por vários tecidos, onde atuam como moduladores do tônus vascular, proliferação e diferenciação celular e produção de hormônios. Dos três peptídios, a ET1 é sintetizada, predominantemente, pelas células endoteliais e no plasma; suas concentrações podem variar entre 0,1 pM e 0,4 pM. Apesar dos baixos níveis plasmáticos, a ET1 está associada a diversas patologias, incluindo doenças cardiovasculares, diabetes melito tipo 2 e doenças renais. A ET2 é sintetizada nos rins, intestino e em menor quantidade no miocárdio, placenta e útero. No entanto, seu papel biológico não está bem esclarecido. A ET3 é encontrada no cérebro, no intestino, nos pulmões e nos rins e está envolvida com hipertensão pulmonar e doenças renais.
▸ Receptores para endotelinas Os efeitos biológicos das endotelinas são mediados por receptores ETA e ETB, acoplados à proteína Gq. ET1 e ET2 apresentam similar capacidade de interação com os receptores ETA e ETB, enquanto a ET3 interage essencialmente com os receptores ETB. Os receptores ETA são abundantes nas células da musculatura lisa vascular, miócitos, e em menor quantidade em várias células epiteliais. Os receptores ETB são encontrados em células endoteliais, da musculatura lisa vascular e dos túbulos renais. No entanto, as respostas teciduais mediadas pelos efeitos das endotelinas são complexas e dependem da expressão e localização de seus receptores, bem como a via de sinalização intracelular ativada. Nas células da musculatura lisa vascular, a ativação do receptor ETA pela endotelina 1 resulta em ativação da fosfolipase C (PLC) e consequente aumento de vários mensageiros intracelulares, incluindo o íon cálcio, o qual favorece as respostas contráteis e regula a atividade de outras proteínas intracelulares como algumas isoformas da família de proteinoquinases C (PKC). Já nas células endoteliais a ativação do receptor ETB pela endotelina 1 pode induzir aumento do óxido nítrico (NO) e de prostaglandina E2 (PGE2), moléculas que atuam por via parácrina nas células da musculatura lisa vascular, para induzir vasodilatação. Outra função importante do receptor ETB é a sua atuação como receptor de clearance. Nesse contexto, quando os níveis circulantes de endotelina 1 ultrapassam a condição fisiológica, as moléculas peptídicas interagem com os receptores ETB e, então, estes complexos são internalizados pelas células dos pulmões, rins e fígado, sendo rapidamente degradados pelos lisossomos.
Figura 55.43 ■ Esquema representativo da biossíntese de endotelinas 1, 2 e 3.
▸ Endotelina 1 e função renal Os rins são órgãos importantes para a biologia do sistema endotelinas, pois produzem endotelina 1, e são sítios para ação de todas as endotelinas, em virtude da ampla distribuição dos receptores ETA e ETB (Figura 55.44). Os receptores ETA são extensamente distribuídos nas células musculares lisas vasculares das artérias arqueadas e arteríolas glomerulares, bem como nos vasos retos, o que demonstra a influência de ET1 na regulação da hemodinâmica renal, controlando o fluxo sanguíneo renal (FSR) e o ritmo de filtração glomerular (RFG). Entretanto, quando a produção de ET1 sistêmica ou intrarrenal é aumentada, os parâmetros hemodinâmicos renais são afetados, uma vez que o peptídio induz aumento da resistência vascular renal por vasoconstrição das arteríolas aferentes e eferentes e pelas artérias arqueadas e interlobulares. Consequentemente, há redução do fluxo sanguíneo renal, do ritmo de filtração glomerular e da queda na reabsorção de sódio e de água. Além das artérias e arteríolas renais, a ET1 também atua para regular o fluxo sanguíneo medular, especialmente por estimular o receptor ETA nos pericitos – células relativamente indiferenciadas com capacidade contrátil e associadas às paredes de vasos retos. Assim, como em outros leitos vasculares, as respostas contráteis de ET1 na vasculatura renal são mediadas predominantemente pelo receptor ETA e envolvem alterações dos níveis de cálcio da célulaalvo. Os receptores ETB são expressos nos glomérulos e em maior número no sistema tubular (proporção 1:2), incluindo os ductos coletores, onde regulam o manejo de eletrólitos e água, favorecendo a natriurese em alguns modelos animais.
Figura 55.44 ■ Esquema representativo da distribuição de receptores para endotelina (ETA e ETB) nas porções do néfron. AA, arteríola aferente; AE, arteríola eferente; G, glomérulo; TP, túbulo proximal; AH, alça de Henle; TD, túbulo distal; DC, ducto coletor. (Adaptada de Kohan et al., 2011.)
O efeito natriurético de ET1 via receptor ETB se dá especialmente quando há aumento de ET1 no plasma. Nessa condição, a ativação das vias de sinalização celular associadas à atividade da PKC, phosphatidylinositol4,5bisphosphate 3kinase/proteinoquinase B (PI3K/Akt) e cálcio intracelular resulta em queda da atividade de: (a) Na+/K+ATPase; (b) isoforma 3 do trocador Na+/H+ (NHE3) – localizado na membrana luminal do túbulo proximal; (c) cotransportador Na+
K+2Cl– – localizado na membrana luminal do ramo espesso da alça de Henle; e (d) canal epitelial de sódio (ENaC) – localizado no néfron distal (Figura 55.45). Além de controlar a hemodinâmica e o manejo renal de eletrólitos, a ET1, via ativação do receptor ETA, também contribui para a progressão de várias patologias, incluindo insuficiência cardíaca crônica, hipertensão arterial, aterosclerose, hipertensão pulmonar e espasmo cerebrovascular. No rim, a interação ET1/ETA induz estresse oxidativo e inflamação, na injúria renal aguda (IRA). O processo inflamatório, por sua vez, quando associado à síntese de moléculas como o fator nuclear kappa B (NFκB), fator de necrose tumoral alfa (TNFα), e interleucinas 1 e 6 (IL1 e IL6), sustenta a progressão da injúria renal aguda para a doença renal crônica (DRC). Na DRC, a ET1, além de manter o processo inflamatório, promove a diferenciação de fibroblastos e induz a síntese e a deposição de componentes na matriz extracelular, o que leva a disfunção glomerular e tubular renal com consequente proteinúria. Assim, a terapia com antagonistas do receptor ETA pode ser uma boa alternativa para casos em que os tratamentos convencionais não são suficientes para a redução da hipertensão arterial, especialmente quando esta é associada a gestação, diabetes e proteinúria.
Figura 55.45 ■ Efeito da endotelina 1, via receptor ETB, no transporte de sódio nas diferentes porções do néfron. ML, membrana luminal; MBL, membrana basolateral.
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Introdução
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Exemplos de tubulopatias do segmento proximal Exemplos de tubulopatias do ramo grosso ascendente
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Exemplo de tubulopatia do segmento distal convoluto Exemplo de tubulopatia do túbulo coletor Acidose tubular renal de origem hereditária
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ATR distal tipo 1 ATR proximal tipo 2
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ATR combinada (proximal/distal) tipo 3 Conclusão Bibliografia
INTRODUÇÃO A compreensão dos mecanismos moleculares de transporte transcelular de íons nos diferentes segmentos do néfron vem sendo aprimorada pela análise de tubulopatias de origem genética. As alterações funcionais de proteínas transportadoras causam doenças com amplo espectro fenotípico. Neste capítulo, serão abordados alguns desses distúrbios com a finalidade de ressaltar, pela análise da perda da função, os mecanismos fisiológicos desses transportadores. Adicionalmente, utilizando o conhecimento disponível sobre determinadas tubulopatias, serão aproximados os estudos fisiológicos básicos aos advindos da clínica, para melhor compreensão das interrelações dos diferentes transportadores iônicos. Os exemplos clínicos foram escolhidos na tentativa de fixar o conteúdo apresentado em capítulos anteriores, sem qualquer preocupação de um estudo sistemático.
EXEMPLOS DE TUBULOPATIAS DO SEGMENTO PROXIMAL
▸ Doença de Dent Várias síndromes familiares raras, caracterizadas pela perda da capacidade funcional do túbulo proximal em reabsorver solutos, foram descritas no século XX. Com a intenção de aprofundar o entendimento dos mecanismos de transporte presentes nesse segmento do néfron, será analisada a doença de Dent, uma das causas de nefrolitíase (cálculo renal). A nefrolitíase é uma doença muito comum, sendo caracterizada pela formação recorrente de cálculos renais. É predominante no sexo masculino; apenas cerca de 30% dos casos ocorre em mulheres. Os cálculos mais frequentes são de sais de cálcio, principalmente fosfato e oxalato; os formados por cistina (dímero da cisteína), urato e Mg(NH4)PO4 (estruvita) são menos comuns.
Em 1964, Dent e Friedman descreveram uma forma hereditária rara de nefrolitíase associada ao cromossomo X, caracterizada pela presença de proteinúria de baixo peso molecular acompanhada, na maioria dos casos, por hipercalciúria, nefrocalcinose, raquitismo e, algumas vezes, por insuficiência renal. Foram descritas síndromes semelhantes em diferentes países, tendolhes sido atribuídos nomes diferentes: síndrome de Dent, no Reino Unido, raquitismo hipofosfatêmico recessivo associado ao cromossomo X, na Itália e na França, e síndrome da proteinúria de baixo peso molecular com hipercalciúria e nefrocalcinose, no Japão. Atualmente, é aceito que cerca de 50 a 60% dos pacientes com doença de Dent apresentam mutações do gene CLCN5, que codifica o transportador ClC5, e que cerca de 15% têm mutações do gene OCRL1, que codifica a fosfatidilinositol 4,5bifosfato 5fosfatase. Porém, entre 25 e 35% dos pacientes com características clínicas da doença de Dent não apresentam mutações em nenhum desses dois genes, indicando a possibilidade de outros genes estarem envolvidos com a origem da doença. Inicialmente, foi identificado como causa da doença de Dent o defeito do gene CLCN5, localizado na região 11.22 11.23 do cromossomo X. Posteriormente, foi demonstrado que o produto por ele codificado é um transportador de cloreto sensível à voltagem, o ClC5, que pertence à família dos canais de cloreto que inclui o ClCKb, cujas mutações causam um dos tipos de síndrome de Bartter, que será analisada mais adiante. Atualmente, já foram identificadas mais de 30 mutações na sequência do ClC5. Enquanto os transportadores ClC1, 2, Ka e Kb estão predominantemente localizados na membrana plasmática, os transportadores ClC3, 4, 5, 6 e 7 localizamse, principalmente, nas vesículas endocíticas e lisossomais (sendo que ClC3, 4 e 5 apresentam 80% de homologia em suas sequências). A maioria das organelas celulares que apresentam esses transportadores são acidificadas por H+ATPases vesiculares. Os primeiros estudos realizados em pacientes portadores da doença de Dent e em camundongos knockout (ou KO) para o ClC5 (i. e., que não têm esse canal funcionante) indicaram a importância fisiológica desse transportador na reabsorção de proteínas de baixo peso molecular no túbulo proximal (ver Figura 52.10 no Capítulo 52, Excreção Renal de Solutos). Por meio de métodos de imunofluorescência e imunomicroscopia eletrônica, foram obtidos os seguintes dados experimentais: ■ As proteínas de baixo peso molecular que são filtradas no glomérulo são reabsorvidas, por endocitose, no túbulo proximal, local onde os transportadores ClC5 apresentam grande expressão ■ Os transportadores ClC5 se apresentam colocalizados com ATPases tipo V na região abaixo da borda em escova dos túbulos proximais, rica em vesículas endocíticas ■ Quando utilizada proteína marcada radioativamente, verificase que ela é reabsorvida nessa região e se localiza em endossomos que expressam o ClC5. A partir do entendimento vigente na época, de que o ClC5 seria um canal de cloreto, foi proposto que os endossomos seriam acidificados pelo influxo de H+ promovido pela H+ATPase, que dependeria do fluxo paralelo de um ânion (Cl–) para operar adequadamente. Assim considerado, e tendo por base os dados experimentais expostos anteriormente, foi sugerido que o ClC5, atuando como um canal, permitiria a formação de gradientes transvesiculares de pH, o que seria essencial para a endocitose proteica no túbulo proximal. Essa hipótese foi confirmada com estudos em camundongos KO para o ClC5, que reproduziram a proteinúria de baixo peso molecular característica dos portadores da doença de Dent. Estudos eletrofisiológicos recentes demonstraram, todavia, que o ClC5 é um permutador 2Cl–/H+, eletrogênico e dependente de voltagem, e não um canal de cloreto, como foi entendido inicialmente. Assim sendo, o ClC5 permite o vazamento do íon hidrogênio do interior da vesícula e leva ao acúmulo do íon cloreto no seu interior. Para verificar se a doença de Dent decorreria ou não de uma acidificação inadequada do endossomo, em 2010, Novarino et al. desenvolveram um camundongo com uma mutação que converte o permutador 2Cl–/H+ em um canal de cloreto. Como esperado, a acidificação dos endossomos foi normal nos animais em que o ClC5 desempenhava a função de canal de cloreto, mas estava gravemente comprometida nos animais com knockout para o ClC5. Os animais em que o ClC5 funcionava como canal de cloreto, ainda que acidificassem normalmente os endossomos, desenvolveram quadro semelhante ao da doença de Dent humana, resultado parecido com o obtido nos animais knockout para o ClC5. Essas descobertas, que excluem a hipótese originalmente formulada, sugerem que a redução do acúmulo de cloreto endossomal possa ser importante na gênese da doença de Dent e indicam que a concentração de cloreto possa desempenhar importante papel na fisiologia dessa organela. O papel do ClC5 presente nos endossomos das células tubulares proximais, todavia, ainda não está suficientemente esclarecido, não sendo possível, no momento, estabelecer os mecanismos intrínsecos envolvidos na gênese dessa doença.
Mais recentemente, foram identificadas mutações no gene OCRL1 – localizado na região q25 do cromossomo X, que codifica a fosfatidilinositol 4,5bifosfato 5fosfatase, enzima relacionada com o processo de endocitose – que dão origem à doença de Dent tipo 2. Nesta enfermidade, ao lado de alterações renais similares às observadas na doença de Dent tipo 1, anteriormente descritas, ocorrem sintomas extrarrenais, tais como catarata subclínica, hipotonia e retardo mental ameno. Os mecanismos que levam a esses distúrbios podem ser atribuídos ao papel da fosfatidilinositol 4,5bifosfato 5fosfatase, codificada pelo gene OCRL1, no tráfego lisossômico e na triagem endossomal. O substrato preferencial dessa enzima é o fosfatidilinositol 4,5bifosfato (PIP2), que, pela hidrólise do fosfato 5’, é degradado em fosfatidilinositol 4fosfato. O PIP2 tem importante papel na regulação da cinética do citoesqueleto e, assim, em diversos passos envolvidos na endocitose. A ausência ou perda funcional da fosfatidilinositol 4,5bifosfato 5fosfatase leva, portanto, ao acúmulo de PIP2 no interior das células do túbulo proximal, o que responde pelas alterações do tráfico endocítico responsáveis pelos sintomas da doença de Dent tipo 2. Tanto as mutações do gene CLCN5 como as do gene OCRL1, por causarem disfunções do processo de endocitose, levam à perda de proteínas de baixo peso molecular, um dos sintomas característicos da doença de Dent.
▸ Hipercalciúria e hiperfosfatúria Uma das mais importantes funções da endocitose no túbulo proximal é a conservação de vitaminas essenciais, tais como o retinol e a vitamina D, que, juntamente com as proteínas de ligação, são reabsorvidas nesse segmento. Enquanto as proteínas de ligação são degradadas nos lisossomos, as vitaminas a elas ligadas são reabsorvidas, como o retinol. No caso da vitamina D, como veremos adiante, após a endocitose, ela é transformada na forma ativa antes de ser reabsorvida para o sangue. Tanto nos animais KO para o ClC5 como nos pacientes com a doença de Dent, foi observada perda urinária massiva de retinol, vitamina D e suas proteínas de ligação. Para a vitamina D, esta situação é complexa em razão da influência da paratireoide no metabolismo da vitamina D. O hormônio da paratireoide (PTH) aumenta a produção de vitamina D3 ativa [ou 1,25(OH)2VitD3] no túbulo proximal, pelo estímulo da transcrição da enzima 1αhidroxilase, que converte o precursor inativo [ou 25(OH)VitD3] na vitamina D3 ativa. Sendo um pequeno peptídio, o PTH é livremente filtrado e posteriormente reabsorvido via endocitose no túbulo proximal. Nesse segmento do néfron, os receptores para esse hormônio estão presentes tanto na membrana basolateral como na luminal. A perda da capacidade endocítica, decorrente das mutações do CLCN5 ou do OCRL1, resulta no aumento da concentração luminal de PTH e consequente aumento da ativação de seus receptores luminais (PTHR). O aumento da concentração do hormônio no lúmen do túbulo proximal estimula a transcrição da 1αhidroxilase por meio dos receptores luminais, o que eleva a relação entre as concentrações plasmáticas de vitamina D3 ativa e seu precursor inativo nos camundongos KO para ClC5 (Figura 56.1 A). Entretanto, a concentração plasmática absoluta da vitamina D3 ativa não fica necessariamente elevada, pois a falta do ClC 5 funcional reduz drasticamente a reabsorção do precursor da vitamina D3 no túbulo proximal. Dependendo das condições alimentares e de fatores genéticos, o balanço entre esses dois efeitos pode ocorrer em qualquer das duas direções. Em muitos portadores da doença de Dent, os níveis plasmáticos de vitamina D estão levemente aumentados, enquanto nos camundongos KO para ClC5 encontramse consistentemente diminuídos. É esperado que o nível plasmático elevado de vitamina D3 ativa estimule a reabsorção intestinal de cálcio, podendo, portanto, este íon ser excretado em maior quantidade pelos rins. Entretanto, o uso de camundongos KO para o ClC5 (que apresentam hipercalciúria e aumento dos níveis plasmáticos de vitamina D3 ativa) mostra que a disponibilidade do cálcio decorre do remanejamento ósseo desse íon, e não do aumento de sua reabsorção intestinal. A hiperfosfatúria encontrada na doença de Dent também parece ser um efeito secundário ao aumento da concentração urinária do PTH (Figura 56.1 B). A reabsorção de fosfato no túbulo proximal ocorre principalmente por meio do cotransportador NaPi (localizado na membrana luminal), o qual é inibido pelo PTH, via endocitose e degradação lisossomal (ver Capítulo 52). Como esperado, em camundongos KO para o ClC5 a quantidade de NaPi na membrana luminal está diminuída em razão do aumento da concentração luminal do PTH. Adicionalmente, nesses animais, o cotransportador NaPi está localizado principalmente nas vesículas intracelulares. Esses achados indicam que a fosfatúria encontrada na doença de Dent é decorrente do defeito primário da endocitose do PTH que ocorre nessa anomalia.
EXEMPLOS DE TUBULOPATIAS DO RAMO GROSSO ASCENDENTE
▸ Questões em torno da alcalose metabólica crônica
O desafio intelectual básico a que o pesquisador está sujeito é o de ser capaz de reconhecer causas distintas para situações semelhantes e causas comuns para situações distintas. Assim, a observação atenta de pacientes com alcalose metabólica crônica levou vários pesquisadores, nas décadas de 1950 e 1960, a tentar estabelecer diagnósticos sindrômicos a partir das outras manifestações apresentadas paralelamente a esse distúrbio metabólico. O desenrolar das descobertas científicas que iremos acompanhar a partir de então representa o trabalho de muitos cientistas ao longo de 40 anos de estudos, até a elucidação de algumas causas desse distúrbio. Em 1962, Frederic Bartter descreveu as seguintes anormalidades metabólicas em dois pacientes: alcalose metabólica hipoclorêmica acompanhada de perda urinária grave de potássio, hipopotassemia, hiperaldosteronismo e hiperplasia do aparelho justaglomerular. A singularidade desses casos residia no fato de que, ao contrário do que ocorre em pacientes com formas mais comuns de hiperaldosteronismo, esses eram jovens, apresentavam retardo mental brando e eram normotensos. Essa descrição causou interesse na comunidade científica, e muitos casos semelhantes foram, então, relatados. Pouco depois, ficou evidente um padrão de transmissão familiar, autossômico recessivo. Posteriormente, em 1966, Gitelman descreveu uma síndrome similar em três pacientes, caracterizada por alcalose metabólica acompanhada de aumento dos níveis plasmáticos de renina e depleção renal de magnésio e potássio, levando a hipomagnesemia e hipopotassemia. Essas características eram consistentes com um excesso de mineralocorticoides, exceto pela ausência de hipertensão. Em razão da hipomagnesemia, foi suposto que se tratava de uma variante da síndrome descrita por Bartter.
Figura 56.1 ■ Modelo para explicar a hipercalciúria e a hiperfosfatúria na doença de Dent. A. Alterações no metabolismo de vitamina D. O paratormônio (PTH) é normalmente filtrado no glomérulo e reabsorvido no túbulo proximal por endocitose (mediada pela megalina) com posterior degradação intravesical. A perda da capacidade endocítica decorrente da disfunção do ClC5 resulta no aumento da concentração luminal de PTH e consequente aumento da ativação de seus receptores luminais (PTHR). Isso estimula a transcrição mitocondrial da enzima 1αhidroxilase (1αHYD), que catalisa a conversão de 25(OH)VitD3, precursor da vitamina D, em 1,25(OH)2VitD3, seu metabólito ativo. Por sua vez, a vitamina D3 ativa causa, indiretamente, hipercalciúria em razão de aumentar a reabsorção intestinal de cálcio. Porém, a 25(OH)VitD3 ligada à DBP, sua proteína de ligação, é reabsorvida apicalmente, por endocitose dependente da megalina e do ClC5; assim, o defeito na endocitose presente na doença de Dent leva à menor disponibilidade de substrato para a 1αHYD. Há, portanto, um delicado balanço entre
a ativação da enzima e a disponibilidade do precursor, o que pode levar tanto ao aumento como à diminuição da produção de vitamina D3 ativa. Além disso, o hormônio ativo também pode ser perdido na urina. Isso pode explicar o fato de a hipercalciúria ser muito variável, tanto entre os pacientes da doença de Dent como nos diferentes modelos de camundongos KO para ClC 5. B. Mecanismos causadores de fosfatúria. A falta de ClC5 funcional reduz a endocitose do PTH, causando o aumento de sua concentração no túbulo proximal. Como o cotransportador luminal de fosfato de sódio NaPi é inibido pelo PTH, o qual causa sua endocitose e degradação, na falta de ClC5 funcional a reabsorção proximal de fosfato é deprimida, ocorrendo consequente fosfatúria. (Adaptada de Jentsch et al., 2005.)
Clinicamente, essas síndromes são diferenciadas com base na concentração plasmática de magnésio e na concentração urinária de cálcio, sendo a síndrome de Gitelman confirmada pela hipomagnesemia e hipocalciúria. Outra diferença importante é que a síndrome de Bartter típica, geralmente, ocorre antes dos 6 anos de idade e apresenta sintomas graves, tais como desidratação e retardo do crescimento. Ao contrário, a síndrome de Gitelman manifestase na adolescência e início da vida adulta, com predomínio de sintomas neuromusculares, tais como cãibra, fadiga, fraqueza muscular, irritabilidade e espasmos nas mãos e nos pés. Em alguns casos, foram relatadas manifestações graves como tetania, paralisia e rabdomiólise (ruptura de células musculares com extravasamento de seu conteúdo para a corrente sanguínea). Por muitos anos, a sobreposição das características fisiológicas e a variabilidade fenotípica dessas duas síndromes dificultaram sua diferenciação, sendo que muitos pacientes com síndrome de Gitelman foram diagnosticados, equivocadamente, como portadores da síndrome de Bartter. Mais tarde, a análise genética de pacientes de uma mesma família permitiu classificar a síndrome de Bartter em pelo menos três grandes grupos fenotípicos: variante prénatal (ou síndrome de hiperprostaglandina E), que seria caracterizada por prematuridade, polidrâmnio (aumento do líquido amniótico) e desidratação ao nascimento; síndrome de Bartter clássica, que acometeria crianças e seria caracterizada por distúrbios graves de crescimento; e síndrome de Gitelman, que acometeria adultos, sendo caracterizada por hipomagnesemia, hipercalcemia e hipocalciúria. Entretanto, estudos genômicos mais recentes revelaram que a síndrome de Gitelman tem causa totalmente diferente da síndrome de Bartter, como veremos a seguir.
▸ Síndrome de Bartter Os mecanismos moleculares envolvidos na síndrome de Bartter evidenciam a complexidade das dependências entre os diferentes sistemas de transporte iônico presentes nas células do ramo ascendente grosso da alça de Henle. Neste segmento do néfron ocorre cerca de 20% da reabsorção do NaCl e 70% do íon magnésio ultrafiltrados. Como analisado com detalhes no Capítulo 51, Função Tubular, e no Capítulo 53, Papel do Rim na Regulação do Volume e da Tonicidade do Líquido Extracelular, neste segmento há a dissociação entre a reabsorção de soluto e água, o que lhe confere a capacidade de diluir o fluido tubular. Paralelamente e em consequência da diluição do fluido luminal, ocorre a concentração do interstício medular. Esta etapa é necessária para a reabsorção de água no túbulo coletor, a qual se dá pela inserção, promovida pelo ADH, de aquaporina tipo 2 na membrana luminal das células principais desta porção do néfron. De fato, a perda da capacidade de diluição do fluido tubular no ramo grosso ascendente tem como consequência a impossibilidade de a urina ser concentrada pela reabsorção de água no sistema coletor do néfron. O arranjo de diferentes transportadores iônicos nas membranas luminal e basolateral das células tubulares do ramo grosso ascendente lhes confere características funcionais muito particulares. Como representado na Figura 56.2, o cotransportador eletroneutro 1Na+:1 K+:2Cl– (NKCC2), presente na membrana luminal, é fundamental neste processo. Através dele, os íons Na+, K+ e Cl– entram para a célula, movidos pelo gradiente eletroquímico favorável à entrada do íon Na+, o qual é gerado pela Na+/K+ATPase presente na membrana basolateral. Esses três íons tomam caminhos distintos para saírem da célula. Enquanto o Na+ sai para o interstício através da Na+/K+ATPase, o Cl–atravessa a membrana basolateral via canais ClCKa e ClCKb. O K+, por sua vez, pode retornar para o lúmen tubular pelos canais ROMK presentes na membrana luminal ou passar para o interstício através de canais de K+ presentes na membrana basolateral. Isso acarreta duas consequências da maior importância. Primeiro, a recirculação do íon potássio na membrana luminal é fundamental para que ocorra o transporte através do cotransportador NKCC2. A magnitude da afinidade desse cotransportador ao potássio exige concentrações luminais adequadas desse íon para que, com todos os sítios de ligação aos três íons ocupados, o cotransportador possa sofrer as mudanças conformacionais que levam ao transporte iônico eletroneutro através da membrana luminal. Em segundo lugar, o vazamento do íon potássio para o lúmen tubular hiperpolariza a membrana luminal, contribuindo para a eletropositividade do lúmen em relação ao interstício. Isso gera parte do gradiente eletroquímico favorável à reabsorção dos íons Ca2+ e Mg2+através da via paracelular. Deve ser lembrado que, sendo o ramo grosso ascendente impermeável à água, a reabsorção de NaCl gera um gradiente transcelular de Na+, o
que leva a um retorno paracelular desse íon, contribuindo, assim, para a geração de parte do potencial transepitelial lúmen positivo característico desse segmento do néfron. É interessante observar, do ponto de vista termodinâmico, o fluxo de energia que ocorre por meio dos sucessivos processos de transporte iônico (ver Figura 56.2). Inicialmente, o gasto de energia metabólica por meio da Na+/K+ATPase gera um gradiente de concentração do íon sódio, o qual, via cotransportador NKCC2, forma, por sua vez, um gradiente químico para o íon potássio, cujo retorno para o lúmen tubular, via canais ROMK, origina um gradiente elétrico a ser utilizado para a reabsorção de magnésio e cálcio pela via paracelular.
Figura 56.2 ■ Mecanismos de transporte iônico no ramo grosso ascendente da alça de Henle e os cinco tipos da síndrome de Bartter (tipo I–tipo V). Em condições normais, o cloreto de sódio é reabsorvido no ramo grosso ascendente por meio do cotransportador NKCC2 sensível à furosemida e à bumetanida. A força motriz deste sistema decorre das baixas concentrações intracelulares dos íons Na e Cl, geradas pela Na+ /K+ ATPase e pelo canal de cloreto CICKb, localizados na membrana celular basolateral. A disponibilidade luminal de potássio é limitante para o NKCC2, sendo que a recirculação do K+ pela membrana luminal (através do canal de potássio tipo ROMK, regulado por ATP) garante o adequado funcionamento do NKCC2 e gera um potencial transepitelial lúmenpositivo. Estudos genéticos identificaram mutações com perda de função nos genes que codificam os transportadores NKCC2, ROMK e CICKb em diferentes subgrupos de pacientes com síndrome de Bartter. Ao contrário da situação normal, a perda de função do NKCC2 impede a reabsorção de sódio e potássio. A inativação do ROMK limita também a quantidade de potássio disponível para o NKCC2. A inativação do CICKb reduz a reabsorção transcelular de cloreto. A perda da função desses transportadores reduz o potencial elétrico transepitelial, diminuindo assim a força motriz para a reabsorção paracelular de cátions divalentes. Na maioria dos pacientes com a síndrome de Bartter a excreção urinária de cálcio está aumentada. A ativação do receptor sensível ao cálcio (CaSR) inibe a atividade do NKCC2, do ROMK e da Na+ /K+ ATPase, reduzindo a reabsorção de solutos neste segmento do néfron. Mutações que aumentam a sensibilidade do receptor ao íon cálcio inibem tanto a reabsorção de NaCl como a dos íons cálcio e magnésio, estas duas últimas dependentes do potencial lúmen positivo gerado pela recirculação do potássio na membrana luminal e do retorno paracelular do íon sódio. RGA, ramo grosso ascendente. Mais detalhes no texto.
A síndrome de Bartter decorre de mutações genéticas que codificam transportadores iônicos e o receptor de cálcio presentes no ramo ascendente grosso (descrito alguns parágrafos adiante). Atualmente, sabese que esses genes são: ■ Gene SLC12A1, que codifica o transportador apical NKCC2, cujas mutações causam a síndrome de Bartter tipo I ■ Gene KCNJ1, que codifica o canal luminal de K+ (tipo ROMK), cujas mutações causam a síndrome de Bartter tipo II ■ Genes da família CLC, que codificam os canais basolaterais de Cl– (ClCKa e ClCKb), cujas mutações causam a síndrome de Bartter tipo III ■ Gene BSND, que codifica a subunidade β dos canais basolaterais de Cl– (ClCK) (denominada barttina), cujas mutações causam a síndrome de Bartter tipo IV, também associada à surdez neurossensorial
Genes que codificam o receptor de cálcio (CaSR) na membrana basolateral, cujas mutações levam à hiperfunção desse ■ receptor e causam a síndrome de Bartter tipo V. Na síndrome de Bartter tipo I, diferentes mutações homozigotas determinam diminuição da função do cotransportador NKCC2. Esse defeito no cotransportador tríplice produz efeitos semelhantes aos causados pelos diuréticos de alça (como furosemida ou bumetanida). Os pacientes apresentam grande perda de cloreto de sódio e de potássio, hipopotassemia grave, alcalose metabólica, hipercalciúria, nefrocalcinose e perda da capacidade de concentração urinária, podendo evoluir para insuficiência renal. Tal anormalidade já foi descrita tanto na variante prénatal quanto na forma clássica da síndrome de Bartter. A síndrome de Bartter tipo II, decorrente de mutações com diminuição de função ou ausência dos canais ROMK, é descrita principalmente na forma prénatal. Nestes pacientes há participação importante de PGE2 na fisiopatologia da doença, sendo comum o uso de inibidores da COX2 como ferramenta terapêutica fundamental para melhora dos sintomas. A síndrome de Bartter tipo III é causada por mutações que levam à redução da função dos canais de Cl– presentes na membrana basolateral, principalmente o ClCKb. Como tais canais também são expressos no túbulo convoluto distal, há alguma semelhança fenotípica com a síndrome de Gitelman, com exceção da excreção urinária de Ca2+, diminuída nesta última anomalia. No ramo grosso ascendente, a menor saída do íon Cl– do meio intracelular para o interstício altera o gradiente eletroquímico, prejudicando assim a reabsorção luminal de NaCl. A síndrome de Bartter tipo III tem sido relacionada com a forma clássica de apresentação da doença. A síndrome de Bartter tipo IV, descrita mais recentemente, resulta de mutações que causam alterações na subunidade β do canal ClCK (ou barttina), prejudicando sua inserção na membrana basolateral. Tais pacientes, além de apresentarem síndrome de Bartter com grande perda renal de sal e retardo de crescimento, desenvolvem surdez neurossensorial pelo fato de a barttina estar associada à produção da endolinfa no ouvido médio. Já a síndrome de Bartter tipo V está associada à hiperfunção do receptor sensível ao cálcio extracelular (CaSR), presente na membrana basolateral desse segmento do néfron. A descoberta e clonagem do CaSR em glândulas paratireoides, em 1993, permitiu um melhor entendimento da regulação do transporte de cálcio no ramo grosso ascendente. O CaSR pertence à família de receptores acoplados à proteína G (GPCR, G protein coupled receptor) da classe II, a qual inclui os receptores para ácido gamaaminobutírico, glutamato metabotrópico e certos ferormônios. Esse receptor é codificado por 6 éxons do gene localizado no braço longo do cromossomo 3 (cromossomo 3q21q24). O CaSR é constituído de 1.078 resíduos de aminoácidos, apresentando um longo domínio extracelular (formado por 612 resíduos de aminoácidos, onde se encontra o sítio de ligação ao íon cálcio), um domínio carboxi (C)terminal intracelular (com cerca de 200 resíduos de aminoácidos) e 7 domínios intramembranais. É importante observar que este receptor não é ativado por aminoácido ou modificado por polipeptídio, mas por íons elementares inorgânicos (tais como Ca2+, Mg2+ e Gd3+) e policátions orgânicos (tipo neomicina e espermicina). Ainda que o CaSR não seja específico para o íon Ca2+, apresenta maior afinidade por esse cátion. Uma característica do CaSR é o fato de as regiões de ligação ao íon cálcio estarem localizadas no domínio extracelular e não nas alças extracelulares dos domínios transmembrana. Do ponto de vista funcional, o CaSR se apresenta como um dímero. O CaSR está expresso em vários segmentos do néfron. Nas células do ramo grosso ascendente localizase na membrana basolateral. Quando esse receptor é ativado pelo cálcio extracelular, uma proteína G ativa uma fosfolipase A2, levando à formação de ácido araquidônico. Através da via metabólica do citocromo P450, o ácido araquidônico é metabolizado em 20HETE, um eicosanoide. Este metabólito inibe tanto o canal ROMK como o cotransportador NKCC2. Desse modo, a diferença de potencial transtubular positiva não se estabelece, impossibilitando a reabsorção paracelular dos íons cálcio e magnésio. Na síndrome de Bartter tipo V, devido a uma hiperfunção do CaSR, essa inibição é deflagrada por menores concentrações plasmáticas de cálcio, levando a uma maior excreção urinária de cálcio, magnésio, sódio e potássio, além de perda da hipertonicidade medular e aparecimento de alcalose hipoclorêmica. A clonagem do CaSR permitiu a compreensão dos mecanismos envolvidos em desordens da homeostase do íon cálcio, provenientes de anormalidades na estrutura e/ou função desse receptor. Neste contexto, foram determinadas as disfunções provocadas por várias doenças geneticamente transmitidas, cuja análise escapa aos objetivos deste capítulo.
▸ Síndrome da hipomagnesemia hipercalciúrica (SHH) É interessante observar que, ao contrário do verificado nas síndromes de Bartter e de Gitelman (nas quais a perda urinária de cálcio e magnésio é acompanhada de hipopotassemia, alcalose metabólica e hiperaldosteronismo secundário),
em uma doença familiar rara, a síndrome da hipomagnesemia hipercalciúrica, ocorre unicamente a perda urinária de cálcio e magnésio. A manifestação principal da SHH é a nefrocalcinose, consistentemente associada à poliúria e, ocasionalmente, à nefrolitíase (a qual pode levar à insuficiência renal) e ao retardo mental. Pouco era conhecido a respeito da disfunção tubular relacionada com a gênese dessa síndrome, até ter sido verificado que essa doença está relacionada com mutações homozigotas do gene que codifica a paracelina1 (PRCL1). Esta proteína pertence à família das claudinas, tendo sido identificada por Simon e colaboradores em 1999, por clonagem posicional, em seres humanos. A paracelina1 tem 305 aminoácidos com 4 domínios transmembranais e 2 intracelulares (domínios terminais NH2 e COOH). Como sua estrutura é semelhante à das claudinas, recebeu o nome de claudina 16, constituindo o membro mais distante dessa família de proteínas. A PRCL1 tem 10 a 18% de homologia com as claudinas, apresentando grande semelhança no segmento do primeiro domínio extracelular, ao qual se atribui a função de estabelecer pontes entre as células. Ela está localizada nas tight junctions entre as células do ramo grosso ascendente. Mutações que levam à perda funcional da PRCL1 causam maciça perda renal de magnésio e cálcio acompanhada de nefrocalcinose e insuficiência renal. É conhecido que, a partir de unidades localizadas em células vizinhas, formamse dímeros, os quais apresentam características de um canal com seletividade para os íons magnésio e cálcio. Enquanto os canais anteriormente descritos permitem a passagem de solutos através de membranas, estes promovem a passagem de solutos por meio dos espaços paracelulares. Este seria o mecanismo pelo qual o magnésio e o cálcio seriam reabsorvidos via espaço paracelular, a favor do gradiente eletroquímico gerado pelo transporte iônico que ocorre nesse segmento (descrito anteriormente). Adicionalmente, como há evidências de que a via paracelular é regulada pela concentração de magnésio, há a hipótese de que a PRCL1 possa funcionar como um sensor do íon Mg2+, que alteraria a permeabilidade paracelular por meio de outros fatores. Esta proteína pode representar uma nova família de transportadores que venha a explicar fenômenos até agora mal compreendidos de reabsorção paracelular de solutos ao longo do néfron. Como pudemos verificar, a análise dos dados obtidos em pacientes portadores dos diversos tipos da síndrome de Bartter e da SHH ajudou a compreensão da complexidade das interações dos diferentes transportadores envolvidos na função do ramo grosso ascendente.
EXEMPLO DE TUBULOPATIA DO SEGMENTO DISTAL CONVOLUTO
▸ Síndrome de Gitelman A síndrome de Gitelman é caracterizada pela ocorrência de alcalose metabólica hipopotassêmica em combinação com hipomagnesemia e baixa excreção urinária de cálcio. A prevalência é estimada em cerca de 1:40.000, e, consequentemente, a prevalência de heterozigotos é de aproximadamente 1% em populações caucasianas, tornandoa um dos mais frequentes distúrbios hereditários da função tubular renal. Na maioria dos casos, os sintomas não aparecem antes dos 6 anos de idade, sendo normalmente diagnosticada a doença na adolescência ou na idade adulta. Períodos transitórios de fraqueza muscular e tetania, por vezes acompanhados de dor abdominal, vômitos e febre, são frequentemente observados nesses pacientes. Também podem ocorrer parestesias, especialmente na face. Alguns pacientes permanecem assintomáticos até a idade adulta, quando se desenvolve condrocalcinose, o que causa inchaço, calor local e dor nas articulações afetadas. A pressão arterial é mais baixa do que na população em geral. Parada cardíaca súbita tem sido relatada ocasionalmente. Em geral, o crescimento é normal, mas pode ser retardado nos pacientes com hipopotassemia grave e hipomagnesemia. O diagnóstico inicial é fundamentado nos sintomas clínicos e alterações bioquímicas (hipopotassemia, alcalose metabólica, hipomagnesemia e hipocalciúria). Em geral, o prognóstico a longo prazo dessa doença é bom. Estudos de genética clínica mostraram que a síndrome de Gitelman é uma doença hereditária autossômica, causada por mutações no gene SLC12A3 localizado no cromossomo 16, o qual codifica o cotransportador Na+Cl– (NCCT). São conhecidas mais de 140 mutações diferentes do NCCT. Grande parte dos casos clínicos descritos apresenta alterações que levam a falhas de endereçamento do NCCT. Como visto no Capítulo 51, cerca de 7% da carga filtrada de NaCl é reabsorvida no túbulo convoluto distal. As células nesta porção do néfron expressam na membrana luminal o cotransportador NCCT, que é sensível aos diuréticos tiazídicos (Figura 56.3). Este transportador eletroneutro permite o influxo de Na+ e Cl– do lúmen tubular para a célula, a favor do gradiente de Na+ gerado pela Na+/K+ATPase, presente na membrana basolateral, por onde o Na+ sai da célula para o interstício, enquanto o Cl– sai por canais específicos também presentes nessa membrana. A perda da função do NCCT leva à redução da reabsorção de Na+ e consequente contração do volume extracelular, o que estimula o sistema reninaangiotensinaaldosterona. Nessa situação, aldosterona induz uma maior expressão dos canais apicais ENaC e
ROMK no túbulo coletor, o que compensa parcialmente o balanço de sódio. Adicionalmente, a aldosterona, por estimular a secreção de potássio e de hidrogênio, eleva a excreção urinária desses dois íons e, portanto, causa hipopotassemia e alcalose metabólica. Normalmente, no túbulo contornado distal também ocorre reabsorção de aproximadamente 8% da carga filtrada de 2+ Ca (ver Capítulo 52 e Figura 56.3). Através do canal TRPV5, localizado na membrana luminal, ocorre entrada do Ca2+ no interior celular, onde ele se liga à calbindinaD28 K, proteína carreadora que permitirá a apresentação desse íon aos transportadores presentes na membrana basolateral, a saber, o permutador 3Na+/1Ca2+ (NCX1) e a Ca2+ATPase (PMCA1b), que permitirão a extrusão do cálcio para o líquido intersticial. Tanto na síndrome de Gitelman como com o uso de tiazídicos, diuréticos inibidores do cotransportador NCCT luminal, ocorre aumento da reabsorção de Ca2+. Uma das hipóteses para explicar a razão pela qual a perda da função ou a inibição deste cotransportador levaria ao aumento da reabsorção do íon cálcio é a de que a diminuição da atividade intracelular do íon cloreto causaria a hiperpolarização da membrana apical, provocando abertura de canais de Ca2+ presentes na membrana luminal. Dessa maneira, aumentaria o influxo de cálcio para a célula, o que, associado à menor concentração de Na+ no interior da célula, estimularia a permuta entre os dois íons na membrana basolateral, através do trocador 3Na+/1Ca2+ (cálcio sairia da célula em troca por sódio que entraria na mesma). Assim, estabelecerse ia um fluxo transcelular de Ca2+, com aumento de sua reabsorção. Há também outras hipóteses, apresentadas por diferentes autores, não estando ainda definitivamente estabelecido o mecanismo molecular que causa o conhecido aumento da reabsorção de cálcio causado pelos tiazídicos e presentes na síndrome de Gitelman.
Figura 56.3 ■ Mecanismos de transporte iônico presentes no túbulo convoluto distal e a síndrome de Gitelman. No túbulo convoluto distal, em condições normais, o cloreto de sódio é reabsorvido através do cotransportador Na+ Cl– (NCCT), sensível aos tiazídicos, presente na membrana luminal. O gradiente favorável ao transporte eletroneutro de Na+ e Cl– através do NCCT é dado pelas baixas concentrações intracelulares de sódio e cloreto geradas pela Na+ /K+ ATPase e pelo canal de cloreto, presentes na membrana basolateral. Na membrana luminal deste segmento do néfron se expressa o canal de cálcio TRPV5; na membrana basolateral estão localizados o permutador 3Na+ /1Ca2+ (NCX1) e a Ca2+ ATPase (PMCA1b). Evidências fisiológicas indicam que os mecanismos de transporte de magnésio são semelhantes aos do cálcio. Na síndrome de Gitelman, mutações com perda de função do transportador NCCT diminuem a reabsorção de cloreto de sódio e aumentam a reabsorção de cálcio. Mais detalhes no texto.
A maior oferta de NaCl aos segmentos posteriores do néfron leva ao aumento da reabsorção de Na+ através dos canais ENaC presentes nas células principais do túbulo coletor, com consequente aumento do potencial elétrico negativo do lúmen desse segmento tubular. Este potencial elétrico faz com que aumente a secreção do íon potássio pelos canais
ROMK, também presentes no coletor. Esta é a razão do aumento da fração de excreção de potássio e consequente hipopotassemia observadas nesses pacientes. Como decorrência da hipopotassemia, aumenta a reabsorção ativa de potássio através da K+/H+ATPase, presente na membrana luminal das células intercalares tipo α. Isto, por elevar a secreção de íons hidrogênio, causa a alcalose típica dessa síndrome. O aumento da fração de excreção de Mg2+ observado na inibição do NCCT ainda não está adequadamente esclarecido. A hipofunção do cotransportador NCCT gera distúrbio tubular, com prejuízo na homeostase dos solutos citados. A expressão fenotípica da síndrome de Gitelman é menos grave do que a da síndrome de Bartter. Por não envolver os mecanismos de concentração urinária, a síndrome de Gitelman não leva à poliúria nem à polidipsia.
Diagnóstico diferencial das alcaloses metabólicas hipopotassêmicas A apresentação clínica de alcalose metabólica hipopotassêmica (K+ baixo no plasma) leva aos seguintes diagnósticos diferenciais: síndrome de Bartter, síndrome de Gitelman, uso de diuréticos e vômito (ou outras afecções gastrintestinais como bulimia e anorexia nervosa). Além dessas, existe uma condição clínica rara chamada de diarreia de cloreto congênita (congenital chloride diarrhea), que também se manifesta com alcalose metabólica hipopotassêmica. Tratase de uma doença autossômica recessiva caracterizada por um defeito na reabsorção de cloreto no íleo e possivelmente no colón. Os pacientes que têm essa doença apresentam elevada excreção fecal de cloreto de sódio e podem ser diagnosticados pela avaliação eletrolítica de suas fezes. A síndrome de Bartter (especialmente tipo III) é a doença genética mais importante a ser considerada no diagnóstico diferencial da síndrome de Gitelman. Os pacientes com síndrome de Gitelman não apresentam sintomas na infância e geralmente são diagnosticados na adolescência e juventude. Essa síndrome pode ser diagnosticada por exames laboratoriais de rotina em pacientes assintomáticos ou que apresentam sintomas brandos de cãibra, fadiga, fraqueza muscular, irritabilidade e espasmos nas mãos e nos pés. Por isso, essa síndrome frequentemente é considerada uma doença benigna e, erroneamente, tida como uma forma atenuada da síndrome de Bartter. No entanto, já foram relatadas manifestações graves como tetania, paralisia e rabdomiólise (causada pela ruptura de células musculares e extravasamento de seu conteúdo citoplasmático para a corrente sanguínea). Crianças pequenas podem apresentar desenvolvimento deficiente e ataques febris. Não ocorre polidrâmnio, prematuridade ou poliúria, e tanto a maturação sexual como a mental são normais. A incidência de hipopotassemia, alcalose metabólica, hipomagnesemia e policalciúria é muito alta em pacientes homozigotos para a mutação do gene que codifica o NCCT. É interessante notar que a gravidade dos sintomas não está sempre relacionada com o grau de hipopotassemia, e ainda não está claro porque alguns pacientes (com mutações idênticas na mesma família) são mais sintomáticos do que outros. Também foi descrita a ocorrência de condrocalcinose (depósito de cristais de pirofosfato de cálcio no líquido sinovial) em pacientes homozigotos para as síndromes de Gitelman e Bartter, sendo que todos os pacientes com a síndrome de Bartter apresentam hipomagnesemia. Lesões similares foram induzidas pela deficiência de magnésio em animais, evidenciando que a hipomagnesemia é importante na fisiopatologia da condrocalcinose, por reduzir a atividade da pirofosfatase e, assim, promover a cristalização do pirofosfato. Nos pacientes com a síndrome de Gitelman, foi demonstrado que a suplementação alimentar de magnésio consegue evitar a ocorrência dessa complicação. Além disso, nesses pacientes é descrita ocorrência de calcificação bilateral da esclera associada a condrocalcinose bilateral. O Quadro 56.1 resume os achados mais frequentes que auxiliam no diagnóstico diferencial dessas síndromes.
EXEMPLO DE TUBULOPATIA DO TÚBULO COLETOR
▸ Síndrome de Liddle e canal ENaC Liddle et al. descreveram, em 1963, uma síndrome que apresenta uma forma rara de hipertensão arterial sistêmica, com herança monogênica autossômica dominante. Essa grave hipertensão cursa com expansão de volume extracelular, baixa renina plasmática, hipopotassemia e alcalose metabólica. Essa anomalia mimetiza o hiperaldosteronismo, embora não apresente anormalidades nos níveis séricos e urinários de aldosterona ou de corticoides. Nas próprias palavras de Liddle et al.: “A desordem aparentemente decorre de uma tendência não usual de os rins conservarem sódio e excretarem potássio, mesmo na ausência virtual de aldosterona.” Embora seus portadores não respondam ao uso de espironolactona (inibidor competitivo da aldosterona), foi verificado que o uso de trianterene ou amilorida (inibidores do ENaC) e a restrição de sal na dieta auxiliam no controle da pressão arterial.
Quadro 56.1 ■ Diagnóstico diferencial entre síndrome de Gitelman e síndrome de Bartter. Parâmetros
Síndrome de Gitelman
Síndrome de Bartter
Início
Adolescência e juventude
Infância (até os 6 anos)
Excreção urinária de Ca2+
Baixa
Alta
Concentração plasmática de
Baixa/normal
Normal
Túbulo convoluto distal/túbulo de
Segmento grosso ascendente da
conexão
alça de Henle
Cotransportador Na+/Cl– (NCCT)
Transportador NKCC2
2+
Mg
Local do defeito tubular
Defeito tubular
sensível a tiazídicos
Canal basolateral de Cl– (ClCKb) Canal de K+ (ROMK) Receptor de cálcio (CaSR)
Habilidade de concentrar a
Mantida
Prejudicada
urina O túbulo coletor apresenta dois tipos celulares: células principais e intercalares α e β (ver Capítulo 51). As células principais expressam o canal ENaC na membrana luminal, o que permite a passagem de Na+ do lúmen tubular para dentro da célula a partir do gradiente eletroquímico gerado pela Na+/K+ATPase, localizada na membrana basolateral. Pela despolarização da membrana luminal, o influxo celular de sódio gera uma diferença de potencial elétrico transtubular com o lúmen negativo, o que favorece a secreção de K+ pelo canal ROMK. Logo, fatores que estimulam a síntese ou a atividade do ENaC, como aldosterona e corticoides, favorecem a reabsorção de Na+ e a excreção de K+, enquanto fatores que inibem o ENaC, como os diuréticos amilorida e trianterene, possuem efeitos natriuréticos e poupadores de potássio. O canal ENaC é um heteromultímero composto por quatro subunidades: duas α, uma β e uma γ (ver Figura 10.13 no Capítulo 10, Canais para Íons nas Membranas Celulares). Seus domínios regulatórios estão presentes nos segmentos amino e carboxiterminais localizados na porção citoplasmática. Recentemente, foi observado que mutações nos genes que codificam as subunidades β ou γ (tal como a alteração do aminoácido prolina na posição 616 da subunidade β) acarretam ativação contínua do ENaC. Tal ativação gera maior reabsorção de Na+ nas células principais do túbulo coletor, o que eleva a massa corpórea de sódio e aumenta o volume de líquido extracelular, causando os transtornos que caracterizam a síndrome de Liddle, já descritos. Em contrapartida, as mutações que inibem a atividade do ENaC geram nefropatias perdedoras de sal, causando, por exemplo, o pseudohipoaldosteronismo autossômico recessivo tipo I.
ACIDOSE TUBULAR RENAL DE ORIGEM HEREDITÁRIA Nos animais, a produção de ácidos decorre do metabolismo dos alimentos. Como o funcionamento ideal da maioria dos processos fisiológicos depende da manutenção do pH do líquido extracelular dentro de um intervalo estreito (em torno de pH 7,4), o controle homeostático rigoroso do equilíbrio acidobásico é essencial para a sobrevivência dos organismos vivos. Embora boa parte do ácido produzido seja excretada pelos pulmões (na forma de CO2), os rins desempenham um papel regulatório fundamental nesse controle homeostático, por meio da secreção de prótons na urina e recuperação do bicarbonato filtrado. De fato, os rins representam a única via regulada de secreção de ácidos fixos. A reabsorção proximal do bicarbonato filtrado e a secreção distal de H+ são os mais importantes mecanismos renais relacionados com o equilíbrio acidobásico. Para mais detalhes desses mecanismos, ver Capítulo 54, Papel do Rim na Regulação do pH do Líquido Extracelular.
A reabsorção renal do íon HCO3 é mediada por proteínas transportadoras do grupo SLC (solute carrier), que inclui mais de 300 membros organizados em 47 famílias. Os solutos que são transportados pelos vários membros do grupo SLC são muito diversos e incluem moléculas orgânicas carregadas e não carregadas eletricamente, bem como íons inorgânicos. Como é típico nas proteínas integrais de membrana, os SLC apresentam várias αhélices transmembranais, conectadas entre si por alças intra e extracelulares. Dependendo do tipo, esses transportadores podem se apresentar como monômeros ou como homo ou heterooligômeros. A família SLC4 de genes e proteínas tem 10 membros que transportam base (HCO3– ou OH–) através da membrana celular. Pertencem a esta família os trocadores de ânions AE1 (gene SLC4A1, localizado no cromossomo 17q1221); AE2 (gene SLC4A2, localizado no cromossomo 7q35q36) e AE3 (gene SLC4A3, localizado no cromossomo 2 p36). Em humanos, mutações nos transportadores AE1 (SLC4A1) e AE4 (SLC4A4), também chamado NBCe1, estão associadas a acidose tubular renal distal e proximal, respectivamente. A secreção distal de H+ ocorre nas células intercalares α, que se localizam majoritariamente no ducto coletor. Esse tipo celular tem como principal característica a presença de H+ATPase e H+/K+ATPase na membrana luminal e do trocador de ânions AE1 (Cl–/HCO3–) na membrana basolateral, o qual troca o ânion bicarbonato intracelular pelo ânion cloreto presente no meio extracelular (ver Figura 51.13 no Capítulo 51). Estes mecanismos são fundamentais para que ocorra secreção de H+ e reabsorção de HCO3. A existência da anidrase carbônica II no citoplasma favorece a reação OH– + CO2 ↔ HCO3–, aumentando a eficiência da regeneração do bicarbonato. A maior atuação da célula α ocorre, portanto, em situações de acidose sistêmica. É importante citar que os sistemastampão presentes no lúmen tubular permitem que a concentração luminal de H+ seja mantida em níveis baixos, garantindo assim o gradiente químico favorável para sua secreção, etapa importante para a regeneração do bicarbonato. Esses aspectos são apropriadamente discutidos no Capítulo 54. A acidose de origem renal, denominada acidose tubular renal (ATR), decorre, portanto, de uma falha dos mecanismos de reabsorção proximal de bicarbonato ou de secreção ácida no túbulo distal, sendo caracterizada pela presença de acidose metabólica na vigência de função renal conservada, ou seja, com ritmo de filtração glomerular normal. As causas da acidose podem ser subdivididas em quatro grupos: ■ Acidoses hereditárias de origem renal, relacionadas com a falência renal (a) primária de secretar ácido ou recuperar bicarbonato, ou (b) secundária, devido a defeitos na manipulação de outros eletrólitos ■ Acidoses adquiridas de origem renal, mais comumente decorrentes de doenças com perda da função renal ■ Acidoses hereditárias de origem não renal, com excesso de produção de ácido em outras partes do organismo, devido a um defeito hereditário do metabolismo ■ Acidoses adquiridas de origem não renal, como, por exemplo, a acidose láctica resultante da baixa oxigenação dos tecidos. Embora as ATR adquiridas sejam mais comuns na prática clínica, é a partir do estudo das formas hereditárias que os investigadores, além de esclarecer a base genética dessas doenças, vêm sendo capazes de melhorar a compreensão da fisiologia renal normal. A seguir, analisaremos as acidoses tubulares renais hereditárias, com o intuito de aprofundar e tornar mais claros os mecanismos fisiológicos normais descritos anteriormente no Capítulo 54. As ATR hereditárias podem ser classificadas em três tipos, numerados na ordem histórica de suas descobertas: tipo 1 (clássica, distal), tipo 2 (proximal) e tipo 3 (combinada, com envolvimento proximal e distal). A partir da compreensão dos mecanismos de transporte de ácido e base pelos rins, é fácil perceber que a ATR proximal resulta da falha de reabsorção de bicarbonato, e a ATR distal, de uma falha da secreção de ácido. O Quadro 56.2 resume os principais dados referentes aos diferentes tipos de acidose tubular renal.
ATR DISTAL TIPO 1 A acidose tubular renal (ATR) distal, também denominada tipo 1, é caracterizada pela presença de acidose metabólica hiperclorêmica, com redução da secreção tubular de ácido e incapacidade para, após carga ácida, reduzir o pH urinário abaixo de 5,5. Há três formas hereditárias conhecidas: a autossômica dominante e as autossômicas recessivas com ou sem surdez. Em geral, a forma mais grave é a hereditária recessiva.
▸ Forma autossômica dominante
Na acidose tubular renal distal autossômica dominante, a acidose metabólica pode ser compensada, e os pacientes podem ser assintomáticos. A formação de cálculos renais é uma característica comum, sendo menos proeminentes a doença óssea e o atraso no crescimento. O retardo mental e a surdez nunca estão presentes. A forma autossômica dominante se manifesta geralmente na vida adulta, causada por alterações do permutador basolateral de Cl–/HCO3–, chamado de proteína AE1, decorrentes de mutações no gene SCL4A1, localizado no cromossomo 17q1221. Nos mamíferos, além dos rins, esse transportador só é encontrado nos eritrócitos, sendo então denominado eAE1, às vezes referido como banda 3 por causa de sua posição relativa na eletroforese da fração de membrana de eritrócito. O AE1 apresenta 12 a 14 domínios transmembranais, responsáveis pelo transporte de ânions e dimerização, e os domínios citoplasmáticos terminais NH2– e COOH. A sequência terminal NH2 do eAE1 apresenta 65 aminoácidos a mais do que a isoforma renal (kAE1), o que lhe confere funções adicionais. Dentre estas, destacase a facilitação do metabolismo das células vermelhas e manutenção da estabilidade estrutural dos eritrócitos, através da interação com, respectivamente, uma enzima glicolítica complexa e elementos do citoesqueleto. Em humanos, a maioria das mutações do AE1 está associada a alterações dos glóbulos vermelhos com herança autossômica dominante, tais como: a anemia esferocítica hereditária (também causada por mutações na ankyrina, espectrina e proteína 4.2) e a ovalocitose do Sudeste Asiático (nas quais não se encontra alterado o transporte renal de ácido e base). Há evidências sugerindo que outras proteínas interagem com a AE1, para formar uma unidade funcional capaz de promover o transporte de bicarbonato. Como indicado na Figura 56.4, a perda da função de AE1 impede a reabsorção renal do íon bicarbonato, retendoo no interior da célula tubular, o que eleva sua concentração intracelular. Pela lei da ação das massas, a elevação da concentração intracelular de bicarbonato reduz a velocidade da reação de hidratação do CO2 e, em consequência, a de formação de H+. Desse modo, há, também, redução de sua secreção através dos transportadores luminais, com consequente perda da capacidade de acidificação do fluido tubular.
Quadro 56.2 ■ Características das acidoses tubulares renais (ATR). ATR
Subtipo/herança Aparecimento Achados clínicos
Proteína
Gene
Distal
Dominante
AE1
SCL4A1
AE1
AE1
Subunidade
ATP6V1B1
Tipo 1
Adolescentes
Acidose metabólica leve
e adultos
ou compensada Hipopotassemia (variável) Hipercalciúria Hipocitratúria Nefrolitíase Nefrocalcinose Algumas vezes raquitismo/osteomalacia Eritrocitose secundária
Recessiva
Infância
Acidose metabólica Anemia hemolítica Só em populações do Sudeste Asiático
Recessiva com surdez precoce
Infância
Acidose metabólica Nefrocalcinose precoce
B1 da
Vômitos/desidratação
H+ATPase
Retardo do crescimento Raquitismo Surdez neurossensorial precoce Recessiva com
Infância
surdez tardia ou
Acidose metabólica Nefrocalcinose precoce
ausente
Vômitos/desidratação
Subunidade
ATP6V0A4
a4 da H+ATPase
Retardo do crescimento Raquitismo Surdez neurossensorial tardia ou ausente Proximal Tipo 2
Recessiva com
Infância
lesões oculares
Acidose metabólica
NBC1
SLC4A4
AC II
CA2
Hipopotassemia Lesões oculares (ceratopatia, catarata, glaucoma) Retardo do crescimento Retardo mental Esmalte dentário defeituoso Calcificação dos gânglios da base
Combinada Proximal/distal
Recessiva com osteopetrose
Tipo 3
Infância
Acidose metabólica Hipopotassemia Osteopetrose (aumento da densidade óssea) Cegueira Surdez Nefrocalcinose precoce
Fonte: Fry e Karet, 2007. Até o momento, oito diferentes mutações do permutador AE1 foram descritas como causadoras da ATR distal autossômica dominante. Muitos desses mutantes foram clonados e, expressos em oócitos de Xenopus, apresentaram a
função normal e troca de ânions; isto indica que o transporte anormal de ânions, por si só, não explica o mecanismo da doença. Da mesma forma, o AE1 é conhecido por formar oligômeros, mas a coexpressão do mutante com o tipo selvagem de AE1 não parece afetar a função do tipo selvagem. Há evidências de que possa ocorrer retenção intracelular de AE1, o que explicaria a gênese da doença. Qualquer que seja o mecanismo molecular envolvido, a perda funcional da proteína AE1 reduz a capacidade de acidificação urinária, causando acidose metabólica de gravidade variável, geralmente com hipopotassemia, hipercalciúria, hipocitratúria, raquitismo e osteomalacia. A baixa excreção urinária de citrato se deve ao aumento de sua reabsorção no túbulo proximal, o que permite gerar novo íon bicarbonato intracelular. A hipercalciúria é multifatorial, envolvendo o aumento da liberação de cálcio ósseo, como mecanismo de tamponamento da acidose sistêmica, e uma diminuição da expressão de proteínas transportadoras de Ca2+, induzida pela acidose. Esses fatores, juntamente com a elevação do pH urinário, favorecem a deposição de cálcio, o que gera cálculos renais e/ou nefrocalcinose, que podem resultar ao longo do tempo em insuficiência renal. Embora as mutações no AE1 sejam responsáveis por todos os casos de acidose tubular renal distal autossômica dominante, foram encontradas no Sudeste Asiático mutações do AE1 que causam acidose tubular renal distal autossômica recessiva em associação com anemia hemolítica. Neste caso, verificado em uma família tailandesa, pela expressão do mutante em oócitos de Xenopus foi detectado o comprometimento do tráfico proteico. Todavia, a função do mutante na troca aniônica em hemácias mostrouse normal, sendo necessários novos estudos para esclarecer a causa da anemia hemolítica.
▸ Formas recessivas A acidose tubular renal distal recessiva se manifesta geralmente na infância, com hipopotassemia grave, podendo ser acompanhada de várias outras manifestações, como: retardo de crescimento, doença óssea (osteomalacia e raquitismo), nefrocalcinose e, ocasionalmente, retardo mental e calcificação cerebral. Na maioria dos pacientes com ATR distal autossômica recessiva ocorre perda auditiva neurossensorial bilateral progressiva; entretanto há casos em que a audição normal é preservada. A eritrocitose (aumento do número de eritrócitos no sangue) pode ser vista em pacientes com nefrocalcinose, embora isso não seja patognomônico. Acreditase que a eritrocitose seja consequente ao aumento da produção de eritropoetina, secundária à hipoxia tecidual, combinada com defeitos de concentração urinária que causam redução do volume plasmático. Duas formas de acidose tubular renal distal recessiva são associadas a mutações com perda da função das subunidades (B1 ou a4) da H+ATPase, presente na membrana luminal das células intercalares α do ducto coletor. A acidose tubular renal distal recessiva com surdez é causada por defeitos na subunidade B1 (codificada pelo gene ATP6V1B1, que está localizado no cromossomo 2q13). Esta isoforma da subunidade também se expressa dentro da cóclea e saco endolinfático. Como a alta concentração de potássio (cerca de 150 mmol/ ℓ ) neste compartimento fechado não é normalmente acompanhada por alcalinidade da endolinfa, é proposto que prótons devam ser secretados para manter o pH da endolinfa < 7,4. Seria esperado que a perda das H+ATPases neste compartimento isolado causasse aumento do pH da endolinfa, danificando inicialmente as células ciliadas, o que poderia levar a uma lesão permanente. Isso explicaria por que a perda auditiva progride independentemente da correção do pH do líquido extracelular por administração de álcalis. Por outro lado, a perda da função da subunidade a4 (que é codificada pelo gene ATP6V0A4, localizado no cromossomo 7q33 ± 34) causa acidose tubular renal distal igualmente grave, mas sem importante perda da audição na infância.
Figura 56.4 ■ Efeito da perda da função do permutador AE1 na reabsorção de bicarbonato e secreção de H+ nas células intercalares tipo α do néfron distal. Na membrana luminal estão presentes a H+ ATPase e a H+ /K+ ATPase. Na membrana basolateral destacamse os transportadores: AE1 = trocador Cl–/HCO3–; KCC4 = cotransportador de K+ Cl– e ClCKb = canal de Cl– (para simplificação, foi omitida a Na+ /K+ ATPase). AC II, anidrase carbônica intracelular; [Produção H+ ]i, produção intracelular do íon hidrogênio.
Nas famílias com acidose tubular renal distal tem sido verificado um amplo espectro de mutações nesses dois genes. No entanto, ainda existem algumas famílias com acidose tubular renal distal que não apresentam qualquer ligação com o ATP6V1B1 ou o ATP6V0A4, indicando a existência de outros genes envolvidos na gênese da acidose tubular renal. Como indicado na Figura 56.5, a perda da função da H+ATPase em razão da mutação de quaisquer de suas sub unidades impede a secreção do íon hidrogênio e eleva sua concentração intracelular, o que, pela ação da lei da ação das massas, reduz a hidratação intracelular do CO2; assim, cai a formação intracelular de HCO3–, o que causa a redução de seu transporte através do AE1 localizado na membrana basolateral, com consequente redução de sua reabsorção. Como resultado final, ocorre, portanto, redução da secreção tubular de H+ e da reabsorção de HCO3–.
ATR PROXIMAL TIPO 2 A ATR proximal é uma doença autossômica recessiva rara, caracterizada por deficiência nos mecanismos de reabsorção de bicarbonato no túbulo proximal com a manutenção da reabsorção de outros solutos, tais como: glicose, aminoácidos, fosfato e citrato. A ATR proximal pode apresentar apenas retardo de crescimento ou ser acompanhada de atraso mental ou alterações oculares, tipo: ceratopatia em faixa (doença da córnea em que ocorre deposição de cálcio sobre a córnea central), catarata e glaucoma. A suplementação terapêutica de bicarbonato é difícil, porque a capacidade de reabsorção tubular proximal desse íon fica muito reduzida, e o aumento compensatório de sua reabsorção nos segmentos mais distais do néfron é limitado. No entanto, alta dose de suplementação de bicarbonato pode aumentar o crescimento, mesmo se a correção da acidose metabólica não for completa.
Figura 56.5 ■ Efeito da perda da função da H+ ATPase na reabsorção de bicarbonato e secreção de H+ pelas células intercalares tipo α do néfron distal. Na membrana luminal estão presentes a H+ ATPase e a H+ /K+ ATPase. Na membrana basolateral destacamse os transportadores: AE1 = trocador Cl–/HCO3–; KCC4 = cotransportador de K+ Cl– e ClCKb = canal de Cl–(para simplificação, foi omitida a Na+ /K+ ATPase). AC II, anidrase carbônica intracelular; [Produção HCO3–]i, produção intracelular do íon bicarbonato.
O cotransporte de Na+/HCO3– na membrana basolateral, necessário para a reabsorção proximal de bicarbonato, ocorre através da proteína NBC1 da família dos cotransportadores eletrogênicos NACbicarbonato. O gene SLC4A4, que responde pela expressão da proteína NBC1 em humanos, foi analisado em famílias portadoras de ATR proximal, tendo sido encontradas várias mutações. Dados obtidos em oócitos de Xenopus sugerem que o mutante R510 H do NBC1 trafega anormalmente, e que os mutantes R298S e S427L apresentam atividades de transporte prejudicadas. As alterações oculares observadas nesses pacientes são consistentes com a presença de isoformas do NBC1 em vários tecidos oculares humanos e de ratos. Curiosamente, foi verificado que paciente com mutação Q29X, que deve preservar a produção da isoforma pNBC1, tem, além de retardo mental, glaucoma bilateral sem ceratopatia em faixa ou catarata. A estequiometria de cotransportador NBC1 no túbulo proximal é de 3HCO3–:1Na+, mas para a isoforma kNBC1 essa estequiometria é de 2:1. Como uma estequiometria de transporte de 2:1 não é compatível como as taxas de reabsorção tubular proximal de bicarbonato, acreditase que mutações que reduzam a estequiometria do NBC1 possam prejudicar sua função. Ainda que a isoforma NHE3, luminal, do trocador Na+/H+ se expresse nos túbulos proximais de humanos, mutações de seu gene codificador ainda não foram detectadas como causa de ATR proximal, o que não deixa de tornálo um potencial candidato para a gênese da doença.
ATR COMBINADA (PROXIMAL/DISTAL) TIPO 3 A primeira acidose tubular renal hereditária que teve sua causa determinada foi a provocada pela deficiência de anidrase carbônica II (AC II). Esta enzima solúvel é amplamente expressa no citosol das células do túbulo proximal e nas células intercalares do néfron distal. Ao lado de apresentarem um quadro de ATR com componentes proximais e distais, os pacientes com essa deficiência apresentam osteopetrose (aumento da densidade óssea), calcificação cerebral e retardo no crescimento, entre outros sintomas. Em algumas famílias foi descrito retardo mental leve ou grave. Três das 13 mutações conhecidas respondem por mais de 90% dos pacientes. Foi descrito que o transplante de medula óssea pode corrigir a osteopetrose e estacionar a progressão da calcificação cerebral, mas não corrige a ATR mista e o retardo de crescimento.
Com a perda da função da AC II, tanto nas células do túbulo proximal como nas células intercalares tipo α, haverá menor formação de H+ e de HCO3– no interior celular, já que essa enzima acelera a velocidade da reação de hidratação do CO2. Como consequência, ocorrerá menor secreção de H+, seja através do permutador Na+/H+, seja através das ATPases secretoras de próton (a H+ATPase e a H+/K+ATPase), levando, portanto, a uma perda da capacidade de acidificação urinária. No túbulo proximal, a menor formação intracelular de HCO3– levará a uma redução do transporte desse íon através do cotransportador NBC1 presente na membrana basolateral e, assim, haverá redução de sua reabsorção. Nas células intercalares tipo α, por outro lado, a menor formação intracelular de HCO3– levará à redução da atividade do permutador AE1, reduzindo, também, a reabsorção desse íon. Devido à redução da atividade da H+/K+ATPAse decorrente da menor oferta de H+, também haverá redução da reabsorção do íon K+, diminuindo também sua transferência para o meio interno, pelo cotransportador K+/Cl– (CKC4) na membrana basolateral, levando, em última análise, à hipopotassemia. A Figura 56.6 ilustra como essa doença afeta o transporte acidobásico no túbulo proximal. A Figura 56.7 indica as alterações verificadas nas células intercalares tipo α do néfron distal. Como a distribuição da AC II não se restringe ao território renal, outras alterações em diferentes partes do organismo serão observadas, como as relatadas no Quadro 56.2, referente aos achados clínicos dos doentes que apresentam mutações com perda de função da AC II.
▸ Síntese A análise mais atenta das acidoses tubulares renais hereditárias evidencia que o processo de acidificação urinária depende tanto da integridade da AC II como dos transportadores envolvidos na secreção de H+ e na reabsorção de HCO3–. A perda funcional de qualquer um destes leva a distúrbios de magnitude variada, pois os mecanismos remanescentes suprem, em parte, as exigências homeostáticas. As Figuras 56.4 a 56.7 ilustram o papel dos transportadores envolvidos nos mecanismos de acidificação luminal e reabsorção de HCO3– no túbulo proximal e nas células intercalares tipo α do néfron distal.
Figura 56.6 ■ Efeito da perda da função da anidrase carbônica intracelular na reabsorção de bicarbonato no túbulo proximal. Na membrana luminal está indicada a isoforma NHE3 do trocador Na+ /H+ . Na membrana basolateral está destacado o cotransportador NBC1 que troca 1Na+ /3 HCO3– (para simplificação, foi omitida a Na+ /K+ ATPase). AC II, anidrase carbônica intracelular; AC IV, anidrase carbônica intratubular; i, intracelular.
Figura 56.7 ■ Efeito da perda da função da anidrase carbônica intracelular na reabsorção de bicarbonato pelas células intercalares tipo α do néfron distal. Na membrana luminal estão presentes a H+ ATPase e a H+ /K+ ATPase. Na membrana basolateral destacamse os transportadores: AE1 = trocador Cl–/HCO3–; KCC4 = cotransportador de K+ /Cl– e ClCKb = canal de Cl– (para simplificação, foi omitida a Na+ /K+ ATPase). AC II, anidrase carbônica intracelular; i, intracelular.
CONCLUSÃO Os exemplos analisados de algumas doenças hereditárias ilustram as interrelações dos diferentes mecanismos de transporte iônico presentes ao longo do néfron. Adicionalmente, mostram como o olhar científico pode fazer da doença uma fonte importante de questionamentos e um caminho privilegiado para a compreensão da fisiologia a partir dos distúrbios fisiopatológicos.
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Introdução
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Aspectos anatômicos Fase de armazenamento
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Fase de esvaziamento Neurofisiologia Interação neuromuscular e função vesicuretral
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Avaliação da função vesicuretral com estudo urodinâmico Disfunção vesicuretral de origem neurológica
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Continência urinária Receptores farmacológicos do sistema urinário inferior Considerações finais
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Bibliografia
INTRODUÇÃO A função vesicuretral depende da ação integrada de vários componentes neurais e musculares. Esses controles estão localizados em diversos setores cerebrais, subcorticais, pontino, cerebelar, medular, nervos periféricos, gânglios intramurais, sistema nervoso simpático e parassimpático, musculatura lisa e estriada, bem como em vários tipos de receptores, alguns conhecidos e bem estudados, e outros ainda em pesquisa (Andersson e Arner, 2004). A uretra e a bexiga mantêm não só relação de continuidade anatômica e origem embriológica, mas também guardam importante relação funcional. A função vesicuretral se resume, basicamente, a duas fases: armazenamento e esvaziamento. A fase de esvaziamento ou miccional ocupa menos de 1% do tempo da função vesicuretral. Classicamente, o estudo da função vesicuretral era referido como fisiologia da micção. Como a micção e o armazenamento vesical mantêm estreita relação, a moderna nomenclatura utilizada para o estudo dessa função é fisiologia vesicuretral. Contudo, o termo fisiologia da micção se firmou e ainda é rotineiramente utilizado. Como a fase miccional mantém íntima relação com a de armazenamento, distúrbios miccionais determinam repercussões diretas nesta fase. Exemplo disso é a situação na qual, durante a micção, ocorre esvaziamento vesical parcial, mantendose resíduo pósmiccional, com consequente alteração da fase de armazenamento, diminuindo a capacidade vesical funcional. Por outro lado, distúrbios de armazenamento também interferem na fase miccional. Assim, se não houver continência urinária, não haverá urina para ser eliminada nem ocorrerá, por sua vez, a fase miccional. A fisiologia, bem como as funções neurológicas envolvidas na micção e no armazenamento, não estão completamente compreendidas. O fenômeno simples, e quase inconsciente, da micção envolve complexos mecanismos e interações neurais que têm sido objeto de inúmeros estudos nas últimas décadas. O desenvolvimento de técnicas histoquímicas especiais e de estudos com estimulação elétrica nervosa em raízes sacrais e, principalmente, a maior difusão e padronização de pesquisas funcionais vesicuretrais, o assim chamado estudo urodinâmico, têm permitido esclarecimentos de alguns pontos fundamentais para a compreensão da micção. Outrossim, o esclarecimento do mecanismo que mantém a suficiente contração vesical somente para a obtenção do esvaziamento vesical ainda apresenta algumas questões em aberto.
O estudo de novas vias aferente e eferente, como o estudo das fibras C, tem oferecido novos campos de pesquisa e esclarecido alguns pontos dúbios, como as vias de sensibilidade dolorosas da bexiga.
ASPECTOS ANATÔMICOS A uretra e a bexiga mantêm entre si continuidade anatômica e guardam estreita relação funcional. A parede vesical no corpo da bexiga é composta de musculatura lisa que se distribui em todos os sentidos. Próximo ao colo vesical organiza se em três camadas anatomicamente distintas (Figura 57.1). A camada mais interna orientase no sentido longitudinal, prolongandose com a camada longitudinal interna da uretra. A camada muscular média, mais espessa e evidente neste nível, interrompese no colo vesical, não se prolongando até a uretra. A camada muscular externa tem sentido oblíquo nos mais variados graus de inclinação; apresenta, de modo geral, orientação espiralada, continuandose com a camada externa uretral (Figura 57.2). Desse modo, apesar de fibras distintas poderem manter o mesmo nível de inervação em razão da sua orientação e distribuição, podem ter ações diferentes, sendo, portanto, essa distribuição anatômica de grande utilidade funcional. Fibras ureterais se prolongam na uretra e se entrecruzam com fibras contralaterais, e sua contração, durante a micção, permite alongamento do túnel submucoso do ureter, aumentando a eficiência do mecanismo de prevenção do refluxo vesicuretral.
Figura 57.1 ■ Organização das fibras da bexiga no nível do colo vesical.
Existem fibras musculares estriadas que envolvem a uretra: nos homens, entre o verum montanum e a uretra bulbar; nas mulheres, principalmente a porção média. A uretra posterior masculina (que compreende a prostática e a membranosa) corresponde praticamente a toda a uretra feminina, tendo a mesma origem embriológica.
Figura 57.2 ■ Distribuição das fibras musculares lisas no nível da uretra feminina.
No homem adulto, o parênquima prostático localizase na porção acima do verum montanum, envolvendo a uretra por todos os lados; essa localização dificulta a identificação das camadas musculares uretrais e leva a confundir as fibras musculares lisas que envolvem os ácinos prostáticos com as da musculatura uretral. Assim, a maioria das fibras lisas localizadas na uretra prostática está mais relacionada com a parte sexual – de contração prostática durante ejaculação – do que com a continência. Exemplo disso pode ser observado na prática clínica, quando a próstata é retirada cirurgicamente, com exérese (extirpação cirúrgica) de grande maioria das fibras lisas uretrais, e, não obstante, a continência urinária permanece preservada. A musculatura vesicuretral tem papel fundamental na função de armazenamento e esvaziamento vesical. Durante a fase de esvaziamento, é necessário não apenas que a musculatura vesical se contraia, mas também que a musculatura uretral se relaxe. Já na fase de armazenamento, deve haver completo relaxamento da musculatura vesical e também concomitante contração de todos os componentes esfincterianos – musculatura lisa e estriada.
FASE DE ARMAZENAMENTO Tanto em humanos como em animais, medidas da pressão vesical revelam níveis pressóricos relativamente baixos e constantes durante todo o enchimento, enquanto o volume vesical está abaixo do volume que induz a micção. A manutenção das baixas pressões somente é possível porque a parede muscular vesical apresenta boa elasticidade, distendendose com baixa resistência, por suas propriedades físicas e relaxamento muscular em razão da falta de estímulo neurológico parassimpático para contração dessas fibras. Em algumas espécies, o estímulo simpático durante a fase de armazenamento não só inibe a atividade parassimpática, como estimula o fechamento do colo vesical e a contração da uretra proximal (Yoshimura e De Groat, 1997). Essas avaliações da pressão intravesical são chamadas de fase cistométrica do estudo urodinâmico. A avaliação das pressões intravesicais, associada à medida da atividade eletromiográfica perineal por eletrodos de superfície colocados nessa região, evidencia esse reforço perineal que ocorre proporcionalmente ao enchimento vesical (Figura 57.3). Esse aumento da atividade eletromiográfica evidencia que ocorre um aumento da atividade elétrica do nervo pudendo, atuando como reforço perineal e consequente elevação da pressão intrauretral, aumentando a resistência à perda. Este reforço também é facilmente evidenciado quando ocorre elevação da pressão vesical decorrente de esforço (ver Figura 57.3).
FASE DE ESVAZIAMENTO Em adultos normais, a micção ocorre de 4 a 7 vezes no período de 24 h. A mudança da fase de armazenamento para a fase miccional pode ocorrer voluntariamente ou de modo patológico.
Figura 57.3 ■ Gráfico obtido em um estudo urodinâmico. Note o reforço da atividade eletromiográfica durante enchimento vesical (canal 4) e o relaxamento esfincteriano com silêncio eletromiográfico na micção (canal 4). *Pressão detrusora = pressão abdominal – pressão vesical.
O volume que desencadeia o ato miccional ou informa da distensão vesical é avaliado por receptores do urotélio, estrutura que tem papel fundamental neste mecanismo (Birder e De Groat, 2007). O termo sensibilidade referese ao número de disparos que o receptor realiza, o qual é associado à distensão vesical. Inúmeros fatores interferem na sensibilidade, sendo que os mediadores dos estímulos podem ser liberados pela própria musculatura ou pelo urotélio e envolvem mastócitos, miofibroblastos e outras células e tecidos conjuntivos. Muitas dessas células e tecidos podem liberar ATP ou mesmo óxido nítrico, tachiquininas (substância P, neuroquininas A ou B), fator de crescimento e outros compostos, interferindo diretamente na sensibilidade desses receptores. Existe grande similaridade histológica entre o tecido do urotélio e o das fibras C, que transmitem a sensibilidade dolorosa e de distensão vesical. Assim, esses dados sugerem que, apesar de os neurorreceptores serem os responsáveis pela descarga elétrica que gera a sensibilidade de distensão, os tecidos adjacentes têm papel fundamental na modulação dessa resposta.
NEUROFISIOLOGIA A contração vesical ocorre, basicamente, por um estímulo parassimpático. Um arco reflexo simples nos dá uma ideia objetiva do funcionamento vesical. Fibras sensoriais partindo dos proprioceptores da parede vesical atingem os nervos présacrais. Não existe um nervo sensorial específico, mas sim um verdadeiro plexo nervoso que se localiza anteriormente ao sacro. Este plexo organizase nos forames sacrais S2, S3 e S4, fazendo parte das raízes nervosas sacrais S2, S3 e S4,
e, atingindo o cone medular através de ramos da cauda equina, estabelece sinapse (Figura 57.4). Deste nível partem fibras motoras parassimpáticas que, também através das raízes sacrais S2, S3 e S4, passam pelas fibras do plexo présacral e atingem a parede vesical, estabelecendo sinapse nos gânglios intramurais, partindo daí as fibras motoras vesicais pós sinápticas. As fibras musculares vesicais, diferentemente das fibras estriadas musculares, não têm placa motora. Portanto, uma fibra que está despolarizando, o faz, secundariamente, outra, e assim por diante (Coolsaet et al., 1993). Existem fibras que são despolarizadas até quaternariamente. A presença de células intersticiais, semelhantes às células de Cajal que coordenam as contrações no intestino de gatos, parece ter importância nessa coordenação e despolarização de fibras na parede vesical (Drake et al., 2003). Este arco reflexo também está sob influência direta cortical, com mecanismos facilitatórios e inibidores (Figura 57.5). A sensibilidade da distensão vesical, por meio da medula, também é informada ao córtex cerebral, que toma consciência da distensão vesical. São esses mecanismos que permitem ao indivíduo adulto urinar ou não, ao ser informado pelos proprioceptores da situação de distensão vesical.
▸ Controle cerebral da micção Como dito, o controle cerebral da micção é o que permite ao indivíduo manter controle voluntário do arco reflexo. Anatomicamente, a distribuição neural central é bastante complexa (Morrison et al., 2006). A área arquedutal da zona cinzenta cerebral (AZC) é a região anatômica mais importante desse controle. Esta área faz parte do controle motor emocional do indivíduo. É área crucial para a sobrevivência individual e da espécie e está envolvida no controle de funções complexas como agressão, defesa, maternidade e reprodução (Reichling et al., 1988). A AZC tem áreas de projeções medulares lombossacras (Liu, 1983) que evidenciam sua relação com a micção; sua função no controle da micção já foi evidenciada em ratos (Ding et al., 1999). Em mamíferos, o cerebelo tem função inibitória da micção (Nishizawa et al., 1989), com evidente ação inibidora durante a fase de armazenamento e alguma facilitadora durante a micção. O hipotálamo também tem papel importante no controle miccional, produzindo substâncias de grande importância no controle central da micção, como a ocitocina, que aumenta a capacidade de armazenamento vesical (Pandita et al., 1998). Existe também aumento da irrigação do hipotálamo durante a micção (Blok et al., 1997).
Figura 57.4 ■ Representação esquemática do arco reflexo vesical.
Figura 57.5 ■ Representação esquemática do controle neural do esfíncter externo no arco reflexo vesical.
A área cortical é a responsável pela continência urinária social, em humanos e mamíferos domésticos. No córtex cerebral de ratos, as áreas motora e sensorial vesical são anatomicamente distintas (Marson e Murphy, 2006). A região anterior do lobo frontal é fundamental para o controle da micção, tendo sido observadas alterações significativas desse controle em pacientes com tumores nesta área (Fowler, 1999). Estudos realizados com gamacâmera para avaliação da irrigação cerebral evidenciaram que esta área está associada à urgência miccional do idoso (Fowler, 1999).
INTERAÇÃO NEUROMUSCULAR E FUNÇÃO VESICURETRAL Para que ocorra a micção, não basta que exista a contração vesical, mas também a resistência uretral deve diminuir, ocorrendo relaxamento esfincteriano e, assim, a micção aconteça com baixa pressão intravesical. A inervação da musculatura estriada periuretral é feita por fibras que também trafegam pelos ramos S2S4 e compõem o nervo pudendo. Impulsos nervosos contínuos transportados pelo nervo pudendo atingem a musculatura que compõe o conjunto muscular esfincteriano uretral, e o mantêm sob contração involuntária durante o enchimento vesical (Figura 57.6). O aumento involuntário dessa contração esfincteriana, acompanhando o enchimento vesical, é um fato normalmente observado. Quando ocorre a contração vesical, existe uma inibição reflexa desse tônus, o que, por sua vez, causa o relaxamento esfincteriano. É interessante observar que essa interação depende de mecanismos neurológicos situados mais alto, no nível da ponte (a conexão entre o encéfalo e a medula). A interação entre cone medular e ponte também permite que o reflexo miccional ocorra até o completo esvaziamento vesical. Nos bebês, essa interação pontinomedular está íntegra, mas as crianças não têm controle da micção por falta de integração cortical. Em pacientes com lesão medular acima do cone, esta via está interrompida, deixando de haver essa interação. Assim, frequentemente, ocorrem contrações vesicais reflexas com contrações esfincterianas durante a contração vesical (a chamada dissinergia vesicoesfincteriana) e também contrações vesicais de duração insuficiente. Esses pacientes apresentam, portanto, micção de alta pressão, com elevado volume de resíduo pósmiccional. A musculatura uretral, pelo seu tônus, exerce força constritiva sobre o lúmen uretral, ocluindoa e mantendo, durante a fase de armazenamento, níveis pressóricos mais elevados na uretra do que na bexiga, não ocorrendo perda urinária. A atividade muscular uretral é composta de dois elementos básicos: ■ O esfíncter muscular liso, genericamente denominado esfíncter interno, distribuído por todo colo vesical e em todo comprimento uretral feminino e pela uretra prostática masculina ■ O esfíncter voluntário, estriado, de localização preferencial no terço médio da uretra feminina e na uretra membranosa masculina.
A atividade do esfíncter voluntário e a do esfíncter interno se sobrepõem em razoável trajeto uretral. Se o indivíduo se submeter a um esforço físico, pode ocorrer aumento da pressão abdominal que se transmite à bexiga, e, então, o mecanismo esfincteriano responde por duas formas: ■ Em parte aumentando sua eficiência, por reflexo neurológico que contrai a musculatura estriada (chamado reflexo da guarda) ■ Em parte sofrendo transmissão direta da pressão abdominal. O gradiente de pressão uretral mantémse maior que a pressão vesical, não ocorrendo perda de urina. Necessária e fundamental para a continência urinária é, além da integridade dos mecanismos esfincterianos, a acomodação vesical durante a fase de armazenamento. As baixas pressões intravesicais, devidas à boa elasticidade vesical durante enchimento, facilitam que a ação esfincteriana seja eficiente. A bexiga tem a capacidade de receber significativo volume de urina, sem que ocorra expressiva elevação pressórica. Mesmo quando é atingida a capacidade vesical máxima, e o desejo miccional se torna imperioso, os níveis pressóricos da bexiga mantêmse baixos; portanto, mesmo em tais condições extremas, conseguese inibir a contração da musculatura vesical (detrusora). Os baixos níveis pressóricos vesicais durante a fase de armazenamento da bexiga são fundamentais para a continência. Pacientes nos quais esse fator não se verifica, em decorrência de cirurgia ou por alteração da constituição da parede vesical, apresentam intensa polaciúria (frequente emissão de pouca urina), comportandose clinicamente como incontinentes, ainda que o mecanismo esfincteriano se mostre normal.
Figura 57.6 ■ Diagrama mostrando os circuitos neurais que controlam a micção e o armazenamento. Armazenamento: a distensão da bexiga leva à ativação progressiva dos receptores sensoriais da parede vesical e, consequentemente, dos nervos sensoriais pélvicos. Esta ativação é acompanhada pela inibição reflexa da bexiga, via nervo hipogástrico, e estimulação simultânea do esfíncter externo, via nervo pudendo, monitorado pelo centro pontino da micção. Micção: após alcançar um nível crítico de enchimento vesical e a micção sendo desejada, a partir de impulsos da área arquedutal cinzenta, o centro pontino da micção interrompe a inibição sobre o centro sacral da micção (parassimpático), que ativa a contração vesical por meio do nervo pélvico. Ao mesmo tempo, cessa a influência inibitória sobre a bexiga, feita pelo sistema simpático por meio do nervo hipogástrico, e ocorre simultânea inibição da ativação somática do esfíncter, relaxandoo. Ao término da micção, interrompese o arco reflexo e iniciase a fase de armazenamento. (Adaptada de De Groat, 2006.)
Quando a distensão vesical atinge volume ao redor de 150 m ℓ , inicia o desejo miccional, ocorrendo disparos de impulsos sensoriais, progressivamente mais frequentes, que atingem o máximo quando o volume acumulado se iguala à capacidade vesical máxima (em torno de 500 mℓ). A musculatura vesical é, provavelmente, o único músculo liso do corpo humano sujeito a algum controle voluntário cortical. Os humanos têm a capacidade voluntária de inibir e de iniciar a contração vesical, atuando sobre o arco reflexo. Porém, não têm a capacidade de contrair a bexiga vazia. Imediatamente antes da contração vesical, ocorre relaxamento esfincteriano e do assoalho pélvico, o que permite a descida do colo vesical e entrada de urina na uretra posterior, sendo este um provável estímulo para a contração vesical. A contração da musculatura longitudinal interna da uretra concomitante com a da bexiga leva ao encurtamento uretral e ao afunilamento do colo vesical, contribuindo para o direcionamento da força vesical para a uretra e a diminuição da resistência uretral. A micção ocorre com baixa resistência uretral, e a pressão dentro da bexiga mantémse em níveis baixos (abaixo de 15
cmH2O). A pressão uretral permanece baixa durante toda a micção, permitindo um fluxo contínuo (da ordem de 15 a 25 mℓ/s), que varia com o volume urinado, o sexo e a idade. Somente ao término do esvaziamento da bexiga, a contração vesical cessa, e o tônus uretral volta aos níveis basais (ver Figura 57.3). Quando se deseja interromper voluntariamente a micção antes do total esvaziamento vesical, realizase a contração da musculatura perineal, contraindose as fibras estriadas periuretrais, o que resulta no aumento da resistência uretral e na consequente interrupção do fluxo. O reflexo miccional mantémse ainda atuante, mantendo a contração vesical. Finalmente o arco reflexo é interrompido por controle neurológico superior, cessando a contração vesical em alguns segundos. Portanto, não se interrompe diretamente o arco reflexo miccional, mas interrompese de maneira voluntária o fluxo urinário, com contração perineal, levando à interrupção do arco reflexo miccional por controle neurológico pontino. Está bem documentada a ação simpática na continência; porém, sua ação na micção é questionável. Por técnicas histoquímicas, alguns autores mostraram que a inervação do esfíncter estriado é feita por fibras simpáticas, parassimpáticas e somáticas (Birder et al., 2010). A ação simpática também é evidente na ejaculação. A estimulação simpática promove contração das fibras que envolvem os ácinos prostáticos, provocando a expulsão da secreção acumulada para o lúmen uretral. A contração simultânea de todo o colo vesical, por sua localização, irá traduzirse por constrição dessa porção, direcionando o jato no sentido anterior, não permitindo a ejaculação retrógrada. Receptores beta adrenérgicos, que têm ação de relaxamento de fibras lisas, foram encontrados em grande número na parede vesical; provavelmente, sua ação de relaxamento, atuando com a falta de ação parassimpática na fase de armazenamento, permite que a acomodação vesical ocorra à baixa pressão.
AVALIAÇÃO DA FUNÇÃO VESICURETRAL COM ESTUDO URODINÂMICO A avaliação da função vesicuretral, na prática clínica, é feita pelo estudo urodinâmico. Esta análise realiza medidas de fluxo urinário e das pressões intravesical e intraabdominal, associadas a avaliações do volume infundido e da atividade eletromiográfica perineal. É um exame invasivo, visto que implica a inserção de sondas vesicais e abdominal, sendo geralmente monitorado por sonda intrarretal. Porém, realizado com adequada técnica de lubrificação e anestesia uretral, é suportado pela maioria dos pacientes. Sob o aspecto emocional envolve sensações complexas, pois o paciente tem de expor suas sensações vesicais e relatar perdas, além de urinar em ambiente do laboratório, situação que não lhe é habitual. Uma infecção urinária pode ser desencadeada pela manipulação do sistema urinário ou já estar eventualmente presente antes da realização do exame, o que pode implicar dados falsos, alterando a sensibilidade vesical e mesmo desencadeando contrações vesicais involuntárias não usuais nas atividades diárias do paciente (D’Ancona, 2001). Para iniciar o exame, o paciente deve urinar em um coletor que está conectado ao aparelho de urodinâmica, obtendose o registro da fluxometria. Os dados são calculados eletronicamente pelo aparelho e comparados com nomogramas preestabelecidos, permitindo avaliar se o paciente está urinando dentro dos padrões da normalidade. Em seguida, são posicionadas as sondas vesical e retal. São inseridas, via uretral, uma sonda de duplo lúmen ou duas sondas; tal procedimento permite fazer, por uma via a infusão, e por outra via o monitoramento contínuo da pressão vesical durante o enchimento. Adicionalmente, é posicionada a sonda retal, com balão em uma das suas extremidades, o que possibilita o monitoramento da pressão abdominal. É de fundamental importância o monitoramento da pressão abdominal, pois a realização de esforço físico eleva a pressão intraabdominal, e, consequentemente, a pressão intravesical também se eleva, por transmissão da pressão abdominal para a bexiga. Com a contração vesical, elevase a pressão na bexiga, mas não dentro do abdome. A pressão de contração detrusora é obtida por cálculo eletrônico, subtraindose da pressão vesical a pressão simultânea intraabdominal. Assim, é possível a avaliação da capacidade de contração vesical, mesmo que o paciente realize esforço abdominal. Após o posicionamento das sondas, realizase a medida do resíduo pós miccional e iniciase a distensão vesical com a infusão de solução fisiológica. À medida que ocorre o enchimento, a sensibilidade informada pelo paciente é anotada. Desse modo, pode ser diagnosticada a presença de contrações involuntárias (hiperatividade detrusora) e avaliado o aumento passivo da pressão com o enchimento (complacência vesical). O paciente deve ser orientado a informar a sensação de distensão vesical, sendo anotado o primeiro desejo, o desejo normal e o forte desejo, bem como eventual sensação de urgência miccional. Quando o paciente referir forte desejo miccional, é iniciado o estudo miccional. Caso tenham sido usadas duas sondas para medida, é retirada a sonda de infusão, permanecendo a sonda que monitora a pressão vesical durante a micção. Testes de esforço podem ser realizados para avaliar se o paciente apresenta perdas por esforço. Aos esforços, a hiperatividade
detrusora também pode ser diagnosticada. Após as provas de esforço, o paciente é solicitado a urinar, medindose o fluxo urinário. Com a utilização de nomogramas, podese avaliar a capacidade contrátil e se há ou não obstrução urinária. A curva manométrica ao longo da uretra (perfil pressórico uretral) pode ser realizada, durante ou após a micção, mas, em razão de problemas técnicos, esta curva é pouco reprodutível e de difícil interpretação (Abrams et al., 1978). A atividade elétrica da região perineal também pode ser medida, com o uso de eletrodos perineais. Esse procedimento permite avaliar se durante a micção há relaxamento do períneo ou atividade perineal e, portanto, esfincteriana, a qual diagnostica dissinergia vesicoesfincteriana. Associado a essas medidas pode ser utilizado, como avaliação do enchimento vesical, o contraste radiopaco. Adicionalmente, com a utilização de raios X (radioscopia), pode ser obtida a imagem simultânea do sistema urinário durante a micção, permitindo maior precisão e segurança no diagnóstico (Figura 57.7). A avaliação urodinâmica possibilita a análise detalhada da fisiologia da micção e um diagnóstico mais preciso das disfunções miccionais.
DISFUNÇÃO VESICURETRAL DE ORIGEM NEUROLÓGICA As disfunções neurológicas podem levar a alterações das funções vesicuretrais, sendo conhecidas como bexiga neurogênica. Os traumatismos raquimedulares são ótimo modelo experimental, pois permitem avaliar as respostas vesicuretrais na vigência de secções de diversos segmentos raquimedulares. As doenças neurológicas podem causar lesões em diferentes níveis, dificultando a interpretação da resposta patológica vesicuretral associada à lesão, que pode comprometer o sistema nervoso em diversos níveis simultaneamente. As lesões neurológicas podem resultar no comprometimento das fibras sensoriais vesicais, como acontece, por exemplo, no diabetes, situação na qual as fibras sensoriais, por serem as mais finas, são as primeiras acometidas. Como consequência desse acometimento, os pacientes inicialmente apresentam o primeiro desejo miccional com grandes distensões vesicais. Quando solicitado, o paciente consegue urinar grandes volumes, pois a capacidade vesical se encontra bastante aumentada. Essa distensão vesical crônica acarreta lesão da própria musculatura detrusora, o que, por sua vez, impede o correto esvaziamento vesical; essa incorreção acarreta presença de resíduo pósmiccional, que progressivamente se eleva, resultando em retenção urinária e em suas repercussões no sistema urinário superior. Ao lado disso, a progressão da lesão neurológica causa total interrupção do arco reflexo miccional, causando também retenção urinária. Quando a lesão compromete as fibras motoras, aparece o quadro de bexiga neurogênica paralíticomotora, como verificado em neurites, poliomielite, traumatismo ou tumor medular. Nessa situação, a sensibilidade está preservada e o paciente percebe o grau de distensão vesical, porém, não consegue desencadear o reflexo miccional. A bexiga neurogênica paralíticomotora é uma situação patológica rara na prática clínica.
Figura 57.7 ■ Representação esquemática de um estudo urodinâmico.
Quando há comprometimento tanto das fibras sensoriais quanto das motoras, ou ainda do próprio cone medular, ocorre a chamada bexiga neurogênica autônoma. Nessa situação há incapacidade de se efetuar o arco reflexo. Como as mesmas vias neurológicas são responsáveis por outros reflexos, o reflexo bulbocavernoso e o reflexo cutâneo anal estarão igualmente comprometidos. O grau de comprometimento do esfíncter é relacionado com o grau de comprometimento neurológico, podendo haver pacientes que, apesar de não terem contração vesical, são incontinentes por falta de atividade esfincteriana. De modo oposto, a retenção pode ser o achado clínico neste tipo de lesão, nos casos em que não existe contração vesical, porém o esfíncter é ativo. Cabe lembrar que um paciente com retenção total de urina pode apresentar incontinência clínica, pois, à medida que vai ocorrendo o enchimento vesical, a pressão intravesical vai se elevando, até o momento que vence a resistência uretral, ocorrendo perda constante de urina; esta condição é denominada incontinência paradoxal. Portanto, para a correta avaliação se um paciente é retencionista ou incontinente por insuficiência esfincteriana, deve ser verificado o grau de esvaziamento vesical, e não somente se o paciente apresenta saída involuntária constante de urina pela uretra. A bexiga autônoma pode ser encontrada em portadores de tumores medulares, traumatismos ou malformações congênitas, como mielomeningocele ou agenesia sacral. Outro aspecto interessante associado não só com o comprometimento da inervação vesical do cone medular é a presença de contrações autonômicas. Mesmo com a denervação total vesical, o neurônio entre o gânglio intramural e a fibra muscular está íntegro, podendo ter descargas efetoras anômalas. Como as fibras lisas vesicais se despolarizam também por proximidade, mesmo denervada a bexiga apresenta fasciculações durante o enchimento. Ou seja, não ocorre contração geral das fibras, como na atividade detrusora, mas acontecem contrações vesicais localizadas, que, apesar da arreflexia detrusora, podem levar ao espessamento e comprometimento da parede, como na hiperatividade detrusora. Quando a lesão ocorre acima do cone medular, que, no adulto, está localizado no nível ósseo T12 – L1, o arco reflexo está liberado, ocorrendo contração vesical reflexa à distensão vesical. Essa contração vesical é involuntária e sem
sensibilidade. Nesta situação, pode ocorrer contração esfincteriana simultânea à contração vesical, e o paciente tem micções de altíssima pressão, levando a repercussões graves do sistema urinário. É o tipo de comportamento vesical denominado bexiga neurogênica reflexa, encontrado no traumatismo medular, na mielomeningocele, na esclerose múltipla, dentre outras anomalias. Nesta situação, além do reflexo miccional, outros reflexos abaixo da lesão (como bulbo cavernoso e cutâneo anal) estão também liberados e exacerbados (Figura 57.8). Cabe registrar um comportamento frequentemente observado em lesões agudas, como as verificadas logo após o traumatismo medular: o fato de todos os reflexos abaixo da lesão encontraremse bloqueados. Este silêncio medular abaixo da lesão pode durar de horas a meses (fase de choque medular), evoluindo, na situação crônica, para a liberação dos reflexos nos casos de comprometimento acima do cone medular. Após o traumatismo raquimedular, os receptores neurológicos também estão alterados. Nesta situação, o fator de crescimento neural (uma das neurotrofinas mais estudadas) está aumentado. Este fator é, reconhecidamente, responsável por sensibilizar fibras mielinizadas e desmielinizadas sensoriais da bexiga, provavelmente, atuando na hiperresposta vesical ao enchimento. Nesse caso, o fator está também associado a mecanismos de dor, principalmente vesical. No traumatismo, como há interrupção das fibras sensoriais na medula, a dor não é um sintoma frequente; porém, em situações de inflamação vesical, como na cistite intersticial, este fator parece ser um dos elementos mais significativos no quadro doloroso destas patologias.
Figura 57.8 ■ Comportamento vesicuretral esperado no traumatismo raquimedular, na dependência do nível da lesão causada.
Outro tipo de comportamento vesical é encontrado, como exemplo típico, na doença de Parkinson, em que o paciente apresenta o arco reflexo normal, com sensibilidade e relaxamento esfincteriano sinérgico, porém com comprometimento das fibras e centros subcorticais responsáveis pela inibição do arco reflexo. Em decorrência, o paciente apresenta incapacidade de inibir o arco reflexo, configurandose um quadro clínico de urgência miccional com incontinência por urgência; ou seja, no momento em que há o desejo miccional, ocorre o arco reflexo, porém o paciente é incapaz de inibilo e, consequentemente, acontece a micção. O que ocorre é uma desconexão entre o córtex cerebral e a ponte, com perda da capacidade de inibição do reflexo miccional; entretanto, a função pontina é preservada, e a micção ocorre coordenada, sem dissinergia. As disfunções neurológicas podem levar a disfunções miccionais graves. Uma questão a se esclarecer é: como essas disfunções levam a repercussões no sistema urinário superior? Normalmente, o sistema urinário mantém níveis pressóricos baixos e o armazenamento, o transporte e a eliminação da urina se fazem com níveis pressóricos abaixo de 15 cmH2O; porém, elevações pressóricas intravesicais acima de 35 cmH2O causam dificuldade de drenagem do ureter, acarretando dilatações ureterais. Com seu progressivo aumento, a pressão intravesical se transmite aos ureteres, resultando em elevação da pressão intrapiélica e, consequentemente, no interior dos túbulos renais, podendo levar ao
bloqueio da filtração glomerular. Quando a alteração ocorre de maneira crônica, a dilatação de todo sistema coletor leva à compressão do parênquima, determinando isquemia e comprometimento definitivo da função renal associado à dilatação das vias excretoras, surgindo a situação chamada de hidronefrose. Ao lado disso, a dificuldade da drenagem vesical pode promover alterações da própria parede vesical, que podem resultar no aparecimento de refluxo vesicuretral ou, ainda, levar diretamente à obstrução ureteral, na passagem do ureter para a bexiga (no hiato ureteral). Com as alterações da parede vesical e a persistência da obstrução, a própria parede vesical (o músculo detrusor) entra em falência, propiciando o aparecimento do resíduo pósmiccional, que causa infecções urinárias de difícil controle. Como visto, são muitos os mecanismos que levam a disfunção vesical de causa neurológica a repercussões diretas da função renal. Assim, pacientes com bexiga neurogênica requerem acompanhamento e tratamentos urológicos a longo prazo.
CONTINÊNCIA URINÁRIA Outro assunto relevante, principalmente por suas implicações clínicas, é o estudo dos mecanismos de continência. Nos homens, no nível de uretra membranosa, existe um mecanismo esfincteriano anatômico. Já nas mulheres, não existe um esfíncter anatomicamente constituído. Classicamente, são descritos alguns mecanismos de continência. A musculatura lisa uretral da mulher se distribui ao longo da uretra, como fibras espiraladas, cuja contração pode ocluir a uretra. O mecanismo de coxim submucoso, atuando como selo, permite o completo fechamento uretral. Adicionalmente, a musculatura estriada periuretral pode colaborar na oclusão uretral. O tecido elástico permite que os mecanismos de oclusão funcionem. No momento do esforço, a transmissão da pressão abdominal para a uretra permite reforço da pressão uretral, principalmente, no terço proximal da uretra (zona crítica de transmissão da pressão). Petros e Ulmsten (1993), em extenso artigo sobre a continência uretral feminina, entre outros aspectos, descrevem a presença do ligamento pubouretral que permite a compressão uretral por angulação, pela fixação da uretra no púbis (Figura 57.9). Neste artigo, são discutidos vários fatores de importância para a continência, como a distribuição das forças na pelve, que permitiriam continência e estabilidade na uretra. Assim, existiriam: forças anteriores, diretamente relacionadas com a continência uretral; forças posteriores, relacionadas com a continência fecal e a sensibilidade vesical, bem como forças longitudinais. Para o perfeito funcionamento vesicuretral, estes autores, ainda, ressaltam a importância da estabilidade das forças presentes em todos os níveis da pelve. Em razão da integração dessas diversas forças, e a consequente necessidade de tratar todas as alterações que interferem no seu equilíbrio, esta teoria passou a ser intitulada teoria integral.
Figura 57.9 ■ Esquema do ligamento pubouretral feminino, que permite a compressão uretral por angulação, pela fixação da uretra no púbis. (Adaptada de Petros e Ulmsten, 1993.)
RECEPTORES FARMACOLÓGICOS DO SISTEMA URINÁRIO INFERIOR
Os diversos receptores encontrados no nível do sistema urinário inferior foram descritos por estudos anatômicos, imunohistoquímicos e de estimulação nervosa. Essas pesquisas mostraram não só a localização, mas também as ações inibidoras ou estimuladoras desses receptores. Com finalidade didática, estudaremos somente os receptores relacionados com o sistema nervoso autônomo.
▸ Serotonina, núcleo de Onuf O efetor do sistema simpático é a norepinefrina. Porém, por meio dos receptores alfa ou beta, a ação do sistema nervoso simpático pode ser de contração (alfa) ou de relaxamento (beta) das fibras musculares. Portanto, por estímulos dos receptores simpáticos com fármacos, podese obter contração ou relaxamento das fibras musculares, dependendo se a ação do medicamento é alfa ou betaadrenérgica. Cabe lembrar que, quando um fármaco realiza bloqueio alfa, tem efeito semelhante ao estímulo beta, e viceversa, quando faz o bloqueio beta, o fármaco exibe efeito semelhante ao estímulo alfa. No sistema urinário inferior, a ação betaadrenérgica não é tão evidente como a ação alfa, e as substâncias beta adrenérgicas (ou betabloqueadoras) não têm uma ação efetiva evidente como as de ação alfa. A serotonina é um importante transmissor no sistema nervoso central; tem ação evidente no núcleo de Onuf (núcleo do pudendo), sendo liberada na sinapse e reabsorvida. Inibidores desta reentrada da serotonina causam maior resposta aos estímulos, levando à maior resposta da musculatura perineal e consequentemente da ação do esfíncter externo (Figura 57.10).
▸ Receptores simpáticos e parassimpáticos Os receptores do sistema parassimpático são intermediados pela acetilcolina. Portanto, fármacos anticolinérgicos (parassimpaticolíticos) têm ação de relaxamento das fibras musculares, e os colinérgicos (parassimpaticomiméticos) exibem ação de contração. É possível, porém, separar os receptores dos gânglios dos receptores efetores da musculatura, isolandose cada tipo de ação. No nível da musculatura, existem os receptores colinérgicos muscarínicos, e, junto aos gânglios, ocorrem os receptores nicotínicos. Os fármacos colinérgicos que aqui serão citados têm, basicamente, ação muscarínica e uma fraca ação nicotínica. Para ação de contração de uma fibra, realizase a estimulação de receptores alfa (fibras simpáticas) ou de receptores colinérgicos (fibras parassimpáticas). Porém, dependendo da localização desse receptor, é possível obter contração da fibra muscular vesical ou esfincteriana, que exibem efeito exatamente oposto (respectivamente, micção ou continência). Portanto, o conhecimento exato da localização dos receptores é fundamental para a compreensão de sua resposta. Traçando um plano entre os meatos ureterais, é possível dividir a bexiga em dois compartimentos: o superior (ou corpo vesical) e o inferior, o qual pode ser subdividido em trígono, colo vesical e uretra. No nível do corpo vesical, há grande número de receptores colinérgicos e betaadrenérgicos. No nível inferior, ocorre grande número de receptores alfaadrenérgicos, beta adrenérgicos e colinérgicos. De modo geral, os receptores colinérgicos são responsáveis pela micção, enquanto os receptores alfaadrenérgicos, pela continência (Figura 57.11). Existem fibras musculares estriadas relacionadas com a continência (as fibras musculares do assoalho pélvico), em que vários fármacos podem atuar; entretanto, a ação no nível dessas placas motoras será exercida de igual modo sobre toda musculatura esquelética, provocando efeitos colaterais que limitam o uso desses fármacos.
Figura 57.10 ■ Esquema do terminal de serotonina no núcleo de Onuf, indicando que os inibidores da reentrada de serotonina na sinapse, consequentemente, aumentam o tônus da musculatura do esfíncter externo. (Adaptada de Thor, 2004.)
Conforme indica o Quadro 57.1, a resposta clínica obtida com o uso de fármacos pode ser: ■ Aumento da contração vesical ■ Diminuição da contração vesical ■ Aumento da resistência uretral ■ Diminuição da resistência uretral. Assim, a atuação farmacológica pode ser exercida em todo sistema urinário. Porém, como aplicação clínica, o efeito sobre o sistema urinário inferior deve ser maior que o sistêmico. Exemplos desses fármacos são os anticolinérgicos e os alfabloqueadores. Os fármacos anticolinérgicos atuam diminuindo a resposta contrátil vesical. Na prática clínica, são muito utilizados para tratar a hiperatividade detrusora. Como resultado final, determinam diminuição da contração vesical. Como resposta clínica, provocam hiperatividade detrusora com maior volume vesical; assim, causam aumento da capacidade vesical nos pacientes que exibem hiperatividade detrusora com baixo volume. O grande problema clínico da utilização desses fármacos é seu efeito sistêmico. Ao lado do aumento da capacidade vesical, provocam secura na boca (por ação nos receptores das glândulas salivares) e obstipação intestinal (por ação sobre as fibras musculares do sistema digestório), sendo esses efeitos extremamente desconfortáveis aos pacientes, levando à interrupção do tratamento. Na procura de uma ação eficiente nos receptores muscarínicos vesicais sem ação nos receptores muscarínicos intestinais ou das glândulas salivares, novos fármacos têm sido descritos. O Quadro 57.2 mostra os antimuscarínicos disponíveis para uso comercial no Brasil, com o grau de evidência dos trabalhos publicados, bem como o grau de recomendação para o seu uso. Os fármacos alfabloqueadores agem no nível dos receptores alfa do sistema simpático. Têm indicações de uso em pacientes que apresentam obstrução urinária decorrente de obstrução prostática. Relaxando as fibras lisas, diminuem a resistência sobre a uretra prostática, facilitando a eliminação da urina. Parecem agir também sobre a sensibilidade uretral, aliviando igualmente os sintomas irritativos (disúria e hiperatividade) nos pacientes obstruídos, mas essa ação ainda não está completamente esclarecida. Em razão de sua ação sistêmica de relaxamento de fibras adrenérgicas, podem agir sobre a musculatura dos vasos sanguíneos, causando hipotensão; por isso, fármacos que tenham ação seletiva na musculatura do sistema urinário com ação específica sobre os receptores alfa 1a vêm sendo pesquisados. Muitos fármacos têm ação sobre o sistema nervoso autônomo. O Quadro 57.1 indica alguns mais frequentemente utilizados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS A função vesicuretral envolve mecanismos complexos que se estendem desde o córtex cerebral até a musculatura vesicuretral, abrangendo mecanismos neurológicos e físicos, o sistema simpático e parassimpático, além de mecanismos voluntários e involuntários. Alterações em qualquer um desses setores implicam distúrbios que podem determinar desde incontinência urinária até repercussões graves da função renal, podendo comprometer não só a qualidade de vida como a própria vida do indivíduo.
Figura 57.11 ■ Localização dos receptores colinérgicos e adrenérgicos no sistema urinário inferior.
Quadro 57.1 ■ Principais fármacos que agem no sistema urinário inferior. 1 – Aumentam a contração vesical: Colinérgicos (parassimpaticomiméticos) Cloreto de betanecol: é administrado por via subcutânea ou oral. Por via subcutânea, pode também ser usado em testes de sensibilidade, possibilitando confirmar o diagnóstico de denervação vesical. Tem pouca ou nenhuma ação em indivíduos normais. Tem maior ação vesical e menor ação intestinal. Não deve ser usado em pacientes obstruídos. A forma injetável não se encontra no mercado farmacêutico nacional Brometo de neostigmina: mostra maior ação intestinal que vesical. Disponível no mercado nacional Betabloqueadores (não têm importância prática) 2 – Diminuem a contração vesical: Anticolinérgicos (parassimpaticolíticos)
Atropina: boa ação anticolinérgica, tendo ação vesical e periférica. Os efeitos sistêmicos limitam o seu uso Brometo de propantelina (Probanthine®) Brometo de emeprônio (Cetiprim®): boa ação anticolinérgica vesical, com ação muscarínica e menor ação nicotínica Oxibutinina: maior eficácia como antiespasmódico de ação vesical (diretamente sobre a musculatura), com menor ação anticolinérgica periférica. Maior ação antimuscarínica, com efeito preferencialmente vesical (na musculatura detrusora) Tolterodina, dariferacina, solifenacina: maior ação vesical que nas glândulas salivares, amenizando o efeito colateral de secura na boca, que é a maior causa de abandono do uso de antimuscarínico Betaestimulantes (adrenérgicos com ação beta) Efedrina: ações alfa e betaestimulantes, com muitos efeitos sistêmicos. Ação alfa evidente; ação beta não tão evidente Imipramina: antidepressivo tricíclico, com ação central antidepressiva e ações alfa e betaestimulantes periféricas, principalmente vesical. Diminui a atividade vesical e, por inibir a reentrada da serotonina, aumenta a resistência do colo vesical. Muito utilizada, inclusive em crianças, para as quais é indicada no tratamento de enurese (incontinência urinária) Isoproterenol: somente ação beta, porém com franca ação nos níveis cardíaco e pulmonar e pouco uso para disfunções vesicais 3 – Aumentam a resistência uretral: Ação alfaadrenérgica Efedrina, imipramina (ver acima) 4 – Diminuem a resistência uretral: Ação alfabloqueadora Fentolamina: ação alfabloqueadora de curta duração Prazosin: ação alfabloqueadora. Pode ter reação de hipersensibilidade, com hipotensão na primeira dose Terazosin/Doxazosina Tansulosina: alfabloqueador de ação alfa 1a Ação na musculatura esquelética Dantrolene: relaxamento direto de musculatura estriada, implicando relaxamento de musculatura esquelética Diazepam: ação central nível do sistema límbico, do tálamo e do hipotálamo. Ação não muito eficiente sobre o esfíncter estriado; porém, é o fármaco mais utilizado para tratamento de atividade esfincteriana indesejável
Quadro 57.2 ■ Níveis de evidência e grau de recomendação dos principais fármacos antimuscarínicos. Antimuscarínico
Nível de evidência
Grau de recomendação
Solifenacina
1
A
Tolterodina
1
A
Darifenacina
1
A
Propantelina
2
B
Atropina
3
C
Oxibutinina
1
A
Flavoxato
2
D
Nível de evidência: Nível 1 – evidência baseada em ensaios clínicos randomizados ou metanálise de ensaios clínicos – ação fortemente recomendada. Nível 2 – evidência baseada em estudos prospectivos não randomizados – ação recomendada. Nível 3 – evidência baseada em relatos de casos ou opinião de especialistas – ação pouco recomendada. Graus de recomendação: A – baseada em um ou mais estudos nível 1. B – a melhor evidência disponível está em nível 2. C – a melhor evidência disponível está em nível 3. D – a melhor evidência disponível está menor que em nível 3 e inclui opinião de especialistas. (Segundo as recomendações de Hunt et al., 2000. Adaptada de KarlErik, 2005.) A compreensão de alguns desses complexos mecanismos tem permitido a realização de novos tratamentos, até há pouco tempo limitados. O desenvolvimento de novas técnicas para avaliação da função vesicuretral vem favorecendo a introdução de várias aplicações práticas, permitindo melhor assistência aos pacientes. Todavia, vários assuntos ainda merecem mais estudos, e muito ainda será descoberto e compreendido sobre os complexos mecanismos de micção e de continência urinária.
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58 Visão Geral do Sistema Digestório 59 Regulação NeuroHormonal do Sistema Digestório 60 Motilidade do Sistema Digestório 61 Secreções do Sistema Digestório 62 Digestão e Absorção de Nutrientes Orgânicos 63 Absorção Intestinal de Água e Eletrólitos
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Formação, processos e funções
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Bibliografia
FORMAÇÃO, PROCESSOS E FUNÇÕES O sistema digestório é formado por órgãos ocos em série que se comunicam nas duas extremidades com o meio ambiente, constituindo o denominado trato gastrintestinal (TGI), e pelos órgãos anexos, que lançam suas secreções no lúmen do TGI. Os órgãos do TGI são: cavidade oral, faringe, esôfago, intestino delgado, intestino grosso ou cólon, e ânus. Estes órgãos são delimitados entre si por esfíncteres. O esfíncter esofágico superior, ou cricofaríngeo, delimita a faringe da porção superior do esôfago, que é delimitada do estômago pelo esfíncter esofágico inferior. O estômago é delimitado do intestino delgado pelo piloro, e o intestino delgado, do cólon pelo esfíncter ileocecal. A porção distal do cólon diferenciase no reto e no ânus com seus dois esfíncteres, o interno e o externo. No sentido cefalocaudal (ou aboral), os órgãos anexos ao TGI são: glândulas salivares, pâncreas, fígado e vesícula biliar, que armazena e concentra a bile secretada pelo fígado. A secreção das glândulas salivares é lançada na cavidade oral e as secreções pancreática e biliar, no intestino delgado (Figura 58.1). As secreções lançadas no lúmen do TGI pelos órgãos anexos, mais as produzidas pelo estômago e pelos intestinos delgado e grosso, processam quimicamente o alimento ingerido na cavidade oral. Este processamento é facilitado pela motilidade do TGI, que propicia mistura, trituração e progressão do alimento no sentido cefalocaudal. O alimento é reduzido a moléculas que podem ser absorvidas, através do intestino delgado, para o meio intersticial vascular. O TGI promove a excreção anal dos produtos dos alimentos que não foram processados ou absorvidos. Os alimentos orgânicos da dieta ou macronutrientes (assim denominados por serem requeridos em quantidades relativamente grandes), os carboidratos, as gorduras e as proteínas são quimicamente quebrados, por hidrólise, pelas enzimas lançadas no lúmen do TGI ou pelas enzimas luminais. As enzimas luminais são secretadas por glândulas salivares, estômago e pâncreas exócrino. As gorduras da dieta, os triacilgliceróis, os fosfolipídios e os ésteres de colesterol, após a hidrólise luminal, originam ácidos graxos livres, fosfolipídios e colesterol, e são transportados através do epitélio do intestino delgado para a linfa e para a circulação sistêmica. Os carboidratos e as proteínas, além da hidrólise efetuada pelas enzimas luminais, necessitam, ainda, serem hidrolisados pelas enzimas da membrana luminal dos enterócitos do delgado, denominadas enzimas da borda em escova. Os produtos finais da hidrólise dos carboidratos são hexoses, e os das proteínas são, além de aminoácidos livres, di, tri e tetrapeptídios; esses produtos são absorvidos no delgado. O sistema digestório trabalha em íntima relação com o sistema circulatório, o qual conduz os produtos da hidrólise dos macronutrientes para o fígado e para os diferentes tecidos, onde serão o substrato energético e plástico das células. Neste aspecto, o sistema digestório participa da manutenção do equilíbrio energético do organismo.
As vitaminas e os eletrólitos ingeridos são considerados micronutrientes, pois são requeridos em quantidades muito pequenas. Diariamente, em torno de 2 ℓ de água são ingeridos e mais 7 ℓ secretados para o interior do TGI, o que perfaz cerca de 9 ℓ de água contidos no lúmen do TGI. Por dia, ingeremse 5 a 10 g de NaCl e lançamse no lúmen do TGI aproximadamente 25 g. Considerandose que os 7 ℓ de água secretados correspondem a cerca de 25% da água total do organismo e que 25 g de NaCl equivalem a aproximadamente 15% do NaCl total do organismo, inferese que o sistema digestório também participa da manutenção do equilíbrio hidreletrolítico do organismo, embora menos significantemente que o sistema renal. Assim, o sistema digestório, em conjunto com o sistema circulatório, fornece os substratos energéticos e plásticos, água, íons e coenzimas às células teciduais. O sistema digestório apresenta quatro processos básicos: motilidade, secreção, digestão, absorção intestinal e excreção. Estes processos são altamente coordenados pelos sistemas neuroendócrinos intrínsecos do sistema digestório e do organismo como um todo. A motilidade é efetuada pela musculatura do TGI e propicia mistura, trituração e progressão cefalocaudal dos nutrientes, além de excreção dos produtos não digeridos e não absorvidos. As secreções compreendem as sintetizadas nos órgãos anexos ao TGI, bem como as produzidas pelo estômago e intestino; elas hidrolisam, enzimaticamente, os nutrientes, gerando ambientes de pH, de tonicidade e de composição eletrolítica adequados para a digestão dos nutrientes orgânicos. A digestão referese à hidrólise enzimática dos nutrientes orgânicos, transformandoos em moléculas que possam atravessar a parede do TGI e ser absorvidas através de sua mucosa de revestimento interno. A absorção consiste no conjunto de processos resultantes de transporte dos nutrientes hidrolisados, água, eletrólitos e vitaminas, do lúmen do TGI, através do epitélio intestinal, para a circulação linfática e sistêmica. A absorção ocorre, predominantemente, no intestino delgado, o qual absorve todos os produtos da hidrólise dos nutrientes orgânicos, as vitaminas e a maior parte da água e eletrólitos. A absorção no delgado se dá, preferencialmente, no duodeno e porção proximal do jejuno (nos 100 cm iniciais). O íleo absorve alguns substratos, como os sais bilaires e a vitamina B12. O cólon absorve um menor volume de água, todos os eletrólitos que o alcançam, alguns produtos da fermentação bacteriana, assim como carboidratos que não foram digeridos e absorvidos no delgado, transformados em ácidos graxos voláteis. O cólon secreta K+ e HCO3– e funciona como um reservatório do material fecal, preparandoo para a excreção (Figura 58.2).
Figura 58.1 ■ Esquema do sistema digestório. Note o trato gastrintestinal com seus diferentes órgãos, esfíncteres, glândulas e órgãos anexos.
A mucosa de revestimento interno do TGI é uma das interfaces entre o meio ambiente e o meio interno do organismo. O compartimento luminal do TGI comunicase com o meio ambiente nas suas duas extremidades, a oral e a aboral (ou anal), e, através da mucosa de revestimento interno, comunicase também com o meio intersticialvascular (ou meio interno do organismo). A composição do fluido luminal, assim, depende da ingesta, das trocas que são efetuadas entre o compartimento luminal e o meio interno do organismo, bem como da excreção fecal. O conteúdo luminal é, desse modo, um fluido extracorpóreo porque, embora contido no lúmen do TGI, comunicase diretamente com o meio exterior e depende dele. Portanto, a mucosa de revestimento interno do TGI é uma das interfaces do organismo, como são também interfaces o epitélio dos tratos respiratório e renal e a pele. Além das funções de nutrição, de manutenção da homeostase energética e de participação da homeostase hidreletrolítica do organismo, o sistema digestório tem também importante função imunológica. Existe um extenso sistema imunológico ao longo do TGI, denominado GALT (gut associated lymphoid tissue), representado por agregados de tecido linfoide, como as placas de Peyer, e uma população difusa de células imunológicas. As placas de Peyer são folículos elípticos de tecido linfoide relativamente grandes (1 cm de largura por 5 cm de comprimento), localizados na lâmina própria, mais frequentes nas porções distais do íleo. As células linfoides da mucosa, lâmina própria e submucosa são linfócitos, mastócitos, macrófagos, eosinófilos, leucócitos polimorfonucleados etc. Esse sistema imunológico é importante, uma vez que o TGI tem não só a maior área do organismo, como também contato direto com agentes infecciosos e tóxicos. A maior parte das células produtoras de imunoglobulinas do sistema digestório localizase no intestino (80%). O GALT, além de proteger o sistema digestório contra agentes infecciosos exógenos –
bactérias, vírus e patógenos em geral – também o faz de modo imunológico de sua flora bacteriana, que normalmente se localiza no intestino grosso, sendo mais concentrada no ceco. Os mediadores imunológicos secretados pelo GALT são: histamina, leucotrienos, prostaglandinas, citocininas, imunoglobulinas e outros. Estes mediadores difundemse dos seus locais de síntese para os diferentes tecidos do sistema digestório, agindo como parácrinos que modulam os processos de motilidade, secreção e absorção. São, também, importantes nas doenças inflamatórias do TGI, como na doença celíaca e na de Crohn. A parede do TGI tem uma estrutura histológica básica em toda a sua extensão. A análise da parede do TGI, no sentido do lúmen para a porção contraluminal (serosa), revela as seguintes estruturas: mucosa, submucosa, tecido muscular (referido como muscular externa), plexos nervosos intramurais e serosa (Figura 58.3). A mucosa compreende: (a) o epitélio – que faz contato com o fluido luminal; (b) a lâmina própria – logo abaixo do epitélio, e (c) a muscular da mucosa – mais internamente localizada na parede do TGI (Figura 58.4). O epitélio do TGI é monoestratificado e heterocelular. O epitélio do TGI apresenta vários tipos celulares, cujos números e funções variam conforme suas localizações ao longo do TGI. Estes tipos celulares são: células caliciformes ou goblet cells – secretoras de mucina, encontradas ao longo de todo o TGI; células absortivas superficiais – encontradas no delgado e no cólon, absorvem água, íons e produtos da hidrólise dos macronutrientes; células das criptas – indiferenciadas, mais profundamente localizadas nas bases das vilosidades do delgado e nas dobras intestinais do cólon, predominantemente secretoras de eletrólitos e de água; células que sintetizam as enzimas da borda em escova – características do epitélio do delgado; células endócrinas – secretoras de hormônios e parácrinos; células do sistema imunológico e células neurais.
Figura 58.2 ■ Esquema que indica os principais processos do sistema digestório: motilidade, secreção, digestão, absorção e excreção. Note a relação do sistema digestório com a circulação porta e sistêmica. Setas azuis, absorção gastrintestinal; setas vermelhas, secreção gastrintestinal.
Figura 58.3 ■ Representação esquemática de um corte transversal do intestino, que indica a estrutura de sua parede.
A lâmina própria localizase logo abaixo do epitélio. É um tecido conjuntivo, que contém fibras elásticas e colágenas de sustentação do epitélio, várias células do sistema imunológico, nodos linfáticos, glândulas e tecido neuroendócrino. É uma região ricamente vascularizada, com uma rede de capilares sanguíneos, que captam as substâncias absorvidas pelo epitélio, e com um capilar linfático central (capilar lácteo), que apreende especificamente os produtos da hidrólise dos lipídios. A muscular da mucosa é uma camada de fibras musculares lisas, com espessura de 3 a 4 células, que, ao se contraírem, provocam dobras da mucosa e da submucosa. A submucosa é um tecido conjuntivo frouxo que sustenta a mucosa, e tem fibras elásticas e colágenas, tecido glandular, células endócrinas, vasos sanguíneos e linfáticos, troncos nervosos, fibras amielínicas, além de células imunológicas. A muscular externa é formada de duas camadas de fibras musculares lisas. A mais interna, a musculatura circular, tem as fibras dispostas perpendicularmente em relação ao eixo do TGI. Sua contração diminui o lúmen do TGI, segmentando o conteúdo luminal, o que facilita sua mistura com as secreções luminais. Na camada mais externa, a musculatura longitudinal apresenta fibras dispostas longitudinalmente em relação ao eixo do TGI. Quando estas se contraem, encurtam o TGI, movimentando o conteúdo luminal no sentido do seu comprimento. A contração simultânea das duas musculaturas propicia mistura, circulação e propulsão do conteúdo luminal. A musculatura circular é mais desenvolvida e mais inervada do que a longitudinal. No TGI só existe musculatura estriada na cavidade oral, faringe, terço superior do esôfago e no esfíncter anal externo. Os plexos nervosos são agregados ganglionares de corpos celulares de neurônios motores e sensoriais, fibras nervosas amielínicas, interneurônios e sinapses entre fibras sensoriais aferentes e fibras motoras e secretoras eferentes. Os que se localizam na submucosa, próximos à musculatura circular, são chamados de plexos submucosos (ou de Meissner). Os localizados entre as duas camadas musculares – a circular e a longitudinal – são os plexos mioentéricos (ou de Auerbach), mais desenvolvidos que os submucosos.
Figura 58.4 ■ Esquema que indica que o epitélio intestinal é monoestratificado e heterocelular. Note a lâmina própria com o GALT (gut associated lymphoid tissue).
A serosa, também denominada adventícia, é o tecido mais externo do TGI e consiste em tecido conjuntivo com células mesoteliais escamosas.
Resumo 1. O TGI é formado por: cavidade oral, faringe, esôfago, estômago, intestinos delgado e grosso, reto e ânus. 2. Os órgãos anexos ao TGI são: glândulas salivares, pâncreas, vesícula biliar e fígado. 3. Os processos funcionais do sistema digestório são: digestão – hidrólise dos macronutrientes pelas enzimas digestivas luminais e da borda em escova do delgado; secreção – de água, íons e enzimas digestivas pelas glândulas salivares e gástricas, pelo pâncreas e pela vesícula biliar; absorção intestinal – transporte dos produtos da hidrólise dos macronutrientes, água, íons e vitaminas do lúmen intestinal para as correntes sanguínea e linfática, através da mucosa intestinal, e excreção – eliminação fecal dos produtos não digeridos e/ou não absorvidos. 4. A função imunológica do sistema digestório é efetuada por células, nodos e gânglios linfáticos secretores de substâncias imunológicas, que em conjunto formam o GALT (gut associated lymphoid tissue). 5. A parede do TGI tem: mucosa – com epitélio, lâmina própria e muscular da mucosa; submucosa; muscular externa – formada pelas musculaturas longitudinal e circular; plexos intramurais ganglionares – mioentérico e submucoso; plexos intramurais secundários e terciários aganglionares, e serosa.
BIBLIOGRAFIA BERNE RM, LEVY MN. Physiology. 4. ed. Mosby Inc., St. Louis, 1998. BERNE RM, LEVY MN, KOEPPEN BM et al. Physiology. 4. ed. Mosby Inc., St. Louis, 2004. BINDER HJ. Organization of the gastrointestinal system. In: BORON WF, BOULPAEP EL. Medical Physiology. W.B. Saunders Co., Philadelphia, 2005. JOHNSON LR. Gastrointestinal Physiology. 6. ed. The Mosby Physiology Monograph Series, 2001. JOHNSON LR (Ed.). Physiology of Gastrointestinal Tract. 3. ed. Raven, New York, 1997.
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Sistema nervoso entérico
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Hormônios parácrinos e neurotransmissores do sistema digestório Bibliografia
SISTEMA NERVOSO ENTÉRICO O sistema digestório tem um sistema nervoso intrínseco autônomo com número de células tão grande quanto o da medula espinal. O sistema digestório é inervado por uma rede neural localizada na parede do trato gastrintestinal (TGI), denominada sistema nervoso entérico (SNE) ou intrínseco. Esta rede neural intramural é não só bastante complexa como também intrincada e tem um número de neurônios (cerca de 108) semelhante ao existente na medula espinal. O SNE é formado pelos plexos ganglionares maiores – o submucoso e o mioentérico, que se intercomunicam – e por plexos aganglionares secundários e terciários – que se comunicam com os plexos ganglionares por feixes de fibras nervosas, conforme mostra a Figura 59.1. O SNE é autônomo e capaz de regular todas as funções motoras, secretoras e endócrinas do sistema digestório, mesmo na ausência do sistema nervoso autônomo (SNA) ou extrínseco. Os neurônios dos plexos intramurais do SNE fazem sinapses com fibras nervosas aferentes e eferentes do SNA, que desempenham função modulatória sobre o SNE. Os interneurônios do SNE fazem sinapses entre fibras sensoriais aferentes de receptores sensoriais da parede do TGI e neurônios eferentes motores ou secretores que conduzem a informação para o TGI. As vias neurais envolvidas podem ser multissinápticas. Muitos peptídios neurotransmissores e neuromoduladores (que regulam a atividade dos neurotransmissores) do SNI já foram identificados. O sistema nervoso autônomo (SNA) faz sinapses nos plexos do sistema nervoso entérico (SNE), modulandoo através de nervos parassimpáticos e simpáticos. As fibras neurais do SNA, parassimpático e simpático, fazem sinapses com os interneurônios dos plexos intramurais (mioentérico e submucoso) ou terminam nos plexos, modulando a atividade do SNE. A inervação parassimpática do sistema digestório é efetuada pelo nervo vago (X par de nervos cranianos), desde o esôfago até o cólon transverso inclusive, e pelo nervo pélvico, que inerva o TGI desde o cólon sigmoide até o esfíncter anal interno. Estes nervos são constituídos de 75% de fibras aferentes e o restante, de fibras eferentes. As fibras aferentes conduzem as informações sensoriais dos mecano e quimiorreceptores do sistema digestório para a medula cefálica e sacral, e as fibras eferentes conduzem as informações da medula cefalossacral para o sistema digestório. As fibras eferentes parassimpáticas présinápticas são relativamente longas; provêm da medula cefálica e sacral, fazendo sinapses com neurônios localizados nos plexos intramurais. Destes, partem as fibras póssinápticas ou pós
ganglionares, relativamente mais curtas, para musculatura, glândulas, ductos e vasos sanguíneos do sistema digestório. As fibras parassimpáticas póssinápticas são predominantemente colinérgicas, ou seja, o neurotransmissor é a acetilcolina. A inervação póssináptica colinérgica é, em geral, excitatória, aumentando a motilidade, as secreções e o fluxo sanguíneo do sistema digestório. Há, também, fibras parassimpáticas póssinápticas inibitórias, mediadas por neuropeptídios, como o VIP (peptídio vasoativo intestinal), a substância P, o óxido nítrico (NO), ou por neuropeptídios ainda não identificados. Informações adicionais sobre as ações e origens dos neurotransmissores do sistema digestório são relatadas mais adiante e no Quadro 59.1.
Figura 59.1 ■ Representação esquemática da rede neural intrínseca do trato gastrintestinal, que mostra os plexos intramurais principais ganglionares (mioentérico e submucoso) e os secundários e terciários aganglionares. A. Corte longitudinal. B. Corte transversal. (Adaptada de Berne e Levy, 1993.)
As fibras eferentes simpáticas présinápticas são relativamente curtas, emergem da medula toracolombar, atravessam a cadeia ganglionar paravertebral e fazem sinapses nos gânglios simpáticos celíaco, mesentéricos superior e inferior e hipogástricos superior e inferior. Destes gânglios, partem as fibras póssinápticas, relativamente mais longas, para o sistema digestório. Poucas destas fibras terminam diretamente na musculatura e glândulas do sistema digestório. Muitas o fazem nas fibras musculares lisas dos vasos sanguíneos, acarretando vasoconstrição e redução do fluxo sanguíneo em vários territórios do sistema digestório. A grande maioria das fibras póssinápticas simpáticas termina nos plexos intramurais, regulando os seus circuitos neurais. O neurotransmissor simpático das fibras póssinápticas eferentes é a norepinefrina, e, de um modo geral, a estimulação simpática para o sistema digestório causa diminuição da motilidade e das secreções glandulares, secundariamente à vasoconstrição. Cerca de 50% das fibras simpáticas são aferentes. A Figura 59.2 esquematiza a inervação parassimpática e simpática do sistema digestório. A faringe e o esfíncter anal externo, que têm musculatura estriada, são inervados por nervos somáticos. Esse esfíncter é inervado pelo nervo pudendo.
Quadro 59.1 ■ Neurotransmissores e neuromoduladores do sistema digestório. Neurotransmissores
Origens
Ações no sistema digestório
Acetilcolina (ACh)
SNA parassimpático,
Contração da musculatura lisa
SNE
Relaxamento do esfíncter pilórico Aumentos das secreções: salivar, gástrica, biliar e enzimática do pâncreas
Aumento de fluxo sanguíneo do sistema digestório Efeito trófico glandular Norepinefrina (NE)
SNA simpático
Relaxamento da musculatura lisa Contração do esfíncter pilórico Efeito bifásico sobre a secreção salivar Vasoconstrição e diminuição secundária das secreções Efeito trófico sobre as glândulas salivares
Peptídio vasoativo intestinal (VIP)
SNA parassimpático, SNE
Relaxamento da musculatura Relaxamento do esfíncter esofágico inferior Aumento da secreção pancreática
Peptídio liberador de gastrina (PLG) ou
SNA parassimpático
bombesina
(vago no estômago)
Encefalinas (opioides)
SNA parassimpático,
Aumento da liberação de gastrina
Contração da musculatura lisa do TGI
SNE Óxido nítrico (NO)
SNA parassimpático,
Relaxamento da musculatura
SNE Neuropeptídio Y (NPY)
SNE
Relaxamento da musculatura lisa
Substância P
SNA parassimpático
Contração da musculatura lisa Aumento da secreção salivar
SNA, sistema nervoso autônomo; SNE, sistema nervoso entérico; TGI, trato gastrintestinal.
▸ Reflexos longos e curtos (intramurais) no sistema digestório Os receptores sensoriais (mecano, quimio e osmorreceptores) localizados na parede do TGI, quando estimulados pela chegada do alimento, enviam impulsos aferentes ao SNC, via nervos vagos ou pélvicos. Dos corpos celulares destes nervos, localizados na medula espinal, provêm as respostas eferentes transmitidas, em grande parte, pelos mesmos nervos. Dos plexos, emergem as fibras póssinápticas que vão inervar a musculatura e as glândulas do sistema digestório. Os reflexos mediados deste modo são chamados de reflexos longos, uma vez que têm os corpos celulares dos neurônios aferentes localizados no SNC. Se as vias aferentes e eferentes forem do nervo vago, denominamse reflexos longos vagovagais (Figura 59.3).
Figura 59.2 ■ Representação esquemática do sistema nervoso autônomo (SNA) extrínseco parassimpático e simpático eferente para o sistema digestório e sua interrelação com o sistema nervoso entérico (SNE) ou intrínseco.
Quando as vias aferentes dos receptores sensoriais, localizados na parede do sistema digestório, fazem sinapses com corpos celulares de interneurônios dos plexos intramurais, portanto dentro do TGI, tratase de um reflexo curto ou intramural. Dos plexos partem as fibras póssinápticas para a musculatura e as glândulas (Figura 59.4). A Figura 59.5 mostra a circuitaria neuronal de um reflexo curto peristáltico. Fibras ascendentes de mecanorreceptores sensoriais, na parede do TGI, fazem sinapses com interneurônios nos plexos intramurais, de onde partem fibras pós sinápticas eferentes para a musculatura, provocando contração oral e relaxamento distal. A contração é mediada por fibras colinérgicas ou por um neurotransmissor denominado substância P, e o relaxamento, por fibras vipérgicas ou que têm o NO como neurotransmissor. Desta maneira, o conteúdo luminal é segmentado pela contração oral e propelido para o segmento vizinho, distalmente localizado e relaxado. A resposta peristáltica foi primeiramente descrita por Bayliss e Starling. Ela é conhecida como lei do intestino.
Figura 59.3 ■ Reflexo longo vagovagal.
Figura 59.4 ■ Reflexo curto ou intramural.
Resumo Sistema nervoso entérico 1. Inervação intrínseca: plexos ganglionares e aganglionares intercomunicantes. É autônoma, mas modulada pelo SNA, e tem cerca de 108 neurônios. 2. SNA parassimpático Fibras préganglionares eferentes: longas, emergem da medula cefalocaudal via nervos vago e pélvico, respectivamente. Sinapses: nos gânglios intramurais. Fibras póssinápticas eferentes: curtas, dos gânglios intramurais para musculatura, glândulas e ductos do sistema digestório. Neurônios: colinérgicos e peptidérgicos. Neurotransmissores: acetilcolina (excitatória), substância P, VIP e NO (inibitórios). Inervação parassimpática colinérgica: excitatória, aumenta a motilidade, as secreções e o fluxo sanguíneo do sistema digestório. Inervação parassimpática vipérgica ou mediada pelo NO: inibitória. Fibras aferentes: 75%, correm junto aos nervos vago e pélvico. 3. SNA simpático Fibras préganglionares eferentes: curtas, emergem da medula toracolombar. Sinapses: nos plexos intratorácicos (celíacos) e intraabdominais (mesentéricos e hipogástricos). Fibras póssinápticas (ou pósganglionares) eferentes noradrenérgicas: a maioria termina nos plexos intramurais, algumas nos vasos, outras na muscular da mucosa. Inervação simpática noradrenérgica: inibitória, reduz a motilidade, causa vasoconstrição e diminui as secreções, secundariamente à vasoconstrição no sistema digestório. Neurotransmissor: norepinefrina. Reflexo longo vagovagal: vias aferentes e eferentes vagais. Corpo celular no SNC. Reflexo curto intramural: Corpo celular nos plexos intramurais.
Figura 59.5 ■ Reflexo curto peristáltico (intramural). ACh, acetilcolina; Subs. P, substância P (neuropeptídio); NO, óxido nítrico; VIP, peptídio vasoativo intestinal; célula EC, célula enterocromafim.
HORMÔNIOS PARÁCRINOS E NEUROTRANSMISSORES DO SISTEMA DIGESTÓRIO O sistema digestório é regulado tanto por mecanismos neurais intrínsecos, como por mecanismos endócrinos e parácrinos intrínsecos. As funções do sistema digestório, além de serem reguladas de maneira autônoma pelo SNE, também o são por hormônios e parácrinos sintetizados no próprio TGI. O esquema apresentado na Figura 59.6 ilustra os mecanismos de ação dos hormônios, parácrinos e neurotransmissores do sistema digestório. Os mecanismos regulatórios extrínsecos e intrínsecos atuam em conjunto, coordenando as funções do sistema digestório, conforme esquematizado na Figura 59.7.
Figura 59.6 ■ Representação esquemática da regulação endócrina, parácrina e neurócrina do sistema digestório. CA, célula alvo; CE, célula endócrina; H, hormônio; NT, neurotransmissor; TA, terminal axônico; VS, vaso sanguíneo.
Figura 59.7 ■ Representação esquemática da interação do sistema nervoso com o endócrino e/ou parácrino, no sistema digestório.
Os neurócrinos (ou neurotransmissores) do sistema digestório são sintetizados nos corpos celulares dos neurônios présinápticos eferentes do SNA, e armazenados em vesículas, nos terminais présinápticos. Em resposta a uma estimulação, quando os potenciais de ação atingem os terminais présinápticos, as vesículas sofrem exocitose na membrana e liberam o neurotransmissor na fenda sináptica. Os neurotransmissores difundemse na fenda e ligamse aos receptores específicos dos neurônios póssinápticos, ativando canais iônicos, diretamente, ou via segundos mensageiros intracelulares, desencadeando os potenciais excitatórios ou inibitórios póssinápticos. Os neurotransmissores das fibras présinápticas parassimpáticas eferentes do SNA para o sistema digestório são: acetilcolina, óxido nítrico (NO), encefalinas e os peptídios gastrintestinais: peptídio vasoativo intestinal (VIP), substância P, neuropeptídio Y (NPY) e o peptídio liberador de gastrina (PLG) ou bombesina. A acetilcolina é o neurotransmissor tanto das fibras pré, como das póssinápticas eferentes parassimpáticas e das fibras do SNE. A norepinefrina é o neurotransmissor das fibras póssinápticas simpáticas eferentes. As ações e as origens dos neurotransmissores estão resumidas no Quadro 59.1. Hormônios secretados por células endócrinas do TGI: hormônios gastrintestinais. Estes hormônios são peptídios sintetizados por células endócrinas isoladas ou agrupadas, que se distribuem na parede do TGI. As células endócrinas não são concentradas em glândulas. Os peptídios hormonais são levados, pela circulação porta, ao fígado e, posteriormente, pela circulação sistêmica, às célulasalvo, as quais têm receptores específicos para cada hormônio. As célulasalvo localizamse no próprio sistema digestório. O peptídio inibidor gástrico (GIP) ou peptídio insulinotrópico dependente de glicose age, também, sobre as células β do pâncreas, promovendo a secreção de insulina. Os neuropeptídios que têm o status de hormônios gastrintestinais são: secretina, colecistocinina (CCK), gastrina, peptídio inibidor gástrico (GIP), motilina e somatostatina (esta age como hormônio e parácrino). A secretina e o GIP são polipeptídios estruturalmente similares ao glucagon, e fazem parte da sua família, denominada família da secretina glucagon. A secretina foi o primeiro hormônio descrito. É sintetizada pelas células S da mucosa do delgado, mais abundantes no duodeno. Sua secreção é estimulada, principalmente, em resposta ao pH ácido do quimo gástrico que alcança o duodeno. Suas ações são várias e sempre no sentido de neutralizar o quimo no delgado; por isso, é chamada de
antiácido fisiológico. Suas ações são: (a) estimulação da secreção de HCO3– pelas células dos ductos pancreáticos; (b) estimulação da secreção de HCO3– pelas células dos ductos biliares; (c) inibição da secreção de HCl pelas células oxínticas gástricas; (d) inibição da secreção de gastrina pelas células gástricas do antro gástrico (células G ou secretoras de gastrina); (e) diminuição do efeito trófico da gastrina sobre a mucosa gástrica; (f) contração do piloro, diminuindo a velocidade de esvaziamento gástrico, e (g) efeito trófico sobre o tecido exócrino do pâncreas (Quadro 59.2). O GIP (peptídio inibidor gástrico) é secretado por células endócrinas do duodeno e jejuno, em resposta à presença dos produtos da hidrólise dos três macronutrientes – proteínas, gorduras e carboidratos. Os aminoácidos arginina, histidina, leucina, lisina e outros, que não são potentes liberadores de CCK, estimulam a liberação do GIP. As mais importantes ações do GIP sobre o sistema digestório são: (a) decréscimo da velocidade de esvaziamento gástrico, por diminuição da motilidade gástrica, e (b) redução da secreção de HCl gástrico. Entretanto, a principal ação fisiológica do GIP é a estimulação da secreção de insulina pelas células β das ilhotas pancreáticas, na presença de glicose no TGI. Uma carga oral de glicose é utilizada pelas células pancreáticas mais rapidamente que uma carga equivalente de glicose intravenosa, que só estimula a liberação de insulina por sua ação direta sobre as células β. A molécula de secretina tem 27 aminoácidos; 14 deles idênticos e com as mesmas localizações que os da molécula do glucagon. Todos os 27 aminoácidos da molécula da secretina são necessários para a sua ação fisiológica. O GIP dispõe de 42 aminoácidos; 9 deles semelhantes aos da secretina e 16, aos do glucagon, como mostrado no Quadro 59.3.
Quadro 59.2 ■ Hormônios gastrintestinais. Hormônios Famílias
Gastrina
Locais de liberação
Estímulos para a
hormonais
secreção
GastrinaCCK Células G antrais e
Peptídios,
duodenais
aminoácidos PLG, acetilcolina, distensão gástrica
CCK
GastrinaCCK Células I do duodeno e jejuno proximal
Ações
Efeito trófico, mucosa antral Estimulação das células parietais com liberação de HCl
Produtos da
Estimulação da secreção de
hidrólise lipídica e
enzimas do pâncreas
proteica
Contração da vesícula biliar Relaxamento do esfíncter de Oddi Diminuição da velocidade de esvaziamento gástrico Efeito trófico no pâncreas exócrino Potencialização do efeito da secretina
Secretina
Secretina
Células S do duodeno e
glucagon
jejuno proximal
pH ácido
Estimulação da secreção de HCO3– dos ductos pancreáticos e biliares Inibição das células parietais e G
Inibição de efeito trófico da gastrina Diminuição da velocidade de esvaziamento gástrico Efeito trófico no pâncreas exócrino Potencialização do efeito da CCK
A motilina é um peptídio com 22 aminoácidos, não relacionados com as famílias secretinaglucagon ou gastrinaCCK. É secretada por células endócrinas do duodeno e jejuno e, como o nome indica, aumenta a motilidade do TGI. Esse peptídio é correlacionado com o complexo migratório mioelétrico (CMM); tal complexo consiste em surtos de intensa atividade elétrica e motora da musculatura lisa do estômago e delgado, que ocorre nos períodos interdigestivos, com periodicidade de 90 min. A secreção de motilina é realizada em fase com o CMM, entretanto não se conhece o estímulo que desencadeia sua secreção, a qual parece depender de uma via neural colinérgica excitatória. A gastrina e a CCK fazem parte da mesma família hormonal – a família gastrinaCCK. A gastrina é sintetizada e liberada, predominantemente, pelas células G localizadas na região antral do estômago e, em menor extensão, na mucosa duodenal. Os principais estímulos para a sua liberação são os produtos da digestão proteica, peptídios pequenos e aminoácidos; os mais potentes são a fenilalanina e o triptofano. A estimulação vagal também promove a secreção de gastrina pelas células G do antro, e o peptídio liberador de gastrina (PLG) é o neurotransmissor envolvido. Reflexos intramurais também estimulam a secreção das células G; aqui o neurotransmissor é a acetilcolina. A secreção de gastrina é altamente estimulada pelo quimo contido no estômago, tanto por processo químico como mecânico, por causa da distensão da parede gástrica. Outras substâncias que estimulam a secreção de gastrina são: Ca2+, café descafeinado e vinho. O álcool puro ou na mesma concentração encontrada no vinho não tem efeito direto sobre a liberação de gastrina, embora estimule as células oxínticas a liberarem HCl. A liberação de gastrina é inibida por valores de pH intragástrico menores que 3,0, o que representa um mecanismo de retroalimentação negativo, mediado pela somatostatina, impedindo que o pH intragástrico atinja valores muito baixos. As principais ações da gastrina são: (a) efeito trófico sobre a mucosa gástrica e (b) estimulação das células parietais ou oxínticas a liberarem HCl. Há dois tipos de gastrina. O primeiro corresponde a um heptapeptídio, com 17 aminoácidos, conhecido como G17 ou gastrina pequena, secretado em resposta a uma refeição; corresponde a cerca de 90% da gastrina detectada no antro. O segundo tem 34 aminoácidos, denominado G34 ou gastrina grande, e é predominantemente secretado nos períodos interdigestivos. Constitui a forma principal de gastrina detectada no plasma durante o jejum. As duas gastrinas são moléculas com vias biossintéticas distintas, uma não sendo dímero ou originária da outra. A molécula da gastrina tem um tetrapeptídio no terminal C da molécula – o menor fragmento necessário para as suas ações fisiológicas – e dispõe, porém, de apenas 1/6 da atividade do polipeptídio total. Quando o aminoácido tirosina na posição 12 da gastrina pequena estiver sulfatado, a gastrina será do tipo I; caso contrário, do tipo II. Ambos os tipos ocorrem com igual frequência e são equipotentes.
A CCK tem 33 aminoácidos estruturalmente relacionados com a molécula da gastrina. Os 5 últimos aminoácidos do terminal C são idênticos aos da gastrina. A CCK, como a gastrina, tem 4 aminoácidos necessários para a ação mínima da gastrina. Por este motivo, a CCK tem alguma atividade similar à da gastrina. O hexapeptídio do terminal C da CCK é o menor fragmento para a atividade mínima do hormônio. A localização do aminoácido tirosina no terminal C é a característica que determina se o peptídio funciona como gastrina, estimulando a secreção de HCl pelas células oxínticas, ou como CCK, contraindo a vesícula biliar. O resíduo tirosina da gastrina localizase na posição 6 do terminal C, enquanto na CCK ele se situa na posição 7. Na molécula de CCK, este resíduo é sulfatado; a sulfatação é essencial para a ação fisiológica da CCK, que passa a agir como gastrina do tipo I. A CCK é secretada por células denominadas I, do delgado, em resposta à presença dos produtos da hidrólise lipídica e proteica neste local. Suas ações são: (a) estimulação da secreção enzimática das células acinares do pâncreas; (b) contração do piloro, que promove diminuição da velocidade de esvaziamento gástrico; (c) contração da musculatura lisa da vesícula biliar, que provoca secreção de bile para o duodeno; (d) relaxamento do esfíncter de Oddi, que propicia a liberação da bile vesicular para o duodeno (Quadro 59.4).
▸ Candidatos a hormônios Os candidatos a hormônios são peptídios liberados de células endócrinas do sistema digestório, que não preenchem os critérios necessários para serem considerados hormônios. São descritos dois peptídios gastrintestinais nestas condições: o polipeptídio pancreático (PP) e o enteroglucagon. A enterooxintina é também uma substância que poderia ser classificada como candidata a hormônio; sua ação tem sido descrita em cães. O polipeptídio pancreático tem 36 aminoácidos; é secretado pelo pâncreas em resposta aos produtos da hidrólise dos macronutrientes, predominantemente os produtos de hidrólise proteica. O PP inibe as secreções de enzimas e de HCO3– do pâncreas. O enteroglucagon é encontrado no íleo, em resposta à presença de glicose e gordura. Sua ação não é conhecida. Vale citar que o glucagon produzido nas ilhotas pancreáticas tem efeitos sobre o sistema digestório similares aos da secretina (como inibição da secreção ácida gástrica e elevação do fluxo nos ductos biliares), entretanto estes efeitos não são observados em concentrações fisiológicas do hormônio. A enterooxintina, que parece ser liberada no delgado proximal, estimula a secreção ácida gástrica.
▸ Parácrinos gastrintestinais Os parácrinos são sintetizados por células endócrinas localizadas próximas das célulasalvo, alcançandoas por difusão através do fluido intersticial ou pela circulação capilar. Os dois parácrinos importantes no sistema digestório são: histamina e somatostatina. A histamina é secretada por células enterocromafins do estômago, principalmente na região oxíntica. As células parietais têm receptores, nomeados H2, para este parácrino. A histamina estimula a secreção de HCl. A somatostatina é sintetizada por células, denominadas D, tanto da mucosa gástrica como do delgado. No estômago, ela inibe a secreção de HCl pelas células oxínticas, as quais têm receptores específicos para este parácrino. A somatostatina é liberada quando a concentração hidrogeniônica do lúmen gástrico elevase, correspondendo a valores de pH menores que 3,0. Ela inibe diretamente as células G antrais, secretoras de gastrina. A estimulação vagal colinérgica inibe as células secretoras de somatostatina, liberando as células G da sua ação inibitória sobre a secreção de gastrina. A somatostatina age, também, como parácrino sobre as ilhotas do pâncreas, inibindo a secreção de insulina e de glucagon. A somatostatina foi isolada, primeiramente, do hipotálamo, no qual ela age como fator inibidor da liberação do hormônio de crescimento (GHRIF). De um modo geral, a somatostatina inibe a liberação de todos os hormônios peptídicos.
Resumo Hormônios, parácrinos e neurotransmissores do sistema digestório 1. Neurócrinos (neurotransmissores), hormônios, candidatos a hormônios e parácrinos: regulam as funções do sistema digestório. Os hormônios, os candidatos a hormônios, os parácrinos do sistema digestório e o SNI exercem regulação intrínseca das funções do sistema digestório. 2. Neurócrinos ou neurotransmissores (NT): são secretados pelos terminais de neurônios présinápticos, sendo liberados nas fendas sinápticas e, após interagirem com receptores específicos dos neurônios
póssinápticos, ativam direta ou indiretamente canais iônicos, o que gera potenciais póssinápticos excitatórios ou inibitórios. Os NT mais importantes do sistema digestório são: acetilcolina (ACh), norepinefrina (NE), óxido nítrico (NO), encefalinas e neuropeptídios: vasoativo intestinal (VIP), liberador de gastrina (PLG), substância P e neuropeptídio Y (NPY). ACh: NT parassimpático do SNA e do SNI – age, em geral, estimulando a motilidade e as secreções, assim como causa vasodilatação no sistema digestório. NE: NT das fibras simpáticas do SNA – diminui, em geral, a motilidade e as secreções, secundariamente à vasoconstrição no sistema digestório. NO e encefalinas: agem, em geral, como NT que ativam respostas inibitórias. VIP: NT de fibras parassimpáticas – age, em geral, como inibidor da motilidade e eleva a secreção do pâncreas exócrino. PLG: NT de fibras vagais – estimulam a secreção das células G antrais, secretoras de gastrina. Substância P: NT parassimpático – estimula a secreção salivar, agindo em receptores das células acinares, e inibe a motilidade do TGI. NPY: produz relaxamento da musculatura lisa do TGI e reduz processos de secreção intestinal. 3. Hormônios do sistema digestório: sintetizados por células ou grupos de células endócrinas da parede do sistema digestório; após serem levados ao fígado pela circulação porta, atingem as célulasalvo localizadas no próprio sistema digestório, via circulação sistêmica. São apenas 5 peptídios que têm status de hormônio: gastrina, colecistocinina (CCK), secretina, peptídio inibidor gástrico (GIP) e motilina. Gastrina e CCK: são peptídios de uma mesma família hormonal (família gastrinaCCK), apresentando um tetrapeptídio no terminal C, que representa o fragmento ativo do peptídio. Gastrina: há várias isoformas – gastrina pequena (G17) e gastrina grande (G34). A G17 é liberada durante o processo digestivo e a G34 nos períodos interdigestivos. O resíduo tirosina na posição 12, quando sulfatado, forma a GII, que não difere funcionalmente da GI, a qual não é sulfatada. A GII tem funções semelhantes às da CCK, cujo grupo tirosina na posição 27 é sulfatado. Secreção: células G do antro gástrico e células do duodeno (em menor número). Estímulos: principalmente, a chegada do quimo ao estômago, não só por distensão de sua parede, como também pela ação de peptídios e aminoácidos, principalmente fenilalanina e triptofano. Funções: estimula a secreção de HCl, tendo receptores nas células parietais. Apresenta efeito trófico, principalmente sobre a região oxíntica do estômago. CCK: tem 34 aminoácidos. Secreção: células I do duodeno e jejuno. Estímulos: produtos da hidrólise lipídica e proteica. Funções: estimula a secreção enzimática do pâncreas, contrai a vesícula biliar, relaxa o esfíncter de Oddi, retarda o esvaziamento gástrico, tem efeito trófico sobre o pâncreas exócrino e potencializa a ação da secretina. Secretina: faz parte, junto com o GIP, da família secretinaglucagon. Tem 27 aminoácidos, cuja sequência mostra grande homologia com a do glucagon e do GIP. Todos os aminoácidos são importantes para suas ações fisiológicas. Secreção: células S do duodeno e jejuno proximal. Estímulo: concentração hidrogeniônica do quimo proveniente do estômago. Funções: antiácidas, aumenta a secreção de bicarbonato do pâncreas e dos ductos biliares, inibe a secreção de HCl, agindo nas células oxínticas e G – diminuindo a secreção de gastrina, retarda o esvaziamento gástrico, inibe o efeito trófico da gastrina, tem efeito trófico sobre o pâncreas exócrino e potencializa a ação da CCK. GIP: tem 42 aminoácidos. Secreção: células endócrinas do delgado. Estímulo: produtos da hidrólise de todos os macronutrientes. Funções no sistema digestório: reduz a secreção e a motilidade gástrica. Eleva a secreção de insulina das células β das ilhotas do pâncreas endócrino. Motilina: tem 22 aminoácidos. Secreção: delgado; é secretada em fase com o CMM (complexo migratório mioelétrico). Função: aumenta a motilidade do TGI. 4. Candidatos a hormônios: polipeptídio pancreático (PP), enteroglucagon e enterooxintina. PP: tem 36 aminoácidos. Secreção: pâncreas. Estímulos: principalmente, glicose. Funções: diminui a secreção de bicarbonato e de enzimas do pâncreas exócrino.
Enteroglucagon: Secreção: íleo. Estímulos: produtos da hidrólise lipídica e de carboidratos. Função: desconhecida. Enterooxintina: Secreção: duodeno e jejuno. Estímulos: desconhecidos. Função: eleva a secreção de HCl gástrico por via desconhecida. 5. Parácrinos do sistema digestório: secretados por células endócrinas, atingindo as célulasalvo nas suas proximidades, via difusão no interstício ou por circulação capilar. Dois principais – histamina e somatostatina. Histamina: Secreção: células enterocromafins do estômago, na região oxíntica. Estímulo: chegada do quimo ao estômago. Funções: inibe a secreção de HCl nas células oxínticas, através dos receptores H2, potencializa a ação da acetilcolina e da gastrina. Somatostatina: Secreção: células D do estômago. Estímulos: pH intragástrico menor que 3,0. Funções: inibe as células G, secretoras de gastrina, agindo como reguladora do pH intragástrico. Neurônios colinérgicos vagais inibem as células D e o efeito da somatostatina sobre as células G.
BIBLIOGRAFIA BERNE RM, LEVY MN. Physiology. 3. ed. Mosby Inc., St. Louis, 1993. BERNE RM, LEVY MN, KOEPPEN BM et al. Physiology. 4. ed. Mosby Inc., St. Louis, 2004. BORON WF, BOULPAEP EL. Medical Physiology. W.B. Saunders Co., Philadelphia, 2003. BORON WF, BOULPAEP EL. Medical Physiology. W.B. Saunders Co., Philadelphia, 2005. JOHNSON LR. Gastrointestinal physiology. The Mosby Physiology Monograph Series. 6. ed., 2001. JOHNSON LR (Ed.). Physiology of Gastrintestinal Tract. 3. ed. Raven, New York, 1997.
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Introdução
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Mastigação Deglutição
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Motilidade gástrica Motilidade do intestino delgado Motilidade do cólon e defecação
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Bibliografia
INTRODUÇÃO A musculatura lisa visceral unitária é um sincício. A motilidade é efetuada pela musculatura da parede do trato gastrintestinal (TGI). Esse mecanismo propicia a mistura dos alimentos com as secreções luminais e o seu contato com a mucosa de revestimento interna do trato, otimizando os processos de digestão e absorção intestinal. Além disso, a motilidade garante, também, a propulsão cefalocaudal dos nutrientes e a excreção fecal. Musculatura lisa é encontrada em quase todo o TGI, com exceção de cavidade oral, faringe, terço superior do esôfago e esfíncter anal externo, que têm musculatura estriada inervada por motoneurônios não autônomos. A musculatura do TGI restante é denominada musculatura lisa visceral unitária, porque suas fibras intercomunicamse por junções intercelulares de baixa resistência elétrica, representadas pelos canais das gapjunctions que acoplam eletricamente as células. Estes canais, além de permitirem a passagem passiva (ou eletrotônica) de corrente de íons, permitem a passagem, de uma célula à outra, de moléculas com até 1.300 Da. Assim, pode haver passagem de segundos mensageiros intracelulares através dos canais das gapjunctions, como o AMP cíclico e os inositóisfosfato. As fibras musculares lisas formam feixes (faciae) que contêm centenas de fibras, envoltas por tecido conjuntivo. Estes feixes são inervados por um único neurônio, que dispõe de variculosidades ao longo do axônio, de onde os neurotransmissores são liberados. Um feixe e o neurônio que o inerva formam uma unidade motora (Figura 60.1). Os neurotransmissores ativam as fibras musculares mais próximas a eles, mas a excitação é conduzida a todas as células do feixe pelos canais das gapjunctions, permitindo que as fibras se contraiam simultaneamente. Portanto, a musculatura lisa visceral é um sincício morfológico e funcional e, por isso, chamada de unitária. A fibra muscular lisa é bem menor que a estriada, não tem sarcômeros, e a relação actina/miosina é de 12 a 18. As fibras musculares lisas do TGI apresentam comprimentos entre 50 e 200 mm e diâmetros de 4 a 10 μm, com uma relação superfície/volume superior à das fibras musculares estriadas. Ao contrário destas, não mostram os miofilamentos organizados em sarcômeros, mas sim formando uma rede disposta obliquamente nas células e ligada ao citoesqueleto. Quando se contraem, distribuem a tensão por toda a célula. A relação actina/miosina é de 12 a 18, enquanto, na
musculatura estriada, é 2. O retículo sarcoplasmático nas fibras musculares lisas tem pouco desenvolvimento, e o sistema de túbulos transversos inexiste (Figura 60.2).
Figura 60.1 ■ Feixe de fibras musculares lisas com os denominados néxus, regiões das gapjunctions intercelulares que acoplam eletricamente as células do feixe. Note que o neurônio apresenta variculosidades, que são as regiões de liberação dos neurotransmissores. O feixe e o neurônio que o inerva formam uma unidade motora.
As fibras da musculatura circular, além de serem mais ricamente inervadas, dispõem de maior número de gap junctions intercelulares do que as da musculatura longitudinal. Contrações fásicas periódicas e tônicas, ou mantidas, na musculatura lisa do TGI. Há dois tipos básicos de contração na musculatura lisa do TGI: a contração fásica, em que contrações e relaxamentos são periódicos e ocorrem em poucos segundos ou minutos, e a tônica, mantida ou sustentada, em que a musculatura mantémse tonicamente contraída por minutos ou horas, constituindo o que se denomina “tônus”. As musculaturas que se contraem fasicamente são as do corpo do esôfago, do corpo e antro do estômago, além daquelas dos intestinos delgado e grosso; e as que sofrem contração tonicamente são as musculaturas dos esfíncteres e da porção fúndica do estômago. O acoplamento excitaçãocontração na musculatura lisa visceral depende do influxo de Ca2+ do meio extracelular. Como nos músculos estriados esqueléticos e cardíaco, nos viscerais fásicos o nível de Ca2+ intracelular determina o fenômeno contrátil e o acoplamento entre a excitação neural e a contração mecânica. A elevação da concentração citosólica de Ca2+, que desencadeia o fenômeno contrátil, resulta da ativação de canais para Ca2+ dependentes de voltagem, em resposta à despolarização do sarcolema. O Ca2+ provém do meio extracelular, estando acumulado nos cavéolos do sarcolema. O crescimento da concentração citosólica de Ca2+, dos níveis de repouso (10–7 M) para os de excitação máxima (10–6 até 10–5), desencadeia a contração.
Figura 60.2 ■ Esquema de uma fibra muscular lisa e resumo do acoplamento entre excitação e contração, em uma fibra de contração fásica. ATP, trifosfato de adenosina; MLCK, cadeia leve de miosinoquinase. Explicação no texto.
O Ca2+ aumentado no citosol ligase à calmodulina e ativa uma cadeia leve da miosinoquinase (MLCK). A transferência do grupo fosforil, resultante da hidrólise do ATP, à miosina ativaa e propicia sua interação com a actina, formando o complexo actomiosina e desenvolvendo tensão ou contração. Cessada a excitação, a concentração citosólica de Ca2+ diminui, por bombeamento deste íon para fora da célula, por uma Ca2+ATPase e pelo contratransportador Ca2+/Na+, ambos localizados no sarcolema. Com isto, cessa a atividade da miosinoquinase, e uma fosfatase remove o grupo fosforil da miosina, desfazendo o complexo actomiosina e provocando a queda de tensão ou o relaxamento muscular (ver Figura 60.2). Nos músculos lisos de contração tônica, a origem do Ca2+ intracelular e o mecanismo de acoplamento excitação/contração não estão bem esclarecidos. A contração das fibras musculares lisas é rítmica e determinada pelas regiões de marcapasso, que são grupos de células intersticiais de Cajal. O potencial elétrico do sarcolema da fibra muscular lisa visceral não é estável, embora medidas feitas em músculos geneticamente alterados indiquem que o “potencial de repouso” varia entre –40 e –58 mV, lado interno da célula negativo. Este potencial pode ser representado por: Ve – Vc = –Vm em que Ve = potencial extracelular, Vc = potencial intracelular e Vm = potencial de membrana. A magnitude da diferença de potencial de membrana é inferior à que existe através do sarcolema das fibras musculares estriadas, consequentemente a uma menor razão entre as permeabilidades a K+ e a Na+. O potencial de membrana das fibras lisas viscerais sofre oscilações ou despolarizações subliminares, as denominadas ondas lentas, que têm frequência típica para cada região do TGI, determinada nas regiões de marcapasso. Estas regiões, na parede muscular do TGI, são formadas por células com características de miofibroblastos,
indiferenciadas, e de fibras musculares lisas diferenciadas; em conjunto, tais fibras são chamadas de fibras intersticiais de Cajal (FICj). As FICj comunicamse entre si e com as fibras musculares lisas vizinhas da parede do TGI por gap junctions, o que propicia a propagação da excitação por toda a musculatura. Assim, as fibras musculares lisas desenvolvem ondas lentas, com frequências determinadas pelos marcapassos característicos de cada região do TGI, originando o denominado ritmo elétrico basal (REB). O REB do estômago é de 3 ondas/min; o do duodeno, 12/min; e o do íleo, 9 a 8/min. Uma representação esquemática das ondas lentas é fornecida na Figura 60.3. Estas são depolarizações subliminares do sarcolema, resultantes da variação do potencial de membrana de cerca de 10 mV. Contrações da musculatura ocorrem em fase com as ondas lentas, desde que as despolarizações alcancem o que se conhece por limiar contrátil da fibra. As amplitudes das contrações são proporcionais às das ondas lentas. As contrações que ocorrem em fase com as ondas lentas resultam da ativação de canais para Na+, K+ e Ca2+ dependentes de voltagem, do sarcolema. O Ca2+, penetrando as fibras, acopla a excitação ao fenômeno contrátil. Se a despolarização é de maior amplitude, alcançase o limiar elétrico da fibra e surgem potenciais de ação nas cristas das ondas lentas. Quando isso acontece, a amplitude das contrações depende da frequência dos potenciais de ação nas cristas das ondas lentas. Como a contração das fibras musculares lisas é lenta, ocorre somação temporal das contrações em resposta a um conjunto de potenciais de ação. O potencial de ação das fibras musculares lisas viscerais é muito mais lento que o das fibras musculares estriadas. Sua duração é de 10 a 20 ms e não apresenta overshoot. Na despolarização, temos ativação dos canais para Na+ e Ca2+ (canais lentos), dependentes de voltagem. Na repolarização, há redução das condutâncias a Na+ e a Ca2+, além de aumento da condutância a K+ (canais lentos). Entre os potenciais de ação, a tensão da fibra muscular não retorna à linha de base, havendo sempre uma contração mantida (tônus). O sistema nervoso autônomo (SNA) e o sistema nervoso entérico (SNE) regulam a amplitude das ondas lentas e podem, também, alterar a frequência não só dessas ondas lentas, como ainda dos potenciais de ação que se dão nos picos de tais ondas. Portanto, a força contrátil e a frequência do REB são reguladas pelo SNA e pelo SNE. Em geral, estimulação noradrenérgica diminui a amplitude das contrações, podendo mesmo abolilas. A estimulação colinérgica aumenta tanto a amplitude das ondas lentas como a frequência dos potenciais de ação e, portanto, a força contrátil.
Figura 60.3 ■ Esquema que indica as ondas lentas (ou REB) em fase com as contrações, e os potenciais de ação nas cristas das ondas lentas.
Resumo Musculatura do TGI 1. Músculo liso visceral em todo o TGI com exceção da boca, faringe, terço superior do esôfago e esfíncter anal externo. 2. Musculatura lisa visceral unitária: sincício funcional e anatômico por transmissão elétrica da excitação via gapjunctions (acoplamento elétrico entre as fibras). 3. Feixes ou faciae: centenas de fibras inervadas por um neurônio – unidade motora.
4. Contração fásica: rápida (s a min) – corpo do esôfago e estômago, antro gástrico e delgado. 5. Contração tônica: mantida (min a h) – fundo gástrico e esfíncteres (tônus). 6. Acoplamento excitaçãocontração: via Ca2+ extracelular. 7. Ondas lentas: despolarizações, em fase com as contrações após o limiar contrátil da fibra. 8. REB (ritmo elétrico basal): determinado nas regiões de marcapasso (fibras intersticiais de Cajal). 9. Potencial de membrana (Vm) das fibras musculares viscerais: instável. 10. Potenciais de ação: aparecem na crista das ondas lentas, quando é atingido o limiar elétrico; são lentos e sem overshoot. 11. Intensidade das contrações: proporcionais à amplitude das ondas lentas e à frequência dos potenciais de ação. Tanto o SNE como o SNA regulam a amplitude das ondas lentas e a frequência dos potenciais de ação. A estimulação colinérgica eleva a força contrátil; a noradrenérgica a diminui.
MASTIGAÇÃO Os padrões motores são específicos nas várias regiões do TGI; na cavidade oral, o alimento é reduzido a pequenas porções pelos dentes e lubrificado pela saliva. A mastigação reduz o alimento a partículas com alguns cm3 e as mistura com o muco secretado pelas glândulas salivares, lubrificando tais partículas. A redução dos alimentos a pequenas partículas não interfere no processo digestivo posterior; ela facilita a deglutição, que se torna mais fácil pela lubrificação das partículas alimentares. Muitos animais, como cães e gatos, deglutem pedaços grandes de alimentos, mastigandoos apenas para permitir sua passagem pela faringe. Durante a mastigação, a mistura do alimento com a saliva inicia o processo de hidrólise dos carboidratos pela α amilase salivar. A presença do alimento na cavidade oral estimula químio e mecanorreceptores. Estes desencadeiam reflexos que são conduzidos ao sistema nervoso central (SNC) e que coordenam os músculos mastigatórios, tornando a mastigação um ato reflexo; entretanto, a mastigação pode, ainda, ser voluntária e sobreporse, a qualquer momento, ao ato reflexo. A estimulação de quimiorreceptores e de mecanorreceptores da cavidade oral também desencadeia respostas reflexas, que estimulam as secreções salivar, gástrica e pancreática, como será analisado oportunamente.
DEGLUTIÇÃO A deglutição é um ato parcialmente voluntário e parcialmente reflexo, coordenado pelo SNC e pelo SNE, ocorrendo em frações de segundo. A deglutição é simplesmente a passagem do bolo alimentar da boca para o estômago, através do esôfago. Tratase de um ato parcialmente voluntário e parcialmente reflexo, que ocorre em frações de segundo. O esôfago é um tubo muscular, com cerca de 15 cm de comprimento, que se estende da orofaringe até o estômago, atravessando o tórax e penetrando no abdome pelo hiato diafragmático. No seu terço superior ou proximal, a musculatura é estriada, havendo, logo abaixo desta região, uma transição entre musculatura estriada e lisa, que se transforma em lisa ao longo dos restantes dois terços distais do esôfago. Na porção superior, o esôfago comunicase com a orofaringe, pelo esfíncter esofágico superior (EES) ou cricofaríngeo, um espessamento da musculatura estriada do músculo de mesmo nome. Na porção inferior, subdiafragmática, o esôfago comunicase com o estômago através do esfíncter esofágico inferior (EEI), cuja musculatura é lisa. O EES é considerado um esfíncter anatômico e fisiológico, enquanto o EEI, um esfíncter fisiológico, ou seja, apenas um pequeno anel da musculatura, de 1 a 2 cm de comprimento, com pressão aumentada. Nos períodos interdigestivos, o esôfago é flácido e a pressão interna na sua porção torácica é igual à torácica (i. e., subatmosférica), com exceção da região do EES, apresentando pequenas variações em fase com os movimentos respiratórios. A pressão no EES é de cerca de 40 mmHg superior àquela no esôfago torácico e a do EEI, aproximadamente 30 mmHg superior. Como as pressões de repouso dos dois esfíncteres são superiores à pressão no esôfago torácico durante os períodos interdigestivos, os esfíncteres funcionam como barreira, prevenindo, na porção cefálica, a entrada de ar para o interior do esôfago e, na porção distal, o refluxo gástrico. Tal prevenção evita desconforto intraesofágico e esofagite, respectivamente
nas porções proximais e distais do esôfago. Assim, este órgão, além de servir de conduto para o bolo alimentar na sua progressão da cavidade oral para o estômago, durante o processo de deglutição, funciona como uma barreira nos períodos interdigestivos. A fase reflexa da deglutição é coordenada pelo centro da deglutição, localizado no bulbo e porção posterior da ponte, no tronco cerebral. Esta fase compreende uma sequência ordenada de eventos, que propelem o bolo alimentar da orofaringe ao estômago, com inibição da respiração, o que previne a entrada de alimentos para a traqueia. As vias sensoriais aferentes para o reflexo partem de receptores tácteis (somatossensoriais, situados na orofaringe) e alcançam o centro da deglutição principalmente pelos nervos vago e glossofaríngeo. As vias eferentes para a musculatura estriada da orofaringe e do esôfago proximal são fibras vagais motoras e, para o restante do esôfago, fibras vagais viscerais. Costumase analisar o processo da deglutição em fases. Estas são: a fase oral (voluntária), a faríngea e a esofágica (reflexas), como ilustrado na Figura 60.4. A fase oral é voluntária e se inicia com a ingestão do alimento. Pressionase o bolo alimentar pela ponta da língua contra o palato duro e ele é propelido, também pela língua, em direção à orofaringe contra o palato mole. Nesta região, tal bolo estimula receptores somatossensoriais da orofaringe e começa a fase faríngea da deglutição. A fase faríngea é totalmente reflexa. A seguinte sequência de eventos ocorre em menos de 1 s. (a) Elevação do palato mole em direção à nasofaringe; as dobras palatofaríngeas impedem a entrada alimentar na nasofaringe. (b) As cordas vocais da laringe mantêmse juntas, o que eleva a epiglote, ocluindo a abertura da laringe, prevenindo assim a entrada de alimento para a traqueia. (c) Simultaneamente, a respiração se inibe e o bolo alimentar é propelido ao longo da faringe por uma onda peristáltica iniciada nos músculos constritores superiores, que se propaga para os constritores médios e inferiores da faringe. (d) À frente desta onda peristáltica, o EES relaxase, permitindo que o bolo entre no esôfago. Como já dito, todas estas fases duram menos de 1 s.
Figura 60.4 ■ Fases da deglutição: oral (A), faríngea (B) e esofágica (C e D).
Após a passagem do bolo alimentar para o esôfago, o EES contraise e começa a fase esofágica da deglutição. Inicia se uma onda peristáltica primária, que percorre o esôfago, relaxando o EEI à sua frente, permitindo a passagem do bolo para o estômago. Esta é a onda peristáltica primária, que percorre o esôfago com uma velocidade de 1 a 3 cm/s, levando cerca de 5 a 10 s para atingir o EEI e propelindo o bolo alimentar à sua frente; ela é regulada pelo centro da deglutição e por reflexos intramurais. Caso tal onda não consiga esvaziar completamente o esôfago, surge uma onda peristáltica secundária, em resposta à distensão da parede do esôfago, que se propaga da região distendida para as regiões mais distais do esôfago; esta segunda onda é totalmente coordenada pelo SNE da parede do esôfago. Na Figura 60.5, existem os registros de pressão na faringe e no esôfago, obtidos por meio de uma sonda introduzida no esôfago contendo sensores de pressão. À direita, são mostradas as pressões de repouso nos períodos interdigestivos. As pressões intraesofágicas de repouso são iguais às intratorácicas, representadas pelo nível zero, com exceção das pressões de 40 mmHg do EES e de 30 mmHg do EEI. Durante a deglutição, podemse acompanhar as alterações transientes de pressão ao longo do esôfago, refletindo as contrações, desde o EES até o EEI.
Figura 60.5 ■ Registro das pressões intraesofágicas durante o jejum e a deglutição. Descrição da figura no texto.
Simultaneamente ao relaxamento do EEI, a porção proximal do estômago (denominada fundo) também relaxa, permitindo que o bolo alimentar penetre no estômago. Este relaxamento do fundo gástrico, que persiste durante a deglutição, é designado relaxamento receptivo; tal relaxamento permite a acomodação do bolo alimentar no estômago sem elevar a pressão intragástrica. A regulação neural da deglutição é efetuada pelo centro da deglutição no tronco cerebral e depende da integridade do SNE do esôfago. Impulsos aferentes se originam do esôfago e atingem o centro de deglutição, principalmente pelos nervos vago e glossofaríngeo. O centro da deglutição localizase no bulbo e porção inferior da ponte, no tronco cerebral; tem três núcleos: não vagal, ambíguo e motor dorsal do vago. Destes núcleos, partem os nervos motores eferentes para o esôfago, inervando a musculatura estriada, via fibras vagais somáticas, e a musculatura lisa e seus plexos intramurais, via fibras vagais viscerais. Os plexos intramurais intercomunicamse, coordenando a atividade motora do esôfago. Fibras eferentes para a faringe e o esôfago têm origem nos núcleos dos nervos facial, hipoglosso e trigêmeo (Figura 60.6). A contração tônica do EEI é regulada pelos nervos vagos e por fibras simpáticas. A inervação vagal excitatória é efetuada por fibras colinérgicas, e a inibitória, por fibras vipérgicas ou tendo o óxido nítrico como neurotransmissor. Assim, quando a onda peristáltica atinge o EEI, este se relaxa por estimulação das fibras vagais inibitórias (FVI), que disparam potenciais de ação com frequência aumentada. Simultaneamente, as fibras vagais excitatórias (FVE) colinérgicas estão quiescentes (Figura 60.7).
Figura 60.6 ■ Controle neural das fases faríngea e esofágica da deglutição.
Figura 60.7 ■ Regulação do esfíncter esofágico inferior. FVE, fibras vagais excitatórias; FVI, fibras vagais inibitórias.
Acalasia é a anomalia que decorre de aumento do tônus do EEI ou de falha no seu relaxamento. As ondas peristálticas primárias, nesta situação, são fracamente propulsivas, e o material deglutido acumulase na porção inferior do esôfago, dilatandoo, sendo necessária a aspiração desse material. O tratamento é cirúrgico, no sentido de enfraquecer o EEI. Azia (heartburn) é o distúrbio mais frequentemente associado à disfunção do esôfago. Consiste em diminuição da pressão no EEI, causando refluxo gástrico ácido, com lesão da parede do esôfago (esofagite). Esta condição pode ser consequência de anormalidades motoras do EEI, esvaziamento inadequado do esôfago, falha da peristalse secundária ou elevação da pressão intragástrica, por dilatação do estômago após refeição volumosa ou aumento do abdome, como na gravidez ou em excesso de gordura. Espasmo esofágico difuso resulta de alterações motoras, com contrações não propulsivas da parede do esôfago, acarretando grande desconforto torácico. Outras condições que levam a distúrbios da deglutição ou disfagia são lesões cerebrais, câncer esofágico ou degenerações nervosas dos plexos intramurais, que provocam escleroderma de sua parede, como pode ocorrer no envelhecimento.
Resumo Deglutição 1. O esôfago apresenta musculatura estriada no terço superior. A pressão intraesofágica na região torácica esofágica, no período interdigestivo, é subatmosférica e igual à intratorácica, com exceção da região do EES. O EES, ou esfíncter cricofaríngeo, tem pressão de 40 mmHg e o EEI, ou esfíncter subdiafragmático, de 30 mmHg. O EES é um esfíncter anatômico: um espessamento do músculo estriado cricofaríngeo. O EEI é apenas fisiológico, ou seja, uma região de aumento do tônus da musculatura lisa. Os dois esfíncteres funcionam como barreira, prevenindo, na porção cefálica, a entrada de ar para o esôfago e, na distal, o refluxo gástrico. 2. A fase oral da deglutição é voluntária. A estimulação dos receptores somatossensoriais da orofaringe pelo alimento inicia a fase reflexa da deglutição. As vias aferentes para o centro da deglutição (CD), no bulbo, e a porção inferior da ponte são vago e glossofaríngeo. As vias eferentes são vagais somáticas para o EES e vagais viscerais para o esôfago torácico e EEI. Os vagos fazem sinapses nos plexos intramurais. 3. Na fase reflexa da deglutição (fase faríngea e esofágica), há inibição da respiração e propulsão peristáltica do alimento pelas ondas peristálticas primárias, iniciadas nos músculos constritores da faringe, coordenadas pelo CD. O relaxamento receptivo do fundo gástrico ocorre em associação com o do EEI. A peristalse secundária se inicia pela distensão do esôfago e é regulada pelo SNE. 4. À frente da onda peristáltica primária, os esfíncteres relaxamse e o bolo alimentar alcança o estômago. 5. A contração tônica do EES é regulada pelo CD, via nervos vagais eferentes somáticos. A do EEI é regulada por fibras vagais viscerais, excitatórias colinérgicas e inibitórias VIPérgicas ou mediadas pelo óxido nítrico. 6. Acalasia decorre do aumento do tônus do EEI, podendo induzir megaesôfago. Azia resulta de diminuição do tônus do EEI, e é possível ocorrer esofagite. Disfagias ou distúrbios da deglutição podem, também, ser consequência de lesões neurais centrais ou da parede do esôfago.
MOTILIDADE GÁSTRICA O estômago armazena, mistura e tritura o alimento, propelindoo lentamente para o duodeno, através do esfíncter pilórico. Do ponto de vista motor, o estômago exerce as seguintes funções: armazenamento, mistura e trituração do alimento, propulsão peristáltica e regulação da velocidade de esvaziamento gástrico. Estas funções são exercidas em regiões distintas do órgão, sendo relacionadas com as diferenças de sua musculatura. A Figura 60.8 ilustra as suas diferentes regiões: fundo, corpo, antro e piloro. Também sob esse ponto de vista, costumase dividir o estômago em regiões oral e caudal – a primeira inclui o fundo e a porção proximal do corpo (que têm musculatura de menor espessura); a segunda compreende a porção distal do corpo e a região antral, cuja musculatura é mais espessa. O armazenamento do alimento no estômago ocorre na região do fundo e porção proximal do corpo gástrico. A mistura do alimento se dá na região média e distal do corpo, enquanto a trituração é efetuada na parte distal do estômago, na região antral. A propulsão peristáltica iniciase na região de marcapasso, localizada na porção proximal do corpo. A velocidade de esvaziamento gástrico é regulada por mecanismos neurohormonais, envolvendo a região antropilórica e o duodeno.
Figura 60.8 ■ Regiões do estômago que mostram o aspecto da sua parede interna. Note que a região do corpo e a antral apresentam musculatura mais desenvolvida, com inúmeras pregas.
O estômago é a única porção do TGI que tem, além da muscular externa, uma outra camada de fibras musculares lisas, que se dispõem obliquamente, irradiandose da região cárdica, próxima ao EEI, para o fundo, fundindose com as demais fibras musculares, no limite entre o fundo e a porção proximal do corpo. O padrão motor do estômago varia nas suas diferentes regiões. Durante o processo da deglutição, à frente da onda peristáltica que percorre o esôfago e relaxa o EEI, a musculatura do fundo e da porção proximal do corpo relaxase. Este processo denominase relaxamento receptivo e pode ser abolido experimentalmente por vagotomia bilateral (secção dos vagos). O relaxamento receptivo é um reflexo longo vagovagal. As fibras eferentes vagais deste reflexo são inibitórias vipérgicas. Como a musculatura do fundo gástrico está relaxada durante o processo da deglutição, o alimento acomodase neste local, sem elevar a pressão intragástrica; além disso, como a musculatura desta região é menos densa do que a do restante do estômago, suas contrações são relativamente fracas. Por este motivo, 1 a 1,5 ℓ de alimento acomodase no fundo gástrico, por 1 a 2 h, sem sofrer ação de mistura. Esta é a fase de armazenamento gástrico. As peristalses gástricas começam na região proximal do corpo gástrico, onde se localiza o marcapasso. As peristalses gástricas iniciamse na região de marcapasso, situada na porção proximal do estômago. O REB no estômago é de 3 ondas/min. As ondas peristálticas aumentam de intensidade e de velocidade em direção à região antro pilórica, em consonância com o espessamento da muscular externa. As contrações rápidas e vigorosas do corpo propiciam a mistura do alimento com as secreções gástricas, otimizando a digestão. O alimento, já parcialmente digerido, forma o que se chama quimo. À frente das contrações peristálticas do corpo e do antro, o piloro relaxase, permitindo o escape de pequenas quantidades do quimo para o duodeno, cerca de poucos mℓ . Entretanto, a seguir, o piloro contraise rápida e abruptamente; portanto, uma onda peristáltica antral seguinte, propelindo o quimo, encontra o piloro fechado, o que provoca retropropulsão do quimo. A contração antral com o piloro fechado e retropropulsão do quimo é conhecida como “sístole antral”. Estes processos repetemse e propiciam a trituração do quimo (Figura 60.9). O piloro apresenta dois anéis de espessamento conjuntivo, designados esfíncteres intermediário e distal, que delimitam o antro do bulbo duodenal. Nesta região, há descontinuidade da mucosa, da submucosa e das fibras musculares circulares entre o piloro e o bulbo duodenal. Apenas algumas fibras musculares longitudinais são contínuas entre as duas
regiões, embora seja mantida a continuidade dos plexos intramurais entre estômago e duodeno (Figura 60.10). Não há concordância dos autores, quanto ao piloro ser um esfíncter anatômico ou fisiológico.
Figura 60.9 ■ Aspectos do estômago durante as peristalses gástricas.
Figura 60.10 ■ Representação esquemática do esfíncter pilórico, em secção longitudinal. Note a continuidade de fibras musculares longitudinais entre estômago e duodeno. A musculatura circular é descontínua, formando dois espessamentos constituintes dos esfíncteres intermediário e distal. Este último é formado por tecido conjuntivo, em forma de anéis, seguido de
tecido conjuntivo que delimita o estômago do bulbo duodenal. A mucosa e a submucosa do estômago e do duodeno são descontínuas. (Adaptada de Johnson, 1981.)
Materiais não esvaziados do estômago durante o período digestivo são propelidos para o delgado, por ondas peristálticas do complexo migratório mioelétrico (CMM), nos períodos interdigestivos, que efetuam a faxina gástrica. Nos períodos interdigestivos, durante 1 a 2 h, a musculatura gástrica é quiescente. Após este tempo, ocorre intensa atividade elétrica e contrátil, que se propaga da região média do corpo do estômago até o duodeno. Esta intensa atividade elétrica e motora peristáltica, denominada complexo migratório mioelétrico (CMM), dura cerca de 10 min, ocorrendo periodicamente a cada 90 min, e, literalmente, empurra qualquer material que não tenha deixado o estômago durante o processo digestivo normal. A função dessa atividade é, portanto, de faxina.
Figura 60.11 ■ Velocidades de esvaziamento gástrico de diferentes materiais, em cães. Note que a solução de glicose (1%) deixa o estômago mais rapidamente do que os pedaços de fígado sólido e as esferas plásticas (com 7 mm de diâmetro). (Adaptada de Hinder e Kelly, 1977; e de Berne et al., 2004.)
O quimo permanece no estômago entre 2 e 3 h, dependendo da natureza química da ingesta. Gorduras são os últimos nutrientes a serem esvaziados, seguidos de proteínas. Carboidratos esvaziamse mais rapidamente, e soluções salinas isotônicas o fazem mais rapidamente do que as hipo e hipertônicas. O epitélio do estômago é do tipo tight, ou seja, relativamente pouco permeável pela via intercelular, ao contrário do epitélio do delgado. O álcool pode ser absorvido através da mucosa gástrica, principalmente por via transcelular, uma vez que ele aumenta a fluidez das bicamadas lipídicas das membranas celulares. Substâncias que não foram digeridas no estômago, como pedaços de ossos ou outros objetos estranhos, deixam o estômago apenas nos períodos interdigestivos, por ação do CMM. A Figura 60.11 mostra as velocidades de esvaziamento gástrico em cães alimentados com solução de glicose (1%), pedaços de fígado e esferas plásticas. O estômago é ricamente inervado, tanto pelo SNA como pelo SNE. No estômago, há fibras vagais colinérgicas eferentes, excitatórias, que elevam tanto a motilidade como as secreções gástricas. As fibras vagais vipérgicas e liberadoras de óxido nítrico são inibitórias, reduzindo a motilidade gástrica. Há, também, fibras vagais secretoras, cujo neurotransmissor é o peptídio liberador de gastrina (PLG) ou bombesina, que estimula as células produtoras de gastrina, localizadas no antro. As fibras eferentes noradrenérgicas para o estômago partem do gânglio celíaco e induzem diminuição das contrações e das secreções gástricas. Além da regulação efetuada pelo SNA, o estômago tem o SNE bastante desenvolvido, o qual participa também da regulação da motilidade e das secreções gástricas.
As fibras sensoriais aferentes originamse em receptores sensoriais da parede gástrica e são estimuladas pela chegada do alimento. Estes receptores são presso, químio ou osmorreceptores, sendo estimulados, respectivamente, pela distensão da parede do estômago ou aumento da pressão intragástrica, pela composição química e pela tonicidade do quimo. Há, também, receptores para dor. O esfíncter pilórico é densamente inervado por fibras parassimpáticas e simpáticas eferentes. Existem fibras vagais excitatórias colinérgicas e inibitórias vipérgicas ou mediadas pelo óxido nítrico ou metaencefalina. No piloro, ao contrário do que acontece com o restante da musculatura do TGI, as fibras simpáticas eferentes noradrenérgicas são estimulatórias, contraindo e fechando o piloro. As ondas lentas subliminares gástricas têm aspecto de um potencial de ação cardíaco ventricular de menor amplitude. Há rápida despolarização, seguida de rápida repolarização e de um platô, com duração de até 100 ms, após o qual ocorre repolarização lenta. Em fase com a onda lenta, há contração ou desenvolvimento de tensão (Figura 60.12). Se o potencial limiar ou elétrico é atingido, ocorrem potenciais de ação nas cristas das ondas lentas, o que eleva a força contrátil. Os principais agonistas para a gênese dos potenciais de ação gástricos são acetilcolina e gastrina, que elevam a amplitude das ondas lentas, a frequência de potenciais de ação e a força contrátil. Norepinefrina e neurotensina diminuem não só a amplitude das ondas lentas como também a frequência dos potenciais de ação. Na região fúndica, a atividade elétrica é baixa, com ausência de ondas lentas. No corpo proximal, aparecem ondas lentas, de pequenas amplitudes, que aumentam em direção ao antro, onde começam a surgir os potenciais de ação. A atividade do piloro é intensa e a do bulbo duodenal, irregular, porque é afetada pelos dois REB – do estômago (3 ondas/min) e do duodeno (12 ondas/min). As contrações do antro e do duodeno são, porém, coordenadas (Figura 60.13). O esvaziamento gástrico é altamente regulado por mecanismos neurohormonais enterogástricos, propiciando condições para o processamento do quimo pelo delgado. A regulação da velocidade de esvaziamento gástrico é exercida pela região antropilórica e pelo duodeno, em um processo duodenogástrico, altamente regulado por mecanismos neuroendócrinos que atuam nestas duas regiões.
Figura 60.12 ■ Relação entre atividade elétrica, ou onda lenta gástrica (traçado inferior), e a atividade contrátil (traçado superior). A contração se dá durante a despolarização da fibra muscular, após atingir o limiar contrátil, mesmo na ausência de potenciais de ação. (Adaptada de Johnson, 1981; e de Berne et al., 2004.)
Figura 60.13 ■ Regiões do estômago (à esquerda) e registros elétricos em fibras musculares lisas obtidos com microeletrodos intracelulares, em fragmentos isolados de várias porções do estômago de cão (à direita). Os números representam as seguintes regiões: 1 = fundo; 2 = corpo proximal; 3 = região mais distal do corpo proximal; 4 = região média do corpo; 5 = região caudal do corpo; 6 = região proximal e média do antro; 7 = região caudal do antro; 8 = região final do antro; 9 = região pilórica. Note que a musculatura do fundo é quiescente eletricamente. Ondas lentas começam a aparecer na região proximal do corpo gástrico e aumentam de intensidade em direção ao antro. Apenas a partir do antro distal, começam a aparecer potenciais de ação na fase de despolarização das ondas lentas. (Adaptada de Johnson, 1981; e de Berne et al., 2004.)
O esfíncter pilórico tem duas funções fundamentais. (1) Funciona como barreira entre estômago e duodeno nos períodos interdigestivos, quando está contraído, evitando a regurgitação do conteúdo alcalino do duodeno para o estômago, e a do conteúdo ácido no sentido oposto. A mucosa gástrica é muito resistente a ácido mas não à bile, enquanto a duodenal pode sofrer danos por ácido. (2) Regula a velocidade de esvaziamento gástrico de acordo com a capacidade do duodeno de processar o quimo. A atividade motora do piloro, além de ser coordenada pelo SNA, é também regulada pelos seguintes hormônios gastrintestinais: gastrina (G) – secretada por células G antrais, secretina (S), colecistocinina (CCK), peptídio inibidor gástrico (GIP) e enterogastrona (sintetizada em locais ainda não determinados). Todos estes hormônios contraem o piloro, assim como os neurotransmissores acetilcolina (ACh) e norepinefrina (NE). A mucosa do delgado tem químio, mecano e osmorreceptores que, quando estimulados pela chegada do quimo gástrico ao duodeno, enviam impulsos aferentes para o SNC. As respostas eferentes são conduzidas por fibras vagais e simpáticas, que afetam a resposta motora do antro e do piloro. Por outro lado, o quimo estimula células endócrinas da parede duodenal e jejunal, ocorrendo liberação de hormônios gastrintestinais que também afetam a motilidade antropilórica. O pH, a tonicidade e a composição do quimo gástrico que atinge o duodeno desencadeiam mecanismos neurais e hormonais que, por retroalimentação negativa, regulam a motilidade do piloro e a velocidade de esvaziamento gástrico. O quimo proveniente do estômago tem pH ácido, é hipertônico em relação ao plasma e contém produtos da hidrólise lipídica e proteica, além de carboidratos já parcialmente digeridos. Quando o quimo atinge o duodeno, estimula químio e osmorreceptores duodenais, que enviam impulsos sensoriais aferentes para o SNC. Vejamos, primeiro, quais são as respostas neurais. As respostas neurais parassimpáticas eferentes são: inibição das vias parassimpáticas vagais vipérgicas e estimulação das vias colinérgicas, resultando na contração do piloro. As vias simpáticas noradrenérgicas são estimuladas e induzem
contração do piloro, o que diminui a velocidade de esvaziamento gástrico. A pergunta pertinente é: até quando o piloro fica contraído? E a resposta: até o quimo poder ser processado pelo delgado. Isto é, até que o pH do quimo seja tamponado, os produtos da hidrólise proteica e lipídica sejam hidrolisados e que ele se torne isotônico em relação ao plasma. Os mecanismos hormonais reguladores da velocidade de esvaziamento gástrico serão abordados a seguir. O pH ácido do quimo no duodeno estimula a secreção de secretina, que, além de contrair o piloro retardando o esvaziamento gástrico, provoca a secreção alcalina do pâncreas, tamponando o HCl. Se os valores de pH estiverem menores que 3,0 no delgado, haverá estimulação específica das células S, endócrinas, secretoras de secretina. Este hormônio, além do seu efeito direto de contrair o piloro e retardar o esvaziamento gástrico, estimula os ductos excretores pancreáticos a secretarem uma solução aquosa rica em NaHCO3. Esta solução é lançada, pelo ducto biliar comum, no duodeno, tamponando o HCl do quimo gástrico, segundo a reação: HCl + NaHCO3 → NaCl + H2CO3 → CO2 + H2O A dissociação do H2CO3 é catalisada pela anidrase carbônica, existente na mucosa intestinal. Desta forma, o HCl gástrico é neutralizado. Na Figura 60.14, há o efeito da introdução, no duodeno de cão, de uma solução de HCl 0,1 N, mostrando que o aumento da motilidade duodenal é simultâneo à redução da motilidade antral. Os produtos da hidrólise lipídica estimulam a secreção de CCK, que não só contrai o piloro, retardando o esvaziamento gástrico, como também estimula a secreção enzimática do pâncreas, diminuindo a tonicidade do quimo no delgado. Os produtos da hidrólise dos lipídios, já parcialmente digeridos no estômago, são o principal mecanismo para a estimulação de dois tipos de células endócrinas do delgado: células produtoras do GIP (peptídio inibidor gástrico ou peptídio insulinotrópico dependente de glicose) e células I, secretoras da CCK. Estas duas substâncias contraem diretamente o piloro e retardam o esvaziamento gástrico. A CCK, além da ação motora, é um hormônio gastrintestinal que tem dois efeitos: (a) estimula as células acinares do pâncreas a secretarem enzimas, que são lançadas no duodeno, hidrolisando lipídios, carboidratos e proteínas no delgado, e (b) é o principal estimulador da contração da vesícula biliar e também relaxa o esfíncter de Oddi, permitindo que a bile seja lançada no duodeno juntamente com a secreção pancreática, pelo ducto biliar comum. A bile atua como detergente sobre as gorduras, facilitando a ação das enzimas lipolíticas pancreáticas. Assim, a digestão dos nutrientes orgânicos se processa, originando moléculas que são absorvidas pelo delgado, diminuindo a tonicidade do quimo. Os produtos da hidrólise proteica estimulam a secreção de gastrina, a qual contrai o piloro e retarda o esvaziamento gástrico. A secreção de gastrina duodenal é estimulada por aminoácidos e oligopeptídios.
Figura 60.14 ■ Efeito da infusão de 100 mℓ de HCl 0,1 N (a uma velocidade de 6 mℓ/min) no duodeno de cão sobre a atividade contrátil do antro gástrico e do duodeno. (Adaptada de Brick et al., 1965; e de Berne et al., 2004.)
Os produtos da hidrólise lipídica e de carboidratos estimulam a liberação endócrina do GIP, também denominado peptídio insulinotrópico dependente de glicose, que contrai o piloro e retarda o esvaziamento gástrico. A isotonicidade do quimo no delgado é alcançada por processos neurohormonais.
O quimo gástrico que chega ao duodeno, após uma refeição balanceada, é hipertônico em relação ao plasma, devido à presença dos produtos intermediários da hidrólise proteica, lipídica e de carboidratos. No delgado, há osmorreceptores que enviam impulsos aferentes para o SNC, induzindo respostas eferentes vagal colinérgica e simpática; estas contraem o piloro, o que retarda a velocidade de esvaziamento gástrico, até o quimo no duodeno se tornar isotônico relativamente ao compartimento intersticialvascular. A isotonicidade é alcançada por secreção de água do compartimento intersticial vascular para o lúmen intestinal. Simultaneamente, os mecanismos neurohormonais regulatórios estimulam as secreções pancreática e biliar, que são lançadas no duodeno. Estas secreções são isotônicas com o plasma. Os osmorreceptores duodenais estimulados também atuam na secreção hormonal de uma enterogastrona, cuja identidade química não foi ainda determinada, e que parece participar da regulação da tonicidade do quimo no delgado. Na Figura 60.15, estão resumidos os mecanismos neurohormonais duodenogástricos (enterogástricos) reguladores da velocidade de esvaziamento gástrico. O vômito é um mecanismo de defesa do TGI contra agentes nocivos, mas pode ser desencadeado por mecanismos neurohormonais cujas vias aferentes localizamse fora do sistema digestório. O vômito consiste na expulsão do conteúdo gastrintestinal para o exterior, através da cavidade oral. Ele é desencadeado por estimulação do sistema digestório por agentes tóxicos e infecciosos, assim como pelo estímulo de diversos tipos de receptores sensoriais do organismo. Precedeo uma descarga do SNA, caracterizada por sudorese, taquipneia, taquicardia, dilatação pupilar (midríase), intensa salivação, sensação de desmaio, palidez por queda de pressão arterial, náuseas (nem sempre presentes) e ânsias. As ânsias se desencadeiam por peristalse reversa, que se inicia nas porções distais do intestino (em geral, no jejuno) e que propele o conteúdo intestinal para o estômago, por relaxamento do piloro. Fortes contrações antrais impulsionam o conteúdo gástrico para o esôfago, através do esfíncter esofágico inferior relaxado. As ânsias se acompanham de profunda inspiração, com diminuição da pressão intratorácica, e de intensas contrações da musculatura abdominal, com subida da pressão no abdome. É gerado, assim, um gradiente de pressão entre abdome e tórax, favorável à propulsão do conteúdo gastrintestinal para o esôfago. Durante as ânsias, pode ocorrer passagem da porção subdiafragmática do esôfago e da porção proximal do estômago para o tórax, através do hiato diafragmático. Como o esfíncter esofágico superior fica contraído durante as ânsias, o conteúdo gastrintestinal retorna ao estômago. Os ciclos de ânsias repetemse, acentuando a intensidade das contrações abdominais e torácicas. Uma inspiração profunda, com glote fechada e diafragma elevado, aumenta a pressão intratorácica, forçando o relaxamento do esfíncter esofágico superior e a expulsão do conteúdo gastrintestinal para o exterior. Durante essa expulsão, a glote fechada impede a entrada do vômito para a traqueia e inibe a respiração. O vômito e as ânsias são regulados por centros distintos no SNC. As vias sensoriais aferentes que enviam impulsos para os denominados centros do vômito e das ânsias, localizados no bulbo, originamse em receptores sensoriais de diferentes naturezas e localizações. Esses receptores podem ser: visuais, olfatórios, auditivos (do labirinto), táteis (da orofaringe), além de mecano e quimiorreceptores da parede do TGI. Os estímulos de centros nervosos superiores alcançam o centro do vômito e o das ânsias através de uma zona quimiorreceptora no assoalho do 4o ventrículo, no SNC. Os estímulos psíquicos, como a lembrança de algo desagradável e o medo, podem, estimular o vômito. Dor intensa, principalmente no trato geniturinário, também é estimuladora do vômito. Os estímulos eferentes dos centros do vômito e das ânsias são conduzidos, por diferentes nervos, não só para as musculaturas do TGI como também para os músculos respiratórios e abdominais. Os dois centros – o das ânsias e o do vômito – são independentes, pois podem ser estimulados de modo individual, isto é, há possibilidade de se induzir o vômito, não precedido de ânsia, ou de ocorrerem apenas as ânsias, não seguidas do vômito (Figura 60.16). Eméticos são fármacos estimuladores do vômito, podendo agir diretamente na zona quimiorreceptora cerebral (p. ex., a apomorfina) ou de modo indireto em receptores do sistema digestório.
Figura 60.15 ■ Mecanismos neurohormonais duodenogástricos que regulam a velocidade de esvaziamento gástrico. +, aumento; –, diminuição; hormônio não identificado, enterogastrona; GIP, peptídio insulinotrópico dependente de glicose. (Adaptada de Berne et al., 2004.)
Figura 60.16 ■ Regulação neural do vômito. (Adaptada de Berne et al., 2004.)
Anomalias motoras do estômago As anomalias mais comuns da motilidade gástrica estão relacionadas às alterações da velocidade de esvaziamento gástrico. Elas podem ser classificadas em: (a) falha do esvaziamento por obstrução do piloro, por câncer ou úlcera; (b) desorganização ou ausência de motilidade, associadas a outras patologias de origem metabólica, como no diabetes melito ou na depleção de potássio. Qualquer que seja a origem, o retardo da velocidade de esvaziamento produz náuseas, perda de apetite, sensação de saciedade e vômito. O enfraquecimento do esfíncter pilórico leva ao desenvolvimento de úlceras, tanto duodenais como gástricas, uma vez que a mucosa gástrica resiste bastante ao ácido mas não à bile, e viceversa em relação ao duodeno. Em indivíduos que têm úlcera duodenal, existe perda da regulação da velocidade de esvaziamento gástrico, a qual depende altamente dos mecanismos neurohormonais duodenogástricos. Neste caso, é possível a velocidade de esvaziamento gástrico aumentar. Nas situações de úlcera gástrica, pode haver diminuição da velocidade de esvaziamento gástrico, o que induz mais prejuízo ao estômago. No tratamento cirúrgico de úlceras duodenais, a vagotomia bilateral foi bastante utilizada a fim de reduzir a secreção ácida gástrica. A vagotomia era frequentemente associada à piloroplastia e à criação de um bypass entre estômago e jejuno. Neste caso, há perda da regulação neurohormonal duodenogástrica. Muitos pacientes podem não apresentar sintomas, mas alguns desenvolvem uma condição conhecida como dumping, que resulta do fato de o delgado não conseguir processar adequadamente o quimo esvaziado com rapidez do estômago. No caso de o quimo estar hipertônico no duodeno, ocorre um fluxo resultante de água, relativamente grande, do compartimento intersticial plasmático para o lúmen intestinal. Esta condição pode acarretar sudorese e sensação de desmaio, resultantes da queda da pressão arterial sistêmica.
Resumo Motilidade gástrica 1. O relaxamento receptivo do estômago, que existe durante a deglutição, é mediado por fibras vagais VIPérgicas. Ele permite o alimento se armazenar na região do fundo, sem elevação da pressão intragástrica. Como a musculatura do fundo e da porção proximal do corpo é fraca, não há ação de mistura do quimo com as secreções gástricas. 2. A mistura do alimento ocorre nas regiões média e distal do corpo. Movimentos peristálticos iniciamse na região de marcapasso, na porção média do corpo, com uma frequência de 3 ondas/min. 3. A peristalse gástrica aumenta de intensidade e de velocidade da porção média do corpo à região antral do estômago. 4. A trituração do alimento se dá na sístole antral, por contração do antro, com o piloro fechado, ocorrendo retropropulsão do quimo. 5. O quimo é esguichado em pequenos volumes, através do piloro, sendo a velocidade de esvaziamento gástrico altamente coordenada por mecanismos neurohormonais duodenogástricos. 6. Contraem o piloro: gastrina, secretina, CCK, GIP, acetilcolina (liberada pelas fibras vagais excitatórias) e norepinefrina (liberada por fibras simpáticas). 7. Gastrina é liberada tanto do antro gástrico como do duodeno; secretina, do delgado, em resposta ao pH ácido do quimo gástrico; CCK, do delgado, pelos produtos da hidrólise lipídica e proteica do quimo; GIP, em resposta a gorduras e carboidratos; e uma enterogastrona (?) é liberada devido à hipertonicidade do quimo gástrico no duodeno. 8. Secretina e CCK, além de contraírem o piloro, retardando o esvaziamento gástrico, estimulam a secreção pancreática rica em bicarbonato e em enzimas, respectivamente. A CCK também provoca contração da vesícula biliar e relaxamento do esfíncter de Oddi, permitindo a secreção da bile para o duodeno, o que facilita a digestão das gorduras. 9. O REB no estômago é de 3 ondas/min. As ondas lentas aumentam de amplitude no sentido cefalocaudal, desenvolvendo potenciais de ação na região antropilórica.
10. Nos períodos interdigestivos, ocorre CMM, com periodicidade de 90 min, propelindo qualquer resíduo que não tenha sido esvaziado do estômago no período digestivo. 11. O piloro previne o esvaziamento gástrico rápido e o refluxo do conteúdo duodenal para o estômago. A mucosa duodenal é sensível ao ácido e a gástrica, à bile.
MOTILIDADE DO INTESTINO DELGADO Os padrões motores do delgado são, fundamentalmente, de mistura do quimo com as secreções e renovação do seu contato com a mucosa, otimizando a digestão e a absorção dos nutrientes. A propulsão se dá por peristalses curtas e pelo gradiente decrescente de pressão intraluminal no sentido cefalocaudal. O delgado é a porção mais longa e convoluta do intestino; seu comprimento representa 75% do comprimento total do TGI. Apresenta três segmentos pouco diferenciados histologicamente: duodeno (que corresponde a cerca de 5% do delgado), jejuno (40%) e íleo (60%). O duodeno distinguese do restante do intestino pela ausência de mesentério, sendo principalmente uma região de regulação da tonicidade e do pH do quimo, enquanto o jejuno e o íleo são indistinguíveis histologicamente. A digestão e a absorção dos alimentos ocorrem, predominantemente, no duodeno e no jejuno proximal. O quimo permanece no delgado cerca de 2 a 4 h. A motilidade do delgado atende a três funções: (a) mistura do quimo com as secreções, principalmente no duodeno, onde são lançadas as secreções pancreática e biliar, otimizando os processos de digestão; (b) renovação do contato do quimo com a mucosa intestinal, que otimiza os processos absortivos; e (c) propulsão do quimo no sentido cefalocaudal, em direção ao cólon, que ocorre por dois processos: peristalses curtas, de 10 a 12 cm de comprimento, e gradiente de pressão luminal decrescente no sentido cefalocaudal. As segmentações são o padrão motor mais comumente observado no delgado. Correspondem a anéis que contraem a musculatura circular, dividindo o quimo em segmentos ovais. São eventos locais, que envolvem apenas 1 a 4 cm do delgado e ocorrem a intervalos de 5 s. Estas contrações alternamse e são os principais movimentos de mistura e de renovação do quimo com a mucosa intestinal. As segmentações, esquematizadas na Figura 60.17, dividem o quimo em porções ovais com alternâncias dos locais de contração. Os movimentos segmentares são muito mais efetivos no processo de mistura do quimo do que na sua propulsão. A taxa de propulsão no delgado é baixa, permitindo que os processos de digestão e de absorção possam se dar eficientemente. É possível as segmentações serem propulsivas, quando elas acontecem em áreas adjacentes de maneira sequencial no sentido cefalocaudal. A Figura 60.18 ilustra a taxa de segmentação em função do comprimento do delgado, do piloro ao íleo, em experimentos nos quais foram utilizados 30 coelhos. Como o REB no delgado decresce no sentido cefalocaudal (sendo de 12 a 13/min no duodeno, de 10 a 11/min no jejuno e de 8 a 9/min no íleo), é gerado um gradiente de pressão intraluminal decrescente no mesmo sentido, facilitando a progressão do quimo.
Figura 60.17 ■ Esquema das segmentações em delgado de gato, que apresenta a alternância dos anéis contráteis (das linhas 1 a 4; cerca de 18 a 21 por min). As linhas tracejadas indicam onde as contrações ocorrerão e correspondem às regiões relaxadas; as setas, a direção do movimento do quimo. (Adaptada de Berne et al., 2004.)
Ocorrem no delgado, também, peristalses curtas, que percorrem pequenas extensões do seu comprimento, não superiores a 10 a 12 cm. Em condições normais, não há peristalse percorrendo todo o delgado. A muscular da mucosa contraise de maneira irregular, com uma frequência de 3 vezes/min. Estas contrações alteram as dobras da mucosa e misturam também o quimo no delgado, renovando o seu contato com a mucosa.
Figura 60.18 ■ Taxa de segmentação ao longo do delgado de coelhos, até uma distância de 310 cm a partir do piloro. (Adaptada de Berne et al., 2004.)
No delgado, também ocorrem contrações irregulares das vilosidades intestinais, principalmente no jejuno, o que facilita, em especial, a absorção das gorduras, porque aumenta o fluxo linfático por esvaziamento do capilar lácteo. Nos períodos interdigestivos, ocorre CMM, em fase com a elevação da motilina plasmática, com função de faxina e de prevenção da migração bacteriana para porções proximais do delgado.
Nos períodos interdigestivos, ocorre CMM, que se inicia no estômago e percorre todo o delgado. A Figura 60.19 mostra os registros da atividade contrátil, obtidos a várias distâncias do ligamento de Treitz, que demarca o início do jejuno. A atividade contrátil propagase do antro gástrico para o delgado; note que após alimentação a atividade motora passa de intermitente a contínua. A gênese do CMM ainda é pouco compreendida. Alguns autores sugeriram que ele fosse mediado pelo vago, pois, em cão, o resfriamento dos vagos cervicais abole o CMM no estômago, mas não o afeta no delgado. Experimentos indicam um papel da motilina, hormônio do sistema digestório, sobre o CMM, mostrando que o nível plasmático dela aumenta em fase com as contrações (Figura 60.20). Ainda não está esclarecido qual o sinal regulador da secreção cíclica da motilina. O CMM no delgado, além da função de faxina (como acontece no estômago) que propele para o cólon algum resíduo do quimo não devidamente digerido e/ou absorvido, também previne a migração bacteriana do ceco às porções proximais do delgado. As ondas lentas e os potenciais de ação no delgado. A ocorrência das ondas lentas depende das propriedades intrínsecas da muscular externa do TGI. Essas ondas, como já nos referimos, dependem das flutuações rítmicas, espontâneas, do potencial de membrana das fibras musculares lisas. São despolarizações e repolarizações cíclicas de, aproximadamente, 5 a 15 mV. A frequência de tais ondas determina o REB nas várias porções do TGI. Esta frequência pode ser modulada pelo SNA ou pelo SNE. No delgado, o REB decresce no sentido cefalocaudal. Assim, em cada segmento do delgado, a frequência das ondas lentas é constante, embora elas não ocorram simultaneamente em todos os segmentos. Essas ondas, no delgado, não induzem contrações. Elas só são iniciadas em resposta aos potenciais de ação que surgem na fase de despolarização das ondas lentas. Portanto, quando os potenciais de ação aparecem, o delgado se contrai. Por este motivo, a frequência das ondas lentas estabelece a frequência das contrações nos diferentes segmentos do delgado. O músculo relaxa na fase de repolarização das ondas lentas. Nem todas as ondas lentas, porém, se acompanham de potenciais de ação e, portanto, de contrações. A ocorrência dos potenciais de ação depende da excitabilidade da fibra muscular regulada tanto pelo SNE como pelo SNA e, também, por diversos hormônios circulantes.
Figura 60.19 ■ Atividade contrátil do delgado, medida a várias distâncias do ligamento de Treitz antes e depois da ingestão de alimento. (Adaptada de Berne e Levy, 1983.)
Figura 60.20 ■ Complexo migratório mioelétrico (CMM) no delgado, medido a várias distâncias do ligamento de Treitz. Note que os níveis plasmáticos de motilina (indicados na parte superior) ocorrem em fase com os surtos da atividade contrátil do delgado (região entre as setas). (Adaptada de Berne e Levy, 1983.)
A regulação neural da motilidade do delgado e do esfíncter ileocecal. A motilidade do delgado é regulada não só pelo SNE como também pelo SNA. O parassimpático eferente para o delgado é fundamentalmente colinérgico e estimulador da motilidade. O simpático eferente é noradrenérgico e inibidor da motilidade; as fibras partem dos plexos celíaco e mesentérico superior. Tanto o parassimpático como o simpático agem via plexos intramurais. O esfíncter ileocecal delimita o íleo do ceco, a porção inicial do cólon. Este esfíncter normalmente está fechado. Entretanto, à frente de peristalses curtas do íleo, o esfíncter ileocecal relaxa, permitindo que pequenas quantidades do quimo sejam literalmente esguichadas para o ceco. A passagem do quimo ileal ao ceco é relativamente lenta, permitindo ao cólon proximal absorver adequadamente água e eletrólitos. A regulação deste esfíncter é efetuada tanto pelo SNE como pelos nervos extrínsecos do SNA, sendo, também, modulada por hormônios. A muscular da mucosa é regulada pelo SNA simpático noradrenérgico, que age estimulando sua motilidade, e as vilosidades do delgado parecem ser reguladas pela motilina. Os reflexos intestinais do delgado: peristáltico, intestinointestinais e gastroileal. O reflexo peristáltico ocorre quando o intestino contraise em resposta à presença do quimo no seu interior, por distensão de sua parede. À frente desta contração, na porção distal (ou caudal) do intestino a musculatura relaxa, como já descrito. O reflexo peristáltico está sob controle estrito do SNE e depende da integridade dos gânglios intramurais. É conhecido como lei do intestino. O reflexo intestinointestinal acontece quando há distensão de uma região extensa do intestino. Esta região contraise e a musculatura do restante do intestino fica inibida ou relaxada. Tratase de um reflexo de largo alcance, abrangendo um comprimento mais extenso do intestino. Tal reflexo depende tanto da integridade do SNA como dos plexos intramurais, sendo abolido por seccionamento da inervação extrínseca. O reflexo gastroileal consiste no aumento da motilidade do íleo em resposta à elevação da motilidade e da secreção gástrica, o que facilita a progressão do quimo do delgado para o cólon, através do esfíncter ileocecal. O estômago e o intestino delgado distal ou íleo interagem reflexamente. As vias neurais responsáveis por estes reflexos não são conhecidas, e não se sabe, também, até que ponto eles são afetados por hormônios. Por exemplo, a gastrina aumenta a motilidade do íleo e relaxa o esfíncter ileocecal. Alterações do estado emocional afetam a motilidade do delgado. Assim, esta motilidade é regulada, também, por centros nervosos superiores.
Hormônios e substâncias endógenas e exógenas também regulam a motilidade do delgado, alterando o tempo de trânsito do quimo. Hormônios gastrintestinais afetam a motilidade do delgado. Gastrina, colecistocinina (CCK) e motilina estimulam sua motilidade, ao passo que secretina a inibe. Adicionalmente, a insulina eleva sua motilidade e o glucagon a diminui. Outras substâncias endógenas circulantes também afetam a motilidade do delgado. Assim, a norepinefrina, liberada da suprarrenal, inibe as contrações. A serotonina, que existe em grandes quantidades no sistema digestório, e as prostaglandinas estimulam a motilidade do intestino delgado. Como já foi referido, a progressão cefalocaudal do quimo no delgado é lenta, de 2 a 4 h. Muitas substâncias exógenas afetam a motilidade do delgado, alterando não apenas o tempo de trânsito do quimo neste segmento, como também os processos de digestão e absorção de macronutrientes, além dos de absorção de água e eletrólitos. Por exemplo, codeína e opioides diminuem a motilidade do delgado, aumentando o tempo de trânsito, o que leva, como consequência, a uma excreção fecal de volume e frequência reduzidos. Muitos laxantes reduzem o tempo de trânsito, propiciando decréscimo dos processos de absorção de água e de eletrólitos no delgado. Como a quantidade de líquido que chega ao cólon pode ultrapassar a capacidade absortiva deste, ocorre diarreia em tais condições.
Alterações patológicas da motilidade no intestino delgado São raras as patologias resultantes de uma alteração primária da motilidade do delgado. Elas estão comumente associadas a modificações da musculatura lisa, tanto do TGI como do trato urinário. A pseudo obstrução idiopática é uma síndrome que envolve falhas da motilidade intestinal, podendo ocorrer alterações das células musculares lisas ou dos plexos intramurais. Desconhecese sua causa; supõese que haja um componente genético. Diminuição da motilidade do delgado pode se dar em diversas condições. A mais comum é o íleo paralítico, que surge após cirurgia abdominal. Pode também haver redução da motilidade consequente de processos inflamatórios abdominais (p. ex., apendicite, pancreatite ou abscessos). É ainda associada a doenças metabólicas, como diabetes melito, ou a efeitos de substâncias, como anticolinérgicos. Trânsito intestinal aumentado pode ocorrer em associação a problemas de má absorção intestinal, infecções, reações alérgicas e ação de fármacos. Não é claro, nestes casos, se as alterações da motilidade são causa ou consequência da presença no delgado de substâncias não absorvidas.
Resumo Motilidade do delgado 1. O principal padrão de motilidade do delgado é a segmentação. São contrações da musculatura circular que dividem o quimo em segmentos ovais, alternados em pequenas extensões do intestino. Otimizam a digestão, promovendo a mistura do quimo com as secreções presentes no delgado; adicionalmente, facilitam a absorção dos nutrientes, porque circulam o quimo, ao fomentar seu contato com a mucosa intestinal. 2. Peristalses curtas também ocorrem em extensões não maiores que 10 a 12 cm do comprimento do delgado. 3. A propulsão cefalocaudal do quimo é lenta e ocorre por segmentações sequenciais e peristalses curtas. 4. O REB decresce no sentido cefalocaudal, gerando um gradiente de pressão que facilita a propulsão do quimo. 5. No delgado, não acontecem contrações em fase com as ondas lentas. Elas ocorrem quando são desencadeados potenciais de ação na crista dessas ondas. 6. A inervação vagal colinérgica estimula as contrações e a simpática noradrenérgica as inibe. As fibras simpáticas eferentes partem dos plexos celíaco e mesentérico superior. 7. A regulação da motilidade do esfíncter ileocecal se efetua principalmente pelo SNE. 8. Contração da muscular da mucosa é regulada pelo SNE e a das vilosidades, pela motilina.
9. O aumento da motilidade e a secreção gástrica elevam a motilidade do íleo pelo reflexo gastroileal, promovendo o relaxamento do esfíncter ileocecal e a entrada do quimo no cólon ascendente. 10. O CMM tem função de faxina e de prevenção da migração bacteriana para porções proximais do delgado. Propagase do estômago ao delgado e depende da integridade dos plexos intramurais e da motilina. 11. Gastrina, CCK e motilina aumentam a motilidade. Secretina inibea.
MOTILIDADE DO CÓLON E DEFECAÇÃO O cólon difere do delgado anatômica e funcionalmente. A Figura 60.21 esquematiza as diversas porções do cólon. O proximal compreende ceco, apêndice vermiforme e cólon ascendente. Seguese o cólon transverso e o distal, que compreende o cólon descendente e o sigmoide. Este último continuase no reto e no canal anal. A musculatura longitudinal no cólon é concentrada em três feixes denominados taenia coli, que correm do ceco até o reto, abaixo dos quais se concentra o plexo mioentérico. Entre as taeniae, a musculatura longitudinal é tênue. A musculatura circular do cólon é contínua do ceco ao canal anal, onde ela se espessa, formando o esfíncter anal interno (EAI). O esfíncter anal externo (EAE), mais distalmente localizado, tem musculatura estriada. O aspecto externo do cólon difere do apresentado pelo delgado. Sua parede apresenta dobras da mucosa que resultam de características estruturais do cólon. Há segmentos ovoides, designados haustra. Nestas regiões, a musculatura circular é mais concentrada. Os haustra são mais frequentes nas regiões do cólon que têm as taenia coli. Eles não são fixos; formamse e desfazemse, conforme ocorrem contrações da musculatura circular, segmentando o cólon.
Figura 60.21 ■ Esquema do cólon e seus vários segmentos. (Adaptada de Berne et al., 2004.)
O cólon está envolvido com as seguintes funções motoras: (a) movimentação com retropropulsão do conteúdo colônico, renovando o seu contato com a mucosa, otimizando o processo de absorção de água e eletrólitos, que se dá predominantemente no cólon ascendente; (b) mistura, amassamento e lubrificação do conteúdo colônico com a secreção de muco, efetuada pelas células caliciformes, que existem em grande número na mucosa do cólon transverso e descendente, principalmente; (c) propulsão cefalocaudal do conteúdo colônico, que ocorre ao longo de todo o cólon; (d) expulsão das fezes ou defecação, que envolve o reto e o canal anal. O cólon não tem enzimas luminais ou da borda em escova; não faz absorção de nutrientes orgânicos, exceto de ácidos graxos voláteis; absorve água e NaCl; secreta K+ e HCO3–.
O cólon não processa hidrólise enzimática de nutrientes, uma vez que não tem enzimas luminais ou da borda em escova. Ele também não é local para absorver os produtos de hidrólise dos nutrientes orgânicos. Está, entretanto, envolvido nos processos finais de absorção de água e de eletrólitos. Quantitativamente, o delgado efetua a maior parte da captação de água e de eletrólitos. Diariamente, dos 9 ℓ de líquido contidos no lúmen do TGI, o delgado absorve cerca de 7,5 ℓ, chegando ao cólon apenas 1,5 ℓ. Destes, o cólon absorve 1,4 ℓ, sendo excretado somente 0,1 ℓ de líquido por dia nas fezes. Assim, o cólon absorve quase toda a água e NaCl que o alcançam, mas secreta K+ e HCO3–. Embora, comparativamente, a absorção de água e íons no cólon seja pequena, este segmento tem importante função para regular a absorção final de volume, que ocorre, sobretudo, no cólon proximal ou ascendente. O restante do cólon é implicado não só com a formação, a lubrificação e o armazenamento das fezes, como também com o processo de defecação. O ceco é o principal local de fermentação bacteriana. Alguns produtos dessa fermentação são absorvidos no cólon proximal. Os ácidos graxos de cadeias curtas, ou ácidos graxos voláteis, também são absorvidos no cólon. A progressão do conteúdo luminal no cólon é lenta, cerca de 5 a 10 cm/h, podendo o material fecal permanecer por até 48 h nesta porção do intestino. Os padrões motores do cólon são as haustrações e os movimentos de massa envolvidos com o processo da defecação. Dois padrões básicos de motilidade ocorrem no cólon: os movimentos de mistura do conteúdo colônico, que facilitam o processo absortivo de água e íons, principalmente no cólon ascendente, e o movimento de massa, que pode percorrer toda a extensão colônica. A chegada do conteúdo luminal do íleo ao cólon proximal é regulada pela atividade do esfíncter ileocecal. O principal reflexo envolvido na motilidade deste esfíncter é o reflexo gastroileal, no qual o aumento da atividade contrátil e secretora do estômago (que ocorre após a ingestão de alimento) provoca maior atividade contrátil do íleo e viceversa; ou seja, a diminuição da atividade gástrica reduz a ileal. Este reflexo parece ser regulado tanto por nervos extrínsecos como por hormônios gastrintestinais; entre eles, a gastrina e a CCK, que elevam a atividade contrátil do íleo e relaxam o esfíncter ileocecal. Registros de pressão obtidos com sensores colocados no esfíncter ileocecal são mostrados na Figura 60.22. Esta é uma região de pressão aumentada, com um nível basal ou de repouso de 20 a 40 mmHg acima da pressão no íleo. O tônus do esfíncter ileocecal parece ser predominantemente intrínseco, regulado pelo SNE intramural. A distensão do íleo induz diminuição de pressão do esfíncter (ver Figura 60.22 A), permitindo a progressão do quimo do íleo ao cólon. Por outro lado, quando o cólon proximal se contrai, o esfíncter se fecha, como mostra o aumento de sua pressão (ver Figura 60.22 B), prevenindo o refluxo do conteúdo colônico para o íleo.
Figura 60.22 ■ Pressões intraluminais medidas no esfíncter ileocecal. Note que a pressão de repouso desta região é de aproximadamente 20 a 40 mmHg. A. A distensão do íleo induz diminuição de pressão do esfíncter, permitindo que o conteúdo ileal penetre o cólon. B. Quando o cólon se contrai, aumenta a pressão no esfíncter e ele se fecha, impedindo o refluxo do conteúdo colônico ao íleo. (Adaptada de Berne et al., 2004.)
A chegada do conteúdo luminal ao cólon ascendente induz contrações segmentares, com durações de 12 a 60 s, nas quais a pressão intraluminal é de cerca de 10 a 50 mmHg. Estas contrações são as haustrações, que movimentam o
conteúdo luminal tanto no sentido cefalocaudal como no oposto, por retropropulsão. Estes movimentos são lentos e, fundamentalmente, de mistura e de exposição do conteúdo luminal à mucosa intestinal, otimizando a absorção de água e íons que se dá predominantemente neste segmento do cólon (Figura 60.23). Pode ocorrer esvaziamento do conteúdo luminal de um ou de vários haustra para outro, no sentido cefalocaudal, o que propele o conteúdo luminal a curtas distâncias. Este processo denominase propulsão segmentar ou multihaustral. As haustrações cessam quando acontece um movimento de massa que contrai grandes extensões do cólon, propelindo o seu conteúdo no sentido cefalocaudal. O movimento de massa ocorre 1 a 3 vezes/dia. Nos cólons transverso, descendente e sigmoide, ainda ocorre uma absorção residual de água e íons. As haustrações que surgem no cólon descendente e sigmoide são mais frequentes que as observadas no ascendente e transverso, embora nas porções distais do cólon não sejam propulsivas. Elas têm uma função de amassamento e lubrificação das fezes pelo muco, abundantemente secretado no cólon. Nestes locais, a consistência do conteúdo luminal é pastosa. Propulsão só ocorre no cólon distal, pelo movimento de massa. Nos períodos entre as defecações, normalmente o reto está vazio; seus movimentos segmentares são mais intensos e frequentes que os do cólon sigmoide, desenvolvendo, assim, uma pressão interna maior (esta é a razão pela qual supositórios retais movemse para o sigmoide). Os dois esfíncteres anais – o interno e o externo – estão contraídos tonicamente. A distensão do reto, pela chegada das fezes, em resposta ao movimento de massa, distende a sua parede e desencadeia o reflexo da defecação. A inervação extrínseca parassimpática do cólon é efetuada pelo nervo pélvico, desde o cólon transverso até o esfíncter anal interno; a inervação simpática parte dos plexos mesentéricos e hipogástricos. No cólon, a inervação extrínseca parassimpática, tanto aferente como eferente, é feita pelo vago até a altura do cólon transverso. A inervação eferente vagal é colinérgica. O cólon descendente, o sigmoide, o reto e o canal anal, até o esfíncter anal interno, são inervados por fibras aferentes e eferentes parassimpáticas do nervo pélvico, cujos corpos celulares localizamse na medula sacral. O esfíncter anal externo tem musculatura estriada e é inervado pelo nervo pudendo, somático, colinérgico, que também inerva tonicamente o músculo puborretal, responsável pela angulação quase reta que ocorre entre o cólon sigmoide e o reto. A estimulação parassimpática colinérgica aumenta a motilidade do cólon, ao passo que a simpática persistente causa obstipação (ou constipação intestinal), por inibição da motilidade. A Figura 60.24 mostra o efeito de doses crescentes de acetilcolina sobre as atividades elétrica e motora da musculatura circular do cólon; indica que, no cólon, esse neurotransmissor eleva o tempo de despolarização das ondas lentas e a atividade contrátil. A inervação simpática, tanto aferente como eferente, para o cólon ascendente e ceco parte do plexo mesentérico superior; para o cólon transverso e descendente, do plexo mesentérico inferior; e, para o cólon sigmoide, reto e canal anal, dos plexos hipogástricos. A inervação simpática noradrenérgica inibe a motilidade do cólon, que é também ricamente inervado pelo SNE. As fibras parassimpáticas e simpáticas eferentes fazem sinapses nos plexos intramurais. Há duas classes de marcapasso no cólon. No cólon, há duas classes de marcapasso. O que se localiza próximo à submucosa, no limite entre a musculatura circular e a submucosa, que apresenta um REB de 6 ondas lentas/min, e o situado entre as musculaturas longitudinal e circular, com um REB de 20/min. A Figura 60.25 mostra registros intracelulares de ondas lentas e de potenciais de ação da musculatura circular do cólon de cão, obtidos com microeletrodos. Os registros foram feitos a diferentes profundidades na musculatura circular, a partir do bordo submucoso, expressas em porcentagem da distância desse local (% representando o bordo submucoso e 100% o bordo mioentérico). Somente ondas lentas são observadas nas regiões próximas ao bordo submucoso. Entre as duas regiões, há os dois tipos de atividade, com frequências diferentes. No quadro pequeno à direita da figura, estão mostradas uma onda lenta, em azul, e a contração em fase com ela, em preto.
Figura 60.23 ■ Esquema das haustrações no cólon (A) e movimento em massa conduzindo o material colônico ao reto (B).
Figura 60.24 ■ Efeito de doses crescentes de acetilcolina sobre as atividades elétrica e motora da musculatura circular do cólon, in vitro. Registros em azul: atividade elétrica. Registros em preto: atividade motora. De cima para baixo: condição controle (sem acetilcolina), adição de 2∙10–7 M de acetilcolina, adição de 5∙10–7 M de acetilcolina e washout, ou lavagem, da acetilcolina da preparação. (Adaptada de Berne et al., 2004.)
Figura 60.25 ■ Registros das atividades elétricas e contráteis do cólon, obtidos em diferentes profundidades da musculatura circular, expressas em porcentagem relativa à distância do bordo submucoso. Explicação da figura no texto. (Adaptada de Berne e Levy, 1983.)
O reflexo da defecação é coordenado pela medula sacral e consiste em relaxamento do EEI e contração do EEA, sendo desencadeado por movimento de massa em resposta a reflexos ortotáxico, gastrocólico e gastroileal. O movimento de massa ocorre 1 a 3 vezes/dia. É um movimento propulsivo, que pode percorrer toda a extensão do cólon, desde a sua região proximal até a distal, conduzindo o conteúdo colônico para o reto. Mais frequentemente, porém, esse movimento acontece no cólon distal. Ele resulta dos reflexos ortotáxico, gastrocólico e gastroileal. O primeiro consiste em aumento da motilidade do cólon em resposta à mudança da posição horizontal para a vertical; os outros dois surgem ao despertar, em resposta ao aumento da atividade contrátil e secretora gástrica, desencadeado pela chegada do alimento ao estômago depois do desjejum. Estes reflexos são coordenados pelo nervo vago, no cólon proximal, e pelo pélvico, no distal. São afetados, também, por hormônios gastrintestinais, tanto pela gastrina como pela CCK, cujos níveis plasmáticos elevamse após uma refeição. Quando o reto se distende pela chegada das fezes ao seu interior, devido ao movimento de massa, se desencadeia o reflexo da defecação. Essa distensão é passiva, e pode provocar o reflexo da defecação caso seja suficientemente grande. Nesta situação, ocorrem a distensão ativa do reto e o reflexo da defecação (Figura 60.26). O reflexo da defecação consiste no relaxamento do esfíncter anal interno (EAI) e na contração do esfíncter anal externo (EAE). A Figura 60.27 mostra os registros das pressões dentro do reto e nos dois esfíncteres anais durante o reflexo da defecação. Quando as fezes distendem o reto, há aumento passivo de sua pressão interna, que é suficiente para ele se contrair e aumentar ainda mais a pressão, agora ativamente. Isto é acompanhado de redução da pressão do EAI, que se relaxa, e por aumento da pressão do EAE, que se contrai. Como as fezes continuam a entrar no reto, as pressões no EAI diminuem de amplitude e no EAE aumentam. A distensão do reto, além de desencadear o reflexo da defecação, sinaliza a conscientização da necessidade de evacuação. Se esta for protelada, os esfíncteres retomam os seus tônus normais e ocorre retropropulsão das fezes do reto ao sigmoide. A perda deste reflexo, que pode advir de lesões da medula sacral, induz defecação toda vez que o reto é distendido, causando incontinência fecal.
Figura 60.26 ■ Alteração da pressão no reto, pela entrada das fezes no seu interior. Explicação da figura no texto. (Dados de Schuster et al., 1965; adaptada de Boron e Boulpaep, 2005.)
Figura 60.27 ■ Registros de pressão no reto e nos esfíncteres anais durante o reflexo da defecação. EAI, esfíncter anal interno; EAE, esfíncter anal externo. Explicação no texto. (Dados de Schuster et al., 1965; adaptada de Boron e Boulpaep, 2005.)
A defecação é um processo complexo que envolve controle reflexo involuntário e regulação voluntária. O centro coordenador do reflexo localizase na medula sacral, e as vias são parassimpáticas colinérgicas. Centros nervosos superiores modulatórios agem sobre a medula sacral. O simpático não participa do controle do processo de defecação. O controle voluntário sobre o processo é exercido pelo nervo somático pudendo, que inerva o esfíncter anal externo e o músculo puborretal. Se a defecação acontecer, há relaxamento voluntário do EAE e relaxamento do músculo puborretal, o que retifica o cólon sigmoide em relação ao reto, facilitando a expulsão das fezes. Participam do processo de expulsão das fezes os músculos respiratórios e os abdominais. A evacuação é precedida de inspiração profunda, o que move o diafragma para baixo. A glote é fechada. As contrações da musculatura respiratória com os pulmões cheios e a glote fechada elevam as pressões intratorácica e intraabdominal. As contrações da musculatura abdominal elevam ainda mais a pressão no abdome, forçando a expulsão das fezes. O assoalho pélvico relaxase, provocando seu deslocamento para baixo e prevenindo o prolapso do reto.
Alterações patológicas da motilidade do cólon As alterações do trânsito intestinal ainda não são bem compreendidas. Diminuição causa constipação intestinal e aumento, diarreia. Fatores dietéticos podem afetar o tempo de trânsito intestinal. Uma dieta rica em fibras vegetais faz crescer o trânsito no cólon, por mecanismo não conhecido.
A doença de Hirschsprung ou megacólon congênito caracterizase por ausência de SNE, frequentemente no cólon distal e no esfíncter anal interno, podendo, entretanto, atingir segmentos maiores do cólon e do reto. Os segmentos envolvidos apresentam tônus aumentado, o que reduz o lúmen intestinal, havendo ausência de atividade propulsiva. Por este motivo, o reflexo da defecação é inexistente, ocorrendo constipação intestinal. Há também dilatação das regiões do cólon localizadas acima dos segmentos contraídos, causando o megacólon. O tratamento é cirúrgico. Outra condição patológica comum é a síndrome do cólon irritável, caracterizada por alterações da motilidade do cólon sigmoide. Em alguns casos, ocorre aumento da motilidade do cólon sigmoide, acarretando diarreia; em outros, há diminuição da sua motilidade, provocando constipação intestinal. Em ambos os casos, existe dor abdominal. A etiologia desta patologia ainda não é clara. Supõese que seja consequência de um condicionamento das respostas autonômicas a condições externas como estresse, medicamentos, hormônios etc. Outros autores sugerem que esta síndrome pode resultar de alterações da atividade elétrica da musculatura do cólon.
Resumo Motilidade do cólon e defecação 1. Haustrações são segmentações do cólon resultantes da contração da musculatura circular mais concentrada nas taeniae coli. 2. A progressão do quimo do íleo ao ceco ocorre por regulação mioentérica do esfíncter ileocecal. Este se relaxa à frente da contração do íleo e se contrai por aumento da pressão no cólon descendente. 3. No cólon ascendente, ocorrem haustrações com retropropulsão do quimo, misturandoo e expondoo à mucosa, o que otimiza a absorção de água e íons que ocorre, principalmente, neste segmento. 4. Nos cólons transverso, descendente e sigmoide, não há retropropulsão, e as haustrações têm função de amassamento e lubrificação das fezes. 5. Entre as defecações, o reto e o canal anal estão normalmente vazios e relaxados, ao passo que os esfíncteres anais, contraídos. A atividade motora do reto é maior que a do sigmoide. 6. Movimentos de massa ocorrem 3 vezes/dia, em resposta aos reflexos ortotáxico, gastrocólico e gastroileal. São contrações que podem percorrer grandes extensões do cólon, propelindo as fezes para o reto. 7. A distensão do reto desencadeia o reflexo da defecação, coordenado na medula sacral, e sinaliza a conscientização da necessidade de evacuar. Este reflexo consiste em relaxamento do EAI e contração do EAE. Os esfíncteres readquirem seus tônus normais se a defecação não ocorre, e as fezes sofrem retropropulsão para o sigmoide. 8. A defecação se dá por relaxamento voluntário do EAE em resposta ao reflexo da defecação. Esta fase é coordenada pela medula sacral com eferência de centros nervosos superiores. 9. O EAE tem musculatura estriada e é inervado pelo músculo somático pudendo, que inerva também o músculo puborretal. 10. Na evacuação, ocorre contração das musculaturas respiratória e abdominal, com aumento das pressões torácica e abdominal auxiliando a expulsão das fezes. Há relaxamento do músculo puborretal, com retificação do sigmoide e dos músculos do assoalho pélvico. 11. A estimulação parassimpática colinérgica aumenta a motilidade do cólon; a simpática noradrenérgica a diminui, causando constipação intestinal (obstipação).
BIBLIOGRAFIA BERNE RM, LEVY MN. Physiology. 4. ed. Mosby Inc., St. Louis, 1998. BERNE RM, LEVY MN, KOEPPEN BM et al. Physiology. 4. ed. Mosby Inc., St. Louis, 2004. BORON WF, BOULPAEP EL. Medical Physiology. W.B. Saunders Co., Philadelphia, 2005. BRICK BM, SCHLEGEL JF, CODE CF. The pressure profile of the gastroduodenal junctional zone in dogs. Gut, 6:16371, 1965.
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Secreção salivar
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Secreção gástrica Secreção exócrina do pâncreas
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Secreção biliar Bibliografia
SECREÇÃO SALIVAR A saliva é volumosa e hipotônica em relação ao plasma. A saliva é um líquido que contém eletrólitos e solutos orgânicos secretados principalmente pelas glândulas salivares maiores – parótidas, submandibulares e sublinguais. Participam, também, de sua composição o líquido gengival, detritos celulares, microrganismos da cavidade oral e o líquido secretado por várias glândulas menores, dispersas em toda a mucosa oral. A secreção salivar é extremamente importante na higiene, saúde e conforto da cavidade oral. A sua ausência, como ocorre na xerostomia (boca seca), é associada a infecções crônicas da mucosa oral e ao aumento da incidência de cáries dentárias. A secreção salivar difere das outras secreções do sistema digestório pelas seguintes características: ■ O volume da secreção salivar é grande, superando muito o peso das glândulas salivares. Por dia, secretase de 1 a 1,5 ℓde saliva, o que corresponde a uma taxa secretória de 1 mℓ/min/g de tecido. Considerando os pesos relativos das glândulas salivares e do pâncreas, a secreção salivar é 50 a 70 vezes superior à pancreática ■ As glândulas salivares têm elevado fluxo sanguíneo, cerca de 10 vezes maior que o do músculo esquelético em atividade, e, como consequência, apresentam alta taxa metabólica ■ A secreção salivar é regulada, principalmente, pelo sistema nervoso autônomo, ao contrário das outras secreções do sistema digestório, que têm regulação neurohormonal ■ A saliva final é hipotônica em relação ao plasma; as secreções gástrica, pancreática e biliar são isotônicas. Xerostomia é uma neuropatia congênita ou causada por lesão dos VII e IX nervos cranianos. Resulta na ausência crônica da secreção salivar ou “boca seca”. Ocasiona lesões das mucosas oral e esofágica, por ausência do efeito lubrificador da mucina; provoca, também, aumento da incidência de cáries dentárias por processos infecciosos, devidos à ausência de anticorpos (imunoglobulinas) e de substâncias bactericidas (lisozima) e bacteriostáticas (lactoferrina) na secreção salivar.
Figura 61.1 ■ Localização dos três pares de glândulas salivares maiores, responsáveis por 90% da saliva total secretada. (Adaptada de Solomon et al., 1990.)
As glândulas salivares maiores são tubuloacinares. Há três pares de glândulas salivares maiores – parótidas, submandibulares e sublinguais – além de várias pequenas glândulas espalhadas na mucosa oral. Essas três glândulas produzem, aproximadamente, 90% da secreção salivar total. As submandibulares e sublinguais são responsáveis por cerca de 70% do fluxo salivar basal, não estimulado, ao passo que as parótidas respondem por 15 a 20% e as glândulas salivares menores, por 5 a 8%. Entretanto, as parótidas e as submandibulares se responsabilizam por 45 a 50% do fluxo salivar estimulado pela presença de alimento na cavidade oral, enquanto a contribuição das outras glândulas é menor. As glândulas parótidas são maiores que as demais e localizamse entre o ângulo da mandíbula e o poro acústico externo; as submaxilares situamse abaixo do corpo da mandíbula e as sublinguais, anteroinferiormente ao rebordo mandibular, abaixo da língua (Figura 61.1). Estruturalmente, as glândulas salivares são tubuloacinares. Os ácinos são as unidades secretoras, contendo entre 15 e 100 células. Os grupos de ácinos são delimitados por tecido conjuntivo, formando lóbulos. As células acinares sintetizam e secretam proteínas e um líquido com composição eletrolítica semelhante à do plasma e isotônico em relação a ele. Esta secreção acinar denominase saliva primária; é drenada do lúmen dos ácinos para os ductos intercalares que, nas porções mais distais, são chamados de ductos estriados, devido às dobras das membranas basolaterais das células epiteliais. Nestas dobras, aninhamse inúmeras mitocôndrias, indicando intensa atividade metabólica, envolvida em processos de transporte de íons entre os compartimentos luminal e intersticialplasmático. Os ductos estriados dos diversos ácinos unemse, formando os ductos intralobulares; estes se juntam aos de outros lóbulos, originando os ductos extralobulares, que, progressivamente, aumentam de diâmetro, passando a formar os ductos excretores principais, que se abrem na cavidade oral (ver Figura 61.1). A saliva primária ou acinar, ao ser drenada pelo sistema de ductos excretores, sofre alterações de sua composição iônica; isso acontece devido aos processos de transporte de íons pelas duas membranas das células epiteliais dos ductos estriados. Assim, a saliva final secretada na cavidade oral resulta da ação de distintas populações de células epiteliais, as células acinares e as dos ductos. A secreção proteica acinar resulta, também, de diferentes populações de células. As parótidas secretam uma solução denominada secreção serosa, que contém relativamente baixo conteúdo de glicoproteína (mucina) e maior conteúdo de α amilase salivar (ptialina). A secreção das sublinguais é, predominantemente, mucosa. As submandibulares têm uma secreção mista de mucina e de enzima (Figura 61.2). As glândulas salivares menores, espalhadas na mucosa da cavidade oral, secretam, fundamentalmente, mucina. A Figura 61.3 é um esquema da estrutura da glândula mista submandibular humana. As células acinares são mantidas unidas pelos complexos juncionais, tendo como elementos estruturais mais apicais as tight junctions; as células acinares intercomunicamse por gap junctions. Os ácinos são envoltos por células mioepiteliais alongadas, que contêm filamentos
de miosina e actina que, ao se contraírem, expulsam a secreção acinar (ou saliva primária), drenada do lúmen dos ácinos para o sistema de ductos excretores. As glândulas salivares são altamente vascularizadas. O fluxo sanguíneo é suprido por ramos da carótida externa, a maxilar interna, a qual forma uma rede de arteríolas e capilares que envolvem os ácinos e os ductos. O sangue arterial flui em sentido oposto (ou em contracorrente) ao do fluxo salivar. O sangue venoso circula por uma rede de vênulas, sendo drenado para a circulação sistêmica. A inervação eferente para as glândulas salivares é efetuada pelo sistema nervoso autônomo parassimpático e simpático, cujos principais neurotransmissores são a acetilcolina e a norepinefrina, respectivamente. Estes neurotransmissores ligamse a receptores localizados nas membranas basolaterais das células acinares e nas dos ductos. A inervação aferente sensorial percorre os nervos autônomos, sendo ativada por inflamações ou traumatismos das glândulas. O processo infeccioso mais comum das glândulas salivares é a parotidite aguda, causada pelo vírus da caxumba. A saliva protege a mucosa oral e os dentes. A lubrificação do bolo alimentar é feita pela mucina (Nacetilglicosamina), que, quando hidratada, forma o muco; este é secretado pelas glândulas de secreção mista e pelas várias glândulas mucosas espalhadas no tecido de revestimento interno da cavidade oral. Durante o processo de mastigação, o muco misturase às partículas alimentares, lubrifica o bolo alimentar e protege não só a mucosa oral como também os dentes da ação mecânica do alimento, além de facilitar o processo da deglutição. As proteínas que a saliva secreta são ricas em prolina, tendo, também, importância na lubrificação dos alimentos na cavidade oral. A diluição e a solubilização dos alimentos pela saliva relacionamse às seguintes funções: ■ Gustação: uma vez que a solubilização dos alimentos estimula as papilas gustativas ■ Regulação da temperatura dos alimentos: a diluição dos alimentos, efetuada pela saliva, resfria ou aquece os alimentos, conforme a temperatura corporal ■ Limpeza: a saliva remove restos de alimentos que se alojam entre os dentes ■ Fonação: o umedecimento da cavidade oral facilita a fonação ■ Ação tamponante: resulta do pH alcalino da saliva; protege a mucosa oral contra alimentos ácidos e os dentes contra produtos ácidos da fermentação bacteriana dos resíduos alimentares alojados entre os dentes. Durante as ânsias que precedem o vômito, a salivação é grandemente estimulada, no sentido de proteger a mucosa oral contra o quimo ácido proveniente do estômago. A saliva realiza, ainda, outras ações de proteção da cavidade oral e dos dentes, descritas a seguir. ■ Ação bactericida: a saliva secreta lisozima (enzima que lisa as paredes de bactérias), SCN– (ou sulfocianeto, que tem ação bactericida) e a proteína ligadora de imunoglobulina A (que é ativa contra vírus e bactérias) ■ Ação bacteriostática: desempenhada pela lactoferrina, substância quelante de ferro, que impede o crescimento de bactérias dependentes deste íon ■ Ação na cicatrização de feridas ou lesões da mucosa oral: efetuada pela secreção do fator de crescimento epidérmico, razão pela qual os animais instintivamente lambem suas feridas ■ Ação antimicrobiana: executada pelas proteínas ricas em prolina, que interagem com o Ca2+ e com a hidroxiapatita, participando da manutenção da integridade dos dentes ■ Incorporação de flúor e fosfato aos dentes: estes íons são captados do sangue e concentrados pelas glândulas salivares, que os secretam na saliva.
Figura 61.2 ■ Cortes histológicos dos lóbulos das glândulas parótidas, submandibulares e sublinguais. (Adaptada de Hansen e Koeppen, 2003.)
Figura 61.3 ■ Esquema da glândula submandibular humana, com base na sua aparência microscópica. (Adaptada de Berne et al., 2004.)
Digitálicos, usados em procedimentos clínicos, aumentam as concentrações de Ca2+ e de K+ na saliva, o que eleva a secreção salivar.
As enzimas salivares iniciam a digestão dos carboidratos e das gorduras. São duas as principais enzimas secretadas pelas glândulas salivares: αamilase salivar (ou ptialina) e lipase lingual. A primeira é sintetizada pelas células acinares; consiste em uma endoamilase, que hidrolisa ligações α[14]glicosídicas no interior das cadeias polissacarídicas. O pH ótimo de ação da αamilase é 7, mas ela pode agir entre pH 4 e 11, sendo rapidamente inativada a valores de pH menores que 4. Da ação exaustiva dessa endoamilase sobre a cadeia polissacarídica, resultam: (1) maltose (dissacarídio) e maltotriose (trissacarídio), ambas tendo cadeias retilíneas com ligações α[14] glicosídicas, e (2) as αlimite dextrinas, com cadeias ramificadas α[16]glicosídicas, contendo de 6 a 9 monômeros de glicose (mais informações no Capítulo 62, Digestão e Absorção de Nutrientes Orgânicos). A ação da αamilase salivar, na cavidade oral, dura pouco. Entretanto, ela continua no interior do bolo alimentar no estômago, durante a fase de armazenamento do alimento no fundo, quando as ondas peristálticas ainda não misturaram esse bolo com a secreção ácida gástrica. Assim, a αamilase salivar hidrolisa até 75% dos carboidratos, da boca ao estômago. Esta enzima não é essencial, uma vez que sua ação hidrolítica sobre os carboidratos é suprida pela αamilase pancreática, secretada em grande quantidade pelas células acinares do pâncreas. A lipase lingual é secretada pelas glândulas de von Ebner da língua; esta enzima hidrolisa os triacilgliceróis, resultando em ácidos graxos livres e monoacilgliceróis. Essa lipase difere da gástrica, embora existam entre elas 80% de homologia na sequência aminoacídica. As lipases lingual e gástrica são denominadas lipases ácidas ou préduodenais, porque são ativas nos valores de pH inferiores a 4, diferindo da lipase pancreática tanto no que se refere ao pH de ação como ao mecanismo hidrolítico. Elas também não são essenciais; tornamse, porém, importantes na ausência da pancreática ou na falha de sua ação (detalhes no Capítulo 62). A calicreína é outra enzima produzida nas células mesenquimatosas, que envolvem os ácinos e os ductos, sendo liberada no meio intersticial durante a estimulação neural da secreção salivar. Esta enzima catalisa a produção de bradicinina, a partir de proteínas plasmáticas específicas. A bradicinina é um potente vasodilatador, que eleva o fluxo sanguíneo e a taxa metabólica das glândulas salivares. Também são secretadas na saliva pequenas quantidades de RNAases, DNAases e peroxidase. A saliva é uma via de excreção das substâncias dos grupos sanguíneos A, B, AB e O. A composição eletrolítica salivar varia com a taxa secretória. A composição iônica da saliva varia com o fluxo secretor, conforme mostrado na Figura 61.4. A baixos fluxos secretórios, sua composição difere fundamentalmente da do plasma, sendo hipotônica quanto a ele. O aumento do fluxo secretor aproxima a composição salivar à do plasma, elevando sua tonicidade, embora a saliva continue sendo hipotônica em relação ao plasma. Mesmo a altas taxas secretórias, a tonicidade da saliva é de cerca de 70% a do plasma. As concentrações de Na+ e de Cl– elevamse com o aumento do fluxo salivar, mas mantêmse sempre inferiores às plasmáticas. A concentração de K+ é sempre superior à plasmática; a baixas taxas de secreção salivar, atinge 100 mM ou mais. Quando o fluxo salivar é baixo, o pH da saliva tornase ligeiramente ácido. Mas este elevase com a estimulação do fluxo secretor, devido ao crescimento da concentração de HCO3–, que pode chegar até 100 mM, conferindo à saliva pH próximo a 8. Assim, o principal ânion da saliva final é o HCO3– e o principal cátion, o Na+(este, porém, sempre está em concentração menor que a do plasma).
Figura 61.4 ■ Variações da composição iônica da saliva final, em função da magnitude do fluxo secretor. (Adaptada de Berne et al., 2004.)
A composição salivar varia com o fluxo secretor. No interior do ácino e dos ductos intercalares, a saliva apresenta composição eletrolítica e tonicidade semelhantes às plasmáticas, sendo denominada saliva primária. As concentrações de αamilase na saliva primária dependem do tipo de estimulação neural para a sua secreção. Quando a saliva primária flui para os ductos estriados e excretores, sofre alterações de sua composição. Quanto maior é o fluxo secretor, maiores são as concentrações de Na+, Cl– e de HCO3– (ver Figura 61.4). Após o fluxo salivar ter atingido valores próximos a 1,0 mℓ/min, as concentrações de HCO3– e de K+ mantêmse altas, porque as suas secreções permanecem constantes e independem da taxa secretória. A concentração de HCO3– pode alcançar valores de 100 mM ou até maiores, conferindo à saliva um pH próximo a 8. Também a concentração de K+ na saliva continua alta, cerca de 4 a 5 vezes superior à plasmática. O modelo clássico, de dois estágios, é utilizado para explicar as alterações da composição eletrolítica da saliva e de outras secreções do sistema digestório. Este modelo é uma tentativa para explicar a dependência da composição iônica salivar com a magnitude do fluxo secretor. Tal modelo foi desenvolvido com base na composição da saliva, medida com microeletródios, em experimentos de micropunção do lúmen dos ácinos e dos ductos intercalares e excretores. Verificouse que a saliva nestas porções apresenta composição eletrolítica e tonicidade semelhantes às plasmáticas (saliva primária). Este é o primeiro estágio da secreção. O segundo referese às alterações de composição da saliva quando ela flui para os ductos estriados e secretores. Nos ductos, ocorreria reabsorção de Na+ e de Cl–, que retornariam ao plasma, e secreção de HCO3– e de K+, do plasma para o lúmen tubular, conforme esquema da Figura 61.5. À medida que a saliva flui pelos ductos, ela se tornaria hipotônica quanto ao plasma, pois o epitélio dos ductos excretores é pouco permeável à água. Este modelo propõe que as alterações da composição eletrolítica salivar dependam do fluxo de saliva nos sistemas de ductos. Quanto mais rapidamente a saliva flui pelos ductos excretores (quanto maior é o fluxo), menos tempo estaria disponível para que estas trocas iônicas acontecessem, e as concentrações de Na+ e de Cl– permaneceriam altas e mais
próximas das plasmáticas. Quando o fluxo secretor é menor, mais tempo disponível existiria para que as trocas se efetuassem; por isso, a fluxos baixos, as concentrações de Na+ e de Cl– seriam menores. Esta hipótese tem sido amplamente publicada em livrostextos. Entretanto, ela levanta várias questões. A mais pertinente delas referese à cinética e à afinidade dos transportadores com os substratos. Observase que as concentrações de HCO3– e de K+ mantêm se constantes após o fluxo secretor alcançar valores de 1 mℓ/min. Além disso, quando os processos de transporte dos íons através das células epiteliais dos ductos são propostos, fica difícil entender suas estequiometrias; assim, ainda não foram esclarecidas, principalmente, as elevadas concentrações de HCO3– e de K+ na saliva final. A regulação do fluxo salivar é apenas neural. Como já referido, a regulação do fluxo salivar é, fundamentalmente, neural e controlada pelo sistema nervoso autônomo (SNA). Alguns hormônios, como o antidiurético (vasopressina) e a aldosterona, podem afetar a composição da saliva, diminuindo a secreção de Na+ e elevando a de K+, mas estes hormônios não regulam o fluxo salivar. Neste sentido, a regulação da secreção salivar difere daquelas que ocorrem no estômago, no pâncreas e na vesícula biliar, que são reguladas tanto pelo SNA como pelo sistema nervoso intrínseco (SNI) e por hormônios do sistema digestório.
Figura 61.5 ■ Modelo dos dois estágios para a secreção salivar. As células acinares secretam um líquido com composição eletrolítica semelhante à do plasma e isotônica em relação a ele, conhecido como saliva primária. Os ductos estriados modificam essa composição eletrolítica da saliva primária, reabsorvendo NaCl e secretando K+ e HCO3–, cujas concentrações na saliva final são superiores às plasmáticas. Não estão ainda esclarecidos os mecanismos da secreção de HCO3– e de K+ .
A inervação extrínseca das glândulas é efetuada pelo SNA. A inervação eferente para as glândulas submandibular e sublingual é complexa. As fibras parassimpáticas eferentes préganglionares para as glândulas submandibular e sublingual partem do núcleo salivatório superior, situado na formação reticular do tronco cerebral, e se acoplam ao nervo facial (VII par); este nervo envia, também, fibras para as glândulas lacrimais, glândulas mucosas do palato, das cavidades nasais e da língua. Do nervo facial, originase o nervo corda do tímpano, cujas fibras juntamse ao nervo lingual, ramo do nervo mandibular (V par). Nas proximidades das glândulas, estas fibras fazem sinapses no plexo submandibular, de onde partem as fibras pós sinápticas para as glândulas submandibular e sublingual. A inervação simpática eferente préganglionar vem dos segmentos T1, T2 e T3 da medula espinal, fazendo sinapses nos gânglios cervicais superiores, de onde partem as fibras póssinápticas para as glândulas submandibular e sublingual (Figura 61.6).
Figura 61.6 ■ Inervação parassimpática e simpática eferente para as glândulas submandibular e sublingual. Descrição da figura no texto. (Adaptada de Thomas, 1987.)
As fibras parassimpáticas eferentes préganglionares para as glândulas parótidas provêm do núcleo salivatório inferior, localizado no bulbo, e se incorporam ao nervo glossofaríngeo (IX par); este, também, envia fibras para a língua e para pequenas glândulas salivares do assoalho da boca. Tal nervo atravessa o plexo timpânico, de onde segue, via nervo petroso menor. Este faz sinapse no gânglio ótico, de onde vão para as parótidas as fibras póssinápticas, que se acoplam ao nervo auriculotemporal (V par). A inervação simpática das glândulas parótidas é semelhante à descrita para as glândulas submaxilar e sublingual e caminha ao longo dos vasos sanguíneos que irrigam as glândulas. A estimulação parassimpática colinérgica inicia e mantém a secreção salivar. As fibras pósganglionares parassimpáticas são predominantemente colinérgicas. A acetilcolina, ligandose aos receptores muscarínicos (inibíveis por atropina) da membrana basolateral das células acinares, eleva o nível citosólico de Ca2+ via trifosfato de inositol (IP3) e DAG, além de ativar as proteinoquinases C (PKC), que, por meio de fosforilação de proteínas específicas, induzem aumento do fluxo salivar e também da secreção proteica acinar. A estimulação parassimpática tem, também, efeito trófico sobre as glândulas salivares. O bloqueio parassimpático leva à atrofia das glândulas salivares. Alguns medicamentos de uso psiquiátrico causam “boca seca”, devido às suas propriedades anticolinérgicas. A estimulação parassimpática induz, também, crescimento do fluxo sanguíneo das glândulas e aumento da atividade metabólica. A elevação do fluxo sanguíneo é resistente à atropina e estimulada por fibras parassimpáticas peptidérgicas, que liberam a substância P e o VIP (peptídio vasoativo intestinal), os quais induzem vasodilatação. As células acinares têm receptores para a substância P, a qual aumenta o nível de Ca2+ citosólico (Figura 61.7). A elevação do Ca2+ citosólico
ativa canais para K+ e para Na+ da membrana basolateral, o que faz crescer a atividade da Na+/K+ATPase e estimula a secreção fluida. A estimulação simpática noradrenérgica tem efeito bifásico sobre a secreção salivar. As fibras pósganglionares simpáticas liberam norepinefrina, que se liga a dois tipos de receptores: receptores β1, cujo segundo mensageiro é o cAMP que estimula predominantemente a secreção enzimática, e receptores α 1, que, via IP3, elevam o nível de Ca2+ citosólico potencializando o efeito da acetilcolina. A interrupção da inervação simpática tem pouco efeito trófico sobre as glândulas salivares. Inicialmente, a estimulação simpática eleva o fluxo secretor, principalmente por estimular a contração das células mioepiteliais, via receptores adrenérgicos, e por potencializar o efeito da acetilcolina, elevando a concentração citosólica de Ca2+; mas, como causa vasoconstrição, em uma segunda fase, diminui a secreção salivar. A secreção estimulada por agonistas adrenérgicos é, portanto, de pequeno volume, viscosa (porque é rica em muco) e com alta concentração de K+ e de HCO3–. Assim, situações de estresse, medo, excitação e ansiedade provocam “boca seca”. A secreção fluida das células acinares. Vários mecanismos têm sido propostos para explicar os processos celulares de transporte iônico, responsáveis pela secreção de água e eletrólitos, pelas células acinares das glândulas salivares. O mecanismo mais fácil de entender é o ilustrado na Figura 61.8 A. Neste, as células acinares contêm na membrana basolateral, além da Na+/K+ATPase, o cotransportador eletroneutro Na+:2Cl–:K+, denominado NKCC1, ativado por secretagogos; estes elevam a concentração citosólica de Ca2+ e incorporam na membrana canais para K+ ativados por Ca2+. A membrana luminal tem canais para Cl– também ativados por Ca2+. A Na+/K+ATPase mantém os gradientes de Na+ e de K+, entre os meios intra e extracelular. O cotransportador NKCC1 efetua o transporte ativo secundário de K+ e de Cl–, dissipando o gradiente de potencial eletroquímico do Na+, mantido pela Na+/K+ATPase. Com isso, a concentração intracelular de Cl– elevase acima do seu equilíbrio eletroquímico (ou de Nernst), e Cl– flui para o lúmen acinar, através dos canais ativados por Ca2+. Em condições basais, os canais para Cl– e para K+ estão fechados, sendo ativados pela elevação da concentração citosólica de Ca2+ em resposta à estimulação pelos secretagogos, particularmente pela acetilcolina, via receptores muscarínicos. Com o aumento da condutância destes canais, há fluxo de KCl (de Cl– para o lúmen do ácino e de K+ para o plasma). Devido ao fluxo secretor de Cl–, o lúmen do ácino tornase mais eletronegativo, gerando gradiente elétrico para o fluxo transepitelial de Na+, que ocorre predominantemente por via intercelular, atravessando as tight junctions apicais. O movimento de NaCl para o lúmen do ácino gera um gradiente osmótico para o fluxo de água no mesmo sentido, que pode darse tanto por via intercelular como transcelular, uma vez que a membrana das células acinares tem aquaporinas (AQP). Uma isoforma, a AQP5, tem sido detectada nas membranas luminais de muitos epitélios secretores. Há evidências da presença deste mecanismo em células acinares de rato, coelho, e, presumivelmente, é o que ocorre em humanos.
Figura 61.7 ■ Efeitos parassimpático e simpático sobre a secreção da célula acinar. NE, norepinefrina; ACh, acetilcolina; IP3, trifosfato de inositol; cAMP, monofosfato de adenosina cíclico; ML, membrana luminal; MBL, membrana basolateral; α e β, receptores noradrenérgicos α e β, respectivamente; M, receptor muscarínico; P, receptor peptidérgico.
Figura 61.8 ■ Modelos para a secreção fluida das células acinares. A. Neste modelo, o evento primário é a ativação do cotransportador Na+ :2Cl–:K+ (NKCC1) da membrana basolateral (MBL). B. Modelo baseado no contratransporte Cl–/HCO3– da MBL. C. Modelo que envolve a secreção de HCO3–, através da membrana luminal (ML). AQP5, aquaporina 5; AC, anidrase carbônica; Tj, tight junction. (Adaptada de Turner e Sugiya, 2002.)
Há também evidências de outros dois mecanismos alternativos. O modelo esquematizado na Figura 61.8 B propõe que o influxo de Cl– através da membrana basolateral ocorra por um contratransporte Cl–/HCO3–. O HCO3– é proveniente da ação da anidrase carbônica sobre a hidratação do CO2, que penetra a membrana basolateral. Assim, há uma recirculação de HCO3– nesta membrana. O H+ é trocado com o Na+, através do contratransporte Na+/H da membrana basolateral (transporte ativo secundário). O Cl– é secretado para o lúmen acinar via canais luminais, tornando o lúmen mais negativo e promovendo a secreção de Na+ e de água. O terceiro modelo propõe uma secreção luminal de HCO3–, via canais aniônicos, provavelmente os mesmos que secretam o Cl–. O HCO3– é proveniente da hidratação do CO2 pela anidrase carbônica (Figura 61.8 C). É possível que os três mecanismos participem da secreção fluida das células acinares e coexistam, predominando um ou outro, na dependência de mecanismos modulatórios ativados nas diversas condições fisiológicas. Em resumo, a secreção fluida das células acinares, que acompanha a proteica, tem composição semelhante à plasmática, contendo Na+, Cl– e HCO3– e é isotônica em relação ao plasma. Esses estudos se baseiam em experimentos de micropunção do líquido acinar e dos ductos intercalares e medidas, com microeletrodos específicos, da determinação da sua composição. A secreção fluida é modificada pelos ductos estriados. Os ductos estriados têm alta taxa metabólica e modificam a composição da saliva primária acinar, por secreção de HCO3– e de K+. A baixos fluxos secretórios, a saliva tornase mais hipotônica porque o epitélio dos ductos é impermeável à água e a sua composição difere fundamentalmente da plasmática. A altas taxas secretórias, a composição da saliva final
aproximase da exibida pela saliva primária, embora continue hipotônica em relação ao plasma e com concentrações de HCO3– e de K+ mais elevadas que as plasmáticas. A concentração de HCO3– pode atingir valores de até 100 mM, o que confere à saliva valores de pH perto de 8. A concentração de K+ é próxima a 20 mM, ou seja, 5 ordens de grandeza superior à do plasma. As secreções de HCO3– e de K+, após uma taxa secretória de cerca de 1 a 2 mℓ/min, independem do fluxo, indicando mecanismos ativos de secreção. Os mecanismos celulares de transporte propostos nos ductos estriados estão esquematizados na Figura 61.9. A secreção proteica nas células acinares. Embora as secreções dos três pares de glândulas salivares sejam classificadas como serosa, mucosa ou seromucosa (de acordo com seus conteúdos relativos de mucina e αamilase), as proteínas mais secretadas pelas células acinares são as ricas em prolina. Estas proteínas têm cerca de 1/3 de seus aminoácidos representados pela prolina, sendo secretadas nas formas acídica, básica e glicosilada. Elas exercem importantes funções protetoras, tanto da mucosa oral quanto dos ductos secretores e dos dentes, como já referido. As proteínas secretadas em menores quantidades na saliva são: lipase, nucleases, lisozima, peroxidases, lactoferrina, imunoglobulina A, fatores de crescimento epidérmico e proteases vasodilatadoras (como a calicreína e a renina), conforme mostrado no Quadro 61.1. A característica histológica mais evidente das células acinares é a presença dos grânulos secretórios eletrondensos, denominados grânulos de zimogênio, situados nos polos apicais das células, como mostrado no esquema da Figura 61.10. Estes grânulos são os locais de armazenamento das proteínas, secretadas em resposta à estimulação neural. As células acinares apresentam o retículo endoplasmático rugoso extremamente desenvolvido, caracterizando intensa atividade de síntese proteica, além de terem uma maquinaria bioquímica especializada para o transporte vetorial das proteínas e para a sua exportação. A síntese proteica iniciase com a tomada de aminoácidos pelas células e a sua incorporação às proteínas nascentes no retículo endoplasmático. O transporte vetorial destas proteínas é realizado por vesículas membranosas, do seu local de síntese para o sistema de Golgi, e deste para as vesículas de condensação e grânulos de zimogênio (cujos diâmetros são aproximadamente 2/3 inferiores aos das vesículas). Em resposta aos estímulos, os grânulos de zimogênio liberam as proteínas no lúmen acinar, por exocitose na membrana luminal. O processo de exocitose consiste em uma série de eventos, que envolvem: fusão das membranas dos grânulos à membrana luminal, liberação das proteínas e reciclagem das membranas dos grânulos. Esse processo eleva, cerca de 30 vezes, a área superficial da membrana luminal, com participação de várias proteínas e do citoesqueleto celular.
Figura 61.9 ■ Processos de transporte nos ductos estriados das glândulas salivares. AC, anidrase carbônica; ML, membrana luminal; MBL, membrana basolateral. Explicações no texto. (Adaptada de Turner e Sugiya, 2002.)
A estimulação simpática induz a exocitose dos grânulos de zimogênio nas glândulas parótidas e nas submandibulares, enquanto a parassimpática eleva a secreção proteica das sublinguais e de alguns ácinos das parótidas. O cAMP é o principal segundo mensageiro da secreção de αamilase das parótidas, via ativação dos receptores βadrenérgicos. O Ca2+ também estimula a secreção de αamilase, em resposta à estimulação parassimpática, tanto de receptores muscarínicos como pela substância P (peptidérgica), ou estimulação de receptores αadrenérgicos, embora de maneira menos intensa que a secreção estimulada pelo cAMP (ver Figura 61.7).
Quadro 61.1 ■ Principais componentes orgânicos da saliva de mamíferos. Componentes
Células sintetizadoras
Glândulas
Funções
Proteínas ricas em
Acinares
P, SM
Formação do esmalte
prolina
Ligação ao cálcio Antimicrobiana Lubrificação
Mucina (glicoproteínas)
Acinares
SL, SM
Lubrificação Antimicrobiana
Enzimas
αamilase
Acinares
P, SM
Hidrólise do amido
Lipase lingual
Glândulas de von Ebner
SL
Hidrólise lipídica
Ribonuclease
Ductais
SM
Hidrólise de RNA
Calicreína
Ductais
P, SM, SL
Protease
Outros
Lactoperoxidase
Acinares
SM
Antimicrobiana
Lactoferrina
Acinares
?
Antimicrobiana
Lisozima
Ductais
SM
Antimicrobiana
Receptor para IgA
Ductais
?
Antimicrobiana
IgA
Ductais
?
Antimicrobiana
Fatores de crescimento
Ductais
SM
?
P, glândula parótida; SM, glândula submandibular; SL, glândula sublingual.
Figura 61.10 ■ Esquema de um ácino da glândula salivar, secretora de αamilase, mostrando os grânulos de zimogênio nos ápices das células acinares. As tight junctions mantêm as células acinares unidas, delimitando os espaços intercelulares. Há, também, gap junctions intercelulares, não mostradas no esquema. Note que células mioepiteliais envolvem os ácinos. (Adaptada de Berne et al., 2004.)
Síndrome de Sjögren primária É uma doen ça autoimune, crônica e progressiva, que afeta, predominantemente, o sexo feminino. Gera anticorpos que reagem com as glândulas salivares e lacrimais, originando um processo inflamatório, com infiltração de linfócitos, produzindo lesões nos ácinos e nos ductos secretores, com diminuição das secreções. Nas glândulas salivares, existe perda da expressão do contratransportador Cl–/HCO3– dos ductos estriados. A síndrome pode ser, também, secundária a uma manifestação sistêmica de doen ças autoimunes, como acontece na artrite reumatoide. Os pacientes desenvolvem xerostomia e queratoconjuntivite (olhos secos). As proteí nasalvo do ataque autoimune não são determinadas; assim, não há terapia específica para o tratamento da síndrome. O tratamento é feito com substâncias estimulatórias da secreção salivar, como metilcelulose. Quando o comprometimento é grave, são utilizados corticoides e imunossupressores. Fatores exógenos e endógenos atuam sobre a secreção salivar. A salivação é inibida pelos seguintes fatores exógenos: fadiga, sono, medo e desidratação. Estimulada por estes: reflexos condicionados (de Pavlov) – que, em humanos, são ativados por diferentes receptores: visuais, auditivos, olfatórios – assim como por fatores psíquicos. O principal fator endógeno que atua sobre o fluxo salivar é a chegada do alimento à cavidade oral, por ativação de mecanorreceptores e quimiorreceptores da mucosa oral e faríngea, a salivação, na denominada fase cefálica da secreção salivar. As ânsias, que precedem o vômito, também estimulam intensamente a salivação. Os mecanismos de ação dos fatores exógenos e endógenos sobre a secreção salivar estão representados na Figura 61.11.
Resumo Secreção salivar
A saliva é hipotônica em relação ao plasma, a qualquer fl uxo secretório. Sua concentração de 1. bicarbonato é de cerca de 120 mM a fl uxos altos, conferindo à saliva um pH perto de 8, que neutraliza os alimentos ácidos e os produtos da ação bacteriana em alimentos que se alojam entre os dentes. 2. A composição da saliva é função do fl uxo salivar. A saliva primária acinar tem composição próxima à plasmática, mas sofre alterações nos ductos estriados e excretores, com aumento da secreção de bicarbonato e potássio, cujas concentrações elevamse com o aumento do fl uxo salivar. 3. As funções da saliva são proteção da mucosa oral e dos dentes, além de função digestiva. A saliva facilita a fonação e estimula os receptores gustativos da cavidade oral. A αamilase salivar hidrolisa o interior das cadeias de carboidratos; sua ação con ti nua no estômago, antes da mistura do quimo com a secreção gástrica. Cerca de 75% dos carboidratos são hidrolisados da boca ao estômago. A lipase lingual é deglutida e, como age em pH ácido, hidrolisa triacilglicerói s no lúmen gástrico. As duas enzimas não são essenciais. 4. O fl uxo salivar é alto (50 a 70 vezes maior que o pancreá tico), em consequência do alto fl uxo sanguí neo das glândulas, que, por sua vez, é superior ao do músculo esquelético em atividade. 5. A regulação do fl uxo salivar é efetuada apenas pelo SNA. A estimulação parassimpática para as glândulas sublingual e submandibular é via nervo corda do tímpano; para as parótidas, via nervo auriculotemporal. Aumenta e mantém a secreção. A estimulação simpática tem efeito bifásico: inicialmente, eleva a secreção e, posteriormente, a inibe (devido à vasoconstrição). 6. Aumentam o fl uxo salivar: estímulos psíquicos, refl exos condicionados, olfação, gustação, audição e ânsias de vômito. Diminuemno: medo, fadiga e sono. 7. O SNA parassimpático eferente tem efeito trófi co sobre as glândulas, ocorrendo atrofi a em caso de denervação.
Figura 61.11 ■ Mecanismos neurais, exógenos e endógenos, reguladores da secreção salivar, por meio da estimulação dos núcleos salivatórios centrais. SNA, sistema nervoso autônomo; IP3, trifosfato de inositol; DAG, diacilglicerol; cAMP, monofosfato de adenosina cíclico; (+), aumento ou estimulação; (–), diminuição ou inibição.
SECREÇÃO GÁSTRICA O estômago tem funções secretórias, motoras e hormonais, importantes no processo digestivo. Além de HCl, esse órgão secreta enzimas (que continuam a hidrólise dos macronutrientes iniciada na cavidade oral), parácrinos e hormônios que regulam a secreção gástrica. Suas funções motoras são de extrema importância para: armazenamento do alimento, mistura com as secreções gástricas, trituração e regulação neurohormonal enterogástrica da velocidade de esvaziamento do conteúdo gástrico para o bulbo duodenal. Apesar de todas essas funções, o estômago não é um órgão essencial, e indivíduos gastrectomizados podem sobreviver e manter uma nutrição adequada. O estômago tem a mesma estrutura básica da parede do TGI e exibe regiões secretoras que se diferenciam pelos tipos celulares predominantes nas glândulas gástricas. Do ponto de vista secretor, as diferentes regiões do estômago são: cárdia – localizada logo abaixo do esfíncter esofágico inferior, contendo apenas glândulas secretoras de muco; região oxíntica – no corpo do estômago, corresponde a 80% da sua área total, suas glândulas têm grande número de células parietais ou oxínticas, além de células principais; região antropilórica – com glândulas contendo apenas células endócrinas: as células G, que secretam gastrina, e as células D, secretoras de somatostatina (Figura 61.12 A). A estrutura básica do estômago apresenta o mesmo padrão dos demais órgãos do sistema digestório. A Figura 61.12 B é um esquema da parede gástrica, mostrando mucosa, lâmina própria, submucosa e muscular externa. A mucosa gástrica é altamente amplificada pelas glândulas gástricas. Estas se abrem na superfície luminal do estômago, em depressões ou pits, que se continuam formando o pescoço e o corpo da glândula, o qual se prolonga para o interior da mucosa até a muscular da mucosa. A Figura 61.12 C esquematiza uma glândula gástrica heterocelular. Os diferentes tipos de células encontradas são: células mucosas superficiais – colunares, envolvendo as aberturas das glândulas; células mucosas do pescoço das glândulas; células indiferenciadas ou regenerativas – mais profundamente localizadas no pescoço das glândulas, originam as células que migram para a superfície; células parietais ou oxínticas – secretoras de HCl e de fator intrínseco; células principais ou pépticas – secretoras de pepsinogênio; e células endócrinas – secretoras de gastrina e de somatostatina (Figura 61.12 D). Durante o processo digestivo, a mucosa gástrica sofre intensa esfoliação, e as células mucosas superficiais são substituídas por novas, a partir das células regenerativas do pescoço das glândulas. A composição do suco gástrico e suas funções. O estômago secreta 1 a 2 ℓ de líquido por dia, referido como suco gástrico. Os componentes desse suco, suas funções e locais de síntese são descritos a seguir. ■ HCl: durante a estimulação, pode ser secretado a taxas bastante elevadas, alcançando concentrações entre 140 e 160 mM, conferindo ao suco gástrico pH próximo a 1 ou 2. Nos períodos interdigestivos, o pH luminal varia de 4 a 6. O pH ácido regula a secreção do pepsinogênio e a sua conversão à pepsina no lúmen gástrico. O HCl tem importante função bactericida e, na sua ausência, aumenta a incidência de infecções do sistema digestório. É produzido pelas células parietais, ou oxínticas, das glândulas gástricas do corpo do estômago ■ Pepsinogênio: é produzido pelas células pépticas ou principais das glândulas gástricas do corpo, antro e cárdia. É lançado no lúmen gástrico na forma de proenzima, sendo hidrolisado a pepsina em valores de pH NHE3 > NHE4. No intestino, a troca eletroneutra de Na+ por H+, via trocador Na+/H+, ocorre preferencialmente no jejuno (Figura 63.6). Neste segmento, a concentração de HCO3– é aumentada pela secreção das glândulas de Brünner (que se abrem logo abaixo do piloro) e pela secreção pancreática. O HCO3– secretado neutraliza o H+. Nas células epiteliais do duodeno e do jejuno, a isoforma 1 do trocador Na+/H+ (NHE1) encontrase na MBL e participa do controle de várias funções básicas celulares, como, por exemplo, a regulação do pHi. Entretanto, essa isoforma não contribui de forma significativa para o movimento transepitelial de Na+. Contrariamente, as isoformas 2 (NHE2) e 3 (NHE3) encontramse na ML do intestino e participam tanto na regulação do pHi, como no movimento transepitelial de Na+. – – O trocador Cl /HCO3 é uma proteína cujo mecanismo de transporte também está envolvido com o equilíbrio acidobásico. Realiza a troca de 1 Cl– por 1 HCO3– (de modo eletroneutro), independente do íon Na+. Pertence à família AE (anion exchangers), cuja estrutura está descrita no Capítulo 11. É expresso sob uma ou mais isoformas, e a isoforma
1 (AE1, conhecida como proteína da banda 3 de hemácias) é bem caracterizada, devido à sua importância no transporte de CO2 e ao seu expressivo número na membrana (cerca de 1 milhão de cópias/célula, significando que, de cada quatro proteínas do eritrócito, uma é AE1). O AE1 consiste em uma proteína com 848 a 929 aminoácidos, cuja estrutura se compõe de 14 αhélices transmembrânicas ligadas a dois domínios funcionais. O domínio N terminal, com função basicamente estrutural, permite a interação de proteínas do citoesqueleto com proteínas da membrana plasmática. O C terminal catalisa a troca de ânions através da membrana; essa troca iônica é irreversivelmente inibida pelo composto 4,4’ diisotiociano2,2’ácido estilbenedissulfônico (DIDS). Estudos com técnicas de síntese peptídica in vitro sugerem que os resíduos de aminoácidos 549 a 594, 804 a 839 e 869 a 883, localizados no domínio C terminal, são os responsáveis pela troca aniônica e pela inibição por DIDS.
Figura 63.6 ■ Distribuição das isoformas do trocador Na+ /H+ nas membranas luminal e basolateral das células do jejuno e do íleo.
No íleo e na porção proximal do cólon, o trocador Na+/H+ opera em paralelo com o Cl–/HCO3– (Figura 63.7). Neste processo, através da MBL, o CO2 difundese do plasma para o interior da célula intestinal, onde se combina com H2O, formando o ácido carbônico (H2CO3). Essa reação é catalisada pela enzima anidrase carbônica (ac), que está presente na maioria das células. O H2CO3, por sua vez, dissociase em H+ e HCO3–. Ambas as reações são reversíveis, e a anidrase carbônica catalisa tanto a hidratação de CO2 como a desidratação de H2CO3. Assim:
O H+ deixa a célula em troca por Na+, via trocador Na+/H+ (isoforma NHE3), e o HCO3– é transportado para o lúmen do intestino em troca por Cl–, via trocador Cl–/HCO3– (isoforma AE1). A operação desses dois trocadores em taxas iguais resulta na entrada de NaCl na célula. O Na+ que penetra a célula através da ML é bombeado para o sangue pela Na+/K+ ATPase da MBL; o Cl– que entra na célula via ML é transportado para o sangue por um cotransporte K+:Cl– conhecido como KCC (potassium chloride cotransporter), localizado na MBL.
Figura 63.7 ■ Cotransportes paralelos Na+ /H+ e Cl–/HCO3– na membrana luminal de células intestinais do íleo e do cólon, com secreção resultante de HCO3– e H+ , além de reabsorção transepitelial de NaCl. Descrição da figura no texto. AE1, anion exchangers isoform; KCC, potassium chloride cotransporter; ac, anidrase carbônica.
▸ Cotransporte Na+:ânions inorgânicos A absorção de sulfato e fosfato ocorre predominantemente no íleo. O influxo desses ânions através da ML dos ileócitos depende do transporte de Na+ (Figura 63.8). O processo é eletroneutro: dois íons Na+ movemse pela ML acoplados a um ânion SO42– ou PO22–. Na MBL, o mecanismo de transporte desses ânions ainda não está esclarecido.
▸ Transporte desacoplado de Na+, mediado por canais No cólon, o Na+ é absorvido por dois mecanismos. Primeiro, por mecanismo similar ao que ocorre no íleo e jejuno, onde o Na+ é absorvido pela operação em paralelo dos trocadores Na+/H+ (NHE3) e Cl–/HCO3– (AE1) localizados na ML. Segundo, o Na+ entra na célula de maneira desacoplada, atravessando a ML por meio de um canal seletivo para Na+ (denominado ENaC – epithelial Na+ channel, cujos detalhes estão apresentados no Capítulo 10, Canais para Íons nas Membranas Celulares) (Figura 63.9). O transporte eletrogênico de Na+ via ENaC é significantemente aumentado na presença do mineralocorticoide aldosterona. O mecanismo pelo qual a aldosterona atua no cólon é o mesmo discutido anteriormente no ducto coletor renal (ver Capítulo 53, Papel do Rim na Regulação do Volume e da Tonicidade do Líquido Extracelular, e Capítulo 55, Rim e Hormônios). De início, ela estimula a Na+/K+ATPase da MBL, gerando um gradiente intracelular favorável à absorção eletrogênica de Na+, via ENaC através da ML. O aumento do ganho de Na+ pela célula pode ocorrer em três fases: (1) rápida (dentro de segundos), envolvendo a abertura de canais já inseridos na ML; (2) gradual (em minutos), dependente da inserção de canais de Na+ na ML, préformados e contidos em vesículas do citosol; e (3) lentamente (durante horas), devido à síntese tanto de canais de Na+como da Na+/K+ATPase. Esta última fase se caracteriza como efeito genômico.
Figura 63.8 ■ Mecanismos de transporte de ânions inorgânicos (AI) nas células intestinais.
Figura 63.9 ■ Mecanismo de absorção eletrogênica de Na+ na membrana luminal das células do cólon. ENaC, canal epitelial para Na+ .
ABSORÇÃO E SECREÇÃO DE CLORETO ▸ Absorção de Cl–. Esta absorção ao longo do intestino pode ocorrer por duas vias – a paracelular e a transcelular.
▸ Absorção de Cl–. Esta absorção ao longo do intestino pode ocorrer por duas vias – a paracelular e a transcelular. A transcelular envolve dois mecanismos. Em um deles, o influxo celular de Cl– depende da entrada de Na+ e, no outro, do contratransporte Cl–/HCO3–. No delgado, a absorção de Cl– pela ML é realizada por mecanismo de cotransporte acoplado ao Na+, descrito anteriormente (ver Figura 63.5). Na MBL, o Cl– é transportado passivamente a favor de gradiente de potencial eletroquímico. A absorção de Cl– neste segmento intestinal também se dá por via paracelular, a favor de um gradiente de potencial elétrico transepitelial, de maneira desacoplada da absorção de Na+ e de HCO3–. No íleo e no cólon, a absorção de Cl– pela ML se faz: (1) por mecanismos de contratransportes paralelos Na+/H+ e Cl–/HCO3– já descritos (ver Figura 63.7), ou (2) diretamente, acoplada à secreção de HCO3–, por processo ativo secundário, mantido pela Na+/K+ ATPase da MBL. Nesta última barreira, o transporte absortivo de Cl– é passivo, mediado pelo trocador Cl–/HCO3– (AE 1) localizado na ML; porém, o movimento de Cl através da MBL ainda não está claramente descrito (para detalhes, ver Capítulo 11). Nestes segmentos intestinais, a absorção de Cl– também pode acontecer por via paracelular. ▸ Secreção de Cl–. A regulação dos processos absortivos de Na+ e de água no intestino é altamente dependente da modulação do transporte de Cl– pelas células indiferenciadas das criptas. Enquanto as células maduras dos ápices das vilosidades intestinais do delgado e as células superficiais do cólon são absortivas, as indiferenciadas das criptas são predominantemente secretoras. Em condições fisiológicas, ocorre um balanço entre o líquido absorvido e o secretado, com manutenção de uma determinada fluidez do conteúdo luminal. Se o processo secretor elevarse acima do absortivo, pode surgir diarreia do tipo secretor. A visão atual dos mecanismos de transporte iônico que funcionam nas células das criptas é mostrada na Figura 63.10. Neste modelo, o Cl– é ativamente captado do interstício, por meio da MBL, pelo cotransportador Na+:K+:2Cl– (NKCC1, descrito no Capítulo 11). Este transportador utiliza o gradiente de concentração do Na+ para transportar Cl– e o K+ para a célula, contra seus gradientes de potencial eletroquímico. A concentração intracelular de Cl– elevase acima do seu equilíbrio eletroquímico (ou de Nernst), e então o Cl– deixa a célula, através da ML, por canal para Cl–. O Na+ pode ser transportado para o lúmen pela via paracelular, através das tightjunctions, movido pela eletronegatividade do lúmen, gerada pela secreção de Cl–. O efluxo celular de K+ previne o seu acúmulo no citoplasma; é feito através de canais para potássio da MBL das células das criptas. Com isso, mantémse uma diferença de potencial elétrico (citoplasma negativo) através das duas membranas – ML e MBL, o que contribui para a força eletroquímica movente do efluxo celular de Cl– pela ML.
Figura 63.10 ■ Secreção eletrogênica de Cl– pelas células das criptas.
O tempo de abertura do canal luminal para Cl– é modulado pelo cAMP ou pelo monofosfato de guanosina cíclico (cGMP). Os canais basolaterais para K+ são ativados pelo Ca2+ ou pelo aumento de cAMP. Sendo assim, a secreção resultante de Cl– pelas células das criptas é amplificada por agonistas que elevam o cAMP intracelular [como prostaglandinas, peptídio intestinal vasoativo (VIP), cGMP, ou toxinas bacterianas (p. ex., a toxina termoestável da Escherichia coli (STa) e do Vibrio cholerae)] e pelos agonistas mobilizadores de Ca2+, como a acetilcolina. Além disso, o cAMP pode inibir a absorção de Na+ e de Cl– nos enterócitos maduros. O canal para Cl– da ML é do tipo CFTR (cystic fibrosis transmembrane conductance regulator, descrito no Capítulo 10), extremamente importante na fisiopatologia da fibrose cística (doença discutida nos Capítulos 10 e 11 e no Capítulo 61, Secreções do Sistema Digestório) e de muitos tipos de diarreias (discutidos mais adiante).
ABSORÇÃO E SECREÇÃO DE BICARBONATO No duodeno, o HCO3– é secretado para o lúmen intestinal. No jejuno, a absorção de HCO3– depende parcialmente do Na+. A presença de HCO3– no lúmen do intestino estimula a absorção de Na+, e o Na+, reciprocamente, estimula a de HCO3–; essa reciprocidade se dá graças aos trocadores paralelos Na+/H+ e Cl–/HCO3– da ML (descritos no Capítulo 11). No processo de absorção de HCO3–, o equilíbrio da reação de hidratação e desidratação do CO2 (estimulado pela anidrase carbônica da borda em escova) se desloca no sentido de formação do CO2; isto é detectado por uma elevação da pressão parcial de CO2 (PCO2) jejunal. O HCO3– reabsorvido pode ser originado também do CO2proveniente do metabolismo celular (Figura 63.11). O fluxo absortivo resultante desses processos é a absorção de NaHCO3 na MBL. No íleo, o HCO3– é normalmente secretado. Se a concentração de HCO3– no lúmen do íleo ultrapassa os 45 mM, o fluxo do lúmen para o sangue excede o fluxo em sentido oposto, ocorrendo uma absorção resultante. No cólon, o transporte de HCO3– é similar ao que acontece no íleo, onde este íon é secretado. Assim, o jejuno absorve o excesso de HCO3– secretado no duodeno e, também, o neutraliza pela secreção de H+. Portanto, no jejuno, a absorção transepitelial resultante é predominantemente de NaHCO3. No íleo e no cólon, o Na+ e o Cl– também são absorvidos por estes contratransportadores, com secreção de HCO3–, que neutraliza, nestes segmentos, os produtos ácidos do catabolismo das bactérias. O HCO3– secretado provém do plasma e penetra na célula através da MBL, em acoplamento com o Na+. Portanto, ocorre secreção de HCO3– tanto no íleo como no cólon, sendo este ânion excretado nas fezes.
ABSORÇÃO E SECREÇÃO DE POTÁSSIO O intestino tem a capacidade não só de absorver como também de secretar K+. A absorção ocorre de preferência nos segmentos proximais, enquanto a secreção se dá principalmente nos segmentos distais do intestino. ▸ Absorção de K+ . No intestino delgado, o mecanismo proposto para a absorção de K+ é sua difusão passiva pela via paracelular, a favor de seu gradiente de potencial químico transepitelial, secundária à absorção de água. Sendo assim, no jejuno e no íleo, o fluxo resultante de K+ ocorre do lúmen para o sangue. Conforme o volume do conteúdo intestinal é reduzido pela absorção hídrica, o K+ se concentra no lúmen intestinal, gerando uma diferença de potencial químico transepitelial, necessária para sua absorção. Como a absorção de K+ depende da sua concentração no lúmen do delgado e esta é dependente da absorção de água, processos que afetam a absorção deste líquido neste segmento (como pode acontecer em processos diarreicos) podem conduzir a hipopotassemia, com consequentes distúrbios da contração muscular. No cólon, ocorrem, também, tanto absorção como secreção de K+, dependendo da sua concentração luminal. Somente no cólon distal se observa uma absorção ativa de K+. Neste caso, o movimento de K+ para o interior da célula colônica se dá pela isoforma gástrica da H+/K+ATPase, localizada na ML, sendo, portanto, um mecanismo ativo primário (Figura 63.12). Contudo, o mecanismo pelo qual o K+ deixa a célula, na MBL, ainda não é bem conhecido.
Figura 63.11 ■ Modelo para a absorção de HCO3– no jejuno. ac, anidrase carbônica.
▸ Secreção de K+ . No cólon (proximal e distal), a secreção de K+ ocorre tanto de forma passiva como ativa. A passiva se dá por via paracelular, quando a concentração de K+ luminal é inferior a cerca de 25 mM. Entretanto, a ativa de K+, através da ML, depende da alta concentração intracelular do íon, decorrente de seu influxo intracelular pela MBL, através da Na+/K+ATPase e do cotransportador Na+:K+:2Cl– (Figura 63.13), descritos em detalhes no Capítulo 11. A secreção de K+ pela ML acontece via mecanismo de eletrodifusão, através de canais específicos, sensíveis ao bário ou à tetraetilamônia (TEA). Adicionalmente, o K+ também pode deixar a célula por canais da MBL, caracterizando assim uma reciclagem de K+.
ABSORÇÃO DE CÁLCIO O cálcio é absorvido ativamente em todos os segmentos do intestino, mas, predominantemente, no duodeno e no jejuno. Portanto, sua absorção ocorre contra um gradiente de potencial eletroquímico transepitelial. No intestino, a absorção de Ca2+ é maior que a de qualquer outro íon bivalente; porém, ainda cerca de 50 vezes menor que a de Na+. A capacidade absortiva de Ca2+ pelo intestino depende dos níveis deste íon na dieta. O intestino delgado absorve cálcio por dois mecanismos: (1) absorção passiva paracelular, movida pelas concentrações elevadas de Ca2+ no lúmen intestinal (em consequência da absorção de água) e pela diferença de potencial elétrico transepitelial, e (2) absorção ativa transcelular, que ocorre preferencialmente no duodeno (Figura 63.14). Por este último mecanismo, o cálcio entra na célula, por canais para Ca2+ existentes na ML, a favor de seu gradiente de potencial eletroquímico (esses canais estão descritos no Capítulo 10). No citoplasma, o cálcio pode ser tamponado por proteínas (p. ex., a calbindina) ou armazenado em organelas citoplasmáticas (como o retículo endoplasmático). A calbindina, também conhecida como proteína intestinal ligante do cálcio, ligase ao Ca2+ citosólico, formando o complexo Ca2+calbindina. Na face interna da MBL, este complexo se desfaz. O cálcio sai da célula contra um gradiente de potencial eletroquímico, principalmente, por dois mecanismos localizados na MBL – a Ca2+ATPase e o trocador 3Na+/Ca2+ (descritos no Capítulo 11). Este trocador utiliza a energia do gradiente transcelular de Na+ para remover o Ca2+ da célula, por um transporte ativo secundário. O trocador 3Na+/Ca2+ é mais efetivo quando a concentração de Ca2+ é alta, enquanto a Ca2+ATPase é o principal mecanismo para extrusão celular de Ca2+ quando o íon está na concentração basal.
Figura 63.12 ■ Mecanismo de absorção de K+ no intestino. A. Absorção passiva, no jejuno e no íleo. B. Absorção ativa no cólon distal.
A vitamina D3 (colecalciferol) é essencial para manter os níveis normais de absorção de cálcio pelo intestino (ver Capítulo 76, Fisiologia do Metabolismo Osteomineral). A Figura 63.14 ilustra os efeitos da administração dessa vitamina sobre a absorção intestinal de Ca2+. A D3 deriva da ação de radiação ultravioleta na pele sobre o seu precursor, o 7deidrocolesterol. Uma vez sintetizada na pele, a vitamina D3 (ligada à proteína específica plasmática) é transportada para o fígado, onde sofre hidroxilação (por uma hidrolase mitocondrial dos hepatócitos), originando a 25OHD3 (25 hidroxicolecalciferol); esta é novamente hidroxilada nas mitocôndrias renais e convertida à sua forma ativa 1,25(OH)2 D3 (1,25dihidrocolecalciferol), por ação reguladora do paratormônio. Esta forma ativa da vitamina D3 penetra no enterócito e (como os hormônios esteroídicos) ligase a receptores específicos intracelulares do núcleo ou do citosol, para estimular a síntese de mRNA e, consequentemente, a síntese de canais para Ca2+ e de proteínas específicas ligadoras de Ca2+, como a calbindina.
Figura 63.13 ■ Mecanismo celular de secreção de K+ no cólon. TEA, tetraetilamônia.
▸ Regulação da absorção de cálcio Como vimos antes, a vitamina D3 é essencial para a absorção de cálcio pelo intestino. A carência nutricional dessa vitamina ou a ausência da ação ultravioleta sobre a sua síntese causam, em crianças, raquitismo (diminuição da mineralização óssea e alterações nas cartilagens das epífises) e, em adultos, osteomalacia (redução da mineralização dos osteoides).
Figura 63.14 ■ Modelo para o mecanismo absortivo do íon Ca2+ pelo enterócito. 1,25(OH)2D3, forma ativa da vitamina D3.
Regulase a absorção intestinal de cálcio pelos seus níveis plasmáticos: ela é nula quando a ingestão de cálcio gira em torno de 0,1 mM (ou 4 mg/kg de peso corpóreo), e elevase a um máximo quando essa ingestão chega próximo a 3 mM (ou 120 mg/kg de peso corpóreo). Os níveis plasmáticos relacionamse diretamente com a ação do paratormônio e com a hidroxilação da vitamina D3 no rim. Assim, a elevação da concentração plasmática de cálcio inibe a secreção do paratormônio e a formação de 1,25(OH)2D3, com consequente redução de cálcio circulante. Ocorre aumento da absorção nos períodos de lactação, gestação e crescimento. Há diminuição da absorção com o avanço da idade, nos dois sexos; ela é mais acentuada em mulheres, durante a menopausa, o que pode induzir o aparecimento da osteopenia e osteoporose.
ABSORÇÃO DE FERRO A quantidade de ferro recomendada em uma dieta balanceada é de 6 a 8 mg/1.000 cal, o que representa a ingestão de cerca de 10 a 15 mg/dia. Desta quantidade, apenas se absorvem 10 a 12%. Em mulher, em período prémenopausa ou durante gestação, e em criança na idade de crescimento, a absorção de ferro varia de 1,0 a 2,0 mg/dia; em homem adulto, de 0,5 a 1,0 mg/dia. Esses valores são suficientes para repor as perdas diárias, resultantes da descamação das células intestinais e epidérmicas. O conteúdo férrico de um organismo adulto é de aproximadamente 4 g. O ferro encontrase, principalmente, ligado aos radicais prostéticos das porfirinas dos grupos heme das moléculas de hemoglobina (65%) e de mioglobina (5%), como também a enzimas (1%). O restante está sob formas de ferritina e de hemossiderina, no fígado. O ferro heme é também absorvido; cerca de 15% do que se ingere são absorvidos. A absorção de ferro ocorre, preferencialmente, no duodeno e no jejuno, diminuindo progressivamente em direção ao íleo. O mecanismo celular de absorção de ferro não está ainda bem esclarecido (Figura 63.15). O ferro heme é absorvido na ML por mecanismo ainda não conhecido. No citosol do enterócito, o grupo heme sofre ação da heme oxigenase, liberando o Fe2+, que pode ser oxidado a Fe3+, o qual é então reduzido a íon ferroso (Fe2+), por ação da enzima ferro redutase. O Fe2+, por sua vez, pode ser transportado para o interior celular por duas vias distintas, descritas a seguir. (1) No lúmen do intestino, o Fe2+ interage com a transferrina (Tf), formando o complexo Fe2+Tf, que se liga a um receptor de transferrina localizado na ML, para penetrar no enterócito por endocitose. No citosol, o baixo pH da vesícula endocítica causa a liberação do ferro do complexo Tfreceptor. Esse complexo é reciclado para a ML, deixando o ferro livre no citosol. (2) O Fe2+ no lúmen do intestino pode também ser transportado para o citosol através do cotransportador
H+:Fe2+ (DCT1 – divalent cation transporter 1), localizado na ML do enterócito. Como as formas de ferro ionizado e livre são citotóxicas, o ferro no citosol interage principalmente com a mobilferrina para ser tamponado. Quando os níveis plasmáticos de ferro são elevados, aumenta a formação intracelular de mobilferrina, com diminuição da transferência do íon para o plasma. O oposto ocorre quando esses níveis ficam reduzidos. O transporte de ferro na MBL ainda é pouco compreendido; provavelmente, o ferro é transportado nesta barreira ligado ao transportador IRE (ironresponsive element). No plasma, o Fe2+ é oxidado a Fe3+ que interage com uma transferrina plasmática, a fim de ser transportado para os tecidos; no fígado, ele é tamponado pela ferritina, formando o complexo Fe3+ferritina.
▸ Absorção de outros íons O magnésio (Mg2+) é absorvido ao longo de todo o intestino delgado. A maior fração de absorção se dá no íleo e uma menor, no duodeno. O cólon absorve uma quantidade ainda menor, mas significante. Os mecanismos celulares da absorção de magnésio não são bem compreendidos. Grande parte deles pode ocorrer pela via paracelular, devido à concentração de Mg2+ no lúmen intestinal, quando a água é absorvida. O fosfato, assim como o magnésio, também é absorvido em toda a extensão do intestino delgado. A capacidade intestinal de absorção de fosfato aumenta em resposta aos baixos níveis de fosfato sérico. Esse processo depende da vitamina D, mas os mecanismos pelos quais essa vitamina eleva a absorção de fosfato ainda não são compreendidos. Em grande parte, o fosfato cruza a ML por transporte ativo secundário, energizado pelo gradiente de Na+. Ele deixa a célula a favor de um gradiente de potencial eletroquímico, por transporte facilitado na MBL.
REGULAÇÃO DOS PROCESSOS ABSORTIVOS E SECRETORES DO INTESTINO Os processos absortivos e secretores do intestino são regulados por: hormônios gastrintestinais, hormônios extrínsecos, parácrinos, secretagogos (sintetizados por células do sistema imunológico do intestino) (Quadro 63.1) e neurotransmissores (tanto do sistema nervoso entérico como do autônomo).
Figura 63.15 ■ Modelo celular para o mecanismo de absorção de ferro no duodeno e no jejuno. Descrição da figura no texto. Tf, transferrina intestinal; DCT1, divalent cation transporter 1; IRE, ironresponsive element.
Quadro 63.1 ■ Secretagogos endógenos reguladores dos processos absortivos e secretórios do intestino. Origem dos secretagogos
Aumentama secreção
Aumentama absorção
Células epiteliais
Gastrina, neurotensina
Somatostatina
Metabólitos do ácido araquidônico, histamina Células da lâmina própria
Substâncias oxidantes, fatores
(parácrinos)
ativadores de plaquetas,
Efeitos não conhecidos
bradicinina Neurotransmissores do SNA e
Acetilcolina, serotonina, VIP,
Norepinefrina, neuropeptídio Y
SNE
substância P
Via sanguínea
Calcitonina, peptídio atrial
Mineralocorticoides, angiotensina,
natriurético, prostaglandinas
epinefrina
SNA, sistema nervoso autônomo; SNE, sistema nervoso entérico.
▸ Regulação por hormônios extrínsecos Hormônios do córtex da suprarrenal ▸ Aldosterona. É um mineralocorticoide sintetizado no córtex da suprarrenal; eleva não só a absorção de água e de NaCl, como também a secreção de K+ no cólon e, em menor extensão, no íleo. Este hormônio tem o mesmo efeito nas células epiteliais do néfron; seu papel, no intestino e no néfron, é regular a absorção de água em resposta à desidratação (ver Capítulos 53 e 55). O mecanismo de ação da aldosterona consiste na elevação da incorporação e/ou ativação dos canais epiteliais para Na+ na ML e no aumento do número das Na+/K+ATPases da MBL. ▸ Glicocorticoides. Também agem no intestino, elevando a absorção de água e de NaCl tanto no delgado como no cólon, incorporando a Na+/K+ATPase à MBL. ▸ Epinefrina. As células intestinais têm receptores para epinefrina, do tipo α; o hormônio eleva a absorção eletroneutra de NaCl no íleo e inibe os processos de secreção. Ele também tem efeito sobre os plexos intramurais, especialmente os submucosos, por meio de inibição dos neurônios secretores e motores do sistema nervoso entérico.
▸ Regulação parácrina ▸ Somatostatina. Inibe a secreção de íons e de água nas células das criptas, reduzindo o nível de cAMP. Estimula a absorção hídrica e de eletrólitos no íleo e no cólon. ▸ Substâncias do sistema imunológico do intestino. São parácrinos secretados por mastócitos, fagócitos, linfócitos, basófilos, neutrófilos, células endoteliais e fibroblastos. Estas células secretam: histamina, citocinas, serotonina, prostaglandinas, leucotrienos, endotelinas, fatores ativadores de plaquetas, tromboxanas, adenosina e óxido nítrico. Estas substâncias elevam os processos de secreção de água e de eletrólitos pelas células das criptas, podendo causar diarreia; são liberadas nos processos inflamatórios intestinais, como na doença de Crohn. Estes parácrinos podem agir diretamente sobre as células epiteliais, ou de modo indireto, aumentando a atividade dos neurônios do sistema nervoso entérico, estimulando tanto a motilidade como a secreção das células intestinais. Adicionalmente, o sistema nervoso entérico, via neurotransmissores (como a substância P e o neuropeptídio Y), modula a atividade de células do sistema imunológico do intestino.
▸ Regulação pelo sistema nervoso entérico (SNE)
A chegada do quimo ao intestino estimula os mecano e quimiorreceptores, que desencadeiam curtos reflexos intramurais com liberação de neurotransmissores. Estes agem diretamente sobre as células epiteliais, ou indiretamente (via sistema imunológico do intestino), provocando tanto os processos secretórios como os absortivos, além da motilidade. As células intestinais são inervadas por neurônios motores e secretores que se originam principalmente dos plexos submucosos, mas também dos plexos mioentéricos. Os neurotransmissores são a acetilcolina e o VIP; porém, várias substâncias neuroativas agem como moduladoras.
▸ Regulação pelo sistema nervoso autônomo (SNA) Poucas fibras eferentes parassimpáticas terminam diretamente nas células epiteliais. Porém, elas afetam os plexos intramurais e, predominantemente, o submucoso, alterando a resposta dos neurônios pósganglionares secretores e motores. A estimulação parassimpática colinérgica para os interneurônios e neurônios secretores dos plexos intramurais aumenta os processos secretórios. As fibras simpáticas eferentes noradrenérgicas terminam diretamente nas células epiteliais ou afetam a atividade dos neurônios secretores dos plexos intramurais. Nos dois casos, a estimulação simpática noradrenérgica diminui os processos secretores e aumenta os absortivos. Na neuropatia diabética autonômica, a estimulação simpática para o intestino é abolida, causando a diarreia diabética. As catecolaminas e os agentes αadrenérgicos inibem fortemente os processos secretórios provocados pela toxina do Vibrio cholerae.
FISIOPATOLOGIA DA ABSORÇÃO INTESTINAL DE ÁGUA E ÍONS As deficiências absortivas de água e de íons no intestino provocam diarreias. Estas podem ser consequência de diversos fatores que interferem com os processos absortivos e/ou secretórios do intestino, a motilidade intestinal e a tonicidade do lúmen intestinal. Diarreia caracterizase por aumento da massa fecal (a valores superiores a 250 g/dia), crescimento da proporção hídrica nas fezes (do normal de 67% para 70 a 90%), dor, sensação de urgência da defecação, desconforto perineal e incontinência fecal. Os seus diferentes tipos são descritos a seguir. ▸ Diarreias secretoras. Caracterizamse por maior quantidade de líquido nas fezes (além de 500 m ℓ /dia); a excreção aumentada persiste no jejum. O líquido excretado é isotônico em relação ao plasma. Estas diarreias podem ter origem infecciosa (causadas pelas enterotoxinas), podendo ser neoplásicas ou resultantes de hipersecreção de secretagogos. ▸ Diarreias osmóticas. Resultam de problemas de má absorção intestinal (p. ex., de carboidratos), defeitos nos processos digestivos, anormalidades dos enterócitos, redução da área absortiva do intestino, entre outros. Neste caso, o líquido excretado nas fezes também pode alcançar valores superiores a 500 m ℓ /dia, mas é hipertônico, e o processo diarreico cessa no jejum. Nestas diarreias, os nutrientes não digeridos e/ou não absorvidos permanecem no lúmen intestinal, elevando a tonicidade do conteúdo luminal; isso causa um fluxo secretor de água. São acompanhadas de distensão abdominal, cólicas, flatulência (em consequência de fermentação bacteriana) e borborigmo. ▸ Diarreias exsudativas. Resultam de doenças inflamatórias do intestino e também podem ter origem infecciosa. Os volumes líquidos excretados são variáveis, ocorrendo frequentes defecações. Persistem no jejum e são sanguinolentas e purulentas. ▸ Diarreias por aumento da motilidade. Caracterizamse por fezes volumosas, com osmolalidade aumentada por nutrientes não absorvidos e por esteatorreia. Cessam no jejum. Ocorrem por aumento do trânsito intestinal, o que prejudica tanto os processos digestivos como os absortivos. As causas da hipermotilidade intestinal não são conhecidas. ▸ Diarreia congênita com excreção de cloreto. Neste caso, há um defeito ou ausência do contratransportador Cl–/HCO3– da ML do íleo e do cólon. Apresenta grande prejuízo da absorção de Cl–, que aparece em altas concentrações fecais (excedendo a soma das concentrações de Na+ e de K+). Como o contratransportador Na+/H+ continua a funcionar, há excreção fecal de H+, levando à eliminação de fezes ácidas; consequentemente, ocorre perda de H+, conduzindo à alcalose metabólica.
▸ Diarreia secretora, por ação da toxina do Vibrio cholerae. Tratase de uma diarreia tipicamente secretora. A toxina colérica é uma proteína com PM de 11,5 kD, contendo 5 subunidades do tipo B e 2 do A. As subunidades B da toxina ligamse ao receptor da ML, um sialoglicogangliosídio, presente nas células das criptas do delgado e do cólon. As subunidades A, através da ML, atingem o citosol; daí são transportadas até a MBL, por vesículas intracelulares. A ligação da subunidade A1 com a subunidade α de uma proteína Gs inibe a atividade GTPásica da subunidade α. Isso impede o rearranjo das subunidades da proteína Gs e induz a ausência de inativação da adenilato ciclase da membrana; portanto, esta se mantém continuamente ativada, promovendo a síntese contínua de cAMP e estimulando os processos de secreção de Cl– pelas células das criptas. Ocorre, assim, aumento da eliminação de Na+ e de água, causando uma diarreia profusa, com excreção fecal hídrica de até 20 ℓ diários. Além da alteração dos mecanismos de transporte de Cl– nas células das criptas, por aumento da síntese de cAMP, a toxina da cólera induz: (a) elevação da secreção de vários secretagogos, como serotonina e prostaglandinas, que levam a um crescimento da concentração intracelular de Ca2+; (b) alterações morfológicas do delgado, com edema da mucosa, encurtamento das vilosidades e destruição dos enterócitos, diminuindo a área absortiva; (c) maior motilidade intestinal, por aumento da amplitude dos potenciais de ação do complexo migratório mioelétrico, em consequência de alterações do sistema nervoso entérico; (d) formação de uma toxina secundária, derivada, que causa mais permeabilidade das tight junctions, elevando o transporte transepitelial de água e íons pela via intercelular. A toxina secundária é conhecida como ZOT ou zonuale occludens toxin.
Resumo Absorção intestinal de água e eletrólitos 1. A absorção de água em todo o intestino é secundária à de solutos. A de solutos gera o gradiente osmótico transepitelial responsável pela absorção hídrica. 2. A quantidade total de água no TGI é de 9 ℓ/dia. Destes, o delgado absorve 7,5 ℓ; a maior parte é absorvida no jejuno, devido à absorção de solutos orgânicos, que ocorre de preferência neste segmento. O cólon recebe 1,5 ℓ/dia e reabsorve 1,4 ℓ, excretando diariamente apenas 0,1 ℓ. 3. A reserva funcional absortiva de água do delgado é de até 20 ℓ/dia e a do cólon, de 4 a 6 ℓ/dia. 4. Cerca de 5 a 10 g de NaCl são ingeridos por dia. A quantidade de NaCl secretada no TGI é de aproximadamente 25 g/dia, dando um total de 30 a 35 g de NaCl que atingem o lúmen intestinal. O delgado absorve praticamente todo o NaCl, sendo excretados nas fezes apenas 9 a 12 mM/dia. 5. A quantidade de água secretada no TGI por dia (7 l) representa 20% do total desse líquido do organismo. A quantidade diária de NaCl secretada no TGI (25 g) corresponde a 15% do total de sódio do corpo. Estes valores permitem concluir que as alterações absortivas de água e de sódio conduzem a distúrbios da homeostase hidreletrolítica do organismo. 6. No delgado, a absorção de água ocorre entre dois compartimentos quase isotônicos (lúmen intestinal e interstícioplasma). Essa absorção se dá pelas vias intercelular e transcelular. A transcelular tem alta permeabilidade hídrica devido às aquaporinas (canais de água) presentes tanto na ML como na MBL. 7. No cólon, o lúmen é hipotônico em relação ao compartimento intersticialplasmático. O passo limitante para a absorção de água nesse segmento é a ML, cujo número de aquaporinas é regulável. 8. Embora a absorção de sódio ocorra ao longo de todo o intestino, quantitativamente ela é maior no delgado, principalmente no jejuno, onde o sódio é absorvido também por acoplamento com hexoses e aminoácidos. 9. A absorção de potássio depende da sua concentração luminal que, por sua vez, é função da absorção hídrica. Este íon pode ser tanto absorvido como secretado. Em diarreias, aumenta a quantidade de água luminal e diminui a absorção de potássio, que passa a ser excretado nas fezes, levando à hipopotassemia. 10. O bicarbonato é absorvido apenas no jejuno. Ele é secretado no duodeno, onde participa da neutralização do quimo ácido proveniente do estômago; o jejuno absorve o excesso. O íleo e o cólon secretam bicarbonato, neutralizando os produtos ácidos da fermentação bacteriana. 11. A modulação da secreção de cloreto é importante na regulação da absorção de sódio e de água. O cloreto é secretado, através da ML das células das criptas, em resposta a neurotransmissores, parácrinos e hormônios.
A elevação da secreção de cloreto altera o fluxo transepitelial de sódio e a tonicidade luminal, tanto no delgado como no cólon. Com isso, altera a absorção de água. 13. As diarreias caracterizamse por aumento da excreção da massa fecal (acima de 250 g/dia) e da proporção de água (de 67% para 70 a 90%). Elas podem ser osmóticas, secretoras ou exsudativas. A diarreia pelo Vibrio cholerae é secretora; resulta da ausência da inativação da adenilatociclase, o que leva à ativação contínua do cAMP e ao aumento da secreção de cloreto. 14. As absorções de cálcio e de ferro são reguladas pelas necessidades do organismo. Ocorrem, predominantemente, no jejuno. A absorção de cálcio depende de um metabólito da vitamina D (1,25di hidrocolecalciferol), sintetizado na pele, por radiação UV sobre o colecalciferol. 12.
BIBLIOGRAFIA ARONSON PS, BORON WF, BOULPAEP EL. Physiology of membranes. In: BORON WF, BOULPAEP EL (Eds.). Medical Physiology. W.B. Saunders, Philadelphia, 2005. BERNE RM, LEVY MN, KOPPEN BM et al. Physiology. 5. ed. Mosby, St. Louis, 2004. BINDER HJ, SANDLE GI. Electrolyte transport in the mammalian colon. In: JOHNSON LR (Ed.). Physiology of the Gastrointestinal Tract. 3. ed. vol. 2. Raven Press, New York, 1994. BORON WF, BOULPAEP EL. Medical Physiology. Intestinal Fluid and Electrolyte Movement. Elsevier Saunders, Philadelphia, 2005. COOKE HJ, REDDIX RA. Neural regulation of intestinal electrolyte transport. In: JOHNSON LR (Ed.). Physiology of the Gastrointestinal Tract. 3. ed. vol. 2. Raven Press, New York, 1994. GOYAL S, VANDER H, ARONSON PS. Renal expression of novel exchanger isoform NHE8. Am J Renal Physiol, 284:F46773, 2003. LEHNINGER AL. Principles of Biochemistry. 3. ed. Worth Publishers, New York, 2000. SANIOTO SML. Fisiologia do sistema digestivo. In: AIRES MM (Ed.). Fisiologia Básica. 2. ed. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 1999. STEIN WD. Channels, Carriers and Pumps: an Introduction to Membrane Transport. In: WILFRED DS (Ed.). Academic Press, San Diego, 1990. WAGNER AC, FINBERG KE, BRETON S et al. Renal vacuolar H +ATPase. Physiol Rev, 84:1263314, 2004. WAKABAYASHI S, PANG T, SU X et al. A novel topology model of the human Na+/H + exchanger isoform 1. J Biol Chem, 275:79429, 2000.
64 Introdução à Fisiologia Endócrina 65 Hipotálamo Endócrino 66 Glândula Hipófise 67 Glândula Pineal 68 Glândula Tireoide 69 Glândula Suprarrenal 70 Pâncreas Endócrino 71 Gônadas 72 Moléculas Ativas Produzidas por Órgãos Não Endócrinos 73 Crescimento e Desenvolvimento 74 Controle Hormonal e Neural do Metabolismo Energético 75 Controle Neuroendócrino do Balanço Hidreletrolítico 76 Fisiologia do Metabolismo Osteomineral 77 Fisiologia da Reprodução 78 Desreguladores Endócrinos
José AntunesRodrigues.
Antes de sua graduação em Medicina, em 1959, o Prof. José AntunesRodrigues optou pelo trabalho experimental em Fisiologia sob a orientação do Prof. Miguel Rolando Covian, quando obteve os primeiros resultados indicando a importância do controle neural da ingestão salina. Fez seu doutoramento em 1962, livredocência em 1968, foi nomeado professor adjunto em 1968 e professor titular em 1981 no Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USP. Após o doutoramento, passou 2 anos nos EUA, onde trabalhou com o Dr. Samuel M. McCann, um dos pioneiros e expoentes na área de Neuroendocrinologia. Ao longo de sua carreira científica, Antunes fez várias contribuições sobre o papel do sistema nervoso central (SNC) no controle do equilíbrio hidromineral, com especial ênfase nas vias neurais envolvidas nessa regulação homeostática. AntunesRodrigues foi o primeiro pesquisador a demonstrar a importância dos núcleos paraventriculares e supraópticos no controle da ingestão específica de sódio.1 Posteriormente, avaliou as principais vias neurais, os neurotransmissores sinápticos e os mecanismos neuroendócrinos envolvidos na mediação dessa resposta. Neste sentido, demonstrou que o controle da ingestão de sódio é complexo e envolve, além do hipotálamo, o bulbo olfatório, a área septal, o órgão subfornical e o complexo amigdaloide.2 A descoberta da existência do peptídio natriurético atrial (ANP) no corpo celular de neurônios hipotalâmicos, em regiões relacionadas com o controle da ingestão/excreção de sódio, levou Antunes Rodrigues a investigar a participação do ANP no controle da homeostase hidreletrolítica, demonstrando que a estimulação osmótica, adrenérgica, colinérgica e peptidérgica do hipotálamo induz à liberação do ANP. Demonstrou também que a administração do ANP em regiões restritas do SNC inibe a ingestão de água e de sódio.3,4 Além disso, indicou que a natriurese induzida pela estimulação colinérgica é acompanhada por acentuado aumento na concentração plasmática de ANP, associado a elevação do seu conteúdo no sistema neuronal ANPérgico hipotalâmico, o que sugere a ativação desses neurônios e sua liberação na circulação sistêmica.5 AntunesRodrigues demonstrou que a liberação do ANP, induzida pela expansão do volume extracelular (EVEC), é bloqueada quando se destroem os corpos celulares ou axônios desse sistema neural.6 Esses resultados o levaram a concluir que a liberação do ANP induzida pela EVEC pode ser decorrente da liberação de neuropeptídios do sistema hipotálamohipofisário, tais como endotelina (ET3), MSH, ocitocina, vasopressina e o próprio ANP, que, uma vez liberados na circulação sistêmica, estimulariam a liberação do ANP diretamente dos miócitos atriais. Recentemente, AntunesRodrigues demonstrou que a desnervação sinoaórtica e renal diminui a liberação do ANP induzida pela EVS,7 o que ressalta a importância do SNC em seu controle. Atualmente, conduz experimentos que procuram demonstrar modificações na expressão gênica de ANP, vasopressina e ocitocina em áreas restritas do SNC em resposta à sobrecarga salina. Sua atividade de orientação científica em nível de pósgraduação tem sido muito fértil, contandose entre seus orientados vários excelentes docentespesquisadores nas principais universidades brasileiras. Tem cerca de 251 artigos publicados em periódicos indexados e já orientou várias teses de doutorado e mestrado. Linhas de pesquisa: Controle Neuroendócrino do Equilíbrio Hidreletrolítico e Controle Neuroendócrino da Fisiologia da Reprodução.
Margarida de Mello Aires In: Programa de PósGraduação em Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto ____________ 1 COVIAN MR, ANTUNESRODRIGUES J. Specific alterations in sodium chloride intake after hypothalamic lesions in the rat. Am J Physiol, 205(5):9226, 1963. 2 MOGENSON GJ, CALARESU FR (Eds.). Neural Integration of Physiological Behaviour. University of Toronto Press, 1975. 3
ANTUNESRODRIGUES J, McCANN SM, ROGERS LC et al. Atrial natriuretic factor inhibits dehydration and angiotensin IIinduced water intake in the conscious, unrestrained rat. Proc Natl Acad Sci U S A, 82(24):87203, 1985. 4 ANTUNESRODRIGUES J, McCANN SM, SAMSON WK. Central administration of atrial natriuretic factor inhibits saline preference in the rat. Endocrinology, 118(4):17268, 1986. 5 BALDISSERA S, MENANI JW, SANTOS LF et al. Role of the hypothalamus in the control of atrial natriuretic peptide release. Proc Natl Acad Sci U S A, 86(23):96215, 1989. 6
ANTUNESRODRIGUES J, RAMALHO MJ, REIS LC et al. Lesions of the hypothalamus and pituitary inhibit volumeexpansioninduced release of atrial natriuretic peptide. Proc Natl Acad Sci U S A, 88(7):295660, 1991. 7 ANTUNESRODRIGUES J, MACHADO BH, ANDRADE HA et al. Carotidaortic and renal baroreceptors mediate the atrial natriuretic peptide release induced by blood volume expansion. Proc Natl Acad Sci U S A, 89(15):682831, 1992.
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Conceituação de hormônio
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Sistemas hormonais Classificação dos hormônios quanto à sua natureza química
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Sistemas de retroalimentação Hormônios produzidos por outros órgãos Fisiopatologia
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Bibliografia
CONCEITUAÇÃO DE HORMÔNIO O sistema endócrino tem a função de garantir o fluxo de informações entre diferentes células, possibilitando a integração funcional de todo o organismo. As inúmeras funções do sistema endócrino podem ser resumidas em 3 grupos: (1) garantir a reprodução, (2) promover crescimento e desenvolvimento e (3) garantir a homeostase (estado de equilíbrio) do meio interno. No sistema endócrino, o fluxo de informações ocorre a partir dos efeitos biológicos determinados por moléculas, denominadas hormônios. Neste fluxo de informação intercelular, que define uma ação endócrina, participam a célula secretora e a célulaalvo: (1) a célula secretora é a responsável pela síntese e secreção do hormônio que vai levar a informação; (2) a célulaalvo é aquela que vai reconhecer o hormônio e modificar alguma função celular em resposta a esse hormônio. Nesse processo, a célulaalvo para um hormônio é aquela que expressa um receptor hormonal (R) específico para esse hormônio, o que ocorre durante a diferenciação da célulaalvo. Assim, o receptor hormonal é um elemento fundamental na resposta endócrina (esse assunto está detalhadamente discutido no Capítulo 3, Sinalização Celular). A definição clássica de hormônio diz tratarse de substância química produzida por tecidos especializados e secretada na corrente sanguínea, onde é conduzida até os tecidosalvo. Entretanto, esta definição foi concebida quando a maioria dos sistemas hormonais conhecidos era restrita a vertebrados, sendo que vários princípios desta definição já foram revisados de acordo com o conhecimento atual.
▸ Exemplos Os exemplos citados a seguir impuseram uma revisão na definição clássica de hormônio: ■ Hormônios produzidos e secretados por diferentes tipos celulares do organismo já foram amplamente caracterizados, e a correlação de hormônio com tecido especializado em produzilo foi perdida ■ O sangue é próprio de vertebrados, e sabese que em artrópodes vários hormônios circulam por meio da hemolinfa. Adicionalmente, em vertebrados, os parahormônios difundemse pelo líquido intersticial, alcançando as célulasalvo
sem atingir a corrente sanguínea ■ Já estão bem caracterizados os ectohormônios (em grego, ektós designa superfície ou exterior) que atravessam o ar ou a água, comunicando diferentes indivíduos da mesma espécie (como os feromônios, responsáveis pela atração sexual) ou de espécies diferentes (como os alomônios e cairomônios, envolvidos em atrações interespécies) ■ Alguns hormônios produzidos por determinadas células são capazes de modular funções na própria célula secretora, sem serem secretados para o meio extracelular (ação denominada intrácrina). Assim, atualmente, o melhor conceito para definir hormônio é: substância química não nutriente capaz de conduzir determinada informação entre uma ou mais células. Entretanto, mesmo esta definição exclui os alarmônios, que são substâncias produzidas e utilizadas unicamente em uma mesma célula, mas que preservam a essência da endocrinologia, que é uma coordenação química das funções corporais. Por outro lado, o caráter químico dos hormônios, que a princípio parece lógico, é restritivo e provavelmente deverá ser revisto em breve. Já se sabe que algumas espécies animais, como os piróforos (ou vagalume), podem utilizar a energia da luz para induzir padrões comportamentais entre si; portanto, excluir os fatores físicos na definição de hormônio é uma questão que precisa ser revisada. Finalmente, sabese que as rotas metabólicas são reguladas pelas concentrações de seus substratos; entretanto, os nutrientes ainda são eliminados do conceito de hormônio. Portanto, fica claro que, independente de dificuldades na definição de um hormônio, sua principal característica é a capacidade de induzir uma resposta celular, isto é, alterar uma função da célula.
▸ Glândulas endócrinas e hormônios secretados O conhecimento da endocrinologia evoluiu a partir de sistemas macroscópicos para sistemas microscópicos e, posteriormente, moleculares, de acordo com a evolução da tecnologia. Sendo assim, é natural que os primeiros sistemas endócrinos tenham sido descritos em órgãos que se mostravam capazes de produzir substâncias que agiriam à distância, modificando funções de outras estruturas. Esses órgãos foram denominados glândulas endócrinas, uma vez que o produto de secreção era lançado no meio interno. As primeiras glândulas endócrinas descritas foram: gônadas (ovário e testículo), pâncreas, suprarrenal, tireoide, paratireoide e hipófise, e nessas glândulas foram caracterizadas as células secretoras dos hormônios. Foi verificado que diferentes tipos celulares poderiam estar presentes em uma mesma glândula e que, na maioria das vezes, cada um era responsável pela síntese e secreção de um hormônio específico. Notouse também que um mesmo tipo celular poderia produzir mais de um hormônio. Posteriormente, foram caracterizadas células secretoras que se encontram dispersas em um determinado local, sem formar um tecido especializado, e muito menos ainda um órgão (ou glândula). Por exemplo, no parênquima da glândula tireoide foram identificadas células dispersas, especializadas na síntese e secreção do hormônio calcitonina, importante na regulação da homeostase da calcemia. Além disso, à medida que a capacidade de demonstrarse a atividade hormonal de uma molécula evoluiu, observouse que praticamente todos os tipos celulares do organismo são capazes de produzir um ou mais hormônios; esta observação expandiu o sistema endócrino para muito além das clássicas glândulas endócrinas, inicialmente caracterizadas. Exemplos relacionados a esse item são o coração, que secreta o hormônio/peptídio natriurético atrial; os rins, que secretam a renina; e até o endotélio dos vasos, que secretam as endotelinas, entre outros. Não podemos deixar de falar sobre as interações do sistema nervoso e o sistema endócrino. Claude Bernard, considerado o pai da Fisiologia e quem lançou o conceito de homeostase na segunda metade do século XIX, já demonstrara que a manutenção do meio interno dependia da atividade coordenada de dois sistemas essenciais: o sistema endócrino e o sistema nervoso autônomo, salientando que a acetilcolina e a norepinefrina podiam circular no sangue agindo como verdadeiros hormônios. Surgiu então a ideia de que o sistema nervoso interage com o endócrino, confundindose às vezes, e o que se conhece hoje é uma completa interação neuroendócrina, especialmente em sistemas localizados no sistema nervoso central (SNC), onde não existem barreiras separando o “nervoso” do “endócrino”. A medula suprarrenal, um dos primeiros sistemas definido como neuroendócrino, é sabidamente glândula e gânglio pós ganglionar ao mesmo tempo. Na evolução do conhecimento, a caracterização dos sistemas neuroendócrinos gerou a criação do termo neurohormônio para referirse às moléculas neles envolvidas. Entretanto, esse termo pouco contribuiu para clarear o conhecimento. O importante hoje é saber que há moléculas como a epinefrina, por exemplo, que agem como hormônio e como neurotransmissor na transmissão sináptica.
SISTEMAS HORMONAIS
▸ Sistemas hormonais clássicos Uma vez que o conceito de hormônio evoluiu, novos e distintos sistemas hormonais foram caracterizados. São três os clássicos sistemas (ou ações) hormonais (Figura 64.1): (1) sistema endócrino – o hormônio age em uma célulaalvo distante, na qual ele chega por meio do sangue; (2) sistema parácrino – o hormônio difundese no interstício agindo em células vizinhas da célula secretora; e (3) sistema autócrino – o hormônio, uma vez secretado, volta a agir na própria célula secretora. Embora os termos sistema ou ação endócrina possam ser utilizados genericamente para qualquer fenômeno endócrino, atualmente esta designação referese ao primeiro tipo de ação caracterizada que envolve uma ação do hormônio à distância. Esse conhecimento surgiu a partir de experimentos de parabiose. A parabiose é uma técnica experimental desenvolvida no laboratório de Claude Bernard em 1862, na qual se suturam dois animais lado a lado, por intermédio da parede lateral da região abdominal; a região da ligadura entre os animais (pele e tecido subcutâneo) revasculariza, proporcionando a comunicação sanguínea entre os dois organismos. Esta técnica possibilita demonstrar a existência de fatores humorais circulantes (hormônios) que, produzidos em um animal, determinam efeito biológico no outro, demonstrando a ação do hormônio à distância. Thales Martins, fisiologista e endocrinologista brasileiro de importância internacional (ver “As Origens da Fisiologia no Brasil”, na parte inicial deste livro), contribuiu muito à endocrinologia entre os anos de 1920 e 1940 utilizando esta técnica. Thales Martins demonstrou a masculinização do animal prépúbere colocandoo em parabiose com o animal adulto, concluindo que os hormônios do adulto passavam para o jovem, masculinizandoo. Também demonstrou a existência de hormônios hipofisários reguladores da função gonádica, utilizando a parabiose entre animais adultos normais e castrados. Neste caso, sabese que a castração induz a um aumento na produção de hormônios hipofisários estimuladores do trofismo (ou desenvolvimento) das gônadas (razão pela qual esses hormônios são chamados gonadotrofinas). Assim, quando um animal castrado é colocado em parabiose com um normal (que tem a gônada) observase, após alguns dias, uma hipertrofia da gônada do animal normal, em consequência do aumento de gonadotrofinas do castrado, mais uma vez caracterizando a clássica ação endócrina na qual o hormônio, deslocandose pela corrente sanguínea, age em célulasalvo distantes.
Figura 64.1 ■ Ações endócrinas clássicas. Na parte inferior da figura está desenhada a célula secretora produtora de hormônio (representado pelas estrelas). Na ação endócrina, o hormônio se desloca pela circulação sanguínea e age em uma célulaalvo distante. Na ação parácrina, o hormônio age em célulaalvo próxima da célula secretora, sem alcançar a circulação. Na ação autócrina, o hormônio secretado no meio extracelular volta a agir na própria célula secretora.
Além dos sistemas endócrinos descritos anteriormente, a interação das funções endócrina e nervosa provoca as ações neuroendócrinas, tanto a partir de neurotransmissores como de peptídios secretados por neurônios.
▸ Sistemas hormonais não clássicos Atualmente, vários sistemas hormonais distintos têm sido descritos, o que vem sendo designado como endocrinologia não clássica. Esses sistemas são operados por hormônios frequentemente sintetizados em múltiplos locais e que podem agir localmente. São características desses sistemas: grande repertório de ações, intercruzamento de suas ações e, ocasionalmente, ações contrárias. Geralmente tais hormônios são fatores de crescimento, e alguns têm ações opostas, como estimulação e inibição de crescimento, conforme o estágio de diferenciação da célulaalvo. Entre os sistemas hormonais não clássicos, em mamíferos, destacamse três (Figura 64.2): ■ Criptócrino: a secreção e ação do hormônio ocorrem em um sistema fechado, que envolve diferentes células, intimamente relacionadas. Como exemplo, há as interações da célula de Sertoli e as espermátides, em que a membrana basal do túbulo seminífero impede que os hormônios se difundam para o interstício testicular ■ Justácrino: o hormônio sintetizado passa a integrar a membrana plasmática (com parte da proteína localizada no meio extracelular) e, embora possa ser clivado formando um peptídio solúvel que se distancia da célula secretora, em geral permanece aderido à membrana plasmática da célula secretora, mantendo sua capacidade de ação restrita às células vizinhas, cujo alcance depende do tamanho de sua haste de sustentação. Agem desta maneira fatores de crescimento como EGF, TGFα, TNFα, entre outros ■ Intrácrino: a síntese do hormônio e a ligação ao seu receptor específico ocorrem dentro da mesma célula. O principal exemplo é o receptor Ah (hidrocarbonos aromáticos). Entretanto, uma variante deste tipo de sistema inclui a geração de metabólitos ativos dentro da célulaalvo, como a síntese do T3 (a partir do precursor T4) dentro da célulaalvo, onde vai agir sem ao menos sair da célula. Outro exemplo é a síntese de estrógeno a partir da testosterona na célula alvo. A ação intrácrina diferenciase da autócrina pelo fato de que o hormônio não sai da célula secretora, sendo, portanto, restrito a hormônios que tenham receptores intracelulares, conforme será descrito adiante.
Figura 64.2 ■ Exemplos dos 3 tipos de ações endócrinas, em que os hormônios estão representados por estrelas. (1) Criptócrina – túbulo seminífero no qual observamse algumas células de Sertolli (junto à membrana basal) e espermátides; as células de Sertoli produzem o fator de diferenciação celular (TGF), que é importante para o desenvolvimento da espermatogênese. (2) Justácrina – a célula secreta o hormônio (o fator de crescimento TNFα) que pode permanecer ligado na membrana celular, agindo somente em célulasalvo próximas, ou pode romperse indo para a circulação. (3) Intrácrina – a célula utiliza como precursor o T4 para transformálo em T3, hormônio que vai agir na própria célula.
Um sistema hormonal pode ainda ser designado como não clássico por envolver hormônios recentemente caracterizados, cuja produção ou é disseminada por vários territórios ou é proveniente de células até então não definidas ou caracterizadas como células endócrinas. Exemplos desses sistemas/hormônios serão detalhados adiante.
CLASSIFICAÇÃO DOS HORMÔNIOS QUANTO À SUA NATUREZA QUÍMICA Alguns princípios físicoquímicos são fundamentais para se compreender a classificação dos hormônios quanto à sua natureza química. Uma vez que os hormônios são moléculas sintetizadas em células e secretadas para o meio extracelular, de onde muitas vezes alcançam a circulação sanguínea, é importante lembrar que o solvente desses meios é a água, cuja molécula tem um caráter polar (com um polo positivo e outro negativo), o que possibilita que toda e qualquer molécula de caráter polar solubilizese nesse meio. Consequentemente, tanto o meio intra como o extracelular são hidrofílicos, possibilitando a solubilização de qualquer molécula polar, caracterizando essas moléculas como hidrossolúveis (ou moléculas hidrofílicas ou lipofóbicas). Adicionalmente, a membrana plasmática, que delimita tanto a célula secretora como a célulaalvo, tem componentes lipídicos que são moléculas apolares. Portanto, na membrana plasmática, as moléculas hidrossolúveis são incapazes de se solubilizar (a membrana é hidrofóbica ou lipofílica), de maneira que a membrana plasmática representa uma barreira à passagem de moléculas hidrofílicas. Obviamente, o inverso é verdadeiro; isto é, moléculas lipídicas (ou lipofílicas) solubilizamse na membrana plasmática, podendo atravessála facilmente. Compreendese então que, dependendo da sua composição química, um hormônio é hidro ou lipossolúvel e, consequentemente, várias de suas características decorrerão dessas suas qualidades físicoquímicas. Assim, embora estruturalmente os hormônios possam ser bastante diversos, didaticamente é conveniente classificálos em 2 grandes grupos: os hidrossolúveis e os lipossolúveis. A importância do caráter de hidrossolubilidade dos hormônios repousa na determinação de uma série de características hormonais comuns nos processos de síntese, secreção, transporte e metabolização, assim como o tipo de receptor e o mecanismo de ação.
▸ Hormônios hidrossolúveis São a maioria, sendo também conhecidos como o grupo dos hormônios proteicos, por incluírem todos os hormônios que são proteínas. As proteínas são constituídas por cadeias de aminoácidos que se unem por ligações peptídicas, preservando a característica polar das moléculas dos aminoácidos e, assim, definindose como hidrossolúveis. A composição desses hormônios varia desde um único aminoácido modificado, passando por peptídios simples, até grandes proteínas (com centenas de aminoácidos). Podem ser ainda maiores, quando forem: (1) constituídos por várias subunidades (ou cadeias de proteínas); (2) glicosilados (com um radical açúcar ligado em um aminoácido) ou (3) fosforilados (com um fosfato – PO4, ligado em um aminoácido).
Síntese dos hormônios hidrossolúveis Os menores hormônios hidrossolúveis são aminoácidos modificados, por exemplo: a tirosina origina a epinefrina e a norepinefrina; a histidina origina a histamina; e o triptofano origina a serotonina. A síntese desses hormônios depende da disponibilidade intracelular do aminoácido e do conteúdo e atividade das enzimaschave no processo de metabolização (ou modificação) da molécula do aminoácido. Os demais hormônios (desde peptídios até proteínas) são codificados por genes específicos; portanto, sua síntese segue os princípios básicos da síntese de proteínas. Em resumo, na célula secretora, fatores transcricionais específicos (definidos no processo de diferenciação celular) são responsáveis por agirem na região promotora do gene, determinando que este seja transcrito. O RNA mensageiro (mRNA) transcrito migra para o retículo endoplasmático rugoso e, nos ribossomos, ocorre a tradução desse mRNA em proteína. Entretanto, importantes regulações póstranscricionais e pós traducionais podem ocorrer (Figura 64.3).
Após a transcrição do gene, no processamento do RNA primário, por exemplo quando os íntrons são retirados, splicing alternativo pode ocorrer dando início a 2 diferentes RNAs, que consequentemente gerarão duas proteínas diferentes (p. ex., variantes da cadeia beta do hormônio estimulador da tireoide – TSH). Após a etapa da tradução, ocorrem processos de metabolização póstraducional. Primeiro, as proteínas perdem o peptídio sinal (primeira sequência de aminoácidos que indica o início do processo de tradução); depois, peptidases específicas clivam essa proteína, até chegar à forma biologicamente ativa do hormônio. Adicionalmente, pode ocorrer glicosilação ou fosforilação da molécula proteica, processos fundamentais para a atividade biológica de alguns hormônios (ver Figura 64.3).
Figura 64.3 ■ Esquema da síntese dos hormônios proteicos, de acordo com os princípios de síntese de qualquer proteína (que tem um gene codificador). À esquerda, dentro de boxes, são indicadas as etapas do processo de expressão de um gene. À direita, em negrito, estão indicados os territórios celulares em que os processos ocorrem. As possibilidades de processamento póstraducional para geração de hormônios ativos são múltiplas em termos de clivagem e ainda podem incluir outros processos, como glicosilação e fosforilação. A linha tracejada representa a membrana nuclear. RER, retículo endoplasmático rugoso; PS, peptídio sinal.
Quanto aos hormônios de dupla cadeia peptídica ou proteica, duas possibilidades, completamente distintas, podem estar envolvidas: ■ Apenas um gene codifica o hormônio, o qual expressa uma molécula precursora, que sofre processamento pós traducional, quebrandose em várias sequências; algumas delas ligamse posteriormente, e constituem a forma final ativa do hormônio. Exemplo: o gene da insulina codifica uma proteína, a proinsulina, a qual, após processamento, forma as cadeias A, B e C; as cadeias A e B ligamse e constituem a molécula final da insulina ■ Dois genes estão envolvidos na síntese do hormônio, os quais expressam duas proteínas distintas, que se ligam posteriormente para constituir a forma final ativa do hormônio. Exemplo: para a síntese do hormônio TSH, um gene codifica a cadeia α e outro é responsável pela cadeia β, as quais posteriormente se ligam, constituindo o hormônio.
Secreção dos hormônios hidrossolúveis Na produção dos hormônios, é importante que se compreenda claramente a distinção entre síntese e secreção de um hormônio. A síntese, antes descrita, envolve todas as etapas que determinam a “fabricação” da molécula do hormônio, enquanto a secreção envolve os mecanismos que determinam a “saída” do hormônio da célula secretora. Os processos de síntese e secreção, frequentemente, são estimulados ou inibidos de maneira paralela, e por isso é comum a utilização indiscriminada desses dois termos. Devido ao caráter hidrossolúvel da molécula, conforme já discutido, a membrana plasmática é impermeável aos hormônios hidrossolúveis. Portanto, todos os hormônios hidrossolúveis utilizamse do mesmo mecanismo de secreção, que envolve o empacotamento das moléculas em vesículas (chamadas vesículas ou grânulos secretórios). Essas vesículas formamse paralelamente ao processo de síntese do hormônio, a partir de pequenos fragmentos de membranas do retículo endoplasmático ou do sistema de Golgi. Sendo assim, mecanismos secretórios, em geral envolvendo aumento da concentração intracelular de cálcio livre, ativam a contração de estruturas do citoesqueleto celular, promovendo a mobilização (ou translocação) dessas vesículas para a superfície celular. Uma vez que ocorra o contato da membrana da vesícula com a membrana plasmática, ambas de caráter lipofílico, essas membranas se fundem, e o conteúdo das vesículas é exposto ao meio extracelular (este fenômeno é chamado de extrusão do conteúdo do grânulo ou exocitose). Durante o processo de formação da vesícula, é comum que proteases específicas (enzimas que degradam ligações peptídicas, clivando as proteínas em locais específicos) sejam empacotadas junto com o conteúdo intravesicular; e, então, processos de finalização da síntese hormonal (ou processamento póstraducional) podem ocorrer dentro da vesícula secretória. Consequentemente, é comum detectaremse pequenas quantidades de próhormônio na circulação, que correspondem a moléculas que não chegaram a ser clivadas, assim como quantidades equimolares (com mesmo número de moléculas) de peptídio (que fazia parte da molécula do próhormônio) e de hormônio. É importante destacar que no processo de evolução a natureza desenvolveu mecanismos extremamente econômicos, a partir dos quais um único gene pode ser responsável pela produção de vários hormônios. Isto é possível desde que múltiplos processos de clivagem da proteína precursora gerem vários peptídios, cada um deles com ação biológica própria. Um exemplo magnífico desse tipo de processamento póstraducional ocorre com o gene da próopiomelanocortina (POMC), que se expressa em vários territórios, principalmente no SNC, na hipófise, de modo que o seu processamento póstraducional provoca a liberação de diferentes hormônios, com ações distintas (Figura 64.4). Especificidades de cada célula secretora, tais como a presença de determinadas proteases, possibilitam que esse gene seja responsável pela síntese de diferentes hormônios, de acordo com o tipo celular ou a espécie animal. Ainda é possível que uma mesma célula secretora, em diferentes condições fisiológicas, altere a expressão ou a atividade das proteases, modificando o padrão final de geração de hormônios a partir da molécula precursora. Finalmente, é importante que se ressalte a ocorrência de fusão entre vesículas secretoras dentro da célula secretora, misturando os seus conteúdos. Portanto, fisiologicamente, frente a um estímulo secretório, não é verdadeira a ideia de que primeiramente é secretado o hormônio que já estava sintetizado e armazenado, para apenas posteriormente ser secretado o hormônio designado como recentemente sintetizado. Entretanto, é claro que se um estímulo secretório intenso persistir durante horas, observase uma predominância de moléculas recentemente sintetizadas, assim como começa a aumentar a quantidade de próhormônio secretado, podendo até mesmo evoluir para uma situação de exaustão da célula secretora, na qual a velocidade de síntese hormonal não consegue acompanhar a demanda de secreção. Essas situações somente ocorrerão em estados patológicos ou experimentais.
Circulação, metabolização e mecanismo de ação dos hormônios hidrossolúveis Devido à sua característica polar, os hormônios hidrossolúveis solubilizamse facilmente tanto no interstício como no sangue, tornando possível a livre circulação (como moléculas isoladas, solúveis no meio aquoso). Entretanto, exceções começam a ser demonstradas, como o hormônio do crescimento e os IGF (insulinlike growth factors), que costumam circular ligados a uma proteína carregadora. Alguns territórios do organismo são ricos em enzimas proteolíticas, como o fígado e o rim, sendo locais de degradação de hormônios proteicos. Uma vez que a cadeia peptídica seja quebrada, a atividade biológica do hormônio é perdida. Além disso, na célulaalvo da ação hormonal ocorre um contínuo processo de internalização do complexo hormônioreceptor; e, por ação de lisossomos, ocorre a metabolização/degradação dos hormônios. Alguns desses hormônios têm meiavida (definida como tempo necessário para degradar 50% da quantidade secretada em um dado momento) extremamente curta, como a da insulina, que é de 5 a 8 minutos.
Sobre seu mecanismo de ação (detalhado no Capítulo 3), é importante destacar que, em consequência do caráter hidrossolúvel da molécula, ela não poderá entrar na célulaalvo, pois não pode atravessar a membrana celular lipoproteica. Portanto, é característico dos hormônios hidrossolúveis apresentarem receptor localizado na membrana plasmática da célulaalvo, com o local de reconhecimento (ou ligação) ao hormônio exposto ao meio extracelular.
Figura 64.4 ■ Processamento póstraducional da próopiomelanocortina (POMC). A sequência da POMC inclui um fragmento N terminal e os hormônios corticotrofina (ACTH) e betalipotrofina (βLPH). O ACTH inclui a alfamelanotrofina (αMSH) e um peptídio semelhante à corticotrofina (CLIP). A βLPH inclui a gamalipotrofina (αLPH) e a betaendorfina (βendorfina), cada uma contendo em sua sequência os subprodutos betamelanotrofina (βMSH) e a metaencefalina (MetEnk), respectivamente. Entre parênteses encontrase a sequência de aminoácidos que compõem cada um desses subprodutos.
▸ Hormônios lipossolúveis A característica básica dos hormônios lipossolúveis é ter uma molécula precursora lipídica, cujo caráter lipofílico está preservado na forma ativa do hormônio.
Síntese dos hormônios lipossolúveis A síntese dos hormônios lipossolúveis depende: (1) do aporte do substrato lipídico precursor à célula secretora e (2) da presença, na célula secretora, de enzimas específicas que metabolizam a molécula precursora até chegar à forma ativa. A grande maioria desses hormônios deriva do colesterol, sendo por isso chamados de hormônios esteroides. Adicionalmente, podem derivar de análogos do colesterol, os calciferóis, originando as diferentes formas de vitamina D. Uma vez que o precursor lipídico seja disponibilizado para a célula secretora, por meio de conversões enzimáticas, vários metabólitos vão sendo gerados, com atividade biológica variável tanto na sua intensidade quanto no tipo de ação. São reações simples de hidroxilação, desidrogenação, oxirredução, aromatação etc. Hormônios esteroides derivados do colesterol podem ser produzidos tanto no córtex suprarrenal como nas gônadas. O tipo de hormônio a ser sintetizado em cada território depende da presença de enzimas específicas na célula, conduzindo a
rota da esteroidogênese para determinados produtos finais. Embora bioquimicamente estes hormônios sejam bastante parecidos, sua atividade biológica pode ser bem diversa, incluindose desde ações no metabolismo dos carboidratos (por glicocorticoides) e no balanço hidreletrolítico (pelos mineralocorticoides), até ações na função reprodutora masculina (por andrógenos) ou feminina (pela progesterona e estrógenos). Um hormônio como a vitamina D depende da metabolização do precursor lipídico em diferentes territórios do organismo. A síntese completa necessita de conversões na pele, no fígado e finalmente nos rins.
Secreção dos hormônios lipossolúveis Diferentemente dos hormônios hidrossolúveis, os lipossolúveis não são armazenados em grânulos, sendo secretados por difusão na membrana plasmática, à medida que vão sendo sintetizados. Dessa maneira, não há estoque desses hormônios na célula secretora, e a secreção hormonal é regulada diretamente pela maior ou menor atividade da enzima chave do processo de síntese hormonal.
Circulação, metabolização e mecanismo de ação dos hormônios lipossolúveis Os hormônios lipossolúveis são facilmente secretados por difusão através da membrana plasmática da célula secretora. Entretanto, essas moléculas encontram dificuldade para se deslocarem no interstício e no espaço intravascular, onde tenderiam a se ligar, formando gotículas gordurosas, que poderiam agir como verdadeiros trombos, obstruindo capilares de pequeno diâmetro. Assim, é fundamental a ligação dos hormônios lipossolúveis a proteínas (estas hidrossolúveis) que, englobando a molécula lipídica, lhes confere hidrossolubilidade, possibilitando a mobilização através desses meios hidrofílicos. Existem proteínas, em geral de formato globular, e, portanto, chamadas de globulinas, que são ligadoras específicas dos vários hormônios lipossolúveis. Designadas como binding globulin (BG), podem ligar andrógenos (denominadas ABG), estrógenos (EBG), glicocorticoides (GBG), dentre outros hormônios. Além disso, a albumina, proteína encontrada em maior quantidade no plasma, também é um importante ligante de hormônios lipossolúveis. Assim, os hormônios lipossolúveis circulam ligados a proteínas carregadoras (ou carreadoras). Apesar do que foi descrito no Quadro 64.1, há também proteínas transportadoras de hormônios tireoidianos (TBG), cuja função está detalhada no Capítulo 68, Glândula Tireoide. As proteínas carregadoras, ao englobarem a molécula do hormônio, impedem a sua disponibilidade à célulaalvo, impossibilitando a ação do hormônio. Entretanto, a ligação hormônioproteína carregadora é um processo dinâmico regido por leis de afinidade, sendo que nesse processo uma pequena fração do hormônio pode ser encontrada temporariamente livre. São essas moléculas livres que, ao entrarem em contato com a membrana plasmática das células, imediatamente se difundem para o meio intracelular, tornandose disponíveis para desencadear sua atividade biológica. Dessa maneira, é característica dos hormônios lipossolúveis apresentarem receptores intracelulares em suas célulasalvo. Em geral, 1% ou menos do hormônio total presente no plasma está na forma livre, sendo, portanto, biologicamente ativo. Essa característica é extremamente importante, pois o efeito biológico dos hormônios lipossolúveis depende da sua quantidade na forma livre. Algumas situações fisiológicas (como a gravidez) ou patológicas (como na doença hepática) podem aumentar ou diminuir a quantidade de proteínas carregadoras; consequentemente, aumentando ou diminuindo a quantidade total de hormônio, sem que isso signifique alteração na sua quantidade livre, e, portanto, na magnitude do efeito biológico do hormônio. Além disso, mais recentemente foram descritos alguns sistemas de transporte (feito por proteínas) para moléculas lipídicas, tanto no meio intracelular como na membrana plasmática; isso explica o tráfego intracelular dos hormônios lipofílicos, assim como sugere que tanto sua secreção como seu acesso à célulaalvo não sejam fenômenos dependentes apenas de difusão. Quanto à metabolização, esses hormônios são passíveis de inúmeros processos de metabolização (ou de conversão da molécula), podendo formar tanto metabólitos inativos como ativos. Processos de conjugação com ácido glicurônico ou de sulfatação ocorrem principalmente no fígado, e, em geral, inativam os hormônios esteroides. Adicionalmente, pode ocorrer a geração de metabólitos ainda biologicamente ativos. Veja a Figura 64.5: a testosterona, um andrógeno, no tecido adiposo pode ser convertida a estrógeno (por uma enzima tipo aromatase) e, nos tecidosalvo de ação androgênica, a di hidrotestosterona (por uma enzima tipo 5 alfarredutase), outro potente andrógeno.
Quadro 64.1 ■ Alguns enfoques conceituais. Alguns hormônios podem derivar de ácidos graxos, como as prostaglandinas (PG); no entanto, elas não são consideradas como lipossolúveis, já que a maior parte dos seus efeitos é mediada pela interação com receptores de membrana acoplados à proteína G. Todavia, as PG da série J2 (PGJ2) e seus derivados se ligam aos receptores ativados por proliferadores de peroxissomos α (PPAR α) e γ (PPAR γ), o que indica que elas possam exercer seus efeitos por meio de interação com receptores intracelulares. Se são lipossolúveis ou carreadas para o interior das células por transportadores presentes na membrana celular, ainda é motivo de especulação. Também é importante comentar que os hormônios tireoidianos (HT), apesar de serem constituídos por duas tirosinas acopladas e iodadas, ou seja, por aminoácidos hidrossolúveis que originam outros hormônios hidrossolúveis (como as catecolaminas), foram por muito tempo considerados lipossolúveis, uma vez que seus receptores estão localizados no interior da célula, mais especificamente no núcleo. Acreditavase que os HT entravam nas célulasalvo por difusão passiva. No entanto, hoje se sabe que há transportadores específicos na membrana para esses hormônios, os quais determinam sua concentração intracelular. São eles os transportadores de monocarboxilato 8 (MCT8) e 10 (MCT10) e vários membros da família dos transportadores de ânions orgânicos (OATP). Maiores detalhes estão presentes no Capítulo 68. Finalmente, é importante destacar que o mecanismo de ação dos hormônios lipossolúveis é desencadeado a partir da sua ligação a receptores intracelulares, cujo complexo hormônioreceptor termina por se ligar em locais específicos da região promotora de genesalvo, agindo como fatores transcricionais da expressão gênica. Entretanto, recentes observações demonstram que esses hormônios também têm ações biológicas imediatas, independentes do controle de transcrição gênica e utilizandose de segundos mensageiros, sugerindo a existência de receptores na membrana plasmática e/ou intracelulares.
SISTEMAS DE RETROALIMENTAÇÃO A produção hormonal baseiase no equilíbrio entre estímulo e inibição da síntese e secreção do hormônio. Este padrão de equilíbrio tem uma importante base funcional: o mecanismo de feedback (ou retroalimentação), negativo na grande maioria dos sistemas hormonais. Mesmo em concentrações fisiológicas, os hormônios que são regulados por mecanismo de feedback negativo já exercem um certo tônus inibitório sobre os mecanismos envolvidos na sua síntese e secreção, o que determina a sua concentração basal na circulação. Uma vez que a concentração do hormônio aumente, esse tônus inibitório aumenta, provocando redução de sua síntese e secreção, ocorrendo o contrário quando a concentração do hormônio diminui, situação em que ocorre menor inibição desses mecanismos, com consequente aumento da sua síntese e secreção. Dessa maneira, ao longo do tempo, a concentração do hormônio se mantém oscilando em torno de um valor constante, o que chamamos de manutenção do equilíbrio de secreção.
Figura 64.5 ■ Metabolização do hormônio lipossolúvel testosterona (um andrógeno) em hormônios ativos com ação de andrógeno (dihidrotestosterona) ou de estrógeno (estradiol). Dentro dos quadros, estão indicadas as enzimas responsáveis pela metabolização da testosterona. Na parte superior, à direita, está indicada a metabolização em produtos sem atividade biológica. No fígado, metabólitos da testosterona são inativados por conjugação com ácidos glicurônico ou sulfúrico, sendo depois excretados na urina como 17cetoesteroides.
Entretanto, para alguns hormônios a manutenção do equilíbrio de secreção hormonal pode variar, determinando o que chamamos de ritmo de secreção. Este pode variar tanto ao longo de 1 dia (a secreção de cortisol é maior pela manhã, diminuindo à noite; a isto chamamos de ritmo circadiano de secreção), como pode variar ao longo de vários dias (a secreção de gonadotrofinas hipofisárias na mulher elevase durante cerca de 24 h a cada 28 dias, a isto chamamos de ritmo infradiano de secreção). Além disso, mesmo a chamada secreção constante de hormônio, em geral, é obtida a partir de pulsos secretórios, de intervalos curtos (20 a 30 minutos), e que proporcionam ao longo do tempo (dia ou meses) uma concentração média constante de hormônio. Sabese que o caráter pulsátil da secreção hormonal é fundamental para preservar o efeito biológico do hormônio, seja por proporcionar momentos de maior repouso para a célula secretora, seja por determinar o padrão de expressão de seus receptores específicos, fundamentais para concretizarem a ação hormonal. Os mecanismos de retroalimentação podem ser regulados tanto por hormônios como por substratos metabólicos, podendo envolver vários níveis de regulação. Algumas funções endócrinas estão sob um controle que chamamos de eixo hipotálamohipófiseglândula periférica (incluemse aqui as gônadas, a tireoide e o córtex suprarrenal). Tomandose como exemplo o eixo da glândula tireoide (Figura 64.6), o hipotálamo produz um hormônio (denominado TRH, que é o hormônio estimulador do TSH) que estimula a hipófise a liberar a tireotrofina (ou TSH, que é o hormônio estimulador da tireoide), a qual, por sua vez, estimula a tireoide a produzir seus hormônios, T3 e T4. Desses, o T3 é o mais ativo e inibe a produção hipotalâmica de TRH e a hipofisária de TSH, determinando a retroalimentação negativa. Ao longo do tempo, a secreção de todos os hormônios envolvidos permanece constante. O desequilíbrio de algum desses hormônios proporciona indícios de defeitos em determinados territórios. Por exemplo, se a tireoide apresentar um defeito primário (intrínseco da glândula) que leve à baixa produção de seus hormônios (ou hipotireoidismo), o TSH deverá se elevar; mas, se o T3 estiver baixo na vigência de TSH também baixo, o problema deve estar na hipófise ou no hipotálamo. Além disso, a produção hormonal no hipotálamo é frequentemente modulada por sinais oriundos do SNC. É assim que o funcionamento do eixo hipotálamohipófisesuprarrenal é regulado ao longo do dia, relacionandose com o ciclo de sono e vigília determinado no SNC.
Por outro lado, mecanismos de retroalimentação podem implicar apenas a secreção de um hormônio e um substrato metabólico diretamente envolvido na sua ação. Por exemplo: o maior estímulo para secreção de insulina pelas células B pancreáticas é a elevação da concentração plasmática de glicose. Uma vez que a concentração de insulina se eleve em consequência da elevação de glicose, um de seus efeitos é estimular a captação de glicose por várias células, diminuindo a concentração de glicose, e, consequentemente, voltando a diminuir a concentração de insulina. Assim se estabelece o que chamamos de homeostase (ou estado de equilíbrio) da glicemia (concentração de glicose no sangue).
Figura 64.6 ■ Exemplo de funcionamento do eixo hipotálamohipófiseglândula periférica. O eixo da tireoide envolve os hormônios produzidos pela tireoide (T3 e T4), o hormônio estimulador da tireoide, denominado tireotrofina (ou TSH), produzido pela hipófise, e o hormônio liberador do TSH (denominado TRH), produzido pelo hipotálamo. Os símbolos + e – indicam ações estimuladoras e inibidoras, respectivamente.
HORMÔNIOS PRODUZIDOS POR OUTROS ÓRGÃOS Em relação aos sistemas hormonais, a endocrinologia moderna foi além das grandes glândulas conhecidas há décadas, passando a envolver muitos outros órgãos e tecidos secretores de hormônios. O conhecimento atual revelanos a presença de sistemas hormonais em determinadas estruturas que passaram a ser consideradas verdadeiros órgãos endócrinos. A célula endotelial dos vasos sanguíneos representa mais do que uma barreira na difusão de substâncias do sangue para os tecidos. Ela é uma célula endócrina que sintetiza e libera substâncias vasoativas (hormônios), tais como: (1) fatores relaxantes derivados do endotélio (denominados EDRF), que incluem as prostaciclinas, o óxido nítrico e o fator hiperpolarizante derivado do endotélio (ou EDHF) e (2) fatores constritores derivados do endotélio (denominados EDCF), que incluem as prostaglandinas vasoconstritoras (PGH2 e PGF2α), o tromboxano A2, as endotelinas, a angiotensina II e as espécies reativas do oxigênio (tais como o ânion superóxido). Originalmente, o tecido adiposo branco foi descrito apenas como um isolante térmico em mamíferos; posteriormente, foi considerado como o tecidoalvo da insulina, capaz de armazenar substrato energético na forma de lipídios. Atualmente, também já é considerado um órgão endócrino, pois secreta: (1) substâncias com ação parácrina, como PAI1, TGFβ, TNF, angiotensina, adipsina, leptina, IL6 e hormônios esteroides e (2) substâncias com ação endócrina, tipo leptina, hormônios esteroides, angiotensina, entre outras a serem mais adequadamente caracterizadas.
Além desses dois tecidos comentados (capazes de produzir hormônios que terão ação sistêmica), praticamente todos os demais territórios do organismo são capazes de produzir hormônios com atividade pelo menos autócrina ou parácrina. Muitos destes hormônios foram caracterizados apenas recentemente, e por isso são frequentemente designados como hormônios não clássicos. Um breve comentário desses grupos hormonais é suficiente para evidenciar a abrangência da ação dos hormônios. No Capítulo 72, Moléculas Ativas Produzidas por Órgãos Não Endócrinos, esse assunto é discutido em detalhe.
▸ Famílias de fatores de crescimento genéricos Este grupo engloba várias famílias, descritas a seguir: ■ EGF: fatores de crescimento epidermal. Estão envolvidos na proliferação epitelial e neovascularização. Dentre eles incluemse EGF, TGFα e anfirregulina (purificada a partir de células de câncer de mama) ■ TGFβ: fatores de crescimento e diferenciação. São homodímeros capazes tanto de inibir como de estimular o crescimento, além de promover a diferenciação; por isso, têm importante papel na embriogênese. Incluemse o MIH (hormônio inibidor dos ductos müllerianos), a activina e a inibina, assim como várias proteínas morfogênicas ósseas ■ PDGF: fatores de crescimento derivados de plaquetas. São homo ou heterodímeros envolvidos na quimiotaxia e na proliferação de tecido conectivo, especialmente no reparo tecidual à lesão. Este grupo inclui o VEGF (fator de crescimento endotelial vascular), capaz de estimular a mitogênese no endotélio vascular e aumentar a permeabilidade vascular ■ FGF: fatores de crescimento de fibroblasto. Incluemse os FGF, KGF (fator de crescimento de queratinócitos) e IL1 (interleucina1). Estão envolvidos no crescimento de fibroblastos e também participam da diferenciação de neurônios e adipócitos ■ IGF: fatores de crescimento insulinasímile. Incluem o IGF1 (secretado principalmente pelo fígado em resposta ao GH, mas também por vários tecidos quando estimulados por fatores tróficos) e o IGF2 (importante no crescimento fetal) ■ NGF: fatores de crescimento do nervo. Incluem vários peptídios com ação sobre o crescimento neural, que diferem quanto aos locais de síntese e de ação.
▸ Famílias de fatores de crescimento específicos do sistema hematopoético ■ Eritropoetina: é produzida por células renais peritubulares; estimula a proliferação de células progenitoras de eritrócitos, assim como a liberação de eritrócitos da medula óssea ■ CSF: fatores estimuladores de colônias. São produzidos em vários tipos celulares; estimulam a proliferação de várias linhagens leucocíticas. Incluem o GCSF (granulócitoCSF) e o MCSF (macrófagoCSF), entre outros ■ Interleucinas: primariamente envolvidas na proliferação e diferenciação de linfócitos; mas também modulam a proliferação e a diferenciação de megacariócitos e eosinófilos.
▸ Famílias de fatores de crescimento relacionados com as respostas imune e inflamatória ■ Hormônios relacionados com a imunidade humoral e celular: incluem os hormônios já citados, como os CSF e as interleucinas, além dos MHC (complexos principais de histocompatibilidade) ■ Miscelânea: grupo de hormônios relacionados com a resposta imuneinflamatória que inclui: •
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TNF α e β (fator de necrose tumoral): têm capacidade de induzir regressão e, algumas vezes, total destruição de alguns tumores. Também podem agir em células normais, em geral induzindo a síntese de proteínas protetoras da célula. O LIF (fator inibidor da leucemia) é estruturalmente diferente; entretanto, funcionalmente é similar, podendo causar caquexia Interferons: têm capacidade de interromper a síntese proteica, mostram alta atividade antiviral e são indutores de MHC, entre outras ações.
Adicionalmente, o universo atual dos hormônios ampliase quando analisamos os invertebrados ou o reino vegetal.
Nos invertebrados, vários hormônios já foram demonstrados, a maioria deles em insetos, relacionados com os processos de metamorfose e muda (ou ecdisis), chamados ecdisonas, ou relacionados com os processos de reprodução, chamados de hormônios juvenis. Em crustáceos e moluscos, muitos hormônios são similares aos de insetos; entretanto, destacase a ocorrência de um hormônio insulinlike, homólogo à insulina de mamíferos, capaz de estimular a síntese de glicogênio, o que determina o marco evolucionário no aparecimento filogenético da insulina. Em plantas, vários hormônios importantes (auxinas, citocinas e giberelinas) estão relacionados com os processos de crescimento, nas suas mais variadas características. Além destes, outros exemplos de hormônios do reino vegetal, entre tantos, são: o ácido abscícico (atua no estresse em resposta à água), as oligossacarinas (atuam no estresse em resposta à infecção e à lesão), o ácido salicílico (agente termogênico importante na polinização) e o ácido jasmônico (inibidor de germinação). Esta breve descrição da endocrinologia não clássica deixa evidente a imensa abrangência da fisiologia endócrina. Muitas dessas substâncias químicas são conhecidas há décadas, outras foram apenas recentemente descritas e outras tantas deverão ainda ser caracterizadas. Envolvidas com sistemas funcionais específicos, muito do conhecimento dessas substâncias se desenvolveu e progride em territórios e ações específicos. Entretanto, conhecêlas como hormônios é fundamental do ponto de vista conceitual e serve, entre outras coisas, para reiterar o caráter sistêmico da endocrinologia.
FISIOPATOLOGIA As alterações patológicas que podem acometer os mais diferentes sistemas hormonais constituem um amplo espectro de doenças endócrinas. Consequentemente, a população acometida por doenças endócrinas é enorme. O diabetes melito, decorrente de falha na secreção ou na ação do hormônio insulina, atualmente é uma doença endêmica. Os dados atuais (2017) apontam que 425 milhões de adultos no mundo têm diabetes, e a estimativa para 2045 é de cerca de 629 milhões de pessoas com diabetes. Além disso, algumas alterações metabólicas incluemse na endocrinologia, como a obesidade, também com características endêmicas na atualidade. Finalmente, há o problema do uso indevido de hormônios, que ao exacerbar algumas de suas ações, às vezes desejadas, provoca uma série de complicações paralelas. É exemplo dessa situação o uso de determinados hormônios para aprimorar o desenvolvimento muscular, emagrecer ou combater o envelhecimento, que não apresenta fundamentação científica sólida que o justifique como terapêutica segura. Geralmente, as doenças endócrinas envolvem diminuição ou aumento da atividade de um determinado hormônio, e as abordagens terapêuticas devem visar à correção desse desequilíbrio. Assim, é importante lembrar que se pode aumentar ou diminuir uma determinada atividade hormonal tanto por elevar ou abaixar a concentração hormonal no sangue, como por estimular ou inibir os fenômenos envolvidos no mecanismo de ação do hormônio, que são os determinantes do seu efeito biológico final. O tratamento das deficiências hormonais evoluiu paralelamente à evolução do conhecimento sobre hormônios, e várias propostas terapêuticas surgiram para prover uma deficiência hormonal. Por definição literal e conceitual, a terapia de reposição hormonal referese a toda e qualquer terapia que vise repor uma deficiência hormonal. Para isso, glândulas de animais foram amplamente utilizadas para delas se extraírem grandes quantidades de hormônios. Entretanto, devido à heterologia entre as moléculas de humanos e animais, alguns hormônios somente se mostraram eficazes quando obtidos a partir de humanos, cuja fonte nem sempre é abundante. Um exemplo bem conhecido é o hormônio do crescimento (GH), extraído de hipófises humanas postmortem, cuja produção sempre permaneceu restrita e de custo elevado. Um grande passo foi o desenvolvimento de tecnologia para a obtenção de moléculas sintéticas, que tornou possível o desenvolvimento de hormônios a baixo custo. A síntese de hormônios de estrutura molecular mais simples é feita há décadas; mas a síntese de hormônios de estrutura mais complexa, como as grandes proteínas, permaneceu um desafio. Entretanto, as modernas técnicas de biologia molecular já possibilitam a criação de DNA recombinante que, contendo a sequência gênica responsável pela transcrição do gene de um hormônio proteico, é inserido em bactérias, que passam a produzir o hormônio em grande escala (é um exemplo a produção de GH, FSH e LH humanos). Além disso, foram desenvolvidos fármacos que agem como estimuladores da secreção hormonal, úteis nas situações em que a deficiência de síntese/secreção do hormônio não é total; adicionalmente, foram criados os análogos hormonais, moléculas semelhantes a determinados hormônios, que são capazes de induzir as ações hormonais. Um aspecto importante no tratamento de doenças endócrinas com hormônios é a via de administração do hormônio. O epitélio absortivo intestinal representa uma grande barreira à absorção de moléculas biologicamente ativas, especialmente
proteínas. O processo de absorção intestinal envolve uma primeira etapa que é a digestão, na qual as macromoléculas são degradadas até suas unidades mais simples para, então, serem absorvidas. No caso das proteínas ingeridas, apenas produtos da sua degradação são absorvidos; a maior parte como aminoácidos e no máximo alguns oligopeptídios. Assim, hormônios proteicos perdem sua atividade biológica quando administrados pela via oral, necessitando ser injetados. Para isso, pequenas bombas de infusão, com cateteres inseridos no subcutâneo do organismo, já são uma opção para liberar um hormônio continuamente na circulação, imitando sua secreção endógena. O transplante de glândulas é uma tentativa de tratamento que vem sendo desenvolvida há anos, mas ainda com pouco sucesso. O grande problema é preservar a viabilidade funcional da glândula, contornando os processos da rejeição. Por outro lado, a terapia gênica é bastante promissora, e uma esperança a ser consolidada no futuro. Pela terapia gênica poderiam ser implantadas no organismo células geneticamente modificadas e especializadas na produção de um hormônio (que é uma proteína). Esperase que os estudos com célulastronco possibilitem que a geração de células secretoras de hormônios possa evoluir sem proibições, para que a terapia gênica seja uma realidade em breve. A caracterização dos receptores hormonais e das etapas do mecanismo de ação dos hormônios gerou um grande campo de tratamento para as doenças endócrinas, tornando possível que se mimetize a ação do hormônio com o emprego de moléculas que estimulem seu receptor ou eventos após sua ligação ao receptor. Por exemplo, atualmente existem vários medicamentos que são ligantes de receptores com atividade agonista, ou ainda fármacos que agem em eventos após a ligação ao receptor. Finalmente, as doenças endócrinas podem envolver a produção excessiva de hormônio. Esta situação, menos frequente, decorre de alteração neoplásica da célula secretora (com perda das características funcionais normais da célula), que passa a produzir o hormônio descontroladamente. Na maioria das vezes, envolve tumores glandulares que devem ser tratados cirurgicamente. Quando não for necessária a retirada do tecido glandular hipersecretor, a hipersecreção hormonal pode ser tratada com substâncias inibidoras da secreção hormonal ou com ligantes do receptor hormonal com atividade antagonista.
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Introdução
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Relações anatomofuncionais Hormônios hipotalâmicos
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Controle neuroendócrino do ritmo de secreção hormonal Bibliografia
INTRODUÇÃO O hipotálamo é uma estrutura do sistema nervoso central (SNC) que está envolvida em uma série de processos fisiológicos, tais como controle da temperatura e ingestão alimentar. Apresenta também grupamentos neuronais que se relacionam ao controle da função endócrina, os quais, em conjunto, constituem o chamado hipotálamo endócrino. De fato, o hipotálamo endócrino representa, funcionalmente, uma interface entre os sistemas nervoso e endócrino. A eminência mediana hipotalâmica é o ponto de convergência e integração final de informações criadas em diferentes regiões do organismo. Após processamento e ajuste fino, essas informações são transmitidas à glândula hipófise, por mecanismos que envolvem a liberação de hormônios específicos, o que resulta em modificações de, basicamente, todas as secreções endócrinas do indivíduo. Os objetivos finais desse sistema de controle integrado são: (1) manutenção da constância do meio interno, isto é, regulação da temperatura, concentração e disponibilidade de substratos energéticos e estruturais, de acordo com a situação fisiológica vigente; (2) interação do organismo com o meio ambiente, isto é, geração de padrões funcionais integrados de ajustes ao tipo de estresse e (3) controle da reprodução.
RELAÇÕES ANATOMOFUNCIONAIS O hipotálamo e a glândula hipófise formam uma unidade que exerce controle sobre a função de várias glândulas endócrinas, tais como tireoide, suprarrenais e gônadas e, por conseguinte, sobre uma série de funções orgânicas. O controle que o sistema nervoso exerce sobre o sistema endócrino e a modulação que este efetua sobre a atividade do SNC constituem os principais mecanismos reguladores de, basicamente, todos os processos fisiológicos. A íntima associação entre o hipotálamo e a hipófise foi reconhecida, inicialmente, por Galeno no século XI d.C. Ele observou que o prolongamento ventral do hipotálamo, em formato de funil, termina em uma massa glandular envolvida por rico aporte sanguíneo. Entretanto, o verdadeiro significado do hipotálamo como controlador de todas as secreções hipofisárias só foi descoberto no século XX. Em 1920, o trato hipotálamoneurohipofisário foi identificado por Lewi e Greving; pouco depois, em 1930, a ligação vascular existente entre o hipotálamo e a hipófise foi claramente demonstrada por Popa e Fielding, e o seu significado fisiológico elucidado por Green e Harris, em 1947. No hipotálamo, além dos elementos neurais característicos, encontramos neurônios especializados em secretar hormônios peptídicos, conhecidos como neurônios peptidérgicos. Esses neurônios apresentam as mesmas propriedades elétricas das outras células nervosas, como a deflagração de potenciais de ação quando estimulados; o potencial de ação provocado no corpo celular trafega até a terminação do axônio, onde, por determinar influxo de cálcio, desencadeia a secreção dos hormônios que se encontram em vesículas de armazenamento. Os produtos de secreção dos neurônios
peptidérgicos são: (1) peptídios liberadores ou inibidores dos vários hormônios da hipófise anterior (ou adenohipófise), que agem, respectivamente, estimulando ou inibindo a secreção dos hormônios adenohipofisários, e (2) os peptídios neurohipofisários: vasopressina (AVP) ou hormônio antidiurético (ADH) e ocitocina, que são sintetizados por neurônios hipotalâmicos e armazenados em terminações axônicas presentes no interior da hipófise posterior ou neurohipófise (Figura 65.1). Os neurônios hipotalâmicos que se relacionam com a adenohipófise constituem o sistema parvicelular ou tuberoinfundibular. Fazem parte desse sistema neurônios curtos cujos corpos celulares encontramse difusamente distribuídos em certas regiões do hipotálamo, tais como nos núcleos peri e paraventriculares (porção parvicelular), arqueado e área préóptica medial. Dessas regiões partem axônios que convergem para a eminência mediana do hipotálamo, onde os vários hormônios liberadores e inibidores são secretados. Devido à existência de um sistema vascular altamente especializado, que conecta a eminência mediana à adenohipófise (sistema portahipotálamo hipofisário), os neurohormônios hipotalâmicos alcançam a hipófise anterior em altas concentrações, antes de se diluírem na circulação sistêmica. Esse arranjo permite economia no sistema, já que os hormônios hipotalâmicos são direcionados às suas célulasalvo. O emprego de técnicas tais como a imunohistoquímica e a hibridização in situ possibilitou a identificação de áreas do hipotálamo endócrino em que se concentram neurônios que expressam os mesmos peptídios. Assim, temos as áreas: (1) tireotrófica, que apresenta neurônios cujo produto de secreção é o TRH (thyrotropin releasing hormone), (2) corticotrófica, que secreta o CRH (corticotropin releasing hormone), (3) gonadotrófica, cuja secreção é o GnRH (gonadotropin releasing hormone) etc. No entanto, mais de 30 peptídios distintos foram identificados em neurônios de núcleos como o arqueado e os paraventriculares, muitos deles coexistindo em uma mesma célula, porque derivam do mesmo próhormônio, que é codificado por um único gene. Contudo, existem células que expressam dois peptídios relacionados com genes diferentes, como é o caso de alguns neurônios que se originam na porção parvicelular dos núcleos paraventriculares e que coexpressam ADH e CRH. Os peptídios neurohipofisários são sintetizados por neurônios hipotalâmicos específicos, que apresentam corpos celulares de dimensões maiores que as dos neurônios parvicelulares, e longos axônios que se projetam na hipófise posterior. Esses neurônios localizamse em dois núcleos hipotalâmicos bem definidos: (1) supraópticos e (2) paraventriculares. Desses núcleos é que partem os axônios que passam pela haste hipofisária e se dirigem à neuro hipófise, onde estabelecem contatos sinápticos nas proximidades dos capilares sinusoides; esses neurônios constituem o trato hipotálamoneurohipofisário ou trato supraópticohipofisário, ou ainda o sistema magnocelular. Esse sistema recebe, também, contribuições de pequenos grupos de neurônios magnocelulares acessórios localizados em outros núcleos do hipotálamo. Por outro lado, alguns neurônios que expressam ADH ou ocitocina, provenientes do núcleo paraventricular, não fazem parte do sistema magnocelular, projetandose para outras regiões do sistema nervoso.
▸ Interações do hipotálamo endócrino com outras áreas do SNC Os neurônios que compõem os sistemas parvi e magnocelular estão sob a influência de fibras nervosas originárias das mais variadas regiões do sistema nervoso, como, por exemplo, a formação reticular mesencefálica e componentes do sistema límbico. Isto faz com que o ritmo de secreção dos neurohormônios, causado a partir do padrão interno hipotalâmico, seja influenciado fortemente pelo restante do sistema nervoso por meio de aferências noradrenérgicas, colinérgicas e serotoninérgicas, principalmente. Neurotransmissores tais como epinefrina (adrenalina), dopamina, ácido gamaaminobutírico (GABA) e opioides também participam desse controle. Essa influência pode ser exercida por meio de sinapses axodendríticas, realizadas com os próprios núcleos hipotalâmicos (locais de síntese dos neurohormônios), bem como por sinapses axoaxônicas, efetuadas nas terminações axônicas da eminência mediana (local de armazenamento e secreção dos neurônios do sistema parvicelular). Alguns neurotransmissores podem, ainda, ser liberados diretamente no sangue portal, o que os caracteriza como hormônios, influenciando, por si sós, a secreção dos hormônios adeno hipofisários. Dessa maneira, o hipotálamo pode ser considerado como uma via final comum por meio da qual os sinais oriundos de múltiplos sistemas convergem à adenohipófise.
Figura 65.1 ■ Organização do sistema hipotálamohipofisário. Observe que o hipotálamo e a hipófise encontramse conectados, anatomicamente, pela haste hipofisária e, funcionalmente, por neurônios provenientes de distintos núcleos hipotalâmicos. Os neurônios parvicelulares (indicados pelos números 2, 3 e 4) se dirigem à rede de capilares presente na eminência mediana do hipotálamo, pertencente ao sistema portahipotálamohipofisário, por meio do qual os hormônios por eles produzidos (hormônios hipofisiotróficos) são conduzidos à adenohipófise, onde estimulam ou inibem a síntese e secreção dos hormônios hipofisários. Os neurônios magnocelulares (representados pelo número 5) se dirigem à neurohipófise, onde os hormônios produzidos no hipotálamo (hormônios neurohipofisários) ficam armazenados em vesículas de secreção até serem liberados por estímulos específicos que deflagram potenciais de ação nos mesmos. Neurônios provenientes de outras áreas do sistema nervoso (representados pelo número 1) podem, ainda, interagir sinapticamente com os neurônios hipotalâmicos que guardam relação com a hipófise, e podem interferir na secreção hormonal hipofisária. Note que o sistema portahipotálamohipofisário é constituído por capilares, derivados das artérias hipofisárias superior e inferior, que se confluem aos vasos portais longos e curtos, respectivamente. (Adaptada de Leichan, 1987.)
Em linhas gerais, a aferência dopaminérgica é constituída por neurônios localizados no núcleo arqueado do hipotálamo. Deste, partem axônios em direção à camada externa da eminência mediana, na qual terminações nervosas
estabelecem íntima relação com os capilares portahipofisários, por meio dos quais a dopamina exerce controle direto sobre a secreção de hormônios adenohipofisários. Porém, ainda na eminência mediana, algumas fibras dopaminérgicas fazem sinapses axoaxônicas com neurônios peptidérgicos, e participam dessa maneira do controle da liberação dos peptídios hipotalâmicos. Fibras dopaminérgicas provenientes do núcleo arqueado também são identificadas na neuro hipófise, na qual exercem um possível controle sobre a secreção de ADH e/ou ocitocina, bem como na hipófise intermediária, onde controlam a secreção de hormônio melanotrófico (MSH). As fibras noradrenérgicas que afluem ao hipotálamo originamse, principalmente, na ponte e no bulbo. As principais áreas do hipotálamo que recebem essas terminações são os núcleos dorsomedial, paraventricular e arqueado. A camada mais interna da eminência mediana (ver adiante) também recebe aferentes noradrenérgicos. Da mesma maneira, fibras serotoninérgicas, originárias dos núcleos da rafe, dirigemse ao hipotálamo, distribuindose, entre outras regiões, ao núcleo supraquiasmático, ao terço médio do núcleo retroquiasmático, à área préóptica e à região anterior da eminência mediana, de maneira similar às fibras noradrenérgicas. O sistema límbico exerce influências sobre a atividade dos sistemas magno e parvicelular por meio de vias córtico hipotalâmicas provenientes da amígdala, região septal, tálamo e retina. A relação funcional do hipotálamo com outras estruturas do SNC garante a integração do sistema endócrino com outros sistemas efetores do sistema nervoso, tais como o motor e o autônomo. Essa integração se completa com a chegada de informações provenientes da periferia, via sistema circulatório, representadas por fatores metabólicos, bem como pelos hormônios hipofisários e aqueles produzidos pelas glândulasalvo dos hormônios hipofisários, nos quais baseiamse os mecanismos de feedback negativo e positivo existentes entre o hipotálamo e as glândulas endócrinas. Dessa maneira, os neurônios dos sistemas magno e parvicelular mantêmse sob influências diversas, neuronais e endócrinas, as quais, conjuntamente, fazem com que a secreção de neurohormônios seja regulada momento a momento de acordo com as flutuações do meio interno (Figura 65.2). Apesar de os sistemas magno e parvicelular terem sido apresentados de maneira independente, existem evidências de uma estreita relação entre eles: (1) alguns neurônios colaterais, que compõem o sistema magnocelular, projetamse à eminência mediana modificando a secreção da hipófise anterior; (2) terminações nervosas que secretam GnRH, TRH, somatostatina, leucinaencefalina, neurotensina e dopamina, pertencentes ao sistema parvicelular, projetamse para a neurohipófise, e podem, da mesma maneira, influenciar a secreção dos hormônios neurohipofisários.
▸ Eminência mediana A eminência mediana hipotalâmica é a estrutura que representa funcionalmente a interface entre o sistema nervoso e a adenohipófise, e é o ponto de convergência de informações que partem das diferentes áreas do SNC em direção ao sistema endócrino. A eminência mediana está limitada, ventralmente, pela porção tuberal do lobo anterior da hipófise (que envolve a haste hipofisária e porções da base do encéfalo) e grandes vasos portahipofisários e, cranialmente, pelo recesso ventricular. Ela é ricamente vascularizada pelas artérias hipofisárias superiores, que dão origem a um sistema capilar responsável pela coleta dos neuropeptídios secretados. Toda essa região permanece fora da barreira hematencefálica, o que indica que substâncias presentes na corrente sanguínea, como hormônios, são capazes de exercer alguma sinalização nessa região. Estruturalmente, a eminência mediana pode ser dividida em três camadas: (1) a camada ependimal (mais interna), que forra o assoalho do terceiro ventrículo, constituída basicamente por células ependimais, as quais estabelecem contatos entre o terceiro ventrículo e vasos portahipofisários; (2) a camada fibrosa, que é atravessada pelos axônios do trato supraópticohipofisário em trânsito para a neurohipófise; e (3) a zona paliçada (mais externa), onde as fibras do trato tuberoinfundibular liberam a maior parte dos neuropeptídios. Os neurônios peptidérgicos que constituem o trato tuberoinfundibular alcançam o espaço perivascular do sistema porta hipotálamohipofisário (zona paliçada), onde liberam os neurohormônios. Notase que, à medida que penetram na eminência mediana, essas fibras estabelecem sinapses com células ependimais e contatos com o terceiro ventrículo, indicando: (1) possível interferência das células ependimais no processo neurossecretório e (2) que a liberação dos neuro hormônios possa acontecer também no líquido cerebrospinal (LCE). O papel fisiológico das células ependimais ainda está por ser esclarecido. Alguns estudos sugerem que, por serem conectadas por meio de tight junctions, essas células representam uma barreira entre o LCE e o sangue portal; outros estudos, no entanto, indicam exatamente o contrário, ou seja, que elas são uma ponte de comunicação entre o LCE e o sistema portahipofisário. Aliás, a demonstração de que após 10 minutos da injeção intracerebroventricular de 3HTRH esse peptídio é detectado nas camadas média e externa da EM, assim como nos capilares do sistema portal, fortalece este último conceito (Figura 65.3).
Figura 65.2 ■ Organização geral do sistema hipotálamohipofisário e suas relações com a periferia e o sistema nervoso central (SNC). Note que a atividade desse sistema (e, portanto, da secreção dos hormônios adeno e neurohipofisários) é controlada por sinais hormonais e neuronais, que o integram com a periferia; deste modo, garantese que quaisquer alterações de pressão arterial, volemia, temperatura, luminosidade, glicemia, dentre outras, gerem respostas endócrinas apropriadas para manutenção da homeostase do indivíduo.
▸ Sistema portahipotálamohipofisário O sistema vascular portahipotálamohipofisário (ou sistema portahipofisário) é responsável pelo transporte de hormônios do hipotálamo para a adenohipófise. Duas redes capilares estão interligadas, fazendo com que o sangue coletado na eminência mediana perfunda a hipófise anterior. Na eminência mediana e nas porções mais superiores da haste hipofisária, cujo suprimento sanguíneo provém das artérias hipofisárias superiores (ramos da carótida interna), observase uma densa rede de capilares, os quais se distribuem formando grandes alças, algumas penetrando cranialmente na eminência mediana, até as proximidades do líquido cerebrospinal do terceiro ventrículo, o que sugere possíveis trocas de moléculas entre eles. Esses capilares drenam para vasos que trafegam por toda a haste hipofisária em direção aos capilares sinusoides da adenohipófise, sendo, por essa razão, denominados vasos portais longos. Uma segunda rede de capilares está presente nas porções mais ventrais da eminência mediana, na haste hipofisária e neurohipófise (processo infundibular). Essas regiões recebem suprimento sanguíneo das artérias hipofisárias inferiores e são drenadas por capilares portais que se dirigem à adenohipófise, passando pela hipófise intermédia; esses capilares, por serem mais curtos que os anteriores, são denominados vasos portais curtos (ver Figura 65.1). Por meio dessa via, altas concentrações dos hormônios neurohipofisários (o ADH e a ocitocina) alcançam a adenohipófise, e podem influenciar a secreção local dos hormônios. Em humanos, cerca de 80% a 90% do sangue que se dirige à adenohipófise provêm dos vasos portais longos, sendo o restante conduzido pelos vasos portais curtos. Estudos dinâmicos da microcirculação local revelaram que o sangue dos vasos portais flui, principalmente, do hipotálamo para a adenohipófise (sendo, pois, denominado fluxo anterógrado), em que os hormônios hipotalâmicos exercem suas ações. No entanto, há evidências da existência de um fluxo sanguíneo retrógrado, por meio do qual os hormônios adeno e, possivelmente, neurohipofisários têm acesso ao SNC, onde podem influenciar a secreção dos hormônios hipofisiotróficos (ver adiante).
HORMÔNIOS HIPOTALÂMICOS No hipotálamo podemos distinguir basicamente duas classes de neurônios: (1) os que secretam seus hormônios na circulação portahipofisária e (2) os que secretam hormônios diretamente na circulação geral, mais especificamente nos capilares sinusoides da neurohipófise. Os que secretam seus hormônios na circulação portahipofisária são responsáveis pela regulação da síntese e liberação dos hormônios da adenohipófise, sendo, por essa razão, também conhecidos como hormônios hipofisiotróficos. Estes foram designados há muito tempo como fatores liberadores hipotalâmicos, quando a sua estrutura química ainda não havia sido definida. O isolamento, a determinação da estrutura química e a síntese desses neurohormônios em laboratório proporcionaram um grande avanço no campo da endocrinologia experimental e clínica.
Figura 65.3 ■ Representação esquemática das relações anatômicas existentes entre as vias peptidérgicas, bioaminérgicas e eminência mediana. Os componentes estão identificados e descritos no texto. (Adaptada de Reichlin, 1992.)
Desde o início do século passado, inúmeras evidências clínicas e experimentais indicavam a importância das relações existentes entre o hipotálamo e a glândula hipófise. Isto levou ao desencadeamento de uma verdadeira corrida entre vários laboratórios de pesquisa com o objetivo de identificar os fatores hipotalâmicos responsáveis pelo funcionamento normal da adenohipófise. Basicamente, a técnica empregada envolvia extração de grandes quantidades de tecido hipotalâmico e seu fracionamento em enormes colunas de sephadex; esse procedimento era seguido de subfracionamentos, em função do tamanho reduzido dos peptídios hipotalâmicos (ver adiante). O primeiro hormônio hipotalâmico a ser isolado foi o TRH (hormônio liberador de TSH), que estimula a síntese e a liberação de hormônio tireotrófico (TSH) e prolactina (Prl). Seguiuse o isolamento do GnRH (hormônio liberador de gonadotrofinas), que estimula a síntese e a liberação dos hormônios gonadotróficos foliculestimulante (FSH) e luteinizante (LH); da somatostatina (SS) ou GHRIH, que inibe a síntese e liberação tanto de hormônio de crescimento (GH) quanto de TSH; do CRH (hormônio liberador de ACTH), que estimula a síntese e liberação de corticotrofina (ACTH); e, no início dos anos 1970, do GHRH (hormônio liberador de GH), que estimula a síntese e liberação de GH. O sexto hormônio
hipotalâmico é a dopamina, também conhecido como hormônio inibidor da liberação de prolactina (Prl), importante neurotransmissor, aqui chamado de hormônio por ser liberado na circulação portahipofisária. Um aspecto que surpreendeu os investigadores é que vários desses neurohormônios hipotalâmicos também foram encontrados em outras regiões do SNC não relacionadas com a função hipofisária, em que, provavelmente, exercem o papel de neuromoduladores (ou substâncias capazes de alterar o grau de excitabilidade de conjuntos de neurônios por tempo prolongado, de alguns minutos). Esses peptídios também se encontram presentes, em grandes quantidades, ao longo do tubo digestivo, no qual participam como moduladores do sistema nervoso local (sistema entérico). A própria somatostatina também é encontrada no pâncreas, onde exerce efeito inibitório parácrino sobre a secreção de insulina e glucagon. Esses fatos revelam que, além da regulação da secreção dos hormônios adenohipofisários, esses peptídios, por se acharem amplamente distribuídos pelo organismo, exercem várias outras funções em diferentes sistemas biológicos. Os estudos iniciais indicaram que a maior parte dos peptídios hipotalâmicos age nas célulasalvo e ativam o sistema adenililciclase/cAMP. Outros, tais como a somatostatina, ao interagir com o receptor, que está acoplado a uma proteína G inibitória (proteínaGi), induzem diminuição da produção de cAMP, sendo observados efeitos inibitórios na célulaalvo. Verificouse, ainda, que alguns peptídios hipotalâmicos agem por meio do fosfatidilinositol, que em última análise leva a mudanças na concentração citosólica de cálcio e à ativação da proteinoquinase/cinase C. Mais recentemente, demonstrou se a existência de interações desses sistemas de sinalização intracelular, de modo que alguns peptídios hipotalâmicos, tais como o GHRH, podem mobilizar mais de uma via de sinalização (mais detalhes no Capítulo 64, Introdução à Fisiologia Endócrina).
Quadro 65.1 ■ Hormônios hipotalâmicos e sua relação com a adenohipófise. Hormônios hipotalâmicos
Hormônios adenohipofisários
Hormônio liberador de tireotrofina (TRH)
+ Hormônio tireotrófico (TSH) e prolactina (Prl)
Hormônio liberador de corticotrofina (ACTH)
+ Hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) e peptídios derivados da próopiomelanocortina (POMC) = melanocortinas
Hormônio liberador de hormônio luteinizante (LHRH) ou hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRH) Hormônio liberador de hormônio de crescimento
+ Hormônio luteinizante (LH) e + Hormônio foliculestimulante (FSH) + Hormônio do crescimento (GH)
(GHRH) Hormônio inibidor da liberação de hormônio de
– GH e TSH
crescimento (GHRIH = GIH) ou somatostatina (SS) Fator inibidor da liberação de Prl (PIF) = dopamina
– Prl
(DA), GABA, peptídio associado às gonadotrofinas (GAP) Fator liberador de Prl (PRF) = peptídio intestinal
+ Prl
vasoativo (VIP), peptídio histidinaisoleucina (PHI), TRH Os sinais + e – indicam estimulaçáo e inibiçáo, respectivamente. No Quadro 65.1 estão indicados os hormônios hipotalâmicos identificados até o momento e suas ações específicas sobre a adenohipófise.
▸ Hormônio liberador de tireotrofina (TRH)
O TRH foi o primeiro hormônio hipotalâmico a ser isolado, a ter a sua estrutura química definida e a ser sintetizado em laboratório. Esse tripeptídio (piroglutamilhistidilprolinamida) foi isolado por Schally em 1968, após a análise de 165.000 hipotálamos suínos. Logo após, estudos in vitro confirmaram que esse peptídio apresentava a capacidade de provocar a liberação de TSH de hipófises de camundongos e ratos. No ano seguinte, Guillemin conseguiu o mesmo feito em ovinos. Esses achados fizeram com que ambos fossem laureados com o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina em 1977. Após a síntese do TRH em laboratório verificouse que, surpreendentemente, o TRH também apresentava a capacidade de induzir a liberação de Prl. Posteriormente verificouse que, em ratas hipotireóideas, cujos níveis de TRH estão elevados, a sucção da mama leva a um aumento acentuado da liberação de Prl e que pacientes hipotireóideos apresentam ocasionalmente hiperprolactinemia. Estudos mais recentes demonstraram ainda que, em uma linhagem de tumor de células hipofisárias, o TRH estimula a síntese de mRNA que codifica a Prl. Apesar desses achados, por motivos que serão discutidos a seguir, o TRH não é considerado como o fator fisiológico da liberação de Prl. Vale ainda comentar que o TRH, sob certas condições, também é capaz de estimular a secreção de GH.
Biossíntese O TRH é sintetizado a partir de uma grande molécula precursora constituída de 242 aminoácidos, o prépróTRH. O gene que codifica o prépróTRH humano está localizado no cromossomo 3, apresenta comprimento de 3,3 e uma unidade de transcrição que no 3o éxon contém sequências repetidas que variam em número segundo a espécie (6 no ser humano e 5 no rato), e cada uma delas dá origem a uma molécula de TRH. Em outras palavras, uma única cópia desse gene dá início a 6 moléculas de TRH no ser humano e 5 no rato (Figura 65.4). Esse gene também codifica outros neuropeptídios que podem ser biologicamente importantes. O gene do TRH é expresso, principalmente, nos núcleos paraventriculares (na porção parvicelular) do hipotálamo, em neurônios distintos daqueles que compõem o sistema magnocelular, e também em neurônios específicos da área periventricular do hipotálamo (no núcleo periventricular anterior, principalmente). Dessas regiões, que constituem a área tireotrófica do hipotálamo, partem axônios que transportam o TRH por fluxo axoplasmático em direção à eminência mediana, onde ele é liberado no sistema portahipofisário. Detectase também imunorreatividade para o TRH em outras regiões do SNC, onde ele desempenha o papel de neurotransmissor ou neuromodulador.
Regulação da síntese e secreção A atividade dos neurônios que sintetizam TRH é influenciada, basicamente, por aferências provenientes de várias regiões do SNC e pelas concentrações plasmáticas dos hormônios tireoidianos. A secreção de TRH é estimulada por aferências noradrenérgicas que partem do tronco encefálico. O bloqueio de receptores α 1adrenérgicos inibe a liberação de TSH que ocorre durante exposição ao frio, resposta que é observada em vários animais e no ser humano recémnascido, sabidamente, secundária à liberação de TRH. A secreção de TRH também é estimulada pelo hormônio antidiurético (ADH). Por outro lado, os opiáceos endógenos, os glicocorticoides, a dopamina e a somatostatina inibem a liberação de TRH. O neuropeptídio Y e o AGRP (Agoutirelated peptide) também exercem profundos efeitos inibitórios sobre a síntese de TRH. O papel da serotonina e histamina sobre a secreção de TRH ainda é controverso, já que tanto efeitos estimuladores quanto inibitórios podem ser encontrados na literatura. No jejum, a liberação de TRH encontrase reduzida em função do aumento da atividade dos neurônios que secretam o neuropeptídio Y (NPY). Este peptídio exerce um tônus inibitório sobre os neurônios TRHérgicos e, por conseguinte, sobre a atividade do sistema hipotálamohipófisetireoide (HPT), o que é fundamental para a preservação de energia que deve acontecer nessa condição. Isso ocorre porque, no jejum, há redução da concentração plasmática de leptina, que é um potente inibidor da atividade dos neurônios que secretam NPY. A diminuição da atividade do eixo HPT no jejum leva à redução da secreção dos hormônios tireoidianos que, como será evidenciado no Capítulo 68, Glândula Tireoide, atuam aumentando a taxa metabólica basal, o que não é desejável nessa situação. Quanto ao T3, foi demonstrado que ele inibe diretamente a transcrição do gene do prépróTRH e, portanto, a síntese de TRH no hipotálamo, o que constitui a base molecular para o mecanismo de feedback negativo do eixo hipotálamo hipófisetireoide existente no nível hipotalâmico (Figura 65.5). Esse efeito parece ser restrito aos neurônios TRHérgicos dos núcleos paraventriculares (NPV), embora atualmente haja evidências de que neurônios TRHérgicos localizados no
tronco encefálico, que estão envolvidos com a atividade vagal e, possivelmente, com o controle da ingestão alimentar, também sejam regulados pelo T3. Na verdade, o T4 plasmático é o principal envolvido na resposta de retroalimentação negativa sobre o TRH; no entanto, sabese que ele deve ser desiodado a T3, que é o hormônio que será reconhecido pelos receptores nucleares de hormônios tireoidianos, os THR, e que reduzirá a expressão do gene que codifica o TRH. Embora seja consenso que a retroalimentação negativa seja exercida pelo T3 produzido localmente a partir do T4, a presença da desiodase do tipo 2 (D2), enzima que catalisa essa reação, não foi demonstrada nos núcleos paraventriculares do hipotálamo, o que sugere que a desiodação ocorra em outro local no SNC ou que a retroalimentação negativa também possa ser exercida pelo próprio T3 circulante. É possível que células do núcleo arqueado estejam envolvidas nesse processo, uma vez que se evidenciou expressão de mRNA da D2 nessa região do hipotálamo, bem como conexões monossinápticas entre células deste núcleo e neurônios dos núcleos paraventriculares diretamente relacionados com o controle da secreção de TSH. Demonstrouse também marcação para mRNA da D2 na área periventricular do hipotálamo, mais especificamente na camada ependimal do 3o ventrículo, bem como na eminência mediana, em que numerosas células contendo o mRNA da D2 foram localizadas na camada interna adjacente ao assoalho do 3o ventrículo e na camada externa adjacente à superfície do cérebro. Mais recentemente foi evidenciado que células gliais, astrócitos e tanicitos do hipotálamo médio basal expressam a D2, indicando que a interação entre a glia, células ependimais e neurônios é de fundamental importância para que haja o efeito de retroalimentação negativa exercido pelo T3 sobre a síntese de TRH e, portanto, para que a regulação da função tireoidiana ocorra de modo efetivo. Outro aspecto importante a salientar é que a isoforma β do THR (THRβ) é a que predomina no SNC e hipófise. Assim, na síndrome da resistência ao hormônio tireoidiano, na qual o gene THRβ apresenta uma mutação inativadora, a elevada concentração de hormônios tireoidianos no plasma não é capaz de reduzir a secreção do TRH, bem como a de TSH. Para que os hormônios tireoidianos desencadeiem seus efeitos biológicos, eles devem ser transportados através da membrana de seus tecidosalvo por proteínas específicas, que incluem os transportadores de monocarboxilato 8 (MCT8) e 10 (MCT10) e o polipeptídio transportador de ânions orgânicos 1C1 (OATP1C1). O OATP1C1 é expresso predominantemente nos capilares cerebrais e transporta preferencialmente T4, enquanto o MCT8 e o MCT10 são expressos em vários tecidos e capazes de transportar diferentes iodotironinas. Há uma elevada expressão de MCT10 e OATP1C1 no hipotálamo humano, o que indica a possibilidade de participarem da regulação da atividade do eixo hipotálamo hipófisetireoide (detalhes no Capítulo 68).
Figura 65.4 ■ Esquema ilustrativo do gene do prépróTRH humano. O gene apresenta em sua região promotora elementos responsivos ao hormônio tireoidiano (TRE), aos glicocorticoides (GRE), ao fator de crescimento epidermal (EGFRE), ao cAMP (CRE), além de sítios de ligação às proteínas transcricionais AP1 e SP1, dentre outros, o que sugere participação dos mesmos
no controle da expressão desse gene. O gene apresenta 3 éxons (representados pelos números 1, 2 e 3 escritos em ocre) que codificam um cDNA que apresenta 6 cópias do TRH. (Adaptada de Stratakis e Chrousos, 1997.)
Figura 65.5 ■ Representação esquemática dos principais fatores envolvidos na regulação da síntese e secreção do hormônio liberador de tireotrofina (TRH) e, consequentemente, do eixo hipotálamohipófisetireoide. NPV representa o núcleo paraventricular, onde são encontrados os neurônios TRHérgicos; NARQ representa o núcleo arqueado, de onde partem neurônios dopaminérgicos (DA) que secretam os neuropeptídios Y (NPY) e AGRP (Agoutirelated peptide), os quais exercem profundos efeitos inibitórios sobre a síntese de TRH. NSQ representa o núcleo supraquiasmático relacionado com a ritmicidade circadiana observada na secreção de TRH/TSH. Os glicocorticoides, além de reduzirem a expressão do gene do prépróTRH, diminuem a expressão de receptores de TRH no tireotrofo. (Adaptada de Cone et al., 2003.)
Mecanismo de ação Os efeitos biológicos do TRH resultam da interação desse peptídio com receptores de alta afinidade e especificidade, localizados na membrana das células tireotróficas e lactotróficas hipofisárias, processo que leva à estimulação da síntese e secreção de TSH e Prl. Desse modo, um fator importante que influencia a resposta do TSH ao TRH é o número de receptores de TRH nessas células. A expressão desses receptores é regulada por uma série de fatores tais como os hormônios tireoidianos e glicocorticoides que, quando aumentados na circulação, levam à diminuição do seu número. Por outro lado, os estrógenos parecem induzir a expressão desses receptores, o que contribuiria para explicar o fato de a resposta do TSH ao TRH ser maior nas mulheres do que nos homens. A resposta do tireotrofo ao TRH é bimodal, ou seja, ele provoca inicialmente a liberação do hormônio armazenado para, a seguir, estimular a atividade gênica, aumentando a síntese de TSH. Na verdade, esses processos são iniciados simultaneamente; a diferença de fase entre eles decorre da ação do TRH sobre o processo de síntese, que, por envolver várias etapas, é mais lento.
O receptor de TRH (TRHR) é um membro da família dos receptores acoplados à proteína G. Apresenta 7 domínios transmembrânicos, sendo que o TRH se liga ao 3o. Após sua interação com o receptor, o TRH ativa a proteína Gq, cuja consequência é a ativação da fosfolipase C que hidrolisa o fosfatidilinositol (PIP2) a trifosfato de inositol (IP3) e diacilglicerol (DAG). O IP3 provoca liberação de Ca2+ dos seus estoques intracelulares (no retículo endoplasmático); este íon interage com os microtúbulos conduzindo ao primeiro pulso de liberação do TSH armazenado, enquanto o DAG ativa a proteinoquinase C (PKC), processo que é potencializado pelo Ca2+. Seguese uma segunda fase de secreção hormonal sustentada, que se acredita ser dependente do influxo de Ca2+ extracelular por meio de canais de Ca2+ dependentes de voltagem. Acreditase que a PKC possa estar envolvida neste processo, já que há uma rápida translocação dela para a membrana em resposta ao TRH. A elevação do Ca2+ intracelular associada à ativação da PKC também estimula a taxa de transcrição dos genes que codificam as duas cadeias polipeptídicas do TSH, efeito que resulta da fosforilação de proteínas nucleares envolvidas na expressão destes genes. Além do efeito transcricional, o TRH estimula a glicosilação do TSH, importante passo para que este hormônio apresente sua total atividade biológica (detalhes no Capítulo 66, Glândula Hipófise). Em suma, a interação do TRH com seu receptor leva à ativação da PKC, cujo resultado é a fosforilação de uma série de proteínas intracelulares, mecanismo pelo qual o efeito biológico do hormônio se manifesta. O TRH parece não interagir com o sistema adenililciclase/cAMP, pelo menos diretamente. De fato, o cAMP estimula a secreção de TSH, contudo esse efeito pode não ser TRHdependente. O TRH é rapidamente inativado por ação de uma peptidase e uma desaminase plasmáticas. Acreditase que os hormônios tireoidianos participem da regulação desse processo, já que ratos hipertireóideos apresentam aumento da taxa de inativação do TRH, sendo o contrário observado nos hipotireóideos.
Outras ações A vasta distribuição de TRH pelo SNC, em áreas distintas da área tireotrófica, além de sua presença em outras regiões muito distantes, tais como ilhotas pancreáticas e sistema digestório, sugerem ações que muito diferem das que foram mencionadas. O mesmo pode ser deduzido da sua presença em certos animais inferiores, os quais nem sintetizam TSH. A presença de receptores de TRH também foi demonstrada em células do corno intermediolateral da medula espinal, local de origem dos neurônios simpáticos préganglionares, o que poderia explicar o aumento da pressão arterial observado após administração de TRH em animais e no ser humano (Quadro 65.2). Na verdade, 2/3 do TRH presentes no SNC estão localizados fora do hipotálamo, o que sugere que ele exerça um papel de neurotransmissor, além de ser um hormônio liberador de TSH.
Quadro 65.2 ■ Ações do hormônio liberador de tireotrofina (TRH) sobre o sistema nervoso central. Aumenta a atividade espontânea Altera o padrão de sono Produz anorexia Inibe comportamento condicionado de esquiva Induz rotação cabeçacauda Opõese às ações dos barbituratos sobre o tempo de sono, hipotermia e letalidade Opõese às ações do etanol, hidrato de cloral, clorpromazina e diazepam sobre o tempo de sono e hipotermia Aumenta o tempo de convulsão e letalidade da estricnina Aumenta a atividade motora de animais tratados com morfina Potencializa os efeitos DOPApargilina
Melhora os distúrbios comportamentais humanos Provoca inibição central da secreção do hormônio de crescimento (GH) e da prolactina (Prl) induzida pela morfina Altera a atividade elétrica das membranas celulares cerebrais Aumenta o turnover de norepinefrina (NE) Libera NE e dopamina (DA) de preparações sinaptossômicas Aumenta a velocidade de desaparecimento da NE das terminações nervosas Potencializa as ações excitatórias da acetilcolina (ACh) sobre os neurônios corticais cerebrais Aumenta a pressão arterial Protege contra o choque espinal Melhora a função motora na esclerose amiotrófica lateral Fonte: Reichlin, 1992.
▸ Fatores/hormônios hipotalâmicos inibidores da liberação de TSH Estudos in vitro e in vivo evidenciaram que a somatostatina (hormônio inibidor da liberação de GH) inibe a liberação basal e induzida de TSH, bem como a liberação de TRH. Acreditase que um dos mecanismos pelos quais os hormônios tireoidianos controlam a liberação de TSH é via somatostatina. As evidências são as seguintes: (1) em ratos hipotireóideos, o conteúdo hipotalâmico de somatostatina encontrase diminuído, sendo prontamente normalizado após administração de T3, e (2) a exposição de fragmentos de hipotálamo ao T4 provoca a estimulação da secreção de somatostatina. Acreditase que a diminuição concomitante de TSH e GH observada em alguns tipos de estresse seja o resultado da elevação de somatostatina que ocorre nessas condições. Assim como ocorre com a secreção de prolactina, a dopamina também inibe a liberação de TSH; sua administração leva à diminuição da concentração plasmática de TSH em indivíduos normais e hipotireóideos. Essa ação parece ocorrer diretamente na hipófise, uma vez que, após infusão de dopamina, observase diminuição da resposta de liberação de TSH ao TRH. Estudos in vitro que empregam concentrações de dopamina similares às detectadas no sangue portal também demonstraram efeito direto dessa amina sobre a hipófise, sugerindo que a dopamina é um agente inibidor “fisiológico” da secreção de TSH.
▸ Hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRH, LHRH) O GnRH é um decapeptídio, isolado a partir de tecido hipotalâmico, que foi assim chamado por apresentar a capacidade de induzir a liberação de LH e FSH. Sua estrutura primária também foi determinada por Schally (em 1971), após extensas purificações de extratos hipotalâmicos de porcinos. Os primeiros estudos que levaram ao conhecimento de sua atividade biológica foram realizados a partir da administração de extratos hipotalâmicos em animais de experimentação. Inicialmente, em coelhas, foi caracterizada uma elevação da concentração sérica de LH seguida de indução da ovulação (por processo dependente de LH), razão pela qual esse hormônio foi denominado LHRH. Os estudos subsequentes mostraram que a administração de LHRH também causava elevação do FSH sérico, o que levou à utilização de uma terminologia mais genérica para esse hormônio: GnRH. Apesar de o GnRH induzir liberação tanto de LH quanto de FSH, existem alguns estudos que sugerem a existência de dois hormônios hipotalâmicos específicos para a liberação desses hormônios, pois em algumas situações fisiológicas e fisiopatológicas ocorre nítida dissociação da secreção das gonadotrofinas. Por outro lado, os que defendem a existência de apenas um hormônio liberador para ambas as gonadotrofinas justificam essas diferenças como decorrentes de variações no padrão de descargas de GnRH e de flutuações nos níveis circulantes de hormônios gonadais. Assim, no período pré ovulatório, os altos níveis circulantes de estrógenos induzem um aumento da frequência de descargas de GnRH, que
poderia ser decorrente de uma inibição de vias endorfinérgicas, ou ativação de neurônios que secretam kisspeptina (ver adiante). Ao mesmo tempo, os altos níveis circulantes de estrógenos diminuem a resposta de liberação de FSH ao GnRH, o que resulta na secreção preferencial de LH. Outro hormônio gonádico, a inibina, pode, igualmente, favorecer a secreção de LH frente a um aumento de GnRH, uma vez que exerce efeito seletivo inibitório sobre a secreção de FSH (detalhes no Capítulo 66 e no Capítulo 71, Gônadas).
Biossíntese O GnRH é sintetizado por neurônios localizados na área préóptica e hipotálamo basal, como parte de um pró hormônio que sofre processamento enzimático em seus grânulos de secreção. Esse precursor, além de GnRH, dá origem a um peptídio de 56 aminoácidos denominado GAP (peptídio associado ao GnRH). O GAP apresenta atividade inibidora da secreção de Prl, dado que ainda não foi confirmado in vivo, e seu papel fisiológico ainda permanece desconhecido. A estrutura química do GnRH varia de espécie para espécie, de forma semelhante ao que ocorre com todos os hormônios liberadores maiores que o TRH. Em uma mesma espécie, podemos ainda ter GnRH produzidos em locais diferentes, com estruturas químicas diferentes, o que sugere que o próGnRH seja processado de maneira distinta nos diversos tecidos em que o gene é expresso. Contudo, os primeiros 4 resíduos de aminoácidos do GnRH, que são fundamentais para a liberação de FSH e LH, são altamente conservados na evolução. O gene do GnRH está localizado no cromossomo 8 p apresentando, em todos os mamíferos, 4 éxons. O 2o codifica o prépróGnRH até os 11 primeiros aminoácidos do GAP. Esse gene foi bastante estudado no rato, tendo sido identificadas na região flanqueadora 5’ várias sequências às quais diferentes fatores de transcrição podem se ligar, bem como elementos responsivos ao estrógeno (pelo menos no gene do GnRH humano), e a outros esteroides, o que sugere que a regulação da expressão desse gene é bastante complexa. A secreção dos neuropeptídios hipotalâmicos é pulsátil. Essa característica secretória, que é observada em maior ou menor intensidade de acordo com a natureza do neuropeptídio, é um componente obrigatório do funcionamento normal do eixo hipotálamohipófisegônadas; a liberação hipotalâmica de pulsos de GnRH resulta em flutuações ultradianas da concentração de gonadotrofinas no sangue periférico. Acreditase que esse tipo de secreção seja importante na regulação do número de receptores hipofisários para o GnRH, uma vez que após a formação do complexo hormônioreceptor uma fração substancial desses complexos é internalizada e destruída. Desta maneira, durante o intervalo entre os pulsos, o gonadotrofo hipofisário restabeleceria o pool de receptores internalizados e destruídos durante o pulso anterior (ver Capítulo 64). O resultado desse mecanismo regulador é que a exposição contínua ao GnRH leva à supressão da liberação de gonadotrofinas, a qual é restabelecida após início de injeção intermitente de GnRH. Sabese que, fisiologicamente, essa liberação pulsátil permanece bloqueada durante: (1) a maior parte do desenvolvimento prépúbere, (2) a amenorreia observada na lactação e (3) a restrição alimentar.
Regulação da secreção Os neurônios que expressam o GnRH recebem aferências de vias adrenérgicas e peptidérgicas de opiáceos endógenos, as quais participam da regulação da secreção de gonadotrofinas que agem diretamente no hipotálamo. A secreção de GnRH é estimulada pela norepinefrina por meio da ativação de receptores alfaadrenérgicos; portanto, o bloqueio destes por utilização de antagonistas específicos provoca inibição da ovulação. Por outro lado, a ativação de receptores beta adrenérgicos provoca inibição da secreção de GnRH. A dopamina também exerce efeito inibitório sobre a liberação de GnRH. Demonstrouse que a morfina inibe a secreção de gonadotrofinas em ambos os sexos, sendo causa de infertilidade, anovulação e diminuição dos níveis de testosterona. Admitese que esse quadro de hipogonadismo resulte de uma diminuição da frequência de pulsos de GnRH, o que levaria a uma maior diminuição da secreção de LH em relação ao FSH. Juntamente com as aferências neurais, os neurônios GnRHérgicos são marcadamente influenciados pelos esteroides sexuais circulantes. Dessa maneira, em macacos, as evidências de que a castração (ou orquiectomia) leva à aceleração da secreção pulsátil de LH e, presumivelmente, de GnRH sugerem fortemente que a testosterona exerça um controle inibitório sobre a liberação deste hormônio hipotalâmico. Nesse sentido, estudos realizados em macacos castrados, submetidos a injeção intraventricular de [3H]DHT (dihidrotestosterona), demonstram a presença desse hormônio em frações nucleares de homogeneizados de hipotálamo; esses experimentos indicam também uma marcação extensa de neurônios nos núcleos arqueado, ventromedial e prémamilares ventrais do hipotálamo basal, possíveis locais de geração dos pulsos de GnRH. Há indícios de que a testosterona aja nesse sistema indiretamente, via modulação da atividade de um sistema opioide.
A progesterona exerce uma ação similar à da testosterona tanto sobre a frequência de pulsos de GnRH, diminuindoa, quanto sobre os opioides endógenos. No entanto, sob certas circunstâncias, a progesterona é capaz de exercer efeitos facilitatórios sobre a secreção de gonadotrofinas agindo tanto no nível do SNC quanto da hipófise. Enquanto a testosterona, a progesterona e também a prolactina, em concentrações fisiológicas, diminuem a frequência de pulsos do GnRH, os estrógenos promovem diminuição da amplitude deles. Entretanto, no período préovulatório, eles causam um aumento na frequência de pulsos do GnRH, o que leva ao aumento da secreção de LH. O mecanismo pelo qual os estrógenos provocam esse efeito de retroalimentação positiva parece envolver a inativação de um sistema opioide, que age cronicamente inibindo a liberação do GnRH e kisspeptina (mais detalhes no Capítulo 66). Devese ressaltar, no entanto, que ao longo do ciclo menstrual normal predomina o efeito de retroalimentação negativa dos esteroides ovarianos sobre o GnRH (Figura 65.6). É bastante conhecido o fato de ocorrer inibição da função reprodutiva em mamíferos em situações de estresse. Esse efeito parece resultar da inibição da secreção de GnRH induzida por neurônios CRHérgicos, via sinapses axodendríticas na área préóptica medial. Os opioides endógenos exercem efeito similar sobre a secreção de GnRH, participando, em conjunto com o CRH, da inibição da função reprodutiva no estresse. As citocinas, proteínas mediadoras da resposta inflamatória e da imunidade celular, também regulam a secreção de GnRH. A injeção central de interleucina 1 inibe a atividade dos neurônios GnRHérgicos, e provoca diminuição da síntese e liberação de GnRH. As citocinas também exercem efeito estimulante sobre a secreção de CRH, mecanismo paralelo pelo qual reforçam seus efeitos inibitórios sobre o eixo hipotálamohipófisegônadas. Assim, seu efeito inibitório sobre a atividade GnRHérgica, em associação ao CRH e opioides endógenos, contribui com a inibição da função reprodutiva na inflamação e resposta imunológica.
Mecanismo de ação A ação do GnRH sobre a regulação da síntese e secreção de LH e FSH ocorre por meio da sua interação com receptores localizados na membrana, da qual resulta a ativação da fosfolipase C e, subsequentemente, da proteinoquinase C (PKC). Demonstrouse que o complexo GnRHreceptor pode acoplarse a diferentes proteínas G e que a ligação do GnRH provoca oscilações na concentração de Ca2+ no gonadotrofo. O sistema Ca2+/calmodulina parece ser igualmente importante para que o gonadotrofo responda ao GnRH.
Figura 65.6 ■ Representação esquemática da regulação neuroendócrina da atividade do sistema hipotálamohipófisegônadas. Observe que os neurônios GnRHérgicos (que secretam GnRH: hormônio liberador de gonadotrofinas) recebem várias aferências neuronais que secretam: CRH (hormônio liberador de corticotrofina), βendorfina, NE (norepinefrina), GABA (ácido
gamaaminobutírico), NPY (neuropeptídio Y), além de outros neurotransmissores. Essas substâncias atuam estimulando (+) ou inibindo (–) a sua atividade, levando, por conseguinte, a repercussões na secreção de gonadotrofinas (FSH: hormônio foliculestimulante e LH: hormônio luteinizante) e de hormônios gonadais (estradiol, progesterona, testosterona e inibina). Na eminência mediana do hipotálamo e na hipófise são encontrados receptores dos hormônios gonadais, que constituem a base do mecanismo de feedback exercido por esses hormônios sobre a atividade deste sistema. (Adaptada de Cone et al., 2003.)
Embora os níveis intracelulares de cAMP aumentem sob ação deste hormônio, não está claro se esse efeito é essencial para a ação hormonal. Há evidências de interações múltiplas nos sistemas de sinalização intracelulares para vários hormônios, o que poderia explicar uma série de efeitos paralelos desencadeados quando da interação do hormônio com o seu receptor. A ação do GnRH é limitada por vários mecanismos, dentre os quais temos: (1) a degradação por proteases associadas à membrana logo após sua ligação com receptores hipofisários e (2) a proteólise lisossômica após internalização do complexo hormônioreceptor. O GnRH pode também ser metabolizado por degradação enzimática e excreção renal, já que se apresenta amplamente distribuído no líquido extracelular. Ainda, há evidências de que a inativação primária deste hormônio ocorra no hipotálamo por ação de uma endopeptidase, cuja atividade apresentase diminuída pela gonadectomia e aumentada na presença de estrógenos ou testosterona, de modo que grande parte dos efeitos tipo feedback dos hormônios gonadais sobre a secreção de LH e FSH poderia ser exercida por meio desse mecanismo.
Outras ações Assim como os outros neuropeptídios hipotalâmicos, os neurônios que sintetizam o GnRH distribuemse amplamente em várias outras regiões do sistema nervoso, onde exercem, provavelmente, um papel neuromodulador. O GnRH também é sintetizado na placenta, de onde foi isolado o mRNA específico que codifica a sua síntese. Há evidências de que esse hormônio possa estimular a produção de gonadotrofina coriônica humana (CGH) na placenta, estabelecendo relações parácrinas nessa estrutura. Alguns estudos apontam o GnRH como um importante mediador do impulso sexual, já que a injeção intra hipotalâmica desse peptídio em ratas aumenta a resposta sexual, mesmo quando elas são previamente hipofisectomizadas. Adicionalmente, a presença de receptores de GnRH em ovário e testículo de ratos sugere uma possível ação do hormônio nesse nível; de fato, estudos in vitro demonstram estimulação da secreção de esteroides sexuais pelo GnRH. Contudo, a sua baixa concentração plasmática deixa certa dúvida quanto à possibilidade de exercer um efeito fisiológico, in vivo, nesses tecidos.
▸ Hormônio liberador do hormônio de crescimento (GHRH) Deuben e Meites demonstraram em 1964 a existência de um fator hipotalâmico, em ratos, que promovia a liberação de GH in vitro. A partir dessa data, vários esforços infrutíferos foram realizados com o objetivo de caracterizálo. Porém, foi somente em 1982 que o GHRH foi isolado e caracterizado, por dois grupos distintos liderados por Rivier e Guillemin, a partir de extratos de um tumor pancreático que, por secretar grandes quantidades de GHRH, causava acromegalia. A presença de atividade liberadora de GH em tumores não hipofisários (bronquiais e pancreáticos) vem sendo relatada há mais de quatro décadas por vários investigadores. Foi demonstrado que o GHRH produzido por tumores era idêntico ao encontrado no hipotálamo, sendo então caracterizado o GHRH hipotalâmico.
Biossíntese O gene do GHRH humano está localizado no cromossomo 20 p, apresentando 10 kb de comprimento e 5 éxons. Como os outros peptídios hipotalâmicos, o GHRH é sintetizado na forma de prépróGHRH. Basicamente, três isoformas de GHRH foram identificadas, com 37, 40 e 44 aminoácidos, apresentando atividade biológica liberadora de GH. Uma quarta isoforma, constituída de 27 aminoácidos, também foi identificada; entretanto, não se detectou nenhuma atividade biológica desse peptídio. Esses distintos GHRH derivam de dois grandes polipeptídios precursores, o prépróGHRH 107 e o 108, que sofrem processamento proteolítico póstranscricional. Esses hormônios também são conhecidos como somatoliberina ou somatocrinina, por sua capacidade de induzir liberação de GH. A secreção episódica de GHRH também é fundamental para a manifestação do seu efeito biológico, uma vez que infusões constantes desse peptídio levam à diminuição dos níveis de GH (pelo fenômeno da downregulation). Os neurônios que sintetizam GHRH apresentamse distribuídos na borda ventrolateral do núcleo ventromedial e no núcleo arqueado do hipotálamo; no entanto, é do núcleo arqueado que parte o maior contingente de fibras nervosas que se dirigem à eminência mediana, em que estabelecem uma íntima relação com os capilares do sistema portahipotálamo
hipofisário, sendo, portanto, esse núcleo considerado a fonte primária de GHRH. O mRNA do prépróGHRH humano também é expresso em outras áreas do SNC, tais como tálamo, hipocampo, amígdala (onde possivelmente o GHRH exerce o papel de neurotransmissor ou neuromodulador), bem como nas células germinativas dos testículos e em vários tecidos neuroendócrinos e tumorais.
Regulação da síntese e secreção A expressão do gene do GHRH está primariamente sob o controle do GH. Observase diminuição da expressão desse gene pelo tratamento com GH e aumento dela na deficiência deste hormônio. Essas alterações parecem decorrer do efeito direto do GH, já que receptores para este hormônio são encontrados no núcleo arqueado. O IGFI (insulinlike growth factorI), fator de crescimento induzido pelo GH, também exerce efeito inibitório sobre a expressão do GHRH, via somatostatina, a qual também inibe a liberação de GHRH (Figura 65.7). Sabese que as endorfinas, glucagon e neurotensina, entre outros hormônios, são capazes de estimular a liberação de GH, provavelmente por interferirem com a secreção de GHRH, pois esse efeito não é observado quando esses peptídios são aplicados diretamente na hipófise. O mesmo ocorre com a dopamina, serotonina e norepinefrina (via receptores α 2), que são potencialmente capazes de estimular a liberação de GH somente quando injetados no hipotálamo e não por aplicação direta na hipófise. Acreditase que os efeitos da dopamina ocorram indiretamente, já que ela é convertida a norepinefrina (Figura 65.8). O peptídio intestinal vasoativo (VIP) também exerce um efeito estimulante sobre a secreção de GH, porém há evidências de que esse efeito ocorra por inibição da secreção da somatostatina nos núcleos periventriculares (ver adiante). A somatostatina, como afirmado anteriormente, é um peptídio que inibe a liberação de GH. Esse efeito é exercido por meio de ação direta no hipotálamo, reduzindo a liberação de GHRH, bem como sobre a hipófise, onde provoca diminuição da resposta ao GHRH (Figura 65.9).
Figura 65.7 ■ Representação esquemática da regulação da síntese e secreção do hormônio de crescimento (GH) e da somatostatina (SS) pelo hormônio liberador de GH (GHRH). Notar o controle positivo do GHRH sobre a síntese e secreção de GH e o controle negativo da somatostatina tanto sobre a secreção de GHRH quanto de GH. Em paralelo são mostrados os
efeitos do GH, inibindo a expressão gênica de GHRH e estimulando a secreção de somatostatina, bem como do fator de crescimento induzido pelo GH (IGFI ou insulinlike growth factorI), que também atua estimulando a secreção de somatostatina. aa, aminoácidos.
Figura 65.8 ■ Representação esquemática dos mecanismos neurais envolvidos no controle da secreção do hormônio liberador do GH (GHRH) e da somatostatina (SS), bem como dos efeitos de substâncias agonistas e antagonistas largamente utilizadas para avaliar a capacidade secretora de hormônio de crescimento (GH) pela hipófise.
A hipoglicemia é um potente indutor da secreção de GH. Admitiase que essa resposta fosse resultado direto de um aumento da secreção de GHRH pelos neurônios GHRHérgicos localizados no núcleo hipotalâmico ventromedial, já que há muito tempo sabese que esses neurônios são sensíveis a variações da glicemia, participando, entre outras funções, do controle da ingestão alimentar. No entanto, observouse que a liberação de somatostatina se eleva em situações de hiperglicemia, e ocorre diminuição da mesma na hipoglicemia, o que poderia explicar o aumento da liberação de GH nesta situação. Ainda, em situações de hipoglicemia ocorre ativação de vias noradrenérgicas (por receptores α), o que, em paralelo, eleva a secreção de GH. A secreção de GHRH também é estimulada por outras situações de estresse, tais como o exercício físico. Nesta condição, a sua liberação também parece ser induzida por ativação de receptores αadrenérgicos (via norepinefrina, ou NE). Durante a fase do sono caracterizada por ondas lentas no EEG, observase um pico de secreção de GH dependente da liberação de GHRH, o qual é induzido principalmente por fibras serotoninérgicas e colinérgicas (ver Figura 65.9). Demonstrouse também que um peptídio que apresenta propriedades orexígenas (estimulantes do apetite), isolado do estômago de ratos, estimula a liberação de GH, razão pela qual foi denominado grelina. Essa propriedade decorre principalmente da indução da secreção de GHRH, já que os neurônios que secretam este hormônio apresentam elevada expressão de receptores de grelina (GHSR) (mais detalhes no Capítulo 66).
Mecanismo de ação Assim como os outros neuropeptídios hipotalâmicos, o GHRH interage com receptores de membrana das células hipofisárias, e os somatotrofos são as suas principais célulasalvo. Seus efeitos, refletidos pela liberação e síntese de GH, são mediados pela ativação tanto do sistema adenilciclasecAMP, quanto pela via do fosfatidilinositol. A participação do sistema Ca2+/calmodulina na resposta hipofisária ao GHRH também foi demonstrada. Embora a ação do GHRH se restrinja basicamente ao somatotrofo, também se observa certa resposta do lactotrofo a esse peptídio.
Figura 65.9 ■ Representação esquemática da regulação da atividade do eixo hipotálamoGHIGFI. Os fatores que participam do controle da secreção de GH estão aqui identificados e descritos no texto. (Adaptada de Reichlin, 1992.)
▸ Hormônio inibidor da liberação de GH (GHRIH, SRIF, somatostatina ou SS) A somatostatina (S14) é um tetradecapeptídio que foi isolado e caracterizado em 1973, a partir de hipotálamos de ovinos. Foi à procura do isolamento do GHRH, em extratos de hipotálamo, que Krulich demonstrou a existência de um fator que inibia a liberação de GH in vitro. A somatostatina S14 pertence a uma família de peptídios que inclui moléculas que apresentam 12 (S12), 28 (S28), bem como um número maior de aminoácidos, variando o seu peso molecular em diferentes tecidos e espécies (a S14 é o modo predominante no cérebro e a S28 no sistema digestório). A somatostatina é um hormônio paninibidor. Além de seu papel na regulação da secreção de GH, também inibe a secreção de TSH. Sua distribuição em várias regiões do sistema nervoso (no qual certamente atua como neurotransmissor ou neuromodulador), no pâncreas (nas células delta, onde inibe a secreção tanto de insulina quanto de glucagon), no
intestino, na placenta e em outros tecidos indica que é secretada por diferentes tipos de células e desempenha diferentes funções, não sendo apenas a que o seu próprio nome sugere (ver Figuras 65.5, 65.7 e 65.9).
Biossíntese O gene da somatostatina está localizado no cromossomo 3q, contém 2 éxons e, nos mamíferos, apresenta 1,2 kb de comprimento. Esse gene é altamente conservado na evolução, ao contrário do gene do GHRH, e a sua expressão leva à síntese de um mRNA de 600 nucleotídios de comprimento, que codifica uma proteína precursora de 116 aminoácidos, a préprósomatostatina. O processamento da préprósomatostatina dá origem às formas S14 e S28, predominantemente (Figura 65.10). Os neurônios somatostatinérgicos envolvidos na regulação da secreção de GH encontramse distribuídos nos núcleos periventriculares do hipotálamo anterior, de onde partem em direção à eminência mediana do hipotálamo. Terminações nervosas somatostatinérgicas também se encontram presentes nos núcleos ventromedial e arqueado do hipotálamo, nos quais estabelecem sinapses com neurônios GHRHérgicos, arranjo que possibilita um segundo tipo de controle sobre a secreção de GH.
Figura 65.10 ■ Esquema representativo do processamento da proteína préprósomatostatina, precursora de somatostatina, em seus derivados: somatostatina 28 (que representa a prósomatostatina), 12 e 14, sendo esta última o modo mais abundante na circulação. aa, aminoácidos. (Adaptada de Karam, 1997.)
Regulação da síntese e secreção Basicamente a somatostatina é regulada pelo GH e IGFI, os quais estimulam sua síntese e secreção. O CRH, os glicocorticoides e a NE (por interação com receptores βadrenérgicos) também estimulam a secreção de somatostatina, razão pela qual em alguns tipos de estresse (condição em que a secreção de CRH encontrase bastante elevada) ocorre inibição da secreção de GH. Por outro lado, a acetilcolina inibe a liberação de somatostatina, induzindo, dessa maneira, liberação de GHRH. O TRH também inibe a secreção de somatostatina. Os estrógenos, a progesterona e os hormônios tireoidianos parecem estimular a expressão gênica e/ou a liberação de somatostatina (Figura 65.11). A grelina também reduz a secreção de somatostatina, o que reforça seus efeitos estimulantes sobre a secreção de GH. Demonstrouse, ainda, que um peptídio derivado do mesmo precursor da grelina, a obestatina, antagoniza os efeitos secretagogos do GH induzidos pela grelina, o que indica que ambos os peptídios atuam em neurônios GHRHérgicos.
Mecanismo de ação A somatostatina interage com receptores de membrana acoplados à proteína G inibitória (Gi) e ao sistema adenililciclase, provocando inibição da atividade desta enzima e, consequentemente, redução do conteúdo intracelular de cAMP nas célulasalvo. Todavia, quando, experimentalmente, se provoca um aumento do conteúdo de cAMP na célula alvo, a somatostatina impede os efeitos estimulantes do cAMP, o que sugere sua participação, também, em etapas subsequentes da sinalização intracelular. Sabese ainda que esse hormônio estimula o efluxo celular de potássio, o que causa hiperpolarização do somatotrofo, e reduz o influxo de Ca2+ pelos canais sensíveis a voltagem, de modo que parte de seus efeitos inibitórios sobre a secreção de GH pode ser decorrente desse mecanismo. Alguns estudos apontam que suas ações inibitórias também podem ser mediadas via inibição da expressão dos genes cfos e cjun.
A somatostatina é metabolizada por ação de endopeptidases no SNC, no tecido hepático e no plasma.
▸ Hormônio liberador de prolactina (PRH) Várias substâncias obtidas em frações purificadas de extratos hipotalâmicos têm se mostrado capazes de promover liberação de prolactina (Prl). As primeiras suspeitas com referência à existência de um fator hipotalâmico liberador de Prl recaíram sobre o TRH, já que havia consideráveis evidências de que ele era um potente agente fisiológico que estimulava a secreção de Prl e que mantinha o tônus basal de estímulo da secreção desse hormônio (ver anteriormente).
Figura 65.11 ■ Representação esquemática do controle neuroendócrino da síntese e secreção de somatostatina (SS) pelo núcleo periventricular do hipotálamo anterior (NPeV). Note as influências excitatórias (GH, IGFI, CRH, glicocorticoides, T3 e NE – via receptores βadrenérgicos) e inibitórias (TRH e acetilcolina – ACh) sobre esse sistema. (Adaptada de Cone et al., 2003.)
Sendo assim, temos que: (1) a sucção da mama, potente estímulo para a liberação de Prl, promove também aumento da liberação de TSH, em ratas; (2) os níveis de TRH na circulação portahipotálamohipofisária encontramse aumentados em resposta à sucção da mama ou à estimulação dos nervos mamários; (3) ratas hipotireóideas, nas quais o tônus inibitório exercido pelos hormônios tireoidianos sobre a liberação de TRH encontrase diminuído, apresentam lactogênese bastante estimulada frente à sucção da mama; (4) frente ao teste de estímulo da liberação de TSH por TRH, observase, concomitantemente, aumento da liberação de Prl; (5) no hipotireoidismo primário se observa exagerada resposta de liberação de TSH e Prl frente à administração de TRH, havendo ausência de resposta destes hormônios no hipertireoidismo. Apesar dessas evidências, o papel fisiológico do TRH como hormônio liberador de Prl ainda é questionável, visto que, em algumas espécies, essa ação não está bem caracterizada e que em situações como estresse e sono, em que ocorre aumento da secreção de Prl, não acontece concomitante elevação da liberação de TRH, nem de TSH. Estudos in vitro demonstraram que o peptídio intestinal vasoativo (VIP) é capaz de induzir liberação de Prl, mesmo em baixas concentrações. Esse peptídio, que foi isolado a partir do intestino delgado, está presente na circulação porta hipofisária em concentrações que, quando testadas in vitro, induzem liberação de Prl. A administração de antissoro anti
VIP em animais de experimentação bloqueia ou reduz a secreção de Prl que ocorre no estresse. Dando suporte a esses achados, a presença de receptores de VIP foi evidenciada em membranas de células lactotróficas. Outro fator que induz liberação de Prl é o peptídio histidinaisoleucina (HIP). O HIP e o VIP são sintetizados a partir de uma proteína precursora comum e coexistem com o CRH nos neurônios parvicelulares dos núcleos paraventriculares, o que poderia, inclusive, explicar a liberação paralela de ACTH e Prl no estresse. Igualmente, vários outros neurotransmissores ou neuromoduladores e hormônios têm sido apontados como estimulantes da secreção de Prl. Dentre eles, temos: serotonina (que exerce controle sobre a secreção de Prl durante a lactação), bombesina, substância P, neurotensina, βendorfina, encefalina, angiotensina II, ocitocina, histamina e melatonina. Há estudos que sugerem a presença de um fator liberador de Prl na hipófise posterior, uma vez que a sua remoção diminui ou abole a secreção de Prl induzida pela sucção da mama em algumas espécies. Experimentos in vitro, em que se estudou a liberação hipofisária de Prl, confirmaram a presença de um potente PRF na hipófise posterior. A identidade desse PRF ainda não é conhecida; porém, as evidências indicam que não se trata da ocitocina, TRH nem angiotensina II, peptídios que se apresentam em grande quantidade na neurohipófise e que também exercem efeitos estimulantes sobre a secreção de Prl. No entanto, há evidências de uma população de neurônios ocitocinérgicos provenientes dos núcleos supraópticos e paraventriculares que se dirigem à eminência mediana, que teriam um papel na liberação de Prl durante a lactação.
▸ Fatores inibidores da secreção de prolactina (PIF) O fato de a hipófise apresentar capacidade de secretar espontaneamente Prl quando transplantada para outra região ou mesmo quando em meio de cultura, somado aos estudos que demonstraram que extratos de hipotálamo inibiam a secreção de Prl, desencadearam uma série de pesquisas com o propósito de identificar o fator inibidor da liberação de Prl, o PIF. Várias evidências indicaram que essa atividade inibidora da liberação de Prl era determinada pela dopamina, amina biogênica com ampla distribuição e diferentes funções no SNC. No hipotálamo, os neurônios dopaminérgicos são encontrados principalmente no núcleo arqueado, de onde partem terminações nervosas em direção à eminência mediana, região em que a dopamina é liberada para alcançar a adenohipófise, via sistema portahipotálamohipofisário. Uma segunda via pela qual a dopamina tem acesso à adenohipófise é através dos vasos portais curtos provenientes da neuro hipófise, uma vez que os neurônios dopaminérgicos também se dirigem do núcleo arqueado para a neurohipófise. Dentre as várias evidências de que a dopamina é o PIF fisiológico, temos que: (1) a dopamina é encontrada no sangue portal em concentrações superiores às observadas na circulação periférica, sendo suficiente para inibir a secreção de Prl in vitro e in vivo; (2) a administração de dopamina, de modo a alcançar concentrações semelhantes às encontradas no sangue portal, leva à inibição da secreção de Prl in vitro, o mesmo ocorrendo in vivo quando da sua infusão direta em um vaso portal; (3) receptores de dopamina apresentamse amplamente distribuídos na hipófise, particularmente nos lactotrofos; (4) inibidores de síntese de dopamina, como a alfametilparatirosina, elevam os níveis circulantes de Prl, os quais diminuem com a infusão de dopamina e (5) agonistas dopaminérgicos levam à diminuição dos níveis circulantes de Prl.
Biossíntese de dopamina A dopamina é sintetizada a partir da hidroxilação da tirosina, pela tirosina hidroxilase (ou TH), seguindose a descarboxilação do produto (LDopa). A TH é a enzimachave da reação de síntese de dopamina. Seu gene está localizado no cromossomo 11 p, em neurônios catecolaminérgicos e células neuroendócrinas. Múltiplos mRNA para TH foram identificados, sugerindo regulação tecidual específica, enquanto a LDopa descarboxilase apresenta distribuição em vários tecidos. Há quatro vias dopaminérgicas no SNC, no entanto, é a que se projeta do núcleo arqueado à eminência mediana ou, em algumas espécies, ao lobo intermediário (sistema tuberoinfundibular) que exerce controle sobre a secreção de Prl.
Regulação da secreção Os neurônios dopaminérgicos do sistema tuberoinfundibular fazem parte do sistema de controle da secreção de Prl por retroalimentação de alça curta; eles apresentam receptores de Prl, mas não têm os de dopamina.
Mecanismo de ação A dopamina atua no lactotrofo via receptores do tipo 2 (D2R). Eles pertencem à família de receptores acoplados à proteína G e parecem se acoplar, na sua terceira alça citoplasmática, à proteína Gi e Go, que inibem a atividade da
adenilciclase, e Gq, que se acopla à fosfolipase C. Há duas isoformas de D2R com igual poder de inibição sobre a adenilciclase, e de ativação de canais de K+. A interação da dopamina com o receptor D2 leva à diminuição do conteúdo intracelular de cAMP e de Ca2+ e, por conseguinte, à diminuição da síntese e secreção de Prl. A relação da dopamina com a fosfolipase C permanece ainda obscura, embora a dissociação da dopamina de seu receptor provoque ativação desta enzima. Apesar de a dopamina ser amplamente aceita como o PIF fisiológico, vários outros fatores hipotalâmicos têm sido apontados como potencialmente capazes de inibir a liberação de Prl. Estudos in vitro demonstraram que o GABA é capaz de inibir a liberação espontânea de Prl, embora seja necessário em quantidades bem maiores do que as de dopamina para produzir o mesmo efeito. A presença de receptores GABAérgicos em membranas hipofisárias e a existência de terminações nervosas GABAérgicas na eminência mediana do hipotálamo sugerem fortemente que esse aminoácido possa exercer algum tipo de controle sobre a secreção de Prl. Contudo, a sua baixa concentração no sangue portal (com valores semelhantes aos detectados na circulação periférica) é um forte indício de que não tenha um papel funcional importante, pelo menos em condições fisiológicas. Demonstrouse a existência de um segundo PIF, que, em concentrações fisiológicas, inibe a secreção de Prl in vitro. Esse peptídio, constituído de 56 aminoácidos, foi denominado GAP (peptídio associado ao GnRH), por fazer parte da porção carboxiterminal da molécula de próGnRH. Após o processamento do próGnRH, esse peptídio é secretado na eminência mediana do hipotálamo no qual alcança a circulação portahipofisária. O fato de o GnRH e o GAP apresentarem um precursor comum indica que a secreção das gonadotrofinas e Prl estão acopladas e relacionadas de maneira inversa, de modo que quando os neurônios hipotalâmicos são estimulados a secretar GnRH de um modo regular, os níveis de gonadotrofinas circulantes estariam elevados e os de Prl suprimidos; isto poderia ocorrer durante os ciclos reprodutivos. Por outro lado, a liberação de Prl e a inibição da secreção de gonadotrofinas, que ocorre por ocasião da lactação, poderiam ser explicadas como resultado da frequência irregular de descargas dos neurônios GnRHérgicos. Nesse sentido, distúrbios como o hipogonadismo e a amenorreia estão frequentemente associados à hiperprolactinemia, quando então a secreção pulsátil de GnRH está alterada e baixa e, portanto, inibindo insuficientemente a secreção de Prl. Por fim, a ação dos estrógenos sobre o hipotálamo aumenta agudamente a secreção de Prl enquanto diminui a de LH (Figura 65.12). Contudo, falta a comprovação in vivo do efeito inibitório do GAP sobre a secreção de Prl.
▸ Hormônio liberador de corticotrofina (CRH) O CRH é um peptídio de 41 aminoácidos, caracterizado a partir de hipotálamo de ovinos, que tem a propriedade de estimular as células corticotróficas a expressarem o gene da próopiomelanocortina (POMC). A proteína resultante, POMC, é então processada, gerando ACTH e outros produtos (as melanocortinas). Apesar de somente ter sido caracterizado em 1981, a existência de um fator liberador de ACTH foi proposta em 1955, após a evidência de que a coincubação de fragmentos de tecido hipotalâmico e adenohipofisário levava a um aumento da secreção de ACTH para o meio de incubação. Alguns peptídios hipotalâmicos, tais como ADH, angiotensina II e colecistocinina (CCK), também apresentam ação estimulante sobre a liberação de ACTH; contudo, o CRH se mostrou muito mais potente em estimular a liberação de ACTH, tanto in vitro como in vivo, que qualquer um desses peptídios, razão pela qual é considerado o hormônio liberador de ACTH. O CRH circula ligado a proteínas transportadoras (CRHBP), as quais determinam a sua meiavida plasmática (que é em torno de 1 h). Essas proteínas também se apresentam em outros tecidos nos quais têm participação, provavelmente, na modulação das ações do CRH (ver adiante). O ADH foi por algum tempo considerado como um CRH, uma vez que se demonstrou que a adição de extratos de neurohipófise em meio de incubação contendo células adenohipofisárias levava à liberação de ACTH. No entanto, o ADH exerce pequeno efeito liberador de ACTH, quando adicionado isoladamente a células hipofisárias, embora apresente efeitos marcantes quando associado ao CRH (Figura 65.13). De fato, há populações de corticotrofos que apresentam receptores para ADH, embora a maioria deles expresse, predominantemente, receptores para CRH. Ainda, algumas terminações nervosas presentes na eminência mediana do hipotálamo apresentam tanto CRH quanto ADH, o que poderia representar um potente mecanismo de potencialização da secreção de ACTH sob determinadas circunstâncias. Apesar dessas evidências, o papel do CRH como fator hipotalâmico primário envolvido na liberação de ACTH está bem definido, uma vez que a imunização passiva utilizandose antissoro antiCRH leva a uma redução marcante dos níveis plasmáticos de ACTH.
Figura 65.12 ■ Regulação neuroendócrina da secreção de prolactina (Prl). Os fatores estimulantes e inibidores da liberação da Prl estão descritos no texto. (Adaptada de Reichlin, 1992.)
Biossíntese O CRH é sintetizado em neurônios localizados na porção parvicelular dos núcleos paraventriculares, como parte de um próhormônio que sofre processamento enzimático até alcançar a sua forma amidada. A secreção desse peptídio se dá ao nível da eminência mediana do hipotálamo, na circulação portahipofisária. Vários tecidos de mamíferos expressam o CRH, e embora o seu papel ainda não tenha sido caracterizado, acreditase que ele atue ativando a transcrição gênica da POMC, participando assim do controle autócrino/parácrino da produção de opioides e melanocortinas (MSH). Células que expressam POMC estão distribuídas na derme, no folículo piloso, no qual as melanocortinas regulam a produção de pigmentos. Sabese que os opioides apresentam ações analgésicas e que as melanocortinas também exercem efeitos na modulação da resposta inflamatória e imune. O gene do CRH está localizado no cromossomo 8 e apresenta 2 éxons. Uma característica interessante desse gene é que ele tem vários locais de poliadenilação na sua região 3’ não tradutível, o que indica que, dependendo do tecido em que é expresso, seu mRNA pode ter diferentes comprimentos e, portanto, apresentar graus variados de estabilidade e taxa de tradução, processos que, na maioria das vezes, estão relacionados diretamente com o grau de poliadenilação do transcrito.
Figura 65.13 ■ Efeito potencializador da arginina vasopressina (AVP ou hormônio antidiurético) sobre a secreção do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH ou corticotrofina) induzida pelo hormônio liberador de corticotrofina (CRH), em células hipofisárias isoladas de ratos. A. Curvas que representam a liberação de ACTH em resposta ao CRH, à AVP e a ambos os peptídios. B. Resposta de liberação de ACTH frente à administração de extratos de eminência mediana do hipotálamo. Note que essa curva se assemelha à curva doseresposta observada quando da combinação da administração de AVP e CRH, sugerindo que esse efeito seja resultado de uma ação combinada do CRH e AVP. (Adaptada de Gillies et al., 1982.)
Regulação da síntese e secreção A participação dos glicocorticoides como importantes sinalizadores no controle da secreção de CRH pode ser evidenciada por meio de estudos em animais adrenalectomizados, em que os altos níveis de ACTH apresentam pronta redução após administração de antissoro antiCRH. Ademais, o conteúdo hipotalâmico de CRH, bem como do seu mRNA, aumenta após adrenalectomia e diminui após administração de glicocorticoides, o que aponta a existência de um mecanismo de retroalimentação negativa exercido pelos glicocorticoides a nível hipotalâmico (Figura 65.14). Os glicocorticoides também exercem uma importante ação na hipófise: na vigência de altos níveis de glicocorticoides, além de menor secreção de CRH, ocorre supressão da resposta hipofisária ao CRH. Porém, mesmo altas doses de dexametasona não conseguem abolir totalmente a capacidade do CRH em induzir alguma secreção de ACTH, o que pode ser importante para a nossa compreensão a respeito da secreção de ACTH no estresse. Em regiões como amígdala (no SNC) e placenta, os glicocorticoides estimulam a síntese de CRH; contudo, o mecanismo molecular envolvido nessas ações dos glicocorticoides continua desconhecido. Os estrógenos também estimulam a expressão gênica de CRH, o que pode ser demonstrado pelo maior conteúdo de mRNA do CRH em hipotálamos de fêmeas, em relação aos de machos. É interessante comentar que fatores como angiotensina II, citocinas e mediadores lipídicos da inflamação alteram a atividade dos neurônios CRHérgicos e, portanto, a liberação de CRH, contribuindo com a ativação do eixo hipotálamohipófise suprarrenais que ocorre durante o estresse induzido pela inflamação. Da mesma maneira que os outros neurônios hipotalâmicos que secretam hormônios, os neurônios CRHérgicos recebem uma série de terminações nervosas provenientes de várias regiões do sistema nervoso, tais como: (1) do núcleo do trato solitário, que por sua vez recebe impulsos nervosos viscerais (via nervos vago e glossofaríngeo) do coração, pulmões e sistema digestório; (2) de vias adrenérgicas provenientes da formação reticular, locus coeruleus e núcleo do trato solitário; (3) de vários núcleos hipotalâmicos e de várias regiões do sistema límbico. Vale comentar que o bed nucleus da estria terminal (BST) é a única região do sistema límbico que apresenta projeções diretas aos neurônios CRHérgicos do núcleo paraventricular (NPV). O fato de o BST receber projeções da amígdala, hipocampo e núcleo septal sugere que ele seja um centro integrativo de fundamental importância para a transmissão de informações límbicas ao NPV. Todas essas aferências sinalizam impulsos provocados por estresse, hipovolemia, hipoxia, hiperosmolaridade e dor. Não obstante, no rato, a desaferentação do hipotálamo leva a um aumento dos níveis plasmáticos de corticosterona,
sugerindo que, em condições basais, o somatório das influências exercidas pelo SNC sobre a secreção de CRH seja predominantemente inibitório. No entanto, algumas estruturas, tais como a amígdala, têmse mostrado predominantemente facilitatórias sobre a secreção de ACTH, principalmente na resposta ao estresse neurogênico. À semelhança do GHRH, a hipoglicemia também é um potente indutor da secreção de CRH. Isso ocorre porque a hipoglicemia é reconhecida pelo hipotálamo como uma forma de estresse (ver adiante). Nessa resposta à hipoglicemia há o envolvimento de vias αadrenérgicas, já que a utilização de antagonistas alfaadrenérgicos inibe esse efeito. Vários outros neurotransmissores estão envolvidos nas respostas fisiológicas dos neurônios que produzem CRH: a acetilcolina e a serotonina facilitam a secreção de CRH; a administração intracerebroventricular de norepinefrina provoca elevação da concentração de CRH, AVP e ACTH, ocorrendo o mesmo após administração de neuropeptídio Y (NPY).
Figura 65.14 ■ Esquema representativo da regulação neuroendócrina do eixo hipotálamohipófisesuprarrenais. Note os diversos componentes que interferem na sua atividade (hormônios como cortisol e leptina, citocinas e sinais periféricos gerados em resposta a variados tipos de estresse fisiológicos e neurogênicos). ACTH, hormônio adrenocorticotrófico ou corticotrofina; AVP, arginina vasopressina; BST, bed nucleus da estria terminal; SNC, sistema nervoso central; CRH, hormônio liberador de corticotrofina; GABA, ácido gamaaminobutírico; 5HT, serotonina; IL1, 2 e 6, interleucinas 1, 2 e 6; TNFα, fator de necrose tumoral α; MeA, amígdala medial; MePO, área préóptica medial; NPY, neuropeptídio Y; NTS, núcleo do trato solitário; OVLT, órgão vasculoso da lâmina terminal (osmorreceptor); POMC, próopiomelanocortina. (Adaptada de Cone et al., 2003.)
Resposta ao estresse A secreção de ACTH é sensível ao estresse. O estresse causa elevação dos níveis plasmáticos de ACTH acima dos valores normais: a magnitude dessa elevação está relacionada com o tipo e a intensidade do estresse. As suprarrenais respondem ao aumento da secreção de ACTH induzido pelo estresse produzindo maiores quantidades de glicocorticoides. A elevação dos glicocorticoides circulantes atua regulando a secreção de ACTH por feedback negativo. No entanto, na maior parte dos casos, isso não ocorre. Acreditase que durante o estresse, devido às aferências provenientes de outras partes do SNC, os neurônios hipotalâmicos produtores de CRH apresentam uma elevação do seu setpoint de secreção, o que faz com que mesmo concentrações elevadas de glicocorticoides não sejam capazes de bloquear a secreção de CRH e ACTH.
Mecanismo de ação O CRH se liga a receptores específicos localizados na membrana celular das células corticotróficas, o que provoca aumento da geração intracelular de cAMP e consequente síntese e processamento de POMC, com liberação de ACTH. A seguir, verificase elevação da secreção de cortisol, cujos níveis circulantes são importantes sinalizadores para a regulação negativa da secreção de CRH; os glicocorticoides, quando em altas concentrações plasmáticas, reduzem ou abolem a secreção do CRH, bem como a sua ação a nível hipofisário. O receptor de CRH também se encontra expresso em outras regiões do SNC, tais como hipotálamo, córtex cerebral, sistema límbico e medula espinal, o que explica certos efeitos centrais do CRH, como estimulação da atividade simpática, elevação da pressão arterial, taquicardia, alteração dos pulsos de liberação de GnRH (causando hipogonadismo hipotalâmico) e inibição do comportamento de ingestão alimentar e sexual, característicos do estresse.
CONTROLE NEUROENDÓCRINO DO RITMO DE SECREÇÃO HORMONAL Em todos os sistemas fisiológicos, sem exceção, constatase ritmicidade, principalmente circadiana. Qualquer variável fisiológica não se mantém estável e constante ao longo das 24 h, mas apresenta uma flutuação diária regular, filogeneticamente incorporada e geneticamente determinada, cuja finalidade é preparar o organismo antecipadamente às alterações previsíveis da alternância do dia e da noite. A secreção de qualquer hormônio também apresenta ritmicidade circadiana. O perfil secretório dos principais hormônios ao longo das 24 h mostra que, para alguns, como o ACTH, a variação entre os valores mínimos (nadir) e máximos (acrofase) pode ser de 14 vezes, enquanto para outros, tais como os hormônios da tireoide, essa variação é quase imperceptível. Essa enorme variabilidade devese principalmente a uma variação rítmica circadiana endógena. Os glicocorticoides apresentam uma secreção circadiana tal que, em seres humanos, por exemplo, alcança seu pico máximo coincidentemente com o terceiro terço do sono noturno, precedendo imediatamente a vigília. Essa mesma relação entre o ritmo circadiano dos glicocorticoides e o ciclo circadiano de atividade e repouso pode ser notada em um grande número de espécies de vertebrados, e é exclusivamente temporal e não causal: indivíduos que são forçados a dormir a cada três horas continuam apresentando uma distribuição circadiana na concentração plasmática de cortisol. Outra secreção hormonal que apresenta distribuição circadiana bem evidente é a do GH. Em humanos, o pico máximo do GH ocorre no primeiro terço da noite de sono, coincidindo com a maior incidência de sono sincronizado de ondas lentas. Da mesma maneira que para os glicocorticoides, as relações entre os ciclos circadianos vigíliasono e de concentração plasmática de GH são principalmente temporais, e não causais. Várias outras secreções endócrinas também apresentam ritmicidade circadiana: TSH, Prl, LH, FSH, aldosterona, renina e testosterona. No entanto, para o LH e para o GnRH, são muito mais evidentes e fisiologicamente importantes as suas secreções infradianas (obedecendo aos ciclos estrais) e pulsáteis (caracterizando um ritmo ultradiano que, no ser humano, tem um período de aproximadamente 2,3 h).
▸ Origem da ritmicidade circadiana No começo da década de 1970, empregandose técnicas neuroanatômicas de coloração de terminações degeneradas pela prata e autorradiografia, foi possível identificar em várias espécies animais, incluindo roedores e primatas, a existência de uma projeção retiniana direta para o hipotálamo anterior, mais especificamente para os núcleos supraquiasmáticos (SQN). Os experimentos mostraram que a lesão do SQN eliminava, em roedores, a ritmicidade circadiana de vários eventos fisiológicos e comportamentais: (1) atividade e repouso, (2) comportamento exploratório e de autolimpeza, (3) comer e beber, (4) sono e vigília, (5) flutuação circadiana da frequência cardíaca, (6) temperatura, assim como (7) ritmos de secreção hormonal de glicocorticoides e melatonina. A partir desses experimentos, temse fixado o conceito de que o SQN constitui o oscilador circadiano por excelência em todos os mamíferos. Sendo assim, verificouse que o SQN capta, com um ciclo de 24 h, glicose marcada, o que evidencia um ritmo circadiano de atividade metabólica celular de seus neurônios; esses neurônios apresentam, ainda, seja in vivo ou in vitro, um ritmo circadiano de atividade elétrica celular; há, também, evidências de que se um animal adulto que foi tornado arrítmico por lesão do SQN receber um transplante de células do SQN de um feto, ele recupera parcialmente a ritmicidade circadiana de eventos fisiológicos e comportamentais. No entanto, em primatas, o SQN não parece ser o único oscilador circadiano, uma vez que sua lesão não abole a totalidade dos ritmos circadianos, persistindo o ritmo de temperatura central, a secreção de cortisol e a incidência circadiana de sono REM. Em humanos, existem evidências da presença de dois grandes osciladores circadianos relacionados com: (1) ciclo sonovigília, secreção de GH, excreção urinária de cálcio, ritmos comportamentais de desempenho, comer e beber; (2) sono REM, temperatura central, secreção de glicocorticoides e excreção urinária de potássio. O oscilador que regula o primeiro grupo parece ser o SQN, caracterizado por um freerunning de cerca de 32 h. O oscilador responsável pelo segundo grupo tem um período endógeno de aproximadamente 25 h; sua localização anatômica não está determinada, sabendose apenas que não se localiza, como o SQN, no hipotálamo anterior. Nas aves, ao lado do SQN, existem fortes evidências que apontam para a glândula pineal como um oscilador circadiano de grande importância. Ao longo da evolução nos vertebrados, a glândula pineal passa de um órgão essencialmente fotorreceptor (em peixes, anfíbios, répteis e aves) para um órgão exclusivamente endócrino (em mamíferos). Seu produto de secreção mais importante é a melatonina, um hormônio produzido a partir da serotonina pela ação de duas enzimas importantes: a hidroxiindolmetiltransferase e a Nacetiltransferase. A melatonina, apesar de não ser responsável pelo controle da ritmicidade circadiana, tem, nessa classe, ações extremamente importantes: (1) surtos sazonais de reprodução, (2) regulação da secreção de vários hormônios, principalmente dos glicocorticoides, e (3) ações sobre o sistema imunológico. Mais recentemente, genes (denominados clock genes) que codificam proteínas relacionadas com a ritmicidade circadiana (como as Per1 e Per2), foram identificados em vários tecidos, bem como no núcleo supraquiasmático. Tais genes parecem estar envolvidos com a sincronização para a luz; a avaliação da expressão deles nos tecidos e em diferentes condições fisiológicas vem trazendo contribuição importante para a compreensão da origem desses ritmos. Outros detalhes a respeito desse assunto encontramse no Capítulo 5, Ritmos Biológicos.
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Introdução
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Relações anatomofuncionais
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Adenohipófise
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Neurohipófise Hormônios neurohipofisários Ocitocina
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Agradecimento Bibliografia
INTRODUÇÃO Há mais de um século sabiase que a remoção ou destruição de uma estrutura localizada na base do encéfalo – em uma concavidade do osso esfenoide denominada sela túrcica – leva a alterações no desenvolvimento, crescimento e reprodução dos seres humanos e animais. Hoje, sabese que, devido à multiplicidade dos hormônios secretados pela hipófise, esta glândula está envolvida em praticamente todas as funções endócrinas do organismo, desde a manutenção da constância do meio interno até a reprodução. A falência da hipófise (ou hipopituitarismo) está associada a uma diminuição da qualidade de vida e, nos casos mais graves, à morte.
RELAÇÕES ANATOMOFUNCIONAIS A hipófise, na espécie humana, apresenta proporções diminutas: 10 × 13 × 6 mm. Mantémse conectada, por meio da haste hipofisária ou pedúnculo hipofisário, ao sistema nervoso central (SNC), mais precisamente ao hipotálamo, com o qual guarda importantes relações anatômicas e funcionais. Em humanos, a hipófise apresentase dividida em basicamente duas porções: (1) hipófise anterior ou adenohipófise e (2) hipófise posterior ou neurohipófise. Na maioria dos vertebrados, porém, a adenohipófise apresenta, além da pars distalis, região secretora de grande parte dos hormônios adenohipofisários, a pars intermedia, cujo principal produto de secreção é o hormônio melanotrófico ou αmelanotrofina (αMSH). Este peptídio originase a partir da pró opiomelanocortina (POMC), cujo gene é expresso em vários tecidos. Este hormônio induz a dispersão dos grânulos de melanina dos melanócitos em peixes e anfíbios, o que leva ao escurecimento da pele, fazendo com que sejam confundidos com os elementos do seu hábitat, como troncos das árvores. Esse fenômeno, denominado mimetismo, é fundamental para a proteção desses animais no meio ambiente, uma vez que dificulta a ação de possíveis predadores. Em humanos, a pars intermedia é fisiologicamente ativa durante o desenvolvimento fetal, e o αMSH importante para o crescimento fetal, em particular para o desenvolvimento do sistema nervoso. No entanto, após o nascimento, essa região praticamente deixa de ser funcional, e o hormônio αMSH é indetectável na circulação. A adeno e a neurohipófise são constituídas de células de distintas origens embriológicas. A adenohipófise deriva de uma evaginação do teto da cavidade oral, a bolsa de Rathke, e apresenta características morfológicas de células epiteliais. A neurohipófise, por outro lado, deriva de uma projeção do assoalho do terceiro ventrículo (hipotálamo) (Figura 66.1), e
possui uma população de células gliais, conhecida por pituícitos, e axônios, cujos corpos celulares encontramse agrupados em núcleos específicos do hipotálamo. A vascularização da hipófise é feita pelas artérias hipofisárias superior e inferior (ramos da carótida interna) e por um complexo sistema vascular especializado, denominado sistema porta hipotálamohipofisário. Por meio deste sistema, o sangue venoso proveniente da eminência mediana do hipotálamo se dirige à adenohipófise, trazendo neuropeptídios secretados por neurônios hipotalâmicos, como será visto adiante. O papel desses neuropeptídios é controlar (ativando ou inibindo) a secreção dos hormônios adenohipofisários. Por outro lado, o suprimento sanguíneo da neurohipófise é feito pelas artérias hipofisárias inferiores, e totalmente independente do suprimento sanguíneo da adenohipófise. Entretanto, devido à existência de capilares curtos que partem da neurohipófise e dirigemse à adenohipófise, admitese que os hormônios neurohipofisários também possam influenciar o funcionamento da adenohipófise (ver Figura 65.1, no Capítulo 65, Hipotálamo Endócrino).
ADENOHIPÓFISE A adenohipófise é constituída de cinco tipos celulares fenotipicamente distintos que, durante o desenvolvimento, surgem na seguinte ordem temporal: corticotrofos, tireotrofos, gonadotrofos, somatotrofos e lactotrofos. Essas células são responsáveis pela síntese e secreção, respectivamente, de: hormônio adrenocorticotrófico (ACTH), hormônio tireotrófico (TSH), gonadotrofinas (hormônio luteinizante ou LH e hormônio foliculestimulante ou FSH), hormônio do crescimento (GH) e prolactina (Prl). Algumas células hipofisárias, reconhecidas como somatomamotrofos, têm a capacidade de secretar tanto GH quanto Prl. Tanto os somatomamotrofos como os lactotrofos derivam de células produtoras de GH. Entretanto, alguns peptídios biologicamente ativos, como as lipotrofinas e os opiáceos endógenos, que são derivados do processamento póstraducional da molécula da POMC, também têm sua origem na adenohipófise.
Figura 66.1 ■ Ilustração da origem embriológica da neuro e da adenohipófise. Observase que a neurohipófise deriva da evaginação do assoalho do diencéfalo, razão pela qual é constituída de células gliais (pituícitos) e apresenta terminações nervosas provenientes de corpos celulares de neurônios localizados em núcleos hipotalâmicos específicos (núcleos supraópticos e paraventriculares), daí a origem de sua denominação. A adenohipófise deriva da evaginação do teto da cavidade bucal, razão pela qual suas células são de origem epitelial, apresentando retículo endoplasmático desenvolvido, o que sugere elevada capacidade de síntese proteica.
É interessante comentar que ocorrem intensas interações parácrinas entre as células adenohipofisárias, o que sugere um plano horizontal de controle da secreção hipofisária que atuaria em paralelo ao vertical, representado pelo eixo hipotálamohipófise. Deste controle participam as células foliculestelares (células FS), que compreendem cerca de 5% a 10% das células da adenohipófise. Essas células são agranulares e apresentam uma morfologia típica de estrela, formando folículos na adenohipófise, e se interdigitando com as demais células endócrinas. Essa organização favorece a comunicação dinâmica entre os dois tipos celulares. Elas apresentam atividade fagocítica, produzem vários fatores de crescimento e citocinas; mais recentemente, é atribuído a elas um possível papel de célulatronco.
▸ Histofisiologia
Tradicionalmente, as células da adenohipófise são classificadas, de acordo com suas características tintoriais, em cromófilas (que englobam as basófilas e as acidófilas) e cromófobas. Atualmente, a classificação existente se baseia em técnicas que incluem microscopia eletrônica, imunohistoquímica e hibridização in situ. As células tireotróficas, gonadotróficas e corticotróficas são basófilas, enquanto as somatotróficas e lactotróficas são acidófilas. Admitese que, funcionalmente, as células cromófobas possam representar populações celulares que estão em alto turnover de secreção hormonal, e que permanecem, transitoriamente, sem grandes estoques hormonais e, portanto, sem grande afinidade pelos corantes. Evidências mais recentes, contudo, as colocam como células foliculestelares. Estudos minuciosos da distribuição dos diferentes tipos celulares no parênquima hipofisário mostram que as células acidófilas (produtoras de GH e Prl), mais abundantes, tomam a maior parte das asas laterais da glândula; por sua vez, os gonadotrofos e tireotrofos localizamse central e anteriormente, enquanto os corticotrofos dispõemse próximo à neuro hipófise, podendo, dessa maneira, receber grande influência dos hormônios neurohipofisários. De fato, entre os corticotrofos e a neurohipófise localizamse células que também expressam a POMC, cujo processamento pós traducional é distinto do que ocorre nos corticotrofos: o resultado é a secreção de MSH (ver adiante).
▸ Hormônios adenohipofisários De acordo com sua constituição química, os hormônios adenohipofisários são classificados em: glicoproteicos (TSH, LH e FSH), proteicos (GH e Prl) e peptídicos [os peptídios relacionados com a POMC – ACTH e as melanocortinas (MSH, lipotrofina e opiáceos endógenos)].
Hormônios glicoproteicos (TSH, LH e FSH) Os hormônios glicoproteicos são constituídos por duas subunidades polipeptídicas denominadas alfa e beta. A subunidade alfa é comum aos três hormônios, sendo, portanto, a subunidade beta que confere especificidade biológica a cada um deles, ou seja, a especificidade de ligação aos receptores. A especificidade imunológica desses três hormônios, todavia, depende de ambas as cadeias. Cada uma das cadeias é codificada por um gene distinto, e o gene da cadeia alfa é superexpresso. O gene que codifica a cadeia beta é regulável por mecanismos de feedback negativo e há evidências de que o da cadeia alfa também o seja, no entanto, por mecanismos ainda pouco conhecidos. Dessa maneira, a biossíntese dessas glicoproteínas se dá no retículo endoplasmático pelo acoplamento de quantidades limitantes de cadeias beta com igual número de moléculas da cadeia alfa. A interação entre essas duas moléculas é do tipo eletrohidrofóbica, não existindo ligações covalentes entre as duas cadeias. A inserção de moléculas de carboidratos ocorre após a união das subunidades alfa e beta, e dela depende a atividade biológica e a meiavida (t1/2) desses hormônios. Devese salientar que a placenta também expressa um hormônio glicoproteico, homólogo aos hormônios adenohipofisários: a gonadotrofina coriônica (GCH), cujo efeito biológico é similar ao do LH. A construção de moléculas híbridas (p. ex., cadeia alfa do TSH com cadeia beta do LH) confere efeito biológico indistinguível ao do hormônio doador da cadeia beta (no exemplo, LH). Pequenas quantidades de cadeias alfa e beta são secretadas sem estarem acopladas; essas moléculas não exibem efeito biológico, sendo rapidamente degradadas. Hormônio tireotrófico (TSH) O TSH, hormônio tireotrófico, também conhecido como hormônio tireoestimulante ou tireotrofina, é uma glicoproteína de 28 kDa sintetizada nos tireotrofos, que representam 5% das células hipofisárias. A glicosilação de suas subunidades ocorre no retículo endoplasmático rugoso e Golgi, no qual os resíduos de glicose, manose, fucose e ácido siálico incorporados à sua molécula conferem atividade biológica ao hormônio, bem como alteram sua taxa de clearance metabólico. Dessa maneira, alterações nesta etapa póstranscricional de regulação da expressão gênica, que é a glicosilação, comprometem a atividade biológica do TSH. A função primária do TSH consiste em induzir alterações morfológicas e funcionais nas células foliculares tireoidianas, que se caracterizam por: (1) hipertrofia e hiperplasia das mesmas, (2) estímulo da síntese de tireoglobulina e (3) estímulo da síntese de proteínaschave envolvidas na síntese e secreção dos hormônios tireoidianos – tiroxina (T4) e triiodotironina (T3) – mecanismo pelo qual participa do controle do metabolismo em geral (mais detalhes no Capítulo 68, Glândula Tireoide). A secreção deste hormônio ocorre em pulsos, a cada 2 ou 3 h, que se superpõem à sua secreção basal. Apresenta um padrão circadiano de secreção que se caracteriza por níveis noturnos aproximadamente 2 vezes superiores aos apresentados durante o dia.
▸ Efeitos biológicos. Os efeitos do TSH sobre a glândula tireoide podem ser claramente evidenciados em situações de hiper e hipossecreção desse hormônio. Quando seus níveis circulantes estão elevados, observase que o epitélio folicular tireoidiano sofre hipertrofia, tornandose cilíndrico (originalmente é cúbico simples), e passa a apresentar um maior número de células (ou hiperplasia). A glândula tornase bastante vascularizada, provavelmente como reflexo dos efeitos metabólicos que o TSH exerce sobre o tecido, que estimula o consumo de oxigênio, de glicose e a síntese de mRNA e fosfolipídios. Como reflexo do aumento da atividade metabólica das células foliculares tireoidianas, ocorre aumento do número e atividade das microvilosidades na sua região apical, o que promove maior endocitose de coloide. Portanto, nessa condição, a quantidade de coloide intrafolicular sofre redução, em virtude do maior estímulo da atividade secretora. Já na diminuição ou ausência de TSH, evidenciamse sinais de hipofunção glandular: o epitélio folicular torna se pavimentoso, ocorre aumento do conteúdo do coloide intrafolicular, por redução da secreção hormonal, e a tireoide tornase menos vascularizada (Figura 66.2). Além dessas ações gerais, o TSH ativa todas as etapas que envolvem a biossíntese e secreção dos hormônios tireoidianos (ver Capítulo 68), a saber: (1) transporte ativo do iodeto do líquido extracelular para as células foliculares; (2) oxidação do iodeto e incorporação do iodo à molécula de tireoglobulina – proteína presente em grande quantidade no interior do coloide, cuja síntese também é estimulada pelo TSH; (3) conjugação das iodotirosinas e consequente formação das iodotironinas (T3 e T4, principalmente) e (4) secreção hormonal, que se inicia com a endocitose de coloide (processo que envolve a captura de coloide intrafolicular por microvilosidades existentes no polo apical das células foliculares) e posterior proteólise da tireoglobulina iodada, por aumento da atividade lisossomal. O TSH também ativa a enzima 5’desiodase do tipo I tireoidiana, que leva à geração de T3 a partir da desiodação do T4, efeito que possibilita a conservação do iodo na tireoide, e que uma parcela do T3 produzido na tireoide provenha do próprio T4. O resultado final dessas ações do TSH é a liberação dos hormônios tireoidianos para o citoplasma das células foliculares e, a seguir, para a circulação. Nem sempre a concentração plasmática e a atividade biológica dos hormônios glicoproteicos se correlacionam. Por exemplo, na síndrome de Sheehan, a hipófise, que se encontra hiperplásica em função da gravidez, fica com sua perfusão reduzida por ocasião de uma hemorragia pósparto, seguindose a diminuição da atividade do eixo hipotálamohipófisetireoide. Assim, em consequência à queda da concentração de hormônios tireoidianos no plasma, ocorre elevação da concentração plasmática de TSH, o que não reverte o hipotireoidismo, uma vez que sua atividade biológica intrínseca encontrase diminuída. Acreditase que o TSH plasmático apresente mais ácido siálico na sua molécula (isoforma alcalina), o que aparentemente o torna menos biologicamente ativo, porém mais estável (com aumento da sua meiavida ou t1/2). ▸ Mecanismo de ação. As ações biológicas do TSH são deflagradas por meio da sua interação com receptores, acoplados à proteína Gs, localizados na membrana das células foliculares tireoidianas. Dessa interação resulta a ativação do sistema enzimático adenililciclase e consequente aumento da geração intracelular de cAMP. Seguese a ativação da proteinoquinase A (PKA) e fosforilação de elementos proteicos da membrana, do citosol e do núcleo, eventos que resultam em proliferação e diferenciação das células foliculares tireoidianas, bem como em secreção hormonal. O TSH também interage com receptores de membrana acoplados à proteína Gq, que levam à ativação da via fosfatidilinositol e da proteinoquinase C (PKC), mecanismo pelo qual exerce controle sobre a síntese hormonal. Vale salientar que o receptor de TSH (TSHR) apresenta locais de ligação não somente para o TSH, mas também para autoanticorpos estimulantes do TSHR, os quais são encontrados em pacientes com hipertireoidismo autoimune (ou doença de Graves), bem como para autoanticorpos que, quando se ligam ao TSHR, bloqueiam a ação do TSH, os quais são encontrados em pacientes com tireoidite atrófica, que apresentam grave grau de hipotireoidismo. Obviamente a ligação desses autoanticorpos se dá em resíduos de aminoácidos diferentes na molécula do TSHR.
Figura 66.2 ■ Cortes histológicos da glândula tireoide de ratos, em diferentes estados funcionais. A. Tireoide normal, em que os folículos tireoidianos se apresentam revestidos por epitélio cúbico simples, que encerra o coloide intrafolicular, cuja principal proteína é a tireoglobulina. As setas apontam as células foliculares (f) e as parafoliculares (I), também conhecidas como células C, as quais secretam calcitonina. B. Tireoide de rato hipofisectomizado (portanto, sem sofrer influência do TSH), em que se observa que as células foliculares tornaramse pavimentosas, encerrando grande quantidade de coloide no lúmen folicular, caracterizando uma tireoide inativa. C. Glândula tireoide de rato sob intensa estimulação pelo TSH, em que se observa que o epitélio tornouse colunar, encerrando pequena quantidade de coloide, o que sugere intensa reabsorção do mesmo e, portanto, maior secreção tireoidiana. (Adaptada de Greep e Weiss, 1973.)
▸ Regulação da secreção. O controle da secreção de TSH é realizado basicamente por mecanismos que envolvem: (1) os hormônios tireoidianos circulantes, que atuam sobre tireotrofos e neurônios hipotalâmicos específicos por mecanismo de retroalimentação negativa, e (2) os hormônios produzidos no hipotálamo, liberadores e inibidores, cujo transporte à adenohipófise se dá por meio da circulação portahipotálamohipofisária (ver Capítulo 65). ▸ Hormônios tireoidianos. A regulação da secreção de TSH exercida pelos hormônios tireoidianos se dá predominantemente sobre a hipófise, e o T4 é o principal hormônio envolvido no processo. Este penetra no tireotrofo, onde sofre desiodação a T3, e misturase com iguais quantidades de T3 proveniente da circulação, para formar um pool comum de T3 que alimenta o compartimento nuclear. A interação do T3 com os receptores nucleares (1) inibe a expressão do gene que codifica a cadeia beta do TSH e em menor extensão a alfa e (2) induz a expressão de uma ou mais proteínas não identificadas que inibem a secreção dos grânulos de TSH já armazenados, levando, consequentemente, à queda dos níveis circulantes deste hormônio. Estudos recentes também apontam ações não genômicas do T3 reduzindo a meiavida e a taxa de tradução do mRNA que codifica a cadeia beta do TSH, bem como a redução da secreção deste hormônio. Essa ação do T3 parece resultar, ao menos em parte, da sua interação com a integrina de membrana (αvβ3). Os hormônios tireoidianos, ainda, controlam a síntese e secreção de TSH, via hipotálamo, no qual atuam em áreas específicas inibindo a síntese e secreção de TRH (porção parvicelular dos núcleos paraventriculares), bem como estimulando a secreção de somatostatina (área periventricular), o que leva a uma diminuição dos níveis circulantes de TSH (Figura 66.3). Devese, entretanto, salientar que o mecanismo mais potente de controle da secreção de TSH pelos hormônios tireoidianos ocorre na hipófise, o que pode ser evidenciado claramente pela ausência de liberação de TSH, frente à administração de grandes quantidades de TRH, em indivíduos que apresentam hipertireoidismo (ver Figura 65.5, no Capítulo 65). ▸ Hormônios hipotalâmicos. O TRH exerce ações estimulantes sobre a síntese e liberação de TSH, além de ser também um potente estimulante da liberação de Prl. Geralmente, o TRH age no tireotrofo, por meio de receptores de membrana, que ativa a via fosfatidilinositol. O sistema adenililciclasecAMP parece não estar envolvido, pelo menos diretamente, nas ações do TRH sobre o tireotrofo. O resultado dessa ação se reflete (1) na mobilização de Ca2+ dos estoques intracelulares e consequente elevação da concentração deste íon nos tireotrofos, o que leva à secreção do TSH armazenado, e (2) no aumento da síntese de TSH, a qual se deve à fosforilação, pela PKC, de elementos proteicos citosólicos que atuam sobre a transcrição gênica. O TRH também é importante para a etapa de glicosilação do TSH (ver Capítulo 65).
Figura 66.3 ■ Organização geral do sistema hipotálamohipófisetireoide e sua integração com o sistema nervoso e a periferia. Os núcleos NPV (paraventriculares) e NPeV (periventriculares) representam as regiões hipotalâmicas cujos neurônios expressam, respectivamente, o TRH e a SS. As linhas tracejadas representam inibição, e as contínuas, estimulação dos respectivos hormônios/sinais sobre os seus alvos específicos. (Adaptada de Nunes, 2005.)
A somatostatina (SS), hormônio hipotalâmico inibidor da liberação de GH, apresenta também ação inibitória sobre a secreção de vários hormônios, entre os quais o TSH. Esse efeito se dá diretamente sobre os tireotrofos, nos quais os receptores de SS estão acoplados à proteína Gi; deste modo a interação da SS com os seus receptores promove diminuição dos níveis intracelulares de cAMP e redução da síntese e secreção de TSH. Tem sido cogitada uma ação indireta da SS no controle da secreção de TSH, via hipotálamo, em vista de estudos em que se demonstra íntima relação entre neurônios que secretam SS e os que secretam TRH, acreditandose que a SS iniba a expressão e/ou secreção de TRH. Vale ainda salientar que altos níveis circulantes de GH também reduzem a secreção de TSH frente à administração de TRH. Acredita se que esse efeito do GH seja secundário ao seu efeito estimulante sobre a secreção de SS. A dopamina (DA) também exerce efeito inibitório sobre a secreção de TSH, o que pode ser comprovado por meio da administração de agonistas e antagonistas dopaminérgicos, os quais, respectivamente, inibem e aumentam a secreção de TSH em humanos. Aliás, estudos in vitro demonstram que quando hipófises são expostas à dopamina, em concentrações similares às detectadas no sangue portal, ocorre inibição da secreção de TSH, o que sugere fortemente que a dopamina é um agente fisiológico do controle da liberação desse hormônio. Demonstrouse, ainda, que a transcrição das subunidades alfa e beta do TSH é inibida por DA. Os glicocorticoides e estrógenos também influenciam a secreção de TSH por alterarem a sensibilidade do tireotrofo ao TRH. Os glicocorticoides, além de exercerem outros efeitos sobre o eixo hipotálamohipófisetireoide (ver Capítulo 68), inibem a secreção basal de TSH, bem como a liberação desse hormônio frente à administração de TRH, quando em níveis suprafisiológicos. O contrário ocorre com os estrógenos, os quais parecem elevar a expressão de receptores para TRH, razão pela qual a administração de TRH leva a uma maior liberação de TSH nas mulheres (ver Figura 65.5, no Capítulo 65). Gonadotrofinas (LH e FSH)
Os dois hormônios gonadotróficos ou gonadotrofinas, conhecidos por hormônio foliculestimulante (FSH) e hormônio luteinizante (LH) ou hormônio estimulante das células intersticiais (ICSH), são glicoproteínas com peso molecular em torno de 33 e 28 kDa, respectivamente, produzidas nos gonadotrofos, os quais constituem cerca de 10% das células hipofisárias. Em geral, esses hormônios são expressos na mesma célula, embora alguns gonadotrofos apresentem apenas um desses hormônios. Os fatores que determinam, em algumas condições fisiológicas, a secreção preferencial de um ou outro hormônio ainda não são completamente conhecidos. Esses hormônios agem fundamentalmente sobre as gônadas, estimulando o seu crescimento e diferenciação, tornandoas aptas para sua função reprodutiva e endócrina. Vale comentar que a atividade biológica da gonadotrofina coriônica (GCH) se assemelha muito à do LH e que a das menotrofinas (mistura de gonadotrofinas alteradas que são recolhidas na urina de mulheres após a menopausa) se assemelha à do FSH, o que tem levado à sua utilização na clínica para indução da espermatogênese e ovulação. ▸ Efeitos biológicos. As ações do FSH sobre as gônadas femininas refletemse no estímulo do crescimento e maturação dos folículos ovarianos, bem como na síntese dos esteroides sexuais femininos, conhecidos como estrógenos, pelas células da granular. Essas células, sob a ação do FSH, também sintetizam peptídios como inibina, ativina e folistatina, que são importantes fatores para a regulação endócrina, parácrina e autócrina da síntese de esteroides ovarianos e maturação do gameta feminino. A inibina, como será visto posteriormente, também é um importante regulador da secreção de FSH pelo gonadotrofo, no qual exerce influências inibitórias. Os esteroides ovarianos apresentam várias ações: (1) agem em conjunto com o FSH nas próprias células foliculares, que participam do processo de maturação folicular; (2) atuam na hipófise, participando da regulação da secreção do FSH e LH por feedback negativo e positivo; (3) são importantes para o desencadeamento do processo de ovulação, que se completa com a ação do LH sobre o folículo ovariano maduro (aliás, o FSH, que atua em conjunto com os estrógenos, induz a síntese de receptores de LH nas células da granular); 4) exercem importantes efeitos sobre o sistema genital feminino, preparandoo para a concepção; 5) agem sobre a mama, preparandoa para a lactação, e 6) são responsáveis pelo aparecimento dos caracteres sexuais secundários. Ainda, exercem efeitos em tecidos periféricos não diretamente relacionados com a reprodução, como os ossos, nos quais participam da regulação da massa óssea (ver Capítulo 76, Fisiologia do Metabolismo Osteomineral, e Capítulo 77, Fisiologia da Reprodução). O LH age conjuntamente com o FSH durante o período de desenvolvimento dos folículos ovarianos. Os receptores de LH são encontrados predominantemente nas células da teca. Nessas células, o LH atua induzindo a síntese de precursores androgênicos, que se difundem até as células da granular, onde são convertidos a estrogênios sob ação da aromatase induzida pelo FSH. No entanto, estudos realizados em primatas sugerem que a maioria dos estrógenos produzidos no período préovulatório é de origem tecal. O LH é também responsável pelo processo de ovulação que ocorre aproximadamente na metade do ciclo sexual feminino e também pelo estímulo da síntese de outro esteroide sexual, a progesterona, que, antes da ovulação, é sintetizada nas células da teca e, depois da ovulação, no corpo lúteo. Esse esteroide, basicamente, estimula as funções secretoras do endométrio e inibe a contratilidade uterina, ações, portanto, intimamente relacionadas com a manutenção do feto no útero (mais detalhes no Capítulo 71, Gônadas, no item “Sistema Genital Feminino”). Nas gônadas masculinas (testículos), o FSH é responsável pela espermatogênese, em cuja etapa final participa também o esteroide sexual masculino testosterona, cuja síntese se dá nas células intersticiais de Leydig, sob estímulo do LH. O FSH atua nas células de Sertoli que, em resposta, secretam fatores de crescimento e de diferenciação das células da linhagem germinativa, que promovem a espermatogênese, bem como a síntese de uma proteína ligante de andrógenos (ABP, ou androgen binding protein). Essa proteína possibilita que altas concentrações de testosterona sejam mantidas nos túbulos seminíferos, o que garante a maturação completa dos espermatozoides. Além da ABP, as células de Sertoli secretam a inibina, que, como mencionado anteriormente, exerce efeito de feedback negativo específico sobre a liberação de FSH. A testosterona também age nas estruturas que compõem o sistema genital masculino, e, no homem, é o hormônio responsável pelo aparecimento dos caracteres sexuais secundários. Age também em tecidos periféricos, tais como o músculo esquelético, exercendo importantes efeitos sobre o metabolismo proteico (mais detalhes no Capítulo 71, no item “Sistema Genital Masculino”). ▸ Mecanismo de ação. As gonadotrofinas exercem seus efeitos biológicos interagindo com receptores de membrana, acoplados à proteína Gs, localizados nas célulasalvo. Assim, os efeitos do LH no tecido ovariano e testicular (células de Leydig) resultam de um aumento dos níveis intracelulares de cAMP, o qual afeta uma série de processos intracelulares que serão traduzidos, por exemplo, pela síntese de progesterona e testosterona, respectivamente. Quanto ao
FSH, mecanismo similar parece estar envolvido no desencadeamento de suas ações fisiológicas. No entanto, há evidências de que o FSH desencadeia algumas ações por meio da ativação da PI3K e da MAPK. ▸ Regulação da secreção. De maneira similar ao TSH, a secreção das gonadotrofinas é regulada pela concentração plasmática dos produtos de secreção das glândulasalvo (esteroides sexuais e peptídios) e também pelos neuropeptídios produzidos no hipotálamo. Dessa maneira, o controle da secreção de FSH e LH depende, respectiva e principalmente, das concentrações de estrógenos e progesterona na mulher, da testosterona no homem, da inibina (esta agindo especificamente sobre a secreção de FSH) em ambos os sexos, como também da secreção do hormônio hipotalâmico GnRH (o qual mantém a secreção basal de gonadotrofinas, causa a liberação fásica de gonadotrofinas para a ovulação e determina o início da puberdade). Embora o GnRH provoque a liberação tanto de FSH quanto de LH, ainda se especula a existência de um hormônio hipotalâmico específico para cada gonadotrofina (ver Capítulo 65). O feedback negativo que os esteroides sexuais exercem no eixo hipotálamohipófisegônadas ocorre tanto na hipófise, onde é mais efetivo, quanto no hipotálamo, onde promove inibição da secreção de GnRH (ver Figura 65.6, no Capítulo 65). Essa relação existente entre os esteroides sexuais e a secreção de gonadotrofinas fica bastante evidente em duas situações: (1) na menopausa, período em que, por falência ovariana, os hormônios sexuais femininos deixam de ser sintetizados, o que ocasiona elevação dos níveis de gonadotrofinas na corrente sanguínea e na urina; (2) quando da utilização de contraceptivos orais, condição em que os níveis plasmáticos suprafisiológicos de estrógenos e progesterona levam à inibição da secreção de gonadotrofinas, razão pela qual os ciclos passam a ser anovulatórios. No homem, a falência primária das gônadas, situação em que baixos níveis de testosterona são encontrados na circulação, também está associada à elevação das gonadotrofinas circulantes. Já a destruição seletiva dos túbulos seminíferos provoca elevação específica de FSH (falta de inibina). No entanto, durante o período préovulatório do ciclo normal, os estrógenos exercem um mecanismo de feedback positivo na secreção de GnRH que culmina com a ovulação (ver Capítulo 71, no item “Sistema Genital Feminino”). Em linhas gerais, a elevação dos níveis circulantes de estrógenos no período que antecede a ovulação, ao mesmo tempo em que inibe a síntese e liberação de FSH, induz alterações na frequência e magnitude dos pulsos de GnRH, o que resulta na liberação de uma grande quantidade de GnRH pelo hipotálamo. Como a resposta hipofisária do FSH está parcialmente inibida pelos estrógenos e inibina, uma secreção preferencial de LH acaba ocorrendo nesse período, o que leva à ovulação. Vale salientar que essa é uma das maneiras pelas quais podemos ter secreção preferencial de um determinado hormônio gonadotrófico em resposta a um único hormônio liberador hipotalâmico, o GnRH. Os estrógenos também aumentam a expressão de receptores de GnRH na hipófise, o que também contribui com o pico secretor de LH por ocasião da ovulação (mais detalhes no Capítulo 77). A participação da progesterona no mecanismo de feedback positivo que culmina com a secreção de LH e ovulação ainda é motivo de controvérsia. Enquanto alguns investigadores não detectaram nenhuma alteração nos níveis circulantes desse hormônio nas horas que antecedem o pico ovulatório de LH, outros observaram exatamente o oposto. Estes últimos argumentam que, como a progesterona é capaz de estimular a liberação de GnRH pelos terminais sinápticos na eminência mediana do hipotálamo, quando em concentrações fisiológicas, os incrementos na sua concentração plasmática antes do pico ovulatório de LH poderiam facilitar os eventos neurais que antecedem esse fenômeno, por provocar hipersecreção de GnRH. De qualquer maneira, o mecanismo pelo qual os esteroides ovarianos exercem efeitos inibitórios e excitatórios sobre os neurônios produtores de GnRH ainda não está completamente esclarecido. Acreditase que haja uma complexa circuitaria hipotalâmica composta de célulasalvo de esteroides que produzem moléculas mensageiras inibitórias e excitatórias para a secreção de GnRH, e que no pico de secreção de esteroides predominaria a atividade destas últimas. As endorfinas e o GABA têm sido apontados como as moléculas envolvidas no mecanismo de feedback negativo protagonizado pelos esteroides gonadais sobre a secreção de GnRH. Há evidências de que, no período que antecede imediatamente a ovulação, vias alternativas seriam acionadas pela secreção exponencial de estrógenos, para inibição da liberação de endorfinas e DA, o que provocaria o pico ovulatório de secreção de GnRH. Achados recentes sugerem que o estradiol (E2) e sinais circadianos regulem circuitos peptidérgicos específicos no hipotálamo, que incluem populações neuronais que sintetizam a kisspeptina. Esses neurônios exibem um padrão de atividade diário dependente de estrógenos, que sugere sua participação no controle circadiano da liberação de GnRH/lH. Outros estudos evidenciaram também que o E2 aumenta a expressão de receptores de kisspeptina em cultura de células secretoras de GnRH. Dessa maneira, a
elevação dos estrógenos ovarianos (E2) poderia aumentar a atividade dos neurônios kisspeptidérgicos, ao mesmo tempo em que aumenta a sensibilidade dos neurônios GnRHérgicos à kisspeptina, mecanismo que poderia contribuir para o pico ovulatório de GnRH/lH. O LH secretado por ocasião da ovulação apresenta resíduos de carboidratos diferentes daqueles presentes no LH ao longo do ciclo menstrual (com menor conteúdo de ácido siálico), o que lhe confere maior atividade biológica e menor t1/2. Na menopausa, em função da falência ovariana, altos níveis de gonadotrofinas são encontrados na circulação, porém com potência biológica reduzida. Na verdade, encontramos uma variedade de isoformas de hormônios glicoproteicos na circulação, com variados graus de glicosilação e, portanto, com potências biológicas diferentes.
Hormônios proteicos (GH e Prl) Os hormônios GH e Prl são proteínas que apresentam 191 e 198 aminoácidos, respectivamente. Há uma íntima correspondência na sequência de aminoácidos de certas regiões da cadeia peptídica de ambos os hormônios, o que explica algumas ações biológicas em comum. Durante a gravidez a placenta expressa uma isoforma de GH, o hGHV, conhecido como somatotrofina coriônica, bem como o lactogênio placentário (hPL) que apresentam parte da sequência de aminoácidos comum, o que lhes confere ações fisiológicas semelhantes. Acreditase que esses hormônios tenhamse originado de um mesmo gene ancestral, que sofreu várias mutações há aproximadamente 400 milhões de anos. Hormônio do crescimento (GH) O GH (hormônio do crescimento), STH (hormônio somatotrófico) ou somatotrofina, é um hormônio de peso molecular em torno de 22 kDa sintetizado nos somatotrofos, os quais compreendem 40% a 50% das células hipofisárias. Uma forma de GH menos abundante, de aproximadamente 20 kDa, resultante de um splicing alternativo da molécula de mRNA, também é encontrada na circulação. A forma mais abundante de GH é constituída por uma cadeia polipeptídica única contendo 191 aminoácidos e duas pontes dissulfeto (Figura 66.4). Desses aminoácidos, 161 apresentam sequência idêntica à somatotrofina coriônica. A sua identificação e caracterização decorreram de constatações de distúrbios do crescimento, em animais de experimentação e seres humanos, associados a alterações na estrutura da glândula hipófise. Estudos iniciais, realizados em animais de experimentação, demonstraram que a remoção cirúrgica da hipófise (ou hipofisectomia) levava a um comprometimento do crescimento e desenvolvimento, cujo grau era extremamente dependente da fase da vida em que esses animais se encontravam. Assim, quando a hipofisectomia ocorria antes da puberdade, o animal apresentava o quadro de nanismo, o qual podia ser revertido por meio da administração de extratos de hipófise. Porém, em animais adultos (ou póspúberes), os efeitos da hipofisectomia sobre o crescimento e o desenvolvimento eram menos pronunciados. Já a administração crônica de extrato hipofisário levava a alterações opostas, aparecendo: (1) em animais prépúberes, o quadro de gigantismo, em que um crescimento generalizado de todos os tecidos era evidenciado de maneira uniforme, ou (2) no animal adulto, a acromegalia, em que se observava um crescimento desproporcional de alguns ossos do corpo, como também de alguns tecidos. Esses estudos foram fundamentais, uma vez que trouxeram à luz o fato de que alguma substância presente na hipófise era responsável pelo crescimento e desenvolvimento dos tecidos em geral. A partir de então, essa substância foi caracterizada e reconhecida como o hormônio do crescimento, embora hoje se saiba que, além desses efeitos, o GH exerce ações importantes no metabolismo intermediário. ▸ Mecanismo de ação. O GH interage com receptores pertencentes à superfamília dos receptores de citocinas, os quais se apresentam dimerizados na membrana plasmática, e se caracterizam por não apresentar atividade tirosinoquinase intrínseca. No entanto, as regiões de seus domínios citoplasmáticos próximas à membrana interagem com uma ou mais tirosinoquinases citoplasmáticas, as Janus quinases (Jak), o que provoca uma alteração conformacional na Jak2 e ativação da sua atividade catalítica. Seguese a fosforilação do receptor de GH e a ativação das proteínas Stat1 e Stat3, as quais se translocam ao núcleo estimulando a transcrição de genes específicos. Outra via de sinalização também ativada pelo GH é a da MAP quinase (MAPK), em que a interação de uma proteína adaptadora, tal como a Shc, com o receptor fosforilado ou com a própria Jak2 leva à ativação da via Ras e Raf e, consequentemente, à estimulação da via mitogênica da MAP quinase (Figura 66.5). O envolvimento do sistema fosfolipase CPKC também tem sido sugerido em algumas ações do GH, o que demonstra a grande complexidade dos eventos intracelulares que culminam com a ação deste hormônio. ▸ Efeitos biológicos do GH. A seguir serão apresentados alguns efeitos biológicos do GH, inclusive sobre o crescimento e sobre o metabolismo de proteínas, carboidratos e lipídios.
▸ Sobre o crescimento. Sabese que o crescimento dos ossos longos resulta da multiplicação das células cartilaginosas que compõem o disco epifisário. Deste modo, as ações do GH sobre o crescimento do esqueleto se devem à proliferação celular e ao estímulo da síntese de colágeno, principal componente da matriz orgânica, na placa epifisária. Os primeiros estudos realizados demonstraram que essas ações do GH não se reproduziam in vitro, sugerindo, portanto, que o GH não atuaria diretamente sobre esse tecido e sim por intermédio de geração de um mensageiro, que agiria causando a proliferação do tecido cartilaginoso. Esse mensageiro foi inicialmente denominado fator de sulfatação, uma vez que levava à incorporação de 35S em fragmentos de cartilagem in vitro. Atualmente, sabese que esse mensageiro pertence a uma família de fatores de crescimento, alguns dos quais dependentes de GH, que apresentam propriedades semelhantes às da insulina, sendo chamados genericamente de insulinlike growth factors (IGF; também conhecidos como somatomedinas). Até o momento admitese que o IGFI (somatomedina C) seja o principal fator com atividade estimulante sobre a cartilagem e regulável pelo GH.
Figura 66.4 ■ Representação esquemática da estrutura do GH humano. (Adaptada de Fryklund et al., 1986.)
Os IGF são expressos em virtualmente todos os tecidos do organismo, estando sob o controle de fatores sistêmicos (p. ex., GH) e locais, específicos de cada órgão (ver adiante). Admitese que o GH estimule a síntese hepática e renal (e possivelmente de outros órgãos ricos em fibroblastos) de IGF, os quais, por meio da circulação sistêmica, atingem seus tecidosalvo exercendo suas ações. Entretanto, atualmente se acredita que cada tecido secrete um conjunto próprio de fatores de crescimento que podem incluir os IGF, EGF, PDGF e outros. Demonstrouse que a própria placa epifisária (com précondrócitos) sintetiza IGFI, em resposta ao GH. O IGFI aí produzido age autócrina e paracrinamente sobre as demais células do disco epifisário. O principal efeito biológico dos IGF é a ativação da mitogênese. Os efeitos do IGFI sobre a cartilagem são evidenciados pelo estímulo do transporte de aminoácidos, pela síntese de DNA, RNA e proteínas e pela incorporação de sulfato nos proteoglicanos e de prolina no colágeno (Figura 66.6). A ação no disco epifisário justifica o fato de o gigantismo ocorrer apenas quando o excesso de GH se apresenta antes da puberdade, já que nessa fase ainda não houve a “soldadura” das epífises com as diáfises, induzida pelos esteroides sexuais. No entanto, a presença de receptores de IGFI, não só em condrócitos mas também em hepatócitos, adipócitos, células musculares e outros tecidos faz com que, com exceção dos condrócitos, virtualmente todos os tecidos respondam a um excesso de GH, mesmo após a puberdade. Além do mais, alguns ossos planos, irregulares e curtos, que ainda apresentam resquícios de tecido cartilaginoso (tais como os ossos frontais, a mandíbula, as falanges distais), podem sofrer alterações no seu comprimento frente a um excesso de GH, mesmo após a puberdade. Desse modo, na acromegalia observamse, entre outras alterações, deformações na face (como o prognatismo – projeção do queixo adiante do plano frontal) e crescimento da cartilagem nasal e das falanges distais das mãos e pés. Tecidos tais como fígado, baço e língua também apresentam aumento de sua massa, resultante tanto da ação do IGFI, como pela ação direta do GH, já que ambos estimulam a síntese proteica nesses tecidos.
Figura 66.5 ■ Representação esquemática do mecanismo de ação do GH. Mais detalhes estão descritos no texto. (Adaptada de Mayo, 1997.)
▸ Sobre o metabolismo das proteínas. Após a administração de GH observase um nítido balanço nitrogenado positivo no indivíduo, reflexo de um estímulo da síntese proteica provocada por esse hormônio. Esse efeito, mediado pelo GH (diretamente) e pelo IGFI (indiretamente), se dá por dois mecanismos: (1) estímulo do transporte de aminoácidos em algumas células e (2) elevação do conteúdo intracelular de RNA mensageiros específicos, o que leva à síntese de proteínas. Em outras palavras, o GH também exerce efeitos estimulantes sobre a síntese proteica em alguns tecidos, independentemente do IGFI. Essa ação metabólica leva a repercussões teciduais importantes.
Os tecidos musculares esquelético e cardíaco são importantes órgãosalvo do GH e do IGFI, os quais são responsáveis primários pelo controle de sua massa. Dessa maneira, observase na deficiência de GH redução da massa muscular esquelética e cardíaca, que é revertida com o tratamento de reposição hormonal. Além de alterações estruturais, a reposição com GH promove substancial melhora no desempenho sistólico e diastólico cardíaco. O oposto (ganho de massa) ocorre na acromegalia, quando efeitos deletérios sobre o coração são observados, tais como: hipertrofia concêntrica, comumente associada à disfunção diastólica, seguindose o comprometimento da função sistólica. Anormalidades no automatismo cardíaco e na função das válvulas cardíacas também são usuais, nesta condição. Os efeitos do GH/IGFI sobre a musculatura esquelética ganharam destaque nas últimas décadas em função do uso inapropriado destes hormônios como anabolizantes por alguns atletas, bem como por frequentadores de academias. Essa prática, obviamente, promove aumento da massa e da força muscular esquelética; porém, em paralelo, provoca os efeitos deletérios já descritos na musculatura cardíaca, além de alterações no metabolismo dos carboidratos e lipídios (ver adiante). Como apontado no texto, os efeitos sobre o ganho de massa também ocorrem em outros tecidos tais como fígado (causando hepatomegalia) e baço (provocando esplenomegalia), sendo observada, em alguns casos, a macroglossia (crescimento anormal da língua).
Figura 66.6 ■ Ação dos IGF sobre a cartilagem. Os componentes estão identificados e descritos no texto. (Adaptada de Daughaday, 1981.)
▸ Sobre o metabolismo dos carboidratos e lipídios. As ações do GH sobre o metabolismo dos carboidratos e lipídios são bastante complexas, já que efeitos similares e antagônicos à insulina foram demonstrados in vitro e in vivo em vários modelos experimentais. É interessante o fato de que o GH exerce efeitos semelhantes à insulina
somente em tecidos que não tenham sido expostos ou que tenham sido submetidos apenas a pequenas doses de GH. Isto pode ser verificado nos estudos in vitro em que tecidos de animais previamente hipofisectomizados são utilizados como modelo. A adição de GH em meio de incubação contendo tecido adiposo de ratos hipofisectomizados leva ao aumento da captação, oxidação e conversão de glicose a ácidos graxos, como também à diminuição da lipólise. Essas ações são observadas apenas por curto espaço de tempo (1 a 2 h), e são substituídas por diminuição da oxidação da glicose e aumento da lipólise. Somente quando inibidores da síntese proteica são adicionados ao meio de incubação é que os efeitos insulinasímiles do GH perduram, o que sugere que as ações do GH, antagônicas à insulina, sejam devidas à síntese de proteína(s) específica(s). Uma vez que, em condições normais, ocorrem pulsos frequentes de secreção de GH, essas ações semelhantes à insulina acabam por não ter um significado biológico importante. Sendo assim, os efeitos observados quando da administração de GH são: (1) diminuição da utilização da glicose pelos tecidos, (2) supressão da resposta tecidual aos seus efeitos insulinasímiles e (3) aumento da lipólise. A administração crônica de GH, mesmo em animais hipofisectomizados, leva à diminuição da oxidação da glicose e da sua conversão para lipídios nos adipócitos, o que resulta em hiperglicemia. É interessante o fato de que esses efeitos ocorrem mesmo na presença de insulina. Aliás, devido a essas ações hiperglicemiantes do GH, durante a hipersecreção desse hormônio observase aumento da síntese e secreção da insulina, o que indica claramente que os dois hormônios são antagônicos. Parte dessa ação hiperglicemiante resulta do seu efeito lipolítico e gliconeogênico (ver adiante) e parte, por indução de resistência periférica à insulina. A resistência insulínica foi, inicialmente, cogitada como resultante da redução do número e afinidade dos receptores de insulina induzida pelo GH. No entanto, atualmente está bem estabelecido que ela decorre de eventos intracelulares desencadeados pelo GH, após ligação com seus receptores (efeito pósreceptor), que interferem na via de sinalização da insulina, reduzindo a sensibilidade a esse hormônio. Vários eventos pósreceptor são compartilhados entre GH e insulina, e essa interação de vias de sinalização poderia estar envolvida nos efeitos diabetogênicos do GH. Há evidências experimentais de que na vigência de hiperinsulinemia ou da administração de GH ocorre fosforilação do substrato I do receptor de insulina (ou IRSI) em serina, o que impediria seu recrutamento ao receptor de insulina e, consequentemente, a ativação da cascata de sinais intracelulares desencadeada pela ligação da insulina ao seu receptor, dentre outros eventos. A ação lipolítica do GH se deve ao estímulo da atividade da enzima lipase hormôniosensível (LHS), bem como do seu efeito em antagonizar as ações lipogênicas e antilipolíticas da insulina. Dessa maneira, o GH determina a hidrólise de triglicerídios, promovendo mobilização de gordura de seus depósitos, com aumento de glicerol e dos ácidos graxos livres (AGL) circulantes; o primeiro é convertido à glicose no fígado, já que o GH estimula a atividade da fosfoenolpiruvato carboxiquinase (PEPCK), enzimachave da gliconeogênese, enquanto os AGL são convertidos à acetil CoA e utilizados pelas células como fonte de energia. Devese ressaltar que a maior utilização de AGL como fonte de energia reduz a utilização tecidual (muscular) de glicose (pelo ciclo de Randle), o que contribui também para o aumento da glicemia observado quando o GH encontrase elevado na circulação. Ao contrário do GH, os IGF apresentam ações similares à insulina em alguns tecidos. Eles aumentam a oxidação da glicose em adipócitos, estimulam a captação de glicose no diafragma e músculo cardíaco, estimulam a incorporação de glicose em glicogênio no diafragma e a captação de glicose e produção de lactato em coração perfundido. Apesar de o GH ser um importante regulador da síntese de IGFI, outros fatores também estão envolvidos nesse processo. O mecanismo de ação dos IGF é semelhante a todos os outros fatores de crescimento, e o próprio receptor apresenta atividade tirosinoquinase e se autofosforila quando interage com os IGF. Seguese a fosforilação intracelular de um substrato de peso molecular em torno de 185 kDa, o IRSI (insulinreceptor substrateI), proteína que apresenta múltiplos locais de fosforilação. Resulta daí a fosforilação de várias outras proteínas intracelulares, mecanismo pelo qual o efeito biológico desses peptídios se manifesta (ver Capítulo 64, Introdução à Fisiologia Endócrina, e Capítulo 70, Pâncreas Endócrino). ▸ Outras ações. Sabese que a administração de GH em animais, ou mesmo como terapia de reposição em humanos, promove múltiplos efeitos sobre o SNC, como melhora das funções cognitivas, do humor, da memória e do sono; sabese também que várias regiões do SNC, tais como tronco encefálico, medula espinal e hipocampo, expressam receptores de GH. Esses achados, embora pareçam incongruentes (considerando que o GH é uma proteína de 22 kDa, o que à primeira vista impediria sua passagem pela barreira hematencefálica), têm recebido maior atenção em função do que
foi recentemente demonstrado, em modelo animal, que o GH atravessa a barreira hematencefálica, por mecanismo que ainda não está completamente esclarecido. O GH também exerce importantes efeitos sobre o sistema imunológico. A interação do GH com seus receptores em macrófagos e linfócitos leva a um aumento da resposta dessas células aos antígenos, o que explica, em parte, a menor resposta do sistema imunológico em indivíduos com deficiência de GH. ▸ Regulação da secreção do GH. A regulação da secreção de GH é complexa e envolve, virtualmente, todas as interações possíveis entre os quatro componentes hormonais que constituem a sua alça de feedback, a saber: os hormônios hipotalâmicos GHRH e somatostatina, que por sua vez são regulados por fatores neurais, metabólicos e hormonais, o GH e IGFI (ver Figura 65.7, no Capítulo 65). ▸ Peptídios hipotalâmicos e outros. O hipotálamo, classicamente, interfere na síntese e liberação de GH por meio de dois neuropeptídios: o hormônio liberador de GH (GHRH) e o hormônio inibidor da liberação de GH (GHRIH ou somatostatina – SS). O GHRH estimula a síntese e secreção de GH, enquanto a SS provoca redução da secreção de GH (ver Capítulo 65). No entanto, outros fatores hipotalâmicos exercem influências sobre a secreção de GH, e interferem com a secreção desses neuropeptídios. Dessa maneira, endorfinas, VIP (polipeptídio intestinal vasoativo), glucagon e neurotensina, entre outros, são capazes de estimular a liberação de GH, provavelmente por intermédio do GHRH, já que esse efeito não é observado quando da aplicação direta desses peptídios na hipófise. O mesmo ocorre com a dopamina (DA), serotonina (5 HT) e norepinefrina (NE), que são potencialmente capazes de estimular a liberação de GH somente quando injetados no hipotálamo. O conhecimento do papel desses neurotransmissores (NT) embasa uma série de testes clínicos que são realizados para avaliação da secreção de GH. A Figura 66.7 resume essas relações, apontando a clonidina (agonista αadrenérgico), a bromocriptina (agonista dopaminérgico) e o propranolol (antagonista betaadrenérgico) como indutores da secreção de GHRH e, portanto, de GH, e a metisergida (bloqueador de 5 HT) e o isoproterenol (agonista βadrenérgico), como inibidores da liberação de GHRH/GH. Demonstrouse que o TRH, em certas condições especiais, como na deficiência de hormônios tireoidianos, é capaz de estimular a secreção de GH; assim, acreditase que os somatotrofos apresentem receptores de TRH, cuja expressão seria normalmente suprimida pelos hormônios tireoidianos, e que a eliminação desse efeito inibitório, nos estados de hipotireoidismo, possibilitaria a observação dessa resposta. Foi demonstrado, também, que o próprio TRH, bem como o GnRH, provocam secreção de GH em pacientes acromegálicos. Outros peptídios tais como ADH, ACTH e αMSH podem agir como fatores liberadores de GH, quando presentes em quantidades farmacológicas. Ainda se desconhece se esses efeitos decorrem de ações destes hormônios sobre o hipotálamo ou a hipófise.
Figura 66.7 ■ Representação esquemática das vias neurais (α e βadrenérgicas e colinérgicas) e dos neurotransmissores (NE, DA, GABA e 5 HT) que participam do controle da secreção de GHRH e SS. As linhas contínuas identificam as ações estimulantes e as linhas tracejadas identificam as ações inibitórias. Em azul, os agonistas dos neurotransmissores; em rosa, os antagonistas dos neurotransmissores.
Kojima et al. (1999) isolaram um peptídio de 28 aminoácidos, a partir do estômago de ratos, que apresenta uma atividade liberadora de GH. Esse peptídio, que foi denominado grelina, interage com receptores acoplados à proteína Gq, presentes na membrana plasmática de somatotrofos, que promovem liberação do Ca2+ dos seus reservatórios intracelulares (via IP3), com consequente elevação da secreção de GH. Na verdade, esses receptores já haviam sido identificados anteriormente, ocasião em que foram considerados órfãos, já que seus ligantes endógenos ainda não haviam sido encontrados. Sabiase, contudo, que peptídios sintéticos (GHRP1, 2, 6 e hexarrelina) interagiam com esses receptores, promovendo secreção de GH, o que abriu perspectivas terapêuticas para o uso desses peptídios na deficiência de GH. Posteriormente, demonstrouse que a grelina também é expressa no núcleo arqueado do hipotálamo, região em que os neurônios que secretam GHRH estão presentes, e que interage com eles, promovendo liberação de GHRH. A grelina, mais do que um hormônio liberador de GH, é um importante peptídio regulador da ingestão alimentar, pois: (1) interage com neurônios hipotalâmicos do núcleo arqueado que secretam os peptídios que estimulam a ingestão alimentar (ou peptídios orexígenos), o neuropeptídio Y (NPY) e o agoutirelated peptide (AgRP), estimulandoos, mecanismo pelo qual leva ao aumento da ingestão alimentar, e (2) inibe neurônios que secretam as melanocortinas (α, β, γ2, γ3 MSH e γlipotrofina), peptídios que inibem a ingestão alimentar (ou anorexígenos). ▸ Hormônio do crescimento (GH). O GH controla sua própria secreção e atua no hipotálamo, onde estimula a síntese e liberação de somatostatina (SS), e inibe a expressão e liberação do GHRH. Estudos anteriores já haviam sugerido esta última possibilidade, já que demonstravam que o GH suprime a elevada expressão do GHRH que ocorre em ratos hipofisectomizados e em ratos anões com deficiência isolada de GH. Esses dados passaram a ganhar destaque em função de evidências recentes indicando que o GH atravessa a barreira hematencefálica, conforme mencionado anteriormente. Ainda, o núcleo arqueado, local de síntese de GHRH, encontrase nas proximidades da eminência mediana do hipotálamo, no qual a barreira hematencefálica é permeável. ▸ Insulin growth factor1 (IGFI). Ao contrário do que ocorre com os hormônios hipofisários já estudados, o GH não atua em uma glândulaalvo específica, de modo que a clássica regulação por retroalimentação negativa exercida pelos hormônios da glândulaalvo fica inviabilizada. Contudo, demonstrouse que o IGFI, cuja síntese é estimulada pela
ação do GH no fígado, exerce esse papel, e atua tanto sobre o hipotálamo, onde estimula a liberação de somatostatina e inibe a liberação e síntese de GHRH, quanto sobre a hipófise, onde suprime a secreção e a expressão gênica do GH. ▸ Fatores metabólicos | Hipoglicemia. Sabese que um dos mais potentes estímulos para a secreção de GH é a hipoglicemia. Inclusive, uma das manobras mais utilizadas para se determinar a reserva de GH de um indivíduo é provocar hipoglicemia por meio da administração de insulina. As evidências atuais são de que, nessa condição, provavelmente em função de uma citoglicopenia, ocorre diminuição da liberação de somatostatina, o que resulta na liberação de GH. Na situação oposta, hiperglicemia, ocorreria o inverso, ou seja, aumento da liberação de somatostatina e diminuição da liberação de GH. Esta seria uma maneira pela qual a glicemia seria regulada via GH. Em paralelo a esse mecanismo, na hipoglicemia, considerada uma situação de estresse, ocorre ativação de vias α adrenérgicas, as quais estimulam a liberação de GHRH, o que resulta na liberação de GH. O exercício físico é um importante indutor da secreção de GH. Vários fatores contribuem para esse processo. A simples preparação para o início do exercício promove um aumento da atividade adrenérgica e consequente elevação do tônus secretor de GHRH e de GH, dentre outros hormônios. A liberação de endorfinas que ocorre durante o exercício (ver adiante) também colabora para a elevação do GH, via estimulação da liberação de GHRH. Considerando, ainda, que 40% da massa corporal corresponde à musculatura esquelética, a qual apresenta elevada expressão do transportador de glicose GLUT4, que é translocado para a membrana plasmática (ou sarcolema) por ocasião da contração muscular, fica evidente que o influxo de glicose para esse tecido aumenta por ocasião do exercício físico. Essa redução glicêmica é proporcional ao grau de atividade física empregado e é rapidamente corrigida por mecanismos homeostáticos que envolvem alterações na secreção de vários hormônios, dentre eles, elevação da liberação de GH. (Mais detalhes no Capítulo 70.) ▸ Fatores metabólicos | Aminoácidos. O efeito estimulante da secreção de GH induzido pelos aminoácidos, em especial a arginina, também é muito conhecido. A infusão ou mesmo a administração oral da arginina provoca potente estimulação da secreção de GH, efeito que decorre de uma ação inibitória deste aminoácido sobre a liberação de somatostatina. Há evidências experimentais de que a arginina também promove aumento da expressão gênica do GH. Paradoxalmente, observase elevação da secreção de GH na desnutrição proteicocalórica, o que, na verdade, é reflexo da diminuição da síntese de IGFI que ocorre nessa condição. ▸ Fatores metabólicos | Ácidos graxos. Os ácidos graxos suprimem a resposta do GH a certos estímulos, tais como hipoglicemia e administração de arginina; contudo, ainda se desconhece o mecanismo envolvido neste efeito. ▸ Outros fatores. Outros fatores que desencadeiam a liberação de GH são as situações de estresse, o exercício físico e o sono (nos estágios III e IV). Nas duas primeiras condições, a liberação de GH parece ser induzida por ativação de vias alfaadrenérgicas (norepinefrina), enquanto no sono o neurotransmissor envolvido seria a serotonina. Estudos recentes também evidenciaram que a administração de lactato promove ativação do eixo somatotrófico em ratos. Esse dado sugere que, além dos fatores próprios do exercício que são reconhecidos por aumentarem a secreção de GH, o lactato possa contribuir com esse processo, já que sua concentração se eleva na circulação sanguínea por ocasião da atividade física. Prolactina (Prl) A Prl é um polipeptídio que apresenta 198 aminoácidos e um peso molecular em torno de 22 kDa. É sintetizada nos lactotrofos, que são as últimas células a se diferenciarem na hipófise fetal humana. Essa diferenciação ocorre, principalmente, a partir dos somatotrofos. Os lactotrofos constituem cerca de 15% das células hipofisárias, e chegam a representar cerca de 70% delas na gravidez e lactação. A Prl é um hormônio que tem importante participação no processo de lactação, exercendo ações fundamentais na preparação e manutenção da glândula mamária para a secreção de leite. Suas ações sobre o desenvolvimento da mama durante a gravidez ocorrem conjuntamente com a ação dos estrógenos, progesterona, lactogênio placentário, insulina e cortisol (mais detalhes no Capítulo 77). No entanto, a sua presença em peixes, em que participa da regulação do equilíbrio hidreletrolítico, assim como em aves, nas quais estimula o crescimento e a secreção de material nutritivo das inglúvias (ou “papos”), entre outros exemplos, demonstra que esse hormônio também desempenha papéis que muito se distanciam do que sugere o seu próprio nome.
A Prl, o GH e o lactogênio placentário (hPL) se originam de um gene ancestral comum, apresentando, por essa razão, certa homologia, conforme citado anteriormente. ▸ Efeitos biológicos da Prl. A seguir serão apresentados os efeitos biológicos da Prl na reprodução, na lactação e no metabolismo intermediário. ▸ Na reprodução. Ao contrário da espécie humana, em que suas ações sobre a reprodução parecem não ter um significado funcional importante, a participação da Prl é de fundamental importância nos processos reprodutivos de roedores. Sabese que nesses animais a Prl induz ovulação e mantém a atividade do corpo lúteo, estimulandoo a secretar progesterona, razão pela qual foi, por algum tempo, conhecida como hormônio luteotrófico (LTH). Existem ainda evidências de que a Prl exerce uma ação esteroidogênica não luteínica sobre o ovário, o que precipitaria o desencadeamento da puberdade. Na espécie humana, essas ações da Prl ainda não estão totalmente esclarecidas. Variações na secreção de Prl ocorrem durante o ciclo menstrual, porém elas parecem ser decorrentes de variações dos níveis circulantes de estrógenos, os quais exercem importante ação estimulante sobre a secreção desse hormônio. Ainda, existem evidências de que, in vitro, a Prl inibe a secreção de progesterona pelas células da granular. No entanto, o fato de que mulheres hipofisectomizadas tratadas com FSH ou LH apresentam crescimento folicular normal, ovulação e corpo lúteo funcionante, mesmo na ausência de Prl, descarta um papel relevante deste hormônio nesse processo. As correlações entre Prl e ciclo menstrual tornamse mais claras em situações nas quais ocorre hipersecreção de Prl. Nelas, ocorre uma supressão dos pulsos de GnRH hipotalâmico, da secreção pulsátil das gonadotrofinas e da liberação de estrógenos e progesterona. Há ainda evidências de que a Prl exerça um efeito inibitório sobre a expressão dos receptores de LH e FSH nas gônadas, levando, quando em excesso, à diminuição do seu número, com consequente diminuição da sensibilidade desses tecidos às gonadotrofinas, sendo causa frequente de esterilidade feminina. Podese ainda, por meio deste mesmo argumento, justificar a ocorrência de ciclos anovulatórios em mulheres em fase de amamentação (mais detalhes no Capítulo 71, no item “Sistema Genital Feminino”). Estudos em animais hipofisectomizados indicam que a Prl exerce pouco efeito no sistema genital masculino. Há evidências de que, em doses fisiológicas, ela potencializa o efeito do LH sobre as células de Leydig e de que, em conjunto com a testosterona, exerce efeitos anabólicos nos tecidos responsivos a andrógenos. Todavia, o mesmo efeito sobre o eixo hipotálamohipófisegônadas, descrito anteriormente para mulheres, também ocorre no homem, em situações de hipersecreção de Prl, cuja consequência é a diminuição da síntese de testosterona e da espermatogênese, o que está associado aos casos de impotência e infertilidade relatados nessa circunstância. ▸ Na lactação. A lactação compreende um processo integrado no qual a mama passa por diversos processos de preparo, nas várias etapas da vida da mulher, com o objetivo de proliferar ductos e estruturas lóbuloalveolares e acúmulo de substratos energéticos, para posterior síntese de leite. A primeira fase, que ocorre durante a puberdade, também conhecida por mamogênese, recebe importante contribuição dos hormônios: estrógenos, progesterona, hormônios tireoidianos, corticosteroides, insulina e da própria Prl. Basicamente os estrógenos promovem o crescimento do sistema de ductos galactóforos, enquanto a Prl e a progesterona atuam com o objetivo de promover o desenvolvimento do sistema lóbuloalveolar. A Prl ainda é necessária para induzir a expressão de enzimas relacionadas com a síntese de lactose e caseína e a lactação propriamente dita. Durante a gestação, todos esses hormônios, associados ao lactogênio placentário, estimulam ainda mais a proliferação do parênquima mamário, sem que, contudo, ocorra a galactogênese. Sabendose que a Prl é capaz de induzir a galactogênese após o preparo prévio da mama, é intrigante o fato de que durante as últimas semanas de gestação, quando esta condição está totalmente estabelecida e os níveis plasmáticos de Prl estão muito elevados, não ocorra a síntese de leite. Todavia, a constatação de que este fenômeno acontece somente após o parto nos leva a considerar o quadro hormonal resultante como o possível responsável pela ação lactogênica da Prl. Dessa maneira, acreditase que a queda acentuada dos níveis circulantes de estrógenos e progesterona tenha um papel fundamental nesse processo. As evidências são de que, na gravidez, os altos níveis de progesterona inibam a expressão dos receptores de Prl, limitando o seu número. Com a remoção dessa inibição, proporcionada pela dequitação da placenta (fonte de estrógenos e progesterona), a Prl, então, exerceria o seu efeito estimulante sobre a galactogênese. Ainda, a elevação dos níveis de cortisol livre no plasma observada após o parto, em virtude da queda do nível circulante de globulinas transportadoras de corticosteroides (cuja síntese é estimulada pelos estrógenos), também parece ser um fator importante para a liberação da ação lactogênica da Prl. A manutenção da lactogênese ocorre em função de um reflexo neurogênico desencadeado pela sucção da mama pela criança. Esses aspectos estão detalhadamente descritos no Capítulo 77.
▸ No metabolismo intermediário. A Prl, por mostrar uma semelhança estrutural com o GH, apresenta algumas ações metabólicas em comum com este hormônio. Assim, observase que a Prl exerce efeito estimulante sobre a síntese proteica em vários tecidos, aumenta a formação de sulfato de condroitina na cartilagem e também apresenta uma ação diabetogênica. Temse ainda descrito uma ação imunomoduladora deste hormônio, já que nos estados de hipoprolactinemia ocorre menor proliferação de linfócitos e uma resposta imunitária deficiente, a qual é prontamente restabelecida pela administração de Prl. ▸ Controle da secreção de Prl. O transplante da hipófise anterior para a câmara anterior do olho ou para a cápsula renal, bem como a secção da haste hipofisária, desencadeia um aumento da secreção de Prl enquanto causa uma diminuição acentuada na secreção dos outros hormônios hipofisários. Isto sugere que o hipotálamo exerça, predominantemente, um tônus inibitório sobre a secreção de Prl. ▸ Hormônios hipotalâmicos. A secreção hipofisária de Prl está sob o controle de fatores hipotalâmicos inibidores e estimulantes que alcançam a adenohipófise via sistema portahipofisário (ver Capítulo 65); o resultado integrado do efeito desses fatores é a manutenção de um tônus inibitório sobre a secreção de Prl, mediado pela dopamina e possivelmente outros neuropeptídios (ver Figura 65.11, no Capítulo 65). No entanto, alguns peptídios hipotalâmicos, bem como certas aminas, apresentam a propriedade de estimular a secreção de Prl. A Prl é secretada em pulsos, que aumentam em amplitude durante o sono. O padrão pulsátil de liberação de Prl, que guarda relação com a liberação pulsátil de GnRH, é originado no hipotálamo. No entanto, as evidências de que os pulsos de Prl podem originarse dentro da própria hipófise sugerem um controle interno paralelo bastante desenvolvido, que implica, certamente, a existência de uma ampla rede comunicante de lactotrofos. A dopamina é considerada o fator fisiológico inibidor da secreção de Prl, já que estudos in vitro demonstraram que a utilização desta amina, em concentrações similares às detectadas no sangue portal, leva à inibição da secreção de Prl. Ela provoca a sua ação interagindo com receptores D2 no lactotrofo, o que leva à inibição da geração de cAMP, abertura de canais de K+ e diminuição do influxo de Ca2+; a consequência destes eventos é a inibição da secreção de Prl, bem como da sua transcrição gênica. O GABA também inibe a liberação de Prl, embora sua baixa concentração no sangue portal não dê suporte para que seja considerado um fator fisiológico do controle da secreção desse hormônio. Ainda, o GAP, peptídio que é liberado conjuntamente com o GnRH, como resultado do processamento póstraducional do próhormônio precursor do GnRH, apresenta ação inibitória sobre a liberação de Prl, o que poderia explicar as variações recíprocas dos níveis de gonadotrofinas e de Prl encontradas na circulação em várias situações. Fatores hipotalâmicos que estimulam a secreção de Prl também têm sido descritos, tais como o TRH e a serotonina. Esta última parece ser o mediador da liberação de Prl desencadeada pela sucção da mama. Peptídios como HIP (peptídio histidinaisoleucina), VIP, neurotensina, angiotensina II, vasopressina, ocitocina e substância P, entre outros, exercem igualmente efeitos estimulantes sobre a secreção de Prl. A administração de morfina ou peptídios opioides também eleva a secreção de Prl, provavelmente por inibir a liberação de dopamina. ▸ Outros fatores. Os estrógenos estimulam a secreção de Prl, atuando diretamente sobre os lactotrofos, e aumentam o seu número e também a síntese de Prl. Os glicocorticoides, assim como os hormônios tireoidianos, tendem a suprimir a secreção de Prl induzida por TRH. Em alguns tipos de estresse, a Prl também tem a sua liberação aumentada, mecanismo que parece depender da liberação de serotonina. Esta amina, como comentado anteriormente, é um dos componentes do reflexo neurogênico de liberação de Prl desencadeado pela sucção do mamilo durante a amamentação. A estimulação do mamilo também provoca liberação de Prl em mulheres não grávidas. Existem, ainda, evidências de que a própria Prl regule a sua secreção agindo diretamente no hipotálamo, estimulando a secreção de dopamina (por mecanismo de retroalimentação negativa de alça curta).
Peptídios derivados da próopiomelanocortina (POMC) Os hormônios derivados da POMC apresentam na sua cadeia peptídica um número de aminoácidos (aa) que varia de 13 (como o MSH) a 91 (como a betalipotrofina). Da mesma maneira que o GH e a Prl, muitos desses peptídios compartilham algumas ações, já que apresentam sequências de aa comuns. O conceito da existência de um precursor para a molécula de ACTH ficou fortalecido a partir de: (1) o isolamento e a caracterização de um peptídio no lobo intermediário da hipófise, o CLIP, estruturalmente similar ao ACTH, e (2) a identificação de várias formas de ACTH imunorreativas, que apresentam pesos moleculares maiores que o próprio ACTH nativo. Subsequentemente, a betaendorfina, um peptídio com alta atividade opioide, foi isolada de hipófises de vários animais, sendo constituída de 31 aa cuja sequência correspondia exatamente à dos 31 aa da porção carboxiterminal da
betalipotrofina (βLPH). Ainda, estudos imunohistoquímicos utilizando antissoro antiACTH, antialfaMSH e antibeta LPH demonstraram a presença desses três peptídios em uma mesma célula hipofisária. Finalmente, utilizando uma linhagem de células hipofisárias de camundongos (células AtT2O), dois grupos independentes de pesquisadores demonstraram simultaneamente que o ACTH e a βLPH estavam presentes em uma mesma molécula precursora. Estudos subsequentes, por meio do fracionamento por eletroforese seguido de tradução in vitro de mRNA isolados dessas células, revelaram a presença de uma glicoproteína (com 31 kDa), que apresentava determinantes antigênicos para ACTH e β LPH. Seguiuse o isolamento dessa molécula precursora, a partir de hipófises de ratos e camelos, a qual foi denominada de próopiomelanocortina (POMC) (Figura 66.8). A POMC é codificada por um único gene que é expresso em uma variedade de tecidos, por exemplo: hipófise, SNC (no núcleo arqueado do hipotálamo e no tronco encefálico), tireoide (nas células C), pâncreas, sistema digestório, placenta, sistema genital, derme, sistema imunológico e glândula suprarrenal. Dependendo do tecido em que o gene é expresso, o processamento póstraducional dá origem a diferentes peptídios. Em outras palavras, a expressão do gene da POMC é regulada por processos específicos de cada tipo celular. Na adenohipófise a POMC é expressa nos corticotrofos, células que constituem cerca de 15% a 20% da população de células hipofisárias, sendo as primeiras células a se desenvolverem na hipófise fetal. Os principais reguladores da sua transcrição são o CRH e glicocorticoides, que exercem efeitos opostos sobre a mesma. O CRH estimula a transcrição do gene da POMC e, consequentemente, a síntese dessa proteína, via ativação do sistema adenililciclasecAMP. Os glicocorticoides inibem a transcrição desse gene, por meio da interação do complexo hormônioreceptor com elementos responsivos presentes em sua região promotora. No lobo intermediário da hipófise, os glicocorticoides e CRH apresentam pequeno ou nenhum efeito sobre a transcrição desse gene, enquanto a dopamina reduz o conteúdo do mRNA que codifica a POMC. Da mesma maneira, no SNC, a expressão da POMC não é regulada por CRH nem por glicocorticoides.
Figura 66.8 ■ Representação esquemática da estrutura da molécula de POMC e seus derivados. (Adaptada de Daughaday, 1981.)
Conforme citado anteriormente, o processamento póstranscricional da molécula de POMC é tecidoespecífico, ou seja, dependendo do tecido, a POMC dará origem a diferentes peptídios: ■ Hipófise anterior: em humanos, o processamento da POMC gera um peptídio Nterminal, um peptídio de ligação, o ACTH e a βLPH; adicionalmente, há evidências de que uma pequena fração do ACTH seja processada a αMSH (com 1 a 17 aa) e a CLIP (ou corticotropinlike imunoreactive peptide, com 18 a 39 aa) e que uma fração significativa da βLPH seja processada até βendorfina (com 1 a 31 aa) (Figura 66.9) ■ Sistema nervoso central (SNC): no SNC, os neurônios que expressam a POMC, dos quais derivam seus peptídios, também conhecidos como melanocortinas, se encontram no núcleo arqueado do hipotálamo e no tronco encefálico.
Nestes locais, quase todo o ACTH produzido é hidrolisado em αMSH e CLIP, enquanto a βLPH é processada em β endorfina e γLPH. As melanocortinas participam do controle da ingestão alimentar, constituindose em importantes peptídios anorexígenos, e apresentam também uma importante ação antiinflamatória ■ Lobo intermediário da hipófise: Na maioria dos vertebrados, incluindo o homem na fase fetal, 90% das células do lobo intermediário da hipófise expressam o gene da POMC. Ao contrário dos corticotrofos, nos melanotrofos quase todo o ACTH que é produzido é hidrolisado em αMSH e CLIP, enquanto a βLPH é processada em βendorfina e γ LPH. Ainda, a porção aminoterminal da POMC é processada posteriormente a γMSH. Assim, os principais produtos do melanotrofo são o αMSH e as endorfinas. Pouco se conhece sobre o papel biológico da γ e βMSH provocado nesse local; no entanto, sabese que, no SNC, essas melanocortinas atuam diminuindo a ingestão alimentar. Em vista de todos esses processos, o lobo intermediário da hipófise de ratos e outros roedores tem sido extensivamente utilizado para o estudo da biossíntese e processamento póstraducional da POMC (Figura 66.10). Hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) O ACTH é um polipeptídio constituído de 39 aa, sintetizado nas células corticotróficas da hipófise anterior. Os corticotrofos ficam especialmente evidentes em várias espécies animais após adrenalectomia, situação em que se apresentam hiperfuncionantes em consequência da ausência do tônus inibitório exercido pelos corticosteroides. Nessa condição, a síntese, a secreção e a concentração deste hormônio no plasma apresentamse aumentadas. Acreditase que haja consideráveis estoques de ACTH na adenohipófise, já que após adrenalectomia ocorre liberação de ACTH suficiente para elevar a sua concentração plasmática muitas centenas de vezes. O ACTH é rapidamente depurado do plasma (sua t1/2 é de 20 a 25 min), sendo o fígado e os rins os principais locais de sua metabolização.
Figura 66.9 ■ Principais produtos derivados do processamento da POMC na adenohipófise e sua regulação. Mais detalhes no texto.
Figura 66.10 ■ Principais produtos derivados do processamento da POMC no lobo intermediário da hipófise e sua regulação. Mais detalhes no texto.
▸ Efeitos biológicos do ACTH. O ACTH exerce seus efeitos nas célulasalvo por meio da interação com receptores específicos localizados na membrana plasmática. A ocupação desses receptores resulta na ativação do sistema adenililciclasecAMP e da via fosfatidilinositol; seguese a fosforilação de proteínas específicas e a consequente manifestação de seus efeitos biológicos, que se resumem na estimulação da síntese e secreção de glicocorticoides, mineralocorticoides e esteroides androgênicos pelo córtex da suprarrenal. A porção aminoterminal (1 a 19) da molécula de ACTH é a responsável por quase toda sua atividade esteroidogênica, a qual é evidenciada principalmente na etapa de conversão do colesterol a pregnenolona nas células das camadas glomerular, fasciculada e reticular. Além do mais, há evidências indicativas de que o ACTH pode atuar em outras etapas críticas da esteroidogênese, como na 11 βhidroxilação. A corticotrofina também estimula a síntese de mRNA e de novas proteínas suprarrenais, o que é traduzido pelo crescimento do córtex suprarrenal (principalmente as zonas reticular e fasciculada). Ações do ACTH também são relatadas em outros tecidos: no tecido adiposo (promove lipólise), no tecido muscular (estimula o processo de captação de aminoácidos e glicose), nas células somatotróficas (promove a secreção de GH) e nas células beta pancreáticas (estimula a secreção de insulina). Essas ações, contudo, somente são evidenciadas na vigência de níveis extremamente altos de ACTH, não sendo consideradas, portanto, como ações fisiológicas. O papel fisiológico da βLPH e dos peptídios relacionados com ela, como βendorfinas, ainda não está completamente esclarecido. Contudo, eles apresentam dinâmica de secreção igual à do ACTH, ou seja, aumentam em resposta ao estresse e à hipoglicemia (ver adiante), sendo suprimidos pelos glicocorticoides. As evidências são de que as βendorfinas atuem como opiáceos endógenos, tendo um papel relevante, induzindo analgesia e euforia. ▸ Regulação da secreção do ACTH. A secreção de ACTH é influenciada, basicamente, pelos neuropeptídios hipotalâmicos e pelo sistema de retroalimentação negativa, representado pelos glicocorticoides. O padrão de secreção dos neuropeptídios representa a integração de uma série de influxos excitatórios neurais endógenos (p. ex., ritmos circadianos) e exógenos (p. ex., estresse) (ver Figura 65.13, no Capítulo 65). O CRH estimula a síntese e secreção de ACTH. Uma evidência bastante elucidativa desse fato é que os níveis circulantes de ACTH caem dramaticamente, tanto em condições fisiológicas quanto sob estresse, quando se utiliza antissoro antiCRH. Do mesmo modo, o hormônio antidiurético, ADH, exerce também efeitos estimulantes sobre a síntese e secreção de ACTH, embora com uma potência mil vezes menor que a do CRH. Contudo, na presença de baixas
concentrações de CRH, a administração de ADH eleva acentuadamente a secreção de corticotrofina, ou seja, o ADH potencializa a resposta secretória de ACTH ao CRH. Atualmente se sabe que há corticotrofos que apresentam receptores para ADH, o que explica os efeitos descritos. Sabese também que algumas células CRHérgicas da porção parvicelular do núcleo paraventricular expressam também o ADH, o que demonstra a interação desses dois hormônios na resposta de liberação de ACTH. A norepinefrina e a epinefrina também ativam a secreção de CRH, razão pela qual elas induzem secreção de ACTH e βendorfinas. Por outro lado, os glicocorticoides circulantes inibem a síntese e secreção de ACTH. Esses efeitos são exercidos tanto em nível hipofisário quanto hipotalâmico. Sabese que esses hormônios diminuem a sensibilidade hipofisária ao CRH hipotalâmico, muito provavelmente por inibirem a síntese de receptores de CRH nesse tecido, assim como a liberação de ACTH, o que foi demonstrado por estudos in vitro realizados em hipófises em meio de incubação ou células hipofisárias em cultura. Dentre as várias evidências de que os glicocorticoides exercem influências inibitórias sobre o hipotálamo, temos que injeções locais ou implantes de corticosterona ou dexametasona na eminência mediana, ou no hipotálamo ventromedial (nos núcleos paraventriculares), suprimem a atividade do eixo hipófisesuprarrenal. Desse modo, verificouse recentemente que os níveis de CRH na circulação portahipofisária se elevam em resposta à hemorragia em ratos, mas não se alteram nessa condição quando os animais são previamente tratados com dexametasona. Ainda, o conteúdo hipotalâmico de CRH aumenta após adrenalectomia e diminui após administração de corticosteroides. Contudo, mesmo altas doses de dexametasona não são capazes de bloquear completamente a capacidade do CRH em induzir certa secreção de ACTH em algumas condições (como no estresse), fato que pode ser bastante importante para que compreendamos alguns mecanismos envolvidos no estresse. ▸ Resposta ao estresse. A manutenção da constância do meio interno (ou homeostase) é crítica para a sobrevivência dos organismos superiores. Dessa maneira, há necessidade de adaptações contínuas a estímulos externos e internos (estressores), que envolvem alterações comportamentais, viscerais e endócrinas, para garantir a preservação da homeostase. O principal mecanismo endócrino que participa desses ajustes envolve o eixo hipotálamohipófise suprarrenal, que é ativado nessas circunstâncias, em que uma grande liberação de CRH ocorre em função da ativação de vias αadrenérgicas. Seguese um rápido aumento da liberação de ACTH, com subsequente elevação dos níveis circulantes de glicocorticoides, os quais desempenham importante papel na mobilização de substratos energéticos e na modulação de respostas cognitivas, imunitárias e cardiovasculares, o que é crítico para o sucesso da resposta ao estresse (para mais detalhes, ver Capítulo 69, Glândula Suprarrenal). βlipotrofina (βLPH) A βLPH é um peptídio constituído de 91 aa, isolado a partir de hipófises de carneiros. Esse peptídio apresenta pequena atividade corticotrófica e melanotrófica, e, embora o seu papel fisiológico ainda esteja por ser elucidado, há estudos que demonstram que a βLPH: (1) provoca liberação de ácidos graxos em vários tecidos, (2) diminui a calcemia por aumentar o volume de distribuição do cálcio e (3) ativa o processo de coagulação sanguínea. Embora esses efeitos tenham sido descritos, a βLPH tem sido apenas considerada como o precursor do βMSH, da metencefalina e da β endorfina. Recentemente, tem sido atribuído à βLPH um papel estimulador da secreção de mineralocorticoides a partir do córtex suprarrenal (zona glomerulosa); contudo, são necessários estudos adicionais para estabelecer se esse efeito resulta da ação da βLPH ou de alguns de seus produtos de processamento, e se ela tem alguma importância fisiológica. Como o ACTH e a βLPH são produzidos a partir da mesma molécula precursora (a POMC), no homem, os níveis plasmáticos desses hormônios encontramse em paralelismo em uma série de circunstâncias, apresentandose: (1) aumentados ou diminuídos frente a alterações nos níveis de glicocorticoides, (2) aumentados na hipoglicemia ou por estresse cirúrgico e (3) com variações ao longo do dia devido à existência de um ritmo circadiano na secreção de CRH. O CRH, como é conhecido, estimula a secreção concomitante de ACTH, βLPH e βendorfina, já que estimula a síntese e o processamentopóstranscricional da POMC. Hormônio melanotrófico (MSH) O MSH é encontrado nas formas alfa, beta e gama. A alfa é a biologicamente ativa, sendo constituída de 13 aa, os quais são os aa iniciais da molécula de ACTH. O αMSH induz o escurecimento rápido da pele de peixes, anfíbios e répteis, fundamental para mimetismo e termorregulação desses animais. Essa adaptação cromática rápida é possível graças à dispersão (no escurecimento) ou agregação (no clareamento) de grânulos de melanina dentro de células pigmentares
dendríticas, os melanócitos ou melanóforos, derivados da crista neural. Nesses vertebrados e na maioria dos mamíferos, o αMSH é produzido pela pars intermedia e liberado na circulação. No homem, ele é produzido por neurônios do hipotálamo, onde atua como neurotransmissor ou neuromodulador, e pelas células de Langerhans e queratinócitos da pele, onde atua paracrinamente. Nos mamíferos, inclusive o homem, os melanócitos perderam a capacidade de translocação rápida dos grânulos de melanina, e o escurecimento da pele depende da síntese de melanina (ou melanogênese) e de sua injeção nos queratinócitos vizinhos. Esse processo, o chamado bronzeamento, é ativado pelo αMSH e pela radiação ultravioleta B (UVB), que, por mecanismos ainda desconhecidos, estimula a produção de melanina a partir do aa tirosina. Em roedores, a UVB estimula a exteriorização de receptores para αMSH, tornando os melanócitos mais sensíveis a esse hormônio local. Em melanócitos humanos em cultura, o αMSH estimula a síntese de novo de várias enzimas envolvidas na melanogênese, mesmo na ausência de UVB. O receptor humano de αMSH já foi clonado e pertence a uma família de 5 receptores de melanocortinas, acoplados à proteína Gs, que inclui o receptor de ACTH, e é expresso por um gene do cromossomo 8. Nos melanócitos encontrase presente o tipo MC1, que reconhece preferencialmente o αMSH. O subtipo MC2 do córtex suprarrenal reconhece exclusivamente o ACTH, enquanto os subtipos MC3 e MC4 do SNC reconhecem ACTH e MSH. Um quinto tipo de receptor foi identificado em inúmeros outros tecidos, tais como músculos, fígado e pulmões. βendorfinas A identificação de locais ligantes para substâncias narcóticas opiáceas no SNC forneceu importante substrato para que se postulasse a existência de substâncias endógenas com a propriedade de se ligarem nesses receptores. Abriuse, assim, um campo extenso de investigação para que tais substâncias fossem identificadas. No sistema nervoso, identificaramse dois pentapeptídios, a metioninaencefalina (ou metencefalina), componente da βLPH, e a leucinaencefalina (ou leuencefalina); subsequentemente, foram identificadas as endorfinas, peptídios que correspondem aos aa 61 a 91 das βLPH (Figura 66.11). Sabese que esses opiáceos endógenos têm um papel importante na analgesia, modulação da dor e no estresse, além de participarem de mecanismos envolvidos no sono, atividade sexual, memória e regulação endócrina. Além da hipófise, os opioides derivados da POMC também são encontrados no SNC, quase exclusivamente no pericário de neurônios localizados no hipotálamo basal, especificamente no núcleo arqueado, daí se distribuindo ao hipotálamo e outras regiões do SNC. A ocupação de receptores opioides por essas substâncias leva ao bloqueio do influxo de sódio desencadeado por neurotransmissores excitatórios. Estudos adicionais demonstraram que um dos efeitos farmacológicos agudos dos opiáceos in vivo é causar diminuição dos níveis intracelulares de cAMP. Isso poderia alterar o potencial de membrana ou a condutância a certos íons nesses neurônios, o que modularia a resposta celular a estímulos excitatórios ou inibitórios, modificando marcadamente a função neuronal. Há consideráveis evidências de que os opiáceos endógenos promovam inibição da atividade nervosa nas regiões que representam o ponto final das vias ascendentes relacionadas com a dor, assim como de que eles possam ativar vias descendentes espinais, relacionadas com o processamento da dor, que atuam inibindo as células do corno posterior da medula. A injeção intracerebroventricular e intraventricular de βendorfina provoca analgesia em pacientes que apresentam dores crônicas intratáveis. Além do mais, tem sido atribuído à βendorfina um papel na regulação neuroendócrina, uma vez que sua administração em animais causa elevação dos níveis circulantes de GH e Prl e diminuição dos de LH e FSH, estes consequentes à sua ação inibitória sobre a secreção de GnRH.
Figura 66.11 ■ Representação esquemática da estrutura da βLPH, metencefalina, leuencefalina e βendorfina. (Adaptada de Bunney Jr., 1979.)
O exercício físico se constitui em um potente estímulo estressor, o que faz com que vias βadrenérgicas sejam acionadas com consequente ativação do eixo hipotálamohipófisesuprarrenais e liberação de quantidades equimolares de ACTH e βendorfinas. Acreditase que a βendorfina liberada atue com o objetivo de promover analgesia e certo grau de euforia, o que garantiria a progressão da atividade física por períodos mais prolongados. Com relação aos glicocorticoides liberados em resposta ao ACTH, devese salientar que, além de seus efeitos metabólicos (ver Capítulo 69), exercem potentes efeitos anti inflamatórios, que seriam igualmente importantes para a manutenção da atividade física prolongada. Sabe se que muitas fibras musculares sofrem lesões durante a atividade física, do que resulta a liberação de citocinas inflamatórias, com subsequente edema e dor, processos que são minimizados pelos efeitos anti inflamatórios dos glicocorticoides. Vale comentar que as citocinas são, inclusive, potentes estimuladoras do eixo hipotálamohipófisesuprarrenais. A βendorfina também está envolvida no controle da secreção de GnRH, sendo um conhecido neurotransmissor inibitório da secreção deste hormônio. É por essa razão que, não raramente, atletas do sexo feminino de alto nível, que se submetem a sessões diárias de exercício intenso, apresentam ciclos anovulatórios.
NEUROHIPÓFISE O estudo da fisiologia da neurohipófise baseouse, inicialmente, em experimentos clássicos em que extratos de neuro hipófise foram administrados por via intravenosa em animais de experimentação, observandose, em seguida, aumento da pressão arterial e diminuição do volume urinário. Esses efeitos foram igualmente observados quando os extratos administrados continham apenas a porção posterior da hipófise. A observação adicional de que o efeito pressor continuou a ocorrer em sapos, mesmo quando estes foram submetidos previamente à destruição do SNC, sugeriu a presença, nesses extratos, de um fator que agisse perifericamente, ou seja, diretamente sobre os vasos sanguíneos, surgindo daí o termo vasopressina, hoje conhecida como argininavasopressina (AVP), no caso de humanos. Adicionalmente, a hipofisectomia em animais de experimentação resultou em um aumento do volume urinário (ou poliúria) que foi revertido após administração de extratos neurohipofisários. Todavia, a poliúria decorrente de um comprometimento da função renal (induzido por administração de sais de urânio) não foi inibida por esses extratos, sugerindo a importante participação do rim como órgãoalvo desses extratos. Subsequentemente, verificouse que, em condições fisiológicas, a vasopressina exercia um efeito estimulante sobre o processo de reabsorção tubular de água. O termo hormônio antidiurético (ADH) passou então, também, a ser utilizado. Paralelamente a esses estudos, Dale, em 1906, verificou um efeito estimulante dos extratos neurohipofisários sobre a atividade contrátil do útero de mamíferos. Referiu, então, a presença nesses extratos de um agente ocitócico. A partir daí, vários estudos foram realizados, inclusive na espécie humana, demonstrando a eficácia desses extratos em induzir o parto, assim como no tratamento da hemorragia pósparto. O termo ocitocina foi, então, designado para esse agente presente na neurohipófise, por se tratar de substância que induzia contrações rítmicas e regulares da musculatura uterina. Posteriormente, demonstrouse um efeito estimulante da ocitocina sobre a musculatura lisa que reveste os alvéolos mamários que, após contração, leva à ejeção do leite. Atualmente, a ocitocina também é considerada um hormônio envolvido com a natriurese (mais detalhes no Capítulo 75, Controle Neuroendócrino do Balanço Hidreletrolítico).
▸ Relações anatomofuncionais A neurohipófise pode ser dividida em três porções: (1) lobo neural, pars nervosa ou lobo posterior, localizado posteriormente à adenohipófise; (2) haste hipofisária ou infundibular, a qual se acha envolvida pela porção tuberal da adenohipófise; e (3) eminência mediana do tuber cinereo (ou infundíbulo) (Figura 66.12). O lobo neural apresenta grande quantidade de terminações nervosas que pertencem ao trato hipotálamoneurohipofisário, intimamente associadas a uma rica rede de capilares. Nessas terminações nervosas encontramse armazenados os hormônios neurohipofisários, ADH e ocitocina, cujo processo de liberação é desencadeado por potenciais de ação provocados nos corpos celulares desses neurônios, por mecanismos que serão detalhados adiante. A descoberta da continuidade entre a neurohipófise e o sistema nervoso foi feita por Ramon y Cajal, observando que as fibras nervosas presentes na haste hipofisária e no lobo neural tinham seu ponto de origem em uma região localizada
posteriormente ao quiasma óptico, mais especificamente, nos núcleos supraópticos (NSO) e paraventriculares (NPV) do hipotálamo. Além de se projetarem para a neurohipófise, tanto as fibras ADHérgicas quanto as ocitocinérgicas, originárias do NPV, também se distribuem a outras regiões do sistema nervoso. Entretanto, essas fibras comportamse de forma independente daquelas que se projetam para a neurohipófise, já que os níveis de ADH no líquido cerebrospinal apresentam flutuações diferentes das observadas no plasma; em outras palavras, elas apresentam um ritmo circadiano próprio que independe do estado de hidratação do indivíduo. Existem ainda terminações nervosas contendo ADH em associação ao plexo capilar da circulação portahipotálamohipofisária, cuja possível função é modular a secreção dos hormônios da adenohipófise, como o ACTH, conforme comentado. No lobo neural observase, ainda, a presença de fibras pertencentes ao sistema tuberoinfundibular, contendo, principalmente, TRH, CRH e somatostatina, cuja função ainda está por ser esclarecida. Fibras aminérgicas e colinérgicas também são encontradas nessa porção da hipófise, as quais poderiam desempenhar uma função vasomotora ou ainda participar de alguma maneira do controle da secreção dos hormônios neurohipofisários. Quanto a este último aspecto, há evidências de que a acetilcolina estimula a secreção de ADH. Além dos axônios neuronais, cujos corpos celulares se encontram no hipotálamo, a neurohipófise apresenta células de origem glial, denominadas pituícitos, e outros elementos celulares, tais como os mastócitos, os quais se localizam frequentemente próximos aos vasos sanguíneos. Pouco se sabe sobre o papel funcional dos pituícitos. Provavelmente, a função dessas células não deve ser muito diferente das células gliais existentes no SNC, ou seja, nutrição e proteção dos neurônios. No entanto, é possível que os pituícitos desempenhem funções locais mais específicas, uma vez que, após a liberação dos hormônios neurohipofisários, essas células apresentam elevação da sua taxa metabólica, assim como aumento da atividade mitótica. Especulase que elas possam contribuir para o processo de secreção hormonal por um mecanismo de retroalimentação negativa, em virtude da sua íntima associação às fibras nervosas. Assim, há evidências de que, em situações de aumento da osmolaridade plasmática, diminui a associação dos pituícitos às fibras nervosas, o que facilitaria a secreção do ADH para os vasos sanguíneos, ocorrendo o contrário quando da redução da osmolaridade. Acreditase também que os pituícitos possam participar do processo de remoção dos hormônios neurohipofisários.
Figura 66.12 ■ Representação anatômica do eixo hipotálamohipofisário. Os componentes estão descritos no texto. (Adaptada de Reichlin, 1985.)
HORMÔNIOS NEUROHIPOFISÁRIOS O ADH e a ocitocina apresentam alta homologia estrutural, o que explica algumas ações fisiológicas em comum. Ambos são constituídos por nove aa, dos quais sete são idênticos, e apresentam uma ponte CysCys entre os aa 1 e 6 (Quadro 66.1). Os dois hormônios são sintetizados no pericário das células que constituem os núcleos supraópticos (NOS) e paraventriculares (NPV), como parte de um próhormônio, e armazenados em grânulos, que são transportados por fluxo axoplasmático em direção às terminações nervosas localizadas no lobo neural. Neste local, permanecem armazenados até que potenciais de ação, criados nos corpos celulares em resposta a estímulos específicos, provoquem suas liberações. A secreção desses hormônios envolve a fusão da membrana granular com a neuronal, processo conhecido como exocitose, o qual é dependente do influxo de íons cálcio (Figura 66.13). No interior dos grânulos de secreção, o ADH e a ocitocina encontramse associados às neurofisinas, às quais se atribuiu, inicialmente, o papel de proteínas carreadoras destes hormônios. Todavia, atualmente se reconhece que a neurofisina I e a II constituem parte da molécula precursora de ocitocina (próoxifisina) e ADH (própressofisina), respectivamente. Assim, as neurofisinas e os hormônios neurohipofisários são codificados no mesmo gene, fazendo parte de um próhormônio que é sintetizado nos ribossomos e processado enzimaticamente, dentro dos grânulos, ao longo do trato hipotálamoneurohipofisário. Acreditase que essa molécula precursora constituída pela associação das neurofisinas aos hormônios neurohipofisários dentro dos grânulos de secreção possa representar um mecanismo protetor que impediria a difusão do hormônio do grânulo e, portanto, sua liberação prematura ou inativação.
Figura 66.13 ■ Mecanismo de secreção dos hormônios neurohipofisários. Detalhes no texto. (Adaptada de Douglas, 1973.)
Desse processamento enzimático resulta a liberação do ADH, bem como de ocitocina de suas moléculas precursoras (Figura 66.14). Esses hormônios são, então, secretados, embora não ligados, com suas respectivas neurofisinas; estas não apresentam papel biológico conhecido, mas como são secretadas em quantidades equimolares em relação aos hormônios da neurohipófise, suas concentrações plasmáticas refletem a taxa de secreção hormonal. Os neurônios magnocelulares do trato hipotálamoneurohipofisário expressam apenas um dos hormônios da neuro hipófise: ADH ou ocitocina. Tanto os NSO quanto os NPV apresentam células que sintetizam ADH e ocitocina, embora a maioria (mais que 70%) sintetize o ADH. Uma das primeiras evidências indicativas da especificidade celular quanto à expressão dos neurohormônios decorreu de estudos realizados em ratos da cepa Brattleboro, os quais apresentam diabetes insípido hipotalâmico hereditário. Apesar de esses animais apresentarem deficiência na expressão de ADH, a ocitocina encontrase em níveis normais. Ainda, os exames histológicos da hipófise mostram áreas escuras que representam grupos de axônios de neurônios produtores de ocitocina, entremeadas com áreas mais claras correspondentes às regiões das terminações nervosas de neurônios que contêm ADH. Nos NPV, existe ainda uma população de neurônios cujos corpos celulares apresentam características morfológicas distintas dos que pertencem ao trato hipotálamoneurohipofisário. São pequenos e apresentam axônios que se dirigem à eminência mediana do hipotálamo, constituindo a chamada porção parvicelular dos NPV. Nessa porção encontramos neurônios que sintetizam distintamente TRH, CRH, somatostatina, substância P e, também, ADH. É interessante ressaltar que há colocalização de CRH e ADH em alguns neurônios, conforme demonstrado por métodos imunohistoquímicos, sugerindo que a presença desses dois peptídios possa representar um importante mecanismo de potencialização da secreção de ACTH, conforme citado anteriormente (ver Figura 65.13, no Capítulo 65).
▸ Hormônio antidiurético (ADH) A pressão osmótica dos líquidos corporais mantémse dentro de rígidos limites compatíveis com a vida. A manutenção da osmolaridade plasmática é assegurada graças a ajustes que ocorrem no balanço hídrico do organismo, o qual é resultado de um equilíbrio existente entre a ingestão e a eliminação de água. A ação do ADH é fundamental para esse equilíbrio (para mais detalhes, ver Capítulo 53, Papel do Rim na Regulação do Volume e da Tonicidade do Líquido Extracelular, e Capítulo 75). Esse neuropeptídio age nos túbulos renais estimulando o processo de reabsorção de água do filtrado glomerular, diminuindo, dessa maneira, as perdas de água do organismo. Pacientes portadores de diabetes insípido (com deficiência na secreção de ADH ou alterações funcionais nos seus receptores) apresentam um aumento brutal do
volume urinário (que alcança cerca de 10 a 15 ℓ por dia), o que pode levar o indivíduo à morte em poucas horas se o tratamento com ADH não for rapidamente instituído ou se o indivíduo não dispuser de água suficiente para beber.
Efeitos biológicos do ADH Os efeitos biológicos do ADH podem ser divididos em: (1) ações renais, que levam à reabsorção de água do filtrado glomerular, e (2) ações na musculatura lisa dos vasos, que resultam em contração da parede arteriolar e aumento da resistência periférica total. A ação antidiurética ocorre graças à interação do ADH com receptores denominados V2, os quais estão acoplados ao sistema adenilciclase/cAMP. Esses receptores encontramse presentes na superfície das membranas basolaterais das células epiteliais responsivas ao ADH (células principais dos ductos coletores e alça de Henle ascendente – segmento espesso). Como resultado dessa interação, ocorre elevação do conteúdo intracelular de cAMP, o que leva à ativação da proteinoquinase A, fosforilação de proteínas específicas, levando ao aumento da permeabilidade à água nos ductos coletores e transporte de cloreto de sódio na alça de Henle ascendente (detalhes no Capítulo 53). Por outro lado, a interação do ADH com os receptores V1, localizados na musculatura arteriolar, ativa a via fosfatidilinositol, que resulta na formação de diacilglicerol (DAG) seguida da ativação da proteinoquinase C. O resultado final é a contração da musculatura lisa dos vasos sanguíneos e aumento da resistência periférica total. Mais recentemente, foi demonstrada a existência de receptores V1 nas membranas luminal e basolateral do túbulo distal, com participação na regulação do trocador Na+/H+. Ação nos rins ▸ Transporte de água. O ADH aumenta a reabsorção de água do filtrado glomerular por meio da inserção de canais de água na membrana luminal das células do ducto coletor. A aquaporina 2 (AQP2) é o canal de água regulado pelo ADH nos ductos coletores renais; ela está presente, exclusivamente, nas células principais dos ductos coletores mais profundos. Estudos eletromicroscópicos têm demonstrado que essas células apresentam, próximo à superfície apical, vesículas difusamente distribuídas pelo citoplasma, que contêm canais de água prontos para serem inseridos na membrana plasmática. Após ativação do sistema adenilciclase/cAMP, desencadeada pela interação do ADH com receptores do tipo V2 localizados na membrana basolateral, essas vesículas fundemse com a membrana luminal, que resulta na inserção desses canais para passagem da água. O aumento do número de canais de água favorece a passagem de água, por difusão simples, do lúmen tubular para o interstício medular (hipertônico), resultando na concentração da urina (Figura 66.15). Sabese também que o cAMP promove elevação da transcrição do gene que codifica a AQP2, o que eleva o seu conteúdo intracelular. Evidências recentes indicam, ainda, que o aumento do conteúdo de AQP2 também se deve a uma ação inibitória do ADH sobre a degradação proteassomal desta proteína por meio da ativação da PKA e p38MAPK. (Mais detalhes desse assunto são dados no Capítulo 53.)
Figura 66.14 ■ Representação esquemática do modelo de biossíntese, transporte e liberação de hormônios neurohipofisários. (Adaptada de Hope e Pickup, 1974.)
▸ Transporte de cloreto de sódio. O transporte de cloreto de sódio na porção espessa ascendente da alça de Henle também é ativado pelo ADH, por meio de mecanismos que envolvem aumento da produção de cAMP. O transporte de cloreto nesse segmento é mediado por um mecanismo de cotransporte elétronneutro que movimenta 1Na+:1 K+:2Cl– através da membrana apical. A energia para a passagem do cloreto pela membrana apical é fornecida pelo gradiente eletroquímico de Na+, criado e mantido pela atividade da bomba de Na+/K+ da membrana basolateral. Acreditase
que a saída do Cl– da célula tubular seja por difusão simples a favor do gradiente elétrico. Nesse segmento do néfron ocorre ainda secreção de íons K+. No entanto, a maioria do K+ secretado para o lúmen retorna às células por meio de canais específicos. Verificase que esse sistema de cotransporte fornece às células 1Na+:2Cl–, mas, na realidade, quantidades iguais de Na+ e Cl– são reabsorvidas para o sangue peritubular. Isto sugere que parte da reabsorção de Na+ ocorra paracelularmente, sendo a voltagem transepitelial positiva e a elevada condutância ao Na+, via shunt paracelular, os principais determinantes da reabsorção desse íon (detalhes no Capítulo 51, Função Tubular).
Figura 66.15 ■ Representação esquemática da ação do hormônio antidiurético (AVP) provocando a inserção de canais de água (aquaporina 2 – AQP2) na membrana luminal dos ductos coletores renais. Descrição da figura no texto. (Adaptada de Bichet, 1997.)
O ADH atua no segmento espesso ascendente da alça de Henle aumentando: (1) a reabsorção de NaCl, (2) a voltagem transepitelial e (3) a secreção de K+. Assim como nos túbulos coletores, o ADH atua nas células da alça de Henle ascendente que promove a inserção de novas proteínas na membrana celular. É possível que a secreção de K+induzida pelo ADH decorra de uma maior inserção de canais de K+ na membrana apical dessas células e que o aumento da reabsorção de NaCl decorra de um aumento de unidades de cotransportadores de Na+:K+:2Cl– causado pelo ADH. Por intermédio dessas ações, o ADH contribui de maneira importante para o mecanismo de multiplicação por contracorrente e, portanto, para: (1) a hipertonicidade da medula renal e (2) a diluição do líquido intratubular, condições essenciais para que ocorra reabsorção de água nos ductos coletores (mais informações no Capítulo 53). Ação na musculatura lisa arteriolar A clássica ação vasoconstritora do ADH manifestase em concentrações plasmáticas de 10 a 100 vezes maiores que as necessárias para a sua ação antidiurética, o que sugere que, fisiologicamente, o ADH atuaria apenas em nível renal. No entanto, experimentos mais recentes indicam que o ADH, mesmo em concentrações fisiológicas, apresenta efeito vasoconstritor, o qual não é facilmente identificado devido à rápida resposta reflexa cardiovascular que mantém a pressão arterial inalterada. Porém, existem algumas situações em que se verifica mais facilmente a importância do ADH na regulação fisiológica do tônus vasomotor: (1) a administração de ADH acelera o desenvolvimento da hipertensão induzida pelos mineralocorticoides, (2) ratos Brattleboro, que apresentam diabetes insípido hipotalâmico familiar (pois não produzem ADH), não desenvolvem hipertensão induzida pelos mineralocorticoides, porém podem tornarse hipertensos
quando tratados com ADH, e (3) uma cepa de ratos que apresentam hipersecreção familiar de ADH também apresenta hipertensão arterial volumeindependente. Além dessas evidências indiretas, o choque hipovolêmico é uma situação em que se pode, facilmente, verificar a importância do ADH na manutenção do tônus vasomotor. Nessa condição, observamse elevações acima de 100 vezes nos níveis plasmáticos de ADH, que indicam uma ação predominantemente cardiovascular. Desse modo, cães hipofisectomizados morrem frente a pequenas hemorragias, facilmente contornadas por animais normais; isto é revertido por meio da administração de ADH. Conforme citado anteriormente, o ADH também atua estimulando a secreção de ACTH (ver, neste capítulo, o item “Regulação da secreção do ACTH”).
▸ Regulação da secreção de ADH Osmolaridade plasmática No início do século passado, Verney demonstrou que a infusão de salina hipertônica na artéria carótida de cães anestesiados levava à antidiurese, que era abolida após remoção da neurohipófise. Essa observação, somada ao fato de que após sobrecarga hídrica ocorre maior eliminação de água pela urina, levaram Verney a postular uma relação importante entre a osmolaridade plasmática e a secreção de ADH. Demonstrouse posteriormente no ser humano que a infusão de salina concentrada (850 mmol/ℓ) leva a um aumento progressivo da osmolaridade e da concentração plasmática de ADH. Em adultos saudáveis, a osmolaridade plasmática média é cerca de 280 mOsm/kg. Nessas condições a concentração plasmática de ADH varia de 0,5 a 1,5 pg/m ℓ . Acima de 280 mOsm/kg a secreção de ADH aumenta rápida e progressivamente com a elevação da osmolaridade plasmática, obedecendo à seguinte função linear: [ADH] = 0,38 (osmolaridade plasmática – 280). Desta maneira, o valor plasmático de 280 mOsm/kg é considerado como o limiar osmótico de secreção do ADH (ver adiante), acima do qual alterações da osmolaridade levam a alterações concomitantes na secreção de ADH e do volume plasmático, embora a sensibilidade deste sistema se altere frente a modificações do volume plasmático e da pressão arterial (PA), conforme será discutido adiante. Observase, também, uma relação direta entre concentração plasmática de ADH e osmolaridade urinária. Assim, um aumento de 0,3 pg/mℓ nos níveis plasmáticos de ADH é traduzido por uma elevação na osmolaridade urinária de cerca de 95 mOsm/kg; concentrações urinárias máximas são atingidas com uma osmolaridade plasmática de 294 mOsm/kg e níveis plasmáticos de ADH de 5 pg/mℓ.
Ativação dos osmorreceptores Em seus estudos iniciais, Verney propôs que as alterações da pressão osmótica do meio interno seriam detectadas por neurônios diferenciados que funcionariam como osmorreceptores. Seus estudos sugeriram que os osmorreceptores localizamse no hipotálamo anterior, nas proximidades ou nos próprios núcleos supraópticos e paraventriculares. Estudos subsequentes mostraram que lesões na região anteroventral do terceiro ventrículo abolem a liberação de ADH, assim como a sede induzida pelo aumento da osmolaridade plasmática. O mesmo ocorre no cão, após pequenas lesões do órgão vasculoso da lâmina terminal (OVLT), uma estrutura circunventricular situada na região anteroventral do terceiro ventrículo. Lesões em áreas vizinhas a esta não alteram a resposta osmótica do ADH, sugerindo que o OVLT seja, ou influencie de forma importante, os osmorreceptores. Alguns estudos têm sugerido que os osmorreceptores centrais seriam, na realidade, receptores que detectam variações na concentração de Na+ do líquido cerebrospinal, já que a infusão intracerebroventricular de salina hipertônica leva à antidiurese, enquanto a infusão de sacarose hipertônica a suprime (ver adiante). Essa supressão foi interpretada como o resultado de uma diluição da concentração de Na+ provocada pela sacarose hipertônica, o que reduziria o estímulo para a secreção de ADH. No entanto, a infusão intracarotídea de ureia, apesar de aumentar a concentração liquórica de Na+, não desencadeia a resposta antidiurética, o que fortalece a hipótese de que a secreção de ADH em resposta à administração de soluções hiperosmolares é resultado da ativação de osmorreceptores localizados fora da barreira hematencefálica, hoje reconhecidamente presentes em órgãos circunventriculares, tais como o OVLT e o órgão subfornicial (OSF). O mecanismo pelo qual os osmorreceptores são ativados envolve o efluxo de água dessas células, em decorrência do aumento da osmolaridade plasmática. Essa perda de água provoca uma deformação estrutural (diminuição do volume) celular, levando a um aumento da frequência de disparo de potenciais de ação. Presumese que a frequência dessas descargas seja proporcional ao grau de desidratação celular. Essas descargas, por sua vez, atingem os NSO e NPV, cujas células, igualmente, passam a deflagrar um maior número de potenciais de ação por unidade de tempo, o que resulta na secreção de maiores quantidades de ADH.
Como os osmorreceptores são estimulados por alterações no seu conteúdo de água, fica clara a razão pela qual esse sistema não apresenta sensibilidade igual para todos os solutos do plasma. Por exemplo, esse sistema é altamente sensível a variações na concentração de Na+ e seus ânions (ver anteriormente); admitese que isso seja decorrente da baixa permeabilidade da membrana plasmática ao Na+, cuja presença no plasma cria um gradiente osmótico que resulta em efluxo de água dos osmorreceptores. Por outro lado, solutos que penetram com maior facilidade nas células, como glicose e ureia, apesar de aumentarem a osmolaridade plasmática, causam pequena ou nenhuma alteração nos níveis circulantes de ADH. Do mesmo modo, aumentos na osmolaridade plasmática devidos ao Na+ ou manitol são dipsogênicos, enquanto os devidos à ureia ou glicose não são ou são pouco dipsogênicos (ver adiante) (Figura 66.16).
Osmorreceptores periféricos A observação de que cães desidratados apresentam redução da secreção de ADH após poucos minutos da ingestão de água e antes mesmo que a osmolaridade plasmática tenha se reduzido sugere a presença de osmorreceptores em outros locais, além do SNC. De fato, hoje se sabe que alguns desses sensores osmóticos estão localizados na região da veia porta hepática, um local estratégico que possibilita a detecção precoce do impacto osmótico dos alimentos e líquidos ingeridos. Tanto é que o aumento da osmolaridade nesta região estimula a ingestão de água e a secreção de ADH mesmo em ratos hidratados. Acreditase também que essa inibição da liberação de ADH relacionada com o ato de beber tenha alguma ligação com fatores orofaríngeos ou relacionados com a saciedade, os quais influenciariam a secreção de ADH.
Volemia e pressão arterial Há quase cinco décadas, foi sugerido o envolvimento de mecanorreceptores no controle da excreção de água e liberação de ADH em resposta a variações do volume sanguíneo. Esses receptores correspondem aos receptores de estiramento atriais, localizados no átrio esquerdo (volorreceptores, ou receptores de volume), assim como aos barorreceptores localizados nos seios carotídeos e arco da aorta. A distensão do átrio esquerdo, por meio da inflação de um balão, leva à diminuição dos níveis circulantes de ADH, efeito que é abolido pela hipofisectomia. Observouse que o estiramento do átrio esquerdo em cães e gatos anestesiados leva à diminuição da frequência de descargas dos neurônios do NSO e NPV, que se projetam para a neurohipófise. Adicionalmente, a desnervação cardíaca abole a inibição da secreção de ADH em resposta ao aumento da pressão atrial, embora não seja capaz de bloquear a diurese ou a queda dos níveis circulantes de ADH que se segue à expansão do volume sanguíneo; isso sugere que tais receptores, embora contribuam para a regulação do volume sanguíneo via ADH, não representam o mecanismo mais importante do sistema. Aliás, em primatas e no homem não há muitas evidências de que esses sensores sejam responsáveis pela liberação de ADH quando da queda do volume sanguíneo; acreditase que nessa situação os barorreceptores arteriais sejam os principais mediadores da elevação dos níveis plasmáticos de ADH.
Figura 66.16 ■ Mecanismo hipotético da resposta de um osmorreceptor (OR) exposto a solução hipertônica com soluto impermeável, semipermeável ou permeável. Note que há maior efluxo celular de água quando o soluto é impermeável do que quando é semipermeável. Porém, quando o soluto é permeável, não ocorre efluxo celular de água e a concentração do soluto no meio intracelular fica igual à do meio extracelular. Consulte o texto para mais detalhes. (Adaptada de Robertson, 1985.)
Os barorreceptores arteriais têm uma participação importante no controle da secreção de ADH. As evidências a esse favor são: (1) a perfusão dos barorreceptores do seio carotídeo com pressão de pulso constante, mesmo em uma situação de hemorragia, atenua a secreção de ADH; (2) a secção dos neurônios aferentes do seio carotídeo abole a elevação do ADH que ocorre em resposta à hemorragia. Desta maneira, tanto os receptores de estiramento atriais quanto os barorreceptores aórticos e carotídeos exercem uma inibição tônica sobre a liberação de ADH, de modo semelhante ao que fazem no controle da pressão arterial; o aumento da secreção de ADH observado durante a hipovolemia é decorrente da diminuição desse tônus inibitório. As fibras aferentes do IX e X pares cranianos são as responsáveis pela transmissão de informações sobre as variações de pressão, dos seios carotídeos e crossa da aorta, respectivamente, para o tronco encefálico, onde fazem sinapses com neurônios do núcleo do trato solitário (NTS). Dessa região, várias fibras projetamse para o NSO e NPV, onde exercem, predominantemente, um efeito inibitório. Parte dessas fibras inibitórias foi caracterizada como fibras noradrenérgicas. Presumese que os principais sistemas ativadores que se projetam a esses núcleos sejam colinérgicos (Figura 66.17).
Integração dos sinais osmóticos e de volume na regulação da secreção do ADH A interação existente entre os sistemas baro e osmorreguladores sobre a secreção de ADH é evidenciada por ocasião da instalação de hipovolemia, quando se observa diminuição do limiar do sistema osmorregulador para o estímulo osmótico. Nessa condição, osmolaridades plasmáticas menores que 280 mOsm/kg, insuficientes para ativar o mecanismo de secreção de ADH na vigência de normovolemia, passam a induzir secreção significativa de ADH; entretanto, mesmo na presença de um estímulo hemodinâmico, a secreção de ADH pode ser totalmente suprimida se a osmolaridade plasmática cair abaixo do novo limiar. Da mesma maneira, situações de hipervolemia fazem com que o limiar osmótico da secreção de ADH seja deslocado para a direita, isto é, são necessários maiores incrementos da osmolaridade plasmática para induzir secreção de ADH (Figura 66.18).
Sistema reninaangiotensina A angiotensina II (ANGII) é um agente estimulante da liberação de ADH. Dessa maneira, o aumento da sua concentração plasmática em resposta à hipovolemia, que decorre da ativação do sistema reninaangiotensina, contribui para a normalização da volemia, não só em função de seus efeitos vasoconstritores e estimulantes da secreção de aldosterona,
mas também porque eleva a secreção de ADH. De fato, alguns fatores que levam ao aumento da renina no plasma, tais como a estenose da artéria renal e a ativação simpática, são igualmente capazes de elevar a secreção de ADH.
Figura 66.17 ■ Anatomia da neurohipófise e de suas principais aferências reguladoras. npv, núcleos paraventriculares; nso, núcleos supraópticos; or, osmorreceptores; qo, quiasma óptico; ah, adenohipófise; nh, neurohipófise; ap, área postrema; nts, núcleo do trato solitário; br, barorreceptores. (Adaptada de Robertson, 1985.)
Figura 66.18 ■ Efeito da variação da volemia ou da pressão arterial sobre a regulação da osmolaridade plasmática na liberação de vasopressina. Cada linha representa a relação entre a concentração de vasopressina e a osmolaridade plasmática na presença de vários graus de hipovolemia ou hipotensão aguda (à esquerda) e de hipervolemia ou hipertensão (à direita). Mais detalhes poderão ser encontrados no texto. (Adaptada de Robertson, 1985.)
A existência de um sistema reninaangiotensina cerebral, com a detecção de mRNA para o angiotensinogênio e a presença de receptores de ANGII no hipotálamo, indicam a possibilidade de uma ação da ANGII central no controle da secreção do ADH. Esses receptores seriam igualmente sensíveis à ANGII circulante (periférica), a qual poderia alcançar o sistema nervoso via órgão subfornicial localizado fora da barreira hematencefálica. A presença de receptores de ANG II
em neurônios do OSF e OVLT indica que eles são importantes alvos da ANG II, cuja sinalização é integrada com a dos neurônios sensíveis ao Na+ dessas estruturas, para elevação da secreção de ADH. Demonstrouse ainda que a aplicação iontoforética de ANGII no NSO estimula a atividade de suas células e a secreção de ADH, e que a administração liquórica de renina ou ANGII desencadeia potente liberação de ADH e antidiurese (ou queda do volume urinário). Todavia, a administração liquórica de saralasina (bloqueador de receptor de ANGII) ou de captopril (inibidor da enzima que converte ANGI em ANGII) bloqueia a liberação de ADH em apenas algumas situações fisiológicas, de modo que até o momento não há um consenso a respeito do papel fisiológico do sistema renina angiotensina sobre a regulação da secreção de ADH.
Náuseas A sensação de náuseas é um estímulo potente para a liberação de ADH em humanos. Acreditase que esse efeito seja decorrente da ativação da área quimiorreceptora da região bulbar conhecida como o centro do vômito, área postrema, a qual se apresenta conectada aos NSO e NPV. É por esta razão que vários agentes estimulantes do centro do vômito, tais como morfina e nicotina, promovem aumento da secreção de ADH. O efeito das náuseas em estimular a secreção de ADH pode ser mascarado pela sobrecarga hídrica, que sugere a interação dos mecanismos de regulação osmótico e emético.
Estresse A secreção de ADH aumenta em resposta ao estresse inespecífico, tal como dor, estresse emocional e exercício físico. Desconhecese, contudo, o mecanismo dessa relação e a sua importância fisiológica. Em ratos, o aumento da secreção de ADH em resposta a estresse somente ocorre quando, concomitantemente, se estabelece uma queda de volume sanguíneo. Na espécie humana não se tem ideia se um mecanismo semelhante está envolvido nessa resposta.
Glicocorticoides A secreção de ADH é modulada pelos glicocorticoides, os quais exercem um efeito inibitório direto sobre a expressão gênica desse hormônio.
Hipoxia A hipoxia estimula a liberação de ADH em vários animais. Porém, em humanos, esse efeito é observado somente quando hipotensão e/ou náuseas estão associados, sugerindo, portanto, que essa ação seja indireta. Como já foi mencionado, a maioria dos medicamentos, neurotransmissores e hormônios que influenciam a secreção de ADH age indiretamente por alterações da pressão arterial, do volume sanguíneo ou da atividade das células que constituem o “centro” do vômito (área postrema). Os opiáceos ou baixas doses de morfina inibem a secreção de ADH por aumentarem o limiar osmótico para a sua liberação. O efeito inibitório do álcool sobre a secreção de ADH parece ser mediado, em parte, via opiáceos endógenos, já que pode ser parcialmente bloqueado por naloxona (antagonista opiáceo). Como comentado anteriormente, devese ressaltar que altas doses de morfina estimulam a secreção de ADH, via “centro” do vômito.
▸ Metabolismo do ADH A metabolização do ADH ocorre principalmente no fígado e nos rins e envolve a redução da ponte dissulfeto e ação posterior de aminopeptidases. O ADH também é excretado pelos rins, o que corresponde a 1/4 do clearance metabólico total desse hormônio. A meiavida do ADH é de 30 a 40 min, sendo, portanto, este o período necessário para que se observe aumento da diurese quando sua secreção basal é abolida.
▸ Regulação da sede A sensação de sede é influenciada por muitos dos mecanismos envolvidos na regulação da secreção de ADH. A resposta de sede a estímulos osmóticos é suficientemente potente para evitar alterações da osmolaridade plasmática, na ausência de ADH, em indivíduos que tenham livre acesso à água. O limiar osmótico para sede é alcançado com um aumento de 2% a 3% na osmolaridade plasmática, um valor apenas discretamente maior que o limiar para secreção de ADH. A estimulação da sede também é desencadeada por depleções do volume plasmático, mesmo na vigência de baixa osmolaridade plasmática.
Com a descoberta de osmorreceptores centrais envolvidos no controle da secreção de ADH, verificouse que a injeção de soluções hipertônicas no hipotálamo também desencadeava o aparecimento da sede em cabras, indicando o envolvimento de osmorreceptores na regulação da ingestão de água. Subsequentemente, verificouse que a destruição do tecido que circunda o OVLT diminui a sede desencadeada por injeções hipertônicas intracarotídeas, sugerindo que, da mesma maneira que os osmorreceptores ligados à secreção de ADH, aqueles envolvidos com a ingestão de água também se encontram próximos a essa região. A ANGII é um potente agente dipsogênico quando injetada no terceiro ventrículo. Além do mais, no OVLT existem receptores para a ANGII, o que sugere sua participação também no mecanismo de sede ativado pelo aumento da osmolaridade plasmática, conforme citado anteriormente.
OCITOCINA As propriedades ocitócicas e antidiuréticas de extratos neurohipofisários testados em vários animais em diferentes situações fisiológicas levaram à completa separação de dois princípios ativos na neurohipófise – ADH e ocitocina – e à identificação química, síntese e preparação de análogos sintéticos desses hormônios; deste modo se tornou possível o estudo das ações desses compostos em separado, sobre os diferentes tecidos. Embora existam ações bastante específicas da ocitocina nos diferentes tecidos, devemos ter claro que a homologia entre esses dois hormônios possibilita a existência de ações comuns. Além do mais, a regulação da secreção desses peptídios também pode apresentar semelhanças: por exemplo, a secreção de ocitocina também é estimulada pelo aumento da osmolaridade plasmática em cães (ver Capítulo 75).
▸ Efeitos biológicos da ocitocina As ações fisiológicas da ocitocina (OT) são exercidas principalmente sobre a musculatura lisa uterina e da que reveste os alvéolos da mama. Por meio desses mecanismos a ocitocina participa, respectivamente, do mecanismo do parto e da ejeção de leite durante a lactação. No entanto, devese ressaltar que a ocitocina exerce ações fisiológicas diversas das classicamente descritas. Por exemplo, há evidências de que esse hormônio exerça controle sobre a secreção de Prl e gonadotrofinas; efeitos parácrinos desse hormônio sobre tuba uterina e ductos espermáticos também foram descritos.
Ação sobre o útero A administração de ocitocina leva a um aumento da frequência e duração dos trens de potenciais de ação na musculatura uterina, mecanismo que: (1) inicia contração na musculatura uterina previamente inativa e (2) aumenta a frequência, força e duração das contrações em músculos já ativos. A administração de estrógenos a animais imaturos traz o potencial de membrana das células uterinas a níveis mais próximos do seu limiar de disparo. Sendo assim, o potencial de membrana dessas células declina gradualmente da metade até o término da gestação, quando os níveis de estrógenos estão bastante elevados. Essa queda do potencial de membrana facilita a ação da ocitocina sobre o útero, que, por aumentar a excitabilidade do miométrio e por facilitar a condução dos potenciais de ação, ativa as células uterinas que estavam quiescentes, aumentando assim o número de células participantes e a força de cada contração. Acreditase que a ocitocina exerça esses efeitos por meio de um aumento generalizado da permeabilidade iônica da membrana celular. A ocitocina, entre outras ações, é responsável por aumentar: (1) o número de canais de sódio no sarcolema, durante a fase de potencial em espícula, e (2) o cálcio intracelular, devido à mobilização de cálcio dos estoques intracelulares e ao seu influxo a partir do meio extracelular.
Papel da ocitocina no parto A ação da ocitocina no parto está bem definida, tendo em vista as seguintes evidências clínicas: (1) aumento da secreção de ocitocina durante o parto; (2) correlação positiva entre a concentração plasmática de ocitocina e o prosseguimento do trabalho de parto; (3) o trabalho de parto é difícil em pacientes hipofisectomizadas, com secção cirúrgica da haste hipofisária ou com bloqueio da liberação de ocitocina. Em algumas espécies, tais como rato e coelho, a ocitocina é o fator desencadeante do parto, enquanto, no ser humano, ela apenas contribui, embora com importância, para o desenvolvimento do trabalho de parto e a expulsão fetal.
A secreção de ocitocina durante o trabalho de parto é decorrente de um reflexo neuroendócrino desencadeado por estimulação mecânica de estruturas componentes do trato genital inferior (cérvice e vagina). A distensão da cérvice uterina provocada pelas primeiras contrações do útero, as quais independem da ocitocina na espécie humana, leva à estimulação dos receptores de estiramento aí localizados; os potenciais de ação aí causados se propagam por fibras aferentes específicas que chegam aos NPV e NSO (via medula espinal e tronco encefálico), onde fazem sinapse com neurônios ocitocinérgicos. O resultado desse processo é aumento da secreção de ocitocina que, ao atuar na musculatura uterina, induz novas contrações e realimenta o processo que leva à sua secreção por um mecanismo de feedback positivo; esse mecanismo perdura até a expulsão do feto.
Ação sobre a glândula mamária As ações da ocitocina sobre a glândula mamária estão relacionadas com o processo de ejeção do leite dos alvéolos e ductos galactóforos menores. Estas estruturas são envolvidas por células mioepiteliais, alvos da ocitocina; a contração dessas células leva à ejeção do leite armazenado. Este processo também é regulado por um mecanismo reflexo, conhecido como reflexo de ejeção do leite, desencadeado em resposta à sucção do mamilo. O reflexo envolve a estimulação de terminações nervosas presentes no mamilo (mecanorreceptores), de onde potenciais de ação são transmitidos à medula espinal, tronco encefálico e hipotálamo, onde então atingem os neurônios ocitocinérgicos. A ativação desses neurônios leva à secreção de ocitocina e contração das células mioepiteliais; seguese um aumento da pressão intramamária e ejeção do leite para os ductos galactóforos maiores e cisternas, de onde pode ser obtido passivamente por sucção. Esse processo não deve ser confundido com o da lactogênese, o qual é controlado pela prolactina. O aleitamento depende totalmente desse reflexo que, na espécie humana, pode ser condicionado ao choro de um bebê.
Outras ações Durante o ato sexual, a estimulação mecânica dos componentes do trato genital feminino inferior também eleva a secreção de ocitocina, por mecanismo similar ao descrito por ocasião do parto (com ativação de mecanorreceptores e liberação de ocitocina). Especulase que a ocitocina liberada nessa ocasião tenha um papel estimulante sobre a atividade da musculatura lisa que envolve tais estruturas, o que “facilitaria” a propulsão dos espermatozoides em direção ao útero. No ser humano, a função desse hormônio ainda é motivo de especulação. Há evidências de que, no coelho, a ocitocina ative o transporte de esperma pelo epidídimo. Apesar de ser tradicionalmente associada a funções reprodutivas, vem sendo demonstrado que a ocitocina também participa da regulação da função cardiovascular, uma vez que se detectou a presença de receptores de OT em todos os compartimentos do coração e na vasculatura. Também foi demonstrado que a OT induz a liberação do peptídio atrial natriurético e óxido nítrico (NO) de coração perfundido e secções de átrios. As ações cardiovasculares da OT incluem: natriurese, queda da pressão arterial, efeitos inotrópicos e cronotrópicos negativos, neuromodulação parassimpática, bem como vasodilatação desencadeada pelo NO (detalhes no Capítulo 75). Mais recentemente tem sido apontado que a ocitocina exerce importante papel no desenvolvimento e função do sistema imunológico, participando do desenvolvimento do timo e da medula óssea, aumentando as defesas imunológicas, desempenhando efeitos semelhantes aos antibióticos e reprimindo distúrbios imunológicos associados ao estresse. Contudo, mais estudos são necessários para melhor explorar o papel da ocitocina na regulação neuroendócrina do sistema imunológico. Já há algum tempo, as vias centrais ocitocinérgicas têm sido relacionadas com o desencadeamento do comportamento maternal, receptividade sexual da fêmea e com a resposta da prole à separação social, em ratos. Estudos recentes têm revelado que as vias ocitocinérgicas e ADHérgicas centrais exercem importantes efeitos comportamentais relacionados com seletivos laços de longa duração entre machos e fêmeas (monogamia). Na maioria dos mamíferos, a ocitocina é liberada durante a cópula, acreditandose que, com repetidas e prolongadas sessões de cópula, esse hormônio exerça um efeito importante no estabelecimento desses laços afetivos seletivos. Contudo, essa ação da ocitocina é verificada em fêmeas; em machos é o ADH, e não a ocitocina, que desempenha esse papel. Sabese que a inervação ADHérgica (vasopressinérgica) é sexualmente dimórfica e parece ser importante para o comportamento paternal. Vias centrais vasopressinérgicas também têm sido implicadas na marcação dos territórios e na memória social.
▸ Regulação da secreção de ocitocina A estimulação de mecanorreceptores localizados na cérvice uterina, canal vaginal e mamilo leva a um aumento da liberação de ocitocina. As evidências experimentais sugerem que o neurotransmissor envolvido nesses mecanismos seja a acetilcolina. Por outro lado, as catecolaminas exercem efeitos inibitórios sobre a liberação de ocitocina. Isto pode ser evidenciado em situações de estresse, em que ocorre inibição da ejeção de leite. A administração de ocitocina nessa condição é capaz de restabelecer o fornecimento de leite, o que sugere que essa inibição decorra de um bloqueio central da liberação da ocitocina. Aliás, a aplicação iontoforética de norepinefrina em corpos celulares de neurônios localizados nos NPV leva a uma inibição da atividade deles. Existem evidências de que a inibição da ejeção de leite causada pelo estresse também possa ser o resultado da constrição de vasos sanguíneos da glândula mamária, o que dificultaria o acesso da ocitocina ao seu local de ação (detalhes desses processos no Capítulo 77).
AGRADECIMENTO Agradecemos à Profª Drª Ana Maria de Lauro Castrucci pelas sugestões dadas no item relativo ao hormônio melanotrófico (MSH).
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Introdução
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Melatonina Bibliografia
INTRODUÇÃO O estudo da glândula pineal passou por diversos momentos na história da ciência e, a cada momento, uma de suas características funcionais foi enfatizada, atribuindoselhe importância de acordo com as concepções filosóficas e científicas predominantes. Desde a clássica atribuição cartesiana de “sede da alma”, centro, portanto, da regulação de toda função sensorial, motora e cognitiva, até a mais recente de “órgão vestigial”, ou seja, sem a menor importância, a glândula pineal ressurge, na história científica contemporânea, a partir do livro de Kitay e Altschule, de 1954, que por uma revisão extensa da literatura, recolocaa como objeto de estudo das ciências biológicas e das ciências médicas. O marco seguinte deuse em 1958 e 1959, com o isolamento e caracterização molecular da melatonina, seu hormônio. A partir daí, surge uma série enorme de trabalhos, congressos e simpósios que procuraram estudar e esclarecer o papel funcional da pineal e de seus produtos de secreção, principalmente da melatonina. A análise da literatura contemporânea mostra, ainda, que a glândula pineal e, em particular, a melatonina podem agir, praticamente, sobre qualquer sistema fisiológico e, às vezes, aparentemente, com efeitos contraditórios, como ser antigonadotrófica em roedores noturnos e prógonadotrófica em ovelhas, por exemplo. A solução dessa aparente contradição surge quando se passa a estudar a glândula pineal sob a ótica da análise filogenética e da fisiologia comparada. Constatase que esse órgão faz parte do plano geral de organização de todos os vertebrados. De mesma origem embriológica que os olhos laterais, o órgão pineal de peixes, anfíbios, répteis e algumas aves (passariformes) é diretamente fotossensível, sendo os pinealócitos estruturas semelhantes aos fotorreceptores da retina de mamíferos. Nessas mesmas classes, além de suas características de fotossensibilidade e de secreção endócrina, a glândula pineal mantém conexões, tanto aferentes quanto eferentes, com o sistema nervoso central através do pedúnculo pineal. Em mamíferos, no entanto, apesar de manter seu caráter endócrino, os pinealócitos perdem sua capacidade fotorreceptiva, e a pineal, perdendo grande parte de suas conexões diretas com o sistema nervoso central, passa a estar sob o comando do ciclo de iluminação ambiental, de modo indireto, por meio de projeções da retina para estruturas diencefálicas que, projetandose para o simpático cervical, atingem a glândula pineal. Comum a todos os vertebrados, portanto, é o caráter de órgão endócrino cuja produção hormonal é controlada pelo ciclo de iluminação ambiental característico do dia e da noite. Esse controle é tal que, qualquer que seja a espécie considerada (seja de atividade diurna, noturna ou crepuscular), a produção de melatonina é predominantemente noturna (Figura 67.1 e 67.2 A), e a duração do episódio secretório e de sua concentração no extracelular depende estritamente da duração do período de escuro (escotoperíodo) da alternância dianoite. Como corolário dessa sua flutuação diária, a melatonina circulante tem, também, seu perfil plasmático variável de acordo com as noites mais longas ou mais curtas típicas das diversas estações do ano (Figura 67.2 B).
Essas características de produção e secreção de melatonina determinam, portanto, o papel fisiológico da glândula pineal: sinalizar para o meio interno, pela presença (ou maior concentração) e ausência (ou menor concentração) da melatonina na circulação e nos diversos líquidos corpóreos, se é noite ou dia no meio exterior e, pelas características do seu perfil plasmático noturno (duração do episódio secretório de melatonina), qual é a estação do ano.
Figura 67.1 ■ Alocação, dentro das 24 horas, dos momentos de pico de algumas variáveis fisiológicas em animais de hábitos diurnos e noturnos. Repare que, independentemente dos hábitos comportamentais típicos da espécie, a melatonina tem sua secreção máxima à noite.
Figura 67.2 ■ Perfis esquemáticos de secreção de melatonina. A. Perfil circadiano. B. Variação sazonal da duração do período secretório de melatonina. Note que, no inverno, em que as noites são mais longas, a duração do episódio de secreção de melatonina é maior do que nas outras estações.
Isso significa que o papel da glândula pineal, pela produção de melatonina, é de sinalizar para o organismo se é dia ou noite e o sentido da mudança de estações. Em função desse sinal temporal, estruturas do sistema nervoso central, principal e eventualmente órgãos periféricos, disparam os mecanismos adaptativos para a noite ou o dia e para a estação do ano correspondente, mecanismos estes que são típicos da espécie considerada. Assim, por exemplo, noites crescentes (fotoperíodos decrescentes) provocam o bloqueio do eixo hipotálamohipófisegonádico em roedores noturnos, enquanto o mesmo sinal ativa o mesmo eixo funcional em ovelhas. Ou seja, a melatonina, no caso, não tem como função ser ou não
antigonadotrófica. Sua função é sinalizar qual a estação do ano, e, de acordo com a história filogenética adaptativa da espécie, uma ou outra resposta reprodutiva é disparada pelos sistemas fisiológicos integradores. Desse modo, a glândula pineal, associadamente a estruturas neurais – como os núcleos supraquiasmáticos hipotalâmicos – e endócrinas, constitui o sistema neuroendócrino responsável, em última instância, pela organização temporal dos diversos eventos fisiológicos e comportamentais, necessária à adaptação do indivíduo e da espécie às flutuações temporais cíclicas do meio ambiente. Devese assinalar que estudos mais recentes mostraram correlatos fisiológicos celulares e mecanismos de transdução diferencial para diversos tipos de episódios secretórios de melatonina (períodos de secreção curtos ou longos), assim como para estimulações circadianas repetidas, indicando pois que os sistemas biológicos adaptaramse filogeneticamente no sentido de “ler” o sinal melatoninérgico variável de acordo com o dia e a noite e as estações do ano. Em função desse papel de mediador entre fenômenos cíclicos ambientais e processos regulatórios fisiológicos, não é de estranhar, portanto, que a glândula pineal, pela secreção de melatonina, possa estar envolvida na modulação das mais diversas funções fundamentais para a sobrevivência do indivíduo e da espécie: regulação endócrina e metabólica, em geral, e da reprodução, em particular; regulação dos ciclos atividaderepouso e sonovigília; regulação do sistema imunológico; regulação cardiovascular, entre outras.
MELATONINA A melatonina (Figura 67.3) é uma indolamina (Nacetil5metoxitriptamina) derivada do aminoácido triptofano e, portanto, não pertence às categorias clássicas de hormônios peptídicos ou esteroides. As presenças dos grupamentos acetil e metoxi conferem à molécula, respectivamente, hidrossolubilidade e lipossolubilidade, ou seja, no seu conjunto, anfifilicidade. Assim, graças a essas características próprias de solubilidade, a melatonina pode atingir todos os compartimentos do organismo, atravessando, inclusive, as membranas celulares e de organelas de modo a poder interagir com vários sistemas funcionais subcelulares, em particular com a mitocôndria. Adicionalmente, os carbonos 2 e 3 do grupo pirrólico do grupamento indólico conferem à molécula da melatonina alto poder redutor e, portanto, uma grande capacidade antioxidante. De fato, a melatonina é considerada um dos mais poderosos antioxidantes naturais, mais potente até, em alguns sistemas, do que as vitaminas C e E.
▸ Síntese de melatonina pela glândula pineal Como visto anteriormente, em todos os vertebrados o metabolismo da glândula pineal está sob o controle dos ciclos diário e sazonal de iluminação ambiental. Em mamíferos, a luminosidade típica da flutuação de claroescuro ambiental diária, agindo através da retina, cumpre o papel clássico de arrastador da ritmicidade circadiana na produção de melatonina, fazendo com que seu pico diário coincida sempre com a noite, independentemente da espécie considerada. Diferentemente, no entanto, do que acontece com outros ritmos endógenos, a luz, que incide sobre a retina de mamíferos durante o período de escuro da noite circadiana, pode bloquear, dependendo de sua intensidade e comprimento de onda, completa e instantaneamente, a produção de melatonina, fazendo com que sua concentração plasmática caia a níveis basais em poucos minutos (Figura 67.4).
Figura 67.3 ■ Molécula de melatonina.
O sistema neural envolvido no controle do metabolismo da glândula pineal originase no núcleo paraventricular hipotalâmico que, de forma direta e indireta, projetase sobre a coluna intermediolateral da medula torácica alta e, consequentemente, sobre neurônios préganglionares do sistema nervoso autônomo simpático. Estes neurônios se projetam para os gânglios cervicais superiores que, através dos ramos carotídeos internos e nervos conários, projetamse para a glândula pineal. Por outro lado, o ritmo diário da produção de melatonina depende do sistema neural que classicamente controla a ritmicidade circadiana e começa na retina, projetandose, através da via retinohipotalâmica, para as regiões hipotalâmicas periquiasmáticas, principalmente o núcleo supraquiasmático, que, por sua vez, conectase com o núcleo paraventricular hipotalâmico, controlando, ao longo das 24 h, a atividade da via neural responsável pela síntese de melatonina (Figura 67.5). Dessa maneira, o controle noradrenérgico simpático sobre a glândula pineal varia circadianamente, de modo que a atividade dos nervos conários se torna mais intensa na imediata transição da parte clara para a parte escura do ciclo de iluminação diário. Neste momento circadiano, a densidade e a afinidade dos receptores βadrenérgicos (subtipo β1) na membrana das células da glândula pineal (pinealócitos) são máximas. Esses fatos, associados à maior capacidade de síntese de norepinefrina pelos terminais noradrenérgicos simpáticos no mesmo momento circadiano, determinam, em consequência, a máxima eficiência desse sistema de neurotransmissão nesse momento muito particular do ciclo diário. Na membrana dos pinealócitos encontramse, ainda, adrenorreceptores do tipo α 1 (subtipo α 1B). Esses receptores, apesar de extremamente importantes por seu efeito potenciador da acumulação intracelular de AMP cíclico induzida pela estimulação βadrenérgica, não apresentam variação circadiana, a não ser em certas circunstâncias particulares. A cadeia bioquímica de síntese de melatonina (Figura 67.6) começa com o aminoácido triptofano, que, através da enzima triptofanohidroxilase, é convertido em 5hidroxitriptofano (5HTP). Este, sob a ação da descarboxilase de laminoácidos aromáticos, é transformado em serotonina (5HT). A serotonina é convertida em Nacetilserotonina (NAS) pela ação da enzima arilalquilaminaNacetiltransferase (NAT). A NAS, oximetilada pela enzima hidroxiindolOmetiltransferase (HIOMT), dá origem à 5metoxiNacetiltriptamina (melatonina).
Figura 67.4 ■ Fenômeno da fotoinibição da secreção noturna de melatonina quando o animal é exposto a uma estimulação luminosa. No inserto, está representada a curva intensidade vs. resposta, para seres humanos adultos jovens.
Figura 67.5 ■ Vias neurais responsáveis pelo controle diário da produção de melatonina pineal. RHP, via retino hipotalâmica; SCN, núcleo supraquiasmático; PVH, núcleo paraventricular hipotalâmico; IML, porção intermediolateral torácica alta da medula espinal; SCG, gânglio simpático cervical superior; NCI, nervo carotídeo interno; NC, nervo conário; NOR, norepinefrina; P, pineal.
Todas as substâncias envolvidas na síntese e na degradação da melatonina apresentam uma flutuação diária na sua concentração (Figura 67.7). A atividade da enzima triptofanohidroxilase (E.C.1.14.16.4) é dependente de oxigênio e de um cofator pteridínico reduzido, apresentando, no rato, um ritmo circadiano de atividade, com pico noturno dependente da estimulação noradrenérgica, mediada pelos receptores β e produção de AMP cíclico, em um processo dependente de síntese proteica. Devese lembrar, no entanto, que dado o Km do triptofanohidroxilase, sua capacidade de síntese de 5hidroxitriptofano está limitada pelas concentrações habituais de triptofano plasmático, indicando assim que aumentos eventuais nessa concentração poderiam resultar em aumentos dos níveis de serotonina na pineal.
Figura 67.6 ■ Vias bioquímicas representativas da síntese e degradação da melatonina e outros metabólitos pineais.
Figura 67.7 ■ Perfis diários dos produtos intermediários da via de síntese de melatonina.
O passo bioquímico seguinte, na síntese de melatonina, é a descarboxilação do 5HTP pela enzima descarboxilase de l aminoácidos aromáticos (E.C.4.1.1.28), produzindo serotonina. Essa enzima, que requer piridoxal fosfato como cofator, parece ser a mesma que atua na descarboxilação da DOPA, produzindo dopamina. Desse modo, a reação mais importante, na síntese de serotonina, é a hidroxilação do triptofano, uma vez que o 5HTP é imediatamente descarboxilado em um processo bioquímico controlado pelo substrato. A concentração de serotonina, na glândula pineal, por grama de tecido, é a mais alta do organismo. A serotonina apresenta uma variação diária, com altas concentrações durante o período de claro e baixas concentrações no período de escuro do ciclo de iluminação ambiental. A taxa de renovação de serotonina é máxima durante a noite, quando, ao lado de uma síntese mais acentuada, está aumentada também sua metabolização. A queda observada nos níveis de serotonina na glândula pineal durante o início da noite devese a 2 fatores: à ativação da NAT pela estimulação noradrenérgica, transformando serotonina em N acetilserotonina; e a um processo ativo de secreção de serotonina induzido pela estimulação α 1noradrenérgica. Durante o dia, ou na ausência de estimulação noradrenérgica, a serotonina dos pinealócitos é desviada, quase exclusivamente, para a via desaminativaoxidativa, onde sofre ação da MAO B (E.C.1.4.3.4.; monoamina: O2 oxidorredutase), sendo transformada em 5hidroxiindolaldeído, que, sob ação da aldeído desidrogenase (E.C.1.2.1.3), transformase em ácido 5hidroxiindolacético, ou, sob ação da álcool desidrogenase (E.C.1.1.1.2), transformase em 5
hidroxitriptofol. Estes dois produtos podem ser oximetilados sob a ação da HIOMT produzindo, respectivamente, o ácido 5metoxiindolacético e 5metoxitriptofol. A enzima arilalquilamina Nacetiltransferase (E.C.2.3.1.87), que é responsável pela transformação de serotonina em Nacetilserotonina, é a mais importante na cadeia de síntese de melatonina, apresentando um ritmo circadiano de atividade dependente da estimulação noradrenérgica. À noite, o aumento na quantidade de cAMP intracelular decorrente da estimulação simultânea dos receptores β1 e α 1adrenérgicos aumenta a atividade da enzima em dezenas de vezes. A estimulação βadrenérgica aumenta a quantidade de cAMP intracelular pela ativação da enzima adenilatociclase através de uma proteína G estimulatória (Gs). A potenciação desse efeito pela estimulação dos receptores α 1adrenérgicos envolve a mobilização de uma proteína G estimulatória, que, ativando a fosfolipase C, promove a hidrólise do fosfatidilinositol (PI), com consequente produção de diacilglicerol e trifosfato de inositol (IP3). A ativação dos receptores α 1 adrenérgicos promove, ainda, um aumento da concentração do Ca2+ intracelular, dependente tanto de um aumento do influxo de Ca2+ quanto da liberação de Ca2+ de estoques intracelulares pelo IP3. O papel dos canais de Ca2+ dependentes de voltagem do tipo L, neste mecanismo, não está bem esclarecido, havendo na literatura dados contraditórios. No entanto, esse tipo de corrente parece ser de extrema importância no efeito potenciador do cálcio sobre a estimulação noradrenérgica. O Ca2+, juntamente com o diacilglicerol, promove a ativação da quinase proteica C (PKC). É possível que a potenciação, pela PKC, da estimulação βadrenérgica, na produção do cAMP, se dê por meio da fosforilação da proteína Gs ou da unidade catalítica da própria adenilatociclase. Há dados ainda, em outros sistemas, mostrando um papel potenciador direto do complexo Ca2+/calmodulina na ativação da enzima adenilatociclase, fato que poderia estar ocorrendo, também, na glândula pineal. Os eventos subsequentes ao aumento do cAMP que levam à ativação da NAT são, hoje em dia, razoavelmente bem conhecidos. Sabese que, em ratos, o cAMP inicia processos de transcrição e tradução gênicas e síntese da própria N acetiltransferase. O cálcio também parece exercer um papel importante nesses fenômenos, uma vez que o aumento de sua concentração no intracelular potencializa os efeitos de análogos do cAMP sobre a atividade enzimática da NAT, e, ao contrário, a sua depleção por EGTA inibe a estimulação da enzima pelo dibutiril cAMP. O Ca2+ e o cAMP poderiam atuar sinergicamente sobre os processos de transcrição, tradução ou eventos subsequentes, por meio da fosforilação de um fator de transcrição dependente de AMP cíclico (CREB). Os fatores de transcrição interagem com elementos de controle específico do DNA localizados nas regiões promotoras dos genes, ativando ou inibindo a transcrição gênica. Como os efeitos do cAMP são mediados por uma quinase dependente de cAMP (PKA) e os do Ca2+ parecem ser mediados por uma quinase dependente do complexo Ca2+/calmodulina, a fosforilação do CREB por esses dois elementos poderia produzir alterações conformacionais, modificando a sua função e influenciando a expressão gênica. Ainda, as quinases reguladas por Ca2+ e cAMP poderiam fosforilar a NAT diretamente em diferentes locais ou poderiam atuar indiretamente fosforilando proteínas citosólicas que regulam a síntese, atividade ou estabilidade da NAT. O Ca2+ poderia ter, adicionalmente, um papel póssíntese do mRNA, uma vez que a sua ausência tem um efeito na reindução da NAT no meio da noite, fenômeno que, sabidamente, independe de síntese adicional de mRNA. O cAMP aumenta rapidamente após a estimulação noradrenérgica, alcançando níveis máximos (aumento de 60 vezes em relação ao controle) em 10 min. Em seguida, ocorre um declínio gradual até os níveis do controle. Essa síntese inicial bastante elevada de cAMP devese à estimulação simultânea pela norepinefrina dos receptores β e α 1, e a redução que se segue é, em grande parte, provocada pela imediata dessensibilização dos receptores α 1 pela PKC. Ainda, essa resposta celular inicial elevada, na síntese do cAMP, seguida de redução, devese a um aumento da densidade de receptores β adrenérgicos no início do período escuro, seguida de uma dessensibilização lenta desses receptores e de um aumento no metabolismo do cAMP pela fosfodiesterase. Por outro lado, a indução máxima de atividade da NAT ocorre aproximadamente 4 a 6 h após o início da estimulação noradrenérgica, quando os níveis de cAMP já não se encontram tão elevados. É possível que a alta quantidade inicial de cAMP seja necessária para induzir processos de transcrição e tradução gênicos, enquanto concentrações menores de cAMP sejam adequadas para manter a atividade da NAT. O término da estimulação simpática, a administração de antagonistas adrenérgicos ou a fotoestimulação noturna produzem uma queda na atividade da NAT com uma meiavida de aproximadamente 3 min. Esse processo de inativação enzimática parece depender, em grande parte, de mecanismos de destruição proteossomal. A NAS é convertida em melatonina pela enzima hidroxiindolOmetiltransferase, que mantém sua atividade relativamente constante ao longo das 24 h. A regulação noradrenérgica da HIOMT, diferentemente da NAT e do triptofanohidroxilase, parece ocorrer a longo prazo. Por exemplo, ratos expostos à luz constante ou que tiveram removidos os seus gânglios cervicais superiores apresentam uma redução de aproximadamente 70% na atividade da
HIOMT, após um período de 3 semanas. No entanto, foram descritas evidências apontando para a regulação circadiana da HIOMT e sua importância na síntese de melatonina. Está demonstrado que outras substâncias, sejam neurotransmissores, neuromoduladores ou hormônios, podem modular a síntese de melatonina: neuropeptídio Y, peptídio intestinal vasoativo, vasopressina, angiotensina II, insulina, acetilcolina, dopamina, GABA, glutamato, prostaglandinas, adenosina, ATP, peptídio delta indutor de sono, peptídio histidina Nterminal e leucina Cterminal (PHI), peptídio ativador da adenilatociclase da pituitária (PACAP), pteridinas, entre outras. A Figura 67.8 mostra um esquema resumindo as principais vias metabólicas intracelulares responsáveis pela síntese de melatonina pelos pinealócitos.
▸ Secreção de melatonina e sua metabolização periférica Costumase considerar que toda melatonina produzida é imediatamente secretada, seja pela sua alta solubilidade nos meios biológicos, seja pelo fato de ela não poder ser detectada por métodos histoquímicos celulares em grânulos de secreção nos pinealócitos. No entanto, há evidências de que a secreção de melatonina poderia ser regulada de modo independente da sua síntese. Assim, demonstrase em várias espécies que a secreção de melatonina (cuja concentração plasmática é medida tanto na grande confluência venosa posterior quanto perifericamente) tem caráter pulsátil, com a frequência, em ratos, de aproximadamente 2,9 ciclos por hora. Apesar de esse ritmo de secreção poder ser atribuído a eventuais alças bioquímicas envolvidas na síntese da melatonina ou outros fatores, poderia, também, ser atribuído a um processo de armazenagem transitória, uma vez que parece independer do padrão de descarga das fibras simpáticas aferentes. Mesmo em glândulas mantidas em cultura e submetidas à técnica de perfusão, há evidências de secreção pulsátil de melatonina induzida por agonistas βadrenérgicos. Além disso, algumas substâncias como adenosina e dopamina e bloqueadores de canais de cálcio parecem regular o próprio processo de secreção de melatonina pelos pinealócitos. A melatonina é liberada nos espaços perivasculares da glândula, difundindose, daí, para a circulação. O transporte plasmático se dá principalmente ligado a proteínas, em especial a albumina. A meiavida da melatonina circulante é de cerca de 20 min, e sua metabolização periférica se dá essencialmente pela transformação hepática (em torno de 90% da melatonina circulante) em 6OHmelatonina, que após conjugação com sulfatos (a maior parte gerando a 6 sulfatoximelatonina) ou com glucuronídeos é excretada na urina. Devese ressaltar que a melatonina pode ser secretada diretamente no terceiro ventrículo cerebral, através do recesso pineal, no qual sua concentração chega a ser de 10 a 20 vezes maior que no plasma. No sistema nervoso central e na própria glândula pineal a melatonina pode ser transformada em quinuraminas sob a ação da 2,3 indolamina dioxigenase (ver Figura 67.6). O cAMP aumenta rapidamente após a estimulação noradrenérgica, alcançando níveis máximos (aumento de 60 vezes em relação ao controle) em 10 min. Em seguida, ocorre um declínio gradual até os níveis do controle. Essa síntese inicial bastante elevada de cAMP devese à estimulação simultânea pela norepinefrina dos receptores β e α 1, e a redução que se segue é, em grande parte, provocada pela imediata dessensibilização dos receptores α 1 pela PKC. Ainda, essa resposta celular inicial elevada, na síntese do cAMP, seguida de redução, devese a um aumento da densidade de receptores β adrenérgicos no início do período escuro, seguida de uma dessensibilização lenta desses receptores e de um aumento no metabolismo do cAMP pela fosfodiesterase. Por outro lado, a indução máxima de atividade da NAT ocorre aproximadamente 4 a 6 h após o início da estimulação noradrenérgica, quando os níveis de cAMP já não se encontram tão elevados. É possível que a alta quantidade inicial de cAMP seja necessária para induzir processos de transcrição e tradução gênicos, enquanto concentrações menores de cAMP sejam adequadas para manter a atividade da NAT. O término da estimulação simpática, a administração de antagonistas adrenérgicos ou a fotoestimulação noturna produzem uma queda na atividade da NAT com uma meiavida de aproximadamente 3 min. Esse processo de inativação enzimática parece depender, em grande parte, de mecanismos de destruição proteossomal. A NAS é convertida em melatonina pela enzima hidroxiindolOmetiltransferase, que mantém sua atividade relativamente constante ao longo das 24 h. A regulação noradrenérgica da HIOMT, diferentemente da NAT e do triptofanohidroxilase, parece ocorrer a longo prazo. Por exemplo, ratos expostos à luz constante ou que tiveram removidos os seus gânglios cervicais superiores apresentam uma redução de aproximadamente 70% na atividade da HIOMT, após um período de 3 semanas. No entanto, foram descritas evidências apontando para a regulação circadiana da HIOMT e sua importância na síntese de melatonina. Está demonstrado que outras substâncias, sejam neurotransmissores, neuromoduladores ou hormônios, podem modular a síntese de melatonina: neuropeptídio Y, peptídio intestinal vasoativo, vasopressina, angiotensina II, insulina,
acetilcolina, dopamina, GABA, glutamato, prostaglandinas, adenosina, ATP, peptídio delta indutor de sono, peptídio histidina Nterminal e leucina Cterminal (PHI), peptídio ativador da adenilatociclase da pituitária (PACAP), pteridinas, entre outras. A Figura 67.8 mostra um esquema resumindo as principais vias metabólicas intracelulares responsáveis pela síntese de melatonina pelos pinealócitos.
▸ Secreção de melatonina e sua metabolização periférica Costumase considerar que toda melatonina produzida é imediatamente secretada, seja pela sua alta solubilidade nos meios biológicos, seja pelo fato de ela não poder ser detectada por métodos histoquímicos celulares em grânulos de secreção nos pinealócitos. No entanto, há evidências de que a secreção de melatonina poderia ser regulada de modo independente da sua síntese. Assim, demonstrase em várias espécies que a secreção de melatonina (cuja concentração plasmática é medida tanto na grande confluência venosa posterior quanto perifericamente) tem caráter pulsátil, com a frequência, em ratos, de aproximadamente 2,9 ciclos por hora. Apesar de esse ritmo de secreção poder ser atribuído a eventuais alças bioquímicas envolvidas na síntese da melatonina ou outros fatores, poderia, também, ser atribuído a um processo de armazenagem transitória, uma vez que parece independer do padrão de descarga das fibras simpáticas aferentes. Mesmo em glândulas mantidas em cultura e submetidas à técnica de perfusão, há evidências de secreção pulsátil de melatonina induzida por agonistas βadrenérgicos. Além disso, algumas substâncias como adenosina e dopamina e bloqueadores de canais de cálcio parecem regular o próprio processo de secreção de melatonina pelos pinealócitos. A melatonina é liberada nos espaços perivasculares da glândula, difundindose, daí, para a circulação. O transporte plasmático se dá principalmente ligado a proteínas, em especial a albumina. A meiavida da melatonina circulante é de cerca de 20 min, e sua metabolização periférica se dá essencialmente pela transformação hepática (em torno de 90% da melatonina circulante) em 6OHmelatonina, que após conjugação com sulfatos (a maior parte gerando a 6 sulfatoximelatonina) ou com glucuronídeos é excretada na urina. Devese ressaltar que a melatonina pode ser secretada diretamente no terceiro ventrículo cerebral, através do recesso pineal, no qual sua concentração chega a ser de 10 a 20 vezes maior que no plasma. No sistema nervoso central e na própria glândula pineal a melatonina pode ser transformada em quinuraminas sob a ação da 2,3 indolamina dioxigenase (ver Figura 67.6).
Figura 67.8 ■ Vias de transdução intracelulares responsáveis pela síntese de melatonina como resultado da estimulação noradrenérgica dos pinealócitos. Descrição no texto. (Adaptada de Ganguly et al., 2002.)
▸ Mecanismos de ação da melatonina A melatonina expressa sua ação nos diversos tecidos agindo por meio de 2 grandes mecanismos: (1) ações não mediadas por receptores e (2) ações mediadas por receptores (Figura 67.9). As ações não mediadas por receptores expressamse pela interação da melatonina diretamente com outras moléculas, caracterizando o que se chama de ação intracelular direta da melatonina (Quadro 67.1). Por exemplo, parte de sua ação antioxidante devese à sua capacidade de reagir diretamente com espécies ativas de oxigênio (p. ex., radical hidroxila), de nitrogênio e de cloreto. Sabese, também, que a melatonina pode ligarse à cálciocalmodulina, bloqueando a ação de quinases que dela dependem. Um outro exemplo da ação direta da melatonina é sua capacidade de ligarse aos complexos I e IV da cadeia fosforilativa mitocondrial, estabilizando o processo de transporte de elétrons e síntese de ATP. Além dessas ações intracelulares diretas, a melatonina pode agir nos diversos tecidos através de receptores específicos. Diferentemente da maioria dos outros hormônios, a melatonina tem tanto receptores de membrana quanto nucleares. Dois tipos de receptores de membrana (MT1 e MT2), tipicamente de 7 alças e ligados, principalmente, à proteína Gi, foram clonados e tiveram seus mecanismos de transdução adequadamente estudados (ver adiante). Receptores de alta afinidade foram clonados pela primeira vez de melanóforos de Xenopus. Seguiuse a clonagem em mamíferos, especificamente em ovelhas, a partir de RTPCR de mRNA da pars tuberalis, e em humanos por PCR de DNA genômico. As proteínas nas 3 espécies são homólogas e formam, como dito antes, receptores de 7 alças que, caracteristicamente, ativam proteínas Gi/G0. Os clones foram expressos em sistemas heterólogos, formando receptores que ligam derivados da melatonina e que, em geral, inibem, por mecanismo sensível à toxina pertussis, a ativação da adenilatociclase induzida por
forskolin. Experimentos de coprecipitação mostraram que os receptores específicos para melatonina podem, ainda, ligarse a vários tipos de proteínas G, entre as quais as proteínas Gq e G11, e, com isso, ativar as vias de transdução dependentes da fosfolipase C, IP3 e diacilglicerol.
Figura 67.9 ■ Mecanismos de ação da melatonina. Descrição no texto.
Quadro 67.1 ■ Alguns efeitos e ações intracelulares diretas da melatonina. ■ Ação antioxidante: reação química com ROS e RNS, aumentando a eficiência da cadeia de transporte de elétrons mitocondrial ■ Estimulação dos mecanismos protetores e reparadores do DNA: diretamente, pela ação oxidante ou pela mobilização dos mecanismos de reparação por excisão (DNA polimerases e DNA ligases) ■ Regulação enzimática direta: quinases dependentes de cálciocalmodulina; ciclooxigenase ■ Regulação de mecanismos motores celulares e da divisão celular: fuso micótico; mecanismos motores e microtúbulos (dineínas etc.) ■ Regulação da apoptose celular: modificação da permeabilidade mitocondrial ■ Regulação da função mitocondrial: permeabilidade; eficiência da cadeia oxidativa e síntese de ATP; interação com o complexo do citocromo p450; divisão mitocondrial ■ Permeabilidade de canais iônicos: cálcio, potássio e sódio A melatonina pode agir, também, por meio de receptores nucleares. Recentemente, demonstrouse que a melatonina é o ligante natural de um receptor nuclear órfão pertencente à categoria de receptores do ácido retinoico tipo RZRROR, subtipos α e β. Entre os efeitos demonstrados para a ligação da melatonina a esses receptores, está a diminuição da expressão da enzima 5lipooxigenase, o aumento da expressão de enzimas antioxidantes e a síntese de interleucina 2 e seu receptor. Em mamíferos, e no rato, em particular, demonstrase a presença de receptores de melatonina nas seguintes áreas do sistema nervoso central: núcleo do trato olfatório lateral, núcleo septohipotalâmico, área préóptica medial, núcleo supraquiasmático, área hipotalâmica anterior, núcleo ventromedial hipotalâmico, núcleo arqueado, pars tuberalis da
hipófise anterior, núcleo mamilar lateral, núcleos paraventricular, anteroventral e intermediodorsal do tálamo, região medial da habênula lateral, núcleo da estria medular, núcleos basolateral e medial do complexo amigdaloide, subículo da formação hipocampal, cerebelo, área postrema e núcleo espinal do nervo trigêmeo, além das artérias cerebrais anterior e posterior e células ependimárias. Demonstrase, ainda, a presença de receptores ou locais de ligação específicos para a melatonina em células de vários sistemas periféricos, como rim, pulmão, coração, intestino, gônadas, vasos sanguíneos, fígado, baço, timo, em células do sistema imunológico (linfócitos e macrófagos) e do tecido adiposo (branco e marrom), células β das ilhotas pancreáticas etc.
▸ Papel da melatonina na regulação de processos fisiológicos Desde que a glândula pineal, em particular através da produção e secreção de melatonina, é vista, contemporaneamente, como responsável pela transmissão da informação fotoperiódica circadiana e sazonal para todo o organismo, ela deve, de forma direta ou indireta (diretamente sobre os órgãos alvos ou indiretamente através de uma mediação neural e/ou endócrina), exercer um papel regulatório sobre os mais diversos eventos fisiológicos, metabólicos e comportamentais (Quadro 67.2). Dessa maneira, não é de estranhar que, nas últimas décadas, temse demonstrado sua ação sobre os mais diversos fenômenos biológicos. Classicamente, ela esteve vinculada ao fenômeno de clareamento da pele de anfíbios. Mais contemporaneamente demonstrase sua enorme importância na regulação de fenômenos circadianos e sazonais associados à reprodução; na regulação de outros fenômenos endócrinos não dependentes do eixo hipotálamo hipófisegonádico; na termorregulação; na regulação do sistema cardiovascular, em particular, da pressão arterial; na regulação dos fenômenos ligados a ciclos de atividaderepouso e vigíliasono, além de fenômenos de torpor e hibernação; na regulação do sistema imunológico; na temporização do feto, gestação e parto, crescimento e envelhecimento, assim como na regulação do metabolismo de carboidratos, entre outros. Assim, a melatonina, agindo sobre os núcleos supraquiasmáticos hipotalâmicos (sede do relógio biológico circadiano) regulariza grande parte dos ritmos diários, principalmente os ritmos de sono e vigília. Dessa forma, é a única substância conhecida que é capaz de, em seres humanos e se administrada na hora certa e em dosagens adequadas, provocar o surgimento de episódios diários de sono com a mesma arquitetura do sono fisiológico noturno. Assim, tem sido usada, clinicamente, em certos distúrbios particulares de sono e na correção da dessincronose associada ao chamado efeito do jet lag. Verificase que injeções diárias de melatonina, em animais em livrecurso, sincronizam ritmos de atividaderepouso e que, quando se aplica melatonina em culturas de fatias de cérebro, ela é capaz de imediatamente mudar a fase de atividade elétrica de neurônios dos núcleos supraquiasmáticos. Nestas circunstâncias experimentais, a melatonina afeta a expressão dos genes do relógio. As expressões de per1 e bmal1 foram significativamente afetadas. Da mesma maneira, pela administração diária de melatonina, é possível regularizar a ritmicidade diária de pacientes humanos que, por diversas circunstâncias (p. ex., cegueira), não são capazes de sincronizar seus ritmos endógenos ao claroescuro ambiental. Por ter ação imunoestimulante (principalmente da resposta imune celular) e antitumoral (principalmente nos cânceres dependentes de estrógeno), além de ser antioxidante, a melatonina tem sido utilizada como coadjuvante na terapia antitumoral (terapias imunoestimulantes, quimioterapia, radioterapia e previamente a cirurgias de tumores). Por sua ação antigonadotrófica em seres humanos, tem sido utilizada em associação aos fármacos tradicionais em pílulas anticoncepcionais.
Quadro 67.2 ■ Alguns efeitos fisiológicos da glândula pineal e da melatonina. ■ Regulação dos ritmos circadianos e sazonais ■ Regulação do ciclo vigíliasono ■ Regulação dos processos reprodutivos e mediação maternofetal ■ Regulação do sistema imunológico ■ Regulação antitumoral (em tumores dependentes de estrógenos reduz a expressão de E2α) ■ Regulação do sistema cardiovascular
■ Regulação de mecanismos sensoriais da dor ■ Regulação do desenvolvimento neural e plasticidade ■ Regulação de processos antienvelhecimento ■ Regulação do metabolismo energético Um papel importante da melatonina, evidenciado recentemente, está na sua capacidade de regular o metabolismo energético tanto sazonal quanto circadianamente. Sazonalmente – na metade do ano com noites crescentes e perfis noturnos curtos e crescentes de melatonina – é um dos marcadores importantes para sinalizar o aumento da ingesta alimentar, elevar a sensibilidade insulínica e, portanto, aumentar os depósitos energéticos, elevando o peso corpóreo e a síntese de leptina. A partir do solstício de inverno – e, portanto, na metade do ano com noites decrescentes –, o perfil noturno de melatonina mais longo provoca redução da ingesta alimentar, e sua queda gradativa, acompanhando as noites decrescentes, leva a um estado de resistência insulínica, consumo dos estoques energéticos e redução do peso corpóreo. Circadianamente, a melatonina está intimamente associada ao aumento da sensibilidade insulínica, mostrando uma ação antidiabetogênica importante. Como perspectivas promissoras de uso terapêutico da melatonina ou de seus análogos sintéticos, está seu uso na regulação do sistema cardiovascular (ação antihipertensiva), como droga antidepressiva, na prevenção de certos tipos de enxaqueca e como coadjuvante eventual na terapia do diabetes benigno (ação próinsulínica e reguladora da secreção e ação diárias da insulina).
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Introdução
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Estrutura e morfologia da glândula tireoide Iodo, componente essencial na biossíntese do HT
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Biossíntese do HT Regulação da função da tireoide HT no tecido periférico
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Captação e ação celular Ação fisiológica do HT
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Bibliografia
INTRODUÇÃO A glândula tireoide sintetiza os hormônios tireoidianos (HT), tiroxina (T4) e 3,5,3’Ltriiodotironina (T3), compostos biologicamente ativos que contêm molécula de iodo em sua estrutura. O HT exerce importante papel no desenvolvimento, crescimento e metabolismo. Ele atua na função normal de quase todos os tecidos, sendo essencial no consumo do oxigênio e no metabolismo celular. O mecanismo molecular do HT ocorre pela ligação de T3 aos receptores nucleares de HT, cuja interação modifica a expressão gênica de diferentes genes positiva ou negativamente nas célulasalvo, ou ainda pela atuação direta de T3 e T4 em vias de sinalização intracelular. A função da glândula tireoide está sob o controle hipotalâmicohipofisáriotireóideo, no modelo clássico de feedback negativo. Além da regulação neuroendócrina, os efeitos fisiológicos dos hormônios tireoidianos são regulados por complexo mecanismo extratireoidiano, resultante do metabolismo periférico dos hormônios, exercido pela ação enzimática das selenoproteínas desiodases, e da disponibilidade de iodo no organismo. O iodo é um elemento essencial para a síntese de HT. A deficiência crônica na ingestão de iodo ocasiona bócio endêmico com hipotireoidismo grave, sendo um problema grave de saúde pública, ainda hoje, em muitos países no mundo.
ESTRUTURA E MORFOLOGIA DA GLÂNDULA TIREOIDE ▸ Aspectos anatômicos A glândula tireoide tem seu nome derivado do grego thyreós, que significa escudo, e foi assim chamada por Wharton, em 1656. No entanto, a visão anterior da glândula tireoide humana lembra o formato de borboleta, em que dois lobos lateralizados, direito e esquerdo, estão unidos por um istmo de parênquima glandular que se apoia frouxamente sobre a traqueia anterior na altura da cartilagem cricoide (Figura 68.1). Esta situação permite a avaliação clínica da glândula pela palpação da região cervical. A glândula tireoide é um dos maiores órgãos endócrinos e no homem adulto pesa em torno de 15 a 25 g; cada lobo mede aproximadamente 2 a 2,5 cm de largura e 3 a 5 cm de comprimento, sendo o lobo direito um pouco maior que o
esquerdo. Este tamanho é mantido por um turnover celular muito discreto, e calculase que cada célula se renove somente cerca de 5 vezes durante a vida adulta. Entretanto, sob estímulos específicos pode ocorrer proliferação celular com consequente aumento do volume da glândula (de 50 até 800 g), denominado bócio. Os lobos laterais da glândula tireoide estão cobertos pelos músculos esternohioide e esternotireoide. Ela apresenta, ainda, uma relação anatômica com os músculos esternocleidomastóideos e as artérias carótidas, que se situam mais lateralmente; os nervos laríngeos recorrentes, que a percorrem posteriormente na interface entre a traqueia; e os dois pares de glândula paratireoide (superior e inferior), apoiados na face dorsal do parênquima tireoidiano. A glândula recebe inervação parassimpática e simpática do sistema nervoso autônomo. As fibras simpáticas derivam do gânglio cervical e chegam à glândula acompanhando os vasos sanguíneos, enquanto as parassimpáticas, derivadas do nervo vago, são ramificações dos nervos laríngeos. A irrigação sanguínea é proveniente das artérias tireóideas superiores e inferiores, que são ramos da carótida. Sua drenagem sanguínea é feita pelas veias tireóideas, que desembocam na veia jugular. A tireoide apresenta um fluxo sanguíneo de 4 a 6 mℓ/min/g, um dos mais altos do organismo, que supera até o fluxo sanguíneo do rim (em torno de 3 mℓ/min/g). A rica vascularização confere uma coloração avermelhada à glândula.
▸ Desenvolvimento embrionário A tireoide é a primeira glândula endócrina a surgir no embrião humano. Na terceira semana de vida intrauterina, ocorre a invaginação do assoalho da faringe primitiva, na região entre a primeira e a segunda bolsa branquial (ou faringiana), que se desenvolve como um ducto com a extremidade distal bifurcada. O local da origem embrionária persiste como o foramen cecum na região posterior da língua. A estrutura primitiva migra em direção caudal ainda ligada ao local primitivo pelo ducto tireoglosso. Quando atinge a posição abaixo da cartilagem cricoide, o tecido adquire, gradualmente, um formato bilobulado e sólido. Geralmente, o ducto tireoglosso atrofia sem deixar resquício, mas uma parte do segmento distal pode remanescer próximo ao istmo, constituindo o lobo piramidal. Na sétima semana, o broto embrionário recebe células da bolsa ultimobranquial, que se diferenciam em células C (ou parafoliculares), que se integram ao parênquima tireoidiano. Além disso, na mesma época as células derivadas da terceira e quarta bolsas faringianas, que formam as glândulas paratireoides, se aproximam à tireoide em migração (Figura 68.2).
Figura 68.1 ■ Relação anatômica da tireoide humana (visão anterior). (Adaptada de Greenspan e Forsham, 1990.)
Figura 68.2 ■ Desenvolvimento embrionário da glândula tireoide. Representação esquemática da face ventral da faringe primitiva com os arcos branquiais (I a V), a origem e trajeto de migração caudal da tireoide e os locais de origem das paratireoides superior e inferior e do timo.
A histogênese da tireoide envolve a diferenciação da massa celular sólida, que por volta da 10a semana adquire o aspecto folicular. Nesta época, o tecido começa a sintetizar tireoglobulina (TG), formar coloide, captar e organificar iodo e, em torno da 12a semana, a glândula acumula tiroxina (ver mais detalhes no item sobre síntese hormonal). O aparecimento destas funções específicas da glândula tireoide, isto é, a diferenciação da célula folicular, está intimamente relacionado com a ativação progressiva da expressão dos genes essenciais para a biossíntese dos HT: TG, TPO, DUOX, NIS, pendrina e receptor de TSH (ou TSHR), durante a formação da glândula. A ativação da transcrição destes genes ocorre pela atuação de fatores transcricionais nas regiões promotoras destes genes (Figura 68.3). Estão reconhecidas as atuações múltiplas e combinadas de: proteína homeótica TTF 1 (thyroidspecific transcriptional factor 1), proteína FOXE1 (forkhead box E1, designada previamente como TTF 2) e proteína PAX8 (paired box gene 8). Estes fatores transcricionais se ligam em locais específicos dos genes da TG, TPO, NIS, TSHR e pendrina. O TTF 1 exerce ainda um papel importante na determinação da migração do broto embrionário, visto que na ausência de TTF 1 a glândula não se forma (Quadro 68.1). A tireoide fetal pesa 0,2 g em torno da 20a semana de gestação, e o tecido cresce paralelamente ao aumento do peso corporal. Ao nascimento, a glândula tireoide pesa cerca de 1,5 g.
▸ Estrutura celular e histológica O folículo é a unidade funcional da glândula, onde ocorre o processo de biossíntese, armazenamento e secreção do HT. Ele é formado por uma camada única de células foliculares tireoidianas ou tireócitos, que delimitam um espaço interno chamado de lúmen, que habitualmente está preenchido por um material coloidal. Os folículos são estruturas esferoidais de aspecto cístico, que variam de 50 a 500 μm no diâmetro. A glândula tireoide é formada por aproximadamente três milhões de folículos, e os agrupamentos de 30 a 40 folículos formam os lóbulos. Os limites entre os lóbulos estão preenchidos por tecido conjuntivo, fibras reticulares, capilares sanguíneos e vasos linfáticos.
Figura 68.3 ■ Representação esquemática dos estágios de desenvolvimento da tireoide relacionados com a ativação de genes essenciais. Explicações no texto.
Quadro 68.1 ■ Principais proteínas da célula folicular da tireoide. Localização no Proteína*
Gene humano
Consequência do
cromossomo
Tecidos onde se
humano
expressam
defeito genético
Proteínas relacionadas com a ativação de genes funcionais da tireoide Fator 1 de
TTF 1
14q13
Embrião: tireoide,
Agenesia de
transcrição da
pulmão, cérebro e
tireoide e pulmão
tireoide
hipófise Adulto: tireoide e pulmão
Forkhead box E1
Paired box gene 8
FOXE1 (ou TTF 2)
PAX8
9q22
2q12q14
Embrião: tireoide e
Tireoide ectópica e
hipófise
disgenesia
Adulto: tireoide
Fenda palatina
Embrião: tireoide,
Tireoide ectópica e
rim e cérebro
disgenesia
Adulto: tireoide
Proteínas funcionais da tireoide relacionadas com a biossíntese do HT Receptor de TSH
TSHR
14q31
Predominantemente Mutação ativadora: na tireoide
hipertireoidismo congênito, adenoma hiperfuncionante
Tireoglobulina
Peroxidase
TG
TPO
8q24
2p25
tireoidiana
Exclusivamente na
Defeito de síntese
tireoide
hormonal
Exclusivamente na
Defeito de síntese
tireoide
hormonal
Dual oxidase
DUOX
15q15.3
Tireoide
Natrium iodide
NIS
19p13.2p12
Tireoide, mama em
symporter
lactação, intestino e outros tecidos
Pendrina (ou solute carrier family 26, member 4)
PDS (ou SLC26A4) 7q31
Tireoide, ouvido e
Surdez e
outros tecidos
hipotireoidismo congênito
*Algumas destas proteínas não dispõem de nomenclatura padronizada na língua portuguesa e são mais conhecidas pela sua sigla ou pela nomenclatura em inglês (em itálico).
A estrutura folicular confere polaridade às células foliculares, com a membrana basal fazendo limite externo do folículo em contato próximo aos capilares e a membrana apical com microvilosidades voltadas para o lúmen. A micrografia eletrônica mostra junções intercelulares que asseguram o confinamento de coloide no interior do folículo, principalmente pela presença de zônula de oclusão na extremidade apical, seguida de zônula de adesão, onde se ancoram filamentos de actina formando um cinturão (Figura 68.4). Apresenta ainda desmossomos esparsamente distribuídos, em que se ancoram filamentos de queratina que compõem o citoesqueleto celular, e junções de comunicação gap constituídas por conexinas 32 e 43.
Figura 68.4 ■ Representação esquemática das junções celulares na célula folicular da tireoide: zônula de oclusão (ZO) na porção apical próximo ao lúmen, zônula de adesão (ZA) e desmossomo (D). (Adaptada de Ekholm, 1995.)
A organização intracelular também contribui para a polaridade da célula folicular. Tanto o retículo endoplasmático rugoso quanto o complexo de Golgi são bastante desenvolvidos e ocupam posição intracelular, de maneira a favorecer a síntese e o direcionamento das proteínas essenciais para a síntese do HT. A tireoglobulina e a peroxidase tireoidiana, entre outros, são direcionadas à região apical da célula folicular, enquanto o NIS e o receptor de TSH (TSHR) vão para a membrana plasmática do polo basal. O processo de biossíntese dos HT se inicia na célula folicular (no meio intracelular) e termina no espaço luminal (extracelular) (Figura 68.5), de tal modo que a T3 e a T4, os principais HT elaborados, permanecem no interior do folículo como material coloidal, ligadas à molécula de tireoglobulina até se iniciar o processo de secreção hormonal. O acúmulo de coloide no lúmen folicular confere suficiência de hormônio tireoidiano por algumas semanas, garantindo ao organismo níveis adequados de hormônio tireoidiano, mesmo quando não há suprimento contínuo de iodo (ver “Biossíntese do HT”, adiante). O tamanho das células foliculares varia conforme a atividade da glândula e a espécie animal. Histologicamente, os folículos da glândula tireoide normal apresentam células foliculares de formato cúbico. No entanto, a morfologia do tecido é prontamente modulada pelo estado funcional da glândula controlado predominantemente pelo TSH hipofisário (ver “Regulação da função da tireoide”, adiante). Deste modo, no hipotireoidismo a glândula recebe grande estímulo de TSH hipofisário e o epitélio folicular se hipertrofia, passando a apresentar células de formato cilíndrico, diminuição do espaço luminal e aumento de vasos sanguíneos nos espaços interfoliculares. O estímulo crônico de TSH pode levar à resposta hiperplásica do tecido. Por outro lado, quando houver diminuição de TSH circulante, por exemplo, por ingestão de HT, as células foliculares se tornarão pavimentosas e o lúmen, amplo (Figura 68.6).
Figura 68.5 ■ Esquema geral de um folículo e da célula folicular tireoidiana. Na célula folicular, estão representadas a entrada do iodo pela membrana da porção basal da célula (através do transportador de iodo [IT] ou cotransportador Na+ I–) e a organificação do iodo e formação de DIT, MIT, T4 e T3 ligados à molécula de tireoglobulina (TG) na porção apical voltada ao lúmen. A membrana apical com microvilosidade (MV) incorpora o material coloidal contendo TG pelos pseudópodes (PP) e por vesículas (V) micropinocíticas que se fundem com lisossomos (L), formando fagolisossomos (FL); nestes, a TG é hidrolisada, liberando as moléculas de iodotirosinas (MIT e DIT), T3 e T4 que são secretadas para a circulação pela porção basal da célula folicular.
Além das células foliculares, o parênquima tireoidiano apresenta grupos de células mais claras e de tamanho maior entre os espaços interfoliculares, ou ainda ocupando a parede folicular, mas sem atingir o lúmen. São as células parafoliculares ou células C que surgem como proliferação das células do corpo ultimobranquial, portanto de origem embriológica distinta, e agregamse ao tecido tireoidiano durante a migração caudal da tireoide (ver Figura 68.2). Como será visto no Capítulo 76, Fisiologia do Metabolismo Osteomineral, as células C participam da homeostase do cálcio secretando calcitonina em resposta ao aumento da calcemia.
Figura 68.6 ■ Modificação morfológica do tecido tireoidiano pela influência do TSH, em ratos. A. Tireoide com supressão de TSH, mostrando folículos amplos e células foliculares planas. B. Tireoide normal, com folículos formados por células cúbicas. C. Tireoide com estímulo de TSH, apresentando folículos de células cilíndricas, pouco material coloidal e aumento da vascularização.
IODO, COMPONENTE ESSENCIAL NA BIOSSÍNTESE DO HT A ingestão de iodo é indispensável para a síntese dos hormônios tireoidianos T3 e T4, compostos biologicamente ativos que têm iodo em sua molécula (Figura 68.7). A maior fonte de iodo no planeta é o mar; assim sendo, os alimentos ricos nesse elemento são os produtos derivados do ambiente marinho. Nas regiões próximas ao litoral, acumulase iodo no solo, pela chuva proveniente da evaporação da água marítima. Desta maneira, frutas e vegetais cultivados nesses locais absorvem significativas concentrações de iodo. Recomendase uma dieta alimentar de pelo menos 150 μg/dia para um adulto normal (Quadro 68.2). Entretanto, em regiões geográficas com solo pobre em iodo, devido à distância do mar aliada aos efeitos do desgaste da terra por antiguidade, congelamento e lavagem por chuvas recorrentes, a ingestão desse elemento pode não atingir 10 μg/dia. A carência persistente de ingestão de iodo e a consequente falta de HT durante o período fetal ocasionam um quadro grave de déficit do crescimento e do desenvolvimento neurológico, que foi denominado cretinismo, termo utilizado pela primeira vez nos Alpes suíços. A consequência clínica da falta da ingestão de iodo não se restringe aos períodos fetal e neonatal, refletindose em todas as faixas etárias; em conjunto, caracterizam as doenças associadas à deficiência do iodo (Quadro 68.3), sendo proeminente a presença de aumento do tamanho da glândula tireoide, chamado de bócio endêmico. O crescimento da glândula ocorre em consequência do estímulo sustentado do TSH hipofisário para compensar a falta de síntese de HT (ver adiante).
Figura 68.7 ■ Estrutura dos hormônios T3 e T4.
Quadro 68.2 ■ Recomendação de ingestão diária de iodo. Estágio de vida
Iodo (µg/dia)
Recémnascido e criança
90
Idade escolar e adolescência
120 a 150
Adulto
150 a 200
Gravidez e lactação
200 a 300
Ao longo do último século, diferentes estratégias foram utilizadas para adequar a ingestão de iodo pela população, tais como: administração oral de lugol (solução rica em iodo), injeção de óleo iodado, suplementação de iodo na água e adição de iodo nos alimentos (sal, pão e leite). Dentre estas medidas, devido a facilidade, estabilidade e custo econômico, a adição de iodo no sal alimentar tem sido o método de preferência e difundido pelo Programa de Erradicação da Deficiência de Iodo da Organização Mundial de Saúde. Apesar desta intensa campanha de erradicação da carência de iodo na população nas últimas décadas do século XX, ainda hoje cerca de 15% da população mundial têm nutrição insuficiente em iodo (Figura 68.8). No Brasil, a iodação do sal vem sendo realizada desde 1953, e a legislação atual do Ministério da Saúde estabelece que todo o sal comercial deve receber uma suplementação de pelo menos 40 mg de iodo por kg de NaCl. A população brasileira que tem acesso ao sal comercial mostra ingestão adequada, e até maior do que a recomendada, mas persistem focos regionais de carência de iodo em locais onde não há consumo de sal comercial. O termo “iodo” se refere não somente à molécula I2, mas inclui o iodo inorgânico (I–) e aquele ligado à tirosina por ligação covalente (organificado); o termo “iodeto” se restringe ao íon I–. Na dieta ocidental com suplementação de iodo no sal, um adulto ingere cerca de 500 μg de iodo/dia, na forma orgânica e inorgânica. Quando ingerida, a forma orgânica é convertida em iodeto pela flora intestinal, sendo o iodeto absorvido no intestino delgado e transportado para o plasma. Pouco é eliminado pelas fezes. Na circulação, concentrase um pool de aproximadamente 250 μg de iodeto que é absorvido, predominantemente, pela tireoide e pelos rins. A tireoide concentra em torno de 8.000 μg de iodo, e 90% ligados ao aminoácido tirosina (organificado) e 10% como iodeto. O turnover do iodo da glândula é muito lento, por volta de 1% ao dia; em contrapartida, o clearance renal do iodo é de 30 a 40 mℓ/min, sendo resultante da filtração glomerular e da reabsorção tubular passiva. Cerca de 500 mg de iodo são eliminados pela urina. A concentração urinária de iodo possibilita estimar a ingestão desse iodo (Figura 68.9), método utilizado na avaliação do estado nutricional de iodo na população.
Quadro 68.3 ■ Consequências da deficiência crônica de iodo. Estágio de vida
Consequências
Feto
Aborto/Natimorto Anomalias congênitas Crescimento da mortalidade perinatal Cretinismo endêmico Surdomudez
Neonato
Bócio neonatal Hipotireoidismo neonatal Retardo mental endêmico Aumento da suscetibilidade da tireoide à radiação nuclear
Criança e adolescente
Bócio Hipotireoidismo Diminuição da função mental
Retardo do desenvolvimento físico Aumento da suscetibilidade da tireoide à radiação nuclear Adulto
Bócio Hipotireoidismo Diminuição da função mental Aumento da suscetibilidade da tireoide à radiação nuclear
Fonte: WHO Global Database on Iodine Deficiency, 2004.
BIOSSÍNTESE DO HT Os dois principais hormônios tireoidianos são a tiroxina (3,5,3’,5’tetraiodoLtironina), ou T4, e a 3,5,3’triiodoL tironina, ou T3 (ver Figura 68.7). O processo de síntese dos HT no folículo tireoidiano envolve: (1) transporte do iodeto pela captação ativa, direcionamento e transporte apical do iodo para o lúmen folicular; (2) oxidação do iodeto; (3) iodação dos resíduos tirosil da molécula de tireoglobulina formando iodotirosinas; (4) acoplamento oxidativo de duas iodotirosinas formando iodotironinas ainda ligadas à tireoglobulina (Figura 68.10).
▸ Transporte do iodo A tireoide concentra o iodeto inorgânico circulante por um processo ativo dependente de energia. Este processo de captação é realizado pela proteína NIS (sodium iodide symporter ou cotransportadora de Na+I–), que se localiza nas superfícies basal e basolateral da célula folicular. A NIS é uma proteína de 643 aminoácidos que apresenta 13 domínios transmembrana com as duas extremidades, carboxi e amino, situadas intracelularmente. Ela promove a entrada de iodeto extracelular contra um gradiente eletroquímico negativo, devido à maior concentração de iodo no interior da célula folicular; esse processo se dá pelo cotransportador Na+I–, na proporção de 2Na+:1I–. A atividade concomitante da bomba Na+/K+ATPase mantém o gradiente elétrico negativo no interior celular, que facilita o influxo de Na+ na célula. O transporte ativo de iodo não se limita à glândula tireoide. Outros tecidos, tais como as glândulas salivares e a mucosa gástrica, expressam a proteína NIS e concentram iodeto; adicionalmente, na glândula mamária a expressão de NIS ocorre durante a fase de lactação, permitindo a concentração de iodo no leite materno.
Figura 68.8 ■ Avaliação nutricional do iodo no mundo, baseada na medida de iodo urinário (μg iodo/ ℓ ). (Adaptada de WHO Global Database on Iodine Deficiency, 2004.)
Figura 68.9 ■ Metabolismo e balanço do iodo. Estimativa diária para ingestão de 500 μg de iodo. Sist. dig., sistema digestório.
O transporte do iodo é inibido por ânions monovalentes tipo perclorato (ClO4–), tiocianato (SCN–) e pertecnetato (TcO4), que competem com o iodo pelo transporte via NIS. O perclorato tanto inibe a captação do iodo pela glândula como facilita sua difusão para fora (efluxo) da glândula; o tiocianato aumenta principalmente o efluxo do iodo. Ambos são utilizados na prática clínica para diminuir a síntese de HT, enquanto o Tc99mpertecnetato é utilizado para obter imagens da glândula tireoide para fins diagnósticos. Uma vez dentro da célula folicular, o iodeto difundese em direção ao ápice e atinge o lúmen folicular transportado pela proteína pendrina (PDS), um canal de ânions (cloro/iodeto) de 780 aminoácidos localizado na membrana apical da célula folicular. Existe pouco iodo inorgânico no folículo, devido à rápida oxidação e organificação do iodeto que ocorre na superfície apical (ver Figura 68.10).
▸ Oxidação do iodeto O iodeto é oxidado pela tireoperoxidase (TPO), enzima de 103 kDa com 933 aminoácidos, localizada na membrana apical e com a face catalítica voltada para o lúmen folicular; o processo é catalisado pelo peróxido de hidrogênio (H2O2) como doador de oxigênio. O peróxido é gerado pela enzima oxidase tireoidiana DUOX (ou dual oxidase), conhecida também como THOX, glicoproteína igualmente localizada na membrana apical, que apresenta atividade NADPH oxidase (Figura 68.11). Existem duas isoformas de DUOX, DUOX1 e DUOX2, caracterizadas na tireoide humana.
Figura 68.10 ■ Biossíntese e secreção do hormônio tireoidiano (à direita) e as principais vias de sinalização estimulatórias geradas pelo TSH (à esquerda). Mais detalhes no texto. (Adaptada de VonoToniolo e Kopp, 2004.)
▸ Iodação da TG ou organificação do iodo O iodo oxidado é, então, incorporado aos resíduos tirosina (por iodação) da molécula da tireoglobulina (TG) em reação catalisada pela TPO. A TG é uma grande molécula, com peso molecular de 660 kDa, formada por duas subunidades de 300 kDa e 10% de açúcares. O gene da TG se estende por cerca de 300 kb no DNA genômico e é codificado por um mRNA de 9,7 kb que contém 37 éxons. Na glândula tireoide normal, quase toda a TG está presente como uma proteína solúvel no lúmen do folículo tireoidiano. Quando uma molécula de iodo é incorporada à tirosina, gera se uma monoiodotirosina (MIT); quando dois iodos se incorporam, temos a diiodotirosina (DIT) (ver Figura 68.11).
Figura 68.11 ■ Organificação do iodo na membrana apical da célula folicular e formação de MIT e DIT na molécula de tireoglobulina, pela incorporação de iodo no aminoácido tirosina (Tir). Descrição no texto. (Adaptada de Vaisman et al., 2004.)
▸ Acoplamento das iodotirosinas A reação de acoplamento ocorre separadamente da iodação e também é catalisada pela TPO. Ainda ligadas à tireoglobulina, algumas das tirosinas (MIT e DIT) se acoplam e geram tironinas iodadas. O acoplamento de MIT com DIT leva à formação de dois tipos de tironinas: a triiodotironina (ou T3) e a triiodotironina reversa (ou T3 reversa ou rT3), que diferem quanto à posição de iodação, enquanto o acoplamento de duas DIT resulta na geração de tiroxina (T4, ou tetraiodotironina) (Figura 68.12). Pode haver o acoplamento de duas MIT, gerando diiodotironina (T2), que, como a rT3, apresenta efeito biológico distinto de T3 e T4. O acoplamento ocorre entre as iodotirosinas que continuam ligadas à TG por ligações peptídicas, e os passos moleculares deste processo ainda não estão totalmente definidos. Sugerese que ocorra a formação de radicais livres ou formação de radicais Io ou I+ na molécula de DIT doador, o qual formaria éterdifenila com o grupo hidroxila do DIT aceptor, enquanto o DIT doador seria clivado, deixando uma porção alanina que permaneceria ligada à TG como desidroalanina (ver Figura 68.12). Desta maneira, as iodotironinas formadas permanecem no lúmen folicular presas à TG. O homodímero de TG apresenta 132 tirosinas, mas nem todas sofrem iodação e acoplamento. Apenas 1/3 é iodado, formando MIT, DIT, T3, T4 ou rT3. Certas tirosinas são favorecidas na iodação e no processo de acoplamento, observandose que as 5 e 2747 são locais predominantes de formação de T4 e a 1291, de T3. Estudos in vitro indicam que a tirosina da posição 130 seria um doador preferencial para a formação de T4 na tirosina 5. Apenas três ou quatro moléculas de tiroxina são formadas por uma tireoglobulina, e, se a captação de iodo é adequada, a tireoide produz normalmente mais T4 que T3.
Figura 68.12 ■ Reação de acoplamento e potencial evento na formação de T4 e T3 na molécula de tireoglobulina. Resíduos de DIT são oxidados a radicais livres pela peroxidase. Os radicais livres se unem com MIT ou DIT gerando T3 ou T4. Mais detalhes no texto.
▸ Secreção do HT
Ao contrário da maioria das glândulas endócrinas, as quais não estocam grandes quantidades de hormônio, a tireoide consegue manter o fornecimento de HT graças ao pool de tireoglobulina armazenado no lúmen. Uma glândula normal de 20 g acumula cerca de 5.000 μg de T4 (ou 250 μg de T4/g de tecido), o que assegura uma autonomia de T4por aproximadamente 50 dias. A tireoglobulina deve ser hidrolisada para liberar T4 e T3 no interior da célula folicular (Figura 68.13). Em condições fisiológicas, a reabsorção do coloide para o interior da célula folicular ocorre por micropinocitose e formação de vesículas endocíticas. Ou ainda por macropinocitose, em resposta ao estímulo de TSH, quando formamse pseudópodes na superfície apical da célula folicular que engolfam gotículas maiores de coloide, constituindo vesículas de coloide no interior da célula. Em ambos os processos, as vesículas se fundem com os lisossomos compondo endossomos ou fagossomos com função proteolítica, com digestão da TG e desprendimento das moléculas de MIT, DIT, rT3, T3 e T4. Como MIT e DIT não são biologicamente ativos e a secreção para o plasma seria ineficaz, o iodo destas moléculas é removido pela ação da enzima iodotirosinadesiodase, dependente de NADPH, denominada desalogenase de tirosina (DHAL) (ver Figura 68.10). A enzima DHAL, presente especificamente na célula folicular, remove o iodo de MIT e DIT, mas não realiza desiodação das iodotironinas (T4, T3 e rT3). O pool de iodo liberado das moléculas de MIT e DIT é reutilizado para nova síntese hormonal no próprio folículo. Em condições fisiológicas, cerca de 10% de tiroxina são convertidos em T3 pela ação da enzima 5’desiodase ainda no interior da célula folicular, e o iodo removido é reutilizado para nova síntese hormonal. T4 e T3 livres deixam a célula folicular através do transportador de membrana MCT8 (transcrito do gene SLC16A2), localizado na membrana plasmática do polo basal, próximo à rede capilar do estroma interfolicular (ver Figuras 68.5 e 68.10). Este tipo de transportador de membrana, específico para o transporte de hormônio tireoidiano, promove o efluxo e o influxo do hormônio tireoidiano em diferentes tipos celulares (ver adiante em “Captação e ação celular”). A glândula tireoide de um adulto normal libera cerca de 100 μg de T4/dia e 10 μg de T3/dia na circulação sanguínea. Uma pequena quantidade de TG atinge a circulação sanguínea (até 50 ng/mℓ) e pode ser detectada no sangue periférico da maioria dos indivíduos normais. No entanto, quando a glândula sofre processo patológico destrutivo do folículo tireoidiano, como na tireoidite, uma quantidade significativa de TG pode escapar para a circulação.
REGULAÇÃO DA FUNÇÃO DA TIREOIDE A tireoide é regulada por mecanismos extratireoidianos, exercidos pelo TSH hipofisário, e por mecanismo intratireoidiano, denominado efeito autorregulatório, que, em conjunto, controlam a síntese, a secreção do HT e a proliferação da célula folicular tireoidiana.
▸ Hormônio tireotrófico (TSH) O TSH hipofisário é o principal modulador da função tireoidiana. O TSH é um hormônio glicoproteico heterodimérico, de meiavida efêmera (cerca de 1 h), com peso molecular de 28 a 30 kDa e que tem 16% de carboidrato na molécula. O dímero é formado pela combinação da subunidade α (que é idêntica à subunidade α das gonadotropinas – LH, FSH e hCG) com a β (que confere especificidade à molécula de TSH). O gene da α está localizado no cromossomo 6 e o da β, no 1. A regulação da secreção de TSH pela hipófise é controlada pelo hormônio hipotalâmico TRH (TSH releasing hormone) e pelo HT, que formam a tríade da alça de feedback negativa (Figura 68.14). Como outros hormônios hipotalâmicos, o TRH chega à hipófise anterior via sistema portahipotálamohipófise. Ele interage com receptores específicos da adenohipófise estimulando a secreção de TSH nas células tireotróficas e de prolactina nas células lactotófricas. É liberado de maneira pulsátil, e a sensibilidade das células tireotróficas em responder a ele depende do nível de T4 circulante.
Figura 68.13 ■ Representação esquemática da internalização da tireoglobulina (TG) acumulada no espaço luminal por micropinocitose (à direita) e por macropinocitose ou fagocitose (à esquerda). Formação de lisossomos e de fagolisossomos no interior da célula folicular e digestão e liberação de T3 e T4, que são secretados para a circulação. Pseudópodes (Pp), gotícula de coloide (GC), lisossomo (L), fagolisossomo (FL), vesícula (V) e endossomo (E). Mais detalhes no texto. (Adaptada de Thyroid disease manager, Capítulo 2 [www.thyroidmanager.org].)
Figura 68.14 ■ Representação esquemática da alça de feedback negativo formada pelo eixo hipotálamohipófise e tireoide, regulada pelos níveis de hormônio tireoidiano (T3 e T4). Mais informações no texto.
Na hipófise e no núcleo paraventricular do hipotálamo, a maior parte da T3 intracelular (80%) é composta pela desiodação de T4 pela desiodase 2 na própria célula. Quando a concentração de T4 circulante é baixa, ocorre um aumento no número de receptores de TRH no tireotrofo e, consequentemente, há síntese e liberação de TSH; o inverso acontece em situação de alta concentração de HT circulante. A implicação fisiológica decorrente desse fato é que uma queda do T3 plasmático pouco afetará a concentração intracelular de T3 na hipófise e a ocupação dos receptores de HT. Por outro lado, a queda da T4 plasmática diminuirá o aporte nuclear de T3, ativando a transcrição dos genes de TSHα, TSHβ e de TRH. Adicionalmente, uma pequena elevação de T4 circulante é suficiente para bloquear por completo a secreção de TSH, mesmo sob estímulo máximo de altas doses de TRH. Além do TRH e do HT, outras substâncias de origem hipotalâmica regulam a secreção de TSH. A somatostatina hipotalâmica e a dopamina inibem a secreção de TSH, assim como os glicocorticoides e algumas interleucinas (ver Capítulo 66, Glândula Hipófise). O TSH estimula a célula folicular da tireoide quando interage com um receptor específico, o receptor de TSH (TSHR) localizado na membrana externa do folículo tireoidiano. O TSHR é um receptor com sete domínios transmembrânicos, três alças externas e três internas (Figura 68.15). O TSH se liga à alça extracelular aminoterminal, e a região carboxiterminal localizase intracelularmente. Cerca de 1.000 receptores TSHR estão ancorados na superfície basal de uma única célula folicular. A ligação de TSH com o domínio aminoterminal extracelular do TSHR estimula várias vias de sinalização, intermediada pela proteína G que se encontra associada ao receptor. A GDP ligada à proteína G é substituída por GTP, o que ocasiona a dissociação da subunidade α da proteína G. Esta subunidade irá ativar a adenililciclase, enquanto a proteína
Gq fosforila e ativa a fosfolipase C (ver Figura 68.15). A adenililciclase estimula a conversão de ATP para cAMP, que, por sua vez, fosforila e ativa a proteinoquinase A (PKA). Por outro lado, a fosfolipase C estimula a conversão de 4,5 bifosfato de fosfatidilinositol (PIP2) para 1,4,5trifosfato de inositol (IP3) e diacilglicerol (DAG), com consequente liberação do Ca2+ do seu estoque intracelular, o que ativa a proteinoquinase C (PKC). Estudos in vitro indicam que estas vias de sinalização atuam de maneira seletiva nos diferentes processos atribuídos ao TSH na regulação da célula folicular tireoidiana (ver Figura 68.10 e Quadro 68.4). Os efeitos do TSH incluem a estimulação nos processos de síntese e secreção do HT e também no crescimento e proliferação celular. Adicionalmente, promove o efluxo do iodo, a iodação da TG e a secreção de HT, estimulando a formação de pseudópodes. Na região promotora dos genes de NIS, TG e TSHR, há locais responsivos à sinalização via cAMP (locais CRE), que, quando ocupados, ativam a transcrição destes genes. Por isso, o efeito do TSH na captação do iodo ocorre de modo indireto, isto é, promovendo o aumento da proteína transportadora de iodo (NIS).
Figura 68.15 ■ Molécula do receptor de TSH ancorado na membrana da célula folicular (no topo). Representação da ligação de TSH ao receptor de TSH (TSHR) e consequente ativação das vias de sinalização do cAMP e Ca2+ /PKC (intermediadas pela proteína G) e estimulação da síntese e secreção do hormônio tireoidiano. Mais detalhes no texto.
O valor do TSH circulante reflete a função tireoidiana, e por isso é utilizado amplamente na prática médica. O TSH sérico tem uma variação conforme a idade, sendo importante ressaltar os valores bastante altos no recémnascido (Quadro 68.5) quando comparados aos do adulto. Pequenas modificações do T4 livre plasmático alteram rapidamente os valores do TSH; assim, seu nível elevado é um potente indicador da hipofunção tireoidiana. No screening neonatal, para detectar o hipotireoidismo congênito (conhecido como “teste do pezinho”, ver adiante) e também no hipotireoidismo do adulto, realizase a dosagem de TSH sérico. Por outro lado, com os métodos bioquímicos atuais é possível avaliar a hiperfunção tireoidiana, situação em que a concentração de TSH está abaixo do nível normal.
Quadro 68.4 ■ Efeito da sinalização TSH na tireoide humana. Via cAMP
Via fosfolipase C
Captação de iodo
Geração de H2O2
Síntese de NIS, TG, TSHR
Efluxo do iodo
Iodação da TG Reabsorção do coloide Secreção de T4/T3 Proliferação celular
Quadro 68.5 ■ Concentração sérica de TSH de acordo com a idade. Idade
Valores de TSH sérico
Recémnascido (1a semana)
Até 15 mUI/ℓ
1a semana até 1 ano
0,80 a 6,3 mUI/ℓ
De 1 a 5 anos
0,70 a 6,0 mUI/ℓ
De 6 a 10 anos
0,60 a 5,4 mUI/ℓ
De 11 a 20 anos
0,50 a 4,9 mUI/ℓ
Acima de 20 anos
0,45 a 4,5 mUI/ℓ
Na doença autoimune da tireoide, o organismo sintetiza imunoglobulinas que se ligam ao TSHR e estes anticorpos podem: (1) ser estimuladores, ocasionando hiperfunção e quadro clínico de hipertireoidismo, ou (2) ocupar o TSHR sem gerar sinalização e acarretar hipofunção da glândula tireoide e hipotireoidismo no paciente. O TSH é um potente estimulador do crescimento da tireoide. O tecido tireoidiano tem baixo índice de proliferação, mas o estímulo sustentado do TSHR aumenta o tamanho da célula folicular e o índice de proliferação celular, com consequente crescimento global da glândula (Figura 68.16). Mutação no gene do TSHR que ativa o receptor constitutivamente, independente da ligação com o TSH, eleva tanto a função tireoidiana quanto a proliferação, com decorrente quadro de hipertireoidismo e bócio.
▸ Autorregulação da tireoide
O iodo, além de ser um elemento essencial na composição do HT, também influencia diversos aspectos da função e crescimento da tireoide por processo denominado mecanismo autorregulatório. Neste processo, a hormonogênese da glândula é controlada conforme a disponibilidade de iodo na célula, mas de maneira independente do TSH. O mecanismo autorregulatório procura manter um fino equilíbrio do estoque de HT na glândula. Em um estado de deficiência do iodo, o transporte deste é aumentado, e, em casos de maior disponibilidade dele, ocorre o oposto. Esta resposta acontece sem uma mudança detectável nos níveis de TSH e pode ser observada também em animais hipofisectomizados. O efeito mais dramático da autorregulação é observado em situação de grande excesso de iodo, sendo conhecido como efeito inibitório do iodo na glândula tireoide. Nessa situação, ocorrem: (1) diminuição da atividade do transportador de iodo, (2) redução da organificação do iodo (ou efeito WolffChaikoff) e (3) inibição da secreção de T4 e T3armazenados no coloide; esses efeitos em conjunto levam ao decréscimo do HT liberado pela glândula para a circulação. O iodo bloqueia a enzima DUOX, essencial na geração de H2O2 utilizado na organificação, e interfere nos processos dependentes de TSH, inibindo a atividade da sinalização via cAMP no folículo tireoidiano. O ponto crucial do efeito inibitório parece ser a quantidade de iodo organificado no interior da glândula; por isso, assim que o patamar desse iodo diminui, a inibição exercida pelo processo autorregulatório cessa. Este fenômeno é conhecido como escape ou adaptação à inibição do iodo (escape ao efeito WolffChaikoff) e observado poucos dias depois (2 a 3 dias), mesmo com a manutenção do excesso de iodo. Outro mecanismo atribuído ao escape é mostrado no modelo experimental, em que o excesso de iodo inibe a expressão gênica e proteica de NIS; em consequência, diminui acentuadamente a captação desse elemento pela célula folicular, ainda que grande quantidade dele esteja disponível no meio extracelular.
Figura 68.16 ■ Glândula tireoide normal (no centro), bócio multinodular (à esquerda) e bócio difuso (à direita).
O efeito inibitório do excesso de iodo é aplicado para auxiliar no tratamento de pacientes com hipertireoidismo muito grave. A administração de compostos iodados IV (p. ex., iopodato de sódio) diminui agudamente a secreção de HT e a função tireoidiana, efeito que se pode observar por alguns dias até o desencadeamento do escape ao efeito WolffChaikoff.
HT NO TECIDO PERIFÉRICO ▸ Transporte plasmático do HT A concentração total de T4 plasmática no adulto é de aproximadamente 8 μg/dℓ (ou 103 nmol/ℓ), e a de T3 plasmática é de 0,15 μg/dℓ (ou 2,3 nmol/ℓ). No entanto, apenas uma pequena fração se encontra na forma de hormônio livre, pois no plasma o HT se mostra ligado com grande afinidade, mas de maneira reversível, a várias proteínas transportadoras. As proteínas transportadoras são sintetizadas no fígado e as principais delas são: (1) proteína ligadora de tiroxina (TBG ou thyroid binding protein); (2) TTR (ou transthyretin), conhecida anteriormente como préalbumina ligadora de tiroxina (TBPA); (3) albumina; e (4) lipoproteínas (Quadro 68.6). Somente o hormônio livre entrará na célula para exercer a ação fisiológica. O HT ligado às proteínas transportadoras é um reservatório que armazena o HT liberado pela tireoide, e disponibiliza apenas uma pequena fração de T4 e T3 na forma livre para as células. Cerca de 99,96% da T4 estão ligados e só 0,04% está na forma de T4 livre; quanto à T3, 99,6% estão ligados e 0,4% está como T3 livre. Os hormônios ligados e os livres se encontram em equilíbrio segundo a lei da ação das massas, em que uma mudança da fração livre modifica a fração de hormônios ligados. Tomando como exemplo a interação de T4 e TBG, temos:
(T4) + (TBG) ↔ (TBG – T4) em que (T4) representa a T4 livre; (TBG), a TBG não ligada à T4; e (TBGT4), a T4 ligada à TBG. Como no plasma as frações de TBG e T4 ligadas e não ligadas estão em equilíbrio, podemos expressar a constante de associação (κa) de T4 pela equação: κaT4 = (TBG – T4)/(T4)(TBG) Desta maneira, temos a seguinte relação de T4 livre: T4 = (TBG – T4)/κaT4(TBG) A fração livre total de T4 e de T3 é a soma das frações livres dos hormônios com cada uma das proteínas transportadoras. Devido a esta cinética das frações ligada e livre dos hormônios, quando ocorre um aumento da concentração da proteína transportadora, a concentração do hormônio livre no plasma irá diminuir. Esta mudança, no entanto, é temporária, pois a redução da concentração plasmática do hormônio livre irá estimular a secreção de TSH, que promoverá um aumento compensatório da produção de HT pela tireoide para que os níveis de HT livre voltem ao normal. Deste modo, estabelece se um novo patamar de equilíbrio, em que a quantidade total de HT no sangue estará alta, mas a fração livre de HT estará em concentração normal. Em condições fisiológicas de equilíbrio, 70 a 80% de T4 e T3 estão ligados à TBG. Cerca de 20% da T4 estão ligados à TTR, mas pouco de T3 se liga à TTR. A albumina transporta aproximadamente 10% de T4 e T3 circulante, e uma pequena fração de T3 e T4 está ligada a lipoproteínas (ver Quadro 68.6).
TBG A TBG é a principal proteína transportadora; corresponde a uma glicoproteína globular com cadeia peptídica única de 54 kDa, sendo produto do gene localizado no cromossomo X. Ela tem um único local de ligação ao HT por molécula, onde T4 e T3 se ligam com afinidades diferentes. Em condições fisiológicas, T4 se une mais avidamente à TBG (κaT4 = 15 × 109 M–1) que T3 (κaT3 = 1 × 109 M–1), e cerca de 30% das TBG se encontram ocupadas. A TBG é sintetizada no fígado, tendo meiavida de 6 dias. A síntese de TBG é regulada por níveis de estrógeno; assim, ocorre um aumento dos níveis de TBG na gravidez e pela ingestão de substâncias contendo estrógeno, como os anticoncepcionais. Por outro lado, andrógenos e Lasparaginase diminuem a síntese de TBG. Alguns fármacos como fenitoína, barbitúrico, salicilato, furosemida e diclofenaco podem interferir no transporte de HT, ocupando o local de ligação de T4 com baixa afinidade, e assim aumentam a fração livre do hormônio no plasma. A deficiência congênita de TBG, por mutação, incide em um em cada 5.000 nascimentos.
Quadro 68.6 ■ Proteínas transportadoras do hormônio tireoidiano. Quantidade de hormônio
Gene e localização no
Concentração
circulante ligado (%)
cromossomo
Peso molecular
plasmática (µmol/
Proteína
humano
(kDa)
ℓ)
T4
T3
TBG
TBG
54
0,27
68
80
Xq22.3
homômero
4,6
20
1
640
10
13
glicosilado TTR
Albumina
TTR
55
18q12.1
tetrâmero
ALB
66
4q11q13 Lipoproteína HDL
APOA1
28
11q23q24
dímero
–
2
6
TTR A TTR é uma proteína tetramérica de 55 kDa, formada por quatro peptídios idênticos. Tem dois locais de ligação para T4, onde um deles apresenta alta afinidade para T4 e o outro geralmente se encontra desocupado. T3 tem baixíssima afinidade para estes locais. A TTR apresenta um local adicional com afinidade para retinol (vitamina A) que serve de transportador para esta molécula. A meiavida da proteína é de 2 dias. A concentração de TTR é alta no plexo coroide, sugerindo que este local é um importante meio de distribuição de HT no SNC. No estado de desnutrição, a síntese de TTR está inibida, mas há pouca influência no transporte de T4, pois a contribuição da TTR no transporte é muito pequena quando comparada à da TBG.
Albumina Apresenta baixa afinidade de ligação para T4 e T3. Tem um local principal para T4 e vários outros locais secundários de ligação; porém, menos que 1% dos locais estão ocupados por T4. Sugerese que o local de ligação de T4 seja compartilhado por outras moléculas, como a bilirrubina. Sendo responsável por pequena fração do transporte de T3e T4, a mudança na concentração de albumina altera pouco a concentração de HT no plasma.
Lipoproteínas HDL Diversas delas atuam como transportadores de HT. As apolipoproteínas das subclasses AI, AII, AIV, CI, CII, C III e E apresentam locais de ligação ao HT, característica evolutivamente conservada na espécie animal. Dentre estas, se reconhece a afinidade de T4 para apoliproteínas A1; no entanto, esta afinidade é muito menor que para a TBG.
▸ Metabolismo do HT A forma predominante de HT liberada pela glândula tireoide na circulação é a tiroxina (T4). A tireoide secreta 80 μg de T4 diariamente, e 40% de T4 são metabolizados nos tecidos periféricos pela remoção de um iodo (ou monodesiodação), produzindo cerca de 80% do T3 total (30 μg) por dia. Os 20% restantes da T3 vêm da secreção direta da glândula tireoide (Quadro 68.7). A desiodação inicial de T4 que remove o iodo do anel externo gera T3 (3,3’,5T3), ou a que remove o anel interno gera T3 reversa (rT3; 3,3’,5’T3) (Figura 68.17). Quase toda a rT3 é produzida fora da glândula tireoide, e cerca de 30% da T4 secretada são convertidos em rT3. A desiodação de T3 e rT3 resulta em diiodotironinas (T2), e a remoção subsequente gera monoiodotironinas. O único produto fisiologicamente ativo gerado por esta cascata de monodesiodação é a T3. O organismo depende desta via metabólica de degradação em cascata para remoção do HT, pois somente uma quantidade mínima de HT é excretada pela urina. Além da via metabólica de desiodiação, pode haver outras modificações do HT. Há incorporação do ácido glicurônico ou de sulfato ao anel fenólico. A glicuronidação é uma via metabólica importante para T4 e a sulfatação para T3, ocorrendo predominantemente no fígado, sendo ambos os produtos excretados para a bile e eliminados nas fezes. E ainda, podem ocorrer desaminação ou descarboxilação no local alanina das iodotironinas, transformando T4 em ácido tetraiodotiroacético (Tetrac) e T3 em ácido triiodotiroacético (Triac) (Quadro 68.8). Estes metabólitos são rapidamente degradados tanto na circulação quanto na célula. Embora não se conheça o papel fisiológico in vivo, estudos in vitro mostram atividade destes compostos na ação não genômica do HT (ver adiante). A maior parte do tecido periférico tem a capacidade de remover uma molécula de iodo de T4 (por monodesiodação) e transformálo em T3, o hormônio biologicamente ativo. Este processo enzimático é catalisado pelas desiodases, proteínas da família selêniocisteína.
Figura 68.17 ■ Desiodação das iodotironinas. A desiodação do anel interno está indicada pelas setas amarelas e a desiodação do anel externo, pelas roxas. (Adaptada de Green, 1987.)
Quadro 68.7 ■ Hormônio tireoidiano e os principais metabólitos.
Concentração sérica mg/dℓ
nmoles/ℓ
Meiavida Dia
Fonte Tireoide
Tecido periférico
T4
7,8
100
7
100%
–
T3
0,12
2
0,8
20%
80%
rT3
0,04
0,7
Traços
100%
3,3′T2
0,005
Traços
100%
▸ Ativação e inativação do HT pela selêniodesiodase A transformação metabólica do HT nos tecidos periféricos estabelece sua potência biológica e sua função. A T3 é o hormônio tireoidiano ativo, e grande parte da T3 plasmática e tecidual é produto metabólico da monodesiodação de T4, processo catalisado pela enzima desiodase. Nos mamíferos, existem três tipos de enzimas desiodases, denominadas desiodase 1 (D1), desiodase 2 (D2) e desiodase 3 (D3) (Quadro 68.9). Estas enzimas apresentam em sua estrutura um aminoácido raro, a selêniocisteína, codificado pela sequência UGA (o mesmo do stop codon) e situado no local ativo da proteína. A tradução não usual deste códon para selêniocisteína é facilitada pela presença de uma alça do nucleotídio que forma o elemento SECIS (selenocysteine insertion sequence) na região 3’ não traduzida do gene das desiodases, auxiliadas por proteínas acessórias EFsec (selenocystyltRNAspecific elongation factor) e SBP2 (SECISbinding factor) (Figura 68.18). A deficiência de selênio no organismo pode interferir na síntese e na atividade das desiodases e também no metabolismo do HT. A falta de selênio pode ser observada: nos pacientes que recebem dieta parenteral total por longo período, na dieta para fenilcetonúria, na fibrose cística ou na nutrição não balanceada em crianças e idosos. As desiodases D1 e D2 catalisam a desiodação do anel externo de T4, gerando T3 (5’desiodação). A D1 está presente no tecido periférico, como fígado e rim, sendo responsável pela conversão de T4 em T3 presente na circulação. Além da atividade de 5’desiodação, a D1 tem uma fraca atividade catalítica para a remoção do iodo do anel interno de T3 e de T4 (5desiodação). A enzima D3 não produz T3, pois dispõe de atividade exclusivamente de 5desiodação, e o seu papel é inativar T4 e T3, convertendoas em rT3 e T2, respectivamente (ver Quadro 68.9 e Figura 68.19).
Quadro 68.9 ■ Desiodases e suas principais características. Proteína e
Preferência de
Localização
peso
substrato e
predominante
molecular
local de
Papel
Gene
(kDa)
atuação
fisiológico
DIO1
D1
rT3>>T4≥T3
Gera T3 no
Fígado, rim,
Altamente
1p33p32
Desiodase 1
Anel externo e
tecido e libera
tireoide, SNC
sensível
29
anel interno
nos tecidos
Inibição pelo PTU
para o plasma Inativa T3 e T4
(homodímero)
Degrada rT3 DIO2
D2
T4$rT3
14q24.23
Desiodase 2
Anel externo
Gera T3 utilizado SNC, adeno na própria célula hipófise, tecido Contribui com
30,5
Muito baixa
o pool de T3 plasmático
adiposo, placenta, tireoide, músculo esquelético, coração
DIO3
D3
T3>T4
14q32
Desiodase 3
Anel interno
Inativa T3 e T4
SNC, placenta,
Muito baixa
pele
31,5
Figura 68.18 ■ Incorporação da selêniocisteína nas desiodases. O aminoácido selêniocisteína é incorporado no códon UGA pelo transportador RNA, auxiliado pelo complexo S de proteínas acessórias (SBP2 e EFsec) ancorado na alça (SECIS) da região 3’UTR do mRNA. (Adaptada de Bianco et al., 2002.)
Figura 68.19 ■ Hormônio tireoidiano no tecido periférico. Esquema do transporte de T4 e T3, desiodação do hormônio tireoidiano pelas enzimas desiodases (D1, D2 e D3) e ação nuclear de T3. (Cortesia do Dr. Theo Visser.)
No excesso de hormônio tireoidiano (ou hipertireoidismo), ocorre aumento da atividade de D1, e, na deficiência desse hormônio (ou hipotireoidismo), há diminuição de sua atividade. Em outras situações, como o jejum prolongado e doenças sistêmicas graves (septicemia, choque, cirurgias extensas), observase queda da atividade de D1 e consequente alteração do metabolismo do HT, ocasionando redução do nível sérico de T3 total e elevação de rT3, quadro clínico reconhecido como síndrome do T3 baixo com eutireoidismo em doença sistêmica grave. A D1 é a única das três isoformas que é inibida pela propiltiouracila (ou PTU). A D2 é responsável pela geração intracelular de T3, sendo encontrada no cérebro, hipófise, tecido adiposo marrom, músculo e coração. A D2 apresenta alta afinidade pela T4 quando comparada à D1, tendo meiavida de apenas 20 min. A atuação da D2 é particularmente importante onde a T3 gerada intracelularmente é imprescindível, como no controle do feedback hipotálamohipófisetireoide. T4 é metabolizada nos tireotrofos da adenohipófise pela D2, e a T3 resultante regula negativamente a transcrição do gene de TSH (por efeito dominante negativo, ver adiante). Desta maneira, o tireotrofo responde prontamente à flutuação de T4 circulante e à T3 gerada intracelularmente, mas é menos responsivo à T3 plasmática. Outra contribuição importante provém da evidência de que o tratamento com PTU, que inibe especificamente a isoforma D1, não é capaz de reduzir a T3 plasmática, sugerindo um papel importante de D2 na geração de T3 circulante. A atividade da D2 se encontra aumentada no estado de hipotireoidismo. A D3 está presente predominantemente na placenta, no sistema nervoso central e na pele. A principal função desta enzima consiste em proteger o tecido do excesso de HT ativo, expressandose de modo seletivo e temporalmente determinado nos diferentes tecidos. Ocorre aumento da atividade da D3 em paralelo ao aumento de T3. No SNC, a D3 contribui, no mecanismo homeostático, para a manutenção constante de T3. Na placenta, a D3 evita a passagem de excesso de T4 e T3 materno para o feto, protegendo seletivamente os tecidos em formação contra a exposição precoce ao HT durante a embriogênese.
CAPTAÇÃO E AÇÃO CELULAR ▸ Transportadores de membrana do HT A entrada do HT na célula é uma etapa importante para a ação biológica do HT. Nos tecidos periféricos, tanto a ativação do HT (i. e., a conversão de T4 em T3) como a ação hormonal ocorrem intracelularmente. A passagem do HT do meio extra para o intracelular pela membrana plasmática era atribuída a um processo de difusão passiva, por causa de o HT ser lipofílico (e, portanto, solúvel na membrana lipoproteica). No entanto, pelo fato de esse processo ser saturável e dependente de energia, havia indícios de que o transporte de HT para a célula seria realizado por transportadores membranais. Recentemente, vários transportadores de membrana que realizam a captação de HT nos diferentes tecidos do organismo foram identificados e agrupados em duas categorias: (1) transportadores de ânions orgânicos e (2) transportadores de aminoácidos.
Transportadores de ânions orgânicos
Vários membros da família NTCP (Na+/taurocholate cotransporting polypeptide) e OATP (organic anion transporting polypeptide) transportam iodotironina de modo não específico, pois outros compostos também atravessam a membrana plasmática via estes transportadores. A proteína transmembrana NTCP tem cerca 50 kDa, apresenta sete domínios transmembrânicos e é codificada pelo gene SLC10A1 localizado no cromossomo 14q24.1 humano, captando T4, T3, rT3, 3,3’T2 e as isoformas sulfatadas de maneira dependente de Na+. A NTCP se expressa apenas no fígado e, além do HT, transporta ácido bílico. As proteínas da família OATP estão presentes na maioria dos tecidos e teriam um papel multifuncional. Seriam importantes na destoxificação do organismo, facilitando a troca de ânions orgânicos com o bicarbonato intracelular. Dentre as proteínas da família OATP, as das subfamílias OATP1, OATP4 e OATP6 apresentam função mais seletiva, transportando iodotironinas nas diferentes formas, inclusive sulfatadas. Dentre todas estas, a OATP1C1, uma proteína de 712 aminoácidos codificada pelo gene SLCO1C1, realiza captação específica de T4 e rT3 e está altamente expressa no cérebro, principalmente nos capilares, sugerindo ser crítica para a passagem de T4 na barreira hematencefálica.
Transportadores de aminoácidos Devido à característica da composição das iodotironinas (aminoácidos com resíduo tirosina), não seria estranho se os transportadores de aminoácidos estivessem envolvidos na captação de TH. Foi identificado recentemente que o MCT8, uma proteína transmembrana da família MCT (monocarboxylate transporter) que transporta aminoácidos aromáticos, tem função ativa e específica na captação de HT pelas células. Estudos in vitro mostraram que o MCT8 transporta T4, T3 e rT3, e T3, rT3 e T2 competem com a captação de T4. Em humanos, o MCT8 é um transportador com alta especificidade para o transporte de T3. A expressão de MCT8 é particularmente alta no fígado, cérebro e coração. No cérebro, o MCT8 é importante como fonte de T3 no neurônio. No SNC, os astrócitos expressam desiodase 2 (D2), mas os neurônios não expressam D2. Desta maneira, a T3 formada pela desiodação de T4 pela enzima D2 nos astrócitos é transferida para os neurônios através do transporte realizado pelo MTC8 na membrana do neurônio (Figura 68.20). O gene de MCT8, SLC16A2, está localizado no cromossomo Xq13.2, e o transcrito de seis éxons codifica uma proteína de cerca de 67 kDa. A proteína MCT8 se ancora na membrana através de 12 domínios transmembrânicos e permite tanto o influxo quanto o efluxo do HT pela membrana plasmática de diferentes tipos celulares, inclusive na glândula tireoide. A deleção ou mutação no gene MCT8 está associada à síndrome de AllanHerndonDudley, uma grave doença neurológica ligada ao cromossomo X, em que o paciente, além do quadro de retardo psicomotor grave, apresenta nível elevado de T3 plasmático.
Figura 68.20 ■ Metabolismo e ação do hormônio tireoidiano no cérebro. No astrócito, o T4 é desiodado pela enzima D2 gerando T3 que será transportado para o neurônio pela proteína transportadora MCT8. O T3 intracelular irá se ligar ao receptor nuclear TR e ativar a transcrição de gene alvo ou será metabolizado pela D3, transformandose na forma inativa T2. (Cortesia do Dr. Theo Visser.)
▸ Mecanismo de ação do HT Após a entrada do HT na célula, não existe dúvida quanto ao fato de que a maioria dos efeitos do HT ocorre pela via de interação com os receptores nucleares regulando a transcrição de genesalvo, mecanismo conhecido como ação
genômica (ou nuclear). Entretanto, existem evidências crescentes de que o HT (T4 e T3) também atue via mecanismo de ação não genômica (ou não nuclear), cujos efeitos aparecem em frações de segundo e não são inibidos pela ciclo hexamida, substância que bloqueia a síntese proteica. Estes dois aspectos distintos do mecanismo de ação do HT são abordados a seguir.
Ação genômica A ação genômica do HT promove modificação da transcrição de genes na célulaalvo. O HT entra na célula e a T3, proveniente do plasma ou o produto da conversão intracelular de T4, ligase ao receptor de HT (ver Figuras 68.18 e 68.19). O receptor de HT é nuclear e se encontra ligado a regiões específicas do DNA do genealvo, denominadas regiões TRE (thyroid hormone reponsive element). A este complexo, agregamse diversas proteínas correguladoras que auxiliam na ativação ou na inativação da transcrição dos genesalvo. TRE São sequências específicas de DNA localizadas predominantemente na região upstream (a montante) do local de inicialização da transcrição do gene. O TRE caracterizase pela presença da sequência de seis nucleotídios AGGT(C/G), organizados em três orientações diferentes: (1) na forma de repetição direta espaçada por quatro nucleotídios quaisquer (DR4), (2) na forma de palíndromo invertido espaçado por seis nucleotídios quaisquer (F2) e (3) na forma de palíndromo sem nenhum espaçamento (TREpal) (Quadro 68.10). A maioria dos TRE identificados é de DR4, seguida pelo F2, sendo o TREpal mais raramente encontrado. Receptores nucleares de HT Os receptores de HT foram caracterizados, em 1986, por dois grupos distintos de investigadores que buscavam identificar protooncogenes homólogos à proteína oncogênica viral verbA. Foram identificados dois genes similares, denominados atualmente THRA e THRB, cujas proteínas apresentavam alta afinidade e especificidade de ligação ao T3. Estas proteínas foram reconhecidas como receptores de HT (TR, thyroid hormone receptor), com função de fator transcricional e intermediando a ação nuclear do HT na regulação da expressão gênica. Os RT apresentam alta homologia com os receptores de esteroides, vitamina D e ácido retinoico, tendo sido incluídos na superfamília de receptores nucleares (ver Capítulo 3, Sinalização Celular).
Quadro 68.10 ■ Sequência gênica do elemento responsivo ao hormônio tireoidiano (TRE) e as orientações e espaçamentos comumente observados no gene responsivo ao HT. Sequência consenso TRE
AGGTCA ou AGGTGA
Repetição direta
DR4
AGGTCANNNNAGGTCA
Palíndromo invertido
F2
TGACCTNNNNNNGGTCA
Palíndromo
TREpal
AGGTCATGACCT
Nos mamíferos, existem três isoformas de TR com atividade funcional. A TRα1, codificada pelo gene TRHA localizado no cromossomo 17, e as TRβ1 e TRβ2, codificadas pelo gene TRHB situado no cromossomo 3. Essas três isoformas ligamse ao T3 de maneira similar. O splicing alternativo do gene TRHA gera ainda a TRα2, também conhecida como cerbAα2. A isoforma TRα2 tem homologia estrutural com as outras isoformas, mas não apresenta afinidade com a T3; no entanto, pode ocupar o local TRE do DNA, competindo com as isoformas TRα1 e TRβ1 na formação de heterodímeros com RXR, inibindo a ação mediada por essas isoformas e influenciando na transcrição do genealvo. As isoformas de TR têm alta homologia de aminoácidos, e os diferentes segmentos são identificados pelos domínios gênicos (A/B, C, D e E) ou proteicos (Nterminal, DBD, H e LBD). Enquanto os domínios A/B apresentam tamanho e homologia variável, os domínios D e E mostram grande homologia entre as diferentes isoformas (Figura 68.21). Mutação e deleção nos domínios D e E são críticas para a atividade transcricional. Na proteína, à extremidade aminoterminal (Nterminal) seguese uma região central de ligação do DNA (DBD ou DNAbinding domain), composta por: (1) duas estruturas dedo de zinco (formadas por um zinco central ligado a quatro
cisteínas), (2) domínio H (ou hinge, que constitui uma dobradiça que confere mobilidade às extremidades da molécula) e (3) uma porção Cterminal denominada LBD (ou ligandbinding domain, que se liga à T3). Mecanismo molecular da ação do TR Diferentemente dos receptores de esteroides que se ligam ao DNA compondo homodímeros, o TR se liga ao DNA do genealvo como monômero, homodímero ou heterodímero. A situação predominante é a formação de heterodímero de TR com o receptor nuclear RXR. O TR pode ainda dimerizarse com o receptor do ácido retinoico, com o receptor de vitamina e com o PPARγ (peroxisome proliferator activated receptor). O heterodímero TR:RXR é o mais importante complexo (ver Figura 68.19). Existe maior afinidade na união TR:RXR que entre homodímeros de TR, além de maior estabilidade da ligação TR:RXR com o local TRE que com monômeros ou homodímeros de TR, e ainda melhor ativação transcricional de TR quando associado ao RXR, atuando na forma heterodimérica. O HT transmite diversos sinais que variam conforme o tecido e os genes, e, ao contrário dos hormônios esteroides que só ativam, o HT regula a ativação ou a repressão da transcrição de RNA mensageiros específicos em célulasalvo. Repressão da transcrição na ausência do HT A ligação de TR ao TRE acontece independentemente da presença de T3; e, na ausência de T3 ligada ao TR, ocorre repressão da transcrição deste gene. Diversas proteínas corregulatórias se unem ao homo (TR:TR) ou heterodímero (TR:RXR): (1) as proteínas correpressoras da família NCoR (nuclear receptor corepressor), (2) a SMRT (silencing mediator for retinoic acid receptor and TR), (3) a Sin3 e (4) as HDAC (desacetilases de histona). Este complexo repressor promove a desacetilação das histonas, compactando a cromatina e impedindo a atuação dos fatores de transcrição basal TAFII/TBP e da RNA polimerase II (Figura 68.22). Ativação da transcrição na presença de HT A ligação de T3 ao TR, previamente ligados ao TRE, ativa a transcrição de mRNA. Quando o T3 se liga ao TR, o complexo repressor se desliga, ocorrendo interação subsequente de diversas proteínas coativadoras. As proteínas que atuam como coativadores de TR são membros da família de proteínas SRC (steroid receptor coactivator) e de proteínas que formam o complexo DRIP/TRAP (vitamin D receptor interacting protein/TR associated protein, composto por cerca de 15 subunidades). As proteínas SRC têm em geral peso molecular em torno de 160 kDa e por isso são conhecidas também como proteínas p160. Três isoformas de SRC (SRC1, 2 e 3) atuam no aumento da transcrição de vários receptores nucleares, inclusive de TR. A interação de SRC1 com CBP/p300 e PCAF (p300/CBP associated factor) promove a acetilação das histonas, por isso estas duas proteínas em conjunto são chamadas de HAT (histone acetiltransferase). A HAT tem um papel importante na ativação da transcrição, pois a acetilação das histonas ocasiona o afrouxamento da cromatina, facilitando a atuação dos fatores de transcrição basal (TAFII/TBP) e da RNA polimerase II na transcrição de RNA mensageiro (ver Figura 68.22).
Figura 68.21 ■ Representação esquemática do receptor do hormônio tireoidiano (TR) com indicação: dos domínios gênicos (letras A a E), do segmento proteico correspondente, das características de homologia e número de aminoácidos, e da atividade biológica das isoformas de TR e do oncogene cerbAα2. (Adaptada de Yen, 2001.)
Figura 68.22 ■ Modelo molecular da repressão (–T3) e da ativação (+T3) pelo hormônio tireoidiano e as proteínas reguladoras envolvidas na transcrição do genealvo. Descrição da figura no texto. (Adaptada de Yen, 2006.)
As isoformas de TR são expressas de maneira específica em diferentes tecidos e de modo distinto nas várias fases de desenvolvimento embrionário, fetal e pósnatal. Os receptores TRα1 e TRα2 são encontrados principalmente no epitélio do intestino delgado, pulmão e durante os estágios precoces do desenvolvimento. No músculo esquelético, no miocárdio e no tecido adiposo, são abundantes o TRα1 e, no cérebro, o TRα2. O receptor TRβ1 é altamente expresso no fígado e no rim, e em menor extensão no músculo esquelético, no miocárdio e no cérebro; e o receptor TRβ2 é expresso no hipotálamo e na hipófise. A expressão variada dos TR é um mecanismo regulatório de atuação seletiva dos HT nos tecidos. A mutação nos genes do TR, predominantemente observada no gene TRβ, pode causar resistência à ação do hormônio tireoidiano; tal anomalia é conhecida como síndrome da resistência ao HT, que se caracteriza pela falta de ação do HT nos tecidos onde predomina o TRβ. O T3, uma vez ligado ao seu receptor no núcleo da célulaalvo, induz mudanças na expressão gênica, aumentando ou diminuindo a atividade transcricional. Alguns exemplos de genes regulados pelo HT estão listados no Quadro 68.11. O produto dos genes modulados pelo HT participa de uma ampla gama de funções que incluem: vias de sinalização da glicogênese, lipogênese, sinalização da insulina, apoptose e proliferação celular. A caracterização da ação genômica inclui o reconhecimento de sequência TRE no genealvo.
Ação não genômica A maioria dos efeitos do HT (T3 e T4) ocorre pela ligação de T3 aos receptores nucleares (TR), modulando a atividade transcricional de genes regulados pelo HT. No entanto, T3 e T4 podem exercer seus efeitos por mecanismos não genômicos. A ação não nuclear do HT é observada rapidamente, em segundos ou minutos, ocorre na membrana plasmática e na mitocôndria, não depende de síntese proteica e não envolve os TR nucleares. A existência de sítios de ligação para o HT na superfície celular era conhecida há muitos anos, mas relutavase em utilizar o termo receptor de membrana para a ação local do HT na membrana. Descobertas mais recentes indicam que a integrina αVβ3, uma proteína estrutural heterodimérica localizada na membrana plasmática, ligase ao HT na região que
se superpõe ao local de seu ligante clássico, o peptídio RGD (argininaglicinaasparagina). A conformação espacial deste sítio da integrina é propícia não somente para a ligação do peptídio RGD, mas também para a ligação de T4 ou de Tetrac, que competem na ligação neste domínio extracelular formado pelas cadeias αV e β3. A ligação do HT, T4 ou T3, ao receptor de membrana integrina αVβ3 pode ser um dos mecanismos que ativam a cascata de sinalização intracelular MAPK (mitogenactivated protein kinase) (Figura 68.23). Além disso, existe uma interface de atuação não genômica do HT, influenciando sua ação genômica. Neste processo, a ativação da via MAPK por efeito não genômico de HT desencadeia uma cascata de sinalização intracelular, que fosforila os TR nucleares. A fosforilação dos resíduos lisina de TR altera a interação destes com as proteínas correguladoras e acelera o tráfego intracelular de proteínas coativadoras. Na ação não genômica, notase um efeito mais potente de T4 que de T3, sugerindo um papel hormonal importante de T4, que desta maneira se expande além da condição de próhormônio.
Quadro 68.11 ■ Genes regulados pela T3. Genes regulados positivamente Sintetase de ácidos graxos
Enzima lipogênica Spot14
Enzima málica
Desiodase tipo1 (D1)
Hormônio do crescimento
UCP1
Miosina – cadeia pesada α
Mielina básica
Genes regulados negativamente Receptor de EGF
TRH
Miosina – cadeia pesada β
TSH cadeia α e cadeia β
Prolactina
Desiodase tipo 2 (D2)
Figura 68.23 ■ Esquema representativo da ação não genômica do hormônio tireoidiano. A ligação de T4 e T3 com a proteína de membrana integrina αVβ3 ativa a sinalização MAPK (ERK1/ERK2), que ativará uma série de proteínas (TRβ1, ERα, STAT1α) pela fosforilação de serinas que atuarão na mobilização das proteínas de tráfego, contribuindo indiretamente para a ação genômica do hormônio tireoidiano (ver texto). A ativação da via MAPK aumenta a atividade das proteínas transportadoras (trocador Na+ /H+ e transportador de aminoácidos). Sugerese que o T3 atue ativando a via de sinalização PKC e PI3 K/Akt/PKB. (Adaptada de Davis et al., 2005.)
A ativação da via MAPK pelo HT promove a alteração do tráfico intracelular e a fosforilação dos receptores estrogênicos (ER) e da proteína p53. São ainda atribuídos à ação não genômica do HT: (1) o rápido aumento da atividade das calmodulinas e dos transportadores iônicos (trocador Na+/H+, canal de Na+ e Ca2+ATPase) nos miócitos e cardiomiócitos, (2) o aumento de captação de glicose e (3) o controle do transporte de cálcio e da remodelação da actina, modificando o citoesqueleto em vários tecidos.
AÇÃO FISIOLÓGICA DO HT A presença de receptores de HT (TR) em virtualmente todos os tecidos do organismo ressalta a importância do papel vital do HT na função celular. O amplo espectro de sua ação pode ser inferido pela variabilidade na expressão e regulação dos TR e dos genes responsivos nos diferentes tecidos e em fases distintas da vida. Deste modo, além de sua participação na regulação do metabolismo celular, exerce efeito em órgãos específicos durante o período de desenvolvimento e após o nascimento (Quadro 68.12). Embora o reconhecimento de um número crescente de genes regulados pelo HT tenha se expandido nos últimos anos, não temos ainda a compreensão global da implicação destes achados na função do HT. Muitos dos efeitos fisiológicos do HT foram constatados a partir de modelos experimentais de hipertireoidismo (administrando T4 ou T3) e de hipotireoidismo (removendo a glândula ou utilizando fármacos que bloqueiem a síntese hormonal).
▸ Efeito na termogênese Nos animais homeotérmicos, inclusive humanos, a temperatura corporal é mantida em limite bastante estreito, próximo a 37°C, independente da extrema variabilidade da temperatura do ambiente. Para manter esta temperatura e as funções vitais da célula, os animais homeotérmicos produzem calor, por um mecanismo designado termogênese obrigatória (ou termogênese basal), que costuma ser avaliada pela taxa de metabolismo basal (TMB), medindose o consumo de oxigênio do indivíduo em repouso. Em ambiente de termoneutralidade, a termogênese obrigatória é suficiente, mas, em ambiente extremamente frio, é necessário ativar a termogênese facultativa. A função termogênica do HT foi incorporada como um processo evolutivo nos animais homeotérmicos, ao contrário dos animais de sangue frio (ou poiquilotérmicos), sendo essencial na termogênese obrigatória e na termogênese facultativa. As primeiras evidências de que o HT exerce importante papel na termogênese foram observadas pela intolerância ao frio no estado de hipotireoidismo e ao calor no de hipertireoidismo. Experimentos realizados há mais de 60 anos mostraram que nos animais com tireotoxicose ocorria elevação da TMB, avaliada pelo consumo de oxigênio, na maioria dos tecidos (exceto cérebro, baço e testículo).
Quadro 68.12 ■ Função fisiológica do hormônio tireoidiano. Molécula ou tecidoalvo
Função
Ação fisiológica
Músculo esquelético e tecido adiposo
Metabolismo
Termogênese obrigatória e
marrom Coração
facultativa Cronotrópico
Potencializa a ação dos receptores βadrenérgicos
Inotrópico
Aumenta a resposta das catecolaminas Aumenta as miosinas de maior atividade ATPase
Sistema nervoso
Desenvolvimento
Desenvolvimento normal do SNC
Osso
Desenvolvimento e
Crescimento normal e
remodelação
maturação Síntese e reabsorção óssea
Tecido adiposo
Diferenciação e catabolismo
Maturação de préadipócito Lipogênese
Ácidos graxos
Metabolismo
Síntese e degradação de colesterol Síntese de receptores LDL
Proteína
Metabolismo
Síntese e proteólise
Carboidrato
Metabolismo
Gliconeogênese Glicogenólise
Incorporação da glicose nas células Um dos mecanismos atribuídos à geração de calor pelas células dos diferentes tecidos é o aumento do desacoplamento mitocondrial. As proteínas mitocondriais UCP (uncoupling protein) facilitam o retorno do próton do espaço intramembranoso para a matriz mitocondrial, processo conhecido como desacoplamento fisiológico da mitocôndria, que produz calor. O HT aumenta a expressão das proteínas UCP1 (no tecido adiposo marrom), UCP2 (no fígado e no tecido adiposo) e UCP3 (no músculo esquelético, no coração e no tecido adiposo marrom). Entretanto, até o momento, não foi evidenciada a capacidade desacopladora da UCP2. O HT estimula a lipólise, fazendo crescer a disponibilidade de lipídio, outro componente essencial do desacoplamento mitocondrial. A importância da UCP na termogênese de humanos adultos consolidouse com a identificação da isoforma UCP3, verificandose que está presente extensivamente no tecido muscular esquelético, ao contrário da UCP1, que, em humanos, está praticamente restrita ao período neonatal. Outro mecanismo fisiológico atribuído ao HT, que contribui para a termogênese obrigatória, seria a estimulação do consumo de ATP. O HT promove, direta ou indiretamente, o influxo celular de Na+ e o efluxo de K+; assim, restitui o gradiente destes íons através da membrana celular, o que aumenta a atividade e a expressão da Na+/K+ATPase, que ocorre predominantemente no tecido epitelial de grande atividade transportadora, como rim e intestino. Além disso, na transferência de Ca2+ do citosol para o retículo sarcoplasmático, o HT eleva o consumo de ATP pelo crescimento da atividade da Ca2+ATPase. A termogênese facultativa é ativada pelo sistema nervoso autônomo simpático, mas é modulada de maneira importante pelo HT. Na ausência de HT, os animais expostos ao frio ficam hipotérmicos, pois não conseguem sustentar o estímulo noradrenérgico para geração de calor suplementar; esse quadro se reverte com a administração de HT.
▸ Efeito no metabolismo lipídico O HT acelera a diferenciação dos préadipócitos em adipócitos, exercendo múltiplos efeitos no metabolismo de lipídios. A síntese de colesterol e a conversão/degradação metabólica encontramse deprimidas na deficiência do HT. No entanto, como a degradação é afetada em maior extensão que a síntese, no estado hipotireóideo o nível sérico de colesterol total aumenta, devido principalmente à elevação do colesterol e da lipoproteína de baixa densidade (LDL). A intensificação do metabolismo de colesterol pelo HT seria, ainda, pelo crescimento do número de receptores de LDL na superfície das células. Quanto aos ácidos graxos, sabese que o HT intensifica a lipólise no tecido adiposo.
▸ Efeito no metabolismo proteico Tanto a síntese como a degradação proteicas são estimuladas pelo HT. O estímulo da síntese pode ser responsável por parte do efeito termogênico do HT. A influência do HT no crescimento normal do indivíduo está relacionada com a promoção dessa síntese. No excesso de HT, o catabolismo proteico fica acelerado, levando ao aumento na excreção de nitrogênio.
▸ Efeito no metabolismo de carboidratos O HT intensifica a ação da epinefrina na promoção da glicogenólise e gliconeogênese; adicionalmente, o HT potencializa a ação da insulina na utilização da glicose e na síntese de glicogênio. O HT aumenta a taxa de absorção intestinal e a entrada da glicose nos diferentes tecidos, estimulando a expressão e a disponibilidade das proteínas transportadoras de glicose (GLUT) na superfície celular.
▸ Efeito nos sistemas simpático e cardíaco Muitos dos efeitos do HT, particularmente no sistema cardíaco, são similares aos induzidos pelas catecolaminas. O HT apresenta acentuado efeito cronotrópico e inotrópico no coração. O excesso de HT aumenta a responsividade adrenérgica cardíaca, provavelmente amplificando a ação pósreceptora das catecolaminas. Os inibidores betaadrenérgicos revertem alguns dos efeitos do hipertireoidismo clínico, como a taquicardia; no entanto, outras ações do hipertireoidismo não são alteradas pelo bloqueio betaadrenérgico, como a elevação do consumo de O2. O HT aumenta a expressão da miosina MHCα que predomina na região atrial, resultando na subida da velocidade da contração cardíaca, ocorrendo o oposto com a diminuição do HT.
▸ Efeito no músculo esquelético Pela extensa distribuição no organismo e abundância de UCP3, o músculo esquelético contribui de maneira importante para a manutenção da temperatura corporal. O HT regula a expressão dos genes que codificam as diferentes isoformas da cadeia pesada da miosina (MHC) e do transportador de cálcio SERCA, que em conjunto ocasionam maior atividade da Ca2+ATPase e mobilização do cálcio nos miócitos. No hipertireoidismo, pode ocorrer grave fraqueza muscular (denominada miopatia tireotóxica) que se agrava em pacientes com alterações no genes transportadores de K+ (que passam a apresentar a paralisia periódica hipopotassêmica tireotóxica); mas ambos os quadros se revertem quando os níveis de HT retornam ao normal.
▸ Efeito no tecido ósseo O HT tem atuação direta na remodelação óssea, influenciando tanto a formação como a reabsorção ósseas. Nos osteoblastos, o HT aumenta a fosfatase alcalina e a osteocalcina; nos osteoclastos, o HT eleva os marcadores de atividade, tais como a hidroxiprolina e o piridínio urinário. O excesso de HT encurta o intervalo de tempo entre a formação óssea e a subsequente desmineralização, o que ocasiona crescimento da porosidade óssea cortical e afinamento das trabéculas. Nas mulheres pósmenopausa, o efeito do excesso de HT se potencializa devido à falta de estrógeno, acarretando a aceleração da perda da densidade mineral óssea (chamada de osteoporose), o que faz crescer o risco de fratura óssea.
▸ Efeito na hematopoese O HT aumenta a eritropoese, estimulando a expressão gênica da eritropoetina induzida pelo HIF1 (hypoxiainducible factor 1). Nos eritrócitos, o HT eleva o nível de 2,3difosfoglicerato (2,3DPG), que promove a dissociação de O2 da hemoglobina, e assim aumenta a disponibilidade de O2 nos tecidos. Estes mecanismos ocorrem como uma compensação ao crescimento do consumo de O2 induzido pelo HT. No hipotireoidismo, acontece o inverso, havendo menor consumo de O2 e diminuição da eritropoese.
▸ Efeito no sistema endócrino O HT tem um efeito geral que aumenta o metabolismo e o clearance de vários hormônios e agentes farmacológicos. Ele estimula o crescimento do clearance dos hormônios esteroides, o que leva à elevação compensatória das suas sínteses. Como tanto a síntese quanto a degradação estão aumentadas, o nível plasmático de cortisol permanece inalterado. Grande parte dos pacientes com hipotireoidismo apresenta elevação da prolactina decorrente do aumento do TSH hipofisário, que volta ao nível normal quando recebem tratamento com HT. No hipotireoidismo, há menor secreção de LH e de FSH, sendo comum ocorrer falta de ovulação e distúrbios menstruais, como a menorragia (menstruação mais prolongada). A necessidade de insulina geralmente está aumentada em pacientes com hipertireoidismo. A diminuição do clearance da água no hipotireoidismo pode ser secundária à elevação da atividade do hormônio antidiurético, mas também pode estar relacionada com a alteração da hemodinâmica intrarrenal.
▸ Crescimento e desenvolvimento O HT é essencial para o crescimento normal e a maturação óssea. Em algumas espécies animais, ele regula o gene do hormônio de crescimento (GH), mas, no gene do GH humano, não existem elementos responsivos ao HT. Em humanos, mesmo sem alteração do GH, na falta de HT há atraso no desenvolvimento e no crescimento. Em crianças, o hipotireoidismo atrasa, ao passo que o hipertireoidismo acelera a maturação óssea e o fechamento da epífise óssea. Nos anfíbios, o HT promove a metamorfose induzindo a apoptose da cauda do girino; na ausência de HT, ocorre interrupção drástica da transformação do girino em sapo, evidenciando a importância do HT na diferenciação celular e no desenvolvimento.
▸ Efeito no desenvolvimento do sistema nervoso O HT é criticamente importante no desenvolvimento fetal, particularmente do sistema nervoso. O HT materno não atravessa a placenta em quantidade suficiente para manter o eutireoidismo fetal; assim, o feto no período intrauterino depende do hormônio sintetizado pela sua própria glândula, que se inicia a partir da 10a11a semana de gestação. O termo cretinismo caracteriza o intenso retardo mental e déficit de crescimento decorrentes do hipotireoidismo intrauterino e materno, em regiões de grave carência de iodo. Nessas regiões, o suprimento inadequado de iodo persistirá
após o nascimento, pois o leite materno não conterá iodo suficiente para a síntese de HT pelo recémnascido, comprometendo ainda mais seu desenvolvimento neurológico. Mesmo em regiões suficientes em iodo, recentes investigações constataram que o hipotireoidismo materno na fase inicial da gravidez (ainda que de moderada intensidade) afeta o desenvolvimento neurológico e intelectual da criança a longo prazo. No sistema nervoso central, o déficit de HT atinge o córtex cerebral, o gânglio basal e a cóclea. No cerebelo de animal hipotireóideo, ocorrem redução na arborização dendrítica das células de Purkinje e atraso na migração das células granulares para a camada granular interna. No recémnascido com hipotireoidismo (denominado hipotireoidismo congênito), que aparece em 1 de cada 3.000 nascimentos, o dano permanente no desenvolvimento neurológico pode ser evitado se a reposição do HT for iniciada nas primeiras 2 semanas de vida. Este tratamento previne o potencial déficit intelectual decorrente da falta de HT no primeiro ano de vida. No Brasil, assim como em outras partes do mundo, o TSH é dosado na gota de sangue obtido do calcanhar do recémnascido (colhido em papelfiltro); essa avaliação, conhecida como teste do pezinho, é utilizada para o diagnóstico precoce do hipotireoidismo no recémnascido.
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Introdução
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Esteroidogênese suprarrenal Metabolismo dos esteroides suprarrenais
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Ações dos glicocorticoides Ações da aldosterona Ações dos andrógenos suprarrenais
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Medula suprarrenal Bibliografia
INTRODUÇÃO As glândulas suprarrenais estão localizadas acima dos rins, assim sua denominação, também, de glândulas suprarrenais. Cada glândula é revestida por uma cápsula de tecido conjuntivo denso e apresenta uma região interna – córtex – e outra interna – medula (Figura 69.1). O córtex suprarrenal deriva de células mesenquimais ligadas à cavidade celômica. A suprarrenal fetal é evidenciada a partir de 6 a 8 semanas de gestação. Na vida intraútero e até 12 meses pós natal, duas zonas suprarrenais são observadas, uma zona fetal, e uma zona definitiva que se diferenciará na glândula suprarrenal do adulto em zona glomerulosa (mais externa) e fasciculada (intermediária), enquanto a zona reticular (mais interna) só é evidente após 1 ano de vida. As três zonas do córtex suprarrenal secretam diferentes hormônios esteroidais e estão sob diferente regulação. A zona glomerulosa da glândula suprarrenal constitui cerca de 15% do córtex, sendo responsável pela síntese de mineralocorticoides. A fasciculada abrange aproximadamente 75% do córtex e produz os glicocorticoides. A zona reticular representa 10% do córtex, sendo responsável pela síntese de esteroides C19, chamados andrógenos suprarrenais. As células cromafins da medula renal produzem epinefrina e quantidades variáveis de norepinefrina (ver Figura 69.1). A divisão do córtex suprarrenal por zonas é crítica para a diferenciação da regulação da síntese de glico e mineralocorticoides, que pode ser exemplificada pela quantidade de aldosterona necessária para o controle do balanço salino cerca de 100 a 1.000 vezes menor que a quantidade de cortisol necessária para o controle do metabolismo dos carboidratos. Assim, sem a divisão funcional haveria um excesso de mineralocorticoide, caso os precursores progesterona e 11desoxicorticosterona, que são também sintetizados na camada fasciculada em quantidades elevadas, fossem convertidos a aldosterona. As glândulas suprarrenais recebem sua irrigação sanguínea de ramos das artérias renais ou da porção lombar da aorta e seus ramos principais. Estas artérias penetram as cápsulas suprarrenais e se dividem para formar o plexo subcapsular, do qual pequenos ramos seguem em direção à medula suprarrenal e drenam em vênulas nesta região da glândula (ver Figura 69.1). À direita, a veia suprarrenal entra diretamente na veia cava inferior, enquanto, à esquerda, a drenagem da suprarrenal ocorre pela veia renal esquerda. O fluxo sanguíneo do córtex suprarrenal para a medula permite a síntese e secreção de epinefrina em grandes concentrações, por exemplo, durante o estresse, pois a atividade da enzima envolvida na
síntese de epinefrina (feniletanolaminaNmetiltransferase) é especificamente induzida pelo glicocorticoide, como descrito adiante.
Figura 69.1 ■ Anatomia da glândula suprarrenal. A. A suprarrenal é dividida em 2 regiões: córtex e medula; o córtex tem 3 zonas que envolvem a medula: glomerulosa (mais externa), fasciculada (intermediária) e reticular (mais interna). B. Hormônios sintetizados pelas zonas corticais e pela medula. O suprimento sanguíneo entra pela região subcapsular da glândula e flui pelo leito capilar do córtex até a medula. (Adaptada de Barrett, 2005.)
ESTEROIDOGÊNESE SUPRARRENAL
O precursor para todos os hormônios adrenocorticais é o colesterol, que pode ser sintetizado a partir da acetilcoenzima A; mas a maior fonte do colesterol para a esteroidogênese é o colesterol transportado no plasma pelas lipoproteínas de baixa densidade (LDL). Estas lipoproteínas são captadas pelas células adrenocorticais por meio de receptores específicos de LDL presentes na membrana celular. Após sua entrada na célula, o colesterol é esterificado e estocado em vacúolos citoplasmáticos. O ACTH regula a hidrólise dos ésteres de colesterol pela ativação da esterase de colesterol e inibindo a colesterol aciltransferase. Para que a esteroidogênese ocorra, o colesterol deve ser transportado para a membrana interna da mitocôndria. A proteína StAR (steroidogenic acute regulatory protein) desempenha um papel essencial na esteroidogênese, facilitando o transporte da molécula de colesterol para a membrana interna da mitocôndria. Evidências do envolvimento da proteína StAR na produção de hormônios esteroides são constatadas pela observação de que mutações no gene StAR causam hiperplasia congênita suprarrenal lipoídica, em que a síntese de esteroides nas suprarrenais e gônadas é diminuída e há acúmulo intracelular de colesterol em grandes vacúolos. A proteína StAR interage com outras proteínas ancoradas na membrana externa da mitocôndria, como o canal de ânion dependente de voltagem (VDAC, voltagedependent anion channel) e a proteína translocadora de 80 kDa (translocator protein, TSPO, inicialmente denominada receptor periférico de benzodiazepínicos). O complexo formado por essas proteínas permite a translocação do colesterol para a membrana interna da mitocôndria, onde estão localizadas CYP11A1, adrenotoxina e adrenotoxina redutase, que realizam a clivagem inicial do colesterol.
▸ Síntese de glicocorticoides, mineralocorticoides e andrógenos Para que o córtex suprarrenal sintetize os glicocorticoides, os mineralocorticoides e os esteroides sexuais, são necessários vários passos enzimáticos. A Figura 69.2 esquematiza as etapas da esteroidogênese suprarrenal, e o Quadro 69.1 apresenta as enzimas necessárias para a síntese de cortisol, aldosterona e andrógenos suprarrenais. Após o seu transporte para a membrana interna da mitocôndria, a molécula de colesterol sofre clivagem de sua cadeia lateral e conversão para pregnenolona, pela enzima CYP11A1 (P450scc). Este passo inicial na síntese de hormônios esteroides envolve 3 reações: 20αhidroxilação, 22hidroxilação e clivagem da cadeia lateral. A clivagem da cadeia lateral da molécula de colesterol constitui o passo limitante na esteroidogênese. Na via de síntese dos glicocorticoides, a pregnenolona sofre desidrogenação na posição 3 β pela ação da enzima 3β hidroxiesteroide desidrogenase (3βHSD), levando à formação de progesterona. Tanto a pregnenolona quanto a progesterona são hidroxiladas na posição C17α pela enzima microssomal 17αhidroxilase (CYP17), formando 17α hidroxipregnenolona (17αOHPreg) e 17αhidroxiprogesterona (17αOHP), respectivamente. Uma via alternativa para a síntese da 17αOHP pode ocorrer a partir da 17OHPreg pela ação da 3βHSD. A seguir, ocorre uma 21hidroxilação pela enzima 21hidroxilase (CYP21A2), convertendo 17OHP em 11desoxicortisol. As reações que envolvem a formação de 11desoxicortisol a partir da pregnenolona ocorrem no retículo endoplasmático. O 11desoxicortisol é, então, transportado do retículo endoplasmático de volta para a membrana interna da mitocôndria, onde sofre 11hidroxilação pela enzima 11β hidroxilase (CYP11B1), dando origem ao cortisol. A síntese da aldosterona é realizada na zona glomerulosa do córtex suprarrenal, está sob controle do sistema renina angiotensina e, de forma mais direta, sob influência das concentrações de angiotensina II e potássio. A produção de renina pelo aparelho justaglomerular é estimulada em condições nas quais ocorrem: diminuição das concentrações de sódio no organismo, queda da pressão arterial renal e perda de volume e eletrólitos. Na via de síntese de mineralocorticoides, a progesterona é formada a partir do colesterol, como ocorre na zona fasciculada na via de síntese de cortisol. A progesterona na zona glomerulosa sofre hidroxilação no carbono 21, pela ação da CYP21A2, formando a 11 desoxicorticosterona. Este composto dá origem à corticosterona pela ação da enzima CYP11B2, também chamada de aldosterona sintase. A corticosterona pode ser formada, também, pela ação da CYP11B1, cuja expressão ocorre tanto na zona fasciculada como na glomerulosa. Pela ação da aldosterona sintase, a corticosterona sofre 18hidroxilação e 18metil oxidação, formando a aldosterona. A secreção de andrógenos pela suprarrenal corresponde a mais de 50% das concentrações de andrógenos circulantes na mulher. No homem, a principal fonte de andrógenos é fornecida pelos testículos, sendo pequena a contribuição suprarrenal em condições fisiológicas. A síntese de andrógenos ocorre na zona reticular e é estimulada pelo ACTH. No citoplasma, a pregnenolona formada a partir do colesterol é transformada em progesterona pela 3βHSD. Em seguida, a progesterona é hidroxilada pela 17αhidroxilase (CYP17), formando a 17hidroxiprogesterona. A remoção da cadeia lateral C2021 é catalisada pela enzima CYP17, que também tem atividade 17,20liase, levando à formação de desidroepiandrosterona (DHEA) e androstenediona. No ser humano, no entanto, a 17hidroxiprogesterona não é um substrato eficiente para a
CYP17, portanto ocorre pouca conversão deste esteroide em androstenediona. A síntese de androstenediona é dependente da conversão de DHEA catalisada pela 3βHSD. Mais de 99% da DHEA é sulfatada, originando o composto sulfato de desidroepiandrosterona (SDHEA), e este processo é catalisado pela DHEA sulfotransferase. Esteroides sulfatados não são substratos para as enzimas de degradação, possibilitando concentrações mais elevadas e meiavida mais longa do SDHEA. A androstenediona e a DHEA são andrógenos pouco potentes, porém, pela ação da enzima periférica, 17cetoesteroide redutase, a androstenediona pode ser convertida em testosterona. Deve ser ressaltado que a suprarrenal produz apenas pequenas quantidades de testosterona.
Figura 69.2 ■ Síntese de esteroides na suprarrenal. Em itálico, estão apresentados os cofatores envolvidos nas diferentes etapas da esteroidogênese. DHEA, desidroepiandrosterona; 3βHSD, 3βhidroxiesteroide desidrogenase; POR, P450 oxidorredutase; Adx, adrenotoxina; Adx/AdxR, adrenotoxina/adrenotoxina redutase. Descrição no texto.
Além das enzimas, outros fatores são necessários para a síntese de esteroides (ver Figura 69.2). As enzimas envolvidas na esteroidogênese suprarrenal fazem parte da classe do citocromo P450, subdividida em tipos 1 e 2. As enzimas P450 tipo 1 estão localizadas na mitocôndria e incluem a P450 scc e as isoenzimas 11βhidroxilase P450c11β e P450c11AS. Por outro lado, as enzimas P450 tipo 2 estão localizadas no retículo endoplasmático e incluem P450c17 e P450c21. As enzimas P450 tipo 1 não recebem os elétrons diretamente da forma reduzida de NADPH; inicialmente, 2 elétrons do NADPH são transferidos para uma proteína denominada adrenotoxina redutase e desta para a adrenotoxina e finalmente para a enzima P450. A enzima transfere, então, os elétrons para os esteroides. As enzimas P450 tipo 2 recebem 2 elétrons do NADPH via uma flavoproteína P450 oxidorredutase (POR) e catalisam a 17αhidroxilação e 21 hidroxilação. Adicionalmente, a presença do citocromo b5 como cofator facilita a interação de POR e P450c17, favorecendo a atividade 17,20liase desta enzima.
Quadro 69.1 ■ Enzimas envolvidas na esteroidogênese suprarrenal. Enzima
Sinônimo
Gene
Clivagem da cadeia lateral do colesterol
P450scc
CYP11A1
3βhidroxiesteroide desidrogenase
HSD3B2
HSD3B2
17αhidroxilase
P450c17
CYP17
17,20liase
P450c17
CYP17
21αhidroxilase
P450c21
CYP21
11βhidroxilase
P450c11β
CYP11B1
Aldosterona sintase
P450c11AS
CYP11B2
▸ Regulação da esteroidogênese suprarrenal Secreção dos glicocorticoides Os glicocorticoides são sintetizados na zona fasciculada do córtex suprarrenal pela ação do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) (Figura 69.3). Não há produção de glicocorticoides na zona glomerulosa ou reticular pela ausência das enzimas CYP17 e CYP11B1, respectivamente. O ACTH é o principal hormônio estimulador da síntese e secreção do cortisol, sendo sintetizado na hipófise anterior a partir de um precursor denominado próopiomelanocortina (POMC). A POMC é clivada dando origem a hormônios peptídicos menores, com formação de ACTH, hormônios melanócitoestimulantes (MSH α, β e γ) e βendorfina. Um importante local de regulação da secreção do ACTH está localizado nos neurônios hipotalâmicos do núcleo paraventricular nos quais o hormônio liberador da corticotrofina (CRH) e a arginina vasopressina (AVP) são produzidos e posteriormente liberados nos vasos portais hipofisários, de onde atingem a hipófise anterior. A ligação do CRH e da AVP aos seus receptores específicos, CRHR1 e receptor tipo 3 da AVP, respectivamente, nos corticotrofos, estimula a síntese e maturação da POMC, resultando na secreção do ACTH.
Figura 69.3 ■ Regulação da secreção de glicocorticoides pela glândula suprarrenal. A secreção de glicocorticoides é estimulada pelo ACTH, cuja secreção é ativada principalmente por CRH e AVP; estes, por sua vez, são inibidos pelos glicocorticoides por retroalimentação negativa. Outras características deste eixo são a presença de ritmo circadiano e ativação em resposta a diferentes tipos de estresse. NE, norepinefrina; IL, interleucina; ACh, acetilcolina; 5HT, serotonina; GABA, ácido gama aminobutírico.
Os glicocorticoides inibem a transcrição do gene da POMC na hipófise e também a síntese e secreção do CRH e AVP no hipotálamo. Esta retroalimentação negativa é dependente da dose, potência, meiavida e duração da administração dos glicocorticoides e tem consequências fisiológicas importantes. A retroalimentação negativa depende, também, de variações individuais de sensibilidade aos glicocorticoides, diferenças entre os sexos e idade. A secreção pulsátil de ACTH e a secreção do cortisol obedecem a um padrão de ritmo circadiano endógeno. O ritmo circadiano é gerado no núcleo supraquiasmático cujos sinais, por meio de vias eferentes para o núcleo paraventricular, modulam a secreção do CRH. O ritmo circadiano do glicocorticoide é caracterizado por um pico que ocorre no horário ou pouco antes do despertar, coincidindo com o início de atividades da espécie e com declínio no restante das 24 h. Assim, no homem, as concentrações basais de ACTH e cortisol são mais elevadas pela manhã (das 6 às 9 h) com queda progressiva ao longo do dia e nadir noturno (das 23 às 3 h) (ver Figura 69.3). O ritmo circadiano do eixo hipotálamo hipófisesuprarrenal é dependente do ciclo dianoite, do padrão de sono e vigília e do hábito alimentar, sendo alterado por ritmos de trabalho que trocam o dia pela noite e em viagens que modificam os fusos horários. O sistema circadiano representa uma rede de comunicações complexas, em que um grupo de neurônios no núcleo supraquiasmático do hipotálamo responde ao ciclo diário claro/escuro e transmite sinais sincronizadores para sensores oscilatórios em tecidos periféricos. A secreção dos glicocorticoides é regulada, também, por fatores como estresse e citocinas inflamatórias. Estresse físico, febre, cirurgia, queimadura, hipotensão arterial e hipoglicemia aumentam a secreção de cortisol e ACTH, por meio de ações centrais mediadas pelo CRH e pela AVP. Adicionalmente, o eixo hipotálamohipófisesuprarrenal (HPA) responde a estímulos inflamatórios. Essa interação endócrinoimune ocorre pela ação estimulatória sobre o CRH e ACTH por citocinas inflamatórias como interleucina1, interleucina6 e fator de necrose tumoral α. O estresse fisiológico agudo leva a um aumento na concentração plasmática de cortisol; entretanto, a secreção de cortisol é normal em pacientes com ansiedade crônica. Por outro lado, a depressão é associada a altas concentrações de interleucina6 e de cortisol, confirmando a interação endócrinoimune. Ações do ACTH A principal função do ACTH é a estimulação da esteroidogênese suprarrenal, que resulta na produção de cortisol no homem e corticosterona nos roedores. Nas células adrenocorticais, o ACTH regula a captação de lipoproteínas do plasma, controlando a síntese de receptores de lipoproteína. O transporte do colesterol para a mitocôndria é estimulado pelo ACTH, que resulta do aumento da expressão da proteína StAR, proteína reguladora da esteroidogênese aguda. O passo
limitante da esteroidogênese é a clivagem da cadeia lateral na conversão de colesterol para pregnenolona pela enzima CYP11A, cuja síntese é regulada pelo ACTH. Os efeitos do ACTH sobre a esteroidogênese podem ser agudos ou crônicos. O efeito a longo prazo resulta no aumento da transcrição dos genes das enzimas envolvidas na biossíntese de esteroides. O aumento dos RNA mensageiros das enzimas esteroidogênicas (CYP11A, CYP17, CYP21, CYP11B1) pode ser observado em culturas primárias de células suprarrenais várias horas após a estimulação com ACTH. O ACTH também tem um efeito sobre a expressão de seu próprio receptor, aumentando a expressão do RNA mensageiro em linhagem de células adrenocorticais. O ACTH é, também, um importante fator envolvido na manutenção do trofismo do córtex suprarrenal, como bem evidenciado pela atrofia da glândula suprarrenal em animais hipofisectomizados. Adicionalmente, a produção excessiva de ACTH por um tumor de células corticotróficas causa hiperplasia suprarrenal. O efeito trófico do ACTH ocorre nas zonas fasciculada e reticular, como pode ser observado pela hipoplasia dessas zonas com preservação da zona glomerulosa na deficiência de glicocorticoide familiar, em que há resistência à ação do ACTH. O ACTH aumenta a síntese de proteínas que estimulam a angiogênese e a hiperplasia das células suprarrenais, como fator de crescimento de endotélio vascular e o fator de crescimento insulinasímile II, fator de crescimento de fibroblasto e fator de crescimento epidermal. As ações do ACTH são mediadas por receptor de membrana específico (Figura 69.4). Este receptor, também denominado receptor da melanocortina 2 (MC2R), é membro da superfamília de receptores acoplados à proteína G. O MC2R interage com a proteína acessória do receptor de melanocortina 2 (MRAP, melanocortin 2 receptor acessory protein) e subsequentemente é direcionado para a membrana plasmática. Atualmente sabese que a proteína MRAP é essencial para o tráfego do MC2R do retículo endoplasmático para a superfície da membrana plasmática e, portanto, para as ações do ACTH. A ligação do ACTH com o seu receptor resulta na estimulação da produção de AMP cíclico. Esta ação é mediada pela ativação da proteína Gsβ, que por sua vez ativaria a adenilatociclase. Trabalhos mais recentes relataram uma outra ação rápida do ACTH, inibindo a guanilatociclase, que por sua vez inibiria a fosfodiesterase tipo 2 nas células suprarrenais da glomerulosa. Assim, o aumento de AMP cíclico induzido pelo ACTH seria decorrente de sua maior produção estimulada pela adenilatociclase e menor degradação pela fosfodiesterase. A ativação da proteinoquinase A (PKA) pelo AMP cíclico resulta na fosforilação de diversas proteínas, incluindo a proteína ligadora ao elemento responsivo ao AMP cíclico (CREB). Esses eventos de fosforilação são responsáveis, direta ou indiretamente, pelo aumento da expressão dos genes que codificam as enzimas da esteroidogênese CYP11A, CYP17, CYP21, CYP11B1 e proteína StAR. Ainda, o ACTH estimula a transcrição dos genes do seu próprio receptor, bem como dos receptores de HDL e LDL.
Figura 69.4 ■ Representação esquemática do receptor de ACTH. O receptor de ACTH está acoplado à proteína G, e sua ligação com o ACTH resulta na dissociação desta proteína heterotrimérica, que é constituída pelas subunidades α, β e γ. A subunidade α dissociada estimula a adenilatociclase a sintetizar AMP cíclico, que por sua vez fosforila e ativa a proteinoquinase A, levando à dissociação de suas subunidades catalíticas (C) e regulatórias (R). A subunidade catalítica fosforila outras proteínas, como a
proteína ligadora aos elementos responsivos ao AMP cíclico (CREB), que ativa a transcrição de genes envolvidos na esteroidogênese. StAR, proteína reguladora da esteroidogênese aguda; CYP11A, P450 scc; CYP17, 17αhidroxilase; CYP21, 21hidroxilase; CYP11B1, 11βhidroxilase.
Outros fatores de transcrição específicos, tais como o receptor nuclear órfão SF1 (steroidogenesis factor1) ou Ad4BP e nur77, estão envolvidos na regulação de expressão das enzimas P450. O Nur77 ligase a sequências específicas no DNA e desempenha papel fundamental na regulação do gene da próopiomelanocortina, ligandose em uma região específica, denominada elemento negativo responsivo aos glicocorticoides (nGRE), promovendo a ativação da transcrição gênica. O Nur77 regula, ainda, a transcrição do gene CYP11B2 e, consequentemente, a síntese de aldosterona.
Controle da secreção de aldosterona A síntese de aldosterona é regulada por vários fatores, sendo seus principais reguladores o sistema renina angiotensinaaldosterona (SRAA) e a concentração do íon potássio (Figura 69.5). Outros fatores como ACTH, íon sódio, prostaglandinas, hormônio antidiurético, dopamina, peptídio atrial natriurético, agentes betaadrenérgicos, serotonina e somatostatina também regulam a síntese de aldosterona, porém são considerados reguladores menos importantes. A molécula precursora do SRAA é o tetradecapeptídio angiotensinogênio, secretado pelo rim e hidrolisado a decapeptídio angiotensina I, pela ação proteolítica da enzima renina. A síntese de renina ocorre em uma porção especializada do néfron, o aparelho justaglomerular, um complexo de elementos vasculares e tubulares localizados no hilo do glomérulo. Os elementos vasculares do aparelho justaglomerular recebem inervação simpática, que desempenha um papel importante no controle da secreção de renina (para mais detalhes, ver Capítulo 53, Papel do Rim na Regulação do Volume e da Tonicidade do Líquido Extracelular). A secreção de renina é controlada pela pressão arterial renal, concentrações de sódio no fluido tubular e atividade do sistema nervoso simpático. Fatores que diminuem o fluxo sanguíneo renal, como hemorragia, estenose da artéria renal, desidratação e restrição salina, aumentam a concentração plasmática de renina; por sua vez, fatores que aumentam a pressão arterial, como aumento da ingestão de sal, vasoconstrição periférica e posição supina, diminuem a concentração plasmática da renina. A redução do volume circulante (que ocorre, por exemplo, com a hemorragia) estimula os barorreceptores renais, presentes na arteríola aferente, que resulta no aumento da secreção de renina. Ainda, com a redução do volume circulante, os barorreceptores de alta pressão localizados no seio carotídeo e arco aórtico sinalizam para o sistema nervoso (núcleo do trato solitário e bulbo), resultando no aumento da atividade simpática junto ao aparelho justaglomerular, que por sua vez aumenta a secreção de renina. A carga de sódio liberada para a mácula densa também regula a secreção de renina, de tal maneira que a redução de sódio aumenta a ativação do sistema reninaangiotensina, aumentando, assim, a liberação de aldosterona, que por sua vez atua aumentando a reabsorção de sódio pelo rim. Por outro lado, a autorregulação da secreção de renina ocorre, pois a secreção aumentada de aldosterona resulta em maior reabsorção de sódio pelo rim e aumento da pressão sanguínea, que inibem a secreção de renina.
Figura 69.5 ■ Regulação da síntese de aldosterona. Ang, angiotensina; ECA, enzima conversora da angiotensina.
A angiotensina I é convertida a angiotensina II (ANG II) pela enzima conversora da angiotensina (ECA), largamente distribuída no pulmão e também na superfície de células endoteliais, epiteliais e neuronais dos rins, cérebro, glândulas suprarrenais e ovários. A ANG II age por meio de receptores de membrana específicos ligados à proteína G. A ANG II se liga a pelo menos 2 subtipos de receptores diferentes, designados AT1 e AT2. Virtualmente, todas as ações biológicas conhecidas da ANG II, incluindo vasoconstrição, liberação de aldosterona e crescimento celular, são mediadas pelos receptores AT1. A ANG II estimula a secreção de aldosterona, aparentemente, de 3 maneiras: indução de enzimas necessárias para a síntese de aldosterona (CYP11A1, CYP11B2), estimulação à proliferação de células adrenocorticais e indução de receptores AT1. Os mecanismos pelos quais a ANG II estimula a síntese de aldosterona não estão totalmente estabelecidos, mas estudos realizados nos últimos 20 anos têm contribuído para avanços no conhecimento destes mecanismos. Sabese que a ligação da ANG II com o receptor AT1 estimula a produção intracelular de 1,4,5trifosfato de inositol (IP3) e 1,2 diacilglicerol (DAG), com ativação subsequente da proteinoquinase C (PKC). O IP3 se liga ao seu receptor (IP3R) no retículo endoplasmático, liberando cálcio e elevando as concentrações de cálcio citosólico. O aumento da concentração de cálcio intracelular ativa quinases I/II dependentes de cálcio/calmodulina (CaMK). Ambas as vias podem modular a fosforilação e a expressão de StAR, mas também ativar fatores de transcrição, como o fator ativador de transcrição 1 (ATF1) e a proteína ligadora ao elemento responsivo ao AMP cíclico (CREB). A via DAG/PKC ativa igualmente a proteinoquinase D (PKD), que também pode fosforilar e ativar CREB. O aumento da atividade de fatores de transcrição (CREB, ATF1, NURR1, ATF1, ATF2) estimula a transcrição de CYP11B2 e a produção da aldosterona. Além da estimulação da síntese e secreção de aldosterona pelo córtex suprarrenal, a ANG II tem ação de vasoconstrição arteriolar – o que eleva a pressão arterial, aumenta a reabsorção de sódio pelo túbulo proximal e, no sistema nervoso central, atua estimulando a sede e a secreção de hormônio antidiurético. A concentração extracelular de potássio é outro fator que participa no controle da secreção de aldosterona. O potássio aumenta a secreção de aldosterona diretamente na zona glomerulosa do córtex suprarrenal, por mecanismos não totalmente estabelecidos. Em condições fisiológicas, sem estimulação, diferentes canais de potássio e a Na+/K+ATPase mantêm a membrana plasmática das células da zona glomerulosa em um estado hiperpolarizado. As concentrações elevadas de potássio levam ao fechamento desses canais de potássio, induzindo a despolarização da membrana plasmática, o que ativa canais de cálcio dependentes de voltagem (tipo T e tipo L), permitindo o influxo de cálcio extracelular. Esse aumento do cálcio no citosol ativa quinases dependentes de cálcio e calmodulina que fosforilam fatores que estimulam a transcrição do gene CYP11B2, aumentando a conversão da corticosterona em aldosterona nas células suprarrenais da zona glomerulosa. Portanto, a ANG II e as concentrações elevadas de potássio regulam a transcrição do gene CYP11B2 por meio de um mecanismo comum dependente de cálcio. A confirmação do papel desempenhado pelo potencial de membrana e da concentração de cálcio intracelular das células da zona glomerulosa sobre a produção de aldosterona foi estabelecida recentemente com a descrição dos mecanismos patológicos dos adenomas suprarrenais produtores de aldosterona (APA). Os APA ocorrem, entre outros defeitos genéticos, devido a mutações em canais de potássio ou na Na+/K+ATPase, ocasionando uma despolarização constante da membrana plasmática, ou em canais de cálcio dependentes de voltagem, ocasionando a abertura desses canais mesmo com variações pequenas de polaridade da membrana. Em ambos os casos, a produção de aldosterona ocorre devido a um aumento das concentrações intracelulares de cálcio, com ativação de vias de sinalização do cálcio/calmodulina e consequente estimulação da transcrição de CYP11B2. O efeito do ACTH sobre a secreção de aldosterona é discreto, resultando no aumento de 10 a 20% de seus valores basais. O estímulo agudo com ACTH eleva a secreção de aldosterona pelo aumento de precursores para a sua síntese, e não por efeito direto, pois não tem efeito sobre a atividade ou na transcrição do gene CYP11B2. No entanto, a estimulação crônica com ACTH diminui a secreção de aldosterona, por mecanismos não conhecidos. Os possíveis mecanismos envolvidos neste efeito do ACTH a longo prazo incluem as ações mineralocorticoides do cortisol e da corticosterona e a redução da expressão do receptor de ANG II nas células da zona glomerulosa.
Secreção de andrógenos suprarrenais O ACTH estimula a secreção de andrógenos suprarrenais como a DHEA e a androstenediona, que apresentam ritmo circadiano semelhante ao do cortisol. Entretanto, evidências (como a não supressão da DHEA após uso crônico de corticosteroides, a elevação androgênica entre 6 e 8 anos de idade sem alteração das concentrações de cortisol e diminuição da secreção de DHEA na velhice com manutenção da concentração do cortisol) sugerem a existência de outro fator ou
fatores estimuladores da secreção de andrógenos suprarrenais. Derivados da POMC, prolactina e fator de crescimento insulinasímile tipo I (IGFI) foram sugeridos como possíveis hormônios estimuladores dos andrógenos suprarrenais, porém sem evidência comprovada. A secreção de andrógenos é variável nas diferentes fases da vida do indivíduo. Na vida intraútero, a glândula suprarrenal fetal produz grandes quantidades de SDHEA, que são convertidas em estrógenos na placenta. Após o nascimento, a produção de SDHEA é bem reduzida, mantendose baixa durante os primeiros anos de vida. A secreção de andrógenos suprarrenais apresenta um aumento que, em humanos, ocorre entre 6 e 8 anos de idade. Este é um evento bioquímico denominado adrenarca. A produção de andrógenos pelas suprarrenais continua a aumentar durante a segunda década de vida e se mantém elevada na vida adulta, decaindo no idoso. Como mencionado anteriormente, no homem, a contribuição das suprarrenais para as concentrações circulantes de andrógenos é muito pequena em condições fisiológicas, pois a maior fonte de andrógenos decorre de sua secreção pelos testículos. Por outro lado, na mulher adulta antes da menopausa a suprarrenal contribui com 50% dos andrógenos circulantes. Porém, a produção de andrógenos suprarrenais pode tornarse excessiva em algumas situações, como na hiperplasia suprarrenal congênita, em que um defeito genético na produção de cortisol resulta em um acúmulo de precursores e produção aumentada de andrógenos pela suprarrenal, levando a um quadro de virilização, em ambos os sexos.
METABOLISMO DOS ESTEROIDES SUPRARRENAIS A maior parte do cortisol (mais de 80%) circula ligada a uma globulina transportadora de cortisol (CBG), proteína sintetizada no fígado e que apresenta alta afinidade pelo cortisol. Cerca de 10 a 15% do cortisol está ligado à albumina, e perto de 5% circulam em sua forma livre, sendo esta a responsável pelas ações fisiológicas deste hormônio. A bioatividade dos glicocorticoides é regulada pela ação das isoformas tipo 1 e 2 da 11βhidroxiesteroide desidrogenase (11βHSD). A metabolização do cortisol envolve a sua conversão em cortisona, um metabólito inativo, e esta reação é mediada pela 11βHSD tipo 2 (Figura 69.6), cuja expressão é observada no rim, cólon e glândula salivar. No rim, a coexpressão desta enzima com o receptor de mineralocorticoide é essencial, pois evita a ligação do cortisol a este receptor, permitindo, assim, a ligação da aldosterona a seu receptor. A importância da expressão da 11βHSD tipo 2 é evidenciada pela deficiência congênita ou adquirida desta enzima que produz um excesso aparente de mineralocorticoide com hipopotassemia e hipertensão arterial, com atividade da renina plasmática e concentrações de aldosterona reduzidas, devido à ativação do receptor de mineralocorticoide pelo cortisol no rim. A 11βHSD tipo 1 é expressa no fígado, testículo, pulmão e tecido adiposo. Esta é uma enzima bidirecional que + catalisa a oxidação do cortisol, utilizando NADP como cofator, bem como a redução da cortisona a cortisol, utilizando NADPH como cofator. Nas condições in vivo, predomina a atividade de redução da 11βHSD tipo 1, que é determinada pela maior disponibilidade de NADPH nas células. Portanto, uma atividade normal da 11βHSD tipo 1 – regulando as concentrações tissulares de glicocorticoides – é necessária para manter as condições fisiológicas; além disso, a atividade da 11βHSD tipo 1 pode ser considerada um fator modulador da sensibilidade aos glicocorticoides, de forma tecido específico. Mais recentemente, tem sido sugerido que a expressão de 11βHSD tipo 1 e as concentrações intrateciduais de glicocorticoides – por terem algumas ações opostas às da insulina no metabolismo de carboidratos, lipídios e proteínas – podem contribuir para a patogenia da resistência insulínica, da obesidade e da síndrome metabólica.
Figura 69.6 ■ Conversão do cortisol em seu metabólito inativo, cortisona, pela enzima 11βhidroxiesteroide desidrogenase (11β HSD) tipo 2. A conversão da cortisona em cortisol é realizada pela 11βHSD tipo 1.
O cortisol e a cortisona são reduzidos no fígado em seus derivados tetrahidro e, então, conjugados a glicuronídios, que são excretados na urina. A excreção urinária de cortisol pode ocorrer também em sua forma não metabolizada,
constituindo o cortisol livre urinário, que pode ser utilizado, também, como indicador da secreção diária de cortisol pela suprarrenal. A aldosterona apresenta meiavida mais curta (15 a 20 min) que a do cortisol (70 a 90 min), pois circula livre no sangue. Sua metabolização ocorre principalmente no fígado, formando o derivado tetrahidroaldosterona que é excretado na urina como um glicuronídio. Cerca de 10% da aldosterona produzida diariamente é excretada conjugada a glicuronídio, porém em sua forma não metabolizada. A metabolização dos andrógenos ocorre, também, no fígado com a formação de androsterona e etiocolanolona, porém a excreção de SDHEA é realizada em sua forma intacta. Os metabólitos androgênicos e o SDHEA excretados na urina constituem os 17cetoesteroides urinários. Deve ser ressaltado que a excreção urinária de 17cetoesteroides reflete a produção de andrógenos não só pela suprarrenal, mas também pela gônada.
AÇÕES DOS GLICOCORTICOIDES ▸ Metabolismo de carboidratos Os glicocorticoides regulam o metabolismo dos carboidratos agindo como contrarreguladores da insulina, protegendo o organismo contra a hipoglicemia. Desta maneira, os glicocorticoides estimulam a gliconeogênese hepática e aumentam a mobilização de substratos neoglicogênicos de tecidos periféricos e a glicogenólise. A neoglicogênese hepática é estimulada pelos glicocorticoides pelo aumento de atividade de enzimaschave como fosfoenolpiruvato carboxiquinase (PEPCK), que catalisa a conversão de oxaloacetato em fosfoenolpiruvato, e glicose6fosfatase, que converte a glicose6fosfato em glicose. O aumento da neoglicogênese induzido pelos glicocorticoides é decorrente do aumento de substratos para o fígado, como aminoácidos derivados do tecido muscular e glicerol do tecido adiposo. Os glicocorticoides diminuem, ainda, a utilização periférica de glicose, atuando sobre o receptor da insulina e reduzindo os transportadores de glicose. A síntese de glicogênio no fígado é estimulada pelos glicocorticoides como fonte de estoque de glicose que pode ser rapidamente liberada quando necessário, pela glicogenólise induzida pelo glucagon e epinefrina.
▸ Metabolismo lipídico Os glicocorticoides estimulam a diferenciação dos adipócitos, promovendo adipogênese por meio de ativação da transcrição de diversos genes, incluindo a lipase lipoproteica, a glicerol3fosfato desidrogenase e a leptina, contribuindo para a obesidade visceral. Em situações de excesso de glicocorticoides, a deposição preferencial de lipídios na cavidade intraabdominal parece ser decorrente de maior número de receptores de glicocorticoide nesta região, quando comparado a tecido adiposo de outras áreas. Há também evidências do importante papel do metabolismo local do cortisol no acúmulo da gordura visceral. Os principais reguladores das concentrações intracelulares dos glicocorticoides são, em parte, as 2 isoformas da 11βHSD. A isoforma 11βHSD1 é estimulada por glicocorticoide e insulina e, no tecido adiposo, esta atividade é maior no adipócito do omento que do subcutâneo. Outra evidência do importante papel do metabolismo local do cortisol na gordura visceral foi demonstrada pelo modelo experimental de camundongo com hiperexpressão de 11β HSD1, que apresenta obesidade visceral e aumento das concentrações de corticosterona no tecido adiposo mesenquimal. ▸ Pele. Os glicocorticoides inibem a divisão dos queratinócitos e dos fibroblastos e diminuem a matriz extracelular da pele, reduzindo a síntese de ácido hialurônico e de glicosaminoglicanas. Adicionalmente, o excesso de glicocorticoides inibe a divisão das células da epiderme, reduzindo a síntese e a produção de colágeno. ▸ Tecido muscular. Os glicocorticoides causam alterações catabólicas no tecido muscular, com inibição de síntese proteica e de captação de aminoácidos pelo músculo, levando à atrofia muscular. Além disso, os glicocorticoides induzem atrofia muscular, aumentando os mecanismos de proteólise muscular, mediada pelo sistema ubiquitinaproteossomo, estimulando a expressão de atrogenes (genes envolvidos com atrofia), como atrogina1 e MuRF1 (muscle ring finger 1). Sabese também que a redução da produção de IGFI (insulinlike growth factor I) e o aumento da produção de miostatina (fator catabólico) também podem contribuir para a atrofia muscular induzida pelos glicocorticoides. ▸ Imunomodulação. Os efeitos antiinflamatórios e de imunossupressão exercidos pelos glicocorticoides ocorrem por meio de diversos sítios. No sangue periférico, os glicocorticoides reduzem a contagem de eosinófilos e de linfócitos, redistribuindo estes últimos no compartimento intravascular do baço, dos linfonodos e da medula óssea. Por outro lado, aumentam o número de neutrófilos. Os glicocorticoides atuam por meio de receptor específico presente no citoplasma, que é translocado para o núcleo após a sua ligação com o ligante. No núcleo, o receptor de glicocorticoide pode interagir com
genes que modulam a resposta imune. Estes genes, geralmente, não apresentam em seus promotores os elementos responsivos aos glicocorticoides; portanto, para que os efeitos do glicocorticoide ocorram, outros fatores nucleares estariam envolvidos e interfeririam negativamente com a transativação gênica mediada pelo receptor do glicocorticoide. Estes fatores são denominados inibidores negativos dominantes e, provavelmente, representam os mais importantes reguladores endógenos da sensibilidade aos glicocorticoides. A inibição da produção de citocinas pelos linfócitos é mediada por interação do receptor do glicocorticoide com outros fatores de transcrição, como o NFκB e a proteína ativadora1 (AP1). A AP1 é o mais estudado fator de transcrição que interfere negativamente com o receptor do glicocorticoide. É composta por homo ou heterodímeros dos produtos dos protooncogenes jun e fos; sua atividade é modulada por fatores de crescimento e citocinas ativadoras da proteinoquinase C e por outras tirosinoquinases. A subunidade p65 do fator de transcrição NFκB ativa muitos genes do sistema imune e apresenta o mesmo padrão de transrepressão em relação ao receptor de glicocorticoide. ▸ Rins. Os glicocorticoides estimulam a síntese de angiotensinogênio, aumentam a taxa de filtração glomerular, o transporte de sódio no túbulo proximal e o depuramento de água livre. Ainda nos rins, dependendo da atividade da 11β HSD2, o cortisol, por meio do receptor para mineralocorticoides, pode agir nos túbulos distais, causando retenção de sódio e excreção de potássio. ▸ Cardiovasculares. Em condições fisiológicas, a ação cardiovascular mais importante dos glicocorticoides é o seu efeito permissivo à reatividade vascular de fatores vasoativos, como a ANG II e a epinefrina, que contribuem para a manutenção da pressão sanguínea. Os mecanismos envolvidos neste papel permissivo dos glicocorticoides não são bem conhecidos, mas parecem envolver um aumento na expressão de receptores adrenérgicos em células da musculatura lisa vascular. Adicionalmente, os glicocorticoides aumentam a captação de cálcio por estas células, contribuindo, também, desta maneira, para maior contratilidade vascular. A exposição crônica a concentrações elevadas de glicocorticoides resulta em hipertensão arterial, provavelmente por diferentes mecanismos. O excesso de glicocorticoide pode não ser inativado pela 11βHSD2 nos túbulos renais, resultando em maior efeito mineralocorticoide. As altas concentrações de glicocorticoides podem levar a uma maior reatividade vascular aos fatores vasoativos endógenos. Além disso, os glicocorticoides inibem a atividade da sintase do óxido nítrico induzida, diminuindo a síntese de óxido nítrico, potente fator vasodilatador. ▸ Osso. Os glicocorticoides têm efeitos marcantes sobre o esqueleto. A exposição prolongada ou crônica a glicocorticoides resulta em osteopenia ou osteoporose. Os glicocorticoides apresentam efeitos diretos sobre os osteoblastos, evidenciados pela inibição de várias funções, como diferenciação e multiplicação celular, atividade da fosfatase alcalina e produção de colágeno tipo I e de osteocalcina. Além disso, os glicocorticoides inibem a produção do fator de crescimento insulinasímile 1 (IGFI) e IGFII pelos osteoblastos. Os glicocorticoides diminuem a absorção intestinal de cálcio, inibindo as ações da vitamina D no enterócito e a hidroxilação hepática da vitamina D. A secreção compensatória de paratormônio pode resultar no aumento da atividade osteoclástica. A ressorção óssea está aumentada no hipercortisolismo, porém os mecanismos envolvidos neste efeito não estão completamente estabelecidos. A ativação dos osteoclastos é modulada por meio de fatores produzidos pelos osteoblastos, como a osteoprotegerina e o ligante do receptor ativador de NFκB (RANKL). A ligação de RANKL a receptores específicos presentes nos osteoclastos, denominados RANK, estimula a diferenciação e ativação destas células. Os glicocorticoides aumentam a expressão do mRNA de RANKL e, por outro lado, diminuem a expressão de osteoprotegerina, aumentando a ativação de osteoclastos e favorecendo a ressorção óssea. ▸ Sistema nervoso central. O sistema nervoso central é local de ação de glicocorticoides, apresentando tanto receptores para glico como para mineralocorticoides. Os glicocorticoides influenciam o comportamento e o humor do indivíduo. Os receptores de glicocorticoides (GR) estão presentes em todo encéfalo, mas são mais abundantes em neurônios hipotalâmicos que expressam CRH e nos corticotrofos hipofisários. A expressão do receptor para mineralocorticoide (MR) pode ser observada em estruturas cerebrais relacionadas com o controle do apetite ao sal e da atividade cardiovascular, como órgão subfornicial, OVLT (organum vasculosum of lamina terminalis), núcleo préóptico mediano, núcleo supraóptico e divisão magnocelular do núcleo paraventricular. Porém, a maior expressão de MR no sistema nervoso central é observada no hipocampo (onde há coexpressão com o GR), estrutura relacionada com o aprendizado e o processo de memória. Síndrome de Cushing
O quadro clínico decorrente do excesso de glicocorticoides, denominado síndrome de Cushing, pode ser decorrente da ingestão de glicocorticoides ou de causas endógenas, como tumor hipofisário produtor de ACTH ou tumor suprarrenal produtor de cortisol. As principais manifestações de hipercortisolismo incluem a presença de face em lua cheia, obesidade de distribuição predominantemente abdominal, preenchimento de fossas supraclaviculares, fraqueza muscular, osteoporose, pele fina com presença de estrias largas violáceas e equimoses (causadas por sangramento na pele devido à fragilidade capilar). A síndrome de Cushing caracterizase pela perda do ritmo circadiano do eixo hipotálamohipófisesuprarrenal (HHA), isto é, os valores de cortisol são elevados mesmo no horário noturno (às 23 h), em que no indivíduo normal são baixos. Outro mecanismo fisiológico do eixo HHA que está alterado na síndrome de Cushing é o mecanismo de retroalimentação negativa exercido pelos glicocorticoides. Isto é, no indivíduo com síndrome de Cushing não há redução da produção endógena de cortisol com a dose de 1 mg de dexametasona, glicocorticoide sintético que habitualmente suprime as concentrações de cortisol no indivíduo normal.
▸ Mecanismo de ação dos glicocorticoides Os glicocorticoides exercem seus efeitos pela ligação a receptores citosólicos específicos pertencentes a uma superfamília de receptores nucleares, filogeneticamente bem conservada. Esta superfamília inclui não somente o receptor do glicocorticoide (GR), mas também o receptor dos mineralocorticoides, dos andrógenos, do hormônio tireoidiano, da vitamina D, do ácido retinoico, além de outros receptores órfãos, cujos ligantes ainda não foram identificados. Os receptores da progesterona, dos mineralocorticoides, e dos glicocorticoides formam a subfamília dos receptores esteroidais. Todos os membros desta família, incluindo o GR, apresentam 5 a 6 regiões (AF) com 3 domínios funcionais principais em sua estrutura (Figura 69.7). A porção aminoterminal (região A/B) contém o domínio de transativação (τ1) e apresenta sequências responsáveis pela ativação dos genesalvo, além de, provavelmente, interagir com os componentes básicos da transcrição gênica. A região central da molécula (região C) apresenta 2 sequências altamente conservadas, chamadas de dedos de zinco, que constituem o domínio de ligação ao ácido desoxirribonucleico (DNA) e participam da dimerização, da translocação nuclear e da transativação. O domínio de ligação ao ligante (região E), localizado na região carboxiterminal (Cterminal) da molécula, é responsável pela ligação do hormônio específico ao seu respectivo receptor. Contém, ainda, importantes sequências que são responsáveis pela ligação do receptor às proteínas de choque térmico, para estabilização do receptor na ausência do hormônio, para a translocação nuclear, para a dimerização e para a transativação. Em 1985, dois diferentes DNA complementares para o GR humano foram clonados: o GRhα e GRhβ, que codificam as isoformas α e β do receptor e são produzidos por um splicing alternativo de um único gene. A isoforma β difere da isoforma α na região Cterminal da molécula, em 15 aminoácidos. Entretanto, esta diferença confere à isoforma GRβ a incapacidade de se ligar ao glicocorticoide e de ser ativa na transcrição gênica; esta isoforma age como um inibidor dominante negativo da isoforma α. A existência de várias isoformas do GR torna mais complexo o entendimento dos mecanismos da transcrição dos genes mediada pelo GR. O GR em sua forma não ativada é parte de um complexo multiproteico (Figura 69.8) que consiste em uma molécula do receptor, duas moléculas da proteína de choque térmico 90 (hsp 90), uma molécula da hsp 70 e uma da hsp 56. A principal função do complexo GR/hsp é manter o receptor no citoplasma das células, estabilizandoo em sua forma inativa, isto é, livre da ligação ao hormônio. A ligação do glicocorticoide ao GR induz alterações na conformação da molécula do receptor, sendo a mais importante a dissociação do receptor do complexo das hsp, tornandoo incapaz de reassociação. Após ligação com o agonista, ocorre hiperfosforilação do receptor, que facilita a translocação do complexo hormônioreceptor do citoplasma para o núcleo. Dentro do núcleo, o receptor ativado pelo hormônio pode agir por três diferentes mecanismos: ligação direta do GR em sua forma dimerizada à sequência específica presente nos genesalvo, ligação do GR ancorada a outros fatores de transcrição e ligação do GR ao DNA composta com outras sequências. O primeiro mecanismo é a forma clássica de ação e caracterizase pela interação direta do GR com sequências específicas de DNA (ver Figura 69.8), denominadas elemento responsivo aos glicocorticoides (GRE). Estes dímeros ligados diretamente aos GRE, pelo contato físico com os domínios de transativação, estimulam a transcrição dos genes responsivos aos glicocorticoides. A ligação dos receptores ao DNA facilita o recrutamento de fatores coativadores da maquinaria de transcrição gênica ou, ainda, remodelam a cromatina, possibilitando aumento da transcrição gênica.
Além da propriedade de ativar a transcrição gênica, o GR pode também reprimila. Esta repressão poderia ocorrer pela ligação do GR aos elementos responsivos negativos aos glicocorticoides (nGRE), localizados na região promotora de genes específicos, onde causariam inibição da transcrição gênica. Um exemplo seria o promotor localizado no gene da pró opiomelanocortina (POMC) que, por mecanismos ainda não bem definidos, reprimiria a transcrição do gene da POMC.
Figura 69.7 ■ Representação esquemática da estrutura dos receptores de glicocorticoide (GR) e mineralocorticoide (MR) humanos, indicando a porcentagem de homologia entre a sequência de aminoácidos em cada domínio. A região aminoterminal A/B corresponde à função ativadora; domínio C ao domínio de ligação ao DNA (DBD); o domínio D corresponde à região que liga o DBD com a região carboxiterminal E, denominada domínio de ligação ao ligante (LBD).
Figura 69.8 ■ Mecanismo de ação dos glicocorticoides por meio de seu receptor (GR). hsp90, proteína de choque térmico 90; GRE, elemento responsivo aos glicocorticoides; nGRE, elemento responsivo negativo aos glicocorticoides; NFkB, fator de transcrição nuclear κB; STAT, sinal de tradução e ativação da transcrição.
A ligação ancorada do GR tem sido associada à repressão ou ativação transcricional exercida pelos glicocorticoides, por meio de sua interação com outros fatores de transcrição como NFκB e STAT3. Neste caso, não há ligação direta do GR ao DNA. Por outro lado, sítios de ligação do GR no genoma podem estar adjacentes a sequências que reconhecem outros fatores de transcrição, por exemplo, STAT5 e AP1, propiciando a ligação do GR ao DNA composta com os mesmos, que resulta em efeitos sinérgicos ou antagônicos. Os efeitos antiinflamatórios e imunossupressores dos glicocorticoides envolvem a regulação negativa da transcrição gênica. A proteína ativadora1 (AP1) – composta por homo ou heterodímeros dos produtos dos protooncogenes jun e fos, cuja atividade é modulada por fatores de crescimento e citocinas ativadoras da proteinoquinase C e por outras tirosinoquinases – é o fator de transcrição mais extensivamente estudado que interfere negativamente com a transativação pelo GR. Um outro exemplo é a subunidade p65 do fator de transcrição nuclear κB (NFκB), o qual é um ativador de muitos genes do sistema imune e apresenta o mesmo padrão de transrepressão em relação ao GR. Nas últimas décadas, tem sido demonstrado que os glicocorticoides também agem por meio de mecanismos não genômicos, iniciados na membrana celular, por meio de receptor GR de membrana (GRm) ou ainda pela ligação a outras proteínas presentes na membrana. Estas ações seriam independentes de transcrição/tradução gênica e teriam um início rápido, em minutos ou mesmo segundos após a estimulação, em oposição às ações genômicas que se iniciam após horas. O componente rápido de contrarregulação do eixo hipotálamohipófisesuprarrenal exercido pelos glicocorticoides constitui um exemplo de ação não genômica desses hormônios. As ações não genômicas dos glicocorticoides envolvem múltiplas vias intracelulares de tradução de sinal, como a interação com a via da MAPK e dos receptores endocanabinoides CB1.
AÇÕES DA ALDOSTERONA Os mineralocorticoides estão implicados na regulação de sódio e água por meio da regulação do transporte de sódio em tecidos epiteliais. Apresentam também efeitos importantes sobre o sistema cardiovascular e sistema nervoso central. A aldosterona, principal mineralocorticoide humano, exerce um papel crucial na regulação da pressão arterial e na homeostase eletrolítica. O efeito principal da aldosterona é promover, em tecidos epiteliais, a reabsorção de sódio e a secreção de potássio e hidrogênio. Nas célulasalvo da aldosterona, tais como as células do néfron distal sensível à aldosterona (ASDN), que inclui o túbulo contorcido distal (DCT), túbulo de conexão (CNT) e o ducto coletor (CD), a ligação da aldosterona ao receptor mineralocorticoide (MR) é seguida por dimerização do receptor, translocação nuclear e ligação a regiões reguladoras de genes sensíveis aos hormônios esteroides (GRE, elementos responsivos aos glicocorticoides). Os dímeros de MR recrutam correguladores transcripcionais para ativar a maquinaria transcricional (GTP, fatores de transcrição gerais), estimulando a expressão de genesalvo da aldosterona que codificam proteínas envolvidas principalmente no transporte de sódio. Estas proteínas incluem as subunidades do canal de sódio epitelial sensível à amilorida ENaC e a Na+/K+ATPase, bem como várias proteínas reguladoras, entre elas a sgk1 (quinase sérica induzida pelo glicocorticoide), GILZ (glucocorticoid induced leucine zipper), NDRG2 (Nmyc downregulated 2) e CHIF (fator indutor de canal). A aldosterona confere a principal regulação hormonal do equilíbrio de sódio, potássio e hidrogênio no néfron distal. Enquanto dois terços do sódio filtrado são reabsorvidos no túbulo proximal e mais de 20 a 25% na alça de Henle, o ASDN desempenha um papel importante no ajuste fino da excreção renal de Na+, reabsorvendo cerca de 5 a 10% da carga de Na+ filtrada. O transporte celular é facilitado pelo potencial eletroquímico na membrana apical e mecanismo de transporte ativo através da membrana basolateral. O transporte de sódio pela membrana apical de tecidos epiteliais é mediado pelo canal de sódio (ENaC) e representa o passo limitante no transporte iônico regulado pela aldosterona. O ENaC é uma proteína heterotrimérica constituída por 3 subunidades ( α, β e γ). A meiavida do ENaC é curta e é regulada pela ligação dos resíduos de prolina e tirosina no segmento carboxiterminal das subunidades α, β e γ à Nedd42, ubiquitinaligase que direciona a degradação proteossomal do ENaC. A aldosterona aumenta a expressão de sgk1, que fosforila resíduos de serina e treonina (serina 221, treonina 246, serina 327) da molécula de Nedd42, bloqueando a sua ligação ao ENaC, reduzindo, dessa maneira, a degradação deste último. Em paralelo, a aldosterona estimula a regulação transcricional da enzima de deubiquitinação Usp245, que leva a um aumento da expressão do ENaC na membrana apical e também de sua ativação. Adicionalmente, a aldosterona aumenta a expressão de GILZ, que age em paralelo ao sgk1, aumentando a localização do ENaC na membrana apical pela inibição de ERK. Portanto, a aldosterona aumenta a expressão e estabilidade do ENaC na membrana apical, aumentando a reabsorção de sódio. O transporte ativo pela membrana basolateral é mediado pela bomba de sódio e potássio dependente de ATP (Na+/K+ATPase). Esta é muito sensível à concentração intracelular de sódio, sugerindo que o aumento de sua atividade é secundário ao influxo deste íon
pela membrana apical. A aldosterona aumenta a expressão do RNA mensageiro de subunidades da Na+/K+ATPase e também a sua atividade. Este efeito da aldosterona parece ser mediado pela proteína CHIF, que aumenta a afinidade da Na+/K+ATPase ao sódio. A aldosterona aumenta também a absorção de sódio em outros tecidos, como glândula salivar e cólon. O exercício físico em ambiente quente pode resultar em perda de grande quantidade de sódio pelo suor, com consequente redução do volume circulante e ativação do sistema reninaangiotensinaaldosterona. O aumento na secreção de aldosterona induz maior retenção de sódio com menor perda deste íon pelo suor (outros comentários a respeito do efeito da aldosterona no epitélio renal estão no Capítulo 53 e no Capítulo 55, Rim e Hormônios). A aldosterona eleva a excreção renal de potássio pelo seu efeito sobre a Na+/K+ATPase na membrana basolateral, que resulta na entrada deste íon para a célula. A reabsorção de sódio pela membrana apical cria um gradiente eletroquímico transmembranal que favorece a secreção tubular de potássio. O transporte de K+ pela membrana apical é mediado pelo canal de potássio apical ROMK. Alguns estudos sugerem que o sgk1 poderia mediar o efeito da aldosterona na secreção renal de K+ aumentando a exportação de canais ROMK do retículo endoplasmático e suprimindo o efeito inibitório da proteinoquinase WNK4 serina/treonina sobre esses canais. A aldosterona participa também do transporte acidobásico renal. O transporte acidobásico ocorre nas células intercaladas do CNT, CCD e CD. As células intercaladas do tipo A secretam prótons na urina através de uma bomba H+ATPase localizada na membrana apical, e liberam bicarbonato no sangue através do transportador cloro/bicarbonato (AE1) localizado na membrana basolateral. As células intercaladas do tipo B excretam bicarbonato na urina através do canal cloretobicarbonato localizado na membrana apical, enquanto os prótons são secretados no sangue por H+ATPases basolaterais. Acreditase que a secreção de prótons através de H+ ATPases seja indiretamente acoplada à reabsorção de Na+ pelo EnaC, esta mesma induzida pela aldosterona nas células principais, o que criaria um potencial luminal negativo, levando a um aumento da secreção de H+. Além disso, a aldosterona estimula diretamente a atividade H+ATPase por meio de uma cascata de sinalização composta por proteínas G, fosfolipase C, proteinoquinase C, ERK1/2 quinases, bem como de elementos da via de sinalização da proteinoquinase A. A aldosterona exerce efeitos importantes sobre o sistema cardiovascular. Ela induz hipertensão arterial, em parte pelos efeitos diretos sobre o sistema cardiovascular, modulando o tônus vascular, aumentando a sensibilidade às catecolaminas, ou ainda aumentando a expressão de receptores para a ANG II. Estudos transversais avaliaram marcadores de doença cardiovascular em pacientes com hiperaldosteronismo primário (HAP), apresentando uma produção excessiva de aldosterona, comparados com pacientes hipertensos essenciais apresentando valores de pressão arterial equivalentes. Pacientes com HAP apresentaram maiores dimensões do ventrículo esquerdo, aumento da íntima carotídea e da velocidade da onda de pulso femoral. Adicionalmente, pacientes com HAP apresentaram aumento de eventos cardiovasculares, incluindo arritmias, infartos do miocárdio, acidentes vasculares cerebrais e mortalidade quando comparados com indivíduos hipertensos sem HAP. A aldosterona e o MR vascular contribuem para a disfunção e a remodelagem vascular independentes da pressão arterial e da ingestão de sódio. Por outro lado, o MR endotelial pode ter efeitos antitrombóticos protetores. Os mecanismos envolvidos na resposta vascular à aldosterona incluem a expressão da molécula de adesão intercelular ICAM 1 e do receptor da proteína C endotelial, do fator de von Willebrand (vWF), da infiltração de macrófagos, da produção de óxido nítrico e da deposição de colágeno. A aldosterona estimula, também, a fibrose perivascular e cardíaca e a hipertrofia cardíaca, independentemente das alterações da pressão sanguínea. Estes dados são comprovados pela melhora da função cardíaca em indivíduos com insuficiência cardíaca e uso de antagonistas do MR, mesmo na ausência de alteração da pressão arterial. O mecanismo pelo qual a aldosterona induz fibrose parece envolver a síntese de colágeno e é dependente da ingestão aumentada de sódio, independente da alteração da pressão sanguínea. Estudos histológicos de tecido cardíaco com fibrose induzida pela aldosterona demonstram a presença de proliferação de cardiomiócitos e fibroblastos, além de inflamação perivascular. A aldosterona pode induzir a proliferação de fibroblastos cardíacos pela ativação da cascata de sinalização da MAPK e KiRas (Kirsten Ras). O efeito mitogênico da aldosterona parece ser sinérgico aos efeitos da ANG II sobre a proliferação de fibroblastos no coração. A maior parte dos efeitos dos corticosteroides no sistema nervoso central – como a manutenção da homeostase do indivíduo em condições basais, homeostase do sódio, regulação da pressão arterial, regulação do eixo hipotálamo hipófisesuprarrenal, aprendizado e memória – é mediada pelo MR. Ao contrário dos tecidos epiteliais, o sistema nervoso central, com exceção de algumas regiões, não apresenta atividade da11βHSD tipo 2; portanto, no cérebro, o MR pode se ligar tanto a mineralocorticoide como glicocorticoide. A ação seletiva dos mineralocorticoides no sistema nervoso pode ser observada em algumas regiões em que há expressão da atividade da 11βHSD tipo 2, como o hipotálamo anterior, hipófise anterior, hipocampo e tronco cerebral. A ação da aldosterona altera a função do hipocampo, contribuindo para adaptações
do comportamento em resposta ao estresse. A aldosterona pode induzir a elevação da pressão arterial por meio da ativação de MR em regiões circunventriculares no sistema nervoso central, que é acompanhada do aumento do tônus simpático para rim, coração e musculatura lisa vascular. A ativação do MR, na amígdala, aumenta o apetite ao sódio, fator importante para a hipertensão arterial induzida pelo mineralocorticoide. Estudos prévios mostraram que a aldosterona é capaz de regular a diferenciação de adipócitos e a termogênese, sugerindo um papel dos mineralocorticoides na regulação do balanço energético. A aldosterona pode induzir à resistência insulínica, por diminuir a secreção de insulina, a afinidade de insulina ao seu receptor e a expressão de transportadores de glicose. O excesso de aldosterona resulta em hipopotassemia (queda da concentração de potássio no plasma), a qual diminui a secreção de insulina pela célula beta pancreática. Estudos recentes demonstraram que a aldosterona estimula diretamente a expansão dos adipócitos, aumenta a expressão da leptina e altera a função dos adipócitos em sistemas de cultura celular. Adicionalmente, foi demonstrado que a aldosterona diminui a expressão de adiponectina em cultura de adipócitos e, em modelos animais, o uso de antagonistas do MR normaliza a adiponectina e diminui a infiltração de macrófagos e de citocinas inflamatórias no tecido adiposo. A diminuição da concentração de adiponectina circulante está associada a resistência à insulina, obesidade e disfunção endotelial. Hiperaldosteronismo primário O excesso de produção de aldosterona pela glândula suprarrenal, que pode ser devido a um tumor, é chamado de hiperaldosteronismo primário e pode corresponder a 5 a 10% das causas de hipertensão arterial. Além da hipertensão arterial, o hiperaldosteronismo caracterizase pela redução das concentrações séricas de potássio (hipopotassemia), que leva às manifestações de cãibras, fraqueza muscular, parestesias (formigamento) e, nos casos mais acentuados, paralisia intermitente. Ainda, em consequência da hipopotassemia, podem ocorrer arritmia cardíaca, intolerância à glicose e hipo osmolalidade urinária com poliúria (aumento do fluxo urinário). Como resultado da produção primária de aldosterona pela suprarrenal, há inibição do sistema reninaangiotensina; portanto, em indivíduos hipertensos, com ou sem hipopotassemia, a presença de elevação da relação aldosterona:atividade de renina plasmática é indicativa de hiperaldosteronismo primário.
▸ Mecanismo de ação da aldosterona A aldosterona exerce seus efeitos por meio de receptor específico, chamado de receptor de mineralocorticoide (MR), que tem 94% de homologia com o receptor de glicocorticoide em seu domínio de ligação ao DNA e 57% de homologia em seu domínio de ligação ao ligante (ver Figura 69.7). A maior expressão de MR é observada no néfron distal, cólon distal e hipocampo. A ativação do MR induz resposta semelhante à ativação do GR, isto é, uma resposta de ação genômica. O receptor de mineralocorticoide ligado à aldosterona atua, portanto, como um fator de transcrição, utilizando 2 mecanismos distintos. O mecanismo clássico envolve a ativação ou repressão da transcrição gênica por um efeito direto da interação do receptor de mineralocorticoide ativado com regiões específicas do DNA, denominadas elementos responsivos aos esteroides. Baseado nos efeitos dos glicocorticoides, a aldosterona poderia, também, interferir na transcrição gênica por um mecanismo de interação proteínaproteína entre o receptor ativado e outros fatores, na ausência do contato direto com o DNA. Esta interação pode evitar a ligação direta com os respectivos elementos responsivos, resultando em uma transrepressão mútua, como descrito nos mecanismos antiinflamatórios dos glicocorticoides. A interação do MR com NFκB foi descrita, porém não se conhece o seu papel fisiológico. Na Figura 69.8 está descrito o mecanismo de ação dos glicocorticoides por meio de seu receptor (GR). O MR não ligado encontrase no citoplasma formando um complexo com HSP90 e HSP70; após a ligação com a aldosterona, há a dissociação do receptor do complexo proteico, mudança de conformação, dimerização e translocação ao núcleo, onde se liga a segmentos palindrômicos de DNA na região promotora dos genesalvo, estimulando o recrutamento de cofatores e aumentando a transcrição gênica (Figura 69.9). Assim, a aldosterona aumenta a transcrição de genes que codificam proteínas estimuladoras da atividade dos canais de sódio, principalmente os genes da sgk, GILZ, NDRG2 e Ki Ras2A. Em uma fase mais tardia, o MR estimula a transcrição de genes que codificam subunidades do canal de sódio sensível à amilorida (ENaC) e de componentes da Na+/K+ATPase. A especificidade da ação da aldosterona pode ser regulada de várias maneiras, como expressão tecidoespecífica de seu receptor e afinidade de ligação ao receptor. O MR tem alta afinidade pela aldosterona, bem como pelo glicocorticoide e é distinto do receptor de glicocorticoide que tem maior afinidade pelos glicocorticoides. Na maioria das espécies, a
concentração plasmática de glicocorticoides é 100 a 1.000 vezes maior do que a da aldosterona; portanto, tornase necessária a presença de um mecanismo que permita a ação seletiva da aldosterona nos tecidosalvo. Para esta finalidade, existe colocalização do MR com a enzima 11βHSD tipo 2, que catalisa a conversão do cortisol em seu metabólito inativo, cortisona, que tem pouca afinidade por aquele receptor. Assim, nos tecidosalvo, a ação da 11βHSD tipo 2 impede a ocupação dos receptores de mineralocorticoides pelos glicocorticoides. Contudo, vários tecidos não epiteliais, como alguns grupamentos neuronais e cardiomiócitos, não expressam a atividade da enzima 11βHSD, indicando a existência de outros mecanismos que garantam a seletividade das ações da aldosterona. Estudos mais recentes têm demonstrado que a alteração da conformação do receptor de mineralocorticoide é variável de acordo com o ligante, de tal maneira que a ligação com a aldosterona induz uma conformação ativa do receptor mais estável do que a ligação com o glicocorticoide. Ainda, a ligação da aldosterona com o MR pode influenciar a interação com os fatores coativadores, após a ligação aos elementos responsivos presentes nos genesalvo. A aldosterona, em tecidos epiteliais e não epiteliais, também apresenta efeitos rápidos e que, portanto, não devem ser mediados pelo seu mecanismo clássico de ação genômica. Estes efeitos não genômicos são induzidos em menos de 5 min e não são bloqueados por antagonistas do MR (aldactone) ou por drogas que bloqueiam a transcrição gênica (actinomicina D). Em estudos in vitro, utilizando células mononucleares, cardiomiócitos e células da musculatura lisa de vasos sanguíneos, a aldosterona induz um aumento rápido de IP3 e cálcio citosólicos e ativação da Na+/K+ATPase. A administração intravenosa de aldosterona em humanos induz, em menos de 5 min, alterações cardiovasculares, como aumento na resistência vascular e redução do débito cardíaco. No Capítulo 55, são dadas várias informações a respeito das ações renais genômicas e não genômicas da aldosterona.
Figura 69.9 ■ Receptor do mineralocorticoide (MR). Aldo, aldosterona; AIP, proteínas induzidas pela aldosterona; ENaC, canal de sódio sensível à amilorida; sgk, serum and glucocorticoid induced kinase; Nedd42, ligante que direciona a degradação lisossomal do ENaC; CHIF: fator de indução de canal; Ras (Kirsten Ras), ativador da cascata de sinalização intracelular; PI3K, fosfoinositídio 3 quinase; ML, membrana luminal; MBL, membrana basolateral.
Alguns grupos defendem a hipótese de que o próprio MR seria responsável pelos efeitos rápidos da aldosterona por meio de vias de sinalização alternativas, independentes da transcrição. Foi sugerida a existência de uma intensa interação entre o MR e outros componentes de sinalização não nucleares, incluindo diferentes receptores de membrana, como receptores tirosinoquinases e o receptor de angiotensina 1. Um exemplo seria a ativação da proteinoquinase D (PKD) pela
aldosterona, via interação do MR com o receptor do fator de crescimento epidermal (EGFR), modulando o tráfego de subunidades do ENaC préexpressas e, desta forma, mediando a fase rápida de ação da aldosterona sobre o transporte de sódio. Estes efeitos não genômicos também poderiam afetar indiretamente a transcrição gênica. Outros estudos, entretanto, sugerem a existência de um receptor de membrana ainda não conhecido capaz de mediar os efeitos rápidos da aldosterona. Recentemente foi sugerido que o receptor de membrana GPER1 (G proteincoupled estrogen receptor 1) poderia ser este receptor e seria responsável por alguns dos efeitos rápidos da aldosterona em células endoteliais vasculares e no coração, respectivamente. Recentemente, vários estudos demonstraram que o MR, adicionalmente às ações sobre a regulação hidreletrolítica, é mediador dos efeitos de mineralocorticoides e glicocorticoides no tecido adiposo. Entre as ações do MR no tecido adiposo, um efeito próadipogênico poderia contribuir para a acumulação de lipídios em resposta a um balanço energético positivo. Embora a correlação entre glicocorticoides, MR e acúmulo de gordura visceral ainda não esteja formalmente estabelecida, um dos fatores associados ao acúmulo preferencial de gordura visceral e resistência insulínica seria um perfil neuroendócrino relacionado com uma resposta desfavorável ao estresse. Neste contexto, recentemente foi sugerido que variações genéticas no MR poderiam predispor a anormalidades metabólicas, ao modular esta resposta. De acordo com estes trabalhos, o MR exerceria um papel central na homeostase metabólica, envolvendo o controle hidreletrolítico e o balanço energético. Como resultado, em um ambiente caracterizado por alta ingestão calórica e dieta hipersódica, a ativação do MR poderia desencadear respostas deletérias em diferentes tecidos, ocasionando o desenvolvimento de hipertensão arterial, obesidade e lesão cardiovascular. Estudos em modelos animais transgênicos apresentando aumento da expressão do MR no tecido adiposo, similar ao que ocorre em humanos obesos, forneceram pistas sobre o papel específico do MR nesses tecidos. Esses estudos permitiram a identificação de um novo alvo do MR no tecido adiposo, a prostaglandina D2 sintase, proteína necessária às ações do MR no tecido adiposo em estudos ex vivo. De maneira interessante, a expressão do MR no tecido adiposo humano é correlacionada com a expressão da prostaglandina D2 sintase. Estudos clínicos realizados em pacientes adultos portadores de mutações ocasionando uma haploinsuficiência do MR, levando a uma resistência tecidual aos mineralocorticoides, permitiram a confirmação de ações do MR no SNC, no sistema cardiovascular e no metabolismo. Pacientes adultos com resistência aos mineralocorticoides apresentam concentrações elevadas de aldosterona e de renina plasmática ao longo da vida. Entretanto, as concentrações elevadas de aldosterona não ocasionam, nestes indivíduos, eventos cardiovasculares adversos. Isto sugere que as consequências cardiovasculares do excesso de aldosterona necessitam de uma sinalização completa do MR. Adicionalmente, pacientes portadores de haploinsuficiência do MR apresentam uma ativação do eixo hipotálamohipófisesuprarrenal, resultando em hipercortisolismo. Esta ativação do eixo hipotálamohipófisesuprarrenal resulta em efeitos adversos no metabolismo lipídico hepático e na distribuição do tecido adiposo, provavelmente mediados pelo GR, mas sem efeitos negativos sobre o remodelamento cardíaco e vascular, provavelmente mediado pelo MR. Embora a ativação do MR pela aldosterona no sistema cardiovascular e no tecido adiposo seja geralmente considerada deletéria, em algumas condições patológicas a ativação do MR pode resultar em efeitos benéficos. O aumento da produção cardíaca de aldosterona em tecido cardíaco murino é acompanhado por efeitos benéficos sobre a capilarização periférica em diabetes melito tipo I e tipo II. A aldosterona também melhora a neovascularização em um modelo murino de isquemia de membros. A expressão do MR em neutrófilos conduz a uma resposta antiinflamatória mediada pela inibição de NFκB. Finalmente, a ativação do MR parece ter propriedades anticoagulantes em camundongos. Esses dados sugerem que a ativação da via de sinalização do MR pode ser benéfica em algumas situações patológicas específicas.
AÇÕES DOS ANDRÓGENOS SUPRARRENAIS O papel fisiológico dos andrógenos suprarrenais não é bem conhecido. Os andrógenos suprarrenais, DHEA, SDHEA e androstenediona, são pouco potentes e não efetivos até serem convertidos em testosterona e 5αdihidrotestosterona em tecidos periféricos. A associação da pubarca (aparecimento de pelos pubianos, que pode ser acompanhado de pelos axilares) com o processo de adrenarca (elevação dos andrógenos suprarrenais) sugere um possível papel dos andrógenos suprarrenais como precursores dos andrógenos. Na mulher, somada a uma pequena produção ovariana, a conversão periférica dos andrógenos suprarrenais contribui significativamente para os níveis circulantes de testosterona; entretanto, no homem, esse hormônio é produzido predominantemente pelos testículos. Alguns estudos sugerem que o DHEA pode atuar como um neuroesteroide, sendo importante para o crescimento neuronal e diferenciação; adicionalmente, poderia ter ação antigabaérgica e atuar como um fator antidepressivo. Outros estudos sugerem que o
DHEA e o SDHEA possam ter um papel no controle da competência imunológica, na manutenção da integridade musculoesquelética e no processo aterosclerótico. A redução das concentrações plasmáticas de DHEA e SDHEA, a menos de 20% dos valores de pico do indivíduo adulto, observadas no idoso, parece contribuir para a redução da função imune, depressão, osteoporose e aterosclerose. Contudo, deve ser ressaltado que a associação dos efeitos desses andrógenos e alterações metabólicas, como resistência insulínica e risco cardiovascular, ainda não está completamente elucidada. As ações fisiológicas dos andrógenos podem ser mediadas de 3 maneiras: (1) a testosterona livre ligase ao receptor de andrógenos, determinando suas ações no cérebro, hipófise e rins; (2) a testosterona livre nas células dos tecidos andrógenoresponsivos, pela ação da 5αredutase, é transformada em dihidrotestosterona, que se liga ao receptor de andrógenos, induzindo suas ações na próstata, vesícula seminal, epidídimo e pele; (3) a testosterona, pela ação da aromatase, é transformada em estradiol, induzindo suas ações no hipotálamo, hipófise, osso e mamas. O receptor dos andrógenos é essencial para o desenvolvimento e diferenciação sexual no sexo masculino. No sexo masculino, a falta dos andrógenos ativos ou defeitos no receptor resultam em diferentes graus de ambiguidade genital; por outro lado, no sexo feminino, o excesso androgênico acarreta virilização da genitália externa. Durante a puberdade, há o desenvolvimento dos folículos pilosos terminais nas regiões da pele responsivas aos andrógenos, como axilas e região pubiana. Nos casos clínicos de hiperandrogenismo, outras áreas da pele, como tórax, aréola, dorso, segmento proximal dos membros superiores, linha alba e coxas, podem apresentar hiperatividade dos folículos pilosos, caracterizando hirsutismo. O hiperandrogenismo pode progredir para virilização, caracterizada por voz grave, distúrbios menstruais, infertilidade, clitoromegalia, hipotrofia mamária, alopecia (ausência de cabelos) e hipertrofia muscular. Na criança, acrescentamse pubarca prematura, aumento da velocidade de crescimento, alta estatura e avanço da idade óssea. As ações dos andrógenos são mediadas, também, por receptor nuclear. O receptor dos andrógenos se liga tanto à testosterona quanto à dihidrotestosterona e está presente, em altas concentrações, em órgãos acessórios da função reprodutiva masculina e algumas áreas do sistema nervoso central e, em pequenas concentrações, no músculo esquelético, no coração, na musculatura lisa de vasos sanguíneos e na placenta. Como o receptor de glico e mineralocorticoide, o receptor de andrógenos, após a formação do complexo hormônioreceptor, interage diretamente com genesalvo para regular a sua transcrição. Os andrógenos produzidos pela suprarrenal – DHEA, SDHEA e androstenediona – não têm afinidade pelo receptor de andrógenos, porém atuam em tecidos periféricos como precursores e podem ser convertidos em testosterona, um andrógeno mais potente. Hiperplasia suprarrenal congênita A hiperplasia suprarrenal congênita constitui um conjunto de doenças autossômicas recessivas decorrentes da deficiência de 1 das 5 enzimas envolvidas na síntese de cortisol pela glândula suprarrenal. A forma mais comum é a deficiência da 21hidroxilase, que corresponde a mais de 95% dos casos de hiperplasia suprarrenal congênita. Em sua forma mais grave, denominada forma clássica, em dois terços dos casos há deficiência da 21hidroxilase na zona fasciculada e glomerulosa, afetando tanto a síntese de cortisol como a de aldosterona. Esta forma é chamada de forma perdedora de sal, pois, devido à deficiência das ações da aldosterona, ocorrem desidratação, hiponatremia e hiperpotassemia (pouco sódio e muito potássio no plasma, respectivamente). No restante da forma clássica da doença, a deficiência de 21hidroxilase está presente apenas na zona fasciculada, afetando somente a síntese de cortisol, sendo denominada forma virilizante simples. A deficiência na síntese de cortisol resulta em maior secreção de ACTH pela hipófise anterior, causando hiperplasia da glândula suprarrenal e acúmulo do substrato da 21 hidroxilase, a 17hidroxiprogesterona, que será convertida a androstenediona e, posteriormente, a testosterona. A deficiência da 21hidroxilase é, portanto, uma doença virilizante, ou seja, com excesso de andrógenos desde o período intrauterino. O menino, ao nascimento, apresenta pênis aumentado e, quando não tratado, evolui com aparecimento de pelos pubianos precocemente, voz grave, acne, crescimento exagerado e idade óssea avançada. No feto feminino, a deficiência da 21hidroxilase acarreta diferentes graus de masculinização da genitália externa ao nascimento, com clitoromegalia e fusão da prega labial com a rafe mediana. Devese ressaltar que a menina com deficiência da 21hidroxilase apresenta genitália interna compatível com o sexo feminino, isto é, com presença de derivados müllerianos (útero, trompa e terço superior da vagina) e ausência de desenvolvimento de derivados do ducto de Wolff (epidídimo, ducto deferente e ducto ejaculatório). Para o desenvolvimento do ducto de Wolff, são necessárias altas concentrações locais de testosterona, que são atingidas somente pela produção deste andrógeno pelas células de Leydig do testículo.
MEDULA SUPRARRENAL A medula suprarrenal é constituída por células chamadas de cromafins, caracterizadas pela coloração pelo cromo devido à presença de catecolaminas produzidas nestas células. As células cromafins da medula suprarrenal são derivadas da crista neural e migram para o centro da glândula suprarrenal. Essas células sintetizam e secretam principalmente epinefrina, mas também norepinefrina, que atingem a circulação sistêmica e atuam em diferentes tecidosalvo. Elas atuam como equivalentes estruturais e funcionais de neurônios pósganglionares do sistema nervoso simpático. Os nervos esplâncnicos atuam como fibras préganglionares e liberam acetilcolina, constituindo o principal regulador da secreção da medula suprarrenal. A medula suprarrenal recebe irrigação sanguínea dos vasos do plexo subcapsular do córtex suprarrenal, que se ramificam em uma rede de capilares (ver Figura 69.1), expondo a medula suprarrenal a elevadas concentrações de glicocorticoides, necessárias para a ativação do processamento enzimático da norepinefrina em epinefrina.
▸ Biossíntese das catecolaminas A síntese de catecolaminas é realizada a partir do aminoácido tirosina, proveniente da dieta ou da hidroxilação da fenilalanina no fígado. O passo limitante na biossíntese de catecolaminas é a conversão da tirosina em di hidroxifenilalanina (LDOPA), reação catalisada pela ação da enzima citosólica tirosina hidroxilase (TH), na presença do cofator tetraidropterina (Figura 69.10). Portanto, a produção de catecolaminas é dependente da presença desta enzima, cuja expressão se restringe principalmente a neurônios dopaminérgicos e noradrenérgicos do sistema nervoso central e nervos simpáticos, células cromafins da medula suprarrenal e gânglios extramedulares. A DOPA sofre a ação de uma decarboxilase, formando a dopamina. A dopamina formada nos neurônios e nas células cromafins é translocada do citoplasma para vesículas de estoque. Em neurônios dopaminérgicos, a dopamina assim estocada será liberada como neurotransmissor nas fendas sinápticas. Alguns tecidos periféricos, como o tecido gastrintestinal e os rins, também podem produzir dopamina. A dopamina presente na urina é derivada principalmente da decarboxilação da DOPA plasmática, que ocorre no rim.
Figura 69.10 ■ Síntese das catecolaminas. DOPA, dihidroxifenilalanina; PNMT, feniletanolaminaNmetiltransferase.
A dopamina formada em neurônios noradrenérgicos e células cromafins é convertida em norepinefrina pela dopamina βhidroxilase. Esta enzima está presente apenas nos tecidos que sintetizam norepinefrina e epinefrina. Nas células cromafins da medula suprarrenal, a norepinefrina é metabolizada pela enzima citosólica feniletanolaminaN metiltransferase (PNMT), formando a epinefrina, que será estocada em grânulos de secreção. A atividade da PNMT é dependente de altas concentrações de glicocorticoides, fornecidas pela irrigação sanguínea da medula suprarrenal. O transporte das catecolaminas sintetizadas para as vesículas de estoque é mediado pelos transportadores de monoaminas. As células cromafins apresentam vesículas com características morfológicas e estoques distintos de norepinefrina ou epinefrina, que são liberadas diferencialmente em resposta a estímulos específicos. O processo de exocitose das vesículas contendo catecolaminas é estimulado pelo influxo de cálcio, que, no neurônio, é primariamente controlado pela despolarização de membrana e, na medula suprarrenal, pela liberação de acetilcolina dos nervos esplâncnicos. Vários peptídios, neurotransmissores e fatores humorais podem estimular, também, o processo de exocitose de catecolaminas diretamente ou modulando a despolarização dos neurônios catecolaminérgicos. A norepinefrina inibe a sua própria liberação, pela ocupação de receptores α 2 présinápticos. Adicionalmente, a liberação de catecolaminas implica também o aumento de sua síntese para reposição de seus estoques.
▸ Metabolismo das catecolaminas O metabolismo das catecolaminas é realizado por enzimas de localização intracelular; assim, a sua meiavida depende da captação que é facilitada por transportadores específicos presentes em neurônios e células não neuronais. O transportador neuronal de norepinefrina constitui o principal mecanismo de término rápido da transmissão simpatoneuronal, enquanto os transportadores de localização extraneuronal são mais importantes para a limitação dos efeitos e clearance das catecolaminas circulantes. Cerca de 90% da catecolamina liberada pelos nervos simpáticos é removida pela recaptação neuronal, 5% pela captação não neuronal e apenas 5% atingem a circulação sistêmica. Por outro lado, 90% da epinefrina liberada para a circulação pela suprarrenal é metabolizada pelo processo de transporte de
monoaminas extraneuronal, principalmente no fígado. Este processo de metabolização das catecolaminas circulantes apresenta uma meiavida de cerca de 2 min. As catecolaminas circulantes são degradadas, principalmente no fígado, pelas enzimas catecolaminaOmetiltransferase (COMT) e monoamina oxidase. A Ometilação e desaminação oxidativa podem ocorrer em qualquer ordem. Pela ação da COMT, a epinefrina é convertida em metanefrina e a norepinefrina, em normetanefrina (Figura 69.11). Pela ação da monoamina oxidase, estes compostos são convertidos em ácido vanililmandélico (VMA). Pela ação da monoamina oxidase sobre a epinefrina e norepinefrina, há formação de ácido dihidromandélico, que pela Ometilação realizada pela COMT leva à formação de VMA. A determinação das concentrações de catecolaminas e metanefrinas no plasma ou na urina e a concentração de VMA na urina refletem a produção de catecolaminas pela medula suprarrenal e pelo sistema simpático.
Figura 69.11 ■ Metabolismo das catecolaminas. COMT, catecolaminaOmetiltransferase; MAO, monoamina oxidase; VMA, ácido vanililmandélico; DOMA, ácido dihidroximandélico.
▸ Ações das catecolaminas ▸ Manutenção do estado de alerta. Os efeitos da epinefrina no estado de alerta incluem: dilatação da pupila, piloereção, sudorese, dilatação brônquica, taquicardia, inibição da musculatura lisa do sistema digestório e contração dos esfíncteres intestinal e vesical. ▸ Ações metabólicas. As ações metabólicas da epinefrina resultam em maior produção de substrato energético. Assim, a epinefrina aumenta a produção de glicose, estimulando a glicogenólise e a gliconeogênse, inibindo a secreção de insulina e aumentando a secreção de glucagon. No tecido adiposo, a epinefrina estimula a lipólise mediada pela lipase hormôniosensível, que converte os triglicerídios em ácidos graxos livres e glicerol. Portanto, os efeitos metabólicos da epinefrina resultam em aumento da glicose, lipidemia, consumo de oxigênio, bem como em aumento da termogênese. ▸ Ações cardiovasculares. Os efeitos cardiovasculares das catecolaminas são determinados pela ativação de diferentes receptores adrenérgicos. A epinefrina atua principalmente em receptores α 2adrenérgicos, presentes na musculatura dos vasos, causando vasodilatação. Por outro lado, a norepinefrina liberada localmente nos vasos induz vasoconstrição, mediada pelos receptores α 1adrenérgicos. Este efeito de vasoconstrição, associado aos efeitos cronotrópicos e inotrópicos da norepinefrina liberada por via neural no coração (mediados por receptores βadrenérgicos), são responsáveis pela função do sistema simpatoneural na regulação cardiovascular, incluindo a manutenção da pressão sanguínea. Feocromocitoma Tumores secretores de catecolaminas podem desenvolverse na medula suprarrenal (feocromocitomas) ou a partir de células cromafins extrassuprarrenais (paragangliomas secretores). Sua prevalência é de cerca de 0,1% dos pacientes com hipertensão e 4% dos pacientes com tumor suprarrenal descobertos acidentalmente. O aumento da produção de catecolaminas é responsável por sinais e sintomas refletindo os efeitos da epinefrina e norepinefrina sobre os receptores alfa e receptores betaadrenérgicos: cefaleia, taquicardia, sudorese, hipertensão arterial, perda de peso e diabetes. Os tumores podem ser esporádicos
ou parte de doenças genéticas, como feocromocitoma/paraganglioma familiar, neoplasia endócrina múltipla tipo 2, neurofibromatose tipo 1 e doença de Von HippelLindau. O teste diagnóstico mais específico e mais sensível é a dosagem de metanefrinas plasmáticas ou urinárias, e o tratamento é a remoção do tumor. Cerca de 10% dos feocromocitomas são malignos, diagnosticados imediatamente ou durante uma recidiva revelando metástase linfática, óssea ou visceral.
▸ Receptores adrenérgicos As catecolaminas podem se ligar a vários tipos de receptores adrenérgicos denominados α e β. Atualmente, são conhecidos 2 tipos de receptores tipo α (α 1 e α 2) e 3 tipos de receptores tipo β (β1, β2 e β3). Os receptores βadrenérgicos são acoplados à proteína estimulatória Gαs, que estimula a adenilatociclase; portanto, o AMP cíclico é o principal segundo mensageiro da ativação βadrenérgica. Os receptores αadrenérgicos são acoplados à proteína Gαq, que ativa a fosfolipase C, resultando no aumento do cálcio citosólico. Os receptores α 1adrenérgicos têm localização póssináptica, enquanto o subtipo α 2 está presente nos neurônios simpáticos présinápticos. Assim, os receptores α 1adrenérgicos são responsáveis pelos efeitos α agonistas, como a vasoconstrição, enquanto os receptores α 2adrenérgicos inibem a liberação de norepinefrina pelos nervos simpáticos. Os receptores β1adrenérgicos são mediadores das respostas inotrópica e cronotrópica do coração, da lipólise no tecido adiposo e do aumento da secreção de renina pelo rim. Quando estimulados, os receptores β2adrenérgicos causam broncodilatação, glicogenólise e relaxamento da musculatura lisa uterina e intestinal.
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Introdução
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Pâncreas Mecanismo de ação dos hormônios pancreáticos
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Sinalização tecidual da insulina Bibliografia
INTRODUÇÃO O pâncreas é uma glândula classicamente designada como mista por ser responsável tanto pela produção de enzimas digestivas (ou secreções exócrinas), secretadas no lúmen do duodeno (meio externo ao organismo), como pela produção de hormônios (ou secreções endócrinas), secretados no interstício, de onde alcançam a circulação sanguínea (ou meio interno). Alterações nas secreções endócrinas do pâncreas, especialmente da insulina, determinam importantes modificações na homeostase do meio interno, as quais se relacionam com doenças de alta prevalência (atualmente consideradas de caráter endêmico), como o diabetes melito (DM), a obesidade e a síndrome metabólica, razões pelas quais é um dos mais estudados sistemas endócrinos, em toda a história da investigação científica. Relatos de indivíduos portadores de DM remontam à antiguidade egípcia, despertando, desde então, a curiosidade sobre os mecanismos envolvidos no aumento excessivo da concentração de glicose no sangue e na urina. Na metade do século XIX (em 1843), Claude Bernard (médico e fisiologista francês) estabeleceu os princípios da investigação científica baseada em evidências e demonstrou que o fígado tinha essencial papel na manutenção da homeostase (estado de equilíbrio da concentração) da glicose. Mais do que isso, esse estudioso afirmou que a homeostase da glicose era regulada por mecanismos neurohumorais. Já na época havia a suspeita de que o pâncreas, cuja atividade exócrina fora claramente confirmada pela conexão anatômica com o intestino, desempenhasse importante papel na regulação da homeostase glicêmica. Em 1869, Paul Langerhans descreveu a existência de grupamentos de células pancreáticas que não se relacionavam com o sistema de ácinos e ductos do pâncreas exócrino, e que, portanto, poderiam representar o pâncreas endócrino. Na sequência (em 1886), von Mering e Minkowski alcançam sucesso na cirurgia de extirpação do pâncreas de um cão, demonstrando a imediata perda da homeostase da glicose (pois ocorria hiperglicemia) e evidenciando que o fator humoral que participava desse controle era de origem pancreática. No século XX, Frederick Banting e Charles Best isolaram e caracterizaram o hormônio insulina, pelo que foram laureados com o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina, em 1923. (Comentários adicionais a respeito de Claude Bernard são feitos na parte inicial deste livro – Uma Breve História da Fisiologia, em Claude Bernard: o fundador da fisiologia moderna.) A investigação dos hormônios pancreáticos, especialmente da insulina, trouxe grande contribuição ao conhecimento sobre o DM, assim como proporcionou tratamento aos portadores dessa doença, permitindo a sua sobrevivência com a terapia de reposição do hormônio. Entretanto, na segunda metade do século XX, ocorreu enorme crescimento na incidência de DM, e nessa evolução observouse que o número de indivíduos que desenvolvem o DM por falência pancreática primária permanece relativamente baixo (não mais que 10% dos portadores da doença). A compreensão da perda da homeostase glicêmica na grande maioria dos portadores de DM, que a princípio produzem o hormônio, adveio da evolução do conhecimento sobre o mecanismo de ação do hormônio, quando então se percebeu que um número crescente de pessoas
desenvolve ao longo da vida um estado de resistência à ação da insulina. Assim, os mecanismos que envolvem tanto os eventos localizados no receptor hormonal quanto, principalmente, aqueles chamados de pósreceptor, vêm sendo intensivamente investigados, visando a contribuir para o conhecimento do DM e de futuras medidas preventivas e/ou terapêuticas. Dessa maneira, este capítulo aborda de início o conhecimento sobre a produção pancreática de hormônios e, depois, seus mecanismos de ação, focalizando principalmente a insulina, por ser o principal fator endócrino regulador da homeostase da glicose. Além disso, são comentados os efeitos biológicos dos hormônios pancreáticos, com especial atenção para as suas interações nos estados fisiológicos, aspectos complementados com os mecanismos bioquímicos do metabolismo intermediário (apresentados no Capítulo 74, Controle Hormonal e Neural do Metabolismo Energético). Finalmente, são discutidas as bases fisiopatológicas das principais disfunções endócrinas que envolvem os hormônios pancreáticos.
PÂNCREAS ▸ Origem e diferenciação A formação do pâncreas no embrião humano iniciase a partir de um primeiro brotamento dorsal e um segundo ventral do intestino primitivo, entre a quarta e a sétima semanas do desenvolvimento. Essas duas estruturas se unem, sendo inicialmente constituídas por um sistema de túbulos e ácinos contendo células protodiferenciadas, que vão originar as células endócrinas agrupadas. Esses agrupamentos são envoltos por uma membrana basal, e capilares são formados dando origem às primeiras ilhotas pancreáticas. As células protodiferenciadas também originam as células exócrinas e, em determinadas situações, podem, no adulto, dar lugar à neoformação insular. No pâncreas fetal, a massa total das ilhotas corresponde a aproximadamente 10% da massa total do órgão, enquanto no adulto esse valor cai para apenas 1 a 2%. As células das ilhotas, no ser humano, são capazes de se duplicar e aumentar a massa de tecido endócrino até por volta da maturidade, quando então a atividade mitótica cai a valores muito baixos.
▸ Ilhotas pancreáticas A primeira alusão ao tecido insular pancreático foi feita em 1869 por Paul Langerhans, que descreveu aglomerados de células formando estruturas arredondadas ou ovoides, dispersas no tecido acinar pancreático. Essas estruturas chegaram à literatura com o nome de ilhotas de Langerhans ou simplesmente ilhotas pancreáticas (Figura 70.1). Verificouse posteriormente, em roedores, que tais estruturas eram constituídas por pelo menos quatro tipos de células: as A ou α, dispostas perifericamente formando um revestimento das ilhotas e perfazendo, em média, 25% do total das células da ilhota, sendo responsáveis pela síntese e secreção de glucagon; as B ou β, produtoras e secretoras de insulina, ocupando a parte central da ilhota e compondo o núcleo desta, perfazendo, em média, 60% do número total de células; as D ou δ, produtoras de somatostatina, em torno de 10% das células da ilhota, localizadas mais na periferia e próximo a capilares; as F ou PP, produtoras do polipeptídio pancreático, que ocupam em torno de 5% da massa celular e têm a mesma distribuição das células D. Recentemente demonstrouse que nos primatas a distribuição das células das ilhotas é aleatória com menor diferença porcentual entre as células B e A. Na maioria das espécies animais, inclusive a humana, encontramos de 1 a 2 milhões de ilhotas dispersas pelo tecido acinar, perfazendo aproximadamente 2% do peso total do órgão. A irrigação das ilhotas é centrífuga, sendo as células B as primeiras a receberem o sangue arterializado que depois irriga a periferia da ilhota. Entretanto, como nos primatas a distribuição das células das ilhotas é aleatória (sem o acúmulo de células B na parte central da ilhota), não ocorre a irrigação centrífuga, como observada nos roedores. As ilhotas pancreáticas são ricamente inervadas tanto por fibras provindas do sistema nervoso simpático como do parassimpático. Norepinefrina, acetilcolina, peptídio intestinal vasoativo (VIP), galanina e GABA já foram identificados como mediadores químicos nas ilhotas.
Figura 70.1 ■ Distribuição das diferentes células da ilhota pancreática (ilhota de Langerhans).
▸ Insulina Síntese A insulina humana é um hormônio peptídico constituído por duas cadeias de resíduos de aminoácidos e com peso molecular de 5.808 kDa. Em humanos, é expressa por um gene localizado no braço curto do cromossomo 11 das células B das ilhotas pancreáticas. A cadeia A contém 21 resíduos de aminoácidos e é interligada por duas pontes dissulfeto entre resíduos de cisteína à cadeia B, que dispõe de 30 resíduos de aminoácidos. Uma terceira ponte de dissulfeto liga outros dois resíduos de cisteína pertencentes à própria cadeia A. A síntese da insulina iniciase no retículo endoplasmático rugoso (RER), constituindose inicialmente a pré proinsulina, contendo cadeia única de aminoácidos que, após perder o peptídio sinal que dispõe de 23 resíduos de aminoácidos, origina a proinsulina, composta por 86 resíduos de aminoácidos dispostos inicialmente em cadeia única. Durante o transporte dessa molécula através do complexo de Golgi para ser empacotada na forma de grânulo, a proinsulina dá origem à insulina e ao peptídio conector (peptídio C), que conecta as agora formadas cadeias A e B (Figura 70.2). Nos grânulos prontos para a secreção, as moléculas de insulina se agregam, formando um exâmero estabilizado por dois íons zinco. Além da insulina e peptídio C, o grânulo contém várias outras proteínas e peptídios. Como ocorre com outros hormônios peptídicos, a insulina permanece armazenada até que um estímulo deflagre sua exocitose do grânulo.
Secreção O processo de secreção de insulina pelas células B, resumido na Figura 70.3, é bastante complexo, tendo como estímulo mais importante a concentração da glicose no interstício, que varia em paralelo à concentração do substrato no sangue. Essa substância é transportada através da membrana das células B pelo GLUT2, que tem baixa afinidade pela glicose, mas alta capacidade de transporte, com um Km em torno de 15 a 20 mM. Uma vez no interior das células B, ela é rapidamente metabolizada, dando inicialmente origem à glicose6fosfato, pela ação da hexoquinase, quando a concentração de glicose no meio é baixa. Na presença de altas concentrações do açúcar, a enzima mais importante passa a ser a glicoquinase, visto que o fator limitante para a metabolização da glicose é a sua fosforilação. Assim, a glicoquinase, que dispõe de baixa afinidade, porém alta capacidade enzimática, funciona como um sensor da concentração desse carboidrato nas células B, regulando a secreção de insulina de acordo com a demanda. Ressaltese que mutações dessa enzima, alterando a sua eficiência, levam a um quadro de diabetes tipo 2 denominado MODI 2 (ver adiante). A posterior metabolização da glicose conduz à formação de ATP e aumenta a relação ATP/ADP, que diminui a probabilidade de abertura dos canais de potássio ATPdependentes (KATP). Esses canais são proteínas de alto peso molecular que, quando não ativados, permitem a livre movimentação de cátions através da membrana celular, mantendo um potencial de
membrana em torno de –70 mV. A ligação do ATP às subunidades específicas desses canais promove o seu fechamento, com consequente retenção de K+ no interior das células e despolarização parcial da membrana. Atingido o limiar de despolarização dos canais de cálcio sensíveis à voltagem (CCSV), em particular os do tipo L (ver Capítulo 10, Canais para Íons nas Membranas Celulares), estes aumentam a probabilidade de abertura, permitindo maciça entrada de Ca2+ a favor de seu gradiente eletroquímico e desencadeamento de um potencial de ação. Ocorre rápido acúmulo de cálcio próximo à face interna da membrana. Como acontece em outros tecidos, as células B expressam adenilciclase (AC), fosfolipase C (PLC), fosfolipase A2 (PLA2) e fosfolipase D (PLD), todas enzimas ancoradas à membrana, que são ativadas por estímulos via receptores acoplados às proteínas G e por aumento da concentração do Ca2+ citosólico. Assim, o acúmulo do Ca2+ nas proximidades da membrana favorece a ativação destas enzimas, induzindo a formação de mensageiros citoplasmáticos, como, por exemplo, as proteinoquinases (PK) (ver Capítulo 3, Sinalização Celular). A AC promove a geração de cAMP, que ativa a proteinoquinase A (PKA). A PLC atuando sobre componentes do ciclo dos fosfatidilinositóis induz a constituição de 1,4,5trifosfato de inositol (IP3) e diacilglicerol (DAG). Este último, por sua vez, ativa a proteinoquinase C (PKC). A PLA2 aumenta a formação de ácido araquidônico, que dá origem às prostaglandinas, que inibem a secreção de insulina, e aos leucotrienos, que a estimulam. Por último, a PLD leva à composição de ácido fosfatídico, que facilita a entrada de Ca2+ pela membrana por desenvolver atividade ionófora. Existem evidências de que a PKA e a PKC elevam o número e a responsividade dos CCSV, intensificando a entrada de Ca2+ a partir do meio extracelular. O IP3, provocando a abertura de canais de Ca2+ do RE, leva a um aumento ainda maior da concentração citosólica de Ca2+. Esse aumento, por sua vez, facilita a união dos íons cálcio a quatro locais específicos de uma proteína citoplasmática, a calmodulina (CaM), formando a Ca2+CaM, que, por seu turno, ativa uma proteinoquinase dependente de calmodulina (PK dependente de CaM). A PK dependente de CaM, a PKC e a PKA induzem a fosforilação de diferentes componentes do citoesqueleto, favorecendo a ativação dos mecanismos que redundam na exocitose dos grânulos de insulina.
Figura 70.2 ■ A. Sequência da conversão da proinsulina humana em insulina que ocorre durante o processo de maturação dos grânulos. B. Esquema da formação, transporte e exocitose dos grânulos de insulina. Descrição no texto. (Adaptada de Cingolani e Houssay, 2004.)
Figura 70.3 ■ Esquema representativo dos fenômenos bioquímicos envolvidos no processo de secreção de insulina.
É importante destacar que todas as substâncias já citadas são de grande importância para o mecanismo de secreção de insulina. Porém, notese que são coadjuvantes ao aumento da concentração de Ca2+ no citosol, que é fundamental para a indução da ativação das proteínas do citoesqueleto envolvidas no mecanismo de exocitose, sem o qual não ocorre o fenômeno secretório. Deve ser lembrado ainda que, nas proximidades da membrana citoplasmática das células B e a ela conectada, existe uma fina rede de microfilamentos de actina que desempenham papel fundamental no processo de secreção de insulina, regulando a passagem dos grânulos do citosol para o meio extracelular. Muitos outros fatores modulam a secreção de insulina, interferindo nos mecanismos anteriormente descritos para a glicose. Entre eles, podemos citar os metabólitos como aminoácidos e ácidos graxos, o sistema nervoso autônomo e vários outros hormônios circulantes. Os aminoácidos são importantes para o processo de secreção de insulina pelas células B e, na maioria das vezes, elevam a secreção do hormônio, ou por serem metabolizados, ou por ativarem o metabolismo de substâncias energéticas, com consequente aumento da produção de ATP e ativação dos mecanismos previamente descritos. Os ácidos graxos, principalmente os saturados, como o palmitato e o estearato, são potencializadores da secreção de insulina. Esse efeito, no entanto, é nítido após exposição aguda de ilhotas isoladas a esses metabólitos, desde que haja glicose no meio. Depois de algumas horas, os ácidos graxos passam a ser tóxicos, levando ao que se conhece clinicamente como lipotoxicidade. O sistema nervoso autônomo desempenha importante papel na regulação da secreção de insulina. A acetilcolina secretada pela estimulação da inervação parassimpática age em receptor Gq ativando a PLC e, como já descrito, culmina
com o aumento da formação de IP3 e PKC, facilitando ou potencializando o desencadeamento do processo secretório de insulina, dependendo da concentração de glicose presente no meio. A epinefrina circulante e a norepinefrina secretada pelas terminações nervosas adrenérgicas inibem a secreção de insulina, por ativar uma proteína Gi inibidora da AC, com consequente diminuição da ativação da PKA. Há evidências de que essa mesma proteína Gi reduza a ativação dos canais CCSV. Vários hormônios agem sobre as células B e participam ativamente da regulação da secreção da insulina. Os principais deles e seus efeitos são descritos a seguir. A insulina secretada pelas células B das ilhotas pancreáticas passa, através da circulação ênterohepática, diretamente para o fígado, onde mais de 50% do total secretado é degradado por insulinases específicas. Os rins retiram aproximadamente 40% da quantidade total da insulina que atinge o órgão em uma primeira circulação. A insulina circulante normalmente não se liga a outras substâncias, permanecendo na forma livre e apresentando meiavida em torno de 5 min.
Regulação da secreção de insulina A regulação da secreção de insulina é feita fundamentalmente pela glicose circulante. De modo bastante resumido, pode ser dito que o aumento da glicemia (nível de glicose no plasma) causa elevação da secreção de insulina, a qual, agindo nos diferentes tecidos do organismo, eleva o transporte de glicose para os mesmos tecidos, diminuindo a glicemia. Com a redução desta, desaparece o estímulo secretório e consequentemente decresce a secreção do hormônio. Estabelece se assim um mecanismo regulador importantíssimo dos valores glicêmicos, fundamental para a manutenção da homeostase. O teste de tolerância à glicose (GTT) ilustra prática e claramente o mecanismo já descrito (Figura 70.4). Para a execução do GTT, após um jejum de 12 h o paciente ingere glicose na dose fixa de 75 g. Antes de ele ingerila, obtémse uma amostra de sangue para a dosagem da chamada glicemia basal. Depois da ingestão, a cada 30 min vão sendo colhidas sucessivas amostras sanguíneas para a dosagem da glicemia. Dessa maneira, é obtida uma curva da variação da glicemia ao longo do tempo, como mostrado na Figura 70.4. Como descrito anteriormente, além da glicose, outros substratos, hormônios e o sistema nervoso interferem nos mecanismos secretórios de insulina e, portanto, participam da regulação da sua secreção. Destacamos inicialmente a participação do sistema nervoso autônomo, que ativamente modula a secreção da insulina. Podemos tomar como exemplo a chamada fase cefálica da secreção de insulina, que ocorre antes do início de uma alimentação. O aroma de um determinado alimento provoca um reflexo condicionado que determina intensa estimulação vagal. A acetilcolina secretada pelas terminações nervosas parassimpáticas nas ilhotas induz, como já descrito, à formação de PKC, que neste caso “sensibiliza” as células B para uma resposta secretória mais eficiente quando do aumento da concentração de nutrientes secretagogos provindos da “suposta” alimentação. Outro exemplo importante é a estimulação adrenérgica que ocorre em estados de alerta: neste caso, a norepinefrina secretada pelos nervos simpáticos age nas células B causando inibição da secreção de insulina, propiciando assim aumento da glicose plasmática necessária para a reação do indivíduo, envolvendo sempre maior atividade muscular e nervosa. Vários hormônios participam da modulação da secreção de insulina. Alguns atuam diretamente nas células B, como o glucagon e a somatostatina (secretados pela própria ilhota). Outros, como o cortisol e o GH, agem elevando a resistência periférica à insulina; consequentemente, há crescimento da concentração da glicose circulante, o que conduz a um aumento da secreção de insulina. Os hormônios gastrintestinais, como GLP1 (glucagonlike peptide 1), secretina, colecistoquinina, gastrina e GIP (gastrointestinal peptide), estimulam a secreção de insulina, sendo os responsáveis pelo maior aumento da secreção do hormônio logo depois da ingestão do alimento, antes mesmo de sua absorção.
Figura 70.4 ■ Curvas típicas do teste de tolerância à glicose (GTT) em indivíduos: normais, com rápida absorção intestinal de glicose ou com doença hepática.
▸ Glucagon Síntese O glucagon humano é um hormônio peptídico (29 resíduos de aminoácidos) com peso molecular de 3.485 kDa (Figura 70.5), produzido nas células A das ilhotas pancreáticas, constituído por uma única cadeia de resíduos de aminoácidos. O gene do próglucagon está localizado no cromossomo 2 humano e se expressa não apenas na célula A pancreática, mas também em células do intestino delgado. Após a transcrição do gene, o seu mRNA é traduzido no RER, formandose inicialmente o prépróglucagon, que origina o próglucagon (160 resíduos de aminoácidos). Durante o transporte dessa molécula através do complexo de Golgi para ser empacotada no grânulo, o próglucagon é clivado, dando origem a várias sequências peptídicas, entre as quais o glucagon que permanece armazenado até que a exocitose seja deflagrada. O sistema enzimático de clivagem do próglucagon difere entre as células A e as do intestino, de maneira que distintos produtos são gerados de acordo com o local em que o gene se expressa, muitos deles ainda de atividade biológica desconhecida. Na célula A, o glucagon é o principal produto biologicamente ativo; entretanto, em células intestinais, geramse a glicentina e os GLP1 e 2. Estudos mais recentes indicam que a secreção de GLP1 e GLP2 cresce após a refeição, e estes hormônios têm sido relacionados tanto com a modulação da secreção de insulina, como com o controle metabólicoenergético do organismo.
Secreção Como acontece com a insulina, o principal estímulo regulador da secreção de glucagon é a glicemia. Porém, o aumento da concentração de glicose no sangue inibe a secreção do glucagon, que tem a sua supressão máxima quando os valores glicêmicos chegam próximos de 200 mg/dℓ. As maiores concentrações sanguíneas de glucagon ocorrem quando a glicemia está em torno de 50 mg/dℓ. Há evidências de que a elevação da glicemia faz esta regulação secundariamente à secreção da insulina, que reconhecidamente é um potente inibidor da secreção do glucagon. No entanto, dados mais recentes deixam claro que, do mesmo modo que as células B, as A expressam canais KATP, e o aumento do metabolismo da glicose leva à diminuição da probabilidade de abertura desses canais e à despolarização dessas células. A diferença reside no fato de as células A não terem canais de cálcio do tipo L tão eficientes como os das células B. Na realidade, a atividade elétrica das células A depende da abertura de pelo menos três diferentes canais iônicos: dos canais de Ca2+ do tipo T, dos canais de Na+ dependentes de voltagem, e dos canais retificadores de K+ do tipo A. Todos são desativados quando o potencial de membrana se eleva até próximo de –50 mV. Portanto, quando as células A são despolarizadas pela ação da glicose sobre os KATP, o potencial de membrana vai acima de –50 mV, reduzindo a probabilidade de abertura desses canais, diminuindo assim o influxo de Ca2+ e, consequentemente, a secreção do hormônio.
Regulação da secreção
Muitos fatores interferem na secreção de glucagon. Entre eles, podemos citar: sistema nervoso autônomo, hormônios, ácidos graxos e aminoácidos (Quadro 70.1).
▸ Somatostatina Síntese A somatostatina (SS) é um hormônio sintetizado nas células D das ilhotas pancreáticas, composto por uma sequência de 14 resíduos de aminoácidos dispostos em uma única cadeia, com peso molecular de 1.640 dáltons. O gene da prósomatostatina está localizado no cromossomo 3 e codifica uma proteína precursora de 116 aminoácidos, que, por processamento póstraducional (ou clivagem), gera a somatostatina (que inclui a sequência carboxílica terminal). Ele foi identificado primeiramente no hipotálamo, onde se observou que o hormônio gerado era capaz de inibir a secreção do GH hipofisário (ou somatotrofina), daí a origem do nome. Semelhante ao gene do próglucagon, o gene da pró somatostatina é transcrito em diferentes locais do organismo (algumas áreas do sistema nervoso central, sistema digestório e pâncreas) com processamentos póstraducionais distintos. Duas somatostatinas biologicamente ativas podem ser geradas: SS14 (com 14 aminoácidos carboxiterminal) e SS28 (formada pela SS14 mais 14 aminoácidos da sequência aminoterminal da prósomatostatina). O pâncreas secreta exclusivamente SS14; o SNC, preferencialmente SS 14; o intestino, preferencialmente SS28. A SS28 é muito mais potente como inibidora do GH, enquanto a SS14, bem mais potente como inibidora do glucagon e da insulina.
Secreção Recentemente, foram identificados canais KATP nas células D que respondem ao aumento do metabolismo da glicose nestas células. Assim, a resposta secretória de somatostatina é bastante similar àquela descrita para a insulina, pelo menos no que concerne aos eventos iônicos relacionados com os canais KATP.
Quadro 70.1 ■ Fatores reguladores da secreção de glucagon. Estimuladores
Inibidores
Aminoácidos (alanina, serina, glicina, cisteína e treonina)
Glicose
CCK, gastrina
Somatostatina
Cortisol
Secretina
Estresse
AGL
βadrenérgicos
Insulina
Acetilcolina
αadrenérgicos
–
GABA
Figura 70.5 ■ Representação esquemática da sequência de aminoácidos do glucagon suíno.
▸ Polipeptídio pancreático Tratase de um polipeptídio formado por 36 resíduos de aminoácidos, tendo sua secreção aumentada pela acetilcolina e infusão intravenosa de mistura de aminoácidos. Sua função ainda não foi esclarecida, acreditandose que disponha de algumas ações parácrinas.
▸ Interrelações dos hormônios da ilhota pancreática
Atualmente, considerase certo que um determinado hormônio secretado pela ilhota interfira sobre outro secretado pela mesma ilhota. É evidente a presença de junções do tipo gap entre as diferentes células secretoras que constituem as ilhotas, havendo, portanto, troca de íons e outras substâncias entre elas. É notório que a insulina inibe a secreção de glucagon, enquanto este estimula a secreção de insulina e de somatostatina. Já a somatostatina inibe a secreção de glucagon, de insulina e do polipeptídio pancreático. Em ilhotas isoladas de ratos, foi verificado que a inibição da expressão de somatostatina favorece a resposta secretória das células B à glicose. Apesar dessas e de outras evidências, não há ainda uma ideia consistente sobre a interação fisiológica que ocorre entre as células A, B, D e F. Finalmente, é preciso ressaltar que a circulação sanguínea particular da ilhota pancreática, observada em algumas espécies animais, como nos roedores (mas não nos primatas), determina um importante controle na secreção de seus hormônios. Como a primeira região a ser irrigada pelo sangue arterial que chega à ilhota é a região central, rica em células B, a concentração de insulina elevase muito no sangue que perfunde essa região, que posteriormente irá irrigar a periferia da ilhota, local onde se localizam as células A produtoras de glucagon. Portanto, existe um efeito tônico inibitório da insulina sobre a secreção de glucagon.
MECANISMO DE AÇÃO DOS HORMÔNIOS PANCREÁTICOS O mecanismo de ação do hormônio glucagon envolve o seu receptor de membrana nas célulasalvo, uma proteína de sete domínios transmembrânicos, a qual está associada à proteína G estimulatória (Gs). Este é um clássico mecanismo de ação que opera principalmente por aumento da concentração intracelular de cAMP. Entretanto, estudos mais recentes não descartam a possibilidade de que mecanismos secundários, utilizando outros segundos mensageiros, possam também participar como efetores de algumas ações do glucagon. A somatostatina pode ligarse, com afinidade variável, em cinco isoformas de receptor, designadas como SSTR15, e com distribuição tecidual específica. Os SSTR são proteínas com sete domínios transmembrânicos, associadas à proteína G inibitória (Gi), e a ligação do hormônio ao receptor determina redução na concentração intracelular de cAMP, podendo ainda promover ativação de fosfatases. Já o mecanismo de ação da insulina é uma área de conhecimento em contínua expansão, envolvendo muitas proteínas transdutoras do sinal insulínico, cuja importância no desenvolvimento de alterações fisiológicas está claramente demonstrada. Assim, passamos agora a comentar o conjunto de mecanismos envolvidos na ação da insulina e que são designados como etapas iniciais da sinalização insulínica.
SINALIZAÇÃO TECIDUAL DA INSULINA Para exercer seus efeitos biológicos, a insulina se liga a um receptor específico expresso em vários tecidos, incluindo músculo, fígado, coração, tecido adiposo, células endoteliais, neurônios, entre outros. Os efeitos mediados pela insulina são tecidoespecíficos e incluem: aumento da captação de glicose, principalmente nos tecidos muscular e adiposo; aumento da síntese de proteínas, ácidos graxos e glicogênio; bem como bloqueios da produção hepática de glicose (via diminuição da gliconeogênese e glicogenólise), da lipólise e da proteólise. Além disso, a insulina exerce efeitos na expressão de genes, proliferação e diferenciação celulares. Outras ações da insulina incluem o aumento da produção de óxido nítrico no endotélio, a prevenção de apoptose, a promoção da sobrevida celular e o controle da expressão de neuropeptídios ligados ao balanço energético no hipotálamo.
▸ Receptor da insulina e seus substratos O receptor de insulina (IR) pertence a uma família de receptores tirosinoquinase (RTK) que inclui o IGF1R (insulin growth factor1 receptor) e um receptor órfão conhecido como IRR (IRrelated receptor). O IR é uma proteína tetramérica formada por duas subunidades α e duas subunidades β, em que a subunidade α inibe a atividade tirosinoquinase da subunidade β. Quando a insulina se liga à subunidade α do IR, permite que a subunidade β adquira atividade quinase, levando à alteração conformacional e autofosforilação do receptor nas subunidades β em múltiplos resíduos de tirosina (1158, 1162, 1163), o que implementa sua atividade quinase (Figura 70.6). Uma vez fosforilado em tirosina, o IR tornase ativado, promovendo a fosforilação em tirosina de substratos proteicos intracelulares. Vários substratos do IR já foram descritos, incluindo Shc, Gab1, Cbl (Casitas Blineage lymphoma protooncogene) e, de importância crucial, a família dos substratos do receptor de insulina, conhecidos pela sigla IRS (insulin receptor substrate). Os IRS1 (ver Figura 70.6) e 2 têm funções fisiológicas mais relevantes em relação ao controle glicêmico. A
fosforilação em tirosina das proteínas IRS, principalmente nas sequências YMXM e YXXM (em que Y é tirosina, M é metionina e X representa qualquer aminoácido), cria locais de reconhecimento para moléculas que contêm domínios com homologia a Src 2 (SH2), dentre as quais se destaca a PI3q (fosfatidilinositol 3quinase).
▸ Via PI3q/AKT A ativação da PI3q em resposta à insulina é uma etapa da sinalização considerada crucial para os efeitos fisiológicos da insulina. A PI3q é uma enzima formada por uma subunidade regulatória (p85) e uma subunidade catalítica (p110). A subunidade p85 possui o domínio SH2 que reconhece os sítios de tirosina fosforilados nos IRS, promovendo a ativação da subunidade p110 da PI3q. É importante destacar que os IRS1 e 2 se ligam e ativam a PI3q, mas não a fosforilam (esses substratos do receptor de insulina não têm atividade quinase). Uma vez ativada, a PI3q catalisa a fosforilação de fosfolipídios de membrana, promovendo a fosforilação na posição 3 do 4,5bifosfato de fosfatidilinositol (PIP2), convertendoo em 3,4,5trifosfato de fosfatidilinositol (PIP3). Este último produto ligase a PDK1 (phosphoinositide dependent kinase 1), uma serina/treoninoquinase que fosforila o resíduo treonina 308 da proteinoquinase B (PKB ou Akt), sendo essa uma das etapas importantes para a ativação da Akt. Entretanto, para a plena ativação da Akt, é necessário que seu resíduo serina 473 também seja fosforilado, o que é mediado pelo complexo proteico 2 denominado mTORC2 (ver Figura 70.6) pertencente à via da mTOR (mammalian target of rapamycin), que será descrita a seguir.
Figura 70.6 ■ Sinalização de insulina. Após a ligação da insulina ao seu receptor (IR), ocorrem autofosforilação do IR em múltiplos resíduos tirosina, fosforilação em tirosina dos substratos do receptor de insulina (IRS) e sua associação com a fosfatidilinositol 3quinase (PI3q); ocorre a ativação da proteinoquinase B (Akt) envolvendo as quinases PDK1 (phosphoinositidedependent kinase 1) e mTORC2. São descritas as vias ligadas à ativação da sinalização da insulina: via da mTOR (mammalian target of rapamycin), que, por meio do seu complexo proteico mTORC1, está ligada ao aumento da síntese proteica, de lipídios e de nucleotídios, ou por meio do seu complexo proteico mTORC2 está ligada ao aumento da sobrevida e proliferação celular; via da Akt/Foxo1, que está ligada à redução da produção hepática de glicose; via da Akt/Foxa2, que está ligada à redução da oxidação de ácidos graxos e da produção de corpos cetônicos; via PI3q/SREBP1 c/ACC, que está ligada ao aumento da síntese de ácidos graxos; via IR/CAP/Cbl e vias PI3q/aPKC e PI3q/AS160, que estão ligadas ao aumento da captação de glicose envolvendo o transportador de glicose (GLUT4); e, por fim, via da MAPK (mitogenactivated protein kinase), que envolve a fosforilação do IR/Shc/Grb2, ativando as MEK/ERK (extracellular signal regulated kinase) para aumentar a proliferação e crescimento celular. mTORC1, mTOR complex 1; mTORC2, mTOR complex 2; TSC, tuberous sclerosis complex 1 and 2; GRheb, Ras homologue enriched in brain; aPKC, isoformas atípicas da proteinoquinase C; AS160, GTPase activating protein; Cbl, Casitas Blineage lymphoma protooncogene; CAP, Cblassociated protein; TC10, small GTP binding protein; C3
G, guanine nucleotide exchange factor; Crk, chicken tumor virus regulator of kinase; Shc, src homology and collagen protein; SOS, Son of Sevenless; Grb2, growth factor receptorbound protein 2; GSK3, glycogen synthase kinase 3; FoxO1, forkhead boxcontaining gene O1; SREBP1 c, sterol regulatory element binding protein 1 c; ACC, acetilCoA carboxilase; Foxa2, forkhead box protein A2.
▸ Vias de crescimento estimuladas pela insulina Similar a outros fatores de crescimento, a insulina ativa vias de crescimento celular como a via mTOR e a via MAPK (mitogenactivated protein kinase). A mTOR é descrita como uma quinase de resíduos serina e treonina, tem aproximadamente 289 kDa e forma a subunidade catalítica de dois complexos proteicos distintos, conhecidos como mTORC1 e mTORC2. O mTORC1 é o complexo que inclui a proteína Raptor (regulatory associated protein of mTOR) e é sensível à rapamicina. No momento em que a Akt é fosforilada pela PDK1, iniciase a fosforilação de TSC2 (tuberous sclerosis complex 1 and 2) em serina e treonina, inativando a proteína GRheb (Ras homologue enriched in brain), culminando na ativação do mTORC1. Foram descritas várias funções para o complexo mTORC1; dentre essas, alterações no metabolismo, tradução de mRNA e de turnover proteico. Em relação à síntese proteica, é importante destacar que o mTORC1 fosforila e ativa a proteína S6 K1 (70 kDa ribosomal protein S6 kinase) e também fosforila e promove a dissociação entre o 4EBP (eukaryotic translation initiation factor 4B Binding Protein) e o eIF4E, sinais estes que vão promover o início da tradução de mRNA. O mTORC2 é formado por Rictor (rapamycininsensitive companion of mTOR) e não possui sensibilidade à rapamicina. Como descrito anteriormente, mTORC2 fosforila a Akt em serina 473 que, em paralelo à fosforilação em treonina 308, induzida pela PDK1, produz plena ativação da Akt. Paralelamente a essa função, mTORC2 também regula a família de proteinoquinases C (PKC) envolvidas no controle do remodelamento do citoesqueleto e da migração celular (Figura 70.7). Outra via de crescimento estimulada pela insulina é a via MAPK. A ativação da via MAPK iniciase com a fosforilação de proteínas que são substratos do receptor de insulina, como IRS1 e Shc. Estas se ligam e ativam o complexo Grb2/SOS, que ativa a Ras e a cascata da MAPK, incluindo MEK/ERKs (extracellular signal regulated kinase). Para que haja uma transmissão adequada do sinal, os componentes da MAPK devem estar colocalizados na célula. As ERK1/2, também conhecidas como p44/p42 MAPK, são consideradas os principais controladores das respostas mitogênicas induzidas pela insulina devido à regulação da expressão de diversos genes (ver Figura 70.6). Em algumas doenças que cursam com resistência à insulina, a via da MAPK pode estar superativada nas artérias, ao passo que a via PI3q/Akt pode estar desativada, favorecendo uma desregulação na produção de óxido nítrico e contribuindo para o desenvolvimento de aterosclerose associada a resistência à insulina.
Figura 70.7 ■ Mecanismos de resistência à insulina na obesidade. A alteração da microbiota intestinal, culminando na maior absorção de LPS (lipopolissacarídios) e a infiltração de células no estroma vascular do tecido adiposo, destacando os macrófagos com fenótipo M1, desencadeiam uma inflamação subclínica, levando à resistência à insulina tecidual. No fígado e no músculo, essa resistência à insulina é caracterizada pela redução da ativação da Akt, que, por sua vez, leva ao aumento da produção hepática de glicose e, no músculo, leva à redução da captação de glicose.
▸ Captação de glicose mediada pela insulina Um importante mecanismo celular para o controle da glicemia é o transporte de glicose no músculo esquelético mediado pela insulina. Esse transporte é realizado pelo GLUT4 (glucose transporter protein) por meio de difusão facilitada independente de ATP (ver Figura 70.7) significativamente, além de ocorrer uma redução na taxa de endocitose desse transportador. Esses dois efeitos da insulina contribuem para o aumento da captação de glicose. A ativação da PI3q em resposta à insulina é um elementochave para estimular a translocação de GLUT4 em tecidos muscular e adiposo, porém não é o único. A ativação da PI3q, pela insulina, influencia a translocação de GLUT4 por meio da ativação: (1) da PDK1, que, por sua vez, fosforila isoformas atípicas da proteinoquinase C (PKCλ/ζ) envolvidas na síntese proteica e no transporte de vesículas de GLUT4 para a membrana celular; e (2) da Akt, que fosforila a proteína AS160 (GTPase activating protein), promovendo a translocação do GLUT4 para a membrana celular (ver Figura 70.6). No caso da Akt, a ativação da isoforma 2 (Akt2), e não das isoformas 1 e 3 (Akt1 e Akt3), parece aumentar a translocação do GLUT4 e, por conseguinte, a captação de glicose em células adiposas e musculares. É descrita também a captação de glicose estimulada pela insulina, porém independente da ativação da PI3q, por meio da via Cbl/CAP/TC10, principalmente no tecido adiposo. Para a ativação dessa via, é necessário que o receptor de insulina esteja ativado (fosforilado em resíduos tirosina), sendo esse capaz de fosforilar o protooncogene cCbl que, na maioria dos tecidos sensíveis à insulina, está associado à proteína adaptadora CAP (Cblassociated protein). Após a fosforilação, o complexo Cbl/CAP migra para a membrana celular e interage com as proteínas CrkII/C3G. A C3G catalisa a troca de GDP por GTP de outra proteína denominada TC10, tornandoa ativada. A ativação de TC10 induz translocação de vesículas contendo GLUT4 para a membrana celular, favorecendo a captação de glicose (ver Figura 70.7). Portanto, essa via é ativada pela insulina, porém independente da ativação da PI3q. Em conjunto, dada a importância fisiológica de se promover a captação de glicose celular, o organismo dispõe de diversas vias que culminam no transporte de glicose na tentativa de criar mecanismos compensatórios em casos de alterações, como, por exemplo, mutações que afetam a Akt ou isoformas atípicas da PKC.
▸ Síntese de glicogênio mediada pela insulina A insulina estimula o armazenamento de glicose na forma de glicogênio no fígado e no músculo. Esse efeito é mediado pela ativação da Akt. A Akt ativada em resposta à insulina fosforila e inativa a GSK3 (glycogen synthase kinase 3), reduzindo a fosforilação da GS (glycogen synthase), o que torna essa enzima mais ativa para catalisar o aumento da síntese de glicogênio (ver Figura 70.6). Outro mecanismo pelo qual a insulina desfosforila e ativa a GS é por meio da ativação da proteína fosfatase 1, processo este dependente da PI3q. Em paralelo ao estímulo da síntese de glicogênio, a insulina também bloqueia a glicogenólise, facilitando a manutenção de seu estoque.
▸ Inibição da gliconeogênese mediada pela insulina A gliconeogênese hepática, ou seja, a produção de glicose pelo fígado a partir de substratos não glicídicos, como lactato, piruvato, glicerol e aminoácidos, tem uma função essencial para a manutenção da glicemia em condições de jejum. Portanto, a gliconeogênese hepática será estimulada quando a concentração circulante de insulina estiver reduzida (caso do jejum) e/ou a concentração de hormônios contrarreguladores da insulina, como epinefrina, glucagon, GH ou glicocorticoides, estiver elevada. No estado pósprandial, ocorre elevação da concentração circulante de insulina e, por conseguinte, inibição da gliconeogênese hepática. Em doenças como diabetes melito, quando há redução da concentração circulante de insulina e/ou resistência a suas ações, a gliconeogênese hepática encontrase desregulada, contribuindo de forma significativa para a hiperglicemia de jejum desses indivíduos. A inibição ou supressão da gliconeogênese hepática em resposta à insulina envolve ativação da via PI3q/Akt e regulação da transcrição de genes que codificam enzimaschave desse processo, como fosfoenolpiruvato carboxiquinase (PEPCK, gene Pck1), frutose1,6bifosfatase e glicose 6fosfatase (gene G6pc). O PGC1α (peroxisome proliferator activated receptorγ coactivator1α) é um fator de transcrição que, durante o jejum, estimula a expressão de genes ligados à gliconeogênese hepática por meio da coativação de outros fatores de
transcrição, como os da família FoxO (forkhead boxcontaining gene O), HNF4α ou CREB. No estado pósprandial, com o aumento da concentração circulante da insulina, o PGC1α é desativado. A ativação da Akt em tecido hepático suprime diretamente a atividade do PGC1α por meio da fosforilação do resíduo serina 570 do domínio serinaarginina do PGC1α. A insulina também inibe o PGC1α por mecanismo indireto. Nesse caso, a Akt ativada por insulina leva à fosforilação do resíduo serina 253 do fator de transcrição conhecido pela sigla FoxO1 (forkhead boxcontaining gene O1), mantendoo no citosol. Isso permite que ocorra uma redução da gliconeogênese, porque o FoxO1 fosforilado fica desativado (ver Figura 70.6). Por outro lado, quando o FoxO1 está desfosforilado, permanece no núcleo celular e se liga ao PGC1α e Cbp/p300, promovendo a transcrição dos genes Pck1 e G6pc, que aumentam a gliconeogênese. Recentemente, a proteína CLK2 (Cdc2like kinase 2) foi descrita em tecido hepático como substrato da Akt e, em resposta à insulina, induz fosforilação do domínio SR do PGC1 α, contribuindo para a repressão da expressão de genes do programa gliconeogênico. No entanto, os efeitos da insulina via Akt/CLK2 parecem ser mais tardios quando comparados aos efeitos da insulina via Akt/FoxO1 e PGC1 α, que suprimem rapidamente a gliconeogênese hepática.
▸ Síntese e degradação de lipídios mediados pela insulina Classicamente, a insulina tem funções lipogênicas e antilipolíticas. A lipogênese ocorre como resultado da regulação de fatores de transcrição da família SREBP (sterol regulatory element binding proteins) pela insulina. Essa família de fatores está envolvida no aumento da transcrição de genes implicados na síntese e na captação de colesterol, ácidos graxos, triglicerídios e fosfolipídios, assim como de NADPH, que é um cofator essencial para a síntese dessas moléculas. Em tecido hepático, a ativação da PI3q, em resposta à insulina, estimula a síntese de ácidos graxos quando ocorre um excesso de ingestão de carboidratos. Isso decorre do aumento da expressão de SREBP1 c, favorecendo a transcrição de genes envolvidos na síntese de ácidos graxos, como o gene que codifica a enzima acetilCoA carboxilase (ACC) (ver Figura 70.6). A ACC tem um papelchave na síntese de ácido graxo, pois converte a acetilCoA em malonilCoA, que, posteriormente, por meio da enzima ácido graxo sintetase (FAS), forma palmitato. Em modelos animais, a superexpressão de SREBP1 c no fígado de camundongos transgênicos previne a redução do mRNA das enzimas lipogênicas. De maneira semelhante, em camundongos ob/ob que apresentam obesidade grave e resistência à insulina, foi observado aumento da expressão de SREBP1 c no fígado. Em indivíduos com obesidade e resistência à insulina, é muito comum ocorrer esteatose hepática, ou seja, acúmulo de lipídios no fígado. Um dos mecanismos descritos como causadores da esteatose hepática é o aumento da expressão de SREBP1 c decorrente da hiperinsulinemia. Portanto, apesar de esses indivíduos apresentarem resistência à insulina nos tecidos periféricos, a insulina continua a ativar a transcrição do SREBP1 c no fígado, aumentando a expressão de genes lipogênicos, a síntese de ácidos graxos e o acúmulo de triglicerídios. Outro fator de transcrição que participa do controle do metabolismo de lipídios hepáticos pertence à família forkhead box, denominado Foxa2. No jejum ou na redução dos níveis de insulina, o Foxa2 fica localizado no núcleo celular, promovendo a transcrição de genes envolvidos na oxidação de ácidos graxos e na produção de corpos cetônicos. Por outro lado, na presença de insulina ou no estado pósprandial, de forma similar ao FoxO1, o Foxa2 é fosforilado pela Akt e mantido no citosol, impedindo sua atividade transcricional no núcleo celular e reduzindo a oxidação de ácidos graxos e produção de corpos cetônicos (ver Figura 70.7). Em camundongos com resistência à insulina e hiperinsulinemia, o Foxa2 permanece no citoplasma de hepatócitos, onde fica inativo. Estudos comparativos de doseresposta sugerem que o Foxa2 requer doses menores de insulina para ser fosforilado comparativamente ao FoxO1, e esse fenômeno parece ser dependente do IRS2. Com relação ao seu efeito antilipolítico, a insulina, através da via PI3q/Akt, ativa a fosfodiesterase AMP cíclico específico (PDE3B), que reduz os níveis de AMP cíclico nos adipócitos. Esse efeito reduz a ativação da PKA (proteinoquinase A), que está envolvida na ativação da enzima lipase hormôniosensível que medeia parte do processo de lipólise no tecido adiposo.
▸ Sinalização de insulina | Lições de animais knockout tecidoespecíficos A partir do desenvolvimento de animais knockouts condicionais por meio do sistema CreLoxP, permitiuse um grande avanço no entendimento das funções tecidoespecíficas da insulina, bem como se revelou a real importância de cada tecido nas situações de resistência à insulina. Camundongos knockout para o IR especificamente no fígado, conhecido como LIRKO (liver specific insulin receptor knockout), apresentam redução da tolerância à glicose e acentuada hiperinsulinemia. Essa hiperinsulinemia é consequência
de secreção de insulina elevada associada à redução do clearence desse hormônio. Como esperado, o LIRKO apresenta redução da supressão da produção hepática de glicose e aumento da expressão de PEPCK e glicose 6 fosfatase. A deleção dupla de Irs1/Irs2 (LIrs1/LIrs2KO), especificamente no fígado de camundongos, também leva a um fenótipo semelhante ao do LIRKO. Entretanto, a deleção específica no fígado de IRS1 leva à resistência à insulina hepática quando o animal está realimentado, e a deleção específica de IRS2 no fígado leva à resistência à insulina quando o animal está em jejum. Os resultados foram surpreendentes quando foram gerados os camundongos knockout do IR especificamente no músculo. Esperavase que esses animais apresentassem franca resistência à insulina, uma vez que a captação de glicose mediada pela insulina é extensa no tecido muscular. No entanto, no animal conhecido como MIRKO (muscle specific insulin receptor knockout), encontraramse sensibilidade à insulina e tolerância à glicose normais. Esse fenótipo foi explicado, ao menos parcialmente, como resultado do redirecionamento da captação de glicose para o tecido adiposo, uma vez que o MIRKO apresentou um aumento da adiposidade. Posteriormente, verificouse que a deleção do IRS1 ou do IRS2 especificamente em músculo gerou animais com o fenótipo semelhante ao MIRKO em termos de sensibilidade à insulina e tolerância à glicose. Camundongos knockout adiposoespecíficos do IR, conhecidos como FIRKO (fat specific insulin receptor knockout), apresentam lipodistrofia, redução da tolerância à glicose, resistência à insulina e, surpreendentemente, hiperinsulinemia. Não obstante, os camundongos knockout específicos do IR em células beta, chamados de βIRKO (pancreatic beta cell specific insulin receptor knockout), não apresentam alteração no conteúdo de insulina, no tamanho da ilhota pancreática ou na razão entre células beta e não beta, apesar de apresentarem um defeito acentuado na primeira fase de secreção de insulina estimulada por glicose, semelhante ao observado no diabetes tipo 2. No caso da deleção específica do IR em neurônios, os animais conhecidos como NIRKO (neuron specific insulin receptor knockout) exibem obesidade, aumento da ingestão alimentar, resistência à insulina, aumento da produção hepática de glicose, assim como redução da fertilidade em decorrência de hipogonadismo hipotalâmico. Posteriormente, foi realizada a deleção de IRS2 em células beta e alguns neurônios do hipotálamo, a qual gerou um fenótipo de obesidade, aumento na ingestão alimentar e redução da expressão gênica de POMC (próopiomelanocortina), neuropeptídio ligado a reduzida ingestão alimentar. Em conjunto, os estudos que utilizaram animais condicionalmente knockouts envolvendo moléculas determinantes da sinalização de insulina sugerem uma hipótese unificadora para o diabetes tipo 2, na qual a resistência à insulina em órgãosalvo clássicos (fígado, músculo e tecido adiposo), combinada à resistência à insulina na célula beta, cérebro e outros tecidos, pode resultar no diabetes tipo 2.
▸ Regulação do ciclo jejumalimentado por hormônios pancreáticos O metabolismo humano oscila entre os ciclos de alimentação e jejum. Os hormônios insulina e glucagon participam da manutenção do equilíbrio energético durante a mudança desses ciclos. A razão entre as concentrações sanguíneas de insulina e glucagon regula fisiologicamente o estoque e/ou a utilização dos nutrientes absorvidos pelo intestino após a alimentação. Nesse contexto, o fígado atua como órgão central, integrando os efeitos da insulina e glucagon sobre a metabolização de nutrientes para manter a homeostase da glicemia. Observamse elevadas concentrações de insulina e reduzidas concentrações de glucagon durante uma refeição e algumas horas depois. Esse estado é conhecido como período pósprandial ou alimentado. De forma contrária, durante o jejum, observamse elevadas concentrações de glucagon e reduzidas concentrações de insulina. O jejum realizado por 6 a 12 horas é considerado como um estado pósabsortivo e será discutido a seguir. O jejum que perdura por mais de 12 horas é conhecido como “jejum prolongado” ou “fome ou inanição” e terá implicações metabólicas específicas envolvendo adaptações moleculares e fisiológicas mais significativas.
Período pósprandial Nutrientes como glicose e aminoácidos são absorvidos no intestino, ganham a corrente sanguínea e estimulam a secreção de insulina, e ao mesmo tempo ocorre inibição da secreção de glucagon. A razão elevada entre insulina e glucagon afeta o metabolismo do fígado, do tecido adiposo e do músculo esquelético. A insulina aumenta a captação de glicose pelo músculo esquelético e cardíaco e também pelo tecido adiposo. A oxidação da glicose e a síntese de glicogênio são estimuladas, e a oxidação lipídica é inibida nos tecidos insulino sensíveis.
Apesar de o hepatócito captar glicose de forma independente de insulina, via GLUT2, esse hormônio é essencial para a metabolização da glicose no interior dessas células. Assim, a insulina ativa a enzima glicoquinase que fosforila a glicose, produzindo glicose 6fosfato. A partir da formação de glicose 6fosfato, na presença de insulina, ocorre a síntese de glicogênio, forma pela qual a glicose é armazenada. A glicose captada pelo fígado é em parte direcionada para a via das pentoses, gerando NADPH+H+, que será utilizado na biossíntese de ácidos graxos e colesterol, e pentoses para a síntese de nucleotídios. Os quilomícrons formados a partir da absorção intestinal de lipídios da alimentação sofrem a ação da enzima lipase lipoproteica, ativada pela insulina, liberando ácidos graxos livres e glicerol. Dessa forma, os ácidos graxos são captados pelo tecido adiposo, formando novos triglicerídios para serem estocados. A insulina também estimula, no período pósprandial, a síntese de ácidos graxos e proteica, a captação de aminoácidos, bem como a diminuição da sua degradação nos tecidos.
Jejum Durante o jejum, o fígado passa a ser produtor e provedor de glicose para o organismo. Para tanto, a secreção de insulina diminui e a secreção de glucagon aumenta, resultando em glicogenólise e reduzida síntese de glicogênio. A glicose produzida pelo fígado é lançada na circulação sanguínea, pois o fígado é o principal órgão que expressa a enzima glicose 6fosfatase, capaz de desfosforilar a glicose 6fosfato, liberandoa para a circulação. Assim, mesmo em jejum, o indivíduo saudável consegue manter sua glicemia em uma concentração adequada à sobrevivência. Nas primeiras 12 horas de jejum, a maior parte da glicose circulante é captada por tecidos que não dependem de insulina, como cérebro e eritrócitos. Os tecidos muscular e adiposo utilizam relativamente pouca glicose no jejum. Após 12 horas de jejum, as reservas de glicogênio vão se esgotando, e a gliconeogênese se torna a principal fonte de glicose, usando como substratos lactato, alanina e glicerol. Se o jejum se prolongar, a contribuição da gliconeogênese aumenta de forma constante para a produção de glicose hepática. O músculo auxilia a gliconeogênese fornecendo lactato, que é captado pelo fígado e oxidado a piruvato para entrar no processo de gliconeogênese. Por sua vez, a glicose liberada pelo fígado retorna ao músculo esquelético, fechando o ciclo conhecido como ciclo de Cori. A reduzida concentração de insulina, no jejum, estimula a proteólise e leva à liberação de aminoácidos (principalmente alanina e glutamina) pelo músculo. A alanina liberada é captada pelo fígado e convertida em piruvato, que será processado pela gliconeogênese. Esse ciclo de glicosealanina ocorre em paralelo ao ciclo de Cori. A concentração elevada de glucagon e outros hormônios (GH, cortisol e catecolaminas) e principalmente as reduzidas concentrações de insulina estimulam a hidrólise de triglicerídios pela lipase hormôniosensível, liberando ácidos graxos livres e glicerol no processo conhecido como lipólise. O glicerol é usado na gliconeogênese para produção de glicose, e os ácidos graxos livres são oxidados nas mitocôndrias dos hepatócitos por meio da betaoxidação, produzindo corpos cetônicos pelo processo denominado cetogênese. Durante o jejum prolongado, os corpos cetônicos servem como substratos energéticos pelo cérebro e pelos músculos esquelético e cardíaco, provendo energia para a manutenção da vida.
▸ Alteração da sinalização de insulina na obesidade e no diabetes melito tipo 2 Diabetes melito é um grupo heterogêneo de doenças que têm em comum a hiperglicemia com as consequentes complicações vasculares. O diagnóstico de diabetes é exclusivamente laboratorial e é feito quando: (1) a glicose plasmática de jejum é maior ou igual a 126 mg/d ℓ ; ou (2) a hemoglobina glicada (A1C) é maior que 6,4%; ou (3) a glicose plasmática 2 horas após uma sobrecarga oral de glicose de 75 g (teste oral de tolerância à glicose) é maior que 200 mg/dℓ; ou (4) há sintomas típicos de diabetes e a glicemia aleatória é maior que 200 mg/dℓ. É importante ressaltar que números intermediários entre esses apresentados e os valores normais estabelecem o diagnóstico de prédiabetes. No passado, com o conhecimento fisiopatológico ainda incipiente, a classificação do diabetes melito era baseada na idade dos grupos acometidos ou na forma convencional de tratamento. Entretanto, hoje, o diabetes é classificado em 4 grupos: (1) diabetes melito tipo 1, (2) diabetes melito tipo 2, (3) outros tipos específicos de diabetes, e (4) diabetes gestacional. O diabetes melito tipo 1 é consequência de um processo autoimune que destrói as células beta do pâncreas, levando a uma falência absoluta na produção de insulina. Apresentase com mais frequência em préadolescentes, mas pode se iniciar em adultos, principalmente entre 30 e 35 anos. As manifestações do diabetes, como polidipsia, poliúria, polifagia e emagrecimento, são evidentes e de instalação rápida. Caso esses indivíduos não sejam rapidamente tratados, podem evoluir para quadros de cetoacidose diabética. O tratamento inclui, em geral, várias doses de insulina ao dia, simulando
um processo fisiológico de secreção desse hormônio, chamado basalbolus (insulina de liberação lenta, para simular a secreção basal, associada a insulinas de ação rápida antes das refeições, para simular a secreção estimulada por essas refeições). O diabetes gestacional é a forma da doença que aparece exclusivamente na gestação, e tem critérios diagnósticos específicos e mais estritos. A razão para se ter um critério diagnóstico mais rigoroso e um tratamento mais cuidadoso na gestação é prevenir as graves complicações para a mãe e para o feto, que podem aparecer nessa situação. Outros tipos específicos compreendem grupos etiológicos diversos, com causas estabelecidas ou parcialmente conhecidas. As causas incluem: defeitos genéticos conhecidos que alteram a função da célula beta ou a ação da insulina; doenças do pâncreas endócrino; endocrinopatias; medicamentos ou agentes que alteram a função pancreática; e doenças ou condições nas quais a incidência de diabetes é muito elevada, mas a etiologia ainda não foi estabelecida. Os tipos específicos respondem por aproximadamente 1 a 2% dos casos da síndrome diabetes. Nas formas genéticas conhecidas, deve ser destacado o MODY (MaturityOnset Diabetes of the Young), que se inicia no adulto jovem, com grande associação familiar, e em geral é consequência de mutações na enzima glicoquinase ou em fatores de transcrição nas células beta. O diabetes melito tipo 2 (DM2) é a forma mais comum da doença e acomete aproximadamente 10% da população mundial. A maior parte dos pacientes apresenta sobrepeso ou obesidade, e a etiopatogenia inclui fatores genéticos provavelmente poligênicos. Entretanto, os fatores ambientais, como redução da atividade física e ingestão calórica excessiva, entre outros, são determinantes para a instalação da doença. Em termos fisiopatológicos, o DM2 é consequência de uma associação entre resistência à insulina e alteração da secreção desse hormônio. Aparentemente, a alteração de secreção de insulina tem um componente genético determinante, mas a resistência à insulina é predominantemente secundária a fatores ambientais. Na obesidade e no DM2, há alteração da microbiota intestinal que parece ter um papel etiopatogênico relevante na instalação da resistência à insulina nessas situações. A microbiota intestinal, na obesidade e no DM2, apresenta alterações de phylos, com predomínio de firmicutes em relação a bacteroidetes (inverso do magro), e uma redução importante da diversidade bacteriana. Essas alterações causam rompimento da integridade da barreira intestinal, aumentando a absorção de um lipídio de membrana das bactérias gramnegativas – o LPS (lipopolissacarídio) – e/ou desregulando a produção de metabólitos produzidos por bactérias, como os ácidos graxos de cadeia curta (acetato, butirato e propionato), que contribuem para o desenvolvimento da resistência à insulina (ver Figura 70.7). Durante a instalação da obesidade, o aumento da massa de tecido adiposo ocasiona infiltração de células imunes nesse tecido, como neutrófilos e macrófagos M1 inflamatórios, contribuindo decisivamente para o processo inflamatório subclínico que havia se iniciado com a alteração da microbiota intestinal (Figura 70.8). No plano celular e molecular na obesidade e no DM2, a resistência à insulina é secundária ao fenômeno inflamatório subclínico que desencadeia modulação molecular negativa das vias de sinalização desse hormônio (ver Figura 70.7). Em geral, esse processo é consequência da ativação de fosfatases que desfosforilam proteínas da via de sinalização da insulina ou fosforilações ou modificações póstranslacionais que reduzem a atividade dessas proteínas. No caso de alterações pós translacionais, ressaltase a ativação de serinas quinases, como JNK (cJunNterminalkinase), IKK beta (inhibitor of nuclear factor kappaB kinase subunit beta), PKC (protein kinase C subunit) beta e teta, PKR (doublestranded RNA dependent protein kinase) e outras que induzem fosforilação em serina (sítio inibitório) de substratos do receptor de insulina, como IRS1 e 2. Essa fosforilação em serina reduz a capacidade do IRS1 e 2 de interagir com o IR, bloqueando sua fosforilação em tirosina (sítio de ativação), bem como induz a degradação proteassômica do IRS1, resultando em resistência à insulina. A ativação de serinas quinases pode ser consequência de estresse oxidativo, estresse de retículo endoplasmático, acúmulo de lipídios intracelulares, ativação de TLR4 (toll like receptor 4) por LPS, ativação de receptores de citocinas por IL (interleucinas)1 beta, IL6 e TNFα (tumor necrosis factor alpha) (ver Figura 70.8). Merece destaque também na modulação da sinalização de insulina o aumento de atividade de fosfatases que regulam proteínas dessa via. Na obesidade e no DM2, ocorre aumento da expressão e atividade da enzima fosfatase PTP1B (protein tyrosine phosphatase 1B), que desfosforila o IR e os IRS, contribuindo para a resistência à insulina. Outras fosfatases, como a PHLPP1 (pleckstrin homology domain and leucinerich repeat protein phosphatase), que desfosforila a Akt, também têm atividade aumentada na obesidade (ver Figura 70.8). Outros mecanismos de resistência à insulina incluem o aumento de expressão das proteínas iNOS (inducible nitric oxide synthase) e SOCS (suppressors of cytokine signaling). A expressão da iNOS é estimulada pelo TNFα e está elevada na obesidade. O óxido nítrico produzido pela iNOS pode induzir resistência à insulina no músculo por meio de um
mecanismo que envolve a Snitrosação do IR, IRS1 e Akt, reduzindo a atividade dessas proteínas e induzindo resistência à insulina.
Figura 70.8 ■ Mecanismos moleculares que reduzem o sinal intracelular da insulina na obesidade. A inflamação subclínica que ocorre na obesidade, representada nessa figura pelas interleucinas, TNFα (tumor necrosis factor alpha) e pela ativação do receptor da imunidade inata TLR4 (toll like receptor 4), ativa serinas quinases como JNK (cJunNterminalkinase), IKK beta (inhibitor of nuclear factor kappaB kinase subunit beta), PKC (protein kinase C subunit) beta e teta, PKR (doublestranded RNA dependent protein kinase), que fosforilam o substrato do receptor de insulina (IRS1) em serina, levando à inibição do sinal de insulina. A sinalização de insulina também pode ser comprometida pelo aumento da atividade de fosfatases no contexto da obesidade. A fosfatase PTP1B (protein tyrosine phosphatase 1B) desfosforila resíduos tirosina do IR e dos IRS, inibindo o sinal de insulina e a PHLPP1 (pleckstrin homology domain and leucinerich repeat protein phosphatase), e desfosforila resíduos serina e treonina da Akt, desativandoa. Assim, tanto a PTP1B quanto a PHLPP1 contribuem para a resistência à insulina na obesidade.
A expressão de várias isoformas de SOCS, especialmente da SOCS3, aumenta na presença de TNFα e na obesidade e pode induzir resistência à insulina provavelmente por meio do aumento da degradação do IRS1 mediada por proteossomos.
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■ Sistema Genital Masculino Poli Mara Spritzer | Fernando Marcos dos Reis ■
Organização estrutural e funcional do testículo
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Espermatogênese Androgênios
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Eixo hipotálamohipófisetestículo Maturação e função sexual Métodos de avaliação e restauração da função endócrina e reprodutiva masculina
■ Sistema Genital Feminino Celso Rodrigues Franci | Janete Aparecida AnselmoFranci ■ ■
Estrutura ovariana Hormônios ovarianos
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Puberdade e menarca Climatério (perimenopausa) e menopausa Bibliografia
Sistema Genital Masculino Poli Mara Spritzer | Fernando Marcos dos Reis Os testículos são responsáveis pela espermatogênese e síntese de hormônios sexuais. Estes processos asseguram a fertilidade e o desenvolvimento e manutenção das características sexuais masculinas. A função testicular é regulada pelo sistema nervoso central (SNC) por meio principalmente das alças de retrocontrole com o GnRH (gonadotropin releasing hormone) hipotalâmico e gonadotrofinas hipofisárias. Fatores parácrinos, neurais e endócrinos contribuem para esta complexa regulação do sistema genital masculino. Este sistema está organizado a partir dos testículos, do pênis e das glândulas acessórias que compreendem a próstata e as vesículas seminais.
ORGANIZAÇÃO ESTRUTURAL E FUNCIONAL DO TESTÍCULO Os testículos são constituídos de novelos de tubos finíssimos, em cujas paredes os espermatozoides são formados a partir de células germinativas indiferenciadas. Os túbulos, conhecidos como espermatogênicos ou seminíferos, convergem para uma rede de ductos chamada de rete testis que, por sua vez, conduz os espermatozoides a um tubo único e fortemente enovelado, o epidídimo, responsável pela etapa final de maturação do gameta masculino. Ainda nas paredes dos túbulos seminíferos, encontramse as células de Sertoli, que se estendem da lâmina basal até o lúmen tubular e servem de suporte para as células germinativas. Adicionalmente, exercem ação regulatória sobre o eixo hipotálamohipófise a partir da secreção de inibina. Junções estreitas formadas pelas células de Sertoli criam uma barreira com permeabilidade restrita a macromoléculas, similar àquela existente no sistema nervoso. Esta barreira forma um ambiente bioquímico e hormonal propício nas camadas internas e no líquido luminal dos túbulos seminíferos, de composição diferente do plasma
sanguíneo, o que favorece a regulação local da gametogênese e protege as células germinativas de agentes nocivos. No tecido que conecta os túbulos seminíferos, existem ninhos de células contendo grânulos lipídicos, as células intersticiais de Leydig, que secretam testosterona na rede capilar adjacente. A organização dos túbulos seminíferos é espéciedependente. Na maioria dos mamíferos, as células germinativas agrupamse de acordo com o estágio de maturação, de tal modo que um corte histológico de determinado ponto do túbulo seminífero mostra predominantemente um tipo de célula germinativa, enquanto outro corte mais acima ou abaixo exibe o predomínio do tipo celular precedente ou sucessivo na ordem de maturação. O testículo humano é exceção a essa regra. No homem, as células germinativas amadurecem dessincronizadas e por isso, em um mesmo ponto do túbulo seminífero, são encontradas células em estágios variados de maturação (Figura 71.1).
ESPERMATOGÊNESE As células germinativas, presentes na gônada masculina desde o nascimento, são chamadas de células germinativas primordiais. Durante toda a infância, elas se dividem lentamente por mitose e dão origem a espermatogônias. Na época da puberdade, cada testículo tem aproximadamente 6 milhões de espermatogônias. A partir de então, essas células começam a se diferenciar: cada espermatogônia dá origem a 16 espermatócitos primários, que por sua vez entram em meiose e geram, cada um, quatro espermátides (Figura 71.2 A). A etapa final da espermatogênese denominase espermiogênese e consiste na transformação de espermátides arredondadas em espermatozoides maduros. Isso se dá pelo reposicionamento do núcleo da célula, que passa do centro para uma das extremidades, onde surgirá a cabeça do espermatozoide, e também pelo aparecimento do flagelo (Figura 71.2 B). A transformação celular desde o espermatócito até o espermatozoide móvel leva cerca de 70 dias, sendo seguida pelo amadurecimento dos espermatozoides durante seu trajeto pelo epidídimo até os ductos ejaculatórios, ao longo de outros 14 dias. Nessa fase, o espermatozoide adquire o máximo de motilidade e tornase capaz de fecundar. Ao alcançar os ductos ejaculatórios, os espermatozoides são enriquecidos pelas secreções das vesículas seminais, compostas principalmente de frutose e prostaglandinas. Finalmente, quando o sêmen chega à uretra prostática, produtos do líquido prostático são lançados ao sêmen. Portanto, o líquido seminal nessa etapa irá conter ainda zinco, espermina, ácido cítrico e fosfatase ácida.
Figura 71.1 ■ A. Fotomicrografia de um túbulo seminífero humano em pequeno aumento. Observe o lúmen, o epitélio seminífero, a túnica própria e o compartimento intertubular ou intersticial, que abriga as células de Leydig. B. Detalhe do mesmo túbulo com
o epitélio seminífero em grande aumento. C. Desenho esquemático da foto B com a localização de núcleos de células de Sertoli (roxo), espermatogônias (verde), espermatócitos primários (azul) e espermátides arredondadas (ocre). (As fotos são cortesia dos Drs. Marcelo de Castro Leal e Fabiano Condé Araújo.)
Figura 71.2 ■ Divisões e transformações celulares na espermatogênese. A. Principais células precursoras, com destaque para primeira e segunda divisões meióticas (D1 e D2) que geram, respectivamente, espermatócitos secundários e espermátides. B. Espermiogênese.
ANDROGÊNIOS Androgênios são hormônios capazes de promover e manter características secundárias masculinas. O androgênio mais abundante na circulação é a testosterona. Embora encontrada em menores concentrações na circulação, a di hidrotestosterona (DHT) é produzida a partir da própria testosterona nos tecidos que expressam a enzima 5αredutase, como a próstata e o folículo pilossebáceo (Figura 71.3). Sua ação é mais potente que a da testosterona, e seus efeitos são indispensáveis para a diferenciação sexual masculina. Outros androgênios, com ação mais fraca, incluem a androstenediona, a desidroepiandrosterona (DHEA) e seu sulfato (DHEAS).
▸ Síntese e secreção No homem, as principais fontes de androgênios são a suprarrenal e o testículo. Em ambos os locais de síntese, a molécula precursora dos androgênios é o colesterol, que pode ser captado do plasma por meio de endocitose de lipoproteínas ou sintetizado na própria glândula.
Figura 71.3 ■ Etapas da síntese de testosterona a partir do colesterol e conversão da testosterona em outros esteroides ativos. Cada etapa envolve a seguinte enzima: (1) complexo enzimático de clivagem da cadeia lateral do colesterol (CYP11A1); (2) 3β hidroxiesteroide desidrogenase (3βHSD); (3) 17αhidroxilase (CYP17); (4) 17,20liase (CYP17); (5) 17βhidroxiesteroide desidrogenase (17βHSD); (6) aromatase; e (7) 5αredutase.
A transformação do colesterol em testosterona requer cinco etapas, todas elas catalisadas por enzimas (ver Figura 71.3). A clivagem da cadeia lateral do colesterol ocorre na mitocôndria, enquanto as demais reações, no retículo endoplasmático. A testosterona produzida nas células de Leydig é secretada no líquido dos túbulos seminíferos e nos capilares intersticiais, de onde atinge a circulação sistêmica para posteriormente exercer seus efeitos endócrinos. Embora em quantidade muito menor, alguns precursores androgênicos, tais como androstenediona e DHEA, também são liberados pelo testículo na circulação.
▸ Transporte e metabolismo Um homem adulto normalmente produz por dia cerca de 5 a 9 mg de testosterona, que circula, em grande proporção, acoplada à proteína ligadora de hormônios sexuais (SHBG) e à albumina (Figura 71.4). Apenas cerca de 2% da testosterona circulante ficam disponíveis na forma livre, isto é, não ligada à albumina ou à SHBG. A testosterona livre é captada pelas célulasalvo e, à medida que isso ocorre, novas moléculas do hormônio se desprendem das proteínas ligadoras e recompõem o estoque de testosterona livre. A maior parte da testosterona é metabolizada na forma de glucuronídeo de testosterona e 17cetoesteroides, dotados de pouca ou nenhuma ação androgênica, que são excretados na urina. Uma pequena quantidade de testosterona (menos que 1%) é convertida em estradiol por ação da aromatase, seja nas próprias células de Leydig, seja nas células de Sertoli, que secretam o estrogênio no líquido tubular ou no sangue periférico. Regiões do SNC, tecido adiposo, tecido ósseo e próstata também são ricos em aromatase e produzem estradiol. Contudo, o principal derivado da testosterona é a DHT, resultante de sua conversão pela 5αredutase em tecidosalvo específicos.
Figura 71.4 ■ Transporte e mecanismo de ação dos androgênios. A testosterona (T) circula acoplada a uma proteína específica ou à albumina (Prot) e, ao entrar na célula, pode ser convertida pela 5αredutase em dihidrotestosterona (DHT) em determinadas célulasalvo. T e DHT ligamse ao receptor androgênico (AR), no citoplasma ou no núcleo, e o complexo hormônioreceptor ligase ao elemento responsivo de androgênios no DNA, iniciando a transcrição de genesalvo. A subsequente síntese de proteínas promove as ações androgênicas específicas.
▸ Mecanismo de ação Assim como outros hormônios esteroides, os androgênios exercem seus efeitos por meio de receptores intracelulares, que são fatores de transcrição e regulam a produção de mRNA de genesalvo, por mecanismo dependente da ligação com o hormônio. Desta maneira, a partir da ligação do androgênio ao seu receptor, ocorre uma modificação conformacional que resulta na dissociação do receptor de proteínas de choque térmico (hsp). O complexo hormônioreceptor forma, então, um homodímero com outra molécula hormônioreceptora de androgênio e interage com uma série de coativadores ou correpressores para constituir um complexo transcricional ativado. Este complexo irá acoplarse a uma região aceptora no DNA da célulaalvo, denominada elemento responsivo aos androgênios e composta por uma sequência específica de nucleotídios (ver Figura 71.4). O processo resulta no recrutamento de uma RNA polimerase e na transcrição (mRNA) e posterior tradução (proteína) de genes específicos, que serão o alvo preciso da ação androgênica. Além desse mecanismo clássico, evidências recentes indicam que, à semelhança do observado com receptores estrogênicos, também haja o envolvimento de receptores androgênicos de membrana em ações rápidas, não genômicas, em diversos tecidos.
▸ Efeitos fisiológicos Os hormônios androgênios são fundamentais para a diferenciação sexual, o amadurecimento sexual e a fertilidade masculina. A ativação do receptor androgênico promove a transcrição de determinados genes e inibe a expressão de outros. Isso ocorre em grande variedade de tipos celulares e tecidos, o que resulta em ampla gama de efeitos fisiológicos. Esses efeitos são evidentes durante a diferenciação sexual no feto masculino (sendo denominados caracteres sexuais primários) e a partir da puberdade (sendo, então, chamados de caracteres sexuais secundários). Algumas dessas transformações são definitivas, mesmo que cesse a produção de testosterona, enquanto outras podem ser revertidas por uma eventual castração ou insuficiência gonádica no homem adulto. Os principais efeitos fisiológicos da testosterona são ilustrados no Quadro 71.1. Alguns são exercidos diretamente pela ligação da testosterona ao receptor androgênico, enquanto outros envolvem a conversão da testosterona em DHT ou estradiol, que atuam, respectivamente, sobre os receptores androgênico e estrogênico.
EIXO HIPOTÁLAMOHIPÓFISETESTÍCULO
O hipotálamo controla a função testicular por meio da secreção intermitente (em “pulsos”) de hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRH), que por sua vez estimula a hipófise a liberar, no mesmo ritmo, o hormônio luteinizante (LH) e o hormônio foliculestimulante (FSH) (para mais detalhes, ver Capítulo 65, Hipotálamo Endócrino, e Capítulo 66, Glândula Hipófise). Ambas as gonadotrofinas atuam diretamente no testículo e controlam tanto a espermatogênese como a produção de hormônios (Figura 71.5). O FSH estimula o crescimento testicular durante a puberdade e aumenta a produção de uma proteína ligadora de androgênios (ABP) pelas células de Sertoli. Essa proteína assegura altas concentrações locais de testosterona, um fator imprescindível para a espermatogênese normal. O FSH também estimula a atividade de aromatase nas células de Sertoli, o que favorece a produção local de estradiol. Indiretamente, a maturação das células de Leydig e sua produção de androgênios também podem ser influenciadas pelo FSH, que modula os efeitos do LH por intermédio de fatores autócrinos e parácrinos.
Quadro 71.1 ■ Efeitos fisiológicos da testosterona e/ou de seus derivados ativos di hidrotestosterona (DHT) e estradiol. Ações
Esteroide ativo
Diferenciação sexual: crescimento e diferenciação dos ductos de Wolff
Testosterona
Diferenciação sexual: masculinização da genitália externa
DHT
Maturação sexual na puberdade
DHT
Promoção e manutenção da espermatogênese
Testosterona
Desenvolvimento embrionário da próstata e crescimento e atividade no
DHT, estradiol
adulto Inibição do desenvolvimento mamário
Testosterona
Efeito anabólico sobre músculos
Testosterona
Efeito anabólico sobre a medula óssea aumentando a eritropoese
Testosterona
Produção renal de eritropoetina Alongamento das cordas vocais, crescimento da laringe e agravamento da
Testosterona
voz Atividade das glândulas sebáceas
DHT
Desenvolvimento de pelos corporais terminais
DHT
Padrão masculino de distribuição de pelos do escalpo
DHT
Indução enzimática e regulação da síntese proteica hepática
Testosterona, DHT
Regulação da secreção de gonadotrofinas e GnRH
Testosterona, estradiol
Efeitos sobre a libido
Testosterona, DHT, estradiol
Figura 71.5 ■ Eixo hipotálamohipófisetestículo. Linhas contínuas representam secreção de hormônios; linhas tracejadas indicam retrocontrole negativo. T, testosterona; GnRH, hormônio liberador de gonadotrofinas; LH, hormônio luteinizante; FSH, hormônio foliculestimulante.
Em homens com supressão da produção de gonadotrofinas, a espermatogênese cessa na sua fase inicial e nem mesmo espermatócitos são formados. Para que a espermatogênese seja restaurada, é necessário administrar medicamentos com atividade de ambas as gonadotrofinas. A seguir, o processo pode ser mantido artificialmente apenas com a administração de um hormônio com atividade de LH, mas a quantidade de espermatozoides produzidos será inferior ao normal. Portanto, a produção e a maturação de espermatozoides requerem a presença e a ação combinada das duas gonadotrofinas. A secreção de testosterona é regulada pelo LH, que atua nas células de Leydig tendo como segundo mensageiro o cAMP. Este estimula a mobilização de colesterol a partir dos ésteres colesterol e sua conversão à pregnenolona. A testosterona, por sua vez, inibe a secreção de GnRH pelo hipotálamo e atua diretamente nos gonadotrofos hipofisários, inibindo a secreção de LH. No entanto, um efeito inibitório da testosterona sobre a secreção de FSH só é obtido com altas concentrações. De outra parte, as células de Sertoli produzem inibina B, que atua especificamente na retroalimentação negativa da secreção hipofisária de FSH (ver Figura 71.5). As inibinas são glicoproteínas constituídas por duas subunidades, α e β. Cada subunidade é uma cadeia proteica codificada por um gene específico e, portanto, sujeita a mecanismos independentes de controle da sua produção. Tal como em outros hormônios glicoproteicos, a subunidade β é a que confere especificidade às inibinas. Dois tipos de subunidade β têm importância fisiológica comprovada: βA e βB, que unidas à subunidade α constituem, respectivamente, as inibinas A e B. As subunidades de inibina estão presentes no testículo humano desde a vida fetal. Na metade da gestação, as células de Sertoli exprimem as subunidades α e βB, enquanto as células de Leydig exibem, além dessas duas, também a subunidade βA, mas esta última não é utilizada para formar inibina. Assim, o principal produto liberado pelo testículo é a inibina B (α/βB). As células de Sertoli são capazes de produzir as subunidades α e βB antes da puberdade, mas depois dela passam a fabricar apenas a subunidade α, enquanto a subunidade βB começa a ser produzida pelas células germinativas em processo de maturação e, em menor quantidade, pelas células de Leydig. Para que haja produção adequada de inibina B no testículo do adulto, é preciso haver células de Sertoli em número suficiente, estímulo do FSH e espermatogênese. Quando se injeta FSH em homens adultos, não ocorre um aumento imediato da inibina B na circulação, mas apenas da proteína precursora
da subunidade α, que é liberada agudamente pelas células de Sertoli. Posteriormente, em decorrência do estímulo à espermatogênese, aumentam também a produção da subunidade βB e a consequente secreção de inibina B. Estudos avaliando amostras de sangue da veia espermática indicam que a inibina é liberada em ritmo de pulsos, coincidentes com os pulsos de testosterona, o que sugere que ambos os hormônios respondam ao estímulo intermitente das gonadotrofinas. Todavia, experimentos em primatas demonstraram que o efeito das gonadotrofinas sobre a produção de inibina deriva do estímulo do FSH sobre as células de Sertoli, enquanto o efeito sobre a produção de testosterona resulta do estímulo do LH sobre as células de Leydig (ver Figura 71.5).
MATURAÇÃO E FUNÇÃO SEXUAL ▸ Puberdade Puberdade é o conjunto de transformações que marcam o amadurecimento sexual e o início da fertilidade. Um evento que precede a puberdade é o aumento da secreção de androstenediona e desidroepiandrosterona (DHEA) pela suprarrenal (adrenal), que recebe o nome de adrenarca e ocorre, em meninos, por volta dos 6 a 8 anos. Esse aumento na produção de androgênios suprarrenais é em parte responsável pelo aparecimento dos primeiros pelos axilares e pubianos. Durante o período da adrenarca, a concentração plasmática de testosterona ainda é baixa e sofre apenas ligeiro aumento, em grande parte pela conversão de androstenediona e DHEA de origem suprarrenal. No entanto, neste período, a testosterona circulante já é suficiente para exercer retroalimentação negativa sobre o LH, como sugere a observação de que a retirada dos testículos, nesta fase da vida, resulta em aumento do LH plasmático. O início da puberdade é marcado pelo surgimento da secreção pulsátil de LH durante o sono, sinalizando uma reativação da pulsatilidade de GnRH, como havia ocorrido nos períodos de vida intrauterina e primeiros anos pósnatal. Os mecanismos responsáveis por este processo de despertar hipotalâmico da puberdade não estão ainda bem estabelecidos, embora a influência de alguns neurotransmissores, neuromoduladores e hormônios tenha sido postulada (como leptina, melatonina, endorfina, peptídio Y, óxido nítrico e kisspeptina). Com o passar do tempo, percebese um aumento do LH também no período diurno, seguido pelo aumento da testosterona. Esse aumento da secreção de LH devese tanto à liberação mais intensa de GnRH pelo hipotálamo, quanto à maior sensibilidade da hipófise ao estímulo hipotalâmico. A etapa seguinte é o crescimento e amadurecimento testicular, com incremento significativo na produção de testosterona e início da espermatogênese. Como resultado do aumento da testosterona, seguese o surgimento dos caracteres sexuais secundários.
▸ Maturidade e senescência A maturidade sexual é obtida por volta dos 16 aos 18 anos, quando os níveis circulantes de testosterona encontramse entre 3 e 10 ng/m ℓ . Neste período, a produção de espermatozoides é ótima e a maior parte dos caracteres sexuais secundários já se completou. A partir dos 40 anos, os níveis circulantes de testosterona diminuem gradualmente. Aos 50 anos, observase também uma redução na produção espermatogênica. O declínio nos níveis de testosterona é da ordem de 1 ng/m ℓ por década; porém, suas repercussões clínicas não estão ainda bem estabelecidas. No entanto, em alguns indivíduos a queda da testosterona pode ser compatível com níveis observados no hipogonadismo. Um estudo longitudinal demonstrou que a frequência de indivíduos com valores de testosterona compatíveis com hipogonadismo pode ser de 20, 30 e 50% para homens com mais de 60, 70 e 80 anos, respectivamente.
MÉTODOS DE AVALIAÇÃO E RESTAURAÇÃO DA FUNÇÃO ENDÓCRINA E REPRODUTIVA MASCULINA A história clínica e o exame físico permitem obter dados sobre o desenvolvimento sexual, sintomas atuais referentes à função gonádica e possíveis causas de doença. Entre os sintomas atuais, podemse mencionar a infertilidade e a diminuição da libido e da função sexual. Exemplos de fatores associados à disfunção gonádica masculina incluem, entre outros, história de quimioterapia ou radioterapia, consumo abusivo de álcool, dor ou aumento de volume testicular ou uso de fármacos que interferem com a função testicular. O exame físico permite determinar se o desenvolvimento sexual é compatível com a idade do indivíduo e informa sobre a presença de sinais inflamatórios no testículo.
▸ Espermograma A análise do sêmen permite determinar o número, a morfologia e a motilidade dos espermatozoides ejaculados. São considerados valores normais aqueles iguais ou superiores a 15 milhões de espermatozoides/mℓ de líquido ejaculado ou acima de 39 milhões por ejaculação, e mais que 32% dos espermatozoides devem ter motilidade progressiva. O percentual de células morfologicamente normais deve ser superior a 4%, utilizandose critérios estritos de avaliação morfológica. Um espermograma alterado deve ser repetido mais de uma vez, em meses subsequentes, antes que esta alteração seja considerada de relevância clínica.
▸ Avaliação endócrina A dosagem de testosterona é o teste mais importante de avaliação da função endócrina testicular, e valores baixos indicam, em geral, um quadro de hipogonadismo. Quando a dosagem de testosterona e/ou o espermograma estiverem alterados, a avaliação será complementada pela determinação de FSH e LH. Níveis aumentados de gonadotrofinas indicam disfunção primária testicular (hipogonadismo primário), enquanto concentrações normais ou subnormais sugerem hipogonadismo secundário de causa central. Finalmente, uma situação em que ao espermograma o número de espermatozoides está diminuído, a testosterona e o LH são normais e o FSH aumentado indica lesão nos túbulos seminíferos, com produção normal de testosterona pelas células de Leydig. Na suspeita de hipogonadismo secundário, será importante completar a investigação por meio de exame de imagem do SNC.
▸ Biopsia testicular A biopsia testicular é indicada quando o espermograma mostra ausência de espermatozoides (azoospermia). A biopsia permite definir se a azoospermia é puramente obstrutiva ou se decorre de alterações histológicas nos túbulos seminíferos. As alterações podem ser leves, como a hipoespermatogênese; moderadas, como a parada de maturação; ou graves, como o padrão Sertoly only e a fibrose testicular. O padrão histológico do epitélio seminífero pode definir se há possibilidade de recuperar espermatozoides viáveis para fertilização in vitro através de punção do testículo ou do epidídimo.
▸ Tratamento do hipogonadismo O tratamento do hipogonadismo masculino baseiase na prescrição de testosterona, em formulações injetáveis ou transdérmicas, em gel, adesivo ou solução. Essas formulações, em doses fisiológicas, mantêm concentrações relativamente estáveis de testosterona sérica. A terapia de reposição com testosterona suprime gonadotrofinas e o processo de espermatogênese, embora seus efeitos sobre indivíduos com hipogonadismo que têm alguma função de espermatogênese ainda não tenham sido bem estudados. Assim, outros tratamentos devem ser considerados para indivíduos hipogonádicos com desejo de fertilidade, como o uso de gonadotrofinas, bomba de infusão com GnRH e técnicas de reprodução assistida.
▸ Reprodução assistida na infertilidade masculina A fertilização natural do óvulo humano requer milhões de espermatozoides móveis depositados no sistema genital feminino para que haja probabilidade de um único espermatozoide concluir o processo. Na fertilização artificial, realizada in vitro, basta um espermatozoide viável, ainda que imóvel, pois ele é injetado dentro do citoplasma do oócito. Essa técnica de reprodução assistida, conhecida como intracytoplasmic sperm injection (ICSI), contorna o problema mais comum na infertilidade masculina, que é o número insuficiente de espermatozoides móveis e progressivos no ejaculado, apesar de não tratar as causas do problema. Como a ICSI permite a geração de embriões a partir de espermatozoides potencialmente imperfeitos, que não passaram pela seleção natural da corrida pela fertilização, pode haver a transmissão de genes defeituosos que a seleção natural teria descartado. Contudo, estudos a longo prazo verificaram que crianças nascidas a partir de ICSI apresentam desenvolvimento normal.
▸ Criopreservação seminal O espermatozoide é uma célula com citoplasma relativamente pequeno e, portanto, com baixo teor de água. Essa característica favorece a sua conservação em baixa temperatura com dano mínimo às estruturas celulares, pois com menor teor de água há menor probabilidade de formação de cristais de gelo no interior da célula durante o processo de
congelamento. Mantidos em nitrogênio líquido à temperatura de –196°C, os espermatozoides permanecem vivos por tempo indeterminado e, uma vez descongelados, recobram a vitalidade e a motilidade. O congelamento permite a formação de bancos de esperma de doadores anônimos, bem como a preservação de sêmen para uso futuro do próprio indivíduo. É uma técnica de preservação da fertilidade de homens que precisam submeterse a radioterapia ou a quimioterapia com fármacos que podem lesar o epitélio seminífero e comprometer a espermatogênese.
▸ Contracepção Na atualidade, as opções para contracepção masculina restringemse ao uso de condom (preservativos) e à vasectomia. No entanto, novos métodos reversíveis de contracepção masculina estão em fase de desenvolvimento e poderão estar disponíveis no futuro.
Sistema Genital Feminino Celso Rodrigues Franci | Janete Aparecida AnselmoFranci O sistema genital feminino compreende as gônadas femininas (ovários) e o trato genital feminino (constituído por tubas uterinas, útero e vagina) (Figura 71.6). Esse sistema apresenta características estruturais e funcionais distintas em cada fase da vida: fetal, infantil, juvenil, adulta reprodutiva, climatério ou perimenopausa, menopausa e pósmenopausa. Na fase fetal, ocorrem a diferenciação e o desenvolvimento do sistema genital. Na primeira etapa da vida extrauterina, a fase infantil, ele é mantido quiescente, sem dimensão estrutural e funcionalidade adequadas para atividade reprodutiva. A fase juvenil (ou puberdade) é uma transição entre as fases infantil e adulta em que acontece uma série de alterações estruturais e funcionais para estabelecer a capacidade reprodutiva. A fase adulta reprodutiva (ou menacme) é caracterizada por um processo repetitivo de alterações estruturais e funcionais conhecido como ciclo menstrual, que ocorrem com periodicidade relativamente constante com duração mais comum de 28 dias, podendo variar entre 25 e 35 dias. Nos primeiros 2 anos após a menarca (ou primeira menstruação) e no climatério, geralmente, ocorrem ciclos menstruais mais longos e anovulatórios. A cada ciclo, o organismo é preparado para uma gestação; se não se der a implantação no útero do óvulo fecundado pelo espermatozoide, o ciclo é encerrado e outro é iniciado para repetir a preparação do organismo na expectativa de uma gestação. A exaustão desta capacidade reprodutiva é marcada pela interrupção desse processo repetitivo, a menopausa, a qual é diagnosticada 1 ano após a última menstruação. Essa interrupção é precedida por uma fase transitória (climatério ou perimenopausa), marcada por irregularidades do ciclo menstrual, diminuição de fertilidade, alterações de humor, ondas de calor, entre outros sintomas. Todas as modificações estruturais e hormonais que ocorrem nas diferentes fases da vida reprodutiva estão sob controle de uma sequência de eventos que acontecem de modo sincronizado e envolvem diversos fatores centrais e periféricos. Em essência, o ovário é responsável pelo desenvolvimento dos folículos que contêm os gametas e pela ovulação, bem como pela produção de hormônios sexuais que agem no trato reprodutivo. A secreção destes hormônios está sob controle das gonadotrofinas adenohipofisárias, o hormônio luteinizante (LH) e o hormônio foliculestimulante (FSH), os quais obedecem à ação estimuladora do hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRH) produzido em neurônios hipotalâmicos, que constituem a via final comum de uma rede neural complexa com participação de inúmeros neurotransmissores e neuropeptídios.
ESTRUTURA OVARIANA Os ovários são constituídos por: córtex, onde se encontram os folículos em diferentes estágios de desenvolvimento ou em regressão, ou atresia (no período entre menarca e menopausa), circundados por tecido conjuntivo do estroma e células hilares, semelhantes às células de Leydig do testículo, que têm atividade secretora; medula, onde estão presentes células estromais, células hilares, fibras musculares lisas e elementos vasculares e nervosos; e hilo, onde predominam as células hilares e trafegam a inervação e os vasos sanguíneos e linfáticos (Figura 71.7). O ovário recebe inervação de origem predominantemente simpática, proveniente dos plexos renal e hipogástricos superior e inferior (ou pélvico) e dos nervos intermesentéricos. A irrigação ovariana é feita por ramos das artérias ovarianas e uterinas que atingem a medula e depois o córtex. O sangue capilar passa para veias que formam o plexo pampiniforme, que origina a veia ovariana.
▸ Ciclo ovariano | Foliculogênese, ovulação e formação e regressão do corpo lúteo Na mulher em menacme, o ciclo ovariano normal regular corresponde ao período entre duas ovulações sucessivas. O período préovulatório dura de 9 a 23 dias e é chamado de fase folicular. Nesta fase, ocorre o desenvolvimento final do folículo ovariano e predominam as ações dos estrogênios, no preparo do trato genital feminino para o transporte de gametas e a fertilização. A fase ovulatória dura de 1 a 3 dias; tratase da fase em que ocorre o pico préovulatório de gonadotrofinas e que culmina com a ovulação. O período pósovulatório é denominado fase lútea, que se inicia após a ovulação, dura em média 14 dias e termina com o início da menstruação; nesta fase, predominam as ações da progesterona na preparação do trato genital feminino para implantação e manutenção do embrião.
Desenvolvimento folicular (foliculogênese) Embora muitos dos processos envolvidos na reprodução feminina sejam cíclicos, o crescimento e a atresia dos folículos ocorrem de maneira contínua desde a vida intrauterina até o final da vida reprodutiva. Estes eventos são descritos a seguir e ilustrados nas Figuras 71.8 a 71.10.
Figura 71.6 ■ O sistema genital feminino.
Figura 71.7 ■ Ciclo ovariano. (Adaptada de Netter, 1997.)
Folículo primordial Entre a 6a e a 8a semanas de gestação, iniciase um processo acelerado de divisão mitótica das células germinativas primordiais do feto originando as oogônias, que atingem um número máximo de 6 a 7 milhões ao redor da 20a semana. Paralelamente, a partir da 11a à 12a semana, começa a divisão meiótica das oogônias, interrompida em prófase, originando os oócitos cujo número máximo, em torno de 5 milhões, é atingido ao redor da 24a semana. Estes oócitos ficam quiescentes em prófase I até o momento da ovulação. Eles vão sendo envolvidos por uma camada de células aplanadas e fusiformes do estroma (células foliculares ou prégranulosas). O invólucro mais externo, que completa o conjunto, denominado folículo primordial, é a lâmina basal. Durante os diferentes estágios, desde a divisão mitótica das células germinativas até a constituição dos folículos primordiais, ocorre perda de material germinativo. Posteriormente, ainda na vida intrauterina, parte dos folículos primordiais que inicia o desenvolvimento não atinge a fase préantral e sofre atresia, de modo que ao nascimento o número destes folículos está reduzido a cerca de 2 milhões, dos quais apenas 400 mil estarão presentes no ovário ao iniciarse a puberdade. Ou seja, durante a infância também se dá depleção contínua de folículos primordiais, pelo mesmo processo de início de desenvolvimento seguido de atresia. Durante a vida reprodutiva da mulher, em geral iniciada na primeira metade da segunda década de vida e finda na segunda metade da quinta década de vida, totalizando aproximadamente 35 anos, somente 400 a 500 folículos primordiais terão desenvolvimento completo até a ovulação. O processo de crescimento e de atresia folicular é contínuo desde a infância até a menopausa, não sendo interrompido por gestação, ovulação ou períodos anovulatórios. Assim, mesmo que a mulher tome contraceptivo oral por longos períodos ou tenha várias gestações, continua perdendo seus oócitos e atinge a menopausa na mesma época que mulheres nulíparas (que nunca pariram) ou que não fizeram uso de contraceptivos. Esse folículo não secreta hormônios e sua formação independe da ação das gonadotrofinas. Folículo primário A primeira etapa do desenvolvimento folicular é a transformação do folículo primordial em folículo primário, que se caracteriza pelo aumento do tamanho do oócito, formação da zona pelúcida e alteração das células prégranulosas fusiformes do formato achatado para cuboide com núcleo arredondado, constituindo a primeira camada de células da granulosa. A zona pelúcida é uma camada de mucopolissacarídios produzidos pelas células da granulosa que adere ao
oócito, envolvendoo completamente. As células da granulosa estabelecem pontes (gap junctions) através da zona pelúcida para manter o contato com o oócito e, assim, preservar a comunicação com ele. Folículo secundário Na transformação de folículo primário para secundário, o oócito aumenta de tamanho, e ocorre proliferação das células da granulosa, constituindose múltiplas camadas e pontos de comunicações entre elas (gap junctions), além de acúmulo de líquido entre estas. Nesta fase iniciase a organização de outra camada celular, mais externa à granulosa, que se dispõe ao redor de toda a lâmina basal, e sustenta a camada granulosa. Essa nova camada celular é composta de células mesenquimais estromais, de forma alongada, constituindo a camada tecal. As células da teca mais próximas da lâmina basal tornamse epitelioides e adquirem características secretoras, formando a teca interna, que responde ao LH. As células mais distantes da lâmina basal compõem a teca externa, que recebe inervação do sistema nervoso simpático. Na teca, ocorre um processo de angiogênese para promover o suprimento sanguíneo do folículo. A camada de células da granulosa mantémse avascular, sendo suprida por substâncias que se difundem da camada tecal. Os folículos secundários maduros constituem o conjunto de folículos chamados de préantrais de 1a ordem. Esses folículos têm diâmetro de 120 a 200 μm. As células da granulosa, estimuladas pelo FSH, começam a secretar líquido folicular nos espaços entre elas, formando os folículos préantrais, um estágio mais avançado dos folículos secundários. O líquido folicular é composto não somente por produtos do metabolismo das células da granulosa, mas também de fatores plasmáticos transferidos através da barreira folicular. À medida que os folículos crescem, esses espaços com líquido folicular se unem, formando o antro folicular. Cada conjunto de folículos préantrais de 1a ordem formado inicia uma onda de desenvolvimento folicular (ver Figura 71.8).
Figura 71.8 ■ Representação esquemática da sequência de eventos de uma das várias ondas foliculares, na qual um dos folículos passou por todas as etapas de desenvolvimento e atingiu a ovulação. Na mulher em menacme, várias ondas foliculares iniciamse continuamente a partir de um grupo de folículos secundários e ocorrem simultaneamente no ovário, de modo que são encontrados folículos em diferentes estágios de desenvolvimento. A duração da sequência de eventos desde o folículo secundário até a ovulação gira em torno de 85 dias.
Figura 71.9 ■ Fotomicrografia de um corte histológico do ovário contendo folículos em diferentes estágios do desenvolvimento.
Figura 71.10 ■ Fotomicrografia de um folículo antral.
Folículo antral Na formação do antro folicular, as células da granulosa se reorganizam. Nesse processo, o oócito e parte das células da granulosa que o envolve deslocamse gradualmente em direção à periferia do folículo. Algumas células se concentram na parede do folículo formando o cumulus oophorus, que serve de apoio para o oócito. Assim, o cumulus oophorus mantém o oócito flutuando no líquido folicular, que se acumula de maneira crescente durante o desenvolvimento folicular e
promove o crescimento do antro associado ao aumento da parede folicular. As células do cumulus oophorus estão em continuidade à coroa radiada, que consiste em duas ou três camadas de células que envolvem o oócito. Este é denominado folículo maduro, folículo préovulatório ou folículo de Graaf (ver Figura 71.10). Onda folicular Cada conjunto de folículos préantrais de 1a ordem formado inicia uma onda de desenvolvimento folicular (ver Figura 71.8). Uma onda completa de desenvolvimento folicular, desde os folículos préantrais de 1a ordem até a ovulação de um de seus folículos, dura cerca de 85 dias. Portanto, o folículo que atinge a ovulação em um determinado ciclo iniciou seu desenvolvimento cerca de três ciclos antes. Assim, o ovário em idade reprodutiva apresenta conjuntos de folículos em diferentes estágios de desenvolvimento (ver Figura 71.9). A onda de desenvolvimento folicular tem duas fases distintas. A primeira, a fase de desenvolvimento tônico ou lento, dura 65 a 70 dias e depende da ação de FSH. Nessa fase, o folículo secundário préantral (ou folículo de 1a ordem) é transformado em folículo antral (ou folículo de 2a ordem) e sucessivamente em folículo de 3a, 4a e 5a ordens. O surgimento do antro ocorre durante a transformação do folículo de 1a ordem em folículo de 2a ordem, pela coalescência (ou junção) do líquido que se acumula e abre espaços entre as células granulares. Recrutamento folicular Das coortes (ou legiões) de folículos de 5a ordem de mesmas características, com diâmetro de 2.000 μm (2 mm), uma delas será recrutada no final da fase lútea de um ciclo menstrual, para o processo de maturação folicular no ciclo menstrual subsequente, em que um dos folículos da coorte recrutada atingirá a ovulação. As coortes de folículos em desenvolvimento que não foram recrutadas sofrerão atresia. Esse recrutamento depende de FSH e marca a primeira etapa da segunda fase de uma onda de desenvolvimento folicular, a fase de desenvolvimento rápido ou exponencial. As outras três etapas desta segunda fase são, em sequência: seleção, dominância e maturação para ovulação. Nessas etapas, os folículos de 5a ordem transformamse sequencialmente em folículos de 6a, 7a e 8a ordens, atingindo nesta última um diâmetro aproximado de 20 mm. A segunda fase dura em torno de 15 dias e depende extremamente de gonadotrofinas (FSH e LH). Seleção e dominância folicular Na coorte de folículos de 5a ordem, que inicia a fase de desenvolvimento rápido, um dos folículos tem crescimento maior que os demais. Essa seleção vai desencadear um processo para estabelecer a dominância desse folículo sobre os outros folículos de ambos os ovários. Não é claro o mecanismo pelo qual acontece a seleção, mas esse folículo é diferenciado estrutural e funcionalmente. Ele apresenta maior capacidade de proliferação de células granulares e de produção de estrogênios e, em consequência, armazena mais estrogênio no líquido antral, tem maior sensibilidade ao FSH, expressa os receptores para LH nas células da granulosa e produz outros fatores, entre os quais a inibina e o VEGF (ou fator de crescimento endotelial vascular). Com a seleção e o início do processo de dominância folicular, ocorre diminuição da secreção de FSH, devido à retroalimentação negativa, exercida neste caso principalmente pelo estrogênio, e auxiliada pela inibina. O aumento do estrogênio, associado à queda na secreção de FSH, parece ser o mecanismo crítico para o processo de dominância folicular. Isso porque os folículos menos desenvolvidos ainda são dependentes de FSH e a redução deste hormônio provoca nos folículos menores o decréscimo da produção de estrogênios e da sensibilidade ao próprio FSH, além de acúmulo de androgênios. Como consequência dessa situação, acontece atresia. Por outro lado, o folículo que começa a estabelecer dominância produz mais estrogênios, o que parece ser determinado, entre outros fatores, por maior proliferação de vasos neste folículo que nos folículos antrais menores. O VEGF, produzido pelas células da granulosa estimuladas pelo FSH, induz aumento de vascularização ao redor do folículo em maturação. Dados experimentais indicam que a deficiência de VEGF interrompe o desenvolvimento folicular préovulatório. O maior aporte sanguíneo permite que o folículo dominante tenha acesso a maiores quantidades de gonadotrofinas. Isso poderia explicar por que, na presença de concentrações idênticas de gonadotrofinas séricas, apenas um folículo matura enquanto os demais sofrem atresia. Além disso, há evidências de que o folículo dominante produz fatores inibidores de crescimento folicular que contribuem para o processo de atresia dos outros folículos. O processo de dominância culmina com a formação do folículo de 8a ordem, que sofrerá ruptura geralmente em torno de 10 a 12 h após os picos préovulatórios de LH e de FSH.
Ovulação
É o processo de ruptura folicular com a expulsão do oócito, juntamente com a zona pelúcida, o cumulus oophorus e parte do líquido folicular. O LH promove a continuidade da meiose no oócito, que será completada depois da fertilização pelo espermatozoide. Além disso, o LH promove expansão do cumulus oophorus, estimula a síntese de progesterona e de prostaglandinas, além de iniciar o processo de luteinização das células da granulosa, importante para a futura formação do corpo lúteo. As prostaglandinas promovem angiogênese, hiperemia e contração de células musculares do ovário, que contribuem para expulsão do oócito e elementos agregados. A progesterona aumenta a distensão da parede do folículo, que passa a acumular maior volume de líquido. O FSH e o LH estimulam a produção de plasminogênio pelas células da granulosa e da teca para formar plasmina, que ativa a colagenase. Esta enzima dissolve o colágeno da parede folicular, principalmente da lâmina basal. O FSH também aumenta a expressão de receptores para LH nas células da granulosa, essencial para o corpo lúteo futuro, e estimula a formação de ácido hialurônico, que dispersa as células do cumulus oophorus, liberandoo da parede folicular e tornandoo flutuante no líquido folicular. A ação de enzimas proteolíticas provoca também a ruptura das pontes de comunicação (gap junctions) entre o oócito e as células granulares. As alterações no processo final de maturação do folículo causam na superfície do ovário uma protuberância de forma cônica, o chamado estigma folicular. O rompimento desse estigma permite a extrusão do oócito e dos elementos agregados (Figura 71.11).
Formação e regressão do corpo lúteo Após a expulsão do oócito, a cavidade antral do folículo é invadida por uma rede de fibrina, por vasos sanguíneos e por células da granulosa e da teca interna, embora a maioria das células da teca se dispersem pelo estroma ovariano. As células da granulosa param de se dividir e sofrem hipertrofia, formando as células luteínicas grandes; estas são ricas em mitocôndrias, retículo endoplasmático liso, gotículas de lipídios e, em muitas espécies, de um pigmento carotenoide, a luteína, responsável pela coloração amarelada do corpo lúteo. As células da teca compõem as células luteínicas menores. A transformação destas células é chamada de luteinização, que se dá sob a ação do LH, daí seu nome de hormônio “luteinizante”, que significa “tornar amarelo”. O corpo lúteo é uma glândula endócrina temporária cuja formação começa poucas horas após a expulsão do oócito; sua secreção hormonal máxima acontece ao redor de 7 a 8 dias após a ovulação. Se não ocorre fecundação do óvulo pelo espermatozoide e início do processo de implantação do concepto, iniciase a regressão do corpo lúteo, que se completa no 12o dia depois da ovulação, ou seja, 2 dias antes da menstruação. A fase lútea tem duração constante, de modo que as variações na duração do ciclo em mulheres são devidas a variações na duração da fase de desenvolvimento folicular. Portanto, podese determinar com precisão o dia da ovulação subtraindose 14 dias do 1o dia da menstruação (Figura 71.12). O processo de regressão do corpo lúteo é chamado de luteólise e consiste em isquemia e necrose progressiva das células endócrinas, acompanhada por infiltração de leucócitos, macrófagos e fibroblastos. Formase assim um tecido cicatricial avascular, o corpo albicans. O mecanismo que induz a luteólise não é bem entendido. Presumese que ocorra uma redução da sensibilidade das células luteínicas às concentrações baixas de LH durante a fase lútea. Outra hipótese sugere que não é a falta de suporte luteotrófico, mas a produção de um fator luteolítico, que induz a regressão do corpo lúteo. Em algumas espécies, tem sido descrita uma sinalização de natureza química do endométrio uterino para o ovário, motivada pela falta de fertilização e implantação, para desencadear a luteólise no ovário. A prostaglandina F2α (de origem endometrial), a inibina e a ocitocina (produzidas pelo corpo lúteo) têm sido identificadas como possíveis fatores luteolíticos. No entanto, estes mecanismos não foram confirmados em humanos.
Figura 71.11 ■ A. Representação esquemática do estigma ovulatório. B. Fotografia de estigma em folículo ovulatório de mulher. C. Representação esquemática da ovulação. (Fotografia gentilmente cedida pelo Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP.)
Figura 71.12 ■ Representação esquemática de ciclos menstruais de duração mais frequente (28 dias), mais curta (24 dias) e mais longa (32 dias). Os dias de 1 a 5 são os da menstruação. Notase que o período pósovulatório, da ovulação (indicada pela seta) até a menstruação, corresponde à fase lútea, constante em todos os ciclos. Portanto, a variação na duração dos ciclos menstruais decorre da variação na duração da fase folicular.
O processo de crescimento folicular e a diferenciação posterior para corpo lúteo são complexos, e somente 0,1% dos folículos completam todos os estágios com sucesso. Atresia folicular é o mecanismo de eliminação de folículos que iniciaram o processo de desenvolvimento, mas não conseguiram completálo para atingir a ovulação. A grande maioria dos folículos sofre atresia em alguma etapa do desenvolvimento. A atresia folicular ocorre continuamente desde a vida fetal até a menopausa, e há várias evidências de que envolva apoptose, um mecanismo fisiológico de morte celular programada. A inversão da relação estrogênio/androgênio no folículo, provocando hiperandrogenismo folicular, pode ser o fator desencadeante da atresia. A atresia folicular se caracteriza por picnose, degeneração do oócito e uma série de alterações das células da granulosa e da teca, que dependem do estágio de desenvolvimento atingido pelo folículo. Entre estas alterações, ocorrem: redução do número de receptores para gonadotrofinas e estrogênios nas células da granulosa, picnose dos núcleos das células granulares, luteinização das células da granular (mais frequente em ovários de gestantes), esfoliação de células granulares para o líquido antral, regressão de células tecais até tornaremse indistinguíveis de células estromais do ovário, além de invasão do antro por fibroblastos e vascularização.
HORMÔNIOS OVARIANOS Além da função gametogênica, representada por desenvolvimento folicular e liberação do óvulo, o ovário tem a função de secretar várias substâncias, entre as quais se destacam os hormônios esteroides sexuais: estrogênios, progestógenos e androgênios.
▸ Estrogênios Três estrogênios são importantes na mulher: βestradiol, estrona e estriol. O mais importante é o estradiol, secretado pelo ovário e em pequena quantidade pela suprarrenal. A estrona, embora secretada em pequenas quantidades pelo ovário,
originase principalmente da conversão de androgênios em tecidos periféricos; tem 1/12 da potência do estradiol. No fígado, ambos – estradiol e estrona – podem ser convertidos em um estrogênio mais fraco, o estriol, que apresenta 1/80 da potência do estradiol. Por este motivo, várias vezes, para nos referirmos aos estrogênios, citaremos apenas o estradiol.
▸ Progestógenos O mais importante deles, e que está em mais altas concentrações na circulação, é a progesterona, produzida no ovário e também na zona reticulada da glândula suprarrenal. Pequenas quantidades de 17αhidroxiprogesterona são também secretadas juntamente com a progesterona. Pela sua importância, muitas vezes a progesterona será o único progestógeno citado neste capítulo.
▸ Biossíntese dos esteroides sexuais Estes esteroides são produzidos a partir de colesterol, um precursor comum, que pode ser originado da dieta e captado do sangue circulante ou formado no fígado a partir de acetilcoenzima A. As células ovarianas também podem sintetizar colesterol de novo. A síntese desses hormônios pode se dar em diferentes tipos de células ovarianas em função da presença das enzimas necessárias e suas respectivas quantidades. Assim, o principal hormônio produzido varia de acordo com o tipo de célula onde acontece sua síntese. O colesterol é transportado por uma proteína reguladora aguda da esteroidogênese (proteína StAR, sigla inglesa referente ao nome da proteína) para dentro da mitocôndria. O primeiro passo para a síntese de esteroides ovarianos é a conversão, na mitocôndria, do colesterol (com 27 átomos de carbono) em pregnenolona (com 21 carbonos) pela enzima P450, conhecida como scc (sidechaincleavage) ou 20,22desmolase, que cliva a cadeia lateral do colesterol, de 6 carbonos (Figura 71.13). Estas duas etapas são dependentes da ação do LH e ocorrem nas células da teca interna durante toda a fase folicular, nas células da granulosa durante a fase folicular tardia e também nas células luteínicas. A partir da pregnenolona, as demais reações acontecem no citoplasma. Ela pode ser utilizada por duas vias distintas: pela via delta4 (δ4), em que será transformada em progesterona, 17hidroxiprogesterona (ambas com 21 carbonos) e androstenediona (com 19 carbonos), ou pela via delta5 (δ5), na qual será modificada em 17αhidroxipregnenolona (com 21 carbonos), desidroepiandrosterona (DHEA) e androstenediona (ambas com 19 carbonos). A predominância de uma ou outra via depende da atividade enzimática presente na célula. Nas células da teca interna predomina a via δ5 e nas luteínicas, a via δ4. A androstenediona consiste no principal androgênio produzido pelo ovário. Em parte, é secretada para a circulação sistêmica, podendo ser convertida em testosterona e estrona nos tecidos periféricos. Outra parte da androstenediona se converte em testosterona no próprio ovário. Por ação da enzima aromatase, a androstenediona e a testosterona podem converterse, respectivamente, em estrona e em estradiol (ambos com 18 carbonos). A estrona pode ser convertida em estradiol e viceversa. Finalmente, no fígado o estradiol e a estrona se convertem em estriol.
▸ Transporte dos esteroides sexuais Os esteroides ovarianos liberados no sangue têm afinidade variável por proteínas plasmáticas, principalmente globulinas e albuminas. Assim, eles circulam na forma livre, a que apresenta atividade biológica, e na forma ligada a proteínas plasmáticas denominadas proteínas transportadoras ou ligantes. Menos de 10% da concentração plasmática dos hormônios esteroides ovarianos circulam na forma livre. Para cada hormônio, há um equilíbrio dinâmico entre a fração livre e a ligada. Essa relação pode variar em condições fisiológicas e patológicas. A fração ligada funciona como uma reserva circulante de hormônio, que pode ser mobilizada rapidamente à medida que se rompa a ligação do hormônio com a proteína transportadora e o hormônio torne à forma livre. Os estrogênios têm grande afinidade por uma proteína chamada globulina ligante de esteroides sexuais (SHBG), cuja síntese ocorre no fígado, estimulada pelos estrogênios e inibida pelos androgênios. A progesterona tem mais afinidade pela transcortina ou proteína ligante de cortisol (CBG).
Figura 71.13 ■ Biossíntese dos hormônios sexuais femininos, com identificação das vias δ4 e δ5. As enzimas envolvidas em cada etapa estão indicadas por números e identificadas na parte inferior esquerda da figura.
A proporção entre a fração livre e a ligada dos estrogênios não tem variação significativa durante o ciclo menstrual, mas modificase no decurso da gestação devido à elevação da síntese de SHBG estimulada pelos estrogênios. A disponibilidade maior de SHBG aumenta a possibilidade de ligação de estrogênios na circulação e, por conseguinte, da fração ligada. A proporção também se altera após a menopausa ou em distúrbios ovarianos em que se verifica aumento da secreção de androgênios. A síntese de SHBG também pode crescer no hipertireoidismo ou diminuir por ação de insulina, GH, IGFI e progesterona. Há uma relação inversa entre SHBG e peso corporal, e na obesidade pode ocorrer alteração significativa da fração livre de esteroides sexuais. A elevação de SHBG pode ser indicação de quadro de resistência à insulina (ou hiperinsulinemia), enquanto a diminuição, indicação de diabetes tipo 2.
▸ Síntese dos hormônios não esteroides Além dos hormônios esteroides, o ovário produz outras substâncias que apresentam ações endócrinas, parácrinas e autócrinas já identificadas. Porém, os significados funcional e fisiopatológico de algumas destas substâncias não são bem conhecidos. As ativinas (A, B e AB) e as inibinas (A e B) são glicoproteínas formadas pela combinação de duas subunidades ligadas por duas pontes dissulfídicas. Há três tipos de subunidades que se combinam: uma de tipo alfa e duas de tipo beta (beta A e beta B). A combinação de duas cadeias beta, homólogas ou heterólogas, constitui a ativina A (duas cadeias beta A), a ativina B (duas cadeias beta B) e a ativina AB (uma cadeia beta A e outra beta B). As combinações da cadeia alfa com cada uma das cadeias beta compõem a inibina A (uma cadeia alfa e uma beta A) e a inibina B (uma cadeia alfa e outra
beta B). A secreção de um ou outro tipo de inibina varia durante o ciclo menstrual. A secreção de inibina pelas células da granulosa do ovário é estimulada pelo FSH. Por sua vez, a inibina faz retroalimentação negativa sobre a síntese e secreção de FSH. A ativina tem ação oposta à da inibina sobre a secreção de FSH. O estudo da inibina tem despertado interesse pela possibilidade de este hormônio ser um indicador de climatério (ou perimenopausa), desde que haja evidências de uma relação inversa entre concentrações plasmáticas de inibina (menores) e de FSH (maiores), na fase folicular de mulheres neste período. A folistatina, outra substância de natureza peptídica produzida pelo ovário, tem ação inibitória sobre a secreção de FSH, provavelmente por impedir a ação da ativina. A relaxina é um polipeptídio sintetizado principalmente pelas células da granulosa luteinizadas do corpo lúteo, com estrutura química semelhante à da insulina, mas sem mostrar atividade insulínica. Sua secreção é estimulada pela gonadotrofina coriônica e apresenta como ação mais conhecida o relaxamento dos ligamentos pélvicos e amolecimento do colo uterino na gestação. A deficiência de relaxina não tem sido relacionada com alterações na gestação; no entanto, sua hipersecreção tem se associado ao parto prematuro. A relaxina também é produzida no útero e na placenta, entre outros órgãos. Sua presença no sêmen parece facilitar a motilidade dos espermatozoides. Outras ações referidas desse hormônio são: aumento da síntese de glicogênio e da captação de água pelo miométrio, além de diminuição da contratilidade uterina. Um pico de relaxina ocorre imediatamente após o pico préovulatório de LH e durante a menstruação, mas seu significado funcional não está esclarecido. Outras substâncias provavelmente com ações parácrinas e autócrinas, ainda pouco esclarecidas, são produzidas pelo ovário, como: fatores de crescimento (EGF, TGF, FGF, PDGF, TNFalfa, IL1, IGFI), prórenina, derivados da pró opiomelanocortina (ACTH, betalipotrofina, betaendorfina), CRH, endotelina, ocitocina.
▸ Controle da secreção de esteroides ovarianos pelas gonadotrofinas Modelo duas células–dois hormônios A síntese dos esteroides ovarianos ocorre de maneira coordenada e envolve obrigatoriamente os dois tipos de células foliculares, da granulosa e da teca (Figura 71.14). Na fase folicular do último ciclo (em que um grupo de folículos desenvolvese para obter a dominância e atingir a ovulação), por volta do 5o ao 7o dia, acontece um aumento da síntese de estrogênios e de receptores para FSH nas células da granulosa e de receptores para o LH nas células da teca interna, o que torna estas células mais sensíveis às gonadotrofinas. Isso é essencial para o crescimento adicional do folículo, que é totalmente dependente de controle hormonal; além disso, o aumento de receptores para o FSH confere ao folículo a capacidade de manter a resposta a este hormônio à medida que suas concentrações plasmáticas diminuem a partir desse momento. Agora, sob a influência do LH as células da teca interna, que têm baixa atividade da enzima aromatase, irão produzir androgênios (testosterona e androstenediona). Uma vez que a camada granulosa é avascular, os androgênios produzidos na teca difundemse para as células granulosas, nas quais o FSH não só estimula a proliferação celular como induz a síntese da enzima aromatase, que converte os androgênios provenientes da teca interna em estrogênios. Por sua vez, os estrogênios aumentam a expressão de receptores para o FSH, tornando as células da granulosa mais sensíveis a este hormônio, que se encontra em baixas concentrações nessa fase do ciclo. O FSH, por sua vez, induz proliferação das células da granulosa e ativa a aromatase, com consequente crescimento do folículo e aumento na produção de estrogênios.
Figura 71.14 ■ Modelo duas células–dois hormônios. Durante a fase folicular, as células da teca interna expressam receptores para o LH e as da granulosa, receptores para o FSH. Nas células da teca interna, o LH, via cAMP, induz síntese da enzima side chain cleavage (scc) e a conversão do colesterol em androgênios (androstenediona e testosterona), principalmente pela via δ5 (setas mais espessas). Uma vez que estas células não sintetizam aromatase e a camada da granulosa é avascular, os androgênios produzidos na teca interna difundemse para as células da granulosa, onde são convertidos pela aromatase em estradiol e estrona. O FSH, agindo também via cAMP, além de estimular a síntese de aromatase, induz proliferação das células da granulosa e crescimento folicular. No final da fase folicular, as células da granulosa passam a expressar receptores para o LH que, via cAMP, estimula a síntese de scc, convertendo o colesterol em progesterona. Este hormônio não é metabolizado a androgênios (linha pontilhada), pois essas células não produzem 17αhidroxilase e 17,20liase. As etapas compreendidas na chave (*) tornamse significativas somente no final da fase folicular e na fase lútea. StAR, proteína reguladora aguda da esteroidogênese; DHEA, desidroepiandrosterona.
Assim, é gerado um mecanismo intraovariano de retroalimentação positiva responsável pelo aumento lento e gradual da produção de estrogênios. Entretanto, as concentrações de progesterona e androgênios permanecem baixas, uma vez que a maior parte da progesterona é convertida em androgênios, os quais são convertidos em estrogênios. Com o crescimento exponencial do folículo, a secreção de estrogênios, que aumenta lentamente na primeira metade da fase folicular, passa a se elevar de modo mais acelerado na segunda metade desta fase. Neste período, isto é, na fase folicular tardia, um dos folículos atinge a condição de dominância, cuja principal característica é a atividade aumentada da aromatase e, portanto, maior capacidade de produzir estrogênios quando comparado aos folículos antrais menores. Esta característica dos folículos dominantes parece ser determinada, entre outros fatores, por um aumento mais acentuado da vascularização que o verificado nos folículos antrais menores, permitindo ao folículo dominante ter acesso a maiores quantidades de gonadotrofinas. No final da fase folicular, de 2 a 3 dias antes do pico préovulatório de LH e durante o pico de estrogênios, as células da granulosa do folículo ovulatório passam a sintetizar receptores para LH por ação do FSH e dos estrogênios. O LH ativa a adenilciclase, promovendo a formação de cAMP a partir do ATP, e desencadeia uma série de reações que induzem a síntese da enzima scc, e portanto de esteroides a partir do colesterol. Devido a essas células apresentarem baixa atividade da enzima 17,20liase (que converte a 17αhidroxiprogesterona em androstenediona), passam a produzir quantidades aumentadas de progesterona e de 17αhidroxiprogesterona, além de manterem a conversão dos androgênios provenientes da teca em estrogênios. A concentração plasmática destes progestógenos aumenta mais rapidamente nas 12 h que
precedem o pico préovulatório de gonadotrofinas (Figuras 71.15 e 71.16). No período préovulatório, além da síntese de receptores para o LH nas células da granulosa, o fato de a camada de células da granulosa, que era avascular, passar a ser invadida por vasos provenientes da teca contribui também para o aumento da síntese de progestógenos. Esta neovascularização da camada da granulosa resulta em maior exposição às gonadotrofinas e em crescimento do aporte do substrato (colesterol) para a síntese de esteroides, o que constitui um fator decisivo para o aumento agudo da secreção de progestógenos na fase préovulatória. Embora muitos autores proponham que o aumento da secreção de progesterona ocorra somente após o pico de gonadotrofinas e da ovulação, pelo corpo lúteo, uma elevação préovulatória de progesterona foi claramente demonstrada em um estudo clássico realizado em mulheres. Nesse estudo, durante 5 dias no período periovulatório, foram medidas, a cada 2 h, as concentrações plasmáticas de gonadotrofinas, estradiol e progesterona (ver Figura 71.16). Este estudo mostra que a secreção de progesterona aumenta no final da fase folicular, cerca de 12 horas antes da deflagração do pico préovulatório de LH, sugerindo que este está relacionado com o aumento da secreção de progesterona. À medida que iniciam a produção de progesterona, as células da granulosa começam a perder seus receptores para FSH e para os estrogênios, o que resulta em menor produção de estrogênios que de progesterona. Assim, a fase ovulatória é caracterizada por concentrações plasmáticas elevadas de estrogênios e pelo início do aumento da secreção de progesterona (e de 17αhidroxiprogesterona), que coincide com o início da queda do pico de estrogênios (ver Figura 71.15). Nesse período, há também um crescimento, de menor magnitude, das concentrações plasmáticas de testosterona e de androstenediona.
Figura 71.15 ■ Perfil da secreção de gonadotrofinas (LH e FSH), estradiol (E2) e progesterona (P4) em um ciclo menstrual de 28 dias. O dia zero indica o dia do pico préovulatório de gonadotrofinas. Na fase folicular (–14 a 0), ocorre um aumento gradativo de estradiol. Cerca de 4 a 5 dias antes do pico de LH, o crescimento folicular é acelerado, elevando mais rapidamente a produção de estradiol, que atinge o máximo cerca de 1 dia antes do pico de LH. Na fase folicular tardia, 2 a 3 dias antes do pico de LH, iniciase um aumento da secreção de progesterona. O aumento da secreção de estradiol e de progesterona induz os picos de LH e de FSH. Na fase lútea (0 a 14), o corpo lúteo secreta grande quantidade de progesterona e menor quantidade de estradiol. Depois de atingir a secreção máxima, ao redor do 7o dia, se não houve concepção, o corpo lúteo degenera, diminuindo a produção de esteroides, o que culmina com o início da menstruação, que acontece no dia 14. (Adaptada de Roseff et al., 1989.)
A elevação da produção de estrogênios e progesterona no final da fase folicular induz os picos préovulatórios de LH (de grande magnitude) e de FSH (de menor magnitude). O aumento agudo de LH induz uma grande elevação da produção
do líquido antral no folículo dominante, acelerando seu crescimento e culminando com a ruptura da parede folicular e a expulsão do oócito. Assim, completase a primeira fase do ciclo ovariano, que é seguida pela fase lútea. Na fase lútea, as células da granulosa luteinizadas produzem grande quantidade de progestógenos, principalmente progesterona, embora quantidades significantes de 17αhidroxiprogesterona sejam secretadas. Essas células produzem também estrogênios, em menor quantidade, principalmente o 17βestradiol. Portanto, esta fase é caracterizada por grande pico de progesterona e um pico menor de estrogênios. As células da teca interna luteinizadas produzem progesterona e androgênios (androstenediona e testosterona). Além dos esteroides sexuais, o corpo lúteo secreta também inibina e ocitocina. As concentrações plasmáticas de LH e FSH diminuem após os picos préovulatórios e permanecem baixas até o final da fase lútea, quando ocorre outro aumento de FSH. A formação do corpo lúteo é inteiramente dependente do pico préovulatório de LH; adicionalmente, embora os fatores que asseguram a sua manutenção ainda não estejam bem estabelecidos, sabese que concentrações basais de LH são importantes e suficientes para manter a função lútea.
Figura 71.16 ■ Dinâmica da secreção de gonadotrofinas (LH e FSH), estradiol (E2) e progesterona (P4) no período periovulatório, em mulheres. As amostras sanguíneas foram colhidas a cada 2 horas durante 5 dias. Os pontos de interseção (círculos rosa) das duas retas traçadas nos gráficos do LH e da progesterona (tracejadas em rosa) correspondem ao momento de mudança do ritmo (angulação da reta) de secreção e indicam o início dos picos desses hormônios. Observase que o pico de progesterona começa cerca de 12 horas antes do início do pico de LH (indicado no tempo zero), sugerindo que a progesterona seja responsável pela deflagração do pico préovulatório de LH. (Adaptada de Hoff et al., 1983.)
Alterações na esteroidogênese na teca e síndrome do ovário policístico A produção excessiva de androgênios pelas células da teca é uma das principais características da síndrome do ovário policístico (SOP), que pode atingir 18% da população feminina e é a principal causa de infertilidade feminina. A SOP é um distúrbio complexo com manifestações clínicas muito heterogêneas, tais como cistos foliculares, distúrbios menstruais, menor frequência de ovulação e menstruação, hiperandrogenismo com consequente hirsutismo, além de obesidade e resistência à insulina que predispõem a diabetes melito tipo 2, síndrome metabólica e doenças cardiovasculares. É estabelecido (Consenso de Rotterdam, 2003) que o seu diagnóstico depende da presença de pelo menos dois dos seguintes critérios: (1) ovários com cistos foliculares, (2) hiperandrogenismo clínico ou laboratorial e (3) anovulação ou oligoovulação, com a exclusão de outras causas. O presumível caráter hereditário é de modelo desconhecido. Os mecanismos fisiopatológicos reconhecidos na SOP são: (1) alteração intrínseca na esteroidogênese da teca ovariana que leva ao hiperandrogenismo; (2) aumento na frequência e amplitude dos pulsos de LH, com secreção normal ou reduzida de FSH; e (3) alteração da ação da insulina que leva à resistência insulínica com hiperinsulinemia compensatória. O hiperandrogenismo resultaria da hipertecose folicular (hiperplasia da teca) provocada pelo aumento da secreção de LH, e da menor metabolização de androgênios em estrogênios na camada da granulosa pela aromatase, cuja atividade é reduzida pela menor ação da insulina, quando na presença de resistência a esse hormônio. Estresse e aumento da atividade do sistema nervoso simpático podem ser relacionados ao desenvolvimento da SOP. Na camada tecal, os corpos celulares préganglionares simpáticos recebem aferências de áreas cerebrais relacionadas ao estresse, e os terminais simpáticos liberam norepinefrina (NE), principal neurotransmissor envolvido na regulação da esteroidogênese e foliculogênese e capaz de aumentar a secreção de andrógenos. Em mulheres com SOP, é observado aumento da densidade de fibras simpáticas no ovário, da atividade dos nervos simpáticos periféricos e da concentração de metabólitos urinários da NE, e o aumento da NE está diretamente relacionado com aumento plasmático de testosterona. Por outro lado, eletroacupuntura e exercícios, que diminuem a atividade simpática periférica, melhoram o quadro de SOP. Dados experimentais em ratas mostram que estresses crônicos ativam o sistema simpático central e periférico, aumentam o conteúdo de NE no ovário, alteram o ciclo estral, diminuem a taxa ovulatória e induzem formação de cistos foliculares com hipertecose, bem como hiperandrogenismo. Portanto, parece que a hiperatividade do sistema nervoso simpático pode predizer a vulnerabilidade da mulher para o desenvolvimento da SOP.
Controle da secreção de gonadotrofinas pelos esteroides ovarianos e pelo GnRH Assim como as gonadotrofinas controlam a secreção de esteroides ovarianos, os estrogênios e a progesterona regulam a secreção de LH e FSH por retroalimentação ora positiva (no período préovulatório), ora negativa (na maior parte do ciclo menstrual). Além dos esteroides ovarianos, a secreção de gonadotrofinas é controlada diretamente pelo neuro hormônio hipotalâmico GnRH. Origem do GnRH As células que produzem GnRH têm origem na placa olfatória e migram durante a embriogênese para o hipotálamo médio basal, especialmente para o núcleo arqueado. A migração inadequada dos neurônios GnRH explica a deficiência de gonadotrofinas no quadro de infertilidade do hipogonadismo gonadotrófico associado à anosmia (perda ou enfraquecimento do olfato), que constitui a denominada síndrome de Kallmann. Em humanos, neurônios produtores de GnRH concentramse no núcleo arqueado, embora também estejam presentes, por exemplo, na área préóptica medial. A maioria destes neurônios projetase para a eminência mediana, em que o GnRH é secretado no plexo primário do sistema porta hipofisário, de onde alcança os gonadotrofos via vasos porta longos. Nos gonadotrofos, o GnRH ligase a seus receptores, e estimula a síntese e a secreção de gonadotrofinas.
Secreção pulsátil de GnRH e gonadotrofinas A secreção de LH e FSH ocorre de maneira pulsátil após a puberdade, nas diferentes condições da vida reprodutiva. O padrão pulsátil da liberação de gonadotrofinas é mantido pela secreção também pulsátil do GnRH (Figura 71.17). Esta forma de secreção do GnRH mantém a sensibilidade dos gonadotrofos a este neuropeptídio e assim assegura a secreção de gonadotrofinas. Por outro lado, a exposição dos gonadotrofos a frequência muito alta de pulsos de GnRH, bem como a concentrações elevadas e constantes (não pulsáteis) de GnRH, inibe a expressão de receptores de GnRH nos gonadotrofos (pelo mecanismo de downregulation), dessensibilizando o sistema e consequentemente diminuindo a secreção de gonadotrofinas (Figura 71.18). O conhecimento deste mecanismo deu origem aos tratamentos atualmente utilizados para
controle de tumores de próstata, de liomiomas uterinos e de endometriose; essas terapias consistem na administração de GnRH (ou análogos) em doses altas para reduzir a resposta dos gonadotrofos a este hormônio (por dessensibilização). Assim, a secreção de gonadotrofinas é diminuída e consequentemente a produção de hormônios sexuais, que têm ação trófica sobre a próstata e o endométrio, resultando em atrofia dos tecidos em questão nas três patologias. Por outro lado, o desenvolvimento folicular e a ovulação podem acontecer em pacientes com síndrome de Kallmann, tratadas com análogos sintéticos de GnRH liberados de modo pulsátil (por bomba de infusão programada). Embora os mecanismos envolvidos na geração destes pulsos não estejam ainda bem estabelecidos, tem sido proposta a existência de um “gerador de pulsos de GnRH” no hipotálamo. Neurônios deste gerador de pulsos disparam sincronicamente, resultando na secreção de pulsos de GnRH nos vasos portahipofisários; estes pulsos, por sua vez, impõem aos gonadotrofos um perfil pulsátil semelhante de secreção de gonadotrofinas, em especial do LH. Este mecanismo gerador de pulsos parece contar com grupos de neurônios que funcionam como marcapasso, cuja atividade elétrica rítmica é seguida, de maneira sincronizada, pelos demais neurônios GnRH. Há controvérsia se o pico de GnRH e de gonadotrofinas é consequência de um aumento de amplitude, de frequência, ou de ambos.
Figura 71.17 ■ Correlação dos pulsos de GnRH no sangue portal com os pulsos de LH plasmático, em uma ovelha ovariectomizada. As amostras foram colhidas a cada 2,5 minutos. (Adaptada de Clarke, 1992.)
Figura 71.18 ■ Relação do tipo de secreção de GnRH (pulsátil ou contínua) com a secreção de LH e FSH. Em macacas rhesus ovariectomizadas e com lesão no hipotálamo, a infusão de GnRH de modo pulsátil induz secreção de LH e FSH, a qual é inibida pela infusão contínua de GnRH (após o dia zero). A secreção de gonadotrofinas é restabelecida (depois do dia 20) com a infusão de GnRH em pulsos. (Adaptada de Belchetz et al., 1978.)
Controle da liberação de GnRH por neurotransmissores/neuromoduladores A liberação pulsátil de GnRH, embora dotada de um ritmo intrínseco, é mediada por neurotransmissores e neuromoduladores por meio de contatos sinápticos de neurônios intra e extrahipotalâmicos (que produzem estas substâncias) com os corpos celulares e terminais dos neurônios GnRH. Os aminoácidos excitatórios (especialmente o glutamato), a norepinefrina, a serotonina, a kisspeptina e o neuropeptídio Y (NPY), entre outros, estimulam a secreção de GnRH, enquanto os peptídios opioides, a dopamina e o ácidoαaminobutírico (GABA) a inibem. De fato, descrevese uma sincronia entre o padrão de pulsos de GnRH e a liberação de norepinefrina, NPY e GABA, que também ocorre de modo pulsátil. A observação de que a lesão de neurônios noradrenérgicos induz completo desaparecimento dos pulsos de LH sugere que a atividade pulsátil dos neurônios GnRH, se não comandada por neurotransmissores, é, no mínimo, amplificada por eles. O reconhecimento de que muitos desses neurotransmissores agiam de forma indireta nos neurônios GnRH e de que a deleção de genes de vários neurotransmissores não produziram fenótipos reprodutivos com evidentes alterações despertou o sentimento na comunidade científica de que algo estava faltando (o “elo perdido”). Em 2003, um grande avanço na compreensão dos mecanismos centrais que controlam a secreção de GnRH surgiu da observação de que a perda de função do gene da kisspeptina ou de seu receptor (GPR54) estava associada a hipogonadismo hipogonadotrópico, condição rara associada à deficiência na secreção de gonadotrofinas que acarreta atrasos ou mesmo ausência da puberdade. Desde então, foi demonstrado que os neurônios produtores de kisspeptina se projetam diretamente para os corpos celulares e axônios dos neurônios GnRH, modulando sua atividade por meio de seus receptores, expressos nos neurônios GnRH. Por sua vez, síntese e secreção dos neurônios kisspeptinérgicos são reguladas direta ou indiretamente pelos esteroides ovarianos. A regulação indireta desses neurônios se dá por neurotransmissores centrais que, por sua vez, têm sua síntese e liberação reguladas pelos esteroides ovarianos. Assim, esses neurônios parecem ser um importante centro de convergência de sinais centrais e periféricos que modulam os neurônios GnRH.
Controle da liberação de gonadotrofinas por retroalimentação dos esteroides Os esteroides ovarianos regulam a secreção de gonadotrofinas por intermédio de dois mecanismos de efeitos opostos: o de retroalimentação (feedback) positiva e o de retroalimentação negativa. A retroalimentação negativa ocorre na maior parte de um ciclo reprodutivo e mantém baixas as concentrações de gonadotrofinas. Este mecanismo inibitório pode ser facilmente demonstrado pelo aumento da secreção de LH e FSH que se dá após a menopausa ou a ovariectomia, em consequência da queda acentuada da secreção de esteroides ovarianos. Este mecanismo inibitório pode também ser demonstrado pela queda de secreção destas gonadotrofinas observada após a administração de estrogênios e/ou progesterona na menopausa, ou após o uso de contraceptivos orais. Por outro lado, o mecanismo de retroalimentação positiva acontece tipicamente no período préovulatório, quando os estrogênios, seguidos da progesterona, promovem
aumento agudo da secreção de gonadotrofinas que induz a ovulação. A ocorrência destes dois tipos de regulação que se intercalam durante o ciclo, de maneira que o controle negativo é substituído em determinado momento pelo positivo e viceversa, envolve mecanismos bastante complexos e ainda não totalmente elucidados. Estes mecanismos são descritos a seguir. Retroalimentação positiva Ao longo da fase folicular, a elevação gradual da secreção de estrogênios pelas células da granulosa, que acontece durante o crescimento dos folículos antrais, provoca alterações morfológicas e fisiológicas em vários níveis do eixo reprodutivo para preparar o pico préovulatório de gonadotrofinas. No hipotálamo, o estradiol aumenta a densidade de fibras e de espinhas dendríticas dos neurônios GnRH e aproxima os terminais GnRH ao espaço perivascular, onde esse hormônio será liberado, facilitando a absorção desse neuro hormônio no plexo primário. Além disso, estimula a síntese de GnRH ao mesmo tempo que inibe a sua degradação e liberação, aumentando, assim, os estoques intracelulares. É importante considerar que os efeitos positivos do estradiol nos neurônios GnRH são exercidos de forma indireta, uma vez que receptores do tipo alfa, relacionados ao feedback positivo, não são expressos nesses neurônios. Nos neurônios kisspeptinérgicos, o estradiol aumenta a síntese de kisspeptina, embora iniba sua liberação, sugerindo a produção de estoques desse peptídio para a ocorrência do pico. A expressão de receptores para a progesterona é aumentada em áreas hipotalâmicas e extrahipotalâmicas pelo estradiol, sensibilizando, dessa forma, o sistema a uma ação posterior desse esteroide. Na hipófise, o estradiol estimula a proliferação de gonadotrofos e, nessas células, aumenta a síntese de LH e FSH, bem como a expressão de receptores para GnRH e para os próprios estrogênios. Esse aumento de síntese de gonadotrofinas não é acompanhado por aumento de liberação desses hormônios, permanecendo suas concentrações plasmáticas baixas até o final da fase folicular. Consequentemente, há elevação nos estoques intracelulares desses hormônios, o que permite que grandes quantidades sejam liberadas agudamente no momento do pico préovulatório. O aumento de síntese de receptores para o GnRH nos gonadotrofos garante que essas células respondam com capacidade máxima ao GnRH, a fim de gerar um pico préovulatório de gonadotrofinas de grande magnitude. Além disso, esse aumento de sensibilidade dos gonadotrofos ao GnRH causado pelos estrogênios é potenciado pelo GnRH, que eleva a síntese de receptores para o próprio GnRH, em um mecanismo denominado selfpriming, amplificando assim a sensibilidade hipofisária ao GnRH. Ainda, o aumento de receptores para os estrogênios nos gonadotrofos é importante para aumentar a sensibilidade dessas células às ações positivas desse esteroide. Em áreas hipotalâmicas e extrahipotalâmicas, o estradiol inibe a liberação de neurotransmissores excitatórios e estimula a de neurotransmissores inibitórios, de forma a manter a secreção de GnRH inibida. O estradiol aumenta a síntese e inibe a degradação de neurotransmissores excitatórios como serotonina e norepinefrina, bem como a expressão de seus receptores promovendo uma sensibilização de áreas hipotalâmicas à ação posterior desses neurotransmissores. No sistema noradrenérgico, cujo aumento de atividade é importante para a deflagração do pico préovulatório, embora o estradiol induza síntese de norepinefrina, ele inibe a atividade elétrica desses neurônios, inibindo assim a liberação desse neurotransmissor, de forma que uma maior quantidade fica disponível para o momento de deflagração do pico pré ovulatório. Além disso, o estradiol aumenta a expressão de receptores para a progesterona, cuja ação é importante no momento do pico de gonadotrofinas. Esses efeitos positivos dos estrogênios ocorrem via receptores estrogênicos do tipo alfa, portanto em neurônios não GnRH, e têm longa latência quando comparados com o mecanismo de retroalimentação negativa, que ocorre em minutos. Esse tempo longo é necessário para todo o preparo do sistema que permite a ocorrência de um evento de grande magnitude (o pico de gonadotrofinas), uma vez que envolve mecanismos genômicos de síntese de hormônios, receptores e neurotransmissores, bem como alterações morfológicas no eixo reprodutivo. Portanto, uma vez que sem toda essa preparação do eixo não seria possível a ocorrência de um pico de gonadotrofinas de grande magnitude, é essencial a compreensão de que todos esses mecanismos anteriormente descritos, que ainda não se traduzem em aumento das concentrações plasmáticas de LH e FSH (período considerado de feedback negativo), são partes integrantes do mecanismo de retroalimentação positiva. A exposição prévia e por longo tempo dos componentes do eixo reprodutivo aos estrogênios é estritamente necessária para a ação da progesterona no final da fase folicular, visto que os estrogênios são os principais indutores da síntese de receptores para progesterona. Isso pode ser confirmado por estudos que demonstram que a progesterona per se não é capaz de induzir elevação de secreção de gonadotrofinas sem a exposição prévia aos estrogênios. No final da fase folicular (fase ovulatória), o aumento na secreção de estrogênios é acelerado, e suas concentrações plasmáticas são máximas. Nesse
período, considerado como “período crítico”, o folículo dominante passa a expressar receptores para LH nas células da granulosa e a sintetizar progesterona, que, como já descrito, parece ser responsável pela deflagração dos picos. Há um aumento adicional e rápido de síntese de GnRH e LH, e os picos préovulatórios desses hormônios são deflagrados. Assim, parece que o folículo dominante, quando já em condições de ovular, sinaliza o momento de deflagração do pico de GnRH por meio da secreção aguda de progesterona folicular. Por outro lado, dados mais recentes sugerem fortemente que a secreção de progesterona no final da fase folicular não seja apenas de origem folicular, mas também de origem suprarrenal e glial. De fato, astrócitos produzem progesterona, pregnenolona e alopregnanolona em resposta ao estradiol, e o bloqueio da síntese desses neuroesteroides bloqueia o pico de LH, o que sugere que a progesterona de origem central seja essencial para o mecanismo de retroalimentação positiva. Embora o mecanismo pelo qual a progesterona dispara o pico préovulatório não seja ainda bem esclarecido, esta parece estimular neurônios que liberam neurotransmissores estimuladores da secreção de GnRH. De fato, em neurônios noradrenérgicos, a progesterona age nos seus receptores induzidos pela exposição prévia ao estradiol, aumentando a frequência de disparos desses neurônios e, desta forma, induzindo a liberação de norepinefrina nas áreas contendo neurônios GnRH/kisspeptina. Uma vez que o bloqueio da ação da norepinefrina bloqueia o pico préovulatório de LH por meio da redução da síntese e liberação de kisspeptina nas áreas cerebrais onde estão localizados corpos celulares e terminais axonais dos neurônios GnRH, a ação da norepinefrina na liberação parece ser indireta, via sistema kisspeptinérgico. Desse modo, os estoques de norepinefrina, kisspeptina, GnRH, LH e FSH produzidos pelo estradiol são depletados para compor o pico de gonadotrofinas que induzirá a ovulação. Retroalim entação negativa Após o pico de gonadotrofinas e a expulsão do óvulo, o folículo dá origem ao corpo lúteo que produzirá grandes quantidades de estradiol e de progesterona, com predominância da ação da progesterona. Durante toda a fase lútea, esses hormônios inibem o eixo reprodutivo a nível central e hipofisário, mantendo as concentrações de gonadotrofinas baixas. Os esteroides em altas concentrações na fase lútea inibem o sistema de várias formas: (1) diminuindo a frequência e/ou a amplitude dos pulsos de GnRH por ação direta e rápida nos neurônios GnRH, via receptores do tipo beta; (2) inibindo essa secreção indiretamente, por estimular neurônios produtores de neurotransmissores inibitórios dos neurônios GnRH; e (3) modificando a interação anatômica dos neurônios GnRH com as células gliais que os envolvem, a fim de diminuir os contatos sinápticos desses neurônios com outros que modulam sua atividade. Essas formas de inibição perduram por toda a fase lútea até o final da fase folicular. No entanto, é importante lembrar que, a partir da segunda semana da fase folicular, a atividade do mecanismo de retroalimentação negativa ocorre paralelamente à preparação dos fatores essenciais para estabelecimento do mecanismo de retroalimentação positiva descrito anteriormente. A Figura 71.19 sumariza o eixo reprodutivo e seu controle, ou seja, a produção de hormônios pelas células do folículo ovariano e seu controle pelas gonadotrofinas, bem como a retroalimentação dos hormônios ovarianos na hipófise, no hipotálamo e em estruturas extrahipotalâmicas.
▸ Ciclo uterino e menstruação A secreção cíclica sincronizada de hormônios ovarianos e de gonadotrofinas tem a função de: (1) induzir o crescimento do folículo e a ovulação, (2) aumentar a receptividade sexual no período ovulatório e (3) preparar o sistema genital feminino para a gestação. A fim de ocorrer a fertilização do óvulo pelo espermatozoide e ser estabelecido o processo gestacional, há necessidade de preparação do trato genital feminino. O acesso do óvulo ao trato genital feminino se dá pela trompa, enquanto o dos espermatozoides pela vagina. Parte dos espermatozoides é destruída na vagina e parte atinge o colo do útero, onde passam pelo processo de capacitação para em seguida iniciarem a migração pela cavidade uterina até atingirem as trompas; nesse local é onde, idealmente, acontece a fertilização do óvulo, que foi captado pelas fímbrias e caminhou pelas trompas em direção aos espermatozoides. O zigoto resultante inicia um processo de várias etapas de transformação e simultânea migração para o útero, em cuja parede (geralmente, na região posterior superior) ocorrerá sua implantação. Portanto, o útero deve estar adequadamente preparado para facilitar a migração dos espermatozoides e manter a migração e a implantação do zigoto. Nessa preparação, o ciclo uterino acontece em sincronia com o ovariano. Se não há implantação do zigoto, ocorre interrupção sincronizada do ciclo ovariano (com a regressão do corpo lúteo) e do ciclo uterino (dependente de estrogênio e progesterona do corpo lúteo). A diminuição da ação desses hormônios no útero provoca alterações vasculares devidas ao aumento da síntese de prostaglandinas, que induzem isquemia (com vasospasmo das arteríolas espirais) e necrose do revestimento uterino. A
descamação deste revestimento acompanhada de sangue constitui a menstruação, cujo fluxo dura de 2 a 5 dias. O primeiro dia dessa hemorragia marca o início de um novo ciclo. A fase folicular ovariana acontece paralelamente à menstruação e à fase proliferativa no útero. Terminada a menstrua ção por volta do 4o dia do ciclo, o endométrio encontrase afinado. Então, iniciase a proliferação endometrial, por ação do estrogênio produzido pelos folículos ovarianos em desenvolvimento, acompanhada pelo processo de vascularização (denominado angiogênese) e pelo desenvolvimento das glândulas endometriais. Após a ovulação, paralelamente à fase lútea no ovário começa a fase secretora no útero, caracterizada por atividade secretora das glândulas endometriais (que se tornam tortuosas), pelo formato espiralado das arteríolas endometriais e pela condição edematosa do endométrio. As características endometriais na fase secretora são conservadas pela ação de estrogênio e progesterona, hormônios secretados pelo próprio corpo lúteo, o qual é mantido pela ação do LH. Se ocorrer a implantação do óvulo fecundado, haverá aumento da secreção de progesterona e alteração do endométrio (conhecida como decidualização). Não acontecendo implantação, iniciase a regressão do corpo lúteo ao redor do 10o dia depois da ovulação; consequentemente, há queda na secreção de estrogênio e progesterona, hormônios responsáveis pela manutenção do endométrio desenvolvido.
▸ Ações dos esteroides ovarianos em órgãos reprodutivos Os estrogênios agem no trato genital feminino (útero, trompas e vagina), nas glândulas mamárias, e em outros órgãos e tecidos não integrantes do sistema genital (às vezes não diretamente relacionados com a função reprodutiva e com os caracteres sexuais secundários). Durante o ciclo menstrual, as variações na secreção dos esteroides ovarianos induzem alterações fisiológicas e cíclicas no sistema genital feminino, com intuito de adequálo a uma possível gestação. As principais alterações são descritas a seguir.
Útero As alterações mais importantes que ocorrem neste órgão são induzidas pelos estrogênios no endométrio. Este é composto de 2 camadas: (1) a camada basal (em contato com o miométrio), que sofre poucas alterações durante o ciclo e não descama no decorrer da menstruação, e (2) a camada funcional, que reveste internamente o útero. A camada basal é irrigada pela artéria reta (correspondente à porção proximal das artérias espirais), que não sofre influência dos hormônios sexuais. No entanto, as artérias espirais desenvolvemse e degeneramse ciclicamente, de acordo com as mudanças na secreção hormonal. Após a menstruação, resta apenas uma camada basal fina na qual se encontram brotamentos de glândulas e artérias. No início da fase folicular ovariana, as quantidades crescentes de estrogênios aumentam a síntese proteica, a musculatura uterina (ou miométrio) e também a proliferação das células do estroma e da camada epitelial; isso faz com que o endométrio se reepitelize rapidamente. Também sob ação dos estrogênios, a partir da parte remanescente da camada basal se desenvolvem glândulas endometriais e novos vasos sanguíneos. As glândulas endometriais são inicialmente estreitas e retas, mas, no decurso da fase proliferativa, tornamse tortuosas e secretoras de muco fino e filamentoso. Há também aumento da retenção de água e eletrólitos, que tornam o órgão edemaciado. Assim, no decorrer da fase folicular o endométrio tornase cada vez mais espesso (3 a 5 mm), ondulado, hiperemiado e edemaciado. Os estrogênios elevam a contratilidade e a excitabilidade do miométrio (pelo menos em parte, pelo aumento da expressão de receptores para ocitocina) e induzem a expressão de receptores para progesterona. No colo uterino, os estrogênios promovem relaxamento muscular causando sua abertura (Figura 71.20), tornam o epitélio secretor e aumentam o volume de muco imediatamente antes e depois da ovulação; todas essas ações facilitam a penetração dos espermatozoides. Na fase secretora, grandes quantidades de estrogênios e progesterona são secretadas após a ovulação. Os estrogênios promovem crescimento adicional do endométrio, de modo que na metade da fase secretora o endométrio atinge 5 a 6 mm de espessura. A progesterona estimula a atividade das glândulas endometriais, que passam a produzir uma secreção rica em proteínas, aminoácidos e açúcares; esta secreção, denominada “leite uterino”, tem a função de nutrir o embrião. A progesterona também promove o desenvolvimento pleno das artérias espiraladas, tornandoas bastante tortuosas e provocando aumento da irrigação endometrial. Além disso, ela diminui a contratilidade e a excitabilidade do miométrio, pelo menos em parte, pela redução da expressão dos receptores para ocitocina, além de tornar o colo uterino mais firme, fechado (ver Figura 71.20) e com secreção reduzida, dificultando a penetração de espermatozoides. Todas essas alterações resultam em um endométrio altamente secretor e irrigado, adequado para a implantação do ovo, que ocorre cerca de 7 a 9 dias após a ovulação, bem como para a nutrição do embrião. Em caso de não haver fertilização, a secreção de estrogênios e progesterona do corpo lúteo decresce. Como consequência, a camada funcional do endométrio atrofia, as glândulas
endometriais ficam com aspecto serrilhado e as artérias espirais sofrem espasmo, causando isquemia na camada funcional. Devido a essas modificações, a camada funcional do endométrio não se sustenta e descama, no processo conhecido por menstruação.
Figura 71.19 ■ Eixo reprodutivo feminino. Em azul: sob influência de neurotransmissores hipotalâmicos e extrahipotalâmicos, neurônios do núcleo arqueado do hipotálamo e da área préóptica secretam GnRH na eminência mediana, que alcança os gonadotrofos por meio dos vasos do sistema portahipofisário. Em ocre: o GnRH estimula os gonadotrofos a secretar LH e FSH. No decorrer da fase folicular do ciclo menstrual, o LH estimula as células da teca folicular a produzirem androgênios a partir do colesterol, que se difundem para as células da granulosa. Baixas quantidades de progesterona são produzidas, uma vez que a maior parte desse hormônio é convertida em androgênios. O FSH ativa as células da granulosa e elas passam a sintetizar a enzima aromatase, que converte os androgênios originados da teca interna em estrogênios. Além disso, o FSH estimula a síntese de ativinas e inibinas. No final da fase folicular, as células da granulosa passam a expressar receptores para LH. Esse hormônio estimula as células da granulosa a produzirem progesterona (linha pontilhada), a qual desencadeia os picos pré ovulatórios de gonadotrofinas. Em roxo: as ativinas e as inibinas agem na hipófise estimulando e inibindo, respectivamente, a secreção de FSH. Os estrogênios e os progestógenos, além de atuarem em todo o sistema genital, exercem retroalimentação negativa (na maior parte do ciclo menstrual) ou positiva (no final da fase folicular e na fase ovulatória) sobre a secreção de LH e
FSH em 3 níveis: (1) nos gonadotrofos, (2) em neurônios hipotalâmicos que controlam os neurônios GnRH e (3) em neurônios de outros locais do sistema nervoso central que modulam direta ou indiretamente a atividade secretora dos neurônios GnRH. (Adaptada de Boron e Boulpaep, 2005.)
Figura 71.20 ■ Aspecto do colo uterino no final da fase folicular (aberto) e na fase lútea (fechado), indicando, respectivamente, a ação dos estrogênios e da progesterona. (Fotos gentilmente cedidas pelo Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP.)
Tubas As tubas uterinas (ou trompas) têm uma camada muscular fina revestida externamente por tecido seroso e peritônio. Internamente, elas se revestem de epitélio secretor colunar ciliado. As tubas têm função na captação e no transporte do óvulo, processos influenciados pelos esteroides ovarianos. Os estrogênios causam proliferação do tecido glandular e do revestimento epitelial, elevam o número de células e de cílios do revestimento epitelial, promovem o movimento ciliar que ocorre em direção ao útero e aumentam as atividades secretora e contrátil muscular da tuba. Assim, na fase periovulatória, quando as concentrações de estrogênios são altas, o transporte do óvulo (desde sua captação pelas fímbrias até o útero) é facilitado por batimentos dos cílios e pela contração espontânea das fibras musculares. Após a ovulação, a progesterona provoca diminuição na quantidade de células de revestimento, no número e na atuação dos cílios, assim como na atividade secretora, de maneira que o volume e as quantidades de açúcar e proteína do líquido são diminuídos. Mais ainda, a progesterona reduz a atividade contrátil muscular da tuba. Assim, variações nas concentrações desses esteroides podem acarretar distúrbios no transporte dos gametas e do concepto. Por exemplo, altas doses de estrogênios podem impedir a gestação por expulsar prematuramente da tuba um óvulo recémfertilizado; ou então, a administração de elevadas doses de estradiol, imediatamente antes da concepção, pode impedir a passagem do concepto ao útero, devido ao aumento da contração muscular. Da mesma maneira, a progesterona em grandes dosagens, como se utiliza na “pílula do dia seguinte”, pode impedir a gestação por diminuir os batimentos ciliares e a atividade contrátil, dificultando assim o encontro dos gametas.
Vagina Quatro tipos de células compõem o epitélio vaginal: superficiais, intermediárias, parabasais e basais. Na infância, assim como depois da menopausa, há somente as camadas de células basais e parabasais. As células do epitélio vaginal respondem com muita sensibilidade aos esteroides sexuais. Por conseguinte, na puberdade e na fase folicular, os estrogênios aumentam a atividade mitótica do epitélio colunar, induzindo proliferação, o que resulta em elevação do número de camadas do epitélio vaginal e, portanto, do espessamento da mucosa vaginal. As células mais superficiais ficam com o núcleo picnótico, queratinizamse, tornamse acidófilas e descamam individualmente. Além disso, os estrogênios induzem aumento na produção de glicogênio pelas células epiteliais, o qual é fermentado em ácido láctico pela flora bacteriana vaginal, provocando um pH vaginal ácido. Todas estas ações estrogênicas conferem mais resistência a traumatismos e infecções, o que explica a maior incidência de infecções na infância e na puberdade. Sob ação da progesterona, as células do epitélio vaginal tornamse basófilas, apresentam bordas dobradas (daí o nome de células naviculadas) e descamam em blocos. A análise ao microscópio do tipo de células esfoliadas é útil para a identificação do estado hormonal da mulher. Assim, na citologia esfoliativa: (1) a presença de células superficiais denota ação estrogênica, (2) as células intermediárias predominam sob concentrações estrogênicas elevadas (como na gestação ou na fase lútea
média) e (3) a presença de células basais ou parabasais indica concentrações estrogênicas baixas (como as observadas na menopausa ou no período prépuberal).
Muco cervical O muco cervical é produzido pelas glândulas do colo uterino, sendo composto por 92 a 98% de água, sais, açúcares, polissacarídios, proteínas e glicoproteínas. Tem pH alcalino e funciona como uma barreira para impedir o acesso de microrganismos e regular o acesso de espermatozoides da vagina para o útero. As características desse muco são facilmente influenciadas pelos hormônios ovarianos, de modo que o exame dessas características pode em geral fornecer informações sobre o estado hormonal da mulher. Os estrogênios estimulam a produção de quantidade abundante de muco fluido, liso, transparente e com poucas células. Uma característica importante do muco estrogênico é a distensibilidade; na fase periovulatória, quando as concentrações plasmáticas de estrogênios são máximas, podese distender entre duas lâminas uma amostra do muco em mais de 10 cm, sem que o fio formado pelo muco se rompa (Figura 71.21). A grande quantidade (até 700 mg/dia) de muco cervical com as características anteriormente citadas é um bom indicativo do período ovulatório, de maneira que o dia da menstruação pode ser estimado para 14 ou 15 dias depois da observação desse muco. O muco fluido é importante para facilitar o coito e a penetração dos espermatozoides, propiciando seu acesso às tubas. Se for deixado sobre uma lâmina, ele secará, formando figuras semelhantes a folhas de samambaia, que resultam da cristalização dos sais inorgânicos. Podese observar este padrão de folha de samambaia na última parte da fase folicular, sendo máximo no período periovulatório. Na fase lútea ovariana (fase secretória uterina), quando predominam as ações da progesterona sobre as dos estrogênios, o muco cervical é secretado em menor quantidade (20 a 60 mg/dia), tornandose espesso, turvo, granulado, viscoso e celular. Este tipo de muco dificulta, sobremaneira, a movimentação dos espermatozoides em direção às tubas uterinas; de fato, a penetração do espermatozoide é máxima no período ovulatório e mínima na fase lútea. A administração contínua de progesterona, ou o uso de cápsulas uterinas com liberação local de progesterona, impede a penetração dos espermatozoides mesmo durante o período ovulatório, quando as concentrações de estrogênios são altas. Isso justifica, em parte, o uso da “pílula do dia seguinte”, ou seja, de altas doses de progesterona. Após a ovulação, à medida que a secreção de progesterona cresce, desaparece o padrão de samambaia apresentado pelo muco quando seco. Novamente, a observação deste muco pode fornecer informações importantes; por exemplo, a ausência do padrão de samambaia pode sugerir uma secreção diminuída de estrogênios ou aumentada de progesterona. Contrariamente, a persistência do padrão de samambaia no muco pode indicar ciclos anovulatórios.
Figura 71.21 ■ Aspecto do muco secretado pelas glândulas endocervicais durante a fase ovulatória. À esquerda, muco secretado pelo colo uterino. Ao centro, teste de distensibilidade. À direita, formação do padrão de folhas de samambaia do muco depois de secagem em lâmina. (Fotos gentilmente cedidas pelo Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP.)
Glândulas mamárias Sob ação dos estrogênios, as mamas ficam maiores por aumento do estroma, crescimento dos ductos e deposição de gordura. Além disso, os estrogênios aumentam a pigmentação da aréola em torno do mamilo e induzem a expressão de receptores para progesterona. A progesterona aumenta a arborização e o comprimento dos ductos, acelera o desenvolvimento dos alvéolos e causa retenção de líquido edemaciando as mamas. Na fase lútea do ciclo menstrual, as glândulas atingem seu tamanho máximo, o que justifica a mastalgia referida pelas mulheres no período prémenstrual.
▸ Ações próconceptivas e anticonceptivas Os estrogênios e a progesterona produzidos pelo ovário durante o ciclo menstrual têm algumas ações antagônicas no que se refere à facilitação ou dificuldade para concepção. O Quadro 71.2 sumariza as principais ações fisiológicas dos
estrogênios e da progesterona, no processo de concepção e anticoncepção, respectivamente. A chamada pílula do dia seguinte, usada como contraceptivo de emergência, contém doses elevadas de progesterona, cujas ações anticonceptivas se contrapõem às próconceptivas dos estrogênios endógenos. Assim, procurase impedir o encontro do óvulo com o espermatozoide, e consequentemente a fertilização. É importante ressaltar que a progesterona não interrompe um processo gestacional iniciado, ou seja, a progesterona não é uma substância abortiva. Pelo contrário, a progesterona é um dos agentes utilizáveis em situações de ameaça de aborto espontâneo. O Capítulo 77, Fisiologia da Reprodução, analisa os diversos métodos contraceptivos.
▸ Outras ações dos esteroides ovarianos Temperatura corporal Logo após a ovulação, a progesterona eleva a temperatura corporal em torno de 0,5 a 0,6°C durante toda a fase lútea do ciclo menstrual (Figura 71.22). Embora o mecanismo dessa regulação não seja devidamente identificado, é provável estar relacionado com a alteração do ponto de ajuste (set point) dos circuitos hipotalâmicos termorreguladores. Esta subida de temperatura serve como um indicativo da ovulação; portanto, poderá ser utilizada como método coadjuvante de contracepção, se a temperatura corporal da mulher for verificada assim que ela acordar e antes de começar qualquer atividade física, pois a contração muscular produz calor. Alterações no controle da temperatura também ocorrem durante a menopausa. Nessa fase da vida, cerca de 75% das mulheres apresentam ondas de calor (ou fogachos, que correspondem a episódios de elevação de temperatura central), seguidas de vasodilatação periférica reflexa e sudorese (que leva à perda de aproximadamente 0,2°C). Em mais de 90% dos casos, esses sintomas são revertidos com estrogenioterapia. Os episódios de fogacho são imediatamente seguidos por liberação de LH, que parece ocorrer secundariamente ao aumento da liberação de GnRH. Assim, ambos os esteroides sexuais parecem atuar em neurônios hipotalâmicos que regulam a temperatura corporal.
Quadro 71.2 ■ Ações próconceptivas dos estrogênios e anticonceptivas da progesterona. Local de ação dos
Ações próconceptivas dos estrogênios
hormônios Cílios da tuba uterina
Ações anticonceptivas da progesterona
Aumenta o movimento ciliar, auxiliando a
Diminui o movimento ciliar
movimentação do óvulo em direção ao útero Musculatura da tuba
Contraise, empurrando o óvulo em direção ao
uterina
útero
Miométrio
Contraise, auxiliando a movimentação dos
Relaxa as fibras musculares
Relaxa as fibras musculares
espermatozoides em direção à tuba uterina Muco cervical
Fluido, facilita a movimentação do
Espesso, dificulta a
espermatozoide em direção à tuba uterina
movimentação do espermatozoide em direção à tuba uterina
Figura 71.22 ■ Variação da temperatura corporal basal durante o ciclo menstrual.
Tecido ósseo Durante a puberdade, os estrogênios atuam nas cartilagens epifisárias dos ossos longos, inicialmente acelerando o crescimento linear e, em seguida, promovendo o fechamento dessas cartilagens. Neste período de crescimento, eles constituem o fator mais importante para estimular a maturação de condrócitos e de osteoblastos e a subsequente fusão das cartilagens epifisárias. Agem primariamente por inibição da ressorção óssea e não por aumento da formação de osso; antagonizam a ação do paratormônio no tecido ósseo, o qual estimula a ressorção óssea; inibem a síntese de interleucina 6, a qual eleva a atividade osteoclástica e portanto a ressorção de osso; podem indiretamente aumentar a formação óssea pela estimulação da síntese de fatores de crescimento (como o TGFβ, ou transforming growth factor), que são importantes para fazer crescer a atividade osteoblástica e a densidade óssea. Assim, os estrogênios protegem o organismo feminino no processo contínuo de remodelação óssea. A deficiência estrogênica, no climatério e depois da menopausa, altera essa modulação protetora do tecido ósseo, aumentando a perda óssea; no início, há perda de osso trabecular e, em seguida, de osso cortical, facilitando, pois, o estabelecimento de osteoporose. Adicionalmente, no rim, os estrogênios parecem facilitar a ação do paratormônio, causando maior produção de vitamina D [1,25(OH)2D3], a qual eleva a absorção intestinal de cálcio.
Sistema cardiovascular Os vasos sanguíneos também são alvos da ação dos estrogênios, pois receptores para estradiol são expressos em células endoteliais. Estes hormônios induzem aumento de óxido nítrico e provocam vasodilatação. Além disso, causam alterações no metabolismo de lipídios que diminuem os riscos de alterações vasculares, o que será abordado adiante. Os estrogênios modificam a permeabilidade vascular, facilitando a transferência de líquido para o interstício (daí sua ação edemaciante), reduzindo o volume plasmático, o que induz retenção de água e de sódio. Essa ação edemaciante pode ser observada durante o ciclo menstrual, a gestação e o uso de pílulas anticoncepcionais. Além disso, os estrogênios aumentam o fluxo sanguíneo e reduzem a fragilidade capilar e a concentração de endotelina, um potente vasoconstritor. Após a menopausa ou a ooforectomia (extirpação do ovário), observase maior gravidade da aterosclerose. Por outro lado, estudo mais recente em mulheres menopausadas com doença cardiovascular já estabelecida, submetidas à reposição hormonal pela combinação de estrogênios e progesterona, mostrou crescimento do número de eventos tromboembólicos. Este estudo acrescentou uma controvérsia no emprego de terapia de reposição hormonal, que continua sob investigação.
Sistema nervoso central Embora os estrogênios sejam mais conhecidos por seus efeitos na função reprodutiva, suas ações vão muito além. Sabese atualmente que estes hormônios não são produzidos apenas nos ovários e no tecido adiposo, mas também no cérebro, onde agem em receptores específicos também expressos aí. Eles são responsáveis pela diferenciação do cérebro, modulam funções motoras, sensibilidade à dor e diversas funções cognitivas, entre outras. Na mulher, os períodos de transição biológica (como puberdade, regressão prémenstrual do corpo lúteo, gestação/pósparto, climatério/menopausa)
se caracterizam por significativas alterações da secreção e da atividade de hormônios esteroides sexuais, principalmente estrogênios. Isso gera situações de vulnerabilidade para alterações de atividade nervosa e expressões comportamentais, além de, até mesmo, distúrbios psíquicos. Os estrogênios afetam os sistemas colinérgicos, serotoninérgicos, noradrenérgicos e dopaminérgicos, os quais afetam o humor. A variação na secreção dos estrogênios parece ser responsável, pelo menos em parte, pelos distúrbios de humor que caracterizam a chamada tensão prémenstrual (TPM), pois a supressão da atividade ovariana (como durante o uso de contraceptivos orais) reduz as alterações de humor. Os estrogênios têm ação antidepressiva per se, além de afetarem a resposta a drogas antidepressivas. Por outro lado, a progesterona apresenta efeitos ansiolítico e tranquilizante; a regressão do corpo lúteo reduz estes efeitos, promovendo ansiedade e excitabilidade durante o período de TPM. No entanto, os mecanismos envolvidos nessas alterações ainda não são bem conhecidos. A falta de estrogênios tem sido relacionada com o estabelecimento de quadros depressivos, manifestação de sintomas psicóticos, prevalência maior da doença de Alzheimer (depois da menopausa) e manifestação de esquizofrenia. Essas alterações e manifestações têm sido mencionadas com a ação do estrogênio na atividade de vários sistemas de neurotransmissão, no controle do fluxo sanguíneo cerebral e do metabolismo de glicose. A terapia de reposição hormonal em mulheres na menopausa tem demonstrado eficácia em diminuir entre 30 e 40% a incidência da doença de Alzheimer e de retardar sua instalação em mulheres com predisposição a desenvolvêla. No entanto, o tratamento com estrogênios não é efetivo quando a doença já está estabelecida. Muitas das ações centrais dos estrogênios diferem qualitativa e quantitativamente entre os sexos, o que pode explicar as distinções observadas entre os sexos na incidência de psicopatologias, como, por exemplo, o fato de síndromes depressivas serem mais comuns em mulheres que em homens e, por outro lado, o abuso de drogas e comportamentos antissociais serem mais prevalentes em homens; ainda, podem explicar o fato de geralmente as mulheres apresentarem menor sensibilidade à dor que os homens. A progesterona em altas doses tem efeitos anestésicos; ela também dispõe de ação anticonvulsivante, enquanto os estrogênios são próconvulsivantes. Sabese que convulsões epilépticas variam em função do ciclo menstrual, e a maior frequência de episódios de convulsões ocorre nos períodos de menor razão progesterona/estrogênios. Estes dados contraindicam, fortemente, o uso de estrogênios em pacientes com histórico de crises convulsivas. Os estrogênios melhoram funções cognitivas (como memória e aprendizado), motoras e sensoriais (p. ex., olfação, audição e visão, importantes no período de acasalamento, na maioria dos animais). Vários estudos e observações clínicas correlacionam diminuição da secreção de estrogênios com dificuldades de memória e pior performance no aprendizado. Em humanos, estudos que utilizam técnicas de neuroimagem verificaram correlações entre ação estrogênica e alterações de estruturas cerebrais. Em ratas, os estrogênios aumentam a arborização dendrítica e o número de espinhas dendríticas em neurônios piramidais hipocampais (Figura 71.23), especializados em receber aferências excitatórias importantes para o aprendizado e a memória. Portanto, a elevação significativa na quantidade de sinapses estabelecidas pelos neurônios em resposta aos estrogênios promove significativa melhoria nestas funções. Os estrogênios também influenciam na organização de células gliais ao redor de corpos celulares e de terminais de neurônios GnRH; além disso, atuam nas características estruturais da eminência mediana, de modo a aproximar os terminais de neurônios GnRH ao sistema vascular do plexo primário, o que contribui para maior eficiência da descarga de GnRH.
Metabolismo de lipídios Os estrogênios aumentam a deposição de gorduras, principalmente na região dos quadris e das mamas. Este padrão de distribuição de gordura induzido pelo estradiol é responsável pela mudança do formato corporal observado na puberdade. Esses hormônios promovem a elevação de lipoproteínas de densidade alta (HDL) e de triglicerídios, diminuição do colesterol e, ligeiramente, de lipoproteínas de densidade baixa (LDL). Estas ações metabólicas protegem o organismo contra a arteriosclerose.
Síntese de proteínas Os estrogênios estimulam a síntese de várias proteínas, entre as quais as transportadoras de hormônios sintetizadas pelo fígado, como globulina ligante a hormônios sexuais (SHBG), globulina ligante a cortisol (CBG) e proteína ligante a hormônios tireoidianos (TBG). Os estrogênios são levemente anabólicos e reduzem o apetite, enquanto a progesterona é fracamente catabólica.
Rim
A progesterona compete pelos receptores para aldosterona nos túbulos renais, diminuindo a reabsorção de sódio que, em determinadas situações, como na gestação, pode induzir aumento da secreção de aldosterona e de angiotensinogênio.
Respiração A progesterona aumenta a resposta ventilatória ao CO2. Na gestação e na fase lútea do ciclo menstrual, há redução da pCO2 arterial e alveolar.
Figura 71.23 ■ Ação dos estrogênios nas espinhas dendríticas de neurônios piramidais do hipocampo durante o ciclo estral. No diestro e no estro (ou fase pósovulatória), as concentrações de estrogênios são baixas, enquanto, no proestro (ou fase pré ovulatória), são as mais altas de todo o ciclo estral. Observe o acentuado aumento das espinhas dendríticas na fase de proestro (B), quando comparada à de diestro (A), e a reversão do efeito dos estrogênios no estro (C). (Adaptada de Woolley, 1999.)
Coagulação sanguínea Os estrogênios aumentam a disponibilidade de plasminogênio e de fatores de coagulação II, VII, IX e X; adicionalmente, provocam diminuição da antiprotrombina e da adesão plaquetária.
▸ Ações da prolactina na função reprodutiva A ação da prolactina na glândula mamária está descrita no Capítulo 77. Enquanto em ratas foram descritos picos pré e pósovulatórios de prolactina, na mulher o perfil de secreção de prolactina durante o ciclo menstrual ainda não é bem estabelecido; as concentrações plasmáticas de prolactina na mulher crescem na puberdade e geralmente diminuem na menopausa. Alguns autores também descrevem discreto aumento das concentrações plasmáticas desse hormônio no período préovulatório. Em ratas e em primatas não humanos, a prolactina pode ter ação luteotrófica, que não está comprovada em mulheres. As células foliculares humanas expressam receptores para prolactina, que pode ser de origem plasmática ou local; neste último caso, caracterizando um controle parácrino ou autócrino. As células da granulosa, em cultura, liberam estrogênio e progesterona sob estímulo da prolactina. Mulheres com insucesso em tentativas de fertilização in vitro, quando submetidas à hiperprolactinemia transitória, são mais bemsucedidas em termos de qualidade de oócitos, taxa de fertilização e gestação. Isso indica uma possível ação da prolactina na maturação folicular e no desenvolvimento oocitário.
▸ Estresse e função reprodutiva A alteração do ciclo menstrual por estímulos estressores e distúrbios psicológicos, latentes ou evidentes, é reconhecida há longo tempo. Observações experimentais e clínicas indicam que determinadas situações agudas de estresse podem
facilitar a ovulação, enquanto situações crônicas podem impedila. Porém, os mecanismos envolvidos nessas situações ainda não são totalmente entendidos. Estímulos estressores crônicos de diversos tipos e distúrbios como ansiedade, anorexia nervosa e esquizofrenia, entre outros, estão associados à hiperatividade do eixo hipotálamohipófisesuprarrenal (HPS); nessas situações, ocorre aumento da secreção de cortisol, que tem ação catabólica, visando a mobilizar substrato energético para atender à maior demanda de energia requerida pelo organismo. Dados experimentais mostram que os hormônios do eixo HPS podem alterar a secreção de hormônios do eixo hipotálamohipófisegonádico (HPG). Em mulheres, a hiperatividade do eixo HPS pode causar supressão do ciclo menstrual, conhecida como amenorreia hipotalâmica funcional ou anovulação crônica hipotalâmica funcional, caracterizada por quiescência ovariana, amenorreia e infertilidade. Há evidências de que essa hiperatividade do eixo HPS está associada à diminuição da atividade do pulso gerador de GnRH. Mulheres com anorexia nervosa, que pode estar associada à amenorreia hipotalâmica funcional, apresentam concentrações elevadas de CRH no líquido cerebroespinal. Estudos experimentais mostraram que a administração de CRH provoca diminuição da pulsatilidade de GnRH e da liberação de LH; entretanto, essa relação nem sempre é direta, o que dificulta a caracterização dos limites de ativação do eixo HPS supressores da atividade do eixo HPG. A situação crônica de estresse pode envolver alterações dos eixos HPS, HPG, hipotálamohipófisetireoide e do hormônio somatotrófico (GH), resultando em um quadro de síndrome metabólica, no qual se observa obesidade visceral ou central, caracterizada pela deposição de gordura na cintura e diminuição da massa magra (redução da massa muscular). Essa obesidade visceral também ocorre em pacientes com síndrome de Cushing, depressão melancólica e ansiedade crônica, que têm como característica comum o hipercortisolismo. Mulheres com obesidade visceral apresentam modificações na secreção de vários esteroides gonadais associadas a deficiência ovulatória e oligomenorreia. Existem divergências de interpretação sobre a alteração da função reprodutiva provocada pela situação de estresse: se é decorrente da ação direta de hormônios do eixo HPS no eixo HPG ou resultante das alterações metabólicas provocadas pelos hormônios do eixo HPS. Há evidências de que a atividade de neurônios GnRH e a pulsatilidade de LH podem ser reguladas pela disponibilidade energética, ou, mais especificamente, de glicose. A liberação de determinadas citocinas durante processos inflamatórios e infecciosos, que constituem uma situação de estresse, também pode alterar a função reprodutora, pela redução da secreção de LH e pela inibição da atividade de enzimas da esteroidogênese gonadal. Por outro lado, há evidências de que situações agudas de estresse podem estimular a liberação de LH, que seria resultante de um efeito sinérgico de estrogênio endógeno (na fase folicular média) ou exógeno (por terapia substitutiva) com progesterona de origem suprarrenal (cuja secreção seria induzida pela ativação do eixo HPS). Isso mimetizaria o sinergismo que acontece na indução do pico préovulatório. Assim, estímulos estressores agudos, associados à pré condição hormonal favorável à ovulação, poderiam antecipar a ovulação. Ainda carente de outras evidências confirmatórias, esta poderia ser a explicação do maior índice de gestação em mulheres que sofrem violência sexual, quando comparadas à população em geral.
PUBERDADE E MENARCA A hipófise e o ovário infantis adquirem atividade plena desde que estimulados adequadamente, indicando que na infância falta estimulação e não competência funcional desses órgãos. A idade de instalação da puberdade pode variar em função de fatores endógenos e exógenos, tais como condições ambientais e nutricionais, além de fatores emocionais, genéticos, raciais etc. A puberdade se caracteriza como uma fase de transição biológica em que acontece uma série de alterações estruturais e funcionais para estabelecer a capacidade reprodutiva e os caracteres sexuais secundários. Entre essas alterações estão: crescimento linear, brotamento e desenvolvimento das mamas, aumento dos pequenos e grandes lábios da genitália externa, produção de secreção vaginal transparente ou ligeiramente esbranquiçada antes da menarca, surgimento de pelos pubianos e axilares, além de crescimento do útero e do ovário. A instalação da puberdade envolve alterações de atividade secretora da suprarrenal (adrenarca), pelo aumento da secreção de precursores androgênicos, e do ovário, principalmente pela secreção de estrogênios e progesterona. Os principais precursores androgênicos são desidroepiandrosterona (DHEA) e desidroepiandrosterona sulfato (DHEAS). Embora a adrenarca geralmente anteceda em alguns anos a ativação da secreção ovariana, não existe indicação de sincronização entre os dois eventos, que parecem ter controles independentes. A ativação da função ovariana depende da secreção de gonadotrofinas hipofisárias (LH e FSH) e de GnRH pelo hipotálamo.
O período da infância até o início da puberdade é de quiescência do eixo hipotálamohipófiseovário, de modo que as secreções de LH, FSH e esteroides ovarianos são muito baixas ou indetectáveis. Uma série de observações mostra que esta quiescência não representa formação estrutural incompleta ou incapacidade funcional do eixo. O que mantém este sistema inativo (“desligado”) durante a infância? E o que faz este sistema ser ativado (“ligado”) na puberdade? Estas questões não têm respostas conhecidas. O mecanismo que conduz ao início da puberdade continua desconhecido. Na tentativa de explicar esse mecanismo, há algumas hipóteses, geradas por observações experimentais e/ou clínicas, que não necessariamente se excluem. Uma das hipóteses admite que na infância o eixo hipotálamohipófise seria mais sensível à retroalimentação negativa pelos esteroides ovarianos; assim, as quantidades pequenas desses esteroides que inibiriam o eixo na infância tornarseiam insuficientes com a idade e então o eixo iria sendo mais ativado, aumentando a estimulação ovariana. Uma segunda hipótese advoga que durante a infância existiria um mecanismo neural de inibição do eixo hipotálamohipófise e que a supressão desse mecanismo estaria relacionada com o início da puberdade. Outra hipótese diz que o início da puberdade seria desencadeado pela ativação de vias estimuladoras de neurônios GnRH, ou pelo aumento de atividade de uma dessas vias ou de algumas delas. Segundo uma quarta hipótese, o processo de crescimento do organismo ou de alguma de suas partes emitiria uma sinalização, provavelmente um hormônio, para ativação dos neurônios GnRH. Recentemente, um conjunto consistente de dados clínicos e experimentais tem implicado o peptídio kisspeptina, produzido em algumas regiões cerebrais, como elemento relevante no mecanismo de controle da puberdade. A deficiência de kisspeptina ou da atividade de seu receptor (GPr54) está associada ao quadro patológico de hipogonadismo hipogonadotrófico caracterizado pela ausência de puberdade. Apesar dos avanços representados pela descoberta da kisspeptina, o entendimento do mecanismo de controle da puberdade ainda permanece incompleto.
CLIMATÉRIO (PERIMENOPAUSA) E MENOPAUSA Vários termos têm sido empregados para definir o estágio do envelhecimento reprodutivo imediatamente anterior à menopausa, incluindo: climatério, perimenopausa e transição para menopausa. Considerando a definição proposta pela Organização Mundial da Saúde, as expressões “transição para a menopausa” e “perimenopausa” são as mais recomendadas. Assim, a perimenopausa pode ser definida como o período de tempo que se inicia na quarta década de vida, antes da menopausa, quando os sintomas clínicos começam a se manifestar, e se estende até 12 meses após a última menstruação. A duração média da perimenopausa é de 5 anos, mas pode se estender até por 10 anos. O perfil hormonal desse período difere daquele da menopausa. As concentrações de LH e FSH são normais na maior parte do período. No entanto, ao final dele, quando a menopausa se aproxima, há aumento nas concentrações de FSH associado a queda de inibina B, enquanto as de LH permanecem baixas, sugerindo controle independente dessas duas gonadotrofinas. Esse aumento mais tardio do FSH em relação ao LH é atribuído a: (1) diminuição na frequência de pulsos de GnRH que ocorre nesse período e favorece a secreção de FSH, mas não de LH; e (2) uma queda na secreção de inibina B, que resulta em aumento exclusivamente do FSH. Por essa razão, o aumento nas concentrações plasmáticas de FSH é o parâmetro mais utilizado para se diagnosticar a menopausa. As concentrações de progesterona e de hormônio antimulleriano (AMH) são baixas desde o início desse período e compõem a principal característica dessa fase. Por outro lado, as concentrações de estradiol encontramse inalteradas ou mesmo elevadas durante a perimenopausa, contrariando a dogmática teoria do hipoestrogenismo. Além disso, as flutuações desses hormônios tornamse maiores e imprevisíveis. Essa razão aumentada de estrogênios/progesterona parece explicar o aumento de fluxo menstrual (hipermenorreia) observado em muitas mulheres na perimenopausa. Nesse período, há ciclos menstruais irregulares (mais curtos ou mais longos) decorrentes da alteração da duração da fase folicular, principal determinante da duração do ciclo menstrual. Como consequência, pode ocorrer alteração do padrão menstrual com redução (oligomenorreia) ou aumento da frequência de episódios (polimenorreia) ou mesmo hemorragia uterina não relacionada com a menstruação (metrorragia). Há também ciclos anovulatórios com consequente queda da fertilidade. Outros sintomas típicos da perimenopausa são alterações vasculares, com aumentos de temperatura central e vasodilatação periférica, provocando ondas de calor principalmente na parte superior do tronco e na face, aparecimento de rubor e sudorese, comprometimento de funções cognitivas, distúrbios do sono, atrofia nos tecidos vaginais, afinamento e enrugamento da pele, redução de pelos axilares e pubianos, dores de cabeça, ganho de peso, aumento na predisposição ao câncer de mama e endometrial, osteoporose e risco de fraturas, perda do interesse e disposição sexual e exacerbação dos sintomas prémenstruais. Os transtornos afetivos (ansiedade, depressão, irritabilidade) também são prevalentes na perimenopausa, e o risco de depressão nesse período é o mais alto de toda a vida reprodutiva. Essa maior vulnerabilidade aos transtornos afetivos,
exibida pelas mulheres na perimenopausa, pode ser reflexo das flutuações de estrogênios no cérebro e/ou da redução na sua responsividade, mediada pela redução na densidade de receptores aos estrogênios, mas não pelo declínio de suas concentrações plasmáticas. Por outro lado, a redução na secreção de progesterona pode também estar associada aos distúrbios afetivos, uma vez que essas reduções têm sido associadas a alterações de humor observadas na síndrome pré menstrual e na depressão pósparto. De fato, ambos os esteroides afetam o sistema serotoninérgico central de modo a aumentar a disponibilidade de serotonina em áreas importantes para o controle do humor. Assim, uma possível redução da ação dos estrogênios no sistema serotoninérgico e/ou a menor secreção de progesterona podem ser os fatores responsáveis pelos transtornos afetivos na perimenopausa. De fato, na impossibilidade do uso de terapia hormonal, os efeitos benéficos nos transtornos afetivos podem ser alcançados com o uso de antidepressivos inibidores de recaptação de serotonina. O último episódio de menstruação (ou menopausa) ocorre, em média, aos 51 anos de vida, embora haja uma variabilidade grande na faixa etária entre 40 e 60 anos. O diagnóstico da menopausa é retrospectivo, ou seja, é feito 12 meses após a última menstruação. Depois da menopausa, a mulher perde os efeitos protetores do estrogênio. Ocorrem alterações no processo de remodelação óssea por perda de osso trabecular e redução do cálcio ósseo, facilitando a incidência de osteoporose, com consequente fragilidade mecânica dos ossos e suscetibilidade a suas fraturas. Além disso, há aumento da concentração de colesterol e de LDL, do risco de infarto do miocárdio, e maior vulnerabilidade para a doença de Alzheimer. A terapia hormonal pode evitar ou minimizar os efeitos negativos da perimenopausa e menopausa, mas somente deve ser feita após avaliação criteriosa dos benefícios e riscos, em função de fatores específicos de cada indivíduo relacionados com antecedentes individuais e familiares. Os benefícios da terapia estrogênica incluem: diminuição da ressorção óssea, decréscimo da osteoartrite, da incidência de doenças das coronárias, de acidentes cerebrovasculares, do risco de doença de Alzheimer, alívio das ondas de calor, preservação da elasticidade da pele, manutenção da matriz colágena, redução de ressecamento, atrofia e infecções do epitélio vaginal, além de diminuição da incidência de cáries e de perda dentária. Contrariamente, a terapia de reposição estrogênica na menopausa pode constituir um fator de aumento da incidência de câncer de mama, carcinoma endometrial, adenomas hepáticos, trombose, tromboflebite e êmbolo pulmonar. Vários desses riscos causados pelos estrogênios podem decrescer com a associação de progesterona na terapia hormonal.
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Introdução
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Citocinas Interleucina1
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Interleucina2 Interleucina6 Interleucina10
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Interleucina17 Interferonaγ
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Citocinas produzidas pelo tecido adiposo Considerações finais Bibliografia
INTRODUÇÃO O conceito que apenas glândulas endócrinas produzem e secretam hormônios para a corrente sanguínea foi descartado nas últimas duas décadas. Atualmente, sabemos que vários tecidos não glandulares geram hormônios e moléculas ativas que apresentam valioso papel no controle da função de outras glândulas, sistemas, tecidos e mesmo do metabolismo intermediário. Dentre esses fatores bioativos, os mais estudados são as citocinas. Os leucócitos são produtores naturais de citocinas, mas atualmente se sabe que elas são também liberadas pelo tecido adiposo e músculo esquelético. As citocinas exercem efeitos sistêmicos importantes, atuando na modulação do controle das respostas imune e inflamatória, bem como na cicatrização e na hematopoese. Além disso, em vários tecidos, elas agem localmente, exercendo uma função autacoide. Atualmente sabese que existe um papel importante das citocinas na regulação dos diferentes tipos de leucócitos residentes nos tecidos.
CITOCINAS Até agora foram identificadas mais de 100 citocinas. A maioria consiste em peptídios ou glicoproteínas, com pesos moleculares variando de 6.000 a 60.000 dáltons. São moléculas com efeito biológico potente, que atuam em concentrações de 10–910–15 M e que se ligam a receptores de superfície específicos nas célulasalvo. Elas não são produzidas por glândulas especializadas, mas sim por diferentes tecidos e células individuais. As produzidas por linfócitos são também conhecidas como linfocinas, enquanto aquelas criadas por monócitos e macrófagos são denominadas monocinas. Algumas citocinas, como o fator β transformador de crescimento (TGFβ), a eritropoetina (EPO), o fator de célulastronco (SCF) e o fator de estimulação de colônias de monócitos (MCSF), estão normalmente presentes em quantidades detectáveis no
sangue e podem influenciar a função de célulasalvo distantes. A maioria das outras citocinas, no entanto, atua localmente de maneira parácrina (i. e., em células adjacentes) ou autócrina (i. e., na própria célula que as produz). As citocinas são secretadas por células particulares em resposta a vários estímulos, causando efeitos sobre crescimento, motilidade e diferenciação celulares. Uma determinada citocina pode ser secretada isolada ou juntamente com outras não relacionadas como parte de uma resposta coordenada. Muitas apresentam superposição de suas atividades. Além disso, uma citocina pode induzir a secreção de outras citocinas ou mediadores, provocando, assim, uma sequência de efeitos em cascata que amplificam a resposta final. A nomenclatura das citocinas tem pouco em comum com as relações estruturais de suas moléculas. Algumas delas foram chamadas de interleucinas (IL) e receberam um número em sequência. Entretanto, muitas outras mantêm seus nomes históricos descritivos mesmo que sejam errôneos, pois estes não refletem seus efeitos principais, como o fator de necrose tumoral (TNF). As citocinas geralmente não são armazenadas como moléculas préformadas. Sua síntese iniciase por novas transcrições gênicas como consequência da ativação ou supressão de uma determinada resposta celular. Essa ativação transcricional é transitória, e os RNA mensageiros que codificam a maioria das citocinas são instáveis. Desta maneira, a síntese de citocinas também é transitória. A produção de algumas delas pode ser controlada também por processamento do RNA e por mecanismos póstranscricionais. Um desses mecanismos é a formação de um produto ativo a partir de um precursor inativo, como ocorre para a IL1β. Após serem sintetizadas, as citocinas são rapidamente secretadas, resultando em uma explosão de liberação quando necessária. Os efeitos das citocinas são na sua maioria pleiotrópicos (atuam em diferentes tipos celulares) e intensos. Este fato limita o seu uso terapêutico, pois elas podem afetar a função de inúmeros tecidos ao mesmo tempo. Portanto, além dos efeitos desejados, ocorrem respostas colaterais indesejáveis. Adicionalmente, muitas citocinas apresentam o mesmo efeito funcional. Esta redundância de efeitos faz com que o uso de antagonistas, ou mesmo a mutação de determinada citocina, possa não ter consequências funcionais observáveis, pois outras citocinas podem compensar a sua falta. Como já dito, a maioria das citocinas age perto do local onde são produzidas. Assim, podem atuar na mesma célula que as secretam (efeito autócrino) ou em uma célula vizinha (efeito parácrino). Por exemplo, os linfócitos T normalmente secretam citocinas no local de contato com as células apresentadoras de antígenos, o que é conhecido como sinapse imunológica. Por outro lado, quando as citocinas são produzidas em grande quantidade, elas podem entrar na circulação atuando em locais distantes do local de sua produção (efeito endócrino). O efeito de determinada citocina iniciase pela sua ligação a receptores de membrana específicos presentes nas células alvo. Esta ligação deve ser de alta afinidade. Desta maneira, quantidades pequenas de uma determinada citocina são suficientes para ocupar os receptores e desencadear efeitos. A maioria das células expressa quantidades pequenas de receptores de citocinas, cerca de 100 a 1.000 receptores por célula. Este número de receptores é suficiente para induzir respostas biológicas. Sinais externos regulam a expressão dos receptores e, portanto, o potencial de resposta das células às citocinas. Por exemplo, a estimulação de linfócitos T e B por antígenos aumenta a expressão de receptores de citocinas. Durante uma resposta imune, os linfócitos antígenoespecíficos são os que respondem melhor às citocinas secretadas. Esse efeito assegura a especificidade da resposta imune, apesar de as citocinas em si não serem antígenoespecíficas. A síntese de receptores também é regulada por citocinas de modo geral, além de o ser pela própria citocina, à qual o receptor se liga. Este fato determina a amplificação de uma resposta positiva ou mesmo o estabelecimento de retroalimentação negativa. A maioria das citocinas altera a função das célulasalvo, como, por exemplo, a regulação da proliferação celular, por alteração na expressão de genes específicos. Elas se ligam a receptores de membrana e induzem a fosforilação de uma cascata de proteínas que resulta na ativação de fatores de transcrição específicos que atuam na regulação da expressão desses genes. Um mesmo fator de transcrição pode estar relacionado com a expressão de diferentes citocinas, como o fator nuclear kappa B (NFκB). Os receptores de citocinas consistem em uma ou mais proteínas transmembrânicas, cujas porções citoplasmáticas são responsáveis por dar início às vias de sinalização intracelular. Essas vias são ativadas pela ligação da citocina ao receptor. Os receptores de citocinas são classificados de acordo com as homologias estruturais no domínio de ligação às citocinas, sendo divididos em 5 famílias, descritas a seguir.
▸ Receptores de citocina do tipo I São também chamados de receptores de hemopoietina. Contêm uma ou mais cópias de um domínio com dois pares conservados de resíduos de cisteína e uma sequência triptofanoserinaXtriptofanoserina próxima da membrana, em que
X é um aminoácido qualquer. Esses receptores ligamse a citocinas que se dobram em quatro filamentos alfahélices. O efeito celular desses receptores ocorre por ativação da via JAK/STAT.
▸ Receptores de citocina do tipo II De modo semelhante aos receptores do tipo I, contêm domínios extracelulares com cisteínas conservadas, mas não apresentam a sequência triptofanoserinaXtriptofanoserina. Esses receptores apresentam uma única cadeia polipeptídica de ligação ao ligante e uma cadeia transdutora de sinal. O efeito dos receptores do tipo II também ocorre por ativação da via JAK/STAT.
▸ Receptores da superfamília das imunoglobulinas São receptores de citocinas que apresentam domínio extracelular de imunoglobulinas.
▸ Receptores do TNF São receptores com domínio extracelular rico em cisteína. Ativam proteínas intracelulares associadas que induzem apoptose ou estimulam a expressão de genes, ou ambos. Entre os membros da família do receptor de TNF, está a proteína Fas, que ativa o processo de morte celular por apoptose.
▸ Receptores transmembrânicos de 7 alfahélices São também denominados receptores em serpentina, pois apresentam várias cadeias polipeptídicas que atravessam a membrana de um lado a outro. São acoplados à proteína G. Membros dessa classe de receptores medeiam respostas rápidas e transitórias de uma família de citocinas chamadas de quimiocinas. Neste capítulo, será apresentada uma breve descrição das citocinas e de seus efeitos mais evidentes e bem estabelecidos. As IL1α e β, e a IL2, a IL17, a IL10 e o INFγ foram selecionadas para uma abordagem mais detalhada a fim de introduzir o assunto. Não temos a pretensão de aprofundar o tema, pois este assunto é extenso e mais estudado em Imunologia. Algumas citocinas, as células que as produzem e os seus efeitos principais sobre as célulasalvo estão relacionados no Quadro 72.1. Muitas citocinas estimulam a proliferação celular e, portanto, poderiam ser também classificadas como fatores de crescimento. Outras são importantes mediadores de comunicação entre tecidos e células circulantes. Além disso, várias delas atuam conjuntamente para estimular ou intensificar as funções efetoras de leucócitos.
INTERLEUCINA1 A interleucina1 (IL1) compreende duas proteínas distintas, IL1α e IL1β, que são codificadas por genes diferentes. Ambas dispõem de aproximadamente 25% de homologia em sua sequência de aminoácidos e são estruturalmente semelhantes. Sintetizamse a partir de precursores de 31 kDa, clivados por proteases específicas em formas maduras de 17 kDa, sendo a próIL1β clivada por uma protease chamada de enzima conversora de interleucina 1β (ICE, interleukin1β converting enzyme), também conhecida como caspase1, gerando a IL1β madura. A expressão da próIL1β é induzida pelo fator de transcrição NFκB, o qual é ativado por sinais inflamatórios. Posteriormente, a clivagem dessa citocina é induzida pela ativação de inflamassomas. Os inflamassomas são complexos citoplasmáticos multiproteicos que estimulam a maturação de citocinas da família da IL1 e induzem a morte celular, denominada piroptose. Os inflamassomas consistem em uma proteína com característica de sensor, como o receptor Nodlike (NOD), a protease caspase1, e muitas vezes a proteína adaptadora ASC. A ativação do inflamassoma induz a clivagem de caspase1, que se torna ativa e promove o processamento da próIL1β, levando à secreção da citocina madura. Esses inflamassomas são ativados por uma grande variedade de moléculas estruturalmente não relacionadas, incluindo agentes patogênicos, toxinas bacterianas, produtos metabólicos, moléculas insolúveis (partículas, cristais e agregados de proteínas) e alarminas liberados pelo tecido danificado. Os monócitos e os macrófagos ativados são as principais fontes de IL1. Entretanto, outros tipos celulares também podem produzir IL1, como osteoblastos (um tipo de célula óssea), queratinócitos (principal tipo de célula na pele), hepatócitos (células do fígado) e células nervosas e endoteliais. As IL1α e IL1β ligamse aos mesmos dois receptores de superfície celular. Ambos os receptores, denominados receptor da IL1 tipo I (IL1RI, IL1 receptor type I) e receptor da IL1 tipo II (IL1RII, IL1 receptor type II), exibem
uma homologia de aminoácidos de cerca de 28% em seus domínios extracelulares e são membros da superfamília das Ig. O IL1RI é encontrado em quase todas as células, porém ocorre em maior quantidade em: células epiteliais, hepatócitos, queratinócitos, linfócitos T e fibroblastos. Esse receptor ligase à IL1α com maior afinidade que à IL1β e tem uma longa cauda citoplasmática que participa na ativação da via de sinalização intracelular. IL1RII é visto principalmente nos linfócitos B, monócitos e neutrófilos. Esse receptor ligase à IL1β com maior afinidade que à IL1α e dispõe de um domínio citoplasmático curto que não participa na transdução de sinais. Como consequência da ativação, IL1RII é liberado das células. Acreditase que essa forma solúvel de IL1RII atue como modulador da função dessa citocina, pois, ligandose à IL1β (a principal forma liberada das células produtoras), impede a estimulação excessiva das célulasalvo. A IL1 provoca vários efeitos em diferentes tipos de células e em diferentes órgãos. Tratase, portanto, de uma citocina pleiotrópica. A ligação da IL1 a seus receptores estimula vias intracelulares que induzem a ativação dos fatores de transcrição NFκB e AP1, que estão relacionados com a expressão de citocinas inflamatórias. A IL1 estimula localmente: (a) os monócitos e os macrófagos para aumentar a produção de IL1, bem como de outras citocinas, como o fator de necrose tumoral (TNF, tumornecrosis factor) e IL6; (b) a proliferação dos linfócitos B e a síntese de imunoglobulinas; e (c) os linfócitos T a gerarem citocinas, como IL2 e o seu receptor. A IL1 é frequentemente produzida em altas concentrações e na circulação apresenta efeitos sobre os sistemas nervoso e endócrino, assim como sobre o fígado. Esses efeitos são descritos sucintamente a seguir: ■ A febre é um quadro clínico caracterizado por temperaturas acima de 37°C que inibem o crescimento de alguns microrganismos. As substâncias que são criadas peloorganismo e podem causar febre são denominadas pirógenos endógenos. A IL1 é um pirógeno endógeno ■ A IL1 aumenta a síntese de proteínas pelos hepatócitos e por outras células do fígado. Muitas dessas proteínas, como o componente do complemento e as proteínas da fase aguda, participam na defesa do hospedeiro contra microrganismos e outros antígenos ■ A IL1 eleva a produção de alguns hormônios, como o hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) pela hipófise.
Quadro 72.1 ■ Principais propriedades de algumas citocinas. Citocinas
Principais células produtoras
Principais efeitos
IL1α e β
Monócitos/macrófagos, osteoblastos,
Coestimulação das APC e linfócitos T
queratinócitos, hepatócitos, células nervosas, células endoteliais e apresentadoras de antígenos (APC)
Função de linfócitos B e produção de Ig Resposta de fase aguda do fígado Ativação dos fagócitos Inflamação e febre Hematopoese Atua sobre o sistema nervoso central e o sistema endócrino
IL2
Linfócitos TH2 ativados, linfócitos TC,
Proliferação e diferenciação de linfócitos
células NK
T Função das células NK e linfócitos TC Proliferação dos linfócitos B e expressão de IgG2
IL3
Linfócitos T, células epiteliais do timo,
Crescimento das células progenitoras
queratinócitos, células nervosas,
hematopoéticas imaturas
mastócitos
Produção e diferenciação de células mieloides
IL4
Linfócitos TH2, mastócitos, macrófagos,
Proliferação dos linfócitos B, expressão
basófilos, linfócitos B e células do
de IgE e expressão do MHC de classe II
estroma da medula óssea
Proliferação dos linfócitos TH2 e TC Função dos eosinófilos e mastócitos Expressão de moléculas de adesão celular em células endoteliais
IL5
Linfócitos TH2, mastócitos
Crescimento, diferenciação e função dos eosinófilos
IL6
Linfócitos TH2 ativados, APC, monócitos/macrófagos, fibroblastos, hepatócitos, células endoteliais e células nervosas
Efeitos sinérgicos com a IL1 ou o TNF Induz febre Resposta de fase aguda do fígado Proliferação de linfócitos T e B, hepatócitos, queratinócitos e células nervosas, e produção de Ig Ativa células progenitoras hematopoéticas
IL7
Células corticais do timo e do estroma
Linfopoese T e B no timo e na medula
medular e células hepáticas fetais
óssea, respectivamente Funções dos linfócitos TC
IL8
Macrófagos, linfócitos T, fibroblastos,
Efeito quimioatraente para neutrófilos,
células endoteliais, queratinócitos,
linfócitos T e basófilos
hepatócitos, condrócitos, neutrófilos e células epiteliais
Liberação de enzimas lisossomais por neutrófilos Adesão dos neutrófilos às células endoteliais Angiogênese
IL9
Linfócitos T
Efeitos hematopoéticos e timopoéticos Efeito sinérgico com a eritropoetina na proliferação e diferenciação de células progenitoras de eritrócitos
IL10
Linfócitos TH2, T CD8 e B ativados,
Inibição da produção de citocinas por
macrófagos e queratinócitos
linfócitos TH1, células NK e APC Promoção da proliferação das células B e respostas humorais Supressão da imunidade celular
IL11
Fibroblastos do estroma e trofoblastos
Hematopoese e trombopoese Efeitos sinérgicos com a IL3 na indução da proliferação e maturação dos megacariócitos
IL12
Linfócitos B e macrófagos
Proliferação e função dos linfócitos TC ativados e células NK Produção de INFℓ?α?αℓ? Indução dos linfócitos TH1 e supressão dos TH2
IL13
Linfócitos TH2
Proliferação/diferenciação dos linfócitos B Inibe a produção de citocinas pró inflamatórias por monócitos/macrófagos
IL14
Linfócitos T e B e células tumorais
Proliferação dos linfócitos B ativados
IL15
Células epiteliais, monócitos e
Proliferação dos linfócitos T
células não linfocíticas
Intensifica a atividade citotóxica dos linfócitos T e células LAK
IL16
Linfócitos CD8+ e CD4+, células epiteliais
Efeito quimioatraente para células CD4+
e eosinófilos
(linfócitos T, eosinófilos e monócitos) Comitogênico para células T CD4+
INFα e β
Monócitos/Macrófagos, fibroblastos, neutrófilos e linfócitos T e B
Efeitos antivirais Induz MHC da classe I em células somáticas Ativação de macrófagos, células NK e células T CD8+ Inibe a proliferação celular
INFγ
Linfócitos TH1 e NK ativadas
Indução do MHC da classe I em todas as células somáticas Indução do MHC da classe II nas APC e células somáticas
Ativação de macrófagos, neutrófilos e células NK Promoção da imunidade celular (inibe as células TH2) Efeitos antivirais Diferenciação de linfócitos T TNFα
Macrófagos ativados, neutrófilos, linfócitos B, mastócitos, basófilos, eosinófilos e células NK, algumas células tumorais, astrócitos, células endoteliais e células musculares lisas
Citólise de células tumorais Produção de citocinas e de PAF em diferentes tipos celulares Estimula a expressão de moléculas de adesão sobre as células endoteliais Atua de modo endócrino para estimular a produção de citocinas em monócitos e células endoteliais, assim como para produzir febre e proteínas da fase aguda nos hepatócitos
GCSF
Linfócitos T, monócitos/macrófagos
Intensifica a proliferação, a diferenciação e a ativação da linhagem neutrofílica de células hematopoéticas
GMCSF
Linfócitos T e B, macrófagos, mastócitos,
Promove a proliferação, a maturação e a
células endoteliais, neutrófilos, eosinófilos
ativação de diferentes células
e fibroblastos
hematopoéticas em vários estágios de desenvolvimento
Eritropoetina
Células renais e células hepáticas
Produção de eritrócitos ao estimular a diferenciação e a proliferação das células progenitoras destes
IL, interleucinas; APC, células apresentadoras de antígenos; NK, células natural killer; Ig, imunoglobulinas; TNF, fator de necrose tumoral; INF, interferona; GCSF, fator estimulador de colônias de granulócitos; GMCSF, fator estimulador de granulócitos e monócitos; PAF, fator ativador de plaquetas; MHC, complexo de histocompatibilidade.
INTERLEUCINA2 A interleucina2 (IL2) é um fator de crescimento autócrino e parácrino, secretado por linfócitos T ativados, essencial para a proliferação clonal de células T. A interleucina2 foi descoberta em 1976, devido à sua capacidade de aumentar a mitogênese de linfócitos T humanos e sustentar o crescimento contínuo de células T em cultura. A descoberta da IL2 (então denominada fator de crescimento das células T) permitiu, pela primeira vez, a propagação e o estudo de clones individuais de células T. Seu papel essencial na proliferação dessas células e seus efeitos sobre a produção de citocinas e sobre as propriedades funcionais dos linfócitos B, macrófagos e células NK indicam que a IL2 é muito importante. Esta é a razão por a termos escolhido como exemplo para discutir o mecanismo de ação das citocinas neste capítulo. A molécula de IL2 é um polipeptídio com PM de 15.400 dáltons e apresenta 133 aminoácidos, sendo codificada por um único gene localizado no cromossomo 4 humano. Pode ser glicosilada em vários graus, produzindo espécies de peso
molecular maior. Contudo, as cadeias laterais glicosiladas não são necessárias para a sua função. A sua sequência de aminoácidos não tem qualquer semelhança com aquela de outras citocinas conhecidas. Entretanto, a análise cristalográfica com raios X indica que ela dispõe de estrutura tridimensional que lembra a da IL4 e do GMCSF. A IL2 é uma proteína globular composta de duas αhélices que se dispõem de modo a formar faces planares hidrofóbicas ao redor de um cerne muito hidrofóbico. Esta configuração é mantida, em parte, pela única ponte dissulfeto intracadeia, essencial para a atividade biológica. Os linfócitos T em repouso não sintetizam nem secretam IL2, mas podem ser induzidos a fazêlo por meio das combinações apropriadas de antígeno e fatores coestimuladores ou por exposição a mitógenos. A produção de IL2 induzida por antígenos ocorre, principalmente, nas células THCD4. Porém, os linfócitos CD8 e algumas células NK também podem ser induzidos a secretar IL2 em certas condições. Quando linfócitos humanos são expostos a um mitógeno de células T, a expressão do mRNA da IL2 tornase detectável depois de 4 h, atinge concentração máxima em 12 h e, em seguida, declina rapidamente. O desaparecimento abrupto do mRNA reflete não apenas a cessação da transcrição do gene da IL2, como também a instabilidade do seu mRNA, cuja meiavida é de menos de 30 min. A síntese e a liberação da IL2 seguem um curso cronológico semelhante, resultando em um pico transitório de secreção que rapidamente desaparece. Como a IL2 tem meiavida muito curta na circulação, ela atua apenas sobre a célula que a secretou ou sobre células presentes na vizinhança imediata.
▸ Mecanismos de ativação de linfócitos T por IL2 A IL2 ligase a receptores de superfície, nas células (IL2R), ativando vias de sinalização intracelulares que resultam na ativação dos linfócitos T. A ligação da IL2 ao seu receptor promove o início da proliferação da célula T, regulando a transição da fase G1 para a S do ciclo celular. O IL2R é composto pelas cadeias α (CD25), β (CD122) e γ (CD132), que se ligam a IL2 com diferentes afinidades; a afinidade máxima ocorre quando as três cadeias estão presentes; a intermediária, quando apenas as cadeias β e γ estão presentes; e pouca afinidade, quando só a subunidade α está presente. O IL2R é modificado pelo estado de ativação da célula T, visto que no estado de repouso apenas as cadeias β e γ são expressas. Quando estimulada por antígeno, a cadeia α é expressa combinando com as cadeias β e γ para formar o receptor de alta afinidade. A principal via de sinalização ativada pela ligação da IL2 ao seu receptor (IL2R) é a JAK/STAT. A sinalização intracelular pelo IL2R também envolve ativação de tirosinoquinase p56lck, regulação da atividade da GTPase p21ras, serina/treonina quinase Raf1, Map quinase ERK2 e fosfatidilinositol3 quinase (PI3K). Após a ligação da IL2 ao receptor, acontece heterodimerização das subunidades β e γ, ativando a transfosforilação das proteínas associadas Janus quinase 1 e 3 (JAK1 e JAK3), respectivamente (Figura 72.1). As JAK ativadas fosforilam tirosinas do receptor, criando locais de ligação para os fatores ativadores de transcrição STAT5a/b que têm domínio SH2. As JAK fosforilam as STAT nos resíduos de tirosina, promovendo a sua dissociação do receptor. A seguir, as STAT dimerizamse e translocamse para o núcleo, ligandose a sequências específicas do DNA e estimulando a transcrição do gene. Esses fatores regulam a transcrição gênica, resultando no controle do crescimento e diferenciação celular. No interior do núcleo, há atividade de tirosina fosfatase bloqueando o processo de ativação da transcrição pela desfosforilação das STAT, as quais são exportadas novamente para o citoplasma. Embora a fosforilação de tirosina das STAT seja fundamental para a sua ativação, há evidências de que a fosforilação da serina também regula a sua atividade transcricional. A fosforilação dos resíduos de serina das STAT5a e 5b pode modular a sua atividade transcricional, alterando a expressão de genes ativados por este fator de transcrição. A STAT5a pode ser fosforilada em dois locais de serina Ser725 e Ser779; a STAT5b, na Ser730. A fosforilação de serina das STAT5a e 5b foi observada em células e tecidos estimulados por ligantes como GH, prolactina e IL2. O tratamento de linfócitos T com inibidor de serina quinase H7, que bloqueia a fosforilação de serina da STAT5, abole a atividade transcricional de STAT5 estimulada por IL2. A ativação de STAT pode ser inibida por fatores antagonistas, sugerindo que existem vias responsáveis pela inibição da sinalização JAK/STAT. Os mecanismos responsáveis pela inibição da atividade de STAT incluem desfosforilação, degradação proteolítica ou associação com moléculas inibitórias. Estímulos que promovem a inibição da sinalização de JAK/STAT foram descritos. Alguns deles ocorrem por meio da ativação da proteinoquinase A ou C, ativação de fluxos de cálcio e ação de citocinas antagonistas, como TGFβ. Os mecanismos de inibição da sinalização de JAKSTAT por estes agentes ainda não estão bem definidos. As JAK ativadas fosforilam os resíduos de tirosina na subunidade β do IL2R, que também servem de locais de ligação para a Shc. A Shc recruta dois importantes complexos proteicos: o Grb2/Sos, que ativa a via da Ras/ERK, e o Grb2/Gab2, que ativa a via da PI3K. A proteína Shc é recrutada pelo IL2Rβ ativado, tornandose tirosilfosforilada em
três locais. Estes locais de fosforilação permitem a ligação dos domínios SH2 da proteína Grb2. Através do seu domínio SH3, o Grb2 ligase à proteína Sos, que ativa as Ras e, consequentemente, promove a ativação da via das MAP quinases. A proteína Sos é responsável por catalisar a ligação de GTP às proteínas Ras, que são ativas quando estão ligadas ao GTP e inativas se ligadas ao GDP. A proteína Sos pertence aos fatores conhecidos como GEF (fatores de troca de GTP) que catalisam esta ligação de GTP às proteínas Ras.
Figura 72.1 ■ Via de sinalização do receptor de interleucina2 (IL2R). Essa citocina ligase ao seu receptor, levando à fosforilação das JAK1 e 3. A JAK3 ativa a STAT5, que regula a transcrição de genes específicos. A ativação do receptor de IL2 também ativa a proteína SHC, que, em conjunto com GRB2, ativa o SOS1. Este, por sua vez, ativa a RAS, que ativa a RAF1, e esta, o MEK, e então o ERK. A partir deste, é ativado o ELK1, assim como os fatores de crescimento cFOS e cJUN, que juntos constituem o complexo AP1. Descrição da figura no texto. (Figura idealizada pela Dra. Renata Gorjão.)
A ativação de Grb2 também medeia a fosforilação em tirosina da Gab2, formando um complexo que promove a ativação de PI3K. A proteína Akt contém um domínio PH, que se liga ao PIP3 na membrana quando a PI3K é ativada. Depois da ligação ao PIP3, a conformação da Akt pode ser alterada e ativada por um processo que requer fosforilação, por uma proteinoquinase dependente de fosfatidilinositol, processo que ocorre na membrana celular. Quando ativada, a Akt retorna para o citoplasma e fosforila várias proteínas envolvidas com o processo de sobrevivência das células. Apesar das diferenças nos mecanismos de sinalização, tanto Shc quanto STAT5 são capazes de induzir a expressão de genes como bcl2, bclxL e cmyc, que são proteínas antiapoptóticas, promovendo a proliferação das células T. As ERK (quinases reguladas por sinal extracelular) constituem uma família de MAP quinases que participam da fase final desta via de sinalização e que fosforilam outras quinases e proteínas regulatórias da transcrição. As ERK podem também participar na sinalização de JAK/STAT em vários sistemas. A fosforilação de serina de STAT1 é substrato para a ERK2 in vitro. Na sinalização de GH que também envolve a ativação de STAT5, a via da ERK é fundamental para a atividade transcricional da STAT. Nesses estudos, foi mostrado que a fosforilação de serina da STAT5 pode variar com o hormônio ou com a citocina ativadora. As ERK participam da fosforilação dos fatores de transcrição como Elk1, Fos, AP1, NFAT e cmyc, aumentando a capacidade proliferativa das células. A ativação da via da PI3K pode potencializar a sinalização proliferativa por STAT5, por intermédio de eventos paralelos à via convencional das ciclinas G1. Esta potencialização não é resultado de um aumento da quantidade de STAT5 ativada nem da elevação da atividade transcricional de STAT5. Isto é demonstrado pela indução máxima da expressão de cmyc, ciclina D2, ciclina D3, ciclina E e bclxL promovida pela via da PI3K. A via de sinalização da PI3K isoladamente
não é capaz de induzir proliferação, mas atua potencializando os sinais mitogênicos de outras vias. Células com atividade da PI3K elevada podem ser mais sensíveis aos estímulos mitogênicos que aquelas cuja atividade da PI3K foi inibida.
INTERLEUCINA6 A interleucina6 (IL6) é uma proteína de 20,5 kDa que contém 184 resíduos de aminoácidos. A IL6 pertence a uma família de citocinas que se ligam a um receptor formado por uma subunidade α, que não participa da sinalização intracelular devido à sua porção citoplasmática curta, e de uma subunidade β (molécula gp130), que tem a função de transdutor de sinal intracelular. Após a ligação à subunidade α, formase um complexo hexamérico que consiste em dois ligantes, duas subunidades α e duas moléculas gp130. Subsequentemente, ocorre a fosforilação dos resíduos de tirosina em gp130 levando à fosforilação das proteínas JAK. Dessa forma, como descrito para a IL2, também são ativadas as vias JAK/STAT, MAPK/ERK e PI3K/AKT. A IL6 é uma citocina produzida por monócitos, macrófagos, linfócitos, fibroblastos, tecido adiposo e muscular. Essa citocina estimula a proliferação de linfócitos T, a ativação da apoptose e a citotoxicidade. O aumento da IL6 ativa o sistema imune, induz síntese hepática de proteínas de fase aguda e aumenta a atividade do eixo hipotálamohipófise suprarrenal, e esse aumento altera respostas metabólicas. Assim como o TNFα, a IL6 tem correlação com a obesidade e com a resistência à insulina. A IL6 suprime a expressão de adiponectina e receptores e sinalizadores de insulina. A IL6 está associada a doenças inflamatórias por diferentes vias de atuação, como sobrevivência celular, sinalizando contra a apoptose, equilíbrio entre células Th1 e Th2 por meio da diferenciação de células Th2, reforçando a produção de IL4 e IL13, e inibição da diferenciação de células Th1. Além disso, possui papel importante, bloqueando a diferenciação de células Treg e estimulando a diferenciação de Th17, produção de IL21 e de anticorpos por células B. A IL6 é produzida em maior quantidade pelo tecido adiposo aumentado e pode inibir a diferenciação para linfócitos T reguladores (Treg), que são células que inibem a produção de citocinas que promovem respostas inflamatórias.
INTERLEUCINA10 A citocina interleucina10 (IL10) é a molécula com maior característica imunossupressora. A IL10 exerce um papel importante na prevenção de patologias inflamatórias e autoimunes, limitando a resposta aos patógenos. As citocinas da família IL10 compreendem IL10, IL19, IL20, IL22, IL24, IL26, IL28A, IL28B e IL29. Essas citocinas ligamse a um receptor formado por um complexo heterodimérico. A IL10 ligase a um complexo tetramérico formado por duas subunidades IL10R1 e duas IL10R2. A subunidade IL10R1 leva à ativação de Jak1, e a IL10R2, à Tyk2 (outro membro da família de proteínas JAK). A fosforilação dos resíduos de tirosina nas porções citoplasmáticas desses receptores cria sítios de ligação para STAT3 e, em menor extensão, para STAT1 e STAT5. A ativação dessas vias de sinalização também está relacionada com a inibição da translocação nuclear do fator de transcrição NFκb, sendo esta inibição da sua atividade transcricional um dos principais mecanismos de atividade imunossupressora da IL10. A expressão dessa citocina está relacionada com diferentes mecanismos de controle que são específicos para cada tipo celular. Esses mecanismos incluem a regulação epigenética, a expressão e ativação de fatores de transcrição e a regulação póstranscricional. A produção da IL10 foi originalmente evidenciada em linfócitos auxiliares (Th) do tipo 2. No entanto, hoje se sabe que diversas células são capazes de secretar essa citocina, como macrófagos, células dendríticas, neutrófilos, eosinófilos e outros tipos de linfócitos, além de células de origem não hematopoética, como as células epiteliais. Os linfócitos T reguladores (Treg) também produzem grandes quantidades dessa citocina. Essa células são fundamentais no controle de praticamente todas as respostas imunes, atuando sobre todos os subtipos celulares da imunidade inata e adaptativa. Os linfócitos Treg podem ser originados no timo ou sofrer um processo de diferenciação na periferia, dependendo dos estímulos aos quais são expostos, e tornamse células capazes de produzir IL10. De característica antiinflamatória, a IL10 é uma citocina cujo principal efeito é inibir a produção de INFγ pelas células Th1 (de características inflamatórias), contribuindo para o desenvolvimento de células Th2. Esses efeitos imunossupressores podem ser clinicamente úteis em doenças autoimunes mediadas por células T. Por ser uma das citocinas antiinflamatórias mais potentes, tem sido extensivamente estudada em adultos no tratamento de várias
desordens inflamatórias, tais como psoríase e doença inflamatória do intestino. Estudos mostram que a IL10 inibe a proliferação de células T e liberação de citocinas com propriedades antibacterianas. A IL10 inibe a capacidade dos monócitos e macrófagos de apresentarem antígenos às células T por meio de supressão da expressão da molécula de histocompatibilidade de classe II (MHCII), assim como das moléculas coestimulatórias CD80 (B7.1) e CD86 (B7.2). Dessa forma, essa citocina também promove a redução da expressão de IL1, IL6, IL8, IL12 e do TNFα.
INTERLEUCINA17 A IL17 é uma citocina cujo gene foi isolado de células de hibridoma em 1993. Em 1995, ela foi reconhecida como uma nova citocina, e atualmente seis moléculas homólogas são conhecidas (IL17A até IL17F). A IL17A é a molécula mais estudada e de importantes efeitos imunológicos. Embora diversas células do sistema imunológico possam produzir IL17A, as células Th17 merecem especial atenção, pois qualquer alteração de sua função promove efeitos importantes na fisiologia de diversos tecidos, como, por exemplo, o tecido adiposo. As citocinas da família IL17 são potentes indutoras da inflamação, promovendo infiltração celular e produção de outras citocinas inflamatórias. Estudos mostram que a IL17 está aumentada nos sítios inflamatórios em doenças autoimunes e amplifica a inflamação em sinergismo com TNFα. Diversas doenças autoimunes, como artrite reumatoide, psoríase, esclerose múltipla e lúpus, possuem como característica uma produção desregulada de IL17. As células Th2 produzem citocinas antagonistas à diferenciação de Th17, mostrandose, assim, protetoras ao desenvolvimento de doenças autoimunes por essas células. A principal função de IL17 é induzir a produção de quimiocinas e outras citocinas (como o TNFα), as quais recrutam neutrófilos e monócitos para o sítio da ativação de células T. A IL17 também contribui para a granulopoese, aumentando a produção e secreção de GMCSF, assim como de seus receptores. Além disso, a IL17 estimula a produção de proteínas antimicrobianas, como LL37 e proteases remodeladoras de matriz por neutrófilos e outras células. A IL17A também induz a produção de metaloproteinases de matriz que podem causar danos aos tecidos por degeneração proteolítica de colágeno e proteoglicanas, um fenômeno de grande importância na destruição da cartilagem observada na artrite reumatoide, por exemplo. No entanto, a produção exacerbada de IL17 pode promover danos em outros tecidos, dependendo do nível de ativação. A diferenciação de linfócitos Th naive (que não tiveram contato com o antígeno) para células Th17, com capacidade de secretar IL17A, é estimulada pela IL6. Em condições de obesidade, o tecido adiposo contribui para uma significativa proporção de IL6 circulante tanto em modelos experimentais como em humanos obesos, afetando, assim, a expressão de IL17A. A diferenciação para linfócitos produtores de IL17A pode ser modulada por outras adipocinas, como a leptina, que será abordada posteriormente.
INTERFERONAγ A interferonaγ (INFγ) é uma proteína dimérica com subunidades de 146 aminoácidos. Essa citocina é essencial para a imunidade contra patógenos intracelulares e contra células tumorais. O receptor de INFγ é composto por duas subunidades, IFNGR1 e IFNGR2. A ligação dessa citocina ao seu receptor induz a oligomerização e ativação do mesmo por meio da indução de fosforilação de JAK1 e JAK2. Assim como descrito anteriormente, ocorre a ativação da proteína da família STAT, que neste caso é STAT1. Esse fator de transcrição dimerizase e migra para o núcleo, regulando a expressão gênica por ligação à sequência ativadora gama (GAS), que se refere à sequência presente na região promotora dos genes regulados por INFγ. A INFγ também induz a fosforilação da proteína fosfolipaseCgama2 (PLCγ2) através de JAK1/2. O diacilglicerol (DAG) é o produto da atividade enzimática da PLCγ2, o qual pode ativar algumas isoformas da proteinoquinase C (PKC), incluindo a PKCγ. Esta, por sua vez, estimula a proteína tirosinoquinase SRC1 (cSrc). A cSrc ativa a fosforilação do resíduo de tirosina 702, ativandoo. Essa via ativada por INFγ, PLCγ2/PKC α/cSrc/STAT1 leva à expressão da molécula de adesão intercelular ICAM1. Essa molécula atua favorecendo a migração e a adesão monocitária para o foco inflamatório e também está relacionada com a dinâmica da lesão endotelial característica da aterosclerose, por exemplo. Existem vários outros alvos para STAT1, cuja ativação é mediada por INFγ, como SMAD7, fator regulador de INF1 (IRF1) e proteínas envolvidas na regulação do ciclo celular (cMyc e p21). A INFγ também ativa vias independentes de JAKSTAT, como a cascata MEKK1/MEK1/ERK1/2, que regula a atividade da proteína C/EBPβ e IRF9.
INFγ é produzida por células que medeiam tanto as respostas inatas como adaptativas. As células natural killer (NK) são parte da imunidade inata e produzem rapidamente grandes quantidades dessa citocina após a ativação. Por outro lado, essa citocina é liberada principalmente por linfócitos Th1 que recrutam leucócitos para o sítio da infecção, resultando em desenvolvimento da inflamação. De fato, os linfócitos T CD4 podem diferenciarse em várias linhagens efetoras, das quais as células Th1 são responsáveis pela secreção de grandes quantidades dessa citocina. Já os linfócitos T CD8 não produzem grandes quantidades de INFγ, mas, após o estímulo do receptor de células T (TCR), essas células diferenciam se em linfócitos T citotóxicos (CTL) e células de memória, os quais são capazes de produzir elevados níveis dessa citocina em resposta à ativação pelo TCR ou outras citocinas inflamatórias, como IL12 e IL18. A INFγ também estimula a função de macrófagos, como a fagocitose e a capacidade de apresentação de antígenos. A estimulação dos macrófagos pela INFγ resulta na produção de TNFα, o qual, juntamente com INFγ, contribui com o aumento da função dessas células. No entanto, níveis elevados de ambas as citocinas podem levar à exacerbação da resposta inflamatória.
CITOCINAS PRODUZIDAS PELO TECIDO ADIPOSO Além das células do sistema imune, outros tecidos (adiposo, muscular, hepático, renal etc.) são capazes de produzir substâncias biologicamente ativas. Falaremos especialmente do adiposo, uma vez que descobertas relativamente recentes, das décadas de 1980 e 1990, mostraram que esse tecido tem uma habilidade altamente desenvolvida de sintetizar e secretar substâncias de alto poder biológico, muitas delas profundamente eficazes na regulação de processos metabólicos diversos. O conhecimento do seu real papel fisiológico será de extrema valia no entendimento e na intervenção terapêutica em doenças de alta prevalência demográfica, como o diabetes melito, a obesidade, a hipertensão arterial e as síndromes correlacionadas. Estas substâncias são genericamente denominadas adipocitocinas ou, simplesmente, adipocinas. Entre os hormônios que ganharam destaque por sua participação na regulação metabólica, serão objeto de maior atenção neste capítulo a leptina (LEP), a adiponectina (adipoQ, apM1 ou ACRP30), o fator α de necrose tumoral (TNF α), o inibidor 1 do ativador de plasminogênio (PAI1) e a resistina (FIZZ3). O Quadro 72.2 mostra uma série grande, ainda que parcial, de outros produtos identificados como expressos, sintetizados e liberados pelas células adiposas; além disso, estas células são capazes de metabolizar hormônios esteroides, transformandoos em outros esteroides com atividade biológica importante. Como exemplo desta última habilidade, citamos a capacidade do tecido adiposo em expressar a enzima citocromo P450 aromatase, que transforma andrógenos em estrógenos (especialmente, a testosterona em estradiol no homem e a androstenediona em estrona na mulher após a menopausa).
Quadro 72.2 ■ Proteínas secretadas pelo tecido adiposo na corrente sanguínea. Molécula
Função/efeito
Leptina (LEP)
Sinaliza para o cérebro sobre os estoques corporais de gordura Regulação do apetite e do gasto energético
Fator α de necrose tumoral (TNFα)
Interfere na sinalização da insulina e é uma possível causa de resistência à insulina na obesidade
Interleucina6 (IL6)
Implicada na defesa do hospedeiro e no metabolismo de carboidratos e lipídios
Inibidor 1 do ativador de plasminogênio (PAI1)
Potente inibidor do sistema fibrinolítico
Fator tecidual (FT)
Principal iniciador tecidual da cascata de coagulação
Angiotensinogênio (ATG)
Precursor da angiotensina II. Regulador da pressão sanguínea e da homeostase hidreletrolítica
Adiponectina (AdipoQ, apM1, ACRP30)
Papel como inibidor do processo de aterogênese e sensibilizador da insulina Adipsina
Possível elo entre a ativação da via alternativa de complemento e o metabolismo do tecido adiposo
Proteína estimuladora de acilação (ASP)
Influencia a taxa de síntese de TAG no tecido adiposo
Adipofilina
Possível marcador para o acúmulo lipídico nas células
Prostaglandinas (PGI2 e PGF2α)
Papel regulador na inflamação, ovulação, menstruação, coagulação e secreção ácida
Fator β transformador do crescimento (TGFβ)
Regulador de grande variedade de respostas biológicas: proliferação, diferenciação, apoptose e desenvolvimento
Fator I de crescimento insulinasímile (IGF1)
Estimula a proliferação de grande variedade de células e medeia ações do GH
Fator inibidor de macrófagos (MIF)
Envolvido em processos próinflamatórios e de imunorregulação
▸ Leptina A leptina foi inicialmente descrita por Coleman em 1973 como “fator de saciedade” em camundongos portadores da mutação do gene OB. Em 1994, Zhang et al. identificaram o defeito da proteína de 16 kDa responsável pela síndrome da obesidade em camundongos ob/ob. A proteína codificada pelo gene OB recebeu mais tarde o nome de leptina, do grego leptos, que significa magro. A partir de sua descoberta, intensificouse o interesse sobre a leptina, gerando grande aumento no número de publicações em curto espaço de tempo.
Estrutura A leptina (Figura 72.2) produzida nos adipócitos é uma proteína pequena, com 167 resíduos de aminoácidos e 16 kDa. Camundongos com duas cópias defeituosas desse gene (homozigotos para este genótipo, ou ob/ob) têm comportamento alimentar compulsivo como se estivessem em estado permanente de jejum. Seus níveis séricos de corticosterona são elevados, mostram déficit de crescimento, são incapazes de manter a temperatura corporal dentro da faixa normal (em torno de 37°C), não se reproduzem (por desenvolver um hipogonadismo hipogonadotrófico) e apresentam apetite voraz. Em consequência, tornamse patologicamente obesos, com perturbações metabólicas muito semelhantes àquelas características de animais com diabetes melito do tipo 2 (T2DM), resistentes à insulina.
Síntese e secreção O gene OB humano está localizado como uma única cópia no cromossomo 7q31.3, expandindose por 650 kb, e consiste em três éxons e dois íntrons. A região codificada da proteína OB se estende pelos éxons 2 e 3. A região promotora tem elementos como TATA box, elementos responsivos (sequências específicas de bases do DNA às quais se ligam fatores de transcrição) a C/EBPα (CCAAT/enhancer binding protein α), GRE (elemento responsivo a glicocorticoides) e CRE (elemento responsivo ao cAMP). Vários tecidos além do adiposo expressam leptina (como placenta, mucosa do fundo gástrico, musculatura esquelética, adenohipófise e epitélio mamário), embora, em termos globais, sua maior ou menor produção esteja diretamente relacionada com a massa de tecido adiposo.
Figura 72.2 ■ Modelo tridimensional da estrutura molecular da leptina.
Os níveis de leptina circulantes parecem estar diretamente relacionados com a quantidade de mRNA para LEP no tecido adiposo. Adicionalmente, vários fatores metabólicos e endócrinos contribuem para regular a transcrição do gene da LEP em adipócitos. Por exemplo, na queda de insulina (ou hipoinsulinemia) ocorre diminuição de LEP, havendo uma correlação direta entre as concentrações desses dois hormônios. Glicocorticoides (como o cortisol), infecções agudas e citocinas inflamatórias elevam os níveis de LEP, enquanto baixas temperaturas, estimulação adrenérgica, hormônio do crescimento (GH), hormônios tireoidianos e tabagismo têm a propriedade de diminuir os níveis de LEP. Durante a noite, as concentrações plasmáticas de leptina aumentam; embora não seja conhecida a influência da melatonina neste fenômeno, ela parece sensibilizar o tecido adiposo à ação de outros hormônios, como, por exemplo, a insulina. Várias citocinas (como TNFα, LIF e IL1), processos infecciosos e endotoxinas estimulam a síntese de LEP. Essa resposta contribui para a anorexia e a perda de peso que acompanham essas condições inflamatórias. Por outro lado, os níveis de LEP caem rapidamente com a restrição calórica e a perda de peso. Essa redução é interpretada como uma resposta fisiológica adaptativa à queda das reservas energéticas e se acompanha de aumento do apetite e diminuição da utilização de energia. Existem diferenças sexualmente determinadas na expressão desse gene, pois, com a mesma quantidade de gordura corporal, mulheres secretam mais LEP que homens. A LEP humana tem uma meiavida biológica de cerca de 25 min, independente de haver ou não obesidade. Essa curta meiavida da LEP circulante é determinada pela sua depuração renal por filtração glomerular.
Mecanismo de ação A leptina exerce seus efeitos biológicos mediante a sua interação com receptores de membrana específicos. Os receptores da LEP (OBR) pertencem à família I de receptores de citocinas, que inclui os receptores para IL2, 3, 4, 5, 6, 7, LIF, GMCSF, GRH, prolactina e eritropoetina. Foram descritas seis isoformas do OBR: OBRa, OBRb, OBRc, OBRd, OBRe e OBRf. Essas isoformas têm a porção aminoterminal extracelular similar, diferindo quanto à porção intracelular. A isoforma OBRb, com 1.162 aminoácidos, é considerada o receptor completo; a ela são atribuídos os efeitos do hormônio, estando envolvida na via de sinalização da leptina, induzindo a ativação de proteínas JAK (Janus kinase) e STAT (signal transducers and activators of transcription). Foi descrita também a ativação de MAP quinases sem envolver a ativação de STAT. Na ausência de leptina, o receptor OBRb forma homodímeros, e não está claro se ocorre a formação de heterodímeros com as outras isoformas. A isoforma OBRa, em menor extensão, também é capaz de
desencadear efeitos intracelulares, mediante ativação de JAK2, mas não ativa STAT, e não está clara a sua importância para a ação da LEP. A isoforma OBRe (com 805 aminoácidos), por não conter nem o segmento transmembrânico nem o domínio intracelular, circula no plasma, sendo considerada um receptor solúvel do hormônio. A transdução de sinal da LEP é feita através da via JAK/STAT. O receptor OBRb tem um segmento transmembrana e dimeriza quando a leptina se liga ao domínio extracelular. Ambos os monômeros do receptor são fosforilados, em resíduos de tirosina do domínio intracelular, por uma Janus quinase 2 (JAK2). Os resíduos fosforilados passam a ancorar três proteínas transdutoras de sinal e ativadoras da transcrição (STAT3, 5 e 6). As STAT ancoradas são, então, fosforiladas em resíduos de tirosina pela mesma JAK2. Após a fosforilação, as STAT dissociamse do receptor e formam homo ou heterodímeros que se movimentam para o núcleo, onde se ligam a sequências específicas de DNA e estimulam a expressão de genes alvos e específicos. Por esse mecanismo, são regulados os genes para NPY, CRH e POMC. Além desta, outras vias de sinalização pela LEP são conhecidas, como as que incluem JNK (NH2terminal CJun kinase), p38 (p38 MAP kinase) ERK, SHP2 (domínio contendo proteína tirosina fosfatase), PLC (fosfolipase C), NO (óxido nítrico), DGKζ (diacylglycerol kinase zeta), PGE2/PGF2 (prostaglandinas E2/F2), PDE (fosfodiesterase), cAMP (AMP cíclico), SOCS3 (sinalização supressora de citocina 3), JAK, STAT, PI3K (fosfatidilinositol3 quinase), IRS (substrato do receptor de insulina), PKB (proteinoquinase B ou AKT), PKC (proteinoquinase C), p70S6K (ribossomal p70 S6 kinase) e ROS (espécies reativas de oxigênio).
Efeitos biológicos A leptina transporta a mensagem de que as reservas de gordura são suficientes e promove a redução da ingestão de metabólitos, além do aumento do gasto de energia. Ela está envolvida na regulação direta do metabolismo do tecido adiposo, inibindo a lipogênese e estimulando a lipólise e a oxidação lipídica. Além de agir sobre o metabolismo do tecido adiposo, a LEP também exerce vários outros efeitos sobre: reprodução, angiogênese, resposta imune, controle da pressão sanguínea e osteogênese. A LEP é necessária para a maturação do eixo reprodutivo, como evidenciado na sua habilidade em restaurar a puberdade e a fertilidade em ratos ob/ob, acelerar a puberdade em ratos selvagens e facilitar o comportamento reprodutor em roedores. A deficiência ou a insensibilidade à LEP está associada ao hipogonadismo hipotalâmico, em humanos e em roedores. O ciclo menstrual não ocorre espontaneamente em pacientes com mutação do gene da LEP. Enquanto a LEP é essencial na puberdade e no ciclo reprodutivo, estudos em ratos ob/ob mostraram que ela não é requerida na gestação e lactação. O receptor OBR participa da sinalização para o crescimento, proliferação e diferenciação celular, e a LEP parece ser capaz de aumentar a produção de citocinas em macrófagos, estimular a adesão e mediar processos de fagocitose. Essa atividade requer upregulation (suprarregulação) dos seus receptores em macrófagos. A leptina tem efeito direto na proliferação dos linfócitos T. Uma adaptação, caracterizada por crescimento da competência imune do organismo contra a imunossupressão associada à falta de energia, foi obtida em resposta à LEP. A LEP está incluída na lista de fatores angiogênicos secretados pelo tecido adiposo. A estimulação de células endoteliais por esse hormônio aumenta a sobrevivência e/ou proliferação celular, com elevação da angiogênese, marcada pela formação de tubos capilares. Também tem sido observado que a LEP acelera a cicatrização, um processo dependente do crescimento de vasos sanguíneos. Com relação à homeostase pressórica, o efeito regulador da LEP se manifesta como uma resposta pressora atribuída à ativação do sistema simpático e uma depressora atribuída à síntese de NO. Portanto, a LEP está envolvida de modo dual nesta regulação, produzindo simultaneamente ação pressora neurogênica e resposta humoral contrária mediada pelo NO. Entre outros efeitos da LEP, já foi demonstrada sua ação como potente inibidor da formação óssea e como estimulante da proliferação das células linfohematopoéticas e da atividade fagocitária de macrófagos. Além disso, a leptina modifica o padrão funcional de sistemas hormonais clássicos. Por exemplo, na deficiência ou insensibilidade à LEP elevamse as concentrações de glicocorticoides, enquanto sua administração reduz a corticosteroidemia, indicando que o eixo hipotálamohipófisesuprarrenal foi afetado, independente do seu papel sobre o metabolismo energético. Também, o eixo hipotálamohipófisetireoide é atingido pela LEP. Sua deficiência diminui a eficiência do feedback negativo dos hormônios tireoidianos. A LEP modula a secreção do hormônio do crescimento (GH), agindo através da via da JAK/STAT, pois, em roedores, sua deficiência prejudica a síntese e secreção de GH.
A leptina como hormônio antiobesidade
Graças à sua habilidade em inibir a ingestão alimentar e em reduzir o peso corporal, a leptina é vista como um fator antiobesidade. Apoiam esta visão os estudos que relatam hiperfagia e obesidade mórbida em roedores e humanos com deficiência deste hormônio ou de seu receptor. No entanto, o insucesso na prevenção de obesidade em humanos e em outros mamíferos tratados com LEP diminuiu sua importância no combate à obesidade. A ocorrência de hiperleptinemia em tais pacientes é admitida como um sinal de resistência, um fenômeno que tem participação na patogenia da obesidade. Os mecanismos que podem influir nessa resistência incluem: dano no transporte de leptina para o tecido cerebral, anomalias nos seus receptores e defeitos na sinalização pósreceptor. A queda na razão LEP liquórica/LEP plasmática pode indicar prejuízo no transporte intracerebral do hormônio. Camundongos New Zealand obesos, resistentes à LEP injetada perifericamente, respondem com redução de peso e diminuição da ingestão alimentar quando o hormônio é injetado por via intracerebroventricular. Em contrapartida, camundongos Agouti, que desenvolvem obesidade com hiperleptinemia, como resultado do antagonismo ao receptor MC4 de melanocortina (αMSH), não respondem nem à LEP periférica nem à centralmente injetada. A resistência pode ser consequência de defeitos na sinalização ao hormônio. Por exemplo, a LEP que age via JAK2/STAT3 induz a formação de SOCS3, que inibe a fosforilação de tirosina de OBR. Essa inibição é capaz de impedir múltiplos aspectos de sinalização pelo domínio intracelular de OBRb e outros receptores. Além disso, as mudanças na expressão de SOCS3 foram correlacionadas ao fenômeno da resistência à leptina. A hiperalimentação (overfeeding) ou a infusão subcutânea contínua de LEP, situações que induzem hiperleptinemia, causam inibição alimentar, perda de peso e aumento do gasto energético em roedores normais (não geneticamente modificados, ou selvagens). Este efeito, contudo, não ocorre em humanos que ingerem dietas ricas em gordura e desenvolvem obesidade. Admitese que a obesidade dieta induzida envolva a participação de outros fatores que acabam por interferir com a ação da LEP. Embora esta cause perda de peso, redução de apetite e de adiposidade em crianças deficientes do hormônio, tal efeito é discreto em adultos normais. O pouco resultado obtido com leptinoterapia em humanos adultos obesos, somado a problemas com a aplicação local do hormônio desestimularam o seu uso terapêutico como medicamento antiobesidade.
Controle da ingestão alimentar e a leptina Outro modo de considerar o papel fisiológico da LEP é fundamentado em estudos que sugerem sua participação como importante sinalizador para o jejum. O traço mais marcante da resposta a um jejum prolongado é a mudança metabólica baseada no uso do lipídio como fonte energética em lugar do carboidrato. Esta resposta é mediada por redução na insulina e aumento nos hormônios contrarreguladores – glucagon, epinefrina e glicocorticoides. Outros aspectos incluem: supressão da atividade dos eixos tireoidiano e gonádico, elevação dos glicocorticoides, redução da temperatura e aumento do apetite. O gasto energético está em parte diminuído pela redução da termogênese tireoidiana. Os hormônios contrarreguladores estimulam a gliconeogênese e a lipólise, para suprir de glicose e ácidos graxos a musculatura esquelética. A hiperfagia que se observa pósjejum depende, em parte, da ação permissiva dos glicocorticoides. Juntamente com as alterações no metabolismo de substratos energéticos e na função neuroendócrina, o jejum prolongado é também caracterizado por imunossupressão. Há notáveis semelhanças entre as respostas metabólica, neuroendócrina e imune ao jejum e o perfil observado em roedores portadores de deficiência ou insensibilidade à LEP, uma vez que acontece acentuada queda da leptinemia com o jejum. Assim, a hipoleptinemia de camundongos ob/ob seria percebida como um permanente estado de jejum. O tratamento com LEP durante o jejum abranda a hiperativação do eixo hipotálamohipófisesuprarrenal e impede a supressão dos eixos tireoidiano, reprodutivo e do hormônio de crescimento. Além disso, a LEP impede a supressão do sistema imune, mantendo a resposta inflamatória e a função normal de linfócitos T, habitualmente suprimidos no jejum.
Ações da leptina no sistema nervoso central As principais ações da LEP (antiobesidade, reguladora do comportamento alimentar, ativadora do sistema simpático e prógonadotrófica) são decorrentes de processos que ocorrem no SNC, mais notadamente no hipotálamo. Embora tenham sido descritas ações extraneurais (afetando fígado, musculatura esquelética e pâncreas endócrino), é no SNC que seus principais efeitos são descritos. Para a sua completa ação, a leptina deve interagir com a isoforma completa do seu receptor, ObRb. No SNC, esses receptores já foram descritos em diversas estruturas, hipotalâmicas e extrahipotalâmicas. No hipotálamo, neurônios que expressam receptores ObRb foram descritos nos núcleos ventro e dorsomediais, arqueado e prémamilar ventral, entre outros. No núcleo arqueado, foram encontradas duas populações de neurônios responsivos à LEP. Uma destas populações é formada pelos neurônios produtores do neuropeptídio Y (NPY) e do peptídio afim da proteína Agouti (AgRP, agouti
related peptide). Estes neurônios têm conexões com neurônios hipotalâmicos produtores de hormônio concentrador de melanina (MCH) e de orexinas, potentes estimulantes do apetite. A outra população é constituída dos neurônios produtores de próopiomelanocortina (POMC, próhormônio precursor do hormônio melanócito estimulante – αMSH) e de CART (cocaineamphetamine regulated transcript), que, contrariamente aos outros dois mencionados, são potentes inibidores do apetite. A leptina é inibidora da primeira população de neurônios, mas ativadora da segunda. Assim, em síntese, a LEP desativa circuitos neurais orexigênicos e estimula circuitos anorexigênicos.
Ações da leptina na resposta imunológica A leptina é capaz de modular o sistema imune tanto através de efeitos diretos na resposta inata como na adaptativa (Figura 72.3). De forma geral, a maior parte dos estudos mostra que a leptina é uma adipocina próinflamatória, fator que contribui para a chamada “inflamação de baixo grau” e para a maior ativação de células com perfil inflamatório em pessoas obesas e com excesso de peso. A produção de leptina é afetada por estímulos inflamatórios que podem aumentar os níveis de mRNA de leptina no tecido adiposo e, consequentemente, os níveis de leptina na circulação. Em relação à resposta inata, a leptina aumenta a atividade das células natural killer (NK). A deficiência do receptor de leptina gerou um aumento da taxa de apoptose dessas células em camundongos. Por outro lado, em células NK humanas, a exposição à leptina aumentou a produção de INFγ e a sua citotoxicidade. Também foi observado que a exposição a altas concentrações de leptina, semelhante ao que é observado em indivíduos obesos, gerou uma resistência à leptina nessas células, diminuindo sua função metabólica. A leptina promove ativação e aumento de monócitos circulantes e induz a produção de citocinas próinflamatórias, como IL1β, TNFα e IL6, ajudando na quimiotaxia de macrófagos e monócitos para os tecidos. O tratamento com leptina em macrófagos residentes no tecido adiposo induziu a expressão de marcadores específicos para uma resposta inflamatória. Em células dendríticas a leptina atua como um ativador, quimioatraente, além de também aumentar sua sobrevivência. Além disso, há indícios de que a leptina possa atuar na migração e maturação dessas células, contribuindo para a resposta inflamatória.
Figura 72.3 ■ Mecanismo central de ação da leptina. A leptina (LEP) secretada pelos adipócitos, ao atingir o hipotálamo, estimula os neurônios que expressam a próopiomelanocortina (POMC) e a CART (cocaineamphetamine regulated transcript), que por sua vez inibem neurônios produtores de substâncias orexígenas (a orexina – ORX e o hormônio concentrador de melanina – MCH). Desta maneira, interrompese o comportamento de ingestão alimentar. Opostamente, a LEP inibe os neurônios produtores do neuropeptídio Y (NPY) e do peptídio similar à proteína Agouti (AgRP), que são orexígenos. SNA, sistema nervoso autônomo.
A leptina também promove mudanças no controle das respostas imunes adaptativas. Camundongos obesos deficientes do receptor de leptina apresentavam atrofia do timo e linfopenia de células T. A leptina exerce um efeito negativo sobre a
proliferação de linfócitos T reguladores (Treg), que são células importantes para o controle do processo de ativação da resposta imune, exercendo papel supressor. Esse efeito da leptina sobre as células Treg envolve a ativação de uma proteína conhecida como mTOR, que está envolvida com maior diferenciação para linfócitos Th1 (células produtoras das citocinas inflamatórias TNFα e INFγ) e menor polarização para Treg. Os linfócitos Th1 são caracterizados por uma grande produção de IL2, que induz a ativação e proliferação de outros linfócitos, além de aumentar a capacidade citotóxica dos linfócitos T CD8+. Outra citocina secretada por essas células é o INFγ, responsável pela ativação de macrófagos. Portanto, a leptina pode desempenhar um papel importante na regulação do equilíbrio de linfócitos relacionados com a ativação da resposta inflamatória e de linfócitos inibidores desse processo. A leptina também estimula a resposta de células Th17. Células T CD4+ deficientes em OBR apresentaram redução da capacidade de diferenciação para Th17 por meio da redução da ativação de STAT3. Os linfócitos Th17 produzem as citocinas IL22, IL26 e da família IL17. As citocinas da família IL17 são potentes indutoras da inflamação, promovendo infiltração celular e produção de outras citocinas inflamatórias.
▸ Fator α de necrose tumoral (TNFα) O tecido adiposo sintetiza várias citocinas e fatores de crescimento, incluindo o fator α de necrose tumoral, que é uma citocina imunomodulatória e próinflamatória. Inicialmente, foi descrito como um polipeptídio induzido no soro por uma endotoxina, caracterizada por induzir a caquexia em animais e promover a inibição da lipogênese em adipócitos. O TNFα tem a capacidade de induzir a necrose em células tumorais, por isso o nome. O TNFα possui muitas atividades biológicas, entre elas: respostas imunológicas, indutor de morte celular e neovascularização. Atualmente, sabese que se trata de uma citocina reguladora multifuncional, implicada em inflamação, apoptose, citotoxicidade, produção de outras citocinas (como IL1 e IL6) e indução de resistência à insulina. Funciona como um moduladorchave do metabolismo dos adipócitos, com ação direta em diversos processos dependentes de insulina, incluindo a homeostase do metabolismo de carboidratos e de lipídios. Seu efeito mais intenso é a inibição da lipogênese e a estimulação da lipólise. Além disso, chama a atenção o seu efeito na regulação da massa adiposa, que pode estar associada a mudanças no número ou volume dos adipócitos.
Síntese e secreção A forma solúvel do TNFα compreende os dois terços da porção Cterminal de uma proteína precursora, que se encontra inicialmente ancorada à membrana e é secretada no espaço extracelular. Esta proteína é formada por clivagem proteolítica na ligação entre os resíduos Ala76 → Val77 da proteína precursora, executada por uma enzima chamada de enzima conversora de TNFα (TACE, TNF alpha converting enzyme). Esta enzima é uma proteinase, recentemente identificada como uma Znendopeptidase, que tem uma porção extracelular, uma hélice transmembrânica e uma porção intracelular Cterminal (Figura 72.4). A sequência polipeptídica, principalmente a que forma o domínio catalítico da enzima, apresenta alguma similaridade com várias metaloproteínas de matriz (MMP), diferindo destas porque a sequência polipeptídica da TACE é mais longa e estável na ausência de cálcio, e insensível aos inibidores de metaloproteinase 1.
Mecanismo de ação e biossíntese O TNFα exerce sua ação ligandose a receptores de membrana. Existem dois tipos de receptores, TNFR1 e TNFR2, que medeiam a transdução de sinal desencadeada pela ligação ao TNFα, por intermédio da formação de complexos com proteínas adaptadoras citoplasmáticas. Os registros de que o tecido adiposo expressa esta proteína datam do início da década de 1990. Embora o tecido adiposo seja formado por uma variedade de tipos celulares (adipócitos, células estromais, células do sistema imune e células endoteliais) capazes de produzir citocinas, os adipócitos são os principais secretores de TNFα e expressam ambos os tipos de receptores.
Efeito na resposta imune O TNFα é uma citocina que está diretamente envolvida com o aumento da expressão de todas as outras citocinas pró inflamatórias, e nas reações de fase aguda nos processos de infecções sistêmicas. O TNFα é uma importante citocina produzida por linfócitos Th1 que está relacionada com a imunidade natural diretamente envolvida com o aumento da expressão de todas as citocinas próinflamatórias e nas reações de fase aguda nos processos de infecções sistêmicas.
O TNFα é secretado por monócitos e por macrófagos ativados, além de neutrófilos, linfócitos T e B e tecido adiposo. Entre outras, a principal função do TNFα é estimular o recrutamento de leucócitos para o foco inflamatório e ativar essas células. Uma vez ativados, os macrófagos secretam mediadores, exacerbando a resposta inflamatória e a resistência insulínica. Outra informação pertinente diz respeito à correlação positiva de índice de massa corporal (IMC), porcentagem de gordura corporal e hiperinsulinemia com a concentração de TNFα e que a redução de massa corporal diminui a concentração circulante dessa adipocina.
Figura 72.4 ■ Modelo esquemático do complexo próTNFα TACE. A enzima TACE é composta por um domínio catalítico, um domínio de desintegrina, um segmento rico em cisteína (Cys), uma porção transmembrana e um domínio citoplasmático. O pró TNFα consiste em segmentos intracelulares e transmembrânicos e um cone trimérico de TNFα. A TACE e o próTNFα são ancorados na membrana de modo que o cone de TNFα é fixado no lado direito do domínio catalítico para que ocorra a proteólise na ligação Ala76→Val77. M, membrana. (Adaptada de Maskos et al., 1998.)
A estimulação de células estromais mesenquimais pela citocina próinflamatória TNFα aumenta o potencial regenerador dessas células, reafirmando a função dessa citocina em recrutar leucócitos e ativar células. Esse processo pode ser importante para a progressão da cicatrização de tecidos.
Efeito na adipogênese O TNFα tem recebido particular atenção devido ao seu efeito na regulação da massa de tecido adiposo, atuando na função dos adipócitos tanto de modo parácrino quanto autócrino. O TNFα exerce um efeito inibitório sobre a adipogênese (Figura 72.5), que é desencadeado por meio da ligação ao TNFR1, por um mecanismo envolvendo a ativação da via das quinases reguladas extracelularmente (ERK1/2, extracellular regulated kinases). Acreditase que a ativação desta via iniba a adipogênese por intermédio da fosforilação e, então, por inibição funcional do PPARγ. Entretanto, outros estudos têm sugerido que a ativação da via ERK1/2 promova adipogênese em vez de inibila. Um outro conjunto de estudos sugere que o tempo de ativação da via ERK1/2 pode ser crítico para os efeitos finais desencadeados pelo TNFα. Assim, a ativação da via ERK1/2 no início do processo de diferenciação é indutora de adipogênese, enquanto a ativação tardia inibe este processo. Outro mecanismo que pode estar envolvido na regulação da adipogênese é a ligação diferencial do TNFα ao TNFR1 ou ao TNFR2, uma vez que estes dois receptores desencadeiam efeitos distintos na função dos adipócitos. O primeiro parece interferir primariamente com a sinalização do receptor de insulina e o transporte de glicose, enquanto o segundo parece estar envolvido com a patogênese da resistência à insulina induzida pelo seu ligante. Estudos desenvolvidos em humanos mostraram que a expressão de TNFR1 está fortemente correlacionada com o índice de massa corporal, ao passo que a de
TNFR2, com as concentrações plasmáticas de triacilgliceróis. Aparentemente, a ativação seletiva de TNFR1 inibe preferencialmente a diferenciação de adipócitos humanos enquanto a ativação de TNFR2 promove aumento desta diferenciação.
Figura 72.5 ■ Mecanismos de ação do TNFα na diminuição do volume e número de adipócitos. O TNFα promove a apoptose de préadipócitos e adipócitos maduros, inibe o processo da adipogênese e lipogênese, além de estimular a lipólise. Setas contínuas, estimulação; setas tracejadas, inibição.
Efeito na apoptose Foi verificado que concentrações crescentes de TNFα aumentam a ocorrência de apoptose de préadipócitos e adipócitos do tecido adiposo subcutâneo e omental (do epíploo). Os mecanismos envolvidos neste processo ainda não estão esclarecidos, mas estudos em ratos concluíram que as células envolvidas são os adipócitos e não os préadipócitos, e que a apoptose ocorre mediante mecanismo envolvendo a caspase 3. Entretanto, pesquisas com tecido adiposo subcutâneo humano mostraram que o TNFα estimula a expressão de genes próapoptóticos, como bcl2 e caspase 1, tanto em adipócitos como em préadipócitos.
Efeito no metabolismo lipídico O metabolismo de lipídios compreende uma sequência complexa de eventos que determinam: (1) quando o depósito de triacilgliceróis dentro do adipócito se eleva, devido a um aumento da captação de ácidos graxos livres ou ocorrência da lipogênese, ou (2) quando diminui, em decorrência do processo de lipólise. O TNFα atua em diversas destas etapas, estimulando a lipólise e inibindo a lipogênese. Por exemplo, o TNFα inibe a atividade da lipase de lipoproteína (LPL) em tecido adiposo mamário de humanos. Esta enzima é secretada pelos adipócitos e atua na etapa inicial de captação de ácidos graxos, pois hidrolisa os triacilgliceróis contidos nas lipoproteínas (quilomícrons e VLDL), originando ácidos graxos livres, que entram na célula diretamente ou por proteínas transportadoras. No interior da célula, os ácidos graxos são
novamente convertidos em triacilgliceróis. O aumento dos níveis de mRNA de TNFα estão correlacionados com o decréscimo da atividade da LPL, em tecido adiposo subcutâneo de humanos. Em tecido adiposo de hamster, observouse que o TNFα também reduz a expressão de proteínas transportadoras de ácidos graxos. Adicionalmente, o TNFα leva à diminuição de enzimas envolvidas na lipogênese, como a acetilCoA carboxilase (ACC) e a ácido graxo sintase (FAS), enzimaschaves do processo de síntese de ácidos graxos. Entretanto, ainda não está claro se estes últimos efeitos acontecem também em adipócitos maduros. Embora não esteja muito bem compreendida a maneira como o TNFα promove a lipólise, estudos realizados em tecido adiposo subcutâneo humano mostraram que, concomitantemente com o aumento da produção de TNFα, ocorre ativação da via da MAP quinase e da ERK1/2. Estas duas vias não estão acopladas e, portanto, alterações em ambas não estão relacionadas diretamente com a ocorrência de lipólise. Por outro lado, o TNFα altera a expressão de enzimaschaves da via lipolítica. Este conjunto de eventos faz com que o TNFα reduza o acúmulo de lipídios nos adipócitos, contribuindo para a diminuição da massa total do tecido adiposo.
Obesidade Os níveis de mRNA de TNFα em tecido adiposo subcutâneo são maiores em mulheres obesas que em magras, mas retornam ao normal após emagrecimento. Com a obesidade, também se observa aumento na expressão de TNFR2 no tecido adiposo e nos níveis circulantes de TNFα. Esta elevação pode modular as ações do TNFα. Entretanto, não se nota uma correlação clara entre os níveis de mRNA de TNFα e o índice de massa corporal (BMI) em homens e em mulheres analisados em conjunto. Acreditase que possa haver um dimorfismo sexual na expressão gênica e secreção de TNFα na obesidade. Esta pode ser a razão da perda de qualquer forte associação entre os níveis de mRNA de TNFα e o BMI em estudos que envolveram mistura de grupos sexuais. O BMI pode não ser um suficiente indicativo da gordura total. Um estudo mostrou que, embora não exista correlação entre os níveis de mRNA e BMI, há correlação positiva entre gordura corpórea total e mRNA. Tanto em humanos quanto em camundongos, parece que a expressão gênica de TNFα está aumentada apenas nos casos extremos de obesidade. Resistência à insulina O TNFα está classificado como um fator associado ao desenvolvimento de resistência à insulina na obesidade. Observouse uma correlação positiva entre os seus níveis de mRNA no tecido adiposo subcutâneo e as concentrações plasmáticas de insulina, em mulheres. Foi demonstrado aumento da secreção de TNFα em pacientes obesos com resistência à insulina. Entretanto, esses efeitos são mais evidentes em mulheres, e estudos realizados em homens não apresentaram correlação entre os níveis de mRNA e a sensibilidade à insulina. Vários mecanismos pelos quais o TNFα induz a resistência à insulina têm sido sugeridos, entre eles: lipólise acelerada com elevação concomitante de ácidos graxos livres, redução da síntese de GLUT4, diminuição da expressão do receptor de insulina e do substrato do receptor de insulina 1 (IRS1). As ações do TNFα na função de adipócitos são diversas e, em conjunto, podem promover a perda de peso. O TNFα pode prevenir um aumento no número de adipócitos (pela inibição da adipogênese) e promover uma diminuição do volume dos adipócitos (pela redução da reserva de triacilgliceróis). Ele também pode apresentar uma correlação positiva com a obesidade. As suas ações na obesidade podem variar conforme o sexo e o tipo de depósito de tecido adiposo. Está claro, entretanto, que o TNFα é um importante membro da lista de fatores que modulam as funções dos adipócitos.
▸ Adiponectina A adiponectina (AdipoQ, apM1, ACRP30) é uma proteína de 30 kDa, relativamente abundante, produzida pelo tecido adiposo e encontrada no plasma, em concentrações que giram ao redor de 2 a 10 μg/m ℓ ; seu cDNA, localizado no cromossomo 3q27 que codifica a sequência do ACRP30, foi descrito em 1995 por Scherer et al. Neste capítulo, nos referiremos à adiponectina como ADP. Vários efeitos têm sido atribuídos à ADP, tais como aumento da sensibilidade à insulina, efeitos moduladores do fator nuclear κB (NFκB) e inibição do TNFα. Obesidade, resistência à insulina e doenças cardiovasculares têm correlação negativa com a ADP, ou seja, há uma associação inversa entre os níveis circulantes do hormônio e o risco do desenvolvimento dessas patologias.
Estrutura molecular
A ADP é uma proteína que contém 244 aminoácidos. Em sua estrutura molecular, foram descritos vários segmentos com as seguintes características (Figura 72.6): um domínio globular (gADP), um domínio colágeno (cADP), uma região variável e uma sequência sinalizadora (esta sequência é clivada por ocasião da síntese do hormônio). A adiponectina apresenta similaridade com C1q, membro da família de proteínas do complemento e uma inesperada homologia estrutural com TNFα, sugerindo um elo entre membros das duas famílias. O hormônio não circula isoladamente; ao contrário, os monômeros se agrupam formando trímeros. Entretanto, vários experimentos têm comprovado que os trímeros se agrupam na circulação, compondo oligômeros constituídos de 4 a 6 trímeros (Figura 72.7). Os oligômeros são constituídos por interações das hélices triplas da fração colágeno, resultando em um agrupamento molecular de alta complexidade. Sem o domínio colágeno, o globular permanece trimerizado, mas não associado. Assim, os trímeros são formados por interações dos domínios globulares, enquanto os oligômeros se associam pelos domínios colágenos.
Figura 72.6 ■ A. Estrutura monomérica da adiponectina. B. Estrutura molecular tridimensional da fração globular da adiponectina. (Adaptada de Chandran et al., 2003.)
Figura 72.7 ■ Modelo da estrutura da adiponectina. Três monômeros, unidos por seus domínios globulares, formam um trímero. Quatro a seis trímeros, unidos por seus domínios colágenos, constituem oligômeros que circulam no plasma.
Os mecanismos moleculares precisos que participam na manutenção da estabilidade dos trímeros não são bem conhecidos. Investigações sobre a bioatividade da adiponectina íntegra, ou de seu domínio globular isolado, demonstraram que os domínios globulares encerram praticamente toda a atividade biológica do hormônio.
Receptores Foram identificados os receptores 1 e 2 de adiponectina. Os receptores contêm 7 domínios transmembrana, mas são estrutural e funcionalmente diferentes de receptores acoplados a proteínas G. O receptor 1 ou ADPR1 é expresso primariamente no músculo e funciona com alta afinidade para gADP e baixa para adiponectina completa, fADP (full length). O 2 ou ADPR2 é expresso no fígado e age como receptor de afinidade intermediária, para as formas gADP e fADP. Os efeitos biológicos dependem não somente das concentrações sanguíneas, mas também da especificidade tecidual.
Síntese A adiponectina é produzida em abundância e exclusivamente pelo tecido adiposo, fruto da expressão do gene apM1. A sua concentração é alta, tanto no tecido adiposo como no plasma. As concentrações plasmáticas correspondem a aproximadamente 0,01% de toda a proteína circulante, o que significa que a adiponectina tem uma concentração centenas de vezes maior que a dos demais hormônios; suas concentrações plasmáticas são mais elevadas em indivíduos magros e diminuem paulatinamente com o aumento de peso e o grau de obesidade. Assim, a redução da expressão do gene apM1 e dos níveis plasmáticos da proteína tem sido implicada na patogênese da obesidade e do T2DM (diabetes melito do tipo 2). A ADP não exibe grandes flutuações de concentração na circulação, sugerindo que sua liberação ocorre não de modo agudo, mas regulada por mudanças metabólicas de mais longo prazo. Mulheres apresentam níveis sanguíneos mais elevados que homens, caracterizando um dimorfismo sexual.
Efeitos biológicos Adiponectina e ação da insulina Vários estudos demonstram forte correlação negativa entre o grau de adiposidade e os níveis circulantes de ADP. Estudos adicionais indicam que há forte relação entre aumento dos níveis de insulina e diminuição dos de ADP. Além disso, foi descrita uma associação muito forte entre os níveis de ADP e o grau de captação de glicose estimulada pela insulina, sugerindo que a ADP é um forte sensibilizador da insulina in vivo. Níveis baixos de adiponectina ocorrem em paralelo com a progressão da resistência à insulina. Em estudos realizados com macacos rhesus, a diminuição da concentração plasmática de adiponectina precedeu a hiperglicemia e a resistência à insulina. Para explicar esse fato, foi aventada a hipótese de que o aumento dos níveis de insulina pode ter atuado como repressor da expressão e secreção de ADP. Em alguns casos, os animais apresentavam forte resistência à insulina, hiperglicemia, perda de peso e queda dos níveis de ADP. Isso indica que a maior sensibilidade à insulina está mais associada à hiperadiponectinemia que ao baixo peso corporal. Estudos em índios pimas (indígenas do Arizona, que apresentam peso corporal muito elevado) e em caucasianos (pessoas de pele branca, especialmente as de origem europeia) obesos reforçaram a ideia de uma forte correlação entre hipoadiponectinemia e resistência à insulina. A utilização de tiazolidinedionas (TZD), fármacos conhecidos como sensibilizadores de insulina, produz melhora na sensibilidade à insulina acompanhada de aumento da secreção de ADP. Adiponectina e efeitos vasculares A ADP tem vários efeitos vasculares: (1) aumento da vasodilatação endotéliodependente; (2) aumento da vasodilatação endotélioindependente; (3) efeito antiaterosclerótico; (4) supressão da expressão de receptores de moléculas de adesão vascular, conhecidos como scavengers; (5) redução da expressão de TNFα e diminuição dos efeitos desta adipocina sobre a resposta inflamatória do endotélio; (6) abrandamento do efeito de fatores de crescimento sobre a musculatura lisa vascular; (7) inibição dos efeitos de LDL oxidadas (oxLDL) sobre o endotélio, isto é, supressão da proliferação celular, da geração de superóxidos e da ativação de MAP quinase; (8) crescimento da produção de NO; (9) estimulação da angiogênese; (10) redução do espessamento da íntima e da musculatura lisa que se segue à lesão da parede de artérias; (11) inibição de migração e proliferação de células endoteliais. Existe uma associação da ADP e a vasodilatação dependente do endotélio. Nas células endoteliais, a adiponectina tem como função gerar óxido nítrico (NO). Foi proposto que esse efeito salutar está associado ao aumento da geração de eNOS (óxido nítrico sintase endotelial).
Estudos mais recentes demonstram que a ADP também tem significante efeito na angiogênese de pequenos vasos, exibe propriedades quimioatrativas e estimula não só a diferenciação de células endoteliais humanas extraídas de veias do cordão umbilical, como também o crescimento vascular in vivo. Em células musculares lisas vasculares, a ADP atenua a proliferação induzida por fatores de crescimento, como o fator de crescimento epidermal (EGF) e o fator de crescimento derivado das plaquetasBB (PDGFBB). Possivelmente, a redução dos efeitos da sinalização do PDGFBB é causada, ao menos em parte, pela ligação da adiponectina ao PDGF BB, o que impede a associação de PGDF com seus receptores celulares. Como, dependendo da situação, a angiogênese pode ser reparadora ou patológica, em experimentos realizados em células em cultura é difícil prever quais efeitos da ADP podem correlacionarse melhor com sua observada função na proteção contra a aterosclerose. Adiponectina e aterosclerose A proteína C reativa de alta sensibilidade (hsCRP) é bem conhecida, por ser um marcador de risco para a doença aterosclerótica coronariana. Essa proteína é expressa pelo tecido adiposo. Em humanos com aterosclerose, foi descrita uma correlação negativa significante entre os níveis plasmáticos de ADP e CRP. A associação negativa entre a ADP e a CRP, nos níveis plasmáticos e na massa de tecido adiposo, dá suporte para a hipótese de que a ADP seja um hormônio que age contra o desenvolvimento de aterosclerose e inflamação vascular. A adesão dos monócitos ao endotélio vascular e a consequente transformação em foam cells são consideradas cruciais para o desenvolvimento de doenças vasculares. A ADP tem efeitos na adesão dos monócitos ao endotélio, diferenciação mieloide, produção de citocinas nos macrófagos e fagocitose. A ADP inibe a produção e a ação de TNFα. Provavelmente, a ADP atua como supressora da transformação dos macrófagos em foam cells, que pode ser o elo entre a inflamação vascular e a aterosclerose. Tem sido registrado que na presença de ADP há relação da capacidade de inibição de fatores de crescimento na musculatura lisa vascular e a migração de macrófagos. Portanto, a ADP tem efeitos celulares diretos antiateroscleróticos. Sinalização intracelular pela adiponectina Estudos da resposta metabólica de células do fígado, músculo esquelético e tecido adiposo indicam que a ativação de AMP quinase (AMPK) é essencial para os efeitos da ADP (Figura 72.8). A AMPK é ativada por uma variedade de condições, como o estresse celular associado ao acúmulo de AMP gerado a partir de ATP. Tem sido implicada na ação da metformina no fígado e da TZD na sensibilização à insulina, o que sugere uma ação mediadora desses dois medicamentos antidiabéticos reforçando os efeitos da ADP. Ela parece também mediar a sinalização em células endoteliais; sua ativação no endotélio aumenta a oxidação e a síntese de ATP. Como a AMPK ativa a eNOS, este sistema enzimático parece ser uma sinalização potencial entre a ADP e a geração de NO. A apoptose também se relaciona com a AMPK nas células endoteliais, sugerindo que o aumento da produção de NO obtido em células endoteliais pela ADP requer a participação da Akt e de seu mediador fosfatidilinositol3 quinase (PI3K). Os efeitos na angiogênese dependem também de Akt e AMPK. Na sinalização, a AMPK parece atuar a jusante (upstream) da Akt. Quando há inibição da ativação de AMPK, é inibida a fosforilação de Akt. Os receptores da adiponectina (tanto o ADPR1 como o ADPR2) estão expressos em células endoteliais, sendo possível que sua diferenciação se deva à ativação de várias cascatas relacionadas com as quinases endoteliais. Alguns sistemas de sinalização adicionais parecem estar implicados nos efeitos endoteliais da ADP. Seu efeito inibitório sobre a sinalização do TNFα em células endoteliais se acompanha de acúmulo de cAMP e é bloqueado por inibidores da PKA. Isso sugere que a modulação da sinalização inflamatória se dê mediante um crosstalk (sinalização cruzada) entre a PKA e o fator nuclear κB (NFκB). Como a geração de superóxidos estimulada por LDL oxidada (oxLDL) culmina na ativação de NADPH oxidase, a supressão destas reações pela gADP pode envolver a regulação da atividade de isoformas de NADPH oxidases ou de suas subunidades proteicas. Finalmente, em células endoteliais, a ativação da apoptose pela ADP é mediada por caspases celulares específicas (3, 8 e 9) que podem estar acopladas a cascatas de sinalização especiais e específicas.
Figura 72.8 ■ Potenciais vias de sinalização para a adiponectina (ADP) em células endoteliais. Ambas as isoformas do receptor de adiponectina (ADPR1, 2) são expressas em células endoteliais. ADPR1 é mais expressa e tem maior afinidade por gADP. Nessa célula, um dos principais efeitos da ADP é a ativação da AMPK, que ativa a eNOS por uma via que parece depender de PI3K/Akt. Akt e eNOS contribuem para a angiogênese. A ADP também inibe a ativação da NAD(P)H oxidase por oxLDL, reduzindo a geração de ROS e facilitando a síntese de NO. oxLDL, forma oxidada de LDL; ROS, espécies reativas de oxigênio; NO, óxido nítrico; eNOS, óxido nítrico sintase endotelial; AMPK, quinase proteica ativada por AMP; PI3K, fosfatidilinositol3 quinase; M, membrana celular.
▸ Inibidor do ativador do plasminogênio (PAI1) Estrutura molecular O PAI1 é uma glicoproteína de cadeia única (Figura 72.9), com peso molecular entre 45 e 50 kDa e 379 aminoácidos. Por apresentar 30% de homologia com a α1antitripsina e com a antitrombina III, considerase que este inibidor do ativador de plasminogênio (PAI) faça parte de uma superfamília de inibidores de serinaproteases (serpina), a qual pertence a um subgrupo que tem um resíduo arginina característico no centro reativo (argserpin). Outros inibidores fazem parte desta superfamília: o PAI2, a protease nexina 1 e o inativador da proteína C (PCI). Em geral, as serpinas são específicas (com características biológicas distintas), apresentam ação rápida e se encontram na maioria dos líquidos corpóreos, tecidos e linhagens de células. As serpinas mostramse dispostas em uma estrutura terciária, que consiste em três βplanos A, B e C, nove αhélices e um sítio reativo (P4P10’) na porção Cterminal. Esta proteína se caracteriza por formar ligações peptídicas com proteasesalvo. A inibição dos ativadores de plasminogênio pelos PAI ocorre de maneira rápida, resultando na formação de uma ligação covalente entre as duas moléculas. Na sua forma latente (inativa), os locais de ligação secundários dos ativadores de plasminogênio tornamse pouco acessíveis à serinaprotease, o que explica a sua estabilidade e a falta da sua atividade inibitória. Na forma ativa, o sítio reativo fica exposto e pronto para a complexação com a serinaprotease.
Regulação da expressão gênica, transcrição e produção proteica O gene do PAI1 está localizado na região q21.3q22 do cromossomo 7, próximo aos locais da eritropoetina, da paraoxonase e da fibrose cística. A região reguladora 5’ contém vários elementos reguladores cis conhecidos, os quais se ligam a fatores de transcrição, como Sp1, proteína ativada1 (AP1), fator nuclear κB (NFκB), Smad3, Smad4 e TFE3.
Figura 72.9 ■ Estrutura molecular do inibidor do ativador de plasminogênio (PAI1). A. Forma latente. B. Forma ativa. P1, região de cisão; P15P4, margem A4; Lys214Ser215, local de clivagem da plasmina.
A transcrição gênica é ativada por citocinas inflamatórias (IL1 e TNFα), fatores de crescimento (TGFβ, EGF, PDGF e bFGF), angiotensina II, hormônios (glicocorticoides e insulina), produtos metabólicos (triacilgliceróis, ácidos graxos livres e glicose) e ativadores não específicos da proteinoquinase C (PKC), como o forbol acetato e miristato (PMA). A insulina e a angiotensina II estimulam a expressão de PAI1 através da via MAPK. Entretanto, outras vias parecem estar envolvidas na sua regulação. O mecanismo pelo qual estes fatores alteram a sua expressão ainda não foi completamente entendido, assim como pouco se sabe sobre os elementos cis e transativadores, necessários para promover a indução da sua expressão gênica pelos fatores de crescimento. Devido à ausência de resíduos cisteína, esta proteína apresenta instabilidade biológica quando em solução, o que leva à sua forma secretada (ativa) ser rapidamente submetida a uma conformação inativa, incapaz de formar complexos com os PA (ativadores de plasminogênio). A conformação ativa é adquirida pela estabilização com cofatores fisiológicos, como vitronectina e heparina. Vários tipos celulares produzem PAI1, como células endoteliais, do músculo liso, hepatócitos, fibroblastos e células inflamatórias. Quanto à origem do PAI1 plasmático, até agora não é conhecida qual seria a região com a maior concentração desta proteína. Recentemente, vem ganhando destaque a possibilidade de o tecido adiposo per se contribuir diretamente para uma elevada expressão de PAI1 na obesidade. Observações iniciais, utilizando tecido adiposo de camundongos, mostraram elevados níveis de mRNA de PAI1. Posteriormente, estudos clínicos constataram que, em indivíduos obesos, a redução de peso diminuía significantemente os níveis plasmáticos dessa proteína. Experimentos com camundongos geneticamente obesos (ob/ob) apontaram uma atividade 5 vezes maior do PAI1 em relação aos animaiscontrole, sugerindo que, na obesidade, apesar do aumento generalizado no mRNA do PAI1 em outros tecidos, estes efeitos eram expressivamente maiores no tecido adiposo. A expressão de PAI1 está presente nas gorduras subcutânea e visceral. Nesta última, a maior concentração de células da fração vascular do estroma e de préadipócitos contribui para o aumento da produção desta proteína; isso explicaria o fato de a adiposidade visceral estar particularmente associada a níveis aumentados de PAI1 e à síndrome metabólica. Em camundongos submetidos a uma dieta rica em gordura, a superexpressão do mRNA do PAI1 no tecido adiposo branco atenua a hipertrofia deste tecido. Ao mesmo tempo, a ablação do seu gene reduz a adiposidade em camundongos geneticamente obesos, porém não tem efeito significante na massa de tecido adiposo na obesidade induzida pela dieta; esse fato indica que os elevados níveis de PAI1 na obesidade, apesar de prejudiciais para a regulação da fibrinólise, podem exercer efeito protetor contra um excessivo crescimento do tecido adiposo branco. O tecido adiposo também secreta fatores que podem regular a expressão sistêmica de PAI1. Um exemplo é a secreção de TNFα, o qual estimula a expressão de PAI1 em adipócitos, células da musculatura lisa vascular e outros tecidos. Merece ser notado que agentes que inibem a TNFα também suprimem a expressão de PAI1. Estes dados sugerem que as
citocinas e outras proteínas produzidas pelos adipócitos podem atuar no local (de uma maneira autócrina) ou distante do local (como hormônio endócrino), para regular a produção de PAI no tecido adiposo. Apesar de o PAI1 estar presente em baixas concentrações no plasma, sua meiavida relativamente curta (menor que 10 min) sugere elevada taxa de biossíntese. Além disso, sua concentração aumenta rapidamente em resposta a vários agentes ou mudanças no estado fisiológico, indicando uma possível regulação dinâmica da quantidade de PAI1. Concentrações fisiológicas de glicocorticoides estimulam a expressão e a liberação de PAI1 no tecido adiposo in vitro. Assim, similaridades observadas no ritmo circadiano do cortisol plasmático e dos níveis de PAI1, com picos pela manhã, parecem indicar um papel regulador do cortisol na expressão diurna de PAI1, que poderia também estar associado a um aumento na incidência de infarto no miocárdio pela manhã. A insulina pode estimular a liberação de PAI1 no tecido adiposo e em outros tecidos. O consumo de uma refeição altamente calórica e rica em carboidratos, que estimula a secreção de insulina, está associado ao aumento nos níveis de PAI1; enquanto o jejum, ou a administração de metformina ou sensibilizadores de insulina (glitazonas) estão associados a decréscimo nos níveis de insulina circulante e nos níveis de PAI1. Apesar de a insulina estimular a expressão de mRNA de PAI1 em hepatócitos em cultura e em células endoteliais, foi demonstrado que seu maior efeito ocorre em adipócitos, em que o aumento é expressivo; isso explicaria os resultados contraditórios que envolvem o efeito da insulina sobre a expressão de PAI1 em cultura de vários tipos de células. Uma forte correlação também foi vista entre o PAI1 e as concentrações circulantes de leptina, independentemente do índice de massa corporal, indicando que a leptina per se poderia aumentar potencialmente os níveis de PAI1 em indivíduos obesos.
Efeitos biológicos Duas grandes cascatas de reações bioquímicas envolvendo proteases (as da coagulação e as da fibrinólise) estão presentes no plasma, atuando no processo que previne a perda de sangue do organismo. O equilíbrio entre esses dois processos abrange a participação do endotélio da parede dos vasos, células sanguíneas circulantes, plaquetas e leucócitos. A coagulação se inicia a partir da expressão na superfície celular de um fator tecidual, que atua como base para os fatores de coagulação plasmática, levando à formação da trombina, que, então, converte fibrinogênio em fibrina. Os principais componentes fibrinolíticos são o ativador de plasminogênio tecidual e o da uroquinase (tPA e uPA, respectivamente), além de fatores endógenos responsáveis pela degradação da fibrina. O PAI1 é um potente inibidor do t PA e do uPA, ao passo que a α2antiplasmina inibe diretamente a plasmina (Figura 72.10). As células endoteliais vasculares sintetizam e secretam tPA para a circulação sanguínea, na qual este promove a conversão do plasminogênio (forma inativa) em plasmina, o fator endógeno responsável pela degradação da fibrina. O PAI1, produzido principalmente no endotélio vascular, rapidamente se liga a moléculas trombolíticas endógenas, formando complexos estáveis e inibindo o processo fibrinolítico. No plasma, o equilíbrio essencial depende da atividade proteolítica dos ativadores de plasminogênio (tPA e uPA) e o seu inibidor, PAI1. Geralmente, este último se encontra em uma concentração 4 a 5 vezes maior, favorecendo a estabilização da fibrina. A formação da fibrina é um mecanismo defensivo essencial, que protege o organismo da hemorragia. Ao mesmo tempo que o papel do PAI1 e dos agentes fibrinolíticos no processo de coagulação/fibrinólise é bem conhecido, várias evidências sugerem que o sistema fibrinolítico pode contribuir para o desenvolvimento e progressão da aterosclerose. Estudos clínicos associam elevados níveis de PAI1 com presença de doenças coronarianas, assim como alguns estudos fisiológicos demonstram que alterações na atividade dos ativadores de plasminogênio e PAI1 em vasos contribuem para o processo aterosclerótico. Complicações cardiovasculares na obesidade estão envolvidas com concentrações elevadas de PAI1. Uma íntima correlação positiva entre obesidade do tipo visceral e outros componentes da síndrome de resistência à insulina (como índice de massa corporal, gordura visceral, pressão sanguínea, níveis plasmáticos de insulina e proinsulina, LDL colesterol e ácidos graxos livres) também foi demonstrada; isso permite afirmar que, além do seu papel no sistema fibrinolítico, o PAI1 influencia a migração celular e a angiogênese, prejudicando a migração de préadipócitos, o que consequentemente afeta o crescimento do tecido adiposo. Alguns estudos relacionam a expressão de PAI1 com resistência à insulina. Como citado, o TNFα estimula a biossíntese de PAI1. O tecido adiposo sintetiza essa citocina, e sua expressão é cronicamente elevada em adipócitos de camundongos e indivíduos obesos. A expressão aumentada de TNFα pode interferir com certos aspectos da sinalização de insulina (como a atividade tirosinoquinase do receptor de insulina) e, assim, contribuir para a resistência à insulina.
Outra citocina que provavelmente colabora para um aumento nos níveis de PAI1 e no quadro de obesidade é a TGFβ. Vários estudos constataram seu efeito em promover a biossíntese de PAI1, especificamente no tecido adiposo. Além disso, a TGFβ também exerce papel mitogênico em préadipócitos e inibe a diferenciação de préadipócitos para adipócitos in vitro, o que pode aumentar a proliferação do precursor celular e contribuir para excessivo depósito de gordura nas células. Assim, estas observações sugerem que a expressão aumentada de TGFβ no tecido adiposo pode cooperar para patologias associadas à obesidade. Em resumo, além do papel regulador no sistema fibrinolítico, o PAI1 está associado a doenças cardiovasculares e síndrome da resistência à insulina; o tecido adiposo desempenha um papel determinante nos níveis plasmáticos de PAI1; a perda de peso e a atividade física apresentamse como importantes abordagens para a redução dos seus níveis; a sua expressão gênica é regulada por citocinas inflamatórias, fatores de crescimento, hormônios, produtos metabólicos e angiotensina II, porém o mecanismo pelo qual estes fatores alteram sua expressão ainda é pouco conhecido; a maior produção de PAI1 pela gordura visceral pode explicar o fato de a adiposidade visceral estar associada a elevados níveis de PAI1 e síndrome metabólica; é provável que os elevados níveis de PAI1 observados em indivíduos obesos tenham um efeito protetor contra um excessivo crescimento do tecido adiposo branco.
Figura 72.10 ■ Sistema fibrinolítico. tPA, ativador do plasminogênio tecidual; uPA, ativador do plasminogênio da uroquinase; PAI1, inibidor do ativador de plasminogênio.
▸ Resistina A resistina é uma proteína rica em cisteína, com 12,5 kDa, secretada pelo tecido adiposo e que se encontra presente na circulação. Sua descoberta e importância funcional foram descritas em trabalho publicado na revista Nature, em 2001, no qual foi indicada uma relação entre a resistina e a resistência à insulina induzida pela obesidade e o T2DM. Intensa pesquisa se seguiu, e muitos aspectos explorados confirmaram as primeiras impressões, embora outros estudos tenham mostrado inconsistências com as pesquisas iniciais. A resistina pertence a uma família de proteínas, genericamente denominadas resistinlike molecules ou RELM, todas caracterizadas pela presença consistente de um segmento rico em cisteína (11 cisteínas) na extremidade Cterminal. O protótipo desta família é a RELMα (também conhecida como FIZZ1 ou foundininflammatoryzone), descoberta em exsudato inflamatório broncoalveolar desencadeado por processo alérgico. A RELMβ (FIZZ2) foi descoberta em intestino, onde se expressa de modo abundante, especialmente em tumores do cólon, sendo relacionada com o processo de tumorigênese. A resistina (FIZZ3) se mostra mais intensamente em tecido adiposo. Devido ao seu segmento rico em cisteína, a resistina e a RELMβ se dimerizam, formando homodímeros. A RELMα, por não dispor da Cys26, não circula formando homodímeros; entretanto, as três RELM podem formar heterodímeros entre si. Há estudos que confirmam a existência destes compostos na forma de oligoheterodímeros circulantes.
Mecanismos celulares na formação e ação da resistina A exposição de adipócitos 3T3L1 diferenciados à insulina suprime a expressão gênica de resistina. Este efeito da insulina parece ser independente da ativação de vias que envolvem PI3K, ERK ou p38MAPK, descritas na propagação do sinal intracelular da insulina. Porém, embora seja admitido que a insulina reduza a expressão de resistina, os estudos são inconsistentes, havendo alguns que relatam aumento da expressão desta proteína, e outros, com estimulação insulínica in vivo, chegam a resultados inconclusivos.
Os estímulos inflamatórios alteram a expressão de resistina. A dexametasona aumenta a expressão de resistina em tecido adiposo, e os lipopolissacarídios também provocam o mesmo efeito. Por outro lado, o TNFα, um importante causador de resistência à insulina, inibe de modo consistente a expressão de resistina, enquanto a estimulação β adrenérgica, atuando via proteína G estimulatória (Gs), reduz a expressão de resistina. A regulação da expressão de resistina parece depender de alguns fatores de transcrição nucleares – CCAAT/enhancer binding protein α (C/EBPα) e PPARγ. O primeiro parece atuar estimulando a expressão de resistina e o segundo a inibindo, ambos atuando de maneira balanceada.
Efeitos biológicos da resistina Este hormônio foi estudado tanto em experimentos in vivo como in vitro. Os primeiros estudos, realizados em camundongos obesos com resistina neutralizada mediante utilização de anticorpos, relataram melhora na tolerância à glicose e na sensibilidade à insulina. Em contrapartida, estudos feitos em camundongos normais evidenciaram que injeções intraperitoneais de resistina provocam intolerância à glicose e hiperinsulinemia. Trabalhos executados em adipócitos 3T3L1 indicaram que o uso de soro antirresistina induz aumento de captação de glicose, enquanto a resistina produz efeitos antiinsulínicos. Assim, este conjunto de trabalhos iniciais apontam que a resistina tem um efeito indutor de resistência à insulina, cujo mecanismo não está claro, mas não afeta o receptor de insulina nem sua capacidade de se autofosforilar, nem etapas pósreceptor na via de sinalização (como fosforilação em tirosina do IRS1, sua associação com PI3K, a fosforilação em serina da Akt ou da p38MAPK) e muito menos o conteúdo de GLUT1, assim como a capacidade de translocação de GLUT4 em miócitos L6. Outras vias alternativas da propagação intracelular do sinal insulínico foram propostas como estando afetadas, como é o caso da via CAP/Cbl associada a lipid rafts ou cavéolas (regiões da membrana plasmática, ricas em colesterol, onde se ancoram certas proteínas de membrana como a flotilina). Portanto, este tema ainda não está completamente esclarecido. Para complicar a compreensão do papel da resistina, estudos com camundongos ob/ob (obesos) e db/db (diabéticos) revelaram que estes animais apresentam níveis elevados de resistina circulante e que o tratamento deles com TZD ou insulina provoca aumento dos níveis de resistina, muito embora o quadro de resistência tenha melhorado. A expressão da resistina foi investigada em vários modelos de resistência à insulina. Assim, na lactação, exposição ao frio ou caquexia por câncer (situações que mostram resistência à insulina) não há aumento da expressão de resistina. Em oposição, tratamentos voltados a diminuir a resistina (como a remoção da gordura visceral em ratos obesos) atenuam ou impedem o desenvolvimento de resistência. A gordura visceral constitui o local de maior expressão da resistina, que é 15 vezes mais intensa que na gordura subcutânea. Tratamentos com prolactina ou testosterona conduzem a aumento de resistência à insulina e elevação da expressão de resistina. Adicionalmente, situações patológicas (como hipertireoidismo) ou fisiológicas (p. ex., gestação a meio termo, puberdade ou emprego de hormônios esteroides) evoluem com aumento da expressão de resistina. Em seres humanos, os estudos são ainda mais controversos. O gene da resistina foi localizado no cromossomo 19 e a sua expressão, determinada em estudos populacionais. Na maioria dessas pesquisas, não se encontra uma correlação muito forte entre a expressão deste gene e a obesidade, exceto em um estudo realizado na China. Além disso, a biossíntese e a secreção de resistina no tecido adiposo humano têm sido objeto de muito debate. Algumas pesquisas concluíram que essa proteína se expressa mais em préadipócitos que em adipócitos maduros, nos quais é desprezível. Por outro lado, a sua expressão tem maior intensidade na gordura visceral que na subcutânea, o que corrobora a hipótese do seu papel na geração de resistência à insulina. Finalmente, a pesquisa nesta área tem mostrado que não existe uma clara relação entre obesidade e resistina, embora mesmo nesta questão haja intensa controvérsia. Portanto, muitos estudos devem ser desenvolvidos para esclarecer o papel da resistina na gênese da resistência à insulina.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Considerando o recente e intenso avanço da pesquisa no campo de moléculas bioativas produzidas por células classicamente não pertencentes ao sistema endócrino, notadamente as citocinas, este capítulo não teve a pretensão de ser abrangente. Entretanto, é preciso ficar claro que além das células do sistema imune e do tecido adiposo, vários outros órgãos apresentam esta habilidade. Entre eles, ressaltamos o tecido muscular, que expressa genes da interleucina6, do TNFα e de um peptídio denominado musculina. Este peptídio mostra semelhanças com o fator natriurético atrial, está expresso em maior intensidade em musculatura esquelética de camundongos geneticamente obesos, além de atuar
diminuindo a sensibilidade muscular à insulina e reduzindo a capacidade muscular de sintetizar glicogênio. Embora a musculina e muitos outros peptídios biologicamente ativos venham sendo bastante pesquisados, o real entendimento de sua ação ainda requer mais pesquisas. É inegável, contudo, que este campo de estudo vem florescendo e novas concepções deverão ser geradas à medida que for sendo desvendado o papel fisiológico desse tipo de moléculas bioativas.
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Introdução
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Período embrionário Período pósnatal
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Bibliografia
INTRODUÇÃO Ao longo da vida, desde o momento da concepção, os processos de crescimento e desenvolvimento coexistem harmoniosamente, contribuindo para o estabelecimento de padrões de expressão de proteínas que conferem aumento de massa bem como especificidade aos diferentes tecidos e órgãos que, coordenadamente, garantem a manutenção da vida do organismo como um todo. Todavia, a contribuição de cada um desses processos varia em proporções diferentes nas diversas fases da vida, ora predominando o crescimento ora o desenvolvimento, com exceção ao período embrionário, quando ambos os processos cursam, praticamente, em proporções similares. O sistema endócrino participa ativamente de todos esses processos, coordenandoos e ajustandoos às necessidades de cada fase da vida, de modo a garantir sua continuidade e qualidade. Crescimento, por definição, implica aumento de massa, o qual pode ocorrer por aumento do número de células (aumento do número de mitoses; hiperplasia) ou por aumento do conteúdo proteico por célula, o que é definido por hipertrofia. Um exemplo do primeiro caso é o que ocorre no período embrionário, no qual uma única célula, por meio de sucessivas divisões celulares, dá origem a um organismo, o feto; o segundo caso pode ser exemplificado pelo exercício físico continuado (treinamento físico), o qual, como se sabe, induz hipertrofia muscular. Estimase que, da concepção ao nascimento, ocorra um aumento de massa da ordem de 440 milhões de vezes e um ganho do comprimento em torno de 3.850 vezes. Sem dúvida, é o período da vida em que ocorre a maior aquisição de massa, por aumento no número de células. O indivíduo após o nascimento, até tornarse adulto, continua ganhando massa (em torno de 20 vezes) e comprimento (de 3 a 4 vezes), embora nesse período a obtenção de massa ocorra predominantemente por hipertrofia. Desenvolvimento implica aquisição de funções, diferenciação dos tecidos e expressão de proteínas específicas que determinarão as características funcionais dos diferentes tecidos, processo que tem sua maior expressão também no período embrionário. Assim, o tecido ósseo apresenta células que expressam proteínas específicas que determinam sua característica ímpar de resistir às forças mecânicas que lhe são aplicadas a cada movimento e pela força gravitacional. O tecido muscular expressa proteínas que determinam suas características mecânicas de contração e relaxamento. Quando nos referimos ao tecido muscular esquelético, essas características são fundamentais para o estabelecimento da postura e da movimentação do corpo no espaço. Entretanto, quando nos referimos ao músculo cardíaco, essas características são primordiais para o estabelecimento da diferença de pressão que possibilita a circulação sanguínea e a nutrição tecidual. Vários fatores contribuem para o crescimento e o desenvolvimento do organismo; eles diferem dependendo da fase da vida em que o organismo se encontra, razão pela qual se torna importante discorrer sobre os principais determinantes do crescimento e do desenvolvimento no período pré e pósnatal.
PERÍODO EMBRIONÁRIO Conforme salientado, é no período intrauterino que ocorre o maior ganho de massa e desenvolvimento fetal, e a placenta é o órgão diretamente responsável pelo fornecimento de um ambiente que garante a harmonia desses processos. A placenta transfere nutrientes da mãe para o feto e produtos finais do metabolismo do feto para a mãe; age como uma barreira contra patógenos e células do sistema imune da mãe, é um órgão endócrino ímpar, que sintetiza e secreta hormônios proteicos, esteroides, fatores de crescimento e outras moléculas bioativas, que interferem tanto no metabolismo materno quanto no fetal. Dessa maneira, um retardo do crescimento intrauterino se deve, em geral, principalmente a fatores maternos, fetais ou placentários, enquanto os fatores endócrinos representam a grande minoria das causas do baixo peso e estatura ao nascer. Todavia, fatores endócrinos, maternos, nutricionais e genéticos contribuem, em graus variáveis, para o crescimento e o desenvolvimento normais do feto (Figura 73.1).
▸ Fatores endócrinos Hormônio do crescimento (GH) O conhecimento da importância do GH para o crescimento linear no período pósnatal fez com que esse hormônio fosse um dos primeiros a serem propostos como possível mediador do crescimento fetal, até porque se evidenciou que a concentração plasmática de GH encontrase elevada no feto, alcançando o seu pico, aproximadamente, na metade da gestação. No entanto, a posterior constatação de que fetos anencefálicos, os quais não sintetizam GHRH nem GH, apresentam crescimento normal descartou a possibilidade de que este hormônio tivesse participação importante na fase de crescimento intrauterino. No entanto, apesar de o GH plasmático fetal se apresentar elevado, os níveis plasmáticos de IGFI não acompanham esse aumento, apresentandose, inclusive, reduzidos. Acreditase que nesse período do desenvolvimento fetal a expressão de receptores funcionais de GH (GHR) esteja comprometida, já que há evidências da existência de locais alternativos de iniciação da tradução do mRNA que codifica o GHR, sugerindo que sejam produzidos fragmentos peptídicos menores, em vez de receptores funcionais. Porém, a expressão de GHR na hipófise é marcante no período fetal, o que sugere um papel ainda desconhecido deste hormônio no desenvolvimento desta glândula.
Figura 73.1 ■ Representação esquemática dos fatores determinantes do crescimento. A espessura das setas indica o grau de contribuição de cada componente neste processo. (Adaptada de Martinelli e AguiarOliveira, 2005.)
Nos estágios mais tardios da gestação, os níveis de GH do feto diminuem, o que parece se dever ao efeito de retroalimentação negativa exercida pelo IGFI, que, conforme veremos adiante, é de origem parácrina, graças ao estímulo de sua síntese por outros hormônios que não o GH. Concluise, portanto, que o crescimento intrauterino independe de GH fetal. Para mais esclarecimentos da relação entre GH e IGFI, consulte o Capítulo 66, Glândula Hipófise.
Prolactina (Prl) A detecção de receptores de Prl na maioria dos tecidos fetais, já no início da gravidez, sugere a sua participação no crescimento fetal (ver adiante o item hPL); no entanto, a secreção de Prl pelo feto é significativa apenas no último terço da gravidez. O fato de o desenvolvimento e o ganho de massa do tecido adiposo ocorrerem em paralelo à expressão de receptores de Prl nesse tecido levanta a possibilidade de que a Prl exerça papel importante nesses processos (Figura 73.2).
Hormônios placentários | Somatotrofina coriônica/lactogênio placentário Durante a gravidez a placenta elabora vários hormônios; alguns atuam no organismo materno e promovem ações fisiológicas de fundamental importância para o crescimento e desenvolvimento do feto, enquanto outros atuam mais especificamente sobre o feto, promovendo o seu crescimento. Assim, temos a somatotrofina coriônica (hGHV) e o lactogênio placentário (hPL) que apresentam parte da sequência de aminoácidos comum, o que lhes confere algumas ações fisiológicas semelhantes. Esses hormônios são provenientes de um gene ancestral comum, mas são codificados por genes distintos (ver boxe adiante). Dessa maneira, distúrbios na secreção destes hormônios durante a gravidez podem provocar repercussões adversas no crescimento fetal e na função metabólica do período pósnatal.
Figura 73.2 ■ Variações da concentração plasmática de IGFII, IGFI, lactogênio placentário (hPL), hormônio do crescimento (GH) e prolactina (Prl) no feto, durante a gestação e no período neonatal. As variações das concentrações fetais plasmáticas do hPL estão apresentadas na área hachurada. (Adaptada de Fisher, 2003.)
Somatotrofina coriônica (hGHV) A placenta produz uma gama de hormônios, dentre os quais uma variante do GH, o hGHV, que é o principal hormônio somatotrófico da mãe, já que na gravidez a secreção hipofisária de GH encontrase suprimida. O hGHV apresenta semelhança estrutural com o GH e a Prl e atua no organismo materno promovendo aumento da síntese e
secreção de IGFI e modulando o metabolismo intermediário, uma vez que promove ativação da gliconeogênese e da lipólise, do que resulta um aumento da oferta de glicose, ácidos graxos e, também, de aminoácidos para o feto. O hGHV não é liberado na circulação fetal e, portanto, não atua no feto, embora este dependa dos substratos energéticos liberados pela ação desse hormônio no organismo da mãe. A reduzida importância do hGHV para o crescimento fetal é sustentada pelo fato de que a deleção do gene que codifica este hormônio não altera o crescimento fetal, já que nessa condição o recémnascido apresenta peso e altura normais. Lactogênio placentário (hPL) O hPL pertence à família dos genes que codificam o GH e a Prl; no entanto, ao contrário do GH e da Prl, parece ter participação importante no crescimento fetal. Ele é secretado para a circulação materna e fetal, por meio da qual tem acesso aos tecidos, nos quais atua interagindo com receptores de Prl, e possivelmente com receptores específicos, promovendo efeitos tanto na mãe quanto no feto. Há evidências de que, no feto, o hPL seja importante para a síntese de IGFI, cuja relevância para o crescimento foi demonstrada em experimentos com camundongos que apresentam deleção deste gene (camundongos knockout para IGFI), conforme será explicitado adiante. Na mãe, o hPL exerce efeitos antiinsulínicos, do que resulta o aumento da concentração de glicose, ácidos graxos livres e aminoácidos circulantes. Dessa maneira, ocorre maior aporte de substratos metabólicos para o feto, os quais são importantes estímulos para o seu crescimento. No feto, o hPL estimula a síntese de IGFI e de insulina, e o resultado dessa ação conjunta é a maior captação de aminoácidos e o estímulo da síntese proteica, o que é observado em células musculares e fibroblastos fetais. Nestes, a síntese de DNA também é incrementada graças aos efeitos mitogênicos do IGFI. Ainda, o hPL é importante para a produção de hormônios adrenocorticais e de surfactante pulmonar (ver Figura 73.2). Adicionalmente, o hPL estimula a proliferação das células beta pancreáticas e estudos in vitro mostram que ele também inibe a apoptose em ilhotas pancreáticas humanas, o que indica o seu envolvimento na regulação da atividade das células beta pancreáticas. O atraso na ossificação da calvária em camundongos com deficiência de receptores de Prl indica que o hPL também participa da condrogênese fetal. Acreditase que o GHRH produzido pela placenta atue paracrinamente, controlando a secreção do hPL, uma vez que sua concentração plasmática se correlaciona positivamente com a concentração plasmática de hPL, no último trimestre da gravidez. Os genes que codificam o hPL pertencem à família dos genes do GH e da Prl. Os que codificam o hPL e o hGH estão presentes no cromossomo 17, em um cluster de 55 kb que apresenta cinco genes, cada um composto de 5 éxons e 4 íntrons. Esse cluster de genes consiste em dois genes do GH e três de hPL na seguinte ordem: hGHN, hPL1, hPL4, hGHV e hPL3. Dos três genes hPL, apenas o hPL3 e hPL4 são transcricionalmente ativos na placenta. A diferença dos peptídios codificados pelos genes hPL3 e hPL4 é de um único aminoácido presente no peptídio sinal. O hGHN é expresso na hipófise anterior, enquanto o hGHV e os três hPL são expressos na placenta pelos sinciciotrofoblastos. Dois transcritos podem ser gerados do gene do hGHV, os quais originam um polipeptídio com peso molecular de 22.000 Da e outro que retém o íntron 4 e codifica um polipeptídio de 26.000 Da, que fica ancorado à membrana. As isoformas de hGHN e V apresentam 22.000 Da de peso molecular e diferem entre si em 13 aminoácidos. O hGHV apresenta ainda um local de glicosilação. Na 22a semana de gestação essa é a isoforma mais abundante na circulação materna.
Grelina A perda funcional do gene que codifica a grelina não afeta o peso ao nascer e nem as fases iniciais do crescimento pósnatal. Contudo, há evidências de que a grelina esteja envolvida com o processo de maturação de vias metabólicas relacionadas com o controle da homeostase energética. O pâncreas é a principal fonte de grelina no período perinatal. Nesse órgão também se detecta a presença de seus receptores em células β pancreáticas, bem como na ilhota em geral, o que sugere que a grelina tenha alguma participação no desenvolvimento e na função da ilhota.
Insulina
A insulina passou a ser considerada um hormônio importante para o crescimento fetal, a partir da observação de que fetos de mães diabéticas são macrossômicos. Assim, a elevada glicemia da mãe diabética aumenta o aporte de glicose para o feto, que, em resposta, eleva a sua secreção de insulina. A hiperinsulinemia resultante leva ao aumento da captação de aminoácidos e da síntese proteica pelos tecidos fetais, tanto por interação direta da insulina com seus receptores, quanto por interação dela com os receptores de IGFI, bem como por meio da estimulação da síntese de IGFI, o que reforça os efeitos anabólicos sobre o metabolismo proteico e sobre o crescimento fetal. Nessa fase de hiperinsulinemia, que ocorre nos dois primeiros trimestres de gestação, a sensibilidade à insulina encontrase inalterada ou aumentada na mãe, sendo o resultado disso o aumento da lipogênese e da deposição de gordura. Nesta fase, os estrógenos parecem ter participação importante, pois aumentam a expressão do receptor de insulina (IR) em adipócitos, o que possivelmente aumenta a sensibilidade à insulina nesse tecido durante essa fase. Seguese uma progressiva resistência insulínica, que leva, no último trimestre da gestação, ao aumento da lipólise, gliconeogênese hepática e cetogênese. O crescimento excessivo do feto está associado a aumento da incidência de complicações perinatais e desenvolvimento de obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares na idade adulta. Estudos recentes, desenvolvidos em ratas grávidas com sobrepeso por ingestão de dieta rica em gordura, demonstraram que nessa condição dietética ocorre aumento da atividade da mTORC1 (mTOR complex 1) e diminuição da fosforilação do fator de iniciação da tradução, o eIF2α, alterações que elevam a síntese proteica, contribuindo com o excessivo crescimento da placenta e do feto. O contrário ocorre quando há redução da atividade da mTORC1, situação em que ocorre redução do crescimento fetal, o que foi avaliado em humanos.
Insulinlike growth factors (IGF) Como dito anteriormente, o crescimento fetal é influenciado pelo hPL, que atua na mãe e no feto, e pela insulina fetal. Ambos exercem seus efeitos, pelo menos em parte, por meio do estímulo da síntese e secreção de IGFI, o que demonstra a importância deste peptídio para o crescimento somático do feto (ver Figura 73.2). A expressão do mRNA e da proteína IGFI e II é detectada em praticamente todos os tecidos fetais, já nas fases iniciais da gestação, sendo o IGFII a isoforma que predomina. Receptores de IGF encontramse também largamente distribuídos nos tecidos fetais. Os IGF pertencem a uma família de peptídios que dependem, em parte, da ação do GH, mas também de outros hormônios, tais como os citados anteriormente (hPL e insulina). Eles foram, inicialmente, chamados de somatomedinas, pois sua concentração plasmática reflete a secreção de GH, promovem a incorporação de sulfato na cartilagem e estimulam a síntese de DNA e a multiplicação celular, promovendo assim o crescimento. Após o isolamento das somatomedinas, verificouse que elas apresentam grande homologia estrutural com a proinsulina, razão pela qual hoje são denominadas fatores de crescimento semelhantes à insulina (IGF). De fato, elas têm uma atividade semelhante à insulina em vários tecidos e se ligam a receptores de insulina; do mesmo modo, a insulina também se liga aos receptores de IGF do tipo I, sob determinadas condições (ver adiante). Há duas isoformas reconhecidas de IGF, IGFI e IGFII, que apresentam, respectivamente, 70 e 67 aminoácidos. Existem, contudo, algumas isoformas de IGFII que são maiores e de significado funcional pouco conhecido; sabese que estas são produzidas por tumores mesenquimais e provocam hipoglicemia. De fato, o mRNA que codifica o IGFII apresentase constitutivamente expresso em uma série de tumores mesenquimais e embrionários. Os genes que codificam o IGFI e o II apresentam múltiplos locais de iniciação da transcrição, splicing alternativo de vários éxons e vários locais de poliadenilação. Essas peculiaridades indicam o alto grau de complexidade existente na regulação da expressão desses genes e possibilitam compreender sua expressão diferencial nos tecidos do embrião, feto, criança e indivíduo adulto. Os IGF são sintetizados na grande maioria dos tecidos em que atuam, principalmente, por via parácrina. Eles também são produzidos no fígado em resposta ao GH, no período pósnatal, e a maioria do IGFI hepático é secretada para a circulação. Assim, a maior fração de IGFI circulante resulta da ação hepática do GH, embora parte do IGFI plasmático seja proveniente de tecidos em que é produzido e em que atua, sobretudo, paracrinamente. A expressão do mRNA e da proteína IGFI e II é detectada em praticamente todos os tecidos fetais já nas fases iniciais da gestação, sendo predominante a isoforma IGFII. Os receptores de IGF encontramse também largamente
distribuídos nos tecidos fetais. A importância dos IGF para o crescimento somático foi determinada em experimentos que demonstraram que a mutação inativadora do gene que codifica o IGFI afeta profundamente o crescimento fetal e pósnatal, enquanto a do IGF II afeta apenas o crescimento fetal, o que indica que ambos os IGF são essenciais para o crescimento no período intrauterino. O mesmo ocorre por ocasião da mutação do gene que codifica o receptor de IGFI (cujos ligantes são o IGFI e II). Quanto ao IGFII, sua expressão cai logo após o nascimento, exceto no cérebro, em que a expressão do mRNA do IGFII permanece elevada até a vida adulta. Tais mutações não resultam apenas em baixo peso e altura ao nascimento, mas também em hipoplasia de vários órgãos e atraso no desenvolvimento ósseo, com alterações na progressão da mineralização óssea. Ainda, na deficiência de IGFI ou de seus receptores, alguns camundongos morrem ao nascer, o que reforça o conceito de que o IGFI exerça um papel crítico no desenvolvimento fetal, e que os animais que sobrevivem apresentam déficit no crescimento pósnatal. A mutação inativadora do gene que codifica o receptor de IGFII (IGFIIR) resulta em elevação do peso ao nascimento, mas também em morte, a qual ocorre no final da gestação ou ao nascimento. Na verdade, há evidências de que o receptor de IGFII degrada o próprio IGFII, regulando seus níveis plasmáticos. Sendo assim, na condição de mutação do IGFIIR, os níveis de IGFII apresentamse elevados, o que resulta no aumento do peso ao nascimento, efeito decorrente da interação do IGFII com o IGFIR. Os IGF circulam no plasma associados a proteínas, conhecidas como proteínas ligantes de IGF (IGFBP). Seis isoformas de IGFBP foram descritas, as quais são numeradas de I a VI. A IGFBPI é a principal IGFBP do soro fetal no início da gestação; sua concentração se eleva a um valor máximo no último trimestre da gravidez. Seus níveis circulantes, portanto, determinam a concentração de IGF livre no soro. Assim, elevações transitórias da sua concentração reduzem a disponibilidade de IGFI livre para os tecidos. A IGFBPII também é altamente expressa em tecidos fetais, principalmente no SNC, em que o seu papel não é ainda conhecido.
Hormônios tireoidianos (HT) Os HT são importantes para o crescimento, o desenvolvimento e o metabolismo dos vertebrados. Sua participação no processo de metamorfose em anfíbios é fundamental, e essa talvez seja uma das ações mais explícitas deste hormônio sobre o desenvolvimento. A metamorfose ocorre em torno do 14o dia de vida do girino. Ela é retardada quando o girino é exposto a inibidores de síntese de HT (tais como propiltiouracila, metimazol e perclorato; ver Capítulo 68, Glândula Tireoide) e antecipada quando ocorre exposição ao T3 ou T4. Nesse estágio do desenvolvimento, o HT atua estimulando a expressão de genes específicos que induzem alterações drásticas, que incluem a reabsorção de órgãos e tecidos larvais, remodelamento dos órgãos larvais para a forma juvenil, e o desenvolvimento de novos órgãos e tecidos. Observase degeneração da cauda, em paralelo ao surgimento dos membros, processos que envolvem intensa proteólise e anabolismo proteico, respectivamente. O SNC participa ativamente desse processo, uma vez que vias neuronais e prolongamentos neuríticos devem ser estabelecidos conjuntamente, para garantir a eficiência do processo. HT e SNC A observação de que crianças nascidas hipotireóideas não apresentam déficit de crescimento, mas sim um acentuado grau de retardo mental, demonstra que os HT são fundamentais para o desenvolvimento do SNC. Os HT são essenciais para que ocorram adequadamente os processos de proliferação neuronal, sinaptogênese, desenvolvimento de dendritos, mielinização, migração celular e diferenciação de oligodendrócitos, dentre outros. Sabese que esses processos dependem de proteínas tais como: o fator de crescimento neuronal (NGF), o fator neurotrófico derivado do cérebro (BNDF), e neurotrofina3 (NT3), cuja expressão é induzida pelos hormônios tireoidianos. Sabese também que os HT induzem a expressão de IGFI, mecanismo pelo qual exercem seus efeitos sobre a vascularização do tecido nervoso. É por essa razão que, no hipotireoidismo congênito, o indivíduo apresenta reduzido número de neurônios ao nascimento, associado a uma organização deficitária da árvore neural e da vascularização do SNC, em decorrência do comprometimento de todos esses processos, quadro que caracteriza o cretinismo. A identificação precoce do hipotireoidismo congênito, por meio da detecção de níveis séricos elevados de TSH (um dos hormônios avaliados no teste do pezinho, detalhes no Capítulo 68), e o tratamento imediato do recémnascido com
hormônio tireoidiano levam, praticamente, à reversão do quadro, já que a sinaptogênese, mielinização e vascularização do SNC podem ser induzidas após o nascimento. Os principais hormônios produzidos pela tireoide são a tiroxina (T4) e a triiodotironina (T3). O T4 corresponde a aproximadamente 70% da secreção tireoidiana, e o T3, a cerca de 30% (ver Capítulo 68). A maior parte do T4 é convertida em T3 por ação de desiodases e este dado, associado ao fato de que os receptores de HT (THR) têm 10 vezes mais afinidade para o T3 do que para o T4, fizeram com que o T4 fosse considerado um próhormônio, cujo papel principal seria o de gerar T3, o hormônio biologicamente ativo. Entretanto este conceito deve ser revisto, já que o T4 exerce ações não genômicas muito importantes, inclusive no período fetal, conforme será explicitado adiante. Com relação ao T3, ainda não está claro se ele é o principal hormônio envolvido no desenvolvimento do SNC no período fetal, uma vez que nesta fase há elevada expressão tecidual da enzima desiodase tipo III (D3), que converte os HT considerados de maior atividade biológica em produtos menos ativos (T3 a T2 e T4 a rT3, ver Capítulo 68), bem como de THRα2, isoforma de receptor de HT (THR) que não apresenta domínio de ligação ao T3. Contudo, o THRβ, principal isoforma presente no SNC, já se encontra bastante expresso nesse período do desenvolvimento. Ainda, vale comentar que animais knockout para THRβ, bem como para THRα, não apresentam anormalidades morfológicas e funcionais significativas no desenvolvimento do cérebro nem alterações comportamentais ou na mielinização das fibras nervosas. Acrescentase a esses dados o fato de que é crescente na literatura o número de trabalhos que demonstram que os HT, principalmente T4 e rT3, exercem ações não genômicas, sendo uma delas a organização do citoesqueleto de actina, o que é fundamental para a formação de neuritos e, portanto, para a plasticidade neuronal. O desenvolvimento do SNC do feto se inicia por ação dos HT de origem materna. Embora o T3 seja considerado o principal HT a exercer um efeito nuclear, sabese que a fração de T4 transferida da mãe para o feto é até maior do que a de T3, o que coloca o T4 como o hormônio mais importante para esta ação fisiológica. O processo de desenvolvimento do SNC do feto prossegue à custa da sua própria produção hormonal. Porém, além de T3 e T4, o hormônio T3 reverso (rT3) também se apresenta em elevadas concentrações na circulação fetal, superando as de T3 e T4. Pouca consideração se deu à presença deste hormônio, uma vez que ele, até há pouco tempo, era considerado biologicamente inativo, em função da baixíssima afinidade dos THR a ele (ver Capítulo 68). No entanto, evidências atuais apontam que, em ratos, o rT3, assim como o T4, exercem ações não genômicas em células gliais e neurônios cerebrais, que promovem organização de microfilamentos que constituem o citoesqueleto, mecanismo pelo qual interferem com a migração neuronal e direcionamento de neuritos a diferentes locais (plasticidade neuronal), exercendo, dessa maneira, profundos efeitos no cérebro em desenvolvimento. Este dado é duplamente relevante, uma vez que revela uma ação importantíssima de um hormônio considerado inativo, o rT3, no desenvolvimento do SNC de ratos, e ainda, por um mecanismo não genômico, ou seja, independe da expressão de genes específicos. Reforça esse dado a observação de que camundongos knockout para os THR apresentam poucas anormalidades no desenvolvimento do SNC. HT e tecido muscular O tecido muscular esquelético é um importante alvo do HT. O T3 age reprimindo ou induzindo a expressão de genes que codificam as diferentes isoformas da cadeia pesada de miosina (MHC), dentre outros, por meio da sua interação com THR específicos que são diferencialmente expressos nos tecidos (detalhes no Capítulo 68). Assim, o músculo extensor digital longo (EDL) apresenta fibras com elevada expressão da MHCII (fibras rápidas) e poucas fibras que expressam MHCI (fibras lentas), o que o caracteriza como um músculo de contração rápida. Demonstrouse que camundongos que não expressam as isoformas THRα1 e THRβ, ou THRα1/β, apresentam diminuição da expressão da MHCIIB e aumento da MHCI no EDL, o que altera o seu fenótipo, uma vez que ele se torna lento. O músculo sóleo, que expressa mais fibras lentas (MHCI) e poucas rápidas (MHCII), quando estudado nesses camundongos, apresenta hiperexpressão da MHCI e redução da expressão da MHCII, o que o torna ainda mais lento. Essas alterações são semelhantes às que ocorrem na transição das isoformas de miosina de camundongos hipotireóideos, que apresentam mutação autossômica recessiva com déficit de secreção de TSH, GH e Prl (anões). Nestes, o aparecimento das isoformas adultas de MHC no músculo esquelético é bastante retardado e as isoformas fetais de MHC não são totalmente eliminadas, e ocorre um aumento no número de fibras que expressam a MHCI (lenta). No músculo cardíaco, onde as isoformas de MHCα e β correspondem, respectivamente, às de MHCII e I do músculo esquelético, o
fenótipo adulto de expressão de MHC nunca é adquirido, de modo que a MHCβ permanece como a isoforma dominante. Contudo, a administração de uma única dose de T4 é capaz de provocar o aparecimento das isoformas adultas de MHC tanto no músculo esquelético (MHCII), quanto no cardíaco (MHCα), embora em tempos diferentes (no músculo esquelético o efeito do T4 aparece mais tardiamente), sugerindo que o mecanismo de ação do T4 é diferente nesses dois tecidos. Outras ações No período fetal, o HT, junto com a insulina e o cortisol, contribui para a síntese da substância surfactante, a qual desempenha importante papel no processo de expansão pulmonar, por ocasião do nascimento, por reduzir a tensão superficial da água nos alvéolos (ver Capítulo 42, Mecânica Respiratória).
Paratormônio (PTH) e calcitonina (CT) A concentração de cálcio na circulação fetal é bastante elevada, graças ao seu transporte ativo através da placenta, por meio de uma Ca2+ATPase cuja atividade é estimulada por um peptídio relacionado com o PTH (PTHrP), secretado pela paratireoide fetal e pela placenta. Acreditase que esse peptídio interaja com receptores de PTH do feto, e também module o fluxo de cálcio do esqueleto, a excreção renal de cálcio, a produção renal de 1,25(OH)2 Vit D e, provavelmente, a reabsorção de cálcio do líquido amniótico. A elevada calcemia do feto parece ser o fator desencadeador da secreção de CT, hormônio produzido pelas células C da tireoide (detalhes no Capítulo 76, Fisiologia do Metabolismo Osteomineral) e também pela placenta e que apresenta importante papel no crescimento do esqueleto nesta fase do desenvolvimento, pois além de contribuir com a deposição de cálcio e fósforo no osso (mineralização), inibe o processo de reabsorção óssea. O papel importante desse hormônio no período embrionário contrasta com o papel limitado que apresenta no período pósnatal. A ausência materna de CT ou do peptídio relacionado ao gene da calcitonina (CGRPα), em camundongo knockout para CT/CGRPα, leva à redução do número de fetos viáveis. A ausência fetal de CT e CGRP α reduz o conteúdo de magnésio no soro e no esqueleto, fatos que sugerem que esses peptídios participem da regulação do metabolismo de magnésio no feto. Na atualidade, o crescente número de casos de deficiência de vitamina D na gestante tem se constituído em um problema significativo. Estimase que entre 18 e 84% das gestantes no mundo apresentem deficiência de vitamina D. Esse hormônio, que está envolvido com a manutenção da massa óssea e o controle da calcemia (ver Capítulo 76), participa de processos importantíssimos como: proliferação e diferenciação celulares, função vascular e regulação do sistema imunológico, sendo elementochave para a decidualização, modulação da função imunológica materna e formação óssea do feto. Nesse sentido, a deficiência de vitamina D nesse período pode levar a complicações na gestação, como préeclâmpsia, prematuridade e diabetes melito gestacional. Essa deficiência também está associada a restrição do crescimento intrauterino e complicações para a saúde do recémnascido, como asma, hipertensão e atraso no desenvolvimento do SNC. A deficiência de vitamina D na gestante também altera parâmetros relacionados com os glicocorticoides, aumentando a exposição placentária e fetal a eles, o que pode promover disfunção placentária e restrição do crescimento fetal. Assim, precaução deve ser tomada com os filtros solares UV, que vêm sendo cada vez mais usados pelas gestantes, em função do possível impacto dos mesmos sobre o desenvolvimento fetal e a saúde das crianças.
Outros fatores Angiotensina II (ANG II) Duas evidências sugerem a participação da ANG II no crescimento fetal: (1) detecção de receptores de ANG II do tipo AT2 no músculo esquelético e no tecido conectivo de embriões de ratos, no final da gestação, e (2) a administração de ANG II em fetos de ratos promove incorporação de aminoácidos em proteínas na pele. Acreditase que a ANG II seja produzida a partir da renina placentária. Glicocorticoides
As suprarrenais do feto secretam cortisol, que é convertido em cortisona pela 11βhidroxiesteroide desidrogenase 11β HSD, a qual é bastante expressa nos tecidos fetais. Essa conversão é fundamental neste período da vida, no qual o anabolismo deve predominar, considerandose que a cortisona é um glicocorticoide relativamente inativo. Próximo ao nascimento, alguns tecidos fetais passam a expressar atividade 11cetoesteroide redutase, que promove conversão local da cortisona em cortisol. A importância dos glicocorticoides no período embrionário pode ser depreendida pelo fato de que camundongos que não expressam receptores de glicocorticoides apresentam aumento do tamanho e desorganização do córtex das suprarrenais, atrofia da medula suprarrenal, hipoplasia do pulmão e gliconeogênese alterada; esses animais não sobrevivem sem tratamento adequado. Mais recentemente, tem aumentado o número de estudos que tentam explorar se as questões de identidade ou orientação sexual estão relacionadas com fatores prénatais que poderiam moldar o desenvolvimento do sistema nervoso central e a expressão de comportamentos sexuais em animais e humanos. Estudos buscando avaliar se a exposição hormonal nesse período influenciaria a identidade de gênero e orientação sexual têm aumentado consideravelmente. De fato, há evidências de que a identidade de gênero e orientação sexual podem ser alteradas (masculinizadas) pela exposição prénatal à testosterona ou feminizadas na ausência desse hormônio. Contudo, há exceções, e muitas questões ainda estão a ser resolvidas.
PERÍODO PÓSNATAL Do nascimento até os 2 anos de vida, o crescimento ocorre em uma velocidade em torno de 15 cm/ano, reduzindose a cerca de 6 cm/ano até a metade da infância. Por ocasião da puberdade, há aumento da velocidade de crescimento, que ocorre mais precocemente (2 a 3 anos) no sexo feminino, embora apresente magnitude maior no sexo masculino. O crescimento linear cessa após a fusão das epífises com as diáfises, ou seja, quando ocorre ossificação do disco epifisário. No entanto, logo após o nascimento (período neonatal), nem todos os tecidos apresentam o grau de maturação que terão na vida adulta. Neste período, o padrão de expressão de vários genes ainda está sendo estabelecido, de modo que qualquer interferência, seja hormonal, ambiental ou nutricional, é capaz de alterar esse padrão de expressão gênica, o qual persistirá na vida adulta, levando a repercussões fisiológicas permanentes, a que denominamos reprogramação gênica. No período neonatal ocorre a transição de várias isoformas de proteínas para as isoformas que predominarão na vida adulta. Assim, dentre outras alterações, o trocador Na+/Ca2+, principal mantenedor da concentração intracelular de cálcio no período fetal, sofre redução da sua expressão, enquanto aumenta a expressão da SERCA; as miosinas fetais são substituídas pelas isoformas adultas; as desiodases do tipo III (D3) apresentam redução da sua expressão, enquanto aumenta a expressão da D1 e D2, e os receptores de GH passam a ser funcionais. Em ratos, a indução de hipertireoidismo transitório neste período leva a menor expressão gênica do GH, bem como à redução da massa magra e da densidade mineral óssea no animal adulto. Portanto, este período do desenvolvimento deve ser especialmente considerado, uma vez que representa uma janela passível de ser manipulada, com repercussões funcionais importantes na vida adulta. Assim, distúrbios nutricionais perinatais não apenas promovem consequências a curto prazo na velocidade de crescimento do feto, como também predispõem para o desenvolvimento de doenças metabólicas no adulto (detalhes no Capítulo 78, Desreguladores Endócrinos). Essasalterações podem ser transmitidas por várias gerações, sugerindo que essas consequências a longo prazo podem ser herdadas por mecanismos epigenéticos. Diversos hormônios participam, em graus variáveis, do processo de crescimento e desenvolvimento pósnatal, como descrito a seguir.
▸ Hormônio do crescimento (GH) Conforme discutido no Capítulo 66, grande parte dos efeitos do GH sobre o crescimento ocorre por intermédio de sua ação estimulante da síntese e secreção hepática do fator de crescimento semelhante à insulina, o IGFI, o qual atua na placa epifisária, promovendo multiplicação dos condrócitos. O GH também estimula a síntese de IGFI na própria placa epifisária, na qual este também atua autocrinamente, reforçando os efeitos endócrinos do IGFI circulante. Na infância, a deficiência de GH provoca o nanismo e a sua hipersecreção causa o gigantismo. Após a puberdade, a hipersecreção de GH determina o quadro de acromegalia (mais detalhes no Capítulo 66).
O GH exerce efeitos diretos nos tecidos (tais como gliconeogênese, lipólise e estímulo da síntese proteica) e indiretos, via IGFI. Como os receptores de IGFI apresentamse expressos em praticamente todos os tecidos, os efeitos do GH/IGFI são amplos e redundam em estímulo da síntese proteica, o que é benéfico para a manutenção da massa muscular esquelética e cardíaca. Por outro lado, a hipersecreção de GH leva à hipertrofia muscular esquelética e cardíaca, além de efeitos que estão apresentados em mais detalhes no Capítulo 66. Ao contrário da insulina, os IGF circulam associados a proteínas transportadoras de IGF (IGFBP), as quais conferem maior meiavida (t1/2) aos IGF, possibilitam que os IGF atinjam todas as suas célulasalvo e modulem a interação dos IGF com os seus receptores, regulando, portanto, a sua atividade biológica. Em geral, as IGFBP inibem a ação dos IGF por competir com o seu receptor por esses fatores de crescimento. No entanto, há evidências de que as IGFBP também exercem ações próprias, independentes de sua interação com os IGF. Sabese, por exemplo, que a IGFBP3, principal ligante de IGFI, e que depende de GH, interage com receptores presentes em vários tipos celulares, como células de câncer de mama e condrócitos, inibindo o crescimento delas (Figura 73.3); portanto, o estudo da regulação transcricional da IGFBP3 poderá trazer importante contribuição para os estudos de câncer. Sendo assim, é possível que os efeitos antiproliferativos do transforming growth factor beta 2 (TGFβ2) e ácido retinoico sobre as células de câncer de mama sejam via ativação da transcrição do gene que codifica a IGFBP3.
Figura 73.3 ■ Esquema da participação do IGF e da IGFBP3 no crescimento celular. Observe que a IGFBP3 participa duplamente desse processo, já que, além de controlar a disponibilidade de IGF para as células, é capaz de interagir com locais específicos (prováveis receptores) na membrana plasmática, por meio do que parece se contrapor às ações de estímulo do crescimento celular promovido pelo IGF. (Adaptada de Reiter e Rosenfeld, 2003.)
A IGFBP1 tem sua expressão aumentada em estados catabólicos. Assim, o cortisol aumenta a sua expressão e a insulina a inibe, de modo que a elevação do cortisol reduz a disponibilidade de IGFI para os tecidos, ocorrendo o contrário com a elevação da insulinemia.
▸ Triiodotironina (T3) O T3 é um dos principais hormônios reguladores da expressão do gene do GH. Na infância, o hipotireoidismo leva a um déficit de crescimento, não só pela ausência das importantes ações do T3 sobre o anabolismo proteico, mas também pela reduzida expressão gênica do GH. O T3 também aumenta a expressão gênica de IGFI em alguns tecidos, nos quais este fator de crescimento atua parácrina e autocrinamente.
T3 e desenvolvimento do sistema muscular esquelético A aquisição de características específicas do tecido muscular, tais como velocidade de contração e tempo de relaxamento, também depende da ação dos HT. No tecido muscular esquelético, o T3 induz a expressão dos genes que codificam: (1) a isoforma II da cadeia pesada da miosina (MHCII), a qual confere maior velocidade de contração a esse
tecido, e (2) a isoforma I da bomba de cálcio do retículo sarcoplasmático (SERCA I), a qual apresenta elevada atividade ATPásica e cujo papel é remover o cálcio do citosol, direcionandoo ao retículo sarcoplasmático e desencadeando, assim, o processo de relaxamento muscular. Ao mesmo tempo, o T3 inibe a expressão dos genes que codificam a MHCI e a SERCA II, expressas predominantemente nos músculos de contração lenta, e a de fosfolambam (proteína que inibe a atividade da SERCA). Ainda, o T3 induz a expressão das enzimas oxidativas succinato desidrogenase (SDH) e citrato sintase (CS) e de mioglobina no músculo esquelético. Assim, a presença de concentrações fisiológicas de T3 determina a composição de proteínas que conferirão as características funcionais deste tecido. Quando o T3 é encontrado em excesso, todavia, predomina seu efeito catabólico proteico, com perda de massa magra, o que se traduz em fraqueza muscular. É interessante que, no hipotireoidismo, a redução da síntese proteica também determina fraqueza muscular.
T3 e desenvolvimento do sistema muscular cardíaco Da mesma maneira que no músculo esquelético, no músculo cardíaco o T3 induz a expressão da isoforma MHCα e reprime a da MHCβ, que correspondem, funcionalmente, a MHCII e MHCI do músculo esquelético, respectivamente. O T3 também determina a expressão: (1) de canais de sódio de vazamento no nodo sinusal, conhecidos por causarem correntes denominadas funny, bem como (2) dos HCN2 e 4 (hyperpolarizationactivated cyclic nucleotidegated channels), proteínas que são essenciais para, respectivamente, conferir e controlar a atividade marcapasso do nodo sinusal do coração. Portanto, a elevação da expressão dos mesmos no hipertireoidismo é fator determinante do aumento da frequência cardíaca observada nesses estados. A SERCA II (única isoforma presente no músculo cardíaco) também tem sua expressão aumentada pelo T3. Assim, o T3 é um dos mais importantes determinantes do débito cardíaco. Ele ainda induz a expressão de receptores βadrenérgicos no coração, determinando, portanto, a responsividade deste órgão às catecolaminas.
▸ Hormônios sexuais O estirão de crescimento que ocorre na puberdade revela a importância dos esteroides gonadais no crescimento puberal. Parte de sua ação ocorre por estímulo da secreção de GH e parte por propiciar aumento da síntese de IGFI, por ação direta. No entanto, eles aceleram a maturação do esqueleto, de modo que a hipersecreção destes hormônios faz com que a fusão das epífises com as diáfises ocorra mais precocemente, fazendo com que a altura prevista pelo programa genético não seja alcançada (Figura 73.4). Essa ação depende dos estrógenos, os quais, no sexo masculino, são produzidos a partir da ação de aromatases sobre os andrógenos. A importância dessa ação pode ser evidenciada em indivíduos do sexo masculino portadores de mutação dos receptores de estrógenos, ou de aromatases, os quais apresentam elevada estatura e deficiência da soldadura das epífises. Os estrógenos também são responsáveis pela deposição de cálcio no osso, o que propicia o aumento da massa óssea que ocorre por ocasião da puberdade. Assim, esses indivíduos apresentam reduzida massa óssea, alto turnover ósseo e epífises não soldadas. O atraso da menarca e da puberdade é considerado fator de risco para o desenvolvimento de osteopenia, na vida adulta. Todavia, a obtenção do pico de massa óssea depende não só dos esteroides gonadais, mas também do GH e do IGFI.
▸ Cortisol O cortisol reduz a taxa de crescimento, por sua potente ação indutora de catabolismo proteico, bem como por aumentar a expressão de IGFBP1, mecanismo pelo qual, conforme comentado, reduz a disponibilidade de IGFI para os tecidos. Os glicocorticoides também estimulam a síntese de somatostatina, e assim interferem negativamente no crescimento (mais detalhes no Capítulo 65, Hipotálamo Endócrino). Ainda, há evidências de que, in vitro, os glicocorticoides reduzam a secreção de IGFI.
Figura 73.4 ■ Taxa de crescimento (altura em cm/ano) em função da idade (em anos) e do sexo. Observase que a taxa de crescimento decai ao longo do tempo de modo semelhante em ambos os sexos e que se eleva no sexo feminino ao redor dos 12 anos de idade, precedendo o ganho de altura do sexo masculino, que é um pouco maior e ocorre ao redor dos 15 anos de idade.
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Introdução
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Metabolismo hepático Metabolismo do tecido adiposo
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Metabolismo do tecido muscular Ajuste neuroendócrino do metabolismo em situações de demanda energética Bibliografia
INTRODUÇÃO Os três principais sistemas integradores do organismo, o sistema endócrino, o sistema nervoso e o sistema imune, interagem de diversas maneiras para assegurar a manutenção de níveis adequados de fornecimento, armazenamento e utilização de substratos energéticos em diferentes condições fisiológicas. Neste capítulo será revisto exclusivamente, de maneira sucinta, o controle neuroendócrino das vias metabólicas (de carboidratos, lipídios e proteínas) dos tecidos que têm importância fundamental na homeostase calórica. Não será abordado, por exemplo, o controle neuroendócrino da ingestão de alimentos ou o papel das citocinas produzidas pelo tecido adiposo, assuntos que têm despertado grande interesse pelas implicações no tratamento da obesidade (esses temas estão expostos no Capítulo 26, Controle Neuroendócrino do Comportamento Alimentar, e no Capítulo 72, Moléculas Ativas Produzidas por Órgãos Não Endócrinos). Os principais substratos diretamente utilizados pelos tecidos para produção de energia são a glicose e os ácidos graxos livres (AGL, não esterificados) que circulam no plasma ligados à albumina. Apesar de sua baixa concentração, os AGL plasmáticos têm uma velocidade de renovação (turnover) muito alta, e a quantidade diária de calorias derivadas de sua oxidação é maior que a da glicose, mesmo em condições de repouso e no estado alimentado. Por outro lado, os AGL do plasma não são utilizados pelo cérebro, que têm um requerimento absoluto de glicose, embora possa, em certas condições, satisfazer parcialmente suas necessidades energéticas oxidando corpos cetônicos. O sistema nervoso central (SNC) é responsável por cerca de 50% da glicose consumida diariamente para fins energéticos. O suprimento adequado de substratos energéticos, para os diversos tecidos do organismo em condições basais e em situações de demanda alterada por fatores internos ou externos, depende principalmente do controle endócrino e neural do metabolismo de três tecidos: hepático, adiposo e muscular. O fígado é o principal responsável pela manutenção da glicemia e o tecido adiposo é o fornecedor dos AGL plasmáticos. O tecido muscular, pela sua massa (de 40% a 45% do peso corporal) é um grande consumidor de substratos energéticos, e suas proteínas constituem importante fonte de aminoácidos. O SNC, por intermédio do sistema nervoso autônomo simpático ou parassimpático, pode alterar o fluxo em vias metabólicas do fígado ou dos tecidos adiposo e muscular. As ações dos nervos nesses tecidos podem ser amplificadas por meio da secreção indireta de hormônios tais como a epinefrina proveniente da medula da suprarrenal, a insulina e o glucagon (Figura 74.1). Por esse motivo, nos itens seguintes deste capítulo, nos quais será examinado separadamente o
controle neuroendócrino do metabolismo de cada um daqueles três tecidos, a descrição das alterações que podem ser induzidas pela inervação autonômica e das áreas centrais envolvidas será precedida por um resumo das principais vias metabólicas do tecido abordado e sua regulação por hormônios. Embora as vias metabólicas básicas sejam comuns aos diversos tecidos, sua diferenciação e especialização funcional acarretam o predomínio de determinados processos. O tecido hepático é o tecido funcionalmente mais diversificado, mantendo ativas diversas vias metabólicas importantes para a homeostase calórica, e será o primeiro a ser examinado. Não faz parte do escopo deste capítulo a descrição detalhada dos mecanismos celulares da transdução dos sinais hormonais ou neurais pertinentes. Na parte final serão apresentadas situações (jejum, exercício e exposição ao frio) que ilustram como o SNC e o sistema endócrino agem de maneira coordenada para atender adequadamente às novas demandas energéticas, ativando ou inibindo o fluxo em vias metabólicas do fígado e dos tecidos adiposo e muscular.
METABOLISMO HEPÁTICO ▸ Regulação hormonal Metabolismo de carboidratos As principais vias do metabolismo de carboidratos no fígado e os pontos de sua regulação hormonal estão resumidos nas Figuras 74.1 e 74.2. Durante o período digestivo, grandes quantidades de glicose chegam ao fígado pelo sistema porta e são captadas pela célula hepática por um processo de difusão facilitada. O transportador de glicose predominante no hepatócito é o GLUT2, que não é sensível à insulina e tem um Km (constante de afinidade) para a glicose elevado, operando, portanto, abaixo do limiar de saturação, mesmo sob altas concentrações da hexose. Esta característica e o grande número de GLUT2 na membrana conferem ao hepatócito uma alta capacidade de captação de glicose. Dessa maneira, ao contrário dos tecidos adiposo e muscular, o transporte de glicose pela membrana do hepatócito não é um passo limitante (regulável) e as concentrações de glicose livre (não fosforilada) dentro e fora do hepatócito são praticamente iguais, mesmo em condições de hiperglicemia. No interior do hepatócito, a glicose é fosforilada a glicose6 P pela glicoquinase, que se diferencia das outras hexoquinases por ter um alto Km para a glicose e por não ser inibida pelo seu produto, a glicose6P. Essas características da enzima tornamna bem adequada, não apenas para operar nas concentrações relativamente altas de glicose existentes na célula hepática, como para direcionar o fluxo de carbonos da glicose para a via glicolítica e para a síntese de glicogênio. A fosforilação da glicose pela glicoquinase é o passo limitante da utilização da hexose pelo fígado. A insulina ativa a glicoquinase e acelera a fosforilação da glicose. Esta ação, acoplada à ativação da glicogêniosintase, estimula a síntese e armazenamento de glicogênio, efeitos ainda reforçados por uma inibição simultânea da glicogênio fosforilase, reduzindo a glicogenólise. O fluxo na via glicolítica também é estimulado pela insulina, que, além de acelerar a fosforilação da glicose, ativa a fosfofrutoquinase e a piruvato quinase, enzimas chave dessa via (ver Figura 74.2). Além disso, a insulina ativa a piruvato desidrogenase e com isso favorece a oxidação do piruvato (produto final da glicólise) na mitocôndria produzindo acetilCoA. Paralelamente, a ativação da glicose6fosfato desidrogenase leva a um aumento do fluxo na via das pentoses, formando NADPH para a lipogênese (ver adiante). O papel principal do fígado no controle da homeostase glicídica é devido, em grande parte, à sua capacidade de sintetizar glicose a partir de moléculas menores, principalmente aminoácidos, lactato e glicerol. Este processo, conhecido como neoglicogênese ou gliconeogênese, consiste em uma reversão da via glicolítica (ver Figuras 74.1 e 74.2). A piruvato carboxilase e a Penolpiruvato carboxiquinase (PEPCK) são enzimaschave da neoglicogênese, pois convertem, respectivamente, o piruvato a oxaloacetato, e este, a Penolpiruvato. Dessa forma, a etapa da via glicolítica catalisada pela piruvato quinase é contornada pela ativação dessas enzimas. Em seguida, a etapa catalisada pela fosfofrutoquinase é revertida pela enzima neoglicogenética frutose1,6bifosfatase. A glicose6fosfato assim formada pode ser direcionada para a síntese de glicogênio ou pode produzir, pela ação da glicose6fosfatase, glicose livre que passa para a circulação. A insulina exerce um importante efeito inibitório no fluxo neoglicogênico. Além de inibir a piruvato carboxilase, a PEPCK e a glicose6fosfatase, o hormônio reduz o fornecimento de Penolpiruvato para a neoglicogênese, pois aumenta a atividade da piruvato desidrogenase, que utiliza o piruvato para produção de acetilCoA. As inibições da glicogenólise e da neoglicogênese são as principais responsáveis pela redução da produção hepática de glicose promovida pela insulina. A glicogenólise e a neoglicogênese são ativadas em situações de reduzida disponibilidade de glicose, aumentando a produção hepática da hexose. O glucagon tem um importante papel nessa adaptação. Este hormônio estimula a glicogenólise ativando a fosforilase e inibindo, simultaneamente, a glicogênio sintase; adicionalmente, aumenta o fluxo na via neoglicogênica de várias maneiras: (a) aumentando a capacidade da célula hepática captar aminoácidos, os principais
substratos neoglicogênicos; (b) ativando a piruvato carboxilase, a PEPCK, a frutose1,6bifosfatase e a glicose6 fosfatase; e (c) inibindo as enzimas da via glicolítica, fosfofrutoquinase e piruvato quinase. A inibição desta última impede a formação do piruvato a partir do Penolpiruvato formado na etapa inicial da neoglicogênese.
Figura 74.1 ■ Representação esquemática das principais vias metabólicas, com indicação dos pontos de ação hormonal. (+), estimulação; (–), inibição. (Descrição da figura no texto.)
Metabolismo lipídico Além de sua participação fundamental no controle da homeostase glicídica, o fígado tem um importante papel no controle da síntese e da oxidação de ácidos graxos. Em situações de abundância de substratos energéticos, os ácidos graxos são sintetizados no citosol a partir de acetilCoA, proveniente em sua maior parte da descarboxilação do piruvato (produzido na via glicolítica ou a partir de outros metabólitos, especialmente aminoácidos) pelo complexo intramitocondrial da piruvato desidrogenase. Além dessa síntese de novo, o fígado capta da circulação ácidos graxos pré formados: AGL, mobilizados do tecido adiposo, ou ácidos graxos incorporados em triacilgliceróis de lipoproteínas. Os ácidos graxos sintetizados ou captados são esterificados com glicerol3fosfato, formado a partir da dihidroxiacetona na via glicolítica ou por fosforilação do glicerol pela gliceroquinase. Os triacilgliceróis podem ser armazenados no hepatócito ou incorporados em lipoproteínas de muito baixa densidade (VLDL) secretadas pelo fígado (ver Figura 74.2). Esta recirculação em VLDL dos ácidos graxos que chegam ao fígado contribui para o fornecimento de material energético em situações de demanda aumentada (p. ex., durante o jejum). Evidências indicam que, além da glicose, via dihidroxiacetona
na via glicolítica, e do glicerol via gliceroquinase, compostos de 3 carbonos (piruvato, lactato e aminoácidos glicogênicos) podem ser utilizados pelo fígado para produzir o glicerol3fosfato necessário para a formação de triacilgliceróis e posterior incorporação em VLDL. Esta via, denominada gliceroneogênese, é mais estudada no tecido adiposo (ver adiante). A célula hepática tem um ativo sistema enzimático mitocondrial de βoxidação de ácidos graxos com produção de acetilCoA. Se o afluxo de ácidos graxos para o fígado for excessivo, ocorre acúmulo de acetilCoA e produção de corpos cetônicos (ácidos acetoacético e βhidroxibutírico), que podem levar à acidose. Em condições normais, existe uma relação inversa entre a atividade lipogênica e a βoxidação. Isto se deve ao fato de o malonilCoA, formado pela acetilCoA carboxilase na primeira etapa da síntese de ácidos graxos, ser um inibidor da carnitinaaciltransferase I, enzima responsável pela ligação dos ácidos graxos com a carnitina e seu transporte para o interior da mitocôndria. A insulina estimula a síntese de ácidos graxos (lipogênese) no fígado, que se deve em parte ao aumento do fluxo glicolítico por ela produzido, associado à ativação do sistema da piruvato desidrogenase mitocondrial, aumentando o fornecimento de acetil CoA oriundo da glicose. Além disso, a insulina ativa a acetilCoA carboxilase, que parece ser a enzima limitante desse processo, e também a ácido graxo sintase. Aumentando o fornecimento de glicerol3fosfato derivado da via glicolítica, o hormônio favorece ainda a esterificação e o armazenamento dos ácidos graxos sintetizados. Em virtude da ativação da acetilCoA carboxilase e do aumento da concentração intracelular de malonilCoA, inibidor da carnitina aciltransferase I, a insulina reduz a entrada e a βoxidação de ácidos graxos dentro da mitocôndria, tendo, portanto, um efeito anticetogênico. O glucagon, por outro lado, inibe a acetilCoA carboxilase e a síntese de ácidos graxos. A consequente redução do conteúdo intracelular de malonilCoA ativa a carnitina aciltransferase I, estimulando a oxidação de ácidos graxos e a produção de corpos cetônicos.
Figura 74.2 ■ Representação esquemática do metabolismo de carboidratos e lipídios no fígado, com indicação dos pontos de ação hormonal. (+), estimulação; (–), inibição; INS, insulina; GLU, glucagon; EPI, epinefrina; GLUT2, transportador de glicose (tipo 2); TG, triacilgliceróis; VLDL, lipoproteínas de muito baixa densidade; AG, ácidos graxos. As linhas tracejadas representam a utilização do NADPH como fonte de energia redutora para a síntese dos ácidos graxos. Os números entre parênteses representam as enzimas reguladoras que atuam no passo metabólico indicado. (1), glicoquinase; (2), glicogênio sintase; (3), glicogênio fosforilase; (4), fosfofrutoquinase; (5), frutose1,6bifosfatase; (6), piruvato quinase; (7), piruvato desidrogenase; (8), piruvato carboxilase; (9), fosfoenolpiruvato carboxiquinase (PEPCK); (10), citrato liase; (11), acetilCoA carboxilase; (12), enzima málica. Descrição da figura no texto.
▸ Regulação neural Como referido anteriormente, o SNC não utiliza ácidos graxos de cadeia longa e tem um requerimento absoluto de glicose como fonte de energia. Em situações em que há tendência à redução da concentração plasmática de glicose, o SNC, por intermédio do sistema nervoso autônomo, intervém para impedir uma queda no seu suprimento de hexose, agindo especialmente no fígado, que é o principal controlador da produção desse substrato. O SNC pode alterar o fluxo nas vias metabólicas hepáticas diretamente, mediante a inervação simpática e parassimpática do hepatócito, ou indiretamente, ativando ou inibindo a secreção de hormônios que agem sobre as mesmas vias. A ativação de adrenorreceptores α pela inervação simpática do pâncreas estimula a secreção de glucagon pelas células α das ilhotas de Langerhans e inibe a secreção de insulina pelas células β. A ativação simpática também resulta em maior síntese e secreção de catecolaminas (principalmente epinefrina) pela medula suprarrenal. No fígado, a epinefrina, de modo semelhante ao glucagon, leva à ativação da glicogenólise e da neoglicogênese. Os mecanismos intracelulares envolvidos na resposta glicogenolítica à
epinefrina são desencadeados, principalmente, pela ativação de adrenorreceptores β2 e aumento das concentrações de cAMP, com consequente ativação da PKA (proteinoquinase dependente de cAMP). Isto leva à ativação da glicogênio fosforilase e inibição da glicogênio sintase, que resulta na degradação do glicogênio. A estimulação de adrenorreceptores α 1 também promove aumento da glicogenólise hepática e facilita a captação de aminoácidos pelo fígado, aumentando a disponibilidade de substratos para a neoglicogênese. Esses efeitos das catecolaminas, associados à maior secreção de glucagon e inibição da secreção de insulina pelo simpático, resultam em maior produção hepática de glicose e ajudam a evitar os danos irreversíveis dos neurônios resultantes de uma queda abrupta da glicose no sangue. Efeitos idênticos na glicogenólise e neoglicogênese, com ativação das enzimas correspondentes, podem ser obtidos pela estimulação direta dos terminais simpáticos do fígado. O aumento da atividade simpática para as glândulas ou para o hepatócito é devido à ativação de neurônios sensíveis à concentração de glicose, localizados no SNC. Neurônios sensíveis à glicose foram localizados em diversas regiões do SNC, tais como: os núcleos ventromedial, arqueado, supraquiasmático e paraventricular no hipotálamo; a substância nigra, a área postrema e o núcleo do trato solitário no tronco cerebral. Esses neurônios são também sensíveis a outros metabólitos e a diversos tipos de peptídios e citocinas, participando, portanto, do controle de outros aspectos do metabolismo energético. No entanto, sua capacidade de ativar as vias simpáticas eferentes para o fígado (e para o pâncreas, medula suprarrenal etc.) passa a ser a atividade predominante em situações de redução do suprimento de glicose. Sinapses colinérgicas centrais também parecem estar envolvidas no controle da produção de glicose; sua estimulação, que aumenta o fluxo simpático eferente, leva a uma acentuada hiperglicemia por ativação da neoglicogênese hepática. Ao contrário do simpático, o parassimpático estimula a secreção da insulina, via liberação de acetilcolina e ativação da PKC (proteinoquinase dependente de cálcio) nas células β do pâncreas, com a consequente redução da produção hepática de glicose, por inibição da glicogenólise e da neoglicogênese (ver anteriormente). Isto é o que acontece, por exemplo, durante a fase cefálica da digestão (ver Capítulo 61, Secreções do Sistema Digestório), quando estímulos sensoriais relacionados ao alimento (visão, olfação, audição etc.) aumentam a secreção de insulina mesmo antes de o alimento chegar ao estômago. O papel da inervação parassimpática direta dos hepatócitos no controle das vias metabólicas não está bem esclarecido, embora haja evidências de que a estimulação do vago aumente a atividade da enzima glicogênio sintase. O papel de fibras aferentes do vago na transmissão sensorial, para o SNC, de informações sobre a concentração hepática de metabólitos, inclusive da glicose, é mais bem conhecido.
METABOLISMO DO TECIDO ADIPOSO ▸ Regulação hormonal Metabolismo de carboidratos O metabolismo de carboidratos no tecido adiposo está diretamente ligado às duas funções básicas desse tecido: armazenar gordura (triacilgliceróis) e mobilizar ácidos graxos de acordo com a demanda calórica. Ao contrário da célula hepática, o transporte de glicose pela membrana do adipócito é um passo limitante da utilização da hexose. O transportador predominante é o GLUT4, que é sensível à insulina. Ao promover a síntese e a translocação para a membrana de moléculas de GLUT4 presentes no retículo endoplasmático, a insulina estimula o transporte de glicose para o interior da célula, onde é imediatamente fosforilada. A insulina estimula o fluxo na via glicolítica e na via das pentoses, gerando NADPH para a síntese de ácidos graxos. Pelo fato de o adipócito, ao contrário do hepatócito, apresentar quantidades relativamente pequenas de gliceroquinase, o tecido adiposo é muito dependente do fluxo na via glicolítica para fornecimento do glicerol3fosfato necessário para a esterificação de ácidos graxos (ver adiante).
Metabolismo lipídico Tal como ocorre no hepatócito, no tecido adiposo os ácidos graxos são sintetizados de novo no citosol a partir de acetilCoA, proveniente, em sua maior parte, da descarboxilação do piruvato (produzido na via glicolítica ou a partir de outros metabólitos) pelo complexo intramitocondrial da piruvato desidrogenase. Esse processo é estimulado pela insulina, que além de aumentar o fluxo na via glicolítica, ativa o sistema da piruvato desidrogenase e as enzimas acetilCoA carboxilase e ácido graxo sintase (Figura 74.3). O tecido adiposo pode também captar ácidos graxos já formados que se encontram na circulação incorporados em triacilgliceróis de lipoproteínas (especialmente, no período pósabsortivo, em quilomícrons e VLDL). Essa captação é estimulada pela insulina, que ativa a lipase lipoproteica, enzima localizada na membrana basal do endotélio dos capilares próximos dos adipócitos, cuja ação resulta na hidrólise dos triacilgliceróis de lipoproteínas (ver Figura 74.3) gerando glicerol e ácidos graxos. A esterificação e o armazenamento dos ácidos graxos,
sintetizados de novo ou captados da circulação, requerem fornecimento adequado de glicerol3fosfato. Em virtude da pequena quantidade de gliceroquinase, esse fornecimento depende de um fluxo glicolítico ativo (e, portanto, da insulina) para produção de glicerol3fosfato a partir da dihidroxiacetona, pela ação da glicerofosfato desidrogenase. Evidências indicam que, em situações de pouca disponibilidade de glicose e baixas concentrações de insulina, o glicerol3fosfato pode também ser formado via gliceroneogênese; esta consiste em uma reversão parcial da glicólise, até dihidroxiacetona, a partir de piruvato ou de outros produtores de piruvato, como lactato e aminoácidos glicogênicos (Figura 74.4). A gliceroneogênese é semelhante à neoglicogênese hepática, com formação intramitocondrial de oxaloacetato, que é transportado para o citosol, onde é descarboxilado pela PEPCK. O fosfoenolpiruvato assim formado segue as etapas inversas da glicólise até dihidroxiacetona. Semelhante à neoglicogênese, a enzimachave da gliceroneogênese é a PEPCK, a qual está presente no tecido adiposo e é inibida pela insulina. A atividade desta via aumenta, portanto, em situações em que a concentração plasmática desse hormônio encontrase reduzida (como no jejum), com consequente aumento da geração de glicerol3fosfato. A formação de glicerol3fosfato seria importante para assegurar a síntese e o estoque de triacilgliceróis no tecido adiposo (ver Figura 74.4). Outro efeito importante da insulina é a inibição da mobilização de ácidos graxos do tecido adiposo, que é devida a um aumento da fração de ácidos graxos que são reesterificados com glicerol3P produzido pela via glicolítica e a uma redução da velocidade de lipólise, devida ao efeito inibitório do hormônio na atividade da lipase hormôniosensível (LHS). O glucagon e as catecolaminas, especialmente a epinefrina, ativam a LHS e são potentes estimuladores da lipólise. Esse efeito do glucagon, que aumenta o fluxo de ácidos graxos para o fígado, potencia sua ação cetogênica hepática. Durante muitos anos, a LHS foi considerada a única enzimachave reguladora da mobilização de ácidos graxos do tecido adiposo. Entretanto, outra enzima denominada lipase dos triglicerídios do adipócito (ATGL), ou desnutrina ou fosfolipase A2Ú, foi encontrada principalmente no tecido adiposo branco. Esta enzima usa os triacilgliceróis como substrato e o produto desta hidrólise, o diacilglicerol, é o principal substrato fisiológico da LHS. A diferença na preferência dos substratos pelas ATGL e LHS sugere que a mobilização de ácidos graxos envolve uma ação coordenada dessas duas enzimas. A ATGL parece ser regulada pelos mesmos hormônios que a LHS e, embora também seja fosforilada, diferente da LHS, esta reação de fosforilação não ocorre pela PKA. No tecido adiposo há também outra proteína estrutural denominada perilipina, que se localiza na superfície da gota de gordura. Quando fosforilada pela PKA, a perilipina altera sua estrutura tridimensional e possibilita que a LHS, também ativada por fosforilação pela PKA, tenha acesso ao seu substrato, o triacilglicerol, e promova a sua hidrólise em ácidos graxos e glicerol.
Figura 74.3 ■ Representação esquemática do metabolismo de carboidratos e lipídios no tecido adiposo branco, com indicação dos pontos de ação hormonal. (+), estimulação; (–) inibição. Os números entre parênteses representam as enzimas reguladoras que atuam no passo metabólico indicado. (1), hexoquinase; (2), glicogênio sintase; (3), piruvato desidrogenase; (4), acetilCoA carboxilase; (5), lipase lipoproteica (LPL); LHS, lipase hormônio sensível; GLUT4, transportador de glicose (tipo 4) sensível à insulina; AGL, ácidos graxos livres. Descrição da figura no texto.
▸ Regulação neural Talvez pela falta de métodos mais sensíveis, não há, até o momento, evidências claras da existência de inervação parassimpática do tecido adiposo. Comparada a de outros tecidos, a inervação simpática do tecido adiposo é relativamente pequena, e sua importância fisiológica foi posta em dúvida por muitos anos. Em situações de aumento da demanda de substratos energéticos pelos tecidos periféricos, o tecido adiposo contribui para atender essa demanda ativando, por meio do simpático, o processo de lipólise e mobilização de ácidos graxos. O simpático pode ativar a lipólise agindo diretamente no adipócito ou indiretamente, inibindo a secreção de insulina e estimulando a secreção de glucagon, e especialmente de epinefrina. Como antes referido, estes dois últimos são hormônios lipolíticos, ao contrário da insulina. Fibras simpáticas inervam tanto o parênquima (adipócitos) do tecido como a vasculatura, inclusive os capilares, e sua estimulação, em condições de completa ausência de fatores hormonais, produz ativação da lipólise. Esta ativação, com aumento da atividade da LHS, é devida à liberação de norepinefrina nos terminais simpáticos próximos aos adipócitos. Por outro lado, existem evidências de que o processo de mobilização para a circulação dos AGL resultantes da lipólise pode ser facilitado pela inervação simpática dos capilares. Estudos mostram que a estimulação simpática aumenta a permeabilidade (o coeficiente de filtração) de capilares do tecido adiposo, facilitando a penetração da albumina no espaço intercelular. A albumina é a transportadora dos AGL formados pela lipólise, e a facilitação de seu trânsito pelo espaço intercelular possibilitaria uma eficiente remoção dos ácidos graxos para a circulação, evitando seu acúmulo, que poderia ter um efeito inibitório sobre a lipólise. Diversas regiões do SNC fazem conexão com o sistema nervoso simpático e podem estar envolvidas no processo de ativação da lipólise pelo tecido adiposo: núcleos da rafe e núcleo do trato solitário no tronco cerebral, núcleos supraquiasmático, dorsomedial e paraventricular do hipotálamo, área hipotalâmica lateral e área pré óptica medial. Independentemente de sua possível contribuição para a ativação da lipólise no tecido adiposo, essas regiões
centrais participam do controle de outros aspectos do metabolismo energético. Por exemplo, há evidências de que, além de sua ação lipolítica, o simpático iniba no tecido adiposo os processos de diferenciação e proliferação de adipócitos. Esses processos ocorrem com diferente intensidade nos diversos depósitos de tecido adiposo e parecem ser controlados, em parte, pelas áreas centrais conectadas ao simpático. Vale ressaltar que existem diferenças de resposta a estímulos hormonais ou neurais entre os diferentes depósitos de tecido adiposo branco, dependendo de sua localização no organismo.
Figura 74.4 ■ Representação esquemática da formação do glicerol3fosfato na célula adiposa pela via glicolítica e pela gliceroneogênese e formação dos triacilgliceróis. TAG, triacilgliceróis; AG, ácidos graxos; SNS, sistema nervoso simpático; PEPCK, fosfoenolpiruvato carboxiquinase; (+), estimulação; (↑), aumento; (↓), diminuição. Descrição da figura no texto.
METABOLISMO DO TECIDO MUSCULAR
▸ Regulação hormonal Metabolismo de carboidratos A captação da glicose pela célula muscular ocorre principalmente por difusão facilitada pelos transportadores do tipo 4 (GLUT4), sensíveis à insulina, semelhante ao que ocorre na célula adiposa. Assim que a glicose atravessa a membrana, é rapidamente fosforilada pela hexoquinase a glicose6fosfato, de tal maneira que a quantidade de glicose livre dentro da célula é praticamente nula. Pelo fato de o tecido muscular representar quase a metade do peso corporal, ele é o principal responsável pelo clearance da glicose circulante após uma refeição. Uma vez dentro da célula muscular, a glicose pode seguir a via de síntese do glicogênio (glicogênese), a qual em condições normais encontrase ativada, principalmente pela ação da insulina, que estimula a atividade da glicogênio sintase e inibe a glicogênio fosforilase, semelhante ao que ocorre
no hepatócito (Figura 74.5). Enquanto no fígado a quantidade de glicose armazenada na forma de glicogênio é em torno de 5%, no músculo este valor é da ordem de 2%. Entretanto, o tecido muscular é o maior reservatório de glicogênio, devido à grande quantidade deste tecido existente no organismo dos mamíferos. A glicose pode também seguir a via glicolítica, fornecendo ATP e lactato, principalmente em músculos brancos, de contração rápida, ricos em fibras do tipo II, que são pobres em mitocôndrias e trabalham em condições de anaerobiose. Já em músculos vermelhos, ricos em fibras do tipo I, de contração lenta e ricos em mitocôndrias, a glicose pode ser totalmente oxidada a CO2, ATP e H2O, fornecendo energia pela fosforilação oxidativa na cadeia respiratória mitocondrial. O músculo pode também utilizar, dependendo da situação fisiológica, outros substratos energéticos, principalmente os AGL, corpos cetônicos e o próprio lactato. Tanto os AGL como os corpos cetônicos podem ser oxidados nas células musculares, fornecendo moléculas de acetil CoA e citrato, que podem, respectivamente, inibir a piruvato desidrogenase e a fosfofrutoquinase, o que leva ao acúmulo de glicose6fosfato, que bloqueia a atividade da hexoquinase, levando à inibição da utilização da glicose pelo tecido muscular. Este mecanismo é conhecido como ciclo de Randle ou ciclo glicoseácido graxo, podendo parcialmente explicar a resistência à utilização da glicose observada em situações de diabetes, quando os níveis de AGL e corpos cetônicos estão elevados. As células musculares também apresentam receptores para as catecolaminas, principalmente os adrenorreceptores β2, que uma vez ativados podem estimular a glicogenólise (via PKA), pela fosforilação da glicogênio fosforilase, e inibir a glicogênio sintase. Como no músculo não existe a enzima glicose6 fosfatase, a glicose6fosfato formada pela glicogenólise é oxidada pela via glicolítica (ver Figura 74.5), podendo ainda fornecer lactato. Já no músculo esquelético não são encontrados receptores para o glucagon, o qual não tem nenhuma importância fisiológica para o controle do metabolismo muscular. Outra via metabólica que pode ocorrer em músculos esqueléticos, ainda não muito explorada, é a glicogeniogênese, que consiste na síntese de glicogênio a partir de outros substratos diferentes da glicose, principalmente do lactato. Quando produzido pelo músculo em grande quantidade, o lactato pode ser utilizado pelas próprias células musculares para sintetizar glicogênio, havendo, em parte, a participação da enzima PEPCK, mas principalmente a reversão da reação catalisada pela enzima piruvato quinase. O lactato liberado pelas células musculares, principalmente as de tipo II, pode também ser utilizado tanto pelas células vizinhas do tipo I, dentro de um mesmo músculo de natureza mista; além disso, ao ser liberado na corrente sanguínea, pode ser utilizado por fibras musculares esqueléticas oxidativas e cardíacas, pela conversão do lactato em piruvato (pela presença da desidrogenase láctica intramitocondrial) e, posteriormente, em acetil CoA, sendo oxidado pelo ciclo de Krebs para a produção de energia. Esses processos metabólicos ocorrem principalmente em situações de exercício, quando há formação de grande quantidade de lactato.
Figura 74.5 ■ Representação esquemática do metabolismo de carboidratos, lipídios e proteínas no músculo, com indicação dos pontos de ação hormonal. (+), estimulação; (–), inibição. Os números entre parênteses representam as enzimas reguladoras que atuam em cada passo indicado. (1), hexoquinase; (2), fosfofrutoquinase1; (3), piruvato desidrogenase; AA, aminoácidos; AGL, ácidos graxos livres. Descrição da figura no texto.
Metabolismo lipídico Sabese que os processos metabólicos de síntese e degradação dos triacilgliceróis não são os mais importantes no músculo, embora haja considerável quantidade de gordura interfibras, dependendo do tipo de músculo considerado. O estudo do metabolismo lipídico em músculo deve ser analisado com cautela, uma vez que os achados experimentais podem ser decorrentes dos processos metabólicos que ocorrem no tecido adiposo que existe entre as fibras e não propriamente no interior das células musculares. Desse modo, principalmente por problemas metodológicos, pouco se sabe a respeito do papel de fatores hormonais no metabolismo de lipídios na célula muscular de indivíduos adultos. Entretanto, acreditase que os principais substratos energéticos das células musculares são os ácidos graxos de cadeia longa. Uma vez dentro das células, estes são acilados com coenzima A pela ação das acilCoA sintetases e, após ligação com a carnitina, pela ação da carnitinaaciltransferase I, são transportados para o interior da mitocôndria para serem oxidados. Já é bastante conhecido que a oxidação dos ácidos graxos inibe a oxidação da glicose, pelos mecanismos enzimáticos já explicados. Tanto em células musculares esqueléticas como em cardíacas, são encontradas proteínas transportadoras de ácidos graxos (FAT/CD36 e FABPpm), que podem ser translocadas de um pool intracelular para a membrana plasmática, aumentando o transporte de ácidos graxos durante a contração muscular, por exemplo. Estudos em humanos indicam que músculos de indivíduos com obesidade abdominal ou diabetes tipo 2 apresentam baixa capacidade de oxidação de ácidos graxos. Os ácidos graxos captados e não adequadamente oxidados podem levar ao acúmulo de triacilglicerol e formação de outros tipos de lipídios no músculo, o que tem sido associado à resistência à insulina observada no músculo esquelético desses indivíduos.
Metabolismo de proteínas
O músculo é o tecido que contém a maior quantidade de proteínas do organismo e é certamente o tecido especializado na síntese e na degradação das proteínas. Embora nos mamíferos não existam proteínas de reserva, estas biomoléculas estão em constante renovação, tendo cada proteína uma meiavida diferente, variando de minutos até dias. Os aminoácidos resultantes da degradação dessas moléculas, dependendo da situação fisiológica, podem ser: (1) reutilizados para síntese de novas proteínas; (2) precursores de glicose, pela neoglicogênese hepática (são os aminoácidos glicogênicos); (3) precursores de ácidos graxos/corpos cetônicos (são os aminoácidos cetogênicos) ou (4) oxidados a CO2, ATP e H2O. Embora nos últimos trinta anos tenha ocorrido grande avanço no conhecimento dos mecanismos envolvidos no controle da síntese e degradação de proteínas, pouco ainda se sabe sobre a regulação da proteólise intracelular. No tecido muscular, assim como na maioria das outras células, estão descritas, pelo menos, três vias proteolíticas: (1) a lisossomal (sendo as catepsinas as principais enzimas envolvidas); (2) a dependente de cálcio (com a participação das enzimas calpaínas I e II e o inibidor endógeno destas enzimas, a calpastatina); (3) a dependente de ATP, ubiquitina (Ub) e proteassoma (UPS), com o envolvimento do complexo enzimático do proteassoma. O acesso do substrato proteico ao lisossomo depende de um processo descrito como autofagia, descoberta que mereceu o Nobel em Medicina e Fisiologia, em 2016 (outorgado ao biólogo japonês Yoshinori Ohsumi, de 71 anos, professor do Instituto Tecnológico de Tóquio, Japão). Neste processo, ocorre a formação de uma vesícula com membrana dupla (autofagossomo ou vacúolo autofágico), que envolve parte do citosol juntamente com o substrato (proteína danificada, organela, vírus etc.), a qual se funde ao lisossomo formando o autolisossoma, onde os substratos serão degradados pelas catepsinas. A autofagia é um processo de “autolimpeza” ou renovação celular, e sua deficiência pode causar miopatias e problemas relacionados com a idade, como o Alzheimer e o Parkinson. É descrito que a insulina estimula a captação dos aminoácidos pelas células musculares, assim como estimula os processos de síntese proteica (como transcrição de genes, formação dos polissomas, a velocidade de tradução dos mRNA e síntese dos fatores de iniciação e elongação). Os mecanismos pelos quais a insulina inibe os processos de degradação das proteínas ainda são pouco conhecidos. Há evidências de que a insulina reduz a formação dos lisossomos e o fluxo autofágico, assim como inibe a atividade da via dependente de cálcio e a síntese dos componentes da via proteolítica UPS (tais como a síntese das subunidades α e β do proteassoma e da própria ubiquitina. Este é um polipeptídio de 76 aminoácidos, existente em todas as células e que marca as proteínas que serão degradadas pela proteassoma. No músculo esquelético, o glucagon não apresenta efeito biológico, pois neste tecido os receptores para este hormônio são praticamente inexistentes. Os glicocorticoides são potentes inibidores da síntese e estimuladores da degradação de proteínas, especialmente nos músculos brancos ricos em fibras glicolíticas, onde agem ativando principalmente o sistema UPS. Em situações de demanda energética, como durante o jejum, quando as concentrações plasmáticas de insulina caem e as dos glicocorticoides aumentam, o músculo constitui o tecido mais relevante para o fornecimento de aminoácidos para a formação de glicose pela neoglicogênese hepática. Os hormônios tireoidianos são muito importantes no controle do metabolismo de proteínas no músculo esquelético, estimulando tanto os processos de síntese como os de degradação dessas moléculas. Durante o jejum prolongado, por exemplo, a baixa secreção dos hormônios tireoidianos proporciona uma diminuição na síntese, mas, principalmente, uma redução na degradação das proteínas, fazendo com que as proteínas musculares sejam preservadas e o indivíduo possa sobreviver um maior período de tempo sem alimento. O papel das catecolaminas no metabolismo de proteínas musculares está discutido mais adiante.
▸ Regulação neural O músculo esquelético é inervado pelo sistema nervoso somático que libera o neurotransmissor acetilcolina na região da placa motora e desencadeia a resposta contrátil do músculo. Recentemente, foi descoberto que as fibras musculares esqueléticas também são diretamente inervadas por terminações simpáticas noradrenérgicas, independentemente da inervação dos vasos sanguíneos desse tecido. Diferentemente dos seus efeitos catabólicos no metabolismo de carboidratos e de lipídios (que promove glicogenólise e lipólise, respectivamente), o sistema simpático exerce uma ação anabólica no metabolismo de proteínas do músculo esquelético, por meio da epinefrina secretada pela medula da suprarrenal e pela norepinefrina liberada pelo terminal simpático que inerva tanto o sarcolema como a região da placa motora. Estudos in vivo em ovinos, suínos e roedores mostram que simpatomiméticos (como os β2agonistas cimaterol ou clembuterol) promovem aumento da massa muscular esquelética e atenuam a atrofia muscular normalmente observada em diferentes situações catabólicas, como câncer, septicemia, desuso e distrofias. Além disso, estudos recentes indicam que o tratamento com simpatomiméticos mantém a estrutura da placa motora e melhora a atividade locomotora em pacientes com síndromes miastênicas congênitas. A epinefrina, tanto em humanos como em ratos, promove redução das concentrações plasmáticas de aminoácidos e da proteólise muscular. Estudos in vitro realizados em músculos esqueléticos isolados demonstraram que tanto a epinefrina
como o clembuterol reduzem as atividades das vias proteolíticas dependentes de cálcio e UPS, por um processo dependente da via de sinalização do cAMP/PKA. Além da inibição da proteólise muscular, a inervação simpática pode atuar diretamente, via adrenorreceptores β2, estimulando a velocidade de síntese de proteínas em músculos oxidativos. Os efeitos antiproteolíticos e prósintéticos das catecolaminas são observados durante o jejum e o diabetes, e são fisiologicamente importantes para contrabalançar o alto catabolismo proteico induzido pelos glicocorticoides e/ou pela perda da ação anabólica da insulina e IGF1. Portanto, as catecolaminas parecem fazer parte de um sistema regulador de ajuste fino do metabolismo de proteínas, proporcionando ao organismo submetido a uma situação de estresse a capacidade de sobrevivência, devido à preservação de sua massa muscular esquelética e, consequentemente, de sua postura e locomoção, componentes estes imprescindíveis para o comportamento de defesa e busca de alimentos.
AJUSTE NEUROENDÓCRINO DO METABOLISMO EM SITUAÇÕES DE DEMANDA ENERGÉTICA
▸ Situações de estresse Quando o organismo é submetido a situações de estresse, entendido como estímulos nocivos ou potencialmente nocivos que tendem a provocar desequilíbrio de suas funções fisiológicas, pode ocorrer a mobilização de suas reservas de carboidratos e de lipídios. De uma maneira geral, essas respostas de aumento da glicemia e/ou dos AGL do plasma são mediadas pelo SNC. A hiperglicemia resulta da ativação da glicogenólise por catecolaminas provenientes da ativação simpática da medula da suprarrenal, ao passo que o aumento de AGL resulta, geralmente, da ativação direta de fibras simpáticas do tecido adiposo, com liberação local de norepinefrina e aceleração da lipólise. Embora o SNC seja, de maneira geral, independente da insulina, estudos recentes mostram a existência de áreas restritas no hipotálamo, como por exemplo, o núcleo arqueado, que são sensíveis à insulina e à glicose. O mecanismo da excitação destes neurônios pela glicose parece ser bastante semelhante ao das células β pancreáticas e envolve o fechamento de canais de K+ sensíveis ao ATP. Quando ocorrem alterações da glicose circulante, essas áreas contribuem para a manutenção da oferta adequada de substratos energéticos no plasma, tanto modulando a secreção de hormônios pancreáticos (insulina e glucagon) ou suprarrenais (catecolaminas e glicocorticoides), quanto atuando diretamente, por via neural, nos tecidos periféricos, como o hepático, o adiposo e o muscular.
▸ Jejum A manutenção da homeostase glicêmica nos mamíferos é de fundamental importância para o SNC, que não utiliza ácidos graxos de cadeia longa. Quando o jejum se inicia, a tendência à queda da concentração plasmática de glicose estimula a glicogenólise hepática que representa o mecanismo inicial para a correção da glicemia. Como as reservas de glicogênio hepático (cerca de 75 g, em humanos) tendem a se esgotar rapidamente, ocorre aumento da atividade neoglicogenética. Os principais substratos para a neoglicogênese são aminoácidos provenientes da proteólise muscular, principalmente de músculos brancos ricos em fibras glicolíticas. Dessa maneira, a excreção de ureia pela urina aumenta. Os mecanismos hormonais de defesa contra a hipoglicemia estão organizados de uma forma hierárquica, sendo que o primeiro deles é a redução da secreção de insulina pela célula β pancreática. Essa alteração é seguida pelo aumento das concentrações plasmáticas de glucagon, epinefrina, cortisol e hormônio do crescimento. Os hormônios cujas concentrações aumentam em resposta à hipoglicemia são conhecidos como hormônios contrarregulatórios da insulina e podem agir de forma sinérgica nas respostas metabólicas adaptativas ao jejum. Sabese que o cortisol aumenta a expressão de receptores de outros hormônios em diferentes tecidos e, dessa forma, potencializa, por exemplo, a sua ação hiperglicêmica e da epinefrina. A queda da relação insulina/glucagon durante o jejum, além de promover as alterações metabólicas aqui descritas, ativa o processo de lipólise no tecido adiposo. Enquanto o glicerol resultante servirá como substrato para a neoglicogênese hepática, a elevação dos AGL do plasma provocará um aumento de sua utilização por tecidos periféricos, principalmente pela massa muscular esquelética e cardíaca. Nos músculos, que representam cerca de 40% do peso corporal total, a utilização aumentada dos AGL inibe a utilização de glicose, substituindo, dessa maneira, o consumo de glicose pelo dos ácidos graxos. Desse modo, o processo de neoglicogênese fica menos sobrecarregado pela redução da velocidade de degradação das proteínas musculares, com a preservação de proteínas neste tecido, que, caso fossem excessivamente degradadas, poderiam comprometer funções de músculos importantes, como o diafragma e os intercostais, responsáveis pela respiração. No caso de o jejum se prolongar por mais de alguns dias, ocorrem outras
alterações neurohormonais, sendo que a principal delas é a redução da atividade tireoidiana com queda no metabolismo basal e maior conservação das reservas metabólicas. A redução da atividade simpática noradrenérgica em tecidos metabolicamente ativos, como o coração e os músculos esqueléticos, também contribui para a redução do metabolismo basal. Por outro lado, o SNC passa a utilizar como substrato energético os corpos cetônicos, produzidos em grande quantidade pelo aumento do afluxo de AGL para o fígado. Os corpos cetônicos, substituindo a glicose como sua principal fonte de energia, levam a uma redução da proteólise muscular e uma acentuada diminuição da neoglicogênese hepática, com grande economia de proteínas musculares. A diminuição da proteólise é acompanhada de acentuada queda da excreção de ureia na urina. No jejum mais prolongado, além da queda dos níveis de hormônios tireoidianos, as catecolaminas plasmáticas, mais precisamente a epinefrina, também parecem ter importância, promovendo redução da proteólise, principalmente em músculos esqueléticos glicolíticos, auxiliando, assim, a manutenção da massa muscular. Para garantir a utilização de glicose pelos tecidos totalmente dependentes da oxidação desta hexose (tais como hemácias, medula renal e cérebro), o rim passa a produzir glicose, pela neoglicogênese renal, utilizando glutamina como principal substrato desta via metabólica com significante aumento da atividade da PEPCK (Figura 74.6). A sobrevivência ao jejum prolongado parece ser determinada pela reserva de tecido adiposo; quando esses estoques são depletados pela continuação da lipólise e redução da lipogênese, há uma repentina perda da massa proteica, com fraqueza dos músculos respiratórios, podendo advir pneumonia e morte. O fato de o nosso organismo ser capaz de sobreviver por cerca de 2 a 3 meses sem a ingestão de alimentos, ilustra claramente a precisa e coordenada regulação do seu metabolismo, orquestrada pela participação sincronizada de hormônios, metabólitos e o sistema nervoso (ver Figura 74.6).
Figura 74.6 ■ Principais fluxos de metabólitos no jejum. Os aminoácidos (principalmente oriundos da proteína muscular) e o glicerol são precursores de glicose em situações de jejum pela via da neoglicogênese. A completa oxidação da glicose é reduzida pela produção de corpos cetônicos, que são utilizados como combustível alternativo, por exemplo, pelo SNC. Tecidos que utilizam quase exclusivamente glicose (p. ex., hemácias e medula renal) produzem lactato, que é reciclado na neoglicogênese. A maior fonte de combustível para oxidação são os triacilgliceróis (TG), advindos do tecido adiposo, que disponibilizam combustível na forma de ácidos graxos não esterificados e corpos cetônicos (via hepática). Descrição da figura no texto.
▸ Exercício Durante o exercício, há necessidade de suprir os músculos esqueléticos com substratos energéticos adicionais, mantendo ao mesmo tempo um fornecimento adequado de glicose para o SNC. A contribuição desses substratos para a produção de ATP muscular varia de acordo com a intensidade e a duração da atividade física. Em repouso, o tecido muscular utiliza relativamente pouca glicose. Iniciado um exercício muito intenso e de curta duração (no máximo de 30 segundos), os níveis de ATP são mantidos, principalmente, pela transferência de fosfatos de alta energia de moléculas de creatinafosfato para o ADP. Com a continuidade da atividade física, o aumento da atividade contrátil e da concentração de cálcio intracelular ativa tanto a hidrólise do glicogênio muscular como a captação da glicose, promovendo aumento na oferta de glicose intracelular que passa a ser metabolizada na via glicolítica gerando ATP e lactato. Este aumento da utilização de glicose pelo músculo promovida pelo exercício, que pode aumentar em até 30 vezes, é mediado pela proteinoquinase dependente de AMP (AMPK) e ocorre por um mecanismo independente da insulina. Esta é a fase anaeróbia da atividade física que se caracteriza por altas concentrações de lactato no sangue. Em situações de esforço físico mais prolongado, os AGL plasmáticos aumentam e passam a ser o substrato energético preferencial utilizado pelos músculos. Durante essa fase, caracterizada pela aerobiose, cerca de 2/3 da energia despendida provêm da oxidação de ácidos graxos e 1/3 da glicose. Quanto maior for a capacidade de oxidação de ácidos graxos pelo músculo, menor será o risco do desenvolvimento de resistência à insulina periférica. A insulina e o glucagon intervêm na regulação do fornecimento dos dois substratos. Durante o exercício, a insulinemia diminui, provocando um aumento da produção hepática de glicose, que pode elevarse 4 a 5 vezes, dependendo da intensidade e da duração do exercício. Nos exercícios de curta duração, predomina o aumento da glicogenólise. À medida que este se prolonga e se esgotam as reservas de glicogênio hepático, aumenta a contribuição da neoglicogênese. A atividade da PEPCK, enzimachave desta via, é também aumentada pela ação do sistema nervoso simpático. O aumento dos AGL, durante o exercício, resulta da elevação da lipólise causada pela queda da relação I/G e da ativação simpática. O lactato liberado do músculo durante a fase de anaerobiose do exercício: (1) em grande parte é reciclado para glicose, por meio da neoglicogênese no fígado (ciclo de Cori); (2) pode ser reutilizado no próprio músculo para a síntese de glicogênio, pela glicogeniogênese (quando a lactacidemia é muito elevada); ou (3) pode ser utilizado pelas fibras musculares esqueléticas oxidativas e cardíacas para geração de energia, por sua conversão a piruvato (pela desidrogenase láctica) e posterior oxidação pelo ciclo de Krebs. Durante o exercício, o catabolismo de aminoácidos contribui pouco no fornecimento de ATP para o músculo. Com relação ao turnover de proteínas, admitese, atualmente, que a síntese proteica muscular está reduzida, muito provavelmente por uma via de sinalização dependente de cálcio/calmodulina. Embora alguns trabalhos demonstrem que a proteólise muscular possa estar aumentada durante os primeiros minutos da atividade física, o efeito do exercício na degradação de proteínas musculares ainda permanece pouco conhecido. Essas alterações do turnover proteico, durante a realização do exercício, são importantes para a renovação das proteínas musculares. Uma importante resposta fisiológica durante o exercício é o aumento do débito cardíaco (com aumento da frequência e da força de contração), da ventilação e do fluxo de sangue para o músculo esquelético; há dilatação específica de vasos sanguíneos por efeitos locais de produtos do metabolismo com propriedades vasodilatadoras como, por exemplo, os íons hidrogênio produzidos como ácido láctico, a adenosina e o CO2. Além da ativação do sistema nervoso simpático, outros hormônios, como o cortisol e o hormônio de crescimento, assim como fatores parácrinos como o IGF1 podem ser secretados em resposta ao exercício. A ação anabólica no metabolismo de proteínas do sistema nervoso simpático, hormônio de crescimento e IGF1 certamente contribui para o ganho de massa muscular durante o exercício a longo prazo. Todos os eventos fisiológicos aqui resumidos são importantes para garantir a oferta e distribuição adequada de glicose ao organismo, principalmente ao SNC, que constitui o fator limitante do desempenho e da resistência do organismo ao esforço físico (Figura 74.7).
▸ Frio O organismo possui uma extraordinária capacidade de realizar ajustes metabólicos necessários à sobrevivência em um clima hostil. Quando expostos a baixas temperaturas, os animais homeotermos utilizam diversos mecanismos fisiológicos com o objetivo de manter a temperatura corporal constante. Os dois principais mecanismos utilizados pelo homem são a redução da perda de calor, pelo aumento da vasoconstrição da pele, e o aumento da produção endógena de calor desencadeado pelo aumento da taxa metabólica basal de alguns tecidos, como: (1) da musculatura esquelética, na chamada termogênese dependente do tremor muscular, e (2) do tecido adiposo marrom (TAM), no processo denominado termogênese independente de tremor muscular (Figura 74.8). Por muito tempo, acreditouse que a importância fisiológica
da termogênese do TAM estava restrita a pequenos roedores e durante o período neonatal em humanos. No entanto, estudos recentes com tomografia de emissão de pósitrons demonstram que este tecido está localizado nas regiões supraclavicular e cervical e é extremamente ativo em indivíduos adultos. O TAM recebe uma densa inervação simpática e é constituído por células multiloculares caracterizadas pela presença de várias gotículas lipídicas contendo triacilglicerol e um grande número de mitocôndrias. Os dois tipos facultativos de termogênese (dependente e independente do tremor) são regulados pelo SNC e utilizam como fontes principais de energia, para a produção de calor, a glicose proveniente da glicogenólise e neoglicogênese hepática e a oxidação dos ácidos graxos oriundos: (1) da hidrólise dos triacilgliceróis armazenados no próprio tecido (músculo e TAM) e (2) principalmente da hidrólise dos triacilgliceróis estocados no tecido adiposo branco e captados da circulação. A ativação da neoglicogênese que ocorre durante a exposição a baixas temperaturas é favorecida pelo grande afluxo de aminoácidos para o tecido hepático provenientes da ativação da proteólise e redução da síntese proteica muscular (ver Figura 74.8). Este efeito no catabolismo proteico induzido pelo frio depende tanto da ação dos glicocorticoides como dos hormônios tireoidianos, assim como pela redução da secreção de insulina. O aumento da lipólise e, consequentemente, da concentração plasmática de ácidos graxos durante o frio, parece ser mediado pela inervação simpática direta do tecido adiposo branco, com a participação da área préóptica medial e do hipotálamo lateral, uma vez que lesões eletrolíticas dessas áreas reduzem significativamente a mobilização dos ácidos graxos nesta situação. A região medular da suprarrenal não interfere nesta resposta ao frio. Na exposição ao frio, há também elevação da atividade dos nervos simpáticos do tecido adiposo marrom (com aumento da liberação local de norepinefrina e ativação dos adrenorreceptores β3adrenérgicos) e hidrólise dos triacilgliceróis armazenados, o que leva à liberação dos ácidos graxos para a oxidação pelos adipócitos marrons e à produção de calor. O fluxo simpático ao TAM é regulado, principalmente, por neurônios “promotores” da termogênese, localizados no hipotálamo dorsomedial. A produção de calor induzida pela ativação simpática do TAM é resultado da ineficiência relativa da cadeia respiratória em produzir ATP devido ao desacoplamento da fosforilação oxidativa mitocondrial induzido por uma enzima conhecida como UCP1 ou termogenina. A isoforma do tipo 3 (UCP3) também é expressa no tecido muscular esquelético e adiposo branco. A expressão destas proteínas é diretamente regulada pelos hormônios tireoidianos, cuja secreção é bastante elevada em situações de exposição aguda a baixas temperaturas. Além de promover a lipólise e aumentar a atividade da UCP1, a estimulação do SNS durante o frio reduz a secreção de insulina e promove o aumento da captação de glicose pelo tecido muscular e adiposo (branco e marrom). Devido à intensa capacidade de ativação da termogênese do TAM e da captação muscular de glicose de uma forma independente da insulina, a exposição aguda ao frio tem sido testada, recentemente, como uma nova estratégia terapêutica em pacientes com diabetes melito tipo 2. Além disso, o fato de que a quantidade de TAM é inversamente proporcional ao índice de massa corporal em humanos sugere uma função potencial deste tecido no controle do metabolismo corporal e abre a possibilidade de um novo alvo terapêutico no tratamento da obesidade.
Figura 74.7 ■ Controle do metabolismo pelo sistema nervoso central (SNC) durante o exercício físico. A epinefrina liberada pela medula da suprarrenal pode ser responsável ou pode intensificar os efeitos da inervação simpática, aumentando a lipólise e suprimindo a secreção de insulina. TG, triacilgliceróis; NOR, norepinefrina. Descrição da figura no texto.
Figura 74.8 ■ Principais ajustes metabólicos no frio. A glicose produzida pela ativação da neoglicogênese e glicogenólise hepática e os ácidos graxos provenientes da lipólise do tecido adiposo branco são os substratos energéticos preferenciais dos músculos (tremor) e tecido adiposo marrom para a produção de calor. Os aminoácidos plasmáticos derivados do intenso catabolismo proteico muscular e o glicerol da lipólise são precursores da glicose na via da neoglicogênese. Descrição da figura no texto.
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Introdução
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Sinais aferentes e integração central Controle peptidérgico do balanço hidreletrolítico
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Sede e controle da ingestão de água e sal Sistema nervoso autônomo e controle do balanço hidreletrolítico Reabsorção renal de sódio e água, controle do volume e da osmolalidade do LEC
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Controle do balanço hidreletrolítico em idosos Perspectivas
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Bibliografia
INTRODUÇÃO Este capítulo trata do controle neuroendócrino do balanço hidreletrolítico sob a perspectiva da ação integrativa do sistema nervoso central (SNC) determinando respostas fisiológicas e comportamentais. Na Introdução forneceremos um panorama geral sobre esse controle, seguido por uma seção sobre aferências e integração no SNC. Depois abordaremos a função de vários peptídios, seus receptores, ações celulares e interações com neurotransmissores. O capítulo continua com papel da sede, sistema nervoso autônomo e dos rins sobre o controle do balanço hidreletrolítico, sendo então encerrado com um resumo sobre este controle no idoso. O balanço entre ganho e perda de água determina a hidratação – composição hídrica ou volume adequado – dos dois principais compartimentos do corpo: meio interno ou líquido extracelular (LEC) e líquido intracelular (LIC). A hidratação está associada à composição eletrolítica desses compartimentos, sendo ambas basicamente mantidas pelo controle da ingestão e excreção renal de sal e água. A hidratação permite o transporte eficiente de nutrientes (para as células) e dejetos (para longe das células) necessário para que o animal desempenhe suas funções. A desidratação ou redução do LEC e LIC resulta de perda de água e/ou aumento na concentração de soluto, principalmente sódio, em situações de privação hídrica, perdas insensíveis – através da excreção renal, transpiração e evaporação (principalmente através da pele) –, pelo ar expirado durante a ventilação pulmonar, ou pelo consumo de sódio na alimentação. A desidratação de cada um dos dois compartimentos ativa mecanismos com diferentes graus de sensibilidade. Por exemplo, o controle tanto da secreção de arginina vasopressina ou AVP (hormônio que aumenta a reabsorção renal de água) como da indução de sede resulta de alterações de 1 a 2% na tonicidade e de 10% no volume do LEC. Um aumento na tonicidade do LEC também ativa mecanismos neuroendócrinos complementares, tais como secreção de ocitocina (OT) e peptídio natriurético atrial (ANP), hormônios que aumentam a excreção renal de sódio e inibem a ingestão de sódio.
Osmolalidade e tonicidade Definida pela quantidade total de soluto dissolvido em um quilograma de água, a osmolalidade dos líquidos corporais em geral varia entre 285 e 290 mOsm/kg de H2O. O sódio é o principal soluto determinante da osmolalidade do LEC. A magnitude do efeito osmótico do sódio em relação a outros solutos fica evidente na fórmula que define de modo aproximado a osmolalidade plasmática: POsm = 2 × [Na+] + [glicose]/18 + [nitrogênio ureico]/2,8. O confinamento do sódio no LEC, resultante da ação da bomba sódiopotássio ATPase, explica o grau de influência do sódio tanto na osmolalidade como na tonicidade do LEC. Tonicidade é a capacidade que os solutos têm de gerar uma força osmótica que provoca o movimento de água de um compartimento para outro. Para que ocorra aumento da tonicidade do LEC (hipertonicidade), por exemplo, é necessário que solutos permaneçam confinados no espaço extracelular sem atravessar livremente as membranas celulares e sem migrar para os demais compartimentos. Tal confinamento provocará o movimento de água do compartimento intracelular para o extracelular (osmose) para estabelecer um equilíbrio osmótico entre LEC e LIC. O resultado é uma diminuição do volume das células (desidratação intracelular). A glicose é um osmol efetivo, mas, por ser normalmente metabolizada no interior das células, não contribui significativamente para a tonicidade. Entretanto, no diabetes melito descontrolado, a concentração elevada de glicose no plasma pode levar a aumento significativo da osmolalidade e da tonicidade, causando, assim, desidratação intracelular. A ureia também potencialmente contribui para a osmolalidade do LEC, mas, como atravessa livremente a membrana plasmática, sua influência sobre a tonicidade é também mínima. Os efeitos osmóticos normais de glicose e ureia mostram que nem sempre hiperosmolalidade é sinônimo de hipertonicidade. Entretanto, neste capítulo os dois termos serão usados com o mesmo significado porque estaremos levando em conta os efeitos de solutos, particularmente sódio, quando confinados no LEC. (Ver também Capítulo 8, Difusão, Permeabilidade e Osmose, e Capítulo 53, Papel do Rim na Regulação do Volume e da Tonicidade do Líquido Extracelular.) Os sinais eletroquímicos gerados a partir da ativação dos receptores sensoriais sensíveis a alterações no LEC e LIC convergem através de vias específicas para áreas do SNC responsáveis pela integração entre mecanismos neuroendócrinos e respostas comportamentais e fisiológicas (renais, cardiovasculares etc.). Um importante exemplo de área integrativa do prosencéfalo é a lâmina terminal, que constitui a parede rostral do terceiro ventrículo. Dois órgãos circunventriculares (OCV) presentes na lâmina terminal, o vasculoso da lâmina terminal (OVLT), mais abaixo, e o subfornicial (OSF), mais acima, ambos tipicamente fora da barreira hematencefálica, fazem dela uma área de função sensorial que monitora a composição do sangue. O núcleo préóptico mediano (MnPO), interposto entre os dois órgãos, completa a lâmina, conectandoa a áreaschave do prosencéfalo. O OVLT e o MnPO, juntamente com os núcleos préópticoperiventriculares imediatamente rostrais ao hipotálamo, constituem a região tecidual que margeia a parede anteroventral do terceiro ventrículo encefálico (AV3V). Essa região forma um importante nodo que conecta a lâmina terminal a outros núcleos importantes presentes no prosencéfalo, entre eles os núcleos paraventricular (NPV) e supraóptico (NSO) hipotalâmicos. No romboencéfalo encontramos outras áreas importantes, entre elas a área postrema (AP), outro OCV, além do locus coeruleus (LC), e os núcleos: dorsal da rafe (NDR), parabraquial lateral (NPBL) e do trato solitário (NTS). Tais áreas ou núcleos, quando ativadas ou inibidas adequadamente, podem determinar respostas que envolvem: (1) indução de sede, apetite ao sódio, ou ambos; (2) mudanças na atividade autonômica; (3) ativação do sistema reninaangiotensinaaldosterona; (4) secreção de AVP e OT e de peptídios natriuréticos (Figura 75.1). O recrutamento dessas diversas respostas acoplado à função dos sistemas cardiovascular e renal culmina com ajustes no balanço de água e/ou de sódio. No Quadro 75.1, estão indicadas as principais siglas usadas neste capítulo.
SINAIS AFERENTES E INTEGRAÇÃO CENTRAL Os mecanismos envolvidos no controle do balanço hidreletrolítico são complexos, sensíveis e precisos, envolvendo respostas emanadas do SNC que promovem ajustes cardiovasculares, endócrinos, renais e comportamentais. As vias aferentes que ativam esses ajustes são representadas por: (1) osmorreceptores e receptores de sódio na periferia e no SNC, e (2) mecanorreceptores (barorreceptores e receptores de volume) no sistema cardiovascular. As informações oriundas desses sistemas sensoriais são encaminhadas para áreas específicas do SNC, onde o sistema hipotálamoneurohipofisário constitui uma via final comum.
Figura 75.1 ■ Representação esquemática dos estímulos aferentes, da integração pelo sistema nervoso central e das respostas efetoras envolvidos na regulação do volume e osmolalidade dos líquidos orgânicos.
Quadro 75.1 ■ Principais siglas usadas neste capítulo. ACTH
Hormônio adrenocorticotrófico
ADH
Hormônio antidiurético
ANG I
Angiotensina I
ANG II
Angiotensina II
ANP
Peptídio natriurético atrial
AP
Área postrema
APO
Área préóptica medial
ASM
Área septal medial
AVP
Arginina vasopressina (vasopressina ou hormônio antidiurético ou ADH)
AV3V
Região préópticaperiventricular anteroventral ao terceiro ventrículo
BD
Banda diagonal de Broca
BNP
Peptídio natriurético cerebral
CA
Comissura anterior
CNP
Peptídio natriurético tipo C
ECA
Enzima conversora da ANG I
ET1
Endotelina 1
HAL
Hipotálamo anterior lateral
HAM
Hipotálamo anterior medial
LC
Locus coeruleus
LCR
Líquido cefalorraquidiano
LEC
Líquido extracelular
LHA
Área hipotalâmica lateral
LIC
Líquido intracelular
MnPO
Núcleo préóptico mediano
NBST
Núcleo do leito da estria terminal
NDR
Núcleo dorsal da rafe
nNOS
Óxido nítricosintase neuronal
NO
Óxido nítrico
NPBL
Núcleo parabraquial lateral
NPO
Núcleo préóptico
NPR
Receptor do peptídio natriurético
NPV
Núcleo paraventricular
NSO
Núcleo supraóptico
NTS
Núcleo do trato solitário
OCV
Órgão circunventricular
OSF
Órgão subfornicial
OT
Ocitocina
OVLT
Órgão vasculoso da lâmina terminal
QO
Quiasma óptico
RVLM
Região ventrolateral rostral do bulbo
SNC
Sistema nervoso central
SRA
Sistema reninaangiotensina
SRAA
Sistema reninaangiotensinaaldosterona
▸ Osmorreceptores Estudos clássicos concluídos na primeira metade do século XX introduziram o conceito de osmolalidade efetiva (ou aumento da osmolalidade do LEC resultante do acúmulo de solutos não permeantes, tais como o sódio), associado à existência de um mecanismo osmorreceptor. O conceito de osmolalidade efetiva, de mesmo significado prático que tonicidade, implica que o osmorreceptor seja sensível à desidratação intracelular. A desidratação celular seria, assim, o mecanismo a partir do qual o osmorreceptor sinalizaria as vias que se projetam do OSF e OVLT para o hipotálamo que libera AVP na neurohipófise. Mecanismo semelhante foi posteriormente proposto por outros autores para a ativação da sede. Além do osmorreceptor, estudos iniciais também sugeriam um sensor de sódio localizado nos OCV, que poderia estar envolvido no controle do apetite e da excreção de sódio em resposta às variações da concentração desse soluto no líquido cefalorraquidiano. Estudos eletrofisiológicos sugerem que os osmorreceptores são células especializadas capazes de converter variações no gradiente osmótico entre LEC e LIC em variações de potenciais elétricos transmembrana. Essa conversão é efetuada por canais iônicos presentes na membrana plasmática e sensíveis ao estiramento da mesma. Esse dado é consistente com a proposta de que a desidratação intracelular causada por hipertonicidade, e não a concentração de soluto no LEC, é o estímulo para ativar o osmorreceptor. A transdução resultante da abertura de canais iônicos seria responsável por produzir os potenciais de ação que trafegam no sentido de ativar neurônios de áreas do SNC envolvidas no controle da secreção de AVP e sede. Neurônios com essa característica podem ser encontrados no OVLT ou OSF, mas também nos neurônios magnocelulares do NSO ou NPV dentro da barreira hematencefálica. Além disso, a hiperosmolalidade crônica aumenta o volume celular dos neurônios magnocelulares devido ao aumento na razão de transcrição e expressão de proteínas envolvendo metilação de resíduos de citosinafosfatoguanina.
Hipotálamo, um integrador neuroendócrino O sistema hipotálamoneurohipofisário exerce importante função na manutenção da homeostase dos líquidos corporais pela secreção de AVP e OT em resposta a estímulos osmóticos e não osmóticos. Foi realizada em cabras a primeira demonstração de que a estimulação elétrica ou por microinjeções de salina hipertônica na porção anterior do hipotálamo (drinking center) induzia polidipsia, sendo, assim, uma estrutura fundamental do SNC para a regulação da composição dos líquidos corporais e renais. A importância dessa região anterior do hipotálamo na regulação do volume e osmolalidade do LEC pode ser evidenciada pelos efeitos observados após a sua lesão: ■ Adipsia e hipernatremia; bloqueio de ingestão de água e da secreção de AVP em resposta à salina hipertônica e à angiotensina II (ANG II) ■ Bloqueio da recuperação da pressão arterial em resposta à salina hipertônica, em ratos submetidos a choque hemorrágico ■ Atenuação da resposta secretora de ANP, induzida por aumento de volume e osmolalidade do LEC ■ Diminuição no número de neurônios imunorreativos associados à atividade cFos no MnPO, no NPV e no NSO, em resposta à infusão intravenosa de salina hipertônica ■ Interrupção de atividade neuronal de disparo de liberação de AVP no NSO. Os osmorreceptores não devem ser confundidos com canais sensíveis ao sódio, do tipo Na(x) ou ENaC, por exemplo, presentes em astrócitos ou neurônios tanto de OCV do NPV quanto do NTS, e que recentemente têm sido sugeridos como mediadores do controle da ingestão de água ou sódio. Além do SNC, os osmorreceptores podem estar presentes em terminais neurais aferentes localizados nas regiões periféricas ao longo da parte superior do sistema digestório (orofaringe), região mesentérica e esplâncnica, veia porta, fígado e vasos sanguíneos renais e intestinais. Informações oriundas desses locais seguem pelo nervo vago ou nervos sensoriais espinais/craniais para NTS, NPBL, substância cinzenta periaquedutal e tálamo. Os osmorreceptores periféricos podem ter o importante papel de ativar respostas antecipatórias a alterações que ocorrem no sistema digestório, o que explica o fenômeno da redução na secreção de AVP e sede antes mesmo de que a água ingerida seja absorvida para o sangue a partir do lúmen intestinal.
▸ Receptores de volume/pressão
Os receptores de volume ou de baixa pressão são mecanorreceptores localizados, principalmente, nas paredes das grandes veias e dos átrios. Sensíveis ao estiramento das paredes dos tecidos causado por aumento no volume plasmático, eles desencadeiam respostas para corrigir o excesso de volume sanguíneo. As veias são bastante distensíveis, tendo grande capacitância, de maneira que grandes modificações do diâmetro delas, causadas por elevação de volume, induzem pequenas modificações da pressão intravenosa. Talvez por essa razão os mecanismos que controlam o volume do LEC sejam menos sensíveis do que aqueles que o fazem em relação ao volume do LIC, conforme mencionado na Introdução deste capítulo. A ativação dos mecanorreceptores de volume aumenta os impulsos neurais aferentes dos vasos, via nervo vago, ao NTS. Deste núcleo, partem sinais para o hipotálamo, que determina diminuição da atividade simpática e do sistema reninaangiotensina (SRA), e da secreção de AVP. Por outro lado, o hipotálamo comanda a secreção dos peptídios natriuréticos (ANP, e encefálico, BNP). Esses peptídios, uma vez na circulação, determinam vasodilatação, extravasamento de líquido para o espaço intersticial, e aumento da excreção renal de sódio (natriurese) e de água (diurese). Esses efeitos decorrem de uma ação direta de tais peptídios nas arteríolas e túbulos renais, ou de suas ações inibitórias indiretas sobre a atividade simpática e síntese de ANG II, aldosterona e AVP. O resultado é a correção do volume do LEC e da pressão intravascular. Além dos receptores de volume, há também os receptores de alta pressão situados no arco aórtico, seio carotídeo e aparelho justaglomerular. A ativação desses receptores resulta em sinais aferentes ao NTS, de onde são conduzidos para o hipotálamo. Ambos controlam a resistência vascular periférica, modulando as ações que a atividade simpática exerce sobre as arteríolas do sistema circulatório sistêmico e renal. Além disso, também modificam a secreção de AVP. Os receptores de pressão localizados na parede das arteríolas do aparelho justaglomerular são também importantes para regular o volume do LEC. Eles são ativados principalmente quando ocorre queda da pressão arterial ou ativação β adrenérgica e consequente diminuição da pressão de perfusão renal. Nessas condições, acontece aumento na secreção de renina e produção de ANG II. O resultado inclui vasoconstrição sistêmica e renal, aumento na secreção de aldosterona, reabsorção tubular de sódio, excreção renal de potássio e produção renal de prostaglandinas.
Estruturas e circuitos neurais envolvidos Nas últimas décadas, foi realizada uma série de estudos na tentativa de identificar as áreas encefálicas especificamente envolvidas com a regulação da osmolalidade plasmática e o controle da ingestão e excreção de água e eletrólitos. A estimulação hipotalâmica com agonistas colinérgicos e noradrenérgicos induz aumento na ingestão de água e alimento, respectivamente. Em animais normohidratados, a estimulação colinérgica e angiotensinérgica da AV3V e área septal determina rápida elevação na ingestão de água, seguida de natriurese. Esses efeitos, tanto na ingestão como na excreção de água e de eletrólitos, são bloqueados por tratamento prévio com antagonistas específicos (atropina e fentolamina). A administração de isoproterenol (agonista βadrenérgico) resulta em redução da excreção renal de sódio e potássio. Um efeito inverso é obtido pela administração isolada de propranolol (betabloqueador), que também potencializa a resposta natriurética quando associado ao carbacol, um agonista colinérgico. O bloqueio colinérgico com atropina diminui a resposta à norepinefrina e suprime a resposta natriurética à salina hipertônica. Experimentos com lesões focais de áreas encefálicas permitiram na década de 1960 o estabelecimento de um primeiro circuito neural hipotético que controla a ingestão e excreção de sódio. Nesse circuito, o hipotálamo funcionaria com um centro integrador análogo a uma balança equilibrada por forças estimuladoras ou inibidoras. A “balança” hipotalâmica estaria dividida em duas áreas: hipotálamo anterior medial (HAM), facilitadora da reposição de sal, e hipotálamo anterior lateral (HAL), redutora da quantidade de sódio no organismo. Estruturas externas ao hipotálamo, preponderantemente límbicas, controlariam essa balança por meio de projeções diretas e indiretas. Uma estrutura límbica, a amígdala, exerceria o controle por meio de projeções provenientes de dois núcleos principais: (complexo) basolateral, ativando o HAM e inibindo o HAL, e corticomedial, fazendo o inverso. Outras duas, área septal e bulbo olfatório, reforçariam as ações inibitórias, comandando o HAL e o núcleo corticomedial da amígdala. As estruturas que compõem os OCV apresentam conexões diretas com NPV, NSO e, também, com NDR, LC e NTS (Figura 75.2). Essas conexões são importantes para transmitir informações envolvidas no controle da secreção de hormônios, tais como AVP, OT e ANP, na ativação do sistema nervoso simpático e do SRA e nas modificações comportamentais que visam restaurar o balanço dos líquidos corporais. Interessante acrescentar que parte de tais conexões forma um eixo do prosencéfalo à medula espinal que converge para eferências simpáticas aos rins, conforme deduzidas a partir de infecções virais retrógradas originadas em rins de rato. A inervação motora renal de origem simpática aumenta a secreção de renina e reduz a excreção de sódio na urina.
CONTROLE PEPTIDÉRGICO DO BALANÇO HIDRELETROLÍTICO
▸ Sistema hipotálamoneurohipofisário O sistema hipotálamoneurohipofisário está localizado na parte medial do hipotálamo anterior, compreendendo dois núcleos bilaterais, NPV, próximo e dorsolateral ao terceiro ventrículo, e NSO, distal ventrolateralmente ao terceiro ventrículo. Ambos possuem neurônios magnocelulares cujos pericários são responsáveis pela síntese e liberação dos hormônios AVP e OT. Dois tratos axonais partem desses dois núcleos transportando AVP e OT para a hipófise. Um mais denso, o trato hipotálamohipofisário, termina na neurohipófise. Os hormônios liberados na neurohipófise são, em parte, transportados pelos vasos portais curtos ao lobo anterior da hipófise e de lá, partindo de ambos os lobos hipofisários, conduzidos pelas veias hipofisárias para a circulação sistêmica. Os axônios dos neurônios parvocelulares do PVN terminam na zona externa da eminência mediana, onde a AVP e OT são secretadas para a circulação porta hipotálamohipofisária e transportadas pelos vasos portais longos ao lobo anterior da glândula hipofisária, onde ativam a liberação de ACTH. Além disso, a OT também poderá atuar estimulando a liberação de prolactina pelos lactotrofos.
Estrutura química da AVP e OT Os peptídios OT e AVP são sintetizados sob a forma de prépróhormônio pelos neurônios magnocelulares do NPV e NSO. A maioria dos neurônios magnocelulares coexpressam RNA mensageiros para ambos os peptídios, sendo essas expressões encontradas em praticamente todos os neurônios magnocelulares do NSO. A AVP é o hormônio antidiurético da maioria dos mamíferos, embora a do porco seja a lisinaAVP. A AVP e a OT são constituídas por 9 aminoácidos com peso molecular de 1.084 e 1.007 kDa, respectivamente (Figura 75.3), diferindo apenas nos aminoácidos das posições 3 (fenilalanina para a AVP e isoleucina para a OT) e 8 (arginina para a AVP e leucina para a OT). A parte cíclica da molécula, com uma ligação dissulfeto (–S–S–), é fundamental para que elas exerçam seus efeitos biológicos, e o aminoácido da posição 8 determina a especificidade desses efeitos.
Figura 75.2 ■ Corte sagital do cérebro de rato mostrando localização dos órgãos circunventriculares (área sombreada) (A) e detalhe da parede anterior do terceiro ventrículo cerebral, indicando os órgãos circunventriculares pertencentes à lâmina terminal (área pontilhada) (B). OVLT, órgão vasculoso da lâmina terminal; OSF, órgão subfornicial; MnPOv, núcleo préóptico mediano ventral; MnPOd, núcleo préóptico mediano dorsal; BD, banda diagonal de Broca; ASM, área septal medial; CA, comissura anterior; QO, quiasma óptico. (Adaptada de McKinley et al., 1999.)
Figura 75.3 ■ Representação esquemática da sequência de aminoácidos da vasopressina e ocitocina.
Receptores de AVP As ações da AVP são mediadas por receptores de membrana acoplados a uma proteína G, que, por sua vez, estimula a adenilatociclase a produzir um segundo mensageiro, o AMP cíclico. Esses receptores são caracterizados pela presença de sete hélices transmembrana conectadas por três alças extracelulares e três alças intracelulares. Três diferentes subtipos de receptores de AVP foram clonados, V1, V2 e V3 (previamente denominado V1b). A expressão de receptor V1 tem sido observada em músculo liso, fígado e encéfalo, de V2 nos rins, e de V3 na hipófise anterior e encéfalo. Os receptores V1 estão envolvidos no controle da pressão sanguínea e outras funções conhecidas da AVP. A presença de receptores V1 foi detectada em estruturas do sistema límbico (área septal, amígdala, NBST e núcleo accumbens), nas regiões supraquiasmática e dorsal tuberal do hipotálamo, e no NTS. Mais recentemente, foi detectada a presença de receptores V1 também nos rins. Receptores V3 foram detectados não apenas em corticotrofos hipofisários, mas também no hipotálamo, na amígdala, no cerebelo e em áreas relacionadas com os OCV (habênula medial, OSF, AV3V, eminência mediana e núcleos ao redor do quarto ventrículo), assim como na zona externa da eminência mediana. Os dados sugerem que tanto os receptores V1 como V3 podem mediar diferentes funções da AVP no encéfalo. A sinalização da AVP mediada pelo receptor V1 está associada à ativação do influxo celular de cálcio, e fosfolipases A2, C e D. A expressão do receptor V1 na célula muscular lisa do vaso é alta e sua ativação causa vasoconstrição pelo aumento de cálcio citosólico, mediado pela cascata do bifosfato de fosfatidilinositol. Nas plaquetas, a ativação do receptor V1 induz, também, aumento do cálcio intracelular, facilitando o processo trombogênico. Os efeitos antidiuréticos da AVP são mediados pelo receptor V2 presente na membrana basolateral das células principais do ducto coletor, cuja ativação resulta na produção de cAMP via proteína Gs. A concentração aumentada de cAMP, por sua vez, promove a fusão das vesículas contendo aquaporina 2 na membrana apical das células principais do ducto coletor, elevando a reabsorção de água. A AVP estimula a síntese do RNA mensageiro da aquaporina 2 e o transporte desta proteína para a superfície da célula (esse assunto é apresentado também no Capítulo 53).
Receptores de OT O receptor de OT apresenta conservação estrutural interespécies e diversidade de localização tecidual, estando presente em útero, glândula mamária, hipófise anterior, cérebro, rins, timo, ovários, testículos, coração e vasos sanguíneos. Sua densidade pode variar em algumas condições fisiológicas, por exemplo, aumentando no útero ao longo do período gestacional. No encéfalo, diferenças marcantes na distribuição anatômica dos receptores de OT em relação aos de AVP foram observadas no tubérculo olfatório, no núcleo hipotalâmico ventromedial, no núcleo amigdaloide central e no hipocampo ventral. O receptor de OT é um membro da superfamília de receptores acoplados à proteína G. A ativação do receptor de OT, localizado na musculatura lisa do miométrio ou das células mioepiteliais da glândula mamária, induz a contração muscular desencadeada pelo aumento do cálcio intracelular, pela ativação da fosfolipase C mediada pela proteína Gαq/11. A OT apresenta outra via de sinalização que resulta em vasodilatação, natriurese e liberação de ANP, mediada pelo receptor de OT presente nas células endoteliais dos vasos, nas células epiteliais renais e nos cardiomiócitos, respectivamente. Essa via envolve a ativação da óxido nítricosintase induzida pela proteinoquinase C e pelo aumento de cálcio intracelular. Na vasculatura, o óxido nítrico assim produzido induz vasodilatação pela ativação da guanililciclase. No rim, onde o receptor de OT está localizado nas células da mácula densa e do túbulo proximal, a ativação da guanililciclase leva a fechamento
dos canais de sódio e possivelmente dos canais de potássio, mediado pelo cGMP. Nos cardiomiócitos, a liberação de ANP também parece ser mediada pelo cGMP.
Ativação da secreção de AVP e OT No hipotálamo, aminas biogênicas e peptídios atuando como neurotransmissores exercem efeitos sobre a secreção de AVP e OT. As catecolaminas (dopamina e norepinefrina) e a acetilcolina estimulam preponderantemente a secreção de AVP. Os aminoácidos excitatórios (glutamato e aspartato) estão envolvidos na resposta induzida pela ativação osmótica, elevando a produção do RNA mensageiro e a secreção de AVP. Os peptídios opioides, por sua vez, determinam inibição da secreção desses neuropeptídios, sendo as interleucinas e a ANG II agentes estimuladores. A visualização imunohistoquímica da proteína cFos, um marcador de excitação neuronal, tem sido uma ferramenta amplamente usada para investigar a ativação hipotalâmica resultante da estimulação osmótica ou de alterações de volume circulante. Dessa maneira, foi verificado que a privação de água aumenta a expressão de proteína cFos no NPV e no NSO. A expressão da proteína cFos foi também detectada em neurônios magnocelulares desses núcleos após a injeção sistêmica ou intracerebroventricular de salina hipertônica, ANG II ou agonista colinérgico. A ativação dos núcleos hipotalâmicos pode ser mantida por estímulo osmótico crônico, induzido pela ingestão de salina hipertônica, ou por privação de água, sendo revertida pela ingestão de água. Essa ativação é seguida pela elevação da síntese e liberação de AVP e, possivelmente, de OT. Privação hídrica aumenta a imunorreatividade à proteína cFos também no MnPO, OVLT e OSF. Lesões que envolvem a AV3V suprimem a ingestão de água resultante da privação hídrica, assim como a expressão de cFos no NSO e, em menor intensidade, no NPV. Esses resultados indicam que as respostas dos neurônios do NSO a estímulos osmóticos podem depender de sinais provenientes da região AV3V, enquanto o NPV parece ser menos dependente dessa área. Como esperado, a estimulação osmótica crônica (por hipernatremia) aumenta a expressão de mRNA para AVP, OT e neurofisinas no NSO e NPV, enquanto a hiposmolalidade prolongada reduz a expressão de mRNA da AVP no hipotálamo em cerca de 5 a 10% dos níveiscontrole. Além disso, a estimulação hiperosmótica aguda ou crônica aumenta a expressão de proteína de ligação ao elemento responsivo a cAMP 3 like 1 (CREB3 L1), fator de transcrição sensível a cAMP e glicocorticoides, capaz de regular a expressão do gene da AVP no hipotálamo O tronco encefálico também está envolvido no controle do balanço hidreletrolítico. Projeções ascendentes originárias na região ventrolateral rostral do bulbo (RVLM) estão associadas a esse controle. Estimulação elétrica dessa região induz expressão de proteína cFos e mRNA para AVP no NSO. Além disso, a infusão intravenosa de salina hipertônica aumenta a atividade de cFos em neurônios da RVLM.
Participação de astrócitos, endocanabinoides e canais catiônicos de potencial receptor transiente na mediação das respostas integrativas do balanço hidromineral Neurônios magnocelulares interagem com a glia presente no NPV e NSO. Astrócitos do NSO, por exemplo, liberam taurina tonicamente em resposta a hipotonicidade e/ou hiponatremia. A taurina liberada atua em receptores glicinérgicos presentes na membrana plasmática dos neurônios magnocelulares reduzindo a atividade neurossecretora dos mesmos. Os astrócitos, por sua vez, expressam uma gama de receptores, incluindo receptores CB1 de endocanabinoides (ECB). Recentemente, foi proposto que os astrócitos restringem as ações retrógradas dos ECB sobre as sinapses de glutamato em células neuroendócrinas magnocelulares. Além disso, em decorrência da estimulação osmótica, há diminuição da cobertura glial sobre os neurônios magnocelulares, e, assim, os ECB passam a modular também as sinapses de GABA. Esses achados destacam as células gliais como elementos dinâmicos no controle da função endócrina, importantes para controlar a excitabilidade dos neurônios magnocelulares, por meio tanto de alterações morfológicas entre as sinapses dos neurônios do NPV e NSO quanto da produção e liberação de gliotransmissores, entre eles citocinas e glutamato, ou de outros mediadores, incluindo os ECB. Os OCV estão estrategicamente localizados entre o líquido cefalorraquidiano e o parênquima encefálico, constituindo o primeiro local de ação no SNC a partir do sangue, sensível às alterações na osmolaridade bem como a concentração de sódio extracelular. Nos OCV encontramos CB1 e as enzimas envolvidas na síntese dos ECB. Os CB1 também são expressos no bulbo olfatório, zona cerebral importante que participa da via sensorial do controle do balanço de sódio e água. Assim, foram demonstradas, no SNC, várias ações específicas dos componentes do sistema dos ECB na integração de respostas comportamentais e neuroendócrinas que participam desse controle. No NPV e NSO, os CB1 parecem ser expressos predominantemente nos terminais axonais dos neurônios. Considerando a localização présináptica desses receptores, vários estudos têm proposto que os ECB agem como moduladores retrógrados, sendo liberados da célula pós
sináptica para o espaço extracelular. Além de atuar diretamente na excitabilidade neuronal como mensageiros retrógrados, os ECB também medeiam as ações de peptídios liberados dendriticamente. Neste sentido, verificouse que a liberação somatodendrítica de OT ativa autorreceptores em neurônios ocitocinérgicos e desencadeia a produção do ECB para modular a neurotransmissão GABAérgica e glutamatérgica. Estudos recentes também mostram que os TRP, particularmente aqueles do tipo TRPV1 (“V” de vaniloide), são expressos em neurônios do OVLT e NSO, onde interagem com proteínas (Factina e microtúbulos) do citoesqueleto. A importância dos TRPV1 para a resposta à hiperosmolalidade é reforçada por animais nocaute para o TRPV1 que não respondem ao aumento da osmolalidade do LEC. Neurônios vasopressinérgicos também expressam TRPV1, essenciais para osmorrecepção nestas células e para a interação das mesmas com os ECB. Por exemplo, animais alimentados com uma dieta rica em sódio durante 3 semanas exibem uma sensibilidade aos efeitos inibitórios dos ECB, efeitos estes bloqueados quando os receptores CB1, bem como os receptores TRPV1, são bloqueados farmacologicamente.
Participação dos neuromoduladores gasosos na mediação das respostas integrativas O conceito de neurotransmissão foi recentemente revisado por evidências que sugerem que os neuromoduladores gasosos, tais como óxido nítrico (NO), monóxido de carbono (CO) e sulfeto de hidrogênio (H2S), modificam a excitabilidade neuronal. NO, CO e H2S são moléculas altamente difusíveis, permeáveis à membrana, com meiavida curta, sendo produzidos sob demanda, presumivelmente por neurônios. Essas características fazem parte das ações autócrinas e parácrinas atribuídas a esses mediadores. Além de produzir efeitos vasodilatadores nas células do músculo liso, essas moléculas gasosas participam ativamente no processo de neurotransmissão no SNC. Ao nível hipotalâmico em particular, tem sido sugerido que esses compostos modulam a produção de AVP e OT ativada por estímulo osmótico. O NO, por exemplo, é sintetizado a partir de Larginina por uma NOsintase neuronal (nNOS). A nNOS está presente em neurônios vasopressinérgicos e ocitocinérgicos do NPV e do NSO, e seu conteúdo nessas células aumenta após estimulação osmótica ou desidratação. Essa hipótese é reforçada pelo fato de a nNOS ter sido detectada por imuno histoquímica em outras estruturas neurais envolvidas na regulação da secreção de AVP, como o OSF, o OVLT e o MnPO. No entanto, a função do NO na liberação de OT e AVP não está totalmente definida. O NO pode atuar centralmente, estimulando a liberação de AVP, bem como pode servir como neuromodulador, controlando a liberação desse peptídio. Embora a guanilatociclase (GC) seja o mediador da maioria das ações de NO, sua participação nas vias de sinalização que controlam o equilíbrio hidromineral não foi totalmente elucidada.
Ações da AVP e OT A ação antidiurética da AVP é o principal efeito fisiológico desse hormônio, determinando aumento da permeabilidade das células principais do ducto coletor à água. Como já comentado, AVP circulante ativa receptores V2 localizados na membrana tubular basolateral, resultando em elevação da síntese de cAMP e fosforilação da região Cterminal da aquaporina 2 (canal de água) nas células tubulares principais do néfron distal (túbulo distal e coletor). O número e a distribuição de canais de aquaporina 2 na membrana apical dessas células são regulados por receptores V2: ratos desidratados e tratados com antagonista de receptor V2 apresentam diminuição da osmolalidade urinária e da expressão de aquaporina 2 no ducto coletor da região medular interna dos rins. A AVP estimula a síntese de mRNA para aquaporina 2, bem como a inserção dessa proteína na membrana apical de células dos túbulos coletores renais por intermédio de uma rápida exocitose da membrana plasmática. A presença dessa aquaporina na membrana apical aumenta sua permeabilidade à água, permitindo movimento de água livre de soluto a partir do lúmen do ducto coletor para dentro da célula tubular e, por conseguinte, para a membrana basolateral. O efluxo hídrico para o interstício é, então, facilitado pela expressão constitutiva de aquaporinas 3 e 4 (canais de água não sensíveis à AVP) na membrana basolateral. Vários fatores podem diminuir a ação antidiurética da AVP: ANP, cortisol, prostaglandina E, redução do potássio ou aumento do cálcio plasmático, lítio e certos antibióticos (p. ex., tetraciclinas). Está bem estabelecido que a OT aumenta a excreção renal de sódio e potássio em várias espécies animais independentemente da AVP. A OT e a AVP são secretadas simultaneamente em resposta à hiperosmolalidade e à hipovolemia. A OT é um hormônio natriurético mais potente que a AVP. Esses efeitos podem ser explicados por uma ação direta de ambos os peptídios sobre receptores específicos comprovadamente presentes nas células tubulares renais. Essas diferentes potências podem ser atribuídas à relativa afinidade da OT ao seu receptor individualmente, ou à sua baixa afinidade para os receptores da AVP (tanto para V2 como para V1). A administração central de OT também diminui a ingestão de sódio. A destruição de neurônios centrais que têm receptores para OT, assim como injeções intracerebroventriculares de antagonista da OT, também aumentam a ingestão de sódio. O papel inibitório da OT no
controle do apetite ao sódio foi confirmado por estudos em camundongos nocaute para OT (camundongos OT –/–), mostrando que eles apresentam um apetite elevado para sal em relação aos normais (camundongos OT +/+).
Deficiência na secreção de AVP ou de suas ações renais resulta em diabetes insípido Esta condição, caracterizada pela produção excessiva de urina hiposmolar, contrasta com o quadro de diabetes melito. Nesta última, o fluxo urinário também é aumentado devido à diurese osmótica decorrente da filtração de quantidades de glicose que excedem a capacidade máxima de reabsorção tubular. As alterações centrais de síntese ou secreção de AVP que resultam na deficiência desse hormônio caracterizam o diabetes insípido central. Este quadro pode ser provocado por traumatismos, infecções ou tumores que atingem a região hipotalâmica, podendo também ser causado por alterações genéticas com mutações no gene da AVPneurofisina II. As alterações funcionais do receptor V2 ou da aquaporina 2 decorrem de uma insensibilidade renal à AVP, quadro clínico chamado de diabetes insípido nefrogênico. Essa doença pode ser provocada por mutações no gene do receptor V2 ou da aquaporina 2, constituindo a forma familiar de diabetes insípido nefrogênico. Ainda, esse diabetes pode ser secundário ao uso de substâncias, como lítio, e à hipopotassemia (redução de potássio sérico). As manifestações clínicas, tanto do diabetes insípido nefrogênico como central, incluem a presença de polidipsia (sede aumentada) e poliúria (diurese elevada) com hiposmolalidade urinária. A diurese diária em um indivíduo adulto normal é de aproximadamente 1,5 l e, nos pacientes com diabetes insípido, pode ultrapassar 10 l. Nestes indivíduos, o aumento da sede é um mecanismo de compensação para a manutenção da osmolalidade plasmática. Quando o paciente não tem acesso livre à adequada ingestão de água, ocorre desidratação e hipernatremia. No indivíduo com diabetes insípido central, as concentrações plasmáticas de AVP não aumentam adequadamente a estímulos osmóticos, durante teste de restrição hídrica ou de infusão de salina hipertônica (NaCl 5%). Porém, quando tratado com desmopressina (análogo específico da AVP que atua no receptor V2), esse paciente mostra pronta resposta com normalização da diurese. No indivíduo com diabetes insípido nefrogênico, ocorre resposta exagerada às concentrações plasmáticas de AVP durante o estímulo osmótico; porém, devido à perda de função do receptor V2 ou da aquaporina 2, a administração de desmopressina não corrige o quadro de poliúria. Este assunto é comentado também no Capítulo 53.
Conexões adrenérgicas do tronco encefálico ao NPV e ao NSO A divisão magnocelular posterior do NPV e do NSO é densamente inervada por um grupo de neurônios noradrenérgicos do grupo A1 presente na RVLM. O NPV recebe densa inervação noradrenérgica a partir de: (1) corpos celulares A1 da RVLM, (2) corpos celulares A2 do NTS, e (3) corpos celulares A6 do LC. Os neurônios do grupo A1 enviam projeções neurais para a maioria dos neurônios parvocelulares do NPV, principalmente para suas regiões dorsal e medial, assim como para os neurônios magnocelulares do NPV e do NSO, produtores de AVP. Os neurônios do LC projetamse principalmente para a porção medial da região parvocelular do NPV. Não foram descritas projeções dos neurônios das regiões A2 e A6 para os neurônios magnocelulares do NPV e do NSO. Neurônios noradrenérgicos no LC participam da ativação barorreflexa da banda diagonal de Broca (BD), constituindo assim um componente da via barorreceptora inibitória da liberação de AVP e, possivelmente, estimuladora da liberação de OT.
Controle da liberação de AVP por estímulo osmótico Neurônios osmorreceptores localizados no OVLT apresentam projeções diretas para neurônios neurossecretores magnocelulares e parvocelulares do NPV e do NSO, podendo, assim, funcionar como osmorreceptores. Adicionalmente, outras áreas encefálicas (como o OSF, a AP e o NTS) estão também envolvidas na mediação das respostas ao estímulo osmótico. Várias estruturas situadas próximo ou em contato direto com o terceiro ventrículo (MnPO, OSF, área septal medial, HAL, NSO, NPV, habênula medial e estria medular) formam um circuito neuronal relacionado com a regulação da ingestão e excreção de água e de sódio. Neurônios no NPV, MnPO, núcleo préóptico (NPO), núcleo hipotalâmico
periventricular, eminência mediana e OVLT também contêm ANP, como determinado por reações imunohistoquímicas; tais evidências sugerem que os neurônios ANPérgicos podem funcionar como um dos moduladores envolvidos no controle da ingestão de água e de sal. Foi também demonstrado que o OSF e o OVLT projetam fibras ANP imunorreativas para o NPV e para o NSO. Embora a regulação osmótica mais importante para a liberação de AVP seja integrada no SNC envolvendo as regiões anteriormente listadas, foram descritos osmorreceptores localizados no fígado, na boca e no estômago, que podem detectar efeitos imediatos da ingestão de alimentos sólidos e líquidos. De fato, a infusão intragástrica de salina hipertônica que induz aumento da osmolalidade do sangue da veia porta (sem interferir na osmolalidade do plasma sistêmico) é capaz de elevar a imunorreatividade a cFos em AP, NTS, NPBL, NSO e NPV. Outro importante fator indutor da liberação de AVP é oriundo dos receptores da parede gástrica. A distensão gástrica determina diminuição da atividade elétrica de neurônios do NSO e do NPV, que é completamente abolida pela secção bilateral dos nervos vagos. Aferências semelhantes ativam os neurônios secretores de OT. Esses dados indicam que os mecanorreceptores gástricos inibem, seletivamente, a atividade dos neurônios vasopressinérgicos do NSO e do NPV; esse fato sugere que essas informações aferentes de origem gástrica são importantes para a rápida inibição da liberação de AVP após a ingestão hídrica. A secreção de AVP é também influenciada por uma série de outros fatores: dor, estresse emocional, temperatura elevada, náuseas, vômito e processo inflamatório. Nesse caso, a liberação de IL6 e várias citocinas ativam a liberação de AVP. Bebidas alcoólicas inibem a liberação de AVP e elevam a diurese. Além disso, pessoas mais idosas secretam mais AVP, provavelmente pela diminuição da sensibilidade dos túbulos renais à ação da AVP.
Controle da liberação de AVP por alterações do volume sanguíneo O controle da secreção de AVP por alterações de volume é mediado por reflexos envolvendo os receptores de volume ou pressão do sistema cardiovascular. A ativação desses mecanorreceptores envia impulsos aferentes, por meio dos nervos vago e glossofaríngeo, ao NTS. Do NTS, um caminho polissináptico via LC, NPBL, NBST e BD, conectase com neurônios magnocelulares do NSO e do NPV, levando à inibição da liberação de AVP. Os neurônios do NSO e do NPV também recebem projeções do OVLT, NDR, arqueado, bulbo olfatório e núcleo septal lateral. Por outro lado, a estimulação do vago induz expressão de cFos em neurônios noradrenérgicos A1 da RVLM e excita células produtoras de AVP. Receptores de baixa pressão no átrio inibem tonicamente a liberação de AVP, por intermédio de uma via que envolve o NTS. A liberação de AVP induzida pela hipovolemia ocorre por uma redução na atividade dessa via inibitória. A queda da pressão arterial conduz à ativação dos neurônios da região A1 que se projetam para os neurônios vasopressinérgicos do NSO. Dentro do NSO e do NPV, foi identificada uma série de neurotransmissores: acetilcolina, dopamina, GABA, norepinefrina, glutamato, somatostatina, substância P, serotonina, ANG II e ANP. Isso indica que o controle da secreção de AVP e OT é muito mais complexo do que se supunha inicialmente, envolvendo a interação moduladora de vários neurotransmissores junto aos neurônios do NSO e do NPV. As alterações no volume sanguíneo e/ou na pressão conduzem a mudanças apropriadas na excreção renal de água e de eletrólitos, com respostas adaptativas endócrinas e neurais. A hipovolemia induz aumento da liberação de AVP dos neurônios magnocelulares, que eleva a reabsorção de água no néfron distal pela inserção de aquaporina 2 na membrana luminal das células tubulares principais. Em algumas espécies animais, o limiar para a estimulação da liberação de AVP na hipovolemia é cerca de 10% de redução do volume sanguíneo. Em humanos, a diminuição de 6% no volume sanguíneo (ou de 10% no plasmático), provocada por injeção do diurético furosemida, é suficiente para aumentar a concentração plasmática de AVP. Por outro lado, a expansão isotônica de volume sanguíneo resulta no decréscimo da concentração de AVP no plasma (Figura 75.4). Embora os neurônios vasopressinérgicos e ocitocinérgicos sejam mais sensíveis às variações de osmolalidade plasmática, o estímulo hipotensor eleva muito mais a concentração plasmática de AVP do que o osmótico. Talvez, essa diferença de resposta se deva à maior sensibilidade dos túbulos coletores à ação da vasopressina e não ao sistema vascular. Outro dado importante é que existe uma interação do estímulo osmótico com o hipotensor. Assim, as variações do volume circulante modificam o limiar osmótico para a liberação do AVP: o aumento do volume circulante eleva o limiar osmótico para a liberação de AVP, enquanto a hipotensão o diminui (Figura 75.5).
Síndrome de secreção inapropriada de hormônio antidiurético (SIADH)
A SIADH é um quadro oposto ao de diabetes insípido, havendo secreção de AVP mesmo na presença de osmolalidade plasmática baixa. Os portadores dessa síndrome apresentam maior reabsorção renal de água, diminuição da osmolalidade e sódio sanguíneos, hiponatremia e inchaço celular. O resultado é cefaleia, náuseas, vômito, estupor, podendo evoluir para coma e morte. Essa síndrome é causada por tumores broncogênicos, linfoma, pneumonia, tuberculose, doenças do sistema nervoso central (como meningite e tumor cerebral) e uso de alguns fármacos (como carbamazepina, clorpropamida e fenotiazídicos). O tratamento da SIADH inclui restrição hídrica e uso de substâncias que bloqueiem a ação da AVP, como a demeclociclina e o antagonista específico do receptor V2.
Figura 75.4 ■ Representação esquemática das respostas adaptativas ao aumento da osmolalidade plasmática e redução do volume circulante. SNC, sistema nervoso central; AVP, arginina vasopressina; ANP, peptídio natriurético atrial; seta contínua, estimulação; seta tracejada, inibição.
Figura 75.5 ■ A. Efeito comparativo da diminuição da pressão arterial e do aumento da osmolalidade plasmática sobre a secreção de vasopressina. •, pressão arterial; ∘, volume sanguíneo; Δ, osmolalidade plasmática. B. Efeitos das alterações do volume sanguíneo ou da pressão arterial sobre a relação da osmolalidade e vasopressina plasmáticas. N, normal. (Adaptada de Robertson e Berl, 1986.)
▸ O sistema reninaangiotensina (SRA) Sistema reninaangiotensina periférico A molécula precursora do SRA é o angiotensinogênio, originado no fígado e secretado na circulação sistêmica. O angiotensinogênio é clivado pela renina, enzima proteolítica produzida pelas células da parede da arteríola aferente do glomérulo renal (células justaglomerulares), dando origem ao decapeptídio angiotensina I (ANG I), essencialmente inativo. As células da musculatura lisa das arteríolas aferentes são as que sintetizam, estocam e liberam renina. Essas células produtoras de renina são anatômica e fisiologicamente associadas às células da parede do túbulo contornado distal (mácula densa), sendo esse conjunto denominado aparelho justaglomerular (para mais informações, ver Capítulo 49, Visão Morfofuncional do Rim). A ANG I, na circulação sistêmica, é convertida no octapeptídio ANG II pela ação da enzima conversora (ECA), produzida principalmente nos pulmões, mas também nos rins e no sistema vascular sistêmico. É recomendável a leitura das descobertas feitas ultimamente, referentes ao sistema reninaangiotensina (conceito contemporâneo), que admite a existência do heptapeptídio angiotensina(17), descrito no Capítulo 55, Rim e Hormônios.
Mecanismos de controle da secreção de renina Os principais estímulos que ativam a secreção de renina pelo aparelho justaglomerular são: (1) redução da perfusão sanguínea renal, (2) estimulação da inervação renal β1adrenérgica simpática, (3) diminuição do conteúdo de sódio que alcança as células da mácula densa. A ANG II, o ANP e a AVP são inibidores da síntese e liberação de renina. A atividade dos nervos renais (responsável pelo controle reflexo da secreção de renina) é inversamente associada às alterações de volume monitoradas pelos mecanorreceptores atriais. A diminuição da pressão de perfusão sanguínea renal pode ser decorrente de hemorragia, hipotensão ou decréscimo do volume do LEC, normalmente observado após depleção de sódio. Esses estímulos determinam a ativação do SRA e da secreção de aldosterona, promovendo aumento da reabsorção tubular de sódio, expansão do volume e recuperação da pressão arterial.
Mecanismos celulares envolvidos na síntese de renina A secreção e síntese de renina pelas células do aparelho justaglomerular são ativadas pelo cAMP e diminuídas pela elevação do cálcio no citosol. A adenosina e o ATP são liberados pelas células da mácula densa em resposta à sobrecarga salina no túbulo distal e estiramento das células justaglomerulares, e aumento da perfusão renal e de cálcio citosólico. Por outro lado, a norepinefrina (liberada nas terminações simpáticas renais) e as prostaglandinas (produzidas pelas células da mácula densa em resposta à redução tubular do sódio) aumentam o cAMP, que estimula a produção do mRNA da renina, atuando nos níveis transcricional e póstranscricional. Fatores locais (como prostaglandinas, endotelinas e NO) produzidos nas imediações das células justaglomerulares exercem efeitos importantes sobre a secreção de renina e a expressão do seu gene. As prostaglandinas estimulam a produção de renina e sua expressão gênica, pelo aumento do cAMP formado nas células justaglomerulares. Já as endotelinas têm efeitos opostos.
Sistema reninaangiotensina encefálico O SRA encefálico aumenta a pressão sanguínea, a sede, o apetite ao sódio e a secreção de AVP e de ACTH. A ANG II encefálica aumenta a pressão sanguínea independentemente do SRA sistêmico, por interferir na secreção de AVP e de ACTH ou por modulação do reflexo barorreceptor e de eferências simpáticas. O acesso da ANG II circulante ao encéfalo é limitado aos OCV. Todos os componentes do SRA sistêmico, incluindo precursores e enzimas requeridas para produção e degradação de ANG II, assim como seus receptores (AT1, AT2, AT3 e AT4), estão identificados no encéfalo. Embora os SRA encefálico e periférico sejam compartimentalizados, ainda não está estabelecido o quanto um sistema é independente do outro do ponto de vista funcional.
Receptores de ANG II Os receptores AT1 e AT2, mas principalmente os AT1, são os que melhor caracterizam as ações celulares da ANG II associadas ao controle do balanço hidreletrolítico. Estes receptores têm sete domínios transmembrana acoplados à proteína G. Ações periféricas e centrais da ANG II são mediadas pelo seu receptor AT1, levando à vasoconstrição e ao aumento na pressão arterial, formando o chamado eixo vasoconstritor do SRA. A própria ANG II, entretanto, participa também de um eixo vasodilatador e redutor da pressão arterial. O peptídio atua em seu receptor AT2, produzindo bradicinina e NO. Além disso, a ECA2 converte ANG I e ANG II em ANG(17), a qual produz vasodilatação, natriurese, diurese e modulação central do barorreflexo. A ANG(17) atua em receptores Mas que, por sua vez, interagem com os receptores AT1 e AT2, modulando a ação celular da ANG II. Por meio dos receptores AT1, a ANG II também facilita a transmissão sináptica e proliferação celular, enquanto através dos receptores AT2facilita a diferenciação celular e apoptose (Figura 75.6). No SNC de humanos adultos, a distribuição de receptores AT1, determinada pelo uso de autorradiografia quantitativa in vitro, foi encontrada nas seguintes regiões: OCV, diencéfalo, mesencéfalo, ponte, bulbo, medula espinal, pequenas e grandes artérias adjacentes às meninges e no plexo coroide. Esse padrão de distribuição dos receptores AT1sugere que a ANG II possa atuar como um neuromodulador ou um neurotransmissor no SNC de humanos, influenciando a liberação de hormônios hipofisários e o controle autônomo.
Efeitos fisiológicos da ANG II A seguir são apresentados os principais efeitos fisiológicos da ANG II: ■ Exerce potente ação vasoconstritora nas arteríolas, induzindo elevação da pressão arterial
■ Por sua ação nas células da zona glomerulosa da suprarrenal, estimula a secreção de aldosterona que, por sua vez, aumenta a reabsorção de sódio e a secreção de potássio e hidrogênio no nível do néfron distal ■ Tem um efeito direto estimulador da reabsorção de sódio no túbulo contornado proximal. Esses efeitos da ANG II se devem à sua ação sobre receptores específicos (AT1), localizados nas células da musculatura vascular e nos túbulos renais ■ Estimula centralmente a secreção do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) e a liberação de AVP e de catecolaminas ■ Apresenta importantes efeitos próinflamatórios e indutores de crescimento celular ■ Por sua ação no SNC (lâmina terminal), exerce potente ação estimuladora da ingestão de água e sódio.
Figura 75.6 ■ Esquema geral do sistema reninaangiotensina (SRA). PreProR, préprórenina; ProR, prórenina; ANG I, angiotensina I; ANG II, angiotensina II; ECA, enzima conversora de ANG I; ECA2, enzima conversora de ANG II; AT1R e AT2R, receptores 1 e 2 da ANG II.
Interações da ANG II com outros hormônios A ANG II ativa neurônios AVP, como demonstrado por estudos in vivo usando a expressão da proteína cFos e secreção do AVP. Adicionalmente, distúrbios do balanço hidromineral (como desidratação ou estímulo osmótico) aumentam a densidade de receptores de ANG II e a expressão de mRNA para AT1A e de mRNA para AVP no SNC. A administração intracerebroventricular de ANG II induz aumento da secreção plasmática de AVP e OT, que parece ser dependente da ativação da ciclooxigenase e da produção de prostaglandinas. O peptídio apelina – cujo receptor tem 54% de homologia com o receptor AT1 e também está presente em neurônios do NPV – tem ações antagônicas sobre os efeitos da ANG II na pressão arterial e na secreção de AVP. As ações encefálicas da ANG II sobre a ingestão e a excreção de água são também antagonizadas por ANP e OT, o que parece depender pelo menos em parte da ativação de receptores adrenérgicos α 2.
▸ Sistema de peptídios natriuréticos
Em meados do século IX, os romanos descreveram, em mergulhadores, um efeito diurético (denominado caesarea urinatores) induzido pela imersão do corpo em água. Esse efeito também se dá em banhos térmicos. A diurese induzida por imersão corporal pode ser explicada pela pressão hídrica exercida sobre extremidades, abdome e tórax, aumentando, assim, o retorno venoso ao coração e dilatando o átrio. O aumento da diurese devido à expansão do átrio direito por meio de um balão intraatrial constitui a primeira evidência experimental para a existência de um hormônio natriurético, como aventado nos anos 1950. Experimentos adicionais mostraram que a natriurese pode acontecer em resposta à expansão de volume sanguíneo, mesmo que não ocorra elevação da taxa de filtração glomerular nem alterações na secreção de aldosterona. A presença de grânulos de secreção em cardiomiócitos atriais de cobaia, indicando uma função endócrina, foi descrita, por microscopia eletrônica, na década de 1950. Posteriormente, foi confirmada a presença de células com função endócrina em átrios provindos de indivíduos cardíacos, possivelmente envolvidos no controle da homeostase hidromineral. A descoberta mais importante nesse tema foi feita pela demonstração de que extratos atriais têm efeito natriurético. Isso levou rapidamente à determinação da estrutura do peptídio natriurético atrial. A ação miorrelaxante dos extratos atriais sobre a parede vascular foi determinada posteriormente. Depois, foi postulado que o peptídio liberado de cardiomiócitos atriais circula até os rins, induzindo diurese e natriurese. Esses achados iniciais conduziram à identificação e caracterização de outros hormônios da família de peptídios natriuréticos que estão também envolvidos no controle da homeostase dos líquidos corporais. Embora a AVP e a OT sejam também hormônios natriuréticos, elas tradicionalmente não fazem parte do que podemos chamar de família dos peptídios natriuréticos. Esta é constituída pelos seguintes peptídios: (1) peptídio natriurético atrial [ANP, de 28 aminoácidos (aa)], (2) peptídio natriurético tipo B ou encefálico (BNP, de 32 aa), (3) peptídio natriurético tipo C (CNP, de 22 aa) e (4) urodilatina. A forma biologicamente ativa dos peptídios natriuréticos compartilha uma estrutura comum, que consiste em uma alça de 17 aminoácidos ligados por uma ponte de –S–S– entre os dois resíduos de cisteína. Essa alça e suas extensões N e Cterminais são essenciais para a atividade biológica dos peptídios. A sequência de aminoácidos dos três tipos de peptídios natriuréticos da espécie humana está apresentada na Figura 75.7. No tecido cardíaco, o αANP é sintetizado como um próhormônio, sendo clivado em dois fragmentos: o fragmento N terminal de 98 aa (ANP 1 a 98) e o fragmento Cterminal de 28 aa (ANP 99 a 126), o qual é a forma ativa e circulante. O RNA mensageiro do ANP foi encontrado em diversos tecidos, entretanto é mais abundante nos cardiomiócitos. O BNP foi originalmente isolado do encéfalo (brain) de porco, daí o seu nome. Posteriormente, verificouse que ele é também sintetizado e secretado pelos cardiomiócitos, principalmente do ventrículo esquerdo. Foi observado que sua concentração plasmática se eleva em pacientes com doenças cardiovasculares e renais, servindo como um dos indicadores precoces de alterações cardíacas, como, por exemplo, infarto e insuficiência cardíaca. O CNP é sintetizado pelas células endoteliais vasculares, sendo encontrado principalmente no encéfalo. Sua concentração plasmática é baixa e dispõe de moderada ação natriurética, quando comparada com a dos outros peptídios natriuréticos (ANP e BNP). Sua ação principal é como agente vasodilatador. A urodilatina, peptídio natriurético sintetizado no túbulo distal, aumenta a natriurese e a diurese, agindo de maneira parácrina sobre as células tubulares renais. Contém em sua estrutura uma extensão de quatro aminoácidos correspondentes à porção Nterminal do ANP, característica esta que assegura sua grande resistência à degradação enzimática. Por este motivo, a urodilatina exógena alcança o túbulo distal e o coletor sem ser degradada. A urodilatina tem importante papel na função renal, especialmente no controle da excreção de sódio e água. Alguns estudos mostraram que a sobrecarga aguda de volume ou dilatação do átrio esquerdo é seguida por um aumento na excreção de sódio e de urodilatina. Ainda que em humanos a urodilatina não seja detectada na circulação sanguínea ou no pulmão, esse peptídio também produz significante relaxamento da árvore traqueobrônquica.
Receptores dos peptídios natriuréticos Os peptídios natriuréticos atuam por meio de três tipos de receptores presentes na membrana celular: NPRA, NPRB e NPRC. Os receptores NPRA e NPRB têm um domínio intracelular ligado à guanililciclase, que catalisa a conversão do GTP em cGMP, que ativa a proteinoquinase G. Esses dois receptores são compostos por um local de ligação extracelular, um domínio transmembrana e uma porção intracelular. O receptor NPRA é mais abundante nos grandes vasos, o NPRB predomina no encéfalo, e ambos estão presentes nas suprarrenais e no tecido renal. O NPRC, por sua vez, atua como um receptor de depuração do ANP plasmático (sua inicial C significa clearance). Esse receptor não tem em sua estrutura a guanililciclase e desempenha importante papel em remover os peptídios natriuréticos circulantes, pois estes aumentam a vida média e a concentração plasmática do ANP endógeno, estimulando a natriurese in vivo. A afinidade
dos receptores varia com os peptídios. Por exemplo, para o receptor NPRA, a sequência de afinidade é ANP, BNP e CNP. Já para o NPRB, é CNP, BNP, ANP. Por outro lado, o BNP tem muito menor afinidade que o ANP para o NPRC, o que pode explicar a maior vida média do BNP em relação ao ANP. As endopeptidases circulantes são responsáveis pela clivagem dos três tipos de peptídios natriuréticos, inativandoos; elas estão também presentes nas células tubulares renais e vasculares.
Figura 75.7 ■ Representação esquemática da sequência de aminoácidos dos peptídios natriuréticos. ANP, peptídio natriurético atrial; BNP, peptídio natriurético tipo B ou cerebral; CNP, peptídio natriurético tipo C.
Efeitos fisiológicos dos peptídios natriuréticos O principal estímulo para a liberação cardíaca dos peptídios natriuréticos é o estiramento das fibras de cardiomiócitos atriais, que ocorre quando existe hipervolemia, ou seja, aumento do volume do sangue circulante. Está demonstrado que o controle da liberação dos peptídios natriuréticos é também exercido pelo sistema nervoso central. Esses peptídios desempenham um papel fundamental no controle do volume e da osmolalidade dos líquidos corporais e da pressão arterial, por meio das ações descritas a seguir: ■ Vasodilatação, por efeito direto sobre as fibras musculares das arteríolas e inibição dos efeitos vasoconstritores induzidos por ANG II e catecolaminas ■ Indução do aumento da permeabilidade capilar, aumentando a saída de líquidos do espaço intravascular para o intersticial ■ Elevação da taxa de filtração glomerular, induzindo vasodilatação dos capilares glomerulares (por atuação nos mesângios), com consequente aumento da área de filtração glomerular e da carga filtrada de sódio ■ Subida da pressão hidrostática glomerular, por sua ação vasodilatadora da arteríola aferente e vasoconstritora da arteríola eferente
■ Aumento da natriurese e diurese por: • Efeito direto nos seus receptores do túbulo contornado proximal, induzindo o aumento da produção do cGMP que, por sua vez, fecha os canais de sódio dependentes de voltagem, produzindo aumento da excreção de sódio (natriurese) • •
Inibição da síntese da renina no aparelho justaglomerular, bem como dos receptores βadrenérgicos Inibição da ação da ANG II na estimulação da reabsorção de sódio nos túbulos contornados proximais
•
Inibição da ação da aldosterona nos túbulos contornados distais e coletores, bloqueando a reabsorção de sódio e o aumento da excreção de potássio e hidrogênio Inibição da ação da AVP sobre as células do ducto coletor, diminuindo a formação e a inserção luminal da aquaporina 2, com consequente queda da reabsorção renal de água
• •
Vasodilatação e aumento do fluxo sanguíneo dos vasos retos da medula renal, induzindo lavagem papilar e consequente diminuição do gradiente osmótico corticomedular (ver Capítulo 53) ■ Ações endócrinas causadas por: • • •
Inibição da liberação da AVP, bem como de sua ação no nível do ducto coletor Inibição da síntese da renina, bem como de sua ação sobre o angiotensinogênio Inibição da ECA responsável pela conversão da ANG I em ANG II
•
Inibição da síntese da aldosterona, bem como de sua ação estimuladora da reabsorção de sódio e da secreção de potássio e hidrogênio no néfron distal ■ Ações inibitórias sobre ingestão de água e sódio. As concentrações plasmáticas do ANP e do BNP aumentam em resposta à expansão do volume circulante e à sobrecarga pressórica cardíaca. Esses hormônios exercem ações antagônicas aos efeitos do SRA. Assim, atuam como antagonistas fisiológicos da ação da ANG II sobre o tônus vascular, secreção de aldosterona e de AVP, e reabsorção renal de água e sódio. Em suma, essa família de peptídios exerce importante papel na regulação da osmolalidade e volume dos líquidos corporais, como também da pressão arterial. In vivo, o ANP determina diminuição da pressão arterial, reduzindo o débito cardíaco e a resistência periférica. Em animais transgênicos, o aumento do número de receptores de ANP resulta em hipotensão arterial, enquanto animais nocaute para ANP são hipertensos e apresentam hipertrofia cardíaca. O ANP e o BNP elevam a natriurese e a diurese diretamente, por suas ações tubulares, e indiretamente, por seus efeitos na hemodinâmica renal. Ambos os hormônios determinam vasodilatação das arteríolas aferentes e vasoconstrição das eferentes, aumentando a pressão hidrostática no capilar glomerular, com consequente crescimento da taxa de filtração glomerular e da oferta de sódio aos túbulos renais.
Peptídio natriurético atrial (ANP) e peptídio natriurético tipo B (BNP) ANP e BNP são hormônios produzidos pelo átrio e ventrículo cardíacos, respectivamente, com grande potencial cardioprotetor. Ambos respondem à distensão das câmaras cardíacas com ações endócrinas, parácrinas e autócrinas. As ações incluem natriurese e diurese – atenuando, assim, a expansão do LEC, em oposição à aldosterona, e inibição da secreção ou ação de sistemas vasoativos (SRA e AVP); em altas doses, podem também promover vasodilatação. Essas ações contribuem para reduzir a carga hidrodinâmica sobre o coração e aumentar o fluxo sanguíneo coronariano com aumento na oxigenação tecidual local. Ainda, a síntese e secreção do ANP e BNP está aumentada na insuficiência cardíaca e ambos antagonizam a hipertrofia cardíaca dependente de ANG II. Os efeitos protetores podem estar associados à interação com outros hormônios. A OT, por exemplo, atua diretamente no coração, aumentando a secreção de ANP, e estudos recentes enfatizam o papel cardioprotetor da OT em modelos experimentais de lesão cardíaca isquêmica. Essa atuação da OT também tem potencial parácrino e autócrino na secreção dos peptídios natriuréticos, pois coração e vasos possuem toda a maquinaria para a síntese de OT e seus receptores. Apesar da secreção elevada de ANP e BNP na insuficiência cardíaca, a ativação de sistemas com ações opostas às suas, como o SRA, culmina com a evolução para a descompensação cardíaca. Embora o emprego efetivo dos efeitos fisiológicos dos peptídios natriuréticos na terapêutica da insuficiência cardíaca requeira mais pesquisa (usando, por exemplo, peptídio natriurético humano recombinante), o uso da concentração plasmática dos peptídios natriuréticos tem um potencial
mais imediato como marcador prognóstico e de monitoramento: pacientes com maiores concentrações plasmáticas de BNP apresentam maior risco de descompensação cardíaca e morte.
Transdução de sinal nas células cardíacas Os peptídios natriuréticos (ANP e BNP) atuam por meio de receptores específicos que contêm em suas estruturas domínios com atividade guanililciclase, que catalisa a transformação do GTP em cGMP. Para surgirem os seus efeitos biológicos, após a formação do segundo mensageiro, ocorre a ativação das proteinoquinases. No coração, essas proteinoquinases (PKA e PKC) estão envolvidas em regulação da contração cardíaca, transporte de íons, metabolismo tissular, expressão gênica e proliferação celular.
Controle da secreção do ANP O maior estímulo para a secreção do ANP é o estiramento dos cardiomiócitos atriais (um fator mecânico). Entretanto, outros fatores interferem na sua liberação, como: frequência de contração cardíaca, hormônios e vários peptídios vasoativos. O estiramento dos cardiomiócitos in vitro, bem como o induzido pela expansão do volume sanguíneo in vivo, aumenta a liberação tanto do ANP como do BNP. Ainda não está esclarecido se essa liberação hormonal se deve ao estiramento das fibras musculares ou à liberação local de ET1, óxido nítrico ou ANG II liberados pela distensão das fibras musculares ou células endoteliais. Um aumento da frequência ou da contratilidade cardíaca induz elevação da liberação do ANP, tanto in vitro como in vivo. Em humanos, a taquicardia ventricular eleva a liberação desse peptídio, fato que parece estar associado a alterações hemodinâmicas, como, por exemplo, subida da pressão arterial média. A liberação do ANP também é estimulada pela hipoxia. Estiramento atrial, taquicardia, aumento da atividade simpática e alterações metabólicas podem ser fatores que participam na mediação dos efeitos da hipoxia sobre a liberação do ANP. Sendo assim, a liberação do ANP pode ser modulada por alterações do metabolismo da fibra cardíaca.
SEDE E CONTROLE DA INGESTÃO DE ÁGUA E SAL Fica evidente desde o início do capítulo que os vertebrados conquistaram o ambiente terrestre graças a um sistema neural que coordena as respostas que previnem e corrigem a desidratação. A sede é uma sensação que motiva a procura, a obtenção e o consumo de água, sendo desencadeada pela desidratação celular e extracelular. Associadas a esse sistema, encontramos uma grande capacidade de concentração de urina pelo rim e a produção de comportamentos dirigidos à conservação ou aquisição de água e sal, atividades controladas por mecanismos que envolvem hormônios e circuitos neurais. A perda de água ou de volume corporal pode ocorrer do LIC (desidratação celular), LEC (desidratação extracelular) ou ambos (desidratação absoluta). A desidratação seletiva de um ou de outro compartimento ativa os mecanismos específicos já mencionados de osmorrecepção e desativação de receptores de volume, que acionam mecanismos que atenuam a desidratação e eventualmente a corrigem. Os mecanismos renais e comportamentais atuam conjuntamente para corrigir a desidratação absoluta. Entre os mecanismos comportamentais, encontramse aqueles que levam à procura, obtenção e ingestão de água (sede) e de sódio (apetite ao sódio) (Figura 75.8).
▸ Desidratação intracelular e sede A ativação dos osmorreceptores originada por redução do LIC, conforme comentado anteriormente, leva à ativação de vias neurais que se projetam para áreas límbicas responsáveis por comportamentos de sobrevivência como a sede. A desidratação intracelular e a ingestão de água aumentam a atividade elétrica de neurônios hipotalâmicos e corticolímbicos (em animais) e elevam o fluxo sanguíneo no giro do cíngulo (conforme mostrado por tomografia de emissão de pósitrons em humanos). A água ofertada a um animal que se encontra com restrição hídrica é, em geral, ingerida em um período de 3 a 10 min, quando, gradativamente, sua sede será saciada sem, no entanto, ocorrer, nesse mesmo período, a total regularização da sua osmolalidade plasmática. Isso sugere antecipação da medida da quantidade exata de água necessária para a correção da osmolalidade, simplesmente pela mensuração do volume de água que passou pela boca até o estômago. De fato, estímulos gerados na boca, na faringe e no estômago são convertidos em impulsos aferentes para estruturas do SNC envolvidas na resposta integrativa de inibição da sede.
Figura 75.8 ■ Esquema dos efeitos das alterações do volume de líquido extra e intracelular e da concentração intracelular de sódio sobre a sede e o apetite ao sódio. LEC, líquido extracelular; LIC, líquido intracelular; ↑, aumento; ↓, diminuição. As linhas tracejadas indicam os volumes normais do LEC e do LIC. (Adaptada de De Luca et al., 2005.)
Além de ativar a sede, a desidratação intracelular também inibe a fome, provavelmente a partir da ativação dos osmorreceptores. Essa inibição reduz o aporte de partículas osmoticamente ativas, contribuindo, assim, para atenuar a elevação da tonicidade.
▸ Desidratação extracelular e sede A redução excessiva do LEC leva a um quadro progressivo de fraqueza, palidez, náuseas, hipotensão e choque. O compartimento intravascular tem continuidade com o intersticial, e os mecanismos ativados para a compensação da redução do LEC dependem de mecanorreceptores situados nas paredes dos vasos sanguíneos (sensíveis à redução da pressão intravascular) e de receptores de volume e de natremia (localizados no aparelho justaglomerular renal) que liberam renina, conduzindo consequentemente à produção de ANG II. Os mecanismos de compensação, mediados principalmente pelo SRAaldosterona, ativados a partir do decréscimo de 5 a 10% da volemia, aumentam a reabsorção renal de água e sódio, assim como a pressão arterial, por um lado, e induzem a sede e o apetite ao sódio, por outro. A redução na descarga dos mecanorreceptores cardiopulmonares (de baixa pressão) e arteriais (alta pressão) removendo a inibição do tronco encefálico sobre os circuitos de sede, mais a ANG II, leva à ingestão de água e de sódio. O efeito dipsogênico da ANG II é demonstrado em quase todas as classes de vertebrados, de peixes a mamíferos. Esse efeito é marcante quando a ANG II é injetada no ventrículo intraencefálico de rato, em doses de picomoles. O modelo atual da ação fisiológica da ANG II sobre a sede admite que, estando aumentada sua concentração na circulação sanguínea em resposta a uma hipovolemia, ela se difunda para o espaço extracelular parenquimal, ativando a descarga de neurônios do OSF. Esses neurônios então se projetam para a primeira estação sináptica em estruturas com barreira hematencefálica na região préópticahipotalâmica, de onde partem sinais em direção aos circuitos neurais límbicos que comandam a
ingestão de água. A ANG II ligase a receptores do tipo AT1 acoplados à proteína G, ativando segundos mensageiros (fosfolipídios e proteinoquinases) que causam a abertura de canais de cálcio na membrana plasmática, permitindo um influxo de cálcio e consequente descarga neural. A diminuição do volume circulante, que resulta de hemorragia ou desidratação, estimula a liberação de renina pelos rins, com consequente aumento da concentração de ANG II circulante. Como dito anteriormente, o acesso da ANG II circulante ao encéfalo é restrito às estruturas dos OCV, os quais podem interagir com outras áreas encefálicas. Efeito oposto ocorre em resposta ao aumento na atividade de barorreceptores cardiopulmonares e arteriais. Aumento da pressão arterial inibe ingestão de água estimulada pela ANG II, hiperosmolalidade ou hipovolemia (ver Figura 75.8). O OSF não é o único local para a ação dipsogênica da ANG II no encéfalo. Outras estruturas envolvidas na sede e no apetite ao sódio estão localizadas em áreas protegidas pela barreira hematencefálica, não podendo ser estimuladas diretamente pela ANG II circulante, incluindo o MnPO na lâmina terminal, o NPV, a área préóptica e a substância cinzenta do tronco encefálico que recebe projeções da área préóptica. Essas estruturas podem ser ativadas indiretamente, via conexões aferentes com o OSF.
▸ Desidratação extracelular e apetite ao sódio Sódio e água são fundamentais para a compensação adequada da hipovolemia. A reposição apenas hídrica não é suficiente para corrigir o volume extracelular, uma vez que a água pura dilui o LEC, reduzindo a secreção de AVP e, consequentemente, levando à diurese. Assim, parte da água ingerida é eliminada, de modo que o volume é apenas parcialmente corrigido. Uma eventual redução da osmolalidade do LEC pela ingestão de água pura também pode acarretar dano celular, relacionado com uma excessiva entrada de água na célula. Daí a importância da reabsorção renal de água e sódio induzida pela aldosterona, e também do apetite ao sódio. A primeira demonstração de que o apetite ao sódio teria uma base hormonal ocorreu nos anos 1930, em ratos adrenalectomizados. Esses animais desenvolviam intenso apetite a esse íon, que posteriormente se compreendeu ser resultante da deficiência da reabsorção renal de sódio decorrente da falta de aldosterona. O apetite ao sódio envolve um comportamento, inato e específico, de ingestão de minerais contendo sódio. Esse comportamento é bem desenvolvido em animais que vivem em ambiente pobre em sódio, ou cuja dieta tem baixos teores desse íon. Tal apetite é também demonstrado em pombos e em diversas ordens de mamíferos, inclusive primatas. Em humanos, embora alguns estudos questionem a presença de apetite ao sódio (pelo fato de boa parte do sódio ingerido estar vinculada à alimentação), existem várias descrições de aumento de preferência ao sabor do sódio como consequência de desidratação, insuficiência suprarrenal e, no caso da mulher, em fases do ciclo reprodutivo relacionadas com a gestação. Ratas adultas apresentam apetite ao sódio mais intenso do que machos, em função da ação organizadora de hormônios sexuais na fase perinatal. Eventos que surgem nessa fase parecem também determinar o grau de preferência a esse íon. Entretanto, devese notar que o apetite ao sódio das ratas é reduzido durante o estro provavelmente em resposta ao pico de estradiol. Ao que tudo indica, a evolução conduziu à utilização dos mesmos mecanismos para ativar a sede extracelular e o apetite ao sódio, como a redução na descarga de receptores de pressão vascular e a ANG II. Esse hormônio atua nos OCV, ativando os circuitos de apetite ao sódio, e pode agir em sinergismo com a aldosterona para reforçar esse comportamento. Esse sinergismo hormonal depende, provavelmente, de receptores de mineralocorticoides presentes no hipocampo, amígdala e NTS, constituindo o substrato de ação da aldosterona no encéfalo. A partir dos OCV, os circuitos de apetite ao sódio devem passar por estações integradoras de funções viscerais e motivacionais (como amígdala, hipotálamo e área septal), conforme descrito anteriormente e na Introdução deste capítulo. Além disso, estruturas do tronco encefálico (NTS, NDR e NPBL) participam retransmitindo e modulando as informações viscerais ascendentes para as estações. A administração central do ANP determina inibição da ingestão de água, normalmente induzida pela desidratação ou pela ANG II. Além disso, o ANP também é capaz de reduzir a ingestão de sódio em ratos depletados de sal. O efeito antidipsogênico do ANP se deve provavelmente a uma ação direta no OSF, uma vez que esta estrutura circunventricular é uma região bastante sensível à ação dipsogênica da ANG II.
▸ Sede e apetite ao sódio, estados motivados complementares Enquanto a desidratação intracelular (produzida, por exemplo, pela sobrecarga de sódio na dieta ou pela infusão intravenosa de NaCl hipertônico) causa preferencialmente sede, ativando mecanismos para estimular a ingestão de água e inibir a de sódio, a desidratação absoluta (que ocorre no caso da privação hídrica) ou a desidratação extracelular
(produzida, por exemplo, pela depleção de sódio ou hemorragia) ativam mecanismos capazes de estimular a ingestão de água e de sódio. Qual é a proporção de sódio em relação à água que um animal com desidratação extracelular deve ingerir? A resposta imediata é uma concentração isotônica, fato bem conhecido por fabricantes e consumidores de bebidas esportivas. Na natureza, nem sempre o sódio se encontra diluído na água; ao contrário, muitas vezes ele está presente em formações rochosas, e a ingestão isotônica deve então se dar como uma mistura final do líquido e do sal. Além do mais, a desidratação pode piorar caso a correção de volume se inicie com ingestão de sal puro. Em animais de laboratório, mantidos com ração normossódica, foi demonstrado que, a partir do momento em que acontece a desidratação extracelular, o apetite ao sódio se manifesta com uma latência maior que a sede. Assim, em um primeiro instante, a ingestão de água permite uma reposição de volume, ainda que parcial, ao mesmo tempo evitando uma desidratação intracelular. Em seguida, a ingestão de sal pode ocorrer até mesmo no estado hipertônico, porque em parte o líquido extracelular foi diluído na primeira fase e em parte porque, mantido o acesso à água, o animal alterna entre os dois comportamentos, ingestões de água e de sal, garantindo um aporte isotônico de sódio para o sistema digestório e daí para o meio interno.
▸ Hipótese da facilitaçãoinibição Segundo o parágrafo anterior, em um animal com desidratação extracelular, a expressão da sede deve preceder a ingestão de sódio; essa sequência comportamental é explicada pela hipótese do mecanismo de facilitaçãoinibição. De acordo com essa hipótese, os fatores facilitadores da sede e do apetite ao sódio produzem, em um primeiro momento, ativação dos circuitos de sede, enquanto, ao mesmo tempo, ativam os circuitos que inibem o apetite ao sódio, freando assim a ingestão de sal. A diluição do LEC resultante da ingestão de água atuaria, então, como um fator desativador da inibição sobre o apetite ao sódio, liberando a ingestão de sal. Tomemos como exemplo de fator facilitador a ANG II, que está aumentada tanto na desidratação absoluta como na desidratação extracelular. Considerandose que esse peptídio origina dois comportamentos distintos, surge a questão de como eles são produzidos a partir da ação do peptídio sobre as mesmas estruturas encefálicas. Podemos assumir a existência de vias divergentes, cada uma dirigida para um comportamento a partir dos OCV responsivos a ANG II. De acordo com a hipótese da facilitaçãoinibição, a ANG II ativaria primeiro a sede, enquanto inibiria o apetite ao sódio, resultando apenas na ingestão de água. Depois, seria liberada a ingestão de sal. Duas evidências dão suporte a essa hipótese. Uma mostra que a ANG II em dose exclusivamente dipsogênica ativa neurônios do NPV que contêm o peptídio inibitório OT. Esses neurônios são desativados pela ingestão hídrica. Comprovando essa ideia, existem experimentos indicando que a ingestão de NaCl hipertônico ocorre quando os receptores de OT são inativados farmacologicamente antes da administração da dose dipsogênica de ANG II. A outra evidência provém da ativação de neurônios do NPBL em resposta à desidratação. A inativação farmacológica de neurônios desse núcleo pontino promove a ingestão de NaCl hipertônico em animais tratados com doses dipsogênicas de ANG II, ou antecipa a ingestão desse sal para a fase de sede em animais com desidratação extracelular. Além disso, existe uma correlação positiva entre a produção de cFos em áreas facilitadoras (OVLT, OSF) da ingestão de sódio e o apetite ao sódio. Essa produção diminui nessas áreas, aumentando em áreas inibidoras (NDR), conforme o animal sacia o apetite ingerindo sódio.
▸ Plasticidade neural e ingestão hidromineral Embora inatos e presentes precocemente na ontogênese, a sede e o apetite ao sódio envolvem comportamentos motivados e, portanto, passíveis de serem influenciados pelo aprendizado. Animais desidratados aprendem a mover alavancas, ou correr para locais predeterminados, a fim de poderem obter água ou soluções contendo sódio. Efeitos de longo prazo, provocados por desidratação extracelular ou privação hídrica, têm sido mostrados na ingestão de sódio de animais. A depleção de sódio na fase intrauterina leva ao consumo aumentado de sal no animal adulto. O mesmo incremento tem sido observado após episódios repetidos de depleção de sódio ocorridos apenas na fase adulta. Esse incremento parece decorrer de um efeito organizador da ANG II sobre o encéfalo, possivelmente modificando a expressão gênica neural. O incremento na ingestão de sódio em resposta ao mesmo estímulo da ANG II é semelhante ao que se conhece por sensibilização comportamental, considerada um tipo de aprendizado não associativo. Corroborando teorias de que os comportamentos motivados associados a um reforço positivo possuem uma base neural comum no SNC, histórico de depleção de sódio produz sensibilização cruzada nos efeitos de drogas de abuso ou, ao menos transitoriamente, na ingestão de açúcar, um reforçador natural.
SISTEMA NERVOSO AUTÔNOMO E CONTROLE DO BALANÇO HIDRELETROLÍTICO
▸ Papel da inervação simpática renal sobre a excreção de sódio O rim participa do controle cardiovascular e do equilíbrio hidrossalino por meio de 3 mecanismos principais: (1) excreção de sódio, (2) excreção de água e (3) secreção de renina. Essas funções renais são controladas principalmente por fatores humorais e pela porção simpática do sistema nervoso autônomo. Os nervos simpáticos renais inervam os túbulos, os vasos e as células do aparelho justaglomerular, exercendo importante controle sobre fluxo sanguíneo renal, taxa de filtração glomerular, transporte tubular de água e solutos, e produção e secreção hormonal. Esses efeitos se dão a partir de informações provenientes de várias estruturas do SNC e periféricas, via atividade eferente do nervo simpático renal. Os nervos simpáticos renais são estimulados quando ocorre queda da pressão arterial renal (também denominada pressão de perfusão renal), sempre associada à diminuição do volume do LEC. A atividade simpática renal é tônica e modulada pelas variações do volume sanguíneo. Nas situações de aumento do volume do LEC, observase redução da atividade simpática renal e aumento da excreção de sódio e de água. Os nervos renais simpáticos participam dos mecanismos de conservação de água, atuando: ■ Na reabsorção tubular de cloreto de sódio ■ Na vasoconstrição das arteríolas aferentes, determinando diminuição da taxa de filtração glomerular ■ No aumento da liberação de renina pelas células granulares das arteríolas aferentes. A estimulação dos nervos simpáticos renais, originários principalmente no plexo celíaco, ocorre por meio dos adrenorreceptores beta1 das células granulares justaglomerulares produtoras de renina, presentes na arteríola aferente. A liberação de norepinefrina pelas fibras adrenérgicas induz vasoconstrição, antinatriurese e elevação da secreção de renina. A diminuição da excreção urinária de água e sódio se deve, principalmente, ao aumento da reabsorção tubular de sódio e água, à queda do fluxo sanguíneo renal e da taxa de filtração glomerular (causada por constrição da vasculatura renal) e ao aumento da atividade do SRA (após a liberação de renina a partir das células granulares justaglomerulares). A ANG II formada, atuando via receptores AT1 localizados nos segmentos vasculares e tubulares, aumenta a reabsorção tubular de sódio, cloreto e água, bem como contrai a vasculatura renal. A estimulação do SRA também pode ser induzida mantendo o animal sob uma dieta pobre em sódio, e essa resposta é bloqueada pela ação do captopril, inibidor da enzima conversora para ANG II. Por outro lado, a diminuição da atividade do SRA pode ser obtida por uma dieta rica em sódio. Esses dados sugerem uma estreita interação do SRA com o sistema simpático renal. Independentemente do SRAaldosterona sistêmico, o túbulo proximal tem a capacidade de sintetizar e secretar elevadas quantidades de ANG II para o lúmen tubular, a qual modula a reabsorção tubular proximal de sódio e água. Vários estudos demonstram que os nervos renais modulam um componente do transporte tubular proximal mediado pela ANG II intraluminal. A norepinefrina produzida pelas fibras simpáticas estimula a reabsorção de sódio e água no túbulo proximal, no segmento espesso de alça de Henle, no túbulo distal e no ducto coletor. Em cães, o ANP causa potente natriurese e suprime a secreção de renina induzida por estimulação do nervo renal e a vasoconstrição renal, sem afetar a liberação de norepinefrina. Esses achados são consistentes com a hipótese de que esse peptídio ativa seus receptores no aparelho justaglomerular e nos vasos renais para liberar cGMP, o qual se opõe à liberação de renina ativada por cAMP induzida pela norepinefrina. A atividade do nervo renal pode ser registrada por meio de eletrodo especialmente adaptado em sua volta, permitindo avaliar sua atividade em várias condições experimentais no animal intacto e com livre mobilidade. Em resposta à expansão de volume sanguíneo, observase diminuição na atividade do nervo simpático renal, associada a aumento do fluxo plasmático renal e da liberação de ANP pelo coração, redução da atividade do SRAaldosterona e inibição na secreção de AVP pela hipófise posterior. Por conseguinte, a natriurese e a diurese observadas após a expansão são consequências da liberação de ANP cardíaco e da redução da atividade do nervo simpático renal, que resultam em aumento do fluxo plasmático renal, da taxa de filtração glomerular e da carga filtrada, e diminuição da reabsorção tubular de sódio.
▸ Regulação da atividade simpática renal pelo SNC Áreas diencefálicas específicas e do tronco encefálico participam da regulação da atividade simpática renal, por meio de projeções diretas para neurônios préganglionares simpáticos, localizados na coluna intermediolateral da medula espinal. Além disso, essas áreas do SNC podem participar dos principais reflexos que modulam a atividade do nervo simpático renal, como aqueles provenientes das artérias periféricas, mecanorreceptores cardíacos, quimiorreceptores e
receptores somáticos. A ANG II pode modular a atividade encefálica, atuando como um neurotransmissor ou como um hormônio. A ANG II circulante modula a atividade neural simpática periférica agindo na AP, uma vez que a ablação dessa área encefálica inibe a hipertensão induzida pela administração intravenosa crônica de ANG II. A AP estabelece conexões eferentes com o NTS e o NPBL, os quais proveem aferências aos neurônios préganglionares simpáticos da coluna intermediolateral da medula espinal. Lesões do NPBL também impedem a hipertensão crônica induzida por ANG II. A ativação da AP pela ANG II circulante pode elevar a atividade neural simpática periférica por uma conexão excitatória direta com a RVLM. A ativação ou a inibição da RVLM aumenta ou diminui, respectivamente, a pressão arterial e a atividade do nervo simpático renal. Trabalhos recentes mostram que aferências renais para o encéfalo também exercem um papel importante na atividade do NPV e no controle da pressão arterial e na excreção de sódio. Outros estímulos endógenos também contribuem para a atividade do nervo simpático renal. A estimulação de diferentes subtipos de receptores purinérgicos localizados no NTS provoca alterações na hemodinâmica regional e respostas simpáticas eferentes. A estimulação de receptores 2a da adenosina (A2a) diminui a atividade do nervo simpático renal e a atividade do nervo simpático suprarrenal préganglionar.
▸ Papel de receptores αadrenérgicos e colinérgicos centrais no controle da natriurese Em experimentos que usam a técnica de micropunção de túbulo proximal renal, foi observado que a estimulação colinérgica (por carbacol) da área hipotalâmica lateral (LHA) induz diurese e natriurese, sem, contudo, alterar a taxa de filtração glomerular ou o fluxo plasmático renal. Por outro lado, foram também estudados os efeitos promovidos pela estimulação da LHA em ratos com rins intactos ou denervados. A denervação renal, por si só, já leva à chamada natriurese e diurese da denervação. A estimulação da LHA determina uma elevação ainda maior da natriurese e diurese em ratos com rins denervados. Esses efeitos sobre o volume urinário e a excreção renal de sódio foram observados sem alterações no ritmo de filtração glomerular ou no fluxo plasmático renal, em ratos com rins intactos ou denervados. Estudos por micropunção tubular em rins denervados mostraram que, após administração de carbacol na LHA, a reabsorção tubular de água diminui de forma significativa ao final do túbulo proximal sem alterações na filtração glomerular do mesmo néfron. Além disso, a natriurese induzida pela injeção intrahipotalâmica de carbacol independe de alterações na atividade neural eferente renal, pois esse efeito não é abolido em animais com denervação renal prévia. Posteriormente, foi comprovado que a estimulação colinérgica da LHA conduz à liberação de hormônios neuro hipofisários, AVP e OT, responsáveis por parte dos efeitos renais observados. A estimulação colinérgica central também leva ao aumento da liberação de ANP.
REABSORÇÃO RENAL DE SÓDIO E ÁGUA, CONTROLE DO VOLUME E DA OSMOLALIDADE DO LEC Conforme detalhado no Capítulo 53, as variações de volume determinam modificações, no nível dos túbulos renais, da pressão hidrostática e osmótica (fatores físicoquímicos), da atividade simpática (fator neural) e da secreção de vários hormônios (fatores endócrinos). As fibras do simpático renal inervam as arteríolas aferentes e eferentes do aparelho justaglomerular, bem como as células dos túbulos renais. Assim, em resposta à expansão isotônica de volume sanguíneo, ocorre, ao nível dos túbulos renais (túbulo proximal, ramo ascendente espesso da alça de Henle, túbulo distal e ducto coletor), uma redução da reabsorção de sódio. O oposto acontece na queda da volemia. Um dos fatores importantes intrínsecos ao rim e que pode ser controlado pelo sistema nervoso é o balanço entre a pressão hidrostática e a osmótica (as chamadas forças de Starling) nos capilares glomerulares e peritubulares. Quando há queda do volume do LEC, os barorreceptores (de baixa e de alta pressão) induzem, como resposta integrada, aumento da atividade dos nervos simpáticos renais; com isso, acontece elevação da vasoconstrição das arteríolas aferentes e eferentes, além de diminuição da pressão hidrostática dentro do capilar glomerular, da taxa de filtração glomerular e da quantidade de sódio oferecida aos túbulos proximais. Com a redução da filtração glomerular, há queda da carga filtrada de sódio e, consequentemente, menos sódio tubular chega no setor das células da mácula densa. Como essas células são sensíveis às concentrações tubulares de sódio, por um sistema de retroalimentação glomerulotubular, aumenta a filtração glomerular e também a secreção de renina. Adicionalmente, com a queda da pressão de perfusão renal, é estimulada a secreção de renina pelas células musculares das arteríolas aferentes, desencadeando uma reação em cascata que determina o aumento da produção de ANG II e de aldosterona, ambas ativadoras da reabsorção tubular de sódio. Ao mesmo tempo que acontece
diminuição da pressão de perfusão renal, ocorre redução da pressão hidrostática peritubular e elevação da pressão oncótica peritubular, favorecendo a reabsorção proximal de líquido. Essas ações combinadas determinam um decréscimo da excreção renal de sódio, que modula a restauração do volume do LEC. O sistema nervoso simpático também participa da regulação do volume do LEC, em resposta à expansão aguda do volume sanguíneo. Uma expansão aguda do LEC induz diminuição da atividade simpática acompanhada de expansão aguda de volume sanguíneo que estimula a liberação de ANP (em resposta ao estiramento dos cardiomiócitos atriais) e de urodilatina (secretada pelas células tubulares renais e que, por uma ação parácrina, diminui a reabsorção tubular de sódio). Esses peptídios reduzem a reabsorção tubular de sódio nos ductos coletores (provocando natriurese), por uma ação direta ou indireta, ao inibirem a síntese de renina e, consequentemente, de ANG II e de aldosterona e suas ações tubulares. O ANP inibe também a ação da AVP na reabsorção de água (aumentando a diurese). Em resumo, em resposta a uma expansão aguda de volume sanguíneo, os sensores de volume geram sinais dirigidos para o SNC, onde são integrados e enviam informações neurais, hormonais e físicas aos rins. Tais informações são: diminuição da liberação de AVP e da atividade simpática; aumento da liberação de ANP e da urodilatina; subida da pressão de perfusão renal, queda da produção de renina, ANG II e aldosterona. As ações integradas dessas informações sobre a reabsorção renal de água e de sódio visam corrigir a modificação do volume dos líquidos corporais causada pela expansão. O oposto ocorre quando o organismo é submetido à redução do volume extracelular.
CONTROLE DO BALANÇO HIDRELETROLÍTICO EM IDOSOS As alterações na regulação da homeostase da água em idosos resultam de múltiplas alterações que ocorrem com o envelhecimento. Entre elas destacamse: alterações na composição corporal, função renal diminuída e alterações na regulação hipotálamopituitária, nos mecanismos indutores da sede e secreção de arginina AVP. Como resultado destas múltiplas alterações sistêmicas, os idosos têm um aumento da frequência e gravidade da hipoosmolalidade e hiperosmolalidade, manifestada por hiponatremia e hipernatremia, bem como hipovolemia e hipervolemia. Com o envelhecimento, podem ocorrer alterações hemodinâmicas renais: diminuição progressiva na taxa de filtração glomerular e no fluxo renal sanguíneo. Essas alterações hemodinâmicas podem ocorrer associadas às mudanças estruturais: perda de massa renal; hialinização de arteríolas aferentes e, em alguns casos, desenvolvimento de arteríolas aglomerulares; aumento na porcentagem de glomérulos escleróticos; e fibroses tubulointersticiais. As mudanças na atividade do SRA e NO parecem ser particularmente importantes. Além disso, no idoso ocorre diminuição da atividade do SRA, o que leva à diminuição da produção de renina em resposta aos estímulos fisiopatológicos. Os níveis sistêmicos de renina e aldosterona diminuem com a idade. Ocorre também diminuição da produção do NO com o envelhecimento, fato que determina aumento da vasoconstrição renal, retenção de sódio e hipertensão.
PERSPECTIVAS O desenvolvimento associado da engenharia genética e bioinformática tem resultado nos últimos anos em uma expansão considerável de nosso conhecimento sobre dois aspectoschave da neuroendocrinologia da osmorregulação de mamíferos. Estamos começando a entender, em detalhes moleculares, como é feita a transdução de pequenas alterações na osmolalidade dos líquidos corporais e como esse tipo de transdução altera a atividade neuronal encefálica para produzir neurossecreção. Além disso, graças à aplicação de tecnologias transcriptômicas, temos agora um catálogo abrangente da expressão gênica em núcleos encefálicoschave para a osmorregulação. Sabemos como essa expressão muda após um desafio osmótico, mas ainda falta uma apreciação detalhada da sequência de eventos que ligam osmorrecepção aos circuitos neurais que controlam a modulação transcripcional dentro dos neurônios magnocelulares.
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Introdução
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Metabolismo mineral Absorção e excreção
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Distribuição Metabolismo ósseo Crescimento, modelação e remodelação óssea
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Paratireoides PTHrelated peptide
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Células parafoliculares | Calcitonina Vitamina D Regulação hormonal integrada da homeostase mineral
Os Dentes Priscilla Morethson ■ ■
Esmalte Complexo dentinopulpar
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Cemento
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Ligamento periodontal Osso alveolar
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Erupção dentária | Odontogênese Irrupção dentária
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Dentes e fisiologia osteomineral e nervosa | A odontologia na fronteira da ciência Bibliografia
INTRODUÇÃO Durante o desenvolvimento das primeiras formas de vida, o aparecimento de membranas lipídicas semipermeáveis – que envolvem todas as células vivas – permitiu a compartimentalização de reações bioquímicas em um ambiente intracelular de composição controlada. Para manter uma composição iônica citoplasmática compatível com os processos vitais, as células desenvolveram mecanismos capazes de reconhecer e reagir a alterações na concentração iônica intracelular por meio de mudanças na permeabilidade da membrana celular e ativação de transportadores dependentes de energia. O aparecimento de seres multicelulares fez com que mecanismos adicionais fossem desenvolvidos visando à manutenção da concentração iônica dos líquidos extracelulares. Hoje, sabese que esses mecanismos relacionamse de maneira complexa e envolvem múltiplos órgãos e tecidos – paratireoides, células parafoliculares da tireoide, pele, rins e ossos – e diferentes classes de hormônios que, por modificarem o grau de diferenciação de seus tecidosalvo, mantêm a homeostase mineral dentro de estreitos limites compatíveis com a vida.
METABOLISMO MINERAL O cálcio é o íon mineral mais abundante no ser humano e o quinto elemento mais encontrado no organismo (Quadro 76.1). Participa de modo importante em múltiplos processos celulares e extracelulares, incluindo a proteólise de componentes do plasma (p. ex., coagulação sanguínea e geração de cininas vasoativas), sinalização intracelular, manutenção do potencial de membrana celular, contração muscular e exocitose, além de, juntamente com o fosfato, ser um elemento fundamental na composição dos cristais de hidroxiapatita que dão resistência ao tecido ósseo. Da mesma maneira, muitas reações celulares são dependentes da disponibilidade de fosfato, que serve ainda como um dos principais tampões citoplasmáticos, a base para a troca de energia e um componente essencial de membranas e ácidos nucleicos. O cálcio e o magnésio estão presentes em quantidades abundantes nos tecidos mineralizados, com grande predomínio do primeiro sobre o segundo. No nível intracelular, entretanto, o magnésio é o segundo cátion mais abundante, depois do potássio, com concentrações até 1.000 vezes superiores às do cálcio, enquanto somente 5% do magnésio do organismo é encontrado nos líquidos extracelulares. A concentração sérica normal de magnésio varia de 1,5 a 2,0 mEq/ ℓ . Ele é essencial à vida e está envolvido em inúmeros processos metabólicos. Atua como cofator em várias reações enzimáticas, incluindo a adenilciclase, que catalisa a formação de cAMP, e a ATPase, que propicia a transferência de grupos fosfato de nucleotídios trifosfatados com alta energia. Já se encontra bem definido seu papel na transmissão dos impulsos nervosos, na contração muscular, na manutenção dos potenciais de membranas, assim como na função e estrutura dos DNA e RNA. Sua deficiência implica manifestações clínicas que envolvem os sistemas nervoso central e cardiovascular, além de estar relacionada com diabetes melito e hipertensão arterial.
Quadro 76.1 ■ Composição dos elementos do corpo humano. Elemento
% No total de átomos
% Peso
Hidrogênio
63,0
10,0
Oxigênio
25,5
64,5
Carbono
9,5
18,0
Nitrogênio
1,4
3,1
Cálcio
0,31
1,96
Fósforo
0,22
1,08
Cloro
0,08
0,45
Potássio
0,06
0,37
Enxofre
0,05
0,25
Sódio
0,03
0,11
Magnésio
0,01
0,04
Fonte: Lehninger, 1975.
ABSORÇÃO E EXCREÇÃO
▸ Cálcio O fosfato de cálcio é um dos principais constituintes do esqueleto, que retém cerca de 99% do cálcio do organismo. A entrada do sal de cálcio no corpo envolve uma série de transformações de estado – de sólido para líquido (na digestão e
absorção intestinal), novamente para mineral sólido (durante o depósito no osso) e de volta a líquido (na reabsorção óssea) – para manutenção dos níveis plasmáticos (Figura 76.1). Como outros cátions, o cálcio pode atravessar membranas celulares e se mover por diversos compartimentos com diferentes gradientes de concentração. As concentrações intracelulares de cálcio são por volta de 100 a 100.000 vezes inferiores às dos compartimentos extracelulares, e variações não superiores a 5% durante as 24 h do dia podem ser observadas nas concentrações plasmáticas de cálcio. Isso significa que todas estas reações se mantêm em um complexo equilíbrio, à custa de controles na sua absorção intestinal, evitando picos plasmáticos pósprandiais excessivos do íon, na sua excreção renal, assim como na sua deposição e reabsorção no osso. Esta manutenção de níveis mais ou menos constantes é fundamental para o adequado funcionamento do organismo, uma vez que o cálcio atua como mediador de uma série de fenômenos biológicos vitais ao organismo (Quadro 76.2). Tanto seu excesso como sua falta podem ocasionar distúrbios em vários sistemas (neurológico, cardíaco, gastrintestinal etc.), podendo, quando em graus extremos, causar morte. O cálcio ingerido com os alimentos comumente se encontra ligado ou na forma sólida, necessitando ser modificado (solubilizado) para que seja absorvido. Sua velocidade de absorção e redistribuição no organismo deve ser tal que não comprometa as concentrações plasmáticas de cálcio, que se mantêm por volta de 2,5 mmol/ℓ de cálcio total, e 1,25 mmol/ ℓ da fração ionizada. Assim que o quimo entra no intestino, é sujeito à ação mecânica devido ao peristaltismo e à ação química das enzimas intestinais, principalmente das peptidases. Desta maneira, o cálcio é solubilizado e absorvido para a linfa ou sangue através do epitélio intestinal. Existem basicamente dois mecanismos envolvidos neste transporte. O primeiro é saturável (ativo), via transcelular, sujeito à regulação hormonal (pela vitamina D) e, portanto, também à retrorregulação. Ocorre principalmente na porção proximal do intestino delgado, isto é, duodeno e porção inicial do jejuno. O segundo mecanismo é não saturável, dependente do gradiente de concentração entre o lúmen intestinal e líquidos corporais, provavelmente via paracelular. Este mecanismo não está sujeito a qualquer controle endócrino e pode ocorrer ao longo de todo o intestino, porém corresponde a uma proporção menor do cálcio total absorvido (para mais informações, ver Capítulo 63, Absorção Intestinal de Água e Eletrólitos).
Figura 76.1 ■ Modelo esquemático da homeostase diária de cálcio no homem adulto que ingere 1.000 mg de cálcio. Pelo intestino, são secretados 300 mg/dia. A média da absorção no nível intestinal é, em condições habituais, de cerca de 30%; portanto, dos 1.300 mg que estão no lúmen intestinal são absorvidos 400 mg. Levandose em consideração que 300 mg são de origem endógena, apenas 100 mg do cálcio ingerido foram absorvidos. Todos os compartimentos permanecem em equilíbrio
constante, e aproximadamente 10.000 mg de cálcio são filtrados pelos glomérulos renais/dia. A maior parte desse cálcio (99%) é reabsorvida nos túbulos, sendo excretados na urina apenas 100 mg/dia. LEC, líquido extracelular.
O intestino secreta cerca de 300 mg do cálcio de origem endógena para o lúmen intestinal pela bile e outras secreções, que se soma ao cálcio da dieta. Desde que a máxima fração de absorção seja ao redor de 70%, em caso de dieta completamente sem cálcio a absorção apenas restauraria ao organismo 200 mg do cálcio endógeno secretado, induzindo a um balanço negativo de 100 mg/dia. Sendo assim, a dieta mínima para que se alcance balanço zero nestas condições seria de 200 mg/dia. Em dietas pobres em cálcio, a absorção ocorre predominantemente pelo processo ativo, mas, à medida que a oferta de cálcio aumenta, este processo tornase saturado, e quantidades adicionais de cálcio são então absorvidas somente pelo mecanismo de difusão não saturável (Figura 76.2).
Quadro 76.2 ■ Fenômenos biológicos relacionados com modificações das concentrações de cálcio ionizado intracelular. ■ Excitação e contração muscular ■ Liberação de neurotransmissores ■ Movimentação das estruturas citoplasmáticas ■ Movimento ciliar ■ Secreção exócrina ■ Liberação de hormônios pelas glândulas endócrinas ■ Fertilização ■ Divisão celular ■ Comunicação entre as células ■ Atividade enzimática ■ Excitação de cones e bastonetes ■ Movimento cromossômico ■ Iniciação da síntese de DNA Diversos fatores, no entanto, podem influir na quantidade de cálcio disponível para ser absorvido ou no mecanismo de absorção propriamente dito. A formação de complexos insolúveis está associada a dietas ricas em fósforo, fitatos ou ácido oxálico. Em uma dieta habitual, encontrase fósforo em quantidade abundante, mas aparentemente apenas quando a proporção fósforo:cálcio ultrapassa 3:1 é que se observa interferência na quantidade de cálcio absorvida. Provavelmente, devido ao fato de o leite humano ter menor proporção fósforo:cálcio que o leite de vaca, a quantidade de cálcio absorvida é maior no primeiro. A existência de pH excessivamente alcalino no lúmen intestinal também interfere na solubilização do cálcio ingerido, quer por um problema intrínseco do intestino (nas síndromes malabsortivas), quer por uma deficiente acidificação do conteúdo gástrico (ou acloridria). Por outro lado, alguns açúcares, notavelmente a lactose, aumentam a absorção intestinal de cálcio, por um mecanismo ainda não esclarecido. Desde que a vitamina D é o maior regulador da absorção intestinal ativa de cálcio, distúrbios associados a menor oferta ou ação deste hormônio também induzem a menor absorção deste cátion; ao passo que, quando em quantidades excessivas, a absorção intestinal está aumentada, como no hiperparatireoidismo primário ou na intoxicação pela vitamina D. Em condições habituais, apenas 2% da carga de cálcio filtrado pelos glomérulos é excretada, e 98% são reabsorvidos pelos túbulos renais. O mecanismo de controle da reabsorção tubular de cálcio é feito de maneira a proteger o indivíduo de potencial hipercalcemia no caso de ingestão excessiva. Há uma correlação linear positiva entre elevação de ingesta e aumento da excreção renal de cálcio, quando esta excreção supera 150 mg. Abaixo destes níveis de excreção, entretanto, esta correlação é perdida, apesar da atuação do paratormônio aumentando a reabsorção tubular do cálcio filtrado. Portanto, em condições de dieta pobre em cálcio a excreção não se reduz proporcionalmente, levando o indivíduo a um balanço de cálcio negativo. Além disso, a excreção renal de cálcio está intimamente relacionada com a quantidade de sódio e de proteínas da dieta. Para cada mmol de sódio excretado, excretase juntamente 0,1 mmol de cálcio. Do mesmo modo, existe forte correlação entre a quantidade de proteínas ingeridas na dieta e a de cálcio excretada na urina, independentemente da quantidade de cálcio ingerida (Quadro 76.3).
Figura 76.2 ■ Relação entre ingesta de cálcio e porcentagem de absorção do cálcio ingerido. A avaliação foi feita em 212 balanços em 84 indivíduos normais. (Adaptada de Nordin, 1988.)
As recomendações diárias de cálcio variam de acordo com a fase da vida. Para um adulto normal, o recomendado deve preservar o conteúdo de cálcio do organismo, mantendoo em balanço zero. Esta condição depende não só da porcentagem de cálcio absorvida, mas também da quantidade de cálcio excretada pelos rins. Esta quantidade foi repetidamente calculada para indivíduos normais e varia, na maioria dos estudos, de 400 a 800 mg (ou 6 a 12,5 mg/kg) diários. Condições especiais como durante a fase do estirão puberal, a gestação e a lactação necessitam de doses mais elevadas, variando de 1.200 a 1.500 mg/dia, assim como no climatério, quando para a mulher se preconizam 800 a 1.000 mg/dia.
Quadro 76.3 ■ Média da excreção urinária de cálcio para diferentes quantidades de cálcio e proteínas ingeridas na dieta. Ingesta de cálcio (mg/dia)
Ingesta de proteína (g/dia)
Cálcio urinário (mg/dia)
100
6
51
78
99
150
161
6
105
24
131
78
155
6
80
78
163
900
1.300
1.600
2.300
150
274
6
46
78
92
387
318
78
81
300
176
600
380
Fonte: Linkswiler et al., 1981; Margen et al., 1974.
▸ Fósforo e magnésio Grandes quantidades de fosfato (800 mg) e magnésio (350 mg) também devem ser ingeridas diariamente pelo organismo. Ao contrário do cálcio, a absorção intestinal de fosfato e magnésio se dá por meio de processo único não saturável (por transporte passivo), que varia linearmente com a carga alimentar destes elementos. O fósforo não é somente um dos principais componentes minerais do osso na composição da hidroxiapatita, mas também é um mediador de transferência de energia, além de participar de uma série de reações metabólicas intracelulares. Devido a este papel crítico, o organismo desenvolveu mecanismos eficientes para a obtenção e manutenção das quantidades necessárias de fósforo, que são exercidos basicamente pelo intestino e pelos rins. Existe uma relação direta entre o conteúdo alimentar de fósforo, a quantidade absorvida pelo sistema digestório e a excretada pelos rins. Afortunadamente, o fósforo é abundante em uma série de alimentos, onde se apresenta na forma de fosfatos, de tal maneira que sua deficiência nutricional é extremamente rara. O intestino delgado é o local mais importante para absorção de fosfatos, cujo transporte se faz predominantemente no jejuno e íleo, e em menor parcela no duodeno. Em uma dieta de 4 a 30 mg/kg/dia de fósforo inorgânico, a absorção fica por volta de 60 a 65% do ingerido. Esta absorção se faz por dois mecanismos: por transporte celular ativo e por fluxo difusional, a favor do gradiente elétrico e de concentração, especialmente através de passagem paracelular pelas membranas basolaterais dos enterócitos. Apenas em casos de deficiência de fosfatos é que a via ativa de absorção intestinal passa a ter relevância, responsiva à 1,25dihidroxivitamina D. Apesar disso, nos casos de deficiência de vitamina D, a absorção intestinal de fosfato está reduzida em apenas 15%. Como as dietas, de maneira geral, são abundantes em fosfatos, a quantidade de fósforo absorvida frequentemente excede as necessidades diárias. Entretanto, a formação de sais insolúveis com cálcio, alumínio ou magnésio no lúmen pode reduzir em até 50% a absorção intestinal dos fosfatos. Ambos, o fosfato e a vitamina D ativa, delineiam um típico sistema endócrino de retrorregulação, pois a redução dos níveis plasmáticos de fosfato é um dos mais potentes estimuladores da atividade da enzima renal 1αhidroxilase, que converte a 25hidroxivitamina D no seu metabólito ativo, a 1,25dihidroxivitamina D. Esta, por sua vez, eleva os níveis de fosfatos circulantes por aumento na sua liberação a partir do osso e, principalmente, estimulando sua absorção intestinal, juntamente com o cálcio. O aumento das concentrações de fósforo diminui a atividade da 1αhidroxilase, reduzindo os níveis da 1,25dihidroxivitamina D circulantes, e hoje se sabe que essa inibição é intermediada pelo fator de crescimento fibroblástico 23 (FGF23). A vitamina D, entretanto, parece não ser a única responsável pela elevação dos níveis de fosfato. Em condição de privação, o fosfato é poupado nos seus três compartimentos fundamentais (osso, intestino e rins), mesmo na ausência de vitamina D, sugerindo a presença de outros fatores reguladores. O rim reage imediatamente a modificações nos conteúdos de fósforo plasmático e dietético. O balanço entre a taxa de filtração glomerular e a reabsorção tubular determina uma adaptação renal. A concentração de fosfatos no filtrado glomerular é aproximadamente 90% do plasmático, uma vez que não é todo fosfato que é ultrafiltrável. Sendo assim, a regulação da reabsorção tubular de fosfato é fundamental para que as concentrações de fosfato se mantenham em valores adequados. O hormônio da paratireoide (PTH) reduz a reabsorção tubular de fósforo do filtrado, atuando no túbulo contornado proximal e túbulo distal por vias que ativam a adenilciclase com a produção de AMP cíclico, mas também por vias não dependentes de adenilciclase. No túbulo, a reabsorção de fósforo pode ocorrer por difusão passiva através da membrana basolateral, comandada provavelmente por gradiente elétrico, ou por meio de transportadores de fósforo intracelulares. Mais
recentemente, três famílias de cotransportadores Na+P (Npt) foram identificadas: tipos I, II e III. Estas famílias não apresentam alta homologia em sua sequência primária de aminoácidos e variam substancialmente quanto à afinidade pelo substrato, dependência do pH e expressão tecidual. Trabalhos mais atuais mostram que o cotransportador NaPi tipo II (Npt2) tem um papel crucial no fluxo de fosfato através das bordas em escova das células tubulares renais (Npt2a e Npt2 c) e no intestino (Npt2b). Outros hormônios e alterações metabólicas também modulam a reabsorção de fosfato pelo rim. Dentre estes, PTH, PTHrelated protein (PTHRP), calcitonina, TGFβ, glicocorticoides e a carga de fosfato inibem a reabsorção tubular renal de fosfato, enquanto IGFI, insulina, hormônios da tireoide, 1,25(OH)2D, EGF e depleção de fosfatos aumentam sua reabsorção renal. O alvo comum para ação destes hormônios são as células do túbulo proximal.
Fosfatoninas A ocorrência de doenças ósseas com raquitismo e osteomalacia associadas a hipofosfatemia por aumento da excreção renal de fosfatos reforça a ideia da existência de mecanismos específicos de controle dos níveis de fosfato. Dentre essas moléstias, há o raquitismo hipofosfatêmico ligado ao cromossomo X, o raquitismo hipofosfatêmico autossômico dominante, o raquitismo hipofosfatêmico com hipercalciúria e a osteomalacia oncogênica. Esta última é uma doença óssea grave que acomete em geral adultos previamente sadios, caracterizada por múltiplas fraturas, deformidades e dor óssea intensa que podem levar à dependência física, provocada por pequenos tumores mesenquimais que, quando localizados e retirados, promovem a cura completa da doença. Isso sugeria fortemente a existência de substâncias produzidas por esses tumores, capazes de promover fosfatúria. Pelo menos quatro peptídios fosfatúricos foram isolados desses tumores: fator de crescimento de fibroblastos 23 (FGF23), proteína secretada frizzlerelacionada 4 (sFRP4), fosfoglicoproteína de matriz extracelular (MEPE) e o fator de crescimento de fibroblastos 7 (FGF7). Destes, FGF23 e sFRP4 também têm a capacidade de inibir a 1α hidroxilase, que normalmente deveria estar aumentada em situações de hipofosfatemia, agravando ainda mais o quadro de osteomalacia. Por esse motivo, esses dois peptídios vêm sendo denominados fosfatoninas. Eles atuam inibindo a reabsorção tubular proximal de fosfatos, provavelmente por regulação do Npt2, provocando a internalização destes cotransportadores para o meio intracelular. FGF23 vem sendo considerado atualmente como o principal regulador das concentrações de fosfato inorgânico plasmático. É membro da família do fator de crescimento de fibroblastos, produzido predominantemente pelos osteócitos e osteoblastos, regulado pelas concentrações plasmáticas de fósforo e pelo conteúdo de fosfatos na dieta. Sua ação nos túbulos renais depende da presença do correceptor Klotho, e seu efeito fosfatúrico é produzido pela redução da expressão dos cotransportadores NaPi 2a e 2c nas bordas em escova das células tubulares renais.
DISTRIBUIÇÃO Uma vez no compartimento plasmático, uma parte substancial do cálcio (45%), magnésio (31%) e fosfato (13%) liga se a proteínas circulantes, principalmente a albumina (70%), fazendo com que apenas a fração ionizada participe diretamente nos processos biológicos. Não obstante, esses minerais apresentam grande volume de distribuição, abandonando rapidamente a circulação para os compartimentos extra e intracelular. Mesmo assim, devido à importância fisiológica desses minerais, suas concentrações plasmáticas ionizadas (livres) são mantidas dentro de limites muito restritos por uma série de sistemas de feedback que envolvem múltiplas glândulas e tecidos. Isso é particularmente necessário para o cálcio porque, devido à sua participação na manutenção do potencial de membrana, variações da calcemia, em ambos os sentidos, podem levar a arritmias cardíacas graves, convulsão, coma e morte.
▸ Cálcio, magnésio e fosfato no citosol A matriz mineralizada é bastante rica em cálcio e magnésio, os dois cátions mais abundantes, com grande predomínio do primeiro sobre o segundo. No meio intracelular, entretanto, as concentrações de magnésio chegam a ser 1.000 vezes maiores que as de cálcio. Como acontece com o cálcio, o magnésio intracelular está compartimentalizado em diferentes organelas celulares. A maioria se encontra no núcleo, nas mitocôndrias e nos microssomos. Os fosfolipídios da membrana
carregados negativamente permitem a união do Mg2+ intracelular à membrana, apesar de a maior parte do magnésio intracelular estar ligado ao ATP e a outras substâncias celulares com cargas negativas (citratos, ADP, RNA, DNA, proteínas, lipídios etc.). As concentrações citosólicas de fosfato são cerca de 10 vezes menores que no plasma. O fosfato apresentase incorporado covalentemente a muitas proteínas, lipídios e ácidos nucleicos. Como discutido no Capítulo 3, Sinalização Celular, essa incorporação é bem importante no controle do metabolismo celular, já que muitas enzimas sofrem alterações acentuadas de sua atividade após modificação por fosforilação ou desfosforilação. A concentração citosólica de cálcio ionizado encontrase na faixa de 10 a 100 nM, podendo apresentar elevações acentuadas e transitórias após despolarização da membrana plasmática ou mobilização dos depósitos intracelulares durante a contração muscular. É interessante que o resultado de pequenos influxos de cálcio, originários de porções restritas da membrana plasmática, faz com que o aumento da concentração desse íon possa ser delimitado a pequenos volumes de citosol. Isso se dá graças à pequena mobilidade do cálcio no citoplasma e à alta eficiência de vários sistemas sequestradores de cálcio, que restauram rapidamente a concentração de cálcio ionizado aos níveis normais, sem que o restante do citosol seja perturbado. A manutenção de baixa concentração citosólica de cálcio ionizado é o resultado do controle rígido entre a entrada e a saída de cálcio do citosol. A primeira depende da magnitude e frequência dos influxos de cálcio a partir do meio extracelular e de compartimentos intracelulares, isto é, retículo endoplasmático e mitocôndrias; a segunda é diretamente relacionada com a eficiência dos transportadores de cálcio para fora do citosol. Existem transportadores de cálcio dependentes de energia (Ca2+ATPases) na membrana plasmática, no retículo endoplasmático e sarcoplasmático, assim como nas mitocôndrias. Portanto, a concentração citosólica de cálcio aumenta transitoriamente em alguns processos bem caracterizados: (a) durante o processo de contração muscular, a despolarização do sarcolema leva à liberação maciça de cálcio armazenado no retículo sarcoplasmático; (b) alguns hormônios, após interagirem com seus receptores de membrana, levam à liberação intracelular de trifosfato de inositol (IP3), que ocasiona aumento da permeabilidade do retículo endoplasmático ao cálcio; (c) a excitação de qualquer célula secretora aumenta a permeabilidade da membrana plasmática ao cálcio, fazendo com que quantidades substanciais desse íon movamse, a favor de seu gradiente de concentração, para o interior da célula, desencadeando o processo de secreção/exocitose. Em qualquer uma dessas circunstâncias, entretanto, graças à imediata ativação dos transportadores de cálcio, o aumento do cálcio citosólico é apenas transitório, o que faz as alterações intracelulares desencadeadas por esse íon serem fugazes e reversíveis, isto é, relaxamento muscular, fim da ação hormonal e parada da exocitose.
METABOLISMO ÓSSEO
▸ Organização estrutural do osso O esqueleto pode ser funcionalmente dividido em axial e apendicular. Por esqueleto axial, entendemse os ossos do crânio, da coluna vertebral e da bacia. Do esqueleto apendicular, fazem parte os ossos dos membros inferiores e superiores. Esta divisão apresenta aspectos práticos importantes, uma vez que estes dois setores podem responder de maneiras diferentes a uma série de estímulos. O tecido ósseo pode ainda ser dividido, sob o aspecto morfológico, em cortical e trabecular. Esta caracterização é feita já no nível macroscópico, sendo o cortical um osso compacto, enquanto o trabecular, como o próprio nome diz, é formado por inúmeras traves ósseas, levando a um aspecto esponjoso. O osso cortical é encontrado, predominantemente, nas diáfises dos ossos longos (apendiculares) e recobrindo como uma fina camada a superfície do esqueleto axial, como bacia e vértebras. O trabecular pode ser encontrado nas metáfises dos ossos longos, mas predomina entre as camadas corticais dos ossos chatos, como vértebras, bacia e escápula.
▸ Composição do osso O tecido esquelético é constituído de uma matriz extracelular que contém componentes orgânicos (35%) e inorgânicos (65%). As células correspondem a uma pequena parte da massa óssea, mas são responsáveis: ■ Pela função de regulação da distribuição e do conteúdo do componente inorgânico e, portanto, pela manutenção dos níveis circulantes de cálcio e fósforo (homeostase mineral)
Pela contínua reabsorção e formação (modelação e remodelação) da matriz óssea, fazendo com que o sistema ■ esquelético responda a forças mecânicas geradas pela sustentação de pesos e atividade física (homeostase esquelética). A síntese de matriz proteica (osteoide), que posteriormente será mineralizada graças à deposição de cristais de hidroxiapatita, é feita por células que evoluem por diferentes estágios de maturação e diferenciação. Este processo se inicia nas células indiferenciadas provenientes da medula óssea (mesenquimais e fibroblastos), que se tornam fusiformes, proliferam e apresentam atividade de fosfatase alcalina (préosteoblastos), chegando a células maduras; então, param de se multiplicar e passam a produzir matriz óssea (osteoblastos), para finalmente serem aprisionadas em meio à matriz óssea mineralizada (osteócitos).
▸ Matriz extracelular | Componentes orgânicos A matriz orgânica extracelular é quase exclusivamente (90%) composta por uma proteína, o colágeno, que tem importante participação no processo de mineralização óssea. Os outros 10% correspondem a glicoproteínas, mucopolissacarídios e lipídios cujo papel na fisiologia óssea permanece, em grande parte, obscuro (Quadro 76.4).
Quadro 76.4 ■ Composição da matriz orgânica do osso. ■ Colágenos: predominantemente tipo I, traços dos tipos III, V, XI e XIII ■ Proteoglicanos: biglican, decorina, hialurinan ■ Glicoproteínas: osteonectina, sialoproteína óssea, osteopontina, trombospondina e fibronectina ■ Proteínas com ácido gamacarboxiglutâmico (GLA): osteocalcina, glaproteína da matriz ■ Enzimas: fosfatase alcalina, colagenase, proteinases cisteínas, ativador do plasminogênio ■ Fatores de crescimento: fibroblast growth factors (FGF), insulinlike growth factors (IGF), transforming growth factors beta (TGFβ), proteínas ósseas morfogenéticas (BMP) ■ Proteolipídios O colágeno é o principal componente orgânico da matriz extracelular. O gene dessa proteína contém mais de 50 éxons e inúmeros íntrons, sendo um dos mais complexos que se conhece. O processamento póstranscricional da molécula de mRNA nascente dá origem a moléculas diferentes de mRNA que, após tradução, levarão à formação de cadeias peptídicas diferentes. No osso, a molécula do colágeno do tipo I, rica em glicina, hidroxiprolina e hidroxilisina, é composta por três cadeias peptídicas (duas alfa1 e uma alfa2) que se mantêm ligadas por interações eletrostáticas. O colágeno do tipo I também pode ser encontrado na pele, mas é diferente do colágeno da cartilagem (tipo II), tecido elástico (tipo III) e membrana basal (tipo IV). Após serem sintetizadas e secretadas pelos osteoblastos, múltiplas moléculas de colágeno do tipo I organizamse em série (terminação com terminação) e em paralelo (lado a lado) para formar fibrilas com espessura de 5 a 7 moléculas que permanecem unidas por ligações covalentes. A sobreposição, em paralelo, da extremidade de uma molécula de colágeno sobre a outra e a existência, em série, de um pequeno gap (espaço) entre a terminação de uma molécula e o início da outra, dá origem a regiões periódicas tridimensionais conhecidas por hole zones ou buracos; essas regiões são os locais de início da mineralização óssea (Figura 76.3). Defeitos nos genes que determinam as moléculas do colágeno do tipo I acarretam doença óssea grave, com aumentado risco de fraturas e deformidades, denominada osteogenesis imperfecta. A osteocalcina (proteína GLA) corresponde a 1 a 2% de toda a proteína no osso. Essa proteína (peso molecular de 6 kDa) contém três resíduos de ácido gamacarboxiglutâmico (gla), resultantes de modificações póstraducionais catalisadas por uma enzima dependente da vitamina K. A osteocalcina ligase fracamente ao cálcio, mas apresenta alta afinidade pela hidroxiapatita (1 mg de osteocalcina liga 17 mg de hidroxiapatita). A osteocalcina é sintetizada pelos osteoblastos e também está presente no plasma em concentrações de cerca de 5 ng/m ℓ .A vitamina D estimula a secreção de osteocalcina in vivo e in vitro; os níveis plasmáticos de osteocalcina elevamse após administração de vitamina D e estão drasticamente reduzidos em animais deficientes dessa vitamina. Até o momento, é difícil estabelecer de que modo a osteocalcina participa no processo de mineralização óssea. A osteonectina é uma glicoproteína de peso molecular de 32 kDa, presente em tecido ósseo que está sendo mineralizado. Ela se liga fracamente ao colágeno e apresenta uma alta afinidade pela hidroxiapatita. In vitro, ela facilita a mineralização do colágeno do tipo I, podendo, dessa maneira, participar de modo importante na osteogênese.
As proteínas chamadas de osteoindutoras merecem destaque especial por terem grande significado na diferenciação e na formação do tecido ósseo. Dentre elas estão os transforming growth factors β (TGFβ), os insulinlike growth factors (IGFI e II) e os fibroblast growth factors (FGF). Os TGFβ pertencem a uma superfamília de fatores multifuncionais que participam de crescimento, diferenciação e morfogênese. Esta família é constituída por cinco membros, TGFβ 1 a 5, que são expressos por vários tecidos, incluindo osso, cartilagem, placenta, plaquetas e rins. A descoberta de que os TGFβ induzem formação óssea quando injetados sobre o periósteo de fêmur de ratos recémnatos, e que são sintetizados nas placas epifisárias de crescimento ósseo, fala a favor de sua importância no crescimento, na diferenciação e na formação óssea. Estudos in vitro também apontam para a importância dos IGF e FGF na indução do crescimento ósseo, talvez via controle dos TGFβ.
Figura 76.3 ■ Eventos extracelulares da síntese, maturação e mineralização do colágeno ósseo.
Uma outra família de proteínas osteoindutoras, cuja ação primordial é na indução da formação do tecido ósseo, foi denominada proteínas osteomorfogênicas (bone morphogenetic proteins, BMP). Estas proteínas induzem a formação de cartilagem e osso in vivo. Sua atividade está contida na matriz óssea desmineralizada, podendo somente ser extraída através de agentes dissociativos potentes. Parecem ser de fundamental importância na diferenciação embriológica do osso, no seu crescimento e na reparação de fraturas. Quando injetadas em locais não ósseos do organismo, elas iniciam a formação de cartilagem e osso, atuando na diferenciação das células mesenquimais progenitoras.
▸ Matriz extracelular | Componentes inorgânicos
O componente inorgânico da matriz óssea é constituído, fundamentalmente, de cálcio e fosfato. Inicialmente, ambos são depositados como sais amorfos para mais tarde serem rearranjados em uma estrutura cristalina semelhante à hidroxiapatita [Ca10(PO4)6(OH)2]. Devido à grande superfície de troca iônica da microestrutura cristalina da matriz mineral, muitos outros íons, como Na+, K+, Mg2+ e CO3–, também podem ser encontrados em diferentes proporções; dependendo da ingestão de flúor, quantidades variáveis de fluoroapatita também estão presentes.
▸ Matriz celular O componente celular do tecido ósseo é constituído de três tipos distintos de células: osteoblastos, osteócitos e osteoclastos. Os osteoblastos estão localizados na superfície de formação óssea, sendo responsáveis pela elaboração dos componentes orgânicos da matriz extracelular. São originados a partir da proliferação de células mesenquimais osteoprogenitoras, sob a influência de fatores de crescimento locais, como fatores de crescimento dos fibroblastos (FGF), proteínas morfogenéticas ósseas (BMP) e proteínas Wnt, necessitando dos fatores de transcrição Runx2 e Osterix. Caracterizamse por apresentarem retículo endoplasmático e complexo de Golgi muito desenvolvidos, devido à biossíntese e secreção da matriz orgânica. A membrana plasmática destas células é particularmente rica em fosfatase alcalina (cujas concentrações plasmáticas são utilizadas como marcadores de formação óssea) e tem receptores para PTH, citoquinas e prostaglandinas, mas não para calcitonina. Possuem ainda receptores intracelulares para hormônios esteroides, como estrogênios e vitamina D. Expressam citoquinas em suas membranas, em particular o fator estimulador de colônia 1 (CSF1) e o ligante do receptor NF kappa B (RANKL), que podem ser clivados para ativar a osteoclastogênese, por ação parácrina. Cerca de 10 dias após ser secretada, a matriz orgânica assume sua estrutura tridimensional e forma o osteoide, dando início à mineralização. Durante esse intervalo de 10 dias, o colágeno é processado por peptidases, originando as ligações covalentes intermoleculares que vão assegurar a estrutura da fibrila de colágeno e facilitar a calcificação. Essa região situada entre o osso mineralizado e o osteoide em via de mineralização é conhecida por frente de mineralização óssea. Os osteócitos são as células ósseas mais numerosas e resultantes de osteoblastos diferenciados, que, durante a produção e mineralização da matriz osteoide ao seu redor, acabam sepultados dentro das lacunas ósseas. Isso não significa, entretanto, que eles apresentem modificações acentuadas de suas propriedades funcionais ou estejam isolados dos osteoblastos. Os osteócitos jovens ainda guardam algumas das características ultraestruturais osteoblásticas, sofrem modificações em sua estrutura, de maneira a adquirirem prolongamentos citoplasmáticos que formam uma grande rede no interior do tecido ósseo. Isso os coloca em contato entre si e com os osteoblastos, através de uma vasta rede de extensões citoplasmáticas que caminham dentro de canalículos ósseos. Na realidade, possuem numerosas mitocôndrias e vacúolos, sugerindo alta atividade biológica. Os osteócitos participam ativamente na remodelação óssea; a elevação dos níveis de PTH resulta em aumento do espaço perilacunar que encarcera o osteócito (ver adiante). Admitese que esse processo, conhecido como osteólise osteocítica, seja responsável pela transferência rápida de cálcio da matriz óssea para o espaço extracelular. Além disso, os osteócitos são considerados mecanossensores, capazes de detectar deformidades exercidas por forças mecânicas, orientando o processo de remodelamento de maneira a provocar a adaptação da estrutura óssea segundo as exigências definidas pelas linhas de força. Curiosamente, os osteócitos são os principais responsáveis pela produção do FGF23, principal fosfatonina reguladora das concentrações plasmáticas de fósforo. Os osteoclastos são células gigantes multinucleadas originadas de um precursor monocítico circulante, derivado, em última análise, de uma célula hematopoética precursora localizada na medula óssea (Figura 76.4). Os osteoclastos caracterizamse pela alta mobilidade e, como os osteoblastos, também são encontrados na superfície óssea, em frentes de reabsorção óssea; esse tipo celular movese ao longo da superfície óssea, reabsorvendo osso e deixando uma lacuna de reabsorção no seu rastro (ver adiante). Seu citoplasma contém abundantes mitocôndrias, vacúolos e vesículas envolvidas no processo de reabsorção.
CRESCIMENTO, MODELAÇÃO E REMODELAÇÃO ÓSSEA O tecido ósseo é um tecido dinâmico, que está em constante modificação basicamente devido a três principais processos: crescimento, modelação e remodelação óssea. Durante o desenvolvimento dos vertebrados, o osso pode ser formado por dois diferentes mecanismos – ossificação intramembranosa ou ossificação endocondral. A primeira é efetuada por osteoblastos originários diretamente da
diferenciação de células mesenquimais primitivas. O tecido ósseo primordialmente desenvolvido é desorganizado (chama se osso woven), sendo gradativamente substituído por um osso de conformação lamelar. A ossificação endocondral ocorre a partir de um molde cartilaginoso feito por condrócitos e é o mecanismo mais comum, responsável pelo aparecimento de ossos longos, coluna vertebral, bacia e base do crânio. Este molde cartilaginoso sofre erosões em centros primários de ossificação, sendo substituído por tecido ósseo pela síntese e mineralização da matriz óssea pelos osteoblastos. Após a ossificação, surge a placa epifisária, uma camada cartilaginosa na região de epífise óssea responsável pelo crescimento longitudinal do osso. Esse crescimento é um processo coordenado entre proliferação e maturação da cartilagem, reabsorção da cartilagem calcificada e substituição por tecido ósseo que posteriormente também será calcificado. Inúmeros fatores estão envolvidos na regulação do desenvolvimento e crescimento ósseos; dentre eles, os mais importantes parecem ser os transforming growth factorsβ (TGFβ), insulinlike growth factors (IGFI e IGFII) e fibroblast growth factors (FGF), que serão descritos com mais detalhes adiante.
Figura 76.4 ■ Representação esquemática de um osteoclasto em ação. Note que é uma célula multinucleada com borda em escova, por onde são secretados radicais ácidos pela bomba de prótons e proteases pelos lisossomos, que degradam a matriz óssea. A matriz digerida, provavelmente, é transportada via transcelular em vesículas, ou por vazamento por baixo da zona de aderência.
Embora o crescimento ósseo cesse a partir de uma determinada idade com o desaparecimento das placas epifisárias, os processos de modelação e remodelação persistem durante toda a vida. Estes processos são extremamente bem sincronizados e coordenados entre si, envolvendo vários tipos celulares e regidos por uma série de fatores, dos quais se conhece apenas uma pequena parte. A modelação óssea é a responsável pela arquitetura óssea, que envolve forma, tamanho, quantidade e disposição estrutural de seu tecido, e obedece a estímulos mecânicos externos e não mecânicos locais ou sistêmicos. Embora alterações na forma e no tamanho do osso tendam a desaparecer com a parada de crescimento ósseo, as alterações em sua estrutura microscópica (como a orientação espacial das fibras de colágeno) persistem ao longo da vida, sempre com o objetivo de melhorar a resistência mecânica do osso. Neste aspecto, as forças mecânicas às quais o osso é submetido rotineiramente são de fundamental importância para a formação de um osso resistente. A tensão e a deformação a que é submetido um osso em resposta a uma carga mecânica são fatores fundamentais desencadeadores de uma resposta celular, induzindo a formação ou reabsorção de determinados pontos do esqueleto. Inúmeros dados apontam para a importância
dos osteócitos no controle desta função, por meio da deformidade dos canalículos ósseos e de suas comunicações com outros tipos celulares. Sabese que, a uma determinada força exercida, existe uma reação do organismo com o objetivo de formar mais osso no local que sofre maior tensão, enquanto no local de menor tensão predomina a reabsorção óssea. Há várias teorias que tentam justificar tais achados, como mudança de cargas elétricas ou modificações da passagem dos líquidos dentro dos canalículos ósseos. A própria força da gravidade é fundamental para a manutenção do esqueleto, e um dos principais problemas enfrentados pelos astronautas que permanecem por longos períodos no espaço é a intensa perda óssea a que são submetidos, pela ausência de cargas sobre o próprio esqueleto. A remodelação óssea é um processo contínuo, caracterizado pela sequência de ativaçãoreabsorçãoformação nas chamadas unidades de remodelação óssea, cujo ciclo demora cerca de 3 a 5 meses para se completar. Tem como função a renovação do tecido ósseo sem necessariamente alterar sua arquitetura, além de participar da homeostase do cálcio e outros íons presentes no esqueleto, e será descrita com mais detalhes adiante. Por este processo, calculase que a cada 10 anos o esqueleto de um adulto seja completamente renovado. Forças mecânicas e outros fatores físicos também influenciam a remodelação óssea (formação e reabsorção) por intermédio de mecanismos ainda não esclarecidos. Acreditase que correntes de baixa energia, geradas pela resposta piezoelétrica do cristal de hidroxiapatita à tensão mecânica, possam estar envolvidas. Nesse sentido, atletas apresentam aumento da massa óssea que pode chegar a 20 a 30% do observado em indivíduos normais. Por outro lado, a imobilização de um membro leva, em curto espaço de tempo (dias ou semanas), ao aumento intenso da reabsorção óssea e à osteopenia regional. A interpretação para tais fatos seria a de que o esqueleto se adapta às suas necessidades, em termos de resistência para as cargas que carrega constantemente. Existe a tendência do organismo de procurar sempre a menor massa óssea necessária para suportar o corpo e suas atividades habituais.
▸ Remodelação óssea A remodelação óssea acontece tanto no osso cortical como no trabecular, porém é mais intensa nesse último. Isso se deve à grande superfície existente neste tecido, graças à enorme quantidade de trabéculas ósseas. A remodelação se dá a uma taxa de 10% ao ano e continua por toda a vida em resposta a forças mecânicas e fatores do meio interno; deste modo, como já dito, acreditase que, a cada 10 anos, todo o esqueleto tenha sido renovado. O equilíbrio entre formação e reabsorção óssea, isto é, a homeostase óssea, se mantém até próximo dos 40 anos de idade. A partir daí, entretanto, observase um discreto predomínio da reabsorção sobre a formação óssea, caracterizando um estado de osteopenia fisiológica. Devido à redução dos níveis estrogênicos que ocorre na pósmenopausa, essa condição é mais dramática em mulheres, que chegam a perder cerca de 40 a 50% da massa óssea até o final da vida. O processo de remodelação óssea pode ser dividido em quatro fases: ativação, reabsorção, reversão e formação (Figura 76.5). Esta divisão é baseada na predominância de determinados tipos e atividades celulares observados em cada fase.
Figura 76.5 ■ Representação esquemática das fases da remodelação óssea. (1) Fase quiescente. (2) Recrutamento de osteoclastos. (3) Reabsorção pelos osteoclastos formando a lacuna de Howship. (4) Fase de reversão, quando a lacuna é limpa
e ocupada pelos osteoblastos. (5) Formação óssea com preenchimento da lacuna por tecido osteoide que, posteriormente, será mineralizado, retornando à fase inicial.
Ativação A cada 10 segundos, um novo local de remodelação é ativado. Os fenômenos iniciais que levam à ativação ainda são pouco conhecidos. Tanto estímulos sistêmicos (pelo PTH) como locais (por tensão mecânica ou microfraturas) podem iniciar a ativação. Este papel tem sido atribuído aos osteócitos, que determinariam o local de remodelação. Células mononucleares são recrutadas do tecido hematopoético, sofrem diferenciação e fundemse para finalmente transformarem se em osteoclastos, caracteristicamente células multinucleadas. A remoção da matriz óssea não mineralizada é feita antes que os osteoclastos se fixem na superfície óssea, provavelmente pelas células que recobrem o osso. Os osteoclastos são macrófagos policarióticos tecidoespecíficos, formados a partir das células precursoras localizadas na medula óssea, de origem hematopoética. A presença de células do estroma ou da medula óssea é fundamental para que ocorra esta diferenciação, o que sugeria que fatores produzidos por estas células estimulariam esse processo. Atualmente, sabese que dois fatores são necessários e suficientes para desencadear este processo: a citocina RANKL e o fator de crescimento CSF1 (fator estimulador de colônia tipo 1). Juntos, CSF1 e RANKL são capazes de induzir a expressão de genes que tipificam o osteoclasto, incluindo aqueles que codificam a fosfatase ácida tartaratoresistente, a catepsina K, o receptor de calcitonina e de β3integrina.
Reabsorção Esta fase inclui o atracamento dos osteoclastos ativados ao local determinado para ser reabsorvido, além da digestão e degradação da matriz óssea mineralizada. Depois de atracados, os osteoclastos desenvolvem uma borda em escova na superfície em contato com o osso, e a cavidade formada pela reabsorção logo abaixo desta borda é chamada de lacuna de Howship. Inicialmente, a matriz inorgânica é solubilizada por acidificação do meio promovida pela liberação de prótons pelo osteoclasto. Por esse motivo, o atracamento deve ser forte e produzir tal intimidade entre a membrana plasmática do osteoclasto e a superfície do tecido ósseo, de maneira a impedir o extravasamento dos prótons secretados para a digestão da matriz. A degradação da matriz orgânica é promovida por uma série de hidroxilases e colagenases lançadas para dentro da lacuna. O material degradado é removido, provavelmente, por transporte através da célula (transcitose) ou eliminado por baixo da camada de adesão (ver Figura 76.4). Não se conhecem até o momento todos os mecanismos controladores que regulam a quantidade de tecido a ser reabsorvido. A regulação da reabsorção pode ser feita por fatores que controlam a atividade e o número dos osteoclastos. Foram descritas três substâncias relacionadas com a família do TNF (fator de necrose tumoral) e seus receptores envolvidas neste mecanismo de controle da diferenciação e ativação dos osteoclastos: RANK, seu ligante (RANKL) e a osteoprotegerina (OPG) (Figura 76.6). Os osteoblastos produzem RANKL, que é o ligante do receptor ativador do fator nuclear κB (RANK) existente nas membranas das células hematopoéticas. Sua ligação produz a diferenciação e mantém a função fagocitária dos osteoclastos. Os osteoblastos, por outro lado, produzem e secretam também a OPG, que funciona como uma armadilha que captura o RANKL. Tratase de uma forma solúvel correspondente à fração extracelular do receptor da família dos TNF, que se liga ao RANKL, impedindo sua ligação com o RANK nas células precursoras e, consequentemente, a sua diferenciação para osteoclastos. Foi demonstrado que substâncias sabidamente indutoras da reabsorção óssea estimulam a expressão do RANKL, enquanto diminuem a síntese de OPG. Estudos em ratos transgênicos que hiperexpressam a OPG mostram que esses animais desenvolvem osteopetrose, ao passo que ratos knockout para OPG desenvolvem osteoporose grave com fraturas, além de calcificações vasculares. Citoquinas e fatores de crescimento estimulam diretamente a reabsorção pelos osteoclastos, como IL1, IL2, IL6, TNFα, TGFα e PDGF. O PTH e a 1,25dihidroxivitamina D, assim como uma série de citoquinas (IL1, IL3, IL6, TNFα e β, TGFα) e fatores de crescimento (PDGF), atuam primordialmente aumentando o número de osteoclastos, por induzirem sua diferenciação a partir de seus precursores. É muito provável que a ação destes mediadores se faça por meio do balanceamento entre a produção pelos osteoblastos dos fatores RANKL e OPG. Já está demonstrada a ação reabsortiva (induzida por estímulo da síntese de RANKL pelos osteoblastos) pela 1,25dihidroxivitamina D, PTH, PTHrp, PGE2, IL1, IL6 e TNF. Por outro lado, fatores antirreabsortivos, como estrogênios e algumas BMP, estimulam a produção de OPG, enquanto suprimem a expressão de RANKL pelos osteoblastos. A calcitonina atua diretamente sobre os osteoclastos por receptores específicos de membrana, impedindo a fusão celular prévia à formação dos osteoclastos e inibindo a reabsorção óssea por atuar provavelmente sobre o citoesqueleto destas células.
Figura 76.6 ■ Esquema do controle da reabsorção óssea. Hormônios e substâncias – como PTH, PTHrp, 1,25(OH)D, entre outras – induzem aumento na produção de RANKL pelos osteoblastos, que se ligam ao receptor RANK nas membranas das células hematopoéticas precursoras, estimulando a diferenciação para osteoclastos ativos. Substâncias inibidoras da reabsorção (como estrogênios, BMP etc.) estimulam a produção de OPG, que funciona como uma armadilha, capturando o RANKL disponível e impedindo sua ligação ao receptor, o que diminui o número de osteoclastos ativos e induz a apoptose dos osteoclastos maduros.
Reversão Inclui o período de tempo entre o fim da reabsorção e o início da formação óssea, durando cerca de 1 a 2 semanas. Durante este período, a superfície da lacuna é recoberta por células mononucleares constituídas por uma população heterogênea, que promovem a limpeza do local e recobrem a superfície com uma camada de substância tipo cimento. Esta fase parece ser fundamental no acoplamento entre reabsorção e formação óssea; especulase se este cimento produzido pelas células não teria como função guiar os osteoblastos para a superfície a ser formada.
Formação Iniciase com a diferenciação dos préosteoblastos em osteoblastos. Admitese que existam proteínas liberadas durante a degradação da matriz orgânica, como o transforming growth factorb, capazes de recrutar células osteoprogenitoras para os locais de formação óssea e induzir a diferenciação até osteoblastos e osteócitos. Mais recentemente, novos mediadores da diferenciação dos osteoblastos foram descritos, com destaque para a via de sinalização do Wnt existente na membrana dos seus precursores. Um complexo de três proteínas compõe um receptor de membrana que, quando ativado, desencadeia uma série de reações intracelulares responsáveis pelo acúmulo da βcatenina. Esta proteína se desloca para o núcleo, onde atuará como fator de transcrição de vários genes, induzindo a diferenciação e atividade dos osteoblastos. A proteína relacionada com o receptor de lipoproteínas de baixa densidade, o LRP6, interage com o receptor Frizzled e com os ligantes do Wnt, formando a estrutura quaternária deste complexo receptor de membrana. Estudos em animais e in vitro indicam que a via de sinalização do Wnt é crítica para a diferenciação e função dos osteoblastos. O mecanismo preciso de ação da sinalização do Wnt sobre a função osteoblástica não está totalmente esclarecido, mas existem evidências de que a via canônica da βcatenina também está envolvida neste processo, e de que existe uma interação desta via com a proteína morfogenética 2 (BMP2). Alguns inibidores da ativação destas vias da BMP2 e Wnt, dentre elas a esclerostina, são um produto do gene SOST. Esta proteína é produzida aparentemente apenas pelos osteócitos e tem a capacidade de inibir a ativação da via das BMP e da via canônica de ativação do Wnt, inibindo a diferenciação dos
osteoblastos. A perda da atividade da esclerostina em humanos está relacionada com doenças de alta massa óssea, como Van Buchen e esclerosteose. Mutações ativadoras do LRP5 foram associadas a um fenótipo de aumento de massa óssea, mas sem histórico de fraturas. Alterações que levam à perda de função do LRP5, por outro lado, estão associadas ao fenótipo de osteoporose grave com múltiplas fraturas e alterações oculares. Estudos em camundongos sugerem que a elevação de massa óssea em animais com mutação ativadora do LRP5 decorra de um aumento à resposta do osso à carga mecânica, mas o exato mecanismo biológico ainda não foi decifrado. Estudos recentes abrem uma nova perspectiva, associando a ação do LRP5 à inibição da secreção de serotonina pelas células intestinais. A serotonina atuaria por via endócrina sobre os osteoblastos, inibindo sua diferenciação e atividade. Caso seja confirmada a relevância deste mecanismo endócrino sobre a fisiologia da remodelação óssea, muitos conceitos terão que ser revistos. Sendo assim, a partir de agora um novo horizonte para pesquisa se abriu, no sentido de se reconhecer a existência de um eixo osteointestinal e de todas as implicações que esta nova descoberta poderá trazer para o conhecimento das doenças ósseas. Durante a formação óssea, os osteoblastos ativados recobrem, então, a lacuna de reabsorção e iniciam seu preenchimento com matriz orgânica, predominantemente constituída por colágeno do tipo I. Esta matriz é altamente organizada, e acreditase que as ligações de uma série de proteínas não colágenas às fibrilas de colágeno sejam cruciais para a posterior organização dos cristais de mineralização. A matriz osteoide inicialmente depositada pelos osteoblastos levará aproximadamente 3 semanas para ser mineralizada. Sobre este processo, pouco se conhece, mas sabese que a fosfatase alcalina e a osteocalcina são proteínas fundamentais relacionadas com esta fase da formação óssea. O colágeno é vital para que a mineralização aconteça normalmente. Sua estrutura tridimensional única cria espaços ordenados intermoleculares (denominados hole zones) grandes o suficiente para acomodar os cristais de hidroxiapatita, sem rompimento da estrutura da fibrila de colágeno; o eixo longo do cristal corre paralelamente ao da fibrila, e o mineral apresenta a mesma periodicidade da fibrila de colágeno (64 a 70 nm). O mecanismo de mineralização da matriz óssea não é totalmente conhecido. Admitese que o início da mineralização do osteoide se dê com a exocitose de vesículas osteoblásticas ricas em cálcio e fosfato. Na matriz óssea, os íons cálcio e fosfato permanecem em equilíbrio, ou seja, suas concentrações excedem o produto de solubilidade (CaXP), e a formação dos cristais de hidroxiapatita é evitada pela presença de inibidores da calcificação, como o pirofosfato inorgânico. O osteoblasto contém grandes quantidades de fosfatase alcalina cuja atividade encontrase aumentada nos estados de ativação da formação óssea. Dessa maneira, acreditase que a fosfatase alcalina possa facilitar o processo de mineralização pela clivagem dos grupamentos fosfato, levando tanto à diminuição da efetividade dos inibidores locais da calcificação quanto a um aumento ainda maior da concentração de fosfato nos locais de mineralização. Para que a lacuna seja completamente preenchida e mineralizada, são necessários 3 a 5 meses. A sua completa restauração é fundamental para a manutenção de uma massa óssea constante. Em determinadas situações, tanto fisiológicas (pósmenopausa, senilidade) como patológicas (corticoterapia, hiperparatireoidismo), o preenchimento final não restaura a quantidade de osso que foi retirada, quer por uma reabsorção exagerada, quer por uma formação insuficiente. Isso acarretará um balanço negativo do esqueleto, induzindo, ao longo do tempo, um aumento da fragilidade óssea, com maior chance de fraturas. Muitos outros hormônios e fatores de crescimento sistêmicos podem regular, direta ou indiretamente, a formação óssea por intermédio da estimulação da proliferação dos precursores osteoblásticos (IGF, EGF, FGF, PDGF) e/ou da modulação da formação da matriz óssea (PTH, 1,25(OH)2D, insulina, hormônio do crescimento, esteroides sexuais, calcitonina, hormônio tireoidiano, glicocorticoides). Muitos desses fatores atuam indiretamente, talvez pela ativação de mecanismos locais acopladores da reabsorção e formação óssea. Por exemplo, tanto o PTH quanto a 1,25(OH)2D atuam diretamente nos osteoblastos, diminuindo a síntese de colágeno e reduzindo a formação óssea; entretanto, ambos os agentes aumentam a formação óssea in vivo, por meio de mecanismos ainda não estabelecidos. A calcitonina não age diretamente nos osteoblastos, mas aumenta a formação óssea indiretamente por intermédio de efeitos inibitórios sobre os osteoclastos. Os glicocorticoides reduzem a formação óssea, enquanto a insulina estimula a síntese de colágeno e a multiplicação dos osteoblastos. As prostaglandinas, especialmente as da série E, podem ser importantes reguladores da formação óssea; em altas concentrações, elas inibem a síntese de colágeno, mas, em concentrações mais baixas, estimulam a função osteoblástica.
PARATIREOIDES
▸ Relações anatomofuncionais As glândulas paratireoides têm origem endodérmica a partir do terceiro (as duas inferiores) e quarto (as duas superiores) arcos branquiais. As superiores estão em geral situadas próximo à junção da artéria tireoidiana média e o nervo laríngeo recorrente, enquanto o par inferior apresenta localização variável, perto dos polos inferiores da glândula tireoide. As glândulas têm um formato elipsoide, chegando a pesar em média 30 a 40 mg cada uma. O suprimento sanguíneo é feito, na maioria dos casos, a partir da artéria tireoidiana inferior. Ao microscópio, verificase que as células principais são as mais abundantes, sendo responsáveis pela síntese e secreção do paratormônio (PTH). Normalmente, essas células arranjamse em cordões epiteliais, podendo também apresentar arranjos foliculares e acinares. As células principais podem ser divididas em dois grupos, de acordo com suas características ultraestruturais. As células principais ativas caracterizamse por um proeminente retículo endoplasmático e complexo de Golgi, onde o PTH está sendo sintetizado e processado. Normalmente, elas têm poucos grânulos secretórios, já que o PTH não é armazenado em grandes quantidades. A secreção do PTH ocorre quando os grânulos de secreção fundemse com a membrana plasmática após serem transportados à periferia da célula com ajuda dos microtúbulos. As células principais inativas apresentam um retículo endoplasmático disperso e um complexo de Golgi menos proeminente, além de uma grande quantidade de vacúolos que contêm glicogênio e lipídios. Normalmente, existe um ciclo contínuo das células do estado ativo para o inativo e viceversa. Em glândulas normais, a relação inativa/ativa é cerca de 3:1, podendo chegar até 10:1 em glândulas suprimidas funcionalmente (na hipercalcemia). Um terceiro tipo celular presente nas paratireoides são as células oxifílicas. Elas surgem após a puberdade e caracterizamse por apresentar um núcleo pequeno, citoplasma eosinófilo e mitocôndrias abundantes, além de ausência de características secretórias. Admitese que essas células, cujo número aumenta com a idade, possam representar uma forma degenerada das células principais.
▸ Biossíntese do PTH Por estudos que envolvem a análise do DNA complementar (cDNA) do PTH, verificouse que esse hormônio é sintetizado inicialmente como um polipeptídio de 110 aminoácidos conhecido como prépróPTH. Os 21 aminoácidos que constituem o peptídio sinalizador são clivados da molécula de PTH no interior do retículo endoplasmático, ainda durante o processo de tradução do mRNA, dando origem ao próPTH. Essa sequência sinalizadora é altamente hidrofóbica e está envolvida na transferência do peptídio nascente para o interior do retículo endoplasmático. Após ser sintetizado e processado parcialmente, o próPTH é transportado para o complexo de Golgi, onde é transformado em PTH antes de ser secretado. O próPTH contém seis aminoácidos adicionais na extremidade aminoterminal da molécula de PTH e apresenta atividade biológica desprezível (menor que 0,2% da do PTH), o que faz com que a conversão de próPTH em PTH seja um processo ativador do peptídio hormonal. Portanto, o hormônio intacto em sua forma final ativa tem 84 aminoácidos (Figura 76.7). No entanto, pode ocorrer ainda dentro do citoplasma celular uma clivagem do hormônio ativo em posições que variam entre os aminoácidos 33 a 40, produzindo fragmentos que também são secretados pelas células. Inicialmente, pensavase que tanto fragmentos amino como carboxiterminais produzidos pela clivagem poderiam ser secretados, mas estudos mais recentes falharam em demonstrar a presença de fragmentos aminoterminais circulantes. Portanto, parece que apenas os fragmentos carboxiterminais são secretados para a circulação. Demonstrouse aumento na quantidade de fragmentos carboxiterminais secretada em situações de hipercalcemia, sugerindo que a metabolização intracelular também contribua para a diminuição dos níveis circulantes de PTH intacto diante de elevações da calcemia.
Figura 76.7 ■ Síntese e secreção do PTH pela célula da paratireoide. A forma inicial prépróPTH é sintetizada no retículo endoplasmático a partir do mRNA e contém 110 aminoácidos (aa). A porção prépró é clivada no retículo e no Golgi, formando as vesículas secretoras com a constituição final de 84 aa. Ainda dentro das vesículas, o PTH pode ser degradado em fragmentos carboxi e aminoterminais, em geral entre os aa 33 e 40. Os fragmentos carboxiterminais também podem ser secretados juntamente com as formas intactas. Os aminoterminais, provavelmente, são degradados ainda no interior das células, não chegando à circulação.
O hormônio intacto circulante é rapidamente metabolizado, predominantemente no rim e no fígado, sendo sua meia vida de 4 a 8 min. O grande volume de hormônio circulante corresponde a fragmentos carboxiterminais da molécula, que têm meiavida cerca de 20 vezes superior à da molécula intacta. Até o momento, considerase desprezível a ação biológica deste fragmento. A porção de ligação ao receptor localizase na extremidade aminoterminal da molécula, entre os aminoácidos 18 e 25. Para manter a atividade biológica do hormônio, é necessária a sequência mínima de 1 a 27 aminoácidos. A retirada dos dois primeiros aminoácidos destrói completamente sua atividade biológica sem impedir sua ligação ao receptor, e o fragmento 3 a 34 funciona como um inibidor competitivo in vitro.
▸ Controle da secreção de PTH A concentração de cálcio circulante na forma ionizada (calcemia) é o principal fator que controla a secreção de PTH. As variações do cálcio plasmático são transmitidas para o citoplasma da célula, refletindose na secreção e na síntese de PTH. As células da paratireoide são singulares no sentido de que a diminuição das concentrações intracelulares de cálcio estimula a secreção do PTH, funcionando de maneira oposta ao que ocorre na grande maioria das células secretoras. Um aumento da calcemia, por outro lado, leva a uma rápida inibição da síntese e secreção do PTH. O mecanismo preciso por intermédio do qual o cálcio exerce seus efeitos nas células principais ainda não está totalmente esclarecido. Mais recentemente, foi descrita, em paratireoide bovina, a existência de um receptor ou sensor de cálcio na membrana plasmática. Este receptor pertence à superfamília de receptores acoplados à proteína G, ativando a fosfolipase C e provavelmente inibindo a adenilciclase nos tecidosalvo. O receptorsensor de cálcio contém sete domínios transmembrana, característica dos receptores acoplados à proteína G. Está ligado à fosfolipase C por meio de uma proteína G sensível à toxina pertussis (portanto, a uma proteína Gi). Quando entra em contato com íons Ca2+, Mg2+, Gd3+ ou neomicina, é desencadeado um aumento do cálcio intracelular proveniente de compartimentos citoplasmáticos, com inibição da secreção do PTH. Este receptor sensor de cálcio foi identificado em vários tecidos cálciosensíveis, como as células C da tireoide e as células do túbulo contornado distal. Diversas mutações ativadoras ou inibidoras do receptor já foram descritas e associadas ao hipoparatireoidismo e à hipercalcemia hipocalciúrica familiar, respectivamente.
A participação do cAMP no controle da secreção de PTH é sugerida a partir de experimentos que mostram ativação in vivo da secreção de PTH por substâncias que sabidamente elevam o cAMP intracelular (como dopamina, isoproterenol, prolactina, secretina e PGE2), mesmo na ausência de cálcio extracelular. Por outro lado, substâncias que inibem a secreção de PTH (como cálcio, agonistas alfaadrenérgicos e PGF2alfa) diminuem a concentração de cAMP nas células da paratireoide. Dessa maneira, acreditase que a secreção de PTH esteja intimamente relacionada com o conteúdo de cAMP das células principais. O magnésio parece exercer importante papel na regulação da secreção de PTH. Os estudos demonstram um comportamento bifásico do Mg2+ sobre a secreção de PTH. Tanto concentrações elevadas como extremamente reduzidas inibem a secreção de PTH, provavelmente por mecanismos diferentes. Enquanto altas concentrações de magnésio ou de cálcio se comportam do mesmo modo, inibindo, como seria esperado, a secreção de PTH, concentrações muito diminuídas provavelmente interferem nas reações enzimáticas intracelulares de geração de energia, prejudicando a função das células da paratireoide, também com redução da secreção de PTH como resultado final. Além destes agentes secretores, sabese que a 1,25(OH)2D3, o metabólito ativo da vitamina D, inibe diretamente a síntese de PTH. Receptores de vitamina D já haviam sido identificados nas paratireoides, sugerindo estas glândulas como órgãosalvo desse esteroide. Posteriormente, demonstrouse uma redução do conteúdo de própréPTH mRNA em paratireoides de ratos tratados com vitamina D, de maneira dosedependente. De maneira inversa, os glicocorticoides parecem estimular a síntese de PTH, baseandose nos achados obtidos in vitro em cultura de células de paratireoide.
▸ Efeitos biológicos do PTH A principal função do PTH é controlar a concentração plasmática de cálcio, evitando a hipocalcemia. Como discutido anteriormente, a calcemia é uma função da: (1) taxa de transferência de cálcio do e para o tecido ósseo, (2) taxa de filtração glomerular, e (3) absorção intestinal de cálcio. O PTH estimula a reabsorção de cálcio do filtrado glomerular, aumenta a taxa de reabsorção de cálcio dos ossos e eleva indiretamente (por intermédio do aumento da produção renal da vitamina D3) a taxa intestinal de absorção de cálcio (Figura 76.8). Embora o resultado da ação do PTH nesses três tecidos (rins, osso e sistema digestório) seja o aumento da calcemia, essas ações não ocorrem simultaneamente. O efeito renal é o mais rápido, seguido da reabsorção de cálcio do tecido ósseo, composta de duas fases: (1) a fase precoce, que se manifesta dentro de 2 a 3 h e é independente de síntese proteica, e (2) a fase tardia, que envolve a biossíntese de novas proteínas, provavelmente enzimas lisossomais (colagenase e outras enzimas hidrolíticas), durando tanto quanto permanecer o estímulo do PTH. O aumento da absorção intestinal de cálcio demora para se manifestar (cerca de 24 h), pois depende da formação renal de vitamina D3 que alcança a mucosa intestinal através da circulação; nessas células, a vitamina D3 induz a biossíntese de novas unidades transportadoras de cálcio e fosfato que levam a um aumento da fração absorvida desses minerais. Ainda, em nível renal, o PTH causa maior eliminação de fosfato que resulta em hipofosfatemia.
Figura 76.8 ■ Representação esquemática do controle da síntese da 1,25(OH)2D3. Elevações do PTH em consequência da redução dos níveis de cálcio plasmático, assim como reduções nos níveis plasmáticos de fosfato, estimulam a enzima25(OH)D1 αhidroxilase renal a produzir o metabólito ativo da vitamina D. Esta, por sua vez, estimula a reabsorção óssea, assim como a absorção intestinal de cálcio e fósforo, aumentando seus níveis plasmáticos, que retrorregularão o sistema, suprimindo a
secreção de PTH e a própria atividade da enzima renal. A 1,25(OH)2D3 também é fundamental para que ocorra mineralização normal do esqueleto, por mecanismos ainda não esclarecidos.
▸ Mecanismo de ação do PTH O PTH age nas célulasalvo por meio da interação com receptores específicos localizados na membrana plasmática de alguns tipos celulares renais e ósseos. A porção aminoterminal da molécula ligase ao receptor de membrana acoplado a uma proteína G, com estimulação da adenilciclase e fosfolipase C.O receptor de PTH, tal qual outros receptores ligados à proteína G, tem grande homologia em sua sequência de aminoácidos e estrutura espacial como os receptores de calcitonina, secretina, glucagon, hormônio liberador do hormônio de crescimento e outros. A interação com esses receptores resulta em ativação da adenilciclase e aumento do conteúdo intracelular de cAMP, levando à ativação de sistemas intracelulares dependentes do cAMP. Esses sistemas envolvem quinases proteicas que, quando ativadas, fosforilam proteínas envolvidas no metabolismo celular e transporte de íons, modificando suas funções. O PTH também induz a ativação da fosfolipase C, resultando em um influxo celular de cálcio e aumento do cálcio citosólico, com ativação de proteínas dependentes de cálcio e modificação da função celular.
▸ Ações renais do PTH Reabsorção tubular de cálcio A ação direta do PTH sobre os rins decorre do aumento da reabsorção tubular de cálcio, independente da sua carga filtrada. Algumas horas após a paratireoidectomia, observase aumento da eliminação renal de cálcio, que perdurará até que se desenvolva hipocalcemia, proveniente da falta de PTH. Não obstante, um excesso de PTH pode levar à hipercalciúria, secundária ao aumento da carga filtrada de cálcio provinda da hipercalcemia. Sabese que a maior parte da reabsorção renal de cálcio ocorre no túbulo proximal e é independente do PTH. Acredita se que nessa porção do néfron o transporte de cálcio esteja acoplado ao de sódio, uma vez que a substituição experimental de sódio por colina ou a inibição da Na+/K+ATPase com ouabaína resultam no bloqueio da reabsorção de cálcio. As ações do PTH na reabsorção de cálcio ocorrem, predominantemente, no ramo ascendente da alça de Henle e na porção mais final do túbulo contornado distal. Nessas células, o PTH interage com receptores de membrana, ativando a adenilciclase e levando ao aumento dos níveis intracelulares de cAMP.
Efeito fosfatúrico O efeito fosfatúrico do PTH está entre os primeiros descobertos, entretanto os mecanismos envolvidos ainda não são completamente conhecidos. Em cães, o PTH causa diminuição de 30 a 40% na reabsorção proximal de sódio e fosfato. Infusões de dibutirilcAMP, um análogo do cAMP, conduzem a efeitos semelhantes, indicando que nessas células o PTH também age por meio do sistema adenilciclase/cAMP. Evidências sugerem que o PTH atue nos túbulos contornados diminuindo a expressão do cotransportador NaP tipo 2a (Npt2a).
Outros efeitos na função renal A ação do PTH nos rins resulta em alcalinização da urina com aumento da eliminação de bicarbonato. Isso é devido à inibição direta do PTH sobre a reabsorção de bicarbonato no túbulo proximal, levando a uma espécie de acidose tubular renal proximal. O PTH também conduz à inibição da reabsorção de líquidoss isotônicos no túbulo proximal; nesse caso, o sódio não reabsorvido carrega água para o túbulo distal, aumentando o fluxo urinário e o clearance de água livre. Esse efeito é semelhante ao das catecolaminas que também atuam nos rins por meio de mecanismos que envolvem o sistema adenilciclase/cAMP. Para outras informações a respeito desse assunto, ver Capítulo 52, Excreção Renal de Solutos.
▸ Ações ósseas do PTH O PTH age de maneira importante nos ossos, o principal reservatório de cálcio do organismo, no sentido de estimular a reabsorção óssea, direcionando cálcio para o compartimento plasmático. Inicialmente, o PTH leva a um aumento da reabsorção da matriz óssea (osteólise), ação esta que, como mencionado anteriormente, pode ser dividida em duas fases, precoce e tardia. Em nível celular, esse efeito se caracteriza pela diminuição da atividade dos osteoblastos e pela ativação da função osteoclástica, seguida, tardiamente, da ativação reacional da formação óssea. Como o efeito principal do PTH é
estimular a função osteoclástica, tanto a matriz inorgânica quanto a orgânica são igualmente reabsorvidas, conduzindo, em última análise, à redução da massa óssea como um todo, situação conhecida como osteopenia. A administração de PTH a animais de experimentação leva ao aumento da relação osteoclastos/osteoblastos. Originalmente, acreditavase que o PTH promovesse a conversão dos osteoblastos em osteoclastos ou estimulasse a transformação das células osteoprogenitoras ósseas em osteoclastos. Entretanto, como discutido anteriormente, os osteoclastos não se originam de células ósseas; eles migram para o osso a partir de medula óssea, timo e outras fontes de tecido reticuloendotelial. Os osteócitos também são alvo do PTH. A administração de PTH provoca um aumento das lacunas ósseas imediatamente adjacentes aos osteócitos, ocasionando a osteólise osteocítica. Sob a ação do PTH, essas células apresentam um alongamento com extensão de processos celulares, adquirindo um aspecto estrelado. O PTH estimula a síntese de mRNA nos osteoclastos, aumenta o número de núcleos por osteoclasto, assim como a quantidade de osteoclastos. Além do mais, ele induz um aumento no conteúdo e na secreção de enzimas lisossomais, ativação da anidrase carbônica e um crescimento na incorporação de uridina, todos mecanismos dependentes da transcrição gênica e da síntese proteica. A adição de PTH a fragmentos ósseos em cultura resulta em secreção imediata de betaglicuronidase e hialuronidase antes mesmo da liberação de cálcio. Esses efeitos são acompanhados por uma inibição da síntese de colágeno e um importante aumento da fosfatase alcalina. Acreditase que os mecanismos envolvidos nesses efeitos do PTH englobem aumento do conteúdo celular de cAMP. O espectro de ações do PTH no tecido ósseo (inibição vs. estimulação) sugere que o PTH possa agir em mais de um tipo celular desse tecido. Por intermédio de uma técnica capaz de isolar células ósseas, verificouse que a maior parte das ações estimulatórias do PTH se dá nos osteoclastos e se caracteriza pela ativação das enzimas lisossomais. Por outro lado, as ações inibitórias (via citrato descarboxilase, fosfatase alcalina e síntese de colágeno) são restritas aos osteoblastos. Apesar de esses resultados indicarem que, no tecido ósseo, mais de um tipo celular pode apresentar receptores para o PTH, com base em estudos ultraestruturais admitese que apenas os osteoblastos mostrem tais receptores. Nesse caso, as ações do PTH sobre os osteoclastos deveriam ser mediadas por fatores locais (prostaglandinas) liberados a partir dos osteoblastos, para assegurar a homeostase óssea.
PTHRELATED PEPTIDE Há alguns anos, foi identificada uma proteína isolada a partir de tumores malignos de linhagem epitelial, que se relaciona com a instalação de uma manifestação paraneoplásica muito frequente: a hipercalcemia humoral da malignidade. Já se sabia que tal quadro clínico era caracterizado por hipercalcemia associada a hipofosfatemia e a níveis elevados de cAMP nefrogênico, quadro laboratorial idêntico ao decorrente do excesso de PTH observado no hiperparatireoidismo primário. Ao se isolar e identificar a proteína, observouse enorme semelhança em sua porção aminoterminal com a molécula de PTH. Dentre os primeiros 13 aminoácidos, 9 são idênticos e utilizam o mesmo receptor de membrana. Este peptídio foi então denominado PTHrelated peptide ou PTHrp. Posteriormente, uma série de descobertas foram feitas, como sua localização genética no cromossomo 12, enquanto o gene do PTH situase no cromossomo 11. Já se acreditava, por uma série de outros genes correlatos encontrados nestes dois cromossomos, que o cromossomo 11 tenha decorrido de uma duplicação no cromossomo 12 durante a evolução das espécies. A localização do gene do PTHrp no cromossomo 12 corrobora esta teoria. Este peptídio parece ser de fundamental importância na manutenção dos níveis calcêmicos do feto, ativando a Ca2+ ATPase existente na placenta, sendo o responsável pelos elevados níveis de cálcio do feto em relação aos níveis maternos. Depois do nascimento, o PTH assume suas funções reguladoras, e os níveis circulantes de PTHrp se reduzem drasticamente. Seus efeitos sistêmicos sobre a calcemia somente retornam quando tumores malignos se desenvolvem, voltando a ser secretado em grandes quantidades e induzindo a hipercalcemia. Embora seus níveis plasmáticos sejam extremamente reduzidos após alguns dias do nascimento, esta fetoproteína está presente em inúmeros tecidos, porém seus efeitos ainda permanecem desconhecidos.
CÉLULAS PARAFOLICULARES | CALCITONINA A calcitonina é produzida principalmente pelas células parafoliculares ou células C da tireoide, embora imunorreatividade para calcitonina também possa ser observada em outros tecidos, como pulmão, timo, suprarrenais e sistema nervoso central. Isso explica por que se podem encontrar níveis circulantes de calcitonina em indivíduos
tireoidectomizados. As células C originamse embriologicamente da crista neural, mais precisamente do quarto arco branquial, e incorporamse à glândula tireoide nos mamíferos ou concentramse no corpo ultimobranquial em peixes, anfíbios, répteis e aves. Essas células situamse na região central do terço médio de ambos os lobos da tireoide, correspondendo a cerca de 0,1% da massa de células epiteliais. As células parafoliculares estão localizadas entre os folículos tireoidianos, permanecendo separadas do lúmen folicular e coloide pelo epitélio de células foliculares. Elas fazem parte do grupo de células APUD (amine precursor uptake and decarboxylation), que implica células que têm a capacidade de captar os precursores de aminas, como dopa e 5hidroxitriptofano, decarboxilálos e convertêlos em dopamina e serotonina, respectivamente, empacotandoas em grânulos citoplasmáticos. Deste grupo, fazem parte também as células produtoras de insulina, glucagon e gastrina. A análise ultraestrutural das células parafoliculares mostra grânulos de secreção (contendo calcitonina e próximos à membrana celular), extensa rede de microtúbulos, complexo de Golgi desenvolvido e mitocôndrias abundantes.
▸ Biossíntese e secreção da calcitonina A calcitonina é sintetizada inicialmente na forma de um prépróhormônio (15 kDa) e em seguida sofre processamento enzimático, com a liberação de fragmentos carboxi e aminoterminais, até a forma madura de 32 aminoácidos (Figura 76.9); então, é empacotada em grânulos citoplasmáticos e secretada para a circulação. Apresenta aspectos peculiares em sua síntese, pois, a partir da transcrição de seu gene, podem originarse dois peptídios diferentes, com funções aparentemente muito diversas. Sua síntese é determinada a partir do gene localizado no cromossomo 11, que tem 6 éxons. A cada ativação deste gene, os 6 éxons são transcritos e a molécula de RNA formada sofre o que se chama processamento alternativo, quando, juntamente com os íntrons, alguns dos éxons são retirados (Figura 76.10). Conforme os éxons restantes, podemse obter dois peptídios diferentes: a calcitonina propriamente dita e o CGRP (calcitoningene related peptide), de maneira não equimolar. Esta síntese preferencial é tecidoespecífica, e a calcitonina é produzida principalmente pelas células C da tireoide, enquanto o CGRP, pelas células do SNC. Este último peptídio é descrito como potente vasodilatador, sem ações importantes no que diz respeito à homeostase do cálcio.
Figura 76.9 ■ Gene da calcitonina. A partir de 6 éxons, por meio do processamento do mRNA, 2 diferentes peptídios são formados, a calcitonina e o CGRP (calcitoningene related peptide). Ambos os prépeptídios liberam fragmentos amino (NTP) e carboxiterminais (CTP).
Figura 76.10 ■ Sequência dos aminoácidos da molécula de calcitonina humana. O anel da extremidade aminoterminal é formado por uma ponte dissulfídica entre os dois resíduos cisteínicos. Para haver atividade biológica, é necessário o resíduo prolina ligado a um radical amida na porção carboxiterminal.
A estrutura molecular da calcitonina já foi determinada em várias espécies animais, apresentandose relativamente conservada durante a evolução. É constituída por 32 aminoácidos (PM 3.500 Da). Dentre os 9 primeiros aminoácidos, 7 são idêntidos em todas as espécies animais estudadas, além de uma molécula de glicina na posição 28 e de um resíduo de prolina amidada na extremidade carboxiterminal. Um anel na extremidade aminoterminal, determinado por uma ponte dissulfídica entre os resíduos de cisteína nas posições 1 e 7, também é observado em todas as formas de calcitonina estudadas (ver Figura 76.10).
▸ Controle da secreção e síntese da calcitonina Quando os níveis de cálcio se elevam agudamente no sangue, ocorre elevação proporcional das concentrações de calcitonina circulante. Esta é a base do teste de estímulo utilizado na prática clínica para detecção de carcinoma das células C, chamado de carcinoma medular de tireoide. Por outro lado, os efeitos de uma hipercalcemia ou hipocalcemia crônicas sobre suas concentrações são bastante controversos na literatura. Em humanos portadores de hiperparatireoidismo com hipercalcemia, foram descritos níveis de calcitonina elevados, normais ou diminuídos. Em ratos paratireoidectomizados, a hipocalcemia está associada a aumento do conteúdo tireoidiano de calcitonina e de seus níveis circulantes, enquanto a hipercalcemia crônica leva a depleção dos grânulos de calcitonina e diminuição do conteúdo tireoidiano de calcitonina, porém seus níveis circulantes basais encontramse nos limites da normalidade. Os hormônios gastrintestinais, depois do cálcio, são os mais importantes secretagogos da calcitonina, dentre eles a gastrina, a colecistoquinina, o glucagon e a secretina, sendo a gastrina o mais potente deles. Outro teste de estímulo para detecção do carcinoma medular de tireoide baseiase justamente na resposta da calcitonina a uma injeção intravenosa de pentagastrina, um derivado sintético da gastrina. Em homens, durante o período pósprandial podemse observar elevações nos níveis plasmáticos de calcitonina, e a instilação de cálcio no estômago de ratos normais quase não altera a calcemia, enquanto em ratos tireoidectomizados o mesmo procedimento leva à hipercalcemia. Estes achados indicam que hormônios gastrintestinais interferem nos níveis basais de calcitonina. Existe uma nítida diferença desses níveis em relação ao sexo.
Na espécie humana, os homens têm níveis aproximadamente duas vezes mais elevados que os das mulheres. Devido a esta diferença sexual, especulase se os hormônios sexuais teriam algum papel na determinação deste dimorfismo. Em ratos, podese demonstrar uma nítida correlação positiva entre níveis plasmáticos de estrógenos e de calcitonina, mostrando queda de seus níveis após castração, assim como elevação depois de reposição estrogênica. Em ratos, no entanto, os níveis mais elevados de calcitonina são encontrados nas fêmeas, prejudicando a transferência destes achados para a espécie humana. Em mulheres, alguns trabalhos mais antigos sugeriam também a existência de uma correlação direta entre estrógenos e calcitonina, mas a maioria dos trabalhos mais recentes, realizados tanto in vitro como in vivo e que utilizaram métodos mais sensíveis e específicos para dosar calcitonina, não demonstraram qualquer correlação entre ambos os hormônios. O que se constatou foi uma diminuição dos níveis basais de calcitonina com o envelhecimento, nos dois sexos. Outros períodos relacionados com elevação dos níveis basais de calcitonina são gestação e lactação, mas o mecanismo que rege esta elevação temporária permanece desconhecido. A 1,25dihidroxivitamina D inibe, enquanto os glicocorticoides estimulam, a síntese de calcitonina, já demonstrado não só in vivo (em ratos) como também in vitro. A importância fisiológica destes achados ainda permanece desconhecida. Um dado interessante é a constatação de que a dexametasona não apenas estimula a produção de CTmRNA como inibe a produção do CGRPmRNA, provavelmente por atuar no processamento do RNA póstranscricional. Os estudos in vitro demonstram a existência de pelo menos três vias de controle da secreção aguda da calcitonina (Figura 76.11). A primeira delas é a elevação aguda dos níveis de cálcio intracelular. As células C da tireoide se mostram sensíveis a pequenas variações de concentração de cálcio extracelular, mesmo que dentro de limites fisiológicos, que são transmitidas para o interior das células por meio de mecanismos não totalmente esclarecidos. Os canais de Ca2+ dependentes de voltagem parecem desempenhar importante papel neste controle, pois já se demonstrou que agonistas desses canais, assim como elevações das concentrações de K+ extracelular, aumentam a secreção de calcitonina pelas células C. Mas este parece não ser o único mecanismo responsável por aumentos intracelulares de Ca2+ nestas células, principalmente por aumentos mantidos observados mesmo na vigência de clamps de voltagem. Elevações crônicas dos níveis de Ca2+, ao contrário do esperado, não levam à subida dos níveis de calcitonina. Isso já foi observado in vivo, em pacientes portadores de hipercalcemia crônica devido a hiperparatireoidismo primário. Estudos in vitro não apenas confirmam estes dados, mas mostram ainda uma diminuição dos níveis secretados e intracelulares de calcitonina, após incubação prolongada com níveis elevados de Ca2+. Parece ocorrer uma dessensibilização das células C com níveis aumentados mantidos de Ca2+ no meio de cultura. Já foi constatado também que o Ca2+ não é suficiente, por si só, para promover um incremento nos níveis de calcitonina mRNA, não estimulando, portanto, a sua síntese (ver Figura 76.11).
Figura 76.11 ■ Prováveis vias intracelulares do controle da secreção de calcitonina e seus segundosmensageiros. CT, calcitonina; FLC, fosfolipase C; PIP2, 4,5difosfato de fosfatidilinositol; DAG, diacilglicerol; IP, fosfato de inositol; IP3, 1,4,5trifosfato de inositol; G, proteína G; i, inibidora; s, estimuladora.
Uma outra via também envolvida na secreção de calcitonina é a do cAMP. Um aumento dos níveis de cAMP se acompanha de elevações paralelas dos níveis de calcitonina secretada in vitro. Alguns peptídios envolvidos na secreção de calcitonina sabidamente atuam promovendo elevação dos níveis intracelulares de cAMP (como glucagon, GHRH, histamina, isoproterenol e PGE2) ou diminuição (p. ex., somatostatina). Somente hormônios peptídicos ou neurotransmissores que se ligam a um receptor específico na membrana celular têm a capacidade de ativar a adenilciclase. Esta ativação se faz através da unidade G localizada na membrana celular. A geração de cAMP pela célula exerce seu efeito regulatório por intermédio da ativação de quinases proteicas intracelulares (ver Figura 76.11). Ao contrário dos aumentos intracelulares de cálcio, as elevações das concentrações citoplasmáticas de cAMP são seguidas de ativação da proteinoquinase A (PKA), com consequente ativação da transcrição gênica de calcitonina, constatada por uma subida dos níveis de mRNA específico. A terceira via de controle da secreção e síntese de calcitonina se faz, provavelmente, por meio do metabolismo dos inositóislipídios contidos na membrana celular (ver Figura 76.11). O 4,5difosfato de fosfatidilinositol localizase na membrana celular e, sob ação da fosfolipase C, é degradado em diacilglicerol (DAG) e IP3. O DAG ativa a proteinoquinase C existente no citoplasma (PKC), desencadeando uma série de reações que culminam com aumento da secreção de peptídios e efeitos sobre a proliferação celular. O IP3, por outro lado, promove aumento dos níveis de cálcio citoplasmático vindo de compartimentos intracelulares, levando à fosforilação de proteínas por quinases proteicas dependentes de cálcio. Há evidências sugerindo que a intermediação do receptor celular e fosfolipase C é realizada também por uma proteína G específica. A existência desta outra via de controle foi verificada por trabalhos in vitro que utilizam ésteres de forbol, produtos que ativam diretamente a proteinoquinase C, com consequente aumento na secreção e síntese de calcitonina. No entanto, ainda não foram identificados os peptídios que atuam fisiologicamente por esta via.
▸ Efeitos biológicos da calcitonina O principal efeito da calcitonina é o de reduzir os níveis circulantes de cálcio e fósforo, principalmente por uma inibição da saída destes minerais do osso.
Receptores de calcitonina foram identificados em diferentes tecidos, como rim, osso, sistema nervoso central e hipófise. Sua presença no rim e no osso pode justificar seu papel no metabolismo mineral; no entanto, sua ação no sistema nervoso central e na hipófise ainda necessita ser esclarecida. No osso, seus receptores já foram identificados nos osteoclastos e em células da medula óssea. Seu principal efeito é inibir a reabsorção óssea pelos osteoclastos, inclusive induzindo modificações morfológicas na célula, reduzindo sua característica borda em escova. Os efeitos inibitórios da calcitonina sobre a reabsorção óssea são amplos. Virtualmente, todas as alterações induzidas pelo PTH ou outros agentes (prostaglandinas, cAMP, vitamina D e vitamina A), tais como mudanças da atividade de enzimas lisossomais, liberação de minerais e degradação do colágeno, são abolidas na presença da calcitonina. Além do mais, quando estudada in vitro, a calcitonina causa inibição da reabsorção óssea induzida pelo PTH, caracterizada pela diminuição da liberação de 45Ca2+ para o meio de incubação, associada à diminuição da fosfatase alcalina e pirofosfatase alcalina, e queda na produção de hidroxiprolina. Sua ação se faz por meio da ligação a estes receptores específicos, sendo mediada, pelo menos em parte, pelo sistema adenilciclase/cAMP. No tecido ósseo, a calcitonina leva à ativação da adenilciclase, resultando em um aumento dos níveis intracelulares de cAMP que mostra paralelismo com seus efeitos biológicos. Após o tratamento com doses elevadas de calcitonina por certo período de tempo, pode ser observado o aparecimento de um fenômeno de escape ou resistência, tanto em estudos in vitro como no uso terapêutico da calcitonina. Este fenômeno vem sendo atribuído a uma contrarregulação por redução do número de receptores ou de sua sensibilidade, ou ainda ao desenvolvimento de linhagens de osteoclastos resistentes à sua ação. Receptores específicos da calcitonina foram identificados em rins de humanos e de roedores, estando localizados no segmento ascendente da alça de Henle, na porção terminal do túbulo contornado distal e na porção cortical do tubo coletor. Sua ativação implica a elevação dos níveis de cAMP, por ativação da adenilciclase renal, independente da ação do PTH. Seu papel em nível renal, entretanto, ainda permanece obscuro, uma vez que tem apenas um fraco poder calciúrico e de se envolver, em algum grau, na excreção de outros eletrólitos e de água. Dispõe ainda da capacidade de estimular a 1α hidroxilase renal, elevando a produção de 1,25dihidroxivitamina D. Este esteroide tem por função aumentar a absorção intestinal de cálcio, o que estimularia ainda mais a secreção rápida de calcitonina. Por outro lado, ocorre uma ação supressiva da 1,25dihidroxivitamina D sobre a síntese de calcitonina, atuando diretamente sobre as células C. Alta densidade de locais de ligação de calcitonina foi identificada no SNC, principalmente na hipófise, no hipotálamo e nos núcleos da base. Além de interagir com hormônios hipofisários, como o hormônio de crescimento e a prolactina, a calcitonina parece estar relacionada com controle da percepção da dor, apetite, iniciação da lactação, e em nível de hipotálamo, deve ter um papel de neurotransmissor, embora a comprovação desta hipótese seja difícil de conseguir.
VITAMINA D Desde a descoberta da vitamina D, no início do século passado, fracassam as tentativas de classificála em uma categoria química ou biológica. Foi inicialmente descrita como um nutriente lipossolúvel, que prevenia e curava o raquitismo. Depois, descobriuse que essa vitamina poderia ser sintetizada na pele, sob a influência da luz ultravioleta, mas a importância da capacidade desta síntese foi subestimada, permanecendose na crença de que a fonte alimentar exógena seria a principal via de obtenção de vitamina D do organismo. A partir da constatação, já no fim da década de 1970, de que a síntese na pele é a responsável pela maior parte da vitamina D circulante, ela deixou de ser vista como um nutriente, e também, por definição, não poderia ser considerada uma vitamina, porém a nomenclatura persiste. Nos idos de 1960, descobriuse que essa vitamina necessita de metabolização prévia para tornarse biologicamente ativa, e que ela atua em tecidosalvo a distância, de maneira semelhante aos hormônios esteroides; desde então, é considerada como tal, cuja função relacionase com a manutenção do metabolismo de cálcio do organismo. Entretanto, uma série de novas ações da vitamina D não relacionadas com o metabolismo de cálcio vêm sendo descritas, demonstrando que estamos longe de uma compreensão total sobre seu papel biológico.
Figura 76.12 ■ Síntese epidérmica da vitamina D3. A irradiação ultravioleta penetra na pele e atua sobre o precursor 7 deidrocolesterol, provocando uma cisão entre os C9 e C10 do núcleo ciclopentanoperidrofenantreno da molécula, transformandoo na vitamina D3.
As vitaminas D (calciferóis) formam uma família de secoesteroides lipossolúveis e biologicamente ativos. Os secoesteroides são semelhantes aos esteroides, mas apresentam uma clivagem entre os carbonos C9 e C10, em um dos anéis do núcleo básico dessas moléculas, o ciclopentanoperidrofenantreno (Figura 76.12). Entretanto, o metabolismo e o mecanismo de ação dessas moléculas são análogos aos dos esteroides.
▸ Metabolismo da vitamina D Dois compostos diferentes são chamados de “vitamina D”: o ergocalciferol (vitamina D2) e o colecalciferol (vitamina D3). Eles diferem em dois aspectos: na origem (os compostos D2 são de origem vegetal, enquanto os D3, de origem animal) e na estrutura de suas cadeias laterais. Na realidade, os índices utilizados na nomenclatura da vitamina D refletem apenas a ordem com que os compostos foram decobertos; as vitaminas D2 e D3 são metabolizadas igualmente e têm potência biológica equivalente, podendo ser denominadas indistintamente vitamina D (Figura 76.13). Os precursores da vitamina D são produzidos em vegetais (ergosterol) e animais (7deidrocolesterol), por intermédio de uma série de condensações da acetilcoenzimaA. O lanoesterol é o precursor do ergosterol e do 7deidrocolesterol; este último consiste em um produto alternativo de uma via envolvida na biossíntese do colesterol, principalmente na derme e epiderme humana. Radiações na faixa ultravioleta (230 a 313 nm) penetram a pele, levando à transformação de 7 deidrocolesterol em prévitamina D3; a prévitamina D3 e a vitamina D3 são isômeros que permanecem em um equilíbrio físicoquímico que favorece a vitamina D3 (ver Figura 76.12). Quanto menor o comprimento de onda da luz UV e quanto maior a pigmentação da pele, menor a penetração e, consequentemente, menor a formação de vitamina D. Por outro lado, inexiste o risco de um indivíduo desenvolver intoxicação por essa vitamina em caso de exposição solar prolongada, pois um mecanismo de proteção passa a converter a prévitamina D3em um isômero inativo, o lumisterol. Nas zonas tropicais, existe luz solar adequada para garantir a síntese epidérmica e a liberação de quantidades suficientes de colecalciferol, fazendo com que os indivíduos sejam independentes das fontes alimentares de ergo ou colecalciferol. Em zonas temperadas, entretanto, a concentração plasmática de vitamina D apresenta variação sazonal, atingindo os níveis mais altos após os meses de verão e mais baixos depois do inverno. A produção dessa vitamina varia em função da latitude, das estações do ano, da pigmentação da pele e da superfície corporal exposta à luz UV. Devido a estes aspectos, alguns países (p. ex., EUA e Canadá) enriquecem seus alimentos, como o leite e seus derivados, com vitamina D. A necessidade diária varia de 400 a 800 UI/dia ou 10 a 20 μg/dia (1 UI = 0,025 μg vitamina D).
Figura 76.13 ■ Estrutura das moléculas de vitamina D2 e D3. Note que diferem apenas com respeito ao radical ligado ao carbono 17.
A vitamina D é encontrada apenas em pequenas quantidades na dieta habitual. Grandes quantidades são obtidas em óleos de fígado de peixes. Normalmente, 60 a 90% do calciferol presente na dieta é absorvido através do intestino delgado, por mecanismos semelhantes àqueles que permitem a absorção do colesterol. Logo após sua absorção, a vitamina D é transportada em quilomícrons pelo ducto torácico; em seguida, no sangue, é associada a uma proteína transportadora específica (transcalciferina). Quando administrada por via intravenosa em ratos com deficiência de vitamina D, cerca de 30% da vitamina D é captada pelo fígado para ser liberada horas mais tarde como 25(OH)D3(ver adiante). Durante excesso de ingestão de vitamina D, entretanto, mais da metade da vitamina D administrada depositase no tecido adiposo, sendo liberada lentamente para a circulação durante meses.
▸ Hidroxilação da vitamina D A vitamina D é biologicamente inativa. Para ela se tornar ativa, é transformada em metabólitos mais polares por meio de hidroxilações que ocorrem no fígado e nos rins. Após sua administração a um animal deficiente em vitamina D, observase um intervalo de 6 a 12 h até que respostas biológicas sejam notadas. Esse período de tempo reflete a necessidade de ativação das moléculas de calciferol antes que possam agir em seus tecidosalvo. As reações envolvidas nessa ativação foram caracterizadas pelo emprego de traçadores radioativos. Depois de administração de vitamina D, percebese o aparecimento de uma série de metabólitos mono e dihidroxilados, e, nos tecidosalvo, observase o acúmulo da forma dihidroxilada, a 1,25(OH)2D (Figura 76.14).
25hidroxilação Uma análise sequencial das modificações sofridas pela molécula de vitamina D indica que a etapa inicial é a introdução de um grupamento hidroxila no carbono 25. Quando injetada em animais deficientes nessa vitamina, a 25(OH)D age mais rapidamente que seus precursores, mostrando certa atividade biológica intrínseca nos tecidosalvo. O fígado é o principal local de 25hidroxilação da vitamina D, embora essa reação também possa ocorrer, em menor escala, no intestino e nos rins. A enzima 25hidroxilase está presente nas frações microssomais e mitocondriais dos hepatócitos, sendo pouco regulável; apenas a fração microssomal pode ser discretamente inibida pelo acúmulo do produto 25hidroxilado. Em consequência, o maior determinante da quantidade circulante de 25(OH)D é a porção de vitamina D disponível no plasma, quer de origem endógena ou exógena. Portanto, a determinação dos níveis plasmáticos de 25(OH)D reflete precisamente a reserva de vitamina D do organismo. Seus níveis plasmáticos normais variam de 10 a 50 ng/m ℓ . Sinais clínicos de hipovitaminose D surgem com níveis de 25(OH)D inferiores a 5 ng/m ℓ . Como a 25(OH)D apresenta baixa hidrossolubilidade, cerca de 50% do estoque corporal permanece circulando ligado a uma alfa2globulina hepática, a transcalciferina, de 55 kDa; o restante é mantido no interior das células ligado a proteínas citoplasmáticas.
1αhidroxilação
A 1,25(OH)2D é o metabólito mais potente da vitamina D (ver Figura 76.14). No ser humano, a concentração plasmática da 1,25(OH)2D varia entre 30 e 50 pg/mℓ, cerca de um milésimo da concentração de 25(OH)D. A conversão da 25(OH)D em 1,25(OH)2D, o principal ponto de controle do metabolismo da vitamina D, ocorre nos rins sob a ação da enzima 25(OH)D 1αhidroxilase, situada nas mitocôndrias dos túbulos contornados proximais; a placenta, o osso e, provavelmente, as células hematopoéticas também são capazes dessa conversão. Apesar de a maior parte dos estudos empregar a 25(OH)D3 como substrato dessa enzima, acreditase que 25(OH)D2, 24,25(OH)2D3, 25,26(OH)2D3 e outros metabólitos 25hidroxilados também sejam bons substratos para a 25(OH)D 1αhidroxilase. Esta enzima é uma monooxigenase que se localiza na membrana interna das mitocôndrias. Na verdade, tratase de uma cadeia de transporte eletrônico formado por três componentes proteicos: ferredoxina redutase, ferredoxina e citocromo P450. A ferredoxina redutase recebe elétrons do fosfato de nicotinamidadinucleotídio (NADPH), que são transportados até a ferredoxina, uma ferrossulfoproteína. A ferredoxina é o componente regulador, que transporta os elétrons até o citocromo P450, o qual, na presença de oxigênio molecular, produzirá a hidroxilação do substrato 25(OH)D na posição 1α. Ao contrário da 25hidroxilase, a atividade da 25(OH)D 1αhidroxilase é finamente modulada, ou seja, pode aumentar ou diminuir de acordo com o momento homeostático do organismo. Nesse sentido, o déficit alimentar de vitamina D leva ao aumento de 5 a 20 vezes na atividade da 25(OH)D 1αhidroxilase, retornando ao normal após alguns dias de reposição da vitamina D; da mesma maneira, a administração de excesso de vitamina D resulta em elevação marcante nos níveis plasmáticos de 25(OH)D, enquanto os níveis de 1,25(OH)2D permanecem dentro da normalidade. Diversos fatores foram identificados como controladores da atividade da 1αhidroxilase (ver Figura 76.14), porém os mais importantes são o PTH, o fosfato e os próprios níveis de 1,25(OH)2D circulantes. Quando os níveis de cálcio ionizado caem, as paratireoides reagem imediatamente, liberando paratormônio. Este hormônio eleva a mobilização de cálcio do osso e aumenta a fração reabsorvida de cálcio, assim como a excretada de fósforo pelo rim, produzindo efeitos rápidos sobre a calcemia. Como o PTH é um potente estimulador da 1αhidroxilase, aumenta a síntese de 1,25(OH)2D, com consequente incremento da absorção intestinal de cálcio e fósforo, evitando, assim, a evolução para hipocalcemia. A 1,25(OH)2D, por sua vez, atua sobre as paratireoides, suprimindo diretamente a síntese de PTH, caracterizando uma típica alça de retrorregulação endócrina.
Figura 76.14 ■ Estrutura da forma ativa da vitamina D, a 1α25dihidroxivitamina D3. Na passagem pelo fígado, a vitamina D sofre hidroxilação na posição 25. No rim, por intermédio da 1αhidroxilase, transformase na vitamina D ativa pela adição de uma hidroxila na posição 1.
A fosfatemia também modula a atividade da 25(OH)D 1αhidroxilase por intermédio de mecanismos independentes do PTH. A depleção do fosfato leva ao aumento dos níveis circulantes de 1,25(OH)2D3 e à maior absorção intestinal de cálcio e de fosfato. Elevandose os níveis de cálcio, também a secreção de PTH será suprimida, diminuindo consequentemente a
excreção de fosfato pelo rim, o que contribui para a subida de seus níveis plasmáticos. O aumento dos níveis de fosfato, por outro lado, inibe a atividade da 1αhidroxilase, reduzindo a síntese de 1,25(OH)2D.
24hidroxilação Outro metabólito importante da vitamina D é a 24,25(OH)2D. Em condições normais, os níveis plasmáticos de 24,25(OH)2D são cerca de 10 vezes inferiores aos de 25(OH)D e 100 vezes superiores aos de 1,25(OH)2D. O principal local da 24hidroxilação da 25(OH)D é o tecido renal, embora indivíduos anéfricos ainda apresentem 24,25(OH)2D circulante em menor quantidade. Como a 25(OH)D 1αhidroxilase, a 25(OH)D 24hidroxilase também está presente nas mitocôndrias e dispõe de estrutura semelhante; ambas sofrem influências de fatores em comum, porém respondem em sentidos opostos. A atividade da 25(OH)D 1αhidroxilase e os níveis de 1,25(OH)2D diminuem progressivamente com o aumento da concentração plasmática de fosfato; por outro lado, a atividade da 25(OH)D 24hidroxilase e os níveis circulantes de 24,25(OH)2D aumentam de modo direto com a fosfatemia. A administração de 1,25(OH)2D para frangos deficientes em vitamina D inibe, em questão de horas, a transformação de 25(OH)D3 para 1,25(OH)2D; ao mesmo tempo, ativa a produção de 24,25(OH)2D. Células renais em cultura mostram diminuição da 24hidroxilação da 25(OH)D na presença de PTH; por outro lado, na presença de cálcio e 1,25(OH)2D a 24hidroxilação é aumentada. Todos os metabólitos da vitamina D circulam ligados a transcalciferina, que tem maior afinidade pela 25(OH)2D, seguida pela 1,25(OH)2D, e menor afinidade pela vitamina D. A vitamina D distribuise pelo organismo, acumulandose principalmente nas células adiposas, e apresenta meiavida biológica de cerca de 30 dias, com produção diária de 15 μg. A forma 25hidroxilada dispõe de meiavida de 15 dias e de taxa de produção diária de 7 μg, enquanto a 1,25(OH)2D tem um volume circulante (pool) de 0,5 μg, meiavida de 0,2 dia e produção de aproximadamente 1 μg/dia.
▸ Mecanismo de ação da vitamina D O mecanismo clássico de ação da 1,25(OH)2D, e o mais estudado, é o efeito genômico, descrito para todos os hormônios esteroides. A 1,25(OH)2D interage especificamente com um receptor nuclear. Este complexo esteroidereceptor (VDR) associase à molécula de DNA no núcleo da célula, alterando o comportamento metabólico da célula, pela repressão ou estimulação de determinados genes responsivos à vitamina D (Quadro 76.5). Estes receptores já foram caracterizados bioquimicamente em várias espécies animais; são proteínas intracelulares, cujo tamanho varia de 50 a 60 kDa, que se ligam com alta afinidade à 1,25(OH)2D (Kd = 1 a 50 × 10–11 M). Sua sequência primária de aminoácidos foi deduzida por amostras de DNA complementar e demonstrou alta homologia de sua porção ligadora ao DNA com a mesma região de outros receptores de hormônios esteroides e, principalmente, do receptor de hormônio tireoidiano, confirmando que estas moléculas pertencem à mesma família de genes. A presença de receptores de 1,25(OH)2D foi demonstrada em todos os tecidos onde foi investigada, como glândulas endócrinas, rins, intestino, osso, pele, músculo, mamas, linfócitos e monócitos circulantes, útero, placenta, cólon, pâncreas, timo, e em diversos tecidos tumorais. A região do DNA que se liga ao complexo receptorhormônio, denominado elemento responsivo à vitamina D (VDRE), foi identificada na posição upstream em alguns genes como da osteocalcina, da osteopontina, da calbindina D e da 24hidroxilase. Há evidências de que o VDRE consiste em uma repetição direta de 6 pares de bases (AGGTCA), separadas por um espaço de 3 pares de bases, que se liga a heterodímeros formados por VDR e pelo complexo receptorácido retinoico (RAR).
Quadro 76.5 ■ Efeito da 1,25(OH)2D3 sobre os genes em que já foi estudada. Gene
Tecido (animal)
Efeito na regulação
PTH
Paratireoides (rato)
Suprime
PTHrelated proteine
Tireoide (humano)
Suprime
Calcitonina
Tireoide (rato, humano)
Suprime
Colágeno tipo I
Calvária (rato)
Suprime
Fibronectina
Fibroblastos (humano)
Estimula
Osteocalcina
Osteossarcoma (rato)
Estimula
Interleucina2
Linfócitos (humano)
Suprime
Interferonagama
Linfócitos (humano)
Suprime
Receptor de 1,25(OH)2D
Fibroblastos (humano)
Estimula
CalbindinaD 28K
Intestino (galinha)
Estimula
CalbindinaD 9K
Intestino (rato)
Estimula
Prolactina
Hipófise (rato)
Estimula
cmyc
Leucemia mieloide (humano)
Suprime
cfos
Leucemia mieloide (humano)
Estimula
Entretanto, efeitos extremamente rápidos da 1,25(OH)2D têm sido relatados em diferentes tecidos, como na liberação de enzimas lisossomais em células epiteliais, na redistribuição de calmodulina nas células musculares e no transporte de cálcio nas células intestinais. Em perfusão de alça duodenal de galinhas, foi observado um efeito rápido da 1,25(OH)2D, aumentando o transporte de cálcio do lúmen intestinal para o perfusato vascular após apenas alguns minutos de exposição, caracterizando um efeito não genômico. Este processo parece depender da ligação do esteroide a um receptor de membrana diferente do receptor nuclear já identificado, que produziria elevações das concentrações de cálcio intracelular por intermédio, provavelmente, da ativação dos canais de cálcio dependentes de voltagem, e iniciando a fosforilação das proteinoquinases A e C. Este efeito não genômico, chamado de transcaltaquia, necessita de maiores pesquisas para que possa ser inteiramente compreendido.
Ações no intestino O intestino apresenta receptores para a 1,25(OH)2D3 e mostra respostas dramáticas à administração de vitamina D, com grande aumento da absorção de cálcio e discreta elevação na de fosfato e de magnésio. O transporte de cálcio nos intestinos delgado e grosso é regulado pela vitamina D. No rato, observase uma hierarquia determinada, duodeno > jejuno > íleo > cólon; já a absorção de fosfato mostra uma hierarquia diferente, jejuno > duodeno > íleo. As ações da vitamina D nas células intestinais são totalmente independentes do PTH. Essas células contêm uma proteína ligadora de cálcio denominada calbindina D, cuja concentração corresponde à capacidade transportadora de cálcio. A concentração dessa proteína aumenta cerca de 2 h após administração in vivo ou in vitro de 1,25(OH)2D3 a animais ou preparações deficientes de vitamina D; sua ação direta sobre o gene já foi identificada em ratos e em camundongos, inclusive com a determinação do elemento responsivo ao complexo vitamina Dreceptor (VDRE). Um efeito rápido, não genômico, da 1,25(OH)2D sobre o transporte de cálcio do lúmen intestinal para o espaço intravascular também foi identificado; esse efeito é designado transcaltaquia, parecendo estar relacionado com a ligação do hormônio a um receptor de membrana.
Ações no esqueleto A vitamina D é fundamental para o crescimento e a mineralização óssea. Seu papel já está bem definido na regulação da mineralização de osso recémformado, assim como seu potente efeito indutor da reabsorção óssea. O que, no entanto, permanece não esclarecido é o mecanismo de ação para chegar a estes efeitos. Seu papel sobre o crescimento ósseo e mineralização, provavelmente, não se faz diretamente sobre os osteoblastos, embora já se tenha demonstrado a presença de receptores de 1,25(OH)2D nestas células. Sabese também que a 1,25(OH)2D modula uma série de reações nestas células, como o aumento da produção de fosfatase alcalina, da síntese de osteocalcina e do número dos receptores do fator de crescimento epidérmico, além de inibir a síntese de colágeno do tipo I. Portanto, a 1,25(OH)2D parece tomar parte da regulação da função osteoblástica; entretanto, a relevância fisiológica destes efeitos sobre o metabolismo ósseo ainda precisa ser mais bem definida. Indiretamente, a vitamina D provê o organismo dos elementos necessários para que a mineralização óssea ocorra, aumentando a absorção intestinal de cálcio e de fósforo. Seus efeitos sobre a reabsorção óssea podem ser divididos em rápidos e lentos, e evidências experimentais sugerem que nenhum destes efeitos é exercido diretamente sobre os osteoclastos maduros. Ratos tratados com 1,25(OH)2D passam
a apresentar um número maior de osteoclastos que persiste por alguns dias. Este maior número poderia explicar o aumento na reabsorção óssea induzida pela 1,25(OH)2D. Além disso, a 1,25(OH)2D estimula a fusão e a diferenciação de células hematopoéticas precursoras de osteoclastos, existentes na medula óssea, em osteoclastos maduros. Esta diferenciação, no entanto, somente ocorre na presença do estroma mesenquimal precursor de osteoblastos, que parece estar relacionado com a produção de interleucina 11 e 6 por estas células. Ao contrário dos osteoblastos, em que o receptor de vitamina D já foi identificado, ainda não se demonstrou a presença destes receptores em osteoclastos. Apesar disso, em culturas primárias de tecido ósseo de fetos de camundongos tratadas com 1,25(OH)2D demonstrouse um incremento na secreção do ácido hialurônico e da fosfatase ácida, produtos característicos de células osteoclásticas. Todos estes dados levam a concluir que o efeito sobre os osteoclastos deva ser indireto, por meio de produtos de outras células existentes no mesmo ambiente, induzidos pela 1,25(OH)2D. Um efeito rápido de aumento da reabsorção óssea também foi demonstrado em culturas de tecido ósseo, em que uma liberação de cálcio pôde ser observada algumas horas após a incubação com 1,25(OH)2D, período, provavelmente, não suficiente para ser explicado pela indução de diferenciação celular. Este fato sugere a produção de fatores estimuladores da atividade osteoclástica por osteoblastos.
Ações no rim O efeito mais importante exercido pela 1,25(OH)2D no rim é a inibição da enzima 1αhidroxilase, diminuindo com isso a sua própria produção e aumentando, em contrapartida, a atividade da 24Rhidroxilase. Alguns trabalhos sugerem um efeito direto sobre a excreção renal de cálcio e de fósforo, mas os resultados são ainda controversos.
Ações sobre a paratireoide O PTH é um importante estimulador da síntese renal de 1,25(OH)2D. Este esteroide, por sua vez, atua inibindo a secreção de PTH por meio de dois mecanismos. O primeiro, indireto, pelo aumento da calcemia induzida por maior absorção intestinal, e o segundo, suprimindo diretamente a síntese de PTH por inibição da transcrição do seu gene.
Outras ações da vitamina D Alguns efeitos da 1,25(OH)2D não relacionados com a manutenção da homeostase do cálcio vêm sendo descritos e intensivamente estudados, como seu efeito antiproliferativo e diferenciador celular (ver Quadro 76.5), assim como seu efeito modulador da resposta imune. Muito se tem investido no desenvolvimento de derivados sintéticos que tenham menor poder hipercalcemiante, uma vez que este é um efeito indesejável que limita seu uso clínico em diversas patologias em que seu efeito benéfico já é comprovadamente demonstrado, como na psoríase, na imunologia dos transplantes ou como fator antineoplásico (Figura 76.15).
Figura 76.15 ■ Possíveis ações da vitamina D em diferentes sistemas e suas potenciais aplicações terapêuticas.
REGULAÇÃO HORMONAL INTEGRADA DA HOMEOSTASE MINERAL
No ser humano, as glândulas paratireoides são as principais responsáveis pela manutenção da homeostase dos minerais. Embora a secreção de calcitonina também seja regulada pela calcemia, a calcitonina não funciona como um importante regulador do conteúdo plasmático de minerais. Podese constatar isso em indivíduos tireoidectomizados, nos quais o controle da calcemia não é alterado pela ausência de calcitonina. Como discutido em detalhes nos parágrafos precedentes, o PTH regula a concentração plasmática de cálcio por meio de suas ações diretas nos ossos e nos rins, assim como por intermédio de efeitos intestinais indiretos mediados pela vitamina D.
▸ Respostas desencadeadas pela hipocalcemia A deficiência de produção ou ação de PTH induz hipocalcemia acompanhada de hiperfosfatemia. Na ausência do PTH, a calcemia é mantida entre 5 e 6 mg/dℓ pela combinação de reabsorção tubular renal máxima mais influxo plasmático de cálcio a partir do osso e do intestino. Na ausência de PTH, a hipocalcemia e/ou a hipofosfatemia são individualmente suficientes para ativar apenas modestamente a produção de 1,25(OH)2D3, se comparadas com a ativação da produção induzida pela elevação do PTH. Por outro lado, a concentração plasmática de PTH pode elevarse cerca de 5 a 10 vezes como resultado da hipocalcemia aguda (Figuras 76.16 e 76.17).
Figura 76.16 ■ Incremento nas concentrações de PTH (ensaio aminoterminal da molécula) durante hipocalcemia induzida pela infusão de EDTA (ácido etilenodiaminotetraacético; quelante de cálcio, formando complexo estável). Pesquisa realizada em 10 indivíduos normais. Note que, mesmo antes de haver uma queda detectável do cálcio total plasmático, o PTH já se eleva significantemente.
Figura 76.17 ■ Curva de resposta da secreção de PTH em função do cálcio plasmático, em vacas. Os dados foram obtidos pela infusão de cálcio ou EDTA intravenoso, com dosagens concomitantes de PTH colhido por cateterização de veias de drenagem da paratireoide. A área C da curva marcada é a variação dentro dos limites fisiológicos. A redução dos níveis de cálcio abaixo de 9 mg/dℓ produz marcante elevação das taxas de secreção de PTH (B). A área A representa a resposta aguda máxima de PTH após redução extrema da calcemia. Elevações dos níveis de cálcio acima de 11 mg/d ℓ suprimem a secreção de PTH, embora não completamente (D). A secreção que persiste em condições de hipercalcemia é, no entanto, principalmente por fragmentos carboxiterminais da molécula. (Adaptada de Avioli e Krane, 1990.)
Durante a hipocalcemia, o aumento dos níveis plasmáticos de PTH é responsável pela parada completa de eliminação renal de cálcio e por um aumento ainda maior do influxo de cálcio a partir dos ossos. A resposta óssea reflete a ativação de osteócitos quiescentes e osteoclastos, que não justificariam a resposta rápida obtida após infusão de PTH. Esta resposta é interpretada como a mobilização de cálcio de compartimentos ósseos intersticiais, por alguns chamados de membrana óssea, que responderiam prontamente ao PTH e a variações rápidas da calcemia. Se a hipocalcemia persistir por mais de 1 a 2 dias, a resposta óssea aumenta ainda mais devido à elevação do número e da atividade dos osteoclastos desencadeada pelo PTH, pelo 1,25(OH)2D3 ou por ambos. Ao nível renal, uma outra consequência do aumento do PTH plasmático é o crescimento do clearance de fosfato. Embora o PTH mobilize o fosfato dos ossos para o plasma, isso é compensado pelo efeito fosfatúrico do PTH, que resulta na manutenção dos níveis plasmáticos de cálcio e queda progressiva da fosfatemia. O PTH e a hipofosfatemia estimulam, individualmente, a 25(OH)D 1αhidroxilase, levando ao aumento de 3 a 5 vezes na produção renal de 1,25(OH)2D3 após cerca de 24 a 78 h. Além de agir no nível ósseo juntamente com o PTH, a 1,25(OH)2D3 desencadeia no intestino o crescimento substancial da fração de absorção de cálcio, partindo de um basal de 25% para chegar até um máximo de 75%.
▸ Respostas desencadeadas pela hipercalcemia As alterações que seguem a hipercalcemia constituem praticamente o contrário daquilo que é observado em resposta à hipocalcemia (ver Figura 76.17). Enquanto o tecido ósseo é o principal tampão acionado contra a hipocalcemia, a hipercalcemia é controlada basicamente com alterações do transporte mineral pelos túbulos renais. A secreção de PTH diminui segundos depois da instalação da hipercalcemia. Mesmo após administração de grandes doses de cálcio (aproximadamente 1 g VO), a calcemia elevase apenas cerca de 1 mg/dℓ, levando à supressão da secreção de PTH e ao aumento do clearance renal de cálcio. A queda do PTH circulante também conduz à diminuição do clearance renal de fosfato, resultando em elevação da fosfatemia. Baixos níveis de PTH e hiperfosfatemia provocam inibição da produção renal de 1,25(OH)2D3 e diminuição da absorção intestinal de cálcio. A hipercalcemia aguda também causa o aumento da secreção de calcitonina; entretanto, a calcitonina não participa de maneira importante na resposta à hipercalcemia, exceto se esta estiver associada ao aumento da atividade osteoclástica.
▸ Regulação do fosfato plasmático O controle da concentração plasmática de fosfato é menos rígido que o da calcemia. Os principais determinantes da fosfatemia são o limiar para excreção renal e a carga filtrada de fosfato. A retirada do fosfato da alimentação não desencadeia uma resposta imediata; uma hipofosfatemia que perdure por vários dias é seguida de aumento da produção de 1,25(OH)2D3. Isso leva ao aumento da absorção intestinal de cálcio, que aumenta discretamente a calcemia e suprime a secreção de PTH. Essa supressão da secreção de PTH diminui o clearance renal de fosfato e eleva o do cálcio. O clearance renal de fosfato também diminui de modo independente do PTH, por mecanismos autorregulatórios renais. Dentro de 3 a 4 dias da retirada de fosfato da alimentação, a sua excreção renal pode cair de cerca de 1 g/dia para valores desprezíveis. Não se conhecem respostas metabólicas agudas à hiperfosfatemia. Uma a duas horas após uma carga oral de fosfato (1,5 g), a fosfatemia atinge o pico máximo; o excesso de fosfato é basicamente eliminado pelos rins, provavelmente pela ação das fosfatoninas, em especial do FGF23.
Os Dentes Priscilla Morethson O órgão dentário é constituído por diferentes tecidos, mineralizados e não mineralizados. Os tecidos mineralizados do órgão dentário são esmalte, dentina e cemento, os quais diferem significativamente entre si tanto em sua porção orgânica quanto mineral. Os tecidos não mineralizados que compõem o órgão dentário são a polpa dentária ou estruturas do periodonto, como o ligamento periodontal, que mantém a ancoragem do dente no osso alveolar. Os tecidos dentários e periodontais – esmalte, dentina, polpa, cemento, osso alveolar e ligamento periodontal – de um dente completamente formado estão representados na Figura 76.18 e serão brevemente apresentados a seguir.
ESMALTE Tratase do tecido de revestimento externo da coroa dentária e do tecido mais duro do organismo. O esmalte é um tecido acelular, que apresenta o maior conteúdo mineral dentre todos os tecidos mineralizados. O alto teor mineral do esmalte confere rigidez; no entanto, o esmalte é um tecido friável, cujo suporte é dado pela resiliência da dentina subjacente. A porção orgânica do esmalte dentário corresponde a 4% do peso do dente e constituise principalmente de água e proteínas não colágenas sintetizadas e secretadas pelos ameloblastos, células de origem ectodérmica. A matriz orgânica do esmalte é formada por amelogeninas e enamelinas. As amelogeninas constituem o principal grupo de proteínas do esmalte. A matriz macromolecular aniônica secretada pelos ameloblastos é o substrato para o processo de biomineralização. As amelogeninas formam agregados de estruturas quaternárias de cerca de 20 nm, as nanosferas, que direcionam o crescimento de cristais de hidroxiapatita, definindo sua arquitetura. Há evidências de que, durante a formação e maturação do esmalte, ocorra a remoção de proteínas da matriz de forma ordenada. As enamelinas, glicoproteínas ácidas hidrofílicas, perfazem 5% das proteínas da matriz.
Figura 76.18 ■ Tecidos dentários e periodontais de um dente completamente formado. (Adaptada de Favus, 2003.)
Sobre a matriz orgânica, os cristais de hidroxiapatita depositados darão origem às porções prismática e interprismática do esmalte. A porção prismática é composta por cristais dispostos paralelamente ao longo do eixo dos ameloblastos; o esmalte interprismático posicionase em ângulo de 65° em relação ao esmalte prismático. Interessantemente, entre as duas porções, há um acúmulo de proteínas residuais em delgada camada de matriz, sem cristais, o que torna o esmalte dessas regiões mais suscetível à desmineralização pelos ácidos bacterianos em lesões de cárie.
COMPLEXO DENTINOPULPAR No interior do dente, encontrase a polpa dentária, tecido conjuntivo frouxo vascularizado e ricamente inervado, com sofisticada função neurossensorial. A polpa acomodase na câmara pulpar e no interior dos canais radiculares, compartimentos que se intercomunicam envoltos por dentina, tecido mineralizado. Dada a íntima relação entre a polpa e a dentina, os dois tecidos podem ser analisados como um complexo com respostas que se manifestam em ambos diante de agressões, como a cárie, por exemplo. A polpa é, didaticamente, dividida nas regiões odontoblástica, subodontoblástica, camada rica em células e camada central. Os odontoblastos, células derivadas da crista neural, destacamse dentre os tipos celulares presentes na polpa. Estão localizados na periferia da polpa, em contiguidade com a dentina. Os odontoblastos possuem prolongamentos dentro de estruturas tubulares, os túbulos dentinários. Na odontogênese, os odontoblastos são responsáveis pela produção de dentina, que envolve toda a cavidade da coroa dentária e os canais radiculares. A matriz inicialmente produzida pelos odontoblastos não é mineralizada e se denomina prédentina. Após a erupção do dente, os odontoblastos continuam a secretar dentina, então denominada dentina secundária, em resposta a traumatismo ou lesão de cárie, por exemplo. Os odontoblastos são, ainda, capazes de sintetizar dentina em regiões focais da câmara pulpar ou de canais radiculares frente a agressões físicas, químicas e, mais comumente, biológicas, como as bactérias causadoras da cárie. Nesses casos, a dentina depositada focalmente é denominada dentina
terciária, a qual não possui contiguidade com a dentina primária e secundária, o que protege os odontoblastos e outras células da polpa de agressores provenientes do meio bucal. A dentina é constituída por cristais de hidroxiapatita, que perfazem 70% do seu peso, por colágeno tipo I e água. Devido ao seu elevado teor de cálcio, é mais dura que o osso. Recentemente, demonstrouse que a polpa dentária humana expressa osteoprotegerina (OPG) e RANKL, fatores que inibem ou estimulam as funções clásticas. Portanto, é possível que o sistema OPG/RANKL/RANK esteja ativamente envolvido na diferenciação de células clásticas durante processos patológicos de reabsorção radicular. Outro fato relevante, e de interesse para o conhecimento da fisiologia dental, é a existência de mecanorreceptores intradentais na polpa dentária, os quais atuam na detecção de uma ampla gama de frequências de vibração. Essa aferência sensorial é fundamental para a coordenação da atividade das unidades neuromusculares no complexo craniomandibular durante a mastigação. Diferentes tipos celulares estão implicados na inervação da polpa dentária, os quais exibem complexa relação com vasos sanguíneos e odontoblastos. Há evidências de que os próprios odontoblastos estejam implicados nas funções neurossensoriais da polpa. Atualmente, o papel sensorial dos odontoblastos e a interação dessas células com elementos neurais são um importante tópico que vem sendo investigado. Estudos elegantemente conduzidos por Farahani et al. (2011, 2012) buscam examinar essa questão baseandose em lógica evolucionária. Segundo esses autores, a polpa dentária é um órgão sensorial vestigial; sendo assim, os elementos essenciais dos órgãos neurossensoriais poderiam persistir na polpa dentária. Por meio de análises moleculares, os autores identificaram células análogas à glia radial, astrócitos e micróglia dos órgãos do sistema nervoso central na polpa dentária. De acordo com esses dados, há uma rede interconectada envolvendo axônios não mielinizados e terminações extensas ao redor dos capilares em uma zona rica em células da polpa dentária, com aspecto de uma estrutura neurossensorial madura, e microcirculação com características daquela do sistema da barreira hematencefálica (Figura 76.19). Adicionalmente, a função odontoblástica evidenciase por respostas imunológicas adaptativas, como a produção de citocinas próinflamatórias por ativação de receptores tipo Toll, a partir de interação odontoblástica com componentes bacterianos. Portanto, os odontoblastos são capazes de detectar sinais ambientais e reagir de forma correta, o que torna o complexo dentinopulpar dinâmico, além de possivelmente comporem a interface neurossensorial proprioceptiva e nociceptiva. Atualmente, apesar de alguns avanços, a base neural para a atividade sensorial odontoblástica permanece pouco explorada e compreendida.
CEMENTO Tratase do tecido de revestimento externo da raiz dentária. O cemento é formado por cementoblastos, células de origem ectomesenquimal que se diferenciam em contato com a dentina recémformada. O cemento, o ligamento periodontal e o osso alveolar constituem um complexo funcional denominado periodonto de sustentação, envolvido na manutenção do dente no alvéolo ósseo. O cemento apresenta semelhanças com o tecido ósseo, com conteúdo mineral de cerca de 45 a 50% de seu peso, consistindo em cristais de hidroxiapatita. O componente orgânico do cemento é representado por fibras colágenas tipo I.
LIGAMENTO PERIODONTAL O ligamento periodontal promove uma ligação dos dentes entre si, e destes com a gengiva e o osso alveolar. Embora ricamente celularizado, o ligamento é constituído de muitas fibras colágenas tipos I e III, elásticas e reticulares, próprias dos tecidos conjuntivos, além de vasos e nervos. O ligamento periodontal tem espessura mínima e máxima de cerca de 0,2 a 0,4 mm, respectivamente, e permite a mobilidade fisiológica do dente no alvéolo ósseo.
Figura 76.19 ■ Diferentes tipos celulares envolvidos na inervação da polpa dentária. A polpa central compreende os principais feixes neurovasculares e tecido conjuntivo associado (não mostrado). A. Na polpa sensorial periférica, diferentes regiões anatômicas são caracterizadas: (I) dentina (Dn; GFAP, verde); (II) a camada odontoblástica, que inclui odontoblastos (Od), seracitos (células gliais multipotentes) e corpos celulares de alacitos (células tipo micróglia na interface dentária); (III) uma zona livre de células (Cf) que separa a camada odontoblástica e a zona rica em células; (IV) uma zona rica em células (Cr; S100, vermelho) contendo telacitos (células de glia tipo astrócito) e microvasculatura, os quais formam a barreira hematodentária. O detalhe mostra a comunicação entre os processos dessas células na zona rica em células. Barra de escala = 20 μm em A; 10 μm no detalhe de A. B. Representação esquemática de zonas anatômicas da região neurossensorial periférica da polpa dentária. C. Representação esquemática da estrutura neurossensorial da polpa dentária humana. (Adaptada de Farahani et al., 2011.)
As células presentes no ligamento periodontal são os fibroblastos; no entanto, cordões e ilhotas epiteliais interconectados também estão presentes. Essa rede de epitélio interposta entre o osso e o dente no tecido ligamentar foi descrita por Malassez; é conhecida como restos epiteliais de Malassez e tem relevância clínica, dada sua relação com patogenia de doenças císticas do complexo maxilomandibular muito prevalentes. Interessantemente, as células epiteliais no ligamento periodontal continuadamente liberam mediadores, especialmente o fator de crescimento epitelial (EGF). Em estudos com movimentação dentária por dispositivos ortodônticos, observouse
que áreas com EGF na superfície do tecido ósseo coincidem com estimulação da reabsorção, o que sugere um papel das células epiteliais do ligamento na indução da reabsorção óssea por osteoclastos e na fisiologia osteomineral do osso alveolar. A primeira descrição do EGF foi feita pelo bioquímico americano Cohen, que o identificou nas glândulas submandibulares de ratos e o relacionou à aceleração da erupção dos dentes incisivos e na abertura dos olhos dos recém nascidos. Esses estudos lhe renderam o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia, em 1986. O papel do EGF na regulação do desenvolvimento e da erupção dentária é conhecido desde 1962; desde então, o EGF tem revelado uma potente atividade na indução à reabsorção óssea. Em ratos deficientes de receptores para EGF, a ossificação endocondral mostrase severamente alterada pela deficiência no recrutamento de osteoclastos e na osteoclastogênese.
OSSO ALVEOLAR O sistema do fator de transcrição OPG/RANKL/RANK controla as funções clásticas no remodelamento ósseo por toda a vida do indivíduo. Esse sistema é responsável pela diferenciação de células clásticas a partir dos seus precursores e pela manutenção do equilíbrio entre os processos de formação e reabsorção óssea. Notoriamente, a polpa dentária e o ligamento periodontal parecem modular a atividade osteoclástica, por meio da expressão de fatores que atuam tanto na formação como na função de osteoclastos. Dessa maneira, o órgão dentário em si pode modificar o tecido ósseo adjacente. Isso realmente ocorre. É fato reconhecido na clínica que a perda de dentes traz, como consequência, a perda óssea da maxila e da mandíbula. A perda dentária ocasiona hipofunção mastigatória e perda da aferência proprioceptiva proveniente da polpa e do ligamento periodontal, com remodelamento neural em estruturas do sistema nervoso central, incluindo o córtex. Adicionalmente, é amplamente conhecido que a perda dentária ocasiona perda óssea. Em situação de hipofunção, a redução do fluxo sanguíneo e do metabolismo locais causa atrofia do tecido ósseo, com expressão de citocinas e outros fatores que estimulam a formação e a diferenciação de osteoclastos, como RANKL e EGF. Além dos estímulos moleculares, a interrupção de fluxo de líquido extracelular per se constitui um estímulo à reabsorção óssea, uma vez que coincide exatamente com o início da secreção de ácido pelo osteoclasto, como demonstrado por Morethson (2015). Dessa maneira, podese concluir que, após perda dentária, a redução do fluxo sanguíneo local age como fator ativador direto da função de osteoclastos.
ERUPÇÃO DENTÁRIA | ODONTOGÊNESE A erupção dentária é um processo que compreende a odontogênese, a irrupção dos dentes na cavidade bucal e seu correto posicionamento em oclusão com os dentes antagonistas. A odontogênese, ou seja, a formação de dentes iniciase na 6a semana de vida intrauterina para os dentes decíduos (conhecidos também como da dentição infantil, primeira dentição ou dentes de leite), e ao redor da 32a semana de vida intrauterina para os dentes permanentes. Decíduos ou permanentes, os dentes são formados a partir do epitélio oral, de origem ectodérmica, e do mesênquima das proeminências maxilares e mandibulares originados no primeiro arco branquial embrionário. Interações sequenciais na interface ectomesênquima (derivado de células migratórias da crista neural) e ectoderma desempenham papel fundamental no desenvolvimento dentário. De acordo com dados recentes, as células ectomesenquimais são alvo da sinalização parácrina, proveniente das células epiteliais de origem ectodérmica. Presumese, portanto, que a odontogênese seja iniciada no epitélio e, posteriormente, transferida para o ectomesênquima. Assim, inicialmente, o epitélio oral primitivo prolifera e invade o ectomesênquima subjacente, evento que coincide com a formação de uma estrutura epitelial em forma de ferradura: a banda epitelial primária. Posteriormente, a banda epitelial primária subdividese nas lâminas vestibular e dentária. Os germes dentários surgem a partir da lâmina dentária. Anomalias na formação da banda epitelial primária podem resultar na ausência de dentes ou no desenvolvimento de dentes supranumerários, não raros na clínica odontológica. Os germes dentários sofrem modificação histomorfológica contínua, sendo possível identificar as fases da formação dentária: fase de botão, capuz, campânula, coronogênese e rizogênese. A Figura 76.20 apresenta a disposição dos tecidos ectodérmicos e mesenquimais durante as fases de capuz e campânula da odontogênese.
O germe dentário embrionário encontrase parcialmente envolto por osso alveolar em desenvolvimento, que sofre remodelamento pela ação dos osteoclastos, para acomodar o dente em crescimento. O folículo, estrutura em forma de bolsa de tecido conjuntivo frouxo, separa o dente em desenvolvimento de sua cripta óssea, além de desempenhar papel essencial na erupção dentária. Durante o desenvolvimento da raiz, o folículo dentário dá origem a ligamento periodontal, cemento e osso alveolar, os quais suportam o dente, mantendoo ancorado ao tecido ósseo, além de proporcionar nutrição e mecanossensação, e permitir o movimento dental fisiológico dentro do alvéolo. Durante o processo de formação dentária, a indução da diferenciação celular depende, em parte, de moléculas sinalizadoras, cuja expressão varia continuamente nos diferentes tipos celulares que dão origem aos tecidos dentários mineralizados e não mineralizados do órgão dentário. As moléculas sinalizadoras mais importantes no processo de odontogênese são membros das famílias das proteínas Hedgehog, morfogenética óssea (BMP, do inglês bone morphogenetic protein), fator de crescimento de fibroblastos (FGF, do inglês fibroblast growth factor), Wnt e fator de necrose tumoral (TNF, do inglês tumoral necrosis factor). A expressão temporal e espacial das moléculas sinalizadoras é controlada por: (1) genes reguladores da odontogênese, os quais determinam também o tipo de dente a ser formado: incisivos, caninos, prémolares ou molares, e (2) por modificações epigenéticas em célulastronco precursoras. Os diferentes aspectos anatômicos dos dentes humanos estão representados na Figura 76.21.
IRRUPÇÃO DENTÁRIA Os dentes são importantes no sistema mastigatório. A área onde os alimentos serão fragmentados depende da área oclusal de cada dente e do número de dentes com capacidade de oclusão. Dessa maneira, a mastigação somente é possível se a dentição estiver estabelecida. Pronunciada mudança no comportamento oromotor ocorre com a transição da sucção para mastigação, que em humanos acontece entre o quinto e o oitavo mês de vida, período da irrupção dos dentes incisivos decíduos.
Figura 76.20 ■ Esquema da interação do epitélio e ectomesênquima e das modificações desses dois tecidos entre as fases de botão e capuz da odontogênese. A. Fase de botão. 1, epitélio oral; 2, capuz inicial; 3, depressão; 4, ectomesênquima condensado. B. Fase de capuz. 1, Epitélio externo; 2, epitélio oral; 3, lâmina dentária; 4, retículo estrelado; 5, epitélio interno; 6, papila dentária; 7, folículo dentário. (Adaptada de Farahani et al., 2011.)
Figura 76.21 ■ A. Morfologia, nomenclatura e posição dos dentes humanos permanentes nos arcos dentários. B. Relação oclusal dos dentes permanentes superiores e inferiores. (Adaptada de Farahani et al., 2011.)
Um dos aspectos fisiológicos de maior relevância na clínica médica e odontológica referese à sequência e à idade de irrupção dos dentes decíduos e permanentes. A cronologia de irrupção dos dentes decíduos (Quadro 76.6), ou seja, a idade em que os dentes irrompem, é relativamente variável, sendo que um atraso ou antecipação de 6 meses em relação à média são considerados normais. A sequência de irrupção, no entanto, geralmente é preservada. A dentadura decídua completase entre os 24 e os 30 meses de idade. A sequência de irrupção dos dentes permanentes é apresentada no Quadro 76.7. À medida que o dente irrompe na cavidade bucal, o osso alveolar é reabsorvido para permitir sua passagem, e a raiz dentária se desenvolve. A formação completa da raiz dentária ocorre nos 18 meses posteriores à irrupção do dente decíduo e em até 3 anos após a irrupção do dente permanente. Logo após a formação da raiz dos dentes decíduos, iniciase a sua reabsorção. A reabsorção radicular ocorre de forma mais evidente nas regiões adjacentes à coroa do dente permanente em processo de formação. Então, a coroa formada perfura a mucosa oral, evento que posteriormente contribui para a formação de um selo em forma de anel, ao redor da coroa dental, constituído por células epiteliais na região limítrofe entre esmalte e dentina. Acreditase que esse selo epitelial possa modificar a reabsorção óssea e, assim, definir a altura da crista óssea alveolar, por meio da secreção de citocinas, como EGF, que estimulam a função de osteoclastos.
Quadro 76.6 ■ Cronologia da irrupção dos dentes decíduos (ver aspectos anatômicos dos dentes humanos na Figura 76.21).
Dente
Idade de irrupção (meses)
Incisivo central inferior
6
Incisivo central superior
7,5
Incisivo lateral superior
9
Incisivo lateral inferior
7
Primeiro molar superior
14
Primeiro molar inferior
12
Canino superior
18
Canino inferior
16
2o molar inferior
20
2o molar superior
24
Quadro 76.7 ■ Sequência da irrupção dos dentes permanentes (ver aspectos anatômicos dos dentes humanos na Figura 76.21). Sequência
Maxila
Mandíbula
1o
Primeiro molar
Primeiro molar
2o
Incisivo central
Incisivo central
3o
Incisivo lateral
Incisivo lateral
4o
Primeiro prémolar
Canino
5o
Segundo prémolar
Primeiro prémolar
6o
Canino
Segundo prémolar
7o
Segundo molar
Segundo molar
DENTES E FISIOLOGIA OSTEOMINERAL E NERVOSA | A ODONTOLOGIA NA FRONTEIRA DA CIÊNCIA É fato reconhecido na clínica odontológica que a perda de dentes traz, como consequência, a perda óssea da maxila e mandíbula. Essa questão, além da estética e harmonia faciais, envolve a capacidade mastigatória e, portanto, tem repercussão direta no estado nutricional. Assim, em diversas áreas da odontologia, são empreendidos esforços com finalidade restauradora e protética para a manutenção dos dentes em função na cavidade oral e, portanto, para a saúde do periodonto de sustentação. Ademais, a perda de dentes tem implicações e consequências que estão além da homeostase osteomineral ou da fisiologia do sistema estomatognático. Em odontologia, um novo e estimulante campo de investigação neurofisiológica vem associando as perdas dentárias a comprometimento de funções sensoriais, motoras, cognitivas e emocionais. AviviArber et al. (2017) usaram ressonância magnética para detectar diferenças volumétricas quantificáveis em 160 regiões cerebrais de camundongos, pósextração dentária. Os autores relatam que a extração dentária associouse a
volumes significativamente reduzidos de regiões cerebrais corticais envolvidas no processamento de funções somatossensoriais, motoras, cognitivas e emocionais, além de volumes aumentados nas regiões subcortical sensorial e temporais do prosencéfalo límbico, incluindo a amígdala. Enfim, esses achados sugerem que, após perda dentária ou lesão orofacial, a plasticidade neural pode ter outras implicações mais sérias que o estrito comprometimento estético, mastigatório e nutricional, até então reconhecidos. Pode se dizer que, em um futuro próximo, novos conhecimentos acerca da neuroplasticidade por perda dentária colocarão a odontologia restauradora e preventiva em um novo patamar: a de uma especialidade com resultados de interesse médico.
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Introdução
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Movimentação do óvulo e espermatozoides, fertilização e implantação Gestação
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Parto Puerpério Lactação
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Bibliografia
INTRODUÇÃO A fisiologia da reprodução envolve um dos sistemas reguladores mais complexos. A partir de uma sucessão de eventos coordenados, ocorrem a maturação e a movimentação dos gametas pelo sistema genital feminino, culminando no processo de fertilização. A implantação do concepto no útero envolve interações profundas entre células embrionárias e células endometriais. O desenvolvimento do feto e da placenta provoca modificações na secreção dos hormônios da reprodução e outros não diretamente relacionados. Esta sequência de fenômenos fisiológicos completase com o parto, o período puerperal e o processo de lactação. (Para o estudo do assunto exposto no presente capítulo, é recomendável a leitura prévia do Capítulo 71, Gônadas, que aborda os sistemas genitais masculino e feminino.)
MOVIMENTAÇÃO DO ÓVULO E ESPERMATOZOIDES, FERTILIZAÇÃO E IMPLANTAÇÃO
▸ Maturação e movimentação do óvulo O processo de maturação do óvulo é regulado principalmente pelos hormônios: FSH, LH e estradiol. Pouco antes da ovulação, o óvulo completa sua primeira divisão meiótica e forma o primeiro corpo polar. A segunda divisão meiótica iniciase durante a ovulação, mas só se completa após a fertilização pelo espermatozoide. No momento da ovulação, o óvulo liberado e as células da granulosa aderidas, conhecidas como cumulus oophorus, são coletados pelas terminações ciliadas das fímbrias da tuba uterina. Na mulher, a movimentação do óvulo ao longo da tuba uterina se dá já nos minutos seguintes e desenvolvese em diferentes etapas. O óvulo passa das terminações das fímbrias à região ampular, onde permanece por 1 a 2 dias, período em que poderá acontecer a fertilização. O óvulo fertilizado atravessa o istmo da tuba uterina e fica retido na junção istmoútero, completando o período de 3 dias desde a ovulação. Durante este estágio, estrogênios e, principalmente, progesterona vão agir sobre o endométrio, na preparação à implantação. A etapa final da movimentação surge 3 a 4 dias após a ovulação, quando o óvulo fertilizado chega à cavidade uterina (Figura 77.1).
Figura 77.1 ■ Movimentação do óvulo antes e depois da fertilização.
▸ Movimentação e capacitação dos espermatozoides Após a ejaculação, os espermatozoides deixam a vagina em direção ao colo uterino. Eles atravessam a cavidade do útero, a junção istmoútero, o istmo e finalmente a junção istmoampular. Na região ampular é onde ocorre a fertilização. A movimentação dos espermatozoides é muito mais rápida que a do óvulo, alcançando a região ampular da tuba uterina em 5 a 10 min depois da ejaculação. Dos milhões de espermatozoides depositados na vagina, apenas 50 a 100 conseguem migrar por todo o sistema genital feminino para alcançar o oócito, na junção istmoampular da tuba uterina. A capacitação do espermatozoide o habilita a fertilizar um óvulo. O contato do espermatozoide com a zona pelúcida induz o início da reação acrossômica, requerida para a penetração do espermatozoide. Esta reação envolve a fusão do acromossoma com a membrana plasmática do espermatozoide e a exocitose do seu conteúdo enzimático (rico em proteases e glicosidases). Durante a capacitação, os espermatozoides apresentam aumento de motilidade.
▸ Fertilização Os espermatozoides mantêm a capacidade de fertilização por cerca de 48 a 72 h depois de adentrarem o sistema genital feminino. O óvulo, por sua vez, mantémse viável para fertilização por cerca de 24 a 48 h após a ovulação. Se não ocorre fertilização, tanto o óvulo quanto os espermatozoides degeneram no sistema genital feminino. A fusão da cabeça do espermatozoide com o óvulo completa a segunda divisão meiótica deste e também dispara mecanismos que impedem a fertilização por múltiplos espermatozoides. Com a fertilização, reconstituise o número de 46 cromossomas, sendo esta célula diploide denominada zigoto. A partir daí, iniciase o desenvolvimento de um embrião. Durante a migração do zigoto pela tuba uterina em direção ao local de implantação na cavidade do útero, mitoses sucessivas formam a mórula cerca de 96 h após a fertilização (ver Figura 77.1). A mórula deixa a tuba uterina e alcança o útero em torno de 4 dias depois da fertilização; permanece suspensa na cavidade uterina enquanto se desenvolve em blastocisto e é nutrida por constituintes do líquido uterino neste período. As células externas do blastocisto, denominadas trofoblastos, participam do processo de implantação e formam os componentes da placenta.
▸ Implantação O blastocisto implantase na parede uterina aproximadamente 7 a 8 dias após a fertilização. Este período caracterizase pela receptividade uterina para a implantação e é referido como janela de implantação. A maior parte dos eventos fisiológicos fundamentais para o sucesso da implantação decorre de alterações cíclicas nas concentrações de hormônios
ovarianos e de seus receptores, levando à maturação morfológica e funcional do endométrio. A implantação apresenta características similares às de um processo inflamatório, incluindo a indução de moléculas de adesão no endométrio, seguida de invasão e angiogênese. Antes da implantação, o blastocisto separase da zona pelúcida; assim, as células trofoblásticas, agora desnudas, tornamse carregadas negativamente e aderem ao endométrio, via glicoproteínas de superfície. Microvilos das células trofoblásticas interdigitamse e formam complexos juncionais com as células endometriais. Na presença de progesterona proveniente do corpo lúteo, o endométrio sofre a decidualização, propiciando as condições para a implantação. Desse modo, 8 a 12 dias depois da ovulação o embrião penetra no epitélio uterino estando embebido no estroma endometrial. A partir do 13o dia de desenvolvimento, o mesoderma somático extraembriônico surge na superfície dos trofoblastos e juntos formam o saco coriônico. Os trofoblastos do córion mantêm contato direto com as células decidualizadas do endométrio, formando duas populações celulares distintas: (1) o citotrofoblasto, que vai compor as células do vilo no início da gestação, e (2) o sinciciotrofoblasto, uma camada de células constituídas pela fusão da membrana de células do citotrofoblasto. Este sincício multinuclear é altamente diferenciado e inicia a secreção de gonadotrofina coriônica (hCG), que será fundamental para a manutenção do corpo lúteo (Figura 77.2). No final da segunda semana de fertilização, os vilos coriônicos desenvolvemse como cordões epiteliais dos citotrofoblastos. A vascularização desses cordões ocorre a partir do sistema vascular embrionário. Do lado materno, formamse os sinusoides sanguíneos em torno destes cordões trofoblásticos, cujas células desenvolvem as vilosidades placentárias que são invadidas por capilares fetais. Nesta interface, acontecem as trocas gasosas entre o sangue materno e o fetal. O sangue fetal chega aos capilares das vilosidades placentárias pelas duas artérias umbilicais e, após as trocas com o sangue materno através da membrana placentária, retorna ao feto pela veia umbilical (mais informações sobre esse assunto são dadas no Capítulo 36, Circulações Regionais). Desde a fertilização até a formação completa da placenta, depois das primeiras 7 a 9 semanas, o corpo lúteo mantém se funcional, secretando esteroides ovarianos e garantindo assim a manutenção do embrião.
GESTAÇÃO A gestação é mantida por hormônios peptídicos e esteroides provenientes dos ovários maternos e da placenta. O sistema endócrino materno desempenha ação fundamental, adaptandose para permitir o crescimento e o desenvolvimento adequados do feto.
▸ Placenta A gestação humana prolongase, em média, por 280 dias (40 semanas) a partir da data da última menstruação. Entretanto, considerandose o dia da fertilização, a gestação dura cerca de 2 semanas menos. Na prática clínica, considera se a data da última menstruação como ponto de referência, enquanto a abordagem embriológica prefere referenciar a data da fertilização. A placenta é um órgão transitório e funciona como interface entre os organismos materno e fetal. Esta estrutura complexa é constituída por um componente materno (a decídua), formada por células endometriais, e um componente fetal constituído por células trofoblásticas. Ela desempenha várias funções indispensáveis ao desenvolvimento fetal: nutricional (transferência de nutrientes da mãe para o feto), respiratória (trocas gasosas de O2 e CO2), excretora (eliminação de metabólitos fetais) e endócrina (síntese de hormônios com ações na mãe e no feto). Através da membrana placentária, ocorre difusão de nutrientes e O2 da mãe para o feto, e de metabólitos e CO2 do feto para a mãe. Assim, a endocrinologia da gestação envolve três etapas distintas: a primeira, em que é indispensável a atividade do corpo lúteo; a segunda, na qual há a transição luteoplacentária; e a terceira, em que se estabelece o predomínio da placenta em estreita relação funcional com o feto, constituindo a chamada unidade fetoplacentária.
Figura 77.2 ■ Etapas do processo de implantação do blastocisto no útero. Descrição no texto.
Função endócrina da placenta A função endócrina da placenta é diversificada e complexa. Envolve a produção de substâncias com atividades biológica e imunológica similares aos hormônios hipotalâmicos (como o hormônio liberador de gonadotrofinas – GnRH, o hormônio liberador de corticotrofina – CRH e o hormônio liberador de hormônio de crescimento – GHRH) e aos hipofisários (como a tireotrofina – TSH, a prolactina – PRL, o hormônio de crescimento – GH e o próhormônio pró opiomelanocortina – POMC). A placenta secreta também fatores de crescimento, citocinas e hormônios esteroides. A função, a regulação da produção e o significado funcional de várias substâncias da placenta ainda não estão totalmente esclarecidos. Dentre todos os hormônios produzidos pela placenta, os principais são a gonadotrofina coriônica – hCG, a somatotrofina coriônica – hPL, o estrogênio e a progesterona. Gonadotrofina coriônica humana (hCG) É o primeiro hormônio detectável resultante da atividade trofoblástica no processo de formação da placenta. Assim, o aparecimento de hCG no sangue e na urina 24 h após a implantação do embrião constitui o primeiro sinal detectável de gestação. Este hormônio é uma glicoproteína de peso molecular 38.000 dáltons, constituída por duas cadeias ligadas por uma ponte dissulfídica: (1) a cadeia alfa espécieespecífica, idêntica à cadeia alfa dos hormônios glicoproteicos produzidos pela adenohipófise (TSH, LH e FSH); (2) uma cadeia beta que apresenta cerca de dois terços de homologia com a sequência de aminoácidos da cadeia beta do hormônio luteinizante produzido pela adenohipófise. Ensaios imunobiológicos com anticorpo específico contra hCG (cadeia beta) não apresentam reações cruzadas com os hormônios glicoproteicos produzidos pela adenohipófise e permitem o diagnóstico precoce de gestação. Atualmente, testes comerciais simples baseados no princípio de imunoaglutinação são de fácil acesso e têm elevado índice de precisão diagnóstica. A secreção de hCG aumenta gradativamente até atingir valores máximos de concentração plasmática durante o terceiro mês de gestação, quando começa a diminuir paulatinamente até estabilizarse no último trimestre de gestação. Este hormônio tem vida média longa, cerca de 24 h, devido à presença de ácido siálico na molécula, e age por meio de receptores com afinidade elevada, que se expressam em células do corpo lúteo. A ação luteotrófica da hCG é fundamental para manutenção da gestação, especialmente no primeiro trimestre, já que neste período a placenta não está completamente desenvolvida. Tal ação promove aumento da secreção de estrogênios e progesterona, hormônios indispensáveis na manutenção de condições adequadas no endométrio para implantação e manutenção do futuro embrião. A concentração plasmática de hCG pode apresentarse mais elevada em situações de gestação múltipla, diabetes, coriocarcinoma, entre outras.
Em fetos masculinos, a hCG estimula células intersticiais responsáveis pela secreção de testosterona, que em parte é convertida pela ação da enzima 5αredutase em outro androgênio, a dihidrotestosterona. Estes dois androgênios são responsáveis pela diferenciação das estruturas genitais masculinas internas e externas. Somatotrofina coriônica (hPL) Este hormônio, também chamado de lactogênio placentário, começa a ser produzido mais tardiamente que a hCG, por volta da sexta semana de gestação. Seu peso molecular é de 22.000 dáltons e sua estrutura química apresenta grande homologia com dois hormônios produzidos pela adenohipófise, prolactina e GH. Há evidências de que tenha ações metabólicas semelhantes a estes dois hormônios hipofisários, porém com potência reduzida. As ações da somatotrofina coriônica teriam o objetivo de disponibilizar quantidade maior de substrato energético ao feto. Neste sentido, poderiam ter influência em alterações metabólicas na gestante, como a diminuição de sensibilidade à glicose e de sua utilização, lipólise e inibição da neoglicogênese. Estrogênios e progesterona A placenta não dispõe da maquinaria enzimática completa para vias biossintéticas esteroides. Assim, a síntese de esteroides placentários depende de esteroides produzidos pela gestante e pelo feto (Figura 77.3). Apesar de a placenta produzir muita progesterona, ela é incapaz de convertêla em estrogênio devido à deficiência da enzima 17αhidroxilase. Os estrogênios placentários são sintetizados a partir da conversão dos androgênios desidroepiandrosterona (DHEA) e 16 hidroxidesidroepiandrosterona (16OHDHEA), secretados pelas suprarrenais fetais e maternas. Entre as principais ações estrogênicas, incluemse: aumento do útero materno pelo aumento do miométrio (estímulo da síntese de proteínas), acúmulo de líquido (retenção de água e eletrólitos) e aumento da vascularização (indução de angiogênese). Outras ações significativas ocorrem nas glândulas mamárias, principalmente no crescimento e desenvolvimento do sistema de ductos, preparandoas para a lactação pósparto.
Figura 77.3 ■ Via biossintética dos esteroides placentários dependente da interação com a gestante e o feto. DHEA, desidroepiandrosterona; DHEAS, desidroepiandrosteronasulfatada; 16α OHDHEA, 16alfa hidroxidesidroepiandrosterona; 16α OHDHEAS, 16alfahidroxidesidroepiandrosteronasulfatada; 16α OHandrostenediona, 16alfahidroxiandrostenediona.
A progesterona facilita a manutenção do embrião no útero, impedindo as contrações uterinas para evitar o aborto espontâneo. Também tem ação significativa nas glândulas mamárias, principalmente no crescimento e desenvolvimento dos alvéolos, onde ocorre a produção pósparto do leite por ação estimuladora da prolactina.
▸ Outras alterações estruturais e funcionais na gestação A gestante apresenta um significativo aumento de peso corporal, em média de 10 a 12 kg. O ganho de peso é representado por feto, placenta e anexos fetais, líquido amniótico e aumentos do útero e das mamas. Além disso, o crescimento de outros tecidos não relacionados especificamente à gestação e a retenção de líquidos são também fatores que contribuem para o aumento de peso corporal. A hipófise aumenta cerca de duas vezes na gestação tardia, principalmente por causa do aumento dos lactotrofos em tamanho e número; esse efeito é atribuído à ação dos estrogênios, que estimulam a síntese e a liberação de prolactina de modo dosedependente. Em mulheres em idade reprodutiva, a administração de estrogênios, que mimetize a concentração plasmática no período préovulatório, provoca elevação de secreção noturna de prolactina. Em ratas, foi demonstrado que o efeito de estrogênios se deve à ativação de mRNA para prolactina, inibição do tônus dopaminérgico e facilitação da expressão de receptores para TRH. As concentrações totais de hormônios tireoidianos e cortisol também se elevam, mas não as frações livres desses hormônios. Portanto, essas alterações normalmente não implicam estados de hipertireoidismo ou hipercortisolismo. As elevações das concentrações totais desses hormônios são devidas ao aumento da produção de proteínas transportadoras dos hormônios tireoidianos e cortisol, respectivamente, TBG e CBG; o crescimento da produção dessas proteínas é também induzido pela ação dos estrogênios. Outros parâmetros funcionais estão aumentados, como ventilação, retenção de água e eletrólitos, taxa de filtração glomerular, ingestão de água, metabolismo basal (consumo maior de energia), volume sanguíneo, metabolismo de cálcio e fosfato, demanda de ferro, além de vitaminas D e K.
PARTO O parto é o processo durante o qual ocorre a expulsão do feto, placenta e anexos fetais do interior da cavidade uterina. Embora os mecanismos desencadeantes do trabalho de parto em humanos não estejam completamente esclarecidos, sabe se que eles envolvem fatores hormonais e mecânicos de origem materna e fetal. A contratilidade uterina durante a gestação e o parto compreende três fases distintas. A fase 0 é aquela em que o útero é mantido em quiescência durante a gestação, principalmente por efeito da progesterona. Outros fatores incluem: prostaciclina, relaxina e hormônio liberador de corticotrofina (CRH). O início do parto corresponde à transição da fase 0 para a fase 1. A fase 1 relacionase com a ativação da função uterina ocasionada por: estiramento e tensão provocados pelo crescimento do feto, ativação do eixo hipotálamohipófisesuprarrenal fetal e aumento de prostaglandinas, entre outros fatores. A fase 2 caracterizase por contrações uterinas mais intensas, estimulada por ocitocina, CRH e prostaglandinas, especialmente as produzidas intraútero. Estas são fundamentais no início e progressão do parto, que ocorrem na fase 2. Finalmente, a fase 3 corresponde à involução uterina no pósparto, que está associada principalmente à ação da ocitocina. Além das contrações uterinas, os primeiros sinais do trabalho de parto incluem também alterações do colo uterino, que se torna amolecido e mais fino. A dilatação do colo uterino ajustase a outras alterações anatômicas, como afrouxamento de ligamentos de ossos da bacia, elasticidade vaginal e maior distensibilidade dos músculos da região vulvarperineal para constituir o chamado canal do parto. As contrações provocam, ainda, ruptura da bolsa amniótica, com perda de líquido; isso facilita o acesso do feto ao canal de parto, contribuindo para distensão do colo uterino. Esta estimulação do colo uterino aciona uma via sensorial ascendente, através da medula espinal até os neurônios ocitocinérgicos do hipotálamo, cujos terminais na neurohipófise liberam ocitocina para a circulação sistêmica. Este hormônio aumenta a contratilidade do miométrio uterino, o que impulsiona o feto no sentido do colo uterino, gerando mais estímulos para secreção de ocitocina. Formase assim um mecanismo de retroalimentação positiva interrompido pela expulsão do feto.
A secreção de ocitocina não aumenta na mãe e no feto antes de iniciado o trabalho de parto, mas sim durante este. Assim, além da função indutora do trabalho de parto, a ocitocina parece ter funções mais significativas na regulação da fase de expulsão do feto e na contração uterina hemostática depois do parto. A contração uterina pósparto, além de reduzir o sangramento, tem o efeito de cisalhamento e deslocamento da placenta da parede uterina, para que seja também expulsa. A administração de ocitocina exógena para facilitar o trabalho de parto é procedimento frequente nos serviços obstétricos. Entretanto, é contraindicada em mulheres previamente submetidas a cesárea ou miomectomia, com história de gestações múltiplas e em caso de desproporção cefalopélvica, entre outras situações. Por outro lado, a presença de ocitocina materna parece não ser indispensável para o trabalho de parto, visto que este pode ocorrer normalmente em mulheres com deficiência de ocitocina. O estrogênio e a progesterona têm ações inversas sobre o miométrio. A progesterona causa hiperpolarização do miométrio e reduz a síntese de receptores para ocitocina, inibindo a contratilidade. O estrogênio promove contratilidade uterina associada ao aumento de receptores para ocitocina. Assim, a alteração da razão estrogênio:progesterona pode facilitar ou dificultar a expressão de receptores para ocitocina, influenciando portanto a ação da ocitocina na expulsão do feto. Outras substâncias estão envolvidas no trabalho de parto, como prostaglandinas e catecolaminas. O ácido araquidônico, presente no âmnion e no córion em concentrações elevadas, é precursor das prostaglandinas. O aumento da produção de prostaglandinas está associado à facilitação do trabalho de parto. A administração de prostaglandinas a gestantes causa amaciamento e dilatação do colo uterino, além de induzir contrações uterinas. Por outro lado, a progesterona inibe a formação de prostaglandinas, e inibidores destas impedem o parto prematuro. As catecolaminas atuantes em receptores alfa2 estimulam as contrações uterinas, enquanto em receptores beta2 inibem o trabalho de parto. A progesterona aumenta a razão entre receptores beta e receptores alfa no miométrio, favorecendo a manutenção da gestação.
PUERPÉRIO O puerpério é o período de 6 semanas pósparto no qual o organismo retorna progressivamente à condição pré gestacional. Diversas modificações funcionais e algumas estruturais que ocorreram durante a gestação são revertidas no puerpério, por exemplo, afrouxamento dos ligamentos pélvicos, aumento do volume sanguíneo e da metabolização hepática e renal de várias substâncias, assim como das concentrações plasmáticas totais de hormônios tireoidianos e corticoides, além do crescimento do útero. Neste período de transição biológica, ocorre uma série de ajustes dos mecanismos homeostáticos, que em mulheres suscetíveis pode elevar a vulnerabilidade a estados depressivos transitórios ou persistentes e a doenças autoimunes. Evidências sugerem uma associação destes distúrbios, mais frequentes no puerpério, e desajustes no eixo hipotálamo hipófise suprarrenal pela deficiência de secreção de CRH. Durante o período de puerpério, há ausência de menstruação (amenorreia), que pode prolongarse por mais ou menos tempo, na dependência de a mulher estar amamentando ou não. A maioria das mulheres que não amamentam retoma o ciclo menstrual normal, com ovulação em torno de 6 semanas pósparto. A amamentação pode prolongar a amenorreia pósparto, devido à ação antigonadotrófica indireta da prolactina, inibindo a secreção de GnRH pelo hipotálamo. Algumas evidências indicam ainda uma ação direta da prolactina sobre o ovário, inibindo o crescimento folicular. O tempo decorrido depois do parto e o número de amamentações influenciam a manutenção da anovulação e amenorreia. Entretanto, a amamentação não garante um estado de anovulação, mesmo que a mulher puérpera esteja em amenorreia, principalmente se não é fonte exclusiva de alimentação do lactente e portanto o número de mamadas é menor.
LACTAÇÃO A lactação é a fase final do ciclo reprodutivo completo dos mamíferos. Tem a importante função de assegurar a sobrevivência dos recémnascidos por oferecer os nutrientes essenciais para o seu crescimento, uma vez que, após o nascimento, a criança perde a sua fonte de alimento através da placenta. Juntamente com os cuidados que protegem o recémnascido das adversidades ambientais, que no ser humano ocorrem por um período relativamente longo, a lactação permite que o neonato cresça e gradualmente adquira independência. O processo de lactação pode ser dividido em três estágios: (1) a mamogênese ou o crescimento e desenvolvimento da glândula mamária, que ocorre durante todo o período gestacional e a torna capaz de produzir leite; (2) a lactogênese, que é
a síntese de leite pelas células alveolares e a sua secreção no lúmen do alvéolo, iniciandose com a queda dos esteroides placentários depois do parto, e a lactopoese, que é a manutenção da lactação já estabelecida e que depende da duração e da frequência do ato de amamentar; (3) a ejeção de leite, ou seja, a passagem do leite do lúmen alveolar para o sistema de ductos até ductos maiores e a ampola, culminando com a liberação do leite para o neonato. Este assunto também é apresentado no Capítulo 78, Desreguladores Endócrinos.
▸ Mamogênese A unidade fundamental secretória da mama é o alvéolo (Figura 77.4), formado por uma única camada de células epiteliais cuboidais que dispõem de toda a maquinaria intracelular para a produção de leite, que é aí produzido e secretado para o lúmen do alvéolo por ação da prolactina. Os alvéolos mamários são rodeados por células mioepiteliais, que têm função contrátil, e se reúnem em grupos que formam os lóbulos mamários. Cada alvéolo drena o seu conteúdo para um pequeno ducto; os ductos de vários alvéolos confluem em ductos maiores que se abrem nas ampolas, pequenos reservatórios de leite de onde saem os ductos lactíferos, pelos quais o leite é ejetado. Lóbulos, ductos, tecido fibroso e gordura são componentes básicos da mama. A ejeção do leite dos alvéolos para os ductos, e então para o exterior, acontece como consequência da contração de células mioepiteliais em resposta à ocitocina.
Figura 77.4 ■ Estrutura da mama lactante. Os alvéolos mamários se reúnem em grupos que formam os lóbulos. Cada alvéolo secreta o leite do lúmen para pequenos ductos que se reúnem em ductos maiores até as ampolas, que desembocam no mamilo, de onde é expulso o leite durante a sucção. O destaque mostra a estrutura de um alvéolo; observe que este se compõe de uma camada única de células alveolares produtoras de leite e é envolto por uma rede de células mioepiteliais com capacidade contrátil, que o comprimem expulsando o leite para o ducto alveolar.
Ao nascimento, a mama consiste quase inteiramente em ductos com poucos ou nenhum alvéolo, e assim permanece até a puberdade, quando começa a desenvolverse por ação de vários hormônios, mas especialmente os estrogênios e a progesterona. Durante a instalação da puberdade, a aréola aumenta e tornase pigmentada, e o crescimento da mama se dá à custa do estroma. A elevação dos estrogênios causa desenvolvimento da mama, com deposição de gordura e crescimento dos sistemas de ductos e alvéolos. Quando se iniciam os ciclos menstruais, a exposição contínua da mama aos estrogênios e à progesterona promove aumento adicional da arborização e do comprimento dos ductos, além de acelerar o desenvolvimento dos alvéolos. Outros hormônios, tais como insulina, cortisol e GH, são também importantes para o crescimento do sistema de ductos. Durante os ciclos menstruais, o aumento das concentrações de estrogênio e progesterona, que ocorre na fase lútea, causa alterações evidentes na mama, como aumento do seu volume no período pré menstrual e a consequente mastalgia prémenstrual. Durante a gestação, a glândula mamária passa por um processo de preparação para a lactação. A mama cresce sob influência de estrogênios, progesterona, glicocorticoides, prolactina, hPL, GH, IGF1 e insulina. Há aumento do tecido adiposo, da vascularização e da rede de células mioepiteliais que envolvem os alvéolos. O sistema de ductos cresce e arborizase, o número de alvéolos aumenta e formamse muitos lóbulos. Embora os estrogênios e a progesterona sejam os principais hormônios para o desenvolvimento das glândulas mamárias durante a gestação, a prolactina tem ação crucial no mesmo. Juntamente com os estrogênios, a prolactina causa, principalmente, desenvolvimento de ductos, mas também de alvéolos; na presença de progesterona, o efeito da prolactina no crescimento alveolar é muito aumentado. As células epiteliais dos alvéolos apresentam vacúolos que indicam atividade secretora. No entanto, a produção de leite não ocorre antes do parto, devido às concentrações elevadas de estrogênios e progesterona, que impedem a ação da prolactina nas células alveolares. Durante a amamentação, há proliferação adicional dos alvéolos e do sistema de ductos que, associada ao acúmulo de leite nos alvéolos, promove o aumento das mamas. Após cessar a amamentação, a glândula regride rapidamente, mas os alvéolos persistem. Portanto, as mamas de mulheres que já amamentaram são diferentes das mamas de nulíparas.
▸ Lactogênese e lactopoese Lactogênese Após a eliminação da placenta, as concentrações dos estrogênios e da progesterona caem abruptamente (Figura 77.5), permitindo assim o início da lactação, que acontece 36 a 48 h depois do parto, estimulada principalmente pela prolactina. A composição do leite varia no período pósparto. Nos primeiros dias, há uma secreção amarelada e mais espessa. Trata se do colostro, que contém menos vitaminas hidrossolúveis (C e complexo B), gordura e açúcar que o leite, mas que tem maiores quantidades de proteínas e vitaminas lipossolúveis (A, D, E e K) e imunoglobulinas (IgG). No decorrer das seguintes 2 a 3 semanas, as concentrações das IgG e proteínas diminuem, enquanto as de lactose e gordura aumentam, tornando o leite com valor calórico maior que o do colostro. Após este período de transição, o leite é uma solução aquosa que contém água, açúcar (o principal é a lactose), gordura (principal fonte energética), aminoácidos (incluindo os essenciais), proteínas (a caseína é a principal proteína do leite), minerais (cálcio, ferro, magnésio, potássio, sódio, fósforo e enxofre) e vitaminas (A, B1, B2, B12, C, D, E e K). Para a secreção destes componentes do leite, da célula epitelial para o lúmen do alvéolo, são utilizadas várias rotas, descritas a seguir. Via secretória (exocitose) As proteínas, os açúcares e as imunoglobulinas são secretados no lúmen do alvéolo por exocitose (Figura 77.6). As proteínas do leite são sintetizadas no retículo endoplasmático rugoso e vão para o aparelho de Golgi; aí são empacotadas em vesículas, as quais são secretadas no lúmen do alvéolo. Também no aparelho de Golgi, a lactose sintetase induz síntese de lactose, que é igualmente secretada para o lúmen em vesículas, por exocitose. Como o açúcar é osmoticamente ativo, a água entra nas vesículas por osmose. Assim, o volume do leite é diretamente relacionado com o conteúdo da lactose. Cálcio, fosfato e citrato também são secretados por esta via. A secreção das imunoglobulinas por exocitose é precedida por um processo de endocitose. A membrana basal das células alveolares capta imunoglobulinas (especialmente a IgA) da mãe, por um processo de endocitose mediado por receptor. O complexo IgAreceptor internalizase em vesículas, sendo estas transportadas pela célula até a membrana apical, onde são secretadas por exocitose. Estas imunoglobulinas são absorvidas pelo sistema digestório do recémnascido e são importantes para conferir imunidade para o neonato até que o seu sistema imune esteja maduro.
Figura 77.5 ■ Liberação de prolactina em reposta à sucção. A. Após o parto, as concentrações plasmáticas de estrógenos e de progesterona caem abruptamente, permitindo o início da lactação. Quando há amamentação, a secreção de prolactina continua alta, exibindo um pico de secreção em resposta à sucção durante cada período de amamentação. Sem amamentação, as concentrações de prolactina diminuem rapidamente e voltam aos seus níveis basais. B. A sucção provoca um aumento da secreção de prolactina que se inicia cerca de 10 min depois do início da sucção e se mantém durante o período que a sucção durar, diminuindo aos níveis basais cerca de 60 min após terminado o estímulo.
Figura 77.6 ■ Representação esquemática das vias usadas na produção de leite pelas células alveolares. Via secretória: as proteínas do leite são sintetizadas no retículo endoplasmático rugoso (RER) e migram para o aparelho de Golgi, onde são empacotadas em vesículas secretórias, as quais são secretadas no lúmen do alvéolo por exocitose. A lactose também é secretada por exocitose após sua síntese no aparelho de Golgi. As imunoglobulinas (Ig) são captadas por endocitose na membrana basolateral e atravessam a célula alveolar até a membrana apical, onde são secretadas por exocitose no lúmen do alvéolo. Os eletrólitos também são excretados por exocitose. Via dos lipídios: os ácidos graxos de cadeia curta são sintetizados no retículo endoplasmático liso (REL), formando gotículas que aumentam de tamanho à medida que se movem em direção à membrana apical, a qual envolve as gotículas e as elimina para o lúmen do alvéolo. Via transcelular: a água se move através da célula por gradiente osmótico gerado pela lactose e pelos eletrólitos. Os íons monovalentes seguem a água por gradiente
eletroquímico. Via paracelular: várias substâncias e tipos celulares passam para o leite por entre as células, atravessando as tight junctions, que se tornam mais frouxas durante a sucção. (Adaptada de Jones e DeCherney, 2005.)
Via dos lipídios Os ácidos graxos de cadeia longa, os mais abundantes no leite, originamse da dieta ou de depósitos de gordura. Já os ácidos graxos de cadeia curta são sintetizados no retículo endoplasmático liso das células epiteliais alveolares. Os ácidos graxos formam gotículas que se movem em direção à membrana apical ao mesmo tempo em que vão aumentando de tamanho. A gotícula empurra a membrana, que se distende e perde suas microvilosidades no local; em seguida, a gotícula é envolvida pela membrana. Por fim, a membrana pinça o citoplasma e se funde de modo a envolver totalmente a gotícula, que é então eliminada para o lúmen do alvéolo envolta em membrana. Estes ácidos graxos são quase completamente digestíveis, uma vez que estão emulsificados no leite na forma de pequenos glóbulos. Transporte transcelular de água e sal Vários processos de transporte na membrana apical e basolateral movimentam eletrólitos do líquido intersticial para o lúmen do alvéolo. A água se move através da célula por gradiente osmótico, gerado primariamente pela lactose e em menor extensão pelos eletrólitos. Os íons monovalentes seguem a água por gradiente eletroquímico. Via paracelular A rota paracelular é diferente das vias transcelulares. Por causa das tight junctions, as substâncias, normalmente, não passam entre as células dos alvéolos. Mas, durante a sucção, estas junções se tornam mais frouxas, permitindo a passagem de sais e água para o leite, bem como de células tipo leucócitos e imunoblastos que secretam IgA. Este processo é dependente de estradiol, progesterona e prolactina, que favorecem esta migração. Água e sais também podem se mover para o lúmen do alvéolo via gap junctions. Estes mecanismos responsáveis pela formação do leite nas células alveolares são mediados primariamente pela prolactina, mas também são influenciados por estrogênios, progesterona, insulina, glicocorticoides, hormônios tireoidianos, prostaglandinas e fatores de crescimento. A prolactina é um hormônio polipeptídico com 198 aminoácidos, peso molecular 22.000 dáltons, produzido por lactotrofos da adenohipófise. Uma vez secretado, este hormônio alcança a circulação sistêmica e se liga a seus receptores de membrana, localizados nas células secretoras dos alvéolos, induzindo assim a síntese de componentes do leite e a sua secreção para o lúmen alveolar (lactogênese). A secreção de prolactina é tonicamente inibida pelo hipotálamo. Várias substâncias têm sido identificadas como inibidores da secreção de prolactina; no entanto, até o momento, a dopamina é a mais estudada e aceita como principal fator inibidor. A dopamina é liberada na eminência mediana por terminais neuronais próximos ao plexo primário de capilares do sistema portahipofisário, alcançando, via vasos porta longos, a adenohipófise, onde inibe a secreção de prolactina nos lactotrofos. Na mulher não grávida, as concentrações plasmáticas de prolactina são normalmente abaixo de 25 ng/m ℓ . Ao longo da gestação, a liberação de dopamina diminui e a secreção de prolactina aumenta. Durante o terceiro trimestre da gestação, as concentrações plasmáticas de prolactina são cerca de 15 vezes mais altas, alcançando 200 a 450 ng/mℓ (ver Figura 77.5). Por ocasião do parto, este hormônio alcança suas concentrações máximas no plasma, mas a mama produz apenas pequenas quantidades de colostro. Não há lactogênese porque as células alveolares não respondem à prolactina até que as concentrações plasmáticas de estrogênios e principalmente de progesterona caiam no momento do parto. Estes esteroides parecem inibir a lactogênese por agir diretamente nas células alveolares. Outras informações a respeito da prolactina são fornecidas no Capítulo 66, Glândula Hipófise.
Lactopoese Após o parto, grandes quantidades de prolactina são secretadas pelos lactotrofos em resposta à sucção do mamilo (ver Figura 77.5). Se não houver sucção, as concentrações deste hormônio caem lentamente, e apenas uma pequena quantidade de leite pode ainda ser secretada por 3 a 4 semanas depois do parto. No entanto, se houver o aleitamento, as concentrações de prolactina se manterão elevadas. Em 2 a 5 dias, a produção láctea estará plenamente estabelecida, e a manutenção da secreção copiosa de leite (lactopoese) dependerá estritamente do estímulo frequente da sucção. Neste caso, a sucção manterá as concentrações plasmáticas de prolactina altas durante as primeiras 8 a 12 semanas. No entanto, com o passar do tempo, a secreção basal de prolactina diminui, e a sucção já não provoca aumentos desta secreção na mesma magnitude; mesmo que a mulher continue amamentando, a produção de leite cai gradativamente, e a reposição de prolactina é inefetiva para restaurála. Apesar disso, este hormônio, ainda que em concentrações mais baixas, continua sendo importante à lactopoese.
▸ Ejeção do leite A sucção, além de induzir a liberação de prolactina garantindo a lactogênese, constitui o estímulo mais importante para a liberação de ocitocina, responsável pela ejeção do leite. Este hormônio é produzido nos neurônios magnocelulares dos núcleos paraventricular (PVN) e supraóptico (SON) do hipotálamo. No PVN, a síntese de ocitocina se dá nos neurônios da região mais ventral, enquanto, no SON, ela ocorre, predominantemente, na região mais dorsal. Após sua síntese nos corpos celulares, a ocitocina é transportada em grânulos até os terminais desses neurônios, localizados na neurohipófise, onde é armazenada. O processo de liberação de ocitocina é desencadeado pela despolarização dos neurônios do PVN e do SON, e a sucção é um dos estímulos mais poderosos para que ela ocorra (Figura 77.7). Em consequência à despolarização desses neurônios, a ocitocina é liberada por exocitose junto aos capilares da neurohipófise, onde não há barreira hematencefálica. O hormônio então atravessa a parede destes capilares fenestrados e alcança a circulação sistêmica. Nas células mioepiteliais que envolvem os alvéolos mamários, a ocitocina se liga aos seus receptores de membrana, induzindo a contração destas células, o que força o leite a sair dos alvéolos para os ductos. Mais comentários sobre ocitocina são feitos no Capítulo 66.
▸ Reflexo neuroendócrino da lactação Durante a sucção, os sinais sensoriais originados nos mecanorreceptores presentes no mamilo trafegam pelos nervos torácicos 4, 5 e 6 e entram no sistema nervoso central pela raiz dorsal da medula espinal; daí, em uma via polissináptica através da coluna anterolateral, ascendem para o tronco cerebral e então para o hipotálamo (ver Figura 77.7).
Prolactina No hipotálamo, terminais de neurônios desta via estimulada pela sucção inibem os neurônios dopaminérgicos do núcleo arqueado, reduzindo assim a secreção de dopamina. A diminuição da liberação de dopamina remove a inibição que ela exerce sobre os lactotrofos da adenohipófise. Consequentemente, há aumento da secreção de prolactina. Em relação a este controle neuroendócrino da secreção de prolactina, foi sugerido que somente a desinibição do tônus dopaminérgico parece não ser capaz de produzir aumentos agudos na secreção de prolactina. Portanto, a gênese de picos de secreção deste hormônio aparenta depender também da ação estimulatória de fatores liberadores de prolactina (PRF). Contudo, pouco se sabe a respeito da regulação da secreção de prolactina pelos PRF e tampouco acerca dos sistemas neuroquímicos que modulam a atividade dos PRF de modo a gerar picos de secreção de prolactina. Vários neuro hormônios apresentam atividade PRF, cada qual podendo ser ativado em condições distintas, que resultam em aumentos marcantes na secreção de prolactina. Entre outros, peptídios como a ocitocina, o peptídio vasoativo intestinal (VIP) e o hormônio liberador de tireotrofina (TRH) podem atuar como PRF. Os mecanismos neurais que controlam a liberação destes PRF, influindo assim na liberação de prolactina, não são conhecidos. É possível que estes fatores possam agir diretamente nos lactotrofos, ou indiretamente, alterando a secreção de dopamina. Sabese, por exemplo, que o VIP atua nos lactotrofos e que esta ação é modulada pela dopamina, uma vez que a redução da sua secreção (que ocorre após a sucção) sensibiliza os lactotrofos à ação do VIP. Deste modo, parece que esses mecanismos podem agir sinergicamente para aumentar a produção de prolactina. A sucção depleta os estoques hipofisários de prolactina em 1 a 2 min, porém o aumento das concentrações da prolactina no plasma só é observado 10 a 20 min após (ver Figura 77.5). Na circulação sistêmica, este hormônio alcança as células epiteliais dos alvéolos, onde, ao se ligar em seus receptores, induz a síntese de leite. Há que ficar claro que a lactogênese é um processo demorado e que, portanto, o leite produzido em resposta a um aumento da secreção de prolactina não é o mesmo ejetado durante este estímulo. A síntese láctea induzida pela sucção será, assim, importante para as próximas sessões de amamentação. A quantidade de prolactina liberada depende da força e da duração da sucção do mamilo. Quando os dois mamilos são estimulados, como, por exemplo, no caso de amamentação simultânea de gêmeos, o pico de secreção de prolactina induzido pela sucção é bem maior que quando apenas uma mama é estimulada.
Ocitocina Os mesmos sinais sensoriais gerados pela sucção, que inibem a secreção de dopamina no hipotálamo, estimulam os neurônios do PVN e do SON a sintetizarem e liberarem a ocitocina (ver Figura 77.7). Ao ser liberada nos vasos neurohipofisários e então na circulação sistêmica, a ocitocina se liga aos seus receptores na membrana das células mioepiteliais, contraindoas. Consequentemente, há um aumento da pressão intraalveolar que provoca a expulsão do leite do lúmen dos alvéolos para os ductos. Já foi demonstrado que a pressão negativa que decorre da sucção do mamilo não é
eficiente para a ejeção do leite, enquanto a ação da ocitocina (que comprime os alvéolos, gerando uma pressão positiva nestes e também nos ductos) é essencial para que ocorra a ejeção do leite.
Figura 77.7 ■ Reflexo neuroendócrino da lactação. (1) A sucção deforma os mecanorreceptores presentes no mamilo, ativando os. (2) Os sinais sensoriais aí originados trafegam por nervos torácicos, entrando no sistema nervoso central pela raiz dorsal da medula espinal. (3) Esses sinais ascendem via coluna anterolateral para o tronco cerebral, onde estabelecem sinapses. Os neurônios que participam dessa via polissináptica se projetam: (4) para os núcleos paraventricular (PVN) e supraóptico (SON), estimulandoos a secretar ocitocina dos seus terminais na neurohipófise; (5) para os neurônios dopaminérgicos, em especial do núcleo arqueado (ARC), inibindo a liberação de dopamina (DA) na eminência mediana; e (6) para os neurônios que produzem fatores liberadores de prolactina (PRF), estimulandoos a secretarem seus produtos que irão, direta ou indiretamente, estimular a secreção de prolactina. (7) Sem o controle inibitório, os lactotrofos secretam prolactina, que alcança a circulação sistêmica. (8) Nas células alveolares, a prolactina ligase aos seus receptores de membrana, induzindo a síntese de leite e sua secreção para o lúmen do alvéolo. (9) A ocitocina liberada pelos terminais neuronais na neurohipófise alcança a circulação sistêmica. (10) A ocitocina ligase aos seus receptores nas membranas das células mioepiteliais do alvéolo mamário, induzindo sua contração e expulsão do leite do lúmen para os ductos alveolares.
Reflexos condicionados para a ejeção do leite A sucção é o estímulo primário para ativar o reflexo de ejeção do leite, e o uso da bomba de sucção é eficaz em elevar a secreção de prolactina, como na sucção pelo neonato. No entanto, o reflexo neuroendócrino da ejeção láctea pode também ser condicionado. Estímulos visuais, auditivos ou psicológicos podem induzir a liberação de ocitocina e de prolactina. Como exemplo, constatase que o som do choro do bebê induz aumento na secreção de prolactina e de ocitocina. Em vacas, sabese que o ruído do balde utilizado diariamente na ordenha é capaz de desencadear a ejeção de
leite, induzida pela secreção de ocitocina. O simples fato de a lactante brincar com o bebê antes de amamentálo é capaz de induzir aumento na secreção de prolactina. Estes exemplos ilustram o envolvimento de centros neurais superiores no controle da secreção de ocitocina e de prolactina.
Inibição da lactação por estresse Estresses físicos e psicológicos podem inibir a lactação. Dores e desconfortos no período pósparto podem trazer inibição ao início da lactação. No entanto, os mecanismos pelos quais o estresse desestimula a lactação não são bem conhecidos. A ativação do sistema adrenérgico central e periférico parece, respectivamente, inibir a secreção de ocitocina e causar constrição dos vasos da mama, diminuindo assim a lactação. A angiotensina liberada em situações de estresse também parece mediar a inibição da secreção de prolactina durante a lactação por meio do aumento da secreção de dopamina do núcleo arqueado, e essa ação é facilitada pela progesterona.
Amenorreia durante a lactação Como abordado anteriormente, em Puerpério, no início do período de lactação ocorre amenorreia. A duração da amenorreia pósparto parece estar diretamente relacionada com a duração, a frequência e a intensidade da amamentação. No que se refere à duração, estudos realizados com grupos de mulheres de culturas diferentes e sem uso de contraceptivos mostram, por exemplo, que, enquanto em uma tribo primitiva da África, na qual os filhos são amamentados por 3 a 4 anos, o intervalo entre os filhos é de 4 anos, em outro grupo cultural da América do Norte, no qual é dado suplemento alimentar ao bebê poucos meses depois do seu nascimento, o intervalo entre os filhos é de 2 anos. Finalmente, em mulheres que não amamentam a amenorreia dura apenas 2 a 3 meses. Além da duração do período de aleitamento, a frequência com que a mulher amamenta é importante para determinar a retomada dos ciclos menstruais. O número de vezes que ela amamenta pode variar, por exemplo, de 15 a 18 por dia (como em Bangladesh), 13 por dia (em uma tribo africana), mas raramente é maior que 6 vezes/dia na América do Norte e na Europa, onde é comum 3 ou 4 vezes/dia. Sugerese que 6 vezes/dia seja o número mínimo de amamentações requerido para que ocorra hiperprolactinemia capaz de inibir a ovulação. Além disso, a dieta suplementar implementada poucos meses após o nascimento constitui outro fator que reduz ainda mais a frequência e também a intensidade da sucção, permitindo assim que os ciclos ovulatórios voltem a ocorrer mais precocemente. Portanto, o efeito inibitório da amamentação nos ciclos reprodutivos explica a cultura popular de que a amamentação funciona como um contraceptivo natural; entretanto, na vida moderna em muitos países isso não mais corresponde à realidade, uma vez que houve diminuição da intensidade, da frequência e da duração da amamentação.
▸ Métodos contraceptivos O uso de métodos contraceptivos apresenta implicações clínicas e sociais óbvias e relevantes. A fertilidade pode ser controlada, seja bloqueando a ovulação ou a implantação, seja impedindo o contato do espermatozoide com o óvulo. Os métodos contraceptivos podem ser também classificados como reversíveis ou irreversíveis. Os métodos que se baseiam em prevenir o acesso dos espermatozoides à vizinhança do óvulo incluem, basicamente, os de barreira: condom e diafragma. Quando associados a agentes espermicidas, estes métodos apresentam eficácia praticamente similar à dos anticoncepcionais orais. São incluídos também nesta categoria métodos menos eficazes, como o coitus interruptus e o método do ritmo (abstinência no período provável em que o óvulo esteja na tuba uterina). Os anticoncepcionais hormonais contêm estrogênios sintéticos em combinação com diferentes classes de progestógenos. O mecanismo de ação é o bloqueio da ovulação pelos componentes hormonais do anticoncepcional, inibindo o pico préovulatório do LH. Embora os anticoncepcionais orais sejam os mais populares e mais frequentemente usados, diferentes formulações utilizando outras vias de administração que não a oral estão disponíveis, como os adesivos, o anel vaginal ou os injetáveis. É possível a administração subcutânea, em que os hormônios são liberados de maneira constante, durante até 5 anos. Alguns anticoncepcionais podem conter apenas o progestógeno em doses mais baixas, sendo denominados minipílulas. Seu mecanismo de ação não é bloquear a ovulação, mas sim tornar mais espesso o muco cervical e diminuir a peristalse da tuba uterina, dificultando a movimentação dos espermatozoides ao longo do sistema genital. Esta classe de anticoncepcional é recomendada para mulheres com contraindicação para o uso de estrogênios, como aquelas que estão amamentando, entre outros exemplos. Outros anticoncepcionais atuam interferindo no transporte do zigoto ou no processo de implantação. São exemplos as preparações com progestógenos de ação prolongada, estrogênios em doses altas e antagonistas do receptor de progesterona (mifepristona). Os dispositivos intrauterinos (DIU) também se enquadram na categoria dos métodos que impedem a
implantação, promovendo inflamação do endométrio e produção de prostaglandinas. A eficácia deles também é elevada, especialmente nos que contêm cobre, zinco ou progestógeno. Os anticoncepcionais ditos póscoitais são formulações com doses elevadas de progestógenos; devem ser utilizados até 72 h após a atividade sexual não protegida, em duas doses no intervalo de 12 h. Como descrito no Capítulo 71, os progestógenos alteram as condições intrauterinas e tubárias, dificultando o movimento do óvulo e do espermatozoide e, com isso, a fecundação. A vasectomia corresponde à secção dos dois ductos deferentes, impedindo a passagem dos espermatozoides para o ejaculado. A ligadura tubária é realizada pela ligação das tubas uterinas. Cirurgias para promover a restauração dos ductos deferentes ou das tubas uterinas podem ser realizadas, mas com sucesso limitado. Por isso, ambos os métodos são considerados irreversíveis.
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Considerações gerais
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Fontes e características principais Desreguladores endócrinos clássicos
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Desreguladores endócrinos não clássicos Mecanismos de ação Janelas de exposição
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Efeitos no organismo Considerações finais
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Bibliografia
CONSIDERAÇÕES GERAIS Nas últimas décadas um crescente número de estudos demonstrou que a exposição humana a algumas substâncias químicas, naturais ou artificialmente produzidas, presentes em alimentos e no meio ambiente, provoca alterações no sistema endócrino, contribuindo de forma relevante para o desenvolvimento de doenças. Essas substâncias foram classificadas como desreguladores endócrinos. Várias classes de desreguladores endócrinos encontramse descritas na literatura, e as mais conhecidas serão discutidas adiante. Entretanto, estudos recentes descrevem que, em determinadas doses, iodo e folato, fundamentais para a manutenção de vários processos biológicos, bem como fitoestrógenos, hormônios sintéticos encontrados em pílulas anticoncepcionais, metais pesados e lítio, são potenciais desreguladores de diferentes eixos endócrinos. Conforme será descrito neste capítulo, muitos estudos epidemiológicos e com modelos animais já foram realizados e descreveram os potenciais efeitos deletérios da exposição aos desreguladores endócrinos no organismo. Contudo, ainda existe um grande conflito de interesses entre a indústria química, farmacêutica, organizações não governamentais e os órgãos públicos responsáveis pelo controle da liberação de contaminantes no meio ambiente. Adicionalmente, os desreguladores endócrinos desencadeiam uma complexa rede de mecanismos de ação no organismo. Todos esses fatores aliados limitam consideravelmente o desenvolvimento e a implementação de estratégias eficientes de intervenção. Ainda assim, várias iniciativas em todo o mundo estão em andamento com o intuito de diminuir a contaminação ambiental e, consequentemente, a exposição humana e animal aos desreguladores endócrinos.
FONTES E CARACTERÍSTICAS PRINCIPAIS Desreguladores endócrinos – também conhecidos como interferentes endócrinos, disruptores endócrinos ou toxinas endócrinas – são substâncias químicas (naturais ou sintéticas) que interferem na função endócrina, produzindo efeitos adversos sobre crescimento, desenvolvimento, reprodução e metabolismo, com repercussões sistêmicas em variados graus, dependendo do tempo de exposição e da fase do desenvolvimento na qual o indivíduo é exposto. A interferência exercida pelos desreguladores endócrinos no sistema endócrino é ampla e inclui alterações na síntese, secreção, transporte, ligação, ação, metabolização e/ou eliminação dos hormônios no organismo. De maneira geral, quando
o desregulador endócrino tem origem natural, o mesmo é classificado como um fitohormônio; quando sua origem é sintética, dizse que o desregulador é um xenohormônio. A Agência de Proteção Ambiental norteamericana (United States Environmental Protection Agency – US EPA) descreveu cerca de 87.000 compostos químicos com potencial de desregulador endócrino. As principais fontes desses desreguladores são a indústria química e farmacêutica, por meio da produção de pesticidas e agrotóxicos, cosméticos, plásticos, embalagens e aditivos de alimentos, assim como suplementos nutricionais. Os desreguladores endócrinos clássicos possuem algumas características básicas como: ■ Adsorção em partículas suspensas e sedimentação em ambientes aquáticos ■ Degradação lenta ■ Alta persistência no ambiente ■ Substancial potencial de bioacumulação e biomagnificação. A bioacumulação consiste em absorção e armazenamento dos desreguladores endócrinos em tecidos (normalmente tecido adiposo) ou órgãos específicos, em concentrações maiores do que aquelas encontradas no meio ambiente. De fato, a bioacumulação decorre do contato direto com um ambiente contaminado (solo, água, ar) ou pela ingestão de alimentos que contenham os desreguladores endócrinos. Já a biomagnificação envolve o acúmulo progressivo de desreguladores endócrinos de um nível trófico para outro ao longo da cadeia alimentar. Dessa maneira, os predadores do topo da cadeia alimentar possuem concentrações séricas maiores de desreguladores endócrinos do que aquelas presentes em suas presas. A Figura 78.1 exemplifica um clássico exemplo de bioacumulação e biomagnificação. Nesta figura demonstrase que a concentração de diclorodifeniltricloroetano (DDT; um agrotóxico que será descrito posteriormente) em um ambiente aquático é de 0,000.003 ppm. Essa é a mesma concentração encontrada em um conjunto de organismos aquáticos microscópicos, o fitoplâncton. Ao se alimentarem de fitoplâncton, a concentração de DDT encontrada em organismos do zooplâncton atinge 0,04 ppm. De maneira semelhante, por se alimentarem do zooplâncton, peixes pequenos apresentam concentrações séricas de DDT ainda maiores (0,5 ppm). Esse efeito de magnificação é progressivo ao longo da cadeia alimentar, atingindo níveis de 25 ppm em predadores do topo da cadeia alimentar – no caso da Figura 78.1, a águia. Conforme destacado, esse é um clássico exemplo demonstrado na cadeia alimentar que inclui peixes e aves. Contudo, processos semelhantes de bioacumulação e biomagnificação são observados em cadeias alimentares que incluem os seres humanos. Como exemplo, os casos de contaminação por mercúrio (desregulador endócrino da tireoide, suprarrenal e sistema genital), cuja concentração sérica aumenta progressivamente nos níveis tróficos da cadeia alimentar, que incluem: fitoplâncton → zooplâncton → peixes → seres humanos. Os primeiros indícios dos efeitos nocivos dos desreguladores endócrinos foram descritos no livro Primavera Silenciosa (Silent Spring, 1962) de Rachel Carson. Nesse livro, a autora criticou o uso indiscriminado de agrotóxicos e pesticidas, principalmente após a Segunda Guerra Mundial. A autora também alertou para os efeitos a longo prazo da contaminação ambiental com esses pesticidas. O nome do livro foi uma referência à morte de pássaros em regiões altamente contaminadas, e que estava intimamente relacionada com a diminuição da espessura das cascas dos ovos das aves pela interferência hormonal provocada pelo DDT. De fato, esse foi um dos primeiros livros que abriu a discussão sobre o uso descontrolado de agrotóxicos e culminou com a proibição do uso de DDT nos EUA, em 1970. Em 1996, a Dra. Theo Colborn publicou o livro O Futuro Roubado (Our Stolen Future). Nesse livro, a pesquisadora descreveu os resultados de diferentes estudos científicos que demonstravam as interferências de diferentes desreguladores endócrinos sobre as ações hormonais no controle do crescimento e desenvolvimento. A autora ainda ressaltou o potencial efeito deletério da exposição de fetos e recémnascidos aos desreguladores endócrinos. Finalmente, Colborn sugeriu que a exposição aos desreguladores endócrinos estaria envolvida no desenvolvimento de anomalias do sistema genital, problemas comportamentais e diminuição da fertilidade da população mundial.
Figura 78.1 ■ Desreguladores endócrinos, bioacumulação e biomagnificação. De acordo com a figura, a concentração ambiental de DDT é muito menor do que aquela encontrada em predadores do topo da cadeia alimentar. Esse fenômeno se deve à bioacumulação desse desregulador endócrino nos tecidos dos diferentes organismos que compõem a cadeia alimentar, e também à biomagnificação, que promove um aumento considerável da concentração do desregulador endócrino nos predadores do topo das cadeias alimentares à medida que eles se alimentam de presas contaminadas. (Adaptada de www.bethbiologia.com.br/p/causasdapoluicaodasaguasdoplaneta.html.)
Desde a publicação do livro da escritora Rachel Carson, inúmeros trabalhos epidemiológicos (com humanos), in vivo (com animais) e in vitro (com células) foram publicados com a intenção de alertar para os efeitos deletérios de alguns agentes químicos liberados indiscriminadamente no meio ambiente. De fato, alguns desses estudos sugerem uma correlação direta entre a exposição aos desreguladores endócrinos e o aumento de incidência e prevalência de doenças crônicas não transmissíveis (como cânceres de mama, próstata e testículo, diabetes, obesidade). Dessa maneira, a relevância desses estudos se pauta no embasamento científico que garante, em última instância, o controle, por agências de proteção ambiental, da produção, do uso e da liberação no meio ambiente de inúmeros pesticidas e agentes químicos comprovadamente nocivos para animais e seres humanos.
DESREGULADORES ENDÓCRINOS CLÁSSICOS Conforme ressaltado anteriormente, os desreguladores endócrinos caracterizamse como compostos de degradação lenta, alta persistência no ambiente e substancial potencial de bioacumulação. Inúmeros desreguladores endócrinos já foram descritos na literatura; contudo, neste capítulo, discutiremos os efeitos de alguns deles, principalmente aqueles com grande quantidade de dados descritos na literatura – tanto em estudos com modelos animais, quanto em estudos epidemiológicos. Todos os desreguladores endócrinos destacados aqui são classificados como poluentes orgânicos persistentes, ou simplesmente POP. As principais características dos POP incluem seu transporte por longas distâncias através do solo, água e ar, e seu acúmulo em tecidos gordurosos dos organismos vivos (bioacumulação). Por esse motivo, os POP são classificados como toxicologicamente preocupantes para a saúde humana e para o meio ambiente. Nesse sentido, ainda que o enfoque deste capítulo seja discorrer sobre os efeitos dos desreguladores endócrinos em humanos, é muito relevante
destacar que inúmeros estudos demonstraram o comprometimento da ação hormonal em diferentes classes de animais como peixes, anfíbios, répteis, aves e outros mamíferos (além dos humanos). Pesticidas. Neste grupo temos os pesticidas organoclorados (POC), dentre os quais se destaca o DDT (Figura 78.2). Este pesticida foi sintetizado pela primeira vez em 1874, e graças a suas propriedades inseticidas foi largamente utilizado a partir da Segunda Guerra Mundial para o combate dos vetores de febre amarela, malária e tifo. Foi banido na década de 1970 em muitos países desenvolvidos, e apenas em 2009 no Brasil. Ainda assim, esses pesticidas continuam a ser usados em muitos países da África para combater doenças transmitidas por insetos. O DDT e seus metabólitos, como o DDE, são estáveis, persistentes no meio ambiente e altamente lipofílicos, acumulandose no tecido adiposo de seres humanos e de outros animais. De fato, estudos demonstram que praticamente todos os seres vivos do planeta possuem DDT incorporado em seus organismos. A clorotriazina, por sua vez, é outro pesticida amplamente usado no mundo, em plantações de milho e canadeaçúcar. Assim como o DDT, a clorotriazina apresenta alta persistência no meio ambiente e já foi previamente associada a disfunções do metabolismo intermediário e de alguns parâmetros reprodutivos.
Figura 78.2 ■ Estrutura química dos principais pesticidas organoclorados.
A exposição humana aos pesticidas se dá principalmente pelo consumo de alimentos e água contaminados. De maneira preocupante, estudos demonstram que os metabólitos de pesticidas organoclorados atravessam a placenta, atingindo o compartimento fetal, e também são transferidos para o leite materno, aumentando a exposição de recémnascidos. Conforme será destacado posteriormente neste capítulo, a exposição aos pesticidas organoclorados já foi previamente associada a diferentes tipos de câncer, como o de mama, pâncreas e testículos. ▸ Bisfenol A (BPA). Foi descoberto em 1891 pelo russo Aleksander Dianin. O BPA é um composto químico industrial normalmente usado para endurecer resinas epóxi e plásticos policarbonatos, conferindo alta resistência a esses produtos. É altamente empregado em revestimentos internos de latas de alimentos e selantes dentais, aumentando a exposição humana a esse desregulador endócrino. A produção global anual de plásticos policarbonatos e de resinas epóxi é
de 3 milhões e 1,5 milhão de toneladas, respectivamente, o que demonstra o potencial contaminante do BPA no meio ambiente. A transferência do BPA para água e alimentos se dá principalmente pelo aquecimento dos recipientes que o contêm, e a exposição humana a esse composto é considerada ubíqua. De fato, a meiavida do BPA em seres humanos é curta (4 a 5 horas), e sua estrutura química é muito semelhante à de alguns hormônios esteroides e hormônios tireoidianos (Figura 78.3). Apenas em 2011 ocorreu a proibição no Brasil do uso de BPA em mamadeiras plásticas, graças a uma campanha criada pela Sociedade Brasileira de Endocrinologia Metabologia (SBEM) em 2010. Dada a proibição da produção e do uso de BPA em muitos países, alguns substitutos desse composto foram elaborados pela indústria química, como bisfenol S (BPS), bisfenol F (BPF) e bisfenol E (BPE). Vale ressaltar que estudos recentes da literatura apontam que esses substitutos industriais apresentam efeitos adversos muito semelhantes ou ainda piores do que aqueles desencadeados pelo BPA.
Figura 78.3 ■ Estrutura química do bisfenol A (BPA).
▸ Bifenilas policloradas (PCB) e bifenilas polibromadas (PBB). Os PCB são compostos usados como fluidos para refrigeração e lubrificação de transformadores, capacitores e outros equipamentos eletrônicos empregados nas indústrias de forma geral. Além disso, são usados como plastificantes na produção de resinas e borrachas, adesivos e tintas. Já os PBB são usados em retardantes de chamas, muito empregados em equipamentos eletrônicos, na indústria têxtil, em móveis e plásticos de maneira geral. Conforme demonstrado na Figura 78.4, a estrutura química desses compostos é muito semelhante àquela apresentada pelos hormônios esteroides e hormônios tireoidianos.
Figura 78.4 ■ Estrutura química geral dos PCB (A) e dos PBB (B).
Figura 78.5 ■ Estrutura química geral dos ftalatos.
Tanto os PCB quanto os PBB são altamente persistentes, lipofílicos e bioacumuláveis. A contaminação humana se dá principalmente pelo consumo de água e alimentos contaminados, como peixes de origem marinha. Estudos demonstram que, por serem lipofílicos, esses compostos concentramse no tecido adiposo, com meiavida biológica (em humanos) de aproximadamente 7 anos. ▸ Ftalatos. São compostos químicos derivados do ácido ftálico e amplamente usados como aditivos para aumentar a maleabilidade, flexibilidade e transparência de plásticos. De maneira geral, são encontrados em recipientes plásticos, tubos PVC, brinquedos infantis, cosméticos e tubos/embalagens empregados em procedimentos médicos. Pela sua fraca ligação aos compostos usados na fabricação de plásticos e cosméticos, os ftalatos são facilmente transferidos para o meio ambiente, aumentando o seu potencial de contaminação. Esses compostos são normalmente produzidos como diésteres e são rapidamente metabolizados a monoésteres ao entrarem no organismo (Figura 78.5).
DESREGULADORES ENDÓCRINOS NÃO CLÁSSICOS ▸ Iodo. É um micronutriente fundamental para a síntese de hormônios tireoidianos, sendo principalmente encontrado em alimentos de origem marinha e no sal iodado. Como as glândulas mamárias expressam o transportador de iodeto, o leite possui concentrações relevantes de iodo, e por esse motivo os laticínios são também uma fonte natural desse micronutriente. O iodo é amplamente usado como estabilizante em alimentos processados e como componente de corantes vermelhos, sendo em geral encontrado em alimentos que contêm corantes artificiais. Vale ressaltar que o iodo apresenta propriedades microbicidas, de modo que alguns desinfetantes de pele e medicamentos (p. ex., lugol) também o apresentam em sua composição química. O efeito desregulador endócrino do iodo se dá principalmente pelo consumo excessivo desse micronutriente e está intimamente relacionado com o comprometimento da função tireoidiana. ▸ Fitoestrógenos. São substâncias de origem vegetal com atividade estrogênica. De fato, os fitoestrógenos são amplamente usados por várias mulheres como terapia alternativa à reposição hormonal estrogênica, em função das controvérsias que ainda existem quanto aos efeitos nocivos desencadeados por esta última. Contudo, estudos em fêmeas de camundongos ovariectomizadas demonstraram que a genisteína, um fitoestrógeno presente na soja com baixa potência estrogênica, estimula o crescimento do câncer mamário. Ainda, é importante destacar que alguns estudos descreveram que o período de exposição aos fitoestrógenos está intimamente relacionado com o tipo de efeito desencadeado por essas substâncias. Dessa maneira, os fitoestrógenos exercem efeitos deletérios ou benéficos, dependendo da fase na qual o indivíduo é exposto. Além do seu efeito estrogênico, os fitoestrógenos também são usados como cardioprotetores, ainda que possam promover efeitos próarrítmicos, e já foram descritos como potenciais agentes antitireoidianos. ▸ Lítio. É um metal empregado na produção de ligas metálicas condutoras de calor e em baterias elétricas, mas seus sais representam o principal tratamento profilático de distúrbios afetivos, como o transtorno bipolar. Porém, há várias evidências de que o lítio afete profundamente a função tireoidiana, por meio do comprometimento da secreção de hormônios tireoidianos. Dessa maneira, é comum observar o desenvolvimento de hipotireoidismo em pacientes logo nos primeiros anos de tratamento.
MECANISMOS DE AÇÃO O mecanismo de ação dos desreguladores endócrinos mais conhecido envolve sua ligação em receptores de hormônios, como estrógenos, andrógenos, progesterona ou hormônios tireoidianos. Além disso, os desreguladores endócrinos em geral se ligam em outros receptores nucleares, receptores de membrana, receptores de neurotransmissores (como serotonina, dopamina, norepinefrina) e/ou receptores órfãos. Adicionalmente, descrevese que os desreguladores endócrinos também atuam por meio da ativação ou inativação de vias enzimáticas envolvidas no metabolismo e/ou biossíntese de hormônios. A Figura 78.6 sumariza os principais mecanismos de ação decorrentes da ligação dos desreguladores endócrinos em receptores de membrana ou receptores nucleares. De maneira geral, a partir da sua ligação nos receptores hormonais, os desreguladores endócrinos mimetizam ou bloqueiam a ação hormonal (Figura 78.7). Novos estudos da literatura demonstram que os desreguladores endócrinos também interferem com vias de sinalização não genômicas, como aquelas desencadeadas por hormônios esteroides e tireoidianos. Além disso, alguns desreguladores
endócrinos agem em receptores da família PPAR alfa e gama, que são expressos em várias células do organismo, especialmente em tecidos/órgãos do sistema genital.
Figura 78.6 ■ Mecanismos de ação dos desreguladores endócrinos por meio de sua ligação em receptores de hormônios. Os desreguladores endócrinos, dada sua similaridade estrutural, normalmente se ligam em receptores de membrana e/ou nucleares de hormônios produzidos endogenamente. A partir dessa ligação, estes compostos ativam ou inativam a transcrição gênica, regulando os níveis de expressão de mRNA e proteínas nas célulasalvo. (Adaptada de Schug et al., 2013.)
Figura 78.7 ■ Possíveis efeitos desencadeados pela ligação dos desreguladores endócrinos em receptores de hormônios. Conforme demonstrado em A, um hormônio desencadeia seus efeitos biológicos e uma resposta celular, por meio da sua ligação em receptores (nucleares ou de membrana). No caso de um desregulador endócrino que mimetize os efeitos do hormônio (B), a resposta celular é mantida e pode ser mais potente ou menos potente em relação àquela originalmente desencadeada pela ligação do hormônio. No caso de um desregulador que bloqueie a ação hormonal (C), a ligação deste composto no receptor hormonal impede que o efeito biológico naturalmente desencadeado pelo hormônio endógeno seja observado. (Adaptada de www.niehs.nih.gov/health/topics/agents/endocrine.)
O mecanismo de ação dos desreguladores endócrinos é considerado complexo, uma vez que nem sempre há relação direta entre a dose de exposição e a intensidade da resposta (curva monotônica). Vale ressaltar que, em relação direta, quanto maior a dose/concentração do desregulador, maior será o efeito decorrente observado. Não obstante, é muito comum observar uma resposta significativa frente à exposição a doses muito baixas ou muito altas de determinado desregulador endócrino, e não observar qualquer efeito em doses intermediárias. Ou, ainda, não observar efeitos significativos em doses muito baixas ou muito altas, e sim em doses intermediárias de exposição (curvas não monotônicas) (Figura 78.8). A complexidade do mecanismo de ação desses compostos químicos tornase ainda mais relevante quando se leva em consideração a interferência de diferentes vias de sinalização hormonal por um mesmo desregulador endócrino. Isso se deve à estrutura química peculiar desses compostos, que em geral se assemelham estruturalmente a mais de um hormônio produzido no organismo. De fato, essa característica dificulta a determinação dos potenciais receptoresalvo dos desreguladores endócrinos no organismo. Nesse sentido, um mesmo desregulador endócrino pode mimetizar os efeitos desencadeados por um tipo de hormônio, ao mesmo tempo que antagoniza a ação de outros hormônios no organismo. Como exemplo temos as ações desencadeadas pelo DDT, que apresenta tanto uma atividade estrogênica como antiandrogênica (a partir de seus metabólitos). A mimetização de efeitos de diferentes hormônios, assim como o bloqueio de diferentes vias hormonais, também podem ser observados (Figura 78.9). De maneira geral, por meio dos mecanismos de ação desencadeados pelos desreguladores endócrinos, esses compostos alteram: ■ A síntese, a metabolização e a excreção de hormônios e/ou ■ O nível de proteínas carreadoras de hormônios e, consequentemente, o transporte de hormônios na circulação e/ou ■ A interação hormônioreceptor e a transcrição gênica decorrente dessa interação e/ou ■ As vias de sinalização intracelular e/ou ■ A expressão de receptores e sua responsividade aos hormônios em tecidosalvo.
JANELAS DE EXPOSIÇÃO Conforme destacado em itens anteriores, os seres humanos estão expostos a diversos desreguladores endócrinos presentes no meio ambiente (Figura 78.10). Ainda assim, a resposta ou efeito decorrente dessa exposição pode ser diferente dependendo da fase na qual o indivíduo é exposto.
Figura 78.8 ■ Os efeitos desencadeados pelos desreguladores endócrinos podem seguir curvas monotônicas ou não monotônicas de doseresposta.
Figura 78.9 ■ Ação de um mesmo desregulador endócrino sobre diferentes vias de sinalização hormonais. GR, receptor de glicocorticoides; ER, receptor de estrógeno; TR, receptor de hormônio tireoidiano; RXR, receptor do retinoide X; PPARγ, receptor ativado por proliferador de peroxissoma gama. (Adaptada de CasalsCasas e Desvergne, 2011.)
Inúmeros estudos científicos apontam que a exposição aos desreguladores endócrinos é ainda mais prejudicial quando ocorre durante fases específicas do desenvolvimento humano, denominadas janelas de exposição. Essas janelas incluem período intrauterino, período neonatal, infância e puberdade. Dessa maneira, o momento da exposição do organismo torna se decisivo para determinar o impacto de determinado desregulador e o seu potencial efeito deletério futuro. O período de exposição influencia também o tipo de efeito resultante da interação com o desregulador endócrino. Dessa maneira, estudos da literatura já demonstraram que determinado desregulador endócrino pode desencadear respostas/efeitos diferentes em embriões, fetos, indivíduos prépúberes e adultos. É interessante destacar também que, durante a gestação e a lactação, a exposição materna aos desreguladores endócrinos não necessariamente desencadeia efeitos nocivos na mãe, mas pode exercer efeitos nocivos significativos na sua progênie. A maior suscetibilidade aos efeitos deletérios induzidos por esses interferentes em fases iniciais do desenvolvimento se justifica pela falta da maturação de vias de metabolização dessas substâncias em fetos e recémnascidos. Vale acrescentar que, além da exposição direta aos desreguladores endócrinos presentes no meio ambiente, esses indivíduos mais suscetíveis também são expostos indiretamente, pela transferência materna dessas substâncias através da placenta, durante a vida intrauterina, ou pelo leite materno, durante o período de amamentação. Sendo assim, a exposição de grávidas e lactantes aos desreguladores endócrinos deve ser intensamente monitorada e evitada. Do mesmo modo, a exposição paterna aos desreguladores endócrinos não necessariamente se relaciona com efeitos negativos no pai, mas pode induzir efeitos nocivos em sua prole, por meio de modificações em suas células germinativas (Figura 78.11). A exposição de indivíduos que se encontram nas fases prépuberal e puberal são críticas, uma vez que os mesmos apresentam alterações hormonais significativas durante esses períodos, e que são claramente afetadas por agentes
agonistas ou antagonistas da ação de hormônios esteroides. Sendo assim, durante as chamadas janelas de exposição, os indivíduos encontramse mais vulneráveis aos insultos moleculares, hormonais, imunológicos e/ou neurológicos desencadeados pelos desreguladores endócrinos.
Figura 78.10 ■ Exposição humana a diferentes desreguladores endócrinos presentes no meio ambiente.
Figura 78.11 ■ Efeitos em múltiplas gerações induzidos pela exposição materna e paterna aos desreguladores endócrinos. A exposição materna aos desreguladores endócrinos, seja por via dermal, inalatória ou oral, pode ou não provocar alterações em sua homeostase. Contudo, estudos sugerem que essas substâncias são transferidas para o feto, através da placenta, e para o recémnascido, pelo leite. Nesses indivíduos, os efeitos nocivos dos desreguladores endócrinos são potencializados pela imaturidade de seus sistemas de depuração dessas substâncias. É importante destacar que a exposição paterna aos desreguladores endócrinos também pode não ocasionar efeitos deletérios sintomáticos no seu organismo, mas induzir a programação de suas células germinativas e, dessa maneira, comprometer suas gerações futuras. (Adaptada de Shahidehnia, 2016.)
Conforme destacado anteriormente, a exposição aos desreguladores endócrinos está intimamente relacionada com perturbações da expressão gênica. Muitos estudos sugerem que essas alterações, em fases críticas do desenvolvimento, parecem contribuir de maneira significativa para a programação de doenças na vida adulta. De fato, inúmeros mecanismos epigenéticos estão envolvidos na programação da expressão gênica que é induzida pela exposição aos desreguladores endócrinos durante períodos críticos do desenvolvimento. Os mecanismos epigenéticos são responsáveis por induzir mudanças na expressão gênica sem que ocorram alterações na sequência do DNA. Dentre os mecanismos epigenéticos mais conhecidos destacamse: metilação/desmetilação de DNA, modificações póstraducionais em histonas e expressão diferencial de RNA não codificantes, conforme demonstrado na Figura 78.12. Essas alterações moleculares podem ser mantidas por toda a vida do indivíduo e, inclusive, comprometer o desenvolvimento e a expressão gênica de gerações seguintes, nos chamados efeitos multigeracionais e transgeracionais, principalmente quando essas alterações moleculares ocorrem nas células germinativas dos indivíduos progenitores (ovócitos e espermatozoides). É importante destacar que, embora estudos com animais e células apresentem dados relativamente reprodutíveis sobre os efeitos deletérios de desreguladores endócrinos específicos, muitos estudos epidemiológicos são conflitantes e refletem a complexidade da exposição humana a esses compostos. Devese também levar em consideração que os seres humanos estão expostos a diversos desreguladores endócrinos ao mesmo tempo, por diferentes períodos de tempo e em diferentes fases do desenvolvimento. Todos esses fatores refletem na dificuldade do estabelecimento dos reais efeitos nocivos associados à exposição aos desreguladores endócrinos. Dessa maneira, serão cada vez mais necessários novos estudos
científicos que investiguem os efeitos decorrentes da exposição humana aos desreguladores endócrinos em diferentes fases/períodos do desenvolvimento. Os resultados desses estudos serão de suma importância para determinar com precisão quais desreguladores endócrinos devem ser evitados especificamente em cada fase do desenvolvimento humano.
Figura 78.12 ■ Efeitos epigenéticos e regulação da expressão gênica. Os principais mecanismos epigenéticos responsáveis pela alteração da expressão gênica incluem: metilação/desmetilação do DNA, modificações póstraducionais em histonas e expressão diferencial de RNA não codificantes, como os miRNA. (Adaptada de Shahidehnia, 2016.)
EFEITOS NO ORGANISMO A cada dia, novos estudos apontam para novos efeitos nocivos, sobre diversos sistemas e tecidos do organismo, que decorrem da exposição humana aos desreguladores endócrinos (Figura 78.13). Entretanto, neste capítulo serão descritos os efeitos de diferentes desreguladores endócrinos sobre a tireoide, o sistema reprodutor, o metabolismo energético, a função cardiovascular e a função neuroendócrina.
▸ Efeitos na tireoide A glândula tireoide produz hormônios tireoidianos (HT), que têm um papel fundamental durante o desenvolvimento e maturação fetal, em especial do sistema nervoso central (SNC). Esses hormônios também desempenham importantes papéis sobre o crescimento e o metabolismo.
Figura 78.13 ■ Principais impactos biológicos sistêmicos observados a partir da exposição humana aos desreguladores endócrinos.
Em humanos, o principal hormônio produzido pela tireoide é a tiroxina, ou T4. Apesar de a T4 exercer efeitos diretos em inúmeros tecidos, ela também pode ser convertida a triiodotironina ou T3, a partir da ação de desiodases, que são expressas em tecidos periféricos, conforme detalhado em capítulos anteriores. Além disso, os níveis circulantes de HT são finamente regulados por um eixo de retroalimentação negativa (eixo hipotálamohipófisetireoide). Dessa maneira, o hipotálamo sintetiza e secreta o hormônio liberador de tireotrofina (TRH), que estimula a síntese e secreção da tireotrofina (TSH) pela adenohipófise. O TSH, por sua vez, é o principal hormônio estimulador da função tireoidiana, estimulando a síntese de HT e a expressão/atividade das proteínas envolvidas nesse processo. Os HT secretados agem sobre seus tecidosalvo e também regulam de maneira negativa a expressão, síntese e secreção de TRH e TSH pelo hipotálamo e hipófise, respectivamente. A interferência dos desreguladores endócrinos sobre o eixo hipotálamohipófisetireoide pode ocorrer em qualquer um dos componentes do eixo. Nesse sentido, foram descritos na literatura compostos capazes de comprometer a ação do TRH na hipófise, e também do TSH na tireoide. Além disso, já foi descrito que diferentes desreguladores endócrinos alteram síntese, secreção, transporte, metabolismo periférico e/ou ação dos HT em seus tecidosalvo. Neste último caso, a interferência se dá principalmente pela similaridade estrutural entre alguns desreguladores endócrinos e os HT. Ainda assim, estudos sugerem que alguns desses compostos regulam a expressão de receptores e/ou transportadores de HT nos tecidosalvo, interferindo na ação periférica desses hormônios. Os principais efeitos desencadeados pelos desreguladores endócrinos no eixo hipotálamohipófisetireoide são demonstrados na Figura 78.14. As janelas de exposição também são importantes para determinar os efeitos deletérios dos desreguladores endócrinos sobre a função tireoidiana. Sabese, por exemplo, que, até a 16a semana de gestação, o feto depende exclusivamente dos HT produzidos pela mãe. Sendo assim, qualquer variação dos níveis maternos de HT nesse período gera drásticas consequências no desenvolvimento fetal, principalmente do SNC. A passagem de HT maternos para o feto durante a gestação se faz através da placenta, graças à expressão de transportadores específicos de HT nas vilosidades coriônicas. É importante ressaltar que, além de seu papel direto sobre o desenvolvimento fetal, os HT também exercem importantes ações sobre o metabolismo, diferenciação e desenvolvimento da placenta. Sendo assim, o transporte de HT pela placenta é um passo crítico tanto para o desenvolvimento fetal quanto para o desenvolvimento do próprio tecido placentário. Dada a similaridade estrutural entre alguns desreguladores endócrinos e os HT, postulase que esses compostos possam ser transportados através da placenta e interferir no desenvolvimento desse tecido e também nos estágios do desenvolvimento fetal que dependem da ação dos HT. Além da produção materna de HT, os hormônios produzidos pela tireoide do feto também apresentam importante papel no seu desenvolvimento. Conforme descrito em capítulos anteriores, a tireoide fetal encontrase plenamente desenvolvida e diferenciada a partir da 16a semana de gestação em humanos, e do 16o dia gestacional em camundongos/ratos. Nesse período, a tireoide fetal é capaz de concentrar iodeto (I–), passo inicial para a biossíntese de HT, por meio da expressão e
da atividade do cotransportador sódioiodeto (NIS). Além disso, a glândula também expressa outras proteínas essenciais para a síntese e secreção dos HT. Sendo assim, a exposição do feto, durante a gestação, a desreguladores endócrinos que comprometam a diferenciação da glândula fetal, assim como a produção de HT por essa glândula, podem desencadear graves consequências no desenvolvimento do organismo.
Figura 78.14 ■ Efeitos dos desreguladores endócrinos sobre o eixo hipotálamohipófisetireoide e em diferentes estágios de produção, metabolização e ação dos HT. TTR, transtirretina; Tg, tireoglobulina; TSH, hormônio tireoestimulante ou tireotrofina; TRH, hormônio liberador de TSH; TPO, tireoperoxidase; NIS, cotransportador sódioiodeto; TR, receptor de hormônio tireoidiano. (Adaptada de Patrick, 2009.)
Cerca de 100 diferentes desreguladores endócrinos, naturais e sintéticos, já foram descritos como potenciais interferentes da função tireoidiana. Conforme destacado anteriormente, uma vez que os HT são essenciais para o desenvolvimento normal in utero e durante a infância, alterações mediadas por desreguladores endócrinos são particularmente preocupantes em grávidas e crianças. Além disso, é importante destacar que um levantamento feito pela União Europeia demonstrou que os custos relacionados ao comprometimento do desenvolvimento neural e a perda de QI atribuídos a apenas duas classes de disruptores da função tireoidiana (retardantes de chamas e pesticidas) ultrapassariam 150 bilhões de euros por ano. Sabese que o BPA, os PCB e a triclosana possuem semelhança estrutural com os HT, e, por esse motivo, sugerese que esses compostos sejam capazes de se ligar e interagir com os receptores dos HT, interferindo no seu efeito biológico nos tecidosalvo (Figura 78.15). De fato, estudos indicam que o BPA, encontrado em amostras de urina, tecido e soro de humanos (em adultos e recémnascidos), atua como um antagonista dos HT ao se ligar em seus receptores nucleares. Além disso, já foi demonstrado que a exposição de ratas prenhes ao BPA reduziu os níveis séricos de T3 e T4 e aumentou os níveis circulantes de TSH nos animais da prole, e ainda promoveu alterações morfológicas significativas nos folículos
tireoidianos desses animais logo após o seu nascimento. Alguns estudos in vitro, por sua vez, demonstraram que o BPA interfere na função tireoidiana ao diminuir a expressão de genes/proteínas relacionados com a produção hormonal (como NIS, TPO, TSHR e Tg), além de aumentar a expressão de genes/proteínas relacionados com a morte celular e danos ao DNA. A exposição de ratos aos PCB é constantemente associada a níveis séricos reduzidos de T4 na literatura. Contudo, os dados obtidos em estudos com humanos são muito controversos. Dessa maneira, alguns estudos já demonstraram uma correlação negativa entre os níveis séricos de PCB e as concentrações séricas de T3, T4 e TSH em grávidas; e uma relação negativa entre a exposição prénatal aos PCB e um déficit cognitivo em crianças. Enquanto isso, outros trabalhos não demonstraram qualquer alteração da função tireoidiana frente a esses interferentes endócrinos. A triclosana, por sua vez, não altera a expressão gênica dos tireócitos, mas reduz a atividade da TPO e do NIS, interferindo, assim, na biossíntese dos HT. Além disso, estudos sugerem que a triclosana reduz os níveis séricos de T4 por aumentar sua metabolização hepática, induzindo hipotiroxinemia em animais. É importante destacar que a hipotiroxinemia, que se caracteriza pela redução dos níveis séricos de T4 sem alterações significativas nos níveis de T3 ou TSH, já foi previamente associada, principalmente em grávidas, a comprometimento do desenvolvimento do sistema nervoso central fetal. Os ftalatos também já foram previamente associados a alterações na função tireoidiana. De fato, parece haver uma correlação negativa entre o nível de ftalatos e os níveis séricos de T3 e T4 em humanos. Por meio de estudos com modelos animais, por sua vez, demonstrouse que a exposição aos ftalatos interfere na função da tireoide em diferentes vertentes, por meio da redução dos níveis séricos de T3 e T4 (de maneira dosedependente), da diminuição da expressão e atividade da NIS, da indução de alterações morfológicas na tireoide e da redução da expressão de receptores e transportadores para HT em tecidosalvo. Estudos epidemiológicos também relataram uma relação negativa entre os níveis séricos do pesticida organoclorado DDE e as concentrações séricas de HT. De maneira coerente, já foi demonstrada uma correlação positiva entre os níveis desse metabólito do DDT e os níveis séricos de TSH em humanos expostos.
Figura 78.15 ■ Similaridade estrutural entre os hormônios tireoidianos (A) e os desreguladores endócrinos BPA, triclosana e PCB (B).
Finalmente, existem alguns desreguladores endócrinos que não são orgânicos, mas que são conhecidos interferentes da função tireoidiana, principalmente por inibirem a captação de iodeto mediada pela NIS. Enquadramse nesses
desreguladores endócrinos inorgânicos perclorato, nitrato, tiocianato, dentre outros compostos, que inibem de maneira significativa a função do NIS, e consequentemente a síntese de HT (Figura 78.16). O perclorato é um íon inorgânico usado na fabricação de propelentes, fogos de artifício, foguetes, mísseis e fertilizantes, além de ser formado naturalmente na atmosfera, especialmente em regiões de clima árido. Essa combinação entre a produção humana e os processos naturais resulta em uma acentuada presença de perclorato no meio ambiente, principalmente em países com intensa atividade da indústria bélica. A presença de perclorato em água de irrigação, solo e fertilizantes resulta na acumulação desse ânion em frutos, vegetais e outros alimentos, aumentando ainda mais a exposição humana a esse composto químico. O perclorato é um conhecido inibidor da captação de iodeto pelo NIS em tireócitos, dada a similaridade de tamanho e carga entre esse ânion e o iodeto. Os efeitos nocivos do perclorato sobre a função tireoidiana em humanos são especialmente relatados em populações com aporte deficiente de iodo pela dieta. É relevante destacar que o meio ambiente apresenta níveis de contaminação com nitrato muito maiores do que aqueles observados para o perclorato. Em concordância, nas últimas décadas, houve um aumento significativo dos níveis de nitrato na água para consumo humano e nos alimentos, pelo uso exacerbado de fertilizantes e pesticidas nitrogenados. Nesse sentido, alguns estudos associaram a exposição exacerbada ao nitrato com o aumento do risco de desenvolvimento de cânceres e problemas reprodutivos. Embora a inibição exercida pelo nitrato sobre a função do NIS seja menor do que aquela induzida pelo perclorato (ver Figura 78.16), os níveis de nitrato encontrado no soro de humanos são muito maiores. Adicionalmente, estudos demonstraram que esse composto age sinergicamente tanto com o perclorato como com o tiocianato, potencializando seus efeitos inibitórios sobre a atividade do NIS e, consequentemente, sobre a função tireoidiana.
Figura 78.16 ■ Inibição da captação de iodeto pelos tireócitos na presença de perclorato (ClO4–), nitrato (NO3–) ou tiocianato (SCN–). (Adaptada de Tonacchera et al., 2004.)
A maior parte dos estudos sobre os efeitos nocivos dos desreguladores endócrinos concentrase em suas ações sobre o sistema genital, dada a similaridade estrutural entre esses compostos e os hormônios esteroides e as ações estrogênicas, androgênicas, antiestrogênicas ou antiandrogênicas desencadeadas por muitos desses compostos. Não obstante, vale destacar que os receptores de HT encontramse expressos em praticamente todos os tecidos do organismo. Dessa maneira, desreguladores endócrinos que alterem a produção de HT ou suas ações no organismo potencialmente interferirão na homeostase de vários sistemas do organismo. Nesse sentido, é importante pautar que as disfunções tireoidianas são em geral seguidas de distúrbios cardiovasculares, metabólicos, reprodutivos, neurológicos e comportamentais. Por esse motivo, novos estudos serão fundamentais para determinar o real impacto dos diferentes desreguladores endócrinos sobre a função dessa glândula tão importante para a manutenção da homeostase do organismo.
▸ Efeitos no sistema genital Sistema genital feminino Os órgãos sexuais femininos incluem os ovários, tubas uterinas, útero e vagina (Figura 78.17). Conforme destacado em capítulos anteriores, os órgãos componentes do sistema genital feminino são responsáveis pela produção e transporte de gametas, produção e secreção de hormônios sexuais e manutenção adequada do feto durante o período de gestação. A estrutura e a função de cada um dos órgãos que compõem o sistema genital feminino são reguladas por hormônios produzidos pelo hipotálamo (especialmente o GnRH) e pela hipófise (LH e FSH). Dessa maneira, o eixo hipotálamo hipófiseovário é o principal regulador hormonal do sistema genital feminino e o principal alvo da ação dos desreguladores endócrinos. De fato, muitos estudos da literatura demonstram que os desreguladores endócrinos interferem na ação dos hormônios hipotalâmicos, hipofisários e/ou ovarianos, causando efeitos adversos sobre o sistema genital feminino, como infertilidade, puberdade precoce, falência ovariana prematura, endometriose, síndrome do ovário policístico, menopausa precoce, aumento da incidência de cânceres etc.
Figura 78.17 ■ Órgãos que compõem o sistema genital feminino e que potencialmente sofrem as consequências da exposição aos desreguladores endócrinos.
Um dos exemplos mais emblemáticos da ação de desreguladores endócrinos sobre o sistema genital feminino foi o uso de dietilestilbestrol (DES) por gestantes nas décadas de 1940 a 1970. Nessa época, esse composto sintético, com ação estrogênica, era prescrito para gestantes com o objetivo de diminuir o enjoo matinal e evitar abortamentos (Figura 78.18). Contudo, estudos realizados nos anos 1980 demonstraram que as filhas das gestantes tratadas com DES apresentavam maior propensão ao desenvolvimento de cânceres de mama, útero e vagina do que as filhas de gestantes não expostas ao tratamento com esse composto. Embora muitos estudos sugiram uma correlação entre a exposição aos desreguladores endócrinos e problemas reprodutivos, o mecanismo de ação desses compostos sobre o sistema genital feminino precisa ser melhor caracterizado. Outra dificuldade é estabelecer o papel de cada desregulador endócrino sobre esse sistema, uma vez que, conforme destacado anteriormente, os seres humanos estão expostos concomitantemente a diferentes desreguladores endócrinos. Nesse sentido, frente a essas ações conjuntas, devemos levar em consideração que mecanismos sinérgicos e/ou antagônicos serão desencadeados, promovendo efeitos distintos daqueles observados frente à exposição de um único desregulador endócrino.
Descreveremos aqui os principais achados da literatura sobre os efeitos dos desreguladores endócrinos sobre o sistema genital feminino. Ovário É a gônada feminina responsável pela produção dos gametas femininos e pela produção dos hormônios sexuais, estrógeno e progesterona. A maior parte dos estudos que avaliam os efeitos dos desreguladores endócrinos sobre os ovários envolve o uso de modelos animais (in vivo) ou cultura de células (in vitro). Sendo assim, a descrição dos efeitos em humanos ainda é escassa na literatura.
Figura 78.18 ■ Propaganda em jornal norteamericano incentivando o uso de DES – um composto sintético com ação estrogênica – por gestantes. Anos depois, estudos correlacionaram o uso de DES ao aumento no número de casos de câncer de mama, útero e vagina nas filhas das gestantes expostas. É importante destacar que o tratamento também provocou alterações na genitália masculina e hipospadia nos filhos das gestantes expostas.
No ovário em desenvolvimento, demonstrase que BPA, ftalatos e pesticidas, ao interferirem nas vias de ação hormonal, principalmente dos estrógenos, comprometem a viabilidade e a maturação das células germinativas em modelos animais e modelos in vitro. No ovário maduro, ainda que os mecanismos de ação não estejam completamente descritos, sugerese que a exposição aos desreguladores endócrinos (BPA, ftalatos, PCB, pesticidas) altera a expressão gênica ovariana, diminui o número e o crescimento dos folículos ovarianos e/ou induz atresia folicular. Adicionalmente, a exposição ao BPA já foi relacionada com aumento de cistos ovarianos em ratas. Dados de diferentes estudos com modelos animais e in vitro demonstraram que os desreguladores endócrinos aumentam a necrose e/ou apoptose de células da granulosa. Outros estudos sugerem que a esteroidogênese ovariana seja comprometida frente à exposição aos desreguladores endócrinos. Conforme destacado em capítulos anteriores, a produção de esteroides sexuais é um processo complexo, que depende da expressão e atividade de diferentes enzimas. Dessa maneira, a interferência promovida pelos desreguladores endócrinos nas enzimaschave do processo de esteroidogênese ovariana refletese diretamente na produção de estrógenos e progesterona, e indiretamente sobre os efeitos controlados por esses hormônios nos diferentes tecidos do organismo. Estudos sugerem tanto uma interferência direta quanto indireta dos desreguladores endócrinos sobre a produção de hormônios esteroides pelos ovários.
As ações diretas incluem a interferência em células da teca e da granulosa, regulando a expressão e a atividade de enzimas esteroidogênicas (Figura 78.19). As ações indiretas incluem os efeitos dos desreguladores endócrinos sobre a hipófise, por meio da alteração da síntese, secreção e/ou sinalização dos hormônios FSH e LH, e/ou sobre o hipotálamo, através da regulação da produção e/ou ação do GnRH. Alguns estudos sugerem, inclusive, que a interferência promovida pelos desreguladores endócrinos na hipófise e no hipotálamo esteja envolvida tanto no início precoce da puberdade como na diminuição da fertilidade em indivíduos adultos. É importante destacar que, ao alterar a produção dos hormônios esteroides no organismo e/ou interferir nas suas vias de sinalização, os desreguladores endócrinos não comprometem apenas o adequado funcionamento do sistema genital feminino, como também outras funções controladas pelos hormônios esteroides femininos, como a atividade cardíaca, o metabolismo ósseo, a função cognitiva etc. Sendo assim, ao interferir no desenvolvimento, maturação e/ou função dos ovários, os desreguladores endócrinos desencadeiam alterações sistêmicas relevantes, não apenas relacionadas com a reprodução. Útero Os estudos que descrevem os efeitos nocivos dos desreguladores endócrinos sobre a estrutura e função do útero se concentram principalmente em modelos animais e in vitro. Nesse sentido, os principais efeitos descritos incluem a interferência promovida pelos desreguladores endócrinos na ação dos esteroides hormonais sobre as células uterinas e/ou sobre a morfologia do útero. As consequências da interferência hormonal induzida por esses compostos incluem: aumento do peso/volume uterino, alteração na expressão de genes envolvidos na regulação da função uterina, redução da receptividade endometrial ao embrião, diminuição dos sítios de implantação embrionária etc.
Figura 78.19 ■ Enzimas envolvidas na síntese dos esteroides ovarianos e o impacto da exposição aos desreguladores endócrinos sobre essa via de biossíntese hormonal. Conforme destacado na figura, a síntese dos hormônios ovarianos depende do aporte adequado de colesterol e da expressão e atividade de uma série de enzimas presentes tanto nas células da teca quanto nas células da granulosa. Os X vermelhos indicam os hormônios ou enzimas que já foram descritos na literatura como alvos da ação dos desreguladores endócrinos. (Adaptada de Gore et al., 2015.)
Embora sejam escassos, alguns estudos epidemiológicos já correlacionaram a exposição humana aos desreguladores endócrinos durante os períodos prénatal, neonatal e pósnatal com o aumento na incidência de câncer de útero durante a vida adulta. Puberdade, ciclo ovariano, ciclo menstrual, menopausa É nestes parâmetros que se concentra a maior parte dos estudos epidemiológicos, ou seja, estudos gerados a partir de dados obtidos com diferentes populações humanas ou grupos de indivíduos. Por esse mesmo motivo, os dados sobre os efeitos dos desreguladores endócrinos na puberdade, alterações no ciclo menstrual/ovariano e início precoce da menopausa ainda são conflitantes tanto em humanos quanto em animais. Os resultados contraditórios se justificam especialmente pelas diferenças na concentração dos desreguladores endócrinos aos quais os indivíduos foram expostos, no tempo de exposição, assim como na fase do desenvolvimento na qual o indivíduo foi exposto. Além disso, adicionamse outras variáveis, como diferenças na coleta e no tipo das amostras humanas (sangue, urina, entre outras), a predisposição genética dos indivíduos de diferentes populações, a presença de múltiplos interferentes endócrinos no ambiente, as condições socioeconômicas de cada população etc. Sendo assim, enquanto alguns estudos sugerem uma correlação direta entre o início precoce da puberdade e da menopausa, alterações nos ciclos ovariano/menstrual e a exposição a diferentes desreguladores endócrinos, outros estudos questionam essas relações de causa e efeito. Dessa maneira, estudos adicionais devem ser realizados para identificar o papel dos desreguladores endócrinos sobre esses parâmetros do sistema genital feminino, assim como os mecanismos de ação que estão relacionados com esses efeitos. Fertilidade A diminuição da fertilidade feminina induzida pela exposição aos desreguladores endócrinos é consideravelmente mais descrita em modelos animais do que em populações humanas. De fato, estudos com ratos e camundongos já sugeriram que a exposição humana a esses compostos promove a diminuição de fertilidade, infertilidade, diminuída taxa de implantação de embriões, e até um comprometimento da manutenção da gestação. Ainda assim, os mecanismos de ação pelos quais os desreguladores endócrinos induzem esses efeitos nos modelos experimentais não estão completamente esclarecidos. Alguns poucos estudos em populações humanas demonstraram uma correlação positiva entre níveis aumentados de desreguladores endócrinos no soro e maior dificuldade para engravidar, aumento no número de abortos e/ou diminuição da eficiência de implantação de embriões em tratamentos de reprodução assistida. Contudo, outros estudos contrapõem esses resultados, por não demonstrarem nenhuma correlação específica entre a diminuição da fertilidade feminina e a exposição aos desreguladores endócrinos. Dessa maneira, futuros estudos serão essenciais para estabelecer os reais efeitos desses compostos sobre a fertilidade feminina.
Sistema genital masculino Os órgãos sexuais que compõem o sistema genital masculino incluem testículos, epidídimo, canais deferentes, próstata, vesícula seminal e pênis (Figura 78.20). Conforme descrito detalhadamente em capítulos anteriores, esses órgãos são basicamente responsáveis pela produção, maturação e transporte dos gametas masculinos, assim como pela síntese e secreção de hormônios sexuais masculinos, que possuem os mais variados efeitos sistêmicos no organismo. Muitos estudos demonstram que os desreguladores endócrinos, ao interferirem na produção e/ou ação dos andrógenos, comprometem a função do sistema genital masculino. Essa interferência endócrina seria responsável por alterações no desenvolvimento embrionário do sistema genital e na função sexual masculina. É interessante destacar que a interferência endócrina promovida por agentes com atividade estrogênica também compromete o sistema genital masculino. De fato, os efeitos deletérios observados nos órgãos sexuais masculinos desencadeados pela exposição materna a um composto sintético estrogênico, como o DES, descrito anteriormente neste capítulo, comprovam que desreguladores endócrinos com atividade estrogênica também interferem de maneira relevante no desenvolvimento e na função sexual masculina.
Figura 78.20 ■ Órgãos que compõem o sistema genital masculino e que potencialmente sofrem as consequências da exposição aos desreguladores endócrinos.
Dentre as principais consequências negativas desencadeadas pela exposição aos desreguladores endócrinos no sistema genital masculino destacamse: comprometimento da espermatogênese, criptorquidismo, hipospadia, infertilidade ou baixa fertilidade, diminuída qualidade do sêmen e cânceres em diferentes estruturas sexuais. É importante destacar que muitos estudos com outras classes de animais, como peixes, répteis, anfíbios, aves e outros mamíferos, consistentemente demonstram o efeito deletério que os desreguladores endócrinos presentes no meio ambiente exercem sobre o sistema genital masculino. Contudo, mais estudos epidemiológicos serão necessários para estabelecer quais são as fases críticas, as doses e o tempo de exposição necessários para que os efeitos deletérios sejam observados no sistema genital humano. Aqui serão descritos os principais achados da literatura sobre os efeitos dos desreguladores endócrinos no sistema genital masculino. Testículos Os testículos são funcional e anatomicamente divididos em duas partes: tecido intersticial, responsável pela biossíntese dos esteroides gonadais, e os túbulos seminíferos, responsáveis pela produção do espermatozoides. O desenvolvimento embrionário dos testículos é de fundamental importância para uma série de outras cascatas de desenvolvimento, que dependem da produção e da ação da testosterona. De fato, a síndrome de disgenesia testicular, que envolve o comprometimento do desenvolvimento dos testículos por agentes químicos ou genéticos, foi associada a uma série de problemas relacionados com o sistema genital masculino, como criptorquidismo, hipospadia, oligospermia e câncer de testículo. Alguns estudos sugerem que a síndrome de disgenesia testicular decorra de uma ação androgênica insuficiente, que resulta em disfunções nas células de Sertoli e de Leydig, comprometendo, assim, o adequado desenvolvimento da gônada
e dos outros órgãos do sistema genital masculino. Nesse sentido, substâncias químicas, naturais ou sintéticas, capazes de interferir na produção/ação da testosterona durante o desenvolvimento embrionário, potencialmente desencadearão uma série de problemas reprodutivos. Ainda que a correlação entre a exposição aos desreguladores endócrinos e essas disfunções não esteja completamente comprovada, muitos trabalhos demonstram a indução de anomalias anatômicas e/ou funcionais nos testículos de humanos e outros animais expostos aos interferentes endócrinos em fases iniciais do desenvolvimento. O criptorquidismo, por exemplo, é um problema relacionado ao desenvolvimento dos testículos e que em geral está associado na literatura à exposição aos desreguladores endócrinos. Sabese que, após desenvolvimento embrionário dos testículos, os mesmos são alocados na bolsa escrotal, fora da cavidade abdominal, e mantidos em temperatura inferior à corporal. O criptorquidismo se caracteriza pela manutenção dos testículos na cavidade abdominal, seja por uma falha no processo de descida dos testículos até a bolsa escrotal durante o período embrionário, seja pela ascensão de um ou dos dois testículos para a cavidade abdominal durante a infância (Figura 78.21). As principais consequências da manutenção do testículo fora da bolsa escrotal são a degeneração das células germinativas e, consequentemente, a infertilidade. É relevante destacar que a incidência de criptorquidismo nas diferentes populações aumentou consideravelmente nos últimos anos. De maneira interessante, a maior parte dos estudos descritos na literatura sobre essa disfunção envolve dados epidemiológicos.
Figura 78.21 ■ Ilustração esquemática do criptorquidismo, ou seja, a manutenção dos testículos nas cavidades abdominal, inguinal ou préescrotal.
Nesse sentido, alguns estudos demonstraram uma correlação positiva entre o aumento dos casos de criptorquidismo em meninos com altos níveis de pesticidas no tecido adiposo. Outros trabalhos descreveram uma associação entre níveis aumentados de pesticidas organoclorados, PCB, ftalatos e/ou dioxinas na placenta, urina e leite maternos e o aumento da incidência de criptorquidismo em recémnascidos. Além disso, outros trabalhos demonstraram que o ftalato dietilhexilftalato (DHEP) exerce uma ação antiandrogênica muito significativa e que seu metabólito, o monoetilhexilftalato (MHEP), gerado por ação de enzimas intestinais, apresenta uma ação antiandrogênica 10 vezes mais potente que seu precursor. Em concordância, alguns estudos já sugeriram que essa potente ação antiandrogênica justificaria a alta incidência de criptorquidismo em indivíduos expostos, durante a gestação, a altas concentrações de ftalatos. A hipospadia é outra anomalia do sistema genital na qual a abertura da uretra não fica na extremidade da glande do pênis, e sim situada em um ponto variável da face inferior do pênis, entre a glande e o períneo (Figura 78.22).
Figura 78.22 ■ Ilustração sistemática sobre a hipospadia, na qual a abertura da uretra se situa em diferentes posições ao longo do pênis e da bolsa escrotal.
Dada a raridade dessa condição, poucos são os trabalhos epidemiológicos que relatam de maneira consistente a associação entre a hipospadia e a exposição aos desreguladores endócrinos. Ainda assim, alguns estudos sugeriram fortemente o aumento do risco de desenvolvimento de hipospadia em filhos de homens/mulheres expostos a pesticidas, metais pesados, PCB e/ou outros desreguladores endócrinos. Contudo, conforme destacado anteriormente, existem algumas disparidades e incongruências nos resultados obtidos em diferentes estudos epidemiológicos que buscaram relacionar a ocorrência de hipospadia ou criptorquidismo e a exposição aos desreguladores endócrinos. Por esse motivo, estudos futuros serão fundamentais para delinear com precisão os mecanismos, os períodos críticos e as doses necessárias para a ocorrência dessas anomalias do sistema genital masculino frente à exposição aos desreguladores endócrinos Qualidade do sêmen O sêmen constituise basicamente do líquido seminal, produzido pelas secreções seminais e prostáticas, e dos espermatozoides, gerados e maturados no testículo e epidídimo. O sêmen é rico em frutose, enzimas, como a fosfatase ácida e alcalina. Os níveis de cada componente do sêmen constituem um excelente indicador bioquímico da função androgênica. Dessa maneira, alterações provocadas por desreguladores endócrinos na produção das secreções da próstata e/ou vesículas seminais, assim como na geração e proliferação das células germinativas ou na maturação dos espermatozoides, interferem diretamente na qualidade do sêmen. Muitos trabalhos relatam que a exposição das células germinativas dos fetos aos desreguladores endócrinos (como pesticidas, ftalatos, PCB) esteja associada à diminuição do número e da mobilidade dos espermatozoides. Em concordância, outros estudos sugerem que a exposição embrionária ou mesmo de indivíduos adultos aos desreguladores endócrinos induz alterações morfológicas nos espermatozoides, compromete a integridade do DNA dos gametas e promove alterações significativas na condensação da cromatina dos espermatozoides presentes no sêmen. Ainda assim, os dados obtidos em estudos epidemiológicos continuam muito contraditórios e alguns estudos não descrevem esse tipo de correlação em algumas populações. Próstata A próstata é um órgão altamente dependente da ação hormonal. Nesse sentido, o desenvolvimento embrionário, a função e a morfologia da próstata estão intimamente relacionados com os níveis circulantes de hormônios esteroides, especialmente os andrógenos. O papel e a importância dos hormônios sobre a próstata se refletem na grande quantidade de receptores e enzimas associadas ao metabolismo de andrógenos e estrógenos nesse tecido. Dada a ação androgênica de alguns desreguladores endócrinos, inúmeros estudos já demonstraram uma correlação positiva entre o crescimento prostático e a exposição a diferentes interferentes. Nesse sentido, cada vez mais trabalhos sugerem que a exposição humana aos desreguladores endócrinos, como pesticidas, herbicidas, PCB, BPA e/ou metais pesados, está diretamente relacionada com o aumento da incidência de câncer de próstata. Ainda assim, essa incidência também tem uma forte associação com predisposições genéticas dos indivíduos. Alguns estudos realizados em modelos
experimentais e culturas de células fortalecem os dados epidemiológicos apresentados na literatura. Apesar disso, os períodos críticos de exposição e os mecanismos de ação desencadeados pelos desreguladores endócrinos sobre a próstata ainda precisam ser mais bem elucidados. Futuros trabalhos seguramente contribuirão de maneira significativa para a resolução dessas deficiências.
▸ Efeitos no metabolismo energético A obesidade e o diabetes são os maiores problemas endócrinos de saúde pública no mundo, e o número de novos casos cresce consideravelmente a cada ano. Nesse sentido, a Organização Mundial da Saúde (OMS) sugere que atualmente presenciamos uma epidemia de obesidade e diabetes em escala global. Entender os mecanismos associados à etiologia tanto da obesidade como do diabetes contribuirá de maneira significativa para a prevenção e a redução desses problemas metabólicos na população mundial. Aqui serão descritos os efeitos da exposição aos desreguladores endócrinos sobre alterações metabólicas desencadeadoras de quadros de obesidade e/ou diabetes.
Obesidade A obesidade resulta de uma elevada ingestão alimentar em relação ao gasto energético. A etiologia da obesidade é complexa e envolve tanto fatores genéticos quanto fatores ambientais. Além disso, há um amplo conhecimento acerca dos mecanismos neurais e endócrinos que controlam a ingestão e o comportamento alimentar, que estão intimamente relacionados com a origem da obesidade. Sabese também da íntima relação entre a obesidade e o desenvolvimento do diabetes. Todos esses aspectos foram detalhadamente descritos em capítulos anteriores. Contudo, o crescimento global da incidência de obesidade, diabetes e suas comorbidades tem gerado muitas reflexões relacionadas à etiologia dessas doenças. Uma vertente dos estudos busca entender o impacto da exposição humana aos desreguladores endócrinos e a ocorrência de obesidade em indivíduos em diferentes faixas etárias. Interessantemente, os interferentes endócrinos associados ao desenvolvimento de obesidade são conhecidos como “obesogênicos”. Nesse sentido, a exposição aos desreguladores endócrinos no período intrauterino e perinatal tem sido considerada como um fator de risco importante para o desenvolvimento de obesidade e doenças metabólicas durante a vida adulta. Em concordância, há estudos que demonstram que a exposição a alguns desreguladores endócrinos diminui o crescimento fetal intrauterino e o peso ao nascer de recémnascidos, e ambos os fatores apresentam uma correlação importante com o desenvolvimento de obesidade durante a vida adulta. O aumento de peso na idade adulta induzido por desreguladores endócrinos também foi observado em camundongos tratados com baixas concentrações de DES durante o período neonatal. Sendo assim, além dos problemas reprodutivos que foram destacados anteriormente neste capítulo, a exposição ao DES também induz modificações metabólicas relevantes. Um grande número de estudos epidemiológicos e com modelos animais destacam o papel obesogênico de alguns desreguladores endócrinos, graças aos efeitos desencadeados por esses compostos estimulando a adipogênese, ou seja, promovendo um aumento no número de adipócitos e no armazenamento de gordura em adipócitos preexistentes (Figura 78.23). Além disso, alguns estudos relatam que os desreguladores endócrinos alteram a taxa metabólica basal, favorecendo o armazenamento de gordura ou alterando o controle hormonal do apetite e saciedade. Todas essas ações, em conjunto, poderiam justificar os estudos que associam a exposição aos desreguladores endócrinos e o desenvolvimento de obesidade tanto em humanos quanto em animais. De fato, já foi sugerida uma correlação positiva entre a concentração urinária de ftalatos e o aumento do diâmetro da cintura e do índice de massa corporal (IMC) em crianças e adultos. Além disso, diferentes trabalhos sugeriram uma associação entre os níveis urinários de BPA e obesidade. Adicionalmente, DDT, DDE, DPEP e PBDE já foram positivamente correlacionados com o desenvolvimento de obesidade em homens e mulheres. Ainda, há relatos na literatura de que a exposição a organotinas, que estão presentes em fungicidas e são ingeridas pelo consumo de frutos do mar contaminados, está associada ao desenvolvimento da obesidade. Demonstrouse que duas delas, TBT e TPT, se ligam com alta afinidade aos receptores nucleares RXR e PPARγ, que são essenciais para o desenvolvimento dos adipócitos. Estudos in vitro demonstraram que, ao se ligarem a esees receptores, as organotinas, e também outros desreguladores endócrinos, induzem a proliferação dos adipócitos. Em consonância, alguns trabalhos com modelos animais demonstraram que a exposição intrauterina ao TBT promove o aumento de gordura nos depósitos adiposos, no fígado e nos testículos de camundongos neonatos e o aumento dos depósitos adiposos nos animais adultos.
Trabalhos relataram que a exposição perinatal de camundongos a retardantes de chamas (PBB) provoca alterações na expressão de genes do fígado relacionados ao metabolismo, bem como elevação dos níveis de triglicerídios circulantes. Outros estudos demonstraram que ratos expostos ao BPA no período perinatal também apresentaram alterações hepáticas significativas na vida adulta, como esteatose hepática não alcoólica e aumento dos níveis plasmáticos de triglicerídios e colesterol. Por fim, alguns estudos sugeriram que a exposição materna ao DDT reduz a taxa metabólica basal de suas proles. Esse efeito justificaria o ganho de peso exacerbado dos animais expostos, que curiosamente apresentaram a mesma ingestão energética de animais do grupocontrole, ou seja, que não foram expostos a qualquer tipo de tratamento.
Figura 78.23 ■ Papel dos desreguladores endócrinos (DE) obesogênicos na diferenciação de adipócitos e desenvolvimento da obesidade. (Adaptada de Heindel et al., 2015.)
Outros estudos da literatura relatam os efeitos diretos de desreguladores endócrinos em neurônios hipotalâmicos que expressam neuropeptídios relacionados com o controle da ingestão alimentar, como o neuropeptídio Y (NPY), a proteína relacionada ao Agouti (AgRP), o transcrito regulado por anfetamina e cocaína (CART) e o hormônio melanotrófico (MSH). Esses circuitos que regulam a ingestão alimentar são estabelecidos muito precocemente durante a vida intrauterina. Dessa maneira, a exposição precoce aos desreguladores endócrinos e suas ações sobre esses circuitos envolvidos no controle da ingestão e comportamento alimentar também têm sido apontadas como potenciais desencadeadores da obesidade nos modelos animais e em humanos. Concluise, assim, que a exposição intrauterina ou perinatal aos desreguladores endócrinos é um fator de risco considerável para o desenvolvimento de obesidade e doenças metabólicas na vida adulta.
Diabetes Além de todos os efeitos descritos anteriormente sobre a programação e indução da obesidade, que por si só está intimamente relacionada com a ocorrência de diabetes, muitos trabalhos sugerem um papel direto e relevante dos desreguladores endócrinos sobre o desenvolvimento do diabetes, principalmente o diabetes melito tipo 2 (DM2), e também de outras doenças relacionadas com a resistência insulínica. De fato, o diabetes resulta de uma alteração na produção e/ou na ação da insulina no organismo. Assim como no caso da obesidade, o diabetes possui alguns fatores genéticos e ambientais predisponentes. Ainda assim, os desreguladores endócrinos que induzem a resistência à insulina são classificados como diabetogênicos e são considerados fatores de risco para o desenvolvimento da síndrome metabólica e do DM2. Conforme destacado anteriormente, desreguladores endócrinos obesogênicos potencialmente desencadeiam o desenvolvimento de DM2. Nesse sentido, algumas evidências científicas sugerem que a exposição intrauterina e perinatal ao BPA, por exemplo, altere a expressão de genes envolvidos na regulação do crescimento e função das células beta pancreáticas de maneira dosedependente. Assim, o BPA em doses baixas provoca proliferação dessas células e aumento da insulinemia, enquanto, em doses altas, reduz a massa de células beta pancreáticas e altera a glicemia de jejum. Em resumo, esses estudos sugerem que as alterações promovidas pela exposição precoce ao BPA contribuem para o desenvolvimento de quadros de intolerância à glicose na vida adulta. Estudos epidemiológicos sugeriram que a exposição humana aos POP, incluindo pesticidas organoclorados, PCB e dioxinas, apresenta uma sólida correlação com o aumento da prevalência de DM2. Em adição, os níveis de BPA, arsênico e ftalatos em urina também já foram positivamente correlacionados com a incidência de DM2 em diferentes estudos epidemiológicos. Conforme descrito anteriormente, grande parte dos desreguladores endócrinos são lipofílicos e permanecem armazenados nos adipócitos por longos períodos. Dessa forma, alguns estudos descrevem que a presença de
desreguladores endócrinos nos adipócitos está diretamente relacionada com menor responsividade dessas células à ação da insulina. Interessantemente, outros trabalhos demonstraram que a presença de dioxinas, BPA e os PCB no tecido adiposo induz a inflamação dos adipócitos, um outro fator predisponente para o desenvolvimento de resistência insulínica e diabetes. Por todos os dados apresentados na literatura, muitos estudos relatam que os indivíduos que apresentam desreguladores endócrinos armazenados em seus depósitos adiposos são mais suscetíveis ao desenvolvimento de resistência insulínica, e consequentemente de DM2. A Figura 78.24 sumariza os efeitos desencadeados pelos desreguladores endócrinos aqui descritos e seu papel na indução de doenças metabólicas.
▸ Efeitos no sistema cardiovascular As doenças cardiovasculares são a principal causa de óbito no mundo e resultam de vários fatores combinados que incluem causas genéticas, estilo de vida e fatores ambientais. Dentre os principais fatores de risco para o desenvolvimento dessas doenças, incluemse o fumo, a obesidade e o diabetes, conforme já destacado. Contudo, cada vez mais trabalhos têm associado o aumento da incidência de doenças cardiovasculares à exposição humana aos desreguladores endócrinos. De fato, o sistema cardiovascular é considerado um alvo direto e indireto das ações promovidas pelos desreguladores endócrinos, uma vez que muitos desses compostos interferem na ação dos hormônios que agem sobre os vasos e o coração. Demonstrouse, por exemplo, que altas concentrações de BPA estão associadas a aumento da prevalência de doenças coronarianas e que esse efeito aparentemente independe das ações desse desregulador endócrino sobre o desenvolvimento das doenças metabólicas (obesidade e diabetes). Dessa maneira, alguns dados sugerem que o BPA apresenta um efeito direto sobre o coração. Em consonância, o BPA exerce efeitos próarrítmicos ao interagir com o receptor de estrógenos tipo 2 (ESR2). Ainda, a conhecida ação inibitória dos estrógenos sobre a motilidade da musculatura lisa dos vasos, que ocorre via interação com o ESR2, também é comprometida pela exposição ao BPA. Esses resultados foram obtidos em estudos que usaram ratas como modelo experimental e que sugeriram a maior suscetibilidade das fêmeas aos impactos promovidos por esse desregulador endócrino. Vale ressaltar que, além do BPA, os fitoestrógenos agonistas do ERS2 também provocam alterações na função do coração, como arritmias cardíacas. Sendo assim, os riscos associados ao uso desses compostos, principalmente em terapias de reposição hormonal, devem ser muito bem avaliados. O BPA, conforme mencionado anteriormente, também interage com o receptor de hormônios tireoidianos, atuando como seu antagonista. Conforme descrito em capítulo específico, os HT controlam a expressão de vários genes cardíacos, que codificam proteínas essenciais para a função do coração, como a isoforma A da cadeia pesada da miosina, SERCA, receptores βadrenérgicos, GLUT4 etc. Dessa maneira, sugerese que a exposição ao BPA comprometa de forma relevante o metabolismo e a mecânica cardíaca, por mecanismos indiretos que envolvem a interferência na ação dos HT sobre o sistema cardiovascular. Adicionalmente, ratos expostos ao BPA por 48 semanas após o desmame apresentaram hipertrofia cardíaca e comprometimento significativo da função do coração; alterações que foram precedidas pela diminuição da função mitocondrial e consequente redução da produção de ATP. Por sua vez, a exposição ao ftalato DHEP, presente em tubos plásticos de equipamentos de hemodiálise, bolsas de sangue e em outros produtos médicos utilizados em UTI, já foi correlacionada com a diminuição da expressão de receptores de angiotensina II (ATIIR1b), expressos seletivamente na zona glomerulosa do córtex da suprarrenal, responsável pela produção de aldosterona. Dessa maneira, sugerese um potencial comprometimento da regulação do equilíbrio hidreletrolítico e da pressão arterial em indivíduos expostos aos ftalatos. Esse risco aumentado se pauta no importante papel que a angiotensina II e a aldosterona desempenham sobre esses parâmetros. Em consonância, estudos descreveram que a exposição fetal ao DHEP reduz a síntese de aldosterona, afetando a pressão arterial sistêmica em indivíduos adultos.
Figura 78.24 ■ Efeito de diferentes desreguladores endócrinos sobre o desenvolvimento da obesidade e do diabetes melito tipo 2 (DM2). Os efeitos obesogênicos estão diretamente relacionados com o estímulo de proliferação de células adiposas por alguns desreguladores. Adicionalmente, os agentes obesogênicos também interferem de maneira relevante nos efeitos comportamentais e de ingestão alimentar que são controlados principalmente no hipotálamo. Os compostos diabetogênicos, por sua vez, estão especialmente relacionados com alterações na secreção de insulina pelas células beta pancreáticas e com interferências na ação insulínica no organismo. Indiretamente, a partir da interferência na síntese e ação da insulina no organismo, os desreguladores endócrinos são responsáveis por outros efeitos deletérios sistêmicos, como doenças cardiovasculares (DCV), dislipidemias, esteatose hepática, entre outros. (Adaptada de Gore et al., 2015.)
Somandose a esses dados, alguns pesticidas organoclorados já foram relacionados com o desenvolvimento de doenças arteriais periféricas, principalmente em indivíduos obesos. Em concordância, a exposição ao pesticida DDT já foi previamente correlacionada com o desenvolvimento de hipertensão. Além disso, a partir de sua ação agonista em receptores de estrógenos do tipo 1 (ESR1), os pesticidas organoclorados foram associados ao estímulo de angiogênese em tumores e suas metástases. Uma correlação positiva entre os níveis plasmáticos de PCB e o aumento da pressão arterial também já foi estabelecida em alguns estudos epidemiológicos. Além disso, a exposição perinatal de ratos aos PBB, como o PBDE, foi previamente relacionada com o aumento da resposta de pressão arterial frente a um estímulo osmótico. Sugeriuse nesse estudo que a exposição dos animais ao PBDE interferiu nos mecanismos responsáveis pelo controle do sistema arginina vasopressina, uma vez que se observou aumento significativo da concentração plasmática de arginina vasopressina (AVP) nos animais expostos. Finalmente, estudos recentes apontaram que os desreguladores endócrinos também interferem na ação das prostaglandinas, que, por sua vez, apresentam importantes efeitos vasculares. Assim, sugerese que essas ações
interferentes adicionais dos desreguladores endócrinos contribuam de maneira significativa para desencadeamento de doenças cardiovasculares.
▸ Efeitos na função neuroendócrina O controle da homeostase do organismo depende da integridade do sistema hipotálamohipófiseglândula/órgãoalvo, que, por meio da produção e ação de hormônios, participa ativamente do controle de processos como crescimento, desenvolvimento, reprodução, resposta ao estresse, metabolismo energético e equilíbrio hidreletrolítico. De fato, sabese que os desreguladores endócrinos atuam por diferentes mecanismos e em diferentes componentes dos eixos do hipotálamohipófiseglândula, bem como interferem na ação de neurotransmissores centrais que atuam na regulação desses eixos (Figura 78.25).
Figura 78.25 ■ Impacto da exposição aos desreguladores endócrinos (DE) sobre a função e atividade dos eixos hipotálamo hipófiseglândula. Estudos mostram que a ação interferente dos desreguladores endócrinos atinge diferentes níveis de regulação dos eixos hipotalálamohipófiseglândula, comprometendo o adequado funcionamento do sistema endócrino dos organismos expostos.
Dessa maneira, são evidentes as repercussões negativas desencadeadas pela exposição humana e animal aos diferentes desreguladores endócrinos, principalmente quando essa exposição ocorre em períodos críticos do desenvolvimento, conforme explicitado anteriormente. Os hormônios hipotalâmicos são diretamente secretados no sistema portahipotalâmicohipofisário, descrito em capítulos anteriores. Sendo assim, esses hormônios não são em geral detectados em amostras de soro ou urina. Por esse motivo, a maior parte dos estudos epidemiológicos sobre as interferências neuroendócrinas promovidas pelos desreguladores endócrinos se limita aos estudos comportamentais. Nesse sentido, alguns estudos epidemiológicos e com modelos animais relataram que a ação hormonal envolvida na diferenciação sexual do SNC sofre potencial interferência induzida pela presença de desreguladores endócrinos, particularmente quando a exposição ocorre durante o período embrionário ou no período perinatal. De fato, sabese que esse processo depende, em grande parte, da ação dos hormônios maternos e fetais sobre os receptores de hormônios esteroides, bem como da metabolização desses hormônios por enzimas expressas no SNC – como a aromatase, que converte a testosterona a estradiol. Sendo assim, por ser um processo altamente dependente da ação hormonal, o potencial
efeito deletério da ação de desreguladores endócrinos não pode ser ignorado. Muitos estudos recentes visam elucidar de maneira consistente quais são os mecanismos de ação desses interferentes endócrinos e quais são as fases mais críticas de exposição. Como exemplo, já foi demonstrado que o pesticida organoclorado clordecona, um agonista estrogênico, quando administrado no 16o dia da gestação de ratas, provoca a alteração permanente do comportamento sexual de ratos e ratas de suas proles durante a vida adulta. As principais modificações observadas foram a masculinização das ratas e hipermasculinização dos ratos, caracterizadas pelo aumento significativo no número de montas. Além disso, estudos demonstraram que a exposição perinatal e pósnatal precoce ao BPA regula a expressão gênica e proteica de receptores estrogênicos no hipotálamo e em outras estruturas cerebrais, tanto em ratos quanto em camundongos. Os efeitos nocivos dos desreguladores endócrinos sobre o sistema hipotálamohipófisetireoide (HHT) também vêm sendo cada vez mais descritos na literatura. Os principais dados já foram extensivamente descritos neste capítulo. Quanto ao eixo hipotálamohipófisegônadas (HHG), inúmeros estudos da literatura descreveram o impacto negativo da exposição aos desreguladores endócrinos sobre a função de neurônios que produzem GnRH e kisspeptina. Contudo, muitos trabalhos apresentam dados contraditórios e ainda faltam dados epidemiológicos consistentes. Por exemplo, alguns estudos demonstraram que o BPA reduz a expressão gênica do mRNA de GnRH. Enquanto isso, outros trabalhos demonstraram um efeito estimulatório desse desregulador endócrino tanto sobre o mRNA de GnRH quanto sobre a expressão de kisspeptina. Adicionalmente, efeitos contraditórios já foram descritos para as ações dos PCB e os ftalatos sobre a atividade do eixo HHG. Dessa maneira, já foi descrito que esses interferentes inibem, aumentam ou não alteram a expressão do GnRH e da kisspeptina em animais, dependendo do período e da dose de exposição. Esses resultados reforçam a importância das janelas de exposição na ocorrência de efeitos nocivos relacionados com a exposição aos desreguladores endócrinos. Assim como descrito para os outros eixos endócrinos, o eixo hipotálamohipófiseadrenal (HHA) também é um importante alvo dos desreguladores endócrinos, ainda que muitos estudos sejam contraditórios. Nesse sentido, alguns estudos demonstraram que a exposição de ratas ao BPA durante a gestação e lactação aumenta a concentração sérica de corticosterona, sem que alterações significativas na expressão do receptor de glicocorticoides sejam observadas. Enquanto isso, outro estudo reportou que a exposição de ratas ao BPA aumentou o peso de suas adrenais, mas reduziu a concentração sérica de corticosterona, tanto em condições basais quanto em reposta a um estímulo estressor. Reportouse, ainda, na literatura que a exposição materna ao BPA antes e durante a gestação não induziu efeitos significativos sobre os níveis de corticosterona na sua prole durante a vida adulta. Além do BPA, os PCB também já foram descritos como potenciais desreguladores do eixo HHA. Alguns estudos demonstraram que a exposição de ratos aos PCB durante a gestação reduz a secreção de corticosterona basal e induzida por CRH ou ACTH no início da vida pósnatal. Outro estudo demonstrou que a exposição materna aos PCB aumenta os níveis séricos de corticosterona nas fêmeas da prole durante a vida adulta. Não houve alteração significativa desse parâmetro nos machos da prole. Efeitos interferentes do desregulador endócrino TBT sobre o eixo HHA já foram descritos na literatura. Sendo assim, a exposição ao TBT foi previamente correlacionada com alterações nos níveis séricos de corticosterona e ACTH, e na expressão de CRH e da óxido nítrico sintase induzível (iNOS) no hipotálamo. De fato, os dados sobre o impacto da exposição aos desreguladores endócrinos no eixo HHA ainda são conflitantes. Contudo, grande parte dos estudos sugere que os desreguladores endócrinos promovam uma dissociação funcional do eixo HHA, interferindo nos seus papéis na regulação da homeostase do organismo. Ao contrário das ações nocivas dos desreguladores endócrinos sobre o eixo hipotálamoadenohipófise, as repercussões da exposição a esses compostos sobre o sistema hipotálamoneurohipófise são menos conhecidas. Nesse sentido, existem registros na literatura de aumentos significativos na concentração sérica da arginina vasopressina (AVP) em ratos hiperosmóticos que foram expostos aos PCB, em relação a animais hiperosmóticos não expostos. Dados similares foram registrados por outros grupos, que demonstraram que a exposição materna aos PCB durante o período intrauterino aumenta a osmolaridade plasmática dos ratos da prole frente a um desafio osmótico em comparação aos ratos que não foram expostos. Esses resultados sugerem que ocorre uma programação intrauterina do eixo hipotálamoneuro hipófise nos animais expostos a desreguladores endócrinos, promovendo alterações significativas na responsividade desse eixo a diferentes estímulos. Mais ainda, esses efeitos parecem persistir durante a vida adulta dos animais. Adicionalmente, sabese que o óxido nítrico (NO) tem um papel fundamental na liberação de AVP em reposta a estímulos osmóticos. Em concordância, os neurônios magnocelulares, responsáveis pela produção e secreção de AVP,
apresentam elevada expressão da NOS. Essa expressão, por sua vez, é estimulada frente a alguns estímulos, como aumento da osmolaridade plasmática ou hipovolemia. De fato, estudos recentes sugerem que tanto a expressão quanto a atividade de NOS são alvos da ação de alguns desreguladores endócrinos. Nesse sentido, sugerese que vários outros processos biológicos dependentes da produção de NO, como a secreção de GnRH, de CRH, além de funções neuroendócrinas, cardiovasculares, de aprendizado e memória, podem potencialmente sofrer alterações frente à exposição aos desreguladores endócrinos. No que se refere ao impacto comportamental dos desreguladores endócrinos, sabese que a ocitocina e a AVP exercem vários efeitos em processos mnemônicos e sociais. No hipocampo ventral, por exemplo, a AVP está envolvida no processamento e consolidação da memória social, que é muito importante para a reprodução, defesa territorial e estabelecimento de hierarquias. Esses circuitos também estão envolvidos com o comportamento de ansiedade. Levandose em consideração os efeitos dos desreguladores endócrinos sobre a produção e ação da ocitocina e da AVP, conforme ressaltado anteriormente, podese sugerir que a exposição a esses compostos potencialmente induza alterações nas diferentes funções biológicas e comportamentais controladas por esses hormônios. Em concordância, alguns comportamentos mediados pelo sistema AVP central, como sociabilidade, comunicação e cuidados com a prole, também são comprometidos pela exposição aos desreguladores endócrinos. Por exemplo, a exposição de ratas ao PCB77 diminuiu a preferência desses animais por machos sexualmente ativos e aumentou sua preferência por fêmeas. Ainda, a exposição de ratas durante a gestação aos PCB, bem como ao BPA, reduziu significativamente o tempo de cuidados das genitoras com a suas proles, comparandose com os comportamentos apresentados pelos gruposcontrole.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste capítulo discutimos as principais características, as diferentes classes e os mecanismos de ação conhecidos dos desreguladores endócrinos. Fica claro que alguns pontos sobre o estudo dos efeitos desencadeados por essas substâncias precisam ser mais bem esclarecidos. Dessa forma, ainda que os sistemas endócrinos e os hormônios produzidos por eles sejam conservados em diferentes espécies de mamíferos, o uso de ratos e camundongos como modelo experimental ainda é uma limitação para determinar o real impacto da exposição humana aos desreguladores endócrinos. É importante ressaltar que esses modelos animais são de extrema importância na determinação dos mecanismos de ação e para a investigação dos efeitos de programação dos eixos endócrinos desencadeados por esses interferentes. Contudo, ainda faltam na literatura dados consistentes sobre os efeitos de alguns desreguladores endócrinos em seres humanos. Dessa maneira, mais estudos epidemiológicos serão necessários. Ainda assim, essa área de estudo é relativamente nova e seguramente dados mais embasados surgirão nos próximos anos. Embora existam essas limitações, os dados descritos até o momento na literatura permitem inferir que os desreguladores endócrinos apresentam um potencial efeito nocivo nas gerações tanto direta quanto indiretamente expostas. Além disso, conforme descrito, os mecanismos epigenéticos de programação gênica adicionam uma variável importante, que deve ser levada em consideração. Ou seja, ainda que um indivíduo não seja diretamente exposto aos desreguladores endócrinos, a exposição materna e/ou paterna a esses compostos potencialmente induz modificações significativas na expressão de seus genes, tornandoo mais ou menos suscetível ao desenvolvimento de doenças durante a vida adulta. A contaminação ambiental com desreguladores endócrinos é uma realidade. Infelizmente, não há como impedir a exposição humana a esses contaminantes. Dessa forma, estudos científicos serão necessários para elucidar o real impacto dessa exposição nos indivíduos e em futuras gerações. Identificar potenciais desreguladores endócrinos, compreender o complexo mecanismo de ação dessas substâncias, assim como elucidar os períodos mais críticos de exposição colaborarão efetivamente para o estabelecimento de políticas de saúde pública, com o intuito de reduzir a exposição humana e ambiental a essas substâncias. Além disso, o conhecimento científico aliado a medidas preventivas poderá contribuir de maneira significativa para a promoção da saúde e para a redução dos custos relacionados com o tratamento das disfunções endócrinas decorrentes dessa exposição.
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79 Fisiologia do Neonato 80 Fisiologia do Envelhecimento Humano
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Balanço hídrico
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Considerações gerais sobre crescimento fetal Perda de peso inicial no recémnascido
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Líquido amniótico Função pulmonar Eritropoese fetal
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Fisiologia cardiovascular Fisiologia renal
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Fisiologia gastrintestinal Considerações sobre o metabolismo energético Bibliografia
BALANÇO HÍDRICO A regulação do volume e da concentração iônica do meio interno do feto devese primariamente à mãe e à placenta; ao nascimento, quando termina a função placentária, o rim deve assumir a responsabilidade da homeostase do organismo. No feto, a água corporal é distribuída em compartimentos bem definidos e esta distribuição sofre modificações com o desenvolvimento fetal. À medida que a gestação progride, a água corporal total e a água do compartimento extracelular gradualmente diminuem, enquanto a água intracelular aumenta. No recémnascido, há uma expansão natural do volume do meio extracelular, que vai sendo compensada até o final da primeira semana de vida. Durante o primeiro ano de vida, a tendência é uma gradual diminuição do conteúdo de água corporal, quando expresso por porcentagem de peso corpóreo. A porcentagem de água em cada compartimento varia de acordo com: ritmo de crescimento fetal, sexo, presença de patologias durante a gestação, tipo de parto, volume hídrico fornecido para a mãe durante o parto e função renal neonatal. Na fase precoce de gestação, a água constitui 85% do peso corpóreo, 2/3 dos quais no meio extracelular. Ao nascimento, 75% do peso corporal são constituídos de água, sendo que 50% estão no espaço extracelular. Aos 3 meses, 60% do peso são devidos à água, dos quais 2/3 estão no meio intracelular (Figura 79.1). A redistribuição perinatal dos líquidos dos compartimentos corporais está associada a mudanças na composição iônica da água tecidual. Assim, no início do desenvolvimento fetal, o corpo tem alto teor de sódio e baixo de potássio, proporção que vai se alterando de acordo com o progresso da gestação. Embora os fetos humanos possam exibir acentuadas variações de peso, um feto normal contém cerca de 3.000 mℓ de água, dos quais 350 mℓ estão no compartimento vascular. A placenta contém cerca de 500 mℓ de água. Tanto o volume hídrico fetal como o da placenta são proporcionais ao peso fetal, enquanto o volume do líquido amniótico não parece ter relação com o peso corpóreo do feto. Neonatos com retardo de crescimento tem maior volume extracelular (VEC) em relação ao peso corpóreo do que os de mesma idade gestacional sem retardo. Recémnascidos cujas mães receberam sobrecarga hídrica, ou os que nascem de parto cesariano, também têm expansão do VEC.
A interação dinâmica da circulação materna, circulação fetal e líquido amniótico assegura a homeostase fetal e fornece nutrientes, solutos e água necessários para o crescimento fetal. A placenta e as membranas fetais exercem papel fundamental na regulação do transporte dessas substâncias, uma vez que se comportam como epitélios de baixa permeabilidade e têm transportadores trancelulares específicos. Em geral, minerais tais como K+, Mg2+, Ca2+ e fosfato, que exibem baixa concentração plasmática e que são contidos intracelularmente ou em compartimentos como o osso, são transportados ativamente, enquanto o Na+ e o Cl– podem ser transportados ativa ou passivamente. Entre a 18a e a 40a semana de idade gestacional, a concentração de Na+ plasmático fetal é estável e similar à materna. É interessante mencionar que o sinciciotrofoblasto placentário é capaz de transferir de 10 a 100 vezes mais Na+ do que o acréscimo diário de Na+ do feto (necessário para seu crescimento), indicando que o Na+ excedente retorna para a mãe por difusão paracelular, de tal modo que o fluxo de Na+ transplacentário é bidirecional e praticamente simétrico.
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE CRESCIMENTO FETAL O crescimento fetal depende de vários fatores, tais como: determinantes genéticos, condições gerais de saúde e alimentação maternas e presença de hormônios ou fatores de crescimento. É relativamente lento nas primeiras 8 semanas de gestação e então acelera. O ritmo de crescimento máximo é alcançado do quarto para o oitavo mês, quando o feto cresce de 5% a 9% por semana. A maior parte do peso fetal é adquirido da 20a semana até o término da gestação, aumentando de cerca de 5 g/dia na 15a semana para 15 a 20 g/dia na 20a semana e chegando até 30 a 35 g/dia na 34a semana de gestação. A nutrição materna adequada possibilita o aporte de nutrientes para o feto, que farão com que o crescimento e desenvolvimento fetal ocorram adequadamente. Se o fornecimento de nutrientes para o feto for insuficiente, quer por condições que afetem a saúde materna (desnutrição, diabetes, hipertensão etc.) ou por insuficiência no aporte placentário de sangue, o crescimento e desenvolvimento fetal estará em risco. O conceito de programação fetal vem sendo enfatizado nas duas últimas décadas; e, cada vez mais, condições patológicas que aparecem no adulto são correlacionadas com situações adversas sofridas durante sua gestação. Como exemplo, a desnutrição intrauterina ou a presença de diabetes melito na gestante têm sido descritas como condições que levam ao aparecimento de hipertensão, diabetes, doença coronariana e obesidade na prole. Estes estudos indicam que, além da carga genética, as condições impostas durante a gestação podem determinar o aparecimento e/ou deflagar patologias que surgirão em diferentes fases do crescimento do indivíduo ou no adulto. Atualmente, os chamados fatores epigenéticos são objeto de intensa investigação.
Figura 79.1 ■ Mudança na composição dos líquidos corporais durante o desenvolvimento normal do feto e do recémnascido. Note que durante a vida fetal há considerável compartimento de água extracelular (uma extensão do espaço do líquido amniótico). (Adaptada de Costarino e Baumgart, 1986.)
PERDA DE PESO INICIAL NO RECÉMNASCIDO Logo após o nascimento, ocorre uma redistribuição dos líquidos dos compartimentos corporais; nos primeiros dias há perda de peso, que corresponde à retração isotônica do VEC e à eliminação de excesso de Na+ e água pelos rins. Neste
período de perda rápida de peso, o balanço nitrogenado permanece positivo, mostrando que o crescimento e desenvolvimento estão ocorrendo. A perda rápida de líquido do espaço extracelular sempre foi tida como a responsável pela queda do peso corpóreo exibida pelos neonatos. Todavia, recentemente, alguns estudos evidenciam que o conteúdo de água intracelular diminui paralelamente à queda do peso corpóreo, enquanto o volume plasmático pode permanecer constante. Também é conhecido que, no recémnascido, a maior parte da água corpórea e dos solutos está contida nos músculos e no tecido subcutâneo. Assim, haveria um componente do líquido intravascular, localizado na pele e nos músculos, que seria mais facilmente eliminado de acordo com as necessidades fisiológicas do recémnascido. No entanto, o exato papel que a variação do componente intracelular exerce na perda fisiológica de peso do recémnascido ainda é pouco conhecido. Em prematuros de baixo peso, a perda de 15% do peso inicial está mais restrita ao compartimento extracelular. Estas crianças têm baixo conteúdo de queratina na pele e alto teor de água no espaço extracelular, em equilíbrio com o compartimento intravascular. Exibem também uma superfície corporal aumentada, que está exposta à evaporação. Comparada à de adultos, a superfície corporal nos prematuros de baixíssimo peso é cerca de seis vezes maior. Assim, quanto menor o peso da criança, a perda insensível de água aumenta de maneira exponencial. Consequentemente, a probabilidade de hipernatremia é elevada nestas crianças. Nos primeiros dias de vida da criança prematura, suas suprarrenais não respondem adequadamente a estímulos; ou seja, há dissociação entre a atividade da renina plasmática e o estímulo à produção ou à sensibilidade a aldosterona. Isto, juntamente com o baixo ritmo de filtração glomerular, contribuem para que a perda renal de Na+ e água seja mais acentuada e, por vezes, mais prolongada.
LÍQUIDO AMNIÓTICO O volume e a composição do líquido amniótico variam ao longo da gestação. Seu volume aumenta de 20 m ℓ na 10 semana gestacional para 700 m ℓ na 25a, alcançando um máximo de 920 m ℓ na 35a semana. Posteriormente, sua quantidade diminui e, na época do parto, está em torno de 720 mℓ, podendo variar de 500 mℓ a 1.200 mℓ mesmo em gestações normais. Em fetos pósmaduros, acima de 41a semana, pode ocorrer um declínio do volume de até 33% por semana, com incidência aumentada de oligoidrâmnio (baixa produção de líquido amniótico). Durante o primeiro semestre de gestação, a osmolalidade e a composição iônica do líquido amniótico são similares às do plasma fetal. Quando o feto começa a urinar, ao redor da 11a semana de gestação, a osmolalidade do líquido amniótico diminui progressivamente e, perto do término gestacional, chega a entre 85% e 90% da osmolalidade sérica materna. A concentração de Na+ urinário fetal diminui e contribui para a geração de um líquido amniótico hipotônico. Nos períodos finais da gestação, o volume e a composição do líquido amniótico são determinados pela urina fetal e a secreção de líquido pulmonar (como componentes primários) e pela deglutição fetal e a absorção intramembranosa (como rotas de depuração do líquido amniótico) (Figura 79.2). Quando sobrecarga ou restrição hídrica é imposta à mãe, o feto consegue adaptarse adequadamente. Estudos experimentais mostram que fetos de ovelhas, infundidas com salina, exibem aumento no volume do líquido amniótico e no fluxo urinário. Durante retenção hídrica e hiponatremia materna, o feto também apresenta lento declínio no Na+ plasmático e aumento no fluxo urinário. Em ratas grávidas com hiponatremia grave, há aumento na transferência de Na+ para o feto mesmo contra gradiente de Na+ entre mãe e feto. Por outro lado, fetos de ovelhas infundidas cronicamente com NaCl hipertônico exibem aumento no Na+ plasmático e grande excreção urinária de Na+ e Cl. a
FUNÇÃO PULMONAR Os pulmões ocupam uma posição especial no desenvolvimento se comparados a outros órgãos. Para a vida intrauterina, eles são desnecessários. No entanto, eles devem estar de tal modo desenvolvidos que, ao nascimento, entrem logo em ação. O feto tem de vencer um desafio enorme ao nascimento; ou seja, ele deve rapidamente ter seus pulmões esvaziados do líquido pulmonar secretado durante todo o período intrauterino. Em adição, o epitélio pulmonar deve estar pronto para esta mudança radical, a fim de que as trocas gasosas ocorram adequadamente; isto é, os espaços alveolares devem estar disponíveis e o fluxo sanguíneo pulmonar deve se adequar para a relação ventilação–perfusão. Qualquer alteração destes processos pode resultar em situação de risco para o recémnascido e, em crianças prematuras, a síndrome do desconforto respiratório não é rara.
Figura 79.2 ■ Representação esquemática dos diversos fluxos de volume (em mℓ) do feto para o líquido amniótico ou viceversa. (Adaptada de Gilbert e Brace, 1993.)
O desenvolvimento pulmonar iniciase ao redor da 3a semana de gestação (período embriônico) e continua ao longo de todo o período fetal. Cinco fases são descritas no desenvolvimento pulmonar – embrionária, pseudoglandular, canalicular, sacular e alveolar (Figura 79.3). Na fase embrionária, são formados os brônquios e as primeiras divisões de bronquíolos. Na fase pseudoglandular, são identificados os bronquíolos e suas divisões sucessivas; esta fase se estende até ao redor da 16a semana de gestação. A fase canalicular – que vai da 16a até a 26a semana – caracterizase pela formação inicial do parênquima pulmonar. Os canalículos são formados, derivados de subdivisões (de terceira ordem) da árvore pulmonar, há diferenciação do epitélio e a formação da barreira arsangue. Os capilares começam a se arranjar ao redor dos espaços aéreos. Na fase sacular – da 24a semana até o nascimento – as estruturas saculares vão produzir a última geração de vias respiratórias: alguns ductos alveolares e os alvéolos. Vários autores chamam esta fase de transitória, pois os sáculos se transformam em alvéolos até bem após o nascimento. Concomitantemente, iniciase a formação do fator surfactante. Ao nascimento, 1/3 dos alvéolos estão formados. O número total de alvéolos (300 milhões) é alcançado ao final do primeiro ano de vida. A fase alveolar continua após o nascimento e, logicamente, há superposição entre uma fase e outra. A maturação, funcional e anatômica, do sistema respiratório continua ao longo da infância e pode ser paralela à maturação da caixa óssea torácica. O desenvolvimento funcional é essencialmente secundário ao desenvolvimento anatômico. Ao nascimento, de 20 a 70 milhões de espaços aéreos funcionais estão formados; estes são constituídos de estruturas saculares, ainda existentes, e de alvéolos. A partir daí, os alvéolos vão se formando e, entre 1 e 2 anos, ocorrem grandes mudanças. Até o final dos primeiros 6 meses, de 85% a 90% dos alvéolos estão formados, e o restante formado até o final do segundo ano de vida. Desta idade em diante, o crescimento pulmonar é proporcional ao crescimento corporal. Entre 5 e 13 anos, o número final de 300 milhões de alvéolos está formado.
▸ Dinâmica de transporte do líquido pulmonar Os primeiros movimentos respiratórios após o nascimento são difíceis, pois os pulmões ainda estão preenchidos com líquido e os alvéolos estão colapsados. A maneira pela qual os alvéolos se livram do líquido ainda está longe de ser totalmente compreendida. A maior parte de conhecimentos sobre a dinâmica pulmonar do neonato vem de estudos experimentais em ovelhas. Durante o parto normal e após as primeiras horas de vida extrauterina, o líquido intraalveolar é retirado por diversas vias, incluindo: sistema linfático, vasos sanguíneos, vias respiratórias superiores, mediastino e espaço pleural. As características de transporte de líquido e de íons ao longo da vida fetal vão sofrendo transformações, e três estágios podem ser identificados. No primeiro, o epitélio pulmonar permanece secretor, devido à secreção ativa de Cl– e à relativamente baixa reabsorção de Na+; o motivo da inatividade de canais de Na+ nesta fase é pouco conhecido. O segundo estágio, transicional, envolve uma mudança na direção de transporte de volume e íons; múltiplos fatores podem estar envolvidos nesta mudança: exposição das células epiteliais ao ar, alta concentração de esteroides e nucleotídios cíclicos,
além da presença de outros fatores hormonais. Esta fase não só inclui aumento na expressão de canais de Na+ no epitélio pulmonar, mas também mudança da baixa seletividade de canais catiônicos para alta seletividade de canais de Na+. O aumento da entrada de Na+ para a célula pode resultar em mudança no potencial de membrana, com diminuição na secreção de Cl– e até reversão de secreção para reabsorção de Cl. O terceiro estágio, final adulto, caracterizase por alta reabsorção de Na+ e possível reabsorção de Cl– via canais (Figura 79.4). O que regula estas fases? Vários fatores parecem estar envolvidos nestas mudanças de fases, e os reguladores fundamentais são: glicocorticoides, oxigênio, betaadrenérgicos e surfactante. Interessante notar que a aldosterona – regulador importante do transporte de Na+ no rim e intestino – parece exercer pouca influência no pulmão.
Figura 79.3 ■ Estágios da formação do pulmão embrionário e fetal.
Figura 79.4 ■ Representação esquemática dos compartimentos fluidos do pulmão fetal, destacando o epitélio pulmonar, formado por células tipo 1, que ocupam a maior parte da superfície do lúmen pulmonar, e células tipo 2, que produzem e secretam o fator surfactante. Essas células também secretam Cl– por um processo que envolve o cotransporte Na+ :K+ :2Cl– e a Na+ /K+ ATPase. Esse processo dependente de energia, que pode ser bloqueado pelos diuréticos furosemida e bumetanida, aumenta a concentração de Cl– dentro da célula, fazendo com que o Cl– seja secretado para dentro do futuro espaço aéreo, pelos canais luminais CFTR e CLC, ânionseletivos. A água (através das aquaporinas 5 – AQP5) e o Na+ (via canais tipo ENaC) seguem o Cl–.
As mudanças nas forças físicas exercidas na árvore respiratória estão demonstradas na Figura 79.5. No feto, a secreção deixa o pulmão via traqueia e laringe, mas devido à resistência da laringe, o líquido permanece na via respiratória. No recémnascido, o movimento em vez de secretório se torna absortivo, o que livra a árvore respiratória de líquido. Com o início da aeração, e o aumento da tensão de alvéolos perfundidos, aumenta a remoção do líquido, que retorna para o sistema circulatório da criança. O aumento no fluxo sanguíneo pulmonar contribui para que essa retirada de líquido ocorra de maneira eficiente; como os capilares sanguíneos formam uma rede em torno dos alvéolos, o aumento do fluxo sanguíneo os torna menos enrodilhados e isto retifica os alvéolos, o que contribui para a sua expansão.
Figura 79.5 ■ Representação das forças envolvidas na formação e reabsorção de líquido pulmonar no feto e no recémnascido. Note que, no recémnascido, as mudanças dessas forças fazem com que haja reabsorção do líquido pulmonar formado anteriormente, limpando a superfície aérea.
Durante o parto, a estrutura da caixa torácica da criança se amolda, dificultando fraturas ou compressão inadequada na sua estrutura óssea e no seu sistema respiratório. Com o passar do tempo, a ossificação se intensifica, o tônus muscular intercostal melhora e a pressão negativa do lado abdominal do diafragma se estabelece.
▸ Papel da secreção de cloreto Como mencionado anteriormente, a secreção do líquido intrapulmonar ocorre ao longo da vida intrauterina; esta secreção acontece graças ao transporte de Cl–, cuja força motriz é similar ao mecanismo descrito para o transporte de Cl– por outros epitélios. Ou seja, o Cl– entra para a célula através da membrana basolateral, via cotransportador Na+:2Cl–:K+ (processo que pode ser inibido por diuréticos específicos). O Cl– é assim mantido alto dentro da célula, sendo extruído passivamente para o lúmen, por canais de cloreto. A Na+/K+ATPase, situada também na membrana basolateral, possibilita a entrada passiva de Na+ para a célula pela membrana luminal. A concentração de Cl– no líquido pulmonar é cerca de 50% maior do que a do plasma, enquanto a do Na+ é similar. A água pode fluir entre as células epiteliais ou através de canais de água, aquaporinas, especialmente a aquaporina 5, que é abundantemente expressa nas células pulmonares do tipo I. Estudos experimentais indicam que neste epitélio também existe uma H+ATPase acidificando o líquido; com isto, a secreção de Cl– e a formação de líquido parecem ser estimuladas. O líquido intraluminal impede que os espaços alveolares colabem e é também necessário para promover o crescimento do pulmão. No feto, a pequena fração do débito cardíaco que chega aos pulmões é suficiente para suprir os substratos necessários para a formação do surfactante e para a secreção de líquido, que pode alcançar até 5 mℓ/kg/h perto do final da gestação. O aumento do líquido intraluminal reflete uma vascularização crescente do epitélio pulmonar e um aumento da própria superfície pulmonar. Alguns estudos mostram que a produção e o volume de líquido pulmonar diminuem antes do nascimento, e, particularmente, durante o trabalho de parto. Contudo, se o parto ocorre prematuramente, ou é cesariano, é esperado que o volume de líquido pulmonar esteja maior, pois estas duas situações dificultam a eliminação de líquido. Além disso, o
parto prematuro, ou por via não vaginal, dificultam também o transporte de gases e a ventilação e, consequentemente, podem prejudicar o equilíbrio acidobásico.
▸ Transporte de Na+ O transporte ativo de Na+ através do epitélio pulmonar direciona o líquido do pulmão para o interstício. Como mencionado anteriormente, no pulmão, o transporte de Na+ ocorre em duas etapas. Na primeira, o Na+ é movido passivamente do lúmen para a célula, através de canais iônicos. A segunda etapa envolve o transporte ativo de Na+, através da Na+/K+ATPase da membrana basolateral, sendo o Na+ extruído da célula para o espaço seroso. O epitélio pulmonar muda suas características de transporte rapidamente, passando de um epitélio predominantemente secretor de cloreto para um predominantemente reabsorvedor de Na+. Esta capacidade de reabsorver Na+ está relacionada com a maior presença de canais luminais de Na+, os chamados ENaC (epithelial sodium channel, descritos no Capítulo 10, Canais para Íons nas Membranas Celulares). Confirmando esses achados, outros trabalhos experimentais mostraram que a amilorida (diurético inibidor dos ENaC) inibe o transporte de Na+ e água. Muitas informações são oriundas de estudos em células do tipo ATII. Estas células cuboides são responsáveis pela secreção do surfactante, pelo transporte de Na+ do lúmen para o interstício e pelo processo de reparação após lesão. Durante o desenvolvimento pulmonar, elas são também progenitoras de células escamosas tipo I. O transporte de Na+ nestas células obedece à mesma dinâmica descrita anteriormente, ou seja, difusão pela membrana luminal e transporte ativo pela membrana basolateral, graças à Na+/K+ ATPase. Os canais ENaC, na superfície luminal, constituem o processo limitante do transporte de Na+. O ENaC é constituído de 3 subunidades, não idênticas, α, β e γ. No rato, tanto o pulmão fetal como o do adulto expressam estas isoformas. Animais geneticamente modificados e que não expressam a unidade α, por exemplo, tornamse inviáveis. A expressão do ENaC é regulada ao longo do desenvolvimento do feto, e crianças prematuras nascem com pulmões com baixa expressão de ENaC, o que dificulta a eliminação de líquido do alvéolo. Altas doses de corticosteroides aumentam a transcrição do ENaC em diversos epitélios, inclusive no pulmão. Por outro lado, os corticosteroides diminuem a degradação dos ENaC existentes e estimulam a resposta dos pulmões a agentes betaadrenérgicos.
▸ Fator surfactante As pesquisas acerca do fator surfactante (SUR) iniciaramse na primeira metade do século XX. Em 1959, Avery e Mead aventaram a hipótese de que, em prematuros, a deficiência de algum fator que alterasse a tensão superficial intra alveolar, levaria a quadros graves tais como a síndrome de desconforto respiratório (SDR). Nas décadas seguintes, a composição do surfactante foi elucidada e, a partir daí, inúmeros trabalhos clínicos e experimentais têm sido elaborados com o intuito de não só tratar, mas também evitar a SDR. O SUR é produzido nas células alveolares do tipo II e armazenado em dois principais compartimentos: um contendo o pool intracelular e outro, o extracelular. O intracelular consiste em corpúsculos lamelares nas células tipo II. Sua função é armazenar o SUR antes que seja liberado para o espaço alveolar. A coleta do SUR é feita facilmente no lavado traqueobrônquico. Em diferentes espécies de mamíferos, sua composição mostra grande similaridade. Cerca de 90% é constituído de lipídios, dentre os quais os fosfolipídios predominam. A fosfatidilcolina é identificada como seu componente mais abundante; constitui entre 70% e 80% do SUR, sendo 50% a 70% saturada. Outros lipídios são: fosfatidiletanolamina, fosfatidilinositol, fosfatidilserina, colesterol, triacilglicerol e ácidos graxos livres. O colesterol corresponde a 2,4% em peso da composição total do SUR. Embora a maior parte do SUR seja constituída de lipídios, há cerca de 10% de proteínas. Foram descritos quatro tipos de proteínas associadas ao SUR. Elas podem ser divididas em 2 grupos: as proteínas hidrofílicas SPA e SPD e as hidrofóbicas SPB e SPC. Elas ocorrem apenas no pulmão, e a SPA e SPD parecem exercer a primeira linha de defesa contra patógenos inalados. As proteínas associadas ao SUR são fundamentais para que o efeito do SUR seja exercido na sua totalidade. Os corpúsculos lamelares das células tipo II contêm todos os componentes do SUR. Diversos fatores influenciam a síntese e a secreção do SUR: estresse mecânico, agonistas betaadrenérgicos e receptores purinérgicos ou de vasopressina. A estimulação está associada ao Ca2+ citosólico, AMP cíclico e ativação de proteinoquinases. A composição de fosfolipídios do SUR pode ser influenciada por dieta, idade e esforço físico. Após ser secretado, o SUR é transformado em estruturas chamadas de mielina tubular que são as responsáveis pela inserção dos fosfolipídios na interface arlíquido.
As moléculas de fosfolipídios são posicionadas com sua parte hidrofóbica de ácidos graxos voltada para o lúmen alveolar, e sua face polar para a subfase. Os fosfolipídios do SUR formam uma camada estável, ou filme, com uma tensão de superfície baixa em resposta à compressão. Quando as proteínas hidrofóbicas estão presentes, a adsorção de fosfolipídios da subfase para o filme é altamente acelerada. A adsorção de fosfolipídios é requerida para assegurar a ocupação molecular da interface arágua durante a inflação do pulmão. Durante a expiração, a tensão de superfície diminui na interface arágua, e a monocamada fica rica em fosfatidilcolina na forma saturada.
▸ Controle respiratório no neonato Os quimiorreceptores periféricos e centrais são cruciais para o controle respiratório. Os quimiorreceptores carotídeos, aórticos e centrais são funcionais mesmo na vida fetal; mas a transição para a necessidade de respiração contínua faz com que ajustes rápidos e precisos sejam deflagrados em resposta a estímulos hipóxicos (que causam queda da O2 arterial) ou em situações de hipercapnia (que provocam elevação da pCO2 arterial). Ao nascimento, o aumento acentuado na pO2 arterial provoca um ajuste na sensibilidade dos quimiorreceptores carotídeos e aórticos, que ocorre durante os primeiros dias de vida e pode durar por semanas. A flutuação no equilíbrio acidobásico em prétermos é comum. Isto se deve à imaturidade no controle respiratório e, como consequência, prematuros podem estar expostos a episódios de hipercapnia e/ou hipoxia. Crianças prétermo exibem resposta inadequada a estímulos hipercapneicos que pode perdurar nos primeiros dias de vida. Os efeitos combinados de pCO2, pO2 e pH arterial determinam o nível de ventilação. Uma interação não linear entre pCO2 e pO2, isto é, aumento da quimiossensibilidade ao CO2 a valores aumentados de hipoxia, foram descritos em nervos carotídeos e aórticos. Em crianças a termo, padrões respiratórios diferentes podem ocorrer, em que períodos de apneia podem se seguir de movimentos respiratórios com maior amplitude e/ou frequência. Por exibirem relativa imaturidade cerebral nos primeiros dias de vida, os ratos são utilizados como modelo experimental similar a humanos pretermos. Quando expostos a prévia hipercapnia, esses animais exibem sensibilidade aumentada na resposta ventilatória à hipoxia. Duas vias diferentes podem estar envolvidas nesta resposta: a hipercapnia estimula receptores centrais, enquanto a hipoxia altera a sensibilidade do corpo carotídeo. Assim, períodos de apneia (parada da respiração), frequentemente vistos em prematuros, podem ser resultantes da resposta inadequada do controle quimiorreceptor à hipoxia ou à hipercapnia. É provável que a interação do aumento na pCO2 e diminuição da pO2 contribua para os padrões respiratórios alterados em prematuros.
▸ Volumes pulmonares A capacidade funcional residual (CFR) é estabelecida durante as primeiras respirações e, normalmente, compreende entre 30% e 40% da capacidade total pulmonar. Após o parto, a CFR é baixa, aumentando rapidamente depois dos primeiros movimentos. O papel da CFR é fundamental, uma vez que ela minimiza o trabalho respiratório e otimiza a complacência do sistema, mantendo uma reserva de gás durante a expiração. A relação ventilação–perfusão deve ser adequada para possibilitar uma troca eficiente de gases. A má distribuição do fluxo sanguíneo pulmonar é a causa mais frequente de oxigenação reduzida na infância. Alvéolos ventilados, mas não perfundidos, têm perfil de pCO2 e pO2 similar ao do ar inspirado. Por outro lado, alvéolos perfundidos, mas não ventilados, têm pCO2 e pO2 similar às do sangue venoso. Os principais volumes pulmonares na criança e no adulto estão indicados no Quadro 79.1.
ERITROPOESE FETAL Durante o desenvolvimento embrionário, a eritropoese fetal ocorre, sequencialmente, em 3 diferentes locais: saco vitelínico, fígado e medula óssea. Entre a 2a e a 10a semana de gestação, a formação de hemácias ocorre no saco vitelínico e depois no fígado; por volta da 18a semana, iniciase na medula óssea, onde atinge o ápice na 30asemana. No momento do nascimento, as hemácias são, em sua maioria, produzidas na medula óssea, embora a eritropoese hepática persista nos primeiros dias de vida. Na vida extrauterina, a eritropoese é controlada pela eritropoetina renal.
Quadro 79.1 ■ Principais volumes pulmonares.
Criança (mℓ/kg)
Adulto (mℓ/kg)
Capacidade pulmonar total
63
82
Capacidade inspiratória
33
52
Capacidade funcional residual
30
30
Capacidade vital
40
66
Volume total
6
7
Volume de reserva expiratório
7
14
Volume residual
23
16
O teor de hemoglobina, hematócrito e hemácias aumenta ao longo da vida fetal. Hemácias grandes, com elevado conteúdo de hemoglobina (Hb), são produzidas logo no início da vida fetal. No decorrer da gestação, o tamanho e o conteúdo de Hb diminuem, mas a concentração corpuscular média de Hb é mantida. Quando o recémnascido respira pela primeira vez, mais oxigênio tornase disponível para ligação com a Hb e a saturação de oxigênio da Hb aumenta entre 50% e 95%. Após o nascimento, o aumento do conteúdo de oxigênio no sangue e nos tecidos faz com que a síntese de eritropoetina e a eritropoese também diminuam. A concentração de Hb diminui até que a necessidade de oxigênio esteja maior do que a chegada de oxigênio tecidual, o que ocorre entre a 6a e a 12a semana de vida, quando a concentração de Hb está em torno de 9,5 a 11 g/dℓ. Quando a hipoxia é detectada pelo tecido renal e hepático, a produção de eritropoetina aumenta e a eritropoese é retomada. Interessante notar que o teor de ferro é suficiente para a adequada síntese de Hb, mesmo na ausência de sua ingestão até ao redor de 20a semana de vida. No caso de crianças prematuras, poderá ocorrer anemia. Uma das causas comuns dessa situação é a retirada de amostras de sangue em quantidade e frequência altas, o que leva à perda de considerável volume de sangue. Outra causa é a falta da resposta eritropoética adequada frente aos estímulos normais. Por exemplo, a eritropoetina, cuja maior fonte durante a vida fetal é o fígado, não é suficientemente sintetizada frente à hipoxia. Este déficit é maior quanto mais prematura é a criança. A deficiência em folato, vitamina B12 e vitamina E pode também ser causa de anemia em prematuros. A anemia é também agravada pelo menor tempo de vida das hemácias, em média de 40 a 60 dias, contra 120 dias no adulto.
FISIOLOGIA CARDIOVASCULAR O sistema cardiovascular é o primeiro a entrar em funcionamento no concepto. A exigência de substratos, para embasar o rápido crescimento e desenvolvimento do embrião, requer um eficiente sistema que transporte nutrientes para as células e que retire delas os resultantes metabólitos. Inicialmente, o embrião é tão pequeno que processos difusionais são suficientes para suprir suas demandas. No entanto, ao redor da 3a semana de gestação, já é possível detectar o sangue fluindo. O conceito de que o coração é como uma bomba muscular dominou a ciência cardiovascular por quase um século. O coração, no entanto, é muito mais do que uma bomba, possuindo diferentes tipos de músculos, tecidos valvulares, células endoteliais e estruturas que têm a função de originar e manter o ritmo cardíaco (ou função marcapasso). Para a formação de um coração amplamente funcional, um conjunto de células precursoras deve originar estes diferentes tecidos que, posicionados em locais precisos, fazem com que a complexa máquina cardíaca exerça suas funções a contento. O estudo e a identificação de diferentes sinais e moléculas que fazem com que o tecido muscular cardíaco, os vasos coronarianos e o sistema de condução elétrica do coração funcionem adequadamente, não só têm esclarecido os passos da embriogênese cardiovascular, mas também têm contribuído para que as novas técnicas utilizadas na medicina moderna, tais como o uso de célulastronco, possam ser aplicadas ao coração, para restaurar sua função em caso de doença. O coração e os vasos sanguíneos se desenvolvem de maneira harmônica, de tal modo que o produto final resulte em um sistema fechado que faz com que o sangue seja adequadamente provido a diferentes órgãos, com diferentes demandas metabólicas.
A troca da circulação fetal para a neonatal está diretamente ligada a mudanças da função pulmonar. O sangue que iria até a placenta não mais circula naquele leito e tem de ser redirecionado para o sistema arterial. Como mencionado anteriormente, quando a respiração começa, há expansão dos pulmões e a ventilação pulmonar aumenta a disponibilidade de oxigênio com elevação concomitante da pO2. Como a resistência pulmonar cai dramaticamente, após o parto há aumento da circulação pulmonar e queda no shunt do ducto arterioso, e 90% do fluxo do ventrículo direito vai para as artérias pulmonares. Assim, o ducto arterioso começa a se fechar quase imediatamente após o nascimento, revertendo a direção do fluxo sanguíneo que era do ventrículo direito para o esquerdo. Seu fechamento funcional ocorre antes de seu fechamento anatômico, que só se completa entre o 2o e o 3o mês de idade. O fechamento funcional do ducto arterioso é influenciado por oxigênio e substâncias vasoativas, particularmente, prostaglandinas e endotelina1. O ventrículo esquerdo deve, então, ser capaz de bombear cerca de 350 mℓ/kgde sangue. Os ventrículos começam a trabalhar em série, como no adulto. Poucos segundos após o nascimento, o fluxo sanguíneo umbilical reduzse a menos de 20% dos valores fetais. Os vasos umbilicais se contraem rapidamente e o ducto venoso se oblitera até o final da 1a e a 2a semana de vida. Em crianças prétermo, o ducto venoso mantémse aberto por mais tempo. Provavelmente, seu fechamento devese ao aumento do teor de endotelina e tromboxano. No recémnascido, a capacidade funcional cardíaca trabalha perto do limite máximo, e adaptações a aumento de volume ou de pressão são menos eficientes. Comparado ao coração adulto, o miocárdio do neonato requer maior pressão de enchimento, que é alcançada com menores volumes. Ao nascimento, o débito do ventrículo direito aumenta em cerca de 1/3, enquanto o do ventrículo esquerdo triplica. As catecolaminas estimuladas levam a um aumento no débito cardíaco esquerdo, necessário para a vida pósnatal. Assim, o aumento no débito do ventrículo esquerdo pode ser explicado por: aumento no ritmo cardíaco e retorno venoso, aumento da resposta inotrópica a agentes tróficos e estimulação simpática e queda na carga sistólica e diastólica do ventrículo direito.
▸ Ritmo cardíaco O ritmo cardíaco é maior no recémnascido e cai paulatinamente nas primeiras 6 semanas de vida. Ele é determinado pelo ritmo de despolarização do nodo sinoatrial, que é tonicamente regulado pelo sistema parassimpático. Ao nascimento, a inervação simpática não está completamente ativa. Assim, os efeitos vagais predominam e as respostas a receptores betaadrenérgicos induzidos por catecolaminas são limitadas. Com o passar do tempo, o ritmo cardíaco diminui, e encontrase taquicardia (mais de 160 bpm) em eventos que levam à liberação de catecolaminas, estimulação do simpático ou inibição do parassimpático.
▸ Alterações estruturais nas fibras cardíacas As alterações maturacionais na força de contração miocárdica começam a ser vistas no final da gestação e continuam após o nascimento e durante o desenvolvimento. Os miócitos cardíacos passam por três processos de maturação, determinados pelo desenvolvimento: proliferação, binucleação e hipertrofia. Durante a vida fetal, os miócitos proliferam rapidamente; mas, no período perinatal, a proliferação cessa e os miócitos sofrem episódios adicionais de síntese de DNA e mitose nuclear sem citocinese (mitose acinética) que, na maioria das espécies, deixa os miócitos binucleados. Até pouco tempo, pensavase que os miócitos adultos fossem incapazes de repetir o ciclo celular quando expostos a estímulos, acreditandose que seu aumento celular seria conseguido por processo hipertrófico. Desta maneira, a capacidade de regeneração dos miócitos parecia ser limitada. Atualmente, dados experimentais mostram que, sob certas condições, os miócitos podem repetir o ciclo celular e exibir regeneração. No primeiro mês de vida, há aumento no número de miócitos e depois há hipertrofia dos já existentes. Como mencionado anteriormente, um aumento na força de contração faz parte do processo de maturação. Não há um aumento brusco na força de contração, mas um aumento gradual com o passar do tempo. A maior parte dos processos está relacionada com mudanças estruturais na anatomia miocárdica. A forma do miócito e o tamanho se alteram com o desenvolvimento. Ele passa de uma forma esférica no embrião para uma forma retangular no adulto. No recémnascido, as dimensões do miócito são de 40 μm em comprimento e 5 μm em largura, enquanto no adulto o tamanho pode exceder 150 μm por 25 μm. A organização interna do miócito imaturo é diferente da do adulto; ele é constituído de um core de mitocôndria, núcleo e material membranoso circundado por uma fina camada de miofibrilas; estas parecem não assumir uma direção determinada enquanto, no adulto, as miofibrilas estão organizadas em filas paralelas ao eixo longitudinal da célula. Durante a fase de transição, de imaturo para maduro, as miofibrilas se orientam, situandose em uma fina camada da
região subsarcolemal. Estas mudanças, juntamente com a diminuição do número de sarcômeros por grama de músculo e aumento no conteúdo aquoso, limitam a força cardíaca por unidade de área no feto e recémnascido. Com o aumento de miofibrilas, há elevação do número de pontes de ligação (cross bridge attachments) e da força de contração. Nas semanas que se seguem ao nascimento, aumenta a massa ventricular, com o ventrículo direito crescendo menos que o esquerdo. A mudança pósnatal do ventrículo esquerdo é, em grande parte, relacionada com o aumento do tamanho e número de miócitos. Após o nascimento, estes processos são dirigidos por uma série de fatores tróficos estimulados por catecolaminas e por estimulação simpaticomimética. Por exemplo, a estimulação de αadrenorreceptores induz aumento no tamanho do miócito e no conteúdo de miofibrilas, mas não tem efeito aparente no miócito adulto. No período perinatal, o miócito expressa receptores alfaadrenérgicos em grande número. Em adição, efeitos autócrinos e parácrinos dos fatores de crescimento de fibroblastos, fatores insulinasímile e outros estímulos tróficos contribuem para o crescimento do número e tamanho de miócitos. A contratilidade miocárdica no neonato é alterada, devido à diminuição na complacência ventricular e à redução na massa contrátil. O miocárdio fetal tem pequena quantidade de tecido contrátil, restrito ao subsarcolema. No feto, cerca de 60% do tecido miocárdico é não contrátil, contrastando com o do adulto, no qual esta porcentagem é de 30%. O miócito adulto contrai mais rapidamente e com maior frequência do que o fetal. Nos períodos fetal e perinatal, eventuais mudanças hemodinâmicas desencadeiam respostas ligadas ao aumento do ritmo cardíaco. Todavia, esta resposta é limitada devido ao predomínio do sistema parassimpático e à imaturidade do simpático. A acidose, a hipercarboxemia e a hipoxia alteram a permeabilidade celular e a atividade da Na+/K+ATPase, que induzem a menor capacidade de contratilidade miocárdica.
▸ Características das proteínas contráteis durante o desenvolvimento Miosina Em todos os estágios de desenvolvimento, a contração miocárdica resulta na alteração do cálcio citosólico, o qual regula a interação miosinaactina. A miosina de cadeia pesada dominante no músculo cardíaco é do tipo β e, na passagem da vida fetal para a adulta, não há grandes mudanças na sua expressão. O coração expressa dois genes para miosina de cadeia leve: MCL1 e MCL2. MCL1 atrial (MCL1a) é expresso no ventrículo fetal e no átrio fetal e de adulto. Com o desenvolvimento, ocorre uma mudança no ventrículo do adulto, com diminuição na expressão de MLC1a e aumento na de MCL1 ventricular (MCL1v). Já o gene MCL2 ventricular é expresso predominantemente no ventrículo, desde a vida fetal até a adulta; enquanto o gene MCL2 atrial é expresso no átrio. A função ventricular depende da fosforilação da MCL2 ventricular, que aumenta a sensibilidade dos miofilamentos ao Ca2+.
Actina Durante a vida embrionária, fetal e pósnatal, a expressão de actina no músculo cardíaco muda. No início da vida pós natal, a expressão da actina cardíaca diminui no ventrículo, enquanto a expressão de actina de músculo esquelético aumenta. A partir dos 6 meses de vida até a idade adulta, o tipo de actina dominante no sarcômero do coração humano é a actina de músculo esquelético. As diferenças estruturais destas duas actinas são pequenas, sugerindo que, funcionalmente, elas possam ter ações fisiológicas similares. No primeiro ano de vida, parece que há correlação do aumento na contratilidade e mudança na expressão da actina cardíaca para a actina de músculo esquelético. A capacidade de adaptação a defeitos congênitos pode ser também devida a esta alteração na expressão do tipo de actina.
Tropomiosina O músculo cardíaco expressa duas tropomiosinas, a α e a β. A tropomiosina α predomina no coração fetal, pósnatal e adulto.
Troponina C Um único tipo de troponina, a cardíaca, é expressa no coração ao longo do desenvolvimento. Em miofilamentos que expressam diferentes isoformas de troponina cardíaca, é relatada uma mudança na ligação com o cálcio.
Troponina I Duas isoformas de troponina I são expressas no miocárdio ventricular: a de músculo esquelético (do tipo lento) e a troponina I cardíaca. No coração humano adulto, a expressão da troponina I cardíaca é a predominante, e alguns anos de
vida são necessários para que esta predominância seja alcançada. A alta expressão perinatal de troponina I de músculo esquelético parece proteger o coração durante episódios de acidose respiratória.
▸ Sensibilidade ao Ca2+ A sensibilidade dos miofilamentos ao cálcio e a habilidade do miocárdio em modular o cálcio citosólico conferem uma importante característica fisiológica ao miocárdio: embora a contração seja um fenômeno tudo ou nada, a força de contração pode variar de um batimento ao outro. Esta propriedade fundamental de sensibilidade ao cálcio é vista ao longo do desenvolvimento, desde o período embrionário até a fase adulta. Dois tipos de canais de cálcio são descritos: do tipo T e do tipo L. No coração fetal, existe a expressão de isoformas do canal do tipo T, que vai diminuindo com o desenvolvimento. Já no coração do adulto, os canais predominantes são do tipo L, dependentes de voltagem e sensíveis a dihidropiridina. O retículo sarcoplasmático no miocárdio fetal é reduzido e menos organizado, alterando o transporte de cálcio e a contratilidade.
▸ Outras características do miocárdio no feto e no neonato Estudos realizados há décadas sugeriram que o coração fetal poderia mostrar uma rigidez passiva aumentada, o que levaria à disfunção diastólica, um fator de risco para a mortalidade perinatal. Com a descrição de uma proteína gigante, a titina, que funciona como um elástico e que define as propriedades mecânicas passivas do miócito, as pesquisas se concentraram para elucidar se alteração na composição desta proteína poderia estar relacionada com mudança nas respostas hemodinâmicas vistas nos neonatos. Duas isoformas de titina podem ser coexpressas no mesmo sarcômero, possibilitando ajustes na resistência passiva: uma curta, menos complacente (N2B) e outra mais longa, mais complacente (N2BA). Um único gene é o responsável pela expressão dessas duas isoformas da titina, que podem ser expressas em maior ou menor proporção, dependendo das respostas necessárias. Assim, quanto maior a expressão da isoforma N2B, maior a rigidez do miócito. O miocárdio fetal e neonatal exibem uma forma particular da N2BA, incorporada no sarcômero, e que confere baixa rigidez ao miocárdio. Durante o desenvolvimento pósnatal, a titina fetal é substituída por isoformas mais rígidas, dando origem a um miocárdio com resposta passiva aumentada. Isto possibilitaria um ajuste ao volume diastólico, de certa maneira protegendo a fibra miocárdica.
▸ Perfil pressórico na infância Assim como no adulto, a determinação de níveis pressóricos na infância é um procedimento que deve ser realizado sistematicamente, a fim de serem detectados possíveis casos de hipertensão ou quadros clínicos préhipertensivos. É recomendado que a partir de 3 anos de idade a criança tenha sua pressão arterial (PA) determinada, quando da visita a postos de saúde. A definição de hipertensão é baseada em dados obtidos em grandes estudos populacionais de crianças normais; como a PA varia de acordo com idade, sexo e peso, foram construídos tabelas e gráficos, que estão disponíveis nos locais pertinentes. A PA varia também de acordo com a metodologia utilizada para a sua avaliação. O método auscultatório ainda é bastante utilizado; porém, atualmente, o método oscilométrico é o mais usado, e vários estudos mostram que este método é menos sujeito a erros. Trabalho publicado em 2007, por Kent et al., indica que entre o 6o e o 12o meses de vida não se verificam diferenças significantes na PA sistólica e diastólica; entretanto, aos 2 dias de vida, as médias para as pressões diastólicas e sistólicas são menores do que as vistas em crianças mais velhas (Figura 79.6). A PA tende a subir na adolescência, tanto em meninos quanto em meninas, e ao redor de 18 anos alcança os valores vistos em adultos. Estudos populacionais evidenciam, também, que há correlação positiva entre peso corpóreo e PA; ou seja, para a mesma idade e sexo, crianças com maiores pesos mostram tendência a exibir níveis pressóricos mais elevados.
FISIOLOGIA RENAL
▸ Desenvolvimento anatômico Os rins de mamíferos desenvolvemse de uma região localizada entre a região axial e a placa lateral do mesoderma. Três estágios sucessivos são identificados neste desenvolvimento, e os dois primeiros são transientes. No primeiro estágio, próximo da 3a semana, há a formação de estruturas não funcionais, os pronefros ou ductos néfricos primários, derivados da região cervical. Cada pronefro consiste em 7 a 10 grupos celulares compactos, que degeneram no início da
4a semana. Com o crescimento, um arranjo linear de túbulos epiteliais é formado, derivado de células mesenquimais adjacentes, constituindo os mesonefros. Estes aparecem ao término da 4a semana, formando órgãos ovoides em forma de S, próximo das gônadas em formação. O ducto mesonéfrico, no sexo masculino, origina o ducto wolfiano. Os metanéfrons ou rins permanentes originamse do botão uretérico na porção caudal do mesonefro. A formação do rim definitivo envolve dois processos separados e interrelacionados. O botão uretérico cresce, invade o mesênquima e começa a sofrer subdivisões; em seguida, células mesenquimais se agregam ao redor destas, iniciando a conversão mesênquima epitélio, enquanto outras células mesenquimais se transformam para formar o estroma intersticial. Os agregados celulares originam uma vesícula renal polarizada, tendo, em uma das partes, contato com o botão ureteral (Figura 79.7). Uma única fenda se forma na vesícula, provocando uma estrutura em S. A porção distal deste S, que ficou em contato com o botão ureteral, se funde para se tornar um túbulo único, epitelial. A parte proximal deste forma o tufo glomerular, quando células endoteliais invadem a fenda proximal. A interação da célula endotelial com as células glomerulares dá origem à membrana basal glomerular, uma estrutura altamente especializada, com função de exercer uma barreira à passagem de determinadas moléculas e proteínas. A formação do néfron iniciase ao redor da 5a semana, na porção justamedular, e progride para o córtex. Na 20a semana, a divisão dos ductos coletores está completa e cerca de 1/3 dos néfrons está formado. Os néfrons se desenvolvem até a 35a ou 36a semana (correspondendo, normalmente, a um peso fetal de 2.100 a 2.500 g e um comprimento de 46 a 49 cm), quando o número final de néfrons é alcançado. Nas crianças prétermo, o desenvolvimento renal continua até a 34a ou 35a semana pósconcepcional. A maturação dos néfrons e sua hipertrofia continuam durante os primeiros anos de vida. A vascularização renal é paralela à nefrogênese. Inicialmente, os rins situamse na área pélvica; mas, com o crescimento e alongamento do feto, eles migram para áreas mais superiores. Durante este processo, os rins mostram um movimento de rotação de 90°, de tal modo que a pelve renal se posiciona na frente da linha mediana. O peso renal aumenta nas últimas 20 semanas de gestação, linearmente com o aumento do peso e da superfície corporais. Antes do 5o mês de gestação, o crescimento renal ocorre primariamente na região medular, que contém a maior parte dos ductos coletores. A partir do 5o mês, ocorre maior crescimento na região cortical e na medula externa. Após o nascimento, o crescimento renal se dá, principalmente, nos túbulos e na alça de Henle. O ritmo de crescimento tubular se reflete nas mudanças da relação das superfícies glomerular:tubular; ou seja, 27:1 ao nascimento, 8:1 aos 6 meses e 3:1 em adultos.
Figura 79.6 ■ Evolução das pressões arterial diastólica, média e sistólica em crianças durante o primeiro ano de vida. PA, pressão arterial; n, número de crianças observadas. (Adaptada de Kent et al., 2007.)
Figura 79.7 ■ Estágios na formação dos néfrons de mamíferos. Após interações do mesênquima e metanefro, são induzidas novas divisões no botão uretérico. Posteriormente, e em cada ponta da árvore ureteral, há condensação de tecido e aparecimento de vesículas renais que formarão os néfrons individuais. (Adaptada de Yu et al., 2004.)
▸ Desenvolvimento funcional O feto é composto primordialmente de água, em sua maioria contida no compartimento extracelular; com a progressão da gestação, a água total do corpo e o volume do meio extracelular diminuem lentamente, e o volume do meio intracelular cresce (ver Figura 79.1). A filtração glomerular e a produção de urina iniciam na 9a ou 10a semana de gestação. A alça de Henle começa a funcionar na 14a semana e a reabsorção tubular, entre a 9a e a 12a semana. Ao longo da gestação, o fluxo plasmático renal (FPR) e o ritmo de filtração glomerular (RFG) são baixos, devido à alta resistência vascular e à baixa pressão arterial sistêmica; contudo, aumentam a partir da 20a semana até o final da gestação. Este aumento é paralelo à elevação no número e tamanho dos néfrons. No adulto, cerca de 25% do débito cardíaco vão para os rins, enquanto no feto, 40% a 50% vão para a placenta e apenas 3% para os rins. Assim, o balanço hidreletrolítico do feto é devido, primariamente, à placenta. Embora o FPR e o RFG sejam baixos no feto, o débito urinário contribui bastante para o volume do líquido amniótico. A bexiga fetal se esvazia a cada 20 a 30 min, e o débito urinário cresce com o desenvolvimento fetal. Embora o volume exato de produção de urina ao longo da gestação não esteja estabelecido, ele é calculado em torno de 25% do peso corpóreo, ou cerca de 100 mℓ/dia perto do final da gestação. Como no adulto, o RFG do feto depende da pressão de ultrafiltração, que é a diferença entre os gradientes de pressão hidrostática e oncótica dos capilares glomerulares. A baixa pressão de perfusão e o baixo fluxo plasmático glomerular são, pelo menos em parte, responsáveis pelo baixo ritmo de filtração glomerular durante a gestação. O RFG depende também do coeficiente de ultrafiltração, ou Kf, que depende da área e da permeabilidade da membrana filtrante. Durante os últimos meses de gestação, o RFG aumenta em paralelo à idade gestacional até o término da nefrogênese, ao redor da 35a semana de gestação. Este padrão de desenvolvimento reflete o número crescente de néfrons funcionantes. Próximo da 35a semana, a velocidade de aumento do RFG diminui até o nascimento. As mudanças do RFG de acordo com a idade concepcional estão indicadas na Figura 79.8.
▸ Maturação pósnatal A maturação pósnatal é caracterizada por aumento acentuado no FPR, que tem seu valor dobrado até o final do primeiro mês de vida. Os valores do FPR no adulto, de cerca de 600 mℓ/min, são alcançados próximo ao segundo ano de vida. Estudos acerca da distribuição do fluxo sanguíneo no rim de recémnascidos mostram que o fluxo sanguíneo é, predominantemente, levado para os néfrons mais profundos do córtex renal; mas, com a maturação renal, devido à diminuição nas resistências vasculares, o sangue é redistribuído para o córtex externo.
A capacidade de autorregulação do fluxo sanguíneo renal é menor em crianças do que em adultos. O RFG tem seu valor duplicado nas primeiras 2 semanas de vida (ver Figura 79.8). Este acréscimo é devido ao aumento da superfície disponível para a filtração; além disso, elevações adicionais do RFG podem ser relacionadas com: (1) elevação do Kf, (2) aumento na pressão efetiva de ultrafiltração e (3) diminuição nas resistências das arteríolas aferentes e eferentes. No 1o ano de idade, o RFG é cerca de 90% do valor no adulto e, no 2o ano, alcança aproximadamente 98% desse valor. Em termos absolutos, do nascimento até a idade adulta, o RFG aumenta cerca de 25 vezes.
Figura 79.8 ■ Desenvolvimento do ritmo de filtração glomerular (RFG) como função da idade gestacional durante o último trimestre da gestação e no primeiro mês da vida pósnatal. Notar o aumento do RFG pósnatal observado nos prétermo (•—•) e nos recémnascidos a termo (∘—∘). (Adaptada de Guignard e John, 1986.)
O balanço glomerulotubular, definido como a relação dos valores absolutos de reabsorção tubular e a filtração por néfron, é adequado no recémnascido, a fim de manter a reabsorção de solutos, água e íons em valores compatíveis com o seu crescimento. Em prematuros nascidos antes da 30a semana gestacional, o balanço glomerulotubular pode não ser adequado, levando, por exemplo, à glicosúria (aumento de glicose na urina).
▸ Homeostase de Na+ em condições fisiológicas O aporte de sódio é baixo em lactentes, se comparado ao de adultos. O leite é uma fonte pobre de Na+ e, para que o crescimento do neonato ocorra satisfatoriamente, é necessário um balanço positivo desse íon. Parte deste balanço positivo é devida ao baixo RFG observado neste período da vida. Adicionalmente, no neonato, o baixo nível de fatores natriuréticos (fatores que aumentam a excreção renal de sódio, tais como peptídio atrial natriurético, dopamina, óxido nítrico) também limitam a excreção de Na+. Apesar disso, na primeira semana de vida, a excreção fracional de Na+ é alta, e inversamente proporcional à maturidade fetal (Figura 79.9). Por outro lado, no recémnascido, a resposta à sobrecarga de Na+ é prejudicada quando comparada à do adulto, em parte devido ao baixo RFG. Estudos clínicos e experimentais mostram que, quando a maturidade progride, o túbulo distal é o local onde ocorre aumento da fração de reabsorção de Na+, provavelmente devido ao aumento na resposta à ação da aldosterona. Em rins de prematuros, tanto os segmentos proximais como os distais são menos eficientes no manejo de Na+. Assim, uma porcentagem do Na+ filtrado escapa da reabsorção proximal, pois a relação entre o volume filtrado e a superfície proximal disponível para a reabsorção é maior do que em crianças nascidas a termo. Por outro lado, a pressão oncótica peritubular (que favorece a reabsorção de líquido isotônico no proximal) está diminuída. As porções distais exibem também alta permeabilidade e baixa capacidade de resposta à ação de mineralocorticoides e baixas atividades dos transportadores iônicos membranais e dos canais apicais de Na+. Esta perda renal de Na+, que leva a um balanço negativo do íon, pode ser fisiológica para as condições extrauterinas, pois o rim tem de eliminar o excesso de Na+ contido no meio extracelular. Estes fatos são reforçados em várias patologias, quando grandes volumes de água e íons são infundidos no
prematuro, na tentativa de reposição de volume. Nestas condições, é frequente a ocorrência de ducto patente arterioso, insuficiência cardíaca, enterocolite necrosante, displasia broncopulmonar e hemorragia intracraniana.
Figura 79.9 ■ Gráfico indicando a relação inversamente proporcional entre a excreção fracional de Na+ e a idade gestacional. (Adaptada de Siegel e Oh, 1976.)
Em resposta a esta perda de Na+, a atividade da renina plasmática é elevada em prematuros de maneira mais acentuada que em crianças nascidas a termo. Porém, há uma dissociação entre a renina plasmática e os níveis de aldosterona, o que mostra que as suprarrenais de prematuros não respondem adequadamente a estímulos na primeira semana de vida. O desenvolvimento da resposta pósnatal à sobrecarga de Na+ está relacionado também com o tipo de dieta. Em crianças recebendo dietas com alto conteúdo de Na+, a resposta à sobrecarga de Na+ é mais eficaz. O transporte intestinal de Na+ é eficiente, e a maturação no transporte colônico de Na+ precede a maturação renal. Este mecanismo serve como defesa contra a natriurese observada em recémnascidos e crianças prematuras.
▸ Sistema reninaangiotensinaaldosterona Em humanos, os genes relacionados com a angiotensina são ativados ao redor do 23o ou 24o dia de gestação. Os receptores AT1 e AT2 são expressos ao redor do 24o dia, indicando que a angiotensina II pode ser importante na organogênese. O receptor AT2 é maximamente expresso na 8a semana de gestação, tendo sua expressão diminuída posteriormente. Perto do 28o dia, o angiotensinogênio é expresso na parte proximal do túbulo primitivo e a renina no glomérulo e aparelho justaglomerular. Entre o 31o e 35o dias, todos os componentes do SRAA estão expressos no mesonefro embrionário, incluindo a enzima conversora de angiotensina. O SRAA é mais ativado no período neonatal e na infância do que posteriormente. A aldosterona alcança o máximo de ativação duas horas após o nascimento.
▸ Características do túbulo proximal A maior parte do transporte no túbulo proximal depende do gradiente luminal de sódio, provocado e mantido pela Na+/K+ATPase basolateral. Solutos orgânicos e bicarbonato são reabsorvidos em preferência ao Cl–, o que deixa o líquido luminal com alto teor deste íon. Em relação ao espaço peritubular, estudos experimentais mostram que, no rato, cerca de
1/3 do transporte de NaCl é ativo e transcelular, sendo os 2/3 restantes passivos e paracelulares. O transporte ativo de NaCl é mediado pela operação paralela dos trocadores Na+/H+ e Cl–/HCO3–. O maior volume de água é transportado no túbulo proximal pela via transcelular, graças à presença das aquaporinas do tipo 1. No feto, pouca aquaporina 1 é detectável; mas, ao nascimento, há aumento substancial no conteúdo de aquaporina 1, tanto na membrana apical como na basolateral. No neonato, a atividade da Na+/K+ATPase é menor, como também, provavelmente, a força movente para a entrada de Na+ na célula, resultando em baixo influxo celular de NaCl através da membrana apical. Há evidências de que a maturação da entrada de Na+ apical estimula (e precede) a atividade da Na+/K+ATPase basolateral. O transportador NHE3, que predominantemente medeia a troca Na+/H+ na membrana luminal do túbulo proximal, sofre maturação com o transcorrer do tempo. Em vesículas extraídas da borda em escova de túbulos proximais de animais imaturos, foi demonstrado que a reabsorção de bicarbonato e as atividades da Na+/K+ATPase e do NHE3 estão diminuídas. A acidificação tubular proximal é efetuada, em sua maior parte, pela isoforma NH3 do trocador Na+/H+ luminal. Estudos recentes, em alguns mamíferos recémnascidos, indicam que outras isoformas do trocador Na+/H+ também estão presentes. Por exemplo, a isoforma NHE8 foi encontrada em túbulos proximais de ratos recémnascidos; mas, em humanos, o seu papel é desconhecido. A maturação pósnatal e a reabsorção de bicarbonato podem ser estimuladas por hormônios da suprarrenal ou por estímulo direto da angiotensina II sobre a NHE3 e/ou a Na+/K+ATPase. Adicionalmente, foram descritos outros fatores que influenciam positivamente a resposta tubular na conservação do Na+, como a melhora nas respostas a hormônios tireoidianos e a catecolaminas e o aumento da atividade simpática. Outro modo de transporte de Na+ no proximal é através do cotransportador Nafosfato (denominado NaPi). O transporte é eletrogênico e envolve o cotransporte de 3 Na+ e 1 íon fosfato. Três isoformas deste transportador são descritas, mas, o NaPi2 é localizado exclusivamente na borda em escova. Alguns trabalhos mostram que este transporte é, proporcionalmente, maior em rins de neonatos quando comparados a rins de adultos. O hormônio da paratireoide inibe este transporte, enquanto o hormônio de crescimento e o fator insulinasímile o estimulam. A reabsorção de Na+ no túbulo proximal também ocorre pelo cotransporte com aminoácidos e glicose. Durante o período fetal e neonatal, estes transportadores exibem baixa atividade; devido a essa característica, nos primeiros dias de vida podem ser encontradas aminoacidúria e glicosúria (aminoácidos e glicose na urina, respectivamente).
▸ Algumas características do trocador Na+/H+ Como citado anteriormente, no túbulo proximal ocorre reabsorção de água, glicose, NaCl, bicarbonato, citrato e secreção de H+ (o qual é excretado na forma do íon amônio e de acidez titulável). Solutos orgânicos, como aminoácidos, oligopeptídios e proteínas são também reabsorvidos por essa porção tubular. O trocador Na+/H+ (NHE, sodiumhydrogen exchanger), direta ou indiretamente, contribui para cada um desses processos de transporte que ocorrem no túbulo proximal. O NHE faz parte de uma grande família de trocadores monovalentes cátionpróton. Atualmente, são conhecidas nove isoformas de NHE, de 1 a 9, com diferentes localizações teciduais e subcelulares. No Capítulo 11, Transportadores de Membrana, são dadas mais informações a respeito do NHE em humanos adultos. O NHE3 é a isoforma predominante no túbulo de mamíferos adultos, enquanto o NHE8 predomina no rim fetal. Ao longo do desenvolvimento, há uma mudança na expressão destas 2 isoformas, já estabelecida em algumas espécies. A alteração na expressão destas isoformas pode ser intrínseca do órgão ou dependente de fatores circulantes. Por exemplo, o grande aumento do hormônio da tireoide e dos corticosteroides no período pósnatal eleva a expressão luminal do NHE3. É possível que no rim prematuro a função de acidificação seja exercida pela isoforma NHE8, enquanto a NHE3 não está ainda desenvolvida. Com o progredir do tempo, a NHE8 passa a ter uma localização primordialmente intracelular, utilizando o Na+ vesicular para a troca com o H+ celular, levando à acidificação intravesicular.
▸ Reabsorção de cloreto Como previamente mencionado, a reabsorção ativa de Cl– no túbulo proximal é feita conjuntamente pelos trocadores Na+/H+ e Cl–/HCO3–. Estudos experimentais indicam que ambos os trocadores têm menor atividade no neonato. A reabsorção paracelular de Cl– depende da permeabilidade desta via a cloretos. Em coelhos adultos, a permeabilidade a Cl– em túbulos contorneados proximais é baixa. Em animais recémnascidos, esta permeabilidade é menor ainda e esta porção do néfron mostra uma alta resistência elétrica quando comparada à do adulto. Tais propriedades biofísicas apontam
para uma mudança maturacional na região da tightjunction (pontos especiais de junções entre as células, na parte apical próxima do lúmen tubular). A tightjunction é composta de fibrilas cujas proteínas são as ocludinas e uma família de proteínas chamadas de claudinas. A ocludina tem distribuição ubíqua, enquanto as isoformas de claudina e sua abundância diferem entre os vários segmentos tubulares, conferindo características elétricas e permeabilidades diferentes para a via paracelular de cada segmento. Por exemplo, a claudina 16, presente no ramo grosso ascendente da alça de Henle, determina as características peculiares de permeabilidade desta região. Em coelhos, as claudinas 6, 9 e 13 são expressas apenas nos recémnascidos, enquanto nos animais adultos, estão ausentes. As causas destas diferenças ainda são desconhecidas e, em rins humanos, estes dados ainda não foram obtidos.
▸ Características do néfron distal Alguns trabalhos mostram que o ducto coletor cortical sofre mudanças importantes de acordo com a idade. Em ductos isolados perfundidos em três diferentes idades após o nascimento, duas mudanças relevantes foram descritas: (1) a alta permeabilidade vai diminuindo até alcançar os níveis vistos em adultos e (2) aumentam a atividade dos transportes ativos e a resposta a mineralocorticoides. A imaturidade no transporte de Na+ pode ser devida a: (1) polarização incompleta das células principais, (2) diminuição na atividade da Na+/K+ATPase, (3) diminuição no número e/ou atividade dos canais apicais de Na+ e (4) diminuição nos canais de condutância existentes. O canal apical de Na+ (tipo ENaC, sensível à amilorida) é composto de 3 subunidades: α, β e γ. O perfil de expressão do mRNA da subunidade α é similar ao da subunidade α da Na+/K+ATPase. Durante a gestação, existe um aumento gradual de ambos mRNA que alcança uma constante após o nascimento. Assim, parece que as regulações tanto do ENaC como da Na+/K+ATPase possam ter passos comuns. Em um estudo realizado por Delgado et al., foi verificado que crianças nascidas entre a 21a e a 31a semana de gestação só alcançam um estado de balanço positivo de Na+ a partir da idade correspondente à 32a semana de gestação. Coincidentemente, de maneira bastante interessante, nesse mesmo estudo os autores notaram que, entre a 21a e a 36a semana de gestação, ocorre um aumento de cerca de 25% na expressão da unidade α do mRNA do ENaC. Foi estudada também a ontogenia da expressão de outros transportadores de Na+, além do canal ENaC. Por meio detécnicas de imunohistoquímica e hibridização in situ, foi verificado que esses transportadores aparecem cedo no período de desenvolvimento tubular, mas que aumentam em abundância com a maturação. Assim, os transportadores Na+: K+: 2Cl– e Na+: Cl– e o contratransportador Na+/Ca2+ são localizados precocemente nas porções mais distais. Acreditase que, durante expansão volumétrica nos neonatos, pode ocorrer uma incapacidade na excreção da sobrecarga de Na+ devido à atividade inadequada destes transportadores, que funcionariam mais adequadamente durante processos de retração de volume do meio extracelular.
▸ Manejo do potássio Diferentemente do adulto, no qual o balanço de K+ requer que o ganho absoluto de K+ seja zero, no feto e recém nascido o ganho de K+ tem de ser positivo para que o crescimento e desenvolvimento ocorram satisfatoriamente. A relação entre o potássio total do corpo e peso corpóreo é, pelo menos em parte, reflexo do aumento da massa muscular e do K+ intracelular. O K+ é transportado ativamente da mãe para o filho, através da placenta. No feto humano, ao redor da 40a semana de gestação, o K+ plasmático é ligeiramente maior do que o da mãe, mostrando que o balanço de K+ deve ser positivo ao longo do crescimento e desenvolvimento fetal. Com o aumento da idade gestacional, a reabsorção tubular de K+ aumenta em paralelo ao aumento da sua carga filtrada. Estudos experimentais mostram que, mesmo durante carência materna de K+, o concepto não mostra alterações importantes no K+ plasmático. Por outro lado, o feto parece se proteger menos nos processos de hiperpotassemia materna. O túbulo proximal do neonato é capaz de reabsorver 50% do K+ filtrado; porém, a alça de Henle mostra um decréscimo na capacidade de reabsorver K+. Assim, uma carga aumentada de K+ vai chegar às porções distais do néfron. Trabalhos utilizando diferentes métodos de estudo, tais como depuração plasmática, micropunção in vivo e segmentos tubulares isolados perfundidos in vitro, indicam que o néfron distal exerce papel preponderante na regulação da excreção de K+ em crianças, assim como em adultos. Mesmo crianças nascidas com baixo peso são capazes de excretar K+ durante sobrecarga de K+ ou HCO3–. No entanto, se calculada por unidade de peso corpóreo ou por peso renal, a capacidade de excretar K+ é menor no prematuro; porém, esta capacidade se normaliza entre a 3a e a 5a semana de vida. Como
mencionado, é provável que, nestes casos, uma insensibilidade à ação da aldosterona esteja presente, uma vez que níveis plasmáticos de aldosterona são maiores no prétermo e em neonatos quando comparados aos de crianças mais velhas. Estudos em rim de coelhos em desenvolvimento mostram que o número de canais de K+ do tipo ROMK (com baixa condutância e alta probabilidade de abertura) que secretam K+ no ducto coletor cortical está diminuindo; assim como está diminuído o número dos maxicanais para K+, cuja resposta depende do fluxo nas porções distais do néfron. Com a maturação renal, há aumento de ambos os tipos de canais de K+. Há poucos trabalhos científicos referentes à maturação do transporte intestinal de K+. O intestino do neonato é, com certeza, capaz de reabsorver o K+ da dieta; todavia, o seu papel na regulação da excreção de K+ ainda não está esclarecido.
▸ Acidificação urinária A placenta exerce papel fundamental na manutenção do equilíbrio acidobásico do feto. No final da gestação, a mãe mostra um pH sanguíneo ligeiramente básico, que pode ter efeito protetor caso o pH fetal sofra súbito declínio. Se no feto houver acidose metabólica, causada por distúrbios maternos (diabetes descompensado, sepse etc.) ou por problemas de perfusão uteroplacentária que levem à hipoxemia fetal, quantidade anormal de ácido orgânico pode ser originada, levando à queda do bicarbonato fetal. Inicialmente, por causa da difusão de CO2 pela placenta, a porção ácida volátil é eliminada pelo pulmão materno. Entretanto, o lactato e outros ácidos fixos são menos difusíveis pela placenta. Foi demonstrado que a excreção de ácidos cresce com a progressão da gestação, quer por aumento do RFG ou da excreção de amônia e de acidez titulável. Portanto, quanto menor o RFG do feto, mais difícil será a eliminação de sua sobrecarga ácida. Porém, poucos são os estudos realizados em fetos e prematuros humanos com relação à habilidade de excreção de ácidos. No recémnascido, a capacidade de eliminar cargas ácidas só é adequadamente adquirida após o primeiro mês de vida. O limiar de reabsorção de HCO3– no túbulo proximal é diminuído em relação ao do adulto, apesar de a anidrase carbônica estar presente e ativa na vida fetal. No prétermo, o limiar é de 18 mEq/ℓ e na criança a termo é de cerca de 21 mEq/ℓ. O valor de 24 a 26 mEq/ ℓ só é desenvolvido ao final do primeiro ano de vida. É provável que a redução do limiar de reabsorção de HCO3– no túbulo proximal, observada em prétermos e neonatos, seja devida à imaturidade de seus transportadores iônicos. Em adultos, 2/3 da secreção apical de prótons são mediados pelo trocador Na+/H+ e 1/3 pela H+ATPase. A força movente para a troca Na+/H+ é a baixa concentração intracelular de Na+, provocada pela atividade da Na+/K+ATPase da membrana basolateral. No adulto, o efluxo celular de HCO3– pela membrana basolateral ocorre por meio do cotransporte Na+ HCO3–. Portanto, a queda da capacidade de acidificação tubular proximal poderá ser decorrente de alterações desses transportadores. Vários estudos experimentais evidenciam que tanto o trocador Na+/H+ como a H+ATPase sofrem maturação com o passar do tempo; portanto, provavelmente, a capacidade limitada de reabsorção proximal de bicarbonato dos neonatos seja devida à maturação mais tardia desses transportadores. No túbulo distal de adultos, em condições fisiológicas, há reabsorção de 10% a 15% do bicarbonato que escapou da reabsorção proximal; e parte da secreção de íon H+ no epitélio distal é dependente da ação da aldosterona. Já no túbulo distal de prematuros, pode ocorrer uma relativa insensibilidade à ação deste hormônio, o que dificulta a excreção renal de sua carga ácida. Em adição à reabsorção de bicarbonato, o rim deve excretar uma quantidade de ácidos equivalente à quantidade de ácidos provocada pelo metabolismo. O indivíduo em crescimento necessita eliminar prótons liberados durante a formação do osso, que são, em parte, compensados pela reabsorção de radicais alcalinos no trato gastrintestinal (TGI). Devido ao alto ritmo metabólico presente durante o crescimento, calculase que o rim do ser em crescimento deve excretar de 50% a 100% a mais de ácidos, por quilograma de peso, do que o do adulto. Para a adequada excreção renal de ácidos, tampões urinários devem estar presentes em quantidade suficiente para evitar que o pH urinário caia a valores incompatíveis com a integridade dos túbulos renais. A excreção renal de ácidos (resultante da soma da acidez titulável mais a excreção de amônio) é significantemente menor em rins de neonatos; mas, em crianças alimentadas com leite de vaca, a excreção de ácidos aos 7 dias de vida é similar à de adultos, se normalizada por quilo de peso corpóreo. Crianças alimentadas com leite materno exibem teores menores de acidez titulável, o que reflete uma menor quantidade de fosfato na dieta. Crianças submetidas à sobrecarga de ácidos mostram menor capacidade de excretar amônio; provavelmente, isso acontece por imaturidade na cadeia metabólica da glutamina (aminoácido responsável pela produção mitocondrial de amônio; mais detalhes no Capítulo 54, Papel do Rim na Regulação do pH do Líquido Extracelular). Esses fatores contribuem para que prematuros e neonatos lidem mal com sobrecargas ácidas, estando mais sujeitos a desenvolver quadros de acidose metabólica.
▸ Considerações sobre acidose tubular renal Embora na prática clínica a maior parte das acidoses metabólicas seja decorrente de causas não renais, em algumas eventualidades o rim tornase incapaz de excretar cargas ácidas. A acidose tubular renal (ATR) é caracterizada pela incapacidade de excretar cargas ácidas mesmo na presença de função glomerular normal ou perto da normalidade. Nestas condições, ocorre a acidose metabólica hiperclorêmica (com elevação de Cl– no plasma). Estudos funcionais e clínicos possibilitaram a descrição de quatro tipos de ATR, conforme a localização do defeito tubular: clássica, distal ou tipo 1; proximal ou tipo 2; proximal e distal ou tipo 3 e acidose tubular renal hipercalcêmica (com elevação de K+ no plasma) ou tipo 4. Algumas ATR podem ser adquiridas (p. ex., em intoxicações medicamentosas ou por metais) e outras têm origem genética, as chamadas ATR inerentes. Estudos em modelos experimentais e em ATR de causas genéticas possibilitaram o esclarecimento não apenas das bases moleculares destas doenças, mas também dos processos fisiológicos que regem a acidificação urinária.
▸ Capacidade de concentração e diluição urinária O rim do adulto é capaz de produzir urina concentrada de até cerca de 1.300 mOsm. No recémnascido, esta osmolalidade fica entre 400 e 600 mOsm. Aos 6 meses, há um incremento na capacidade de concentração urinária que, próximo aos 18 meses, alcança os níveis vistos no adulto. Em crianças a termo, a capacidade de diluição urinária é próxima à do adulto, mas é limitada predominantemente pelo baixo RFG, que limita a formação de água livre. Vários fatores limitam a capacidade de concentração urinária do recémnascido. No adulto, esta capacidade é dependente do gradiente osmótico encontrado entre as diversas estruturas da medula renal, o qual é devido, primordialmente, à ureia e ao cloreto de sódio. No neonato, a concentração de ureia é relativamente baixa, em parte, devido à sua pouca ingestão de proteína. Além disso, no neonato, o transporte de NaCl no ramo ascendente espesso da alça de Henle é menor, e isso também limita sua capacidade de concentrar a urina. O recémnascido responde a mudanças do volume e da osmolalidade plasmática com adequada secreção de hormônio antidiurético (ADH). Por outro lado, a permeabilidade osmótica do ducto coletor, dependente da ação do ADH, parece ser menor em neonatos. É sabido que as prostaglandinas têm um papel depressor da resposta do ducto coletor ao ADH; ou seja, elas inibem a adenilciclase, impossibilitando que seja originado cAMP a partir do ATP, etapa fundamental para a ação antidiurética do ADH (para mais informações, consulte Capítulo 53, Papel do Rim na Regulação do Volume e da Tonicidade do Líquido Extracelular). Em ductos coletores de neonatos, expostos ao ADH, a geração do cAMP é menor do que a provocada em ductos de adultos. Assim, é provável que a deficiência na ação antidiurética do ADH encontrada em neonatos seja devida à presença de altos níveis da expressão para receptores de prostaglandinas verificada nesses indivíduos.
FISIOLOGIA GASTRINTESTINAL
▸ Ontogenia do sistema digestório do neonato O sistema digestório no neonato e nos primeiros anos de vida caracterizase por peculiaridades anatômicas, fisiológicas e funcionais que o distinguem do sistema digestório do adulto. O suprimento de aporte nutricional para o neonato, principalmente para os prematuros, representa um desafio a ser enfrentado. Na fase de gestação, o sistema digestório está envolvido, principalmente, com a remoção de líquido amniótico; enquanto a parte digestiva e absortiva é realizada pela placenta. Com o nascimento, o trato digestivo da criança, ainda que imaturo, tem de assumir a responsabilidade de suprir suas necessidades hidreletrolíticas e energéticas. O sistema digestório desenvolvese, anatomicamente, até o final da 20a semana de gestação. No embrião, esse sistema é um dos primeiros a exibir polaridade, ou seja, o transporte de substâncias do feto ou para o feto ocorre de maneira a garantir seu crescimento e desenvolvimento. Os enterócitos se diferenciam, há a delimitação de membrana da borda em escova na porção luminal e formação da membrana basolateral. A seguir, formamse as criptas intestinais e, no cólon do feto, aparecem algumas estruturas similares a vilos, com células capazes de transportar certas moléculas. Todos os 4 tipos de células presentes na mucosa intestinal – enterócitos, células de Paneth, células caliciformes e células neuroendócrinas – se originam de uma única linhagem celular, pluripotente.
O plexo nervoso entérico consiste em neurônios que se situam nas camadas do trato digestivo, modulando sua motilidade, microcirculação, secreção e respostas imunológicas. O plexo nervoso inicia sua implantação no sistema digestório ao redor da 13a semana de gestação e a motilidade intestinal está desenvolvida no 3o trimestre da gestação. Algumas alterações neste processo podem acarretar doenças como a doença de Hirschsprung. Nesta condição, o intestino deixa de exibir motilidade normal, podendo aparecer quadros de obstipação (constipação intestinal renitente) intestinal, com gravidade variável. Em algumas crianças, a própria eliminação do mecônio (fezes do recémnascido) pode estar comprometida. Em outros casos, graus de obstipação intestinal podem se manifestar mais tarde, durante ou após a lactação ou mesmo na adolescência. O desenvolvimento funcional do sistema digestório iniciase durante a vida fetal, com o aparecimento de enzimas digestivas e hepáticas e com o desenvolvimento da superfície absortiva do intestino. A maioria dos processos necessários para absorção e digestão está pronta ao redor da 33a semana de gestação. O funcionamento adequado do TGI do feto é importante para a homeostase do líquido amniótico; este, por sua vez, contém nutrientes, hormônios e fatores de crescimento, que estimulam a secreção de peptídios regulatórios que controlam a maturação do TGI. A maior parte dos polipeptídios – incluindo gastrina, motilina e somatostatina – está presente no final do 1o trimestre de gestação; esses polipeptídios agem como indutores do crescimento e desenvolvimento do TGI. O transporte intestinal de aminoácidos aparece ao redor da 14a semana, o de glicose cerca da 18a semana e o dos ácidos graxos próximo da 24a semana. Os vilos intestinais começam a se desenvolver ao redor da 9a semana, estão presentes no intestino delgado na 14a semana e têm criptas e vilos bem desenvolvidos na 19a semana. Ao nascimento, os vilos e microvilos aumentaram a superfície absortiva intestinal de até 100.000 vezes em relação à exibida no 1o trimestre da gestação. A motilidade e a peristalse desenvolvemse gradualmente, e amadurecem no 3o trimestre de gestação. O mecônio é encontrado ao redor da 11a semana de gestação e se move para o cólon ao redor da 16a semana. A circulação intestinal dos recémnascidos difere da dos adultos. No período imediatamente após o nascimento, a resistência vascular basal intestinal é baixa, possivelmente devido à produção de óxido nítrico. Esta queda da resistência pode proteger as alças intestinais em períodos de hipoxia ou hipotensão. Crianças nascidas prétermo podem não exibir esta vasodilatação – a qual é a resposta necessária à hipoperfusão das alças intestinais – podendo apresentar, então, isquemia de alças intestinais até atingir necrose. Os principais eventos do desenvolvimento do TGI estão mostrados no Quadro 79.2.
▸ Características gerais do intestino A mucosa intestinal permanece relativamente imatura nos primeiros 4 a 6 meses, e exibe aumento na permeabilidade a macromoléculas. Durante este período, antígenos e outras macromoléculas podem ser transportados pelo epitélio intestinal, deixando a criança vulnerável a processos alérgicos ou infecciosos. Com a maturação, o transporte de macromoléculas diminui. Ao nascimento, o intestino é estéril; mas é rapidamente colonizado, e a colonização depende do tipo de alimentação, se por leite materno ou leites industrializados. A colonização ocorre em 2 estágios. No primeiro estágio, do nascimento até o final da 1a semana, a criança entra em contato com microrganismos durante e imediatamente após o parto. No segundo estágio, o tipo de dieta influencia a colonização. A flora normal do TGI provê um importante mecanismo de proteção contra infecções intestinais, por ocupar possíveis locais de colonização indesejável. Os oligossacarídios do leite humano se ligam a receptores na mucosa e, assim, impedem a colonização inadequada. Em geral, o intestino delgado é estéril e pouco colonizado, possivelmente graças aos seguintes fatores: pH gástrico, propriedades bactericidas da bile, imunoglobulinas secretadas e sua própria motilidade. A colonização por coliformes desta região pode ocorrer em crianças prematuras ou com alimentação enteral ou transpilórica. Em crianças prematuras, a queda da motilidade intestinal pode ser um dos fatores que facilitam esta colonização (Figura 79.10).
▸ Maturação anatômicofuncional do trato gastrintestinal A maturação anatômicofuncional do TGI pode ser estudada tendo em vista quatro assuntos: o reflexo de sucção e deglutição, a motilidade do esôfago, o esvaziamento gástrico e a motilidade intestinal.
▸ Sucção e deglutição
Entre a 13a e a 15a semana, os fetos respondem à estimulação oral com movimentos da língua e reflexo de sucção. A deglutição iniciase ao redor da 12a semana do feto; na 16a semana, é de 2 a 6 mℓ de líquido amniótico por dia e no feto a termo ela aumenta para 200 a 600 mℓ/dia. Ao redor da 34a semana, o reflexo e a frequência de deglutição estão perto do normal. O reflexo de sucção está mais relacionado com a idade gestacional do que com a idade pósnatal. Próximo da 37a semana, a sucção está já desenvolvida. Estes dois processos, sucção e deglutição, podem não estar adequadamente coordenados em crianças prematuras; interessante notar que, em crianças que são amamentadas, esta coordenação parece ser mais precoce do que nas crianças alimentadas com mamadeiras. Após as primeiras 24 a 48 h de vida extrauterina, é estabelecido o padrão de frequência de sucção e deglutição, que é mantido ao longo dos primeiros meses de vida.
Quadro 79.2 ■ Principais eventos do desenvolvimento do trato gastrintestinal. Desenvolvimento
Semanas de gestação
anatômico
Desenvolvimento
Semanas de gestação
funcional
Esôfago
Deglutição
10 a 14
Epitélio escamoso
28
Reflexo sucção
32 a 35
deglutição Estômago
Glândulas gástricas piloro 14
Estômago
Motilidade e secreção
20
e fundo gástrico Pâncreas
Pâncreas
Diferenciação de tecido
14
Grânulos de zimogênio
20
Fígado
Fígado
Identificação da
11
Metabolismo biliar
11
Secreção biliar
22
exócrino e endócrino
lobulação hepática Intestino delgado
Intestino delgado
Criptas e vilos
14
Transporte de
14
aminoácidos Transporte de glicose Absorção de ácidos graxos
18 24
Figura 79.10 ■ Possíveis fatores que predispõem crianças prematuras à enterocolite necrosante. (Adaptada de Neu e Weiss, 1999.)
O reflexo de sucção e deglutição deve estar adequadamente coordenado com a respiração. A partir da 38a semana de gestação, as crianças facilmente coordenam estes processos. A posição da laringe no recémnascido, situada de maneira mais alta em relação à faringe, facilita o fechamento da epiglote e o acesso de líquidos para o esôfago. Até os 3 meses de idade, os sólidos colocados na boca da criança serão forçados pela língua contra o palato e, então, deglutidos ou colocados para fora da boca. Após esta idade, as crianças conseguem posicionar pequenas porções sólidas para a parte posterior da cavidade oral e, assim, ocorre a deglutição normal.
▸ Motilidade esofágica, gástrica e intestinal Nas primeiras 12 h após o nascimento, a motilidade esofágica está diminuída. O tamanho da parte inferior do esfíncter esofágico está reduzido e seu posicionamento, acima do diafragma, pode facilitar o refluxo. O refluxo também é facilitado em lactentes, devido ao ângulo entre esôfago e estômago ser menos agudo. Em algumas crianças, o tônus do esfíncter esofágico permanece diminuído até os 12 meses de vida, o que explica o fato de algumas crianças apresentarem episódios de regurgitação até esta idade. A motilidade gástrica e o tempo de esvaziamento gástrico estão diminuídos no recémnascido, principalmente nas primeiras 72 h. Esta ocorrência pode estar baseada em uma falta de resposta a hormônios e fatores locais. Nos recém nascidos, a gastrina elevada dificulta o esvaziamento gástrico. Outros fatores também podem influenciar o esvaziamento gástrico, tais como: presença de muco, líquido amniótico, tônus do esfíncter pilórico e tipo de alimento. Os carboidratos aceleram o esvaziamento, enquanto as gorduras o atrasam. O leite humano é esvaziado duas vezes mais rápido do que as fórmulas lácteas comercialmente disponíveis. A capacidade gástrica de uma criança é cerca de 6 mℓ/kg de peso corpóreo;
em prétermos, grandes volumes residuais podem causar distensão gástrica e interferência na capacidade de ingestão alimentar. Em adultos, a ingestão de leite desencadeia aumento da motilidade intestinal. Entretanto, em prétermos, a ingestão de leite pode causar queda na motilidade ou pode não ter qualquer efeito sobre ela. Esta resposta inadequada parece ser devida à não maturidade à resposta vagal. Em prétermos, a alteração na motilidade pode levar a diminuição da propulsão de alimento, maior tempo de esvaziamento gástrico e diminuição no trânsito intestinal, o que pode dificultar a capacidade de ingestão e absorção de alimento.
▸ Digestão e absorção de carboidratos A glicose materna é a principal fonte energética para o feto. As dissacaridases estão presentes a partir da 9a semana de gestação, aumentando bastante após a 20a semana. As amilases, salivar e pancreática, são detectadas no líquido amniótico entre a 16a e a 18a semana de gestação. Ao nascimento, a amilase salivar é cerca de 1/3 da dos adultos; seu aumento – que acontece, principalmente, a partir do 40o mês de vida infantil – pode ser devido à presença de outros tipos de alimentos na dieta da criança. A amilase pancreática está diminuída nos recémnascidos, e seus níveis adequados são alcançados entre o 4o e o 6o mês de vida. Os recémnascidos mostram níveis adequados das alfaglucosidases sucrase, maltase e isomaltase. Algumas semanas antes do nascimento, a sucrase e a maltase já exibem níveis altos. A enzima glicoamilase – presente na borda em escova da célula intestinal – digere alguns compostos presentes em fórmulas artificiais; ela está distribuída ao longo do intestino delgado e facilita a digestão e absorção de carboidratos. O mais importante carboidrato presente no leite humano e no de vaca é a lactose. Entre a 8a e a 9a semana de gestação, a lactase – enzima fundamental na clivagem da lactose em glicose e galactose – é detectada no início do intestino delgado; posteriormente, esta enzima é encontrada ao longo de todo o delgado. A atividade da lactase aumenta rapidamente no final da gestação e, no recémnascido, sua atividade é de 2 a 4 vezes maior do que em crianças adultas. Em crianças prétermo, a quantidade de lactase é diminuída, mas aumenta com a exposição à lactose. A lactose que não é absorvida pelo intestino delgado vai para o intestino grosso, onde ocorre fermentação. A fermentação bacteriana dos carboidratos produz lactato, acetato e propionato, que são fonte calórica e aumentam a absorção de líquido e de eletrólitos. O tratamento com antibióticos pode alterar a flora intestinal, impedindo a absorção de lactose. Após o desmame, a lactase diminui na infância e adolescência, principalmente, em regiões em que o consumo de leite é menor. Por vezes, esta queda na lactase ocasiona a síndrome de intolerância à lactose. Outra dissacaridase que aparece ao redor da 9a semana de gestação é a sucraseisomaltase; a sucrase hidrolisa a sacarose em glicose e frutose. Próximo ao nascimento, esta enzima mostra um aumento significativo. O transporte de glicose pelo transportador situado na borda em escova do intestino, o SGL1, aparece juntamente com a diferenciação das células colunares do epitélio intestinal. Um sistema alternativo de transportador de glicose e frutose em humanos, o GLUT2, tem menor afinidade e alta capacidade de transporte; ao nascimento, esse transportador é altamente expresso na membrana basolateral. O transportador GLUT1 também aparece precocemente na gestação, mas sua expressão diminui com a progressão da gestação. A frutose é pouco reabsorvida no recémnascido e na infância. Se houver sobrecarga desse carboidrato na dieta, alguma frutose escapa da reabsorção e aparece no intestino grosso, podendo causar diarreia osmótica.
▸ Digestão e absorção de proteínas O pH gástrico do recémnascido é neutro ou levemente alcalino. Os fatores que contribuem para o aumento do pH gástrico durante o desenvolvimento fetal são a diminuição da secreção ácida e do ritmo de esvaziamento gástrico e a presença de líquido amniótico. As mudanças do pH gástrico reduzem a atividade da pepsina e a hidrólise péptica. A secreção ácida aumenta nas primeiras 24 h após o nascimento e dobra em 2 meses. A produção de pepsinogênio é baixa nos primeiros meses de vida. Embora os níveis de gastrina sejam elevados, os receptores para este hormônio podem ser não sensíveis ou em número diminuído. Nos recémnascidos, os níveis de atividade da tripsina e de outros hormônios proteolíticos pancreáticos podem estar diminuídos; também a quimiotripsina, a carboxipeptidase B e a enteroquinase apresentam menor atividade. Como a enteroquinase ativa a tripsina, que, por sua vez, ativa outras enzimas proteolíticas, o nível de enteroquinase é o fator limitante para a digestão proteica. Em recémnascidos a termo, estas deficiências enzimáticas parecem não ter grande
repercussão sobre a absorção de proteínas; mas, em prétermos, a ingestão de grandes quantidades de proteínas pode ser problemática, principalmente das presentes nas fórmulas comercialmente disponíveis. No recémnascido, são bem desenvolvidas as peptidases da borda intestinal e as citosólicas, das quais depende a absorção de aminoácidos. O transporte de aminoácidos aumenta consideravelmente após o nascimento. Todos os sistemas de transporte de aminoácidos – neutros, ácidos, básicos e imino – são funcionais entre a 17a e a 20a semana de gestação; mas, o transporte de lisina e fenilalanina aparece mais tarde do que o de alanina, leucina, taurina e valina.
▸ Digestão e absorção de gorduras No recémnascido, principalmente se prematuro, a digestão de gorduras é diminuída, pois depende da lipase pancreática e dos sais biliares. Em humanos, a atividade da lipase pancreática é detectada ao redor da 32a semana de gestação. Ao nascimento, ela permanece baixa e aumenta na 10a semana após o parto. O baixo nível da lipase pancreática e dos ácidos biliares é compensado pela lipase presente no leite humano (lipase mamária ou lipase digestora de leite) e pelas lipases lingual e gástrica. Estas duas últimas são detectadas na 26a semana de gestação; ao nascimento têm alta atividade, hidrolisando entre 50% e 60% da gordura da dieta. Após o nascimento, a pinocitose dos lipídios pelas células intestinais é importante. Uma vez tomados pelos enterócitos, os lipídios são transformados em triglicerídios, fosfolipídios e ésteres de colesterol. As crianças têm maior capacidade de reabsorver triglicerídios de cadeias curta e média, que não dependem da formação de micelas que, por sua vez, necessitam da presença de ácidos biliares no lúmen intestinal. Entre a 14a e a 16a semana de gestação, a bile pode ser identificada no fígado e vesícula biliar; mas, mesmo no fim da gestação, o pool de ácidos biliares permanece baixo. A conjugação hepática de ácidos biliares é dependente de taurina, em vez de glicina, como no adulto. A queda na reserva de ácidos biliares é devida a menor síntese, recirculação e conservação de sais biliares pelo shunt ênterohepático, como resultado da imaturidade do fígado e dos transportes intestinais.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O METABOLISMO ENERGÉTICO
▸ Metabolismo fetal Antes do nascimento, o feto é inteiramente dependente da transferência contínua de nutrientes maternos pela placenta; e a produção de glicose pelo feto parece ser insignificante. A concentração de glicose fetal é muito próxima da materna; e o pool de glicose fetal encontrase em equilíbrio com o pool de glicose materna. Embora as enzimas necessárias para a gliconeogênese estejam bem desenvolvidas ao redor da 8a semana de gestação, ela não ocorre em uma gestação normal. Cerca de 60% da glicose utilizada pela placenta são convertidos em lactato; chega em proporção considerável para o feto, e é utilizada como fonte para o metabolismo energético e não energético (p. ex., síntese de glicogênio), sendo a principal fonte energética para o feto, sob condições fisiológicas. No terceiro trimestre de gestação, a glicose é armazenada como tecido adiposo, em preparação para o metabolismo após o nascimento. As enzimas necessárias para a formação de glicogênio estão desenvolvidas ao final do 20o mês de vida intrauterina e a deposição de glicogênio começa cedo durante a gravidez. Aminoácidos são ativamente transportados para o feto; a placenta humana também é permeável a triglicerídios, ácidos graxos, glicerol e cetoácidos.
▸ Mudanças metabólicas após o nascimento Nas primeiras horas após o nascimento, a produção de glicose endógena é em torno de 4 a 5 mg/kg/min. Existe uma relação linear entre produção de glicose e peso do cérebro, uma vez que a massa cerebral corresponde entre 10% e 12% do peso total do corpo. A glicose entra no tecido cerebral por difusão facilitada, mediada pelos transportadores GLUT1 e GLUT3. No entanto, no neonato humano em jejum, a oxidação da glicose pode suprir apenas 70% da demanda energética do cérebro; as fontes suplementares são o lactato e os corpos cetônicos. É interessante notar que o cérebro, nestas circunstâncias, é capaz de utilizar corpos cetônicos em um ritmo 4 a 40 vezes maior do que aquele exibido por crianças mais velhas ou adultos. Imediatamente após o nascimento, o lactato também é uma importante fonte energética. Estudos do perfil glicêmico em neonatos mostram que, após o parto, os níveis de glicose caem rapidamente, chegando ao mínimo entre 30 e 90 min após o nascimento. No entanto, por volta da 12a à 24a hora de vida, mesmo na ausência de
alimentação, a glicose começa a subir e estabiliza entre 2,4 e 5 mmol/ ℓ . Em crianças amamentadas adequadamente, os níveis de glicose permanecem estáveis, mesmo se um prazo maior se estabelecer entre as mamadas. Estes níveis normais de glicose são em pequena parte devidos à glicogenólise, mas a gliconeogênese assume um importante papel. No neonato, a capacidade gliconeogênica é limitada devido à baixa atividade da fosfoenolpiruvato carboxiquinase, mas esta atividade aumenta, influenciada pela queda na relação insulina/glucagon. Logo após o nascimento, a gliconeogênese aumenta graças ao uso do lactato, alanina e glicerol como fontes de glicose. Durante as primeiras 8 h de vida, os corpos cetônicos são baixos, apesar de haver níveis plasmáticos adequados de ácidos graxos livres, seus precursores. No entanto, após as primeiras 12 h de vida, crianças saudáveis já exibem níveis elevados de corpos cetônicos e, após 72 h, os níveis de corpos cetônicos são similares aos de crianças mais velhas. Esta fonte pode ser responsável por cerca de 25% das necessidades energéticas basais, em recémnascidos, sendo que uma vigorosa cetogênese faz parte das adaptações metabólicas da vida extrauterina. A insulina plasmática permanece baixa por alguns dias após o nascimento; porém, em comparação com a de crianças mais velhas, ela é relativamente alta se correlacionada com os níveis de glicemia. A baixa na glicemia não é capaz de ativar uma resposta supressora de insulina similar à encontrada em crianças mais velhas ou em adultos. Em neonatos de 1 a 3 dias de idade, os níveis de glucagon estão elevados, permanecendo assim durante a primeira semana de vida.
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Introdução
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Alterações na estrutura corporal Alterações no sistema imunológico
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Alterações no sistema endócrino Alterações no sistema nervoso central Alterações no sistema cardiovascular
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Alterações no sistema respiratório Alterações no sistema renal
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Alterações no sistema digestório Sistema hematopoético Bibliografia
INTRODUÇÃO O envelhecimento humano é caracterizado por declínio lento e insidioso na estrutura e na função orgânica que se desenvolve após a maturação sexual e o fenótipo adulto jovem. O processo fisiológico de envelhecimento, denominado senescência, pode ser entendido como declínio ou mesmo deterioração das propriedades funcionais em níveis celulares, teciduais e orgânicos. Essas alterações funcionais produzem diminuição na capacidade do organismo em manter a homeostase e a adaptação a situações de estresse, tanto interno como externo, aumentando assim a sua vulnerabilidade às doenças e à morte. No envelhecimento, há um desequilíbrio orgânico que dificulta a manutenção de estruturas moleculares específicas e de suas vias metabólicas, o que dificulta a manutenção das condições homeostáticas e homeodinâmicas. Em resumo, a senescência é caracterizada pela redução das reservas funcionais orgânicas e, em situações de sobrecarga sistêmica, os mecanismos fisiológicos de compensação podem não ser tão eficientes.
Senescência Redução das reservas funcionais em conjunto com alterações do mecanismo de controle da atividade das células, tecidos e sistemas, que ocorrem com o envelhecimento normal. Há uma variabilidade individual quanto ao início, ritmo, velocidade e extensão da progressão do processo de envelhecimento. Diferenças nessas manifestações dependem das divergências na capacidade funcional dos indivíduos. Essa capacidade funcional é uma medida direta da habilidade das células, dos tecidos e dos sistemas orgânicos em operar apropriada e otimamente, sendo influenciada por genes e pelo ambiente. As funções celulares, teciduais e orgânicas adequadas refletem em bom funcionamento dos mecanismos homeodinâmicos e de suas vias de manutenção. Esses
mecanismos de manutenção incluem: a reparação de danos ao ácido desoxirribonucleico (DNA), a detecção e depuração de proteínas defeituosas e lipídios, a depuração de células e organelas defeituosas, bem como a defesa contra patógenos e aos danos por eles causados. Muitas das teorias fisiológicas sobre o envelhecimento se baseiam, conceitualmente, nesses mecanismos de manutenção homeodinâmicos, pois estes interferem nas respostas celulares induzindo: a apoptose, a senescência, o reparo e a resposta sistêmica da ativação imune e da inflamação. Por exemplo, quando o dano ao DNA é muito grande para ser reparado, a célula entra em apoptose. Ou ainda, as células podem responder aos danos causados por radicais livres ao DNA induzindo à senescência ou, então, iniciando o processo de apoptose. O dano oxidativo e a apoptose celular correlacionamse negativamente com o mecanismo autofágico de reparo e, quando há acúmulo de uma variedade de alterações bioquímicas não reparadas, a função de ácidos nucleicos, de proteínas e de membranas lipídicas tornase prejudicada. Sabese também que as proteínas aberrantemente modificadas, devido à glicação não enzimática ou a radicais livres, podem induzir à inflamação; e esta, associada à resposta imune, desencadeia em grande parte o processo de apoptose celular. Muitas dessas proteínas podem exercer uma ação regulatória na atividade da enzima telomerase e, assim, influenciar a sobrevivência e a senescência celular, uma vez que a destruição do telômero é o principal determinante do envelhecimento sistêmico. As alterações epigenéticas, tais como a metilação do DNA e a acetilação de histonas, também participam dos mecanismos indutores da senescência. A extensão na qual as células diferenciadas são afetadas pelo envelhecimento determina a função fisiológica; enquanto a extensão na qual as células pluripotenciais (stem cells) são afetadas determina a capacidade de substituir as células danificadas e reparar os tecidos. Um fenômeno bem documentado do envelhecimento é a amplamente distribuída deterioração da eficiência do sinal de transdução. Exemplos disso incluem: (1) a redução na resposta de vasodilatação do endotélio ao estrógeno, possivelmente relacionada com a progressiva metilação do gene receptor de estrógeno (uma alteração epigenética) e (2) a redução da responsividade das células de Leydig à estimulação gonadocoriônica, provavelmente devido a alteração bioquímica na membrana celular. Assim, no envelhecimento biológico há uma progressiva e, de certo modo, previsível perda da coordenação celular e da função tecidual, de tal maneira que o organismo se torna gradualmente menos capaz de se reproduzir e de sobreviver. A velocidade desse processo é espécieespecífica, e as alterações são manifestadas por meio de múltiplos órgãos e sistemas. A deterioração da função é heterogênea entre os sistemas e os indivíduos; inicialmente, é detectável como uma perda da capacidade e da habilidade de restaurar a homeostase sob condições de estresse e, posteriormente, é detectável pela alteração de função em repouso.
ALTERAÇÕES NA ESTRUTURA CORPORAL No transcorrer do envelhecimento, ocorrem significativas alterações na composição corpórea do indivíduo, como, por exemplo, redução no volume de água do organismo, principalmente aquele instalado no compartimento intracelular. Essa redução de água é observada ao longo das diversas fases do desenvolvimento humano (Figura 80.1). Essa alteração no volume hídrico deve ser considerada ao se avaliarem parâmetros clínicos de um idoso, tanto com finalidade diagnóstica como terapêutica, para evitar que procedimentos indevidos resultem em iatrogenia (ou efeitos deletérios provocados pelo tratamento) a essas pessoas. Com o envelhecimento, ocorre também uma alteração na massa magra do indivíduo, com importante perda de musculatura estriada esquelética. Estimase uma perda de 10% dessa massa muscular entre os 30 e os 50 anos e de cerca de 1% ao ano a partir dessa idade, o que ocasiona uma redução da taxa metabólica basal de aproximadamente 4% ao ano, nessa fase da vida. Há redução no número e volume das fibras musculares do tipo II, envolvidas no processo de contração muscular rápida e, também, redução no número de neurônios alfa motores espinais, principal razão para a perda de fibras musculares. Essas alterações acarretam um prejuízo funcional aos idosos, principalmente pelas perdas da massa e da força muscular, essenciais para a realização de suas atividades no dia a dia. Vários medicamentos utilizados pelos idosos, para tratamento de suas possíveis doenças, também atuam no tecido muscular e devem ser administrados com cautela. A musculatura esquelética é o tecido corporal que contém mais de 50% das proteínas orgânicas. Adicionalmente, o tecido muscular está entre os principais alvos da ação de insulina, hormônio que promove ativamente o anabolismo proteico, o qual ocorre na presença de concentrações normais ou elevadas de aminoácidos sistêmicos.
Figura 80.1 ■ Porcentagem de água corporal no transcorrer da vida do indivíduo.
A sarcopenia é definida como redução na massa magra e na força muscular, sendo considerada uma marca do processo de envelhecimento. Vários mecanismos podem ser implicados no seu aparecimento: perda dos neurônios alfa motores na medula, deficiência nas secreções de hormônio do crescimento (GH) e de fator de crescimento insulinasímile (IGFI), deficiência na produção de andrógenos e de estrógenos, inadequada ingestão proteica, desregulação na produção de citocinas catabólicas e reduzida atividade física (Figura 80.2). Geralmente, é aceito que as alterações da composição corporal relacionadas com o envelhecimento dependem dos baixos níveis de hormônios anabólicos, de alterações neuromusculares e do declínio do turnover na proteína muscular. Essa alteração na quantidade e na qualidade de proteína contrátil contribui para a debilidade física e perda de independência funcional. Portanto, a redução na massa muscular e a prolongada inatividade física nos idosos pode diminuir a sensibilidade à insulina e, consequentemente, impedir a utilização adequada de glicose, seu armazenamento e seu uso em tecidos periféricos, principalmente no músculo. Outro tecido que sofre alteração com a idade é o tecido gorduroso, que tende a aumentar percentualmente no organismo ao longo dos anos, principalmente após os 65 anos de idade; funcionando como um importante reservatório para a distribuição de drogas lipofílicas que nele ficam acumuladas, representa uma modificação de significância clínica para o idoso. O acúmulo desproporcional desse tecido tende a ocorrer nas regiões abdominal, visceral e intramuscular (Figura 80.3).
Características da sarcopenia ↓ Massa muscular esquelética ↓ VO2 máx, força e tolerância ao exercício ↓ Termorregulação ↓ Gasto energético ↑ Resistência insulínica VO2 máx = máxima concentração de oxigênio no sangue venoso
Figura 80.2 ■ Fatores responsáveis pelo aparecimento da sarcopenia. Descrição no texto.
ALTERAÇÕES NO SISTEMA IMUNOLÓGICO A maioria dos mecanismos imunológicos desenvolve adaptações durante o processo de envelhecimento, havendo redução em algumas funções do sistema imune adaptativo e, por outro lado, um aumento em funções do sistema imune inato. O sistema imune inato é a primeira linha de defesa orgânica contra patógenos; consiste em mecanismos de defesa celulares e bioquímicos que respondem rapidamente a infecções, funcionando de maneira semelhante nas diferentes situações infecciosas. Seus principais componentes são: as barreiras físicas e químicas, as células fagocíticas (neutrófilos e macrófagos), as células natural killer (NK), as proteínas sanguíneas que incluem os componentes do sistema complemento, além de outros mediadores inflamatórios tais como as citocinas, que regulam e coordenam diversas atividades celulares da imunidade inata. Durante o envelhecimento, ocorre um desequilíbrio na produção e na liberação de citocinas. Com isto, há um estado próinflamatório que contribui para: desorganização das respostas imunológicas, maior predisposição a doenças infecciosas e aparecimento ou agravamento de doenças crônicas, tão prevalentes nos idosos. A imunidade adaptativa, por sua vez, é estimulada pela exposição a agentes infecciosos, que aumenta sua magnitude e sua capacidade defensiva a cada exposição sucessiva a determinado patógeno. A característica que a define é sua especificidade para moléculas distintas e também sua capacidade em responder mais vigorosamente a repetidas exposições ao mesmo patógeno. Seus principais componentes são os linfócitos que empregam diferentes estratégias de defesa, como a produção de imunoglobulinas ou anticorpos.
Mecanismos envolvidos na imunidade inata ↓ Quimiotaxia de polimorfonucleares ↓ Capacidade fagocitária de polimorfonucleares ↓ Lise celular: mediada pelo complemento e pelas células natural killer ↓ Citocinas: IL2 e também sua responsividade, IL10 ↑ Citocinas próinflamatórias: IL1b, IL3, IL6, IL8, IL15, TNFα
Figura 80.3 ■ Variação da composição corporal de acordo com idade e sexo.
Mecanismos envolvidos na imunidade adaptativa ↑ IgA e IgG, anticorpos monoclonais e ↓ IgM ↓ Respostas a antígenos específicos ↓ Afinidade do anticorpo específico e ↑ produção de anticorpo não específico Imunizações primárias: menor titulação anticórpica Respostas secundárias mais efetivas e curtas
Um importante marcador da desorganização que se desenvolve no sistema imunológico durante o envelhecimento é a desregulação entre os tipos de resposta imune inata e adaptativa.
Exemplo de desorganizacao que se desenvolve no sistema imunologico durante o envelhecimento: desregulacao entre os tipos de resposta imune inata e adaptativa Imunossenescencia Desregulacao das respostas Th1 e Th2 ↑ Th2: producao de anticorpos (inclusive autoanticorpos) ↓ Th1: ativacao de celulas citotoxicas, NK, macrofagos ↑ Citocinas proinflamatorias: ↑ resposta Th2 ↓ IL2, interferonag: ↓ resposta Th1 A imunidade primaria esta alterada no idoso O principal marcador da imunossenescência é a alteração nas populações de células T, tipos celulares fundamentais para a resposta imune e cujo repertório se reduz progressivamente. Essa redução na diversidade das células T diminui as respostas imunes perante antígenos novos, com os quais o indivíduo ainda não entrou em contato. A imunossenescência também é devida à atrofia do timo durante o envelhecimento pois, com sua involução, ocorre redução na diferenciação das células T e B, além de queda na eficiência e regulação das respostas imunes. Como resultado dessas alterações, são observados: redução na proliferação de células T, acúmulo de células T de memória (ou células T clones) e exaustão de células T naive. As células T de memória são geralmente menos competentes, respondem de maneira mais lenta e requerem um estímulo mais intenso para reagir com uma resposta inflamatória, tornando os mecanismos de defesa menos eficientes.
Alteração de alguns parâmetros imunológicos responsáveis pela imunossenescência Sangue periférico: ↓ 10% a 15% de linfócitos circulantes ↓ Capacidade de proliferação de linfócitos T ↑ Linfócitos T imaturos: CD2+ e CD3 ↑ Linfócitos T CD45 RO: ↑ memória imunológica ↓ Células CD3+: ↑ células natural killer ↑ Linfócitos T citotóxicos (CD8+) e ↓ linfócitos simples (CD45 RA)
ALTERAÇÕES NO SISTEMA ENDÓCRINO Considerando a função do eixo hipotálamohipófisesuprarrenal, durante a senescência ocorrem alterações, de tempo e magnitude, no ritmo circadiano do hormônio de crescimento (GH), da corticotropina (ACTH) e da tireotropina (TSH). Embora muitas dessas alterações sejam discretas, particularmente as que envolvem o GH e o ACTH podem apresentar relevância clínica.
▸ Hormônio do crescimento (GH) A secreção e as concentrações séricas de GH diminuem com a idade, tanto no estado basal como em resposta aos estímulos; e, em paralelo, há redução das concentrações séricas do fator de crescimento induzido pelo GH, insulinlike growth fator 1 (IGFI), fenômeno conhecido como somatopausa. No envelhecimento, a diminuição na secreção de GH está associada à redução na secreção do hormônio de liberação do GH hipotalâmico (GHRH) e à diminuição na responsividade somatotrófica ao GHRH. Acreditase que a redução da atividade física, da massa muscular, da função imune e da concentração de estrógenos e andrógenos, além do aumento da adiposidade, observados em idosos, contribuem para a diminuição da secreção de GH nesses indivíduos. Normalmente, a secreção de GH ocorre, principalmente, durante o sono em suas fases de ondas lentas. Portanto, a presença de distúrbios do sono, tão comum em idosos, também pode afetar negativamente esse processo. Os idosos mantêm um ritmo diurno de secreção de GH com amplificação de picos noturnos, mas com mais baixas amplitudes se
comparados a adultos jovens. A restauração farmacológica dos estágios III e IV do sono (ondas lentas) aumenta os episódios de pulso do GH.
▸ Hormônio antidiurético (ADH) Nos idosos, a responsividade renal ao ADH encontrase reduzida, tornandoos mais vulneráveis à privação de água. A secreção de ADH frente à elevação da osmolalidade plasmática (mediada por osmorreceptores) pode ou não estar aumentada em idosos, enquanto a resposta à depleção volumétrica (mediada por barorreceptores) está aumentada. Paralelamente, a diminuição da sensação de sede em resposta à estimulação osmótica, associada à menor responsividade renal ao ADH, possibilita que os indivíduos idosos possam se desidratar com mais facilidade, mesmo quando a secreção de ADH estiver aumentada. A hiponatremia é uma condição clínica frequente em idosos, particularmente do sexo feminino, provavelmente, decorrente: (1) da hipersecreção de ADH que, consequentemente, acarreta retenção hídrica (levando à síndrome de secreção inapropriada de hormônio antidiurético) e (2) da disfunção tubular renal.
▸ Melatonina A secreção de melatonina pela glândula pineal diminui durante o processo de envelhecimento, sendo menor nos indivíduos idosos quando comparados aos indivíduos adultos jovens; particularmente, quando se avalia a secreção que ocorre durante o sono noturno. Essa diminuição pode estar associada à pior qualidade de sono nos idosos, fato que é suportado pela melhora do sono observada naqueles idosos que ingerem pequena dose diária de melatonina (0,3 a 2 mg), algumas horas antes de dormir.
▸ Função adrenocortical A glândula suprarrenal envelhecida não apresenta significantes aspectos de atrofia, embora se observe aumento de tecido fibroso em seu parênquima. Entretanto, em idosos, podem ocorrer algumas alterações na secreção dos três principais hormônios adrenocorticais, descritas a seguir.
Cortisol e ACTH As taxas de secreção de cortisol diminuem com a idade, mas não há alterações significativas em sua concentração sérica, mesmo em indivíduos muito velhos, devido à redução na taxa de sua depuração metabólica. Os níveis séricos basais do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) também permanecem inalterados, assim como a frequência dos seus pulsos secretores. O ritmo circadiano da secreção de ACTH e de cortisol não se altera em idosos saudáveis, embora a amplitude do ritmo de secreção de cortisol esteja reduzida e o nadir noturno esteja aumentado, quando comparados a adultos jovens. Na resposta do cortisol ao estresse, muitos estudos reportam alterações relacionadas com a idade. Após um estímulo estressor, tal como doença aguda ou cirurgia, os níveis de pico sérico de cortisol são maiores e permanecem elevados por mais tempo nos idosos, quando comparados aos adultos jovens. Após infusão de dexametasona, a supressão dos níveis séricos de cortisol e de ACTH é mais lenta e menos efetiva em idosos. Possivelmente, a sensibilidade ao mecanismo de feedback negativo do eixo hipotálamohipófisesuprarrenal esteja diminuída com a idade. Embora não estejam claras as implicações clínicas dessa alteração, tem sido proposto que a resultante exposição crônica ao aumento de glicocorticoide possa danificar os neurônios hipocampais reguladores de sua secreção, e tão importantes para a função cognitiva, o que induz a um posterior ciclo vicioso entre a hipersecreção glicocorticóidea e os danos aos mecanismos de feedback inibitórios do eixo hipotálamohipófisesuprarrenal.
Aldosterona As taxas de secreção de aldosterona e também suas concentrações séricas se reduzem com a idade, em tal magnitude que, próximo aos 70 anos, essa queda pode se aproximar de 50%. Provavelmente, essas alterações são secundárias à diminuição da secreção de renina e, quando acentuadas, podem resultar em um quadro de hipoaldosteronismo, particularmente naqueles indivíduos com leve falência renal, com perda urinária de sódio, hiponatremia e hiperpotassemia. A elevada concentração sérica de hormônio atrial natriurético também pode contribuir para a perda urinária de sódio em idosos.
Com a idade, a diminuição nas concentrações de aldosterona sérica e urinária é intensa o suficiente para possibilitar confusão com o diagnóstico de hipoaldosteronismo primário.
Deidroepiandrosterona (DHEA) Os esteroides suprarrenais – DHEA e sua forma sulfatada (DHEAS) – são os principais esteroides encontrados na circulação humana. Secretados pelo córtex suprarrenal, são precursores dos hormônios esteroides sexuais masculinos e femininos, que incluem a testosterona, o estradiol e a progesterona. Devido a sua menor secreção, seus níveis séricos, bem como os de todos os andrógenos, declinam com a idade em tal monta que, por volta dos 75 anos, alcançam uma redução de 20%. Entretanto, o significado clínico dessa diminuição ainda é controverso.
▸ Função adrenomedular Enquanto as concentrações séricas de epinefrina são semelhantes ou até levemente inferiores em idosos quando comparadas às de adultos jovens, as de norepinefrina são mais elevadas. Esses altos níveis de norepinefrina refletem um aumento da atividade do sistema nervoso simpático e não da medula suprarrenal e, provavelmente, são respostas compensatórias à diminuição na responsividade de alguns tecidos a esse hormônio.
▸ Função hipotalâmicohipofisáriotireoidiana Durante o processo de envelhecimento há discreto aumento do volume da glândula tireoide, com maior predisposição à formação nodular, além de maior quantidade de tecido fibroso e infiltração linfocítica. Entretanto, não são detectadas quaisquer alterações com significância clínica relacionadas com as concentrações séricas de tiroxina (T4) total e livre, bem como de triiodotironina (T3). Embora ocorra um leve declínio na concentração sérica da globulina carreadora de tiroxina, não se observa qualquer alteração no carreamento de tiroxina. Contudo, tanto a produção quanto o clearance (ou depuração plasmática) de tiroxina diminuem modestamente com a idade. A redução do clearance de tiroxina pode interferir no tratamento de reposição hormonal, diminuindo a dose requerida para o controle do hipotireoidismo nos idosos. Nos indivíduos saudáveis muito idosos (longevos), as concentrações séricas de T3 são discretamente inferiores àquelas encontradas em adultos jovens, entretanto, são superiores às encontradas nos demais idosos; tal achado sugere que os níveis séricos de T3 possam ser marcadores do envelhecimento fisiológico. Dessa maneira, em idosos as medidas de T3 sérico devem ser menos utilizadas para a identificação de hipotireoidismo. Em idosos, está diminuída a resposta secretória de hormônio tireoestimulante (TSH) ao estímulo do hormônio liberador de tireotropina (TRH); provavelmente, esta queda pode representar um mecanismo adaptativo para a menor necessidade de hormônio tireoidiano nessa fase da vida. A média dos valores das concentrações séricas de TSH em idosos que têm concentrações séricas normais de T4 livre é levemente maior do que as de adultos jovens, especialmente no sexo feminino (Figura 80.4). Nas mulheres após a menopausa, há também um aumento na prevalência de elevados níveis séricos de TSH com a idade, que reflete uma incidência de hipotireoidismo subclínico. Mesmo quando discretos, os quadros de insuficiência tireoidiana no idoso têm sido associados a depressão, queda de memória e perda cognitiva. A amplitude dos pulsos noturnos de secreção de TSH também é menor nos idosos, sendo talvez secundária à diminuição na secreção de T4 que ocorre em resposta à diminuição no clearance de tiroxina.
▸ Função hipotalâmicohipofisáriogonádica Na 6a década de vida das mulheres, as secreções ovarianas de estrógenos, e em menor extensão a de androgênios, diminuem abruptamente; entretanto, aumentam as secreções de hormônio foliculoestimulante (FSH) e luteinizante (LH). Após a menopausa, as mulheres apresentam elevadas concentrações séricas de FSH e LH até aproximadamente os 75 anos de idade, quando então esses níveis hormonais começam a declinar gradualmente.
Figura 80.4 ■ Relação dos níveis das concentrações séricas de hormônio tireoestimulante (TSH) ao longo da vida, em homens e mulheres (estudo em 17.353 pessoas). Explicação da figura no texto. (Adaptada de Hollowell et al., 2002.)
Na maioria dos homens, a função testicular declina gradualmente durante o envelhecimento, havendo redução dos níveis séricos de testosterona total e livre. Estudos longitudinais sugerem que esse declínio seja constante a partir dos 25 anos, obedecendo a um ritmo de 1% ao ano para a testosterona total e de 2% ao ano para a forma livre. Como a concentração sérica da globulina carreadora de hormônio sexual (SHBG) aumenta com a idade, os homens idosos têm um maior declínio nas concentrações séricas de testosterona livre. Diferentemente da menopausa, situação em que há uma deficiência completa de estrógenos, o declínio androgênico nos homens varia de moderado a grave. Aproximadamente 70% dos homens com mais de 70 anos de idade apresentam concentrações séricas de testosterona livre compatíveis com hipogonadismo. A partir dessa idade, progressivamente, também começa a declinar a produção de esperma que, por volta dos 90 anos de idade, chega a 50%. Esse declínio está associado a: fibrose tubular, redução do volume testicular e modestas elevações séricas de FSH.
▸ Regulação alimentar Na senescência, a regulação alimentar depende também de alterações endócrinas encontradas durante o envelhecimento, particularmente, associadas aos hormônios insulina, leptina e adiponectina. Em idosos, por exemplo, a sensibilidade à ação da insulina está reduzida, podendose constatar, com frequência, estados de hiperinsulinemia e de diminuição na tolerância à glicose. Essa observada resistência insulínica encontrase, pelo menos parcialmente, relacionada com a diminuição da proteína carreadora de glicose (GLUT 4) no tecido muscular. Com o aumento da idade há diminuição das concentrações séricas de leptina, um hormônio que promove diminuição do apetite e é produzido pelo tecido adiposo de modo proporcional à massa de gordura corporal existente no organismo que, como comentado anteriormente, diminui na senescência.
É conhecido que a adiponectina é um hormônio proteico secretado pelos adipócitos, que produz redução na resistência insulínica, apresenta propriedades antiinflamatórias e diminui o risco aterogênico. Contudo, seus índices de secreção são inversamente proporcionais à quantidade de gordura visceral abdominal, a qual, como já dito, aumenta com a idade. Portanto, em idosos há diminuição das concentrações séricas de adiponectina.
ALTERAÇÕES NO SISTEMA NERVOSO CENTRAL Vários aspectos celulares e moleculares do envelhecimento cerebral são comuns aos encontrados em outros sistemas orgânicos, incluindo um maior dano oxidativo às proteínas, aos ácidos nucleicos e às membranas lipídicas. Também é observado prejuízo no metabolismo energético e acúmulo de agregados proteicos nos compartimentos intra e extracelulares. Entretanto, como resultado da complexidade molecular e estrutural dos neurônios, que expressam 50 a 100 vezes mais genes que as células dos outros tecidos, há alterações relacionadas com a idade que são únicas ao sistema nervoso central. Por exemplo, as vias de transdução de sinais ao complexo celular, que envolvem neurotransmissores, fatores tróficos e citocinas e participam na regulação da excitabilidade e da plasticidade neuronal. Durante o envelhecimento, os principais tipos de células cerebrais sofrem alterações estruturais que resultam em: morte neuronal, retração e expansão dendrítica, perda e remodelação sináptica, além da reatividade da célula glial (astrócitos e micróglia). Essas alterações estruturais podem ter origem nas modificações que ocorrem nas proteínas citoesqueléticas e na deposição de proteínas insolúveis, tais como a proteína tau no interior das células e a substância amiloide no espaço extracelular. Assim, com o envelhecimento há perda de massa e de volume cerebral que pode chegar a 20% ao redor dos 80 anos. Nesse processo, a substância negra e a região temporal mesial no hipocampo são as áreas mais afetadas, sofrendo perda de cerca de 50% e 25% de massa cerebral, respectivamente. As sinapses são estruturas dinâmicas nas quais a neurotransmissão e outras sinalizações intercelulares eventualmente ocorrem. No cérebro senescente, há considerável evidência de remodelação sináptica que, provavelmente, se relaciona às alterações na árvore dendrítica e no número de neurônios. Por exemplo, em algumas regiões do cérebro pode haver diminuição no número de sinapses, mas elas podem ser supridas pelo aumento da área de sinapses remanescentes; além disso, em outras regiões cerebrais pode não ocorrer perda sináptica.
Envelhecimento cerebral: síntese das modificações estruturais e funcionais Cérebro Redução: ■ Volume ■ Peso Perda neuronal seletiva: ■ Substância negra: 50% ■ Temporal mesial: 25% Diminuição da reserva funcional
Envelhecimento cerebral: perdas neuronais e alteracoes nos mecanismos moleculares Cerebro Perdas neuronais: ■ Diminuicao das sinapses e do fluxo axoplasmatico ■ Diminuicao da plasticidade Alteracoes nos mecanismos moleculares: ■ Estresse oxidativo ■ Apoptose No processo de envelhecimento, os sistemas neurotransmissores também sofrem várias alterações, como as citadas a seguir (Figura 80.5).
▸ Sistemas colinérgicos. A acetilcolina desempenha a função de neurotransmissor para uma seleta população de neurônios cerebrais, proeminentes dos neurônios basais do cérebro frontal que inervam amplas regiões do neocórtex e do hipocampo. Esses neurônios, denominados neurônios colinérgicos, desempenham funções nos processos de aprendizado e de memória. Durante o envelhecimento pode ocorrer deficiência em um ou mais aspectos dos sinais de transdução colinérgica, incluindo: transporte de colina, síntese e liberação de acetilcolina, além do acoplamento dos receptores muscarínicos a seus carreadores proteicos à base de trifosfato de guanosina (GTP). ▸ Sistemas dopaminérgicos. No decorrer do envelhecimento cerebral há relevantes reduções nos aspectos pré e póssinápticos da neurotransmissão dopaminérgica. Com o avançar da idade, ocorrem diminuições nos níveis de dopamina, de transportadores dopaminérgicos e de locais carreadores dos receptores D2 no striatum. ▸ Sistemas monoaminérgicos. Os principais neurotransmissores monoaminérgicos cerebrais são a norepinefrina e a serotonina. Os neurônios noradrenérgicos estão localizados, principalmente, no locus ceruleus e os neurônios serotoninérgicos na raphe nucleus. O envelhecimento é associado à diminuição dos níveis de liberação evocada de serotonina e dos locais de ligação serotoninérgicos, que podem contribuir para distúrbios como a depressão. ▸ Sistemas de aminoácidos transmissores. No cérebro humano, o glutamato é o principal neurotransmissor excitatório. Esse aminoácido estimula os receptores inotrópicos envolvidos no fluxo de cálcio e de sódio, e sua ativação excessiva pode auxiliar na degeneração neuronal. Entretanto, não está bem estabelecida a contribuição da disfunção na transmissão glutamatérgica para as deficiências da função cerebral relacionadas com a idade. No cérebro humano, o principal neurotransmissor inibitório é o ácido gamaaminobutírico (GABA); porém, pouco se sabe sobre o impacto causado pelo envelhecimento fisiológico em suas vias de transmissão.
ALTERAÇÕES NO SISTEMA CARDIOVASCULAR Durante o envelhecimento desenvolvemse várias modificações no sistema cardiovascular como, por exemplo, o enrijecimento das grandes artérias, decorrente de deposição aumentada de colágeno associada a alterações qualitativas nas fibras de elastina. Esse aumento na rigidez arterial conduz à elevação gradual da pressão arterial sistólica e também ao aumento da impedância para a ejeção ventricular esquerda; assim, aumenta a denominada póscarga. Um marcador desse enrijecimento vascular é o aumento da velocidade da onda de pulso arterial observado nos idosos; lembrese de que a reflexão precoce dessa onda de pulso na periferia resulta em maior impedância para a ejeção ventricular na sístole tardia.
Alterações arteriais que ocorrem no envelhecimento ↑ Rigidez arterial ↑ Lúmen dos vasos ↑ Espessura da parede ↑ Pressão sistólica e pressão de pulso ↑ Velocidade de onda de pulso Disfunção endotelial Aumento da póscarga
Figura 80.5 ■ Envelhecimento cerebral: exemplo de alteração de alguns sistemas neurotransmissores.
O relaxamento miocárdico, um processo ativo que envolve gasto de energia, encontrase atenuado no envelhecimento; possivelmente, isso acontece pela dificuldade na liberação de cálcio por parte das proteínas contráteis no fim da sístole e também pelo retardo na recaptação de cálcio pelo retículo sarcoplasmático. No interstício do tecido miocárdico há aumento tanto de colágeno como de tecido adiposo; essas modificações resultam em maior rigidez tecidual, situação que é potencializada pela hipertrofia miocítica compensatória em resposta ao aumento da póscarga e também à apoptose dos miócitos.
Alteracoes estruturais cardiacas que aparecem no envelhecimento ↓ Numero de miocitos (necrose e apoptose) ↑ Volume dos miocitos Alteracao das propriedades do colageno Relacao miocito/colageno inalterada ↑ Espessura e massa do ventriculo esquerdo ↑ Atrio esquerdo A resultante da combinação de alteração do relaxamento ventricular e de redução da complacência miocárdica é a diminuição do enchimento sanguíneo do ventrículo esquerdo, durante os 2/3 iniciais da diástole. Essas alterações são acompanhadas de dilatação e de hipertrofia atrial esquerda, e também do aumento da força de contração atrial; isso preserva o volume diastólico final do ventrículo esquerdo, o principal determinante do volume ejetado a cada sístole, bem como o débito cardíaco. Essas alterações na função diastólica do ventrículo esquerdo e no átrio esquerdo predispõem as pessoas idosas ao desenvolvimento de insuficiência cardíaca do tipo diastólico; ou seja, predispõem os idosos àquela insuficiência cardíaca em que há a preservação da fração de ejeção ventricular esquerda, bem como a arritmias supraventriculares, tais como a fibrilação atrial.
Modificacoes da funcao diastolica do ventriculo esquerdo que acontecem no envelhecimento ↑ Rigidez VE: fibrose, desarranjo e hipertrofia ↓ Relaxamento: assincronia, ↑ pressao, isquemia e fluxo Ca2+ ↑ Pressao diastolica final
Nos idosos também é observada menor resposta à estimulação βadrenérgica; portanto, há diminuição da frequência cardíaca máxima (FC máx) alcançada em ritmo sinusal, quase de modo linear, como demonstrado na seguinte fórmula: FC máx = 220 – idade (anos) O débito cardíaco (DC) é avaliado pelo produto da frequência cardíaca (FC) e o volume de ejeção do ventrículo esquerdo (Vs); assim, podese estimar que o débito cardíaco máximo declina progressivamente com a idade, pois: DC = FC × Vs Outras alterações que se associam à redução do débito cardíaco máximo durante o envelhecimento são o declínio do pico de contratilidade ventricular (mediado por receptores β1adrenérgicos) e da vasodilatação periférica (mediada pelos receptores β2adrenérgicos). Essas condições resultam em redução do fluxo sanguíneo aos músculos e à pele durante os exercícios, trazendo uma dificuldade adicional ao idoso para o controle de sua temperatura corpórea. Ocorrem, ainda, alterações degenerativas na área tecidual onde se localiza o nodo sinusal; isso resulta em perda progressiva das células com função de marcapasso, que cria uma separação parcial ou completa entre o nodo sinusal e o restante do tecido atrial. Estimase que, por volta dos 75 anos, mais de 90% dessas células com função de marcapasso perdem sua capacidade de iniciar um impulso elétrico. Essas alterações acarretam um declínio gradual e progressivo da função do nodo sinusal; frequentemente culminam no desenvolvimento de uma síndrome sintomática de disfunção desse seio que se constitui na principal indicação de colocação de marcapasso em idosos. A condução do estímulo elétrico por meio do nodo atrioventricular também se torna mais lenta e a calcificação da estrutura cardíaca resulta em um aumento da prevalência de anormalidades de condução infranodular, tais como o bloqueio fascicular anterior esquerdo e o bloqueio completo de ramo. Há declínio no mecanismo de vasodilatação dependente do endotélio; primariamente, isso é devido à diminuição na atividade da enzima óxido nítrico sintase constitutiva e, portanto, na disponibilidade de óxido nítrico, que é o principal mediador da vasodilatação endotelial. Devido a esse mecanismo ser básico para o aumento do fluxo sanguíneo coronário em resposta ao aumento da demanda miocárdica, o fluxo sanguíneo máximo coronário é reduzido com a idade. As pessoas idosas são propensas à isquemia miocárdica precipitada pelo aumento súbito da demanda miocárdica de oxigênio, devido à taquicardia ou à hipertensão grave, mesmo na ausência de doença arterial coronária. A disfunção endotelial contribui para a patogênese e para a progressão da aterosclerose. A vasodilatação independente do endotélio parece não ser afetada no processo, ainda que a resposta vascular aos nitratos exógenos, tal como a nitroglicerina, seja semelhante à de jovens. Durante o envelhecimento ocorrem várias alterações nas respostas periféricas à estimulação neurohumoral. Provavelmente, a mais importante é a diminuição dessa resposta aos barorreceptores carotídeos. Em resposta a alterações abruptas no fluxo sanguíneo cerebral, como as observadas durante as alterações posturais, os idosos têm menor capacidade para o ajuste rápido da frequência cardíaca, da pressão arterial e do débito cardíaco. Portanto, os idosos apresentam predisposição à hipotensão ortostática e, consequentemente, às quedas e à síncope. Durante o repouso, as alterações no sistema cardiovascular decorrentes da senescência produzem modestos efeitos clínicos na hemodinâmica cardíaca e no rendimento cardíaco; ou seja, mesmo nos muito idosos, durante o repouso estão preservados a frequência cardíaca, a fração e o volume de ejeção do ventrículo esquerdo e o débito cardíaco. Entretanto, progressivamente, com o avançar da idade, declina a capacidade do sistema cardiovascular em responder ao aumento das demandas associadas ao exercício ou às doenças (cardíacas ou não).
Modificações da reserva miocárdica no envelhecimento ↓ Relaxamento e distensibilidade do ventrículo esquerdo ↑ Espessura do ventrículo esquerdo ↓ Resposta ao estímulo βadrenérgico ↓ Débito cardíaco no exercício Alterações do ritmo cardíaco Diminuição da reserva miocárdica
ALTERAÇÕES NO SISTEMA RESPIRATÓRIO
Durante a senescência, ocorrem alterações anatômicas e funcionais no sistema respiratório, que podem afetar a função pulmonar; particularmente, quando associadas a fatores agravantes tais como tabagismo, poluição ambiental, exposição profissional e doenças pregressas. A redução dos parâmetros respiratórios funcionais no idoso saudável é de aproximadamente 20%. No indivíduo senil, devido a alterações no tecido conectivo, há redução no tamanho das vias respiratórias, e os sacos alveolares tornamse mais superficiais. A complacência da parede torácica diminui como consequência de modificações esqueléticas, tais como: acentuação da cifose dorsal, calcificações das cartilagens condrocostais e degenerações costovertebrais. A capacidade pulmonar total (CPT) depende do equilíbrio de forças entre a máxima ativação da musculatura inspiratória e a retração elástica do pulmão e da parede torácica. Com a idade, a retração elástica do tecido pulmonar diminui, o que facilita a expansão pulmonar durante a inspiração profunda e, assim, tenderia a aumentar a CPT. Entretanto, devido à rigidez da parede torácica durante o processo de envelhecimento, o esforço inspiratório máximo não é capaz de alcançar alto volume pulmonar; portanto, a CPT, geralmente, encontrase estável. Na velhice, a diminuição da retração elástica pulmonar também determina o aumento do volume residual (VR) e da relação VR/CPT, que ocasiona um estado de hiperinsuflação pulmonar e uma redução na capacidade vital (CV). No envelhecimento, o volume de ar exalado durante o 1o segundo de expiração forçada (VEF1) tende a se reduzir mais intensamente que a capacidade vital forçada (CVF). Em indivíduos não fumantes, essas alterações resultam em um declínio do fluxo de volume corrente (VC) e de VEF1 da ordem de 25 a 30 mℓ/ano. A redução na relação VEF1/CVF é indicativa de obstrução das vias respiratórias. Outros componentes relevantes para a adequada função respiratória são a força e a resistência da musculatura respiratória, sendo importante a observação de que a força da musculatura diafragmática é aproximadamente 25% menor em pessoas idosas saudáveis quando comparadas aos adultos jovens. A desproporção da relação ventilação/perfusão (V/Q), decorrente do fechamento das pequenas vias respiratórias e da limitação de fluxo aéreo, contribui para o aumento do gradiente alveoloarterial de oxigênio (gradiente Aa O2). Esse gradiente pode ser estimado em função da idade, pela equação: Gradiente Aa O2 = 2,5 + 0,21 × idade (anos) A redução da área de superfície alveolar dificulta a difusão pulmonar de monóxido de carbono (DPCO). A pressão parcial de oxigênio arterial (PaO2) também diminui com a idade, podendo ser, aproximadamente, avaliada pelo seguinte cálculo: PaO2 estimada = 110 – (0,4 × idade) Nos idosos, os mecanismos de clareamento pulmonar encontramse menos eficientes, devido à atrofia do epitélio colunar ciliado e também das glândulas da mucosa brônquica, predispondoos a um maior risco de contraírem infecções. A redução do reflexo da tosse, associada à queda de força da musculatura respiratória, corroboram para o comprometimento do clareamento de suas vias respiratórias inferiores.
Resumo das alterações respiratórias que aparecem com o envelhecimento ↓ Complacência torácica, ↑ complacência pulmonar ↓ Força dos músculos respiratórios ↓ Capacidade vital, ↑ volumes residuais Manutenção da CPT ↓ VEF1/CVF ↓ Fluxo expiratório ↑ Gradiente AVO2, ↓ paO2 ↓ Difusão pulmonar CO2 ↓ Sensibilidade respiratória: hipoxia/hipercapnia CPT, capacidade pulmonar total; VEF1, volume de ar exalado durante o 1o segundo de expiração forçada; CVF, capacidade vital forçada; AVO2, gradiente arteriovenoso de oxigênio; paO2, pressão parcial de oxigênio arterial; hipoxia, baixa concentração de oxigênio no sangue; hipercapnia, alta concentração de dióxido de carbono no sangue.
ALTERAÇÕES NO SISTEMA RENAL O envelhecimento renal também é caracterizado por alterações estruturais e fisiológicas que afetam a homeostase, isto é, a manutenção corporal de líquidos, de eletrólitos e do equilíbrio acidobásico. Em condições normais, os rins senescentes mantêm o equilíbrio homeostático; mas, sob condições de estresse, a resposta adaptativa dos rins já é menos eficiente. Na 4a década da vida humana, os rins alcançam peso máximo de cerca de 400 g (ou 12 cm de extensão); depois, sofrem um declínio de peso e de volume, aproximadamente, correspondente à perda de 10% da massa total de néfrons a cada 10 anos, com tendência de maior redução no sexo masculino. A perda ocorre principalmente no córtex renal, reduzindo a área para filtração glomerular. Nesse processo degenerativo, a região medular fica, relativamente, preservada. Esses órgãos são extremamente vascularizados, recebendo cerca de 25% do débito cardíaco a cada minuto, particularmente, na região cortical. Importante lembrar que é nesse local que o sangue circulante sofre filtração através dos glomérulos para, então, os rins fazerem a depuração de substâncias oriundas do metabolismo, procurando assim contribuir na manutenção da homeostase orgânica. Entretanto, com o avançar da idade, os vasos intrarrenais, principalmente as artérias interlobulares e as arqueadas, desenvolvem progressiva esclerose e passam a apresentar redução em seu lúmen; essas alterações vasculares determinam modificações no fluxo laminar de sangue e facilitam a deposição de lipídios na parede vascular. Adicionalmente, há substituição de suas células musculares lisas por depósitos de colágeno, que ocasiona perda da elasticidade tecidual. A redução do fluxo sanguíneo renal (FSR) é acompanhada de aumento da resistência nas arteríolas aferentes e eferentes, independentemente do débito cardíaco ou de reduções na massa renal. Essa alteração contribui para a menor eficiência dos rins envelhecidos na resposta à sobrecarga ou à perda de líquidos e de eletrólitos. A redução linear no número de néfrons ao longo da vida é notória e, provavelmente, é o principal fator para o menor ritmo de filtração glomerular observado no decorrer da senescência renal. Os glomérulos que se mantêm preservados, frequentemente, desenvolvem aumento da sua área filtrante além de espessamento de sua membrana basal; possivelmente, essas anomalias são devidas a uma hipertrofia glomerular compensatória com hiperfiltração, na tentativa de responder ao aumento de pressão intraglomerular. Com a perda glomerular, a área tubular do néfron também se degenera, sendo recomposta por tecido conectivo. Desenvolvese o mesmo mecanismo compensatório, com hipertrofia e hiperplasia tubular nos néfrons remanescentes, principalmente, na região do túbulo contornado proximal. Devido ao adelgaçamento do córtex renal, ocorre diminuição da extensão tubular e é frequente o desenvolvimento de divertículos no túbulo contornado distal. Com a progressão da idade, a perda de néfrons possibilita o desenvolvimento de uma fibrose tubular intersticial generalizada, embora a estrutura do túbulo contornado distal não pareça se alterar significativamente. O ritmo de filtração glomerular (RFG) pode ser determinado pela medida da depuração da creatinina endógena e é considerado normal quando seus valores se encontram entre 80 e 120 mℓ /min, para uma superfície corpórea padrão de 1,73 m2. Estimase que a partir da 4a década de vida haja um decréscimo anual nessa medida, de 1 mℓ/min; ou seja, parece haver perda de cerca 1% da função glomerular a cada ano. Porém, a creatinina é um metabólito muscular e, como mencionado anteriormente, há redução da massa muscular durante o envelhecimento. Assim, os níveis plasmáticos de creatinina podem não refletir a real função glomerular do idoso, sendo necessária a determinação do clearance renal de creatinina, para avaliar o seu RFG. O clearance renal de creatinina pode ser estimado em idosos, utilizandose o nomograma de Cockroft e Gault, descrito a seguir (Figura 80.6).
No sexo feminino, devido à menor massa muscular, é necessário multiplicar o resultado por 0,85. A função tubular renal modifica o filtrado glomerular transformandoo em urina, essencialmente, pela reabsorção tubular de água e eletrólitos e, ainda, titula o pH sanguíneo, pela reabsorção de HCO3– e secreção de H+. Com o envelhecimento, ela encontrase relativamente preservada. Os mecanismos envolvidos na concentração e diluição urinária dependem de alguns fatores integrados, como: (1) a atividade do centro hipotalâmico da sede, que regula a ingestão de água, (2) o ciclo efetivo de produção, liberação e ação tubular do hormônio antidiurético (ADH) e (3) a hipertonicidade da medula renal. Nos idosos, a sensibilidade à sede está diminuída, fato que os torna mais propensos à desidratação. Embora a produção de ADH encontrese aumentada com a
idade, há menor sensibilidade dos receptores renais de ADH (receptor V2), prejudicando a ação desse hormônio na reabsorção tubular de água. A participação da região medular nos mecanismos de concentração e diluição urinária depende de sua vascularização, que é responsável pela maior perfusão do interstício medular e consequente diminuição de sua hipertonicidade. Na senilidade, há também prejuízo no mecanismo de acidificação urinária e tendência à acidose metabólica leve, do tipo tubular renal, com compensação respiratória.
Resumo das alterações renais que acontecem na velhice ↓ Peso e volume dos rins ↓ Área de filtração glomerular (córtex) ↓ Fluxo sanguíneo renal e filtração glomerular ↓ Capacidade de concentração e diluição da urina ↓ Renina e aldosterona ↑ Fator natriurético atrial ↓ Acidificação urinária ↓ Clearance renal
Figura 80.6 ■ Cálculo do ritmo de filtração glomerular no idoso, pelo nomograma de Cockroft e Gault (1976). FG, filtração glomerular; FSR, fluxo sanguíneo renal.
ALTERAÇÕES NO SISTEMA DIGESTÓRIO Durante a senescência, diminui o número de botões gustativos na superfície lateral da língua, responsáveis pela detecção dos sabores doce e salgado, em que predominam os botões gustativos centrais que identificam apenas os sabores amargo e azedo. O olfato também tende a diminuir e a combinação das perdas gustativa e olfatória pode promover o desinteresse do idoso pela comida. Há redução do fluxo salivar e da força mastigatória, podendo haver limitação na quantidade e variedade de alimentos a serem ingeridos.
Modificações que promovem o desinteresse do idoso pela comida Diminuição de olfato, paladar e fluxo salivar Diminuição do apetite
Diminuição da eficiência mastigatória Alterações de saciedade Alterações visuais que dificultam comer Aumento do esforço respiratório para comer Retardo no esvaziamento gástrico Na mucosa gástrica senil passa a haver predominância das células não parietais, modificação que proporciona diminuição na acidez gástrica. Com isso, cerca de 25% dos idosos desenvolvem acloridria e têm prejuízo na absorção de nutrientes essenciais, tais como a vitamina B12, o ácido fólico, o ácido ascórbico e o ferro. Geralmente, a capacidade de absorção intestinal não se encontra alterada, embora possa haver um declínio no metabolismo e na absorção de cálcio, ferro e carboidratos (especialmente lactose).
Alterações digestórias no envelhecimento Acloridria: presente em 25% dos idosos Diminuição da acidez gástrica: diminuição da absorção de vitamina B12, folato, vitamina C e Fe2+ Diminuição da absorção intestinal de lactose, Ca2+ e Fe2+ Digestão mais lenta Redução na capacidade de regular o metabolismo O processo digestório tende a se processar mais lentamente no idoso, observandose redução na capacidade de regular o metabolismo, como, por exemplo, mais tempo requerido para a indução hormonal de enzimas, secundário à redução no número de receptores hormonais na superfície celular. Esses fatores podem ser significativamente importantes quando na presença de condições patológicas que, comumente, se associam ao processo de envelhecimento, tais como hérnia hiatal, refluxo gastresofágico e gastrite atrófica. Observase também, durante o envelhecimento, redução no número de neurônios mioentéricos, além do desenvolvimento de divertículos colônicos; estes são secundários à redução da tensão produzida pela camada muscular da parede do cólon. Há, ainda, redução no fluxo sanguíneo esplâncnico, mais significativa após os 75 anos de idade.
Modificações do sistema digestório na senescência Sistema digestório ↓ Produção de saliva e função das papilas gustativas ■ Alteração no paladar e deglutição ↓ Produção de HCl, enzimas digestivas ■ Modificação na ionização e solubilidade ↓ Fluxo sanguíneo esplâncnico ■ Dificuldade na absorção e isquemia ↓ Esvaziamento gástrico ■ Dificuldade na degradação e absorção ↓ Divertículos colônicos ■ Queda da absorção ↓ Número de neurônios mioentéricos ■ Alteração na motilidade intestinal
SISTEMA HEMATOPOÉTICO O envelhecimento humano é associado a uma menor capacidade de reserva para hematopoese, por provável exaustão das célulastronco hematológicas pluripotenciais. Anormalidades funcionais, não evidenciadas no estado basal, tornamse aparentes em situações de estímulo dirigido. Adicionalmente, além de ser menor, essa resposta é mais variável.
O envelhecimento parece não afetar a concentração de eritropoetina circulante (EPO) e nem de outros fatores de crescimento hematopoético. Entretanto, a produção de certos fatores de crescimento, particularmente a interleucina 6 (IL 6), o fator de necrose tumoral alfa (TNFα) e interferonaγ (INFγ), parece aumentar com o envelhecimento. Essas observações levam à noção de que a idade é acompanhada da desregulação da produção desses fatores do crescimento, causando produção excessiva de algumas citocinas e subprodução de outras e interferindo, também, na geração de glóbulos vermelhos. Há consistência nas publicações científicas de que o avançar da idade não modifica o número absoluto das populações celulares e o número de leucócitos e de neutrófilos circulantes se mantém. Presumese, maximamente, um descenso leve no número de neutrófilos. Embora o número de plaquetas também não se altere com o envelhecimento, o fibrinogênio, os fatores de coagulação (V, VII, VIII e IX), o cininogênio de alto peso molecular e a précalicreína aumentam, assim como os fragmentos da degradação da fibrina (dímero D), produzindo um estado prócoagulante de risco para eventos trombogênicos.
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