147 7 5MB
Portuguese / English Pages [264] Year 2025
![Filosofia do Desporto [1]
9789893597002](https://ebin.pub/img/200x200/filosofia-do-desporto-1-9789893597002.jpg)
(Coord.) Constantino Pereira Martins Luísa Ávila da Costa
(Coord.) Constantino Pereira Martins Luísa Ávila da Costa
P E N S A R
O
D E S P O R T O
Título: Filosofia do Desporto Coordenação: Constantino Pereira Martins e Luísa Ávila da Costa Suporte: Impresso Formato: Brochado Paginação, Impressão e Acabamento: Grafivedras - Artes Gráficas Lda. 1ª edição: Janeiro de 2025 ISBN: 978-989-35970-0-2 Depósito Legal: 541594/24 2
P R E FÁC I O
Saudades do futuro Constantino Pereira Martins IEF - Universidade de Coimbra
3
4
Saudades do futuro Constantino Pereira Martins IEF - Universidade de Coimbra
Todos os grandes atletas têm de passar por um processo de exaustão, morte e ressurreição[1].
I. Princípio 1. Comecemos pelo fim. E no fim, só podemos agradecer. O agradecimento é uma dívida. Eu sou devedor à terra, a terra me está devendo, a terra paga-me em vida, eu pago à terra em morrendo[2]. 1.1 Começar por agradecer à Doutora Luísa Ávila da Costa e ao Doutor Odilon Roble. E como dizemos no Norte de Portugal, ponto. 1.2 Agradecer àquela que não tem nome, que não tem rosto: o gesto[3] impossível, o inominável, a saudade. 1.3 Sem gratidão não há passado nem futuro. Sem gratidão não há unidade. E o presente desmaiaria nesse princípio máximo da utilidade e da eficácia. Se tudo fosse uso, no fundo não existiria humanidade, mas apenas objectos, meios para um fim. O mundo já é feio o suficiente para essa tese vencer. Mas não deixaria de ser verdadeiramente cómico e irónico que todos os defensores dessa ideia fossem os últimos a restar, condenados a viver apenas e entre eles mesmos. Como uma enorme cadeia penitenciária filosófica e moral. Uma condenação autoinfligida. Anda meio-mundo a enganar meio-mundo[4]. 1.4 Agradecer à Universidade de Coimbra, ao Instituto de Estudos Filosóficos, ao Doutor Mário Carvalho, ao Professor Diogo Ferrer, ao Mestre João Emanuel Diogo. A todas as Universidades envolvidas no apoio e realização desta primeira conferência de Filosofia do Desporto, e fundamentalmente a todos os oradores. Foram dias de prova viva do pensamento e não poderia existir melhor começo. Agradecer a todas as instituições desportivas nacionais e às mais variadas instituições de ensino superior que nos honraram com as suas presenças, e que 5
se espalham neste início simbólico por mais de quinze Universidades com o envolvimento de dezenas de investigadores, professores, atletas e treinadores, o que só nos pode dar mais coragem para semear, cuidar e crescer. Obrigado pela vossa confiança. Não será desperdiçada nem uma gota dela. 1.5. Agradecer muito especialmente aos Professores Manuel Sérgio e R. Scott Kretchmar. Pela sabedoria, pela partilha, pela humildade. Que juventude nos olhos e nos gestos. Somos sempre anões às costas de gigantes. Sejamos dignos de herdar o que os outros nos deixam de melhor. E preparar o melhor de nós para os que nos seguirão. 1.5.1 É sempre difícil mostrar uma visão. Porque ter uma visão é ter um horizonte de possibilidades, e o desafio de as cumprir. E o tempo voa. E a vida é breve. Tenhamos a coragem de construir uma coisa bela para que os outros possam herdar. Trabalhar para os outros, com os outros, para o futuro. Para os que virão, para os que se seguirão, e para que eles saibam que também aqui foram tidos em conta. Sonhamos hoje aqui com eles. Porque os sonhos não se sonham a si próprios, os sonhos partilham-se. E só assim se tornam realidade. 1.6. O Primeiro Congresso de Filosofia do Desporto em Língua Portuguesa foi especial não só por ter iniciado algo, mas sobretudo porque anuncia o fortalecimento de uma comunidade orientada para o futuro. Tendo como base a Associação (AFDLP https://www.afdlp.org/ ) lançada no dia 30 de Março de 2023 na Reitoria da Universidade do Porto, os seus alicerces foram projectados na constituição de uma comunidade de pessoas, entre as quais académicos e da prática desportiva, que contemplam o desporto a partir das questões filosóficas que levanta, considerando-o na sua natureza complexa, simultaneamente global e singular, e procurando por esta via contribuir para o seu desenvolvimento e aprofundamento. A AFDLP estabelece o seu campo de ação ancorada nos princípios de abertura e acolhimento, honestidade e transparência, na procura pela excelência na investigação e na ação. A sua finalidade é o serviço ao Desporto, através da edificação de um ambiente de partilha de trabalho, de conhecimento e de amizade, que colabore no desenvolvimento, progresso e inovação, pesquisa e disseminação, da Filosofia do Desporto em Língua Portuguesa. O congresso FILOSOFIA DO DESPORTO foi um ponto de encontro, espaço aberto de pensamento e acção, em que o principal objetivo é estabelecer pontes, partindo da relação entre Filosofia e Desporto, mas que visou também abrir o campo de reflexão a diferentes áreas do conhecimento, pretendendo proporcionar a oportunidade de pensar livremente temas tão diversos como Desporto e Filosofia, Ética e Axiologia do Desporto, Estética do Desporto, Antropologia do Desporto e Filosofia Antiga, Filosofia Política e o Desporto, Filosofia do Direito e o Desporto, Epistemologia do Desporto, Interdisciplinaridade (Psicologia, Antropologia, Sociologia, Medicina, Fisioterapia, Gestão desportiva, Turismo, História, entre outras), saberes aplicados e reflexões sobre práticas específicas, modalidades e atletas, Olimpismo, Filosofia do Desporto (teoria e história), treino e performance, desporto e países de Língua Portuguesa, casos de estudo, autores específicos, emoções, tecnologia, corpo, etc. Em resumo, mostrar que o desporto é mais uma linha que une a nossa civilização, a nossa cultura, a nossa ciência e arte.
6
II. Meio 2. Intermezzo: contra o esquecimento de algumas coisas importantes da vida desportiva. 2.1 Fundações axiológicas do desporto. O que vamos tentar focar aqui rapidamente são os fundamentos com que todo e qualquer atleta, praticante ou desportista terá, de alguma forma, um dia, algum dia, de alguma forma, de confrontar. 2.2 O esforço. Um dos elementos básicos que servem de base à compreensão do fenómeno desportivo. Todos nós vemos como isto é claro. Sem esforço é praticamente impossível progredir no desporto, ou em qualquer outro domínio da vida. É o ponto de partida de todos nós. Todos os desportistas sabem isto para além ou aquém das palavras. É mais do que uma afirmação estrutural a priori, é uma evidência. 2.3 O sacrifício. Como é difícil apreender, ainda que brevemente, este conceito central. Desde as suas raízes teológicas, passando pela antropologia, até ao estatuto recente de valor negligenciado nesta nova era de prazeres e recompensas imediatas, é difícil falar de um valor esquecido no nosso tempo (embora tenhamos de prestar homenagem ao extraordinário trabalho de René Girard). O sacrifício, como forma superlativa, evoca a plasticidade e a elasticidade da noção de limite. Quando enfrentamos os limites, normalmente podemos empurrá-los para mais longe (e descobrir depois que aquilo que pensávamos não poder suportar, na verdade podemos fazer e muito mais). Ultrapassar os limites é uma das caraterísticas mais belas da existência humana. 2.4 A exaustão. Ao alargarmos a noção de abandono/entrega, o aqui e agora (hic et nunc) do esforço, que se exprime como transpiração, essa espécie de choro global do corpo, encontraremos logicamente a fadiga. A exaustão como catarse desportiva implica já dor e prazer. O sacrifício e a disciplina como valores fundamentais exigem do esforço esta forma de entrega como libertação e exorcismo das pulsões de vida e de morte que exigem a superação de limites. 2.4.1 Valor prático da exaustão. Não há nada como a exaustão para mostrar a extensa problemática dialética da dor e do prazer. Normalmente, tendemos a associar o cansaço ao sofrimento. No nosso mundo contemporâneo, ele tem silhuetas verdadeiramente sádicas que estão ligadas à depressão, esgotamento, etc. Mas quando se trata de desporto, o cansaço faz parte do jogo. Sobretudo quando estamos a pensar no treino. 2.4.2 Valor místico da exaustão. Provavelmente a parte mais escondida da exaustão, a menos elaborada e estudada, mas simultaneamente a mais interessante e profunda. Existe um poder infinito de catarse no processo de exaustão. Mas, para além disso, há também um exorcismo envolvido. 2.5 A superação. Principal motor de todos os campos desportivos. Não há dúvidas sobre isso. A tradição filosófica nesta matéria é bastante considerável. De Aristóteles a Kant, de Nietzsche a Freud, tem sido uma questão central na reflexão sobre a ética, a ação e a vontade. A superação é uma expressão máxima da vontade. Seria certamente demasiado longo e impossível traçar toda a tradição sobre este assunto. Uma coisa é certa: trata-se de um valor fundamental. Sobretudo
7
e especialmente no que diz respeito a posições, situações ou acontecimentos em que é preciso actuar. E actuar aqui e agora. 2.6 A beleza. A beleza do desporto é o seu imediatismo. Puro pensamento em movimento. Corpo pensante. O agora. Não-explicação, apenas demonstrações e execuções silenciosas e instantâneas. Ao vivo e direto. Do olho do jogador para o olho do espetador. Uma ligação umbilical, a partilha de algo primitivo. 2.6.1 A beleza como redenção, depois de um jogo ou de um treino, a exaustão justa e ligeira, o reencontro consigo próprio. O poder transfigurador da beleza, transformador e revelador. 2.6.2 Beleza e hipnose: habitar o sublime. Há uma espécie de magia e de encantamento na beleza que nenhum grande pensador ou artista conseguiu dissecar completamente. Esta qualidade misteriosa é talvez o que nos mantém sob o seu feitiço. É uma espécie de inesperado que nos assalta, talvez para nos assombrar ou salvar da banalidade. 2.6.3 Beleza e feio. O poema contra a feiura do mundo. Beleza poética. Na revelação de uma beleza material em movimento. Corpo e Kinesis, forja e esforço do sublime. Surge provavelmente quando o jogo é transfigurado, mudando as regras, ultrapassando os limites, enfim, inaugurando um novo jogo dentro do jogo que está a ser jogado. Mas com graça. É isso também que permite a evolução do jogo. 2.7 Alegria. Princípio substancial máximo do Desporto. Que deriva no efeito conhecido ou experienciado enquanto poder curativo da prática desportiva.
III. E fim. 3. Agradecer, por fim, a todos a entrega, partilha e interesse naquilo que julgo se transformará, a muito breve trecho, num momento histórico de transição no que se refere a um novo horizonte filosófico e desportivo, agregado, com uma ordem de leitura sistemática, num espaço rico e interdisciplinar, aberto e partilhado. Essa abertura, assente num debate franco e alicerçado na tolerância, só pode ver a diversidade como riqueza e a partilha como princípio de acção. Mas teremos que ter, para além da nossa bússola filosófica bem afinada, uma dose séria de realismo e pragmatismo. Digo isto porque uma aventura quando começa, não se sabe como acabará. Tal como numa expedição ao polo norte ou ao topo do Evereste, uma aventura é um grupo de pessoas que tenta algo, que arrisca algo, juntos. Peço a todos que não se esqueçam destes factos simples da vida, e de um que muitas vezes temos tendência a esquecer: Destruir é fácil e rápido, mas construir dá muito trabalho e demora muito tempo. 3.1 Se o modesto início se deu em conjunto com o Professor Odilon Roble e a Professora Luísa Ávila da Costa de forma mais informal em 2022, em ambientes e eventos académicos internacionais, não devemos descurar a ambição que aqui se desenha, apesar de tudo isto ser, ainda e apenas, um embrião, um desafio, e uma aventura. Nada nos garante que chegaremos a bom porto. A não ser o nosso trabalho, a nossa dedicação, a nossa seriedade, o nosso empenho, mas acima de tudo, a nossa humildade e a nossa vontade de servir.
8
De construir juntos para todos. Servir os outros, porque é com o outro, em diálogo com o outro, que vamos poder ter uma posição estratégica global respeitada por todos. Isto dito assim parece isento de perigos, o que não é verdade. Na academia, na prática desportiva, e na vida em geral, muitas vezes ficamos reféns de complexos e fantasmas, receios, sofrimentos e conflitos, mas nós, aqui, agora, neste presente estamos a lançar a primeira pedra de algo grávido de futuro. E é para esse futuro que iremos trabalhar. Para uma associação livre, de pessoas que livremente se associam. Porém, esse futuro só poderá fortalecer-se e crescer se acreditarmos e confiarmos uns nos outros. Será preciso razão, mas também coração. E por vezes entrega, salto no abismo, ouvindo do fundo do tempo a sabedoria de Pascal para nos guiar: o coração tem razões que a própria razão desconhece. Essa é uma das razões por que estamos aqui hoje, se não a mais importante. A outra é acreditarmos que somos capazes, e que vamos ser capazes de realizar algo novo. Não será perfeito, terá problemas, vai ter altos e baixos, mas não nos podemos isolar. A posição da cultura de, e em, Língua Portuguesa perante os desafios do mundo actual é de grande exigência. Se o pragmatismo do Inglês é hoje hegemónico, a poesia, o pensamento, o pensamento poético, e a liberdade da Língua Portuguesa é um património da Humanidade, que nós, seus humildes herdeiros não podemos deixar morrer. Esta viagem que aqui iniciamos não é contra ninguém. É apenas a favor. A favor da liberdade, da saúde, da ética, da transparência, da excelência, do desafio, do debate, do diálogo e do crescimento e enriquecimento mútuo da filosofia e do desporto. 3.2 A filosofia é hoje abertura e procura. Ela é essencialmente o exercício e abertura do pensamento, do pensar, mas também da acção. Assim, ela é também procura, uma arquitectura impossível. E é impossível porque imagina pontes, e as pontes nunca estão acabadas. As pontes estão sempre na sua fase final, estão sempre em manutenção. Senão, caem. Essa exigência, e diria eu, essa excelência do exercício milenar da Filosofia, precisa de atletas do pensamento, e filósofos do corpo e do movimento, que lhe deem substância, que renovem o compromisso de se entregarem à luta e ao desafio de tentar ver melhor, de tentar compreender um pouco mais, de ir um pouco mais longe. Perante a complexidade do presente, urge outro tipo de espaço de discurso, um lugar novo de debate de ideias que eleve o desporto. Perante a complexidade, talvez seja necessária a simplicidade de mostrar à mosca a saída da garrafa como dizia Wittgenstein. Mas a simplicidade nem sempre é fácil. Daí a importância de construir uma plataforma altruísta, para que todos brilhem, para que os outros brilhem. 3.3 Só já temos saudades do futuro. Setembro de 2024, Caldas da Rainha Justorum animae in manu Dei sunt
[1] Pereira Martins, C. (Ed.), Do Desporto, IEF / FD, Coimbra, 2021, p.15
[2] A imensa solidão: https://www.youtube.com/watch?v=kQgmOf8IJe8 (Cante Alentejano: Serpa 04-02-2012)
[3] “Justorum animae in manu Dei sunt, et non tanget eos tormentum malitiae. Vissi sunt oculis insipientium, illi autem sunt in pace”. [4] Heller, B., Bestiário: Aforismos de João César Monteiro, In https://www.academia.edu/7028120/Aforismos_de_Jo%C3%A3o_C%C3%A9sar_Monteiro
9
10
INTRODUÇÃO
Movimento com Movimento se Compreende Luísa Ávila da Costa Faculdade de Desporto da Universidade do Porto
11
12
Movimento com Movimento se Compreende Luísa Ávila da Costa
Faculdade de Desporto da Universidade do Porto
Quando pensamos no desporto, quase que instintivamente nos invadem a mente imagens de corpos em ação, suor e exaltação, conquista e frustração. Mas muito mais se pode desvelar nessa pulsão do que o que o olho pode captar e o cérebro racionalizar. Há um movimento profundo, uma dança invisível que escapa ao escrutínio científico e que só pode ser apreendido e compreendido na sua verdadeira essência através de uma abordagem que transcenda o mero empirismo. Este livro, que agora começa a desabrochar nas suas mãos, convida-o, caro leitor, a embarcar numa jornada onde o movimento se torna linguagem, a linguagem se desdobra em arte, e a experiência estética se revela como via de acesso à filosofia, procurando dessa forma desafiar os limites do próprio ensaio filosófico. Nesta obra é proposto, por isso, um retorno à metáfora primeira, como nos sugere António Camilo Cunha (Cunha, 2023), um retorno à natureza do desporto como expressão primal do ser humano. O desporto, nessa perspectiva, não é um mero jogo de forças, mas um reencontro com a própria essência da natureza, onde o movimento humano encontra o seu eco no movimento do cosmos. Friedrich Nietzsche (1872), através da sua reflexão sobre o espírito dionisíaco, aponta para a importância do jogo como uma manifestação vital da liberdade e da criação, onde o homem se reintegra no fluxo universal, naquela metáfora original que é a vida no seu estado mais puro, tantas vezes inacessível e intangível pela linguagem das palavras, da lógica e do sentido. Nesta introdução, peço-lhe que se abra ao inesperado, ao enigma que não busca necessariamente ser resolvido, mas convida a ser vivido e sentido de forma profundamente implicada. A arte, como nos lembra Deleuze com a sua ideia de “dobra” (Deleuze, 1999), não existe para ser desvendada, mas para implicar, para nos lançar num labirinto onde cada decisão, cada movimento é uma escolha que revela tanto quanto esconde. O poemobile1 que encontra entre estas páginas, obra do artista e professor Samuel Silva, é um convite silencioso e sensível a esse jogo, onde cor e pó — metáforas de coração e mortalidade — se entrelaçam numa dança que oscila entre o finito e o infinito, o ser e o não-ser, o limitado e o ilimitado. Nele – peço-lhe caro leitor - verá que a vida,
1 “cor pó”, poemobile de Samuel Silva, 2024, aceder em: https://vimeo.com/1038158203?share=copy 13
tal como o desporto, no seu eterno movimento de criação e destruição, onde o pó do qual viemos e ao qual retornaremos, resiste a travestir-se com a roupagem verbal e se colore de significado ao ser animado pelo sopro vital – invisível, inenarrável, indescritível, (in)verbalizável, incompreensível. Assim como Scott Kretchmar nos alerta para a importância da persistência e da sorte na construção de um movimento filosófico (Kretchmar, 2023), também este livro se ergue como um testemunho de um esforço de resistência - inicial, mas contínuo - para revelar e legitimar a filosofia do desporto como uma disciplina que, mais do que merecer o seu lugar na universidade e no mundo, urge como nunca para a preservação da natureza do próprio desporto e da sua compreensão. Não nos basta a razão, é preciso ser sensível ao acaso, ao imprevisto que se revela no movimento inesperado, na jogada que escapa ao plano, na improvisação que é a própria vida. É assim que a filosofia do desporto em língua portuguesa se apresenta: como uma celebração da diversidade de abordagens, um espaço onde a erudição e a sensibilidade encontram o seu ponto de fusão, onde a poesia - a tradicional e a transgressora, como a gráfico-espacial - se torna um método legítimo de investigação filosófica.
Francisco Sobral, na sua reflexão sobre a identidade do desporto (Sobral, 2023), lembra-nos e alerta-nos para os riscos das tentativas de definição rígidas, exercício fadado ao fracasso se não levarmos em conta a multiplicidade de formas e expressões que o desporto pode assumir. Assim como o ornitorrinco desafia as categorias zoológicas, o desporto, na sua essência, desafia as categorizações simplistas. Ele é, ao mesmo tempo, um espaço de confronto e de comunhão, de afirmação e de dúvida. O desporto, como a vida, é uma expressão de identidades múltiplas que coexistem em tensão, e é nesse jogo de forças que encontramos o seu verdadeiro sentido e almejamos a sua compreensão. No entanto, não podemos falar de desporto sem abordar a questão ética que o permeia. José Carlos Lima lembra-nos que a ética aplicada ao desporto é uma construção que deve ser continuamente revisitada, onde cada decisão, cada movimento, carrega consigo uma responsabilidade que vai além do indivíduo (Lima, 2023). A ética no desporto é a ética da vida em miniatura, onde as virtudes de dedicação, disciplina e fair play se transformam em metáforas da nossa busca por uma vida plena de sentido. É na arena desportiva que ensaiamos para a vida, onde aprendemos a lidar com o sucesso e o fracasso, com a vitória e a derrota, num microcosmo que reflete as grandes questões humanas. É também na arena da partilha do conhecimento filosófico sobre o desporto que ensaiamos para o acesso ao toque e à aproximação da sua natureza polimórfica entre razão, emoção, questão, provocação, aproximação, indefinição, toque e fuga. Daqui sobressai, naturalmente, também a dimensão estética do desporto. Há uma beleza inerente ao movimento desportivo que só pode ser capturada na sua plenitude quando compreendemos que cada gesto, cada deslocamento, é uma narrativa em si mesmo, uma história contada não com palavras, mas com o corpo. O movimento, seja numa prática desportiva ou artística, como num poemobile, convida-nos a experimentar o tempo de uma forma nova, onde o presente se alonga e o futuro se desenha em traços de espuma ou de luz, de imensidão e vazio.
14
Caro leitor, esta obra é também uma invocação à liberdade e à autenticidade, conceitos tão caros a todos os pensadores que contribuíram para esta obra e a quem profundamente agradecemos. No desporto, como na vida, é no movimento que encontramos a nossa verdadeira identidade. Cada corrida, cada salto, cada nado é uma afirmação da busca por ir mais além, por transcender o limite imposto pela materialidade do mundo, e de, nesse processo, redescobrirmos e aceitarmos também o nosso retorno ao chão e ao limite. Como nos lembra Kretchmar (2023), é preciso coragem para trilhar novos caminhos, e este livro é, antes de mais nada, um convite para que cada um de nós, - e convidamo-lo também a si, estimado leitor - se mova. Que cada um de nós não apenas leia estas páginas, mas que as viva, que permita que elas o transformem, como o desporto transforma aqueles que o praticam. Este é um livro para ser sentido, para ser respirado em cada movimento, em cada virada de página. Porque, no final das contas, movimento com movimento se compreende, e é somente ao nos movermos em direção à essência do desporto que podemos verdadeiramente tactear o que significa ser humano.
Fotografia de “cor pó”, poemobile de Samuel Silva, 2024 (acessível em movimento em: https://vimeo.com/1038158203?share=copy ) Samuel Silva é artista plástico, Professor Auxiliar na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e Investigador integrado no Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade (I2ADS).
Referências Bibliográficas Cunha, A. C. (2023). Atividade Física e Desportiva na Natureza: Retornar à Metáfora Primeira. I Congresso de Filosofia do Desporto de Língua Portuguesa. Coimbra: Universidade de Coimbra. Deleuze, G. (1999). O Ato de Criação. São Paulo: Folha de São Paulo. Kretchmar, S. (2023). A New Road to Travel: Challenges and Triumphs in Developing the Philosophy of Sport. I Congresso de Filosofia do Desporto de Língua Portuguesa. Coimbra: Universidade de Coimbra. Lima, J. C. (2023). A Ética Aplicada e a Bandeira da Ética. I Congresso de Filosofia do Desporto de Língua Portuguesa. Coimbra: Universidade de Coimbra. Nietzsche, F. (1872). O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia das Letras (edição de 2000). Sobral, F. (2023). De Quantos Animais se Faz um Ornitorrinco? A Propósito de Formalismo, Convencionalismo e Identidade do Desporto. I Congresso de Filosofia do Desporto de Língua Portuguesa. Coimbra: Universidade de Coimbra.
15
16
Motricidade Humana: o itinerário de um conceito Manuel Sérgio
17
18
Motricidade Humana: o itinerário de um conceito Manuel Sérgio
Em diálogo com o tempo Quando, em Outubro de 1968, pisei, pela primeira vez, o chão frio e lajeado do INEF (Instituto Nacional de Educação Física), para trabalhar no Centro de Documentação e Informação do Fundo de Fomento do Desporto, o dualismo antropológico cartesiano dominava (os críticos eram poucos), nesta Escola, no meio de fervorosos admiradores. Demais, a Educação Física já era o resultado de longos caminhos percorridos, em Portugal, por nobres espíritos (como esquecer os Doutores Leal d’Oliveira e Celestino Marques Pereira?), em laboriosa evolução intelectual. No Decreto-Lei nº. 30279, de 23 de Janeiro de 1940, que criava o INEF, pode ler-se, no seu Capítulo I, que ele se destinava “a estimular e orientar, dentro da missão cooperadora do Estado com a família e no plano da educação integral estabelecido pela Constituição, o revigoramento físico da população portuguesa”, num “regime de efectiva cooperação entre o INEF e a Mocidade Portuguesa”. A Educação Física ocupava-se das qualidades físicas – o “erro de Descartes” era a sua filosofia predominante. Na Proposta de Lei, de 25 de Fevereiro de 1939, apresentada à Assembleia Nacional, para a criação do INEF português, define-se, assim, a Educação Física: “É uma acção intencional que o homem, devidamente dirigido, exerce sobre si mesmo, pela prática racional sistemática dos exercícios físicos – ginástica, jogos, desportos – metódica e conscientemente executados, como complemento essencial dos restantes meios educativos e higiénicos e tendo como objectivos imediatos a saúde, beleza, força, resistência, disciplina, prontidão, espírito de solidariedade, optimismo, confiança em si, domínio de si próprio, coragem, prudência, carácter, personalidade, tornando o corpo o digno instrumento de uma vontade esclarecida”. Como se vê, uma antropagogia, ou teoria da formação do ser humano, assente no corpo-instrumento e lembrando a cartesiana dicotomia. Segundo o Eduardo Lourenço, estudado por um dos grandes ensaístas da nossa história literária, Miguel Real, o modernismo de Pessoa, Sá-Carneiro e Almada Negreiros retrata o Portugal da Primeira República que, no entender de Pessoa, precisava de um indisciplinador. “Como na obra de Garrett, trata-se de fazer ressurgir Portugal de um estado decadente e passivo, que o poema épico Mensagem cumprirá, presumindo ter chegado a Hora. Em resposta, Portugal e a sua história erigiram o regime político do Estado Novo, isto é, o longo reino de infantilização sistemática da imagem da pátria, o triunfo do folclorismo, da menoridade cívica obrigatória, do paternalismo implacável”(cfr. Miguel Real, Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa, Quidnovi, Matosinhos, 2008, p.78). Em ambiente de “menoridade cívica obrigatória” e em efetiva cooperação com a Mocidade Portuguesa,
19
não surpreende que, até no INEF, tenha irrompido, nas décadas de 40 e 50, uma antipatia insopitável pela prática desportiva, em favor de uma ginástica dita “médica” – que afinal de médica bem pouco tinha… Em Descartes, o eu define-se apenas como res cogitans (coisa pensante). No Traité de l’Homme, o filósofo adentra-se na descrição do funcionamento do corpo, apresentando-o como máquina que contém peças várias, as quais desempenham diversas funções. Enfim, o corpo é máquina e a alma razão. A mudança, na concepção geral do universo, que passou de geocêntrica a heliocêntrica, levou o ser humano a valorizar a sua interioridade consciente e a minimizar a res extensa, ou seja, a extensão e a matéria. Daí que, destituída de subjectividade, a natureza esteja aí, para ser guiada e conduzida pela razão. Quando, em 1632, Galileu publica os Diálogos sobre os dois principais sistemas do Mundo, ele não diz outra coisa. “Mecanizada, a Natureza torna-se uma simples possibilidade de exploração técnica, em breve levada ao máximo pela indústria nascente e logo invasora” (R. Lenoble, História da Ideia de Natureza, Edições 70, Lisboa, 1990, p. 279). Por isso, “a alma serve-se do corpo como o piloto do seu navio, para o dirigir; e a bordo da nave do mundo, por si vazio de intenção e de finalidade, o homem é o piloto através do qual o mundo pode (...) louvar o Criador” (idem, ibidem, p. 267). Compreende-se assim a conclusão de Bacon (1561-1626): “saber é poder” (F. Bacon, Novum Organum: aforismos sobre la interpretación de la naturaleza y el reino del hombre, Editorial Fontanella, Barcelona, 1979, p. 33)., Também na história pregressa da medicina e da educação física, o ser humano desvincula-se da natureza (ou do corpo) para subjugá-la, dado que tanto uma como outra nascem verdadeiramente em Galileu (1564-1642) e Descartes (1596-1650), defensores acérrimos de que o corpo humano é máquina mesmo. “Ao separar rigorosamente a alma e o corpo e ao aplicar a este o mecanismo universal, Descartes anuncia a reificação (ou objectivação) do corpo (...). Ele abre a via à apropriação, experimental e objectiva, pela ciência, do corpo humano, cada vez mais des-sacralizado e des-animado. Prepara, assim, a grande distância, a medicina experimental (Claude Bernard, no século XIX) e a biomedecina contemporânea” (Gilbert Hottois, História da Filosofia, Instituto Piaget, Lisboa, 2003, p. 69). De salientar que Descartes é herdeiro de uma longa tradição, proveniente da Grécia Antiga, que pensava, separadamente, a alma e o corpo, dando à alma uma importância que não reconhecia no corpo. Não se esconde, no entanto, que este dualismo antropológico deixou à posteridade três grandes problemas: um ontológico (a separação alma-corpo) e outro epistemológico, pois que, se tudo o que a mente alcança são as suas próprias representações, como evitar um cepticismo radical? E, por fim, um político, pelo desinteresse e subalternização de qualquer “atividade física”, em relação ao trabalho intelectual. “Desde 1966 que o Conselho da Europa se tem dado ao trabalho de estremar, inconfundivelmente, o desporto-para-todos das outras manifestações desportivas e, em 1971, deitou-se mesmo ao estudo das possibilidades de uma cooperação europeia neste sector, invocando com múltiplos argumentos a urgência de um desporto que desenvolva a capacidade física das gerações presentes e futuras e responda às necessidades de comunicação, de participação e de expressão do homem actual” (Manuel Sérgio, Para uma nova dimensão do Desporto, Direcção-Geral dos Desportos, Lisboa, Junho de 1974, p. 97). Queria eu dizer; há que passar de um modelo onde o desporto de rendimento, no sistema desportivo, merece um
20
culto excessivo, para um outro modelo, pluriforme, onde o desporto escolar, o lazer desportivo e a recreação não pareçam (e sejam) subvalorizados. Também, neste mesmo livro (pp. 267 ss.) da minha autoria, podia ler-se: “Num mundo em que ao ser humano já se não lhe exige a mesma força física, necessária ao seu antepassado troglodita; numa legislação do trabalho em que ser “homem-macho” não representa uma prerrogativa de qualquer espécie, por isso que até o labor da mulher é tão preciso como o do homem; num esquema de valores que terminou de vez com a “metafísica do sexo” e, portanto, com o marialvismo insolente e o feminismo idiota (sobre o feminismo continuam atuais os escritos de Maria Archer, censurados e proibidos, durante o salazarismo, como ofensa à moral familiar e social); numa sociedade em que â formação da adolescente se dedicam os mesmos cuidados que à do rapaz, procurando integrá-la numa existência livre e responsável; num cristianismo que não subordine a esposa ao marido omnipotente, mas os solidarize no diálogo e no respeito mútuo – nesta nova consciência social e em que já não há lugar para uma distinção classista entre o homem e a mulher (porque todos somos humanidade) não é de estranhar uma participação “maciça” da mulher, na prática do desporto”. Para mim, há muitos anos já, a inexistência de desporto feminino, no âmbito dos “brandos costumes” salazaristas, refletia a subjugação da mulher ao poder do homem-macho, no pequeno mundo familiar.
A Educação Física Na Educação Física, a separação das duas substâncias distintas só em plena década de 60 do século passado começa a pôr-se em causa (se bem que Maine de Biran, 1766-1824, e a fenomenologia já o tivessem feito muito tempo antes). A partir do século XIX, já se denunciava o erro de Descartes, mas vincando nele tão-só a incomensurabilidade alma-corpo. “Ainda que considerando sempre a unidade psico-fisiológica do indivíduo, a educação física diz respeito, em primeiro lugar, ao físico, isto é, aos órgãos que são o substracto material da personalidade” (Leal d’Oliveira, “Princípios Gerais de Educação Física”, in revista Educação Física-Desportos-Saúde Escolar, Lisboa, Abril-Julho de 1965, p. 34). Aqui, a unidade psico-fisiológica não transcende o dualismo alma-corpo. Apenas diz que natureza-cultura inter-comunicam. As denúncias da instrumentalização do corpo pelo cogito, o reconhecimento de que deve associar-se “a noção de espiritual a uma experiência intensa de harmonia, à ideia de que o organismo está a funcionar com a maior perfeição possível”; e que esta experiência se desenrola “em associação com o desejo de actuar em relação aos outros, com generosidade e amabilidade”; e que até possa dizer-se “que o espiritual seja talvez uma revelação parcial do impulso por detrás de uma vida vivida em perfeição” (António Damásio, Ao Encontro de Espinoza – as emoções sociais e a neurologia do sentir, Publicações Europa-América, Mem Martins, 2003, p. 317): são posturas recentes. O “erro de Descartes “é bem mais omnicompreensivo, hoje, do que há sessenta anos atrás. Por isso, são muitos os que se licenciaram em Educação Física e relativizam a fixidez e o reducionismo do nome que pretende definir a sua profissão. Com efeito, nenhum deles se vê cartesianamente centrado na educação de físicos. Eu, a partir dos finais da década de 70, depois das leituras que já tinha feito em Teilhard de Chardin e Emmanuel Mounier e das que fiz, já trabalhando no INEF; nos livros de Celestino Marques Pereira, Jean Le Boulch, Pierre Parlebas, José María Cagigal, João Paulo Medina, Nelson Mendes, Adérito Sedas Nunes, Gaston Bachelard, Louis Althusser, Michel Foucault,
21
Maurice Merleau-Ponty e Armando Castro e do convívio que mantive com inúmeros professores de Educação Física e alguns treinadores desportivos – depois de estudo e diálogo constantes, podia fazer minhas as palavras de Renaud Barbaras; “O projeto de dar conta da existência humana, a partir de um modelo mecânico, justifica-se pelo fato de que temos um corpo que, como a palavra o indica, é uma coisa corpórea submetida a leis da mecânica, como qualquer outro corpo (…). Mas o ser humano não é uma máquina (…). Essa dificuldade contribuiu para o desenvolvimento de uma perspetiva mais radical, oriunda do cartesianismo, mas antidualista. Para essa filosofia, a experiência da irredutibilidade da alma é uma ilusão e, portanto, tudo o que pertence à alma deve ser reduzido às leis mecânicas, que não são apenas leis da matéria e, sim, leis de toda a realidade, Mais precisamente, já que toda a realidade é material, já que o próprio sentido da realidade é a materialidade, nossa experiência da alma deve ser reduzida às leis na natureza física em um setor particular, a saber: o do cérebro. Em outras palavras: não há na alma nada além do que há no cérebro. É essa filosofia monista, materialista e reducionista que conduz à definição do próprio ser humano, em todas as suas dimensões, como uma máquina” (AA.VV., O Homem-Máquina, Companhia das Letras, São Paulo, 2003, pp. 65/67). Um dado de relevo: a mesma inquietude intelectual que senti, na Faculdade de Letras de Lisboa, na década de 60 do século passado, encontrei-a também no INEF, principalmente em vários alunos, de heterodoxia retratada no que diziam. E ser heterodoxo, com 20 anos, é ter dúvidas onde os ortodoxos têm certezas… Francisco Sobral, com o brilho intelectual que o caracteriza, deve consultar-se a sua obra em estudo sério sobre a Educação Física. Nele encontrei o seguinte: “Ora, para desenvolver esse pensamento próprio e refundacional não podemos confiar na importação imediata e acrítica do trabalho teórico elaborado naqueles outros domínios, recebidos como que através de uma esteira mais mecânica do que mental, em nome de uma “proximidade”, ou de uma “identidade comum” que de facto não existe nem é sequer desejada pelas partes. Para esta empresa, o reducionismo não tem mais cabimento, visto que se impõe, em primeiro lugar, superar a representação atávica de uma educação física como um desporto reduzido, uma dança reduzida, todos os seus conteúdos tradicionais, enfim, reduzidos, mitigados, miniaturizados, ”à medida da criança”, como se dizia há muitos anos atrás. É neste reducionismo que o senso comum, mais cético ou mais ignorante, se estriba, de forma ostensiva em certas ocasiões, para afirmar a educação física como “uma brincadeira” ou uma frivolidade. “em prejuízo” da formação do aluno para a vida séria do adulto. E é ainda este mesmo reducionismo que o sistema desportivo deplora por não lhe fornecer, já num estado de formação adiantada, a matéria-prima de que é feito o atleta de excelência. E, acossada por todos os lados, a educação física vai balbuciando sem convicção os seus argumentos avulsos e inconsequentes” (Francisco Sobral, Educação Física: Identidade e Essência, Visão e Contextos, Edições e Representações. Lda., 2018, p, 17). Em todo este livro é visível a sageza aliciante de um intelectual que sabe pensar e sabe pensar a sua própria profissão. E, referindo-se â Educação Física, como disciplina escolar, escreve assim, quase no término do seu magnífico livro: “A incipiência das duas principais componentes da disciplina – a desportiva e a não desportiva – só será ultrapassada por um regime dual em que, a partir do terceiro ciclo do ensino básico, o desporto e a atividade física para a saúde (,,,) passem a ser matérias de opção” (pp. 167/168)…
22
Corria o ano de 1983, principalmente com o estímulo do Doutor Henrique de Melo Barreiros (então, presidente do Conselho Directivo do ISEF), decidi redigir currente calamo o meu projeto de doutoramento. Intitulava-se Contribuições de Althusser a uma Epistemologia da Motricidade Humana. Era então professor auxiliar convidado do Instituto Superior de Educação Física da Universidade Técnica de Lisboa. Apresento-o, sem mais delongas, nas páginas subsequentes.
Um projeto de tese I. Tempo de crise Nem sempre encabeçando os grandes temas do nosso tempo, o desporto e a educação física estão, sem dúvida, entre eles. No entanto… “L’éducation physique traverse une crise d’identité. Elle est déchirée entre différentes conceptions, épparpillée en techniques variées, envahie par la pratique sportive, voire confondue avec elle, et il paraît plus difficile que jamais de savoir quelles sont ses finalités. Bref, elle est à la recherche de sa spécificité » (Pierre Arnaud, Les savoirs du corps, Presses Universitaires de Lyon, 1983, p. 13). O desporto, por seu turno, desde a educação, a saúde e o lazer até ao espectáculo, vê aumentar os praticantes que o corporizam e os espectadores que o contemplam, com deleite. E, segundo Pierre Arnaud, já se confunde com a educação física (não precisando qualquer estudioso ser bruxo ou futurologista para adiantar que o desporto, mais tarde ou mais cedo, tomará, em grande parte, o lugar da educação física). Ora, como teoria do conhecimento científico, qual a primeira questão que a epistemologia, no meu entender, levanta à educação física e ao desporto? Àquela pergunta pelo seu património teórico, para além da pedagogia. A este questiona se não é a motricidade humana (quero eu dizer: uma ciência humana) o radical fundante da prática desportiva. O desporto é indubitavelmente uma conduta motora de características lúdico-agonísticas, sujeito a regras universais e visando, dia-a-dia, melhores resultados, mais altas performances. Mas, não é o movimento da competição connosco mesmos, ou com o nosso próximo, também visível na dança, no circo, no jogo desportivo, etc.? Não poderão estas actividades, acompanhadas de outras com o mesmo objecto teórico, constituir uma nova ciência? Descobrir-se-á, em cada uma destas actividades corporais, semelhantes condutas motoras? Há contradições insanáveis, na educação física, se o dualismo cartesiano continuar a fundamentá-la? Tudo isto pretende compreender a presente dissertação, que é mais epistemológica do que axiológica (embora o problema dos valores caiba inteiramente, aqui), com duas espécies de certezas (servindo-me da linguagem de Wittgenstein): a subjectiva, decorrente de convicções pessoais, que um bom par de anos de dirigismo e jornalismo desportivos, de convívio assíduo com professores de educação física e treinadores desportivos, por certo avoluma e aprofunda; a objectiva, proveniente da necessidade de um corte epistemológico, na área da educação física, que manifesta, sem sombra de dúvidas, a sua dimensão esquecida, durante a modernidade, de pedagogia da totalidade humana. Olhando a História da Educação Física, a passagem da ginástica à educação física, em pleno século XVIII, já nos aponta para o primeiro corte epistemológico. 23
Adiantemos agora, sem receio, o segundo, sabendo mesmo que a expressão “educação física” não se encontra na língua alemã, mas “educação corporal”. É a maneira certa, salvo melhor opinião, de mostrarmos respeito pela educação física, reconhecendo assim nela a matriz de novos saberes, de novas pesquisas, de uma nova pedagogia. Ao desmoronamento das metanarrativas deve corresponder, na nossa área de estudo, o surgimento de uma ciência nova – no meu pensar, uma nova ciência do homem. Mesmo que não consigamos “compreender” e “explicar” (porque não há tradição epistemológica, na educação física), ela há-de existir, como via que nos leva do aparente ao estrutural, do simples ao complexo e que nos ensina a pôr em causa a teoria dominante, no campo da motricidade humana, em situação de desporto, jogo desportivo, dança, circo, etc. E a motricidade do “homo faber” não deveria aqui referir-se? Onde se puder estudar uma conduta motora aí deve nascer a ciência da motricidade humana, incluindo aqui os campos da educação e da saúde, onde o desporto se integra perfeitamente.
II. Enquadramento teórico do problema Mas, de questão em questão e tendo sempre presente que nos movimentamos na área das ciências do homem, onde também são visíveis valores, atitudes e comportamentos, partamos à procura da matriz teórica da formação científica que pretendemos fundamentar. De facto, o objectivo primeiro desta tese visa concorrer à construção teórica de uma dada formação científica, a ciência da motricidade humana (cinantropologia?) que, alargada a todos os domínios da motricidade humana, apresenta uma subdivisão lúdico-agonística (o desporto, a dança, a ginástica, o jogo desportivo, o circo, etc.) e uma outra mais de índole comportamental, onde cabem o homo faber (o trabalho), o homo religiosus (a religião entendo-a eu como o conjunto de conhecimentos, de acções e de estruturas com que o homem exprime, de forma corporal, reconhecimento, dependência e veneração, em relação ao Sagrado), o homo culturalis (o homem como agente e fautor de cultura), etc. E assim, para poder provar o surgimento, entre as ciências do homem, da ciência da motricidade humana, eu socorro-me de duas categorias da filosofia althusseriana (onde ressoa, indiscutivelmente, Gaston Bachelard): a problemática e o corte epistemológico. Para Althusser, “la pratique scientifique ne peut poser de problème que sur le terrain et dans l’horizon d’une structure théorique définie, sa problématique, qui constitue la condition de possibilité définie absolue et donc le détermination absolue des formes de position de tout problème à un moment considéré de la science » (Lire le Capital, vol. I, 27). Conhecer uma problemática consiste em conhecer o mecanismo de um conjunto de textos. Poderá mesmo adiantar-se as duas definições seguintes: chama-se problemática às condições de produção teóricas e texto a um determinado tipo de produção. Ora, qual a problemática que manifesta o corte epistemológico (a passagem da ideologia à ciência, ou do sensível ao inteligível) donde emerge a ciência da motricidade humana (ou cinantropologia)? A crise em que descambou o cartesianismo, nomeadamente após Marx, Darwin, Nietzsche e Freud; a fenomenologia e o seu conceito de intencionalidade (Husserl) e o de corpo (Merleau-Ponty); o personalismo de E. Mounier; a Evolução de Teilhard de Chardin; a ontologia antropocêntrica de Heidegger e Sartre; a antropologia estrutural, onde o ser humano agoniza
24
como criatura efémera e recente; o desenvolvimento da medicina de carácter psicossomático e das terapias psicomotoras; a extensão abarcante do desporto e o estudo sistemático que o acompanhou, nos vários domínios do saber; três figuras tutelares: Wallon, Buytendijk e Piaget; o reducionismo biologista de J. Monod; a mecânica quântica, a biologia molecular e a hipótese da hélice dupla para a estrutura do DNA; a revolução etnológica e a revelação etológica (expressão urilizada por Edgar Morin); a “teologia da morte de Deus” (frontalmente anti-gnóstica e anti-deista e em claro antagonismo, em relação a todos os dualismos antropológicos e metafísicos); a generalização e aumento dos tempos livres, resultantes do progresso tecnológico e das lutas das classes laboriosas; a contra-cultura, centrada no princípio do prazer; a descolonização de povos sujeitos, pelas potências coloniais, à mais completa negação da Declaração Universal dos Direitos do Homem; a custosa mas efectiva libertação da mulher; uma educação sexual inovadora; a emergência das ciências do homem; a crise em que se debate a educação física, dado o seu fisiologismo positivista – criaram o espaço para um conjunto estruturado de questões, donde o corpo em geral e a motricidade em particular passaram a merecer particular atenção teóricocrítica. É óbvio que a motricidade não existe por si só. Mas não é menos certo que as condutas motoras revelam, não só aspectos biomecânicos, fisiológicos, informacionais, linguísticos, semiológicos, mas também uma cultura e até (como diria Marcuse de O Homem Unidimensional) a “linguagem da autoridade total”. Assim, nada falta à ciência da motricidade humana, para uma apropriação cognitiva do real, no âmbito das ciências do homem (ou ciências sociais e humanas, se naquela expressão há um assomo qualquer de machismo). Portanto, o que em primeiro lugar se pretende, nesta dissertação, é provar a existência do corte epistemológico, revelador de uma ciência nova, em consonância com a própria história actual da representação do corpo e da história das ciências. E, se pode haver uma ciência da motricidade humana, há de certo uma epistemologia disciplinar que estuda as condições e os critérios formais de cientificidade da formação científica em questão. O apoio fundamental, solicitado a Louis Althusser, deve-se ao facto de, neste autor, se conjugar a complementaridade de duas análises: a epistemológica e a política. Para mim, é indissociável o progresso científico e a social democratização e socialização progressivas da sociedade. Uma ciência distingue-se por dois critérios: pela sua perfeição formal e por fornecer uma explicação, o mais correcta possível, dos fenómenos, em fase de investigação. Só que também a ciência é um fenómeno social. Será também de referir que prefiro a expressão “ciência da motricidade humana” a “ciência do movimento humano”, já que a motricidade é (segundo a fenomenologia) movimento com intencionalidade e não movimento tão-só, no movimento do ser humano. Ora (um exemplo) o que é o desporto senão movimento com intencionalidade?
III. Louis Althusser: porquê? Apresentado o objectivo primeiro da dissertação (provar a existência de uma nova ciência, a ciência da motricidade humana ou cinantropologia, que necessariamente integrarei nas ciências do homem, já que também ela procura a compreensão do homem pelo homem), passo a revelar os motivos por que achei legítimo transpor as linhas-mestras da filosofia althusseriana para o estudo
25
da ciência da motricidade humana, ou cinantropologia. Para além do valor do pluralismo teórico (Feyerabend), isto é, factos há que só se tornam manifestos, no confronto com outras teorias que, a priori, lhe parecem estranhas – o autor de Lire le Capital traz-nos um rigor científico, uma consciência filosófica, um esforço constante para contradizer as ingenuidades, as ilusões e as deformações inconscientes que, ao empreender-se um trabalho teórico com alguma validade científica, me parecem oportunos e portadores de algum futuro. Althusser move-se no universo da leitura. Uma leitura, porém, que não é literal, mas sintomal. E sintomal, porque o seu conteúdo nasce de uma determinada problemática implícita no texto. O paradigma de Kuhn não ressoará a problemática bachelardiana-althusseriana? Será um tema fascinante a invocar. No entanto, as problemáticas alteram-se com o irromper de novas descobertas científicas. E é a categoria de corte epistemológico a reflectir esta mutação. Quatro teses identificam a limitam esta categoria advinda de Bachelard e retomada por Althusse: o corte epistemológico sublinha uma relação entre uma problemática científica e uma problemática ideológica; consagra a linha de fractura entre as duas problemáticas; não se trata de um acontecimento pontual, mas de um corte incessante; o corte epistemológico é específico do campo teórico. E se as teorias se transformam (e porque só a prática transforma) – poderemos rastrear uma prática teórica? A prática teórica está aí, na prática científica e na prática filosófica. A apropriação do real pelas ciências supõe a transformação do real, em conceitos definidos e articulados numa teoria. Trata-se, não de uma tradução servil, mas de um processo de transformação que desemboca na distinção fundamental entre objecto real e objecto teórico A prática filosófica manifesta-se na produção de teses respeitantes à ruptura entre a ciência e a ideologia. Ela não produz conhecimentos, mas categorias. Além disso, no domínio teórico, “toute philosophie prend partie, en fonction de sa tendence fondamentale adverse” (Lenine et la philosophie). O corte epistemológico assinala a emergência de um conhecimento científico novo. Com Marx, emerge a ciência da história. Qualquer grande começo científico, porém, provoca transformações pronunciadas. Trabalhar na teoria conduz sempre a uma tomada de partido. Demais, o conceito-chave de toda a prática filosófica é este: intervenção! A intervenção filosófica labora num campo específico: o científico e o político. O científico, traçando a demarcação entre a ciência e a ideologia; o político, imbuindo a prática social das categorias e das teses, que visam a consolidação de uma das classes em luta, no coração da dialéctica objectiva. Althusser assevera que Marx aprendeu em Hegel a condição de todo o trabalho teórico efectivo: pensar o seu objecto como síntese de numerosas determinações, onde a afirmação, a negação e a negação da negação se interfecundam e relacionam. Por isso, a partir de Hegel e de Marx, a contradição não é mais um obstáculo do pensamento, mas o seu objecto necessário. Por outro lado, analisar (e resolver) dialecticamente um problema é analisar a totalidade em que esse problema se insere e a totalidade que esse mesmo problema é. De facto, os conceitos althusserianos de problemática, de corte epistemológico, de prática científica, de prática filosófica, de dialéctica, de totalidade, de ideologia podem fundamentar uma epistemologia da motricidade humana: 1. Apontando a linha de fractura entre o científico (as condutas motoras e as suas constantes tendenciais, as situações motoras e as suas normas e lógica própria) e o ideológico. 26
2. Relembrando que praticar a ciência da motricidade humana (CMH) consiste em praticar um trabalho de transformação que vai de um pensamento abstracto, compreendendo uma diversidade definida de elementos, até um pensamento concreto, compreendendo a unidade definida desta diversidade. 2.1. Definir a motricidade é encarar o movimento, não só nas suas estruturas anatómicas e funcionamento orgânico, mas também como expressão de uma personalidade global, de uma cultura, de uma sociedade (o que se esquece com frequência, na análise do espectáculo desportivo e no treino que o antecede). 3. Sublinhando que o corte epistemológico (isto é, a passagem do ideológico ao científico, do sensível ao inteligível) vai mais além do traçado do criticismo kantiano, onde se procura elucidar tão-só as suas condições de possibilidade, porque é toda uma problemática nova que emerge e se desenvolve. 3.1. O corte, na educação física, é corporizado, pelo que me foi dado observar (não coloco de lado a existência doutros nomes), por Jean Le Boulch, Georges Vigarello, Pierre Parlebas, Nelson Mendes, José María Cagigal, João Paulo Medina e Henrique de Melo Barreiros. E anunciado, entre outros, por Celestino MarquesPereira e José María Cagigal. 4. Salientando que toda a “grande filosofia” (Platão, Descartes, Kant, Marx) nasce da emergência de uma nova ciência, a filosofia não produz conhecimentos científicos. Ela é, sobre o mais, a teoria de uma ruptura. No caso da ciência da motricidade humana, ruptura com a tradição dualista, racionalista, positivista, incapaz de percepcionar a totalidade humana, que é a síntese de três dimensões: o físico, o biológico e o antropossociológico. 5. Assinalando (Pour Marx, 508) que a totalidade é a unidade da complexidade; é um sistema de relações; está em permanente devir porque o anima um sem número de contradições. “Dire que la contradiction est motrice c’est donc dire qu’elle implique une lutte réelle, des affrontements réels, situés en des lieux précis de la structure du tout complexe » (Pour Marx, 222). E que se desenrola ao nível de todo o modo de produção e não só no mundo das idéias, ou no campo estrito da biologia. 5.1. A ciência da motricidade humana não escapa à influência da práxis social. O conceito de totalidade humana assim o exige. Por isso, esta ciência quer reivindicar o respeito pela “natureza humana” (que eu sei de difícil definição), com a rejeição concomitante do doping e de todas as formas de manipulação do atleta, do bailarino, do aluno, etc. A violência verbal e física também será aqui de citar. 5.2. A ciência da motricidade humana, cujo paradigma é indiscutivelmente a motricidade humana (ou, se se for mais rigoroso, as condutas motoras) refere e comprova o conceito unitário corpo-mente-mundo. Daqui que, por exemplo, a cultura desportiva não seja um mero culto do passado, mas a invenção de um desporto à medida da originalidade e da esperança e das utopias de uma comunidade.
27
6. Como toda e qualquer temática antropológica, na perspectiva de Althusser a motricidade humana não se põe em abstracto. Diz respeito a homens concretos que vivem em situações concretas. Ela não é nunca um conceito neutro. A sua tematização há-de aflorar e reflectir o modo de produção. 7. Em Pour Marx, lê-se: “L’idéologie (comme système de représentations de masse) est indispensable à toute société pour former les hommes, les transformer et les mettre en état de répondre aux éxigences de leurs conditions d’existence » (p. 242). Portanto, a ideologia constitui uma instância necessária do modo de produção. Tal significa que não há uma ideologia genérica, um puro transcendental, mas ideologias concretas que, no entender de Althusser, não são outra coisa do que ideologias de classe. 8. Descortina-se, assim, uma matéria-prima básica em qualquer teorização, “um modo de produção do conhecimento”, que se encontra ancorado em condições históricas concretas. A ciência da motricidade humana, ao recusar o dualismo cartesiano, recusa também a sociedade dualista do rico e do pobre, do senhor e do servo, do homem e da mulher, etc., que afinal Descartes anuncia e de que é produto, já que a burguesia começava a despontar.
IV. Metodologia a utilizar na investigação Se o objectivo primacial desta tese é a tentativa de aplicação de alguns conceitos althusserianos ao domínio da epistemologia da motricidade humana, tentando provar a existência de uma nova ciência, que possa transformar-se no novo paradigma desta Escola, tal projecto implica: • análise dos conceitos althusserianos atrás citados e das críticas por eles suscitadas; • análise das condições de aplicação desses conceitos ao domínio das ciências do homem (ou ciências humanas); • análise das condições de aplicação desses conceitos ao domínio da ciência da motricidade humana, a qual não se confunde com um positivismo e um pedagogismo, em que pretendem encerrá-la; • tentativa de reflexão crítica e de reelaboração e reformulação das linguagens, normalmente utilizadas na impropriamente designada “educação física”, a partir do trabalho epistemológico acima enunciado (ocorre-me, neste passo, o Almada Negreiros de A Invenção do Dia Claro: “nós somos do século de inventar as palavras que já foram inventadas”). Para além da minha prática, como dirigente desportivo, jornalista desportivo e pessoa que mantém um convívio dialogante com alguns dos melhores treinadores do nosso desporto, vou, para já, fundamentar-me nas seguintes leituras:
28
Louis Althusser: • Montesquieu, la politique et l’histoire, PUF, Paris, 1959 • Pour Marx, Maspéro, Paris, 1965 • Lire le Capital (I e II volumes), Maspéro, Paris, 1968 • La revolución teórica de Marx, Siglo XXI, México, 1970 • Lénine et la philosophie, Maspéro, Paris, 1972 • Réponse à John Lewis, Maspéro, Paris, 1973 • Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado, Editorial Presença (Lisboa) - Livraria Martins Fontes (Brasil), 1974 • Escritos, Laia, Barcelona, 1975 • Curso de Filosofia para Científicos, Laia, Barcelona, 1975 • Para una crítica de la prática teórica, Siglo XXI, Madrid, 1974 • Éléments d’autocritique, Hachette, Paris, 1974 • Posições, Livros Horizonte, Lisboa, 1977 • A Transformação da Filosofia, Estampa, Lisboa, 1981 Gaston Bachelard: • L’épistémologie, PUF, Paris, 1971 • Le droit de rêver, PUF, Paris, 1970 • La Dialectique de la Durée, PUF, Paris, 1972 • Le Rationalisme Appliqué, PUF, Paris, 1970 • Le Matérialisme Rationnel, PUF, Paris, 1972 • L’Activité Rationaliste de la Physique Contemporaine, PUF, Paris ».
A passagem do físico ao vivido Este projecto, por mim assinado, levou a data de 3 de Outubro de 1983. Deixei-o nas mãos do Prof. Melo Barreiros que mo tornou, dias depois, com o rosto contente, onde lampejava um sorriso. De facto, fora ele a propor-me uma tese sobre o novo paradigma da Escola onde trabalhávamos; afinal, sobre uma nova autonomia disciplinar. Quase não queria acreditar na boa fortuna que me caía nas mãos, dado que o tema já me fascinava, antes mesmo de conhecer o Prof. Melo Barreiros. Não foi por questões profissionais, pelo rodopiar ladino do mais despudorado oportunismo, por contextos institucionais favoráveis, que me deitei ao repensar epistemológico da Educação Física. Com efeito, no meu livro que a Direcção-Geral dos Desportos editou, em Junho de 1974, intitulado Para uma nova dimensão do Desporto, com artigos por mim publicados,
29
na Imprensa, antes da Revolução dos Cravos, encontra-se um pequeno e nebuloso (assim hoje o vejo eu) ensaio sobre a Ciência do Movimento Humano, mas donde rompem frases, como esta: “A ciência do movimento humano, na qual deverão integrar-se os jogos, a ginástica e os desportos, é inseparável do conceito que se tem do homem e da sociedade”. E mais adiante, cintilando certezas: “Ciência do Movimento Humano, ou seja, Ciência do Homem, os conceitos de coordenação psicomotora, de ideo-motricidade, de esquema corporal, de motivação, de aprendizagem, de treino, de forma, de habilidade, de hábito, de táctica, de estratégia, etc., etc. – são, antes de mais, problemas filosóficos, em que o corpo nos aparece como concretização espácio-temporal de uma sociedade, de uma visão do Mundo, do Homem e da Vida”(p. 273). Na revista Ludens (OutubroDezembro de 1979), editada pelo ISEF, onde exercia a docência, publiquei um ensaio, denominado “Prolegómenos a uma nova ciência do homem”, onde brilha, como pequenina estrela a fulgir lá no alto, a certeza que o movimento humano, intencional e em grupo, “pede uma ciência nova que virá satisfazer as necessidades de um melhor conhecimento do Homem”. E chego mesmo a dizer: “A motricidade, principalmente em situação de jogo e desporto, forma o conteúdo desta nova Ciência do Homem” (pp. 135/136). Nessa mesma altura, em conversas de corredor e nas aulas, já eu manifestava abertamente desafeição pelo estreito fisiologismo da educação física e do treino desportivo, entendidos como educação ou treino do corpo-instrumento, e semeando assim antipatias que, ainda hoje, perduram, designadamente entre alguns que me olham com uma fixidez de pedra. Os meus estudos sobre Bachelard e Althusser; e o que a Faculdade de Letras de Lisboa me deu, sobre Descartes e Husserl e, circunstancialmente, sobre Sartre, Jaspers e Merleau-Ponty, as leituras de um autor que ainda me acompanha: Teilhard de Chardin – permitiam-me a energia moral suficiente para, epistemologicamente, passar do físico ao vivido, sem tropeçar nem titubear, e assim tentar refazer o paradigma por que se regia o ISEF. A educação física tradicional, que é filha do racionalismo moderno, parecia-me (parece-me) encanecida, doente. E não sou eu só a dizê-lo. Pierre Parlebas, no seu Jeux, Sports et Sociétés – lexique de praxéologie motrice, (INSEP, 1999, pp. 17/18) não hesita : « L’éducation physique traverse aujourd’hui une crise profonde qui la fait vaciller tant des ses fondements que dans ses assises institutionelles ». No entanto, eu não pretendia, nem pretendo, criar respostas novas a velhos problemas. Não me vai bem igualmente, aos 90 anos, um exibicionismo pueril. O que desejo, sobre o mais, é a transformação da sociedade, da política, da cultura, de que a ciência da motricidade humana seja, nos limites da sua área disciplinar, causa e efeito. No Brasil, a expressão Educação Física institucionalizou-se e é hoje o sinal de uma profissão que se impôs na sociedade brasileira, pelo saber, pela ética, pelos méritos dos seus profissionais. Mas nada impede que a Motricidade Humana, ou seja, a pessoa no movimento intencional e solidário da transcendência, seja o seu objecto de estudo... Pelo Decreto-Lei 675/75, concretizou-se a integração desta Escola, na Universidade Técnica de Lisboa (UTL), embora as críticas, com algum arcaísmo à mistura, do Governo, da Junta Nacional de Educação e da própria Universidade. O Prof. António Simões Lopes (Vice-Reitor da UTL, com funções de Reitor) reavivou, na sessão solene, comemorativa do décimo aniversário do ISEF, a caudalosa demonstração das reticências (e, aqui e além, antipatias) ao ingresso apressado do ISEF, na UTL: “Estamos hoje esquecidos da forma pouco ortodoxa, para não dizer pouco universitária, como o ISEF nos apareceu, na Universidade; não creio de resto possível hoje a falta de ortodoxia de então e a prová-lo está o trabalho em que recentemente nos envolvemos de motu proprio, quando se levantou a hipótese de aumento do número de escolas da Universidade 30
Técnica”. Mas, que o voluntarismo inicial já se esbatia no tempo e na distância parecia evidente ao orador que prosseguiu, firme e decidido: “Estamos, com efeito, esquecidos da forma como o ISEF nos apareceu; e, se o estamos, ao ISEF se deve, e só ao ISEF, pelo seu trabalho permanente, persistente, cientificamente sério e digno”. E, porque era cientificamente sério e digno, o trabalho epistemológico de que Melo Barreiros me incumbiu, cônscio de que eu me actualizara, no que à filosofia das ciências dizia respeito. E (passe a imodéstia) de que era autónomo, no agir e no pensar. Então, poderia fazer minhas as palavras do Roger Garaudy de A Alternativa – modificar o mundo e a vida, (Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1972, p. 22): “A brusca mutação que está em vias de se operar, desde meados do século XX, marcada pelo desenvolvimento do computador, da energia atómica, da televisão, não tem medida comum com a que foi provocada pelo aparecimento da máquina a vapor, no final do século XVIII, ou da Imprensa no Renascimento (...). Nenhuma crise de crescimento desta importância se produziu, entre o fim do Neolítico e os meados do nosso século XX”. Um dia, embora não consiga já distinguir os pormenores desta conversa, Melo Barreiros informou-me que o Conselho Científico do ISEF convidara o Prof. João Evangelista Loureiro a orientar a minha tese de doutoramento. De imediato, procurei este universitário ilustre e vice-reitor da Universidade de Aveiro, que já tinha entre mãos o texto, atrás referido, do meu projecto de tese, facultado pelo Conselho Científico. Singularmente afável, Evangelista Loureiro perfurou a noite de muitas das minhas dúvidas: “A tese tem pernas para andar! É original! Eu, no entanto, não centrava a tese só no Louis Althusser e procurava dar uma visão de conjunto da epistemologia actual”. E, apoiado na sabedoria do meu orientador, meti ombros à tarefa, com o rigor e a humildade possíveis, dando um novo nome (e uma orientação nova) ao trabalho: Para uma epistemologia da motricidade humana. Reverto a João Evangelista Loureiro: percorria o Outono da vida, sempre bondosamente hiperbólico. Media-me tão-só pela medida do seu afecto: “Gostei da interpretação que fez do Bachelard. A sua tese vai ser aplaudida pelo júri”. E ria-se imaginoso, divertido, cavaqueador. Faleceu, de morte súbita, em Março de 1985. Só eu sei a falta que me fez o seu respeito ilimitado, pelo meu espaço e tempo concretos. Sobre a terra que o cobriu, de certo cresceram árvores frondosas e voaram pássaros a toda a rosa-dos-ventos da cultura! E, com mais ou menos dificuldade, beneficiando, talvez (como Evangelista Loureiro classificava a minha prosa) de uma “quase luxuosa abundância vocabular” e ainda da licenciatura em Filosofia, lá consegui anunciar a criação de uma nova ciência, a ciência da motricidade humana (CMH), à custa, principalmente, do que aprendera na epistemologia e na fenomenologia.
O meu doutoramento Doutorei-me, em 6 de Junho de 1986, com distinção, mas... sem louvor! No júri, salvo melhor opinião, julgo ter havido quem não me perdoasse que tivesse permanecido, na difícil trincheira da heterodoxia, tentando desconstruir a expressão “educação física”, porque o termo “físico”, nesta área, é de um reducionismo anacrónico, para além de poder transformar-se num verdadeiro “obstáculo epistemológico”. Sem esquecer os meus inúmeros limites, parece-me evidente um caciquismo, também na universidade, privado de sentido histórico, que só sabe defender os seus privilégios e que vai protelando, aqui e além, qualquer acto criador. No entanto, fui aprovado, por unanimidade! O que me bastou, pois outros acontecimentos me trouxeram grandes alegrias, 31
parecendo subir das raízes de mim. O Decreto-Lei nº. 382/86, de 14 de Novembro, assim rezava: “O Instituto Superior de Educação Física, da Universidade Técnica de Lisboa, tem por objecto principal o desenvolvimento através da motricidade” e acrescentava que as atribuições deste Instituto (entre as quais se contavam a formação académica, conducente à concessão dos graus de licenciado, mestre e doutor) se dirigiam à Educação Física, ao Desporto, à Dança, à Educação Especial e Reabilitação e à Ergonomia. Da minha pouquidade, que nunca foi quieta e conformada, assisti à definição do objecto de estudo do ISEF, a Motricidade, através do Decreto-Lei nº. 382/86, de 14 de Novembro e recebi convite, nesse mesmo ano, do Doutor João Batista Andreotti Gomes Tojal (que mo foi transmitido pelo Doutor Wagner Wey Moreira), director da Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp-Brasil), para assumir funções de professor visitante, na sua Escola. Reticente em princípio, aceitei depois de boa mente o convite, beneficiando do estímulo da família e do próprio Ministro da Educação, ao tempo o Doutor João de Deus Pinheiro. Demais, tanto o Reitor daquela universidade brasileira, Doutor Paulo Renato da Costa e Souza (o Ministro da Educação de todos os Governos de Fernando Henrique Cardoso), como o Reitor da Universidade Técnica de Lisboa, Doutor António Simões Lopes, ambos economistas, pareciam manter relações de amizade e os entraves administrativos e burocráticos depressa foram ultrapassados. E entre 7 de Março de 1987 e 13 de Dezembro de 1988 fui professor, na Unicamp. Quatro anos antes, em Setembro de 1983, pisei solo do Brasil, pela primeira vez, para participar num Congresso do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE), onde proferi uma conferência assim titulada: “O racionalismo na Medicina e na Educação Física”. Foram cicerones da minha visita os Doutores Lino Castellani Filho (que integrou o primeiro Governo do Presidente Lula) e Laércio Elias Pereira. Depressa me enamorei do corpo de sereia daquele país. Até hoje! E os seus escritores? E os seus músicos? Ingrato seria se não mencionasse, aqui, Machado de Assis, Guimarães Rosa, José Lins do Rego, Manuel Bandeira, Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e a deliciosa Clarice Lispector e os ousados Tristão de Ataíde e Darcy Ribeiro. Quase sempre os lia, na casa que alugara em Campinas, sob o fundo musical de Tom Jobim, de Chico Buarque da Holanda, de Caetano Veloso, de Gilberto Gil, de Milton Nascimento (e da minha inseparável Mercedes Sosa), entre outros. Quase sempre os lia, com o verde e amarelo do meu coração a nascer. Não escondo, neste passo, a carta que escrevi ao Lino Castellani, datada de 3 de Outubro de 1983, onde deixei escrito: “A vossa cordialidade seduziu-me – sentimento inalterável, mesmo diante da ousadia das minhas ideias acerca da Educação Física (EF). Mas, se bem atender, eu não me refiro em primeiro lugar à EF, porque ela é o produto do dualismo antropológico racionalista, que está defunto, como se sabe. Os três pilares em que assenta a minha filosofia são: o conceito hegelo-marxista de totalidade; a intencionalidade da fenomenologia; e, sobre o mais, o cristão amai-vos uns aos outros como eu vos amei. A minha CMH resulta de um filosofar”. Ou seja, quando assumi funções docentes na Unicamp, era conhecido o meu pensamento.
A FEF/UNICAMP Como nunca leccionei com a pompa e circunstância de qualquer magisterdixismo, cultivando uma convivência dialogante com colegas e alunos (como esquecer a “douta ignorância”
32
de Nicolau de Cusa?); porque procuro, com justa expectativa, a ciência e a filosofia em que o tempo se desentranha – não quis “perder tempo” e procurei propor aos meus alunos brasileiros da FEF/UNICAMP a leitura de textos (como já o fizera no ISEF de Lisboa) donde ressaltasse a ideia de crise, no que à modernidade diz respeito, e a necessidade de um novo paradigma, tanto para a Educação Física como para o conhecimento em geral. Descartes, Locke, os positivistas, a fenomenologia (e, aqui e além, a hermenêutica), a teoria crítica e Bachelard e Foucault e Popper e Kuhn e Feyerabend chegaram aos alunos, em sínteses que o obscuro aprendiz de filósofo, que eu sou, congeminou e compôs do modo mais inspirado e sugestivo que lhe foi possível. O Homem não é um ser passivo num mundo feito, mas o construtor de um mundo por fazer. E assim, se não perdia tempo, eu precisava de tempo para demonstrar a oportunidade da Ciência da Motricidade Humana (CMH), de que a Educação Física seria a pré-ciência. Ocorria-me o Princepezinho: “é o tempo que perdeste com a tua rosa que faz a tua rosa tão importante”. Simultaneamente, apresentei à Direcção da FEF/Unicamp um documento que seria discutido por todos os professores, com o escrutínio e a recensão dos vícios característicos do dualismo cartesiano, donde irrompe a Educação Física, e sublinhando o nascimento da CMH, ou de qualquer outra ciência social e humana, dado que não considero “intocável” o meu saber epistemológico e o meu esforço heurístico e hermenêutico. A passagem do físico à motricidade humana, ou do simples ao complexo; a recusa do afastamento entre a res cogitans e a res extensa, que tinha implícito uma lógica de domínio da razão sobre a natureza; a definição de “motricidade” e de perceção, em Merleau-Ponty; o conceito de Evolução em Teilhard de Chardin; a descontinuidade na história das ciências – facilitava o surgimento da CMH e da conduta motora ou acção (estou a lembrar-me de Blondel) como paradigma de uma área do conhecimento. O director João Tojal, Lino Castellani Filho, João Batista Freire (um dos homens intelectualmente mais brilhantes que a vida me deu a conhecer), Wagner Wey Moreira, Silvana Venâncio, Ademir de Marco, João Paulo Subirá Medina e alguns mais, todos eles professores da Faculdade de Educação Física da Unicamp, partindo do documento que eu lhes propunha, enriqueceram-me com contribuições várias, quer concordando quer discordando e obrigando-me, por isso, a estudo aturado. E Regis de Morais, José Dias Sobrinho, Ubiratan d’Ambrósio, respeitados professores da Unicamp, e Anna Feitosa que descia do Recife até S. Paulo para comigo dialogar, também me diziam, cada qual à sua maneira, que a CMH estava cada vez menos murada num espaço exíguo. Durante os anos de 1987 e 1988, percorri boa parte do Brasil e, em algumas universidades do país irmão, encontrei eruditos cenáculos onde não se descortinavam rançosos sobreviventes do racionalismo e do positivismo. Afinal, eu ressoava Merleau-Ponty, quando escreve: “A unidade dos sistemas físicos é uma unidade de correlação, a dos organismos uma unidade de significação. A coordenação pelas leis, tal como a prática do pensamento físico, deixa nos fenómenos da vida um resíduo que é acessível a um outro género de coordenação: a coordenação pelo sentido” (Existence et dialectique, PUF, Paris, 1971, p.51). Ora, o sentido pressupõe o tempo e a intencionalidade do sujeito. E na intencionalidade não se escuta o murmúrio indistinto do projecto? Ao regressar a Lisboa, com saudades que ainda me não deixaram do país irmão, em carta de 16 de Dezembro de 1988, salientei ao Doutor Henrique de Melo Barreiros o que me parecia dever realçar: 1- Tendo percorrido o Brasil, de Norte a Sul, posso adiantar, sem receio de errar, que não há praticamente intercâmbio universitário, entre a Educação Física brasileira e a portuguesa.
33
O ISEF/UTL pode assumir, neste intercâmbio, uma presença tutelar, antes que outros o façam mais sôfregos de notoriedade do que munidos do inseparável complemento de cultura que a nossa Escola apresenta e de que vive. O Despacho Reitoral, de 26 de Outubro último, consignando o “desenvolvimento humano, através da motricidade, pelo estudo do Corpo, na interacção dos mecanismos biológicos com os valores sócio-culturais”, como objecto de estudo da nossa Escola, tirou as dúvidas a quem as tinha: houve mesmo nela um corte epistemológico e institucional. 2- Além das professoras Anna Feitosa e Vera Luza Lins Costa e do dr. Ubirajara Oro, pessoas de bom nível intelectual e das quais já lhe dei notícia pormenorizada, o dr. João Tojal, director da FEF/Unicamp, pretende também doutorar-se no ISEF/UTL e solicitou, para tanto, a minha orientação. Parece-me aconselhável aproveitarmos o facto para estabelecermos com a FEF/Unicamp relações privilegiadas. Demais, esta Faculdade já ganhou prestígio inatacável, na sua Pátria. Com ela, teremos acesso fácil a outras universidades brasileiras. João Batista Freire, Lino Castellani Filho, Wagner Wey Moreira, Ademir de Marco e Nelson Marcelino são cinco professores da FEF/Unicamp, que merecem , de igual modo, uma relação especial, pelo valor que lhes é reconhecido em todo o Brasil. Manuel José Gomes Tubino e Lamartine Pereira da Costa são os doutorados em Educação Física brasileiros de mais seguro prestígio internacional. Mauro Betti, Ana Márcia Silva, Silvino Santin, Carol Kolyniak Filho, Elenor Kunz, Vera Lúcia de Menezes Costa, Go Tani, Valter Bracht, Rui Krebs, Celli Nelza Zulke Taffarel são também considerados “mestres de pensar”, na Educação Física brasileira. Se devemos distinguir a ciência institucionalizada da ciência em construção, no Brasil há condições únicas para a motricidade humana se implantar. A recionalidade poética predomina naquele povo e é com racionalidade poética (ocorre-me, neste passo, o Gaston Bachelard) que se constrói o Futuro. 3- Com o meu regresso a Portugal, volto a insistir na criação da disciplina de Epistemologia da Motricidade Humana. A nossa área de estudo é indiscutivelmente a Motricidade Humana. Mas o corporativismo, a tradição, o comodismo vão obstaculizar, de certo, os estudos epistemológicos. Segundo Fernando Namora, “tendemos sempre para as simplificações e os maniqueismos. São confortáveis. Assim, há os que pensam que há os intocáveis e os prevaricadores; há os escribas maiores e os escribas menores. E neste catalogar sumário praticamos um terrorismo acobertado por detrás da bandeira de sacrossantas intenções” (Jornal sem Data, p. 68). A epistemologia, porque interroga a cientificidade dos paradigmas, vai ser olhada de soslaio. Há quem, teimosamente, não aceite pôr em causa o que pensa e o que faz. Tenho receio que, por isso, a nossa Escola possa converter-se numa paróquia de devotos de antigos dogmas. A nossa Escola que tem condições ideais para ser uma verdadeira comunidade científica... 4- No dealbar do ano de 1989, podemos escrever sem receio que já se desenha um novo modelo de saber. A metodologia holística ou sistémica há-de fazer rupturas, no interior da Educação Física. Como esta que V.Exa. e eu defendemos: a passagem do físico à motricidade que não confundo com movimento tão-só, mas movimento com intencionalidade. Este surge como a mudança de lugar do corpo humano, num espaço e tempo determinados, com as características de um processo objectivo. Como V.Exa. sabe, procuro fundamentar a motricidade humana,
34
principalmente na fenomenologia, ou melhor: na intencionalidade e no mundo da vida e na epistemologia. Mas, sem entender a filosofia, como o fez Husserl, como simples teorização ou pura contemplação. E assim teorizo a motricidade como a energia para um contínuo processo de superação, de transcendência, sem narcisismos de qualquer espécie, porque a minha superação há-de supor um contexto antropológico (e político) global, sem alienação, nem exploração, nem marginalização. Que o mesmo é dizer: eu caminho fenomenologicamente, para além da fenomenologia. No entanto, a intencionalidade no mundo da vida, visando a transcendência, trouxe-me o fundamento radical da nossa área de estudo. A Educação Física nasce do racionalismo. Eram racionalistas de apurada cultura os seus pioneiros. Será preciso lembrar, em Portugal, os nomes dos Doutores António Leal d’Oliveira e Celestino Marques Pereira? Não tem de envergonhar-se do seu Passado a Educação Física. Só que o racionalismo foi superado pelo “processo histórico”. 5- Pode também V.Exa. objectar que há, nas minhas propostas, uma propensão demasiado teórica, desprezando a dimensão empírica, o trabalho de campo, a pesquisa laboratorial. Eu só procuro alertar para a crise do paradigma científico racionalista e positivista e, ao mesmo tempo, para a necessidade de um trabalho inter e transdisciplinar, na nossa Escola. É evidente que a construção de um paradigma novo supõe a existência de uma comunidade científica. Daí que finde esta minha carta, desejando possa V.Exa. ser o coordenador da comunidade científica em que deve transformar-se o ISEF/UTL.
Um Centro de Lógica, Epistemologia e História das Ciências Não dei o tema por esgotado e, em 21 de Março de 1989, fazia notar ao Grupo de Ciências do Comportamento Motor, a que pertencia, que deveria criar-se um Centro de Lógica, Epistemologia e História das Ciências, no ISEF/UTL. Muito haveria a estudar, nele, não só em temas marcadamente epistemológicos, mas também noutros, tais como “Fenomenologia e Percepção em Maurice Merleau-Ponty”, ou “Fenomenologia e Hermenêutica”, “O Corpo-Objecto e o Corpo-Sujeito”, “A Ciência da Motricidade Humana, uma nova ciência humana”, “O treino desportivo e a totalidade humana”, “Motricidade Humana e Transcendência”, etc., que nos ajudariam a ver na motricidade, mais do que um acto, um status ontológico que dá sentido à vida humana. A frieza que rodeou a proposta impediu que o sonho se concretizasse. Com uma pertinácia (temperada de humildade), deixei nas mãos do Doutor Francisco Madeira que era, no dia 26 de Abril de 1989, presidente do Grupo de Ciências do Comportamento Motor, um documento que assim rezava: 1- Se o especialista, como dizia com graça Chesterton, é o que sabe mais e mais de menos e menos, até que sabe tudo de nada, a especialização consistirá em saber tudo de nada! Continuando nesta linha de pensamento, os grandes problemas do nosso tempo escapam à competência dos experts, porque os experts, via de regra, ocupam-se tão-só de diminutas parcelas do real. Acentua-se, repetidas vezes, que o número dos cientistas, actualmente vivos, é bem superior ao dos sábios que os precederam, em toda a história da humanidade. Só que muitos destes cientistas deixaram aprisionar-se por um discurso tanto mais rigoroso quanto
35
mais separado do todo, da realidade global. É conhecido o velho adágio romano: summum jus, summa injuria. O formalismo jurídico de uma teoria abstracta, desligado de qualquer referência aos magnos problemas que afligem a humanidade, acaba por trair a essência mesma da função jurídica. Semelhantemente, o formalismo rigoroso das diversas especialidades pode desenvolver, sob as aparências enganadoras de mais perfeita exactidão, o desconhecimento do campo dos valores. “Ciência sem consciência (escreveu Montaigne) não passa de ruína da alma”. Chegou assim a altura de criar (salvo melhor opinião), nas diversas Faculdades, uma disciplina de Filosofia e Epistemologia, que não seja tão-só a busca de cientificidade de um objecto de estudo particular, mas a procura, em diálogo interdisciplinar, da restauração das significações humanas do conhecimento. A Idade Moderna consagrou a desagregação da síntese escolástica mas, simultaneamente, roubou aos saberes particulares a necessaria referência ao todo. A revolução (onde Galileu, Descartes, Newton e Kant assumem papel de relevo) do mecanicismo, fundada sobre a aliança da matemática moderna e da física experimental, reduziu o mundo a um vasto conjunto de corpúsculos materiais, cujas acções e reacções obedecem a leis precisas, cabendo ao cientista elucidá-las por procedimentos minuciosamente controlados, eliminando qualquer alusão à Filosofia e à Teologia. A ciência moderna nasceu, no dia em que os anjos foram expulsos do céu (disse ainda o mesmo Chesterton). Se dermos crédito a expressão famosa de Galileu, o grande livro da Natureza é escrito tão-só em linguagem matemátia. Nesta linha de pensamento, também não é de estranhar que, na Educação Física e no Desporto, se descortinem estudiosos que ainda pensam que a sua especialidade só é científica, se se exprimir em termos matemáticos. São de facto fiéis ao paradigma cartesiano em que assentam os primórdios da Educação Física. Só que o paradigma cartesiano morreu. Não se diz que os números não são necessários. Afirma-se que são necessários, na companhia das ciências do Homem. Porque afinal são complementares umas das outras… 2- A Epistemologia, que Mário Bunge, por exemplo, confunde com a Filosofia das Ciências (cfr. Epistemologia, EDUSP, S. Paulo, 1980) não tem de referir-se unicamente à ordem científica. As ciências (todas elas) reflectem a consciência da humanidade. As ciências em migalhas reflectem uma consciência em migalhas, são o resultado de uma patologia do saber, de uma doença individual e colectiva.. Mas esta doença lamentável é também doença universitária. Ora, o remédio à desintegração do saber universitário consiste em levar, à dinâmica da especialização uma dinâmica de não-especialização, uma pergunta pelo essencial. E assim a filosofia e a epistemologia, que exigem a complementaridade e a convergência; que são bem o contrário dessa esquizofrenia intelectual , resultante de uma universidade cada vez mais compartimentada, dividida, subdividida, sectorizada, subsectorizada e a sociedade, na sua realidade dinâmica e concreta, onde a vida sempre se entende como um todo complexo e indissociável; que, por fim, está contra o conformismo das situações adquiridas e das “ideias feitas” ou impostas – a filosofia e a epistemologia (numa única disciplina) deverão ter o seu lugar indiscutível, entre os diversos saberes universitários, incluindo a CMH. Múltiplas pela pluralidade dos seus objectos e pela diversidade dos seus métodos, as ciências são unas pelo Homem que as concebe e as produz. Por isso, a epistemologia não é uma moda, pois deve concorrer a uma nova etapa do desenvolvimento do saber, que nada tem a ver com os encontros pluridisciplinares, tão comuns nas universidades, em que os participantes normalmente só querem ensinar e esquecem-se de aprender, mas
36
a um momento teórico de constituição das ciências e a um momento fundamental da sua história. 3- Nesta conformidade, no intuito de despertar entre os professores e os estudantes da Universidade Técnica de Lisboa (UTL), o interesse pelos pressupostos filosóficos das suas especialidades; pelo trabalho inter, intra e transdisciplinar; pelo labor imperioso e urgente de reorganização do saber, de acordo com o paradigma nascente – tomo a liberdade de, através do Grupo de Ciências do Comportamento Motor, fazer chegar ao Sr. Reitor da UTL uma proposta para a criação, na nossa Universidade, de um Centro de Lógica, Epistemologia e História das Ciências. Este Centro, que ficaria directamente ligado à Reitoria, teria como principais objectivos: promover e incentivar a investigação e estudos de natureza interdisciplinar, aproveitando ao máximo os recursos materiais e humanos, existentes na UTL; promover publicações que assegurem a difusão regular do resultado dessas investigações; incentivar a criação e funcionamento de cursos de pós-graduação de natureza interdisciplinar, tendo sobretudo em vista a formação de docentes universitários, com uma nova visão da prática científica; promover e assegurar a colaboração da UTL com as demais universidades portuguesas, ao nível da investigação inter e transdisciplinar; manter contactos com instituições estrangeiras de investigação e ensino, de forma a assegurar o intercânbio de investigadores e a contribuição daquelas instituições ao bom funcionamento dos programas científicos da UTL.O Centro de Lógica, Epistemologia e História das Ciências seria administrado por um Professor-Coordenador, assistido por um Conselho Consultivo, de que fariam parte um ou dois representantes de cada uma das Faculdades e Institutos da UTL, escolhidos por deliberação dos respectivos Conselhos Científicos. O Professor-Coordenador seria de nomeação directa do Reitor. O Conselho Consultivo reunir-se-ia, mediante convocação do Professor-Coordenador e teria as seguintes atribuições: orientar e supervisionar a programação e execução das actividades do Centro; opinar sobre toda a matéria, referente ao Centro e suas actividades, que lhe seja submetida pelo Professor-Coordenador. Seriam membros do Centro todos os docentes e discentes, que nele exercessem actividade regular, sem prejuízo das suas obrigações, nas Faculdades ou Institutos de origem. 4- A proposta do Centro de Lógica, Epistemologia e História das Ciências, partindo de um departamento do ISEF/UTL, há-de pressupor que o trabalho epistemológico já faz parte das grandes preocupações desta Escola. A configuração que potencia a emergência da epistemologia, como disciplina inovadora, caracteriza-se pelo impacto da busca da cientificidade, num Mundo que compreende e se compreende (não só, mas também) através das ciências. Por outro lado, a aceitação da epistemologia, “na docência e formação superiores, deve representar uma afirmação de dinamismos históricos não-acumulativos e de onde a linearidade simplista e dogmática se afasta. Deve, igualmente, legitimar a desco-berta de outros rigores e de outras formas de conhecimento, pautadas pelo repto pluralista e pela razão crítica” (Ana Luísa Janeira, “Filosofia das Ciências – faces e interfaces de uma disciplina”, in Revista Portuguesa de Filosofia, Braga, Abril-Setembro de 1985). Assim, passada a fase de uma “ciência normal”, na Educação Física e até no Desporto (que de tanto proclamar-se que é uma actividade física não tem, por vezes, na devida conta, a totalidade humana) importa que, após férvida procura, se faça uma “revolução científica” donde nasça um novo paradigma. Pelo que vem de escrever-se, não é de estranhar que esta proposta possa aludir à criação, no currículo do ISEF/UTL, da disciplina de Epistemologia
37
da Motricidade Humana, com o programa que, atempadamente, já foi apresentado a este departamento. Completada a dinâmica de desmistificação da continuidade, é preciso que o ISEF/ UTL (docentes e discentes) saiba o que quer... e não só por decreto! Mercê da minha teimosia, da lucidez do Doutor Melo Barreiros, da concordância de muito poucos e do absentismo da maioria, no ano lectivo seguinte, entrei de leccionar a “cadeira” de Epistemologia da Motricidade Humana, no ano lectivo de 1991/1992. “Dar aulas” foi, para mim, um acontecimento jubiloso. Sinto-me bem entre moças e moços que imprimem ao que fazem uma acentuada jovialidade. Renasço jovem entre os jovens, olhando com eles a vida de frente. E chego a pedir-lhes: “Sempre que falarem de mim, não se esqueçam de acrescentar – era um professor que gostava dos seus alunos”. Só porque muito aprendi com eles, lhes pude ensinar alguma coisa. Entretanto, no dia 1 de Agosto de 1989, publicaram-se os Estatutos da UTL, onde, no artigo 45º, se estabelece a nova designação do ISEF: Faculdade de Motricidade Humana (FMH). Mal soube da boa nova (veraneava eu, na cidade brasileira de Campinas), corri a escrever ao Doutor Melo Barreiros: “Venho de saber, através de um telefonema do jornalista Eduardo Miragaia, que nasceu enfim a Faculdade de Motricidade Humana, resultante da mudança de paradigma do ISEF/UTL. Quero felicitá-lo, por isso. Entre o muito que lhe deve a impropriamente denominada “Educação Física”, este facto não é o menor. Até por esta razão muito simples: coloca a nossa Escola ao nível do que de mais actual existe, nas ciências e na filosofia. Passámos a integrar o corpo-objecto no corpo-sujeito, o anátomo-fisiológico na conduta motora, o neuronal no vivido, a natureza na cultura, a imanência na transcendência. Sem repudiarmos, de qualquer maneira, o corpo-objecto, o anátomo-fisiológico, o neuronal, a natureza. Antes, vendo- os como elementos fundantes da complexidade, dado que, para mim, na esteira de Teilhard de Chardin (cfr. “O Fenómeno Humano”), ou o “Personalismo” de Emmanuel Mounier, o espírito nasce do corpo. Num ponto deve o meu amigo reflectir: os ressentidos e os nostálgicos do Passado não lhe vão perdoar esta mudança de nome (que há-de significar mudança de conteúdo) da nossa Escola. Se um dia puderem, de olhos injectados e vermelhos de cólera, hão-de procurar vingar-se. Eu também “comerei por tabela” – eu que teorizei e teorizo a motricidade humana, porque descobri na Educação Física marcas de um tempo defunto. A Ciência da Motricidade Humana alarga uma profissão à Educação, à Saúde, ao Lazer, ao Trabalho, ao Desporto. Por que não saudar a verdade incómoda que é esta nova ciência?... Ser-nos-á muito útil a indócil vitalidade dos que discordarem de nós, baseados noutras categorias essencialmente criativas e dinamizadoras. Com eles, deveremos aprender. No entanto, esta carta escrita de longe pretende, sobre o mais, felicitá-lo”.
38
Fui deputado… De 1991 a 1995, fui deputado, pelo Partido de Solidariedade Nacional (PSN), sem nunca deixar de leccionar na FMH. Na Assembleia da República, convivi com pessoas de admirável dimensão humana, independentemente dos partidos, dos credos, das ideologias. Hannah Arendt assevera que “nunca ninguém teve dúvidas que a verdade e a política estão em bastante más relações e ninguém (...) contou alguma vez a boa fé, no número das virtudes políticas” (Entre o Passado e o Futuro. Relógio d’Água, Lisboa, 2006, p. 237). Embora as palavras desabridas que, por vezes (muito raramente, confesso) eu escutei na Assembleia da República, como se a vida política se cumprisse no enfrentar raivoso de ortodoxias, há no parlamento português exemplos flagrantes de talento, coerência e honradez. Numa instituição, com o perfil complexo da Assembleia da República, há sempre pessoas a salientar, intelectuais de vasta, veemente e sábia cultura.. Uma Casa por onde passaram António Cândido, António José de Almeida, Afonso Costa, Mário Soares, Álvaro Cunhal, Francisco Sá Carneiro, Salgado Zenha, António Almeida Santos, Jorge Sampaio, Raul Rego, Barbosa de Melo e tantos mais merece, pelo menos, respeito. Em 1996, liberto das minhas funções político-partidárias, tanto na Assembleia da República como no PSN, dirigi duas cartas aos professores da FMH. Uma, datada de 9 de Janeiro de 1996: “Retomando as iniciativas já realizadas, desde 1985, na nossa Escola, em particular com as conferências subordinadas ao tema Ciência e Filosofia; prosseguindo a reflexão iniciada na reunião plenária sobre Ideologia e Produção Científica; no âmbito das preocupações da disciplina de Epistemologia – tomo a liberdade de convidá-lo(a) a participar num grupo de reflexão, que se reunirá, pela primeira vez, no próximo dia 22 do mês em curso (segunda-feira), às 14 horas, na sala de reuniões do edifício de Ciências do Desporto. Tenho para mim que as críticas à FMH/UTL não deverão centrar-se, em primeiro lugar, neste ou naquele departamento, nesta ou naquela disciplina, nesta ou naquela pessoa. A visão parcial só pode conduzir à solução parcial. E é o ilogismo desta que explica as perplexidades e as contradições em que a ideia de evolução da nossa Faculdade aparece, por vezes, envolvida. Parece-me, portanto, necessário um grupo de reflexão (dialogante, crítico e fraterno), não para amarrar quem quer que seja ao pelourinho, mas para ver em que medida está patente, na nossa Escola, a vocação universitária. Por vocação, a Universidade é, pela Ciência e pelo progresso da Tecnologia. Ela, porém, tem de manter a missão de imprimir ao saber um destino verdadeiramente humano. O que pressupõe a interdisciplinaridade, a interdepartamentalidade e uma atenção muito especial à Filosofia e às Ciências Humanas. É evidente que o referido grupo de reflexão não pode, por si só, resolver todos os problemas da FMH. Mas pode abrir-lhes novas perspectivas; introduzir propostas de relacionamento teórico; desencadear uma prática de investigação interdepartamental coordenada; contribuir à definição da nossa Faculdade enquanto comunidade científica; concorrer à criação de um paradigma que permita, por um 39
lado, distinguir a Motricidade Humana como área científica e, por outro, promover a sua comunicação com as demais, sem operar uma redução. Cito, a propósito, L. Halkin: “todas as ciências são auxiliares umas das outras”. Não me alongo mais numa carta que não passa de um simples convite, para uma reunião que pretende ser tão ousada quanto frutuosa e... afectuosa!”. No dia 2 de Fevereiro de 1996, voltei ao tema. Persiste, em mim, uma contradição: tenho uma prudente forma de agir, coabitando com uma atrevida forma de pensar. Por vezes, a ousadia triunfa e apareço desembaraçado de qualquer constrangimento. Daí, uma nova carta. Agora, a 2 de Fevereiro de 1996: “A reunião do dia 22 p.p., no âmbito do convite por mim formulado para que, de forma dialogal, pensássemos conjuntamente alguns problemas teóricos, como exigência de racionalidade da nossa função docente – centrou-se na compreensão e explicação da “matriz teórica” da FMH. A expressão motricidade humana foi abordada pelos 8 colegas presentes, à luz da fenomenologia e da hermenêutica, entendendo-se que uma conduta motora não é um gesto tão-só, por definição ela encontra-se no domínio do vivido e orientada por fins e valores. Entramos assim nas ciências do homem. De facto, salvo melhor opinião, a constante unitária que, na investigação que levamos a cabo, se manifesta de modo plural encontra-se indubitavelmente no macro-campo do humano. Por outro lado, enquanto não nos soubermos colocar, ao construirmos o saber em que nos dizemos especialistas, no quadro geral das ciências, o problema da matriz teórica da FMH prosseguirá irresolúvel, o que nos rouba credibilidade científica. Kant asseverava que a psicologia não podia ser ciência, por não ser matematizável. Enganou-se o velho Mestre! Ao nível das condutas motoras, os métodos standardizados da prova são demasiado falíveis, dado que, no ser humano, a causalidade é a plausibilidade do possível e não a certeza do real. A FMH tem como matriz teórica, se não laboro em erro grave, uma ciência do homem e o seu processo de afirmação não se reduz a qualquer senso comum, porque tem sentido e ritmo diversos de alguns dados afectivos, pretensamente absolutos. Assim, ao adiantar a data de 26 do mês em curso (segunda-feira), às 14,30 horas, no departamento de E.E.R., 3º piso do Edifício Costa, para um novo encontro, em que a sua presença muito me honrará, julgo não só cumprir a minha missão, hic et nunc, de docente de epistemologia, mas também relançar a ideia de uma reflexão profunda e urgente, em torno da nossa Faculdade”.
A Fenomenologia da Perceção “No final de um capítulo da Fenomenologia da Percepção, consagrado ao corpo como ser sexuado, Maurice Merleau-Ponty faz uma aproximação, na aparência surpreendente, mas na 40
verdade particularmente esclarecedora, entre Economia e Sexualidade. Com efeito, mostra ele que, se toda a nossa vida respira uma atmosfera sexual, é impossível apontar um único conteúdo da consciência que seja puramente sexual, ou que não o seja de todo”(Jean-Paul Maréchal, Humanizar a Economia, Instituto Piaget, Lisboa, 2001, p.111). Falar da CMH, designadamente em ambiente universitário, supõe que se realce que não há causalidade, no que a esta ciência diz respeito, em estado de uma intocável pureza; que a CMH não é um sistema fechado, mas elemento do vasto saber das ciências e, por fim, do fenómeno social total. A conduta motora (ou acção) é humana; é ao nível do humano que se situa a razão de ser de qualquer conduta motora. Quando se estuda a CMH, como sistema, e sistema aberto (o funcionamento de um sistema depende claramente da sua organização e do tipo de relação que mantém com o mundo circunvolvente), mais tarde ou mais cedo se conclui que toda a conduta motora (ou acção) obedece a três princípios: o princípio de interdependência, o princípio de imposição descendente (ou hierarquização das finalidades) e o princípio de imposição mínima. O princípio de interdependência apenas pode entender-se se definirmos previamente duas importantes características dos seres vivos: emergência e especificidade. Aquela quer dizer que a relação de elementos de um certo nível (por exemplo, os neurónios) no seio de um sistema (o cérebro) se traduz pelo surgimento de novas propriedades (a capacidade cognitiva e o espírito) desconhecidas dos níveis inferiores. Aqui, como se vê, o sistema é mais do que a soma das partes. No entanto, o sistema também é menos do que a soma das partes, através do fenómeno da especificidade pois que, ao mesmo tempo que emergem novas lógicas de regulação, cada um dos níveis continua a efectuar actividades ignoradas pelos níveis nos quais se insere. Um ser vivo, por exemplo, não tem consciência, nem de um murmúrio arfante, indistinto do funcionamento ininterrupto das suas células. Não é a saúde a vida, em silêncio, dos órgãos?(cfr. G. Canguilhem, Le normal et le pathologique, PUF, Paris, 1991, p. 52). Ora, da síntese entre a emergência e a especificidade resulta o princípio da interdependência entre a reprodução de um sistema (o corpo) e a dos seus subsistemas (os órgãos). De facto, cada um dos órgãos só existe se o corpo, na sua complexidade, puder manter a sua estrutura; por outro lado, este só existe, pela correcta actividade de todos os órgãos. O princípio da imposição descendente realça que a finalidade Bulletin de la Société Française de Philosophie : de um sistema vivo prevalece sobre a dos subsistemas que o compõem, donde se infere que nenhum sistema é regulado por qualquer dos seus subsistemas. No entanto, será de referir que, nos sistemas vivos (e portanto complexos) a formação do todo e a transformação das partes encontram-se intimamente relacionados. É admirável a síntese de Edgar Morin: “Tudo o que forma transforma” (La méthode, 1. La nature de la nature, Le Seuil, Paris, p. 115). Partindo de Edgar Morin, poderei grafar : só dura e perdura o que se transforma! Assim nasce o princípio da imposição mínima, ao assinalar que o todo não pode impor-se de tal forma que condicione o bom funcionamento das partes. Pelo que vem de escrever-se, a CMH tem as características necessárias e suficientes, assim o digo bem menos precavidamente do que alguns poderão supor, para considerar-se como uma ciência humana (ou humana e social). A motricidade humana é o fundamento da vida social, pois que é o movimento intencional e solidário a dar sentido à vida. Ocorre-me Paul Ricoeur, no Bulletin de la Société Française de Philosophie : «É preciso reintegrar a consciência no corpo e o corpo na consciência”(1951, p.5). Talvez seja esta a função primeira dos professores
41
e técnicos do desporto e da dança e da ergonomia e da reabilitação. Diante dos dois polos, consciência e corpo, importa construir a síntese donde nasce, fenomenologicamente, a motricidade humana. José A. Bragança de Miranda levanta a questão de um método para a cultura. E escreve a propósito: É a acepção “de método como caminho que fazemos nossa. Seguir um caminho, um dado trajecto, é diferente de seguir um método pois, enquanto este, na sua tradução pós-cartesiana, nos ajuda a ter ideias claras e distintas para não nos perdermos nos recessos do mundo da experiência, tendo de o interpretar, como se o mundo e a natureza estivessem organizados segundo uma mathesis naturalis, a outra opção lado a lado com as ideias claras e distintas, não recusa trabalhar com intuições e ficções de todo o género, para nos orientarmos no labirinto da experiência” (Teoria da Cultura, Século XXI, Lisboa, 2002, pp. 49/50). Se as ciências da natureza (ciências ditas“exactas”) enriquecem, todos dias, o paradigma da complexidade (e não se trata de loquacidade volúvel) com a teoria do caos, a termodinâmica não linear, a teoria da auto-organização, etc. –há que ter em conta a maranha de “intuições e ficções”, que compõe o mundo humano e, portanto, a motricidade humana. Em 5 de Junho de 1997, escrevi uma carta a cada um dos membros da Comissão Coordenadora, apresentando algumas “considerações“, acerca da Epistemologia, como problema institucional e domínio do conhecimento. De facto (escrevia eu) a Epistemologia tem um percurso de vinte anos, na nossa Escola, desde que, em 1977, nas aulas de Introdução à Educação Física, entrei de asseverar aos alunos, na linha da escola francesa do corte epistemológico, que à Educação Física não bastava reformá-la, era preciso reinventá-la, destacando os novos saberes sobre o corpo”. Relembrei o ciclo de conferências, em Julho de 1985, subordinado ao tema Motricidade Humana – ciência e filosofia, onde foram oradores Ana Luísa Janeira, Armando Castro, Jorge Correia Jesuíno e eu próprio. Recordei ainda a minha tese de doutoramento e as de Ubirajara Oro, Anna Feitosa e João Batista Gomes Tojal (diretor da Faculdade de Educação Física da Unicamp) todas elas de pendor epistemológico e sem a iconoclastia de alguns ambiciosos, desfavorecidos dos meios intelectuais para sustentar a sua ambição. Aliás, a FMH representa um corte epistemológico, como o INEF o foi,em 1940. E continuava: “Em Janeiro de 1987, no Vimeiro, o Conselho Científico do ISEF reuniu-se, durante dois dias. Uma Faculdade que recusa repensar o seu objecto de estudo descamba, mais tarde ou mais cedo, na estagnação”. E memorei ainda: “No ano lectivo de 1991/1992, a Epistemologia passou a integrar o currículo escolar das várias licenciaturas. E a construção teórica do objecto de estudo da nossa Escola não cessou de problematizar-se, quer nas aulas, quer em publicações várias, quer na preparação de teses de doutoramento”. E solicitava, por fim, que o doutorando Paulo Dantas, licenciado em Filosofia e Mestre em Filosofia Contemporânea, pela Universidade de Coimbra que preparava, sob a minha orientação, a sua tese de doutoramento, intitulada O Paradigma Emergente da Motricidade Humana: fundamentação fenomenológica, pudesse dialogar com os vários departamentos da FMH, no sentido de este doutoramento revestir-se não só de uma lógica epistemológica, mas também de uma lógica institucional”. O doutoramento de Paulo Dantas, mercê do talento extraordinário do doutorando, foi brilhante. Não era pessoa para deixar-se adormecer na branda ociosidade do meridional. E sempre o conheci garboso e altivo, consciente do seu valor que não era minguado. A sua morte prematura
42
roubou-me um amigo e consciencializou-me que a vida é, demasiadas vezes, um caminhar, de olhos vendados, para o desconhecido. Compreendo por que Ortega y Gasset repetia que o ser humano “não é uma res cogitans, mas uma res dramatica”.
O meu último ano na FMH Em 3 de Novembro de 1998, no início do meu último ano de leccionação na FMH e, portanto, no Ensino Público, deixei nas mãos do Doutor Carlos Neto uma prosa epistolar, onde referi: “Não há passagem do físico à motricidade, isto é, do simples (cartesiano) ao complexo (sistémico), sem uma ruptura epistemológica, ou mudança de paradigma, como lhe queiram chamar. Não é a educação física que se alarga; é a educação física, enquanto macro-conceito, que se respeita como passado e se supera como Futuro. O desporto, a dança, a ergonomia, a educação especial e a reabilitação não radicam hoje na educação física, porque um novo paradigma é sempre incomensurável em relação ao velho e porque o novo paradigma é a motricidade humana e não a educação física”. E dizia ainda: ”A FMH não é uma tradição, é uma revolução científica. Quem não entendeu isto, poderá emprestar às suas palavras um verniz de erudição, só que desconhece que também a FMH é um processo histórico e não pára no apeadeiro das nossas seguranças, ou das nossas conveniências (...). Senhor Doutor Carlos Neto, a nossa Escola precisa de transformar-se num espaço onde se questione a sua actividade criadora (...). Estudar a génese, a formação e o desenvolvimento da FMH e descobrir neste processo a própria história das ciências; compreender a motricidade humana, como ciência autónoma, aberta e crítica, longe de um cartesianismo defunto e tendo em conta as actuais correntes do pensamento; fazer chegar à comunidade científica a urgência de um trabalho interdisciplinar com o nosso objecto de estudo que é novo e fundamentado – é orientação que V. Exa., no meu modesto entender, deve defender e propor. Por mim, sou em crer que o ramo do conhecimento que tenho a honra de leccionar na FMH aprenderá connosco a transformar-se de filosofia do ser e do logos em filosofia do acto e da relação. E as demais disciplinas da FMH? Qual o seu contributo ao desenvolvimento do saber em geral e da nossa identidade, como Escola, em particular? Por que não organiza V.Exa. (pessoa indiscutivelmente culta e diligente) um encontro que posteriormente se transformaria em publicação, onde os professores da FMH, através da pluralidade, apresentassem a sua contribuição à fundamentação da nossa identidade universitária e científica? Se no estrangeiro se encontrarem instituições e pessoas que adjectivam estes temas, como inúteis ou ridículos, mais nos deve incitar a um caminho de verdadeiro pioneirismo. Porque são eles que se deixaram ultrapassar pelo avanço meteórico da ciência e da filosofia hodiernas”. Mesquinhas intrigas e rivalidades bulhentas acompanharam, aqui e além, a exposição das minhas ideias e decidi aposentar-me. Aliás, não era pacífico, naquele tempo, na FMH, o convívio entre os docentes, por motivos que não honravam a ninguém. Hoje, sou professor catedrático convidado aposentado da Faculdade de Motricidade Humana, depois de ter leccionado no Instituto Piaget (Almada), na Universidade Lusófona, na Universidade Fernando Pessoa e no Instituto Superior da Maia (hoje, Universidade da Maia). E reconheço que a CMH, que teorizei, já corre mundo, se bem que sem as liberdades que eu me permiti. De facto, a advertência de Lakatos não me larga: se o ser humano evoluiu, tal se deve ao facto de ter ousado pensar contra o que se julgava certo. Demais, ponho
43
à testa de muito do que digo as palavras de Ilya Prigogine:” Nous sommes aux débuts de la science. Faire partager cet étonnement aux jeunes générations c’est l’un des vœux que je forme au soir de ma vie » (L’Homme Devant l’Incertain, Éditions Odile Jacob, Paris, 2001, p. 28). Parecem, por isso, enquadrar-se, na atmosfera mental do nosso tempo, as palavras de Alain Touraine: «As mudanças actuais são tão profundas que nos autorizam a afirmar que um novo paradigma está em vias de substituir o paradigma social, tal como este tomou o lugar do paradigma político” (Um novo paradigma – para compreender o mundo de hoje, Instituto Piaget, Lisboa, 2005, p. 237). Como professor do INEF, do ISEF, da FEF/UNICAMP, da FMH, da Universidade Fernando Pessoa, do ISMAI, do Instituto Piaget, da Universidade Católica do Chile, depressa entendi a Educação Física como criação sapiencial do ser humano, na decorrência do homem-máquina do racionalismo que só às ciências ditas exactas permitia o estudo do corpo-objecto. Começava então, no mundo ocidental, uma minuciosa articulação ciência-técnica, impensável na Idade-Média, onde a ciência era declaradamente contemplativa. O cientista não dialogava com os “mecânicos”, gente do povo que dominava algumas técnicas rudimentares (cfr. Cristopher Hill, Origens Intelectuais da Revolução Inglesa, Martins Fontes, S. Paulo, 1992). A ciência moderna nasceu quando a especulação, mera contemplação, se esgotou; quando a causa final foi substituída pela causa eficiente; quando tudo o que é matéria (e o corpo não passava disso mesmo) se transforma em objecto, chegando o capitalismo ao extremo de reificar, ou coisificar, o próprio ser humano. Como Teilhard de Chardin já o tinha afirmado, “a matéria revelou-se tão rica, se não mais rica em possibilidades, do que o espírito. Ela contém uma energia incalculável, é susceptível de transformações infinitas, tem recursos insuspeitáveis” (Louis Pauwels e Jacques Bergier, O Despertar dos Mágicos, Bertrand Editora, 1987, p.46). Dessas transformações infinitas e desses recursos insuspeitáveis nasceu o espírito e a descontinuidade entre o ser humano e o animal. A grande diferença entre o ser humano e as outras espécies animais (digo eu, hoje) reside na bidimensionalidade destes (corpo e psiquismo) e na tridimensionalidade humana (corpo, psiquismo e espírito), tendo em conta o tempo como elemento constitutivo das coisas e do ser humano. Que o mesmo é dizer: tudo é processo, desde os átomos às estrelas. Isto é um facto: não se trata de uma hipótese. Tudo está em movimento perene. Daí, a transição gradual, através de uma complexidade crescente, da geosfera à biosfera e desta ao espírito (ou noosfera, como quer Teilhard de Chardin, ou espiritualização da vida, ouso eu adiantar). Os animais sabem, mas só o Homem sabe que sabe, só ele transcende o racional e procura o sentido, o significado da Vida, da Sociedade e da História. Dois olhos bastam para olhar, mas não para ver, ou seja, para perceber humanamente as coisas. Verdadeiramente, o Homem é corpo-mente-sentimento-natureza-sociedade-cultura-espírito. E tudo o mais que eu não sei… E tudo isto, em busca da transcendência, da superação, da plenitude. Paul Ricoeur adianta a noção de falha, no seu tratado de três partes, Finitude et Culpabilité, designadamente na primeira parte L’homme faillible, para significar que o Homem é um ser defeituoso e com a consciência das suas limitações. Mas é precisamente esta falha que o leva, em permanente azáfama e operosidade, a uma tentativa de auto-apropriação, que não é o mesmo que auto-compreensão, pois que se refere à Vida toda e ao Homem todo e não só ao exercício de uma
44
apreensão conceptual. A auto-apropriação não decorre unicamente no “mundo das ideias”, pois que se transforma afinal num modo de vida. O “eu sou” não se confunde com o “eu penso”, pois que o ser humano pensa em função desta falha que tanto o atormenta como o faz vontade, liberdade e acção. O eros, conforme Platão o concebe no Banquete, decorre da Pobreza e da Fartura: da Pobreza que nós somos, da Fartura que ainda não somos e a que imparavelmente tendemos. Esta procura da Plenitude, onde estão presentes também os imperativos morais e políticos, é, para mim, em resumo, a motricidade humana. E assim (um exemplo) fazer desporto não deverá respeitar unicamente as leis biológicas, ou as exigências da sociedade do espectáculo, mas também propiciar vivências de superação individual, social, moral, política e até afirmar a cidadania de todos os marginalizados. Enganam-se os que pensam que o meu “programa de investigação” da motricidade humana é simplesmente epistemológico. A transcendência, ao conduzir-nos a novos possíveis, inaugura um neo-humanismo de iniciativa histórica, que não é científico tão-só. É teológico e político também...
Um novo paradigma A minha viagem no tempo, com a CMH, ainda não se abeira do final, pois que já tenho ao meu lado alguns estudiosos, meus Amigos e meus Mestres. Recuso, no meio do nosso mundo balburdiento, qualquer dualismo, seja ele epistemológico ou social ou político. Anuncio, na luz incerta do amanhecer, um novo paradigma antropológico, onde o conceito de relação se anteponha ao conceito de substância e onde não se confunda pensamento com os processos neurocerebrais que acompanham o pensamento, ou seja, o espírito com a matéria, embora aquele encontre nesta a sua ascendente primeira, não a única, pois que os fenómenos mentais e espirituais só cabalmente se entendem, em diálogo com o meio envolvente. Anuncio um novo paradigma, dizia, onde no seio do qual se encontrem representantes e intérpretes das ciências, da filosofia e da teologia, em diálogo crítico e solidário. E, ao invocar neste momento a teologia - no lugar de certezas mandonas e frustradoras, quero revisitar o cristianismo primitivo, religião dos marginalizados, protesto contra os poderes estabelecidos, esperança num mundo mais justo e mais próximo dos ensinamentos de Jesus de Nazaré. Não poderei esquecer a minha passagem pela Faculdade de Letras de Lisboa, onde fui aluno do Padre Manuel Antunes, que nos anunciou, a nós, alunos, entre outros famosos autores, Teilhard de Chardin e Emmanuel Mounier e Delfim Santos, que nos instruiu como ver, num projeto logocêntrico, a revolução da modernidade. Também Vitorino Nemésio poderia lembrar: ele era um verdadeiro show de erudição e cultura. “Montado sobre os ombros de gigantes”, como Copérnico, Képler e Galileu - Isaac Newton (1642-1727) concluiu a sistematização da primeira ciência moderna, baseada na observação e na experiência, na representação matemática do mundo e na Mecânica e na Física. Porém, uma das principais implicações da revolução copernicana foi o estatuto excecional da razão humana, a qual, por si só, construía o conhecimento. Ficou famosa a posição de Aristóteles, questionando Platão: “Nada chega à razão que, antes, não tenha passado pelos próprios sentidos”. Kant acrescentará: “excepto a própria razão”. Foi nesta ambiência intelectual do século XVIII que a Educação Física nasce. E que se perpetuou, com as características típicas do Iluminismo. Mas, porque não deixo de estudar e de procurar desenvolver o que já estudei; porque são três as posições que nos tentam esclarecer
45
a existência dos paradigmas: a incomensurabilidade entre os paradigmas, a complementaridade entre os métodos quantitativos e qualitativos, tendo em conta a complexidade humana; e a integração/unidade epistemológica, pois que, em toda a dialética, há uma síntese final – proponho o nascimento da uma nova ciência hermenêutico-humana (ou social e humana), a Ciência da Motricidade Humana, com a seguinte conceito de motricidade humana: a energia para o movimento intencional e solidário da transcendência. E, como já o faço há quatro dezenas de anos, advogando, para o treino desportivo e para o treino para a vida, uma síntese entre o paradigma positivista e o paradigma qualitativo e o paradigma sócio-crítico. Passo a palavra a Clara Pereira Coutinho, autora do livro Metodologia de Investigação em Ciências Sociais e Humanas: Teoria e Prática, editado pela Almedina (Coimbra, 2011): “Comparando as propostas dos diversos autores depressa nos apercebemos que a maioria coincide na aceitação de duas grandes derivações metodológicas dos paradigmas de investigação, em CSH (Ciências Sociais e Humanas): a perspetiva quantitativa e a perspetiva qualitativa. A estas acresce uma terceira perspetiva, a denominada perspetiva orientada para a prática, ou modelo sócio-crítico, que embora mais diretamente associada à investigação em Ciências da Educação, Psicologia e Sociologia se constitui também como um referencial para a generalidade da pesquisa em CSH” (pp.23-24). Sem quaisquer arroubos de jactância, advogo que as três perspetivas devem caber na mesma investigação. Vêm-me à tona da memória os versos de Manuel Bandeira: A casa era por aqui, Onde? Procuro-a e não acho. Ouço uma voz que esqueci: É a voz deste mesmo riacho. Ah! Quanto tempo passou. (Foram mais de cinquenta anos). Tantos que a morte levou… (E a vida nos desenganos…) A usura fez tábua rasa Da velha chácara triste: Não existe mais a casa… Mas o menino ainda existe, Nunca fui capaz de aplaudir o estruturalismo anti-humanista. A “morte do Homem” é anunciada pela “morte de Deus”, quero eu dizer: a causa do Homem, tanto em sua ipseidade, como em sua alteridade, só em Deus se expressa e se resolve. O José Saramago do Manual de Pintura e Caligrafia escreveu: “Não sei que passos darei, não sei que espécie de verdade busco, apenas sei que se tornou intolerável não saber”. Ora, para nos aproximarmos de Deus, há um caminho só: a transcendência, quero eu dizer: o esforço constante para ser mais projeto do que reflexo e mais liberdade que determinismo e mais imaginação do que razão e mais possível do que real. E é assim tanta a certeza da “transcendência”, como caminho? Recordo a máxima délfica: gnothi
46
sauton (traduzindo: conhece-te a ti mesmo). E, quanto mais me conheço, mais me convenço que não existe Deus apenas, existe a fé em Deus, não existe a Verdade, existe a fé na Verdade. Homens da estirpe de Pascal bem nos avisam: “O coração tem razões que a razão não entende”. Mas não há grandes vitórias, sem muita fé. E releio Pascal: “Não me procurarias, se antes não me tivesses já encontrado”. No livro Liderator – a excelência no desporto, de Luís Lourenço e Tiago Guadalupe (Prime Books, Lisboa, 2017), uma das grandes obras que em língua portuguesa já se escreveram sobre liderança e treino desportivos, assim se define a inteligência emocional: “É a capacidade de podermos conscientemente lidar com as nossas emoções e com as dos outros, dar-lhes sentido e aproveitá-las eficazmente, não de uma forma isolada, mas conjugadas com a razão” (p. 32). Também a fé se distancia da crença, porque na fé há razões para crer. Há razões para crer num Deus que recusou a Autoridade como Poder e fez da Autoridade um Serviço; há razões para crer num Deus que fez do mundo um jogo onde o ser humano possa jogar, testemunhando a Verdade como Promessa (tudo no mundo é uma abscôndita Verdade); há verdade para acreditar num Deus onde a suprema lei é o Amor (o Amor de Deus e o Amor do Próximo). Nos Pensées, Pascal ensina a definir a fè: “Aqui está o que é a fé: Deus sensível ao coração e não à razão”.
São as Artes, as Humanidades… Na Conferência Mundial de Educação Artística, aubordinada ao tema “Desenvolver Capacidades Criativas para o Século XXI”, organizada sob o patrocínio da UNESCO e do Governo de Portugal e ocorrida em Lisboa, no Centro Cultural de Belém, de 6 a 9 dde Março de 2006 o nosso consagrado médico neurologista, Doutor António Damásio, cientista famoso no mundo todo, na sua comunicação de convidado-de-honra, afirmou: “São as Artes e as Humanidades, que promovem a imaginação para a inovação e é pouco provável que, sem elas, se possa criar algo de novo”. Detenhamo-nos diante das grandes figuras da Arte e da Literatura e da Filosofia e da Teologia e da Política. Foram os grandes questionadores do quotidiano, jongleurs de ideais imorredouros – ideais perfeitamente compagináveis com as mais belas motivações espirituais. Neles, o Eu aglutina-se a um Nós, em abraços de simpatia fraterna. O António-Pedro Vasconcelos, consagrado cineasta, um intelectual fascinador e descortinador de novos horizontes, sempre não conformista escreveu: “Tudo é feito para nos fazer ganhar tempo: desde a Via Verde e o Multibanco à velocidade sem limites das comunicações. Mas nunca como hoje tivemos tão pouco tempo para nós. A liberdade prometia-nos a felicidade e o conforto. Nunca tivemos tantas liberdades. Mas também nunca, como hoje, nos sentimos tão pouco felizes e tão pouco seguros. Os progressos da globalização trouxeram consigo uma atomização da cultura, uma proliferação das ficções e uma democratização dos meios de as produzir. Hoje, qualquer um pode ser criador. E, no entanto, nunca houve tão poucos criadores. Aumentaram os contactos na Internet, nas redes sociais. Mas nunca estivemos tão sozinhos (António-Pedro Vasconcelos, O Futuro da Ficção, Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, 2012, pp. 60-61). Também o próprio marxismo nos prometia a liberdade. Também ele nos dizia, com apaixonado propósito, que se preparava para fazer o que os cristãos não quiseram fazer. Por seu turno, os socialistas sustentavam, em arroubos de pura emoção, que o socialismo é o Evangelho em movimento. E os democratas,
47
ricos da seiva e da originalidade da Revolução Francesa, abriram-nos, de facto, inéditas e arejadas perspetivas. Mas abraçaram o capitalismo (os comunistas, o estatal e anti-democrático; os demais, o liberal e democrático) para seu sistema económico. E a Verdade que liberta continua por implantar. A Verdade não pode ser apodítica, dogmática, inquestionável. Nenhum espírito humano pode blasonar que “tem a Verdade”, O marxismo ambicionava provar que tinha por si a “ciência da História” e… gerou Estaline! Da democracia, “ancilla” do capitalismo, desponta de facto progresso. Mas, em estudo sereno e imparcial, se descobre que esse progresso se destina a bem poucos. A Verdade não pode enclausurar-se, nem nas mãos de uma pessoa, nem nos dogmas de uma ideologia. A Verdade, entre os humanos, é a história da busca incessante da Verdade. Em diálogo! Isto é, sem paternalismo, sem a autoridade de uma oligarquia, sem qualquer dirigismo doutrinal, quero eu dizer: verdadeiramente ecuménica! Por isso, tem sentido ainda ser cristão; por isso, se pode aduzir ainda que, neste tempo de fundo e vasto racionalismo, Jesus Cristo é figura única na História e a sua Revelação parece-nos tão perfeita que só Deus a poderia ditar. Dai, o não dever surpreender-nos seja a transcendência o elemento principal do conceito de “motricidade humana”. É verdade (o tempo é o grande mestre, já rezava Ésquilo) que a Educação Física, ao longo e ao largo do século XX, ultrapassou uma fundamentação anátomo-fisiológica para receber influências de caráter muito mais holístico-sistémico. E “a lo largo de este proceso, entre la Educación Física y la Psicomotricidad se há venido produciendo una progresiva coincidência en sus respectivas perspectivas y en sus fundamentaciones conceptuales, en la identificación de sus objetivos y en la selección de sus recursos metodológicos, En este proceso de creciente desaperacerán, necessariamente muchas de aquellas razones que justificaron su diferenciación primigenia. Regidas ambas pelos mismos paradigmas, concibiendo las dos la naturaleza humana de idéntica manera, será inevitable que sus objetivos y, como consecuencia sus métodos, resulten cada vez más semejantes” (José Luís Pastor Pradillo, Motricidad – perspectiva psicomotricista de la intervención, Wanceulen, Editorial Deportiva, S. L., Sevilla, 2007, p. 57). José Luís Pastor Pradillo, oferece-nos, neste livro um ramalhete de alguns dos autores de maior celebridade que destes temas se ocupam. Sem adentrar-me em qualquer metodologia específica, designadamente da psicomotricidade, acredito que à vida é possível dar-se um sentido e que, pela motricidade humana, o sentido da vida é a transcendência. No percurso da Evolução, segundo Teilhard de Chardin, há um filão científico, a-religioso que parece caminhar no sentido da profanização universal. Mas o seu inquieto anseio de mais ciência (próprio afinal do cientista que ele é) não descamba na orientação das sociedades tradicionais onde só o sagrado existe realmente e o profano é puramente aparente ou enganador. Em Teilhard, o universo, considerado como processo histórico, “exprime-se numa ampla marcha em direção ao Espírito” (Oeuvres, t.V, p. 70). E portanto atrevo-me a acrescentar que o ser humano, porque é Espírito também, surge como um fenómeno completamente irredutível e novo. Assim, pelo ser humano, o mundo toma consciência de si mesmo e é ele o termo de toda a Evolução. Mas não há Espírito, no Homem, sem a matéria, sem o concreto, sem a natureza (e como é de lastimar o crime ambiental, que percorre, enodoa, mancha o planeta inteiro) . Toda a vida da “pessoa” é uma existência que, pela transcendência, se abre ao outro e ao inteiramente outro, quero eu dizer: ao próximo e a Deus! Martin Buber (cito de cor), no seu célebre Eu e Tu, escreveu uma frase de inapagável ressonância: “o eu só
48
existe, porque existe o tu”. O sentido é a realização do eu, através da transcendência. Revela-se na Evolução, que Teilhard defende, uma “filosofia integral” porque de facto somos, simultaneamente, Matéria e Vida e Espírito. O movimento da transcendência quer dizer que nós, seres humanos, não nos situamos unicamente numa esfera material e mecânico-impulsiva, porque a lógica da transcendência nos diz que matéria e vida e espírito se implicam mutuamente, ou dialeticamente. Por isso, quando o ser humano transforma, transforma-se. E não só fisicamente. Intelectual e social e espiritualmente também. De facto, a realidade não se resume ao que a ciência nos ensina. Na motricidade humana, há o primado final da transcendência, ou seja, há um irreprimível dinamismo (em corpo e movimento) em direção à superação do que tenho e do que sou – superação acompanhada da responsabilidade da criação de um futuro diferente, quero eu dizer: que não seja uma “evolução na continuidade”, o prolongamento de uma cultura em agonia, mas o sinal de um novo tempo e de uma nova história. Assim defino hoje motricidade humana: O movimento intencional e solidário da transcendência – movimento corporal, portanto, onde “eu sou meu corpo” (repito-me) no movimento intencional e solidário da transcendência. Neste ponto, cito Michel Henry: “O primeiro filósofo e, verdadeiramente, o único que na longa história da reflexão humana compreendeu a necessidade de determinar originariamente o nosso corpo como um corpo subjetivo é Maine de Biran, esse príncipe do pensamento que merece ser visto por nós ao mesmo nível que Descartes e Husserl, como um dos verdadeiros fundadores de uma ciência fenomenológica da realidade humana (Philosophie et phénoménologie du corps, PUF, Paris, 1987, p. V). Colhi a citação na tese de doutoramento do Prof. Doutor Luís António Ferreira Correia Umbelino (Somatologia Subjectiva – Apercepção de si e Corpo em Maine de Biran, Fundação Calouste Gulbenkian/Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Lisboa, 2010), onde aprendi a estudar e admirar um filósofo, Maine de Biran (1766-1824), que ainda percorre o nosso tempo como um “contemporâneo do futuro”. E Luís Umbelino, douto professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, escreve, a propósito: “Mas onde Merleau-Ponty via uma fértil proximidade na diferença, uma semelhança de interesses que dissemelhanças evidentes não permitiriam apagar sob pena de se violentarem ambas as doutrinas, Henry vislumbra um acordo pleno: o espírito do biranismo permitiria pensar um corpo originário dado numa experiência interna transcendental, um corpo subjetivo, que não é senão o próprio ego” (p. 8).
O que nos diz a Motricidade Humana? Jorge Araújo, licenciado em Educação Física e Doutor em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, conhecido e respeitado treinador de basquetebol, escreve assim, no seu livro, O Comportamento Humano – Motricdade, Treino e Corpo Expressivo (UCP Editora, Lisboa, 2023) : “Mas o que é um organismo e o que é um ambiente adequado? Um ambiente adequado é o meio envolvente de um determinado organismo que, em termos espaciais e temporais se integra e se estabelece com esse mundo que o envolve numa profunda correlação. Diríamos que um ambiente adequado é algo como que uma unidade vivida por um organismo, uma totalidade de pertença e envolvimento que contribui para o próprio modo de ser do organismo. Já o organismo
49
não pode ser entendido como o significado naturalista de uma realidade biológica definida; um organismo (que só é o que é num meio ambiente) é a continuação do meio ambiente, ou a parte do meio ambiente que o significa, enquanto tal, através do modo como o habita.”. Compreende-se assim porque Merleau-Ponty escolheu o termo estrutura para título da sua obra (cfr. La Struture du Comportement): o comportamento não se resume a uma soma de reações mecânicas, desencadeadas por estímulos propriocetivos e exterocetivos isolados. Estes estímulos são como que integrados, através de uma inteligibilidade ligada interiormente à situação vivida. O que permite definir o comportamento como uma estrutura constituída pelo modo de pertença do organismo ao meio e do meio ao organismo” (p. 53). Daí que o movimento não possa excluir-se do âmbito relacional do comportamento. E do próprio movimento intencional e solidário da transcendência… O corpo é “conditio sine qua non” de ação e de expressão. Na CMH, não há lugar para o corpo-objeto e o corpo-instrumento, mesmo na situação de corpo acrobático, pois que não há motricidade humana onde a matéria, a vida e o espírito, em constante dialética entre si, se não situem. Volto à definição de motricidade humana: “a energia para o movimento intencional e solidário da transcendência (ou superação)”. Estou a lembrar um amigo, impulsivo, mas de uma vontade inquebrantável: “transcendência – porquê?”. Respondo uma vez mais: porque, em todas as idades e condições, o ser humano deve sentir-se sempre como uma tarefa por cumprir. Ou seja, há nele, inapagável, constante, um apelo ao “mais ser”. Mas que não se confunde com o “ter mais”, o postulado da ditadura do lucro, donde nasceu o “homem unidimensional” que reduz toda a realidade a produto de compra e de venda. O postulado da transcendência, na motricidade humana, diz-nos, em suma, que o ser humano não é só reflexo de um mundo existente, mas também projeto de um mundo por vir. Por isso, desenvolver, pela atividade corporal, os circuitos sensoriomotores, tendo em conta as aprendizagens instrumentais básicas; desenvolver o orgânico e o funcional do comportamento; desenvolver a relação e a vida em sociedade; e, simultaneamente, escutar o apelo da transcendência (ou superação) que, dentro de nós, ressoa (não será este apelo da transcendência o sinal de uma Presença?) - tudo isto (que é muito!) desponta da motricidade humana, a qual nos diz ainda que não basta promover o desenvolvimento, necessário se torna humanizá-lo, à luz, como diz o Papa Francisco na sua magistral encíclica Laudato Si, de um “antropocentrismo situado” e portanto onde o ser humano se responsabilize pela natureza, afinal uma criatura de Deus também. Guilherme d’Oliveira Martins, um dos mais rigorosos e autónomos intelectuais do nosso tempo, diz assim, numa entrevista que vale a pena ler, reler e conservar: é preciso “perceber que qualquer elemento da vida humana carece de ser refletido e pensado. O importante, como tantas vezes me mostrava o prof. Eduardo Lourenço, é o sentido crítico, a leitura crítica dos fenómenos não ser indiferente nem conformista” (JL –Jornal de Letras, Artes e Ideias, de 2023/12/27 a 2024/1/9). Ora, uma leitura crítica de uma licenciatura, em motricidade humana, percorre alguns dos principais setores da vida em sociedade: a Educação, a Saúde, a Reabilitação, a Dança, o Desporto, o Treino e um Lazer ativo, tudo isto desenvolvendo-se no quadro de uma democracia participativa e não só parlamentar. E tendo em conta que a categoria de sistema é de fundamental importância, para compreender a epistemologia da complexidade. Cito agora a socióloga e teóloga italiana Stella Morra, no seu livro Deus não se cansa (Braga, 2016): “A ciência clássica distinguia entre objetos materiais (por exemplo, uma caneta) os mate-
50
riais de que é composta a caneta, o uso que se pode fazer dela…). A ciência contemporânea alargou o seu olhar, detendo-o não apenas nos objetos (materiais ou formais) na sua singularidade, mas na rede de relações no interior da qual se encontram. O exemplo mais evidente é o funcionamento de um computador, onde a questão é exatamente conhecer a relação que se cria entre o comando que é dado e a resposta da máquina” (p. 107). Uma questão me ocorre, neste momento: será que a “motricidade humana” não é mais do que um novo nome da educação física? Venho dizendo e repetindo: não, não é! Porque a transcendência não se resume nem ao lúdico, nem ao rendimento. Mas ao homem todo e a todos os homens, pois que em todos é sensível o apelo da transcendência. Se o pensamento dos séculos XIX e XX se determina antropologicamente, a hodierna crise da humanidade faz um apelo urgente à filosofia. Ora, a reflexão filosófica, decorrente da CMH (Ciência da Motricidade Humana) adianta o seu postulado da transcendência, para rejeitar qualquer espécie de determinismo, no mundo humano: nenhuma realização histórica deverá considerar-se o fim da História, como queria Fukuyama, em relação ao capitalismo liberal. “O capitalismo desenfreado de hoje não é a única ameaça para a humanidade, há também os fanatismos desenfreados, as ditaduras implacáveis, a possibilidade de novos totalitarismos e mesmo de guerras de aniquilação” (Edgar Morin, A Via para o futuro da humanidade, Edições Piaget, 2016, p. 299). Há tudo isto, mas há também a transcendência, onde o ser humano é um permanente “homo viator”.
51
52
A New Road to Travel: Challenges and Triumphs in Developing the Philosophy of Sport R. Scott Kretchmar Professor Emeritus, Penn State University
53
54
A New Road to Travel: Challenges and Triumphs in Developing the Philosophy of Sport R. Scott Kretchmar Professor Emeritus, Penn State University
In this paper I discuss the founding of the subdiscipline of the philosophy of sport. In particular, I recount my experiences as an original member of the Philosophic Society for the Philosophy of Sport (later renamed The International Association for the Philosophy of Sport). The analysis includes tips for growing new organizations, several warnings about mistakes we made in founding our society, some recommendations for research (particularly for young scholars), a review of the current status of the subdiscipline, and finally, speculations on how to best defend philosophy of sport in both academic and professional settings. Muito obrigado por este maravilho’so convite (con-vee-tee). É bom estar de volta ao seu (soo) lindo (lindow) pa-ís. Eu (A) estiva aqui em 2011, quando você organizou nossa conferência internacional em Porto. Outra vez, muito obrigado. Agradecimentos especiais a Luísa Ávila da Costa, também a Constantino Pereira Martins, e (a)Teresa (Tera’za) Lacerda. Agora, de volta ao inglês. I was asked to provide tips on successfully starting and growing a philosophy of sport organization, or more broadly a philosophy of sport movement—for your purposes in Portuguese-speaking countries. I have just two tips for you. Here they are. You need to be smart and lucky. I lied. I actually have three tips. You also need to be persistent, because persistent people tend to also tend to get lucky. So be smart, get lucky, and be persistent. End of story. However, I need to discuss some of the details of how we were sort of smart, got sort of lucky, and were very persistent. Our story took place in the latter 25 years of the 20th century. I hope you will be able to apply these stories to your own circumstances as we are about to enter the second 25 years of the 21st century.
Tips from our history In the United States the philosophy of sport movement was initiated by physical educators, not philosophers. (For further details on this history, see Kretchmar, 1997.) We faced two 55
credibility hurdles. First, physical educators (we call ourselves kinesiologists now) were not regarded as full intellectual partners in higher education. (My degree, for instance, is in physical education, not philosophy. By definition, in their view, I was not prepared to do full scale, legitimate philosophy.). In short, we kinesiologists were seen by many in the academy as academic lightweights.
Second, the parent discipline of philosophy scorned and thus ignored topics such as sport and games and, to a certain degree, also play and dance. A quick story. When we held our first philosophy of sport conference at Brockport in 1972, I was sent to the head of the Philosophy Department to see if they would co-sponsor our meeting. Upon hearing my request, the chair of the department said—and this is a literal quote—“There are absolutely no interesting questions in the philosophy of sport.” I was quickly dismissed without further discussion . . . and without any money. We had to be smart, get lucky, and show some persistence. Here are some of the things we had to do to gain credibility and gain visibility. 1- Find money. We had an organization at Brockport called the Center for Philosophic Exchange that paid to bring in top philosophers whose talks would be published in a well-respected journal titled Philosophic Exchange. They had money. 2- Find allies in Philosophy. The head of the Center for Philosophic Exchange at Brockport was remarkably open to our ideas. He would be an ally. He would override the cold shoulder we got from the Chairman of the Philosophy Department. So, we got lucky twice—in having the Center at Brockport and in finding that its director needed very little encoura-gement to support us. All we had to do to meet the Center’s standards—that is, find top drawer, nationally or internationally-known philosophers who could, and would, speak about sport, games, or play. 3- Find famous philosophers of sport. We had two such individuals in Paul Weiss, a well-known Platonic philosopher who had just published Sport a Philosophic Inquiry, and in the enigmatic Bernard Suits who was in the process of writing The Grasshopper. We got lucky again because both fit the criteria for the Center. We had found money and an allied organization to bring in genuine philosophers who would address sport in serious and philosophically sophisticated ways. Our credibility and visibility, especially in the philosophic community would increase. 4- Regarding the matter of persistence, we needed to secure a passionate leader, a point person, a dogged individual who would not give up on our cause when he or she met resistance. We already that in Warren Fraleigh, Dean of Physical Education at Brockport. He was a fine scholar in his own right and thus was able to talk to those in philosophy as an equal, or at least a near equal. In addition, he was smart, politically astute. He knew which academic buttons to push, which people to win over, how fast to move, and so on. His leadership allowed the philosophy of sport to get off the ground.
56
5- Found a stable organization. Under the leadership of Fraleigh, we formed the Philosophic Society for the Study of Sport. Fraleigh, a physical educator, would be the first president. Weiss, the internationally-known philosopher, would be the initial Vice President and then become the 2nd President of the Society. The initial board was made up of men and women, approximately half from philosophy, half from physical education. We were building bridges. 7- Further establish visibility and credibility. We made two decisions that promoted both ends. We founded the Journal of the Philosophy of Sport and provided it with both leadership and a constitution that would require it to publish only the highest quality research. In addition, we made the difficult decision, under Fraleigh’s leadership, to hold conferences around the United States and indeed, around the world . . . in spite of the fact that very little sport philosophy was taking place in some of those locations. A number of our early meetings were sparsely attended . . . but by moving to different geographical locations, we gained exposure and new members both in the United States and abroad, particularly in Japan. 8- Make decisions related to quality and quantity. As noted, we determined that the Journal had to be devoted to quality. However, we felt that we needed a vehicle for deve-loping young scholars, those who were not yet ready to publish in the Journal. We decided that our conferences, while having referee processes in place, would have far more lenient and accommodating standards—standards that could be met, for instance, by graduate students who were just cutting their teeth in the sport philosophy discipline. Thus, virtually any submission that had philosophic content and a halfway decent argument would be accepted, and we expected the presenter would receive valuable feedback that would expedite his or her growth. A final decision had to do with the subject matter that would be appropriate for our journal and conferences. We decided to highlight the term “sport” in our society’s name. But what would count as sport? And how would we define our commitment to sport? How would we topically limit contributions to our meetings and journal? The decision we made was a good one. None of us felt the term “sport” should be used in an exclusionary way. Thus, we agreed that we would welcome papers on games, exercise, play, dance, skilled movement, embodiment, leisure activities, and the like. We wanted to be inclusive. We needed to be inclusive in order to garner enough articles and research papers for our conferences and journal.
Mistakes we made. What we could we have done better. We made one huge mistake, and we are still attempting to recover from it. This mistake threatens the very existence of the philosophy of sport in the United States—at least as it exists in its home base in departments of Kinesiology and Physical Education.
57
Sport philosophy was not newly invented in 1972. Our predecessors over the previous decades were applied sport philosophers—applied, that is, to the profession of education. When I started graduate school, I was expected to take courses in the philosophy of education from the Education Department. I objected and said I wanted to take philosophy courses from the Philosophy Department. After I gained some capability in philosophy, I would apply it to sport . . . not sport education, not physical education. The mood when we started our organization in 1972 was on of trying to show we were real philosophers. We essentially cut our ties with education. We cut our ties with any sort of practical application of philosophy. That was a big mistake. It prompted kinesiology departments and programs of physical education to wonder if and why they needed us. Of what practical worth were we? The honest answer to that question was, “very little.” In hindsight, I wish I had written more in applied journals. I wish I published more in journals read by physical educators, health educators, sport management personnel, international or Olympic officials. I wish I had worked harder in showing how my ideas would be helpful in the sport marketplace. In a sense, we succeeded in showing we could do philosophy, pretty good philosophy. We failed, however, in convincing the broader community that this philosophy was useful, even that it was desperately needed—which it is. Here then is a challenge for you, and for us, and particularly for the young sport philosophers who will carry our mission forward. Another failure which still plagues us today is the following. We could have been, and still should be more aggressive, in promoting membership diversity. We’ve made incredible progress in promoting international diversity. This conference itself is testimony to that fact. But we have not done as well on other diversity fronts. Over the years, relatively few women contributed regularly to our administration, journal, or conferences. Some of this was due to the fact that very few articles on dance ever appeared under our auspices. Some of this was undoubtedly due to the fact that women were generally excluded from organized, high-level sporting activities in the 1970’s and 80’s. But some of it was due to the fact that we did not actively recruit and encourage female scholars to get involved. The same could be said for our efforts in promoting ethnic diversity. Most of our sport philosophy was Western, and most of it has been White. We still have that problem, as Adam Berg reminded us at our recent IAPS meeting in Croatia. We still have a considerable amount of diversity work ahead of us. Here then is another challenge for all of us, but particularly our young scholars. Yet another error was our failure to follow our constitution as closely as we should have. Why did this happen? As a small organization that had a limited workforce, we struggled to find
58
interested and competent members to staff important positions—such as, editor of our journal. We allowed one editor remain in that position for many more years than our constitution permitted, and that individual rightly or wrongly began to take personal ownership of our journal. This spawned a number of problems that hurt our organization, caused bad feelings, and even drove some members out of our society. The lesson here: Do not allow expedience to trump common sense. A final problem worth mentioning is one that can plague any organization. We should have enforced civility rules more strictly—particularly in our early years. Philosophy of sport should not become a blood sport. But as we all know, philosophy progresses through argument and counter argument, and it should be civil, not personal. It should stop well short of any ad hominem attacks. Unfortunately, like any organization, we attracted a few members over the years who enjoyed the combat and winning more than helping one another come to the truth. Understandably, this caused some younger scholars, in particular, to become discouraged. As you have undoubted already found out here in Portugal and in Brazil, any philosophy of sport organization is partly professional and partly social. Scholarly societies do better when people like one another, respect one another, and enjoy being together.
Some Research Tips (Particularly for Young Scholars) It is difficult to provide tips for research because contexts for scholarship vary from country to country. Some embrace applied kinds of scholarship; others do not. Some prefer work that expands on previous research. Some prefer original contributions. However, there are some commonalities, and I will attempt to identify a few of them. 1- Most good sport philosophers love sport and have in-depth experience in sport, dance, play, and games. The love part makes the research all the more fun. I grew up playing baseball, basketball, and table tennis. Those experiences, a few of them at relatively high levels, have fueled my continuing curiosity about sport, games, and play. (That’s the love part.). But those experiences have also helped me locate the important questions and aim more efficiently at good answers. I’ve gotten to know many sport philosophers over the years. I would say those that embodied a genuine love of physical activity and had extensive first-hand movement experiences came to our discipline with a considerable advantage. The lesson here is: play on. 2- Read, read, and read. Our literature has expanded tremendously and beautifully over the past 50 years. It is harder to keep up, but it is still necessary. When new graduate students would come into my program at Penn State, I insisted that they spend a couple of years mostly reading and then practicing with small writing projects. I called this reading regimen a process of “gathering lint.” It is hard to do good philosophy unless and until you have gathered a sufficient amount of lint. Knowledge of the literature, knowledge of the standard arguments on various topics, knowledge of the avenues that have been explored . . . all of that is invaluable in doing good
59
philosophic writing. This epistemological insight comes directly from Merleau-Ponty. We write from our embedded knowledge of the literature, not toward it, not though it. It’s much like and embedded habit or skill. We live from those habits and skills toward new opportunities enabled by them. Memory of the literature serves as the same kind of freedom launching pad. When I was editor of the Journal of the Philosophy of Sport, the number 1 reason for the rejection of an article was a lack of knowledge of the related literature. 3- Read in the sciences as well as philosophy. Our philosophic insights are tethered to empirical facts. This is obvious in topics such as the ethics of performance enhancement or the rights of transgender athletes to compete in traditional binary categories. The science related to these topics is clearly relevant to our ethical reflections and conclusions. But the relationship runs far deeper than that. We think as embodied creatures. Embodied individuals, including their cognitive capacities are affected by their biology, their chemistry, their genetics, their evolutionary history. I’m a philosopher who is convinced that our ideas do not come from nowhere. Some of my colleagues are not enamored with that idea, but I think they are wrong. In fact, I find it remarkably ironic that some of us who are fascinated by embodied acts (such as those we find in sport and dance) conduct their philosophy as if we were not embodied at all. 4- Take advantage of your language. It may help you see things that those who work with a different lexicon and a different grammar miss. But the opposite is also the case. Beware of blind spots created by your language. We struggle with this in English. For instance, the verb “play” (as in Johnny is playing soccer) may have little to do with the noun “play” (as in Johnny having an intrinsically satisfying time in his soccer game). Suits ran into this difficulty when he started his famous definition of games with the phrase, “To play a game is to attempt. . . . Many readers of The Grasshopper thought Suits was arguing that games are a species of play, when that was not at all what he meant. In short, we philosophers benefit from our native tongue. And we philosophers suffer from having to use our native tongue. 5- Be aware of where the action is. You may want to avoid it . . . if you think it has been threated too thoroughly. On the other hand, you may want to gravitate toward it . . . if you see that it still deserves more attention. Some would argue that the issue of performance enhancement has been visible for such a long time that new articles are becoming redundant. Others would disagree. Either way, topics rise and fall in popularity. An awareness of this can be useful— particularly for young scholars who need to get published.
Current Status of Philosophy of Sport Literature Where is the current action in the philosophy of sport? This review should serve two purposes—show all of us what the hot topic are, and perhaps also show us what topics are being
60
ignored or under studied. (See Torres and Kretchmar, 2022 Journal of the Philosophy of Sport and Sport.). I surveyed the last 5 years of articles in the Journal of the Philosophy of Sport, and in Sport, Exercise and Philosophy to see where scholars are focusing their research. Here are the results. Authors are not writing about epistemology. I found only 12 articles that addressed “how we know” kinds of questions. There is a tremendous opportunity here for further work—specifically the importance of procedural knowledge in promoting human freedom and providing a defense for school physical education, examining the status of body as a factor that shapes and limits our ways of knowing, and making progress on what kind of confidence we can have in conclusions about the nature of sport, the ethics of sport, and so on. It is also the case there is little action in the domain of aesthetics. I found only 10 articles that fit this category—about half of them addressing the drama of sport, the tensions associated with competition, virtually none of them speaking to the values of our so-called aesthetic sports such as skating, diving, and gymnastics. I find this odd given the close connection between aesthetics and axiology—that is, the relationship between the beauty of sport (if you will) and the role sport can play in promoting the good life. More research is clearly needed in this area. A third research area--the history of philosophy and cultural philosophy was more visible in a modest way. This included, for example, the ideas of the ancient Greeks toward body and physical activity, philosophic analyses of Homer, and of course, discussions of Plato and Aristotle and their relevance for sort, as well as cross cultural discussions of the nature of sport around the world and played under the influence of different religious and cultural traditions. I found 29 citations that fit this category—17 of which were included in two special issues. Metaphysics is still a popular area thanks, in large measure to the work of two individuals— Bernie Suits (13 articles about the nature of games), and Ronald Dworkin (5 articles about the nature of sport in its best light—and battles between broad internalists and others). Some articles are appearing on whether all sports are games, or whether all sports are competitive. Some new articles address the question of whether or not e-games should be regarded as sport. One essay discussed the nature of excellence in sport. In toto, I counted 47 articles in the domain of metaphysics of sport, games, and play. Axiology –articles that addressed different versions of “the good life”—were plentiful and numbered 59. Some addressed the paradox of striving even to the point of inducing pain and its contribution to robust living. Some articles discussed play and the play spirit. Some addressed the value of sports that have and require no referees. Some identified the factors of chance and hope as uplifting features of sport. Ethics was the big winner, with sex/gender issues leading the parade (32 articles), followed by doping and performance enhancement (17 articles). The other topics here were rich and diverse—ethical issues related to technology, gambling, strategic fouls, and controversial sports—
61
boxing, bull fighting, hunting, and even darts, and “pole sports.” The total here was a whopping 98 articles. This survey reveals several things: 1- Some metaphysical issues (the nature of games) and some ethical issues (doping) have legs. They are complex, durable, attractive. We have been arguing over different viewpoints on these topics for some 50 years or more. 2- Philosophers are writing about current issues—gender categories and women’s rights to compete, e-games, new technologies that replace judgment calls by referees. 3- Editors and editorial boards are interpreting “sport” in the broadest sense. The criterion would seem to extend to a great variety of leisure time activities—darts? E-games? pole dancing? 4- The topics of dance, play, and children’s sport are virtually invisible. It is unclear why these omissions exist. In the case of dance, it is probably due to the fact that other publication and presentation communities and opportunities exist. Why play is not being more thoroughly addressed is a mystery. Likewise with youth sport. It presents a host of ethical issues that are not being analyzed.
How to defend philosophy of sport in academic and professional settings For Defending philosophy of sport in the parent discipline the best tip is to do good philosophy and share it with card-carrying philosophers. That is an ongoing strategy. It is also useful to point out the relevance of this topical kind of philosophy. Huizinga, for instance, made the mistake of focusing on high culture. When he argued that culture developed in an as play, he was talking about high culture and his analysis was harmfully one-sided because of that. We need good analyses of popular culture, as well. To parent-discipline philosophers we can make very good empirical claims about the ubiquity and importance of play and games across cultures, across history, across the hundreds of thousands of years of human evolution. However, the argument I like best is a practical one. Philosophy departments in the United States are suffering from lack of student enrollment in general education classes and small numbers of students choosing to major in philosophy. Someone needs to help philosophers understand how to make their subject matter more sexy.
62
When I was at Brockport, I taught a course titled: “The Ethics of Fair Play in Sport and Life.” It was cross listed as a Kinesiology and Philosophy offering and it counted in meeting general education requirements. Semester after semester it filled first among all philosophy courses. I beat both Plato and Aristotle though, in truth, that was not a fair contest. Seriously, more and more Philosophy Departments are discovering something those of us who live elsewhere in the University already knew. In some ways defending philosophy in physical education or kinesiology is harder than accomplishing the same in philosophy proper, particularly when trying to support physical education in the public schools. What kinds of philosophic arguments can be rallied to come to the aid of physical educators who are losing curricular time to the so-called academic basics? I think we can use our philosophy on the topics of play and work to help sort out the kinds of values inherent in moving and moving skillfully. These philosophies fall roughly into two traditional educational categories. Education that is useful, and education that is delightful. The first promotes life. The second promotes quality of life. The first is practical and vocational, the second is liberal and expanding. Sport, dance, exercise, games, and play, in my judgment, fit comfortably into both categories. The question is how to use that insight in promoting physical education and developing its curriculum. I’m a fan of the philosophy and theology of G. K. Chesterton. (See, e.g., Orthodoxy, 1908.). He argued that it is best to preserve furious extremes and keep them both furious. For physical education, that would mean that somehow physical educators should embrace the delights, and fun, and foolishness of sport and dance as play, as activities and skills that embellish life. At the same time or alternately they should celebrate the values and bright colors of life, health, vigor, increased energy, the absence of disease and disability, and longevity. Creativity would be needed in keeping both, embracing both, selling both, and finding ways to shape the curriculum that honor both. Currently in the United States, physical education has capitulated to the health side of the equation. And it is being unsuccessfully promoted through rational argument. Physical activity is good for you. Exercise is medicine. And guess what! We humans aren’t all that rational, and we certainly do not want to swallow any bad tasting medicine. How sad and unfortunately. As a play person myself, as a liberal educator myself, I find this situation to be appalling. Not surprisingly, the goal of promoting physical activity across the lifespan is not anywhere close to being realized. A very different approach is needed, perhaps the one recommended by Chesterton, perhaps one that includes the bright colors of play and what could be the brighter colors of exercise. The good news for all of us here is that philosophy will wax and wane in popularity, but it will not disappear. We address questions of meaning and value that no other discipline can probe
63
as effectively as we do. In addition, sport and play and dance and other forms of physical activity will wax and wane in popularity, but neither will they disappear. As long as we are embodied creatures, we will need to move out of necessity . . . and out of a thirst for joy and meaning.
64
References Chesterton, G. K. (1908). Orthodoxy. San Francisco: Ignatius Press/John Lane Company. Kretchmar, S. (1997). “Philosophy of Sport.” In R. Swanson and J. Massengale (Eds). The History of Exercise and Sport Science. Champaign, IL: Human Kinetics. Torres, C. and Kretchmar, S. (2022). “Philosophy of Physical Activity.” In D. Knudson and T. Brusseau, Introduction to Kinesiology: Studying Physical Activity (6th ed.). Champaign, IL: Human Kinetics.
65
66
Razão e Movimento. A evolução da Filosofia do Desporto em Portugal Luísa Ávila da Costa Faculdade de Desporto da Universidade do Porto
Constantino Pereira Martins IEF – Universidade de Coimbra
67
68
Razão e Movimento. A evolução da Filosofia do Desporto em Portugal Luísa Ávila da Costa,
Faculdade de Desporto da Universidade do Porto
Constantino Pereira Martins, IEF – Universidade de Coimbra
Introdução Uma língua é muito mais do que um complexo lexical facilitador da comunicação entre membros de determinadas comunidades. Uma língua é uma forma de pensar. Enquanto estrutura dinâmica, que se desenvolve e evolui à medida que atravessa o tempo e o espaço, ela é reflexo de formas próprias de ser em mundo, de o ler, de o interpretar, de o acolher, de o construir e de o expressar. A riqueza e preponderância cultural da língua pode ser de tal forma significativa que nela se constitui numa espécie de filiação ontológica na qual toda a nossa experiência se manifesta e expressa, e um mundo que se constrói e desvela a partir daí. A Língua Portuguesa e os seus falantes são herdeiros de uma potência poético-filosófica da expressão e representação que muitas vezes fica refém do academismo mais puro que a anula, e do historicismo como tendência segura da reflexão. A relevância da língua no pensamento filosófico é, talvez por estas razões, um elemento de crítica importância. Nesse sentido, um trabalho de análise da evolução do pensamento filosófico sobre o desporto em diferentes línguas evidencia esta mesma tendência do papel edificador que a língua tem no pensamento que, por sua vez, se faz a partir de formas próprias de ser no mundo, e mais radicalmente, numa mundividência. Do ponto de vista da História do pensamento em Portugal, desde as suas origens que a reflexão filosófica esteve presente por relação aos seus horizontes mais clássicos como a ética, metafísica, religião, entre outros, e dividida entre a vida contemplativa e ativa, entre a alma e o corpo. Talvez num breve esforço historiográfico de reconstituição, o seu nome mais antigo possa remontar a São Martinho Dume (518-579) onde o foco do pensamento sobre a ação, a ética e virtude se deu por reflexão directa à questão da justiça. Apesar de Pedro Hispano (1215 –1277) ter dedicado o seu estudo à lógica, filosofia e psicologia, foi principalmente com Santo António de Lisboa (1190-1231) e sob a influência de Agostinho de Hipona (354-430) que se estruturou o que se poderia designar por Antropologia Antoniana radicada na ideia de homem-mundo
69
(microcosmos) enquanto intersubjectividade e alteridade. Na afirmação da unidade corpo-alma dá-se uma divisão enquanto positividade (o corpo é a casa da alma) e negatividade (o corpo não é um fim em si mesmo), relembrando a tese agostiniana de Imago Dei. Esta dialética do amor e do pensamento sobre as virtudes revelam a humildade e caridade (amor) ao próximo como caminho para Deus. Já no Século XVI a Escola Aristotélica de Coimbra1, empreendimento jesuíta, foi um marco importante na recuperação do pensamento antigo grego e a restauração da sua exegese e debate. Este momento coincide com o que em Portugal se designa como o período áureo imperial com a expansão ultramarina e o estabelecimento de uma dimensão imperial, extra-europeia, do país que iniciava então um movimento globalista ligado aos oceanos. A par dos grandes movimentos do pensamento europeu, o Humanismo Renascentista revela-se com Francisco Sanchez (15501622) na sua obra mais importante “Que nada se sabe”, restaurando uma douta ignorância que o aproxima simultaneamente de Sócrates e Descartes, tendo a dúvida como motor da reflexão, e a crítica como método da razão por relação a Kant, na busca da verdade. Os temas ético-políticos na Filosofia em Portugal foram sempre debatidos, como a questão da tolerância no Padre António Vieira (1608-1697), um defensor da tolerância, liberdade e dignidade entre os homens, um precursor dos direitos humanos num tempo de escravatura, exploração e guerra comercial entre impérios. Mas foi talvez com Baruch Espinosa (1632-1677), que a cisão entre Filosofia, Teologia e Política atingiu o seu ponto mais radical. Sem dúvida que foi um dos mais importantes filósofos da história da humanidade, descendente de judeus portugueses expulsos pela inquisição portuguesa, tendo a sua família exilado em Amsterdão, onde viria a nascer no seio da comunidade judaica portuguesa (Cf. Uriel da Costa, 1585-1640). As suas reflexões filosóficas sobre Política, Ética, Deus e Natureza, foram de tal forma marcantes que influenciaram pensadores durante séculos, sendo Gilles Deleuze o último dessa descendência. O Iluminismo europeu chega através de Luís Verney (1713-1792) com a marca da pedagogia, entre o nacionalismo e universalismo, na reafirmação da ética como utilidade e necessidade. Seria impossível esta introdução sem mencionar Antero de Quental (1842-1891) que inaugura o existencialismo, na relação profunda entre poesia e filosofia, sendo o açoriano ainda hoje um dos autores mais estudados em Portugal. Leonardo Coimbra (1883-1936) publica a importante obra “A Alegria, a Dor e a Graça” (Coimbra, 1920) no estudo da dialética e metafísica, mas também focado no problema do conhecimento, tendo tido como alunos Delfim Santos e José Marinho. Mas se o exercício de mapeamento autoral já parece extenso, ele não é sem dor e sofrimento. A filosofia portuguesa torna-se um problema para si mesma, e questiona-se até que ponto existe ou não, de facto, uma filosofia verdadeiramente, e originalmente, portuguesa. Neste sentido, a Escola do Porto2 afirma-se. Já no decurso do Século XX é Agostinho da Silva (1906-1994), que na ligação entre filosofia e pedagogia, marca a sociedade na sua atitude de Sócrates contemporâneo. Desta forma promoveu o anti-dogmatismo e a ligação entre Portugal e Brasil, no que mais tarde se viria a apelidar de Lusofonia, onde também Eduardo Lourenço (1923-2020) viria a marcar o seu espaço de pensamento. No final do séc XX afirma-se o pensamento filosófico contemporâneo com Fernando Gil (1937-2006) com maior incidência
1 https://www.uc.pt/cech/investigacao/projetos-complementares/cursus-aristotelicus-conimbricensis/; http://www.conimbricenses.org/ 2 António Quadros, António Braz Teixeira, Afonso Botelho, Jesué Pinharanda Gomes, Orlando Vitorino, António Telmo, Dalila Pereira da Costa, etc.
70
na Epistemologia, Maria Filomena Molder (1950-) e José Gil (1939-) na área da Estética, mas também António Damásio (1944-) no estudo inovador das Neurociências. Através desta sintética viagem pela história e séculos da Filosofia em Portugal podemos ver claramente que o pensamento sobre a ética, o corpo e o movimento, se estabelecem até hoje espalhados nas obras dos seus maiores pensadores contemporâneos. Na impossibilidade de um resumo que espelhasse em pormenor esta longa história, ficam estes nomes como pontes e migalhas que os leitores interessados possam depois reconstituir o interesse noutros lugares de maior profundidade. Este brevíssimo excurso serve apenas a missão de dar a ver que somos sempre, e humildemente, anões às costas de gigantes. A Filosofia do Desporto é herdeira, em linha dedutiva, desta longa tradição. De realçar, no entanto, a grande mudança no final do Século XX na passagem da influência da Filosofia Francesa, e residualmente da Alemã, para a hegemonia da filosofia de cultura anglófona e no uso académico global do inglês. Essa influência traduz-se na recente introdução de um aprofundamento de disciplinas mais pragmáticas, no âmbito filosófico, e no rejuvenescimento dos interesses e áreas de estudo contemporâneos. Simultaneamente observa-se uma aposta do país na investigação e desenvolvimento ao nível do investimento financeiro universitário com a criação do Ministério da Ciência e da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), enquadrados num esforço global da União Europeia no ensino e na pesquisa científica. Ao contrário do que se verifica nos países que detêm uma presença mais significativa nas comunidades internacionais de filosofia do desporto, em Portugal esta é uma disciplina formalmente ausente e informalmente omnipresente. Não está institucionalizada. Não existem, nem nunca existiram em Portugal, departamentos, disciplinas, grupos de investigação, ciclos de estudos ou pós-graduações em filosofia do desporto nas universidades públicas do país. Seria, contudo, injusto, precipitado e falacioso concluir a sua ausência, dado que, paradoxalmente, são inúmeros os trabalhos publicados, apresentados e discutidos académica e publicamente nos campos da ética, da estética, da epistemologia e da axiologia desportiva. A filosofia do desporto é, por estas razões, um mare liberum navegável por todos e de domínio ou posse de ninguém. Sendo o desporto frequentemente discutido epistemologicamente em Portugal, há que realçar que se torna por vezes difícil aceder aos escritos de filosofia do desporto que se encontram encobertos pela nomenclatura da educação física, da atividade física, do exercício físico ou, até mesmo, da motricidade humana. Teremos oportunidade de expor esta diversidade epistemológica e conceptual neste texto, mas assumimos desde já que a nossa abordagem à história da filosofia do desporto integrará todos estes conceitos e realidades, não se confinando à especificidade restritiva do conceito de “desporto” apenas. No esforço de reunião e síntese do conhecimento produzido no campo da filosofia do desporto deparamo-nos também com uma dificuldade adicional de método. A pesquisa que tradicionalmente fazemos na nossa era, a partir de inserção de conceitos-chave como “filosofia”, “desporto”, “educação física” nas atuais bases de dados de artigos académicos gera não só poucos
71
resultados em língua portuguesa, como uma intrigante ausência daqueles que consideramos ser os autores incontornáveis deste campo de estudo. Uma possível explicação para este facto pode ser a manutenção de uma tradição do recurso ao ensaio filosófico em fóruns de uma maior abrangência cultural que não meramente a académica, como revistas de cultura, jornais e publicações em forma de livros. Isto porque muitos dos temas da filosofia não se compaginam com as métricas e limitações de caracteres que as revistas científicas hoje impõem, comprometendo dessa forma a densidade e profundidade que os temas da filosofia em geral, e do desporto em particular, demandam. Encontramos na literatura dois tipos de corte que contribuíram para a própria estrutura deste texto: o corte temporal, com alguns autores decisivos na primeira e segunda metades do séc. XX, pioneiros deste campo de estudo em Portugal, e posteriormente um corte disciplinar, quando já no século XXI prolifera o pensamento filosófico do desporto a partir de autores de diversas proveniências institucionais e de pesquisa (sobretudo sociólogos, antropólogos, historiadores e pedagogos), que se debruçaram sobre temas como a definição do conceito de desporto, a natureza e o espírito dos desportos, a axiologia desportiva, a ética no e do desporto, a estética do desporto e o pensamento contemporâneo do desporto. Apesar do recurso a esta escrita categorialmente e artificialmente organizada, não podemos deixar de salientar que as fronteiras entre estes períodos e estas áreas são, evidentemente, ténues e fluidas. Com honestidade intelectual teremos também que afirmar que não é possível num artigo enciclopédico desta dimensão expressar uma noção de totalidade do pensamento português filosófico sobre o desporto, propondo aqui um roteiro de pistas que permitam ao leitor a persecução e densificação do tema.
As primeiras pedras na edificação da filosofia do desporto em Portugal Primeira metade do séc XX – Sílvio Lima: sugestões para um mapa conceptual As resistências históricas ao alinhamento de uma cultura do corpo à cultura do espírito, mantiveram os seus sinais até ao século XX. Três livros pioneiros são publicados em pleno período de Estado Novo (regime político ditatorial que vigorou em Portugal entre 1933 e 1974), por Sílvio Vieira Mendes Lima. São eles: Ensaios sobre o Desporto (1937); Desporto, Jogo e Arte (1938) e Desportismo profissional - Desporto, trabalho e profissão (1939). Sílvio Lima (1904-1993) foi um filósofo e pensador transversal ligado à Universidade de Coimbra, tendo desenvolvido ensaios sobre as questões do Desporto a par de outras áreas da Filosofia, Psicologia, Religião, Metafísica, Ontologia, entre outros.
72
Numa época em que o paradigma comum e, particularmente governativo, observava o desporto enquanto universo lúdico, não sério e, em alguns aspetos colaborador para a decadência da espécie humana e definhamento de um povo (Diário do Governo n.º 90/1932, Série I, de 16/04), é admirável que este pensador, em pleno contexto ditatorial, tenha edificado os primeiros pilares da filosofia do desporto em Portugal, pela afirmação da função educativa da prática desportiva, e dos modos como o desporto pode contribuir para o desenvolvimento de virtudes humanas, como a coragem, a disciplina, a solidariedade, o trabalho em equipa, assim como ser veículo da oportunidade de acesso ao belo e à liberdade. É, aliás, nestas obras, em que o seu elogio ao desporto – muito à frente do seu próprio tempo - o eleva a veículo fundamental de democratização social, colocando em diálogo o desporto e o seu relevantíssimo papel no mundo do trabalho, no papel e lugar social da mulher, nas relações com o poder, temas que à época requeriam uma boa dose de coragem e espírito livre para serem debatidos com tal abertura e pensamento visionário. A sua obra pioneira na Filosofia do Desporto em Portugal, quer pela sua variedade bem como pela abrangência, toma e inaugura a forma do ensaio filosófico como a sua expressão primeira, quer em livro ou em artigos de jornal, tendo esta tendência formal da escrita sido posteriormente confirmada pelo pensamento de Manuel Sérgio. Podemos afirmar com segurança que esta é uma das marcas identitárias da Filosofia do Desporto em Portugal, sendo que a este respeito, e curiosamente, há um livro de Sílvio Lima intitulado “Ensaio sobre a essência do ensaio” (Lima, 1966), onde se defende a liberdade e a originalidade contra o dogmatismo e autoritarismo. Aliás, existem dois movimentos e formas essenciais e marcantes na filosofia do desporto em Portugal: o ensaísmo e o humanismo. A dimensão humana toma o jogador e o atleta como centro, construindo a partir daí uma crítica e reflexão a partir da antinomia entre profissional vs. amador (aquele que ama), instituindo o princípio do desinteresse como ética praticante. A alma do desporto fica assim situada entre corpo e espírito, mas radica nessa soberania ascética. Isso significa uma saída absoluta para fora da voragem económica, numa trilogia ética estabelecida por relação, e em ordem crescente de densidade, aos conceitos de: 1) especulação (a questão da comercialização); 2) mercantilização (mercado selvagem/desregulamentado); e 3) animalização ou bestialização, como culminar desse processo, que é ainda mais radical do que o corpo-máquina ou o corpo performativo desportivo, tal como Giorgio Agamben (2007) opunha a bios (βίος) à zoē (ζωή). A consequência e implicação real desta bestialização do jogador é uma desumanização do jogador e do desporto, ou seja, uma antinomia radical entre o estatuto de cidadão vs. animal, e a sua implicação última seria a perda de essência do jogo e do desporto, para o jogo de apostas e do dinheiro, do espectador, reduzindo-se à sua superficialidade. Mas para Sílvio Lima, o desporto não é vão, ele é elevação à imagem dos gregos antigos. O desporto na sua essência como atividade física e racional, promove a fraternidade, a colaboração, e o enaltecimento do espírito humano e das suas virtudes. Se o embate entre a Ética e a Economia Política é hoje evidente, o mesmo não se pode dizer da época de Sílvio Lima, onde o Desporto não era ainda a máquina milionária, nem a indústria massiva a que assistimos hoje, e muito menos nas suas consequências para o atleta e desportista na sua individualidade. O jogador só existe em liberdade, numa autonomia radical. Se do ponto de vista geral, os problemas apresentados podem ser dedutivamente vistos num
73
enquadramento teórico global, a singularidade de Sílvio Lima também radica na sua pluralidade indutiva, e as suas reflexões espraiam-se por temas tão diversos como liberdade e regra, fairplay e igualdade entre jogadores, arte, beleza e jogo, estética e ética, o medo e a coragem, mas também na concretude de modalidades como o automobilismo, a natação, entre outras (Lima, 2002). A inovação da sua abordagem desdobrou-se por muitos campos de reflexão tais como o desporto na inclusão para todas as idades, o desporto como regeneração por relação à delinquência, o desporto como ocupação e terapia. Do ponto de vista estritamente histórico, e do contexto político, a defesa e promoção do desporto no feminino, bem como da emancipação do papel da mulher na sociedade é uma marca progressista e singular das suas reflexões. Para Sílvio Lima, o desporto era uma possibilidade pedagógica e formativa, parte de um todo, de uma preparação e integração numa cultura, numa sociedade, complementaridade entre corpo e a razão. Esta visão individualista e democrática do desporto, a par do seu posicionamento crítico global, teve consequências graves na sua carreira profissional e chegou a ser excluído da universidade pelo regime ditatorial de Salazar, sendo uns anos mais tarde readmitido. Foi ao longo da sua vida um professor, académico e pensador que se destacou pelo seu posicionamento de rigor, criticismo e defesa da liberdade de pensamento. A sua actualidade permanece, permitindo ainda hoje dialogar com o seu legado quase desconhecido, e encontrar solidez e riqueza onde nos podemos apoiar para pensar o fenómeno desportivo.
Segunda metade do séc XX: tentativa de mapeamento cruzado histórico, autoral, temático e conceptual Sistematizar e organizar o pensamento filosófico português sobre o desporto a partir da segunda metade do século XX coloca-nos alguns desafios, pela complexidade e diversidade de mapas de leitura que este pensamento nos foi apresentando. Se nos é possível encontrar autores que explicitamente afirmam o desporto como objeto de estudo filosófico, há, contudo, um imperativo de justiça integrador que exige a consideração de um universo mais abrangente de reflexões sobre o desporto. Este estudo, produzido por pedagogos, sociólogos, historiadores, antropólogos, e investigadores das ciências do desporto, da educação física e da motricidade humana, é proveniente de autênticos protagonistas e fundadores das principais escolas do desporto no país. Nestes autores percebemos o desvelamento de uma certa filosofia do desporto por vezes não declaradamente expressa, mas de enorme relevância. A abordagem escolhida para enfrentar este desafio de sistematização consiste na tentativa de criação de um mapa ordenador, um atlas, que aborda e expressa, de forma cruzada e sobreposta, vários sub-mapas de natureza histórica, autoral, temática e conceptual. Desta forma, apresenta-se a seguinte topologia: a) Escolas de educação física e desporto, entre a ditadura e a revolução. Algumas das principais escolas nasceram em Portugal, essencialmente em Lisboa e no Porto, para a formação de profissionais de educação física e desporto. 74
Em 1930, a Sociedade de Geografia de Lisboa criou uma Escola Superior de Educação Física, a cujos alunos que concluíam o seu curso, eram atribuídos diplomas de instrutores e de professores de educação física (Trovão do Rosário, 1997). O Instituto Nacional de Educação Física (INEF) foi criado em 1940, com o intuito de implementação e promoção de um plano de formação integral, que incluía a preocupação com o revigoramento físico da população portuguesa no regime do Estado Novo. Um ano depois da revolução de 1974, esta instituição foi extinta, dando lugar ao Instituto Superior de Educação Física de Lisboa, atualmente denominada Faculdade de Motricidade Humana (Trovão do Rosário, 1997). Já no Porto a história da formação em educação física e desporto aponta o seu início para 1969, ainda sob o regime Salazarista, com a Escola de Instrutores de Educação Física do Porto (Neto, 2015). Também nesta cidade, cerca de dois anos após a revolução de 1974, a formação em Educação Física integra o ensino universitário, dando origem ao Instituto Superior de Educação Física (ISEF), integrado na Universidade do Porto, que em 1989 passaria a chamar-se Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Física (FCDEF) e, em 2005, simplesmente Faculdade de Desporto (FADEUP), assumindo o desporto como campo de estudo autónomo (Neto, 2015). As diferenças nas denominações destas duas instituições, que podem à primeira vista parecer subtis, revelam em si divergentes posturas epistemológicas perante o Desporto e também rumos ligeiramente diferenciados na definição do principal objeto de estudo dos cursos. Se durante o período ditatorial e até ao fim dos anos 80 o conceito de “educação física” predominava e, desse modo, o desporto e a atividade física eram vistos como instrumentos de uma educação física geral e revigoramento corporal da população, o final do século XX revela dois posicionamentos epistemológicos claramente diversos: o olhar sobre a motricidade humana em Lisboa e o enfoque no desporto no Porto. Observou-se, a sul, uma jornada intelectual de pensamento sobre o desporto considerada a partir de uma lente mais generalista, que incluía um olhar filosófico disseminado entre o desporto, a dança, a ergonomia, o corpo e a reabilitação, enquadrados num conceito geral de motricidade humana, e a norte a lente densificou-se numa procura por um olhar mais circunscrito, específico e especializado sobre, e apenas, o desporto. A definição de desporto, contudo, ainda hoje desafia e coloca em debate filósofos do desporto por todo o mundo, sendo este um objeto difícil de delimitar e estabilizar em consensos universais. De uma forma ou de outra, as escolas de Lisboa e do Porto trouxeram a discussão epistemológica para o pensamento científico sobre o desporto. Esta busca de uma definição apropriada para esse objecto que ambos procuravam conhecer, explorar e aprofundar, desenvolveu o pensamento filosófico sobre o fenómeno desportivo, abrindo-o posteriormente a outras áreas filosóficas para lá da epistemologia. b) A filosofia do desporto sai do armário: a autonomização de uma filosofia do desporto como campo específico.
75
Com “A pergunta filosófica e o desporto” (1991), “Filosofia das atividades corporais” (1982a), e “A prática e a educação física” (1982b), no qual consta um capítulo inteiro dedicado ao tema “Filosofia do Desporto”, Manuel Sérgio foi um dos principais autores a, deliberada e cristalinamente, declarar o tratamento do desporto como objeto de estudo filosófico específico. Nas suas sucessivas tentativas de argumentação sobre a pertinência do olhar filosófico sobre o desporto, Manuel Sérgio muito ouviu “(...) que não vale a pena, que é esgadanhar conseiroso, improdutivo até mais não! (...)” por muito que defendesse que “o desporto suscita problemas que só o poder unificador e racionalizador da filosofia pode ultrapassar ou resolver” (Sérgio, 1982b, p. 21). Talvez parte das resistências que se lhe colocavam se devessem à sua proveniência académica: era um homem da filosofia e não do desporto. Olhavam-no como alguém que “não vestia um fato de treino”, e que por isso estaria apartado de uma visão vivida e sentida da realidade desportiva. Ao afirmar e defender a emergência de uma nova ciência, a da motricidade humana, dedicada a aprofundar o movimento humano orientado à superação global (e não meramente física) da pessoa, isto é, orientado à transcendência, Manuel Sérgio opera o que ele próprio denomina de rutura epistemológica. Isto significa uma união do sensível ao inteligível, através da contemplação do corpo animado, que na sua relação com o mundo se propõe e expõe, descobrindo com ele uma familiaridade primordial (Sérgio, 2018). Assente na corporeidade, a motricidade humana compõe a unidade e a totalidade entre o bios e o logos, expressando “os anseios do homem ao mais ser!” (Sérgio, 2018, p.166). A motricidade humana é, por isso, definida como a conduta motora orientada ao desenvolvimento global da pessoa e da sociedade, tendo como fundamento simultâneo as suas dimensões física, biológica e antropossociológica (Sérgio, 2018). Questionando-se sobre o(s) sentido(s) do desporto, Manuel Sérgio elabora uma crítica ao espírito puramente capitalista de rendimento que prevalece no desporto como consequência das heranças axiológicas da modernidade, em detrimento de práticas tradicionais ou populares, lúdicas ou ligadas ao ócio humano. Afirma, assim, que o sentido do desporto se encontra na “procura pela transcendência através da motricidade, espaço e tempo onde o Homem aprende a ser mais Homem” (Sérgio, 1991, p.69). Paradoxalmente, são vários os treinadores de topo do alto rendimento internacional3, que foram seus alunos e admiradores, e que hoje lhe agradecem publicamente a influência que teve nas suas vidas e no seu pensamento sobre o desporto e o treino. É, neste contexto, frequentemente referida a sua icónica frase “antes do jogador há a pessoa que joga”. Mas esta ligação do desporto à cultura tinha já sido intensamente afirmada nos dois volumes de Homo Ludicus de Manuel Sérgio e Noronha Feio (1981a; 1981b), através do qual produzem
3 José Maria Pedroto, José Mourinho, Jorge Jesus, José Peseiro e Rui Vitória são alguns dos atuais treinadores que foram seus alunos e que já expressaram publicamente esta gratidão.
76
uma riquíssima antologia de textos desportivos da cultura portuguesa que inclui prosa doutrinal monárquica, crónicas, literatura de viagens, prosa doutrinal religiosa, textos poéticos, novelistas, romancistas e ensaístas, na qual o desporto se manifesta como uma “pujante afirmação de cultura: uma síntese original de criação artística e de contemplação estética; um meio de educação e de comunicação de excepcional valia; e um fenómeno social capaz de concorrer à Paz, à Saúde, à Tolerância, à Liberdade, à Dignidade Humana.” (Sérgio e Feio, 1981a, p. 8). Cerca de dois anos antes, e de modo mais específico, Noronha Feio tinha já investido na análise das relações entre o Desporto e a Política, elaborando uma apologia do desporto enquanto motor e estrutura de uma pedagogia política (Noronha Feio, 1979). Nessa obra desenvolve temas como: a relevância da cultura física e desportiva na educação; o aprofundamento dos conceitos de jogo e de desporto, suas convergências e divergências; as várias naturezas do desporto, desde a prática ao espetáculo, ao mundo do trabalho e ao lazer; outras funções do desporto, como a arte, a ciência, a educação e a investigação; e também as relações entre o desporto, o estado e os regimes de governo, com considerações sobre a utilização política do desporto. Desde esta época se pressentiu que a ética se foi assumindo como disciplina filosófica preponderante nos olhares sobre o desporto, assumindo assim o seu protagonismo na reflexão e importação de ideias filosóficas para este domínio de estudo. Assim o confirma o fórum “Desporto, ética e sociedade”, que por sua vez se realizava no Porto, na Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física da Universidade do Porto, em 1989 e cujas comunicações são publicadas em 1990 numa obra completa com a mesma denominação (Bento e Marques, 1990). Este livro constitui um compêndio de enorme fôlego e impulso para a reflexão filosófica sobre o desporto que a escola do Porto estava a construir, não apenas do ponto de vista da ética, mas também da estética, da axiologia, da antropologia filosófica e da filosofia da educação, do desporto. Para além de um conjunto de textos que equacionam a questão ética do ponto de vista jurídico, médico, genético, ou da investigação e seus limites bioéticos, há um conjunto de textos que demonstram um alento filosófico claro. Dentre eles destaca-se a busca por referenciais éticos do desporto que o questione nas várias promessas axiológicas que faz e não cumpre, suspeitando e questionando conceitos como o de fairplay ou o de espírito desportivo (Bento, 1990). É nesse mesmo momento que Noronha Feio elabora uma reflexão sobre a multidimensionalidade do agon desportivo contemporâneo, na sua intrínseca relação com a expressão contemporânea da cultura e “com tudo quanto é humano, dos dramas da vida e do amor, dos interesses económicos, da arte, da política ou da religião.” (Feio, 1990, p.51). Também nesta linha de permanente e intrínseca ligação do desporto à sociedade em que se insere, da qual é fruto, mas que também constrói, António Costa ensaia sobre a perda de referenciais religiosos e de princípios transcendentes que, na sociedade como no desporto, deu
77
origem ao tríplice axiológico industrial da máxima eficácia, do máximo rendimento e do máximo progresso, provocando significativas alterações em termos de referenciais éticos (Costa, 1990). Não podemos deixar de fazer referência à frutífera semente - na época quase passada despercebida - deixada por António Marques e Paula Botelho Gomes, e mais tarde por Paulo Cunha e Silva, no que à germinação de uma estética do desporto diz respeito (no século seguinte desenvolvida com maior vigor). Para isto contribuíram os ensaios “Do perfil de uma Estética do Desporto” (Marques e Botelho Gomes, 1990a), “O Desporto e a Cultura Física nas artes plásticas” (Marques e Botelho Gomes, 1990b) e “O Lugar do Corpo. Elementos para uma cartografia fractal” (Cunha e Silva, 1998). Nestes textos são deixadas riquíssimas pistas sobre as relações estético-éticas no desporto, assim como as interessantíssimas afinidades entre os mundos do desporto e da arte, reveladas quer pela sensibilidade e atenção que os artistas portugueses concederam ao desporto, quer pelas analogias e comparações que os pensadores do desporto começaram a elaborar entre o desporto e a arte. c) A pedagogia como problema filosófico do desporto Este encontro académico do Porto no final da década de 80 recuperou com fulgor a ideia, já defendida desde os anos 30 por Sílvio Lima, da pedagogia e da educação pelo desporto, como problema central na reflexão filosófica sobre o desporto (Lima, 1937). Este olhar amplamente desenvolvido pela Filosofia da Educação, permitiu aos académicos do universo desportivo inspirar-se em autores que robusteciam este campo de conhecimento, particularmente do movimento criado em 1986 pelo Instituto de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, que estabeleceu como uma das suas principais linhas de investigação a Filosofia da Educação. Adalberto Dias de Carvalho4 e Paula Cristina Pereira5 são dois dos professores deste campo de estudo que sempre acolheram o diálogo com os colegas e estudantes da faculdade de desporto da universidade do Porto cujo olhar filosófico sobre a educação pelo desporto procuravam aprofundar. Enfatizando o valor filosófico da experiência subjetiva da corporeidade enquanto domínio existencial da pessoa - colocada na época num plano subalterno face aos valores da eficácia, da eficiência e da economia herdados pela modernidade - Francisco Sobral atreve-se a explorar o valor educativo e pedagógico da experiência hedonista de fruição plena do indivíduo com o seu próprio corpo. Desta forma, desenvolve um elogio a uma educação corporal que considere a pluralidade dos motivos, significados e consequências implicados na prática desportiva (Sobral, 1990).
4 Para referência bibliográfica complementar, consultar: Dias de Carvalho, A. (1996). Epistemologia das Ciências da Educação. sofia da Educação: temas e problemas. Porto: Edições Afrontamento. 5 Para referência bibliográfica complementar, consultar: Pereira, P. C. (2000). Amor e Conhecimento. Reflexões em torno da Razão Pedagógica. Porto, Porto Editora; Pereira, P. C. (2007). Do Sentir e do Pensar. Ensaio para uma antropologia (experiencial) de matriz poética. Porto: Edições Afrontamento.
78
Adensando esta questão da educação corporal para as especificidades concretas da educação física, enquanto problema relevante da reflexão filosófica sobre o desporto, o professor (e também o treinador) começa a ser equacionado como protagonista para o estudo e compreensão do desporto. É nesta linha que Zélia Matos se detém sobre a missão do professor de educação física e os problemas éticos do poder que exerce (Matos, 1990) e Amândio Graça, pensando a partir da perspetiva do aluno, enfatiza os enormes desafios da procura por uma educação física e desportiva verdadeiramente inclusiva, que se adeque a todos e a cada um dos alunos (Graça, 1990). Já quase na passagem do milénio, o olhar filosófico sobre a pedagogia do desporto, a educação física e a motricidade humana, é reforçado pela primeira publicação da Sociedade Portuguesa de Motricidade Humana. A obra “O Sentido e a Ação” propôs-se à identificação e constatação de um objeto de estudo claramente definido, uma linguagem específica que o aborde adequadamente, e uma comunidade científica que vê na ciência da motricidade humana uma matriz disciplinar autónoma (Sérgio, Trovão do Rosário, Feitosa, Almada, Vilela, Tavares; 1999). Seguindo uma tendência socio-antropo-filosófica, é também nessa mesma época que Rui Proença Garcia edita com Jorge Olímpio Bento uma obra de reflexão sobre este olhar pedagógico sobre o desporto, com particular enfoque numa lente hermenêutica do valor da inclusão no desporto, contemplando temáticas como: paradigmas económicos e políticos (socialismo, capitalismo e consumismo), jogos populares e tradicionais, religião, classe social, etnia e idade (Garcia e Bento, 1999). Os problemas da pedagogia do desporto enquanto problemas filosóficos permaneceram no centro da reflexão académica em Portugal, que se estendeu pelo século XXI, como mostraremos no capítulo que se segue.
Século XXI: novo milénio, nova vaga O século XXI marca o início de uma nova vaga para a filosofia do desporto em Portugal, mais diversificada e transdisciplinar, revelando uma maior especialização da filosofia do desporto nos campos da pedagogia, da história, da sociologia, e da antropologia do desporto através de múltiplos protagonistas. Nesta transição poderíamos afirmar que à filosofia do desporto, construída desde a primeira metade do século XX, através da qual se pensou filosoficamente o desporto, enquanto realidade e origem per se de teorias filosóficas sustentadas numa natureza filosófica própria, se acrescenta agora o surgimento de uma filosofia no desporto. Isto é, uma aplicação de conceitos e teorias filosóficas gerais ao contexto do desporto, e nas suas múltiplas formas – seja o desporto de alto rendimento, o desporto enquanto meio de educação, o desporto recreativo, o desporto adaptado, ou qualquer outro - assim como a reflexão sobre o sujeito do desporto, isto é, o homo sportivus. Dando continuidade e densidade ao pensamento desenvolvido ao longo da década de 1980 e 90, Bento afirma-se no novo século como muito mais do que um pedagogo, através de “Desporto,
79
discurso e substância”, obra na qual desenvolve temas de evidente natureza filosófica, como o bem do desporto, tensões e contradições da ética do desporto do séc XXI, ou o Homo Sportivus e seus valores (Bento, 2004). Mas ao longo do ano de 2000, e já com quase três décadas passadas desde a mudança de regime político, o diálogo inter-universitário aberto e livre intensificava-se, quer nas pontes e discussões entre os autores das várias faculdades de desporto, educação física e motricidade humana, quer do ponto de vista de um diálogo multidisciplinar. As afinidades e relações com as faculdades de letras e os cursos de filosofia do país foram-se mostrando cada vez mais presentes, surgindo, neste contexto, uma que vale a pena destacar: o encontro do pensamento do desporto produzido pela escola do Porto com o pensamento de Manuel Ferreira Patrício, Reitor da Universidade de Évora e autor de uma valiosíssima obra entre a Pedagogia, a Filosofia, a Filosofia da Educação e a Cultura. Em particular, a axiologia da escola cultural (Patrício, 2006) exerceu forte influência no olhar pedagógico vigente sobre o desporto, conduzindo-o à atribuição de um Doutoramento Honoris Causa em 2013 na Universidade do Porto. Um dos seus seguidores, e que transporta para o universo desportivo o seu pensamento axiológico aplicando-o a uma antropologia filosófica do desporto, é Rui Proença de Garcia, que liderando o gabinete de Sociologia do Desporto da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto há mais de uma década, se tem dedicado ao estudo de temas da filosofia do desporto como o corpo, a superação, a transcendência, a utopia, os valores do olimpismo, o jogo, o envelhecimento e a morte (Garcia, Couto, e Lemos, 2003; Garcia e Portugal, 2009; Garcia e Monteiro, 2014; Garcia, 2015; Garcia e Cunha, 2016; Garcia, 2018). Perante a clara preponderância e domínio dos temas éticos na reflexão filosófica do desporto, eis que, entretanto, a partir de pistas iniciais deixadas por António Marques, e posteriormente com uma intervenção mais explícita de Paulo Cunha e Silva - responsável pela criação das disciplinas de introdução ao pensamento contemporâneo e de estética do desporto na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto - foi aberto o trilho para em 2002 ser defendida a primeira tese de doutoramento declaradamente sobre estética do desporto em Portugal, denominada “Elementos para a construção de uma estética do desporto” da autoria de Teresa Oliveira Lacerda (Lacerda, 2002). Nesta obra, verdadeiramente inovadora e pioneira, consta densamente estudada a relação entre o desporto e a arte, uma robusta argumentação sobre a existência e a natureza de categorias estéticas no desporto e alguns elementos para a compreensão da experiência estética acessível a partir do desporto. Quer por este trabalho pioneiro, quer por toda a história de desenvolvimento de pensamento na área, Teresa Oliveira Lacerda é o principal nome da estética do desporto em Portugal. Sendo inúmeros os trabalhos produzidos em co-autoria com professores e investigadores no campo do desporto, da arte e da filosofia, referenciamos aqui apenas os da sua exclusiva autoria, desde a década de 1990 até aos dias de hoje (ver: Lacerda, 1997; 1999; 2000; 2001; 2002; 2004; 2007; 2010; 2011; 2012; 2016; 2018; 2020). Tendo também tocado os temas da estética, e mantendo a presença da filosofia do desporto portuguesa na Universidade de Évora, João Tiago Lima é também uma referência académica,
80
nomeadamente em temas como a axiologia olímpica, a experiência estética e a filosofia dos desportos, particularmente do râguebi e do ténis (ver: Lima, 2012; 2019; 2021). Na Universidade de Coimbra a filosofia do corpo tem recebido particular atenção nos últimos anos, com o estudo de Luís Umbelino, especialmente no desenvolvimento do pensamento sobre o sentir, a dor e a fenomenologia do movimento (Ver: Umbelino, 2007; 2015; 2017; 2019a; 2019b; 2022). Dando continuidade ao explícito desenvolvimento da filosofia do desporto iniciado por Manuel Sérgio na Faculdade de Motricidade Humana desde o século passado, duas mulheres se destacam: Manuela Hasse e Ana Santos. Por um lado, pela reflexão epistemológica e antropológica sobre a corporeidade e o desporto, aproximando-se de um olhar estético sobre o corpo a partir da fotografia e das relações com a arte (Hasse, 2009a; 2009b; 2020) e, por outro, pelo pensamento sobre o movimento, a mobilidade, e as relações contemporâneas do corpo com a tecnologia no desporto (Santos, 2019a; 2019b; 2020). Do Plano Nacional de Ética no Desporto nasce em 2016 uma obra de referência, o livro “Desporto, Ética e Transcendência”, onde são filosoficamente abordados os temas do corpo, da transcendência, da relação com o sagrado, da ascese desportiva, da ética e da espiritualidade (Teixeira e Tolentino Mendonça, 2016). Com a construção da Cátedra Manuel Sérgio, a Universidade Católica Portuguesa revela desde 2020 um especial interesse pela filosofia do desporto, enquadrando-a, a partir da abordagem humanista deste autor, no próprio humanismo cristão, simultaneamente definidor e missão desta mesma universidade.6 Deste trabalho têm resultado um conjunto de conferências, seminários e publicações de relevo para a filosofia do desporto, com o contributo de inúmeros autores de todo o país, nomeadamente: “Da ciência à transcendência. Epistemologia da Motricidade Humana” (Sérgio, 2020); “Desporto, Humanismo e Tecnologia” (Teixeira e Duque, 2020); “Saber-se corpo. Ensaios sobre Desporto, Cinema e Motricidade” (Teixeira e Espada Vieira, 2021); e “Breve Tratado das Virtudes Desportivas” (Palma e Eleutério, 2022). Este trabalho constitui uma clara força motriz para o crescimento e desenvolvimento da filosofia do desporto no mundo universitário portugês.
6 https://ier.ucp.pt/formacao-avancada/programas/catedra-manuel-sergio-desporto-etica-e-transcendencia
81
Na proximidade do segundo quartel do Século XXI: previsões, futuro e expectativas São inúmeros os descendentes desta tradição deixada pela filosofia do desporto em Portugal desde o início do século XX até à data de hoje, distribuindo-se por dezenas de autores e instituições de ensino superior (e também instituições desportivas7), cuja nomeação completa não encontra espaço neste artigo. José Lima, José Pedro Amoroso, Jorge Araújo, António Camilo Cunha, Antonino Pereira, Carla Chicau Borrego, Abel Figueiredo, José Neto, Constantino Pereira Martins, Luísa Ávila da Costa são alguns dos nomes portugueses que poderíamos nomear e cujo trabalho valerá a pena perseguir. Se esta é a riqueza da filosofia do desporto em Portugal - a diversidade de proveniências e a diversidade do pensamento - ela também coloca desafios de futuro, nomeadamente no que diz respeito à sua organização, ao encontro de espaços de diálogo comuns, e ao seu registo para a memória. É precisamente nesse sentido que um grupo de académicos entre os quais os nomes acima identificados - decidiu criar em 2023 a Associação de Filosofia do Desporto em Língua Portuguesa8, dando assim um novo passo em direção ao futuro, pela construção de uma plataforma comum de diálogo, abertura e encontro.
7 Não podemos deixar de referir a influência do Comité Olímpico de Portugal, da Academia Olímpica de Portugal, do Plano Nacional de Ética do Desporto, do Instituto Português do Desporto e da Juventude, do Panathlon Clube de Lisboa, entre tantos outros que ao longo do tempo colaboram para um olhar humanista sobre o desporto. 8 www.afdlp.org
82
Referências Costa, a. (1990). Repensar a questão ética à luz do fenómeno desportivo moderno. In J. Bento e A. Marques (ed.), Desporto, Ética e Sociedade. Atas do fórum Desporto, ética e sociedade, de 5, 6, e 7 de Dezembro de 1989 (pp. 60-68). Porto: Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Física - Universidade do Porto. Cunha e Silva, P. (1998). O Lugar do Corpo. Elementos para uma Cartografia Fractal. Lisboa: Instituto Piaget. Da Silva, A. (1995). Sete cartas a um jovem filósofo. Lisboa: Ulmeiro Damásio, A. (2012). Ao encontro de Espinosa. Lisboa: Temas e Debates Eduardo Lourenço (2000). O labirinto da saudade. Lisboa: Gradiva Garcia, R.P.; Bento, J.O. (1999). Contextos da Pedagogia do Desporto. Perspectivas e problemáticas. Lisboa: Livros Horizonte. Garcia, R.P.; Couto, A.C.; Lemos, K. (2003). A escola cultural e a educação física na escola. In O desporto e o estado : ideologias e práticas (pp. 133-144). Coimbra: Almedina. Garcia, R.P.; Portugal, P. (2009). O desporto e as histórias de vida. Proposta de um novo itinerário a partir de uma visão personalista. Revista Portuguesa de Ciências do Desporto, 9(1), pp: 90-102. Garcia, R.P.; Monteiro, A. (2014). Do desporto à transcendência: Um caminho de superação. In Educação física e desporto: Relação Brasil Portugal (pp.95-106). Belo Horizonte: Instituto Casa da Educação Física. Garcia, R.P. (2015). No labirinto do desporto: horizontes culturais. Belo Horizonte: Casa da Educação Física. Garcia, R.P.; Cunha, A.C. (2016). Jogos Olímpicos sob o signo da utopia. Lisboa: Visão e Contextos. Garcia, R.P. (2018). Jugar, juego, deporte: para una teoría filosófica del deporte. Cultura, Ciência y Deporte, 13(38), pp. 93-95. Gil, F. (1984). Mimesis e negação. Lisboa: INCM. Gil, J. (1997). Metamorfoses do Corpo. Lisboa: Relógio D’Água Graça, A. (1990). Igualdade, aptidão e sucesso em Educação Física. In J. Bento e A. Marques (ed.), Desporto, Ética e Sociedade. Atas do fórum Desporto, ética e sociedade, de 5, 6, e 7 de Dezembro de 1989 (pp. 167-172). Porto: Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Física - Universidade do Porto. Feio, N. (1979). Desporto e Política. Ensaios para a sua compreensão. Lisboa: Compendium. Feio, N. (1990). A dimensão ética e cultural do Desporto. Ensaio sobre a multidimensionalidade do Agon Contemporâneo. In J. Bento e A. Marques (ed.), Desporto, Ética e Sociedade. Atas do fórum Desporto, ética e sociedade, de 5, 6, e 7 de Dezembro de 1989 (pp. 46-59). Porto: Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Física - Universidade do Porto. Hasse, M. (2009a). Sport et Photographie: un développement commun. In L’Art et le Sport. Actes du XIIe Colloque International du Comité Européen pour l’Histoire des Sports. Atlantica. Hasse, M. (2009b). Play-Time: Desporto, fotografia e a re-creação do mundo. In M. F. Silvano, Jorge Crespo - Estudos em Homenagem (pp. 317-349). Lisboa: CRIA - NOVA FCSH. Hasse, M. (2020). Desporto e Integração: técnica e ciência. Um problema epistemológico. In Pensar à Frente. Corporeidade, desporto, ética, cultura e cidadania. Estudos sobre Manuel Sérgio (pp. 47-91). Lacerda, T.O. (1997). Para uma estética do desporto. Horizonte: revista de educação física e desporto, 13(78), pp. 17-21. Lacerda, T.O. (1999). Olhar para o desporto do ponto de vista estético. In Deporte y Humanismo. En clave de futuro, p.227. Galícia: Instituto Nacional de Educación Física de Galicia. Lacerda, T.O. (2000). Equilíbrio e força: das capacidades motoras às categorias estéticas. Horizonte: revista de educação física e desporto, 16(96), pp. 21-22. Lacerda, T.O. (2001). Acerca de estética, desporto e educação estética de crianças e jovens. In Educação física e desporto na escola: novos desafios, diferentes soluções, pp. 43-48. Porto: Faculdade de Desporto da Universidade do Porto Lacerda, T.O. (2002). Elementos para a construção de uma estética do desporto. Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Ciência do Desporto e Educação Física. Porto: Universidade do Porto.
83
Lacerda, T.O. (2004). Acerca da natureza da experiência estética desencadeada pelo encontro com o desporto e do seu contributo para a educação estética do ser humano. In Professor de educação física: ofícios da profissão, pp. 301-307. Porto: Faculdade de Desporto da Universidade do Porto. Lacerda, T.O. (2007). A magia dos jogos desportivos e a estética do desporto. Revista Portuguesa de Ciências do Desporto, 7(supl.1), pp. 81-82. Lacerda, T.O. (2010). Estética, estética do desporto e educação estética pelo desporto. In Desporto e educação física em português, pp. 108-132. Porto: Faculdade de Desporto da Universidade do Porto. Lacerda, T.O. e Mumford, S. (2010). The genius in art and in sport. Journal of the Philosophy of Sport, 37, pp. 183-193. Lacerda, T.O. (2011). From ode to sport to contemporary aesthetic categories of sport: strenght considered as an aesthetic category. Sport, ethics and philosophy, 5(4), pp. 447-456. Lacerda, T.O. (2012). Education for the aesthetics of sport in higher education in the sports sciences: The particular case of the portuguese-speaking countries. Journal of the Philosophy of Sport, 39(2), pp. 235-250. Lacerda, T.O. (2016). Do pensamento centrífugo de Paulo Cunha e Silva ao corpo desportivo e seu valor estético. Revista Portuguesa de Ciências do Desporto, 16(S2a), pp. 184-193. Lacerda (2018). Imagem e valor estético da performance desportiva: uma análise a partir de imagens fotográficas. In Performances no contemporâneo, pp. 73-85. Porto: Faculdade de Desporto da Universidade do Porto. Lacerda (2020). El valor estético del fútbol a partir de una visión plástica del cuerpo deportivo en movimiento. In ¿La pelota no dobla? Ensayos filosóficos en torno al fútbol, pp. 70-83. Buenos Aires: Miño y Dávila Editores Lima, J.T. (2012). “The Competitive Perception”. Sport, Ethics and Philosophy, 6(1), pp. 61-66. Lima, J.T. (2019). Rugby in Portugal. Ein kurzer Überblick”. apropos Perspektiven auf die Roumania, 2. pp.: 280-286. Lima, J.T. (2021). Desporto e arbitragem ou o poder ontológico da regra. In Do Desporto On Sports, 107-112. Coimbra: Instituto de Estudos Filosóficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Lima, S. (1937). Ensaios sobre o Desporto. Lisboa: Livraria Sá da Costa. Lima, S. (1938). Desporto, Jogo e Arte. Porto: Livraria Civilização Editora. Lima, S. (1939). Desportismo profissional. Desporto, trabalho e profissão. Porto: Livraria Civilização Editora. Lima, S. (1966). Ensaio sobre a Essência do Ensaio. Revista Portuguesa de Filosofia, 22 (3), pp. 319-320. Lima, S. (2002). Obras Completas. Lisboa: Gulbenkian Matos, Z. (1990). Professor de Educação Física. Aspectos éticos da sua profissão. In J. Bento e A. Marques (ed.), Desporto, Ética e Sociedade. Atas do fórum Desporto, ética e sociedade, de 5, 6, e 7 de Dezembro de 1989 (pp. 161-166). Porto: Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Física - Universidade do Porto. Marques, A.; Botelho Gomes, P. (1990a). Do Perfil de uma Estética do Desporto. In J. Bento e A. Marques (ed.), Desporto, Ética e Sociedade. Atas do fórum Desporto, ética e sociedade, de 5, 6, e 7 de Dezembro de 1989 (pp. 218-226). Porto: Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Física - Universidade do Porto. Marques, A.; Botelho Gomes, P. (1990b). Do Perfil de uma Estética do Desporto. In J. Bento e A. Marques (ed.), Desporto, Ética e Sociedade. Atas do fórum Desporto, ética e sociedade, de 5, 6, e 7 de Dezembro de 1989 (pp. 227-237). Porto: Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Física - Universidade do Porto. Molder, M.F. (2011). O Químico e o Alquimista. Lisboa: Relógio D’Água Neto, C. (2015). A criação dos institutos superiores de educação física (Dec.Lei 675/75). Revista Portuguesa de Ciências do Desporto, 16 (S1), pp. 12-25. Palma, A.; Eleutério, J. (2022). Breve Tratado das Virtudes Desportivas. Lisboa: Universidade Católica Editora. Patrício, M.F. (2006). A Escola Cultural e os Valores. Porto: Porto Editora. Santos, A. (2019a). Desporto/Esport Uma Reflexão Sobre o Corpo e as Novas Tecnologias Digitais. In Desporto, Humanismo e Tecnologia, 60–70. Lisboa: Atena Editora.
84
Santos, A. (2019b). Desporto e Mobilidade. In Gestão Do Desporto. Compreender Para Gerir, edited by Correia e Biscaia, 295–316. Cruz Quebrada: FMH. Santos, A. (2020). Devem Os Esports Ser Considerados Desporto?. In E-Sports: O Desporto Em Mudança?, edited by Contantino e Machado, 91–110. Lisboa: Visão e Contextos. Sérgio, M.; Feio, N. (1981a). Homo Ludicus. Antologia de textos desportivos da cultura portuguesa. Lisboa: Compendium. Sérgio, M.; Feio, N. (1981b). Homo Ludicus. Antologia de textos desportivos da cultura portuguesa II. Lisboa: Compendium. Sérgio, M. (1991). A pergunta filosófica e o desporto. Lisboa: Compendium. Sérgio, M. (2018). Para uma epistemologia da motricidade humana. Prolegómenos a uma nova ciência do homem (4ª edição do texto integral da tese de doutoramento do professor Manuel Sérgio Vieira e Cunha, de 1986). Lisboa: Vega. Sérgio, M. (2020). Da ciência à transcendência. Epistemologia da Motricidade Humana. Lisboa: Universidade Católica Editora. Sérgio, M; Trovão do Rosário, A.; Feitosa, A.M.; Almada, F.; Vilela, J. Tavares, V. (1999). O Sentido e a Ação. Lisboa: Instituto Piaget. Sobral, F. (1990). Para uma crítica axiológica do Desporto e da Educação Corporal. In J. Bento e A. Marques (ed.), Desporto, Ética e Sociedade. Atas do fórum Desporto, ética e sociedade, de 5, 6, e 7 de Dezembro de 1989 (pp. 133-142). Porto: Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Física - Universidade do Porto. Teixeira, A.; Tolentino Mendonça, J. (2016). Desporto, Ética e Transcendência. Porto: Edições Afrontamento. Teixeira, A.; Duque, J. (2020). Desporto, Humanismo e Tecnologia. Lisboa: Universidade Católica Editora. Teixeira, A.; Espada e Vieira I. (2021). Saber-se corpo. Ensaios sobre Desporto, Cinema e Motricidade. Lisboa: Universidade Católica Editora. Trovão do Rosário, A. (1997). O Desporto em Portugal. Reflexo e Projeto de uma Cultura. Lisboa: Instituto Piaget. Umbelino, L. A. (2007) O Corpo do Movimento. Aproximações fenomenológicas. Phainomenon, 14, pp. 195-208. Umbelino, L.A. (2015). Memory of the Body, Temptation of Space. The European Legacy, 20(8), pp. 844-851. Umbelino, L.A (2017). Filosofia do Corpo e Inventário da Dor. Elementos para uma fenomenologia da experiência do membrofantasma. Revista Filosófica de Coimbra, 26(51), pp. 137-162. Umbelino, L.A. (2019a). El espacio interior del cuerpo y la localización del dolor físico: lecturas de Maine de Biran. Isegoría, 60, p. 271. Umbelino, L.A. (2019b). “Feeling as a Body: On Maine de Biran’s Anthropological Concept of “Sentiment”. Critical Hermeneutics, 1, pp. 73-84. Umbelino, L.A. (2022). La nudité au corps. Ephémères variations phénoménologiques”. Registre. Revue des études théâtrales (Presses Sorbonne Nouvelle), 1 (23)
85
86
Atividade Física e Desportiva na Natureza - Retornar à Metáfora Primeira António Camilo Cunha Universidade do Minho – Instituto de Educação - CIEC
87
88
Atividade Física e Desportiva na Natureza - Retornar à Metáfora Primeira António Camilo Cunha Universidade do Minho – Instituto de Educação - CIEC
Apresentação Com este texto, pretendemos fazer uma reflexão sobre a Natureza, percorrendo o pensamento filosófico, literário, artístico e poético e a partir daí olhar para a Atividade Física e Desportiva na Natureza. Parta tal, fizemos algumas buscas. Ao pensamento filosófico fomos buscar Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Ralph Emerson (1803-1882) e a ideia do homem metafórico que (para eles) encontra na Natureza a sua maior expressão – a Natureza como a primeira linguagem, a primeira metáfora. Da literatura e da arte trouxemos Hermann Hesse (1877-1962) e a ideia da Natureza como unidade, totalidade. A Michel Serres (1930-2019) fomos buscar a necessidade de chamarmos novos sábios para a defesa e o elogio da Natureza. Terminamos com a poesia de Manoel de Barros (1916-2014) – o poeta do chão – que vê na Natureza o sentido da existência. A reflexão está organizada em quatro atos/momentos
Desenvolvimento Primeiro ato/momento A natureza, o local da linguagem primeira, o local da metáfora primeira. O filósofo alemão Nietzsche (2004) e o escritor e filósofo americano Emerson (2008) vão trazer de forma única e esclarecida a importância da Natureza e a necessidade de retornar a ela. Dizem eles: É na natureza que podemos encontrar a linguagem metafórica original, genuína, pura; A natureza (como metáfora) tem a capacidade de iluminar de forma única e insubstituível o modo como as coisas são;
89
Uma das primeiras metáforas que podemos encontrar na natureza é a metáfora lúdica (o homo ludens), expresso (dizemos nós) no brincar, no jogar, no cooperar, no competir, etc.; A natureza é o local da espiritualidade total e radical1; A metáfora dá origem à virtude, à liberdade ao que é casto; O Homem que comunica por metáforas é um homem liberto, autêntico, verdadeiro... chama a si momentos altos de pensamento; A metáfora é a precisão2; O Homem que comunica por metáforas não se preocupa com o futuro, pois a hora há de chegar; O Homem (dizemos nós) que comunica por metáforas tenho verdadeiro poder; O verdadeiro poder está nas ideias (são as ideias que continuam a governar o mundo), no silêncio, na intimidade, na humildade/simplicidade (a mais alta das elaborações), na escuta, no humor, no “passar por cima”3. Estes poderes são contrários aos poderes da economia, da finança, da política, da academia, das construções sociais, da razão científica. Estas são metáforas gastas, metáforas em conflito, metáforas secundárias que dizem poderes empobrecidos. O esquecimento da metáfora leva à corrupção/corrosão do Homem. A corrupção/corrosão do Homem, começa com a corrupção/ corrupção da natureza. A natureza humaniza-nos, constrói o nosso carater.
Segundo ato/momento O escritor e pintor alemão/suíço Hermann Hesse (2013) vai referir-se à natureza como o local onde habitam os grandes ideais humanos. Vai trazer-nos duas grandes metáforas: 1 Quando nos detemos no contexto da espiritualidade ela pode ser entendida (de entre outros entendimentos) como: i) uma espiritualidade religiosa, professada pelas várias religiões e que assenta na transcendência da oração, da fé, e da vida após a morte; ii) uma espiritualidade imanente que se transcende: a transcendência na imanência que encontramos em Teilhard de Chardin (2012) na sua Antropologia dinâmica. A caminhada de Alfa para Ómega e as duas possibilidades dessa caminhada: “do genesis para o apocalipse” ou “do genesis para Omega, para a unidade/totalidade”; iii) uma espiritualidade que alude ao facto de que a humanidade evolui pela constante afinação da razão que encontramos em Hegel (1991), na sua “fenomenologia do espírito” – o espírito como razão; uma espiritualidade dada pela consciência de que somos seres incompletos e que podemos sermos mais…mais completos; iv) uma espiritualidade desportiva. A nossa incompletude atira-nos para a perfeição. Dimensão que encontramos por exemplo no Areté Grego, em Rousseau (1995) com a ideia de perfetibilidade – aspiração à perfeição. Um bom exemplo é a trilogia dos jogos olímpicos. Se podemos ir/alcançar o sitius, altius, fortius, pelo corpo (estamos a pensar no corpo monista onde corpo, alma, espírito estão juntos) e pelo movimento, também poderemos ser mais sitius, altius, fortius na moral, na ética, no carater, no conhecimento, no amor, na consciência, nas virtudes, etc. v) Finalmente (aspeto que anima esta reflexão - a Natureza) podemos encontrar o sentido espiritual inscrito na natureza (imanente) que encontramos por exemplo em Espinosa (2009), Deus é Natureza. Espinosa “puxa” definitivamente, Deus lá de cima para cá para baixo”.
90
a metáfora da cidade, que caracteriza a cultura ocidental, isto é, a cultura da ciência, da construção, da objetividade, da produtividade, do método. Ou se quisermos a cultura do fracionado, do analítico, do cancelamento; ii) a metáfora da Natureza, que caracteriza a cultura oriental, isto é, a cultura da emoção, do instintivo, do intuitivo, do autêntico, da fruição, do fluxo 4 - a cultura da unidade e da totalidade. Esta metáfora da Natureza é aquela em que a condição humana se pode expressar na sua plenitude. Aliás foi neste cenário (da natureza ecológica e natureza humana) que muitos pensadores inspiraram Hesse. Por exemplo, Schopenhauer filósofo do pessimismo e do sofrimento plasmados na sua grande obra: “O mundo como vontade e representação” (Schopenhauer, 2021) vai inspirar a “metáfora do cego”. Os cegos não obedecem a nenhuma regra, a nenhuma lei, eles vêm por dentro, eles obedecem às “razões” do dentro – que são suas. Sabem que a paz e a liberdade vêm/ está (no) dentro. O cego está assim, mais próximo da arte instintiva. A arte instintiva com uma expressão sublime da criação e da liberdade. Os cegos, os artistas são parecidos com os animais onde existe o caos, a força, o instinto, o impulso, a irracionalidade, a desordem, o desejo. Os animais obedecem às suas próprias leis, às suas próprias regras. Os cegos e os artistas “são como lobos”: “Homens por fora animais por dentro”. A luta entre o lado individualista do animal e o lado do grupo/altruísta do humano. Somos lobos por dentro e colmeias por fora. A nossa existência é solitária apesar de vivermos juntos5. Nietzsche (2004, 2006) vai buscar a dualidade da condição humana representados por Apolo e Dionísio - mito da tragédia grega. Apolo, (o apolíneo) o representante da razão, do equilíbrio, da moderação, da previsão, da ponderação. Caraterísticas que vão sustentar mais tarde o pensamento moderno e iluminista. O pensamento científico, religioso e social com as suas regras e limites. Dionísio, (o dionisíaco) o representante da paixão, do instinto, do desejo, da não regra, da irracionalidade, da emoção, do erótico, do vinho. É no lado de Dionísio que se situa a “casa” da poesia, da arte, da força afirmativa e criadora. Aos românticos6 vai buscar a ideia de liberdade, a liberdade livre que encontramos em Schiller (1994), de libertação, de transcendência, de emoção e de imaginação. Vão (os românticos) também referir que a arte moderna, com suas inscrições de emoção e imaginação é superior à arte antiga “prisioneira” das formas e das geometrias.
2 Ficou conhecido (no campo da política) uma expressão/metáfora usada pelo Presidente da Républica Portuguesa - Jorge Sampaio -, quando num discurso disse: “há mais vida para lá do orçamento”. Com isto poupou vinte ou trinta páginas de discurso…ele foi preciso! 3 Esta ideia de “passar por cima” tem um cunho bíblico. Passar por cima com um sorriso. Não com um sorriso hipócrita, mas um sorriso acompanhado pela expressão: “eles não sabem o que fazem”. Jesus Cristo passou por cima: “Pai perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem”. Jesus Cristo um Homem de Poder. 4 A literatura de Hermann Hesse (prémio Nobel da Literatura – 1946), é muito influenciada pela cultura oriental (Budismo, Tauismo, Hinduísmo) e os ideais de autodescoberta, iluminação, fluxo (o rio, a água) e por alguns filósofos, como os já referidos Schopenhauer e Nietzsche.
91
Estes pensadores e movimentos sustentarão também, o elogio que Hesse (2013) irá fazer à natureza (humana/ecológica), que sendo o local da arte, da poesia, da criação, da afirmação, da pureza, do sensível, da autenticidade, da ingenuidade, será, portanto, o locus da verdadeira espiritualidade7. O mundo natural (a natureza) é o lugar/a expressão do verdadeiro Eu. O lugar da individualidade, da individuação, da autodescoberta, da autoconstrução. No mundo espiritual não há dualidade racional, fixa, certa/errada. As perguntas e as respostas estão nos fluxos da natureza8. As perguntas e respostas estão no Eu e no seu Teatro Mágico. “Eu sou um teatro mágico”9. Sou as minhas criações, transgressões, impossíveis; sou a minha imaginação que se abre a novos horizontes. É no teatro mágico do Eu, na minha natureza e na natureza-natureza que posso Ser. A natureza como inspiração máxima e profunda da própria vida. “Se estás perdido, vai-te encontrar na natureza”.
Terceiro ato/momento A representação social, boa política, educativa atual tem um discurso para a necessidade de uma nova consciência, sabedoria e ação. O filósofo francês Michel Serres (2019) faz muito bem esta síntese: consciência, sabedoria, ação. Neste contexto vai-nos falar da entrada definitiva (na vida política, social educativa e desportiva) da natureza, a que ele chama de terceiro excluído. Refere os Serres (2019): até que o jogo, a relação, o diálogo fazia-se a dois - Homem/Homem; a partir daqui o Jogo far-se-á a três - Homem/Homem/ Natureza. Se até aqui o pescador negociava com o mercador (Homem/Homem) este jogo a dois; a partir daqui o pescador e o mercador têm de “ouvir o peixe” o “peixe mudo” - o peixe como representante da Natureza. Neste contexto o autor vai mais à frente e questiona: quem representa este peixe mudo? quem lhe dá voz? quem o representa na nesta nova dialética (agora a três). O autor vai falar dos Sábios – dos Novos Sábios. Numa representação tradicional e clássica de sábio (de se ser Sábio) falaríamos dos especialistas, dos governantes das organizações das associações, das organizações. Mas, neste novo contexto teremos de falar em novos Sábios. Quem são esses novos sábios? Somos todos nós! O letrado, a doméstica o pescador, o agricultor, a criança, o jovem, o adulto o professor, o estudante, o cientista… estes são os novos sábios.
5 A questão da Liberdade individual e coletiva vai aparecer em Thomas Hobbes (2014) e a questão/necessidade de um contrato social, onde o Homem perde alguma da sua liberdade individual a favor de uma paz coletiva – a lei, a regra, a ordem. 6 O Romantismo, em particular o Romantismo Alemão (com Goethe e Schiller) vai fazer uma crítica ao iluminismo Francês – que elogia a razão, a ciência, o método, o analítico, contrapondo com a imaginação. 7 Neste contexto da espiritualidade, Hesse (2013) vai fazer uma crítica ao sistema educativo Alemão, considerando-o demasiado mecânico, técnico, prático, com uma avaliação quantitativa preocupada com a eficácia, rendimento, produtividade, não se debruçando no crescimento e desenvolvimento espiritual – na arte, poesia, natureza, formação humana. Esta lacuna educativa/formativa cria um vazio, cria “Homens infelizes”. E vai mais fundo: os homens infelizes voltam-se para a luta. A luta, a guerra como enfrentamento da morte de si. Há um desejo de morte. Isto é, necessidade de legitimar a sua morte, a morte de um Eu infeliz. 8 Os fluxos da natureza têm na água e no rio a sua grande metáfora. “Há um rio correndo dentro de mim” – um fluxo, um rio de criação interior, de sabedoria, de verdade – o verdadeiro caminho.
92
A partir daqui a natureza deixa de ser um objeto/instrumento a ser explorado e passa a ser um corpo/sujeito de direitos.
Quarto ato/momento O poeta brasileiro Manoel de Barros o poeta do Pantanal, vai considerar a natureza, a terra, o onírico, o campo os locais para os quais fomos feitos. Por isso é-lhe atribuído o título de: o poeta do chão. O chão, o local do mínimo, do minúsculo, do ínfimo, da lama, do sujo, da terra, do pequeno, do inútil, dos bichos e das pedras. Nas férias toda tarde eu via a lesma no quintal. Era a mesma lesma. Eu via toda tarde a mesma lesma se despregar de sua concha, no quintal, e subir na pedra. E ela me parecia viciada. A lesma ficava pregada na pedra, nua de gosto. Ela possuíra a pedra? Ou seria possuída? Eu era um pervertido naquele espetáculo. E se eu fosse um voyeur no quintal, sem binóculos? Podia ser. Mas eu nunca neguei para os meus pais que eu gostava de ver a lesma se entregar à pedra. (Pode ser que eu esteja empregando erradamente o verbo entregar, em vez de subir. Pode ser. Mas ao fim não dará na mesma?) Nunca escondi aquele meu delírio erótico. Nunca escondi de meus pais aquele gosto supremo de ver. Dava a impressão que havia uma troca voraz entre a lesma e a pedra. [...] (Barros, 2010, p. 29). É no chão que está a consciência da vida; é no chão que está a sensibilidade genuína; é no chão que agimos de verdade; é no chão a casa da poesia. Para Manoel de Barros a poesia está guardada/escondida nas palavras que dizem o chão onde há um entendimento particular. Para entender há dois caminhos: o caminho da sensibilidade10 que é o entendimento do corpo; e o caminho da inteligência que é o entendimento do espírito. “Eu escrevo com o corpo, a poesia não é para entender pela inteligência, mas com o corpo – entender incorporando” (Barros, 1990, p.212). Para tal eleva duas metáforas: i) entender racionalmente é parede, é cidade que diz o programado, o fixo, a objetividade, a lei, o método. ii) entender pela sensibilidade, é procurar ser uma árvore, um rio que diz o fenomenológico, o ontológico, a expansão, o inusitado, a sensibilidade - incorporar o incomensurável. “do estado de parede/cidade para o estado de árvore/rio”. “Ir apressado para a calma”.
9 Esta ideia de “Teatro mágico”, vai contra a ideia de que o ser humano é justo, bom, moralmente e eticamente confiável. Esta é uma invenção/crença da racionalidade moderna. O teatro mágico vai para “além do bem e do mal”. Os textos de Dostoievski estão nesta corrente. O fluxo, o mágico, o aproveitar a vida, através da dança, da música, do cântico. Este sentido está também presente nos ideais da Revolução Francesa – “é proibido proibir”, “a imaginação ao poder”” ou mesmo nos ideais dos movimentos Hípis da década de 60 e 70 do sec. XX. 10 Faz-nos lembrar Merleau-Ponty (2000) na sua “fenomenologia da perceção” onde faz o elogio ao corpo, à sensibilidade, à perceção.
93
É necessário desaprender o que dizem os livros, a academia, a ciência – que trazem sempre coisas grandiosas e exuberantes. É necessário, é preciso não saber nada para tocar na alma da natureza, na grandeza do infinito, tocar na sua intimidade. É necessário retornar ao pequeno que há no chão, ressuscitar a riqueza que há no chão; reaprender a ver as coisas do chão – esse encantamento11. Há um engano, um equívoco do garimpeiro que tira o ouro da terra, do chão. O valor não é o ouro – ele traz a riqueza, o poder que fomenta a discórdia. O valor é a terra, a água, a lama - locais de perdas, de insignificâncias, de infinito, que não leva a nada. A verdadeira riqueza é não levar a nada. A verdadeira riqueza é ver a grandeza do poema, que está inscrito no chão. A riqueza do minúsculo…local da intimidade, a porta do infinito, a alma da natureza.
Um encerrar de portas abertas Em Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Ralph Emerson (1803-1882); em Hermann Hesse (1877-1962), Michel Serres (1930-2019) e Manoel de Barros (1916-2014), encontramos uma espécie de fusão de horizontes, onde a natureza aparece como o local para a qual fomos feitos. A natureza como expressão do nosso ser mais interior, da nossa humanidade A Natureza como forma de experienciarmos aquilo que também nos torna humanos: a amizade, a alegria, a festa. A natureza a metáfora primeira. A Educação Física, o Desporto, a Atividade Física na natureza?! Sim!
11 Há aqui o elogio a uma metafísica do chão, uma teleologia do chão, uma escatologia do chão – o chão, um fim último.
94
Referências Barros, Manoel (1990). Gramática expositiva do chão: poesia quase toda”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira Barros, Manoel (2010). Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta do Brasil. Chardin, Teilhard de (2012). O fenómeno humano (9ºEd). São Paulo: Editora Cultrix. Emerson, Ralph (2008). Nature. Londres: Penguin Books LTD. Espinosa, Bento (2009). Ética. Trad. Tomaz Tadeu. Belo horizonte: Autêntica Editora. Goethe, Johann (2024). A filha Natural. Porto Editora – J. W. Goethe na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 202402-18 14:54:12]. Disponível em https://www.infopedia.pt/$j.-w.-goethe. Hesse, Hermann (2013). O Lobo das Estepes. Tradução: Paulo Rêgo. Lisboa: Publicações D. Quixote. Hegel, Georg (1991). Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes. Hobbes, Thomas (2014). Leviatã. São Paulo: Martins Fontes. Merleau-Ponty, Maurice (2000). A fenomenologia da perceção. Trad. Carlos Alberto Moura. São Paulo: Martins Fontes. Nietzsche, Friedrich (2004). Assim Falava Zaratustra. Lisboa: Guimarães Editores. Nietzsche, Friedrich (2006). A Origem da Tragédia. eBooksBrasil, Cupolo. Rousseau, Jean.Jacques (1995). Emílio ou da Educação. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. Schopenhauer, Arthur (2021). O Mundo como Vontade e Representação. Lisboa: Edições 70. Schiller Friedrich (1994). Sobre a Educação Estética do Ser Humano Numa Série de Cartas. INCM – Imprensa Nacional Casa da Moeda. Serres, Michel (2019). Tempo de crises. Lisboa: Guerra e Paz Editores.
95
96
De quantos animais se faz um ornitorrinco? A propósito de formalismo, convencionalismo e identidade do Desporto Francisco Sobral Professor Catedrático (Aposentado) Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física, Univ. Coimbra Faculdade de Motricidade Humana, Univ.de Lisboa
97
98
De quantos animais se faz um ornitorrinco? A propósito de formalismo, convencionalismo e identidade do Desporto Francisco Sobral
Professor Catedrático (Aposentado) Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física, Univ. Coimbra Faculdade de Motricidade Humana, Univ.de Lisboa
Introdução O nascimento da filosofia do desporto stricto sensu – isto é, a ultrapassagem da narrativa literária greco-latina, de pendor mitológico, heroico e elegíaco, centrada no atleticismo da Antiguidade Clássica – está datada, por convenção alargada, em 1938, ano da publicação de Homo Ludens, de Johannes Huizinga, obra que, pela primeira vez, aborda o jogo (e o jogar mais do que os jogos) numa perspetiva histórica e sociocultural. A emancipação do desporto para uma autonomia filosófica própria, descontadas portanto as incursões da filosofia da educação nos debates sobre o valor e legitimidade do desporto no processo educativo formal, ganhou um ímpeto muito expressivo a partir da década de 1970, isto é, mais de quatro décadas após Max Sheler ter reconhecido que «raramente um fenómeno internacional contemporâneo se revelou um objeto tão digno de estudos sociais e psicológicos quanto o desporto. O desporto desenvolveu-se consideravelmente, tanto em volume como em reconhecimento social, mas a sua significação ainda não foi verdadeiramente considerada.» Sheler escreveu estas palavras (a que chamámos já o “repto de Sheler”) em 1927, o ano anterior à sua morte. Note-se que ele apontou a dignidade dos estudos sociais e psicológicos, omitindo os filosóficos; mas, conhecida a sua filiação na corrente fenóme-nologista, quando Sheler se refere à significação do desporto, ficamos a saber por onde e como ele entendia que essa investigação devesse ser conduzida. Isolar o objeto “desporto” nos seus limites essenciais, isto é, distingui-lo de outros objetos que, facilmente e frequentemente, são tomados como da mesma linhagem, a partir de aparências 99
meramente formais, deve – no momento presente a que assistimos a uma “elasticidade” sem limites do conceito mundano de desporto, culminando no advento de novas práticas soit disant desportivas – inspirar uma reflexão aprofundada do próprio conceito de desporto. Outras, porém, reclamam com insistência a sua igual legitimidade a integrar o elenco das modalidades olímpicas: os e-Games e a Break-Dance, por exemplo. Aqueles, sob os auspícios de uma poderosa indústria tecnológica; a última, invocando novas expressões de culturas urbanas e o seu contributo (multi)cultural e (multi)étnico. Seguro é que, se não obtivermos um consenso alargado e consistente sobre o que é e não é desporto, existe um risco real de adulteração do conceito (ainda que não explícito) que preside ao movimento olímpico internacional. O risco é tanto maior nestes tempos propí-cios ao construtivismo social e ao pensamento fraco, em que tudo, como sustentaram o filósofo Gianni Vattimo e o sociólogo Zygmunt Baumann, tende a ser fluido, multidentitário e multiforme – de geometria variável, digamos assim. Este é, pois, um problema concreto, de ordem prática e atual, mas que não deixa por isso de ser propício a algumas incursões filosóficas. Definir a identidade do desporto já produziu debates e episódios pitorescos na Academia e fora dela, mas que, assim como apareceram, desapareceram porque os interlocutores não dominavam os instrumentos analíticos necessários. Ora o princípio da identidade remonta a Parménides, quatro séculos antes da era cristã, aparentemente tão simples quanto isto: A = A e A ≠ Ā, mesmo se A = B, qualquer que seja B. Este princípio lógico exposto por Parménides entreteve muitos filósofos durante um século e meio, até Aristóteles ser chamado a intervir a propósito da reconstrução da Nave de Teseu. Todos os anos, os Atenienses tinham de contribuir para os trabalhos de reconstrução do navio em que Teseu regressara de Creta depois de matar o Minotauro, salvando a vida a um punhado de jovens que, todos os anos, Atenas tinha de enviar como tributo ao rei Minos para lutarem (e, invariavelmente morrerem) contra o Minotauro. Heraclito, porém, adotou o protesto público que já grassava na cidade, afirmando que se trata de um desperdício sem justificação, pois não faria sentido continuar a nomear aquele navio, em constante renovação dos cepos apodrecidos, como “o navio de Teseu.” Aquele, insistia Heraclito, já não era e jamais voltaria a ser o navio de Teseu. Como procedeu, então Aristóteles para convencer os Atenienses a não desistirem de pagar o seu tributo para a manutenção do navio? Segundo Aristóteles, todo o objeto, animado ou inanimado, era resultante de quatro causas: formal, material, eficiente e final. Como do navio de Teseu só a matéria de fora feito se deteriorava a cada ano, prevalecendo as outras três – (a) a forma inicial, que guiava a recuperação do navio; (b) a causa eficiente, que orientava os artífices no seu trabalho persistente de manter a sua forma; e (c) a finalidade e a justificação para que fora construído. Como do navio de Teseu só a matéria de que fora feito se degradava a cada ano, o Estagirita concluiu que aquele montão de destroços deveria continuar sendo con-siderado a Nave de Teseu.
100
Identidade e Semelhança David Hume, filósofo escocês do século XVIII, confrontou também por outra via o problema da identidade, incluindo-a no grupo sistemático de relações. No Livro I, Secção 5, do seu Tratado do Entendimento Humano 1, enumerou as qualidades que permitem estabelecer uma comparação entre objetos e, a partir daí, produzir as ideias de relação a partir de sete “qualidades”: (i) Semelhança. (ii) Identidade. (iii) Espaço. (iv) Tempo. (v) Contrariedade. (vi) Causas. (vii) Efeitos. Na ausência de semelhança, segundo Hume, nenhuma relação filosófica é possível, pois «os objetos não admitem comparação, a não ser que tenham algum grau, ainda que rudimentar, de semelhança.» Quando dois objetos se manifestam pela contrariedade dos seus efeitos, dir-se-á que existe entre eles uma diferença; porém, Hume não atribuiu à diferença a qualidade da relação, mas tão somente a de negação da relação. A diferença pode opor-se quer à identidade quer à semelhança: no primeiro caso, a diferença dizia-se de número; no segundo, de género. A proposta de Hume, podemos dizê-lo, acrescenta mais poder e alcance ao argumento das quatro causas de Aristóteles. Senão vejamos: O que pensamos quando pensamos em Desporto? E em que medida a break-dance é compatível com a ideia de desporto? Se eu faço zapping em busca de uma transmissão desportiva pela TV; e se, por casualidade, me deparo com um canal onde a break-dance invade o écran do meu televisor, é natural que, com muitos outros com a mesma intenção, eu retome o zapping – e, se o faço, é porque procuro uma coisa diferente, coisa essa que reconheço conforme ao entendimento comum de desporto. Mas – pergunto-me – será que A, o desporto, isto é, algumas formas particulares de desporto, serão assim tão essencialmente diferentes de B, a break-dance? Se eu me dispuser a analisar em detalhe o conteúdo motor dos break-dancers em ação, terei honestamente de reconhecer que a sua performance típica inclui muitos elementos motores que, em criatividade, diversidade, intensidade de esforço, dificuldade de exceção e complexidade motora são, “formalmente” comparáveis, por exemplo, à ginástica (artística, rítmica, acrobática). E mais: que não posso recusar a possibilidade de uma métrica que classifique a qualidade técnica da execução dos break-dancers equivalente às usadas para pontuar os atletas naquelas variantes gímnicas, ou na patinagem artística, na natação artística, nos saltos para a água, etc., sendo que muitos dos elementos da break-dance, do ponto de vista cinesiológico – isto é, movimentos e atitudes – são exatamente os mesmos ou das mesmas famílias (saltos, piruetas, enrolamentos, apoios, receções, etc.); e, com isso, viabilizar uma forma de avaliação objetiva que assegure a presença na break-dance de um traço identitário do desporto: a emulação, o Ágon, por meio de uma codificação que distinga um vencedor e um vencido, que classifique os atletas numa escala aritmética de valores, sem o que não há lugar para o uso da própria palavra “desporto.” Outras formas de dança, do ballet à dança de salão, já utilizam esse procedimento, classificando as
1 Hume, pp. 42.
101
prestações dos seus concorrentes segundo critérios técnicos e critérios artísticos, como é prática nos desportos gímnicos, pontuando a nota técnica e a nota artística. Por último, temos o caso dos bailarinos que, desde a sua formação precoce até às primeiras avaliações com vista à progressão para uma carreira profissional, se submetem a competições internacionais onde, pelo seu apuro técnico e expressão artística, são classificados numa escala relativa de valores quantitativamente expressos. Logo, o agonismo intrínseco ao desporto não será inacessível, de modo objetivo, à break-dance nem à dança 2 em geral, pelo que o mero formalismo analítico não escapa às suas insuperáveis limitações. Sem haver semelhança, disse David Hume, toda a comparação entre dois objetos é impossível – mas, como atrás se demonstra, a comparação é não apenas possível como cinesiologicamente óbvia. Ao que Aristóteles daria a sua aquiescência reforçada, pois nem a matéria que é o movimento, nem a forma das suas configurações – tanto em desportos olimpicamente inquestionáveis como em dança – não deixam de ser in essentia – produtos da mesma entidade orgânica que as realiza: o equipamento motor da espécie. E por isso Maurice Nédoncelle 3, um filósofo francês da área da estética, reuniu a dança, o desporto e a mímica numa mesma categoria taxonómica: a das artes táctilo-musculares. Onde podemos então discernir (i) as dissemelhanças do desporto e da dança, e não só da break-dance mas de todas as modalidades de dança. E, (ii) quais os constituintes indispensáveis para que uma atividade humana possa ser classificada como – desporto? Ora, um constituinte é dispormos de um conceito claro e totalizante que nos diga o que é – Desporto. Bem ou mal, prevalece aqui a definição de Pierre de Coubertin que, até hoje, é consensualmente a “oficial,” o que, diga-se desde já, pressupõe um certo grau de convencionalismo alargado: «O desporto é um ato voluntário e habitual de exercício muscular intenso, suscitado pelo desejo de progresso [físico-atlético, entenda-se, mas também implicando o indivíduo na sua totalidade biopsíquica e social], não hesitando em confrontar o risco, inclusive o risco da própria vida.» As palavras são eloquentes mas não esgotam o campo das diferenças. O risco é o preço a pagar pelo desejo de progresso, pois este leva também ao excesso: Citius, Altius, Fortius já não traduzem sem ambiguidade os desafios do desportista que corre uma ultramaratona ou “surfa” a onda da Nazaré. Aquelas palavra refletem ainda o espírito do atleticismo clássico – ou da sua representação em
2 De resto, na Grécia antiga, o agonismo não se circunscrevia aos jogos e às disputas atléticas, mas por igual aos concursos literários, musicais e de dança; e ainda aos debates políticos, jurídicos e filosóficos. Toda a questão dirimida em tribunal era igualmente vista como uma expressão de agonismo. 3 M. Nédoncelle, Introduction à l’Esthétique, P.U.F., Paris: 2019.
102
alguns homens dos últimos anos do século XIX – de que o atletismo contemporâneo é o seu descendente atual; tal como o excesso, agora ilustrado pelo record, a mais lídima das expressões do desporto moderno e o seu elemento estruturante por excelência, segundo Allen Gutmann em The Nature of Modern Sports. Ora, nada se encontra na dança que seja comparável ao que o record, o excesso em geral, representa no desporto. A qualidade de uma pirueta ou o tempo de realização de um developpé não se medem em frações de segundo, nem um salto em centímetros acima do plateau do teatro – embora possam não ser irrelevantes para o efeito estético pretendido pelo coreógrafo. Tal como também não é irrelevante para a pontuação do ginasta num elemento da sua prova no solo a amplitude dos seus movimentos. Mais uma vez, a semelhança discernível à nossa perceção é presa da ambiguidade que o formalismo por si só não consegue superar. Que estas semelhanças (ou afinidades) respeitem a duas modalidades que partilham uma certa carga coreográfica só confirma o acerto da taxonomia de Nédoncelle, que reconheceu uma afinidade substancial – na partilha da matéria que é o movimento corporal – e uma afinidade essencial sob as suas semelhanças e diferenças, algo inerente a qualquer arte, a saber: a capacidade para transmitir valores estéticos, logo, induzir emoções e sentimentos sobre a Beleza e o Belo, o que desvia o curso da análise para o domínio da sensibilidade de que trata a Estética. Recordemos que, para Hegel, o Belo era a expressão sensível da Ideia, o que é de certa maneira reiterado por Kant na Crítica da Razão Pura, quando, ao abordar a possibilidade de uma estética transcendental, recusa a teoria de que «a nossa sensibilidade seria apenas a confusa representação das coisas, embora numa acumulação de características e representações parciais, que não discriminamos conscientemente.4» Na dança, o excesso, nos termos presentes nos movimentos desportivos, não existe, mesmo que, como dissemos acima, o transporte do corpo e a amplitude dos seus deslocamentos globais ou segmentares possam também acrescentar conteúdo estético à “interpretação” e à mensagem. Porém, o que se passar no espaço e no tempo impõe a rigorosa correspondência entre as ações corporais e a partitura musical aos andamentos e aos ritmos por esta prescritos, e qualquer sequência de movimentos tem de caber exatamente na duração dos compassos que determinam o tempo de execução: um tempo que não é para “bater” mas para cumprir rigorosamente. Trata-se, pois, de um constrangimento absoluto que, por si só, basta para diferenciar em definitivo as identidades dos dois objetos que, ao olhar impreparado, dificilmente são distinguíveis.
Formalismo e Convencionalismo no Desporto Podemos explorar até à exaustão, no corpus das artes táctilo-musculares, o distin-tivo crítico que confira a singularidade de uma prática em particular. Por isso, para uma corrente
4 I. Kant, pp.87-113.
103
de pensadores predominantemente britânicos e norte-americanos 5, o formalismo no Desporto não é senão uma forma particular inerente ao Jogo: «To play a game is to engage in an activity bringing about a specific state of affairs, using only means permitted by specific rules, where the means permitted by the rules are more limited in scope than they would be in the absence of rules, and where the sole reason for accepting such limitations is to make possible such activity. (Suits, ibid.) E, ainda mais enfático, conclui na sua obra mais influente: «Play is the voluntary attempt to overcome unnecessary obstacles.6» Liberta de assomos aristotélicos, a corrente formalista da filosofia do desporto concebeu o Desporto como constituído exclusivamente por regras escritas, e assim qualquer desporto não é – conceptualmente – mais do que um corpo de regras que regulam a sua prática. O que pôde parecer pouco a outros grupos académicos, imbuídos do espírito dos debates English Philosophy against Continental Philosophy, foi reforçado pelos convencionalistas que, em reforço de algumas limitações do formalismo, vieram então reconhecer o significado normativo das regras não escritas, afirmando a falência do for-malismo para esgotar a irracionalidade normativa inerente ao desporto. Este exercício não se fecha aqui. O repto de Max Sheler continua à espera de quem o defronte, e é nossa convicção e projeto que ele só será decidido no terreno da fenomenologia, investigando as experiências vivenciadas pelos próprios desportistas, o que leva necessariamente ao diálogo com as obras, entre outros, de Husserl, Eugen Fink, Merleau-Ponty e do próprio Sheler. A natureza multidimensional e heteróclita do Desporto tem muitas semelhanças com um estranhíssimo animal habitante da Tasmânia: de vida semiaquática, um mamífero cujas fêmeas não possuem mamas; a sua reprodução é ovípara; apresenta um enorme bico de pato e membranas interdigitais unindo garras poderosas: eis o Ornitorrinco, ao lado do qual um neodesporto como o paddell (uma miscelânea de ténis, badminton, squash e uma pitada de pelota basca) lhe pede meças em multidiversidade intrínseca.
5 B. Suits, pp.148-156. 6 B. Suits, The Grasshopper: Games, Life and Utopia.
104
Referências A. Gutmann, Columbia University Press, Nova Iorque: 1978. D.
Hume, F.C. Gulbenkian, Lisboa: 2016.
I. Kant, Crítica da Razão Pura. F.C. Gulbenkian, Lisboa: 2001.» M. Nédoncelle, Introduction à l’Esthétique, P.U.F., Paris: 2019. B. Suits, What is a game? Philosophy of Science, 34(2), 1967. B. Suits, The Grasshopper: Games, Life and Utopia. Brodway Press, Peterborough: 1978.
105
106
O contributo fenomenológico na análise micro-histórica do surf português João Luís de Moraes Rocha
107
108
O contributo fenomenológico na análise micro-histórica do surf português João Luís de Moraes Rocha
1. Fenomenologia Falar em fenomenologia como algo unívoco é esquecer a pluralidade de perspetivas que esta corrente da filosofia contemporânea encerra. Mais correto será, porventura, referir fenomenologias, escola fenomenológica ou movimento fenomenológico, com efeito, considerando apenas o sentido hoje prevalecente dado por Husserl, refira-se: nas suas primícias, Bretano e Husserl; na sua corrente realista, Meinong e Hartman; no seu desenvolvimento e aplicação, Heidegger, Scheler, Sartre, Levinas, Gadamer ou Merleau-Ponty, para referir apenas uma ínfima parte dos seus representantes. No entanto, para além das diferenças que os diversos pensadores desta corrente filosófica possam aportar, existem vetores comuns, os quais constituem o cerne da fenomenologia como método e como ciência dos fenómenos. Como método, a fenomenologia pretende ser um procedimento de acesso aos fenómenos para procurar o seu fundamento. Assim, como referia Husserl, partimos das próprias coisas, do mundo natural para a reflexão, o retorno ao mundo antes de ser tematizado pelas ciências. Esse regressar às coisas, implica esmiuçar os factos para poder captar o que verdadeiramente interessa. Mas a análise do fenómeno não o retira do seu contexto, importa situá-lo na sua conjetura, no seu tempo, no seu espaço. E quando se refere tempo, significa uma dimensão importante, pa da história. E, a referência a “seu espaço”, compreende as conexões desse fenómeno com os demais fenómenos coevos, passados e futuros. Conhecer o “ser-no-mundo”, na sua individualidade, nos seus aspetos históricos, culturais, sociais, partindo do regresso aos factos, constitui um imperativo, uma intencionalidade da consciência, como diria Husserl. 109
2. Micro-história A micro-história constitui um modelo interpretativo da história que privilegia a análise pelo detalhe, pelo caso particular, pela importância da singularidade nos processos históricos. Rejeitando as explicações generalizantes, a micro-história reduz a escala de observação do fenómeno, fazendo incidir uma análise exaustiva circunscrita. Como refere Levi, “a observação microscópica revelará fatores previamente não observados”. Esta perspetiva, enquadrada no debate histórico-epistemológico da década de 1970, de que são referência Revel, Vainfas, Ginzburg, Grendi, Levi, defende que a mudança na escala de observação permite novas configurações da realidade. Mais aditam que a compatibilidade entre a escala micro e a escala macro, enriquece ambas, contribuindo para a compreensão de sentidos e significados, frequentemente novos, isto é, configurando novas realidades.
3. Compatibilidade da fenomenologia com a micro-história O regresso às coisas como ponto de partida do método fenomenológico e o relevo dado ao caso singular no processo histórico, conferido pela micro-história, conciliam-se. A análise exaustiva da situação, do evento, do facto, permite uma interpretação fundamentada, porventura diferente da abordagem generalizante.
4. História do surf em Portugal A história do surf português tem os seus primeiros registos em depoimentos de alguns dos praticantes da modalidade mais antigos, mas esses registos não são acessíveis à generalidade do público. Também as raras referências ao surf antes da década de 80 em jornais e revistas nacionais são muito raras e não estão coligidas de forma acessível. As primeiras revistas nacionais de surf só surgem nos finais da década de 80, a Surf Mag e a Surf Portugal, para referir as mais conhecidas. O primeiro programa televisivo sobre o surf surge na SIC em 1992, o Portugal Radical. A primeira obra com a preocupação de contribuir para a história do surf nacional, é publicada em 2008, História do Surf em Portugal, as Origens. Apenas após 2000 aparecem as revistas digitais e é publicada a primeira revista de surf gratuita, a Free Surf.
110
Este é o principal acervo que se dispõe sobre a história do surf em Portugal, é com base nele que vamos incidir a nossa análise, selecionando algumas narrativas sobre acontecimentos com relevo para a história do surf.
5. Primeira narrativa O primeiro livro sobre a história do surf em Portugal data de 2008. De título História do Surf em Portugal, as Origens, contem diversos capítulos sobre os primeiros núcleos de surfistas que surgem ao longo da orla costeira nacional, a autoria de cada um desses capítulos recaiu sobre um dos praticantes mais antigos e representativo de cada local de surf. Assim, a praia de São Pedro do Estoril, na linha de Cascais, foi atribuída a um local daquela praia, o hoje Professor Miguel Gavazzo. No texto que redige, o Miguel acrescenta diversos depoimentos de outros intervenientes na história do surf local, de entre eles o de Antero Santos, o qual relata os primeiros passos do enquadramento organizativo desportivo do surf nacional (pp. 114): “Há vários anos que eu fazia parte dos corpos gerentes da Federação Portuguesa de Atividades Subaquáticas (FPAS), e um dia Alberto Pais, membro do Conselho Técnico, apareceu com um projeto para a Federação apoiar a realização de uma prova de surf.” Mais adiante, referindo-se à preparação do campeonato, afirma: “(…) cozinhou-se um regulamento e a prova realizou-se em Ribeira d’ Ilhas, em setembro de 1977. Esta foi a primeira competição de surf que se realizou em Portugal”. Mais adiante acrescenta, referindo-se à constituição do Clube de São Pedro: “Já com tudo preparado foi marcada a escritura no notário de Oeiras. (…) Foram os adultos disponíveis no momento (…). Foram eles que formalizaram oficialmente o primeiro clube português de surf, o Surfing Clube de Portugal”. Restringiremos a nossa análise a estas afirmações, embora existam outras - na aludida narrativa - que nos merecem reservas quanto à sua veracidade. Vamos regressar aos fatos numa atitude descritiva. A afirmação de que foi o Alberto Pais quem apareceu com a proposta do pedido de apoio da FPAS para a realização da prova de surf, não tem sentido pois o Alberto Pais nem sequer era
111
praticante de surf. Aliás, o escrito do próprio Alberto Pais inserido no livro a fls. 186, desmente tal afirmação. O que se passou foi que dois atletas federados na FPAS, competidores ativos de mergulho e caça-submarina, faziam surf, eram o João Rocha e o João Boavida, foram estes que levaram a proposta à federação. Quando a proposta foi apreciada pela direção, o Alberto Pais defendeu o apoio e a proposta foi aceite, pese o Antero Santos não ter concordado. A oposição inicial do Antero fez com que estivesse afastado de todo o processo de organização do campeonato. Passando ao segundo excerto, primeiro de que se “cozinhou” um regulamento e que o campeonato se realizou em “setembro” de 1977. No que respeita ao regulamento da prova de surf, da primeira como das provas que lhe seguiram, segue o sistema de eliminatórias comum a todos os desportos em que a progressão de um atleta dependa da eliminação dos parceiros com quem compete. Foi esse sistema, comum nos desportos de combate, que foi adotado, sem necessidade de ser cozinhado, bastou ser transposto. Ainda no segundo excerto, de acordo com Antero Santos, o primeiro campeonato nacional de surf foi em setembro de 1977. Nada mais errado, todo o acervo documental sobre o campeonato desdiz tal afirmação. Conforme a memória coletiva dos praticantes de surf e a exuberância de informação documental coeva coligida no capitulo do livro sobre o campeonato (pp. 177 a 185), este realizou-se em 22 de maio de 1977. Passando ao ultimo excerto, no qual refere ser o Surfing Clube de Portugal , clube de São Pedro do Estoril, o primeiro clube de surf nacional. Quanto a este assunto, importa saber qual a formalidade que marca o inicio da existência de um ente coletivo. Os clubes são entes coletivos, sendo que a publicação da sua constituição no Diário da República, II.ª Série, era a condição para a sua eficácia jurídica, tal significa que um clube desportivo só nasce quando é publicado no Diário da República. Vejamos então: o Surfing Clube de Portugal surge no Diário da República em 23 de novembro de 1978 e o Clube Nacional de Surf e Skate, o clube de Carcavelos, é publicado no Diário da República em 11 de outubro de 1978. Em termos jurídicos o clube de surf mais antigo em Portugal é o Clube Nacional de Surf e Skate. A verificação das datas é de fácil comprovação, basta constatar cada um dos Diário da República onde foram publicados, sendo irrelevante a prioridade da intenção, a data da ida ao notário ou a vontade de ser o primeiro. Estes erros, no curto depoimento de Antero Santos, podem ter diversas razões: no que respeita à apresentação da proposta de apoio ao campeonato de surf, na qual afirma partir de Alberto Pais que repito, nem sequer fazia surf, revela desconhecimento da génese da proposta apresentada por João Rocha e João Boavida; e, ao ser confrontado perante a discussão da proposta na direção da FPAS, assumiu que seria de Alberto Pais uma vez que este a defendia.
112
No que respeita ao regulamento da competição, também terá sido o desconhecimento que originou a versão do “cozinhado”, a posição de Antero Santos foi inicialmente contra a incorporação do surf na FPAS, o que o afastou das reuniões e atividades que precederam o primeiro campeonato. Quanto à data do campeonato é mais complicado, constituindo um erro manifesto, sobre esse evento existe documentação abundante e bastaria perguntar a qualquer um dos atletas que participaram no evento que já tem diversas efemérides. No que respeita a ser o clube de São Pedro o primeiro clube de surf em Portugal, tal revela desconhecimento quanto à data que marca a existência jurídica de um clube desportivo. O prestigio de Antero Santos como homem do mar e alguém que, após os eventos iniciais, fez pelo desenvolvimento surf nacional, conferem ao seu depoimento particular relevo, razão pela qual os sobreditos erros constituem, para todos aqueles que não viveram aqueles tempos, verdades apodíticas, com potencialidade para constituir uma narrativa fiável da história do surf português. Só o regresso aos fatos e ao seu contexto, podem corrigir a versão publicada, é a microhistória a iluminar a história do surf nacional.
6. Segunda narrativa Um nome incontornável do surf nacional é o de Nuno Jonet, pessoa que tal como o André Santos viveram ativamente os primeiros passos da estruturação do surf como modalidade desportiva, de que os primeiros campeonatos nacionais e internacionais foram eventos decisivos. Na revista Surf Portugal, número 52 (1987), Nuno Jonet escreve um artigo de título “20 anos é muito tempo” no qual refere a sua visão do primeiro campeonato nacional e, a terminar, alude ao campeonato internacional de Peniche, referindo que “(…) foi ganho pelo Bruce Palmer, em segundo ficou o Pedro Lima (filho), e em terceiro o Al Hunt, que agora é tour manager da ASP.” (pp. 60). Regressemos aos factos: o campeonato de Peniche incluía num primeiro momento uma competição entre os atletas portugueses para apurar quem representaria Portugal no campeonato internacional, evento que se efetuou no dia 20 de novembro de 1977, na baía entre Peniche e o Baleal, e o campeonato internacional, este realizado no Molho Leste, em Peniche, no fim de semana a seguir, 27 de novembro. Além dos nove portugueses devidamente selecionados em cada categoria (juvenil, júnior e sénior), por terem ficado num dos três primeiros lugares na prova de seleção, a direção da prova permitiu que Pedro Lima (Pipas) excecionalmente participasse, embora não tivesse competido para a seleção de Portugal. Os resultados do campeonato internacional vêm publicitados nos jornais nacionais e regionais, além de estarem patentes no capítulo “Os primeiros campeonatos internacionais”, no livro sobre a história do surf em Portugal (pp. 187 a 200).
113
O resultado foi: 1.º Bruce Palmer; 2.º António Rocha (TóPê); 3.º Pedro Lima (Pipas); 4.º Dave Hunt; 5.º Joham Lornis; 6.º João Rocha; 7.º Paul Simons. Este resultado completo, englobando a final e as meias-finais, e identificando as nacionalidades e tempo de surf dos atletas, está patente no jornal nacional A Luta, na edição de 27 de novembro de 1977, cujo recorte é reproduzido no livro História do Surf em Portugal - As Origens, pp. 191. Considerando que Nuno Jonet esteve presente naquele campeonato e nele tivesse participado, uma vez que obteve o 3.º lugar na categoria sénior o que lhe deu acesso à prova internacional, como se explica que tenha simplesmente eliminado o António Rocha (TóPê) da classificação. Sendo o erro demasiado crasso, pois não houve mera confusão de lugar na classificação, o que se passa é a pura eliminação do atleta nacional que teve a melhor classificação naquele evento, só apelando ao contexto vislumbro uma explicação: o Nuno Jonet e o Tó Pê não se falam um com o outro, havendo uma inimizade antiga e, como diz o povo, “Ódio velho não cansa”.
7. Terceira narrativa As duas narrativas anteriores são referentes a intervenientes na modalidade, ambos da segunda metade da década de 1970, passemos agora a referir uma narrativa de alguém, surgido no contexto do surf ainda nos finais de 70. Importa referir que na década que vimos aludindo, não havia revistas de surf nacional e os registos escritos sobre a modalidade são esparsos e raros, o que significa que quem não estivesse direta e assiduamente ligado à modalidade teria muita dificuldade em produzir uma narrativa verosímil sobre o surf em Portugal. Esta terceira narrativa é de KaKá Lourenço que terá começado a fazer surf em 1979, refere que o que lhe chamou a atenção para a modalidade “foi um campeonato realizado entre 1974 e 1977, (…) na Praia da Torre (…), que só contou com a participação de surfistas estrangeiros”. Mais afirma que (em 1979) já “havia alguns surfistas de São Pedro, que surfavam há algum tempo, mas tirando isso, aqui na zona de Cascais, eu não conhecia mais nenhum surfista”. Mais adiante, o narrador contradiz-se ao afirmar que começou a fazer pranchas em 1982 com um surfista de Carcavelos, o “Peixe” que “vinha a coletar informações de surfistas estrangeiros que tinham noções de shape e fabricação de pranchas há muitos anos e que tinha um nível de surf muito alto para a altura”, isto significava que além de São Pedro haveria outros núcleos de surf, por sinal bem perto, nomeadamente em Carcavelos. Esta narrativa, surge numa revista de surf e, posteriormente, é novamente publicada, com outro formato e com o título O que nos inspira a surfar? – O relato de dois surfistas de diferentes gerações, na revista on line SurfTotal, em 15 de abril de 2021. Vamos utilizar o método especifico da fenomenologia, o método descritivo, referente aos eventos a que a narrativa se reporta.
114
Primeiro evento, campeonato na Praia da Torre. Este campeonato internacional realizou-se em janeiro de 1979 e reúne no nosso país as principais federações europeias de surf, tendo Portugal sido representado pelos atletas com melhores classificações nos campeonatos precedentes. A data não é entre 1974 e 1977, é sim posterior, em 1979, data em que o narrador diz ter começado a fazer surf. Os portugueses que participaram no evento eram em número igual ao da totalidade das equipes estrangeiras, mas os resultados não foram excelentes, embora o TóPê Rocha tenha ficado nas meias-finais e o João Rocha e Paulo Inocentes ficaram pelos quartos de final, os restantes nacionais ficaram pelas primeiras eliminatórias. Os jornais diários publicitaram o evento, sublinhando o espetáculo do surf (ou como referia o jornal Record, na edição de 5 de janeiro de 1979, «Surf» é espetáculo). Constatamos, assim, que o Ká Ká não se apercebeu que o campeonato tinha diversos competidores portugueses e que foi efetuado em data posterior àquela por si indicada. Uma outra afirmação que destoa da realidade é a de que em 1979 “havia alguns surfistas de São Pedro, que surfavam há algum tempo, mas tirando isso, aqui na zona de Cascais, eu não conhecia mais nenhum surfista”. É possível que o narrador que faz parte da geração dos surfistas das revistas de surf nacional, não conhecesse mais ninguém além de alguns surfers de São Pedro, mas que havia muitos outros não pode haver dúvida, sobretudo a partir do primeiro campeonato nacional em 1977, só do Clube Nacional de Surf e Skate, de Carcavelos, foram 23 surfistas ao nacional e, portanto, sendo o registo apenas de um local e dos que participavam em prova, muitos outros havia. Que o KáKá Lourenço reportasse esta narrativa na década de 1980, poderia ser justificada por alheamento ao que se passava no surf nacional, mas manter esta narrativa em 2021 já é difícil de conseguir explicar a razão de o ter feito. Atente-se que duas das revistas de surf nacionais mais relevantes começam a ser publicadas em 1987, reportando os eventos coevos e passados e o livro História do Surf em Portugal. As Origens é publicado em 2008, coligindo diversas fontes documentais que infirmam inequivocamente a narrativa em análise, em suma: a publicação da narrativa em 2021 carece totalmente de sentido. Esta narrativa provém de alguém que não foi pioneiro, nem fez parte da primeira geração de surfers nacionais, ela evidencia o que se apelida de sentimento de tentação das origens, vendo-se o narrador como protagonista num tempo que não foi seu. A sequência bem sucedida de um progresso é garantia de que a sua origem constitui um ponto essencial de todo o processo de êxito, razão da transfiguração do narrador através de uma travessia no tempo hipostasiada. O distanciamento temporal em relação a uma data distante, funciona como um compressor da realidade, em virtude do qual se arrumam numa mesma secção temporal diversos anos como
115
se fossem apenas um e este é o do relato que se produz e, posteriormente, se narra. Este fenómeno faz com que pessoas com experiência ativa em 1980 se arroguem de 1970, perante uma geração mais nova, por exemplo de 2000, o que provoca um desfasamento da realidade. A única forma de desmontar essas narrativas excêntricas ou mesmo fraudulentas é o retorno aos factos, inserindo-os no contexto coevo mediante provas irrefutáveis, só este exercício permite repor a sua veracidade.
8. Quarta narrativa Vamos agora ver uma narrativa de um qualificado professor universitário, Daniel Esparsa, a quem se deve o importante livro La Historia del surf en España. De Magallanes a los años 80. O autor explana num dos capítulos (3.º), as origens e a expansão do surf, referindo os começos do surf na europa, a saber: Reino Unido, França e Portugal. Mais adiante, nas conclusões, o autor aborda a génese do surf nos países de surf europeus, referindo em relação a Portugal: “En Portugal encontramos un pioneiro mayor, el padre del surf en el país luso, en el entorno de San Pedro de Estoril, desde el cual comenzó a expandirse a partir de los años 60.” (pp. 164). Este “pai do surf” em Portugal é, para o autor, Pedro Martins de Lima que previamente havia referido quando em capitulo anterior, alude à história do surf em Portugal. De acordo com o texto do autor, as fontes utilizadas, além do livro História do Surf em Portugal. As origens, recorre a dois artigos publicados on line: um datado de 2010, de André Pires, Em entrevista – Pedro Lima: O surf pode ser um tubo de ensaio da própria vida, retirado de: http://www.surfingportugal.com/index.php?opcao=35&id=1418, datado de 31/03/2010; e, de Andrea Molina Torn, Informe Portugal: Pedro Martins de Lima, el pioneiro del surf português, publicado on line em Stafmagazine, em 24/03/2013, http://stafmagazine.com/features/pedromartinsdelima/. Atualmente, nenhum dos artigos é acessível, embora tenhamos acesso ao texto de André Pires, via o site da Lightning Bolt Portugal. Seja do referido livro, seja do artigo de André Pires, não se conclui que Pedro Lima seja o pai do surf português, no sentido de ter sido responsável pelo surgimento e desenvolvimento do surf nacional. Importa separar alguém que é pioneiro, daquele que é responsável, no sentido de ser o pai do qual resulta toda uma filiação. Do artigo de André Pires resulta a afirmação de que Pedro Lima é o pioneiro do surf português; do livro, não existe tal afirmação, mas resulta que em termos etários será um dos surfers nacionais mais antigos, o que é posto em causa em outros artigos de pesquisa sobre quem será o primeiro surfista luso. 116
O que resulta bem explicito do livro é que os diversos núcleos de surf nacional foram nascendo, sem pai tutelar, ao longo da orla costeira nacional, o seu grau de independência em relação aos outros é evidente, consoante resulta dos diversos textos sobre cada um dos núcleos, redigidos por diferentes autores (pp.49 a 153). Como se explica então a afirmação de Daniel Esparsa de que em Portugal o desenvolvimento do surf resulta de Pedro Lima, sendo certo que o autor não confunde pioneiro com paternidade, como explicita no seu livro (pp. 165). Cumpre regressar aos factos iniciais, ao seu contexto e compreender o processo histórico, como diria Thompson, a autoconstrução da identidade em causa. Recuando aos factos originais, nos inícios dos anos de 1970, o Pedro Lima era apenas conhecido pelo pequeno núcleo de surfistas nacionais da Costa do Sol, como se chamava à zona das praias de Cascais a Carcavelos; os mais novos chamavam-no de Pai Pedro para o distinguir de seu filho também de nome Pedro Lima, conhecido como o Pipas. Embora o Pai Pedro não tenha participado na organização do primeiro campeonato de surf nacional, ele participou no evento na qualidade de júri e de atleta, sendo que a partir dessa data passou a ser conhecido pela generalidade dos praticantes de surf, independentemente do seu local geográfico, mas o conhecimento do Pai Pedro estava restrito ao mundo do surf, mesmo o aparecimento das revistas de surf, em 1987 não alteraram essa realidade. A publicação do livro sobre a história do surf em Portugal, em 2008, vem alterar a situação porquanto os diversos canais televisivos, de rádio e a demais comunicação social, solicitam ao coordenador do livro a sua participação em programas e entrevistas, o qual apenas aceitou ir a um canal televisivo e pediu a Pedro Lima (pai) e Teresa Abraços (a Teresa Montalvão substitui uma vez a Teresa Abraços) que o representassem, o que fizeram de uma forma exemplar. As qualidades de bom comunicador do Pedro cativaram a comunicação social, mantendo-o como um interlocutor privilegiado do surf nacional. A determinada altura, surge na comunicação social a expressão “Pai do surf português” referindo ao Pedro Lima pai, o que passou a ser acriticamente aceite, por todo o tipo de comunicação social, sendo repetido até ao seu recente falecimento, em 21 de fevereiro deste ano corrente, data em que todas as revistas e jornais noticiaram o falecimento do “pai” do surf em Portugal (sic.). Poderemos afirmar que pouco tempo depois do lançamento do aludido livro, a referência a Pedro Lima pai na comunicação social generalista, aludia necessariamente à sua paternidade em relação ao surf nacional, sirva de exemplo, por constar na folha de capa, o da Dica Semana de 30 de julho de 2015 que consigna: “Aos 85 anos o pai do surf em Portugal continua a rasgar… Ondas e não só. A sua energia é contagiante.” Será esta narrativa da comunicação social que cria um epónimo, no qual Esparsa, não o reconhecendo expressamente, vai buscar a ideia que verte no seu livro. Não sabemos o que sobre o assunto contém o texto de Andrea Molina Torn, mas será provável que se enquadre no epónimo veiculado pela comunicação social não especializada no surf nacional, atente-se na data deste artigo de Torn, 2013.
117
Esse apelido de “pai do surf em Portugal” pode ser, como foi por Daniel Esparza, interpretado de forma extensiva, o que não corresponde à realidade vivida no surf português, tal expressão, em rigor, só pode ser encarada como uma forma afetuosa de se referir a um dos mais antigos surfistas nacionais.
9. Da fenomenologia à micro-história e, desta, à história Vimos que narrativas de pessoas que poderiam testemunhar os factos, pela sua contemporaneidade com os mesmos, não foram rigorosos com a realidade, por razões diversas; e, verificamos que narradores com separação temporal dos factos não se coíbem de os reportar como fossem do seu conhecimento direto; por fim, constatamos que o discurso mediático, sem preocupação de rigor, mas apelando a ingredientes de impacto social, podem distorcer a história fazendo vingar narrativas que não correspondem à realidade dos factos. Como dizia Leopold von Ranke, história é “dizer apenas como tudo se passou na realidade”, estava-se no século XIX, sendo o objetivismo de Ranke contra o conceito de história de então. Tais palavras ecoam ainda hoje como um imperativo de busca da verdade. Sabendo-se que o historiador contemporâneo não é só historiador, mas historiador social, historiador cultural, historiador feminista, historiador político, historiador da ciência, historiador criminal, … como se pode falar de uma verdade? Mesmo sem a ilusão da verdade, algo deve ser evitado na narrativa histórica, a denominada fraude histórica ou o que se designa, de forma irónica, como história excêntrica. Na nossa análise, o relevo dado à micro história não teve preocupações epistemológicas no sentido de afastar as influências economicistas e socializantes do marxismo, do neo-marxismo, dos Annales, do estruturalismo ou da escola de Bielefeld, na interpretação da história. O nosso desiderato foi bem mais modesto, a análise dos casos singulares, a tal micro-história, serve para repor o que efetivamente sucedeu, o que nem sempre é simples, pois o real é descontinuo, composto por diversos elementos que surgem e se justapõem, frequentemente de forma aleatória, sem propósito ou razão aparente. As narrativas analisadas, com exceção da quarta narrativa, dizem respeito a problemas históricos simples, são referentes a factos, a datações, com caracter objetivável, não concitam o fator subjetivo e estão sujeitos a técnicas históricas simples: recorte do facto, isolamento do fenómeno, crítica do testemunho (documental ou outro), apreciação da credibilidade. A quarta narrativa é um pouco diferente das anteriores, ela constitui um relato subjetivo, uma construção e, como tal, exige que se proceda a uma reconstrução, ordenando os factos e reconstruindo a realidade, esta dissolvida na narrativa que se analisou.
118
Em suma: verificamos que no retorno aos factos e à luz do seu contexto, foi permitido alterar as narrativas, iluminando o passado, possibilitando interpretar o seu significado de forma coerente com os demais dados históricos coevos.
10. Discurso logológico A logologia da escrita sobre o surf tende a ser mimética, primando a emoção e o impacto visual, sobre a reflexão e o raciocínio crítico. Esta constatação é conducente a um marasmo aplaudido e à repetição sistemática de lugares-comuns e de erros, por vezes crassos, dado a sua desconformidade com a realidade. A repetição sucessiva através de diversas gerações de um fato erróneo, passa a constituir um mito, algo que se acredita sem questionar. Desconstruir mitos só é possível pelo regresso aos factos, à origem, é nessa intenção fenomenológica que se posiciona a presente análise, são os casos singulares que permitem repor o que efetivamente sucedeu. Para o filósofo, como refere Henri - Irénée Marrou, a história aparece como uma ciência auxiliar do pensamento, expandindo os horizontes do conhecimento, incentivando a consciência da complexidade dos problemas e suas implicações, abrindo o filosofo ao mundo e à realidade. Por seu turno, a filosofia concede à história todo um processo que vai desde a necessidade do rigor à amplitude sempre renovada do pensamento. Entre estas duas estruturas do pensamento - história/filosofia -, o surf nacional na sua trajetória histórica só tem a ganhar, desde logo rigor e credibilidade, fatores essenciais para sair de um discurso meramente logológico, podendo construir uma narrativa fiável do seu processo histórico.
119
Bibliografia referida no texto Brentano, F. C. [ 2017 (1891)]. Psychologie descriptive. Paris: Gallimard. Esparza, D. (2016). La Historia del surf en España. De Magallanes a los años 80. Olomouc: Edición Olo Surf History. Gavazzo, M. (2008). São Pedro do Estoril, in J. Rocha (Coord.), História do Surf em Portugal. As origens. Lisboa: Quimera, 105-116. Ginzburg, C. (2001). A distance: Neuf essais sur le point de vue en histoire. Paris: Gallimard. Grendi, E. (1998). Repensar a micro-história. In J. Revel (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas. Hartman, N. (1946). Les principes d’une métaphysique de la connaissance. 2 vol. (Trad. Raymond Vancourt). Paris: Aubier. (2011). Ética. Madrid: Ediciones Encuentro. (2013). Possibility and Actuality. Berlin: De Gruyter. (2019). Ontology: Laying the Foundations. (Trad. Keith R. Peterson). Berlim: De Gruyter. Heidegger, M. [1992 (1962)]. Que é uma coisa? (Trad. Carlos Morujão). Lisboa: Edições 70. [2006 (1927)]. Ser e Tempo.(Trad. Marcia S. C. Schuback). Petrópolis: Vozes. [1988 (1949)]. A essência do fundamento. (Trad. Artur Mourão). Lisboa: Edições 70. (1985). Les Problèmes Fondamentaux de la Phénoménologie. Paris: Gallimard. [ 2010 (1920)]. Phenomenology of Intuition and Expression. London: Bloomsbury. Husserl, E. [1969 (1900)]. Recherches Logiques I. Prolégomènes à la logique pure. Paris: Presses Universitaires de France. [1961 (1901). Recherches Logiques II. Recherches pour la phénoménologie et la théorie de la connaissance. 1.º partie. Paris: Presses Universitaires de France. [1961 (1913)]. Recherches Logiques II. Recherches pour la phénoménologie et la théorie de la connaissance. 2.º partie. Paris: Presses Universitaires de France. [1963 (1921)]. Recherches logiques III. Éléments d’une élucidation phénoménologique de la connaissance. Paris: Presses Universitaires de France. [1994 (1950)]. Méditations cartésiennes et les Conférences de Paris. Paris: Presses Universitaires de France. [1950 (1913)]. Idées directrices pour une phénoménologie et une philosophie phénoménologique pures I. Introduction Générale a la phénoménologie pure. Paris: Gallimard. [ 2000 (1950)]. A ideia da fenomenologia. (Trad. Artur Mourão). Lisboa: Edições 70. [ 1952 (1911)]. A filosofia como ciência de rigor. (Trad. Albin Beau). Coimbra: Atlântida. [1994 (1928)]. Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo. (Trad. Pedro M.S. Alves). Lisboa: INCM [ 1991 (1975)]. Problèmes fondamentaux de la phénoménologie. Paris: Presses Universitaires de France. (2008). A crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental. Uma Introdução à Filosofia Fenomenológica. (Trad. Diogo F. Ferrer). Lisboa: Phainomenon e Centro de Filosofia da Universidade da Universidade de Lisboa. Jonet, N. (1987). 20 anos é muito tempo, in Surf Portugal, 52, 60. Levi, G. [1992 (1991)]. Sobre a micro-história. In P. Burke (org.). A escrita da história: novas perspetivas (pp. 133-162). São Paulo: Unesp. Levinas, E. (2002). En découvrant l’existence avec Husserl et Heidegger. Paris: Vrin. Marrou, H.-I. [1976 (1954)]. Do Conhecimento Histórico. Lisboa: Aster. Meinong, A. (2000). La théorie de l’objet et présentation personnelle. Paris: Vrin. Merleau-Ponty, M. [1976 (1945)]. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard. (1982). Résumés de cours: Collège de France (1952-1960). Paris: Gallimard. (1973). Ciências do homem e fenomenologia. (Trad. Salma Muchail). São Paulo: Edição Saraiva. Ranke, L. v. [2010 (1973)]. The Theory and Practice of History. London: Routledge.
120
Revel, J. (Org.) (1998). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas. Rocha, J.L. M. (Org.) (2008). História do Surf em Portugal. As origens. Lisboa: Quimera. Sartre, J.-P. [2012 (1936)]. L’ imagination. Paris: PUF. Scheler, M. [1992 (1928)]. La Situation de l’homme dans le monde. Paris: Aubier. [ 2003 (1923)]. Natures et formes de la sympathie : Contribution à l’étude des lois de la vie affective. Paris: Payot. (2015). Éthique et fénoménologie. Rennes: Press Universitaire de Rennes. [1991 (1913)]. Le formalisme en éthique et l’éthique matériale des valeurs: Essai nouveau pour fonder un personnalisme éthique. Paris: Gallimard. Thompson, E. P. (1963). The Making of the English Working Class. London: Penguin. Vainfas, R. (2002). Micro-história: os protagonistas anônimos da história. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas.
121
122
Desporto – exercício espiritual? Alfredo Teixeira Cátedra Manuel Sérgio – Desporto, Ética e Transcendência (CITER-UCP)
123
124
Desporto – exercício espiritual? Alfredo Teixeira
Cátedra Manuel Sérgio – Desporto, Ética e Transcendência (CITER-UCP)
«Agir, eis a inteligência verdadeira. Serei o que quiser. Mas tenho que querer o que for. O êxito está em ter êxito, e não em ter condições de êxito. Condições de palácio tem qualquer terra larga, mas onde estará o palácio se não o fizerem ali?1» Na perspetiva do sociólogo Pierre Bourdieu o que se representa na cultura sob a forma mais espiritual ou imaterial (état d’âme) deve compreender-se a partir da sua inscrição na materialidade social de uma estrutura (état de corps). A proposta que aqui se apresenta não é totalmente boudieusiana, mas aproxima-se da ideia de que aquilo que se afigura mais físico, mais corpóreo, pode ser o lugar de inscrição mais decisivo do que se compreende como espiritual (cf. Bourdieu 1982, 130; Teixeira 2010). É também, em parte, por causa desta orientação que se tornou frequente que os sociólogos e antropólogos da religião se interessem pelo fenómeno desportivo moderno. Grande parte do esforço destas disciplinas, quando estudam as sociedades europeias – ou as sociedades do Atlântico Norte – concentra-se na caracterização das amplas remodelações que se descobrem na experiência social do religioso. Uma parte destes cientistas sociais tendem a privilegiar, por isso, não o religioso objetivado institucionalmente, mas o religioso fluído, implícito, ou cristalizado em substitutos funcionais. Num célebre artigo de 1968, o antropólogo Roger Bastide escrevia, precisamente: o sagrado não morre, desloca-se (cf. Bastide 1968).
O sagrado em trânsito Descrevendo a sua presença numa Universidade de Verão realizada em Andorra, uma conhecida socióloga francesa, Danièle Hervieu-Léger, referia-se à sua experiência de contacto com aquela paisagem – aldeias sempre habitadas por uma igreja, edificada no românico lombardo tão característico da região (cf. Hervieu-Léger 1999, 9-13). No centro deste universo, a igreja era o ponto fixo, o local que emblematizava a identidade comunitária. Atualmente, poucos frequentam
1 Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Fernando Pessoa, Vol. I. Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e organização de Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: Ática, 1982.
125
estas igrejas, salvo para admirar os traços culturais de um mundo desaparecido. A animação episódica de algum destes lugares de culto, muito mais do que um sinal de reativação, é uma confirmação da erosão da vida religiosa local, nas suas dimensões comunitárias. Como refere a socióloga, mesmo a festa da Virgem de Meritxell que, até aos anos 1960, reunia a totalidade da população de Andorra no fim do Verão, viu diminuída a sua capacidade de mobilização. Marca-se ainda o acontecimento com solenidade, mas as famílias já não fazem da festa uma referência fulcral para as suas identidades. O lugar atrai os amadores de turismo verde, caminhantes ou peregrinos de um género novo, à descoberta dos lugares espirituais de forte carga simbólica dos Pirinéus. Hoje em dia, a vida está, com toda a evidência, noutro sítio, do lado sem dúvida das artérias poluídas pela enchente dos automóveis e dos autocarros que atravessam o centro da cidade de Andorra-a-Velha. A transformação do cenário, neste fundo de vale dos Pirinéus, é muito ampla: as lojas isentas de impostos sucedem aos bancos; os turistas, ocupados antes de mais em fazerem bons negócios, enchem a calçada e acumulam confusamente nas suas sacas cartuchos de cigarros, perfumes ou bebidas. As preocupações da religião parecem completamente ausentes deste universo de consumos. No entanto, somos surpreendidos pela descoberta de uma catedral de cristal, que se ergue uma imensa flecha de vidro sobre esta atividade comercial intensa. No adro do edifício, aperta-se uma multidão numerosa. O que os mobiliza e reúne? Na leitura da socióloga Danièle Hervieu-Léger, uma forma particular de fervor aí está empenhada, nutrida de crenças, capaz de suscitar práticas rituais, esforços ascéticos e mesmo experiências de espanto inéditas. Trata-se e um centro «termo-lúdico» com as suas piscinas quentes e frias, os seus «banhos egípcios», banheiras fervilhantes, saunas, salas de musculação, ginásios. É, de facto, em certo sentido, o lugar de um culto: culto do corpo, da forma e performance física, da juventude preservada, da saúde e da realização pessoal, no qual se exprime algo das expectativas e dos valores dos nossos contemporâneos. Será que podemos falar de uma secularização do desporto, análoga à que reconfigurou o subsistema religioso nas sociedades do Atlântico Norte? Vale a pena recordar, antes de mais, que no século XIX, e ainda durante a primeira metade do século XX, desporto e moral estabeleceram uma peculiar aliança. O privilégio concedido ao desporto pelo sistema pedagógico elitista das publics schools inglesas ou os vários registos de divulgação dos ideais de Pierre de Coubertin são exemplos eloquentes da anexação do desporto à moral trajetória em que a performance desportiva é pensada como uma via moderna de musculação moral do indivíduo (cf. Augustin & Gillon 2004; Jirásek 2018). Tratava-se não só de uma moral de elevação virtuosa do indivíduo, mas também de uma moral de regeneração social. A educação física ganhou lugar na construção da ideia de saúde nacional, como prática de disciplina do corpo, de regulação dos tempos livres, barreira à degenerescência dos costumes, escape para os impulsos sexuais e para a violência recalcada, numa ascese capaz de dar ao indivíduo o domínio de si próprio, expressão da melhor forma de integração social (cf. Ehrenberg 1991, 71-74). As conhecidas festas e competições de ginástica não eram puro entretenimento, pretendiam pregar uma pedagogia cívica e incrementar o culto da pátria e da república. Os Jogos Olímpicos surgiram, neste contexto, como ofício solene que celebra a civilização do respeito mútuo entre os povos, segundo uma moralidade que cultiva
126
o gosto pela luta, o sentido do esforço, a solidariedade e a abnegação. Seguindo um quadro de análise tipicamente durkheimiano, poder-se-á afirmar que a ritualização do espírito olímpico responde, neste quadro de análise, à necessidade de novas cerimónias que alimentem o «fogo ardente» que sustenta as representações coletivas (cf. Mellor & Shilling 1998, 297-302). No quadro da nossa contemporaneidade é, por ventura, mais fácil de identificar novas reconfigurações da sacralidade desportiva. De alguma forma, aquilo que na cristandade definiu de modo particular o cuidado pastoral, a «cura de almas» conhece agora a interferência e a concorrência de agentes sociais diversos, que se afirmam na disputa da definição das novas práticas de «cura de almas» isso pode ajudar a compreender a preponderância do discurso moral no terreno da legitimação das práticas desportivas. No contexto de colóquio científico realizado em 1979, em Estrasburgo, já Pierre Bourdieu, na primeira fase da sua carreira (tinha 44 anos) falava dos «novos clérigos» e das novas práticas de «cura de almas». As suas palavras não deixam de ter um tom crítico ao referir-se ao aparecimento de profissionais da cura psicossomática «que fazem moral pensando que produzem ciência» — medicinas alternativas, mestres do exercício físico e da expressão corporal que procuram as boas «performances» para o corpo. Em tal contexto, observa Pierre Bourdieu, o campo religioso vê-se dissolvido num campo de manipulação simbólica mais amplo, no qual o discurso científico e as gnoses para-científicas, transformam saberes positivos em discursos normativos. Para Bourdieu, trata-se de um novo terrorismo científico sob o horizonte do dever da saúde (cf. Bourdieu 1985, 257-259). Nas últimas duas décadas, foram frequentes os discursos críticos da «ideologia desportiva» (cf. Queval 2004, 243-330) – sucedendo à crítica da religião. Neste contexto os discursos acerca das virtudes sanitárias do desporto são vistos como exercício de legitimação do desporto de alta competição. Jean-Marie Brohm (cf. 1993) sustentou a tese de que a instituição desportiva se tinha tornado uma empresa mortífera. Ao contrário dos objetivos proclamados (bem-estar, forma física, equilíbrio, saúde), o empreendimento desportivo, procurando negar a morte com a vida (juventude, dinamismo), acabaria por subjugar os corpos a determinadas metas de desempenho, numa lógica de autofagia programada e legitimada socialmente, constituindo uma «ideologia desportiva», na qual o pensamento crítico vê constituir-se ortodoxia do elogio do desporto, veiculada por todos os canais que moldam o senso comum (cf. Bartolomei & Teixeira 2023). Emblemática é, também, a abordagem que Gilles Lipovetsky fez da «febre higienista dos novos tempos democráticos», no final do século XX (cf. 1992). Os esforços higienistas e os projetos de saneamento social e moral caminharam lado a lado, desde o século XIX, dando lugar a uma liturgia dos deveres individuais destinada a sustentar uma moralidade pública. Segundo Lipovetsky, as preocupações higienistas continuaram em alta, mas desvinculadas da celebração dos deveres individuais. Rompido o tecido das obrigações individuais, o higienismo dependeria agora dos referenciais do bem-estar e do desejo, inscrevendo-se no registo dos prazeres íntimos e na retórica sensualista, estética e intimista, e nas práticas da sedução, de amor por si próprio, de bem-estar narcísico. A obsessão da forma, a avidez de desporto e alimentação biológica, cremes restauradores, regimes dietéticos e produtos light fazem parte, segundo Lipovetsky, do culto egocêntrico da saúde que substituiu o saber enfático da dignidade. O neo-higienismo superou o antigo rigorismo, mas possibilitou um maior controlo social por meio das «técnicas do corpo são
127
e vigoroso» e aumentou a ansiedade narcísica. A função do Estado é, aqui, mais modesta: falidos os megaprojetos de regeneração social e moral, resta-lhe a administração operacional da saúde. Nesta perspetiva, a mesma lógica pós-moralista se desenha na paixão hodierna pelo desporto. O ensaio de Lipovetsky procurou mostrar que essa paixão abandonou o imaginário da virtuosidade moral para se exprimir, cada vez mais, na procura do prazer, das emoções e da experiência de si próprio. O autor concede uma particular atenção às práticas desportivas que poderíamos reunir num conjunto vasto: desporto-lazer, desporto-saúde, desporto-desafio. Na descoberta do capital-corpo, do equilíbrio íntimo, do melhor look, o esforço desportivo não procura qualquer transcendência virtuosa, mas a autoconstrução à la carte do indivíduo narcisista, inscrita num sistema onde o desporto-moda e os produtos desportivos fazem do indivíduo desportista um consumidor. Esta é, na linguagem de Lipovetsky, a era do desporto «desmoralizado». Esta analítica da atualidade é eficaz quanto à compreensão do desporto no quadro da sociedade de consumo, mas não explica, como veremos, a persistência de um ethos da elevação moral nos discursos sobre o a prática desportiva contemporânea, disseminado nas diversas instâncias de legitimação, desde o desporto de alto rendimento até às quotidianidades desportivas. É também o perfil individualista, de que falava Lipovetsky, que se descobre em muitas das práticas do desporto de risco (cf. Duret 2024; Giulianotti 2009; Soulé 2006; Le Breton 1991). Nesse jogo, em que se encenam os próprios riscos do quotidiano, o indivíduo não persegue prioritariamente a reconstrução de uma identidade «grupal». Antes, de uma forma regulada, se dramatiza o confronto com o limite — que pode muito bem ser a morte—, num corpo a corpo com a natureza, onde se experimenta a vertigem do abismo, mas de forma controlada (esta experiência do limite físico parece substituir os limites de sentido que outrora regulavam o social). A antropologia do risco pôs em destaque que, frequentemente, os indivíduos procuram o contacto simbólico com a morte para se poderem reconhecer, num contexto de dissolução dos laços sociais mais básicos e para reconstituírem o gosto pela vida. A transação simbólica, na qual o indivíduo se confronta com a morte, devolve ao indivíduo o gosto pela vida e a imagem de um poder que o quotidiano teima em negar. Nesta experiência numinosa, o medo, ou o tremendum, é o lugar de passagem (de fuga do mundo) donde o indivíduo regressa reconstituído na sua identidade pessoal — je joue donc je suis2. Neste rito individual de passagem, o ator procura a experiência de si próprio — a fabricação íntima do sagrado.
2 O filósofo e teólogo Rudolf Otto, em 1917, descrevia a experiência do sagrado como esse sentimento – o tremendum et fascinans – face ao que é totalmente-outro (o «numinoso») em relação à materialidade que nos envolve. A experiência do sagrado era, assim, explicada a partir de uma dupla face: o sentimento de veneração perante esse totalmente-outro, que está para além da experiência humana do mundo, mas também o fascínio que tal força exerce (cf. Otto 1992; Sarbacker 2016).
128
Homo ludens, homo religiosus Numa das mais influentes indagações antropológicas sobre o homo ludens – a tese clássica de Roger Caillois (cf. 1958) –, o «desporto» é um subdomínio dentro do domínio «jogo»: «uma atividade paralela, independente, que se distingue dos gestos e das decisões da vida comum por caracteres que lhe são próprios» (1958, 134). Para Caillois, o jogo como atividade humana descreve-se nuclearmente a partir de seis qualificantes (1958, 42s): a) Livre: a coação ou a injunção reduz as oportunidades do jogo; b) Separado: ação circunscrita no espaço e no tempo, com limites que a separam de outros domínios da atividade humana; c) Incerto: o resultado não está dado; o jogo é, nesta perspetiva, uma forma de enfrentar o incerto; d) Improdutivo: nas mais diversas culturas, o jogo está fora do campo do trabalho, da produção (sabemos que no quadro da modernidade expandida, o mercado pode apresentar uma força invasiva muito maior); e) Simulado: trata-se de uma realidade construída, paralela, por isso suportada por um imaginário, pondo em ação uma mitologia. Caillois não partilha da tese segundo a qual tudo na atividade humana pode ser jogo. Precisamente, para ele é central essa operação de separação: o jogo permanece, separado, fechado, demarcado das atividades que descrevem o quotidiano (dir-se-ia, o profano), fora dos circuitos que descrevem que a vida corrente – vencer ou ganhar o jogo não tem a mesma relação consequencial que as outras ações que descrevem a vida corrente (cf. 1958, 134-139). O jogo tem um espaço próprio (pista, recinto, tabuleiro, campo, etc.) – Caillois chama-lhe espaço puro. Nas suas diversas modalidades, sair desse espaço acarreta sempre penalizações, desqualificações – as regras são válidas apenas dentro daquele perímetro. O mesmo se diga do tempo. Não há jogo sem uma convenção estrita acerca do seu começo e do seu fim (cf. 1958, 37s). Quando lemos um manual moderno de regras do jogo – linhas, distâncias, cores, tempos, movimentos – não deixamos de descobrir afinidades as formas de ordenação de certos rituais religiosos - certas regras do jogo aproximam-se estruturalmente das rubricas litúrgicas. A teoria moderna do sagrado configurou-se também a partir das categorias de espaço e tempo. A categoria «sagrado» procura sinalizar algo que, embora seja constituinte da experiência religiosa, é anterior (ou está para além das suas fronteiras) às formas organizadas de religião. O gótico hails, que está na origem da raiz alemã Heil, diz respeito à integridade física, exprimindo quer o estado de boa saúde quer a experiência de se ser tratado ou curado. A partir deste significado primeiro, exprimirá a bênção ou a felicidade que se recebe dos deuses. A categoria de sagrado, no sentido que aqui exploramos, afirma-se na modernidade europeia, marcada pelo 129
pensamento alemão. Neste contexto, o termo alemão Heilig reúne um conjunto de significados que noutras línguas estarão distribuídos por palavras diferentes. Em particular três: sagrado, santo e salvo. O historiador Michel Meslin observou que, em línguas como o iraniano, o grego e o latim, este vocabulário se desdobra numa dupla face, negativa e positiva (cf. 1988, 66). É sagrado o que está carregado de presença divina, mas também é sagrado o que está interdito aos seres humanos. O sagrado bifronte é, portanto, bifronte, com uma face positiva e outra negativa. A análise das linguagens revela certas constantes: o carácter santo, sagrado, conotado por formas adjetivas, define uma força exuberante, fecundante, capaz de trazer a vida, de fazer surgir as produções da natureza. Como sublinha o historiador, este rasto linguístico mostra que a integridade física é dotada de valor religioso A antropologia do sagrado de Mircea Eliade está entre as propostas que mais destaque deu a esta interrogação (cf. 1977, 1971). Na sua leitura, a construção de um quadro de referências – que permite aos seres humanos, num determinado espaço social, compreenderem de onde vêm e que sentido tem o seu presente – é a principal função do sagrado. Nenhuma cultura dispensa a referência, por exemplo, a acontecimentos fundadores. A identificação das fronteiras simbólicas de uma cultura depende da constituição de um quadro referencial que permite aos indivíduos esse mapear da existência: saber onde estão, de onde vêm, que futuro se abre. Pensemos na metáfora da navegação. Como saber para onde ir, se não há referências? Foi a constituição de uma grelha de meridianos e paralelos que permitiu, de forma rigorosa, atribuir referências a todos os pontos do espaço geográfico, relacioná-los e estabelecer entre eles itinerários. Mas para isso, foi necessário instituir um ponto 0 – o meridiano de Greenwich. A esses acontecimentos que instituíram o quadro de referência para as culturas, Eliade chamou hierofanias – como a etimologia indica, manifestações do sagrado. Trata-se de acontecimentos e revelações que pelo seu carácter extraordinário rompem a homogeneidade do espaço e reorganizam o tempo, através da instituição de um ponto de referência — axis mundi, o eixo do mundo, segundo Mircea Eliade. Algo de similar se passa com a experiência do tempo. Para as sociedades humanas, o tempo não é apenas cronométrico – a sucessão das horas, dos dias, dos anos, etc. As experiências do sagrado determinam um calendário. O tempo ordinário das aprendizagens, do trabalho, da produção e do mercado é interrompido regularmente pelo acontecimento festivo, permitindo a atualização da memória que dá sentido ao curso da vida. Mas não só. A própria compreensão do tempo como história coletiva faz um apelo a esses momentos fundadores que, tal como, em relação ao espaço, são vividos como o começo ou a fronteira a partir da qual se narra a memória das comunidades humanas (cf. Teixeira 2015). Ora é esta condição de irrupção de algo separado, concentrando nessa separação sentidos nucleares da experiência humana, que interessou a Caillois, na sua antropologia do jogo e do desporto. Na procura de uma categorização dos diferentes tipos de jogo, Caillois tende a situar os desportos na tipologia do Agôn – a competição, portanto. Ou seja, a sua atenção parece centrar-se mais na «prova desportiva» do que na prática desportiva como tal. Hoje, não parece claro que
130
esse instinto de competição seja universal na atividade desportiva (cf. M. Haumesser, 2008: 60s). Caillois não dá suficiente importância a duas invariáveis do desporto, enquanto jogo: por um lado, a centralidade da nossa relação com o mundo e com outros através do corpo; por outro, o esforço físico, o dispêndio de energia, a disciplina e treino do corpo em ordem a objetivos que, de facto, podem ter essa condição de separação em relação à vida corrente, mas nessa condição emblematizarem não o fútil, mas os valores partilhados numa dada sociedade. Esses valores descobrem-se com mais evidência nos contextos em que determinadas práticas físicas se querem legitimar na ordem desportiva – para isso, precisam de mostrar que essa prática «física» é um exercício «espiritual».
O ethos do esforço e a disciplina do desejo Uma certa linhagem teórica, nas ciências sociais, privilegia o estudo dos processos de legitimação: que economia de valores define o legítimo e o ilegítimo, o que se promove ou se censura? As sociedades não são definíveis a partir de uma única ordem de legitimidade. Elas fragmentam-se nas diversas subculturas, ou subdomínios da cultura (cf. Bourdieu 1979; Lahire 2004). O trabalho social de construção da legitimidade, no contexto de uma determinada subcultura, exige uma forte consciência dos valores dominantes, para garantir que certas práticas se tornem aceitáveis na sua singularidade – seja sob o signo da resistência ou da remodelação (cf. Kaufmann 2004). Ora, interessa aqui perceber até que ponto o ethos do esforço e a disciplina do desejo se constituem como o modo próprio de legitimar as práticas que se apresentam como desportivas, ou ambicionam tal representação. As práticas de exercitação física e o desporto-lazer transportam para os quotidianos o ethos do esforço: a persistência do footing matinal, quando apetecia ficar na cama; a fidelidade ao treino, mesmo quando se está fatigado; a recusa de determinados alimentos, face ao apetite insinuante. Em alguns círculos sociais a falta de firmeza muscular é de alguma forma o signo da depravação ou fragilidade moral. E a expulsão das secreções (como o suor) e das gorduras é veículo de purificação. Neste sentido, recuperam-se estereótipos arcaicos relativos à dicotomia sacral «puro/impuro» (cf. Douglas 1966). Qualquer que seja o problema que se tenha vivido – profissional, familiar ou outro – a atividade corporal intensa e organizada permite colocar entre parêntesis esse tempo da vulnerabilidade e do fracasso, num movimento que se poderia caracterizar como «saída de si» (relativa ao quotidiano) e desenho de um outro «eu possível» (cf. Kaufmann, 2004; Duret 2005, 51) – de novo o paradoxo de uma transcendência autocentrada (em termos simbólicos, não a seta, mas o boomerang). O vestiário dos ginásios, com as suas práticas preparatórias, tem uma função similar aos espaços-limiares que a antropologia da religião descobre nos diferentes sistemas religiosos: zonas de separação e de passagem que organizam as fronteiras do espaço sagrado (cf. Turner 1995; Bell 1997; Grimes 2000).
131
A gramática do narcisismo parece não ser insuficiente para analisar este fenómeno – redução interpretativa que foi privilegiada por Lipovetsky (cf. 1984, 48). Os espelhos não devolvem imagens de si próprio, mas modelos que se deseja imitar – trata-se do desejo mimético no sentido girardiano (cf. Girard 2002). A leitura das transações entre a experiência religiosa e a simbolização desportiva pode encontrar na mediação ascética um laboratório privilegiado. Tal pode ser testado na leitura de alguns tópicos nucleares de uma possível categorização teológica da ascese. Hans-Christoph Askani propõe uma visão multímoda a partir de quatro perspetivas, que afiguram como vias possíveis para assinalar continuidades entre uma teologia da ascese e uma antropologia das práticas desportivas (cf. Askani 2008: 231-237). a) A ascese é um intervalo, talvez um contra-tempo. Interrompe a dinâmica dos consumos, das trocas, do entesouramento. Por isso, a ascese é sempre exercício e renúncia: exercício, porque se intensificam comportamentos que estariam muito mais diluídos no resto do tempo; renúncia, porque se exige a privação de práticas, relações ou objetos que são comuns no quotidiano. Na ascese religiosa ou desportiva entramos no mundo simbólico da necessidade de descontinuidades, para que algo de novo, inédito, inesperado, possa surgir. b) Mesmo sendo uma renúncia voluntária, a ascese tem uma marca de negatividade – o termo «abnegação» pode descrever de forma mais direta este campo semântico. As restrições e limitações assumidas podem dizer respeito a necessidades básicas e a experiências de prazer muito disseminadas no quotidiano das comunidades humanas. c) À interrupção, à abnegação junta-se o distanciamento, ou seja, tomar distância em relação ao regime ordinário da vida. Mas esse distanciamento não se explica a partir de si própria, mas a partir da abertura que ela sinaliza: um mundo a vir ou um mundo a restaurar (seja em sentido ecológico, protológico ou escatológico); ou mais radicalmente um «para-além» do próprio mundo como o conhecemos. Em várias modulações da experiência de transcendência, cruzam-se, sem se anularem, a simbolicidade religiosa ou desportiva. d) A ascese mantém uma particular relação com a morte – neste sentido, a ascese é mortificação. Nas mitologias, os seres que têm a qualidade da imortalidade não são ascetas – ascetas são os mortais. A ascese antecipa simbolicamente a morte, para a integrar na vida, para a seu modo a manejar. A ascese não deseja a morte. Enfrenta-a, não há distância, expulsando-a da vida, mas num corpo a corpo, dominando e orientando o desejo, com as armas da disciplina.
Epílogo Enquanto vitória sobre a condição de vulnerabilidade e a morte, a ascese é um substrato religioso estruturante, o exercício espiritual por excelência. E é estruturante porque comunga das dinâmicas decisivas que descrevem, na experiência humana, a apropriação simbólica de si e do mundo. Homens e mulheres de todas as tradições religiosas vivem tempos e lugares
132
de renúncia. Alguns são especialistas na ascese, transportando permanentemente (porventura, de forma vicária) as marcas dessa luta com o limiar da morte. Noutros casos a ascese é uma prática propedêutica, um treino em ordem a uma meta, um para-além do lugar em que me encontro. Nega-se este lugar, para alcançar um outro, vencendo o tempo, o espaço, as inércias e a gravidade do corpo. A título de exemplo, podemos seguir o rasto desta modalidade de construção de sentido em algumas das declarações públicas de Ayrton Senna: «A ultrapassagem de si ganha todo o seu sentido no cockpit de um carro de corrida. Para chegar mais longe, mais perto dos limites da máquina e do Homem, um piloto deve dar tudo: o seu coração, o seu corpo e a sua cabeça3». «Eu estou aí, no presente, mas ao mesmo tempo eu estou para além de mim próprio, para além da realidade4». «Tenho uma espécie de força que me aproxima de Deus5». A ascese como exercício espiritual pode ser, assim, uma teoria da ação humana – seja ela mais religiosa (dir-se-ia excêntrica, aberta a um para-além da experiência do mundo), seja ela mais próxima do que Luc Ferry chamou o humanismo do Homem-Deus – uma transcendência que se absolutiza na realização de si (cf. Ferry 1995). Nesse contexto, é necessário não iludir que tal teoria da ação humana pode ter horizontes de transcendência incomensuráveis. Mas, nessa diferença, práticas religiosas e desportivas partilham um sentido de responsabilidade espiritual pelo mundo e pelo que nele é a comunidade humana. Curiosamente, mesmo sem a necessidade de devolver qualquer centralidade a esta palavra, muitos estilos de vida, nas nossas sociedades complexas, procuram implementar disciplinas diversas que visam devolver ao quotidiano a sobriedade necessária a uma nova relação com o meio e com os outros. A afirmação de valores «pós-materialistas», o interesse por uma vida regrada, a ética do esforço ligada ao desporto-lazer, as novas culturas alimentares, constituem exemplos dessa retoma de práticas de renúncia para a edificação de uma espiritualidade. Os quadros sociais em que vivemos permitem que tais práticas possam desenvolver-se fora de qualquer relação explícita com uma tradição religiosa. Mas não deixam de ser modos de exercitação espiritual ao serviço de um ideal ou estilo de vida. Podemos ver a ascese, enquanto exercício espiritual, como um motor de re-simbolização da experiência humana. Mas é interessante sublinhar que o encontro com esse limiar de transcendência se faz através da nossa própria mundanidade, ou seja, através de si próprio enquanto corpo situado. Seguindo uma expressão que usamos correntemente, para definirmos um grau elevado de empenhamento numa ação, a ascese só acontece «de corpo e alma».
3 L’Équipe Magazine, 24-11-90. 4 L’Équipe Magazine, 23-11-93. 5 L’Équipe Magazine, 30-09-89.
133
Bibliografia Askani, Hans-Chistoph. 2008. «Que fait l’ascèse avec le corps ?». In Le corps, lieu de ce qui nous arrive: Approches anthropologiques, philosophiques, théologiques, ed. Pierre Gisel. Genève: Labor et Fides, 230-239. Augustin, Jean-Pierre & Pascal Gillon. 2004. L’Olympisme: bilan et enjeux géopolitiques. Paris: A. Colin. Bartolomei, Teresa & Alfredo Teixeira. 2023. «O corpo e a consciência de si como ser no mundo: Manuel Sérgio, Giorgio Agamben e Hartmut Rosa». In Este é o meu corpo: Para uma Teologia da Motricidade Humana, ed. Alexandre Palma e Alfredo Teixeira. Lisboa: UCP Editora, 84–114. Bastide, Roger. 1968. «Anthropologie religieuse». Encyclopaedia Universalis II. Paris, 65-69. Bell, Catherine. 1997. Ritual: Perspectives and Dimensions. Oxford & New York: Oxford University Press. Boulongne, Y.-P. 1975. La vie et l’œuvre pédagogique de Pierre Coubertin (1963-1937). Ottawa: Ed. Leméac. Bourdieu, Pierre. 1979. La distinction: Critique sociale du jugement. Paris: Minuit. 1980. Le sens pratique. Paris: Minuit. 1982. Ce que parler veut dire. L’Économie des échanges linguistiques. Paris: Fayard. 1985. «Le champ religieux dans le champ de manipulation symbolique». In Les nouveaux clercs. Prêtres, pasteurs et spécialistes des relations humaines et de la santé. Genève: Labor et Fides, 255-261. Brohm, Jean-Marie. 1993. Les meutes sportives: critique de la domination. Paris: L’Harmattan. Caillois, Roger. 1958. Les jeux et les hommes. Paris: Gallimard. Defrance, Jacques. 1995. «L’autonomisation du champ sportif 1890-1970». Sociologie et sociétés 27: 15-31. Douglas, Mary. 1966. Purity and Danger: An Analysis of the Concepts of Pollution and Taboo. Washington & New York: Frederick A. Praeger Publishers. Duret, Pascal. 2005. «Body-building, affirmation de soi et théories de la légitimité». In Un corps pour soi. Paris: Presses Universitaires de France, 41-65. Duret, Pascal. 2024. Sociologie du sport. Paris: Que sais-je. Ehrenberg, Alain. 1991. Le culte de la performance. Paris: Calmann-Lévy. Eliade, Mircea. 1977. O mito do eterno retorno. Lisboa: Ed. 70. 1971. Nostalgie des origines. Paris: Gallimard. Ferry, Luc. 1995. L’homme-dieu ou le sens de la vie. Paris: Grasset. Girard, René. 2002. Le voix méconnue du réel: une théorie des mythes archaïques et modernes. Paris: Grasset. Giulianotti, Richard. 2009. «Risk and Sport: An Analysis of Sociological Theories and Research Agendas». Sociology of Sport Journal 26: 540-556. Grimes, Ronald L. 2000. Deeply into the Bone: Re-Inventing Rites of Passage. Berkeley: University of California Press. Haumesser, Matthieu. 2013. «De quelle matière le concept de sport est-il fait». In Activité physique et exercices spirituels, ed. Denis Moreau & Pascal Taranto. Paris: Vrin, 47-69. Hervieu-Léger, Danièle. 1999. Le pèlerin et le converti: La religion en mouvement. Paris: Flammarion [trad. port. Gradiva]. Jirásek, Ivo. 2018. «Religion and Spirituality in Sport». In Oxford Research Encyclopedia of Psychology. Oxford University Press. https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190236557.013.149. Kaufman, Jean-Claude. 2004. L’invention de soi. Paris : Armand Colin. 2005. «Le corps dans tous ses états: corps visible, corps sensible, corps secret». In Un corps pour soi. Paris: Presses Universitaires de France, 67-88. Klein, Alan M. 1993. Bodybuilding Subculture and Gender Construction. New York: State University of New York Press.
134
Lahire, Bernard. 2004. La culture des individus. Paris: La Découvert. Le Breton, David. 1995. La sociologie du risque. Paris: PUF. Lipovetsky, Gilles. 1992. Le crépuscule du devoir. Paris: Gallimard. Mellor, Philip & Chris Shilling. 1998. «Lorsque l’on jette de l’huile sur le feu ardent: sécularisation, homo duplex et retour du sacré». Social Compass 45, 2: 297-320. Muller, Robert. 2013. «Gymnastique et civilisation : l’exemple des lois de Platon». In Activité physique et exercices spirituels. Paris: Vrin, 170-195 Otto, Rudolf. 1992. O sagrado. Trad. do alemão [1917]. Lisboa: Ed. 70. Pociello, Christian. 1995. Les cultures sportives. Paris: PUF. Queval, Isabelle. 2004. S’accomplir ou se dépasser: Essai sur le sport contemporain. Paris: Gallimard. Sarbacker, Stuart. 2016. «Rudolf Otto and the Concept of the Numinous». Em Oxford Research Encyclopedia of Religion. Oxford University Press. https://doi.org/10.1093/acrefore/9780199340378.013.88. Soulé, Bastien. 2006. «“ Sports à Risque ” et “ sports Extrêmes ” : de quoi parle-t-on?» Loisir et Société / Society and Leisure 29, 2: 321–45. https://doi.org/10.1080/07053436.2006.10707722. Taranto, Pascal. 2013. «Le corps sportif: un corps imaginaire?». In Activité physique et exercices spirituels, in Denis Moreau & Pascal Taranto. Paris: Vrin, 47-69. Teixeira, Alfredo. 2015. Um mapa para pensar a religião. Lisboa: UCP Editora. 2010. «État d’âme, état de corps: uma interpretação da teoria da religião de Pierre Bourdieu (1930-2002)». Theologica, 2ª série, 45, 2: 253-273. Turner, Victor. 1995. The Ritual Process: Structure and Anti-Structure. New York Aldine de Gruyter [1969]. Vigarello, Georges, coord. 2013. História do corpo: I. Do Renascimento ao Iluminismo 1. Círculo de Leitores. Wittgenstein, Ludwig. 1998. Culture and Value. London: Wiley-Blackwell.
135
136
A Ética Aplicada e a Bandeira da Ética José Carlos Lima
137
138
A Ética Aplicada e a Bandeira da Ética José Carlos Lima
Introdução1
O que denominamos hoje por Ética Aplicada resulta de uma reflexão bastante recente. É durante a década de 1970 que este conceito ganha importância e relevo, através do aparecimento de uma série de artigos de autores de origem anglo-saxónica (Cortina Orts & Martínez Navarro, 2008). Estes artigos surgem, nessa época, através de uma reflexão ética marcada, de forma profunda, por um conjunto de temas ligados ao aborto, à guerra justa, à eutanásia ou à bioética. Uma reflexão feita não só no mundo académico, mas também no seio da sociedade civil. Este conjunto de problemáticas remete-nos para uma reflexão da filosofia moral no âmbito prático, isto é, através de uma ética aplicada a um campo específico das distintas atividades humanas. De certa forma, poderemos afirmar que são os progressos da medicina, da genética e o aparecimento das “questões de fronteira”, nos finais do século XX, que irão “salvar” a ética, no sentido de a tornarem uma área da filosofia central nesta reflexão. Isto porque, até ao último quarto do século XX, a reflexão filosófica no campo da moral é marcada pela filosofia analítica, com base na análise dos conceitos e de juízos morais, pouco estimulante e sem ligação ao quotidiano. É também por esta altura que, curiosamente, surge a ética desportiva, a ética aplicada ao desporto. No seu mais recente livro Uma História da Filosofia, Anthony Grayling (2019, p.520), aborda a história da filosofia de forma única e peculiar e refere que a ética aplicada não é mais que uma tentativa de lidar, de forma prática, com os dilemas éticos que surgem na nossa vida quotidiana. Atualmente, a ética aplicada é chamada para ajudar a resolver e a propor respostas às questões já referenciadas, mas também nos âmbitos da mudança de sexo, do suicídio, das células estaminais, da liberdade religiosa, dos direitos dos animais, da pena de morte, da modificação genética, só para citar alguns. Estas “questões fronteira ou fraturantes” irrompem na sociedade civil fruto do desenvolvimento tecnológico, cultural e sociológico e do facto da realidade estar em constante mudança, tornando a ética aplicada uma “ferramenta” fundamental na resolução de dilemas provocados por estes desafios temáticos emergentes. Poderemos afirmar que a missão da ética aplicada é de esclarecer estas "questões” que, muitas das vezes, se transformam, como
1 Este texto (resumo) resulta de uma comunicação realizada no I Congresso de Filosofia do Desporto, o qual dará origem a um texto mais denso a ser publicado mais tarde.
139
referimos, em “questões fraturantes” no seio da sociedade. São fraturantes porque não têm uma resposta consensual e clara. A ética aplicada é chamada a contribuir para este “esclarecimento” e nesta tarefa recebe contribuições ou recursos de diferentes conceções éticas (deontológica, metaética, utilitarista, virtudes…). Portanto, a ética aplicada não se baseia exclusivamente na adoção de uma perspetiva ética, mas antes, em "usar" as diferentes correntes éticas para oferecer respostas e soluções aos problemas com que o ser humano e a sociedade se confrontam. Daqui deriva uma certa complexidade na resposta a esses mesmos problemas e dilemas. Cortina & Martinez (2008, p. 165) argumentam que para desenhar uma ética aplicada numa determinada atividade humana será necessário ter em conta os seguintes elementos: a) a atividade humana específica (médica, desportiva, económica, ambiental...); b) a finalidade da atividade (o seu sentido); c) os valores do contexto da situação e as consequências das diferentes alternativas, que podem ser avaliadas de acordo com diferentes critérios éticos (normativo, utilitário ou de virtude). Deste modo, salientamos dois elementos a ter em conta para definir a ética aplicada que são, por um lado, as características específicas de uma atividade, o seu próprio campo ou área (medicina, genética, desporto, económico, meio ambiente...) e, por outro lado, os seus próprios valores, hábitos ou bens internos dessa atividade. Estes bens específicos (internos) não são mais do que aqueles bens que enriquecem a comunidade, ou seja, o bem comum. No caso do desporto temos valores como a resiliência, o espírito de equipa, a força identitária com as seleções nacionais, para citar só alguns. Estes bens ou valores não são neutros, têm de contribuir ou de acrescentar algo de positivo e de verdadeiro à sociedade. Neste sentido, a ética não é neutra, implica sempre optar pela afirmação do bem. Este diálogo com a realidade, ou com a prática humana, procura responder se a ação humana é boa, justa e responsável (Camps, 2022). É também uma ética interdisciplinar, pois promove o diálogo com outras disciplinas, aprofunda a complexidade da ação humana, razão pela qual muitas vezes as respostas são complexas e não lineares (Valera & Carrasco, 2021). Devido a esta complexidade, esta reflexão deve ser feita e ter a colaboração de especialistas de diferentes áreas como médicos, filósofos, psicólogos, educadores...
Método Para Cortina e Martínez (2008) a ética aplicada possui um próprio método, isto é, uma forma de relacionar princípios éticos com decisões concretas. Para estes autores, este método terá de ter em conta as linhas orientadoras da ética aplicada, a saber: a moral cívica, os seus princípios e valores comuns, que orientam a sociedade, e os valores próprios de cada atividade humana. Para estes autores (2008, p. 158) o método que melhor responde aos desafios da ética aplicada é o da hermenêutica crítica, isto é, a ética aplicada goza de uma singularidade própria aplicada a diferentes áreas da vida social, tendo por base um princípio ético: toda a pessoa é um interlocutor válido, que se "modula" de forma diferente dependendo do ambiente em que essa pessoa se encontra (Brito, 2016, p. 293). Esta expressão “modular” é fundamental para compreender a metodologia da ética aplicada, pois esta tem de ter em conta os valores
140
e as circunstâncias da pessoa e da realidade e, nesse sentido, ela deve-se “modular” perante estes aspetos. Por outro lado, é também uma ética prática, aplicada às atividades sociais, pois a sua missão é descobrir os bens internos através dos quais se desenvolvem os hábitos e as virtudes para alcançar o bem comum. Cada atividade humana tem uma finalidade, ou um objetivo, que é legitimada pela sociedade onde essa atividade se insere, que delibera quais são os meios (legítimos e ilegítimos) para alcançar os fins ou bens últimos dessa mesma atividade. Por exemplo, o bem interno da medicina será cuidar/curar o doente, já na política será o bem comum dos cidadãos. Por tudo o que dissemos, a ética aplicada atua como um "pêndulo" que procura harmonizar e equilibrar princípios éticos, circunstâncias do contexto, características essenciais de uma cultura e também as consequências de uma determinada ação. Em qualquer caso, tanto os princípios como as circunstâncias são aspetos essenciais para a ética aplicada. Não que sejam exclusivos, mas são necessários. A título de exemplo, no caso do aborto, dependendo de cada país e cultura, é estabelecida uma data legal para proteger o embrião. Os princípios e as consequências são complementares. Contudo, o que poderemos denominar por uma "indefinição" não pode ser visto como uma limitação da filosofia moral, diante da reconhecida objetividade da ciência. A ética não é uma ciência exata. A característica fundamental da filosofia em geral, e da filosofia moral em particular, é a dúvida e a suspeita sobre o que é correto, bom, justo e verdadeiro. Ou seja, os aspetos fundamentais que a ética aborda ao refletir sobre um problema ou dilema humano. Para Victoria Camps "um homem que delibera o correto é sábio" (2022, p. 404). Influenciada por Alasdair MacIntyre (2013), a mediação entre teoria - aplicação de modelos éticos - e a prática circunstâncias de uma ação - é realizada através das virtudes e, em particular, pela virtude da prudência. Ao longo da história, por vezes, quando surge um problema moral, a primeira reação do homem, após a procura de uma solução, é criar normas, leis ou códigos de conduta. Estes últimos são, muitas vezes, a forma de transformar a ética em algo semelhante à legislação, com uma distinção: a lei tem força de obrigação, os códigos não. Desde a modernidade, particularmente desde Kant, a ética viu acentuado o seu carácter normativo (por exemplo, a moral religiosa). Mas, à medida que a liberdade individual se afirmou, as questões tornam-se mais complexas e a ética tornou-se - e torna-se - cada vez mais complexa e conflituosa. Uma das consequências do aumento dessa liberdade é a diminuição da ética heterónoma em favor da afirmação da ética autónoma (Camps, 2022). Mas essa autonomia tem de ser responsável, tendo em conta normas, princípios, circunstâncias, consequências e a virtude da prudência, pois é sobre esta que se edifica e se forja a ética aplicada. Este é, sem dúvida, o quadro de referência para o método da ética aplicada.
E no desporto também se aplica uma ética? Já o referimos e de acordo com Cortina & Martinez, (2008), se uma dada atividade social possui um conjunto de características, então poderá existir uma ética aplicada que se aplicará a essa atividade. Sendo o desporto uma atividade humana com características específicas então é legitimo defender a existência de uma ética aplicada ao desporto que se denomina “ética do
141
desporto”, precisamente porque o desporto é uma atividade humana que cumpre determinados requisitos (2008, p. 165), a saber: a) é uma atividade humana com bens internos próprios, fins específicos que enriquecem a sociedade e que esta reconhece como positiva. Este reconhecimento reflete-se nas diversas legislações dos países e/ou em documentos, como por exemplo a Carta Europeia do Desporto (UE, 1992); b) investiga as virtudes e os valores que contribuem para a alcançar os bens internos; c) existência de valores e de uma ética cívica no desporto; d) cabe aos diversos agentes desportivos tomar as decisões no âmbito desportivo com a ajuda de instrumentos como códigos ou as diferentes correntes éticas. Tentaremos responder a estas exigências ou requisitos demonstrando a validade da ética do desporto como ética aplicada ao desporto. Para isso, guiar-nos-emos pela corrente filosófica do desporto mais interessante para o autor do presente artigo, que é o internalismo, defendido por Robert Simón (2015) e Butcher & Schneider (1998), entre outros. Esta corrente argumenta que o desporto tem uma lógica própria, específica que a distingue das outras atividades, incluindo das de natureza recreativa, como os jogos. Para Robert Simon (2000) o desporto é uma atividade socialmente estabelecida, que persegue bens internos e modelos de excelência, sujeita ao cumprimento de regras marcadas por um espírito e uma tradição próprios (Solanes, 2013). Como já referimos, são estes bens que dão sentido e finalidade à atividade desportiva, fazendo com que a sociedade reconheça o desporto como valor e importância social. Poderemos referir como valores internos do desporto a dedicação, disciplina, compromisso, respeito pelo fair play, e um objetivo: alcançar a excelência humana. O desporto é, portanto, uma atividade socialmente estabelecida e reconhecida, promotora da moralidade cívica, possuidora de valores cívicos e virtudes como a verdade, amizade, solidariedade, respeito, resistência, espírito de equipa, (...), que promovem o bom carácter dos cidadãos/ atletas e com princípios reguladores típicos da lógica associada à prática desportiva e que a ética do desporto lhe aplica, determinando o que é bom e mau, o que é certo e errado, dentro desta prática. O desporto é também uma atividade onde "afetados ou ligados", sejam eles dirigentes, atletas, juízes, treinadores, instituições federativas, clubes (...), decidem sobre a sua atividade com a ajuda de determinados instrumentos, sejam regulamentos, códigos de conduta ou regras do jogo. Uma nota final sobre a expressão que define a ética aplicada ao desporto. Como dissemos, as diferentes éticas aplicadas surgiram na década de 1970, associadas aos problemas levantados, fundamentalmente, pela medicina. É por isso que aparecem a ética da medicina, a ética do jornalismo, a ética do trabalho... Os primeiros estudos surgem como "sport ethics" ou "ethics of sport” (J. Lopés Frías, comunicação pessoal, 4 de agosto de 2023), uma vez que a convenção para as éticas aplicadas é "do” ou “da" referente à atividade concreta, o mesmo se aplica ao desporto: Ética do desporto.
142
Ética Aplicada e a Bandeira da Ética A Bandeira da Ética (BE), https://bandeiradaetica.ipdj.gov.pt/ é um processo inovador e único de certificação, de valorização e divulgação das boas práticas e dos valores éticos no desporto, promovido pelo Plano Nacional de Ética no Desporto (PNED), do Instituto Português do Desporto e Juventude, I.P. (IPDJ), dirigido a clubes, escolas, municípios, universidades ou a qualquer outra entidade que promova atividades desportivas e que queiram ver reconhecido e certificado o seu trabalho no âmbito da promoção dos valores éticos através do desporto. A BE tem como objetivos: a) inovar, mediante a criação de uma metodologia para certificação dos valores éticos no desporto; b) garantir uma metodologia flexível e útil para todo o tipo de agentes; c) implementar um processo que identifique e promova boas práticas no desporto; d) promover a visibilidade de iniciativas multiplicáveis e reconhecer a ação dos agentes. O autor deste artigo participou e coordenou a criação da BE. Em 2018 a BE já contava com 800 entidades registadas na sua plataforma inicial, emitindo 21 certificações, em 2020 foi aprovado um novo regulamento da BE que levou a um maior envolvimento das Direções Regionais do IPDJ e dos Governos Regionais da Madeira e dos Açores no que toca à avaliação das candidaturas. Nesse ano foram submetidas, 953 candidaturas que resultaram em 171 certificações, com uma taxa de aprovação de 18%. Em 2021 procedeu-se a novo ajustamento do regulamento da BE. Nesse ano houve 902 submissões de candidaturas e 255 certificações emitidas, com a taxa de aprovação a subir para os 28%. Em 2022 houve 601 candidaturas submetidas e dessas 297 certificações, com taxa de aprovação de 49%. Em termos globais temos 1960 entidades registadas, 3287 utilizadores registados, 4155 candidaturas submetidas, 1182 certificações emitidas com uma taxa de certificação de 28%. As entidades poderão certificar os seguintes objetos: iniciativa, projeto, departamento e entidade (clube, escola, município, universidade…). Para tal, terão de carregar evidências na plataforma (fotos, notícias, documentos, links, entre outras) que atestem o desenvolvimento e implementação do seu trabalho no âmbito da ética do desporto. Evidências nos seguintes âmbitos: a) dimensão ético-desportiva do ponto de vista estratégico, isto é, como trabalham a ética do desporto do ponto de vista estratégico e de gestão, p.e. se tem um código de ética; b) dimensões e sub-temáticas da ética e dos valores no desporto, isto é, se trabalham as áreas da inclusão, do desenvolvimento de competências pessoais e socias através do desporto, da responsabilidade social, da promoção do valores, do papel dos pais (…); c) dimensão ético-desportiva operacional, isto é, se realizam campanhas ou ações de formação sobre ética do desporto, se utilizam recursos pedagógicos (…). Esta metodologia não é mais que um “detonador” para que as entidades sejam estimuladas para a realização de ações no campo da ética. Este processo leva a que os responsáveis pensem, planeiem e executem iniciativas de promoção da ética do desporto. Desde a sua criação até ao presente que o número de entidades registadas, candidaturas submetidas e certificações tem vindo sempre aumentar, em termos globais, tal como atestam os números referidos anteriormente. O que a BE veio trazer foi uma maior “visibilidade” e “iniciativa” nesta área. As entidades com a BE obtiveram um instrumento, ou recurso, para manifestar a sua intencionalidade ética de forma direta, para tratar esta temática. São inúmeros os exemplos que atestam esta afirmação. Através da BE muitas entidades criaram códigos de conduta, documentos de referência para a boa governança, códigos para os pais, colocaram lonas ou tarjas alusivas à ética do desporto,
143
reconheceram gestos de fairplay ou da ética do desporto nas cerimónias de entrega de prémios, criaram um provedor ou responsável pela ética do desporto, realizaram ações de sensibilização e de formação sobre ética do desporto, aplicaram o cartão branco, realizaram seminários, encontros e palestras de embaixadores do PNED, criaram recursos pedagógicos, mascotes, coletes e camisolas com apelo ao fairplay e tantos outros. Basta, para isso, consultar o repositório de boas práticas da plataforma da BE. Uma outra consequência assinalável e quase “revolucionária” que se estabeleceu com o aparecimento da BE foi concretizada por alguns municípios aderentes ou em processo de adesão, através dos seus programas de apoio financeiro aos clubes, em que estabelecem uma majoração financeira para as entidades que são certificados pela da BE. A título de exemplo podem referir-se municípios como: Valongo, Paredes, Torres Vedras, entre outros. Ora aqui está mais uma forma evidente de “induzir” a promoção da ética desportiva. Em jeito de conclusão, é notório que a BE, por um lado, promoveu e tem promovido o desenvolvimento de iniciativas com intencionalidade de implementar os valores éticos no desporto e, por outro lado, deu maior visibilidade de boas práticas da ética aplicada ao desporto. Trata-se, por tudo que afirmamos, de uma metodologia que nos seus poucos anos de vigência tem revelado a sua importância para o desenvolvimento de uma ética aplicada ao desporto em Portugal.
144
Bibliografia Brito, J. (2016). Ética aplicada. Em M. Neves (Ed.), Ética: Dos fundamentos às práticas (1.a edição). 70. Butcher, R., & Schneider, A. (1998). Fair Play as Respect for the Game. Journal of the Philosophy of Sport, 25(1), 1–22. https://doi. org/10.1080/00948705.1998.9714565 Camps, V. (2022). Breve Historia de la Ética. RBA Libros y Publicaciones. Cortina Orts, A., & Martínez Navarro, E. (2008). Ética. Akal. Graying, A. C. (2019). Uma história da filosofia. Lopés Frías, J. (2023, agosto 4). ?Ética del deporte o ética en el deporte? [Comunicação pessoal]. MacIntyre, A. (2013). Tras la Virtud. Espasa. Simon, R. L. (2000). Internalism and Internal Values in Sport. Journal of the Philosophy of Sport, 27(1), 1–16. https://doi.org/10.10 80/00948705.2000.9714586 Simon, R. L. (2015). Internalism and Sport. Em Routledge Handbook of The Thilosophy of Sport. Routledge. Solanes, R. (2013). La ética del deporte en el contexto actua de la filosofía, desde la aportación de la modernidad crítica. Universidad de Valencia. UE. (1992). Carta Europeia do Desporto. Valera, L., & Carrasco, M. (Eds.). (2021). Manual de Ética Aplicada: De la Teoría a la Práctica. Universidad Católica del Chile.
145
146
Como Suits e Huizinga entendem o “play”, ou o “iluminismo lúdico”: notas para além do formalismo e o caso dos jogos de tabuleiro. Paulo Antunes Centro de Ética, Política e Sociedade
147
148
Como Suits e Huizinga entendem o “play”, ou o “iluminismo lúdico”: notas para além do formalismo e o caso dos jogos de tabuleiro*. Paulo Antunes**
Centro de Ética, Política e Sociedade (CEPS-UMinho) [email protected]
Não há democracia sem ideologia, isto é, não há democracia nem educação sem que ao homem seja permitido dar satisfação às necessidades fundamentais: pensar, imaginar e agir o seu pensamento e a sua imaginação através do jogo, do trabalho e da realização amorosa. João dos Santos, 1980, p. 2.
1. Informe introdutório Num evento sobre o desporto e sobre a filosofia do desporto, não podemos deixar de entender como pertinentes duas questões: a primeira, que um regresso ao geral do lúdico e do jogo (ou jogar, play) pode ser benéfico para o debate, pelo menos permite sacudir os problemas que uma extrema especialização por vezes acarreta; a segunda, que a inclusão dos jogos de tabuleiro, nem que seja apenas como um caso de estudo adjacente, pode resultar em frutíferas reflexões, pois os universos do desporto e dos jogos de mesa/cartas também se cruzam1. A dimensão desportiva é assim confrontada, mesmo que mais indiretamente do que de modo direto, com a tradição filosófica da ludicidade para esboçar uma crítica ao formalismo no
* O presente texto completa o que correspondeu à apresentação da parte referente a Suits, cujo título e local de apresentação foram: “Jogo versus Lúdico: para uma (re)definição do ‘game’, ou de como Suits entende o ‘play’”. Primeiro Congresso de Filosofia do Desporto, 2-3 de novembro de 2023, Faculdade de Letras da Universidade Coimbra. Org. Associação de Filosofia do Desporto em Língua Portuguesa. ** Doutor em Filosofia (bolseiro FCT: SFRH/BD/116938/2016) pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), 2021. Pósdoc. pelo projeto exploratório O Interesse Público. Uma Investigação Político-Filosófica/The Public Interest. A Politico-Philosophical Investigation (EXPL/FER-ETC/1226/2021), associado ao Centro de Ética, Política e Sociedade (CEPS), Universidade do Minho, 2023. Contacto: [email protected]. 1 Para maior aprofundamento destas questões, as quais, apesar da referência, não encontrarão aqui o espaço suficiente para o detalhe pretendido, apontam-se duas compilações, também ilustrativas do que vamos deixar de parte: Smith; Roopnarine (2019), e Germaine; Wake (2023).
149
jogo, o qual se tem encontrado latente em diversas perspetivas, impedindo, muitas vezes, a devida atenção ao contexto em causa e o reforço da democratização do meio (esperamos chegar a esta ligação). No que tange particularmente aos jogos de tabuleiro, referimo-nos aos modernos, especificamente a partir do que tem sido conhecido como jogos de tipo “alemão” ou “euro” (Woods, 2012), e não a todos desde que há produção em massa. Os jogos de tabuleiro, assim descritos, não necessariamente exclusivos da Alemanha ou da Europa, vivem atualmente um crescimento imenso na quantidade, qualidade e variedade, e é isso que temos em mente quando estamos a utilizar expressões como “iluminismo lúdico”2. É aí onde pretendemos ir depois de passarmos pelo exemplo formalista de Suits e Huizinga. No entanto, isso não significa que estes mesmos autores, com o impacto do seu pensamento, não estejam nos primórdios de um “iluminismo” teórico do jogo e do jogar, uma vez que, desde que Schiller (1795) recuperou o tema do jogo em pleno Romantismo, eles foram pioneiros na maneira como apareceram e produziram imenso comentário e desenvolvimento posterior. Não obstante qualquer valência da parte de ambos, nem o contexto, o processo, e, sobretudo, a maneira como o jogo e o pensar da estratégia que este pode acarretar (como tem sido apanágio nos últimos vinte/trinta anos de design de jogos de tabuleiro), foram pensados em conjunto. A “viragem estratégica”, como cunhámos num trabalho anterior3, não é resultado de um exclusivo aprimorar de regras ou da formalidade do jogo, mas de um processo social contínuo como esperamos esboçar neste trabalho. Antes de mais, cabe ainda definir o que estamos a tomar como formalismo no jogo, ou o que Malaby (2007, p. 101) apresentou como uma “armadilha” no pensar do jogo e do desporto: a perspetiva de que a natureza essencial de um jogo é o conjunto de regras e que jogar adequadamente envolve obedecer a estas (Nguyen, 2017, p. 9); as regras, ou a estrutura formal, compõem a definição fundamental de jogo (Triviño, 2014, p. 358). O problema disto não é que haja regras nos jogos, aceitamos isso muito bem. O problema reside no modo como o contexto, o processo, onde o que é o jogo se dá e se elabora, é descurado. E daí passa a importar apenas o jogo em si, a sua estrutura intrínseca e não como ali se chegou e como é que as regras refletem algum modo de ser e de estar dos jogadores e de quem os concebe, da sociedade em que se inserem. Este viés, como já se fez notar, julgamos poder ser encontrado, em diferentes dimensões e com distinto compromisso, nos dois autores em foco. Iremos primeiro a Bernard Suits, uma vez que a ordem cronológica é menos importante do que a aproximação ao que vai ser o nosso argumento final. Ainda é tempo de uma (re)apresentação mais formal. Este filósofo americano foi professor de longa data na Universidade de Waterloo, escreveu a sua grande obra, The Grasshopper: Games, Life, and Utopia, em 1978. Esta obra solidificou o seu estatuto como mestre na filosofia (teoria) dos jogos. Posteriormente, presidiu a Inter-
150
national Association for the Philosophy of Sport e continua a ser um autor de interesse tanto para audiências filosóficas quanto para o público em geral. Recentemente, uma sequela publicada postumamente, Return of the Grasshopper (2023), continua a atrair atenção sobre o seu pensamento. Johan Huizinga, historiador cultural holandês, conhecido e influente durante a primeira metade do século xx, foi um pensador que a partir dos anos de 1930 se terá convertido ao “pessimismo cultural” que dantes até criticara. Este “pessimismo” veio a ter assaz influência nos seus escritos finais, onde se encontra o mais conhecido sobre o jogo, o icónico Homo Ludens. Vom Ursprung der Kultur im Spiel (1938). Ele foi, outrossim – tratando-se de facto do que nos motiva a convocação –, o autor que considerou o lúdico, o jogo e o jogar, como um fenómeno cultural incontornável, em rigor, e como se vai atestar, o lúdico era para ele um fenómeno acima da cultura (1938, p. 19). O historiador também cultivou de perto a etimologia e a etnografia, e cruzou-as com aquele estudo. É hora de lançar os dados e ver o que a sorte nos traz.
2. História da cigarra formalista Para uma compreensão mais adequada do formalismo suitsiano, ou de como a proposta de Suits para “game-playing” se adequa ao descrito, a melhor maneira de o expor é ao acompanhar a estrutura que compõe a sua conceção. Para esse efeito, é preciso ainda advertir que extraímos o essencial do que o autor giza sem repescar para aqui o modo como o fez, i.e., o de um diálogo fictício (e bem-humorado) entre uma cigarra e as suas duas discípulas, duas formigas. A cigarra leva na boca a opinião do autor e reza como vamos passar a dar conta. Segundo Suits (1978, pp. 48-49), jogar um jogo envolve participar numa atividade direcionada para alcançar uma situação específica, usando apenas os meios permitidos pelas regras. Essas regras proíbem métodos mais eficientes em favor de menos eficientes, e são aceites exclusivamente porque facilitam a atividade. Suits, ao refinar a sua definição inicial, introduz o termo “lusório” em termos de especificidade lúdica (do latim: Ludus). Assim, ao se referir a “uma atividade direcionada para alcançar uma situação específica”, ele implica “objetivos”, dividindo-os em “pré-lusórios” e “lusórios”4.
2 O que é facilmente atestável por via de uma consulta, mesmo que superficial, ao maior sítio na internet dedicado aos jogos de tabuleiro – Board Game Geek –, espaço que, entre demais possibilidades, também cataloga e permite o debate e coleta estatística acerca do seu objeto, os jogos de tabuleiro/cartas. 3 Foi-o apresentado oralmente numa mesa-redonda e só depois publicado, mas o que interessa é mesmo o que se sublinhou: a “viragem estratégica” no meio dos jogos de tabuleiro permite considerar principalmente a dinâmica deste campo do lazer/lúdico a partir de dois aspetos (explorando o duplo sentido do termo): a direção dos jogos rumo à estratégia (do ponto de vista mais mecânico) e o caráter estratégico da mudança (desde o marketing à adoção de temas mais pertinentes) no meio. Maior aprofundamento pode ser encontrado nas seguintes páginas: Antunes, 2023a, pp. 39-43. 4 “The Lusory means are means which are permitted (are legal or legitimate) in the attempt to achieve prelusory goals”.
151
Ele (1978, pp. 50-51) avança para o que chama de “objetivos pré-lusórios5”, correspondendo a descrições antes ou independentemente de qualquer jogo em que se participe. Segundo ele, qualquer situação alcançável pode ser transformada de maneira inteligente num objetivo de jogo. Ao passar para o “objetivo lusório” de um jogo, Suits (1978, p. 51) sugere que a vitória só pode ser descrita no contexto do jogo específico, designando-a como o “objetivo lusório”. Além disso, ele introduz a ideia de que o objetivo de participar num jogo não faz parte estritamente do jogo, somente um dos objetivos que os indivíduos podem ter, como riqueza ou glória. Não é que não possa ser chamado de “objetivo lusório”, mas apenas como “objetivo lusório da vida”, em vez de associado a jogos. Essencialmente, o “objetivo lusório” é integrado diretamente no jogo e é facilitado por estar no jogo; não o antecede. A participação permite alcançar esse “objetivo”, assim como envolver-se numa atividade específica permite alcançar um estado específico, como a riqueza. Mas se parte dos “objetivos” pode parecer semelhante aos da sociedade, é no contexto do jogo que eles devem ser vistos e como inteiramente distintos devido à sua qualidade “pré-lusória” ou “lusória”. Depois, o autor passa a discutir os “meios permitidos”, que se referem às maneiras que permitem o jogo. Suits (1978, p. 51) articula a seguinte descrição: “[...] os meios lusórios são meios que são permitidos (são legais ou legítimos) na tentativa de alcançar objetivos pré-lusórios” . Existe uma conexão distinta entre esses “meios”, especialmente no contexto normativo, e os “objetivos pré-lusórios”, em oposição aos “objetivos lusórios”. Isso ocorre porque os “pré-lusórios” estão mais preocupados com a abordagem para alcançar o fim, em oposição à adesão às regras para jogar ou vencer. É importante reconhecer que os “objetivos” trazidos para o jogo “antes ou independentemente de qualquer jogo” parecem ter uma importância maior em relação à estrutura permitida pela legalidade dos “meios”. O exemplo de Suits (1978, p. 51) ilustra vividamente quão crucial é essa relação: um método extraordinariamente eficaz para alcançar o objetivo preliminar numa luta de boxe pode ser disparar uma arma de fogo sobre a cabeça do oponente. Consequentemente, este não é um “meio” que esteja alinhado com a legalidade, mesmo além do contexto do jogo. Considerando a legalidade mencionada e o que se espera para o restante do ponto, torna-se evidente que os “meios” estão vinculados à estrutura formal normativa que molda e limita o jogo. Chegados aqui, como os “objetivos” e os “meios”, existem dois tipos de “regras”, sendo um mais associado aos “objetivos pré-lusórios” e outro aos “lusórios”. No que diz respeito ao tipo inicial de regras, a proposta de Suits (1978, pp. 51-52) sobre a “ineficiência” ilumina como estas operam nos jogos: “[a]s regras de um jogo são, efetivamente, proibições de certos meios úteis para atingir objetivos pré-lusórios” , o que significa que essas regras impedem alguém de mirar eficientemente um oponente num jogo onde os tiroteios não são esperados. Essas são as regras que Suits identifica como “regras constitutivas”, que, juntamente
152
com a definição de “objetivo pré-lusório”, estabelecem todas as condições necessárias para jogar o jogo (e, estamos certos, como infra se poderá atestar, para o jogo em si também). Existem “objetivos” e “regras” que permitem o jogo, e, em consequência, surgem “regras de habilidade” – o outro tipo de regras. Estas, ao contrário das “constitutivas”, ainda estão confinadas ao espaço constitutivo e vinculadas ao “objetivo lusório”: alcançá-las requer maior habilidade do que outras, adicionando um elemento dentro da formalidade do jogo. Enquanto a conformidade é estritamente necessária para os “objetivos pré-lusórios” – nada mais – caso contrário, os limites do jogo poderiam ser ultrapassados (como alguém disparar sobre o adversário), levando à cessação do jogo. No final de uma primeira definição, a atenção é voltada para as “regras aceites exclusivamente porque facilitam a atividade (do jogo)”, justificando a transição para o que Suits chama de “atitude lusória” (lusory attitude). Uma atitude que ele insinuou anteriormente (1978, p. 50), visando persuadir o leitor de que esta é “o elemento que unifica os outros elementos numa única fórmula6” , permitindo a articulação bem-sucedida das “condições necessárias e suficientes” para que qualquer atividade se qualifique como “game-playing”. Depois, Suits adensa a sua definição já com a “atitude lusória”, esta é “[...] a aceitação de regras constitutivas apenas para que a atividade possibilitada por tal aceitação possa ocorrer” (Suits 1978, p. 54)7. Isso deve ser (alegadamente) distinguido de uma projeção ou configuração subjetiva do “jogo”; em vez disso, deve ser uma atitude que facilita o “jogo”. Assim, tendo “objetivos”, “meios” e “regras” para o “jogo”, a participação ativa e o envolvimento no jogo não deixam de depender de uma disposição ou “atitude” lúdica; sem esta, não é possível uma participação significativa. Mas tal participação é sempre dada a partir do e com o que aparece como conjunto de regras, regras que devem ser, por essa via, aceites. Posto isto e para parafrasear as definições que em introdução se lançava, o formalismo no que diz respeito ao entendimento suitsiano de jogo assoma no “jogar que envolve obedecer às regras”, atividade sem a qual não há jogo, sendo as regras a “estrutura formal que compõe a definição fundamental” para este. O contexto que envolve toda a situação (de facto, igualmente a das próprias regras e da suposta atitude) de pouco importa, se há “regras” e uma “atitude” perante estas.
5 “The rules of a game are, in effect, proscriptions of certain means useful in achieving prelusory goals”. 6 “[…] the element which unifies the other elements into a single formula”. 7 “[...] the acceptance of constitutive rules just so the activity made possible by such acceptance can occur”.
153
3. Homo ludens, ou a bicefalia formalismo/cultura Em Huizinga não vamos encontrar uma estrutura tão claramente gizada como no autor anterior, teremos de tatear algumas das suas reflexões para toparmos com as provas da nossa acusação. Para ele, o chamado “homo ludens” – o homem/ser humano que é jogador – merece estar no mesmo nível que o homo sapiens e o homo faber – o que sabe e o que cria – (1938, “Foreword”). E é da dignidade desta componente social que se vai ocupar na sua principal e derradeira obra: Homo Ludens, que em português leva o subtítulo de “a origem da cultura no jogo”. O autor entendeu o ato de jogar como algo inato ao ser humano, porém, não o considerou reservado a este, considerou-o inclusivamente presente nos animais (1938, p. 4), desta forma confirmando-o anterior à própria cultura de que faz parte. A cultura terá de possuir em si um caráter inevitavelmente lúdico, especialmente nas suas fases mais primitivas. A descrição destas ideias pode encontrar-se condensada na seguinte passagem da sua obra (1938, p. 3): Uma vez que a realidade do jogo se estende para além da esfera da vida humana, não pode ter os seus fundamentos em nenhum nexo racional, pois isso limitaria a sua existência à humanidade. A incidência do jogo não está associada a nenhuma fase particular da civilização ou da visão do universo. Qualquer pensador pode verificar num relance que o jogo é uma coisa por si só, mesmo que a sua linguagem não possua um conceito geral para o expressar. O jogo não pode ser negado. Pode-se negar, se se quiser, quase todas as abstrações: justiça, beleza, verdade, bondade, mente, Deus. Pode negar-se a seriedade, mas não o jogo8. A defesa de Huizinga vai, como se pode constatar, ainda mais longe do que a garantia apriorística do lúdico, pois, pretende, em igual medida, salvaguardar o jogo como um fim em si, isto é, não como alguma coisa que sirva sempre ou quase sempre outro propósito. O jogo não é a todo o momento um meio para outra aprendizagem, para outra atividade, mas alguma coisa que se pode fazer simplesmente. É uma ideia aceite mesmo quando não haja uma maneira tipificada de o expressar. Tudo será passível de ser negado, menos que, antes de tudo o mais, o jogo existe. O jogo e a brincadeira, como termina a passagem, devem anteceder qualquer seriedade. Huizinga (1938, p. 12), apesar de uma toada mais antropológico-cultural, acaba por confirmar o jogo como “[p]rocedendo dentro dos seus próprios limites de tempo e espaço, de acordo com regras fixas e de uma forma ordenada9” , querendo isto também expressar, pelas palavras do autor, e certamente julgando que serve algum afastamento do meramente formal, que o jogo pode cumprir o papel de ensinar, de uma prática, de regras sociais, de respeito mútuo e convivência. Mas a esta hora, mantendo próxima a definição que gizámos para o formalismo, 154
também já sabemos o que o foco nas regras pode realmente significar. É, num mesmo sentido, que a consciência de “play” que o autor advoga (1938, passim) é voluntária, livre, e transgride o dia-a-dia ao mostrar-se apta a entrar numa espécie de “círculo mágico” (magic circle: um jogo não é um jogo sem a exclusão do que é considerado “normal” no dia-a-dia) quando se insere na atividade lúdica, de jogo. É, pois, capaz de transmitir “alegria e tensão” ao mesmo tempo em que é um fiel cumpridor de regras. Serve, no fundo, como mais um elemento huizingiano para expor o grau que o formalismo na sua conceção pode atingir, o de se saltar de uma esfera contextual para dentro de um “círculo” formal de jogo. Por conseguinte, pode ter um dos seus revérberos na “atitude lusória” suitsiana. É certo que ao se continuar pela linha menos formalista do autor (1938, caps. II e VIII), o jogo assume um lugar significativo do ponto de vista cultural, o qual se pode assumir ter feito parte do desenvolvimento da linguagem, do mito, entre outras questões semelhantes, e ter sido secundarizado ao longo do desenvolvimento das diferentes modalidades socioculturais. Mas não é só o jogo que é fruto do contexto, também Huizinga (1938, pp. 191-193) acaba por confirmar um certo “pessimismo” não desligado do período histórico em que a obra foi escrita e revista, levando-o a entender que o surgimento do “realismo” e da revolução industrial implicavam o desaparecimento do “espírito lúdico”. A propósito deste extravio em relação ao lugar nobre que solicitava para o “play”, o exemplo do desporto enquanto atividade profissional, ou profissionalizável, assoma à crítica huizingiana por causa da suposta perda de uma “qualidade pura de jogo”, de espontaneidade. Para ele (1938, p. 197) o desporto enquanto profissão perdia-se enquanto desporto10. No fundo é de uma forma que se quer cuidar, e não do contexto desta, no qual os jogadores podem precisar de pagar as contas para continuar a jogar o jogo, and so on. Não obstante as questões levantadas (muitas delas serão rebatidas por nós noutros trabalhos), o que mais nos poderá prender à reflexão do historiador é a função do jogo nas suas alegadas formas superiores – o que o próprio também admite ser o que mais o preocupa –, que pode ser duplamente resumida como: “[…] uma competição para algo ou uma representação de algo”. Ao que acrescenta tratar-se de “[…] duas funções [que se] podem unir de tal forma que o jogo ‘representa’ uma competição, ou então torna-se uma competição para a melhor representação de alguma coisa” (1938, p. 13)11.
8 “Since the reality of play extends beyond the sphere of human life it cannot have its foundations in any rational nexus, because this would limit it to mankind. The incidence of play is not associated with any particular stage of civilization or view of the universe. Any thinking person can see at a glance that play is a thing on its own, even if his language possesses no general concept to express it. Play cannot be denied. You can deny, if you like, nearly all abstractions: justice, beauty, truth, goodness, mind, God. You can deny seriousness, but not play”. 9 “It proceeds within its own proper boundaries of time and space according to fixed rules and in an orderly manner”.
155
Esta postura compreensiva não pode deixar de incidir alguma luz sobre o que nos vai ocorrer no próximo ponto, porquanto o delineamento do aspeto e origem lúdico pode incidir precisamente na “representação” do jogo, particularmente se se tiver o contexto, o processo, desta em consideração. Isto acontece porque o formalismo huizingiano estando lá, até previamente ao de Suits, refletindo-se sobretudo no início da sua obra, em especial quando visa as “regras fixas e de forma ordenada”, não deixa, depois, de se mesclar com um esforço (exagerado, porque omnipresente/ metafísico) de compor culturalmente o “jogo”, de lhe dar uma espécie de contexto. O problema é que este, por via de um salto mortal teórico, parece surgir secundariamente. Apesar de tudo, Suits (1977, pp. 117-118) não deixava de ter razão quando criticava a omnipresença do “play” de Huizinga, é, pois, preciso ter cuidado com o que aproveitar do seu texto. Seguramente, para um caminho possível, ter-se-á de extrair o excesso huizingiano, mas também não se acompanhar muito mais do que esta chamada de atenção suitsiana, dado que este filósofo estado-unidense terá seguido a via do aprofundamento formal em vez de aquela que pretendemos. Vamos tentar.
4. Do “Iluminismo lúdico” ao contexto, e um apontamento para as mecânicas e temas É verdade que estes autores, cada um à sua maneira, um como praticamente pioneiro do pensar do jogo no século xx (elevando outros tentames até então ainda incipientes12) e outro na filosofia (não apenas analítica) do jogo, fazem parte do que muito amplamente se entende por primórdios do “iluminismo lúdico”, mas as luzes teóricas que aí estavam a começar (ou retomar), se não fundiram, pelo menos terão deixado de iluminar tanto quanto seria esperado. O nosso “iluminismo” é outro. Não obstante, ainda antes de chegarmos onde temos de chegar, tomemos as rédeas do presente capítulo adensando a gama de analogias. Vamos propor, para melhor identificar o que se passa com os jogos de tabuleiro modernos, a designação ampla de “era do iluminismo lúdico” (entenda-se que este apelido tem valor essencialmente metafórico), proporcionada por uma “viragem estratégica”, ou, dito de outro modo, uma orientação do meio, em sentido geral e quase sempre mais intuída do que concertada, para a retirada gradual do fator sorte (no sentido mais arbitrário que tem no jogo e não tanto no de uma inclusão mitigada) como nos tinha sido dado a provar por tantos jogos do passado. Veremos que esta alteração não acontece por mero acaso (embora, ironicamente, não ande longe dessa possibilidade) e que é responsável pela mudança assinalada. É suposto o epíteto escolhido tratar-se de um designativo mais certeiro do que “renascimento” e do que “idade de ouro” (que em primeira mão chegámos a aceitar noutro espaço), uma vez que o primeiro implica uma ligação mais direta com o passado, pois, sendo verdade que esta
156
também existe, agora rompe mais vezes com este do que o faz “renascer”, e, quanto ao “ouro”, é preciso ter consciência de que ainda podem estar melhores anos para vir, mesmo quando os últimos vinte já são mais prolíficos do que os cem anteriores. A propósito de uma incursão iluminista, seja dito de passagem que é possível encontrar na Encyclopédie setecentista – a maior herança escrita das Luzes – várias entradas para jogos à época conhecidos e as suas regras, tal como uma entrada específica para “jogo” (jeu), onde este aparece descrito da seguinte maneira: “[…] uma espécie de convenção muito utilizada, na qual a habilidade, o puro acaso, ou o acaso misturado com habilidade, de acordo com a variedade de jogos, decide a perda ou ganho, estipulado por esta convenção, entre duas ou mais pessoas” (Diderot; d’Alembert, 1765, p. 531)13. Repare-se que os grandes enciclopedistas não começaram por definir o jogo a partir da sua estrutura formal, aliás, apontaram precisamente para o convencionado, normalmente parte de um processo social14. Duas questões podem ser aclaradas ainda pela descrição enciclopedista, a primeira, de que o enquadramento regulamentar não deixa de fazer parte dos entendimentos do que é o jogo, e, a segunda, que a dimensão mais estratégica dos jogos até então não seria mais bem descrita do que como parte da “habilidade” (que pode implicar apenas saber interpretar melhor, desenhar melhor, ter mais destreza, etc., e não necessariamente uma capacidade melhor ou pior de gestão, planeamento, p. ex., das jogadas, de uma estratégia). Embora esta recuperação seja bastante interessante, aqui ainda estamos preocupados em comparar o exposto com algumas das características do Iluminismo, que também pode, lato sensu, ser entendido como a rutura com o passado e um novo progresso da humanidade. Alguns aspetos a notar são a maneira como as Luzes deslocalizaram o conhecimento que se centrava na Igreja para o indivíduo, este passava a ser o centro do conhecimento, em vez de Deus; como entenderam a Razão na qualidade de propulsora do saber; e como protagonizaram a defesa dos direitos naturais do indivíduo e a defesa de maior liberdade política.
10 Situação que vem a contrastar com um contemporâneo do nosso historiador, Jules Rimet, francês que presidiu a FIFA precisamente de 1921 a 1954, tendo sido um dos principais responsáveis pela existência do campeonato do mundo de futebol: “[a]o contrário de muitos no seu tempo, percebeu que, para ser verdadeiramente democrático e apelar às massas, o desporto internacional tinha de ser profissional” (Silva, 2018). Não estamos a defender a profissionalização dos jogos de tabuleiro, dos jogadores neste caso, mas a atração profissionalizada de mais gente para pensar e redesenhar o meio terá surtido (e em princípio continuará a ser assim) numa parte dos efeitos que julgamos merecer ser estudados. 11 “[A]s a contest for something or a representation of something, […] [t]hese two functions can unite in such a way that the game ‘represents’ a contest, or else becomes a contest for the best representation of something”. 12 Sendo exemplo destes os casos de Simmel (1917), Guardini (1919) ou até o mais completo Buytendijk (1933). 13 JEU […] espèce de convention fort en usage, dans laquelle l’habileté, le hasard pur, ou le hasard mêlé d’habileté, selon la diversité des jeux, décide de la perte ou du gain, stipulés par cette convention, entre deux ou plusieurs personnes.” 14 Pode-se sempre consultar D’Agostino (1981) para uma versão mais recente e que releva o papel de um “ethos” no jogo, apelando igualmente ao convencionado.
157
Sabe-se, no entanto, que o próprio Iluminismo não ficou logo conhecido desta maneira, demorou algumas gerações até firmar o epíteto e o que o período histórico que descrevia significava, muitos foram os pensadores que o viam como umbilicalmente ligado aos resultados da Revolução Francesa, uns elogiosamente, mas a maior parte de modo crítico15. É um período que – independentemente de não estar isento de críticas – estava empenhado em abrir, sem obstáculos, um inquérito teórico e, na medida do possível, prático, não coibido por dogmas ou pela autoridade advinda de fontes que não suportassem o quesito. Com esta recuperação, cremos estar em condições de dilucidar o que a “estratégia” tem significado para o lúdico, para os jogos modernos, e o que pode reciprocamente resultar em novos desenvolvimentos sociais. Não vamos tão longe quanto a apelar a um “sapere aude” (Kant, 1784, p. 161), mas podemos apelar a um “ousa jogar” (ludere aude). Hoje, nos jogos de tabuleiro podemos encontrar um rompimento com os dogmas instalados no meio lúdico – embora ainda haja quem só jogue os tradicionais ou modernos pré-“viragem”, mesmo quando até já sabe da existência de novos, ou quem no trabalho de edição replique insistentemente as mecânicas mais rebatidas (como a “lança e move”, roll and move, ou a “eliminação de jogador”, player elimination 16). Pode não se tratar de uma Razão propulsora, mas a consciência e a compreensão que a estratégia implica numa partida, aproxima os jogadores de algo que podemos chamar, sem leveza, de “racionalismo da jogabilidade”, i.e., os participantes são compelidos dentro de um quadro de constrangimentos prévia e comummente aceites a não deixar os seus planos ao acaso se quiserem competir realmente. O recentrar do jogo nos jogadores, em vez de na arbitrariedade proporcionada pelo próprio jogo, permitiu que o jogo deixasse de ser uma “luck fest” conduzida por dados ou outros apetrechos favoráveis à aleatoriedade (p. ex., como acontece com a “roda giratória”, spinner), o jogador pensa verdadeiramente o jogo como só fazia em poucos exemplos anteriores à “viragem”. E se a defesa de maior liberdade política pode parecer forçar de mais o que já se terá forçado na comparação com o Iluminismo, o meio dos jogos oferece a qualidade reflexiva do meta-jogo (no sentido de o jogo permitir ir para além de si próprio a partir do que apresenta), do horizonte temático e artístico de cada um, i.e., existem jogos que tratam temas como os da liberdade, entre tantos outros tópicos pertinentes (p. ex., Freedom: The Underground Railroad, jogo que implica que, cooperativamente, os jogadores ajudem escravos nos EUA a libertar-se por uma das rotas da época para o efeito, tudo representado num mapa e outros elementos 17). No fundo, também se pretende antecipar o seguinte: Deve-se saber o que se procura nos filósofos antigos ou na filosofia de qualquer outro período definido, ou pelo menos deve-se saber que em tal
158
filosofia se encontra um certo estágio de desenvolvimento do pensamento [Entwicklungsstufe des Denkens] e nesta [filosofia] apenas são trazidas para a consciência as formas e necessidades do espírito que estão dentro dos limites de tal estágio. No Espírito do tempo mais recente, dormem ideias mais profundas que, para despertar, requerem um ambiente e uma presença diferentes dos pensamentos abstratos, vagos e cinzentos dos velhos tempos (Hegel, 1833-1836, pp. 67-68)18. Sem dúvida que o homo ludens proposto por Huizinga passava por um período de “pensamentos cinzentos dos velhos tempos”, mas não se quer com esta passagem entender que a nova ludicidade já se encontrava inscrita nos tempos, senão que pode ainda estar um pouco abafada por tanto ruído mais formal do que social. As ideias transgressoras e de rutura não são sempre desde o primeiro dia percebidas (foi preciso passar muito tempo para que os designers de jogos começassem a debruçar-se nos ensinamentos do jogo Acquire, lançado nos anos de 1960). Para isto até se pode recorrer a outros casos que terão sido semelhantes na sua diferença, por exemplo, se se remontar à “idade de ouro” do cinema e da banda-desenhada percebe-se que o momentum destes géneros culturais se demarcou ainda no século XX, mas nenhum deles foi logo no início, apesar de próximo disso, o que também vem confirmar que a cultura não anda toda à mesma velocidade. O novo foco na estratégia faz parte de um processo social, aliás histórico, na maneira como obrigou os alemães a fugir dos jogos de conflito e de guerra no pós-II Guerra Mundial (tendencialmente mais propensos a elementos aleatórios) e isso resultou numa maneira de ver o jogo bem mais orientada para o esforço individual e, por vezes, coletivo, de autossuperação do(s) jogador(es), mesmo quando ligado a um cenário competitivo e de interação19. 15 Aqui fica o exemplo de uma descrição do processo intelectual pelo qual se passou: “[o] Iluminismo, assim chamado, durante o início do século XIX, não era familiar para um falante de inglês. É uma palavra moderna. Quando os falantes de inglês começaram a precisar de uma palavra para descrever o clima de opinião na era da Enciclopédia, eles usaram a palavra alemã Aufklärung, prova suficiente de que a noção ainda não tinha chegado às histórias populares das escolas. Nos primeiros três quartos do século XIX eles não pensaram aquela época como uma era iluminada. A maioria deles pensou nela com opróbrio como a era que terminou num Némesis de guilhotina e terror.” - “The Enlightenment, by that name, was not a thing that any English speaker knew during the earlier nineteenth century. It is a modern word. When English speakers first began to need a word to describe the climate of opinion in the age of the Encyclopaedia, they used the German word Aufklärung, evidence enough that the notion had not yet reached the popular histories for schools. For three-quarters of the nineteenth century they did not think of the age as an enlightened age. Most of them thought of it with opprobrium as the age which ended in a nemesis of guillotine and terror.” (Chadwick, 1975, p. 144). Uma vez que não se trata aqui de aprofundar este período histórico, mais do que serve a nossa analogia, veja-se um clássico do ponto de vista da filosofia sobre o assunto, Cassirer (1932), e uma crítica do que representou, “New German Critique”, 1987. 16 Para maior noção do que as mecânicas de jogo representam e como se aplicam, vide Engelstein; Shalev, 2019, e para as duas referidas, respetivamente: pp. 229 e 435. 17 Não obstante a indicação, como vamos continuar a fazer, temos tomado a decisão de não ilustrar em demasia os argumentos esgrimidos com jogos modernos já existentes, serve esta postura para não sobrecarregar um artigo que pretende apresentar uma proposta ainda que descritiva, com base filosófica, não estrita e fundamentalmente descritiva. 18 “Man muß wissen, was man in den alten Philosophen oder in der Philosophie jeder anderen bestimmten Zeit zu suchen hat, oder wenigstens wissen, daß man in solcher Philosophie eine bestimmte Entwicklungsstufe des Denkens vor sich hat und in ihr nur diejenigen Formen und Bedürfnisse des Geistes zum Bewußtsein gebracht sind, welche innerhalb der Grenzen einer solchen Stufe liegen. In dem Geiste der neueren Zeit schlummern tiefere Ideen, die, um sich wach zu wissen, einer anderen Umgebung und Gegenwart bedürfen als jene abstrakten, unklaren, grauen Gedanken der alten Zeit.” 19 Há textos interessantes para ler sobre este tipo de relação, Altice (2019) será um exemplo.
159
Para que não passemos por um artigo que desaguou nos jogos de tabuleiro modernos sem escrever o que quer que seja sobre a inovação das mecânicas de jogo e como estas se podem ligar ao arrazoado presente, comecemos por buscar uma das mais amplas e populares, como é o caso da “construção de motores” (engine building20) . Assim se perfaça um exemplo à guisa de meta-jogo. Esta mecânica de jogo representa um tipo de jogo onde os jogadores constroem gradualmente um sistema, normalmente com vista a gerar recursos, dinheiro, ou maior pontuação. É típico o “motor” tornar-se mais eficiente à medida que o jogo avança, levando a uma sensação satisfatória de realização por parte de quem joga quando a máquina começa a funcionar cada vez mais abundantemente. A tendência desta mecânica pode servir para ilustrar o “progresso” ou, ligando ao pensamento filosófico, a “ideia de progresso”, recordando com isto como optimistamente foi divulgada no tempo das Luzes: a humanidade – neste caso, o jogador e o que este dispõe – encontra-se em constante desenvolvimento favorável, apenas diferindo a velocidade a que o faz21. O jogo, como se recuperava de Huizinga, pode apresentar duas funções fundamentais: a competição para algo ou a representação de algo, e se a “construção de motores” pode significar a competição entre diferentes jogadores (ora, não se tratando de um jogo cooperativo), pode representar tematicamente a concorrência empresarial, internacional, etc., ou seja, já entramos no que na esteira do holandês era a união de ambas e o jogo representar uma competição, ou então tornar-se uma competição para a melhor representação de alguma coisa. O contexto enforma a mecânica e as próprias regras, estas não surgem no vazio e de algo que é per se. Esta é uma das questões mais importantes para o jogo moderno, a “viragem” foi despoletada pelas mecânicas, pelos puzzles a montar e a estratégia que se tinha de gizar para sair por cima do exigido. Contudo, é com o entrelaçamento temático que o “boom” se confirma e a estratégia se adensa e ganha maior significado. Ou seja, tudo se mostra como parte de um processo social, historicamente enraizado, e não como parte de uma “atitude” ou porta de entrada para algum “círculo” cuja “magia” se refere precisamente à anulação do envolvente e do antecedente, quando não até do que advenha22. Se hoje se pode viver alguma coisa como o “iluminismo lúdico”, isso acontece porque a rutura (não total) com o tipo de jogo do passado (não apenas com as regras anteriores) tem produzido novas maneiras de pensar o jogo, o que este representa e como pode influenciar o modo de estar social, já influenciado por este, como as dinâmicas culturais se podem transformar, e no plano socioeconómico se conjuga o tempo de lazer. Outras dimensões sociais podem ter a ganhar com a representação de via lúdica e o lúdico com a maneira como interage com os restantes fatores da sociedade.
5. Conclusão: razão, ludicidade e processo social, um esquisso Estamos em crer que no nível civilizacional atual, a humanidade não pode deixar de associar o desenvolvimento lúdico ao papel que este ainda pode ter na democratização do meio, no
160
“fair play”, e nas “representações” e “reflexos sociais”, e além destes, i.e., em procurar alargar as condições sociais mais evoluídas da mesma maneira como um jogador se pode sentir igual a outro, pelo menos enquanto a partida não começa (o contexto de cada um já os diferencia, mas isso pode passar despercebido e até pode nem contar muito quando surge algum vencedor improvável). Se o homo ludens leva isto em conta, pode sacudir não apenas o “pessimismo” dos ombros, embora não para pôr no seu lugar as ilusões de “progresso metafísico”, como as expressas no período iluminista original (a nossa analogia acabou por revelar os seus limites), mas sacudir igualmente o formalismo23, com vista a desfrutar, desenhar, e o mais, de um jogo (p. ex., pós-Catan, um dos jogos referência para a chamada “viragem estratégica”) que pode ter algum impacto para além do que se passa na mesa em que é jogado24. É isto o que se pretende reforçar desde o início com a nossa epígrafe, excerto inadvertidamente presente no meio de um texto sobre saúde mental, ou melhor, quando à partida não se esperava uma tirada semelhante, surge, afinal sem acaso, a possibilidade de o jogo contribuir numa relação com a democracia, a ideologia, a educação e as necessidades fundamentais, e o “pensar, imaginar e agir”, tornando certo que não se pode ficar por um plano pré-cultural ou irracional do lúdico, e, sobretudo, meramente formal. O “iluminismo lúdico” surge como superação e evolução de um processo (do pensar do jogo também), na verdade, confirmado pelas mediações sociais e pela complexidade lúdica atual, não comparável com qualquer elemento lúdico que se pense apenas pela sua simplicidade ou estreme formalidade (como categoria abstrata, despida do concreto histórico). Com esta espécie de estudo de caso entendemos poder ter contribuído para o início (ou melhor, o reforço) de uma crítica do formalismo do jogo e no desporto. A maneira como aqui
20 Trata-se de uma mecânica que tem o seu estatuto reconhecido, embora não da mesma maneira que as demais aqui indicadas, uma vez que depende não do que vale por si, mas da maneira como outras se conjugam em seu favor (Engelstein; Shalev, 2019, pp. 328 e 524). 21 Sentimento que fica bem patente num dos discursos mais conhecidos da época: “[…] a razão reconheceu finalmente o caminho que deve seguir, e agarrou o fio que a impedirá de se desviar. Estas primeiras verdades, estes métodos espalhados entre todas as nações, e levados para ambos os mundos, já não podem ser aniquilados; a raça humana já não vai ver de novo estas alternâncias de escuridão e luz, às quais há muito se acredita que a natureza a condenou eternamente. Já não está no poder dos homens apagar a tocha acesa pelo génio, e só uma revolução no globo poderia trazer de volta as trevas.” - “[…] la raison a enfin reconnu la route qu’elle doit suivre, et saisi le fil qui l’empêchera de s’égarer. Ces vérités premières, ces méthodes répandues chez toutes les Nations, et portées dans les deux mondes, ne peuvent plus s’anéantir; le genre humain ne reverra plus ces alternatives d’obscurité et de lumière, auxquelles on a cru long-temps que la nature l’avoit éternellement condamné. Il n’est plus au pouvoir des hommes d’éteindre le flambeau allumé par le génie, et une révolution dans le globe pourroit seule y ramener les ténèbres” (Condorcet, 1782, p. 390). 22 Como dizia com alguma mordacidade e sabença um padre anglicano do século XVII: “[s]e quiseres ler a disposição de um homem, vê-o jogar, e aprenderás mais sobre ele numa hora, do que em sete anos de conversa [...].” – “If you would read a man’s Disposition, see him Game, you will then learn more of him in one hour, than in seven Years Conversation [...].” (Lingard, 1696, p. 39). Podendo ser um exagero, a ponta de verdade que aí se revela nada tem que ver com a estreiteza das regras do jogo em si, isso é certo; só se for à maneira como o jogador reage perante estas, mas isso não pertence estritamente às ditas. 23 Dissociamo-nos de um “otimismo” como patente nas propostas de “teodiceia” ou de “filosofia da história” setecentistas. 24 E para ilustrar o que estamos a finalizar, pode servir uma sentença platónica, algures perdida no meio das suas “leis”: “[t]odo o homem e mulher deveria passar a vida dessa maneira, a jogar os jogos mais nobres possíveis e pensar neles de uma maneira oposta à maneira como são pensados agora.” - “Every man and woman should spend life in this way, playing the noblest possible games, and thinking about them in a way that is the opposite of the way they’re now thought about.” (Platão, 1988. VII, 803c [p. 193]).
161
entendemos o “play”, jogo ou jogar (o inglês permite variações e Suits até usa muito “gameplaying”), é distinta dos nossos dois autores, pretende ser mais do que um complexo de regras, e parte de um processo social, sem pejo na exortação de uma maior democraticidade social, ora, além da mesa ou do campo e também nestes25. O jogo pode ser e é muito mais do que um jogo; e os exemplos disto podiam ser muitos, mas, por agora, fica o esboçado.
25 Já no artigo que publicámos no ano passado (Antunes, 2023b, pp. 64-67) se procurava tatear as ligações possíveis entre a virada para a estratégia dos jogos de tabuleiro e o “interesse público”, do ponto de vista das teorias deste e de uma sua efetivação real na sociedade (para um levantamento sucinto desta temática político-filosófica: Antunes, 2024). Mas é o caso para se acrescentar que, nos anos de 1970, quando Suits escrevia, já o famoso “véu de ignorância” rawlsiano (Rawls, 1971) influenciava muitas conceções, e não querendo estabelecer uma ligação direta, pode ser ainda dito que é muitas vezes isto o que o formalismo acaba por trazer para o jogo, uma redução do contexto a um momento que se entenda chave, porém, incompleto, inconsequente e redutor. O dito “véu” visava proporcionar o melhor cenário hipotético para o estabelecimento de mais adequadas condições de justiça, mas sem que o agente da escolha pudesse ser influenciado pelo seu contexto social e económico, ora, tratava-se de formalismo político, por sinal, problema que grassava por aqueles anos (se não quisermos seguir, e não queremos neste trabalho, o rasto que vem até ao nosso tempo).
Bibliografia Altice, N. (2019). “Joy Family: Japanese Board Games in the Post-War Showa Period”. Proceedings of DiGRA [20 pp.]. . Antunes, P. (2023a). “A Razão no homo ludens: o caso de uma “viragem estratégica” nos jogos de tabuleiro modernos”. Vértice (II Série), 207, Abril-Maio-Junho, pp. 37-46. Antunes, P. (2023b). “‘Public Interest’ and the (Potential) Social Impact of Board Games: The Role of the ‘Strategic Twist’, Definition and Scope”. International Journal of Games and Social Impact, 1 (2), pp. 57-75. ISSN 2975-8386. DOI: https://www.doi. org/10.24140/ijgsi.v1.n2.03. Antunes, P. (2024). “Interesse público”. In: J. Franco; P. Jerónimo; S. M. Alves-Jesus; T. C. Moreira (coords.). Dicionário Global dos Direitos Humanos, https://dignipediaglobal.pt/ . ISBN: 978-989-9012-74-5]. [no prelo] Board Game Geek. . Buytendijk, J. (1933). Wesen und Sinn des Spiels. Berlin: Kurt Wolff Verlag. Cassirer, E. (1932). Die Philosophie der Aufklärung. Hamburg: Felix Meiner Verlag, 2007.
162
Chadwick, O. (1975). The Secularization of the European Mind in the Nineteenth Century. Cambridge: University Press, 2000. Condorcet, M. de (1782). “Discours prononcé dans l’Academie Française, le jeudi 21 Février 1782, a la réception de M. le marquis de Condorcet”. Œuvres de Condorcet publiées par A. Condorcet O’Connor. Tome 1. Paris: Firmin Didot Frères, Libraires, 1847-1849, pp. 389-415. D’Agostino, F. (1981). “The Ethos of Games”. Journal of the Philosophy of Sport, 8 (1), pp. 7-18. Diderot, D.; d’Alembert, J. R. (1765). Encyclopédie, ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers. Tome VIII. Neufchastel: Samuel Faulche & Compagnie, Libraires & Impriméurs. Engelstein, G.; Shalev, I. (2019). Building Blocks of Tabletop Game Design. An Encyclopedia of Mechanisms. 2nd ed. Boca Raton/ London/New York: CRC Press, 2022. Germaine, C.; Wake, P. (eds.), (2023). Material Game Studies. A Philosophy of Analogue Play. London, etc.: Bloombury. Guardini, R. (1919). “Liturgy: Playful and Serious” [Vom Geist der Liturgie]. In H. R. Kuehn (sel.). The Essential Guardini. An Anthology of the Writings of Romano Guardini. Chicago: Liturgy Training Publications, 1997, pp. 147-154. Hegel, G. W. F. (1833-1836). Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, I [1805-1806]. Werke [in 20 Bänden], vol. 18, Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1986. Huizinga, J. (1938). Homo Ludens. A Study of the Play-Element in Culture. London: Routledge & Kegan Paul Ltd., 1949. Kant, I. (1784). “Beantwortung der Frage: was ist Aufklärung?”. Immanuel Kant’s Sämmtliche Werke. In Chronologischer Reihenfolge. Herausgegeben G. Hartenstein. Vierter Band. Leipzig: Leopold Voss, 1867, pp. 159-168. Lingard, R. (1696). A Letter of Advice to a Young Gentleman Leaving the University Concerning His Behaviour and Conversation in the World. New York: McAuliffe y Booth, 1907. Malaby, T. M. (2007). “Beyond Play. A New Approach to Games”. Games and Culture, 2 (2), April, pp. 95-113. Mayer, B. (2013). Freedom: The Underground Railroad. Academy Games, Inc. “New German Critique” (1987). New German Critique, 41, Special Issue on the Critiques of the Enlightenment (Spring - Summer). Nguyen, C. T. (2017): “Philosophy of games”, Philosophy Compass, 12 (8), e12426 [18 pp]. Platão (1988). The Laws of Plato. Transl., with notes and an interpretive essay, by T. L. Pangle. Chicago and London: The University of Chicago Press. Rawls, J. (1971). The Theory of Justice. Rev. ed. Cambridge, Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, 1999. Sackson, S. (1964). Acquire, 3M. Santos, J. dos (1980). “Perspectivas actuais da saúde mental”. Introdução para um colóquio realizado em Lisboa, a 26 de Maio, 1980 (não publicado). [Apud Branco, Maria Eugénia Carvalho e (2010). João dos Santos: Saúde Mental e Educação. 2.ª ed. Lisboa: Coisas de Ler: 226.] Schiller, F. (1795). On the Aesthetic Education of Man [Über die ästhetische Erziehung des Menschen in einer Reihe von Briefen]. Transl. by R. Snell. Mineola, New Tork: Dover Publications, Inc., 2004. Silva, R. P. (2018). “Jules Rimet. O homem que deu o nome à taça”. É Desporto. . Simmel, G. (1917). “'Die Geselligkeit (Beispiel der reinen oder formalen Soziologie)”. In Simmel. Grundfragen der Soziologie (Individuum und Gesellschaft). Sammlung Göschen, Bd. 1101. 3, unveränderte Aufl. Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1970, pp. 4868. Smith, P. K.; Roopnarine, J. L. (eds.), (2019). The Cambridge Handbook of Play. Developmental and Disciplinary Perspectives. Cambridge University Press. Suits, B. (1977). “Words on Play.” Journal of the Philosophy of Sport, 4 (1), pp. 117-131. Suits, B. (1978). The Grasshopper: Games, Life and Utopia. Canada: Broadview Press, 2005. Suits, B. (2023). Return of the Grasshopper. Games, Leisure and the Good Life in the Third Millennium. Yorke, C. C.; Frías, F. J. L. (eds.). London and New York: Routledge. Teuber, K. (1995). Catan, Settlers of. Kosmos. Triviño, J. L. P. (2014). “Formalism.” In: C. R. Torres (ed.). The Bloomsbury Companion to the Philosophy of Sport. London etc.: Bloombury, pp. 358-359. Woods, S. (2012). Eurogames. The Design, Culture and Play of Modern European Board Games. Jefferson, North Carolina, and London: McFarland & Company, Inc., Publishers.
163
164
Propostas de reflexão sobre algumas questões éticas na lógica de Mercado aplicada ao Desporto. Rui Pereira Professor Associado da Universidade Lusófona - Centro Universitário do Porto Investigador do Centro de Investigação em Comunicação Aplicada e Novas Tecnologias
165
166
Propostas de reflexão sobre algumas questões éticas na lógica de Mercado aplicada ao Desporto. Rui Pereira
Professor Associado da Universidade Lusófona - Centro Universitário do Porto Investigador do Centro de Investigação em Comunicação Aplicada e Novas Tecnologias (CICANT) [email protected]
Ontologia Social Crítica e Interpretacionismo – Internalismo amplo Num sentido amplo, o presente trabalho inscreve-se na ideia de uma ontologia social crítica (que aspira a produzir uma classe de interpretações possíveis para a relações sociais numa perspetiva histórico-filosófica, cruzando as grandes questões da filosofia social e política com a contingência da sua concreta historicidade( eg. Pereira, 2019; Sáez Rueda; Pérez Espigares & Hoyos Sánchez, (eds.), 2011). Num sentido restrito, o trabalho adota a perspetiva “interpretacionista” em Filosofia do Desporto, ou seja, uma ideia que “mantém o aspecto crítico do formalismo e o social do convencionalismo [ou institucionalismo]”, como aponta Lopéz-Frías (2011, p. 16), na perspetiva de uma filosofia hermenêutica aquí herdada do “internalismo amplo” de Robert L. Simon (2015), inscrito na ideia de uma pós-filosofia que se realiza no campo dos Cultural Studies (Grácio, 2023), entendendo o fenómeno desportivo como parte indelével da cultura. Trata-se de uma abordagem desta articulação à luz da filosofia moral de Michael Sandel (2016 [2012]) sobre as relações entre o mercado/capital e a vida social segundo o problema das finalidades e funções de cada esfera social, com a tese fundamental, por parte deste filósofo norte-americano nosso contemporâneo, de que a penetração do mercado em todas as esferas da vida das nossas sociedades é nociva em muitas delas, uma vez que a lógica do mercado subverte a natureza, o propósito e a função social dessas mesmas esferas. Daí a relevância da consideração de Aljandro Dolina, escolhida como epígrafe desta comunicação: “Jogamos para cumprir os propósitos nobres do universo’”.
167
A teorização das “fronteiras morais” Na síntese de Adrian Walsh (2015, p 411), os problemas centrais em filosofia do desporto, na relação entre este e o comércio ou o negócio, têm uma natureza tanto ética quanto política. Constituem campos de debate e pensamento, temas como “em primeiro lugar, a preocupação acerca do que possam ser aspetos positivos e negativos a revolução comercial do desporto?” e em segundo lugar, saber se “a influência do comércio pode minar o espírito do desporto?”, se ”pode de facto corromper o desporto?” e “se sim, como?”. Em terceiro lugar, saber se “o desporto moderno envolve a exploração num qualquer sentido real e significativo?”. De onde se segue, para o mesmo autor, questionar se a “mercadorização deve ser constrangida? Se alguns aspetos ou elementos do desporto devem permanecer fora das fronteiras do mercado?” e “finalmente qual o papel, se algum, deve o Estado desempenhar na vigilância das fronteiras morais da comercialização do desporto”? De acordo com a classificação proposta ainda pelo mesmo autor, Walsh (2015, pp.411-12), o problema da industrialização e comercialização do desporto encontra interpretações filosóficas favoráveis, contrárias e intermédias. No primeiro caso, apontam-se entre as vantagens, “para os atletas de elite” ser permitido continuar a desenvolver as suas capacidades sendo financeiramente gratificados por isso, tal como beneficia os adeptos que dispõem de excelentes instalações para poderem assistir aos acontecimentos desportivos, excelentes transmissões televisivas que melhoram o entretenimento e elevam os padrões de jogo”. Em termos de correntes filosóficas, este apoio é sustentado quer numa perspetiva utilitarista, pelos resultados que produz, como os mencionados, assim como numa argumentação de tipo nozyckiano segundo a qual, qualquer contrato livremente estabelecido entre partes é válido, em observância da principiologia liberal (“libertarian”, no original). Em oposição, emerge a chamada “crítica de esquerda” em filosofia do desporto, que enfatiza, acerca da mercantilização “a inobservância de ideais não-comerciais […] a perda da ligação com significações comunitárias do desporto, a putativa exploração de atletas oriundos de nações em desenvolvimento e a aparente coisificação destes desportistas de elite, homens e mulheres”. Distinguem-se, neste campo de pensamento, os enunciados em favor da eliminação pura e simples do negócio em torno do desporto, por um lado, e a observação menos extrema que, por outro lado, remete para a reflexão sobre até que ponto deve ser regulamentado o surgimento e o papel do mundo dos negócios no seio das práticas desportivas. Entre aquelas duas polaridades situa-se o que Adrian Walsh (op. cit., p. 412) designa por corrente das “fronteiras morais”, na qual filia, entre outros, o pensamento de Michael Sandel que neste trabalho se adotara como referencial teórico. Decantando-se por perspetivas diversas, os teorizadores das “fronteiras morais” argumentam pela necessidade de regular “quer os bens ao dispor do mercado, quer os tipos de coisas que podem fazer-se com esses bens uma vez comprados ou vendidos no mercado”. Se, por um lado, em filosofia política é conhecida a objeção às teses liberais como as emblematizadas por Nozyck, nomeadamente a de que nem sempre os contratos são assinados 168
livremente pois as desigualdades de posição social, económica, laboral e até cultural são socialmente desequilibradas, daí surgindo a necessidade de regulações, por outro lado, conhecem-se as objeções, no mesmo campo de pensamento, à ideia habitualmente associada com a esquerda, segundo a qual qualquer constrangimento à liberdade de contrato é, em si mesmo, uma privação da liberdade geral da vida em sociedade. O presente trabalho não visa elaborar sobre estes dois polos opostos. Centra-se, antes, nas questões levantadas pela filosofia das “fronteiras morais” e mais especificamente nas teses de Sandel, ele próprio um grande adepto de desporto, em especial do basebol, que ocupam um conjunto significativo de páginas na sua reflexão sobre os limites do mercado (Sandel, 2012, pp. 85 a 92).
Michael J. Sandel: A tese geral Para o filósofo norte-americano (Sandel, 2016 [2012], p. 12), a mudança mais decisiva ocorrida nas três últimas décadas não foi o aumento da ganância, mas a extensão dos mercados, e dos valores de mercado, a esferas da vida com as quais nada têm a ver. […] A chegada do mercado e do pensamento nele centrado a aspetos da vida tradicionalmente governados por outras normas é um dos acontecimentos mais significativos da nossa época. Para Sandel, (op. cit., p. 16) existe um grande debate em falta na política contemporânea, a saber, aquele que diz “respeito ao papel e ao alcance dos mercados”. Sandel (2016 [2012], p. 20) exemplifica com bens e valores não comercializáveis (“não permitimos que os pais vendam os filhos ou que os cidadãos vendam os votos”). E um dos motivos disso, “para ser franco, comporta nada mais nada menos do que um julgamento moral: acreditamos que vender essas coisas significa uma maneira errada de lhes atribuir valor, cultivando atitudes negativas”). Esta reflexão culmina na pergunta: “Queremos uma economia de mercado ou uma sociedade de mercado?” (Sandel, 2016 [2012], p.16). O autor levanta duas grandes objeções a uma mercantilização generalizada da experiência e da sociedade humana. A primeira tem a ver com a “desigualdade” e preconiza que, numa sociedade em que tudo está à venda, a vida fica mais difícil para os menos afortunados, i.e., a desigualdade incrementa-se (ver Sandel, op. cit. pp. 13-14). A segunda objeção tem a ver com o que Sandel designa por “corrupção”, que não considera apenas “uma questão de suborno e pagamentos ilícitos”, mas sim, num sentido mais lato, a degradação de um bem ou de uma prática social. Michael Sandel (2016 [2012], p.14) centra-se no que considera “a natureza corrosiva dos mercados” porque estes não se limitam a distribuir bens; eles também expressam e promovem certas atitudes em relação aos produtos trocados”. Para ele (op. cit., p. 99), “se reconhecermos 169
que a mercantilização de um bem pode alterar o seu significado” respostas como estas estarão dependentes, sustenta, “do caráter e do objetivo da atividade em questão e das normas que a definem” (Sandel, 2016 [2012], p.100).1 Ao mesmo tempo que considera aplicável a lógica do mercado às transacções de bens (coisas) com um valor estritamente material (não se venderia uma casa por ordem de chegada dos candidatos a comprá-la, mas sim pela oferta mais vantajosa, exemplifica nesta sua obra), Sandel agrega uma matização da sua tese geral que apresenta, sob a formulação de uma “corrupção atenuada”, do seguinte modo: “podemos identificar um vínculo entre os casos óbvios, em que a troca monetária corrompe o bem que está a ser comprado, e os casos polémicos, nos quais o bem sobrevive à venda, mas pode ser considerado com isso degradado, corrompido ou diminuído” (Sandel, 2016 [2012], p.106).
O Moneyball ou a tese da contenção aplicada ao desporto Como se disse, um grande adepto de basebol, Michael J. Sandel recua no tempo e recorda os primórdios da mercantilização da sua modalidade de predileção, fornecendo o que aqui reduziremos a alguns exemplos. A começar por um entendimento do valor do desporto, enquanto “fator de coesão social” e de interligação comunitária, a ponto de lhe chamar “a nossa religião civil”. Posto o que situa a adversativa sobre como “nas últimas décadas o dinheiro tem desalojado o senso comunitário no mundo dos desportos” (Sandel, 2016 [2012], p.190). Em resposta à que considera a questão central neste tópico de análise, o problema de saber se aquilo a que chama o “Moneyball”, ou mercantilização do desporto, afeta ou não o seu ethos e propósito, Sandel aduz um conjunto de alterações nos padrões habituais por que se regia a modalidade, bem assim como nos comportamentos de atletas e adeptos, para além do surgimento de novas áreas de mercantilização, as quais responsabiliza por tais alterações. Uma delas consistiu no princípio e prática da cobrança de dinheiro por parte dos jogadores, a troco da assinatura de autógrafos. Para além de modificar a natureza não comercializável do reconhecimento e da admiração, o fenómeno ganhou novos contornos. Citando a revista Sports Illustrated, o autor dá conta da “transformação que se operava na tradicional caça aos autógrafos, pelos fans. A “nova geração de colecionadores de autógrafos” era “agressiva, insistente e motivada pelo dinheiro” e importunava os jogadores em hotéis, restaurantes e até nas suas residências […] Na década de 1990, os corretores começaram a pagar aos jogadores para assinar milhares de bolas, bastões, malhas e outros objetos” (Sandel, 2016 [2012], p.182, 183). O valor simbólico, presencial, testemunhal e afetivo do autógrafo podia agora ser complementado e efetivamente desvirtuado, pelo preço da sua compra através de um agente especializado que comercializava o gesto de ambos, atletas e fans. A questão de saber em que medida tal alteração favorecia qualquer das partes ou interferia, pelo menos potencialmente, no desenvolvimento do jogo, encontra-se respondida quer pela transformação do valor em preço, por um lado, quer, por outro lado, pelo facto de a privacidade, concentração e repouso dos jogadores serem perturbadas pelas estratégias de intrusão dos novos “caçadores” e “corretores” profissionais. 170
Noutra expressão do fenómeno de mercantilização Sandel (2012, pp. 85 e ss.) discorre sobre os efeitos deletérios da criação de bancadas VIP arrendáveis pelos mais ricos, bem como sobre outros fenómenos de mercantilização como sejam o arrendamento publicitário de bancadas, portões e até estádios inteiros, numa estratégia comercial designada por “naming”. Mas, no caso do basebol norte-americano o fenómeno estende-se ainda mais. Até abranger, diz Sandel (2016 [2012], p. 188), as “palavras usadas pelos locutores das transmissões radiofônicas e televisivas para descrever o que acontece em campo durante os jogos. Quando um banco comprou o direito de batizar o estádio dos Diamondbacks, no Arizona, com o nome Bank One Ballpark, o acordo também exigia que os locutores da equipa se referissem a cada home run como uma “rajada Bank One” (Sandel, 2016 [2012], p.188). Para o filósofo, o moneyball não arruinou o beisebol, mas — como outras manifestações de intrusão do mercado nos últimos anos — contribuiu para apoucá-lo. […]: tornar o mercado mais eficiente não é em si mesmo uma virtude. A real questão é saber se a introdução deste ou daquele mecanismo de mercado vai aprimorar ou prejudicar a atividade. (Sandel, 2016 [2012], p.198).
O caso empírico: o “Moneyball” na Champions League Em abril de 2021, foi anunciada, por entre uma considerável polémica a criação de uma nova Liga Europeia de clubes (Superliga), concentrando os maiores e mais poderosos e ricos clubes do continente. Para Leandro Stein (2021, sp), jornalista brasileiro da plataforma digital Trivela, esse 18 de abril de 2021 poderia ser potencialmente “lembrado como um dia importantíssimo para a história do futebol europeu. Para 12 clubes poderosos, existe um discurso de revolução económica. Para federações e os demais que ficam de fora do grupinho, são naturais as acusações de complô e de golpe”. O problema específico da tensão e do desequilíbrio entre negócio e desporto era equacionado do seguinte modo, no texto citado: Facto é que as atitudes tomadas […] certamente impactarão na organização do desporto, mesmo que não provoquem a cisão idealizada pelos rebeldes, de imediato. A Superliga Europeia deixou de ser uma conversa de bastidores e foi oficializada, com a participação de seis clubes ingleses, três espanhóis e três italianos (Stein, 2021, sp).
1 O autor agrega duas ilustrações lapidares da sua tese geral em favor da contenção do mercado: “Proponho abordar essas questões fazendo uma pergunta ligeiramente diferente: existem coisas que o dinheiro de facto não compra? [...] Por acaso tentaria comprar um amigo? Não parece provável. Basta refletir por um momento para dar-se conta de que não funcionaria. Um amigo pelo qual se pagou não é a mesma coisa que um amigo de verdade. O que acontece é que o dinheiro usado para comprar a amizade acaba por dissolvêla ou, então, por transformá-la em algo diferente”. O mesmo com, digamos, um Prémio Nobel: “ainda que um Prémio Nobel fosse leiloado por ano, por exemplo, o prémio assim comprado não teria o mesmo valor. A troca de mercado dissolveria o bem que confere valor ao prémio” (Sandel, 2016 [2012], pp.103, 104).
171
Naquele projeto (de que uma variante viria a ser apresentada já no final de dezembro de 2023) “a Superliga teria “15 clubes fundadores”, abrindo as portas para mais três participantes fixos, além dos 12 nomeados. Além disso, cinco vagas seriam abertas a cada temporada, para um modelo de participação que considerasse o desempenho nas ligas nacionais europeias. A nova competição não colidira com as competições domésticas, mas “chocava diretamente” com a Champions. Apesar de os seus proponentes não preverem jogos da Superliga ao fim de semana, para não afetar a realização de competições internas, ficava claro “como os 12 presidentes desejam uma fatia maior do dinheiro e, principalmente, um controle maior sobre a fortuna do futebol” (Stein, 2021, sp). Em concreto, especifica Leandro Stein (op. cit., sp), aqueles “clubes afirmam que a riqueza gerada pelo novo campeonato será dividida parcialmente e calcula que cerca de €10 [mil milhões] serão redistribuídos por mecanismos de solidariedade às ligas nacionais durante os primeiros anos de competição. A promessa é que tal competição distribua €3,5 [mil milhões] para os 15 clubes fundadores só de início, para ‘apoiar investimentos em infraestrutura e aliviar o impacto da pandemia”. Para uma ideia comparativa, o jornalista salientava que cada uma das equipas participantes “embolsaria cerca de €230 milhões, um valor quatro vezes maior que o recebido pelo Bayern de Munique como vencedor da Champions 2019/20 por toda a sua participação no torneio”, com o banco JP Morgan a participar nas discussões sobre o financiamento, concluía Leandro Stein (2021, sp). O projeto suscitou objeções consideráveis. “A UEFA, a FIFA, a Premier League, a RFEF, La Liga, a FIGC e a Serie A” reiteraram permanecer “unidos nos nossos esforços para impedir este projeto cínico”, baseado “no interesse de alguns clubes num momento em que a sociedade precisa de solidariedade antes de mais nada” […] A própria Premier League reforçou a oposição: “Condenamos qualquer proposta que ataque os princípios de competição aberta e méritos [d]esportivos, que estão no coração das pirâmides do futebol doméstico e europeu. Torcedores de qualquer clube da Inglaterra e ao redor da Europa podem sonhar que o seu time suba ao topo e jogue contra os melhores. […] Acreditamos que o conceito de uma Superliga Europeia destrói esse sonho” (Stein id. ibid.). Para além deste argumento, surgiram outros como o dos adeptos, em representação dos quais a “Football Supporters Europe classificou o projeto como “ilegítimo, irresponsável e com um modelo anticompetitivo”. Para os representantes dos adeptos, os “únicos que têm a ganhar são os fundos, os oligarcas e um punhado de clubes já ricos, muitos deles que têm um desempenho ruim [nas] suas ligas nacionais, apesar da sua inerente vantagem” (cit. por Stein, 2021 sp). Mostrando, por seu turno, a importância sociopolítica do fenómeno do desporto e, neste caso, da competição de elite em futebol, chefes de Estado europeus tomaram posição contra a Superliga, entre eles, Boris Johnson (então Primeiro-Ministro britânico e o Presidente da República francesa, Emmanuel Macron (cf. Stein, 2021, sp). 172
Discussão: Entre a lógica do Mercado e o ethos desportivo São especialmente relevantes para a presente discussão, as modalidades de lexicalização com que os discursos favorável e contrário ao projeto se articularam publicamente. Assim, à luz dos princípios filosóficos em questão no problema das relações entre desporto e mercado, se destacarmos sob a forma de um quadro os argumentos pró e contra a Superliga, encontramos dois tipos muito diferentes de termos e motivações. Num caso o apelo ao lucro e à rentabilidade (na qual se deixa sugerido que a própria “subsidiariedade”, e solidariedade são equacionadas na terminologia do mercado e do capital), ligados à ideia liberal (libertarian) e eventualmente a um utilitarismo consequencialista especialmente centrado nas questões inerentes à mercadologia. Do lado dos oponentes, emergem as alegações de carácter moral e normativo relacionadas com o espírito, o ethos, a natureza e a finalidade da competição desportiva, encerrando nesta dimensão a própria noção de mérito. No final, por parte dos adeptos, evoca-se uma noção de “sonho”. Uma tabela de análise de discurso em torno dos racionais de cada um dos lados da argumentação poderia apresentar a seguinte forma, aparecendo em sublinhado os termos-chave de cada grupo argumentativo: FIGURA 1 Tabela de argumentos para uma análise discursiva e argumentativa
Racional dos Argumentos favoráveis à Superliga • a riqueza gerada pelo novo campeonato será dividida parcialmente […] cerca de €10 bilhões serão redistribuídos por mecanismos de solidariedade às ligas nacionais durante os primeiros anos de competição. • que tal competição distribua €3,5 bilhões para os 15 clubes fundadores só de início, para “apoiar investimentos em infraestrutura e aliviar o impacto da pandemia”. • cada time embolsaria cerca de €230 milhões, um valor quatro vezes maior que o recebido pelo Bayern de Munique como vencedor da Champions 2019/20 por toda a sua participação no torneio
Racional dos Argumentos contrários à Superliga • projeto cínico, […] que se baseia no interesse de alguns clubes num momento em que a sociedade precisa de solidariedade • ataque [a]os princípios de competição aberta e méritos esportivos […] coração das pirâmides do futebol doméstico e europeu • Torcedores de qualquer clube […] podem sonhar que seu time suba ao topo e jogue contra os melhores. […] o conceito de uma Superliga Europeia destrói esse sonho” • projeto[…]“ilegítimo, irresponsável e com um modelo anticompetitivo”. “Os únicos que têm a ganhar são os fundos, os oligarcas e um punhado de clubes já ricos, muitos deles [com]desempenho ruim em suas ligas nacionais, apesar de sua inerente vantagem
FONTE: elaboração própria a partir de Stein, 2021 173
Se a tipologia das motivações é muito clara no debate entre os agentes promotores e os objetores da Superliga, a posição dos adeptos introduz não só a dimensão onírica (o desporto como enunciador e criador de sonhos), mas aflora, ainda que subsidiariamente, um aspeto da discussão que para a tese deste trabalho é, todavia, fundamental. Salienta-se, neste ponto, que a Football Supporters Europe, vê nos promotores da Superliga “um punhado de clubes já ricos, muitos deles que têm um desempenho ruim […] apesar da sua inerente vantagem”. A questão passa, então, a poder ser vista já não como uma criação pela nova Superliga de uma “vantagem inerente” produzida pelo diferencial de riqueza entre os clubes, mas sim a do seu aprofundamento. Por outras palavras, este enunciado densifica o problema da “desigualdade”, a par do problema da “corrupção” (nos termos de Sandel), como um já dado na competição realmente existente e leva-nos ao que, para efeitos da presente reflexão, constitui um problema central de ordem ética no desporto de alto rendimento, em particular nas modalidades de maior audiência: - Até que ponto, entrada da lógica de um mercado desregulamentado no mundo do desporto (bem anterior à proposta da Superliga Europeia e em contínua expansão) não destrói ou não apouca o ethos, a natureza e a finalidade da prática desportiva e da própria competição, independentemente da escala a que se realize? Para isso, é necessário um entendimento mínimo do que poderá ser o ethos desportivo, o que está longe de ser consensual. Para um entendimento normativo da prática e da competição desportivas, ao jeito da ideação do amadorismo da segunda metade do século XIX e primeira do século XX, de que a versão de Pierre de Coubertin do olimpismo seria uma síntese emblemática, a intrusão da lógica do mercado seria amplamente derrisória. Para esta classe de críticas baseada nas “motivações e significações” do desporto, da competição e dos atletas, Walsh (2015, p. 417) faz notar como “o ponto geral” consiste em, a despeito de traduzir o “enorme desconforto que muitos sentem com a comercialização”, ela não “contestar com argumentos decisivos a incursão do dinheiro no seio do desporto”. Invocando, aliás, uma perspetiva filosófica utilitarista, Walsh (2015, p.412) aponta, corretamente, que se, na ótica do consequencialismo, cada mudança social deve ser avaliada em termos das consequências que gera, parece ser que a intrusão das lógicas de mercado no desporto “conduziu a uma maior disponibilização de entretenimento desportivo para os adeptos, maiores remunerações para os atletas e uma melhoria geral das capacidades exibidas em cada modalidade”, mesmo levando em conta a objeção do papel reservado à despesa pública, dos Estados e, por consequência dos contribuintes, no financiamento das grande competições desportivas á escala continental ou planetária. É necessário notar, que também aqui não existe uma contestação última da tese contrária. Podemos sempre pensar que modalidades e atletas que ficam para trás nesta corrida mercantil, terão menos oportunidades e piores remunerações à medida que o topo das competições e praticantes das principais modalidades, em termos mediáticos e, por consequência, de públicos, concentram a geração de riqueza e a fazem distribuir por si mesmos, a despeito das sobras redistribuídas a título de subsidiariedade. É possível, todavia, pensar como admitem Adrian Walsh e outros autores que as duas teses não tenham de ser drasticamente oponíveis, mas corporizem tipos de complementaridade 174
através de mecanismos de regulação distributiva. Mas, isso é reconduzir o problema para uma intervenção supra-mercado que, em última análise caberia aos poderes públicos. E, nesse caso, a questão passaria a ser a de saber até que ponto essa intervenção regulatória poderia ir.
Conclusão: Entre os nobres propósitos do universo e os pobres propósitos do mercado? Apesar das dificuldades em alcançar, como em tudo o resto, uma verdade única e última, quer os exemplos agregados por Michael Sandel a propósito das alterações de comportamentos em torno do basebol nos Estados Unidos e das diferenças entre classes de argumentos (respetivamente, mercadológico-liberais utilitaristas e normativo-internalistas amplos) ) apresentadas entre proponentes e oponentes da Superliga Europeia de futebol em 2021, parecem sugerir como, num plano filosoficamente internalista, a penetração dos valores de mercado na prática e competição desportivas introduz alterações facilmente observáveis nas modalidades e seus atores. Já num plano externalista é perfeitamente conhecido como a mecânica dos mercados tende para a sua concentração no topo e desertificação na base. Deve-se assim à conjugação destes dois fatores, de ordem interna e externa, a conclusão deste trabalho segundo a qual a desregulamentação do mercado e a sua livre penetração na competição desportiva o afirma como uma finalidade em si mesmo, em detrimento de quaisquer outros valores, partir daí necessariamente subalternizados. Tal ocorre em detrimento de qualquer ideal desportivo quer o façamos remontar à ideia de paz da Antiguidade Clássica, quer pensemos nos princípios do amadorismo na génese do moderno olimpismo, quer nos fiquemos pela ideia de uma “religião civil” que se destina a criar sentido de comunhão e, pelo menos enquanto decorre, de comunidade, quer, inda e por fim, enquanto valor ético-educativo como nos esboços primordiais de uma Filosofia do Desporto. Este desvio (ou “sofrimento”, como lhe chamaria Jean-François Lyotard, 1996 [1993]) de finalidade, muito nitidamente percetível a propósito da questão da Superliga Europeia de futebol, só pode filiar-se, preocupadamente, deste ponto de vista, num debate sobre a ética que constitui, segundo López Frías –numa perspetiva que aqui se partilha-, o tópico fundamental da atualidade de uma disciplina como esta, a da Filosofia do Desporto. Como de resto aponta Mike McNamee (2015, p.139) ao considerar que uma “ética descritiva”, que necessariamente se deixa afetar tanto por dados de natureza quantitativa quanto qualitativa, é algo que as instituições desportivas “procurarão cada vez mais no futuro à medida que o campo se torne mais estabelecido e conhecido”.
175
176
Referências Almeida, I. & Fernandes, N. (2023, 23 de dezembro). Superliga Europeia ganha uma nova vida, mas apoios são curtos. In Diário de Notícias. https://www.dn.pt/desporto/superliga-europeia-ganha-uma-nova-vida-mas-apoios-sao-curtos-17541115.html Dolina, A. (2003 [1988]). Crónicas del Ángel Gris (ebook.) Lectulandia. https://www.escuelaestacionsur.com/Images/Cronicas%20 del%20Angel%20Gris%20-%20Alejandro%20Dolina.pdf Grácio, R. A. (2023). Um Ensaio sobre os Estudos Culturais. Grácio Editor. López Frías, F. J. (2011). Filosofía del deporte: orígen y desarrollo. In Dilemata (5). 1-19. Lyotard, J.-F. (1996 [1993]). Moralidades Posmodernas. Tecno. McNamee, M. (2015). Ethics and Sports. In M. McNamee & W.J. Morgan (eds.), Routledge Handbook of the Philosophy of Sport. Routledge. (pp.131-141). Pereira, R. (2019). Pensar em tempos de não-pensamento – Algumas notas sobre o brutal na contemporaneidade. Grácio Ed. Sacheri, E. (2021, 14 de janeiro). Cachito Vigil y Eduardo Sacheri leen "Crónicas del Ángel Gris" de Dolina. In Contar la Vida, (9) DeporTV. (13’ 50”). https://www.youtube.com/watch?v=K5oAMObT6Jc&t=923s Sáez Rueda L.; Pérez Espigares, P. & Hoyos Sánchez, I. (eds.) (2011). Occidente Enfermo - Filosofía y Patologías de Civilización. GRIN Verlag GmbH. Sandel, M. J. (2012). What Money Can’t Buy - The Moral Limits of Markets. Penguin Books. Sandel, M. J. (2016 [2012]). O que o dinheiro não compra – Os limites morais do mercado. Civilização Brasileira. Simon, R. L. (2015). Internalism and Sport. In Mike McNamee & William J. Morgan (eds.), Routledge Handbook of the Philosophy of Sport. Routledge (pp. 22-34). Stein, L. (2021, 18 abril). O domingo que cindiu o futebol europeu: a Superliga, as reações e os possíveis desdobramentos. In Canal Trivela. https://trivela.com.br/europa/champions-league/domingo-que-cindiu-o-futebol-europeu-a-superliga-as-reacoes-e-ospossiveis-desdobramentos/ Walsh, A. (2015). Sport, commerce and the market. In M. McNamee & W.J. Morgan (eds.), The Routledge Handbook of the Philosophy of Sport. Routledge. (pp.411-425).
177
178
O uso dos Jogos como instrumentos de Formação dos Cidadãos nas Leis de Platão. Diane Fátima Bonet Juliano Paccos Caram
179
180
O uso dos Jogos como instrumentos de Formação dos Cidadãos nas Leis de Platão. Diane Fátima Bonet 1 Juliano Paccos Caram 2
Introdução Para iniciar essa investigação sobre os jogos, é necessário compreender que essa é uma temática intrinsecamente relacionada à educação. Na obra “As Leis” Platão aborda a educação quando está definindo a legislação para nova Pólis. Tendo em vista, que ele considera a paidéia grega, ou seja, uma formação que busca o desenvolvimento integral do ser humano, um suporte das leis escritas, as quais torna possível a existência da cidade possível. Platão nas Leis, através do diálogo entre os personagens Clínias, Megilo e o ateniense, discute sobre a instituição dos banquetes e como essa prática pode contribuir com a educação. Também debate quando se deve iniciar o processo educativo nos indivíduos, a importância dos primeiros cuidados, a utilização dos jogos, da ginástica, e da música e até mesmo questões estruturais das escolas. Na educação platônica os jogos são definidos como prática que envolve o uso do movimento corporal, os quais apresentam o uso das regras. A utilização dos jogos pelas crianças começa aos três até os seis anos, quando são reunidos meninos e meninas nos templos das comunidades para praticar jogos que despertam a diversão. Platão acrescenta também, que as crianças precisam participar dos jogos de treinamento. Podemos citar como exemplo a equitação, o arremesso do dardo, a corrida, a dança guerreira e o jogo de tabuleiro. O desejo de compreender e demonstrar a importância dos jogos para a formação e regramento dos novos cidadãos, bem como, buscar relacionar o jogo com a concepção de educação
1 Acadêmica do curso de Mestrado de Filosofia na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS - Campus Chapecó / SC). Formada em filosofia na Universidade Federal da Fronteira Sul-UFFS. Também sou Licenciada em Pedagogia pela UFFS. 2 Professor Associado I no Curso de Graduação em Filosofia (desde 2010) e no Programa de Pós-graduação em Filosofia - Mestrado (a partir de 2019), na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS - Campus Chapecó / SC). Doutor em Filosofia - Área de concentração: Filosofia Antiga, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG - Campus Pampulha) em 2015. Orientador de Mestrado. Pesquisa especialmente temas na área de Filosofia Antiga, com ênfase em ética e antropologia no corpus platônico.
181
proposta pelo filósofo, tem sua origem na leitura dos livros “As Leis” que realizei na disciplina isolada do mestrado de filosofia que participei. Sendo que, o principal aspecto motivador da investigação foi o fato de o filósofo utilizar os jogos como meio para ensinar as regras, garantindo assim, a aceitação das leis pelos cidadãos da Pólis3. Pensando nos estudos atuais, Bacelar (2009) define os jogos como ações ou práticas com objetivo de produzir prazer. Para Huizinga (2007), os jogos são fenômenos culturais, ou seja, são elementos que representam certos povos e culturas. Os quais têm as seguintes características: ser livre, desinteressado, temporário, faz parte da nossa vida, possui regras e repetição. Segundo Huizinga (2007, p.13) “o jogo lança sobre nós um feitiço: é fascinante, cativante, está cheio das duas qualidades mais nobres que conseguimos ver nas coisas: o ritmo e a harmonia.” Também, o jogo pode ter característica lúdica na infância, mas isso não quer dizer que eles não devem ser levados a sério. “Os jogos infantis, o futebol e o jogo de xadrez são executados dentro da mais profunda seriedade, não se verificando nos jogadores a maior tendência para o riso.” (HUIZINGA, 2007, p.8). Logo, considerando o exposto, esse artigo é relevante porque busca demonstrar a importância dos jogos, os quais estão presentes como ferramentas no processo de ensino e aprendizado. Eles auxiliam no desenvolvimento do ser humano e fazem parte do processo de despertar das virtudes. Refletir sobre isso, possibilita valorizar essas práticas, e reconhecer o seu potencial educativo. Ainda, há possibilidade de ampliação dos debates existentes sobre a educação clássica e o pensamento platônico.
Os Jogos e a Formação dos Cidadãos nas Leis de Platão. Historicamente, Platão é considerado um grandioso filósofo da antiguidade. Ele nasceu em 428/7 a.c. em Atenas, em uma família pertencente à aristocracia, “[…] seu pai, a Codros, último rei lendário de Atenas e, por parte de mãe, a Sólon, o grande legislador do começo do século VI”. (DONINI; FERRARI, 2012, p.97). Ele, insatisfeito com o governo de Péricles, um regime oligárquico que condenou seu mestre Sócrates à morte, fez com que fundasse sua própria escola chamada de Academia em 388/7. Suas obras se resumem a “[…] trinta e seis títulos: trinta e quatro diálogos, A apologia de Sócrates e treze cartas, das quais doze são certamente apócrifas e só uma, a carta VII, é considerada autêntica pelo menos por uma parte dos críticos”. (Ibidem, p.100). A obra intitulada “As Leis” é um conjunto de doze livros, publicados por Felipe de Oponto. Essa literatura filosófica é considerada o último escrito platônico. Nela encontra-se um diálogo entre três personagens, Clínias, Megilo e um ateniense conhecido por ser o estrangeiro, onde eles buscam definir a legislação da nova cidade. Eles são aptos a dialogar sobre isso, porque são homens velhos com uma vasta sabedoria, são os fundadores da colônia chamada de Magnésia, a qual está localizada em Creta, e será governada através do nómos4.
182
Nesse diálogo, Platão não utiliza Sócrates como aquele que conduz a discussão, mas sim, é o estrangeiro ateniense, o qual, tem o privilégio de fala. Ele, Clínias e Megilo pretendem instituir um conjunto de leis escritas que definem quais ações são consideradas um delito e quais serão os castigos. Para Platão, as leis são a salvação do egoísmo de um governante. Através delas, será possível educar o indivíduo e preservar a harmonia da cidade. Platão faz uma crítica às leis de Creta e Esparta, as quais apresentam problemas principalmente na supervalorização da coragem como virtude. Sendo que, para o filósofo, é um grave erro, pois ela não contempla a virtude total. É nesse contexto, que se discute a temática de interesse, ou seja, a educação na obra “As Leis” e a utilização da ferramenta o jogo como suporte para formação do indivíduo pertencente à cidade. Nas Leis, o filósofo discute sobre a instituição dos banquetes e a necessidade de os mesmos serem organizados para contribuir com a educação. Nesses banquetes o vinho tem papel fundamental porque faz rememorar os momentos de juventude passados pelos velhos sábios, motivando-os. Eles serão responsáveis pela orientação dos ensaios musicais da juventude e pela instituição dos coros. A educação platônica apresentada nas Leis consiste em ser “[...] aquele primeiro momento em que a criança se encaminha para a virtude.” (Leis II, 653b) O ato de educar implica desenvolver indivíduos que sejam capazes de dominar suas paixões. Se a educação não acontecer, pode destruir as leis escritas. A educação ou paidéia nas Leis é vista, [...] não como aprendizado de habilidades meramente técnicas e instrumentais, voltadas para a execução de ofícios, mas como uma formação que visa conduzir o homem, desde a sua infância, através de jogos ou de uma ocupação séria à excelência, desenvolvendo nele o desejo pela condição do cidadão perfeito, capaz de governar quanto de ser governado conforme a justiça. (ESTELITA, 2015, p.32) Para Platão, a educação inicia-se antes do nascimento da criança, quando ela ainda está no ventre da mãe. Por isso, será instituído por leis escritas a necessidade de a gestante fazer caminhadas, sendo que o movimento possibilita que os nutrientes sejam distribuídos corretamente pelo corpo. Além disso, será determinado que as amas de leite sejam responsáveis por levar as crianças ainda bebês de colo ao campo e aos templos religiosos. Quando elas forem capazes de caminhar sozinhas, é necessário que as preceptoras cuidem para que esses bebês não se machuquem. No diálogo, Platão salienta a importância de a mãe balançar o bebê quando estiver fazendo dormir, acrescentando a melodia, uma prática que educa o corpo e alma e auxilia a formação do
3 Pólis significa cidade-estado. 4 Nómos significam leis escritas.
183
indivíduo. Nessa prática percebe-se que o ser humano não consegue se desenvolver sozinho, ele precisa do outro para aprender a controlar as paixões, e nesse caso, a mãe que participa desse processo. Nas Leis, até os três anos as crianças são estimuladas com exercícios contínuos de movimento. Depois, dos três até os seis anos, os meninos e meninas são reunidos nos templos da cidade para a prática dos jogos que proporcionam divertimento e são fáceis de serem assimilados. Platão acrescenta que: Em relação aos rapazes e às raparigas com menos de seis anos, deverá ser estabelecida a divisão de sexo: os rapazes passaram a ser educados com os outros rapazes e as raparigas, educadas apenas com as outras. Contudo, tanto uns como os outros deverão ser iniciados nas suas respectivas instruções: para os rapazes, a prática da equitação, o adestramento do arco, o arremesso do dardo, o manejo da funda; para as raparigas, a aprendizagem dos sobre ditos exercícios, pelo menos em teoria, a pesar de não se prestarem especialmente a eles, sobretudo no manuseamento das armas (sobre esta questão ainda vigora, aliás, um certo preconceito de que só muito poucos – para não dizer quase ninguém – têm consciência. (Leis VII, 794 c-d) Nessa instrução, segundo Platão, era necessário que os responsáveis estimulassem através de práticas que utilizam as duas mãos, porque poderiam favorecer no manuseio das armas pesadas nas guerras. E até mesmo, favorecer a prática do pancrácio5 nos jogos olímpicos. Para o filósofo, treinar com armas e com cavalos favorecem na guerra ou em momentos de paz. Analisando os jogos apresentados nas Leis e suas características podemos associar eles com duas definições. Os com intenção de competição e ensinamento de regras chamados de agôn e os jogos com objetivo de diversão denominados de paidiá. Os jogos de equitação, arremesso de dardo, a corrida, o manejo de armas, são um preparo para os jogos agôn que tem a intenção de competição, os quais estão presentes em rituais religiosos e os jogos públicos. Segundo Machado (2006, p.81) esses jogos eram “manifestações mítico-religiosas-sociais, com caráter agonístico, para as quais cidadãos de toda Grécia deslocavam-se para assistir, sendo então o principal encontro para intercâmbio cultural.” Para Sousa (2020), os jogos paidiá são brincadeiras ditas como espontâneas e lúdicas. É neste momento, que as crianças, através dos jogos, treinam para desempenhar a função que vão executar quando adultas. “Os jogos infantis tinham, para os gregos, a função de instruir, impor as regras e leis da pólis, por meio da diversão, sem competição.” (ROSA, MENDES, FRENNER, 2017, p.71). Os jogos gregos, segundo Machado (2006), foram influência dos egípcios, os quais eram práticas de entretenimento nos cultos aos deuses com a intenção de buscar proteção e home184
nagear as divindades e também eram utilizados nos rituais fúnebres. Em relação à participação, os jogos agôn eram uma prática de treinamento que todos podem participar quando crianças, mas quando adultos para poderem praticar era necessário, segundo Machado (2006), não ser escravo, ser legítimo e ter direitos políticos. Segundo Platão,“[...] os jogos têm sido universalmente ignorados quanto à sua importância primordial para toda legislação; para além de serem causa de estabilidade ou de caducidade das leis já existentes.” (Leis VII, 797a). Para Platão os jogos podem ser uma ferramenta educacional que auxilia nesse processo se for bem instruído. É necessário ensinar desde a infância a seguir as regras e evitar as mudanças das mesmas. Pois a mudança “[...] contribui invariavelmente para uma transformação dos costumes da juventude, levando mesmo ao menosprezo de tudo aquilo que é antigo e a estimular apenas o que é novo.” (Leis VII, 797c) A mudança é um perigo para a pólis porque elas podem causar rejeição das leis escritas que estão sendo criadas, por isso, os responsáveis devem ficar atentos, e estimular as crianças a jogar seguindo sempre os mesmos princípios. Os jogos com regras contribuem, como a música e a dança, no cuidado corporal e da alma. Essas práticas separadamente são incapazes de produzir a virtude do indivíduo. O homem virtuoso para Platão é aquele que é capaz de controlar suas paixões. Como também, é aquele que,“[...] para além dos combates travados em olímpia e das batalhas dirimidas em tempo de guerra e de paz, for capaz de escolher o ofício glorioso de servir as leis da sua cidade, e obtiver a vitória neste domínio [...].” (Leis IV, 729 d-e). Nesse sentido, virtuoso é aquele que segue as leis e sabe viver em sociedade, o qual, busca a harmonia da sua alma e da pólis.
Considerações Finais Este artigo foi concebido com o objetivo de apresentar a pesquisa em andamento no programa de mestrado em filosofia da Universidade Federal Da Fronteira Sul - UFFS, dentro da linha de pesquisa ética e política. Reconhecemos a extensão do caminho a percorrer nesta investigação filosófica, mas decidimos compartilhar os primeiros pensamentos com a intenção de suscitar o interesse dos leitores por este tema. A pesquisa tem o objetivo de compreender e demonstrar a importância dos jogos para a formação e regramentos dos novos cidadãos e com isso, relacionar com a concepção de educação proposta pelo filósofo. Constatou-se inicialmente que os jogos são importantes para a educação porque auxiliam no ensinamento das regras. Não somente isso, mas também os jogos são uma ferramenta essencial juntamente com a música e a dança no processo de desenvolvimento do indivíduo. Que essas ferramentas possibilitam o cuidado corporal e da alma.
5 Pancrácio é uma luta grega que utiliza as mãos para dar golpes em seu adversário. Como o famoso boxe que utiliza os punhos.
185
Por fim, Platão nos ensina que os jogos são importantes a ponto de serem necessários em todo o percurso de nossa vida, sendo introduzido antes mesmo da criança nascer, posteriormente na infância, na juventude e na velhice. Sendo que os jogos sem regras possibilitam a simulação para a vida adulta e os jogos com regras ensinam de forma preliminar a criança a seguir as regras, possibilitando a existência de um indivíduo virtuoso capaz de viver em sociedade e contribuir da melhor maneira possível para harmonia da mesma.
186
Referências: BACELAR, Vera da Encarnação. Ludicidade e educação infantil. Salvador : EDUFBA, 2009. DONINI, Pierluigi; FERRARI, Franco. O Exercício Da Razão No Mundo Clássico: perfil de filosofia antiga. Tradução de Maria da Graça Gomes de Pina. São Paulo: Annablume Clássica, 2012. ESTELITA, Izabella Tavares Simões. Paidéia, politeia e areté nas Leis de Platão. 2015. 89 f. Dissertação (Mestrado) - Curso Mestrado em Filosofia. Universidade Federal de Pernambuco, 2015. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/ handle/123456789/23853. Acesso em 4 jul.2022. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: O jogo como elemento da cultura. Tradução de João Paulo Monteiro. São Paulo, 2007. MACHADO, Raoni Perrucci Toledo. Esporte e Religião no Imaginário da Grécia Antiga.2006. 105 f. Dissertação (Mestrado) - Curso Mestrado em educação física. Universidade de São Paulo. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/ disponiveis/39/39133/tde-14032007-100902/en.php Acesso em 10 jul. 2022. PLATÃO. As leis I. Tradução de Carlos Humberto Gomes. Lisboa /Portugal: Textos. As leis II. Tradução de Carlos Humberto Gomes. Lisboa /Portugal: Textos Filosóficos, 2019. ROSA, Marcelo Prado Amaral; MENDES, Michel; FENNER, Roniere dos Santos.O Jogo E A Educação Grega: Paidia Enquanto Elemento Formativo Da Paideia, Disponível em: https://periodicos.unifesp.br/index.php/prometeica/article/view/1634. Acesso em 3 jul.2022. SOUSA, Luana Neres de. Jogos e brincadeiras infantis na educação ateniense do Período Clássico. Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 16, p. 81-100, 2020. ISSN: 2318-9304, Disponível em: https://periodicos.ufes.br/romanitas/article/ view/33059. Acesso em 9 jul.2022
187
188
O Real, o Simbólico e o Imaginário no discurso de Cristiano Ronaldo: apontamentos psicanalíticos Me. Lucas Contador Dourado da Silva FEF/UNICAMP Prof. Dr. Odilon José Roble FEF/UNICAMP
189
190
O Real, o Simbólico e o Imaginário no discurso de Cristiano Ronaldo: apontamentos psicanalíticos Me. Lucas Contador Dourado da Silva FEF/UNICAMP
Prof. Dr. Odilon José Roble FEF/UNICAMP
Introdução “A ciência avança sobre o real ao reduzi-lo ao sinal.” (Lacan, 2003, p. 143.) O objetivo deste estudo exploratório consiste em analisar uma entrevista do atleta Cristiano Ronaldo respondendo a seguinte pergunta: "de onde surgiu sua comemoração icônica?". Nossa análise centra-se na resposta do referido atleta publicada por uma matéria da ESPN1 de 10 de Setembro de 2021. Outro elemento de nossa análise refere-se à imagem da comemoração que, acontecendo após a marcação de um gol, situa-o como um modo de gozo, devido sua força mobilizadora de afetos. Valendo-se do referido material midiático, propomos uma interpretação hermenêutica de inspiração psicanalítica, sobre a declaração do atleta Cristiano Ronaldo. Utilizamos como dispositivo analítico os três registros essenciais da realidade humana de Lacan (2005); [1974-75], sendo eles: o Real, o Simbólico e o Imaginário (RSI). A conjuntura (RSI) situa três campos distintos como registros da experiência humana e queremos apreender como tais campos são articulados no discurso do Cristiano Ronaldo. Deste modo, buscamos nos aproximar de como o referido atleta constrói sua própria realidade, dá sentidos a sua vivência esportiva, acionando e articulando os elementos oriundos de cada um dos três registros. Neste sentido, o discurso será fio condutor de nosso trabalho e o atleta compreendido como um tecelão do esporte. Neste sentido, abordaremos o que chamamos de esporte de alto rendimento, ou, esporte espetáculo, e o escolhemos por sua potência social. Podemos verificar tal potência do esporte e, especificamente do futebol, de diferentes formas entre elas: quando encontramos pessoas utilizando camisetas de futebol com nomes de atletas famosos; pela quantidade de espectadores numa final de Copa do Mundo2; e, até mesmo, por torcedores (as) que fazem longas viagens para assistir
191
sua “equipe do coração” numa final de campeonato. Tais exemplos servem-nos para elucidar não só seu valor social mas, também, retratar alguns desejos humanos que aparecem mobilizados pelo esporte. Nossa atenção centra-se na questão da linguagem em relação ao esporte. No trabalho de Lopez-Frias e Edgar (2017) encontramos essa problemática pela via da hermenêutica. Segundo os autores, um soco dentro do boxe tem um significado totalmente diferente que numa situação da vida cotidiana. Enquanto no primeiro caso o significado do soco é considerado positivo, aceito e adequado, visto que acertar um adversário está ligado ao alcance da pontuação e a possibilidade da vitória, no segundo caso, seu significado está ligado a uma situação de violência social, algo deplorável. Vemos aí uma questão sobre a qual o sentido atribuído ao gesto corporal dentro e fora do esporte, está em jogo. É nesse jogo de diferenças, na significação das ações humanas que vemos um terreno interessante de estudo. Segundo os mesmos autores, a hermenêutica é um recurso teórico valioso na interpretação de tais significações, justamente pelo esporte ser considerado um fenômeno cultural que coloca certos elementos da condição humana em circulação, e a partir daí, pode contribuir na reflexão de uma pergunta propriamente filosófica: “o que é o ser humano?” No mesmo estudo, Lopez-Frias e Edgar (2017) comentam apoiado em Ricoeur que a hermenêutica não se restringe aos significados a priori apreendidos. Partindo de autores denominados de “mestres da suspeita” - sendo Freud reconhecido como um deles por interpretar conteúdos reprimidos de seus pacientes por meio da fala dos mesmos - Ricoeur comenta que a hermenêutica pode contribuir para desvelar certos sentidos ocultos ou difíceis de serem acessíveis. É exatamente neste ponto que nosso estudo se insere e pretendemos avançar sobre esse assunto. Nossa proposta de estudo se assenta nos nexos de inteligibilidade advindos da Filosofia do Impulso, que comportam a noção de pulsão3 (trieb) (Roble, 2022). Tal noção implica assumir os enigmas da vida, os quais estão presentes nas práticas corporais e, mais especificamente, no esporte. Segundo o mesmo autor, essas correntes filosóficas tratam as interpretações humanas como “narrativas que não derivam mecanicamente dos fatos, e que, justamente por isso, serão mais pragmáticas quando potencializadoras da vida” (Idem, 2022, p.13). Em Roble (2023), o autor avança nos apresentando o que chama de Filosofia Psicanalítica do Esporte, como herdeira da Filosofia do Impulso, e nos propõe uma interpretação hermenêutica do esporte pelo método triangular de Ricoeur. Portanto, o mesmo autor busca refletir sobre o desejo inconsciente que pode se manifestar em objetos humanos, como é o caso do esporte (Roble, Idem). Deixamos claro que estamos coadunados com essa vertente de pensamento. Contudo, apesar de nos apoiarmos nessa herança filosófica da psicanálise, nossa metodologia está pautada em outro autor, Jacques Lacan. Com relação ao dispositivo analítico que propomos explorar, utilizaremos a noção de realidade psíquica de Lacan (2005) ou, RSI [1974-75], segundo a qual é composta por três registros essenciais: o Real, o Simbólico e o Imaginário - que compõem um conjunto homogêneo dado seu entrelaçamento borromeano, isto é, se algum deles se solta a estrutura se desfaz. Apesar da homogeneidade do conjunto, cada um dos três registros possui funções heterogêneas e diferenciais. Cabe-nos situar cada de seus registros: o registro do Real
192
é da ordem do impossível de descrever, do indizível, a dimensão daquilo que falta e escapa a compreensão; já o Simbólico é aquele que faz buraco, que circula e interpreta o real, produzindo sentidos a depender da cadeia significante; e, por fim, o Imaginário, como aquele que dá consistência necessária à própria realidade, é da ordem da fantasia, da invenção e ilusão. Apesar de apresentarmos os registros separadamente, é no entrelaçamento dos três que há a formação da realidade psíquica humana tal como Lacan a concebe. Até o momento introduzimos os elementos que compõem nossa interpretação. A partir de agora iremos tratar do RSI de uma forma um pouco mais aprofundada, buscando tecer alguns comentários relativos ao esporte, para depois avançar sobre a análise do discurso do atleta Cristiano Ronaldo. A entrevista do mesmo atleta será tomada por nós como uma narrativa que vai articulando, produzindo sentidos a sua vida esportiva.
O nó borromeano como realidade do sujeito A estrutura fundamental, central, de nossa experiência, é de ordem propriamente imaginária (Lacan, 1995, p. 53) Antes mesmo de iniciar seus seminários, Jacques Lacan realiza em 1953, uma conferência intitulada “O Simbólico, o imaginário e o real”4 que foi publicada posteriormente por Jacques-Alain Miller num livro chamado “Nomes-do-Pai”. Nesta conferência, Lacan (2005, p.12) comenta que nosso psiquismo se forma pelo entrelaçamento dos "Registros essenciais da realidade humana e que se chamam simbólico, imaginário e real". Miller aponta na introdução do livro que essa tríade marcaria os caminhos pelos quais o autor iria trilhar seu ensino durante as três décadas seguintes. Faria (2021, p.9) denomina essa formulação como “eixo epistemológico do ensino de Lacan”, uma chave interpretativa para a leitura dos seminários do referido psicanalista. Entretanto, foi somente nos anos de 1974-75, no Seminário 22 denominado de R.S.I., que Lacan incorre novamente na formalização dos três registros recorrendo ao nó borromeano, seu intuito seria de “delimitar ao máximo o que pode ser o Real de um efeito de sentido” (Idem. p. 29). Foi justamente a questão da dimensão do Real, enquanto um campo de difícil apreensão, que levou o autor a recorrer ao nó borromeano numa demonstração de conjunto. Queremos introduzir
1 Link da matéria consultada: https://www.espn.com.br/futebol/artigo/_/id/9177748/cristiano-ronaldo-reestreia-pelo-manchester-united-de-onde-surgiu-suacomemoracao-iconica-craque-lembra-primeira-vez-que-fez-e-explica. 2 Segundo reportagem da ESPN, a FIFA anunciou que 1,5 bilhões de pessoas assistiram a final da Copa do Mundo de 2022, entre as seleções da Argentina e da França. Link: https://www.espn.com.br/futebol/copa-do-mundo/artigo/_/id/11497424/fifa-divulga-1-5-bilhao-pessoasredor-do-mundo-assistiram-final-copa-do-mundo. Acessado em: 24/04/22. 3 Segundo Roble (2022), a Filosofia do Impulso é aquela que se assenta nas reflexões de Schopenhauer, Nietzsche e Freud, tendo como marca de conexão o termo trieb. Contudo, este termo também foi traduzido de Freud por Lacan como pulsão, e encontramos no ensaio “Sobre a tradução do vocábulo trieb” de Tavares (2020), argumentos que justificam a escolha do termo pulsão para o português, mencionando que uma das derivações a ser utilizada junto ao termo, poderia ser “im-pulsão” que, a partir do prefixo (im), torna-se Impulso. Por isso, utilizaremos o termo pulsão junto a Lacan, sem nenhuma perda aparente nesse deslocamento 4 O RSI representa a sequência colocada por Lacan no Seminário 22 que utilizaremos ao longo do trabalho.
193
como Lacan trabalha com o nó borromeano, articulando sobre a subjetividade do sujeito. Abaixo, vemos uma imagem do nó aplainado e sua disposição de entrelaçamento: Figura I - Nó Borromeano aplainado
Imagem retirada de (VORCARO e CAPANEMA, 2017)
Cada um dos anéis acima representa os registros da experiência humana, do ser falante. O nó borromeano deve ser compreendido de maneira entremeada, de modo que se algum deles for cortado os outros dois não se sustentam (Lacan, [1974-75]), expressando assim, a noção de equivalência de suas consistências. O anel na cor azul é representado como a dimensão do Real (R), na cor vermelha o do Simbólico (S) e, na cor verde, a do Imaginário (I). Sua estrutura se dá por alternância, ora um anel passa por cima, ora por debaixo: cada cruzamento remete aos pontos de amarração e de intersecção (representados na Figura I pelos números do um ao seis), formando um elo de dupla equivalência, sendo o terceiro anel - uma marca da ex-sistência5 - aquele que medeia a relação com os outros dois, ajustando assim, a amarração. Por exemplo: nos pontos três e seis, vemos que o Real medeia o cruzamento, a relação entre o Simbólico e o Imaginário (Lacan, [1974-75]). Isso pode significar que a relação simbólica e imaginária se efetuará pelos traços do Real. Nessa alternância dois aspectos são importantes, sendo eles: a) o da alteridade, destacada pela cor que marca uma diferença entre os registros; e, por consequência, b) o da concomitância, quando essa diferença se ajusta pela mediação do terceiro registro, amarrando o nó propriamente dito, ou seja, dando a consistência necessária para a construção da realidade do sujeito. Seis são os pontos de entrecruzamento dos registros, ou interseção, compondo duas camadas, sendo uma mais centralizada, que se verifica pela sequência numeral do um ao três e, outra mais externa, do quatro ao seis. Sabemos que Lacan alerta que o nó borromeano só pode ser apreendido de maneira conjunta, assim como a realidade psíquica, mas buscaremos expor, a partir de agora, cada registro em separado apenas como um recurso didático e explicativo. O registro do Imaginário é aquele que dá consistência para a realidade psíquica, que liga o conjunto dos três registros: “o nó borromeano, enquanto se sustenta pelo número três, é do registro imaginário.” (Lacan, [1974-75], p. 06). Este registro seria responsável pela nossa capaci-
194
dade de invenção. A consistência imaginária nos serve, por exemplo, para marcar uma partida de futebol em dia e horário preestabelecido. Veja com isso que a realidade psíquica constrói algo antes mesmo de algo acontecer. Essa é a importância dada ao imaginário, ligada ao pré-concebido. Entretanto, este também é o registro da fantasia, que opera numa ilusão de uma ligação unívoca entre o objeto e seu conceito ou, também, de que as palavras podem ponto a ponto, abordar sobre o Real, uma ideia de totalidade como se houvesse uma correspondência exata daquilo que falamos e escrevemos com os objetos e coisas que habitam o mundo. Como diz (Araújo, 2014, p. 64), “o Imaginário (...), assume maior relevância enquanto é o que faz ponte entre o Simbólico e Real”. Por outro lado, na junção do Imaginário com o Simbólico, produz-se o que Lacan chama de efeitos de sentido que, justamente, prestam a nossa interpretação e articulação sobre o Real, nessa junção situa-se o fundamento do processo de significação. Faremos um breve desvio para a teoria do Estádio do Espelho, para refletirmos sobre a importância do corpo humano em nosso psiquismo. No início de seu ensino, Jacques Lacan (1998) dando ênfase à dimensão do imaginário, aborda a teoria do Estádio do Espelho, demonstrando a partir do narcisismo de Freud, como se instaura a formação da função do eu. No fundo, é sobre a constituição do sujeito de que se trata tal teoria. O reconhecimento por parte da criança de sua própria imagem no espelho, situa-se como um corte simbólico, a instalação da linguagem no psiquismo, processo pelo qual inaugura a possibilidade daquela dizer sobre si mesma. Três são os tempos lógicos deste processo. No primeiro tempo, a criança ao se olhar no espelho, pensa que sua imagem é a de um outro. Só posteriormente, ela começa a manifestar dúvidas perante sua imagem - “será que sou eu?” - e acaba recorrendo ao adulto que a segura no colo ou, está próximo, para receber deste a confirmação que supre o que lhe faltava. Sendo esta confirmação uma fala advinda do outro, advém como um sinal que efetua um corte, instalando a matriz simbólica e a possibilidade do eu se constituir. "O eu, função imaginária, só intervém na vida psíquica como símbolo". (Lacan [1954-55], 1995, p. 56). É apenas no terceiro tempo lógico que a criança passa a se reconhecer no espelho, através da jubilação de sua própria imagem enquanto articula seus movimentos e, "precipitando-se" neles, capturando-os virtualmente. Esse processo é denominado como "identificação, (...), ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem" (Lacan, 1998, p.97). Decorre desse reconhecimento, dois importantes aspectos, sendo eles: “a permanência mental do [eu], ao mesmo tempo que prefigura sua destinação alienante” (Idem, p. 98). Tal configuração é decisiva sobre o que propomos analisar, por nos dar elementos sobre a importância da imagem do próprio corpo. Segundo Lacan (1998), quando o processo de identificação se inicia - entre seis e oito meses - a criança possui um amadurecimento psíquico não correspondente ao corporal, aquele precede ao domínio deste. É justamente essa hiância, entre
5 Lacan ([1974-1975], p.19) explica a ex-sistência da seguinte maneira: “se define por relação à uma certa consistência, se a ex-sistência não é no final das contas senão esse fora que não é um não-dentro, se essa ex-sistência é de certa maneira esse em volta do que se evapora uma substância.” Percebe-se que Lacan joga com a etimologia da palavra existência, que vem do Latim, existere ou exsistere, e significa “revelar-se”, “tornar-se”, ou também, “ser no real”. A partir daí, a definição colocada toma seu sentido quando relacionada ao Real, por aquilo que deste está circulado e compondo o psiquismo, isto é, dando-lhe consistẽncia de modo a compor o saber humano. Só se pode saber que sabe, quando inscrito simbolicamente.
195
a descoordenação do corpo e a prematuração psíquica, que tensiona ao apego de pontos ideais advindos do júbilo da própria imagem, traçando os contornos desta no psiquismo e, assim, podem ser inscritos como símbolo. Esta inscrição é imaginariamente representada pelo que chamamos de corpo, enunciado como “este (a) sou eu”. Vemos este processo como entrelaçamento dos campos Simbólico e Imaginário sobre o Real. (Lacan, [1974-1975]). Em outras palavras: “para que um corpo seja constituído é necessário que o sujeito se reconheça em uma imagem, que o significante o represente e que o objeto a ordene minimamente seu campo pulsional.” (Coppus, 2013, p. 16). Pensamos na identificação, que é ensinada por Freud e trabalhada por Lacan, como central, já que a imagem do Cristiano Ronaldo e sua relação com o outro, o espectador ou fã esportivo, pode representar a projeção que fazemos sobre nosso próprio corpo, uma vez que o atleta faz aquilo que queríamos poder fazer. Esta noção parece fundamental ao apelo que o esporte possui em nosso imaginário. No seminário 22, Lacan (1974-75) menciona que o registro Simbólico deve ser visto como aquele que faz buraco: porque fura, circula e nomeia o Real, dada a consistência imaginária que o perfaz. Ora, quando uma palavra como “esporte” é utilizada, esta certamente serve para designar algumas atividades humanas, excluindo-se outras que não comportam-se em sua acepção. Daí que, uma das funções do Simbólico seria a de presentificar o Real imaginariamente, bem como, a de produzir sentidos dependentes da cadeia significante do interlocutor. Assim, operando nos limites do compreensível e do inconcebível, do dito e do interdito, produz efeitos de sentido sobre o Real. Neste campo interpretativo sobre o Real, permitindo-nos a reelaboração deste, isto é, transformando o impossível em algo possível, através de uma releitura atuante sobre o aquele. O registro mais difícil de ser conceituado é, sem dúvida, o do Real. Este, não pode ser confundido com a realidade, e representa aquilo que escapa à nossa apreensão. Sendo também o campo do gozo, do impossível de descrever, o Real é a dimensão segundo a qual o sujeito se depara, se defronta. É justamente pela condição negativa dessa dimensão, que impõe dificuldades à nossa apreensão, que o nó borromeano é utilizado por Lacan como recurso de demonstração para dar sentido ao Real, como “Uma escritura que suporta um Real. Só isso já designa que não somente o Real pode suportar-se em uma escritura, mas também, que não há outra ideia sensível do Real.” (Lacan, [1974-75], p. 09). Veja, assim, que o nó borromeano é uma forma de articulação do Real, dando-o alguma medida do saber que ali se materializa, porém, que deixa de fora dessa articulação outros elementos do Real. Daí que, sendo inapreensível pelos conceitos humanos, o Real torna-se uma mola propulsora do dizer para dar sentido ao que ainda não possui sentido. Com relação à prática do futebol, acreditamos poder tocar no Real discursivamente quando, por exemplo, um atacante perde um gol dito “feito” mesmo que sua intenção seria de marcá-lo, ou também, quando ouvimos frases do tipo: “como conseguiu perder esse gol?” ou, “se a bola batesse num poste ela entrava”. Nestes exemplos de fala, podemos captar algum sentido dado ao Real por aquilo que escapa ao sujeito, que foge da intencionalidade do mesmo e que é de difícil explicação. Por outro lado, podemos dizer que as “estrelas esportivas”, seriam aqueles (as) que de alguma forma tornam o impossível em algo possível, nos dando a sensação de ser fácil a execução de algum movimento e o alcance de algum objetivo.
196
Por fim, devemos mencionar que a questão última colocada pela estruturação do RSI é a da subjetividade do sujeito, que ao entrelaçá-los tece sua realidade. Daí que em momentos de crise podem ocorrer cortes nas junções, desamarrações das correspondências entre os registros, o que leva o sujeito a demandar novas amarrações. Estas amarrações são respostas do sujeito frente ao que sente necessário rearticular de sua própria realidade. Isso significa que há também amarrações que permanecem intactas e, outras, que precisam ser rearranjadas. Respondendo aos cortes, há a produção de sentidos outros, que são reinterpretações do real em seus contornos. É também possível haver apenas a construção de novos enlaces sem a necessidade de alguma disrupção. Por outro lado, não podemos deixar de comentar que o nó borromeano deve ser tomado como modelo ideal que não existe (Lacan, [1974-75]), sendo necessário um quarto elo, responsável por efetuar reparos nas falhas constitutivas do sujeito, portanto, de suas amarrações. O quarto elo compreende a singularidade da inscrição efetuada pelo sujeito sobre sua realidade. “Vale notar, entretanto, que a função desse quarto elo será a de amarrar os três anéis soltos e resgatar a condição borromeana que falta à constrição destes.” (Carpanema e Vorcaro, 2017, p. 391-392). Neste caso, pensamos que o quarto elo serve para situações de traumas, que desmancharam a propriedade borromeana. Por certo, as operações que sustentam as novas amarrações aparecem como efeitos manifestados pela fala do sujeito, que em última instância, trata-se do processo de significação. Após, breve explanação do RSI iremos, a partir de agora, analisar o discurso do Cristiano Ronaldo. Devemos mencionar que nosso foco está em localizar, pelo processo de produção de sentido do atleta alguns elementos dos três registros.
Método de análise Para análise dos materiais midiáticos, utilizamos como método os conceitos advindos do nó borromeano de Lacan [1974-75]. Buscamos trabalhar com os pontos de amarração, os quais apontamos anteriormente sobre o conjunto dos três registros. Com relação à imagem do Cristiano Ronaldo em sua comemoração do gol, os registros do Imaginário com o Real tiveram ênfase, pela importância da imagem ao nosso olhar, seja como pesquisador, leitor, enfim, do espectador e do atleta, e que serviu de elemento de apoio para a interpretação e construção de nossos argumentos, que obviamente são tecidos simbolicamente, isto é, o Símbolo está situado na articulação do próprio estudo; em relação a entrevista do mesmo atleta, tomada como discurso, fica claro que estamos tratando com o registro Simbólico, na medida em que este é materializado em sua fala. Neste caso, partimos do Simbólico para os outros dois registros. O discurso foi transcrito pela própria mídia e integralmente incluído na forma de três fragmentos, - excluímos os comentários que não foram do atleta - com os quais fizemos um movimento de refletir sobre quais poderiam ser os pontos de amarração na resposta do atleta. Se demos ênfase a um ou a outro registro, foi na medida em que interpretamos o discurso, e isso se deu a posteriori, em meio ao processo próprio da análise, como efeitos de sentido resultantes de nossa interpretação.
197
Interpretando a comemoração e o discurso de Cristiano Ronaldo Não há Imaginário que não suponha uma substância. (Lacan, [1974-75], p. 09) Após explanação sobre o RSI como a realidade psíquica do sujeito, nos falta ainda abordar o que pode significar o gol em termos psicanalíticos, já que o discurso do Cristiano Ronaldo trata exatamente da relação gol-comemoração6. Para depois, tentarmos localizar alguns elementos da realidade do atleta em relação aos três registros. O gol é um momento de grande entusiasmo no futebol: gritamos, pulamos, nos abraçamos, e até choramos face aos sentimentos que o mesmo desperta em nós humanos. Seu acontecimento provoca grande excitação7 e, por isso, acreditamos poder tomá-lo como um modo de gozo8. Segundo Lacan [1974-75, p. 44], “O gozar, se assim podemos dizer, está no horizonte, desse mais e desse menos. É um ponto ideal.” Partindo desta afirmação, pensamos no gol como ponto ideal demandado pela ideia de vitória, que seria o ideal esportivo no qual se acredita. Ora, se não houvesse uma dose de crença na vitória, seja pela possibilidade de marcar um gol ou de impedir que mesmo seja alcançado pela equipe adversária, não haveria disputa. Por conseguinte, pensamos na vitória como elemento orientador do esporte, sobre o qual a noção de valor aparece, justamente por evocar certas expectativas incutidas no próprio jogo: uma final de Copa do Mundo tem uma importância superior a qualquer outra competição do futebol. Decorre assim, que o valor de uma partida não se restringe somente à ideia de vitória, está na relação desta com outros significantes, que de todo modo, recebem interferência daquela. Se o gol é um representante do gozo, a comemoração manifesta-se como um modo de gozar, dado o modo de satisfação que o mesmo desperta. Após a entrada da bola no gol o atleta corre para sua comemoração e o mesmo sabe que as câmeras estão gravando seus movimentos, que o público o está observando e que sua imagem é transmitida tanto no telão do estádio como na televisão. É dessa maneira que vemos trabalhar-se com a dimensão imaginária. Meeuwsen e Zwart (2023, p. 3) comentam que a dimensão imaginária no futebol desempenha um papel importante quando imagens de jogadores famosos são ampliadas e demonstradas como ícones de times importantes, e também, quando nas redes sociais há o compartilhamento tanto de imagens, como de narrativas sedutoras que envolvem tais jogadores mantendo nosso desejo aceso. Vemos assim, através da imagem, operar-se uma ligação daquele que assiste com aquele que joga. Observamos abaixo a imagem do jogador Cristiano Ronaldo no momento de sua emblemática comemoração de um gol, a mesma que iremos abordar no tocante a seu discurso.
198
Cristiano Ronaldo comemorando um gol
Fonte:https://www.espn.com.br/futebol/artigo/_/id/9177748/cristiano-ronaldo-reestreia-pelo-manchester-united-deonde-surgiu-sua-comemoracao-iconica-craque-lembra-primeira-vez-que-fez-e-explica. Acesso em: 24/05/2022.
A expressão segundo a qual “uma imagem vale mais do que mil palavras”, retrata como o uso da imagem acima opera em nosso Imaginário, oferecendo-nos a certeza de seu acontecimento. Estamos diante de uma certeza sobre o Real. Daí que este registro aparece articulado tanto no foco dado ao corpo do atleta em sua forma, quanto no pano de fundo do estádio desfocalizado, sendo-nos possível interpretar. Em relação às possibilidades interpretativas sobre o Real, o foco está na construção do atleta, e o mesmo reconhece isso, faz referência a seu número e seu nome já que vira de costas para mostrá-los. Daqui, nos parece que a forma corporal, que se vê na imagem, vai se tornando um símbolo. Porém, em relação ao campo do Simbólico, devemos dizer que focaremos no discurso do atleta para que possamos pensar na comemoração por sua própria ótica, a do sujeito. Em entrevista para o canal "Soccer.com" do YouTube, veiculado pela matéria da ESPN, Cristiano Ronaldo responde a pergunta "de onde surgiu sua comemoração icônica?", da seguinte maneira:
6 Apesar de não termos trabalhado com o conceito de gozo de Lacan até o momento, não há como deixar de pontuar sobre a ideia de gol como um gozar, visto sua força mobilizadora de afetos, arrolados neste momento. Devemos também situar que o gozo é aquilo que articula sobre si um ponto ideal no qual se acredita (Lacan, [1974-1975] 7 Estamos tomando a posição daqueles que vibram com o gol. Descartamos aqueles que ficam de algum modo afetados negativamente, no sentido de torcer contra. 8 Encontramos a sugestão de tomar o gol como gozo no trabalho de Meeuwsen e Zwart (2023), em que desenvolvem a questão da proibição do uso da mão no futebol a partir da psicanálise lacaniana
199
Fragmento 1:
"Eu marquei o gol e simplesmente saiu. Foi natural, honestamente. Desde aquilo, eu comecei a fazer isso com mais frequência" - grifo nosso. A dificuldade de elencar certos motivos para explicar sua comemoração, parece-nos sugerir o campo do Real como o impossível de descrever, quando o atleta menciona: “simplesmente saiu. Foi natural”. Sendo a comemoração um momento de grande excitação, liga-se a noção de espontaneidade e de não intencionalidade, e assim, ocorre naturalmente, acontece. Isto nos faz refletir sobre o aspecto pulsional do corpo, como algo que impele o sujeito a agir sem que o mesmo tenha total controle da situação. É o que parece ter acontecido na comemoração. Por outro lado, o discurso do atleta muito provavelmente é a primeira tentativa do mesmo em articular o que aconteceu, que visa abordar sobre sua atuação no Real. A noção de gozo pode ser arrolada pela enunciado “com mais frequência” , situando um movimento do gol à comemoração, uma força que impulsiona a repetição de tal acontecimento. Interpelado sobre o porquê do grito “sim” no comemoração do gol, Cristiano Ronaldo responde o seguinte: Fragmento 2:
"Quando vencíamos, todo mundo falava 'siiii' e então eu comecei a falar. Não sei por quê, foi natural" - grifo nosso. Destacamos novamente como o Real é marcado pela naturalidade do grito “sim”, do mesmo modo que abordado anteriormente. Por outro lado, é curioso como o “sim” está apoiado numa justificativa: refere-se à relação de Cristiano Ronaldo com seus companheiros de equipe que, ao ganharem as partidas, diziam a mesma palavra no vestiário. Veja com isso que o uso do “sim” não é uma simples palavra, mas demonstra certo desencadeamento deste significante em relação a outros, isto é, na relação com o outro que a palavra toma sentido, outro (s) seus companheiros. Em outras palavras, o “sim” carrega uma série de acontecimentos, significantes anteriores que produz sentido, situa-se como um discurso vinculado às vitórias. Como discorre Lacan sobre os efeitos da linguagem e a constituição do sujeito, o discurso é sempre discurso do Outro, da linguagem. Aí que o registro Simbólico é acionado, como discurso que se refere a um outro, que por efeito do Imaginário amarra aos acontecimentos, servindo-lhe de matéria prima para escavar de onde vem o “sim” em sua comemoração. Abaixo, o terceiro e último fragmento, talvez o mais emblemático de sua entrevista: Fragmento 3:
"Eu sinto que os torcedores e fãs olham e pensam 'Cristiano, siiiiuuuuu'. Eu penso: 'Uau! As pessoas se lembram de mim por isso'. Isso é bom, e eu vou continuar fazendo assim" - grifo nosso. Em seu processo de significação, vemos que o Cristiano Ronaldo nutre-se do olhar do outro, chegando a imaginar o que os torcedores e fãs pensam. Esta suposição tem uma natureza mítica, uma vez que o atleta acredita saber sobre o pensamento alheio. É justamente aí que encontramos
200
o efeito imaginário, que cria a consistência ao saber e lhe serve de suporte para concluir que sua comemoração é boa por lembrarem dele. Vemos, assim, a relevância da afetividade nessa construção. A captação especular do atleta para com os torcedores e fãs, acompanhada de sua própria interpretação, retrata a importância desse olhar como elemento do conjunto das reações na comemoração, criando laços afetivos, envolvendo desejos potentes com os mesmos. Esses laços sociais permitem-nos pensar na relevância do gol no futebol.
Considerações finais As considerações em torno da imagem e do discurso de Cristiano Ronaldo sobre sua comemoração, situam-se como uma interpretação pautada nos registros da realidade humana: Real, Simbólico e Imaginário - RSI. Dessa forma, assumimos a posição de sujeitos da interpretação, o que pressupõe certos sentidos construídos, ao mesmo tempo em que deixa algo de fora, sem ser mencionado ou abarcado devidamente. Isso não prejudica o conjunto de nossa análise. Pelo contrário, se só podemos produzir sentidos parciais, estes podem ser analisados criticamente suscitando sentidos outros, próprios do movimento da linguagem e do saber humano. Com isso não há uma essência ou interpretação última, conquanto, leituras e releituras do discurso esportivo. Por fim, na tentativa de aproximar a Teoria Psicanalítica com a Filosofia do Esporte, lidamos com o desejo que circula no futebol. Daí a importância do gol nessa circulação e na estrutura simbólica desse esporte, visto que a vitória aparece não só como ideal que se manifesta de diferentes formas materiais, mas como uma “falta”, aquilo que falta ao esportista, que sempre a buscamos e ali pode-se haver o desejo. Este, como falta, é justamente o que cria os laços entre sujeito e esporte, se apresentando como um tema relevante e que devemos ainda avançar.
201
202
Referências Capanema, C. A; Vorcaro, A. M. R. (2017). A condição do ser falante no nó borromeano. Revista - Estilos da clínica, São Paulo, v. 22, n. 2, maio/ago. 388-405. Coppus, A. N. S. (2013). O lugar do corpo no nó borromeano: inibição, sintoma e angústia. Revista - Tempo psicanalítico, Rio de Janeiro, v. 45.1, p. 15-27. Lacan, J. (1973) Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. Lacan, J. Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. Lacan, J. (1973) Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. Lacan, J. (1954-55) O Seminário, livro 02: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995. Lacan, J. ([1974-1975]). Seminaire 22: RSI. Inédito. Disponível em http://staferla.free.fr/S22/S22%20R.S.I..pdf Lopez-Frias, F. J. and A. EDGAR. 2016. Hermeneutics and sport. Sport, Ethics & Philosophy 10 (4): 343–48. 10. 1080/17511321.2016.1272133 Meeuwsen, S. and H. Zwart. (2023). Hands, feet, eyes, and the object a: A Lacanian Anatomy of football. Sport, Ethics & Philosophy 17 (2): 1–16. 10.1080/17511321.2023.2195681 Roble, O. J. (2023). Destiny of Drives and the Triangular Method: Starting Points for a Psychoanalytic Philosophy of Sport. Sport, Ethics & Philosophy 17 (4): 1-16. 10.1080/17511321.2023.228153. Roble, O. J. Filosofia do Impulso como método para os estudos do corpo e das práticas corporais. In: Essencialmente Sanguíneo: Textos sobre esporte, dança e filosofia do impulso. Curitiba: Editora CRV, 2022. Tfouni, L. V; Prottis, M. M. M. L; Bartijotto J. (2017). “... lá onde o amor é tecido de desejo ...”: lalangue e a irrupção do equívoco na língua. Revista - Cadernos de Psicanálise (CPRJ), Rio de Janeiro, v. 39, n. 36, p. 141-159, jan./jun.
203
204
O lúdico como elemento do esporte Judson Cavalcante Bezerra Professor Auxiliar no Departamento de Educação Física da UFRN (Brasil) e Mestre em Educação Física pela UFRN (Brasil) Petrúcia Nóbrega Professora Titular da UFRN (Brasil) Pós-Doutorado em Filosofia na PUC-SP (Brasil) e em Filosofia e Educação Física na Université de Montpelllier (França)
205
206
O lúdico como elemento do esporte Judson Cavalcante Bezerra, Professor Auxiliar no Departamento de Educação Física da UFRN (Brasil) e Mestre em Educação Física pela UFRN (Brasil).
Petrúcia Nóbrega, Professora Titular da UFRN (Brasil), Pós-Doutorado em Filosofia na PUC-SP (Brasil) e em Filosofia e Educação Física na Université de Montpelllier (França).
Introdução Passados mais de oitenta anos desde a sua publicação, as teses do “Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura” postuladas por Huizinga (1872-1945) em 1938 continuam repercutindo e provocando estudiosos de diversas áreas do conhecimento. No Brasil, a abordagem do jogo integrado à cultura e a crítica ao esporte moderno tecidas por Huizinga contribuíram substancialmente para o debate epistemológico no campo da Educação Física e do Esporte a partir da década de 1980. Uma interpretação corrente do Homo ludens ficou marcada pelas fortes críticas em torno da interface esporte e lúdico, a qual opunha esses fenômenos de maneira tal que um não poderia existir na presença do outro (Bruhns, 1993; Santin, 2001; Bracht, 2005; Soares, 1992). Nesse cenário, o jogo e a brincadeira apresentaram-se como importantes alternativas pedagógicas e metodológicas. Tanto o jogo como a brincadeira apareceram nos discursos e práticas educacionais da época como alternativas inevitavelmente lúdicas, em oposição ao esporte que nada de lúdico poderia oferecer. O desdobramento desse pensamento culminou num forte movimento de repulsa a presença do esporte na escola com o argumento de que a exigência pelo alto rendimento no esporte não condizia com os valores educativos progressistas e críticos da época. Hoje, parece consenso a acepção de que o esporte de alto rendimento não representa a única forma de expressão do fenômeno esportivo. De acordo com Tubino (2001), o esporte pode ser expresso também no âmbito da escola e do lazer sem comprometimento do seu princípio agonístico. Na escola, Kunz (2004), Soares e seus colaboradores (1992), pensando na importância do esporte para a Educação Física escolar e para a formação crítica e humana de crianças e adolescentes, propõem uma transformação didática, crítica e pedagógica do esporte. 207
Mais tarde, os estudos de Stigger (2002) demonstraram que a expressão do esporte não se dá da mesma maneira em todas as sociedades e grupos sociais, tampouco que a expressão do esporte de alto rendimento deve ser considerada a expressão hegemônica do esporte tendo em vista a multiplicidade de possibilidades de sentidos e significados atrelados a vivência dessa prática corporal no âmbito do lazer. Apesar da crítica ao esporte moderno, as teses sobre a presença do elemento lúdico na cultura veiculadas no Homo ludens não recusam a presença do lúdico nas formas agonistas de expressão do jogo, mas revelam, por outro lado, a decadência desse elemento primordial nas sociedades modernas, sobretudo, ocidentais. É possível que a interpretação dos postulados de Huizinga no Brasil, no período em destaque, tenha orientado as críticas mais pelo segundo viés do que pelo primeiro. Ora, se o esporte configura uma importante expressão agonista de jogo na modernidade, e o lúdico pode ser entendido como o terreno sensível que nutre e dá sentido ao jogo, podemos depreender, portanto, que o lúdico também pode revestir de sensibilidade o esporte e que a sua expressão conforma mais uma maneira ou estilo do que uma decadência do elemento lúdico nas sociedades modernas ocidentais. Merleau-Ponty (1945/2018) nos convida a ampliar os sentidos e significados das experiências vividas a partir de uma interpretação sensível do mundo, situando o corpo estesiológico como o ponto de partida para as reflexões. Assim, nossas reflexões neste ensaio buscam ancoragem nas contribuições de Merleau-Ponty para esboçar uma releitura fenomenológica da interface esporte, jogo e lúdico a partir da teoria do Homo ludens de Johan Huizinga.
O esporte em Huizinga Johan Huizinga (1872-1945) foi um historiador e linguista holandês, que se destacou pelo seu estilo crítico, artístico, antropológico e filosófico de narrar os eventos históricos. A obra em destaque utilizada como principal referência para este ensaio pode ser considerada um clássico sobre o jogo e um dos textos mais conhecidos e importantes desse autor. No entanto, nossa interpretação da obra indica que a essência do Homo ludens reside no lúdico e não no jogo, e que Huizinga dedicou demasiada atenção ao jogo, em detrimento do lúdico. Essa atenção seletiva pelo jogo encontrou respaldo na orientação antropológica das reflexões sobre o tema circulantes no período de publicação de sua obra como indica Enriz (2011). O desafio do autor na obra consistiu em defender a necessidade emergente de uma compreensão integrada dos fenômenos jogo e cultura para a compreensão histórica da origem e do amadurecimento dos costumes no processo de humanização da humanidade. Nesse exercício,
208
Huizinga revela a existência da atividade lúdica humana inerente ao jogo que permeia e dá sentido aos costumes, revelando a disposição criadora que o jogo imprime sobre a cultura, além de um novo modelo de homem que a ciência da época não deu conta de compreender: o Homo ludens. Huizinga não tem a intenção, portanto, de defender uma teoria evolucionista da cultura, como se tudo que existisse antes da cultura fosse jogo e que esses jogos evoluíram a um modelo de cultura tal como a concebemos hoje. Ao contrário, sua tese instala uma concepção de cultura integrada à concepção de jogo, a qual compreende que a cultura se desenvolve num contexto de jogo, situando a atividade lúdica como um traço constitutivo do ser humano que o acompanha desde a origem da espécie. São dois os aspectos fundamentais para a compreensão do que deve ou não deve ser considerado jogo em Huizinga: uma luta por alguma coisa, ou a representação de alguma coisa; e a combinação desses aspectos na representação de uma luta, ou uma luta para melhor representar alguma coisa. Afinal, nem tudo é jogo, mas segundo o autor é possível identificar na cultura a expressão desses aspectos fundamentais em manifestações culturais desde as sociedades mais primitivas. As características formais do jogo, por outro lado, demarcam a elaboração conceitual de jogo explorada pelo autor do início ao fim da obra, tornando-se uma valiosa contribuição entregue à comunidade acadêmica e literária. De acordo com Huizinga (1938/2017, p. 16), o jogo pode ser considerado como: uma atividade livre, conscientemente tomada como ‘não-séria’ e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. Promove a formação de grupos sociais com tendência a rodearem-se de segredo e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo por meio de disfarces ou outros meios semelhantes. O esporte configura, assim, uma prática corporal que reúne aspectos fundamentais e características formais necessárias a sua inserção no domínio do jogo. As características formais e aspectos fundamentais apresentadas por Huizinga são importantes para compreender no Homo ludens como é possível observar, desde as culturas mais primitivas, a expressão da atividade lúdica. Afinal, toda a cultura das sociedades primitivas teve origem e se desenvolveu num contexto de jogo marcado pelas mais elevadas formas de representação. Seria possível identificar nos rituais primitivos todas as características formais
209
do jogo, sobretudo, aquela que se refere a instalação de um tempo e espaço distintos do habitual, dentro da mais perfeita seriedade, o que revela o tom sagrado do ritual no jogo, marcado pela instalação de um “círculo mágico”. O sagrado do ritual no jogo a que Huizinga se refere pode ser compreendido pela suspensão da vida corrente e imersão numa vida paralela marcada mais pela lógica do sensível que pela lógica da razão. E a razão, nesse movimento, tem o poder de ofuscar a expressão da sensibilidade sem comprometer, contudo, a ordem estabelecida no ritual, e o iniciado se submeter intencionalmente ao jogo sem, contudo, acreditar de fato na existência dos deuses ou dos demônios. O ritual pode se desenvolver naturalmente num contexto de jogo, no entanto a expressão do sentido lúdico daquela experiência encontra-se constantemente ameaçada pela razão. É justamente o arrebatamento, a vertigem, o êxtase, a suspensão da razão, que torna a experiência do ritual e do jogo uma experiência lúdica e sagrada: “é nos domínios do jogo sagrado que a criança, o poeta e o selvagem encontram um elemento comum” (Huizinga, 1938/2017, p. 30). Todas as práticas e costumes que ameaçam, portanto, a expressão do lúdico são consideradas profanas por Huizinga. No ritual, assim como no jogo, os participantes devem mergulhar na mais profunda seriedade, pois o tempo, o espaço e as regras estabelecidas devem ser assumidos por todos. Qualquer deslize pode quebrar o feitiço da vida no jogo e a vida paralela reivindicar para si o status de verdadeira. A suspensão do tempo e do espaço, das normas e dos papéis sociais da vida corrente, mesmo que por um instante, para entregar-se deliberadamente a uma vida no jogo parece ser uma tarefa fácil, mas não é. Quando isso acontece, é possível observar nos participantes a expressão de sentimentos de euforia, medo, alegria, tensão, excitação, entre outros. Nas cerimônias rituais e festivas, Huizinga sublinha que a máscara funciona como uma espécie de catalisador da experiência de suspensão da vida quotidiana. Como visto, a antítese do sagrado e do profano no Homo ludens é assente. Muitos argumentos de Huizinga giram em torno dessa relação. Percebamos que Huizinga não trata o jogo e o lúdico como sendo a mesma coisa, tampouco que o segundo funciona em resposta ao primeiro. Pelo contrário, jogo e lúdico caminham lado a lado, enquanto o jogo é a semente fecunda para o desenvolvimento da cultura e da vida em sociedade, o lúdico é o solo fértil que nutre e dá sentido ao jogo, mas o lúdico, ao contrário do jogo, não é um elemento dado que pode ser observado, caracterizado, classificado ou regulado, o lúdico é subjetivo e contingente a experiência, o que impossibilita a sua determinação. A competição é então apresentada como uma forma de expressão agonista do jogo desde as culturas mais primitivas. O desejo de chamar a atenção para si, de ser o herói de alguma conquista pessoal ou coletiva, de ser elogiado e homenageado dão sentido à competição, tornam o jogo querido e fascinante. Para Huizinga, a competição talvez seja a mais fascinante e significativa possibilidade de manifestação do lúdico no ser humano, a qual, segundo o autor, pode ser imediatamente
210
cristalizada pelos sujeitos coletivos e individuais como costume, como cultura. No entanto, o próprio Huizinga revela que à medida que a humanidade vai se tornando mais civilizada, verifica-se uma decadência do princípio agonístico primitivo, sendo o esporte moderno uma forma de expressão do jogo estéril para a cultura, além de uma tentativa compensatória do lúdico decadente. A tese do lúdico decadente é trabalhada por Huizinga a partir da antítese esterilidade e fertilidade na capacidade da humanidade desenvolver seus costumes num contexto de jogo, podendo ser mais ou menos fértil para a produção de cultura segundo a sua capacidade de encerrar um sentido lúdico ou sagrado. O esporte moderno, segundo Huizinga, constitui-se uma atividade compensatória e profana do lúdico, porque se desenvolve conforme várias características formais do jogo, mas está submetido a processos de racionalização, especialização e profissionalização que o afastam das possibilidades de expressão e manifestação do lúdico primitivo e sagrado, por ser demasiado sério, tornando-se assim uma atividade estéril para a cultura. O impulso à competição, demarcado por Huizinga como o princípio agonístico que conduz os humanos a experimentar o lúdico em diversas formas de manifestação da cultura podem extrapolar os limites do esporte e se estender ao direito, à guerra e à ciência, por exemplo. Se nas culturas primitivas as fronteiras entre jogo e cultura não existiam, e a humanidade vivia mergulhada numa dimensão lúdica, Huizinga observou que desde o período do Império Romano é possível identificar um movimento de sofisticação dos costumes que não condiz com uma expressão natural do lúdico, e os jogos passaram a desempenhar uma função compensatória do lúdico em decadência, marcada pela decadência da unidade jogo e sagrado, e avanço da unidade jogo e profano. O avanço dessa última unidade, no contexto da vida social moderna, tem provocado a ilusão de um fator lúdico fortemente desenvolvido, porém estéril para a cultura. Puerilismo1 definitivamente foi a palavra encontrada por Huizinga para caracterizar a referida ilusão. Huizinga foi um homem de seu tempo e não deixou escapar o tom pessimista com que percebeu o período em que viveu. As antíteses do sagrado e do profano no jogo, e da fertilidade e da esterilidade do jogo em ser capaz ou não de cristalizar-se em forma de cultura, parecem ganhar mais evidência no final do século XIX e início do século XX. O autêntico jogo primitivo, sagrado e fértil para a cultura parece ter cedido seu lugar a formas mais sofisticadas de jogo, porém profanas e estéreis para a cultura. O autor argumenta que é possível ainda observar diversas formas de manifestação do jogo na contemporaneidade, mas manifestações vazias da dimensão lúdica do espírito. Um exemplo fortemente atingido pelas críticas de Huizinga é o caso do esporte moderno: primeiro por ter convertido jogos com bola em esportes que demandam a existência de equipes permanentes; segundo porque forjou a especialização dos papeis e consequentemente a transição do amadorismo para o profissionalismo; terceiro porque a sistematização,
1 Puerilismo foi um conceito trabalhado por Huizinga também na obra intitulada Nas sombras do amanhã.
211
a racionalização e a regulamentação do esporte implicaram a perda de qualidades lúdicas importantes. O lúdico, dessa maneira, tem sido deslocado da vida social contemporânea e substituído por formas mais sérias e mais sofisticadas de viver e estar no mundo. Entretanto, desde o período histórico em análise no final da obra, o que percebemos é um movimento de ressignificação do princípio agonístico. Atualmente, o esporte moderno parece haver se tornado a expressão lúdica máxima na cultura. Tanto pela ótica do esportista, como pela ótica do espectador. A atividade lúdica primitiva parece ter se transformado numa forma de princípio agonístico marcado pela competição no esporte, aderindo aos avanços da globalização, da publicidade, do consumo, da ciência e das novas tecnologias. A fase agonista, ao contrário do que pregou Huizinga em 1938, não parece pertencer ao passado, mas tornou-se ainda mais marcante no presente, sobretudo nas formas de cultura globalizadas do ocidente ao oriente. Se o princípio agonístico no esporte ganhou evidência na contemporaneidade, é possível que o lúdico não tenha caído em decadência. É importante enfatizar que uma das maiores contribuições de Huizinga foi integrar a noção de jogo a noção de cultura. Seu propósito central foi descrever e compreender a existência de uma dimensão lúdica humana que impulsiona as relações sociais a se desenvolverem num contexto de jogo. Embora não estivesse entre as suas pretensões, essa abordagem situa o lúdico como um traço ontológico e estesiológico do ser humano. Logo, a teoria do Homo ludens precisa ser revisitada. Embora Huizinga não tenha tido a oportunidade de avançar nas suas teses, sua teoria colocou o jogo e o lúdico em evidência. O Homo ludens representa mais que uma notação científica, representa uma dimensão humana que coabita, junto com as dimensões sapiens, faber e demens, entre outras, o humano, e revela a complexidade de saberes e práticas que atravessam o corpo. A fenomenologia do corpo de Merleau-Ponty, por exemplo, acena para uma compreensão que integra corpo, espírito, mente, alma, razão, sensibilidade, natureza e cultura, e oferece um caminho alternativo e possível para o diálogo e para uma releitura do Homo ludens.
Contribuições de Merleau-Ponty para uma releitura do lúdico no esporte A filosofia nos ensina a assumir uma postura de eterna suspeita diante das coisas, das ideias, das experiências, dos sentimentos, enfim, das questões da vida e do mundo vivido. É mediante essa postura que buscamos ancoragem nas contribuições de Merleau-Ponty para esboçar uma releitura fenomenológica da interface esporte, jogo e lúdico. A fenomenologia, corrente filosófica especialmente conhecida pelas contribuições de Merleau-Ponty (1908-1961) na contemporaneidade sugere um movimento de retorno às essências
212
dos fenômenos. De acordo com Merleau-Ponty (1945/2018, p. 1), “a fenomenologia é o estudo das essências, e todos os problemas, segundo ela, resumem-se em definir essências”. O movimento de retorno praticado sugere, ainda, uma abordagem crítica e alternativa aos modelos empirista e idealista de produção do conhecimento. Esse movimento é assim descrito pelo próprio Merleau-Ponty (1945/2018) mais como um estilo ou maneira orientado por caminhos de sentidos e significados, do que por verdades absolutas e imutáveis. Nesse percurso, a percepção revela o mundo sensível como o mundo pelo qual os sentidos e significados atribuídos às experiências devem realmente aparecer e compor a síntese do conhecimento. Mas “a percepção não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles” (Merleau-Ponty, 1945/2018, p. 6). A percepção compõe, assim, uma espécie de arco intencional que põe o corpo em relação ao mundo na evidência do conhecimento. A noção de intencionalidade presente na ideia de arco intencional: projeta em torno de nós nosso passado, nosso futuro, nosso meio humano, nossa situação física, nossa situação ideológica, nossa situação moral, ou antes que faz com que estejamos situados sob todos esses aspectos. É este arco intencional que faz a unidade entre os sentidos, a unidade entre os sentidos e a inteligência, a unidade entre a sensibilidade e a motricidade (Merleau-Ponty, 1945/2018, p. 190). Situar o corpo em relação ao mundo percebido como evidência do conhecimento significa atribuir estatuto privilegiado a experiência vivida como uma fonte primordial para a construção de sentidos e redes de significados. A síntese do conhecimento, portanto, não deve se dar pela via do empirismo ou do idealismo, por exemplo, mas pela via do fenômeno situado tal qual ele se expressa antes mesmo de qualquer juízo que a ele possamos emitir. Visto por essa ótica, o fenômeno não existe pela sobreposição de suas partes ou pela consciência que eu possa fazer dele, mas pela maneira que ele se expressa para mim. A expressão se apresenta como outro importante elemento para a construção do pensamento de Merleau-Ponty. Uma vez que configuramos a ordem do mundo sensível e da percepção sobre a apreciação dos fenômenos, a expressão revela que a dimensão ontológica do conhecimento reside no corpo. É o corpo a fonte primordial de qualquer sentido ou significado para mim. É a partir dele que devemos enxergar a condição existencial e contingente das experiências vividas. O processo de construção de sentidos e significados é um processo aberto e em movimento, pois a expressão emerge da existência corpórea e inacabada do humano no mundo. A abordagem fenomenológica ao nos provocar um retorno as coisas mesmas para fazer emergir as essências dos fenômenos, convida-nos a pensar sobre o lúdico a partir da nossa 213
experiência e da interpretação dos escritos de Huizinga, estimando a importância e o impacto de sua obra sobre os discursos e práticas em torno da interface esporte, jogo e lúdico no Brasil. A esse respeito, Huizinga procura demonstrar, em linhas gerais, que a essência do jogo reside no lúdico, mas que a humanidade tem experimentado um processo de decadência da expressão do lúdico conforme se desloca de uma condição menos civilizada para a uma condição mais civilizada. Segundo essa compreensão, o lúdico poderia ser extinto com a extinção também do jogo em virtude do progresso civilizatório desenfreado. O esporte moderno, nessa perspectiva, funcionaria como uma atividade compensatória do lúdico decadente. Destarte, procuramos apresentar uma alternativa a essa compreensão pautada numa abordagem fenomenológica, concebendo o lúdico como uma expressão sensível ancorada na estesiologia do corpo, ampliando os sentidos e significados das experiências vividas. O lúdico
concebido como uma expressão sensível, não pode ser determinado, pois é contingente, pode ou não acontecer; e estesiológico, no sentir mesmo, porque se dá no corpo em situação de abertura a percepção, à intencionalidade, aos sentidos e aos desejos. Alçamos, desse modo, o lúdico a uma categoria filosófica que se expressa como um fenômeno independente do jogo e do esporte, mas que guarda com estes uma imbricada relação.
A experiência de jogo não reflete uma percepção invariável nos seus jogadores, pois um dos seus elementos mais marcantes é justamente a incerteza. A incerteza que provoca sensações de vertigem, arrebatamento, tensão, excitação, alegria, tristeza e prazer, sensações que podem ajudar a compreender o lúdico. Quando jogamos, aderimos ao jogo, sentimos e somos sentidos pelo jogo e pelos outros jogadores, e encontramos na plenitude desta ação a possibilidade da expressão do lúdico, que não deve ser reduzida aos sentimentos de prazer ou divertimento, mas ampliada a sensibilidade dessa experiência, que pode ser descrita como um sentimento de vertigem, tensão, excitação, arrebatamento, entre outros. Sempre desde o ponto de vista do sujeito da experiência. Nunca determinado antecipadamente. O lúdico alçado a uma categoria filosófica particular e concebido como uma expressão sensível do corpo estesiológico, sempre encontra uma maneira de se exprimir na existência a partir das experiências vividas sejam elas no jogo, na brincadeira, na dança, nas lutas, na guerra, no direito, na arte, nos rituais primitivos como nos demonstrou Huizinga no Homo ludens; sejam elas nas formas de expressão entre as camadas mais civilizadas da humanidade, sem restrição, nas quais o esporte não deve ser concebido como uma atividade compensatória do lúdico perdido, mas uma das principais formas de expressão do lúdico na contemporaneidade. Olhando para o esporte enquanto mais um fenômeno no mundo sensível das experiências vividas, como nos ensina Merleau-Ponty, parece-nos mais coerente acreditar que o lúdico também pode revestir de sensibilidade o esporte e que a sua expressão conforma mais uma maneira ou estilo do que uma decadência nas formas de expressão do lúdico nas sociedades contemporâneas ocidentais. 214
Considerações finais Hoje, o cenário da Educação Física escolar brasileira é outro. O esporte em sua perspectiva educacional está previsto na Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2018) e já figura como o conteúdo mais extenso do seu currículo em virtude do seu impacto social. Acreditamos que as críticas ao esporte que sustentam a antítese com a expressão do lúdico não reconhecem esse fenômeno pelo viés sensível e estesiológico que procuramos imprimir neste artigo a partir da interpretação da experiência vivida a releitura dos escritos de Huizinga no Homo ludens. Afinal, nem toda expressão de jogo ou brincadeira corresponde um sentido lúdico absoluto, nem toda expressão do esporte está isenta das possibilidades expressivas do sentido lúdico da experiência. Portanto, vimos neste artigo que a essência do lúdico reside muito mais além da compreensão linear que se possam fazer dele. O sentido lúdico da experiência não pode ser dado antecipadamente, apenas vivido e descrito em situação. O que podemos fazer é tecer um esboço das suas possibilidades expressivas a partir dos elementos sensíveis que ele anuncia.
Referências Bracht, V. (2005). Sociologia crítica do esporte: uma introdução. Ijuí: Ed. Unijuí. Brasil (2018). Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC. Bruhns, H. T. (1993). O corpo parceiro e o corpo adversário. Campinas, SP: Papirus. Enriz, N. (2011). Antropología y juego: apuntes para la reflexión. Cuadernos de Antropología Social, nº 34, pp. 93–114. Huizinga, J. (1938/2017). Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 8ª Edição. Tradução por João Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva. Kunz, E. (2004). Transformação didático-pedagógica do esporte. Ijuí: Ed. Unijuí. Merleau-Ponty, M. (1945/2018). Fenomenologia da percepção. 5ª ed. Tradução por Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes. Santin, S. (2001). Educação Física: da alegria do lúdico a opressão do rendimento. 3ª Edição. Porto Alegre: EST Edições. Soares, C. L. et al. (1992). Metodologia do ensino da educação física. São Paulo: Cortez. Stigger, M. P. (2002). Esporte, lazer e estilo de vida: um estudo etnográfico. Campinas: Autores Associados. Tubino, M. J. G. (2001). Dimensões sociais do esporte. São Paulo: Cortez.
215
216
Da conjunção de categorias estéticas na compreensão do valor estético do desporto: acerca de imprevisibilidade e superação Teresa Oliveira Lacerda Universidade do Porto, Faculdade de Desporto, CIFI2D
217
218
Da conjunção de categorias estéticas na compreensão do valor estético do desporto: acerca de imprevisibilidade e superação Teresa Oliveira Lacerda
Universidade do Porto, Faculdade de Desporto, CIFI2D [email protected]
1. Introdução Se falar de desporto e de superação pode constituir um lugar-comum, relacionar superação com imprevisibilidade procurando iluminar o poder desta associação na compreensão do valor estético do desporto, talvez traga algo de novo. Exceder o expectável, procurar a excepcionalidade, ir além do limite redefinindo novos limites, arriscar na conquista duma marca ou na criação dum novo record, tudo faz parte da busca pela superação no desporto, o que contribui para a configuração da sua estética. Quando isto é conseguido de forma inesperada, usando a antecipação, a surpresa, impondo a diferença e a variabilidade, identificando ou criando uma ‘zona de fuga’ que permite desconstruir a intenção adversária ou criar um momento de ruptura face aos constrangimentos impostos pela estrutura interna de cada desporto, a performance é marcada pela imprevisibilidade, que constitui, claramente, um dos aspectos essenciais do poder de atracção do desporto e do seu valor estético. É inegável que a imprevisibilidade não gera necessariamente momentos de superação, nem a superação convoca inevitavelmente a imprevisibilidade, embora pareça que em determinadas circunstâncias a imprevisibilidade funciona quase como um atractor da superação, em especial nos desportos de oposição (Kupfer, 1988), nos quais se incluem os jogos desportivos colectivos e desportos como o ténis, a esgrima ou as lutas. Iremos argumentar sobre o valor estético da conjunção entre as duas categorias principalmente a partir dos jogos desportivos colectivos, os quais, como afirmaram Kuntz (1985) e Kitchin (s/d cit. por Best, 1988), não têm guião, pelo que o desenvolvimento e o desfecho do desafio nunca se podem prever antecipadamente - neste sentido, este tipo de desportos é sempre marcado por uma certa imprevisibilidade. Contudo, trata-se aqui do seu carácter trivial, ou seja, a expectativa no início dum jogo é pautada pelas possibilidades e contingências do próprio confronto, e estas são balizadas pelas regras e finalidades da modalidade em causa. As possibilidades e contingências podem-se antever ou imaginar, mas
219
apenas se consumam, ou não, no desenrolar da acção. Não é, portanto, sobre o carácter comum da imprevisibilidade que versa este trabalho. Em nosso entender, a imprevisibilidade excede o seu carácter trivial e até de valor intrínseco do desporto quando se alia à superação, que se manifesta igualmente para além da sua natureza de qualidade intrínseca, ou seja, para além do “esforço que cada jogador faz para derrotar o outro.” (Suits, ed. 2014, p. 116). Deste modo, a superação parece estar muito frequentemente associada a imprevisibilidade, num espectro de intensidade variável, e é tão mais significativa quanto mais próxima se situa do pólo positivo desse espectro, que será, eventualmente, a transcendência – o sublime de Kant (ed. 1998). Na final do Campeonato da Europa de Futebol de 2016, na segunda parte do prolongamento, quando o avançado português Éder marcou o golo que conduziu Portugal ao título de Campeão da Europa, a imprevisibilidade e a superação aliaram-se na composição de uma performance que tocou e perturbou profundamente os sentimentos dos milhões de portugueses que assistiram ao jogo. O jornal Diário de Notícias na madrugada seguinte titulava ‘Éder faz história com golo maior do que ele’1– Éder superou-se e inscreveu um momento de superação na história do futebol português, consumando um lance imprevisível. A qualidade daquela performance não se podia prever ou esperar antecipadamente e aquele momento foi para o jogador, para a equipa e para os adeptos portugueses inexcedível na sua excepcionalidade. É neste sentido, quando o valor estético decorre da associação entre as duas categorias que iremos desenvolver o seu interesse e influência na estética do desporto, sendo este o propósito do trabalho. Começa-se por elaborar em torno de cada uma das categorias, passando-se em seguida para a argumentação que sustenta a importância da sua conjunção. Essa argumentação é apoiada nas contribuições de dois académicos que têm tido uma influência determinante no conhecimento sobre estética do desporto: o esloveno Lev Kreft e o britânico Andrew Edgar. Kreft (2012) defende que para pensar o desporto em termos estéticos não é necessário ter em conta o belo, o que nos fixaria numa concepção tradicional. Este entendimento é partilhado por Edgar (2013, p. 1) que assinala que “O tema central da estética do desporto não é a beleza, mas antes o significado do desporto (...) e a sua capacidade para falar como um mundo” próprio. O autor postula que “para que possa ser verdadeiramente apreciado, o desporto tem que ser compreendido no contexto de uma estética e de uma hermenêutica modernistas. Isso significa que o desporto não respeita à beleza, mas sim à luta para encontrar significado no triunfo e no fracasso desportivos.” (2014, p. I). Na perspectiva da estética do desporto, é nas especificidades do processo, na relação dialéctica processo-produto, que pode ser encontrado esse significado, tendo em conta, entre outros aspectos, as propriedades estéticas. Elas são numerosas, manifestam-se numa miríade de categorias e existe falta de acordo e até alguma controvérsia sobre o assunto, que se explana desde questões semânticas a aspectos epistemológicos, fenomenológicos ou ontológicos. Este trabalho inscreve-se na perspectiva hermenêutica, procurando conquistar densidade e aprofundamento na interpretação das categorias estéticas, com base no argumento de que são experienciadas na dupla potencialidade de qualidades dos objectos e das nossas respostas a esses objectos (Eco, 1995). Deste modo, e como argumenta Dufrenne (2002, p. 51) “o valor não é nada de exterior ao objecto, é o objecto mesmo enquanto responde ao seu conceito e satisfaz a sua vocação.” 220
Nos pontos que se seguem procura clarificar-se a leitura estética que fazemos sobre cada uma das categorias em estudo.
2. Superação O neurocientista António Damásio no seu livro Estranha ordem das coisas (2017), em que reforça a importância dos sentimentos como impulsionadores da inteligência humana que cria cultura, chama a atenção para o facto de as coisas importantes da vida serem o grande personagem dos sentimentos. É neste sentido que se aborda a superação: quando impressiona, toca, comove, desperta sentimentos, pelo confronto dos atletas com os adversários ou consigo próprios, transpondo os constrangimentos impostos pelo espaço, pelo tempo ou pelos oponentes, desafiando intrepidamente a vulnerabilidade (as suas e as do adversário). A superação constitui um dos ‘bens internos do desporto’ (Suits, ed. 2014), o que não banaliza nem diminuiu o seu interesse enquanto tema de análise e interpretação. A superação manifesta-se quando com proficiência técnico-táctica o corpo atlético, individual ou colectivo, se lança na criação de momentos de suspensão da realidade, animado pelo desejo (também intrínseco ao desporto) de vencer. Boxill (1995) entende que o desejo de vencer não prejudica o caráter estético do desporto, uma vez que um jogo bem jogado, especialmente um jogo jogado excepcionalmente bem, agrada e só ocorre numa competição que envolva o desejo de vencer. No mesmo sentido Mumford destaca que "a luta pela vitória exige que os competidores exerçam os seus poderes causais até aos limites e isso produz valores estéticos positivos" (2012b, p. 270). A eficiência da performance pode conferir à superação uma ideia de facilidade, que é apenas aparente (Keenan, 1973, cit. por Osterhoudt, 1991), pois não há superação no desporto sem persistência, perseverança, sacrifício, dor, sofrimento – o agon grego. É oportuno mencionar uma campanha publicitária do lançamento de um novo modelo de smartphone, cujo slogan era ‘Mais fácil, mais rápido, sem esforço’. Facilidade e ausência de esforço interessam ao marketing, mas essas não são as características da ‘atitude lusória’ tão bem explicada por Bernard Suits (ed. 2014) a propósito do jogo. Para praticantes e espectadores, a dificuldade e o esforço nutrem a paixão pelo desporto, é vencendo a dificuldade pelo esforço que se atinge a superação a diferentes níveis. Como afirmou Dewey (ed. 2010), para que a experiência seja estética, uma luta envolvendo sofrimento e dor é geralmente necessária. Deste modo, redefinir fronteiras, descobrir e exibir a sua singularidade, é algo que atrai irresistivelmente o atleta, levando-o a todos os sacrifícios, a fim de ascender a esse prazer quase masoquista. É um estado que se contagia e difunde pelos espectadores, tocando-os profundamente e conduzindo-os também à experiência estética. A superação, qual cadeia espiralada, projeta as ações do desportista para além do já alcançado, permitindo-lhe alcançar um novo anel da cadeia, ou dito de outro modo, atingir um novo, ainda que provisório, estado de homeostasia.
1 Disponível em https://www.dn.pt/desporto/euro-2016/interior/eder-faz-historia-com-um-golo-maior-do-que-ele-5277263.html, cons. em 16 Abril, 2018.
221
Kreft (2012) evidencia a afinidade histórica entre drama e praxis, justamente para distinguir o papel central da acção na performance desportiva. O autor incorpora também o conceito de mimesis, tomado no sentido aristotélico de imitação da acção. Esta ideia é fundamental na compreensão da superação, já que a imitação também pode gerar diferença e, quando isso sucede no desporto, é possível estarmos perante momentos de superioridade, de excesso benigno, como de resto Aristóteles pensava relativamente à tragédia (que imitava aqueles que são melhores do que nós). Kreft (2012, p. 228) faz notar ainda que a dramática do desporto é mais bem compreendida ao considerarmos as acções complexas que o desporto integra e que conferem um carácter próprio ao movimento desportivo, que o distingue de performances imitativas e ficcionais. O desejo, a necessidade ou até o imperativo da superação no desporto, parecem proporcionar ao atleta uma fruição que é partilhada pelo público. Para o espectador, esse processo singular do atleta expressar a sua condição de desportista e, no limite, a própria condição humana, surge não raras vezes de forma inesperada, adensando a experiência estética.
3. Imprevisibilidade A imprevisibilidade, presta-se a figurar como um dos pontos referenciais na cartografia da dramática do desporto como performance proposta por Kreft (2012). A imprevisibilidade pode ser vista como uma forma de gerar variabilidade, concretizando a ideia de Kreft (id.) já enunciada do drama como acção complexa. Nos jogos desportivos colectivos, sobretudo ao nível do alto rendimento desportivo, e no contexto das acções técnico-tácicas, é possível encontrar múltiplos exemplos grandiloquentes: o tão célebre golo que o jogador argelino Madjer marcou pelo Futebol Clube do Porto na final da Liga dos Campeões em 1987 contra o Bayern de Munique, foi uma performance marcada pela imprevisibilidade, resultando no golo da vitória, desferido com o calcanhar. A complexidade deste tipo de remate exige um profundo envolvimento do atleta na acção (Kreft, 2012), um estar no jogo (being in the game) (Kreft, 2015), uma entrega que lhe permite fazer especial uso da surpresa para antecipar e desconstruir a intencionalidade do adversário. A imprevisibilidade evidencia o papel central do atleta na acção desportiva, ao adoptar um comportamento inesperado na gestão das contingências do jogo, permitindo-lhe criar dissonância, ruptura, junto do adversário e tirar vantagem disso. No âmbito do valor estético da arte contemporânea, por exemplo, a ruptura e a desconstrução são fundamentais na busca da diferença, da extravagância, da divergência, da originalidade. A imprevisibilidade no desporto não carece necessariamente da chancela da originalidade, embora algumas vezes possam surgir associadas. A imprevisibilidade prende-se principalmente com, de algum modo, encontrar a solução mais adequada para aquele momento específico de confronto com os condicionalismos do jogo e fazê-lo de modo surpreendente, o que se pode confundir com algo de novo, de original. No ténis ou no voleibol o recurso ao amorti, por exemplo, não é original, mas pode investir a performance do inesperado, quando o atleta identifica uma ‘zona de fuga’ e cria a oportunidade de acrescentar valor à sua performance. Pela imprevisibilidade rompe-se com a unidade, instalando-se provisoriamente o caos, que logo será resolvido pela instauração de uma nova ordem (que até pode ser a que decorre da vantagem mais ambicionada pelos atletas, a vitória). 222
No trabalho intitulado Aesthetic Imagination in Football, Lev Kreft (2015, p. 125) refere que ‘nos desportos de equipa, para jogar o jogo, é necessário existir uma forma como que visionária produzida pela imaginação, e que sem essa presença há uma incapacidade para jogar bem’. O autor explica que é pela imaginação que os melhores jogadores sentem até o que se passa nas suas costas, fora do seu campo visual. Argumenta que ‘Para se imaginar um jogo de futebol na qualidade de um actor fortemente implicado, é necessário estar corporalmente, sensorialmente e perceptivamente imerso em todas as movimentações que decorrem no campo.’ (Kreft, 2015, p. 129). A ocorrência da imprevisibilidade é tão mais significativa quanto mais o atleta joga com a imaginação na construção do processo no qual se integra a performance, o que, no entender de Kreft (id.) traduz que a estética no futebol não é acidental. Para o autor, estar comprometido no jogo ‘... requer uma imaginação activa que dá [ao atleta] uma imagem de todo o processo de movimentação que está a acontecer...’ (Kreft, 2015, p. 135), o que amplia as possibilidades para a ocorrência da imprevisibilidade.
4. Conjunção Imprevisibilidade Superação A centralidade do processo na apreciação estética do desporto, envia-nos para um conceito desenvolvido por Edgar (2013) a que se fez alusão no início deste trabalho, que se refere à capacidade de o desporto ‘falar como um mundo próprio’ (speak as a world). Edgar na esteira da filosofia da arte de Arthur Danto e da ideia de um ‘mundo da arte’ (artworld), oferece-nos a expressão ‘mundo do desporto’ (sportworld). O autor afirma que “tanto a arte como o desporto permitem-nos experienciar o envolvimento, a vida, o corpo de modo diferente; abrem novas perspectivas” (Edgar, 2013, p. 6). Esta plêiade de perspectivas provém das múltiplas possibilidades que configuram o processo, que, quando é atravessado por uma especial sinergia entre imprevisibilidade e superação, configura grandes momentos no desporto, o que se repercute em valor estético. Esse valor não deixa, no entanto, de ser influenciado pelo desfecho do jogo ou da performance, ou seja, pelo resultado, mas sempre numa dimensão um pouco mais periférica. Situemo-nos no jogo da primeira mão dos quartos-de-final da Liga dos Campeões da UEFA de 2018, no qual se defrontaram a equipa italiana da Juventus com os espanhóis do Real Madrid. No minuto 64, o ‘pontapé de bicicleta’ de Cristiano Ronaldo que colocou o resultado em 2-0 a favor do Real, constituiu uma experiência intensa, muito vinculativa, para todos os que participavam no jogo, tanto os vinte e dois jogadores, como os milhares de adeptos presentes no estádio em Turim, bem como os milhões de apaixonados pelo futebol, que presenciavam o jogo em transmissão directa. Um jornal de referência português, o Público, na sua edição online enfatizou o comentário do treinador Zinedine Zidane, que declarou que foi ‘Um dos melhores golos da história do futebol.’ 3 E o Público continuava:
2 Muito pelo contrário, sobretudo quando o que está em causa (como tem sido no nosso trabalho das últimas décadas), é desenvolver argumentos que consolidem uma estética do desporto a partir de características próprias deste campo cultural específico, gerador de diferenças e de identidades, espaço de expressão da diversidade e da unidade. 3 Disponível em https://www.publico.pt/2018/04/04/video/adeptos-da-juventus-levantamse-para-aplaudir-segundo-golo-deronaldo-20180404-011037. Cons. em 28/4/2018.
223
“O golo do internacional português nos quartos de final da Liga dos Campeões deixou o estádio de Turim ao rubro e nem os adeptos da equipa derrotada resistiram a aplaudir.” 4 O exemplo desta jogada evidencia o primado do processo na configuração do valor estético: o Real Madrid estava a ganhar o jogo por 1-0 e qualquer outra performance que permitisse ampliar o resultado para 2-0, significaria sempre uma segurança adicional rumo à obtenção da vitória. ‘Mas é o resultado a única coisa que conta quando discutimos a estética do desporto?’ interroga Kreft (2015, p. 131). O autor responde que aquilo que procuramos é a forma estética de jogar futebol, explicando que importa a maneira como se atinge o propósito do jogo. Deste modo, o remate protagonizado por Cristiano Ronaldo não apenas cumpriu o propósito, como evidenciou uma notável incorporação do atleta nas acções técnico-tácticas, o que lhe permitiu conciliar imprevisibilidade com superação, numa aproximação visionária produzida pela imaginação (Kreft, 2015). No mesmo sentido, Edgar (2013, p. 5) refere que o desporto e a arte desafiam a supremacia do pensamento conceptual, priorizando uma inteligência que se manifesta, no caso do desporto, por meio da linguagem corporal. O valor estético da performance marcada pela imprevisibilidade e superação permite realizar o inacabado na imaginação do atleta, favorecendo a re-significação das acções desportivas, o que promove a criação do designado mundo do desporto convocado por Edgar (2013) que ‘transfigura a forma como vemos o mundo’ (id., p. 2). O facto de os adeptos da Juventus aplaudirem a prestação de Cristiano Ronaldo, expressa muito objectivamente esta questão, assim como o que o jogador afirmou depois do jogo: “[Ser aplaudido pelos adeptos da Juventus] Foi apenas excelente. Nunca tinha acontecido na minha carreira. (...) O que posso dizer?” Relativamente ao constructo ‘mundo do desporto’, Edgar (2013) explica que são os diferentes actores que constituem o seu sustentáculo, desde os atletas, aos árbitros e juízes, treinadores, espectadores, assim como o envolvimento activo que todos têm nas interpretações que fazem dos acontecimentos desportivos. Ao conduzir os espectadores afectos à equipa adversária a aplaudirem a sua performance, Cristiano Ronaldo redefiniu, ainda que por instantes, o papel dos adeptos da Juventus, que subitamente interpretaram aquele momento em certa medida como seu, respondendo em conformidade. Para quem presenciasse apenas aqueles instantes do jogo, presumiria que apoiavam um atleta da sua equipa. O próprio jogador manifestou a estranheza desta situação ao afirmar que ‘nunca lhe tinha acontecido’, o que explicita que tanto para os espectadores como para o jogador se re-definiram os contornos deste ‘mundo do desporto’ e da experiência estética que nele se inscreve. Cristiano Ronaldo sentiu em si, com e pelo seu corpo, que esteve bem, que tudo soou bem, que correu bem - como Arnold (1997) evidenciou, o atleta incorpora as qualidades estéticas, ele é o lugar onde esquemas cinestésicos identificáveis e distinguíveis fluem. De outro modo, por via empática, os espectadores, profundamente envolvidos no acontecimento, sentiram-no também. Correu bem graças à capacidade do jogador em conjugar a imprevisibilidade com a superação, desconstruindo os planos do adversário,
224
mostrando-se corajoso na realização dum elemento complexo, enfrentando o risco e a possibilidade de falhar, sem que isso inibisse a sua audácia, o que o conduziu a impor a diferença e a singularidade. Esta é a natureza da estética do desporto contemporânea que, como argumenta Edgar (2013), quebra com as concepções clássicas de graça e harmonia, para se inscrever “... na vulnerabilidade do atleta e na inevitabilidade da falha na tentativa de dominar o desafio colocado pelo desporto.” (p. 7). A conjunção entre imprevisibilidade e superação traduz- se numa das respostas possíveis a este desafio, expressando-se numa performance mais rica, mais estratificada, mais enfática, com uma tonalidade excitante, entusiástica, imersiva, prazerosa, plena de valor estético.
4 Id., ibid.
Referências Arnold, P. (1997). Educación Física, Movimiento y Curriculum. Tradução de Guillermo Solana. 2ª ed. Madrid: Ediciones Morata, S.L. Best, D. (1988). The Aesthetic in Sport. In William J. Morgan & Klaus V. Meier (Eds.), Philosophic Inquiry in Sport (pp. 477-493). Champaign, Illinois: Human Kinetics Publishers, Inc. Boxill, J. M. (1988). Beauty, Sport and Gender. In William J. Morgan & Klaus V. Meier (Eds.), Philosophic Inquiry in Sport, (pp. 509-518). Champaign, Illinois: Human Kinetics Publishers, Inc. Damásio, António (2017). A Estranha Ordem das Coisas. Lisboa: Temas e Debates. Dewey, John (2010). A Arte como Experiência. São Paulo: Martins Fontes. Dufrenne, Mikel (2002). Estética e Filosofia. São Paulo: Editora Perspectiva, S.A. Eco, Umberto (1995). A definição da Arte. Lisboa: Edições 70. Edgar, Andrew (2013) Sportworld. Sport, Ethics and Philosophy, 7 (1): 30-54. Edgar, Andrew (2014). Sport and Art: An Essay in the Hermeneutics of Sport. London: Routledge. Kant, Immanuel (1998). Crítica da faculdade do juízo. Introdução de António Marques; tradução e notas de António Marques e Valério Rohden. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Kreft, Lev (2012). Sport as a drama. Journal of the Philosophy of Sport, 39 (2):219-234. Kreft, Lev (2015). Aesthetic Imagination in Football. Sport, Ethics and Philosophy 9 (2):124-139. Kuntz, P. (1985). Aesthetics Applies to Sports as well as to the Arts. In David L. Vanderwerken & Spencer K. Wertz (Eds.), Sport Inside Out (pp. 492-509). Fort Worth: Texas Christian University Press. Kupfer, J. (1988). A Commentary on Jan Boxill’s “Beauty, Sport and Gender”. In William J. Morgan & Klaus V. Meier (Eds.), Philosophic Inquiry in Sport (pp. 519-522). Champaign, Illinois: Human Kinetics Publishers, Inc. Mumford, S (2012). Watching Sport: Aesthetics, Ethics and Emotion. London: Routledge. Osterhoudt, Robert (1991). The philosophy of sport: an overview. Champaign, Illinois: Stipes Publishing Company. Suits, Bernard (2014). A Cigarra Filosófica. A Vida é um Jogo? Lisboa: Gradiva.
225
226
Praticando esportes por motivos estéticos Jean Machado Senhorinho Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
227
228
Praticando esportes por motivos estéticos Jean Machado Senhorinho,
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Perdido em uma questão pessoal Por certo, não há uma única razão que nos motiva a praticar esportes. Ao escolhermos praticá-los, nós podemos muito bem estar em busca de distração, diversão, saúde, desenvolvimento pessoal, autossuperação, relações sociais, ganhos financeiros, glórias e excitações competitivas ou uma combinação desses, assim como outros motivadores, em diferentes proporções. Mas, ainda que possam ser valiosas, essas recompensas comuns não são únicas aos esportes e, ainda menos, a um esporte em particular. Muitas atividades não-esportivas podem nos entregar essas mesmas recompensas, em maior ou menor quantidade, a depender de nossa perícia e circunstância. Ademais, quase todas essas recompensas são extrínsecas à atividade esportiva per se; exceto a diversão, que pode traduzir a satisfação inerente ou intrínseca com tal atividade. Porém, a diversão é ainda um motivador genérico, comum a outros tipos de atividade. “Diversão” não basta como uma resposta à dúvida pessoal que me inspira a desenvolver este trabalho em linhas mais gerais. Ora, o que me motiva, ou mais me motiva, a praticar, justamente, tênis de mesa? Primeiro, eu sou um amador do tênis de mesa, nos dois sentidos da acepção, técnico e afetivo. É uma modalidade que descobri por acidente há sete anos, curiosamente, em uma festa de aniversário infantil, na condição de adulto desenturmado. Fui completamente arrebatado; amor à primeira experiência. Embora popular em algumas regiões do Brasil, o tênis de mesa não é um esporte com muita visibilidade midiática, nem uma tendência atual – como o padel ou o beach tennis –, então, naturalmente, perguntas sobre as minhas razões para praticá-lo começaram a se acumular. Perguntavam também se eu jogaria apenas por lazer ou se já tinha ambições competitivas. Eu respondia que nunca havia encontrado um esporte tão divertido e logo complementava a resposta com razões auxiliares, como saúde e socialização – sendo este o meu motivador original, isto é, quando joguei a primeira vez. Essa adição era quase compulsória diante dos rostos incrédulos, de quem não entendia o que havia de divertido naquele esporte, por suposto, um contraste de opinião entre praticantes e apenas espectadores. Talvez, indo além em minha resposta, eu lançasse mão de alguns estudos indicando a possibilidade de que o tênis de mesa previna o nosso declínio cognitivo e a condição de demência 229
(Takao Yamasaki, 2022). Ou como um verdadeiro aficionado, eu saudasse, até mesmo, a fama do tênis de mesa como um esporte diplomático (Pete Milwood, 2023) e intergeracional (Jarain Ng, 2005). Em meu lugar, outras pessoas poderiam ainda incluir o sucesso competitivo ou, em casos mais específicos, o prospecto de ganhos financeiros. Não é o meu caso. Na verdade, eu perco dinheiro com o tênis de mesa, não sou medalhista, nem acumulo tantas vitórias. De fato, as motivações pelas quais praticamos esportes podem ser variadas e convergir ou divergir em vários arranjos. Mesmo assim, entre tantos motivos razoáveis e acessíveis, eu não podia expressar nitidamente o que me motivava a adorar o tênis de mesa. Primeiro, eu não continuava a praticá-lo por razões extrínsecas; aliás, eu continuaria mesmo se todas elas estivessem indisponíveis. Ainda que bastante louváveis, os ganhos em saúde e amizade eram colaterais. Segundo, “diversão” é um motivo pouco descritivo e insuficiente para explicar a busca, muitas vezes, frustrante, pela maestria de gestos técnicos. A partir de conversas informais com amadores e lendo relatos de profissionais1, passei a supor que essa necessidade de expressão era mais abrangente do que a minha própria circunstância. Responder “porque é muito divertido” ou “porque eu gosto muito” é apenas um começo. Precisamos filosofar mais. Então, o que me motiva a praticar tênis de mesa? Ou ainda, já expandindo a questão, o que nos motiva, intrinsecamente, a praticar esportes e, sobretudo, um esporte em particular? Deve ser a experiência peculiar ao praticar este ou aquele esporte. Mas o que compreende essa experiência? Talvez, a incorporação de um saber-como (know-how) característico; o jogo orientado, mais ou menos flexivelmente, por uma lógica ou gramática específica de comportamentos; um desafio cognitivo característico; às vezes, o senso de pertencimento a uma certa cultura esportiva; e, finalmente, um arranjo único de singularidades estéticas – táteis, visuais, auditivas, proprioceptivas. Tomando esta deixa, a proposta conceitual deste trabalho é destacar que a busca, consciente ou inconsciente, por experiências estéticas sui generis pode nos motivar, intrinsicamente, a praticar um ou outro esporte em particular. Com “inconsciente” quero dizer que não precisamos estar cientes de que buscamos experiências “estéticas” ou assim as adjetivarmos. Em um sentido modesto, espero divergir da tendência sobrepujante pela qual o nosso interesse pela prática esportiva acaba enquadrado na mídia. Na maioria das vezes, eu arrisco dizer, o esporte é apresentado como um meio útil para alcançarmos algum bem externo – saúde, glória, dinheiro. Mas essa tendência escanteia a possibilidade de gostarmos dos esportes por eles mesmos, pelas experiências únicas que eles nos oferecem, pela forma como elas em si já enriquecem os nossos dias. Nós podemos praticar esportes antes pela satisfação inerente da prática do que pelos bens externos dela derivados; em outras palavras, pela diversão ou desafio implicado neles ao invés de produtos, pressões ou recompensas externas. Isto é, nós podemos praticá-los por uma motivação, consoante Ryan e Deci (2000, p. 56), intrínseca. Na vitória ou na derrota, no prazer ou na dor, ao final do dia, mesmo diante de outras numerosas opções, eu escolho continuar perseguindo vivências estéticas esportivas porque elas têm valor intrínseco para mim. Por si só, elas valorizam a minha vida, assim como a de outras pessoas. Com isso, não pretendo negar a relevância de outras motivações para a prática ou apreciação geral
230
do esporte, mas sim destacar o que chamo de motivação estética. Mesmo esportistas orientados, principalmente, por motivações extrínsecas podem desfrutar esteticamente da prática esportiva2. Eu penso que, muitas vezes, intuímos que possuímos um “gosto especial” – uma preferência estética – por um ou vários esportes, pelos arranjos integrados de múltiplas sensações que eles nos oferecem, ainda que não consigamos explicá-lo facilmente3. Podemos, nesse sentido, conceber a nossa preferência ou motivação para a prática de um ou outro esporte como uma questão de gosto. Respondemos, de modo despreocupado, “é porque eu gosto” como uma justificativa lacônica para o nosso interesse esportivo. É a expressão parca de um juízo estético. Ela tenta expressar, superficialmente, uma motivação estética que mal vem à tona como tal. Ainda que a experiência esportiva seja tão familiar, corriqueira, extensa e vívida, nós podemos sentir dificuldade ao expressar os aspectos intrínsecos que gostamos tanto nela. Talvez, identificá-la e descrevê-la em termos estéticos possa facilitar a nossa expressão, nos ajudando a entender melhor as nossas preferências e, por conseguinte, a nós mesmos. A partir de um vocabulário estético, acredito que estaremos melhor apoiados para reconhecer o que nos leva, em determinados contextos, a tratar o esporte como um fim em si mesmo. Dito isso, gostaria de ressaltar que não estou dizendo em absoluto que podemos dispensar outros vocabulários – epistemológicos, psicológicos – na descrição de motivações intrínsecas, mas sim que um vocabulário estético favorece essa descrição. Como esportistas, nós vivenciamos, cotidianamente, movimentos e padrões comuns, “sem graça”, repetitivos ou mesmo falhos, ao passo que também ascendemos a momentos e situações extraordinárias, talvez, sublimes. Além, é claro, de tudo aquilo que transita entre esses dois extremos. Eu percebo em uma estética alargada, com exigências deflacionárias, como aquela produzida em Everyday Aesthetics, de Yuriko Saito (2007), um potencial descritivo maior frente à variedade qualitativa e quantitativa da experiência esportiva. Por conseguinte, subscrevo a um conceito amplo de “estético”, que passa a compreender como estéticas todas as nossas reações avaliativas e experiências perante as qualidades sensuais e/ou de design de qualquer objeto, ser, fenômeno ou atividade. Na seção a seguir, em uma espécie de interlúdio conceitual, eu informarei alguns dos aspectos teóricos da Estética Cotidiana de Saito, que ela contrasta com uma Estética Ocidental mais tradicional, centrada nas belas-artes. Já antecipo meu interesse especial por seu conceito de
1 Referenciarei alguns destes relatos no decorrer do trabalho. 2 As nossas motivações em geral, muitas vezes, envolvem uma mistura de fatores extrínsecos e intrínsecos. Alguns estudos em psicologia, como o de Deci, Koestner e Ryan (1999), apontam que a proporção dessa mistura pode mudar ao longo do tempo com a introdução de novas circunstâncias – e. g. quando um hobby se torna profissão. Por outro lado, na linha de Judy Cameron e David Pierce (1994), outros estudos observam que nem todos os reforços extrínsecos solapam a motivação intrínseca. Diferentemente de recompensas financeiras, os elogios verbais não parecem apresentar esse efeito; ao menos, esse pode ser o caso quando não temos uma grande expectativa em recebê-los. Quando há expectativa de ganho financeiro ou mesmo de elogios, a tendência é que a motivação intrínseca pela prática decaia. 3 Reconheço que gosto (taste) é um conceito filosófico bastante carregado, sujeito a diversas interpretações por diversas teorias estéticas – vide Michael Spicher (2024). Aqui o meu uso visa somente invocá-lo como uma metáfora de juízo de preferência estética.
231
juízo estético-funcional, o qual conecto ao laborioso fenômeno esportivo de constante valorização e aperfeiçoamento de gestos ou movimentos técnicos. Adotando a filosofia de Saito, dispenso a necessidade de reivindicar que o “esporte é arte”, a fim de que lhe seja garantido uma maior relevância estética. Essa reivindicação está no centro de um debate conceitual momentoso em estética e filosofia do esporte, pelo qual eu começo meu interlúdio.
Adotando a Estética do Cotidiano Esportes nos proporcionam experiências estéticas interessantes, mesmo se eles não forem identificáveis como arte. Todavia, na medida em que eles nos permitem criar algo esteticamente atraente ou mesmo arrebatador, torna-se quase irresistível considerá-los como atividades artísticas ou em termos artísticos. Mas, quando a nossa rejeição a esse encanto significar o condicionamento da relevância estética do esporte à sua identidade ou enquadramento como arte, nós devemos resistir ao encanto. Por outro lado, quando a nossa rendição implicar o reconhecimento das afinidades entre dois domínios abertos e fluidos, nós podemos, às vezes, sucumbir com graça. Um exemplo gracioso é quando adjetivamos o futebol brasileiro como futebol-arte ou, melhor expressando o epíteto, comentamos que jogadoras e jogadores brasileiros têm a alegria do samba em seus pés e driblam com a ginga da capoeira. Estamos diante de um feitiço conceitual forte o bastante para mover há mais de cinquenta anos a disputa sobre o status do esporte enquanto arte. Ela foi acesa, provavelmente, no final de 1960 por pela investigação Le Sport parmi les Beaux-Arts, de Pierre Frayssinet (Welsch, 1999, p. 219). Ao longo das décadas de 1970 e 1980, com a sua disseminação nos países anglófonos, a questão tornou-se uma disputa abrasiva. Talvez, neste período, as distinções levantadas por David Best (1974; 1985) possam ter esfriado o ímpeto presente na iniciativa daqueles que afirmavam “esporte é arte” (Kreft, 2024, p. 4). Contudo, a maquinaria conceitual de Best não foi suficiente para liquidar essa iniciativa afinal. O debate manteve ímpeto suficiente para cruzar os limites do século XX (Platchias, 2003). À primeira vista, é tentadora a identificação do esporte como arte (stricto sensu). Esportes permitem uma ampla variedade de experiências estéticas, muitas das quais magnífica e especiais tanto para espectadores quanto praticantes. Tais experiências são, por elas mesmas, recompensadoras. Nós não precisamos de recompensas externas – fama, dinheiro – para que as valorizemos e as escolhamos; elas inspiram admiração. Talvez, se livrássemos os esportes da monetização desenfreada, do egocentrismo obsessivo e do tribalismo odioso, nós poderíamos apreciar a beleza genuína deles. Esportes são bens em si mesmos, eles não precisam sucumbir a uma agenda parasitária. Ademais, grandes performances esportivas requerem um nível extraordinário de maestria e, em alguns contextos, praticamos esportes com uma abordagem puramente criativa. Com essas e outras premissas, algumas pessoas sentir-se-iam até mesmo tentadas a definir os esportes como belas-artes, em um sentido século XVIII de “produção de beleza em objetos [ou atividades] desnecessárias” ou de “intencionalidade sem propósito” (Kreft, 2024, p. 3).
232
A recusa à conflação apressada entre o estético e o artístico é o movimento de abertura para a negação do status do esporte como arte (Best, 1985, p. 35). “O esporte ser estético não faz dele artístico” (Mandoki, 2007, p. 85)4. O próximo movimento, é claro, seria apontar para aspectos artísticos decisivos que os esportes não possuem (Best, 1974; Mandoki, 2007, p. 192). Essa decisiva seria logo questionada, os esportes seriam ditos como portadores de semelhança conceitual suficiente com atividades ou objetos usualmente chamados artísticos, e assim por diante (Welsch, 1999, p. 233). Eu não detalharei esse caminho argumentativo em eterna multiplicação. O problema desconcertante é que ambos os conceitos, arte e esporte, são conceitos abertos “insubmissos a uma conclusão absoluta” (Platchias, 2003, p. 1). De fato, “o conceito de arte é um flexível – e voraz – conceito” (Welsch, 1999, p. 213), assim como, nós poderíamos adicionar, o próprio conceito de esporte. Quão flexível eles devem ser é a questão implícita nessa querela afinal. Para alguns, como Maureen Kovich (1971), a definição de arte precisa ser expandida; para outros, como David Best (1974), ela deve ser contida. Mas, talvez, como diz Wolfgang Welsch (1999), a definição já esteja agora à solta com uma voracidade pós-moderna. Eu não defenderei que o esporte é arte, nem o contrário. Não vejo necessidade. Se é que em algum período determinou, o artístico já não resume mais a definição básica para o estético. De fato, o domínio do estético sempre foi mais amplo do que o da arte, mesmo que, no decorrer dos séculos XVIII e XIX, o conceito de arte tenha passado a integrar o núcleo conceitual do estético. Seguramente, a arte é uma província emblemática para a investigação estética, mas o conceito de estético, concordando neste ponto com Welsch (1999, 220), “não mais deve ser tomado da arte”. Segundo Lev Kreft (2024, p. 3), “O esforço para apresentar o esporte como arte remanesceu problemático”, porém a identificação do esporte como arte nunca foi uma necessidade para apreciarmos a relevância estética dos esportes. Melhor teria sido se esta elusiva identificação não tivesse marcado, filosoficamente, o início da apreciação estética contemporânea do esporte. Mesmo assim, eu não penso que seja, necessariamente, um erro expressar o valor estético dos esportes usando vocabulário ou designação artística. Às vezes, é apenas o reconhecimento implícito da afinidade entre dois domínios abertos. Se nós considerarmos a associação próxima entre artes tradicionais e estética, quando nós buscamos expressar qualidades estéticas em esportes, é de se esperar que nós nos sintamos atraídos por “analogias ou paralelos iluminadores entre esporte e arte” (Best, 1985, p. 39) ou, se for o caso, entre artes-esportivas e outras artes. Essa disjunção, aliás, mostra en passant o equívoco do argumento de Best (1985, p. 39) pelo qual, segundo ele, essas analogias ipso facto concederiam que o “esporte não é arte”. Ora, podemos realizar uma analogia entre duas artes diferentes sem comprometer a identidade delas como arte. Tendo esclarecido isso, reforço o meu ceticismo geral em torno da questão se “esporte é ou não é arte”. Suspendo o juízo. O ponto é que nós precisamos evitar o condicionamento implícito da relevância estética dos esportes ao seu enquadramento como arte. Seja o esporte arte ou não, para recolocar uma
4 Todas as traduções dos originais em inglês são de minha autoria.
233
frase evocativa de Best (1985, p. 40), “relevante esteticamente, o esporte pode indubitavelmente ser”. Esportes não precisam ser tratados como meros aspirantes ou quase-artes, muito menos ser mal julgados por não responderem aos mais altos padrões da crítica artística. Eles possuem o seu próprio valor. Diferente do que Welsch (1999, p. 234) pensava, o que torna os esportes interessantes e valiosos para a Estética não são, especialmente, aqueles traços que os assemelham às belas-artes. As características estéticas gerais do esporte são, precisamente, as mais interessantes. Eu abraço completamente uma mudança corrente em filosofia do esporte (Kreft, 2024, p 6), pela qual uma estética desportiva enclausurada na referência às belas-artes passa a ceder espaço ao quadro conceitual inclusivo oferecido pela Estética Cotidiana ou do Cotidiano. Especificamente, eu adoto a terminologia de Yuriko Saito (2007). Saito (2007, p. 9) compreende como estéticas todas as nossas reações perante as qualidades sensíveis e/ou de design de qualquer objeto, ser, fenômeno ou atividade. Ainda que ela enfatize o sensível e o design, Saito não nega a relevância do conceitual para a formação de nossas reações estéticas. Em cada uma delas, nós dependemos de fatores contextuais e conceituais, mesmo caso eles permanecerem opacos para nós. O que nos faz, por exemplo, avaliar uma cortada como “sensacional” no vôlei? Abreviando a resposta, essa avaliação pode depender de nossas concepções de “altura”, “poder”, “velocidade” em um contexto próprio deste esporte e também mais abrangente. Pode ainda depender de como o jogo está fluindo, se é uma cortada desafiadora após um grande rally, em um momento difícil, em um set ou match point. Ou ainda, pode depender de como a cortada em questão relaciona-se a outras cortadas que já experienciamos ou esperamos, e assim por diante. A noção de Saito para o adjetivo “estético” não é automaticamente honorífica ou laudatória, ela serve não apenas para experiências agradáveis, intensas e especiais, mas também as desagradáveis, sutis e triviais. Por essa lógica inclusiva, tanto as reações refletidas ou retroativas quanto as irrefletidas ou instantâneas são consideradas relevantes. Seguindo a perspectiva dela, nós podemos apreciar todo o espectro de reações às qualidades sensíveis da performance esportiva. Enquanto praticantes, os esportes não nos oferecem apenas oportunidades para reações de excepcional admiração a movimentos formidáveis; a depender do contexto, essa oferta pode ser raríssima. Nós reagimos esteticamente também a uma multidão de movimentos percebidos como “sem graça”, “tediosos”, “confortáveis”, “apenas ok”, “desengonçados”, “feios”, entre tantos outros. Em diferentes intensidades, essas avaliações podem assumir valências positivas, negativas e, talvez, neutras. Ordinariamente, atletas de diversos níveis dependem desse rol tão diverso de reações para acessar, polir, lamentar e aproveitar a sua própria performance. Reações estéticas ao ambiente e ao equipamento esportivo podem ser incluídas aqui também. Jogadores de futebol, por exemplo, usualmente percebem como a condição da grama nos campos afeta a qualidade estética do jogo. Os campos de futebol precisam ser cuidados para permitirem os jogos “mais fluidos” e “acelerados”, que gramas ralas ou altas previnem. Condições meteorológicas também afetam a estética do jogo. Quando dias chuvosos ensopam o gramado, por exemplo, quem joga pode
234
sentir seu corpo e movimentos mais “pesados”, “lerdos” e “desastrados”. Até mesmo as chuteiras de metal, recomendadas para esses dias, possuem uma sensação diferente de pisada, e podem não ser consideradas agradáveis por alguns atletas devido à sua aderência forçosa na grama. Além da abertura às mais diversas experiências e reações, uma abordagem não centrada nas belas-artes, como a de Saito, oferece, ao menos, outras três vantagens distintas para as nossas investigações dirigidas aos esportes. Primeiro, ela não assume um modo contemplativo ideal – afastado e ponderado – para a experiência dos esportes similar àquele suposto para as belas-artes paradigmáticas (Saito, 2007, p. 20). De fato, a contemplação é uma parte importante da teoria estética, mas é apenas uma parte dela. No caso da prática esportiva, ela sequer é protagonista. “[N]ão é de modo algum incomum que experienciemos sentimentos estéticos, propriamente ditos, enquanto presentemente engajados e completamente envolvidos nas atividades físicas” (Best, 1974, p. 208). Ainda que possamos apreciar o valor estético dos esportes como puros espectadores ou ouvintes, há uma gama de juízos estéticos próprios da prática, que tendem a ocorrer simultaneamente à performance. “A graça que espectadores apenas presenciam, praticantes também sentem [em carne-e-osso]” (Kupfer, 1983, p. 137). Eu diria até que passamos a valorizar de forma mais ampla os esportes quando nós nos tornamos também praticantes destes. Esportes que antes pareciam sem graça ou sem sentido podem mudar completamente para nós quando os sentimos de dentro. Ao experienciarmos um esporte como praticantes, nós engajamos todos os nossos sentidos disponíveis para realizar a performance esportiva em um loop constante de avaliações estéticas e respostas corporais associadas. Nós seguimos “respondendo à nossa performance presente, preparados pelo feedback corrente para o movimento subsequente” (Kupfer, 1983, p. 137). Nesse processo, nós estamos respondendo, com efeito, a nós mesmos. Realizamos uma composição da qual somos parte integral. Ouvindo os nossos corpos, percebendo o ambiente e outros corpos, nós estabelecemos uma continuidade integrada na performance que orientamos por nossa ação. Agimos esteticamente. Por entender, justamente, que há uma experiência estética valiosa orientada por nossa própria ação enquanto se dirige ao próprio self, não sendo ela disponível para puros espectadores; eu sigo aqui uma tendência minoritária, mas crescente, pela qual se considera a experiência estética da perspectiva de quem pratica (Lundvall & Maivorsdotter, 2009; Fernandes & Lacerda, 2010; Coelho, Kreft & Lacerda, 2014; Shusterman, 2019). Favoravelmente, em segundo lugar, a abordagem de Saito (2007, p. 21) não limita a relevância das experiências estéticas àquelas provenientes de sentidos privilegiados pelas belas-artes. Como ela explica, a visão e a audição têm sido consideradas, tradicionalmente, como os “sentidos superiores”, porque informações visuais e sonoras podem ser organizadas e apreciadas segundo algum esquema racionalmente ordenado – e.g. quadros; partituras. Em contrapartida, os ditos “sentidos inferiores”, olfato, paladar, tato e propriocepção – este, muitas vezes, ignorado
235
– são menosprezados por serem “muito viscerais, animalísticos e crus”. Por conseguinte, um enquadramento teórico mais tradicional, simplesmente, exclui ou subestima a relevância de sentidos estéticos que são cruciais para a prática esportiva. Estou aqui aludindo, em especial, ao tato e à propriocepção ou cinestesia. Todavia, eu considero também que o olfato e, inclusive, o paladar estão integrados em nossa experiência esportiva. As sensações do suor, boca seca, sangue e, em alguns esportes, a salinidade da água são exemplos bastante ordinários. A propriocepção, um caso à parte, é o sentido “esquecido” que nos permite reconhecer a localização espacial do nosso corpo, a sua posição e orientação no espaço, assim como a força exercida pelos músculos e a posição de cada parte do corpo em relação às demais. Quão importante esse sentido é para a prática esportiva? Quão esquecido pela Estética mais tradicional ele é? Sem esse sentido, um ginasta performando uma cambalhota não sentiria “algo de breves instantes de liberdade, algo com equilíbrio precário em um espaço sem suporte, com ritmo subjacente e com forças iniciadas por si mesmo agindo sobre si mesmo” (Kovich, 1971, p. 42). Ele não se tornaria “sensível aos elementos do espaço, força e tempo em seu mundo de movimento” (Kovich, 1971, p. 42). Por fim, em terceiro lugar, com a Estética Cotidiana, nós podemos evitar a pressão de sublimar as nossas experiências esportivas de significâncias que não puramente estéticas – e. g. funcionais, políticas, morais –; uma sublimação que costuma ser uma condição tradicional para a concessão de uma acolada à “verdadeira arte”, o epítome da relevância estética. Tradicionalmente, as belas-artes e as experiências especiais associadas devem ser, puramente ou, ao menos, primariamente, realizações estéticas. Assim, noções de valor funcional, mesmo se contextualizadas, são propensas a atrair uma atenção indesejável por parte dos “últimos verdadeiros defensores da arte”. No entanto, nos esportes, a estética e a eficácia andam de mãos dadas. Movimentos que são efetivos tendem a ser tomados como os parâmetros estéticos ideais, e a efetividade desses movimentos depende da sua estética particular. Podemos ressalvar que, muitas vezes, esportistas – amadores, em especial – apenas buscam realizar movimentos que soam divertidos ou interessantes, sem se preocupar com otimizações e resultados. Nos esquecemos, também muitas vezes, que esportes não são apenas um meio para ganharmos pontos e competições; um fato que é lamentavelmente subestimado. Dito isso, a habilidade de pontuar ou de se movimentar com um “design melhor” é bastante desejada por esportistas, mesmo por razões não competitivas. É esteticamente agradável tornar os nossos movimentos mais eficientes, eficazes ou efetivos. Ao interagirmos com esportes, assim como em nossas interações normais com objetos utilitários, “o estético e o prático são experienciados como totalmente integrados e nós perdemos alguma dimensão de seu valor estético se removemos cirurgicamente o seu valor funcional” (Saito, 2007, p. 26). Nós podemos adaptar aqui “o exemplo da faca” oferecido por Saito para tornarmos esse ponto mais saliente. Enquanto praticante de tênis de mesa, já adaptando o exemplo, a qualidade do meu movimento de loop compreende, sinergicamente, as suas qualidades visuais indicadas em minha postura, no comportamento da bola – zona de contato, trajetória, arco, rotação, zona
236
de aterrisagem –, o feeling tátil particular da bola aderindo na superfície da minha raquete, a sensação proprioceptiva das minhas pernas bem embasadas, da distribuição de peso entre elas. Em geral, a qualidade desse loop é determinada por quão bem ele pode marcar o ponto ou desafiar a recepção em virtude de seus parâmetros estéticos. Pontos fortuitos, sem apuro estético, podem até ser oportunos, mas são quase espúrios em um contexto de maestria esportiva. “A apreciação aqui não é simplesmente dirigida ao fato que a faca [o loop] funciona bem; é sobretudo o modo pelo qual todos os aspectos sensíveis convergem e trabalham juntos para facilitar o uso” (Saito, 2007, p. 27). Esportistas estão, a todo momento, realizando juízos estético-funcionais. Assim como Saito acredita sobre objetos e atividades cotidianas, eu acredito que é empobrecedor encontrar valor estético nos esportes apenas quando nós os isolamos de sua significância prática “e contemplamos eles como se fossem objetos de arte criados especificamente para exibição” (Saito, 2007, p. 27). Esse divórcio sublimado “perde um rico arranjo de valores estéticos integrados com contextos utilitários” (Saito, 2007, p. 27). Em suma, penso que devemos resistir ao condicionamento da relevância estética dos esportes à sua identidade ou ao seu enquadramento como arte, uma vez que o quadro teórico usualmente aplicado à arte deixa uma porção crucial da estética da prática esportiva fora da moldura. Não por acaso, mas por subscrever a uma Estética orientada pelas belas-artes, que Best (1974, p. 204), com grande renome no debate, sentiu a necessidade de reduzir a relevância estética dos majoritários, por ele nomeados, esportes com propósito (purposive) – e.g. futebol, atletismo, escalada. Nestes esportes, nós supostamente poderíamos vencer ou marcar, desde que respeitássemos as regras, de qualquer jeito, com ou sem apuro estético. Em contraste, ele prefere reservar o termo a expressão “esportes ‘estéticos’” para aqueles, minoritários, em que o apuro estético é avaliado como critério de vitória – e.g. ginástica, patinação no gelo, saltos ornamentais. Para mim, é uma filosofia que torna estreita a noção de relevância estética e, por conseguinte, compreende a nossa relação estética com esportes de forma estreita. Os esportes idealizados por Best como estéticos são aqueles cuja contemplação faz parte das regras de avaliação. Para ele, a experiência estética relevante é a visual. E somente certos atributos honoríficos na Estética Ocidental das belas-artes, como a “pura graça” e a “beleza simétrica”, indicam a relevância estética de movimentos ou eventos. Best ignora a “beleza trágica” de um belo movimento que não culmina em um ponto ou como um movimento “torto” e “desajeitado”, feito no limite de nossas forças, pode ser esteticamente celebrável, a depender do contexto. Fãs do futebol conhecem muito bem a poética carregada em suspense e lamento agridoce dos ditos “gols que Pelé não fez”, algumas ocasiões em que o Rei do Futebol performou jogadas de rara maestria, mas não alterou o placar. Curiosamente, outro grande jogador brasileiro, Dadá Maravilha, empregou uma lógica tão severa, mas oposta à de Best, ao afirmar: “Não há gol feio, feio é não marcar gols”. Sem radicalidade, eu concluiria não há um único padrão de beleza para avaliarmos gols, talvez quase todos tenham a sua “beleza”. Com um lamento agridoce, por exemplo, eu posso valorizar, estética e funcionalmente, o que senti em todos os meus belos movimentos de forehand que quase aterrissaram na quadra oposta. Por outro lado, eu posso também valorizar,
237
da mesma forma, os movimentos “feios”, “puramente improvisados” e “desengonçados” ou “a léguas do ideal esportivo” que, surpreendentemente, culminaram em pontos. Para mim, desafiando a distinção tradicional de Best, a estética é onipresente nos eventos esportivos e, como espero destacar, na prática esportiva. Pode ser desencaminhador separarmos esportes em “estéticos” e “com propósito”, uma vez que acabamos subestimando a relevância estética destes a ponto de negar-lhes o próprio adjetivo. Dissolvendo a separação conceitual, eu enfatizaria que todos os esportes são, de algum modo, estéticos e com propósito. Talvez, considerando os seus pressupostos teóricos, Best teria feito melhor caso falasse em esportes com e sem júri estético formal. Seja como os esportes forem adjetivados, a experiência peculiar de praticar um ou outro esporte será reconhecida e desfrutada como tal através de uma estética distinta. Cada esporte nos proporciona uma variedade particular de imagens, sons, sensações táteis, propriocepções corporais e, em alguns casos, cheiros e gostos. Todos os esportes têm as suas próprias texturas e ritmos, “nós simplesmente ‘sentimos’ diferente jogando em cada um” (Kupfer, 1983, p. 137). Portanto, a prática esportiva solicita a participação de múltiplos sentidos, que nos auxiliam em uma constante de apreciações estéticas para que possamos alcançar ou sustentar movimentos eficientes ou apenas divertidos. Essas apreciações podem ser refletidas ou (quase)automáticas. Tanto a experimentação quanto a melhoria de movimentos despontam como esteticamente orientadas. Atletas, frequentemente, buscam por movimentos que são mais “rápidos”, “lentos”, “leves”, “pesados”, “retilíneos”, “curvos”, “elegantes”, “graciosos”, “sinuosos”, “belos”, “arrebatadores”, “intensos”, e assim por diante. Mesmo a eficácia dos movimentos é entendida pela sua aparência sensível. Atletas se esforçam para produzir certos designs de movimento e sensações proprioceptivas que se provaram eficazes. Esse esforço leva a numerosos juízos estéticos-funcionais pelos quais, parafraseando Saito (2007, p. 211), tais atletas julgaram que seus movimentos funcionam bem (ou mal) a partir das suas experiências em primeira mão através de seus sentidos e sensações corporais. Ordinariamente, a prática de esportes nos oportuniza descobrir e redescobrir experiências estéticas que podem tornar as nossas vidas mais agradáveis e mesmo cheias de sentido. Há sempre uma experiência estética ainda não mapeada que praticantes podem alcançar, talvez, um ritmo mais veloz, um movimento exótico ou uma composição inovadora. Por outro lado, há também uma plenitude de movimentos familiares ou já desfrutados a serem redescobertos e, por que não, refinados. A busca estético-funcional por movimentos mais eficientes, fluidos ou divertidos pode ser uma jornada perene, que sobrevive a vitórias e a derrotas. Cada esporte é um incrível tesouro com experiências estéticas (extra)ordinárias e peculiares.
Descobrindo a prática esportiva por motivos estéticos Eu amo praticar tênis de mesa. E eu não sou talentoso nem formalmente treinado desde a infância, então ganhos financeiros e glórias estão fora da mesa para mim. Mesmo em um contexto
238
local, eu não diria que sou um postulante a campeão. Provavelmente, saúde e desenvolvimento pessoal sejam alguns dos benefícios em praticá-lo, porém não são os meus motivadores principais. Decerto as minhas motivações iniciais foram socializar e passar o tempo. Perdido em um aniversário infantil, como um adulto desenturmado, encontrei no tênis de mesa não apenas um meio de socialização e passatempo. Ao longo de mais de quatro horas jogando com outro adulto desenturmado, meu sogro, que me passou as noções e as regras básicas, acabei encontrando o meu esporte predileto afinal. Alguns anos mais tarde, eu reconheceria nele, assim como em outros esportes, uma fonte única de experiências estéticas que envigoram nossas vidas. A estética do tênis de mesa me arrebatou. Os spins multidirecionais e sinuosos; as variações de tempo, a velocidade impossível; as fintas criativas em forehand flicks; a sensação cinestésica de realizar um movimento de crossover que parece um voo redentor; a sensação protética da raquete na mão, com um feeling distinto com o contato da bola; os sons da borracha e da madeira em ressonância; o som da bola, quando ela arqueja em um pingue e pongue que parece interminável, na monotonia apaziguante de movimentos básicos repetido à exaustão; a sensação fantástica de vivenciar um rally dramático, do qual eu jamais gostaria de escapar; o design dos jogos, os diferentes estilos em oposição; o senso progressivo de maestria “estético-funcional”, como se aos poucos o estilo que adotei como ideal estivesse sendo incorporado. Assim como o tênis de mesa, cada esporte possui uma estética única, pela qual somos mais ou menos atraídos. Sobre o basquete, por exemplo, o ex-jogador profissional Bill Bradley declarou “O que me atraiu foi o som do swish5, o som do drible, a sensação de subir no ar” (Kupfer, 1983, p. 137). Acredito que as estéticas esportivas únicas podem nos ajudar a entender o que leva uma pessoa a preferir intrinsecamente certos esportes a outros. Ainda que sejam de algum modo valiosos e tão falados, os ganhos financeiros, a glória, as amizades, a saúde e outros tantos fatores são motivadores genéricos ou extrínsecos. Eles não qualificam o que nos leva a praticar um esporte por ele mesmo; ou ainda, não mostram em que sentido a prática esportiva per se já é motivante o bastante para nós. Em contrapartida, eu gostaria de sugerir que a busca, consciente ou inconsciente, por experiências estéticas sui generis pode nos motivar, intrinsicamente, a praticar esportes em particular. Razões extrínsecas, a propósito, podem ou não coexistir com essa busca. Alguém que expressou como poucos o interesse por essa busca estética é o lendário golfista Arnold Palmer, um profissional que escreveu esta impactante observação acerca de sua relação estética com o golfe: “O que outras pessoas podem encontrar na poesia ou em museus de arte, eu encontro no voo de um bom drive” (Palmer, 1969, p. 10). Ele tinha em mente “a bola branca navegando para cima e acima naquele céu azul, tornando-se menor e ainda menor, quase entrando em órbita”, e então “alcançando o seu ápice de repente, curvando-se, caindo, descrevendo a perfeita parábola de um bom golpe, e finalmente baixando na turfa para rolar um pouco mais” (Palmer, 1969, p. 10). É notável que Palmer tenha expressado o “voo de um bom drive” como algo que ele
5 Som distinto quando a bola atravessa a cesta sem tocar no aro nem na tabela.
239
encontrava. Palmer estava buscando por essa e outras experiências estéticas (extra)ordinárias. De modo relevante, o seu desfrute estético com o golfe compreendia até mesmo “o misto de prazer e desconforto de amaciar um novo par de sapatos de golfe” (Palmer, 1969, p. 10), sentido nesse processo toda a firmeza e solidez do material6. O deleite estético esportivo pode ser negligenciado por pessoas que tratam os esportes como meras de indústrias de vitória. Mas, em cada atleta, há sempre uma experiência estética aguardando para ser evocada e, talvez, descrita em palavras. De fato, quem performa um esporte está em uma posição privilegiada para apreciar os ritmos e as moções que produzem com seus próprios corpos. “Quem corre, por exemplo, pode apreciar [diretamente] por ‘dentro’ o padrão que seu movimento respiratório, seu braço e sua perna criam” (Kupfer, 1983, p. 137). Para quem corre, “deslocamento, respiração e o esforço muscular são visceralmente sentidos e ouvidos” (Kupfer, 1983, p. 137). É um domínio de experiência inacessível para quem apenas assiste. “Mesmo a exaustão dos músculos e, finalmente, a dor podem ser apreciados por performadores como acompanhamento da moção” (Kupfer, 1983, p. 137). Atletas entendem em seus corpos que a satisfação estética não é apenas uma questão de acumular prazer, mas o próprio contraste entre o agradável e o desagradável. Nós apreciamos os esportes, em parte, também pela percepção dos movimentos que nossos corpos podem e poderiam fazer. Enquanto atletas, nós buscamos alcançar estéticas antes inacessíveis. Estamos negociando constantemente o quão rápido, a tempo, alto, baixo, preciso, potente, elegante e suave nós podemos mover os nossos corpos. Essa negociação não é sempre um progresso óbvio e linear, porque os nossos corpos mudam, envelhecem, se cansam, se reabastecem, e assim por diante. Como bem expressa Kupfer (1983, p. 116), é um “espetáculo sisífico de seres humanos exaurindo seus recursos contra os limites naturais do movimento físico”. E Sísifo pode ser feliz, como provam incontáveis esportistas, que estão situados nos mais diversos contextos. A estética e mesmo a beleza na experiência esportiva não está apenas no que é ideal, soberbo, gracioso e puro. Ao passo que movimentos graciosos são usualmente estimados por acadêmicos (Best, 1974, p. 209; Kupfer, 1983, p. 119), aqueles movimentos estranhos, desestruturados e fatigados são quase considerados esteticamente espúrios. Quando estes movimentos “funcionam”, não deveria haver sempre um senso de lamento estético, porque não foram movimentos limpos e elegantes que asseguraram a performance. Às vezes, os movimentos bruscos, irregulares e sortudos têm a sua beleza contextual. Em um set inflamado de vôlei, quando uma jogadora salva uma bola por “pura sorte” com uma defesa espalhafatosa e improvisada que faz uma bola mal ultrapassar a rede antes de aninhar-se na quadra oponente, não poderíamos conceder que há uma experiência esteticamente emocionante diante de nós? Não haveria também uma beleza pungente na corrida desajeitada, pesada e tropeçante que luta para atravessar o último quilômetro? As experiências estéticas sui generis dos esportes, que podemos encontrar em nossas jornadas como esportistas, não são apenas aquelas límpidas e graciosas. Cada esporte nos oferece uma diversidade única de experiências estéticas, em especial,
240
porque a espacialidade e a temporalidade que configuram cada esporte são distintas. Há esportes que possuem um senso de cadência rítmica como a natação e a corrida, “em que a mesma moção é repetida; braços e pernas, tronco e cabeça, estão sincronizados em um padrão de batidas e pausas” (Kupfer, 1983, p. 138). Na prática desses esportes, “nós podemos estar tão sincronizados aos ritmos de nossos corpos que experenciamos um refrescamento meditativo” (Kupfer, 1983, p. 138). Alguns esportes são mais pausados, como o baseball; outros, como o futebol de salão, são mais frenéticos. Algumas modalidades esportivas requerem horas para serem minimamente experenciadas, como a maratona; outras, como os 100 metros rasos, podem ser experenciadas em segundos (Kupfer, 1983, p. 135). Como sabemos, esportes são praticados em diferentes superfícies, ambientes e meios (mediums). Apenas essa diferença já cria uma variedade profusa de experiências estéticas. Em esportes aquáticos, por exemplo, nós deslizamos em um meio que nos faz sentir mais leves e, talvez, através do reflexo da água, possamos ver uma luminosidade difusa. “Nós deslizamos através de um medium que resiste e então fluidamente se rende ao arrasto de nossos braços e ao impulso de nossas pernas” (Kupfer, 1983, p. 138). Outro fator impactante na caracterização da experiência estética é se a prática esportiva ocorre com equipes, oposições ou solitariamente. Em uma instância coletiva do basquete, por exemplo, quem participa do jogo precisa constantemente reagir a diferentes estilos de jogo ao passo que manifesta o próprio estilo em complemento ou oposição. Ao praticarmos esportes coletivos, em geral, nós temos uma chance de sentir o que é se tornar parte de um todo coeso e integrado (Kupfer, 1983, p. 128). E isso é somente um vislumbre da diversidade estética dos esportes. A nossa experiência com os esportes, muitas vezes, acaba integrada em nossa vida cotidiana. Não apenas porque se torna parte de nossa rotina, mas também porque os movimentos esportivos passam a se manifestar ao longo de momentos domésticos. “Assim faz o giro de patinação acentuar e completar o nosso pivô para fechar a porta da garagem ou a pirueta ao deslizarmos para dentro de um sobretudo” (Kupfer, 1983, p. 117). Neste cenário, Kupfer concebe uma situação em que imitamos, à nossa maneira, um movimento que assistimos em um evento de patinação. Mas isso também ocorre com praticantes, que por sua própria memória muscular e momento de devaneio esportivo, não resistem em se movimentar como se estivessem em uma pista, ringue, quadra ou mesa. Se somos patinadores, talvez, nós sorrimos ao perceber que uma pirueta se esgueirou em nossa vida doméstica. Boxeadores se percebem inspirados lançando combinações de footwork e de
6 Sem ingenuidade, eu devo notar aqui que a “estética do golfe” é um tema política e moralmente controverso. Em 1992, por exemplo, o iconoclástico comediante George Carlin (2024) lançou uma crítica ácida sobre os campos de golfe, os quais, segundo ele, desperdiçam um espaço precioso para entreter elites arrogantes ao passo que uma legião de pessoas desabrigadas carece de um local para habitar. Carlin disparou ainda a propósito que o golfe, somente por seu próprio design de proporções descomunais, já pode ser considerado como um “jogo arrogante”, além de “tedioso” e “nada esperto” (mindless). Outro exemplo é levantado pela própria Saito (2007, p. 65), que, sem acidez, também questiona o custo energético-ambiental dos padrões estéticos idealizados nos campos de golfe, com seus gramados sempre “perfeitamente” aparados e verdejantes; com seus lagos tingidos em azul turquesa e suas flores irretocáveis.
241
socos ao vento. Para mim, um mesatenista amador, esse momento agradável é quando arremesso pequenos objetos – almofadas, meias empelotadas –, com spin, em um lugar preciso. A profunda apreciação estética sobre spins (giros) que o tênis de mesa me trouxe está, de fato, incorporada em meus pulsos. É uma satisfação proprioceptiva, sentir internamente o meu movimento sendo concretizado em um gesto “bonito”, “elegante” ou “impressionante”. É perceber o próprio corpo como produtor de beleza. “Talvez mais do que qualquer outra atividade [...] os esportes revelam os nossos corpos como mais do que máquinas úteis; como um medium estético com o qual nós devemos estar em contato íntimo” (Kupfer, 1983, p. 118). Enquanto as nossas experiências estéticas com esportes podem emanar para o nosso cotidiano doméstico; elas também podem alcançar algo de transcendental, como experiências que parecem nos transportar para fora de nós e do meio, ainda que tenhamos uma sensação de absoluta integração. Ao praticarmos esportes, eu sinto que, talvez, possamos experimentar um processo psicológico nomeado “fluxo estético” (aesthetic flow) por Jack Vavrinchik (2020)7. No decorrer desse processo, suponho que podemos apreciar profunda e esteticamente a nossa performance e ambiente em tempo real. Consoante Mihaly Csikzentmihaly (1991), flow designa um estado ou processo que experimentamos quando estamos completamente imersos, focados e engajados em uma certa atividade desafiadora com confiança proporcional, ao passo que nos sentimos, de maneira espontânea, satisfeitos e energizados ao praticá-la. Nos entendemos como plenamente à altura do desafio que temos em mãos. A nossa percepção de tempo é alterada; a nossa autoconsciência, mitigada. Nosso interesse pela atividade torna-se autotélico – intrínseco, sobretudo – e, como eu adiciono, notavelmente estético. Essa sensação é descrita pelos atletas com as expressões “being in the zone” ou “estar com tudo”. Ao experienciarem flow, muitas vezes, as pessoas entrevistadas reportam a sensação de flutuar ou de ser carregados por uma corrente – de água, implicitamente8. A lenda da NBA, Bill Russell, é um exemplo notório que descreveu perspicuamente a sua experiência distinta de flow no esporte. “Então, o jogo apenas decolaria, e então o fluxo [flow] e o refluxo que lembravam você do quão rítmico e musical o basquete deveria ser” (Kupfer, 1983, p. 127). A experiência se tornava tão autotélica para Russell a ponto de ele afirmar: “eu estaria de fato torcendo para outra equipe, quando seus jogadores faziam movimentos espetaculares, eu queria que seus arremessos fossem na cesta” (Kupfer, 1983, p. 127). Consistente com o redimensionamento temporal próprio do flow, Russell relatou também que “o jogo iria se mover tão rápido que cada finta, corte e passe seria surpreendente e, ainda assim, nada iria me surpreender” (Kupfer, 1983, p. 140). “Durante essas magias (spells)”, Russell “poderia quase sentir como a próxima jogada seria desenvolvida e o próximo arremesso seria realizado” (Kupfer, 1983, p. 140). Ainda que na condição de um mesatenista bastante amador, eu posso dizer que senti experiência semelhantes; curiosamente, acredito que esse tenha sido o caso da minha primeira experiência. Evidentemente, ela foi em um nível de desafio e habilidade bem menor do que aquele experienciado por Russell; mas a proporção entre desafio e confiança técnica foi, ao menos,
242
paralela. Talvez, isso explique por que o tênis de mesa tenha se tornado a minha modalidade esportiva predileta. Para mim, essas experiências de aesthetic flow revelam-se como o ápice esportivo, o sublime no esporte. Não apenas em um ou outro caso especial, atletas tendem a caracterizar a sua experiência esportiva em termos estéticos. Isso precisa ser enfatizado. Mesmo quando não adjetivam, diretamente, as suas experiências como instâncias estéticas, atletas podem sugerir essa condição de forma indireta em suas descrições. Para aumentar os exemplos, nós podemos adicionar as palavras da “primeira surfista indiana”, Ishita Malayija: “Quando eu estou sobre meu longboard, eu sinto como se eu estivesse dançando sobre a água [...] você está apenas deslizando e isso parece (feels) tão relaxado e sem esforço” (Olympic Channel, 2024a, 00:01:03). Outra adição, ainda mais explícita, é a declaração da campeã olímpica, Haruka Tachimoto, sobre o judô japonês: “É tudo sobre a beleza [...] Nós colocamos uma grande importância nos básicos desde a tenra idade [...] nós praticamos para torná-los [os movimentos] mais kirei (belos) e efetivos. Tornam-se arraigados em nossos corpos” (Olympic Channel, 2024b, 00:01:22)9. Até certo ponto, acredito que podemos generalizar as últimas frases de Tachimoto para abranger não apenas a experiência de judocas japoneses, mas também a experiência de esportistas em geral com as suas respectivas artes (lato sensu) ou ofícios. Devemos ressalvar, é claro, que várias pessoas praticam esportes apenas por lazer ou passatempo, sem grande interesse em desenvolver a funcionalidade dos movimentos enquanto alcançam uma forma ideal – entendida, à maneira de cada esporte, como “bela”, “graciosa”, “elegante”, “potente”, “impressionante”. Há muitos paradigmas de performance e de beleza esportiva que coexistem. Pessoas, simplesmente, têm diferentes ideais, objetivos, níveis de maestria, esportes favoritos e corpos. Uma dessas pessoas é Kimie Bessho, septuagenária em atividade, lenda paraolímpica do tênis de mesa em cadeira de rodas. Ela também é conhecida pelo epíteto The Butterfly Lady (A Senhora Borboleta). Conforme escreveram Junko Ogura e Selina Wang (2021), a mesatenista tem esse apelido não apenas porque ela costuma adornar os cabelos com dezenas de clipes com formatos de borboletas; nem porque imagens de borboletas aparecem estampadas por todo seu equipamento esportivo. Kimie Bessho tem um gosto especial por táticas elusivas em que a bola viaja errática e flutuante, como se ela fosse uma borboleta a voar. Por um viés mesatenista, são trajetórias desconcertantes que costumam ser efetivamente belas, assim como belamente efetivas.
7 Vavrinchik aplica essa noção para o fenômeno de musicistas que reagem, esteticamente, à própria produção em momentos de flow – conceito de Csikzentmihaly. A partir de algumas evidências empíricas, Vavrinchik conclui que alguns eventos de flow podem integrar experiências de avaliação estética. Entretanto, ainda que essa já seja uma proposta interessante, creio que a conjunção do estético ao processo de flow ainda está estreita demais na proposta Vavrinchik. Isso porque a sua interpretação de eventos estéticos está centralizada em demasia na arte. Com a filosofia de Saito à mão, eu diria que não é raro que tenhamos reações estéticas em um processo de flow, mas é a regra. Assim, aesthetic flow é quase um pleonasmo, mas que pode ainda ser virtuoso para enfatizar a dimensão estética do fenômeno em questão. 8 O fenômeno é nomeado como flow por Csikszentmihalyi (1991, p. 40), justamente, porque quem ele entrevistou afirmava coisas como “era como se eu estivesse flutuando” e “eu fui carregado por um fluxo”, a fim de descrever a sua experiência comum. No fundo, são apreciações estéticas de experiências cinestésicas intensas transpostas em metáforas de “flutuação” ou “fluxo”. Por isso, devo insistir que flow é uma experiência estética via de regra.
243
Outra pessoa notável é a nadadora competitiva, Betty Brussel, que aos 99 anos, quebrou três recordes mundiais na categoria entre 100-10410 anos este ano, 2024. O interesse de Brussel pelo nado competitivo surgiu nos meados de seus sessenta anos, quando competiu nos British Columbia Senior Games. Nas palavras de Brussel, para a reportagem de Leyland Cecco (2024): “Eu nem mesmo penso sobre recordes. Eu apenas nado. [...] Se eu vencer, eu fico feliz por vencer. Mas, se eu tenho um momento agradável, eu sou mais feliz”. Eu diria que a motivação intrínseca de Brussel para praticar a natação supera as suas preocupações extrínsecas, com medalhas e recordes. E uma de suas declarações captura, afinal, que há um gosto estético envolvido nessa motivação: “Eu realmente gosto de nadar. Eu amo mesmo a sensação de deslizar através da água [grifo meu] e isso apenas me faz sentir muito bem” (Cecco, 2024). De fato, o nosso interesse estético com o esporte pode – e deve – sobreviver a derrotas e a vitórias. Mesmo em um momento desfavorável, nós podemos apreciar o valor estético em nossa prática corrente ou futura. “É apenas quando jogar o jogo é [completamente] subordinado a fins externos como dinheiro ou ego que marcar ou vencer é valorado independentemente da qualidade da jogada” (Kupfer, 1983, p. 123). Podemos ressalvar que seguir um sistema de pontuação pode, favoravelmente, oferecer um senso de direcionalidade, dramaticidade e de progressão nos jogos. Contudo, às vezes, nós podemos apenas nos esquecer dos placares e apenas desfrutar da experiência esportiva. Nem todos os esportistas são atletas profissionais ou semiprofissionais, cujas vidas dependem de sua performance. Em qualquer nível de competição, a preocupação exclusiva com o triunfo competitivo pode amargurar a nossa experiência geral e estética com os esportes. Algo que suponho longe de ser unânime mesmo entre atletas profissionais. Mas, às vezes, “nós parecemos esquecer que vencer o jogo é um objetivo posto imaginariamente e aceito expressamente para o propósito de jogar o jogo, ‘como se’ ele fosse importante” (Kupfer, 1983, p. 119). Nesse momento, talvez, nós precisemos relembrar que jogos permanecem desfrutáveis – esteticamente, eu acrescentaria.
Considerações finais A partir de intervenções conceituais, relatos pessoais e depoimentos pontuais, eu procurei destacar que podemos muito bem conceber as nossas práticas esportivas como esteticamente orientadas, em especial, quando tomamos o conceito de “estética” de maneira ampla, como na Estética Cotidiana de Saito. Cada esporte nos oferece uma estética única, algo que só pude sugerir com exemplos ainda parcos diante da multidão de esportes disponíveis. Experienciar a estética desses esportes é um motivo – subestimado – que nos leva a, ou colabora com, a nossa prática esportiva. Sugeri que podemos, inclusive, preferir um esporte a outros com base em sua estética particular. Quando esteticamente motivados, a prática da atividade esportiva em si já é recompensadora para nós – bônus e ônus externos à parte. Com essa motivação, valorizamos os esportes por eles mesmos,
244
pelas experiências únicas que eles oferecem para agraciar as nossas vidas. As experiências de flow relatadas por esportistas são exemplos representativos ao extremo nesse sentido. Não obstante, há uma miríade de experiências estéticas corriqueiras, como os sons, as composições e as texturas próprias de cada esporte, que também nos levam a valorizá-los intrinsecamente. Talvez, o caminho para expandirmos o número de esportistas possa ser beneficiado pelo reconhecimento de que valorizamos, sobremaneira, as estéticas dos esportes como critérios para praticá-los com motivação intrínseca. Mesmo se não formos profissionais, se não houver medalhas para nós, se pudermos ignorar a chamada pela saúde, uma valorização intrínseca ainda nos compelirá a praticar esportes, simplesmente, por gosto. Dessa forma, talvez, o desafio de nossas instituições seja oferecer para nós a experiência com um maior número de esportes variados, para que encontremos relações compatíveis com nossas preferências estéticas. Talvez, quem sustente a convicção de não gostar de praticar esportes seja apenas uma pessoa que ainda não encontrou o esporte que atiçará de algum modo o seu senso e a sua curiosidade estética, tal como o tênis de mesa fez por mim e Kimie Bessho; o basquete por Bill Russell; o surfe por Ishita Malayija; a natação por Betty Brussel; e tantos esportes por tantas pessoas.
9 Talvez, por uma questão cultural, japoneses tendem a perceber mais prontamente como aspectos estéticos estão conjugados em atividades em geral. A declaração de Tachimoto e a obra de Saito sinalizam nessa direção. Mas esse tipo de percepção, certamente, não é algo exclusivo de japoneses. 10 O ano de nascimento de quem compete determina a sua categoria. Brussel nasceu em 1924.
245
246
Referências Best, D. (1974). “The Aesthetic in Sport.” British Journal of Aesthetics, 14(3), 197-213. Best, D. (1985). “Sport Is Not Art.” Journal of the Philosophy of Sport, 12(1), 25-40. Cameron, J., & Pierce, W. D. (1994). Reinforcement, reward, and intrinsic motivation: A meta-analysis. Review of Educational Research, 64(3), 363–423. Carlin, G. (2024). Golf Courses for the Homeless - Jammin' in New York. https://www.youtube.com/watch?v=b3w8buV-Tsc Cecco, L. (2024). ‘I just count the laps’: Canadian swimmer, 99, breaks three world records. https://www.theguardian.com/ world/2024/jan/23/canadian-swimmer-99-world-records-betty-brussel. Coelho, Rebeca C., Kreft, L. &, Lacerda, T. (2014). The Aesthetic Experience of the Combat Athletes in Taekwondo. Fair Play, 2(2), 81-104. Csikszentmihalyi, M. (1991). Flow: The Psychology of Optimal Experience. New York: Harper Perennial. Deci, E. L., Koestner, R., & Ryan, R. M. (1999). A meta-analytic review of experiments examining the effects of extrinsic rewards on intrinsic motivation. Psychological bulletin, 125(6), 627–700. Fernandes, R. & Lacerda, T. (2010). Experiência estética do nadador: Um estudo a partir da perspectiva de atletas de natação de alto rendimento. Revista Portuguesa de Ciências do Desporto, 10(1), 180-188. Kovich, M. (1971). Sport as an Art Form.” Journal of Health, Physical Education, Recreation, 42(8), 42. Kreft, L. (2024). Aesthetics of Sport: An Overview. https://www.academia.edu/27468926/. Kupfer, J. (1983). Experience as Art: Aesthetics in Everyday Life. State University of New York: Albany. Lundvall, S. & Maivorsdotter, N. (2009). Aesthetic experience as an aspect of embodied learning: stories from physical education student teachers. Sport, Education and Society, 14(3), 265-279. Mandoki, K. (2007). Everyday Aesthetics: Prosaics, the Play of Culture and Social Identities. Aldershot: Ashegate. Millwood, P. (2023). Improbable Diplomats: How Ping-Pong Players, Musicians, and Scientists Remade US-China Relations. Cambridge: Cambridge University Press. Ng, J. (2005). Promoting Intergenerational Relationships Through Table Tennis, Journal of Intergenerational Relationships, 3(1), 89-92. Ogura, J. & Wang, S. (2021). “I won’t die a boring death, but I will make a big smash,” says “‘The Butterfly Lady’ of Paralympic table tennis.” https://edition.cnn.com/2021/05/23/sport/kimie-bessho-paralympics-japan-cmd-spt-intl Olympic Channel (2024a). Her Game. https://olympics.com/en/original-series/episode/meet-ishita-malaviya-india-s-first-womansurfer-her-game. Olympic Channel (2024b). Land of Legends: Asia-Pacific. https://olympics.com/en/original-series/episode/how-japan-came-to-bea-land-of-judo-legends. Palmer, A. (1969) Golfer: My game and yours. London: Corgi. Platchias, D. (2003) “Sport Is Art.” European Journal of Sport Science, 3(4), 1-18 Ryan, R. M., & Deci, E. L. (2000). Intrinsic and extrinsic motivations: Classic definitions and new directions. Contemporary Educational Psychology, 25(1), 54-67. Saito, Y. (2007). Everyday Aesthetics. Oxford: Oxford University Press. Shusterman, R. (2019). Dance as Art, Theatre, and Practice: Somaesthetic Perspectives.” Midwest Studies in Philosophy, 44(1), 143-160. Spicher, M. R. (2024). Aesthetic Taste. Internet Encyclopedia of Philosophy. https://iep.utm.edu/aesthetic-taste/. Vavrinchik, J. P. (2020). Aesthetic Flow: The Implications and Neural Correlates of a Goal-Directed Aesthetic Experience. Compos Mentis, 8(1), 149-159. Yamasaki, T. (2022). Benefits of Table Tennis for Brain Health Maintenance and Prevention of Dementia. Encyclopedia, 2(3), 1577-1589. Welsch, W. (1999) “Sport – Viewed Aesthetically, and Even as Art?.” Filozofski Vestnik, 20:2, 213-236.
247
248
A magia da Arte Suave para mulheres: jiu jitsu e história Luciana Neder Giancristoforo Escola de Educação Física e Esporte, Universidade de São Paulo Ana Cristina Zimmermann Escola de Educação Física e Esporte, Universidade de São Paulo Soraia Chung Saura Escola de Educação Física e Esporte, Universidade de São Paulo
249
250
A magia da Arte Suave para mulheres: jiu jitsu e história Luciana Neder Giancristoforo,
Escola de Educação Física e Esporte, Universidade de São Paulo.
Ana Cristina Zimmermann,
Escola de Educação Física e Esporte, Universidade de São Paulo.
Soraia Chung Saura,
Escola de Educação Física e Esporte, Universidade de São Paulo.
Introdução Segundo o Diagnóstico Nacional do Esporte (2015), a mais abrangente sondagem sobre esportes já feita no país, o jiu-jitsu é a arte marcial mais popular do Brasil, algo em torno de 2,5 milhões de praticantes, em que a participação masculina é 5 vezes maior do que a participação feminina. O jiu-jitsu é uma arte marcial de defesa pessoal, onde a luta agarrada utiliza um sistema de alavancas, imobilizações, estrangulamentos, chaves e torções, tanto em pé quanto no solo, como uma vantagem técnica sobre as valências físicas de um indivíduo sobre o outro. Um dos princípios do jiu-jítsu é utilizar golpes que constituem alavancas mecânicas e nesse sentido possibilitam que um indivíduo com menor força muscular consiga vencer um adversário mais forte, porém com menor habilidade nas execuções das técnicas (Franchini, Takito & Pereira, 2003), e assim escapar de um ataque. A despeito disso, a presença de mulheres neste esporte marcial é ainda proporcionalmente pífia, o que sugere a necessidade de compreensão do fenômeno da presença (ou da ausência) feminina nas academias. O relatório “Movimento é Vida: Atividades Físicas e Esportivas para todas as Pessoas”, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 2017), enfatiza que as mulheres são menos incentivadas a ingressar no esporte, enquanto os homens são beneficiados por uma cultura de amplo incentivo. Contudo, as federações de jiu-jitsu vêm destacando um aumento de participação de mulheres em competições, divulgado por diversos sites de notícias, como o Flograppling. Entretanto, a hegemonia masculina ainda se faz dominante nos esportes luta e artes marciais, mesmo que o decreto-lei de nº 3.199, de 1941 tenha sido revogado há 44 anos. Esse decreto-lei proibia o exercício de esportes socialmente considerados masculinos por décadas, e o jiu-jitsu era um deles. Os motivos que culminaram na proibição giravam em torno de uma crença social de que a prática de um esporte “violento” seriam um malefício à saúde feminina pois a prática atrapalharia a capacidade reprodutiva da mulher (Franzini, 2014). O International Olympic Committee (IOC, 2021), criou um relatório chamado Portrayal Guidelines: Gender-Equal, Fair and Inclusive 251
Representation in Sport (2021), onde destaca que a desigualdade de gênero no esporte pode causar impactos no acesso (a iniciação no jiu-jitsu), no engajamento (na aderência ao jiu-jitsu, rumo à faixa preta), na valorização (o jiu-jitsu como profissão) e no reconhecimento (na visibilidade na mídia) da mulher. Segundo o IOC (2021), para melhorar a inserção e a permanência de meninas e mulheres no ambiente esportivo, é necessário modificar o cenário social e efetivamente criar mais oportunidades de inclusão para que elas tenham mais estruturas, recursos e representações esportivas adequadas aos seus contextos, corpos e realidades. Por não ser um esporte olímpico, as atletas de jiu-jitsu não são contempladas com os esforços do IOC para alcançar a equidade de gênero no esporte. E cabe destacar que nenhuma federação possui uma Política de Equidade de Gênero. A associação cultural do jiu-jitsu como um ambiente predominantemente masculino exige que as mulheres se “enquadrem” dentro de uma perspectiva criada para o sexo oposto. A mulher passa por experiências que se diferem das masculinas, portanto, compreender as características gerais associadas à prática feminina no jiu-jitsu é o que move a presente pesquisa. Figura 1. site de notícias da Flograppling,com a reportagem de Mayara Munhos
Objetivo e Metodologia Pensando nesse abismo que separa o homem da mulher no jiu-jitsu, esta pesquisa está buscando compreender a experiência feminina na arte suave, para identificar recorrências 252
e atravessamentos nas entrevistas realizadas com lutadoras, sobre o que atrai as mulheres à prática (fascínios), e também suas dores. Para tal, a pesquisa utiliza-se da análise fenomenológica, com o observar atento, a descrição minuciosa e análise indutiva dos dados (Saura e Meirelles, 2015), em uma pesquisa qualitativa, dialogando especialmente com o campo da ética e da estética da Filosofia do Esporte. Neste campo de assunto, a área fenomenológica nos auxilia a investigar a experiência vivida e corporal, buscando revelar os significados contidos no entrecruzamento com depoimentos das entrevistadas. No entanto, faz-se necessária uma contextualização histórica que situae a questão das mulheres no escopo deste esporte.
História do Jiu-Jitsu Feminino Neste capítulo revisitamos a história do jiu jitsu brasileiro no que tange às questões e a participação das mulheres. Segundo as evidências (Kanō, 2013; Santos, 2019; Gristchenkov, 2012; Hancock, 2009), o jujutsu foi idealizado no Japão, e o seu desenvolvimento no Brasil se deu através de uma rica influência da cultura japonesa. Kano (2013), enfatiza que não é possível determinar o ano que o jujutsu se iniciou, mas que é um fato que evoluiu desde os tempos antigos através de muitas gerações, onde é produto de um longo desenvolvimento no Japão, em um ambiente mutável, e à contribuição de muitos artistas marciais ao longo do tempo. Na tradução literal, ju (柔) significa em japonês “suavidade”, “brandura”, “ternura”; e jutsu (術), “arte”, “técnica”, ou seja, jujutsu significa “arte suave”. Existe uma variedade de grafias no mundo, como “jiu-jitsu”, “jujitsu” ou "jujutsu", entre outras, uma vez que a escrita e a fala sofreram alterações quando 柔術 foi traduzido e a nacionalizado (Borges, 2011). Entretanto, a grafia mais próxima ao vocábulo japonês é o “jujutsu”, segundo o Kodokan Judo Institute em 1961. Apesar destas divergências, todas as expressões designam o mesmo significado: o jiu-jitsu como uma “arte suave”, que segundo Gristchenkov (2012), é uma designação bastante profunda e que contém a complexidade da prática. Abarca em si a ideia de derrotar um oponente usando sua própria força e a força do seu oponente, controlando o potencial de causar danos. Manifesta-se neste sentido como um modelo de arte marcial gentil, onde o objetivo originário e filosófico é a autodefesa. Existem poucas evidências sobre o jujutsu do início do século XVII no Japão, e especialmente sobre a participação de mulheres. Mas essa prática acontecia em ambientes confinados e com orientação e supervisão de pais, que eram geralmente os Mestres (Hancock, 1904). Miarka et al. (2011) fez uma leitura sobre o papel das mulheres no judô no Japão, desde o seu início isolado e restrito no final do século XIX até as mudanças graduais nos paradigmas de gênero e sociais desencadeadas pela influência da luta feminista ocidental a partir da década de 1960 em diante. Segundo os autores, o judô foi considerado em teoria uma arte marcial inclusiva onde seu criador, Jigoro Kano, enfatizou a segurança, a etiqueta e os ensinamentos, independentemente da idade, tamanho ou sexo dos praticantes, ainda que o ambiente social e cultural no Japão tradicionalmente discriminasse mulheres. 253
No entanto, desde o final do século XVIII, a arte marcial japonesa vem fascinando as mulheres, quando foi apresentada à Europa e aos Estados Unidos por Mestres japoneses como uma ferramenta eficaz de autodefesa para mulheres. Lawler (2002) ressalta que as mulheres começaram a participar das artes marciais nesta época na medida em que saíram do âmbito doméstico para trabalhar e estudar, arriscando sua integridade física em espaços públicos. O jiu-jitsu foi trazido para o Brasil no início do século XX (Santos, 2019). A origem do "jiu-jitsu brasileiro" pode ser ligada ao desenvolvimento do Judô por Jigoro Kano. O judô é derivado do jujutsu. (Kanō, 2013). É relevante lembrar que Kano era não apenas um lutador, mas um profundo estudioso, que pensava no esporte como um caminho de desenvolvimento da sociedade, onde fortemente considerou a inclusão feminina, após sua irmã mais velha se interessar pela prática (Kano, 2013). Muito do que a mídia divulga sobre a história do jiu-jitsu no mundo e no Brasil, não tem fundamentação científica, e pensando nisso, pesquisadores do grupo estudo Goshinjutsukan ao longo de mais de 20 anos de pesquisa sobre a história do jiu-jitsu e sua implementação no Brasil (Santos, 2019), coletou e realizou análises. Ademais, quando falamos sobre a história de mulheres no jiu-jitsu, nota-se dificuldade de se obter dados e informações científicas. Essa falta de documentos oficiais e dados científicos no Brasil sugere uma disposição à divulgação de muitas teorias. A reportagem “O jiu-jitsu na Armada” do jornal “A república”, ano XXIII - número 94, de quinta-feira 23 de abril de 1908, publicou que o jiu-jitsu foi trazido ao Brasil pelo comandante do navio cruzador Benjamin Constant, o Capitão-de-Fragata Antonio Coutinho Gomes Pereira, por ordem do Ministro de Marinha, Almirante Alexandrino para acabar com a “Capoeiragem”. O primeiro instrutor foi o japonês Sada Miyako (Santos, 2019 apud Cancella, 2013). Sugere-se que o jiu-jitsu brasileiro foi adaptado do jujutsu, de modo que teve uma rica influência japonesa. O primeiro professor de jiu-jitsu brasileiro não foi Carlos Gracie, como amplamente difundido por sua própria família e pela mídia, mas sim o professor e atleta Mario Aleixo, aluno direto de Miyako. Mitsuyo Maeda, o Konde Koma, chegou muitos anos depois de Sada Miyako (Santos, 2019). A ele foi atribuído o título de “pai do jiu-jitsu no Brasil” e mestre de Carlos Gracie. E ainda segundo Santos (2019), mesmo que Maeda tenha contribuído bastante na implantação do jiu-jitsu e ter ministrado algumas aulas para Carlos Gracie, ele não foi o primeiro japonês instrutor no Brasil, e nunca citou o Gracie como aluno. O mais provável é que Carlos fosse aluno do Jacynto Ferro, melhor aluno de Maeda e co-instrutor (Santos, 2019). Ainda segundo Santos (2019), a história contada pela família Gracie sobre os primórdios do jiu-jitsu brasileiro não reflete as publicações de artigos em jornais da época, tanto no Brasil quanto no Japão. Sem dúvidas, a família Gracie foi a grande difusora da arte marcial no Brasil, preservando suas raízes na autodefesa, onde Helio Gracie, além de grande competidor, foi responsável por essa promoção do jiu-jitsu no Brasil. Ele e seu irmão Carlos Gracie modificaram o jujutsu original, inserindo regras, remodelando técnicas e tornando o jiu-jitsu um esporte de competição. O jiu-jitsu "brasileiro" tornou-se popular em larga medida devido às estratégias de divulgação da família Gracie, e um grande feito foi a criação do Ultimate Fighting Championship (UFC) - empresa promotora e organizadora de competição de lutas mistas - inicialmente desenvolvido como um local para a demonstração da superioridade do jiu-jitsu sobre outros estilos. Assim, o UFC nasce como um 254
local para combate entre homens, o que, mais uma vez, pode ser usado como evidência em favor da necessidade de investigar os modos pelos quais o esporte nasceu e se mantém "masculinizado". Na década de 1940 no Brasil, algumas modalidades foram desaconselhadas e proibidas à prática feminina, por meio de um decreto-lei de nº 3.199, de 1941, que deliberou: “Às mulheres não é permitida a prática de desportos incompatíveis com a sua natureza” (Souza & Mourão, 2011). Esse decreto é ainda detalhado pela Deliberação n. 7 do Conselho Nacional de Desportos, que entrou em vigor a partir de 1965, onde especificava quais práticas esportivas podiam ser desempenhadas por mulheres nas escolas, nos clubes ou nos espaços públicos em todo o país, tornando proibidas as lutas de qualquer natureza, o futebol, o futebol de salão, o futebol de praia, o polo aquático, o polo, o rúgbi, o halterofilismo e o basebol (Filho, 2007). A partir da revogação desta lei, quarenta anos depois, em 1979, a mídia da época atuou como uma disseminadora da importância da prática de defesa pessoal para as mulheres (Berté, 2016). Porquanto, este fato histórico nos leva a crer que o jiu-jitsu feminino tem, em nosso país, um pouco mais de quarenta anos de história. “Aliás, como meio de defesa realmente é uma das melhores opções nos dias de hoje, onde uma pessoa quase não pode mais sair sozinha a qualquer hora do dia e da noite. ‘E, no início, já que elas estavam destinadas a não competir, eu me preocupei com esta parte. Não poderiam competir, mas saberiam defender-se muito bem’, diz o técnico.” (Correio do Povo, 1980a, s/p apud Berté, 2016, p.40). O jiu-jitsu aparece como uma luta que promete dar chance aos fracos se defenderem dos mais fortes, e parece ser uma boa proposta para autodefesa feminina. Por outro lado, na forma de leis da época ou com mecanismos de exclusão e opressão, afastava as mulheres do tatame. O apagamento da história de mulheres nas lutas e artes marciais pode contribuir para a falta de engajamento feminino. No entanto, o aumento de participação de mulheres no jiu-jitsu tem sido evidenciado nas competições de jiu-jitsu. No Campeonato Brasileiro de 2021, da Confederação Brasileira de Jiu-Jitsu (CBJJ), 431 atletas mulheres participaram na categoria adulto, enquanto 1.333 homens lutaram nesta mesma categoria. Em uma época que não havia restrições de pandemia e portanto, o número de atletas não era tão restrito, 373 mulheres participaram do Brasileiro de 2017 na categoria adulto, enquanto 1689 homens lutaram na mesma categoria. Houve um discreto aumento de participação de mulheres, mesmo com as medidas de restrição para prevenção da COVID-19 no ano de 2021.
255
Figura 2. Entrevistada treinando jiu-jitsu em turma mista. Arquivo pessoal Luciana Neder.
Entre Dores e Fascínios A participação das mulheres no jiu-jitsu precisa ser questionada e enxergada como uma grande causa a ser conquistada. A trajetória de uma lutadora de jiu-jitsu é repleta de obstáculos, riscos e instabilidades, e ainda assim, o esporte feminino continua crescendo a novos patamares, com a firme convicção de que o fascínio e o prazer são fatores motivadores suficientes para perseverar na participação. Essa pesquisa está buscando nos depoimentos de lutadoras revelar como as recorrências se relacionam, paradoxalmente, ao amor e paixão pelo jiu-jitsu, e às situações de violência, assédio e abuso. Nos depoimentos, as participantes têm declarado o amor ao esporte de uma maneira diferente de tudo que já experimentaram antes. Elas sentem uma atração e um prazer enorme, e por isso, estão motivadas a não faltar aos seus treinos nem quando estão lesionadas. Elas desenvolveram um determinismo para perseverar em cada obstáculo que enfrentaram. São, na verdadeira compreensão do conceito, “escravas” do paradigma da paixão. As lutadoras entrevistadas compartilharam seu amor pela arte suave e, ao viver esse amor, também encontraram um propósito, um significado para suas vidas, e estão cientes de que de outra forma não teriam sido bem sucedidas. Ainda que as opressões e exclusões de mulheres no jiu-jitsu tenham motivado um atraso histórico em sua participação, o fascínio pela arte suave consegue se sobrepor aos desafios e barreiras para as entrevistadas. Esta pesquisa está buscando entender não apenas o que fascina essas mulheres em um esporte ainda contextualizado socialmente como masculino, e repleto de opressões e preconceitos sobre a participação de mulheres, identificado nos depoimentos das entrevistadas. Mas também, como o fascínio influencia a maneira como elas percebem e compreendem o mundo ao seu redor? Como o fascínio se relaciona com emoções, valores e experiências anteriores das lutadoras? 256
Que estado é que a mulher sente com relação a algo que as atrai profundamente, até de uma maneira que transcende a compreensão racional? O fascínio dessas lutadoras envolve uma imersão profunda na experiência, uma intensificação da percepção e uma sensação de conexão emocional e espiritual. Este fascínio parece conectar as experiências corpóreas às afetivas, embasada na teoria da percepção de Merleau-Ponty (1999). Figura 3: Uma das entrevistadas atuando como árbitra de luta masculina em um campeonato. Fonte: Luciana Alves Fotograf
No entrecruzamento com os depoimentos das entrevistadas, durante a iniciação no jiu-jitsu, as recorrências encontradas até então referem-se a péssima imagem que o jiu-jitsu tinha na época que iniciaram, e as situações de preconceito, assédio sexual e moral que elas vivenciaram nas academias. Outra recorrência foi com relação às dores e lesões. A prática do jiu-jitsu, no que tange a experiência de corpos, pode proporcionar sensações incomuns, e a artista marcial é obrigada a conviver com a dor, o desgaste físico, as contusões – e a ter que superá-los. Gonçalves et al, afirma que esse processo de cuidar e maltratar o corpo estão entrelaçados. “Onde não é estranho que nasça um sentimento de amor-ódio pelo corpo, criando um paradoxo” (Gonçalvez et al, 2012 apud Horkheimer & Adorno, 1997). Mesmo exigindo sacrifícios imensos ao corpo da pessoa que luta, o jiu-jitsu provoca uma magia, um tipo de relação de ligação profundamente complexa das praticantes com a luta em si e com todo o ambiente da luta. Essa magia relatada está ligada ao fato do jiu-jitsu ser um conjunto de técnicas baseado num sistema de alavancas que permite que pessoas de diferentes tipos de corpos consigam se sobressair, independente de seu peso, altura ou força muscular, tornando-se perfeito e apaixonante para mulheres, segundo algumas entrevistadas. Estes temas recorrentes encontram-se em fase de análise e aprofundamento do diálogo com a literatura. 257
258
Referências Bibliográficas BERTÉ, I. L. (2016). Mulheres no universo cultural do Boxe: as questões de gênero que atravessam a inserção e a permanência de atletas no Pugilismo. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/151424/001012161.pdf?sequence=1 Acesso em: 20 de janeiro. de 2024. BORGES, O. (2011). A. Ju Jutsu, Ju Jitsu ou Jiu Jitsu? Origens e evolução. Revista Digital EFDEPORTES: Buenos Aires, Año 16, nº 156. http://www.efdeportes.com/ Acesso em: 29 jul 2023. FILHO, L. C. (1991). Educação física no Brasil: a história que não se conta. 3ª ed. Campinas, SP: Papirus. FRANCHINI, E.; TAKITO, M. Y.; PEREIRA, J. N. C. (2003). Frequência cardíaca e força de preensão manual durante a luta de jiu-jitsu. Revista Digital EFDEPORTES: Buenos Aires, Año 9, nº 65. FRANZINI, F. (2014). DE UMA COPA A OUTRA, A ÉPOCA ESQUECIDA: FUTEBOL, POLÍTICA E SOCIEDADE NO BRASIL, 1940. Projeto História : Revista Do Programa De Estudos Pós-Graduados De História, 49. Recuperado de https://revistas.pucsp.br/index. php/revph/article/view/19457 GRISTCHENKOV, J. V. (2012). JUDO Pages of History (Part 1). Translated from Russian by Yauheni Preiherman. Belarusian State University of Physical Education, Minsk, Belarus. GONÇALVES, M. C.; TURELLI, F. C.; VAZ, A. F. (2012) Corpos, Dores e Subjetivações: notas de pesquisas no esporte, na luta e no balé. Revista Movimento, Porto Alegre, v. 18, n. 03, p. 141-158. HANCOCK, H. I. (1904). Physical training for women by Japanese methods. (Medical Heritage Library). New York and London: G.P. Putnam's Sons. HANCOCK, H. I., & Higashi, K. (2009). The Complete Kano jiu-jitsu (judo). The official jiu-jitsu of the Japanese government, with the additions by Hoshino and Tsutsumi and chapters on the serious and fatal blows and on kuatsu the Japanese science of the restoration of life. Place of publication not identified: Grizzell Press. IOC, International Olympic Committee (2021) Gender equality & inclusion Report 2021. Disponível em: https://stillmed.olympics. com/media/Documents/Beyond-the-Games/Gender-Equality-in-Sport/2021-IOC-Gender-Equality-Inclusion-Report.pdf?_ ga=2.250549892.347672306.1691952208-1502201335.1691952208. Acesso em: 13 ago 2023. IOC, International Olympic Committee (2021). Portrayal Guidelines: Gender-Equal, Fair and Inclusive Representation in Sport. Disponível em: https://stillmed.olympics.com/media/Documents/Beyond-the-Games/Gender-Equality-in-Sport/IOC-PortrayalGuidelines.pdf?_ga=2.221822618.347672306.1691952208-1502201335.1691952208 Acesso em: 13 ago 2023. KANŌ, J., PLÉE, T., & MELIN, V. (2013). Judo Kodokan: La bible du judo. Noisy-sur-École: Budo éd LAWLER, J. (2002). PUNCH! Why Women Participate in Violent Sports. Wish Publishing. MERLEAU-PONTY, M. (1999). Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes MUNHOS, M. (2023) Brasileiro faz recorde, mais mulheres registradas na história do evento. Site Flograppling, EUA, publicado em 04 mai 2023. Disponível em: https://www.flograppling.com/articles/10941345-brasileiro-faz-recorde-mais-mulheres-registradasna-historia-do-evento . Acesso em: 09 ago 2023. PNUD (2017). Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Relatório de Desenvolvimento Humano Nacional Movimento é Vida: Atividades Físicas e Esportivas para Todas as Pessoas. Brasília. SANTOS, M. A. F. (2019). Basic Knowledge of Jiu-Jitsu History So You Don't Look and Sounds Like an Idiot: The timeline of the implementation of Jiu-Jitsu according to the evidence and the characters. Livro em pdf ainda não publicado. SAURA, S. C.; ZIMMERMANN, A. C. (2018). Gaston Bachelard: contribuições para os estudos do corpo e do movimento. In: CARDONA, A. C. O.; CAMARGO, M. R.; MENEZES, R. C. D. (orgs). Red de educación Contemporánea en Latinoamérica tendencias latinoamericanas en investigación: volumen II. 1.ed. Bogotá: Universidad La Gran Colombia, p. 112–122 SAURA, S. C.; ZIMMERMANN, A. C. (2019). O espaço, o esporte e o lazer: considerações bachelardianas. In: ROZESTRATEN, Artur; BECCARI, Marcos; ALMEIDA, Rogério de (org.). Imaginários intempestivos: arquitetura, design, arte & educação. São Paulo: FEUSP. v. 1, p. 341-357. SAURA, S. C.; ZIMMERMANN, A. C. (2021). Traditional sports and games: intercultural dialog, sustainability, and empowerment. Frontiers in Psychology, v. 22, p. 32-60. DOI: https://doi.org/10.3389/fpsyg.2020.590301 SOUZA, G. C. de.; MOURÃO, L. (2011). Mulheres do tatame: o judô feminino no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ. ZIMMERMANN, A. C.; SAURA, S. C. (2019). Corpo e espanto na filosofia de Merleau-Ponty. In: NÓBREGA, T. P.; CAMINHA, I. de O. (org.). Merleau-Ponty e a educação física. São Paulo: Liber Ars. p. 119-131.
259
260
Índice Saudades do futuro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 3 Movimento com Movimento se Compreende . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 11 Motricidade Humana: o itinerário de um conceito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 17 A New Road to Travel: Challenges and Triumphs in Developing the Philosophy of Sport . . . . . . . p. 53 Razão e Movimento. A evolução da Filosofia do Desporto em Portugal . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 67 Atividade Física e Desportiva na Natureza – Retornar à Metáfora Primeira . . . . . . . . . . . . . . . p. 87 De quantos animais se faz um ornitorrinco? A propósito de formalismo, convencionalismo e identidade do Desporto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 97 O contributo fenomenológico na análise micro-histórica do surf português . . . . . . . . . . . . . . . p. 107 Desporto – exercício espiritual? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 123 A Ética Aplicada e a Bandeira da Ética . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 137 Como Suits e Huizinga entendem o “play”, ou o “iluminismo lúdico”: notas para além do formalismo e o caso dos jogos de tabuleiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 147 Propostas de reflexão sobre algumas questões éticas na lógica de Mercado aplicada ao Desporto. . . p. 165 O uso dos Jogos como instrumentos de Formação dos Cidadãos nas Leis de Platão. . . . . . . . . . . p. 179 O Real, o Simbólico e o Imaginário no discurso de Cristiano Ronaldo: apontamentos psicanalíticos . . . . p. 189 O lúdico como elemento do esporte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 205 Da conjunção de categorias estéticas na compreensão do valor estético do desporto: acerca de imprevisibilidade e superação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 217 Praticando esportes por motivos estéticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 227 A magia da Arte Suave para mulheres: jiu jitsu e história . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p.249
261
Agradecimento final ao financiamento do PNED/IPDJ a este livro.
Impresso em Janeiro de 2025 Grafivedras - Artes Gráficas, Torres Vedras
(Coord.) Constantino Pereira Martins Luísa Ávila da Costa Manuel Sérgio R. Scott Kretchmar António Camilo Cunha Francisco Sobral João Luís de Moraes Rocha Alfredo Teixeira José Carlos Lima Paulo Antunes Rui Pereira Diane Fátima Bonet Juliano Paccos Caram Lucas Contador Dourado da Silva Odilon José Roble Judson Cavalcante Bezerra Teresa Oliveira Lacerda Jean Machado Senhorinho Luciana Neder Giancristoforo Ana Cristina Zimmermann Soraia Chung Saura