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Portuguese Pages [182] Year 1997
sempre, a geografia tem sua ideiu.^ade a à aventura das explorações. Os “novos m
da atualidade não são mais constituídos por
jnca visitadas ou por trilhas nunca percorridas,
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^explorações geográficas consistem em
GpGANIZADORES
IN Á ELIAS DE CASTRO
iras metáforas das antigas. Os mundos novos são
PAULO CÉSAR D A COSTA GOMES
!> nosso cotidiano, as descobertas são novas ~le olhar, de relacionar, de conceber; as viagens ^jorâneas são constituídas pela interiorização em ^ rcursos temáticos. Neste sentido, a Terra la não cessa de ser redescoberta. A aventurosa í e exploratória não acabou, mudaram as bes, os instrumentos e os sentidos. Afinal, hoje )fee pelos espaços das grandes redes de inforJle as caravelas que erram nestes mares são as i-chaves, conceitos, instrumentos de nossas luscas. Explorações de novos temas, em outros >e em novas abordagens, são a matéria que ;t;es inéditos relatos de viagem aqui expostos.
ROBERTO LOBATO CORRÊA
N .C h a m
910
E96
Título: Explorações geográficas no fim do século . IS B N 8 5 -2 8 6 -0 6 2 6 -0 1068768
percurs»
9 9
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARA BIBLIOTECA DE CíENCiAS E TECNOLOGIA
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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
UFC/BU/BCT
R1068768 C412945 910
10/05/1999
E x p lo r a c o e s g e o g r á fi c a s E96
:
BIBLIOTECA DE CiENCIAT
L eia também:
Iná Elias de Castro O M ito da Necessidade Iná Elias de Castro
Paulo Cesar da Costa Gomes Roberto Lobato Corrêa {organizadores)
G eografia e M odernidade Paulo Cesar da Costa Gom es Trajetórias Geográficas R oberto Lobato C orrêa Brasil: Uma N ova Potência Regional na Econom ia-M undo Bertha K. Becker e Cláudio A. G. E gler Brasil: Questões Atuais da Reorganização
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS PERCURSOS NO FIM DO SÉCULO
do T e rritó rio Iná E. Castro, Paulo Cesar C. Gom es e R oberto L . Corrêa (orgs.)
UFC/BU/BCT
R1068768
10/05/1999
Exploracoes g e o g rá fic a s :
C412945 910
BERTRAND BRASIL
E96
UNIVERSIDADE FEDERAL D0 CEARÁ BIBLIOTECA DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA Copyright © 1997, Iná Elias de Castro, Paulo Cesar da Costa Gomes, Roberto Lobato Corrêa, M arcelo Lopes de Souza, Paul Claval, Zeny Rosendahl, Maurício de Alm eida Abreu, Pedro de Almeida Vasconcelos, Olga Maria Schild Becker Capa: projeto gráfico de Leonardo Carvalho, usando detalhe da tela Võg elteich am Rio de S. Francisco, atribuída a Cari Friedrich Phillip von Martius, nanquim e sépia, 30,5 x 40,5cm (Fundação Maria Luísa e Oscar Americano, São Paulo, Brasil). Editoração: A rt Line 1997 Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Su m ário
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é CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
E96
Explorações geográficas: percursos no fim do Século / Iná
Apresentação
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Elias de Castro, Paulo Cesar da Costa Gom es, Roberto Lobato Corrêa (organizadores). — Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
G eografia fin-de-siècle: O discurso sobre a ordem I S B N 85-286-0626-0
espacial do m undo e o fim das ilusões
1. Geografia. I. Castro, Iná Elias de. II. Gom es,'Paulo Cesar da Costa. III. Corrêa, Roberto Lobato.
97-1616
C D D 910 C D U 910
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Paulo Cesar da Costa Gom es A expulsão do paraíso. O “paradigm a da com plexi dade” e o desenvolvim ento sócio-espacial
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M arcelo Lopes de Souza Todos os direitos reservados pela: B C D U N IÃ O D E E D IT O R A S S.A. Av. Rio Branco, 99 - 20? andar - Centro 20040-004 —R io de Janeiro —RJ TeL: (021) 263-2082 Fax: (021) 263-6112
As abordagens da G eografia C u ltu ra l
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Paul C laval 119
O Sagrado e o Espaço Zen y Rosendahl
N ão é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito da Editora.
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? ) Im a gin á rio p o lítico e te rritó rio : natureza, regionalism o e representação
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Iná Elias de Castro
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EX P L ORA ÇÕE S GEOGRÁFI CAS
( ^ } A apropriação do te rritó rio no B rasil colonial
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M aurício de A lm eida Abreu (^ 5) Os agentes modeladores das cidades brasileiras no períod o colon ia l
247
A presentação
P ed ro de A lm eida Vasconcelos Interações espaciais
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R oberto Lobato C orrêa M obilidade espacial da população: conceitos, tip ologia, contextos
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O lga M aria Schild Becker
D esde sem pre, a geografia tem sua identidade asso ciada à aventura das explorações. Descobridores, viajantes, cosm ógrafos são, por isso, os legítim os antecessores dos geógrafos acadêmicos surgidos no final do século XIX. A partir desta época, em que pouco restava para ser “desco berto” , a aventura das explorações não cessou, mas mudou profundam ente seu sentido. Os “novos mundos” da atuali dade não são mais constituídos por terras nunca visitadas ou por trilhas nunca percorridas. H oje, as explorações geo gráficas consistem em verdadeiras metáforas das antigas. Os mundos novos são parte do nosso cotidiano, as desco bertas são novas formas de olhar, de relacionar, de conce ber; as viagens contemporâneas são constituídas pela interiorização em novos percursos temáticos. Neste sentido, a Terra incógnita não cessa de ser redescoberta. Percebem os facilm ente que os viajantes do passado descobriam reais mundos novos, mas muitas vezes procu ravam com preendê-los seguindo o modelo do seu próprio mundo conhecido. As explorações geográficas atuais são
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E X P L O R A Ç Õ E S GEOGRÁFI CAS
APRESENTAÇÃO
exatamente o oposto: iluminam formas e processos conhe
sões, suas incoerências e seus lim ites e adm ite que estaría
cidos para mostrar novos aspectos, sombreados e esqueci
mos vivendo o fim do período de vigência dessas idéias. A
dos pela pretensiosa suposição do conhecim ento nascido
segunda parte do seu trabalho é o estabelecim ento de no
da simples co-presença. Os lim ites deste novo mundo são
vos fundamentos que poderiam passar a guiar as bases de
infinitos, não cessam de ser engendrados nesta atividade
um saber geográfico. Para ele a geografia é a ordem espa
incessante do conhecim ento. A aventurosa atividade explo
cial das coisas e seu cam po disciplinar se define pela inves
ratória não acabou, mudaram as pretensões, os instrumen
tigação desta ordem . D esta perspectiva resulta um novo
tos e os sentidos. Afinal, hoje navega-se pelos espaços das
patam ar nas relações entre as ditas geografias humana e
grandes redes de inform ação, e as caravelas que erram nes
física e em novos temas de investigação relacionados a este
tes mares são as palavras-chaves, conceitos, instrumentos
campo.
de nossas novas buscas. Explorações de novos temas, em
M arcelo Lopes de Souza argumenta, p or sua vez, a
outros tempos e em novas abordagens, são a m atéria que
favor da utilização do paradigm a da com plexidade para a
compõe estes inéditos relatos de viagem aqui expostos.
questão do desenvolvim ento sócio-espacial, cujas teorias
Nesta coletânea são apresentados artigos relativos a
existentes podem ser caracterizadas, em m aior ou m enor
novos quadros de referência, envolvendo uma reavaliação
grau, com o pertencentes ao paradigm a da sim plificação. O
epistemológica vinculada à concepção da natureza das ci
autor aponta três temas com o relevantes para a troca inte
ências sociais e de seus procedim entos de investigação,
lectual entre as ciências naturais e sociais: acaso e necessi
particularmente da geografia, que im plica a dissolução de
dade nos processos sociais; a dialética entre ordem e desor
alguns mitos.
dem e suas relações com a sociedade e o espaço; e pers-
A contribuição de Paulo Cesar da Costa Gom es de senvolve-se em dois principais movimentos. N o prim eiro,
pectivas de apropriação crítica pela pesquisa social da sinergética.
procura fazer o balanço de algumas idéias recorrentes na
O artigo de Paul Claval aborda a renovação da geo
epistemologia da geografia, as quais teriam funcionado de
grafia cultural, uma tradição que tem suas origens no sécu
fato como verdadeiros obstáculos ao desenvolvim ento da
lo X IX e que, a partir de 1970, é revitalizada. Estabele
reflexão geográfica. C iência de síntese, ciência do em píri
cendo o estado da arte deste ramo da geografia, o autor
co, morfologias classificatórias, objetividade dos dados,
p ercorre autores e escolas até chegar à m oderna geografia
naturalismo ou causalidade histórica são identificados co
cultural que, ao colocar o hom em no centro de suas análi
mo verdadeiras ilusões que teriam atuado de form a negati
ses, precisou desenvolver novas abordagens. Estas incorpo
va na definição de um cam po disciplinar especulativo, atu-
ram as sensações e percepções, a comunicação e á dim en
ante e respeitável. E le procura apontar as raízes destas ilu
são sim bólica, em oposição à perspectiva naturalista e re
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E X P L OR A Ç ÕE S GEOGRÁFI CAS
AP RESE NTAÇÃO
gional do com eço do século, que se reduzia à análise dos
contribuem para, a partir das heranças do passado, eluci
mecanismos que perm itiam às sociedades funcionarem,
dar o presente.
triunfando sobre os obstáculos da dispersão e da disPânria
A apropriação territorial no Brasil colonial é abordada
O tem a da geografia cultural tem ainda pouca tradi
p or Abreu, que busca na Idade Média portuguesa as ori
ção na geografia brasileira, o que aumenta a im portância
gens do processo. O sistema de distribuição de sesmarias e
da contribuição de Zeny Rosendahl, que penetra na di
de terras urbanas, e a alienação da propriedade territorial,
mensão d o espaço im posta pelo sagrado. O devoto identifi
são tratados p elo referido autor. Vasconcelos, por sua vez,
ca e vivência os espaços sagrado e profano, vinculando-os
apresenta os agentes m odeladores da cidade colonial brasi
em três níveis: direto, indireto e rem oto. O simbolism o das
leira e discute as suas ações. O papel da Igreja, dos proprie
formas espaciais ligadas ao sagrado, a vivência do espaço
tários rurais e dos traficantes de escravos, entre outros, é
sagrado nos santuários do catolicism o popular brasileiro e a
ressaltado, indicando o caráter historicamente variável dos
gestão religiosa do espaço são abordados pela autora.
tipos e ações dos agentes modeladores do espaço urbano.
Num a perspectiva inovadora da geografia política, Iná
Outras temáticas geográficas tradicionais são retoma
Elias de Castro analisa o entrelaçam ento do im aginário po
das a partir de uma reavaliação teórica, como são os estu
lítico com o território e a natureza, entrelaçam ento este
dos referentes às interações espaciais e às migrações.
que contribui para tom ar inteligível a representação terri
R oberto Lobato C orrêa retom a a temática das intera
torial da política, o papel da natureza e do território no dis
ções espaciais, considerando-as no âmbito do capitalismo,
curso p olítico e no regionalism o. A autora tom a com o pon
particularm ente com o expressão do complexo ciclo de re
to de partida a passagem do im aginário ao im aginário p olí
produção do capital. As interações espaciais, por outro la
tico e de ambos ao im aginário geográfico. Em sua análise,
do, apresentam padrões que refletem e condicionam a or
a com preensão do p oder sim bólico do território abre novos
ganização espacial. Estão elas estruturadas em redes geo
caminhos para a geografia política brasileira, na qual de
gráficas, solar,- dendrítica, christalleriana, axial, circular e
vem ser incorporados os conteúdos dos muitos discursos
d e m últiplos circuitos, cada uma apresentando importância
regionalistas no país, os modos com o a natureza é apropria
e significados próprios, que revelam a complexidade da or
da nestes discursos e os problemas concretos da represen
ganização espacial.
tação parlam entar de base territorial.
As m igrações são tratadas por Olga Maria Schild
Pequena tem sido também no Brasil a dedicação às
B ecker a partir de alguns questionamentos, como o que diz
pesquisas na geografia histórica. Maurício de Alm eida Abreu
respeito ao significado da m obilidade populacional, consi
e Pedro de Alm eida Vasconcelos contribuem para sanar es
derando diferentes concepções teóricas para compreender
ta lacuna com trabalhos sobre o período colonial. Am bos
o papel das m igrações na construção dos espaços que o
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fí
EX P L ORA ÇÕE S CEOGRÁFI CAS
capitalismo organizou no país, ou, ainda, para com preen der suas faces em diferentes momentos, contextos e esca las. A autora aborda, então, diferentes conceitos da m obili dade espacial da população através das visões neoclássica e neomarxista e das suas categorias analíticas, as únicas dis poníveis, apesar de serem questionadas. A atual conjuntura de crise no mundo do trabalho é discutida, evidenciando a necessidade de construção de um novo paradigma das
GEOGRAFIA F lN -D E -S lÈ C L E : O DISCURSO SOBRE A O R D EM ESPACIAL D O M U N D O E O FIM DAS ILUSÕES
migrações. O conjunto de estudos da presente coletânea é, em
Paulo Cesar da Costa Gom es
realidade, uma amostra do vigor da geografia que, ao intro duzir novas abordagens e temas e retom ar antigas tem áti cas, desempenha ativam ente seu papel de analisar, in ter
R ecentem ente, em uma reunião de geógrafos e estu
pretar e redescobrir a com plexa e m utável espacialidade
dantes, um expositor provocou muitos risos na platéia
humana.
quando se referiu às perguntas que têm , segundo ele, p er seguido os geógrafos a propósito do que é a G eografia, para que serve e a quem serve. D e fato, ao percorrerm os a Os Organizadores
história recente do pensam ento geográfico, percebem os, sem m uito esforço, que questões relativas à natureza do conhecim ento geográfico, sobre seu objeto, seus m étodos, os lim ites, o alcance e a im portância deste conhecim ento, têm tid o uma recorrência insistente na voz de alguns de seus principais representantes. M uito mais do que hilarida de, esta persistência deveria despertar o incóm odo, por exprim ir a incerteza daqueles que trabalham em um dom í nio sobre o qual pairam reiteradas dúvidas que afetam seu reconhecim ento, sua legitim idade e sua im portância. O fa to de rirm os, com suposta superioridade, não nos afasta de nossas dificuldades, e tentar ignorá-las ou escondê-las é a atitude, dentre todas, a mais perniciosa. P or isso voltam os a
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E X P L OR A Ç ÕE S GEOCRÁ FI CA S
C E O G R A F I A FIN-DE-SlÈCLí
este assunto, acreditando que os debates não foram encer
despeito desta atitude conservadora, essas ilusões se perde
rados e que o único riso possível diante desta urgência é
ram de form a mais ou m enos definitiva. E são essas ilusões
aquele que exprim e nosso desconforto.
que gostaríamos agora de explorar um pouco mais.
O lhando p or outro ângulo, o fato de a G eografia man te r p or um longo período essas discussões pode se revestir d e um significado bastante positivo. Isso quer d izer que ela
O f im das ilusões
se mantém atenta sobre a definição de seu cam po de estu dos, sobre sua relação com as outras disciplinas, atenta
A prim eira grande ilusão perdida a ser assinalada é a
sobre as questões em ergentes postas pelos novos contextos
da ciência de síntese. Os historiadores da ciência e das
sociais que a atravessam e, finalm ente, atenta ao seu papel,
m entalidades têm-nos mostrado o quão difundida era, no
com o cam po de reflexão e ação na sociedade. Por outro
final do século X V III e ao longo do século X IX , a idéia das
lado, manter-se atenta não significa perm anecer paralisada
grandes sínteses globais (G U S D O R F , 1978). Este foi o mo
e pode m esm o sugerir que este tipo de reflexão é o veículo
m ento onde a ciência, diante do renascimento da razão e
que tem conduzido os geógrafos a participarem com segu
de sua aplicação, do crescente fluxo de informações gera
rança, cada v e z mais ativam ente, dos principais debates
das, e diante de novos campos de investigação, estabeleceu
acadêm icos e, diríam os mesmo, dentro de recortes teóricos
com o orientação não só inventariar este material, mas tam
cada vez mais amplos.
bém organizá-lo segundo grandes eixos explicativos, gerais
E ntre a im agem da G eografia'com o um ideal de con
e sintéticos, que funcionariam com o uma espécie de verte-
tem plação d o século X IX , presente no discurso de A.
bração para todo conhecim ento. Os grandes pensadores
H um boldt, d e K. R itter e de E. Reclus, entre outros, ou o
dessa época preocupavam-se então em encontrar grandes
ideal da “descrição animada” de Vidal de L a Blache, no
m atrizes que guiariam toda a reflexão, capazes de explicar o
com eço do X X , e as posições atuais, um longo percurso foi
todo e a parte, o detalhe e o global, indo do simples ao
realizado. N este trajeto, a com plexidade de seu cam po de
com plexo. Esta é a época dos grandes sistemas filosóficos,
estudos fo i se afirm ando e os sucessivos debates teórico-
de Kant, de H egel, de C om te, de Marx, que partilham to
m etodológicos são, neste sentido, uma companhia necessá
dos da mesma pretensão de produzir uma interpretação or
ria e inseparável. M uitos avanços foram realizados, e aque
denada e total. Com um a todos esses sistemas, há esta idéia
les que se obstinam a não os acompanhar são, em geral, os
de síntese, verdadeira finalidade do conhecimento científi
mesmos que não querem , p or com odidade ou m edo, re
co. C oincidentem ente, esses autores também produziram
nunciar ao conforto de algumas ilusões que se associaram à
grandes classificações e hierarquias entre os diversos cam
G eografia em determ inados momentos de sua evolução. A
pos disciplinares, que assim funcionariam como sequências
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EXP L ORA ÇÕES CEOCRÁF1CAS
G E O G R A F I A FIN-DE-SIÈCLE
na produção da ciência-síntese, havendo, para cada um d e
era com preender as leis do todo e a integração do conjun
les, uma disciplina superior: História, Sociologia, F ilosofia
to. N o prim eiro caso, a dinâm ica dos diversos fatores natu
etc., que encarnaria a própria concepção de síntese. As
rais, em conjunto com a ação humana, agiria no sentido de
idéias primordiais que presidiam a ciência dessa época eram,
produ zir um equilíbrio. N o segundo caso, o do organicis-
pois, as de acumulação, de integração e de progresso contí
m o, a harm onia das partes com o todo era o valor supremo
nuo. Este fo i tam bém o m om ento em que grande parte das
a ser demonstrado.
disciplinas modernas adquiriram assento nas instituições
A descrição da realidade deveria, pois, sempre colo
acadêmicas e, para isso, precisavam delinear seus lim ites,
car em relevo a conjunção de elem entos físicos e humanos
suas propriedades, sua especificidade e seu program a de
que resulta na estruturação de um espaço, que é a síntese
resultados.
da ação m últipla, diferenciada e relacional destes elem en
A boa estratégia para a G eografia, na época, a despei
tos. H á, p or assim dizer, uma isonom ia entre a natureza
to de outras vias concorrentes, parece ter sido a de se apre
das coisas e a natureza humana que resulta em produtos
sentar com o o cam po de estudos da Terra, conform e apon
sintéticos, recortes da superfície, que passam a ser conce
tam BERDOULAY (1980) e C A P E L (1977). A Terra, em seu
bidos com o os verdadeiros objetos da ciência geográfica.
conjunto, em sua com plexa organização, remonta a inúm e
Todos os conceitos utilizados pelos geógrafos deste perío
ros fatores de ordem física e social, mas apresenta um
do, com o região, paisagem , estado, cidade, têm esse traço
resultado global visível e sintético em sua face. Em outras
com um de unidade reveladora do equilíbrio ou da harmo
palavras, a im agem da Terra, sua aparência ou as d e suas
nia, d e resultado-síntese de uma dinâmica complexa.
partes (regiões, paisagens, estados), pode revelar o com ple
E ra comum dizer-se, então, que o geógrafo olha os
xo jogo de interações de fatores e elem entos do qual ela, a
fenôm enos em suas variadas relações com os outros e fo i
aparência, é o resultado-síntese.
m esm o adm itido que o fator que diferenciaria os geógrafos
A idéia forte desta pretensão é a da Terra vista com o
dos dem ais estudiosos, que tinham tam bém com o interesse
um todo. U m todo com posto p or diversas engrenagens de
fenôm enos que ocorriam à superfície da Terra, era a form a
múltiplas relações de causa e efeito, que se estrutura na
d e olhar — o olh a r geográ fico.1 Assim, à G eografia caberia
metáfora do mundo visto com o uma máquina. Ou, ainda,
dom inar todos os outros campos de conhecim ento, com o
em uma versão concorrente, a Terra vista como um todo or
geologia, m ineralogia, clim atologia, geom orfologia, botâni
gânico, composto de parcelas com form a e função diferen
ca ou biogeografia, além da economia, dem ografia, sociolo
ciadas e complementares, presente na metáfora do mundo como um organismo. Em qualquer dessas duas acepções dominantes no com eço deste século, o papel da G eografia
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1 A expressão é comum a diversos geógrafos da chamada “Escola Francesa de G eografia”, Jules Sion, Raoul de Blanchard, Pierre Deffontaine, entre outros.
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E XP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS
GEOGRAFI A FIS-DE-S1ÈCLE
gia, sem, no entanto, se especializar em nenhum deles e,
sária ao conhecim ento da “ física do mundo” . A í estaria,
portanto, sem superposição com outros profissionais, geó
pois, a sem ente de um conhecim ento propriamente geo
logos, botânicos, biólogos, sociólogos etc., uma vez que o
gráfico, na conexão entre os fenômenos; aí estava, pois, a
ob jetivo final da G eografia era a síntese. F oi também ne
pedra angular da disciplina científica 2 que deveria passar a
cessário adm itir que esta síntese se constituía no encontro
ser ensinada nas instituições acadêmicas. N o caso de R it
de dinâmicas naturais e da ação social: G eografia física e
ter, a influência do Romantismo e do Idealismo alemão foi
G eografia humana. A síntese precisava ser total.
a responsável p or sua grande preocupação com a noção do
P or este prisma da síntese ou do todo, o discurso aca
todo. Sabemos também o quanto estes dois movimentos
dêm ico da G eografia nascente conseguiu recuperar as tra
foram reativos à idéia da análise de base racionalista; por
dições das cosmografias, tão comuns no período da Renas
tanto, a valorização da idéia de síntese é uma constante no
cença, e tam bém a dos relatos de viagem , que, muito mais
pensam ento de Ritter. Há, em sua perspectiva, unidades
antiga, havia se renovado pela ação dos viajantes e das ex
que congregam os princípios de organização do todo. Estas
pedições científicas dos séculos X V III e X IX . A justificativa
unidades são dotadas de “personalidade” e desempenham
da perspectiva do “todo” era buscada no plano das cosm o
papéis definidos na com posição e no movimento do todo.
grafias, pois, com o se sabe, estas em geral começavam por
Assim, cada continente, p or exem plo, desempenha um pa
descrições da Terra com o elem ento do Universo, em segui
p el preciso na evolução da humanidade e contribui para a
da passando a descrever fenôm enos que ocorriam à super
ordem global da Terra (N iC O LA S-O B A D IA , 1974).
fície da Terra: inundações, ventos, marés, erupções etc. O
Assim, a despeito de muitos outros naturalistas e filó
ternário era bastante variado e dependia do acesso que o
sofos dos séculos X V III e X IX , com o d’Holbach, Buffon,
cosm ógrafo tivesse de outras descrições.
Volney etc., a G eografia elegeu esses dois autores, Hum
F o i neste m om ento, final do século X IX e com eço do
boldt e Ritter, com o os fundadores de uma ciência sintéti
XX, que se passou a atribuir a fundação da G eografia m o
ca, abrangente e total. Mas sobre que critérios deve-se pro
derna a A. von H um boldt e a K. Ritter. Ao prim eiro, a
curar a conexão? N a falta de um recorte temático mais
id éia de que foi o fundador se deve ao plano e à m etodolo
definido, passou-se a dizer que a Geografia se interessa pe
gia de sua obra maior, o Cosmos, que correspondia em
los fenôm enos que acontecem sobre a superfície da Terra.
grande parte ao ternário das cosmografias renascentistas. A lém disso, H um boldt havia sido um grande sábio, dom i
D efin ição nada satisfatória quando se percebe que existem inúmeros eventos que aí ocorrem e que não fazem parte da
nando diversos campos do conhecimento. E le tam bém se referia à necessidade de procurar a conexão entre os fen ô
2 O
menos com o uma preocupação m etodológica maior, neces
cia geográfica.
18
princípio da “conexão” foi, por exemplo, bastante valorizado por Jean
Brunhes e por E . D e Martonne, que acreditavam ser este o fundamento da ciên
EXP L ORAÇÕES GEOGRÁFICAS
GE OG RA F I A FIN-DE-SIÈCLE
pauta de interesses dos geógrafos. Além disso, há diversos
previa uma descrição que invariavelm ente percorria, e qua
outros que não ocorrem diretam ente sobre a superfície da
se sem pre na mesma ordem : o relevo, o clima, a vegetação,
Terra e que são cada vez mais estudados com o fenôm enos
a história, a população e as atividades económicas para cada
geológicos, estratigráficos, tectônicos etc.
região descrita. Basta d izer que este m odelo foi largamente
D e fato, se a pretensão inicial fo i a de descrever a
exportado pela G eografia européia e, ainda que nos outros
complementaridade ou combinação na estrutura e mani
países não-europeus fosse d ifícil estabelecer os contornos
festação dos eventos que ocorrem à superfície da Terra,
das "regiões” com a mesma nitidez e sob os mesmos vín
muito cedo os geógrafos se viram im pedidos de assim con
culos da história ou dos costumes consuetudinários, ainda
tinuarem a proceder pela enorm e massa de informações
assim o m odelo foi em pregado para descrever diversas
que eram produzidas em áreas de interesse muito diversas e por ser difícil acompanhar o desenvolvimento de todos os campos sobre os quais haviam pretendido se ocupar. C om e
áreas da África, da Ásia e das Américas. Se na descrição de Vidal de L a Blache o singular ain da era dado pela com binação única entre os elem entos que
çava desde então uma certa orientação para a especializa
estruturam e dão form a e “personafidade” a uma região, no
ção, que logo depois resultou no desenvolvimento de verda
p eríod o im ediatam ente posterior o único foi visto com o
deiras subáreas quase independentes, como, por exem plo, a
sendo propriam ente os elem entos da paisagem. A G eogra
geomorfologia. P or outro lado, despojada do interesse de
fia transform a-se, pois, no elenco de características ou fatos
traçar novas conexões entre os fenômenos estudados, a dita
singulares dos diversos lugares. O objetivo geral é a descri
combinação, seja dos elementos físicos que com põem a pai
ção. As teses sobre a com plem entaridade ou conexão fo
sagem, seja das relações entre natureza e cultura, passou a
ram secundadas na prática p elo interesse em produzir es
ser vista com o uma receita mais ou menos estabelecida e
tudos exaustivos sobre pequenas áreas, sem qualquer outro
estabilizada em um certo gênero de descrição. A tarefa do
valor dem onstrativo que não o da valorização da descrição
geógrafo passou a ser cada vez mais a de simplesmente lo
em si mesma.
calizar os eventos sobre a superfície e muito menos de ex
Surge deste processo de descrição, que constitui o gê
plicá-los. As descrições regionais, anteriormente tratadas
nero das m onografias regionais, a valorização do elem ento
como verdadeiras demonstrações do m étodo geográfico das
vísivel, daquilo que é diferente, com o ponto de apoio para
combinações ou conexões fenomênicas, transformam-se em
a caracterização regional. Interessante é perceber que os
um protocolo geral e uniforme a ser sempre seguido com
lim ites da diferenciação não são aí discutidos, a unidade re
completa submissão crítica. O ternário era sempre o mes
gional é um fato. A escolha dos critérios, ou da magnitude
mo, a sequência descritiva também e então o gênero em po
que estabelece a fronteira, é tomada com o um dado da
breceu pela rigidez do modelo. O chamado “plan à tir o ir ”
realidade. A G eografia passa a se interessar pelo concreto e
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EXP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS
GEOGRA FI A FIN-Dí-SIÈCLE
em erge tam bém deste processo a aversão à teoria. A
verdade na produção do conhecim ento .4 Ora, desde Gali-
G eografia é a ciência do em pírico, e o geógrafo é um in-
leu que os nossos sentidos estavam sob suspeição como
ventariante do vísivel. G eógrafo de campo é aquele que co
form a de aceder a um conhecim ento científico; afinal, se
nhece a realidade e se opõe ao geógrafo de gabinete, que
acreditarm os em nossos olhos é efetivam ente o Sol que
procura com pensar sua ignorância pela construção d e “ fan
gira em tom o da Terra.
tasias teóricas” . A ilusão do em pirism o ressurge extem po
A G eografia produzida a partir desta posição procu
rânea na G eografia com o resultado do em pobrecim ento ou
rou dar um estatuto de verdade à simples constatação das
da má com preensão dos preceitos que guiaram os funda
diferenças m orfológicas. N esta constatação, nenhuma rela-
dores da Escola francesa e de suas bases teóricas.3
tivização era admitida, o real é aquilo que se apresenta.
D escrever basta e descrever som ente aquilo que apa
Sabemos, no entanto, que a “ realidade” e as maneiras que
rece. Este kantismo em pobrecido fo i a base de uma G eo
dispomos para com prendê-la são produtos sociais e históri
grafia que nutria outra grande ilusão, a da forma com o ma
cos. As “ formas” são, em grande parte, produtos de nossa
terial explicativo em si mesmo. Kantism o em pobrecido,
percepção histórica e social e dependem também dos ins
pois na C rítica da razão pura ( K a n t , 1987), as categorias
trum entos epistem ológicos desenvolvidos para as identifi
analíticas constituem o recurso fundamental da explicação,
carmos. D iante deste program a “m orfológico”, a G eografia
e a descrição e experimentação só adquirem valor quando
se aproxima irrem ediavelm ente do senso comum, na m edi
referenciadas a estas categorias. Ainda que o espaço, se
da em que nada mais a interessa senão o inventário descri
gundo a estética transcendental, seja uma categoria a p rio ri
tivo de uma realidade que parece óbvia a todos que a
do conhecim ento, a Geografia, enquanto ciência, só pode
observem . A única diferença é a erudição daquele que des
pensar os fenôm enos que ocorrem no espaço utilizando-se
creve e, p or isso, o geógrafo está sempre em busca do pito
de conceitos. N a realidade, essa posição empirista d e al
resco, do exótico, do detalhe. Ele também busca, todavia,
guns geógrafos retroage a uma filosofia pré-kantiana, re-
uma generalidade, uma tipologia nestas formas, e a ciência
troage a uma posição que, aliás, o sistema de Kant procu
neste sentido é vista com o simples esforço de classificação.
rou superar, àquela de que os sentidos são uma garantia da
Poucas vezes os princípios classificatórios são discutidos, o encadeam ento form al parece se im por por si mesmo, pela
3
Estes preceitos recebem o nome de neokantistas (B erdoulay , 1981), de his-
toricistas (C apel , 1981) ou fenomenológicos (B uttim er , 1971). O fato é que se nutriam de um amálgama de idéias inspiradas no Romantismo tardio, no espiri
4 A despeito das enormes diferenças de interpretação do sistema kantiano, a
tualismo bergsoniano e em todo o ambiente de contestação ao racionalismo que
maior parte dos seus comentadores está de acordo em afirmar que este sistema
predominou nos vinte primeiros anos deste século na França. D e qualquer for
foi desenvolvido como alternativa às posições irredutíveis da época que opunham
ma, nada tinham de sensualistas ou empiricistas, como nos quiseram fazer acredi tar ulteriormente.
h ie r ,
22
um empirismo sensualista ao ceticismo. V er, por exemplo, B o u t r o u x , 1968, B r e 1986 e G o u l y c a , 1985.
23
GE OC R A F I A FIH-DE-SIÈ.CLE
EXP L ORAÇÕES GEOGRÁFI CAS
ordem “ natural” das coisas. Esta “ razão classificatória”, na
tos, m anteve uma relação ambígua com a cartografia. O
Geografia, foi o veículo para transformar as formas espa
mapa passa a ser um produto da pesquisa geográfica e não
ciais visíveis em um objeto de conhecim ento em si mesmo.
um instrumento, um m eio, de reflexão. Os problem as da
Ao fazê-lo, duas perspectivas se impuseram. A prim eira foi
G eografia são problem as de representação, são problemas
a descrição minuciosa e exaustiva do único, do singular, do
geom étricos. Localização e distância são vistas com o as ques
diferente, e neste sentido a descrição carregava nas cores
tões essenciais ao cam po da teoria geográfica e desta sim
de tudo aquilo que diferisse do resto; a segunda se consti
plificação herdamos uma série de m odelos e tipologias que
tuiu na tentativa de criar formas-tipo, associadas tam bém a processos-tipo, e nesta perspectiva procurava-se o que era
a in d a
são vistos com o ternário obrigatório da epistem ologia
da G eografia.
geral e uniforme. N o prim eiro caso, a G eografia procurava
Para tentarmos dirim ir esta ilusão, tomemos um exem
se justificar fazendo apelo à idéia de uma curiosidade gra
p lo simples: uma praça. Ela é, sem dúvida, uma form a es
tuita e pouco operacional. N o segundo, o nível de relação
pacial, entre tantas outras que com põem aquilo que deno
entre form a e processo parecia tão simples que a generali dade se transforma em banalidade. Nesse dois casos, o problema fundamental é tom ar o dado, o visível com o ob jeto. Sem um processo de construção deste objeto, não há questões que desafiem o conhecim ento, pois tudo o que
minamos cidade. Trata-se de uma área consagrada a deter minados tipos de atividade, um espaço público com certo núm ero d e equipam entos e frequência. Porém , que fun ções desempenham as praças em uma cidade, que proces sos são responsáveis por sua criação, que tipos de apropria
podemos dizer sobre estes dados da “realidade” já foram
ções deste espaço existem? As respostas não podem ser
ditos ou são facilm ente subassumidos p elo saber comum.
simples nem gerais sob estes pontos de vista. Praças, que
D e certa forma, uma parcela im portante da G eografia
existem desde a Antiguidade, teriam uma dimensão essen
dos anos 50, nos E U A , e nas décadas subsequentes, no
cial? M esm o que pudéssemos responder afirmativamente,
Brasil, que m ultiplicou críticas ao em pirism o desta escola
seria esta a pergunta fundamental a ser construída por um
geográfica tradicionalista, retom ou sem objeções estas “ for mas” como objetos e, a despeito do instrumental estatístico sofisticado, os resultados pecavam pela mesma banalidade e, segundo alguns comentários mais severos, “todos os no vos instrumentos matemáticos servem apenas para mostrar
especialista que procura com preender o espaço urbano? Parece que a descrição simples da form a não pode dar conta de todos os significados e todas as práticas sociais que têm sede aí. Parece que tampouco nos interessa sua geom etria se não a relacionarmos às relações sociais, con flitos, usos e contextos sob os quais esta form a existe e
aquilo que já sabemos” . Esta ilusão da forma, que elegeu os aspectos visíveis, ou os fenômenos que têm expressão espacial, com o ob je
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resiste em tem pos diversos. O “visível” depende assim dos nossos óculos conceptuais.
25
yí
E XP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS
GE OG RA F I A FIN-DE-SIÈCLE
D a mesma maneira, a form a em si não pode ser alça
maneiras pelas quais a natureza já foi concebida em perío
da à posição de um objeto epistem ológico sob pena de não
dos e contextos históricos diferentes, sob que ângulos e
conseguirm os d izer nada que se possa acrescentar ao co
através de que metáforas, retirados da própria mentalidade
nhecim ento prévio que já dispomos sobre ela. SANTOS
social de cada época, a natureza já foi vista.5 Parece que
(1996) nos ensina que o espaço é uma form a-conteúdo, ou
finalm ente atingimos um grau de absoluta objetividade on
seja, uma form a que só existe em relação aos usos e signifi
de esta natureza será considerada apenas a partir de suas
cados que nela existem e que têm nela sua mesma condi
características intrínsecas. Em outras palavras, ao assim
ção de existência. Assim, o objeto possível de investigação
procederm os ainda estamos impregnados do objetivism o
não é um dado e sim uma construção. Se a ciência não
positivista que pensa uma natureza passível de ser isolada
conseguir duvidar do senso comum, do óbvio, daquilo que
pela ação do raciocínio e de um método. Por outro lado, é
se apresenta com o dado, então para que criaríamos concei
este m esm o racionalismo m etodológico que nos perm itiria
tos e operacionalizaríamos categorias de análise?
pensar a sociedade sem levar em conta que fazemos parte
Outra ilusão nutrida pelos geógrafos d iz respeito à
dela e somos p or isso reprodutores históricos de uma certa
definição do seu objeto de estudo. Estamos acostumados a
reflexão com prom etida com o contexto e, por conseguinte,
ou vir que a G eografia trata da relação entre a sociedade e a
definitivam ente limitada.
natureza. Em outras palavras, o conhecim ento geográfico é
D e fato, esta definição da G eografia como o campo de
d efin ido pela síntese produzida pelo encontro de suas duas
relações entre sociedade e natureza é apenas uma revitali-
principais parcelas: G eografia humana e G eografia física )
zação da im agem do hom em -m eio que dominou a reflexão
Estes dois ramos só encontram sua operacionalidade últi
geográfica na passagem do século. D e um homem em
ma quando correlacionados, sendo esta uma das especifici
geral, de um homem visto enquanto espécie, que resultou
dades do conhecim ento geográfico face às outras discipli
na denom inação “G eografia Humana” em detrimento de
nas. Um prim eiro e flagrante problem a nesta definição é o
uma denom inação que efetivam ente pusesse em relevo a
fato de que esta afirmativa nos conduz forçosam ente a con
essencial condição social e cultural do homem. Na verdade,
ceber estes dois term os com o mutuamente excludentes, ou
esta denom inação parte de um patamar de homogeneiza
seja, se o que nos interessa é a relação entre estes dois
ção de uma sociedade que tem com o objetivo geral trans
núcleos, então podem os distinguir com clareza e isolar a
form ar uma natureza que lhe seja externa. N o geral, esta
sociedade da natureza e vice-versa. Natureza é, neste sen
definição mostra seus compromissos de origem com o posi-*
tido, algo externo ao homem, mas com pleta e objetivam en te acessível ao seu conhecimento. N ão im porta, neste raciocínio, constatar as diversas
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* Estas diferentes “imagens" da natureza são objeto de uma vasta bibliografia. Ver, por exemplo, E h r a r d (1970), H u is m a n e R ibe s (1990).
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFI CAS
GEOGRAFIA F1N-DE-SIÈCLE
tivismo clássico, sua ideologia do progresso, seus mitos da
dentes sobre a legitim idade d o conhecim ento produzido
objetividade e de neutralidade transcendental.
sob parâmetros bastante diferentes. A síntese hoje só pode
Desta pretensão inicial da Geografia do com eço do
ser pensada com o o somatório total dos conhecimentos ge
século sobram os retalhos reconhecíveis no discurso de al
rados, entretanto desafia a produção de uma reflexão unifi
guns geógrafos que continuam a afirmar a integração e uma
cada sob um mesmo campo de preocupações.
complementaridade total entre as esferas físicas e sociais.
O sonho, ou a ilusão, de objetividade positivista é
H oje, no entanto, este discurso tem cada vez mais o aspecto
m antido tam bém pela aproximação com as ciências mate
de uma tautologia ou se abriga sobre novas ideologias holís-
máticas e naturais. Os m odelos da física, a lógica matemáti
ticas que muitas vezes beiram o esoterismo puro e simples.
ca, a linguagem form al foram alguns dos instrumentos desta
D e fato, parece que esta com plem entaridade só pode
aproximação que resultou em generalizações apressadas,
ser mantida se conceberm os uma finalidade ao mundo,
em leis banais ou em correlações espúrias. Procurávamos
uma criação voluntária ou um plano dem iúrgico da ordem
seguir a receita durkheiminiana de tratar os fatos com o coi
do mundo que teria posto em prática uma intenção final e
sas e colocar a G eografia no contexto das ciências nom otéti-
um destino para a humanidade. Nada im pede que mante
cas. A prim eira contextualização necessária, porém , é a des
nhamos privadam ente crenças e dogmas, o problem a é
te m esm o pensamento na busca de uma objetividade abso
fazer destas crenças o pressuposto de um domínio do co
luta. H oje, cada vez mais se im põe a idéia de que o homem
nhecimento. Se acreditamos que a ciência é justamente es
é sobretudo um produtor de valores e de cultura, e a difi
ta atividade incessante de duvidar, de produzir incertezas,
culdade constitui-se justamente em afastá-lo de uma reali
como poderem os estabelecer a base do conhecim ento so
dade que o contém com pletamente. M odem am ente nas
bre algo até hoje indemonstrável, com o é o caso da com
ciências, mesmo nas físicas, o contexto é o fundamento da
plementaridade entre os fenômenos físicos e sociais? Mais
explicação, a importância do conhecim ento no presente no
grave ainda é darmos a esta certeza ares de objetividade
qual ele se funda e não em uma pretensa transcendência
científica ou de revelação metafísica, num ato de puro
em que ela mesma é fruto de um contexto em que a ciência
voluntarismo, e tentarmos, através dela, criar uma série de
é vista com o um metadiscurso da verdade.
associações impostas com o verdades absolutas.
Os laços com o naturalismo se fizeram fundamental-
O fato é que geógrafos físicos e humanos constituem
m ente com base em três níveis. O prim eiro é aquele que
comunidades separadas, abrigadas sob um mesmo departa
estabelece uma isonomia entre a natureza das coisas e a
mento, que raras vezes têm oportunidade de cooperar, e
natureza humana. O segundo é a afirmação de uma certa
possuem ritos académicos diversos, reuniões científicas pró
teleologia, responsável pela integração destas duas esferas.
prias, publicações independentes e julgamentos indepen
Finalm ente, o terceiro nível é aquele em que o discurso da
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29
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFI CAS
G E OG R A F I A FIN-DE-SIÈCLE
síntese procura afirmar-se e legitim ar-se através do reco
O verdadeiro nexo causal neste caso realmente se si
nhecido discurso das ciências naturais. Os exem plos são
tua entre o presente que querem os explicar e a reconstitui
inúmeros, e podem os citar alguns recorrentes, com o, por
ção histórica que fazemos, ou seja, os fatos que seleciona
exem plo, o de fazer apelo à territorialidade animal para de
mos para criar sentido neste relato. N a verdade, omitimos
la extrair conceitos com o com petição, dom ínio, seleção
neste procedim ento o dado irredutível de que uma recons
etc., e depois os correlacionarmos aos fenôm enos territo
tituição é sempre uma escolha e que, dos eventos, só desta
riais que ocorrem na sociedade, que passam então a ser
caremos aquilo que interessa aos nossos propósitos de
ungidos de uma essência im utável e geral. O ato de lim itar
monstrativos. A o mesmo tem po, concedemos ao fato histó
espaços e as estratégias para controlá-los só podem ser
rico uma objetividade que e le não tem. Quantas leituras e
com preendidos no contexto histórico da vida humana, so
interpretações são passíveis dos mesmos eventos? Quantos
cial e culturalm ente determinados. N em os objetivos, nem
aspectos são om itidos para que possamos demonstrar um
os instrumentos, nem as dinâmicas são os mesmos, não há
sentido? A resposta a estas questões é simples: toda recons
correlação explicativa possível entre estes dois mundos. O
tituição é uma construção, mais ou menos voluntária, que
m esm o ocorre com as metáforas orgânicas funcionais, que
procura um sentido demonstrativo ou exemplar. Segundo
tomam p or em préstim o um vocabulário que pretende fixar
H U SSE R L (1950), este procedim ento é enganoso, pois parte
para todo o sem pre fenômenos espaciais. Artérias, coração,
sem pre de uma situação a posteriori. H á sempre uma
tecidos, células etc., quando empregados para falar de fe
intenção no resgate do passado, e o que cabe discutir não é
nômenos espaciais, nada acrescentam ao nível da explica
propriam ente a objetividade do fato histórico, mas sim a
ção, são falsos, trazem apenas um certo ar de fam iliaridade
relação entre esta intenção e o relato que dela resulta, ou
que equivocam nossa compreensão.
seja, o sentido que se procura neste resgate (LYO TARD ,
N ão poderíam os finalizar esta descrição das ilusões
1969). N este sentido, a história deixa de ser um “historicis
sem m encionar a história. O recurso é bastante conhecido
m o” , e passa a ser vista com o narrativa. Só analisando a nar
e difundido. Para explicar fenôm enos atuais, recua-se no
rativa e os sentidos que ela procura é que podemos obter
tem po e, através de uma reconstrução cronológica, explica
uma análise objetiva. Já que o fato não existe com o realida
mos o presente p elo passado. N este percurso, estabelece
de absoluta, ou pelo menos para nós este patamar é inatin
mos marcos fundamentais, nexos causais, pelos quais os
gível, ao discorrermos sobre o passado procuraremos os
eventos se encadeiam. Os perigos desta conduta já nos fo
eventos que interessam à nossa narrativa e desprezaremos
ram alertados desde há muito tem po, talvez desde a An
tantos outros que não corroboram ou não têm importância
tiguidade, e já se mostrava que o passado nada mais era do
para os nossos propósitos narrativos e explicativos. A re
que uma invenção do presente (PESSANHA, 1992).
constituição histórica é uma construção e só assim pode ser
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EXP L ORA ÇÕES GEOGRÁFICAS
GEOGRAFI A F1H-DE-SÍÈCLE
pensada. Realidade e ficção não são termos antagónicos, a
geográfica é útil, tem uma aplicabilidade e uma legitim ida
incontom ável parcialidade dos relatos, as omissões cons
de que ultrapassam os argumentos que, porventura, os
cientes ou não, os fragmentos da lembrança unidos em
geógrafos colocam à disposição para pensar estas utilidade
busca de um sentido, criam de fato uma ficção, inspirada
e aplicabilidade. Já nos fo i dito que este saber é útil para
diretamente ou não na realidade, com o base de qualquer
“ fazer a guerra”, ou seja, para traçar estratégias espaciais
procedim ento de restituição histórica. A arte do rom ance é
d e dom ínio e controle (LACO STE, 1976). Esta faceta, no
a restituição de uma realidade possível, mas nem sem pre
entanto, não parece ser suficiente com o motivação, uma
vivida, e quem afirmaria que a leitura de um romance não
v e z que a G eografia não é uma exclusividade dos “estados-
inform a sobre a realidade, às vezes muito mais do que os
m aiores” militares, nem dos grandes capitalistas. Ela é um
relatos documentais ou biográficos? D escobrir o equívoco
tem a de largo interesse na sociedade, tem um certo lugar
de emprestar uma objetividade absoluta aos acontecim en
nos meios de comunicação, um certo respeito acadêmico e,
tos é, neste sentido, o prim eiro passo para reconhecer as
talvez o mais im portante, é considerada em diversos siste
enormes possibilidades de conhecimento qúe existem nos
mas educacionais com o disciplina obrigatória do currículo
relatos sobre os fatos.
básico. D e fato, no final do século X IX um dos argumentos apresentados para a necessidade de im plem entar o ensino
A geogra fia com o u m d iscu rso sob re a ord e m
da G eografia fo i a perspectiva de m elhorar o material carto
d o m undo
gráfico e a cultura geográfica das tropas, face aos conflitos que se anunciavam entre os países europeus naquela época.
A descrição destas ilusões que sustentaram o discurso
Este, entretanto, não fo i o argumento fundamental prepa
geográfico tentou mostrar as insuficiências, as lim itações e
rado para a justificativa do ensino e da importância da
as contradições com as quais uma epistem ologia da G eo
Geografia. N o caso da Alemanha, por exemplo, o objetivo
grafia se defronta. Paralelamente, se faz necessário apontar
fundamental proclamado era o de fazer conhecer m elhor os
novos rumos ou, pelo menos, novas leituras que possam
quadros naturais e os padrões sociais no qual se desenvolvia
construir, ou melhor, restabelecer, uma im agem renovada,
a cultura teutônica, conform e apontam GUSDORF (1973) e
operacional e sistemática do saber geográfico.
B r u n s c h w i g (1973). Já no caso da França, a I I I Repú
Uma prim eira constatação é obrigatória. A despeito
blica, por interm édio de seu ministro da Educação, apre
de todas as críticas e da incapacidade de se produzir um
sentava esta necessidade com o fundamento na formação de
conteúdo epistem ológico consistente, o saber geográfico
um novo cidadão, capaz de refletir conscientem ente sobre a
continua a ser valorizado. Em outros termos, a inform ação
política e o desenvolvim ento social (BERDOULAY, 1981).
32
33 UNIVERSIDADE
FEDERAL
DO
CEARA {7 A Q G S V G
ii^ S lB L I O T F C A DF OlENCiAS F TFP.wni n a i k
/
Ô
GEOGRAFI A FIN-DE-SIÈCLE
EXPL ORAÇÕES GEOGRÁFICAS
Talvez m uito sim plesmente a necessidade da G eo
ros textos da Antiguidade Clássica, o cosmos se opõe ao
grafia surja tão-somente pela condição do hom em estar no
caos). A apresentação do mundo é a expressão daquilo que
mundo, um mundo diverso, variado e, na m edida em que
o organiza, de seus princípios de ordem , e, no caso da G eo
os horizontes deste homem se ampliam, no reconhecim en
grafia, a ordem espacial do mundo. A grande precursora da
to do “ outro” e do “diverso” , ele necessite de um sistema
G eografia, neste sentido, é a tradição filosófica que se pro
de com preensão desta variedade fundamental. Já dissemos
longa desde os pré-socráticos ao perguntarem o que reúne
em outra oportunidade que é provável que a G eografia
a dispersão.
tenha, na verdade, nascido nos cantos dos aedos gregos
Chamamos a atenção para o fato de que o saber geo
que declamavam sobre a aventura dos deuses, das potên
gráfico, visto com o esta descrição da ordem do mundo, que
cias naturais vivas, sobre suas origens e sobre suas relações
tem uma identidade historicamente fundamentada, não se
com o devenir da vida cotidiana. As cosmogonias da Anti
resume ao inventário das coisas sobre o espaço. A notifica
guidade seriam, assim, os prim eiros relatos geográficos ge
ção dos objetos espaciais não é em si matéria geográfica.
rados p or este gênero de curiosidade sobre a ordem das
Observamos, por vezes, que alguns geógrafos têm a ten
coisas no mundo (G O M E S, 1996).
dência de confundir análise geográfica com simples nota
N este sentido, a G eografia tem um com promisso fun
ção de fenôm enos espaciais. Saem apressados em busca das
dam ental que é o de produzir uma cosmovisão. Ela é assim
novidades do m omento, em geral apresentadas como mo
o cam po de conhecim ento onde se procura uma ordem pa
mentos originais ameaçadores. Estes profetas do catastro-
ra o diverso, para o espetáculo da dispersão espacial origi
fismo, no entanto, estão apenas fazendo um jornalismo de
nal. N ão im porta que esse esforço se coroe de êxito no sen
má qualidade. Não constroem instrumentos analíticos e por
tido de produzir leis gerais ou uma explicabilidade total.
isso não conseguem ultrapassar o lim ite do comentário gra
N a verdade, esta visão do mundo é carregada das incerte
tuito e banal. O único sentido de seus discursos é procurar
zas de cada momento, voltada para os fenôm enos diversa
nos convencer de que somos testemunhas de mudanças
m ente valorizados nas diferentes épocas. A cosmovisão é
sem paralelo na história, mudanças que nos conduzem a
em si mesma matéria de investigação primária, pois, a par
um desfecho sombrio.
tir dos instrumentos conceptuais de cada m omento, ofere
Esta ordem espacial das coisas quer dizer que sua dis
ce uma com preensão das imagens mentais que constroem
tribuição tem uma lógica, uma coerência. É esta lógica do
a idéia de ordem ou coerência espacial em cada época.
arranjo espacial a questão geográfica por excelência. Neste
Este é, aliás, o significado original da palavra “ mundo” ,
sentido, não im porta se estamos diante de fenômenos físi
aquilo que tem uma ordem (em oposição ao “im undo” , que
cos ou sociais, e sim do princípio da ordem que buscamos.
não tem ordem , da mesma form a como, desde os prim ei
Evidentem ente, o que preside as causas e os significados
34
EXP L ORAÇÕES GEOGRÁFICAS
GEOGRAFI A F IS-DE-SIÈCLE
destas lógicas são diferentes se trabalhamos com tipos de
certa relação que pressupõe que uma determ inada quanti
vegetação ou se trabalhamos com a distribuição da popula
dade de pessoas estará ah concentrada disposta em cadei
ção urbana. Este, aliás, é um ponto fundamental na discus
ras e mesas para ouvir uma outra pessoa falar, colocada em
são da G eografia e, na verdade, o que estamos afirmando é
uma m esa diante de todas as outras, no caso de uma aula
que não há unidade ou complementaridade entre a G eo
expositiva. Conform e se queira transform ar a aula em um
grafia dita física e a G eografia humana, isso para usarmos o
sem inário, o que se costuma fazer é rearrumar as cadeiras
vocabulário corrente. O que existe de similar é a busca por
e mesas de form a a criar uma distribuição circular, que é a
princípios de coerência dentro da ordem espacial, o que
condição para que todos possam olhar para os lados em
perm ite que se continue, pois, a denominar este tipo de
p erfeita relação de simetria. O exem plo é simples, mas evo
saber de geográfico.
cativo. Para que determinadas ações se produzam, é neces
A G eografia é, assim, o ato de estabelecer lim ites, co
sário que um certo arranjo físico-espacial seja concom itan
locar fronteiras, fundar objetos espaciais, orientá-los, ou,
tem ente produzido. Os exemplos são inúmeros, e podería
em poucas palavras, o ato de qualificar o espaço; mas é
mos falar do espaço interno de uma casa, que em certa
também simultaneamente a possibilidade de pensar estas
m edida pressupõe, lim ita e condiciona as práticas que ah
ações dentro de um quadro lógico, de refletir sobre esta
vão ocorrer. É claro que há sempre enormes possibihdades
ordem e sobre seus sentidos.6
d e transform ar estas práticas e de rearrumar este espaço.
Chamamos a atenção para o fato de que este arranjo
O m odo com o as pessoas dispõem seus móveis e equipa
físico das coisas é o que vai perm itir que determinadas
m entos de form a diferente dentro de um edifício que pos
ações se produzam, ou seja, as práticas sociais são depen
sui uma mesma planta básica dos apartamentos é o sinto
dentes de uma certa distribuição ou “arrumação” das coi
m a disto .8 Entretanto, na maneira com o este espaço está
sas.7 N ão há, por assim dizer, uma determ inação ou um
d ividido e pela form a de arrumá-lo, pressupomos lim ites
simples reflexo da sociedade no espaço. Explicando de
diferenciais, por exem plo, nos níveis de intimidade com as
uma form a muito clara e através de um exem plo simples,
pessoas, tanto entre aquelas que ah habitam quanto com
uma sala de aula está arrumada de form a a garantir uma
aquelas que por ah passam. Naturalm ente, os objetos sobre os quais a G eografia tem tradicionalm ente se debruçado
fi Exemplos bastante didáticos disto podem ser encontrados na obra do antropó
para analisar possuem uma natureza bem mais com plexa e
logo L evi-Strauss , (1966 e 1967), na descrição que ele faz respectivamente da aldeia Bororo e na estrutura espacial derivada do sistema de parentesco. 7 Não se trata do formalismo que dominou o pensamento urbanista-arquitetôni
8 A sociologia e a antropologia dispõem de algumas análises sobre estes fenôm e
co, durante quase 50 anos, na arquitetura: o arranjo espacial não determina as
nos, como, por exemplo, a realizada por Segalen (1996), que trata exatamente
práticas, há um permanente movimento de recriação de inscrições sociais que
do problem a da disposição dos móveis na criação de “espaços". Infelizmente a
reordena e reconstrói sentidos espadais.
G eografia se mantém ainda bastante tímida em relação a estes temas.
36
37
EXP L ORA ÇÕES GEOCRÁFI CAS
GEOGRA FI A FlS-DE-SltCLí
abrangente, com o a cidade, o campo, os Estados-nacionais
as une espacialmente, no sentido que as atravessa nas d ife
etc., mas os princípios que guiam esta busca de com preen
rentes sequências de elem entos. A linguagem, assim com o
são da ordem espacial são, mutatis mutandis, os mesmos.
a G eografia, devem ser vistas com o atividade, seguindo a
Efetivam ente, o objeto da G eografia é este espaço,
tradição humboldtiana (d e W ilh elm ), e não com o “obra”
que simultaneamente é disposição física das coisas e práti
realizada, com o tantas vezes nos fo i recomendado fazer.9
cas sociais que ali ocorrem . Desta maneira, não há uma
Enquanto atividade, a G eografia é ação no mundo, é a per
dicotom ia entre a G eografia física e a G eografia humana, o
pétua geração de nexos na ordem espacial das coisas, é
que existem são lógicas e coerências diferentes. O que
sentido e comunicação, discurso e intervenção. Assim pro
interessará a um geom orfólogo com o intervenção humana
cedendo, abandonamos definitivam ente a concepção do
na paisagem não é a discussão da lógica social que o levou
espaço sob a perspectiva da form a form ata, do dado fixo,
até aquele lugar, tampouco suas m otivações económicas,
da palavra im óvel e, ao contrário, concebemos o espaço
políticas ou culturais, o que im portará para ele enquanto
com o composição de fo rm a form ans, de contínuo processo
objeto de pesquisa será a ação desta intervenção na acele
de produção de sentidos e ações.
ração ou não de processos físicos que ocorrem sobre o ter
Para finalizar, há, sem dúvida, uma certa ousadia em
reno. P or isso, esta denominação, limitada, de ação antró-
contestar alguns dos preceitos que, para muitos, ainda são
pica para caracterizar este tipo de intervenção. Sim ilar
estruturantes do pensar geográfico. Nesta apresentação,
m ente, à sociedade, em seu processo de arrumação do
pareceu-nos que, dada a am plitude das questões que que
espaço, os processos físicos interessam com o constituintes
ríamos discutir e dado o espaço que dispúnhamos, nos
básicos, com o limitadores, com o contexto e a eles não se
seria perdoado percorrer, com uma certa liberdade e rapi
pode atribuir uma conexão causal com os fenôm enos so
dez, discussões tão fundamentais. Permitimo-nos, pois, ter
ciais, pois não possuem valor explicativo.
minar esta apresentação com uma poesia, que, muito
A análise geográfica deve examinar o espaço com o
em bora tenha sido gerada a partir de preocupações d ife
um texto, onde formas são portadoras de significados e
rentes, exprime com m uito mais simplicidade e beleza
sentidos. Há, por assim dizer, uma “escrita” nesta distribui
alguns dos pontos de vista aqui sustentados.
ção das coisas no espaço. Em outros termos, o arranjo espacial das coisas é uma linguagem. Comunica, revela e organiza sentidos, estrutura ações, muda segundo os con textos, utiliza metáforas, metonímias, anacolutos, elipses e hipérboles. H á como uma linguagem na maneira pela qual as coisas estão postas no espaço, no fluxo de coerência que
9 Sobre W ilhelm von Humboldt, ver, por exemplo, M almberc (1991).
39
GEOGRAFI A FIN-DE-S1ÈCLE
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFI CAS
B ib lio g ra fia
Rios sem discurso A Gabino Alejandro Carriedo Quando um rio corta, corta-se de vez o discurso-rio de água que ele faria; cortado, a água se quebra em pedaços, em poços d’água, em água paralítica. Em situação de poço, a água equivale a uma palavra em situação dicionária: isolada, estanque no poço dela mesma, e porque assim estanque, estancada; e mais: porque assim estancada, muda; e muda porque com nenhuma comunica, porque cortou-se a sintaxe desse rio, o fio de água por que ele discorria. O curso de um rio, seu discurso-rio, chega raramente a se reatar de vez; um rio precisa de muito fio de água para refazer o fio antigo que o fez. Salvo a grandiloqiiência de uma cheia lhe im pondo interina outra linguagem, um rio precisa de muita água em fios para que todos os poços se enfrasem: se reatando, de um para outro poço, em frases curtas, então frase e frase, até a sentença-rio do discurso único em que se tem voz a seca ele com bate .10
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“S o b e , e u te sigo, c o n d u to r sincero: M e u s passos gu ia: h u m ild e aos C é u s m e curvo. S e ja q u a l fo r a p u n iç ã o , o fere ço M e u co ra ç ã o d e to d o resignado: M u n id o d e p a c iê n c ia m e destino A co n q u istar, se o b t e r m e é d a d o tanto, P o r á s p e ro tra b a lh o a p a z ditosa.”
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(P a lav ra s d e A d ã o ao arcanjo M ig u e l n o C a n to XL d e Paraíso P erd id o, d e John M ilt o n )
In tro d u ç ã o : o p ro p ó s ito d este tra b a lh o H á mais de duas décadas vem se desenhando, tendo a Física e a Biologia com o centros irradiadores, algo que cavez mais passa a ser encarado com o um novo paradigma ciência — o “paradigma da complexidade” — , ao qual
* Professor Adjunto do Departamento de Geografia da UFRJ e pesquisador do CNPq.
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EXP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS
A EX P UL S Ã O DO PARAÍSO
se associam diversos conceitos, teorias e vertentes analíti
as ciências sociais, apesar e por trás do m odism o? O autor
cas, como a superstar Teoria do Caos. Em bora se referisse
deste trabalho acredita que sim, e o objetivo destas Unhas,
inicialmente a uma nova leitura da realidade física e do
as quais aperfeiçoam , com plem entam e aprofundam as
vivente, o paradigma em gestação aos poucos vem ultrapas
idéias contidas na introdução de um artigo anterior (SOU
sando as fronteiras do dom ínio das ciências da m atéria e da
ZA, 1995a), não é outro senão o de argumentar nesse senti
vida. Com efeito, em que pese o fato de que este novo pa
do, em bora relativizando a novidade e a utilidade das “li
radigma se fe z anunciar, a partir dos anos 60-70 (se bem
ções” dos cientistas naturais. Os exemplos e a preocupação
que suas raízes rem ontem a bem antes disso), com base no
central e im ediata deste trabalho referem -se à questão do
trabalho de cientistas naturais, com o o físico Herm ann H a-
desenvolvim ento sócio-espacial, vasto cam po tem ático ao
ken e o físico-quím ico Ilya Prigogine, já de alguns anos
qual têm estado vinculadas as investigações do autor. T o
para cá vêm sendo feitas diversas tentativas de aplicação de
davia, é desde já evidente que o tipo de discussão aqui p re
conceitos e esquemas interpretativos à própria realidade
sente d iz respeito, de algum a maneira, à epistem ologia da
social. Disso têm se encarregado não apenas cientistas so
pesquisa social em geral.
ciais de diferentes form ações, com o R lT T E R , 1991; O R L é a n , 1991; B a i l l e a u , 1991; L
o is t l
& B e t z , 1993; tam
bém os autores dos artigos contidos na coletânea organiza
Q u a l é a essência d o “p a ra d ig m a da co m p le xid a d e ” ?
da por K lE L & E L L IO T T , 1996, e até mesmo alguns cientis tas naturais, com o H a k e n , 1983; H a k e n , 1990; E b e l i n g
Prim eiram ente, um esclarecim ento term inológico. O term o “paradigma”, usado p or vários autores a propósito da
& F e i s t e l , 1994.
Caos, Term odinâm ica das estruturas dissipativas, frac-
“com plexidade” (e não só p or cientistas naturais: vide, por
tais, Teoria da Autopoese, Sinergética... Poucas décadas
exem plo, Edgar M O R IN [s/d-a; s/d-b] e Jean-Pierre D U PU Y
após a realização dos trabalhos pioneiros que confluiriam
[1990]), nos rem ete à idéia de paradigma científico contida
para uma renovação das pesquisas sobre a natureza, eis
na conhecida obra de Thom as Kuhn sobre a estrutura das
que as ciências naturais exercitam , mais uma vez, seu p o
revoluções científicas (K U H N , 1982). A anáhse de Kuhn
der de sedução: dos livros de divulgação científica (às vezes
não deve, porém , ser incorporada sem ressalvas pelas ciên
escritos por jornalistas) que se tom am best-sellers até as
cias sociais, particularmente a noção de “ciência norm al” ,
diversas disciplinas das ciências sociais, idéias e expressões
que significa o estado de dominância com base em critérios
associadas à Teoria do Caos e consortes têm fascinado, e
d e superioridade científica de um dado conjunto de con
mesmo assumido, as feições de uma nova m oda intelectual.
ceitos, m odelos e teorias tributários de um mesmo espírito
Haverá, contudo, algo de consistentemente prom issor, para
ou crivo discursivo legitim ador, ou seja, tributários de um
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E X P L O R A Ç Õ E S GEOGRÁFI CAS
A EX P UL S Ã O DO PARAÍSO
determ inado “paradigm a” . N o caso das ciências sociais,
verso daquilo que M orin chama de ciência clássica. D ito la-
onde a superioridade estritam ente científica não é som ente
conicam ente, o paradigm a da complexidade romperia com
a única causa, mas am iúde nem mesmo é a causa mais
os raciocínios lineares e reducionistas, incorporando um en
im portante da superação de um enfoque por outro, além do
foqu e que busca interações complexas (vide, por exemplo, a
fato de que uma form a de abordagem “ marginal” pode coe
Sinergética hakeniana e a Term odinâmica não-linear), além
xistir décadas a fio com uma outra “oficial”, sem que a
de adm itir que não apenas a necessidade (determ inidade),
“marginal” seja necessariamente abalada sob o ângulo cien
mas igualm ente o acaso (a contingência, o inesperado) são
tífico, a idéia de “ ciência normal”, e por extensão tam bém a
definidores da dinâm ica do mundo real — e eis aqui o cer
d e “paradigma” , pode dar uma impressão errónea do que
ne das im plicações filosóficas da T eoria do Caos e da Si
realm ente ocorre. N o entanto, talvez seja possível continuar
nergética. Sim plificações serão sem pre inevitáveis, mesmo
usando a palavra paradigma, mesmo em se tratando das
para o cientista que d ecid ir abraçar a complexidade. À di
ciências sociais, desde que se abandone a idéia da dominân
ferença da ciência clássica, no entanto, a ciência do com
cia absoluta com base em uma superioridade estritam ente
plexo manter-se-ia constantem ente alerta para os riscos da
científica.
sim plificação, não se deixando por ela hipnotizar (ver MO-
O paradigma da com plexidade — longe ainda d e se
RIN, s/d-a: 1.1, p. 348; s/d-a: t. II, pp. 361-362). A tarefa do
instalar definitivam ente — prom ove uma genuína revolu
cientista não é, em últim a análise, propriamente simplificar
ção científica, e tem seu antípoda e concorrente no “para
o real, mas sim tom á-lo in teligível, operando com imagens
digm a de sim plificação”, cujas características foram assim
e m odelos suficientem ente poderosos e não subestimando
sintetizadas p or Edgar M orin:
as dificuldades de se d efin ir os constructos, a fim de que
“ 1) Cham o ciência clássica a toda a tentativa científica que obedece ao paradigma de simplificação.
nossa representação da realidade não seja drasticamente em pobrecida e distorcida.
2 ) O paradigma de sim plificação opera por redução (d o com plexo ao simples, do m olar ao elem entar), rejeição (da eventualidade, da desordem, do singular, do indivi
Desenvolvim ento sócio-espacial, um fenômeno (e um desafio) com plexo p o r excelência
dual), disjunção (entre os objetos e o seu am biente, entre sujeito e objeto).” (M ORIN, s/d-a, t. II, p. 332, nota 1)
N o que concerne ao desenvolvim ento sódo-espacial, a questão epistem ológica geral “em que condições se elabo
Quanto à perspectiva que busca a com plexidade do
ra o conhecim ento?” adm ite ser assim especificada: em que
real ou está aberta para ela, é óbvio que ela prom ove o in
condições se elabora o conhecim ento sobre os fatores e con
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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFI CAS
A EXP UL SÃO DO PARAÍSO
dições que tom a m as sociedades, aos olhos de seus mem
atinentes a distintos espaços e escalas de análise. O que
bros, mais justas e aceitáveis? A despeito das numerosas
à prim eira vista parece endógeno a um recorte espacial
diferenças que apresentam entre si, as teorias do desenvol
deve sua existência igualm ente a fatores externos mais
vimento elaboradas no segundo pós-guerra guardam uma
ou menos rem otos no tem po, ou atinentes a escalas mais
cumplicidade essencial, sob o ângulo epistem ológico: em
abrangentes, enquanto que o exógeno, por seu turno,
maior ou m enor grau admitem ser vistas com o com prom e
amiúde tem a sua influência filtrada p or peculiaridades
tidas com o “paradigma da sim plificação” de que fala E d
internas. Os qualificativos “endógeno” e “exógeno” pos
gar Morin. Que sejam listados os principais sintomas dessa
suem valor operacional, mas seu em prego não pode le
inclinação obsessiva para a simplificação:
var a que se perca de vista que são mutilações. Em últi ma instância, o endógeno e o exógeno se acham amalga
• Monodimensionalidade. Entendendo por dimensões das
mados no bojo dos processos históricos.
relações sociais as diversas facetas principais da vida so cial (econom ia, política, cultura), a m onodim ensionali
• Abordagens monoescalares ou m u ito fracam ente m ul-
dade consiste na interpretação dos fatores do “ (s u b d e
tiescalares. Um vício epistem ológico m uito comum con
senvolvimento” a partir da consideração menos ou mais
siste na desatenção para com o fato de que os fenôm e
exclusiva de uma dimensão, e sobre a base uma ontolo
nos sociais, ainda que im ediatam ente referenciados, en
gia fragm entadora do social e com respaldo na divisão
quanto objetos de estudo, a um recorte espacial e um
do trabalho acadêmico em vigor. O exem plo máximo é o
nível escalar específicos, têm sua génese, sua dinâmica
conceito, tão em pobrecedor e restritivo, de “desenvolvi
atual e suas perspectivas explicáveis ou analisáveis m e
mento económ ico” (ver, para uma critica, SOUZA, 1995b;
diante a identificação de fatores que em ergem e operam
1996c). A monodimensionalidade, faz-se m ister ainda
em diferentes espaços e escalas. Sublinhe-se, portanto, a
acrescentar, costuma andar de braços dados com outro
necessidade de considerar as interações sócio-espaciais
vício — o vício da monocausalidade (explicações m ono-
horizontais e as articulações “verticais” entre fatores que
causais).•
rem etem a distintos níveis escalares.
• Separação simplista entre endógeno e exógeno. Fatores
• N egligência para com o papel do espaço. Além da sepa
do “(sub)desenvolvim ento” com um ente são vistos de
ração artificial entre as dimensões das relações sociais,
maneira absoluta com o internos ou externos a um país, a
têm sido tam bém usuais a separação entre espaço e rela
uma região etc., negligenciando-se assim os com plicados
ções sociais, a articulação deficiente entre espacialidade
entrelaçamentos históricos e feedbacks entre processos
e historicidade e a negligência para com o papel dos es-
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A EXP UL SÃO DO PARAÍSO
E XP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS
paços (enquanto espaços natural e social) nos processos
visão etnocêntrica, fechada e absolutizante do desenvol
de desenvolvim ento. Com algumas exceções (teoria dos
vim ento (O ciden te com o m odelo implícito; “desenvolvi
pólos de crescim ento, Econom ia Regional), as teorias da
m ento” defin ível universal e transculturalmente), sem
m odernização e do crescimento dos anos 50 e 60 secun-
contar o seu frequente com prom etim ento com visões
darizavam o papel do espaço, o mesmo podendo ser dito,
teleológicas (“ etapas do desenvolvim ento” ), incorrigivel-
em m aior ou m enor grau, de abordagens anteriores (so
m ente sim plificadoras — na verdade, convenientemente
cialismos utópicos, marxismo etc.) e posteriores ( redistri-
sim plificadoras, sob o ângulo ideológico.
bution w ith grow th, satisfação de necessidades básicas, ‘T e o ria da D ependência”...). Os geógrafos, que poderiam
O fracasso prático das estratégias, instituições etc., de
ter desem penhado um papel alternativo a esse respeito,
“desenvolvim ento” , e a própria complexidade crescente do
lam entavelm ente só ofereceram uma contribuição teóri
‘T e rc e iro M undo” têm conduzido a uma crise de produção
ca direta diminuta para os estudos sobre desenvolvim en to. Quanto ao “ fetichism o espacial” contido em algumas visões normativas, notadamente a propósito do desenvol vim ento
urbano
(urbanismo
modernista
corbusiano,
principalm ente), ele não resolve o problem a da falta de integração, pois apenas inverte os sinais, substituindo o descuido para com o papel do espaço pela superestimação do papel das formas espaciais. Também as correntes
teórica, a um desânimo. N o entanto, o minimalismo antiteórico ( “pós-m odem o” ) não é uma solução, mas somente um escapismo inconsequente. U rge, sim, aceitar abando nar o paraíso ilusório das soluções prontas e fechadas, das explicações transculturais, eternas e universais, para nos exilarmos no mundo concreto, cuja apreensão é muito mais d ifícil e nos exige mais flexibilidade e, ao mesmo tempo, mais humildade (v e r SOUZA, 1996a).
que reclamam um “desenvolvim ento sustentável” não apontam para soluções consistentes, uma vez que, se por
O q u e há de n ov o , sob o p ris m a da pesquisa social,
um lado sublinham os riscos da degradação do “ m eio am
na com p lexid a d e revela d a pelas ciências naturais
biente” (nisso diferindo de abordagens com o as teorias
ren ova d a s?
da m odernização e do crescim ento), por outro subesti mam, no âm bito de um enfoque que contém um viés
“O hom em não nos interessa apenas porque somos
naturalizante e banalizador das causas dos problemas
homens. O hom em deve nos interessar porque, de acordo
sociais, o papel do espaço propriam ente social.•
com tudo que sabemos, o fantástico nó de questões ligadas à existência do homem e ao tipo ontológico de ser por ele
• C aráter fechado, absolutizante, etnocêntrico e teleológico das teorias. As teorias herdadas são, também, por sua
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representado não é redutível à Física ou à Biologia.” (CASTORIADIS, 1986: 221)
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EX P L ORA ÇÕE S GEOCRÁFI CAS
A EXP UL SÃ O DO PARAÍSO
“ Estou cada v e z mais convencido de que a ciência
ao que se poderia talvez chamar de estilo de ra ciocín io, a
antropossocial tem de articular-se na ciência da natureza, e
originalidade do anticartesianismo inspirado pelas ciências
que esta articulação requer uma reorganização da própria
naturais renovadas é, no m ínim o, questionável. É fato que
estrutura do saber.” (M O R IN , s/d-a, 1.1, p. 13)
os próprios cientistas naturais, sobretudo os físicos, do alto do O lim po intelectual de que desfrutam no âm bito da
Aparentem ente, as duas citações acima refletem in
ciência moderna, muitas vezes desdenham ou ignoram que
conciliáveis posicionam entos por parte de C om elius Cas-
certos aspectos da “com plexidade” já foram , em um plano
toriadis — filósofo que, com profundidade singular, tem
filo s ó fico e m etodológico geral, apontados há bastante tem
insistido sobre a singularidade ontológica da sociedade e,
po p or algum filósofo ou cientista social defunto (registre-
por conseguinte, sobre as especificidades epistem ológicas
se, p or exem plo, que na virada deste século um sociólogo,
da análise social — e E dgar M orin — filósofo e sociólogo
Lester W ARD [apud POSADA, 1929], desenvolveu o concei
que, persuasiva e seriam ente, tem sublinhado a im portân
to de sinergia de m aneira qualitativam ente similar ao con
cia da integração dos conhecim entos das ciências humano-
tido no enfoque batizado de Sinergética por Herm ann
sociais e naturais. N o entanto, o autor deste trabalho acre
Haken, ao qual este chegaria, muitas décadas mais tarde, a
dita ser possível acatar a exigência castoriadiana — aceita
partir de suas pesquisas sobre o raio laser). Am iúde igno
ção da singularidade do social e da sua irredutibilidade ao
ram, igualm ente, que a crítica do pensamento linear é um
físico ou ao biológico — sem sacrificar a concordância com
legado antiquíssimo de diversas correntes filosóficas, de
M orin em que o diálogo entre os dois grandes campos
H eráclito ao pensamento dialético de H egel e Marx, ao
(ciência da natureza e ciência antropossocial) é necessário
que se devem acrescentar as contribuições de importantes
e promissor. Tudo dependerá dos termos desse diálogo, o
cientistas sociais ao longo do século XX.
qual, por parte das ciências sociais, não deve im plicar em
Seria atrevim ento concluir que algumas correntes da Filosofia e das ciências humanas têm estado, há m uito
perda de identidade. M esm o entre cientistas sociais, certas idéias associa
tem po, na vanguarda da construção de perspectivas que
das à “ N ova Física” , à B iologia M olecular ou à N eu robio-
poderíam os denom inar d e “complexas” ? É reconfortante
logia são, mais freqiien tem en te do que o autor gostaria de
verificar o que, a esse respeito, escreveu o próprio P rigo-
supor, encaradas com o uma grande novidade, uma reve
gine, em livro escrito em co-autoria com Isabelle Stengers:
lação. E specialm ente para alguém que, com o o autor des
“ [s]e quisermos situar (...) a contribuição das noções de
tas linhas, tem uma grande dívida intelectual com a tradi
não-linearidade, de instabilidade, de amplificação dos
ção do pensam ento dialético, essa euforia é m otivo de sur
pequenos afastamentos, é bom com eçar por sublinhar que
presa e m esm o de irritação, uma vez que, no que concerne
as ciências das sociedades não esperaram pela Física para
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E X P L OR A Ç ÕE S GEOGRÁ FI CA S
A EXP UL SÃ O DO PARAÍSO
descrever tipos de processos segundo as perspectivas que
tanto, de um ardiloso canto de sereia, uma vez que, de um
acabamos de indicar [isto é, a partir da ótica da complexi
m odo geral, as possibilidades de mensuração dos construc-
dade].” (PRIGOGINE & STENGERS, 1991: 139)
tos, com recurso em escalas de intervalo e razão, têm-se
A o que tudo indica, contudo, a m odéstia de Prigogine
mostrado, em nosso terreno de atuação, e em razão da pró
e Stengers é uma exceção. Alguns de seus colegas vão tão
pria natureza mais com plexa da realidade social-histórica,
longe a ponto de injustamente m inim izar até a contribui
m uito mais modestas do que no âmbito dos fenômenos
ção de um gigante pion eiro com o o biólogo alemão Ludw ig
naturais. Afinal, conform e reconheceu Abraham M oles, o
von Bertalanfíy, o pai da “Teoria G eral dos Sistemas” ; a p ri
físico, em sua reflexão sobre as “ciências do im preciso”,
m eira grande crítica do raciocínio linear interna às ciências
para as ciências da sociedade o que interessa “não é a mira
naturais, nos anos 40 e 50 (elogiada, ironicam ente, p elo fi
gem do algarismo, e sim a im portância da adequação à na
lósofo marxista K arel KOSIK [1985]). M esm o Herm ann
tureza intrínseca do fenôm eno que elas estão consideran
Haken, que em um de seus livros m enciona Bertalanfíy,
do” ( M o l e s , 1995:137).
lem bra-o apenas m uito marginalmente, sem fazer verda deira justiça à sua im portância (HAKEN, 1983: 352).
A o que parece, os “ensinamentos” emanados da Física apresentam um conteúdo de inovação relativamente restri
Um a nota d e história pessoal. O autor das presentes
to para a pesquisa social quando comparado com as ciên
linhas teve a oportunidade, há alguns anos, de indagar a
cias naturais, já que, com o bem notaram Prigogine e Sten
um dos assistentes de Herm ann Haken sobre as razões
gers, aquela não esperou p or estas para ir além do eartesia-
desse silêncio relativas ao que se poderia chamar de os “precursores” do paradigm a da com plexidade na Filosofia e nas ciências sociais. Sua resposta foi, literalm ente, que não se deveria confundir H im gespinste (maluquices, ex centricidades) com a verdadeira ciência; aqueles a quem o presente autor chamara de “precursores” não m ereceriam maiores atenções, p or não terem elevado o conhecim ento a
nismo, do pensamento linear e sim plificador (se bem que — e esse é precisam ente o problem a — as contribuições dos “precursores” não se difundiram e nem se desenvolve ram a contento). E, se a pretensa “grande novidade” em relação à especulação filosófica — a quantificação — não passa, em larga medida, de uma quim era quando se trata da pesquisa social (pois, ao contrário do que tantos físicos imaginam, não seria a matematização que permitiria enxer
um nível efetivam ente científico (o que para ele significa
gar m elhor a com plexidade dos fenômenos sociais — pelo
va: expresso em linguagem matemática). Esse estilo de crí
contrário, ela freqiientem ente im plicaria em um formalis
tica, típico do lim itado diálogo entre ciências sociais e
m o reducionista), então o que restaria, em termos de possi
naturais, é assaz decepcionante. O “avanço” quantificador
bilidade de diálogo frutífero, aos investigadores sociais e
secularmente cobrado das ciências sociais não passa, entre
aos cientistas naturais vinculados ao paradigma emergente?
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E X P L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS
A EXPUL SÃO D 0 PARAÍSO
Apesar das ressalvas dos parágrafos anteriores, qu er o
Mas, concretam ente: o que poderia, para a pesquisa
autor asseverar que seria açodamento descartar a utilidade
social, trazer esse diálogo, sob os ângulos epistem ológico e
desse diálogo para as ciências sociais. Mais do que isso: se
m etodológico? Em que m edida o “ paradigma da com plexi
ria injusto im aginar que toda tentativa de diálogo com os
dade” inspirado pelas ciências naturais contribuiria para
cientistas naturais constituiria uma manifestação de “positi
expulsar a teoria do desenvolvim ento de seu pseudoparaíso
vismo” (segundo o am plo significado conferido a este ter
de certezas mumificadas? O autor crê que três temas inter-
mo pela Escola de Frankfurt), com o se o desejo de inter câmbio fosse suficiente para levantar a suspeita de im itação metodológica e transposição irrefletida de conceitos e teo rias das ciências naturais para as sociais. Sem dúvida, o risco
relacionados, envolvendo questões referentes à teorização sobre o desenvolvim ento sócio-espacial, bastarão para ilus trar adequadamente, ainda que em caráter prelim inar, a presente tese sobre a im portância dessa troca intelectual.
de se com eter tais deslizes existe, já que ainda hoje muitos pesquisadores não estão suficientem ente imunizados. Toda via, um receio d o diálogo, sintomático de um com plexo de inferioridade, é, mais que nunca, extemporâneo: afinal, so mos hoje testemunhas de uma “crise da explicação simples” também nas ciências naturais, e, ironicam ente, “ o que pare ciam ser os resíduos não científicos das ciências humanas, a incerteza, a desordem , a contradição, a pluralidade, a com plicação etc. fazem hoje parte de uma problem ática geral do conhecimento científico” (M O R IN , s/d-b:138). Cum pre,
“Caos”: acaso e necessidade nos processos sociais O prim eiro tem a d iz respeito à revisão, sob inspiração da Teoria do Caos, da im portância da contingência e do sig nificado da previsibilidade no dom ínio social-histórico. So bretudo, certas interpretações vulgares do materialismo his tórico marxista, com o as contidas nos “manuais” de materia lism o histórico e dialético em suas versões stalinista ou criptosstalinista e no pensamento estruturalista althusseriano —
pois, reconhecer, seguindo o exem plo de Edgar M orin, que
se bem que a raiz do problem a se encontre já no próprio
uma maior aproximação entre as ciências naturais e as H u
pensamento de Marx — , caracterizaram-se por m in im iza r
manidades é, mais que desejável, importantíssima, m esm o
excessivamente a im portância das subjetividades e da con
que não se abra m ão de buscar a singularidade do social,
tribuição do papel ativo potencialm ente desempenhável p or
conforme tem sido enfatizado de maneira bastante insti-
cada sujeito social individualm ente na m odelagem do pro
gante, sobretudo p or CASTORIADIS (1975; 1986; 1990b). O
cesso histórico. Trata-se de avaliar até onde os indivíduos de
confronto de posições e resultados, e não a “auto-segrega-
p e r se, muito especialm ente as chamadas “grandes persona
ção” , é a m elhor m aneira de se perscrutar as especificida
lidades” (norm alm ente líderes políticos ou m ilitares), cen
des ontológicas do próprio objeto.
tro das atenções da historiografia burguesa, seriam capazes
56
57
E X P L O R A Ç Õ E S GEOGRÁFI CAS
A EXP UL SÃ O DO PARAÍSO
de influir no curso dos acontecimentos históricos. Presumiu-
E quanto ao dom ínio social-histórico? Seria ele mais
se que essa capacidade seria m uito m enor do que a histo
imune às consequências do puro acaso que o mundo físico?
riografia idealista e romântica postulava, e que o essencial
Responder negativam ente a esta pergunta não significa,
residiria, na verdade, na dinâmica histórica “objetiva” , “es
neste trabalho, negar o peso das estruturas e dos contextos
trutural” e “ sistémica” do m odo de produção (notadam ente
em nom e de um absurdo “tudo é possível”. Por que dever-
a contradição entre relações de produção e forças produti
se-ia, no entanto, justamente em um domínio onde inter
vas), o que acarretaria que o papel dos indivíduos, indepen
vêm subjetividades e em oções cambiantes, postular a im
dentem ente de seu brilho intelectual e sua proeminência,
possibilidade de reordenamentos macroscópicos a partir dos
seria inteiram ente secundário. Em suma, não haveria nin
desdobram entos de flutuações? Na realidade, as flutuações
guém que fosse “insubstituível” : cada m om ento histórico
no dom ínio social-histórico sequer precisam estar ligadas à
objetivo produziria o agente individual para desempenhar
vida de “grandes personalidades” : mesmo atos banais de
um determ inado papel “historicam ente necessário” .
desconhecidos podem ter consequências insuspeitadas.
O que nos tem a dizer, a propósito dos vínculos entre
N o que concerne à teorização sobre o desenvolvimen
acaso e necessidade, a Teoria do Caos? O “caos determ inís-
to, a T eoria do Caos representa um reforço considerável
tico” postulado p or essa teoria, a unir contingência e deter-
dos argumentos anti-historicistas, que recusam as visões te-
minidade em uma solidariedade essencial, nos recorda,
leológicas e etapistas do processo de “subdesenvolvimen
através do que fo i apelidado de “ efeito da asa da borbole
to”/"desenvolvim ento” . Vale a pena reproduzir, a esse res
ta” , que minúsculas perturbações, “flutuações” m icroscópi
peito, uma passagem do geógrafo alemão Wigand Ritter,
cas em um sistema, podem produzir, de maneira im previsí
que no contexto de uma discussão sobre o “desenvolvimen
vel e p or efeito d e am plificação, alterações macroscópicas
to em sistemas regionais” , onde é tentada uma articulação
e mesmo mudanças qualitativas (“ bifurcações” ), devido à
com o pensam ento de Prigogine, antecipa, ainda que de
natureza intrínseca dos chamados atratores “estranhos” ou
maneira incom pleta e não suficientem ente explícita, a pre
“caóticos” , associados a sistemas dinâmicos tam bém deno
sente interpretação:
minados “ caóticos” pelos físicos .1 “A teoria das estruturas dissipativas entende todos os 1 D e maneira muito preliminar pode-se definir atrator (ou estado atrator) como tudo aquilo pelo que um sistema é atraído. O estado atrator é aquele ao qual o
desenvolvim entos [Entwicklungen\ com o sendo abertos [gri-
sistema invariavelmente retorna, após uma perturbação exógena que não seja muito grande, mas que o afasta temporariamente do estado original. Pense-se em
sistema é perféitamente previsível. Já o mesmo não acontece com os sistemas
um sistema muito simples, por exemplo, em um pêndulo, cujo movimento dimi
caóticos (caso da dinâmica atmosférica, q ue é um exemplo freqiientemente cita
nui progressivamente; seu atrator (ou estado atrator) corresponderá à sua situa
do), cuja evolução cria dificuldades a qualquer previsão, especialmente a previ
ção de equilíbrio mecânico. Bem , ocorre que, no caso do pêndulo, a evolução do
sões de médio e longo prazos.
58
59
caótico. Suas contradições internas existem, mas elas ainda
mas” , entretanto, podem ter um interesse objetivo latente
não são suficientem ente fortes a ponto de tom ar instável o
ou m esm o consciente em sua destruição enquanto tal, ain
conjunto do sistema. (...) Elem entos obsolescentes, herda
da que sejam funcionalm ente dependentes dos “ subsiste
dos de fases anteriores, são eliminados ou transformados
mas” pró-estabilização (o que configura uma contradição
no período subsequente, desenvolvido, o que em princípio
dialética inexistente em sistemas físicos, quím icos ou bioló
é suficiente para prolongar o estado sistémico estável. À
gicos).2 Outra ressalva concerne à questão dos lim ites do
luz da realidade do mundo, isto é a aproximação mais ra
sistema, norm alm ente m uito mais fluidos e indefinidos no
zoável de um estado desenvolvido.
caso de “ sistemas sociais” (ver, a propósito,
Vista dessa form a, a situação de desenvolvim ento não
G lD D E N S ,
1989:134 e segs.). Infelizm en te, mesmo um trabalho com o
representa qualquer idílio. E la não encarna nem perfeição
o de
na utilização dos recursos nem um desenvolvim ento [E nt-
em sua objeção tanto ao positivism o quanto ao “pós-
faltu n g] da econom ia que seja duradouro e prescinda de
m odem ism o” , não dá a devida atenção a restrições com o as
aperfeiçoamentos ulteriores. E la assinala antes o estado de
precedentes em seu esforço para redefinir a ciência social
ordenamento atual e num futuro previsível do sistema real
com o o “ estudo de sistemas complexos” , e até m estre MO-
mente existente. É por isso que falamos de países indus trializados desenvolvidos, m uito em bora estes de maneira alguma possam oferecer aos indivíduos condições ótimas de existência.” (R it t e r , 1991:167-8)
R IN
H a r v e y &
R e e d
(1996), de resto bastante ponderado
(s/d-b:199 e segs.), em balado pelo realce dos isom or
fismos físico-bioantropossociais, com ete idêntico deslize. P or fim , um outro lem brete a propósito do em prego da palavra sistema diz respeito ao fato de que, além da objeti vidade das estruturas e dos mecanismos sistémicos (econó
A concepção da sociedade com o simplesmente um
micos e político-institucionais), há tam bém a imensa e irre-
“sistema” , ressalve-se, é assaz problemática; a idéia de con tradição, para citar um prim eiro exemplo, não convive fa cilmente com a id éia de sistema, a não ser que se desvincu
2 D e mais a mais, como seria verdadeiramente possível falar de equilíbrio no con
le esta idéia da noção de equ ilíb rio. D entro de um sistema,
igual) pressupõe simetria, enquanto que a explorado sobre a base da proprieda
digamos, do sistema capitalista, cuja vocação não é tender ao equilíbrio (ao contrário da profissão de fé da teoria eco60
texto de uma sociedade como a capitalista? Equilíbrio (d o lat. aequilibriu = peso de privada dos meios de produção e a heteronomia características das sociedades capitalistas (mesmo das “desenvolvidas") representa um a nítida assimetria estru tural (Sou za, 1993).
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E X P L OR A Ç ÕE S GEOGRÁFI CAS
A EXPUL SÃO DO PARAÍSO
du tível riqueza do “ mundo da vida” (Lebenswelt), onde as
precisas e ao m esm o tem po significativas sobre o seu com
categorias sujeito —> subjetividade —» intersubjetividade,
portam ento. A partir de um certo limiar, precisão e signifi-
descartadas por L U H M A N N (1987) em favor da oposição
cância (relevância) tom am -se qualidades quase mutua-
sistema/ambiente ( System/Umwelt), encontram necessária
m ente excludentes.” E, usando a palavra sistema mais uma
acolhida (H A B E R M A S , 1993, cap. X II; ver, ainda, H A B E R -
vez de maneira parcialm ente m etafórica: não há sistema
MAS, 1988).
mais com plexo que uma sociedade.
N o entanto, em que pesem todas as ressalvas, e ape
As restrições acima não im pedem , porém, que se
nas para em pregar o term o p or analogia, em sentido par
extraia da Teoria do Caos uma lição indireta de grande al
cialm ente m etafórico (já que a realidade social não é p le
cance m etodológico: a necessidade de se pensar dialetica-
nam ente redutível a um “ sistema”3): não há sistema mais
m ente (ou, com o p refere M orin, “dialogicamente”), a fim
sensível aos caprichos do acaso que uma sociedade. (Aliás,
de não se privilegiar, a p rio ri, nem o polo da determinida-
m esm o a face determ inista do binóm io necessidade/acaso
de (referen te à lógica de certos processos e mecanismos, p.
não há de exprimir-se, no caso do dom ínio social-histórico,
ex., económ icos e políticos, no âm bito de certas regras de
d e m aneira m uito formalizada. N em todo caos é propria
jo g o gerais, com o o funcionam ento do modo de produção
m ente determ inístico e, ademais disso, a prova matemática
capitalista), nem o p ólo da contingência (concernente a flu
da existência de um verdadeiro caos determ inístico subja
tuações que m odelam de m odo im previsível o devir). Na
cente a uma série de dados qualquer é um requisito d ifícil
sociedade há “atratores” (códigos de conduta, lógicas espe
d e satisfazer nas ciências sociais, inclusive devido à insufi
cíficas dos m odos de produção etc.), mas a evolução de
ciência de dados, conform e tem sido reconhecido na litera
uma sociedade e as configurações desta em momentos his
tura.) Quanto mais com plexo for um sistema, m aior será a
tóricos definidos (seja em term os de um regime político,
perda de inform ação ao se tentar exprim i-lo formalizada-
de um estilo de desenvolvim ento, de uma forma de organi
m ente, segundo adm itiu o fundador da.fuzzy logic, o mate
zação sócio-espacial) não são verdadeiramente predizíveis.
m ático L o tfi Z A D E H (apud Z lM M E R M A N N , 1993: 90): “ N a
(E m se tratando do social, a expressão “ etapa de desenvol
m esm a proporção em que cresce a com plexidade de um
vim ento” ou exerce um papel ideológico — sejam as “eta
sistema, diminui a nossa capacidade de fazer afirmações
pas do crescim ento económ ico” de Rostow, seja a sucessão de m odos de produção do marxismo — , enquanto viés pro priam ente teleológico, ou é simples racionalização mode-
3 N e m , conforme já se disse, sob a forma de instâncias concretas representando tipos de integração societária “sistémica” (através dos “subsistemas" mercado e Estado) em contraposição ao “mundo da vida" (H abermas , 1988), nem, obviamente, enquanto um modelo explicativo, onde as partes componentes e suas rela ções podem ser claramente distinguidas.
62
lística de um processo, à qual se procede retrospectivam ente.) Constatar, retrospectivam ente, que a sociedade européia deu origem à econom ia capitalista após uma tran-
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EXP L ORAÇÕES GEOGRÁFI CAS
A EXPUL SÃO DO PARAÍSO
sição que se arrastou entre os séculos X V I (ou m esm o
Asiáticos” , m uito especialm ente da C oréia do Sul: estaria o
antes) e X V III, não quer dizer que fosse possível prever, no
exem plo sul-coreano demonstrando, com o os mais conser
século X V I, a natureza da econom ia capitalista do século
vadores argumentam, que o desenvolvim ento do ‘T erceiro
X IX , e menos ainda as trilhas efetivas pelas quais chegou-
M undo” é perfeitam ente possível nos marcos do capitalis
se até aí. É este núcleo de indeterm inação, a despeito de
mo, ou seria a C oréia do Sul um caso por demais im perfei
qualquer dimensão de determ inação realm ente presente
to, com o preferem insistir muitos analistas de esquerda?
(descortinada e simultaneamente superestimada p elo ma
Ainda que bastante im perfeito (o que não é exclusividade
terialismo histórico marxista), que tom a a Teoria do Caos
sua enquanto sociedade capitalista), o caso sul-coreano não
uma fonte de inspiração válida para os próprios teóricos do
somente lança uma derradeira pá de cal sobre a já há mui
desenvolvimento das sociedades, não obstante o fato cons
to tem po ultrapassada abordagem do “desenvolvim ento do
trangedor de que eles, antes de quaisquer outros, deveriam
subdesenvolvim ento” de G under Frank, mas tam bém con
ter sido capazes d e form ular a questão do papel constituti
tribui para a superação do antigo enfoque “dependentista”
vo do acaso em toda a sua radicalidade. Infelizm ente, na
à la Cardoso & Faletto (onde se enxergava o desenvolvi
verdade, abundam os exemplos de estudiosos do social que
m ento económ ico, mas não se deixava de salientar o con
se encontram aquém do espírito da seguinte passagem esti
texto de dependência), além de abalar o enfoque sistémico
mulante com que nos brindaram Prigogine e Stengers:
wallersteiniano (dem asiado determ inístico, extem alista e econom icista) quanto à questão dos lim ites do desenvolvi
“ Longe do equilíbrio, os processos já não podem ser
m ento no âm bito do capitalismo. Afinal, a C oréia do Sul
compreendidos a partir de estados onde, em m édia, os
alcançou, nas últimas décadas, não apenas um notável d e
seus efeitos se compensam. Eles articulam-se em disposi
senvolvim ento económ ico capitalista, mas, tam bém, uma
ções particulares, sensíveis às circunstâncias, susceptíveis
significativa m elhoria de indicadores sociais. N o entanto,
de mutações qualitativas, disposições essas que perm item
isso não significa que não existem enorm es em pecilhos
dar um sentido a uma idéia anteriorm ente inconcebível:
económ icos e geopolíticos, situados no âmago da lógica do
explicar a novidade sem a reduzir a uma aparência.” (P r i -
sistema m undial capitalista, à “ desperiferização” dos países
g o g in e
& St e n g e r s , 1990:114)
subdesenvolvidos em seu conjunto. P or que não se poderia entender a instalação de infra-estruturas pelos japoneses
M encione-se, por fim , que a perspectiva que aceita a
durante sua ocupação do país, a reform a agrária conduzida,
possibilidade do surgim ento de novas ordens através de
após a Segunda Guerra, sob a batuta norte-americana, e a
flutuações pode ser uma pista para se repensar um certo
colossal ajuda externa recebida pela C oréia devido à sua
tipo de querela teórica estimulada pelo sucesso dos “Tigres
singular im portância geopolítica com o flutuações que, con-
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E X P L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS
A EXPUL SÃO DO PARAÍSO
jugadas com aspectos estruturais favoráveis (com o a cultu
ocupar m uito com ela”, indicando o surgimento espontâneo
ra, valorizadora da disciplina e da educação), conduziram o
de normas em m eio a processos anômicos (um fenômeno,
país à sua atual condição? Vista a partir desse ângulo, a
portanto, de “ auto-organização” ). Em Durkheim, porém, a
experiência sul-coreana (assim com o, antes dela, a japone
desordem é algo essencialmente negativo, encarado en
sa) contradiz enfoques rigidam ente deterministas sem, ne
quanto perturbação da ordem (BRUSEKE, 1995: 4).
cessariamente, excluir a existência de determ inações que
Seria uma simples questão de conservadorismo, este
obstaculizam a superação do “ subdesenvolvim ento” em
viés que consiste em ver na “ desordem ” algo basicamente
escala planetária.
negativo e excepcional? Já se viu que desde o próprio Marx o marxismo teve igualm ente dificuldades com o pólo da “desordem ” , com o aleatório e inesperado, com o inapre-
“O rd e m ”, “d es ord e m ”, socied ade e espaço
ensível (e não-controlado/incontrolável...). Marx e Engels trataram de form a nitidam ente depreciativa o lumpempro-
O segundo tem a diz respeito à dialética entre ordem e
letariado
(M A R X ,
1978;
MARX,
1980;
MARX
&
ENGELS,
desordem, e busca a com preensão da criação de “desor
1982), legando-nos inclusive algumas passagens levem ente
dem ” a p a rtir de uma “ordem ” que é pretensamente encar
tingidas com um moralismo pequeno-burguês. Enquanto o
nação de progresso universal, assim com o do surgim ento
proletariado stricto sensu, trabalhador e virtuoso, aos seus
de novas “ordens” a p a rtir da “desordem”. Conform e vol-
olhos era o efetivo “sujeito da história” e parteiro da nova
tar-se-á mais à frente, a questão da dialética entre “ ordem ”
ordem socialista, os pais do “socialism o científico” viam, no
e “ desordem ” possui im plicações que transcendem a T eo
“ rebotalho do proletariado” (para usar palavras de Marx),
ria do Caos, no seio da qual os vínculos entre ordem e d e
ou seja, no subproletariado, essencialmente, uma massa
sordem são tam bém tematizados, p or arrostar o investiga
degradada — e avessa a seu discurso ordenador. Para o
dor social com a necessidade de considerar diversas escalas
marxismo, o subproletariado não seria portador de qual
de analise e as distintas percepções dos diversos indivíduos
quer ordem redentora, e sim para empregar novamente
e grupos sociais em seu estudo.
palavras d e Marx, uma “putrefação passiva da velha or
As mais prestigiosas tradições do pensamento socioló
dem ” : uma espécie de aglom erado de criaturas eticamente
gico, com o as inauguradas por W eber e Durkheim, apre
desprezíveis (crim inosos, prostitutas, mendigos...), além de
sentaram uma nítida preferência pela dimensão da “ordem ”
histórica e politicam ente irrelevantes (a não ser, eventual
na sociedade, ainda que tenham tem atizado (m aiginalm en-
m ente, com o grotesco sustentáculo do status quo, como
te ) também a “desordem ”
1995). Durkheim, por
mostra M arx em “ O dezoito Brum ário de Luís Bonapar-
exem plo, “percebe a problem ática do caos sem contudo se
te ” ). A lérgico à desordem , o pensam ento crítico de Marx e
66
67
(B R U S E K E ,
EXPL ORAÇÕES GEOGRÁFI CAS
A EXPUL SÃO DO PARAÍSO
Engels deixa entrever os lim ites de seu criticismo: a obses
m ente excludente, segregacionista e, logo, não apenas cria
são pelo controle, prenúncio distante do totalitarismo.
dora d e riqueza, mas também de pobreza. N ão é de hoje
O Brasil urbano-metropolitano contemporâneo, nota-
que o estilo de progresso técnico poupador de m ão-de-
damente a realidade das duas m etrópoles nacionais de São
obra acarreta desem prego e nutre o subem prego em eco
Paulo e R io de Janeiro, demonstra à saciedade o anacronis
nomias com o a brasileira, a isso tendo de ser adicionados
mo que seria continuar sustentando o enfoque marxiano.
os fatores conducentes à form ação de um “exército indus
D e uma parte, o “proletariado” (conceito, aliás, deveras
trial d e reserva” . Sem querer, de m odo algum, elid ir a im
problem ático
1983]) se “integra” na socie
portância d e fatores não-econômicos, o fato é que a con
dade de consumo moderna, mesmo em um país com o o
centração de renda (agravada na década de 80, justamente
Brasil. Isso, se não significa o fim da exploração do traba
o período em que o tráfico experim entou um salto qualita
lho pelo capital, é ao menos uma expressão do fato de que
tivo), o desem prego e a penúria a que é condenada a m aior
o “proletariado”, ou seja, aqueles dos quais se extrai a
parte daqueles relegados ao setor não-m odem o da econo
“mais-valia” (o que rem ete em prim eiro lugar ao operaria
m ia são estímulos estruturais ao ingresso na delinquência
do industrial),
com o estratégia de sobrevivência.
[C A S T O R IA D IS ,
é
relativam ente privilegiado, pois
é
consti
tuído por trabalhadores com contrato de trabalho form al e
P o r outro lado, na esteira da crise da dívida externa e
empregados no setor m oderno da economia. D e outra par
do esgotam ento defin itivo do m odelo de industrialização
te, segmentos do subproletariado, com o muitos trabalha
por substituição de im portações, nos anos 80 o estilo de
dores do setor inform al legal (cuja legião aumenta constan
desenvolvim ento económ ico capitalista capitaneado p elo
temente no âmbito da reestruturação produtiva em curso),
"Estado desenvolvim entista” chega ao fim . Detonada pela
mas especialmente os criminosos, sobretudo aqueles liga
crise da dívida, a crise fiscal do Estado desembocará, p or
dos ao tráfico de drogas, não podem mais, em numerosas
seu turno, em uma inflação galopante, a qual conduzirá a
cidades brasileiras da atualidade, ser tratados com o ele
um aum ento da pobreza relativa (se bem que, com a exce
mentos irrelevantes no cenário sócio-político.
ção do R io de Janeiro, o percentual de pobreza absoluta
O tráfico de drogas, cujas evolução e dinâmica com
nas m etrópoles não aumentou no decénio passado), acom
portam uma vinculação não-linear entre ordem e desor
panhado, na prim eira m etade da década, p or cortes de gas
dem já abordada pelo autor em trabalhos anteriores
(S O U
tos públicos sociais, tendência só revertida com a redem o-
um exem plo particularmente rico. N o
cratização. À crise fiscal do Estado se somarão, após 1990,
tocante à evolução, a dimensão de ordem é representada
os im pactos da globalização e da transição do m odo de
pela própria lógica do sistema capitalista, a qual, principal
regulação e do regim e de acumulação tipicam ente fordistas
mente no contexto do capitalismo periférico, é profunda
para o regim e de acumulação flexível e, no plano id eológi
68
69
ZA,
1995a; 1996b),
é
EX P L ORA ÇÕE S GEOGRÁFI CAS
A EXPUL SÃO DO PARAÍSO
co, a influência do neoliberalism o. Em que pese o alívio
angústia e incerteza provocadas pelas “balas perdidas” .
decorrente da estabilização da inflação em um patamar
Todavia, em bora a sua presença esteja direta ou indireta
baixo após 1994, o prosseguim ento da precarização das
m ente relacionada com um aumento da “entropia social”
condições de trabalho registrada na década de 80 e o cres
na escala da cidade com o u m todo, sobretudo no Rio de
cim ento preocupante do desem prego, associados à nova
Janeiro (form ação de enclaves territoriais nas favelas, in
conjuntura liberalizante e de reestruturação produtiva (ins
crem ento da violência, estím ulo à auto-segregação das eli
crita no contexto de uma reestruturação económ ica em
tes, deterioração do “clim a social” ), seria erróneo supor
curso em escala m undial) afetam severamente a qualidade
que o p ólo da ordem é estranho ao tráfico de drogas ilíci
de vida dos pobres urbanos. Com isso, não apenas a ordem
tas. A lém do nível de organização do próprio tráfico en
sistémica básica (o próprio capitalismo em sua versão peri
quanto atividade económ ica, há também o fato de que, in -
férica), mas tam bém a conjuntura de colapso de uma
tem a m en te a cada favela , os traficantes representam um
determ inada form a de arranjo do sistema, provocando um
fa to r d e ordem , assumindo as funções de estabelecer nor
certo tipo de desordem tem porária rumo a uma nova
mas d e conduta e julgar e reprim ir os transgressores dessas
ordem (ao nível do m odo de regulação e do regim e de acu
normas (SOUZA, 1995a; 1996b). E isto, apesar de também
mulação) ainda mais excludente que a anterior e que com
nas favelas o tráfico gerar tem ores, tensões, incertezas, de
ela se vai mesclando bem à brasileira, contribuem , nos
sordem (SOUZA, 1996b). Esta relatividade da ordem e da
marcos da influência de certos fatores culturais (fortaleci
desordem rem ete a dois aspectos fundamentais para a aná
m ento de valores consumistas, hedonistas e individualistas)
lise social: de um lado, a im portância de se conjugar d ife
e político-institucionais (corrupção policial), para o incre
rentes escalas de análise quando do tratamento de um pro
m ento do tráfico de drogas. Finalm ente, pode-se perceber
blem a concreto (no caso específico da investigação sobre a
que singularidades locais vinculam-se estreitam ente a con
dinâm ica e os impactos sócio-espaciais do tráfico de drogas
tingências históricas ou flutuações — logo, a uma dimen
nas cidades brasileiras, da escala da favela até a internacio
são de desordem — , as quais ajudam a explicar, por exem
nal, passando pela escala da cidade/metrópole e a nacio
plo, porque o R io de Janeiro, mais que São Paulo ou qual
nal); d e outro lado, a constatação de que “ordem” e “desor
quer outra m etrópole, se converteu no grande sím bolo na
dem ” não são realidades simplesmente objetivas, mas sim
cional da violência associada ao tráfico de varejo.
realidades que se constroem na relação sujeito/objeto. D e
O tráfico de tóxicos contribui decisivam ente, a partir
acordo com o nível de análise com que o pesquisador este
da década de 80, para piorar o quadro de esgarçamento do
ja lidando em um determ inado momento, se a escala de
tecido social em diversas m etrópoles brasileiras — ou seja,
uma favela ou a da m etrópole em seu conjunto, a faceta
para um tipo de desordem a nível local, sim bolizado pela
que sobressairá poderá ser a da ordem, mais diretamente
70
71
E XP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS
A EXPULSÃO DO PARAÍSO
ligada à vivência dos m oradores de favelas, ou a da desor
gresso social. Quanto ao segundo m ovim ento — a ordem
dem, fortem ente vinculada às percepções e tem ores dos
em ergindo em m eio à desordem — , ele nos remete, por
moradores da “cidade legal” , do “asfalto”, e que term ina
exem plo, à critica ao simplismo de enxergar no subproleta-
por ser o ângulo privilegiado pela mídia.
riado apenas um “rebotalho”, e não também criação e retra-
A dinâmica sócio-espacial do tráfico de tóxicos serve
balhamento de valores e cultura (do rap e do fu n k à banali-
perfeitam ente para ilustrar dois fenômenos fundamentais,
zação da violência) e, enfim , ordem e organização, signifi
na realidade dois movimentos circularmente interligados: o
cando respostas, a nível m icro(favela), para os desafios deri
surgimento de “desordem” a p a rtir da “ordem ” e o seu in
vados em última análise da (des)ordem sistémica. Entre
verso, o surgim ento de “ordem ” a p a rtir da “desordem”.
tanto, considerando a questão da “ingovem abilidade urba
Ambos os movimentos coexistem no interior de uma dada
na” — preocupação legítim a de diversos setores da socieda
realidade social e, em bora possuam uma indiscutível di
de carioca, mas usualmente veiculada de maneira conserva
mensão objetiva, facetas diferentes vão surgindo ante os
dora, exagerada e até mesmo histérica — , verifica-se que, se
olhos do analista à m edida que ele se reporta a escalas dis
por um lado um certo grau de desordem é condição de fle
tintas, da mesma m aneira que os próprios indivíduos envol
xibilidade e capacidade adaptativa criadora a novas situa
vidos extraem e desenvolvem percepções particulares a par
ções, com o sugere Atlan em sua teoria da “ ordem a partir
tir de suas experiências sócio-espaciais concretas e suas
do ruído” (A t l a n , 1992, cap. 3), a partir de um dado lim ite
situações sociais diferenciadas. D a mesma maneira que a
a desordem pode revelar-se francamente disfuncional, ainda
ordem é algo relativo e carregado de subjetividade, e não
que não necessariamente para todos os grupos e interesses.
alguma coisa com pletam ente exterior ao sujeito cognoscen-
O caso do tráfico de drogas baseado em favelas é, ademais,
te (o que foi admitido inclusive por um cientista natural
interessante por apontar, no âmago de interações com ple
como ATLAN [1992, cap. 2 ]), uma vez que aquilo que é per
xas, a multifacetada importância do espaço social: palco de
cebido com o “ordem ” p or alguns pode bem ser percebido
relações sociais e arena de luta; referencial cultural, identi-
como “desordem” por outros, a desordem encarna, simulta
tário e simbólico, e também um recurso (a localização e a
neamente, a angústia da dissolução de uma velha ordem e
estrutura espacial labiríntica das favelas são bastante vanta
as incertezas que acompanham a formação de uma nova.
josas para os traficantes); produto social, mas também um
D o ponto de vista da teoria do desenvolvimento, uma
fator de condicionamento das relações e imagens sociais.
possível conclusão é que o prim eiro movimento — ou seja,
Pois bem : justam ente cientistas naturais, mais que
a ordem criadora de desordem — nos rem ete à crítica do
muitos pesquisadores sociais, oferecem hoje discussões
etnocentrismo da apologia universalizante da ordem capita
teóricas estimulantes a propósito das conexões entre or
lista-ocidental como representando um paradigma de pro
dem e desordem , discussões essas passíveis de serem, de
72
73
EXP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS
A EXP UL SÃO DO PARAÍSO
algum m odo, apropriadas por aqueles interessados em fe
que suas contribuições não podem ser sempre aplicadas
nôm enos sociais. M esm o um filósofo e sociólogo com o
analogam ente a questões geográficas. Na Geografia E co
E dgar M orin, cuja lembrança nos veríam os talvez tentados
nóm ica trata-se, ademais, sempre de problemas em tom o
a evocar com o fito de se relativizar a afirmação preceden
de sistemas auto-referenciados, onde indivíduos refletem
te, pois ele vem há vários anos chamando a atenção tam
sobre os objetivos e o sentido de suas ações.” (RlTTER,
bém dos cientistas sociais para a importância m etodológica
1991:101)
sem inal da interação entre ordem e desordem , mostrando com o esta pode ser profundam ente criadora (vide
M O R IN ,
Voltar-se-á a esse tipo de alerta na próxima seção.
s/d-a) — mesmo M orin tem buscado sua inspiração nas pesquisas e reflexões no cam po das ciências naturais. N ão são, portanto, exageradas as palavras de Dupuy, quando ele d iz que as ciências sociais “ estão a reboque”
(D U P U Y ,
Sinergética: perspectivas de uma apropriação crítica pela pesquisa social
1990:59). Seja com o for, é im portante reconhecer que o estí
O últim o tem a se refere à Sinergética de Hermann
m ulo oriundo das ciências naturais renovadas precisa ser
Haken, a “Lehre vom Zusammenwirken” (= doutrina do
sem pre criticam ente encarado e filtra d o pelos pesquisado
agir em conjunto). M uito em bora Haken não admita a exis
res sociais. A própria questão de uma dialética entre
tência de precursores de seu enfoque (com o o sociólogo
ordem e desordem é algo que se coloca de maneira plena
L ester W ard), nem com preenda que os processos sociais
m ente apropriada apenas no campo social, uma vez que a
não podem ser tratados com o mesmo rigor formal que os
dialética —
repetindo M erleau-Ponty ao exorcizar uma
processos físicos, a Sinergética pode ser útil no sentido de
certa dimensão “positivista” do marxismo, no estilo da “dia
recolocar na ordem -do-dia o im perativo epistemológico e
lética da natureza” de Engels
1975) —
m etodológico de recusa da monocausalidade nas explica
não é independente do sujeito cognoscente, ou seja, da sig
ções d e problem as sociais complexos, por exemplo, o cha
nificação atribuída pelo sujeito à “ordem ” e à “desordem ” .
mado “ subdesenvolvim ento” : necessidade de articulação
(M E R L E A U -P O N T Y ,
Tem razão W igand Ritter, por conseguinte, ao ponderar,
mais consistente entre as dimensões económica, política e
preocupado com aplicações no campo da G eografia E co
cultural, além dos condicionamentos espaciais relativos;
nómica, que
com preensão dos ritmos diferentes dos processos (p. ex., atritos entre as dimensões económica e cultural), e sua
“ [a] teoria das estruturas dissipativas foi (...) construí
confluência histórica no bojo de uma complexa dialética
da a partir de sistemas físicos e biológicos. Isso significa
entre fatores endógenos e exógenos. A abordagem da Si
75
E X P L O R A Ç Õ E S CEOCRÁFI CAS
A EXPULSÃO DO PARAÍSO
nergética possui, m a lgré o antifilosófico Haken, uma evi
tões d o “caos” e da dialética entre ordem e desordem em
dente afinidade com o velho princípio dialético de que “o
uma abordagem coerente e útil à investigação social.
todo é maior que a som a das partes” . Enquanto este princí
Faz-se mister, porém , saber separar o jo io do trigo na
pio permite, porém, ser lido de m odo simplesmente “estru
contribuição de H . Haken, sob o ângulo da pesquisa social.
tural” — por exem plo, ao admitir-se que a totalidade (que
Para explicar o que é auto-organização Haken recorre, em
pode ser uma formação sócio-espacial determinada), e não
uma d e suas obras (HAKEN, 1983), inicialm ente ao exem
uma simples justaposição das partes, faz com que certos
p lo de um grupo d e operários. E le principia pela caracteri
processos venham a te r lugar — , a Sinergética sugere fluxos
zação do que é organização-.
diferentes, processos distintos correndo paralelamente no tem po e com durações e ritmos variáveis, mas eventual
“ Consider, fo r example, a group o f workers. W e then
m ente ou a partir d e um determ inado momento interagin
speak o f organization or, m ore exactly, o f organized beha-
do uns com os outros, propiciando fenômenos em ergentes
vior i f each w orker acts in a w ell-d efin ed way on given
ao nível do todo.
externai orders, i.e., b y the boss. It is understood that the
Um exem plo de aplicação do raciocínio sinergético ao dom ínio social-histórico seria a explicação das causas do
thus-regulated behavior results in a join t action to produce som e product.” (p. 191)
agravamento da “questão urbana” no Rio de Janeiro na esteira em grande parte do increm ento do tráfico de tóxi
E , logo a seguir, na mesma página:
cos, a partir dos anos 80: uma explicação consistente terá de articular um grande número de fatores, operando em
“W e w ould call the same process as being self-organi-
escalas espaciais diferentes, da internacional à local; fatores
zed i f there are no externai orders given but the workers
com temporalidades distintas, e alguns deles com portando-
w ork togeth er b y som e kind o f mutual understanding, each
se como determ inações sistémicas, enquanto que outros
doin g his job so as to produce a product.”
aparecem com o flutuações. Fatores, por fim , que tanto podem indicar um m ovim ento que vai da ordem à desor
N o entanto, a pergunta realm ente relevante é: de on
dem, como um m ovim ento que vai da desordem à ordem.
de vem e com o se dá esse “m utual understanding”? A res
Pode-se verificar, assim, que a visão de uma sinergia positi
posta a esta pergunta é o que elucida a dinâmica do grupo,
va, gerando uma situação nova (às vezes inteiram ente ines
rem etendo a questões tão complicadas quanto as relações
perada), ou a ultrapassagem de um lim ite crítico com base
entre o im aginário social, as modalidades de cooperação
na confluência e no reforço mútuo de n processos distin
interindividual, o tip o de organização política, as formas de
tos, oferece inclusive a possibilidade de se integrar as ques
produção etc. — e essa resposta, contrariam ente ao que
76
77
A EXP UL SÃ O DO PARAÍSO
E XP L ORA ÇÕES GEOCR Á F I CA S
desejaria qualquer físico, não é form alizável. “Auto-organi-
to físico ou inesgotáveis p or referência a elementos “reais”
zação” de um sistema na Física possui uma conotação dis
e “ racionais” (D eus, pecado, justiça...), é passível de “eluci
tinta e m enos com plexa que “ auto-instituição” (ou auto-
dação” e discussão através d o recurso a modelos verbais
criação) do Social em
(1975; ver, tam bém,
(textos), mais abertos a sutilezas, mas é avesso a esquema-
1986 e 1990b); mas é precisam ente a “auto-
tism os gráficos ou matemáticos. N o campo social, comple
instituição” que coloca os problem as verdadeiram ente in
xidade quer d izer m uito mais que meramente não-lineari
teressantes. E não se trata apenas de que, com o diria H a
dade: quer dizer, para usar o term o castoriadiano, uma si
ken, os “ subsistemas” do “sistema” sociedade (isto é, os in
tuação d e “ magma” , com significações que rem etem a ou
divíduos) são demasiado com plicados para que se possa
tras significações, inesgotavelm ente, indefinidamente (no
com preender sua dinâmica em detalhes — o que, para
duplo sentido de sem fim e sem definição absoluta). A isso
Haken, não im pediria o conhecim ento da dinâm ica ma
deve-se adicionar a questão (igualm ente posta por
croscópica (g era l) do sistema, inclusive a sua form alização
R IA D IS
dentro dos cânones daquilo que o físico alemão denom ina
organização” no caso de sistemas físicos, químicos ou bio
d e “ Sinergética fenom enológica”, com a possibilidade de
lógicos. N o caso de um sistema natural, a auto-organização
simulações e (!) predições
se perpetuará até que a “ fadiga d o material” atinja um limi
C A S T O R IA D IS ,
C A S T O R IA D IS
(H A K E N
&
W U N D E R L IN ,
1991:
CASTO-
[1986: 235-6]) do caráter conservador da “auto-
te crítico, ocorra um acidente de comunicação ou uma for
241-247). C onform e sublinha
(1975, 1986), não é
ça externa bloqu eie o processo ou mesmo destrua o siste
lícito reduzir o Social à sua face “distinta e definida” , for
ma. Isto se dá porque um sistem a natural não possui verda
m alizável —
“id entitário-conjuntista” (identitaire-ensem -
deiras contradições internas (não se fala, aqui, da “compe
b liste), para usar as suas palavras — , muito em bora essa
tição” entre “parâmetros de ordem ” [Ordnungsparameter,
face seja uma parte real dele (e é através dela que se pode
o rd e r param eters], no sentido da Sinergética, mas de efeti
dar o diálogo com as ciências naturais). É válido form alizar
vas contradições dialéticas). A sociedade, contudo, as pos
esta face; entretanto, querer form alizar a dimensão im agi
sui, conform e já se fe z notar anteriorm ente — o que, diga-
nária — o “magma de significações imaginárias sociais” de
se de passagem, demanda uma correspondente flexibiliza-
que fala Castoriadis — é um absurdo. Diversam ente de
ção da idéia de “atrator”, para fins de aplicação ao domínio
um sistema natural, cada sociedade cria uma trama de sig
social-histórico. O que poderia significar, assim, uma socie
nificações para representar a si mesma e o mundo, trama
dade enquanto sistema auto-organizado total? Decerto se
essa que, por sua vez, estabelece o caldo de cultura onde
ria uma sociedade onde a possibilidade de questionamento
são socializados os indivíduos. O processo histórico de cria
a p a rtir de dentro estaria irrem ediavelm ente interditada,
ção de significações, inclusive de significações sem correla
pelo peso esmagador da repressão ou, mais efetivamente
C A S T O R IA D IS
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79
EXP L ORA ÇÕES GEOGRÁFICAS
A EXPULSÃO DO PARAl SO
ainda, do próprio imaginário; uma sociedade onde o con
que nós observamos é a em ergência de uma nova significa
junto dos indivíduos teria a sua dinâmica plenam ente “ es
ção im aginária social: a expansão ilim itada da m atriz ‘ra
cravizada” (versklavt) por “parâmetros de ordem ” sócio-
cional’ (que se instrumenta, para começar, na expansão ili
político-culturais, para usar duas expressões de Haken que,
mitada das forças produtivas), simultaneamente com a atua
involuntariamente, pintam já um quadro de horror. Seria,
ção de um grande número de fatores de extrema diversida
em suma, uma sociedade ultratotalitária, com o a do “ 1984”
de. Ex post, e uma vez que estamos de posse do resultado,
de Orwell. Um a tal sociedade representaria exatamente o
não podem os deixar de admirar a sinergia [grifo de Cas
máximo em m atéria de heteronom ia, no sentido de Casto-
toriadis] (incrível e enigm ática) desses fatores em ‘produ
riadis
C A S T O R IA -
zir’ uma forma, o capitalismo, que não fo i ‘pretendida’ por
1983; 1990a). É conveniente, por conseguinte, m ode
nenhum ator ou grupo de atores, e a qual decerto não p o
lar o Social sistemicamente, por razões didáticas e, em par
deria ser ‘construída’ por m eio da reunião aleatória de ‘ele
te, heurísticas (considere-se, por exem plo, o valor de siste-
m entos’ preexistentes.”
D IS ,
(C A S T O R IA D IS ,
1986: 236; ver, também,
(C A S T O R IA D IS ,
1986: 234)
mogramas, ou diagramas sistémicos, tanto para a transmis são de conhecim entos quanto para o ordenam ento do ra
Sem em bargo, a fonte de inspiração de Castoriadis
ciocínio) — desde que se tenha consciência, todavia, de
decerto não fo i a obra de Haken... A Sinergética hakenia-
que essa m odelagem é e sempre será perigosa, por conti-
na, aplicada a um sistema físico, quím ico ou biológico, for
nuamente seduzir o intelectual a pensar que ela esgota a
nece uma analogia deveras interessante, e tão mais interes
questão da natureza da realidade social, quando na verda
sante quanto mais renitentes forem os teóricos do desen
de ela mal dá conta do seu “esqueleto” (isto é, da sua d i
volvim ento das sociedades em se aferrarem a esquemas
mensão conjuntista-identitária).
interpretativos monocausais. Um a vez aplicada a Sinergé
Vale a pena notar, por fim , que o próprio Castoriadis
tica à sociedade à maneira de Haken, porém , o tiro pode
não se furta a um raciocínio explicitam ente sinergético, ao
sair pela culatra, e ao invés de com plexidade estar-se-á di
comentar, em um ensaio sobre o dom ínio social-histórico,
ante de mais um reducionismo. Em resumo: a idéia de si
o processo de génese do capitalismo moderno:
nergia, sim, ela nos é útil — mas não especificamente em sua versão hakeniana.
“ Nós não observamos na Europa Ocidental, entre, d i gamos, os séculos X II e X V III, uma produção ‘aleatória’ de um número im enso de variedades de sociedades e a elim i nação de todas elas, menos uma, por serem ‘inaptas’, e a seleção do capitalismo com o a única form a social ‘apta’ . O
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81
EXP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS
A EXPUL SÃO DO PARAÍSO
Conclusão
voluções sociais (ver HAKEN, 1990), para se ganhar um co nhecim ento qualitativamente superior, é um delírio retró
As páginas precedentes revelaram — o autor de bom
grado. Um delírio, a propósito, positivista, tributário da ve
grado reconhece — uma reflexão em estado ainda em brio
lha arrogância mais ou menos redutora da realidade social à
nário, e além disso uma reflexão que tenta ser cautelosa. A
biológica (e, em última instância, à física). Mas... não seria
intenção fo i m eram ente a de destacar alguns exem plos de
esta inclinação (este vício), presente em muitos cientistas
possibilidades de releitura de problemas sociais, com vistas
naturais (LEW IN [1994] oferece vários exemplos, lamenta
a uma crítica construtiva das teorias do desenvolvim ento,
velm ente endossando-os) e incorporado por outros tantos
articulando novos conceitos e term inologias (inspirados,
cientistas sociais, justamente contraditório com o verdadei
originalm ente, em contribuições das ciências naturais) com
ro espírito da complexidade, conform e sintetizado por Ed
certas tradições da Filosofia e das ciências sociais, notada-
gar M orin na passagem citada na introdução deste artigo?
m ente retom ando o fio do pensamento dialético — o qual
Seja com o for, a despeito de todas as ressalvas, obje
não deve ser confundido com ou reduzido ao pensam ento
ções e advertências, o diálogo com as ciências naturais se
marxista.
afigura necessário. Estamos sendo expulsos do aparente
O desafio, é fácil perceber, é múltiplo, e não simples:
paraíso das explicações reducionistas, e as ciências naturais
não apenas o desafio de abrir-se ao novo, mas o de discer
renovadas estão a jogar um certo papel nessa expulsão. Só
nir as múltiplas raízes desse novo, relativizando assim a sua
que, ironicam ente, o ganho mais importante nesse diálogo
novidade. Com isto corre-se o risco de bancar o desm an
não é aquilo que os cientistas sociais (teóricos do desenvol
cha-prazeres para quem pensa ter descoberto a pólvora,
vim ento incluídos) podem propriam ente “aprender” com
especialm ente se esse tipo de relativização é com plem enta
os naturais (m entalidade que já conduziu a várias aberra
do p or uma exigência de serenidade com o a que, aceitando
ções), mas sim o fato de que o exem plo dos cientistas natu
e buscando o diálogo com o Outro (com as ciências natu
rais recordará aos cientistas sociais que estes conseguem,
rais), ao mesmo tem po repudia qualquer tentativa de negar
muitas vezes, ser mais “sim plificadores” que aqueles... A fi
a especificidade do M esm o (das ciências sociais e, na base,
nal, som ente as próprias ciências sociais poderão definir o
do seu objeto, a sociedade). O autor do presente ensaio
que, em seu âm bito, caracteriza a “complexidade" — vale
não crê, contudo, existir neste caso alternativa razoável
dizer, a singular com plexidade do seu objeto inconfundível,
para uma significativa prudência. Errar é humano, persistir
a sociedade.
no erro é tolice; imaginar que basta que esquemas analíti cos com o a Sinergética sejam aplicados de maneira form al aos mais diferentes objetos, por exemplo, no estudo d e re
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AS ABORDAGENS DA G e o g r a f ia C u l t u r a l Paul C laval*
A geografia cultural está associada à experiência que os homens têm da Terra, da natureza e do ambiente, estu da a m aneira pela qual eles os m odelam para responder às suas necessidades, seus gostos e suas aspirações e procura com preender a m aneira com o eles aprendem a se definir, a construir sua identidade e a se realizar. A geografia cultural dem orou m uito para se consti tuir, uma vez que ela necessita, para se desenvolver, que a disciplina não seja som ente uma ciência natural de paisa gens e de regiões, com o o era no com eço do século, e que não se reduza à análise dos mecanismos que perm item às sociedades funcionar, triunfando sobre o obstáculo da dis persão e da distância, segundo os esquemas que prevale ciam nos anos 1960. É preciso que ela se tom e uma refle xão sobre a geograficidade, ou seja, sobre o papel que o
* Traduzido do francês po r Paulo Cesar da Costa Gomes.
EXPL ORAÇÕES GEOGRÁFI CAS
AS ABORDAGENS DA G E O C R A F I A CULTURAL
espaço e o m eio têm na vida dos homens, sobre o sentido
dem os reencontrá-la na idéia d e força determinante das
que eles lhes dão e sobre a maneira pela qual eles os utili
culturas utilizada por Pierre Gourou ão longo de toda a sua
zam para m elhor se com preenderem e construírem seu ser
carreira.
profundo. As idéias de Eric D ardel, que foi o prim eiro a
Existe uma outra maneira, entre os geógrafos france
lutar por esta concepção verdadeiram ente humana da geo
ses, de explorar os fatos da civilização: estudar os traços
grafia, levaram mais de vinte anos para serem reconheci
culturais, sua distribuição e a marca que eles imprimem na
das: as m entalidades não estavam suficientem ente maduras
paisagem. Este estilo de análise foi posto em prática por
para a mudança radical na concepção da disciplina com o
Jean Brunhes e desenvolvido p or P ierre Deffontaines. Deu
ele recomendava.
origem a monografias apaixonantes que, no entanto, ábor-
D izer que a geografia cultural só pôde se desenvolver
dam a cultura pelo exterior e se recusam a realizar o ques-
recentem ente não quer dizer que este dom ínio tenha per
tionam ento das representações e dos valores que levam as
m anecido ignorado pelos pesquisadores. Eles o aborda
pessoas a agirem de uma certa maneira ao invés de outra, a
vam, mas não dispunham dos meios necessários para anali-
organizar o espaço segundo um m odelo ao invés de outro.
sá-lo em todas as suas dimensões. As abordagens que prati
Pierre D effontaines aborda a geografia religiosa através das
cavam eram sem pre parciais. Alguns exem plos o mostram
marcas que esta im prim e nas paisagens (igrejas, mesquitas,
m uito bem : na França, no com eço do século, a noção de
santuários, tem plos, cruz etc.) pelos obstáculos que ela im
gênero de vida tem uma dimensão ecológica, naturalista;
põe a certos gêneros de vida (obrigação do jejum na sexta-
ela serve prim eiram ente para mostrar com o os grupos se
feira, interdição do álcool e do consumo da carne de porco,
adaptam ao am biente. Ela tem tam bém, entretanto, uma
por exem plo), e pelos gêneros de vida que ela faz nascer (o
dimensão social e cultural: com o nota Vidal de la Blache, a
dos padres ou dos monges). A religião não é nunca tratada
força do hábito tom a-se tão forte que o grupo humano p er
nela mesma
(D E F F O N T A IN E S ,
1948).
de sua plasticidade. A o invés de se adaptar ao m eio, ele
Nos Estados Unidos, C ari Sauer se interessa pelas
procura m odificá-lo para perm anecer com seus hábitos:
transformações que a cultura im põe aos ambientes natu
observa-se por ocasião das migrações; os recém -chegados
rais. E le estuda as paisagens para dimensionar com o o ho-
em um país fazem em geral de tudo para continuar a viver
m en m odifica, de forma mais ou menos profunda, o que ele
com o eles o faziam em seus países de origem . V idal de la
encontra, instalando-se em m eios ainda naturais (SAUER,
Blache, que faz do gênero de vida um dos eixos da geogra
1963). Aqui ainda a abordagem é exterior.
fia humana que ele elabora, é, desta forma, o prim eiro a
*
A geografia cultural de língua alemã se interessa tam
sugerir que ele pode ter uma dimensão cultural. A idéia
bém pela paisagem. Ela estuda a presença de traços cultu
está presente em muitos trabalhos da escola francesa. P o
rais, à maneira de Jean Brunhes, o recuo da floresta e de
90
91
E X P L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS
outras formações naturais diante do machado dos cultiva dores e das queimadas repetitivas dos criadores de gado.
AS ABORDAGE NS DA G E O G R A F I A C U L T U R A L
A geografia cultural parte das sensações e das representações
Ela se interessa, tam bém, pela harmonia profunda que se observa, às vezes, entre a organização do espaço, os traços
O hom em apreende o mundo através dos seus senti
visíveis da paisagem e a alma do povo que a m odelou
dos: ele observa as formas, escuta os barulhos e sente os
(A N D R E O T T I,
odores daquilo que o envolve. Os m ovim entos do seu cor
1994; 1996).
A geografia cultural moderna, ao fazer do hom em o
po constituem uma experiência direta do espaço. O gosto
centro de sua análise, fo i obrigada a desenvolver novas abor
lhe revela, quando ele com e ou bebe, outras propriedades
dagens. Ela se construiu em tom o de três eixos que são
do m undo que o envolve. O hom em age prim eiram ente
igualmente necessários e complementares: prim eiro, ela
em função das indicações que ele recebe dos seus sentidos.
parte das sensações e das percepções; segundo, a cultura é
As sensações são uma apreensão do real, mas só se
estudada através da ótica da comunicação, que é, pois, com
tornam seguras quando assumem uma form a estável. Isto
preendida com o uma criação coletiva; terceiro, a cultura é
ocorre quando se superpõe à sensação uma percepção. Os
apreendida na perspectiva da construção de identidades,
homens quase sem pre ouviram falar d e lugares que eles
insiste-se então no papel do indivíduo e nas dimensões sim
abordam antes de os pisarem, de m odo que seu olhar não é
bólicas da vida coletiva.
mais perfeitam ente novo. Sua experiência é guiada p or aquilo que eles aprenderam ao escutarem as pessoas em tom o deles e discutindo com elas. A geografia que estuda
Os três eixos da análise geográfica da cultura
grupos humanos se detém nos discursos e nas representa ções que os codificam , uma vez que estas últimas traduzem
Até os anos 1960, o desenvolvim ento da geografia cul
maneiras de v e r padronizadas.
tural esteve arrefecido pela sua recusa de se afastar da pai
As representações que o indivíduo recebe através de
sagem ou dos artefatos e por se interessar pelo que se passa
sua educação, que ele aprende no contato com outros, que
no espírito das pessoas. Este bloqueio diminuiu hoje em
ele constrói e que reinterpreta, constituem um universo
dia. Por se interessar prim eiram ente pelos homens, os estu
mental que se interpõe entre as sensações recebidas e a
dos podem hoje ir m uito mais longe do que no passado.
im agem construída em seu espírito. As representações fo r necem malhas para apreender o real. Elas perm item su perpor ao aqui e ao agora os algures, que são sociais, geo gráficos ou m etafísicos. Elas dão assim origem a valores e instituem uma ordem normativa.
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93
E XP L ORA ÇÕES CEOGRÁFI CAS
AS A B OR DA C E N S DA G E O G R A F I A CULTURAL
Os homens não agem em função do real, mas em
naturais do corpo, de m odo que se adquire, ao manipulá-
razão da im agem que fazem dele. Aproxim ar-se da geogra
los, o know how daqueles que os conceberam. As mídias
fia cultural é, antes de mais nada, captar a idéia que tem os
modernas perm item as trocas orais e a aprendizagem pela
do am biente próxim o, do país e do mundo. É se interrogar
im itação dos gestos. Elas substituem mal a escrita para a
em seguida sobre a maneira com o as representações são
veiculação das idéias abstratas (M cLU H A N , 1968).
construídas, sobre o seu papel no m odelam ento do real e
As inform ações que com põem as culturas transitam
sobre sua perm anência, sua fragilidade e as reações que
sem cessar de indivíduo para indivíduo. Elas passam de
provocam .
uma geração a outra, de m odo que a sociedade permanece ainda que seus velhos desapareçam e sejam substituídos pe los jovens. Elas circulam entre vizinhos, entre amigos, entre
A d im ensão c o le tiv a : a cu ltu ra deve s e r estudada sob a
parceiros de trabalho ou de negócios. Cada um recebe, ao
ó tic a da co m u n ica çã o
longo dessas trocas, know how , conhecimentos e descobre atitudes e crenças que lhes eram estranhas; retém-se e inte
O estudo da dimensão coletiva dos fatos culturais fo i
rioriza-se uma parcela mais ou menos larga.
renovado pelos progressos da linguística e da teoria da
O conteúdo das mensagens trocadas não pode geral
comunicação. A cultura é feita de inform ações que circu
m ente ser com preendido fora d o contexto onde se encon
lam entre os indivíduos e lhes perm item agir. Códigos ser
tram os parceiros. Os jovens citadinos aprendem o que é o
vem para organizá-los ou para trocá-los.
centro de sua cidade sem que isto jamais lhe tenha sido
As inform ações que constituem a cultura concernem o
explicado: eles vislumbram o term o associando-o a um cer
am biente natural no qual vivem os homens, a maneira de
to bairro, ao com ércio, aos bares ou aos bancos que ali se
produzir alimentos, energias e matérias-primas, assim com o
encontram. Assim, o que eles adquirem só é válido dentro
as formas de construir instrumentos e de em pregá-los para
dos lim ites do grupo de intercom unicação ao qual eles per
criar ambientes artificiais. As informações que constituem a
tencem (S t a s z a k , 1997).
cultura tratam em seguida da sociedade, da natureza, dos
Esta perspectiva sublinha que a cultura é antes uma
laços que unem seus membros e das regras que devem ser
realidade de escala local: de um círculo de interação a ou
respeitadas nas relações que se estabelecem.
tro, trocas têm lugar; equivalências se desenvolvem, de mo
Essas inform ações se transmitem pela observação e
do que a comunicação seja possível, porém nem tudo é
im itação, pela palavra ou pela escrita. Os instrumentos
transmitido. N ão existe com preensão real dos processos cul
têm , assim, um papel importante neste dom ínio: eles foram
turais se negligenciarm os o jo g o da intersubjetividade.
concebidos para guiar os gestos e tirar partido dos ritmos
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EXP L ORAÇÕES CEOGRÁFI CAS
A dim ensão in d iv id u a l: a cu ltu ra fo r ja identidades
AS A BORDAGENS DA GEOGRA FI A C U L T U R A L
não se pode alcançar, ou em um futuro indefinido da U topia. O mundo real é duplicado p or mundos imagina
Assim concebida, a cultura não aparece com o uma
dos, que são indispensáveis para lhe dar sentido e apare
totalidade que encontraríamos identicam ente em todos os
cem freqíientem ente com o mais autênticos do que aqueles
membros de uma sociedade, com o poderia ser o caso de
que nossos olhos desvelam. Esses algures afloram em cer
um mesmo software im plantado em milhares de computa
tos lugares. Eles transformam a sua natureza: ao universo
dores. Ela resulta de um processo de construção sem fim ,
profano do mundo ordinário se opõem as praias sagradas
levado a cabo pelos indivíduos.
que manifestam aqui embaixo a existência desses algures
É ao longo da infância que a acumulação de know
(E l ia d e , 1965).
how, de conhecimentos, de preferências e de crenças tom a
A cultura incorpora, assim, valores. Estes têm uma tri
forma: o jovem aprende a falar, a se deslocar e a agir den
pla finalidade: prim eiro, guiar a ação, inscrevendo-a em um
tro do meio familiar; mais tarde, ele é submetido à apren
quadro normativo; segundo, sublinhar a especificidade de
dizagem, ou vai à escola.
tudo que é social, alçando a uma dignidade superior o que
A acumulação de inform ações estruturadas que resul ta deste processo tem p or objetivo dotar cada um da baga
passa p or procedim entos de institucionalização, e, terceiro, dar um sentido à vida individual e coletiva.
gem de conhecimentos indispensáveis para trabalhar e
A form ação dos indivíduos term ina quando eles inte
para se integrar à sociedade. A cultura, no entanto, não se
riorizam o quadro de valores que os insere em um destino
resume a isto: ela serve para dar um sentido à existência
coletivo. Esta etapa im portante dá lugar a ritos de passa
dos indivíduos e dos grupos nos quais eles estão inseridos.
gem no m om ento da adolescência
As informações que circulam nas células do corpo social
te m om ento que a institucionalização do indivíduo term ina
(E R K S O N ,
1972). É nes
comportam narrativas que contam a origem do mundo, o
e que e le tem acesso ao mundo social pleno, o dos adultos.
prim eiro homem e a constituição da sociedade; elas inse
E le adquire uma identidade que lhe dá um estatuto no gru
rem a existência de cada um em um destino coletivo e lhe
po e o faz existir face às outras coletividades.
dão uma significação.
O processo de interiorização e de reconstrução indivi
As perspectivas necessárias aos indivíduos para que
dual da cultura não pára na adolescência. Possibilidades de
suas vidas não pareçam inúteis são abertas pela tomada em
adquirir novos conhecimentos, de dom inar novas técnicas,
consideração do algures, de onde as coisas podem ser vis
de experim entar novos valores se oferecem perm anente
tas com recuo: eles podem estar situados para além do céu
mente. Os empréstimos se sucedem, mas alguns são recu
ou da razão, ou aqui embaixo, mas nos tem pos recuados da
sados, pois colocariam em perigo a identidade individual e,
Idade do Ouro, em uma Terra sem M al tão afastada que
numa outra escala, a estrutura do grupo. Para aqueles que
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'
AS ABORDAGE NS DA G E O G R A F I A C UL T URA L
EXP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS
não se detêm diante dos obstáculos experim entam fases de
A p reen sã o d o m u n d o atra vés dos sentidos
crise e de reconstrução do eu, freqiientem ente difíceis; elas precedem e acompanham as conversões. N o nível
Se a geografia cultural se dedica à experiência que os
coletivo, as bases morais sobre as quais a sociedade está
homens têm do mundo, da natureza e da sociedade, ela
edificada podem ser transformadas, mas ao preço de revo
deve partir daquilo que os seus sentidos lhes revelam. Os'
luções que são sem pre duras de viver, mesmo que elas não
estudos não faltam a este com promisso, mas eles se detêm
sejam acompanhadas por revoltas, massacres ou guerras
quase exclusivamente sobre a visão. O olhar que os ho
civis.
mens projetam sobre o am biente obteve a atenção dos O processo de institucionalização não diz respeito
geógrafos, uma vez que é ele que perm ite estruturar o
som ente ao indivíduo e à sociedade. E le se aplica aos siste
espaço, de opor o próxim o ao distante, de distinguir planos
mas de relações cada vez que estes concernem à riqueza,
escalonares e perceber a realidade em múltiplas escalas —
ao poder, ou ao prestígio e interferem por isso no funciona
é sobre esta propriedade que se baseia toda a orientação
m ento da sociedade. A abordagem cultural tom a-se, assim,
geográfica.
indispensável para com preender a arquitetura das relações
Mas o olho não é um instrum ento neutro: o que nós
que dominam a vida dos grupos. Ela renova a geografia
vem os nos agrada, nos em ociona, nos amedronta. O olhar
social. Ela ilum ina a vida económ ica à m edida em que p õe
participa da experiência que tem os dos lugares e de suá
em evidência os objetivos perseguidos pelas famílias e
dimensão em otiva — por vezes estética.
pelas empresas: suas lógicas dependem da maneira com o elas estão estruturadas e dos valores que as guiam.
A audição não tem a mesma significação: ela fornece apenas uma id éia im perfeita da geom etria do mundo; ela inform a sobre a direção de onde provêm os sons que per cebem os, mas só traduz aproxim ativam ente suas distâncias.
As abordagens culturais: cultura e relações com o espaço
A passagem do agudo ao grave denota, ao contrário, o m ovim ento. O am biente sonoro faz parte da imagem que guardamos dos lugares. A lem brança mais forte que guar
Os geógrafos tiram partido destas orientações recen tes da reflexão
(C laval,
1992; 1995;
FOOTE
et a lii, 1993)
para com preenderem com o a cultura define o espaço.
damos deles é, no entanto, freqiientem ente dada pelo olfa to: não esquecem os o odor dos maquis da Córsega na pri mavera, o odor do feno grego nos campos da África do N orte ou, ainda, da terra depois da chuva de abril, o odor do feno recém -cortado ou o perfum e dos campos de lavan da no vapor do mês de julho.
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E X P L O R A Ç Õ E S GE OG RÁ F I CA S
AS A BO R D A G E N S DA G E O G R A F I A C U L T U R A L
A experiência do gosto é menos diretam ente associa
das en tre nosso m undo e o O utro m undo, passa p elo cen
da aos lugares: a terra não é degustada, só raram ente se
tro d o espaço terrestre. C erta m ontanha é sagrada e é a
mastiga plantas selvagens. E ntre os sentidos, o paladar é o
partir d ela que o sistem a do m undo se ordena — pense
mais socializado (PlTTE , 1991). É através dele que fazem os
mos no m onte M éru (E LIAD E, 1965).
a experiência do cru e d o cozido, daquilo que separa os homens das espécies animais. Os sabores e os odores dos alim entos consumidos durante a infância estão associados à
C ultura e dom ínio da natureza
im agem do país natal, da fam ília e das tradições que rep re senta.
A cultura não fala som ente do espaço; ela fala tam bém da natureza. E la o tom a sim ultaneam ente com o um m eio a dom inar para extrair aquilo que é necessário à exis
A estruturação do espaço
tência e com o um conjunto carregado d e sentidos. O s hom ens tiram de seu am biente aquilo que eles
O espaço que percebem os é codificado p or categorias
têm necessidade. E les procedem pela coleta (o que supõem
que perm item estruturá-lo: e le é ordenado em relação a
que eles reconheçam , entre as dezenas ou centenas d e
um ponto de origem e às direções, o que perm ite situar os
espécies, aquelas que são nutritivas, aquelas que são vene
lugares uns em relação aos outros. Se a observação funda
nosas, aquelas que fornecem fibras etc.), pela pesca ou p ela
m ental se d er à beira de um rio que fixa as orientações, a
caça (o que im plica um inventário detalhado da fauna ter
montante, a jusante e perpendicularm ente, direm os que
restre ou aquática), p elo pastoreio (qu e se baseia na domes
para atingir tal lugar é necessário subir o rio três horas,
ticação d e uma ou várias espécies animais, no conhecim en
depois andar duas horas perpendicularm ente ao seu curso,
to de suas necessidades alimentares, seus deslocamentos
a sua esquerda. Se as direções são astronómicas se dirá que
necessários para aproveitar as áreas d e pastagens nos m o
a cidade B está a cinco léguas ao norte e dez léguas a leste
m entos mais favoráveis e no recurso ao fogo para aumentar
da cidade A . Às direções se acrescentam as indicações de
ou regenerar as zonas de percurso) e p ela agricultura. N es
altitude. É preciso subir ou descer, para ir d e tal ponto a
te últim o caso, os grupos aprenderam a cultivar, a conservar
outro (P a u l -LÉVY, SÉGAUD, 1983).
e a consum ir certas espécies. Antes d e sem ear ou de plan
N a m aior parte das sociedades, os pontos cardeais e o
tar, eles prepararam as terras utilizando recursos frequente-
alto e o baixo estão conotados d e valores: o norte é m aléfi
m ente com plexos. Cada uma dessas operações im plica o
co; a oeste se encontra o R ein o dos M ortos; o eixo do m un
uso d e instrumentais variáveis.
do, pelo qual se estabelecem as comunicações mais côm o
100
O dom ínio d o m eio só é possível porque os homens
101
EXPL ORAÇÕES GEOGRÁFICAS
AS A B O R D A G E N S DA G E O G R A F I A C U L T U R A L
souberam se cercar de um universo instrum ental que os
geografia no com eço do século — e os símbolos de sua
perm ite trabalhar a terra, efetu ar as colheitas e preparar, a partir d e m atérias-primas disponíveis, os artigos do qual
identidade. O s hom ens inscrevem , nos m onumentos que erigem
eles têm necessidade para o consumo.
e nas inscrições que fazem aqui e ah, a ordem de significa
O dom ínio do m eio se baseia tam bém na criação d e
ções qu e os m otivam . Para James Duncan, por exem plo, a
am bientes artificiais — a roupa, que p rotege das intem pé ries, e a casa.
paisagem p od e ser fida com o um texto (D U N C A N , 1990).
A geografia das técnicas constituía no com eço do nos so século o capítulo mais p rofícu o dos estudos culturais. Baseado sobre práticas m uito mais do que sobre saberes padronizados, o universo instrum ental variava m uito pou co. O progresso cien tífico e a facilidade das com unicações apagaram a diversidade d e outrora. A análise das técnicas tradicionais continua, entretanto, a fascinar um grande núm ero d e geógrafos — m esm o porque os contrastes na m aneira de se vestir, de se equipar, d e habitar, estão reva lorizados em uma época onde a geografia tende à unifor m idade.
E n tre as criações da cultura, a paisagem é a que retém m aior atenção, pois lança-se sobre ela um novo olhar. Augustin B erque tenta com preender os sentidos que os grupos dão ao seu am biente
(B E R Q U E ,
1986; 1993).
Suas análises tratam do par hom em /m eio e sobre as paisa gens on de ele se m anifesta
(B E R Q U E ,
1990). E le forja no
vos conceitos para m elhor apreender este dom ínio, com o o de m esologia, “ ciência dos m eios que não são só objetivos, mas vividos pelos sujeitos” . Sua idéia m estre é a de que a natureza é sem pre com preendida em uma perspectiva cultural. D enis C osgrove d ecifra os m odos de produção sim bólicos específicos das sociedades pré-capitalistas e capita listas em seus trabalhos sobre a iconografia da paisagem em V en eza e na Inglaterra. As fam ílias da aristocracia ve
Cultura e paisagem
neziana exprim em suas convicções e suas aspirações nos palácios e nos jardins que elas se fazem construir sobre a
A paisagem retém a atenção, uma vez que é o suporte
terra firm e p or arquitetos com o Palladio
(C O S G R O V E ,
1984;
das representações. Ela é sim ultaneam ente m atriz e marca
C O SG R O VE, D a n ie l s ,
da cultura, segundo a fórm ula d e Augustin B erque (BER-
a fortuna d e que se dispõe é estável. Transformá-la em uma
QUE, 1984): m atriz, visto que a organização e as formas que
paisagem harm oniosa prova que se é sensível ao belo e que
estruturam a paisagem contribuem para transm itir usos e
se participa de uma elite de espírito cujo m agistério é eter
significações d e uma geração à outra; marca, visto que cada
no. O s hom ens d e n egócio britânicos que multiplicam na
grupo contribui para m odificar o espaço que utiliza e gra
área rural inglesa do século X V III belas residências e par
var aí os sinais de sua atividade — o que era estudado p ela
ques não procuram outra coisa.
102
1988). Possuir uma terra mostra que
103
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
As abordagens culturais: cultura e construção do eu e da sociedade
AS A B O R D A G E N S DA G E O G R A F I A C U L T U R A L
N ã o se p od e com p reen d er as geografias qu e se cons troem sob nossos olhos se negligen ciarm os a qualidade estética dos am bientes e as possibilidades d e realização
A cu ltu ra e o e n riq u e c im e n to d o s e r
qu e eles o ferecem àqueles que os habitam ou que os fre quentam . As cidades gastam fortunas para criar e m anter museus, teatros, óperas, ou para organizar festivais: elas
Os indivíduos não perm anecem passivos diante da
fixam assim as em presas ou atraem os turistas.
cultura. Eles retêm certas inform ações mais do que outras, se interessam p ela destreza dem onstrada p or um bom op e rário ou p e lo p e rfe ito b ric o le u r1, evoluem a vontade na esfera dos conhecim entos cien tíficos, ou se associam p re fe
A c o n s tru ç ã o d e id e n tid a d e s e a d ia lé tic a u n ifica çã o / d iv e rs ific a ç ã o
rencialm ente à vida religiosa. E sta fam iliarização com as pectos particulares d o universo social lhes perm ite especia lizar-se e ganhar a vid a quando as sociedades tom am -se complexas; eles retiram disso tam bém satisfações pessoais, ela lhes assegura prestígio e o estatuto acordado ao espe cialista, ao cientista ou ao sábio. A arquitetura, a escultura, a pintura, o teatro estive ram durante m uito tem po ligados à vida religiosa. Q uando as sociedades se laicizaram , a vid a artística tom ou-se autó noma. Sobressair no dom ínio da criação aparece então com o o signo d e um a realização particularm ente valorizadora do eu. Todos aqueles que desejam se eleva r na escala do prestígio e da consideração, com eçam a frequ en tar as galerias de arte, os museus, as salas d e concerto, as óperas ou os teatros, ou a le r as grandes obras literárias. E les p ro curam se afirm ar através do consum o cultural d e alto nível.
C om o fundam ento das identidades, a cultura reúne os hom ens ou os separa. Q uando as pessoas aderem às m esm as crenças, d ividem os m esm os valores e associam suas existências a objetivos próxim os, nada se op õe a qu e eles se com uniquem livrem en te entre si. M as desde qu e eles saem d o grupo no qual se sentem solidários, suas atitu des m udam : a desconfiança se instala, as trocas se tom am um a fon te d e ameaças, na m edida em qu e elas p odem questionar a estrutura sob a qual foram construídas a p e r sonalidade dos indivíduos e a identidade dos grupos. A o se con gregar em to m o d e p receitos comuns, os grupos abolem as distâncias psicológicas qu e existem en tre os seus m em bros, o qu e lhes p erm ite triu nfar sobre a dis persão associada freqú en tem en te às necessidades da vida. Jean G ottm ann fe z desse tem a, o das im agens que tem os em com um (ícones, no sentido original d o term o), um dos
1 Pessoa que exerce diferentes ofícios; fam iliarm ente se diz de alguém q u e é capaz de fazer reparos e de construir pequ en as coisas de form a com petente, mas
capítulos essenciais da geografia p olítica — é neste sentido que e le fala de icon ografia
(G O T T M A N N ,
não profissionalizada.
104
105
1952).
E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S
AS A B O R D A G E N S DA G E O G R A F I A C U L T U R A L
O s hom ens não param d e im aginar novos valores, d e
ses qu e os acolhem , mas continuam fiéis às suas culturas de
construir novas classificações e d e traçar novas fronteiras.
o rigem e m antêm contatos estreitos com elas. As diásporas
E ste m ovim en to não am eaça, entretanto, a coesão das so
se m u ltiplicam (PRÉVELAKIS, 1996).
ciedades qu e reagrupam populações numerosas. Isto p or
A s identidades se associam ao espaço: elas se baseiam
qu e sentim entos d e perten cim en to podem se hierarquizar,
nas lem branças divididas, nos lugares visitados p or todos,
assim com o as culturas: em pequena escala existem form as
nos m onum entos qu e refrescam a m em ória dos grandes
globalizadoras, que fundam identidades coletivas qu e com
m om entos d o passado, nos sím bolos gravados nas pedras
partilham um p equ en o núm ero d e valores p olíticos, os
das esculturas ou nas inscrições. A territorialidade se trans
prin cípios da C onstituição am ericana para os Estados U n i
form ou em um dos com ponentes mais im portantes das
dos, a L ib erd ad e, a Igu aldade e a Fraternidade para a R e
novas orientações d o m undo social e político (BONNE-
pú blica francesa; em grande escala, os particularism os se
M a i s o n , 1986; K e i t h , P i l e , 1993).
expandem , o dos confessionais, dos grupos étnicos e das seitas na sociedade am ericana, o dos laços locais e regio nais e dos m ilitantism os políticos ou sindicais na sociedade
A cultu ra recorta categorias no real e lhes dá vida
francesa. O paradoxo da situação atual é que na ép oca em que
C om o se dar conta da tendência à pulverização tão
a universalização das técnicas está praticam ente consuma
fo rte d o m undo atual? As abordagens culturais, que se
da, os valores com fo rte carga unificadora d e outrora, a fé
im puseram logo em seguida aos trabalhos fenom enológicos
no progresso, o liberalism o e a tolerância cessam d e ser
sobre a intersubjetividade, conduzem ao questionam ento
atraentes. O processo d e divisão se segm enta, pois cada
dos instrum entos qu e o observador utiliza espontaneamen
grupo se considera igual aos outros em d ireito e dignidade.
te (STASZAK, 1997; RlCHARDSON, 1981). Ao supor formas
É neste contexto qu e é preciso recolocar a m aior par
universais na m aneira d e con ceb er o real sobre o qual se
te das pesquisas contem porâneas da geografia cultural: os
debruça, o observador tem a tendência de naturalizar a
nacionalism os e os regionalism os se exasperam, as socieda
realidade. A finalidade profunda da geografia cultural é
des on de as m inorias acabavam p or ser assimiladas através
in com p atível com um a tal m aneira d e ver. O problem a não
d e m ecanism os diversos d e integração evoluem para o mul-
é ap licar ao real um a m alha válida em todos os contextos e
ticulturalism o, sem que possamos estar certos d e que seus
para todas as culturas, mas com preen der como cada grupo
com ponentes possuem ainda realm ente algum a coisa em
rein ven ta perm anentem ente o m undo, introduzindo novos
com um . O s im igrantes que fogem da m iséria d o T erceiro
recortes.
M undo desejam se b en eficiar das vantagens sociais dos paí-
106
A escala das análises muda: para apreender os proces-
107
E X P L O R A Ç Õ E S G E OG RÁ F I CA S
AS A B O R D A G E N S DA G E O G R A F I A C U L T U R A L
sos culturais verdadeiram ente significativos, os geógrafos
interessa p ela m aneira com o são estabelecidos os critérios
se debruçam sobre a experiên cia das pessoas, sobre seus
que separam o grupo do qual fazem os parte daqueles que
contatos, sobre suas m aneiras de falar. E les descobrem ,
nos são estrangeiros. N o m undo atual isto conduz a p rivile
assim, com o as atitudes m udam e os objetivos coletivos se
giar, com o ob jetos geográficos da pesquisa cultural, a raça,
constroem ao sabor das interações. As pesquisas se in teres
a etnia, a ju ven tu de, a velh ice ou as categorias sexuais (h o
sam mais fortem en te pelas pequenas com unidades, pelos
mens, m ulheres, homossexuais, transexuais): fo i a isto que
bandos e gangues dos subúrbios, das com unidades d e bair
P eter Jackson reduziu os M aps o fM e a n in g que e le p ropõe
ros, das células d o m undo rural do que pelas realidades
na sua interpretação geográfica da cultura (JACKSON, 1989;
globais. Pratica-se a geografia cultural sem que as pesqu i
v er tam bém ANDERSON, G a l e , 1992; JACKSON, PENROSE,
sas nos levem a inform ações sobre o que é a cultura chine
1993). N a geografia política é a im agem da fronteira e da
sa, a cultura am ericana, ou a cultura urbana. O que elas
queles que estão instalados para além dela, e que são vistos
trazem é a id éia de que as regras da vida social variam de
com o diferen tes, que retém a atenção mais espontanea
um ponto a outro e se m odificam sem cessar. Trata-se m ui
m ente (PAASI, 1996). O olhar dos ocidentais sobre os outros
to menos d e m udança de princípios do que propriam ente
povos está na base do im perialism o que e le denom ina e
da m aneira d e interpretá-los ou de transgredi-los, para se
justifica. Se querem os com bater as form as d e opressão do
adaptarem às circunstâncias. Os subúrbios populares das
m undo atual é mais im portante, pois, aprender a descons-
grandes cidades são assom brados p or bandos de joven s que
truir a im agem d o O utro qu e o m undo ocidental tem com o
procuram desesperadam ente afirm ar sua originalidade, re
eviden te d esd e que com eçou a se con ceber com o superior
correndo para isso a tem as d e uma afligen te m onotonia.
aos outros.
A em ergência d e subculturas reforça as clivagens que nascem da divisão d o trabalho. U m sentim ento d e solida riedade operária p o r m uito tem po im pediu que os filhos
A ordem socia l é culturalm ente instituída
dos trabalhadores tivessem um b en efício plen o das possibi lidades de progressão social oferecidas pela escola. Nas
As abordagens fenom enológicas são m uito úteis no
zonas onde se acum ulam as populações desm unidas das
esclarecim en to da fusão dos grupos, sua construção e suas
grandes cidades, uma subcultura da pobreza se cria e ten
barreiras psicológicas. A o se basearem , entretanto, nos es
d e a acentuar a degradação das condições d e vida (SlBLEY,
tudos da intersubjetividade, estes estudos esquecem que o
1995).
m undo explorado pela geografia está investido em todas as
A orientação cultural visa com preender com o os gru
suas partes d e valores: a encenação dos m om entos fortes
pos constroem o m undo, a sociedade e a natureza. E la se
da existência coletiva através d e cerim ónias, d e rituais e d e
108
109
EXPLORA ÇÕE S GEOGRÁFICAS
AS A B O R D A G E N S DA G E O G R A F I A C U L T U R A L
festas p erm ite ao gru po se realim entar, fazendo apelo a seus
social: sábios ou feiticeiros nas sociedades animistas, sacer
m itos fundadores.
d otes ou gurus nas religiões reveladas, intelectuais no
Atrás dos processos d e institucionalização, p odem ser
m undo m oderno, qu e encontram justificativa nas id eolo
lidos os jogos que d ivid em o m undo na esfera do sagrado e
gias laicas
d o profano. A geo gra fia cultural p rivilegia assim as re li
indispensável para com p reen d er a geografia p olítica dos
giões e m ostra com o as ideologias laicas funcionam d e fato
Estados.
(C L A V A L ,
1980). A perspectiva cultural é assim
com o substitutas das crenças tradicionais. Face aos filó sofos d o progresso social que dom inaram no O cid en te des d e o Século das Lu zes, vê-se desfilarem ideologias da natu
Perspectivas sobre as culturas
reza qu e, sob o n om e d e ecologia, transform am profunda m en te as sociedades, propondo novos critérios d o bem e
As culturas são diversas. Elas não dispõem das mes
d o m al, d o puro e d o im puro, e im põem aos poderes novos
mas técnicas e não asseguram o m esm o grau de dom ínio
objetivos para estes alcançarem o aval dos grupos cujo tra
dos am bientes onde vivem . Poder-se-ia im aginar perspecti
balho é o d e legitim ar as instituições — ou corroer seus
vas qu e perm itissem com pará-las? H á m uito tem po, a idéia
fundam entos
d e classificá-las em função d e seus níveis de desenvolvi
(B E R Q U E ,
1996).
O s grupos qu e elaboram subculturas tentam p o r v e
m en to nos fo i im posta. U m a tal operação não p od e ser acei
zes questionar os valores adm itidos p e lo conjunto do corp o
ta sem dificu ldade: deve-se considerar que uma sociedade
social: estas contraculturas oferecem um ponto d e apoio a
capaz d e organizar grupos num erosos distribuídos sobre
todos aqueles qu e se sentem feridos p ela sociedade ou qu e
extensos espaços é necessariam ente mais avançada que um
se colocam em desacordo com seus princípios. Elas elab o
gru p o cujo dom ínio perm anece lim itado a um pequeno es
ram contram odelos que podem seduzir camadas cada v e z
paço? Q u e critérios d evem ser considerados para m edir o
mais amplas da população e conduzir p o r fim a uma rees-
progresso? As técnicas d e com unicação influem diretam ente so
truturação cultural d o conjunto. U m dos pontos essenciais de tod o grupam ento p o líti
b re a natureza e no con teú do das culturas: uma sociedade
co é constituído p e lo sistem a de crenças e d e ideologias
qu e se baseia, para transm itir seu saber, apenas sobre a
qu e dão sentido à vid a dos indivíduos e da coletividade,
palavra e sobre a im itação direta dos gestos e com porta
legitim an do o que está instituído. A d efesa dos valores exis
m entos, apresenta d eficiên cias nos suportes de sua m em ó
tentes, ou sua crítica e definição d e sistemas concorrentes,
ria. E la m antém relações com o tem po e com a história
m obilizam a en ergia dos legitim adores, cujos títulos e fun
d iferen tes daqueles que caracterizam os grupos que dis
ções variam segundo os níveis e as form as d e organização
p õem d e escrita.
110
*
111
E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S
A única perspectiva evolucionista que pode existir na geografia cultural é, pois, aquela que classifica as sociedades em função dos m odos d e com unicação que as caracteriza.
AS A B O R D A C E N S DA G E O G R A F I A C U L T U R A L
trora. Elas p od em ser apreendidas em qualquer lugar des d e que se disponha de obras e revistas onde os resultados estão expostos. O cinem a e a televisão mostram a todos co m o é fá cil u tilizar a m aior parte dos artigos d e consum o du rável oferecid os p ela indústria m oderna. N a m edida em
R evolução das com unicações e un iform iza çã o do m undo
qu e a cultura resulta d e um jo g o d e m ecanism os d e com u nicação, ela d everia se uniform izar rapidam ente. Isto fo i em
A observação, a im itação e a palavra só são possíveis
parte fe ito — a cultura de massas se assemelha cada v e z
entre pessoas d e um m esm o local. Isto quer d izer qu e os
m ais em todos os cantos d o planeta ( M a c LUH AN, 1968) —
aspectos técnicos das culturas tradicionais se transm item
mas outros fatores possuem um sentido inverso e condu
localm ente em boas condições, porém a difusão d e um
zem à p roliferação dos fúndam entalism os, dos nacionalis
m eros problem as. A escrita perm ite fazer chegar as m ensa
m os e das contraculturas. /ç persp ectiva evolucionista só é capaz de se dar conta
gens muito lon ge, o qu e favorece a difusão dos con h eci
d e um a parcela da diversidade das culturas. Para ir adiante
m entos form alizados p ela ciência e dos textos que veiculam
na com preensão, é preciso prestar atenção e entrar em sua
religiões ou ideologias. As sociedades tradicionais apresen
lógica. É isto qu e p erm ite a perspectiva etnogeográfica.
pon to a outro é um processo d ifícil, len to e com porta inú
tavam desta form a um a dupla inscrição cultural no espaço: o m osaico com plexo d e dialetos e d e know how técnicos se inscrevia no seio dos espaços que dividiam , freqú en tem en -
A c o n s id e ra ç ã o d o s a b e r g e o g rá fic o d os gru p os:
te sobre m uito amplas extensões, a m esm a língua, os m es
a p e rs p e c tiv a d a e tn o g e o g ra fia
m os conhecim entos científicos, a m esm a religião e os m es m os traços m orais: esta era a im agem associada à C hina há
Todas as culturas resultam d e um trabalho de cons
m eio século; esta havia sido a da E uropa há dois séculos.
trução e dispõem d e know how e d e saberes relativos ao
As culturas populares se opunham à da elite.
espaço, à natureza, à sociedade, aos m eios e às maneiras de
A revolução da m ídia transform ou esta im agem das
explorá-lo. E interessante com parar estes saberes, analisar
culturas prim eiram ente em um ritm o bastante len to no fim
suas bases e seus m odos d e elaboração e inventariar as
d o século passado, depois com uma am plitude cada v e z
categorias sobre as quais eles repousam. É necessário tam
mais viva desde 1950. As pesquisas técnicas restringem cada vez mais o dom ínio dos know how tradicionais. O s conhecim entos form alizados substituem as receitas de ou-
112
b ém deter-se sobre a m aneira com o esses conhecimentos são utilizados, reinterpretados, respeitados (ou transgredi dos), em seus conteúdos norm ativos, p or aqueles que os
113
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
AS A B O R D A G E N S DA G E O G R A F I A C U L T U R A L
colocam em prática. A etn ogeografia convida a re fle tir
BERQUE, A ugustin (1986). Le Sauvage et Vartífice. Les japonais
sobre a diversidade dos sistemas d e representação e d e téc nicas pelas quais os hom ens agem sobre o m undo, tiram p artid o da natureza para se alim entar, se p roteger contra as intem péries, se vestir, habitar etc., e m odelam o espaço à sua im agem e em função de seus valores e d e suas aspi rações (C l a v a l , Sin g a r a v é l o u , 1995). O
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orientação cien tífica seria assim tão d iferen te dos saberes
BO NNEM AISON, Joêl (1986). Les fondements d’une identité. Ter-
vernaculares quanto se sustenta geralm ente? Sem dúvida
ritoire, histoire et société duns Varchipel du Vanuatu, Paris,
não: os hom ens só aprendem a m obilizar a razão progressi
ORSTOM, 2 vols.
vam ente. A cada etapa d o desenvolvim ento da geografia, esta últim a carrega parcelas que se diferenciam ainda m ui to pou co d o conhecim ento do sim ples bom senso. A etn o geografia p erm ite, pois, renovar as abordagens contextuais, qu e são cada v e z mais utilizadas na história da geografia.
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117
O
sag rado e o espaço Z eny Rosendahl*
Introdução A s palavras religião, sagrado, p eregrin o e cerim onial, en tre outras, não aparecem nos dicionários básicos de g eo grafia. E n tretan to, elas indicam experiências humanas re pletas d e significados, ten d o uma nítida dim ensão espacial, interessando, portanto, à geografia. O in teresse p or essa dim ensão é antigo, ainda que da A n tigu id a d e C lássica ao fin al d o século X IX as relações que uniam g e o g ra fia e religião representassem , de um lado, mais um a explicação religiosa do que científica e, de outro, um in ven tá rio e descrição das várias religiões. D o in íc io d o século X X até aproxim adam ente 1960, os g e ó g ra fo s buscam com p reen d er a força da religião m o d ifica n d o a paisagem , com o na posição possibilista da Es cola V id a lin a d e G eogra fia e, particularm ente, na Escola de G e o g ra fia C ultural d e Sauer. Exceção se pode fazer ao * P r o fe s s o r A d ju n to d a UERJ.
119
0 S AGRADO E 0 E S P A Ç O
E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S
trabalho de
D E F F O N T A IN E S
(1948), que exam inou os sig
nificados sim bólicos da casa em term os religiosos.
D u r k h e i m (1968), W e b e r (1964), E l i a d e (1959 e
1962), B O U R D IE U (1987) e BERGER (1985) são autores
A partir da década d e 1960, a geografia da religião d e
fundamentais em razão da grande influência q u e têm nos
senvolveu-se, con form e verifica-se nos estudos, entre ou
estudos sobre religião nas ciências sociais. Acreditamos que
tros, de
o desenvolvimento pleno da geografia da religião não possa
IS A A C
(1960),
SOPHER
(1967 e 1981) e
BÚTTNER
(1985). Foram valorizadas as relações recíprocas entre re li
prescindir d a contribuição, alternativa ou complementar,
gião e am biente, incluindo-se a análise da paisagem , o sim
d e cada um deles.
bolism o dos lugares sagrados e as práticas espaciais associa
O prop ósito deste capítulo é explicitar qu e o sagrado
(1996) apresenta uma propos
se m anifesta sob a form a de h ierofan ia no espaço (E LIA D E ,
ta para o estudo geográfico da religião. São quatro os tem as
1959 e 1962), revela-se com o um dom carism ático que o
propostos: difusão e área de abrangência da religião, os cen
o b je to ou a pessoa possui (W E B E R , 1964) e se im põe p o r
tros de peregrinação, território e territorialidade e p ercep -
e le m esm o (D UR K H E IM , 1968 e BERGER, 1985).
das ao sagrado.
R O SEND AH L
ção e vivência do espaço sagrado.
Baseado nestas idéias, com o tam bém nas d e T U A N
O presente artigo ob jetiva contribuir para o d esen vol
(1 9 7 8 ) e C LA V A L (1992), elaborou-se uma representação
vim en to da geografia da religião no Brasil, discutindo, p ri
diagram ática d a dim ensão espacial qu e o sagrado im p õe ao
m eiram ente, os con ceitos d e sagrado e profano, procuran
lugar. N a F igu ra 1 o espaço sagrado é o locus d e um a h ie
do enfatizar a dim ensão espacial associada. O sagrado e o
rofania, isto é, um a m anifestação d o sagrado, a qual p erm i
sim bolism o das form as espaciais são abordados a seguir. O
te qu e se d efin a um “ ponto fixo” , pon to d e toda a orien ta
sagrado e a vivên cia d o espaço são então considerados e,
ção in icial, o “ cen tro d o m undo” .
finalm ente, tecem -se algumas considerações sobre a gestão
O ritual da construção d o espaço sagrado im plica um d u p lo sim bolism o. Prim eiram en te na construção d o “ cen
religiosa do espaço sagrado.
tro d o m undo” , este se constitui em um referen cial, cu jo p re s tíg io está b em determ inado. E m segundo lugar, a
Os conceitos
construção d o espaço sagrado im p õe uma in terpretação sim b ólica da m aterialização d o centro. E com o to d o o
O tem a religião engloba um núm ero cada v e z m aior
espaço sagrado coin cid e com o cen tro do m undo, to d o o
de estudiosos na sociologia, antropologia, etnologia, filo so
te m p o d e qu alqu er ritual coin cid e com o tem po m ítico, in
fia, história, p sicologia e teologia. Qual a contribuição d e
illo tem p o re , em qu e ocorreu um ato cosm ogônico. N a
cada uma dessas ciências? Em que e com o os geógrafos
rep etiçã o d este ato ficam
podem se b en eficiar dessas contribuições?
120
121
EXP LORAÇÕES GEOGRÁFICAS
0 S A GRA DO E 0 ESPAÇO
“asseguradas a realidade e a duração de um a con stru ção, não só pela transform ação de u m espaço p ro fa n o n u m espaço transcendente, ‘o C en tro\ mas tam bém pela tran sform a çã o do tem po con creto em tem p o sagrado. ” (E l ia d e , 1959:33-34) É possível distingu ir dois elem entos fundam entais n o espaço sagrado: o “ p on to fixo” e o seu entorno. N o p rim e i ro, as form as espaciais existentes cum prem funções qu e estão diretam ente associadas à h ierofan ia m aterializada n o o b je to im pregnado d o sagrado. O entorn o possui os e le m entos necessários ao cren te para a realização d e suas p rá ticas e d e seu ro teiro devocional. E n fim , d efin e-se o espa ço sagrado com o um cam po d e forças e d e valores qu e e le v a o hom em religioso àcim a d e si m esm o, que o transporta para um m eio distinto daquele no qual transcorre sua exis tência. É p o r m eio dos sím bolos, dos m itos e dos ritos qu e o sagrado exerce sua função de m ediação entre o h om em e a divindade. E é o espaço sagrado, enquanto expressão d o sagrado, que possibilita ao hom em entrar em contato com a realidade transcendente cham ada “ deuses” nas relig iõ es politeístas e “ D eu s” nas m onoteístas. A experiên cia d o espaço sagrado se opõe à exp eriên cia d o espaço profano. E m relação a este aplicam -se as in terdições aos ob jetos e coisas qu e estão vinculadas ao sagrado, numa realidade diferenciada da realidade sagrada. C onstitui-se naquele espaço ao “ red or” e “em fren te” d o espaço sagrado. A través da segregação qu e o sagrado im p õ e à organização espacial e baseado em C o r r ê a (19 89 ), E l ia d e (1991) e RINSCHEDE (1985) é possível id en tifica r
123
E X P L O R A Ç Õ E S GE O G R Á F I CA S
0 S A GRA DO E 0 E S P A Ç O
o espaço profano diretam ente vinculado ao sagrado, o es
depen d en tes no tem po e no espaço. O espaço sagrado se
paço profano indiretam en te vinculado e o espaço p rofan o
rev e la não som ente através d e um a hierofan ia, mas tam
rem otam ente vinculado ao sagrado.
b ém p o r rituais d e construção, e, neste caso, os rituais
O sagrad o é p e r c e p t ív e l n a o rg a n iza ç ã o es p a cia l, n ã o
represen tam rep etições d e hierofanias prim ord iais con h e
s o m e n te p e lo s im p a c to s d e s e n c a d e a d o s p e lo s d e v o t o s n o
cidas. Assim , o espaço sagrado é um a p rodu ção in telectu al.
lugar, mas ta m b é m p e la fo r m a e s s e n c ia lm e n te in t e g r a d a
Sofisticadam ente ou não, o hom em organiza as forças da
e n tr e r e lig iã o e t e m p o . A e x p e r iê n c ia d o t e m p o nas d i f e
socied ad e e da natureza. A construção d o espaço sagrado,
r e n te s culturas é d e s e n v o lv id a p o r E L IA D E (1 9 9 1 ), q u e
n o tem p o sagrado, satisfaz as necessidades intelectu ais e
r e c o n h e c e q u e os fe n ô m e n o s r e lig io s o s se d e s e n v o lv e m
psicológicas. A m anifestação d o sagrado é um a realidade
n ã o só nu m e s p a ç o co n s a g ra d o , m as ta m b é m n u m t e m p o
qu e se exp rim e sob as form as sim bólicas qu e se d esen vol
sa grad o, “ n a q u e le t e m p o ” — in illo tem pore, ad o rig in e —
vem e se relacionam no espaço e no tem po.
e m q u e o ritu a l é r e a liz a d o .
Os fenôm enos religiosos se m anifestam num m om en to histórico e não há fato religioso fora do tem po. Para
O sagrado e o simbolismo das formas espaciais
E liade o tem po não é h om ogén eo nem contínuo; existem duas espécies d e tem po: o tem po sagrado e o tem po p ro fa
V ários autores sustentaram qu e as construções das
no. O tem po sagrado é o tem po das festas. É de natureza
form as espaciais são o resultado não apenas d e fatores
reversível, recuperável e rep etitível. É um tem po on toló gi
com o clim a ou topografia, mas são m oldadas pelas
co p or excelência. E m cada festa periódica reencontram os o m esm o tem po sagrado, o m esm o que se m anifestou na
“idéias de um a sociedade, suas form a s de orga n ização
festa do ano an terior e na festa de há um século (E L IA D E ,
econ óm ica e social, sua d istrib u içã o de recursos e au
1962). Já o tem po profan o revela-se com o a duração tem
torid a d e, suas atividades e crenças e valores que
poral ordinária, na qual ocorrem os atos privados d e sign ifi
preva lecem em q u a lq u er p e río d o de te m p o ” (K lN G ,
cação religiosa. Assim , o hom em religioso vive duas m oda
1972, p . 1).
lidades de tem po. A mais im portante é o tem po sagrado, no qual ele se rein tegra através da linguagem dos ritos,
U m dos mais im portantes tem as atualm ente em voga
perm itindo-lhe solução de continuidade da duração tem
en tre os geógrafos da religião d iz respeito aos significados
poral ordinária, introdu zindo-o no tem po sagrado.
da interação d e paisagem e lugar, de um lado, e o sagrado
A problem ática geográfica se expressa no âm bito da
d e outro. Assim , enquanto TU AN (1978) focalizou os luga
dimensão sim bólica d o sagrado, cujos elem entos são in ter
res sagrados e as necessidades im ediatas da im aginação
124
125
EXPLORAÇÕES CEOGRÁFICAS
0 S A GR A DO E 0 ES P A ÇO
h u m a n a , S H IL A V (1 9 8 3 ) a n a lisou o s im b o lis m o e a fu n ç ã o
separados dos residentes da cidade p o r algum tip o de
d a s sin a g o g a s s o b a in flu ê n c ia d a c o n tu r b a d a d is p u ta p o r
dem arcação. Entretanto, as cidades d o vale do N ilo e da
s o lo u rb a n o . C O O P E R (1 9 9 4 ), p o r sua v e z , in t e r p r e ta o s d i
A m érica não eram muradas.
le m a s d e id e n t id a d e r e lig io s a , p a is a g e m e lu g a r e m u m a p a r ó q u ia d e S u ffo lk n a In g la te r r a .
E xem plos clássicos d e cidades cerim oniais são encon trados em Teotihuacán, no M éxico, e Tíkal, na Guatemala.
A d efin ição d e um lugar sagrado refle te a p ercep çã o
E d ificações maciças, construídas sem uso aparente d e ins
d o gru po en volvid o. C om o o sim bolism o das form as espa
trum entos d e m etal, eram um a indicação da sofisticação
ciais varia d e grupo para grupo, d ificilm en te se p od e g en e
tecn ológica dos construtores qu e criaram uma paisagem
ralizar sobre os prin cípios da paisagem religiosa, apesar dos
urbana característica. E m Teotihuacán, o Tem plo d o Sol
geógrafos possuírem agora um viés explicativo m uito m ais
eleva-se a um a altura de sessenta e seis m etros (JACKSON e
am plo qu e no passado.
H U D M A N , 1990 ).
O sim bolism o cósm ico das cidades antigas estava no
Outras cidades cerim oniais com o Cholollán, M onte
con ju nto d o tem plo. N o in ício este era d e fácil acesso ao
A lbán, Tuia, Xochicalco, Tajin, C hichén Itzá e Tenochtitlán
p ovo, mas lentam ente fo i se am pliando a distância en tre o
caracterizavam -se p or sua organização interna específica.
te m p lo e o povo. O zigu rate na cidade d e Ur, dois m il anos
Estas cidades sugerem uma ordem espacial hierarquizada,
antes d e C risto, in icialm en te era mais acessível ao p ovo,
centrada no espaço sagrado. D irigid as p elo clero organiza
tom an d o-se inacessível. O zigurate possuía inúm eros sign i
d o e dirigentes diversos, essas cidades sagradas ou hierópo-
ficados sim bólicos. R epresen ta-o a rocha sólida qu e em er
lis eram assinaladas p or tem plos piram idais, pátios cerim o
gia d o caos; era a m ontanha que ficava no centro d o uni
niais, praças d e m ercado e terraços. As elites sacerdotais
verso; o tron o terren o para os deuses; o lugar m onum ental
organizavam as cidades em to m o do santuário que ligava o
para a realização dos sacrifícios; a escada que condu zia aos
p ovo ao m undo sobrenatural.
céus. O s zigurates foram durante bastante tem po um a fo r
D e acordo com B H AR D W AJ (1 9 9 1 ) os locais sagrados
m a arqu itetônica dom inante na M esopotâm ia, sendo um
hindus estão localizados às m argens de rios ou áreas costei
in dicad or para realçar o significado transcendental das c i
ras, refletin d o o fato do hinduísm o estar ligado ao caráter
dades. A expressão d o sagrado nas cidades m esopotâm icas
sagrado de grande parte da paisagem indiana. O autor nos
encontrava-se explícita nos santuários e nos tem plos.
forn ece uma hierarquia d e santuários que atraem peregri
N o vale d o N ilo e na A m érica pré-colom biana, as c i
nos estrangeiros e outros d e caráter local. Por outro lado, a
dades eram sem elhantes às encontradas na M esopotâm ia.
im portância sim bólica dos santuários indianos é estabeleci
Continham um centro religioso adm inistrativo — o tem p lo
da p o r tradição e não p or doutrina.
ou santuário — e um palácio para a classe govern ante, 126
O sagrado deixa um registro perm anente na paisa 127
0 S AG R A D O E 0 E S P A Ç O
EX PL ORA ÇÕE S GEOGRÁFICAS
gem . São recon h ecíveis d iferen tes form as m ágico-religio
pu lar d e M eca. A tu alm en te é um acon tecim en to altam ente
sas no espaço. As form as sagradas na paisagem cristã são as
organizado p e lo govern o árabe-saudita. A gências d e via
igrejas. A frequ ên cia a um serviço coletivo d e culto é extre
gens operam em vários países e há conexão dos vôos com
m am ente im portante no cristianism o, em contraste com
os ônibus destinados ao transporte d e peregrin os.
outras religiões nas quais há m en or necessidade d e um
P elos estudos desen volvidos p o r K lN G (1 9 7 2 ), SO-
lugar santificado para o culto. O islam ism o tem um espaço
P H E R (1967 e 1981) e JACKSON e H U D M A N (1 9 90 ), o as
para reunião com unitária na form a d e um a m esquita. N as
p e cto religioso da p eregrin ação a M e ca é m arcado p o r prá
religiões orientais, com o o hinduísm o, as form as sagradas
ticas devocionais bastante significativas para os m uçulm a
para o culto coletivo têm pouca im portância. N estes casos,
nos. A cerim ón ia m odern a no m ês d e D hu ’l-H ijja é a fusão
as funções religiosas m ais relevantes se realizam no lar,
d e duas cerim ónias anteriores, a hajj e o um ra, e tem p or
numa unidade fam iliar, enquanto os tem plos abrigam san
cen tro M e ca e o seu santuário, a Caaba. Algum as práticas
tuários a deuses particulares, em v e z do culto con gregacio-
religiosas exigem visita a lugares externos à cid ad e d e
nal. Já os pagodes, que forn ecem a form a sim bólica re lig io
M eca . P rim eiram en te o p eregrin o veste um a roupa espe
sa na paisagem budista, são ed ificações extrem am ente e la
cial, ritu alm ente lim pa, a ihran, e en tão p od e in iciar as prá
boradas e delicadas, projetadas para oração ou m editação
ticas tradicionais da peregrin ação. In clu i diversas cerim ó
individual, não sendo utilizadas para o culto congregacional
nias, com o visitar o recin to sagrado d e H aran, a perm anên
(L U B E IG T , 1987).
cia em A rafat, visitar o lugar d e m artírios e testem u nho e
N o interesse d e con h ecer o im pacto que o sagrado
ap ed rejar o satanás. É a mais im portante, a qu e exige que
im põe ao lugar e no arranjo das atividades humanas, sele
o p ereg rin o cam inhe sete vezes ao red o r da C aaba e b e ije a
cionamos quatro exem plos d e lugares consagrados ao exer
P e d ra N e g ra em sua parede. D e acordo com a tradição
cício da religião: M eca, cidade de peregrinação do islam is
islâm ica, a P ed ra N eg ra fo i en tregu e a A braão p e lo anjo
m o; Lourdes, um a im portante cidade-santuário do cristia
G ab riel.
nismo; Shikoku, lugar d e peregrin ação do budism o; e M u quém , centro religioso n o in terior do Brasil.
M e ca e Jerusalém são cidades-santuários qu e pos suem en orm e im portância p o r serem lugares d e origem de
A peregrinação anual a M eca ou H ajj é um dos m ais
relig iõ e s — M e ca para o islam ism o e Jerusalém para o cris
notáveis m ovim entos d e população no O rien te M éd io, ten
tianism o. H á lugares, contudo, em qu e a peregrin ação teve
do durado, sem interrupção, os treze séculos do islam ism o.
o rig em num a hierofan ia, e o lugar fo i então revestid o do
Constitui-se na prin cipal fon te d e renda para a região d e
caráter sagrado, com o em Lou rdes, na França. A cidade-
H ijaz, na Arábia Saudita “N ós não plantam os trig o ou sor
santuário d e Lou rd es está situada no sopé dos Pirineus
go, os peregrinos são nossas colheitas”, d iz um ditado p o
franceses, sendo a segunda cidade, na religião católica, d e
128
129
EXP LORAÇÕES GEOGRÁFICAS
0 S AG R A D O E 0 ES PA ÇO
p ois d e Rom a, p ela im portância d o fluxo d e peregrin os. A
A p r á tic a d e p e r e g r in a ç õ e s a lu gares sagrados pa ra
p eregrin ação te v e sua origem em 1853, a p artir da aparição
b e n e f ic io e s p ir itu a l e p a r a p r e s ta r h o m e n a g e m é c o m u m
d e M aria, m ãe d e Jesus C risto, à m enina chamada B em a-
t a m b é m n o b u d is m o . O g e ó g r a fo T A N A K A (1 9 8 1 ) analisou
d e tte Soubirous, nas grutas às m argens d o R io G ave d e
os s ig n ific a d o s s im b ó lic o s n o it in e r á r io dos p e r e g r in o s e d a
Pau. D esd e o sécu lo X IX a pequena cidade se tom ou um
t o p o g r a fia s a g ra d a das “ u n id a d e s ritu a is” esp a ço -tem p o ra is
cen tro con vergen te d e peregrin os católicos d e procedên cia
q u e se r e p e t e m e m c a d a u m a da s o it e n t a e o ito es ta çõ es d o
in icialm en te region al, depois nacional e finalm ente in ter
c a m in h o d e p e r e g r in a ç ã o , a o r e d o r d a ilh a Shikoku.
nacional. O fen ôm en o espacial da peregrinação a L ou rd es
A característica singular da peregrinação Shikoku é
d ife re da H a jj a M eca, mas as funções urbanas nessas cida
sua estrutura espacial. O s locais d e peregrinação surgem,
des-santuários, d e sistemas religiosos diferentes, apresen
declinam e às vezes se propagam . Tanaka explora essa na
tam um padrão com um d e atendim ento aos peregrin os. A
tu reza dinâm ica da p eregrin ação Shikoku, peregrinação
cid ad e se organ iza para os devotos. É preciso p rim eira
budista popu lar no Japão, exem plifican do os lugares de p e
m en te dar con dições d e acesso ao lugar sagrado e em se
regrinação e com o eles se estabelecem . Analisa a p eregri
guida alojar os peregrin os.
nação circu lar com o sistem a espacial-sim bólico, conside
P ou co a pou co as cidades-santuários m ultiplicam e m odern izam o acesso d e chegada dos peregrinos, bem c o
rando os vários ajustam entos espaciais que se verificam d en tro da peregrin ação.
m o constroem albergues m odestos e dorm itórios, ao lado
N a ten tativa d e relacionar religião e am biente através
d e luxuosos hotéis. E m Lou rdes há tam bém alojam entos
d o estudo da organização espacial dos centros de p eregri
especializados para peregrin os doentes. A cidade-santuário
nação d o in terio r d o Brasil, ROSENDAHL (1994a) analisou
d e L ou rd es com p reen d e o espaço sagrado da gruta, on d e
M uquém , no E stado d e G oiás. Trata-se d e um núcleo rural
hou ve a aparição e contém um a fon te d’água e locais d e
d e con vergên cia religiosa, predom inantem ente do catoli
banho, sobre os quais se construiu a basílica subterrânea.
cism o popular, nos quais o fen ôm en o religioso recria o es
O cen tro da gruta está situado nas partes oriental e sul do
paço sagrado p o r ocasião da peregrinação.
R io G ave d e Pau. R lN S C H E D E (1 9 8 5 ) descreve o arranjo
O p ovoad o d o M uquém no m unicípio de N iquelândia
Lourdes. E le reconhece as
revela, um a v e z p o r ano, a cada festa da padroeira, uma
seguintes divisões funcionais: área com hotéis, pensões e
organização singular e rep etitiva com um nos centros de
abrigos para doentes às m argens do R io G ave d e Pau, área
rom aria d e áreas rurais. N a F igu ra 2 o espaço sagrado é o
com prédios adm inistrativos pertencentes à igreja, no cen
lugar da santa, o lugar superior e não profano, onde ocorre
tro religioso, e área com o com ércio d e artigos religiosos,
visivelm en te o en con tro sim bólico da santa com o povo,
localizada na parte orien tal d o rio.
num contato d ireto, sem interm ediários. O espaço profano,
espacial das atividades em
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\
131
t Sj
E X P L O R A Ç Õ E S GE O G R Á F I CA S
0 S A G R A D O E 0 E S P A ÇO
na parte mais baixa d o terren o, é o espaço destinado ao com ércio e ao lazer, numa espetacular m escla en tre ce ri m ónia religiosa e atividades profanas. A missa, a procissão e o sermão d o padre representam a marca do sagrado o fi cial. A dança, as frequ en tes bebedeiras e as brigas testem u nham o profano. O espaço profano diretam ente vinculado ao sagrado consiste d o conjunto de atividades não re lig io sas e apresenta um a articulação com o sagrado. C om p re ende a área dos com erciantes e barraqueiros. Poucos geógrafos têm se interessado pelas consequên cias políticas acarretadas p e lo contexto da peregrinação ou p elo grupo d e peregrinos. Alguns eventos, contudo, tiveram efeitos políticos e foram ob jeto de investigação. D estacam se o estudo sim bólico-cultural em Madras, no p eríod o póscolonial, realizado p o r L E W A N D O W S K I (1984), o estudo sobre o sím bolo p olítico da Basílica de Sacre-C oeur em Paris, desenvolvido p o r H A R V E Y (1979), e a peregrinação do M anto Sagrado, no contexto p olítico d o plebiscito do Território do Sarre, abordado p o r A L L IS O N (1989). O estudo d e L E W A N D O W S K I (1984) m ostra com o, através do hinduísm o e seus sím bolos, fo i construída, no período pós-colonial, um a arquitetura urbana em M adras. A princípio, com o tentativa popular de se ligar ao seu pas sado para reviver e renovar as estruturas históricas e sagra das do p eríodo pré-colonial, reforçan do a identidade cultu ral da tradição hindu. Os investim entos aplicados pelos governos estadual e nacional serviram para a criação d e uma paisagem urbana que fosse ao encontro das necessidades d e seus cidadãos contem porâneos e tam bém contribuísse para sua próp ria 132
133
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
0 SAGRADO E O ES PAÇO
legitim ação p olítica. C om o parte do processo de mudança,
ép oca d e sua construção, era tam bém vista por muitos
realizou -se a troca d e nom es d e ruas, refletin d o agora sim
com o um a provocação para a gu erra civil, perm anecendo
b olicam en te os heróis populares do passado e do presente
h o je com o sím bolo p o lítico e religioso.
da ín d ia. F o i tam bém feita a construção de estátuas h om e
A L L IS O N (1989) exam inou a peregrinação ao M anto
nageando os escritores e figuras religiosas, em sua língua
Sagrado em 1933, em T rier, na Alem anha. Seu significado
clássica, o tâm il, numa substituição da influência colon ial
só p o d e ser com p reen d id o em term os da devoção popular
inglesa anterior.
p ecu liarm en te dupla qu e a m otivou e a im pregnou, com o
A história das lutas de classes no lugar sagrado está
R eich absorvendo em alto grau os benefícios. Seu efeito
registrada p o r H A R V E Y (1979), no m ovim ento d e constru
p o lític o e eficiên cia estão na d evoção popular religiosa e
ção da B asílica d e Sacre-C oeu r em Paris. D om inando
nacionalista, explorada para abrandar m edos e form ar no
estratégica e sim bolicam ente o alto da colina de M ontm ar-
vas op in iões no con texto p o lítico da época.
tre, a B asílica tem um a história atorm entada. C oncebida
Esses exem plos d e even tos d e devoção popular inse
durante a gu erra franco-prussiana de 1870-71, sua constru
ridos em com plexos históricos, aqui especificam ente p o líti
ção era vista p o r alguns com o um ato d e penitência p ela
cos, indicam qu e religiã o e p olítica ocorrem conjuntam en
d ecadên cia m oral d o im p ério napoleônico e pelos supostos
te num espaço e num tem p o específicos.
excessos da Com una d e Paris d e 1871. P or parte dos católi cos, um m ovim en to fo rte p ela construção da Basílica em função d o cu lto ao Sagrado C oração comandava a aprova ção d o p ro jeto. Finalm ente, em 1882, sua construção fo i
O sagrado e a vivência do espaço no catolicismo popular
term inada e consagrada. H arvey acrescenta em seu estudo qu e a B asílica esconde os segredos dos que lutaram contra
N os sábados e prin cipalm ente nas manhãs de dom in
e a favor d o em belezam ento d o local, e que o visitante qu e
go, os santuários receb em um grande núm ero de rom eiros
olha para aqu ela estrutura sem elhante a um mausoléu, qu e
que, na m aioria das vezes, corresponde à metade d e sua
é o Sacre-Coeur, pensaria no qu e está enterrado ali. O es
população residente. A organização espacial do centro re li
p írito d e 1789? Os pecados da França? A aliança en tre o
gioso é, em gran de parte, uma expressão da hierofania qu e
catolicism o intransigente e o m onarquism o reacionário? O
ali se realizou e qu e gerou a con vergên cia periódica e siste
sangue d e m ártires com o L ecom te e C lem ent Thom as? O u
m ática d e peregrin os.
o d e E u gen e Varlin e d e aproxim adam ente 20.000 partidá rios da C om una im piedosam ente massacrados com ele? A Basílica, enquanto evocava respostas políticas na 134
E xiste um a realidade na paisagem religiosa; e la é essencialm ente visível, porém , para explicá-la, é preciso apelar para os fatores invisíveis presentes nas práticas re li 135
0 S A GR A DO E 0 E S P A Ç O
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
giosas. Os rom eiros realizam um a com binação d e ativida
O com portam en to do rom eiro no espaço sagrado
des religiosas que, p ela sua repetição habitual, con ferem
consiste em dar qualidade nova ao qu e é declarado, d eseja
um a fisionom ia próp ria aos centros religiosos. Essas p ráti
d o e consagrado. Espera-se a m udança das coisas profanas
cas religiosas possuem um roteiro mais ou m enos preesta
para a esfera d o sagrado. Assim é possível recon h ecer atos
b elecid o na p ercepção hierárquica do p eregrin o de v iv e r o
religiosos e práticas religiosas. O s atos da vid a religiosa são
sagrado no espaço e n o tem po. Tentar-se-á desvendar os
os tradicionais, realizados p o r especialistas d o sagrado —
sím bolos do im aginário popular com o m ais um m eio d e
padre, pastor, freiras e outros. Práticas religiosas são rig o
conhecim ento do sagrado no espaço através dos atos com -
rosam ente pessoais (M A U S S , 1979: 1 3 7 ), não são rep e titi
portam entais d e visitar a im agem e segu ir a procissão, a
vas, não estão subm etidas a qu alqu er regulam entação.
bênção d’água e a bênção da saúde, “ fazer” e “pagar” p ro messas e assistir à missa e participar dos atos religiosos.
A o geógrafo da religião cabe valorizar as diversas manifestações de espontaneidade do devoto e da criativi
Os ritos d e benzedura são considerados eficazes p o r
dade hum ana em suas atividades no centro religioso. P r e d
qu e recolhem , para dentro do crente, os m itos, os sím bo
(1 9 8 9 ), a partir das ideias de H ãgerstrand, evoca a rep re
los, os gestos e as falas sagradas. Variando d e cultura para
sentação gráfica não-linear com o objetivo d e cham ar aten
cultura, a eficácia da benzedura encontra na linguagem um
ção para os múltiplos significados da vida social. O autor
sentim ento lógico qu e vai ao encontro d e suas necessida
argum enta q u e tal representação é capaz de “ca p tu ra r
des. Juntamente com a bênção, a p rece m erece atenção.
sim ultaneidades e conjunturas que podem fa cilm e n te esca
Para MAUSS (1 9 7 9 ) é o ponto d e con vergên cia d e um gran
p a r á lin gua gem lin e a r ’ (GREGORY, 1994: 2 4 8 ).
d e número de fenôm enos religiosos. O autor acrescenta:
Segundo os argumentos de Pred , òptou-se em realçar a vivên cia d o peregrin o no santuário ou hierópolis. F ie l ao
“A prece p a rticip a ao mesm o tem po da natureza d o
em p írico elaborou-se o gráfico d e perm anência d o rom eiro
rito e da natureza da crença. É u m rito , pois ela é
no espaço-tem po sagrado (F igu ra 3). É a reconstrução plena
uma atitud e tom ada, um ato realizado diante das c o i
d o roteiro devocional d e um crente num centro religioso.
sas sagradas. E la se d irig e à divind ade e à in flu ên cia ;
A ida ao santuário tem seu in ício na saída d e sua resi
ela consiste em m ovim entos m ateriais dos quais se
dência, que ocorre, na m aioria das vezes, p ela m adrugada.
esperam resultados ” (1 9 7 9 : 1 0 3).
As em oções qu e orientam este trajeto, as vivências na es trada, ao lo n go da viagem , fazem parte da rom aria. É um a
Tem os aí uma visão particularm ente favorável de m anifesta
litu rgia pop u lar que se estende até a chegada ao espaço
ção da fé que en volve o d evoto num m om ento religioso
sagrado d o santuário, que ocorre aproxim adam ente às 6
bastante comum no espaço sagrado dos santuários católicos.
horas da manhã.
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0 S AG R A D O E O E S P A ÇO
EXPLORA ÇÕES GEOGRÁFICAS
M esm o quando não vai para participar das cerim ónias religiosas, o rom eiro declara qu e v e io pagar promessa;
F i g u r a 3: A P e r m a n ê n c ia d o R o m e ir o no
C e n t r o R e l ig io s o
algum as vezes não se considera católico e afirm a não gostar d e padres. M as fa z prom essa sem pre que precisa; “ Sem pre
h
sou aten did o e vo lto para pagar” . Sendo assim, a Sala dos M ilagres é visita ob rigatória para a m aioria dos devotos; o fluxo m aior d e rom eiros é p ela manhã, e m enor à tarde. N o que se re fe re à alim entação, os rom eiros trazem um lanche d e casa ou fazem as refeiçõ es em restaurante ou um a lig eira refe iç ã o na lan ch on ete da igreja. A perm anên cia no Santuário é fortem en te m arcada pela religiosidade, m esm o na h ora d o com ércio e d o lazer que o d evoto exer ce n o espaço profano. N os santuários localizados em áreas rurais a perm a nência dos rom eiros no espaço sagrado é m aior no tem po d e festas d o qu e nos fins d e semana. Já nos centros religio sos d e área urbana os rom eiros são “peregrinos d e um dia” (R IN S C H E D E , 1985: 201), isto é, perm anecem no Santuário
d e seis a sete horas: chegam p ela manhã, assistem à missa e visitam a cap ela original, na qual está a im agem m ilagrosa O roteiro d evocion al atinge ali, n o lugar sagrado, o seu pon to alto. A p ós perm an ecer em um a fila, quase sem pre longa, o d evoto se aproxim a da im agem , toca-a, faz suas orações e sai da capela. A s poucas horas d e perm anência dos rom ei m j
ros no Santuário são vivenciadas com grande intensidade,
E s p a ç o S agrado E s p a ç o P ro fa n o D ir e t a m e n t e V in c u la d o
ITiVl E s p a ç o P ro fa n o In d ire ta m e n te V in c u la d o I
I E s p a ç o P ro fa n o R e m o ta m e n te V in c u la d o
roteiro devocional
num com portam en to ch eio d e fé , piedade e devoção. A
d o romeiro
razão prin cipal das peregrin ações é a devoção. O espaço-tem p o d o rom eiro representa a vivência de
O rg a n iz a d o p o r R o s e n d a h l , Z .
sua prática d e seus atos religiosos. Assistir à missa, fazer a
B a s e a d o e m P r e d (1 9 8 9 ) e R i n s c h e d e (1 9 8 5 )
confissão e rec e b e r a com unhão, num a vivência com o sa-
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139
0 S A GR A DO E 0 E S P A Ç O
E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S
grado oficial, são realizados p elo rom eiro no espaço sagra
O fluxo de retirada do centro religioso ocorre p o r v o l
do. G eneralizando, pode-se d izer que 90% dos rom eiros
ta d e 14 horas para alguns devotos. O utros retom am ao
reproduzem no Santuário a vivên cia do catolicism o p op u
espaço sagrado para a últim a bênção ou para se d esp ed i
lar, com seus rituais religiosos, no ato d e agradecer ou "p a
rem d o lugar sagrado. As 18 horas não é com um encontrar
gar promessas” . A vivên cia do sagrado, para esses rom eiros,
p eregrin os na área. O espaço sagrado é restrito aos m ora
está expressa num cód igo p róp rio produ zido p elo im aginário social em suas relações reais entre o d evoto e o santo.
j
dores ou à com unidade religiosa qu e fech a a igreja. A p artir da contribuição de E
l ia d e
(1991), R O S E N -
A diversidade das m ercadorias não religiosas coloca
D A H L (1994b) eviden cia a recriação d o espaço sagrado a
das à venda revela que são, em sua m aioria, d e uso pessoal,
cada tem p o sagrado pelos rom eiros que, ao realizarem suas
e estão integradas à cultura local, poden do com p reen d er
práticas, reorganizam o espaço. A F igu ra 4 m ostra a pulsa
tipos de vestuário, alim entação típica do lugar, utensílios
ção d o sagrado, na hierópolis d e P o rto das Caixas, no R io
com um ente usados nas residências, entre outros. São o b je
d e Janeiro, em três m om entos. N o tem p o com um , o espa
tos tradicionais, já fazen do parte d o im aginário religioso
ço sagrado reduz-se ao pon to fixo e seu entorno. A cada
católico, com o as im agens do santo padroeiro, os terços, as
fim d e sem ana o espaço am plia-se, ocupando, sobretudo, a
medalhas, crucifixos, livretos das ladainhas e santinhos. E s
fren te da igreja e a m a próxim a. Nas festas da padroeira, o
ses objetos, em sua m aioria, sim bolizam o lugar, e o m otivo
espaço sagrado dilata-se mais ainda, incorporan do p arte d o
da sua aquisição é sem pre o m esm o: “ levar com o lem bran
espaço profano.
ça do lugar” , “ colocar o santo em m inha casa” ou “levar co m igo a recordação do lugar” .
A credita-se que a percepção d o rom eiro que visita o lugar sagrado representa uma necessidade d o exercício da
O consumo do sagrado é uma característica singular
religião, que som ente ali p od e concentrar sua atenção, e ex
nas cidades-santuários e independe da localização do espa
prim ir, sob form as sim bólicas, seu relacionam ento pessoal
ço sagrado, podendo ocorrer no Santuário d e Fátim a, em
com D eus. O lugar p od e ser o m esm o, mas a concepção
Portugal, no espaço sagrado de Lou rdes, na França, no Va
sim bólica p od e variar entre os m oradores e tam bém en tre
ticano, na Itália, ou m esm o nos espaços sagrados brasilei
os peregrin os. E le está sem pre m udando d e significado, na
ros de Canindé, no Ceará, M uquém , em G oiás, e Santa
m edida em que cada grupo social lh e atribui valores d ife
C ruz dos M ilagres, no Piauí, e outros. A pesar das d iferen
renciados aos elem entos do espaço. A esse respeito, afirm a-
ças sociais e culturais qu e esses centros possuem , o com ér
se qu e cada lugar possui um a com binação singular d e variá
cio do sagrado é realizado com os artigos religiosos da m es
veis, dessa form a indicando que os elem entos variam e
ma natureza, sendo o sagrado com ercializado de form a
m udam d e valor segundo um tem po espacial próprio.
integrada com o sistem a religioso católico universal. 140
141
••cOfciíAL
RJL-i.::'
•
DO
0 SAGRADO E 0 ESPAÇO
E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S
Gestão religiosa do espaço: territorialidade católica
F i g u r a 4: E s p a ç o Sa g r a d o n o s D iv e r s o s T e m p o s Sa g r a d o s e m P o r t o d a s C a ix a s
N o Brasil, os m istérios da fé cristã foram introduzidos oficialm en te p elos portugueses, não só através da interven ção d o E stado, mas tam bém das ordens religiosas e pela ação dos colonos. O com p lexo processo de ocupação do espaço b rasileiro, fe ito em etapas e valorizando áreas em m om entos distintos, perm itiu qu e o catolicism o no Brasil assumisse características próprias, bastante distintas do ca tolicism o europeu. N o Brasil colonial, a participação bas tante acentuada das irm andades nas igrejas e o predom ínio do aspecto d evocion al dos fiéis, expresso através de rom a rias, das prom essas e ex-votos, das procissões e festas d edi cadas aos santos, dão um caráter em inentem ente social e popular ao catolicism o brasileiro. D estaca-se no século X V I a atuação dos missionários jesuítas e franciscanos na conquista e ocupação do litoral brasileiro, b em com o a fo rte atuação, principalm ente dos jesuítas, n o estab elecim en to d o sistem a colonial português no país. A s rom arias nesse século foram incentivadas pelos religiosos e tinham um a fin alidade missionária de cateque se e de evan gelização d o país. D urante os séculos X V II e X V III, as romarias, princi palm ente n o in terio r d o país, nasciam espontaneam ente da O Espaço Sagrado no g g
50
lOOm
T e m p o Sagrado d e 2 * a 6.“-feira na igreja
piedade p op u lar e se desenvolviam com ampla liberdade de expressão p o r parte d o povo. As devoções surgem do povo. As im agens eram encontradas p o r pescadores, ín
132 T em p o Sagrado em fim de semana T em p o Sagrado na Festa d o Padroeiro
Organizado por R o s e n d a h l , Z.
dios, aventureiros, e o aspecto m ilagroso da aparição da im agem eviden ciava a vontade divina que escolhera esse lugar para ser destinado ao culto. O p ovo constrói, assim, o
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143
UEASA
i c l ECMGLG-í-y *
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
0 S AG R A D O E 0 E S P A Ç O
espaço sagrado, realizando com ilimitada liberdade seus
cism o oficial. C ada santuário possui um conjunto de rep re
cultos religiosos (HOONAERT, 1984).
sentações e práticas religiosas desen volvidas p e lo im aginá
Durante o século X V III, a expansão dos santuários
rio popu lar com um à com unidade local. Essas representa
coincide com a grande corren te m igratória de aventureiros
ções e práticas representam o sincretism o dos sím bolos re
portugueses e brasileiros em direção a M inas G erais e d e
ligiosos introdu zidos no B rasil pelos m issionários portugue
mais regiões m ineiras. O qu e caracteriza a form ação dos
ses e p o r alguns sím bolos religiosos indígenas e africanos.
santuários nesse século é a ausência das ordens religiosas
R epresen tam um trabalho anónim o e c o le tiv o d e um grupo
clássicas que evangelizaram o litoral brasileiro: os francis-
hum ano e, com o tal, está necessariam ente condicionado ao
canos, os jesuítas, os beneditinos e os carm elitas. O m ovi
con texto socioecon ôm ico d o país. O reg im e d e padroado
m ento m issionário d o século X V III não fo i clerical e sim
vigo ra até a instituição da R epú blica, em 1889, quando fo i
leigo. Os santuários que surgem neste p erío d o represen
tam bém proclam ada a separação en tre Ig re ja e Estado. A
tam uma tentativa popular d e valorização da fé e da m oral
religiã o católica perm aneceu fortem en te leiga através da
católicas, em oposição aos m ales trazidos p e lo ouro. É nes
ação das confrarias e da ação individu al dos erm itões (O L I
se contexto socioecon ôm ico, que produziu luxo e p o d er
VEIRA, 1985).
para uns, e m iséria e opressão para outros, qu e o núm ero
As confrarias são associações religiosas nas quais se
d e ermidas ganha m aior im portância. Enquanto a m aioria
reúnem os leigos com a fin alidade d e con stru ir igrejas, rea
concentrava suas esperanças no garim po, em busca da ilu
liza r os cultos e p rom over a devoção dos santos. H á dois
sória riqueza, outros escolheram outra form a d e vida, radi
tipos principais d e confrarias: as Irm andades e as O rdens
calm ente contrária: foram os erm itões.
Terceiras. A s confrarias, tanto no p erío d o colon ial com o no
N o Brasil, tal m ovim en to é levado adiante p o r leigos
im perial, m antiveram sem pre um caráter m arcadam ente
que deixam a vid a m undana para viver no ascetism o e na
religioso e devocional. E ntretanto, algum as possuíam um
penitência ju n to a algum a erm ida. Às vezes, agrupam -se e
aspecto em in en tem en te social, exem p lificad o p ela Irm an
form am uma pequena com unidade. F reqiien tem en te cria
dade d a M isericórdia. P resen te no país desde o século
va-se uma confraria para ajudar o erm itão a cuidar da
X V I, m antém até os dias d e h o je um a fo rte atuação social e
erm ida e a acolher os rom eiros. Assim , no sécu lo X V III
religiosa. D eclin ou apenas na fase republicana, ao ser m ar
foram -se constituindo os santuários. C om o exem plo m en
ginalizada p ela Ig re ja oficial, sobretudo na segunda m etade
ciona-se o de Bom Jesus da Lapa, na Bahia.
d o século X IX , no m ovim en to d e rom anização no Brasil.
D o século X V I ao X V III, a génese dos santuários este
N a história dos santuários, a passagem d o controle da
ve associada aos sacerdotes e leigos unidos na devoção dos
Irm andade para o con trole dos bispos ocorreu, na sua
santos, predom inando o catolicism o popular e não o catoli
m aioria, com desavenças e brigas judiciais. N os centros
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145
i
E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S
0 S A G R A D O E 0 ESPAÇO
religiosos estudados, essa perda do p od er se deu de m od o
rais o processo d e rom anização não prevaleceu. Isoladas no
dram ático, prin cipalm en te para as Irm andades, o qu e é
in terior, dispersas, sem contato perm anente com o padre,
explicado p e lo m od elo urbano de adm inistração económ ica
p erm an ecem nas mãos d e agentes religiosos leigos. Os re-
que as Irm andades possuíam . Elas funcionavam com o v e r
zadores, beatos e capelães m antêm as práticas tradicionais
dadeiros bancos m odernos: em préstim os pessoais a ju ros e
d o catolicism o popular.
hipotecas, e com o “ c o fre ” para o com ércio local. Q uem
N o século X X , os bispos procuram assumir o controle
controlasse a Irm andade, controlava o com ércio e a vid a
dos centros d e irradiação d o catolicism o popular, pela
p olítica e econ óm ica d o lugar.
substituição da Irm andade p ela congregação religiosa eu-
U m exem p lo d e con trole e p od er é forn ecido p ela
rop éia na adm inistração dos santuários. Atualm ente, é atra
Irm andade d e N ossa Senhora d ’Abadia do M uquém , cu jo
vés da Pastoral dos Santuários que parte a diretriz rom ani-
presidente, José Joaquim Francisco da Silva, con hecido
zadora sobre a massa dos fiéis.
com o “T e rro r d o N o rte d e Goyas” , acum ulava as funções
É nessa estratégia geo grá fica de controle de pessoas e
de presid en te da Irm andade, m estre da L o ja M açónica d e
coisas qu e a instituição com plexa da Ig re ja C atólica Apos
São José, C om andante G era l da G uarda N acional da C o
tó lica R om ana d eve ser analisada. C ontém ela exem plos
m arca dos R ios das Alm as e M aranhão, com erciante, fa
com plexos d e territórios. SACK (1986:93) considera que a
zen d eiro e govern ad or d e São José d e Tocantins p o r 50
Ig re ja possui duas naturezas. A prim eira constitui um siste
anos (R O S E N D A H L , 1994b: 77).
ma abstrato d e fé e d e doutrina, originando a Igreja invisí
P ela história d o catolicism o popular no Brasil pode-se
vel; a segunda refere-se às instituições sociais da Igreja.
afirm ar qu e os centros religiosos se desenvolvem sem pre a
C om p reen d e seus m em bros, funcionários, regulamentos e
partir de dois m ovim entos paralelos: d e um lado, o p od er
suas estruturas físicas, d efin in d o a Igreja visível. E difícios
p olítico e/ou eclesiástico, qu e tenta conservar ou possuir o
da Ig re ja , propriedades, lugares sagrados, paróquias e d io
m aior con trole sobre os centros d e devoção, representando
ceses são lugares separados p o r lim ites, dentro dos quais a
as classes dom inantes da sociedade; do ou tro lado, o p ovo e
autoridade e o acesso são controlados, constituindo-se em
seus representantes mais significativos, que procuram d e
territórios.
fen d er suas práticas e crenças religiosas: são os oprim idos e dom inados (HOONAERT, 1984).
A Ig re ja C atólica Rom ana reconhece e controla vários tipos d e territórios, mas focalizar-se-á apenas um: os cen
O século X X não d ifere m uito do anterior. O processo
tros d e peregrin ação d o catolicism o popular no Brasil. Sa
de rom anização, que incluía a substituição das devoções
be-se q u e todos os lugares sagrados não são igualm ente
tradicionais pelas novas devoções, m ostrou-se bastante e fi
santos ou sagrados para os católicos. Algumas igrejas são
caz nas paróquias urbanas. Entretanto, nos santuários ru-
mais sagradas, pois são consagradas a um evento m iraculo-
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147
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
0 SAGRADO E 0 ESPAÇO
so. N os santuários a dinâm ica espacial do p od er religioso
Trata-se d o C onselho d e R eitores d e Santuários d o Brasil,
p od e ser apreendida se considerarm os o espaço sagrado
que fa z parte d o C onselho N acion al dos Bispos do Brasil.
com o centro de gestão religiosa e territorial.
C om p õe-se das aplicações norm ativas d o C ó d igo d e D i
N o processo d e form ação d e um espaço sagrado reco
reito C an ón ico e das D iretrizes da Pastoral dos Santuários.
nhece-se três fases hierarquizadas d e con trole d o sagrado.
N esta fase, o p od er d e con trole e decisão não é local e sim
Estas fases, contudo, p odem oco rrer em m om entos distin
central. O p o d er religioso local, qu e na realidade é “ fran
tos do tem po em pírico, ou duas fases podem ocorrer no
qu iado” a um a C ongregação qu e o adm inistra, está integra
m esm o tem po. Assim , um santuário p ode, p or exem plo, si
d o à “ red e ” d e santuários, que atinge espaços sagrados
tuar-se numa fase, enquanto outro p od e situar-se em outra
m ultilocalizados. P od e-se im aginar um aglom erado d e san
fase. Vejamos, agora, a p rim eira fase. O p od er d e con trole
tuários nacionais e internacionais integrados e que fu n cio
e decisão das atividades religiosas e sociais d o Santuário
na harm onicam ente, segundo d iretrizes ditadas p ela sede
estava ligado ao p od er da Irm andade local. N esta fase, o
— o Vaticano. C om o exem plo dessa terceira fase m encio-
controle adm inistrativo do sagrado é local. E xem plifica-se
na-se, en tre m uitos, o Santuário d e Jesus C ru cificado d e
com o Santuário de N ossa Senhora da G lória d o O u teiro
P o rto das Caixas, M u n icíp io d e Itaboraí, no R io d e Janeiro
(1739-1996), na cidade do R io de Janeiro. O p od er d e con
( R o s e n d a h l , 1 9 9 4 b ). N es te sentido, o refe rid o Santuário
trole e decisão religiosa é da Im p eria l Irm andade d e Nossa
tem um sign ificado qu e não se dissocia d o p apel qu e
Senhora da G lória do O u teiro.
desem pen ha numa red e d e lugares sagrados, controlada
A segunda fase da gestão religiosa é caracterizada
p ela S ed e O ficia l localizada no Vaticano.
p elo im pacto da perda da autoridade p ela Irm andade local, passando o con trole e decisão d o sagrado a p erten cer ao padre diocesano. Essa perda, na m aioria das vezes, en volve
Considerações finais
conflitos nas relações en tre a Irm andade e o padre diocesa no e concentra-se nos bens m ateriais que a Ig re ja possuía e
O geó gra fo quando estabelece com o ob jeto central d e
eram administrados p ela Irm andade. C om o exem plo de
sua análise a religião, encara-a sob a dim ensão espacial. E
santuário d e gestão religiosa diocesana m enciona-se o
para realizar sua pesquisa reconstrói teoricam en te o papel
Santuário d e Nossa Senhora d ’Abadia do M uquém , em
d o sagrado na recriação d o espaço, reconhecendo o sagra
Goiás, administrado p e lo bispo da C idade de Uruaçu.
do não com o sim ples aspecto da paisagem , mas com o e le
A terceira fase da gestão religiosa é m arcada pelas
m en to d e produção d o espaço. E talvez seja nas hierópolis
articulações entre os santuários e o processo d e gestão que
que, m ais nitidam ente, o sagrado esteja m aterializado atra
os integram em um p od er superior, com sede em Brasília.
vés d e form as espaciais. O rom eiro ou p eregrin o é o agente
148
149
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
0 SAGRADO E 0 ESPAÇO
m o d e la d o r d o e s p a ç o , é o a g e n te s im u lta n e a m e n te p r o d u
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153
IM A G IN Á R IO PO LÍT IC O E TERRITÓRIO: NATUREZA, REGIO NALISM O E REPRESENTAÇÃO In á Elias de Castro
Introdução C onsiderar im agin ário p o lítico e território com o ter mos qu e possam articular-se coeren tem en te numa discus são acadêm ica d eco rre da acepção m ínim a da política co m o con trole das paixões humanas e d o território com o o suporte m aterial para a convivência, necessária à liberação da en ergia in eren te àqu ela pulsão. O im aginário social, por sua vez, é o cim en to dessa coerên cia p or tom ar visível e in terp retável os sim bolism os presentes nas relações dos hom ens en tre si e com o seu m eio, os quais m aterializamse nos d iferen tes m odos d e organização sócio-espacial. É neste sentido que im aginário p olítico, território e natureza encontram -se entrelaçados em situações concretas, expli cando algum as das questões-chave, tanto da representação territorial da p olítica com o o sentido dos seus discursos e das bandeiras regionalistas. D esse m odo, a resposta ao desafio de com preender o 155
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
IMAGINÁRIO POLÍTICO E TERRITÓRIO
m undo em que se colocam os geógrafos requ er tam bém
que com p õem o im aginário, o espaço é ao m esm o tem po
considerar a força dos sím bolos, das im agens e d o im aginá
con tin en te e conteúdo dos seus signos e sím bolos. N o
rio com o parte integrante dos conteúdos da disciplina.
entanto, p o r se tratarem d e relações humanas, as “paixões”
Constituindo a base das representações que orientam as
a elas inerentes lh e con ferem dim ensão política. Assim , o
direções das ações dos hom ens sobre o espaço, o dom ínio
im agin ário social desdobra-se em im aginário p o lítico e,
do sim bólico possui um in egável valor explicativo. M ais d o
am bos, p o r sua m atriz espacial e p o r serem inform ados
que fonte de sobrevivência, a terra é um registro sim bólico
p ela geo gra fia dos lugares, encerram em si o im aginário
p or excelência e, apesar d e a racionalidade m oderna te r
geográfico.
conquistado os espaços objetivos das relações sociais, as
Assim , m ais d o qu e um a preocupação em buscar um a
representações perm anecem nos dispositivos sim bólicos,
d efin ição d e im agin ário geográfico fren te à acepção d e
nas práticas codificadas e ritualizadas, no im aginário e em
im agin ário social, o o b jetivo aqui proposto é duplo. P ri
suas projeções.
m eiro, argum entar em favor da inseparabilidade entre im a
Esta é certam ente um a questão para a geografia na
ginário, p olítica e territó rio ; segundo, apontar as possibili
m edida em que ela é conhecim ento do espaço, mas tam
dades em píricas d o con ceito d e im aginário para a com pre
bém um m odo d e vê-lo, d e interpretá-lo e d e codificá-lo,
ensão das form as d e apropriação d o espaço p ela sociedade.
tanto através de seu discurso acadêm ico com o p or in ter
Trata-se d e p ro p or o inverso d o que há m uito tem po têm
m édio de seus avatares nos discursos do senso com um . P or
fe ito os antropólogos ao utilizarem os valores sim bólicos do
tanto, sendo a terra desde a aurora dos tem pos fon te de
espaço das sociedades com o um recurso em p írico funda
símbolos e de significados, o discurso geográfico, com eçan
m ental para com p reen d er o seu im aginário e con hecer os
do p or aquele contido nos relatos dos viajantes do m undo
form atos fundam entais da sua organização.
antigo até o dos intérpretes contem porâneos d o espaço glo
A u tilização dos conceitos d e im aginação, im agem e
balizado, contribui com sua retórica para construir e ali
im agin ário tem sido cada v e z mais frequ en te em diferentes
mentar o im aginário social. Portanto, se a interpretação des
linhas d e pesquisa geográficas, desde as incursões fen om e-
te imaginário é necessária para a construção d o conheci
nológicas da G eogra fia H um anística até as discussões sobre
m ento, a geografia, nada inocente no assunto, d eve m obili
as im aginações geográficas e a renovação da geografia cul
zar seus recursos intelectuais para participar desta tarefa.
tural. Sinal da p ertin ên cia d o tem a é a presença d o term o
C om o contribuição, este trabalho desenvolve-se em
im a g in á rio en tre as palavras da geografia qu e com põem o
tom o da id éia central da necessária interação entre a terra
dicion ário organizado p o r R oger B R U N E T (1992) e com o
e o hom em com o fundadora do im aginário social. M ais do
um capítu lo da en ciclop éd ia d e geografia organizada p or
que inspirador dos m itos e base da organização dos rituais
B A IL L Y e t al. (1995). A s abordagens geográficas dos p ro
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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
I M A G I N Á R I O P O L Í T I CO E T E R R I T Ó R I O
blem as relativos ao im aginário indicam a sensibilidade da
pectiva, a rígid a busca, na disciplina, d e fatores causais d e
disciplin a a este percurso nas ciências sociais, am pliando as
fin ia o con teú do explicativo dos fatos geográficos em fun
possibilidades em píricas d e utilização do con ceito, ainda
ção da possibilidade d e claras e objetivas relações de causa
p olêm ico e, durante m uito tem po, chasse gardée da filoso
e e fe ito , qu alqu er referên cia à im agem , sím bolo ou im agi
fia, da an tropologia e da sócio-linguística. C ertam ente é na
nário só m erecia status explicativo se subordinada à lógica
com petên cia geográfica sobre o espaço que reside sua con
o b jetiva da base m aterial, sendo esses conceitos natural
tribu ição ao debate e à elaboração d e novas questões que,
m en te decod ificad os com o ideologia. A incorporação des
d e um pon to d e vista acadêm ico, representem um avanço
ses con ceitos, em b ora ainda objetos d e polêm ica, através
tanto para o tem a em geral com o para a disciplina em par
da abordagem fen om en ológica da G eografia Hum anística
ticular.
contribuiu para am pliar a agenda tem ática e o cam po em
E m sua tarefa d e p rod u zir conhecim ento sobre o es
p írico da disciplina. N o entanto, o m om ento presente é im
paço, a G eogra fia funda tam bém um discurso sobre o espa
p ortan te p o r estim ular a busca d e novos percursos intelec
ço (B E R D O U L A Y , 1 9 88 ). M as qu em lhe d á sentido e consis
tuais para a explicação geográfica, que devem ir além tanto
tência, sancionando-o, é a sociedade, com suas contradi
da rig id e z d e um esquem a explicativo universal com o da
ções, pulsões, desejos, con flitos — em síntese, paixões; p o
flexib ilid a d e im aginativa e sensorial da corrente humanista.
rém necessariam ente contextualizadas no tem po e no espa
A necessidade d e as ciências am pliarem os lim ites explica
ço. N este sentido, com o a am bição de com preen der e ex
tivos m ais além da razão da m atriz iluminista, sem perder
p licar o espaço através d e um a racionalidade objetiva, com
d e vista o rigo r d o m étodo, revela-se nas críticas cada vez
a pretensão d e exclusividade na apreensão d o rea l e na ela
m ais ressonantes ao paradigm a cien tífico vigente, id en tifi
boração d e um discurso unívoco sobre ele, está epistem o-
cado p o r M O RIN (1996) com o da sim plificação, numa clara
logicam en te em crise, novos cam inhos, m esm o que p o lê
alusão à sua perspectiva d e qu e fenôm enos complexos pos
m icos, devem ser tentados.
sam ser reduzidos às suas causas mais simples. A contribui
E m seu percurso com o disciplina acadêm ica, a G eo
ção desta crítica está na possibilidade d e com preensão da
grafia tem incorporado conceituai e m etodologicam ente a
com plexidade dos fenôm enos pela incorporação dos con
sociedade, ou seja, o fa zer social e sua dinâm ica. P rision ei
teúdos d e suas significações sim bólicas, o que amplia o co
ra da razão ilum inista, a ob jetivid ad e necessária ao fazer
n h ecim en to para além d o dom ínio das causalidades con
cien tífico expulsava d e suas argum entações tudo qu e não
cretas, visíveis e objetivas.
tivesse existência concreta ou qu e não pudesse ser explica
Q uestões novas estão sendo colocadas para os indiví
do d e acordo com a razão, faculdade que tem o ser huma
duos e para a sociedade e, conseqiientem ente, para as dis
no d e avaliar, julgar, ponderar idéias universais. N esta pers-
ciplinas qu e se p rop õem am pliar o conhecim ento sobre a
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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
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dinâm ica e interação en tre am bos com o espaço. As im a
qu estões qu e se colocam para a agenda d e pesquisas da
gens, sua extensão vertical e horizontal, im põem conteúdos
geo gra fia contem porânea. N este sentido, d ize r qu e o espa
novos às ciências sociais p ela am pliação do m undo cotidia-
ç o g eo grá fico é o espaço da p olítica, apesar d e à prim eira
no, pela incorporação d e um novo cosmos (propiciado p e
vista p a recer uma banalidade, serve com o p on to d e partida
las pesquisas espaciais) no qual elas substituem os relatos
para um a discussão dos significados dos conteúdos p o líti
do cosmos dos antigos. H á uma nova dinâm ica das im agens
cos d o espaço e das m ediações dos conteúdos espaciais no
pela contínua produção d e sím bolos, tom ando mais num e
fa ze r p olítico . Se aceitam os com o d efin ição m ínim a d e es
rosos e com plexos os aparatos para sua produção. A lém
p aço “ o conjunto indissociável d e sistemas d e objetos e sis
disso, novos m odos d e apreensão e de vivên cia dos sím bo
tem as d e ações” proposto p o r M ilton SA N TO S (1996), p o
los produzem im portantes efeitos sobre o com portam ento
dem os acrescentar que há na id éia d e “ ação” um fo rte nexo
individual e coletivo; sobre a p olítica e o processo d ecisório
com portam en tal e decisional, o qu e nos p erm ite recon h e
e sobre o território, enquanto produto e continente — na
c e r q u e o espaço é b em mais que um a instância p olítica,
da passivo ou inocen te — d o conteúdo social.
sendo m esm o parte integrante da sua essência. A id éia d e
Todas estas questões apontam para a relação necessá
essência aqui é fo rte e, certam ente, vista com reservas nas
ria entre o im aginário e a epistem ologia. Prim eiro, o p ap el
abordagens não espaciais da política. P orém , com o nosso
heurístico do im aginário, cujos conteúdos sim bólicos das
p rob lem a é dem onstrar que espaço e p olítica são indisso
imagens, do im preciso, das contradições constituem desa
ciáveis, tentarem os progressivam ente elaborar e d efen d er
fios colocados à investigação científica, em qualquer cam po,
esse argum ento.
há m uito tem po. Segundo, e decorrência natural do p rim ei
P artin d o da p olítica com o um a palavra-chave e in do
ro, considerar conceituai e em piricam ente o im aginário
b em m ais além d o seu significado institucional, ou seja, a
constitui uma alternativa m etodológica para lidar com a
centralização da organização da vid a p olítica e social no
com plexidade dos fenôm enos geográficos; ou seja, com a
E stado, um a discussão mais abrangente d o term o d eve
m ultiplicidade das suas m ediações e dos seus símbolos, com
con siderar com o postulado que a p olítica funda a vid a
a incorporação explicativa d o não racional e d o em ocional e
social p ela possibilidade qu e ela o fe rec e d e con trole das
com o ressurgim ento do fenôm eno, rejeitado pelas ativida
“paixões” desencadeadas p e lo con vívio hum ano em co leti
des racionais desde o final d o século X V III.
vidades, qu alqu er que seja o núm ero d e seus integrantes.
O cam po das relações entre a política, com o con trole
E m outras palavras, com o a convivência humana é fon te
da ação individual e coletiva, e o espaço, com o continente
p oten cia l d e con flito, o sentido da p olítica é, justam ente,
destas ações em função da inserção territorial fundadora
estab elecer os seus lim ites. A p olítica é, portanto, o m eio
do fato político, revela um am plo e estim ulante lequ e d e
d e con trole das paixões; em bora progressivam ente encaste
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lada na esfera pública, perm anece tam bém com o regulação
A com preensão d e qu e um a form a duradoura de con
na esfera privada. N a realidade, o processo d e socialização
trole dos con flitos sociais requ eria um a clara e segura d eli
ao m esm o tem p o em que d iferen cia a espécie humana dos
m itação territo rial fo i a questão central d e O P rín cip e, de
anim ais, estab elece as condições para a liberação das pul-
M aquiavel. C ircunscrevendo o “p olítico” em seu caráter
sões mais caracteristicam ente humanas, que vão desde a
puro e irred u tível, M aqu iavel reconhece o caráter confli-
afetivid ad e e generosidade até o ódio, inveja e am bição. Se
tual d o corp o social e aponta a necessidade de controles
o dom ín io dos dois prim eiros estabelece as bases para a
legais e m orais (este term o tenta assim ilar a “idéia regula
p az e a cooperação, a intervenção de qualquer um dos
dora” con tida no seu con ceito d e v irtu ), mas volta-se para
outros três cria as condições para disputas. Esta p ersp ecti
uma realidade em pírica, na qual a fórm u la da base territo
va d e um con vívio ao m esm o tem po instituinte d o ser
rial para a estabilidade das condições para o exercício do
social e intrinsecam ente conflituoso constitui o paradoxo
p od er d o p rín cip e e da riqu eza da sociedade era funda
qu e funda a p olítica na esfera social.
m ental. Sua questão mais im portante era a divisão da Itália
O pensam ento p olítico m oderno, desde M aquiavel, passando p o r B odin, H obbes, Rousseau, tinha com o p ro blem a central a organização d e um sistema d e regras que perm itisse regular e con trolar os interesses, avatares das paixões humanas, de m odo duradouro. A o Estado M o d er no, com seu aparato institucional e legal de con trole, in d i vidual e coletivo, e de m onopólio da violência legítim a, tem cabido, há três séculos, a tarefa d e subm eter e estabelecer os lim ites dos con flitos sociais em recortes espaciais parti culares. E ste m od elo d e organização da vida social em E s tado territorial, dom inante na m odernidade, d eriva da in separabilidade entre espaço e sociedade e en tre sociedade e política. É preciso acrescentar aqui que o term o socieda
daqu ele tem p o em cinco centros de p od er: o Papa, Veneza, N ápoles, M ilã o e Floren ça, o que a tornava vulnerável, "sem um ch efe, sem ordem , batida, espoliada, dilacerada, invadida e suportando todos os infortúnios”. N a realidade, M aqu iavel tinha em m ente o novo fenôm eno das naçõesestado, com o a França, cuja unidade e autonomia conquis tadas con tra a dispersão feu dal e o p od er espiritual dos Papas encontravam -se em plen a consolidação. Para ele, fo rtu n a (acaso e oportu nidade) e v irtu (qualidade e prérequisito da lideran ça) são os dois pólos da ação política, que, em bora qualificativos humanos, são engendrados a partir da base territorial da ação.
de, além da acepção m ínim a de associação, contém tam
A discussão da inseparabilidade en tre espaço e p olíti
bém a id éia d e um balizam ento de espaço e d e tem po.
ca refere-se, portanto, à questão da violência fundadora
Portanto, cada sociedade está contextualizada p ela sua his
das relações sociais e à necessidade d e formas institucio
tória e p ela sua geografia; com o corolário, tam bém as rela
nais e d e recortes territoriais para o seu controle. Bem
ções políticas no seu interior.
mais antiga qu e os postulados d o Estado M oderno, esta 163
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perspectiva é encontrada em todos os pensadores p olíticos,
D o imaginário ao imaginário político
qualquer que seja a sua época, e fundam enta a existência d e um im a gin ário p o lítico , constituído no paradoxo da n e
O term o im aginário rem ete necessariam ente às suas
cessidade social d e estar junto e na latência do con fron to
raízes — - im agem e im aginação, e conseqú entem ente ao
gerado na satisfação desta necessidade. Para a discussão da
sign ificado corren te d e produ to da im aginação e, com o tal,
evidência do espaço com o referen te da ação política, pelos
sem possibilidade d e existência concreta, opondo-se à ex
seus conteúdos m ateriais e sim bólicos, e da política com o
p eriên cia com o fon te d o conhecim ento. E ste é o prim eiro,
decisão que configura o espaço é preciso recorrer a soció
e fundam ental, problem a d e atribuir ao vocábu lo um con
logos ou politólogos com sensibilidade espacial e a geógra
c e ito academ icam ente ú til fora das disciplinas que têm nas
fos com sensibilidade política. N o entanto, não é evid en te
im agens m entais e psicológicas seu ob jeto d e reflexão. N a
que as discussões contenham , d e form a acabada, os argu m entos úteis à proposta da análise da inseparabilidade con ceituai de espaço e política. É preciso extrair fragm entos para reuni-los nesta construção. C om o percurso m etodológico, optam os pela discus são conceituai d o im aginário social, que se desdobra em im aginário político, o qual p o r sua v e z se alim enta d o e realim enta o im aginário geográfico. C om o os term os im a gem , im aginação e im aginário têm hoje uma presença forte nos trabalhos geográficos, uma contextualização destes te r mos em relação às suas m atrizes intelectuais, m esm o que sumária, pode ser útil com o base d e referência. Nossa p ro
realidade, a tensão en tre im agem /im aginação e razão com o substratos d o conhecim ento e da busca da verd ad e é uma questão colocada para os grandes sistemas m etafísicos des d e a an tigu idade grega. A busca da verdade em Sócrates, passando p o r Platão e A ristóteles, estabelecia que a única v ia d e acesso a ela era a experiên cia dos fatos. A pesar d e P latão e seus seguidores considerarem o m ito um a possibi lid ad e para alcançar verdades indem onstráveis, graças a sua lin gu agem sim bólica e im aginária, as correntes racionalistas qu e renegavam a im aginação p or constituir fon te d e erros e d e falseam entos im puseram -se progressivam ente no pensam ento ocidental. Foram , então, com pletam ente excluídas dos procedim entos intelectuais, a partir do século
posta de trabalho é, portanto, a discussão do im aginário
X V II, todas as reflexões que não estivessem apoiadas na
p olítico e sua utilidade conceituai e em pírica para am pliar
exp eriên cia e na razão com o form a de acesso ao conheci
a agenda da geografia p olítica e avançar o conhecim ento
m en to verd ad eiro. A pesar d o dom ínio das correntes racio-
sobre o espaço geográfico, especialm ente seu desdobra
nalistas, a tensão en tre os dois conjuntos d e concepções
m ento em pírico representado p elo território.
filosóficas sobre as mais consistentes vias d e acesso ao con h ecim en to não desapareceu com pletam ente na m oder n idade ocidental.
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O p rim eiro desses conjuntos p erten ce à tradição ilu-
senciais em nossa relação com o mundo. Para esta relação,
m inista qu e desvaloriza a im agem e a função da im aginação
o im aginário, sendo função e produto da im aginação, in
p ela contradição entre im aginário e realidade concreta, que
corp ora e reconstrói o real. Trata-se, aqui, de p erceb ê-lo
só p od e ser apreendida p ela razão. A função da im aginação
com o substantivo, com o m ediação da realidade. (S A R T R E ,
é, justam ente, libertar-se da razão e, portanto, negá-la, d ifi
1980; V É D R IN E , 1990; B A L A N D IE R , 1994, 1997; C ASTO -
cultando a com preensão da realidade. D escartes, Pascal,
R IA D IS , 1997)
Spinoza, L eib n iz denunciavam a im aginação com o o fim d o
Tam bém os avanços da psicologia, especialm ente com
progresso d o conhecim ento, atribuindo-lhe as noções d e
F reu d , qu e apontou o papel decisivo das imagens com o
ilusão e fantasia, considerando-a o vazio da razão. A exclusi
m ensagens que chegam à consciência a partir do incons
vidade do m étodo proposto p o r Descartes com o único m eio
cien te, abriram cam inho para a revalorização da im agem ,
d e acesso à verdade científica, que invadiu tod o o cam po de
d o sim bólico, qu e na psicologia perm itiu, com Jung, o res
investigação d o saber verdadeiro, fo i decisiva no fortaleci
gate da im portância d o im aginário para além das referên
m ento d o paradigm a racionalista em todos os ramos da
cias à cultura ocidental, d e m atriz européia. A o identificar,
ciên cia m oderna. A im agem , produto d o devaneio, d o fal
em seu m étodo terapêu tico, os arquétipos, ou seja, as im a
seam ento da razão, fo i relegada à arte d e persuadir dos p re
gens psíquicas d o inconsciente coletivo, que constituem
gadores, dos poetas, dos pintores, sem jam ais te r acesso à
um a herança com um d e toda a humanidade, o discípulo de
dignidade d e uma arte d e dem onstrar (D U R A N D , 1994).
F reu d estabeleceu tam bém novos elem entos para a discus
O segundo, pode-se dizer, representa a herança p lató nica que, em bora d e m odo esporádico, fincou alguns ali
são e com preensão d o im aginário social fator de conheci m en to d o com portam ento individual e coletivo.
cerces para a crítica d o dom ínio da razão com o única fon te
As discussões acim a perm item uma prim eira tom ada
d e acesso à verdade. N o século X V III, K ant já elaborava a
d e posição conceitu ai d o im aginário com o a força atuante
resistência a um racionalism o dogm ático, fortalecid a no
da id éia e da representação m ental da im agem . N este sen
século X IX , prim eiro p ela reação rom ântica aos excessos
tid o, o im aginário constitui uma energia que se form aliza
do m ecanicism o e d o m aterialism o cartesianos e p osterior-
individual e coletivam ente, m aterializando-se em ações in
m ente p ela revolução filosófica do final d o século que res
form adas p or im agens e sím bolos (D U B O IS , 1995). D es
gatou a im agem , não apenas com o ob jeto d o con hecim ento
vendar o im aginário significa, pois, revelar o substrato sim
atual, mas com o todo ob jeto passível de um a representação
b ólico das ações concretas dos atores sociais, tanto no tem
(B E R G S O N , cf. SARTRE, 1984). N o século X X , com Bache-
p o com o no espaço.
lard e Sartre, im agem e im aginação são percebidas com o
E m síntese, o con ceito d e im aginário, enquanto subs
faculdad e de conhecim ento e estado de con hecim en to, es
tan tivo da im aginação produtora, ou seja, a mediação entre
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o mundo in terior e o exterior, entre o real e o im aginado,
IMAGINÁRIO POLÍTICO E TERRITÓRIO
d o en tão “ o im aginário esta conexão obrigatória, p ela qual
supõe a utilização de sím bolos, signos e alegorias. Se com o
se constitui toda a representação humana” , podem os acres
articulação en tre realidade, discurso e conhecim ento o con
cen tar qu e esta conexão se faz necessariam ente no espaço,
ceito de im aginário p od e ser em piricam ente útil, a extrem a
com o fo n te inesgotável d e signos e sím bolos d o im aginário
confusão no uso de term os a e le relacionados, pela desvalo
social. D e v e ser acrescentado, p orém , que não há unanim i
rização da im aginação nas correntes racionalistas do pensa
dade nas correntes qu e reconhecem a im aginação com o
m ento ocidental, tom a-o um con ceito de utilização sem pre
fo n te d e conhecim ento. Estas desdobram -se na p ersp ecti
polêm ica.
va d o sím bolo com o base da representação humana, com o
Não se trata aqui d e reproduzir a história e as reflexões
in d ica D urand, ou na im aginação com o ob jeto d e reflexão
sobre a polêm ica em to m o d o valor heurístico da im agem e
qu e não p od e ser exclu ído p ela razão, com o qu er Sartre,
da imaginação nos sistemas m etafísicos que têm , desde a
ou fo n te d e criação, psiquicam ente fundam ental, com o
antiguidade clássica, estruturado nossos paradigmas na bus
aponta Bachelard, ou ainda com Castoriadis, com o alterna
ca do conhecim ento através da ciência. Autores com o SAR-
tiva aos lim ites im postos p ela rigid ez explicativa d o m ate
T R E (1980); D U R A N D (1992, 1994); C AS TO R IA D IS (1991,
rialism o histórico e seu con ceito d e id eologia. M as, qual
1997); V E D R IN E (1990) já o fizeram , e m uito bem . N osso
q u er qu e seja a p erspectiva dada à questão, d eve ser ressal
objetivo, ao trazer fragm entos desta discussão, é argum entar
tada a posição de B A L A N D IE R (1997), para quem “ o im agi
em favor d o sim bólico e d o im aginário com o objetos d e
nário perm anece mais d o qu e nunca necessário, sendo d e
reflexão acadêm ica e com o possibilidade m etodológica d e
algum m od o o oxigén io sem o qual toda a vid a pessoal e
abordagem d o real, tam bém nas pesquisas em píricas qu e se
co letiva se arruinariam ” .
propõem a am pliar o conhecim ento sobre o espaço. Trata-
P o r tudo isto, tem sido cada v e z mais consensual no
se de alim entar o caudal das correntes geográficas qu e in
n ovo paradigm a cien tífico a incorporação da im agem , d o
corporam as representações sociais com o m ediações funda
sim b ólico e d o im aginário com o problem as que d evem ser
mentais ao conhecim ento da sociedade e do espaço, contri
considerados na busca d o conhecim ento. Paralelam ente,
buindo com a articulação necessária entre objetos concretos
tam bém o espaço com o ob jeto e com o continente/conteú-
e seus conteúdos sim bólicos, procurando com preender o
d o sim b ólico tem sido considerado nas pesquisas orienta
seu significado para a geografia.
das na d ireção desse n ovo paradigm a. Bachelard, cujas re
P a rtin d o d a p r o p o s ta d e D U R A N D (1 9 9 4 ) d e q u e t o d o
flexões ajudou a d elin ear este novo espírito cien tífico, res
p e n sa m en to h u m a n o é re p re s e n ta ç ã o , q u e r d izer, passa p e
gatou a im portância da im aginação e d o im aginário, argu
las m ed ia ç õ es sim b ó lica s e q u e n ão h á solu ção d e c o n tin u i
m entando sobre a referên cia fundam ental d e am bos à na
d a d e , para o h o m e m , e n tr e o im a gin ário e o sim bólico, sen
tu reza e ao espaço; estes com o com ponentes do psiquism o
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hum ano e com o referên cias obrigatórias para a com p reen
A lém dos elem en tos terrestres presentes nas re fle
são d o p on to em que se cruzam ciência e poesia, razão e
xões d o filósofo, tam bém o espaço é interpretado com o um
devaneio. E m sua interpretação do espírito cien tífico é
arqu étipo, com o um elem en to essencial da estrutura psico
incorporada a criatividade d o espírito p or via da im agina
lógica d o indivíduo. E m sua Poética d o espaço, são desven
ção, associada à experiên cia com a natureza e com o espa
dados os “valores d o espaço habitado” , “ o não-eu que p ro
ço, para um a contínua retificação dos conceitos e rem oção
te g e o eu ” . O espaço da casa constitui “ a concha protetora
d e obstáculos ep istem ológicos colocados p e lo ap ego à ex
e criadora d e im agens que perm anecem guardadas, escon
p eriên cia com o pon to d e partida absoluto.
didas nas profundezas da alm a humana” . O valor sim bólico
A pesar da sua rejeição in icial das im agens p e lo risco
d o espaço está con tid o na sua proposta de pesquisar a
das m etáforas enganadoras qu e elas im plicam , B achelard
to p o filia para “d eterm in ar o valor humano dos espaços de
apontou, na fase final da sua obra, a im portância da im agi
posse, espaços p roibidos a forças adversas, espaços am a
nação, d esen volven do sim ultaneam ente um a dupla fen o-
dos” . A relação psicológica d o hom em com o seu espaço
m en ologia d o im aginário: na ciência e na poesia. In co r
encontra-se tam bém na base d e sua proposta de um a to -
porando o p ap el d o sim bolism o im aginário na representa
poanálise, ou seja, um estudo p sicológico sistem ático dos
ção à discussão dos lim ites d o debate en tre as corren tes
lugares físicos da nossa vid a íntim a. É im portante reter o
racionalistas e realistas, criticou a encruzilhada dos cam i
e lo a fetivo entre a pessoa e o lugar, ou am biente físico,
nhos en tre realism o e racionalism o que p rod u z o duplo
com o um com ponen te d o im aginário social e das paixões
m ovim en to p e lo qual a ciên cia sim plifica o real e com p lica
qu e constituem os alicerces das relações sociais. R ecor
a razão. Para o autor, a im aginação é dinam ism o organiza
ren do ao qu e fo i d ito no in ício, na política, quando paixões
d or e este é fator d e hom ogen eidade na representação.
transform am -se em interesse, tam bém a relação afetiva
Para ele, lon ge d e ser faculdade d e form ar im agens, a im a
com o espaço participa desta mudança. Ou seja, o espaço
ginação é p otên cia dinâm ica qu e “ deform a” as cópias prag
contém os sím bolos d o im aginário social e é um com po
m áticas fornecidas p ela percep ção (PE S S A N H A , 1 9 8 4 ). E sta
nente d ele, tanto em sua dim ensão em ocional com o m ate
últim a rem ete à representação, às suas m etáforas e aos
rial, e p o r isso um cam po d e disputas entre interesses p ri
seus sím bolos. Sua extensa obra sobre a m otivação sim bóli
vados d e indivíduos ou grupos.
ca contida nos elem entos terrestres — terra, fogo, água e
N a perspectiva d e qu e a realidade é criada p elo im a
ar — indica o caráter prim itivo, psiquicam ente fundam en
gin ário social e não um a m era representação das im agens
tal da im aginação criadora e o pap el im portante que a assi
com o reflexos d e um real distorcido, Castoriadis aprofunda
m ilação subjetiva jo g a no encadeam ento dos sím bolos e d e
a discussão entre im aginário e representação com o m eios
suas m otivações.
d e con hecim ento e abre novo cam po d e polêm ica, agora 17 0
171
E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S
I M A G I N Á R I O P O L Í T I C O E T E R R I TÓ R I O
tam bém nas hostes d o m aterialism o histórico. U tilizan do a
tóxicos recen tes” , em b ora as relações sociais reais sejam
im agem e a im aginação na proposta de um a nova perspec-
vistas sem pre com o instituídas p orqu e foram reconhecidas
tiva teórica para com p reen der o social, em oposição tanto
com o m aneiras d e fa zer universais, sim bolizadas e sancio
ao sono dogm ático do s er determ inado, contido no m ateria
nadas p elos seu rituais.
lism o marxista, com o à com preensão do im aginário com o
E m trabalho m ais recen te, Castoriadis vai ainda m ais
especular, com o reflexo e com o fictício, o autor p rop õe
lo n ge e retom a o con ceito de im agin ário social, d ifere n
com o conceito d e im aginário “ a criação incessante e essen
ciando a im aginação da im aginação ra dical. Esta ú ltim a
cialm ente indeterm inada (social-histórica e psíquica) d e fi-
sign ifican d o o im a g in á rio social in s titu in te é central para a
guras/formas/imagens, a partir das quais som ente é possí
sua reflexão. Para e le , a realidade o é p orqu e existe im a g i
v e l falar-se de algum a coisa. A qu ilo que denom inam os rea
nação ra d ica l e im a g in á rio in stitu in te. D efin in d o seus te r
lidade e racionalidade são seus produtos.” N esta perspecti-
m os, duas conotações são atribuídas à im aginação: a p ri
va, seu livro A in stitu içã o im aginária da sociedade, mais d o
m eira estab elece a conexão com a im agem , não apenas
que um projeto teó rico sobre a sociedade ou a história, é
visual, mas tam bém com a form a; a segunda relaciona-a
um projeto p olítico, pois tem o ob jetivo da elucid-ação críti
com a id éia, com a invenção, ou seja, com a criação, rep ro
ca da verdade, o que é indissociável d e um a finalidade,
du tiva ou com binatória. Seu con ceito d e im aginação ra d i
para a qual se p rop õe um a ação.
ca l op õe-se ao d e im aginação sim plesm ente reprodu tora e
Nesse p rojeto, preocupado com os sistemas sim bóli
sublinha a id éia d e qu e essa im aginação (rad ical) vem antes
cos sancionados que legitim am as instituições, o autor des
da distinção d o “rea l” e d o “im aginário” ou “ fictício ” . P ois
venda os ritos e sím bolos que instituem uma ordem sim bó
“ é p orq u e existe im aginação radical e im aginário instituinte
lica, sem se privarem da referên cia ao real, mas que se sa
qu e existe para nós realidade”. O term o im aginário é, pois,
cramentam no ritual. C om o um ritual é um a prática pauta
aqui um substantivo e se refe re diretam ente a uma subs
da em valores sim bólicos que organiza hierarquicam ente
tância, não se trata d e um ad jetivo denotando uma qualida
os símbolos de status e d e poder, o autor aponta que toda
de. P ara o autor a sede d o viés d o im aginário social insti
instituição, m uito além das instituições religiosas, em ten
tu in te é o coletivo anónim o e, d e m odo geral, o cam po
d o seu ritual não racional, existe no plano sim bólico. Sua
social h istórico (C A S T O R IA D IS , 1997). E m síntese, o im agi
reflexão é dirigida então para a com preensão, p ela socieda
nário d e qu e fala é então “ a criação incessante e essencial
de, da lógica sim bólica das suas instituições, tanto públicas
m en te indeterm in ada d e figuras, form as, im agens, a p artir
com o privadas, com o fatores que pesam na evolução da sua
das quais som ente é possível falar-se de algum a coisa ”.
organização, pois “a conquista da lógica sim bólica das insti
A q u ilo qu e denom inam os “ realidade” e “racionalidade” são
tuições e sua racionalização progressiva são processos his-
seus produtos, ou seja, a realidade é criada p elo im aginário
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173
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
I M A G I N Á R I O P O L Í T I C O E T E RRI TÓ RI O
social. Para o autor, p rivilegia r a im aginação e o im aginário
con vivên cia é ritualizada, com o nas festas religiosas ou p o
é, com o já fo i d ito an teriorm ente, p rop or despertar d e um
pulares, tem na proxem ia um con ceito fundamental. Este
sono dogm ático d o se r determ in ad o, é ser capaz d e p erce
rem ete às histórias vividas no dia-a-dia, a situações im per-
b e r a realidade histórico-social na sua dim ensão d e criação
cep tíveis qu e constituem a tram a com unitária, a trama da
continuada. A pesar da riqu eza das argum entações d e Castoriadis,
relação interindividu al, mas tam bém àquela que “ m e liga a um territó rio , a um a cidade, a um am biente natural que
é o com ponen te sim bólico das instituições sociais, necessa
p artilh o com ou tros” . E ste é o fundam ento d o territó rio -
riam ente conectadas com o espaço, cujos conteúdos d e fi
m ito e da estruturação d e um a m em ória coletiva (M AFFE
n em e delim itam seus rituais, qu e querem os reter com o
SOLI, 1987), retom ada d e variadas form as p o r filósofos e
recurso para o conhecim ento da realidade social e que nos
cientistas sociais. Assim , em sua análise do fato social, o
será ú til na com preensão da espacialização das sociedades.
autor apóia-se na perspectiva da p olítica com o controle das
D a m esm a form a, BOURDIEU (1989), com seu P o d e r s im
tensões in eren tes às relações sociais através da fo rç a im agi
b ó lic o , contribui para a discussão dos rituais institucionais e
nai existente em toda vid a em sociedade, tomando-a com o
seu peso n o processo decisório e nas diferen ciações sociais
pon to d e partida para com p reen d er a violência fu n d a d ora
e espaciais. Tam bém buscando alternativas à com preensão da d i
d e toda agregação social1 sem descartar, porém , os princí pios da territorialização das sociedades e sua influência no
nâm ica social para além dos m odelos explicativos únicos,
com portam ento e nas ações sociais.
MAFFESOLI, (1984, 1987, 1992) aponta o im aginário social
P orém , as paixões com uns ou o sentim ento coletivo,
com o força instituidora d o im aginário p o lítico e o espaço
presentes nas reflexões da filosofia política, fazem parte,
com o o lócus p o r excelência d o arm azenam ento e libera
para o autor, d e um sim bolism o geral, m ediante o qual a
ção desta energia. N a busca d e um m odelo explicativo da
com unidade é p arte integrante d e um vasto conjunto cós
dinâm ica social qu e ultrapasse a prisão da racionalidade
m ico d o qual ela é apenas um elem ento. É nesta perspecti
ocidental m oderna e d o determ inism o m ecanicista, o autor
va qu e M a ffeso li aponta o e lo fundam ental da política com
se volta para o qu e e le denom ina d e fo r ç a im aginai, m oral
o espaço, quando cham a a atenção para a origem ecológica
ou sim bólica, que constrange à submissão às regras sociais,
do p o d e r e d esd ob ra o argum ento do laço q u e se to m a
constituindo a pulsão que está na raiz da dim ensão m ental
lugar. Para ele, o espaço é um nicho, um abrigo no qual “ o
d o p olítico (M AFFESOLI, 1992), qu e d e certo m odo está na
portador d o p o d e r cristaliza a en ergia interna da com uni
essência d o argum ento d e L a B oétie sobre a servidão vo luntária. M as, esta força latente criadora nas com unidades
E m bora sua argum entação conduza ao p o d e r do nós fusionai, d e reações com -
d e seus espaços d e convivia lidad e, ou seja, aqueles onde a
P etamente im previsíveis, frente a instituição regulada contratualmente pelo Estado.
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E X P L O R A Ç Õ E S G E OG R Á F I C A S
IMAGINÁRIO POLÍTICO E TERRI TÓ RIO
dade, m obiliza a.fo rç a im aginai que a constitui e assegura
form a e sím bolo, é o con tinente que afeta o seu conteúdo
um bom equ ilíb rio entre esta e o m eio em to m o , tanto
social e é da m esm a form a afetado p o r ele.
social com o natural” . Sua discussão revela o enraizam ento
É possível, pois, p ro p or qu e tod o im agin ário social, da
cósm ico na essência da p olítica necessária a toda vid a em
m esm a form a que possui um fo rte com p on en te p olítico,
sociedade. Para o autor, em term os mais clássicos, não há
possui tam bém um fo rte com ponen te espacial p elo p o d er
política sem religião, esta no sentido original d e religa re,
sim b ólico atribuído aos objetos geográficos, naturais ou
no qual pessoas partilham um conjunto d e pressupostos
construídos, que estão em relação d ireta com a existência
comuns, recorrendo a M arx, que dizia que a p olítica era a
humana. E m outras palavras, tod o im agin ário social p od e
form a profana da religião, para reforçar seu argum ento.
revelar-se im aginário geográfico. A an trop ologia há m uito
D esse m odo, com o todo o sagrado que organiza seus espa
p erceb eu e estuda a profu nda relação en tre o m eio m ate
ços de culto a p artir de ritos e sím bolos que os d iferen ciam
rial e o im aginário. Para BALANDIER (19 97 ), “ o im aginário
dos outros, tam bém a p olítica sacraliza, a seu m odo, os
rep orta-se a espaços, p rod u z um a top ografia que lhe é p ró
espaços profanos da convivência social.
p ria e refle te , em bora transform ado, as relações que o ho m em estabeleceu com o espaço, onde o passado trouxe suas inscrições, dando assim um a m aterialidade à m em ória cole
D o Imaginário político ao imaginário geográfico
tiva” . O m useu im aginário d e que fala A n d ré M alraux é fru to desta m aterialidade, desta geografia transform ada, p re
Tam bém na geografia há um a forte consciência d o
sente n o im aginário dos povos (B a i l l y e F e r r a z , 1997).
p oder sim bólico d o território, estabelecido pelos seus con
A com plexidade da tarefa de com preen der o m undo,
teúdos m ateriais, p ela sua natureza, pela proxem ia , todos
nada sim ples, e a necessidade de p erceb er tanto os proces
portadores d e significados, algumas vezes m últiplos e id en
sos visíveis com o aqueles decorrentes da sim bologia dos
tificáveis pelos utilizadores dos lugares (BAILLY e DEBAR-
lugares, seus aspectos m íticos e suas conotações subjetivas
BIEUX, 1984). D esse m odo, o laço se to m a lu ga r p orqu e o
têm sido tam bém preocupação dos geógrafos. Afinal, o
im aginário p o lítico se tom a im aginário territorial e se ali
m u seu im aginário é com posto pelas im agens que a m em ó
m enta dele. H á aqui, portanto, uma forte in terd epen dên
ria lem b ra e reconstitui lo g o que uma m enção de um lugar,
cia sócio-espacial objetivada no im aginário social d e con
d e um m onum ento ou d e um a paisagem é feita (BAILLY e
teúdo político e territorial. Podem os, talvez, ousar e usar a
FERRAZ, 1997). Portanto, mais do que tentar qualificar em
fórm ula de Sim m el (C f. MAFFESOLI, 1992) da fo r m a f o r -
separado um im aginário geográfico, ob jeto d e estudo dos
m ante, que determ ina, lim ita, mas ao m esm o tem po tom a-
geógrafos, estamos diante da tarefa de interpretar a geogra
se (dá a ser). E m outras palavras, o território, enquanto
fia con tida no im aginário social, e expressa no próprio dis
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177
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
I MA G 1 N Á R I 0 P O L Í T I CO E T E R R I TÓ R I O
curso geográfico, com o um dos cam inhos para com preen
ção de um discurso que não é neutro, mas, ao contrário,
d er o p ap el que as representações do m eio desem penham
qu alifica o espaço e seus objetos, tom ando-os significantes,
nas práticas espaciais e na organização do espaço.
portadores de significados nas representações sociais. Con-
Reafirm am os, com o desdobram ento das discussões aci
seqúentem ente, este discurso expressa valores simbólicos
ma, que tod o im aginário social é tam bém im aginário geográ
que presidem a estruturação funcional d o espaço, com con
fico, porqu e, em bora fru to d e um atributo humano — a
sequências im portantes sobre a sua organização pela socie
im aginação — é alim entado pelos atributos espaciais, não
dade em função dos significados que lh e são atribuídos.
havendo com o dissociá-los. E m outras palavras, os objetos
A argumentação desenvolvida acim a sobre o valor sim
geográficos fazem parte do cotidiano individual e coletivo,
b ólico dos objetos geográficos, sobre sua importância nas
participam da prática social que lhes con fere valor sim bóli
representações sociais, aponta para o desdobram ento essen
co. A natureza — praias, rios, montanhas, florestas, campos,
cial de um im aginário geográfico contido no imaginário polí
planícies etc. — e as construções — ruas, praças, m onum en tos, bairros, quarteirões, cidades — transform am -se em im a gens, cam inhos e representações da alma coletiva. Estas re presentações geográficas constituem então um m odo d e ser, um m odo d e falar da Terra, “teatro da aventura humana” , com o diria J. P. F E R R IE R (1990). Há, portanto, no im aginá rio social um a profunda geograficidade pela relação concreta que se estabelece entre o hom em e a Terra. R elação aqui d eve ser com preendida, em seu sentido forte, com o uma ca tegoria que indica o caráter de dois ou mais objetos d e p en
tico. Alguns temas podem ser trabalhados nesta perspectiva: a correspondência entre a natureza e o discurso político, fundado no im aginário social sobre ela; o regionalismo, apoiado em um nós coletivo d e base territorial e a repre sentação política territorial, que realiza a prática política com suporte no im aginário geográfico. A discussão que se segue tem por ob jetivo apontar as possibilidades empíricas da incorporação d o con ceito d e im aginário a temas rele vantes para a com preensão dos m odos e meios utilizados
sam ento qu e são concebidos com o sendo, ou podendo ser,
pelos atores sociais para organizar seu território, suas rela
com preendidos num único ato intelectual de natureza d e
ções sociais, seu m odo d e vida.
term inada, definindo o m odo d e sua existência e de seu des tino. É nesse sentido que D a r d e l (1952) utiliza o term o, quando destaca que “a experiência geográfica, tão profunda
Im a g in á rio p o lític o e n a tu re za
e tão sim ples, convida o hom em a atribuir às realidades g eo gráficas um tip o de animação e de fisionom ia no qual revive sua experiência humana, in terior e social” .
A suposição da relação entre a natureza e o im aginá rio p olítico defin e um a abordagem que busca com preen
Existe, pois, uma relação, que não p od e ser ignorada,
d er formas possíveis d e utilização d e aspectos particulares
entre a geograficidade da experiência humana e a elabora
da natureza na construção do im aginário coletivo de uma 179
EXPL ORAÇÕES GEOGRÁFICAS
IMAGINÁRIO POLÍTICO E T E R R I T Ó R I O
sociedade e a instrum entalização deste im aginário para
des humanas em fu nção das qu alid ad es d o h a b ita t, o d e
ações de base p olítica no seu território. Portanto, tom ar a
term in ism o não abandonou d e to d o o “ m useu im aginário”
natureza um recurso p olítico supõe, não apenas a sua u tili
ociden tal, nem sua im portân cia n o d iscu rso p olítico.
dade, mas a form a com o ela é percebida coletivam ente. A
N o Brasil, o caso d o sem i-árid o n ord estin o é exem
relação, no sentido forte antes explicitado, entre o im aginá
plar. D esd e o final d o sécu lo passado, a sua natureza sem i-
rio político e o território é uma questão antiga, e tem assu
árida tem sido vista com o a p rin cip a l causa dos problem as
m ido, ao lon go da história, diferentes form as d e racionali
da reg iã o e tem sido am plam en te u tiliza d a nos discursos
dade e de objetivação, que vão desde os recursos disponí
das elites regionais para o b te r m aiores b e n e fício s ju n to ao
veis na sua natureza, com o suporte para a subsistência ou
govern o fed eral (C A S T R O , 1992). N a rea lid a d e, a id éia de
para o processo de desenvolvim ento económ ico, até a pers-
qu e o clim a sem i-árido é respon sável p e lo atraso no N o r
pectiva dos entraves naturais a ambos. Porém , são as im a
deste fa z parte d o im agin ário reg io n a l, e nacional, e revela
gens construídas socialm ente sobre eles que constituem a
um a p ercep ção na qu al o d eterm in ism o d a natureza está
base fundamental do im aginário social e recurso para a re
im p lícito, tanto na id é ia d e qu e o “ serta n ejo é antes d e
tórica ou para a ação política.
tudo um fo rte ” d e E u clid es da C unha, c o m o na perspecti-
Visões particulares da natureza sem pre alim entaram
va d o territó rio con den ado ao so frim en to e à pob reza p or
concepções políticas e as correntes determ inistas da geo
um a natureza d ifíc il d e ser dom ada. N o entanto, quando
grafia deram im portante contribuição aos seus discursos. A
esta m esm a natureza tom a-se base d e discu rso e fon te d e
interpretação d e M ontesquieu da relação entre as leis da
recursos públicos, m ais d o qu e um s ím b o lo d o im aginário
natureza e as leis colocadas p elo p od er p olítico em seu
social, e la passa a rep resen tar um va lio so p o d e r sim bólico
L ivro D écim o Quarto do E sp írito das leis indica as vanta
para o im aginário p o lític o region al. A n a tu reza sem i-árida,
gens encontradas nos homens dos clim as frios e, conse
neste caso, portan to, é exem p la rm en te apropriada p elo
quentem ente, para o processo civilizatório p o r eles realiza
im aginário coletivo através d e im agen s q u e são retrabalha-
do. Filósofo fid o e respeitado em sua época, refletia e re
das n o sistem a d e valores, dando su p orte a o discurso e aos
forçava a visão d e uma civilização que, através de uma bem
atos p olíticos.
elaborada im agem d e si mesma, cujo valor n a tu ra l era ci-
A seca é, na realid ad e, um a p alavra-ch ave. E la rep re
entificam ente com provado, justificava intelectu al e etica
senta objetivam en te fa lta d e chuva, m as tam b ém sim boli
m ente a dom inação sobre outros povos em outras nature
cam ente a R egião N o rd e s te e os p rob lem as sociais e eco
zas. Apesar da im portância das correntes possibilistas e da
nóm icos qu e são p ecu liares às con d ições d a sua natureza
superação, na geografia, de um determ inism o “ científico
hostil, com o: m iséria, an alfabetism o, d oen ça, descapitaliza
que buscava estabelecer leis de com portam ento e qualida
ção etc. E la é ainda fu n dam en to na p ro d u çã o d e uma soli
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E X P L O K A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S
I M A G I N Á R I O P OL Í T I C O E T E R R I TÓ R I O
dariedade social, criadora d e um nós coletivo qu e equalíza
branca, educada e mais desenvolvida fren te a uma outra
a todos diante da força da sua tragédia, produtores grandes
sociedade na parte norte, tropical, negra, mestiça, pobre e
e pequenos, proprietários ou não. N esse sentido, o sign ifi
socialm ente m enos desenvolvida. Para quem argumenta
cado desses conteúdos vai m uito além da relação en tre na
sobre a superação d e determ inism os clim áticos no im agi
tureza e atividade produtiva, evidenciando-se nas possibili
nário social, obviam ente inform ado p elos manuais de geo
dades da natureza para a produção d e um im aginário p o lí
grafia, este é um bom tem a de pesquisa.
tico, socialm ente equ alizador e institucionalm ente eficien te para obtenção d e recursos financeiros e d e poder.
O u tro aspecto do im aginário p olítico de base territo rial é a relação entre a dim ensão d o território e as possibili
Q uando o deputado Jorge C oelh o afirm a qu e “ a es
dades para um processo civilizatório d e democracia, opor
cassez d e água no N ord este já fe z incontáveis vítim as, de-
tunidades e justiça identificados objetivam ente p or Tocque-
sagregou fam ílias, sem eou m iséria e sofrim ento, condenou
ville, na extensão do território am ericano, e simbolicamente
a região a um a posição d e in feriorid ad e no cenário nacio
p or Tu m er, na sua fron teira . O prim eiro, em sua viagem
nal” ( C a s t r o ; M
, 19 9 6 ) ilustra bem o qu e fo i
pelos Estados U nidos no início dos anos 30 do século X IX ,
d ito acima. M uitos outros discursos poderiam ser citados
cujas reflexões e anotações deram origem ao seu D em o
(C A S T R O , 1 9 9 1 ), mas não há necessidade p o r qu e são p or
cracia na A m érica , apontou entusiasticamente as vantagens
dem ais conhecidos. N o entanto, é sabido tam bém qu e há
do territó rio am ericano: sua extensão e a disponibilidade de
grande d iferen ça en tre a água disponível h oje na região e a
recursos naturais, que foram considerados dados im portan
qu e havia no in ício d o século, quando da criação da Ins-
tes nas condições para a criação d e um caráter nacional de
p etoria d e Obras C ontra as Secas. O N ord este atualm ente
m ocrático, em bora sua questão central fosse o problem a da
é a região seiru-ánda mais bem servida d e água represada
dem ocracia e suas dificuldades para se im por nas socieda
d o m undo, o qu e não chegou a alterar m uito suas ativida
des aristocráticas européias, especialm ente França e Ingla
des, seu quadro social d e m iséria, nem o im aginário dos
terra. T ocqu eville era leitor d e M ontesquieu, e as caracte-
porta -vozes regionais mais tradicionais sobre as dificu lda
rísticas da geografia am ericana não lhe passaram desperce
des para o seu desenvolvim ento.
bidas. E m bora suas observações sobre estas questões não
ag d aleno
A in da no Brasil, o abortado m ovim ento separatista O
sejam levadas em consideração pelos analistas d e sua obra,
sul é o m eu país indica qu e o fantasm a d e M ontesquieu
sociólogos ou politólogos, a um geógrafo elas saltam aos
está lon ge d e te r sido exorcizado, quando subsume em
olhos. D a m esm a form a, uma leitura d o livro Am érica, de
seus argum entos para a fundação d e um ou tro estado-na-
Kafka, dá bem a dim ensão do im aginário europeu, alimen
ção a vantagem d o clim a subtropical, mais frio , com o fator
tado p o r recortes territoriais acanhados frente ao gigante
d e diferenciação qualitativa da sociedade sulista d o país,
norte-am ericano. As dim ensões descomunais dos prédios,
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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
I MAG INÁ RI O P O LÍ T I C O E T ERRI TÓRI O
viadutos, autom óveis e trens sim bolizam a im agem d e um
etc. adquire corp o no espaço determ inado qu e tam bém
país de enormes recursos, onde tudo é fartura e exagero. As
estrutura as situações vividas” . Seja este espaço a casa, o
condições do território fundando um im aginário articulado
bairro, a cidade, o território, o m esm o represen ta um a fo r
com a extensão, com a riqueza, com as disponibilidades
m a particular d e com partilhar p orqu e se b en eficia da p ro
propiciadas p o r uma natureza generosa e, portanto, com
xim id ade e se op õe ao outro, ao externo, p ela distância físi
mais possibilidades de ser dem ocrática.
ca. É nesta correspondência d o in tern o — da proxim idade
N o final do século X IX , em 1893, o historiador F re-
— com o externo — da distância — que se engendram as
derick Jackson Tum er, analisando a im portância àa.fro n te ira
tensões, tanto sim bólicas com o m ateriais, dos particularis-
para explicar a sociedade americana, endossou com petente m ente este im aginário. Para ele, a fronteira fe z da A m érica um a sodedade aberta, o que propiciou a m obilidade social e esta o otimismo. A marcha para o O este forneceu ao p ovo americano um grande m ito, o da possibilidade d o renasci m ento e da renovação. Desse m odo, na consciência am eri cana o Oeste sim bolizou a esperança e figurou no processo civilizatório com o progresso, tom ando-se, num sentido ló g i co, sinónimo d o sonho americano. C om o m ito, o terjâtóiio da fronteira confirm ou a dem ocracia política, a infinitude
m os fren te ao jacobinism o d o p o d er institucionalizado cen tralizad o no Estado M odern o. P orém , a sabedoria dos ho m ens da p olítica lhes perm ite u tilizar esta en ergia agregadora das m enores escalas dos espaços da socialidade para estab elecer os nexos de dom inação e con trole dos poderes centralizados e distantes. Existe, pois, um im aginário p olítico que se funda na fo rç a im aginai do estar junto e se realiza na inserção territo rial d o fato social. Esta dupla dim ensão partilhada da socie dade — nós com unitário que funda o contrato social e os lim ites territoriais d e reconhecim ento deste contrato — im
humana e o idealism o filosófico (S lM O N S O N , 1989).
plica duas dim ensões da dialética do um versus o todo. N a dim ensão das relações sociais é possível falar na tensão entre o indivíduo e o grupo social, na qual o “eu” é um ator ao
Im a g in á rio p o lític o e re g io n a lis m o
m esm o tem po ativo e passivo, m oldando e sendo m oldado A im portância d o enraizam ento social —
o term o
aqui utilizado na sua acepção mais fo rte de ra iz, com toda a sim bologia que d ela decorre, com o: seiva, alim ento, esta bilidade, vida — constitui a base da dim ensão espacial da socialidade, que M affesoli analisou em “A conquista do Presente” . Para ele, “tudo que p od e ser dito acerca da es trutura e desenvolvim ento (da socialidade), sua pluralidade 184
p ela alm a do gru p o, p elo habitus. Ou seja, os cidadãos p olíti cos participam de um “coletivo de pensam ento”, qu e se abri ga profundam ente no im aginário do grupo social, com todos os m ecanismos d e conform idade, mas tam bém com iniciati vas que um tal coletivo pode induzir
(M A F F E S O L I,
1992).
N u m a perspectiva espacial, existe tam bém um a ten são d e base no m oderno estado territorial. N a realidade, 185
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
I M A G I N Á R I O P O L Í T I C O E T ERRI TÓRI O
este tem represen tado ao m esm o tem po um ab rigo para a
constituem um dos paradoxos da m odernidade m ediante o
preservação d e iden tidades territoriais am eaçadas e um a
qual as sociedades, enquanto se territorializam , se preser
am eaça à sobrevivên cia destas identidades p e lo p od er sim
vam e resistem , ao m esm o tem p o que, enquanto se univer
b ó lic o do nacionalism o, necessário para fazer face à am ea
salizam, se renovam e sobrevivem . H á, portanto, uma asso
ça laten te dos outros estados e das forças h om ogen eizad o-
ciação necessária en tre os regionalism os e a form ação dos
ras em escala planetária. N este sentido, o territó rio da so
estados-nacionais, quando se im pôs a idéia-força da nacio
beran ia estatal, enqu anto espaço p o lítico e da p olítica,
nalidade sobre os território ditos nacionais. N este sentido,
re fle te o paradoxo d o singular versus geral e só p od e ser
o regionalism o é gerado no con texto dos estados m odernos
com p reen d id o num a perspectiva dialógica, ou seja, que
que se tom aram , alguns antes, e a m aioria a partir do sécu
in corp ore as lógicas contraditórias, mas interdepen den tes,
lo X IX , estados nacionais territoriais, ou seja, submetidos a
das dinâm icas sociais geradas p ela proxim idade e aquelas
uma lógica d e p o d e r “territorialista” , sob a qual o território
geradas p ela distância. A percepção da França, com o um a
é tanto a base da soberania e d o exercício do p od er com o
unidad e fo rja d a na diversidade tão bem descrita p o r F e r-
tam bém o rep ositório dos conteúdos dos símbolos m obili
nand Braudel, é certam ente um bom exem plo desta dialó
zados para fundar o nós c o le tiv o da identidade nacional
g ica e de sua id en tificação e utilização no plano sim bólico.
que garante a adesão social ao pacto nacionalista.
C om o desdobram ento dessa d ialética territo ria l da
O regionalism o, enquanto m obilização p olítica de ba
p arte versus todo, o regionalism o, m ovim en to p o lítico d e
se territorial, d ecorre justam ente dos modos através dos
base territorial, é um p roblem a geográfico-p olítico p o r ex
quais o estado nacional tem organizado, ou administrado,
celên cia. Surgido com o reação ao jacobinism o d o estado-
as diferenças — culturais e económ icas — em seu territó
nação e levantando bandeiras da identidade, da autonom ia,
rio para fundar a id eologia da unidade nacional. Os esta
d o d ireito à diferença, e le não p od e prescindir d o “ nicho”
dos-nacionais h o je conhecidos foram consolidados, em sua
p ro teto r que este m esm o estado am eaçador representa
m aior parte, a p artir do dom ín io hegem ónico de uma re
h o je fren te à am eaça d e uma hom ogeneização em escala
gião que im pôs cultura, língua, religião e sistema produtivo
planetária. Os regionalism os das regiões espanholas, que,
sobre as outras. É justam ente nas clivagens desta dom ina
com exceção de um segm ento d o m ovim en to basco, não
ção que se tem desen volvido a id eologia regionalista. N a
dispensam o Estado espanhol e as am biguidades d o m ovi
form ação dos estados m odernos, depois estados-nacionais,
m en to p olítico autonom ista do Q uebec, que p rop õe Aima
A r r ig
soberania que não abre m ão do passaporte (ou seja, cida
o triu nfo da id eolog ia nacionalista em todo o território.
dania) e da m oeda canadenses, são significativos da com
N este sentido, os regionalism os representam m uito mais
plexidade desta coexistência. N a realidade, estas questões
lutas p o r disputas d e recursos com base no poder sim bóli-
186
187
hi
(1996) aponta a im portância do territorialism o e
E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S
I M A G I N Á R I O P O L Í T I C O E T E R R I TÓ R I O
co da afirmação de uma identidade ou solidariedade a te r
B ra s il p o d e s e r tra b a lh a d o g e o g r a fic a m e n t e d e n tr o d o s r e
ritórios particulares d o que um desejo real de soberania.
c o r te s p o lític o -a d m in is tra tiv o s , s e n d o e s te o lim ite le g ít im o
Trata-se, na realidade, da articulação entre escalas territo
d e id e n t id a d e e d e ex p ressã o d e r e iv in d ic a ç õ e s p o lític a s d e
riais de poder e de identidade que, sendo contraditórias
b a s e te rrito ria l, n u m es p a ç o n a c io n a l cu ja re p re s e n ta ç ã o p o
com o essência, são com plem entares enquanto prática p o lí
lít ic a é o r g a n iz a d a a p a r tir d e r e c o r te s te rrito ria is leg a is. S o
tica. Neste sentido, em bora identidades culturais fortes co
c ió lo g o s , h is to ria d o re s e p o litó lo g o s j á o fa z e m h á b a sta n te
m o língua, religião e etnia sejam símbolos eficientes nas
t e m p o , r e v e la n d o as e s p e c ific id a d e s s ó c io -te rrito ria is co n s
disputas regionalistas, o regionalismo não se esgota neste
tru íd a s h is to r ic a m e n te n os lim ite s a d m in istra tivo s su b n a cio-
tipo de viés cultural.
n a is b ra s ile iro s (G O M E S , 1980; S C H W A R T Z M A N , 1 9 8 2 ).
Um a distinção é necessária entre o sentido dos regio-
O tem a d o regionalismo sob a perspectiva do imaginá
nalismos e nacionalismos. Em bora ambos m obilizem sím
rio político encontra-se em aberto na geografia brasileira.
bolos para alimentar os rituais da identidade sócio-territo
A lé m da existência de múltiplas escalas das relações de
rial, a teleologia de cada um é diferente. O prim eiro busca
p o d e r no território nacional, o aparecim ento de novas estra
a construção de um estado-nação, o segundo busca mais
tégias d e relações centro-periferia, os novos arranjos espa
vantagens, ou menos desvantagens nas disputas com outras
ciais e d e solidariedades propiciadas pelas mudanças tecno
regiões, no conjunto d e um estado-nação consolidado. O
lógicas, o fortalecim ento dos poderes regionais e locais com o
fato de um m ovim ento regionalista levantar bandeiras se
novos interlocutores nas relações supranacionais são proble
paratistas pode ser, com o o é em muitos casos, muito mais
m as que se colocam hoje para os arranjos dos interesses no
uma estratégia de luta frente ao p od er central do que uma
territó rio e tendem a transformar o am biente das tradicio
verdadeira busca de form ação de um novo estado-nação.
nais alianças políticas, definindo-se novos símbolos, elabo
N o Brasil, o processo histórico político, que progressi
rando-se novos discursos, mobilizando-se novos territórios.
vamente delineou os limites das unidades administrativas e os valores simbólicos dos territórios para as sociedades em cada uma, contribuiu para forjar escalas de interesse refo r
Im a g in á r io p o lític o e re p re s e n ta çã o t e r r ito r ia l
çadas pelos discursos da identidade e da solidariedade. C om exceção do regionalismo nordestino, no qual o recorte
A institucionalização da representação política e do
regional e os interesses políticos coincidem , as identidades
e q u ilíb rio dos poderes nas democracias modernas é, neces
territoriais no país se fazem nos limites administrativos dos
sariam ente, espacializada a partir de diferentes escalas que
estados. O trabalho de H A E S B A E R T (1 9 8 8 ) sobre a identi
e n g lo b a m desde os espaços da convivência estabelecidos
dade gaúcha é significativo de que o term o regional no
n a p ro xe m ia , até aqueles mais amplos do dom ínio sim bóli
188
189
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
I M A G I N Á R I O P O L Í T I C O E T E RRI TÓ RI O
co d o perten cim ento a uma nacionalidade. M esm o a d i
tem desdobram entos im portantes para a geografia política.
mensão não espacial do político, com o a pretensão univer
A cidadania instituída p elo co n tra to fundador do estado
sal e cósmica das leis, precisa do território delim itado e o r
m oderno, em sendo um con ceito de caráter universal, esta
ganizado historicam ente p ela sociedade para se exercer.
b e lec e a igualdade d e todos no usufruto dos seus direitos e
A lé m disso, apesar da objetividade dos interesses qu e no
no cum prim ento dos seus deveres. Em bora no contrato
plano teórico fundam a política m oderna, no plano prático
com o L e v ia tã hobbesiano apenas o direito à proteção con
ela não p od e dispensar o recurso ao sim bólico para elab o
tra m orte violenta fosse con cedido em troca da alienação
rar seu discurso e conquistar adesões.
da liberdade, a progressiva expansão dos direitos políticos e
Trata-se aqui de trazer para a agenda temática da g e o
sociais nas modernas dem ocracias ocidentais ampliou o
grafia política brasileira o problem a dos símbolos e dos con
con ceito d e cidadania e consagrou sua prática na socieda
teúdos espaciais na força imaginai do político, e esta nos
de. Porém , se há na essência do conceito a universalidade,
m odos pelos quais as sociedades vivem o seu território.
a m ediação territorial d o seu exercício im põe alguns pro
C o m o a representação política, instituinte da cidadania d o
blemas. N a realidade, não havendo homogeneidade na
indivíduo nas democracias modernas, se faz tam bém com
base material do território, as condições para o exercício
base nos recortes territoriais administrativos, é na perspec-
desta cidadania ampliada qu e inclui hoje não apenas o
tiva da representação territorializada do cidadão que d evem
d ireito à proteção, o de votar e d e ser votado ou a possibili
ser com preendidos os recortes territoriais da política nas
dade de controle dos governantes, mas também direitos
democracias representativas contemporâneas. C om o princí
relacionados à qualidade de vid a e às condições para a sua
pio desta engenharia política, não apenas o cidadão é rep re
reprodução, encontram-se afetadas.
sentado com o indivíduo, mas tam bém o seu território com o
N esta perspectiva, o p roblem a do exercício da cidada
parte inseparável da sua cidadania. N esse sentido, proble-
nia em países com grandes disparidades económicas e so
matizar o espaço político, no qual se fazem a representação
ciais é, mais do que um p rob lem a constitucional legal, um
e a administração de interesses contraditórios, requer id en
problem a territorial. É aí que deve ser inserida a polêmica
tificar tanto seus conteúdos simbólicos e materiais com o a
atual do sistema representativo proporcional brasileiro e as
articulação do espaço da função política com outras dim en
mazelas dos episódios de representantes despreparados, de
sões do espaço da sociedade. O território, com toda a sua
corrupção e dos balcões de interesses pessoais armados na
carga simbólica, desem penha um papel fundamental na dis
Câm ara dos Deputados, p o r definição, o lugar da prática
puta política, fornecendo os símbolos necessários para o nós
dem ocrática e da garantia dos direitos da cidadania. Talvez
fu sion a i presente nos rituais da disputa eleitoral.
os geógrafos possam responder a algumas questões sobre o
A questão do com ponente territorial da cidadania 190
problem a. Prim eiro, com o estabelece a p rio ri que a repre191
E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S
IMAGINÁRIO POLÍTICO E TERRITÓRIO
sentação é do cidadão sem considerar o fato banal, mas fun
fica p od e contribuir para en ten der as origens e a perpetua
damental, de que ele habita um território, no qual sua vida
ção das desigualdades sociais. Seu en foq u e das condições
está organizada e seus interesses estão estabelecidos? Se
de m obilização dos recursos para a representação, estabe
gundo, como garantir uma proporcionalidade absoluta em
lecidas p or diferentes grupos em disputa p e lo controle dos
um território tão desigualmente povoado sem deixar territó
rituais e dos espaços institucionalizados de p o d e r no terri
rios e sua população sem representação, ou seja, sem direito
tório americano, apontou as possibilidades de contribuição
a uma cidadania elementar, e sem inflar enorm em ente o
da geografia para com p reen d er o com portam ento político
número de representantes na Câmara, com todos os proble
para além das solidariedades das classes sociais das aborda
mas de custos e eficiência decorrentes? Terceiro, com o ter
gens sociológicas tradicionais. Tam bém D E A R (1 9 8 9 ) d e
uma proporcionalidade ideal e ao mesmo tem po controlar a
monstrou o papel do território na m odelagem da vida so
possibilidade da tirania da maioria e do fortalecim ento das
cial, a partir das condições d o consumo coletivo de bens e
hegemonias dos interesses territoriais numa situação de p er
serviços públicos nos locais d e moradia, as disputas entre
sistentes disparidades regionais e de fortes injustiças espa
grupos e entre lugares e os conflitos delas decorrentes.
ciais? O que se afirma aqui é que o debate sobre os proble
Apesar dos trabalhos que consideravam a importância
mas da representação política no Brasil não se esgota no cál
das relações sociais no lugar com o fator relevante da expli
culo dos coeficientes que estabelecem o número d e repre
cação em geografia política, foi A G N E W (1987) que aprofun
sentantes por estado, eixo das análises políticas, mas numa
dou o argumento sobre o papel da individualidade das so
compreensão mais profunda das muitas realidades sociais
ciedades locais no com portam ento político. Polem izando
do espaço brasileiro, especialmente aquelas que historica
com as ciências sociais em geral e com a ciência política em
mente, em algumas áreas do país, têm levado muitos “ cida
particular, ele aponta a necessidade de incorporar o lu ga r
dãos” a perceberem o voto, não com o um certificado de ci
nas suas teorias para com preender o com portam ento políti
dadania, mas com o um bem virtual que pode transformar-se
co e as diferenças, uma v e z que ambos não p odem ser com
em outros bens mais palpáveis, com o alimentos, roupas, do
preendidos apenas através das categorias sociais tradicional
cumentos etc. Estas são questões para as quais a geografia
m ente consideradas nessas ciências, engrossando o caudal
política brasileira pode dar grande contribuição.
dos cientistas sociais — antropólogos e sociólogos — que
Seguindo um outro eixo d a relação entre espaço e
interpretam o genius lo c i com o um dado necessário à análi
representação política e num a perspectiva sistémica da
se política. Diante do problem a de enfocar a individualidade
geografia anglo-saxônica dos anos 70, JOHNSTON (1979)
dos lugares e de reconhecer a real interdependência entre
abordou os inputs e outputs geográficos do sistema político
eles, ele se coloca a questão da simultaneidade necessária, e
eleitoral para com preender de que m odo a análise geográ
não contraditória, no campo político social, entre o único e o
192
19 3
EXPLO RAÇ ÕES GEOGRÁFICAS
I M A G I N Á R I O P OL Í T I C O E T E RRI TÓ RI O
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C A S T O R IA D IS ,
É, portanto, na perspectiva da com preensão da base
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D esse m odo, a agenda da geografia política brasileira encontra-se e m aberto, especialm ente na necessária busca de
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D a r d e l,
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D E B A R B IE U X ,
uma política cada vez mais globalizada, de lugares cada vez
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origens distantes no tem po e acompanham-nos desde os prim órdios da colonização. Tam bém não são poucas as oca siões em qu e nos deparamos com linguagens barrocas e com term os antigos e estranhos, incom preensíveis até mes m o para o cidadão esclarecido, mas que ainda continuam a ser utilizados, notadam ente nos m eios jurídicos. E é com
DIFEL. SCH W ARTZM AN,
Brasil. Às vésperas de entrarmos no século X X I, somos vol ta e m eia lem brados que muitos problem as d o país têm
Harold P. (1989). Beyond the fron tier. Texas Chris-
espanto ainda m aior que descobrim os que muitos desses “ anacronismos” são ainda bastante atuais e continuam a fazer sentir o seu peso na estrutura social do país. A organização territorial é um cam po fértil para a
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V É D R IN E ,
que vigorou em outros tempos. A o venderm os um im óvel,
Unwin Hyman. * P rofessor d o D epartam ento de Geografia — UFR J.
196
197
A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I T Ó R I O NO BRASI L C O L O N I A L
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
proprietário local interessado na consolidação d o povoa
S esm a ria s m e d ie v a is p o rtu g u e sa s
m ento d o lugar ou, o que foi mais comum, instituído p elo rei através d e cartas de fo r a l (R a u , 1982: Cap. I I). Já no iní
A instituição de um conselho municipal implicava a
cio do século X I I I toda a terra em Portugal havia se tom ado
necessidade da distribuição de suas terras pelos morado
d om in ia l, isto é, estava sob o dom ínio direto de alguma
res. Para coibir pretensões territoriais desmesuradas, gene
autoridade. Destacavam-se aí (SERRÃO, 1975, V. 1: passim ):
ralizou-se nessa época a utilização de uma variante do anti g o instrum ento greco-rom ano da enfiteuse, que ficou co
(1 ) os bens da Coroa, indivisos e inalienáveis, patrim ónio
nhecida com o sesmaria. ^
do Estado;
A enfiteuse (ou a fora m en to) é um contrato de aliena
(2 ) os bens pessoais do rei (os chamados reguengos);
ção territorial que divide a propriedade de um im óvel em
(3 ) as terras da nobreza, do clero, das ordens monásticas e
dois tipos de dom ínio: o d om ín io em inente, ou d ireto, e o d o m ín io ú til, ou in d ireto . A o utilizar um contrato enfitêuti-
das ordens mihtares; (4 ) algumas propriedades alodiais, livres de direitos e de
co, o proprietário de p len o direito de um bem não o transfe re integralm ente a terceiros. A penas cede o seu domínio
deveres senhoriais; (5 ) as terra s de natureza com unal, em geral concedidas
útil, isto é, o direito de utilizar o im óvel e de nele fazer
p elo rei aos habitantes dos conselhos, e que se subdivi
benfeitorias, retendo, entretanto, para si o domínio direto.
diam em (a ) terras dos conselhos, de propriedade adm i
a prop ried ad e em última instância. E m troca do domínio
nistrativa dos governos locais e que podiam ser p o r eles
in d ireto que lhe é repassado, o outorgado aceita uma série
distribuídas aos seus “vizinhos” , e (b ) baldios, terras de
d e condições que lhe são impostas, e obriga-se também a
usufruto com um , insusceptíveis de individualização,
pagar uma p ensão anual (ou f o r o ) ao proprietário do dom í
destinadas à pastagem do gado e à obtenção d e lenhas.
nio direto, razão pela qual transforma-se em fo re iro deste últim o. N ã o cum prindo o foreiro as condições do contrato,
É na distribuição das terras dos conselhos que está a
o d om ín io útil reverte ao detentor do domínio direto.
origem d o sistema sesmaria!, uma form a de apropriação
. O que singularizava a sesmaria do tradicional contrato
territorial que se difundiu p elo sul de Portugal a partir do
enfitêutico era um único detalhe: ao contrário da obrigato
século X I I I e que se converteu em verdadeira política de
riedade de pagam ento de um foro (que às vezes também
povoam ento.
ocorria), o que se exigia era o cultivo da terra num tem po determ inado. N ã o sendo satisfeita essa condição, o deten to r do dom ínio em inente (um conselho municipal, por exem p lo) poderia retom ar o dom ínio útil da gleba (então 200
201
E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S
A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I T Ó R I O NO B R A S I L C O L O N I A L
chamada de casal) e outorgá-lo a outros. Buscava-se com
antigo sistema sesmarial senão um ponto de contacto: a
isso garantir o uso produtivo da terra e o sucesso d o esfor
obrigatoriedade d e cultivo com o condição d e posse da ter
ço de povoamento.
ra e a expropriação da gleba ao proprietário que a deixasse
A origem d o nom e sesmaria está ligada à organização
inculta. N o mais, tudo nela era coação, pois o seu objetivo
territorial dos conselhos. Para m elhor distribuir os casais,
m aior era obrigar os trabalhadores rurais a perm anecerem
passou-se a dividir as terras dos conselhos em sesmos, ou
no cam po (RAU, 1982: 87). É im portante notar, entretanto,
sextas partes. A fim de evitar injustiças nas doações e fisca
que ela introduziu um elem ento im portante na legislação
lizar o cum prim ento das condições legais, era indicado um
da época, já que restituiu ao Estado o princípio da não
hom em bom (um cidadão) para cada sesmo, exigindo-se a
absolutização da terra, outorgando-lhe o dom ínio em inente
sua presença ali durante um dos dias úteis da semana. Os
sobre todo o território, o que abria caminho para com bater
sesmos ficaram então conhecidos com o sesmos d e segun
o latifúndio e expropriar qualquer propriedade que não
da-feira, de terça-feira etc., e os delegados municipais to
fosse aproveitada no tem po convencionado (SMITH, 1990;
maram a denom inação de sesm eiros. P o r sua vez, as terras
M a r q u e s , 1975: 544; R a u , 1982: Cap. V I).
que eles concediam ficaram conhecidas com o sesmarias
Tod a a legislação sobre sesmarias foi incorporada, em
(R a u , 1982: 47-57). Utilizadas depois para povoar os re-
1446, às Ordenações Afonsinas (L iv ro IV, T ítu lo 81), e
guengos e as terras da Igreja e da nobreza, as sesmarias
mantida, com poucas alterações, nas Ordenações M anue
foram assim mais uma form a d e apropriação do que de
linas (L iv r o IV, T ítu lo 67), de 1521, e nas Ordenações
propriedade (MARQUES, 1975: 543).
Filipinas (L iv r o IV, Título 43), d e 1603. C o m a expansão
E m meados do século XIV, com o progresso do p o
marítima portuguesa, o instituto da sesmaria foi transposto
voamento, poucas eram as glebas ainda disponíveis, mas a
para as conquistas (com o, de resto, toda a estrutura ju rídi
eclosão da peste negra e a elevação dos salários artesanais
ca lusa). G rande viabilizador do processo d e apropriação
urbanos logo levaram a um crescente êxodo rural. As terras
do território brasileiro, é im possível enten der o período
marinhas (terrenos incultos de propriedade particular) tor
colonial sem que se faça referência ao sistema sesmarial,
naram-se então mais numerosas, causando diminuição de
que só fo i abohdo às vésperas da Independência. Todavia,
renda e decréscim o da produção de grãos. Para com bater
seu im pacto sobre a estrutura fundiária do país faz-se sen tir até hoje.
essa situação, a C oroa prom ulgou então “ uma das prim ei ras leis agrárias da Europa que m ereça tal nom e” (R a u , 1982: cap. V ). A lei das sesmarias, assinada p o r D. Fernando em 1375, foi na realidade uma lei violenta, que não teve com o 202
203
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO BRASI L C O L O N I AL
A transposição do sistema sesmarial para o Brasil
dados aos donatários, com o atesta bem o de Duarte C oe lho, mandava o E l-R ei D . João I I I que repartissem as terras
A C o ro a Portuguesa tom ou posse d o território brasi leiro p o r aquisiçã o o rig in á ria , isto é, p o r d ire ito de co n
“ na form a e m aneira que se conthem em minhas
quista (C lR N E L i m a , 1954: 8 9 ). P or essa razão, todas as ter
ordenações [isto é ], o capitam da dita capitania e seus
ras “ descobertas” passaram a ser consideradas com o terra
sobcesores daram e repartiram todas as terras delia
v irg em sem qualqu er senhorio ou cultivo anterior, o que
d e sesmarya a quaesquer pesoas de qualquer calyda-
perm itiu que a C oroa pudesse traspassá-las a terceiros, v i
d e e condiçam que seyam contanto que seyam chris-
sando com isso assegurar a colonização.
tãos lyvrem ente sem foro nem dereito algum somente
A carta patente dada a M artim Afonso de Souza é
o dízim o que seram obrigados de pagar a hordem de
unanim em ente considerada com o o prim eiro docum ento
m estrado d e noso Senhor Jhesu Christo de tudo o
sobre sesmarias do Brasil. N a realidade, M artim Afonso
que nas ditas terras ouverem...” ( F o r a l ...: 312).
trouxe consigo três cartas régias. A prim eira outorgava-lhe “ grandes poderes” , nom eando-o capitão-mor da armada e
Se a ordem da C oroa era para que a concessão de ses
d e todas as terras qu e fossem descobertas, com plena juris
marias no
Brasil fosse feita segundo estabeleciam as
dição sobre as pessoas que com ele seguissem, que já esti
Ordenações, a verdade é que a prática acabou sendo bem
vessem n o Brasil, ou que para aí fossem depois. A segunda
outra. A o com entar o sistema sesmarial implantado além-
p erm itia q u e ele nomeasse oficiais de justiça, necessários à
oceano, Costa P orto (1965: 58) assim se expressou:
tom ada d e posse e à governança da terra. A última, enfim, dava-lhe p od er para doar sesmarias às pessoas
“ O erro de base do sesmarialismo brasileiro .. [consis tiu] ... em haver-se transplantado, quase sem nenhum retoque, a legislação reinol para m eio totalmente di
“ q u e n a d ita t e r r a q u y s e r e m v y u e r e p o u o a r ... se g u n d o o m e r e c e r e m as d itas pessoas p o r seus seru yço s e c a ly d a d e s p e r a aas a p r o u e y ta r e m e as terras q u e hasy d e r s e ra s o m e n t e nas vid as d a q u e lle s a q u e as d e r e
verso, de tal m odo pesando as influências diferenciadoras de espaço e tem po que, via de regra, ou o siste m a não funcionou, ou, funcionando, acarretou, aqui, resultados opostos àqueles obtidos em Portugal.”
m a y s n a m ... “ ( I n F R E IT A S , 1924: 1 5 9 -1 6 0 ).
Quais seriam essas influências diferenciadoras de es A instituição, logo a seguir, do sistema de capitanias
paço e tem p o? C om o funcionou o sistema sesmarial no
hereditárias, em nada mudou o espírito da lei. Nos forais
Brasil? C om o o sesmarialismo português acabou se trans205
E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S
A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO B R A S I L C O L O N I A L
formando em sesmarialismo colonial? U m a breve análise
se dessem “m aiores terras a um a pessoa de sesmaria que
dessas questões, sustentada p or autores que as discutiram a
aquelas qu e razoadam ente p a recer que no d ito tem po p o
fundo, perm ite que cheguem os a algumas conclusões im
d erã o a p rov e ita r” (O rdenações Manuelinas, L iv ro IV, T í
portantes.
tulo 67, § 3), tom ou igualm ente nova feição no Brasil. C o
A prim eira é que as “influências diferenciadoras de
m o o sistema de produção colonial crescia p o r extensão, a
espaço e tem po” fizeram-se sentir desde o início. A o con
liberalidade na concessão passou a ser a regra, sobretudo
ced er as primeiras sesmarias, M artim Afonso já o fe z em
no século X V I, o que fe z surgir propriedades de dimensões
caráter perpétuo, contrariando o texto régio que estabele
im pensáveis no agro português, “ áreas imensas de quatro,
cia que a doação seria apenas vitalícia. N ão há dúvida,
cinco, dez, vinte léguas, muitas vezes em quadra ...”1 e que
entretanto, que essa m odificação v eio a se adequar m elhor
cresciam ainda mais p o r aquisição derivada, isto é, pela ane
h
aos objetivos da colonização: não seria possível povoar uma
xação d e outras glebas obtidas p o r doação, compra, ou he
terra tão longínqua e habitada p or povos hostis, sem que se
rança (C O S T A P o r t o , 1965: 61-65). A esse respeito assim
pudesse garantir aos conquistadores o direito de transferir
se expressou Silva (1 9 9 0 ,1: 39,47):
o fruto de seus esforços a seus herdeiros. A determinação das Ordenações para que os sesmei
"... as possibilidades comerciais do cultivo da cana-de-
ros estabelecessem "... sem pre tem po aos que as derem , ao
açúcar, que dem andava grandes extensões de terras,
mais de cin co anos e d a í para baixo, que as lavrem e a pro
levou a m etrópole a fechar os olhos frente ao des-
veitem ... E se as pessoas... as não aproveitarem ... os sesmei
cum prim ento das suas próprias exigências no tocante
ros... dêem as terras... a ou tros que as a proveitem ” (O r
à legislação d e sesmarias... F oi, portanto, a form a de
denações Manuelinas, L iv ro IV, T ítu lo 67, § 3), tam bém foi
inserção da colónia no am plo m ercado mundial que
pouco respeitada. L o g o ficou claro que o tem po não p o d e
o >
se abria para determ inados produtos, com o o açúcar,
ria começar a correr desde a
\\b
insubmissão do indígena dificultava o aproveitamento das
qS
terras (uma condição essencial) e, não raro, im pedia mes-
jy jp
m o a sua ocupação (M E R Ê A , 1924: 183). P o r essa razão, do período estabelecido nas cartas de concessão, e
latifundiána, m onocultora e escravista. Essas condi ções é que explicam tamanha liberalidade p or parte
x
muitas sesmarias só acabaram sendo cultivadas bem depois ^
'
^
que traçou o m od elo da agricultura aqui instalada:
da m etrópole na disposição do solo colonial, muito mais do que a ganância e a cupidez dos colonos che
í* *
gados à A m érica para fazer fortuna” .
LO não
foram poucas as doações que acabaram caducando p or terem seus beneficiários desistido d e aproveitá-las. O velho preceito das Ordenações mandando que não
‘ U m a lé gu a em quadra equivale a 4.356 ha ou a 1.800 alqueires.
206
A
# E X P L O R A Ç Õ E S G E OG R Á F I C A S
N a realidade, a própria C oroa incentivou a concentra ção de terras. A o instituir-se o G overno Geral, ordenou ElR e i a T o m é de Souza que só concedesse terras para a cons trução d e engenhos de açúcar àqueles que tivessem posses bastantes para fazê-los (In FLEIUSS, 1925: 17). C om o pro gred ir da colonização, entretanto, essas exigências acaba ram p o r se estender a todos os que solicitavam sesmarias, que passaram a te r que provar que tinham recursos (notadam ente escravos) para p od er recebê-las; cortou-se, assim, o acesso à propriedade a inúmeros colonos. H á que se notar, finalmente, que até mesmo o signifi cado do term o sesm eiro acabou se invertendo no Brasil. N a colónia, ele passou a ser aplicado ao beneficiário da doação
A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO BRASIL C O L O N I A L
esta teve que assumir em troca, acabaram se constituindo em p eça fundamental d o processo de organização territo rial d o Brasil. A form a com o a terra brasileira acabou sendo pro p riedade da C oroa Portuguesa, mas sujeita à jurisdição es piritual da O rdem de Cristo, foi bem descrita p or Costa P o rto (1965: 42-51), que recuperou todo o emaranhado de bulas papais que concederam privilégios a Portugal nos sé culos X IV , X V e X V I. D ecidid a a m anter no Reino os inú m eros bens aí possuídos pela antiga Ordem dos Tem plá rios, extinta em 1312 p o r C lem en te V, solicitou a monar quia lusa a João X X II, seu sucessor, que incorporasse esse
e não, com o era uso em Portugal, àquele que tinha p od er
patrim ónio à C oroa ou que o adjudicasse a uma nova insti
real para distribuir terras d e sesmaria.
tuição, de caráter local. Pela bula A d ea ex quibus, de 14 de m arço d e 1319, decidiu-se então o papa pela segunda opção, surgindo então a O rd em do M estrado de Nosso
O dízim o, as obrigações da Coroa e a organização do território
S en h or Jesus C risto. D e início a O rd em de C ris to teve existência autóno m a em relação à Coroa, ainda que tenha participado das
O que dava originalidade ao sistema sesmarial era a
guerras em que esta se envolvia contra Castela e contra os
obrigatoriedade de cultivar o solo num determ inado prazo,
mouros. Aos poucos, entretanto, ela começou a financiar o
sob pena de cancelam ento da concessão. Nas conquistas,
p rojeto m arítim o português. Para justificar o processo ex-
entretanto, as sesmarias incorporaram uma exigência adi
pansionista, solicitou então D . João I a Martinho V que
cional: o pagam ento do dízim o à O rdem de Cristo, o que
concedesse a Portugal o dom ínio tem poral sobre as terras
na realidade q ueria d izer pagamento à própria C oroa. Mais
descobertas ou conquistadas, tendo obtido também a auto
d o que um im posto cobrado dos que recebiam terras, o
rização para que o Infante D . H enrique, seu filho, assumis
dízim o era a justificativa m esm o do processo de conquista.
se o grão-mestrado da O rdem . A partir daí os interesses da
E ao simbolizar toda a relação que se estabeleceu entre
O rd em e os da C oroa passaram a se identificar cada vez
Estado e Igreja na “ era dos descobrimentos” , o pagamento
mais, com o provam diversos éditos papais emitidos duran
desse tributo à Coroa, e as consequentes obrigações que
te o século X V 20 9
*'•' EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
«T
í
A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO B R A S I L C O L O N I A L
tim ação de suas conquistas, cabia à C oroa fazer a sua co brança ( C o s t a P o r t o , 1965: 96; S m i t h , 1990:166).
d o, e que consistia no privilégio concedido à C oroa d e
A arrecadação do dízim o criou no Brasil um eficiente
cobrar o dízim o eclesiástico nas conquistas para aí e rig ir
esquem a d e delegação de poderes que deu origem , p o r sua
dioceses e sustentar a religião e o culto. Todavia, com o era
vez, a um engenhoso sistema de regionalização da cobran
a rica Ordem de Cristo que financiava o projeto expansio-
ça. Im possibilitada de controlar diretam ente tudo que era
nista luso, solicitou a C oroa que o padroado fosse transferi
produzido, a C oroa optou desde o início p e lo sistema de
do a essa milícia, o que foi autorizado por Calixto I I I atra
contratação, já bastante utilizado no Reino. A intervalos
vés da bula In te r C oetera, de 13 d e março de 1456. G rão-
regulares, punha-se o serviço de cobrança d e cada capita
mestre da O rdem de Cristo desde 1485, ao assumir o tron o
nia em arrematação, sendo o contrato entregue a quem
d ez anos mais tarde D . M anuel I enfeixou pela p rim eira
oferecesse mais. Ressarcida p o r aquele período, a C oroa
v e z as duas dignidades na mão d o R ei, situação que p erm a
delegava então ao arrematante (tam bém conhecido com o
neceu com D . João I I I , tom ando-se definitiva em 1551,
d iz im e iro ou co n tra ta d o r dos dízim os rea is) o p od er de
quando o papa Júlio I I I , através da bula Praeclara cla rissi-
cobrar o tributo dos produtores diretos, que podiam pagá-
m i, determinou que, daí por diante, fosse o grão-mestrado
lo em espécie ou em d in h eiro de contado. M esm o regionalizada a nível das capitanias, a cobran
Quando os portugueses tomaram posse do território
ça dos dízim os ainda assim era tarefa im possível para uma
brasileiro, exercia, pois, E l-R ei tanto o domínio tem poral
só pessoa. Tom ou -se então comum a prática da subcontra
sobre as terras conquistadas, com o também o espiritual.
tação. Os contratos passaram a ser divididos em “ ramos” de
Eram poderes distintos, mas, com o estavam agora nas mes
produção (d o açúcar, dos gados, do peixe, da farinha, e das
mas mãos, acabaram p or se confundir. Isto explica por que as
“miunças” , ou seja, da produção menor: cabritos, frangos,
sesmarias brasileiras eram isentas de foro (por não pertence
galinhas, ovos etc.), que eram em seguida repassados a
rem a quaisquer senhoriosh mas sujeitas ao pagamento do
quem m aior quantia desse p o r eles. Esses ramos, p or seu
dízimo a Deus (isto é, à Ordem d e Cristo, isto é, à Coroa).
lado, eram freqiien tem ente regionalizados ainda mais, sur
(-----C>
O dízimo era um ônus sobre a produção — um em dez
dos fru to s da terra — e incidia sobre a agricultura e a pecuá
'ti? r a
i
têo m o j . rism*
1454, Nicolau V acrescentou ao dom ínio tem poral a juris-
■
}
nictãCxAs t
missão evangelizadora sob a qual obtivera d o papado a legi
da Ordem exercido pelos monarcas lusitanos.
*
■.
Assim, pela bula C uncta m u n d i, de 8 de jan eiro de ! dição in spiritualibus, que ficou conhecida com o o pa d roa ^ 9
'
gindo daí outros subcontratos (d o dízim o do açúcar de tal região de tal capitania, por exem plo).
ria coloniais. Era, na realidade, um tributo eclesiástico, que
Assim com o ocorreu com os demais contratos colo
deveria ser pago inclusive por quem não possuísse terra, já
niais (sal, tabaco, baleias etc.), a arrematação dos dízimos
que, como cristãos, todos os produtores deveriam contribuir
reais revelou-se um negócio muito rendoso. C om o a maior
para o programa de propagação da fé. E com o gestora da
quantia o ferecid a sem pre ficava muito aquém da arrecada-
210
211
EXPLORAÇÕES GEOCRÁFICAS
A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I T Ó R I O NO BRASIL C O L O N I A L
ção efetiva, a obtenção desses contratos e subcontratos aca
As terras urbanas
bou gerando pequenas fortunas na colónia. P o r sua vez, a prática da subcontratação fez com que o cerco sobre o p ro
C om o b em lembrou Costa P orto (1965: 158-159), com
dutor direto fosse se refinando cada v e z mais com o tem po,
a conquista foram transplantadas para o Brasil as praxes m e
o que diminuiu as chances de sonegação, mas deu origem
tropolitanas de controle territorial, dentre as quais tomou
a inúm eros conflitos locais, muitos dos quais exigiram a
vulto, desde o início, a adoção de um sistema municipalista
intervenção direta do rei. F on te im portante de recursos reais, a cobrança d o
d e base urbana e de raízes romanas, cujas manifestações materiais foram o a rra ia l (ou p ovoa d o), a vila e a cidade.
dízim o, p or ser feita em nome da O rdem de Cristo, exigiu entretanto uma contrapartida de peso: a jurisdição espiri
D en tre esses, apenas o arraial teve origem espontânea,
tual da colónia. Resultou daí um extenso rol de obrigações
resultando do agrupamento de famílias em algumas resi
que a C oroa passou a ter no Brasil, tais com o sustentar e
dências
difundir o culto; criar paróquias; autorizar a criação de
tiguidade e unidade formal. Os demais surgiram sempre da
chamadas fo g o s — que apresentavam certa con
igrejas, conventos e irmandades; edificar ou reparar tem
ação direta ou indireta dó Estado.
plos; estabelecer e manter burocracias eclesiásticas; man
As vilas resultaram da decisão de donatários e gover
ter ou subsidiar colégios e mosteiros; indicar prelados em
nadores, que tinham p o d e r para criá-las, ou de ordem real
suas diversas hierarquias etc.
para que se elevasse a essa categoria algum arraial. A cria-
A progressão do povoam ento só fe z aumentar esses
ção de cidades, entretanto, fo i sem pre um atributo exclusi-
encargos. A cada criação de freguesia surgiam novas despe
t é
sas. E os encargos se multiplicavam quando uma cidade ou
las porqu e “ as cidades, perpetuando em si o antigo M u
vila era elevada a sede episcopal, já que então era preciso p rover o recém -criado bispado de todas as prerrogativas e dignidades que lhes eram devidas, que eram regulamenta
v o da Coroa. Os donatários não tinham o direito de fundánicípio romano, d e natureza independente, só assentavam
}
em terras próprias alodiais” (F L E IU S S , 1925: 10). Para fun dar a cidade do Salvador, por exem plo, a Coroa teve que
das p o r leis do Estado e por bulas papais .2 dois de meia preben da, um subchantre, quatro capelães, quatro moços do coro,
2 F o i o q u e aconteceu, po r exemplo, quando da elevação do R io de Janeiro à categoria d e bispado, determ inada pela bula Romani P on tificit, de Inocêncio XI,
um organista, um m estre da capela, um sacristão, um porteiro da massa, um cura e um coadjutor. A partir d e 1689 passou a contar também com um mestre-de-
expedida em 16 de novem bro de 1676. P ela Provisão de 18 de novem bro de
cerimônias. D u ran te tod o o século X V I I I este corpo eclesiástico continuou a
1681, o Príncipe Regente D . P edro instituiu o C o rpo Capitular da nova sé, que
aum entar, expandindo-se ainda mais em 1808, quando a Sé Catedral foi conde
só tom ou posse, entretanto, após a chegada do novo bispo, D . José de Barros
corada, pelo recém -ch egado Príncipe Regente, com o título e dignidade de
Alarcão. E ste "quadro eclesiástico" consistia de um deão, um chantre, um tesou reiro-m or, um mestre-escola, um arcediago, seis cónegos de prebenda inteira e
C a p ela Real, sendo igualada então ao Patriarcado d e Lisboa. V e r Pizarro e Araújo (1820-1822), vol. 6.
212
21 3
1
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO B RA S I L C O L O N I A L
recuperar prim eiro a jurisdição da antiga capitania da
se m aterializava obrigatoriam ente na paisagem urbana pela
Bahia de Todos os Santos (AZEVEDO, 1956: 14).
ereção de um pelou rin h o. Tinham direito, ademais, às dig
A elevação de um núcleo urbano a sede de bispado
nidades e regalias conferidas pelas Ordenações aos conse
exigia a promulgação d e instrumentos jurídicos adicionais.
lhos e a seus cidadãos. E possuíam, finalmente, um term o,
C om o todo o solo colonial estava sujeito à jurisdição espiri
ou área de jurisdição, dentro da qual se situavam os arraiais,
tual da Ordem de Cristo, fazia-se então im prescindível que
e um patrim ónio fundiário: as terras d o Conselho.
E l-R ei ou o Papa quebrassem os vínculos que submetiam a sede do novo bispado ao controle da O rdem , pois sendo nobres de prim eira grandeza os bispos somente podiam
O p a tr im ó n io m u n ic ip a l
residir em terras alodiais (FLEIUSS, 1925: 11). A diferenciação entre vilas e cidades era, pois, d e
A doação de terras para as câmaras municipais é c o e
caráter jurisdicional e não hierárquico. As cidades, p o r se
va dos prim eiros anos da colonização, tendo sido inclusive
rem da Coroa, eram chamadas de cidades reais, mas nem
determ inada nos forais dos donatários. Data d e 1537, p or
todas alcançaram o papel de comando que o título lhes
exem plo, a instituição do patrim ónio de O linda (C O S T A
conferia .3 Por outro lado, o status de vila não diminuía a
PORTO, 1965: 160). Já as terras dadas ao R io de Janeiro an
importância de um centro urbano. Olinda e São Paulo, p or
tecedem m esm o a conquista definitiva da terra. A imissão
(^
A '^
A
P \' ‘
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exem plo, núcleos de indiscutível importância nos prim ór-
de posse desse património era pública e solene, e seguia
^ dios da colonização, só foram elevadas à categoria de cida-
um rígido cerim onial medieval, que atribuía os foros de le
de depois que suas terras reverteram à C oroa (em 1676 e
galidade exigidos pelas praxes metropolitanas, com o bem
1711, respectivamente).
demonstra o exem plo carioca:
Vilas e cidades diferenciavam-se, entretanto, bastante dos arraiais, pois só nelas estava a sede de um govern o
••• lo g o os ditos moradores e povoadores disseram,
loca l. A li fazia-se justiça em nom e do R ei, prerrogativa que
que e lle dito João Prosse tomasse a dita posse, em nom e d e todos assim presentes com o ausentes, e que
* J o
’A
°3
o dito M eirin ho lhe m ettêra nas mãos terra, pedra,
É o caso, por exemplo, de Filipéia d e Nossa Senhora das Neves, hoje João
Pessoa, fundada em 1585, de São Cristóvão, em Sergipe, fundada em 1590, e de N o ssa Senhora da Assunção d o C a b o Frio, fundada em 1615. Mariana, p o r sua vez, só foi elevada à dignidade de cidade, em 1745, po r ter-se tornado sede epis copal. P or outro lado, tam bém houve exemplos de vilas que, po r motivos nitida
;
m ente políticos, só obtiveram o estatuto de cidade muito depois de outros nú cleos rivais. É o caso d o Recife, q ue só alcançou a honraria que já distinguia O lin d a desde o século X V I I após a Independência (1823).
21 4
agua, páos e hervas, e que e lle João Prosse passeara e andára p ela dita terra, assim elle, com o os m oradores e povoadores que presente forão, e se houverão p or empossados, e mettidos da dita posse, sem pessôa nenhum a o contradizer...” (Traslado...). 215
A A P R O P R I AÇ Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO BRASI L C O L O N I A L
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
Os patrimónios municipais destinavam-se a garantir
livre, sem encargo nem pensão para o sesmeiro, e da mes
renda para os conselhos, que podiam dividi-los em glebas e
ma sorte ficará a terra que se lhe houver de dar para bens
aforá-las aos m oradores. N o Brasil, e les tiveram os mais
do C onselho” (R ecife, 1955).
variados tamanhos. As Ordenações eram mudas a esse res
Os patrimónios municipais foram muitas vezes chama
peito, e a diversidade de situações foi grande. Salvador, p o r
dos de “ rossio da vila”, de “ rossio d o conselho” ou de “ rossio
exem plo, recebeu três léguas ao longo d o mar, nos lim ites
da Câmara” . É necessário, entretanto, ficar atento às arma
d o term o da cidade (R u y , 1953: 58). São Paulo, ao que tu
dilhas que o term o “ rossio” contém, pois ele tanto podia sig
d o indica, teve m eia légua em quadra (Inform ação...).
nificar a sesmaria dada à res pu blica (isto é, às terras do
M e m de Sá deu ao R io de Janeiro duas léguas em quadra.
C on selho), com o referir-se àquelas terras que em Portugal
M uitos núcleos urbanos, com o Vila R ica (VASCONCELOS,
( eram denominadas de baldios, e que no Brasil ficaram mais
1956: 34) e B elém (apud MOURÃO, 1987), receberam uma légua em quadra, área que ficou conhecida mais tarde c o
//ijJjLfc*' .j \< , 4
conhecidas com o logradouros públicos. Situadas no termo das municipalidades, essas terras eram, entretanto, inaliená-
m o “ légua do patrim ónio” ou “ légua patrimonial” . Já a pau
veis, pois destinavam-se à “ serventia do povo” para a pasta
lista Cananéia teve a “ meia légua de terras [em quadra] que
gem do gado ou para a “ utilidade pública e proveito comum
se costuma dar de rossio às vilas” (ALM EIDA, 1966: 118). V i
a toda [a] Vila, para madeira, lenha, canas e cipós, onde
la Bela da Santíssima Trindade do M ato Grosso recebeu
todos mandam buscar com o mato destinado para o bem
quatro léguas em quadra (Auto da...). Vila Boa de Goiás,
com um ” , com o consta de um antigo documento de São
p o r outro lado, tam bém recebeu um património de “ 4 lé
Paulo d e Piratininga (Informação...: 66 ).
guas em quadra na circunferência da vila, fazendo pião no
Terras do conselho e logradouros públicos sempre
pelourinho dela” (São Paulo, 1944). As vilas fundadas no
contaram com a defesa da Coroa. As Ordenações eram
litoral da Bahia nos fins do século X V II I tiveram tam bém os
bastante explícitas quanto a isso, cabendo aos Ouvidores,
mais variados patrimónios, predominando em algumas a
em suas correições (auditorias) periódicas, verificar se am
“ légua patrimonial” , e sendo doadas a outras quatro léguas
bos estavam bem utilizados e protegidos. N ão foram pou
em quadra (FREIRE, 1906).
cas as admoestações feitas p o r eles às Câmaras Municipais
C om o progredir do povoamento, a C oroa preocu
para que cuidassem m elhor de seus patrimónios e im pedis
pou-se em garantir terras para as vilas que ainda seriam
sem a apropriação indébita dos baldios, notadamente da
criadas. Passou-se então a incluir nas cartas de sesmaria, a
queles destinados à engorda d o gado destinado à com ercia
partir do início do século X V III, a cláusula de que se E l-
lização ou ao abate (as invem adas).
R e i decidisse “ fundar naqueles distritos alguma vila, o poderia mandar fazer, ficando a terra em que se fundar 216
217
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO BRA S I L C O L O N I A L
Costa P orto (1965: 96) indica que, em Pernambuco,
A s sesm arias d e chãos
os exem plos dessa isenção são vários: “ quando fazem doa Além das sesmarias de terras dadas a particulares
ção d e ‘chão’, as cartas ou adotam a linguagem genérica do
para fazer lavouras e criar gado, e das sesmarias dadas aos
‘livre, foro [fo rro ] e isento’, ou declaram, expressamente,
conselhos para patrim ónio municipal, os representantes da
qu e a doação é ‘isenta do dízim o de D eus’, ou com isenção,
C oroa (donatários, governadores, capitães-mores etc.) doa
‘p o r não ser para cultivar’, ou ‘visto serem para edificar’ .”
ram também um outro tipo de sesmaria no Brasil colonial.
N ã o é certo que a mesma prática tenha ocorrido em todas
Trata-se das sesmarias de chãos, ou seja, da doação d e solo
as outras capitanias. N o R io de Janeiro, as poucas cartas.de
aos moradores dos núcleos urbanos para que ah construís
doação que resistiram ao tem po reproduzem o que as
sem suas casas d e moradia e quintais.
O rdenações exigiam para as concessões de sesmarias de
M uito pouco se sabe hoje dessas doações urbanas p ri
terras, isto é, determ inam o pagam ento do dízim o. Toda
mordiais; seus registros, hoje na m aior parte perdidos,
via, os chãos destinavam-se à construção de residência e à
foram geralmente desprezados pelos historiadores do pas
produção de quintal, de uso dom éstico, e jamais foram eles
sado (P iz a r r o e A r a ú j o , 1900; Jo f f i l y , 1893; F r e i r e ,
sujeitos ao tributo.
1906). Preocupados em registrar as sesmarias de terras, um esforço louvável, eles acabaram deixando de lado “ as cartas dos pequenos chãos para casas, distribuídos no perím etro urbano, tão importantes para a localização das moradas dos primeiros habitantes da cidade e para a história de nossos logradouros” (Arquivo Nacional, 1967: vi). A o contrário das sesmarias de terras, as doações de chãos não estavam sujeitas ao dízim o. C om o já visto, o d ízi m o se aplicava, não sobre o solo, mas sobre a produção, in cidindo, assim, não sobre o m orador na qualidade de p ro prietário, mas sobre o cristão, que sendo o único habilitado a receber terras de sesmaria, era então obrigado a concor rer financeiramente para o esforço de propagação da fé.
•
A doação de sesmarias de chãos com plexificou bas
tante o panorama territorial dos núcleos urbanos coloniais. A lé m de não estarem sujeitas ao pagamento do dízim o, essas terras, p or serem alodiais, também estavam isentas de qualquer tributo municipal, ainda que ocupassem as áreas mais centrais (e valorizadas) das cidades e vilas. C om o correr da colonização, e procurando aumentar as suas rendas, não foram poucos os governos locais que tentaram im p or foros a esses chãos alodiais, o que deu origem a inú meras demandas judiciais. Graças a elas, podem os recupe rar, hoje, diversas informações sobre o Brasil urbano do passado.
P o r isso, só estavam sujeitas ao pagam ento do dízim o as terras destinadas à agricultura e à pecuária, ficando livres do tributo os chãos dados para moradia. 218
2 19
y
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I T Ó R I O NO BRASIL C O L O N I A L
A alienação da propriedade territorial
terra, isto p o d e parecer uma incongruência. Há, entretan to, uma racionalidade bastante clara nessas transações. As
F o i através do sistema sesmarial que se teve acesso
doaçoes d e sesmarias, bastante generosas, faziam-se sempre
legal à terra no Brasil Colónia. Cumpridas as exigências,
a partir d e um determ inado ponto d e comando do território
ficavam os proprietários de terras livres para fazer delas o
(um a vila ou uma cidade). P o r essa razão, a fronteira entre
que b em quisessem. Variando na forma, os docum entos de
as terras já concedidas e as que ainda estavam disponíveis
doação eram explícitos quanto a esse direito: "... e para sua
para doação foi rapidamente se afastando dos núcleos de
guarda e segurança lhes m andou ser fe ita esta C a rta pela
colonização. C o m o para garantir a doação bastava p ôr em
qu a l manda que eles hajam a posse e senhorio da d ita terra
produção um a p a rte da terra recebida, logo ficou claro que
para sem pre, para eles e todos seus herdeiros e sucessores,
terra virgem não era sinónimo de terra disponível, e esta é a
ascendentes e descendentes...” (A rqu ivo Nacional, 1967). A
razao pela qual muitas cartas de sesmaria estatuíam que,
alienação das propriedades variou, entretanto, em função
em sendo a terra solicitada já concedida, “ corresse adiante” ,
de quem era o beneficiário original.
ou seja, que fossem doadas as terras seguintes.
( g j A form a mais comum de alienação das sesmarias da
Resultou dai que, já no século X V I, o acesso k terra se
das a particulares foi a partilha pelos herdeiros. Muitas en
tom ou difícil a muitos colonos recém-chegados. M esm o que
tretanto passaram de mão por dote de casam ento ou por
tivessem recursos materiais para solicitar sesmarias, as terras
legados pios, isto é, por doações feitas à Igreja e às ordens
disponíveis já se situavam longe dos portos ou muito perto
religiosas, que se com prometiam , em contrapartida, a cum
do gentio hostil. Surgiu daí o paradoxo do aparecimento de
prir diversas obrigações p ost-m ortem aos doadores, com o
um ativo m ercado de terras junto aos centros de povoamen
dar-lhes sepultura em recinto sagrado, oficiar capelas de
to, com os sesmeiros mais antigos vendendo ou arrendando
missas (50 missas) por suas almas etc. E m terras de en ge
suas cobiçadas terras àqueles que chegaram depois.
nho, foi comum a alienação por enfiteuse, utilizando-se a
As sesmarias concedidas às ordens religiosas e às
tarefa (30 braças em quadra, ou 4.356 m2) com o m edida de
câmaras municipais seguiram um outro processo: aí predo
referência para a transferência do dom ínio útil. E m bora
m inou a alienação p o r enfiteuse, variando, entretanto, o
mais raro, foram instituídos também alguns m orgados, for
prazo de cessão d o dom ínio útil. E m muitos casos optou-se
ma jurídica segundo a qual o proprietário assegurava a
p e lo fa teu sim p e rp é tu o ,4 ou seja, pela transferência do *
transferência das terras apenas ao filho mais velho, evitan do assim o seu retalhamento. A venda e o arrendamento tam bém se verificaram desde o início da colonização. Dada a existência d e tanta 220
* Variadas são as formas pelas quais o contrato enfitêutico em perpetuidade apa rece nos documentos d e arquivo. A s seguintes denotações foram encontradas em nossa pesquisa:
fateosim,
fatoesim, fatoizim, fatuizem,
221
fatuizim, factuizim.
E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S
A A P R OP R I A Ç Ã O DO T E R R I T Ó R I O NO B R A S I L C O L O N I A L
dom ínio indireto para sempre, beneficiando o fo reiro e
espécie d e im posto de transmissão. Os aforamentos p o r
todos os seus herdeiros. M uitos aforamentos, entretanto,
prazo lim itado continham, p or sua vez, uma cláusula im
foram feitos p or tem po determ inado, limitando-se o prazo
portante: em bora determ inando que o dom ínio útil rever
em vidas (por exem plo, em 3 vidas, o que incluía a vida do
teria ao aforador ao fim do contrato, garantia-se ao foreiro
foreiro original e as de dois de seus herdeiros) ou em anos
qu e quisesse renová-lo a precedência sobre quaisquer ou
(sendo comum aqui o aforam ento p or nove anos ou seus
tros pretendentes (o d ire ito de preem p çã o).
múltiplos). Este últim o tipo de aforam ento tinha a vanta
Am bos os contratos continham, finalm ente, outra
gem de perm itir que o detentor do dom ínio direto optasse
cláusula importante: proibia-se o desm em bram ento das
p or reaver o dom ínio útil da terra ao fim do contrato,
terras durante a sua vigência. Esta condição, imposta pelas
pagando, entretanto, pelas benfeitorias nela realizadas p e lo
O rdenações aos contratos enfitêuticos, determ inava ainda
foreiro.
que, no caso de m orte d o foreiro, todas as terras passariam
Independente d o tem po de cessão do domínio- útil, o
a um só herdeiro, exigência que hoje se revela preciosa aos
diplom a enfitêutico era perm eado de condições que lim ita
pesquisadores, que p od em assim tentar recuperar (existin
vam a ação dos foreiros, ainda que nem sem pre tenham si
d o ainda a docum entação) os antigos lim ites territoriais da
do elas rigidamente obedecidas. Estatuía-se sem pre a anu
colónia.
lação do contrato se o foro deixasse de ser pago p o r três anos consecutivos, perdendo então o foreiro não apenas as terras, mas tam bém as benfeitorias nelas realizadas. Proibia-se ainda ao foreiro vender, traspassar, dar ou escambar
Controles, descontroles e “brechas” da apropriação territorial
as terras sem o consentimento do proprietário direto. T o davia, concordando este últim o com a transação, uma nova carta deveria ser expedida ao novo foreiro.
Caracterizado, desde o início, pela im ensidão das g le bas concedidas e pela im precisão de seus lim ites, era inevi
O contrato em perpetuidade não isentava o foreiro,
tável qu e o processo d e apropriação das terras brasileiras
cada vez que alienasse o dom ínio útil das terras, de pagar
acabasse dando origem , com o tem po, a uma série de
ao senhorio direto um tributo de 2,5% sobre o valor da
conflitos.
venda. Era o laudêm io, ou laudêm io da quarentena, uma
Os posseiros surgiram desde o início. N ã o tendo aces so a terras gratuitas a não ser a grandes distâncias dos núcleos de povoam ento, muitos sesmeiros potenciais sim
factiiozim, fauteusim, fetuizim, fetulzin, fatíosim, fatíosiom, fatiozam, fateo sim, fateum sine, phateosim, phateozim, phateusim, phatoesim, infatuizi, infituizi, enfittoizim, enfiteusim, emphiteuti, infatíota.
222
plesm ente optaram p o r ocupar porções não aproveitadas de sesmarias já concedidas. Alguns deles, ricos e podero223
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
sos, conseguiram inclusive ob ter legalm ente essas terras,
mais extensa que a m etrópole, fracam ente povoada, sujeita
tom ando letra morta a cláusula sesmarial de que a doação
a um processo d e exploração de terras grandemente preda
só era válida “ não tendo sido já dada a terra a outrem ” . As im precisões das cartas d e sesmaria tam bém facili taram bastante a eclosão de disputas fundiárias. O uso de
f.
v) p '/ v?0 ' V*1
A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO B RA S I L C O L O N I A L
tório, d ifícil de ser fiscalizada e, portanto, pouco enquadráv e l aos controles administrativos que vigoravam no Reino. Tentando retom ar as rédeas do processo de colonização,
marcos qu e não tinham perenidade era com um ( “ uma pal
que lhe fugia das mãos, o governo português passou então
m eira que está em cim a d o outeiro” , p or exem plo), não
a intervir cada v e z mais nos assuntos territoriais brasileiros.
sendo rara a ausência total d e qualquer identificação preci-
Sucederam-se então as cartas régias, as disposições, as p ro
sa (umas terras atrás da Serra da Boa Vista, p o r exem plo).
visões, os alvarás, os avisos e os decretos, que tentaram dis
Adem ais, as sesmarias eram doadas “em quadra” , “ com o se
ciplinar, às vezes d e form a contraditória, a concessão de
o solo, onde se as devia dem arcar fosse uma superfície
sesmarias no Brasil.
^ r e g u la r , plana, horizontal, desataviada de acidentes geográ-
A legislação específica com eça a surgir em 1695,
ficos, sem relevo de qualquer espécie” (FERREIRA, 1979:
quando a Carta R égia de 27 de dezem bro ordenou ao Go-
45). Resultou daí que muitas doações acabaram se inserin
vem ad or-G eral que “ às pessoas, a quem se der de futuro,
do umas nas outras, gerando as mais diversas tensões.
sesmarias, se imponha, além da obrigação do dízim o e as
Nas áreas urbanas tam bém eclodiram conflitos, seja
mais costumadas, a de um foro, segundo a grandeza ou
pela apropriação indébita das terras públicas, seja devido à
bondade da terra” . C om o o foro “ não incidia sobre a pro
ocupação crescente dos terrenos localizados à beira do m ar
dução, mas sobre as terras (ao contrário do dízimo), com
ou dos rios navegáveis, que causava em pecilhos à defesa
preende-se que um dos objetivos visados pela m etrópole
das cidades e vilas e ao transporte de mercadorias. Sur
era desestimular sesmeiros a m anterem sob seu dom ínio
gidos os conflitos, e dada a extrem a centralização do pro
terras im produtivas” (SILVA, 1990:1, 53).
cesso decisório que caracterizou a colonização portuguesa
A ordem , entretanto, era polêm ica. Para C im e Lim a
no ultramar, a interferência da M etróp ole acabou quase
(1954: 38), a diretiva “ envolvia uma transformação com ple
sempre sendo necessária.
ta da situação jurídica d o solo colonial... e inaugurava, en tre nós, o regim e dominialista” . Para Freire (1906: 137), p o r outro lado, ela transformava os sesmeiros em enfiteu
Controles im postos às sesm arias de terras
tas d o Estado. Indepen den te dessas filigranas jurídicas, o fato é que a resistência dos colonos foi grande, as consultas
N o final do século X V II, a C oroa reconheceu os tra
ao C onselho Ultram arino se sucederam, e estas parecem
ços singulares de sua principal colónia, incom paravelm ente
te r sido as razões pelas quais a le i “ não pegou” de imediato
224
225
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO B R A S I L C O L O N I A L
em toda parte: a não ser em Pernambuco, onde as cartas
ses que demarcassem as terras antes d e tom ar posse delas.
de doação incluem essa cláusula já a partir de 1699 (R e
O Alvará d e 3 de maio de 1795, p or sua vez, tentou conso
cife: 1954), nas demais capitanias isso só ocorreu bem mais
lidar todas essas determ inações num único diplom a, e
tarde. N ão há com o negar, entretanto, que a Carta d e 1695
introduziu o e feito retroativo: quem não cumprisse o esta
foi o passo inicial do desligam ento do sesmarialismo brasi
b elecid o perdia a sesmaria. Esse alvará, qu e tam bém d e
leiro do texto das Ordenações (C l R N E L I M A , 1954: 39).
term inava que o dom ínio pleno das terras só ocorria após a
Esse não cum prim ento de uma ordem real não d eve
sua demarcação e confirm ação real, acabou entretanto sen
causar espanto. A legislação colonial era dispersa e se pau
d o suspenso sine d ie p elo alvará de 10 de dezem b ro de
tou pela inconstância. Pela m esm a Carta R égia de 1695,
1796, devido aos “ embaraços e inconvenientes que podem
por exemplo, a M etróp ole fixou lim ites às sesmarias, d eter
resultar da [sua] im ediata execução” (COSTA PORTO, 1965:
minando que não se concedesse “ a cada m orador mais de
137-141).
quatro léguas de com prim ento, e uma de largo” . Todavia,
P o r ser a legislação bastante avulsa, consistindo de
logo a seguir, a Carta R égia de 7 d e dezem bro de 1697 e a
normas e providências que se aplicavam às vezes a uma
Provisão de 20 de janeiro de 1699 reduziram esse lim ite
única capitania, às vezes sobre todas elas ,5 C im e Lim a
para três léguas de com prido e uma de largo, ou légua e
(1954: 39) considerou que, à prim eira vista, era difícil cha
m eia em quadra, “que é o que se entende p ode uma pes
m ar o estatuto da sesmaria de estatuto, concluindo, entre
soa cultivar no term o da L ei, porque o mais é im pedir que
tanto, que essa denom inação não lhe era descabida. Isto
os outros povoem ...” . Esse patamar foi novamente aum en
não quer dizer, entretanto, que as diretivas reais tenham
tado pela Carta R égia de 12 de janeiro de 1701, que trata
sido sem pre seguidas. Com pulsoriam ente incluídas nas
de doações no R io Grande do N orte, para “ quatro léguas
cartas de doação, as ordens régias nem sem pre eram rigi
de comprido e uma de largo, ou duas em quadra, que é o
dam ente cumpridas. Ademais, algumas condições, com o a
que comodamente pode povoar cada m orador” . A provisão
obrigatoriedade de m edição e de confirm ação régia, im pli
de 19 de maio de 1729, entretanto, determ inou que “ as
cavam altos gastos p or parte dos sesmeiros, qu e as poster
sesmarias não devem exceder a três léguas de com prido e uma de largo” (Fragmentos...: 96-97). Outra im portante decisão foi a obrigatoriedade de confirmação régia da doação para a garantia da proprieda
5 H o u v e diversas legislações específicas. A partir de 1697, as cartas de sesmaria concedidas em algumas capitanias passaram a incluir a cláusula de ficarem as madeiras nobres (tapinhoães e perobas) reservadas para o real serviço, proibindose o seu corte. P o r isso foram posteriormente chamadas d e m adeiras-de-lei. A
de plena, introduzida pela Carta R égia de 23 de novem bro
carta régia de 1711, po r outro lado, limitou as dadas de terras situadas junto aos
de 1698, endereçada ao governador do R io de Janeiro.
caminhos abertos para as minas gerais em um a légua em quadra. Provisão passa
L o g o a seguir, exigiu-se tam bém dos sesmeiros flum inen
nuiu entretanto esse limite para m eia légua em quadra.
22 6
d a ao G overn ador do Rio de Janeiro, Lu iz Vahia Monteiro, em 15/3/1731, dimi
22 7
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I T Ó R I O N 0 BRASI L C O L O N I A L
gavam o mais que podiam , ou m esm o descumpriam-nas.
reconheceu as sesmarias antigas, ratificou formalmente o
C om o b em lem brou Silva (1990, I: 82),
regim e das posses, e instituiu a com pra com o a única for m a de obtenção d e terras. Só em 1854, entretanto, é que
“ a M etró p ole insistia em considerar o assunto apenas
essa lei foi regulam entada (SILVA, 1990).
do ponto de vista jurídico, sem atentar para as con di ções socioeconôm icas da colónia, que haviam gerado aquele padrão de ocupação territorial. N a realidade subestimaram a força social dos moradores e colonos
C ontroles sobre as propriedades das ordens religiosas
que cada v e z mais se afirmavam com o os donos da terra. A m etrópole tam bém não atentou para o fato
Grandes parceiras do processo colonizador, as ordens
de que a multiplicação das exigências para legalizar as
religiosas regulares receberam diversas sesmarias no Brasil.
propriedades dos colonos sesmeiros, e a sua resistên
D e início, as terras concedidas às “ religiões” , com o eram
cia em obedecê-las, estabeleciam cada vez mais um
então conhecidas, estavam sujeitas ao dízimo. Logo, entre
cam po de interesse com um entre uma parcela dos
tanto, isso mudou. Os jesuítas foram dispensados do tribu
colonos sesmeiros e os colonos posseiros. Interesse
to p o r breve d e Sisto V já no final d o século X V I (L iv ro de
com um que desafiava a autoridade da m etrópole” .
Tom bo..: 348). Beneditinos e carmelitas, ao que parece, jam ais obtiveram esse privilégio, mas passaram também a
O sistema sesmarial perdurou no Brasil até 17 de
demandá-lo, ou recusaram-se m esm o a pagar o dízimo,
julho de 1822, quando a Resolução 76, atribuída a José B o
alegando que a sua cobrança servia para financiar o esforço
nifácio d e Andrada e Silva, pôs term o a esse regim e de
d e propagação da fé católica, e este era, pelo menos em
apropriação de terras. Segundo Smith (1990: 284, 304), “ a
tese, o objetivo da vinda das corporações religiosas ao
m edida suspensiva de doação de sesmarias... encontrava-se
Brasil.
inserida numa simples sentença de concessão d e terra,
C om o tem po, o patrim ónio territorial dos conventos e
onde, em continuidade, um adendo declarava laconicamen-
mosteiros com eçou a crescer bastante, seja por compra ou,
te a suspensão, a partir daquela data, de todas as concessões
o que foi mais com um , graças aos legados pios. Mesm o
futuras de sesmarias, até a convocação da Assembléia G eral
ob ten do rendas crescentes de suas propriedades, as corpo
Constituinte” .
rações resistiam ao pagam ento d o dízim o, em claro prejuízo
A partir daí a posse passou a cam pear livrem ente no
da Fazenda Real. Relatando esta situação, assim se expres
país, estendendo-se essa situação até a promulgação da L e i
sava “ um contem porâneo muito bem informado” do final
de Terras (L e i n.° 601, de 18 de setem bro de 1850), que
d o século X V II, com o o qualificou Capistrano de Abreu:
228
229
E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S
A A P ROP RI A Ç Ã O DO T E R R I T Ó R I O N 0 B R A S I L C O L O N I A L
“ Das fazendas, terras, lavouras e propriedades possuí
“ Porquanto o passarem os bens foreiros para Religião,
das das Religiões nem Sua Majestade tem tributos,
ou outras comunidades que nunca morrem , e raras
nem subsídios, nem dízimos, nem as misericórdias,
vezes alheiam, é em grande prejuízo, assim dos foros
nem os hospitais, nem as sés, nem as matrizes e mais
em vida, pela falta de renovação, e d e quaisquer, pela
igrejas, nem as confrarias e irmandades, nem as p o
diminuição dos laudêmios, ordenou que sendo caso
bres órfas e viúvas têm esm ola alguma: só são úteis às
que daqui por diante se aforem ou renove alguma pro
Religiões que as possuem e não a outra pessoa algu
priedade, se lhe ponha expressa condição de não pas
ma... Anualmente vão indo às Religiões muitas p ro
sarem as ditas... a comunidades que chamam recair em
priedades, terras, fazendas, ou por compras, ou p or
mão ou cabeça morta...” (TOURINHO, 1931: 16).
deixa, ou por herança, ou p o r demanda d e pretensões de 60, 70, 80, 90 e 100 anos, as quais em p od er dos vassalos seculares eram sujeitas a dízimos, tributos e
Essa diretiva acabou se aplicando, logo a seguir, a
mais pensões e, incorporadas em religiões, ficam
todas as terras dadas de sesmaria. Pela Carta Régia de 27
isentas.” (apud COSTA PORTO, 1965: 107-108)
de junho d e 1711, ordenou o R ei que nelas não sucedessem religiões por nenhum título, e, se isso acontecesse, que fos
Preocupada com o crescente poderio das ordens reli
se com o encargo do pagamento do dízim o (Fragm entos:
giosas, e atendendo às reclamações dos contratadores dos
103-104). O cerco atingiu seu clímax em 1759, quando D.
dízimos e das câmaras municipais, a C oroa decidiu então
José I aboliu a Companhia de Jesus de todos os seus dom í
vigiar mais de perto as “ religiões” . As crises económicas do
nios e ordenou o confisco de seus bens, o que fe z reverter à
final do século X V II, ao exigirem do Estado um redobrado
C oroa o imenso património fundiário que os jesuítas
esforço arrecadador, atuaram tam bém nessa direção. M os
haviam amealhado no Brasil desde o início da colonização,
teiros e conventos foram então obrigados a apresentar se guidas relações dos rendimentos de suas fazendas, en ge nhos, currais, e roças, para que o dízim o fosse cobrado (Segundo Livro do Tombo: xxi). N o século X V III o cerco se intensificou ainda mais. Tentando evitar que as rendas municipais fossem dim inuí das por legados pios feitos às com unidades de m ã o-m orta ,
grande parte do qual foi logo vendida a particulares. Poupadas dessa decisão extrema, as demais ordens religiosas não escaparam entretanto do cerco do Estado. As requisições de relações detalhadas d e propriedades não só continuaram, com o foram seguidas, v e z por outra, de ordens expressas para que alienassem bens de raiz, doando
os ouvidores da Coroa passaram a im pedir que isso viesse a
o dinheiro obtido à C oroa ou em prestando-o a juros favo
ocorrer, com o bem demonstra o auto da correição ocorrida
ráveis. A Independência não diminuiu a pressão sobre os
no R io de Janeiro em 1710:
bens das “religiões” . Proibidas de aceitar noviços para que 230
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO BRA S I L C O L O N I A L
não se expandissem, as ordens religiosas foram tam bém
à terra. Os que possuíam recursos puderam adquirir ou
com pelidas p elo G overno Im perial a desamortizar seus
aforar antigas sesmarias ou partes delas. Grande parte,
bens de raiz, que diminuíram bastante. F o i só com a pro
entretanto, acabou se transformando em meeiros, rendei
clamação da República, e com a consequente separação da
ros, ou simples “agregados” dos proprietários rurais, for
Igreja do Estado, que lhes foi dada plena liberdade para,
m ando toda uma classe de pobres livres que habitava o
com o sociedades anónimas, administrar seus bens, receb er
cam po, mas que não tinha bens de raiz.
novamente noviços, e gerir, enfim , seu próprio destino (Segundo L iv ro do Tom bo: xxv-xxxi).
A im portância dessa população não-proprietária para o setor produtivo era, entretanto, bastante grande, e é por isso qu e os patrimónios religiosos foram surgindo por toda a colónia. Eram glebas cedidas por um ou vários proprietá
I
rios fundiários para que os trabalhadores sem terra pudes
O s 'p a trim ó n io s re lig io s o s
sem ah fixar residência. A cessão, entretanto, não se fazia Concomitante ao crescente controle do Estado sobre
diretam ente a eles. O beneficiário era sempre o orago de
as ordens religiosas, floresceu no Brasil do passado um ou
uma capela já existente ou que se queria erigir no local,
tro tipo d e apropriação territorial que teve na Igreja um im
cabendo à Igreja, em nom e do padroeiro, administrar esse
portante ponto de apoio. Trata-se dos pa trim ónios re lig io
p a trim ó n io . Para tanto, era comum a instituição de uma
sos, verdadeiras “ brechas” d o e no sistema sesmarial, com o
irmandade, que aforava então aos colonos as terras recebi
bem os definiu M urillo Marx (1991: 41). Vários autores já os
das. Garantia-se assim uma renda regular à capela, condi
discutiram com petentem ente (MORAES, 1935; DEFFONTAI-
ção que o ju ízo eclesiástico impunha para que os serviços
NES, 1944; AZEVEDO, 1957; MARX, 1991).
religiosos pudessem ser oferecidos com a regularidade e
C om o já visto, o progredir da colonização interiorizou
decên cia exigidas pelas leis canónicas.
rapidamente a apropriação de ju r e do território. Todavia, a
' $ > Para os proprietários fundiários, a instituição de um
expansão d o povoam ento sobre as terras concedidas de
patrim ónio religioso era vantajosa: pela cessão de uma p e
sesmaria, isto é, a sua apropriação de fa c to , acabou sendo
quena porção de terra garantiam a presença, no local, de
mais lenta. D e um lado, as glebas tendiam a ser grandes
uma população gregária que lhe era bastante dependente,
demais; de outro, e salvo as exceções dos ricos sesmeiros, o
notadam ente para a obtenção de trabalho. Para os colonos,
seu aproveitamento integral implicava despesas elevadas
p or sua vez, a obtenção d e um chão, p or menor que fosse,
(notadamente em escravos), que a maioria não tinha com o
significava ter acesso à terra. D a repartição desses patrimó
fazer. Muitos colonos acabaram também não tendo acesso
nios surgiram, portanto, pequenos arraiais, alguns dos quais
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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I T Ó R I O N'0 B R A S I L C O L O N I A L
prosperaram e tom aram -se freguesias. M uitos foram mais
e que, para a construção, reclam avam pesados e custosos
tarde elevados à categoria de vilas .6
serviços d e aterro e de drenagem . C o m o p rogred ir do p o
i
voam ento, entretanto, esse ecossistem a assumiu uma im
Os patrimónios religiosos não foram uma peculiarida
portância vital para a econom ia colonial.
de do período colonial. C om o mostrou M o n b e ig (1984), a expansão do café p elo oeste paulista e p e lo norte d o
is
Im prestáveis para a construção, os terrenos d e man
Paraná, em pleno século XX, se apoiou fortem en te nesses
gue forneciam , entretanto, uma excelente m adeira para
patrimónios, que deram origem a um sem-número d e
encaibrar as edificações, e, d e sua casca, rica em tanino,
núcleos urbanos. A partir d e meados do século X IX , entre
serviam-se os curtidores, razão p ela qual era conhecida
tanto, passou a ser mais com um o estabelecim ento d e
com o m angue verm elh o, ou m angue de sapateiro. E ra tam-
pa trim ónios leigos, isto é, de glebas que eram reservadas
b é m nos mangues que os fogões dom ésticos e as fornalhas
em loteamentos rurais feitos por indivíduos ou p or socieda
dos engenhos e caieiras preferen cialm ente se abasteciam
des imobiliárias. A í eram construídas edificações destina
d e lenha. Os manguezais alimentavam, ademais, m ultidões
das à administração ou ao com ércio, que se constituíram,
d e crustáceos, que desde cedo constituíram-se em com p le
p o r sua vez, em em briões d e outros tantos núcleos urbanos
m en to essencial da dieta alim entar das populações mais
d o país.
pobres. Incluídos nas glebas distribuídas de sesmaria, os man gues, p o r suas diversas utilizações, ced o tomaram -se palco d e conflitos. O prim eiro d e que se tem notícia ocorreu no
O s terre n os d e m a rin h a
R io d e Janeiro em 1647 e envolveu a Com panhia d e Jesus. Com o lembrou Costa Porto (1965: 161), sobrando ter
D onos d e grande sesmaria às margens da baía d e Gua
ra firm e por toda parte nos com eços da colonização para la
nabara, os jesuítas passaram a im p ed ir que a população se
vouras e edificações, ninguém iria se interessar pelos man-
utilizasse dos mangues aí existentes, o que levou a Câmara
guezais, terrenos alagadiços imprestáveis para a agricultura
a se dirigir diretam ente ao R ei, argumentando que “ os mangues e salgado eram livres” e que sobre essa questão já havia “ algumas sentenças, que foram dadas em a form a dos
6 N o te-se que nas regiões q ue ainda estavam sendo povoadas, e onde ainda esta vam sendo concedidas sesmarias, era o próprio E stado q u e instituía um patrim ó
forais” (Prefeitura..., 1935: 137). Apelava-se, ademais, às
nio. Diversos sâo os casos de concessão d e sesmarias para “património da Igreja
Ordenações, que definiam que todos os rios navegáveis e
M atriz”, que tendiam a ser b em maiores q u e os patrimónios religiosos instituídos
portos d e mar eram propriedade real (O . M ., L iv ro II,
p o r particulares. A instituição d a freguesia de Guaratuba, Paraná, foi acom panha d a d e um património de meia légu a em quadra. O “registro d e Curitiba", p o r sua vez, recebeu uma légua em quadra. Já os “C am pos das Lages” foram agraciados com duas léguas e meia em quadra (São Paulo...).
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T ítu lo X V ). E m 1677, novo incidente ocorreu com os jesuítas do
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