Explorações geográficas: percursos no fim do século 8528606260


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Explorações geográficas: percursos no fim do século
 8528606260

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sempre, a geografia tem sua ideiu.^ade a à aventura das explorações. Os “novos m

da atualidade não são mais constituídos por

jnca visitadas ou por trilhas nunca percorridas,

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^explorações geográficas consistem em

GpGANIZADORES

IN Á ELIAS DE CASTRO

iras metáforas das antigas. Os mundos novos são

PAULO CÉSAR D A COSTA GOMES

!> nosso cotidiano, as descobertas são novas ~le olhar, de relacionar, de conceber; as viagens ^jorâneas são constituídas pela interiorização em ^ rcursos temáticos. Neste sentido, a Terra la não cessa de ser redescoberta. A aventurosa í e exploratória não acabou, mudaram as bes, os instrumentos e os sentidos. Afinal, hoje )fee pelos espaços das grandes redes de inforJle as caravelas que erram nestes mares são as i-chaves, conceitos, instrumentos de nossas luscas. Explorações de novos temas, em outros >e em novas abordagens, são a matéria que ;t;es inéditos relatos de viagem aqui expostos.

ROBERTO LOBATO CORRÊA

N .C h a m

910

E96

Título: Explorações geográficas no fim do século . IS B N 8 5 -2 8 6 -0 6 2 6 -0 1068768

percurs»

9 9

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARA BIBLIOTECA DE CíENCiAS E TECNOLOGIA

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

UFC/BU/BCT

R1068768 C412945 910

10/05/1999

E x p lo r a c o e s g e o g r á fi c a s E96

:

BIBLIOTECA DE CiENCIAT

L eia também:

Iná Elias de Castro O M ito da Necessidade Iná Elias de Castro

Paulo Cesar da Costa Gomes Roberto Lobato Corrêa {organizadores)

G eografia e M odernidade Paulo Cesar da Costa Gom es Trajetórias Geográficas R oberto Lobato C orrêa Brasil: Uma N ova Potência Regional na Econom ia-M undo Bertha K. Becker e Cláudio A. G. E gler Brasil: Questões Atuais da Reorganização

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS PERCURSOS NO FIM DO SÉCULO

do T e rritó rio Iná E. Castro, Paulo Cesar C. Gom es e R oberto L . Corrêa (orgs.)

UFC/BU/BCT

R1068768

10/05/1999

Exploracoes g e o g rá fic a s :

C412945 910

BERTRAND BRASIL

E96

UNIVERSIDADE FEDERAL D0 CEARÁ BIBLIOTECA DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA Copyright © 1997, Iná Elias de Castro, Paulo Cesar da Costa Gomes, Roberto Lobato Corrêa, M arcelo Lopes de Souza, Paul Claval, Zeny Rosendahl, Maurício de Alm eida Abreu, Pedro de Almeida Vasconcelos, Olga Maria Schild Becker Capa: projeto gráfico de Leonardo Carvalho, usando detalhe da tela Võg elteich am Rio de S. Francisco, atribuída a Cari Friedrich Phillip von Martius, nanquim e sépia, 30,5 x 40,5cm (Fundação Maria Luísa e Oscar Americano, São Paulo, Brasil). Editoração: A rt Line 1997 Impresso no Brasil

Printed in Brazil

Su m ário

^ioesyçs

33o

é CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

E96

Explorações geográficas: percursos no fim do Século / Iná

Apresentação

*

Elias de Castro, Paulo Cesar da Costa Gom es, Roberto Lobato Corrêa (organizadores). — Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

G eografia fin-de-siècle: O discurso sobre a ordem I S B N 85-286-0626-0

espacial do m undo e o fim das ilusões

1. Geografia. I. Castro, Iná Elias de. II. Gom es,'Paulo Cesar da Costa. III. Corrêa, Roberto Lobato.

97-1616

C D D 910 C D U 910

13

Paulo Cesar da Costa Gom es A expulsão do paraíso. O “paradigm a da com plexi­ dade” e o desenvolvim ento sócio-espacial

43

M arcelo Lopes de Souza Todos os direitos reservados pela: B C D U N IÃ O D E E D IT O R A S S.A. Av. Rio Branco, 99 - 20? andar - Centro 20040-004 —R io de Janeiro —RJ TeL: (021) 263-2082 Fax: (021) 263-6112

As abordagens da G eografia C u ltu ra l

89

Paul C laval 119

O Sagrado e o Espaço Zen y Rosendahl

N ão é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito da Editora.

Atendemos pelo Reembolso Postal.

9

? ) Im a gin á rio p o lítico e te rritó rio : natureza, regionalism o e representação

155

Iná Elias de Castro

5

EX P L ORA ÇÕE S GEOGRÁFI CAS

( ^ } A apropriação do te rritó rio no B rasil colonial

197

M aurício de A lm eida Abreu (^ 5) Os agentes modeladores das cidades brasileiras no períod o colon ia l

247

A presentação

P ed ro de A lm eida Vasconcelos Interações espaciais

279

R oberto Lobato C orrêa M obilidade espacial da população: conceitos, tip ologia, contextos

319

O lga M aria Schild Becker

D esde sem pre, a geografia tem sua identidade asso­ ciada à aventura das explorações. Descobridores, viajantes, cosm ógrafos são, por isso, os legítim os antecessores dos geógrafos acadêmicos surgidos no final do século XIX. A partir desta época, em que pouco restava para ser “desco­ berto” , a aventura das explorações não cessou, mas mudou profundam ente seu sentido. Os “novos mundos” da atuali­ dade não são mais constituídos por terras nunca visitadas ou por trilhas nunca percorridas. H oje, as explorações geo­ gráficas consistem em verdadeiras metáforas das antigas. Os mundos novos são parte do nosso cotidiano, as desco­ bertas são novas formas de olhar, de relacionar, de conce­ ber; as viagens contemporâneas são constituídas pela interiorização em novos percursos temáticos. Neste sentido, a Terra incógnita não cessa de ser redescoberta. Percebem os facilm ente que os viajantes do passado descobriam reais mundos novos, mas muitas vezes procu­ ravam com preendê-los seguindo o modelo do seu próprio mundo conhecido. As explorações geográficas atuais são

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7

E X P L O R A Ç Õ E S GEOGRÁFI CAS

APRESENTAÇÃO

exatamente o oposto: iluminam formas e processos conhe­

sões, suas incoerências e seus lim ites e adm ite que estaría­

cidos para mostrar novos aspectos, sombreados e esqueci­

mos vivendo o fim do período de vigência dessas idéias. A

dos pela pretensiosa suposição do conhecim ento nascido

segunda parte do seu trabalho é o estabelecim ento de no­

da simples co-presença. Os lim ites deste novo mundo são

vos fundamentos que poderiam passar a guiar as bases de

infinitos, não cessam de ser engendrados nesta atividade

um saber geográfico. Para ele a geografia é a ordem espa­

incessante do conhecim ento. A aventurosa atividade explo­

cial das coisas e seu cam po disciplinar se define pela inves­

ratória não acabou, mudaram as pretensões, os instrumen­

tigação desta ordem . D esta perspectiva resulta um novo

tos e os sentidos. Afinal, hoje navega-se pelos espaços das

patam ar nas relações entre as ditas geografias humana e

grandes redes de inform ação, e as caravelas que erram nes­

física e em novos temas de investigação relacionados a este

tes mares são as palavras-chaves, conceitos, instrumentos

campo.

de nossas novas buscas. Explorações de novos temas, em

M arcelo Lopes de Souza argumenta, p or sua vez, a

outros tempos e em novas abordagens, são a m atéria que

favor da utilização do paradigm a da com plexidade para a

compõe estes inéditos relatos de viagem aqui expostos.

questão do desenvolvim ento sócio-espacial, cujas teorias

Nesta coletânea são apresentados artigos relativos a

existentes podem ser caracterizadas, em m aior ou m enor

novos quadros de referência, envolvendo uma reavaliação

grau, com o pertencentes ao paradigm a da sim plificação. O

epistemológica vinculada à concepção da natureza das ci­

autor aponta três temas com o relevantes para a troca inte­

ências sociais e de seus procedim entos de investigação,

lectual entre as ciências naturais e sociais: acaso e necessi­

particularmente da geografia, que im plica a dissolução de

dade nos processos sociais; a dialética entre ordem e desor­

alguns mitos.

dem e suas relações com a sociedade e o espaço; e pers-

A contribuição de Paulo Cesar da Costa Gom es de­ senvolve-se em dois principais movimentos. N o prim eiro,

pectivas de apropriação crítica pela pesquisa social da sinergética.

procura fazer o balanço de algumas idéias recorrentes na

O artigo de Paul Claval aborda a renovação da geo­

epistemologia da geografia, as quais teriam funcionado de

grafia cultural, uma tradição que tem suas origens no sécu­

fato como verdadeiros obstáculos ao desenvolvim ento da

lo X IX e que, a partir de 1970, é revitalizada. Estabele­

reflexão geográfica. C iência de síntese, ciência do em píri­

cendo o estado da arte deste ramo da geografia, o autor

co, morfologias classificatórias, objetividade dos dados,

p ercorre autores e escolas até chegar à m oderna geografia

naturalismo ou causalidade histórica são identificados co­

cultural que, ao colocar o hom em no centro de suas análi­

mo verdadeiras ilusões que teriam atuado de form a negati­

ses, precisou desenvolver novas abordagens. Estas incorpo­

va na definição de um cam po disciplinar especulativo, atu-

ram as sensações e percepções, a comunicação e á dim en­

ante e respeitável. E le procura apontar as raízes destas ilu­

são sim bólica, em oposição à perspectiva naturalista e re­

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9

E X P L OR A Ç ÕE S GEOGRÁFI CAS

AP RESE NTAÇÃO

gional do com eço do século, que se reduzia à análise dos

contribuem para, a partir das heranças do passado, eluci­

mecanismos que perm itiam às sociedades funcionarem,

dar o presente.

triunfando sobre os obstáculos da dispersão e da disPânria

A apropriação territorial no Brasil colonial é abordada

O tem a da geografia cultural tem ainda pouca tradi­

p or Abreu, que busca na Idade Média portuguesa as ori­

ção na geografia brasileira, o que aumenta a im portância

gens do processo. O sistema de distribuição de sesmarias e

da contribuição de Zeny Rosendahl, que penetra na di­

de terras urbanas, e a alienação da propriedade territorial,

mensão d o espaço im posta pelo sagrado. O devoto identifi­

são tratados p elo referido autor. Vasconcelos, por sua vez,

ca e vivência os espaços sagrado e profano, vinculando-os

apresenta os agentes m odeladores da cidade colonial brasi­

em três níveis: direto, indireto e rem oto. O simbolism o das

leira e discute as suas ações. O papel da Igreja, dos proprie­

formas espaciais ligadas ao sagrado, a vivência do espaço

tários rurais e dos traficantes de escravos, entre outros, é

sagrado nos santuários do catolicism o popular brasileiro e a

ressaltado, indicando o caráter historicamente variável dos

gestão religiosa do espaço são abordados pela autora.

tipos e ações dos agentes modeladores do espaço urbano.

Num a perspectiva inovadora da geografia política, Iná

Outras temáticas geográficas tradicionais são retoma­

Elias de Castro analisa o entrelaçam ento do im aginário po­

das a partir de uma reavaliação teórica, como são os estu­

lítico com o território e a natureza, entrelaçam ento este

dos referentes às interações espaciais e às migrações.

que contribui para tom ar inteligível a representação terri­

R oberto Lobato C orrêa retom a a temática das intera­

torial da política, o papel da natureza e do território no dis­

ções espaciais, considerando-as no âmbito do capitalismo,

curso p olítico e no regionalism o. A autora tom a com o pon­

particularm ente com o expressão do complexo ciclo de re­

to de partida a passagem do im aginário ao im aginário p olí­

produção do capital. As interações espaciais, por outro la­

tico e de ambos ao im aginário geográfico. Em sua análise,

do, apresentam padrões que refletem e condicionam a or­

a com preensão do p oder sim bólico do território abre novos

ganização espacial. Estão elas estruturadas em redes geo­

caminhos para a geografia política brasileira, na qual de­

gráficas, solar,- dendrítica, christalleriana, axial, circular e

vem ser incorporados os conteúdos dos muitos discursos

d e m últiplos circuitos, cada uma apresentando importância

regionalistas no país, os modos com o a natureza é apropria­

e significados próprios, que revelam a complexidade da or­

da nestes discursos e os problemas concretos da represen­

ganização espacial.

tação parlam entar de base territorial.

As m igrações são tratadas por Olga Maria Schild

Pequena tem sido também no Brasil a dedicação às

B ecker a partir de alguns questionamentos, como o que diz

pesquisas na geografia histórica. Maurício de Alm eida Abreu

respeito ao significado da m obilidade populacional, consi­

e Pedro de Alm eida Vasconcelos contribuem para sanar es­

derando diferentes concepções teóricas para compreender

ta lacuna com trabalhos sobre o período colonial. Am bos

o papel das m igrações na construção dos espaços que o

10



EX P L ORA ÇÕE S CEOGRÁFI CAS

capitalismo organizou no país, ou, ainda, para com preen­ der suas faces em diferentes momentos, contextos e esca­ las. A autora aborda, então, diferentes conceitos da m obili­ dade espacial da população através das visões neoclássica e neomarxista e das suas categorias analíticas, as únicas dis­ poníveis, apesar de serem questionadas. A atual conjuntura de crise no mundo do trabalho é discutida, evidenciando a necessidade de construção de um novo paradigma das

GEOGRAFIA F lN -D E -S lÈ C L E : O DISCURSO SOBRE A O R D EM ESPACIAL D O M U N D O E O FIM DAS ILUSÕES

migrações. O conjunto de estudos da presente coletânea é, em

Paulo Cesar da Costa Gom es

realidade, uma amostra do vigor da geografia que, ao intro­ duzir novas abordagens e temas e retom ar antigas tem áti­ cas, desempenha ativam ente seu papel de analisar, in ter­

R ecentem ente, em uma reunião de geógrafos e estu­

pretar e redescobrir a com plexa e m utável espacialidade

dantes, um expositor provocou muitos risos na platéia

humana.

quando se referiu às perguntas que têm , segundo ele, p er­ seguido os geógrafos a propósito do que é a G eografia, para que serve e a quem serve. D e fato, ao percorrerm os a Os Organizadores

história recente do pensam ento geográfico, percebem os, sem m uito esforço, que questões relativas à natureza do conhecim ento geográfico, sobre seu objeto, seus m étodos, os lim ites, o alcance e a im portância deste conhecim ento, têm tid o uma recorrência insistente na voz de alguns de seus principais representantes. M uito mais do que hilarida­ de, esta persistência deveria despertar o incóm odo, por exprim ir a incerteza daqueles que trabalham em um dom í­ nio sobre o qual pairam reiteradas dúvidas que afetam seu reconhecim ento, sua legitim idade e sua im portância. O fa­ to de rirm os, com suposta superioridade, não nos afasta de nossas dificuldades, e tentar ignorá-las ou escondê-las é a atitude, dentre todas, a mais perniciosa. P or isso voltam os a

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13

E X P L OR A Ç ÕE S GEOCRÁ FI CA S

C E O G R A F I A FIN-DE-SlÈCLí

este assunto, acreditando que os debates não foram encer­

despeito desta atitude conservadora, essas ilusões se perde­

rados e que o único riso possível diante desta urgência é

ram de form a mais ou m enos definitiva. E são essas ilusões

aquele que exprim e nosso desconforto.

que gostaríamos agora de explorar um pouco mais.

O lhando p or outro ângulo, o fato de a G eografia man­ te r p or um longo período essas discussões pode se revestir d e um significado bastante positivo. Isso quer d izer que ela

O f im das ilusões

se mantém atenta sobre a definição de seu cam po de estu­ dos, sobre sua relação com as outras disciplinas, atenta

A prim eira grande ilusão perdida a ser assinalada é a

sobre as questões em ergentes postas pelos novos contextos

da ciência de síntese. Os historiadores da ciência e das

sociais que a atravessam e, finalm ente, atenta ao seu papel,

m entalidades têm-nos mostrado o quão difundida era, no

com o cam po de reflexão e ação na sociedade. Por outro

final do século X V III e ao longo do século X IX , a idéia das

lado, manter-se atenta não significa perm anecer paralisada

grandes sínteses globais (G U S D O R F , 1978). Este foi o mo­

e pode m esm o sugerir que este tipo de reflexão é o veículo

m ento onde a ciência, diante do renascimento da razão e

que tem conduzido os geógrafos a participarem com segu­

de sua aplicação, do crescente fluxo de informações gera­

rança, cada v e z mais ativam ente, dos principais debates

das, e diante de novos campos de investigação, estabeleceu

acadêm icos e, diríam os mesmo, dentro de recortes teóricos

com o orientação não só inventariar este material, mas tam­

cada vez mais amplos.

bém organizá-lo segundo grandes eixos explicativos, gerais

E ntre a im agem da G eografia'com o um ideal de con­

e sintéticos, que funcionariam com o uma espécie de verte-

tem plação d o século X IX , presente no discurso de A.

bração para todo conhecim ento. Os grandes pensadores

H um boldt, d e K. R itter e de E. Reclus, entre outros, ou o

dessa época preocupavam-se então em encontrar grandes

ideal da “descrição animada” de Vidal de L a Blache, no

m atrizes que guiariam toda a reflexão, capazes de explicar o

com eço do X X , e as posições atuais, um longo percurso foi

todo e a parte, o detalhe e o global, indo do simples ao

realizado. N este trajeto, a com plexidade de seu cam po de

com plexo. Esta é a época dos grandes sistemas filosóficos,

estudos fo i se afirm ando e os sucessivos debates teórico-

de Kant, de H egel, de C om te, de Marx, que partilham to­

m etodológicos são, neste sentido, uma companhia necessá­

dos da mesma pretensão de produzir uma interpretação or­

ria e inseparável. M uitos avanços foram realizados, e aque­

denada e total. Com um a todos esses sistemas, há esta idéia

les que se obstinam a não os acompanhar são, em geral, os

de síntese, verdadeira finalidade do conhecimento científi­

mesmos que não querem , p or com odidade ou m edo, re­

co. C oincidentem ente, esses autores também produziram

nunciar ao conforto de algumas ilusões que se associaram à

grandes classificações e hierarquias entre os diversos cam­

G eografia em determ inados momentos de sua evolução. A

pos disciplinares, que assim funcionariam como sequências

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15

EXP L ORA ÇÕES CEOCRÁF1CAS

G E O G R A F I A FIN-DE-SIÈCLE

na produção da ciência-síntese, havendo, para cada um d e­

era com preender as leis do todo e a integração do conjun­

les, uma disciplina superior: História, Sociologia, F ilosofia

to. N o prim eiro caso, a dinâm ica dos diversos fatores natu­

etc., que encarnaria a própria concepção de síntese. As

rais, em conjunto com a ação humana, agiria no sentido de

idéias primordiais que presidiam a ciência dessa época eram,

produ zir um equilíbrio. N o segundo caso, o do organicis-

pois, as de acumulação, de integração e de progresso contí­

m o, a harm onia das partes com o todo era o valor supremo

nuo. Este fo i tam bém o m om ento em que grande parte das

a ser demonstrado.

disciplinas modernas adquiriram assento nas instituições

A descrição da realidade deveria, pois, sempre colo­

acadêmicas e, para isso, precisavam delinear seus lim ites,

car em relevo a conjunção de elem entos físicos e humanos

suas propriedades, sua especificidade e seu program a de

que resulta na estruturação de um espaço, que é a síntese

resultados.

da ação m últipla, diferenciada e relacional destes elem en­

A boa estratégia para a G eografia, na época, a despei­

tos. H á, p or assim dizer, uma isonom ia entre a natureza

to de outras vias concorrentes, parece ter sido a de se apre­

das coisas e a natureza humana que resulta em produtos

sentar com o o cam po de estudos da Terra, conform e apon­

sintéticos, recortes da superfície, que passam a ser conce­

tam BERDOULAY (1980) e C A P E L (1977). A Terra, em seu

bidos com o os verdadeiros objetos da ciência geográfica.

conjunto, em sua com plexa organização, remonta a inúm e­

Todos os conceitos utilizados pelos geógrafos deste perío­

ros fatores de ordem física e social, mas apresenta um

do, com o região, paisagem , estado, cidade, têm esse traço

resultado global visível e sintético em sua face. Em outras

com um de unidade reveladora do equilíbrio ou da harmo­

palavras, a im agem da Terra, sua aparência ou as d e suas

nia, d e resultado-síntese de uma dinâmica complexa.

partes (regiões, paisagens, estados), pode revelar o com ple­

E ra comum dizer-se, então, que o geógrafo olha os

xo jogo de interações de fatores e elem entos do qual ela, a

fenôm enos em suas variadas relações com os outros e fo i

aparência, é o resultado-síntese.

m esm o adm itido que o fator que diferenciaria os geógrafos

A idéia forte desta pretensão é a da Terra vista com o

dos dem ais estudiosos, que tinham tam bém com o interesse

um todo. U m todo com posto p or diversas engrenagens de

fenôm enos que ocorriam à superfície da Terra, era a form a

múltiplas relações de causa e efeito, que se estrutura na

d e olhar — o olh a r geográ fico.1 Assim, à G eografia caberia

metáfora do mundo visto com o uma máquina. Ou, ainda,

dom inar todos os outros campos de conhecim ento, com o

em uma versão concorrente, a Terra vista como um todo or­

geologia, m ineralogia, clim atologia, geom orfologia, botâni­

gânico, composto de parcelas com form a e função diferen ­

ca ou biogeografia, além da economia, dem ografia, sociolo­

ciadas e complementares, presente na metáfora do mundo como um organismo. Em qualquer dessas duas acepções dominantes no com eço deste século, o papel da G eografia

16

1 A expressão é comum a diversos geógrafos da chamada “Escola Francesa de G eografia”, Jules Sion, Raoul de Blanchard, Pierre Deffontaine, entre outros.

17

E XP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS

GEOGRAFI A FIS-DE-S1ÈCLE

gia, sem, no entanto, se especializar em nenhum deles e,

sária ao conhecim ento da “ física do mundo” . A í estaria,

portanto, sem superposição com outros profissionais, geó­

pois, a sem ente de um conhecim ento propriamente geo­

logos, botânicos, biólogos, sociólogos etc., uma vez que o

gráfico, na conexão entre os fenômenos; aí estava, pois, a

ob jetivo final da G eografia era a síntese. F oi também ne­

pedra angular da disciplina científica 2 que deveria passar a

cessário adm itir que esta síntese se constituía no encontro

ser ensinada nas instituições acadêmicas. N o caso de R it­

de dinâmicas naturais e da ação social: G eografia física e

ter, a influência do Romantismo e do Idealismo alemão foi

G eografia humana. A síntese precisava ser total.

a responsável p or sua grande preocupação com a noção do

P or este prisma da síntese ou do todo, o discurso aca­

todo. Sabemos também o quanto estes dois movimentos

dêm ico da G eografia nascente conseguiu recuperar as tra­

foram reativos à idéia da análise de base racionalista; por­

dições das cosmografias, tão comuns no período da Renas­

tanto, a valorização da idéia de síntese é uma constante no

cença, e tam bém a dos relatos de viagem , que, muito mais

pensam ento de Ritter. Há, em sua perspectiva, unidades

antiga, havia se renovado pela ação dos viajantes e das ex­

que congregam os princípios de organização do todo. Estas

pedições científicas dos séculos X V III e X IX . A justificativa

unidades são dotadas de “personalidade” e desempenham

da perspectiva do “todo” era buscada no plano das cosm o­

papéis definidos na com posição e no movimento do todo.

grafias, pois, com o se sabe, estas em geral começavam por

Assim, cada continente, p or exem plo, desempenha um pa­

descrições da Terra com o elem ento do Universo, em segui­

p el preciso na evolução da humanidade e contribui para a

da passando a descrever fenôm enos que ocorriam à super­

ordem global da Terra (N iC O LA S-O B A D IA , 1974).

fície da Terra: inundações, ventos, marés, erupções etc. O

Assim, a despeito de muitos outros naturalistas e filó­

ternário era bastante variado e dependia do acesso que o

sofos dos séculos X V III e X IX , com o d’Holbach, Buffon,

cosm ógrafo tivesse de outras descrições.

Volney etc., a G eografia elegeu esses dois autores, Hum­

F o i neste m om ento, final do século X IX e com eço do

boldt e Ritter, com o os fundadores de uma ciência sintéti­

XX, que se passou a atribuir a fundação da G eografia m o­

ca, abrangente e total. Mas sobre que critérios deve-se pro­

derna a A. von H um boldt e a K. Ritter. Ao prim eiro, a

curar a conexão? N a falta de um recorte temático mais

id éia de que foi o fundador se deve ao plano e à m etodolo­

definido, passou-se a dizer que a Geografia se interessa pe­

gia de sua obra maior, o Cosmos, que correspondia em

los fenôm enos que acontecem sobre a superfície da Terra.

grande parte ao ternário das cosmografias renascentistas. A lém disso, H um boldt havia sido um grande sábio, dom i­

D efin ição nada satisfatória quando se percebe que existem inúmeros eventos que aí ocorrem e que não fazem parte da

nando diversos campos do conhecimento. E le tam bém se referia à necessidade de procurar a conexão entre os fen ô­

2 O

menos com o uma preocupação m etodológica maior, neces­

cia geográfica.

18

princípio da “conexão” foi, por exemplo, bastante valorizado por Jean

Brunhes e por E . D e Martonne, que acreditavam ser este o fundamento da ciên­

EXP L ORAÇÕES GEOGRÁFICAS

GE OG RA F I A FIN-DE-SIÈCLE

pauta de interesses dos geógrafos. Além disso, há diversos

previa uma descrição que invariavelm ente percorria, e qua­

outros que não ocorrem diretam ente sobre a superfície da

se sem pre na mesma ordem : o relevo, o clima, a vegetação,

Terra e que são cada vez mais estudados com o fenôm enos

a história, a população e as atividades económicas para cada

geológicos, estratigráficos, tectônicos etc.

região descrita. Basta d izer que este m odelo foi largamente

D e fato, se a pretensão inicial fo i a de descrever a

exportado pela G eografia européia e, ainda que nos outros

complementaridade ou combinação na estrutura e mani­

países não-europeus fosse d ifícil estabelecer os contornos

festação dos eventos que ocorrem à superfície da Terra,

das "regiões” com a mesma nitidez e sob os mesmos vín­

muito cedo os geógrafos se viram im pedidos de assim con­

culos da história ou dos costumes consuetudinários, ainda

tinuarem a proceder pela enorm e massa de informações

assim o m odelo foi em pregado para descrever diversas

que eram produzidas em áreas de interesse muito diversas e por ser difícil acompanhar o desenvolvimento de todos os campos sobre os quais haviam pretendido se ocupar. C om e­

áreas da África, da Ásia e das Américas. Se na descrição de Vidal de L a Blache o singular ain­ da era dado pela com binação única entre os elem entos que

çava desde então uma certa orientação para a especializa­

estruturam e dão form a e “personafidade” a uma região, no

ção, que logo depois resultou no desenvolvimento de verda­

p eríod o im ediatam ente posterior o único foi visto com o

deiras subáreas quase independentes, como, por exem plo, a

sendo propriam ente os elem entos da paisagem. A G eogra­

geomorfologia. P or outro lado, despojada do interesse de

fia transform a-se, pois, no elenco de características ou fatos

traçar novas conexões entre os fenômenos estudados, a dita

singulares dos diversos lugares. O objetivo geral é a descri­

combinação, seja dos elementos físicos que com põem a pai­

ção. As teses sobre a com plem entaridade ou conexão fo­

sagem, seja das relações entre natureza e cultura, passou a

ram secundadas na prática p elo interesse em produzir es­

ser vista com o uma receita mais ou menos estabelecida e

tudos exaustivos sobre pequenas áreas, sem qualquer outro

estabilizada em um certo gênero de descrição. A tarefa do

valor dem onstrativo que não o da valorização da descrição

geógrafo passou a ser cada vez mais a de simplesmente lo­

em si mesma.

calizar os eventos sobre a superfície e muito menos de ex­

Surge deste processo de descrição, que constitui o gê­

plicá-los. As descrições regionais, anteriormente tratadas

nero das m onografias regionais, a valorização do elem ento

como verdadeiras demonstrações do m étodo geográfico das

vísivel, daquilo que é diferente, com o ponto de apoio para

combinações ou conexões fenomênicas, transformam-se em

a caracterização regional. Interessante é perceber que os

um protocolo geral e uniforme a ser sempre seguido com

lim ites da diferenciação não são aí discutidos, a unidade re­

completa submissão crítica. O ternário era sempre o mes­

gional é um fato. A escolha dos critérios, ou da magnitude

mo, a sequência descritiva também e então o gênero em po­

que estabelece a fronteira, é tomada com o um dado da

breceu pela rigidez do modelo. O chamado “plan à tir o ir ”

realidade. A G eografia passa a se interessar pelo concreto e

20

21

EXP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS

GEOGRA FI A FIN-Dí-SIÈCLE

em erge tam bém deste processo a aversão à teoria. A

verdade na produção do conhecim ento .4 Ora, desde Gali-

G eografia é a ciência do em pírico, e o geógrafo é um in-

leu que os nossos sentidos estavam sob suspeição como

ventariante do vísivel. G eógrafo de campo é aquele que co­

form a de aceder a um conhecim ento científico; afinal, se

nhece a realidade e se opõe ao geógrafo de gabinete, que

acreditarm os em nossos olhos é efetivam ente o Sol que

procura com pensar sua ignorância pela construção d e “ fan­

gira em tom o da Terra.

tasias teóricas” . A ilusão do em pirism o ressurge extem po­

A G eografia produzida a partir desta posição procu­

rânea na G eografia com o resultado do em pobrecim ento ou

rou dar um estatuto de verdade à simples constatação das

da má com preensão dos preceitos que guiaram os funda­

diferenças m orfológicas. N esta constatação, nenhuma rela-

dores da Escola francesa e de suas bases teóricas.3

tivização era admitida, o real é aquilo que se apresenta.

D escrever basta e descrever som ente aquilo que apa­

Sabemos, no entanto, que a “ realidade” e as maneiras que

rece. Este kantismo em pobrecido fo i a base de uma G eo­

dispomos para com prendê-la são produtos sociais e históri­

grafia que nutria outra grande ilusão, a da forma com o ma­

cos. As “ formas” são, em grande parte, produtos de nossa

terial explicativo em si mesmo. Kantism o em pobrecido,

percepção histórica e social e dependem também dos ins­

pois na C rítica da razão pura ( K a n t , 1987), as categorias

trum entos epistem ológicos desenvolvidos para as identifi­

analíticas constituem o recurso fundamental da explicação,

carmos. D iante deste program a “m orfológico”, a G eografia

e a descrição e experimentação só adquirem valor quando

se aproxima irrem ediavelm ente do senso comum, na m edi­

referenciadas a estas categorias. Ainda que o espaço, se­

da em que nada mais a interessa senão o inventário descri­

gundo a estética transcendental, seja uma categoria a p rio ri

tivo de uma realidade que parece óbvia a todos que a

do conhecim ento, a Geografia, enquanto ciência, só pode

observem . A única diferença é a erudição daquele que des­

pensar os fenôm enos que ocorrem no espaço utilizando-se

creve e, p or isso, o geógrafo está sempre em busca do pito­

de conceitos. N a realidade, essa posição empirista d e al­

resco, do exótico, do detalhe. Ele também busca, todavia,

guns geógrafos retroage a uma filosofia pré-kantiana, re-

uma generalidade, uma tipologia nestas formas, e a ciência

troage a uma posição que, aliás, o sistema de Kant procu­

neste sentido é vista com o simples esforço de classificação.

rou superar, àquela de que os sentidos são uma garantia da

Poucas vezes os princípios classificatórios são discutidos, o encadeam ento form al parece se im por por si mesmo, pela

3

Estes preceitos recebem o nome de neokantistas (B erdoulay , 1981), de his-

toricistas (C apel , 1981) ou fenomenológicos (B uttim er , 1971). O fato é que se nutriam de um amálgama de idéias inspiradas no Romantismo tardio, no espiri­

4 A despeito das enormes diferenças de interpretação do sistema kantiano, a

tualismo bergsoniano e em todo o ambiente de contestação ao racionalismo que

maior parte dos seus comentadores está de acordo em afirmar que este sistema

predominou nos vinte primeiros anos deste século na França. D e qualquer for­

foi desenvolvido como alternativa às posições irredutíveis da época que opunham

ma, nada tinham de sensualistas ou empiricistas, como nos quiseram fazer acredi­ tar ulteriormente.

h ie r ,

22

um empirismo sensualista ao ceticismo. V er, por exemplo, B o u t r o u x , 1968, B r e 1986 e G o u l y c a , 1985.

23

GE OC R A F I A FIH-DE-SIÈ.CLE

EXP L ORAÇÕES GEOGRÁFI CAS

ordem “ natural” das coisas. Esta “ razão classificatória”, na

tos, m anteve uma relação ambígua com a cartografia. O

Geografia, foi o veículo para transformar as formas espa­

mapa passa a ser um produto da pesquisa geográfica e não

ciais visíveis em um objeto de conhecim ento em si mesmo.

um instrumento, um m eio, de reflexão. Os problem as da

Ao fazê-lo, duas perspectivas se impuseram. A prim eira foi

G eografia são problem as de representação, são problemas

a descrição minuciosa e exaustiva do único, do singular, do

geom étricos. Localização e distância são vistas com o as ques­

diferente, e neste sentido a descrição carregava nas cores

tões essenciais ao cam po da teoria geográfica e desta sim­

de tudo aquilo que diferisse do resto; a segunda se consti­

plificação herdamos uma série de m odelos e tipologias que

tuiu na tentativa de criar formas-tipo, associadas tam bém a processos-tipo, e nesta perspectiva procurava-se o que era

a in d a

são vistos com o ternário obrigatório da epistem ologia

da G eografia.

geral e uniforme. N o prim eiro caso, a G eografia procurava

Para tentarmos dirim ir esta ilusão, tomemos um exem­

se justificar fazendo apelo à idéia de uma curiosidade gra­

p lo simples: uma praça. Ela é, sem dúvida, uma form a es­

tuita e pouco operacional. N o segundo, o nível de relação

pacial, entre tantas outras que com põem aquilo que deno­

entre form a e processo parecia tão simples que a generali­ dade se transforma em banalidade. Nesse dois casos, o problema fundamental é tom ar o dado, o visível com o ob­ jeto. Sem um processo de construção deste objeto, não há questões que desafiem o conhecim ento, pois tudo o que

minamos cidade. Trata-se de uma área consagrada a deter­ minados tipos de atividade, um espaço público com certo núm ero d e equipam entos e frequência. Porém , que fun­ ções desempenham as praças em uma cidade, que proces­ sos são responsáveis por sua criação, que tipos de apropria­

podemos dizer sobre estes dados da “realidade” já foram

ções deste espaço existem? As respostas não podem ser

ditos ou são facilm ente subassumidos p elo saber comum.

simples nem gerais sob estes pontos de vista. Praças, que

D e certa forma, uma parcela im portante da G eografia

existem desde a Antiguidade, teriam uma dimensão essen­

dos anos 50, nos E U A , e nas décadas subsequentes, no

cial? M esm o que pudéssemos responder afirmativamente,

Brasil, que m ultiplicou críticas ao em pirism o desta escola

seria esta a pergunta fundamental a ser construída por um

geográfica tradicionalista, retom ou sem objeções estas “ for­ mas” como objetos e, a despeito do instrumental estatístico sofisticado, os resultados pecavam pela mesma banalidade e, segundo alguns comentários mais severos, “todos os no­ vos instrumentos matemáticos servem apenas para mostrar

especialista que procura com preender o espaço urbano? Parece que a descrição simples da form a não pode dar conta de todos os significados e todas as práticas sociais que têm sede aí. Parece que tampouco nos interessa sua geom etria se não a relacionarmos às relações sociais, con­ flitos, usos e contextos sob os quais esta form a existe e

aquilo que já sabemos” . Esta ilusão da forma, que elegeu os aspectos visíveis, ou os fenômenos que têm expressão espacial, com o ob je­

24

resiste em tem pos diversos. O “visível” depende assim dos nossos óculos conceptuais.

25



E XP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS

GE OG RA F I A FIN-DE-SIÈCLE

D a mesma maneira, a form a em si não pode ser alça­

maneiras pelas quais a natureza já foi concebida em perío­

da à posição de um objeto epistem ológico sob pena de não

dos e contextos históricos diferentes, sob que ângulos e

conseguirm os d izer nada que se possa acrescentar ao co­

através de que metáforas, retirados da própria mentalidade

nhecim ento prévio que já dispomos sobre ela. SANTOS

social de cada época, a natureza já foi vista.5 Parece que

(1996) nos ensina que o espaço é uma form a-conteúdo, ou

finalm ente atingimos um grau de absoluta objetividade on­

seja, uma form a que só existe em relação aos usos e signifi­

de esta natureza será considerada apenas a partir de suas

cados que nela existem e que têm nela sua mesma condi­

características intrínsecas. Em outras palavras, ao assim

ção de existência. Assim, o objeto possível de investigação

procederm os ainda estamos impregnados do objetivism o

não é um dado e sim uma construção. Se a ciência não

positivista que pensa uma natureza passível de ser isolada

conseguir duvidar do senso comum, do óbvio, daquilo que

pela ação do raciocínio e de um método. Por outro lado, é

se apresenta com o dado, então para que criaríamos concei­

este m esm o racionalismo m etodológico que nos perm itiria

tos e operacionalizaríamos categorias de análise?

pensar a sociedade sem levar em conta que fazemos parte

Outra ilusão nutrida pelos geógrafos d iz respeito à

dela e somos p or isso reprodutores históricos de uma certa

definição do seu objeto de estudo. Estamos acostumados a

reflexão com prom etida com o contexto e, por conseguinte,

ou vir que a G eografia trata da relação entre a sociedade e a

definitivam ente limitada.

natureza. Em outras palavras, o conhecim ento geográfico é

D e fato, esta definição da G eografia como o campo de

d efin ido pela síntese produzida pelo encontro de suas duas

relações entre sociedade e natureza é apenas uma revitali-

principais parcelas: G eografia humana e G eografia física )

zação da im agem do hom em -m eio que dominou a reflexão

Estes dois ramos só encontram sua operacionalidade últi­

geográfica na passagem do século. D e um homem em

ma quando correlacionados, sendo esta uma das especifici­

geral, de um homem visto enquanto espécie, que resultou

dades do conhecim ento geográfico face às outras discipli­

na denom inação “G eografia Humana” em detrimento de

nas. Um prim eiro e flagrante problem a nesta definição é o

uma denom inação que efetivam ente pusesse em relevo a

fato de que esta afirmativa nos conduz forçosam ente a con­

essencial condição social e cultural do homem. Na verdade,

ceber estes dois term os com o mutuamente excludentes, ou

esta denom inação parte de um patamar de homogeneiza­

seja, se o que nos interessa é a relação entre estes dois

ção de uma sociedade que tem com o objetivo geral trans­

núcleos, então podem os distinguir com clareza e isolar a

form ar uma natureza que lhe seja externa. N o geral, esta

sociedade da natureza e vice-versa. Natureza é, neste sen­

definição mostra seus compromissos de origem com o posi-*

tido, algo externo ao homem, mas com pleta e objetivam en­ te acessível ao seu conhecimento. N ão im porta, neste raciocínio, constatar as diversas

26

* Estas diferentes “imagens" da natureza são objeto de uma vasta bibliografia. Ver, por exemplo, E h r a r d (1970), H u is m a n e R ibe s (1990).

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFI CAS

GEOGRAFIA F1N-DE-SIÈCLE

tivismo clássico, sua ideologia do progresso, seus mitos da

dentes sobre a legitim idade d o conhecim ento produzido

objetividade e de neutralidade transcendental.

sob parâmetros bastante diferentes. A síntese hoje só pode

Desta pretensão inicial da Geografia do com eço do

ser pensada com o o somatório total dos conhecimentos ge­

século sobram os retalhos reconhecíveis no discurso de al­

rados, entretanto desafia a produção de uma reflexão unifi­

guns geógrafos que continuam a afirmar a integração e uma

cada sob um mesmo campo de preocupações.

complementaridade total entre as esferas físicas e sociais.

O sonho, ou a ilusão, de objetividade positivista é

H oje, no entanto, este discurso tem cada vez mais o aspecto

m antido tam bém pela aproximação com as ciências mate­

de uma tautologia ou se abriga sobre novas ideologias holís-

máticas e naturais. Os m odelos da física, a lógica matemáti­

ticas que muitas vezes beiram o esoterismo puro e simples.

ca, a linguagem form al foram alguns dos instrumentos desta

D e fato, parece que esta com plem entaridade só pode

aproximação que resultou em generalizações apressadas,

ser mantida se conceberm os uma finalidade ao mundo,

em leis banais ou em correlações espúrias. Procurávamos

uma criação voluntária ou um plano dem iúrgico da ordem

seguir a receita durkheiminiana de tratar os fatos com o coi­

do mundo que teria posto em prática uma intenção final e

sas e colocar a G eografia no contexto das ciências nom otéti-

um destino para a humanidade. Nada im pede que mante­

cas. A prim eira contextualização necessária, porém , é a des­

nhamos privadam ente crenças e dogmas, o problem a é

te m esm o pensamento na busca de uma objetividade abso­

fazer destas crenças o pressuposto de um domínio do co­

luta. H oje, cada vez mais se im põe a idéia de que o homem

nhecimento. Se acreditamos que a ciência é justamente es­

é sobretudo um produtor de valores e de cultura, e a difi­

ta atividade incessante de duvidar, de produzir incertezas,

culdade constitui-se justamente em afastá-lo de uma reali­

como poderem os estabelecer a base do conhecim ento so­

dade que o contém com pletamente. M odem am ente nas

bre algo até hoje indemonstrável, com o é o caso da com ­

ciências, mesmo nas físicas, o contexto é o fundamento da

plementaridade entre os fenômenos físicos e sociais? Mais

explicação, a importância do conhecim ento no presente no

grave ainda é darmos a esta certeza ares de objetividade

qual ele se funda e não em uma pretensa transcendência

científica ou de revelação metafísica, num ato de puro

em que ela mesma é fruto de um contexto em que a ciência

voluntarismo, e tentarmos, através dela, criar uma série de

é vista com o um metadiscurso da verdade.

associações impostas com o verdades absolutas.

Os laços com o naturalismo se fizeram fundamental-

O fato é que geógrafos físicos e humanos constituem

m ente com base em três níveis. O prim eiro é aquele que

comunidades separadas, abrigadas sob um mesmo departa­

estabelece uma isonomia entre a natureza das coisas e a

mento, que raras vezes têm oportunidade de cooperar, e

natureza humana. O segundo é a afirmação de uma certa

possuem ritos académicos diversos, reuniões científicas pró­

teleologia, responsável pela integração destas duas esferas.

prias, publicações independentes e julgamentos indepen­

Finalm ente, o terceiro nível é aquele em que o discurso da

28

29

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFI CAS

G E OG R A F I A FIN-DE-SIÈCLE

síntese procura afirmar-se e legitim ar-se através do reco­

O verdadeiro nexo causal neste caso realmente se si­

nhecido discurso das ciências naturais. Os exem plos são

tua entre o presente que querem os explicar e a reconstitui­

inúmeros, e podem os citar alguns recorrentes, com o, por

ção histórica que fazemos, ou seja, os fatos que seleciona­

exem plo, o de fazer apelo à territorialidade animal para de­

mos para criar sentido neste relato. N a verdade, omitimos

la extrair conceitos com o com petição, dom ínio, seleção

neste procedim ento o dado irredutível de que uma recons­

etc., e depois os correlacionarmos aos fenôm enos territo­

tituição é sempre uma escolha e que, dos eventos, só desta­

riais que ocorrem na sociedade, que passam então a ser

caremos aquilo que interessa aos nossos propósitos de­

ungidos de uma essência im utável e geral. O ato de lim itar

monstrativos. A o mesmo tem po, concedemos ao fato histó­

espaços e as estratégias para controlá-los só podem ser

rico uma objetividade que e le não tem. Quantas leituras e

com preendidos no contexto histórico da vida humana, so­

interpretações são passíveis dos mesmos eventos? Quantos

cial e culturalm ente determinados. N em os objetivos, nem

aspectos são om itidos para que possamos demonstrar um

os instrumentos, nem as dinâmicas são os mesmos, não há

sentido? A resposta a estas questões é simples: toda recons­

correlação explicativa possível entre estes dois mundos. O

tituição é uma construção, mais ou menos voluntária, que

m esm o ocorre com as metáforas orgânicas funcionais, que

procura um sentido demonstrativo ou exemplar. Segundo

tomam p or em préstim o um vocabulário que pretende fixar

H U SSE R L (1950), este procedim ento é enganoso, pois parte

para todo o sem pre fenômenos espaciais. Artérias, coração,

sem pre de uma situação a posteriori. H á sempre uma

tecidos, células etc., quando empregados para falar de fe ­

intenção no resgate do passado, e o que cabe discutir não é

nômenos espaciais, nada acrescentam ao nível da explica­

propriam ente a objetividade do fato histórico, mas sim a

ção, são falsos, trazem apenas um certo ar de fam iliaridade

relação entre esta intenção e o relato que dela resulta, ou

que equivocam nossa compreensão.

seja, o sentido que se procura neste resgate (LYO TARD ,

N ão poderíam os finalizar esta descrição das ilusões

1969). N este sentido, a história deixa de ser um “historicis­

sem m encionar a história. O recurso é bastante conhecido

m o” , e passa a ser vista com o narrativa. Só analisando a nar­

e difundido. Para explicar fenôm enos atuais, recua-se no

rativa e os sentidos que ela procura é que podemos obter

tem po e, através de uma reconstrução cronológica, explica­

uma análise objetiva. Já que o fato não existe com o realida­

mos o presente p elo passado. N este percurso, estabelece­

de absoluta, ou pelo menos para nós este patamar é inatin­

mos marcos fundamentais, nexos causais, pelos quais os

gível, ao discorrermos sobre o passado procuraremos os

eventos se encadeiam. Os perigos desta conduta já nos fo­

eventos que interessam à nossa narrativa e desprezaremos

ram alertados desde há muito tem po, talvez desde a An­

tantos outros que não corroboram ou não têm importância

tiguidade, e já se mostrava que o passado nada mais era do

para os nossos propósitos narrativos e explicativos. A re­

que uma invenção do presente (PESSANHA, 1992).

constituição histórica é uma construção e só assim pode ser

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EXP L ORA ÇÕES GEOGRÁFICAS

GEOGRAFI A F1H-DE-SÍÈCLE

pensada. Realidade e ficção não são termos antagónicos, a

geográfica é útil, tem uma aplicabilidade e uma legitim ida­

incontom ável parcialidade dos relatos, as omissões cons­

de que ultrapassam os argumentos que, porventura, os

cientes ou não, os fragmentos da lembrança unidos em

geógrafos colocam à disposição para pensar estas utilidade

busca de um sentido, criam de fato uma ficção, inspirada

e aplicabilidade. Já nos fo i dito que este saber é útil para

diretamente ou não na realidade, com o base de qualquer

“ fazer a guerra”, ou seja, para traçar estratégias espaciais

procedim ento de restituição histórica. A arte do rom ance é

d e dom ínio e controle (LACO STE, 1976). Esta faceta, no

a restituição de uma realidade possível, mas nem sem pre

entanto, não parece ser suficiente com o motivação, uma

vivida, e quem afirmaria que a leitura de um romance não

v e z que a G eografia não é uma exclusividade dos “estados-

inform a sobre a realidade, às vezes muito mais do que os

m aiores” militares, nem dos grandes capitalistas. Ela é um

relatos documentais ou biográficos? D escobrir o equívoco

tem a de largo interesse na sociedade, tem um certo lugar

de emprestar uma objetividade absoluta aos acontecim en­

nos meios de comunicação, um certo respeito acadêmico e,

tos é, neste sentido, o prim eiro passo para reconhecer as

talvez o mais im portante, é considerada em diversos siste­

enormes possibilidades de conhecimento qúe existem nos

mas educacionais com o disciplina obrigatória do currículo

relatos sobre os fatos.

básico. D e fato, no final do século X IX um dos argumentos apresentados para a necessidade de im plem entar o ensino

A geogra fia com o u m d iscu rso sob re a ord e m

da G eografia fo i a perspectiva de m elhorar o material carto­

d o m undo

gráfico e a cultura geográfica das tropas, face aos conflitos que se anunciavam entre os países europeus naquela época.

A descrição destas ilusões que sustentaram o discurso

Este, entretanto, não fo i o argumento fundamental prepa­

geográfico tentou mostrar as insuficiências, as lim itações e

rado para a justificativa do ensino e da importância da

as contradições com as quais uma epistem ologia da G eo­

Geografia. N o caso da Alemanha, por exemplo, o objetivo

grafia se defronta. Paralelamente, se faz necessário apontar

fundamental proclamado era o de fazer conhecer m elhor os

novos rumos ou, pelo menos, novas leituras que possam

quadros naturais e os padrões sociais no qual se desenvolvia

construir, ou melhor, restabelecer, uma im agem renovada,

a cultura teutônica, conform e apontam GUSDORF (1973) e

operacional e sistemática do saber geográfico.

B r u n s c h w i g (1973). Já no caso da França, a I I I Repú­

Uma prim eira constatação é obrigatória. A despeito

blica, por interm édio de seu ministro da Educação, apre­

de todas as críticas e da incapacidade de se produzir um

sentava esta necessidade com o fundamento na formação de

conteúdo epistem ológico consistente, o saber geográfico

um novo cidadão, capaz de refletir conscientem ente sobre a

continua a ser valorizado. Em outros termos, a inform ação

política e o desenvolvim ento social (BERDOULAY, 1981).

32

33 UNIVERSIDADE

FEDERAL

DO

CEARA {7 A Q G S V G

ii^ S lB L I O T F C A DF OlENCiAS F TFP.wni n a i k

/

Ô

GEOGRAFI A FIN-DE-SIÈCLE

EXPL ORAÇÕES GEOGRÁFICAS

Talvez m uito sim plesmente a necessidade da G eo­

ros textos da Antiguidade Clássica, o cosmos se opõe ao

grafia surja tão-somente pela condição do hom em estar no

caos). A apresentação do mundo é a expressão daquilo que

mundo, um mundo diverso, variado e, na m edida em que

o organiza, de seus princípios de ordem , e, no caso da G eo­

os horizontes deste homem se ampliam, no reconhecim en­

grafia, a ordem espacial do mundo. A grande precursora da

to do “ outro” e do “diverso” , ele necessite de um sistema

G eografia, neste sentido, é a tradição filosófica que se pro­

de com preensão desta variedade fundamental. Já dissemos

longa desde os pré-socráticos ao perguntarem o que reúne

em outra oportunidade que é provável que a G eografia

a dispersão.

tenha, na verdade, nascido nos cantos dos aedos gregos

Chamamos a atenção para o fato de que o saber geo­

que declamavam sobre a aventura dos deuses, das potên­

gráfico, visto com o esta descrição da ordem do mundo, que

cias naturais vivas, sobre suas origens e sobre suas relações

tem uma identidade historicamente fundamentada, não se

com o devenir da vida cotidiana. As cosmogonias da Anti­

resume ao inventário das coisas sobre o espaço. A notifica­

guidade seriam, assim, os prim eiros relatos geográficos ge­

ção dos objetos espaciais não é em si matéria geográfica.

rados p or este gênero de curiosidade sobre a ordem das

Observamos, por vezes, que alguns geógrafos têm a ten­

coisas no mundo (G O M E S, 1996).

dência de confundir análise geográfica com simples nota­

N este sentido, a G eografia tem um com promisso fun­

ção de fenôm enos espaciais. Saem apressados em busca das

dam ental que é o de produzir uma cosmovisão. Ela é assim

novidades do m omento, em geral apresentadas como mo­

o cam po de conhecim ento onde se procura uma ordem pa­

mentos originais ameaçadores. Estes profetas do catastro-

ra o diverso, para o espetáculo da dispersão espacial origi­

fismo, no entanto, estão apenas fazendo um jornalismo de

nal. N ão im porta que esse esforço se coroe de êxito no sen­

má qualidade. Não constroem instrumentos analíticos e por

tido de produzir leis gerais ou uma explicabilidade total.

isso não conseguem ultrapassar o lim ite do comentário gra­

N a verdade, esta visão do mundo é carregada das incerte­

tuito e banal. O único sentido de seus discursos é procurar

zas de cada momento, voltada para os fenôm enos diversa­

nos convencer de que somos testemunhas de mudanças

m ente valorizados nas diferentes épocas. A cosmovisão é

sem paralelo na história, mudanças que nos conduzem a

em si mesma matéria de investigação primária, pois, a par­

um desfecho sombrio.

tir dos instrumentos conceptuais de cada m omento, ofere­

Esta ordem espacial das coisas quer dizer que sua dis­

ce uma com preensão das imagens mentais que constroem

tribuição tem uma lógica, uma coerência. É esta lógica do

a idéia de ordem ou coerência espacial em cada época.

arranjo espacial a questão geográfica por excelência. Neste

Este é, aliás, o significado original da palavra “ mundo” ,

sentido, não im porta se estamos diante de fenômenos físi­

aquilo que tem uma ordem (em oposição ao “im undo” , que

cos ou sociais, e sim do princípio da ordem que buscamos.

não tem ordem , da mesma form a como, desde os prim ei­

Evidentem ente, o que preside as causas e os significados

34

EXP L ORAÇÕES GEOGRÁFICAS

GEOGRAFI A F IS-DE-SIÈCLE

destas lógicas são diferentes se trabalhamos com tipos de

certa relação que pressupõe que uma determ inada quanti­

vegetação ou se trabalhamos com a distribuição da popula­

dade de pessoas estará ah concentrada disposta em cadei­

ção urbana. Este, aliás, é um ponto fundamental na discus­

ras e mesas para ouvir uma outra pessoa falar, colocada em

são da G eografia e, na verdade, o que estamos afirmando é

uma m esa diante de todas as outras, no caso de uma aula

que não há unidade ou complementaridade entre a G eo­

expositiva. Conform e se queira transform ar a aula em um

grafia dita física e a G eografia humana, isso para usarmos o

sem inário, o que se costuma fazer é rearrumar as cadeiras

vocabulário corrente. O que existe de similar é a busca por

e mesas de form a a criar uma distribuição circular, que é a

princípios de coerência dentro da ordem espacial, o que

condição para que todos possam olhar para os lados em

perm ite que se continue, pois, a denominar este tipo de

p erfeita relação de simetria. O exem plo é simples, mas evo­

saber de geográfico.

cativo. Para que determinadas ações se produzam, é neces­

A G eografia é, assim, o ato de estabelecer lim ites, co­

sário que um certo arranjo físico-espacial seja concom itan­

locar fronteiras, fundar objetos espaciais, orientá-los, ou,

tem ente produzido. Os exemplos são inúmeros, e podería­

em poucas palavras, o ato de qualificar o espaço; mas é

mos falar do espaço interno de uma casa, que em certa

também simultaneamente a possibilidade de pensar estas

m edida pressupõe, lim ita e condiciona as práticas que ah

ações dentro de um quadro lógico, de refletir sobre esta

vão ocorrer. É claro que há sempre enormes possibihdades

ordem e sobre seus sentidos.6

d e transform ar estas práticas e de rearrumar este espaço.

Chamamos a atenção para o fato de que este arranjo

O m odo com o as pessoas dispõem seus móveis e equipa­

físico das coisas é o que vai perm itir que determinadas

m entos de form a diferente dentro de um edifício que pos­

ações se produzam, ou seja, as práticas sociais são depen­

sui uma mesma planta básica dos apartamentos é o sinto­

dentes de uma certa distribuição ou “arrumação” das coi­

m a disto .8 Entretanto, na maneira com o este espaço está

sas.7 N ão há, por assim dizer, uma determ inação ou um

d ividido e pela form a de arrumá-lo, pressupomos lim ites

simples reflexo da sociedade no espaço. Explicando de

diferenciais, por exem plo, nos níveis de intimidade com as

uma form a muito clara e através de um exem plo simples,

pessoas, tanto entre aquelas que ah habitam quanto com

uma sala de aula está arrumada de form a a garantir uma

aquelas que por ah passam. Naturalm ente, os objetos sobre os quais a G eografia tem tradicionalm ente se debruçado

fi Exemplos bastante didáticos disto podem ser encontrados na obra do antropó­

para analisar possuem uma natureza bem mais com plexa e

logo L evi-Strauss , (1966 e 1967), na descrição que ele faz respectivamente da aldeia Bororo e na estrutura espacial derivada do sistema de parentesco. 7 Não se trata do formalismo que dominou o pensamento urbanista-arquitetôni­

8 A sociologia e a antropologia dispõem de algumas análises sobre estes fenôm e­

co, durante quase 50 anos, na arquitetura: o arranjo espacial não determina as

nos, como, por exemplo, a realizada por Segalen (1996), que trata exatamente

práticas, há um permanente movimento de recriação de inscrições sociais que

do problem a da disposição dos móveis na criação de “espaços". Infelizmente a

reordena e reconstrói sentidos espadais.

G eografia se mantém ainda bastante tímida em relação a estes temas.

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EXP L ORA ÇÕES GEOCRÁFI CAS

GEOGRA FI A FlS-DE-SltCLí

abrangente, com o a cidade, o campo, os Estados-nacionais

as une espacialmente, no sentido que as atravessa nas d ife­

etc., mas os princípios que guiam esta busca de com preen­

rentes sequências de elem entos. A linguagem, assim com o

são da ordem espacial são, mutatis mutandis, os mesmos.

a G eografia, devem ser vistas com o atividade, seguindo a

Efetivam ente, o objeto da G eografia é este espaço,

tradição humboldtiana (d e W ilh elm ), e não com o “obra”

que simultaneamente é disposição física das coisas e práti­

realizada, com o tantas vezes nos fo i recomendado fazer.9

cas sociais que ali ocorrem . Desta maneira, não há uma

Enquanto atividade, a G eografia é ação no mundo, é a per­

dicotom ia entre a G eografia física e a G eografia humana, o

pétua geração de nexos na ordem espacial das coisas, é

que existem são lógicas e coerências diferentes. O que

sentido e comunicação, discurso e intervenção. Assim pro­

interessará a um geom orfólogo com o intervenção humana

cedendo, abandonamos definitivam ente a concepção do

na paisagem não é a discussão da lógica social que o levou

espaço sob a perspectiva da form a form ata, do dado fixo,

até aquele lugar, tampouco suas m otivações económicas,

da palavra im óvel e, ao contrário, concebemos o espaço

políticas ou culturais, o que im portará para ele enquanto

com o composição de fo rm a form ans, de contínuo processo

objeto de pesquisa será a ação desta intervenção na acele­

de produção de sentidos e ações.

ração ou não de processos físicos que ocorrem sobre o ter­

Para finalizar, há, sem dúvida, uma certa ousadia em

reno. P or isso, esta denominação, limitada, de ação antró-

contestar alguns dos preceitos que, para muitos, ainda são

pica para caracterizar este tipo de intervenção. Sim ilar­

estruturantes do pensar geográfico. Nesta apresentação,

m ente, à sociedade, em seu processo de arrumação do

pareceu-nos que, dada a am plitude das questões que que­

espaço, os processos físicos interessam com o constituintes

ríamos discutir e dado o espaço que dispúnhamos, nos

básicos, com o limitadores, com o contexto e a eles não se

seria perdoado percorrer, com uma certa liberdade e rapi­

pode atribuir uma conexão causal com os fenôm enos so­

dez, discussões tão fundamentais. Permitimo-nos, pois, ter­

ciais, pois não possuem valor explicativo.

minar esta apresentação com uma poesia, que, muito

A análise geográfica deve examinar o espaço com o

em bora tenha sido gerada a partir de preocupações d ife­

um texto, onde formas são portadoras de significados e

rentes, exprime com m uito mais simplicidade e beleza

sentidos. Há, por assim dizer, uma “escrita” nesta distribui­

alguns dos pontos de vista aqui sustentados.

ção das coisas no espaço. Em outros termos, o arranjo espacial das coisas é uma linguagem. Comunica, revela e organiza sentidos, estrutura ações, muda segundo os con­ textos, utiliza metáforas, metonímias, anacolutos, elipses e hipérboles. H á como uma linguagem na maneira pela qual as coisas estão postas no espaço, no fluxo de coerência que

9 Sobre W ilhelm von Humboldt, ver, por exemplo, M almberc (1991).

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GEOGRAFI A FIN-DE-S1ÈCLE

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFI CAS

B ib lio g ra fia

Rios sem discurso A Gabino Alejandro Carriedo Quando um rio corta, corta-se de vez o discurso-rio de água que ele faria; cortado, a água se quebra em pedaços, em poços d’água, em água paralítica. Em situação de poço, a água equivale a uma palavra em situação dicionária: isolada, estanque no poço dela mesma, e porque assim estanque, estancada; e mais: porque assim estancada, muda; e muda porque com nenhuma comunica, porque cortou-se a sintaxe desse rio, o fio de água por que ele discorria. O curso de um rio, seu discurso-rio, chega raramente a se reatar de vez; um rio precisa de muito fio de água para refazer o fio antigo que o fez. Salvo a grandiloqiiência de uma cheia lhe im pondo interina outra linguagem, um rio precisa de muita água em fios para que todos os poços se enfrasem: se reatando, de um para outro poço, em frases curtas, então frase e frase, até a sentença-rio do discurso único em que se tem voz a seca ele com bate .10

BERDOULAY, V. (1980) “Professionnalisation et institutionnalisa-

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“S o b e , e u te sigo, c o n d u to r sincero: M e u s passos gu ia: h u m ild e aos C é u s m e curvo. S e ja q u a l fo r a p u n iç ã o , o fere ço M e u co ra ç ã o d e to d o resignado: M u n id o d e p a c iê n c ia m e destino A co n q u istar, se o b t e r m e é d a d o tanto, P o r á s p e ro tra b a lh o a p a z ditosa.”

SEGALEN, M. (1996), Sociologie de la fam ille, Armand Colin,

Paris.

(P a lav ra s d e A d ã o ao arcanjo M ig u e l n o C a n to XL d e Paraíso P erd id o, d e John M ilt o n )

In tro d u ç ã o : o p ro p ó s ito d este tra b a lh o H á mais de duas décadas vem se desenhando, tendo a Física e a Biologia com o centros irradiadores, algo que cavez mais passa a ser encarado com o um novo paradigma ciência — o “paradigma da complexidade” — , ao qual

* Professor Adjunto do Departamento de Geografia da UFRJ e pesquisador do CNPq.

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EXP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS

A EX P UL S Ã O DO PARAÍSO

se associam diversos conceitos, teorias e vertentes analíti­

as ciências sociais, apesar e por trás do m odism o? O autor

cas, como a superstar Teoria do Caos. Em bora se referisse

deste trabalho acredita que sim, e o objetivo destas Unhas,

inicialmente a uma nova leitura da realidade física e do

as quais aperfeiçoam , com plem entam e aprofundam as

vivente, o paradigma em gestação aos poucos vem ultrapas­

idéias contidas na introdução de um artigo anterior (SOU­

sando as fronteiras do dom ínio das ciências da m atéria e da

ZA, 1995a), não é outro senão o de argumentar nesse senti­

vida. Com efeito, em que pese o fato de que este novo pa­

do, em bora relativizando a novidade e a utilidade das “li­

radigma se fe z anunciar, a partir dos anos 60-70 (se bem

ções” dos cientistas naturais. Os exemplos e a preocupação

que suas raízes rem ontem a bem antes disso), com base no

central e im ediata deste trabalho referem -se à questão do

trabalho de cientistas naturais, com o o físico Herm ann H a-

desenvolvim ento sócio-espacial, vasto cam po tem ático ao

ken e o físico-quím ico Ilya Prigogine, já de alguns anos

qual têm estado vinculadas as investigações do autor. T o­

para cá vêm sendo feitas diversas tentativas de aplicação de

davia, é desde já evidente que o tipo de discussão aqui p re­

conceitos e esquemas interpretativos à própria realidade

sente d iz respeito, de algum a maneira, à epistem ologia da

social. Disso têm se encarregado não apenas cientistas so­

pesquisa social em geral.

ciais de diferentes form ações, com o R lT T E R , 1991; O R L é a n , 1991; B a i l l e a u , 1991; L

o is t l

& B e t z , 1993; tam­

bém os autores dos artigos contidos na coletânea organiza­

Q u a l é a essência d o “p a ra d ig m a da co m p le xid a d e ” ?

da por K lE L & E L L IO T T , 1996, e até mesmo alguns cientis­ tas naturais, com o H a k e n , 1983; H a k e n , 1990; E b e l i n g

Prim eiram ente, um esclarecim ento term inológico. O term o “paradigma”, usado p or vários autores a propósito da

& F e i s t e l , 1994.

Caos, Term odinâm ica das estruturas dissipativas, frac-

“com plexidade” (e não só p or cientistas naturais: vide, por

tais, Teoria da Autopoese, Sinergética... Poucas décadas

exem plo, Edgar M O R IN [s/d-a; s/d-b] e Jean-Pierre D U PU Y

após a realização dos trabalhos pioneiros que confluiriam

[1990]), nos rem ete à idéia de paradigma científico contida

para uma renovação das pesquisas sobre a natureza, eis

na conhecida obra de Thom as Kuhn sobre a estrutura das

que as ciências naturais exercitam , mais uma vez, seu p o­

revoluções científicas (K U H N , 1982). A anáhse de Kuhn

der de sedução: dos livros de divulgação científica (às vezes

não deve, porém , ser incorporada sem ressalvas pelas ciên­

escritos por jornalistas) que se tom am best-sellers até as

cias sociais, particularmente a noção de “ciência norm al” ,

diversas disciplinas das ciências sociais, idéias e expressões

que significa o estado de dominância com base em critérios

associadas à Teoria do Caos e consortes têm fascinado, e

d e superioridade científica de um dado conjunto de con­

mesmo assumido, as feições de uma nova m oda intelectual.

ceitos, m odelos e teorias tributários de um mesmo espírito

Haverá, contudo, algo de consistentemente prom issor, para

ou crivo discursivo legitim ador, ou seja, tributários de um

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E X P L O R A Ç Õ E S GEOGRÁFI CAS

A EX P UL S Ã O DO PARAÍSO

determ inado “paradigm a” . N o caso das ciências sociais,

verso daquilo que M orin chama de ciência clássica. D ito la-

onde a superioridade estritam ente científica não é som ente

conicam ente, o paradigm a da complexidade romperia com

a única causa, mas am iúde nem mesmo é a causa mais

os raciocínios lineares e reducionistas, incorporando um en­

im portante da superação de um enfoque por outro, além do

foqu e que busca interações complexas (vide, por exemplo, a

fato de que uma form a de abordagem “ marginal” pode coe­

Sinergética hakeniana e a Term odinâmica não-linear), além

xistir décadas a fio com uma outra “oficial”, sem que a

de adm itir que não apenas a necessidade (determ inidade),

“marginal” seja necessariamente abalada sob o ângulo cien­

mas igualm ente o acaso (a contingência, o inesperado) são

tífico, a idéia de “ ciência normal”, e por extensão tam bém a

definidores da dinâm ica do mundo real — e eis aqui o cer­

d e “paradigma” , pode dar uma impressão errónea do que

ne das im plicações filosóficas da T eoria do Caos e da Si­

realm ente ocorre. N o entanto, talvez seja possível continuar

nergética. Sim plificações serão sem pre inevitáveis, mesmo

usando a palavra paradigma, mesmo em se tratando das

para o cientista que d ecid ir abraçar a complexidade. À di­

ciências sociais, desde que se abandone a idéia da dominân­

ferença da ciência clássica, no entanto, a ciência do com ­

cia absoluta com base em uma superioridade estritam ente

plexo manter-se-ia constantem ente alerta para os riscos da

científica.

sim plificação, não se deixando por ela hipnotizar (ver MO-

O paradigma da com plexidade — longe ainda d e se

RIN, s/d-a: 1.1, p. 348; s/d-a: t. II, pp. 361-362). A tarefa do

instalar definitivam ente — prom ove uma genuína revolu­

cientista não é, em últim a análise, propriamente simplificar

ção científica, e tem seu antípoda e concorrente no “para­

o real, mas sim tom á-lo in teligível, operando com imagens

digm a de sim plificação”, cujas características foram assim

e m odelos suficientem ente poderosos e não subestimando

sintetizadas p or Edgar M orin:

as dificuldades de se d efin ir os constructos, a fim de que

“ 1) Cham o ciência clássica a toda a tentativa científica que obedece ao paradigma de simplificação.

nossa representação da realidade não seja drasticamente em pobrecida e distorcida.

2 ) O paradigma de sim plificação opera por redução (d o com plexo ao simples, do m olar ao elem entar), rejeição (da eventualidade, da desordem, do singular, do indivi­

Desenvolvim ento sócio-espacial, um fenômeno (e um desafio) com plexo p o r excelência

dual), disjunção (entre os objetos e o seu am biente, entre sujeito e objeto).” (M ORIN, s/d-a, t. II, p. 332, nota 1)

N o que concerne ao desenvolvim ento sódo-espacial, a questão epistem ológica geral “em que condições se elabo­

Quanto à perspectiva que busca a com plexidade do

ra o conhecim ento?” adm ite ser assim especificada: em que

real ou está aberta para ela, é óbvio que ela prom ove o in­

condições se elabora o conhecim ento sobre os fatores e con­

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFI CAS

A EXP UL SÃO DO PARAÍSO

dições que tom a m as sociedades, aos olhos de seus mem­

atinentes a distintos espaços e escalas de análise. O que

bros, mais justas e aceitáveis? A despeito das numerosas

à prim eira vista parece endógeno a um recorte espacial

diferenças que apresentam entre si, as teorias do desenvol­

deve sua existência igualm ente a fatores externos mais

vimento elaboradas no segundo pós-guerra guardam uma

ou menos rem otos no tem po, ou atinentes a escalas mais

cumplicidade essencial, sob o ângulo epistem ológico: em

abrangentes, enquanto que o exógeno, por seu turno,

maior ou m enor grau admitem ser vistas com o com prom e­

amiúde tem a sua influência filtrada p or peculiaridades

tidas com o “paradigma da sim plificação” de que fala E d­

internas. Os qualificativos “endógeno” e “exógeno” pos­

gar Morin. Que sejam listados os principais sintomas dessa

suem valor operacional, mas seu em prego não pode le ­

inclinação obsessiva para a simplificação:

var a que se perca de vista que são mutilações. Em últi­ ma instância, o endógeno e o exógeno se acham amalga­

• Monodimensionalidade. Entendendo por dimensões das

mados no bojo dos processos históricos.

relações sociais as diversas facetas principais da vida so­ cial (econom ia, política, cultura), a m onodim ensionali­

• Abordagens monoescalares ou m u ito fracam ente m ul-

dade consiste na interpretação dos fatores do “ (s u b d e ­

tiescalares. Um vício epistem ológico m uito comum con­

senvolvimento” a partir da consideração menos ou mais

siste na desatenção para com o fato de que os fenôm e­

exclusiva de uma dimensão, e sobre a base uma ontolo­

nos sociais, ainda que im ediatam ente referenciados, en­

gia fragm entadora do social e com respaldo na divisão

quanto objetos de estudo, a um recorte espacial e um

do trabalho acadêmico em vigor. O exem plo máximo é o

nível escalar específicos, têm sua génese, sua dinâmica

conceito, tão em pobrecedor e restritivo, de “desenvolvi­

atual e suas perspectivas explicáveis ou analisáveis m e­

mento económ ico” (ver, para uma critica, SOUZA, 1995b;

diante a identificação de fatores que em ergem e operam

1996c). A monodimensionalidade, faz-se m ister ainda

em diferentes espaços e escalas. Sublinhe-se, portanto, a

acrescentar, costuma andar de braços dados com outro

necessidade de considerar as interações sócio-espaciais

vício — o vício da monocausalidade (explicações m ono-

horizontais e as articulações “verticais” entre fatores que

causais).•

rem etem a distintos níveis escalares.

• Separação simplista entre endógeno e exógeno. Fatores

• N egligência para com o papel do espaço. Além da sepa­

do “(sub)desenvolvim ento” com um ente são vistos de

ração artificial entre as dimensões das relações sociais,

maneira absoluta com o internos ou externos a um país, a

têm sido tam bém usuais a separação entre espaço e rela­

uma região etc., negligenciando-se assim os com plicados

ções sociais, a articulação deficiente entre espacialidade

entrelaçamentos históricos e feedbacks entre processos

e historicidade e a negligência para com o papel dos es-

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A EXP UL SÃO DO PARAÍSO

E XP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS

paços (enquanto espaços natural e social) nos processos

visão etnocêntrica, fechada e absolutizante do desenvol­

de desenvolvim ento. Com algumas exceções (teoria dos

vim ento (O ciden te com o m odelo implícito; “desenvolvi­

pólos de crescim ento, Econom ia Regional), as teorias da

m ento” defin ível universal e transculturalmente), sem

m odernização e do crescimento dos anos 50 e 60 secun-

contar o seu frequente com prom etim ento com visões

darizavam o papel do espaço, o mesmo podendo ser dito,

teleológicas (“ etapas do desenvolvim ento” ), incorrigivel-

em m aior ou m enor grau, de abordagens anteriores (so­

m ente sim plificadoras — na verdade, convenientemente

cialismos utópicos, marxismo etc.) e posteriores ( redistri-

sim plificadoras, sob o ângulo ideológico.

bution w ith grow th, satisfação de necessidades básicas, ‘T e o ria da D ependência”...). Os geógrafos, que poderiam

O fracasso prático das estratégias, instituições etc., de

ter desem penhado um papel alternativo a esse respeito,

“desenvolvim ento” , e a própria complexidade crescente do

lam entavelm ente só ofereceram uma contribuição teóri­

‘T e rc e iro M undo” têm conduzido a uma crise de produção

ca direta diminuta para os estudos sobre desenvolvim en­ to. Quanto ao “ fetichism o espacial” contido em algumas visões normativas, notadamente a propósito do desenvol­ vim ento

urbano

(urbanismo

modernista

corbusiano,

principalm ente), ele não resolve o problem a da falta de integração, pois apenas inverte os sinais, substituindo o descuido para com o papel do espaço pela superestimação do papel das formas espaciais. Também as correntes

teórica, a um desânimo. N o entanto, o minimalismo antiteórico ( “pós-m odem o” ) não é uma solução, mas somente um escapismo inconsequente. U rge, sim, aceitar abando­ nar o paraíso ilusório das soluções prontas e fechadas, das explicações transculturais, eternas e universais, para nos exilarmos no mundo concreto, cuja apreensão é muito mais d ifícil e nos exige mais flexibilidade e, ao mesmo tempo, mais humildade (v e r SOUZA, 1996a).

que reclamam um “desenvolvim ento sustentável” não apontam para soluções consistentes, uma vez que, se por

O q u e há de n ov o , sob o p ris m a da pesquisa social,

um lado sublinham os riscos da degradação do “ m eio am­

na com p lexid a d e revela d a pelas ciências naturais

biente” (nisso diferindo de abordagens com o as teorias

ren ova d a s?

da m odernização e do crescim ento), por outro subesti­ mam, no âm bito de um enfoque que contém um viés

“O hom em não nos interessa apenas porque somos

naturalizante e banalizador das causas dos problemas

homens. O hom em deve nos interessar porque, de acordo

sociais, o papel do espaço propriam ente social.•

com tudo que sabemos, o fantástico nó de questões ligadas à existência do homem e ao tipo ontológico de ser por ele

• C aráter fechado, absolutizante, etnocêntrico e teleológico das teorias. As teorias herdadas são, também, por sua

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representado não é redutível à Física ou à Biologia.” (CASTORIADIS, 1986: 221)

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EX P L ORA ÇÕE S GEOCRÁFI CAS

A EXP UL SÃ O DO PARAÍSO

“ Estou cada v e z mais convencido de que a ciência

ao que se poderia talvez chamar de estilo de ra ciocín io, a

antropossocial tem de articular-se na ciência da natureza, e

originalidade do anticartesianismo inspirado pelas ciências

que esta articulação requer uma reorganização da própria

naturais renovadas é, no m ínim o, questionável. É fato que

estrutura do saber.” (M O R IN , s/d-a, 1.1, p. 13)

os próprios cientistas naturais, sobretudo os físicos, do alto do O lim po intelectual de que desfrutam no âm bito da

Aparentem ente, as duas citações acima refletem in­

ciência moderna, muitas vezes desdenham ou ignoram que

conciliáveis posicionam entos por parte de C om elius Cas-

certos aspectos da “com plexidade” já foram , em um plano

toriadis — filósofo que, com profundidade singular, tem

filo s ó fico e m etodológico geral, apontados há bastante tem ­

insistido sobre a singularidade ontológica da sociedade e,

po p or algum filósofo ou cientista social defunto (registre-

por conseguinte, sobre as especificidades epistem ológicas

se, p or exem plo, que na virada deste século um sociólogo,

da análise social — e E dgar M orin — filósofo e sociólogo

Lester W ARD [apud POSADA, 1929], desenvolveu o concei­

que, persuasiva e seriam ente, tem sublinhado a im portân­

to de sinergia de m aneira qualitativam ente similar ao con­

cia da integração dos conhecim entos das ciências humano-

tido no enfoque batizado de Sinergética por Herm ann

sociais e naturais. N o entanto, o autor deste trabalho acre­

Haken, ao qual este chegaria, muitas décadas mais tarde, a

dita ser possível acatar a exigência castoriadiana — aceita­

partir de suas pesquisas sobre o raio laser). Am iúde igno­

ção da singularidade do social e da sua irredutibilidade ao

ram, igualm ente, que a crítica do pensamento linear é um

físico ou ao biológico — sem sacrificar a concordância com

legado antiquíssimo de diversas correntes filosóficas, de

M orin em que o diálogo entre os dois grandes campos

H eráclito ao pensamento dialético de H egel e Marx, ao

(ciência da natureza e ciência antropossocial) é necessário

que se devem acrescentar as contribuições de importantes

e promissor. Tudo dependerá dos termos desse diálogo, o

cientistas sociais ao longo do século XX.

qual, por parte das ciências sociais, não deve im plicar em

Seria atrevim ento concluir que algumas correntes da Filosofia e das ciências humanas têm estado, há m uito

perda de identidade. M esm o entre cientistas sociais, certas idéias associa­

tem po, na vanguarda da construção de perspectivas que

das à “ N ova Física” , à B iologia M olecular ou à N eu robio-

poderíam os denom inar d e “complexas” ? É reconfortante

logia são, mais freqiien tem en te do que o autor gostaria de

verificar o que, a esse respeito, escreveu o próprio P rigo-

supor, encaradas com o uma grande novidade, uma reve­

gine, em livro escrito em co-autoria com Isabelle Stengers:

lação. E specialm ente para alguém que, com o o autor des­

“ [s]e quisermos situar (...) a contribuição das noções de

tas linhas, tem uma grande dívida intelectual com a tradi­

não-linearidade, de instabilidade, de amplificação dos

ção do pensam ento dialético, essa euforia é m otivo de sur­

pequenos afastamentos, é bom com eçar por sublinhar que

presa e m esm o de irritação, uma vez que, no que concerne

as ciências das sociedades não esperaram pela Física para

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E X P L OR A Ç ÕE S GEOGRÁ FI CA S

A EXP UL SÃ O DO PARAÍSO

descrever tipos de processos segundo as perspectivas que

tanto, de um ardiloso canto de sereia, uma vez que, de um

acabamos de indicar [isto é, a partir da ótica da complexi­

m odo geral, as possibilidades de mensuração dos construc-

dade].” (PRIGOGINE & STENGERS, 1991: 139)

tos, com recurso em escalas de intervalo e razão, têm-se

A o que tudo indica, contudo, a m odéstia de Prigogine

mostrado, em nosso terreno de atuação, e em razão da pró­

e Stengers é uma exceção. Alguns de seus colegas vão tão

pria natureza mais com plexa da realidade social-histórica,

longe a ponto de injustamente m inim izar até a contribui­

m uito mais modestas do que no âmbito dos fenômenos

ção de um gigante pion eiro com o o biólogo alemão Ludw ig

naturais. Afinal, conform e reconheceu Abraham M oles, o

von Bertalanfíy, o pai da “Teoria G eral dos Sistemas” ; a p ri­

físico, em sua reflexão sobre as “ciências do im preciso”,

m eira grande crítica do raciocínio linear interna às ciências

para as ciências da sociedade o que interessa “não é a mira­

naturais, nos anos 40 e 50 (elogiada, ironicam ente, p elo fi­

gem do algarismo, e sim a im portância da adequação à na­

lósofo marxista K arel KOSIK [1985]). M esm o Herm ann

tureza intrínseca do fenôm eno que elas estão consideran­

Haken, que em um de seus livros m enciona Bertalanfíy,

do” ( M o l e s , 1995:137).

lem bra-o apenas m uito marginalmente, sem fazer verda­ deira justiça à sua im portância (HAKEN, 1983: 352).

A o que parece, os “ensinamentos” emanados da Física apresentam um conteúdo de inovação relativamente restri­

Um a nota d e história pessoal. O autor das presentes

to para a pesquisa social quando comparado com as ciên­

linhas teve a oportunidade, há alguns anos, de indagar a

cias naturais, já que, com o bem notaram Prigogine e Sten­

um dos assistentes de Herm ann Haken sobre as razões

gers, aquela não esperou p or estas para ir além do eartesia-

desse silêncio relativas ao que se poderia chamar de os “precursores” do paradigm a da com plexidade na Filosofia e nas ciências sociais. Sua resposta foi, literalm ente, que não se deveria confundir H im gespinste (maluquices, ex­ centricidades) com a verdadeira ciência; aqueles a quem o presente autor chamara de “precursores” não m ereceriam maiores atenções, p or não terem elevado o conhecim ento a

nismo, do pensamento linear e sim plificador (se bem que — e esse é precisam ente o problem a — as contribuições dos “precursores” não se difundiram e nem se desenvolve­ ram a contento). E, se a pretensa “grande novidade” em relação à especulação filosófica — a quantificação — não passa, em larga medida, de uma quim era quando se trata da pesquisa social (pois, ao contrário do que tantos físicos imaginam, não seria a matematização que permitiria enxer­

um nível efetivam ente científico (o que para ele significa­

gar m elhor a com plexidade dos fenômenos sociais — pelo

va: expresso em linguagem matemática). Esse estilo de crí­

contrário, ela freqiientem ente im plicaria em um formalis­

tica, típico do lim itado diálogo entre ciências sociais e

m o reducionista), então o que restaria, em termos de possi­

naturais, é assaz decepcionante. O “avanço” quantificador

bilidade de diálogo frutífero, aos investigadores sociais e

secularmente cobrado das ciências sociais não passa, entre­

aos cientistas naturais vinculados ao paradigma emergente?

54

55

E X P L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS

A EXPUL SÃO D 0 PARAÍSO

Apesar das ressalvas dos parágrafos anteriores, qu er o

Mas, concretam ente: o que poderia, para a pesquisa

autor asseverar que seria açodamento descartar a utilidade

social, trazer esse diálogo, sob os ângulos epistem ológico e

desse diálogo para as ciências sociais. Mais do que isso: se­

m etodológico? Em que m edida o “ paradigma da com plexi­

ria injusto im aginar que toda tentativa de diálogo com os

dade” inspirado pelas ciências naturais contribuiria para

cientistas naturais constituiria uma manifestação de “positi­

expulsar a teoria do desenvolvim ento de seu pseudoparaíso

vismo” (segundo o am plo significado conferido a este ter­

de certezas mumificadas? O autor crê que três temas inter-

mo pela Escola de Frankfurt), com o se o desejo de inter­ câmbio fosse suficiente para levantar a suspeita de im itação metodológica e transposição irrefletida de conceitos e teo­ rias das ciências naturais para as sociais. Sem dúvida, o risco

relacionados, envolvendo questões referentes à teorização sobre o desenvolvim ento sócio-espacial, bastarão para ilus­ trar adequadamente, ainda que em caráter prelim inar, a presente tese sobre a im portância dessa troca intelectual.

de se com eter tais deslizes existe, já que ainda hoje muitos pesquisadores não estão suficientem ente imunizados. Toda­ via, um receio d o diálogo, sintomático de um com plexo de inferioridade, é, mais que nunca, extemporâneo: afinal, so­ mos hoje testemunhas de uma “crise da explicação simples” também nas ciências naturais, e, ironicam ente, “ o que pare­ ciam ser os resíduos não científicos das ciências humanas, a incerteza, a desordem , a contradição, a pluralidade, a com ­ plicação etc. fazem hoje parte de uma problem ática geral do conhecimento científico” (M O R IN , s/d-b:138). Cum pre,

“Caos”: acaso e necessidade nos processos sociais O prim eiro tem a d iz respeito à revisão, sob inspiração da Teoria do Caos, da im portância da contingência e do sig­ nificado da previsibilidade no dom ínio social-histórico. So­ bretudo, certas interpretações vulgares do materialismo his­ tórico marxista, com o as contidas nos “manuais” de materia­ lism o histórico e dialético em suas versões stalinista ou criptosstalinista e no pensamento estruturalista althusseriano —

pois, reconhecer, seguindo o exem plo de Edgar M orin, que

se bem que a raiz do problem a se encontre já no próprio

uma maior aproximação entre as ciências naturais e as H u­

pensamento de Marx — , caracterizaram-se por m in im iza r

manidades é, mais que desejável, importantíssima, m esm o

excessivamente a im portância das subjetividades e da con­

que não se abra m ão de buscar a singularidade do social,

tribuição do papel ativo potencialm ente desempenhável p or

conforme tem sido enfatizado de maneira bastante insti-

cada sujeito social individualm ente na m odelagem do pro­

gante, sobretudo p or CASTORIADIS (1975; 1986; 1990b). O

cesso histórico. Trata-se de avaliar até onde os indivíduos de

confronto de posições e resultados, e não a “auto-segrega-

p e r se, muito especialm ente as chamadas “grandes persona­

ção” , é a m elhor m aneira de se perscrutar as especificida­

lidades” (norm alm ente líderes políticos ou m ilitares), cen­

des ontológicas do próprio objeto.

tro das atenções da historiografia burguesa, seriam capazes

56

57

E X P L O R A Ç Õ E S GEOGRÁFI CAS

A EXP UL SÃ O DO PARAÍSO

de influir no curso dos acontecimentos históricos. Presumiu-

E quanto ao dom ínio social-histórico? Seria ele mais

se que essa capacidade seria m uito m enor do que a histo­

imune às consequências do puro acaso que o mundo físico?

riografia idealista e romântica postulava, e que o essencial

Responder negativam ente a esta pergunta não significa,

residiria, na verdade, na dinâmica histórica “objetiva” , “es­

neste trabalho, negar o peso das estruturas e dos contextos

trutural” e “ sistémica” do m odo de produção (notadam ente

em nom e de um absurdo “tudo é possível”. Por que dever-

a contradição entre relações de produção e forças produti­

se-ia, no entanto, justamente em um domínio onde inter­

vas), o que acarretaria que o papel dos indivíduos, indepen­

vêm subjetividades e em oções cambiantes, postular a im­

dentem ente de seu brilho intelectual e sua proeminência,

possibilidade de reordenamentos macroscópicos a partir dos

seria inteiram ente secundário. Em suma, não haveria nin­

desdobram entos de flutuações? Na realidade, as flutuações

guém que fosse “insubstituível” : cada m om ento histórico

no dom ínio social-histórico sequer precisam estar ligadas à

objetivo produziria o agente individual para desempenhar

vida de “grandes personalidades” : mesmo atos banais de

um determ inado papel “historicam ente necessário” .

desconhecidos podem ter consequências insuspeitadas.

O que nos tem a dizer, a propósito dos vínculos entre

N o que concerne à teorização sobre o desenvolvimen­

acaso e necessidade, a Teoria do Caos? O “caos determ inís-

to, a T eoria do Caos representa um reforço considerável

tico” postulado p or essa teoria, a unir contingência e deter-

dos argumentos anti-historicistas, que recusam as visões te-

minidade em uma solidariedade essencial, nos recorda,

leológicas e etapistas do processo de “subdesenvolvimen­

através do que fo i apelidado de “ efeito da asa da borbole­

to”/"desenvolvim ento” . Vale a pena reproduzir, a esse res­

ta” , que minúsculas perturbações, “flutuações” m icroscópi­

peito, uma passagem do geógrafo alemão Wigand Ritter,

cas em um sistema, podem produzir, de maneira im previsí­

que no contexto de uma discussão sobre o “desenvolvimen­

vel e p or efeito d e am plificação, alterações macroscópicas

to em sistemas regionais” , onde é tentada uma articulação

e mesmo mudanças qualitativas (“ bifurcações” ), devido à

com o pensam ento de Prigogine, antecipa, ainda que de

natureza intrínseca dos chamados atratores “estranhos” ou

maneira incom pleta e não suficientem ente explícita, a pre­

“caóticos” , associados a sistemas dinâmicos tam bém deno­

sente interpretação:

minados “ caóticos” pelos físicos .1 “A teoria das estruturas dissipativas entende todos os 1 D e maneira muito preliminar pode-se definir atrator (ou estado atrator) como tudo aquilo pelo que um sistema é atraído. O estado atrator é aquele ao qual o

desenvolvim entos [Entwicklungen\ com o sendo abertos [gri-

sistema invariavelmente retorna, após uma perturbação exógena que não seja muito grande, mas que o afasta temporariamente do estado original. Pense-se em

sistema é perféitamente previsível. Já o mesmo não acontece com os sistemas

um sistema muito simples, por exemplo, em um pêndulo, cujo movimento dimi­

caóticos (caso da dinâmica atmosférica, q ue é um exemplo freqiientemente cita­

nui progressivamente; seu atrator (ou estado atrator) corresponderá à sua situa­

do), cuja evolução cria dificuldades a qualquer previsão, especialmente a previ­

ção de equilíbrio mecânico. Bem , ocorre que, no caso do pêndulo, a evolução do

sões de médio e longo prazos.

58

59

caótico. Suas contradições internas existem, mas elas ainda

mas” , entretanto, podem ter um interesse objetivo latente

não são suficientem ente fortes a ponto de tom ar instável o

ou m esm o consciente em sua destruição enquanto tal, ain­

conjunto do sistema. (...) Elem entos obsolescentes, herda­

da que sejam funcionalm ente dependentes dos “ subsiste­

dos de fases anteriores, são eliminados ou transformados

mas” pró-estabilização (o que configura uma contradição

no período subsequente, desenvolvido, o que em princípio

dialética inexistente em sistemas físicos, quím icos ou bioló­

é suficiente para prolongar o estado sistémico estável. À

gicos).2 Outra ressalva concerne à questão dos lim ites do

luz da realidade do mundo, isto é a aproximação mais ra­

sistema, norm alm ente m uito mais fluidos e indefinidos no

zoável de um estado desenvolvido.

caso de “ sistemas sociais” (ver, a propósito,

Vista dessa form a, a situação de desenvolvim ento não

G lD D E N S ,

1989:134 e segs.). Infelizm en te, mesmo um trabalho com o

representa qualquer idílio. E la não encarna nem perfeição

o de

na utilização dos recursos nem um desenvolvim ento [E nt-

em sua objeção tanto ao positivism o quanto ao “pós-

faltu n g] da econom ia que seja duradouro e prescinda de

m odem ism o” , não dá a devida atenção a restrições com o as

aperfeiçoamentos ulteriores. E la assinala antes o estado de

precedentes em seu esforço para redefinir a ciência social

ordenamento atual e num futuro previsível do sistema real­

com o o “ estudo de sistemas complexos” , e até m estre MO-

mente existente. É por isso que falamos de países indus­ trializados desenvolvidos, m uito em bora estes de maneira alguma possam oferecer aos indivíduos condições ótimas de existência.” (R it t e r , 1991:167-8)

R IN

H a r v e y &

R e e d

(1996), de resto bastante ponderado

(s/d-b:199 e segs.), em balado pelo realce dos isom or­

fismos físico-bioantropossociais, com ete idêntico deslize. P or fim , um outro lem brete a propósito do em prego da palavra sistema diz respeito ao fato de que, além da objeti­ vidade das estruturas e dos mecanismos sistémicos (econó­

A concepção da sociedade com o simplesmente um

micos e político-institucionais), há tam bém a imensa e irre-

“sistema” , ressalve-se, é assaz problemática; a idéia de con­ tradição, para citar um prim eiro exemplo, não convive fa­ cilmente com a id éia de sistema, a não ser que se desvincu­

2 D e mais a mais, como seria verdadeiramente possível falar de equilíbrio no con­

le esta idéia da noção de equ ilíb rio. D entro de um sistema,

igual) pressupõe simetria, enquanto que a explorado sobre a base da proprieda­

digamos, do sistema capitalista, cuja vocação não é tender ao equilíbrio (ao contrário da profissão de fé da teoria eco60

texto de uma sociedade como a capitalista? Equilíbrio (d o lat. aequilibriu = peso de privada dos meios de produção e a heteronomia características das sociedades capitalistas (mesmo das “desenvolvidas") representa um a nítida assimetria estru­ tural (Sou za, 1993).

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E X P L OR A Ç ÕE S GEOGRÁFI CAS

A EXPUL SÃO DO PARAÍSO

du tível riqueza do “ mundo da vida” (Lebenswelt), onde as

precisas e ao m esm o tem po significativas sobre o seu com­

categorias sujeito —> subjetividade —» intersubjetividade,

portam ento. A partir de um certo limiar, precisão e signifi-

descartadas por L U H M A N N (1987) em favor da oposição

cância (relevância) tom am -se qualidades quase mutua-

sistema/ambiente ( System/Umwelt), encontram necessária

m ente excludentes.” E, usando a palavra sistema mais uma

acolhida (H A B E R M A S , 1993, cap. X II; ver, ainda, H A B E R -

vez de maneira parcialm ente m etafórica: não há sistema

MAS, 1988).

mais com plexo que uma sociedade.

N o entanto, em que pesem todas as ressalvas, e ape­

As restrições acima não im pedem , porém, que se

nas para em pregar o term o p or analogia, em sentido par­

extraia da Teoria do Caos uma lição indireta de grande al­

cialm ente m etafórico (já que a realidade social não é p le­

cance m etodológico: a necessidade de se pensar dialetica-

nam ente redutível a um “ sistema”3): não há sistema mais

m ente (ou, com o p refere M orin, “dialogicamente”), a fim

sensível aos caprichos do acaso que uma sociedade. (Aliás,

de não se privilegiar, a p rio ri, nem o polo da determinida-

m esm o a face determ inista do binóm io necessidade/acaso

de (referen te à lógica de certos processos e mecanismos, p.

não há de exprimir-se, no caso do dom ínio social-histórico,

ex., económ icos e políticos, no âm bito de certas regras de

d e m aneira m uito formalizada. N em todo caos é propria­

jo g o gerais, com o o funcionam ento do modo de produção

m ente determ inístico e, ademais disso, a prova matemática

capitalista), nem o p ólo da contingência (concernente a flu­

da existência de um verdadeiro caos determ inístico subja­

tuações que m odelam de m odo im previsível o devir). Na

cente a uma série de dados qualquer é um requisito d ifícil

sociedade há “atratores” (códigos de conduta, lógicas espe­

d e satisfazer nas ciências sociais, inclusive devido à insufi­

cíficas dos m odos de produção etc.), mas a evolução de

ciência de dados, conform e tem sido reconhecido na litera­

uma sociedade e as configurações desta em momentos his­

tura.) Quanto mais com plexo for um sistema, m aior será a

tóricos definidos (seja em term os de um regime político,

perda de inform ação ao se tentar exprim i-lo formalizada-

de um estilo de desenvolvim ento, de uma forma de organi­

m ente, segundo adm itiu o fundador da.fuzzy logic, o mate­

zação sócio-espacial) não são verdadeiramente predizíveis.

m ático L o tfi Z A D E H (apud Z lM M E R M A N N , 1993: 90): “ N a

(E m se tratando do social, a expressão “ etapa de desenvol­

m esm a proporção em que cresce a com plexidade de um

vim ento” ou exerce um papel ideológico — sejam as “eta­

sistema, diminui a nossa capacidade de fazer afirmações

pas do crescim ento económ ico” de Rostow, seja a sucessão de m odos de produção do marxismo — , enquanto viés pro­ priam ente teleológico, ou é simples racionalização mode-

3 N e m , conforme já se disse, sob a forma de instâncias concretas representando tipos de integração societária “sistémica” (através dos “subsistemas" mercado e Estado) em contraposição ao “mundo da vida" (H abermas , 1988), nem, obviamente, enquanto um modelo explicativo, onde as partes componentes e suas rela­ ções podem ser claramente distinguidas.

62

lística de um processo, à qual se procede retrospectivam ente.) Constatar, retrospectivam ente, que a sociedade européia deu origem à econom ia capitalista após uma tran-

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EXP L ORAÇÕES GEOGRÁFI CAS

A EXPUL SÃO DO PARAÍSO

sição que se arrastou entre os séculos X V I (ou m esm o

Asiáticos” , m uito especialm ente da C oréia do Sul: estaria o

antes) e X V III, não quer dizer que fosse possível prever, no

exem plo sul-coreano demonstrando, com o os mais conser­

século X V I, a natureza da econom ia capitalista do século

vadores argumentam, que o desenvolvim ento do ‘T erceiro

X IX , e menos ainda as trilhas efetivas pelas quais chegou-

M undo” é perfeitam ente possível nos marcos do capitalis­

se até aí. É este núcleo de indeterm inação, a despeito de

mo, ou seria a C oréia do Sul um caso por demais im perfei­

qualquer dimensão de determ inação realm ente presente

to, com o preferem insistir muitos analistas de esquerda?

(descortinada e simultaneamente superestimada p elo ma­

Ainda que bastante im perfeito (o que não é exclusividade

terialismo histórico marxista), que tom a a Teoria do Caos

sua enquanto sociedade capitalista), o caso sul-coreano não

uma fonte de inspiração válida para os próprios teóricos do

somente lança uma derradeira pá de cal sobre a já há mui­

desenvolvimento das sociedades, não obstante o fato cons­

to tem po ultrapassada abordagem do “desenvolvim ento do

trangedor de que eles, antes de quaisquer outros, deveriam

subdesenvolvim ento” de G under Frank, mas tam bém con­

ter sido capazes d e form ular a questão do papel constituti­

tribui para a superação do antigo enfoque “dependentista”

vo do acaso em toda a sua radicalidade. Infelizm ente, na

à la Cardoso & Faletto (onde se enxergava o desenvolvi­

verdade, abundam os exemplos de estudiosos do social que

m ento económ ico, mas não se deixava de salientar o con­

se encontram aquém do espírito da seguinte passagem esti­

texto de dependência), além de abalar o enfoque sistémico

mulante com que nos brindaram Prigogine e Stengers:

wallersteiniano (dem asiado determ inístico, extem alista e econom icista) quanto à questão dos lim ites do desenvolvi­

“ Longe do equilíbrio, os processos já não podem ser

m ento no âm bito do capitalismo. Afinal, a C oréia do Sul

compreendidos a partir de estados onde, em m édia, os

alcançou, nas últimas décadas, não apenas um notável d e­

seus efeitos se compensam. Eles articulam-se em disposi­

senvolvim ento económ ico capitalista, mas, tam bém, uma

ções particulares, sensíveis às circunstâncias, susceptíveis

significativa m elhoria de indicadores sociais. N o entanto,

de mutações qualitativas, disposições essas que perm item

isso não significa que não existem enorm es em pecilhos

dar um sentido a uma idéia anteriorm ente inconcebível:

económ icos e geopolíticos, situados no âmago da lógica do

explicar a novidade sem a reduzir a uma aparência.” (P r i -

sistema m undial capitalista, à “ desperiferização” dos países

g o g in e

& St e n g e r s , 1990:114)

subdesenvolvidos em seu conjunto. P or que não se poderia entender a instalação de infra-estruturas pelos japoneses

M encione-se, por fim , que a perspectiva que aceita a

durante sua ocupação do país, a reform a agrária conduzida,

possibilidade do surgim ento de novas ordens através de

após a Segunda Guerra, sob a batuta norte-americana, e a

flutuações pode ser uma pista para se repensar um certo

colossal ajuda externa recebida pela C oréia devido à sua

tipo de querela teórica estimulada pelo sucesso dos “Tigres

singular im portância geopolítica com o flutuações que, con-

64

65

E X P L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS

A EXPUL SÃO DO PARAÍSO

jugadas com aspectos estruturais favoráveis (com o a cultu­

ocupar m uito com ela”, indicando o surgimento espontâneo

ra, valorizadora da disciplina e da educação), conduziram o

de normas em m eio a processos anômicos (um fenômeno,

país à sua atual condição? Vista a partir desse ângulo, a

portanto, de “ auto-organização” ). Em Durkheim, porém, a

experiência sul-coreana (assim com o, antes dela, a japone­

desordem é algo essencialmente negativo, encarado en­

sa) contradiz enfoques rigidam ente deterministas sem, ne­

quanto perturbação da ordem (BRUSEKE, 1995: 4).

cessariamente, excluir a existência de determ inações que

Seria uma simples questão de conservadorismo, este

obstaculizam a superação do “ subdesenvolvim ento” em

viés que consiste em ver na “ desordem ” algo basicamente

escala planetária.

negativo e excepcional? Já se viu que desde o próprio Marx o marxismo teve igualm ente dificuldades com o pólo da “desordem ” , com o aleatório e inesperado, com o inapre-

“O rd e m ”, “d es ord e m ”, socied ade e espaço

ensível (e não-controlado/incontrolável...). Marx e Engels trataram de form a nitidam ente depreciativa o lumpempro-

O segundo tem a diz respeito à dialética entre ordem e

letariado

(M A R X ,

1978;

MARX,

1980;

MARX

&

ENGELS,

desordem, e busca a com preensão da criação de “desor­

1982), legando-nos inclusive algumas passagens levem ente

dem ” a p a rtir de uma “ordem ” que é pretensamente encar­

tingidas com um moralismo pequeno-burguês. Enquanto o

nação de progresso universal, assim com o do surgim ento

proletariado stricto sensu, trabalhador e virtuoso, aos seus

de novas “ordens” a p a rtir da “desordem”. Conform e vol-

olhos era o efetivo “sujeito da história” e parteiro da nova

tar-se-á mais à frente, a questão da dialética entre “ ordem ”

ordem socialista, os pais do “socialism o científico” viam, no

e “ desordem ” possui im plicações que transcendem a T eo­

“ rebotalho do proletariado” (para usar palavras de Marx),

ria do Caos, no seio da qual os vínculos entre ordem e d e­

ou seja, no subproletariado, essencialmente, uma massa

sordem são tam bém tematizados, p or arrostar o investiga­

degradada — e avessa a seu discurso ordenador. Para o

dor social com a necessidade de considerar diversas escalas

marxismo, o subproletariado não seria portador de qual­

de analise e as distintas percepções dos diversos indivíduos

quer ordem redentora, e sim para empregar novamente

e grupos sociais em seu estudo.

palavras d e Marx, uma “putrefação passiva da velha or­

As mais prestigiosas tradições do pensamento socioló­

dem ” : uma espécie de aglom erado de criaturas eticamente

gico, com o as inauguradas por W eber e Durkheim, apre­

desprezíveis (crim inosos, prostitutas, mendigos...), além de

sentaram uma nítida preferência pela dimensão da “ordem ”

histórica e politicam ente irrelevantes (a não ser, eventual­

na sociedade, ainda que tenham tem atizado (m aiginalm en-

m ente, com o grotesco sustentáculo do status quo, como

te ) também a “desordem ”

1995). Durkheim, por

mostra M arx em “ O dezoito Brum ário de Luís Bonapar-

exem plo, “percebe a problem ática do caos sem contudo se

te ” ). A lérgico à desordem , o pensam ento crítico de Marx e

66

67

(B R U S E K E ,

EXPL ORAÇÕES GEOGRÁFI CAS

A EXPUL SÃO DO PARAÍSO

Engels deixa entrever os lim ites de seu criticismo: a obses­

m ente excludente, segregacionista e, logo, não apenas cria­

são pelo controle, prenúncio distante do totalitarismo.

dora d e riqueza, mas também de pobreza. N ão é de hoje

O Brasil urbano-metropolitano contemporâneo, nota-

que o estilo de progresso técnico poupador de m ão-de-

damente a realidade das duas m etrópoles nacionais de São

obra acarreta desem prego e nutre o subem prego em eco­

Paulo e R io de Janeiro, demonstra à saciedade o anacronis­

nomias com o a brasileira, a isso tendo de ser adicionados

mo que seria continuar sustentando o enfoque marxiano.

os fatores conducentes à form ação de um “exército indus­

D e uma parte, o “proletariado” (conceito, aliás, deveras

trial d e reserva” . Sem querer, de m odo algum, elid ir a im ­

problem ático

1983]) se “integra” na socie­

portância d e fatores não-econômicos, o fato é que a con­

dade de consumo moderna, mesmo em um país com o o

centração de renda (agravada na década de 80, justamente

Brasil. Isso, se não significa o fim da exploração do traba­

o período em que o tráfico experim entou um salto qualita­

lho pelo capital, é ao menos uma expressão do fato de que

tivo), o desem prego e a penúria a que é condenada a m aior

o “proletariado”, ou seja, aqueles dos quais se extrai a

parte daqueles relegados ao setor não-m odem o da econo­

“mais-valia” (o que rem ete em prim eiro lugar ao operaria­

m ia são estímulos estruturais ao ingresso na delinquência

do industrial),

com o estratégia de sobrevivência.

[C A S T O R IA D IS ,

é

relativam ente privilegiado, pois

é

consti­

tuído por trabalhadores com contrato de trabalho form al e

P o r outro lado, na esteira da crise da dívida externa e

empregados no setor m oderno da economia. D e outra par­

do esgotam ento defin itivo do m odelo de industrialização

te, segmentos do subproletariado, com o muitos trabalha­

por substituição de im portações, nos anos 80 o estilo de

dores do setor inform al legal (cuja legião aumenta constan­

desenvolvim ento económ ico capitalista capitaneado p elo

temente no âmbito da reestruturação produtiva em curso),

"Estado desenvolvim entista” chega ao fim . Detonada pela

mas especialmente os criminosos, sobretudo aqueles liga­

crise da dívida, a crise fiscal do Estado desembocará, p or

dos ao tráfico de drogas, não podem mais, em numerosas

seu turno, em uma inflação galopante, a qual conduzirá a

cidades brasileiras da atualidade, ser tratados com o ele­

um aum ento da pobreza relativa (se bem que, com a exce­

mentos irrelevantes no cenário sócio-político.

ção do R io de Janeiro, o percentual de pobreza absoluta

O tráfico de drogas, cujas evolução e dinâmica com­

nas m etrópoles não aumentou no decénio passado), acom­

portam uma vinculação não-linear entre ordem e desor­

panhado, na prim eira m etade da década, p or cortes de gas­

dem já abordada pelo autor em trabalhos anteriores

(S O U ­

tos públicos sociais, tendência só revertida com a redem o-

um exem plo particularmente rico. N o

cratização. À crise fiscal do Estado se somarão, após 1990,

tocante à evolução, a dimensão de ordem é representada

os im pactos da globalização e da transição do m odo de

pela própria lógica do sistema capitalista, a qual, principal­

regulação e do regim e de acumulação tipicam ente fordistas

mente no contexto do capitalismo periférico, é profunda­

para o regim e de acumulação flexível e, no plano id eológi­

68

69

ZA,

1995a; 1996b),

é

EX P L ORA ÇÕE S GEOGRÁFI CAS

A EXPUL SÃO DO PARAÍSO

co, a influência do neoliberalism o. Em que pese o alívio

angústia e incerteza provocadas pelas “balas perdidas” .

decorrente da estabilização da inflação em um patamar

Todavia, em bora a sua presença esteja direta ou indireta­

baixo após 1994, o prosseguim ento da precarização das

m ente relacionada com um aumento da “entropia social”

condições de trabalho registrada na década de 80 e o cres­

na escala da cidade com o u m todo, sobretudo no Rio de

cim ento preocupante do desem prego, associados à nova

Janeiro (form ação de enclaves territoriais nas favelas, in­

conjuntura liberalizante e de reestruturação produtiva (ins­

crem ento da violência, estím ulo à auto-segregação das eli­

crita no contexto de uma reestruturação económ ica em

tes, deterioração do “clim a social” ), seria erróneo supor

curso em escala m undial) afetam severamente a qualidade

que o p ólo da ordem é estranho ao tráfico de drogas ilíci­

de vida dos pobres urbanos. Com isso, não apenas a ordem

tas. A lém do nível de organização do próprio tráfico en­

sistémica básica (o próprio capitalismo em sua versão peri­

quanto atividade económ ica, há também o fato de que, in -

férica), mas tam bém a conjuntura de colapso de uma

tem a m en te a cada favela , os traficantes representam um

determ inada form a de arranjo do sistema, provocando um

fa to r d e ordem , assumindo as funções de estabelecer nor­

certo tipo de desordem tem porária rumo a uma nova

mas d e conduta e julgar e reprim ir os transgressores dessas

ordem (ao nível do m odo de regulação e do regim e de acu­

normas (SOUZA, 1995a; 1996b). E isto, apesar de também

mulação) ainda mais excludente que a anterior e que com

nas favelas o tráfico gerar tem ores, tensões, incertezas, de­

ela se vai mesclando bem à brasileira, contribuem , nos

sordem (SOUZA, 1996b). Esta relatividade da ordem e da

marcos da influência de certos fatores culturais (fortaleci­

desordem rem ete a dois aspectos fundamentais para a aná­

m ento de valores consumistas, hedonistas e individualistas)

lise social: de um lado, a im portância de se conjugar d ife­

e político-institucionais (corrupção policial), para o incre­

rentes escalas de análise quando do tratamento de um pro­

m ento do tráfico de drogas. Finalm ente, pode-se perceber

blem a concreto (no caso específico da investigação sobre a

que singularidades locais vinculam-se estreitam ente a con­

dinâm ica e os impactos sócio-espaciais do tráfico de drogas

tingências históricas ou flutuações — logo, a uma dimen­

nas cidades brasileiras, da escala da favela até a internacio­

são de desordem — , as quais ajudam a explicar, por exem­

nal, passando pela escala da cidade/metrópole e a nacio­

plo, porque o R io de Janeiro, mais que São Paulo ou qual­

nal); d e outro lado, a constatação de que “ordem” e “desor­

quer outra m etrópole, se converteu no grande sím bolo na­

dem ” não são realidades simplesmente objetivas, mas sim

cional da violência associada ao tráfico de varejo.

realidades que se constroem na relação sujeito/objeto. D e

O tráfico de tóxicos contribui decisivam ente, a partir

acordo com o nível de análise com que o pesquisador este­

da década de 80, para piorar o quadro de esgarçamento do

ja lidando em um determ inado momento, se a escala de

tecido social em diversas m etrópoles brasileiras — ou seja,

uma favela ou a da m etrópole em seu conjunto, a faceta

para um tipo de desordem a nível local, sim bolizado pela

que sobressairá poderá ser a da ordem, mais diretamente

70

71

E XP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS

A EXPULSÃO DO PARAÍSO

ligada à vivência dos m oradores de favelas, ou a da desor­

gresso social. Quanto ao segundo m ovim ento — a ordem

dem, fortem ente vinculada às percepções e tem ores dos

em ergindo em m eio à desordem — , ele nos remete, por

moradores da “cidade legal” , do “asfalto”, e que term ina

exem plo, à critica ao simplismo de enxergar no subproleta-

por ser o ângulo privilegiado pela mídia.

riado apenas um “rebotalho”, e não também criação e retra-

A dinâmica sócio-espacial do tráfico de tóxicos serve

balhamento de valores e cultura (do rap e do fu n k à banali-

perfeitam ente para ilustrar dois fenômenos fundamentais,

zação da violência) e, enfim , ordem e organização, signifi­

na realidade dois movimentos circularmente interligados: o

cando respostas, a nível m icro(favela), para os desafios deri­

surgimento de “desordem” a p a rtir da “ordem ” e o seu in­

vados em última análise da (des)ordem sistémica. Entre­

verso, o surgim ento de “ordem ” a p a rtir da “desordem”.

tanto, considerando a questão da “ingovem abilidade urba­

Ambos os movimentos coexistem no interior de uma dada

na” — preocupação legítim a de diversos setores da socieda­

realidade social e, em bora possuam uma indiscutível di­

de carioca, mas usualmente veiculada de maneira conserva­

mensão objetiva, facetas diferentes vão surgindo ante os

dora, exagerada e até mesmo histérica — , verifica-se que, se

olhos do analista à m edida que ele se reporta a escalas dis­

por um lado um certo grau de desordem é condição de fle ­

tintas, da mesma m aneira que os próprios indivíduos envol­

xibilidade e capacidade adaptativa criadora a novas situa­

vidos extraem e desenvolvem percepções particulares a par­

ções, com o sugere Atlan em sua teoria da “ ordem a partir

tir de suas experiências sócio-espaciais concretas e suas

do ruído” (A t l a n , 1992, cap. 3), a partir de um dado lim ite

situações sociais diferenciadas. D a mesma maneira que a

a desordem pode revelar-se francamente disfuncional, ainda

ordem é algo relativo e carregado de subjetividade, e não

que não necessariamente para todos os grupos e interesses.

alguma coisa com pletam ente exterior ao sujeito cognoscen-

O caso do tráfico de drogas baseado em favelas é, ademais,

te (o que foi admitido inclusive por um cientista natural

interessante por apontar, no âmago de interações com ple­

como ATLAN [1992, cap. 2 ]), uma vez que aquilo que é per­

xas, a multifacetada importância do espaço social: palco de

cebido com o “ordem ” p or alguns pode bem ser percebido

relações sociais e arena de luta; referencial cultural, identi-

como “desordem” por outros, a desordem encarna, simulta­

tário e simbólico, e também um recurso (a localização e a

neamente, a angústia da dissolução de uma velha ordem e

estrutura espacial labiríntica das favelas são bastante vanta­

as incertezas que acompanham a formação de uma nova.

josas para os traficantes); produto social, mas também um

D o ponto de vista da teoria do desenvolvimento, uma

fator de condicionamento das relações e imagens sociais.

possível conclusão é que o prim eiro movimento — ou seja,

Pois bem : justam ente cientistas naturais, mais que

a ordem criadora de desordem — nos rem ete à crítica do

muitos pesquisadores sociais, oferecem hoje discussões

etnocentrismo da apologia universalizante da ordem capita­

teóricas estimulantes a propósito das conexões entre or­

lista-ocidental como representando um paradigma de pro­

dem e desordem , discussões essas passíveis de serem, de

72

73

EXP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS

A EXP UL SÃO DO PARAÍSO

algum m odo, apropriadas por aqueles interessados em fe ­

que suas contribuições não podem ser sempre aplicadas

nôm enos sociais. M esm o um filósofo e sociólogo com o

analogam ente a questões geográficas. Na Geografia E co­

E dgar M orin, cuja lembrança nos veríam os talvez tentados

nóm ica trata-se, ademais, sempre de problemas em tom o

a evocar com o fito de se relativizar a afirmação preceden­

de sistemas auto-referenciados, onde indivíduos refletem

te, pois ele vem há vários anos chamando a atenção tam ­

sobre os objetivos e o sentido de suas ações.” (RlTTER,

bém dos cientistas sociais para a importância m etodológica

1991:101)

sem inal da interação entre ordem e desordem , mostrando com o esta pode ser profundam ente criadora (vide

M O R IN ,

Voltar-se-á a esse tipo de alerta na próxima seção.

s/d-a) — mesmo M orin tem buscado sua inspiração nas pesquisas e reflexões no cam po das ciências naturais. N ão são, portanto, exageradas as palavras de Dupuy, quando ele d iz que as ciências sociais “ estão a reboque”

(D U P U Y ,

Sinergética: perspectivas de uma apropriação crítica pela pesquisa social

1990:59). Seja com o for, é im portante reconhecer que o estí­

O últim o tem a se refere à Sinergética de Hermann

m ulo oriundo das ciências naturais renovadas precisa ser

Haken, a “Lehre vom Zusammenwirken” (= doutrina do

sem pre criticam ente encarado e filtra d o pelos pesquisado­

agir em conjunto). M uito em bora Haken não admita a exis­

res sociais. A própria questão de uma dialética entre

tência de precursores de seu enfoque (com o o sociólogo

ordem e desordem é algo que se coloca de maneira plena­

L ester W ard), nem com preenda que os processos sociais

m ente apropriada apenas no campo social, uma vez que a

não podem ser tratados com o mesmo rigor formal que os

dialética —

repetindo M erleau-Ponty ao exorcizar uma

processos físicos, a Sinergética pode ser útil no sentido de

certa dimensão “positivista” do marxismo, no estilo da “dia­

recolocar na ordem -do-dia o im perativo epistemológico e

lética da natureza” de Engels

1975) —

m etodológico de recusa da monocausalidade nas explica­

não é independente do sujeito cognoscente, ou seja, da sig­

ções d e problem as sociais complexos, por exemplo, o cha­

nificação atribuída pelo sujeito à “ordem ” e à “desordem ” .

mado “ subdesenvolvim ento” : necessidade de articulação

(M E R L E A U -P O N T Y ,

Tem razão W igand Ritter, por conseguinte, ao ponderar,

mais consistente entre as dimensões económica, política e

preocupado com aplicações no campo da G eografia E co­

cultural, além dos condicionamentos espaciais relativos;

nómica, que

com preensão dos ritmos diferentes dos processos (p. ex., atritos entre as dimensões económica e cultural), e sua

“ [a] teoria das estruturas dissipativas foi (...) construí­

confluência histórica no bojo de uma complexa dialética

da a partir de sistemas físicos e biológicos. Isso significa

entre fatores endógenos e exógenos. A abordagem da Si­

75

E X P L O R A Ç Õ E S CEOCRÁFI CAS

A EXPULSÃO DO PARAÍSO

nergética possui, m a lgré o antifilosófico Haken, uma evi­

tões d o “caos” e da dialética entre ordem e desordem em

dente afinidade com o velho princípio dialético de que “o

uma abordagem coerente e útil à investigação social.

todo é maior que a som a das partes” . Enquanto este princí­

Faz-se mister, porém , saber separar o jo io do trigo na

pio permite, porém, ser lido de m odo simplesmente “estru­

contribuição de H . Haken, sob o ângulo da pesquisa social.

tural” — por exem plo, ao admitir-se que a totalidade (que

Para explicar o que é auto-organização Haken recorre, em

pode ser uma formação sócio-espacial determinada), e não

uma d e suas obras (HAKEN, 1983), inicialm ente ao exem ­

uma simples justaposição das partes, faz com que certos

p lo de um grupo d e operários. E le principia pela caracteri­

processos venham a te r lugar — , a Sinergética sugere fluxos

zação do que é organização-.

diferentes, processos distintos correndo paralelamente no tem po e com durações e ritmos variáveis, mas eventual­

“ Consider, fo r example, a group o f workers. W e then

m ente ou a partir d e um determ inado momento interagin­

speak o f organization or, m ore exactly, o f organized beha-

do uns com os outros, propiciando fenômenos em ergentes

vior i f each w orker acts in a w ell-d efin ed way on given

ao nível do todo.

externai orders, i.e., b y the boss. It is understood that the

Um exem plo de aplicação do raciocínio sinergético ao dom ínio social-histórico seria a explicação das causas do

thus-regulated behavior results in a join t action to produce som e product.” (p. 191)

agravamento da “questão urbana” no Rio de Janeiro na esteira em grande parte do increm ento do tráfico de tóxi­

E , logo a seguir, na mesma página:

cos, a partir dos anos 80: uma explicação consistente terá de articular um grande número de fatores, operando em

“W e w ould call the same process as being self-organi-

escalas espaciais diferentes, da internacional à local; fatores

zed i f there are no externai orders given but the workers

com temporalidades distintas, e alguns deles com portando-

w ork togeth er b y som e kind o f mutual understanding, each

se como determ inações sistémicas, enquanto que outros

doin g his job so as to produce a product.”

aparecem com o flutuações. Fatores, por fim , que tanto podem indicar um m ovim ento que vai da ordem à desor­

N o entanto, a pergunta realm ente relevante é: de on­

dem, como um m ovim ento que vai da desordem à ordem.

de vem e com o se dá esse “m utual understanding”? A res­

Pode-se verificar, assim, que a visão de uma sinergia positi­

posta a esta pergunta é o que elucida a dinâmica do grupo,

va, gerando uma situação nova (às vezes inteiram ente ines­

rem etendo a questões tão complicadas quanto as relações

perada), ou a ultrapassagem de um lim ite crítico com base

entre o im aginário social, as modalidades de cooperação

na confluência e no reforço mútuo de n processos distin­

interindividual, o tip o de organização política, as formas de

tos, oferece inclusive a possibilidade de se integrar as ques­

produção etc. — e essa resposta, contrariam ente ao que

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77

A EXP UL SÃ O DO PARAÍSO

E XP L ORA ÇÕES GEOCR Á F I CA S

desejaria qualquer físico, não é form alizável. “Auto-organi-

to físico ou inesgotáveis p or referência a elementos “reais”

zação” de um sistema na Física possui uma conotação dis­

e “ racionais” (D eus, pecado, justiça...), é passível de “eluci­

tinta e m enos com plexa que “ auto-instituição” (ou auto-

dação” e discussão através d o recurso a modelos verbais

criação) do Social em

(1975; ver, tam bém,

(textos), mais abertos a sutilezas, mas é avesso a esquema-

1986 e 1990b); mas é precisam ente a “auto-

tism os gráficos ou matemáticos. N o campo social, comple­

instituição” que coloca os problem as verdadeiram ente in­

xidade quer d izer m uito mais que meramente não-lineari­

teressantes. E não se trata apenas de que, com o diria H a­

dade: quer dizer, para usar o term o castoriadiano, uma si­

ken, os “ subsistemas” do “sistema” sociedade (isto é, os in­

tuação d e “ magma” , com significações que rem etem a ou­

divíduos) são demasiado com plicados para que se possa

tras significações, inesgotavelm ente, indefinidamente (no

com preender sua dinâmica em detalhes — o que, para

duplo sentido de sem fim e sem definição absoluta). A isso

Haken, não im pediria o conhecim ento da dinâm ica ma­

deve-se adicionar a questão (igualm ente posta por

croscópica (g era l) do sistema, inclusive a sua form alização

R IA D IS

dentro dos cânones daquilo que o físico alemão denom ina

organização” no caso de sistemas físicos, químicos ou bio­

d e “ Sinergética fenom enológica”, com a possibilidade de

lógicos. N o caso de um sistema natural, a auto-organização

simulações e (!) predições

se perpetuará até que a “ fadiga d o material” atinja um limi­

C A S T O R IA D IS ,

C A S T O R IA D IS

(H A K E N

&

W U N D E R L IN ,

1991:

CASTO-

[1986: 235-6]) do caráter conservador da “auto-

te crítico, ocorra um acidente de comunicação ou uma for­

241-247). C onform e sublinha

(1975, 1986), não é

ça externa bloqu eie o processo ou mesmo destrua o siste­

lícito reduzir o Social à sua face “distinta e definida” , for­

ma. Isto se dá porque um sistem a natural não possui verda­

m alizável —

“id entitário-conjuntista” (identitaire-ensem -

deiras contradições internas (não se fala, aqui, da “compe­

b liste), para usar as suas palavras — , muito em bora essa

tição” entre “parâmetros de ordem ” [Ordnungsparameter,

face seja uma parte real dele (e é através dela que se pode

o rd e r param eters], no sentido da Sinergética, mas de efeti­

dar o diálogo com as ciências naturais). É válido form alizar

vas contradições dialéticas). A sociedade, contudo, as pos­

esta face; entretanto, querer form alizar a dimensão im agi­

sui, conform e já se fe z notar anteriorm ente — o que, diga-

nária — o “magma de significações imaginárias sociais” de

se de passagem, demanda uma correspondente flexibiliza-

que fala Castoriadis — é um absurdo. Diversam ente de

ção da idéia de “atrator”, para fins de aplicação ao domínio

um sistema natural, cada sociedade cria uma trama de sig­

social-histórico. O que poderia significar, assim, uma socie­

nificações para representar a si mesma e o mundo, trama

dade enquanto sistema auto-organizado total? Decerto se­

essa que, por sua vez, estabelece o caldo de cultura onde

ria uma sociedade onde a possibilidade de questionamento

são socializados os indivíduos. O processo histórico de cria­

a p a rtir de dentro estaria irrem ediavelm ente interditada,

ção de significações, inclusive de significações sem correla­

pelo peso esmagador da repressão ou, mais efetivamente

C A S T O R IA D IS

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EXP L ORA ÇÕES GEOGRÁFICAS

A EXPULSÃO DO PARAl SO

ainda, do próprio imaginário; uma sociedade onde o con­

que nós observamos é a em ergência de uma nova significa­

junto dos indivíduos teria a sua dinâmica plenam ente “ es­

ção im aginária social: a expansão ilim itada da m atriz ‘ra­

cravizada” (versklavt) por “parâmetros de ordem ” sócio-

cional’ (que se instrumenta, para começar, na expansão ili­

político-culturais, para usar duas expressões de Haken que,

mitada das forças produtivas), simultaneamente com a atua­

involuntariamente, pintam já um quadro de horror. Seria,

ção de um grande número de fatores de extrema diversida­

em suma, uma sociedade ultratotalitária, com o a do “ 1984”

de. Ex post, e uma vez que estamos de posse do resultado,

de Orwell. Um a tal sociedade representaria exatamente o

não podem os deixar de admirar a sinergia [grifo de Cas­

máximo em m atéria de heteronom ia, no sentido de Casto-

toriadis] (incrível e enigm ática) desses fatores em ‘produ­

riadis

C A S T O R IA -

zir’ uma forma, o capitalismo, que não fo i ‘pretendida’ por

1983; 1990a). É conveniente, por conseguinte, m ode­

nenhum ator ou grupo de atores, e a qual decerto não p o­

lar o Social sistemicamente, por razões didáticas e, em par­

deria ser ‘construída’ por m eio da reunião aleatória de ‘ele­

te, heurísticas (considere-se, por exem plo, o valor de siste-

m entos’ preexistentes.”

D IS ,

(C A S T O R IA D IS ,

1986: 236; ver, também,

(C A S T O R IA D IS ,

1986: 234)

mogramas, ou diagramas sistémicos, tanto para a transmis­ são de conhecim entos quanto para o ordenam ento do ra­

Sem em bargo, a fonte de inspiração de Castoriadis

ciocínio) — desde que se tenha consciência, todavia, de

decerto não fo i a obra de Haken... A Sinergética hakenia-

que essa m odelagem é e sempre será perigosa, por conti-

na, aplicada a um sistema físico, quím ico ou biológico, for­

nuamente seduzir o intelectual a pensar que ela esgota a

nece uma analogia deveras interessante, e tão mais interes­

questão da natureza da realidade social, quando na verda­

sante quanto mais renitentes forem os teóricos do desen­

de ela mal dá conta do seu “esqueleto” (isto é, da sua d i­

volvim ento das sociedades em se aferrarem a esquemas

mensão conjuntista-identitária).

interpretativos monocausais. Um a vez aplicada a Sinergé­

Vale a pena notar, por fim , que o próprio Castoriadis

tica à sociedade à maneira de Haken, porém , o tiro pode

não se furta a um raciocínio explicitam ente sinergético, ao

sair pela culatra, e ao invés de com plexidade estar-se-á di­

comentar, em um ensaio sobre o dom ínio social-histórico,

ante de mais um reducionismo. Em resumo: a idéia de si­

o processo de génese do capitalismo moderno:

nergia, sim, ela nos é útil — mas não especificamente em sua versão hakeniana.

“ Nós não observamos na Europa Ocidental, entre, d i­ gamos, os séculos X II e X V III, uma produção ‘aleatória’ de um número im enso de variedades de sociedades e a elim i­ nação de todas elas, menos uma, por serem ‘inaptas’, e a seleção do capitalismo com o a única form a social ‘apta’ . O

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EXP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS

A EXPUL SÃO DO PARAÍSO

Conclusão

voluções sociais (ver HAKEN, 1990), para se ganhar um co­ nhecim ento qualitativamente superior, é um delírio retró­

As páginas precedentes revelaram — o autor de bom

grado. Um delírio, a propósito, positivista, tributário da ve­

grado reconhece — uma reflexão em estado ainda em brio­

lha arrogância mais ou menos redutora da realidade social à

nário, e além disso uma reflexão que tenta ser cautelosa. A

biológica (e, em última instância, à física). Mas... não seria

intenção fo i m eram ente a de destacar alguns exem plos de

esta inclinação (este vício), presente em muitos cientistas

possibilidades de releitura de problemas sociais, com vistas

naturais (LEW IN [1994] oferece vários exemplos, lamenta­

a uma crítica construtiva das teorias do desenvolvim ento,

velm ente endossando-os) e incorporado por outros tantos

articulando novos conceitos e term inologias (inspirados,

cientistas sociais, justamente contraditório com o verdadei­

originalm ente, em contribuições das ciências naturais) com

ro espírito da complexidade, conform e sintetizado por Ed­

certas tradições da Filosofia e das ciências sociais, notada-

gar M orin na passagem citada na introdução deste artigo?

m ente retom ando o fio do pensamento dialético — o qual

Seja com o for, a despeito de todas as ressalvas, obje­

não deve ser confundido com ou reduzido ao pensam ento

ções e advertências, o diálogo com as ciências naturais se

marxista.

afigura necessário. Estamos sendo expulsos do aparente

O desafio, é fácil perceber, é múltiplo, e não simples:

paraíso das explicações reducionistas, e as ciências naturais

não apenas o desafio de abrir-se ao novo, mas o de discer­

renovadas estão a jogar um certo papel nessa expulsão. Só

nir as múltiplas raízes desse novo, relativizando assim a sua

que, ironicam ente, o ganho mais importante nesse diálogo

novidade. Com isto corre-se o risco de bancar o desm an­

não é aquilo que os cientistas sociais (teóricos do desenvol­

cha-prazeres para quem pensa ter descoberto a pólvora,

vim ento incluídos) podem propriam ente “aprender” com

especialm ente se esse tipo de relativização é com plem enta­

os naturais (m entalidade que já conduziu a várias aberra­

do p or uma exigência de serenidade com o a que, aceitando

ções), mas sim o fato de que o exem plo dos cientistas natu­

e buscando o diálogo com o Outro (com as ciências natu­

rais recordará aos cientistas sociais que estes conseguem,

rais), ao mesmo tem po repudia qualquer tentativa de negar

muitas vezes, ser mais “sim plificadores” que aqueles... A fi­

a especificidade do M esm o (das ciências sociais e, na base,

nal, som ente as próprias ciências sociais poderão definir o

do seu objeto, a sociedade). O autor do presente ensaio

que, em seu âm bito, caracteriza a “complexidade" — vale

não crê, contudo, existir neste caso alternativa razoável

dizer, a singular com plexidade do seu objeto inconfundível,

para uma significativa prudência. Errar é humano, persistir

a sociedade.

no erro é tolice; imaginar que basta que esquemas analíti­ cos com o a Sinergética sejam aplicados de maneira form al aos mais diferentes objetos, por exemplo, no estudo d e re­

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83

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AS ABORDAGENS DA G e o g r a f ia C u l t u r a l Paul C laval*

A geografia cultural está associada à experiência que os homens têm da Terra, da natureza e do ambiente, estu­ da a m aneira pela qual eles os m odelam para responder às suas necessidades, seus gostos e suas aspirações e procura com preender a m aneira com o eles aprendem a se definir, a construir sua identidade e a se realizar. A geografia cultural dem orou m uito para se consti­ tuir, uma vez que ela necessita, para se desenvolver, que a disciplina não seja som ente uma ciência natural de paisa­ gens e de regiões, com o o era no com eço do século, e que não se reduza à análise dos mecanismos que perm item às sociedades funcionar, triunfando sobre o obstáculo da dis­ persão e da distância, segundo os esquemas que prevale­ ciam nos anos 1960. É preciso que ela se tom e uma refle­ xão sobre a geograficidade, ou seja, sobre o papel que o

* Traduzido do francês po r Paulo Cesar da Costa Gomes.

EXPL ORAÇÕES GEOGRÁFI CAS

AS ABORDAGENS DA G E O C R A F I A CULTURAL

espaço e o m eio têm na vida dos homens, sobre o sentido

dem os reencontrá-la na idéia d e força determinante das

que eles lhes dão e sobre a maneira pela qual eles os utili­

culturas utilizada por Pierre Gourou ão longo de toda a sua

zam para m elhor se com preenderem e construírem seu ser

carreira.

profundo. As idéias de Eric D ardel, que foi o prim eiro a

Existe uma outra maneira, entre os geógrafos france­

lutar por esta concepção verdadeiram ente humana da geo­

ses, de explorar os fatos da civilização: estudar os traços

grafia, levaram mais de vinte anos para serem reconheci­

culturais, sua distribuição e a marca que eles imprimem na

das: as m entalidades não estavam suficientem ente maduras

paisagem. Este estilo de análise foi posto em prática por

para a mudança radical na concepção da disciplina com o

Jean Brunhes e desenvolvido p or P ierre Deffontaines. Deu

ele recomendava.

origem a monografias apaixonantes que, no entanto, ábor-

D izer que a geografia cultural só pôde se desenvolver

dam a cultura pelo exterior e se recusam a realizar o ques-

recentem ente não quer dizer que este dom ínio tenha per­

tionam ento das representações e dos valores que levam as

m anecido ignorado pelos pesquisadores. Eles o aborda­

pessoas a agirem de uma certa maneira ao invés de outra, a

vam, mas não dispunham dos meios necessários para anali-

organizar o espaço segundo um m odelo ao invés de outro.

sá-lo em todas as suas dimensões. As abordagens que prati­

Pierre D effontaines aborda a geografia religiosa através das

cavam eram sem pre parciais. Alguns exem plos o mostram

marcas que esta im prim e nas paisagens (igrejas, mesquitas,

m uito bem : na França, no com eço do século, a noção de

santuários, tem plos, cruz etc.) pelos obstáculos que ela im ­

gênero de vida tem uma dimensão ecológica, naturalista;

põe a certos gêneros de vida (obrigação do jejum na sexta-

ela serve prim eiram ente para mostrar com o os grupos se

feira, interdição do álcool e do consumo da carne de porco,

adaptam ao am biente. Ela tem tam bém, entretanto, uma

por exem plo), e pelos gêneros de vida que ela faz nascer (o

dimensão social e cultural: com o nota Vidal de la Blache, a

dos padres ou dos monges). A religião não é nunca tratada

força do hábito tom a-se tão forte que o grupo humano p er­

nela mesma

(D E F F O N T A IN E S ,

1948).

de sua plasticidade. A o invés de se adaptar ao m eio, ele

Nos Estados Unidos, C ari Sauer se interessa pelas

procura m odificá-lo para perm anecer com seus hábitos:

transformações que a cultura im põe aos ambientes natu­

observa-se por ocasião das migrações; os recém -chegados

rais. E le estuda as paisagens para dimensionar com o o ho-

em um país fazem em geral de tudo para continuar a viver

m en m odifica, de forma mais ou menos profunda, o que ele

com o eles o faziam em seus países de origem . V idal de la

encontra, instalando-se em m eios ainda naturais (SAUER,

Blache, que faz do gênero de vida um dos eixos da geogra­

1963). Aqui ainda a abordagem é exterior.

fia humana que ele elabora, é, desta forma, o prim eiro a

*

A geografia cultural de língua alemã se interessa tam­

sugerir que ele pode ter uma dimensão cultural. A idéia

bém pela paisagem. Ela estuda a presença de traços cultu­

está presente em muitos trabalhos da escola francesa. P o­

rais, à maneira de Jean Brunhes, o recuo da floresta e de

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91

E X P L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS

outras formações naturais diante do machado dos cultiva­ dores e das queimadas repetitivas dos criadores de gado.

AS ABORDAGE NS DA G E O G R A F I A C U L T U R A L

A geografia cultural parte das sensações e das representações

Ela se interessa, tam bém, pela harmonia profunda que se observa, às vezes, entre a organização do espaço, os traços

O hom em apreende o mundo através dos seus senti­

visíveis da paisagem e a alma do povo que a m odelou

dos: ele observa as formas, escuta os barulhos e sente os

(A N D R E O T T I,

odores daquilo que o envolve. Os m ovim entos do seu cor­

1994; 1996).

A geografia cultural moderna, ao fazer do hom em o

po constituem uma experiência direta do espaço. O gosto

centro de sua análise, fo i obrigada a desenvolver novas abor­

lhe revela, quando ele com e ou bebe, outras propriedades

dagens. Ela se construiu em tom o de três eixos que são

do m undo que o envolve. O hom em age prim eiram ente

igualmente necessários e complementares: prim eiro, ela

em função das indicações que ele recebe dos seus sentidos.

parte das sensações e das percepções; segundo, a cultura é

As sensações são uma apreensão do real, mas só se

estudada através da ótica da comunicação, que é, pois, com ­

tornam seguras quando assumem uma form a estável. Isto

preendida com o uma criação coletiva; terceiro, a cultura é

ocorre quando se superpõe à sensação uma percepção. Os

apreendida na perspectiva da construção de identidades,

homens quase sem pre ouviram falar d e lugares que eles

insiste-se então no papel do indivíduo e nas dimensões sim­

abordam antes de os pisarem, de m odo que seu olhar não é

bólicas da vida coletiva.

mais perfeitam ente novo. Sua experiência é guiada p or aquilo que eles aprenderam ao escutarem as pessoas em tom o deles e discutindo com elas. A geografia que estuda

Os três eixos da análise geográfica da cultura

grupos humanos se detém nos discursos e nas representa­ ções que os codificam , uma vez que estas últimas traduzem

Até os anos 1960, o desenvolvim ento da geografia cul­

maneiras de v e r padronizadas.

tural esteve arrefecido pela sua recusa de se afastar da pai­

As representações que o indivíduo recebe através de

sagem ou dos artefatos e por se interessar pelo que se passa

sua educação, que ele aprende no contato com outros, que

no espírito das pessoas. Este bloqueio diminuiu hoje em

ele constrói e que reinterpreta, constituem um universo

dia. Por se interessar prim eiram ente pelos homens, os estu­

mental que se interpõe entre as sensações recebidas e a

dos podem hoje ir m uito mais longe do que no passado.

im agem construída em seu espírito. As representações fo r­ necem malhas para apreender o real. Elas perm item su­ perpor ao aqui e ao agora os algures, que são sociais, geo­ gráficos ou m etafísicos. Elas dão assim origem a valores e instituem uma ordem normativa.

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93

E XP L ORA ÇÕES CEOGRÁFI CAS

AS A B OR DA C E N S DA G E O G R A F I A CULTURAL

Os homens não agem em função do real, mas em

naturais do corpo, de m odo que se adquire, ao manipulá-

razão da im agem que fazem dele. Aproxim ar-se da geogra­

los, o know how daqueles que os conceberam. As mídias

fia cultural é, antes de mais nada, captar a idéia que tem os

modernas perm item as trocas orais e a aprendizagem pela

do am biente próxim o, do país e do mundo. É se interrogar

im itação dos gestos. Elas substituem mal a escrita para a

em seguida sobre a maneira com o as representações são

veiculação das idéias abstratas (M cLU H A N , 1968).

construídas, sobre o seu papel no m odelam ento do real e

As inform ações que com põem as culturas transitam

sobre sua perm anência, sua fragilidade e as reações que

sem cessar de indivíduo para indivíduo. Elas passam de

provocam .

uma geração a outra, de m odo que a sociedade permanece ainda que seus velhos desapareçam e sejam substituídos pe­ los jovens. Elas circulam entre vizinhos, entre amigos, entre

A d im ensão c o le tiv a : a cu ltu ra deve s e r estudada sob a

parceiros de trabalho ou de negócios. Cada um recebe, ao

ó tic a da co m u n ica çã o

longo dessas trocas, know how , conhecimentos e descobre atitudes e crenças que lhes eram estranhas; retém-se e inte­

O estudo da dimensão coletiva dos fatos culturais fo i

rioriza-se uma parcela mais ou menos larga.

renovado pelos progressos da linguística e da teoria da

O conteúdo das mensagens trocadas não pode geral­

comunicação. A cultura é feita de inform ações que circu­

m ente ser com preendido fora d o contexto onde se encon­

lam entre os indivíduos e lhes perm item agir. Códigos ser­

tram os parceiros. Os jovens citadinos aprendem o que é o

vem para organizá-los ou para trocá-los.

centro de sua cidade sem que isto jamais lhe tenha sido

As inform ações que constituem a cultura concernem o

explicado: eles vislumbram o term o associando-o a um cer­

am biente natural no qual vivem os homens, a maneira de

to bairro, ao com ércio, aos bares ou aos bancos que ali se

produzir alimentos, energias e matérias-primas, assim com o

encontram. Assim, o que eles adquirem só é válido dentro

as formas de construir instrumentos e de em pregá-los para

dos lim ites do grupo de intercom unicação ao qual eles per­

criar ambientes artificiais. As informações que constituem a

tencem (S t a s z a k , 1997).

cultura tratam em seguida da sociedade, da natureza, dos

Esta perspectiva sublinha que a cultura é antes uma

laços que unem seus membros e das regras que devem ser

realidade de escala local: de um círculo de interação a ou­

respeitadas nas relações que se estabelecem.

tro, trocas têm lugar; equivalências se desenvolvem, de mo­

Essas inform ações se transmitem pela observação e

do que a comunicação seja possível, porém nem tudo é

im itação, pela palavra ou pela escrita. Os instrumentos

transmitido. N ão existe com preensão real dos processos cul­

têm , assim, um papel importante neste dom ínio: eles foram

turais se negligenciarm os o jo g o da intersubjetividade.

concebidos para guiar os gestos e tirar partido dos ritmos

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95

EXP L ORAÇÕES CEOGRÁFI CAS

A dim ensão in d iv id u a l: a cu ltu ra fo r ja identidades

AS A BORDAGENS DA GEOGRA FI A C U L T U R A L

não se pode alcançar, ou em um futuro indefinido da U topia. O mundo real é duplicado p or mundos imagina­

Assim concebida, a cultura não aparece com o uma

dos, que são indispensáveis para lhe dar sentido e apare­

totalidade que encontraríamos identicam ente em todos os

cem freqíientem ente com o mais autênticos do que aqueles

membros de uma sociedade, com o poderia ser o caso de

que nossos olhos desvelam. Esses algures afloram em cer­

um mesmo software im plantado em milhares de computa­

tos lugares. Eles transformam a sua natureza: ao universo

dores. Ela resulta de um processo de construção sem fim ,

profano do mundo ordinário se opõem as praias sagradas

levado a cabo pelos indivíduos.

que manifestam aqui embaixo a existência desses algures

É ao longo da infância que a acumulação de know

(E l ia d e , 1965).

how, de conhecimentos, de preferências e de crenças tom a

A cultura incorpora, assim, valores. Estes têm uma tri­

forma: o jovem aprende a falar, a se deslocar e a agir den­

pla finalidade: prim eiro, guiar a ação, inscrevendo-a em um

tro do meio familiar; mais tarde, ele é submetido à apren­

quadro normativo; segundo, sublinhar a especificidade de

dizagem, ou vai à escola.

tudo que é social, alçando a uma dignidade superior o que

A acumulação de inform ações estruturadas que resul­ ta deste processo tem p or objetivo dotar cada um da baga­

passa p or procedim entos de institucionalização, e, terceiro, dar um sentido à vida individual e coletiva.

gem de conhecimentos indispensáveis para trabalhar e

A form ação dos indivíduos term ina quando eles inte­

para se integrar à sociedade. A cultura, no entanto, não se

riorizam o quadro de valores que os insere em um destino

resume a isto: ela serve para dar um sentido à existência

coletivo. Esta etapa im portante dá lugar a ritos de passa­

dos indivíduos e dos grupos nos quais eles estão inseridos.

gem no m om ento da adolescência

As informações que circulam nas células do corpo social

te m om ento que a institucionalização do indivíduo term ina

(E R K S O N ,

1972). É nes­

comportam narrativas que contam a origem do mundo, o

e que e le tem acesso ao mundo social pleno, o dos adultos.

prim eiro homem e a constituição da sociedade; elas inse­

E le adquire uma identidade que lhe dá um estatuto no gru­

rem a existência de cada um em um destino coletivo e lhe

po e o faz existir face às outras coletividades.

dão uma significação.

O processo de interiorização e de reconstrução indivi­

As perspectivas necessárias aos indivíduos para que

dual da cultura não pára na adolescência. Possibilidades de

suas vidas não pareçam inúteis são abertas pela tomada em

adquirir novos conhecimentos, de dom inar novas técnicas,

consideração do algures, de onde as coisas podem ser vis­

de experim entar novos valores se oferecem perm anente­

tas com recuo: eles podem estar situados para além do céu

mente. Os empréstimos se sucedem, mas alguns são recu­

ou da razão, ou aqui embaixo, mas nos tem pos recuados da

sados, pois colocariam em perigo a identidade individual e,

Idade do Ouro, em uma Terra sem M al tão afastada que

numa outra escala, a estrutura do grupo. Para aqueles que

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97

'

AS ABORDAGE NS DA G E O G R A F I A C UL T URA L

EXP L ORA ÇÕES GEOGRÁFI CAS

não se detêm diante dos obstáculos experim entam fases de

A p reen sã o d o m u n d o atra vés dos sentidos

crise e de reconstrução do eu, freqiientem ente difíceis; elas precedem e acompanham as conversões. N o nível

Se a geografia cultural se dedica à experiência que os

coletivo, as bases morais sobre as quais a sociedade está

homens têm do mundo, da natureza e da sociedade, ela

edificada podem ser transformadas, mas ao preço de revo­

deve partir daquilo que os seus sentidos lhes revelam. Os'

luções que são sem pre duras de viver, mesmo que elas não

estudos não faltam a este com promisso, mas eles se detêm

sejam acompanhadas por revoltas, massacres ou guerras

quase exclusivamente sobre a visão. O olhar que os ho­

civis.

mens projetam sobre o am biente obteve a atenção dos O processo de institucionalização não diz respeito

geógrafos, uma vez que é ele que perm ite estruturar o

som ente ao indivíduo e à sociedade. E le se aplica aos siste­

espaço, de opor o próxim o ao distante, de distinguir planos

mas de relações cada vez que estes concernem à riqueza,

escalonares e perceber a realidade em múltiplas escalas —

ao poder, ou ao prestígio e interferem por isso no funciona­

é sobre esta propriedade que se baseia toda a orientação

m ento da sociedade. A abordagem cultural tom a-se, assim,

geográfica.

indispensável para com preender a arquitetura das relações

Mas o olho não é um instrum ento neutro: o que nós

que dominam a vida dos grupos. Ela renova a geografia

vem os nos agrada, nos em ociona, nos amedronta. O olhar

social. Ela ilum ina a vida económ ica à m edida em que p õe

participa da experiência que tem os dos lugares e de suá

em evidência os objetivos perseguidos pelas famílias e

dimensão em otiva — por vezes estética.

pelas empresas: suas lógicas dependem da maneira com o elas estão estruturadas e dos valores que as guiam.

A audição não tem a mesma significação: ela fornece apenas uma id éia im perfeita da geom etria do mundo; ela inform a sobre a direção de onde provêm os sons que per­ cebem os, mas só traduz aproxim ativam ente suas distâncias.

As abordagens culturais: cultura e relações com o espaço

A passagem do agudo ao grave denota, ao contrário, o m ovim ento. O am biente sonoro faz parte da imagem que guardamos dos lugares. A lem brança mais forte que guar­

Os geógrafos tiram partido destas orientações recen­ tes da reflexão

(C laval,

1992; 1995;

FOOTE

et a lii, 1993)

para com preenderem com o a cultura define o espaço.

damos deles é, no entanto, freqiientem ente dada pelo olfa­ to: não esquecem os o odor dos maquis da Córsega na pri­ mavera, o odor do feno grego nos campos da África do N orte ou, ainda, da terra depois da chuva de abril, o odor do feno recém -cortado ou o perfum e dos campos de lavan­ da no vapor do mês de julho.

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E X P L O R A Ç Õ E S GE OG RÁ F I CA S

AS A BO R D A G E N S DA G E O G R A F I A C U L T U R A L

A experiência do gosto é menos diretam ente associa­

das en tre nosso m undo e o O utro m undo, passa p elo cen­

da aos lugares: a terra não é degustada, só raram ente se

tro d o espaço terrestre. C erta m ontanha é sagrada e é a

mastiga plantas selvagens. E ntre os sentidos, o paladar é o

partir d ela que o sistem a do m undo se ordena — pense­

mais socializado (PlTTE , 1991). É através dele que fazem os

mos no m onte M éru (E LIAD E, 1965).

a experiência do cru e d o cozido, daquilo que separa os homens das espécies animais. Os sabores e os odores dos alim entos consumidos durante a infância estão associados à

C ultura e dom ínio da natureza

im agem do país natal, da fam ília e das tradições que rep re­ senta.

A cultura não fala som ente do espaço; ela fala tam ­ bém da natureza. E la o tom a sim ultaneam ente com o um m eio a dom inar para extrair aquilo que é necessário à exis­

A estruturação do espaço

tência e com o um conjunto carregado d e sentidos. O s hom ens tiram de seu am biente aquilo que eles

O espaço que percebem os é codificado p or categorias

têm necessidade. E les procedem pela coleta (o que supõem

que perm item estruturá-lo: e le é ordenado em relação a

que eles reconheçam , entre as dezenas ou centenas d e

um ponto de origem e às direções, o que perm ite situar os

espécies, aquelas que são nutritivas, aquelas que são vene­

lugares uns em relação aos outros. Se a observação funda­

nosas, aquelas que fornecem fibras etc.), pela pesca ou p ela

m ental se d er à beira de um rio que fixa as orientações, a

caça (o que im plica um inventário detalhado da fauna ter­

montante, a jusante e perpendicularm ente, direm os que

restre ou aquática), p elo pastoreio (qu e se baseia na domes­

para atingir tal lugar é necessário subir o rio três horas,

ticação d e uma ou várias espécies animais, no conhecim en­

depois andar duas horas perpendicularm ente ao seu curso,

to de suas necessidades alimentares, seus deslocamentos

a sua esquerda. Se as direções são astronómicas se dirá que

necessários para aproveitar as áreas d e pastagens nos m o­

a cidade B está a cinco léguas ao norte e dez léguas a leste

m entos mais favoráveis e no recurso ao fogo para aumentar

da cidade A . Às direções se acrescentam as indicações de

ou regenerar as zonas de percurso) e p ela agricultura. N es­

altitude. É preciso subir ou descer, para ir d e tal ponto a

te últim o caso, os grupos aprenderam a cultivar, a conservar

outro (P a u l -LÉVY, SÉGAUD, 1983).

e a consum ir certas espécies. Antes d e sem ear ou de plan­

N a m aior parte das sociedades, os pontos cardeais e o

tar, eles prepararam as terras utilizando recursos frequente-

alto e o baixo estão conotados d e valores: o norte é m aléfi­

m ente com plexos. Cada uma dessas operações im plica o

co; a oeste se encontra o R ein o dos M ortos; o eixo do m un­

uso d e instrumentais variáveis.

do, pelo qual se estabelecem as comunicações mais côm o­

100

O dom ínio d o m eio só é possível porque os homens

101

EXPL ORAÇÕES GEOGRÁFICAS

AS A B O R D A G E N S DA G E O G R A F I A C U L T U R A L

souberam se cercar de um universo instrum ental que os

geografia no com eço do século — e os símbolos de sua

perm ite trabalhar a terra, efetu ar as colheitas e preparar, a partir d e m atérias-primas disponíveis, os artigos do qual

identidade. O s hom ens inscrevem , nos m onumentos que erigem

eles têm necessidade para o consumo.

e nas inscrições que fazem aqui e ah, a ordem de significa­

O dom ínio do m eio se baseia tam bém na criação d e

ções qu e os m otivam . Para James Duncan, por exem plo, a

am bientes artificiais — a roupa, que p rotege das intem pé­ ries, e a casa.

paisagem p od e ser fida com o um texto (D U N C A N , 1990).

A geografia das técnicas constituía no com eço do nos­ so século o capítulo mais p rofícu o dos estudos culturais. Baseado sobre práticas m uito mais do que sobre saberes padronizados, o universo instrum ental variava m uito pou­ co. O progresso cien tífico e a facilidade das com unicações apagaram a diversidade d e outrora. A análise das técnicas tradicionais continua, entretanto, a fascinar um grande núm ero d e geógrafos — m esm o porque os contrastes na m aneira de se vestir, de se equipar, d e habitar, estão reva­ lorizados em uma época onde a geografia tende à unifor­ m idade.

E n tre as criações da cultura, a paisagem é a que retém m aior atenção, pois lança-se sobre ela um novo olhar. Augustin B erque tenta com preender os sentidos que os grupos dão ao seu am biente

(B E R Q U E ,

1986; 1993).

Suas análises tratam do par hom em /m eio e sobre as paisa­ gens on de ele se m anifesta

(B E R Q U E ,

1990). E le forja no­

vos conceitos para m elhor apreender este dom ínio, com o o de m esologia, “ ciência dos m eios que não são só objetivos, mas vividos pelos sujeitos” . Sua idéia m estre é a de que a natureza é sem pre com preendida em uma perspectiva cultural. D enis C osgrove d ecifra os m odos de produção sim­ bólicos específicos das sociedades pré-capitalistas e capita­ listas em seus trabalhos sobre a iconografia da paisagem em V en eza e na Inglaterra. As fam ílias da aristocracia ve­

Cultura e paisagem

neziana exprim em suas convicções e suas aspirações nos palácios e nos jardins que elas se fazem construir sobre a

A paisagem retém a atenção, uma vez que é o suporte

terra firm e p or arquitetos com o Palladio

(C O S G R O V E ,

1984;

das representações. Ela é sim ultaneam ente m atriz e marca

C O SG R O VE, D a n ie l s ,

da cultura, segundo a fórm ula d e Augustin B erque (BER-

a fortuna d e que se dispõe é estável. Transformá-la em uma

QUE, 1984): m atriz, visto que a organização e as formas que

paisagem harm oniosa prova que se é sensível ao belo e que

estruturam a paisagem contribuem para transm itir usos e

se participa de uma elite de espírito cujo m agistério é eter­

significações d e uma geração à outra; marca, visto que cada

no. O s hom ens d e n egócio britânicos que multiplicam na

grupo contribui para m odificar o espaço que utiliza e gra­

área rural inglesa do século X V III belas residências e par­

var aí os sinais de sua atividade — o que era estudado p ela

ques não procuram outra coisa.

102

1988). Possuir uma terra mostra que

103

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

As abordagens culturais: cultura e construção do eu e da sociedade

AS A B O R D A G E N S DA G E O G R A F I A C U L T U R A L

N ã o se p od e com p reen d er as geografias qu e se cons­ troem sob nossos olhos se negligen ciarm os a qualidade estética dos am bientes e as possibilidades d e realização

A cu ltu ra e o e n riq u e c im e n to d o s e r

qu e eles o ferecem àqueles que os habitam ou que os fre ­ quentam . As cidades gastam fortunas para criar e m anter museus, teatros, óperas, ou para organizar festivais: elas

Os indivíduos não perm anecem passivos diante da

fixam assim as em presas ou atraem os turistas.

cultura. Eles retêm certas inform ações mais do que outras, se interessam p ela destreza dem onstrada p or um bom op e­ rário ou p e lo p e rfe ito b ric o le u r1, evoluem a vontade na esfera dos conhecim entos cien tíficos, ou se associam p re fe ­

A c o n s tru ç ã o d e id e n tid a d e s e a d ia lé tic a u n ifica çã o / d iv e rs ific a ç ã o

rencialm ente à vida religiosa. E sta fam iliarização com as­ pectos particulares d o universo social lhes perm ite especia­ lizar-se e ganhar a vid a quando as sociedades tom am -se complexas; eles retiram disso tam bém satisfações pessoais, ela lhes assegura prestígio e o estatuto acordado ao espe­ cialista, ao cientista ou ao sábio. A arquitetura, a escultura, a pintura, o teatro estive­ ram durante m uito tem po ligados à vida religiosa. Q uando as sociedades se laicizaram , a vid a artística tom ou-se autó­ noma. Sobressair no dom ínio da criação aparece então com o o signo d e um a realização particularm ente valorizadora do eu. Todos aqueles que desejam se eleva r na escala do prestígio e da consideração, com eçam a frequ en tar as galerias de arte, os museus, as salas d e concerto, as óperas ou os teatros, ou a le r as grandes obras literárias. E les p ro ­ curam se afirm ar através do consum o cultural d e alto nível.

C om o fundam ento das identidades, a cultura reúne os hom ens ou os separa. Q uando as pessoas aderem às m esm as crenças, d ividem os m esm os valores e associam suas existências a objetivos próxim os, nada se op õe a qu e eles se com uniquem livrem en te entre si. M as desde qu e eles saem d o grupo no qual se sentem solidários, suas atitu­ des m udam : a desconfiança se instala, as trocas se tom am um a fon te d e ameaças, na m edida em qu e elas p odem questionar a estrutura sob a qual foram construídas a p e r­ sonalidade dos indivíduos e a identidade dos grupos. A o se con gregar em to m o d e p receitos comuns, os grupos abolem as distâncias psicológicas qu e existem en tre os seus m em bros, o qu e lhes p erm ite triu nfar sobre a dis­ persão associada freqú en tem en te às necessidades da vida. Jean G ottm ann fe z desse tem a, o das im agens que tem os em com um (ícones, no sentido original d o term o), um dos

1 Pessoa que exerce diferentes ofícios; fam iliarm ente se diz de alguém q u e é capaz de fazer reparos e de construir pequ en as coisas de form a com petente, mas

capítulos essenciais da geografia p olítica — é neste sentido que e le fala de icon ografia

(G O T T M A N N ,

não profissionalizada.

104

105

1952).

E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S

AS A B O R D A G E N S DA G E O G R A F I A C U L T U R A L

O s hom ens não param d e im aginar novos valores, d e

ses qu e os acolhem , mas continuam fiéis às suas culturas de

construir novas classificações e d e traçar novas fronteiras.

o rigem e m antêm contatos estreitos com elas. As diásporas

E ste m ovim en to não am eaça, entretanto, a coesão das so­

se m u ltiplicam (PRÉVELAKIS, 1996).

ciedades qu e reagrupam populações numerosas. Isto p or­

A s identidades se associam ao espaço: elas se baseiam

qu e sentim entos d e perten cim en to podem se hierarquizar,

nas lem branças divididas, nos lugares visitados p or todos,

assim com o as culturas: em pequena escala existem form as

nos m onum entos qu e refrescam a m em ória dos grandes

globalizadoras, que fundam identidades coletivas qu e com ­

m om entos d o passado, nos sím bolos gravados nas pedras

partilham um p equ en o núm ero d e valores p olíticos, os

das esculturas ou nas inscrições. A territorialidade se trans­

prin cípios da C onstituição am ericana para os Estados U n i­

form ou em um dos com ponentes mais im portantes das

dos, a L ib erd ad e, a Igu aldade e a Fraternidade para a R e­

novas orientações d o m undo social e político (BONNE-

pú blica francesa; em grande escala, os particularism os se

M a i s o n , 1986; K e i t h , P i l e , 1993).

expandem , o dos confessionais, dos grupos étnicos e das seitas na sociedade am ericana, o dos laços locais e regio­ nais e dos m ilitantism os políticos ou sindicais na sociedade

A cultu ra recorta categorias no real e lhes dá vida

francesa. O paradoxo da situação atual é que na ép oca em que

C om o se dar conta da tendência à pulverização tão

a universalização das técnicas está praticam ente consuma­

fo rte d o m undo atual? As abordagens culturais, que se

da, os valores com fo rte carga unificadora d e outrora, a fé

im puseram logo em seguida aos trabalhos fenom enológicos

no progresso, o liberalism o e a tolerância cessam d e ser

sobre a intersubjetividade, conduzem ao questionam ento

atraentes. O processo d e divisão se segm enta, pois cada

dos instrum entos qu e o observador utiliza espontaneamen­

grupo se considera igual aos outros em d ireito e dignidade.

te (STASZAK, 1997; RlCHARDSON, 1981). Ao supor formas

É neste contexto qu e é preciso recolocar a m aior par­

universais na m aneira d e con ceb er o real sobre o qual se

te das pesquisas contem porâneas da geografia cultural: os

debruça, o observador tem a tendência de naturalizar a

nacionalism os e os regionalism os se exasperam, as socieda­

realidade. A finalidade profunda da geografia cultural é

des on de as m inorias acabavam p or ser assimiladas através

in com p atível com um a tal m aneira d e ver. O problem a não

d e m ecanism os diversos d e integração evoluem para o mul-

é ap licar ao real um a m alha válida em todos os contextos e

ticulturalism o, sem que possamos estar certos d e que seus

para todas as culturas, mas com preen der como cada grupo

com ponentes possuem ainda realm ente algum a coisa em

rein ven ta perm anentem ente o m undo, introduzindo novos

com um . O s im igrantes que fogem da m iséria d o T erceiro

recortes.

M undo desejam se b en eficiar das vantagens sociais dos paí-

106

A escala das análises muda: para apreender os proces-

107

E X P L O R A Ç Õ E S G E OG RÁ F I CA S

AS A B O R D A G E N S DA G E O G R A F I A C U L T U R A L

sos culturais verdadeiram ente significativos, os geógrafos

interessa p ela m aneira com o são estabelecidos os critérios

se debruçam sobre a experiên cia das pessoas, sobre seus

que separam o grupo do qual fazem os parte daqueles que

contatos, sobre suas m aneiras de falar. E les descobrem ,

nos são estrangeiros. N o m undo atual isto conduz a p rivile­

assim, com o as atitudes m udam e os objetivos coletivos se

giar, com o ob jetos geográficos da pesquisa cultural, a raça,

constroem ao sabor das interações. As pesquisas se in teres­

a etnia, a ju ven tu de, a velh ice ou as categorias sexuais (h o­

sam mais fortem en te pelas pequenas com unidades, pelos

mens, m ulheres, homossexuais, transexuais): fo i a isto que

bandos e gangues dos subúrbios, das com unidades d e bair­

P eter Jackson reduziu os M aps o fM e a n in g que e le p ropõe

ros, das células d o m undo rural do que pelas realidades

na sua interpretação geográfica da cultura (JACKSON, 1989;

globais. Pratica-se a geografia cultural sem que as pesqu i­

v er tam bém ANDERSON, G a l e , 1992; JACKSON, PENROSE,

sas nos levem a inform ações sobre o que é a cultura chine­

1993). N a geografia política é a im agem da fronteira e da­

sa, a cultura am ericana, ou a cultura urbana. O que elas

queles que estão instalados para além dela, e que são vistos

trazem é a id éia de que as regras da vida social variam de

com o diferen tes, que retém a atenção mais espontanea­

um ponto a outro e se m odificam sem cessar. Trata-se m ui­

m ente (PAASI, 1996). O olhar dos ocidentais sobre os outros

to menos d e m udança de princípios do que propriam ente

povos está na base do im perialism o que e le denom ina e

da m aneira d e interpretá-los ou de transgredi-los, para se

justifica. Se querem os com bater as form as d e opressão do

adaptarem às circunstâncias. Os subúrbios populares das

m undo atual é mais im portante, pois, aprender a descons-

grandes cidades são assom brados p or bandos de joven s que

truir a im agem d o O utro qu e o m undo ocidental tem com o

procuram desesperadam ente afirm ar sua originalidade, re­

eviden te d esd e que com eçou a se con ceber com o superior

correndo para isso a tem as d e uma afligen te m onotonia.

aos outros.

A em ergência d e subculturas reforça as clivagens que nascem da divisão d o trabalho. U m sentim ento d e solida­ riedade operária p o r m uito tem po im pediu que os filhos

A ordem socia l é culturalm ente instituída

dos trabalhadores tivessem um b en efício plen o das possibi­ lidades de progressão social oferecidas pela escola. Nas

As abordagens fenom enológicas são m uito úteis no

zonas onde se acum ulam as populações desm unidas das

esclarecim en to da fusão dos grupos, sua construção e suas

grandes cidades, uma subcultura da pobreza se cria e ten ­

barreiras psicológicas. A o se basearem , entretanto, nos es­

d e a acentuar a degradação das condições d e vida (SlBLEY,

tudos da intersubjetividade, estes estudos esquecem que o

1995).

m undo explorado pela geografia está investido em todas as

A orientação cultural visa com preender com o os gru­

suas partes d e valores: a encenação dos m om entos fortes

pos constroem o m undo, a sociedade e a natureza. E la se

da existência coletiva através d e cerim ónias, d e rituais e d e

108

109

EXPLORA ÇÕE S GEOGRÁFICAS

AS A B O R D A G E N S DA G E O G R A F I A C U L T U R A L

festas p erm ite ao gru po se realim entar, fazendo apelo a seus

social: sábios ou feiticeiros nas sociedades animistas, sacer­

m itos fundadores.

d otes ou gurus nas religiões reveladas, intelectuais no

Atrás dos processos d e institucionalização, p odem ser

m undo m oderno, qu e encontram justificativa nas id eolo­

lidos os jogos que d ivid em o m undo na esfera do sagrado e

gias laicas

d o profano. A geo gra fia cultural p rivilegia assim as re li­

indispensável para com p reen d er a geografia p olítica dos

giões e m ostra com o as ideologias laicas funcionam d e fato

Estados.

(C L A V A L ,

1980). A perspectiva cultural é assim

com o substitutas das crenças tradicionais. Face aos filó ­ sofos d o progresso social que dom inaram no O cid en te des­ d e o Século das Lu zes, vê-se desfilarem ideologias da natu­

Perspectivas sobre as culturas

reza qu e, sob o n om e d e ecologia, transform am profunda­ m en te as sociedades, propondo novos critérios d o bem e

As culturas são diversas. Elas não dispõem das mes­

d o m al, d o puro e d o im puro, e im põem aos poderes novos

mas técnicas e não asseguram o m esm o grau de dom ínio

objetivos para estes alcançarem o aval dos grupos cujo tra­

dos am bientes onde vivem . Poder-se-ia im aginar perspecti­

balho é o d e legitim ar as instituições — ou corroer seus

vas qu e perm itissem com pará-las? H á m uito tem po, a idéia

fundam entos

d e classificá-las em função d e seus níveis de desenvolvi­

(B E R Q U E ,

1996).

O s grupos qu e elaboram subculturas tentam p o r v e ­

m en to nos fo i im posta. U m a tal operação não p od e ser acei­

zes questionar os valores adm itidos p e lo conjunto do corp o

ta sem dificu ldade: deve-se considerar que uma sociedade

social: estas contraculturas oferecem um ponto d e apoio a

capaz d e organizar grupos num erosos distribuídos sobre

todos aqueles qu e se sentem feridos p ela sociedade ou qu e

extensos espaços é necessariam ente mais avançada que um

se colocam em desacordo com seus princípios. Elas elab o­

gru p o cujo dom ínio perm anece lim itado a um pequeno es­

ram contram odelos que podem seduzir camadas cada v e z

paço? Q u e critérios d evem ser considerados para m edir o

mais amplas da população e conduzir p o r fim a uma rees-

progresso? As técnicas d e com unicação influem diretam ente so­

truturação cultural d o conjunto. U m dos pontos essenciais de tod o grupam ento p o líti­

b re a natureza e no con teú do das culturas: uma sociedade

co é constituído p e lo sistem a de crenças e d e ideologias

qu e se baseia, para transm itir seu saber, apenas sobre a

qu e dão sentido à vid a dos indivíduos e da coletividade,

palavra e sobre a im itação direta dos gestos e com porta­

legitim an do o que está instituído. A d efesa dos valores exis­

m entos, apresenta d eficiên cias nos suportes de sua m em ó­

tentes, ou sua crítica e definição d e sistemas concorrentes,

ria. E la m antém relações com o tem po e com a história

m obilizam a en ergia dos legitim adores, cujos títulos e fun­

d iferen tes daqueles que caracterizam os grupos que dis­

ções variam segundo os níveis e as form as d e organização

p õem d e escrita.

110

*

111

E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S

A única perspectiva evolucionista que pode existir na geografia cultural é, pois, aquela que classifica as sociedades em função dos m odos d e com unicação que as caracteriza.

AS A B O R D A C E N S DA G E O G R A F I A C U L T U R A L

trora. Elas p od em ser apreendidas em qualquer lugar des­ d e que se disponha de obras e revistas onde os resultados estão expostos. O cinem a e a televisão mostram a todos co­ m o é fá cil u tilizar a m aior parte dos artigos d e consum o du rável oferecid os p ela indústria m oderna. N a m edida em

R evolução das com unicações e un iform iza çã o do m undo

qu e a cultura resulta d e um jo g o d e m ecanism os d e com u­ nicação, ela d everia se uniform izar rapidam ente. Isto fo i em

A observação, a im itação e a palavra só são possíveis

parte fe ito — a cultura de massas se assemelha cada v e z

entre pessoas d e um m esm o local. Isto quer d izer qu e os

m ais em todos os cantos d o planeta ( M a c LUH AN, 1968) —

aspectos técnicos das culturas tradicionais se transm item

mas outros fatores possuem um sentido inverso e condu­

localm ente em boas condições, porém a difusão d e um

zem à p roliferação dos fúndam entalism os, dos nacionalis­

m eros problem as. A escrita perm ite fazer chegar as m ensa­

m os e das contraculturas. /ç persp ectiva evolucionista só é capaz de se dar conta

gens muito lon ge, o qu e favorece a difusão dos con h eci­

d e um a parcela da diversidade das culturas. Para ir adiante

m entos form alizados p ela ciência e dos textos que veiculam

na com preensão, é preciso prestar atenção e entrar em sua

religiões ou ideologias. As sociedades tradicionais apresen­

lógica. É isto qu e p erm ite a perspectiva etnogeográfica.

pon to a outro é um processo d ifícil, len to e com porta inú­

tavam desta form a um a dupla inscrição cultural no espaço: o m osaico com plexo d e dialetos e d e know how técnicos se inscrevia no seio dos espaços que dividiam , freqú en tem en -

A c o n s id e ra ç ã o d o s a b e r g e o g rá fic o d os gru p os:

te sobre m uito amplas extensões, a m esm a língua, os m es­

a p e rs p e c tiv a d a e tn o g e o g ra fia

m os conhecim entos científicos, a m esm a religião e os m es­ m os traços m orais: esta era a im agem associada à C hina há

Todas as culturas resultam d e um trabalho de cons­

m eio século; esta havia sido a da E uropa há dois séculos.

trução e dispõem d e know how e d e saberes relativos ao

As culturas populares se opunham à da elite.

espaço, à natureza, à sociedade, aos m eios e às maneiras de

A revolução da m ídia transform ou esta im agem das

explorá-lo. E interessante com parar estes saberes, analisar

culturas prim eiram ente em um ritm o bastante len to no fim

suas bases e seus m odos d e elaboração e inventariar as

d o século passado, depois com uma am plitude cada v e z

categorias sobre as quais eles repousam. É necessário tam ­

mais viva desde 1950. As pesquisas técnicas restringem cada vez mais o dom ínio dos know how tradicionais. O s conhecim entos form alizados substituem as receitas de ou-

112

b ém deter-se sobre a m aneira com o esses conhecimentos são utilizados, reinterpretados, respeitados (ou transgredi­ dos), em seus conteúdos norm ativos, p or aqueles que os

113

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

AS A B O R D A G E N S DA G E O G R A F I A C U L T U R A L

colocam em prática. A etn ogeografia convida a re fle tir

BERQUE, A ugustin (1986). Le Sauvage et Vartífice. Les japonais

sobre a diversidade dos sistemas d e representação e d e téc­ nicas pelas quais os hom ens agem sobre o m undo, tiram p artid o da natureza para se alim entar, se p roteger contra as intem péries, se vestir, habitar etc., e m odelam o espaço à sua im agem e em função de seus valores e d e suas aspi­ rações (C l a v a l , Sin g a r a v é l o u , 1995). O

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orientação cien tífica seria assim tão d iferen te dos saberes

BO NNEM AISON, Joêl (1986). Les fondements d’une identité. Ter-

vernaculares quanto se sustenta geralm ente? Sem dúvida

ritoire, histoire et société duns Varchipel du Vanuatu, Paris,

não: os hom ens só aprendem a m obilizar a razão progressi­

ORSTOM, 2 vols.

vam ente. A cada etapa d o desenvolvim ento da geografia, esta últim a carrega parcelas que se diferenciam ainda m ui­ to pou co d o conhecim ento do sim ples bom senso. A etn o­ geografia p erm ite, pois, renovar as abordagens contextuais, qu e são cada v e z mais utilizadas na história da geografia.

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117

O

sag rado e o espaço Z eny Rosendahl*

Introdução A s palavras religião, sagrado, p eregrin o e cerim onial, en tre outras, não aparecem nos dicionários básicos de g eo ­ grafia. E n tretan to, elas indicam experiências humanas re­ pletas d e significados, ten d o uma nítida dim ensão espacial, interessando, portanto, à geografia. O in teresse p or essa dim ensão é antigo, ainda que da A n tigu id a d e C lássica ao fin al d o século X IX as relações que uniam g e o g ra fia e religião representassem , de um lado, mais um a explicação religiosa do que científica e, de outro, um in ven tá rio e descrição das várias religiões. D o in íc io d o século X X até aproxim adam ente 1960, os g e ó g ra fo s buscam com p reen d er a força da religião m o­ d ifica n d o a paisagem , com o na posição possibilista da Es­ cola V id a lin a d e G eogra fia e, particularm ente, na Escola de G e o g ra fia C ultural d e Sauer. Exceção se pode fazer ao * P r o fe s s o r A d ju n to d a UERJ.

119

0 S AGRADO E 0 E S P A Ç O

E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S

trabalho de

D E F F O N T A IN E S

(1948), que exam inou os sig­

nificados sim bólicos da casa em term os religiosos.

D u r k h e i m (1968), W e b e r (1964), E l i a d e (1959 e

1962), B O U R D IE U (1987) e BERGER (1985) são autores

A partir da década d e 1960, a geografia da religião d e­

fundamentais em razão da grande influência q u e têm nos

senvolveu-se, con form e verifica-se nos estudos, entre ou­

estudos sobre religião nas ciências sociais. Acreditamos que

tros, de

o desenvolvimento pleno da geografia da religião não possa

IS A A C

(1960),

SOPHER

(1967 e 1981) e

BÚTTNER

(1985). Foram valorizadas as relações recíprocas entre re li­

prescindir d a contribuição, alternativa ou complementar,

gião e am biente, incluindo-se a análise da paisagem , o sim ­

d e cada um deles.

bolism o dos lugares sagrados e as práticas espaciais associa­

O prop ósito deste capítulo é explicitar qu e o sagrado

(1996) apresenta uma propos­

se m anifesta sob a form a de h ierofan ia no espaço (E LIA D E ,

ta para o estudo geográfico da religião. São quatro os tem as

1959 e 1962), revela-se com o um dom carism ático que o

propostos: difusão e área de abrangência da religião, os cen ­

o b je to ou a pessoa possui (W E B E R , 1964) e se im põe p o r

tros de peregrinação, território e territorialidade e p ercep -

e le m esm o (D UR K H E IM , 1968 e BERGER, 1985).

das ao sagrado.

R O SEND AH L

ção e vivência do espaço sagrado.

Baseado nestas idéias, com o tam bém nas d e T U A N

O presente artigo ob jetiva contribuir para o d esen vol­

(1 9 7 8 ) e C LA V A L (1992), elaborou-se uma representação

vim en to da geografia da religião no Brasil, discutindo, p ri­

diagram ática d a dim ensão espacial qu e o sagrado im p õe ao

m eiram ente, os con ceitos d e sagrado e profano, procuran­

lugar. N a F igu ra 1 o espaço sagrado é o locus d e um a h ie ­

do enfatizar a dim ensão espacial associada. O sagrado e o

rofania, isto é, um a m anifestação d o sagrado, a qual p erm i­

sim bolism o das form as espaciais são abordados a seguir. O

te qu e se d efin a um “ ponto fixo” , pon to d e toda a orien ta­

sagrado e a vivên cia d o espaço são então considerados e,

ção in icial, o “ cen tro d o m undo” .

finalm ente, tecem -se algumas considerações sobre a gestão

O ritual da construção d o espaço sagrado im plica um d u p lo sim bolism o. Prim eiram en te na construção d o “ cen ­

religiosa do espaço sagrado.

tro d o m undo” , este se constitui em um referen cial, cu jo p re s tíg io está b em determ inado. E m segundo lugar, a

Os conceitos

construção d o espaço sagrado im p õe uma in terpretação sim b ólica da m aterialização d o centro. E com o to d o o

O tem a religião engloba um núm ero cada v e z m aior

espaço sagrado coin cid e com o cen tro do m undo, to d o o

de estudiosos na sociologia, antropologia, etnologia, filo so ­

te m p o d e qu alqu er ritual coin cid e com o tem po m ítico, in

fia, história, p sicologia e teologia. Qual a contribuição d e

illo tem p o re , em qu e ocorreu um ato cosm ogônico. N a

cada uma dessas ciências? Em que e com o os geógrafos

rep etiçã o d este ato ficam

podem se b en eficiar dessas contribuições?

120

121

EXP LORAÇÕES GEOGRÁFICAS

0 S A GRA DO E 0 ESPAÇO

“asseguradas a realidade e a duração de um a con stru ­ ção, não só pela transform ação de u m espaço p ro fa n o n u m espaço transcendente, ‘o C en tro\ mas tam bém pela tran sform a çã o do tem po con creto em tem p o sagrado. ” (E l ia d e , 1959:33-34) É possível distingu ir dois elem entos fundam entais n o espaço sagrado: o “ p on to fixo” e o seu entorno. N o p rim e i­ ro, as form as espaciais existentes cum prem funções qu e estão diretam ente associadas à h ierofan ia m aterializada n o o b je to im pregnado d o sagrado. O entorn o possui os e le ­ m entos necessários ao cren te para a realização d e suas p rá­ ticas e d e seu ro teiro devocional. E n fim , d efin e-se o espa­ ço sagrado com o um cam po d e forças e d e valores qu e e le ­ v a o hom em religioso àcim a d e si m esm o, que o transporta para um m eio distinto daquele no qual transcorre sua exis­ tência. É p o r m eio dos sím bolos, dos m itos e dos ritos qu e o sagrado exerce sua função de m ediação entre o h om em e a divindade. E é o espaço sagrado, enquanto expressão d o sagrado, que possibilita ao hom em entrar em contato com a realidade transcendente cham ada “ deuses” nas relig iõ es politeístas e “ D eu s” nas m onoteístas. A experiên cia d o espaço sagrado se opõe à exp eriên ­ cia d o espaço profano. E m relação a este aplicam -se as in terdições aos ob jetos e coisas qu e estão vinculadas ao sagrado, numa realidade diferenciada da realidade sagrada. C onstitui-se naquele espaço ao “ red or” e “em fren te” d o espaço sagrado. A través da segregação qu e o sagrado im ­ p õ e à organização espacial e baseado em C o r r ê a (19 89 ), E l ia d e (1991) e RINSCHEDE (1985) é possível id en tifica r

123

E X P L O R A Ç Õ E S GE O G R Á F I CA S

0 S A GRA DO E 0 E S P A Ç O

o espaço profano diretam ente vinculado ao sagrado, o es­

depen d en tes no tem po e no espaço. O espaço sagrado se

paço profano indiretam en te vinculado e o espaço p rofan o

rev e la não som ente através d e um a hierofan ia, mas tam ­

rem otam ente vinculado ao sagrado.

b ém p o r rituais d e construção, e, neste caso, os rituais

O sagrad o é p e r c e p t ív e l n a o rg a n iza ç ã o es p a cia l, n ã o

represen tam rep etições d e hierofanias prim ord iais con h e­

s o m e n te p e lo s im p a c to s d e s e n c a d e a d o s p e lo s d e v o t o s n o

cidas. Assim , o espaço sagrado é um a p rodu ção in telectu al.

lugar, mas ta m b é m p e la fo r m a e s s e n c ia lm e n te in t e g r a d a

Sofisticadam ente ou não, o hom em organiza as forças da

e n tr e r e lig iã o e t e m p o . A e x p e r iê n c ia d o t e m p o nas d i f e ­

socied ad e e da natureza. A construção d o espaço sagrado,

r e n te s culturas é d e s e n v o lv id a p o r E L IA D E (1 9 9 1 ), q u e

n o tem p o sagrado, satisfaz as necessidades intelectu ais e

r e c o n h e c e q u e os fe n ô m e n o s r e lig io s o s se d e s e n v o lv e m

psicológicas. A m anifestação d o sagrado é um a realidade

n ã o só nu m e s p a ç o co n s a g ra d o , m as ta m b é m n u m t e m p o

qu e se exp rim e sob as form as sim bólicas qu e se d esen vol­

sa grad o, “ n a q u e le t e m p o ” — in illo tem pore, ad o rig in e —

vem e se relacionam no espaço e no tem po.

e m q u e o ritu a l é r e a liz a d o .

Os fenôm enos religiosos se m anifestam num m om en ­ to histórico e não há fato religioso fora do tem po. Para

O sagrado e o simbolismo das formas espaciais

E liade o tem po não é h om ogén eo nem contínuo; existem duas espécies d e tem po: o tem po sagrado e o tem po p ro fa ­

V ários autores sustentaram qu e as construções das

no. O tem po sagrado é o tem po das festas. É de natureza

form as espaciais são o resultado não apenas d e fatores

reversível, recuperável e rep etitível. É um tem po on toló gi­

com o clim a ou topografia, mas são m oldadas pelas

co p or excelência. E m cada festa periódica reencontram os o m esm o tem po sagrado, o m esm o que se m anifestou na

“idéias de um a sociedade, suas form a s de orga n ização

festa do ano an terior e na festa de há um século (E L IA D E ,

econ óm ica e social, sua d istrib u içã o de recursos e au­

1962). Já o tem po profan o revela-se com o a duração tem ­

torid a d e, suas atividades e crenças e valores que

poral ordinária, na qual ocorrem os atos privados d e sign ifi­

preva lecem em q u a lq u er p e río d o de te m p o ” (K lN G ,

cação religiosa. Assim , o hom em religioso vive duas m oda­

1972, p . 1).

lidades de tem po. A mais im portante é o tem po sagrado, no qual ele se rein tegra através da linguagem dos ritos,

U m dos mais im portantes tem as atualm ente em voga

perm itindo-lhe solução de continuidade da duração tem ­

en tre os geógrafos da religião d iz respeito aos significados

poral ordinária, introdu zindo-o no tem po sagrado.

da interação d e paisagem e lugar, de um lado, e o sagrado

A problem ática geográfica se expressa no âm bito da

d e outro. Assim , enquanto TU AN (1978) focalizou os luga­

dimensão sim bólica d o sagrado, cujos elem entos são in ter­

res sagrados e as necessidades im ediatas da im aginação

124

125

EXPLORAÇÕES CEOGRÁFICAS

0 S A GR A DO E 0 ES P A ÇO

h u m a n a , S H IL A V (1 9 8 3 ) a n a lisou o s im b o lis m o e a fu n ç ã o

separados dos residentes da cidade p o r algum tip o de

d a s sin a g o g a s s o b a in flu ê n c ia d a c o n tu r b a d a d is p u ta p o r

dem arcação. Entretanto, as cidades d o vale do N ilo e da

s o lo u rb a n o . C O O P E R (1 9 9 4 ), p o r sua v e z , in t e r p r e ta o s d i­

A m érica não eram muradas.

le m a s d e id e n t id a d e r e lig io s a , p a is a g e m e lu g a r e m u m a p a r ó q u ia d e S u ffo lk n a In g la te r r a .

E xem plos clássicos d e cidades cerim oniais são encon­ trados em Teotihuacán, no M éxico, e Tíkal, na Guatemala.

A d efin ição d e um lugar sagrado refle te a p ercep çã o

E d ificações maciças, construídas sem uso aparente d e ins­

d o gru po en volvid o. C om o o sim bolism o das form as espa­

trum entos d e m etal, eram um a indicação da sofisticação

ciais varia d e grupo para grupo, d ificilm en te se p od e g en e ­

tecn ológica dos construtores qu e criaram uma paisagem

ralizar sobre os prin cípios da paisagem religiosa, apesar dos

urbana característica. E m Teotihuacán, o Tem plo d o Sol

geógrafos possuírem agora um viés explicativo m uito m ais

eleva-se a um a altura de sessenta e seis m etros (JACKSON e

am plo qu e no passado.

H U D M A N , 1990 ).

O sim bolism o cósm ico das cidades antigas estava no

Outras cidades cerim oniais com o Cholollán, M onte

con ju nto d o tem plo. N o in ício este era d e fácil acesso ao

A lbán, Tuia, Xochicalco, Tajin, C hichén Itzá e Tenochtitlán

p ovo, mas lentam ente fo i se am pliando a distância en tre o

caracterizavam -se p or sua organização interna específica.

te m p lo e o povo. O zigu rate na cidade d e Ur, dois m il anos

Estas cidades sugerem uma ordem espacial hierarquizada,

antes d e C risto, in icialm en te era mais acessível ao p ovo,

centrada no espaço sagrado. D irigid as p elo clero organiza­

tom an d o-se inacessível. O zigurate possuía inúm eros sign i­

d o e dirigentes diversos, essas cidades sagradas ou hierópo-

ficados sim bólicos. R epresen ta-o a rocha sólida qu e em er­

lis eram assinaladas p or tem plos piram idais, pátios cerim o­

gia d o caos; era a m ontanha que ficava no centro d o uni­

niais, praças d e m ercado e terraços. As elites sacerdotais

verso; o tron o terren o para os deuses; o lugar m onum ental

organizavam as cidades em to m o do santuário que ligava o

para a realização dos sacrifícios; a escada que condu zia aos

p ovo ao m undo sobrenatural.

céus. O s zigurates foram durante bastante tem po um a fo r ­

D e acordo com B H AR D W AJ (1 9 9 1 ) os locais sagrados

m a arqu itetônica dom inante na M esopotâm ia, sendo um

hindus estão localizados às m argens de rios ou áreas costei­

in dicad or para realçar o significado transcendental das c i­

ras, refletin d o o fato do hinduísm o estar ligado ao caráter

dades. A expressão d o sagrado nas cidades m esopotâm icas

sagrado de grande parte da paisagem indiana. O autor nos

encontrava-se explícita nos santuários e nos tem plos.

forn ece uma hierarquia d e santuários que atraem peregri­

N o vale d o N ilo e na A m érica pré-colom biana, as c i­

nos estrangeiros e outros d e caráter local. Por outro lado, a

dades eram sem elhantes às encontradas na M esopotâm ia.

im portância sim bólica dos santuários indianos é estabeleci­

Continham um centro religioso adm inistrativo — o tem p lo

da p o r tradição e não p or doutrina.

ou santuário — e um palácio para a classe govern ante, 126

O sagrado deixa um registro perm anente na paisa­ 127

0 S AG R A D O E 0 E S P A Ç O

EX PL ORA ÇÕE S GEOGRÁFICAS

gem . São recon h ecíveis d iferen tes form as m ágico-religio­

pu lar d e M eca. A tu alm en te é um acon tecim en to altam ente

sas no espaço. As form as sagradas na paisagem cristã são as

organizado p e lo govern o árabe-saudita. A gências d e via ­

igrejas. A frequ ên cia a um serviço coletivo d e culto é extre­

gens operam em vários países e há conexão dos vôos com

m am ente im portante no cristianism o, em contraste com

os ônibus destinados ao transporte d e peregrin os.

outras religiões nas quais há m en or necessidade d e um

P elos estudos desen volvidos p o r K lN G (1 9 7 2 ), SO-

lugar santificado para o culto. O islam ism o tem um espaço

P H E R (1967 e 1981) e JACKSON e H U D M A N (1 9 90 ), o as­

para reunião com unitária na form a d e um a m esquita. N as

p e cto religioso da p eregrin ação a M e ca é m arcado p o r prá­

religiões orientais, com o o hinduísm o, as form as sagradas

ticas devocionais bastante significativas para os m uçulm a­

para o culto coletivo têm pouca im portância. N estes casos,

nos. A cerim ón ia m odern a no m ês d e D hu ’l-H ijja é a fusão

as funções religiosas m ais relevantes se realizam no lar,

d e duas cerim ónias anteriores, a hajj e o um ra, e tem p or

numa unidade fam iliar, enquanto os tem plos abrigam san­

cen tro M e ca e o seu santuário, a Caaba. Algum as práticas

tuários a deuses particulares, em v e z do culto con gregacio-

religiosas exigem visita a lugares externos à cid ad e d e

nal. Já os pagodes, que forn ecem a form a sim bólica re lig io ­

M eca . P rim eiram en te o p eregrin o veste um a roupa espe­

sa na paisagem budista, são ed ificações extrem am ente e la ­

cial, ritu alm ente lim pa, a ihran, e en tão p od e in iciar as prá­

boradas e delicadas, projetadas para oração ou m editação

ticas tradicionais da peregrin ação. In clu i diversas cerim ó­

individual, não sendo utilizadas para o culto congregacional

nias, com o visitar o recin to sagrado d e H aran, a perm anên­

(L U B E IG T , 1987).

cia em A rafat, visitar o lugar d e m artírios e testem u nho e

N o interesse d e con h ecer o im pacto que o sagrado

ap ed rejar o satanás. É a mais im portante, a qu e exige que

im põe ao lugar e no arranjo das atividades humanas, sele­

o p ereg rin o cam inhe sete vezes ao red o r da C aaba e b e ije a

cionamos quatro exem plos d e lugares consagrados ao exer­

P e d ra N e g ra em sua parede. D e acordo com a tradição

cício da religião: M eca, cidade de peregrinação do islam is­

islâm ica, a P ed ra N eg ra fo i en tregu e a A braão p e lo anjo

m o; Lourdes, um a im portante cidade-santuário do cristia­

G ab riel.

nismo; Shikoku, lugar d e peregrin ação do budism o; e M u quém , centro religioso n o in terior do Brasil.

M e ca e Jerusalém são cidades-santuários qu e pos­ suem en orm e im portância p o r serem lugares d e origem de

A peregrinação anual a M eca ou H ajj é um dos m ais

relig iõ e s — M e ca para o islam ism o e Jerusalém para o cris­

notáveis m ovim entos d e população no O rien te M éd io, ten ­

tianism o. H á lugares, contudo, em qu e a peregrin ação teve

do durado, sem interrupção, os treze séculos do islam ism o.

o rig em num a hierofan ia, e o lugar fo i então revestid o do

Constitui-se na prin cipal fon te d e renda para a região d e

caráter sagrado, com o em Lou rdes, na França. A cidade-

H ijaz, na Arábia Saudita “N ós não plantam os trig o ou sor­

santuário d e Lou rd es está situada no sopé dos Pirineus

go, os peregrinos são nossas colheitas”, d iz um ditado p o ­

franceses, sendo a segunda cidade, na religião católica, d e­

128

129

EXP LORAÇÕES GEOGRÁFICAS

0 S AG R A D O E 0 ES PA ÇO

p ois d e Rom a, p ela im portância d o fluxo d e peregrin os. A

A p r á tic a d e p e r e g r in a ç õ e s a lu gares sagrados pa ra

p eregrin ação te v e sua origem em 1853, a p artir da aparição

b e n e f ic io e s p ir itu a l e p a r a p r e s ta r h o m e n a g e m é c o m u m

d e M aria, m ãe d e Jesus C risto, à m enina chamada B em a-

t a m b é m n o b u d is m o . O g e ó g r a fo T A N A K A (1 9 8 1 ) analisou

d e tte Soubirous, nas grutas às m argens d o R io G ave d e

os s ig n ific a d o s s im b ó lic o s n o it in e r á r io dos p e r e g r in o s e d a

Pau. D esd e o sécu lo X IX a pequena cidade se tom ou um

t o p o g r a fia s a g ra d a das “ u n id a d e s ritu a is” esp a ço -tem p o ra is

cen tro con vergen te d e peregrin os católicos d e procedên cia

q u e se r e p e t e m e m c a d a u m a da s o it e n t a e o ito es ta çõ es d o

in icialm en te region al, depois nacional e finalm ente in ter­

c a m in h o d e p e r e g r in a ç ã o , a o r e d o r d a ilh a Shikoku.

nacional. O fen ôm en o espacial da peregrinação a L ou rd es

A característica singular da peregrinação Shikoku é

d ife re da H a jj a M eca, mas as funções urbanas nessas cida­

sua estrutura espacial. O s locais d e peregrinação surgem,

des-santuários, d e sistemas religiosos diferentes, apresen­

declinam e às vezes se propagam . Tanaka explora essa na­

tam um padrão com um d e atendim ento aos peregrin os. A

tu reza dinâm ica da p eregrin ação Shikoku, peregrinação

cid ad e se organ iza para os devotos. É preciso p rim eira­

budista popu lar no Japão, exem plifican do os lugares de p e­

m en te dar con dições d e acesso ao lugar sagrado e em se­

regrinação e com o eles se estabelecem . Analisa a p eregri­

guida alojar os peregrin os.

nação circu lar com o sistem a espacial-sim bólico, conside­

P ou co a pou co as cidades-santuários m ultiplicam e m odern izam o acesso d e chegada dos peregrinos, bem c o ­

rando os vários ajustam entos espaciais que se verificam d en tro da peregrin ação.

m o constroem albergues m odestos e dorm itórios, ao lado

N a ten tativa d e relacionar religião e am biente através

d e luxuosos hotéis. E m Lou rdes há tam bém alojam entos

d o estudo da organização espacial dos centros de p eregri­

especializados para peregrin os doentes. A cidade-santuário

nação d o in terio r d o Brasil, ROSENDAHL (1994a) analisou

d e L ou rd es com p reen d e o espaço sagrado da gruta, on d e

M uquém , no E stado d e G oiás. Trata-se d e um núcleo rural

hou ve a aparição e contém um a fon te d’água e locais d e

d e con vergên cia religiosa, predom inantem ente do catoli­

banho, sobre os quais se construiu a basílica subterrânea.

cism o popular, nos quais o fen ôm en o religioso recria o es­

O cen tro da gruta está situado nas partes oriental e sul do

paço sagrado p o r ocasião da peregrinação.

R io G ave d e Pau. R lN S C H E D E (1 9 8 5 ) descreve o arranjo

O p ovoad o d o M uquém no m unicípio de N iquelândia

Lourdes. E le reconhece as

revela, um a v e z p o r ano, a cada festa da padroeira, uma

seguintes divisões funcionais: área com hotéis, pensões e

organização singular e rep etitiva com um nos centros de

abrigos para doentes às m argens do R io G ave d e Pau, área

rom aria d e áreas rurais. N a F igu ra 2 o espaço sagrado é o

com prédios adm inistrativos pertencentes à igreja, no cen ­

lugar da santa, o lugar superior e não profano, onde ocorre

tro religioso, e área com o com ércio d e artigos religiosos,

visivelm en te o en con tro sim bólico da santa com o povo,

localizada na parte orien tal d o rio.

num contato d ireto, sem interm ediários. O espaço profano,

espacial das atividades em

130

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131

t Sj

E X P L O R A Ç Õ E S GE O G R Á F I CA S

0 S A G R A D O E 0 E S P A ÇO

na parte mais baixa d o terren o, é o espaço destinado ao com ércio e ao lazer, numa espetacular m escla en tre ce ri­ m ónia religiosa e atividades profanas. A missa, a procissão e o sermão d o padre representam a marca do sagrado o fi­ cial. A dança, as frequ en tes bebedeiras e as brigas testem u­ nham o profano. O espaço profano diretam ente vinculado ao sagrado consiste d o conjunto de atividades não re lig io ­ sas e apresenta um a articulação com o sagrado. C om p re­ ende a área dos com erciantes e barraqueiros. Poucos geógrafos têm se interessado pelas consequên­ cias políticas acarretadas p e lo contexto da peregrinação ou p elo grupo d e peregrinos. Alguns eventos, contudo, tiveram efeitos políticos e foram ob jeto de investigação. D estacam se o estudo sim bólico-cultural em Madras, no p eríod o póscolonial, realizado p o r L E W A N D O W S K I (1984), o estudo sobre o sím bolo p olítico da Basílica de Sacre-C oeur em Paris, desenvolvido p o r H A R V E Y (1979), e a peregrinação do M anto Sagrado, no contexto p olítico d o plebiscito do Território do Sarre, abordado p o r A L L IS O N (1989). O estudo d e L E W A N D O W S K I (1984) m ostra com o, através do hinduísm o e seus sím bolos, fo i construída, no período pós-colonial, um a arquitetura urbana em M adras. A princípio, com o tentativa popular de se ligar ao seu pas­ sado para reviver e renovar as estruturas históricas e sagra­ das do p eríodo pré-colonial, reforçan do a identidade cultu­ ral da tradição hindu. Os investim entos aplicados pelos governos estadual e nacional serviram para a criação d e uma paisagem urbana que fosse ao encontro das necessidades d e seus cidadãos contem porâneos e tam bém contribuísse para sua próp ria 132

133

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

0 SAGRADO E O ES PAÇO

legitim ação p olítica. C om o parte do processo de mudança,

ép oca d e sua construção, era tam bém vista por muitos

realizou -se a troca d e nom es d e ruas, refletin d o agora sim ­

com o um a provocação para a gu erra civil, perm anecendo

b olicam en te os heróis populares do passado e do presente

h o je com o sím bolo p o lítico e religioso.

da ín d ia. F o i tam bém feita a construção de estátuas h om e­

A L L IS O N (1989) exam inou a peregrinação ao M anto

nageando os escritores e figuras religiosas, em sua língua

Sagrado em 1933, em T rier, na Alem anha. Seu significado

clássica, o tâm il, numa substituição da influência colon ial

só p o d e ser com p reen d id o em term os da devoção popular

inglesa anterior.

p ecu liarm en te dupla qu e a m otivou e a im pregnou, com o

A história das lutas de classes no lugar sagrado está

R eich absorvendo em alto grau os benefícios. Seu efeito

registrada p o r H A R V E Y (1979), no m ovim ento d e constru­

p o lític o e eficiên cia estão na d evoção popular religiosa e

ção da B asílica d e Sacre-C oeu r em Paris. D om inando

nacionalista, explorada para abrandar m edos e form ar no­

estratégica e sim bolicam ente o alto da colina de M ontm ar-

vas op in iões no con texto p o lítico da época.

tre, a B asílica tem um a história atorm entada. C oncebida

Esses exem plos d e even tos d e devoção popular inse­

durante a gu erra franco-prussiana de 1870-71, sua constru­

ridos em com plexos históricos, aqui especificam ente p o líti­

ção era vista p o r alguns com o um ato d e penitência p ela

cos, indicam qu e religiã o e p olítica ocorrem conjuntam en­

d ecadên cia m oral d o im p ério napoleônico e pelos supostos

te num espaço e num tem p o específicos.

excessos da Com una d e Paris d e 1871. P or parte dos católi­ cos, um m ovim en to fo rte p ela construção da Basílica em função d o cu lto ao Sagrado C oração comandava a aprova­ ção d o p ro jeto. Finalm ente, em 1882, sua construção fo i

O sagrado e a vivência do espaço no catolicismo popular

term inada e consagrada. H arvey acrescenta em seu estudo qu e a B asílica esconde os segredos dos que lutaram contra

N os sábados e prin cipalm ente nas manhãs de dom in­

e a favor d o em belezam ento d o local, e que o visitante qu e

go, os santuários receb em um grande núm ero de rom eiros

olha para aqu ela estrutura sem elhante a um mausoléu, qu e

que, na m aioria das vezes, corresponde à metade d e sua

é o Sacre-Coeur, pensaria no qu e está enterrado ali. O es­

população residente. A organização espacial do centro re li­

p írito d e 1789? Os pecados da França? A aliança en tre o

gioso é, em gran de parte, uma expressão da hierofania qu e

catolicism o intransigente e o m onarquism o reacionário? O

ali se realizou e qu e gerou a con vergên cia periódica e siste­

sangue d e m ártires com o L ecom te e C lem ent Thom as? O u

m ática d e peregrin os.

o d e E u gen e Varlin e d e aproxim adam ente 20.000 partidá­ rios da C om una im piedosam ente massacrados com ele? A Basílica, enquanto evocava respostas políticas na 134

E xiste um a realidade na paisagem religiosa; e la é essencialm ente visível, porém , para explicá-la, é preciso apelar para os fatores invisíveis presentes nas práticas re li­ 135

0 S A GR A DO E 0 E S P A Ç O

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

giosas. Os rom eiros realizam um a com binação d e ativida­

O com portam en to do rom eiro no espaço sagrado

des religiosas que, p ela sua repetição habitual, con ferem

consiste em dar qualidade nova ao qu e é declarado, d eseja­

um a fisionom ia próp ria aos centros religiosos. Essas p ráti­

d o e consagrado. Espera-se a m udança das coisas profanas

cas religiosas possuem um roteiro mais ou m enos preesta­

para a esfera d o sagrado. Assim é possível recon h ecer atos

b elecid o na p ercepção hierárquica do p eregrin o de v iv e r o

religiosos e práticas religiosas. O s atos da vid a religiosa são

sagrado no espaço e n o tem po. Tentar-se-á desvendar os

os tradicionais, realizados p o r especialistas d o sagrado —

sím bolos do im aginário popular com o m ais um m eio d e

padre, pastor, freiras e outros. Práticas religiosas são rig o ­

conhecim ento do sagrado no espaço através dos atos com -

rosam ente pessoais (M A U S S , 1979: 1 3 7 ), não são rep e titi­

portam entais d e visitar a im agem e segu ir a procissão, a

vas, não estão subm etidas a qu alqu er regulam entação.

bênção d’água e a bênção da saúde, “ fazer” e “pagar” p ro ­ messas e assistir à missa e participar dos atos religiosos.

A o geógrafo da religião cabe valorizar as diversas manifestações de espontaneidade do devoto e da criativi­

Os ritos d e benzedura são considerados eficazes p o r­

dade hum ana em suas atividades no centro religioso. P r e d

qu e recolhem , para dentro do crente, os m itos, os sím bo­

(1 9 8 9 ), a partir das ideias de H ãgerstrand, evoca a rep re­

los, os gestos e as falas sagradas. Variando d e cultura para

sentação gráfica não-linear com o objetivo d e cham ar aten­

cultura, a eficácia da benzedura encontra na linguagem um

ção para os múltiplos significados da vida social. O autor

sentim ento lógico qu e vai ao encontro d e suas necessida­

argum enta q u e tal representação é capaz de “ca p tu ra r

des. Juntamente com a bênção, a p rece m erece atenção.

sim ultaneidades e conjunturas que podem fa cilm e n te esca­

Para MAUSS (1 9 7 9 ) é o ponto d e con vergên cia d e um gran­

p a r á lin gua gem lin e a r ’ (GREGORY, 1994: 2 4 8 ).

d e número de fenôm enos religiosos. O autor acrescenta:

Segundo os argumentos de Pred , òptou-se em realçar a vivên cia d o peregrin o no santuário ou hierópolis. F ie l ao

“A prece p a rticip a ao mesm o tem po da natureza d o

em p írico elaborou-se o gráfico d e perm anência d o rom eiro

rito e da natureza da crença. É u m rito , pois ela é

no espaço-tem po sagrado (F igu ra 3). É a reconstrução plena

uma atitud e tom ada, um ato realizado diante das c o i­

d o roteiro devocional d e um crente num centro religioso.

sas sagradas. E la se d irig e à divind ade e à in flu ên cia ;

A ida ao santuário tem seu in ício na saída d e sua resi­

ela consiste em m ovim entos m ateriais dos quais se

dência, que ocorre, na m aioria das vezes, p ela m adrugada.

esperam resultados ” (1 9 7 9 : 1 0 3).

As em oções qu e orientam este trajeto, as vivências na es­ trada, ao lo n go da viagem , fazem parte da rom aria. É um a

Tem os aí uma visão particularm ente favorável de m anifesta­

litu rgia pop u lar que se estende até a chegada ao espaço

ção da fé que en volve o d evoto num m om ento religioso

sagrado d o santuário, que ocorre aproxim adam ente às 6

bastante comum no espaço sagrado dos santuários católicos.

horas da manhã.

136

137

0 S AG R A D O E O E S P A ÇO

EXPLORA ÇÕES GEOGRÁFICAS

M esm o quando não vai para participar das cerim ónias religiosas, o rom eiro declara qu e v e io pagar promessa;

F i g u r a 3: A P e r m a n ê n c ia d o R o m e ir o no

C e n t r o R e l ig io s o

algum as vezes não se considera católico e afirm a não gostar d e padres. M as fa z prom essa sem pre que precisa; “ Sem pre

h

sou aten did o e vo lto para pagar” . Sendo assim, a Sala dos M ilagres é visita ob rigatória para a m aioria dos devotos; o fluxo m aior d e rom eiros é p ela manhã, e m enor à tarde. N o que se re fe re à alim entação, os rom eiros trazem um lanche d e casa ou fazem as refeiçõ es em restaurante ou um a lig eira refe iç ã o na lan ch on ete da igreja. A perm anên­ cia no Santuário é fortem en te m arcada pela religiosidade, m esm o na h ora d o com ércio e d o lazer que o d evoto exer­ ce n o espaço profano. N os santuários localizados em áreas rurais a perm a­ nência dos rom eiros no espaço sagrado é m aior no tem po d e festas d o qu e nos fins d e semana. Já nos centros religio­ sos d e área urbana os rom eiros são “peregrinos d e um dia” (R IN S C H E D E , 1985: 201), isto é, perm anecem no Santuário

d e seis a sete horas: chegam p ela manhã, assistem à missa e visitam a cap ela original, na qual está a im agem m ilagrosa O roteiro d evocion al atinge ali, n o lugar sagrado, o seu pon­ to alto. A p ós perm an ecer em um a fila, quase sem pre longa, o d evoto se aproxim a da im agem , toca-a, faz suas orações e sai da capela. A s poucas horas d e perm anência dos rom ei­ m j

ros no Santuário são vivenciadas com grande intensidade,

E s p a ç o S agrado E s p a ç o P ro fa n o D ir e t a m e n t e V in c u la d o

ITiVl E s p a ç o P ro fa n o In d ire ta m e n te V in c u la d o I

I E s p a ç o P ro fa n o R e m o ta m e n te V in c u la d o

roteiro devocional

num com portam en to ch eio d e fé , piedade e devoção. A

d o romeiro

razão prin cipal das peregrin ações é a devoção. O espaço-tem p o d o rom eiro representa a vivência de

O rg a n iz a d o p o r R o s e n d a h l , Z .

sua prática d e seus atos religiosos. Assistir à missa, fazer a

B a s e a d o e m P r e d (1 9 8 9 ) e R i n s c h e d e (1 9 8 5 )

confissão e rec e b e r a com unhão, num a vivência com o sa-

138

139

0 S A GR A DO E 0 E S P A Ç O

E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S

grado oficial, são realizados p elo rom eiro no espaço sagra­

O fluxo de retirada do centro religioso ocorre p o r v o l­

do. G eneralizando, pode-se d izer que 90% dos rom eiros

ta d e 14 horas para alguns devotos. O utros retom am ao

reproduzem no Santuário a vivên cia do catolicism o p op u ­

espaço sagrado para a últim a bênção ou para se d esp ed i­

lar, com seus rituais religiosos, no ato d e agradecer ou "p a ­

rem d o lugar sagrado. As 18 horas não é com um encontrar

gar promessas” . A vivên cia do sagrado, para esses rom eiros,

p eregrin os na área. O espaço sagrado é restrito aos m ora­

está expressa num cód igo p róp rio produ zido p elo im aginário social em suas relações reais entre o d evoto e o santo.

j

dores ou à com unidade religiosa qu e fech a a igreja. A p artir da contribuição de E

l ia d e

(1991), R O S E N -

A diversidade das m ercadorias não religiosas coloca­

D A H L (1994b) eviden cia a recriação d o espaço sagrado a

das à venda revela que são, em sua m aioria, d e uso pessoal,

cada tem p o sagrado pelos rom eiros que, ao realizarem suas

e estão integradas à cultura local, poden do com p reen d er

práticas, reorganizam o espaço. A F igu ra 4 m ostra a pulsa­

tipos de vestuário, alim entação típica do lugar, utensílios

ção d o sagrado, na hierópolis d e P o rto das Caixas, no R io

com um ente usados nas residências, entre outros. São o b je ­

d e Janeiro, em três m om entos. N o tem p o com um , o espa­

tos tradicionais, já fazen do parte d o im aginário religioso

ço sagrado reduz-se ao pon to fixo e seu entorno. A cada

católico, com o as im agens do santo padroeiro, os terços, as

fim d e sem ana o espaço am plia-se, ocupando, sobretudo, a

medalhas, crucifixos, livretos das ladainhas e santinhos. E s­

fren te da igreja e a m a próxim a. Nas festas da padroeira, o

ses objetos, em sua m aioria, sim bolizam o lugar, e o m otivo

espaço sagrado dilata-se mais ainda, incorporan do p arte d o

da sua aquisição é sem pre o m esm o: “ levar com o lem bran­

espaço profano.

ça do lugar” , “ colocar o santo em m inha casa” ou “levar co­ m igo a recordação do lugar” .

A credita-se que a percepção d o rom eiro que visita o lugar sagrado representa uma necessidade d o exercício da

O consumo do sagrado é uma característica singular

religião, que som ente ali p od e concentrar sua atenção, e ex­

nas cidades-santuários e independe da localização do espa­

prim ir, sob form as sim bólicas, seu relacionam ento pessoal

ço sagrado, podendo ocorrer no Santuário d e Fátim a, em

com D eus. O lugar p od e ser o m esm o, mas a concepção

Portugal, no espaço sagrado de Lou rdes, na França, no Va­

sim bólica p od e variar entre os m oradores e tam bém en tre

ticano, na Itália, ou m esm o nos espaços sagrados brasilei­

os peregrin os. E le está sem pre m udando d e significado, na

ros de Canindé, no Ceará, M uquém , em G oiás, e Santa

m edida em que cada grupo social lh e atribui valores d ife ­

C ruz dos M ilagres, no Piauí, e outros. A pesar das d iferen ­

renciados aos elem entos do espaço. A esse respeito, afirm a-

ças sociais e culturais qu e esses centros possuem , o com ér­

se qu e cada lugar possui um a com binação singular d e variá­

cio do sagrado é realizado com os artigos religiosos da m es­

veis, dessa form a indicando que os elem entos variam e

ma natureza, sendo o sagrado com ercializado de form a

m udam d e valor segundo um tem po espacial próprio.

integrada com o sistem a religioso católico universal. 140

141

••cOfciíAL

RJL-i.::'



DO

0 SAGRADO E 0 ESPAÇO

E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S

Gestão religiosa do espaço: territorialidade católica

F i g u r a 4: E s p a ç o Sa g r a d o n o s D iv e r s o s T e m p o s Sa g r a d o s e m P o r t o d a s C a ix a s

N o Brasil, os m istérios da fé cristã foram introduzidos oficialm en te p elos portugueses, não só através da interven­ ção d o E stado, mas tam bém das ordens religiosas e pela ação dos colonos. O com p lexo processo de ocupação do espaço b rasileiro, fe ito em etapas e valorizando áreas em m om entos distintos, perm itiu qu e o catolicism o no Brasil assumisse características próprias, bastante distintas do ca­ tolicism o europeu. N o Brasil colonial, a participação bas­ tante acentuada das irm andades nas igrejas e o predom ínio do aspecto d evocion al dos fiéis, expresso através de rom a­ rias, das prom essas e ex-votos, das procissões e festas d edi­ cadas aos santos, dão um caráter em inentem ente social e popular ao catolicism o brasileiro. D estaca-se no século X V I a atuação dos missionários jesuítas e franciscanos na conquista e ocupação do litoral brasileiro, b em com o a fo rte atuação, principalm ente dos jesuítas, n o estab elecim en to d o sistem a colonial português no país. A s rom arias nesse século foram incentivadas pelos religiosos e tinham um a fin alidade missionária de cateque­ se e de evan gelização d o país. D urante os séculos X V II e X V III, as romarias, princi­ palm ente n o in terio r d o país, nasciam espontaneam ente da O Espaço Sagrado no g g

50

lOOm

T e m p o Sagrado d e 2 * a 6.“-feira na igreja

piedade p op u lar e se desenvolviam com ampla liberdade de expressão p o r parte d o povo. As devoções surgem do povo. As im agens eram encontradas p o r pescadores, ín­

132 T em p o Sagrado em fim de semana T em p o Sagrado na Festa d o Padroeiro

Organizado por R o s e n d a h l , Z.

dios, aventureiros, e o aspecto m ilagroso da aparição da im agem eviden ciava a vontade divina que escolhera esse lugar para ser destinado ao culto. O p ovo constrói, assim, o

142

143

UEASA

i c l ECMGLG-í-y *

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

0 S AG R A D O E 0 E S P A Ç O

espaço sagrado, realizando com ilimitada liberdade seus

cism o oficial. C ada santuário possui um conjunto de rep re­

cultos religiosos (HOONAERT, 1984).

sentações e práticas religiosas desen volvidas p e lo im aginá­

Durante o século X V III, a expansão dos santuários

rio popu lar com um à com unidade local. Essas representa­

coincide com a grande corren te m igratória de aventureiros

ções e práticas representam o sincretism o dos sím bolos re ­

portugueses e brasileiros em direção a M inas G erais e d e­

ligiosos introdu zidos no B rasil pelos m issionários portugue­

mais regiões m ineiras. O qu e caracteriza a form ação dos

ses e p o r alguns sím bolos religiosos indígenas e africanos.

santuários nesse século é a ausência das ordens religiosas

R epresen tam um trabalho anónim o e c o le tiv o d e um grupo

clássicas que evangelizaram o litoral brasileiro: os francis-

hum ano e, com o tal, está necessariam ente condicionado ao

canos, os jesuítas, os beneditinos e os carm elitas. O m ovi­

con texto socioecon ôm ico d o país. O reg im e d e padroado

m ento m issionário d o século X V III não fo i clerical e sim

vigo ra até a instituição da R epú blica, em 1889, quando fo i

leigo. Os santuários que surgem neste p erío d o represen ­

tam bém proclam ada a separação en tre Ig re ja e Estado. A

tam uma tentativa popular d e valorização da fé e da m oral

religiã o católica perm aneceu fortem en te leiga através da

católicas, em oposição aos m ales trazidos p e lo ouro. É nes­

ação das confrarias e da ação individu al dos erm itões (O L I­

se contexto socioecon ôm ico, que produziu luxo e p o d er

VEIRA, 1985).

para uns, e m iséria e opressão para outros, qu e o núm ero

As confrarias são associações religiosas nas quais se

d e ermidas ganha m aior im portância. Enquanto a m aioria

reúnem os leigos com a fin alidade d e con stru ir igrejas, rea­

concentrava suas esperanças no garim po, em busca da ilu ­

liza r os cultos e p rom over a devoção dos santos. H á dois

sória riqueza, outros escolheram outra form a d e vida, radi­

tipos principais d e confrarias: as Irm andades e as O rdens

calm ente contrária: foram os erm itões.

Terceiras. A s confrarias, tanto no p erío d o colon ial com o no

N o Brasil, tal m ovim en to é levado adiante p o r leigos

im perial, m antiveram sem pre um caráter m arcadam ente

que deixam a vid a m undana para viver no ascetism o e na

religioso e devocional. E ntretanto, algum as possuíam um

penitência ju n to a algum a erm ida. Às vezes, agrupam -se e

aspecto em in en tem en te social, exem p lificad o p ela Irm an­

form am uma pequena com unidade. F reqiien tem en te cria­

dade d a M isericórdia. P resen te no país desde o século

va-se uma confraria para ajudar o erm itão a cuidar da

X V I, m antém até os dias d e h o je um a fo rte atuação social e

erm ida e a acolher os rom eiros. Assim , no sécu lo X V III

religiosa. D eclin ou apenas na fase republicana, ao ser m ar­

foram -se constituindo os santuários. C om o exem plo m en­

ginalizada p ela Ig re ja oficial, sobretudo na segunda m etade

ciona-se o de Bom Jesus da Lapa, na Bahia.

d o século X IX , no m ovim en to d e rom anização no Brasil.

D o século X V I ao X V III, a génese dos santuários este­

N a história dos santuários, a passagem d o controle da

ve associada aos sacerdotes e leigos unidos na devoção dos

Irm andade para o con trole dos bispos ocorreu, na sua

santos, predom inando o catolicism o popular e não o catoli­

m aioria, com desavenças e brigas judiciais. N os centros

14 4

145

i

E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S

0 S A G R A D O E 0 ESPAÇO

religiosos estudados, essa perda do p od er se deu de m od o

rais o processo d e rom anização não prevaleceu. Isoladas no

dram ático, prin cipalm en te para as Irm andades, o qu e é

in terior, dispersas, sem contato perm anente com o padre,

explicado p e lo m od elo urbano de adm inistração económ ica

p erm an ecem nas mãos d e agentes religiosos leigos. Os re-

que as Irm andades possuíam . Elas funcionavam com o v e r­

zadores, beatos e capelães m antêm as práticas tradicionais

dadeiros bancos m odernos: em préstim os pessoais a ju ros e

d o catolicism o popular.

hipotecas, e com o “ c o fre ” para o com ércio local. Q uem

N o século X X , os bispos procuram assumir o controle

controlasse a Irm andade, controlava o com ércio e a vid a

dos centros d e irradiação d o catolicism o popular, pela

p olítica e econ óm ica d o lugar.

substituição da Irm andade p ela congregação religiosa eu-

U m exem p lo d e con trole e p od er é forn ecido p ela

rop éia na adm inistração dos santuários. Atualm ente, é atra­

Irm andade d e N ossa Senhora d ’Abadia do M uquém , cu jo

vés da Pastoral dos Santuários que parte a diretriz rom ani-

presidente, José Joaquim Francisco da Silva, con hecido

zadora sobre a massa dos fiéis.

com o “T e rro r d o N o rte d e Goyas” , acum ulava as funções

É nessa estratégia geo grá fica de controle de pessoas e

de presid en te da Irm andade, m estre da L o ja M açónica d e

coisas qu e a instituição com plexa da Ig re ja C atólica Apos­

São José, C om andante G era l da G uarda N acional da C o ­

tó lica R om ana d eve ser analisada. C ontém ela exem plos

m arca dos R ios das Alm as e M aranhão, com erciante, fa ­

com plexos d e territórios. SACK (1986:93) considera que a

zen d eiro e govern ad or d e São José d e Tocantins p o r 50

Ig re ja possui duas naturezas. A prim eira constitui um siste­

anos (R O S E N D A H L , 1994b: 77).

ma abstrato d e fé e d e doutrina, originando a Igreja invisí­

P ela história d o catolicism o popular no Brasil pode-se

vel; a segunda refere-se às instituições sociais da Igreja.

afirm ar qu e os centros religiosos se desenvolvem sem pre a

C om p reen d e seus m em bros, funcionários, regulamentos e

partir de dois m ovim entos paralelos: d e um lado, o p od er

suas estruturas físicas, d efin in d o a Igreja visível. E difícios

p olítico e/ou eclesiástico, qu e tenta conservar ou possuir o

da Ig re ja , propriedades, lugares sagrados, paróquias e d io­

m aior con trole sobre os centros d e devoção, representando

ceses são lugares separados p o r lim ites, dentro dos quais a

as classes dom inantes da sociedade; do ou tro lado, o p ovo e

autoridade e o acesso são controlados, constituindo-se em

seus representantes mais significativos, que procuram d e­

territórios.

fen d er suas práticas e crenças religiosas: são os oprim idos e dom inados (HOONAERT, 1984).

A Ig re ja C atólica Rom ana reconhece e controla vários tipos d e territórios, mas focalizar-se-á apenas um: os cen­

O século X X não d ifere m uito do anterior. O processo

tros d e peregrin ação d o catolicism o popular no Brasil. Sa­

de rom anização, que incluía a substituição das devoções

be-se q u e todos os lugares sagrados não são igualm ente

tradicionais pelas novas devoções, m ostrou-se bastante e fi­

santos ou sagrados para os católicos. Algumas igrejas são

caz nas paróquias urbanas. Entretanto, nos santuários ru-

mais sagradas, pois são consagradas a um evento m iraculo-

146

147

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

0 SAGRADO E 0 ESPAÇO

so. N os santuários a dinâm ica espacial do p od er religioso

Trata-se d o C onselho d e R eitores d e Santuários d o Brasil,

p od e ser apreendida se considerarm os o espaço sagrado

que fa z parte d o C onselho N acion al dos Bispos do Brasil.

com o centro de gestão religiosa e territorial.

C om p õe-se das aplicações norm ativas d o C ó d igo d e D i­

N o processo d e form ação d e um espaço sagrado reco­

reito C an ón ico e das D iretrizes da Pastoral dos Santuários.

nhece-se três fases hierarquizadas d e con trole d o sagrado.

N esta fase, o p od er d e con trole e decisão não é local e sim

Estas fases, contudo, p odem oco rrer em m om entos distin­

central. O p o d er religioso local, qu e na realidade é “ fran­

tos do tem po em pírico, ou duas fases podem ocorrer no

qu iado” a um a C ongregação qu e o adm inistra, está integra­

m esm o tem po. Assim , um santuário p ode, p or exem plo, si­

d o à “ red e ” d e santuários, que atinge espaços sagrados

tuar-se numa fase, enquanto outro p od e situar-se em outra

m ultilocalizados. P od e-se im aginar um aglom erado d e san­

fase. Vejamos, agora, a p rim eira fase. O p od er d e con trole

tuários nacionais e internacionais integrados e que fu n cio­

e decisão das atividades religiosas e sociais d o Santuário

na harm onicam ente, segundo d iretrizes ditadas p ela sede

estava ligado ao p od er da Irm andade local. N esta fase, o

— o Vaticano. C om o exem plo dessa terceira fase m encio-

controle adm inistrativo do sagrado é local. E xem plifica-se

na-se, en tre m uitos, o Santuário d e Jesus C ru cificado d e

com o Santuário de N ossa Senhora da G lória d o O u teiro

P o rto das Caixas, M u n icíp io d e Itaboraí, no R io d e Janeiro

(1739-1996), na cidade do R io de Janeiro. O p od er d e con­

( R o s e n d a h l , 1 9 9 4 b ). N es te sentido, o refe rid o Santuário

trole e decisão religiosa é da Im p eria l Irm andade d e Nossa

tem um sign ificado qu e não se dissocia d o p apel qu e

Senhora da G lória do O u teiro.

desem pen ha numa red e d e lugares sagrados, controlada

A segunda fase da gestão religiosa é caracterizada

p ela S ed e O ficia l localizada no Vaticano.

p elo im pacto da perda da autoridade p ela Irm andade local, passando o con trole e decisão d o sagrado a p erten cer ao padre diocesano. Essa perda, na m aioria das vezes, en volve

Considerações finais

conflitos nas relações en tre a Irm andade e o padre diocesa­ no e concentra-se nos bens m ateriais que a Ig re ja possuía e

O geó gra fo quando estabelece com o ob jeto central d e

eram administrados p ela Irm andade. C om o exem plo de

sua análise a religião, encara-a sob a dim ensão espacial. E

santuário d e gestão religiosa diocesana m enciona-se o

para realizar sua pesquisa reconstrói teoricam en te o papel

Santuário d e Nossa Senhora d ’Abadia do M uquém , em

d o sagrado na recriação d o espaço, reconhecendo o sagra­

Goiás, administrado p e lo bispo da C idade de Uruaçu.

do não com o sim ples aspecto da paisagem , mas com o e le ­

A terceira fase da gestão religiosa é m arcada pelas

m en to d e produção d o espaço. E talvez seja nas hierópolis

articulações entre os santuários e o processo d e gestão que

que, m ais nitidam ente, o sagrado esteja m aterializado atra­

os integram em um p od er superior, com sede em Brasília.

vés d e form as espaciais. O rom eiro ou p eregrin o é o agente

148

149

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

0 SAGRADO E 0 ESPAÇO

m o d e la d o r d o e s p a ç o , é o a g e n te s im u lta n e a m e n te p r o d u ­

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153

IM A G IN Á R IO PO LÍT IC O E TERRITÓRIO: NATUREZA, REGIO NALISM O E REPRESENTAÇÃO In á Elias de Castro

Introdução C onsiderar im agin ário p o lítico e território com o ter­ mos qu e possam articular-se coeren tem en te numa discus­ são acadêm ica d eco rre da acepção m ínim a da política co­ m o con trole das paixões humanas e d o território com o o suporte m aterial para a convivência, necessária à liberação da en ergia in eren te àqu ela pulsão. O im aginário social, por sua vez, é o cim en to dessa coerên cia p or tom ar visível e in terp retável os sim bolism os presentes nas relações dos hom ens en tre si e com o seu m eio, os quais m aterializamse nos d iferen tes m odos d e organização sócio-espacial. É neste sentido que im aginário p olítico, território e natureza encontram -se entrelaçados em situações concretas, expli­ cando algum as das questões-chave, tanto da representação territorial da p olítica com o o sentido dos seus discursos e das bandeiras regionalistas. D esse m odo, a resposta ao desafio de com preender o 155

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

IMAGINÁRIO POLÍTICO E TERRITÓRIO

m undo em que se colocam os geógrafos requ er tam bém

que com p õem o im aginário, o espaço é ao m esm o tem po

considerar a força dos sím bolos, das im agens e d o im aginá­

con tin en te e conteúdo dos seus signos e sím bolos. N o

rio com o parte integrante dos conteúdos da disciplina.

entanto, p o r se tratarem d e relações humanas, as “paixões”

Constituindo a base das representações que orientam as

a elas inerentes lh e con ferem dim ensão política. Assim , o

direções das ações dos hom ens sobre o espaço, o dom ínio

im agin ário social desdobra-se em im aginário p o lítico e,

do sim bólico possui um in egável valor explicativo. M ais d o

am bos, p o r sua m atriz espacial e p o r serem inform ados

que fonte de sobrevivência, a terra é um registro sim bólico

p ela geo gra fia dos lugares, encerram em si o im aginário

p or excelência e, apesar d e a racionalidade m oderna te r

geográfico.

conquistado os espaços objetivos das relações sociais, as

Assim , m ais d o qu e um a preocupação em buscar um a

representações perm anecem nos dispositivos sim bólicos,

d efin ição d e im agin ário geográfico fren te à acepção d e

nas práticas codificadas e ritualizadas, no im aginário e em

im agin ário social, o o b jetivo aqui proposto é duplo. P ri­

suas projeções.

m eiro, argum entar em favor da inseparabilidade entre im a­

Esta é certam ente um a questão para a geografia na

ginário, p olítica e territó rio ; segundo, apontar as possibili­

m edida em que ela é conhecim ento do espaço, mas tam ­

dades em píricas d o con ceito d e im aginário para a com pre­

bém um m odo d e vê-lo, d e interpretá-lo e d e codificá-lo,

ensão das form as d e apropriação d o espaço p ela sociedade.

tanto através de seu discurso acadêm ico com o p or in ter­

Trata-se d e p ro p or o inverso d o que há m uito tem po têm

m édio de seus avatares nos discursos do senso com um . P or­

fe ito os antropólogos ao utilizarem os valores sim bólicos do

tanto, sendo a terra desde a aurora dos tem pos fon te de

espaço das sociedades com o um recurso em p írico funda­

símbolos e de significados, o discurso geográfico, com eçan­

m ental para com p reen d er o seu im aginário e con hecer os

do p or aquele contido nos relatos dos viajantes do m undo

form atos fundam entais da sua organização.

antigo até o dos intérpretes contem porâneos d o espaço glo­

A u tilização dos conceitos d e im aginação, im agem e

balizado, contribui com sua retórica para construir e ali­

im agin ário tem sido cada v e z mais frequ en te em diferentes

mentar o im aginário social. Portanto, se a interpretação des­

linhas d e pesquisa geográficas, desde as incursões fen om e-

te imaginário é necessária para a construção d o conheci­

nológicas da G eogra fia H um anística até as discussões sobre

m ento, a geografia, nada inocente no assunto, d eve m obili­

as im aginações geográficas e a renovação da geografia cul­

zar seus recursos intelectuais para participar desta tarefa.

tural. Sinal da p ertin ên cia d o tem a é a presença d o term o

C om o contribuição, este trabalho desenvolve-se em

im a g in á rio en tre as palavras da geografia qu e com põem o

tom o da id éia central da necessária interação entre a terra

dicion ário organizado p o r R oger B R U N E T (1992) e com o

e o hom em com o fundadora do im aginário social. M ais do

um capítu lo da en ciclop éd ia d e geografia organizada p or

que inspirador dos m itos e base da organização dos rituais

B A IL L Y e t al. (1995). A s abordagens geográficas dos p ro­

156

157

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

I M A G I N Á R I O P O L Í T I CO E T E R R I T Ó R I O

blem as relativos ao im aginário indicam a sensibilidade da

pectiva, a rígid a busca, na disciplina, d e fatores causais d e­

disciplin a a este percurso nas ciências sociais, am pliando as

fin ia o con teú do explicativo dos fatos geográficos em fun­

possibilidades em píricas d e utilização do con ceito, ainda

ção da possibilidade d e claras e objetivas relações de causa

p olêm ico e, durante m uito tem po, chasse gardée da filoso­

e e fe ito , qu alqu er referên cia à im agem , sím bolo ou im agi­

fia, da an tropologia e da sócio-linguística. C ertam ente é na

nário só m erecia status explicativo se subordinada à lógica

com petên cia geográfica sobre o espaço que reside sua con­

o b jetiva da base m aterial, sendo esses conceitos natural­

tribu ição ao debate e à elaboração d e novas questões que,

m en te decod ificad os com o ideologia. A incorporação des­

d e um pon to d e vista acadêm ico, representem um avanço

ses con ceitos, em b ora ainda objetos d e polêm ica, através

tanto para o tem a em geral com o para a disciplina em par­

da abordagem fen om en ológica da G eografia Hum anística

ticular.

contribuiu para am pliar a agenda tem ática e o cam po em ­

E m sua tarefa d e p rod u zir conhecim ento sobre o es­

p írico da disciplina. N o entanto, o m om ento presente é im ­

paço, a G eogra fia funda tam bém um discurso sobre o espa­

p ortan te p o r estim ular a busca d e novos percursos intelec­

ço (B E R D O U L A Y , 1 9 88 ). M as qu em lhe d á sentido e consis­

tuais para a explicação geográfica, que devem ir além tanto

tência, sancionando-o, é a sociedade, com suas contradi­

da rig id e z d e um esquem a explicativo universal com o da

ções, pulsões, desejos, con flitos — em síntese, paixões; p o ­

flexib ilid a d e im aginativa e sensorial da corrente humanista.

rém necessariam ente contextualizadas no tem po e no espa­

A necessidade d e as ciências am pliarem os lim ites explica­

ço. N este sentido, com o a am bição de com preen der e ex­

tivos m ais além da razão da m atriz iluminista, sem perder

p licar o espaço através d e um a racionalidade objetiva, com

d e vista o rigo r d o m étodo, revela-se nas críticas cada vez

a pretensão d e exclusividade na apreensão d o rea l e na ela­

m ais ressonantes ao paradigm a cien tífico vigente, id en tifi­

boração d e um discurso unívoco sobre ele, está epistem o-

cado p o r M O RIN (1996) com o da sim plificação, numa clara

logicam en te em crise, novos cam inhos, m esm o que p o lê­

alusão à sua perspectiva d e qu e fenôm enos complexos pos­

m icos, devem ser tentados.

sam ser reduzidos às suas causas mais simples. A contribui­

E m seu percurso com o disciplina acadêm ica, a G eo­

ção desta crítica está na possibilidade d e com preensão da

grafia tem incorporado conceituai e m etodologicam ente a

com plexidade dos fenôm enos pela incorporação dos con­

sociedade, ou seja, o fa zer social e sua dinâm ica. P rision ei­

teúdos d e suas significações sim bólicas, o que amplia o co­

ra da razão ilum inista, a ob jetivid ad e necessária ao fazer

n h ecim en to para além d o dom ínio das causalidades con­

cien tífico expulsava d e suas argum entações tudo qu e não

cretas, visíveis e objetivas.

tivesse existência concreta ou qu e não pudesse ser explica­

Q uestões novas estão sendo colocadas para os indiví­

do d e acordo com a razão, faculdade que tem o ser huma­

duos e para a sociedade e, conseqiientem ente, para as dis­

no d e avaliar, julgar, ponderar idéias universais. N esta pers-

ciplinas qu e se p rop õem am pliar o conhecim ento sobre a

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

I M A G I N Á R I O P O L Í T I CO E T E R R I T Ó R I O

dinâm ica e interação en tre am bos com o espaço. As im a­

qu estões qu e se colocam para a agenda d e pesquisas da

gens, sua extensão vertical e horizontal, im põem conteúdos

geo gra fia contem porânea. N este sentido, d ize r qu e o espa­

novos às ciências sociais p ela am pliação do m undo cotidia-

ç o g eo grá fico é o espaço da p olítica, apesar d e à prim eira

no, pela incorporação d e um novo cosmos (propiciado p e ­

vista p a recer uma banalidade, serve com o p on to d e partida

las pesquisas espaciais) no qual elas substituem os relatos

para um a discussão dos significados dos conteúdos p o líti­

do cosmos dos antigos. H á uma nova dinâm ica das im agens

cos d o espaço e das m ediações dos conteúdos espaciais no

pela contínua produção d e sím bolos, tom ando mais num e­

fa ze r p olítico . Se aceitam os com o d efin ição m ínim a d e es­

rosos e com plexos os aparatos para sua produção. A lém

p aço “ o conjunto indissociável d e sistemas d e objetos e sis­

disso, novos m odos d e apreensão e de vivên cia dos sím bo­

tem as d e ações” proposto p o r M ilton SA N TO S (1996), p o ­

los produzem im portantes efeitos sobre o com portam ento

dem os acrescentar que há na id éia d e “ ação” um fo rte nexo

individual e coletivo; sobre a p olítica e o processo d ecisório

com portam en tal e decisional, o qu e nos p erm ite recon h e­

e sobre o território, enquanto produto e continente — na­

c e r q u e o espaço é b em mais que um a instância p olítica,

da passivo ou inocen te — d o conteúdo social.

sendo m esm o parte integrante da sua essência. A id éia d e

Todas estas questões apontam para a relação necessá­

essência aqui é fo rte e, certam ente, vista com reservas nas

ria entre o im aginário e a epistem ologia. Prim eiro, o p ap el

abordagens não espaciais da política. P orém , com o nosso

heurístico do im aginário, cujos conteúdos sim bólicos das

p rob lem a é dem onstrar que espaço e p olítica são indisso­

imagens, do im preciso, das contradições constituem desa­

ciáveis, tentarem os progressivam ente elaborar e d efen d er

fios colocados à investigação científica, em qualquer cam po,

esse argum ento.

há m uito tem po. Segundo, e decorrência natural do p rim ei­

P artin d o da p olítica com o um a palavra-chave e in do

ro, considerar conceituai e em piricam ente o im aginário

b em m ais além d o seu significado institucional, ou seja, a

constitui uma alternativa m etodológica para lidar com a

centralização da organização da vid a p olítica e social no

com plexidade dos fenôm enos geográficos; ou seja, com a

E stado, um a discussão mais abrangente d o term o d eve

m ultiplicidade das suas m ediações e dos seus símbolos, com

con siderar com o postulado que a p olítica funda a vid a

a incorporação explicativa d o não racional e d o em ocional e

social p ela possibilidade qu e ela o fe rec e d e con trole das

com o ressurgim ento do fenôm eno, rejeitado pelas ativida­

“paixões” desencadeadas p e lo con vívio hum ano em co leti­

des racionais desde o final d o século X V III.

vidades, qu alqu er que seja o núm ero d e seus integrantes.

O cam po das relações entre a política, com o con trole

E m outras palavras, com o a convivência humana é fon te

da ação individual e coletiva, e o espaço, com o continente

p oten cia l d e con flito, o sentido da p olítica é, justam ente,

destas ações em função da inserção territorial fundadora

estab elecer os seus lim ites. A p olítica é, portanto, o m eio

do fato político, revela um am plo e estim ulante lequ e d e

d e con trole das paixões; em bora progressivam ente encaste­

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E X P L O R A Ç Õ E S G E OG R Á F I C A S

I M A G I N Á R I O P O L Í T I C O E T ERRI TÓ RI O

lada na esfera pública, perm anece tam bém com o regulação

A com preensão d e qu e um a form a duradoura de con­

na esfera privada. N a realidade, o processo d e socialização

trole dos con flitos sociais requ eria um a clara e segura d eli­

ao m esm o tem p o em que d iferen cia a espécie humana dos

m itação territo rial fo i a questão central d e O P rín cip e, de

anim ais, estab elece as condições para a liberação das pul-

M aquiavel. C ircunscrevendo o “p olítico” em seu caráter

sões mais caracteristicam ente humanas, que vão desde a

puro e irred u tível, M aqu iavel reconhece o caráter confli-

afetivid ad e e generosidade até o ódio, inveja e am bição. Se

tual d o corp o social e aponta a necessidade de controles

o dom ín io dos dois prim eiros estabelece as bases para a

legais e m orais (este term o tenta assim ilar a “idéia regula­

p az e a cooperação, a intervenção de qualquer um dos

dora” con tida no seu con ceito d e v irtu ), mas volta-se para

outros três cria as condições para disputas. Esta p ersp ecti­

uma realidade em pírica, na qual a fórm u la da base territo­

va d e um con vívio ao m esm o tem po instituinte d o ser

rial para a estabilidade das condições para o exercício do

social e intrinsecam ente conflituoso constitui o paradoxo

p od er d o p rín cip e e da riqu eza da sociedade era funda­

qu e funda a p olítica na esfera social.

m ental. Sua questão mais im portante era a divisão da Itália

O pensam ento p olítico m oderno, desde M aquiavel, passando p o r B odin, H obbes, Rousseau, tinha com o p ro­ blem a central a organização d e um sistema d e regras que perm itisse regular e con trolar os interesses, avatares das paixões humanas, de m odo duradouro. A o Estado M o d er­ no, com seu aparato institucional e legal de con trole, in d i­ vidual e coletivo, e de m onopólio da violência legítim a, tem cabido, há três séculos, a tarefa d e subm eter e estabelecer os lim ites dos con flitos sociais em recortes espaciais parti­ culares. E ste m od elo d e organização da vida social em E s­ tado territorial, dom inante na m odernidade, d eriva da in ­ separabilidade entre espaço e sociedade e en tre sociedade e política. É preciso acrescentar aqui que o term o socieda­

daqu ele tem p o em cinco centros de p od er: o Papa, Veneza, N ápoles, M ilã o e Floren ça, o que a tornava vulnerável, "sem um ch efe, sem ordem , batida, espoliada, dilacerada, invadida e suportando todos os infortúnios”. N a realidade, M aqu iavel tinha em m ente o novo fenôm eno das naçõesestado, com o a França, cuja unidade e autonomia conquis­ tadas con tra a dispersão feu dal e o p od er espiritual dos Papas encontravam -se em plen a consolidação. Para ele, fo rtu n a (acaso e oportu nidade) e v irtu (qualidade e prérequisito da lideran ça) são os dois pólos da ação política, que, em bora qualificativos humanos, são engendrados a partir da base territorial da ação.

de, além da acepção m ínim a de associação, contém tam ­

A discussão da inseparabilidade en tre espaço e p olíti­

bém a id éia d e um balizam ento de espaço e d e tem po.

ca refere-se, portanto, à questão da violência fundadora

Portanto, cada sociedade está contextualizada p ela sua his­

das relações sociais e à necessidade d e formas institucio­

tória e p ela sua geografia; com o corolário, tam bém as rela­

nais e d e recortes territoriais para o seu controle. Bem

ções políticas no seu interior.

mais antiga qu e os postulados d o Estado M oderno, esta 163

E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S

I M A G I N Á R I O P O L Í T I C O E T E R R I TÓ R I O

perspectiva é encontrada em todos os pensadores p olíticos,

D o imaginário ao imaginário político

qualquer que seja a sua época, e fundam enta a existência d e um im a gin ário p o lítico , constituído no paradoxo da n e­

O term o im aginário rem ete necessariam ente às suas

cessidade social d e estar junto e na latência do con fron to

raízes — - im agem e im aginação, e conseqú entem ente ao

gerado na satisfação desta necessidade. Para a discussão da

sign ificado corren te d e produ to da im aginação e, com o tal,

evidência do espaço com o referen te da ação política, pelos

sem possibilidade d e existência concreta, opondo-se à ex­

seus conteúdos m ateriais e sim bólicos, e da política com o

p eriên cia com o fon te d o conhecim ento. E ste é o prim eiro,

decisão que configura o espaço é preciso recorrer a soció­

e fundam ental, problem a d e atribuir ao vocábu lo um con­

logos ou politólogos com sensibilidade espacial e a geógra­

c e ito academ icam ente ú til fora das disciplinas que têm nas

fos com sensibilidade política. N o entanto, não é evid en te

im agens m entais e psicológicas seu ob jeto d e reflexão. N a

que as discussões contenham , d e form a acabada, os argu­ m entos úteis à proposta da análise da inseparabilidade con­ ceituai de espaço e política. É preciso extrair fragm entos para reuni-los nesta construção. C om o percurso m etodológico, optam os pela discus­ são conceituai d o im aginário social, que se desdobra em im aginário político, o qual p o r sua v e z se alim enta d o e realim enta o im aginário geográfico. C om o os term os im a­ gem , im aginação e im aginário têm hoje uma presença forte nos trabalhos geográficos, uma contextualização destes te r­ mos em relação às suas m atrizes intelectuais, m esm o que sumária, pode ser útil com o base d e referência. Nossa p ro­

realidade, a tensão en tre im agem /im aginação e razão com o substratos d o conhecim ento e da busca da verd ad e é uma questão colocada para os grandes sistemas m etafísicos des­ d e a an tigu idade grega. A busca da verdade em Sócrates, passando p o r Platão e A ristóteles, estabelecia que a única v ia d e acesso a ela era a experiên cia dos fatos. A pesar d e P latão e seus seguidores considerarem o m ito um a possibi­ lid ad e para alcançar verdades indem onstráveis, graças a sua lin gu agem sim bólica e im aginária, as correntes racionalistas qu e renegavam a im aginação p or constituir fon te d e erros e d e falseam entos im puseram -se progressivam ente no pensam ento ocidental. Foram , então, com pletam ente excluídas dos procedim entos intelectuais, a partir do século

posta de trabalho é, portanto, a discussão do im aginário

X V II, todas as reflexões que não estivessem apoiadas na

p olítico e sua utilidade conceituai e em pírica para am pliar

exp eriên cia e na razão com o form a de acesso ao conheci­

a agenda da geografia p olítica e avançar o conhecim ento

m en to verd ad eiro. A pesar d o dom ínio das correntes racio-

sobre o espaço geográfico, especialm ente seu desdobra­

nalistas, a tensão en tre os dois conjuntos d e concepções

m ento em pírico representado p elo território.

filosóficas sobre as mais consistentes vias d e acesso ao con h ecim en to não desapareceu com pletam ente na m oder­ n idade ocidental.

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I M A G I N Á R I O P O L Í T I C O E T ERRI TÓRI O

E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S

O p rim eiro desses conjuntos p erten ce à tradição ilu-

senciais em nossa relação com o mundo. Para esta relação,

m inista qu e desvaloriza a im agem e a função da im aginação

o im aginário, sendo função e produto da im aginação, in­

p ela contradição entre im aginário e realidade concreta, que

corp ora e reconstrói o real. Trata-se, aqui, de p erceb ê-lo

só p od e ser apreendida p ela razão. A função da im aginação

com o substantivo, com o m ediação da realidade. (S A R T R E ,

é, justam ente, libertar-se da razão e, portanto, negá-la, d ifi­

1980; V É D R IN E , 1990; B A L A N D IE R , 1994, 1997; C ASTO -

cultando a com preensão da realidade. D escartes, Pascal,

R IA D IS , 1997)

Spinoza, L eib n iz denunciavam a im aginação com o o fim d o

Tam bém os avanços da psicologia, especialm ente com

progresso d o conhecim ento, atribuindo-lhe as noções d e

F reu d , qu e apontou o papel decisivo das imagens com o

ilusão e fantasia, considerando-a o vazio da razão. A exclusi­

m ensagens que chegam à consciência a partir do incons­

vidade do m étodo proposto p o r Descartes com o único m eio

cien te, abriram cam inho para a revalorização da im agem ,

d e acesso à verdade científica, que invadiu tod o o cam po de

d o sim bólico, qu e na psicologia perm itiu, com Jung, o res­

investigação d o saber verdadeiro, fo i decisiva no fortaleci­

gate da im portância d o im aginário para além das referên ­

m ento d o paradigm a racionalista em todos os ramos da

cias à cultura ocidental, d e m atriz européia. A o identificar,

ciên cia m oderna. A im agem , produto d o devaneio, d o fal­

em seu m étodo terapêu tico, os arquétipos, ou seja, as im a­

seam ento da razão, fo i relegada à arte d e persuadir dos p re­

gens psíquicas d o inconsciente coletivo, que constituem

gadores, dos poetas, dos pintores, sem jam ais te r acesso à

um a herança com um d e toda a humanidade, o discípulo de

dignidade d e uma arte d e dem onstrar (D U R A N D , 1994).

F reu d estabeleceu tam bém novos elem entos para a discus­

O segundo, pode-se dizer, representa a herança p lató­ nica que, em bora d e m odo esporádico, fincou alguns ali­

são e com preensão d o im aginário social fator de conheci­ m en to d o com portam ento individual e coletivo.

cerces para a crítica d o dom ínio da razão com o única fon te

As discussões acim a perm item uma prim eira tom ada

d e acesso à verdade. N o século X V III, K ant já elaborava a

d e posição conceitu ai d o im aginário com o a força atuante

resistência a um racionalism o dogm ático, fortalecid a no

da id éia e da representação m ental da im agem . N este sen­

século X IX , prim eiro p ela reação rom ântica aos excessos

tid o, o im aginário constitui uma energia que se form aliza

do m ecanicism o e d o m aterialism o cartesianos e p osterior-

individual e coletivam ente, m aterializando-se em ações in­

m ente p ela revolução filosófica do final d o século que res­

form adas p or im agens e sím bolos (D U B O IS , 1995). D es­

gatou a im agem , não apenas com o ob jeto d o con hecim ento

vendar o im aginário significa, pois, revelar o substrato sim­

atual, mas com o todo ob jeto passível de um a representação

b ólico das ações concretas dos atores sociais, tanto no tem ­

(B E R G S O N , cf. SARTRE, 1984). N o século X X , com Bache-

p o com o no espaço.

lard e Sartre, im agem e im aginação são percebidas com o

E m síntese, o con ceito d e im aginário, enquanto subs­

faculdad e de conhecim ento e estado de con hecim en to, es­

tan tivo da im aginação produtora, ou seja, a mediação entre

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E X P L O R A Ç Õ E S G E OG R Á F I C A S

o mundo in terior e o exterior, entre o real e o im aginado,

IMAGINÁRIO POLÍTICO E TERRITÓRIO

d o en tão “ o im aginário esta conexão obrigatória, p ela qual

supõe a utilização de sím bolos, signos e alegorias. Se com o

se constitui toda a representação humana” , podem os acres­

articulação en tre realidade, discurso e conhecim ento o con ­

cen tar qu e esta conexão se faz necessariam ente no espaço,

ceito de im aginário p od e ser em piricam ente útil, a extrem a

com o fo n te inesgotável d e signos e sím bolos d o im aginário

confusão no uso de term os a e le relacionados, pela desvalo­

social. D e v e ser acrescentado, p orém , que não há unanim i­

rização da im aginação nas correntes racionalistas do pensa­

dade nas correntes qu e reconhecem a im aginação com o

m ento ocidental, tom a-o um con ceito de utilização sem pre

fo n te d e conhecim ento. Estas desdobram -se na p ersp ecti­

polêm ica.

va d o sím bolo com o base da representação humana, com o

Não se trata aqui d e reproduzir a história e as reflexões

in d ica D urand, ou na im aginação com o ob jeto d e reflexão

sobre a polêm ica em to m o d o valor heurístico da im agem e

qu e não p od e ser exclu ído p ela razão, com o qu er Sartre,

da imaginação nos sistemas m etafísicos que têm , desde a

ou fo n te d e criação, psiquicam ente fundam ental, com o

antiguidade clássica, estruturado nossos paradigmas na bus­

aponta Bachelard, ou ainda com Castoriadis, com o alterna­

ca do conhecim ento através da ciência. Autores com o SAR-

tiva aos lim ites im postos p ela rigid ez explicativa d o m ate­

T R E (1980); D U R A N D (1992, 1994); C AS TO R IA D IS (1991,

rialism o histórico e seu con ceito d e id eologia. M as, qual­

1997); V E D R IN E (1990) já o fizeram , e m uito bem . N osso

q u er qu e seja a p erspectiva dada à questão, d eve ser ressal­

objetivo, ao trazer fragm entos desta discussão, é argum entar

tada a posição de B A L A N D IE R (1997), para quem “ o im agi­

em favor d o sim bólico e d o im aginário com o objetos d e

nário perm anece mais d o qu e nunca necessário, sendo d e

reflexão acadêm ica e com o possibilidade m etodológica d e

algum m od o o oxigén io sem o qual toda a vid a pessoal e

abordagem d o real, tam bém nas pesquisas em píricas qu e se

co letiva se arruinariam ” .

propõem a am pliar o conhecim ento sobre o espaço. Trata-

P o r tudo isto, tem sido cada v e z mais consensual no

se de alim entar o caudal das correntes geográficas qu e in­

n ovo paradigm a cien tífico a incorporação da im agem , d o

corporam as representações sociais com o m ediações funda­

sim b ólico e d o im aginário com o problem as que d evem ser

mentais ao conhecim ento da sociedade e do espaço, contri­

considerados na busca d o conhecim ento. Paralelam ente,

buindo com a articulação necessária entre objetos concretos

tam bém o espaço com o ob jeto e com o continente/conteú-

e seus conteúdos sim bólicos, procurando com preender o

d o sim b ólico tem sido considerado nas pesquisas orienta­

seu significado para a geografia.

das na d ireção desse n ovo paradigm a. Bachelard, cujas re­

P a rtin d o d a p r o p o s ta d e D U R A N D (1 9 9 4 ) d e q u e t o d o

flexões ajudou a d elin ear este novo espírito cien tífico, res­

p e n sa m en to h u m a n o é re p re s e n ta ç ã o , q u e r d izer, passa p e ­

gatou a im portância da im aginação e d o im aginário, argu­

las m ed ia ç õ es sim b ó lica s e q u e n ão h á solu ção d e c o n tin u i­

m entando sobre a referên cia fundam ental d e am bos à na­

d a d e , para o h o m e m , e n tr e o im a gin ário e o sim bólico, sen ­

tu reza e ao espaço; estes com o com ponentes do psiquism o

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E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S

I M A G I N Á R I O P OL Í T I CO E T ERRI TÓRI O

hum ano e com o referên cias obrigatórias para a com p reen ­

A lém dos elem en tos terrestres presentes nas re fle ­

são d o p on to em que se cruzam ciência e poesia, razão e

xões d o filósofo, tam bém o espaço é interpretado com o um

devaneio. E m sua interpretação do espírito cien tífico é

arqu étipo, com o um elem en to essencial da estrutura psico­

incorporada a criatividade d o espírito p or via da im agina­

lógica d o indivíduo. E m sua Poética d o espaço, são desven­

ção, associada à experiên cia com a natureza e com o espa­

dados os “valores d o espaço habitado” , “ o não-eu que p ro­

ço, para um a contínua retificação dos conceitos e rem oção

te g e o eu ” . O espaço da casa constitui “ a concha protetora

d e obstáculos ep istem ológicos colocados p e lo ap ego à ex­

e criadora d e im agens que perm anecem guardadas, escon­

p eriên cia com o pon to d e partida absoluto.

didas nas profundezas da alm a humana” . O valor sim bólico

A pesar da sua rejeição in icial das im agens p e lo risco

d o espaço está con tid o na sua proposta de pesquisar a

das m etáforas enganadoras qu e elas im plicam , B achelard

to p o filia para “d eterm in ar o valor humano dos espaços de

apontou, na fase final da sua obra, a im portância da im agi­

posse, espaços p roibidos a forças adversas, espaços am a­

nação, d esen volven do sim ultaneam ente um a dupla fen o-

dos” . A relação psicológica d o hom em com o seu espaço

m en ologia d o im aginário: na ciência e na poesia. In co r­

encontra-se tam bém na base d e sua proposta de um a to -

porando o p ap el d o sim bolism o im aginário na representa­

poanálise, ou seja, um estudo p sicológico sistem ático dos

ção à discussão dos lim ites d o debate en tre as corren tes

lugares físicos da nossa vid a íntim a. É im portante reter o

racionalistas e realistas, criticou a encruzilhada dos cam i­

e lo a fetivo entre a pessoa e o lugar, ou am biente físico,

nhos en tre realism o e racionalism o que p rod u z o duplo

com o um com ponen te d o im aginário social e das paixões

m ovim en to p e lo qual a ciên cia sim plifica o real e com p lica

qu e constituem os alicerces das relações sociais. R ecor­

a razão. Para o autor, a im aginação é dinam ism o organiza­

ren do ao qu e fo i d ito no in ício, na política, quando paixões

d or e este é fator d e hom ogen eidade na representação.

transform am -se em interesse, tam bém a relação afetiva

Para ele, lon ge d e ser faculdade d e form ar im agens, a im a­

com o espaço participa desta mudança. Ou seja, o espaço

ginação é p otên cia dinâm ica qu e “ deform a” as cópias prag­

contém os sím bolos d o im aginário social e é um com po­

m áticas fornecidas p ela percep ção (PE S S A N H A , 1 9 8 4 ). E sta

nente d ele, tanto em sua dim ensão em ocional com o m ate­

últim a rem ete à representação, às suas m etáforas e aos

rial, e p o r isso um cam po d e disputas entre interesses p ri­

seus sím bolos. Sua extensa obra sobre a m otivação sim bóli­

vados d e indivíduos ou grupos.

ca contida nos elem entos terrestres — terra, fogo, água e

N a perspectiva d e qu e a realidade é criada p elo im a­

ar — indica o caráter prim itivo, psiquicam ente fundam en­

gin ário social e não um a m era representação das im agens

tal da im aginação criadora e o pap el im portante que a assi­

com o reflexos d e um real distorcido, Castoriadis aprofunda

m ilação subjetiva jo g a no encadeam ento dos sím bolos e d e

a discussão entre im aginário e representação com o m eios

suas m otivações.

d e con hecim ento e abre novo cam po d e polêm ica, agora 17 0

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E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S

I M A G I N Á R I O P O L Í T I C O E T E R R I TÓ R I O

tam bém nas hostes d o m aterialism o histórico. U tilizan do a

tóxicos recen tes” , em b ora as relações sociais reais sejam

im agem e a im aginação na proposta de um a nova perspec-

vistas sem pre com o instituídas p orqu e foram reconhecidas

tiva teórica para com p reen der o social, em oposição tanto

com o m aneiras d e fa zer universais, sim bolizadas e sancio­

ao sono dogm ático do s er determ inado, contido no m ateria­

nadas p elos seu rituais.

lism o marxista, com o à com preensão do im aginário com o

E m trabalho m ais recen te, Castoriadis vai ainda m ais

especular, com o reflexo e com o fictício, o autor p rop õe

lo n ge e retom a o con ceito de im agin ário social, d ifere n ­

com o conceito d e im aginário “ a criação incessante e essen­

ciando a im aginação da im aginação ra dical. Esta ú ltim a

cialm ente indeterm inada (social-histórica e psíquica) d e fi-

sign ifican d o o im a g in á rio social in s titu in te é central para a

guras/formas/imagens, a partir das quais som ente é possí­

sua reflexão. Para e le , a realidade o é p orqu e existe im a g i­

v e l falar-se de algum a coisa. A qu ilo que denom inam os rea­

nação ra d ica l e im a g in á rio in stitu in te. D efin in d o seus te r­

lidade e racionalidade são seus produtos.” N esta perspecti-

m os, duas conotações são atribuídas à im aginação: a p ri­

va, seu livro A in stitu içã o im aginária da sociedade, mais d o

m eira estab elece a conexão com a im agem , não apenas

que um projeto teó rico sobre a sociedade ou a história, é

visual, mas tam bém com a form a; a segunda relaciona-a

um projeto p olítico, pois tem o ob jetivo da elucid-ação críti­

com a id éia, com a invenção, ou seja, com a criação, rep ro ­

ca da verdade, o que é indissociável d e um a finalidade,

du tiva ou com binatória. Seu con ceito d e im aginação ra d i­

para a qual se p rop õe um a ação.

ca l op õe-se ao d e im aginação sim plesm ente reprodu tora e

Nesse p rojeto, preocupado com os sistemas sim bóli­

sublinha a id éia d e qu e essa im aginação (rad ical) vem antes

cos sancionados que legitim am as instituições, o autor des­

da distinção d o “rea l” e d o “im aginário” ou “ fictício ” . P ois

venda os ritos e sím bolos que instituem uma ordem sim bó­

“ é p orq u e existe im aginação radical e im aginário instituinte

lica, sem se privarem da referên cia ao real, mas que se sa­

qu e existe para nós realidade”. O term o im aginário é, pois,

cramentam no ritual. C om o um ritual é um a prática pauta­

aqui um substantivo e se refe re diretam ente a uma subs­

da em valores sim bólicos que organiza hierarquicam ente

tância, não se trata d e um ad jetivo denotando uma qualida­

os símbolos de status e d e poder, o autor aponta que toda

de. P ara o autor a sede d o viés d o im aginário social insti­

instituição, m uito além das instituições religiosas, em ten ­

tu in te é o coletivo anónim o e, d e m odo geral, o cam po

d o seu ritual não racional, existe no plano sim bólico. Sua

social h istórico (C A S T O R IA D IS , 1997). E m síntese, o im agi­

reflexão é dirigida então para a com preensão, p ela socieda­

nário d e qu e fala é então “ a criação incessante e essencial­

de, da lógica sim bólica das suas instituições, tanto públicas

m en te indeterm in ada d e figuras, form as, im agens, a p artir

com o privadas, com o fatores que pesam na evolução da sua

das quais som ente é possível falar-se de algum a coisa ”.

organização, pois “a conquista da lógica sim bólica das insti­

A q u ilo qu e denom inam os “ realidade” e “racionalidade” são

tuições e sua racionalização progressiva são processos his-

seus produtos, ou seja, a realidade é criada p elo im aginário

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

I M A G I N Á R I O P O L Í T I C O E T E RRI TÓ RI O

social. Para o autor, p rivilegia r a im aginação e o im aginário

con vivên cia é ritualizada, com o nas festas religiosas ou p o ­

é, com o já fo i d ito an teriorm ente, p rop or despertar d e um

pulares, tem na proxem ia um con ceito fundamental. Este

sono dogm ático d o se r determ in ad o, é ser capaz d e p erce­

rem ete às histórias vividas no dia-a-dia, a situações im per-

b e r a realidade histórico-social na sua dim ensão d e criação

cep tíveis qu e constituem a tram a com unitária, a trama da

continuada. A pesar da riqu eza das argum entações d e Castoriadis,

relação interindividu al, mas tam bém àquela que “ m e liga a um territó rio , a um a cidade, a um am biente natural que

é o com ponen te sim bólico das instituições sociais, necessa­

p artilh o com ou tros” . E ste é o fundam ento d o territó rio -

riam ente conectadas com o espaço, cujos conteúdos d e fi­

m ito e da estruturação d e um a m em ória coletiva (M AFFE ­

n em e delim itam seus rituais, qu e querem os reter com o

SOLI, 1987), retom ada d e variadas form as p o r filósofos e

recurso para o conhecim ento da realidade social e que nos

cientistas sociais. Assim , em sua análise do fato social, o

será ú til na com preensão da espacialização das sociedades.

autor apóia-se na perspectiva da p olítica com o controle das

D a m esm a form a, BOURDIEU (1989), com seu P o d e r s im ­

tensões in eren tes às relações sociais através da fo rç a im agi­

b ó lic o , contribui para a discussão dos rituais institucionais e

nai existente em toda vid a em sociedade, tomando-a com o

seu peso n o processo decisório e nas diferen ciações sociais

pon to d e partida para com p reen d er a violência fu n d a d ora

e espaciais. Tam bém buscando alternativas à com preensão da d i­

d e toda agregação social1 sem descartar, porém , os princí­ pios da territorialização das sociedades e sua influência no

nâm ica social para além dos m odelos explicativos únicos,

com portam ento e nas ações sociais.

MAFFESOLI, (1984, 1987, 1992) aponta o im aginário social

P orém , as paixões com uns ou o sentim ento coletivo,

com o força instituidora d o im aginário p o lítico e o espaço

presentes nas reflexões da filosofia política, fazem parte,

com o o lócus p o r excelência d o arm azenam ento e libera­

para o autor, d e um sim bolism o geral, m ediante o qual a

ção desta energia. N a busca d e um m odelo explicativo da

com unidade é p arte integrante d e um vasto conjunto cós­

dinâm ica social qu e ultrapasse a prisão da racionalidade

m ico d o qual ela é apenas um elem ento. É nesta perspecti­

ocidental m oderna e d o determ inism o m ecanicista, o autor

va qu e M a ffeso li aponta o e lo fundam ental da política com

se volta para o qu e e le denom ina d e fo r ç a im aginai, m oral

o espaço, quando cham a a atenção para a origem ecológica

ou sim bólica, que constrange à submissão às regras sociais,

do p o d e r e d esd ob ra o argum ento do laço q u e se to m a

constituindo a pulsão que está na raiz da dim ensão m ental

lugar. Para ele, o espaço é um nicho, um abrigo no qual “ o

d o p olítico (M AFFESOLI, 1992), qu e d e certo m odo está na

portador d o p o d e r cristaliza a en ergia interna da com uni­

essência d o argum ento d e L a B oétie sobre a servidão vo­ luntária. M as, esta força latente criadora nas com unidades

E m bora sua argum entação conduza ao p o d e r do nós fusionai, d e reações com -

d e seus espaços d e convivia lidad e, ou seja, aqueles onde a

P etamente im previsíveis, frente a instituição regulada contratualmente pelo Estado.

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E X P L O R A Ç Õ E S G E OG R Á F I C A S

IMAGINÁRIO POLÍTICO E TERRI TÓ RIO

dade, m obiliza a.fo rç a im aginai que a constitui e assegura

form a e sím bolo, é o con tinente que afeta o seu conteúdo

um bom equ ilíb rio entre esta e o m eio em to m o , tanto

social e é da m esm a form a afetado p o r ele.

social com o natural” . Sua discussão revela o enraizam ento

É possível, pois, p ro p or qu e tod o im agin ário social, da

cósm ico na essência da p olítica necessária a toda vid a em

m esm a form a que possui um fo rte com p on en te p olítico,

sociedade. Para o autor, em term os mais clássicos, não há

possui tam bém um fo rte com ponen te espacial p elo p o d er

política sem religião, esta no sentido original d e religa re,

sim b ólico atribuído aos objetos geográficos, naturais ou

no qual pessoas partilham um conjunto d e pressupostos

construídos, que estão em relação d ireta com a existência

comuns, recorrendo a M arx, que dizia que a p olítica era a

humana. E m outras palavras, tod o im agin ário social p od e

form a profana da religião, para reforçar seu argum ento.

revelar-se im aginário geográfico. A an trop ologia há m uito

D esse m odo, com o todo o sagrado que organiza seus espa­

p erceb eu e estuda a profu nda relação en tre o m eio m ate­

ços de culto a p artir de ritos e sím bolos que os d iferen ciam

rial e o im aginário. Para BALANDIER (19 97 ), “ o im aginário

dos outros, tam bém a p olítica sacraliza, a seu m odo, os

rep orta-se a espaços, p rod u z um a top ografia que lhe é p ró­

espaços profanos da convivência social.

p ria e refle te , em bora transform ado, as relações que o ho­ m em estabeleceu com o espaço, onde o passado trouxe suas inscrições, dando assim um a m aterialidade à m em ória cole­

D o Imaginário político ao imaginário geográfico

tiva” . O m useu im aginário d e que fala A n d ré M alraux é fru­ to desta m aterialidade, desta geografia transform ada, p re­

Tam bém na geografia há um a forte consciência d o

sente n o im aginário dos povos (B a i l l y e F e r r a z , 1997).

p oder sim bólico d o território, estabelecido pelos seus con­

A com plexidade da tarefa de com preen der o m undo,

teúdos m ateriais, p ela sua natureza, pela proxem ia , todos

nada sim ples, e a necessidade de p erceb er tanto os proces­

portadores d e significados, algumas vezes m últiplos e id en ­

sos visíveis com o aqueles decorrentes da sim bologia dos

tificáveis pelos utilizadores dos lugares (BAILLY e DEBAR-

lugares, seus aspectos m íticos e suas conotações subjetivas

BIEUX, 1984). D esse m odo, o laço se to m a lu ga r p orqu e o

têm sido tam bém preocupação dos geógrafos. Afinal, o

im aginário p o lítico se tom a im aginário territorial e se ali­

m u seu im aginário é com posto pelas im agens que a m em ó­

m enta dele. H á aqui, portanto, uma forte in terd epen dên ­

ria lem b ra e reconstitui lo g o que uma m enção de um lugar,

cia sócio-espacial objetivada no im aginário social d e con ­

d e um m onum ento ou d e um a paisagem é feita (BAILLY e

teúdo político e territorial. Podem os, talvez, ousar e usar a

FERRAZ, 1997). Portanto, mais do que tentar qualificar em

fórm ula de Sim m el (C f. MAFFESOLI, 1992) da fo r m a f o r -

separado um im aginário geográfico, ob jeto d e estudo dos

m ante, que determ ina, lim ita, mas ao m esm o tem po tom a-

geógrafos, estamos diante da tarefa de interpretar a geogra­

se (dá a ser). E m outras palavras, o território, enquanto

fia con tida no im aginário social, e expressa no próprio dis­

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

I MA G 1 N Á R I 0 P O L Í T I CO E T E R R I TÓ R I O

curso geográfico, com o um dos cam inhos para com preen­

ção de um discurso que não é neutro, mas, ao contrário,

d er o p ap el que as representações do m eio desem penham

qu alifica o espaço e seus objetos, tom ando-os significantes,

nas práticas espaciais e na organização do espaço.

portadores de significados nas representações sociais. Con-

Reafirm am os, com o desdobram ento das discussões aci­

seqúentem ente, este discurso expressa valores simbólicos

ma, que tod o im aginário social é tam bém im aginário geográ­

que presidem a estruturação funcional d o espaço, com con­

fico, porqu e, em bora fru to d e um atributo humano — a

sequências im portantes sobre a sua organização pela socie­

im aginação — é alim entado pelos atributos espaciais, não

dade em função dos significados que lh e são atribuídos.

havendo com o dissociá-los. E m outras palavras, os objetos

A argumentação desenvolvida acim a sobre o valor sim­

geográficos fazem parte do cotidiano individual e coletivo,

b ólico dos objetos geográficos, sobre sua importância nas

participam da prática social que lhes con fere valor sim bóli­

representações sociais, aponta para o desdobram ento essen­

co. A natureza — praias, rios, montanhas, florestas, campos,

cial de um im aginário geográfico contido no imaginário polí­

planícies etc. — e as construções — ruas, praças, m onum en­ tos, bairros, quarteirões, cidades — transform am -se em im a­ gens, cam inhos e representações da alma coletiva. Estas re­ presentações geográficas constituem então um m odo d e ser, um m odo d e falar da Terra, “teatro da aventura humana” , com o diria J. P. F E R R IE R (1990). Há, portanto, no im aginá­ rio social um a profunda geograficidade pela relação concreta que se estabelece entre o hom em e a Terra. R elação aqui d eve ser com preendida, em seu sentido forte, com o uma ca­ tegoria que indica o caráter de dois ou mais objetos d e p en ­

tico. Alguns temas podem ser trabalhados nesta perspectiva: a correspondência entre a natureza e o discurso político, fundado no im aginário social sobre ela; o regionalismo, apoiado em um nós coletivo d e base territorial e a repre­ sentação política territorial, que realiza a prática política com suporte no im aginário geográfico. A discussão que se segue tem por ob jetivo apontar as possibilidades empíricas da incorporação d o con ceito d e im aginário a temas rele­ vantes para a com preensão dos m odos e meios utilizados

sam ento qu e são concebidos com o sendo, ou podendo ser,

pelos atores sociais para organizar seu território, suas rela­

com preendidos num único ato intelectual de natureza d e­

ções sociais, seu m odo d e vida.

term inada, definindo o m odo d e sua existência e de seu des­ tino. É nesse sentido que D a r d e l (1952) utiliza o term o, quando destaca que “a experiência geográfica, tão profunda

Im a g in á rio p o lític o e n a tu re za

e tão sim ples, convida o hom em a atribuir às realidades g eo ­ gráficas um tip o de animação e de fisionom ia no qual revive sua experiência humana, in terior e social” .

A suposição da relação entre a natureza e o im aginá­ rio p olítico defin e um a abordagem que busca com preen­

Existe, pois, uma relação, que não p od e ser ignorada,

d er formas possíveis d e utilização d e aspectos particulares

entre a geograficidade da experiência humana e a elabora­

da natureza na construção do im aginário coletivo de uma 179

EXPL ORAÇÕES GEOGRÁFICAS

IMAGINÁRIO POLÍTICO E T E R R I T Ó R I O

sociedade e a instrum entalização deste im aginário para

des humanas em fu nção das qu alid ad es d o h a b ita t, o d e­

ações de base p olítica no seu território. Portanto, tom ar a

term in ism o não abandonou d e to d o o “ m useu im aginário”

natureza um recurso p olítico supõe, não apenas a sua u tili­

ociden tal, nem sua im portân cia n o d iscu rso p olítico.

dade, mas a form a com o ela é percebida coletivam ente. A

N o Brasil, o caso d o sem i-árid o n ord estin o é exem ­

relação, no sentido forte antes explicitado, entre o im aginá­

plar. D esd e o final d o sécu lo passado, a sua natureza sem i-

rio político e o território é uma questão antiga, e tem assu­

árida tem sido vista com o a p rin cip a l causa dos problem as

m ido, ao lon go da história, diferentes form as d e racionali­

da reg iã o e tem sido am plam en te u tiliza d a nos discursos

dade e de objetivação, que vão desde os recursos disponí­

das elites regionais para o b te r m aiores b e n e fício s ju n to ao

veis na sua natureza, com o suporte para a subsistência ou

govern o fed eral (C A S T R O , 1992). N a rea lid a d e, a id éia de

para o processo de desenvolvim ento económ ico, até a pers-

qu e o clim a sem i-árido é respon sável p e lo atraso no N o r­

pectiva dos entraves naturais a ambos. Porém , são as im a­

deste fa z parte d o im agin ário reg io n a l, e nacional, e revela

gens construídas socialm ente sobre eles que constituem a

um a p ercep ção na qu al o d eterm in ism o d a natureza está

base fundamental do im aginário social e recurso para a re­

im p lícito, tanto na id é ia d e qu e o “ serta n ejo é antes d e

tórica ou para a ação política.

tudo um fo rte ” d e E u clid es da C unha, c o m o na perspecti-

Visões particulares da natureza sem pre alim entaram

va d o territó rio con den ado ao so frim en to e à pob reza p or

concepções políticas e as correntes determ inistas da geo­

um a natureza d ifíc il d e ser dom ada. N o entanto, quando

grafia deram im portante contribuição aos seus discursos. A

esta m esm a natureza tom a-se base d e discu rso e fon te d e

interpretação d e M ontesquieu da relação entre as leis da

recursos públicos, m ais d o qu e um s ím b o lo d o im aginário

natureza e as leis colocadas p elo p od er p olítico em seu

social, e la passa a rep resen tar um va lio so p o d e r sim bólico

L ivro D écim o Quarto do E sp írito das leis indica as vanta­

para o im aginário p o lític o region al. A n a tu reza sem i-árida,

gens encontradas nos homens dos clim as frios e, conse­

neste caso, portan to, é exem p la rm en te apropriada p elo

quentem ente, para o processo civilizatório p o r eles realiza­

im aginário coletivo através d e im agen s q u e são retrabalha-

do. Filósofo fid o e respeitado em sua época, refletia e re­

das n o sistem a d e valores, dando su p orte a o discurso e aos

forçava a visão d e uma civilização que, através de uma bem

atos p olíticos.

elaborada im agem d e si mesma, cujo valor n a tu ra l era ci-

A seca é, na realid ad e, um a p alavra-ch ave. E la rep re­

entificam ente com provado, justificava intelectu al e etica­

senta objetivam en te fa lta d e chuva, m as tam b ém sim boli­

m ente a dom inação sobre outros povos em outras nature­

cam ente a R egião N o rd e s te e os p rob lem as sociais e eco­

zas. Apesar da im portância das correntes possibilistas e da

nóm icos qu e são p ecu liares às con d ições d a sua natureza

superação, na geografia, de um determ inism o “ científico

hostil, com o: m iséria, an alfabetism o, d oen ça, descapitaliza­

que buscava estabelecer leis de com portam ento e qualida­

ção etc. E la é ainda fu n dam en to na p ro d u çã o d e uma soli­

180

181

E X P L O K A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S

I M A G I N Á R I O P OL Í T I C O E T E R R I TÓ R I O

dariedade social, criadora d e um nós coletivo qu e equalíza

branca, educada e mais desenvolvida fren te a uma outra

a todos diante da força da sua tragédia, produtores grandes

sociedade na parte norte, tropical, negra, mestiça, pobre e

e pequenos, proprietários ou não. N esse sentido, o sign ifi­

socialm ente m enos desenvolvida. Para quem argumenta

cado desses conteúdos vai m uito além da relação en tre na­

sobre a superação d e determ inism os clim áticos no im agi­

tureza e atividade produtiva, evidenciando-se nas possibili­

nário social, obviam ente inform ado p elos manuais de geo­

dades da natureza para a produção d e um im aginário p o lí­

grafia, este é um bom tem a de pesquisa.

tico, socialm ente equ alizador e institucionalm ente eficien ­ te para obtenção d e recursos financeiros e d e poder.

O u tro aspecto do im aginário p olítico de base territo­ rial é a relação entre a dim ensão d o território e as possibili­

Q uando o deputado Jorge C oelh o afirm a qu e “ a es­

dades para um processo civilizatório d e democracia, opor­

cassez d e água no N ord este já fe z incontáveis vítim as, de-

tunidades e justiça identificados objetivam ente p or Tocque-

sagregou fam ílias, sem eou m iséria e sofrim ento, condenou

ville, na extensão do território am ericano, e simbolicamente

a região a um a posição d e in feriorid ad e no cenário nacio­

p or Tu m er, na sua fron teira . O prim eiro, em sua viagem

nal” ( C a s t r o ; M

, 19 9 6 ) ilustra bem o qu e fo i

pelos Estados U nidos no início dos anos 30 do século X IX ,

d ito acima. M uitos outros discursos poderiam ser citados

cujas reflexões e anotações deram origem ao seu D em o­

(C A S T R O , 1 9 9 1 ), mas não há necessidade p o r qu e são p or

cracia na A m érica , apontou entusiasticamente as vantagens

dem ais conhecidos. N o entanto, é sabido tam bém qu e há

do territó rio am ericano: sua extensão e a disponibilidade de

grande d iferen ça en tre a água disponível h oje na região e a

recursos naturais, que foram considerados dados im portan­

qu e havia no in ício d o século, quando da criação da Ins-

tes nas condições para a criação d e um caráter nacional de­

p etoria d e Obras C ontra as Secas. O N ord este atualm ente

m ocrático, em bora sua questão central fosse o problem a da

é a região seiru-ánda mais bem servida d e água represada

dem ocracia e suas dificuldades para se im por nas socieda­

d o m undo, o qu e não chegou a alterar m uito suas ativida­

des aristocráticas européias, especialm ente França e Ingla­

des, seu quadro social d e m iséria, nem o im aginário dos

terra. T ocqu eville era leitor d e M ontesquieu, e as caracte-

porta -vozes regionais mais tradicionais sobre as dificu lda­

rísticas da geografia am ericana não lhe passaram desperce­

des para o seu desenvolvim ento.

bidas. E m bora suas observações sobre estas questões não

ag d aleno

A in da no Brasil, o abortado m ovim ento separatista O

sejam levadas em consideração pelos analistas d e sua obra,

sul é o m eu país indica qu e o fantasm a d e M ontesquieu

sociólogos ou politólogos, a um geógrafo elas saltam aos

está lon ge d e te r sido exorcizado, quando subsume em

olhos. D a m esm a form a, uma leitura d o livro Am érica, de

seus argum entos para a fundação d e um ou tro estado-na-

Kafka, dá bem a dim ensão do im aginário europeu, alimen­

ção a vantagem d o clim a subtropical, mais frio , com o fator

tado p o r recortes territoriais acanhados frente ao gigante

d e diferenciação qualitativa da sociedade sulista d o país,

norte-am ericano. As dim ensões descomunais dos prédios,

182

183

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

I MAG INÁ RI O P O LÍ T I C O E T ERRI TÓRI O

viadutos, autom óveis e trens sim bolizam a im agem d e um

etc. adquire corp o no espaço determ inado qu e tam bém

país de enormes recursos, onde tudo é fartura e exagero. As

estrutura as situações vividas” . Seja este espaço a casa, o

condições do território fundando um im aginário articulado

bairro, a cidade, o território, o m esm o represen ta um a fo r­

com a extensão, com a riqueza, com as disponibilidades

m a particular d e com partilhar p orqu e se b en eficia da p ro ­

propiciadas p o r uma natureza generosa e, portanto, com

xim id ade e se op õe ao outro, ao externo, p ela distância físi­

mais possibilidades de ser dem ocrática.

ca. É nesta correspondência d o in tern o — da proxim idade

N o final do século X IX , em 1893, o historiador F re-

— com o externo — da distância — que se engendram as

derick Jackson Tum er, analisando a im portância àa.fro n te ira

tensões, tanto sim bólicas com o m ateriais, dos particularis-

para explicar a sociedade americana, endossou com petente­ m ente este im aginário. Para ele, a fronteira fe z da A m érica um a sodedade aberta, o que propiciou a m obilidade social e esta o otimismo. A marcha para o O este forneceu ao p ovo americano um grande m ito, o da possibilidade d o renasci­ m ento e da renovação. Desse m odo, na consciência am eri­ cana o Oeste sim bolizou a esperança e figurou no processo civilizatório com o progresso, tom ando-se, num sentido ló g i­ co, sinónimo d o sonho americano. C om o m ito, o terjâtóiio da fronteira confirm ou a dem ocracia política, a infinitude

m os fren te ao jacobinism o d o p o d er institucionalizado cen­ tralizad o no Estado M odern o. P orém , a sabedoria dos ho­ m ens da p olítica lhes perm ite u tilizar esta en ergia agregadora das m enores escalas dos espaços da socialidade para estab elecer os nexos de dom inação e con trole dos poderes centralizados e distantes. Existe, pois, um im aginário p olítico que se funda na fo rç a im aginai do estar junto e se realiza na inserção territo­ rial d o fato social. Esta dupla dim ensão partilhada da socie­ dade — nós com unitário que funda o contrato social e os lim ites territoriais d e reconhecim ento deste contrato — im ­

humana e o idealism o filosófico (S lM O N S O N , 1989).

plica duas dim ensões da dialética do um versus o todo. N a dim ensão das relações sociais é possível falar na tensão entre o indivíduo e o grupo social, na qual o “eu” é um ator ao

Im a g in á rio p o lític o e re g io n a lis m o

m esm o tem po ativo e passivo, m oldando e sendo m oldado A im portância d o enraizam ento social —

o term o

aqui utilizado na sua acepção mais fo rte de ra iz, com toda a sim bologia que d ela decorre, com o: seiva, alim ento, esta­ bilidade, vida — constitui a base da dim ensão espacial da socialidade, que M affesoli analisou em “A conquista do Presente” . Para ele, “tudo que p od e ser dito acerca da es­ trutura e desenvolvim ento (da socialidade), sua pluralidade 184

p ela alm a do gru p o, p elo habitus. Ou seja, os cidadãos p olíti­ cos participam de um “coletivo de pensam ento”, qu e se abri­ ga profundam ente no im aginário do grupo social, com todos os m ecanismos d e conform idade, mas tam bém com iniciati­ vas que um tal coletivo pode induzir

(M A F F E S O L I,

1992).

N u m a perspectiva espacial, existe tam bém um a ten­ são d e base no m oderno estado territorial. N a realidade, 185

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

I M A G I N Á R I O P O L Í T I C O E T ERRI TÓRI O

este tem represen tado ao m esm o tem po um ab rigo para a

constituem um dos paradoxos da m odernidade m ediante o

preservação d e iden tidades territoriais am eaçadas e um a

qual as sociedades, enquanto se territorializam , se preser­

am eaça à sobrevivên cia destas identidades p e lo p od er sim ­

vam e resistem , ao m esm o tem p o que, enquanto se univer­

b ó lic o do nacionalism o, necessário para fazer face à am ea­

salizam, se renovam e sobrevivem . H á, portanto, uma asso­

ça laten te dos outros estados e das forças h om ogen eizad o-

ciação necessária en tre os regionalism os e a form ação dos

ras em escala planetária. N este sentido, o territó rio da so­

estados-nacionais, quando se im pôs a idéia-força da nacio­

beran ia estatal, enqu anto espaço p o lítico e da p olítica,

nalidade sobre os território ditos nacionais. N este sentido,

re fle te o paradoxo d o singular versus geral e só p od e ser

o regionalism o é gerado no con texto dos estados m odernos

com p reen d id o num a perspectiva dialógica, ou seja, que

que se tom aram , alguns antes, e a m aioria a partir do sécu­

in corp ore as lógicas contraditórias, mas interdepen den tes,

lo X IX , estados nacionais territoriais, ou seja, submetidos a

das dinâm icas sociais geradas p ela proxim idade e aquelas

uma lógica d e p o d e r “territorialista” , sob a qual o território

geradas p ela distância. A percepção da França, com o um a

é tanto a base da soberania e d o exercício do p od er com o

unidad e fo rja d a na diversidade tão bem descrita p o r F e r-

tam bém o rep ositório dos conteúdos dos símbolos m obili­

nand Braudel, é certam ente um bom exem plo desta dialó­

zados para fundar o nós c o le tiv o da identidade nacional

g ica e de sua id en tificação e utilização no plano sim bólico.

que garante a adesão social ao pacto nacionalista.

C om o desdobram ento dessa d ialética territo ria l da

O regionalism o, enquanto m obilização p olítica de ba­

p arte versus todo, o regionalism o, m ovim en to p o lítico d e

se territorial, d ecorre justam ente dos modos através dos

base territorial, é um p roblem a geográfico-p olítico p o r ex­

quais o estado nacional tem organizado, ou administrado,

celên cia. Surgido com o reação ao jacobinism o d o estado-

as diferenças — culturais e económ icas — em seu territó­

nação e levantando bandeiras da identidade, da autonom ia,

rio para fundar a id eologia da unidade nacional. Os esta­

d o d ireito à diferença, e le não p od e prescindir d o “ nicho”

dos-nacionais h o je conhecidos foram consolidados, em sua

p ro teto r que este m esm o estado am eaçador representa

m aior parte, a p artir do dom ín io hegem ónico de uma re­

h o je fren te à am eaça d e uma hom ogeneização em escala

gião que im pôs cultura, língua, religião e sistema produtivo

planetária. Os regionalism os das regiões espanholas, que,

sobre as outras. É justam ente nas clivagens desta dom ina­

com exceção de um segm ento d o m ovim en to basco, não

ção que se tem desen volvido a id eologia regionalista. N a

dispensam o Estado espanhol e as am biguidades d o m ovi­

form ação dos estados m odernos, depois estados-nacionais,

m en to p olítico autonom ista do Q uebec, que p rop õe Aima

A r r ig

soberania que não abre m ão do passaporte (ou seja, cida­

o triu nfo da id eolog ia nacionalista em todo o território.

dania) e da m oeda canadenses, são significativos da com ­

N este sentido, os regionalism os representam m uito mais

plexidade desta coexistência. N a realidade, estas questões

lutas p o r disputas d e recursos com base no poder sim bóli-

186

187

hi

(1996) aponta a im portância do territorialism o e

E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S

I M A G I N Á R I O P O L Í T I C O E T E R R I TÓ R I O

co da afirmação de uma identidade ou solidariedade a te r­

B ra s il p o d e s e r tra b a lh a d o g e o g r a fic a m e n t e d e n tr o d o s r e ­

ritórios particulares d o que um desejo real de soberania.

c o r te s p o lític o -a d m in is tra tiv o s , s e n d o e s te o lim ite le g ít im o

Trata-se, na realidade, da articulação entre escalas territo­

d e id e n t id a d e e d e ex p ressã o d e r e iv in d ic a ç õ e s p o lític a s d e

riais de poder e de identidade que, sendo contraditórias

b a s e te rrito ria l, n u m es p a ç o n a c io n a l cu ja re p re s e n ta ç ã o p o ­

com o essência, são com plem entares enquanto prática p o lí­

lít ic a é o r g a n iz a d a a p a r tir d e r e c o r te s te rrito ria is leg a is. S o ­

tica. Neste sentido, em bora identidades culturais fortes co­

c ió lo g o s , h is to ria d o re s e p o litó lo g o s j á o fa z e m h á b a sta n te

m o língua, religião e etnia sejam símbolos eficientes nas

t e m p o , r e v e la n d o as e s p e c ific id a d e s s ó c io -te rrito ria is co n s­

disputas regionalistas, o regionalismo não se esgota neste

tru íd a s h is to r ic a m e n te n os lim ite s a d m in istra tivo s su b n a cio-

tipo de viés cultural.

n a is b ra s ile iro s (G O M E S , 1980; S C H W A R T Z M A N , 1 9 8 2 ).

Um a distinção é necessária entre o sentido dos regio-

O tem a d o regionalismo sob a perspectiva do imaginá­

nalismos e nacionalismos. Em bora ambos m obilizem sím ­

rio político encontra-se em aberto na geografia brasileira.

bolos para alimentar os rituais da identidade sócio-territo­

A lé m da existência de múltiplas escalas das relações de

rial, a teleologia de cada um é diferente. O prim eiro busca

p o d e r no território nacional, o aparecim ento de novas estra­

a construção de um estado-nação, o segundo busca mais

tégias d e relações centro-periferia, os novos arranjos espa­

vantagens, ou menos desvantagens nas disputas com outras

ciais e d e solidariedades propiciadas pelas mudanças tecno­

regiões, no conjunto d e um estado-nação consolidado. O

lógicas, o fortalecim ento dos poderes regionais e locais com o

fato de um m ovim ento regionalista levantar bandeiras se­

novos interlocutores nas relações supranacionais são proble­

paratistas pode ser, com o o é em muitos casos, muito mais

m as que se colocam hoje para os arranjos dos interesses no

uma estratégia de luta frente ao p od er central do que uma

territó rio e tendem a transformar o am biente das tradicio­

verdadeira busca de form ação de um novo estado-nação.

nais alianças políticas, definindo-se novos símbolos, elabo­

N o Brasil, o processo histórico político, que progressi­

rando-se novos discursos, mobilizando-se novos territórios.

vamente delineou os limites das unidades administrativas e os valores simbólicos dos territórios para as sociedades em cada uma, contribuiu para forjar escalas de interesse refo r­

Im a g in á r io p o lític o e re p re s e n ta çã o t e r r ito r ia l

çadas pelos discursos da identidade e da solidariedade. C om exceção do regionalismo nordestino, no qual o recorte

A institucionalização da representação política e do

regional e os interesses políticos coincidem , as identidades

e q u ilíb rio dos poderes nas democracias modernas é, neces­

territoriais no país se fazem nos limites administrativos dos

sariam ente, espacializada a partir de diferentes escalas que

estados. O trabalho de H A E S B A E R T (1 9 8 8 ) sobre a identi­

e n g lo b a m desde os espaços da convivência estabelecidos

dade gaúcha é significativo de que o term o regional no

n a p ro xe m ia , até aqueles mais amplos do dom ínio sim bóli­

188

189

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

I M A G I N Á R I O P O L Í T I C O E T E RRI TÓ RI O

co d o perten cim ento a uma nacionalidade. M esm o a d i­

tem desdobram entos im portantes para a geografia política.

mensão não espacial do político, com o a pretensão univer­

A cidadania instituída p elo co n tra to fundador do estado

sal e cósmica das leis, precisa do território delim itado e o r­

m oderno, em sendo um con ceito de caráter universal, esta­

ganizado historicam ente p ela sociedade para se exercer.

b e lec e a igualdade d e todos no usufruto dos seus direitos e

A lé m disso, apesar da objetividade dos interesses qu e no

no cum prim ento dos seus deveres. Em bora no contrato

plano teórico fundam a política m oderna, no plano prático

com o L e v ia tã hobbesiano apenas o direito à proteção con­

ela não p od e dispensar o recurso ao sim bólico para elab o­

tra m orte violenta fosse con cedido em troca da alienação

rar seu discurso e conquistar adesões.

da liberdade, a progressiva expansão dos direitos políticos e

Trata-se aqui de trazer para a agenda temática da g e o ­

sociais nas modernas dem ocracias ocidentais ampliou o

grafia política brasileira o problem a dos símbolos e dos con­

con ceito d e cidadania e consagrou sua prática na socieda­

teúdos espaciais na força imaginai do político, e esta nos

de. Porém , se há na essência do conceito a universalidade,

m odos pelos quais as sociedades vivem o seu território.

a m ediação territorial d o seu exercício im põe alguns pro­

C o m o a representação política, instituinte da cidadania d o

blemas. N a realidade, não havendo homogeneidade na

indivíduo nas democracias modernas, se faz tam bém com

base material do território, as condições para o exercício

base nos recortes territoriais administrativos, é na perspec-

desta cidadania ampliada qu e inclui hoje não apenas o

tiva da representação territorializada do cidadão que d evem

d ireito à proteção, o de votar e d e ser votado ou a possibili­

ser com preendidos os recortes territoriais da política nas

dade de controle dos governantes, mas também direitos

democracias representativas contemporâneas. C om o princí­

relacionados à qualidade de vid a e às condições para a sua

pio desta engenharia política, não apenas o cidadão é rep re­

reprodução, encontram-se afetadas.

sentado com o indivíduo, mas tam bém o seu território com o

N esta perspectiva, o p roblem a do exercício da cidada­

parte inseparável da sua cidadania. N esse sentido, proble-

nia em países com grandes disparidades económicas e so­

matizar o espaço político, no qual se fazem a representação

ciais é, mais do que um p rob lem a constitucional legal, um

e a administração de interesses contraditórios, requer id en ­

problem a territorial. É aí que deve ser inserida a polêmica

tificar tanto seus conteúdos simbólicos e materiais com o a

atual do sistema representativo proporcional brasileiro e as

articulação do espaço da função política com outras dim en­

mazelas dos episódios de representantes despreparados, de

sões do espaço da sociedade. O território, com toda a sua

corrupção e dos balcões de interesses pessoais armados na

carga simbólica, desem penha um papel fundamental na dis­

Câm ara dos Deputados, p o r definição, o lugar da prática

puta política, fornecendo os símbolos necessários para o nós

dem ocrática e da garantia dos direitos da cidadania. Talvez

fu sion a i presente nos rituais da disputa eleitoral.

os geógrafos possam responder a algumas questões sobre o

A questão do com ponente territorial da cidadania 190

problem a. Prim eiro, com o estabelece a p rio ri que a repre191

E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S

IMAGINÁRIO POLÍTICO E TERRITÓRIO

sentação é do cidadão sem considerar o fato banal, mas fun­

fica p od e contribuir para en ten der as origens e a perpetua­

damental, de que ele habita um território, no qual sua vida

ção das desigualdades sociais. Seu en foq u e das condições

está organizada e seus interesses estão estabelecidos? Se­

de m obilização dos recursos para a representação, estabe­

gundo, como garantir uma proporcionalidade absoluta em

lecidas p or diferentes grupos em disputa p e lo controle dos

um território tão desigualmente povoado sem deixar territó­

rituais e dos espaços institucionalizados de p o d e r no terri­

rios e sua população sem representação, ou seja, sem direito

tório americano, apontou as possibilidades de contribuição

a uma cidadania elementar, e sem inflar enorm em ente o

da geografia para com p reen d er o com portam ento político

número de representantes na Câmara, com todos os proble­

para além das solidariedades das classes sociais das aborda­

mas de custos e eficiência decorrentes? Terceiro, com o ter

gens sociológicas tradicionais. Tam bém D E A R (1 9 8 9 ) d e ­

uma proporcionalidade ideal e ao mesmo tem po controlar a

monstrou o papel do território na m odelagem da vida so­

possibilidade da tirania da maioria e do fortalecim ento das

cial, a partir das condições d o consumo coletivo de bens e

hegemonias dos interesses territoriais numa situação de p er­

serviços públicos nos locais d e moradia, as disputas entre

sistentes disparidades regionais e de fortes injustiças espa­

grupos e entre lugares e os conflitos delas decorrentes.

ciais? O que se afirma aqui é que o debate sobre os proble­

Apesar dos trabalhos que consideravam a importância

mas da representação política no Brasil não se esgota no cál­

das relações sociais no lugar com o fator relevante da expli­

culo dos coeficientes que estabelecem o número d e repre­

cação em geografia política, foi A G N E W (1987) que aprofun­

sentantes por estado, eixo das análises políticas, mas numa

dou o argumento sobre o papel da individualidade das so­

compreensão mais profunda das muitas realidades sociais

ciedades locais no com portam ento político. Polem izando

do espaço brasileiro, especialmente aquelas que historica­

com as ciências sociais em geral e com a ciência política em

mente, em algumas áreas do país, têm levado muitos “ cida­

particular, ele aponta a necessidade de incorporar o lu ga r

dãos” a perceberem o voto, não com o um certificado de ci­

nas suas teorias para com preender o com portam ento políti­

dadania, mas com o um bem virtual que pode transformar-se

co e as diferenças, uma v e z que ambos não p odem ser com ­

em outros bens mais palpáveis, com o alimentos, roupas, do­

preendidos apenas através das categorias sociais tradicional­

cumentos etc. Estas são questões para as quais a geografia

m ente consideradas nessas ciências, engrossando o caudal

política brasileira pode dar grande contribuição.

dos cientistas sociais — antropólogos e sociólogos — que

Seguindo um outro eixo d a relação entre espaço e

interpretam o genius lo c i com o um dado necessário à análi­

representação política e num a perspectiva sistémica da

se política. Diante do problem a de enfocar a individualidade

geografia anglo-saxônica dos anos 70, JOHNSTON (1979)

dos lugares e de reconhecer a real interdependência entre

abordou os inputs e outputs geográficos do sistema político

eles, ele se coloca a questão da simultaneidade necessária, e

eleitoral para com preender de que m odo a análise geográ­

não contraditória, no campo político social, entre o único e o

192

19 3

EXPLO RAÇ ÕES GEOGRÁFICAS

I M A G I N Á R I O P OL Í T I C O E T E RRI TÓ RI O

geral e o problem a da mediação entre estado e sociedade.

Ballly,

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Seu argumento é o de que, com o o estado territorial é com ­

Georges (1994). Le dédale. Paris, Fayard.

posto de lugares, o ja cob in ism o das ciências sociais levou-as

B A L A N D IE R ,

a um “ silêncio oficial” sobre o papel da localidade, ou do

------------ (1997). O contorno. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.

lugar, na mediação das recentes inter-relações das institui­

BERDOULAY,

Vincent (1988). Des mots et des lieux. Paris, Ed.

CNRS.

ções do Estado e os processos sociais. E m sua perspectiva do

Pierre (1989). O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.

B O U R D IE U ,

lugar com o processo, argumenta que, mais do que um epifenôm eno da sociedade, ele é central para sua estruturação.

C A S T O R IA D IS ,

É, portanto, na perspectiva da com preensão da base

Comelius (1991). A instituição imaginária da

sociedade. São Paulo, Rio de Janeiro, Paz e Terra.

material do território com o significante, a partir do qual o

------------ (1997). Fait e àfaire. Paris, Seuil.

imaginário político constrói seu significado, que as pesqui­

Iná E. O m ito da necessidade. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1992.

CASTRO,

sas em geografia política p odem contribuir para a com ­ preensão das forças, das tensões e dos conflitos que presi­

------------ (1991). Imaginário político e realidade económica.

dem o processo de organização espacial das sociedades.

Nova Economia. Belo Horizonte. V.2/N2.

D esse m odo, a agenda da geografia política brasileira encontra-se e m aberto, especialm ente na necessária busca de

------------ e Magdaleno, F. (1996). O imaginário da pobreza e a

inform ações que perm itam com preender as diferenças ter­

implantação industrial no semi-árido nordestino. Anuário do Instituto de Geociências. Rio de Janeiro, vol. 19:21-34.

ritoriais no exercício p len o da cidadania; a com plexidade e

Eric (1952). L ’Homme et la terre. Paris, Éditions CTHS, 1990.

D a r d e l,

a dinâmica dos interesses que os lugares representam e o devir da sua sociedade e d o seu território no contexto de

D E B A R B IE U X ,

uma política cada vez mais globalizada, de lugares cada vez

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mais com petitivos e de estruturas estatais em mutação.

B a il l y ,

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O peso da história ainda se faz sentir bastante no

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ro. Brasília, Editora Universidade Nacional de Brasília. S lM O N S O N ,

origens distantes no tem po e acompanham-nos desde os prim órdios da colonização. Tam bém não são poucas as oca­ siões em qu e nos deparamos com linguagens barrocas e com term os antigos e estranhos, incom preensíveis até mes­ m o para o cidadão esclarecido, mas que ainda continuam a ser utilizados, notadam ente nos m eios jurídicos. E é com

DIFEL. SCH W ARTZM AN,

Brasil. Às vésperas de entrarmos no século X X I, somos vol­ ta e m eia lem brados que muitos problem as d o país têm

Harold P. (1989). Beyond the fron tier. Texas Chris-

espanto ainda m aior que descobrim os que muitos desses “ anacronismos” são ainda bastante atuais e continuam a fazer sentir o seu peso na estrutura social do país. A organização territorial é um cam po fértil para a

tian University Press. Hélène (1990). Les grandes concéptions de Vima-

descoberta dessas heranças do passado. A estrutura agrária

ginaire. Paris, Biblio Essais. W O L C H , J., D E A R , M. (1989). The potver o f geography. Boston,

injusta do país é sem pre relacionada ao sistema sesm arial

V É D R IN E ,

que vigorou em outros tempos. A o venderm os um im óvel,

Unwin Hyman. * P rofessor d o D epartam ento de Geografia — UFR J.

196

197

A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I T Ó R I O NO BRASI L C O L O N I A L

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

proprietário local interessado na consolidação d o povoa­

S esm a ria s m e d ie v a is p o rtu g u e sa s

m ento d o lugar ou, o que foi mais comum, instituído p elo rei através d e cartas de fo r a l (R a u , 1982: Cap. I I). Já no iní­

A instituição de um conselho municipal implicava a

cio do século X I I I toda a terra em Portugal havia se tom ado

necessidade da distribuição de suas terras pelos morado­

d om in ia l, isto é, estava sob o dom ínio direto de alguma

res. Para coibir pretensões territoriais desmesuradas, gene­

autoridade. Destacavam-se aí (SERRÃO, 1975, V. 1: passim ):

ralizou-se nessa época a utilização de uma variante do anti­ g o instrum ento greco-rom ano da enfiteuse, que ficou co­

(1 ) os bens da Coroa, indivisos e inalienáveis, patrim ónio

nhecida com o sesmaria. ^

do Estado;

A enfiteuse (ou a fora m en to) é um contrato de aliena­

(2 ) os bens pessoais do rei (os chamados reguengos);

ção territorial que divide a propriedade de um im óvel em

(3 ) as terras da nobreza, do clero, das ordens monásticas e

dois tipos de dom ínio: o d om ín io em inente, ou d ireto, e o d o m ín io ú til, ou in d ireto . A o utilizar um contrato enfitêuti-

das ordens mihtares; (4 ) algumas propriedades alodiais, livres de direitos e de

co, o proprietário de p len o direito de um bem não o transfe re integralm ente a terceiros. A penas cede o seu domínio

deveres senhoriais; (5 ) as terra s de natureza com unal, em geral concedidas

útil, isto é, o direito de utilizar o im óvel e de nele fazer

p elo rei aos habitantes dos conselhos, e que se subdivi­

benfeitorias, retendo, entretanto, para si o domínio direto.

diam em (a ) terras dos conselhos, de propriedade adm i­

a prop ried ad e em última instância. E m troca do domínio

nistrativa dos governos locais e que podiam ser p o r eles

in d ireto que lhe é repassado, o outorgado aceita uma série

distribuídas aos seus “vizinhos” , e (b ) baldios, terras de

d e condições que lhe são impostas, e obriga-se também a

usufruto com um , insusceptíveis de individualização,

pagar uma p ensão anual (ou f o r o ) ao proprietário do dom í­

destinadas à pastagem do gado e à obtenção d e lenhas.

nio direto, razão pela qual transforma-se em fo re iro deste últim o. N ã o cum prindo o foreiro as condições do contrato,

É na distribuição das terras dos conselhos que está a

o d om ín io útil reverte ao detentor do domínio direto.

origem d o sistema sesmaria!, uma form a de apropriação

. O que singularizava a sesmaria do tradicional contrato

territorial que se difundiu p elo sul de Portugal a partir do

enfitêutico era um único detalhe: ao contrário da obrigato­

século X I I I e que se converteu em verdadeira política de

riedade de pagam ento de um foro (que às vezes também

povoam ento.

ocorria), o que se exigia era o cultivo da terra num tem po determ inado. N ã o sendo satisfeita essa condição, o deten­ to r do dom ínio em inente (um conselho municipal, por exem p lo) poderia retom ar o dom ínio útil da gleba (então 200

201

E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S

A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I T Ó R I O NO B R A S I L C O L O N I A L

chamada de casal) e outorgá-lo a outros. Buscava-se com

antigo sistema sesmarial senão um ponto de contacto: a

isso garantir o uso produtivo da terra e o sucesso d o esfor­

obrigatoriedade d e cultivo com o condição d e posse da ter­

ço de povoamento.

ra e a expropriação da gleba ao proprietário que a deixasse

A origem d o nom e sesmaria está ligada à organização

inculta. N o mais, tudo nela era coação, pois o seu objetivo

territorial dos conselhos. Para m elhor distribuir os casais,

m aior era obrigar os trabalhadores rurais a perm anecerem

passou-se a dividir as terras dos conselhos em sesmos, ou

no cam po (RAU, 1982: 87). É im portante notar, entretanto,

sextas partes. A fim de evitar injustiças nas doações e fisca­

que ela introduziu um elem ento im portante na legislação

lizar o cum prim ento das condições legais, era indicado um

da época, já que restituiu ao Estado o princípio da não

hom em bom (um cidadão) para cada sesmo, exigindo-se a

absolutização da terra, outorgando-lhe o dom ínio em inente

sua presença ali durante um dos dias úteis da semana. Os

sobre todo o território, o que abria caminho para com bater

sesmos ficaram então conhecidos com o sesmos d e segun­

o latifúndio e expropriar qualquer propriedade que não

da-feira, de terça-feira etc., e os delegados municipais to­

fosse aproveitada no tem po convencionado (SMITH, 1990;

maram a denom inação de sesm eiros. P o r sua vez, as terras

M a r q u e s , 1975: 544; R a u , 1982: Cap. V I).

que eles concediam ficaram conhecidas com o sesmarias

Tod a a legislação sobre sesmarias foi incorporada, em

(R a u , 1982: 47-57). Utilizadas depois para povoar os re-

1446, às Ordenações Afonsinas (L iv ro IV, T ítu lo 81), e

guengos e as terras da Igreja e da nobreza, as sesmarias

mantida, com poucas alterações, nas Ordenações M anue­

foram assim mais uma form a d e apropriação do que de

linas (L iv r o IV, T ítu lo 67), de 1521, e nas Ordenações

propriedade (MARQUES, 1975: 543).

Filipinas (L iv r o IV, Título 43), d e 1603. C o m a expansão

E m meados do século XIV, com o progresso do p o ­

marítima portuguesa, o instituto da sesmaria foi transposto

voamento, poucas eram as glebas ainda disponíveis, mas a

para as conquistas (com o, de resto, toda a estrutura ju rídi­

eclosão da peste negra e a elevação dos salários artesanais

ca lusa). G rande viabilizador do processo d e apropriação

urbanos logo levaram a um crescente êxodo rural. As terras

do território brasileiro, é im possível enten der o período

marinhas (terrenos incultos de propriedade particular) tor­

colonial sem que se faça referência ao sistema sesmarial,

naram-se então mais numerosas, causando diminuição de

que só fo i abohdo às vésperas da Independência. Todavia,

renda e decréscim o da produção de grãos. Para com bater

seu im pacto sobre a estrutura fundiária do país faz-se sen­ tir até hoje.

essa situação, a C oroa prom ulgou então “ uma das prim ei­ ras leis agrárias da Europa que m ereça tal nom e” (R a u , 1982: cap. V ). A lei das sesmarias, assinada p o r D. Fernando em 1375, foi na realidade uma lei violenta, que não teve com o 202

203

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO BRASI L C O L O N I AL

A transposição do sistema sesmarial para o Brasil

dados aos donatários, com o atesta bem o de Duarte C oe­ lho, mandava o E l-R ei D . João I I I que repartissem as terras

A C o ro a Portuguesa tom ou posse d o território brasi­ leiro p o r aquisiçã o o rig in á ria , isto é, p o r d ire ito de co n ­

“ na form a e m aneira que se conthem em minhas

quista (C lR N E L i m a , 1954: 8 9 ). P or essa razão, todas as ter­

ordenações [isto é ], o capitam da dita capitania e seus

ras “ descobertas” passaram a ser consideradas com o terra

sobcesores daram e repartiram todas as terras delia

v irg em sem qualqu er senhorio ou cultivo anterior, o que

d e sesmarya a quaesquer pesoas de qualquer calyda-

perm itiu que a C oroa pudesse traspassá-las a terceiros, v i­

d e e condiçam que seyam contanto que seyam chris-

sando com isso assegurar a colonização.

tãos lyvrem ente sem foro nem dereito algum somente

A carta patente dada a M artim Afonso de Souza é

o dízim o que seram obrigados de pagar a hordem de

unanim em ente considerada com o o prim eiro docum ento

m estrado d e noso Senhor Jhesu Christo de tudo o

sobre sesmarias do Brasil. N a realidade, M artim Afonso

que nas ditas terras ouverem...” ( F o r a l ...: 312).

trouxe consigo três cartas régias. A prim eira outorgava-lhe “ grandes poderes” , nom eando-o capitão-mor da armada e

Se a ordem da C oroa era para que a concessão de ses­

d e todas as terras qu e fossem descobertas, com plena juris­

marias no

Brasil fosse feita segundo estabeleciam as

dição sobre as pessoas que com ele seguissem, que já esti­

Ordenações, a verdade é que a prática acabou sendo bem

vessem n o Brasil, ou que para aí fossem depois. A segunda

outra. A o com entar o sistema sesmarial implantado além-

p erm itia q u e ele nomeasse oficiais de justiça, necessários à

oceano, Costa P orto (1965: 58) assim se expressou:

tom ada d e posse e à governança da terra. A última, enfim, dava-lhe p od er para doar sesmarias às pessoas

“ O erro de base do sesmarialismo brasileiro .. [consis­ tiu] ... em haver-se transplantado, quase sem nenhum retoque, a legislação reinol para m eio totalmente di­

“ q u e n a d ita t e r r a q u y s e r e m v y u e r e p o u o a r ... se g u n ­ d o o m e r e c e r e m as d itas pessoas p o r seus seru yço s e c a ly d a d e s p e r a aas a p r o u e y ta r e m e as terras q u e hasy d e r s e ra s o m e n t e nas vid as d a q u e lle s a q u e as d e r e

verso, de tal m odo pesando as influências diferenciadoras de espaço e tem po que, via de regra, ou o siste­ m a não funcionou, ou, funcionando, acarretou, aqui, resultados opostos àqueles obtidos em Portugal.”

m a y s n a m ... “ ( I n F R E IT A S , 1924: 1 5 9 -1 6 0 ).

Quais seriam essas influências diferenciadoras de es­ A instituição, logo a seguir, do sistema de capitanias

paço e tem p o? C om o funcionou o sistema sesmarial no

hereditárias, em nada mudou o espírito da lei. Nos forais

Brasil? C om o o sesmarialismo português acabou se trans205

E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S

A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO B R A S I L C O L O N I A L

formando em sesmarialismo colonial? U m a breve análise

se dessem “m aiores terras a um a pessoa de sesmaria que

dessas questões, sustentada p or autores que as discutiram a

aquelas qu e razoadam ente p a recer que no d ito tem po p o ­

fundo, perm ite que cheguem os a algumas conclusões im ­

d erã o a p rov e ita r” (O rdenações Manuelinas, L iv ro IV, T í­

portantes.

tulo 67, § 3), tom ou igualm ente nova feição no Brasil. C o ­

A prim eira é que as “influências diferenciadoras de

m o o sistema de produção colonial crescia p o r extensão, a

espaço e tem po” fizeram-se sentir desde o início. A o con­

liberalidade na concessão passou a ser a regra, sobretudo

ced er as primeiras sesmarias, M artim Afonso já o fe z em

no século X V I, o que fe z surgir propriedades de dimensões

caráter perpétuo, contrariando o texto régio que estabele­

im pensáveis no agro português, “ áreas imensas de quatro,

cia que a doação seria apenas vitalícia. N ão há dúvida,

cinco, dez, vinte léguas, muitas vezes em quadra ...”1 e que

entretanto, que essa m odificação v eio a se adequar m elhor

cresciam ainda mais p o r aquisição derivada, isto é, pela ane­

h

aos objetivos da colonização: não seria possível povoar uma

xação d e outras glebas obtidas p o r doação, compra, ou he­

terra tão longínqua e habitada p or povos hostis, sem que se

rança (C O S T A P o r t o , 1965: 61-65). A esse respeito assim

pudesse garantir aos conquistadores o direito de transferir

se expressou Silva (1 9 9 0 ,1: 39,47):

o fruto de seus esforços a seus herdeiros. A determinação das Ordenações para que os sesmei­

"... as possibilidades comerciais do cultivo da cana-de-

ros estabelecessem "... sem pre tem po aos que as derem , ao

açúcar, que dem andava grandes extensões de terras,

mais de cin co anos e d a í para baixo, que as lavrem e a pro­

levou a m etrópole a fechar os olhos frente ao des-

veitem ... E se as pessoas... as não aproveitarem ... os sesmei­

cum prim ento das suas próprias exigências no tocante

ros... dêem as terras... a ou tros que as a proveitem ” (O r ­

à legislação d e sesmarias... F oi, portanto, a form a de

denações Manuelinas, L iv ro IV, T ítu lo 67, § 3), tam bém foi

inserção da colónia no am plo m ercado mundial que

pouco respeitada. L o g o ficou claro que o tem po não p o d e ­

o >

se abria para determ inados produtos, com o o açúcar,

ria começar a correr desde a

\\b

insubmissão do indígena dificultava o aproveitamento das

qS

terras (uma condição essencial) e, não raro, im pedia mes-

jy jp

m o a sua ocupação (M E R Ê A , 1924: 183). P o r essa razão, do período estabelecido nas cartas de concessão, e

latifundiána, m onocultora e escravista. Essas condi­ ções é que explicam tamanha liberalidade p or parte

x

muitas sesmarias só acabaram sendo cultivadas bem depois ^

'

^

que traçou o m od elo da agricultura aqui instalada:

da m etrópole na disposição do solo colonial, muito mais do que a ganância e a cupidez dos colonos che­

í* *

gados à A m érica para fazer fortuna” .

LO não

foram poucas as doações que acabaram caducando p or terem seus beneficiários desistido d e aproveitá-las. O velho preceito das Ordenações mandando que não

‘ U m a lé gu a em quadra equivale a 4.356 ha ou a 1.800 alqueires.

206

A

# E X P L O R A Ç Õ E S G E OG R Á F I C A S

N a realidade, a própria C oroa incentivou a concentra­ ção de terras. A o instituir-se o G overno Geral, ordenou ElR e i a T o m é de Souza que só concedesse terras para a cons­ trução d e engenhos de açúcar àqueles que tivessem posses bastantes para fazê-los (In FLEIUSS, 1925: 17). C om o pro­ gred ir da colonização, entretanto, essas exigências acaba­ ram p o r se estender a todos os que solicitavam sesmarias, que passaram a te r que provar que tinham recursos (notadam ente escravos) para p od er recebê-las; cortou-se, assim, o acesso à propriedade a inúmeros colonos. H á que se notar, finalmente, que até mesmo o signifi­ cado do term o sesm eiro acabou se invertendo no Brasil. N a colónia, ele passou a ser aplicado ao beneficiário da doação

A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO BRASIL C O L O N I A L

esta teve que assumir em troca, acabaram se constituindo em p eça fundamental d o processo de organização territo­ rial d o Brasil. A form a com o a terra brasileira acabou sendo pro­ p riedade da C oroa Portuguesa, mas sujeita à jurisdição es­ piritual da O rdem de Cristo, foi bem descrita p or Costa P o rto (1965: 42-51), que recuperou todo o emaranhado de bulas papais que concederam privilégios a Portugal nos sé­ culos X IV , X V e X V I. D ecidid a a m anter no Reino os inú­ m eros bens aí possuídos pela antiga Ordem dos Tem plá­ rios, extinta em 1312 p o r C lem en te V, solicitou a monar­ quia lusa a João X X II, seu sucessor, que incorporasse esse

e não, com o era uso em Portugal, àquele que tinha p od er

patrim ónio à C oroa ou que o adjudicasse a uma nova insti­

real para distribuir terras d e sesmaria.

tuição, de caráter local. Pela bula A d ea ex quibus, de 14 de m arço d e 1319, decidiu-se então o papa pela segunda opção, surgindo então a O rd em do M estrado de Nosso

O dízim o, as obrigações da Coroa e a organização do território

S en h or Jesus C risto. D e início a O rd em de C ris to teve existência autóno­ m a em relação à Coroa, ainda que tenha participado das

O que dava originalidade ao sistema sesmarial era a

guerras em que esta se envolvia contra Castela e contra os

obrigatoriedade de cultivar o solo num determ inado prazo,

mouros. Aos poucos, entretanto, ela começou a financiar o

sob pena de cancelam ento da concessão. Nas conquistas,

p rojeto m arítim o português. Para justificar o processo ex-

entretanto, as sesmarias incorporaram uma exigência adi­

pansionista, solicitou então D . João I a Martinho V que

cional: o pagam ento do dízim o à O rdem de Cristo, o que

concedesse a Portugal o dom ínio tem poral sobre as terras

na realidade q ueria d izer pagamento à própria C oroa. Mais

descobertas ou conquistadas, tendo obtido também a auto­

d o que um im posto cobrado dos que recebiam terras, o

rização para que o Infante D . H enrique, seu filho, assumis­

dízim o era a justificativa m esm o do processo de conquista.

se o grão-mestrado da O rdem . A partir daí os interesses da

E ao simbolizar toda a relação que se estabeleceu entre

O rd em e os da C oroa passaram a se identificar cada vez

Estado e Igreja na “ era dos descobrimentos” , o pagamento

mais, com o provam diversos éditos papais emitidos duran­

desse tributo à Coroa, e as consequentes obrigações que

te o século X V 20 9

*'•' EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

«T

í

A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO B R A S I L C O L O N I A L

tim ação de suas conquistas, cabia à C oroa fazer a sua co­ brança ( C o s t a P o r t o , 1965: 96; S m i t h , 1990:166).

d o, e que consistia no privilégio concedido à C oroa d e

A arrecadação do dízim o criou no Brasil um eficiente

cobrar o dízim o eclesiástico nas conquistas para aí e rig ir

esquem a d e delegação de poderes que deu origem , p o r sua

dioceses e sustentar a religião e o culto. Todavia, com o era

vez, a um engenhoso sistema de regionalização da cobran­

a rica Ordem de Cristo que financiava o projeto expansio-

ça. Im possibilitada de controlar diretam ente tudo que era

nista luso, solicitou a C oroa que o padroado fosse transferi­

produzido, a C oroa optou desde o início p e lo sistema de

do a essa milícia, o que foi autorizado por Calixto I I I atra­

contratação, já bastante utilizado no Reino. A intervalos

vés da bula In te r C oetera, de 13 d e março de 1456. G rão-

regulares, punha-se o serviço de cobrança d e cada capita­

mestre da O rdem de Cristo desde 1485, ao assumir o tron o

nia em arrematação, sendo o contrato entregue a quem

d ez anos mais tarde D . M anuel I enfeixou pela p rim eira

oferecesse mais. Ressarcida p o r aquele período, a C oroa

v e z as duas dignidades na mão d o R ei, situação que p erm a­

delegava então ao arrematante (tam bém conhecido com o

neceu com D . João I I I , tom ando-se definitiva em 1551,

d iz im e iro ou co n tra ta d o r dos dízim os rea is) o p od er de

quando o papa Júlio I I I , através da bula Praeclara cla rissi-

cobrar o tributo dos produtores diretos, que podiam pagá-

m i, determinou que, daí por diante, fosse o grão-mestrado

lo em espécie ou em d in h eiro de contado. M esm o regionalizada a nível das capitanias, a cobran­

Quando os portugueses tomaram posse do território

ça dos dízim os ainda assim era tarefa im possível para uma

brasileiro, exercia, pois, E l-R ei tanto o domínio tem poral

só pessoa. Tom ou -se então comum a prática da subcontra­

sobre as terras conquistadas, com o também o espiritual.

tação. Os contratos passaram a ser divididos em “ ramos” de

Eram poderes distintos, mas, com o estavam agora nas mes­

produção (d o açúcar, dos gados, do peixe, da farinha, e das

mas mãos, acabaram p or se confundir. Isto explica por que as

“miunças” , ou seja, da produção menor: cabritos, frangos,

sesmarias brasileiras eram isentas de foro (por não pertence­

galinhas, ovos etc.), que eram em seguida repassados a

rem a quaisquer senhoriosh mas sujeitas ao pagamento do

quem m aior quantia desse p o r eles. Esses ramos, p or seu

dízimo a Deus (isto é, à Ordem d e Cristo, isto é, à Coroa).

lado, eram freqiien tem ente regionalizados ainda mais, sur­

(-----C>

O dízimo era um ônus sobre a produção — um em dez

dos fru to s da terra — e incidia sobre a agricultura e a pecuá­

'ti? r a

i

têo m o j . rism*

1454, Nicolau V acrescentou ao dom ínio tem poral a juris-



}

nictãCxAs t

missão evangelizadora sob a qual obtivera d o papado a legi­

da Ordem exercido pelos monarcas lusitanos.

*

■.

Assim, pela bula C uncta m u n d i, de 8 de jan eiro de ! dição in spiritualibus, que ficou conhecida com o o pa d roa ­ ^ 9

'

gindo daí outros subcontratos (d o dízim o do açúcar de tal região de tal capitania, por exem plo).

ria coloniais. Era, na realidade, um tributo eclesiástico, que

Assim com o ocorreu com os demais contratos colo­

deveria ser pago inclusive por quem não possuísse terra, já

niais (sal, tabaco, baleias etc.), a arrematação dos dízimos

que, como cristãos, todos os produtores deveriam contribuir

reais revelou-se um negócio muito rendoso. C om o a maior

para o programa de propagação da fé. E com o gestora da

quantia o ferecid a sem pre ficava muito aquém da arrecada-

210

211

EXPLORAÇÕES GEOCRÁFICAS

A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I T Ó R I O NO BRASIL C O L O N I A L

ção efetiva, a obtenção desses contratos e subcontratos aca­

As terras urbanas

bou gerando pequenas fortunas na colónia. P o r sua vez, a prática da subcontratação fez com que o cerco sobre o p ro­

C om o b em lembrou Costa P orto (1965: 158-159), com

dutor direto fosse se refinando cada v e z mais com o tem po,

a conquista foram transplantadas para o Brasil as praxes m e­

o que diminuiu as chances de sonegação, mas deu origem

tropolitanas de controle territorial, dentre as quais tomou

a inúm eros conflitos locais, muitos dos quais exigiram a

vulto, desde o início, a adoção de um sistema municipalista

intervenção direta do rei. F on te im portante de recursos reais, a cobrança d o

d e base urbana e de raízes romanas, cujas manifestações materiais foram o a rra ia l (ou p ovoa d o), a vila e a cidade.

dízim o, p or ser feita em nome da O rdem de Cristo, exigiu entretanto uma contrapartida de peso: a jurisdição espiri­

D en tre esses, apenas o arraial teve origem espontânea,

tual da colónia. Resultou daí um extenso rol de obrigações

resultando do agrupamento de famílias em algumas resi­

que a C oroa passou a ter no Brasil, tais com o sustentar e

dências

difundir o culto; criar paróquias; autorizar a criação de

tiguidade e unidade formal. Os demais surgiram sempre da

chamadas fo g o s — que apresentavam certa con­

igrejas, conventos e irmandades; edificar ou reparar tem ­

ação direta ou indireta dó Estado.

plos; estabelecer e manter burocracias eclesiásticas; man­

As vilas resultaram da decisão de donatários e gover­

ter ou subsidiar colégios e mosteiros; indicar prelados em

nadores, que tinham p o d e r para criá-las, ou de ordem real

suas diversas hierarquias etc.

para que se elevasse a essa categoria algum arraial. A cria-

A progressão do povoam ento só fe z aumentar esses

ção de cidades, entretanto, fo i sem pre um atributo exclusi-

encargos. A cada criação de freguesia surgiam novas despe­

t é

sas. E os encargos se multiplicavam quando uma cidade ou

las porqu e “ as cidades, perpetuando em si o antigo M u ­

vila era elevada a sede episcopal, já que então era preciso p rover o recém -criado bispado de todas as prerrogativas e dignidades que lhes eram devidas, que eram regulamenta­

v o da Coroa. Os donatários não tinham o direito de fundánicípio romano, d e natureza independente, só assentavam

}

em terras próprias alodiais” (F L E IU S S , 1925: 10). Para fun­ dar a cidade do Salvador, por exem plo, a Coroa teve que

das p o r leis do Estado e por bulas papais .2 dois de meia preben da, um subchantre, quatro capelães, quatro moços do coro,

2 F o i o q u e aconteceu, po r exemplo, quando da elevação do R io de Janeiro à categoria d e bispado, determ inada pela bula Romani P on tificit, de Inocêncio XI,

um organista, um m estre da capela, um sacristão, um porteiro da massa, um cura e um coadjutor. A partir d e 1689 passou a contar também com um mestre-de-

expedida em 16 de novem bro de 1676. P ela Provisão de 18 de novem bro de

cerimônias. D u ran te tod o o século X V I I I este corpo eclesiástico continuou a

1681, o Príncipe Regente D . P edro instituiu o C o rpo Capitular da nova sé, que

aum entar, expandindo-se ainda mais em 1808, quando a Sé Catedral foi conde­

só tom ou posse, entretanto, após a chegada do novo bispo, D . José de Barros

corada, pelo recém -ch egado Príncipe Regente, com o título e dignidade de

Alarcão. E ste "quadro eclesiástico" consistia de um deão, um chantre, um tesou­ reiro-m or, um mestre-escola, um arcediago, seis cónegos de prebenda inteira e

C a p ela Real, sendo igualada então ao Patriarcado d e Lisboa. V e r Pizarro e Araújo (1820-1822), vol. 6.

212

21 3

1

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO B RA S I L C O L O N I A L

recuperar prim eiro a jurisdição da antiga capitania da

se m aterializava obrigatoriam ente na paisagem urbana pela

Bahia de Todos os Santos (AZEVEDO, 1956: 14).

ereção de um pelou rin h o. Tinham direito, ademais, às dig­

A elevação de um núcleo urbano a sede de bispado

nidades e regalias conferidas pelas Ordenações aos conse­

exigia a promulgação d e instrumentos jurídicos adicionais.

lhos e a seus cidadãos. E possuíam, finalmente, um term o,

C om o todo o solo colonial estava sujeito à jurisdição espiri­

ou área de jurisdição, dentro da qual se situavam os arraiais,

tual da Ordem de Cristo, fazia-se então im prescindível que

e um patrim ónio fundiário: as terras d o Conselho.

E l-R ei ou o Papa quebrassem os vínculos que submetiam a sede do novo bispado ao controle da O rdem , pois sendo nobres de prim eira grandeza os bispos somente podiam

O p a tr im ó n io m u n ic ip a l

residir em terras alodiais (FLEIUSS, 1925: 11). A diferenciação entre vilas e cidades era, pois, d e

A doação de terras para as câmaras municipais é c o e ­

caráter jurisdicional e não hierárquico. As cidades, p o r se­

va dos prim eiros anos da colonização, tendo sido inclusive

rem da Coroa, eram chamadas de cidades reais, mas nem

determ inada nos forais dos donatários. Data d e 1537, p or

todas alcançaram o papel de comando que o título lhes

exem plo, a instituição do patrim ónio de O linda (C O S T A

conferia .3 Por outro lado, o status de vila não diminuía a

PORTO, 1965: 160). Já as terras dadas ao R io de Janeiro an­

importância de um centro urbano. Olinda e São Paulo, p or

tecedem m esm o a conquista definitiva da terra. A imissão

(^

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exem plo, núcleos de indiscutível importância nos prim ór-

de posse desse património era pública e solene, e seguia

^ dios da colonização, só foram elevadas à categoria de cida-

um rígido cerim onial medieval, que atribuía os foros de le ­

de depois que suas terras reverteram à C oroa (em 1676 e

galidade exigidos pelas praxes metropolitanas, com o bem

1711, respectivamente).

demonstra o exem plo carioca:

Vilas e cidades diferenciavam-se, entretanto, bastante dos arraiais, pois só nelas estava a sede de um govern o

••• lo g o os ditos moradores e povoadores disseram,

loca l. A li fazia-se justiça em nom e do R ei, prerrogativa que

que e lle dito João Prosse tomasse a dita posse, em nom e d e todos assim presentes com o ausentes, e que

* J o

’A

°3

o dito M eirin ho lhe m ettêra nas mãos terra, pedra,

É o caso, por exemplo, de Filipéia d e Nossa Senhora das Neves, hoje João

Pessoa, fundada em 1585, de São Cristóvão, em Sergipe, fundada em 1590, e de N o ssa Senhora da Assunção d o C a b o Frio, fundada em 1615. Mariana, p o r sua vez, só foi elevada à dignidade de cidade, em 1745, po r ter-se tornado sede epis­ copal. P or outro lado, tam bém houve exemplos de vilas que, po r motivos nitida­

;

m ente políticos, só obtiveram o estatuto de cidade muito depois de outros nú­ cleos rivais. É o caso d o Recife, q ue só alcançou a honraria que já distinguia O lin d a desde o século X V I I após a Independência (1823).

21 4

agua, páos e hervas, e que e lle João Prosse passeara e andára p ela dita terra, assim elle, com o os m oradores e povoadores que presente forão, e se houverão p or empossados, e mettidos da dita posse, sem pessôa nenhum a o contradizer...” (Traslado...). 215

A A P R O P R I AÇ Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO BRASI L C O L O N I A L

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

Os patrimónios municipais destinavam-se a garantir

livre, sem encargo nem pensão para o sesmeiro, e da mes­

renda para os conselhos, que podiam dividi-los em glebas e

ma sorte ficará a terra que se lhe houver de dar para bens

aforá-las aos m oradores. N o Brasil, e les tiveram os mais

do C onselho” (R ecife, 1955).

variados tamanhos. As Ordenações eram mudas a esse res­

Os patrimónios municipais foram muitas vezes chama­

peito, e a diversidade de situações foi grande. Salvador, p o r

dos de “ rossio da vila”, de “ rossio d o conselho” ou de “ rossio

exem plo, recebeu três léguas ao longo d o mar, nos lim ites

da Câmara” . É necessário, entretanto, ficar atento às arma­

d o term o da cidade (R u y , 1953: 58). São Paulo, ao que tu­

dilhas que o term o “ rossio” contém, pois ele tanto podia sig­

d o indica, teve m eia légua em quadra (Inform ação...).

nificar a sesmaria dada à res pu blica (isto é, às terras do

M e m de Sá deu ao R io de Janeiro duas léguas em quadra.

C on selho), com o referir-se àquelas terras que em Portugal

M uitos núcleos urbanos, com o Vila R ica (VASCONCELOS,

( eram denominadas de baldios, e que no Brasil ficaram mais

1956: 34) e B elém (apud MOURÃO, 1987), receberam uma légua em quadra, área que ficou conhecida mais tarde c o ­

//ijJjLfc*' .j \< , 4

conhecidas com o logradouros públicos. Situadas no termo das municipalidades, essas terras eram, entretanto, inaliená-

m o “ légua do patrim ónio” ou “ légua patrimonial” . Já a pau­

veis, pois destinavam-se à “ serventia do povo” para a pasta­

lista Cananéia teve a “ meia légua de terras [em quadra] que

gem do gado ou para a “ utilidade pública e proveito comum

se costuma dar de rossio às vilas” (ALM EIDA, 1966: 118). V i­

a toda [a] Vila, para madeira, lenha, canas e cipós, onde

la Bela da Santíssima Trindade do M ato Grosso recebeu

todos mandam buscar com o mato destinado para o bem

quatro léguas em quadra (Auto da...). Vila Boa de Goiás,

com um ” , com o consta de um antigo documento de São

p o r outro lado, tam bém recebeu um património de “ 4 lé ­

Paulo d e Piratininga (Informação...: 66 ).

guas em quadra na circunferência da vila, fazendo pião no

Terras do conselho e logradouros públicos sempre

pelourinho dela” (São Paulo, 1944). As vilas fundadas no

contaram com a defesa da Coroa. As Ordenações eram

litoral da Bahia nos fins do século X V II I tiveram tam bém os

bastante explícitas quanto a isso, cabendo aos Ouvidores,

mais variados patrimónios, predominando em algumas a

em suas correições (auditorias) periódicas, verificar se am­

“ légua patrimonial” , e sendo doadas a outras quatro léguas

bos estavam bem utilizados e protegidos. N ão foram pou­

em quadra (FREIRE, 1906).

cas as admoestações feitas p o r eles às Câmaras Municipais

C om o progredir do povoamento, a C oroa preocu­

para que cuidassem m elhor de seus patrimónios e im pedis­

pou-se em garantir terras para as vilas que ainda seriam

sem a apropriação indébita dos baldios, notadamente da­

criadas. Passou-se então a incluir nas cartas de sesmaria, a

queles destinados à engorda d o gado destinado à com ercia­

partir do início do século X V III, a cláusula de que se E l-

lização ou ao abate (as invem adas).

R e i decidisse “ fundar naqueles distritos alguma vila, o poderia mandar fazer, ficando a terra em que se fundar 216

217

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO BRA S I L C O L O N I A L

Costa P orto (1965: 96) indica que, em Pernambuco,

A s sesm arias d e chãos

os exem plos dessa isenção são vários: “ quando fazem doa­ Além das sesmarias de terras dadas a particulares

ção d e ‘chão’, as cartas ou adotam a linguagem genérica do

para fazer lavouras e criar gado, e das sesmarias dadas aos

‘livre, foro [fo rro ] e isento’, ou declaram, expressamente,

conselhos para patrim ónio municipal, os representantes da

qu e a doação é ‘isenta do dízim o de D eus’, ou com isenção,

C oroa (donatários, governadores, capitães-mores etc.) doa­

‘p o r não ser para cultivar’, ou ‘visto serem para edificar’ .”

ram também um outro tipo de sesmaria no Brasil colonial.

N ã o é certo que a mesma prática tenha ocorrido em todas

Trata-se das sesmarias de chãos, ou seja, da doação d e solo

as outras capitanias. N o R io de Janeiro, as poucas cartas.de

aos moradores dos núcleos urbanos para que ah construís­

doação que resistiram ao tem po reproduzem o que as

sem suas casas d e moradia e quintais.

O rdenações exigiam para as concessões de sesmarias de

M uito pouco se sabe hoje dessas doações urbanas p ri­

terras, isto é, determ inam o pagam ento do dízim o. Toda­

mordiais; seus registros, hoje na m aior parte perdidos,

via, os chãos destinavam-se à construção de residência e à

foram geralmente desprezados pelos historiadores do pas­

produção de quintal, de uso dom éstico, e jamais foram eles

sado (P iz a r r o e A r a ú j o , 1900; Jo f f i l y , 1893; F r e i r e ,

sujeitos ao tributo.

1906). Preocupados em registrar as sesmarias de terras, um esforço louvável, eles acabaram deixando de lado “ as cartas dos pequenos chãos para casas, distribuídos no perím etro urbano, tão importantes para a localização das moradas dos primeiros habitantes da cidade e para a história de nossos logradouros” (Arquivo Nacional, 1967: vi). A o contrário das sesmarias de terras, as doações de chãos não estavam sujeitas ao dízim o. C om o já visto, o d ízi­ m o se aplicava, não sobre o solo, mas sobre a produção, in ­ cidindo, assim, não sobre o m orador na qualidade de p ro ­ prietário, mas sobre o cristão, que sendo o único habilitado a receber terras de sesmaria, era então obrigado a concor­ rer financeiramente para o esforço de propagação da fé.



A doação de sesmarias de chãos com plexificou bas­

tante o panorama territorial dos núcleos urbanos coloniais. A lé m de não estarem sujeitas ao pagamento do dízim o, essas terras, p or serem alodiais, também estavam isentas de qualquer tributo municipal, ainda que ocupassem as áreas mais centrais (e valorizadas) das cidades e vilas. C om o correr da colonização, e procurando aumentar as suas rendas, não foram poucos os governos locais que tentaram im p or foros a esses chãos alodiais, o que deu origem a inú­ meras demandas judiciais. Graças a elas, podem os recupe­ rar, hoje, diversas informações sobre o Brasil urbano do passado.

P o r isso, só estavam sujeitas ao pagam ento do dízim o as terras destinadas à agricultura e à pecuária, ficando livres do tributo os chãos dados para moradia. 218

2 19

y

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I T Ó R I O NO BRASIL C O L O N I A L

A alienação da propriedade territorial

terra, isto p o d e parecer uma incongruência. Há, entretan­ to, uma racionalidade bastante clara nessas transações. As

F o i através do sistema sesmarial que se teve acesso

doaçoes d e sesmarias, bastante generosas, faziam-se sempre

legal à terra no Brasil Colónia. Cumpridas as exigências,

a partir d e um determ inado ponto d e comando do território

ficavam os proprietários de terras livres para fazer delas o

(um a vila ou uma cidade). P o r essa razão, a fronteira entre

que b em quisessem. Variando na forma, os docum entos de

as terras já concedidas e as que ainda estavam disponíveis

doação eram explícitos quanto a esse direito: "... e para sua

para doação foi rapidamente se afastando dos núcleos de

guarda e segurança lhes m andou ser fe ita esta C a rta pela

colonização. C o m o para garantir a doação bastava p ôr em

qu a l manda que eles hajam a posse e senhorio da d ita terra

produção um a p a rte da terra recebida, logo ficou claro que

para sem pre, para eles e todos seus herdeiros e sucessores,

terra virgem não era sinónimo de terra disponível, e esta é a

ascendentes e descendentes...” (A rqu ivo Nacional, 1967). A

razao pela qual muitas cartas de sesmaria estatuíam que,

alienação das propriedades variou, entretanto, em função

em sendo a terra solicitada já concedida, “ corresse adiante” ,

de quem era o beneficiário original.

ou seja, que fossem doadas as terras seguintes.

( g j A form a mais comum de alienação das sesmarias da­

Resultou dai que, já no século X V I, o acesso k terra se

das a particulares foi a partilha pelos herdeiros. Muitas en­

tom ou difícil a muitos colonos recém-chegados. M esm o que

tretanto passaram de mão por dote de casam ento ou por

tivessem recursos materiais para solicitar sesmarias, as terras

legados pios, isto é, por doações feitas à Igreja e às ordens

disponíveis já se situavam longe dos portos ou muito perto

religiosas, que se com prometiam , em contrapartida, a cum ­

do gentio hostil. Surgiu daí o paradoxo do aparecimento de

prir diversas obrigações p ost-m ortem aos doadores, com o

um ativo m ercado de terras junto aos centros de povoamen­

dar-lhes sepultura em recinto sagrado, oficiar capelas de

to, com os sesmeiros mais antigos vendendo ou arrendando

missas (50 missas) por suas almas etc. E m terras de en ge­

suas cobiçadas terras àqueles que chegaram depois.

nho, foi comum a alienação por enfiteuse, utilizando-se a

As sesmarias concedidas às ordens religiosas e às

tarefa (30 braças em quadra, ou 4.356 m2) com o m edida de

câmaras municipais seguiram um outro processo: aí predo­

referência para a transferência do dom ínio útil. E m bora

m inou a alienação p o r enfiteuse, variando, entretanto, o

mais raro, foram instituídos também alguns m orgados, for­

prazo de cessão d o dom ínio útil. E m muitos casos optou-se

ma jurídica segundo a qual o proprietário assegurava a

p e lo fa teu sim p e rp é tu o ,4 ou seja, pela transferência do *

transferência das terras apenas ao filho mais velho, evitan­ do assim o seu retalhamento. A venda e o arrendamento tam bém se verificaram desde o início da colonização. Dada a existência d e tanta 220

* Variadas são as formas pelas quais o contrato enfitêutico em perpetuidade apa­ rece nos documentos d e arquivo. A s seguintes denotações foram encontradas em nossa pesquisa:

fateosim,

fatoesim, fatoizim, fatuizem,

221

fatuizim, factuizim.

E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S

A A P R OP R I A Ç Ã O DO T E R R I T Ó R I O NO B R A S I L C O L O N I A L

dom ínio indireto para sempre, beneficiando o fo reiro e

espécie d e im posto de transmissão. Os aforamentos p o r

todos os seus herdeiros. M uitos aforamentos, entretanto,

prazo lim itado continham, p or sua vez, uma cláusula im ­

foram feitos p or tem po determ inado, limitando-se o prazo

portante: em bora determ inando que o dom ínio útil rever­

em vidas (por exem plo, em 3 vidas, o que incluía a vida do

teria ao aforador ao fim do contrato, garantia-se ao foreiro

foreiro original e as de dois de seus herdeiros) ou em anos

qu e quisesse renová-lo a precedência sobre quaisquer ou­

(sendo comum aqui o aforam ento p or nove anos ou seus

tros pretendentes (o d ire ito de preem p çã o).

múltiplos). Este últim o tipo de aforam ento tinha a vanta­

Am bos os contratos continham, finalm ente, outra

gem de perm itir que o detentor do dom ínio direto optasse

cláusula importante: proibia-se o desm em bram ento das

p or reaver o dom ínio útil da terra ao fim do contrato,

terras durante a sua vigência. Esta condição, imposta pelas

pagando, entretanto, pelas benfeitorias nela realizadas p e lo

O rdenações aos contratos enfitêuticos, determ inava ainda

foreiro.

que, no caso de m orte d o foreiro, todas as terras passariam

Independente d o tem po de cessão do domínio- útil, o

a um só herdeiro, exigência que hoje se revela preciosa aos

diplom a enfitêutico era perm eado de condições que lim ita­

pesquisadores, que p od em assim tentar recuperar (existin­

vam a ação dos foreiros, ainda que nem sem pre tenham si­

d o ainda a docum entação) os antigos lim ites territoriais da

do elas rigidamente obedecidas. Estatuía-se sem pre a anu­

colónia.

lação do contrato se o foro deixasse de ser pago p o r três anos consecutivos, perdendo então o foreiro não apenas as terras, mas tam bém as benfeitorias nelas realizadas. Proibia-se ainda ao foreiro vender, traspassar, dar ou escambar

Controles, descontroles e “brechas” da apropriação territorial

as terras sem o consentimento do proprietário direto. T o ­ davia, concordando este últim o com a transação, uma nova carta deveria ser expedida ao novo foreiro.

Caracterizado, desde o início, pela im ensidão das g le ­ bas concedidas e pela im precisão de seus lim ites, era inevi­

O contrato em perpetuidade não isentava o foreiro,

tável qu e o processo d e apropriação das terras brasileiras

cada vez que alienasse o dom ínio útil das terras, de pagar

acabasse dando origem , com o tem po, a uma série de

ao senhorio direto um tributo de 2,5% sobre o valor da

conflitos.

venda. Era o laudêm io, ou laudêm io da quarentena, uma

Os posseiros surgiram desde o início. N ã o tendo aces­ so a terras gratuitas a não ser a grandes distâncias dos núcleos de povoam ento, muitos sesmeiros potenciais sim­

factiiozim, fauteusim, fetuizim, fetulzin, fatíosim, fatíosiom, fatiozam, fateo sim, fateum sine, phateosim, phateozim, phateusim, phatoesim, infatuizi, infituizi, enfittoizim, enfiteusim, emphiteuti, infatíota.

222

plesm ente optaram p o r ocupar porções não aproveitadas de sesmarias já concedidas. Alguns deles, ricos e podero223

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

sos, conseguiram inclusive ob ter legalm ente essas terras,

mais extensa que a m etrópole, fracam ente povoada, sujeita

tom ando letra morta a cláusula sesmarial de que a doação

a um processo d e exploração de terras grandemente preda­

só era válida “ não tendo sido já dada a terra a outrem ” . As im precisões das cartas d e sesmaria tam bém facili­ taram bastante a eclosão de disputas fundiárias. O uso de

f.

v) p '/ v?0 ' V*1

A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO B RA S I L C O L O N I A L

tório, d ifícil de ser fiscalizada e, portanto, pouco enquadráv e l aos controles administrativos que vigoravam no Reino. Tentando retom ar as rédeas do processo de colonização,

marcos qu e não tinham perenidade era com um ( “ uma pal­

que lhe fugia das mãos, o governo português passou então

m eira que está em cim a d o outeiro” , p or exem plo), não

a intervir cada v e z mais nos assuntos territoriais brasileiros.

sendo rara a ausência total d e qualquer identificação preci-

Sucederam-se então as cartas régias, as disposições, as p ro ­

sa (umas terras atrás da Serra da Boa Vista, p o r exem plo).

visões, os alvarás, os avisos e os decretos, que tentaram dis­

Adem ais, as sesmarias eram doadas “em quadra” , “ com o se

ciplinar, às vezes d e form a contraditória, a concessão de

o solo, onde se as devia dem arcar fosse uma superfície

sesmarias no Brasil.

^ r e g u la r , plana, horizontal, desataviada de acidentes geográ-

A legislação específica com eça a surgir em 1695,

ficos, sem relevo de qualquer espécie” (FERREIRA, 1979:

quando a Carta R égia de 27 de dezem bro ordenou ao Go-

45). Resultou daí que muitas doações acabaram se inserin­

vem ad or-G eral que “ às pessoas, a quem se der de futuro,

do umas nas outras, gerando as mais diversas tensões.

sesmarias, se imponha, além da obrigação do dízim o e as

Nas áreas urbanas tam bém eclodiram conflitos, seja

mais costumadas, a de um foro, segundo a grandeza ou

pela apropriação indébita das terras públicas, seja devido à

bondade da terra” . C om o o foro “ não incidia sobre a pro­

ocupação crescente dos terrenos localizados à beira do m ar

dução, mas sobre as terras (ao contrário do dízimo), com ­

ou dos rios navegáveis, que causava em pecilhos à defesa

preende-se que um dos objetivos visados pela m etrópole

das cidades e vilas e ao transporte de mercadorias. Sur­

era desestimular sesmeiros a m anterem sob seu dom ínio

gidos os conflitos, e dada a extrem a centralização do pro­

terras im produtivas” (SILVA, 1990:1, 53).

cesso decisório que caracterizou a colonização portuguesa

A ordem , entretanto, era polêm ica. Para C im e Lim a

no ultramar, a interferência da M etróp ole acabou quase

(1954: 38), a diretiva “ envolvia uma transformação com ple­

sempre sendo necessária.

ta da situação jurídica d o solo colonial... e inaugurava, en­ tre nós, o regim e dominialista” . Para Freire (1906: 137), p o r outro lado, ela transformava os sesmeiros em enfiteu­

Controles im postos às sesm arias de terras

tas d o Estado. Indepen den te dessas filigranas jurídicas, o fato é que a resistência dos colonos foi grande, as consultas

N o final do século X V II, a C oroa reconheceu os tra­

ao C onselho Ultram arino se sucederam, e estas parecem

ços singulares de sua principal colónia, incom paravelm ente

te r sido as razões pelas quais a le i “ não pegou” de imediato

224

225

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO B R A S I L C O L O N I A L

em toda parte: a não ser em Pernambuco, onde as cartas

ses que demarcassem as terras antes d e tom ar posse delas.

de doação incluem essa cláusula já a partir de 1699 (R e ­

O Alvará d e 3 de maio de 1795, p or sua vez, tentou conso­

cife: 1954), nas demais capitanias isso só ocorreu bem mais

lidar todas essas determ inações num único diplom a, e

tarde. N ão há com o negar, entretanto, que a Carta d e 1695

introduziu o e feito retroativo: quem não cumprisse o esta­

foi o passo inicial do desligam ento do sesmarialismo brasi­

b elecid o perdia a sesmaria. Esse alvará, qu e tam bém d e­

leiro do texto das Ordenações (C l R N E L I M A , 1954: 39).

term inava que o dom ínio pleno das terras só ocorria após a

Esse não cum prim ento de uma ordem real não d eve

sua demarcação e confirm ação real, acabou entretanto sen­

causar espanto. A legislação colonial era dispersa e se pau­

d o suspenso sine d ie p elo alvará de 10 de dezem b ro de

tou pela inconstância. Pela m esm a Carta R égia de 1695,

1796, devido aos “ embaraços e inconvenientes que podem

por exemplo, a M etróp ole fixou lim ites às sesmarias, d eter­

resultar da [sua] im ediata execução” (COSTA PORTO, 1965:

minando que não se concedesse “ a cada m orador mais de

137-141).

quatro léguas de com prim ento, e uma de largo” . Todavia,

P o r ser a legislação bastante avulsa, consistindo de

logo a seguir, a Carta R égia de 7 d e dezem bro de 1697 e a

normas e providências que se aplicavam às vezes a uma

Provisão de 20 de janeiro de 1699 reduziram esse lim ite

única capitania, às vezes sobre todas elas ,5 C im e Lim a

para três léguas de com prido e uma de largo, ou légua e

(1954: 39) considerou que, à prim eira vista, era difícil cha­

m eia em quadra, “que é o que se entende p ode uma pes­

m ar o estatuto da sesmaria de estatuto, concluindo, entre­

soa cultivar no term o da L ei, porque o mais é im pedir que

tanto, que essa denom inação não lhe era descabida. Isto

os outros povoem ...” . Esse patamar foi novamente aum en­

não quer dizer, entretanto, que as diretivas reais tenham

tado pela Carta R égia de 12 de janeiro de 1701, que trata

sido sem pre seguidas. Com pulsoriam ente incluídas nas

de doações no R io Grande do N orte, para “ quatro léguas

cartas de doação, as ordens régias nem sem pre eram rigi­

de comprido e uma de largo, ou duas em quadra, que é o

dam ente cumpridas. Ademais, algumas condições, com o a

que comodamente pode povoar cada m orador” . A provisão

obrigatoriedade de m edição e de confirm ação régia, im pli­

de 19 de maio de 1729, entretanto, determ inou que “ as

cavam altos gastos p or parte dos sesmeiros, qu e as poster­

sesmarias não devem exceder a três léguas de com prido e uma de largo” (Fragmentos...: 96-97). Outra im portante decisão foi a obrigatoriedade de confirmação régia da doação para a garantia da proprieda­

5 H o u v e diversas legislações específicas. A partir de 1697, as cartas de sesmaria concedidas em algumas capitanias passaram a incluir a cláusula de ficarem as madeiras nobres (tapinhoães e perobas) reservadas para o real serviço, proibindose o seu corte. P o r isso foram posteriormente chamadas d e m adeiras-de-lei. A

de plena, introduzida pela Carta R égia de 23 de novem bro

carta régia de 1711, po r outro lado, limitou as dadas de terras situadas junto aos

de 1698, endereçada ao governador do R io de Janeiro.

caminhos abertos para as minas gerais em um a légua em quadra. Provisão passa­

L o g o a seguir, exigiu-se tam bém dos sesmeiros flum inen­

nuiu entretanto esse limite para m eia légua em quadra.

22 6

d a ao G overn ador do Rio de Janeiro, Lu iz Vahia Monteiro, em 15/3/1731, dimi­

22 7

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I T Ó R I O N 0 BRASI L C O L O N I A L

gavam o mais que podiam , ou m esm o descumpriam-nas.

reconheceu as sesmarias antigas, ratificou formalmente o

C om o b em lem brou Silva (1990, I: 82),

regim e das posses, e instituiu a com pra com o a única for­ m a de obtenção d e terras. Só em 1854, entretanto, é que

“ a M etró p ole insistia em considerar o assunto apenas

essa lei foi regulam entada (SILVA, 1990).

do ponto de vista jurídico, sem atentar para as con di­ ções socioeconôm icas da colónia, que haviam gerado aquele padrão de ocupação territorial. N a realidade subestimaram a força social dos moradores e colonos

C ontroles sobre as propriedades das ordens religiosas

que cada v e z mais se afirmavam com o os donos da terra. A m etrópole tam bém não atentou para o fato

Grandes parceiras do processo colonizador, as ordens

de que a multiplicação das exigências para legalizar as

religiosas regulares receberam diversas sesmarias no Brasil.

propriedades dos colonos sesmeiros, e a sua resistên­

D e início, as terras concedidas às “ religiões” , com o eram

cia em obedecê-las, estabeleciam cada vez mais um

então conhecidas, estavam sujeitas ao dízimo. Logo, entre­

cam po de interesse com um entre uma parcela dos

tanto, isso mudou. Os jesuítas foram dispensados do tribu­

colonos sesmeiros e os colonos posseiros. Interesse

to p o r breve d e Sisto V já no final d o século X V I (L iv ro de

com um que desafiava a autoridade da m etrópole” .

Tom bo..: 348). Beneditinos e carmelitas, ao que parece, jam ais obtiveram esse privilégio, mas passaram também a

O sistema sesmarial perdurou no Brasil até 17 de

demandá-lo, ou recusaram-se m esm o a pagar o dízimo,

julho de 1822, quando a Resolução 76, atribuída a José B o ­

alegando que a sua cobrança servia para financiar o esforço

nifácio d e Andrada e Silva, pôs term o a esse regim e de

d e propagação da fé católica, e este era, pelo menos em

apropriação de terras. Segundo Smith (1990: 284, 304), “ a

tese, o objetivo da vinda das corporações religiosas ao

m edida suspensiva de doação de sesmarias... encontrava-se

Brasil.

inserida numa simples sentença de concessão d e terra,

C om o tem po, o patrim ónio territorial dos conventos e

onde, em continuidade, um adendo declarava laconicamen-

mosteiros com eçou a crescer bastante, seja por compra ou,

te a suspensão, a partir daquela data, de todas as concessões

o que foi mais com um , graças aos legados pios. Mesm o

futuras de sesmarias, até a convocação da Assembléia G eral

ob ten do rendas crescentes de suas propriedades, as corpo­

Constituinte” .

rações resistiam ao pagam ento d o dízim o, em claro prejuízo

A partir daí a posse passou a cam pear livrem ente no

da Fazenda Real. Relatando esta situação, assim se expres­

país, estendendo-se essa situação até a promulgação da L e i

sava “ um contem porâneo muito bem informado” do final

de Terras (L e i n.° 601, de 18 de setem bro de 1850), que

d o século X V II, com o o qualificou Capistrano de Abreu:

228

229

E X P L O R A Ç Õ E S G E O G R Á F I CA S

A A P ROP RI A Ç Ã O DO T E R R I T Ó R I O N 0 B R A S I L C O L O N I A L

“ Das fazendas, terras, lavouras e propriedades possuí­

“ Porquanto o passarem os bens foreiros para Religião,

das das Religiões nem Sua Majestade tem tributos,

ou outras comunidades que nunca morrem , e raras

nem subsídios, nem dízimos, nem as misericórdias,

vezes alheiam, é em grande prejuízo, assim dos foros

nem os hospitais, nem as sés, nem as matrizes e mais

em vida, pela falta de renovação, e d e quaisquer, pela

igrejas, nem as confrarias e irmandades, nem as p o ­

diminuição dos laudêmios, ordenou que sendo caso

bres órfas e viúvas têm esm ola alguma: só são úteis às

que daqui por diante se aforem ou renove alguma pro­

Religiões que as possuem e não a outra pessoa algu­

priedade, se lhe ponha expressa condição de não pas­

ma... Anualmente vão indo às Religiões muitas p ro ­

sarem as ditas... a comunidades que chamam recair em

priedades, terras, fazendas, ou por compras, ou p or

mão ou cabeça morta...” (TOURINHO, 1931: 16).

deixa, ou por herança, ou p o r demanda d e pretensões de 60, 70, 80, 90 e 100 anos, as quais em p od er dos vassalos seculares eram sujeitas a dízimos, tributos e

Essa diretiva acabou se aplicando, logo a seguir, a

mais pensões e, incorporadas em religiões, ficam

todas as terras dadas de sesmaria. Pela Carta Régia de 27

isentas.” (apud COSTA PORTO, 1965: 107-108)

de junho d e 1711, ordenou o R ei que nelas não sucedessem religiões por nenhum título, e, se isso acontecesse, que fos­

Preocupada com o crescente poderio das ordens reli­

se com o encargo do pagamento do dízim o (Fragm entos:

giosas, e atendendo às reclamações dos contratadores dos

103-104). O cerco atingiu seu clímax em 1759, quando D.

dízimos e das câmaras municipais, a C oroa decidiu então

José I aboliu a Companhia de Jesus de todos os seus dom í­

vigiar mais de perto as “ religiões” . As crises económicas do

nios e ordenou o confisco de seus bens, o que fe z reverter à

final do século X V II, ao exigirem do Estado um redobrado

C oroa o imenso património fundiário que os jesuítas

esforço arrecadador, atuaram tam bém nessa direção. M os­

haviam amealhado no Brasil desde o início da colonização,

teiros e conventos foram então obrigados a apresentar se­ guidas relações dos rendimentos de suas fazendas, en ge­ nhos, currais, e roças, para que o dízim o fosse cobrado (Segundo Livro do Tombo: xxi). N o século X V III o cerco se intensificou ainda mais. Tentando evitar que as rendas municipais fossem dim inuí­ das por legados pios feitos às com unidades de m ã o-m orta ,

grande parte do qual foi logo vendida a particulares. Poupadas dessa decisão extrema, as demais ordens religiosas não escaparam entretanto do cerco do Estado. As requisições de relações detalhadas d e propriedades não só continuaram, com o foram seguidas, v e z por outra, de ordens expressas para que alienassem bens de raiz, doando

os ouvidores da Coroa passaram a im pedir que isso viesse a

o dinheiro obtido à C oroa ou em prestando-o a juros favo­

ocorrer, com o bem demonstra o auto da correição ocorrida

ráveis. A Independência não diminuiu a pressão sobre os

no R io de Janeiro em 1710:

bens das “religiões” . Proibidas de aceitar noviços para que 230

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I TÓ R I O NO BRA S I L C O L O N I A L

não se expandissem, as ordens religiosas foram tam bém

à terra. Os que possuíam recursos puderam adquirir ou

com pelidas p elo G overno Im perial a desamortizar seus

aforar antigas sesmarias ou partes delas. Grande parte,

bens de raiz, que diminuíram bastante. F o i só com a pro­

entretanto, acabou se transformando em meeiros, rendei­

clamação da República, e com a consequente separação da

ros, ou simples “agregados” dos proprietários rurais, for­

Igreja do Estado, que lhes foi dada plena liberdade para,

m ando toda uma classe de pobres livres que habitava o

com o sociedades anónimas, administrar seus bens, receb er

cam po, mas que não tinha bens de raiz.

novamente noviços, e gerir, enfim , seu próprio destino (Segundo L iv ro do Tom bo: xxv-xxxi).

A im portância dessa população não-proprietária para o setor produtivo era, entretanto, bastante grande, e é por isso qu e os patrimónios religiosos foram surgindo por toda a colónia. Eram glebas cedidas por um ou vários proprietá­

I

rios fundiários para que os trabalhadores sem terra pudes­

O s 'p a trim ó n io s re lig io s o s

sem ah fixar residência. A cessão, entretanto, não se fazia Concomitante ao crescente controle do Estado sobre

diretam ente a eles. O beneficiário era sempre o orago de

as ordens religiosas, floresceu no Brasil do passado um ou­

uma capela já existente ou que se queria erigir no local,

tro tipo d e apropriação territorial que teve na Igreja um im ­

cabendo à Igreja, em nom e do padroeiro, administrar esse

portante ponto de apoio. Trata-se dos pa trim ónios re lig io ­

p a trim ó n io . Para tanto, era comum a instituição de uma

sos, verdadeiras “ brechas” d o e no sistema sesmarial, com o

irmandade, que aforava então aos colonos as terras recebi­

bem os definiu M urillo Marx (1991: 41). Vários autores já os

das. Garantia-se assim uma renda regular à capela, condi­

discutiram com petentem ente (MORAES, 1935; DEFFONTAI-

ção que o ju ízo eclesiástico impunha para que os serviços

NES, 1944; AZEVEDO, 1957; MARX, 1991).

religiosos pudessem ser oferecidos com a regularidade e

C om o já visto, o progredir da colonização interiorizou

decên cia exigidas pelas leis canónicas.

rapidamente a apropriação de ju r e do território. Todavia, a

' $ > Para os proprietários fundiários, a instituição de um

expansão d o povoam ento sobre as terras concedidas de

patrim ónio religioso era vantajosa: pela cessão de uma p e ­

sesmaria, isto é, a sua apropriação de fa c to , acabou sendo

quena porção de terra garantiam a presença, no local, de

mais lenta. D e um lado, as glebas tendiam a ser grandes

uma população gregária que lhe era bastante dependente,

demais; de outro, e salvo as exceções dos ricos sesmeiros, o

notadam ente para a obtenção de trabalho. Para os colonos,

seu aproveitamento integral implicava despesas elevadas

p or sua vez, a obtenção d e um chão, p or menor que fosse,

(notadamente em escravos), que a maioria não tinha com o

significava ter acesso à terra. D a repartição desses patrimó­

fazer. Muitos colonos acabaram também não tendo acesso

nios surgiram, portanto, pequenos arraiais, alguns dos quais

232

233

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS

A A P R O P R I A Ç Ã O DO T E R R I T Ó R I O N'0 B R A S I L C O L O N I A L

prosperaram e tom aram -se freguesias. M uitos foram mais

e que, para a construção, reclam avam pesados e custosos

tarde elevados à categoria de vilas .6

serviços d e aterro e de drenagem . C o m o p rogred ir do p o ­

i

voam ento, entretanto, esse ecossistem a assumiu uma im ­

Os patrimónios religiosos não foram uma peculiarida­

portância vital para a econom ia colonial.

de do período colonial. C om o mostrou M o n b e ig (1984), a expansão do café p elo oeste paulista e p e lo norte d o

is

Im prestáveis para a construção, os terrenos d e man­

Paraná, em pleno século XX, se apoiou fortem en te nesses

gue forneciam , entretanto, uma excelente m adeira para

patrimónios, que deram origem a um sem-número d e

encaibrar as edificações, e, d e sua casca, rica em tanino,

núcleos urbanos. A partir d e meados do século X IX , entre­

serviam-se os curtidores, razão p ela qual era conhecida

tanto, passou a ser mais com um o estabelecim ento d e

com o m angue verm elh o, ou m angue de sapateiro. E ra tam-

pa trim ónios leigos, isto é, de glebas que eram reservadas

b é m nos mangues que os fogões dom ésticos e as fornalhas

em loteamentos rurais feitos por indivíduos ou p or socieda­

dos engenhos e caieiras preferen cialm ente se abasteciam

des imobiliárias. A í eram construídas edificações destina­

d e lenha. Os manguezais alimentavam, ademais, m ultidões

das à administração ou ao com ércio, que se constituíram,

d e crustáceos, que desde cedo constituíram-se em com p le­

p o r sua vez, em em briões d e outros tantos núcleos urbanos

m en to essencial da dieta alim entar das populações mais

d o país.

pobres. Incluídos nas glebas distribuídas de sesmaria, os man­ gues, p o r suas diversas utilizações, ced o tomaram -se palco d e conflitos. O prim eiro d e que se tem notícia ocorreu no

O s terre n os d e m a rin h a

R io d e Janeiro em 1647 e envolveu a Com panhia d e Jesus. Com o lembrou Costa Porto (1965: 161), sobrando ter­

D onos d e grande sesmaria às margens da baía d e Gua­

ra firm e por toda parte nos com eços da colonização para la­

nabara, os jesuítas passaram a im p ed ir que a população se

vouras e edificações, ninguém iria se interessar pelos man-

utilizasse dos mangues aí existentes, o que levou a Câmara

guezais, terrenos alagadiços imprestáveis para a agricultura

a se dirigir diretam ente ao R ei, argumentando que “ os mangues e salgado eram livres” e que sobre essa questão já havia “ algumas sentenças, que foram dadas em a form a dos

6 N o te-se que nas regiões q ue ainda estavam sendo povoadas, e onde ainda esta­ vam sendo concedidas sesmarias, era o próprio E stado q u e instituía um patrim ó­

forais” (Prefeitura..., 1935: 137). Apelava-se, ademais, às

nio. Diversos sâo os casos de concessão d e sesmarias para “património da Igreja

Ordenações, que definiam que todos os rios navegáveis e

M atriz”, que tendiam a ser b em maiores q u e os patrimónios religiosos instituídos

portos d e mar eram propriedade real (O . M ., L iv ro II,

p o r particulares. A instituição d a freguesia de Guaratuba, Paraná, foi acom panha­ d a d e um património de meia légu a em quadra. O “registro d e Curitiba", p o r sua vez, recebeu uma légua em quadra. Já os “C am pos das Lages” foram agraciados com duas léguas e meia em quadra (São Paulo...).

234

T ítu lo X V ). E m 1677, novo incidente ocorreu com os jesuítas do

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