Existencialismo ou Marxismo


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Table of contents :
Apresentação do Tradutor
Nota do Autor
Introdução
A Crise da Filosofia Burguesa
1. O pensamento fetichizado e a realidade
2. A evolução do pensamento burguês
3. A filosofia do imperialismo
4. A pseudo-objetividade
5. O “terceiro caminho” e o mito
6. Intuição e irracionalismo
7. Os sintomas da crise
Da Fenomenologia ao Existencialismo
l. O método enquanto comportamento
2. O mito do nada
3. O mundo fetichizado e o fetiche da liberdade
O Impasse da Moral Existencialista
1. A situação histórica do existencialismo
2. Moral da intenção e moral do resultado
3. Sartre contra Marx
4. A moral da ambiguidade e a ambiguidade da moral existencialista
5. A ética existencialista e a responsabilidade histórica
A Teoria Leninista do Conhecimento e os Problemas da Filosofia Moderna
1. A atualidade ideológica do materialismo filosófico
2. Materialismo e dialética
3. Significação dialética da aproximação na teoria do conhecimento
4. Totalidade e causalidade
5. O sujeito do conhecimento e ação prática
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Existencialismo ou Marxismo

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EXISTENCIALISMO OU MARXISMO

Gy¨orgy Luk´acs

2

´Indice Apresenta¸c˜ ao do Tradutor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Nota do Autor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Introdu¸c˜ ao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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A Crise da Filosofia Burguesa 1. O pensamento fetichizado e a realidade 2. A evolu¸c˜ ao do pensamento burguˆes . . 3. A filosofia do imperialismo . . . . . . . 4. A pseudo-objetividade . . . . . . . . . 5. O “terceiro caminho” e o mito . . . . . 6. Intui¸c˜ ao e irracionalismo . . . . . . . . 7. Os sintomas da crise . . . . . . . . . .

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17 18 20 25 28 31 34 38

II Da Fenomenologia ao Existencialismo l. O m´etodo enquanto comportamento . . . . . . . . . . . . . . . 2. O mito do nada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3. O mundo fetichizado e o fetiche da liberdade . . . . . . . . . .

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I

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III O Impasse da Moral Existencialista 67 1. A situa¸c˜ ao hist´ orica do existencialismo . . . . . . . . . . . . . 67 2. Moral da inten¸c˜ ao e moral do resultado . . . . . . . . . . . . . 73 3. Sartre contra Marx . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79 4. A moral da ambiguidade e a ambiguidade da moral existencialista 89 5. A ´etica existencialista e a responsabilidade hist´orica . . . . . . 108 3

IV A Teoria Leninista do Conhecimento e os Problemas da Filosofia Moderna 137 1. A atualidade ideol´ ogica do materialismo filos´ofico . . . . . . . 137 2. Materialismo e dial´etica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145 3. Significa¸c˜ ao dial´etica da aproxima¸c˜ao na teoria do conhecimento151 4. Totalidade e causalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157 5. O sujeito do conhecimento e a¸c˜ ao pr´atica . . . . . . . . . . . . 162

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Apresenta¸ c˜ ao do Tradutor

´ sem d´ E uvida na Fran¸ca que se tˆem mostrado mais ricas e complexas as rela¸c˜ oes entre as duas filosofias mais representativas dos problemas humanos de nossa ´epoca. Os existencialistas sempre fizeram quest˜ao de tomar posi¸c˜ ao em rela¸c˜ ao ao marxismo (aproximando-se ou afastando-se dele), at´e chegar, em Sartre, a um determinado tipo de ades˜ao expl´ıcita, enquanto, por outro lado, os pr´ oprios marxistas nunca se furtaram ao debate e sempre procuraram “conquistar” os existencialistas, principalmente ap´ os o XX Congresso. Mas at´e onde realmente pode o existencialismo filiar-se ao marxismo? Essa quest˜ ao permite dois n´ıveis de resposta: do ponto de vista pr´atico, as posi¸c˜ oes do existencialismo francˆes, enquanto atitudes pol´ıticas concretas, s˜ ao inegavelmente progressistas e democr´ aticas – e existem numerosos exemplos disso, desde a Resistˆencia at´e hoje; mas do ponto de vista te´orico ´e poss´ıvel a sua, para n˜ ao dizer integra¸c˜ ao, aproxima¸c˜ao? Sartre ´e dos que dizem sim, Luk´ acs um dos primeiros a dizer n˜ ao. Na Cr´ıtica da Raz˜ ao Dial´etica, Sartre acusa o marxismo atual, seus representantes franceses, – e chega a nomear tamb´em Luk´acs – de esclerose, de incapacidade de apreender o particular, de esquem´atico, f´acil, em suma de “idealismo”, porquanto se deixa levar antes por esquemas preconcebidos (“ideias”) gerais e abstratos, ao inv´es de proceder, pela s´ıntese de todas as media¸c˜ oes, ` a representa¸c˜ ao, como o faz Marx, do homem na sua vida concreta, do movimento de sua totaliza¸c˜ ao. Luk´ acs, por sua vez, aponta o “ser social” em que est´a apoiado o existencialismo, cujas conclus˜ oes “poderiam ser feitas por qualquer pequenoburguˆes”, mas cujo audit´ orio n˜ ao estaria apenas “entre os esnobes, mas tamb´em nos meios reacion´ arios”. Para Luk´ acs, o existencialismo francˆes est´ a definitivamente comprometido com certa camada social e mesmo aparentando ser uma ideologia democr´ atica e progressista, n˜ao se pode conciliar, sob hip´ otese alguma, com o marxismo. Ora, Quest˜ ao de M´etodo e Existencialismo ou Marxismo? s˜ao antes de mais nada escritos essencialmente polˆemicos e portanto n˜ao podemos espe5

rar de seus autores a necess´ aria imparcialidade, obrigat´oria numa an´alise rigorosamente cient´ıfica. Assim, as discuss˜oes, os ataques muitas vezes situam-se em n´ıveis diferentes, e at´e opostos. Sartre, ao exigir dos marxistas atuais instrumentos para a an´ alise de situa¸c˜oes particulares concretas, e propondo para tanto seu pr´ oprio m´etodo, que seria diretamente fundado em Marx, aponta deficiˆencias antes de mais nada metodol´ogicas. Luk´acs, ao querer apreender a significa¸c˜ ao do existencialismo como um todo, na sua generalidade e n˜ ao de cada existencialista em particular, refere-se ao conte´ udo ideol´ ogico pr´ oprio a certa camada social, num determinado momento da evolu¸c˜ ao da sociedade. Da´ı a rudeza das acusa¸c˜oes m´ utuas e a mesma certeza de falar em nome de Marx. Na hist´ oria das rela¸c˜ oes entre as duas filosofias, Luk´acs tem-se mantido mais constante que Sartre. Ali´ as, o pr´oprio Sartre reconhece que sua primeira posi¸c˜ ao continha contradi¸c˜ oes que o levaram continuamente a reformular suas ideias e se aproximar cada vez mais do marxismo. Luk´acs, inflex´ıvel, vem mantendo as cr´ıticas expostas em Existencialismo ou Marxismo?, que data de 1947. Na segunda edi¸c˜ao da tradu¸c˜ao francesa, publicada em 1960, escreve: “Imposs´ıvel dissimular que a inten¸c˜ao do meu editor de reeditar antigos estudos meus, publicados h´a mais de uma d´ecada, causa-me alguma hesita¸c˜ ao”. Mas “n˜ ao a prop´osito do fundo filos´ofico dessa pequena obra: ainda hoje mantenho minha cr´ıtica de princ´ıpio em rela¸c˜ ao ao existencialismo”. E mesmo reconhecendo que “Sartre e MerleauPonty tenham mudado fundamentalmente nesse lapso de tempo” e que os grandes processos de 1938 na R´ ussia tivessem sido “in´ uteis”, mant´em o ponto de vista de 1947, pois tais dados novos do problema “n˜ao tocam nem as bases do marxismo, nem sua oposi¸c˜ ao ao existencialismo”. O m´aximo que tais fatos novos poderiam acarretar seriam alguns resultados diferentes, no que diz respeito a certas reflex˜ oes filos´ofico-hist´oricas e ´eticas, e a certos desenvolvimentos particulares, que nunca atingiriam a essˆencia mesma da cr´ıtica. Mais recentemente, Luk´ acs, numa entrevista que concedeu a Naim Kattan, publicada em La Quinzaine Latt raire (1-12-1966), mant´em, novamente seu ponto de vista em rela¸c˜ ao ao existencialismo: “N˜ao tenho muita confian¸ca nas tendˆencias do pensamento ocidental contemporˆaneo, quer se trate de neopositivismo ou de existencialismo. Acho mais u ´til reler Arist´ oteles pela vig´esima vez.” E referindo-se especialmente a Sartre, afirma: “...´e um homem muito vivo. Passei a compreendˆe-lo bem melhor depois que li As Palavras, uma obra admir´avel, que demonstra que este 6

homem jamais teve contato com a realidade. Como fil´osofo, fez progressos depois de O Ser e o Nada, aproximando-se do marxismo. Entretanto h´a nele uma debilidade: quando a vida o obriga a mudar de ponto de vista, n˜ ao se sujeita a modific´ a-lo radicalmente e procura dar-nos uma ilus˜ao de continuidade. Em sua Cr´ıtica da Raz˜ ao Dial´etica aceita Marx, mas quer concili´ a-lo com Heidegger. A contradi¸c˜ ao ´e clara: H´a um Sartre n´ umero um no come¸co da p´ agina e um Sartre n´ umero dois no fim da mesma p´agina. Que confus˜ ao de m´etodo e de pensamento!” Assim, seu ceticismo mant´em-se de 1947 at´e hoje. Por quˆe? Por que n˜ ao lhe basta a declara¸c˜ ao de Sartre, segundo a qual o marxismo ´e a filosofia do nosso tempo, por que n˜ ao se impressiona com as posi¸c˜oes de Sartre e seus amigos durante a guerra da Arg´elia ( se bem que reconhe¸ca a sua coragem na ocasi˜ ao), por que essa desconfian¸ca mesmo quando Sartre aceita o fundamento econˆ omico da hist´ oria, a verdade da luta de classes etc. etc.? Ora, Sartre ´e um dos existencialistas e n˜ ao o existencialismo. Se reconhece como positiva a aproxima¸c˜ ao com o marxismo, isto n˜ao o impede de continuar a afirmar a oposi¸c˜ ao das duas filosofias, no seu conjunto e na sua essˆencia. Cremos que ficar´ a mais clara a posi¸c˜ ao de Luk´acs, se a leitura de Existencialismo ou Marxismo? for completada pela leitura de outra obra sua, A Destrui¸c˜ ao da Raz˜ ao, em que trata especificamente do existencialismo alem˜ ao, estudando em pormenor Heidegger e Jaspers, as fontes do existencialismo (Kierkegaard e Nietzsche), os fil´osofos que influ´ıram decisivamente para o seu aparecimento (Husserl e Scheler) e na qual ainda situa o existencialismo no quadro geral do panorama filos´ofico-cultural da ´epoca. Em suma, A Destrui¸c˜ ao da Raz˜ ao ´e a an´ alise do existencialismo alem˜ao, enquanto Existencialismo ou Marxismo? ´e a an´alise do existencialismo francˆes. Ora, Luk´ acs assinala nesta u ´ltima a diferen¸ca profunda que existe entre os dois existencialismos: o primeiro, como demonstra com detalhes em A Destrui¸c˜ ao da Raz˜ ao, ´e antes de mais nada a filosofia da pura subjetividade, do isolamento,da distˆ ancia de qualquer compromisso com a hist´ oria e a sociedade, ideologia t´ıpica dos intelectuais pequeno-burgueses do per´ıodo entre-guerras, e cuja irracionalidade muito bem se prestou para compor na assim chamada “concep¸c˜ ao nacional-socialista do mundo”. Mas o existencialismo francˆes demonstrou logo uma preocupa¸c˜ao pelos problemas sociais e pol´ıticos, tendo de se haver de imediato com o marxismo. Assim, quando se fala na polˆemica existencialismo-marxismo, ´e antes ao existencialismo francˆes que se refere, se bem que, segundo Luk´acs, o pr´oprio 7

Ser e tempo de Heidegger ´e uma obra destinada especificamente a combater o materialismo hist´ orico, mesmo que Heidegger nunca o tenha confessado. No presente trabalho, Luk´ acs, ap´ os caracterizar a filosofia burguesa de hoje como uma filosofia em crise (ensaio I), e apontar as origens metodol´ ogicas do existencialismo (ensaio II), analisa o existencialismo francˆes em particular (ensaio III), dado o seu car´ater acentuadamente pol´ıtico que o leva a se relacionar abertamente com o marxismo. E, finalmente (ensaio IV), Luk´ acs exp˜ oe os princ´ıpios norteadores de sua cr´ıtica, princ´ıpios estes que ao mesmo tempo constituem uma resposta ao seu pr´oprio Hist´ oria e Consciˆencia de Classe, cuja teoria do conhecimento considera superada. A ideia do presente livro nasceu em 1946, nos Encontros Internacionais de Genebra, em que sua interven¸c˜ ao foi particularmente not´avel nos debates que travou com Merleau-Ponty e com Jaspers. E constitui um dos textos indispens´ aveis para a elucida¸c˜ao da quest˜ao: o existencialismo ´e compat´ıvel com o marxismo? Se a recente ades˜ao de Sartre pode tentar os mais apressados a dar a sua afirmativa, n˜ao podemos esquecer, como o faz Luk´ acs, de que o existencialismo, na pessoa de seus v´arios representantes, em outras oportunidades, como em Heidegger, para citar o exemplo mais conhecido, n˜ ao s´ o ignora (ou finge ignorar) o marxismo, como o combate na pr´ atica. Desta forma, antes mesmo do aparecimento da Cr´ıtica da Raz˜ ao Dial´etica, Luk´ acs aponta como pode haver essa aproxima¸c˜ao e aparente compatibilidade: ` a custa da coerˆencia do sistema; a no¸c˜ao sartreana de liberdade sofre uma substancial modifica¸c˜ao e serve de ponte para a a¸c˜ao pol´ıtica concreta. Em suma, tanto aos existencialistas como aos marxistas, ainda hoje ´e v´ alido o desafio de Luk´ acs para resolver a quest˜ao: trata-se antes de tudo de procurar, se houver, os elementos comuns aos fundamentos te´oricos dessas duas concep¸c˜ oes do mundo. Se bem que apenas esbo¸cado, o confronto que Luk´ acs estabelece lan¸ca novas luzes sobre um problema que, por n˜ao ter ainda sido resolvido, merece toda a aten¸c˜ao e nos obriga a pesquisar as justificativas de todas as posi¸c˜ oes, e principalmente daquele que ´e considerado o maior fil´ osofo marxista do nosso s´eculo.

Jos´e Carlos Bruni 8

Nota do Autor

Imposs´ıvel dissimular que a inten¸c˜ ao de meu editor de reeditar antigos estudos meus, publicados h´ a mais de uma d´ecada, causa-me alguma hesita¸c˜ ao. N˜ ao a prop´ osito do fundo filos´ ofico desta pequena obra: ainda hoje mantenho minha cr´ıtica de princ´ıpio em rela¸c˜ao ao existencialismo. Mas, nesse meio tempo, minhas convic¸c˜ oes sobre certos fatos hist´oricos mudaram. Sei, por exemplo, depois do discurso de Kruschev, de 1956, que os grandes processos do ano 1938 foram in´ uteis. Portanto, as reflex˜oes filos´ ofico-hist´ oricas e ´eticas que, no meu livro, est˜ao ligadas a estes fatos, podem ser justas de um ponto de vista abstrato; mas os exemplos ´ evidente que essas novas concep¸c˜oes podem enhist´ oricos s˜ ao caducos. E gendrar igualmente consequˆencias flos´ oficas. Mas, sendo dado que elas n˜ao tocam nem as bases do marxismo, nem sua oposi¸c˜ao ao existencialismo, podemos deix´ a-las de lado. O mais importante ´e que Sartre e Merleau-Ponty tenham mudado fundamentalmente, nesse lapso de tempo, sua posi¸c˜ao pol´ıtica, e portanto filos´ ofica. Uma polˆemica atual levaria, sob v´ arios aspectos, a resultados diferentes. Estando muito ocupado em terminar minha obra sˆobre est´etica, n˜ao posso pensar numa transforma¸c˜ ao completa do “Existencialismo ou Marxismo?”. Ao contr´ ario, espero poder voltar ` a maioria dos problemas atuais da filosofia de Sartre, na minha obra sobre ´etica, que empreenderei ap´os ter terminado a est´etica.

Budapeste, 11 de abril de 1960. Gy¨ orgy Luk´ acs 9

Introdu¸c˜ ao

O estudo que apresentamos hoje n˜ ao tem a pretens˜ao de esgotar – nem do ponto de vista metodol´ ogico nem do ponto de vista hist´orico – os problemas que evoca. Os debates entre o materialismo dial´etico e o existencialismo tˆem lugar, em geral, num terreno muito estreito ou muito largo. Na realidade, n˜ao se trata de uma preocupa¸c˜ ao efˆemera nem tampouco de um combate filos´ofico “eterno”, se bem que numerosos s˜ ao aqueles que afirmam uma ou outra coisa. De fato, o objeto do debate ´e um problema ideol´ogico pr´oprio do est´agio do imperialismo; somente, como todos os problemas desta ordem, o nosso tamb´em remonta, quanto ` as suas origens, ao per´ıodo consecutivo `a Revolu¸c˜ ao Francesa. Num sentido mais geral, trata-se do choque de duas orienta¸c˜ oes do pensamento: de um lado, daquela que vai de Hegel a Marx, e de outro lado, daquela que liga Schelling (a partir de 1804) a Kierkegaard. Pˆ or em paralelo Marx e Kierkegaard ´e, certamente, um processo muito em moda e filosoficamente indefens´ avel, mas que se justifica por um pano de fundo muito real: a derrota do idealismo objetivo. Sua heran¸ca constitui o ponto de partida do debate entre a esquerda, isto ´e, a dial´etica materialista, e a direita, representada pelo existencialismo. Em Kiekegaard, como do u ´ltimo per´ıodo . de Schelling, a concep¸c˜ao do existencialismo ´e teol´ogicom´ıstica. Isto explica porque o existencialismo n˜ao consegue ent˜ao estender sua influˆencia e que acaba, na sua forma original, num impasse de car´ater manifestamente reacion´ ario. A derrota da revolu¸c˜ ao de 1848 foi seguida de um longo per´ıodo de “seguran¸ca” econˆ omica e pol´ıtica, gra¸cas ao reino da burguesia. No plano da filosofia, esse per´ıodo podia, portanto, satisfazer-se com um agnosticismo oscilante entre o “materialismo envergonhado” (Engels) e o solipsismo. Uma mudan¸ca dever-se-ia produzir somente no in´ıcio do est´agio do imperialismo. Uma oportunidade de salvar o idealismo filos´ofico aparecia ent˜ ao, sob o aspecto desse “terceiro caminho”, que vai de Mach e Nietzsche at´e o existencialismo e que consiste em se proclamar neutro tamb´em frente 10

ao materialismo e ao idealismo, que se pretende ultrapassar, do ponto de vista da teoria do conhecimento. De um outro lado, o revisionismo filos´ ofico combate o materialismo e a dial´etica, orientando a ideologia da classe oper´ aria para as concep¸c˜ oes burguesas. Essa “adapta¸c˜ao” vai desde a aceita¸c˜ ao pura e simples da ideologia burguesa do per´ıodo da “seguran¸ca” at´e o servi¸co das ideologias reacion´ arias extremas: a carreira de um de Man, por exemplo, est´ a longe de ser fortuita. Face a essa evolu¸c˜ao, encontramos a renova¸c˜ ao leniniana da dial´etica, a partir de um materialismo consequente. Aqui, os fatos novos da hist´ oria e os problemas filos´oficos novos, trazidos pela evolu¸c˜ ao das ciˆencias naturais, recebem uma defini¸c˜ao exaustiva. ´ assim que se constitui essa tens˜ E ao particular, que caracteriza a situa¸c˜ ao do pensamento atual: o idealismo objetivo, ap´os sua derrota definitiva, sobrevive apenas sob o aspecto de mitos reacion´arios; o idealismo subjetivo, que perdeu suas perspectivas, encontra-se em plena retirada para o pessimismo; o materialismo antigo est´a ultrapassado. O grande combate da filosofia desenrola-se essencialmente entre o “terceiro caminho”, do qual o existencialismo representa a forma mais up to date e o materialismo dial´etico. Trˆes principais grupos de problemas resultam desta situa¸c˜ao hist´orica. No dom´ınio da teoria do conhecimento, ´e a pesquisa da objetividade que domina; no plano da moral, tenta-se salvar a liberdade e a personalidade; do ponto de vista da filosofia da hist´ oria, enfim, a necessidade de perspectivas novas se faz sentir no combate contra o niilismo. Entre eses trˆes grupos de problemas, a liga¸c˜ao ´e muito estreita; filosoficamente, devemos resolvˆe-los juntos. A base comum, sobre a qual repousam esses trˆes grupos de problemas, ´e fornecida pelo car´ ater manifestamente transit´orio da realidade social e hist´ orica anterior ` a atual. A filosofia anterior `a Revolu¸c˜ao Francesa ignorava esse problema. Para ela, a luta hist´ orica e social tinha lugar entre a raz˜ ao (a sociedade burguesa ascendente) e a n˜ao-raz˜ao (o absolutismo feudal decadente). As contradi¸c˜ oes entre a situa¸c˜ao hist´orica real e sua defini¸c˜ ao filos´ ofica aparecem apenas no fim desse per´ıodo e mesmo ent˜ao sob formas filosoficamente inconscientes. Em Kant, por exemplo, apresentamse como a antinomia entre o dogmatismo (a objetividade injustificada) e o ceticismo (relativismo). Mas porque Kant n˜ ao era consciente da base real do problema que se lhe colocava, n˜ ao pˆ ode chegar sen˜ao a pseudo-solu¸c˜oes, que deveriam, notadamente durante o per´ıodo de “seguran¸ca” filos´ofica, influenciar todo o pensamento europeu. O problema dial´etico da rela¸c˜ao 11

entre o relativo e o absoluto n˜ ao pode ser colocado corretamente e resolvido sen˜ ao mais tarde, quando a consciˆencia tivesse realizado o car´ater hist´orico do conjunto da realidade e, antes de tudo, o car´ater transit´orio do presente capitalista. Criada por Hegel e colocada sobre fundamentos justos por Marx, somente a concep¸c˜ ao da interpenetra¸c˜ ao m´ utua e da inseparabilidade do absoluto e do relativo pode trazer a solu¸c˜ao dos trˆes grupos de problemas de que falamos acima. O problema da objetividade do conhecimento s´ o ´e resolvido pela teoria dial´etica da consciˆencia humana que reflete um ´ essa doutrina mundo exterior a existir independentemente do sujeito. E ainda que responde ao problema colocado na teoria do conhecimento pela fun¸c˜ ao da subjetividade (papel ativo do sujeito do conhecimento, em raz˜ao da unidade insepar´ avel da teoria e da pr´atica, e da situa¸c˜ao hist´orica subjetiva no conhecimento da realidade) e o car´ater absoluto de seu conhecimento, sem suprimir a objetividade do mundo exterior. A posi¸c˜ao concreta, materialista-dial´etica da quest˜ ao, ressalta, al´em disso, a fun¸c˜ao da subjetividade na Hist´ oria, enquanto fun¸c˜ ao da atividade humana concreta na ´ assim que o problema da persoevolu¸c˜ ao e autocria¸c˜ ao da humanidade. E nalidade aparece como um elemento de uma sociologia hist´orica geral. Esta demonstra, at´e nos seus detalhes mais sutis, os riscos, a amea¸ca de aniquilamento que o capitalismo estende ` a personalidade humana, desde sua existˆencia econˆ omica at´e seus aspectos ideol´ogicos mais matizados. Oferece, igualmente, em liga¸c˜ ao ´ıntima com essa descri¸c˜ao, solu¸c˜oes concretas. (Problemas da vida p´ ublica, cr´ıtica do particularismo individualista, enquanto sufocamento e mutila¸c˜ ao da personalidade etc.). A liberdade humana aparece ent˜ ao em uni˜ ao dial´etica com a necessidade e n˜ao mais como o ant´ıpoda abstrato de uma necessidade inumana, fatalista e desprovida de vida. A pesquisa de uma perspectiva leva, tamb´em, a um resultado concreto. O leninismo dotou, com efeito, o problema da perspectiva de um conte´ udo concreto. N˜ ao se trata mais, agora, das perspectivas do socialismo somente, mas da determina¸c˜ ao da evolu¸c˜ ao hist´ orica concreta da sociedade – e dos indiv´ıduos que a comp˜ oem – pelas a¸c˜ oes concretas a realizar, em fun¸c˜ao da significa¸c˜ ao concreta que possui a perspectiva do socialismo para o presente do conjunto social e dos indiv´ıduos que o comp˜oem. Mas o socialismo ´e poss´ıvel somente – propomo-nos demonstr´a-lo nos quadros da presente obra – sobre a base do materialismo.dial´etico. A liga¸c˜ ao dessa filosofia com o socialismo reveste-se, portanto, de um car´ater 12

de necessidade essencial. Ocorre o mesmo no campo oposto do pensamento: a resistˆencia `a epistemologia materialista e ` a dial´etica materialista est´a em liga¸c˜ao ´ıntima com a resistˆencia da ideologia burguesa ao socialismo. A contribui¸c˜ao nova da nossa ´epoca consiste somente no fato de que a aprova¸c˜ao do socialismo em geral equivale a um aspecto preciso da oposi¸c˜ao intelectual `a perspectiva concreta e real do socialismo. Quanto mais essa aprova¸c˜ao se faz sob uma forma “elevada”, mais isto ocorre. E eis porque essa aprova¸c˜ao – se bem que ao pre¸co de ecletismos e de contradi¸c˜ oes – pode revestir as formas atuais do idealismo filos´ ofico. ´ assim que o existencialismo aparece como a u E ´ltima variante – e tamb´em a mais evolu´ıda – dessa oposi¸c˜ ao. Sua ontologia, baseada na fenomenologia, representa o cume atual e o aspecto mais extremo do “terceiro caminho” filos´ ofico, pr´ oprio do est´ agio do imperialismo. No que concerne ao problema da personalidade e da liberdade, a burguesia tem um interesse vital – interesse que corresponde ali´as `a sua inteligˆencia espec´ıfica e a seus instintos imediatos – em n˜ao considerar as amea¸cas que a estrutura da sociedade faz pesar sobre a personalidade como um fenˆ omeno pr´ oprio ao capitalismo. Ao contr´ario, concorda em ver no socialismo o perigo principal. A burguesia considera instintivamente seu poder de explora¸c˜ ao como fazendo organicamente parte de sua concep¸c˜ao da personalidade a da liberdade. A inteligˆencia burguesa est´a ali´as profundamente imbu´ıda desse sentimento geral, que considera como a forma original da liberdade essa liberdade aparente, pr´opria ao capitalismo, que concorda muito bem com a opress˜ ao total, at´e a prostitui¸c˜ao da perso´ assim que se constitui uma concep¸c˜ao puramente formal e nalidade. E subjetiva da liberdade, em oposi¸c˜ ao com a no¸c˜ao de liberdade concreta e objetiva, que nos legaram os antigos, como tamb´em Hegel e Marx. Nesse dom´ınio igualmente, o existencialismo representa o cume da evolu¸c˜ao burguesa, ainda que seus resultados sejam do tipo de um “terceiro caminho”. O est´ agio do imperialismo d´ a origem, um pouco em cada lugar, a uma luta contra certos aspectos – antes de tudo culturais – do capitalismo, que se identifica com a perspectiva do socialismo. A grosseira demagogia do fascismo tra¸cou um “terceiro caminho” da moral: capitalismo e socialismo s˜ ao, a seus olhos, idˆenticos. Essa demagogia foi, parcialmente, derrotada. Seus advers´ arios quase n˜ ao ultrapassaram seu n´ıvel, porque confundem fascismo e bolchevismo, enquanto aspectos diversos do mesmo “totalitarismo” e enquanto advers´ arios e destruidores, um e outro, da liberdade e 13

da personalidade. (Ver o caso Silone.) Ideias desse gˆenero s˜ ao respons´ aveis pelo caos monstruoso que reina na filosofia, em torno da no¸c˜ ao de liberdade. O que aumenta ainda esse caos, ´e a incompreens˜ ao de amplos setores da “intelligentzia” burguesa para o problema social essencial de nosso tempo, sob seu aspecto concreto: a luta das formas novas da democracia contra suas formas antigas, que servem o capitalismo e que lhe s˜ ao subordinadas. Nisto ainda, o existencialismo representa a forma mais evolu´ıda do “terceiro caminho”, porque opera com uma concep¸c˜ ao extrema, abstrata e subjetiva da liberdade, em liga¸c˜ao com uma aprova¸c˜ ao – abstrata ainda – do socialismo e com um protesto contra a ausˆencia de liberdade nas mais notadas manifesta¸c˜oes do capitalismo. O existencialismo reflete, assim, no plano da ideologia, o caos espiritual e moral da inteligˆencia burguesa atual. No que concerne, enfim, ao niilismo, acha-se estreitamente ligado a todas essas quest˜ oes e primeiramente ` a tomada de consciˆencia, que a evolu¸c˜ao hist´ orica tende cada vez mais impor aos homens, do car´ater transit´orio das ´ essa tomada de consciˆencia, bases de sua existˆencia social e individual. E desprovida de toda perspectiva concreta e verdadeira que d´a nascimento ao niilismo. As perspectivas m´ıticas, cuja eclos˜ao maci¸ca caracterizou o est´ agio do imperialismo, estiveram e permanecem ainda ligadas ao niilismo. Essas tendˆencias s˜ ao f´ aceis de constatar j´a em Nietzsche, melhor ainda em Spengler ou em Klages, para atingir seu ponto culminante na pretensa concep¸c˜ ao do mundo do fascismo. No plano ideol´ ogico, a necessidade social do nascimento dos mitos explica-se pela incapacidade dos pensadores de romper radicalmente com as sobrevivˆencias teol´ ogicas da filosofia. A conserva¸c˜ao dessas representa¸c˜oes de origem teol´ ogica faz, ali´ as, parte do esfor¸co – frequentemente inconsciente – que deve impedir a realiza¸c˜ ao, pela ideologia, das consequˆencias decorrentes do car´ ater transit´ orio das bases sociais da pessoa humana. Dostoievski formulou esse sentimento de uma maneira surpreendente, colocando a quest˜ ao seguinte na boca de um de seus personagens: “Que capit˜ ao sou eu, se Deus n˜ ao existe?” O existencialismo n˜ ao soube, ao menos, vencer essas sobrevivˆencias teol´ ogicas. O ate´ısmo de Heidegger e de Sartre ´e t˜ao religioso quanto o de Nietzsche, se bem que deva suas bases a Kierkegaard. O horizonte religioso, que se forma assim, aproxima-se perigosamente de todos os mitos modernos. O existencialismo leva, portanto, a marca do mesmo niilismo espontˆ aneo de toda ideologia burguesa moderna. Veremos a seguir que o 14

existencialismo – sobretudo nas defini¸c˜ oes mais recentes – n˜ao pode superar esse abismo sen˜ ao ` as custas de um certo ecletismo. O que foi esbo¸cado aqui, representa apenas um apanhado dos problemas que surgiram. N˜ ao consideramos de forma alguma a obra que se vai ler como uma resposta exaustiva a todas as quest˜oes colocadas. Os estudos que a comp˜ oem representam apenas esbo¸cos polˆemicos e os problemas n˜ao s˜ ao a´ı tratados nem do ponto de vista hist´ orico, nem do ponto de vista sistem´ atico. Eis porque, no momento de publicar esse livro, n˜ao podemos defender-nos de uma certa resigna¸c˜ ao. Nasceu em pleno combate pela democracia nova, combate que n˜ ao nos deixou o descanso que teria sido necess´ ario para o levar a cabo, no sentido indicado. Representa apenas portanto um ensaio, uma tentativa em vista de definir os problemas mais importantes e de indicar o caminho de sua solu¸c˜ao.

Matrahaza (Hungria), julho de 1947. 15

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Cap´ıtulo I

A Crise da Filosofia Burguesa N´ os, marxistas, n˜ ao somos os u ´nicos a constatar a crise da filosofia burguesa. Essa no¸c˜ ao tornou-se de h´ a muito moeda corrente na pr´opria filosofia burguesa. Assim, por exemplo, o neohegeliano Siegfried Marck, querendo determinar o lugar de Rickert na evolu¸c˜ao da filosofia, declara que ele pertence ao per´ıodo anterior ` a crise. Com efeito, se nos dermos ao trabalho de estudar atentamente a evolu¸c˜ ao da filosofia burguesa destes u ´ltimos tempos, veremos que suas pr´ oprias bases s˜ao periodicamente postas em quest˜ ao. E n˜ ao ´e por acaso que no ponto de partida dessa evolu¸c˜ao encontra-se o programa de Nietzsche: refazer a escala dos valores. Pode-se dizer que o ano no qual um dom´ınio qualquer do pensamento n˜ao conhece uma crise aguda, perde-se na banalidade. Mas o signo mais s´erio da crise ´e, sem d´ uvida, o fato de que sua evolu¸c˜ao chega ` aquilo que se denomina, com algum exagero, a concep¸c˜ao do mundo ´ ali´ do fascismo. E as f´ acil constatar que a resistˆencia que lhe op˜oe a filosofia burguesa ´e igual a zero. Numerosas escolas filos´oficas nas quais o fascismo amparou-se (Nietzsche, por exemplo) continuam a beneficiar-se de uma popularidade inalterada nos amplos meios antifascistas burgueses. O fato da crise ´e, portanto, quase indiscut´ıvel. Sua descri¸c˜ao e seu estudo cr´ıtico constituem j´ a uma tarefa bem complexa, tanto no plano ´ a´ı, com hist´ orico como de um ponto de vista particularmente filos´ofico. E 17

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efeito, que desde j´ a se coloca a quest˜ ao: o que h´a de especificamente novo ´ na verdade radicalmente nova? E, na filosofia do per´ıodo imperialista? E em caso afirmativo, em que reside sua novidade? No estudo das quest˜ oes desse gˆenero, a prudˆencia ´e de rigor. Durante a discuss˜ ao do programa do imperialismo, fazendo abstra¸c˜ao da evolu¸c˜ao geral do partido comunista russo, Lˆenin levantou-se contra a tendˆencia representada por aqueles que se propunham estudar a estrutura econˆomica e as leis internas do capitalismo. Pensamos que esse princ´ıpio metodol´ogico aplica-se perfeitamente ao dom´ınio da ideologia e da filosofia. A filosofia do imperialismo n˜ ao pode ser compreendida e criticada sen˜ao `a luz das leis fundamentais da sociedade capitalista, porque ´e evidente que a influˆencia da estrutura econˆ omica manifesta-se igualmente no dom´ınio da filosofia. Sintomas que nada tˆem de profundo revelam a crise: esta se traduz ´ na filosofia moderna pela procura incans´avel de suas fontes no passado. E f´ acil, por exemplo, seguir a influˆencia de Kant at´e H. St. Chamberlain e, atrav´es deste, at´e Rosenberg. Sartre, por seu lado, remonta at´e Descartes, enquanto que, de acordo com o irracionalismo alem˜ao, ´e de Descartes que come¸caria o desvio da filosofia moderna. Poder´ıamos multiplicar estes exemplos ao infinito. Nessa busca desordenada e incessantemente retomada de fontes antigas sempre diferentes, manifestam-se ainda uma vez os sinais da crise no plano hist´ orico. Essa crise exprime um mal-estar profundo: a filosofia perdeu seu caminho. Onde e quando perdeu-se? At´e onde ´e necess´ ario retroceder para reencontrar o bom caminho?

1. O PENSAMENTO FETICHIZADO E A REALIDADE O que h´ a ent˜ ao de novo na filosofia do per´ıodo imperialista? No seu conjunto, essa filosofia ´e o reflexo, no plano do pensamento, do imperialismo mesmo, isto ´e, do est´ agio supremo do capitalismo, que ´e tamb´em o mais rico em contradi¸c˜ oes. As contradi¸c˜ oes pr´oprias `a sociedade capitalista, que determinam a evolu¸c˜ ao, a forma e o conte´ udo da filosofia burguesa, ´ aparecem no imperialismo sob uma forma objetiva levada ao extremo. E entretanto de interesse vital para a burguesia n˜ao reconhecer esse car´ater fundamentalmente contradit´ orio de seu pensamento. Dito de outra forma, quanto mais essas contradi¸c˜ oes s˜ ao profundas e irreconcili´aveis, tanto mais n´ıtida ´e a ruptura – a causa mesma da crise da filosofia – entre o pensa18

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mento filos´ ofico burguˆes e a evolu¸c˜ ao da realidade social. Mas o problema n˜ ao consiste somente em uma contradi¸c˜ ao entre o pensamento burguˆes e a realidade social do imperialismo, pois acrescenta-se ainda uma outra contradi¸c˜ ao: a que subsiste entre a evolu¸c˜ ao efetiva e a superf´ıcie direta´ essa contradi¸c˜ao que explica mente percept´ıvel dessa realidade social. E que certos pensadores, que s˜ ao, no entanto, de boa f´e, nos dˆeem uma representa¸c˜ ao completamente falseada da realidade social, simplesmente porque se limitam ao exame dessa superf´ıcie diretamente percept´ıvel. Essa contradi¸c˜ ao constitui naturalmente um problema constante para o pensamento burguˆes. Na sociedade capitalista, o fetichismo ´e inerente a todas as manifesta¸c˜ oes ideol´ ogicas. Isto quer dizer, sumariamente, que as rela¸c˜ oes humanas, que se mantˆem na maior parte dos casos, por interm´edio de objetos, aparecem, para esses observadores enganados pela miragem superficial da realidade social, como coisas; as rela¸c˜oes entre os seres huma´ o nos aparecem, portanto, sob o aspecto de uma coisa, de um fetiche. E elemento fundamental da produ¸c˜ ao capitalista, a mercadoria, que fornece o exemplo mais claro dessa aliena¸c˜ ao. Tanto quanto por sua produ¸c˜ao como por sua circula¸c˜ ao, a mercadoria ´e, com efeito, o agente mediador de rela¸c˜ oes humanas concretas (capitalista-oper´ario, vendedor-comprador etc.), e ´e necess´ ario o funcionamento de condi¸c˜oes sociais e econˆomicas – isto ´e, de rela¸c˜ oes humanas – muito concretas e muito precisas para que o produto do trabalho do homem se torne mercadoria. Ora, a sociedade capitalista mascara essas rela¸c˜ oes humanas e as torna indecifr´aveis: dissimula cada vez mais o fato de que o car´ ater de mercadoria do produto do trabalho humano ´e apenas a express˜ ao de certas rela¸co˜es entre os homens. Assim, as qualidades de mercadoria do produto (seu pre¸co, por exemplo) dele se destacam e se tornam qualidades objetivas, como o gosto da ma¸c˜a ou a cor da rosa. O mesmo processo de aliena¸c˜ ao ocorre no caso do dinheiro, no do capital e no de todas as categorias da economia capitalista: as rela¸c˜oes humanas tomam o aspecto de coisas, de qualidades objetivas de objetos. Quanto mais uma dessas categorias est´ a distanciada da produ¸c˜ao material ´ efetiva, mais o fetiche est´ a vazio, desprovido de todo conte´ udo humano. E evidente que, para o pensamento burguˆes, seu efeito de fetiche ´e apenas o mais profundo. Eis como a evolu¸c˜ ao do capitalismo no est´agio imperialista n˜ ao faz sen˜ ao intensificar o fetichismo geral, pois, do fato da domina¸c˜ao do capital financeiro, os fenˆ omenos a partir dos quais seria poss´ıvel desvendar a reifica¸c˜ ao de todas as rela¸c˜ oes humanas, tornam-se cada vez menos acess´ıveis ` a reflex˜ ao da m´edia das pessoas. 19

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Do ponto de vista da filosofia, importa notar que esta intensifica¸c˜ao do fetichismo exerce um efeito antidial´etico sobre o pensamento. Cada vez mais, a sociedade se apresenta ao pensamento burguˆes como um amontoado de coisas mortas e de rela¸c˜ oes entre objetos, em lugar de nele se refletir como ´e, ou seja, como a reprodu¸c˜ao inintetrrupta e incessantemente cambiante de rela¸c˜ oes humanas. O clima mental assim criado ´e muito desfavor´ avel para o pensamento dial´etico. O parasitismo pr´oprio ao est´ agio imperialista s´ o intensifica essa evolu¸c˜ao. A maior parte dos intelectuais encontra-se, com efeito, muito afastada do processo de trabalho efetivo que determina a estrutura verdadeira e as leis de evolu¸c˜ao da sociedade; est˜ ao t˜ ao profundamente ajustados na esfera das manifesta¸c˜oes secund´ arias da produ¸c˜ ao social – que consideram ali´as como fundamentais – que a descoberta das rela¸c˜ oes humanas mascaradas pela aliena¸c˜ao, torna-se para eles coisa imposs´ıvel. Em definitivo, ´e t˜ ao grande o abismo entre a realidade e o pensamento, que s´ o reflete suas manifesta¸c˜ oes superficiais, que toda transforma¸c˜ao na evolu¸c˜ ao social se apresenta para o pensamento sob o aspecto de uma ruptura inesperada e apenas pode provocar uma s´erie cont´ınua de crises. ´ evidente que, se falamos de uma crise constante da filosofia no est´agio do E imperialismo, ´e necess´ ario distinguir v´ arias etapas dessa crise. At´e 1914, a crise da filosofia ´e de natureza latente; tornar-se-´a evidente apenas depois de 1918.

˜ DO PENSAMENTO 2. A EVOLUC ¸ AO ˆ BURGUES Mas tudo o que precede n˜ ao resume as caracter´ısticas gerais do est´agio imperialista, do ponto de vista ideol´ ogico. A filosofia constitui, entretanto, uma manifesta¸c˜ ao ideol´ ogica particular, cuja evolu¸c˜ao n˜ao ´e sempre exatamente paralela ` a das outras manifesta¸c˜ oes ideol´ogicas, das ciˆencias exatas ou da literatura, por exemplo. Essa particularidade da filosofia reside no fato que tem por objeto as quest˜ oes u ´ltimas da existˆencia e do conhecimento: isto ´e, a concep¸c˜ ao do pr´ oprio mundo, sob suas formas abstratas e gerais. Ao contr´ ario, onde a manifesta¸c˜ao ideol´ogica tem por objeto imediato a realidade social diretamente dada – e n˜ao sua soma abstrata ou seus princ´ıpios gerais – a vis˜ ao corajosa e imparcial da realidade compensa frequentemente os defeitos da concep¸c˜ ao ideol´ogica. A literatura oferece20

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nos numerosos exemplos de escritores com ideias pessoais influenciadas pelo fetichismo e que sabem, em larga medida, dele se desembara¸car na sua cria¸c˜ ao liter´ aria. Em outros termos, esses escritores sabem representar, nas suas obras, as rela¸c˜ oes humanas enquanto tais, a despeito de suas ideias individuais contr´ arias. Mas, na filosofia, onde os pr´oprios princ´ıpios u ´ltimos s˜ ao postos em quest˜ ao, o objeto de estudo n˜ao poderia exercer esta influˆencia salutar. Partindo dessas considera¸c˜ oes, seria talvez poss´ıvel delimitar sumariamente os principais per´ıodos de evolu¸c˜ ao da filosofia burguesa, a fim de melhor poder examinar em seguida, auxiliando-nos deste resumo hist´orico, as caracter´ısticas essenciais da filosofia no decorrer do per´ıodo imperialista. O primeiro per´ıodo ´e o da filosofia burguesa cl´assica, que vai at´e cerca do ´ esta ´epoca fim do primeiro ter¸co do s´eculo XIX ou, no m´ aximo, at´e 1848. E que d´ a origem ` a express˜ ao mais elevada da concep¸c˜ao do mundo da burguesia, isto ´e, revolta da burguesia contra a sociedade feudal em decl´ınio. A filosofia desta ´epoca codifica os princ´ıpios u ´ltimos e a concep¸c˜ao geral do mundo, pr´ oprios a este vasto movimento progressivo e libertador, que t˜ao profundamente reformou a sociedade. Assistimos agora `a transforma¸c˜ao revolucion´ aria da l´ ogica, das ciˆencias naturais e das ciˆencias sociais. As interven¸c˜ oes da filosofia nos grandes problemas concretos das ciˆencias naturais e sociais mostraram-se f´erteis e ´e ent˜ ao que ela se eleva `a regi˜ao das ´ assim que se manifesta seu car´ater de univerabstra¸c˜ oes mais elevadas. E salidade e seu papel de fermento das ciˆencias, que lhe permite descobrir tantas perspectivas novas. Vejamos agora o que esta filosofia representa, do ponto de vista das ` primeira vista, a resposta parece muito classes sociais em presen¸ca. A simples; mas ´e bastante mais dif´ıcil de formular no plano da realidade concreta. S˜ ao os vastos interesses gerais de uma classe, colocados no palco da hist´ oria mundial, objetivamente chamados a transformar no sentido do progresso o conjunto da sociedade, que recebem sua express˜ao adequada nas obras da filosofia cl´ assica. Eis porque esta filosofia est´a t˜ao intimamente ligada a esses imensos interesses e aos conflitos que devem ocasionar. Os pensadores desta ´epoca tˆem ao mesmo tempo um senso sutil e robusto da realidade, e seus pr´ oprios erros dependem da hist´oria mundial, porque s˜ao oriundos de ilus˜ oes heroicas que correspondem a necessidades hist´oricas. Desta unidade profunda e ´ıntima entre a filosofia e os interesses gerais da burguesia ascendente, resulta uma independˆencia consider´avel dos fil´ osofos, frente a` t´ atica momentˆ anea de sua classe e, sobretudo, de cer21

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tas camadas desta. Esta independˆencia confere-lhe a possibilidade de uma cr´ıtica muito s´eria: a cr´ıtica vem do interior, porque se funda sobre a grande miss˜ ao hist´ orica da burguesia, e a situa¸c˜ao do fil´osofo ´e tal que o autoriza a tomar a posi¸c˜ ao mais n´ıtida, mais decidida e mais corajosa. E, enfim, por n˜ ao ser esta coragem somente uma virtude individual, mas, sim, fun¸c˜ ao precisamente desta rela¸c˜ ao com sua classe, o fil´osofo se sente com direito de criticar da maneira mais radical o menor desvio da miss˜ao hist´ orica, em nome dessa pr´ opria miss˜ ao. Mas, as revolu¸c˜ oes de 1830, e ainda mais as de 1848, atestam que a burguesia perdeu seu lugar ` a frente do progresso social. Em 1830 come¸ca o processo de decomposi¸c˜ ao da filosofia burguesa cl´assica, que termina com a revolu¸c˜ ao de 1848. Esta data forma, na evolu¸c˜ao da filosofia, o limiar de um novo per´ıodo que termina mais ou menos no in´ıcio do per´ıodo imperialista. O combate ofensivo da burguesia contra as sobrevivˆencias do feudalismo est´ a ent˜ ao acabado: sucede-lhe a defensiva contra o proletariado ascendente. Outro grande processo hist´orico da ´epoca das revolu¸c˜oes burguesas, o da forma¸c˜ ao dos Estados nacionais, termina igualmente pela realiza¸c˜ ao da unidade nacional alem˜ a e italiana, no quadro dos Estados ´ a era dos compromissos sociais asfixiantes, a era de Nareacion´ arios. E pole˜ ao III e de Bismarck. A antiga democracia burguesa periclita e se desfaz continuamente depois de 1848. Liberais e democratas separam-se e terminam por se voltar uns contra os outros: o liberalismo se transforma em um “liberalismo nacional” de car´ ater conservador. O desenvolvimento tumultuoso da produ¸c˜ao capitalista em toda a Europa Ocidental e Central forma o pano de fundo econˆomico desta corrup¸c˜ao da democracia. O capitalismo continua sua ascens˜ao, aparentemente ilimitada, desembara¸cado de todo problema. (Notemos, de passagem, que estas observa¸c˜ oes n˜ ao se aplicam ` a R´ ussia. Na evolu¸c˜ao pol´ıtica e econˆomica da R´ ussia e, portanto, da luta ideol´ ogica, 1905 corresponde `aquilo que o ano 1848 significa para a Europa Ocidental e Central. Eis porque poderia ainda haver na R´ ussia da segunda metade do s´eculo XIX pensadores tais como Tchernichevski e Dobroliubov.) A filosofia deste per´ıodo cortstitui reflexo exato, no plano do pensamento, do compromisso social. Renuncia `a miss˜ao de dar resposta `as u ´ltimas quest˜ oes do esp´ırito. No plano da teoria do conhecimento, esta tendˆencia se manifesta pelo agnosticismo, o qual pretende que n˜ao podemos nada saber da essˆencia verdadeira do mundo e da realidade e que este conhecimento n˜ ao teria ali´ as nenhuma utilidade para n´os. S´o temos que 22

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nos preocupar com as aquisi¸c˜ oes das ciˆencias, especializadas e separadas umas das outras, conhecimentos indispens´ aveis do ponto de vista da vida pr´ atica de todos os dias. O papel da filosofia, segundo o agnosticismo, deve limitar-se a vigiar para que ningu´em ultrapasse os limites definidos pelas ciˆencias e para que ningu´em ouse tirar das ciˆencias econˆomicas e sociais conclus˜ oes que poderiam desacreditar o regime. No mesmo sentido, o agnosticismo pro´ıbe-nos de explorar as descobertas das ciˆencias naturais contr´ arias aos dogmas religiosos. Esta filosofia repudia por princ´ıpio todas as pesquisas que tendem a elaborar uma concep¸c˜ao coerente do mundo, pois uma vis˜ ao de conjunto definiria os limites tra¸cados pela ciˆencia, que considera como autoridade suprema. Esta filosofia que se apresenta na maioria das vezes sob os tra¸cos de um neokantismo ou de um positivismo, n˜ ao ´e a u ´nica filosofia da ´epoca. Mas essas duas tendˆencias s˜ ao dominantes. Paralelamente `a sua evolu¸c˜ao, podem-se registrar certas tentativas de renovar o antigo materialismo mecanicista, tentativas ` as vezes assaz med´ıocres (Moleschott, B¨ uchner etc.). A influˆencia de Schopenhauer, sobretudo entre os intelectuais independentes, ´e igualmente assaz profunda. Fil´ osofo do pessimismo, gozou do prest´ıgio de ser ap´ ostolo do desprezo por uma existˆencia completamente desprovida de sentido. A filosofia dominante da ´epoca ´e uma filosofia de professores. Fora da psicologia, que apenas se inicia, tem por objeto quase exclusivo a teoria abstrata do conhecimento. Torna-se ciˆencia especializada. Renuncia a sua antiga miss˜ ` ao social: cessa de ser express˜ao, no plano do pensamento, dos grandes interesses hist´ oricos da burguesia e abandona o exame de todo problema ideol´ ogico. Aceita encarregar-se da fun¸c˜ao de “guardafronteira”, fun¸c˜ ao indispens´ avel ` a burguesia da ´epoca, pois que assegura a estabilidade de um compromisso social dur´ avel com as for¸cas da rea¸c˜ao. Em compensa¸c˜ ao, os m´etodos e os objetos, a evolu¸c˜ao e os frutos dessa filosofia, convertida em uma ciˆencia especializada como as outras, tornam-se cada vez mais indiferentes ` a burguesia. Esta cede aos intelectuais burocratizados, que fazem parte do aparelho de Estado, o direito de explorar seus ´ assim que, em perfeita conformidade com a m´etodos e seus resultados. E divis˜ ao do trabalho, pr´ opria do capitalismo evolu´ıdo, esta camada de intelectuais, benefici´ aria de uma independˆencia relativa, torna-se deposit´aria da filosofia nova. Mas essa independˆencia ´e completamente relativa. Tem por condi¸c˜ao a execu¸c˜ ao estrita das obriga¸c˜ oes que resultam da fun¸c˜ao de “guarda23

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fronteira”. Forma e objeto da filosofia s˜ao ent˜ao determinados pelos problemas especiais dessa camada de intelectuais que, mesmo gozando de uma certa independˆencia, tornou-se, nesse novo per´ıodo da evolu¸c˜ao da filosofia burguesa, o deposit´ ario social do pensamento. Do ponto de vista sociol´ ogico, h´ a, ao menos ` a primeira vista, uma certa contradi¸c˜ao, porque ´e essa mesma camada social que se encontra igualmente na origem da filosofia cl´ assica. Mas, se o esp´ırito da filosofia era ent˜ao radicalmente diferente, a fun¸c˜ ao social dos intelectuais, autores diretos dessa filosofia, era tamb´em diferente, e ´e essa diferen¸ca que explica a mudan¸ca. A camada de intelectuais, da qual a filosofia burguesa era a emana¸c˜ao direta, falava ent˜ao em nome das perspectivas universais da burguesia ascendente. Ora. essas perspectivas deviam perder-se e aniquilar-se na luta defensiva contra o proletariado e no compromisso das classes que seguiram 1848. As aspira¸c˜oes filos´ oficas da burguesia estreitaram-se; tornaram-se mesmo negativas, para acabar por se transformar em princ´ıpios puramente limitativos. A partir da segunda metade do s´eculo XIX os intelectuais tˆem, dentro de certos limites, uma perfeita liberdade de movimento: a filosofia torna-se de seu interesse exclusivo. A burguesia se desinteressa completamente de conhecer o que ensina tal ou tal professor de filosofia com a condi¸c˜ao de que a filosofia realize sua fun¸c˜ ao de “guarda-fronteira”. O ensino universit´ario da filosofia transcorre, cada vez mais, em meio `a indiferen¸ca da sociedade. Vejamos agora o que distingue a filosofia do est´agio imperialista da` primeira vista, h´a um desenvolvimento. quela das ´epocas precedentes. A A filosofia torna-se de novo “interessante” – somente para os meios intelectuais, bem entendido – enquanto a indiferen¸ca geral da burguesia persiste a seu respeito. Entra em cena, em numerosos casos, sob o aspecto de uma oposi¸c˜ ao ` a filosofia universit´ aria, que n˜ao acusa quase nenhuma mudan¸ca. Numerosos s˜ ao aqueles, entre os grandes pensadores do est´agio imperialista, que se encontram fora do ensino oficial (Nietzsche, Spengler, Keyserling, Klages etc.); Simmel e Scheler, tamb´em, permanecem muito tempo fora das Faculdades. Pouco a pouco a nova orienta¸c˜ao se imp˜oe a uma parte do ensino oficial, que acaba por admitir que a filosofia deve ser “interessante” (Croce, Bergson, Huizmga etc.). Assistimos a uma mudan¸ca radical? N˜ao o cremos. Examinando o problema de mais perto, constatamos um impulso no sentido afirmado ap´ os 1848, porque ´e sempre uma camada de intelectuais que faz a filosofia para seu pr´ oprio uso. Vemos igualmente que o determinismo social mais rigoroso n˜ ao deixa de exercer-se em nenhum momento. Somente esse deter24

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minismo n˜ ao equivale ` a defini¸c˜ ao direta da forma e do objeto da filosofia, mas manifesta-se pela cria¸c˜ ao de uma margem de liberdade de acordo com os interesses da burguesia e se encontra delimitado por esses mesmos interesses. No interior dessa margem, a “intelligentzia” pode elaborar suas doutrinas ideol´ ogicas com toda liberdade. Esse rigor extremo do determinismo social toma sua forma concreta no fascismo. Com efeito, o fascismo traduz para a linguagem do capitalismo reacion´ ario dos trustes, ou melhor, para a linguagem da demagogia nacional e social da rea¸c˜ ao, todas as “conquistas” da filosofia do est´agio imperialista. Transp˜ oe para o vocabul´ ario da rua as abstra¸c˜oes ideol´ogicas que essa filosofia difunde do alto da c´ atedra, nos sal˜ oes e nos caf´es.

3. A FILOSOFIA DO IMPERIALISMO A filosofia, tornando-se “interessante”, conquistou uma certa independˆencia. Essa constata¸c˜ ao significa que, partindo de sua pr´opria situa¸c˜ao particular, os intelectuais burgueses colocam seus pr´ oprios problemas particulares de uma maneira mais concreta e mais consciente que no per´ıodo precedente. ´ uma consequˆencia do fato de que o papel dos intelectuais independentes E ´e mais consider´ avel que o dos intelectuais burocratizados. Esses intelectuais n˜ ao colocam mais os grandes problemas universais da burguesia na sua fase ascendente, mas limitam sua reflex˜ ao aos interesses defensivos da burguesia, por volta do fim do s´eculo XIX. Que se pode concluir de tudo isto quanto ao conte´ udo e `a forma da ´ f´ filosofia nova? E acil ver, primeiramente, que os fundamentos burgueses persistem, sem ter sofrido nenhuma cr´ıtica s´eria. Al´em disso, a camada social que se tornou deposit´ aria da filosofia nova, conhece cada vez menos a estrutura econˆ omica da sociedade burguesa e se mostra mesmo cada vez menos inclinada a estud´ a-la enquanto problema filos´ofico. Certamente, o tom da cr´ıtica torna-se aparentemente mais agressivo, mas quase diz respeito somente ` a cultura propriamente dita e `a moral individual, isto ´e, problemas que interessam diretamente aos intelectuais enquanto camada social. Essa “intelligentzia” afasta-se, portanto, voluntariamente, dos problemas econˆ omicos, pol´ıticos e sociais e ´e precisamente esse abandono que equivale ao respeito muito escrupuloso dos limites que foram tra¸cados `a filosofia pela burguesia imperialista. Esse respeito, ali´as, vale por uma margem de liberdade que lhe permite tornar-se “interessante” e esbo¸car 25

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mesmo, ` as vezes, um gesto de revolta. Acrescentemos, de passagem, que esse afastamento das quest˜oes sociais, dos problemas da economia e da vida pol´ıtica, coincide objetivamente com as exigˆencias de classe da burguesia imperialista e que ´e, ao mesmo tempo, a consequˆencia necess´ aria da posi¸c˜ao social da “intelligentzia” desse per´ıodo. Se o respeito escrupuloso das barreiras das quais falamos n˜ao significa necessariamente, nos fil´ osofos enquanto indiv´ıduos, uma sujei¸c˜ao consciente ` as exigˆencias da burguesia imperialista, n˜ao lhe equivale menos na realidade, apesar de toda inconsciˆencia e toda boa f´e pessoais. Eis porque a independˆencia essencial da filosofia e sua atitude cr´ıtica fundamental sofrem uma degenerescˆencia que nada pode interromper. Bastaria invocar, para exemplo do contr´ ario, Hobbes, Rousseau ou Fichte. N˜ ao s˜ ao as constru¸c˜ oes ut´ opicas que faltam, visando `a transforma¸c˜ao da cultura, mesmo pelos meios revolucion´ arios, como, por exemplo, em Nietzsche, mas a intangibilidade da base social e econˆomica do capitalismo ´e sempre respeitada. Nietzsche critica severamente os sintomas culturais da divis˜ ao capitalista do trabalho, sem considerar a menor transforma¸c˜ao da organiza¸c˜ ao social. ´ a ideia de progresso que se encontra no centro da cr´ıtica filos´ofica, E e esta n˜ ao prescinde de um ´elan quase revolucion´ario. Ningu´em sonha em dizer, bem entendido – o que na maior parte dos casos o fil´osofo e seu p´ ublico de intelectuais ignoram pela mesma raz˜ao – que essa posi¸c˜ao “audaciosa” do problema ´e apenas o reflexo ideol´ogico da evolu¸c˜ao da burguesia, evolu¸c˜ ao que a op˜ oe ao progresso. Trata-se a´ı, simplesmente, do reflexo ideol´ ogico do compromisso, intervindo entre a burguesia e as for¸cas reacion´ arias da sociedade. Ningu´em diz tampouco que, se esta quest˜ao se coloca com tanta acuidade na filosofia do imperialismo, ´e porque o pacto dos dirigentes da produ¸c˜ ao capitalista com todas as for¸cas reacion´arias da sociedade faz-se cada vez mais ´ıntimo sob o reino do capitalismo dos trustes. Numerosos pensadores vindos dos mais diferentes horizontes n˜ao hesitam em realizar esse casamento “interessante” do conte´ udo reacion´ario e do gesto revolucion´ ario: Lagarde, Nietzsche, Sorel, Ortega y Gasset e muitos outros. E, na v´espera da tomada do poder pelo fascismo, Freyer lan¸ca o grito de uni˜ ao da “revolu¸c˜ ao de direita” (Revolution von rechts). Paralelamente a essa evolu¸c˜ ao, no curso da qual as quest˜oes propriamente ideol´ ogicas ganham terreno, as rela¸c˜oes entre a filosofia e a religi˜ao sofrem uma transforma¸c˜ ao profunda. As barreiras levantadas pelo agnosticismo do per´ıodo precedente estavam destinadas a desacreditar, antes de 26

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tudo, o materialismo ateu. A orienta¸c˜ ao para uma concep¸c˜ao mais positiva conduzir´ a uma parte dos fil´ osofos a uma nova justifica¸c˜ao da religi˜ao e outra a um ate´ısmo religioso novo, mas cujo conte´ udo ideol´ogico e moral ser´a ´ f´acil acompanhar diametralmente oposto ao do ate´ısmo materialista. E essa evolu¸c˜ ao que vai de Nietzsche at´e o existencialismo de Heidegger e de Sartre. Acrescentemos que, no est´ agio do imperialismo, a vulgariza¸c˜ao das ciˆencias naturais torna-se essencialmente uma arma a servi¸co da ideologia reacion´ aria. No decorrer do per´ıodo precedente, a filosofia limitava-se ainda ` a defensiva. O agnosticismo de Du Bois Reymond servia antes de mais nada para neutralizar as consequˆencias ideol´ogicas do materialismo de Haeckel. A escola de Mach, Avenarius e de Poincar´e constitui j´a uma plataforma para a defesa aberta das concep¸c˜ oes reacion´arias. Doravante, essa tendˆencia n˜ ao deixa de intensificar-se e a filosofia interpreta todas as novas descobertas das ciˆencias naturais como outros tantos argumentos em favor das ideologias da rea¸c˜ ao. Do ponto de vista do conhecimento, ´e necess´ario constatar que o idealismo subjetivo do per´ıodo precedente permanece, sem altera¸c˜ao, a base mesma da teoria do conhecimento no est´ agio imperialista. Esse fato n˜ao ´e devido ao acaso porque o idealismo constitui a ideologia espontˆanea, por assim dizer natural, da “intelligentzia”. O trabalho material, que determina em u ´ltima instˆ ancia a rela¸c˜ ao entre o indiv´ıduo e o mundo, fornece a esse respeito um dupla indica¸c˜ ao. De um lado, demonstra que o mundo material existe independentemente da consciˆencia. De outro lado, todo processo de trabalho ´e teleol´ ogico, o que quer dizer que seu fim ´e dado na consciˆencia do trabalhador, antes do seu come¸co efetivo. Ora, a consciˆencia da “intelligentzia” est´ a dominada por seu afastamento cres´ essa evolu¸c˜ cente do trabalho material. E ao que explica que numerosos cientistas se comportam, dentro de sua especialidade, como materialistas espontˆ aneos, o que ´e completamente contr´ ario `a sua atitude no dom´ınio da filosofia. Assim, por exemplo, Rickert lamenta ver certos grandes cientistas declararem-se adeptos de um “realismo ingˆenuo”, no terreno de sua especialidade. Quanto mais ganha em importˆ ancia o papel independente e espec´ıfico da “intelligentzia” na filosofia tanto mais forte se torna a posi¸c˜ao do idealismo subjetivo no dom´ınio da teoria do cqnhecimento. 27

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4. A PSEUDO-OBJETIVIDADE A base da teoria do conhecimento continua a mesma, portanto, mas a filosofia do per´ıodo imperialista n˜ ao deixa de representar uma evolu¸c˜ao consider´ avel em rela¸c˜ ao ` a do per´ıodo precedente. As caracter´ısticas mais importantes dessa evolu¸c˜ ao resumem-se mais ou menos assim: tendˆencia ao objetivismo e nascimento de uma pseudo-objetividade; luta contra o formalismo na teoria do conhecimento – o que vai a par com a apologia da intui¸c˜ ao da qual se far´ a o instrumento novo de uma filosofia nova – e, enfim, retomada do estudo das quest˜ oes ideol´ogicas, no lugar do agnosticismo consequente do per´ıodo precedente. Todos esses temas correspondem ` as necessidades particulares dessa fase da evolu¸c˜ ao social. S˜ ao todos outros tantos sintomas da crise da filosofia. A pretensa seguran¸ca, o equil´ıbrio das condi¸c˜oes sociais que tinham toda a aparˆencia de estabilidade e que pareciam poder durar eternamente, assim como a ilus˜ ao de uma prosperidade econˆ omica e pol´ıtica, tinham criado um clima filos´ ofico que permitiu abandonar todos os problemas objetivos, isto ´e, toda a realidade, e confiar seu exame a`s ciˆencias especializadas, `a t´ecnica industrial e enfim ` a “s´ abia administra¸c˜ ao” das “autoridades superiores”, no respeito escrupuloso ` as barreiras tra¸cadas pela teoria do conhecimento. A necessidade de uma ideologia faz-se sentir cada vez mais e isto ´e ainda um signo, ou ao menos um signo precursor, da crise. Essa procura revela o pressentimento de um abalo geral das bases, a despeito de toda estabilidade aparente e mesmo de toda consolida¸c˜ao da superf´ıcie. A vanguarda da “intelligentzia”, sens´ıvel ` as abstra¸c˜ oes filos´oficas, pressente a crise que se prepara: uma boa parte da filosofia acusa esses signos precursores j´a ´ evidente que estes s˜ao, at´e essa data, completabem antes de 1914. E mente abstratos: n˜ ao se trata, no momento, sen˜ao de veleidades que se prop˜ oem salvar a integridade da pessoa humana isolada, diante do retalhamento criado pela divis˜ ao capitalista do trabalho; trata-se apenas, agora, de comentar longamente as contradi¸coes insol´ uveis, produzidas pela cul´ necess´ tura capitalista e imperialista. E ario dizer que n˜ao se fala nunca das contradi¸c˜ oes da cultura capitalista, mas das da cultura em geral, da cul´ talvez Georg Simmel o representante mais eminente tura simplesmente? E dessa filosofia da crise latente. Dissemos que a necessidade da ideologia constitui um signo da crise. Essa afirma¸c˜ ao, ` a primeira vista, pode passar por piada ou paradoxo. Mas a verdade ´e apenas conceb´ıvel sob o aspecto de uma verdade concreta. Eis 28

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porque ´e necess´ ario examinar rapidamente a fun¸c˜ao social da ideologia no decorrer dos trˆes per´ıodos do pensamento burguˆes que precedentemente delimitamos. A filosofia burguesa cl´ assica deu lugar ao nascimento e ao desenvolvimento de uma ideologia universal e potente, colocada sob o signo do progresso. Nessa ´epoca, a filosofia ocupava o cume das ciˆencias humanas; era o termo, a base e o quadro de todo o conhecimento. A ideologia constitu´ıa ent˜ ao o objeto propriamente dito da filosofia, ela pr´opria produto orgˆ anico do progresso social ininterrupto, t´ermino e corol´ario do conjunto da atividade cient´ıfica de cada etapa da evolu¸c˜ao social. O per´ıodo economicamente repleto de compromissos sociais desviouse com pregui¸ca e covardia de toda quest˜ ao ideol´ogica, cujo estudo julgava in´ util, declarando anticient´ıficas as grandes realiza¸c˜oes ideol´ogicas do per´ıodo precedente. Quanto ` a “intelligentzia” do per´ıodo de crise, aspira a resigna¸c˜ ` ao e ao reconforto que uma ideologia nova devia fornecer-lhe. Mas estamos ainda – aparentemente ao menos – em pleno paradoxo: como se pode esperar, com efeito, um reconforto do sombrio pessimismo de Nietzsche, de Spengler, de Klages ou de Heidegger? Digamos logo que esse paradoxo s´ o ´e de tal natureza porque est´ a implicitamente contido no idealismo filos´ ofico, que apresenta, com um aspecto anti-hist´orico e abstrato, o destino do homem do per´ıodo do imperialismo, como sendo o destino humano em geral. Cria, assim, sem o saber, um clima onde nosso ju´ızo parece ser um paradoxo. O reconforto reside, com efeito, precisamente nessa fatalidade (bastar´ a evocar o amor fati de Nietzsche, o ser-para-amorte de Heidegger, o pessimismo her´ oico do pr´e-fascismo e do fascismo etc.). Os precursores de toda essa tendˆencia s˜ao Schopenhauer e Kierkegaard. N˜ ao ´e o contentamento que opomos a essa doutrina da fatalidade, porque nada motivaria um tal contentamento. Queremos entretanto chamar a aten¸c˜ ao sobre o fato de que certos pensadores modernos, tais como Keyserling ou Jaspers, preconizam uma existˆencia voltada sobre si mesma, isolada de toda a vida p´ ublica e cujo equil´ıbrio repousa precisamente num pessimismo total a respeito do mundo exterior. A finalidade verdadeira dessa tendˆencia ´e impedir o descontentamento engendrado pela crise, de se voltar contra as bases da sociedade capitalista e proceder de tal forma que a crise n˜ ao possa fazer com que a “intelligentzia” se levante contra a sociedade do imperialismo. N˜ao se trata mais de fazer o elogio direto e grosseiro da sociedade capitalista, como o fizeram os turifer´ arios assalariados ou volunt´ arios no passado. A cr´ıtica da cultura 29

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` capitalista constitui, ao contr´ ario, o tema central dessa filosofia nova. A medida que a crise se prolonga, a concep¸c˜ao de um “terceiro caminho” progride cada vez mais no plano social: ´e uma ideologia segundo a qual nem o capitalismo nem o socialismo correspondem `as verdadeiras aspira¸c˜oes da humanidade. Essa concep¸c˜ ao parece aceitar tacitamente o fato de que o sistema capitalista ´e teoricamente indefens´avel tal como existe. Mas assim como o “terceiro caminho” na teoria do conhecimento tinha por miss˜ao readmitir diretamente em seus privil´egios o idealismo filos´ofico, n˜ao mais defens´ avel, o “terceiro caminho” filos´ ofico est´a investido da miss˜ao social que consiste em impedir a “intelligentzia” de tirar da crise a conclus˜ao socialista. Por ser indireto, o “terceiro caminho” n˜ao deixa de ser uma apologia do capitalismo. Assim, a luta contra o socialismo torna-se numa medida cada vez mais ´ uma luta filos´ofica conconsider´ avel, a quest˜ ao ideol´ ogica fundamental. E tra o materialismo dial´etico, isto ´e, tanto contra o materialismo como contra a dial´etica. No plano da ideologia, essa tendˆencia significa a elimina¸c˜ao consequente de toda considera¸c˜ ao econˆomica ou social. A filosofia n˜ao est´ a em condi¸c˜ oes de produzir argumentos s´erios contra as concep¸c˜oes do socialismo; aparenta crer e esfor¸ca-se por fazer crer que a ciˆencia especializada da economia nacional burguesa desde h´a muito despeda¸cou a doutrina econˆ omica do marxismo. Sua tarefa limita-se, portanto, aqui, a desacreditar todo ponto de vista social e econˆ omico e a atenuar sua importˆancia no plano da ideologia. Como tamb´em a sociologia burguesa especializou-se para se tornar uma ciˆencia independente da economia, a filosofia mudou de atitude frente a ela. Enquanto a filosofia do per´ıodo precedente contestava o lugar da sociologia entre as ciˆencias, a do per´ıodo novo abre-lhe as portas e admite mesmo, no momento da crise aguda, a “Wissenssoziologie” de Scheler e de Mannheim como uma arma de primeira ordem a servi¸co do relativismo. A sociologia da rea¸c˜ ao aberta, que da´ı deriva diretamente, encarregar-se-´a em seguida de lan¸car as bases das concep¸c˜ oes fascistas, por interm´edio de Freyer e de C. Schmitt. O desenvolvimento das filosofias antiprogressistas constitui a segunda grande ofensiva ideol´ ogica contra o socialismo. A filosofia burguesa, por n˜ ao estar em condi¸c˜ oes de produzir argumentos s´erios contra a concep¸c˜ao socialista do progresso, ´e obrigada a combatˆe-la no dom´ınio das ciˆencias naturais e das ciˆencias sociais. Por outro lado, tenta esbo¸car perspectivas suscet´ıveis de satisfazer os desejos da “intelligentzia” imersa na crise. A 30

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fus˜ ao dessas duas orienta¸c˜ oes – mistifica¸c˜ ao da ideia do progresso de um lado e sua nega¸ca˜o pura e simples do outro – faz nascer entre os precursores do fascismo a teoria do racismo, que antecipa uma teoria m´ıtica `a guisa de solu¸c˜ ao dos “mist´erios” da sociedade e da hist´oria. ´ E evidente que todas essas tentativas fazem parte do grande combate contra o materialismo hist´ orico, mesmo se a maior parte dos protagonistas se abstiverem de toda polˆemica expressa. Na Europa ocidental e central, o socialismo n˜ ao conquistou os intelectuais numa medida que estivesse em rela¸c˜ ao com a influˆencia real do movimento oper´ario. Essa efic´acia relativa dos fil´ osofos burgueses ´e devida, em grande parte, aos servi¸cos que o reformismo lhes prestou. Este u ´ltimo contesta ao marxismo seu car´ater de uma ideologia; para ele, Marx ´e um “cientista especializado” em economia e em sociologia, cientista cujo m´etodo e descobertas foram em parte ou no conjunto ultrapassadas pela evolu¸c˜ ao cient´ıfica. Nada mais natural que ver os reformistas quererem “completar” o marxismo pela jun¸c˜ao de Kant (Max Adler) ou de Mach (Friedrich Adler). Quanto a Bernstein, que ´e sem d´ uvida o representante mais consciente do reformismo, toma muito nitidamente posi¸c˜ ao contra a dial´etica, m´etodo “superado e enganador”. Certamente, as concep¸c˜ oes pol´ıticas do reformismo encontraram na Europa ocidental e central uma oposi¸c˜ao consider´avel, mas esta n˜ ao estava em condi¸c˜ oes de devolver ao materialismo dial´etico seus direitos. Esta fraqueza ideol´ ogica do movimento oper´ario na Europa central e ocidental reflete-se nas carˆencias ideol´ ogicas da oposi¸c˜ao democr´atica e anti-imperialista, ali´ as fraca e incapaz de combater seriamente a filosofia reacion´ aria do imperialismo.

5. O TERCEIRO CAMINHO E O MITO As considera¸c˜ oes precedentes permitem-nos passar agora ao exame dos principais problemas colocados pela filosofia do per´ıodo imperialista. Iremos estudar primeiramente a no¸c˜ ao de objetividade, baseada na teoria do conhecimento do idealismo subjetivo. J´ a falamos do “terceiro caminho” na teoria do conhecimento. Sua origem remonta em parte a Nietzsche, em parte a Mach e Avenarius e vai, passando por Husserl, at´e a ontologia existencialista, que reconhece uma existˆencia independente da consciˆencia, mas persiste em seguir o antigo m´etodo idealista quanto ` a defini¸c˜ ao, o conhecimento e a interpreta¸c˜ao dessa 31

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existˆencia. As teorias do conhecimento dominantes do per´ıodo precedente negam a inteligibilidade da realidade objetiva. O “terceiro caminho”, que mant´em intactos todos os princ´ıpios da teoria do conhecimento do idealismo subjetivo, escamoteia seus limites, apresentando a quest˜ao de uma maneira a parecer admitir implicitamente que as ideias e as no¸c˜oes que existem apenas na consciˆencia s˜ ao elas mesmas realidades objetivas. Vejamos, portanto, qual ´e a realidade de que fala esta filosofia. (Notar, de passagem, que a filosofia burguesa fala sempre da polaridade idealismorealismo, sem mesmo pronunciar a palavra materialismo.) Mach e os neokantianos elaboram uma teoria do conhecimento que se limita a fazer concess˜ oes terminol´ ogicas ` as ciˆencias naturais e esfor¸ca-se por aparar as arestas do “realismo ingˆenuo” dos s´abios. Assim como para Berkeley, ideias e realidades s˜ ao idˆenticas para eles. A realidade de que falam torna-se assim efetivamente una e indivis´ıvel – mas ´e a realidade do idealismo subjetivo. Esse novo agnosticismo est´a entretanto longe de ser semelhante ao do per´ıodo precedente, ao qual Engels pˆode com raz˜ao chamar de “ate´ısmo envergonhado”, porque a doutrina segundo a qual a realidade ´e incognosc´ıvel significava simplesmente a recusa da filosofia em tirar consequˆencias ideol´ ogicas das descobertas das ciˆencias naturais. A escola de Mach ultrapassa de muito essa aspira¸c˜ ao puramente negativa, pois seu agnosticismo volta a afirmar que as descobertas das ciˆencias naturais est˜ao em perfeita harmonia com qualquer ideologia reacion´aria. Mas, chegada a esse ponto, a evolu¸c˜ao da filosofia n˜ao parou. A va´ riante moderna do agnosticismo torna-se m´ıstica e criadora de mitos. E imposs´ıvel subestimar aqui a influˆencia decisiva de Nietzsche na evolu¸c˜ao do conjunto do pensamento imperialista: poder-se-ia mesmo dizer que ele criou o arqu´etipo da mitifica¸c˜ ao. Sem nos querer estender longamente sobre os temas principais desses mitos, insistiremos no papel que neles desempenham o corpo e a carne. Nietzsche rompe efetivamente com a espiritualidade abstrata e a moral pequeno-burguesa da filosofia oficial. Sua teoria do conhecimento e sua moral afirmam e defendem os direitos do corpo, sem fazer nenhuma concess˜ ao ao materialismo filos´ofico. Ora, o aspecto filos´ ofico de um corpo assim privado de toda mat´eria s´o pode ser m´ıtico. A´ı est´ a um elemento desse biologismo particular e dessa psicologia que repousam em pretensas bases biol´ ogicas, que tomam em Nietzsche o lugar de uma concep¸c˜ ao social. Essa introdu¸c˜ao est´a completa e por assim dizer coroada pela perspectiva m´ıtica da evolu¸c˜ao da humanidade, pela aceita¸c˜ ao do imperialismo, pela cria¸c˜ ao da no¸c˜ao de uma aristocracia nova 32

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e pela nega¸c˜ ao do socialismo, ao qual op˜ oe seu mito biol´ogico. Todas as bases filos´ oficas do racismo encontram-se assim preparadas. Contentar-nos-emos igualmente em fazer algumas observa¸c˜oes de princ´ıpio a respeito de alguns outros mitos (Bergson, Spengler, Klages etc.), sem coment´ a-los em detalhe. Digamos logo que n˜ ao ´e preciso confundir os mitos assim formados com certos elementos de sistemas filos´oficos antigos, a despeito do apecto ` as vezes tamb´em m´ıtico desses u ´ltimos. Desde que abandona o agnosticismo, o idealismo, qualquer que seja, cai na fabrica¸c˜ao de mitos, porque est´ a for¸cado a atribuir ` as constru¸c˜oes puras do esp´ırito um papel de realidade na explica¸c˜ ao dos fenˆ omenos reais. Quanto mais um sistema filos´ ofico se aproxima do idealismo objetivo, mais denota essa tendˆencia de fabricar mitos: o “Ich” de Fichte mostra-o mais fortemente que o “Bewusstsein u ¨berhaupt” de Kant e o “Weltgeist” de Hegel ainda mais claramente que a constru¸c˜ao fichteana. S´o que essas constru¸c˜ oes do esp´ırito tomadas por realidades contˆem ainda, nesse est´ agio, os elementos de uma explora¸c˜ ao completamente leal da realidade. ´ ainda perfeitamente poss´ıvel reconhecer em toda parte os elementos de E realidade dos quais essas constru¸c˜ oes do esp´ırito s˜ao ao mesmo tempo a primeira revela¸c˜ ao e a representa¸c˜ ao desfigurada no plano do pensamento. Essas constru¸c˜ oes de aparˆencia m´ıtica s˜ ao apenas, na verdade, a bruma da filosofia, que precede o nascer do sol do conhecimento. A situa¸c˜ ao ´e completamente diferente quando consideramos a filosofia do per´ıodo imperialista. Aqui, a constru¸c˜ ao do esp´ırito, o mito, op˜oese primeiramente ao conhecimento cient´ıfico; a primeira miss˜ao do mito ´e dissimular e tornar obscuras as consequˆencias sociais das aquisi¸c˜oes da ciˆencia. Desde o in´ıcio desse per´ıodo da filosofia, a mitifica¸c˜ao nietzscheana assume esse papel em rela¸c˜ ao ` as descobertas do darwinismo. Na ´epoca da filosofia cl´ assica, o mito se apresentava sob o aspecto do pr´oprio conhecimento cient´ıfico, ao passo que, na filosofia da fase imperialista, representa uma atitude, uma rela¸c˜ ao com o mundo, que seria, por assim dizer, de uma essˆencia superior ` a que ´e acess´ıvel ao conhecimento cient´ıfico e que vai at´e mesmo condenar a ciˆencia. A fun¸c˜ ao social da ideologia, isto ´e, dos mitos, ´e, portanto, atualmente, a seguinte: sugerir uma concep¸c˜ao do mundo que corresponda ` a da filosofia do imperialismo, onde quer que a ciˆencia se mostre incapaz de oferecer uma vis˜ ao de conjunto, e substituir a perspectiva oferecida pela ciˆencia, cada vez que esta contradisser a concep¸c˜ao proposta pela filosofia paradoxal do est´ agio do imperialismo: a filosofia mant´em de um lado a teoria do conhecimento do idealismo subjetivo herdada do 33

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agnosticismo, mas, por outro lado, estamos em presen¸ca de uma fun¸c˜ao completamente nova desse agnosticismo, fun¸c˜ao que consiste em criar um novo pseudo-objetivismo, franqueando o limite que o separa do mito.

˜ E IRRACIONALISMO 6. INTUIC ¸ AO O novo objetivismo pressup˜ oe a existˆencia de um instrumento novo de conhecimento. Uma das preocupa¸c˜ oes essenciais da filosofia moderna consiste em opor essa nova atitude, esse novo instrumento do conhecimento, que ´e a intui¸c˜ ao, ao pensamento racional e discursivo, conquanto na realidade a intui¸c˜ ao fa¸ca parte, psicologicamente, de todo m´etodo cient´ıfico do conhecimento. No plano psicol´ ogico, a intui¸c˜ao pretende ser, com efeito, mais concreta e mais sint´etica que a reflex˜ao discursiva, que trabalha com no¸c˜ oes abstratas. Sem d´ uvida, isto ´e apenas uma ilus˜ao, porque a intui¸c˜ao, considerada ` a luz da psicologia, nada mais ´e do que a entrada brusca na ´ eviconsciˆencia de um processo de reflex˜ ao at´e ent˜ao subconsciente. E dente que todo pensamento cient´ıfico escrupuloso deve ter por principal miss˜ ao integrar esse processo inconsciente no seu pr´oprio sistema racional. Essa ado¸ca˜o deve ser completamente orgˆanica, para que seja quase imposs´ıvel distinguir a posteriori os resultados da reflex˜ao discursiva dos da intui¸c˜ ao. Estabele¸camos, portanto, de uma vez por todas, que na realidade a intui¸c˜ ao n˜ ao ´e o contr´ ario, mas o complemento do pensamento discursivo e que seu emprego n˜ ao poderia ser jamais um crit´erio da verdade. A observa¸c˜ ao psicol´ ogica superficial da reflex˜ao cient´ıfica ´e que engendra a ilus˜ ao segundo a qual a intui¸c˜ ao seria um instrumento independente do pensamento discursivo e destinado ` a compreens˜ao das verdades superiores. Essa ilus˜ ao, que consiste em confundir um m´etodo subjetivo de trabalho com uma metodologia objetiva e que ´e mantida pelo subjetivismo geral pr´ oprio da filosofia do est´ agio imperialista, servir´a portanto de base a todas as teorias modernas da intui¸c˜ ao. Encontra-se ainda refor¸cada por certas falsas referˆencias ao m´etodo dial´etico. A filosofia subjetiva admite com efeito de bom grado a origem da polaridade dial´etica pela via discursiva, conquanto atribua a solu¸c˜ ao (devida ` a s´ıntese) `a intui¸c˜ao, que opera num ´ evidente que ´e um erro, porque a verdadeira dial´etica plano mais elevado. E d´ a a toda s´ıntese uma express˜ ao perfeitamente racional e n˜ao reconhece a nenhuma s´ıntese um car´ ater definitivo e absoluto. O pensamento dial´etico, que reflete a realidade efetiva, constitui sempre, por essa mesma raz˜ao, um 34

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sistema discursivo. Eis porque a intui¸c˜ ao, enquanto instrumento do conhecimento ou elemento de uma metodologia cient´ıfica, n˜ao poderia encontrar nenhum lugar na dial´etica. Tudo isto foi ali´ as explicado claramente por Hegel, em resposta a Schelling, na introdu¸c˜ ao da Fenomenologia. A filosofia do est´ agio do imperialismo atribui `a intui¸c˜ao um lugar central na sua metodologia objetiva. A intui¸c˜ ao adquiriu esse lugar preponderante, antes de mais nada porque os fil´ osofos abandonaram o formalismo do conhecimento, pr´ oprio ao per´ıodo precedente. Estavam de fato obrigados a afastar-se dele, porque a pr´ opria procura de uma ideologia obrigava-os a colocar a quest˜ ao do conte´ udo da filosofia, enquanto a teoria do conhecimento pr´ opria ao idealismo subjetivo esgota-se fatalmente na an´alise n˜ao dial´etica de no¸c˜ oes puramente especulativas. Desde que a reflex˜ao pretenda ultrapassar esses limites, e almeje o conhecimento filos´ofico concreto, deve necessariamente recorrer de um lado ` a teoria materialista, segundo a qual o pensamento ´e capaz de refletir o mundo exterior real e, por outro lado, ao sistema discursivo universal da dial´etica. Deve considerar esse sistema n˜ ao somente como uma doutrina da correla¸ca˜o est´atica de entidades do mundo exterior, mas como uma lei universal da evolu¸c˜ao progressiva e da hist´ oria racional. A filosofia moderna serve-se do falso aspecto da intui¸c˜ao para abandonar aparentemente tanto o formalismo do conhecimento como o idealismo subjetivo e o agnosticismo, conquanto conservando-os sobre bases que parecem inatac´ aveis. Nessas condi¸c˜ oes, o objeto dessa filosofia, a finalidade ideol´ogica que se prop˜ oe atingir, dar-se-´ a sempre como uma realidade de essˆencia superior e qualitativamente diferente daquilo que ´e acess´ıvel `a reflex˜ao discursiva. Gra¸cas a esse subterf´ ugio, a pr´ opria no¸c˜ ao da intui¸c˜ao parecer´a ser a prova ´ aqui que a nega¸c˜ao de toda irrefut´ avel de um conhecimento superior. E cr´ıtica anal´ıtica torna-se uma quest˜ ao de vida ou de morte para a filosofia nova. Nos sistemas filos´ oficos antigos desse gˆenero e mesmo em certa m´ısticas religiosas antigas, a defesa da intui¸c˜ ao estava assegurada por uma teoria aristocr´ atica do conhecimento. Essa u ´ltima afirma, desde o in´ıcio, que todo o mundo n˜ ao ´e suscet´ıvel de compreender a realidade superior de uma maneira intuitiva. Aquele que procura encaixar as descobertas intuitivas num quadro racional prova, por conseguinte, que n˜ao ´e capaz de ascender ` a realidade superior por via intuitiva. Como n˜ ao pensar no conto de Andersen, onde os que n˜ao vˆeem o traje maravilhoso do rei – que na verdade passeava completamente nu – eram proclamados desonestos? A teoria do conhecimento da intui¸c˜ao presta 35

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ali´ as servi¸cos apreci´ aveis, porque as “realidades” apreens´ıveis pela intui¸c˜ao ´ ao de um conhecimento s˜ ao de natureza arbitr´ aria e incontrol´ avel. Org˜ pretensamente superior, a intui¸c˜ ao serve ao mesmo tempo para justificar o arbitr´ ario. Uma r´ apida recapitula¸c˜ ao nos permitir´a melhor compreender o essencial da filosofia no est´ agio do imperialismo. A filosofia do per´ıodo cl´assico colocava o problema da ideologia sob o signo do conhecimento cient´ıfico. Em outras palavras, sua ideologia era a ideologia da ciˆencia. A filosofia do per´ıodo de transi¸c˜ ao tra¸cava-se limites intranspon´ıveis justamente onde terminava o conhecimento registrado pelas ciˆencias especializadas. A filosofia no est´ agio do imperialismo aceita esses limites, pretendendo criar uma nova ideologia supracient´ıfica ou anticient´ıfica, gra¸cas `a intui¸c˜ao, novo instrumento do conhecimento. Essa nova ideologia procura antes de tudo destronar a raz˜ao. Os precursores dessa orienta¸c˜ ao s˜ ao Schopenhauer e Kierkegaard, assim como o romantismo filos´ ofico. Dilthey ´e o homem da transi¸c˜ao para a nova ´epoca da qual Nietzsche, Bergson, Spengler, Klages e enfim o existencialismo marcam as etapas mais importantes. Ainda uma vez: a base, no plano da teoria do conhecimento, ´e sempre o agnosticismo e o relativismo que o acompanha. A u ´nica diferen¸ca ´e que a nova filosofia vai mais longe que a antiga na sua ofensiva contra o pensamento racional. Simmel, em um dos seus livros, esbo¸ca uma cr´ıtica do conjunto dos u ´ltimos resultados da ciˆencia atual, para compar´ a-la ` as cr´ıticas que formulava o racionalismo nascente contra as supersti¸c˜ oes da Idade M´edia e conclui que temos todas as raz˜ oes para crer que os s´eculos que vir˜ao ter˜ao de nossas ciˆencias uma opini˜ ao an´ aloga ` aquela que temos das cren¸cas supersticiosas da Idade M´edia. Esse agnosticismo relativista, esse ceticismo a respeito de tudo, conduz em linha reta ao mito da filosofia atual, cujo valor central ´e o anti-racionalismo, e at´e o irracionalismo ou, em todo caso, a aceita¸c˜ao de m´etodos e realidades supra-racionais. Antes da primeira guerra mundial, Bergson foi o precursor em maior evidˆencia dessa filosofia. A crise geral que se seguiu a 1918, transformou o irracionalismo em uma filosofia concreta da hist´ oria, a qual terminou por levar, atrav´es de Spengler, Klages e Heidegger, ` as vis˜ oes infernais do fascismo. Analisando os objetos propriamente ditos desse supra-racionalismo, veremos os la¸cos estreitos que o ligam a sistemas filos´oficos mais antigos. Veremos tamb´em que no fundo apenas atualiza certos pontos fracos da filosofia burguesa. Toda filosofia antidial´etica, portanto desprovida de com36

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preens˜ ao verdadeira para a hist´ oria, engana-se sobre a realidade ao fazer do presente uma “lei eterna” ou uma “existˆencia eterna”. Na ´epoca em que florescia a f´e em um capitalismo eterno, era regra, mesmo para os historiadores com tendˆencias empiristas, projetar sobre toda a hist´oria as no¸c˜ oes essenciais do capitalismo (por exemplo Mommsen). A moral abstrata da filosofia kantiana refor¸cava estas concep¸c˜oes. No momento da crise do imperialismo, quando tudo vacila e tudo est´a em vias de desmoronar, a “intelligentzia” burguesa obrigada a duvidar das verdades que ela acreditava eternas, encontra-se diante de uma alternativa filos´ofica. De um lado, deve reconhecer-se incapaz de abarcar intelectualmente toda a verdade. Neste caso, a pr´ opria realidade n˜ ao estaria privada de seu car´ater racional, o que provaria a falˆencia do pensamento burguˆes. Ora, a burguesia n˜ ao pode reconhecer sua falˆencia porque seria preciso ent˜ao aderir ao socialismo. Eis porque a filosofia burguesa deve fatalmente se orientar em dire¸c˜ ao ao outro termo da alternativa e declarar a falˆencia da raz˜ao. A filosofia est´ a em condi¸c˜ oes de cumprir esta opera¸c˜ao, considerando a raz˜ao como uma atitude subjetiva relativamente ao mundo real, o qual, por seu lado, abriria a todo instante brechas nesta raz˜ao subjetiva (cf. Scheler, ´ necess´ario entretanto recoBenda, Val´ery, “a impotˆencia da raz˜ ao”). E nhecer que este esquema n˜ ao corresponde ` a orienta¸c˜ao geral da filosofia da crise. Segundo os pensadores em maior evidˆencia, nessa ´epoca, na verdade a raz˜ ao n˜ ao existe, a verdadeira realidade, a realidade superior, ´e irracional e supra-racional. O dever da filosofia ´e antes de tudo levar em conta este dado fundamental da existˆencia humana e ´e assim que se constitui o irracionalismo, ideologia da filosofia da crise. A evolu¸c˜ ao em dire¸c˜ ao a este objetivo est´ a tamb´em sublinhada e acelerada pelo fato de que o capitalismo, e em particular o imperialismo, destr´oi ou pelo menos restringe de uma maneira extrema toda margem de liberdade necess´ aria ao desenvolvimento da personalidade. O exame abstrato ´ de um deste problema abre possibilidades a duas rea¸c˜oes diferentes. E, lado, perfeitamente poss´ıvel explicar esta situa¸c˜ao a partir da ordem social e econˆ omica do capitalismo e da´ı tirar as consequˆencias que se imp˜oe. Nos prim´ ordios do per´ıodo imperialista, esta atitude est´a presente, se bem que sob formas bastante incertas, como por exemplo no ataque romˆantico de Nietzsche contra a cultura capitalista, na “Kulturkritik” geral de Simmel e em sua teoria do “tr´ agico da cultura”. Mas todas estas formas incertas terminam por atingir um “terceiro caminho”, isto ´e, uma apologia indireta do capitalismo. Enquanto que em Nietzsche a vis˜ao m´ıtica de uma 37

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sociedade nova ocupa o primeiro plano, em Simmel o retorno do indiv´ıduo sobre si mesmo, o voltar-se para a interioridade pura encontram-se facilitados pelo fetichismo r´ıgido que reina na sociedade capitalista. Simmel utiliza-se desse “racionalismo” frio do mundo capitalista fetichizado como de um trampolim, para chegar ao irracionalismo pretensamente superior de uma existˆencia puramente individualista. ´ aqui que encontramos o elemento mais importante da ideologia irraciE onalista: transformar, mistificando-a, a condi¸c˜ao do homem do capitalismo imperialista em uma condi¸c˜ ao humana geral e universal. O cumprimento desta tarefa exige um desdobramento do m´etodo. Tudo que ´e social, racional e conforme ` as leis da evolu¸c˜ ao ser´ a declarado inumano e inimigo da personalidade. A personalidade ser´ a declarada anti-racional e irracional por sua pr´ opria natureza. Notemos de passagem, que as origens desta atitude j´ a se encontram entre os primeiros neokantianos, tais como Windelband e Rickert. As diversas variantes mistificadas desta atitude correspondem por sua vez perfeitamente ` as necessidades universais da ´epoca, que se resumem sob o signo do “terceiro caminho”. Com efeito, desde que se conseguiu opor a raz˜ ao, inumana e inferior, ` a realidade superior, humana e irracional, capitalismo e socialismo apresentam-se como duas entidades inteiramente semelhantes, que se colocam num mesmo plano, posto que ambas foram criadas pela fria raz˜ ao. Ambos, contudo, devem ser combatidos, em nome da personalidade, categoria puramente individual (cf. Klages, o c´ırculo de ´ necess´ Stefan George). E ario acrescentar que o fascismo adota integralmente esta metodologia, limitando-se somente a complet´a-la com algumas exposi¸c˜ oes grosseiramente demag´ ogicas?...

7. OS SINTOMAS DA CRISE Examinemos agora, sumariamente, a metodologia do irracionalismo. Hegel j´ a demonstrou que desde que se descubram as contradi¸c˜oes necess´ arias da raz˜ ao, isto ´e, do pensamento discursivo, o problema que se ´ `a dial´etica que coloca apresenta-se sob o aspecto imediato do irracional. E cabe agora a tarefa de colocar em evidˆencia a s´ıntese superior dos termos contradit´ orios, e quando se desincumbe bem desta tarefa podemos verificar que a raz˜ ao superior resulta precisamente das antinomias necess´arias do racioc´ınio discursivo, as quais haviam produzido uma aparˆencia de irracionalidade. 38

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Mas, como vimos, o m´etodo dial´etico n˜ ao tem lugar na filosofia do per´ıodo imperialista. Esta se det´em, com efeito, simplesmente na irracionalidade que se manifesta nas contradi¸c˜ oes necess´arias da raz˜ao discursiva. Transforma a quest˜ ao colocada, desfigurando-a, em resposta e, da contradi¸c˜ ao que encerra a posi¸c˜ ao provis´ oria do problema, fabrica dois mundos distintos: de um lado, a raz˜ ao impotente e desumana e, de outro, a “realidade inintelig´ıvel” e “superior” que s´ o ´e acess´ıvel `a intui¸c˜ao. As rela¸c˜ oes das ciˆencias especializada, as que foram produzidas pela divis˜ ao capitalista do trabalho, apresentam o mesmo problema. Na sociedade em que vivemos, as ciˆencias especializadas est˜ ao, com efeito, rigorosamente separadas umas das outras. Cada uma delas possui seu pr´oprio m´etodo formalista, baseado nas categorias n˜ ao dial´eticas do entendimento. Eis porque certas correla¸c˜ oes que qualquer uma das ciˆencias especializadas pode perfeitamente bem tratar, conquanto dependente de seu dom´ınio, n˜ao poden ser consideradas por uma outra ciˆencia especializada sen˜ao como dados irracionais. A filosofia do direito do neokantiano Kelsen fornece um exemplo caracter´ıstico deste fenˆ omeno. Examinando o problema do direito, problema que a sociologia da ´epoca podia bem ou mal tratar, Kelsen viuse obrigado a concluir que as origens de toda legisla¸c˜ao constituem para a ciˆencia do direito “um grande mist´erio”. A validade formal do direito de que trata a ciˆencia jur´ıdica torna-se contudo um mist´erio inteiramente an´ alogo para os economistas burgueses... A necessidade social de uma ideologia unificada d´a origem, a fim de suplantar estas necessidades especulativas, ` a teoria das ciˆencias e ao seu quadro hist´ orico. Contrariamente aos fil´ osofos menores do per´ıodo precedente, procura-se a totalidade e a unidade. Mas, como o demonstramos, os pesquisadores seguem um caminho falso. Na realidade, seria perfeitamente poss´ıvel estabelecer a base comum de todas as ciˆencias pelo estudo da evolu¸c˜ ao da sociedade, determinada pelo fator econˆomico. Ora, ´e evidente que o pensamento burguˆes moderno n˜ ao pode adotar esse caminho, que conduziria ` a reforma de todas as ciˆencias pelo m´etodo da dial´etica materialista. O est´ agio do imperialismo n˜ ao soube e n˜ao quis resolver as contradi¸c˜ oes fundamentais, encontradas pelas ciˆencias especializadas oriundas da divis˜ ao capitalista do trabalho, devido a sua metodologia antidial´etica. N˜ ao pode resolvˆe-las porque, como j´ a vimos, retomou, sem modifica¸c˜ao, o idealismo subjetivo, que ´e a base filos´ ofica da metodologia das ciˆencias especializadas. ´ unicamente na mitifica¸c˜ E ao das rela¸c˜ oes irracionais que a s´ıntese espe39

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culativa seria capaz de oferecer qualquer coisa de novo. Desde a “intui¸c˜ao genial” de Dilthey, a intui¸c˜ ao tornou-se o m´etodo essencial da s´ıntese especulativa. Deu origem a toda uma s´erie de s´ımbolos m´ıticos e fetichizados que uma nova mitifica¸c˜ ao converter´ a em figuras pretensamente reais, mas puramente individuais e irracionais. Afinal, tudo isto s´ o leva a pseudo-solu¸c˜oes, `as vezes muito espirituais, de todos os problemas da filosofia. O arbitr´ario “genial” da intui¸c˜ao, torna-se o m´etodo geral da filosofia. Se Nietzsche n˜ao fez nenhum esfor¸co para camuflar este arbitr´ ario, mais tarde tudo foi tentado para dar-lhe uma aparˆencia de objetividade. Esse mascaramento atinge sua forma mais refinada quando a fenomenologia puramente especulativa torna-se a assim chamada contempla¸c˜ ao da realidade, isto ´e, a ontologia existencialista. A solu¸c˜ ao ´e, entretanto, apenas uma pseudo-solu¸c˜ao, porque a despeito de todos os m´etodos novos, todos os mitos brilhantes ou sombrios e “profundos”, os grandes problemas da filosofia permanecem todos sem resposta e pode-se mesmo dizer que, em rela¸c˜ ao ao per´ıodo cl´assico, a filosofia moderna representa, sob muitos aspectos, um recuo consider´avel. Entre as grandes quest˜ oes que a filosofia moderna se mostra decididamente incapaz de resolver, citamos em primeiro lugar o das rela¸c˜oes entre o pensamento e a realidade, quest˜ ao insepar´avel da estrutura interna da l´ ogica. O triunfo do irracionalismo representa igualmente um recuo, porque, para o irracionalismo, a contradi¸c˜ao entre a reflex˜ao l´ogica n˜ao dial´etica e a realidade se apresenta como uma contradi¸c˜ao absoluta e insuper´ avel. O irracionalismo significa, ent˜ao, de um lado, a justifica¸c˜ao filos´ ofica dos mitos arbitr´ arios, e de outro, a submers˜ao da filosofia espe´ precisamente a reivindica¸c˜ao da superioridade culativa na l´ ogica formal. E da intui¸c˜ ao que encerra a filosofia na pris˜ao dessa l´ogica formal, da qual a dial´etica da filosofia cl´ assica j´ a havia conseguido escapar. O problema da liberdade e do determinismo ´e da mesma ordem. Conquanto a filosofia cl´ assica e, em primeiro lugar, Hegel tenham conseguido esclarecer, em larga medida, as rela¸c˜ oes que unem esses dois termos, encontramonos hoje em face de uma no¸c˜ ao abstrata, hipostasiada e absurda da liberdade, oposta a um fatalismo r´ıgido e mecˆanico. Nietzsche, Spengler e ultimamente Sartre ilustram perfeitamente nossa tese. A “concep¸c˜ao do mundo” fascista ´e apenas a caricatura desta dualidade abstrata e r´ıgida, que se tornou absurda. O fascismo representa, com efeito, a crise da filosofia burguesa moderna. S´ o que esta caricatura foi ao mesmo tempo uma realidade sangrenta que 40

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n˜ ao durou muito tempo. E ´e talvez um dos sintomas mais importantes da crise da filosofia burguesa o ter dado origem `a pretensa ideologia do fascismo, da qual a u ´nica contribui¸c˜ ao consiste em uma vulgariza¸c˜ao demag´ ogica da filosofia burguesa do est´ agio do imperialismo, tal como se ´ ainda pela mesma raz˜ao que, no encontra originariamente em Nietzsche. E plano ideol´ ogico, s´ o o materialismo dial´etico desenvolveu uma resistˆencia ativa contra o fascismo. Certamente, o humanismo antifascista levantou muitas vezes seu protesto contra certos fatos do fascismo e mesmo contra o fato b´ arbaro do pr´ oprio fascismo, sem poder, entretanto, opor aos mitos arbitr´ arios e ` a pretensa ideologia do fascismo uma ideologia progressista e eficaz, que fosse verdadeiramente digna desse nome. No plano social, a u ´nica diferen¸ca entre o existencialismo francˆes e o pr´e-fascista Heidegger ´e a seguinte: o existencialismo levantou seu protesto arbitr´ ario n˜ ao contra o conjunto da crise, mas contra o fascismo em particular. Mas seu protesto permanece tamb´em abstrato, e isto n˜ao se deve ao acaso. A maior parte dos pensadores antifascistas partem com efeito, ideol´ ogica e metodologicamente, do mesmo plano que seus advers´arios. Salvar Nietzsche ou Schopenhauer, tornando-os pensadores humanistas, era uma opera¸c˜ ao destinada ao fracasso frente ao fascismo, que tinha a vantagem, a despeito de toda a sua vulgaridade, de ser seu verdadeiro continuador espiritual. A crise da filosofia burguesa ainda perdura. O fato de que a liberta¸c˜ao, o fim do terror intelectual do fascismo, n˜ ao pˆ ode produzir uma mudan¸ca na filosofia burguesa, denuncia a crise. Contrariamente `a vanguarda da literatura, a filosofia burguesa encontra-se exatamente no ponto em que estava no momento do surgimento do fascismo. Desse ponto de vista, o ´ somente o existencialismo ´e tamb´em uma das manifesta¸c˜oes da crise. E materialismo dial´etico que anima com vida real os problemas do mundo novo e que os integra organicamente em sua ideologia. Ningu´em poder´ a prever, no momento, quanto tempo a sociedade capitalista pode ainda durar e em que momento o socialismo a suceder´a. Mas nada indica que a burguesia seja ainda hoje capaz de criar uma ideologia autˆ onoma, universal e progressista.

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Cap´ıtulo II

Da Fenomenologia ao Existencialismo “Tudo se passa como se o mundo, o homem e o homem-no-mundo conseguissem realizar apenas um Deus imperfeito.” ˆ (J.-P. Sartre: L’Etre et le N´eant) Sem d´ uvida nenhuma, o existencialismo tornar-se-´a dentro em breve a corrente espiritual dominante dos intelectuais burgueses de nosso tempo. Essa evolu¸c˜ ao prepara-se h´ a muito tempo. Depois do aparecimento de Sein und Zeit, de Heidegger, a vanguarda espiritual vˆe no existencialismo a promessa de um renascimento da filosofia e a express˜ao adequada da ideologia da nossa ´epoca. Desde antes do fim da guerra, o existencialismo havia invadido o Ocidente. Durante os anos da luta sangrenta e sem mercˆe contra a Alemanha, os existencialistas alem˜ aes mais evidentes, assim como o precursor de seu m´etodo, Husserl, fizeram grandes conquistas na Fran¸ca e na Am´erica e at´e na Am´erica Latina. A obra fundamental do existencialismo ocidental, a que citamos em ep´ıgrafe neste cap´ıtulo, apareceu em 1943 e, desde essa data assistimos ` a marcha triunfal e irresist´ıvel do existencialismo, nas discuss˜ oes filos´ oficas, nas revistas especializadas, assim como nos romances e pe¸cas de teatro. 43

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´ 1. O METODO ENQUANTO COMPORTAMENTO Trata-se de uma moda passageira, destinada a durar no m´aximo alguns anos, ou antes uma filosofia nova, fadada a fazer ´epoca? A quest˜ao n˜ao poderia ser decidida, em u ´ltima instˆ ancia, sen˜ao pelo exame das raz˜oes de ser dessa nova filosofia; em outras palavras, ser´a necess´ario saber de in´ıcio a profundidade, na alma dos protagonistas, da representa¸c˜ao do mundo que tomaram por base de sua nova ideologia e como esta coloca e apreende os problemas essenciais com os quais se debate a humanidade atual. Ser´ a preciso portanto medir o lugar que o objeto dessa filosofia nova pode e deve ocupar na vida do homem; ser´ a preciso examinar seu m´etodo enquanto comportamento humano. Qual ´e o ponto de partida dessa filosofia, para quais objetivos se dirige, o que apreende no caminho de sua evolu¸c˜ao? Abarca a totalidade da existˆencia humana, como seria o caso, nos limites espec´ıficos de sua ´epoca, para cada um dos grandes sistemas filos´oficos, ou antes oferece-nos apenas uma representa¸c˜ao fragment´aria e desfigurada do mundo, constitu´ıda sob o signo de um partipris, pr´oprio a uma camada social sem base profunda? Tais s˜ ao as quest˜oes `as quais ser´a preciso procurar a resposta, pois ´e somente assim que saberemos se nos encontramos em face de uma preocupa¸c˜ ao passageira ou de uma filosofia nova, destinada a durar. Uma cr´ıtica filos´ ofica puramente universit´aria, que n˜ao incorporasse as considera¸c˜ oes que precedem, seria apenas v˜a pedanteria. (N˜ao queremos repetir o exemplo daqueles que reprovam `a dial´etica hegeliana seus “erros de l´ ogica”.) Todas as grandes filosofias que marcaram ´epoca na hist´oria do pensamento fundavam-se no emprego de um m´etodo original. Assim foi para Plat˜ ao e para Arist´ oteles, para Descartes, Spinosa, Kant, Hegel e tantos outros. Vejamos portanto a originalidade do m´etodo existencialista. Declarar que o existencialismo deriva da fenomenologia de Husserl n˜ao seria uma resposta satisfat´ oria ` a quest˜ ao que colocamos. Quem sonharia, ali´as, contestar a originalidade de Spinosa, invocando os empr´estimos que lhe fez Descartes? Husserl n˜ ao foi existencialista, mas o m´etodo fenomenol´ogico influenciou profundamente o existencialismo. A quest˜ ao essencial ´e, entretanto, saber quais foram as contribui¸c˜oes verdadeiramente novas desse m´etodo. Repetimos que esse problema n˜ao depende da filosofia enquanto ciˆencia especializada, mas do exame da ati44

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tude da filosofia enquanto comportamento humano abstrato, em face das grandes quest˜ oes da humanidade de nosso tempo. Considerando a quest˜ao desse ˆ angulo, veremos que a fenomenologia moderna ´e um desses numerosos m´etodos filos´ oficos que se prop˜ oem ultrapassar tanto o idealismo como o materialismo, engajando-se num “terceiro caminho” do pensamento e fazendo da intui¸c˜ ao a fonte de todo conhecimento verdadeiro. Desde Nietzsche, passando por Mach e Avenarius at´e Bergson e mesmo al´em, a maior parte dos pensadores burgueses modernos orientam-se nesse sentido. A Wesensschau de Husserl representa apenas uma etapa dessa revolu¸c˜ao. Essa constata¸c˜ ao por si pr´ opria n˜ ao poderia, entretanto, constituir um argumento decisivo contra o m´etodo fenomenol´ ogico. Para poder responder a nossa quest˜ ` ao, ´e necess´ ario primeiramente apreciar no seu justo valor filos´ ofico e hist´ orico o “terceiro caminho” e determinar o lugar da intui¸c˜ao no processo do conhecimento. Existe um “terceiro caminho” fora do idealismo e do materialismo? Para quem considera a quest˜ ao de modo s´erio, no esp´ırito das grandes filosofias do passado, desdenhando as frases ocas de certos pensadores modernos, a resposta s´ o pode ser negativa. H´ a, com efeito, duas possibilidades: primado da existˆencia sobre a consciˆencia ou, inversamente, primado da consciˆencia sobre a existˆencia. Os sistemas filos´oficos em voga, que se orientam para o “terceiro caminho”, colocam habilmente a correla¸c˜ao da existˆencia e da consciˆencia, proclamando que uma n˜ao poderia existir sem a outra. Por essa afirma¸c˜ ao chega-se a expulsar o idealismo pela porta, para fazˆe-lo voltar pela janela, porque admitindo-se que a existˆencia n˜ao pode existir sem a consciˆencia, abandona-se o materialismo, segundo o qual a existˆencia ´e independente da consciˆencia. Tal ´e a cruel realidade do per´ıodo imperialista, que impˆos aos pensadores burgueses o “terceiro caminho” nas suas pesquisas filos´oficas. O idealismo intransigente n˜ ao pode afirmar-se abertamente sen˜ao em uma ´epoca de estabilidade sem choque. Lembremo-nos da anedota de Goethe sobre o idealismo subjetivo de Fichte. Um dia, no transcurso de uma manifesta¸c˜ao na Universidade, os estudantes quebraram as janelas de seu professor e Goethe aproveitou para declarar: “Eis uma ocasi˜ao bem desagrad´avel para Fichte convencer-se da realidade do mundo exterior”. Este incidente material an´ odino foi seguido, no dom´ınio espiritual, de destrui¸c˜ oes de uma amplitude sem precedente na hist´oria. Uma das primeiras v´ıtimas dessas destrui¸c˜ oes foi o idealismo filos´ofico sincero. Abstra¸c˜ao feita de alguns pensadores t˜ ao oficiais quanto insignificantes, os u ´ltimos 45

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idealistas foram frequentemente invadidos por uma resigna¸c˜ao profunda e foram obrigados a reconhecer a falˆencia do idealismo em face do mundo real (Val´ery, Benda etc.). O ascetismo pequeno-burguˆes dos idealistas de meados do u ´ltimo s´eculo deveria igualmente contribuir para preparar o decl´ınio do antigo idealismo. Vimos que desde Nietzsche, o corpo reconquistou direito de cidadania na filosofia burguesa. O pensamento moderno exige um aparelho conceituai pr´ oprio para demonstrar e para manter a realidade primordial das alegrias terrestres e da vida corajosa, sem entretanto fazer a menor concess˜ao ao materialismo. Essa reserva ´e de uma importˆancia capital, pois ao passo que florescia esse novo idealismo, o materialismo deveria tornar-se a ideologia do proletariado revolucion´ ario. A posi¸c˜ao de um Gassendi ou de um Hobbes tornou-se ent˜ ao indefens´ avel para os pensadores burgueses. Em suma, foi preciso abandonar o m´etodo do idealismo, mas salvaguardando todos os seus resultados e seus fundamentos: eis a necessidade hist´orica do “terceiro caminho” na existˆencia e na consciˆencia burguesa no decorrer do per´ıodo imperialista. A fenomenologia, especialmente na sua evolu¸c˜ao ap´os Husserl, acreditou descobrir na Wesensschau um instrumento de conhecimento capaz de apreender a essˆencia da realidade objetiva, sem no entanto ultrapassar a consciˆencia humana, mesmo a individual. A Wesensschau ´e uma esp´ecie de introspec¸c˜ ao intuitiva, que n˜ ao tem por objeto o processo de reflex˜ao em si mesmo, enquanto processo psicol´ ogico, mas a estrutura dos objetos desse processo, e a natureza do ato abstrato pelo qual a reflex˜ao p˜oe seu ´ assim que se constitui a no¸c˜ objeto. E ao fenomenol´ogica do ato e do objeto intencionais. Esse m´etodo convinha bem a Husserl, que se consagrou exclusivamente as quest˜ ` oes de l´ ogica pura. O emprego do m´etodo ´e muito menos justific´ avel em Scheler, que se volta para os problemas da moral e da sociologia, ou em Heidegger e Sartre, que estudam os u ´ltimos problemas da filosofia. Seria, com efeito, perfeitamente poss´ıvel perguntar-se se esse m´etodo est´a ou n˜ ao apto a apreender a realidade objetiva e se n˜ao ´e em si mesmo subjetivo e arbitr´ ario por sua natureza. Quando se trata das quest˜ oes decisivas da realidade social, os fenomen´ ologos facilmente resvalam para os problemas essenciais da teoria do conhecimento. Tˆem o h´ abito de apaziguar seus escr´ upulos te´oricos, declarando que o pr´ oprio do m´etodo fenomenol´ogico consiste em “pˆor entre parˆenteses” o problema da realidade do objeto intencional. A aplica¸c˜ao 46

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rigorosa desse m´etodo mostra-nos que o conhecimento da realidade ´e simplesmente inacess´ıvel ` a fenomenologia. Em Heidelberg, onde Scheler veio ver-me durante a primeira guerra mundial, tivemos uma conversa muito interessante e muito caracter´ıstica sobre esse assunto. Scheler dizia que, sendo um m´etodo universal, a fenomenologia pode tomar tudo por objeto intencional. Assim, por exemplo, disse ele, pode-se proceder perfeitamente ao exame fenomenol´ogico do Diabo, colocando anteriormente entre parˆenteses o problema de sua existˆencia. Muito bem, disse eu. Em seguida, quando a an´alise fenomenol´ogica do Diabo est´ a terminada, resta-lhe s´ o suprimir o parˆenteses e eis que o diabo surge diante de n´ os... Scheler riu, ergueu os ombros e n˜ ao respondeu nada. O que a intui¸c˜ ao fenomenol´ ogica apreende ´e verdadeiramente a realidade? Com que direito a fenomenologia fala da realidade de seu objeto? Essas quest˜ oes esclarecem cruamente o arbitr´ ario do m´etodo. Como explicar que ningu´em tenha sonhado at´e o presente em ressaltar o fato espantoso de que as “realidades” descobertas pelos representantes mais conhecidos do m´etodo intuitivo eram muito diferentes umas das outras por seu tipo e sua estrutura? A intui¸c˜ ao de Dilthey descobre, por exemplo, a “cor” do processo hist´ orico, a de Bergson identifica a realidade `a pr´opria continuidade, isto ´e, ` a dura¸c˜ ao que dissolve as formas r´ıgidas da vida cotidiana; a de Husserl, em compensa¸c˜ ao, chega a justapor de maneira r´ıgida, e por assim dizer espacial, as categorias l´ ogicas do existente. Contentavam-se com uma harmonia relativa que reinava no interior de cada escola sobre a natureza dessa realidade. Al´em do mais, os partid´ arios de intui¸c˜oes completamente opostas cooperavam num esp´ırito bastante amistoso... Essa situa¸c˜ ao espantosa explicava-se tanto pela necessidade do “terceiro caminho”, quanto por raz˜ oes ideol´ ogicas precisas. A tendˆencia dominante da filosofia no est´ agio do imperialismo consiste em negligenciar as condi¸c˜oes sociais, em consider´ a-las como dados secund´ arios, n˜ao afetando quase “a essˆencia da realidade humana”. A Wesensschau, que toma por ponto de partida absoluto os dados imediatos da experiˆencia vivida, sem analisar sua estrutura e suas condi¸c˜ oes, para chegar ` as suas u ´ltimas revela¸c˜oes abs´ assim tratas, podia facilmente aparentar total objetividade cient´ıfica. E que se constituiu um mito l´ ogico que convinha, magnificamente, `a atitude da “intelligentzia” burguesa de hoje: o mito de um mundo que se pretende objetivo, do qual o pensador proclama a existˆencia independente da 47

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consciˆencia – um mundo que a consciˆencia contenta-se em conhecer e n˜ao em criar, como nos idealistas do passado – mas um mundo cuja estrutura e essˆencia n˜ ao deixam de ser determinadas pela consciˆencia individual. Para esbo¸car uma cr´ıtica ao m´etodo fenomenol´ogico, tentaremos uma an´ alise sum´ aria de um exemplo de sua aplica¸c˜ao. Escolhemos a obra intitulada Wissenschaft als Philosophie, de Wilhelm Szilasi, disc´ıpulo bem conhecido de Husserl e de Heidegger. Escolhemo-lo de prop´osito, porque Szilasi ´e um pensador s´erio, imbu´ıdo de objetividade cient´ıfica, e n˜ao um fabricante de mitos como Scheler. Por outro lado, o exemplo que oferece presta-se muito bem a ser tratado brevemente. Szilasi come¸ca seu curso submetendo a um exame fenomenol´ogico o “ser-com-outro” (Miteinandersein) dele mesmo e de seus auditores. A Wesensschau d´ a-lhe a seguinte imagem “objetiva” do mundo exterior, isto ´e, da sala onde se encontra: “...esse espa¸co com suas t´abuas trabalhadas de diversas maneiras n˜ ao constitui uma sala de aula sen˜ao porque n´os damos esse sentido preciso a esse amontoado de madeira. Fazemo-lo porque esse sentido est´ a a priori em estreita correla¸c˜ao com nossa tarefa comum”. E, partindo dessas constata¸c˜ oes, Szilasi deduz o que segue: “A situa¸c˜ao atual do Miteinandersein determina sempre a priori o Wassein”. Seria u ´til submeter esses resultados da Wesensschau a um pequeno exame metodol´ ogico. Constatemos primeiramente que o fato de ver numa sala de aula “t´ abuas trabalhadas de diversas maneiras” em lugar de dizer simplesmente que est˜ ao l´ a mesa ou carteiras, ´e uma abstra¸c˜ao artificial ´ certamente inevit´ e primitiva. E avel do ponto de vista do m´etodo empregado, pois se Szilasi declarasse simplesmente que, por sua instala¸c˜ao, a sala de aula presta-se igualmente a ser o teatro de conferˆencias lingu´ısticas, matem´ aticas, etc., destruiria automaticamente o efeito m´agico pr´oprio `a no¸c˜ ao de experiˆencia intencional, isto ´e, a cria¸c˜ao a priori do Wassein. Apressemo-nos, entretanto, em acrescentar que o que falta nessa an´alise ´e muito mais importante do que o que nela figura. A sala de aula em quest˜ ao encontra-se em Zurique e a conferˆencia que n´os citamos ocorreu por volta de 1940. Szilasi d´ a sua conferˆencia em Z´ urique e esse fato ´e fun¸c˜ ao de diversos dados de ordem social. Antes do advento de Hitler Szilasi ministrava seus cursos em Friburgo. Em 1933, foi suspenso, e alguns anos mais tarde, teve de deixar a Alemanha, onde sua seguran¸ca pessoal estava amea¸cada. Por que a “contempla¸c˜ao da essˆencia do Miteinandersein” era incapaz de abarcar e de revelar esse conjunto de dados que s˜ao, entretanto, ao menos t˜ ao essenciais como as t´abuas trabalhadas de diversas 48

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maneiras?... Mas voltemos um instante ` as nossas t´ abuas. O fato de que estas puderam ser transformadas em mesas carteiras, etc., sup˜oe um certo grau de desenvolvimento da ind´ ustria e da pr´ opria sociedade. Seu estado e a condi¸c˜ao de conjunto da sala – aquecimento, janelas, ventila¸c˜ao, ilumina¸c˜ao, etc. – s˜ ao por sua vez insepar´ aveis de outros fatos e conjuntos de natureza social. Poder´ıamos continuar ao infinito. Portanto, n˜ ao ´e necess´ ario aprofundar muito a cr´ıtica especulativa do m´etodo fenomenol´ ogico para constatar que, mesmo entre seus partid´arios mais s´erios e mais objetivos, esse m´etodo chega a opor a consciˆencia do indiv´ıduo isolado ao pretenso caos das coisas e dos homens, porque, sem confess´ a-lo, faz abstra¸c˜ ao de todo elemento social. Portanto, somente o sujeito pensante ´e suscet´ıvel de criar uma ordem objetiva nesse caos. Em definitivo, o famoso “terceiro caminho” que julgou ultrapassar o materialismo e o idealismo, assim como a, n˜ ao menos famosa, objetividade da fenomenologia, levam-nos exatamente ao neokantismo. A fenomenologia e a ontologia que dela deriva ultrapassam apenas em aparˆencia o solipsismo epistemol´ ogico do idealismo subjetivo. Contentamse simplesmente em substitu´ı-lo por um solipsismo ontol´ogico, gra¸cas a uma nova defini¸c˜ ao dos mesmos problemas. Exatamente como h´a quarenta anos, quando os disc´ıpulos de Mach acusavam-se mutuamente de tender para o idealismo e cada um deles estava convencido de ser o u ´nico a ter realizado o famoso “terceiro caminho”, os existencialistas atuais acusam-se, tamb´em, de tendˆencias idealistas. Assim, por exemplo, segundo Sartre, Husserl – por quem tem, ali´ as, a mais alta estima – n˜ ao teria superado o kantismo. Quanto a Heidegger – que estima igualmente – eis como fala dele: “O “ser-com”, (Mitsein) concebido como estrutura de meu ser, isola-me t˜ao seguramente quanto os argumentos do solipsismo... Seria in´ util, consequentemente, procurar em Sein und Zeit a supera¸c˜ao de todo idealismo e ˆ de todo realismo” (L’Etre et le N´eant, p. 306). A palavra realismo pode, ali´ as, ser substitu´ıda por materialismo, sem nenhum risco de confus˜ao. O exame da filosofia de Sartre mostrar´ a que esta se exp˜oe ao ataque das mesmas acusa¸c˜ oes por ele dirigidas contra Husserl e contra Heidegger. J´ a em Heidegger, o Dasein n˜ ao ´e uma modalidade objetiva da existˆencia, mas uma forma da existˆencia (da consciˆencia) humana. Ora, Sartre est´a preocupado bem mais que seu predecessor com a rela¸c˜ao vivida entre o homem e a natureza, em muitas ocasi˜ oes a natureza sob a dependˆencia da consciˆencia. Numa passagem de sua obra, declara que a natureza ignora a 49

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destrui¸c˜ ao e conhece apenas a transforma¸c˜ao. “E mesmo essa express˜ao ´e impr´ opria, pois, diz ele, para pˆ or a alteridade, ´e necess´ario um testemunho que possa reter o passado de alguma forma e compar´a-lo ao presente sob a forma de n˜ ao-mais” (Ibid., p. 43). E, noutra passagem: “Quando olho esse quarto-crescente, a lua cheia est´ a no meu futuro como “no mundo” que se revela ` a realidade humana: ´e pela realidade humana que o Futuro chega ao mundo” (Ibid., p. 168). Eis-nos aqui, portanto, por um desvio, de volta ao bravo bispo Berkeley... Essa tendˆencia perfeitamente idealista ´e ainda sublinhada pela natureza das considera¸c˜ oes de Sartre que afetam, bem mais frequentemente que as de Heidegger as quest˜ oes precisas do “ser-com-outro”. Livra-se da dificuldade, escolhendo seus exemplos entre os “ser-com-outro” suficientemente fortuitos para poderem ser reduzidos, de uma maneira bastante plaus´ıvel, a experiˆencias vividas do eu (encontro no caf´e, viagem no metrˆo, etc.). Quando acontece-lhe aflorar um dado efetivamente social (o trabalho, a consciˆencia de classe), descarta-se logo de seu pr´oprio m´etodo e declara: “...que essa experiˆencia ´e de ordem psicol´ogica e n˜ao ontol´ogica” (lbid., p. 496). Em outras palavras, se Scheler estava prestes a suprimir o parˆenteses no caso do Diabo, Sartre recusa-se a dar esse passo em rela¸c˜ao ao trabalho e ` a consciˆencia de classe. S´ o os iniciados da contempla¸c˜ao da essˆencia poderiam dizer com que direito um e outro agem assim. N˜ ao ´e, portanto, ocasionalmente que, examinando as rela¸c˜oes que unem o indiv´ıduo a seus semelhantes, Sartre possa dar importˆancia ontol´ogica apenas ao amor, ` a linguagem, ao masoquismo, `a indiferen¸ca, ao desejo, ´ tudo. (A ordem dessas categorias ´e tamb´em ao ´ odio e ao sadismo. E a de Sartre.) S˜ ao somente essas as rela¸c˜oes humanas, segundo Sartre, que fazem parte do para-si. Tudo o que ultrapasse essas categorias no plano do ser-com-outro, isto ´e, a vida coletiva, o trabalho coletivo, a luta travada em conjunto, s˜ ao apenas, para Sartre, categorias psicol´ogicas, ou seja, que concernem s´ o` a consciˆencia e n˜ ao pertencem `a realidade humana, a ontologia. ` Tudo isto, traduzido em linguagem clara, leva a lugares comuns de uma banalidade perfeitamente pequeno-burguesa. No seu escrito polˆemico intitulado L’Existencialisme est un Humanisme, Sartre pergunta-se em qual medida o homem que age livremente pode contar com seus camaradas. E eis a resposta: “...contar com a unidade e com a vontade desse partido ´e exatamente contar com o fato de que o trem chegar´a na hora ou que o trem n˜ ao descarrilhar´ a. Mas n˜ ao posso contar com homens que n˜ao co50

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nhe¸co, fundando-me na bondade humana ou no interesse do homem pelo bem da sociedade, uma vez que o homem ´e livre e que n˜ao h´a nenhuma natureza humana em que eu possa confiar” (L’Existentialisme est un Humanisme, p. 52). Salvo a terminologia um pouco especial e complicada, as considera¸c˜ oes que acabamos de citar poderiam ser feitas por qualquer pequeno-burguˆes, pouco importando quem fosse.

2. O MITO DO NADA ´ absurdo que tenhamos nascido, ´ “E e absurdo que tenhamos de morrer”. ˆ (J.-P. Sartre: L’Etre et le N´eant) Seria um erro crer que esse estreitamento abstrato da realidade e essa desfigura¸c˜ ao idealista pudessem ser o efeito, num pensador de elite, de uma inten¸c˜ ao consciente de enganar seu mundo. Ao contr´ario: pode-se dizer que as experiˆencias vividas, sobre as quais se funda o comportamento que se manifesta pela intui¸c˜ ao da Wesensschau, s˜ ao t˜ao sinceras e espontˆaneas ´ evidente, no entanto, que essa sinceridade n˜ao poderia quanto poss´ıvel. E ser a garantia de sua verdade objetiva. Sua espontaneidade atesta mesmo a sujei¸c˜ ao absoluta, e desprovida de toda cr´ıtica, dessas experiˆencias vividas a esse fenˆ omeno fundamental da sociedade capitalista que ´e o fetichismo. A existˆencia humana tornou-se insignificante. Os la¸cos profundos que mantˆem a unidade da existˆencia se relaxam, o homem perde sua personali´ a hist´oria dade e a pr´ opria vida obriga-o a tomar consciˆencia desse fato. E de Peer Gynt, que, descascando a cebola, encontra apenas camadas sucessivas, sem poder chegar ` a “cebola em si mesma”... O indiv´ıduo ´e, portanto, finalmente obrigado a se colocar a seguinte quest˜ ao: como dar um sentido ` a minha existˆencia? O homem que vive num mundo fetichizado ignora que a riqueza, o valor e o conte´ udo verdadeiro de sua existˆencia encontram-se em ramifica¸c˜ oes numerosas e profundas que o ligam ` a existˆencia de seus semelhantes e ` a da sociedade. O indiv´ıduo isolado e egocˆentrico que vive s´ o para si, vive num mundo empobrecido. Quanto mais suas experiˆencias pertencem-lhe exclusivamente, mais s˜ao exclusivamente interiores e mais correm o risco de perder todo conte´ udo e de se perder no nada. O homem que vive num mundo fetichizado n˜ao pode vencer o vazio 51

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interior sen˜ ao por uma esp´ecie de embriaguez cont´ınua, assim como o morfinˆ omano n˜ ao vˆe sa´ıda sen˜ ao no aumento da dose, quando seria o caso para ele de reorganizar sua vida de tal maneira que n˜ao tivesse mais necessidade de seu veneno. Eis porque o homem que vive num mundo fetichizado n˜ao poderia reconhecer que foi a perda de todo contato com a vida p´ ublica, a reifica¸c˜ ao do processo do trabalho, o desligamento do indiv´ıduo da vida social – consequˆencia da divis˜ ao capitalista do trabalho – que lhe inspirou a necessidade dessa embriaguez permanente. Incapaz de reconhecer a realidade, persiste na sua evolu¸c˜ ao fatal e sua atitude corresponde a uma necessidade subjetiva, porque a sociedade capitalista ´e necessariamente fe´ ent˜ tichizada, alienada e desumana. E, ao, somente a atitude revolucion´aria, frente aos pr´ oprios fundamentos dessa sociedade, que pode dar uma clara vis˜ ao de conjunto da realidade. A fuga para a interioridade leva a um impasse tragicˆ omico. Enquanto as bases da sociedade capitalista pareciam inabal´aveis, isto ´e, at´e a ´epoca precedente ` a primeira guerra mundial, a vanguarda da inteligˆencia burguesa vivia no meio de uma esp´ecie de carnaval permanente da interioridade fetichizada. Certamente, mais de um grande escritor previu claramente a cat´ astrofe inevit´ avel. Pensemos em Ibsen, em Tolstoi, em Thomas Mann e em tantos outros. Esse carnaval deslumbrante, em que se percebia, no entanto, frequentes ecos delirantes, exercia uma fascina¸c˜ao irresist´ıvel. As filosofias de Simmel e de Bergson, parte dominante da atividade da ´epoca, ilustram claramente o que queremos dizer. O exemplo mais eloquente ´e, talvez, o chiste de Oscar Wilde, segundo o qual o nevoeiro de Londres n˜ ao existiria sem os quadros de Turner. Mais de um grande escritor da ´epoca, mais de um pensador, via claramente que o que sucedia era a perda de substˆancia do eu fetichizado. Mas o reconhecimento dessa verdade s´ o poderia ter como resultado, no m´aximo, a proje¸c˜ ao de certas perspectivas tr´ agicas ou tragicˆomicas, destinadas a servir de segundo plano ` a festa cintilante do carnaval. Os fundamentos fetichizados da vida pareciam ser t˜ ao naturais e t˜ao inabal´aveis, que era imposs´ıvel submetˆe-los a uma cr´ıtica ou mesmo a um exame pouco s´erio. Au ´nica d´ uvida que surgia ` as vezes era compar´avel `a daquele hindu, convencido de que o mundo repousava sobre o dorso de um elefante e que se permitiu um dia colocar a quest˜ ao de saber sobre o que se apoiava o elefante. Tendo aprendido que era uma tartaruga que servia de pedestal ` aquele, nosso hindu achou a resposta perfeitamente satisfat´oria. A consciˆencia individual estava a tal ponto submetida `a sugest˜ao do feti52

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chismo social, que quando a primeira guerra mundial problematizou toda possibilidade de existˆencia, quando esse abalo usiversal transformou todos os objetos poss´ıveis do pensamento humano, revalorizando todos os princ´ıpios estabelecidos, quando enfim a grande penitˆencia sucedeu ao carnaval do individualismo puro, a estrutura fundamental dos problemas da filosofia permaneceu quase inalter´ avel. A orienta¸c˜ ao e a miss˜ ao da fenomenologia deviam, entretanto, sofrer uma transforma¸c˜ ao importante; e foi essa transforma¸c˜ao que determinou as origens desse existencialismo propriamente dito, que ´e a filosofia de ´ relativamente f´ Heidegger e de Jaspers. E acil resumir a experiˆencia vivida que serve de base para essa filosofia: o homem encontra-se em face do vazio, do Nada; a rela¸c˜ ao fundamental entre o homem e o mundo corresponde `a situa¸c˜ ao do vis-` a-vis de rien. Essa situa¸c˜ ao decorre, segundo o existencialismo, da essˆencia da realidade humana. De fato, corresponde a um estado da consciˆencia individual fetichizada, que reflete a crise do imperialismo. A originalidade da experiˆencia vivida que acabamos de resumir sumariamente ´e muito relativa. Depois de Edgar Allan Poe, que foi sem d´ uvida o primeiro a representar uma tal situa¸c˜ ao do homem e as atitudes que dela decorrem, a literatura moderna familiarizou-nos com a condi¸c˜ao do homem levado ` a beira do abismo, privado de toda sa´ıda, condi¸c˜ao que a fenomenologia resume na no¸c˜ ao de face ao nada. A representa¸c˜ ao dessa condi¸c˜ ao do homem corresponde nos grandes escritores ao reflexo subjetivo de uma situa¸c˜ao objetiva. Mais exatamente, ´e a representa¸c˜ ao de uma atitude precisa, ela mesma fun¸c˜ao das circunstˆ ancias e dos lados do car´ ater, em uma situa¸c˜ao concreta, perfeitamente real e muito bem determinada. Bastar´a pensar na situa¸c˜ao de Raskolnikov ap´ os o assassinato, ou em Svidrigailov ou Stavroguin compelidos ao suic´ıdio. Trata-se, em cada um desses casos, de uma forma particular da evolu¸c˜ ao tr´ agica, forma tomada `a vida atual e que permite a um escritor autˆentico criar destinos e caracteres especificamente atuais, ´ mas t˜ ao vivos e t˜ ao tr´ agicos como foram Edipo ou Hamlet na sua ´epoca. S˜ ao essas mesmas situa¸c˜ oes, enquanto situa¸c˜oes-tipo, que servem de ponto de partida para Heidegger. A particularidade de sua filosofia consiste em inscrever, com o aux´ılio do m´etodo extremamente complexo da fenomenologia, o conjunto do problema na estrutura fetichizada da psicologia burguesa, ou mais exatamente, no pessimismo niilista e sem sa´ıda da inteligˆencia burguesa do per´ıodo entre guerras. 53

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Quais s˜ ao ent˜ ao as opera¸c˜ oes inspiradas pelo fetichismo da fenomenologia e da ontologia ` as quais Heidegger submete essa experiˆencia vivida, fundamental, para dela derivar o sistema filos´ofico autˆonomo do existencialismo? A primeira fetichiza¸c˜ ao ´e a cria¸c˜ao da no¸c˜ao do Nada. Tocamos aqui o problema que se encontra no centro mesmo da ontologia, da explora¸c˜ ao da realidade, tanto em Heidegger como em Sartre. No primeiro, o Nada ´e um dado ontol´ ogico tanto quanto a existˆencia. No segundo, o Nada n˜ ao tem existˆencia independente do Ser, ´e absolutamente insepar´avel dele. Voltemos agora ` a nossa an´ alise metodol´ogica. Examinando, `a luz da fenomenologia, a personalidade de Stavroguin e sua atitude na situa¸c˜ao de “face ao nada” em que se encontra ao fim do livro de Dostoievsky e, encerrando, conforme as prescri¸c˜ oes do m´etodo fenomenol´ogico, o problema da realidade objetiva num parˆenteses para examinar somente os atos ps´ıquicos de Stavroguin e seus objetos intencionais, veremos que o objeto intencional da experiˆencia vivida de Stavroguin ´e um vazio sem sa´ıda. Feito isto, resta-nos apenas seguir o procedimento de Scheler no caso do Diabo, isto ´e, suprimir o parˆenteses, para nos encontrar diante do Nada, valor central da nova ontologia. Assim, teremos compreendido o passe de m´agica da fenomenologia que faz at´e o fim abstra¸c˜ao de toda realidade objetiva e concreta, de que a experiˆencia vivida ´e a express˜ao no plano moral e psicol´ ogico. Por conseguinte, a experiˆencia vivida, que ´e a de Stavroguin, numa situa¸c˜ ao objetiva dada, torna-se, para a fenomenologia, um objeto isolado e autˆ onomo: um fetiche. Quanto `a situa¸c˜ao que deu lugar a essa ex´ assim que se constitui periˆencia vivida, perde todo car´ ater de realidade. E a categoria do Nada, provido de uma existˆencia real. ´ evidente que n˜ E ao pretendemos ter reproduzido fielmente a marcha do racioc´ınio existencialista. Seria necess´ario, com efeito, um estudo volumoso para citar as demonstra¸c˜ oes, ` as vezes simplesmente erradas e `as vezes manifestamente sof´ısticas, que apoiam Sartre na teoria fenomenol´ogica da interroga¸c˜ ao e do ju´ızo negativo, sobre a qual repousa a constru¸c˜ao ontol´ ogica do Nada. Basta constatar que cada “n˜ao” expresso por um ju´ızo encerra tanta realidade concreta quanto um “sim” e que somente a fetichiza¸c˜ ao do comportamento subjetivo pode dotar essa negatidade de um “ser” autˆ onomo e real. Quando coloco, por exemplo, a quest˜ao de saber quais s˜ ao as leis que governam o sistema solar, n˜ao ponho nenhum “ser negativo”, nenhum vazio, nenhuma solu¸c˜ao de continuidade na realidade objetiva, como o imagina Sartre. Minha quest˜ao indica t˜ao-somente um 54

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vazio nos meus pr´ oprios conhecimentos, uma lacuna da minha erudi¸c˜ao e n˜ ao um vazio na realidade. Quanto ` a resposta, pode ser negativa ou positiva, tanto gramatical como logicamente. Que eu diga: “A terra gira em torno do sol”, ou : “O sol n˜ ao gira em torno da terra”, as duas senten¸cas exprimir˜ ao a mesma realidade concreta e positiva e tudo o que se poder´a dizer ´e que a frase negativa ´e menos precisa que a outra. Em todo caso, ´e imposs´ıvel construir, a partir dessas considera¸c˜oes, o ser ontol´ogico do Nada, sem recorrer a sofismas. A necessidade deste explica-se pelo fato de que Sartre pressentiu a experiˆencia vivida fetichizada do Nada antes de construir sua justifica¸c˜ ao l´ ogica e metodol´ ogica. O Nada ´e um mito; ´e o mito da sociedade capitalista condenada `a morte pela Hist´ oria. H´ a algumas d´ecadas, a situa¸c˜ ao de “face ao nada” pˆode ser vivida por indiv´ıduos-tipos como Stavroguin ou Svidrigailov. Agora, ´e toda uma sociedade e classes sociais inteiras que se encontram nessa situa¸c˜ao. O pr´ oprio capitalismo pode muito bem passar sem ideias filos´oficas, considera¸c˜ oes ideol´ ogicas e vis˜ oes h´ıst´ oricas. N˜ao sucede o mesmo ao intelectual, ao qual, por toda sua maneira de viver, se imp˜oe o aparelho ideol´ ogico de que falamos. Ora, quando a situa¸c˜ao hist´orica concreta na qual nos encontramos e a atitude de esp´ırito – que ´e igualmente um produto essa situa¸c˜ ao hist´ orica e social – levam a um impasse total onde qualquer orienta¸c˜ ao ´e imposs´ıvel, as consciˆencias individuais sofrem o processo de fetichiza¸c˜ ao. Os intelectuais, cuja existˆencia individual est´a privada de toda perspectiva, vˆeem a situa¸c˜ ao da seguinte forma: o Nada ´e a perspectiva objetiva ` a qual toda existˆencia ´e conduzida. Esse mito ´e perfeitamente compreens´ıvel, mesmo para aqueles que n˜ ao tˆem nem o desejo nem o tempo ´ comnecess´ ario para ler as volumosas obras de Heidegger ou de Sartre. E preens´ıvel porque ´e o reflexo de situa¸c˜ oes efetivamente vividas. Mas o processo de fetichiza¸c˜ ao n˜ ao termina a´ı. Com efeito, se o Nada fosse apenas o precip´ıcio no qual vou (talvez, ou mesmo fatalmente) cair, o existencialismo n˜ ao seria ainda um sistema filos´ofico universal, capaz de fornecer a solu¸c˜ ao de todos os problemas da existˆencia. Heidegger, Jaspers e Sartre estendem com efeito o mito do Nada a toda a existˆencia. Para Heidegger, a pr´ opria vida ´e o estado de derreli¸c˜ ao – Geworfenheit – no Nada e todos os instantes dessa vida manifestam a intera¸c˜ao pseudodial´etica dessa origem e dessa perspectiva final. Por essa mesma raz˜ ao, o existencialismo obstina-se em ensinar que ´e totalmente imposs´ıvel saber o que quer que seja sobre o homem. N˜ao que negue a ciˆencia em geral. O existencialismo reconhece o valor pr´atico do 55

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conhecimento cient´ıfico. Mas contesta a todas as ciˆencias o direito de ter acesso a um conhecimento essencial em rela¸c˜ao ao u ´nico problema de importˆ ancia: a rela¸c˜ ao real entre a pessoa humana e a vida. Afirma, para empregar sua pr´ opria linguagem, que o homem ´e sua pr´opria realidadehumana. A assim chamada superioridade do existencialismo sobre as filosofias antigas consiste precisamente no abandono radical da pesquisa de um tal conhecimento. “O existencialismo, disse Jaspers, estaria perdido no momento mesmo em que pretendesse saber de novo o que ´e o homem”. Essa ignorˆ ancia volunt´ aria, radical e fundamental est´a sublinhada tanto em Heidegger como em Sartre. Ora, – e isto est´a longe de ser uma anedota – ´e precisamente esse niilismo radical, esse abandono consequente do conhecimento mais importante, que ´e a explica¸c˜ao do enorme sucesso do existencialismo. A doutrina que ensina que a vida est´a por excelˆencia privada de toda perspectiva e que o sentido da existˆencia ´e inacess´ıvel a todo conhecimento ´e bem acolhida por todos aqueles que acham que sua existˆencia est´ a privada de toda perspectiva e que sua vida n˜ao tem nenhum sentido. ´ aqui que o existencialismo encontra o irracionalismo moderno, essa E vasta corrente espiritual de nosso tempo que se prop˜oe destronar a raz˜ao. ` primeira vista, a fenomenologia e a ontologia s˜ao entretanto absolutaA mente incompat´ıveis com as tendˆencias correntes do irracionalismo, por causa de seu car´ ater rigorosamente cient´ıfico. Husserl era mesmo disc´ıpulo da escola log´ıstica mais intransigente (Bolzano e Brentano). Basta, no entanto, examinar, mesmo n˜ ao atentamente, seu m´etodo para descobrir suas liga¸c˜ oes ´ıntimas com Dilthey e Bergson, mestres do irracionalismo moderno. Mais tarde, quando Heidegger tomou para si certas ideias mestras de Kierkegaard, essas liga¸c˜ oes tornaram-se ainda mais evidentes. Estamos aqui em presen¸ca de um fato que ´e mais importante que uma ` medida que o existencialismo faz da simples coincidˆencia metodol´ ogica. A fenomenologia seu m´etodo, toma por seu principal objeto a irracionalidade fundamental do indiv´ıduo e, consequentemente, do conjunto da existˆencia. Seu paralelismo com as outras correntes espirituais anti-racionalistas tornase ent˜ ao cada vez mais evidente. “O ser ´e irracional, sem causa e sem necessidade; a pr´ opria defini¸c˜ ao do ser nos mostra sua contingˆencia original” ˆ (L’Etre et le N´eant, p. 713), diz Sartre. Falamos at´e o presente somente do Nada. Apenas afloramos o pr´oprio ´ portanto, com Ser e sua pretensa impermeabilidade ao conhecimento. E, justi¸ca, parece, que poderiam perguntar-nos: onde est´a ent˜ao a existˆencia 56

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no existencialismo? A resposta deve ser procurada no sentido da nega¸c˜ao. A existˆencia, segundo o existencialismo, ´e o que falta `a realidade humana. O Ser humano, diz Heidegger, “s´ o pode definir-se a partir de sua existˆencia, isto ´e, de sua possibilidade de ser ou de n˜ ao ser o que ele ´e”. Encontramos aqui o problema da perda da substˆancia cont´ınua da existˆencia humana, da qual j´ a falamos. Vimos o sentido antissocial e associal que as correntes dominantes do pensamento moderno d˜ao a esse problema. Ainda aqui a obra de Heidegger situa-se no topo dessa evolu¸c˜ao. A existˆencia cotidiana do homem nela est´ a submetida a uma an´alise muito detalhada, com a ajuda do m´etodo que j´ a conhecemos. Em Heidegger, a vida do homem, a “realidade-humana” ´e o “ser-com-outro” (Miteinandersein) e, ao mesmo tempo, “ser-no-mundo” (In-der-Welt-sein). Este “ser” est´ a constru´ıdo em torno da figura central mitificada do “se” (das Man). Esse pronome impessoal, que se tornou uma categoria mitificada da ontologia heideggeriana, representa o s´ımbolo de todas as fun¸c˜oes da vida social; ´e tudo o que distancia o homem de sua pr´opria existˆencia, desvia sua aten¸c˜ ao da essˆencia, priva a vida humana de seu sentido profundo. As diversas manifesta¸c˜ oes do “se” s˜ ao, segundo Heidegger, o palavr´orio, a curiosidade, o equ´ıvoco, o descr´edito. O que pretende viver sua pr´opria vida, deve, segundo Heidegger, viver para sua pr´opria morte: viver de tal maneira que a morte n˜ ao seja uma ruptura inesperada, em rela¸c˜ao `a sua existˆencia, mas antes “sua pr´ opria morte”. A existˆencia digna desse nome n˜ ao encontra sua realiza¸c˜ ao verdadeira, para Heidegger, sen˜ao nessa morte pessoal. Aqui, ainda, o arbitr´ ario total, o subjetivismo sem limite e mascarado por uma pseudo-objetividade, da “ontologia fundamental” s˜ao evidentes. A obra de Heidegger, essa “confiss˜ ao de um burguˆes do per´ıodo entre guerras”, ´e plena de interesse. Sein und Zeit ´e uma leitura ao menos t˜ao interessante quanto o grande romance de C´eline, Voyage au bout de la nuit, mas – assim como o romance de C´eline – n˜ ao constitui a “revela¸c˜ao on´ simplesmente um documento tol´ ogica” de qualquer “realidade u ´ltima”. E revelador do universo intelectual e sentimental de uma classe social e de uma ´epoca. Conv´em demasiado bem ao clima psicol´ogico da “intelligentzia” atual, para que o arbitr´ ario dos pseudo-racioc´ınios sobre os quais se funda possa tornar-se facilmente evidente. O absurdo da vida e a imagem abstrata da morte que lhe ´e oposta s˜ ao para um grande n´ umero de nossos contemporˆ aneos uma experiˆencia pessoal. Constituem, por assim dizer, a base inconsciente de sua concep¸c˜ ao do mundo. Basta no entanto 57

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olhar para tr´ as, no universo filos´ ofico de uma ´epoca que estava ainda isenta dos germes da decomposi¸c˜ ao, para ver que essa atitude face `a morte n˜ao corresponde a uma categoria ontol´ ogica do “ser”, mas simplesmente a um sintoma da ´epoca. Spinosa disse: “O homem livre pensa muito mais em qualquer outra coisa do que na morte; sua sabedoria ´e medita¸c˜ao n˜ao sobre a morte, mas sobre a vida”.

Jaspers e Sartre est˜ ao no que concerne ao problema da morte bem longe do extremismo de Heidegger, sem que essa divergˆencia possa modificar, no entanto, o car´ ater fundamental de sua filosofia, fun¸c˜ao de sua classe social e de seu tempo. Sartre at´e mesmo recusou-se a dar `a no¸c˜ao de morte pessoal, no sentido heideggeriano do termo, um lugar no existencialismo. Quanto a Jaspers, no qual o fantasma do “se” apresenta-se sob uma forma menos profundamente mitificada que em Heidegger, contenta-se em orientar o homem que encontrou o sentido de sua existˆencia, em dire¸c˜ao a uma vida estritamente privada e voltada para si mesma. A a¸c˜ao pol´ıtica e social n˜ao poderia jamais levar a resultados essenciais, dizia Jaspers ultimamente nos Encontros de Genebra, e a humanidade n˜ao pode ser salva a n˜ao ser que cada um se consagre apaixonadamente `a sua pr´opria existˆencia, para cultivar somente rela¸c˜ oes “existenciais” com alguns indiv´ıduos isolados e animados de paix˜ oes semelhantes.

Aqui, tamb´em, as montanhas filos´ oficas terminaram por originar, com um sorriso cinzento, uma mentalidade pequeno-burguesa. E o grande escritor antifascista alem˜ ao, Ernst Bloch, tinha bastante raz˜ao quando escreveu, a prop´ osito da teoria heideggeriana da morte, da qual a moral individualista de Jaspers ´e apenas a dilui¸c˜ao ins´ıpida, as linhas seguintes: “Face ` a morte eterna, a condi¸c˜ ao social do homem n˜ao tem nenhuma importˆ ancia. Pouco importa que seja capitalista... A aceita¸c˜ao da morte, enquanto destino absoluto e u ´nica sa´ıda, tem a mesma significa¸c˜ao para a contra-revolu¸c˜ ao atual que a consola¸c˜ ao do al´em tinha outrora”.

Escritas h´ a mais de doze anos, essas observa¸c˜oes pertinentes esclarecem perfeitamente as raz˜ oes da popularidade grandiosa que usufrui o existencialismo,n˜ ao somente entre os esnobes, mas tamb´em nos meios reacion´arios. 58

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3. O MUNDO FETICHIZADO E O FETICHE DA LIBERDADE “Construo o universal escolhendo-me.” (J.-P. Sartre: L’Existentialisme est un Humanisme) O existencialismo n˜ ao ´e somente a filosofia da morte, mas tamb´em a da liberdade absoluta. Eis a´ı uma das raz˜ oes mais importantes da popularidade do existencialismo de J.-P. Sartre, mas ´e a´ı que reside, igualmente, – por mais absurdo que isso possa parecer ` a primeira vista – o lado reacion´ ario de sua influˆencia atual. Heidegger, como vimos, considera que o “ser-para-a-morte” ´e a u ´nica possibilidade da existˆencia se realizar. Sartre, por sua vez, destr´ oi essa teoria por meio de racioc´ınios engenhosos. Essa divergˆencia, que separa Sartre de Heidegger, atesta n˜ao somente uma diferen¸ca entre a atitude dos intelectuais franceses e a dos intelectuais alem˜aes frente ` as quest˜ oes mais importantes da vida, mas reflete tamb´em a evolu¸c˜ao dos acontecimentos. A obra fundamental de Heidegger apareceu em 1927, nas v´esperas do advento do fascismo, na atmosfera sufocante que precede a tempestade. Ignoramos quando o livro de J.-P. Sartre foi escrito, mas o ano de sua publica¸c˜ ao, 1943, situa-se numa ´epoca em que era j´a poss´ıvel prever o desmoronamento do fascismo e onde – precisamente por causa da tirania que durava h´ a muito tempo – o desejo da liberdade era a experiˆencia mais intensa e mais profunda dos intelectuais europeus, em patricular nos pa´ıses de velhas tradi¸co˜es democr´ aticas. Conv´em sublinhar que se tratava, para esses intelectuais, de uma liberdade abstrata, isenta de toda diferencia¸c˜ao. Essa imagem de uma liberdade mitificada, desprovida de todo contorno preciso, convinha perfeitamente para atrair todos os inimigos do fascismo, sem a menor distin¸c˜ ao de origem ou de tendˆencia. Antes de mais nada, somente uma coisa contava para esses homens vindos de todos os horizontes: dizer “n˜ ao” ao fascismo. Quanto mais seu protesto era vazio de conte´ udo, mais se adaptava ` as suas aspira¸c˜ oes inconscientes. Esse protesto abstrato e seu reflexo te´ orico, a no¸c˜ ao abstrata da liberdade, assumiam, para muitos, a fun¸c˜ ao do mito da Resistˆencia. Veremos ali´ as que a no¸c˜ao de liberdade ´e perfeitamente abstrata em Sartre. Eis porque o existencialismo, reflexo fiel do clima espiritual dessa ´epoca, pˆ ode fazer repentinamente conquistas t˜ ao impressionantes. Mas, depois da queda do fascismo, a edifica¸c˜ao e a consolida¸c˜ao da 59

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democracia encontram-se no centro da preocupa¸c˜ao da opini˜ao popular de todos os pa´ıses. Todas as discuss˜ oes s´erias tendem a determinar a natureza da democracia nova desse regime de liberdade que ser´a edificado sobre as ru´ınas deixadas pela barb´ arie fascista e que ter´a por miss˜ao impedir para sempre o retorno do fascismo e da guerra. O existencialismo conseguiu manter sua popularidade nesse mundo transformado e parece mesmo que est´ a em vias – o de Sartre, bem entendido, e n˜ ao o de Heidegger – de partir para a conquista do mundo. O lugar central que atribui ` a liberdade ´e certamente nele muito maior. Somente a liberdade n˜ ao ´e mais um mito: o desejo de liberdade retomou formas concretas e manifesta-se com vigor; a interpreta¸c˜ao da no¸c˜ao de liberdade desencadeia debates apaixonados e lutas ferozes. Como explicar ent˜ ao que, nessas condi¸c˜ oes, o existencialismo e sua liberdade r´ıgida e abstrata possam pretender conquistar o mundo? Mais exatamente: onde o existencialismo recruta hoje seus partid´ arios e qual ´e a for¸ca de persuas˜ao que emana dessa nova filosofia da liberdade? Para poder responder a essa quest˜ ao e para melhor compreender o segredo do sucesso do existencialismo, ´e indispens´ avel examinar de mais perto a no¸c˜ao de liberdade, tal como ´e definida pela filosofia de Jean Paul Sartre. A liberdade ´e, segundo Sartre, o dado fundamental da existˆencia humana. “De fato, diz Sartre, somos uma liberdade que escolhe, mas n˜ao esˆ colhemos ser livres: somos condenados a` liberdade...” (L’Etre et le N´eant, p. 565). Estamos, diz ele ainda, lan¸cados na liberdade. Sartre aplica aqui a liberdade uma no¸c˜ ` ao criada por Heidegger, a Geworfenheit (derreli¸c˜ao). A liberdade seria ent˜ ao, de alguma maneira, a fatalidade da existˆencia humana. Esse car´ ater fatal da liberdade atravessa, segundo Sartre, toda a existˆencia humana. O homem n˜ ao poderia escapar `a liberdade de escolha; n˜ao escolher ´e ainda escolher e a ren´ uncia ` a a¸c˜ ao ´e ainda uma a¸c˜ao livremente escolhida. Desde os fatos mais terra-a-terra da vida cotidiana at´e `as quest˜oes u ´ltimas da metaf´ısica, Sartre sublinha sempre esse papel essencial da liberdade. Fa¸co uma excurs˜ ao com alguns amigos. Num dado momento sinto-me fatigado, minha mochila me pesa muito e eis-me na obriga¸c˜ao de uma escolha livre: posso continuar a caminhar ao lado de meus amigos, ou posso escolher desembara¸car-me de meu fardo e sentar-me `a margem do caminho. E ´e assim em Sartre, mesmo nos problemas mais abstratos da existˆencia humana, em todos os projetos onde se manifesta a escolha livre do homem. O projeto ´e, ali´ as, uma categoria absolutamente essencial 60

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da teoria da liberdade em Sartre. O objeto do projeto mais elevado do homem ´e nada menos do que Deus. “Assim, pode-se dizer, escreve Sartre, que o que melhor torna conceb´ıvel o projeto fundamental da realidade humana, ´e que o homem ´e o ser que projeta ser Deus... Ser homem ´e tender a ser Deus” (ibid., p. 653). Esse ideal de diviniza¸c˜ao de si mesmo significa, traduzido na linguagem da filosofia: atingir ao grau do Ser que a antiga filosofia designava pela express˜ ao causa sui e que significa a autodetermina¸c˜ao absolutamente soberana do Ser. Assim como podemos ver, a no¸c˜ ao sartreana da liberdade ´e muito vasta. ´ ali´ E, as, o que explica seu car´ ater um pouco flutuante, que torna toda defini¸c˜ ao exata imposs´ıvel. Essa impossibilidade ´e ainda acentuada pelo fato de que Sartre rejeita por princ´ıpio todo crit´erio objetivo que possa servir para a defini¸c˜ ao da liberdade. A essˆencia da liberdade, que ´e a escolha, reside para Sartre no fato de que o homem escolhe-se a si mesmo como ainda n˜ ao existente e incognosc´ıvel por princ´ıpio. Essa atitude est´a exposta a um perigo permanente que ´e o de se tornar outro daquilo que se ´e. Ora, aqui n˜ ao existe mais em Sartre nenhuma marca moral. A covardia, por exemplo, resulta de uma escolha livre tanto quanto a coragem: “Meu medo ´e livre, diz ele, e manifesta minha liberdade; coloquei toda minha liberdade no meu medo e me escolhi medroso em tal ou tal circunstˆancia; numa outra, existiria como volunt´ ario e corajoso e teria colocado toda minha liberdade em minha coragem. N˜ ao h´a, em rela¸c˜ao `a liberdade, nenhum fenˆ omeno ps´ıquico privilegiado” (lbid., p. 521). Diga-se de passagem que aqui tamb´em Sartre “abre um parˆenteses” e o faz de uma maneira totalmente arbitr´ aria. Coragem e covardia n˜ao s˜ao com efeito, somente fenˆ omenos ps´ıquicos, mas tamb´em categorias morais. O capricho do fil´ osofo basta para determinar se tal ou tal no¸c˜ao pertence ou n˜ ao ` a realidade, pois o sadismo e o masoquismo s˜ao em Sartre fatos ontol´ ogicos, enquanto que a coragem e a covardia s˜ao apenas fenˆomenos ps´ıquicos subjetivos. A no¸c˜ ao sartreana de liberdade torna-se assim completamente irracional, arbitr´ aria e incontrol´ avel. Sartre esfor¸ca-se, ali´as, continuamente para suprimir toda limita¸c˜ ao. Em Heidegger, o “ser-para-a-morte” permite ainda uma classifica¸c˜ ao dos comportamentos humanos que podem ser autˆenticos ou privados de auteticidade. Esses comportamentos permitem ver se o indiv´ıduo chegou ou n˜ ao a ultrapassar o plano do “se” e o descr´edito que lhe ´e inerente, para realizar sua existˆencia pessoal. Mas Sartre, como j´ a vimos, rejeita o crit´erio heideggeriano da autenticidade da existˆencia 61

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humana, isto ´e, a morte pessoal. Rejeita tamb´em toda defini¸c˜ao racional e toda hierarquia dos valores ´eticos que Scheler, antes dele, esfor¸cara-se por estabelecer pelos meios arbitr´ arios da fenomenologia. Sartre rejeita tamb´em toda correla¸c˜ ao entre a escolha livre e o passado do ser humano, isto ´e, o princ´ıpio da continuidade do ser humano. E para terminar, rejeita ainda o crit´erio kantiano do imperativo categ´orico. ´ verdade que ele parece ter recuado, um pouco assustado, pelas conE sequˆencias poss´ıveis de sua atitude. No seu escrito polˆemico, declara, com efeito, que “nada pode ser bom para n´os sem o ser para todos” (L’Existentialisme est un Humanisme, p. 25-26), e mais adiante: “...sou obrigado a querer, ao mesmo tempo que minha liberdade, a liberdade dos outros; n˜ ao posso tomar minha liberdade por fim, se n˜ao tomar igualmente a dos outros por fim” (ibid., p. 83). Isto soa certamente muito bem, mas nada mais ´e para Sartre do que um compromisso ecl´etico com os princ´ıpios da moral kantiana que precedentemente rejeitou. N˜ao podemos deter-nos aqui para demonstrar porque Kant n˜ ao conseguiu a universaliza¸c˜ao formal da moral do idealismo subjetivo; certos escritos da juventude de Hegel fornecem ali´ as uma resposta muito perspicaz a essa quest˜ao. Mas, se bem que a universaliza¸c˜ ao objetiva do imperativo categ´orico seja logicamente indefens´ avel em Kant, ´e certo que organicamente faz parte dos fundamentos mais profundos da sua filosofia e em particular da sua concep¸c˜ao da sociedade e da hist´ oria. Quanto a Sartre, essa generaliza¸c˜ao corresponde apenas a um compromisso ecl´etico com a opini˜ao filos´ofica adquirida no classicismo, pois semelhante objetiva¸c˜ ao da sua no¸c˜ao de liberdade contradiz formalmente toda sua ontologia. ˆ Em L’Etre et le N´eant, onde toda concess˜ao an´aloga est´a ausente, encontra-se o ponto de vista integral do solipsismo ontol´ogico. A´ı, o objeto e a finalidade da escolha livre s´ o podem ser interpretados e s´o tˆem sentido pelo pr´ oprio sujeito que escolhe. Assim, ´e f´acil constatar uma contradi¸c˜ao ˆ et le N´eant e L’Existentialisme est un Humanisme. Em formal entre L’Etre ˆ L’Etre et le N´eant notamos, com efeito, a seguinte passagem: “Assim, o respeito ` a liberdade de outrem ´e uma palavra v˜a: mesmo se projet´assemos respeitar essa liberdade, cada atitude que tom´assemos para com outrem seria uma viola¸c˜ ao dessa liberdade que pretend´ıamos respeitar” (p. 480). E, algumas linhas acima, um exemplo paradoxal mas muito preciso vem esclarecer essa concep¸c˜ ao: “Realizar a tolerˆancia em torno de Outrem ´e fa´ tirar-lhe zer com que Outrem seja atirado ` a for¸ca num mundo tolerante. E por princ´ıpio suas livres possibilidades de resistˆencia corajosa, de perse62

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veran¸ca, de afirma¸c˜ ao de si que teria ocasi˜ ao de desenvolver num mundo intolerante” (ibid., p. 480). A contradi¸c˜ ao ´e evidente. Certamente n˜ ao nos compete controlar a ortodoxia do existencialismo, e se houvesse a´ı apenas uma concess˜ao feita para facilitar a expans˜ ao da doutrina, n˜ ao insistir´ıamos. Mas,parece-nos, essa contradi¸c˜ ao ´e inerente ao fundamento mesmo do existencialismo. Pensemos no solipsismo ontol´ ogico e no irracionalismo. O primeiro ensina-nos que somente a liberdade individual existe, isto ´e, a da escolha que adota, e todo o resto ´e apenas objeto inerte em rela¸c˜ao a esse u ´nico ato real. O segundo nos diz que ´e absolutamente imposs´ıvel saber o que quer que seja a respeito dessa u ´nica realidade, que n˜ ao tem passado e cujo futuro, desde que se realize, torna-se um passado imediatamente aniquilado. Estamos, portanto, a cada instante em uma situa¸c˜ ao radicalmente nova, necessitando uma decis˜ ao radicalmente nova, um novo ato de nossa liberdade. Para evitar esse niilismo vizinho da loucura, Sartre ´e obrigado a violar ´ apenas assim lhe ´e poss´ıvel aportar num mundo que existe a l´ ogica. E efetivamente e que n˜ ao poderia dispensar. O instrumento desse passe de m´ agica ´e a l´ ogica formal, a generaliza¸c˜ ao r´ıgida de uma ideia. O procedi´ ele que mento ´e comum a todas as escolas do irracionalismo moderno. E permite a Sartre construir sua concep¸c˜ ao fatalista da liberdade. Aceitemo-la por um instante, nem que seja para tentar a experiˆencia. Ela nos conduzir´ a a novas contradi¸c˜ oes insol´ uveis. Com efeito, se todo ato ´e liberdade (subo no trem, acendo um cigarro ou deixo de fazˆe-lo), o mundo onde vivo ser´ a exatamente o do determinismo extremo. Heidegger sabe muito bem que n˜ ao se poderia falar de um ato livre a n˜ao ser que reconhecˆessemos que existe igualmente atos que n˜ao s˜ao livres. A nivela¸c˜ao sartreana de todas as manifesta¸c˜ oes da existˆencia humana assemelha-se a concep¸c˜ ` ao determinista, salvo que, para o determinismo, essas manifesta¸c˜ oes inscrevem-se em sistemas racionalmente constru´ıdos, enquanto que, em Sartre, s˜ ao, a priori, privados de todo sentido. A hip´otese sartreana da no¸c˜ ao de liberdade esvazia todo sentido da pr´opria liberdade. Guardemo-nos, entretanto, de ver aqui apenas um defeito fortuito do sistema de Sartre. Estamos, ao contr´ ario, em presen¸ca de um ponto essencial da metodologia de todas as filosofias modernas. O pensamento irracionalista descobre, na existˆencia humana, fatos de natureza dial´etica. Mas, ao inv´es de examin´ a-los ` a luz do m´etodo dial´etico, tenta trat´a-los por um irracionalismo impedido de cair aos peda¸cos pelo colete de ferro da l´ ogica formal. O que s´ o pode ter sentido enquanto elemento de uma rela¸c˜ao 63

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dial´etica torna-se assim absurdo. Toda verdade hipostasiada torna-se fatalmente absurda. Vejamos agora onde se encontra em Sartre esse elemento de verdade. Na nossa opini˜ ao, consiste na acentua¸c˜ao da importˆancia da decis˜ao individual, que o determinismo burguˆes e o marxismo vulgar subestimam habitualmente. Toda atividade social comp˜oe-se de atos individuais e a influˆencia que as condi¸c˜ oes materiais exercem, por importante que seja, n˜ ao se realiza, como disse Engels, sen˜ ao em “´ ultima instˆancia”. Isso significa que no momento de tomar uma decis˜ao, o indiv´ıduo encontra sempre diante dele uma certa margem de liberdade, no interior da qual a necessidade hist´ orica determina, cedo ou tarde, a decis˜ao a tomar. O simples fato da existˆencia de partidos pol´ıticos demonstra a realidade dessa margem de liberdade. As tendˆencias essenciais da evolu¸c˜ao social s˜ao perfeitamente previs´ıveis, mas – como j´ a disse Engels – seria um pedantismo rid´ıculo querer deduzir delas exatamente como Pedro e Paulo decidir˜ao em tal ou tal circunstˆ ancia dada. A necessidade hist´ orica faz-se sempre valer atrav´es de uma multid˜ ao de acasos interiores e exteriores. Reconhecer a importˆancia destes, analisar sua fun¸c˜ ao, constituiria uma tarefa cient´ıfica muito s´eria. ´ ´ evidente, E preciso dizer que Sartre n˜ ao se dedicou a essa tarefa? E porque nega a necessidade da evolu¸c˜ ao assim como a pr´opria evolu¸c˜ao, tanto no plano social como no indiv´ıduo, sendo dado que a escolha ´e independente, para ele, de todo o passado. Nega as rela¸c˜oes reais que unem o indiv´ıduo ` a sociedade; faz um mundo `a parte das rela¸c˜oes objetivas que envolvem o homem, e as rela¸c˜ oes humanas que enriquecem a existˆencia s˜ ao para ele apenas rela¸c˜ oes entre indiv´ıduos isolados. A no¸c˜ao de liberdade fatalista e mecˆ anica, constru´ıda nessa base, s´o pode aniquilar-se a si mesma. Para dizer a verdade, quase n˜ ao se assemelha `a categoria moral da verdadeira liberdade e n˜ ao vai mais longe que essa constata¸c˜ao ocasional de Engels, segundo a qual n˜ ao h´ a ato humano onde a consciˆencia n˜ao desempenhe um papel de mediador. Tudo nos leva a crer que Sartre d´ a-se perfeitamente conta daquilo que sua no¸c˜ ao de liberdade pode ter de problem´atica. Recusa entretanto abandonar seu m´etodo e escolhe antes a solu¸c˜ao que consiste em salvaguardar o equil´ıbrio do seu sistema, opondo ` a sua concep¸c˜ao sobrecarregada e absurda da liberdade uma outra concep¸c˜ ao da mesma natureza: a de responsabilidade. A no¸c˜ ao de responsabilidade ´e com efeito t˜ao absoluta e ilimitada em Sartre quanto a de liberdade. “Se preferi a guerra `a morte ou `a desonra, diz ele, tudo se passa como se eu carregasse toda a responsabilidade dessa 64

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guerra” (ibid., p. 640). Uma vez mais, uma verdade relativa ´e levada por Sartre ao absurdo, por meio da l´ ogica formal. A no¸c˜ ao de responsabilidade tem a mesma sorte que a de liberdade, isto ´e, perde seu sentido, porque uma concep¸c˜ao assim r´ıgida da responsabilidade nada mais quer dizer teoricamente e equivale `a irresponsabilidade total do ponto de vista da a¸c˜ao pr´atica. Dostoievsky, esse mestre inigual´ avel da psicologia, demonstrou v´arias vezes que os preceitos morais hipertensos n˜ ao exercem nenhuma influˆencia sobre as a¸c˜oes de seus autores e que, em consequˆencia, os homens que os professam s˜ao moralmente muito mais oscilantes do que aqueles que n˜ao tˆem princ´ıpios t˜ ao r´ıgidos. Nada ´e mais f´ acil que cometer trai¸c˜ao sobre trai¸c˜ao, com o cinismo mais fr´ıvolo, sob a cobertura de um sentimento de responsabilidade completamente verbal, levada ao extremo no plano te´orico. ´ preciso reconhecer, ali´ E as, que esse problema n˜ao ´e absolutamente estranho a Sartre. Ele o entrevˆe, sem querer tirar dele a menor consequˆencia e o mitifica, at´e esvazi´ a-lo de todo sentido. “Aquele que realiza na ang´ ustia sua condi¸c˜ ao de ser lan¸cado numa responsabilidade que se volta sobre seu abandono, n˜ ao tem nem remorso, nem queixa, nem desculpa...” (Ibid., p. 642). Da mesma forma que o sublime e o rid´ıculo est˜ao frequentemente separados apenas por um passo, a grandeza moral, em certos casos, pode ro¸car o cinismo e a frivolidade. Se acreditamos u ´til insistir a tal ponto na falˆencia filos´ofica da no¸c˜ao de liberdade em Sartre, ´e porque vemos a´ı o segredo do sucesso do existencialismo em certos meios. O nobre desprezo das considera¸c˜oes sociais e da vida p´ ublica, a interpreta¸c˜ ao abstrata irracional e absurda das no¸c˜oes de liberdade e de responsabilidade na defesa da integridade ontol´ogica do indiv´ıduo: eis em que se constitui toda a atra¸c˜ao do mito do Nada aos olhos dos esnobes. O que pode haver de mais atraente, com efeito, do que esse estranho casamento de um extremismo completamente verbal dos princ´ıpios com o niilismo absoluto da moral? A concep¸c˜ ao sartreana da liberdade fornece, al´em disso, uma excelente base ideol´ ogica aos intelectuais sempre presos a um individualismo extremo para motivar sua recusa em participar na obra de constru¸c˜ao e de consolida¸c˜ ao da democracia. Todos os que aceitam a liberdade absoluta, todos os que defendem a liberdade metaf´ısica, mesmo quando ´e praticamente a dos inimigos da liberdade, saudar˜ ao com alegria o existencialismo. A obra de J.-P. Sartre n˜ ao ´e certamente fascista nem pr´o-fascista. Entre seus adeptos, estamos convencidos, h´ a democratas sinceros. Somente, 65

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as grandes correntes espirituais desdenham, na sua orienta¸c˜ao, as inten¸c˜oes subjetivas dos pensadores. Para parafrasear Moli`ere, essas grandes correntes tiram vantagem de onde querem, e o existencialismo amea¸ca tornar-se um dia – se bem que involuntariamente – a ideologia da rea¸c˜ao.

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Cap´ıtulo III

O Impasse da Moral Existencialista ˜ HISTORICA ´ 1. A SITUAC ¸ AO DO EXISTENCIALISMO O existencialismo revela certos sintomas de uma crise e isto n˜ao se deve ao acaso. A hist´ oria do pensamento humano nos ensina, com efeito, que toda filosofia leva a marca profunda de sua ´epoca, na sua metodologia, em toda sua estrutura e at´e nas condi¸c˜ oes que lhe permitiram constituir-se. As inflex˜ oes da Hist´ oria provocam, portanto, necessariamente, crises na filosofia. Concep¸c˜ oes que, durante muito tempo, pareciam indiscutivelmente evidentes, tornam-se de repente problem´ aticas. O pensamento, ent˜ao, entrega-se tumultuosamente, por toda parte, `a procura de justifica¸c˜oes novas, de possibilidades de modifica¸c˜ ao, de perspectivas in´editas. Pois, em realidade, enquanto n˜ ao se est´ a em presen¸ca de uma sociedade nova, com uma estrutura social e econˆ omica essencialmente nova, enquanto as antigas classes e fra¸c˜ oes de classe dominantes guardam seu poder e sua influˆencia – ainda que sua posi¸c˜ ao no conjunto da sociedade tenha-se tornado um pouco vacilante – certos axiomas subentendidos, certas condi¸c˜oes primeiras da filosofia conservam sua validez. As crises da filosofia manifestam-se, ent˜ ao, em primeiro lugar, como tentativas com vistas `a concordˆancia dos princ´ıpios tradicionais aos fatos e aos problemas novos de uma existˆencia 67

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social transformada e ao comportamento humano modificado. Tal foi a situa¸c˜ ao da filosofia hegeliana ap´ os a revolu¸c˜ao de junho, ou a do neokantismo e do positivismo ap´ os a primeira guerra mundial. Seria totalmente espantoso que o desmoronamento do fascismo e a luta pela democracia – pela democracia nova, antes de tudo – n˜ao tivessem provocado mudan¸cas que exibissem todos os caracteres de uma crise, nessa filosofia burguesa que soube preservar sua existˆencia e suas posi¸c˜oes, desde a ´epoca preparat´ oria do fascismo, passando pelo reino de Hitler, at´e a guerra mundial e a Liberta¸c˜ ao e que, al´em disso, prepara-se atualmente para tornar-se a filosofia dominante de nosso p´os-guerra imediato, da mesma forma que o foi a filosofia de Spengler durante os anos que seguiram 1918. Os fatos sociais, que formam o pano de fundo dessa crise, da mesma forma que as modifica¸c˜ oes estruturais da filosofia que provocam, s˜ao muito ´ evidente que o simples e extremamente complexos ao mesmo tempo. E clima m´ orbido de Sein und Zeit, e que o antigo existencialismo, com seu encorajamento ` a passividade absoluta e sua no¸c˜ao abstrata de liberdade separada de toda existˆencia p´ ublica, n˜ ao poderiam satisfazer os intelectuais de esquerda do per´ıodo consecutivo a` Liberta¸c˜ao. Os elementos sociais e hist´ oricos de que se comp˜ oe esse p´ os-guerra n˜ao s˜ao, certamente, homogˆeneos. O fascismo foi vencido, n˜ ao somente no plano militar e pol´ıtico, mas tamb´em moralmente. Mas tudo isso foi realizado antes objetivamente do que subjetivamente. Pois, enfim, os fascistas existem ainda e n˜ ao deixam de ser sustentados por certas for¸cas que os consideram uma reserva suscet´ıvel de ser utilizada contra a esquerda. Essa pol´ıtica de espera exterioriza-se por uma tendˆencia ` a pacifica¸c˜ao da luta ideol´ogica contra o fascismo e, antes de tudo, por uma tolerˆancia integral a respeito das ideologias que se encarregaram de preparar, intelectualmente e moralmente, o caminho do fascismo (Nietzsche, Spengler, Ortega y Gasset, Heidegger). A influˆencia dessas correntes ´e, ali´ as, consider´avel, mesmo entre os intelectuais que s˜ ao politicamente de esquerda. A nova situa¸c˜ao social e pol´ıtica reflete-se portanto de uma maneira contradit´oria e complexa no plano da ideologia. Est´ a, em suma, muito longe de corresponder a essa liquida¸c˜ao radical da heran¸ca pr´e-fascista e fascista, que devia, segundo a esperan¸ca dos otimistas, seguir a queda de Hitler. A situa¸c˜ ao pol´ıtica na maior parte dos pa´ıses, assim como certos elementos das rela¸c˜ oes internacionais refor¸cam ainda essas tendˆencias. O equil´ıbrio fr´ agil desses anos, entre tentativas de prepara¸c˜ao e tentativas de preven¸c˜ ao de uma nova guerra mundial, entre a edifica¸c˜ao de uma de68

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mocracia nova e a restaura¸c˜ ao de um fascismo de vinte e cinco a setenta e cinco por cento ortodoxo, n˜ ao pode deixar de refletir-se no plano ideol´ogico. Exprime-se, antes de tudo, pela confus˜ ao total do humanismo antigo, que considera as oportunidades de instaura¸c˜ ao de uma democracia nova, pelo menos com tanto temor quanto as de uma restaura¸c˜ao do fascismo, e que s´ o pode, por conseguinte, refugiar-se, cada vez mais profundamente, num mundo feito de postulados abstratos, formulados sob o signo de um pessimismo “sublime”. Da´ı resulta que as ideologias pr´e-fascistas, ap´os terem procedido a um reagrupamento interno, continuam a agir e tentam adaptarse ` as realidades novas, sem ter de modificar suas bases. Certos ind´ıcios levam a crer que s˜ ao leg´ıtimas as promessas de uma influˆencia consider´avel das doutrinas heideggerianas no outro lado do Atlˆantico, enquanto filosofia nitidamente reacion´ aria, e certos fenomen´ ologos americanos combatem essa expans˜ ao da rea¸c˜ ao, representada por Heidegger e Scheler, em nome de uma ortodoxia diretamente ligada a Husserl. O Velho Mundo, ali´as, est´a longe tamb´em de apresentar uma homogeneidade ideol´ogica. Nele encontramos hesita¸c˜ oes entre numerosos intelectuais e, em particular, entre os que encaram com desconfian¸ca as transforma¸co˜es trazidas pelo p´os-guerra e procuram apoiar sua expectativa numa ideologia filos´ofica e moralmente “elevada”. Jaspers ´e considerado como um chefe espiritual, tendo o m´erito de adaptar o existencialismo, desde o in´ıcio, `a mentalidade do burguˆes moderado. O ramo especificamente francˆes do existencialismo, representado por J.-P. Sartre e sua escola, encontra-se numa situa¸c˜ao particular. Durante os anos da Resistˆencia, essa escola recrutou numerosos adeptos, gra¸cas `as modifica¸c˜ oes relativamente leves da doutrina, que n˜ao afetavam a essˆencia da ontologia fundamental de Heidegger. Para numerosos militantes dos Movimentos da Resistˆencia, esse pr´ oprio movimento, sua finalidade, isto ´e, a Liberta¸c˜ ao, assim como seu advers´ ario, isto ´e, o “nihil” social e moral do hitlerismo, n˜ ao era, afinal de contas, nada mais do que um mito. A derreli¸c˜ ao-no-nada, a abstra¸c˜ ao do ser-com-outro, a liberdade e a responsabilidade abstratas e individualizadas podiam perfeitam integrar-se nesse mito. Mas quando a Resistˆencia tornou-se Liberta¸c˜ao, quando, em raz˜ao do papel por ele representado, o existencialismo manifestou a ambi¸c˜ao de conquistar os intelectuais de esquerda e, em particular, os jovens, uma transforma¸c˜ ao fez-se necess´ aria. O conte´ udo da no¸c˜ao de liberdade, o problema da orienta¸c˜ ao que devia tomar a Liberta¸c˜ao, as quest˜oes de moral e de filosofia da hist´ oria adquiriram ent˜ ao uma importˆancia preponderante 69

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e o existencialismo desenvolveu a batalha ideol´ogica contra o marxismo, para manter os fi´eis nas suas fileiras e para ampliar suas conquistas. J´ a indicamos certas analogias hist´ oricas. N˜ao ignoramos, certamente, que a maior prudˆencia ´e de rigor no manejo de analogias dessa ordem, porque as semelhan¸cas abstratas de estrutura, que s˜ao oferecidas com as situa¸c˜ oes ` as quais se referem, acompanham-se ordinariamente de diferen¸cas hist´ oricas e sociais, bem mais importantes e bem mais concretas. Essas analogias s´ o poderiam ent˜ ao esclarecer a situa¸c˜ao geral do pensamento e n˜ ao o conjunto dos problemas concretos, que formam seu objeto. Mantidas todas essas reservas, n˜ ao devemos entretanto deixar de invocar uma outra analogia dessa ordem apta a esclarecer a posi¸c˜ao atual do existencialismo. Pensamos no pensamento de Nietzsche, enquanto produto da crise da filosofia de Schopenhauer, nas v´esperas do est´agio do imperialismo. Tal como J.-P. Sartre atualmente, Nietzsche estava preocupado – em circunstˆ ancias certamente muito diferentes e, portanto, de uma maneira completamente diferente – em transformar a filosofia do a-historismo, ou do anti-historismo objetivo, uma filosofia que pre gava a mais estrita passividade, em uma filosofia do ativismo, em uma filosofia da hist´oria da sociedade, e isso sem ter de modificar os fundamentos de sua teoria do conhecimento. Sartre ´e, portanto, em rela¸c˜ao a Heidegger – mutatis mutandis – o que Nietzsche foi, em rela¸c˜ ao a Schopenhauer. Nietzsche resolveu o problema transformando o niilismo passivo, reacion´ario e abstencionista de Schopenhauer em um niilismo ativo e c´ınico, fazendo do mito da ahistoricidade o da Hist´ oria b´ arbara. Esse mito ´e, ali´as, em Nietzsche, tanto o produto da subjetividade soberana quanto ´e, em Schopenhauer, a escamotea¸c˜ ao integral da essˆencia da historicidade. Trata-se portanto de uma transforma¸c˜ ao pol´ıtico-social e ideol´ogico-moral, que n˜ao afeta a teoria do conhecimento da doutrina de Schopenhauer, transforma¸c˜ao que Nietzsche devia realizar sob a forma de uma radicaliza¸c˜ao subjetivamente sincera. Objetivamente, isto ´e, na realidade social, essa opera¸c˜ao fundava-se sobre a evolu¸c˜ ao econˆ omica, que avan¸cava no sentido do imperialismo, para a ´epoca das guerras mundiais. No decorrer desse per´ıodo, a filosofia nietzscheana satisfez plenamente ` a miss˜ ao que essa evolu¸c˜ao lhe atribu´ıa: neutralizou, precisamente nos intelectuais que se encontravam na oposi¸c˜ao, numerosas tendˆencias efetivamente revolucion´ arias, serviu de ant´ıdoto contra o marxismo e, nos intelectuais descontentes, preparou tanto a capitula¸c˜ao diante das for¸cas da rea¸c˜ ao como o sentimento de impotˆencia diante delas. Considerando o pensamento nietzscheano, os la¸cos que o ligam ao de 70

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Schopenhauer, a tentativa de supera¸c˜ ao do pessimismo e do niilismo que ele constitui, a transforma¸c˜ ao de um e de outro em “pessimismo heroico” e em “realismo heroico”, glorificados mais tarde pelo fascismo – considerando portanto o pensamento nietzscheano como uma tentativa de defesa contra o marxismo, imposs´ıvel deixar de se espantar com o protesto dos historiadores burgueses da filosofia, que nele ver˜ao uma superestima¸c˜ao do marxismo e de sua influˆencia. Mas, considerando a evolu¸c˜ao do pensamento alem˜ ao, mesmo que somente no per´ıodo de ascens˜ao das ideias de Nietzsche, imposs´ıvel deixar de constatar que essa defesa domina o pensamento sociol´ ogico e filos´ ofico, desde T¨ onnies, passando por Simmel, Sombart e Max Weber, at´e Mannheim, e mesmo C. Schmitt e Freyer, quer sob a forma de combate aberto contra o marxismo, quer sob a forma de apropria¸c˜ ao, desfigura¸c˜ ao e m´ a vulgariza¸c˜ ao – portanto de imuniza¸c˜ao – de certos de seus elementos. ´ apenas sob esse ˆ E angulo e ` a luz dessas constata¸c˜oes que se chega a identificar a moral, a filosofia social e a filosofia da hist´oria nietzscheana como formando um conjunto polˆemico contra a ideologia do socialismo. Nietzsche acreditava ainda que argumentos da ordem dos de Treitschke bastariam enquanto seus sucessores tiveram de levar bem mais longe que ele a sublima¸c˜ ao de seus problemas. Essa evolu¸c˜ao ´e f´acil de constatar tanto em Simmel e em Weber quanto em Spengler e em Scheler – e acreditamos firmemente em n˜ ao nos enganar no plano da objetividade (qualquer que seja o aspecto da quest˜ ao do lado subjetivo e filol´ogico) que Sein und Zeit de Heidegger nada mais ´e que um escrito polˆemico de dimens˜oes imponentes contra a concep¸c˜ ao marxista do fetichismo e as consequˆencias filos´ oficas e sociais que da´ı decorrem. A formid´avel agrava¸c˜ao da luta de classes durante o per´ıodo consecutivo ` a primeira guerra mundial significa uma expans˜ ao ininterrupta da influˆencia do marxismo. E hoje, toda ideologia que aspira a uma validez universal, a uma ampla influˆencia social e que n˜ ao se contenta em ser apenas uma doutrina universit´aria, deve-se medir abertamente com o marxismo. Tal ´e, para empregar uma das express˜ oes preferidas pelo vocabul´ario existencialista, a “situa¸c˜ ao” atual de J.-P. Sartre e de sua escola. E ´e assim que nossa analogia de agora h´ a pouco, colocando em paralelo Schopenhauer-Nietzsche de um lado e Heidegger-Sartre, de outro, ganha – com todas as reservas de princ´ıpio que n´ os mesmos indicamos – uma significa¸c˜ ao muito concreta. A analogia concerne primeiramente `a fun¸c˜ao social – considerada no momento de uma maneira muito abstrata – da filosofia. 71

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A despeito de todas as diferen¸cas que pode apresentar a gˆenese social de seu respectivo pensamento, e a despeito do antagonismo `as vezes total de seus m´etodos, Schopenhauer e Heidegger s˜ao, ambos, porta-vozes de uma passividade niilista, da condena¸c˜ ao de princ´ıpio de toda atividade social do homem e da glorifica¸c˜ ao do indiv´ıduo isolado, voltado para si mesmo. Mas a analogia manifesta-se ainda no fato de que, fatalmente, contradi¸c˜oes e ecletismos surgiram quando a teoria do conhecimento e a ontologia, intimamente ligadas num e noutro a esse niilismo passivo, tornam-se o ve´ıculo de um ativismo. Este foi, indiscutivelmente, o caso de Nietzsche. Ali´as, a fragilidade dos fundamentos de seu pensamento – fragilidade que somos obrigados a admitir mesmo aceitando suas pr´oprias premissas – n˜ao pˆode jamais diminuir seu prest´ıgio universal. Essa fragilidade ´e apenas, com efeito, o reflexo ideol´ ogico preciso da fragilidade e do car´ater contradit´orio do clima social, cuja evolu¸c˜ ao suportava o edif´ıcio de seu pensamento e favorecia sua expans˜ ao. Transformar o existencialismo alem˜ ao em uma filosofia ativista n˜ao foi coisa muito dif´ıcil sob o regime hitleriano. Lembremo-nos de Heidegger, reitor da Universidade de Friburgo, conduzindo seus estudantes em filas cerradas diante das urnas, onde deveriam sancionar com seu voto o abandono da Liga das Na¸c˜ oes pela Alemanha. Pensemos tamb´em na anedota, mais antiga, contada por L¨ owith, relatando a rea¸c˜ao de um estudante diante da moral heideggeriana: “Estou perfeitamente resolvido, mas n˜ao sei a quˆe”. N˜ ao ´e ela suficientemente reveladora quanto ao car´ater psicol´ogico e social desse ensino, sobretudo se a completamos pelo “viver perigosamente”, m´ axima pr´ opria ao niilismo fascista, e que marca a passagem da ang´ ustia te´ orica, cara a Heidegger, ` a atividade pr´atica? N˜ao, em Heidegger, o ativismo n˜ ao poderia ter nenhuma consequˆencia filos´ofica. Mas a situa¸c˜ ao do existencialismo francˆes ´e completamente diferente. O existencialismo francˆes tem a ambi¸c˜ ao de tornar-se a filosofia dos intelectuais de esquerda, socialistas, amigos do progresso e da democracia. N˜ao poderia, portanto, ` a maneira de Nietzsche, “liquidar” o socialismo, proferindo alguruas invectivas a seu respeito, como n˜ao poderia, `a maneira de Heidegger, ignor´ a-lo oficialmente, abrigando-se atr´as do regime dos campos de concentra¸c˜ ao. Deve, ao contr´ ario, medir-se com ele em combate aberto; deve provar sua superioridade nos terrenos da moral e da filosofia da Hist´ oria ; deve provar que a doutrina do existencialismo ´e suscet´ıvel de fornecer a todas as quest˜ oes que a Hist´ oria apresenta quanto ao comportamento do homem, respostas melhores, mais claras e mais concretas que 72

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o marxismo.

˜ E MORAL DO 2. MORAL DA INTENC ¸ AO RESULTADO O problema consiste em constituir uma moral existencialista, sendo dadas as condi¸c˜ oes concretas de nossa situa¸c˜ ao atual. Basta colocar assim o problema, para constatar que o existencialismo – mesmo aceitando suas pr´ oprias premissas – encontra-se obrigado, desde o in´ıcio, a se aquartelar na defensiva e que seus adeptos n˜ ao podem participar do combate sen˜ao num terreno que lhe ´e estranho. Este u ´nico fato manifesta a ascens˜ ao vitoriosa do marxismo. H´a algumas dezenas de anos, podia-se, com efeito, declarar altivamente que o marxismo n˜ ao tinha moral. Al´em disso, um tal ju´ızo era ent˜ao perfeitamente justific´ avel do ponto de vista da sabedoria ex cathedra da ´epoca, para a qual a moral era apenas um conjunto de postulados puramente formais, intemporais e abstratos. Acrescentemos, entretanto, que essa cr´ıtica n˜ ao atinge s´ o Marx, mas, com ele, todos os verdadeiros grandes moralistas concretos da hist´ oria do pensamento, e antes de tudo, Arist´oteles e Hegel. Mas, nessa quest˜ ao, o existencialismo coloca-se inteiramente ao lado da sabedoria ex cathedra: seu ancestral, Kierkegaard, n˜ao ataca Hegel no mesmo sentido, dando prova da mesma incompreens˜ao para os problemas de ordem moral propriamente ditos, como mais tarde a filosofia universit´ aria frente a Marx? Para empregar a terminologia consagrada por Max Weber, Kierkegaard ´e, tamb´em, um moralista da inten¸c˜ao como Kant, Fiˆ chte e igualmente – sobretudo em L’Etre et le N´eant – Jean-Paul Sartre, enquanto Marx, como Arist´ oteles e Hegel, ultrapassa o dilema moderno entre a moral da inten¸c˜ ao e a moral do resultado. Empregamos aqui de prop´ osito os termos cient´ıficos popularizados por Max Weber, para designar esse dilema essencial da ´etica atual, de que Hegel j´ a denunciou o car´ ater ilus´ orio. Esse falso dilema recebeu, na literatura de segunda classe fabricada por Koestler, uma express˜ao m´ıstica e pomposa, sob a forma de confronto entre o Ioga e o Comiss´ario. Teremos ocasi˜ao de ver que essa posi¸c˜ ao do problema, que preocupou tanto os existencialistas, em nada contribui para sua solu¸c˜ ao. Uma moral que considera apenas o ato individual do sujeito e para a qual a inten¸c˜ ao que preside esse ato constitui o crit´erio decisivo da mo73

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ral n˜ ao pode ser sen˜ ao uma moral da inten¸c˜ao. Aos olhos dessa moral, a liga¸c˜ ao do ato com suas consequˆencias s´o pode ter lugar numa esfera completamente diferente, sob o regime de leis essencialmente distintas. Assistimos, assim, a uma separa¸c˜ ao entre o plano da moral e o resto da realidade humana, “exterior”, separa¸c˜ ao imposs´ıvel de remediar por meio de categorias ou do m´etodo da moral da inten¸c˜ao, porque estas s˜ao produtos dessa separa¸c˜ ao. Eis porque os radicais entre os adeptos da moral de inten¸c˜ao – e s´o estes s˜ ao consequentes – recusam-se absolutamente a considerar as consequˆencias do ato (o Serm˜ ao da Montanha, Kierkegaard, Heidegger). Nenhuma moral, entretanto, cujo conte´ udo e inten¸c˜ ao n˜ao equivalem a uma recusa total do mundo, a uma ren´ uncia total ` a penetra¸c˜ao da realidade social, poderia abandonar toda tentativa com vistas a restabelecer o la¸co entre o ato individual e suas consequˆencias. Ora, no momento mesmo em que se empreende essa tentativa, percebe-se a necessidade de restabelecer, de um modo ou de outro, uma ponte entre a moral de um lado e a sociedade e a filosofia da hist´ oria de outro. Pergunta-se somente como restabelecer essa ponte, quando a moral da inten¸c˜ ao tinha tomado o cuidado de eliminar do comportamento moral original todo conte´ udo social e hist´orico, a fim de salvaguardar o primado decisivo do ato subjetivo e da inten¸c˜ao individual! Conhecem-se os destinos da moral kantiana. Kant tinha tentado sair do formalismo puro da moral da inten¸c˜ ao e do imperativo categ´orico, pondo, diante de cada ato moral concreto, o crit´erio da ausˆencia de contradi¸c˜ao objetiva. Portanto, – para retomar seu exemplo – nenhum dep´osito deve ser roubado, pois o roubo contradiria a no¸ca˜o mesma de dep´osito, “porque um tal princ´ıpio teria por efeito anular-se a si mesmo enquanto lei, pois faria que n˜ ao existisse mais o dep´ osito”. Hegel, na sua Cr´ıtica, responde: “Que n˜ ao haja dep´ osito algum, e onde estaria a contradi¸c˜ao? Se n˜ao houvesse dep´ osito, isto contradiria outros dados necess´arios; da mesma maneira, a possibilidade da existˆencia de um dep´osito est´a ligada a outros dados necess´ arios e torna-se assim ela pr´ opria poss´ıvel. Mas que n˜ao se fa¸ca apelo a outros fins e a outras causas materiais: a forma imediata do conceito deve decidir da justeza da primeira ou da segunda suposi¸c˜ao. Mas, do ponto de vista da forma, os dados opostos s˜ ao indiferentes, tanto uns quanto os outros...” Hegel demonstra aqui que Kant abandona as bases filos´oficas da sua pr´ opria moral, ao querer deduzir do imperativo categ´orico a existˆencia ou a justifica¸c˜ ao de uma categoria econˆ omica e social e o comportamento ´etico 74

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a seu respeito. Enquanto moral da inten¸c˜ ao formalista, a moral kantiana ´ incapaz de co´e incapaz de colocar essa quest˜ ao no seu pr´ oprio terreno. E loc´ a-la corretamente, porque Kant considera o conhecimento do conjunto da realidade objetiva, – em nossa cita¸c˜ ao Hegel n˜ao se ocupa desse aspecto da quest˜ ao – isto ´e, o conhecimento do mundo hist´orico-social, como conhecimento de fenˆ omenos somente, ao qual op˜oe, sob os ausp´ıcios do ato moral, o acesso ao mundo em si, ao mundo nomenal. Assim, a conclus˜ao dessa tentativa de Kant teria como resultado – por interm´edio do ato moral isento de contradi¸c˜ ao – tal como ´e aqui postulado – a transforma¸c˜ao do conhecimento do mundo hist´ orico-social em um conhecimento em si, finalizando pela supress˜ ao de toda teoria do conhecimento de Kant. ´ interessante e muito caracter´ıstico que o jovem Hegel – que o fez em E nome do idealismo objetivo – n˜ ao tenha sido o u ´nico a protestar contra essa tendˆencia de Kant, que consiste em dotar o ´etico de um conte´ udo social, com a ajuda da l´ ogica formal. Georg Simmel, numa ´epoca mais recente, o fez tamb´em, em nome do idealismo subjetivo kantiano. Simmel parte, como Hegel, do pretenso crit´erio da ausˆencia de contradi¸c˜oes l´ogicas do imperatiyo categ´ orico. Somente, segundo Simmel, esse crit´erio n˜ao seria defens´ avel sen˜ ao num sentido puramente moral, isto ´e, naquele da moral da inten¸c˜ ao, porque, diz ele, “a unidade l´ ogica interior de nossas a¸c˜oes forma tamb´em o crit´erio de seu valor moral”. Assim, para retomar o exemplo de Kant, o roubo do dep´ osito pode ser t˜ ao moral como sua vigilˆancia, com a condi¸c˜ ao de que a “unidade l´ ogica interior” do ato moral permane¸ca integral. Se entramos a tal ponto no detalhe da discuss˜ao sobre a possibilidade da extens˜ ao da moral da inten¸c˜ ao formal aos conte´ udos sociais, ´e primeiramente porque nos ofereceu a ocasi˜ ao de evocar todas as quest˜oes essenciais de nosso problema, mas ´e tamb´em porque a posi¸c˜ao que o pr´oprio Sartre tomou, na sua pequena brochura de populariza¸c˜ao, aproxima-se sensivelmente da moral de Kant. Na medida em que ´e poss´ıvel construir uma ˆ moral sobre os princ´ıpios formulados no L’Etre et le N´eant, este atribuiria ao ato subjetivo o primado absoluto. J´ a tive ocasi˜ao, noutro lugar, de explicar as consequˆencias que decorrem desse subjetivismo radical para as rela¸c˜ oes que unem o sujeito aos seus semelhantes, de maneira que creio poder limitar-me a cita¸c˜ oes, para caracterizar a posi¸c˜ao tomada por Sartre na sua principal obra. Diz ele, notadamente: “As mais atrozes situa¸c˜oes da guerra, as piores torturas n˜ ao criam um estado de coisas desumano; n˜ao h´ a situa¸c˜ ao desumana: ´e somente pelo medo, a fuga e o recurso `as con75

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dutas m´ agicas que eu decidirei do desumano: mas essa decis˜ao ´e humana ˆ e tomarei sua inteira responsabilidade” (L’Etre et le N´eant, p. 639) (Sublinhado por mim, G. L.). A brochura de populariza¸c˜ao de Sartre j´a leva em conta a situa¸c˜ ao geral depois da Liberta¸c˜ao, tal como a descrevemos, e aceita a parte de obriga¸c˜ oes que dela decorrem para o existencialismo. Assim, nessa brochura, diz Sartre: “...sou obrigado a querer ao mesmo tempo que minha liberdade a liberdade dos outros, n˜ao posso tomar minha liberdade por um fim, a n˜ ao ser que tome igualmente a dos outros por um fim” (L’Existentialisme est un Humanisme, p. 83). Noutra passagem, encontramos uma f´ ormula mais radical, e, ao mesmo tempo, ainda menos n´ıtida: “o que escolhemos ´e sempre o bem, e nada pode ser bom para n´os sem o ser para todos”. Para quem conhecer a filosofia de Kant, ´e imediatamente evidente que a posi¸c˜ ao de Sartre ´e totalmente vizinha da de Kant; o postulado que formula aqui parece decorrer diretamente do imperativo categ´ orico, segundo o qual tudo, no mundo, pode ser tratado como meio, “s´ o o homem ´e um fim em si mesmo” (Ibid., p. 25-26). Veremos como essa concep¸c˜ ao est´ a destinada a desempenhar um papel decisivo na gˆenese da moral existencialista. Queremos saber entretanto com que direito Sartre opera esse alargamento de sua concep¸c˜ ao original da liberdade. Essa moral inspirada em Kant faz parte orgˆ anica do existencialismo ? N˜ao que nos sintamos obrigados a velar pela ortodoxia da doutrina existencialista, n˜ao. Mas temos o dever de protestar, quando J.-P. Sartre e seus disc´ıpulos afirmam que sua filosofia, de que j´ a identificamos a base heideggeriana, enquanto niilista e reacion´ aria, representa uma ideologia progressista e democr´atica. Indicamos, ent˜ ao, uma contradi¸c˜ ao entre os fundamentos filos´oficos e os postulados ´eticos dessa doutrina; segue-se da´ı a obriga¸c˜ao de abandonar, para todos aqueles que levam a s´erio a filosofia e a moral tanto os fundamentos heideggerianos, como o edif´ıcio progressista e liberal constru´ıdo sobre estes. A inconsequˆencia de Sartre e o ecletismo de suas novas posi¸c˜oes manifestamse, antes de tudo, pelo fato de que seu novo conceito de liberdade est´a muito longe de coincidir com aquele formulado na sua obra principal. Nesta, o autor seguiu, com algumas divergˆencias de pormenor, os fundamentos elaborados por Kierkegaard e por Heidegger. Assim, a liberdade significa o ato subjetivo de decidir e de agir, sem levar em conta o conte´ udo ou a dire¸c˜ ao do ato. Quer o torturado fale ou guarde silˆencio, quer o mobilizado tome das armas ou deserte, trata-se, apenas e sempre, da liberdade 76

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tal como surgiu do ato individual. Para falar a verdade, pode-se querer ou n˜ ao querer essa liberdade para outrem? A resposta n˜ ao poderia ser outra sen˜ao negativa. Pois, quando violo a liberdade de outrem da maneira mais direta (sua liberdade no sentido corrente da palavra), meu ato pode ainda, segundo o existencialismo, ser um ato de minha liberdade. Por outro lado, outrem ter´a ainda – segundo o conceito de liberdade caro a Heidegger e a Sartre – sua liberdade ´ evidente que agindo assim, crio para absolutamente ilimitada de reagir. E ele uma “situa¸c˜ ao”, mas nessa situa¸c˜ ao, ser´ a absolutamente livre para escolher entre a obediˆencia e a autodefesa. Qualquer que seja sua escolha, pode – segundo Sartre – optar em liberdade e manifestar´a sua liberdade pelo ato de obediˆencia ou de autodefesa que ele mesmo ter´a escolhido. Assim, o efeito mais profundo que eu pudesse exercer sobre outrem consistiria somente em criar para ele uma situa¸c˜ ao: isto n˜ ao pode constituir, de minha parte, uma interven¸c˜ ao na sua liberdade. O postulado moral, formulado pela brochura de populariza¸c˜ao de Sartre, n˜ ao perde entretanto seu sentido. Est´ a, ao contr´ario, carregada de um sentido completamente claro, ainda que incompat´ıvel com as considera¸c˜oes fundamentais de sua obra principal. Incompat´ıvel, n˜ao somente por raz˜oes l´ ogicas, mas porque a liberdade que ´e tratada nessa brochura n˜ao ´e somente a do ato individual, mas, ao contr´ ario, ´e a liberdade no sentido social da palavra. Quando postulo minha pr´opria liberdade assim compreendida, segundo a tradi¸c˜ ao da moral antiga, minha vontade torna-se desprovida de sentido, se n˜ ao postular, ao mesmo tempo, a liberdade dos outros. Neste caso, com efeito, liberdade significa ser cidad˜ao livre de um Estado livre e a liberdade dos meus concidad˜aos constitui uma condi¸c˜ao sine qua non da minha. Este racioc´ınio ´e perfeitamente claro e segue-se tamb´em claramente que essa liberdade n˜ ao tem mais nada a ver – n˜ao s´o logicamente, mas tamb´em quanto ao seu conte´ udo – com o conceito de ˆ liberdade formulado em L’Etre et le N´eant, onde surge exclusivamente do ato subjetivo. Examinando um pouco mais de perto esses dois conceitos de liberdade, empregados simultaneamente, mas que s˜ao radicalmente diferentes, o empr´estimo metodol´ ogico que Sartre fez de Kant aparece sob uma luz completamente nova. N˜ ao ´e preciso esquecer, com efeito, que a despeito de todas essas inconsequˆencias conhecidas, Kant pode, com justi¸ca, pretender ter conferido um valor universal ` a sua moral da inten¸c˜ao, porque sua doutrina op˜ oe o Eu de seu ato moral ` a existˆencia imediata do homem 77

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e porque esse Eu encerra assim, implicitamente, a considera¸c˜ao do homem por ele mesmo, enquanto ser dotado de raz˜ao, pertencente a humanidade. A interdi¸c˜ ao de considerar o homem como meio n˜ao contradiz, ent˜ao, em si ´ devida somente ao revesmesma, de maneira nenhuma, esta concep¸c˜ao. E timento formalista da moral kantiana, que dissimula elementos hist´oricos e sociais ignorados pelo pr´ oprio Kant. O formalismo sartreano encerra igualmente, n´os o veremos, elementos hist´ oricos essenciais inconscientes, mas de um car´ater completamente diferente, absolutamente contr´ ario mesmo. Simmel quis j´a modernizar os constituintes temporais da moral de Kant, opondo `a “liberdade dos indiv´ıduos pertencentes essencialmente ` a mesma esp´ecie” um individualismo ´ esse ideal de igualdade, proveniente do novo, o da personalidade u ´nica. E tesouro espiritual da Revolu¸c˜ ao Francesa e considerado por Simmel como caduco, que permitir´ a a Kant, do ponto de vista metodol´ogico, a universaliza¸c˜ ao de que falamos acima. A moral de Simmel, a da personalidade u ´nica, torna-se entretanto a tendˆencia dominante do est´agio do imperialismo, transformando cada vez mais a ´etica em um solipsismo irracional dos atos subjetivos de personalidades u ´nicas. Sein und Zeit, de Heidegger, ˆ assim como L’Etre et le N´eant, de Sartre, representam os pontos culminantes dessa evolu¸c˜ ao. Para dotar seu conceito de liberdade de um valor universal, Sartre deve, portanto, al¸car-se bem mais longe do que Kant, tanto mais que pretende ir bem mais longe. A reivindica¸c˜ao da liberdade para todos vai efetivamente bem mais longe do que a simples interdi¸c˜ao de consierar o homem como meio. Era necess´ario, portanto, realizar aqui um salto miraculoso. E Sartre, com a coragem nas m˜aos e o nome de Kierkegaard nos l´ abios, saltou. Saltou de um conceito de liberdade bem determinado a um outro completamente oposto... Vamos ver como, na sua obra de vulgariza¸c˜ao, Sartre opera com dois conceitos de liberdade, que nada tˆem a ver juntos e que s˜ao mesmo totalmente incompat´ıveis. L’Existentialisme est un Humanisme traz, com efeito, um exemplo bem descrito, que mostra claramente que seu novo conceito de liberdade ´e apenas, para o autor, uma concess˜ ao ` as exigˆencias do momento, mas que no fundo permanece sempre ligado ` a moral que lhe foi legada por Kierkegaard e por Heidegger. O exemplo evoca o caso de um jovem colocado diante do seguinte dilema: abandonar sua m˜ae ou abandonar a luta pela liberta¸c˜ ao. Ora, se Sartre levasse verdadeiramente a s´erio seu novo conceito de liberdade, esfor¸car-se-ia por deduzir dessa defini¸c˜ao geral (liga¸c˜ao 78

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de minha liberdade ` a de todos) uma linha de conduta moral, suscet´ıvel de inspirar uma decis˜ ao a esse jovem. Mas n˜ ao pensa assim. Demonstra, ao contr´ ario, que a concep¸c˜ ao kantiana, segundo a qual nenhum homem deve ser tratado como meio, concep¸c˜ ao t˜ ao pr´ oxima da sua pr´opria, coloca esse jovem diante de um dilema insol´ uvel. Deve considerar tanto sua m˜ae como seus companheiros de armas como meio. Partindo da concep¸c˜ao moˆ ral de L’Etre et le N´eant, Sartre recusa-se a dar um conselho. Diz a esse jovem: “vocˆe ´e livre, escolha... Nenhuma moral geral pode indicar-lhe o que fazer...” Mas a nova moral sartreana, a que liga minha liberdade `a de todos, n˜ a´ o ´e tamb´em uma “moral geral”, isto ´e, segundo Sartre, uma moral que n˜ ao poderia e n˜ ao deveria – segundo a antiga concep¸c˜ao sartreana da liberdade – inspirar nenhuma decis˜ ao ao sujeito que age? Mas se assim for, qual ´e o valor dessa moral quando se tratar de construir um sistema geral? Se o ato de decidir ´e o u ´nico crit´erio decisivo, se a concordˆancia interior da decis˜ ao com a personalidade que se constitui de novo por esse ato permanece a u ´nica realiza¸c˜ ao poss´ıvel de minha liberdade, ent˜ao o existencialismo n˜ ao oferece nenhuma possibilidade para uma generaliza¸c˜ao moral, at´e mesmo hist´ orico-social. Neste caso, a moral, tal qual foi formulada nessa obra de populariza¸c˜ ao, nada mais ´e do que uma constru¸c˜ao ecl´etica, cheia de contradi¸c˜ oes, acrescentada de forma completamente exterior ao existencialismo propriamente dito.

3. SARTRE CONTRA MARX Certas conclus˜ oes metodol´ ogicas j´ a se imp˜oem partindo desta an´alise sum´ aria a que acabamos de nos dedicar. Toda concep¸c˜ao, e mesmo toda categoria ´ otica encerra – conscientemente ou n˜ao – uma certa vis˜ao da sociedade e de sua evolu¸c˜ ao. (Esta vis˜ ao pode, sem d´ uvida, negar toda evolu¸c˜ ao.) Para que uma constru¸c˜ ao ´etica possa estar isenta de contradi¸c˜ oes internas e permanecer correta do ponto de vista puramente formal, deve poder referir-se a uma concep¸c˜ ao homogˆenea da estrutura e do ´ imposs´ıvel desconhedinamismo da hist´ oria e, portanto, do indiv´ıduo. E cer, ` a luz destas considera¸c˜ oes, o significado hist´orico da inconsequˆencia de que Sartre d´ a provas em sua pequena obra: exprime uma modifica¸c˜ao, sem d´ uvida inconsciente, das concep¸c˜ oes do autor sobre a sociedade, a hist´ oria, a situa¸c˜ ao hist´ orica, etc. E j´ a que, no entanto, Sartre n˜ao acreditou dever modificar suas concep¸c˜ oes filos´ oficas de base, esta modifica¸c˜ao 79

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s´ o pode manifestar-se da maneira que n´ os mostramos, isto ´e, sob o aspecto do emprego de dois conceitos diferentes de liberdade, dos quais o segundo se mostra totalmente incompat´ıvel com o m´etodo do existencialismo. A nosso ver, a crise na qual se debate o existencialismo manifesta-se pelas divergˆencias cada vez mais graves que separam os primeiros princ´ıpios do existencialismo, provenientes socialmente da situa¸c˜ao de uma certa classe de intelectuais do est´ agio do imperialismo, e que provˆem, do ponto de vista te´ orico, de Kierkegaard, de Husserl e de Heidegger, de problemas e de concep¸c˜ oes novas que lhe impˆ os a ´epoca hist´orica consecutiva `a Liberta¸c˜ ao. Que os existencialistas mais em evidˆencia e, antes de tudo, o pr´ oprio Sartre, n˜ ao fossem conscientes desta crise, n˜ao h´a nisto nada de espantoso. N˜ ao h´ a necessidade de evocar aqui analogias hist´oricas. Basta recordar a obscuridade dos m´etodos da fenomenologia, obscuridade que s´o cresceu ap´ os o surgimento de uma ontologia fundamental, mais proclamada que verdadeiramente fundamentada, do ponto de vista metodol´ogico. Ora, esta obscuridade permite abrir e fechar o c´elebre parˆenteses de uma maneira t˜ ao arbitr´ aria, que a rela¸c˜ ao entre realidade e representa¸c˜ao torna-se, com efeito, incerta. Distinguir exatamente, nestas condi¸c˜oes, entre o objetivo e o subjetivo, necessitaria, a bem dizer, uma verdadeira virtuosidacle cr´ıtica. Mas a ambi¸c˜ ao de fazer do existencialismo a filosofia de nosso tempo, o desejo de alcan¸car a vit´ oria contra o materialismo dial´etico s˜ao pouco compat´ıveis com o esp´ırito cr´ıtico. O exemplo do pr´ oprio Sartre forneceu a melhor prova do essencial de nossas afirma¸c˜ oes. Simone de Beauvoir e, principalmente, Maurice Merleau-Ponty, n˜ ao deixam de mostrar, com efeito, uma certa vontade de compreens˜ ao dos problemas da atualidade analisados pelo aparelho conceitual do marxismo. Esta vontade vai talvez a par com a esperan¸ca de poder provar, em u ´ltima instˆ ancia, a superioridade do existencialismo: parecem pressentir, ` as vezes, que h´ a necessidade de certas corre¸c˜oes. Mas o pr´ oprio Sartre, esfor¸ca-se frequentemente por suprimir o rival desagrad´avel por meios demag´ ogicos, bastante baratos e indignos de um pensador de sua classe. Sartre consagra em sua revista dois importantes estudos ao debate contra o marxismo. Seu ponto de partida ´e naturalmente determinado por sua posi¸c˜ ao existencialista, o que falseia completamente suas conclus˜oes. Em lugar de partir, por exemplo, da an´ alise da situa¸c˜ao real da Fran¸ca, ou da Europa, de examinar suas tendˆencias revolucion´arias em presen¸ca e perguntar em seguida qual das duas ideologias reflete melhor a evolu¸c˜ao 80

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objetiva da hist´ oria, Sartre parte de uma medita¸c˜ao sobre a mentalidade da juventude atual, para a qual o idealismo passa por estar definitivamente comprometido com a classe dirigente, mas que n˜ao deixa de demonstrar reservas em rela¸c˜ ao ao materialismo. Segundo Sartre, intimida-se esta juventude dizendo-lhe que aquele que n˜ ao opta pelo materialismo, concorda, queira ou n˜ ao, com o campo do idealismo desprezado. Sartre prop˜oe-se, portanto, explorar – por meios bastante demag´ogicos – essa mentalidade, com vistas a desacreditar definitivamente o materialismo e preparar assim o caminho ao triunfo do existencialismo, desse “terceiro caminho” do pensamento que n˜ ao ´e nem materialista nem idealista. Empregamos a palavra “demagogia”, bem sabendo que, numa discuss˜ao cient´ıfica, ela pode, com raz˜ ao, parecer brutal. Acreditamos dever empregar essa palavra porque a polˆemica de Sartre contra o materialismo quase n˜ ao poderia ser qualificada de outro modo. N˜ ao podemos crer, com efeito, que Sartre ignore numerosas quest˜ oes tratadas ao longo de dezenas de brochuras de vulgariza¸c˜ ao. Ora, neste caso, ´e quase imposs´ıvel admitir que sua boa f´e seja integral. Abriremos o debate com uma quest˜ ao de terminologia. Sartre declara ´ penoso ver Sartre, que o materialismo ´e uma “doutrina metaf´ısica”. E pensador autˆentico e de grande classe, empregar contra o materialismo dial´etico os argumentos que conviria opor ao materialismo mecanicista: ´e um procedimento que n˜ ao ´e digno dele. O termo “metaf´ısica” possui, ali´as, no vocabul´ ario do materialismo dial´etico, um sentido particular, porque ´e a antinomia do termo “dial´etica”. Se a polˆemica fosse leal, Sartre deveria dar pelo menos uma indica¸c˜ ao r´ apida dessa acep¸c˜ao particular, que ´e somente de emprego corrente nos marxistas. Compreendemos perfeitamente – porque conhece a dial´etica apenas sob sua forma completamente falseada por Kierkegaard e por Heidegger – que possa consider´a-la como contr´aria ao esp´ırito cient´ıfico. Reprova confus˜ oes dessa ordem aos marxistas franceses, mas no entanto, gra¸cas a uma h´ abil manipula¸c˜ao das duas acep¸c˜oes do termo “metaf´ısica”, ele mesmo confunde a quest˜ao. Diz, entre outras coisas, que a ciˆencia, enquanto “realiza¸c˜ ao da quantidade” (Temps Modernes, t. IX, p. 1544) op˜ oe-se ` a dial´etica. Ent˜ ao n˜ao sabe que a categoria da quantidade faz parte, em Hegel, assim como em Marx, do aparelho conceitual da dial´etica? Sartre continua a confundir a quest˜ao quando, a respeito da mat´eria, atribui aos marxistas “a mat´eria de que falam os cientistas” (Temps Modernes,t. IX, p. 1543). Talvez seja justo, quando se trata da quest˜ ao concreta que visa a estrutura da mat´eria. Mas o que Sar81

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tre discute aqui ´e a no¸c˜ ao epistemol´ ogica de mat´eria e deveria saber que, em Materialismo e Empiriocriticismo, sua grande obra de filosofia, Lˆenin separa com a maior clareza a defini¸c˜ ao filos´ofica da mat´eria (o que existe independentemente de nossa consciˆencia) das defini¸c˜oes sempre mut´aveis e sempre suscet´ıveis de aperfei¸coamento dadas pelo conhecimento cient´ıfico concreto. Acredito poder limitar-me aqui a essa r´apida indica¸c˜ao, porque essa quest˜ ao est´ a desenvolvida em detalhe no u ´ltimo estudo desse volume. ´ com tais armas que Sartre combate o materialismo, esse “monstro e E Proteu inapreens´ıvel, essa aparˆencia falsa, vaga e cheia de contradi¸c˜oes” (Temps Modernes, t. IX, p. 1560). Passemos agora ` as quest˜ oes concretas. Sartre reprova ao materialismo, antes de tudo, de “eliminar a subjetividade” e de “privar o homem da liberdade”; acusa¸c˜ oes que s˜ ao familiares a n´os, marxistas, h´a dezenas de anos, porque fazem parte do arsenal regulamentar do menor dos nossos advers´ arios. Todo marxista poder´ a constatar sem esfor¸co que aqui tamb´em Sartre desfigura o marxismo para poder combatˆe-lo. Est´a, ali´as, obrigado, pelo fato de que ocupa uma posi¸c˜ ao defensiva, que habilmente camufla em ofensiva, aproveitando da relevˆ ancia dada pelo existencialismo `a subjetividade, o que constitui o seu elemento relativamente justificado. Dizemos relativamente justificado, pois a doutrina existencialista o sobrecarrega ao ponto de o transformar em um absurdo. Entretanto, por mais justificado que seja, esse elemento est´ a longe de ser desconhecido por n´os, marxistas. Trata-se, com efeito, de sublinhar que s˜ao os pr´oprios homens que fazem sua hist´ oria, tanto na sua vida privada como na existˆencia p´ ublica. Seguese que tudo o que aconteceu, acontece e acontecer´a no curso da hist´oria da humanidade comp˜ oe-se de a¸c˜ oes humanas, as quais tˆem sua fonte direta nas resolu¸c˜ oes humanas e essas resolu¸c˜ oes s˜ao sempre tomadas nas situa¸c˜oes concretas, precisas (a “situa¸c˜ ao”, cara aos existencialistas). Ora, consideradas no plano individual, essas resolu¸c˜ oes podem sempre ser tomadas num sentido ou noutro. Nenhum marxista razo´avel poderia, com efeito, pˆor em d´ uvida que, por exemplo, quando os oper´arios s˜ao chamados a participar de uma manifesta¸c˜ ao, cada oper´ ario interessado dever´a decidir se tomar´a parte nela ou n˜ ao; n˜ ao colocamos em d´ uvida nem que seja poss´ıvel prever o sentido geral de todas essas decis˜ oes individuais e tais previs˜oes s˜ao `as vezes enganadoras. Se o existencialismo se contentasse em esclarecer esse elemento de uma rela¸c˜ ao dial´etica frente aos marxistas vulgares que consideram o determinismo econˆ omico da consciˆencia humana como uma fatalidade mecˆanica, 82

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sua posi¸c˜ ao seria inteiramente justificada e muito u ´til. Mas n˜ao seria suficiente para permitir-lhe apresentar-se, face ao marxismo, como uma filosofia independente. Sartre isola e erige como absoluto esse momento mediador necess´ ario da hist´ oria, colocando-o no centro mesmo de sua doutrina, e vˆe-se obrigado a suprimir a objetividade da natureza e da hist´oria, pois a seus olhos, s´ o a subjetividade interior pura ´e digna desse nome. A fim de salv´ a-la, ´e obrigado a abandonar a objetividade da natureza e da hist´oria. Esse procedimento certamente conservaria uma aparˆencia l´ogica, enquanto, como em Heidegger, somente os problemas puramente interiores do intelecto estivessem em jogo: a subjetiva¸c˜ ao da hist´oria corresponderia ent˜ao exatamente ` as ilus˜ oes mantidas pela classe de intelectuais quanto `as suas rela¸c˜ oes com a realidade hist´ orica e social. Mas essa opini˜ao torna-se muito dif´ıcil de defender, quando se tem a ambi¸c˜ ao de defendˆe-la frente ao marxismo, enquanto verdadeira filosofia da hist´ oria. Neste u ´ltimo caso, restam apenas ao existencialismo duas possibilidades: esbo¸car uma caricatura do marxismo e conseguir contra este uma vit´ oria f´acil (o que faz aqui Sartre), ou ent˜ ao tentar incorporar – abusivamente – ao existencialismo certos resultados do marxismo, escamotear, no dom´ınio da pr´atica, o antagonismo que existe entre essas duas ideologias e salvar assim as bases filos´oficas do ´ o caminho escolhido por Simone de Beauvoir e, sobreexitencialismo. E tudo, por Maurice Merleau-Ponty. Sartre declara que o marxismo “elimina a subjetividade”. Vejamos o que diz, a esse respeito, Engels: “Fazemos n´os mesmos nossa hist´oria, escreve, mas, antes de mais nada, com premissas e condi¸c˜oes determinadas. Entre todas, s˜ ao as condi¸c˜ oes econˆ omicas as finalmente determinantes... Mas, em segundo lugar, a hist´ oria faz-se de tal modo que o resultado final prov´em sempre dos conflitos de um grande n´ umero de vontades individuais das quais cada uma, por sua vez, ´e feita tal qual ´e por uma multid˜ao de condi¸c˜ oes particulares de existˆencia; h´ a, portanto, a´ı inumer´aveis for¸cas que se contrap˜ oem mutuamente, um grupo infinito de paralelogramos de for¸ca, donde se origina uma resultante – o acontecimento hist´orico – que pode ser considerado, por sua vez, como o produto de uma for¸ca que age como um todo, de maneira inconsciente e cega. Pois, o que cada indiv´ıduo quer ´e impedido por outro e o que da´ı resulta ´e qualquer coisa que ningu´em quis... Mas, pelo fato de que as diversas vontades... n˜ao chegam a realizar sua vontade, mas se fundem em uma m´edia geral, em uma resultante comum, n˜ ao se tem o direito de concluir que sejam iguais a zero. Ao contr´ario, cada uma contribui para a resultante e, por isso, est´a inclu´ıda nela”. 83

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´ evidente que quando o marxismo se apresenta sob seu verdadeiro E aspecto e n˜ ao sob o da caricatura concebida por Sartre, percebe-se imediatamente sua incompatibilidade fundamental com o existencialismo. Com efeito, enquanto este u ´ltimo limita-se – ao menos sob sua forma primeira – a esbo¸car a an´ alise psicol´ ogica e fenomenol´ogica de resolu¸c˜oes e de a¸c˜oes individuais isoladas, acrescentando ` as vezes coment´arios de ordem moral, ou os exagerando para fazer deles uma ontologia, a an´alise marxista da hist´ oria come¸ca precisamente no ponto em que o existencialismo abandona a partida. O marxista come¸ca por examinar como esse caos de atos individuais torna-se um processo objetivo, regido por leis cognosc´ıveis que denominamos Hist´ oria. Para compreender a Hist´ oria, a an´ alise marxista remonta aos fundamentos materiais da a¸c˜ ao humana, ` a produ¸c˜ao e a reprodu¸c˜ao materiais da vida humana. Nela descobre as leis hist´oricas objetivas, mas n˜ao nega, no entanto, o papel da subjetividade na Hist´oria. Apenas determina o lugar exato que lhe cabe na totalidade objetiva da evolu¸c˜ao da natureza e da sociedade. ´ contra essa objetividade que se dirige a polˆemica de Sartre. Ele nega, E em primeiro lugar e de pleno acordo com uma parte consider´avel de cientistas burgueses de nosso tempo, assim como com toda a filosofia reacion´aria moderna, a historicidade da natureza. Com respeito `a hist´oria, s´o reconhece a da humanidade. Mas como esta seria poss´ıvel, sem base objetiva, sem leis objetivas, sem tendˆencias gerais objetivamente existentes? A essa quest˜ ao, Sartre n˜ ao tem resposta nem poderia ter. Tanto mais que, mesmo quando lhe ocorre evocar – utilizando e simplificando certos resultados do marxismo – uma quest˜ ao concreta, apressa-se em dar-lhe uma aparˆencia subjetiva e irracionalista. ´ assim quando examina o problema do trabalho. Toma de Marx a E estreita liga¸c˜ ao causa-efeito e meio-fim na sua defini¸c˜ao do trabalho. Mas a mistifica¸c˜ ao existencialista come¸ca logo: o fim, para Sartre, ´e qualquer coisa “que n˜ ao existiu no Universo antes” (Temps Modernes, t. X, p. 19) e assim, o conhecimento dial´etico correto do trabalho, a prioridade do fim em cada processo de trabalho encontram-se desfigurados e esvaziados de seu sentido. Pois, assim como Hegel havia reconhecido, a possibilidade de fixar um fim, isto ´e, a possibilidade de atingir, na realidade objetiva, o fim subjetivamente fixado, pressup˜ oe um certo conhecimento da realidade objetiva; e n˜ ao ´e sem raz˜ ao que a teleologia ´e, em Hegel, “a verdade” do mecˆ anico e do qu´ımico. O marxismo vai mais longe, porque reconhece 84

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que o pr´ oprio fim decorre da realidade social, que o determina nas suas possibilidades de realiza¸c˜ ao. Ora, eis o que essa constru¸c˜ ao, que n˜ ao pode ser mais clara, torna-se na mitifica¸c˜ ao sartreana: “Pode-se dizer, nesse sentido, que o ´atomo foi criado pela bomba atˆ omica (? G. L.), a qual n˜ao poderia ser compreendida sen˜ ao a partir do projeto anglo-americano de ganhar uma guerra” (Temps Modernes, t. X, p. 19). A palavra “projeto” ´e, ali´as, uma das f´ ormulas m´ agicas do vocabul´ ario existencialista. Basta tˆe-la pronunciado, para que os existencialistas acreditem ter resolvido o problema. Neste caso, essa f´ ormula deveria servir para dissimular o fato de que o “projeto” da bomba atˆ omica s´ o pˆ ode surgir em fun¸c˜ ao de um certo grau de evolu¸c˜ao do capitalismo imperialista e que esse “projeto” pressup˜oe um certo grau da evolu¸c˜ ao da natureza – que existe independentemente da consciˆencia humana – ou mais concretamente, um certo grau de evolu¸c˜ao do nosso conhecimento do ´ atomo – que existe igualmente fora de nossa consciˆencia. Essa dissimula¸c˜ ao permite considerar o ´ atomo como uma cria¸c˜ao do “projeto” da bomba atˆ omica, enquanto na realidade o projeto deve sua existˆencia `a explora¸c˜ ao da ciˆencia para fins imperialistas. ´ E evidente que essa concep¸c˜ ao idealista do “projeto” n˜ao tem lugar para o trabalhador que trabalha efetivamente. Eis porque a an´alise sartreana do trabalho considera seu objeto com um certo desligamento nobre. O trabalhador, diz em substˆ ancia Sartre, descobre sua liberdade no trabalho, ´ o determas essa liberdade n˜ ao corresponde ao ideal existencialista. “E minismo da mat´eria que lhe oferece a primeira imagem de sua liberdade” (Temps Modernes, t. X, p. 15). N˜ ao ´e por acaso que Sartre manifesta aqui seu descontentamento. A liberdade que o trabalhador descobre no trabalho – n˜ao, naturalmente, no trabalho enquanto rela¸c˜ ao inter-humana e social, mas no trabalho enquanto rela¸c˜ ao material entre a sociedade e a natureza – essa liberdade ´e, ´ com efeito, a liberdade autˆentica e real: a que ´e necessidade reconhecida. E baseada num conhecimento aproximativamente adequado da realidade objetiva, se bem que esse conhecimento n˜ ao se manifesta sempre de maneira cient´ıfica ou mesmo consciente. O trabalho est´a estreita e necessariamente ligado ` a mat´eria, ao utens´ılio etc., e isso afasta bastante seu car´ater dessa “perfei¸c˜ ao” da liberdade, pr´ opria ` as especula¸c˜oes que se desenrolam no vazio da intelectualidade pura, que forma as bases do conceito de liberˆ dade formulado em L’Etre et le N´eant. Sartre define essa inferioridade ontol´ ogica do trabalho, declarando que, para o oper´ario, “a ideia da li85

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berta¸c˜ ao est´ a ligada ` a do determinismo” (Temps Modernes, t. X, p. 16) e que as rela¸c˜ oes inter-humanas s˜ ao, para o oper´ario, as entre “liberdade tirˆ anica e obediˆencia humilhada”. A essas rela¸c˜oes, o oper´ario substitui de in´ıcio a rela¸c˜ ao entre o homem e o objeto, que ele domina e, em seguida – porque o homem que domina os objetos ´e ele mesmo objeto – a rela¸c˜ao entre as coisas. “Quando todos os homens s˜ao coisas, diz ele, n˜ao h´a mais escravos” (Temps Modernes, t . X, p. 16). Sartre considera portanto como idˆenticos os processos de trabalho enquanto tais (a rela¸c˜ ao entre a sociedade e a natureza) e o trabalho enquanto base de rela¸c˜ oes entre as diversas classes da sociedade. Esses dois aspectos do conceito do trabalho formam, certamente, uma unidade dial´etica na sua evolu¸c˜ ao, mas Sartre n˜ ao deixa de cometer um erro consider´avel ao escamotear pura e simplesmente a diferen¸ca essencial que os separa, e que faz com que eles ajam de uma maneira totalmente diferente sobre a consciˆencia do trabalhador. O processo do trabalho produz, necess´aria e espontaneamente, um materialismo pr´ atico. Sem um conhecimento aproximativo da realidade objetiva ´e, com efeito, imposs´ıvel efetuar o trabalho mais primitivo. A compreens˜ ao materialista do car´ater social do trabalho s´o pode, ao contr´ ario, realizar-se lentamente, atrav´es de crises e como resultado de s´eculos de lutas de classes. Enquanto trabalhadores, os oper´arios ingleses eram, no in´ıcio do s´eculo XIX, t˜ ao materialistas espontˆaneos quanto os escravos do Egito antigo (se bem que com um grau de conhecimento mais elevado), mas enquanto Ludistas, sua a¸c˜ao era puramente idealista, isto ´e, guiada por representa¸c˜ oes subjetivas e falsamente sociais, desprovidas do conhecimento da realidade social objetiva. Vˆe-se a conclus˜ ao desse pretenso aprofundamento da teoria marxista na reifica¸ca˜o, operado pela ontologia fundamental. Marx constata fatos sociais reais: a for¸ca de trabalho de todo trabalhador – para n˜ao abandonar o exemplo citado por Sartre – ´e a u ´nica mercadoria cuja venda pˆ ode assegurar sua subsistˆencia. A compra e a venda dessa mercadoria criam – independentemente de toda consciˆencia – rela¸c˜oes sociais entre os homens, que parecem ser rela¸c˜ oes entre coisas. A an´alise marxista da reifica¸c˜ ao consiste precisamente em descobrir sob essas rela¸c˜oes, ou mais exatamente, nessas rela¸c˜ oes – as rela¸c˜ oes humanas (entre classes). A ontologia de Sartre vai num sentido oposto. A estrutura da consciˆencia, tal como se forma no capitalismo, ´e por ela proclamada a “situa¸c˜ao” decisiva ´ a partir dessa “situa¸c˜ao” que deduz uma “fenomenodo trabalhador. E logia” do trabalhador, inexistente na realidade e que desfigura totalmente 86

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todos os fatos. Enquanto que, na realidade, a liberta¸c˜ao dos trabalhadores significa a supress˜ ao, o aniquilamento de todas as rela¸c˜oes reificadas entre os homens, Sartre faz coincidir o ideal de liberdade do trabalhador com a universaliza¸c˜ ao sem limites da reifica¸c˜ ao. Essa ontologia d´a nascimento ` a ilus˜ ao segundo a qual a reifica¸c˜ ao capitalista n˜ao existiria na realidade social objetiva, isto ´e, tanto na consciˆencia do capitalismo como na do trabalhador, mas somente na deste u ´ltimo. Assim, a reifica¸c˜ao seria apenas o fruto do comportamento do trabalhador em rela¸c˜ao `a realidade. ´ o que permite a Sartre concluir, n˜ E ao sem analogia com certos autores pr´e-fascistas, que a “concep¸c˜ ao materialista ´e a dos opressores” (Temps ´ ainda assim que ele chega a cuidar de um certo Modernes, t. X, p. 20). E efeito, declarando que “o mito do materialismo” ´e o u ´nico “que conv´em as exigˆencias da revolu¸c˜ ` ao” (Temps Modernes, t. X, p. 21). Segundo ele, a concep¸c˜ ao do pragmatismo n˜ ao poderia satisfazer os revolucion´arios e “inventou-se o mito materialista” (Temps Modernes, t. X, p. 25). ´ com tais argumentos que Sartre pretende destruir o edif´ıcio te´orico E do marxismo. Tranquilizemo-nos: o marxismo, ao qual isto n˜ao ocorre pela primeira vez, resiste muito bem. Em lugar do marxismo, Sartre oferece `a juventude “as no¸c˜ oes novas” (Temps Modernes, t . X, p. 29) de “situa¸c˜ao” e de “ser-no-mundo”, de que mais tarde analisaremos a significa¸c˜ao real. Oferece-lhe tamb´em – perspectiva absolutamente in´edita – a certeza de que, o homem sendo livre, o triunfo do socialismo ´e incerto. O socialismo ´e – claro – um “projeto humano”. “Ser´ a o que os homens dele far˜ao” (Temps Modernes, t. X, p. 30). De passagem, Sartre tem o cuidado de transformar um texto do Manifesto Comunista, onde tem sua importˆancia e sua significa¸c˜ ao concreta, em um lugar-comum abstrato e desprovido de sentido. Mas todos esses ataques e todos esses contra-sensos tendem para um objetivo definido. Sartre tenta, com efeito, ligar sua aceita¸c˜ao ideol´ogica da revolu¸c˜ ao ` a “situa¸c˜ ao” dos oprimidos e fazer disso, ao mesmo tempo, uma filosofia universal que n˜ ao seja mais o bem exclusivo de uma classe. Quer mostrar como ´e poss´ıvel chegar ` a revolu¸c˜ao quando se pertence a uma classe n˜ ao-prolet´ aria ou mesmo ` a burguesia. “Um burguˆes opressor ´e oprimido por sua opress˜ ao” (Temps Modernes, t. X, p. 131). Sartre pode, assim, metamorfosear, por meio de uma nova opera¸c˜ao da ontologia fundamental, uma outra ideia marxista em um lugar-comum abstrato e absurdo. Engels mostra, com efeito, como o burguˆes, e at´e mesmo o aposentado desocupado est˜ ao submetidos ` as leis da divis˜ao capitalista do 87

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trabalho e Marx descreve com muita clareza a unidade dos elementos comuns e antagonistas na existˆencia e consciˆencia sociais do burguˆes e do prolet´ ario. “A classe possuidora e a classe do proletariado, escreve, representam a mesma aliena¸c˜ ao humana, mas a primeira se sente `a vontade nessa auto-aliena¸c˜ ao, que experimenta como sua pr´opria afirma¸c˜ao, que sabe ser seu pr´ oprio poder e na qual possui a ilus˜ ao de uma existˆencia humana. A segunda se sente aniquilada na aliena¸c˜ao, que representa para ela sua pr´ opria impotˆencia e a realidade de uma existˆencia desumana”. O pr´ oprio Marx designa, ´e evidente, uma possibilidade para os n˜ao oper´ arios de se tornarem revolucion´ arios. Basta pensar nas indica¸c˜oes bem conhecidas do Manifesto Comunista, sobre as quais teremos ocasi˜ao de voltar. Mas Sartre quase n˜ ao pode aceitar essa teoria e ´e precisamente a´ı que se manifesta o ponto mais fraco, a debilidade irracionalista da coura¸ca existencialista. O existencialismo recusa-se atribuir um papel decisivo, na gˆenese das decis˜ oes dos homens, ` as opini˜oes e `as ideias, em uma palavra, aos reflexos da realidade objetiva na consciˆencia humana. De uma maneira muito caracter´ıstica, Sartre op˜ oe formalmente a a¸c˜ao pr´atica `a contempla¸c˜ ao. Para ele, essas duas no¸c˜ oes excluem-se mutuamente, a tal ponto que considera o conhecimento objetivo como decorrente da “situa¸c˜ao” dos conservadores: o pensamento conservador, diz Sartre, “declara que contempla o mundo tal qual ´e. Considera a sociedade e a natureza do ponto de vista do puro conhecimento sem confessar que sua atitude de estrita epistemologia tende a perpetuar o estado presente do universo, porque persuade que se pode antes conhecˆe-lo do que mud´a-lo e que, ao menos, ´e necess´ ario conhecˆe-lo para mud´ a-lo” (Temps Modernes, t. X., p. 5). O que ´e justo nessas poucas frases, a saber, a nulidade de uma teoria destacada de toda pr´ atica e a hipocrisia de um conhecimento que se pretende puro, ´e-nos conhecidas pelas c´elebres Teses de Karl Marx sobre Feuerbach, que datam de 1845. Sartre acrescenta a recusa em admitir o conhecimento da realidade enquanto condi¸c˜ ao pr´evia da sua transforma¸c˜ao. Atribui essa recusa aos conservadores, por meio de uma estranha contempla¸c˜ao fenomenol´ ogica da essˆencia, se bem que a teoria do conhecimento conservador ignora esse ponto de vista, que n˜ ao foi jamais formulado por pensadores conservadores. Teremos ainda, ao falar dos trabalhos de Simone de Beauvoir e de Maurice Merleau-Ponty, ocasi˜ ao de voltar ` as consequˆencias desse rep´ udio do papel social e moral do conhecimento. No momento, limitar-nos-emos a notar que, na maior parte dos casos, as obje¸c˜oes de Sartre contra o marxismo 88

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significam simplesmente que ´e absolutamente incapaz de compreendˆe-lo. ´ ele que se recusa a reconhecer a influˆencia decisiva do conhecimento das E situa¸c˜ oes e das for¸cas sociais e ´e ele que proclama o marxismo incapaz de explicar o fenˆ omeno da consciˆencia de classe. “Um estado do mundo n˜ao poderia jamais produzir uma consciˆencia de classe”, diz ele em Temps Modernes (t. X, p. 13). Acrescenta mesmo que os marxistas bem sabem em que se ater a esse respeito, porque enviam seus funcion´arios entre as massas, a fim de radicaliz´ a-las e de despertar sua consciˆencia de classe. Mas, pergunta Sartre triunfante, “esses pr´ oprios funcion´arios, onde adquirem sua compreens˜ ao da situa¸c˜ ao?” (Ibid.) Claro: quando se nega que o conhecimento ´e o reflexo da realidade objetiva na consciˆencia, quando se faz da a¸c˜ ao revolucion´ aria um fetiche independente, que n˜ao tem mais nenhuma rela¸c˜ ao com o conhecimento da realidade objetiva e com as leis igualmente objetivas que a regem, ent˜ ao o fato muito simples de haver graus na compreens˜ ao desses problemas e que uma compreens˜ao mais completa estimula ´ desagrad´avel, a a¸c˜ ao pessoal e mesmo a dos outros torna-se um enigma. E mas n˜ ao ´e o marxismo respons´ avel por isso. Ap´os ter extinto todas as luzes do conhecimento objetivo, n˜ ao ´e ao marxismo, mas unicamente a si mesmo que Sartre deve reprovar por se encontrar no escuro...

4. A MORAL DA AMBIGUIDADE E A AMBIGUIDADE DA MORAL EXISTENCIALISTA Em Simone de Beauvoir, as contradi¸c˜ oes internas do existencialismo s˜ao ainda mais vis´ıveis que no pr´ oprio Sartre. Ela prop˜oe-se completar as bases ontol´ ogicas da doutrina existencialista pela jun¸c˜ao de uma moral. Mas – fato not´ avel, se bem que n˜ ao tenha nada de espantoso – suas an´alises morais constituem igualmente discuss˜ oes com o marxismo, com o fato da existˆencia da Uni˜ ao Sovi´etica, com as exigˆencias que o Partido Comunista coloca a seus membros e a`s massas, e assim por diante. Apenas cita aqui e ali os outros sistemas de moral, enquanto trava uma polˆemica em regra com o marxismo, o qual, diz-se, n˜ ao tem moral. Isto testemunha um robusto senso de realidade em S. de Beauvoir, porque sente muito bem que essa camada de intelectuais, cujo sentimento obscuro corresponde ao existencialismo, experimenta os problemas colocados pelo marxismo como uma tenta¸c˜ao 89

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de se desviar do existencialismo. A doutrina de Kant ou de Hegel, a dos estoicos ou dos epicuristas poderia ser perfeitamente combatida `a for¸ca de argumentos puramente acadˆemicos. A existˆencia do marxismo equivale, ao contr´ ario, do ponto de vista da constitui¸c˜ao de uma moral existencialista, a uma “situa¸c˜ ao”. Inversamente aos m´etodos empregados por Sartre, o debate n˜ao se reduz, desta vez, a um ataque demag´ogico. S. de Beauvoir tenta, ao contr´ ario, interpretar o marxismo como se fosse poss´ıvel reconciliar as duas doutrinas, “melhorando” ou “completando” o marxismo, pela jun¸c˜ao de ´ assim, por exemplo, que tenta subjeticertos princ´ıpios existencialistas. E var o marxismo: Marx n˜ ao considera que certas situa¸c˜oes humanas sejam em si absolutamente prefer´ıveis a outras; s˜ao as necessidades de um povo, as revoltas de uma classe que definem os meios e os fins; ´e do seio de uma situa¸c˜ ao recusada e ` a luz dessa recusa, que um estado novo aparece como desej´ avel (Temps Modernes, t. XIV, p. 200). E S. de Beauvoir vai at´e acrescentar – de uma maneira completamente artificial, se se considera o conjunto de seu ponto de vista – que essa vontade afunda suas ra´ızes estranhamente na realidade hist´ orica e econˆ omica. Na interpreta¸c˜ao que d´a de Marx, entretanto, essa rela¸c˜ ao ´e completamente epis´odica: temos quase a impress˜ ao que, no lugar da hist´ oria, Marx teria escrito uma fenomenologia ou uma ontologia fundamental dos movimentos das massas. E quando se trata do problema da revolu¸c˜ ao, a atitude de S. de Beauvoir permanece a mesma: “A revolta n˜ ao se integra no desenvolvimento harmonioso do mundo, n˜ ao quer nele se integrar, mas antes explodir no cora¸c˜ao desse mundo e quebrar-lhe a continuidade” (Temps Modernes, t. XVI, p. 465). Nos dois casos, a concretiza¸c˜ ao marxista das rela¸c˜oes hist´oricas e sociais entre os homens pela economia e pela transforma¸c˜ao hist´orica da estrutura econˆ omica da sociedade permanece completamente escamoteada. N˜ao se trata de um mal-entendido fortuito. A fenomenologia procede `a explora¸c˜ao de um objeto, colocando o problema de sua realidade “entre parˆenteses”. Das correla¸c˜ oes fenomenol´ ogicas, tira conclus˜oes ontol´ogicas e isso leva n˜ ao s´ o ao desaparecimento, no plano da metodologia e no da teoria do conhecimento, da realidade concreta do objeto, como tamb´em `a priva¸c˜ao na sua representa¸c˜ ao fenomenol´ ogica ou ontol´ogica de suas caracter´ısticas reais mais importantes. A redu¸c˜ ao que est´a operada, assim, nada mais ´e, para retomar uma express˜ ao de Marx, do que uma “abstra¸c˜ao razo´avel”, porque desfigura as rela¸c˜ oes mais importantes. O pensamento burguˆes atual atravessa uma crise. Debate-se conti90

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nuamente entre um empirismo n˜ ao te´ orico e a abstra¸c˜ao vazia de todo conte´ udo real. A raz˜ ao metodol´ ogica dessas dificuldades (que se explicam naturalmente pela realidade social) reside simplesmente no fato de que suas categorias de base referem-se a um homem abstrato, supra-hist´orico, a partir do qual n˜ ao ´e mais poss´ıvel voltar aos problemas da realidade hist´orica do preesente. A grandeza da filosofia grega era uma consequˆencia da utiliza¸c˜ ao espontˆ anea pelos grandes pensadores da Antiguidade das abstra¸c˜oes provenientes da realidade hist´ orica da vida da cidade. A homogeneidade relativa do conjunto social que tiveram em vista – porque os escravos n˜ao contavam para eles – permitia-lhes realizar uma certa unidade original: o geral e o fato hist´ orico concreto. Quanto aos grandes pensadores do per´ıodo de nascimento da sociedade burguesa – Kant deve ser considerado como o u ´ltimo elo da corrente – estavam t˜ ao exclusivamente voltados para esse mundo novo em gesta¸c˜ ao e repudiavam t˜ ao resolutamente o passado feudal enquanto nada filos´ ofi¸co; n˜ ao conforme `a raz˜ao, que chegaram a uma unidade l´ ogica e a uma constru¸c˜ ao monumental. Sem d´ uvida, desde que a crise terminou e que, com a Revolu¸c˜ ao Francesa, o car´ater historicamente passageiro dessa sociedade se tornou manifesto, a unidade l´ogica dessa constru¸c˜ ao tornou-se contest´ avel. A aplica¸c˜ao, por imita¸c˜ao desses mesmos m´etodos e dessas mesmas categorias a uma realidade cada vez mais passageira, levou a esse dilema feito de empirismo e de abstra¸c˜ao de que falamos acima. No dom´ınio dessa quest˜ ao capital, a fenomenologia n˜ao ultrapassa em nada os horizontes da filosofia burguesa de nosso tempo. A historicidade do Dasein constitui, certamente, – na sua defini¸c˜ao verbal – um dado primeiro da ontologia de Heidegger. Mas rejeitando, enquanto temporalidade “vulgar”, a hist´ oria econˆ omica e social, a u ´nica concreta e verdadeira, tomando o indiv´ıduo isolado e suas experiˆencias vividas como ponto de partida, Heidegger serve-se de instrumentos te´ oricos que s˜ao sensivelmente da mesma qualiqade dos de outros pensadores burgueses. A essˆencia da “realidade humana” (isto ´e, o homem), assim como o n´ ucleo ontol´ogico de suas situa¸c˜ oes mut´ aveis permanecer´ a para ele, como para seus disc´ıpulos franceses, abstrata e supra-hist´ orica. Esse fato encontra em Simone de Beauvoir uma express˜ ao muito clara: “Nenhuma subvers˜ao social, nenhuma convers˜ ao moral pode suprimir essa priva¸c˜ ao que est´a em seu cora¸c˜ao (do homem)” (Temps Modernes, t. XVII, p. 848). Mas quando se eliminou da “essˆencia” do homem, com um rigor met´odico, todos os elementos hist´ oricos e sociais, todas as bases econˆ omicas de sua existˆencia, toda a 91

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“produ¸c˜ ao e a reprodu¸c˜ ao da vida real” (Engels), todas as rela¸c˜oes sociais entre o homem e a natureza, expressas pela estrutura econˆomica concreta de tal ou tal per´ıodo hist´ orico da sociedade humana – quando se eliminou tudo isso, n˜ ao se pode sen˜ ao ajuntar aqui e ali alguns elementos que nada ´ imposs´ıvel mais ser˜ ao, no entanto, que parcelas emp´ıricas e inorgˆanicas. E suprimir post festum o isolamento artificial do indiv´ıduo, mesmo que o tenhamos ornado de categorias t˜ ao pomposas como as de ser-com-outro ou de ser-no-mundo. Esse isolamento fenomenol´ogico ou ontol´ogico falseia a tal ponto a essˆencia do conhecimento do homem que as constata¸c˜oes, empiricamente corretas, de fatos econˆ omicos, n˜ao podem mais admiti-la. Para realizar a no¸c˜ ao concreta, hist´ orica e social do homem, ´e necess´ario de in´ıcio compreender que as categorias da economia s˜ao perfeitamente “formas de existˆencia” e “determina¸c˜ oes do ser” (Marx). Mas voltemos ` as nossas cita¸c˜ oes do texto de S. de Beauvoir. A primeira faz desaparecer a evolu¸c˜ ao das for¸cas de produ¸c˜ao, assim como a contradi¸c˜ ao que nasce entre as for¸cas de produ¸c˜ao e as condi¸c˜oes de produ¸c˜ao e com ela desaparece todo elemento concreto das situa¸c˜oes hist´oricas nas quais se formam as vontades descritas por S. de Beauvoir. Sartre, como vimos, acusa Marx, sem raz˜ ao, de negar toda subjetividade. Provamos a falsidade dessa acusa¸c˜ ao: o fator subjetivo da hist´oria humana ´e, como vimos, de uma importˆ ancia capital para o marxismo, mas somente em liga¸c˜ao completamente ´ıntima com o fator objetivo, e sobre a base do fator objetivo. Mesmo quando o marxismo enfrenta uma realidade que parece ser, `a primeira vista, de ordem subjetiva, procura imediatamente descobrir, em sua base, o fator objetivo, com frequˆencia dif´ıcil de revelar diretamente. Analisando a posi¸c˜ ao economicamente falsa dos disc´ıpulos radicais de Ricardo, que tinham tirado da teoria da mais-valia de seu mestre conclus˜oes revolucion´ arias e socialistas, Engels escreve: “Mas o que ´e formalmente falso, do ponto de vista da economia, pode ser ainda justo do ponto de vista da hist´ oria. Quando a consciˆencia moral das massas condena um fato econˆ omico, como antigamente a escravid˜ao ou a corveia medieval, isto prova que este fato sobreviveu a si mesmo, que outros fatos econˆomicos intervieram, em virtude dos quais os primeiros se tornaram intoler´aveis e indefens´ aveis. Portanto, atr´ as do erro econˆomico formal, pode-se esconder um conte´ udo econˆ omico perfeitamente correto”. A exegese que S. de Beauvoir d´ a de Marx ´e apenas um existencialismo aplicado `a “psique coletiva”, mas nada tem a ver com o marxismo nem com a realidade hist´orica. A desfigura¸c˜ ao pr´ opria aos m´etodos da fenomenologia e da ontologia, 92

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contida na segunda cita¸c˜ ao tirada de S. de Beauvoir, manifesta-se pela polariza¸c˜ ao da no¸ca˜o de revolu¸c˜ ao e a da continuidade hist´orica. Trata-se, sem d´ uvida, de um procedimento que ´e moeda corrente na literatura burguesa. Burke foi o primeiro a considerar a Revolu¸c˜ao Francesa como um ´ por fenˆ omeno “a-hist´ orico”, interrompendo a continuidade da hist´oria. E interm´edio do romantismo alem˜ ao, e notadamente da escola da filosofia hist´ orica do direito, que essa polariza¸c˜ ao r´ıgida chegou at´e as ciˆencias morais modernas. Retomando por sua conta e aplicando `a revolu¸c˜ao, com uma simpatia muito n´ıtida, essa polaridade que data de um s´eculo, proveniente do arsenal espiritual da contra-revolu¸c˜ ao romˆantica, S. de Beauvoir n˜ao ultrapassa, portanto – a despeito de suas conclus˜oes opostas –, os horizontes do romantismo filos´ ofico e sociol´ ogico. Deve-se a Hegel o m´erito de ter interpretado as revolu¸c˜ oes enquanto elementos dial´eticos da continuidade da hist´ oria; Marx proveu de um fundamento econˆomico a “linha nodal das rela¸c˜ oes de medida” de Hegel e deu-lhe assim um sentido hist´orico e social concreto. Mostrou, principalmente na an´ alise da acumula¸c˜ao primitiva, que se trata de uma alternˆ ancia econˆ omica e historicamente necess´aria, de per´ıodos ou de ´epocas revolucion´ arias e “normais”. A continuidade da hist´ oria consiste portanto – para retomar o estilo caro a Hegel – em uma unidade dial´etica da continuidade e da descontinuidade, contendo as duas nela. Essa tendˆencia ` a abstra¸c˜ ao e ` a desfigura¸c˜ ao, inerente aos m´etodos da fenomenologia e da ontologia, determina o car´ater da quest˜ao central que preocupa S. de Beauvoir. Trata-se do problema da violˆencia e da posi¸c˜ao moral frente a ela. S. de Beauvoir p˜ oe a quest˜ao com muita clareza. Para ela, toda violˆencia ´e um escˆ andalo, mas, por outro lado, reconhece que nenhuma a¸c˜ ao pol´ıtica ´e poss´ıvel sem violˆencia. Declara ent˜ao, de uma maneira bem kantiana: “Podemos desculpar todos os delitos e mesmo todos os crimes pelos quais os indiv´ıduos se afirmam contra a sociedade, mas quando deliberadamente um homem empenha-se em rebaixar o homem ao n´ıvel de coisa, faz explodir sobre a terra um escˆandalo que nada pode compensar” (Temps Modernes, t. V, p. 828). Ela pr´opria reconhece, entretanto, se bem que a prop´ osito de uma outra quest˜ao, que uma tal atitude conduz a uma contradi¸c˜ ao insol´ uvel: “N˜ ao chegamos assim a condenar a a¸c˜ ao como criminosa e absurda, condenando no entanto o homem `a a¸c˜ao?” (Temps Modernes, t. XVII, p. 854). S. de Beauvoir n˜ ao se contenta, ´e evidente, em anunciar pura e simplesmente essa contradi¸c˜ ao. Mas antes de entrar na an´alise da solu¸c˜ao que 93

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esbo¸ca, permitamo-nos algumas observa¸c˜oes a respeito da maneira pela qual ela coloca a quest˜ ao. N˜ ao pretendemos fazer um argumento do fato de que essa maneira n˜ ao ´e completamente in´edita. Trata-se, com efeito, bem menos de discutir a originalidade do existencialismo, que determinar em qual medida ele ´e suscet´ıvel de bem colocar e de bem resolver as grandes quest˜ oes do nosso tempo. Se nos permitimos, portanto, algumas observa¸c˜ oes hist´ oricas concernentes a esse problema, n˜ao ser´a para decidir a quest˜ ao da prioridade liter´ aria, mas para tentar elucidar a gˆenese social da maneira de colocar esse problema. Coloca-se, antes de tudo, depois das revolu¸c˜ oes esmagadas; assim a encontramos desde o s´eculo XVII, em certas seitas protestantes, na Inglaterra e na Esc´ocia, ap´os a derrota da revolu¸c˜ao russa de 1905, enquanto interpreta¸c˜ ao mais ampla da doutrina tolstoiana: “N˜ ao resistir ao Mal”, e tamb´em ap´ os o refluxo da mar´e revolucio´aria de 1918, sob as formas do expressionismo, do gandhismo etc. Mas esta quest˜ao surgiu tamb´em no decorrer dos per´ıodos pr´e-revolucion´arios, e ent˜ao ex´ caracter´ıstica prime a desordem, a desordem diante do que se prepara. E de certas ´epocas nas quais a ordem social herdada do passado se desfaz entre manifesta¸c˜ oes mais ou menos expl´ıcitas, quando as condi¸c˜oes objetivas ´ e subjetivas da revolu¸c˜ ao n˜ ao atingiram ainda sua plena maturidade. E f´ acil constatar a presen¸ca de certas corrente ideol´ogicas da n˜ao-violˆencia, desde os anabatistas, passando pelos socialistas ut´opicos e Tolstoi, at´e a atualidade mais recente. (Tenho, entretanto, de observar de passagem que a distin¸c˜ ao entre pr´e e p´ os-revolucion´ arios ´e um pouco esquem´atica. A condena¸c˜ ao da violˆencia nos socialistas ut´opicos, por exemplo, manifesta de um lado a insuficiˆencia de desenvolvimento do capitalismo e do proletariado, ao mesmo tempo que constitui uma ressonˆancia da derrota do jacobinismo plebeu na Revolu¸c˜ ao Francesa.) O que precede permite, de qualquer forma, constatar que a condena¸c˜ao radical da violˆencia, enquanto instrumento de liberta¸c˜ao, foi at´e o presente da hist´ oria um sintoma de fraqueza social. Fraqueza, porque significa ao mesmo tempo o recuo ante os meios de realiza¸c˜ao e idealiza¸c˜ao ut´opica da ordem social sonhada. A violˆencia da opress˜ao constitui o fator mais diretamente percept´ıvel da ordem social condenada e objetivamente cada vez menos sustent´ avel. O per´ıodo preparat´orio das revolu¸c˜oes e, mais particularmente, as etapas que seguem as revolu¸c˜oes esmagadas, obrigam as classes dominantes a transgredir os limites de sua pr´opria legalidade e a recorrerem a meios de coer¸c˜ ao ilegais. Segue-se que a oposi¸c˜ao abstrata da n˜ ao-violˆencia ` a violˆencia e a idealiza¸c˜ao ut´opica de uma n˜ao-violˆencia 94

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integral s˜ ao perfeitamente compreens´ıveis entre todos aqueles que se assustam com a a¸c˜ ao revolucion´ aria; perfeitamente compreens´ıveis, mas tamb´em perfeitamente reveladoras no plano social. Comv´em acrescentar que, desde que o despertar das classes oprimidas se manifeste por uma s´erie de atos revolucion´ arios e que a revolu¸c˜ao triunfe em uma parte do mundo, os literatos assalariados ou volunt´arios das classes dirigentes desencadeiam uma campanha de propaganda intensa contra a violˆencia. Esta propaganda silencia ou justifica todos os atos de violˆencia dos opressores, lan¸cando em descr´edito moral todas as medidas de violˆencia decretadas pela revolu¸c˜ ao. Em nossos dias, ´e o jornalista Arthur Koestler que pode ser considerado como o representante mais escandaloso desta tendˆencia ideol´ ogica imperialista reacion´ aria. Assim, por exemplo, o her´oi trotskista do romance anti-sovi´etico de Koestler – her´oi que o autor tem o cuidado de apresentar sob o aspecto de marxista ortodoxo, bolchevique de primeira hora – escreveu em seu di´ ario: “Fomos os primeiros a substituir a ´etica liberal do s´eculo XIX, fundada no fair play, pela ´etica revolucion´aria do s´eculo XX”, que significa, como o prova o conjunto do livro, a ´etica da violˆencia. Os feitos e gestos da burguesia do s´eculo XIX, desde os massacres de Peterloo, at´e a Semana Sangrenta de Paris, a repress˜ao da revolu¸c˜ ao russa de 1905 por Stolypin e seus c´ umplices etc., comp˜oem ent˜ao, aos olhos de Koestler, a moral do fair play. A bem dizer, um assalariado da burguesia, do gˆenero de Koestler, pode perfeitamente maltratar a hist´oria com uma tal brutalidade, sem nos assombrar. Mas ´e lament´avel que Sartre e Merleau-Ponty, bem como S. de Beauvoir, levem a s´erio as teorias de Koestler. Dito isto, uma nova quest˜ ao preliminar se imp˜oe, concernente `a ideologia da n˜ ao-violˆencia. Lembremos a polariza¸c˜ao absolutamente r´ıgida que S. de Beauvoir estabelece entre revolu¸c˜ ao e evolu¸c˜ao cont´ınua. Esta polariza¸c˜ ao manifesta, como j´ a mostramos, o car´ater a-hist´orico de sua concep¸c˜ ao do mundo; sintoma totalmente geral no pensamento burguˆes moderno. Ora, em raz˜ ao de sua atitude essencialmente a-hist´orica, a maior parte dos pensadores burgueses classificam a violˆencia na categoria especial do clandestino e do ileg´ıtimo. As medidas de violˆencia codificadas e prescritas pela lei n˜ ao s˜ ao, ao contr´ ario, consideradas como dependentes da categoria da violˆencia. O arbitr´ ario e o absurdo de uma tal discrimina¸c˜ao n˜ ao escapam, sem d´ uvida, a nenhuma filosofia ou sociologia do direito digna deste nome, desde Maquiavel at´e Max Weber. Seja-nos permitido citar a f´ ormula imaginosa e muito expressiva da qual se serviu este u ´ltimo 95

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para definir a essˆencia do direito: h´ a direito quando, ap´os a transgress˜ao de seus limites, chegam os homens de capacete e espada para obrigar as pessoas a respeit´ a-las. N˜ ao ´e totalmente certo que S. de Beauvoir utilize a palavra violˆencia nesta acep¸c˜ ao, certamente muito ampla, mas a u ´nica cientificamente correta. De qualquer modo, quando se quer discutir cientificamente a quest˜ao de saber se a moral deve admitir ou condenar a violˆencia, ´e esta concep¸c˜ao mais ampla do termo que deve servir de base. Seria, com efeito, muito dif´ıcil tra¸car um limite – sobretudo para a moral individualista do existencialismo – entre a execu¸c˜ ao de um traidor pela Resistˆencia, por exemplo, e a vota¸c˜ ao de uma lei determinando pena de morte para os traidores da p´ atria. Mas assim, a antinomia surgida no racioc´ınio de S. de Beauvoir apresentase diante de n´ os sob uma nova luz. Sabe-se, com efeito, que o direito, ou seja, o emprego legal da violˆencia (da mesma forma, ali´as, que a revolta dos oprimidos contra ele) resulta da divis˜ao da sociedade em classes. Esta mesma divis˜ ao da sociedade ´e necessariamente respons´avel pelo fato de que, em toda ordem social, somente uma parte de interessados pode encontrarse de acordo com o conte´ udo e a orienta¸c˜ao do direito que se manifesta pelo emprego legal da violˆencia, enquanto a outra parte tender´a sempre a obter a modifica¸c˜ ao de seu conte´ udo e de sua orienta¸c˜ao. Como pode o emprego da violˆencia, em tais condi¸c˜oes, constituir um problema moral ou, para recorrer ` a express˜ao de S. de Beauvoir, ser um escˆ andalo? As ideologias religiosas podem com todo direito ver nisto um escˆ andalo, porque para elas, tudo ´e fun¸c˜ao de salva¸c˜ao eterna da alma humana. Pouco importa, no momento, se a condena¸c˜ao da violˆencia exprime ent˜ ao as esperan¸cas de revolta dos oprimidos ou se essas esperan¸cas lhes s˜ ao simplesmente atiradas como pasto pelas classes dirigentes. Tanto num caso como no outro, a existˆencia humana neste mundo constitui somente um prel´ udio mais ou menos desprez´ıvel ante a vida eterna e a condena¸c˜ao moral de todo recurso individual ` a violˆencia nada mais faz que sublinhar que o mundo terrestre carece de importˆ ancia verdadeira e n˜ao deve mesmo ser julgado do ponto de vista da moral, qualquer que seja sua estrutura social. “Dai a C´esar o que ´e de C´esar...” N˜ ao s˜ ao assim as ideologias que rejeitam a cren¸ca na continua¸c˜ao e no remate da vida humana no al´em. O u ´nico campo de atividade poss´ıvel para estas ideologias ´e precisamente a vida terrestre, isto ´e, a vida concreta e real, tal como os homens a levam no interior de um sistema social 96

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concreto, que comporta classes diversas e que d´a lugar ao problema da legalidade do recurso ` a violˆencia. A moral de uma tal ideologia deve ent˜ao ´ assim ater-se estritamente ` as condi¸c˜ oes de uma tal exigˆencia terrestre. E para o existencialismo ateu ap´ os a interven¸c˜ ao de Heidegger, enquanto que para Kierkegaard a salva¸c˜ ao celeste da alma representa ainda a conclus˜ao religiosa da moral. ´ assim que, fatalmente, a quest˜ E ao seguinte se coloca: pode-se conceber uma ´etica inteligente e consequente, que considera um dos fatos mais frequentes da existˆencia social como um escˆ andalo, sem se dispor, em primeiro lugar, a suprimir este escˆ andalo? Sublinhamos a palavra social ; ´e evidente, com efeito, que nenhuma ´etica pode propor-se a supress˜ao dos elementos da natureza. (Exce¸c˜ ao feita, sem d´ uvida, de casos onde a supress˜ ao, querida pela ´etica, de suas exterioriza¸c˜oes sociais, os suprimisse igualmente). A atitude de S. de Beauvoir e a dos outros existencialistas nesta quest˜ao revela claramente o car´ ater inorgˆ anico da gˆenese de sua doutrina. Heidegger nada mais fez na realidade do que suprimir o Deus de Kierkegaard, tomando-lhe, sem nenhuma modifica¸c˜ ao profunda, o conjunto de suas categorias, ao qual, no entanto, somente a referˆencia a Deus pode dar um sentido imanente. Quanto a Sartre, apenas seguiu o exemplo de Heideg´ isto que explica ainda que Jaspers pˆ ger. E ode construir, paralelamente `as concep¸c˜ oes heideggerianas, um existencialismo de tra¸cos protestantes e que existe na Fran¸ca, ao lado da escola de Sartre, um existencialismo cat´olico. As antinomias e os dilemas entre os quais se debate S. de Beauvoir s˜ao, em grande parte, o fruto dessa teologia existencialista sem Deus. A elimina¸c˜ao pura e simples de Deus leva, quando se trata de um sistema teol´ogico consequente, ` a elimina¸c˜ ao de toda a objetividade e s´o pode resultar, em u ´ltima instˆ ancia, num niilismo. Mas S. de Beauvoir recusa-se – e isto a honra – concluir por uma moral niilista. Empreende muitas tentativas para escapar ao inevit´avel. Veremos, entretanto, que suas tentativas est˜ ao todas fadadas ao fracasso, por causa do formalismo de sua doutrina, formalismo que n˜ao deixa de se relacionar ´ assim que ela se prop˜oe a julgar moralmente com a teologia sem Deus. E a atitude face ` a violˆencia, segundo o fim que essa violˆencia parece servir: “Repudiamos todos os idealismos, misticismos etc., que preferem uma Forma ao pr´ oprio homem. Mas a quest˜ ao torna-se inevitavelmente angustiosa quando se trata de uma causa que serve autenticamente o homem” (Temps Modernes, t. XVII, p. 865). S. de Beauvoir pensa colocar aqui o 97

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problema da Uni˜ ao Sovi´etica. N˜ ao temos a inten¸c˜ao de voltar a quest˜oes j´a tratadas e n˜ ao queremos aborrecer S. de Beauvoir e perguntar-lhe por que meios o existencialismo pode julgar se uma ordem social ´e suscet´ıvel de servir o homem. Sabemos, ao contr´ ario, que proclamando querer a liberdade de todos, Sartre coloca-se em contradi¸c˜ao com os pr´oprios fundamentos de sua doutrina; quanto a S. de Beauvoir, ela pr´opria barra o caminho da solu¸c˜ ao do problema rejeitando, com uma perfeita ortodoxia existencialista, todo “mito do futuro” (Temps Modernes, t. XVII, p. 854), isto ´e, toda perspectiva hist´ orica, para somente admitir como real esse “futuro vivo” que surge, cada vez, concretamente do “projeto” do indiv´ıduo. Eis porque, sem rela¸c˜ ao com sua pr´ opria doutrina filos´ofica, a resposta de S. de Beauvoir inspira-se somente no instinto de uma mulher atra´ıda pela liberdade. Reconhece que a violˆencia tal como se manifesta no linchamento, por exemplo, corresponde a “um mal absoluto (pois) representa a sobrevivˆencia de uma civiliza¸c˜ ao caduca, a perpetua¸c˜ao de uma luta de ra¸cas que deve desaparecer” (Temps Modernes, t. XVII, p. 865-66). Quanto ` a violˆencia na Uni˜ ao Sovi´etica, que examina atrav´es da ´otica deformante de um trotskismo koestleriano, admite que “trata-se de manter um regime que leva a uma imensa massa de homens uma melhoria de sua sorte” (id.). Muito bem. Mas desde que se trata de tirar da´ı uma consequˆencia qualquer, essa afirma¸c˜ ao mostra-se puramente gratuita, porque seu pr´ oprio m´etodo n˜ ao poderia oferecer-lhe o menor in´ıcio de um crit´erio. Resta-lhe apenas, ent˜ ao, o abandono da moral da inten¸c˜ao abstrata do existencialismo por uma moral do resultado, tamb´em abstrata. Coloca ` morte de Bukarin opomos Stalingrado; mas seria neent˜ ao a quest˜ ao: “A cess´ ario saber em qual medida efetiva os processos de Moscou aumentaram as possibilidades da vit´ oria russa” (id.). Numerosos s˜ao aqueles – e n˜ao somente entre os comunistas mas tamb´em entre os observadores burgueses, com a condi¸c˜ ao de n˜ ao serem nem trotskistas nem agentes de um imperialismo – que est˜ ao em condi¸c˜ oes de dar a essa interroga¸c˜ao uma resposta muito precisa. Mas fora disto, n˜ ao podemos nos impedir de perguntar de que maneira uma tal resposta poderia ser considerada satisfat´oria para o existencialismo. Com efeito, a moral do existencialismo e sua filosofia da hist´ oria ´e que constituem o objeto do debate; Bukarin e Stalingrado s˜ ao somente pedras de toque. A maneira pela qual S. de Beauvoir coloca a quest˜ ao parece indicar que, se esta recebesse uma resposta positiva e probante, julgaria a execu¸c˜ ao de Bukarin plenamente justificada. Muito bem ainda. Somente, raciocinando assim, S. de Beauvoir faz da 98

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utilidade de uma medida (servindo, sem d´ uvida, um fim aceito) o crit´erio de sua moralidade ou de sua imoralidade. Mas o estranho ´e que, no mesmo estudo, rejeita resolutamente a utilidade enquanto crit´erio moral e, ´e preciso dizer, do ponto de vista da moral da inten¸c˜ ao, que ´e a do existencialismo, esta recusa ´e perfeitamente justificada. S. de Beauvoir rejeita a utilidade enquanto crit´erio moral, porque o recurso a esse crit´erio colocaria a moral diante de uma antinomia insol´ uvel, que ela formula assim: “A u ´nica justifica¸c˜ ao do sacrif´ıcio ´e sua utilidade; mas o u ´til ´e o que serve ao homem” (Temps Modernes, t. XVI, p. 662). Esta hesita¸ca˜o entre a moral da inten¸c˜ ao e a moral do resultado, em que uma ´e t˜ ao falsa, t˜ ao extremista e t˜ ao abstrata quanto a outra, mostra claramente que S. de Beauvoir est´ a muito longe de poder tomar posi¸c˜ao diante das quest˜ oes morais concretas do presente, colocando-se em basas existencialistas. J´ a indicamos a afinidade que liga `a ´etica de Kant a nova f´ ormula m´ agica do existencialismo, segundo a qual n˜ao se pode querer sua pr´ opria liberdade sem querer a de todos. Esta afinidade manifesta-se tamb´em nos destinos da doutrina. A oscila¸c˜ ao de Kant entre o idealismo e o materialismo e a ambiguidade de sua posi¸c˜ao epistemol´ogica – sublinhadas por Lˆenin – tiveram por resultado encurralar toda sua filosofia te´ orica num conjunto de antinomias. Da mesma forma, S. de Beauvoir, querendo fornecer aos problemas da moral uma solu¸c˜ao existencialista, s´o pode trope¸car sempre contra o mesmo dilema da moral do resultado. N˜ ao se trata aqui de um acaso. A antinomia resulta inevitavelmente do fato de que o indiv´ıduo isolado, erigido em absoluto, constitui tanto o ponto de partida como o ponto de chegada desta moral. Isto conduz necessariamente a um primeiro erro, segundo o qual a convic¸c˜ao (Gesinnung) basta a si mesma sem rela¸c˜ ao ao seu objeto, a` sua orienta¸c˜ao etc. – para fundar a liberdade. O segundo erro que dela decorre, n˜ao menos necessariamente, consiste em conceber o mundo social dos homens, que existe independentemente de sua consciˆencia, como um mundo mumificado, de uma objetividade r´ıgida, regido por uma necessidade inumana, que n˜ao poderia ser dominada sen˜ ao tecnicamente. Ora, toda moral digna desse nome deve pender para a reconcilia¸c˜ ao da liberdade e da necessidade. S. de Beauvoir est´ a, ali´ as, profundamente consciente desta obriga¸c˜ao. Seu senso da realidade permite-lhe ver que uma moral puramente individual, que elimina o car´ ater objetivo e a necessidade da hist´oria, n˜ao poderia operar essa reconcilia¸c˜ ao. A situa¸c˜ ao atual, assim como o papel que nela assume o marxismo, obrigam S. de Beauvoir a sair do individualismo limi99

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tado do existencialismo ortodoxo. “A reconcilia¸c˜ao da moral e da pol´ıtica, diz (Temps Modernes, t. IV, p. 266), ´e a reconcilia¸c˜ao do homem com ele mesmo.” Mas como essa reconcilia¸c˜ ao poderia ser a obra de uma doutrina cujas defini¸c˜ oes de base op˜ oem ontologicamente a liberdade `a necessidade? A pr´ opria moral de Kant n˜ ao pode ultrapassar uma esp´ecie de justaposi¸c˜ao enigm´ atica e de um dualismo ecl´etico da liberdade e da necessidade. Como vimos, tamb´em S. de Beauvoir n˜ao pode ultrapassar o limite de certas antinomias, insol´ uveis para ela. Suas tentativas de solu¸c˜ao levam a conjuntos ecl´eticos da moral da inten¸c˜ ao e da moral do resultado. J´ a Hegel bem viu que se tratava a´ı de abstra¸c˜oes unilaterais, determinadas pelo car´ ater abstrato do ponto de partida do racioc´ınio. Diz ele, na sua Filosofia do Direito: “O princ´ıpio que quer que se negligencie as consequˆencias dos atos e o outro princ´ıpio, que quer que os atos sejam julgados segundo suas consequˆencias e que se me¸ca por eles o que ´e bom e conveniente fazer, dependem um e outro da raz˜ao abstrata.” Certamente Maurice Merleau-Ponty n˜ ao deixa de citar esta passagem, mas sem poder tirar-lhe conclus˜ oes u ´teis. Nele tamb´em, como teremos ocasi˜ao de ver, isto n˜ ao constitui um acaso. N˜ ao ´e poss´ıvel sair da polaridade abstrata e exclusiva da inten¸c˜ ao e da consequˆencia, da subjetividade e da objetividade, da liberdade e da necessidade, a n˜ ao ser ap´os ter realizado a ruptura filos´ ofica com o indiv´ıduo erigido em valor absoluto. Contrariamente ao que afirma Sartre, esta ruptura n˜ ao significa de forma alguma a destrui¸c˜ao da personalidade humana ou da subjetividade. A solu¸c˜ao resulta simplesmente da aplica¸c˜ ao correta, a este problema, da rela¸c˜ao dial´etica entre o absoluto e o relativo. No decorrer do cap´ıtulo seguinte, retomaremos com detalhes esta u ´ltima quest˜ ao. Limitar-nos-emos aqui a sublinhar que esta aplica¸c˜ ao correta necessita primeiramente uma concep¸c˜ao do homem como um ser a priori e integralmente social, e que mesmo os problemas mais ´ıntimos do indiv´ıduo mais solit´ ario possuem igualmente seu aspecto social. O problema da liberdade humana ´e, ao mesmo tempo, um problema social e hist´ orico. A liberdade n˜ ao poderia ter um conte´ udo concreto e uma rela¸c˜ ao dial´etica concreta com a necessidade, a n˜ao ser com a condi¸c˜ao de ser compreendida, na sua gˆenese hist´ orica e social, como a luta do homem contra a natureza, atrav´es da media¸c˜ ao das diversas formas da sociedade. A gˆenese hist´ orica e social da liberdade deve, portanto, ser explicada a partir da sujei¸c˜ ao original do homem ` as for¸cas da natureza, assim como `as formas da sociedade, nascidas desta luta e que se tornam uma esp´ecie de segunda natureza. 100

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As duas quest˜ oes que acabamos de tratar surgem em S. de Beauvoir no decorrer de sua an´ alise da moral. N˜ ao ´e capaz, certamente, de fornecer uma resposta satisfat´ oria, mas o fato n˜ ao deixa de ser interessante. Nada permite, com efeito, melhor julgar a situa¸c˜ ao atual dos existencialistas, obrigados a meditar sobre quest˜ oes estranhas ` a sua metodologia, quest˜oes que lhes s˜ ao impostas pelo avan¸co vitorioso da doutrina marxista. S. de Beauvoir sabe muito bem – e n˜ ao o esconde – que a principal obra filos´ofica de Sartre n˜ ao poderia fornecer uma base metodol´ogica f´ertil, em vista da solu¸c˜ ao dos problemas que a preocupam. Desculpa e ao mesmo tempo acusa o livro de Sartre de tratar desses mesmos problemas num plano diˆ ferente do seu. “Ao n´ıvel da descri¸c˜ ao em que se situa L’Etre et le N´eant, a palavra u ´til ainda n˜ ao recebeu sentido: s´ o pode ser definida no mundo humano constitu´ıdo pelos projetos do homem e pelos fins que ele p˜oe. No desamparo original onde o homem surge, nada ´e u ´til, nada ´e in´ util” (Temps Modernes, t. XVII, p. 196). A desculpa como a acusa¸c˜ao s˜ao antes de ordem sentimental do que te´ orica. Inicialmente, n˜ao ´e verdade que a obra de Sartre n˜ ao formule ainda os projetos e os fins e, al´em disso, se no seu “desamparo original” o u ´til n˜ ao existe ainda para o homem, como o u ´til chegaria a se constituir? Mas, para n´ os, trata-se menos da qualidade dos argumentos de S. de Beauvoir, que do obscuro descontentamento que ela deixa transparecer. Seus escritos est˜ ao animados pela vontade de desenvolver seu ponto de partida abstrato, sem ter de abandon´a-lo. N˜ao ´e sua culpa se essa vontade se mostra afinal de contas ilus´oria. Essas ilus˜ oes s˜ ao as melhores testemunhas da crise latente, at´e agora, inconsciente, que atravessa o existencialismo. A explica¸c˜ao da gˆenese do ser humano, fornecida pela ontologia fundamental de Sartre e da qual S. de Beauvoir tra¸ca uma t´ımida cr´ıtica, nada mais ´e do que a robinsonada intelectual da ideologia niilista e decadente. Na ´epoca da forma¸c˜ao da ideologia burguesa, Robinson Crusoe, de Daniel Defoe, torna-se o primeiro romance burguˆes cl´ assico, enquanto Adam Smith e Ricardo explicam a produ¸c˜ao capitalista e a estrutura da sociedade burguesa, a partir de opera¸c˜oes de troca entre ca¸cadores e pescadores primitivos, isolados e solit´arios. Quando o existencialismo se prop˜ oe a explicar o homem moderno, seu mundo e seus problemas, a partir do “desamparo original” do homem solit´ario e abandonado, nada mais faz do que seguir o mesmo caminho. Criticando as teorias de Adam Smith e de Ricardo, Marx demonstra que esse indiv´ıduo solit´ario e abandonado ´e um produto da sociedade capitalista em vias de forma¸c˜ao: “Nessa sociedade de livre concorrˆencia, escreve, o indiv´ıduo aparece des101

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ligado dos la¸cos naturais etc., que fazem dele, nas ´epocas precedentes da evolu¸c˜ ao social o acess´ orio de um conglomerado humano determinado e limitado.” Esse homem, o de Adam Smith e de Ricardo, era “o produto, de um lado, da dissolu¸c˜ ao das formas feudais da sociedade e, de outro, das formas de produ¸c˜ ao novas que se desenvolveram desde o s´eculo XVI.” Mas, acrescenta Marx, Smith e Ricardo compreendiam este homem “n˜ao enquanto um resultado hist´ orico, mas como ponto de partida da hist´oria”. Ora, n˜ ao seria dif´ıcil mostrar que “o ser de raz˜ao” da moral kantiana ´e o produto, no plano filos´ ofico, de uma abstra¸c˜ao a-hist´orica da mesma ordem, que confunde o resultado com a origem e o presente com o in´ıcio. Ap´ os a derrota da revolu¸c˜ ao de 1848 e o fim da filosofia hegeliana, que havia empreendido a tentativa de ultrapassar, sem abandonar seu car´ater burguˆes, os limites que sua a-historicidade tra¸ca ao pensamento burguˆes, a ´epoca das robinsonadas recome¸ca. Somente o aspecto das robinsonadas mudou: desde ent˜ ao s˜ ao mais subjetivas, portanto ainda mais abstratas. No dom´ınio da economia, ´e a teoria marginalista, na filosofia ´e o neokantismo. Um e outro caracterizam-se pela rejei¸c˜ao de todas as defini¸c˜oes estabelecidas pelos cl´ assicos e pela vontade de tudo deduzir da an´alise da consciˆencia de seus Robinsons isolados, chamados por estes vendedor e comprador ou mesmo sujeito ´etico. O ca¸cador e o pescador primitivos dos autores cl´ assicos tinham, pelo menos, a vantagem de ca¸car e de pescar eles pr´ oprios a presa e o peixe que trocavam entre si. Os p´alidos fantasmas da teoria marginalista trocam produtos acabados de origem misteriosa, enquanto a ciˆencia nova da economia prop˜ oe-se calcular, segundo seus estados de alma, o valor de uma bilha de ´ agua no Saara... Na evolu¸c˜ ao dessa tendˆencia, o existencialismo atingiu, ´e preciso dizˆe-lo, uma altura inigualada at´e o presente. O Saara e a bilha de ´agua em quest˜ao, mesmo “vistos atrav´es do temperamento” do vendedor e do comprador abstratos, constituem ainda um modelo de representa¸c˜ao social concreta, comparados ao nobre desligamento da ontologia de Heidegger e de Sartre, cuja abstra¸c˜ ao ´e muito representativa do universo ps´ıquico dos intelectuais decadentes do est´ agio do imperialismo. Heidegger, em particular, conhece demasiado bem esse universo que analisa com penetra¸c˜ao e descreve de uma maneira frequentemente muito viva e pitoresca. N˜ ao podemos, infelizmente, dar aqui uma an´alise das desfigura¸c˜oes es´ truturais que resultam obrigatoriamente do emprego de um tal m´etodo. E preciso contentarmo-nos por j´ a termos indicado o sentido geral destas desfigura¸c˜ oes. Temos entretanto de desvendar um elemento caracter´ıstico, a 102

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saber, o arbitr´ ario, que parece fazer corpo com a essˆencia da robinsonada. Sua consciˆencia da classe burguesa e seu conhecimento verdadeiramente profundo dos problemas reais da economia capitalista, permitiam aos autores cl´ assicos disciplinar, ao menos parcialmente, o arbitr´ario de suas robinsonadas. Mas quanto mais a robinsonada torna-se subjetivista, mais o controle do arbitr´ ario torna-se dif´ıcil. O acaso gra¸cas ao qual Sexta-Feira desembarca na ilha de Robinson est´ a perfeitamente justificado do ponto de vista liter´ ario e, a partir desse acaso, Defoe desenvolve com um conhecimento efetivo e muito seguro do processo econˆomico real a rela¸c˜ao de mestre a escravo entre seus dois her´ ois. Mas quando os disc´ıpulos tardios dos autores cl´ assicos perdem esse senso da realidade e esses conhecimentos objetivos, o arbitr´ ario reina como mestre. Eis o que escreve Engels a prop´ osito do arbitr´ ario na robinsonada de D¨ uhring: “Robinson subjugou Sexta-Feira, a espada na m˜ ao. Donde lhe veio essa espada? Mesmo nas ilhas imagin´ arias das robinsonadas, as espadas n˜ao brotam, at´e agora, nas a´rvores e D¨ uhring n˜ ao d´ a nenhuma resposta a essa quest˜ao. Assim como Robinson pˆ ode obter uma espada, podemos admitir que Sexta-feira aparecer´ a uma bela manh˜ a com um rev´ olver carregado na m˜ao: ent˜ao a rela¸c˜ao de for¸ca inverte-se inteiramente: ´e Sexta-Feira que comanda e Robinson que deve trabalhar.” O texto de Engels aplica-se perfeitamente ao existencialismo, cada vez que este se dedica a deduzir conclus˜oes concretas concernentes a fatos sociais, partindo de categorias tais como ser-com-outro, ser-no-mundo, etc. Essas categorias s˜ ao, com efeito, a tal ponto abstratas e a tal ponto vazias de todo conte´ udo social, que partindo delas pode-se deduzir n˜ ao importa o quˆe e mesmo o contr´ ario de n˜ao importa o quˆe. Au ´nica exce¸c˜ ao seria talvez a rigor o “se” heideggeriano (das Man), que representa de uma maneira assaz convincente o ´odio que o intelectual decadente nutre em rela¸c˜ ao ` as massas, o medo que dela experimenta e o terror de ver o car´ ater u ´nico de sua preciosa individualidade sofrer um atentado pelo contato da sociedade. Detenhamo-nos agora um instante na gˆenese hist´orica da liberdade tal como a concebe S. de Beauvoir. O fato de vˆe-la colocar este problema testemunha suficientemente a crise do existencialismo, crise de que se ressente, sem estar no entanto consciente dela. Considerada sob o ˆangulo da ontologia fundamental do existencialismo, toda hip´otese de uma gˆenese real da liberdade constitui uma contradi¸c˜ ao em si mesma. Para o existencialismo, a liberdade ´e, com efeito, um dado humano absoluto: n˜ao pode nem se constituir nem se perder. 103

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ˆ Em L’Etre et le N´eant, Sartre escreve: “Estabelecemos, com efeito, desde nosso primeiro cap´ıtulo, que se a nega¸c˜ao vem ao mundo pela realidade humana, esta deve ser um ser que pode realizar uma ruptura anuladora do mundo e de si mesma; e estabelecemos que a possibilidade permanente dessa ruptura coincidia com a liberdade” (p. 514-15). A liberdade ´ insepar´avel ´e, portanto, um dado fundamental da existˆencia humana. E da outra defini¸c˜ ao de seu ser: a que d´ a a ontologia fundamental. Forma o complemento da derreli¸c˜ ao heideggeriana, enquanto fundamento ontol´ogico da existˆencia. E ´e aqui que recome¸ca a robinsonada e, `a luz do existencialismo, a obra de Defoe aparece duplamente genial. O autor de Robinson Crusoe se revela como o verdadeiro fundador da no¸c˜ao de derreli¸c˜ao – n˜ao da existˆencia humana objetiva, mas de sua an´alise “robinsonesca” – porque Robinson est´ a efetivamente desamparado em sua ilha pelo naufr´agio. Mais ainda: a atividade “livre” de Robinson na sua derreli¸c˜ao funda seu mundo na ilha: o mundo da economia capitalista, o mesmo do qual involuntariamente saiu, para se afundar na sua solid˜ao e na sua atividade “completamente livre”. Em Defoe, as coisas se passam num plano concreto: o mundo que se forma na ilha, as condi¸c˜oes de existˆencia que se constituem entre Robinson e Sexta-Feira s˜ao as do capitalismo real; em Heidegger e Sartre, grandes autores da robinsonada decadente, a derreli¸c˜ao ´e apenas um mito, interioridade pura e met´afora. Mas a liberdade do aniquilamento, que se constitui a partir da derreli¸c˜ao, ´e t˜ao representativa do estado ps´ıquico dos intelectuais da decadˆencia quanto a atividade de Robinson o era da produ¸c˜ ao capitalista. E, da mesma forma que o romance de Defoe devia demonstrar o car´ ater necess´ario da produ¸c˜ao capitalista, a ontologia de Heidegger e Sartre tem por fim apresentar um estado ps´ıquico, a liberdade, como fundamento u ´ltimo, axiom´atico, necess´ario e natural da existˆencia humana. ´ evidente que S. de Beauvoir interpreta a gˆenese da liberdade de uma E maneira existencialista. Seria, sobretudo, falso acreditar que ela esbo¸ca a hist´ oria da gˆenese da liberdade concreta, atrav´es da evolu¸c˜ao da sociedade humana. Procura exprimir a gˆenese da liberdade no plano individual, mais ˆ ou menos da mesma maneira que Sartre evoca, em L’Etre et le N´eant, as perspectivas de uma psican´ alise existencial. Al´em disso, esta gˆenese ´e apenas uma aparˆencia. O que n´ os encontramos em S. de Beauvoir ´e antes a descri¸c˜ ao paralela de dois estados opostos: a infˆancia privada de liberdade e a existˆencia em liberdade dos adultos. Mas isto se torna interessante s´o quando S. de Beauvoir prop˜ oe-se estabelecer analogias entre as descri¸c˜oes 104

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fenomenol´ ogicas e certos problemas concretos de ordem social. E assim, ´ o caso, por exemplo, dos escravos que ainda n˜ao se elevaram `a declara: “E consciˆencia de sua escravid˜ ao” (Temps Modernes, t. XV, p. 386). Estes viveriam ent˜ ao, de acordo com S. de Beauvoir, em uma priva¸c˜ao de liberdade an´ aloga ao estado de infˆ ancia. Ter-se-ia aqui o direito de esperar, da parte de S. de Beauvoir, um esbo¸co dos elementos da passagem da consciˆencia n˜ ao-livre ` a consciˆencia livre, a fim de melhor fazer compreender a seus leitores o papel que o existencialismo atribui ` a sua no¸c˜ao de liberdade na evolu¸c˜ ao da humanidade. S. de Beauvoir – ´e preciso dizˆe-lo? – n˜ ao se dedica a esse empreendimento e isto nada tem de espantoso. Porque, com efeito, mesmo se ela se consagrasse exclusivamente a representar apenas a gˆenese da consciˆencia de liberdade, apareceria claramente que a consciˆencia social de liberdade descobre uma realidade completamente diferente da no¸c˜ao de liberdade do existencialismo. O menor contato com a realidade concreta ´e suficiente para reduzir esta u ´ltima a uma aparˆencia pura e simples. Em lugar de satisfazer a uma expectativa leg´ıtima, S. de Beauvoir explora o mundo da infˆ ancia que acabou de evocar, a fim de desacreditar certos tipos humanos, que se encontrariam afundados no mundo sem liber` primeira vista, haveria nisto apenas um divertimento dade da infˆ ancia. A assaz inocente, n˜ ao sem uma certa verdade na evoca¸c˜ao de certos tipos pequeno-burgueses. Mas, olhando-a mais de perto, essa verdade ´e frequentemente desfigurada, como agora, quando se abusa de possibilidades ´ certamente, um procedimento joranal´ ogicas que as imagens oferecem. E, nal´ıstico de efeito seguro chamar os fascistas de antrop´ofagos e de tenebrosos representantes da Idade M´edia, mas no plano social, essas met´aforas s´o servem para obnubilar o car´ ater capitalista da barb´arie fascista. O mesmo ocorre quando se emprega o termo infantilismo, para qualificar certos tipos sociais. Vejamos agora o que valem as conclus˜ oes desses estudos, escritos com muita penetra¸c˜ ao anal´ıtica. S˜ ao elas, como se poderia esperar, bastante estreitas e amb´ıguas. Seria expor-se a uma grave decep¸c˜ao esperar nelas descobrir um esbo¸co metodol´ ogico que possa conduzir `a solu¸c˜ao de certos problemas morais. Pois, afinal de contas, quando S. de Beauvoir pede (Temps Modernes, t. XVII, p. 868) “que tais decis˜oes n˜ao sejam tomadas com precipita¸c˜ ao ou com leviandade”, ou quando sublinha que ´e preciso proceder a “uma an´ alise pol´ıtica muito desenvolvida antes de fixar o momento da escolha moral”, diz apenas banalidades bem intencionadas. E 105

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n˜ ao avan¸camos quase nada, quando aprendemos que S. de Beauvoir quer “que a a¸ca˜o deva ser vivida na sua verdade, isto ´e, na consciˆencia das antinomias que ela comporta” (Temps Modernes, t. XVII, p. 855). Acrescenta, ali´ as, a nota seguinte: “Isto n˜ ao significa que se deva a ela renunciar.” N˜ao deixa de evocar logo a ren´ uncia e nisto toca o essencial: “A a¸c˜ao n˜ao pode procurar realizar-se por meios que destruiriam seu pr´oprio sentido. Se bem que em certas situa¸c˜ oes n˜ ao haveria outra sa´ıda para o homem sen˜ ao a recusa. No que chamamos realismo pol´ıtico, n˜ao h´a lugar para a recusa, porque o presente ´e considerado como transit´orio; h´a recusa, a n˜ ao ser quando o homem reivindica ao presente sua existˆencia como um valor absoluto; ent˜ ao deve absolutamente recusar o que negaria esse valor” (Temps Modernes, t. XVII, p. 856). Eis-nos enfim em presen¸ca de uma tomada de posi¸c˜ao n´ıtida. Ap´os tudo o que foi dito sobre o escˆ andalo da violˆencia, essa tomada de posi¸c˜ao deveria logicamente levar ao tolsto´ısmo, ou antes `a ideologia da n˜ao-violˆencia de certos expressionistas alem˜ aes. Mas S. de Beauvoir n˜ao quer – e isto ´e honra – tirar todas as consequˆencias que se imporiam. Prefere prender-se num fio de contradi¸c˜ oes insol´ uveis do que optar resolutamente por uma ren´ uncia, sublime em aparˆencia e covarde na realidade. Infelizmente, os motivos por meio dos quais tenta justificar suas inconsequˆencias, t˜ao honr´aveis, s˜ ao perfeitamente ilus´ orios. Invoca, o exemplo da Resistˆencia na Fran¸ca. “A Resistˆencia, diz ela, n˜ ao tendia a uma efic´acia positiva. Era nega¸c˜ao, revolta, mart´ırio; e, nesse movimento negativo, a liberdade era positiva e ´ um mito. Fazendo saltar trens, maabsolutamente confirmada” (id.). E tando agentes da Gestapo, libertando prisioneiros, at´e organizando batalhas de guerrilheiros, a Resistˆencia realizava atos pol´ıticos muito concretos e tendia – ´e evidente – ` a maior efic´ acia poss´ıvel, tanto na conduta de cada a¸c˜ ao, como no seu conjunto, no objetivo de libertar a Fran¸ca. Os tra¸cados respectivos das frentes pol´ıticas eram ent˜ao, sem d´ uvida, mais simples que ap´ os a Liberta¸c˜ ao, ainda que a simplicidade seja, nesse dom´ınio, igual´ humanamente muito compreens´ıvel ver alguns – S. mente um mito. E de Beauvoir n˜ ao ´e a u ´nica – darem as costas aos problemas complexos e prosaicos do presente (sobretudo quando n˜ao est˜ao `a altura de assimil´alos, filos´ ofica e politicamente) para refugiar-se na simplicidade po´etica do tempo da Resistˆencia. Essa nostalgia, diz´ıamos, ´e humanamente compreens´ıvel. Sua generaliza¸c˜ ao te´ orica d´ a, entretanto, lugar a nascimento de mitos, sem falar desses casos em que se erige em valor absoluto, o que ´e uma fonte de erros 106

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fatais. No entanto, ´e o que acontece com S. de Beauvoir, quando declara que “somente a revolta ´e pura” (Temps Modernes, t. XVII, p. 875). Essa afirma¸c˜ ao apenas dissimula – S. de Beauvoir n˜ao tarda a confess´a-lo – o medo de ver triunfar “a revolta”, o temor de ver esse triunfo chegar a uma “degenerescˆencia” da pureza original dos princ´ıpios e do entusiasmo romˆ antico dos in´ıcios. O humanismo revolucion´ario – prossegue S. de Beauvoir – “criou uma Igreja, onde a salva¸c˜ ao ´e comprada por uma inscri¸c˜ao no partido, como ´e comprada alhures pelo batismo e pelas indulgˆencias” (id.). Aqui, o existencialismo mostra de novo seu verdadeiro aspecto: o do niilismo anarquista, pr´ oprio aos intelectuais que n˜ao tˆem, certamente, sen˜ ao desprezo pelo capitalismo imperialista dos trustes, mas aos quais a revolu¸c˜ ao real inflige um terror pˆ anico. Isto n˜ ao significa necessariamente que sejam covardes: o que temem ´e ver transformar-se o car´ater de isolamento de sua “existˆencia”. As considera¸c˜ oes de S. de Beauvoir s˜ ao interessantes na medida em que desvendam um tra¸co muito importante da caracterologia de um certo tipo social que tem medo da maturidade no plano da existˆencia hist´orico-social. Entretanto a prosa da objetividade deve suceder `a poesia da subjetividade juvenil; a prosa da realiza¸c˜ ao na mat´eria dura, resistente e, apesar de tudo, sempre d´ ocil da realidade, deve tomar o lugar da poesia nebulosa dos estados indefin´ıveis, obscuros. Na sua Tipologia das Idades, que leva a marca sentimental da lembran¸ca de H¨ olderlin, Hegel descreve da maneira seguinte a atitude mental do adolescente: “A adolescˆencia dissolve de tal maneira a ideia realizada no mundo que se atribui a si mesma a defini¸c˜ao do substancial que pertence ` a natureza da ideia – o verdadeiro e o bom – enquanto atribui a defini¸c˜ ao do fortuito e do acidental ao mundo.” A existˆencia da maior parte dos romˆ anticos est´a marcada pelo selo da vontade tragicˆ omica de eternizar essa atitude mental da adolescˆencia. Trata-se, em particular, daqueles que tiveram a ocasi˜ao de viver, no decorrer de sua juventude, um per´ıodo heroico, “m´ıtico” da hist´oria. Os romˆ anticos recusam-se a envelhecer e morrer – e a pol´ıtica romˆantica recusa dobrar-se ` a necessidade que quer que ` a poesia da subvers˜ao ou da clandestinidade heroica suceda a prosa da realiza¸c˜ao, da execu¸c˜ao. No seu escrito que acabamos de citar, Hegel sublinha a repulsa que experimentaram numerosos adolescentes no limiar da maturidade, em se ocupar dos problemas precisos que a realidade tende a lhes impor. Simone de Beauvoir faz-se nitidamente int´erprete dessa tendˆencia, porque considera “mais autˆentica” a juventude revoltada de Goethe que sua maturidade de “servi107

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dor do Estado.” Sem querer discutir com S. de Beauvoir “a autenticidade” do Segundo Fausto ou a da Trilogia das Paix˜ oes, permitimo-nos notar que ´e uma abstra¸c˜ ao muito juvenil querer caracterizar toda a maturidade de Goethe pela defini¸c˜ ao de “servidor do Estado”. T˜ao “juvenil”, ali´as, como o paralelo que estabelece entre a evolu¸c˜ ao de Goethe, de Barr`es e de Aragon. Tudo isto ´e, em suma, profundamente falso, mas psicologicamente compreens´ıvel, porque na noite escura do medo juvenil diante de qualquer conformismo, todas as vacas – como dizia Hegel – parecem negras, todas as realiza¸c˜ oes, individuais ou sociais, parecem degenerescˆencias que n˜ ao ´e mais poss´ıvel distinguir das degenerescˆencias verdadeiras (Barr`es por exemplo). ´ portanto, perfeitamente l´ E, ogico ver, `a guisa de ap´ologo, este velho ad´ agio que S. de Beauvoir coloca no termo de seu escrito: “Fa¸ca o que deve, aconte¸ca o que acontecer!” Destr´ oi assim o fruto de todas as suas considera¸c˜ oes e de todos os seus racioc´ınios, `as vezes cheios de interesse, ˆ para restabelecer a moral da inten¸c˜ ao abstrata de L’Etre et le N´eant na sua pureza integral, abstrata e perfeitamente est´eril. Para chegar a uma tal conclus˜ ao, o que precede n˜ ao era indispens´avel e guarda apenas um valor de sintoma da crise do existencialismo.

´ 5. A ETICA EXISTENCIALISTA E A ´ RESPONSABILIDADE HISTORICA Nos textos de Merleau-Ponty, encontramos todos esses problemas num plano mais elevado. Isto se deve, antes de tudo, ao fato de que MerleauPonty conhece o marxismo bem melhor que os outros existencialistas e que sofreu-lhe a influˆencia numa medida consider´avel. Tenta, portanto, mostrar-se muito compreensivo a seu respeito. Disto resulta, de um lado, que est´ a em condi¸c˜ oes de colocar seus problemas de uma maneira bem mais concreta e, de outro, que entre a marcha de seu pensamento, orientado para a objetividade e para a verdade, e seus princ´ıpios de existencialista, a divergˆencia ´e ainda maior do que a que constatamos em S. de Beauvoir. Pois o existencialismo constitui igualmente a base do racioc´ınio de Merleau-Ponty. As reservas cr´ıticas, que se manifestam com timidez em S. de Beauvoir, fazem-se entretanto sentir nele de uma maneira bem mais n´ıtida. E se essa divergˆencia entre um conte´ udo novo e um m´etodo velho n˜ ao se pode revelar concreta e abertamente em Merleau-Ponty, se 108

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ele pr´ oprio nunca se torna consciente dela, a responsabilidade ´e devida ao trotskismo, que n˜ ao cessou ainda de influenciar seu esp´ırito. Veremos como suas simpatias trotskistas desviam Merleau-Ponty da verdadeira compreens˜ ao do marxismo e da compreens˜ ao profunda dos problemas que o preocupam, toda vez que est´ a prestes a chegar a isso. Na realidade, ´e seu trotskismo que faz of´ıcio de mediador entre suas heresias e sua ortodoxia existencialistas: ´e sua inclina¸c˜ ao para o trotskismo que lhe permite colocar suas quest˜ oes, dando-lhes uma solu¸c˜ ao ecl´etica que consistiria em um am´ algama feito de marxismo e de existencialismo. Quanto a Sartre, muda resolutamente de posi¸c˜ ao, sem se embara¸car com as contradi¸c˜oes nas quais est´ a arriscado a cair a cada instante e das quais, de todos os pensadores existencialistas, ´e o menos consciente. Come¸caremos por examinar rapidamente a atitude cr´ıtica que se desenha pouco a pouco em Merleau-Ponty, a respeito da principal obra te´orica ˆ de sua escola, L’Etre et le N´eant. Bem sabemos, ´e evidente, que, quanto a suas inten¸c˜ oes, Merleau-Ponty prop˜ oe-se somente melhorar e completar o existencialismo e que n˜ ao pretende de forma alguma ultrapass´a-lo. Parte, tamb´em, do velho dilema do determinismo e da liberdade e tenta dar-lhe uma solu¸c˜ ao existencialista. Declara notadamente: “N˜ao diremos que esse ˆ paradoxo da consciˆencia e da a¸c˜ ao esteja, em L’Etre et le N´eant, inteiramente elucidado. A meu ver, o livro permanece inteiramente antit´etico: a ant´ıtese da vis˜ ao que tenho de mim mesmo e da vis˜ao que outros tˆem de mim, a ant´ıtese do para-si e do em-si fazem papel, muitas vezes, de alternativas, em lugar de serem descritas como o la¸co vivo de um dos termos ao ˆ outro e como sua comunica¸c˜ ao... Podemos, pois, esperar, ap´os L’Etre et le N´eant, todas as esp´ecies de esclarecimentos e de complementos” (Temps Modernes, t. II, p. 345-46). E, noutro lugar, onde, contraditoriamente com a teoria marxista, tenta representar o car´ater social do homem, esˆ et le N´eant n˜ao nos d´a ainda” (Temps creve: “Essa teoria do social, L’Etre Modernes, t . II, p. 355). Crˆe que o marxismo, que cont´em muitas solu¸c˜oes aceit´ aveis, n˜ ao poderia passar sem certas retifica¸c˜oes e certos complementos, e principalmente sem “uma concep¸c˜ ao nova da consciˆencia que funda ao mesmo tempo sua antinomia e dependˆencia” (Temps Modernes, t. II, p. 356), e em conclus˜ ao, acrescenta que um marxismo vivo deveria “salvar” a pesquisa existencialista e integr´ a-la, em lugar de sufoc´a-la (id.). Essa vontade de compreens˜ ao para com o marxismo manifesta-se igualmente no fato de que, contra as tradi¸c˜ oes da escola fenomenol´ogica que considera, desde Husserl, seu m´etodo com o m´etodo definitivo da filoso109

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fia, Merleau-Ponty tenta justificar o existencialismo enquanto express˜ao filos´ ofica de nosso tempo. Ora, essa concep¸c˜ao da filosofia enquanto tomada de consciˆencia do tempo implica numa concess˜ao consider´avel a Hegel e a Marx e numa oposi¸c˜ ao inconsciente a Husserl, a Heidegger e a Sartre. Disto resulta naturalmente uma contradi¸c˜ao interna, porque, sendo o tempo para Merleau-Ponty uma categoria subjetiva, em conformidade com os dogmas do existencialismo ortodoxo, a hist´oria n˜ao poderia estar, para ele, investida de uma objetividade verdadeira. Na sua Ph´enom´enologie de la Perception, (p. 471), escreve, com efeito: “O tempo n˜ao ´e portanto um processo real, uma sucess˜ ao efetiva, que eu me limitaria a registrar. Ele nasce de minha rela¸c˜ ao com as coisas.” A partir dessas premissas, a objetividade da hist´ oria torna-se, ´e claro, imposs´ıvel de estabelecer. Tentando justificar o existencialismo, enquanto tomada de consciˆencia de nosso tempo, Merleau-Ponty contradiz sua pr´ opria posi¸c˜ao de partida. Devemos sublinhar que essa atitude n˜ao diminui de forma alguma o interesse de suas considera¸c˜ oes. Bem ao contr´ario. Num de seus escritos, Merleau-Ponty empreende uma interpreta¸c˜ao existencialista da filosofia marxista e, com esse fim, quer provar que o argumento mais forte que o marxismo j´ a produziu contra a filosofia do subjetivismo ´e de car´ater existencialista. Apoia sua argumenta¸c˜ ao em certos desenvolvimentos filos´oficos do jovem Marx. E eis como resume o que tem por ideal filos´ofico comum do marxismo e do existencialismo: “O fil´osofo que toma consciˆencia de si mesmo como nada e como liberdade, d´ a a forma ideol´ogica de seu tempo, traduz em conceitos essa fase da hist´ oria onde a essˆencia e a existˆencia do homem est˜ ao ainda separadas, onde o homem n˜ao ´e ele mesmo porque est´ a imerso nas contradi¸c˜ oes do capitalismo” (Temps Modernes, t. II, p. 352, sublinhado por n´ os, G.L.). Merleau-Ponty n˜ao duvida certamente que sua tentativa de concilia¸c˜ ao proclama em verdade sua ruptura com toda a ontologia existencialista. Sob pena de uma abdica¸c˜ao completa, esta deve, com efeito, interpretar a essˆencia do homem, assim como os constituintes ontol´ ogicos da realidade humana (liberdade, situa¸c˜ao, ser-com, ser-no-mundo, o “se” etc.) como categorias supra-hist´oricas, al´em de toda incidˆencia social. As categorias econˆ omicas, particulares a uma ´epoca, n˜ao podem figurar, diante de tal m´etodo, sen˜ao a t´ıtulo acidental, surgindo no interior dessas rela¸c˜ oes ontol´ ogicas supratemporais, como varia¸c˜oes ou modifica¸c˜ oes sociais, hist´ oricas ou individuais de uma essˆencia constante e extratemporal. N˜ ao h´ a de forma alguma necessidade de voltar a Husserl, a Heidegger ou a Sartre: basta recordar que S. de Beauvoir considera a 110

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essˆencia do homem como uma realidade supratemporal, da qual nenhuma revolu¸c˜ ao poderia modificar a estrutura. A filosofia do marxismo, para a qual as categorias econˆomicas constituem formas de existˆencia e determina¸c˜ oes do ser, considera, ao contr´ario, o homem como um ser transformando-se sem cessar, no interior, ´e claro, de uma continuidade hist´ orica. O homem criou-se a si mesmo por seu trabalho. E quando a humanidade chegar a encerrar sua “pr´e-hist´oria” e estabelecer o socialismo de uma maneira definitiva e completa, assistiremos a uma transforma¸c˜ ao fundamental da essˆencia do homem, depois da qual os homens esquecer˜ ao as rela¸c˜ oes inumanas de nossa ´epoca. Criando-se a si mesmo historicamente e se transformando historicamente, o homem est´a igualmente ligado ao mundo por certas rela¸c˜ oes constantes (o trabalho e certas qualidades constantes que da´ı decorrem), mas isso n˜ao permite de forma alguma estabelecer uma aproxima¸c˜ ao entre essa dial´etica objetiva da hist´ oria e a ontologia extratemporal da subjetividade. Nenhum compromisso ´e poss´ıvel entre essas duas concep¸c˜oes: ´e necess´ ario escolher. Nenhum compromisso ´e poss´ıvel, tamb´em, entre a concep¸c˜ ao existencialista da liberdade e a unidade dial´etica e hist´orica da liberdade e da necessidade, estabelecida pelo marxismo. A´ı tamb´em ´e necess´ ario escolher, pois n˜ ao se poderia, como tenta fazˆe-lo Merleau-Ponty numa passagem que citamos acima, operar uma concilia¸c˜ao entre essas duas concep¸c˜ oes. Poder-se-ia, a rigor, objetar-nos que n˜ ao ´e o existencialismo, mas ´e o marxismo (isto ´e, uma imagem subjetivada pelo existencialismo) que Merleau-Ponty pretende representar nos seus escritos questionados por n´ os. Mas noutra passagem, retoma a quest˜ ao, para declarar: “Essa filosofia (o existencialismo), diz-se, ´e a express˜ ao de um mundo deslocado. Certamente, e isto ´e apenas a verdade. Toda a quest˜ao ´e saber se, tomando a s´erio nossos conflitos e nossas divis˜ oes, nos abate ou nos cura deles. Hegel fala frequentemente de uma m´ a identidade, entendendo por isso a identidade abstrata que n˜ ao integrou as diferen¸cas e n˜ao sobreviver´a a sua manifesta¸c˜ ` ao. Poder´ıamos, de uma maneira an´aloga, falar de um mau existencialismo que se esgota na descri¸ca˜o do choque da raz˜ao contra as contradi¸co˜es da experiˆencia e termina na consciˆencia de um rev´es” (Temps Modernes, t . XVI, p. 711). Merleau-Ponty, entretanto, abst´emse de levar seu pensamento mais adiante e, sobretudo, abst´em-se de dar do “mau existencialismo” uma representa¸c˜ ao mais precisa. Contenta-se em indicar que o “mau existencialismo” encontra-se intimamente ligado 111

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`s consequˆencias niilistas dessa doutrina. Quanto a n´os, parece-nos antes a ˆ que tudo o que diz dele aplica-se maravilhosamente a L’Etre et le N´eant e as reservas de Merleau-Ponty, que citamos acima, s˜ao de natureza a nos fazer acreditar que um tal pensamento n˜ao lhe ´e completamente estranho. Pensamos mesmo que ´e evidente, desde que se aprofundem os m´etodos do existencialismo, que o bom existencialismo – isto ´e, um existencialismo n˜ao niilista – ´e simplesmente inconceb´ıvel. Qualquer que seja a ortodoxia dessa atitude de Merleau-Ponty, ´e seguro que, na discuss˜ ao dos problemas que coloca, vai bem mais longe que S. de Beauvoir, sem mesmo falar de J.-P. Sartre. De Koestler, que se faz defensor das democracias anglo-saxˆ onicas, diz, com vigor, que n˜ao se trata para este “da discuss˜ ao do Ioga com o Comiss´ario, mas antes da discuss˜ao de um comiss´ ario com outro” (Temps Modernes, t. XVI, p. 706), em outras palavras, de um antagonismo entre violˆencia e violˆencia. Noutra passagem, ´e ainda mais claro e declara, descartando simplesmente as argumenta¸c˜oes de S. de Beauvoir: “N˜ ao temos a escolha entre a pureza e a violˆencia, mas entre diferentes esp´ecies de violˆencia... O que conta, e que ´e preciso discutir, n˜ ao ´e a violˆencia, ´e seu sentido ou seu futuro” (Temps Modernes, t. XIV, p. 276). Enfim, em oposi¸c˜ ao consciente ou n˜ao com S. de Beauvoir, considera que “esta recusa e esta decis˜ao n˜ao somente de arriscar a morte, mas ainda de morrer antes que viver sob a domina¸c˜ao do estran´ uma atitude individual, n˜ao ´e geiro e do fascismo, ´e como o suic´ıdio... E ´ pena, pois uma posi¸ca˜o pol´ıtica” (Temps Modernes, t. XIII, p. 26). E Merleau-Ponty coloca seus problemas de maneira t˜ao concreta, que suas considera¸co˜es se prendem a uma prosa de t˜ao baixo n´ıvel como a de Koestler. A respeito da evolu¸c˜ ao intelectual e moral do her´oi koestleriano mais conhecido, Merleau-Ponty declara: “Ele passa do cientismo a deboches da vida interior, isto ´e, de uma tolice a outra” (Temps Modernes, t. XIV, p. 264). N˜ ao deixa de desmascarar a hipocrisia de Koestler, que se esfor¸ca por cantar os louvores da democracia anglo-saxˆonica, sem ver que est´a constru´ıda sobre a explora¸c˜ ao de uma parte do mundo por outra. Demonstra assim que em Koestler “o anticomunismo e “o humanismo” tˆem duas morais: as que professam, celeste e intransigente; as que praticam, terrestre e mesmo subterrˆ anea” (Temps Modernes, t. XVI, p. 703). O desgosto que experimenta pelo ressentimento baixo que se respira literalmente na atmosfera dessa “literatura” anticomunista, manifesta-se finalmente assim: “Em suma, n˜ ao temos que expiar os pecados de juventude de Koestler... Ama-se um homem que muda porque amadurece e compreende hoje mais 112

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coisas do que compreendia ontem. Mas um homem que volta para suas posi¸c˜ oes n˜ ao muda, n˜ ao ultrapassa seus erros” (Temps Modernes, t. XVI, p. 700-701). A despeito deste desd´em vigoroso a respeito de Koestler, desd´em que honra seu sentido moral e est´etico, Merleau-Ponty decididamente n˜ao tem raz˜ ao em se demorar tanto tempo na an´ alise dessa “literatura”. A consequˆencia mais lament´ avel ´e a obriga¸c˜ ao, para ele, de se envolver em numerosos desenvolvimentos secund´ arios, que desviam a aten¸c˜ao do problema central e que o levam a fazer digress˜ oes e desvios embara¸cosos. Seu problema central ´e, sem d´ uvida, a rela¸c˜ ao entre a responsabilidade moral e ´ uma quest˜ a responsabilidade hist´ orica. E ao grave, que surge necessariamente em primeiro plano em cada per´ıodo suficientemente rico em revira voltas pol´ıticas e hist´ oricas e que preocupou vivamente a opini˜ao p´ ublica em todos os pa´ıses ou onde houve um movimento de resistˆencia bastante forte e onde, num momento dado, era preciso punir os colaboradores. Vimos que, em Simone de Beauvoir, a quest˜ ao se coloca antes de tudo num plano psicol´ ogico, moral e subjetivo. Por assim dizer, ´e apenas contra vontade e a despeito de suas convic¸c˜ oes existencialistas que S. de Beauvoir consente ` as vezes – quando a gravidade objetiva dos fatos a obriga – em considerar igualmente os fatores pol´ıticos e hist´oricos. Em Merleau-Ponty, estes u ´ltimos encontram-se, ao contr´ario, em primeiro plano. O que o interessa ´e o drama da honestidade subjetiva e da trai¸c˜ ao objetiva, eis como formula a quest˜ ao, evocando o processo de Bukarin que ocorreu em Moscou, em 1938. Falando de P´etain e de Laval, descarta a possibilidade de uma trai¸c˜ ao por dinheiro: “Mesmo se n˜ao h´a culpa nesse sentido, recusamo-nos a absolvˆe-los como homens que manifestamente se enganaram” (Temps Modernes, t. XIII, p. 23). Ora, desenvolvendo essa ideia, Merleau-Ponty cria um estranho tecido de erros e de verdade. Diz inicialmente que o verdadeiro e o falso s´o se distinguem um do outro post festum, quando a Hist´ oria julgou. A criminosa falsidade da pol´ıtica dos colaboradores ´e agora perfeitamente evidente para n´os. “Mas no que concerne aos acontecimentos de 1940, como sab´ıamos tudo isto? Pelo fato da vit´ oria aliada” (Temps Modernes, t. XIII, p. 23). Mas se fosse assim, o todo seria apenas uma vasta ilus˜ao, um conjunto de elementos fortuitos. Ainda que uma tal conclus˜ ao esteja perfeitamente conforme ˆ as doutrinas de Sein und Zeit e de L’Etre ` et le N´eant, Merleau-Ponty recusa-se aceit´ a-la e isto o honra. A outra explica¸c˜ao, segundo a qual os resistentes teriam antes decifrado os segredos da Hist´oria, enquanto os co113

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laboradores se teriam enganado, n˜ ao lhe ´e suficiente tamb´em. Pois, diz em substˆ ancia, n˜ ao ´e o erro que desprezamos nuns e n˜ao ´e “a frieza de julgamento e a simples clarividˆencia” (Temps Modernes; t. XIII, p. 27) que admiramos nos outros. “A gl´ oria dos resistentes como a indignidade dos colaboracionistas sup˜ oe ao mesmo tempo a contingˆencia da Hist´oria, sem a qual n˜ ao h´ a culpados em pol´ıtica, e a racionalidade da Hist´oria, sem a qual h´ a apenas loucos” (id.). Um pouco antes dessa passagem, evocando a “ast´ ucia da raz˜ ao” de Hegel, Merleau-Ponty explica, com efeito: “H´a na Hist´ oria uma esp´ecie de malef´ıcio; solicita os homens, tenta-os, e eles acreditam andar no mesmo sentido que ela, e de repente se oculta, o acontecimento muda, prova de fato que outra coisa era poss´ıvel. Os homens que ela abandona e que pensavam ser apenas seus c´ umplices, tornam-se de repente os instigadores do crime que ela lhes inspirou” (Temps Modernes, t. XIII, p. 26). Essas considera¸c˜ oes constituem uma tentativa para apreender o problema da responsabilidade num plano hist´orico concreto e ´e evidente que o alcance desta tentativa ultrapassa de longe a de S. de Beauvoir, que permanece bem mais pr´ oxima da ortodoxia existencialista. Descobrem-se, entretanto, lacunas profundas no pensamento de Merleau-Ponty. Primeiramente, concebe a Hist´ oria sob um aspecto demasiado m´ıstico: torna-se, nele, uma personagem m´ıtica, a quem ´e f´acil atribuir transforma¸c˜oes e inten¸c˜ oes enigm´ aticas. Ora, isto ultrapassa de longe as mitifica¸c˜oes hegelianas e nos enganar´ıamos se v´ıssemos a´ı apenas a obra do acaso. Em Hegel, a hist´ oria tem um conte´ udo objetivo e uma dire¸c˜ao objetiva. A ast´ ucia da raz˜ ao ´e pouco mais que uma met´ afora evocadora, destinada a tornar sens´ıvel, sob uma forma condensada, a verdade perfeitamente reconhecida por Hegel, segundo a qual n˜ ao s˜ ao as vontades individuais que regem a hist´ oria. No entanto, este conte´ udo objetivo e esta dire¸c˜ao devem necessariamente faltar na interpreta¸c˜ ao de Merleau-Ponty. Com efeito, mesmo se quisesse, enquanto indiv´ıduo ou homem pol´ıtico, assinalar seu lugar no existencialismo, sendo ele pr´ oprio existencialista, esta vontade s´o poderia ser, por sua vez, uma opini˜ ao particular e puramente individual, n˜ao dependendo do conte´ udo e da dire¸c˜ ao da pr´opria hist´oria. Eis porque, em Merleau-Ponty, a Hist´ oria encontra-se obrigada a se apresentar diante de n´ os sob os tra¸cos de uma mulher estimulante e vol´ uvel, que s´o consente em desvendar seus des´ıgnios no u ´ltimo instante ou, pior ainda, post festum. O simples fato do ˆexito, do sucesso (no nosso caso, a vit´oria dos Aliados) pode verdadeiramente servir de crit´erio supremo? A gl´oria dos guerrilhei114

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ros da Resistˆencia seria menor, a ignom´ınia dos colaboracionistas ter-se-ia atenuado se Hitler tivesse triunfado? ´ a Realpolitik reacion´ E aria, da qual o fascismo foi o ponto culminante, que faz da efic´ acia um crit´erio exclusivo. Eis como e com que cinismo Goebels formula esse papel todo-poderoso da efic´acia, que faz com que o conhecimento s´ o possa julgar ulteriormente: “Nossa inten¸c˜ao n˜ao ´e fornecer a justifica¸c˜ ao cient´ıfica de nossa ideologia, mas realizar as aspira¸c˜oes que ela encerra. Uma ´epoca mais tardia poder´ a depois considerar a a¸c˜ao pr´atica enquanto objeto do conhecimento especulativo.” E Goebbels apressa-se em tirar dessa tese conclus˜ oes que satisfar˜ ao plenamente a ideologia fascista: “A tarefa de nossos contemporˆ aneos n˜ ao consiste em tomar uma posi¸c˜ao cient´ıfica, imparcial e objetiva em rela¸c˜ ao aos acontecimentos pol´ıticos... Sua tarefa ´e contribuir para criar realidades hist´oricas...” ´ evidente que Merleau-Ponty n˜ E ao partilha essa atitude: ao contr´ario, rejeita, apaixonadamente, toda sobrevivˆencia fascista. Mas o agnosticismo hist´ orico, que decorre necessariamente da posi¸c˜ao filos´ofica do existencialismo, obriga-o a aproximar-se teoricamente dessa Realpolitik do cinismo, todas as vezes que faz do ato moral do indiv´ıduo isolado um crit´erio exclusivo. O falso dilema da moral da inten¸c˜ ao e da moral do resultado, que ´e simplesmente sinˆ onimo dessa Realpolitik, procede precisamente dessa atitude agn´ ostica face ` a hist´ oria. J´ a estudamos a natureza desse falso dilema. Ora, se o existencialismo abandona a moral da inten¸c˜ao pura que ´e a u ´nica conforme ` a sua ortodoxia, sem submeter suas bases filos´oficas a uma an´alise objetiva, condena-se a estar continuamente oscilante entre esses dois extremos igualmente ilus´ orios. Houve sempre, naturalmente, protestos contra a maneira pela qual a Realpolitik pura interpretava a hist´ oria. “Victrix causa diis placuit, sed victa Catoni”, dizia Lucano e o marxismo, no qual as almas delicadas cedo descobriram uma Realpolitik c´ınica e amoral, sobrecarrega de ignom´ınia Thiers, carrasco da Comuna, enquanto venera a lembran¸ca gloriosa dos her´ ois vencidos. Mesmo que as condi¸c˜ oes hist´ oricas exclu´ıssem, por assim dizer, anteriormente, toda possibilidade de vit´ oria para um movimento de liberta¸c˜ ao, o marxismo julga de uma maneira idˆentica; bastar´a citar o exemplo de Espartaco ou de Thomas M¨ unzer. N˜ ao podemos partilhar a opini˜ ao de Merleau-Ponty que se recusa a admirar, nos guerrilheiros da Resistˆencia, sua justa compreens˜ao da Hist´oria. Certamente, a convic¸c˜ ao, somente, n˜ ao basta para fazer um her´oi. Seria dif´ıcil, sen˜ ao imposs´ıvel, imaginar um her´ oi de uma convic¸c˜ao mais pura 115

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que Don Quixote. Mas como explicar que, sem preju´ızo do hero´ısmo integral que o anima, produz um efeito irresistivelmente cˆomico? E por que os her´ ois de uma revolu¸c˜ ao precoce, desesperada, n˜ao s˜ao jamais cˆomicos? Sem falar de Espartaco ou de Thomas M¨ unzer, ´e preciso reconhecer que o gˆenio de um Shakespeare n˜ ao bastou para fazer de John Cade uma figura verdadeiramente cˆ omica. Isto significa que a rela¸c˜ao dial´etica entre a compreens˜ ao correta da Hist´ oria e as consequˆencias que dela decorrem para o indiv´ıduo moral ´e de natureza muito complexa. N˜ao ´e somente a compreens˜ ao concreta da situa¸c˜ ao hist´ orica imediata que est´a em jogo (Hitler vencer´ a?), mas tamb´em a totalidade das rela¸c˜oes hist´oricas que formam o pano de fundo da situa¸c˜ ao concreta imediata. S˜ ao, portanto, em grande parte, o conte´ udo objetivo e a dire¸c˜ao real da hist´ oria que determinam o car´ ater heroico ou ign´obil, tr´agico ou cˆomico dos personagens que agem historicamente. O triunfo, como a derrota, resultam, sem d´ uvida, sempre de uma luta real, cujos epis´odios oferecem um largo campo aos jogos do acaso, como ao desenvolvimento da inteligˆencia, da energia, da coragem, do sofrimento etc., dos homens que nela se enfrentam. Mas as perspectivas reais dessa luta, as qualidades morais suscet´ıveis de nela se desenvolver, seu car´ ater e seu valor s˜ao sempre determinados – n˜ ao de uma maneira fatalista e direta, mas somente em u ´ltima an´alise – ´ uma falsa conquista do niipela marcha objetiva da pr´ opria hist´ oria. E lismo moderno ter posto a relatividade psicol´ogica do tr´agico e do cˆomico; sua relatividade hist´ orica constitui, entretanto, uma qualidade estrutural e objetiva extremamente importante da pr´opria evolu¸c˜ao hist´orica objetiva. Os grandes escritores reconheceram sempre essa verdade. Sabe-se como Balzac descreve a oposi¸c˜ ao entre a atitude moral dos soldados e dos oficiais republicanos do ex´ercito revolucion´ ario e a dos Chouans. As descri¸c˜oes de Balzac ressaltam bastante que, conquanto do ponto de vista da moral individual os dois partidos se equivalham, o conte´ udo moral diferente das causas que servem, empresta a cada um uma atitude moral diferente, at´e oposta. Num de seus escritos de juventude, Marx, ali´as, formulou de uma maneira surpreendente esse determinismo hist´orico do tr´agico e do cˆomico. ´ instrutivo para elas (as na¸c˜ “E oes ocidentais avan¸cadas), escreve ele, ver o antigo regime, que viveu nelas sua trag´edia, representar agora sua com´edia, enquanto repeti¸c˜ ao alem˜ a. Sua hist´ oria foi tr´ agica enquanto correspondia `a violˆencia preexistente ao mundo, a liberdade sendo ao contr´ario uma ideia pessoal; em uma palavra, enquanto os representantes do antigo regime acreditavam na sua justifica¸c˜ ao e deviam nisso acreditar. O antigo regime, 116

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enquanto ordem estabelecida, lutava contra um mundo em gesta¸c˜ao, e tinha a seu lado um erro hist´ orico, mas n˜ ao um erro individual. Sua derrota foi portanto tr´ agica... Mas o antigo regime moderno nada mais ´e que o comediante de uma ordem cujos her´ ois verdadeiros est˜ao mortos. A Hist´oria ´e profunda; atravessa numerosas fases antes de levar `a tumba uma velha forma. A u ´ltima fase de uma forma hist´ orica ´e sua com´edia”. O tr´agico e o cˆ omico s˜ ao, sem d´ uvida, p´ olos extremos. Mas o que pode ser dito dos extremos pode ser dito com justi¸ca de tudo o que se encontra compreendido entre eles. Chegamos assim ` a quest˜ ao central: a Hist´ oria caminha objetivamente numa dire¸c˜ ao determinada? Pouco importa a complexidade dos desvios e a imprevisibilidade dos acasos pelos quais essa dire¸c˜ao se torna sens´ıvel. Ora, a despeito de toda sua boa vontade de se aproximar do marxismo, a despeito de todo desvio que pode por vezes se manifestar entre seu ponto de vista e o do niilismo hist´ orico da escola existencialista propriamente dita, Merleau-Ponty n˜ ao pode dar a essa quest˜ao sen˜ao uma resposta contaminada de ecletismo. A Hist´ oria ´e para ele ao mesmo tempo racional e fortuita. O marxismo interv´em aqui, colocando a dial´etica objetiva do acaso e da necessidade. Mas para compreender essa dial´etica, que rege efetivamente a Hist´ oria e cuja penetra¸c˜ ao te´ orica incompleta conduziu Merleau-Ponty ao abandono da ortodoxia existencialista e ao ecletismo, ´e preciso apreen´ preciso de in´ıcio abandonar a polariza¸c˜ao der todas as suas correla¸c˜ oes. E exclusiva da liberdade e da necessidade: segundo a lei da dial´etica, a liberdade ´e necessidade reconhecida. A necessidade deve portanto perder seu car´ ater r´ıgido e reificado, sem perder, no entanto, sua objetividade e seu car´ ater independente da consciˆencia humana. Por outro lado, ´e preciso igualmente compreender a objetividade do acaso e sua intera¸c˜ao concreta e ´ assim que se penetrar´a por fim na estrutura dial´etica com a necessidade. E da Hist´ oria que quer que a necessidade n˜ ao possa triunfar sen˜ao atrav´es de acasos, pela vit´ oria a que conduzem, em u ´ltima an´alise, as tendˆencias hist´ oricas objetivas. O ecletismo de Merleau-Ponty n˜ ao ´e devido ao acaso. Est´a, ao contr´ario, estreitamente ligado ` a sua contra-revolu¸c˜ ao. Comparemos, pois, Balzac com marxismo sublinha, com efeito, que “a maior parte dos marxistas” consideram a teoria leniniana do conhecimento “pelo menos insuficiente.” Veem nela, segundo Merleau-Ponty, “a express˜ao de uma filosofia metaf´ısica, que relaciona todos os fenˆ omenos a uma u ´nica substˆancia, a mat´eria, 117

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e n˜ ao ` a express˜ ao de uma filosofia dial´etica que admite necessariamente rela¸c˜ oes rec´ıprocas entre as diferentes ordens de fenˆomenos” (Temps Modernes, t. II, p. 351-52). S´ o que Merleau-Ponty engana-se profundamente quando confunde a simples intera¸c˜ao com o verdadeiro princ´ıpio da dial´etica. Hegel dizia j´ a que a intera¸c˜ ao simples “situa-se somente no limiar do conceito” e que “considerar um objeto dado somente sob o ˆangulo da intera¸ca˜o...” era, na realidade, uma atitude completamente incompreens´ıvel. Sem “o momento da transcendˆencia”, principalmente, ´e imposs´ıvel chegar ` a compreens˜ ao dial´etica da intera¸c˜ao. Ora, “o momento da transcendˆencia” ´e inconceb´ıvel se n˜ ao se atribue o primado gnosiol´ogico quer ao esp´ırito, quer ` a mat´eria. E, porque Merleau-Ponty procura o “terceiro caminho” do existencialismo, isto ´e, uma pretensa supera¸c˜ao do idealismo e do materialismo, n˜ ao pode haver, para ele, um “momento da transcendˆencia” (que nada mais seria que o conte´ udo objetivo da Hist´oria), nem no sentido materialista como em Marx, nem no sentido idealista como em Hegel. Sua tentativa de penetra¸c˜ ao te´orica das realidades dial´eticas est´ a fadada portanto ao ecletismo. O ecletismo de Merleau-Ponty n˜ ao se manifesta somente na sua concep¸c˜ ao da marcha objetiva da Hist´ oria, mas tamb´em, e talvez sensivelmente ´ precisamente ainda, nas suas tentativas de an´ alise da rea¸c˜ao do sujeito. E a teoria do reflexo, que desdenha tanto, que nos permite empreender o estudo desse problema, colocado por Merleau-Ponty. A opini˜ao do sujeito agente da hist´ oria constitui, para Merleau-Ponty, uma realidade u ´ltima de ordem ontol´ ogica. Mas a gˆenese dessas opini˜oes e sua intera¸c˜ao dial´etica com a marcha objetiva da hist´ oria n˜ ao se prestam `a an´alise ontol´ogica, ou pelo menos, essa an´ alise n˜ ao permitir´a jamais chegar at´e o particular. Far-nos-emos compreender melhor, sem d´ uvida, citando um exemplo liter´ ario. Evocamos mais acima a maneira pela qual Balzac descreve o combate entre revolu¸c˜ ao e contra-revolu¸c˜ao. Comparemos, pois, Balzac com certas produ¸c˜ oes decadentes tal como Ant´ıgona de Jean Anouilh. O que nos oferece Balzac s˜ ao as condi¸c˜ oes hist´oricas concretas e seus reflexos sociais concretos, no entanto individualmente diferentes, nas opini˜oes dos personagens representados. H´ a a´ı a intera¸c˜ao dial´etica viva entre a opini˜ ao, o conjunto da personalidade e o ato. Jean Anouilh oferece-nos, ao contr´ ario, uma an´ alise de ontologia fundamental, sob a forma de drama. Todas as determina¸c˜ oes hist´ oricas objetivas da alma humana s˜ao fatalmente eliminadas (gra¸cas ` a aplica¸c˜ ao, talvez inconsciente, do m´etodo da 118

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redu¸c˜ ao fenomenol´ ogica), o que explica que do ponto de vista liter´ario os personagens se tornam simples marionetes, enquanto que, psicol´ogica e moralmente, s˜ ao loucos e monoman´ıacos. O pr´ oprio Merleau-Ponty n˜ao disse que se a Hist´ oria n˜ ao ´e racional, os homens que nela agem s´o podem ser loucos? Esse car´ ater racional da Hist´ oria n˜ ao deve entretanto permanecer ´ preciso saber mostrar um paraum em-si a bstrato (e talvez inacess´ıvel). E ´ preciso saber mostrar como n´ os (mais ou menos verdadeiro ou falso). E a identifica¸c˜ ao com o curso objetivo da Hist´ oria transforma este em-si, no indiv´ıduo pertencente ` a classe chamada a realizar este em-si hist´orico, em um para-n´ os. S´ o a explica¸ca˜o da intera¸c˜ ao dial´etica entre a existˆencia social concreta, que determina a consciˆencia humana, e o reflexo dessa realidade objetiva na consciˆencia pode fornecer-nos a solu¸c˜ ao efetiva desse problema. Quando reconhecermos que as opini˜ oes dos sujeitos que agem historicamente s˜ao os reflexos de uma mesma realidade objetiva, quando compreendermos que o car´ ater, a quantidade, o volume etc., desse reflexo, assim como sua assimila¸c˜ ao te´ orica, sentimental etc., pelo sujeito, s˜ao determinados por essa mesma intera¸c˜ ao – ´e ent˜ ao que dispomos enfim do m´etodo que nos abrir´ a o acesso ao problema. Merleau-Ponty exige com raz˜ ao que o esclarecimento dessas correla¸c˜oes atinja o plano do indiv´ıduo. Mas ´e precisamente o marxismo – e s´o o marxismo – que ´e suscet´ıvel de satisfazer essa exigˆencia. Uma teoria geral da consciˆencia social n˜ ao poderia ter por objeto sen˜ao a m´edia e o t´ıpico. O marxismo n˜ ao ´e entretanto uma sociologia que aceitaria essa defini¸c˜ao como uma determina¸ca˜o absoluta, ou antes – como ´e frequentemente o caso nos autores modernos – como uma tipologia abstrata, destinada somente a registrar. O que oferece, ao contr´ ario, ´e a estrutura m´ovel dessas correla¸c˜oes, o espa¸co social real, que ´e a pr´ opria cena na qual se desenrola e se inscreve nessa tipologia a consciˆencia individual. Permitir-me-ei citar a passagem bem conhecida da Ideologia Alem˜ a onde Marx d´a a descri¸c˜ao econˆomica e hist´ orica da situa¸c˜ ao do indiv´ıduo na sociedade capitalista e define assim as leis que regem esse espa¸co social real do indiv´ıduo: “Os indiv´ıduos partiram sempre deles pr´ oprios, escreve Karl Marx, mas naturalmente deles pr´ oprios no quadro de suas condi¸c˜ oes e n˜ao do “indiv´ıduo puro” no sentido dos ide´ ologos. Mas no decorrer do desenvolvimento hist´orico e precisamente porque no quadro da divis˜ ao do trabalho as condi¸c˜oes sociais tornaram-se inevitavelmente autˆ onomas, uma distin¸c˜ao manifesta-se entre a vida de todo indiv´ıduo, porquanto pessoal, e a vida enquanto subordi119

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nada a qualquer ramo de trabalho e ` as condi¸c˜oes que esse ramo implica. Mas n˜ ao se deve entender por isso que, por exemplo, o que vive de vendas, o capitalista etc., deixem de ser pessoas; suas personalidades est˜ao, ao contr´ ario, condicionadas pelas condi¸c˜oes de classe completamente determinadas, e a diferen¸ca s´ o aparece na oposi¸c˜ao a uma outra classe e para si mesmas s´ o no instante em que fracassam. No estamento (e ainda mais na tribo) esse fato est´ a ainda escondido: por exemplo, um nobre permanece sempre um nobre, um plebeu sempre um plebeu, abstra¸c˜ao feita das outras condi¸c˜ oes; ´e uma propriedade insepar´avel de sua individualidade. A diferen¸ca entre o indiv´ıduo pessoal e o indiv´ıduo de classe, o acaso das condi¸c˜ oes de vida para o indiv´ıduo s´ o surgem com o aparecimento da classe que ´e ela mesma, um produto da burguesia. A concorrˆencia e a luta dos indiv´ıduos entre si s˜ ao necess´ arias para produzir e desenvolver esse acaso enquanto tal. Na representa¸c˜ ao, os indiv´ıduos s˜ao, portanto, sob a domina¸c˜ ao da burguesia, mais livres do que antes porque suas condi¸c˜oes de vida lhes s˜ ao acidentais, mas na realidade s˜ao naturalmente menos livres, porque subordinados muito mais a um poder objetivo.” O pensamento agn´ ostico burguˆes assimilou mal essa verdade: ´e precisamente o reflexo da realidade objetiva na consciˆencia humana, que conduz a evolu¸c˜ ao individual – que n˜ ao ´e fatal – ` a compreens˜ao da situa¸c˜ao de classe do indiv´ıduo. N˜ ao acontece, mesmo em casos muito simples, que a tomada de consciˆencia dos fatos da realidade objetiva trabalha em oposi¸c˜ao `as determinantes da existˆencia social, que agem espontˆanea e diretamente na consciˆencia individual? A efic´ acia dessa a¸c˜ao ´e diferente em cada caso individual, segundo a situa¸c˜ ao social e hist´orica, mas, em m´edia e em u ´ltima instˆ ancia, a existˆencia social do indiv´ıduo desempenha sempre o papel decisivo. O Manifesto Comunista constata j´a a possibilidade, para os indiv´ıduos evolu´ıdos, de passar para as fileiras da “classe que tem nas m˜aos ´ muito importante, do ponto de vista do problema que nos o futuro”. E ocupa aqui, ver como Marx e Engels caracterizam essas deser¸c˜oes: “...principalmente uma parte das ideologias burguesas que, `a for¸ca de trabalho, elevaram-se at´e a inteligˆencia te´ orica do conjunto do movimento hist´orico.” Ser´ıamos entretanto marxistas bem mesquinhos, se acredit´assemos que essa gˆenese dial´etica da consciˆencia de classe n˜ao se aplica igualmente ao proletariado. No seu c´elebre panfleto intitulado Que Fazer?, Lˆenin estuda essa quest˜ ao de maneira bem aprofundada e conclui que a situa¸c˜ao objetiva da classe s´ o pode – espontaneamente – levar ao que ele chama “consciˆencia sindicalista”. Para desenvolver, no oper´ario, uma consciˆencia 120

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pol´ıtica verdadeiramente revolucion´ aria, ´e necess´ario uma compreens˜ao (reflexo dial´etico) bem mais adequada da totalidade social, ultrapassando a esfera estreita do imediato espontaneamente reconhecido. “A consciˆencia pol´ıtica de classe, diz Lˆenin, n˜ ao pode ser levada ao oper´ario sen˜ ao do exterior, isto ´e, do exterior da luta econˆ omica, do exterior da esfera das rela¸c˜oes entre oper´ arios e patr˜ oes. O u ´nico dom´ınio em que se poderia obter esse conhecimento ´e o das rela¸c˜ oes de todas as classes e camadas da popula¸c˜ao com o Estado e o governo, o dom´ınio das rela¸co˜es de todas as classes entre si.” E, numa passagem mais adiante, Lnin sublinha particularmente que, quando a classe oper´ aria chegar a criar uma organiza¸c˜ao de revolucion´arios profissionais, nesta “deve desaparecer completamente toda distin¸c˜ ao entre oper´ arios e intelectuais e, com maior raz˜ ao, entre as diversas profiss˜oes”. As opini˜ oes dos homens, enquanto reflexos da realidade objetiva – em nosso caso, do processo hist´ orico – s˜ ao portanto de uma importˆancia bem maior do que pensa Merleau-Ponty, quando se trata de responder `a quest˜ao de saber se seu papel hist´ orico merece admira¸c˜ao ou desprezo. Nossa an´ alise versar´ a sobre dois pontos: tentaremos primeiramente elucidar a maneira pela qual as opini˜ oes dos homens refletem o processo hist´orico e examinaremos em seguida em qual medida esses reflexos constituem uma imagem adequada da realidade objetiva. As an´ alises de Merleau-Ponty negligenciam completamente toda quest˜ao ´ por essa raz˜ao que decorre do car´ ater adequado ou n˜ ao desse reflexo. E que os resultados aos quais chega s˜ ao necessariamente repletos de ecletismo. Esse ecletismo manifesta-se primeiro na conclus˜ao segundo a qual a justeza ou o erro de uma convic¸c˜ ao pol´ıtica s´ o possa cristalizar-se a posteriori, com o aux´ılio dos acontecimentos ulteriores (a vit´oria dos Aliados, no caso por ele evocado); sua concep¸c˜ ao de uma Hist´ oria mitificada ´e ainda uma outra manifesta¸c˜ ao do ecletismo pr´ oprio ao seu pensamento. Se se tratasse verdadeiramente de saber apenas quem bem julgou em 1940 e quais as possibilidades que Hitler tinha de triunfar, a maneira pela qual Merleau-Ponty coloca a quest˜ ao seria, se n˜ ao correta, pelo menos compreens´ıvel. Mas o ano de 1940 tinha, tanto na realidade objetiva como nas convic¸c˜oes dos interessados, uma longa “pr´e-hist´ oria”, no decorrer da qual as duas atitudes adversas da guerra civil de ap´ os 1940, a Colabora¸c˜ao e a Resistˆencia, j´ a se tinham defrontado. Ora, nesse encontro pr´evio a 1940, o problema n˜ ao consistia de forma alguma em um julgamento mais ou menos justo das possibilidades de vit´ oria de Hitler: tratava-se simplesmente de saber qual dessas duas atitudes pol´ıticas convinha aos interesses do povo francˆes. 121

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Mas inicialmente, que significa, de um modo concreto, a express˜ao “povo ´ o reino das “200 fam´ılias” e de seus aliados da burocracia francˆes”? E civil e militar, que o personificam, ou antes o reino dos trabalhadores da Fran¸ca? Se examinamos a quest˜ ao sob este prisma, torna-se absolutamente evidente que n˜ ao se tratava ent˜ ao – ou pelo menos n˜ao essencialmente – de avaliar, exatamente ou n˜ ao, as possibilidades que poderia ter Hitler de triunfar. Segundo a opini˜ ao dos advers´arios da Frente Popular, dos partid´ arios de Munique, dos colaboradores (esses termos designam as etapas diversas da evolu¸c˜ ao de uma mesma tendˆencia), seria preciso consentir em todo sacrificio (abandonar primeiro todos os aliados da Fran¸ca, renunciar em seguida ao papel de grande potˆencia, abdicar, enfim, `a pr´opria independˆencia nacional), a fim de garantir o reino dessas “200 fam´ılias” contra todo ataque proveniente de baixo. Tratava-se tampouco de calcular as possibilidades de vit´ oria, que os representantes dessas opini˜oes fizeram tudo para enfraquecer as possibilidades da Fran¸ca: desorganiza¸c˜ao do ex´ercito, relaxamento da alian¸ca franco-sovi´etica, atitude contest´avel durante a invas˜ ao da Polˆ onia etc. O outro campo agrupava os que consideravam a expans˜ ao do fascismo como o maior mal poss´ıvel para o povo francˆes e para quem a tarefa pol´ıtica primordial era – ao mesmo tempo que a defesa antifascista – a derrubada do reino das camadas sociais que colaboravam objetivamente com Hitler bem antes de 1940. O fato de que os acontecimentos de 1940 obrigaram a tomar posi¸c˜ao certas camadas sociais que acreditaram at´e ent˜ ao poder permanecer a distˆancia n˜ao modifica em nada os dados essenciais desse quadro. Como bom existencialista, Merleau-Ponty subestima nitidamente a significa¸c˜ ao decisiva das posi¸c˜ oes respectivas das classes em presen¸ca, assim como as opini˜ oes e as linhas de condutas pol´ıticas que elas determinam. Examina, segundo a ontologia existencialista, a “situa¸c˜ao” de 1940. Mas aqui tamb´em ´e f´ acil de ver que sua ortodoxia existencialista ´e vacilante. O existencialismo ortodoxo afirma, com efeito, que uma resolu¸c˜ao inteiramente nova deve surgir, por assim dizer, do nada, em cada “situa¸c˜ao”. Mas essa posi¸c˜ ao extrema devia logo mostrar-se insustent´avel, n˜ao somente para as resolu¸c˜ oes individuais, mas tamb´em – e com maior raz˜ao – no plano da pol´ıtica ou da Hist´ oria. Merleau-Ponty teve ent˜ao que resignar-se, manifestamente a contragosto, a misturar um pouco de ´agua ao vinho puro das doutrinas de Kierkegaard e de Heidegger, tentando, apesar de tudo, salvaguardar o primado decisivo da “situa¸c˜ao” e da resolu¸c˜ao `a qual d´a lugar. Foi assim que nasceu o compromisso ecl´etico que quer que de um 122

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lado Merleau-Ponty fa¸ca um esfor¸co em vista de compreender 1940 historicamente e que, de outro lado, tente isol´ a-lo numa “situa¸c˜ao”. Este apego ` a “situa¸c˜ ao”, e a toda metodologia que dela decorre, ´e psicologicamente muito compreens´ıvel. N˜ ao se trata, com efeito, somente da quest˜ ao central de toda ontologia existencialista, mas de uma quest˜ao que ´ efetivamente verdadeiro p˜ oe em jogo a raz˜ ao de ser do existencialismo. E que a continuidade da vida individual, assim como a da vida social composta de vidas individuais, ´e suscet´ıvel de sofrer – ´e uma possibilidade abstrata – uma interrup¸c˜ ao a qualquer momento. Quando saio para fazer um passeio – para citar um exemplo bem sartreano – ´e-me oferecida a cada instante a possibilidade de voltar atr´ as, de retornar para casa, de ir a um restaurante, a um teatro etc. Essas hesita¸c˜ oes s˜ao frequentes na vida cotidiana. Na existˆencia social s˜ ao mais raras e essa constata¸c˜ao t˜ao simples ´e de uma importˆ ancia te´ orica n˜ ao desprez´ıvel. Com efeito, por pouco que se trate no exemplo do passeio, no caso do curso que meu dever oficial me obriga ministrar na Universidade, ´e necess´ ario igualmente – no plano da abstra¸c˜ ao – uma resolu¸c˜ ao e sou, em princ´ıpio, livre para decidir, em cada caso, ir ao caf´e ou dar meu curso. Mas de fato n˜ao vou ao caf´e e darei meu curso, a n˜ ao ser por impedimento v´ alido. O conjunto da quest˜ao n˜ao deixa de ter um certo car´ ater cˆ omico, e permite-nos concluir que, al´em de uma pr´ atica puramente social, estamos aqui em face de uma constata¸c˜ao te´orica importante: a an´ alise existencialista das “situa¸c˜oes” dessa ordem, a recusa existencialista de toda causa e mesmo de toda motiva¸c˜ao, s˜ao arquifalsas e ´ por esse processo que o existencialismo transforma uma pecam pela base. E atitude relativamente justificada em uma constru¸c˜ao r´ıgida, falsa e mesmo absurda. Essa descri¸c˜ ao ´e correta, enquanto descri¸c˜ao do momento da continuidade da vida; a possibilidade abstrata pode, em circunstˆancias determinadas, transformar-se em uma possibilidade concreta e pode mesmo, em certas condi¸c˜ oes, transformar-se em uma realidade, porque sou livre para resolver romper com a continuidade passada de minha vida. Essa descri¸c˜ ao poderia ent˜ ao ser u ´til e instrutiva, nos limites de seu valor concreto, e com a condi¸c˜ ao de n˜ ao perder de vista as causas e as justifica¸c˜oes interiores e exteriores da resolu¸c˜ ao, assim como as correla¸c˜oes dial´eticas da “situa¸c˜ ao”. Mas quando se erige em princ´ıpio autˆonomo, isolado e central, destinado a presidir de maneira exclusiva o ato humano, quando se faz dessa descri¸ca˜o a an´ alise ontol´ ogica da “situa¸c˜ao”, escamoteando a diferen¸ca essencial que subsiste entre possibilidade abstrata e possibilidade concreta, essa maneira de ver desfigura e falseia toda a estrutura e todas 123

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as propor¸co˜es do ato humano, ao mesmo tempo que perde sua pr´opria verdade relativa. A an´ alise de 1940, enquanto “situa¸c˜ao”, por Merleau-Ponty, justifica inteiramente nosso ponto de vista. Mas o conjunto desse problema apresenta-se ao esp´ırito sob uma luz mais complexa – e tamb´em mais concreta – desde que se admite que nem a realidade hist´ orica, nem nossas opini˜oes que a refletem, nem nossa existˆencia social que determina a natureza e o volume desse reflexo, s˜ao imut´ aveis. N˜ ao s˜ ao, com efeito, nem imut´aveis nem im´oveis, mas se transformam, movem-se sem cessar. No plano concreto, jamais deixamos de dar-nos conta dessa metamorfose incessante; agora, trata-se apenas de tirar as conclus˜ oes te´ oricas que se imp˜ oem. Sublinhemos primeiramente que esses dois processos de transforma¸c˜ oes, um objetivo e o outro subjetivo, est˜ ao muito longe de acusar um paralelismo mecˆanico e inevit´avel. Simplificando ao m´ aximo, diremos que as opini˜ oes individuais podem, de um lado, preceder os acontecimentos da realidade objetiva, isto ´e, podem, `as vezes, apreender o sentido profundo das tendˆencias que s˜ao apenas dadas, na realidade, em um estado provisoriamente latente. Podem, por outro lado, ser ultrapassadas pelos acontecimentos, aferrarem-se a ideias que parecem, certamente, corresponder ` a realidade objetiva, ou, ao menos, a certos de seus aspectos, mas que, cedo ou tarde, a evolu¸c˜ao objetiva da realidade acabar´ a por desmentir. ´ E claro, mesmo aceitando esse esquema simplificado que acabamos de esbo¸car, que o mito da “maldade” da Hist´oria, caro a Merleau-Ponty, n˜ao resiste ` a prova de uma an´ alise que procede com a ajuda do nosso m´etodo. A quest˜ ao ´e, entretanto, de um alcance mais consider´avel, porque se encontra estreitamente ligada ao problema do princ´ıpio da realidade no existencialismo, que ´e o da probabilidade pura de nossos conhecimentos do mundo exterior. A atitude existencialista gozaria, certamente, de uma justifica¸c˜ao relativa, se se contentasse de polemizar contra esse objetivismo mecanicista e fatalista, segundo o qual o conhecimento dos elementos da realidade e das leis que a regem basta para calcular os acontecimentos a vir, com a exatid˜ ao da astronomia. Essa teoria n˜ ao tem mais, sem d´ uvida, quase nenhum defensor atualmente. Acusar o marxismo, como o faz Sartre, de a ter tomado sob sua conta, prova sua ignorˆancia total do marxismo e nada mais. Marx nunca teve sen˜ ao um desprezo en´ergico para com esse gˆenero de infantilidade e Bukarin, que tinha sofrido a influˆencia dessas ideias, n˜ao deixou de atrair uma severa cr´ıtica da parte de Lˆenin. Mas a aplica¸c˜ ao errˆ onea da no¸c˜ ao de probabilidade da parte dos exis124

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tencialistas ultrapassa esse plano. Os diletantes da filosofia terminaram por vulgarizar, no sentido pejorativo da palavra, certas concep¸c˜oes da f´ısica moderna sobre o c´ alculo das probabilidades. O existencialismo amparou-se logo nelas, polarizando, de uma maneira exclusiva, probabilidade e causalidade. Em outros termos, o existencialismo explora a categoria da probabilidade, para camuflar seu agnosticismo hist´orico oriundo da ontologia fundamental sob o aparelho verbal da ciˆencia moderna. A verdade, ao contr´ ario, ´e que os pesquisadores cient´ıficos dignos desse nome sabem muito bem que o c´ alculo moderno das probabilidades apenas aumentou a exatid˜ ao dos enunciados – e mesmo das previs˜oes – da ciˆencia. O marxismo, ali´ as, jamais operou com leis mecanicistas ou fatalistas. O sentido objetivista, que O Capital de Marx d´ a` a no¸c˜ ao fundamental de tendˆencia, o prova suficientemente. Exporemos no decorrer do cap´ıtulo seguinte, que por causa da natureza mesma do materialismo dial´etico, o conhecimento humano s´ o pode ser uma aproxima¸c˜ ao da realidade objetiva. O Marxismo considera enfim a Hist´ oria como feita pelos homens, isto ´e, por n´os mesmos. Empenha-se em fazer ressaltar essa defini¸c˜ ao fundamental da Hist´oria em todas as suas categorias (por exemplo, o n´ıvel efetivo dos sal´arios no espa¸co econˆ omico e subjetivo); ´e, portanto, evidente que as mudan¸cas hist´oricas e, antes de tudo, as revolu¸c˜ oes, n˜ ao s˜ ao, para o marxismo, quedas mecˆanicas de um regime qualquer, mas resultados de uma luta. “Mas como se pode falar ainda de uma divergˆencia entre os marxistas e eu mesmo?”, poderia perguntar Merleau-Ponty. A situa¸c˜ao do problema n˜ ao deixa de oferecer uma certa analogia com a quest˜ao da “situa¸c˜ao”, de que falamos acima. Desta vez, a quest˜ ao ´e a seguinte: a probabilidade de nossos conhecimentos sobre a realidade hist´ orica, sobre o presente e sobre as tendˆencias que apontam para o futuro, constitui a u ´nica aproxima¸c˜ ao poss´ıvel do conhecimento da realidade objetiva? Se assim for, ent˜ao, sem preju´ızo da irredutibilidade do momento de relatividade que encerra e na medida em que, no interior desses limites, reflete corretamente a realidade objetiva, essa aproxima¸c˜ ao ´e, ao mesmo tempo, um conhecimento absoluto. No caso contr´ ario, seria preciso concluir que esse momento de relatividade determina o relativismo da totalidade ele nosso conhecimento da realidade e, antes de tudo, da realidade hist´ orica. ´ E evidente que o existencialismo ortodoxo optar´a pelo segundo termo de nossa alternativa. Em J.-P. Sartre – de quem cito de prop´osito a pequena brochura, porque nela tenta, como vimos, afastar-se do niilismo de ˆ L’Etre et le N´eant – a resolu¸c˜ ao humana mergulha literalmente no nada, 125

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toda perspectiva real sendo rejeitada: “...amanh˜a, ap´os minha morte, os homens podem decidir estabelecer o fascismo...” (L’Existentialisme est un Humanisme, p. 53-54), escreve e, na mesma frase: “...nesse momento, o fascismo ser´ a a verdade humana e tanto pior para n´os; na verdade, as coisas ser˜ ao tais como o homem decidir que sejam” (id.). Uma outra passagem desse mesmo livro rejeita resolutamente a ideia do progresso, como ali´as a rejeita igualmente Simone de Beauvoir: “...o progresso ´e uma melhoria, escreve ela; o homem ´e sempre o mesmo em face de uma situa¸c˜ao que varia e a escolha permanece sempre uma escolha em uma situa¸c˜ao” (Ibid., p. 79). Poder´ıamos multiplicar ` a vontade as cita¸c˜oes desse gˆenero, mas parece-nos que nossos exemplos s˜ ao suficientemente probantes. ´ assim que esMerleau-Ponty vai, sem d´ uvida, mais longe que Sartre. E creve: “A Hist´ oria oferece-nos certas dire¸c˜oes que apontam para o futuro, mas n˜ ao nos d´ a a conhecer, com uma evidˆencia geom´etrica, a dire¸c˜ao privilegiada que finalmente desenhar´ a a hist´ oria presente quando for realizada. Mais ainda: em certos momentos pelo menos, nada est´a encerrado nos fatos e ´e justamente nossa absten¸c˜ ao ou nossa interven¸c˜ao que a Hist´oria espera para tomar forma. Isto n˜ ao quer dizer que possamos fazer n˜ ao importa o quˆe ; h´ a graus de verossimilhan¸ca que n˜ ao s˜ao nada” (Temps Modernes, t. XIV, p. 206). Essa cita¸c˜ ao torna o afastamento evidente. As u ´ltimas frases, principalmente, acusam uma tendˆencia muito n´ıtida de se aproximar da concep¸c˜ ao objetiva da hist´ oria. E se, apesar de tudo, persistimos em colocar a Merleau-Ponty a quest˜ ao: de onde o sabeis? De que medida vos servis para calcular os graus de probabilidade? N˜ao ´e, longe disso, para exercitar nossas faculdades de ironia, mas para tentar pˆor a limpo os problemas de m´etodo. Nossa cr´ıtica se resume assim: inicialmente Merleau-Ponty opera ainda com essa “evidˆencia geom´etrica” que corresponde, na realidade, ao oposto complementar do agnosticismo hist´orico. A seguir, apresenta-nos a malvada Dama Hist´ oria agora como caprichosa: se uma vez se digna indicar, mais ou menos claramente, aonde vai, outra vez, dissimula completamente suas inten¸c˜ oes. Essa concep¸c˜ao ´e teoricamente imposs´ıvel de defender, porque uma vez admitido que as tendˆencias s˜ao objetivamente cognosc´ıveis, decorre necessariamente que elas o s˜ao sempre, mas que certos indiv´ıduos (impedidos por preconceitos de classe etc.) n˜ao est˜ao em condi¸c˜ oes de conhecˆe-las. O que ´e totalmente falso, enfim, ´e esse mist´erio particular com que Merleau-Ponty envolve a marcha da Hist´oria. Serve-lhe, sem d´ uvida, para fundar teoricamente a necessidade da atividade e da resolu¸c˜ao, ou ainda 126

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para introduzir, entre os determinantes da situa¸c˜ao revolucion´aria, uma atmosfera de abandono total, de afli¸c˜ ao, uma “situa¸c˜ao”, numa palavra. A realidade ´e completamente outra: ´e precisamente nas situa¸c˜oes revolucion´ arias que as tendˆencias da sociedade se manifestam com uma nitidez toda particular e ´e porque seu antagonismo atinge um n´ıvel completamente dram´ atico que a interven¸c˜ ao do homem adquire uma importˆancia decisiva. A subjetividade ´e, portanto, muito importante na hist´oria, mas por raz˜oes exatamente contr´ arias ` as que d´ a Merleau-Ponty: a importˆancia da subjetividade est´ a estreitamente ligada ` a evolu¸c˜ ao objetiva e n˜ao aos momentos em que a Hist´ oria objetiva parece calar e dissimular. Vˆe-se, portanto, que a despeito da tendˆencia natural de seu pensamento, que n˜ ao cessa de cercar de perto a concep¸c˜ao objetiva da Hist´oria, Merleau-Ponty permanece sempre irresistivelmente atra´ıdo pela no¸c˜ao de “situa¸c˜ ao” com sua afli¸c˜ ao total, pelo car´ ater incognosc´ıvel do futuro, pela relatividade e subjetividade de tudo o que se pode enunciar sobre o futuro. A for¸ca de atra¸c˜ ao mais consider´ avel que se exerce sobre ele ´e o trotskismo. O agnosticismo e o relativismo hist´ orico podem sozinhos criar uma atmosfera da trag´edia, a prop´ osito de Trotsky e de Bukarin: “Stalin, Trotsky e mesmo Bukarin, no meio da ambiguidade hist´orica, tˆem cada um sua perspectiva e orientam sua vida por ela. O futuro ´e apenas prov´ avel, mas n˜ ao ´e como uma zona de vazio em que construir´ıamos projetos imotivados; desenha-se diante de n´ os como o fim do dia come¸cado, e esse desenho somos n´ os mesmos. As coisas sens´ıveis, tamb´em s˜ao apenas prov´ aveis, porque estamos longe de termos terminado sua an´alise... O problema ´e para n´ os o real, n˜ ao o podemos desvalorizar a n˜ao ser que se refira a uma quimera de certeza apod´ıtica que n˜ao est´a fundada em ne´ ainda nhuma experiˆencia humana” (Temps Modernes, t. XIV, p. 271). E essa mistura do apod´ıtico r´ıgido e de relativismo que nos ´e apresentada sob os aspectos de um dilema t˜ ao insol´ uvel quanto falso. Merleau-Ponty confunde aqui o car´ ater de aproxima¸c˜ ao do conhecimento com sua relatividade, numa inten¸c˜ ao evidente de encontrar um denominador comum para a previs˜ ao hist´ orica de Stalin e de Trotsky. E se, em outras passagens, Merleau-Ponty reconhece a ausˆencia de toda perspectiva em Trotsky e se admite na ocasi˜ ao que a linha pol´ıtica staliniana mostrou-se justa, isto corresponde simplesmente – bem mais que h´ a pouco na an´alise da “situa¸c˜ao” de 1940 – a um simples capricho da incalcul´ avel deusa Hist´oria e n˜ao ao triunfo da aproxima¸c˜ ao mais correta da realidade hist´orica objetiva sobre a aproxima¸c˜ ao falsa. A perspectiva de futuro oferecida por Merleau-Ponty 127

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apenas sublinha essa atmosfera de catarse tr´agica. “Como a Igreja, o partido talvez honrar´ a os que condenou quando uma nova fase da Hist´oria mudar o sentido de sua conduta” (Temps Modernes, t. X IV, p. 268). Certamente Merleau-Ponty rejeita resolutamente algumas das asneiras mais grosseiras do trotskismo, como por exemplo, a afirma¸c˜ao segundo a qual a segunda Guerra Mundial formaria a pedra de toque absoluta do marxismo: se n˜ ao conduzisse ao socialismo, o marxismo provaria ser uma utopia. Admite igualmente que a vida pol´ıtica tornara-se imposs´ıvel (Temps Modernes, t. XVI, p. 690) para Trotsky, mas, apesar de tudo, seu pensamento sofre, frequentemente, a influˆencia decisiva do trotskismo. Ali´as, a melhor prova disto ´e que julga u ´til – a despeito de sua vasta cultura e de seu instinto cr´ıtico robusto – repetir certas cal´ unias mil vezes ouvidas sobre a Uni˜ ao Sovi´etica, quando n˜ ao faltam assalariados do n´ıvel de Koestler para desincumbir-se dessa tarefa. N˜ ao temos lugar nem tempo para nos deter neste gˆenero de problemas, porque em primeiro lugar propomo-nos esclarecer problemas te´ oricos. Citaremos, portanto, apenas uma das obje¸c˜oes de Merleau-Ponty, a t´ıtulo de exemplo. Forja, com efeito, um argumento da luta staliniana contra o nivelamento em mat´eria de sal´arios, para declarar que o bolchevismo est´ a bastante afastado das teorias cl´assicas do marxismo e frisa seu pragmatismo a partir de ent˜ao. Ora, n˜ao ´e necess´ario ser um grande conhecedor dos textos cl´ assicos, para saber que, desde 1875, Marx caracterizava a diferencia¸c˜ ao dos sal´ arios como uma tendˆencia econˆomica fundamental da primeira fase do socialismo. Seria, no entanto, in´ util determo-nos em detalhes de segunda ordem. O essencial ´e a influˆencia profunda que o trotskismo exerce em MerleauPonty. A Hist´ oria, desde h´ a muito tempo, fez justi¸ca a todas as afirma¸c˜oes concretas de Trotsky e, no entanto, os efeitos de suas teorias fazem-se ainda sentir em certos meios. O efeito de que falamos manifesta-se antes de tudo pelo desvio de aten¸c˜ ao das quest˜ oes essenciais e concretas do presente, e, ao mesmo tempo, por uma camuflagem do niilismo te´orico e pr´atico por meio de uma demagogia revolucion´ aria. A inten¸c˜ao original de Trotsky, sem d´ uvida, n˜ ao era desviar quem quer que fosse dessas uest˜oes; apenas forneceu respostas totalmente falsas, construindo arbitrariamente um antagonismo insol´ uvel entre os interesses camponeses e os interesses oper´arios. Mas esse primeiro erro teve por consequˆencia inevit´avel a nega¸c˜ao da possibilidade de construir o socialismo em um s´o pa´ıs e essa nega¸c˜ao torna-se, por sua vez, o verdadeiro sinal de uni˜ ao da contra-revolu¸c˜ao. Devia fornecer a plataforma sobre a qual certos intelectuais e elementos oper´arios 128

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deveriam agrupar-se contra a U.R.S.S. A evolu¸c˜ao econˆomica, pol´ıtica e cultural sublinha a importˆ ancia do socialismo enquanto u ´nica perspectiva do futuro, e a atitude individual em rela¸c˜ ao a` Uni˜ao Sovi´etica torna-se a pedra de toque n˜ ao somente de todas as quest˜oes pol´ıticas, mas tamb´em dos problemas de ideologia. Com efeito, a quest˜ao da perspectiva n˜ao deve somente ser colocada politicamente, mas tamb´em no plano ideol´ogico. S´o uma perspectiva de futuro concreto est´ a em condi¸c˜oes de superar teoricamente o niilismo ideol´ ogico. Ora, nossa pr´ opria evolu¸c˜ao n˜ao produziu outra perspectiva a n˜ ao ser o socialismo. Afirmamos que o homem moderno, se n˜ ao est´a desprovido da necessidade de honestidade intelectual, deve escolher entre a perspectiva do socialismo e o niilismo filos´ ofico. Esta escolha imp˜oe-se hoje muito mais imperiosamente do que h´ a cento e cinquenta anos. Enquanto a filosofia era apenas um prel´ udio te´orico `a Revolu¸c˜ao Francesa, a prepara¸c˜ ao ideol´ ogica, de alguma maneira, do “Imp´erio da Raz˜ao”, n˜ ao tinha necessidade de fazer diretamente apelo `a Hist´oria para evitar o escolho do niilismo. A realidade que fornecia `a filosofia suas bases nada mais era do que o combate da sociedade burguesa em gesta¸c˜ao contra o feudalismo caduco. Em termos filos´ oficos, isto se chamava ent˜ao de combate da raz˜ ao contra o irracional e o caos. A filosofia do s´eculo XVIII podia permitir-se tomar como ponto de partida de suas especula¸c˜oes (epistemol´ ogicas, ontol´ ogicas, psicol´ ogicas, pouco importa) o indiv´ıduo isolado e criar, a seu bel prazer, mito sobre mito em torno do tema de Robinson, sem no entanto, perder seu car´ ater social, sua historicidade impl´ıcita e, portanto, sua perspectiva. Os pensadores mais evolu´ıdos anteriores `a revolu¸c˜ ao Francesa embalavam-se, com efeito, na ilus˜ao de ver surgir, espontˆ anea e inevitavelmente, uma sociedade baseada na raz˜ao e na harmonia a partir da a¸c˜ ao do indiv´ıduo ego´ısta e isolado. Poder-se-ia quase dizer, sob uma forma um pouco paradoxal, que a concep¸c˜ao econˆomica de Adam Smith dava enfim um fundamento aos grandes sistemas filos´oficos anteriores ` a Revolu¸c˜ ao Francesa. Essa base objetiva da filosofia devia, entretanto, sofrer uma metamorfose profunda, devida ao triunfo da Revolu¸c˜ ao Francesa e ao t´ermino da revolu¸c˜ ao industrial na Inglaterra. Antes de mais nada, a historicidade do mundo e, em primeiro lugar a da humanidade, impˆos-se ao pensamento. Isto significa concretamente que o pensamento teve de reconhecer o “imp´erio da raz˜ ao” – de que Engels havia dito t˜ao espirituosamente que, uma vez realizado, mostrar-se-ia como o imp´erio da burguesia – como um 129

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estado passageiro da humanidade. Toda filosofia que tende a esconder esse car´ ater historicamente transit´ orio do capitalismo, condena-se a perder toda perspectiva. S´ o a resigna¸c˜ ao total, a aceita¸c˜ao da impotˆencia da raz˜ao, pode aceitar o capitalismo como perspectiva da evolu¸c˜ao da humanidade. No est´ agio do imperialismo, um niilismo desesperado ou c´ınico junta-se a esse niilismo resignado e a ausˆencia de toda perspectiva lhes serve de base comum. N˜ ao ´e mais necess´ ario, estamos convencidos, determo-nos para demonstrar que desde Nietzsche at´e o fascismo, passando por Spengler, os mitos hist´ oricos da rea¸c˜ ao s˜ ao apenas tentativas falaciosas, com vistas a camuflar esse niilismo. Mas a evolu¸c˜ ao econˆ omica e social, desde a metade do s´eculo XIX, n˜ao somente privou a filosofia de todo fundamento especulativo supra-hist´orico, como tamb´em tornou-lhe sens´ıvel a impossibilidade de tomar como ponto de partida o indiv´ıduo isolado e seus estados de consciˆencia. A evolu¸c˜ao econˆ omica real provou concretamente o erro das concep¸c˜oes de Smith e de Ricardo, demonstrando que em lugar de fazer nascer uma harmonia social, a soma dos atos individuais s´ o pode dar lugar a um caos feito de crises e de guerras que tenderia cada vez mais para a instaura¸c˜ao de uma barb´ arie universal. Assim, o indiv´ıduo isolado, enquanto ponto de partida do pensamento filos´ ofico (gnosiol´ogico, ontol´ogico ou psicol´ogico, pouco importa) terminou por perder sua base impl´ıcita, amparada ainda h´ a pouco por uma ilus˜ ao historicamente justificada. Esse estado de coisas est´ a ainda bem longe de ter entrado na consciˆencia, e tamb´em no pensamento filos´ ofico. A existˆencia social, que se imp˜oe cada vez mais a` vida do homem, age no entanto cada vez mais sobre o pensamento humano e mesmo sobre o dos fil´ osofos, nos quais as tradi¸c˜oes seculares da metodologia criam sobrevivˆencias ideol´ogicas muito tenazes. A presen¸ca da categoria do ser-com (Mitsein) na ontologia heideggeriana ´e uma das provas dessa evolu¸c˜ ao inconsciente. A crise do existencialismo francˆes, por n´ os descrita, reflete nitidamente a distˆancia que subsiste entre os problemas que a existˆencia social lhe imp˜ oe e as sobrevivˆencias ideol´ogicas que embara¸cam sua metodologia. As tentativas de Merleau-Ponty, no sentido de apreender a realidade social atual, ofereceram-nos, em raz˜ao da sensibilidade particularmente aguda do autor para problemas novos, a melhor ocasi˜ ao de estudar essas sobrevivˆencias. Resta-nos apenas demonstrar a liga¸ca˜o ´ıntima que existe entre essas sobrevivˆencias do existencialismo e dos res´ıduos de opini˜oes e atitudes trotskistas. Aqui, algumas notas de ordem hist´orica imp˜oem-se. Merleau-Ponty 130

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estaria talvez inclinado a se reconciliar com o que ele chama de marxismo cl´ assico dirige obje¸c˜ oes somente contra a forma atual do marxismo, a que os partidos comunistas representam. Ocupando essa posi¸c˜ao, MerleauPonty toma sob sua responsabilidade e conserva (se bem que rejeite numerosas opini˜ oes concretas de Trotsky e de seus partid´arios) duas atitudes trotskistas, estreitamente ligadas uma ` a outra. A primeira ´e sua desconfian¸ca a respeito da pol´ıtica seguida pelos partidos comunistas, desde o VII Congresso da Internacional Comunista, isto ´e, desde 1935. J´a falamos da primeira quest˜ ao, analisando a t´ıtulo de exemplo, a incompreens˜ao de Merleau-Ponty a respeito da desigualdade de sal´arios na Uni˜ao Sovi´etica. Considera igualmentete a possibilidade de um ataque da U.R.S.S. contra a Europa e conclui que essa amea¸ca n˜ ao ´e para hoje. N˜ao ´e, portanto, por princ´ıpio que Merleau-Ponty rejeita uma tal possibilidade, admitindo assim uma teoria que ´e a de toda contra-revolu¸c˜ao e que considera a Uni˜ao Sovi´etica como um Estado imperialista: julga somente que o problema de uma agress˜ ao sovi´etica n˜ ao ´e de atualidade. A diferen¸ca entre sua posi¸c˜ao e a da contra-revolu¸c˜ ao anti-sovi´etica ´e somente de ordem t´atica e n˜ao de ´ igualmente muito significativo que n˜ao fa¸ca jamais a menor princ´ıpios. E alus˜ ao ` a luta pela democracia nova na Fran¸ca ou em outros pa´ıses, enquanto que a solu¸c˜ ao dessa luta decidir´ a para n´os da sorte da evolu¸c˜ao e mesmo da sorte da perspectiva socialista. Parece antes que, segundo ele, ´e precisamente a´ı que se encontraria a base da pretensa evolu¸c˜ao antite´orica do marxismo: essa Realpolitik “pragmatista” ´e, a seus olhos, respons´avel pelo afastamento do marxismo cl´ assico”. O marxismo cl´ assico coincide certamente para Merleau-Ponty (ali´as, ele o diz abertamente) com a concep¸c˜ ao trotskista que negava, desde 1905, na R´ ussia, a transi¸c˜ ao real, se bem que complexa, da revolu¸c˜ao at´e o socialismo. Mais tarde, na ´epoca de Brest-Litovsk, os representantes dessa tendˆencia combateram em nome da “frase revolucion´aria” (Lˆenin sobre Trotsky), as medidas eficazes para salvar a revolu¸c˜ao e para intensificar seu surto. Todo marxista sabe que esse reino da “frase revolucion´aria” aliase perfeitamente bem com um oportunismo desprovido de todo princ´ıpio. (Cf. o papel de Trotsky na realiza¸c˜ ao do bloco de Agosto dos oportunistas em 1910). Lˆenin, em Que fazer?, desmascara a ´ıntima afinidade ideol´ogica que liga o oportunismo pol´ıtico ao terrorismo individual (a frase revolucion´ aria) dos S.R. Essa afinidade ´ıntima encontra uma defini¸c˜ao muito feliz num dito que teve um S.R. numa conversa com Asev, o c´elebre agente provocador – que n˜ ao tinha ainda sido desmascarado na ´epoca – e pretenso 131

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organizador de grandes atentados: “Em suma, Asev, v´os sois apenas um cadete (liberal) ordin´ ario, mais as bombas...”. Temos certeza de n˜ ao caluniar o existencialismo, colocando-o sob este prisma, porque o pr´ oprio Merleau-Ponty o faz. Evoca os processos de Moscou; ora, o que foram esses processos, em suma, sen˜ao a revela¸c˜ao da essˆencia mesma do trotskismo, da trai¸c˜ao em rela¸c˜ao `a revolu¸c˜ao, uma trai¸c˜ ao que ´ıa at´e a espionagem? Uma revela¸c˜ao que nos mostrava “o nada aniquilante” enquanto essˆencia mesma do mundo e da personalidade dessas pessoas, que nos provava sua falˆencia intelectual e moral absoluta e sua “situa¸c˜ ao” “face ao nada.” Sem o querer expressamente, Merleau-Ponty n˜ ao est´ a longe de nos dar raz˜ ao quando escreve: “N˜ao se ´e ’existencialista’ por gosto, e h´ a tanto ’existencialismo’ – no sentido de paradoxo, divis˜ao, ang´ ustia e resolu¸c˜ ao – no relato estenogr´afico dos Debates de Moscou como em todas as obras de Heidegger” (Temps Modernes, t. XVI, p. 711 ). Com efeito, o universo dos Bukarin, Rykov, Rakovski e outros Yagoda, ´e efetivamente o universo de Sein und Zeit, esse “teatro de fantoches da filosofia”, como t˜ ao bem diz Henri Lefebvre. A condena¸c˜ ao da frase revolucion´ aria constitui a condi¸c˜ao sine qua non da verdadeira inteligˆencia do marxismo, da verdadeira supera¸c˜ao das tendˆencias niilistas do presente. Quanto mais a evolu¸c˜ao segue seu caminho, mais ´e assim. H´ a cem, ou mesmo cinquenta anos, uma profiss˜ao de f´e socialista determinava, num intelectual, uma verdadeira revolu¸c˜ao de toda a marcha de seu pensamento. Mas numa ´epoca como a nossa, em que o socialismo tem atr´ as de si trinta anos de hist´oria real, uma profiss˜ao de f´e abstrata pelo objetivo final do socialismo n˜ao quer dizer mais nada. A escolha diante da qual nossa realidade social coloca o pensador honesto, a “situa¸c˜ ao” na qual se encontra, ´e a seguinte: ´e necess´ario tomar posi¸c˜ao face ao socialismo tal como ´e, tal como nasceu e como se desenvolve na Uni˜ ao Sovi´etica; ´e necess´ ario tomar concretamente posi¸c˜ao frente aos caminhos inteiramente novos que conduzem ao socialismo e que se abriram com a derrota do fascismo. Dizer: sou pelo socialismo, mas n˜ao pelo socialismo sovi´etico; sou unicamente por um socialismo conforme a minha representa¸c˜ ao – dizer isso, mesmo sob formas “heroicas”, “sublimes” ou “po´eticas”, equivaleria ` a atitude de uma m˜ae que dissesse: a chama do amor materno me consome, sou o amor materno feito mulher, mas recusome a amar meu filho porque tem as orelhas descoladas... ´ assim que a frase revolucion´ E aria e suas consequˆencias morais aparecem tal como o “Urphaenomen” goethiano. O que ´e, no plano pol´ıtico 132

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“frase revolucion´ aria”, corresponde a um mal geral dos intelectuais do est´ agio do imperialismo. Estudamos um dos sintomas desse mal em Simone de Beauvoir, a prop´ osito da superestima¸c˜ao falaciosa, `a custa da ´ dif´ıcil resistir `a tenta¸c˜ao maturidade, da juventude po´etica e rebelde. E de esbo¸car a an´ alise fenomenol´ ogica desse comportamento em face da realidade, mas infelizmente precisamos limitar-nos a algumas notas. Esse mal niilista foi logo reconhecido e genialmente descrito por Dostoievski. Pensemos no di´ alogo de Ivan Karamazov com o Diabo, que lhe aparece sob a aparˆencia de um propriet´ ario fundi´ ario parasita. O Diabo diz a Ivan: “Na realidade, est´ as furioso s´ o porque n˜ ao apareci numa luz vermelha acompanhada de raios e trov˜ oes, com asas queimadas, mas sob uma aparˆencia mais modesta. Est´ as ofendido, primeiro nos teus sentimentos est´eticos, mas tamb´em no teu orgulho: Perguntas: como um diabo t˜ao ordin´ ario pode apresentar-se diante de um t˜ ao grande homem?” A frase revolucion´ aria representa simplesmente a defesa do psiquismo do intelectual contra as ofensas desse gˆenero: ´e o anjo de asas queimadas. Ela satisfaz o amor-pr´ oprio dos intelectuais, que se debatem como v´ıtimas do desejo pouco consciente de sair do niilismo. Quando se crˆe, com efeito, ter rompido com a sociedade burguesa ou, que se levante, ao menos, um protesto intelectual contra ela, exige-se que essa atitude traga consigo toda a poesia das ´epocas heroicas. N˜ ao nos revoltamos contra a sociedade burguesa simplesmente para tornarmo-nos uma engrenagem no aparelho do partido e para dedicarmo-nos a estat´ısticas prosaicas. Tememos cair, de uma maneira ou de outra, no conformismo. Aquele que se aferra assim a frase revolucion´ ` aria do trotskismo, encontra-se, por esse fato, separado do proletariado, o qual – como Merleau-Ponty vˆe muito bem – permanece fiel aos partidos comunistas e ` a Uni˜ ao Sovi´etica. Mas isto em nada conta, ao contr´ ario: resta sempre o recurso de se lamentar, numa atitude de luto sublime, na solid˜ ao do n˜ ao-conformista ao meio de uma ´epoca m´a. N˜ ao pretendemos, longe disso, ter esbo¸cado, no que precede, a psicologia de Merleau-Ponty. Estamos, no entanto, convencidos de que a atitude que acabamos de descrever coincide com a de numerosos de seus amigos e leitores e pensamos, al´em disso, que as falhas e as obscuridades do existencialismo apenas favorecem a sobrevivˆencia dos res´ıduos ideol´ogicos de que falamos. Pois, em u ´ltima an´ alise, o caminho no qual se encontra engajado ´ preciso uma persMerleau-Ponty n˜ ao conduz ` a supera¸c˜ ao do niilismo. E pectiva concreta e real e esta s´ o se poderia constituir a partir da an´alise concreta da realidade objetiva, a partir do tra¸cado concreto do caminho 133

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que vai do presente real ao futuro real. As abstra¸c˜oes da ontologia existencialista, sobretudo quando adotam as frases revolucion´arias do trotskismo, n˜ ao podem superar o niilismo, assim como as outras filosofias materialistas n˜ ao ultrapassam seus mitos. Isto n˜ ao ´e um conformismo pragm´atico de hoje, mas foi o pr´ oprio Marx que escreveu: “A dificuldade consiste somente na defini¸ca˜o geral dessas contradi¸c˜ oes; desde que as especifiquemos, elas se resolvem.” Mas como Merleau-Ponty chegou a formular sua posi¸c˜ao propriamente dita face ao presente, ap´ os ter aflorado, frequentemente de uma maneira muito espiritual, numerosas quest˜ oes de ordem moral, ou antes relativas `a responsabilidade hist´ orica? No que concerne `a sua atitude em rela¸c˜ao ao comunismo, declara que se define por uma simpatia sem filia¸c˜ao e um livre exame isento de inimizade. Nada temos a objetar a uma tal atitude, com a condi¸c˜ ao, todavia, que permane¸ca sempre praticamente realiz´avel para Merleau-Ponty. Ali´ as, desenvolve essa posi¸c˜ao de um modo um pouco mais concreto ainda, mais ou menos em analogia com S. de Beauvoir, enquanto recusa misturar-se ` a confus˜ ao, isto ´e, no sentido de um “audessus de la mˆel´ee”. Isto tamb´em nos parece pouco critic´avel. Poder´ıamos, no entanto, notar que tratando do problema dos colaboracionistas, portanto de um problema de atualidade, Merleau-Ponty escreveu que a posi¸c˜ao acima dos partidos ´e neste caso muito baixa; ´e o parti-pris da justi¸ca. Por outro lado, observaremos igualmente que a atitude de Merleau-Ponty corresponde `as vezes exatamente ` as defini¸c˜ oes menos n´ıtidas e mais retr´ogradas de sua concep¸c˜ ao da Hist´ oria. Escreve, por exemplo, que em certas fases hist´oricas os intelectuais devem necessariamente permanecer `a margem, pois a liber´ bem natural, sendo dado o fundadade do pensamento est´ a proibida. E mento subjetivista da sua concep¸c˜ ao da Hist´oria, que muda sua estrutura segundo a natureza da atitude subjetiva daquele que dela se aproxime. Assim, para a ontologia existencialista, n˜ao ´e a irracionalidade da Hist´oria que determina a restri¸c˜ ao da liberdade do pensamento dos intelectuais, mas a Hist´ oria torna-se irracional (do amontoado ecl´etico de racional e fortuito que era), desde que as necessidades de uma defesa pat´etica do “au-dessus de la mˆel´ee” o exigem. Mas de que intelectuais se trata? Depois de seu per´ıodo “au-dessus de la mˆel´ee”, Romain Rolland soubera percorrer o caminho que o conduziu `a defesa ativa do verdadeiro progresso da humanidade. Da atmosfera niilista e das frases revolucion´ arias de seu mundo irracional, o seu caminho conduziu o S. R. Savmkov-Ropchine ` a testa de seus bandos contra-revolucion´arios. 134

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Literato da mesma extra¸c˜ ao moral e intelectual, Koestler tornou-se o turifer´ ario zeloso do imperialismo churchilliano. Quanto a Malraux – cujo talento ´e incomparavelmente maior e mais autˆentico que o de Koestler –, niilista dado ao culto da frase revolucion´ aria, tamb´em chegou a um lugar de destaque no estado-maior intelectual do General De Gaulle. De minha parte, jamais neguei o momento relativamente justificado do existencialismo, segundo o qual o homem se encontra colocado diante de uma escolha, em face de uma situa¸c˜ ao que exige resolu¸c˜ao. Historicamente falando, o existencialismo se encontra tamb´em em uma “situa¸c˜ao” e, nos ide´ ologos da classe de Merleau-Ponty, a resolu¸c˜ao n˜ao ´e somente de ordem moral e pol´ıtica, mas ao mesmo tempo filos´ ofica. Por´em essa resolu¸c˜ao, principalmente a de tirar todas as consequˆencias de sua atitude, sem temor e sem hesita¸c˜ ao, exige uma certa coragem. Simone de Beauvoir formula – inconscientemente talvez – com bastante exatid˜ao, a atitude dos existencialistas honestos, ao querer caracterizar a “situa¸c˜ao” do homem atual em geral, quando diz que “...tˆem medo diante da liberdade”. Sendo dada a posi¸c˜ ao que ocupam hoje, esse medo ´e nitidamente sens´ıvel em S. de Beauvoir, como em Merleau-Ponty. Hoje, tˆem ainda liberdade, mas tamb´em a responsabilidade hist´ orica da resolu¸c˜ ao que ´e exigida deles: depende apenas deles pr´ oprios se quiserem seguir o caminho de Romain Rolland ou antes o de Malraux. Entretanto, as coisas tˆem sua pr´ opria l´ ogica e d´a-se o mesmo no reflexo da realidade objetiva da nossa consciˆencia. A posi¸c˜ao existencialista est´ a, por sua pr´ opria natureza, t˜ ao profundamente ligada ao niilismo, que aqueles que nela se aferrarem ser˜ ao levados – quer queiram ou n˜ao – na dire¸c˜ ao seguida por Malraux. Qualquer que seja a resolu¸c˜ao subjetiva dos existencialistas honestos, qualquer que seja a medida na qual sua resolu¸c˜ao modificar o curso ele seu destino de homens e de pensadores, ´e a Hist´oria que decidir´ a dos destinos do existencialismo e, no essencial, sua decis˜ao j´a tomou forma.

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Cap´ıtulo IV

A Teoria Leninista do Conhecimento e os Problemas da Filosofia Moderna ´ 1. A ATUALIDADE IDEOLOGICA DO ´ MATERIALISMO FILOSOFICO Em Materialismo e Empiriocriticismo, sua principal obra filos´ofica, Lˆenin d´ a uma defini¸c˜ a o clara da diferen¸ca, criada pela evolu¸c˜ao hist´orica, que separa sua ´epoca da de Marx e de Engels. A ideologia dos autores do Manifesto Comunista ´e um materialismo dial´etico e hist´ orico, enquanto que na ´epoca em que se situa a atividade de Lˆenin, o centro de gravidade do problema se desloca: a evolu¸c˜ ao do pensamento est´a agora centrado num materialismo dial´etico e hist´ orico. Como se justifica o lugar preponderante que o materialismo filos´ofico ocupa no pensamento da ´epoca imperialista? Justifica-se, a nosso ver, pelo fato de que o idealismo filos´ ofico atravessa atualmente a crise mais profunda e, at´e agora, insuper´ avel de sua hist´ oria. Com efeito, nosso per´ıodo hist´ orico apresenta, no plano pol´ıtico e social, um car´ater reacion´ario ex137

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tremo e esse fato empresta ` a crise um aspecto completamente particular. A evolu¸c˜ ao das ciˆencias naturais e sociais do s´eculo XIX encurralou o idealismo filos´ ofico em contradi¸c˜ oes que era incapaz de resolver. Mas, porque as correntes sociais e pol´ıticas que dominam nosso tempo n˜ao poderiam passar sem uma ideologia idealista, a crise tomou obrigatoriamente o aspecto de uma s´erie ininterrupta de tentativas, com vistas a descobrir um “terceiro caminho”, que haveria de permitir `a moderna teoria burguesa do conhecimento ultrapassar o idealismo e o materialismo. Na realidade, trata-se apenas, sem d´ uvida, de tentativas de renova¸c˜ao do idealismo destinado a tornar-se uma arma nova no combate ideol´ogico contra o materialismo. N˜ ao ´e poss´ıvel tentar compreender esse processo complexo e multiforme, a n˜ ao ser que se renuncie de uma vez por todas a deter-se nas especula¸c˜oes vazias da teoria burguesa do conhecimento. Trata-se antes de tudo de opor o materialismo ao idealismo, de uma maneira fundamental, excluindo toda possibilidade de malentendido. A f´ ormula de Engels, segundo a qual o materialismo afirma o primado da existˆencia sobre a consciˆencia, enquanto que o idealismo se define pela afirma¸c˜ ao do contr´ario, nos conv´em perfeitamente. Mas essa defini¸c˜ ao de base oferece duas perspectivas poss´ıveis `a ideologia idealista. Na primeira, a do idealismo subjetivo, a consciˆencia identifica-se a todas as formas da consciˆencia individual, da qual a existˆencia ´ assim que ´e apenas o produto, enquanto sensa¸c˜ ao, ilus˜ao, ideia etc. E ´e poss´ıvel distinguir diversas orienta¸c˜ oes no interior do idealismo subjetivo, de que certos adeptos admitem, fora da consciˆencia, uma existˆencia objetiva, mas incognosc´ıvel por princ´ıpio (a Ding an sich de Kant), enquanto outros proclamam inexistente tudo o que ultrapassa as formas e os conte´ udos da consciˆencia. Essa u ´ltima orienta¸c˜ao atinge sua foma mais pura no solipsismo. Quanto ao idealismo objetivo, a no¸c˜ ao `a qual confere o car´ater exclusivo de realidade propriamente dita ´e igualmente assimil´avel `a consciˆencia, que n˜ ao ´e entretanto a consciˆencia humana e individual. Trata-se, ao contr´ario, de uma consciˆencia objetivamente existente da qual a consciˆencia humana seria apenas um derivado muito long´ınquo, uma emana¸c˜ao ou uma fase. Ora, ´e evidente que n˜ ao existe nem na natureza, nem na sociedade, e em nenhuma parte ali´ as, uma consciˆencia objetiva dessa ordem, que seja independente da consciˆencia humana. O idealismo objetivo est´a, portanto, por sua pr´ opria natureza, constantemente submetido `a necessidade de criar 138

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mitos para demonstrar e ilustrar a existˆencia dessa consciˆencia objetiva e seu papel de criador universal. Os mais importantes desses mitos s˜ao as diversas concep¸co˜es da divindade, mas existem naturalmente outros mitos ideol´ ogicos relativos ao idealismo objetivo, tais como, por exemplo, o mito platˆ onico do mundo da ideia pura, de que o nosso ´e apenas o reflexo, e tamb´em o Weltgeist hegeliano, que abarca na concep¸c˜ao de um processo de evolu¸c˜ ao grandiosa o conjunto da natureza e da sociedade, o mundo material e espiritual do homem etc... O brilho, a efic´ acia e a dura¸c˜ ao dos sistemas dependentes do idealismo objetivo s˜ ao fun¸ca˜o da rela¸c˜ ao que existe entre o mito que est˜ao condenados a criar e o n´ıvel geral e a posi¸c˜ ao das ciˆencias de sua ´epoca. O idealismo objetivo pode, na medida em que as condi¸c˜ oes determinadas pela ´epoca o permitem, integrar em seu sistema certos elementos essenciais da filo´ o caso da teoria do conhecimento de Plat˜ao e dos sofia materialista. (E neoplatˆ onicos.) Pode, por outro lado, formular em seu mito elementos metodol´ogicos novos, iluminados pelo progresso das ciˆencias, ainda que sob um aspecto mitificado. (Por exemplo: a ideia de evolu¸c˜ao em Hegel.) Eis porque na ´epoca do decl´ınio da sociedade antiga o idealismo objetivo constituiuse sob sua forma mais intransigente, a que lhe deu Plotino: eis porque o pensamento de Santo Tom´ as de Aquino pˆode dominar os s´eculos da Idade M´edia; eis porque ainda os princ´ıpios metodol´ogicos pregressistas, nascidos da grande subvers˜ ao social e cient´ıfica da Revolu¸c˜ao puderam ser formulados, com o m´ aximo de perfei¸c˜ ao em rela¸c˜ao `a ´epoca, pelo idealismo objetivo de Hegel. O progresso das ciˆencias no s´eculo XIX reduziu a nada esse clima espiritual indispens´ avel ao desenvolvimento do idealismo objetivo. Falta-nos lugar aqui para esbo¸car, mesmo sumariamente, as circunstˆancias dessa derrota. Portanto, mencionaremos simplesmente a ideia da evolu¸c˜ao hist´orica, que se impˆ os tanto nas ciˆencias naturais como nas ciˆencias morais. Por isso mesmo, tornou-se imposs´ıvel para sempre considerar o mundo humano, o conjunto da natureza e da sociedade, como o produto de um ato criador u ´nico: a partir de ent˜ ao, a consciˆencia humana est´a dada para a ciˆencia como o produto hist´ orico de uma evolu¸c˜ ao natural de v´arios milh˜oes de anos e de uma evolu¸c˜ ao social muito longa. Tamb´em os adeptos do idealismo objetivo conduziram um combate encarni¸cado durante s´eculos contra os progressos das ciˆencias, desde as descobertas de Cop´ernico at´e `as de Darwin. Ao fim de certo tempo, foram obrigados a incorporar esses resul139

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tados – sob formas modificadas, falseadas ou atenuadas – a seu sistema. Essa assimila¸c˜ ao progressiva significa entretanto que o mito criado pelo idealismo objetivo torna-se cada vez mais abstrato, cada vez mais vazio de conte´ udo e cada vez menos apto a fornecer uma explica¸c˜ao pelo menos plaus´ıvel dos fenˆ omenos da vida real. Os mitos dependentes do idealismo objetivo que se constituem em tais condi¸c˜oes n˜ao contˆem mais, mesmo sob formas mitificadas, os germes de uma nova evolu¸c˜ao cient´ıfica, porque est˜ao condenados, por sua pr´ opria natureza, a participar de um combate aberto ´ ou dissimulado contra as conquistas das ciˆencias e a ideologia cient´ıfica. E assim que, no clima social pr´ oprio ao est´agio do imperialismo, o idealismo objetivo deveria fatalmente tornar-se a ideologia da ala extrema da rea¸c˜ao. O nascimento do mito fascista representa o auge dessa evolu¸c˜ao. Essa crise do idealismo objetivo levou o conjunto do pensamento idealista a uma alternativa. De um lado, restava-lhe a possibilidade de ligar-se a um solipsismo sem reservas, que s´ o reconhece como efetivamente reais ´ evidente que o pensador conos conte´ udos da consciˆencia individual. E sequente que adotar essa doutrina ver-se-´a obrigado a colocar em d´ uvida ´ com efeito imposs´ıvel ser solipsista at´e a existˆencia de seus semelhantes. E intransigente; como Schopenhauer disse um dia: s´o se pode ser verdadeiramente solipsista num hosp´ıcio. A outra solu¸c˜ ao consistiria na confiss˜ao da falˆencia do idealismo filos´ ofico e na obriga¸c˜ ao de proceder ` a sua liquida¸c˜ao. Condi¸c˜ oes particulares, pr´ oprias ao est´agio do imperialismo, n˜ao permitiram essa evolu¸c˜ ao realizar-se. No seu lugar, assistimos a in´ umeras tentativas sem resultado, cuja finalidade ´e elaborar um “terceiro caminho” da filosofia, tentativas que s´ o podem se realizar ao pre¸co de um logro demag´ ogico ou antes – nos pensadores de boa f´e – por um engodo inconsciente. Tal ´e o segredo do “terceiro caminho”, que passa por n˜ao ser nem idealista nem materialista, mas representante de um ponto de vista mais elevado, mais cient´ıfico e mais moderno. A concep¸c˜ ao do “terceiro caminho” implica – ´e preciso dizˆe-lo – a confiss˜ ao secreta da falˆencia do idealismo. Contrariamente ao idealismo cl´ assico, cujos representantes tinham orgulho de se declararem idealistas e de participarem de um combate aberto contra o materialismo, os adeptos modernos do “terceiro caminho” n˜ ao ousam mais proclamar sua filia¸c˜ao ao idealismo e v˜ ao mesmo aparentar que o combatem. Esse caminho s´o pode conduzir, mesmo em pensadores de boa f´e, a uma mistura ecl´etica e arbitr´ aria de elementos provenientes de sistemas diferentes. 140

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A derrocada das bases cient´ıficas do idealismo objetivo levou necessariamente os adeptos do “terceiro caminho” ao idealismo subjetivo. Com exce¸c˜ ao de certos casos raros, n˜ ao aceitaram jamais, no entanto, as consequˆencias que decorriam dessa situa¸c˜ ao e, renunciando contradizer seu pr´ oprio ponto de partida, esfor¸caram-se sempre para atingir um certo objetivismo, salvaguardando sempre as posi¸c˜ oes te´oricas do idealismo subjetivo. Naturalmente, n˜ ao podem escapar da necessidade de criar mitos, necessidade que resulta da estrutura geral do idealismo objetivo. Mas, enquanto que na ´epoca do idealismo objetivo cl´assico esses mitos forneciam ideologias universais e cheias de grandeza, os mitos nascidos sob a ´egide do “terceiro caminho” limitam-se a revestir as categorias do idea´ assim que o conte´ lismo subjetivo de uma pseudo-objetividade. E udo da consciˆencia torna-se em Mach um “elemento” da realidade objetiva, gra¸cas a opera¸c˜ ` ao de contrabando que consiste em identificar com a consciˆencia qualidades e objetos que ela apenas tira da realidade objetiva. A mitifica¸c˜ ao propriamente dita consiste em apresentar esses elementos como se n˜ ao fossem nem conte´ udo da consciˆencia nem realidade objetivamente existente mas “alguma outra coisa”. Essas veleidades filos´ oficas, de que a escola de Mach representa um resultado, deveriam encontrar na pessoa de Lˆenin um advers´ario vitorioso. A cr´ıtica te´ orica de Lˆenin ´e de um porte t˜ ao elevado que todos os seus argumentos se aplicam aos sistemas an´ alogos nascidos ulteriormente, durante a evolu¸c˜ ao do imperialismo. O essencial da cr´ıtica leninista consiste em afastar resolutamente todas as especula¸c˜ oes vazias, para voltar `a quest˜ao sobre a qual deve repousar toda teoria do conhecimento, a saber: primado da existˆencia ou primado da consciˆencia. Partindo da´ı, confronta o ecletismo da teoria do conhecimento moderno com os resultados das ciˆencias e essa confronta¸c˜ ao demonstra sem equ´ıvoco que os adeptos do “terceiro caminho” s˜ ao na realidade idealistas subjetivos. A ideologia pr´opria ao “terceiro caminho”, essa pretensa supera¸c˜ ao da antinomia idealismo-materialismo, nada mais ´e que um tecido de frases ocas e mitos errados. Lˆenin n˜ao deixa de comparar a teoria do conhecimento do idealismo atual, contradit´orio e enganador, aos seus ancestrais sinceros e intransigentes, tal como a de ´ evidente que a compara¸c˜ Berkeley. E ao n˜ ao fala em favor dos modernos. Acrescentemos ainda que a aceita¸c˜ ao sem reserva da pura ortodoxia berkeleyana estaria ainda longe de resolver o problema no qual est˜ao envolvidos os idealistas de nosso tempo. O bispo Berkeley n˜ao pode, com efeito, escapar ` a posi¸ca˜o indefens´ avel do solipsismo puro a n˜ao ser garantindo 141

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a realidade objetiva do mundo exterior, do mundo humano, pela interposi¸cao da divindade. Ora, essa solu¸c˜ ao est´a proibida `a maior parte dos pensadores atuais. Desde Nietzsche at´e Sartre, os fabricantes dos mitos mais audaciosos proclamam-se ateus. Seria falso crer que a cr´ıtica de Lˆenin concerne exclusivamente `a doutrina de Mach e que a evolu¸c˜ ao ulterior da filosofia a ela escapa. A tendˆencia dominante da filosofia do est´agio do imperialismo permanece imut´ avel: ´e a pesquisa do “terceiro caminho”. Nada prova melhor que o exemplo do existencialismo proveniente da fenomenologia de Husserl. A´ı tamb´em a filosofia pretende atingir a realidade objetiva, auxiliando-se das categorias da consciˆencia pura. A fenomenologia de Husserl e a ontologia a qual deu nascimento procedem examinando os conte´ ` udos, os estados e os atos da consciˆencia. A ilus˜ ao consiste precisamente em crer que basta voltar as costas aos m´etodos puramente psicol´ogicos para sair do dom´ınio da consciˆencia. Ora, a fenomenologia, que considera n˜ao os estados e os conte´ udos da consciˆencia como reflexos da realidade objetiva, n˜ao pode fazer outra coisa sen˜ ao criar um mito. O n´ ucleo central desse mito ´e fornecido pela pretensa existˆencia autˆ onoma de certas categorias da consciˆencia, dadas como existindo fora de toda consciˆencia. No in´ıcio de sua evolu¸c˜ ao, Husserl est´a ainda muito pr´oximo da escola de Mach. “A quest˜ ao da existˆencia e da natureza da realidade objetiva ´e uma quest˜ ao metaf´ısica”, diz, repudiando assim toda teoria do conhecimento. A pretens˜ ao ao objetivismo n˜ ao tarda, entretanto, a prevalecer, tanto em Husserl como nos seus alunos e ´e assim que se desenvolve a ontologia, isto ´e, a pesquisa mais recente do “terceiro caminho”. Assim como a fenomenologia de Husserl, tamb´em a ontologia inclina-se para entidades que dependem exclusivamente da consciˆencia, mas para proclamar de uma maneira absolutamente dogm´atica e sem o menor come¸co de prova, que os “objetos” assim revelados s˜ao objetivamente reais, at´e os que constituem o fundamento mesmo da realidade objetiva. Assim, a ontologia moderna utiliza, sem o confessar, as aquisi¸c˜oes do materialismo, porque na medida em que p˜oe correla¸c˜oes objetivas, estas n˜ ao podem ser outra coisa que os reflexos da realidade objetiva na consciˆencia. Assim procedendo, ´e perfeitamente incapaz de demonstrar o que tem a aud´ acia de proclamar – apoiando-se na introspec¸c˜ao – como essˆencia de toda existˆencia. Isto redunda, no melhor dos casos, em fazer passar por realidades certas formas correntes do pensamento. Assim, por exemplo, procurando as 142

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categorias de base da existˆencia social, Heidegger n˜ao ´e somente incapaz de fornecer a defini¸c˜ ao epistemol´ ogica, mas ainda n˜ao cessa de false´a-las, conforme ` as aspira¸c˜ oes do pessimismo moderno. Eis porque assistimos no campo do existencialismo `as mesmas lutas internas que Lˆenin tinha constatado nos alunos de Mach: cada um acreditava ter descoberto o verdadeiro “terceiro caminho”, mas no entanto seus colegas e seus rivais n˜ ao deixavam jamais de demonstrar que ele apenas tornava a servir simplesmente o bom velho solipsismo, revestido de uma ´ exatamente essa cr´ıtica que J.-P. Sartre dirige a terminologia nova. E Husserl e a Heidegger. Lˆenin tem o m´erito de ter analisado o “terceiro caminho” desde o in´ıcio dessa evolu¸c˜ ao. Desvendou o mecanismo do mito que se constitui sob essa bandeira, provando que o idealismo objetivo que se tornou indefens´avel, so¸cobra no solipsismo. Iluminou de maneira nova a modifica¸c˜ao profunda dos la¸cos entre as ciˆencias e a filosofia, constatando que se a filosofia antiga sustentava o progresso das ciˆencias, a filosofia moderna desempenha o papel de freio porque idealiza todas as tendˆencias reacion´arias. ´ primeiramente no dom´ınio do conhecimento cient´ıfico que Lˆenin d´a E uma defini¸c˜ ao clara das rela¸c˜ oes que unem a filosofia e as ciˆencias. Antes de tudo, trata-se para Lˆenin de elucidar sem equ´ıvoco poss´ıvel a plataforma da ´ preciso separar bem teoria do conhecimento do materialismo filos´ ofico. E nitidamente a defini¸c˜ ao gnosiol´ ogica da no¸c˜ ao de mat´eria das defini¸c˜oes concretas que dela oferecem as ciˆencias naturais no decorrer de cada etapa de sua evolu¸c˜ ao. “Pois a u ´nica qualidade da mat´eria sobre a qual repousa o materialismo filos´ ofico, escreve Lˆenin, ´e sua realidade objetiva, que existe fora da nossa consciˆencia”. Essa delimita¸c˜ ao muito n´ıtida n˜ ao quer dizer, longe disso, que a filosofia ´ o contr´ario que considera com indiferen¸ca os resultados das ciˆencias. E ´e verdadeiro. Lˆenin, como o fez Engels antes dele, sublinha em v´arias oportunidades que ´e um dever para a filosofia materialista assimilar todo progresso novo das ciˆencias naturais e aproveitar toda nova descoberta, para obter um conhecimento mais concreto e mais exato da estrutura da mat´eria. As rela¸c˜ oes entre a filosofia e as ciˆencias poderiam portanto ser caracterizadas da maneira seguinte: mesmo nas quest˜oes especificamente filos´ oficas a filosofia ´e aprendiz das ciˆencias, mas guardando sua independˆencia total nas quest˜ oes fundamentais da teoria do conhecimento, para poder, gra¸cas a essa independˆencia, retomar seu lugar de guia das 143

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ciˆencias naturais, todas as vezes que os cientistas amea¸cam perder-se, quer por causa da influˆencia de seu meio burguˆes, quer por falta de cultura filos´ ofica. Nos nossos dias, nunca foi t˜ ao necess´ ario sublinhar a importˆancia dessa miss˜ ao da filosofia. Acontece, com efeito, e frequentemente, que cientistas – que s˜ ao todos materialistas no laborat´orio, mesmo sem confess´a-lo – caem na ideologia reacion´ aria, desde que esbo¸cam a menor tentativa te´ orica ou metodol´ ogica. Lˆenin n˜ ao demonstrou que o pr´oprio Mach, na sua pr´ atica cient´ıfica, estava obrigado, segundo sua pr´opria confiss˜ao, a ser materialista?... ´ a´ı que o materialismo militante de Lˆenin interv´em no grande deE bate da filosofia. Contrariamente ` a pseudo-objetividade professoral – que apenas dissimula, bem ou mal, o parti-pris [vi´es, opini˜ao preconcebida] filos´ ofico e social consciente ou n˜ ao – h´a, em Lˆenin, um parti-pris n´ıtido ´ ali´as, assim como Lˆenin e consciente em todas as quest˜ oes ideol´ ogicas. E, ´ esse parti-pris que o diz, a caracter´ıstica geral da filosofia materialista. E toma uma forma concreta no combate de Lˆenin contra o idealismo novo. Quanto ` a cr´ıtica filos´ ofica, Lˆenin opera uma distin¸c˜ao muito n´ıtida entre a que vem de direita e a que ´e mantida pela esquerda. Assim, por exemplo, a hesita¸c˜ ao kantiana entre o materialismo e o idealismo, que se manifesta mais claramente a prop´ osito da Ding an sich, sofreu cr´ıticas provenientes da esquerda (Feuerbach e Tchernichevski) que lhe reprovam abandonar o materialismo abstrato para recair no agnosticismo idealista, enquanto as cr´ıticas vindas da direita (desde Fichte at´e a escola de Mach) acham que postulando a existˆencia objetiva da Ding an sich, Kant deixou de ser um idealista consequente. Eis como se formam, na luta ideol´ ogica, alian¸cas objetivas em torno de certas quest˜ oes, alian¸cas que n˜ ao devem, ali´as, jamais fazer perder de vista as divergˆencias que separam os “aliados” entre si. Lˆenin critica de uma maneira muito incisiva o idealismo de Hegel, sem que se veja impedido de aprovar sua cr´ıtica dial´etica da Ding an sich kantiana. Lˆenin igualmente criticou – e veremos com que vigor – as falhas do antigo materialismo e entretanto soube descobrir aliados contra o “terceiro caminho” de Mach e Feuerbach at´e em Haeckel e mesmo na pr´atica cient´ıfica dos cientistas atra´ıdos pelo kantismo. Ali´ as, Lˆenin, como j´a dissemos, atribui uma importˆ ancia consider´ avel ` as cr´ıticas que se dirigem reciprocamente os pensadores idealistas e que constituem, segundo ele, uma parte importante do processo de autodestrui¸c˜ ao do idealismo. 144

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Por todas essas raz˜ oes, sob a pena de Lˆenin, a hist´oria da filosofia tornase viva, movimentada e mesmo dram´ atica. O estilo da cr´ıtica leninista ´e vivo e nervoso e seu sentido cr´ıtico apreende toda tendˆencia progressista, mesmo se est´ a embara¸cada em contradi¸c˜ oes. O que Lˆenin reprova nos pensadores marxistas de sua ´epoca ´e precisamente o car´ater puramente negativo de sua cr´ıtica, que considera nem exaustiva nem suficientemente ´ antes do ponto de vista do materialismo vulgar que do convincente. “E materialismo dial´etico, escreve, que Plekhanov critica o kantismo – e o agnosticismo em geral – na medida em que se limita a rejeitar seus racioc´ınios a limine, sem os corrigir (como Hegel corrigira Kant), aprofundando-os, generalizando-os e alargando-os, para revelar as correla¸c˜oes e interpenetra¸c˜ oes de todas as categorias.” Como em todos os grandes pensadores cl´ assicos, n˜ ao h´ a, em Lˆenin, separa¸c˜ ao estrita entre a filosofia especulativa, a cr´ıtica e a hist´ oria da filosofia. E eis porque Lˆenin julga t˜ao severamente a concep¸c˜ ao acadˆemica e, ao mesmo tempo, a concep¸c˜ao “interessante” da hist´ oria da filosofia.

´ 2. MATERIALISMO E DIALETICA Foi necess´ ario colocar todas essas quest˜ oes para chegar ao problema da dial´etica. Vimos com que vigor Lˆenin sublinha a importˆancia do materialismo; seria entretanto totalmente falso concluir da´ı que despreza a dial´etica. Ao contr´ ario: ´e o primeiro pensador revolucion´ario, depois de Marx e Engels, que soube dar um novo impulso ao estudo da dial´etica. O problema do primado gnosiol´ ogico da mat´eria apresenta-se nele sob um aspecto novo. O materialismo ocupa, com efeito, um lugar central na evolu¸c˜ ao atual do pensamento, precisamente porque o m´etodo dial´etico n˜ ao poderia agora afirmar-se de outro modo a n˜ao ser sobre a base da ideologia materialista. A crise do idealismo exclui definitivamente, com efeito, a possibilidade de ver surgir no nosso tempo – guardadas todas as propor¸c˜ oes – um Proclo, um Nicolau de Cusa, um Vico ou um Hegel. Mas a vida n˜ ao para; as ciˆencias naturais prosseguem sua evolu¸c˜ao, e os problemas sociais est˜ ao agora carregados de uma for¸ca da qual depende o futuro da humanidade. Esses processos continuam seu curso, sejam ou n˜ ao adeptos do m´etodo dial´etico os pensadores da nossa ´epoca. A pr´opria vida, a evolu¸c˜ ao da sociedade e da natureza s˜ao de car´ater dial´etico e quanto mais nosso conhecimento as penetrar, quanto mais nossa evolu¸c˜ao 145

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´ assim que a objetiva progredir, mais esse car´ ater se desvenda a n´os. E ciˆencia e, antes de tudo, a filosofia, acabam por se encontrar em face de problemas que n˜ ao poderiam ignorar e que tomam um car´ater dial´etico cada vez mais acentuado. A ciˆencia e, em primeiro lugar, a filosofia, s˜ao entretanto incapazes de fornecer a essas quest˜oes dial´eticas respostas que o sejam igualmente. O problema autˆentico, frequentemente decisivo para o homem, recebe uma solu¸c˜ ao falsa, desfigurada, enganadora. A quest˜ao real, cuja resposta implicaria possibilidades grandiosas de progresso, tornase assim uma arma a servi¸co da rea¸c˜ ao. Lˆenin reconheceu genialmente essa condi¸c˜ao essencial da filosofia moderna. Longe de se limitar a constatar essa evolu¸c˜ao, evidente para ele, no dom´ınio das ciˆencias morais, que se tornaram reacion´arias, estendeu o campo de sua descoberta, aplicando-a `a crise da filosofia idealista e mesmo ` a da f´ısica moderna, prevendo assim nas suas grandes linhas toda a evolu¸c˜ ao ulterior das ciˆencias naturais modernas. A grande subvers˜ ao da f´ısica moderna, essa subvers˜ao cujo resultado concreto n˜ ao se manifesta para n´ os sen˜ao h´a pouco, data, como se sabe, da primeira d´ecada do nosso s´eculo. Lˆenin logo reconheceu a importˆancia dessa transforma¸c˜ ao do ponto de vista da filosofia, o que lhe permitiu fornecer imediatamente a resposta dial´etica ao problema igualmente dial´etico que essa transforma¸c˜ ao das ciˆencias naturais tinha objetivamente colocado. Essa transforma¸c˜ ao manifestara-se, antes de mais nada, pela derrocada “brusca” de concep¸c˜ oes consideradas inabal´aveis h´a d´ecadas e mesmo h´a s´eculos, sobre as qualidades e a estrutura da mat´eria. A dualidade cl´assica da mat´eria e da energia, da mat´eria e do movimento tornou-se “de repente” vacilante. A necessidade de no¸co˜es f´ısicas novas apresentava-se ao mesmo tempo motivada pela vontade de dar aos fenˆomenos que se acabava de descobrir, uma express˜ ao adequada no plano do pensamento. Ora, a grande maioria dos f´ısicos fil´ osofos, como dos pensadores especializados em comentar a evolu¸c˜ ao das ciˆencias naturais, recuava em desordem diante dessas quest˜ oes, decididamente insol´ uveis, sem o recurso do m´etodo dial´etico. Essa fuga em pˆ anico para o idealismo reacion´ario devia arrastar mesmo certos f´ısicos que permaneceram, no entanto, materialistas nos seus trabalhos cient´ıficos. A crise te´ orica das ciˆencias da natureza apresentava-se de um lado sob o aspecto de uma crise das concep¸c˜ oes estabelecidas e, de outro, – sobretudo no dom´ınio especulativo – como uma crise do materialismo. A transforma¸c˜ ao da f´ısica significava, para alguns, o desaparecimento da mat´eria, 146

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e, portanto, a derrocada da ideologia materialista. Sabemos que essa crise da filosofia n˜ ao deixou de causar estragos nos meios marxistas: mais ou menos em toda parte, na II Internacional, o materialismo perdia terreno, enquanto o revisionismo filos´ ofico, o kantismo, a doutrina de Mach encontravam adeptos. ´ ao longo dessa crise que Lˆenin soube aproveitar a fertilidade e a E efic´ acia da ideologia materialista. Lˆenin via muito claramente que a subvers˜ ao da f´ısica n˜ ao tocava em nada as bases filos´oficas do materialismo. Quando a f´ısica d´ a uma defini¸c˜ ao inteiramente nova da estrutura da mat´eria, ´e evidente que a filosofia materialista deve dela se aproveitar. Mas quaisquer que sejam as descobertas da f´ısica, qualquer que seja o conte´ udo concreto das leis e das hip´ oteses que fundam, a u ´nica quest˜ao fundamental da teoria do conhecimento permanece inalterada. Eis o que diz Lˆenin a esse respeito: “O u ´nico ponto de vista justo, o do materialismo dial´etico, deve ser formulado assim: os el´etrons, o ´eter e todo o resto existem ou n˜ao fora ´ a essa quest˜ao que da consciˆencia humana, enquanto realidade objetiva? E os cientistas devem responder sem hesita¸c˜ ao e eles respondem sempre afirmativamente, da mesma forma que admitem a existˆencia da natureza como anterior ao nascimento do homem e da mat´eria orgˆanica. A quest˜ao est´a assim decidida em favor do materialismo, pois, como j´a vimos, a no¸c˜ao de mat´eria nada mais significa, do ponto de vista da teoria do conhecimento, do que a realidade objetiva, cuja existˆencia ´e independente da consciˆencia humana e ´e refletida por esta.” No entanto, essa resposta justa e decisiva constitui para Lˆenin apenas um ponto de partida. Explicando a crise, analisa o idealismo reacion´ario ao qual d´ a origem e demonstra irrefutavelmente que as hip´oteses novas que ser˜ ao constru´ıdas sobre fenˆ omenos novos n˜ao tocam em nada as bases da teoria do conhecimento materialista. Sublinha igualmente que a crise da f´ısica ´e ao mesmo tempo a do antigo materialismo mecanicista. N˜ao ´e a mat´eria que desaparece, n˜ ao ´e a categoria gnosiol´ogica da mat´eria que muda, mas ´e o m´etodo te´ orico do materialismo mecanicista que desmorona por causa da incapacidade em apreender fenˆomenos novos de uma maneira adequada. As causas de sua falˆencia s˜ao antes de mais nada a rigidez dogm´ atica de suas categorias, a preponderˆancia da doutrina mecanicista, a incompreens˜ ao do relativismo das teorias da ciˆencia e, enfim, a ausˆencia do m´etodo dial´etico. Lˆenin nos diz que “a f´ısica nova devia macular-se de idealismo, essencialmente porque os f´ısicos ignoravam tudo da dial´etica. Combatiam o materialismo metaf´ısico (na acep¸c˜ao engelsi147

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ana do termo e n˜ ao dos positivistas, isto ´e, de Hume), e lutando contra seu car´ ater unilateral e mecanicista terminaram por minar os fundamentos do materialismo. A nega¸c˜ ao da imutabilidade da estrutura e das qualidades at´e ent˜ ao conhecidas da mat´eria conduziu-os `a nega¸c˜ao da pr´opria mat´eria, em outras palavras, ` a nega¸c˜ ao da realidade objetiva do mundo f´ısico. A nega¸c˜ ao do car´ ater absoluto das leis fundamentais mais importantes levou-os a colocar em d´ uvida a existˆencia de toda lei objetiva na natureza e declarar que as leis naturais eram simplesmente ’conven¸c˜oes’, ’necessidades l´ ogicas’ etc. Postulando o car´ater aproximativo e relativo do conhecimento, foram levados a negar o objeto que existe independentemente do conhecimento, objeto que esse conhecimento reflete de uma maneira aproximativa e relativamente justa etc., etc.” Vemos que ´e precisamente para defender o materialismo que Lˆenin dirige-se contra o materialismo antigo e que ´e ainda a defesa do materialismo que o leva a acentuar os problemas da dial´etica. Lˆenin ataca frontalmente esses problemas, colocando a quest˜ao da relatividade do conhecimento. O m´etodo dial´etico formula essa quest˜ao da maneira seguinte: como a relatividade do conhecimento – a das leis, teoremas etc. – pode constituir um elemento necess´ ario, inelut´avel, do absoluto? Como ocorre que a relatividade do conhecimento n˜ ao destr´oi a objetividade das leis e dos teoremas, assim como a objetividade e a permeabilidade ao conhecimento do mundo exterior? Somente a dial´etica pode fornecer-nos a resposta a essa quest˜ao. Para todo o pensamento mecanicista, metaf´ısico ou atolado na l´ogica formal, a verdade n˜ ao pode ser sen˜ ao absoluta ou relativa. N˜ao h´a transi¸c˜ao: ´e preciso escolher entre os dois. O materialismo n˜ao-dial´etico n˜ao escapa tamb´em a essa alternativa. Ora, o relativismo e, com ele, o agnosticismo terminaram necessariamente por impor-se ao pensamento antidial´etico moderno porque a evolu¸c˜ ao das ciˆencias e a evolu¸c˜ao da pr´opria vida imp˜oenos a todo momento novas provas da relatividade dos fenˆomenos, assim como o conhecimento que temos deles. A quest˜ ao que Lˆenin p˜ oe, em presen¸ca da crise da f´ısica moderna e da falˆencia do materialismo n˜ ao-dial´etico, tem portanto um sentido bem mais profundo e mais geral que a ocasi˜ ao que lhe serve de pretexto. Comentando a crise da f´ısica moderna, Lˆenin n˜ao se limita a fazer o processo do materialismo n˜ ao-dial´etico mas sublinha que o idealismo atual ´e incapaz de assimilar os fatos novos trazidos ` a luz pela evolu¸c˜ao da ciˆencia. S´o a forma de sua falˆencia ´e particular, porque resulta numa ideologia relati148

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vista, que se afirmar´ a ao longo da evolu¸c˜ ao do pensamento moderno. A t´ıtulo de exemplo, bastar´ a evocar o papel da probabilidade no existencialismo francˆes. ` quest˜ A ao assim posta por Lˆenin, Hegel tinha j´a dado uma resposta dial´etica, declarando que o relativo era um componente, mas somente um componente, da dial´etica. Em rela¸c˜ ao ` a totalidade, n˜ao se chega `a nega¸c˜ ao da verdade objetiva, mas ` a defini¸c˜ ao hist´orica e gnosiol´ogica da aproxima¸c˜ ao da verdade. Eis como Lˆenin exp˜oe esse princ´ıpio: “Para o materialismo moderno, isto ´e, para o marxismo, somente os limites da aproxima¸c˜ ao da verdade objetiva s˜ ao historicamente determinados, enquanto que a existˆencia dessa verdade mesma ´e absoluta, tanto quanto nosso progresso em dire¸c˜ ao a ela... O que ´e historicamente determinado ´e a data e as circunstˆ ancias da conclus˜ ao de nosso conhecimento da essˆencia das coisas... mas o fato de que toda descoberta de tal natureza ´e um progresso do ’conhecimento absolutamente objetivo’, ´e ele mesmo absoluto. Em suma, toda ideologia ´e historicamente determinada, mas ´e absoluto que a toda ideologia cient´ıfica corresponde uma verdade objetiva, isto ´e, um elemento da natureza absoluta. Objetar-me-˜ ao sem d´ uvida que essa distin¸c˜ao entre verdade relativa e verdade absoluta ´e bem vaga. Responderei a essa obje¸c˜ ao dizendo que minha distin¸c˜ ao ´e suficientemente vaga para impedir a transforma¸c˜ ao da ciˆencia em dogma no sentido pejorativo da palavra, isto ´e, em uma coisa morta, r´ıgida, petrificada, mas que ´e ao mesmo tempo suficientemente n´ıtida para tra¸car, n´ıtida e irrevogavelmente, a fronteira entre o fide´ısmo e o agnosticismo, de um lado, e o idealismo filos´ofico e os sofismas dos disc´ıpulos de Kant e de Hume, de outro.” Somente o materialismo dial´etico pode chegar a essa concep¸c˜ao, flex´ıvel e intransigente ao mesmo tempo, da relatividade enquanto momento do absoluto. Sua f´e no Weltgeist autorizava a Hegel uma convic¸c˜ao t˜ao profunda na existˆencia objetiva e na inteligibilidade do mundo exterior, que pode perfeitamente conceber a relatividade enquanto momento, sem no entanto cair no relativismo. Em Hegel, esse reconhecimento da natureza dial´etica da realidade ro¸ca mais de uma vez, ali´ as, o limite da dial´etica materialista. O idealismo atual, ao contr´ ario, quando tenta ultrapassar o agnosticismo puro ou o solipsismo, s´ o pode perder-se em mitos sem fundamento, frequentemente demag´ ogicos, ou ent˜ ao elaborar pensamentos, ideias e experiˆencias vividas que n˜ ao pertencem a ningu´em e que s˜ ao tidas como “elementos comuns” ao mundo objetivo e ao mundo subjetivo. Para a filosofia moderna, a escolha est´ a portanto limitada entre um mito confessado e o mito que 149

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procura esconder-se. Mas permanece fatalmente anticient´ıfica e antiprogressista, porque suas s´ınteses fundam-se apenas num u ´nico elemento. O pensamento que se constr´ oi sobre tais bases n˜ao poderia ser dial´etico. Se bem que idealista, o pensamento de Hegel era dial´etico, mesmo que seu Weltgeist abarcasse, ainda que sob um aspecto mitificado, o conjunto da natureza e da sociedade, como tamb´em a hist´oria desta. Al´em disso, a concep¸c˜ ao hegeliana n˜ ao era dogm´ atica e r´ıgida, mas sim a representa¸c˜ao m´ ovel do processo universal da vida, renovando-se sem cessar pela morte. Uma tal concep¸c˜ ao ´e imposs´ıvel para o “terceiro caminho” do idealismo moderno. N˜ ao ´e por acaso que a revolu¸c˜ao de 1848 marca o t´ermino da crise da filosofia hegeliana, ` a qual deveriam suceder diversas variantes do materialismo mecanicista e do idealismo subjetivo, muito diferentes entre si mas todas igualmente antidial´eticas. N˜ao ´e por acaso que essa ´epoca vive tamb´em o apogeu da influˆencia de Schopenhauer, que qualificava a dial´etica de “del´ırio”. Enfim, n˜ ao ´e por acaso que Kierkegaard, o advers´ario mais intransigente da dial´etica hegeliana, torna-se o pensador em moda nos anos que deveriam preceder o advento do fascismo. Essas poucas considera¸c˜oes bastam sem d´ uvida para indicar qu˜ ao intranspon´ıvel ´e o abismo entre o materialismo dial´etico e todas as outras correntes do pensamento no est´agio ´ ali´ do imperialismo. E, as, precisamente a consciˆencia dessa contradi¸c˜ao irreconcili´ avel que explica o vigor decisivo da argumenta¸c˜ao, nos escritos filos´ oficos de Lˆenin. Lˆenin via acertadamente, desde o in´ıcio, o que se preparava; sabia que todas essas teorias distintas, redigidas numa linguagem completamente inacess´ıvel ` a m´edia das pessoas, forjariam as armas filos´ oficas, pol´ıticas e sociais da rea¸c˜ ao mundial. Lˆenin sabia, como grande pensador dial´etico, extrair o lado positivo deste conjunto de fatos negativos. Assim como as leis da dial´etica ensinam, ´ evidente que n˜ao falamos das a nega¸c˜ ao ´e a for¸ca motriz do progresso. E teorias reacion´ arias e dos mitos mas dos pr´oprios fenˆomenos, que fundam estas vis˜ oes do esp´ırito. A nega¸c˜ ao f´ertil, for¸ca motriz do progresso, reside sempre nas quest˜ oes e n˜ ao nas respostas. Ora, no caso de que nos ocupamos, trata-se da crise da f´ısica e da derrocada da antiga no¸c˜ao da mat´eria. Lˆenin combatia os comentadores idealistas desse fenˆomeno e estudava com interesse e compreens˜ ao o pr´ oprio fenˆ omeno, tal como se manifestava na crise das ciˆencias naturais. Tamb´em devia ele compreender que a derrocada das concep¸c˜ oes do materialismo mecanicista marcava precisamente o momento do nascimento da concep¸c˜ ao nova do materialismo dial´etico. “A f´ısica moderna, escreve ele, est´ a em vias de dar `a luz o materialismo 150

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dial´etico.” Citamos acima a cr´ıtica leninista das concep¸c˜oes de Plekhanov sobre a hist´ oria da filosofia. Aqui, Lˆenin n˜ ao se contenta em exercer uma cr´ıtica. Por sua pr´ opria a¸c˜ ao pr´ atica, opˆ os sua concep¸c˜ao verdadeiramente marxista do progresso ideol´ ogico da humanidade `a imagem desfigurada e grosseira que o materia lismo mecanicista faz dele.

˜ DIALETICA ´ 3. SIGNIFICAC ¸ AO DA ˜ APROXIMAC ¸ AO NA TEORIA DO CONHECIMENTO Para Lˆenin, a principal fraqueza do materialismo mecanicista reside na sua incapacidade de aplicar a dial´etica ao processo do conhecimento. Que significa essa cr´ıtica no plano da filosofia? O materialismo mecanicista atribui ao conhecimento a proje¸c˜ao direta de um mundo est´ atico e im´ ovel, um reflexo bruto, tal como resulta de nossa experiˆencia cotidiana. Essa experiˆencia ´e, sem d´ uvida, um fenˆomeno fundamental, que constitui fatalmente o ponto de partida de toda reflex˜ao, porque o u ´nico conhecimento que temos do mundo chega-nos por interm´edio ´ imposs´ıvel contestar essa verdade, sem cair em pleno dos nossos ´ org˜ aos. E agnosticismo. Mas o mundo exterior ultrapassa o que ´e imediatamente dado pela percep¸c˜ ao de nossos ´ org˜ aos. O mundo exterior ´e ao mesmo tempo movimento e transforma¸c˜ ao. Compreende ainda a dire¸c˜ ao da transforma¸c˜ao e suas leis, assim como elementos constantes, escapando talvez `a nossa percep¸c˜ao direta, mas que nem por isso deixam de compor os fenˆomenos que percebemos. Para o materialismo pr´e-marxista havia nisto um dilema insol´ uvel, dilema que o jovem Marx devia identificar em Dem´ocrito, na contradi¸c˜ao que subsiste entre a percep¸c˜ ao direta e a no¸c˜ ao de ´atomo. A filosofia moderna apresenta numerosas variantes contemporˆaneas desse mesmo problema. Lˆenin estabelece claramente o la¸co necess´ario entre a percep¸c˜ ao e a realidade objetiva – o “sensualismo” n˜ao ´e, para ele, um elemento constitutivo da atitude materialista? – mas por outro lado, reconhece que se trata apenas de um elemento, que tem de ser inscrito numa totalidade dial´etica para tornar-se a garantia do conhecimento da realidade objetiva. Isolado em si mesmo, o sensualismo n˜ao poderia fornecer essa garantia e Lˆenin sublinha com raz˜ ao que o sensualismo de Locke foi o ponto 151

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de partida comum do materialismo de Diderot e do solipsismo de Berkeley. N˜ ao ´e por acaso que Shaftesbury ou Diderot, todos os dois materialistas, procurando formular as leis da existˆencia, ocupam uma posi¸c˜ao vizinha do platonismo. O problema das rela¸c˜ oes que unem o fenˆomeno e a existˆencia, a existˆencia e a lei etc., o problema de sua homogeneidade ou de sua unidade dial´etica ´ ainda torna-se portanto essencial na evolu¸c˜ ao do pensamento moderno. E Hegel, precursor da dial´etica moderna, que realiza o passo adiante decisivo, e Lˆenin, nas suas Notas Marginais para a L´ ogica de Hegel, define toda a importˆ ancia metodol´ ogica desse passo. A reflex˜ao, ultrapassando a existˆencia imediata d´ a lugar ` a ilus˜ ao de que essa supera¸c˜ao seria unicamente devida ao conhecimento e exterior portanto ` a realidade objetiva. Na verdade, essa supera¸c˜ ao ´e realizada pela pr´ opria existˆencia, assim como a descoberta de Hegel e os coment´ arios materialistas de Lˆenin ressaltam. Ora, se caminhando do fenˆ omeno para a essˆencia, o conhecimento apenas segue o movimento da pr´ opria existˆencia, isto ´e, se tudo o que se convencionou chamar “abstra¸c˜ ao”, “lei natural” etc., ´e apenas forma nova, se bem que inacess´ıvel ` a percep¸c˜ ao direta do pr´ oprio existente, se enfim esse caminho do conhecimento n˜ ao constitui uma atividade autˆonoma, pertencendo-lhe exclusivamente, mas simplesmente o reflexo complexo e indireto do movimento e da transforma¸c˜ ao do ser na consciˆencia humana, ent˜ao a teoria do conhecimento materialista, segundo a qual a consciˆencia humana reflete a realidade objetiva cuja existˆencia ´e independente da sua, apresenta-se sob uma luz completamente nova. A realidade objetiva sendo ela mesma um processo feito do movimento dos fenˆ omenos que evoluem para tornar-se seu contr´ ario, a reflex˜ ao n˜ ao poderia pretender reproduz´ı-la de uma maneira adequada, a n˜ ao ser com a condi¸c˜ ao de ser ela mesma dial´etica. Essa concep¸c˜ ao suprime de vez as quest˜oes que pareceram insol´ uveis `a teoria do conhecimento do idealismo. A oposi¸c˜ao r´ıgida entre fenˆomeno e essˆencia, entre o imediato e a coisa-em-si (Ding an sich) n˜ao existe mais. A essˆencia ´e objetivamente real e, do ponto de vista da teoria do conhecimento, “da mesma essˆencia” do imediato: essa descoberta suprime o erro que consistia em rebaixar o fenˆ omeno ao n´ıvel da aparˆencia. A interpreta¸c˜ ao geral e abstrata da no¸c˜ ao de objetividade atribui existˆencia tanto ao fenˆ omeno imediato quanto ` a essˆencia. A diferen¸ca que os separa, manifesta-se – atrav´es da sucess˜ ao ininterrupta das transi¸c˜oes – pela diversidade dos graus da existˆenc!a. O estabelecimento dessa grada¸c˜ao do ser (Sein, Dasein, Wesen, Existenz, Realit¨ at, Wirklichkeit) representa uma 152

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das maiores revela¸c˜ oes da l´ ogica hegeliana. Sublinhemos, entretanto, que n˜ ao se trata de uma hierarquia fria e r´ıgida, como a dos neoplatˆonicos, mas de uma unidade dial´etica, isto ´e, contradit´ oria, da relatividade do ser ou do n˜ ao-ser. A essˆencia est´ a dotada de uma existˆencia mais profunda que o fenˆ omeno imediato, que ´e apenas um de seus elementos constitutivos, enquanto a essˆencia ´e precisamente a s´ıntese, a unidade desses elementos. Segue-se necessariamente que jamais poderiam ser considerados separadamente um do outro. O conhecimento da correla¸c˜ao m´ utua dos fenˆomenos objetivos e imediatos indica o caminho para o conhecimento da coisa-em-si: assim como Marx e Engels, Lˆenin faz igualmente sua essa cr´ıtica de Hegel a Kant. As considera¸c˜ oes que precedem n˜ ao poderiam entretanto pretender esgotar o problema das rela¸c˜ oes dial´eticas do absoluto e do relativo. O conhecimento da essˆencia s´ o se torna verdadeiramente adequado quando a ´ assim que a investiga¸c˜ao reflex˜ ao chega a descobrir suas leis imanentes. E cient´ıfica abstrata atinge a mais elevada forma `a qual possa pretender. Lˆenin, assim como Marx e Engels, n˜ ao deixa de insistir na importˆancia dessa considera¸ca˜o, sobretudo nas suas polˆemicas contra o empirismo vulgar, que se perde na enumera¸c˜ ao, na descri¸c˜ ao e no ordenamento mecˆanico dos fenˆ omenos imediatos. Contra esse empirismo, Engels tinha raz˜ao de escrever: “A lei geral da transforma¸c˜ ao da energia cin´etica ´e bem mais concreta que tal ou tal de seus exemplos ’concretos’.” Lˆenin tamb´em se volta resolutamente contra a concep¸c˜ ao, de Kant por exemplo, segundo a qual a essˆencia apreendida pela reflex˜ ao n˜ ao poderia pretender `a verdade objetiva, porque lhe falta a mat´eria temporal e espacial fornecida pelos sentidos. “O valor, escreve Lˆenin, ´e uma categoria `a qual falta a mat´eria fornecida pelos sentidos e no entanto ´e mais verdadeira que a lei da oferta e da procura.” Lˆenin filia-se totalmente ` a posi¸c˜ao de Hegel face a Kant, no que concerne ` a distin¸c˜ ao entre o fenˆ omeno e a coisa-em-si. Faz sua a proposi¸c˜ ao geral da dial´etica hegeliana, segundo a qual o mundo da coisa-em-si e dos fenˆ omenos ´e apenas um, mesmo sendo os dois contr´arios, o que quer dizer que o mundo dos fenˆ omenos imediatos, assim como o da coisa-em-si, constituem para o conhecimento apenas momentos, grada¸c˜oes, transi¸c˜oes. E no entanto, ap´ os ter-se aproximado, em t˜ ao larga medida, da posi¸c˜ao de Hegel, acusa-o de n˜ ao ver que o mundo da coisa-em-si afasta-se cada vez mais do mundo dos fenˆ omenos imediatos. Essa u ´ltima considera¸c˜ ao poderia fazer crer `a primeira vista que a dial´etica prop˜ oe-se eliminar a antinomia que sacode o materialismo an153

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tigo desde Dem´ ocrito, diminuindo a importˆancia dos fenˆomenos imediatos. No entanto, n˜ ao ´e nada disso, porque Lˆenin toma bastante cuidado em insistir na passagem em que Hegel especifica que o mundo das leis nada mais ´e do que o reflexo im´ ovel do mundo existente, isto ´e, do mundo dos fenˆ omenos imediatos. Disto resulta que em rela¸c˜ao ao mundo das leis, o mundo dos fenˆ omenos representa o todo, a totalidade, porque cont´em a lei e, al´em disso, a pr´ opria forma que se move. Em outras palavras, isto significa que o conjunto da realidade ´e sempre mais rico que a lei mais adequada e ´e precisamente esse fato que melhor ilustra o papel da relatividade enquanto momento, na evolu¸c˜ ao do conhecimento cient´ıfico. O conhecimento cada vez mais avan¸cado das leis reduz, certamente, essa margem, cada vez mais, mas a contradi¸c˜ ao dial´etica entre essˆencia e fenˆomeno imediato n˜ao ´e menos eterna. A lei concreta n˜ ao ser´a jamais sen˜ao a aproxima¸c˜ ao da totalidade real, sempre m´ ovel, incessantemente mut´avel, em todos os sentidos infinita, que o pensamento n˜ ao poder´a jamais esgotar de uma maneira perfeita. ´ assim que ` E a quest˜ ao bem posta da relatividade do conhecimento, a teoria do conhecimento do materialismo dial´etico fornece a boa resposta. Nossos conhecimentos s˜ ao apenas aproxima¸c˜oes da plenitude da realidade, e por isso mesmo, s˜ ao sempre relativos: na medida, entretanto, em que representam a aproxima¸c˜ ao efetiva da realidade objetiva, que existe independentemente de nossa consciˆencia, s˜ao sempre absolutos. O car´ater ao mesmo tempo absoluto e relativo da consciˆencia forma uma unidade dial´etica indivis´ıvel. ´ a´ı que a concep¸c˜ E ao dial´etica materialista da aproxima¸c˜ao infinita separa-se muito nitidamente da de Kant. Esta u ´ltima ´e dial´etica, porque d´a conta do car´ ater aproximativo do conhecimento enquanto processo infinito, mas porque o Ding an Sich ´e por princ´ıpio incognosc´ıvel e o processo infinito do conhecimento s´ o pode ter por objeto o mundo dos fenˆomenos imediatos, faz cair a totalidade do conhecimento no relativismo. Essa cr´ıtica aplica-se bem melhor ainda aos neokantianos, assim como aos disc´ıpulos modernos de Hume e de Berkeley, que contestam a existˆencia do Ding an Sich, no¸c˜ ao “sup´erflua”. O pensamento idealista moderno separa rigidamente o absoluto do relativo; separa cirurgicamente as rela¸c˜oes vivas e reais da realidade objetiva, para isolar um u ´nico elemento, o da relatividade, que erige em u ´nico princ´ıpio condutor do conhecimento cient´ıfico. Tal procedimento s´ o pode falsear e desfigurar a realidade. Leva necessariamente ` aquilo que Lˆenin tinha frequentemente previsto: toda a verdade 154

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torna-se absurda, desde que ultrapassa seus limites. A concep¸c˜ ao leniniana do conhecimento cient´ıfico reserva portanto um lugar de primeiro plano ` a no¸c˜ ao de aproxima¸c˜ao e esse fato ´e de uma importˆ ancia pr´ atica consider´ avel do ponto de vista da metodologia das ciˆencias naturais e da sociologia. As concep¸c˜ oes mecanicistas do materi´ assim que alguns alismo antigo s´ o podiam levar a ideologias fatalistas. E acreditam que o conhecimento perfeito dos “elementos u ´ltimos” do mundo e das leis que governam suas rela¸c˜ oes permitiria descrever a priori e com exatid˜ ao toda situa¸c˜ ao a se produzir no futuro. A evolu¸c˜ao da astronomia parecia, num certo momento, justificar essas ideias. Mas quando a nova dire¸c˜ ao dial´etica da f´ısica moderna abalou as bases das concep¸c˜oes cl´ assicas, os adeptos das diversas escolas idealistas conclu´ıram peremptoriamente pela derrubada da no¸c˜ ao de lei natural. Ao problema dial´etico colocado pela evolu¸c˜ ao da realidade, apressaram-se em dar respostas relativistas, agn´ osticas, e at´e m´ısticas, atrelando assim a populariza¸c˜ao das ciˆencias naturais ao carro das ideologias reacion´arias. Essas concep¸c˜ oes est˜ ao, entretanto, muito difundidas nas ciˆencias morais burguesas, ou submetidas a influˆencias burguesas. (Pensemos na teoria nietzscheana do eterno retorno ou antes em Bukarin que afirmava que somente o n´ıvel insuficiente de seu desenvolvimento impede a sociologia de prever os acontecimentos a vir, com tanta exatid˜ao quanto a astronomia.) O fatalismo que se funda em tais erros n˜ ao ´e s´ o teoricamente indefens´avel, mas ainda exerce um efeito paralisador em toda atividade humana, principalmente naquela que visa ` a transforma¸c˜ ao radical da sociedade no sentido do progresso. Escamoteando as ciˆencias sociais, a dial´etica do car´ater absoluto e relativo do conhecimento, amputando o conhecimento de seu car´ater de aproxima¸c˜ ao, suprime-se a “margem de liberdade” filos´ofica da atividade social. No pensamento burguˆes esta ilus˜ ao apresenta-se sob a forma do dilema insol´ uvel do voluntarismo e do fatalismo, do livre arb´ıtrio ilimitado e da necessidade cega e mecˆ anica. O existencialismo, por exemplo, aproveita pretensas conquistas da teoria burguesa do conhecimento para reduzir todo conhecimento humano sobre a realidade objetiva ao n´ıvel de probabilidade, o que justifica em seguida a oposi¸c˜ao a essa realidade com um livre arb´ıtrio ilimitado, enquanto u ´nica instˆancia absoluta. A maneira pela qual Lˆenin aplica as concep¸c˜oes da realidade e do conhecimento do materialismo dial´etico ao dom´ınio das ciˆencias sociais e da atividade social ´e de uma fertilidade not´ avel. Falta-nos lugar, infelizmente, mesmo para esbo¸car a exposi¸c˜ ao desses problemas muito exten155

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sos. Limitar-nos-emos, portanto, a deixar claro, com o aux´ılio de alguns exemplos caracter´ısticos, o antagonismo absoluto que existe entre a teoria leniniana e as teorias pseudo-socialistas burguesas, ou submetidas a influˆencias burguesas. Demonstraremos que somente a concep¸c˜ao leniniana pode fazer concordar o estudo e o conhecimento mais aprofundado das leis da evolu¸ca˜o da sociedade com a mais larga atividade social pr´atica. Durante a crise mundial que sobreveio ap´os 1920, Lˆenin combateu com igual vigor os economistas burgueses que viram nela apenas um desequil´ıbrio passageiro, e os revolucion´ arios segundo os quais a situa¸c˜ao n˜ao comportava mais nenhuma sa´ıda para a burguesia. “N˜ao existe situa¸c˜ao absolutamente sem sa´ıda”, dizia Lˆenin, o que significa, em linguagem filos´ ofica, que o m´etodo marxista permite perfeitamente determinar se uma crise grave do capitalismo pode tornar-se fatal, em certas circunstˆancias concretas, mas que a quest˜ ao de saber se tal ou tal crise comporta uma sa´ıda, n˜ ao poderia ser resolvida sen˜ ao pela luta, pela a¸c˜ao pr´atica das classes em presen¸ca. Postular anteriormente a ausˆencia objetiva de toda sa´ıda ´e, segundo Lˆenin, jogar com palavras: s´o a a¸c˜ao pr´atica dos partidos revolucion´ arios pode provar a ausˆencia real ele toda sa´ıda. Essa atitude de Lˆenin, ali´ as, ilumina singualarmente certas divergˆencias, que se manifestaram a respeito de numerosas quest˜oes econˆomicas entre ele e Rosa Luxemburgo. Assim, Lˆenin definiu com precis˜ ao a atitude que deve ter o partid´ario do materialismo dial´etico face ` a realidade objetiva, que existe independentemente da consciˆencia, e tamb´em face `a sua pr´opria atividade pr´atica na sociedade. Essa atitude funda-se teoricamente na rela¸c˜ao entre o conhecimento e a realidade objetiva, tal como foi descrita por Lˆenin. Eis como Lˆenin, falando da evolu¸c˜ ao revolucion´aria, formulava essa rela¸c˜ao: “A Hist´ oria, escreve ele, em particular a hist´oria da revolu¸c˜ao ´e sempre mais variada, mais rica, mais complexa e mais ’astuta’ do que imaginam as vanguardas mais conscientes dos melhores partidos e das classes mais avan¸cadas.” Essa nota esclarece o car´ ater de aproxima¸c˜ao do conhecimento, unidade dial´etica do absoluto e do relativo. Contrariamente ao pensamento burguˆes, que nega a existˆencia objetiva do mundo real, e dele se desvia ideologicamente, como de uma potˆencia obscura, perigosa e incalcul´avel, o materialismo dial´etico prop˜ oe a confian¸ca e a fidelidade em rela¸c˜ao ao mundo objetivo. O conhecimento certamente n˜ ao atingiu ainda toda a realidade, mas isto ´e apenas um encorajamento para o progresso. Os objetos mais 156

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preciosos, mais elevados do nosso pensamento, n˜ao foram sempre o reflexo da realidade objetiva? Nosso progresso humano n˜ao ´e fun¸c˜ao do aprofundamento dessa intera¸c˜ ao? Quando, enfim, entra em jogo a realidade mais pr´ oxima do homem, a sociedade, o materialismo dial´etico destr´oi ainda mais radicalmente o pessimismo da filosofia burguesa moderna com sua profunda avers˜ ao pelo real. Lˆenin n˜ ao disse, com efeito, que o movimento da Hist´ oria reserva ` a sociedade perspectivas de progresso, de evolu¸c˜ao e de metamorfose bem mais elevadas e mais preciosas do que nossos mais belos sonhos poderiam representar? Para empregar uma f´ormula mais resumida, poder-se-ia dizer que a marcha do real ´e filosoficamente mais verdadeira e mais profunda do que nossos pensamentos mais profundos. Para o partid´ ario do materialismo dial´etico, essas considera¸c˜oes constituem um encorajamento ao estudo sempre mais aprofundado do mundo real e tamb´em – necessariamente – a uma atividade pr´atica sempre mais resoluta e mais segura dela mesma. O movimento da Hist´oria ´e uma soma de a¸c˜ oes humanas da qual nossa pr´ opria a¸c˜ ao, a do proletariado revolucion´ ario, forma um dos componentes que n˜ ao poder´ıamos negligenciar. O conhecimento, que est´ a em condi¸c˜ oes de apreender dialeticamente as “ast´ ucias” da evolu¸c˜ ao hist´ orica, s´ o ´e v´ alido e eficaz quando suas aquisi¸c˜oes forem outros tantos expedientes para a a¸c˜ ao pr´atica, cujas experiˆencias vir˜ ao, por sua vez, enriquecer o conhecimento e fornecer-lhe uma for¸ca sempre nova. A teoria leniniana do conhecimento ´e a alta escola da a¸c˜ao pr´ atica.

4. TOTALIDADE E CAUSALIDADE Uma an´ alise t˜ ao extensa e t˜ ao f´ertil da rela¸c˜ ao entre o absoluto e o relativo s´ o se torna poss´ıvel com a condi¸c˜ ao de que o conhecimento apreenda e estude seu objeto de todos os ˆ angulos, sob todos os seus aspectos. Desenvolvendo os caminhos de Marx, de Engels e tamb´em de Hegel, Lˆenin coloca e resolve, aqui ainda, um dos problemas essenciais da filosofia moderna, um problema que deu lugar a numerosos pseudodilemas e a tantas quest˜oes mal ´ interessante constatar o fato – muito caracter´ıstico ali´as – de colocadas. E que Lˆenin tenha colocado e resolvido o problema, antes mesmo que o pensamento burguˆes tivesse chegado a false´ a-lo e a desfigur´a-lo. Falamos do problema da totalidade. Esta palavra est´ a hoje envolvida de uma impopularidade que parece ple157

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namente justificada; numerosos s˜ ao aqueles que acreditam que ela prov´em do vocabul´ ario do fascismo. E isto n˜ ao ´e de forma alguma um fato do acaso. ´ preciso reconhecer que, neste terreno, “a ideologia” fascista n˜ao deixou E de tirar benef´ıcio das correntes filos´ oficas reacion´arias que precederam seu nascimento. O que foi, no limiar do est´ agio do imperialismo, apenas a veleidade de esperar “um est´ agio definitivamente constante” (Petzold), devia manifestar-se ap´ os a primeira Guerra Mundial sob uma forma bem mais evolu´ıda e mais explicitamente reacion´ aria, gra¸cas, precisamente, `a catego´ a Othmar Spann, fil´osofo e soci´ologo fascista, se bem ria da totalidade. E que n˜ ao-hitleriano, que devemos a defini¸c˜ao mais radical. A sociedade, enquanto totalidade, significa, em Spann, a supremacia absoluta da “ordem” e da hierarquia, o que quer dizer que a totalidade exclui a causalidade e, mais ainda, a evolu¸c˜ ao. A sociedade hier´arquica da “ordem” forma um todo orgˆ anico, uma totalidade que s´ o poderia existir enquanto tal, isto ´e, imut´ avel. A sociedade fascista ´e eterna. A´ı est´ a, sem d´ uvida, uma concep¸c˜ ao levada ao extremo e que passa por ser caricatural, mesmo para o pensamento burguˆes, e at´e reacion´ario. N˜ao deixou de exercer – precisamente por causa de seu car´ater extremo – uma influˆencia profunda em certos meios. Ora, para compreender a verdadeira natureza dessa influˆencia, ´e indispens´ avel comparar a concep¸c˜ao de Spann aquela, bem menos consequente, de seus precursores da escola de Mach, ` por exemplo. Pudemos constatar, quase em toda filosofia do imperialismo, que as concep¸c˜ oes absurdamente extremistas, do gˆenero de Spann, n˜ao provocavam jamais uma cr´ıtica objetivamente dial´etica, mas sempre uma rea¸c˜ao extrema e tamb´em errada. Othmar Spann fez da categoria da totalidade uma caricatura fascista. Seus advers´ arios replicaram suprimindo toda ideia de totalidade, devido ao desprezo da realidade hist´orica e social. Jaspers, por exemplo, que exerceu uma influˆencia sens´ıvel em certos existencialistas franceses, nega a fun¸c˜ ao da categoria da totalidade no conhecimento da realidade social. Nele, a totalidade torna-se um Ding an sich, na acep¸c˜ao kantiana do termo, isto ´e, um absoluto t˜ao caricatural como o de Spann. Em seguida, ap´ os ter terminado de priv´ a-la de sentido, desembara¸ca-se com raz˜ ao da categoria de totalidade. Faz assim – e n˜ao ´e o u ´nico – do mundo um caos objetivo, no qual o homem s´ o pode criar a ordem construindo um aparelho de no¸c˜ oes teleol´ ogicas, t´ecnicas e especulativas. Frente a esse caos, h´ a, vimos, o sujeito “livre”, isolado, an´arquico, que deve o ser ao existencialismo. Em definitivo, a filosofia burguesa atola-se no pseudodilema 158

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composto de uma totalidade r´ıgida e de um caos objetivo. Bem antes que esses extremos se manifestassem sob formas t˜ao exageradas, o marxismo leniniano j´ a havia elaborado a solu¸c˜ao justa. A categoria de totalidade, como toda categoria autˆentica, reflete rela¸c˜oes reais. “As condi¸c˜ oes de produ¸c˜ ao de toda sociedade formam um todo”, escreve Marx. A categoria de totalidade significa portanto, de um lado, que a realidade objetiva ´e um todo coerente em que cada elemento est´a, de uma maneira ou de outra, em rela¸c˜ ao com cada elemento e, de outro lado, que essas rela¸c˜ oes formam, na pr´ opria realidade objetiva, correla¸c˜oes concretas, conjuntos, unidades, ligadas entre si de maneiras completamente diversas, mas sempre determinadas. Lˆenin n˜ ao retoma por sua conta o ad´agio hegeliano, segundo o qual a filosofia ´e um c´ırculo cuja circunferˆencia ´e feita de c´ırculos? Lˆenin aplica o princ´ıpio da unidade dial´etica do absoluto e do relativo, colocando em relevo o car´ ater de aproxima¸c˜ ao do conhecimento. “Para bem conhecer o objeto, escreve, devemos apreender e explorar todos os seus aspectos, todas as suas correla¸c˜ oes e todas as ’media¸c˜oes’. Nunca a´ı chegaremos completamente, mas a exigˆencia de um m´etodo multilateral nos garantir´ a contra os erros e contra o dogmatismo.” Esse m´etodo multilateral est´ a na base da l´ ogica dial´etica. Sem ele, tudo se condensaria e se tornaria unilateral. Mas a l´ ogica dial´etica ´e ao mesmo tempo bem consciente de que n˜ ao poder´ a jamais atingir esse ideal inteiramente. O conhecimento, na medida em que ´e justo, isto ´e, total, reflete sempre um conjunto composto de totalidades unidas por la¸cos orgˆanicos, mas s´o acede a ele por aproxima¸c˜ ao. Isto ´e assim, primeiro porque cada “todo” (cada c´ırculo, para retomar a express˜ ao de Hegel) que o conhecimento toma por objeto (a estrutura econˆ omica de tal pa´ıs, por exemplo) faz ao mesmo tempo parte de uma totalidade ainda mais vasta, tanto hist´orica quanto teoricamente, o que significa que objetivamente sua totalidade ´e relativa. E isto ´e assim ainda, porque o conhecimento que podemos ter da ´ totalidade ´e necessariamente relativo, sendo apenas uma aproxima¸c˜ao. E somente apreendendo correla¸c˜ oes m´ oveis, multilaterais e sempre mut´aveis dos elementos, que chegaremos – nos limites de nossas possibilidades historicamente determinadas – a cercar cada vez mais a realidade objetiva. Essa considera¸c˜ ao metodol´ ogica exerce uma influˆencia decisiva sobre o conhecimento, tanto do lado objetivo como do lado subjetivo. No que concerne ao aspecto objetivo, limitar-nos-emos a ilustrar as consequˆencias da interven¸c˜ ao de Lˆenin sobre um s´ o problema, o da causalidade. O materialismo mecanicista e o idealismo positivista moderno, um e outro igualmente 159

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metaf´ısicos, tinham ligado a possibilidade de conhecer a realidade objetiva a esp´ecie metodol´ ` ogica de cadeias r´ıgidas e isoladas de causas e efeitos, assim como ` a da lei da causalidade, sobre elas fundada. Mas a evolu¸c˜ao das ciˆencias naturais, assim como os fenˆ omenos complexos da realidade social, terminaram por tornar evidente a falˆencia desse aparelho especulativo demasiado simplista. J´ a a escola de Mach, contemporˆaneo de Lˆenin, tinha tentado substituir o princ´ıpio de causalidade por uma pretensa rela¸c˜ao funcional. O idealismo atual, que se infiltrou na f´ısica, repousa mais ou menos sobre o postulado da caducidade da rela¸c˜ao de causalidade, ao qual op˜ oe de uma maneira absoluta a rela¸c˜ ao de probabilidade. N˜ ao ´e dif´ıcil descobrir em todas essas crises – quer se trate do materialismo mecanicista ou do idealismo positivista – um tra¸co comum, que se manifesta desde o come¸co do est´ agio do imperialismo. A pura e simples admiss˜ ao da falˆencia das categorias especulativas antigas, muito r´ıgidas e muito unilaterais para poderem afirmar-se frente a realidades novas, teria sido o equivalente de uma aproxima¸c˜ ao, como momento negativo, para a posi¸c˜ ao do materialismo dial´etico. Mas a natureza mesma do pensamento burguˆes do s´eculo XX tinha impedido que se colocasse a quest˜ao dessa maneira. Portanto, ´e exatamente o contr´ario do que devia acontecer. O car´ ater metaf´ısico e a rigidez das categorias em quest˜ao foram interpretadas como qualidades da realidade objetiva e, ao inv´es de dom´a-las, puseram-se a postular um subjetivismo novo. A f´ısica moderna proclama, por exemplo, a impossibilidade de determinar, por meio da causalidade, a posi¸c˜ao dos ´ıons em movimento, enquanto que para os ´atomos esses c´alculos eram perfeitamente poss´ıveis. Em lugar de considerar esse fato novo como um fato dependente do mundo real e independente da consciˆencia, apressou-se em ver nisto um triunfo do subjetivismo sobre a realidade objetiva, agora “problem´ atica”. Os c´ alculos de probabilidade, por meio dos quais os f´ısicos determinam a posi¸c˜ ao de tal ou de tal ´ıon, deveriam autorizar certos pensadores a concluir pela elimina¸c˜ ao das rela¸c˜oes de causalidade e do princ´ıpio da necessidade objetiva. Para eles, a natureza era governada agora por um princ´ıpio de liberdade subjetivista e a f´ısica acabava de fornecer novas bases emp´ıricas para a velha doutrina do livre arb´ıtrio. Outros, enfim, aproveitaram dos fatos novos observados pelas ciˆencias naturais para estabelecer a teoria da influˆencia do sujeito observador no decorrer dos fenˆomenos objetivos, como se estes decorressem de outra forma em presen¸ca do observador, como em sua ausˆencia... Sem d´ uvida estamos aqui em face de f´ormulas novas, surgidas para 160

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comentar fatos novos, mas ´e evidente que o problema epistemol´ogico que colocam ´e o que o pr´ oprio Lˆenin tinha resolvido na sua cr´ıtica da filosofia de Mach. As limita¸c˜ oes da causalidade e suas consequˆencias metodol´ogicas est˜ ao longe de ser um fato in´edito. A estat´ıstica, por exemplo, permite constatar que colheitas v˜ ao sempre a par com um aumento do n´ umero de casamentos, mas ningu´em ousaria deduzir dessa observa¸c˜ao que Marie Durand deve esposar Jacques Dubois e nenhum outro. Por causa da boa colheita, ´e somente mais prov´ avel que tal ou tal amor ou liga¸c˜ao leve efetivamente ao casamento. Mas nenhum soci´ologo s´erio chegou a pensar que o casamento de Marie e de Jacques fosse um fato livre e “sem causa”, porque era imposs´ıvel deduzi-lo logicamente, partindo s´o da submiss˜ao a um exame metodol´ ogico cerrado das rela¸c˜ oes objetivas entre os encadeamentos l´ ogicos reais e do estabelecimento de uma correla¸c˜ao objetiva entre as s´eries de rela¸co˜es de probabilidade e causalidade. Esse mesmo princ´ıpio aplica-se perfeitamente ` as leis essenciais da doutrina econˆomica do marxismo: a corrida ao sobrelucro leva fatalmente ao abaixamento da taxa m´edia de lucro e, dessa crise, resulta a desvaloriza¸c˜ao parcial do capital. Ora, nenhum marxista pensou ainda em “deduzir” dessa lei a maneira pela qual o processo geral afetar´ a o Sr. X..., fabricante de tecidos, ou antes o Sr. Y..., capit˜ ao da ind´ ustria sider´ urgica. Mas nenhum marxista deixou de declarar que as perdas ou os lucros individuais do Sr. X... ou do Sr. Y... eram “fenˆ omenos livres”, desprovidos de causa l´ogica. Na realidade, a crise do pensamento contemporˆaneo n˜ao afeta em nada o materialismo dial´etico. E isto ocorre, primeiro porque o materialismo dial´etico n˜ ao se torna jamais culp´ avel desse diletantismo inconsistente que equivale a “saltar” da objetividade para a plena subjetividade. Mas isto ocorre, ainda, porque o materialismo dial´etico nunca considerou o princ´ıpio dogm´ atico da causalidade como a express˜ ao u ´nica das correla¸c˜oes e das leis objetivas da realidade. Lˆenin faz remontar as origens dessa posi¸c˜ao de princ´ıpio – que faz sua – a Hegel e sublinha, justamente, que ´e precisamente a aplica¸c˜ ao adequada desse princ´ıpio que abre a via a uma cr´ıtica do pensamento idealista fundado na f´ısica moderna. “Lendo o que Hegel escreveu sobre a causalidade, escreve Lˆenin, ficamos espantados que consagre t˜ao pouco espa¸co a esse assunto, no entanto t˜ ao popular entre os kantianos. Por que isto ocorre? Simplesmente porque, para Hegel, a causalidade ´e apenas uma das determina¸c˜ oes das rela¸c˜ oes universais que ele tinha, desde o in´ıcio, estudado e tratado de uma maneira bem mais profunda e bem mais geral, sublinhando sempre a unidade dos contr´arios etc., etc. Seria 161

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muito instrutivo, conclui Lˆenin, aplicar as solu¸c˜oes de Hegel, ou melhor, sua dial´etica, ` a “crise” do empirismo novo (o idealismo fundado na f´ısica moderna).” Uma vez mais, a solu¸c˜ ao dial´etica correta n˜ao poderia ser elaborada de outra forma sen˜ ao pelo estudo imparcial das rela¸c˜oes complexas da realidade e esse estudo dever´ a auxiliar-se de instrumentos de grande flexibilidade. Seu objetivo preciso ser´ a, antes de mais nada, determinar o lugar que ocupa o fenˆ omeno que tomara por objeto, no interior da totalidade concreta de que faz objetivamente parte.

5. O SUJEITO DO CONHECIMENTO E ˜ PRATICA ´ AC ¸ AO A inteligˆencia dial´etica adequada das rela¸c˜oes concretas e objetivas, concreta e objetivamente refletidas pela consciˆencia ´e de uma importˆancia decisiva para o exame gnosiol´ ogico do sujeito do conhecimento. Nos seus escritos polˆemicos, dirigidos contra a escola de Mach, Lˆenin especifica claramente que a crise do pensamento burguˆes que se manifesta nesse dom´ınio d´ a lugar a uma tendˆencia irracionalista. Ao longo da evolu¸c˜ao ulterior da filosofia burguesa, essa tendˆencia s´ o ganhou terreno. N˜ao nos podemos deter aqui para estudar as origens sociais dessa tendˆencia, origens de que tratamos precedentemente; bastar´ a constatar, mais uma vez, que as respostas erradas inspiradas pelos problemas reais equivalem a uma nega¸c˜ao mal orientada, tanto do materialismo mecanicista como do idealismo. Para a filosofia dos s´eculos XVIII e XIX, a raz˜ao era a u ´nica instˆancia do conhecimento adequado: sensa¸c˜ ao, sentimento, experiˆencia vivida, ideia, imagina¸c˜ ao eram apenas elementos destinados a pap´eis subordinados, sen˜ao enganadores, na hierarquia do conhecimento. Certos tra¸cos dessa falsa hierarquia encontram-se mesmo em Hegel. A explora¸c˜ ao cada vez mais completa da realidade objetiva deveria no entanto acabar por atrair a aten¸c˜ ao sobre o absurdo desses sistemas hier´ arquicos e fazer compreender que os preconceitos de que s˜ao a express˜ ao amea¸cam entravar a for¸ca do conhecimento que visa a dominar a realidade. Conv´em acrescentar que o abandono da dial´etica pelo pensamento burguˆes levou ` a escamotea¸c˜ ao das rela¸c˜oes dial´eticas entre a raz˜ao e o entendimento, estabelecidas por Kant e levadas por Hegel `a sua express˜ao mais elevada nos limites do pensamento idealista. Da mesma forma que, 162

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no plano objetivo, o pensamento burguˆes tinha confundido a interpreta¸c˜ao mecanicista da causalidade com a existˆencia objetiva da realidade, a cr´ıtica da hegemonia da raz˜ ao (da inteligˆencia) deveria conduzi-lo a um subjetivismo sem limite, ` a glorifica¸c˜ ao sem reserva do sentimento, da experiˆencia vivida e da intui¸c˜ ao. A realidade objetiva, que a maior parte das teorias desse gˆenero identificam com o objeto imediato, como sendo de uma essˆencia inferior, foi escamoteada pelos processos do solipsismo, ou ainda cristalizada em mitos nebulosos do pseudo-objetivismo. A divis˜ ao capitalista do trabalho, que continuamente impede o homem de se realizar na sua totalidade e na sua unidade, essa divis˜ao de que a psicologia burguesa e o lado subjetivo da teoria burguesa do conhecimento est˜ ao marcadas, manifesta-se aqui sob uma forma extrema. E ´e ainda uma ironia particular das leis da evolu¸c˜ ao que o efeito dessa divis˜ao do trabalho fa¸ca-se sentir da maneira mais opressora precisamente em pensadores cuja atitude subjetiva ´e totalmente de protesto romˆantico contra ela, tais como Bergson, Klages e outros ainda. Na verdade, esses campe˜oes da integridade do homem, por toda sua atividade, apenas destru´ıram-na ainda mais. As concep¸c˜ oes te´ oricas de Lˆenin sobre o sujeito do conhecimento empenhamse no combate tanto contra as tendˆencias (inclu´ıda aqui a de Hegel) que exageram a supremacia da raz˜ ao, como contra o irracionalismo moderno. A infinidade dos objetos do conhecimento, seu car´ater inesgot´avel, sua mudan¸ca cont´ınua, assim como a natureza de aproxima¸c˜ao do conhecimento postulam a flexibilidade das tentativas de aproxima¸c˜ao. De todas as qualidades, de todas as faculdades do sujeito, s˜ ao sempre as que se adaptam melhor ` a situa¸ca˜o concreta que devem tomar o primeiro lugar. A teoria leniniana d´ a conta sempre, portanto, de todas as qualidades do homem, dos la¸cos que os unem entre si, assim como do fato de que podem mutuamente se completar ou se transformar. Mas guarda-se bem de querer fornecer preceitos. “A imagina¸c˜ ao est´ a mais pr´oxima da realidade do que a reflex˜ ao? pergunta Lˆenin. Sim e n˜ ao.” E, noutra passagem, ap´os ter explicado que, ao refletir o movimento, o conhecimento oferece sempre uma imagem mais grosseira que o real, acrescenta: “...n˜ao somente no plano do pensamento, mas tamb´em no do sentimento”. Ou ainda, quando escreve que o reflexo “n˜ ao ´e um processo simples e direto, dando a imagem r´ıgida do espelho, mas um ato complexo, desigual, movendo-se em zigue-zague, que cont´em tamb´em a possibilidade de ver a imagina¸c˜ao destacar-se da vida. Mais ainda, esse ato encerra tamb´em a eventualidade... de que a no¸c˜ ao abstrata, a ideia se transforme em uma fantasia... Pois a genera163

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liza¸c˜ ao mais simples, como a ideia geral mais abstrata contˆem um certo elemento de imagina¸c˜ ao. (E vice-versa: seria rid´ıculo negar o papel da imagina¸c˜ ao, mesmo na ciˆencia mais rigorosa...)” Para simplificar nossa exposi¸c˜ ao, tratamos separadamente os fatores ´ evidente no entanto que uma tal objetivos e subjetivos do conhecimento. E separa¸c˜ ao pode facilmente dar lugar a malentendidos, se a interpretarmos como uma discrimina¸c˜ ao entre elementos irredutivelmente opostos uns aos outros. Tamb´em Lˆenin tem o cuidado de especificar que a antinomia da mat´eria e da consciˆencia n˜ ao ´e absoluta, mas somente enquanto forma o problema fundamental da teoria do conhecimento, isto ´e, enquanto o primado de uma sobre a outra est´ a em jogo. “Fora desse limite, escreve, a relatividade dessa antinomia ´e indiscut´ıvel.” Noutra passagem, vai at´e declarar que a transforma¸c˜ ao das ideias em realidades ´e um pensamento profundo, muito importante do ponto de vista hist´orico, e cuja verdade se manifesta a cada passo na existˆencia individual. Assim uma vez mais sublinha o car´ ater relativo da antonima mat´eria-esp´ırito, abstra¸c˜ao feita – sublinhemos – da quest˜ ao do primado gnosiol´ogico. Essas considera¸c˜ oes comportam em Lˆenin consequˆencias metodol´ogicas profundas. A relatividade dos fatores objetivo e subjetivo, material e espiritual, sua unidade dial´etica, suas transforma¸c˜oes m´ utuas manifestam-se sob um aspecto concreto onde surge a quest˜ao central de toda a teoria do conhecimento leniniana: a da atividade pr´ atica do homem, enquanto crit´erio decisivo do conhecimento. Sabe-se que Marx e Engels tinham j´a dado a essa quest˜ ao um lugar essencial na doutrina do materialismo dial´etico; Lˆenin d´ a igualmente nesse dom´ınio um novo impulso `as suas ideias, lutando contra a filosofia burguesa. Engels j´ a tinha indicado que a campanha contra o princ´ıpio de causalidade, lan¸cada por David Hume, n˜ao poderia ser colocada no plano da teoria “pura”, afastada de toda a¸c˜ao pr´atica. A rela¸c˜ ao de causa a efeito n˜ ao ´e esse “h´abito mental” caro a Hume, que consistiria em derivar uns dos outros, objetos que est˜ao apenas temporal ou espacialmente justapostos. Trata-se antes de uma rela¸c˜ao objetiva entre objetos reais, que existem independentetmente de nossa consciˆencia. Mas, para demonstrar isso, de maneira a excluir a menor d´ uvida, devemos criar, na realidade objetiva, pela aplica¸c˜ ao consciente e concreta do princ´ıpio de causalidade, rela¸c˜ oes de causa a efeito, calculadas, determinadas anteriormente. J´ a dissemos o quanto essa rela¸c˜ao, vista `a luz do materialismo dial´etico, mostra-se rica e complexa. Restava-nos lembrar sua importˆancia do ponto de vista da teoria do conhecimento. 164

Existencialismo ou Marxismo

Gy¨orgy Luk´acs

Fazendo da pr´ atica o crit´erio decisivo do conhecimento, Lˆenin coloca sob uma luz inteiramente nova as quest˜ oes mais importantes da teleologia. N˜ ao deixa de indicar a posi¸c˜ ao do problema em Hegel, sublinhando que ´e precisamente nesse ponto que Hegel aproximou-se mais do materialismo hist´ orico (nas passagens da sua L´ ogica, onde trata da ideia). A quest˜ao fundamental da evolu¸c˜ ao humana reside para Hegel na intera¸c˜ao do projeto humano e do mundo exterior (a estrutura mecˆ anica e qu´ımica do real). Vˆe que ´e precisamente nessa rela¸c˜ ao que o mecanismo e o quimismo atingem sua verdade e, mais do que isso, vˆe mesmo que nessa rela¸c˜ao o instrumento mediador ´e de uma essˆencia mais elevada que seus fins visados e seus projetos exteriores, que serve para alcan¸car. “O arado, diz Hegel, ´e imediatamente mais respeit´ avel do que os bens de consumo que auxilia a produzir e que constituem o objetivo.” Sem se demorar nesses aforismos frequentemente abstratos, Lˆenin utilizaos, emendando-os por sua interpreta¸c˜ ao materialista e concreta. Em Hegel, a rela¸c˜ ao entre o projeto humano e a realidade `a qual se aplica ´e ainda puramente exterior. Para Lˆenin, ´e absolutamente claro que o projeto humano n˜ ao ´e independente do real sen˜ ao em aparˆencia; o materialismo hist´orico, ali´ as, forneceu solu¸c˜ oes agrupadas em sistemas coerentes `as quest˜oes que surgem aqui. Lˆenin, em suma, apenas tirou todas as consequˆencias gnosiol´ ogicas. Num outro dom´ınio, inseparavelmente ligado ao de que acabamos de falar, Lˆenin devia de longe superar as ideias desenvolvidas por Hegel. Hegel esfor¸ca-se constantemente por estabelecer uma rela¸c˜ao l´ogica entre a atividade fundamental do homem, isto ´e, o trabalho produtivo e os silogismos, formas abstratas da reflex˜ ao l´ ogica. Para Lˆenin, ´e claro que isto n˜ao se trata de um jogo especulativo, mas do problema essencial das rela¸c˜oes entre a a¸c˜ ao e o pensamento. Ora, somente a teoria do conhecimento materialista pode fornecer a solu¸c˜ ao desse problema. Somente o materialismo dial´etico, com efeito, est´ a em condi¸c˜ oes de explicar como a atividade essencial do homem, o trabalho produtivo, como o crit´erio mais espec´ıfico que possa distinguir o homem do animal, – isto ´e, a utiliza¸c˜ao dos instrumentos de trabalho – se transforma pela pr´ atica consciente da conquista progressiva da natureza em formas abstratas do pensamento. A´ı, tamb´em, ´e o mundo exterior e a intera¸c˜ ao que o une ao homem atuante, que s˜ao refletidos pela consciˆencia – n˜ ao, certamente, de uma maneira direta, mas depois da interven¸c˜ ao de inumer´ aveis elementos mediadores – de um modo cada vez mais abstrato. Essa abstra¸c˜ ao n˜ ao ´e, entretanto, uma constru¸c˜ao 165

Existencialismo ou Marxismo

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do esp´ırito, mas simplesmente a manifesta¸c˜ao mais geral das a¸c˜oes e das intera¸c˜ oes reais, que est˜ ao presentes, por essa mesma raz˜ao, em todos os fenˆ omenos concretos do mundo real. “A atividade pr´atica do homem, escreve Lˆenin, devia milhares de vezes conduzir a consciˆencia humana a repetir as diferentes regras elementares da l´ogica, para que essas regras pudessem ter ganho o car´ ater de axiomas.” Essa concep¸c˜ ao dial´etica, que est´ a isenta de toda rigidez dogm´atica dos aspectos subjetivos do conhecimento, resulta diretamente da defini¸c˜ao leniniana de objeto. Uma das notas de Lˆenin recapitulando sua argumenta¸c˜ao contra o idealismo, retomar´ a a imagem hegeliana que compara o conhecimento humano a uma curva, composta de um conjunto de c´ırculos. Cada part´ıcula dessa curva, – diz em substˆ ancia Lˆenin – pode ser considerada como uma reta perfeitamente independente: o pensamento idealista, por exemplo, age assim e ´e bem o que o extravia ao atoleiro do subjetivismo. A aproxima¸c˜ ao adequada da realidade inesgot´avel pelo conhecimento postula o homem completo, que reencontrou sua totalidade. Face ao protesto impotente do romantismo que apenas intensifica a aliena¸c˜ao humana, obra do capitalismo, a teoria leniniana s´ obria e isenta de ˆenfase, indica um caminho seguro para a reconquista da totalidade humana, demonstrando antes de tudo que o conhecimento, sob todos os pontos de vista, ´e insepar´ avel da a¸c˜ ao pr´ atica e do trabalho. S´ obria e bem proporcionada, a teoria leniniana do conhecimento ´e – precisamente porque reconhece a existˆencia objetiva do real – uma brilhante manifesta¸c˜ao desse humanismo que n˜ao se ´ um aquartela na defensiva frente ao capitalista inumano e anti-humano. E humanismo combativo, que engaja os homens na luta, no conhecimento e na conquista do mundo e que trabalha – sendo ao mesmo tempo teoria e pr´ atica – para o nascimento do homem novo, com a totalidade humana reencontrada.

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